Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Homem de Marrocos / Edgar Wallace
O Homem de Marrocos / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Homem de Marrocos

 

Um homem misterioso — ladrão que a polícia não consegue descobrir — ameaça Londres com seus arrojados roubos a bancos.

Conhecido como Homem Negro devido à roupa que usa, sempre aparece com uma máscara que lhe cobre totalmente o rosto. Nunca a famosa Scotland Yard conseguiu localizá-lo, apesar dos constantes roubos durante os últimos anos.

Sem deixar rastros e vestígios, torna-se um ladrão excêntrico por roubar somente as caixas de depósito e não propriamente o dinheiro depositado.

 

                  

 

O homem de preto

James Lexington Morlake, cavaleiro do ócio, Senhor da Quinta Wold e possuidor de diversos outros títulos que raramente utilizava, abriu com a chave a gaveta da sua ornada escrivaninha estilo Império e olhou, distraído, para dentro. A gaveta era forrada de aço e tinha quatro ferrolhos diferentes. Enfiou lentamente a mão e retirou, primeiro, um quadrado dobrado de seda preta, depois, uma automática de aspecto profissional e, por último, um atado de couro fino. Desamarrou o barbante que o prendia e desenrolou-o em cima da escrivaninha. Era um estojo de couro de foca e, nas suas muitas divisões e argolas, via-se uma extraordinária variedade de ferramentas, pinças, limas — todas elas pequenas e do mais fino aço temperado.

Examinou o gume, encrustado de diamantes, de uma broca não maior do que uma faca de queijo e depois, recolocando-a no lugar, enrolou de novo o estojo e reclinou-se na cadeira, os olhos fixos, meditativamente, nas peças que acabava de expor.

A residência de James Morlake, em Bond Street, era, tal-, vez, o apartamento mais luxuoso dessa rua senhorial. A sala em que se encontrava, com seu teto alto cheio de arabescos executados pelos mais habilidosos artesãos mouros, era comprida, larga e singular. Tinha as paredes de mármore e o chão de belíssimos mosaicos, cobertos de sedosos tapetes de Ispaã. Quatro lâmpadas, recobertas por delicados tecidos de seda e prata, davam uma luz velada ao ambiente.

Além da escrivaninha, havia poucos móveis. Um divã baixo, sob a janela com reposteiros, um pequeno banco, laqueado de verde vivo, e uma outra poltrona — mais nada.

O homem sentado à escrivaninha podia ter 40 anos — tinha quatro menos — ou 50. O seu rosto era o de um erudito, curioso, vivo, móvel. Nos seus olhos havia um lampejo de riso, mais que um brilho de tristeza. Era um homem bem bonito, James Lexington Morlake, tido como originário da cidade de Nova Iorque — embora alguns duvidassem disso — e atual morador do número 803 da New Bond Street, no Condado de Londres, e da Quinta Wold, no Condado de Sussex.

Levantou os olhos da escrivaninha e dos objetos sinistros nela expostos, e bateu palmas. Por entre o cortinado de seda, na extremidade oposta da sala, surgiu um árabe franzino, de andar silencioso, a quem o imaculado fellap branco e o tarbuche escarlate davam um toque colorido contra o fundo suave.

— Mahmet, vou sair esta noite, avisarei quando pretendo voltar — disse James Morlake em mourisco, o mais puro dos três dialetos árabes. — Quando, pela graça de Deus, eu voltar, vou ter um trabalho para você.

Mahmet ergueu a mão em saudação.

— Sou seu criado, haj — replicou. — Quer falar com o seu secretário?

Morlake fez que sim. Aquela maneira de referir-se a Binger sempre o divertia. "Secretário" era um delicado eufemismo do mouro.

Binger entrou na sala: um homem baixo, forte, de rosto vermelho.

Olhou para o patrão e, depois, para o estojo de ferramentas em cima da mesa, e suspirou.

— Vai sair, patrão? — perguntou, compungido.

Era um tipo incomum de cockney*, o que aspira os agás mesmo quando não é preciso. Em mais de 10 mil londrinos, apenas um tem esse hábito. Noventa por cento não pronunciam os agás, mesmo os aspirados.

* Cockney, londrino típico, das camadas mais modestas e de pouca instrução. (N. da T.)

 

— Vou sair e talvez me demore alguns dias. Você sabe onde me encontrar.

— Espero que sim — disse o soturno Binger. — Espero não o encontrar onde sempre receio encontrá-lo — numa horrível cela de prisão.

James Morlake riu.

— Você não foi destinado pela Providência a ser valet de um ladrão, Binger — disse ele e Binger estremeceu.

— Não use esse termo, patrão, por favor! Faz-me tremer de horror! Não cabe a mim fazer criticas, coisa que nunca fiz. E, se o senhor não fosse ladrão, a estas horas eu seria cadáver. O senhor se arriscou por mim e nunca vou-me esquecer!

O que ele dizia era verdade. Uma noite, James Lexington Morlake, no desempenho das suas atividades profissionais, assaltara um armazém do qual Binger era encarregado. Morlake entrara pelo armazém a caminho de um objetivo bem maior — havia um banco na extremidade do quarteirão onde se encontrava o armazém — e deparara com um Binger semimorto, por ter caído num alçapão e quebrado uma perna da maneira mais complicada possível. Morlake parará e levara-o para o hospital, embora Binger suspeitasse de quem ele era, "O Homem de Preto", o terror de todos os gerentes de banco do Reino Unido. Assim se haviam conhecido os dois homens, ambos se arriscando — embora talvez não tivesse sido um grande risco para James Morlake, pois ele compreendia os homens.

Escolheu um cigarro de uma cigarreira de ouro que tirara do bolso, e acendeu-o.

— Quem sabe um dia destes eu ainda me torno um membro respeitável da sociedade, Binger — disse ele, com uma risada.

— Assim espero, patrão, sinceramente — retrucou Binger.

— Não é profissão que lhe convenha — o senhor passa as noites fora... não é saudável! Permita que lhe fale como um antigo soldado e lhe diga que a honestidade é a melhor política.

— Como diabos você soube que honestidade* é com agá? — perguntou James Morlake, admirado.

* honesty, em inglês, tem h aspirado. (N. da T.)

 

— Eu pronunciei o agá — disse Binger.

— Foi isso mesmo o que eu quis dizer. Bem, Binger, agora, presta atenção. Quero o carro na esquina da Rua Albermarle, às 2 h. Quando eu chegar, não o quero a 10 m. de distância do carro. Ponha uma placa de Oxford atrás e a placa de Sussex debaixo do assento. Uma garrafa térmica com café quente e um pacote de sanduíches — e é só.

Antes de desaparecer por entre o cortinado, Binger procurou expressar o que sentia.

— Boa sorte, patrão — disse, com voz melancólica.

— Oxalá você fosse sincero — replicou James Morlake, levantando-se e, pegando no comprido casaco preto estendido sobre o divã, enfiou a pistola e as ferramentas no bolso...

Na Agência de Depósitos da Rua Burlington, o vigia noturno tinha um banco para se sentar, durante as suas vigílias solitárias. Era um banco de uma só perna no meio e tinha a grande vantagem de, quando o seu ocupante cochilava, fazê-lo cair. A natureza, porém, desenvolve aptidões que vão ao encontro de todas as emergências humanas e, no decurso dos anos, o vigia da noite, apoiando o cotovelo numa prateleira e encostando o corpo à parede, aprendera a gozar de uma confortável condição de sonolência, que se aproximava do sono...

— Desculpe! — disse uma voz suave.

O vigia acordou, assustado, e pôs-se de pé, estendendo a mão para o revólver que deveria estar sobre a pequena prateleira de madeira.

— A sua arma está no meu bolso e o alarma está desligado — disse o Homem de Preto, e os olhos, por trás da máscara de seda que lhe cobria o rosto, brilharam, divertidos. — Marche!

O vigia, estonteado e já à procura de desculpas que o aliviassem da acusação de ter dormido em serviço, obedeceu.

Os cofres da Agência de Depósitos da Rua Burlington são subterrâneos e, para uso do vigia, há um pequeno compartimento de concreto, com um fogão elétrico e uma mesa dobrável. Há também um pequeno cofre embutido na parede.

— Entre aí — disse o Homem de Preto. — Volte-se para a parede e salve a minha alma do horrível crime do homicídio.

Com o nariz encostado no concreto da parede, o vigia ouviu o clique de uma fechadura e o tilintar de chaves. No cofre eram guardadas as duplicatas das chaves e, normalmente, ele só podia ser aberto pelo presidente ou pelo gerente do banco. Mas o estranho não parecia ter dificuldade em dispensar a ajuda de um e de outro.

Ouviu-se o bater da porta se fechando e, logo depois, o girar da chave na fechadura. Depois disso, silêncio, cortado apenas pelo silvo do ar que entrava pelo sistema de ventilação. Dali a 10 minutos, o visitante estava de volta e o vigia viu-o colocar no lugar as chaves que tirara, fechar e trancar o cofre.

— Pronto — disse o Homem de Preto. — Roubei muito pouca coisa — o suficiente para custear as minhas férias e comprar um carro novo. A gente precisa viver.

— Vou perder o emprego por causa disso! — gemeu o vigia.

— Depende da mentira que você contar — disse o mascarado, de pé junto à porta e girando ameaçadoramente a sua automática. — Se você disser que foi drogado, como alegou o vigia noturno do Home Counties Bank, as pessoas podem não acreditar!...

— E o porteiro? — perguntou o vigia, esperançoso.

— Está no seu cubículo, dormindo... realmente dopado por um método engenhoso da minha invenção — respondeu o intruso.

Bateu a porta e a chave girou de novo na fechadura. Parecia ter girado duas vezes, o que foi comprovado quando o vigia experimentou a porta e ela se abriu prontamente. Mas o Homem de Preto havia desaparecido.

Três minutos após ter soado o alarma, três homens da policia central chegavam à agência. Encontraram o porteiro recobrando lentamente os sentidos e o vigia noturno volúvel e imaginativo.

— Não me venha com essa de drogas — disse o inspetor-chefe Wall, irritado. — Pode ser verdade no caso do porteiro, mas você estava dormindo e bastou ele apontar uma arma para você se apavorar. Foi isso o que aconteceu e não adianta vir com histórias.

O porteiro não pôde explicar nada. Estava no seu cubículo, tomando um cafezinho que ele próprio preparara, e isso era tudo o que recordava.

— Não lave a xícara, vamos analisá-la — disse o Inspetor Wall. — O homem devia estar aqui dentro — coisa fácil, depois de ter dopado o porteiro.

A parte de cima da agência estava alugada para escritórios e só o andar térreo e o subsolo serviam ao banco. Um amplo corredor levava da rua até a entrada das caixas-fortes e estava barrado, a meio caminho, por pesada porta de aço, cuja chave só o porteiro possuía.

— A coisa foi simples — disse Wall, após acabar de interrogar os dois homens. — Peters saiu do seu posto e desceu para falar com o vigia. De uma forma ou de outra, o Homem de Preto conseguiu entrar — ele abre qualquer porta. Depois, só teve de aguardar.

Às primeiras horas da manhã, o gerente chegou e acompanhou a polícia numa busca mais minuciosa das caixas-fortes.

Apenas um cofre fora aberto, Era o alugado por James Morlake e estava vazio.

 

Stephens, o mordomo da Casa de Creith, leu a notícia do roubo no jornal da manhã e, comunicativo por natureza, apressou-se a contá-la ao patrão, quando lhe levou o café. Podia ter causado maior sensação se tivesse dado a notícia ao hóspede da casa, mas por várias razões não gostava do Sr. Ralph Hamon, além de sentir por ele certa prevenção. Um criado pode encontrar prazer nos seus preconceitos desde que sejam dirigidos a pessoas sem prestígio, como o Sr. Hamon parecera nas suas primeiras visitas ao Conde de Creith. Sua atitude de deferência para com o chefe da casa, sua humildade na presença da jovem filha do conde, sua ânsia de agradar enfatizavam a sua inferioridade. Mas o seu desejo de parecer bem aos olhos dos moradores da Casa de Creith não se estendia aos empregados. As gorjetas que dava eram insignificantes ou inexistentes, embora Stephens e os demais empregados já estivessem preparados para isso, pois o motorista do Sr. Hamon já os prevenira da sua avareza.

O que preocupava Stephens e fazia com que o seu rosto gorducho e liso se enrugasse em pensamentos pouco animadores era a mudança na atitude do financista com relação á família.

A princípio, ele se dirigira ao conde como "mylord" — e só os criados, os inquilinos e os comerciantes tratam assim os nobres. Lady Joan fora tratada de "Sua Excelência". Agora, era "meu caro Creith" para aqui e "minha querida" para lá, muitas vezes num tom de bem-humorado desprezo.

Stephens estava de pé, junto à comprida janela da sala de banquetes, olhando para o enorme gramado e o rio, que delimitava, ao Norte, a propriedade dos Creiths. Era uma manhã belíssima, do começo do outono. As árvores mantinham o verde escuro, mas, aqui e ali, o escarlate e o ouro da folhagem outonal se destacavam nos bosques que cobriam as encostas da Colina de Ninguém. O sol brilhava sobre o preguiçoso Avon, a última espiral de neblina se evolava por entre os pinheiros que coroavam a colina, e o tremendo silêncio do campo era apenas quebrado pelo esvoaçar de uma fêmea de faisão, procurando desajeitadamente abrigo.

— Bom dia, Stephens.

O mordomo voltou-se, com expressão culpada, ao ouvir a voz do homem a respeito do qual, naquele exato momento, pensava tão desabonadoramente.

Ralph Hamon entrara, sem fazer barulho, na sala revestida de madeira. Era um homem claro, de altura média e compleição atarracada, inclinado à gordura. Stephens calculava que tivesse uns 45 anos, descontando, por razões pessoais, a calvície do hóspede. O rosto largo do Sr. Hamon era macilento e geralmente inexpressivo. A testa alta, que a calvície ainda mais acentuava, os olhos escuros e fundos, e a linha dura e inflexível da boca sugeriam estudos. Stephens lembrava-se de um odiado professor que tivera, quando garoto. A calvície era realçada por uns fiapos de cabelo que cresciam no alto da cabeça e se viam principalmente quando ele se abaixava, como agora, para apanhar um alfinete do chão encerado.

— Isto dá sorte — disse ele, espetando o alfinete na lapela do seu bem-cortado paletó. — Não há melhor maneira de começar o dia do que encontrar alguma coisa, Stephens.

— É, sim, senhor — disse Stephens. Sentiu vontade de dizer que o alfinete tinha dono, mas conteve-se. — Houve outro roubo do Homem de Preto — falou.

Hamon arrancou-lhe o jornal da mão, franzindo a testa.

— Outro roubo do Homem de Preto — onde?

A medida que ia lendo, franzia mais e mais a testa.

— Na agência de Burlington, desta vez — disse para si mesmo. — Será que...? — olhou para Stephens e repetiu: — Será que... — mas logo, abruptamente: — Lorde Creith já desceu?

— Ainda não.

— E Lady Joan?

— Sua Excelência está no parque. Saiu há uma. hora para andar a cavalo.

— Bolas!

O Sr. Hamon franziu o grosso nariz, ao mesmo tempo em que punha de lado o jornal. Na véspera, convidara Joan Carston para um passeio a cavalo e ela se desculpara, dizendo que o seu cavalo favorito se machucara. Stephens não sabia ler pensamentos, mas lembrou-se a tempo de certas instruções que recebera.

— Sua Excelência achou que não poderia montar, mas o cavalo estava bem melhor, esta manhã.

— Bolas! — exclamou de novo o Sr. Hamon. Tirou do bolso um palito e mordiscou-o.

— Lady Joan disse-me que colocou alguém num dos bangalôs da propriedade — ou melhor, não me disse, mas ouvi-a mencionar esse fato a Lorde Creith. De quem se trata?

— Não sei — respondeu Stephens com sinceridade. — Se não me engano, Sua Excelência conheceu a senhora em Londres e convidou-a a passar umas férias no bangalô.

Hamon ergueu um dos cantos da boca.

— Bancando a alma caridosa, hem? — troçou. Stephens não sabia como explicar aquela mudança num

homem que, um ano antes, quase se arrastara diante da moça de quem agora falava com tão insolente familiaridade.

Hamon atravessou, lentamente, o hall de entrada de lajotas e saiu. Não havia sinais de Joan e imaginou que, se perguntasse a Stephens para que lado ela fora, o homem ou diria não saber, ou mentiria. Hamon não tinha ilusões quanto à sua popularidade.

Mas a jovem via-o muito bem, da Colina de Ninguém — um vulto escuro, contra o verde do gramado. Joan olhou na direção da enorme mansão, o rosto preocupado, o cinza claro dos olhos toldado pela dúvida. Esbelta e graciosa de figura, ela viu o vulto escuro voltar para dentro de casa e, pelo espaço de um segundo, um leve sorriso lhe pairou nos lábios vermelhos.

— Vamos, Toby! — puxou das rédeas, fazendo com que o cavalo parasse de pastar, e encaminhou-o para o alto da colina. A Colina de Ninguém fora, durante séculos, objeto de disputa e o seu direito de inclusão nas fronteiras das propriedades adjacentes empobrecera pelo menos três gerações de duas famílias. O novo proprietário da Quinta Wold persistiria nisso? pensou Joan. Às vezes, ela o achava por demais sensato. Havia dois anos que ele era dono do lugar e nunca se manifestara, embora o seu título por certo lhe desse esse desastroso direito.

Não demorou que ela desmontasse e, deixando o cavalo pastar à vontade, subisse até o alto da colina. Consultou mecanicamente o relógio. Eram exatamente 8h. Depois, seus olhos voltaram-se para o atalho que beirava o sopé da colina.

Não precisava ter olhado as horas. O homem que ela esperava ver tinha saído dentre as árvores naquele exato momento, dia após dia, mês após mês. Um homem alto, que montava com elegância.

Tirou o binóculo do estojo e focou-o nele. Não havia razão alguma para o que estava fazendo e Joan a si própria confessava isso. Era ele: o rosto magro e bonito, as têmporas grisalhas, a camisa aberta no peito. Era capaz de desenhá-lo de memória — já o fizera.

— Joan Carston, você é uma mulher sem-vergonha — censurou-se ela. — Esse homem tem algo a ver com você? Não! Mas você o está envolvendo numa nuvem dourada de romance! Não será uma curiosidade vulgar e a ânsia de mistério da juventude o que a traz aqui todas as manhãs, a fim de espionar um homem inofensivo e de meia-idade? É isso mesmo! E você não tem vergonha? Não!

O inadvertido objeto do seu interrogatório passava agora diante dela. Numa das mãos carregava um fino chicote de montaria, com o qual alisava, distraído, a crina do cavalo. Sem olhar para a direita ou para a esquerda, continuou o seu caminho e Joan ficou vendo-o passar, com expressão intrigada, até perdê-lo de vista.

James Lexington Morlake não era uma fonte de perplexidade só para eia, mas para todos os habitantes das redondezas. Havia dois anos que era proprietário da Quinta Wold e nada se sabia ainda dele, a não ser que parecia um homem rico. Não havia dúvida de que não tinha amigos. O vigário fora visitá-lo logo nos primeiros dias. Pedira-lhe que contribuísse para obras de caridade locais, e ele respondera generosamente, mas declinara qualquer convite social que o pusesse mais em contato com os vizinhos. Não fazia visitas, nem recebia. Tinham-lhe feito uma discreta investigação, que resultara, desapontadoramente, numa vida exemplar, se bem que algo errante, pois ninguém sabia ao certo quando ele estava em Wold ou em Londres. Nem mesmo aos empregados revelava os seus planos para o dia ou a semana seguintes. Essa excentricidade, pelo menos, era do domínio público.

Joan Carston voltou a montar e desceu a colina, na direção do caminho que o homem tomara. Lá chegando, olhou para a esquerda a tempo de ver o velho chapéu de abas largas do enigmático vizinho desaparecer no atalho que levava ao rio.

— Sou mesmo uma moça atirada, Toby — disse ela, dirigindo-se às orelhas trêmulas do seu cavalo. — Não tenho pudor nem amor-próprio, mas oh! Toby, daria duas libras esterlinas — que é tudo o que tenho no mundo — para falar com ele e ficar decepcionada!

Pôs a sua ouvinte a trote pela estrada, passando pela porteira que levava de volta à propriedade de seu pai. No ponto em que a estrada principal contornava o parque dos Creiths havia um pequeno bangalô caiado e para lá se dirigiu Joan. Vendo-a aproximar-se, a mulher que estava no jardim acenou com a mão. Tinha uns 40 anos, era esbelta e bonita e exalava uma dignidade que quase lhe disfarçava a pobreza das roupas.

— Bom dia, Lady Joan, cheguei ontem à noite e encontrei tudo pronto. Que gentileza a sua, dar-se a esse trabalho!

— Que tem de mais o trabalho? — retrucou Joan, apeando-se do cavalo. — Principalmente quando outros o fazem?

Vou tomar café com a senhora!

 

— Sim, estão me esperando em Creith — disse Joan, espalhando uma espessa camada de geléia sobre o pão. — Pelo menos, o nosso hóspede está à minha espera. Papai espera apenas um milagre que lhe dê 1 milhão de libras sem ter de se esforçar. E esse milagre aconteceu parcialmente.

Os olhos da Sra. Cornford expressaram surpresa.

— Não, nós não somos ricos — disse Joan, em resposta à pergunta que a outra pensara mas não fizera. — Pertencemos à aristocracia empobrecida. Se eu fosse homem, emigraria para a America e casaria com uma mulher muito rica, com quem viveria como cão e galo, até nos divorciarmos. Como sou mulher, terei de casar com um milionário local — coisa que não farei.

— Mas... — começou a Sra. Cornford.

— A casa, a propriedade, a nossa casa de Londres, tudo está, ou estava, até uma semana atrás, hipotecado. Somos as pessoas mais pobres do condado.

A confissão de Joan surpreendeu a outra.

— Sinto muito — disse ela, suavemente. — Deve ser terrível.

— Não é, não — replicou Joan. — Além do mais, todo o mundo aqui está à beira da pobreza. Todo o mundo, exceto o misterioso Sr. Morlake, popularmente tido como bilionário. Mas isso é porque ele não fala das suas hipotecas, como todos aqui, Sentamo-nos à mesa uns dos outros e falamos de cobranças e de juros e do preço do trigo e das doenças que atacam o gado, mas acima de tudo falamos da perda que vai ser para o país, quando a aristocracia imprevidente for substituída pela democracia mão-fechada.

A Sra. Cornford ficou calada, os olhos graves perscrutando o rosto da jovem. Joan conhecia-a havia um ano. Fora um anúncio que a Sra. Cornford pusera num jornal londrino, oferecendo-se como costureira, que levara Joan à pequena rua suburbana onde a outra ganhava o suficiente para se manter, graças aos seus dedos hábeis.

— Não é fácil ser pobre — disse ela. Joan encarou-a:

— A senhora foi rica — falou a moça. — Eu sei. Um desses dias, vou. lhe pedir para me contar a sua história — não, não farei isso! Sim, é horrível ser pobre, mas é mais horrível ser rica e estar sujeita a condições. A senhora por acaso conhece o Sr. Morlake?

A interpelada sorriu.

— Trata-se de uma celebridade local, não é assim? Mal o conheço, mas ele parece mexer com a imaginação das pessoas da redondeza. A moça que tão gentilmente me mandou, para limpar o bangalô, falou-me dele. É seu amigo?

— Não é amigo de ninguém — disse Joan. — Ao contrário, é tão pouco sociável, que deve ser muito rico. E eu que sonhei que ele seria o meu Príncipe Encantado! — suspirou ela. — Bem, tenho de voltar para a minha cruz.

A "cruz" estava andando pela avenida dos castanheiros quando Joan o alcançou.

— Ainda bem que chegou, Lady Joan — disse ele, fingindo cordialidade. — Estou morrendo de fome!

Joan Carston desejou ter demorado uma hora ou duas.

 

O chefe dos Creiths

Ferdinand Carston, nono Conde de Creith, era um homem magro e ranzinza, cujo principal desejo era não ser incomodado. Passara a vida evitando complicações e isso levara-o a uma situação impossível. Estava literalmente nas mãos dos agiotas e as suas hipotecas constavam dos registros de muitos bancos. Não queria ser incomodado por administradores ou por arrendatários. Não queria preocupar-se escolhendo os seus procuradores e a maioria deles tampouco se dava ao trabalho de lhe prestar contas acuradas. De tempos em tempos, procurava resgatar algumas dívidas por meio de especulações audaciosas e, como não queria ter o trabalho de investigar a sua solidez, geralmente voltava ao velho caminho que levava aos escritórios dos agiotas e que infestam as ruas Sackville e Jermyn.

Até que surgira na sua órbita um prestimoso financista, que gentilmente aceitara a incumbência de acertar contas com bancos impertinentes e agiotas reclamadores. Lorde Creith ficara grato. Muito grato. Vendera os direitos às propriedades dos Creiths e não só se vira livre de todas as preocupações, como pusera as mãos em dinheiro vivo.

Estava ele na sua biblioteca, examinando, com interesse, o Catálogo de Vendas de Tattersall, quando o seu hóspede entrou sem se anunciar.

— Olá, Hamon! — disse Lorde Creith, sem grande entusiasmo. — Já tomou café?

— Joan já o tinha tomado fora daqui — retrucou Hamon tom secura.

— Ah, sim? — falou Creith, olhando-o por cima dos óculos e sem saber o que dizer; mas, vendo que o outro aguardava, repetiu: — Ah, sim?

Hamon puxou de uma cadeira e sentou-se do outro lado da secretária.

— Já pensou no que vai acontecer, quando você morrer? — perguntou Lorde Creith pestanejou.

— Nunca, Hamon, nunca pensei nisso. Tenho cumprido com todos os meus deveres religiosos, embora os dízimos sejam uma coisa infernal. Acho que vou para o céu.

— Não estou me referindo ao seu futuro espiritual — disse Hamon. — Estou falando de Creith.

— Joan herdará o título — na nossa família, as mulheres herdam — disse Sua Excelência, mordendo a ponta de um lápis. — Mas por que me incomodar com todos esses detalhes, meu caro? Se Joan quiser preservar a propriedade, casará com você sem qualquer objeção da minha parte. Já tivemos gente muito estranha na nossa família e acho que ainda vamos ter. Meu tataravô tinha uma perna de pau.

Ralph Hamon fingiu não perceber a referência tão pouco lisonjeira e não desejava encorajar Lorde Creith a falar das deficiências dos seus antepassados.

— E se Joan não quiser casar comigo? — perguntou. — Suponho que você tenha alguma influência sobre ela.

Lorde Creith tirou deliberadamente os óculos.

— Sobre Joan? Pelo amor de Deus, ela não dá a mínima para o que digo. E faz muito bem. Acho que sou o pior conselheiro deste mundo. Ela fará o que quiser. Sua mãe, que Deus a tenha, era igualzinha. Não me incomode com isso agora, sim?

— Mas e se Joan se recusar a casar comigo? — persistiu o outro.

O rosto de Lorde Creith abriu-se num sorriso.

— Nesse caso, meu caro, você está perdido!

Hamon mordeu com força a ponta de um charuto, ao mesmo tempo em que Lorde Creith olhava significativamente para a porta.

— Não é possível que você não tenha nenhuma influência sobre ela, Creith — insistiu ele. — Fale com Joan.

O velho recostou-se na cadeira, sem esconder o seu aborrecimento, mas resignado a ele.

— Falarei com ela — disse. — Oh, por falar nisso, aquelas terras que você queria, não vai ser possível. Descobri que a hipoteca foi executada pelo Midland Bank, há um mês, e a propriedade vendida àquele esquisitão do James Lexington Morlake. Para que é que ele a quer é que eu não sei...

— Morlake!

Creith olhou para Hamon, surpreso. O rosto amarelado do financista estava tenso, sua boca fina estava aberta de raiva e espanto.

— Morlake — não — James Lexington Morlake? Ele mora perto daqui? Era dele que você falava outro dia — você disse que era americano... ?

Desfechou todas essas perguntas em rápida sucessão e Lorde Creith fechou os olhos, cansado.

— Não sei quem ele é... embora tenha mencionado o nome dele — que é que há com você, Hamon?

— Nada — respondeu o outro, secamente. — Só que... — resolveu mudar de assunto. — Vai falar com Joan? — perguntou e saiu da biblioteca.

Joan estava em seu quarto quando a empregada foi chamá-la e, embora não demorasse a atender ao chamado do pai, foi encontrá-lo de novo mergulhado no catálogo.

— Oh, Joan... é, preciso falar com você. Sim, já me lembro. Seja o mais delicada possível com Hamon, sim?

— Ele se queixou?

— Credo, não! — respondeu Lorde Creith. — Só me disse que quer casar com você. Não sei o que você acha da idéia.

— Quer que eu lhe diga? — retrucou ela, e Sua Excelência abanou vigorosamente a cabeça.

— Acho que não — acho que vou ficar aborrecido. Naturalmente, você sabe que eu vendi tudo... a casa, as terras e a casa de Londres?

— Vendeu tudo a Ralph Hamon?

— O conde fez que sim.

— Tudo — assentiu. — Se você não casar com ele, ficará só com o pouco dinheiro que eu tenho, quando eu... esticar as canelas, se me perdoa a vulgaridade.

— Deduzi isso — disse ela.

— Claro que o dinheiro da sua avó fica sendo seu quando você completar 24 anos. Felizmente, não pude deitar-lhes a mão, embora fizesse o possível — o possível! Mas esses advogados são sujeitos cautelosos. Bom, que me diz de casar com Hamon?

Ela sorriu.

— Achei que você não aprovaria — disse o velho, com satisfação. — Era sobre isso que eu lhe queria falar... ah, sim, você conhece esse tal de Morlake?

Se estivesse olhando para a filha, teria ficado surpreso ao vê-la corar. Mas os seus olhos tinham voltado ao catálogo.

— Por quê?

— Mencionei o nome dele a Hamon e nunca vi um homem ficar mais aborrecido. Quem é esse tal de Morlake?

— Um homem — respondeu ela, lacônica.

— Que interessante! — comentou Sua Excelência, voltando ao catálogo.

 

James Morlake estava sentado à sombra do grande cedro que havia entre a sua casa e o rio. Tinha um jornal aberto sobre os joelhos, mas não estava lendo: seus olhos estavam fixos na superfície espelhada do rio. O ruído de algo caindo na água, a visão momentânea e prateada de uma truta pulando, fizeram com que ele virasse a cabeça e visse o homem que o contemplava desde a estrada.

Olhou para o homem mas logo voltou a contemplar o riacho.

Hamon avançou lentamente, as mãos nos bolsos.

— Ora — disse ele — há quanto tempo não o vejo! Não sabia que você estava morando por aqui.

Jim Morlake levantou os olhos e bocejou.

— Devia ter-lhe mandado o meu cartão de visitas — disse, em tom indolente. — Devia receber mais. Se eu soubesse que você vinha, teria contratado a banda da aldeia e hasteado umas bandeiras.

Hamon puxou de uma cadeira e, sentando-se diante do outro, falou com grande deliberação:

— Eu lhe compro a casa, Morlake...

— Senhor Morlake.

— Eu lhe compro a casa e você pode ir embora da Inglaterra. Vou perdoar as suas ameaças e as suas histórias loucas sobre... ora, você sabe — mas você vai me prometer sair da Inglaterra dentro de uma semana.

Morlake riu e Hamon, que nunca o tinha visto rir, ficou espantado com a transformação que o riso operava no seu rosto sombrio.

— Você é uma pessoa divertida — disse ele. — Cai das nuvens, ou surge do inferno após uma ausência de anos e logo se põe a reorganizar a minha vida! Você está engordando, Hamon, e essas papadas debaixo dos olhos não são nada bonitas. Acho que você devia consultar um médico.

Hamon inclinou-se para a frente.

— E se eu disser aos seus vizinhos quem você é? — perguntou, lentamente. — Se eu disser à polícia que o Senhor Morlake — falou ele, dando uma ênfase sarcástica ao título — é um ladrão barato americano?

— Barato, não — murmurou Morlake.

— Suponha que eu lhes conte que já o peguei em flagrante roubando o Banco Prescott e que você fez chantagem para eu o deixar escapar!

Morlake não despregou os olhos do rosto do outro.

— Houve uma série de assaltos a bancos, em Londres — continuou Hamon. — Todos executados por um ladrão conhecido como o Homem de Preto — já ouviu falar nele?

Morlake sorriu.

— Nunca leio jornais. Publicam tanta coisa que um cavalheiro não deve ler!...

— Um cavalheiro!

Foi a vez de Hamon achar divertido. Levando a mão ao bolso, retirou uma carteira e, abrindo a gasta fivela, puxou para fora uma bolada de notas.

— Para as suas despesas de viagem — disse, enquanto Morlake lhe tirava o dinheiro da mão. — Quanto à sua propriedade e à sua casa, amanhã eu lhe farei uma oferta. Seu preço é...

— Cem mil libras — disse Morlake. — Aceitaria esta pequena quantia como sinal, se não fosse o fato de você ter anotado o número de cada nota e haver um detetive pronto para me deitar a mão, tão logo eu me apossasse do dinheiro! O meu preço é 100 mil libras, Hamon, e isso só lhe daria um mês de tranqüilidade.

Atirou o dinheiro na grama.

— Um mês — que é que você quer dizer com isso? O homem ergueu de novo o olhar sereno.

— Quero dizer que, na Inglaterra, há sempre o espaço de um mês entre o julgamento e a execução — falou.

Ralph Hamon pôs-se de pé como se lhe tivessem acertado um tiro.

— Você é um mentiroso... um maldito trapaceiro ianque! Você pretende me ver na forca? Eu ainda acerto contas com você, Morlake! Sei o suficiente a seu respeito...

— Não me assuste! — atalhou o outro. — Meus nervos já não são o que eram. E seja sensato, fale-me de você. Ouvi dizer que você ganhou meio milhão com diamantes Varoni. E honestamente, o que é muito estranho. Se você tivesse esperado, Hamon! Não andaria toda a vida com medo. Sabe como é que os nativos caçam macacos? Colocam uma ameixa ou um damasco no fundo de uma cumbuca de boca estreita. O macaco enfia a mão e agarra o damasco, mas não pode passar o punho fechado através da boca da cumbuca. É demasiado avarento para largar o damasco e não tem a força necessária para quebrar a cumbuca, de modo que é agarrado. Você parece um macaco, Hamon!

Hamon dominara a fúria, mas seu rosto estava mortalmente lívido.

— Não entendo — disse ele. — Você gosta de ouvir a própria voz. Eu o avisei. Talvez você seja a cumbuca que vai ser quebrada.

— Já pensei nisso — fez o outro — mas nesse caso acabarei quebrado por uma boa causa. Entrementes, ficarei na Quinta Wold, divertindo-me com o mistério que me cerca e o interesse que inspiro no meio rural.

— Eu vou acabar com esse mistério! — rugiu Hamon. Parou à beira do caminho de cascalho e ergueu um dedo ameaçador. — Dou-lhe sete dias para cair fora.

— Feche a porteira quando sair — disse James Morlake, sem se dar ao trabalho de virar a cabeça.

Hamon pulou para dentro do carro que estacionara na estrada e foi-se embora, furioso. Mas os choques daquele dia ainda não haviam terminado.

Tinha de seguir pela estrada principal, antes de chegar ao caminho que bordejava a propriedade dos Creiths. Agora, era sua propriedade, refletiu, com satisfação. Era dono daqueles hectares todos e das terras cultivadas que se aninhavam nas dobras das chapadas. Mas a sua posse não seria completa enquanto não tivesse aquela moça esbelta, cujo antagonismo sentia, cujo mudo desprezo cortava qual chicotada.

Amansá-la, humilhá-la, puni-la pela sua insolência seria um esporte mais gratificante do que qualquer outro que já praticara. Quanto ao homem chamado James Morlake... estremeceu, ao pensar que era quase a contrapartida exata de Joan Carston.

Metera o carro pelo caminho, quando os seus olhos pousaram na casinha branca por trás da cerca de madeira, fazendo-o parar. Lembrou-se de que Joan instalara uma amiga lá.

Ralph Hamon era um oportunista. Uma amiga de Joan bem poderia tornar-se também sua amiga e se, conforme acreditava, não fosse bem aquinhoada de bens materiais, ele poderia descobrir um meio subterrâneo de derrubar a antipatia que a moça sentia por ele.

Saiu do carro e atravessou o portão. Um caminho de tijolos vermelhos, marginado de dálias, levava à porta do bangalô. Olhou para a direita e para a esquerda. Não havia ninguém no jardim e ele resolveu bater à porta. Esta abriu-se quase imediatamente e uma mulher alta surgiu diante de Hamon.

Seus olhos se encontraram e nenhum dos dois falou. Ele olhava para ela como se visse um visitante de outro mundo, e ela devolveu-lhe o olhar.

Hamon tentou falar, mas da sua garganta só saiu um grunhido; depois, dando meia-volta, quase largou a correr, o suor escorrendo-lhe pelo rosto, a boca seca de medo — porque Elsa Cornford possuía a metade do seu segredo, algo que o dono da Quinta Wold nem imaginava.

 

 

Hamon traz notícias

— Isso não foi um trovão? — perguntou Lorde Creith, levando a mão à boca a fim de disfarçar um bocejo.

Joan compreendia o tédio do pai, pois o jantar lhe parecera interminável.

— Parece — disse Hamon, despertando de um devaneio desagradável.

Os três mal tinham falado durante o jantar. Lorde Creith fizera uma significativa alusão à monotonia do campo e às diversões que um homem como Ralph Hamon podia encontrar em Londres, mas o financista deixara passar a oportunidade.

— É mesmo trovão — disse Creith com satisfação. — Em outubro já não costuma haver trovoadas. Lembro-me que, quando eu era garoto...

Fez um pequeno esforço para suscitar nos outros um interesse que ninguém sentia e concluiu a narração das suas reminiscências quase antes de ter começado. Depois, inconscientemente, encaminhou a conversa para um assunto que fez com que dois pares de olhos se voltassem para ele.

— Perguntei a Stephens sobre esse tal de Morlake. Homem estranho — muito estranho. Ninguém sabe nada a respeito dele. Surgiu não se sabe de onde, há três anos, comprou a Quinta Wold e passou a viver como um proprietário rural. Não caça e não dança, declina todos os convites que lhe são enviados e, ao que consta, não tem amigos. Um excêntrico.

— Também acho!

— Joan ouviu a risada de Ralph Hamon e olhou para ele, surpresa.

— Conhece-o?

Hamon tirou um cigarro da caixa que havia em cima da mesa e só depois respondeu.

— É, conheço-o sim. É um escroque americano.

— Como?

Joan tentou esconder a indignação mas não conseguiu e, aparentemente, Hamon não reparou na sua defesa implícita do dono da Quinta Wold.

— Pois é — disse Hamon, satisfeito com a sensação que criara — ele é um escroque. Qual o seu verdadeiro nome, eu não sei. Só sei que é um dos chefões do submundo, ladrão e chantagista!

— Mas sem dúvida a polícia sabe disso? — perguntou o atônito Creith.

— Pode ser. Mas um homem como Morlake, cheio de dinheiro, não teria dificuldade em comprar a polícia.

Joan estava sem fala.

— Como é que o senhor sabe de tudo isso? — conseguiu perguntar.

Hamon deu de ombros.

— Tive um desagradável encontro com ele, alguns anos atrás. Ele pensou que tinha descoberto algo escuso a meu respeito. Tentou me chantagear e conseguiu escapar. Da próxima vez, não vai ter tanta sorte, e a próxima vez — abriu e fechou lentamente a mão — não vai tardar! Tenho-o nas minhas mãos!

Joan estava atordoada, embora nem a si mesma pudesse explicar o motivo por que aquela revelação a afetava tanto. Naquele momento, odiava Hamon — odiava-o com uma intensidade não proporcional à sua ofensa, real ou imaginária.

— Não sei seu verdadeiro nome — prosseguiu Hamon.

— Há anos que a polícia está de olho nele, mas jamais conseguiram reunir provas para prendê-lo.

— Mas eu nunca soube disso — interrompeu Lorde Creith — e sou um magistrado. A polícia local sempre falou bem dele.

— Quando me referia à "polícia", quis dizer Londres — corrigiu Hamon. — De qualquer maneira, a polícia não costuma ser indiscreta.

— Não acredito! — explodiu Joan, indignadíssima. — É uma história absurda! Realmente, Sr. Hamon, estou começando a suspeitar que o senhor é fã de histórias sensacionalistas!

Hamon sorriu.

— Confesso que parece incrível — disse ele — mas é verdade. Ainda esta manhã vi o homem.

— O Sr. Morlake? — perguntou Joan, surpresa, e ele assentiu.

— Ficou muito desconcertado quando me viu, ao perceber que tinha sido reconhecido. Suplicou-me que não dissesse a ninguém...

— Não é verdade. Claro que não é verdade — disse Joan, com desdém, e Hamon ficou vermelho. — O Sr. Morlake jamais suplicaria alguma coisa ao senhor ou a quem quer que fosse Não acredito que ele seja ladrão.

— É seu amigo? — perguntou Hamon.

— Nem o conheço — respondeu Joan. — Vi-o a distância e mais nada.

Fez-se um silêncio penoso, mas Ralph Hamon tinha muito pouca sensibilidade e, embora lhe tivessem mentido, não ficou aborrecido, nem mesmo quando, ao tentar retomar o assunto do passado de Morlake, Joan bruscamente desviou a conversa. Assim que Lorde Creith se retirou, ela saiu para o gramado, a fim de ver os relâmpagos iluminarem o céu e pensar sem a presença opressora de Hamon. Mas ele seguiu-a.

— Parece que vamos ter uma noite de tempestade — disse, procurando iniciar um diálogo. Ela concordou e já ia voltar para dentro, quando ele a deteve. — Onde você conheceu a mulher que está morando na casinha do jardineiro? — perguntou.

Joan ficou surpresa com a pergunta.

— Está se referindo à Sra. Cornford? Por quê? Ela também é alguma criminosa? — falou.

Hamon sorriu, com indulgência, do sarcasmo.

— Não exatamente, apenas estou interessado nela. Se não me engano, conheci-a há alguns anos. Imagino que ela me conheça, não? — perguntou, com indiferença.

— Ela nunca mencionou o seu nome, talvez porque eu nunca lhe tenha falado no senhor — retrucou Joan, algo surpresa e, ao mesmo tempo, curiosa.

— Se não me falha a memória, ela não era muito boa da cabeça. Passou um ano internada num hospício.

Joan não pôde deixar de rir.

— Não é possível, Sr. Hamon! Começo a crer que a sua intenção seja assustar-me. Quer dizer que os meus amigos ou são criminosos, ou lunáticos?

— Não sabia que ele era seu amigo — apressou-se a dizer Hamon, ao mesmo tempo em que avançava para ela no escuro.

— Já lhe disse que o Sr. Morlake não é meu amigo. É nosso vizinho e os nossos vizinhos são nossos amigos, até prova em contrário. Que tal entrarmos?

— Um momento.

Ele agarrou-a pelo braço, mas ela tratou de soltar-se.

— Não é preciso isso, Sr. Hamon. Que é que o senhor quer me dizer?

— Seu pai não falou com você? — perguntou ele.

— Meu pai fala comigo freqüentemente — respondeu a moça. — Está querendo dizer a seu respeito?

Ele fez que sim.

— A respeito de o senhor querer casar comigo?

— Isso mesmo — respondeu ele, ansioso.

— Sim, ele me falou — disse Joan, com firmeza — e eu lhe disse que, embora cônscia da honra que o senhor me faz, não tenho o mínimo desejo de me casar com o senhor.

Hamon pigarreou.

— Ele também lhe contou que eu sou, virtualmente, o dono de Creith?

— Também — assentiu a moça, gravemente.

— E Creith não significa nada para você? Há séculos que ela pertence aos seus ancestrais.

— Significa muitíssimo — disse Joan, contendo a raiva — mas não tanto que eu esteja disposta a sacrificar a minha felicidade para conservar o título de dona de Creith. Há coisas piores do que ficar sem lar, Sr. Hamon.

Fez menção de entrar, mas ele a deteve novamente.

— Espere — disse Hamon, numa voz baixa e vibrante. — Joan, sou 20 anos mais velho que você, mas você é a mulher com quem venho sonhando desde garoto. Não há nada que eu não faça por você!

Antes que ela se desse conta do que ele estava fazendo, Hamon tomara-a nos braços. Joan tentou soltar-se, mas ele segurou-a com mais força ainda.

— Largue-me — como se atreve!

— Escute! — sibilou ele. — Eu a amo, Joan! Eu a amo, embora você me humilhe com o seu maldito desdém. Amo o seu rosto, os seus olhos, o seu corpo esbelto...

De repente, ela ouviu, com alívio, a voz do pai chamando-a.

— Onde é que você está, Joan?

Hamon soltou-a.

— Desculpe — murmurou.

Ela não conseguiu falar; apontou para a porta e ele entrou. Joan demorou uns minutos a entrar e Lorde Creith olhou para ela, com expressão míope.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou, ao ver a palidez da filha.

— Não, papai.

Ele olhou em volta. Hamon desaparecera pela porta aberta do salão de visitas.

— Sujeito rude. Basta você me dizer, para eu o botar para fora desta casa.

De novo ela sacudiu a cabeça.

— Não é preciso. Sim, ele é um bocado rude. Se não se for embora amanhã, o senhor me leva a Londres?

— De qualquer maneira, vou a Londres — disse Sua Excelência, com satisfação. — Quer que eu fale com Hamon? — perguntou, ansioso.

— Não é necessário — disse Joan e Lorde Creith voltou para a biblioteca aliviado, pois detestava tudo o que lhe pudesse dar dor de cabeça.

Joan subiu para o seu quarto, decidida a não se arriscar a novo encontro com Hamon. Sentia repugnância física, ao recordar aqueles horríveis segundos no gramado e, procurando na gaveta da escrivaninha a chave da porta do seu quarto, trancou-se — coisa que nunca, em toda a vida, fizera. Depois, sentou-se diante do espelho, para reviver os acontecimentos daquela noite.

Acima de todas as emoções por que passara estava o choque da descoberta sobre a pessoa de James Morlake. Não podia ser verdade; contudo, Hamon não teria feito uma tal acusação, se não fosse bem fundamentada.

Levantou-se da cadeira, abriu uma das janelas e saiu para a sacada, sobre a porta principal. Os relâmpagos continuavam a riscar o céu, aos seus ouvidos chegava o reboar dos trovões, mas não era para nada disso que ela olhava. Do outro lado do parque, uma luz amarelada indicava a posição da Quinta Wold.

Se tudo o que Hamon dissera fosse verdade, aquele homem estranho saberia que suspeitavam dele? Não deveria saber? Joan soltou uma exclamação de impaciência. Era loucura da sua parte, completa loucura, pensar nele. Conhecia-o apenas como uma figura que muitas vezes focara com o seu binóculo, um rosto fora do comum, um belo rosto, em torno do qual ela tecera mil sonhos. Certa vez, ouvira-o falar — tinha uma voz baixa e agradável. Mais de perto, ela poderia sofrer uma desilusão; e, naquele momento, era isso o que Joan desejava, embora odiasse Hamon por ter lançado as primeiras sementes dessa desilusão.

Nunca falara com Morlake, nunca o vira de perto. Nada sabia além do que os criados lhe podiam dizer, ou do que podia imaginar por si mesma. Se Hamon tivesse falado a verdade, ele corria perigo. Se não fosse verdade o que ele dissera, então o financista estava preparando algo contra Morlake.

Joan voltou ao quarto e olhou-se no espelho. — Preciso perder as ilusões — disse, lenta e deliberadamente, embora soubesse que estava iludindo a si própria.

Foi até o guarda-roupa, tirou uma capa e um lenço de cabeça e colocou-os em cima da cama.

Todo o mundo na mansão dos Creiths se recolhia cedo, mas foi só às 10h30min que ela ouviu a porta da frente sendo trancada por Stephens e a voz rude de Hamon dar boa-noite ao mordomo, antes de subir a escada para o seu quarto. Joan ficou à escuta até ouvir a porta do quarto de Hamon se fechar. Quinze minutos mais tarde, toda a casa estava em silêncio.

Mais uma vez ela voltou à sacada. A casa da Quinta Wold continuava iluminada e, com a capa de chuva no braço e o lenço de cabeça na mão, Joan abriu a porta do seu quarto e desceu, sem fazer barulho, pela grande escadaria, até o hall, onde uma luz continuava acesa. Stephens se recolhera; só se ouvia o tique-taque do grande relógio que havia no hall.

A chave da porta principal estava pendurada na parede, uma chave enorme, e Joan colocou-a na sua bolsa antes de correr, com todo o cuidado, o ferrolho, abrir a porta e fechá-la atrás de si.

Não lhe seria difícil orientar-se. Os relâmpagos sucediam-se ininterruptamente. O coração pulando, Joan atravessou a aléia dos castanheiros e o portão que levava à estrada principal.

Foi então que a chuva desabou. Seria loucura prosseguir. Joan deu meia-volta e retrocedeu. Estava quase no fim da aléia, quando estacou, os olhos arregalados de pavor. Diante dela, a uns 10 m de distância, o relâmpago revelou o vulto de um homem vestido de preto, imóvel no meio do caminho. Joan não podia distinguir-lhe o rosto, sob a aba larga do chapéu que ele usava.

— Quem está aí? — perguntou com voz trêmula.

Antes que ele pudesse responder, ouviu-se um estrondo, como se mãos gigantescas tivessem rasgado uma placa de aço, e irrompeu no ar um clarão de chamas, ao mesmo tempo em que Joan sentia que algo a erguia no ar e a atirava violentamente contra a terra.

O homem de preto ficou um segundo como que paralisado, mas logo correu e, levantando a moça do chão, arrastou-a para longe da árvore em chamas. Uma luz se acendera numa das janelas da casa dos Creiths, logo seguida de outra. Todos haviam acordado e, ao verem o castanheiro em chamas, não tardariam a acorrer.

O homem olhou em volta e viu uma moita de rododendros. Erguendo nos braços a moça desmaiada, carregou-a para lá, bem na hora em que o mordomo saía da mansão.

Quem ela era, o homem não sabia. Talvez alguma empregada, voltando da aldeia. Não se deu ao trabalho de ver quem era, e nem adiantaria, pois o rosto de Joan estava todo sujo da lama em que, por sorte, caíra.

Evidentemente, ninguém tinha a intenção de combater as chamas. Ouviu uma voz dizer, de uma das janelas, para mandarem chamar os bombeiros.

— Telefone, homem, telefone! E não me incomode até que o fogo esteja apagado.

Foi nesse momento que Joan recuperou os sentidos. Abriu os olhos e viu que alguém lhe pousara a cabeça no joelho. Seu rosto estava todo molhado da chuva. Sobre a sua cabeça, os arbustos balançavam. Como é que ela tinha ido parar ali?

— Acho que, agora, você vai ficar bem — disse uma voz abafada.

Joan olhou para cima, ao reconhecer a voz de James Morlake.

— Que foi que aconteceu? — perguntou ela e, sentindo o cheiro penetrante de madeira queimada, estremeceu.

A árvore sob a qual estivera fora atingida por um raio e só por milagre ela escapara.

— Muito obrigada... — disse Joan e, nesse momento, um relâmpago iluminou todo o gramado.

O rosto inclinado para ela estava coberto, da testa até o queixo, por uma máscara de seda preta!


 

O ladrão

— É verdade! — exclamou ela, e ele ouviu a dor e o sofrimento na voz de Joan.

— O que é que é verdade? Por favor, não grite, ou alguém a ouvirá.

Sem poder parar de tremer, Joan procurou controlar a sua voz.

— O senhor é mesmo um ladrão! — disse ela e ouviu-o exclamar, por trás da máscara:

— Está se referindo... à máscara? Não é uma máscara que faz um ladrão, sabia? Numa noite destas, qualquer homem que deseje conservar o frescor da sua pele, tratará de se proteger...

— Ora, não seja ridículo.

Joan compreendeu que a dignidade do seu tom de voz não estava muito de acordo com a sua deplorável situação. Jazia, de maneira desconfortável, na grama molhada, e o seu rosto... Esperava que ele não pudesse ver-lhe o rosto e limpou furtivamente um pouco da lama com o canto da sua capa de chuva.

— Quer me ajudar a levantar, por favor?

Como resposta, ele inclinou-se e a pôs de pé sem demonstrar esforço.

— Você mora na mansão? — perguntou ele, e o tom formal da pergunta fez com que os lábios dela tremessem e ela gaguejasse:

— É — moro. O senhor... o senhor estava pensando em assaltar a casa?

Joan sentiu-o, mais do que ouviu-o, rir.

— Você está convencida de que sou um ladrão...

— E não é? — retrucou ela, desafiante.

— Realmente — disse James Morlake, após uma pausa — esta situação está beirando o grotesco...

— O senhor é ou não um ladrão? — insistiu ela e ele respondeu, conforme ela esperava:

— Sou.

Joan teria ficado muito desapontada se ele tivesse dito qualquer outra coisa. Podia ser ladrão, mas não mentiroso.

— Bem, nós não temos nada para roubar, Sr...

De repente, ela parou. Saberia ele que ela o tinha reconhecido?

— Sr...? — sugeriu ele. — Agora mesmo você disse: "É verdade" — querendo dizer que era verdade o fato de eu ser um ladrão. Estava esperando por um assalto esta noite?

— Estava — disse ela, sem nenhum dos escrúpulos dele. — Ralph Hamon preveniu-nos de que podíamos ser assaltados.

Era uma invenção descarada, mas que teve um efeito inesperado.

— Ah, então você está hospedada na mansão. Perdão, pensei que você fosse... bem, não sabia quem você era — importa-se de olhar na direção da casa?

— Pra quê?

— Por favor...

Ela obedeceu e virou as costas para ele. Alguém estava vindo de trás da árvore calcinada. O andar e o oscilar da lanterna indicavam a relutância da pessoa em investigar de perto os fenômenos da natureza.

— É o Stephens — disse ela, virando a cabeça. O mascarado desaparecera; Joan estava sozinha. Foi-lhe fácil evitar Stephens, mas, ao alcançar o corredor que levava ao seu quarto, Joan viu-se de repente cara a cara com o pai.

— Credo, Joan! Onde você se meteu?... Que susto você me deu!

— Saí para ver a árvore — respondeu ela, mentindo com a maior facilidade.

— Para que diabos você tem de sair em meio a essa chuva? — resmungou Lorde Creith. — Deixe Stephens ir ver a árvore! Seu rosto está todo sujo de lama...

Joan entrou no quarto ao ouvir a porta de Hamon se abrir — e logo a figura em pijama do financista apareceu no corredor.

— O raio atingiu alguma coisa? — perguntou Hamon.

— Uma das suas árvores, meu caro — respondeu o conde, com satisfação. — Meu Deus, acabei de me lembrar que a árvore não é minha!

E, consolado por se ter lembrado de que não havia nada que justificasse uma preocupação pessoal, Sua Excelência voltou para a cama, sem ligar para o ribombar dos céus ou os relâmpagos que lhe iluminavam o quarto a intervalos irregulares.

O quarto de Joan era o único, em Creith, que tinha um banheiro anexo e ela era bastante feminina para, ao tirar as roupas encharcadas, deixar-se absorver momentaneamente pelo prazer de um bom banho e não pensar na aventura que passara.

Só voltou a pensar no Sr. Morlake quando já estava na cama, olhando, pela janela aberta, para o desenrolar da tempestade. O castanheiro fumegava e o clarão dos relâmpagos mostrou-lhe dois homens de capacete olhando, impotentes, para a árvore abatida.

Morlake a teria reconhecido? Era pouco provável. Ela nunca tinha falado com ele e imaginava-o tão pouco curioso quanto aos habitantes da Quinta de Creith, que realmente pudesse tomá-la por uma visita. Quem pensaria ele que ela era? Uma criada, talvez.

— Agora eu acho que a sua desilusão foi completa, Joan Carston — disse ela para si mesma. — O seu príncipe encantado é um ladrão! E você só pode interessar-se por ladrões se a sua mente for mórbida e as suas tendências forem completamente decadentes. Que isso lhe sirva de lição, moça! Concentre-se nos aspectos normais da vida.

Assim dizendo, saiu da cama e, espichando o pescoço, olhou na direção da Quinta Wold. A luz estava acesa. O Sr. Morlake voltara para casa.

Suspirando, aliviada, Joan voltou para a cama e estava dormindo profundamente quando James Morlake saiu do esconderijo da moita de rododendros e, atravessando o gramado, escondeu um pequeno pé-de-cabra debaixo de uma janela que deitava para o escurecido hall de entrada.

 

Joan desceu cedo, com a intenção de tomar o café antes que Hamon se levantasse. Estava quase terminando, quando ele entrou na sala, transtornado, calçando apenas meias, com os suspensórios pendendo para fora das calças e um casaco de pijama listrado de cores vivas. Seu rosto, por barbear, estava vermelho de raiva.

Onde está o Stephens? — rugiu, mas, vendo que nem o seu tom de voz nem a sua aparência estava em harmonia com os requisitos da boa educação, disse, numa voz mais controlada: — Desculpe, Lady Joan, é que eu fui roubado.

Joan pusera-se de pé e olhava para ele, estupefata.

— Por acaso lhe roubaram os sapatos e o paletó? — perguntou, e ele corou.

— Só agora descobri que fui roubado. Alguém entrou no meu quarto esta noite e me tirou uma carteira com 3 mil libras! Só pode ler sido o maldito Morlake. Mas ele vai ver! O cachorro vai ter o que merece!

Das confusas declarações da vítima, pelo que Stephens contava e o que Lorde Creith entendeu, parecia que, de madrugada, um desconhecido penetrara por uma das janelas que ladeavam a porta do hall, entrara em pelo menos dois quartos

— Joan ficou muda, ao lhe passar pela cabeça que o dela podia ter sido um deles, e decepcionada, ao saber que o segundo quarto fora um que estava vazio, vizinho ao de Hamon — e tirara, de debaixo do travesseiro onde se apoiava a cabeça adormecida de Ralph Hamon, uma carteira de couro que continha entre 3 e 4 mil libras esterlinas, acrescentando ainda a humilhação de descarregar o revólver que jazia na mesa de cabeceira de Hamon. Os cartuchos tinham sido descobertos no jardim.

— Meu caro — disse Lorde Creith, visivelmente entediado pela quarta versão das perdas sofridas por Ralph Hamon

— não há nada mais simples do que dizer ao corpulento guarda, no momento pisoteando os meus canteiros, que você suspeita desse tal Morlake. Como magistrado, terei o maior prazer em lavrar o seu mandado de captura ou, o que é mais importante, um mandado de revista da sua casa. Se ele roubou o seu dinheiro, só pode estar com ele.

— Não quero fazer isso — respondeu Hamon, secamente. — A única prova é a minha palavra.

— Mas eu pensei que o senhor tinha dito que a polícia estava de olho nele — atreveu-se a dizer Joan, embora estremecesse ao pensar que estava ajudando na captura do seu ladrão.

— Não exatamente de olho nele — retrucou Hamon — mas há homens que sabem muita coisa a seu respeito — lá no Quartel-General da Polícia, em Londres. Meu amigo, o Inspetor Marborne, há anos que o vem seguindo. Não, não vou entregar o caso à polícia local — só acabariam metendo os pés pelas mãos. Além do mais, um homem como Morlake é esperto demais para guardar o dinheiro em casa. Vou até lá falar com ele.

Ouvindo a moça rir, olhou furioso para ela.

— Desculpe — disse Joan — mas não acha idiotice o assaltado ir parlamentar com o assaltante? O senhor não pode estar falando sério, ao dizer que vai até lá dizer-lhe que suspeita dele.

— Acho que toda essa conversa a respeito do nosso vizinho é mera bobagem romântica — disse Lorde Creith, fazendo um esforço para se interessar pelo assunto. — A coisa é muito simples: se realmente ele é um ladrão e você sabe que é, mande-o prender. Se não for um ladrão, naturalmente você ficará sujeito a ser processado por ele. De qualquer maneira, que insensatez a sua, carregar tanto dinheiro na carteira! Três mil libras! Deus do céu! Para que é que existem os bancos? — olhou para o relógio. — Daqui a meia hora, vou a Londres. Não lhe ofereço carona porque o meu carro só dá para duas pessoas viajarem confortavelmente e, quando Joan vai também, só sobra lugar para mais uma pessoa, sem qualquer conforto. Minha querida, será que você pode limitar a sua bagagem a meia dúzia de malas e um mínimo de chapeleiras?

— Quer dizer que vão até a cidade? — disse Hamon, desapontado. — Pensei que iam ficar até o fim da semana.

— Eu lhe disse, na segunda-feira, que ia a Londres — retrucou Sua Excelência, que não tinha dito nada a respeito. — Amanhã há um leilão na Tattersall que eu não posso perder e Joan tem consulta marcada com o dentista. Você pode ficar, se quiser; não quero interferir nos seus planos.

— Quando estarão de volta? — perguntou Hamon.

— Dentro de um mês, aproximadamente — disse Lorde Creith.

Ralph Hamon resolveu ir também a Londres e deu a entender que o seu carro era suficientemente grande para levar todo o mundo — mas ninguém pareceu ouvir.

— Até que enfim! — suspirou Lorde Creith, assim que o carro atravessou os portões e entrou na estrada. — Hamon é ótima pessoa, mas dá nos nervos da gente.

Ao se aproximarem da Quinta Wold, o Conde olhou para fora, curioso.

— Aquela é a casa do nosso caluniado vizinho, não, Joan?

— perguntou. — Nunca o vi. Como é ele?

— Oh, um homem comum, de aspecto inofensivo — respondeu Joan, num tom pouco convincente.

— Ah, sim? — retrucou Sua Excelência, dando mostras de interesse. — Isso dá para desconfiar. Não gosto de homens de aspecto inofensivo.

Nesse momento, o chofer pisou nos freios. Um carro estava saindo dos portões da Quinta Wold, um comprido carro esporte preto, cujo único ocupante era o Sr. James Morlake. Olhando para trás, percebeu o perigo e levou o carro para a esquerda, enquanto o automóvel de Lorde Creith passava.

— Por um triz — comentou Sua Excelência. — Erro do nosso homem, claro: devia ter buzinado. Então esse é que é o Sr. Morlake? Não concordo com a sua descrição, minha querida. Nunca vi pessoa com aspecto mais ameaçador. Pela expressão do seu rosto, podia até ser um assassino.

— Estava me referindo a ele como homem — disse Joan, calmamente — e não como motorista.

Uma buzinada violenta fez com que o carro dos Creiths se desviasse depressa para o acostamento, deixando passar a carro preto, cujo chofer não olhou nem para a direita, nem para a esquerda.

Joan conhecia a marca do carro: era um modelo italiano de alta potência, um dos mais caros da Europa. Evidentemente, o Sr. James Morlake não poupava despesas no cumprimento da sua vocação criminosa.

Às 5h da tarde do dia seguinte, um certo Inspetor Marborne batia no número 307 de Grosvenor Place, residência londrina de Ralph Hamon. Marborne era desse tipo de policial que se encontra em todas as cidades do mundo. A desonestidade não é apanágio de determinada força policial: é uma doença que irrompe, e continuará irrompendo, onde quer que homens baixos e inescrupulosos ascendam a cargos de autoridade. Onde haja facilidade de ganhar dinheiro, sempre haverá homens prontos a colher os tentadores prêmios da desonestidade, sem pensar nas suas responsabilidades, nem na traição às causas que isso representa.

Hamon estava escrevendo cartas, quando o detetive entrou na sala de visitas. Levantou-se e cumprimentou efusivamente o visitante.

— Entre, entre, Marborne. Que satisfação em vê-lo! Recebeu a minha carta?

— Recebi, esta manhã — respondeu Marborne, pousando o chapéu no chão e sentando-se cuidadosamente. — Três mil libras esterlinas, hem? Espero que tenha anotado os números das notas.

— Anotei, mas isso não dará a Morlake a menor dor de cabeça! Você sabe como é fácil passar dinheiro roubado e, quando se está lidando com um perito como o Homem de Preto, não acho que se devam alimentar esperanças de pegá-lo através das notas.

A conversa foi interrompida pela entrada do mordomo, carregando uma bandeja de prata com as bebidas essenciais à boa disposição de Marborne.

— Tem certeza de que foi obra do Homem de Preto? — perguntou o detetive, depois que o seu anfitrião tivera o cuidado de fechar a porta a chave, à saída do mordomo.

— Certeza absoluta.

— Por que não registrou queixa junto à polícia local? — perguntou Marborne, curioso. — Teria sido fácil conseguir um mandado de busca — o senhor estava hospedado em casa de Lorde Creith, que é Presidente do tribunal local.

Hamon abanou a cabeça.

— Esse não é o jeito. Não tinha provas, mas apenas suspeitas. Você não acredita que teríamos encontrado o dinheiro em casa de Morlake, acredita? Não. Lorde Creith também sugeriu que eu desse queixa à polícia, mas recusei, porque — e abaixou a voz, inclinando-se para a frente — isso teria posto a perder o plano de que lhe falei um mês atrás.

O detetive franziu os lábios com ar de dúvida.

— Vai ser bem difícil forjar uma acusação e vai-lhe custar um bocado de dinheiro, Sr. Hamon. Estive pensando no caso e, embora conheça os homens adequados para fazer esse trabalho, o senhor vai ter de gastar uma boa nota.

— Pode gastar à vontade — atalhou Hamon, com violência — desde que o pegue! Ele está em Londres — suponho que saiba disso?

O detetive fez que sim.

—  Já tem algum plano pronto?

— Já, mas, como eu lhe disse, vai custar um bom dinheiro. Ralph Hamon puxou da carteira e pôs em cima da mesa uma quantia muito acima da sonhada por Marborne.

Nessa mesma noite, Marborne deu início ao que sabia iria ser a sua tarefa mais difícil.

Binger abriu a porta e olhou-o desconfiado porque, embora não conhecesse o detetive, havia algo de "oficial" no jeito do visitante.

— Não sei se o Sr. Morlake está ou se saiu — disse ele. — Espere um pouco, que vou ver.

Fechou a porta na cara do visitante e entrou na grande sala em estilo oriental, onde James Morlake estava lendo.

— Diz que o nome dele é Kelly, patrão. Talvez seja e talvez não.

— Sobre o que ele deseja falar comigo? — perguntou Morlake, fechando o livro.

— Disse que conheceu o senhor em Marrocos, faz alguns anos, e que tinha descoberto o seu endereço.

— Mande-o entrar, sim? — disse James Morlake, após pensar um momento, e Marborne, ao entrar na sala, não pôde deixar de admirar a sua beleza.

— Sente-se, Sr. Kelly. Não tenho cadeiras nem poltronas, porque não costumo ter visitas, mas talvez o senhor não se importe de se sentar no divã.

Marborne sentou-se com um sorrisinho.

— Faz muito tempo que não nos vemos, Sr. Morlake. Suponho que o senhor não se lembre de termos jantado juntos no Cecil, em Tânger, há uns dez anos?

— Tenho uma vaga lembrança — disse Morlake, olhando descuidadamente para o visitante.

— Eu era caixeiro-viajante de uma firma de ferragens — disse Marborne e, enquanto falava, olhava em volta, procurando encontrar alguma coisa pequena, que pudesse identificar o seu homem em alguma futura ocasião. — Não sei se o senhor se dá ao trabalho de recordar encontros casuais, mas eu guardo uma agradabilíssima recordação daquele nosso jantar.

— Agora me lembro do senhor — disse Jim Morlake — embora esteja um pouco mudado, desde que nos conhecemos.

Marborne olhou para o teto trabalhado.

— Belo trabalho — comentou. — Só podia mesmo ser feito em Marrocos. O senhor tem uma bela casa. Ninguém imaginaria, ao andar por Bond Street, que a poucos passos encontraria uma autêntica sala mourisca.

Tinha encontrado o que queria: estava atrás do bloco de papel de cartas — um pequeno estojo de couro, no qual se podiam ver, mesmo a distância, três iniciais. Era pequeno demais para ser uma agenda e Marborne achou que era um estojinho de selos até que, aproximando-se, viu que continha fósforos.

Levantando-se do divã, atravessou a sala, até ficar diante do valet, as mãos pousadas em cima da escrivaninha.

— Bem, não tenho o direito de interromper uma pessoa tão ocupada quanto o senhor — disse ele — mas pensei, já que estava passando o dia em Londres, em fazer-lhe uma visitinha. Espero que não tenha sido inconveniente...

Seus dedos tinham tocado a caixa de fósforos e se fechado sobre ela. Enfiar o estojinho no bolso não foi necessário: era tão pequeno que pôde em palmá-lo.

— Fico sempre feliz de rever os meus velhos amigos de Marrocos — disse Jim. — Não quer tomar um drinque, Sr. Kelly?

— Não, muito obrigado — respondeu Marborne. — Não vou tomar-lhe mais tempo. Disseram-me que não mora em Londres — que tinha uma casa em Sussex.

— É, tenho uma casa em Sussex — confirmou Jim, calmamente.

A essa altura, a caixa de fósforos já estava no bolso do detetive.

— Se alguma vez for a Liverpool, procure-me — John L. Kelly — disse Marborne estendendo a mão. — Meu nome e meu endereço estão na lista telefônica — 943 Lime Street. Foi uma grande satisfação revê-lo, Sr. Morlake.

Jim apertou a mão do outro e ficou a ver o visitante encaminhar-se para o hall encortinado.

— Oh, por falar nisso — disse, quando o outro chegou à cortina — quer ter a bondade de me deixar os fósforos? Posso precisar deles.

Marborne estremeceu.

— S-seus fósforos? — gaguejou.

— Sim, estão no bolso direito das suas calças, inspetor — disse Jim, mal levantando os olhos do livro que voltara a abrir.

— Não tenho nenhum fósforo — disse Marborne, em. voz alta.

— Então o senhor já os gastou e eu quero a caixa de volta — disse Jim. —E, inspetor, se o senhor me causar qualquer problema, eu telefonarei para o Quartel-General e falarei ao seu chefe do cavalheiro que opera como receptador, em Marylebone Lane. Ouvi dizer que o senhor recebe uma comissão de 10% — e tenho a certeza de que o seu chefe, ignora isso.

O rosto de Marborne contorceu-se e mudou de cor. Abriu a boca para falar, mas pensou melhor e, tirando a caixa do bolso, atirou-a no chão.

— Obrigado — disse Jim, suavemente.

— O homem estava roxo de ódio ante o frio desprezo do outro.

— Um destes dias ainda o pego, Morlake — disse, a voz trêmula de raiva. — Você não vai se sair sempre bem!

— Nem você vai conseguir jamais roubar os meus fósforos — retrucou Jim e, dirigindo-se a Binger, que surgira por entre os cortinados: Acompanhe este cavalheiro até a porta e veja que ele não leve o meu guarda-chuva, que está no hall.

— Assim que a porta se fechou, Binger correu para junto do patrão.

— Aquele homem era um detetive — murmurou, com voz rouca.

— Eu sei — disse Jim, abafando um bocejo. — Ele roubou os meus fósforos. Precisava de mais prova?

— Para que é que ele veio aqui? — perguntou Binger, nervoso.

— Para descobrir coisas a meu respeito e, aparentemente, para acender o seu charuto. Mas nunca saberá mais do que sabe. Não se preocupe com ele, Binger.

— Esses sujeitos são manhosos que nem macacos — sentenciou o valet.

Mais manhosos — concordou Jim. — Mas não pense que isso lhes valha de muito. O macaco não é inteligente, Binger. É o mais estúpido de todos os animais.

— O senhor vai sair esta noite? — perguntou o valet, após uma pausa.

— Não, esta noite vou ficar em casa. Você pode ir para casa mais cedo, jantar com a sua família — você tem família, não tem?

— Tenho, sim, patrão. Tenho dois rapazes servindo no Exército — respondeu Binger, orgulhoso.

Jim Morlake assentiu com a cabeça.

— Acho que não vou precisar mais de você. Peça a Mahmet que me faça café: vou ficar trabalhando até tarde.

Assim que o valet saiu, Jim pousou o livro e começou a andar lentamente de um lado para o outro da sala, as mãos nas costas, uma expressão distante no olhar e uma ruga de preocupação no seu belo rosto. Ouviu a porta da frente se fechar, quando Binger saiu e, alguns segundos mais tarde, o criado mouro entrou, trazendo uma bandeja com tudo o que era necessário para fazer café.

Jim ficou a olhá-lo, distraído e, depois que o criado acabou de coar o café e saiu da sala, ele dirigiu-se ao divã e, inclinando-se, levantou a parte de cima como se fosse a tampa de uma caixa. Na cavidade que havia embaixo via-se um pequeno cofre de aço. Enfiou uma chave na fechadura e, abrindo o cofre, dele tirou um grande maço de notas, que levou meia hora a separar, de acordo com os seus valores. Quando terminou, contou os maços cuidadosamente e enfiou-os em vários envelopes, escrevendo, em cada um deles, um nome e um endereço diferentes, copiados de uma agenda que carregava no bolso. Feito isso, recolocou todos os envelopes no cofre, fechou-o a chave e voltou a colocar a "tampa" do divã.

Olhou para o relógio: eram 11h30min. Não se sentia cansado. O livro que estivera lendo era muito monótono, mas nenhuma diversão o atraía para sair.

Voltou a sentar-se, a fim de reconsiderar a visita de Mar-borne. Na sua simplicidade, Marborne pensara ser desconhecido de Jim, quando a verdade era que não havia detetive, na polícia londrina, cujo rosto James Morlake não conhecesse.

Por que teria ido visitá-lo? Por que se dar ao trabalho de roubar uma caixa de fósforos? Podia apontar meia dúzia de soluções, nenhuma das quais, porém, completamente convincente.

Levantou-se e, atravessando uma estreita porta em forma de arco, entrou num aposento menor, mobiliado apenas com uma cama e um guarda-roupa. Tinha resolvido sair e mudou de sapatos. Estava abrindo a porta do apartamento, quando viu uma carta no chão, evidentemente, passada por debaixo da porta. Apanhando-a, viu que tinha sido entregue por mão própria. Estava endereçada, a lápis, a "James Morlake" e tinha uma marca de "Urgente".

Rasgando o envelope, Jim leu as poucas e apressadas linhas que a carta continha:

 

Caro Sr. Morlake

Ralph Hamon pagou a um oficial da policia, chamado Marborne, para lhe preparar uma armadilha.

Assinava a carta uma certa "Jane Smith".

 

Nesse dia, Ralph Hamon recebera uma visita inesperada é não totalmente bem-vinda. A Srta. Lydia Hamon vivia em Paris e suas pouco freqüentes visitas ao irmão, em Grosvenor Square, eram motivo de infelicidade para a criadagem — pois ela era o tipo da moça que, tendo passado da pobreza à riqueza, vivia perpetuamente com medo de que a sua superioridade, em relação ao resto do mundo, não fosse devidamente reconhecida. Suas visitas eram também motivo de suspeita para o irmão.

— Por que foi que você veio? — perguntou ele, áspero.

— Porque estou com pouco dinheiro. Comprei uma estatueta lindíssima — uma autêntica Demetri — e tenho perdido muito nas cartas. A gente precisa não se deixar abater, Ralph.

Ele olhou para ela sem responder.

— Além do mais, prometi passar um fim de semana com a querida Lady Darlew, que tem um amor de filho em Eton...

— Escute aqui uma coisa, Lydia — interrompeu Hamon.

— Quando comecei a ganhar dinheiro, você estava trabalhando como garçonete num bar do West End; ganhando o suficiente para não morrer de fome, e eu gostaria que não se esquecesse disso. Não sou feito de dinheiro e não vou aumentar a sua mesada. Esqueça essas suas amigas que têm filhos cm Eton e lembre-se de que você servia bebidas falsificadas no Lembo's Dive.

Viu a fúria nos olhos dela, mas continuou.

— Está se aproximando a hora de você ganhar o seu próprio sustento, minha querida.

— Que é que você quer dizer com isso? — retrucou ela, não mais a moça lânguida e elegante, mas de mãos nos quadris e voz rouca de fúria. — Está esperando que eu vá servir drinques, enquanto você ganha dezenas de milhares de libras? Eu o ajudei, Ralph, não se esqueça! Espero que não se tenha esquecido de Johnny Cornford e do que fiz por você!

O rosto dele empalideceu visivelmente.

— Você não precisava falar de Johnny Cornford, nem de ninguém — disse ele — e não fique toda furiosa, porque lhe estou falando para o seu bem. Estou-lhe dizendo que vou precisar da sua ajuda. Preciso pegar o Morlake. Se não for de um jeito, tem de ser do outro, e você é que vai fazer isso pra mim.

— Ah, vou? Não diga! — troçou ela. — E que é que eu ganho em troca? O mesmo que ganhei com o caso Cornford

— nada?

— Eu também não ganhei nada — apressou-se a dizer Hamon.

— Que mentira! Oh, não faça cara feia para mim, Ralph, eu não tenho medo de você! Já ouvi essa história sobre o caso Cornford. Nada!

— Estou-lhe dizendo que não ganhei nada — repetiu ele, já exasperado. — Foi a maior decepção que já tive. Se a sorte não me tivesse ajudado, eu não estaria sequer aqui. Nunca recebi um tostão do dinheiro de Cornford.

Após um minuto de silêncio, ela perguntou:

— Que é que eu tenho de fazer com esse tal de Morlake? Ele tem dinheiro?

— Aos montes — respondeu Hamon — mas não é isso o que eu quero.

Ela ergueu as sobrancelhas.

— Você deve estar muito rico, para não querer saber do dinheiro dele — comentou. — Como é que ele é, esse tal de Morlake?

Hamon saiu da sala e voltou com uma foto, que entregou à irmã. Lydia olhou para a foto e exclamou:

— Homem bonito! Quem é ele?

— Daria um bocado de dinheiro para saber — replicou Hamon. — Não faça perguntas, Lydia. Tudo o que quero que você me diga é: ele é o tipo de homem que você poderia tentar conquistar, se isso lhe rendesse uma boa nota?

Ela levantou os olhos da foto e fitou-os no irmão.

— Ele e qualquer outro — respondeu, lacônica.


 

Em Blackheath

Era uma noite de sexta-feira e uma fina camada de neblina pairava sobre o centro de Londres, precursora de um desses densos fogs que, dali a um mês, tornariam a cidade inabitável.

Jim Morlake terminara o leve jantar que o mouro lhe tinha servido e estava lendo o jornal da tarde, com o ar de quem esperava encontrar algo de divertido nas suas páginas, mas duvidava que essa expectativa se concretizasse. Binger fora para casa mais cedo do que de hábito, com instruções para só regressar dali a três dias, pois nessa noite Morlake pretendia voltar à Quinta Wold e a sua mala já o aguardava no hall. Podia ter saído mais cedo, mas o fog fora por demais espesso de tarde e ele estava esperando que se dispersasse. O carro já estava à porta e, pondo de lado o jornal, Jim foi até a janela, arredou os pesados cortinados e olhou para fora.

— Acho que vou indo, Mahmet — disse ele, mas, nesse exato momento, o telefone tocou.

Ele mesmo atendeu e uma voz desconhecida e nervosa falou, do outro lado:

— É o Sr. Morlake?... Estou falando de Blackheath. Binger foi atropelado por ura ônibus e levado para o n.° 12 da Cranfield Gardens. Será que o senhor pode vir imediatamente?

— Ele está muito ferido? — perguntou Morlake.

— Parece que não há chances de que sobreviva — respondeu a voz. — Quem está falando é o Dr. Grainger.

Jim tratou logo de ver a exata localização de Cranfield Gardens e, minutos mais tarde, dirigia-se, a toda velocidade, na direção de Blackheath. O fog no Sul de Londres estava mais espesso do que ele previra, não lhe permitindo correr tanto quanto queria, mas clareou em New Cross e acabou desaparecendo completamente, fazendo com que ele olhasse para um céu sem nuvens, onde as estrelas tremulavam.

Descendo Blackheath Hill, Jim Morlake parou o carro e saiu. O n.° 12 era a quarta casa a contar do fim da rua por onde ele tinha entrado, uma casa alta e sombria, parecendo totalmente às escuras. Já tinha atravessado o portão de madeira quando reparou na falta de luz e voltou atrás para se certificar. Sim, aquele era o n.° 12. Sem hesitar mais, entrou pelo jardinzinho e subiu os degraus de pedra. Nisso, ouviu, dentro da casa, um tiro e passos pesados no hall, e recuou.

Pressentindo instintivamente o perigo, desceu correndo os degraus. Tinha dado dois passos na direção do portão, quando algo ò acertou em cheio na cabeça. Tentou virar-se, estonteado» mas levou outra pancada na cabeça é perdeu os sentidos.

Quando recuperou a consciência, estava deitado numa espécie de catre de madeira e um homem lhe mexia na cabeça. Abriu os olhos e, à luz fraca da cela, viu um homem barbudo enrolando-lhe uma atadura.

— Fique deitado — ordenou o médico, e Jim obedeceu. Estava numa cela. Reconhecera o lugar assim que abrira os olhos. Mas como tinha ido parar ali e o que acontecera? Só então se lembrou da pancada que o abatera. A cabeça latejava-lhe dolorosamente.

— Por que é que estou aqui? — perguntou.

— Acho que o inspetor vai lhe dizer — respondeu o médico, prendendo com um alfinete as pontas da atadura e recuando, a fim de inspecionar a sua obra.

— Ah, vai? — disse Jim, desanimado. — Gostaria muito que ele se explicasse. E como está Binger? — Sorriu. — Imagino que a história do atropelamento de Binger tenha sido inventada. O inspetor a quem o senhor se refere é o Inspetor Marborne?

— Por que não lhe pergunta? — retrucou o médico. — Daqui a poucos minutos ele virá falar com o senhor.

Saiu e a porta da cela bateu. Com dificuldade, Jim conseguiu sentar-se e fazer um inventário da infeliz situação em que se encontrava. Levou mecanicamente a mão no bolso: vazio. Verificou o outro: idem. Seu relógio desaparecera, a cigarreira, tudo lhe fora tirado.

Estava agora muito alerta e até esquecido da dor causada pelo ferimento na cabeça.

A fechadura rangeu, a porta da cela se abriu o Marborne entrou, com um sorriso de triunfo no rosto.

— Até que enfim, Morlake, você caiu nas nossas mãos!

— Devia ter-lhe dado os fósforos — respondeu Jim, friamente. — Se eu soubesse que você gostava tanto deles a ponto de me seqüestrar e roubar, teria lhe poupado todo esse trabalho.

— Não sei do que está falando — disse Marborne, brusco. — Só sei que pegamos você com as coisas. Você sabe o meu nome?

— Sei — disse Jim. — Você é o Inspetor Marborne.

— Sou o Inspetor Marborne — confirmou o outro, num tom oficial — e vou acusá-lo de ter assaltado ontem à noite o n.° 12 de Cranfield Gardens. Vou acusá-lo também da posse de um revólver carregado e de várias ferramentas de arromba-dor. Vou acusá-lo ainda de ter assaltado a agência bancária de Burlington, no dia 17 deste mês, e o Home Counties Bank, no dia 12 de agosto.

Fez uma pausa.

— Não interrompa a sua interessante exposição — disse Jim, — Diga-me também que tudo o que eu falar poderá ser usado contra mim. Esse é o seu dever, sabia, inspetor, mas receio que tenha omitido isso.

O detetive inclinou-se, furioso, e obrigou Jim a levantar-se.

— Agora, você vai ver as coisas que encontramos nos seus bolsos, quando você foi preso — disse, empurrando-o pelo corredor até a sala da frente da delegacia.

Sobre a mesa do delegado havia uma porção de coisas: uma máscara de seda preta, com as aberturas dos olhos, notou Jim, com conhecimento de causa, acabadas de cortar; uma pistola automática; um jogo completo de ferramentas de arrombador; um pequeno maçarico; um pequeno estojo de borracha, com seis vidrinhos; e três chaves-mestras.

— Isso tudo é meu? Onde é que eu carregava tudo isso — no bolso do meu colete? — perguntou ele.

— Algumas coisas estavam no bolso do seu paletó, outras, escondidas debaixo do assento do seu carro — disse o detetive. — Confessa que elas lhe pertencem?

— Não confesso absolutamente nada. A única coisa que não estou vendo, e que realmente me pertence, é um relógio de ouro, que suponho você confiscou para seu uso pessoal. Havia também algum dinheiro — umas 65 libras — que também não vejo. Também as confiscou, Marborne?

— O dinheiro e o relógio estão na minha mesa — disse o delegado. — Você não vai melhorar em nada as coisas acusando o inspetor, Morlake.

— Talvez não — admitiu Jim, após pensar um pouco. Acompanhado do carcereiro, Jim voltou para a cela.

 

Joan Carston estava tomando o café, em Lowndes Square, e lendo o jornal da manhã, quando a presença de Hamon foi anunciada. Com um suspiro, ela pousou o jornal e olhou, pateticamente, para o pai, do outro lado da mesa.

— Louvado seja Deus! Que quererá ele a esta hora da manhã? — disse o conde, irritado. Pensei que estaríamos livres dele durante pelo menos um mês.

Lorde Creith não estava nos seus melhores dias. O cavalo em que apostara, no páreo principal de Newmarket, adoecera e fora abatido de uma hora para a outra, e ele tinha razão para estar aborrecido.

— Vamos ter de agüentá-lo — disse Joan, resignada. — Quanto mais depressa ele for embora, melhor!

Ralph Hamon entrou com ar triunfante. A jovem nunca o vira tão saltitante — Segundo as suas próprias palavras.

— Tenho uma notícia muito interessante para lhes dar — disse ele, puxando, sem pedir licença, uma cadeira, e sentando-se à mesa. — Pegamos o diabo!

— Ótimo! — murmurou sua Excelência. — Espero que lhe ponham as costumeiras correntes nas pernas e o atirem nas profundas do inferno.

— A que diabo o senhor se refere? — perguntou a jovem, com um aperto no coração.

— Estou falando de Morlake. Pegaram-no em flagrante, ontem à noite, assaltando uma casa em Blackheath.

Joan levantou-se de um pulo.

— Não é verdade! — disse ela. — O Sr. Morlake... oh, não, não pode ser verdade!

— Felizmente, é verdade — retrucou Hamon, satisfeito da vida. — Foi apanhado em flagrante, penetrando na casa de um homem que possui uma coleção de jóias antigas. Felizmente, um policial que estava de olho nele seguiu-o e pegou-o quando ele estava saindo da casa, após ter sido surpreendido pelo proprietário, um certo Coronel Paterson.

Lorde Creith tirou os óculos e olhou para Hamon boquiaberto.

— Está se referindo a James Morlake, nosso vizinho? — perguntou, incrédulo.

Hamon assentiu.

— Também conhecido como o Homem de Preto, o ladrão mais esperto que opera há anos no país.

Joan deixara-se cair na sua cadeira: a sala parecia andar à roda. Hamon estava dizendo a verdade, a julgar pelo tom de triunfo na sua voz.

— Quer dizer que o senhor o pegou — disse ela por fim, falando lentamente, como se consigo mesma. — Prometeu pegá-lo, não foi?

— Não fui exatamente eu quem o pegou — replicou Hamon, aborrecido por não poder arrogar-se esse crédito — mas devo confessar que pude dar à polícia muitas informações úteis. A propósito, Lady Joan, minha irmã vai ter o prazer de lhe fazer uma visita, ainda hoje.

— Ah, sim? — disse Joan, distraída. — É mesmo, o senhor tem uma irmã em Paris. Receio não estar em casa hoje à tarde.

— Imaginei isso, de modo que lhe disse para vir de manhã. Vai gostar de Lydia: é uma boa menina, embora talvez eu a tenha mimado demais. Mas é uma boa moça.

— Já marcaram o dia do julgamento do Sr. Morlake? — perguntou Joan, não ligando para a anunciada visita de Lydia Hamon.

— A primeira audiência vai ser esta manhã e o julgamento deve ser na próxima semana. Está interessada nele? É natural. Esses bandidos despertam certo interesse romântico, mesmo nas pessoas que mais respeitam as leis.

— Nem todos os bandidos — retrucou ela imediatamente.

— Conheço alguns que não podem ter menos interesse!

Tinha recuperado o sangue-frio e Lorde Creith, que conhecia muito bem a filha, detectou nela algo que Hamon não percebeu — uma certa perversidade na voz, e lembrou-se, com um arrepio, de passadas contendas com Joan, das quais sempre saíra vencido.

— Ele tem amigos? Alguém que possa pagar-lhe a fiança?

— Ele não tem direito a fiança — respondeu prontamente Hamon. — Tendo agarrado o criminoso, é pouco provável que a polícia se arrisque a deixá-lo escapar.

— O senhor parece estar muito a par do caso. Suponho que lhe tenham telefonado, ao saberem do seu interesse?

— Só sei o que li nos jornais — disse Hamon mais que depressa.

— Ainda não saiu nos jornais — volveu ela. — Aconteceu tarde demais, ontem à noite, para sair nos jornais da manhã.

Levantou-se da mesa e saiu da sala sem mais palavra.

— Joan interessa-se um bocado por esse sujeito — grunhiu Hamon.

— E por que não? — perguntou Lorde Creith, sorrindo.

— Eu também o acho muito interessante. Meu Deus, que pena eu não ter sabido que ele era um ladrão! Teria ido falar com ele e descoberto um modo mais fácil de arranjar dinheiro do que vender toda a minha propriedade. Onde é que ele vai ser julgado?

— No tribunal de polícia de Greenwich — respondeu Hamon.

— Em Greenwich! — exclamou Lorde Creith, como se fosse o último lugar no mundo em que ele poderia imaginar que o vizinho fosse julgado.

Era quase meio-dia quando um carcereiro chamou o seu nome e Jim Morlake atravessou uma grande porta que dava para a sala do tribunal e se dirigiu ao banco dos réus. O tribunal estava cheio e a bancada da imprensa, que dava lugar para três repórteres em total desconforto, acomodava agora meia dúzia de focas quase caindo, enquanto um verdadeiro exército de jornalistas se espalhava pelos bancos destinados ao público.

A audiência começou com uma narrativa sucinta da prisão do réu, com as provas colhidas e a promessa de que novas e surpreendentes acusações seriam feitas na segunda audiência.

A polícia, representada pelo advogado de acusação, pediu que o réu fosse mandado de volta à cela, coisa a que o advogado de Jim mecanicamente objetou, embora a objeção fosse indeferida.

— E quanto à fiança, Meritíssimo... — disse o advogado de defesa, mas o juiz abanou a cabeça.

— Não se cogita de fiança — atalhou ele.

Foi então que se deu um fato inesperado. Um homem alto e magro dirigiu-se, sem ser convidado, para o banco das testemunhas e entregou o seu cartão de visitas ao assistente do juiz.

— Esse senhor — disse ele, olhando, por cima dos óculos, para o atônito Jim — é meu vizinho e tenho o maior interesse em que ele possa preparar, em liberdade, a sua defesa.

— Lamento imensamente, Lorde Creith — disse o juiz — mas, em casos como este, em que a polícia não aceita fiança, não podemos nos afastar do regulamento do tribunal.

Jim voltou para a sua cela, pensando no que teria levado aquele velho de aspecto tão distinto, que conhecia apenas de nome, e cuja casa ele assaltara, a correr o risco de uma publicidade desagradável, apenas para ajudar um homem que não conhecia.


 

Joan se confessa

Joan leu, com igual surpresa, a notícia da intercessão do seu pai, no jornal da tarde e, quando ele chegou para jantar, ela eslava à sua espera no hall.

— Verdadeiramente, papai, você é maravilhoso! — exclamou, beijando-o. — Viu o Sr. Morlake?

— Vi, sim — disse Lorde Creith, em quem qualquer demonstração de afeto por parte da filha produzia um sentimento de desconforto — e achei-o bem simpático, Joan. — Abanou a cabeça. — A polícia diz que ele é um sujeito muito perigoso. Você não acreditaria, se o visse. Para lhe dizer a verdade — falou, olhando em volta e abaixando a voz — o nosso amigo Hamon parece muito mais um criminoso do que ele! Mas, pelo amor de Deus, não repita isso, Joan. Da última vez que eu disse algo desagradável a respeito de Hamon, você repetiu o meu comentário bem no meio do jantar e eu tive de mentir para salvar a minha reputação.

Joan conseguira evitar receber a Srta. Lydia Hamon nessa manhã e tinha a esperança de que, ferida no seu orgulho, a moça não voltasse a insistir. Noutra ocasião, teria ficado curiosa em ver que tipo de pessoa era a irmã de Ralph Hamon. Naquele dia, porém, só pensava na prisão de Morlake.

As duas horas que antecediam o jantar eram dedicadas por Lorde Creith ao que ele chamava de sesta, e Joan geralmente ocupava esse período escrevendo cartas. Naquele dia, contudo, não estava com disposição para escrever e menos ainda para receber visitas, de modo que, quando Stephens lhe veio dizer que Lydia Hamon desejava fazer-lhe uma visita, Joan soltou um suspiro de desespero.

— Diga-lhe que suba — disse ela, fazendo um esforço para ser amável.

Sua primeira reação, ao ver a irmã de Hamon, foi de surpresa. Lydia tinha muitos dons, sendo um dos principais saber vestir-se com apurado bom gosto e a sua aparência doce e frágil, ao entrar na sala de visitas, fez com que Joan mal pudesse acreditar que a moça tivesse algum parentesco com o horrível Sr. Hamon. j

— Sinto tê-la interrompido — disse a jovem, deitando um olhar para a secretária, que Joan cobrira rapidamente de papel de carta, a fim de ter um pretexto para encurtar a visita.

— Telefonei esta manhã. Ralph disse que você estava me esperando, mas você tinha saído.

Joan murmurou uma desculpa, ao mesmo tempo em que se perguntava que urgência teria a moça para vir visitá-la logo de manhã.

— Estou em Londres por alguns dias apenas e tinha de fazer-lhe uma visita — disse Lydia, como que em resposta ao pensamento de Joan. — Moro em Paris. Você conhece bem Paris?

— Conheço mal. Não é das minhas cidades favoritas — disse Joan.

— Não diga! — exclamou Lydia, erguendo as sobrancelhas.

— Não posso compreender que não se adore Paris. Todo o mundo de bom gosto acha Paris uma cidade encantadora.

— Então, eu não tenho bom gosto — retrucou Joan, bem-humorada.

— Eu não quis dizer isso — apressou-se a outra a corrigir;

— Acho que, lá, a gente vive. Conhece o Duque de Montvidier? É um grande amigo nosso.

Mencionou os nomes de uma dúzia de nobres franceses, sem que Joan descobrisse algum que conhecesse, nem que lhe interessasse.

— Ralph contou-me que comprou a sua propriedade em Sussex. Deve ser linda!

— É, é linda — confirmou Joan, calmamente.

— Acho uma pena — prosseguiu Lydia — a propriedade mudar de dono, depois de pertencer durante séculos à sua família. Deve ser um grande golpe, não? Eu disse a Ralph que não sabia como ele tinha coragem de fazer uma coisa dessas.

— Ele ainda não é dono de Creith — atalhou Joan, começando a compreender qual a razão da visita. — Só quando meu pai morrer.

— Ah, sim, eu sei. Não estava pensando no seu pai, e sim, em você. E sei que Ralph também pensa muito em você. Lydia olhou, disfarçadamente, para o rosto inexpressivo de Joan.

— Ralph preocupa-se demais com tudo. Tem um grande coração. Muito pouca gente o entende. Para o comum das pessoas, ele dá a impressão de ligar apenas para dinheiro, quando na verdade é um homem bom e sentimental, além de ser o mais leal dos amigos.

— Será um bom marido para a moça que casar com ele — disse Joan, aproveitando a deixa.

Lydia ficou sem saber o que dizer. Colhida de surpresa pela resposta de Joan, perdeu o fio da narrativa que tão bem ensaiara.

— É isso o que penso. Sinceramente — embora lhe pareça, talvez, uma impertinência da minha parte — Ralph é um partidão.

— Não sei por que razão eu iria achar impertinência — retrucou Joan — uma vez que não sou candidata a esposa do seu irmão.

Sentia-te tomada pelo espírito diabólico que tantas vezes causara a Lorde Creith dores de cabeça.

— Sabe? Para pôr as cartas na mesa, eu não posso casar com o seu irmão.

— Por que não? — perguntou Lydia, sem se poder conter.

— Porque já estou noiva — disse Joan.

— Noiva?

A notícia era, evidentemente, novidade para Lydia, que intimamente amaldiçoou o irmão por não ter acrescentado esse detalhe aos muitos que lhe fornecera.

— Sim, estou noiva.

— Mas não usa aliança de noivado? — observou Lydia.

— Não é necessário usar aliança de noivado, quando dois corações batem ao mesmo tempo — retrucou Joan, misteriosa.

— Meu irmão não sabe disso.

— Nesse caso, você terá novidades para lhe contar — disse Joan.

Lydia tinha-se levantado e estava pensando em como pôr fim à visita o mais depressa possível.

— Espero que você seja feliz — disse ela, sarcástica — mas acho o maior erro deste mundo uma moça da sua condição social casar com um homem sem dinheiro. Porque, se ele tivesse dinheiro, não teria permitido que Ralph comprasse a propriedade do seu pai.

— Esses casamentos às vezes são muito felizes — comentou Joan com doçura.

O objeto da visita da moça estava agora explicado. O seu desânimo, a sua confusão, a sua mal disfarçada irritação diziam a Joan tudo o que ela desejava saber.

— Talvez você ainda mude de idéia — disse Lydia, estendendo-lhe frouxamente a mão. — Ralph não é homem para desistir facilmente daquilo que quer. É um ótimo amigo, mas um péssimo inimigo. Agora mesmo, há um homem arrancando os cabelos na prisão por causa dele!

Viu o rubor subir ao rosto de Joan, mas entendeu mal o motivo.

— Não sei por que razão as pessoas têm de arrancar os cabelos, quando estão na prisão — replicou Joan com frieza. — Provavelmente, o Sr. Morlake está de moral forte.

— Você conhece James Morlake?

Joan fitou os olhos escuros de Lydia Hamon. — Conheço — respondeu, lentamente. — Sou noiva dele.

O Conde de Creith desceu para o jantar com o ar despreocupado que a sesta sempre lhe dava e, ao café, Joan contou-lhe a visita que tivera.

— Deus do céu! — exclamou Sua Excelência, sem esconder a surpresa. — Que coisa você foi dizer!

— Tinha de chocá-la — justificou-se Joan.

— Chocá-la! Mas, tenha dó, Joan, havia outras maneiras de conseguir isso! Você podia ter-lhe dito que o vinho de Creith sabe a rolha — o que é verdade — ou que o telhado tinha goteiras — o que também é fato. Por que lhe dizer que estava noiva de um — uma espécie de ladrão? Você não está noiva dele, está? — perguntou, desconfiado.

— Não, nem sequer o conheço.

— Hum! — disse o conde, franzindo a testa. — E se isto sair nos jornais? — "Nobre Noiva de Ladrão" — Você acha que ele iria gostar?

Joan abriu a boca, aflita.

— Não pensei nisso! — confessou.

— Afinal de contas — disse o conde, muito satisfeito de, uma vez na vida, dominar a situação — afinal de contas, ele pode ter os seus sentimentos. Os ladrões podem considerar-se um degrau acima dos novos pobres...

— Por favor, não diga absurdos, papai! Quem iria lhe contar?

— Seja como for, foi uma insensatez, porque esse Hamon vai me importunar, quando souber. E ninguém sabe melhor do que você, Joan, que eu detesto ser incomodado.

— Pode lhe dizer que não sabia de nada — o que é verdade. Também pode lhe dizer que eu sou dona do meu nariz, o que é igualmente verdade.

O velho bebeu o seu café de um só gole.

— Talvez ele não venha — disse, esperançoso, mas ainda não se tinha levantado da mesa, quando vieram anunciar a visita de Ralph Hamon.

— Eu não estou! — disse apressadamente Lorde Creith. — Diga-lhe que saí, Joan...

E saiu depressa da sala. Entrando na sala de visitas, Joan deparou com um Hamon furioso, andando de um lado para o outro do tapete. Voltou-se, quando ela abriu a porta, e perguntou:

— Que história é essa que Lydia me contou?

A mudança nele era enorme. Nos seus melhores momentos, Hamon já era um homem desagradável — agora, a moça estremeceu ao vê-lo. O queixo saía-lhe para fora, os olhos faiscavam de ódio.

— Joan, eu já lhe disse — e vou lhe dizer de novo — que você é a única mulher que existe no mundo para mim. Vou casar com você — e ninguém mais. Nem que tenha de matá-lo e a você também! Se isso for verdade, não descansarei enquanto ele não estiver morto!

Ela não perdeu a calma e, naquele seu sereno desdém, pareceu a Hamon ainda mais bela.

— Conheço muitos homens que o poriam para fora desta casa se soubessem a metade do que o senhor acabou de dizer.

A voz dela era firme, não mostrava nenhum sinal de agitação que Hamon esperava.

— Se fui mal-informado... — disse ele, desconcertado.

— Foi. Dizer que eu estava noiva foi uma brincadeira estúpida que eu fiz com a sua irmã, mas é que a achei insuportável, tão horrivelmente vulgar, com toda a sua afetação e  aquela mania de falar nos aristocratas que conhece — tão parecida com o senhor que eu posso imaginá-la gritando comigo, como o senhor acaba de fazer. Uma infeliz virago, berrando para mim.

Deixara a porta aberta, ao entrar na sala, e sabia que Stephens estava no hall:

— Stephens — chamou, e o mordomo acorreu. — Faça o favor de mostrar a porta da rua ao Sr. Hamon.

Stephens olhou para Ralph Hamon e, com a cabeça, apontou-lhe a porta.

Foi um dos momentos mais felizes da sua vida.

 

O Coronel Carter, do Departamento de Investigação Criminal, tirou o charuto da boca para poder sorrir mais facilmente.

— Meu caro Welling, você é um romântico e, sendo um romântico, deveria ter sido um fracasso. Em vez disso, por um misterioso desígnio da Providência, você é um detetive muito bem-sucedido. O romance não tem lugar no nosso trabalho: não há nada de romântico no crime. A é um ladrão, com métodos peculiares mas bem conhecidos; B é um policial sem imaginação que, chamado a atuar num caso de assalto, roubo ou o que você quiser, descobre que o crime foi cometido por alguém que utiliza os métodos de A. Talvez A tenha como hobby forçar janelas de cozinhas ou usar escadas encontradas por perto, ou tenha o hábito de fazer uma refeição depois de cometido um roubo. De qualquer maneira, são essas as características de A, de modo que B o prende e costuma ter razão. Você, por outro lado, descobriria, nos restos de uma refeição roubada, prova de que o ladrão estava morto de fome e procuraria um homem canhoto e com ar faminto!

Julius Welling suspirou. Era um homem de idade e cabeça branca, com uma cara triste e o cacoete de esfregar o nariz quando embaraçado.

— Apesar disso, você tem se saído bem — resmungou Carter, por entre o charuto. — Talvez seja sorte — ou inspiração.

— Você omitiu a possibilidade do gênio — disse o outro, suavemente.

Na polícia, na qual servia havia 35 anos, tinham-lhe dado o nome de "Suave Julius". Ele e Jackson Carter haviam ingressado na polícia no mesmo dia, Carter, um burocrata, especialmente dotado no campo da organização, e o outro, tão mergulhado no estudo das criaturas, que mal tinha reparado na passagem dos anos e nas honrarias que eles lhe tinham granjeado.

— Conforme eu disse — prosseguiu Carter — você é um romântico. Embora eu admita — e olhe que estou sendo muito generoso — que os seus sonhos por vezes o levaram a estranhos resultados.

Julius Welling sorriu com os olhos.

— Aonde é que o meu atual sonho me levará? — perguntou;

— Ao fracasso — disse o outro, falando sério. — Pegamos o Homem de Preto — disso não há dúvida. Gostaria que não tivesse sido Marborne a pegá-lo, mas temos todas as provas de que precisamos. Além de ele ter sido apanhado em flagrante, estava com as ferramentas e com o revólver, e muitas outras, coisas foram descobertas no seu apartamento, em Bond Street. Um pacote de dinheiro marcado com o carimbo do Home Counties Bank...

— Eu podia conseguir um pacote desses, desde que me dirigisse ao Home Counties — murmurou Welling.

— Uma caixa com dinheiro, enterrada no jardim dele...

— Por que razão iria ele enterrar uma caixa com dinheiro no jardim? — perguntou Welling, pacientemente. — Só amadores fazem esse tipo de coisa.

— Então, como é que ela foi parar lá? — argumentou o exasperado Carter.

Welling esfregou pensativamente o nariz.

— Pode ter sido plantada lá para incriminá-lo — sugeriu. — Foi assim que Marborne pegou Shellman, o falsário.

O chefe olhou para ele.

— Você está querendo dizer que foi uma prova forjada? — perguntou e Welling assentiu.

— As provas que possibilitaram a sua condenação foram forjadas. Sei disso há algum tempo. Naturalmente, Shellman era um falsário, mas demasiado esperto para ser agarrado. A acusação que o levou à cadeia por 10 anos foi indubitavelmente forjada e quem a forjou foi Marborne.

— Isso é novidade para mim — disse o outro, franzindo a testa.

— Quanto a esse tal de Morlake — prosseguiu Welling, com sua timidez característica — a história que ele conta não lhe parece meio esquisita? Diz que o valet dele estava ferido — o homem mora em Blackheath, lembra-se? Que foi até onde ele mora e, de repente, o atacaram. Apanhado de surpresa e atacado — quando, segundo dizem, carregava um revólver! Vai assaltar uma casa e deixa o carro na esquina da rua, com todas as luzes acesas, quando há um beco, a meia dúzia de passos, onde ele podia ter escondido o carro! Dizem que ele entrou pelos fundos da casa, onde há um quintal e um muro baixo, que ele podia ter galgado para fugir — não obstante, fugiu pela porta da frente! "Reage" — como? Não se esqueça de que ele tem uma arma carregada, mas "reage" de maneira tal, que Marborne tem de abatê-lo com uma cacetada. Por que é que ele não usou o revólver?

O Coronel Carter sacudiu a cabeça.

— A história do telefonema é mentira...

— Pelo contrário, é verdade — disse o velho Julius, quase pedindo desculpas. — A telefonista ouviu a conversa. Estavam testando os cabos, porque um assinante comunicara um defeito, e os engenheiros também ouviram a conversa telefônica.

O Coronel Carter arregalou os olhos.

— Você estava trabalhando neste caso? — perguntou. — Não estava seguindo o Homem de Preto?

O Suave Julius abanou a cabeça.

— Tenho seguido Marborne — retrucou mais suavemente do que nunca. — Sabe, Jack, o chefe tem mais ou menos a mesma opinião que você, a respeito do inspetor, e encarregou-me de vigiá-lo. E o homem que ligou para Morlake e inventou a história do valet ferido foi o inspetor. Quero a túnica de Marborne para a minha coleção de uniformes de ex-oficiais. E, Jack, tenho a certeza de que vou consegui-la!

— E Morlake? — perguntou Carter.

O Suave Julius abriu as mãos enrugadas num gesto de indiferença.

— Talvez o condenem, talvez não — disse ele — mas uma coisa eu posso lhe garantir: James Lexington Morlake é o Homem de Preto e o mais inteligente ladrão de bancos que apareceu nestes 20 anos. Tenho mais do que provas disso, Jack.

Apertou os lábios e suas brancas sobrancelhas se juntaram.

— Há dez anos — disse ele, num tom mais determinado do que de costume — a policia de Haslemere recolheu um marinheiro moribundo, na estrada de Portsmouth.

— De que diabo você está falando? — perguntou o espantado Carter.

— Estou falando do Homem de Preto — disse Welling — e explicando por que razão ele virou ladrão — enfie isso na sua cabeça, Jack. Um marinheiro moribundo, deixado como morto e sem uma só linha ou palavra que o identificasse: um marinheiro moribundo, que repousa num pequeno cemitério em Hindhead, sem uma lápide nem um nome que o identifique. Isso não é o suficiente para fazer de um homem ladrão?

— Você adora um mistério, não é, Julius? — perguntou o seu irritado amigo, quando Welling se levantou para sair.

— É, os mistérios são a minha especialidade — concordou Julius, suavemente.

 

O Tribunal Central Criminal estava lotado, no segundo e último dia do julgamento, quando James Lexington Morlake subiu as escadas que levavam ao amplo banco dos réus. A sala, branca e com lambris de carvalho, era agradável ao olhar requintado de Jim; o escarlate e o carmesim das roupas do juiz, o veludo e a pele das vestes do xerife, o vermelho e dourado do promotor público — tudo harmonizava perfeitamente.

O juiz levava na mão um ramo de flores, que colocou em cima da mesa. Reminiscências de uma velha tradição, dos dias em que os tribunais eram fétidos e os juízes carregavam ervas desinfetantes. Um ato necessário transformara-se, com o correr dos anos, num costume encantador.

O juiz sentou-se, fazendo tremular a peruca branca. Olhou de relance para o prisioneiro e, instalando-se na sua cadeira estofada, esperou que terminasse o depoimento da última testemunha policial.

Uma ou duas vezes inclinou-se para a frente, a fim de fazer uma pergunta numa voz fina e seca, mas, fora disso, parecia imensamente entediado e, quando levou a mão à boca para esconder um bocejo, Jim deu-lhe plena razão.

— E isso é tudo — concluiu o promotor público, quando a última testemunha acabou de depor.....

O juiz assentiu e olhou para Jim.

— Quer chamar alguma testemunha para depor em seu favor, Morlake? — perguntou ele.

Jim não estava representado por nenhum advogado e ele próprio se encarregara de interrogar as testemunhas apresentadas pela acusação.

— Não, Meritíssimo. A polícia admitiu que eu recebi um telefonema pedindo que fosse ao n.° 12 de Cranfield Gardens. Sabendo-se a que hora eu recebi esse telefonema é a que hora fui preso, fica claro que eu não poderia ter tido tempo de arrombar e assaltar a casa. A polícia baseia-sê nó fato de que eu estava de posse de ferramentas de arrombador e de uma arma — cuja compra ou posse anterior não foi possível provar.

— A polícia também disse ao júri que eu sou um ladrão conhecido e que já roubei muitos bancos.

— As testemunhas policiais declararam que o senhor estava sendo procurado e que o vigia noturno da agência bancária de Burlington reconheceu a sua voz, mais nada — interrompeu o juiz. — Deduzo que o senhor não vai usar esse testemunho em seu próprio favor.

— Exatamente, Meritíssimo.

— Então esta é, se bem entendo, a sua defesa? Muito bem.

Jim apoiou-se na beira do recinto, olhos fixos no júri.

— Meus senhores, se realmente eu fosse um conhecido ladrão de bancos, o fato de eu tentar roubar uma casa particular, a fim de carregar jóias de grande valor histórico, mas de pouco valor material, não seria prova de um grande amadorismo? Por que faria eu isso se, conforme afirmam, tivesse levado uma grande quantia da agência de depósitos de Burlington, há apenas uma semana? Se eu fosse o Homem de Preto, o roubo de Blackheath não poderia ter sido praticado por mim. Havia algo a ganhar com ele — alguma necessidade? Não é bem mais provável que a história do telefonema seja verdadeira e que eu tenha sido preso por um, digamos, erro honesto do admirável Inspetor Marborne?

Dizendo, isso, deu a palavra ao promotor e ao juiz, cujas considerações, no fim, é que contavam.

— Não tenho a menor dúvida — disse o Juiz Lovin — de que o réu, James Lexington Morlake, é um homem de antecedentes criminais. Tenho menos dúvidas ainda de que ele seja o ladrão que se tornou conhecido como o Homem de Preto. Mas tenho todas as dúvidas de sua culpa na acusação que o trouxe perante este tribunal. As provas apresentadas pela polícia foram muito pouco satisfatórias. Também não creio que Marborne tenha contado toda a verdade, no seu depoimento. Há provas quase conclusivas de que o caso tenha sido forjado com o fim de iludir o tribunal e garantir uma condenação. Por conseguinte, sugiro ao júri o veredicto de inocente.

O povo abriu caminho para Jim Morlake passar e todo o mundo queria vê-lo, mas apenas um homem de cabelos brancos o interceptou.

— Parabéns, Morlake.

Jim sorriu.

— Obrigado, Sr. Welling — sei que está sendo sincero. A coisa foi forjada, claro.

— Tudo indica que sim — concordou Welling gravemente e dirigiu-se para Marborne, que saía do tribunal com ar derrotado. — Ouviu o que o juiz disse, Marborne? Chato, hem?

— Ele não sabe o que está dizendo — retrucou o detetive, com ar de inocência ultrajada. — Nunca, em toda a minha vida, me senti tão insultado.

— E agora eu vou insultá-lo — disse Welling. — Considere-se afastado da polícia. Vá ao meu gabinete na quarta-feira e leve o seu uniforme embrulhado!

Jim assistira com interesse à cena, adivinhando o seu significado. Quase ninguém tinha arredado pé do tribunal, pois o próximo caso a ser julgado era um crime de morte. O grande hall de mármore estava quase deserto quando ele o atravessou, devagar, rumo à escada.

— Posso falar com o senhor?

Jim voltou-se e viu uma moça simplesmente vestida e muito bonita, que lhe estendia a mão ligeiramente trêmula.

— Estou tão feliz, Sr. Morlake! Tão feliz! Ele apertou-lhe a mão com um sorriso.

— Você esteve os dois dias no tribunal — disse Jim. — Vi-a no canto da galeria. Ainda bem que tudo terminou.

Tinha vontade de parar e falar com ela, mas sentia uma timidez incômoda.

— Espero — disse, suavemente — que você não pense demasiado bem de mim. Um criminoso notório pode ser muito excitante, mas não é um bom objeto de admiração.

Reparou no sorriso que tremia no canto dos lábios dela e sentiu-se profundamente gauche.

— Não tenho o hábito de idolatrar pessoas, se é isso o que está querendo dizer — replicou ela, calmamente. — Por que não tomamos um chá juntos? Conheço um pequeno restaurante em Newgate Street.

Ele hesitou, mas acabou dizendo:

— Muito bem.

— Não sei se sabe, mas me deve um favor — disse ela, enquanto desciam a escadaria.

— Eu lhe devo um favor? — retrucou ele, surpreso. — Que favor é esse?

— Certa vez, mandei-lhe uma carta muito importante — disse a jovem.

Ele parou para olhar para ela.

— Você me mandou uma carta? Qual é o seu nome?

— Jane Smith — disse a moça.

Meio espantado, meio divertido, Jim continuou a olhar para ela.

— Jane Smith? — repetiu ele. — Foi você quem me escreveu uma carta prevenindo-me contra Hamon?

Ela fez que sim.

— Conhece-o? Ele é seu amigo?

— Oh, não — disse ela, sacudindo vigorosamente a cabeça. — Conheço-o só de vista. Ele às vezes vai à aldeia onde eu moro — Creith.

— Ah, você mora em Creith? Não me lembro de tê-la visto lá.

Ela sorriu.

— Acho que o senhor não conhece ninguém na aldeia — observou, secamente. — O senhor não é muito sociável, é? Além do mais — prosseguiu — não é de esperar que uma pessoa como o senhor conheça gente modesta como eu.

O restaurante estava quase vazio. Ela escolheu urna mesa de canto e pediu dois chás com tanto desembaraço, que Jim Morlake deduziu que estivesse acostumada a dar ordens. Ficou pensando quem seria ela e como era possível que nunca tivesse reparado numa moça tão bonita.

— Há muito tempo que você mora em Creith?

— Nasci lá — respondeu Jane Smith.

Ele pensou alguns minutos e depois perguntou:

— Como é que você soube que Hamon estava preparando uma armadilha para me pegar?

— Não sabia, suspeitei apenas — disse ela. — Tenho uma amiga que mora na mansão dos Creiths e tem ouvido falar muito a respeito do Sr. Hamon.

Jim fez que sim com a cabeça.

— Tenho de agradecer a Lorde Creith a sua intercessão a meu favor — disse ele, falando meio para si mesmo e meio para a moça — e sorriu. — Não creio que Sua Excelência gostasse que eu lhe fosse agradecer pessoalmente. Ele tem uma filha, não tem?

Jane Smith assentiu.

— Alguém me falou nela — parece que é uma moça muito bonita, muito voluntariosa e, se não estou em erro, algo romântica.

— Nunca ouvi dizer que Lady Joan fosse romântica — replicou Jane Smith, com vivacidade. — Acho que é uma moça prática e inteligente. Não há dúvida de que é bonita, mas o crédito disso não é dela.

O garçom trouxe os chás e ela tratou de servi-lo. Jim ficou vendo-a, pensativo, estender-lhe a xícara cheia. De repente, ela disse, com ar sério:

— Sr. Morlake, foi uma terrível lição para o senhor, não foi?

— O julgamento? — perguntou ele e fez que sim. — É, foi uma lição. Por outro Indo, subestimei Hamon e, por outro, superestimei a inteligência do inescrupuloso Sr. Marborne. Foi uma tentativa muito estúpida de me pegarem.

Ela não despregou os olhos dele.

— Não vai voltar a transgredir a lei, vai, Sr. Morlake? -perguntou, em voz baixa. - O senhor tem sido muito - muito bem-sucedido, isto é, deve ter ganho um bocado de dinheiro Não é mais necessário se arriscar, é?

Ele não respondeu. Havia nela algo que lhe era familiar, algo que ele reconhecia mas não sabia localizar. Onde a teria visto? Ou era a voz dela que ele reconhecia?

— Já sei! — exclamou ele, de repente. — você é a moça que quase foi colhida pelo raio.

Ela enrubesceu.

— Sou — confessou. — Mas o senhor não viu o meu rosto.

— Lembro-me da sua voz. É uma dessas vozes doces, que não se esquecem facilmente.

Ela enrubesceu ainda mais.

— Lembro-me de você me dizer que estava de visita em Creith. Como é possível, se você mora na aldeia?

Jane Smith logo recuperou o sangue-frio.

— Falei uma mentira — disse ela. — Acho que mentir é a maneira mais fácil de sair da maioria das dificuldades. Se quer mesmo saber, Sr. Morlake, eu estava trabalhando na mansão.

— Você trabalhava na mansão? — repetiu ele, incrédulo.

Ela fez que sim.

— Sou empregada — disse, calmamente. — Uma ótima empregada.

— Oh, disso não tenho dúvida — apressou-se ele a dizer. — Então foi por isso que você soube? Sou-lhe muito grato, Srta. Smith. Continua trabalhando na mansão?

Ela sacudiu a cabeça.

— Fui despedida — mentiu, e acrescentou: — Por ter chegado tão tarde, na noite da tempestade.

Depois, sentindo uma dor de consciência, desviou a conversa para canais mais seguros.

— O senhor não vai mais roubar, vai? — perguntou.

Para seu espanto, ele sorriu.

— Claro que não! — continuou ela. — Depois do que o senhor passou, não acredito que queira se arriscar de novo!

Dessa vez, ele riu alto.

— Evidentemente, minha cara, você não avalia as alegrias e as emoções da vida de um ladrão, ou não me pediria para deixar algo que é mais do que uma diversão e uma maneira de ganhar a vida.

O seu tom irônico não provocou reação na moça, que se sentiu perturbada, quase ferida pela teimosia dele.

— Não há ninguém — hesitou ela — que possa persuadi-lo? Alguém que lhe seja muito caro? Um parente ou — uma mulher?

Ele sacudiu a cabeça.

— Não tenho nem parentes nem amigos neste mundo — disse. — Se isso lhe parecer patético, procure acreditar que não sinto nenhuma tristeza por viver tão só. É muita bondade sua, Srta. Smith — e o seu tom de voz tornou-se mais suave — mas preciso seguir o meu próprio caminho, porque só assim conseguirei paz de espírito. E agora acho que você já esteve demasiado tempo em companhia de um criminoso. Vou mandá-la para casa. Está morando em Londres?

— É, eu moro aqui — isto é, tenho amigos aqui — disse ela, meio confusa.

— Então, vá ter com os seus amigos.

Jim pagou a conta e saíram juntos do restaurante. De repente, para surpresa dele, ela deu meia-volta e entrou de novo no restaurante, seguida por ele.

— Há um homem aí fora que eu não quero ver — disse ela, ofegante e, olhando pela vidraça, Jim viu Ralph Hamon andando, furioso, pela calçada, até entrar num edifício de escritórios, toda a sua atitude indicando a fúria que a absolvição de James Morlake lhe suscitara.


 

Um volume de Emerson

Ralph Hamon era um homem rico com alma de miserável. O tipo de pessoa que acumula coisas inúteis e bricabraques, na esperança de que, um dia, lhe possam prestar serviço. Seu guarda-roupa estava cheio de roupas puídas, que ele não se animava a dar. Em casa, costumava tirar as roupas elegantes com que aparecia em público e usar um pouco mais alguma roupa velha, que já lhe tinha servido mais do que o normal. Nunca jogava fora um pedaço de papel, se ainda havia um cantinho onde escrever; e, quando as pessoas lhe escreviam em folhas duplas, ele invariavelmente separava a que não tinha sido usada e a utilizava para anotações.

Jim Morlake ilustrara muito bem essa fraqueza, ao lhe contar a parábola do macaco e da cumbuca. Não só era uma fraqueza, como lhe prometia ser fatal. Tudo o que havia de sensato em Ralph Hamon lhe dizia para queimar um pedaço de papel em suas mãos; contudo, embora dezenas de vezes se tivesse resolvido a fazer isso, sentia-se fisicamente incapaz de acender um fósforo e atear-lhe fogo.

A biblioteca onde ele trabalhava ficava no primeiro andar da casa de Grosvenor Place, e dava para um pátio deprimente e para os telhados de uma porção de garagens. Embora ele não gostasse de ler, três das paredes estavam cobertas de estantes, cheias de obras convencionais que, como qualquer estudante da natureza humana logo veria, tinham sido "fornecidas" sem qualquer respeito pela qualidade literária. Estavam encadernadas em harmonia com a sala e a sua aparência exterior satisfazia o financista, embora o seu conteúdo não o atraísse.

Havia um livro, porém, que ele muitas vezes tirava de uma parte mais estreita da estante, protegida por portas de vidro. Era um volume dos Ensaios de Emerson, coleção flanqueada por Hazlitt e por exemplares do Spectator de Addison. Trancando cuidadosamente a porta da biblioteca e correndo as cortinas, Hamon abriu a parte envidraçada da estante e retirou o belo volume, mais pesado do que a maioria dos livros, pois teve de usar ambas as mãos para sacá-lo da, prateleira e carregá-lo até a mesa.

Mesmo assim, um leigo poderia tê-lo confundido com um livro comum, pois a encadernação era perfeita e até mesmo a beirada marmoreada das folhas tinha sido reproduzida. Tirando uma chave de um molho que pendia de um chaveiro no seu bolso, Hamon enfiou-a entre a capa e as "páginas", girou-a e, pondo para trás a capa, descobriu uma caixa cheia de papéis. O livro era feito de aço e guardava os papéis e documentos que Hamon queria ter à mão.

Tirou um desses papéis e estendeu-o em cima da mesa, olhando para o que nele estava escrito. Nas suas palavras nada havia que não o acusasse. Em cada linha pairava a ameaça de cadeia e até de morte na forca. Não havia uma só palavra que não o danasse de corpo e alma; entretanto, quando puxou da caixa de fósforos e acendeu um deles com mão trêmula, hesitou e acabou jogando o fósforo na lareira e recolocando o pedaço de papel dentro da caixa.

Ouviu-se bater à porta e, fechando apressadamente a tampa, Hamon colocou o "livro" ao lado dos outros e trancou a porta de vidro.

— Quem é? — perguntou.

— Posso mandar entrar o Sr. Marborne? — perguntou o mordomo, em voz baixa.

— Pode. Mande-o entrar.

Abriu a porta da biblioteca e saiu para receber o abatido detetive.

— Que bela confusão você aprontou, Marborne — disse ele, furioso.

Quem deve se queixar sou eu, Hamon — retrucou o outro. — Pediram-me para devolver a farda. Nunca deveria ter me preocupado com esse maldito Morlake.

— Não adianta se lastimar — atalhou Hamon, impaciente. — Que é que você quer dizer com "devolver a farda"?

Tirou uma garrafa de uísque e um sifão de um armário e colocou-os em cima da mesa.

— Welling mandou-me devolver a farda e acho que estou liquidado. De qualquer maneira, teria ficado malvisto, depois que o juiz falou sobre os métodos da polícia. Você precisa me arrumar um emprego, Hamon.

— Ah, é? — caçoou o outro, com um copo em cada mão. — Eu preciso lhe arrumar um emprego! Ora vejam só a audácia!

— Não sei quem tem mais audácia, se eu ou você — retrucou-o inspetor, aborrecido — mas..

— Não vamos brigar — disse Hamon, pondo uma dose minúscula de uísque nos copos e acabando de enchê-los com o sifão. — Acho que posso arrumar um emprego para você. Estou precisando de um homem em Tânger, para cuidar dos meus interesses lá. Não fui eu quem o meteu em apuros, meu amigo, e sim o Sr. James Lexington Morlake.

— Maldito seja! — exclamou Marborne, bebendo o uísque de um só gole.

— É um ótimo uísque — disse Hamon.

— Mal o saboreei — replicou o outro.

Marborne sentou-se à mesa, puxou de um caderninho de anotações e abriu-o.

— Fiz uma lista do que gastei com este caso — disse ele. — Aqui está.

Passou a lista a Hamon, que estremeceu, ao ver o total.

— É demais — comentou ele. — Não o autorizei a fazer tantas despesas.

— Você me disse para gastar quanto eu quisesse — retrucou o detetive.

— Mas são quase mil libras! — explodiu Hamon. — Que é que você pensa que eu sou — um bobo?

— O que você é não me interessa, só sei que vai ter de me pagar o que eu gastei — retorquiu o outro.

— Você parece estar esquecido de que já lhe paguei muito dinheiro — começou Hamon, mas foi interrompido.

O mordomo chegou à porta e murmurou algo que Mar-borne não conseguiu entender.

— Aqui? — perguntou Hamon, depressa.

— Sim, senhor, lá embaixo.

Hamon virou-se para o detetive, já sem raiva.

— Ele está lá embaixo.

— Ele — quem? — perguntou o espantado policiai. — Está se referindo a Morlake?

Hamon fez que sim.

— É melhor você ficar aqui. Vou ver o que ele quer. Deixe a porta aberta. Se houver algum problema, desça.

Jim Morlake estava esperando no hall e Hamon cumprimentou-o com a maior cordialidade.

— Entre, Morlake — disse ele, abrindo a porta da sala de visitas. — Não imagina como fiquei feliz de saber que você tinha sido absolvido.

Jim só respondeu quando a porta da sala se fechará.

— Resolvi abandonar a minha carreira de ladrão, Hamon — disse ele, indo direto ao assunto.

— Acho que você faz bem — observou Hamon, cordialmente. — Se houver alguma coisa que eu possa fazer...

— Há uma coisa que você pode fazer e é me dar um certo documento, assinado pelo homem com quem eu vi você em Marrocos, há uns 12 anos.

— Supondo que ele estivesse comigo — disse o outro, após uma pausa — você acha que eu seria idiota de lhe dar, de colocar a minha — a minha liberdade nas suas mãos?

— Eu lhe daria tempo de sobra para sair do país e concordaria em não apoiar a acusação feita nesse documento. Sem o meu apoio e o meu depoimento, você nada teria a temer. De qualquer maneira, você teria tempo suficiente para ir para outro país.

Hamon riu estridentemente.

— Não tenho a menor intenção de sair da Inglaterra — disse ele — principalmente agora, na véspera do meu casamento. Vou me casar com Lady Joan Carston.

— Pode lhe dar os meus pêsames — falou Jim. — Não é á filha de Lorde Creith?

Hamon assentiu.

— Ela não casará com você sem saber algo a seu respeito.

— Já sabe tudo o que deve saber a meu respeito.

— Então, é meu dever contar-lhe algo que ela não deve saber — disse Jim. — Mas as suas aventuras matrimoniais não vêm ao caso. Vim até aqui para lhe dar uma oportunidade e, incidentalmente, me poupar um bocado de trabalho e as sérias conseqüências que se seguiriam a uma determinada linha de ação da minha parte. Quero esse documento, Hamon.

Hamon riu de novo.

— Você está gastando saliva à toa — disse ele, com desprezo. — Quanto a esse precioso documento, ele não existe. Alguém lhe falou nele para se divertir com a sua conhecida ingenuidade. Agora, escute, Morlake: não podemos resolver as nossas diferenças como dois cavalheiros?

— Eu poderia resolver a minha diferença como um cavalheiro — disse Jim — porque nasci cavalheiro. Mas você só acertará as suas diferenças como um canalha barato, que atingiu a presente prosperidade pisoteando famílias arruinadas. Esta é a sua última chance e, possivelmente, também a minha. Dê-me esse documento e não mais o incomodarei.

— Preferia me danar — retrucou o outro, furioso — a lhe dar esse documento — que aliás não tenho...

Jim balançou a cabeça lentamente.

— Estou vendo que a mão do macaco permanece dentro da cumbuca; ele é por demais avarento para soltá-la. — Encaminhou-se para a porta. — Eu o avisei, Hamon — disse e saiu.

Hamon fechou a porta e subiu a escada atapetada que levava à biblioteca.

— O nosso amigo continua insistindo — disse ele, mas a sala estava vazia.

Marborne tinha ido embora. Hamon tocou a campainha para chamar o mordomo.

— Viu o Sr. Marborne sair? — perguntou.

— Vi, sim, senhor. Saiu há poucos segundos — um pouco antes de o senhor sair do salão. Parecia estar com muita pressa.

— Que coisa esquisita! — comentou Hamon, mandando o mordomo embora.

Foi então que viu a folha de papel que havia em cima da mesa, com o seguinte recado:

Se você não pagar a minha conta, talvez tenha de pagar outra bem maior.


Hamon cocou o queixo. Que quereria dizer aquele enigmático recado? Escrito, segundo observou, no seu melhor papel de anotações. Evidentemente, Marborne tinha ficado irritado com a sua relutância cm pagar e fora embora zangado. Hamon deu de ombros e sentou-se à mesa.

Olhando casualmente em volta, reparou que a porta envidraçada da estante estava aberta e ele podia jurar que a tinha fechado. De repente, com um palavrão, Hamon levantou-se de um pulo.

O "livro" de aço estava no seu devido lugar, mas o título aparecia de cabeça para baixo. Alguém tinha mexido nele. Tirou-o da prateleira, experimentou a tampa e, para seu horror, ela se abriu. Esquecera-se de fechá-la a chave.

Remexeu nos papéis com mão trêmula. O documento fatal desaparecera!

Com um urro de raiva, correu para a porta e gritou pelo mordomo.

— Em que direção foi Marborne? — perguntou, depressa.

— Para a direita, na direção de Grosvenor Square — respondeu o mordomo do fundo da escada.

— Chame-mc um táxi — depressa!

Hamon voltou à biblioteca, recolocou os papéis na caixa, trancou-a e enfiou-a entre os livros. Um minuto depois, um táxi o levava ao quarto onde Marborne vivia.

Ele ainda não voltara, disse a senhoria, e acabara de telefonar, avisando que não viria dormir, pois talvez viajasse para o Continente.

Só havia uma coisa a fazer: ir direto para a Scotland Yard. Marborne ainda era oficial da polícia londrina e mais tarde ou mais cedo acabaria por aparecer no quartel-general. Hamon teve a sorte de encontrar Welling, que não pareceu surpreso com a visita.

— Quer falar com Marborne? Receio que ele não esteja de serviço. Receio mesmo que nunca mais esteja — disse Julius. — Trata-se de algo importante?

— Mas ele não tem de vir aqui? — perguntou Hamon, ansioso.

— Tem — respondeu o velho policial. — Amanhã de manhã tem uma entrevista marcada com o comissário-chefe.

— Não sabe onde ele pode estar agora?

Julius Welling ajustou os óculos e fitou atentamente o outro.

— O senhor parece ter muita pressa cm encontrá-lo. Aconteceu alguma coisa? — perguntou.

— Aconteceu — ou melhor, não aconteceu nada que tenha importância senão para mim — e para Marborne.

— Ah, sim? Sinto muito não poder ajudá-lo — disse Julius Welling.

Assim que Hamon saiu, o policial ligou para a portaria.

— Um homem chamado Hamon está saindo daqui — disse ele. — Mande o Sargento Lavington segui-lo sem o perder de vista. Quero saber para onde ele vai e o que está procurando.

Desligou e esfregou as mãos finas uma na outra, com uma expressão distante nos olhos.

— Porque ele está procurando alguma coisa — disse, dirigindo-se ao teto.


 

A volta ao lar

Jim Morlake nunca dirigira tão lentamente quanto agora, a caminho da Quinta Wold. Imaginava o quanto a sociedade de Sussex ficara chocada e sorriu, ao pensar no efeito que a notícia do seu julgamento no Tribunal Central Criminal devia ter tido na sua criadagem. Seus empregados eram bem pagos e bem tratados. Ele tinha instruído o gerente do banco local para lhes pagar os ordenados e tudo o que fosse necessário para manter a casa e, em resposta, recebera apenas uma carta, do jardineiro, perguntando se era seu desejo, em vista dos recentes acontecimentos, plantar as batatas dos narcisos na beira do bosque, conforme ele ordenara.

Os portões da Quinta Wold estavam abertos; Jim entrou com o carro e o solene chofer, que estava à espera dele, tirou respeitosamente o boné e encarregou-se do veículo, com uma gravidade que não prenunciava boa coisa.

Jim entrou no salão. O mordomo apressou-se a abrir-lhe as portas.

— Tudo bem, William? — perguntou Jim, tirando lentamente as luvas e o sobretudo e entregando-os ao criado.

— Tudo em perfeita ordem — respondeu o mordomo, acrescentando: — Quando tiver um tempo disponível gostaria de falar com o senhor.

— Quando você quiser — disse Jim, pressentindo o êxodo. — Leve o meu sobretudo e volte aqui para falarmos.

O mordomo não conseguiu esconder o seu embaraço.

— Eu queria lhe pedir para deixar o emprego, Sr. Morlake. E — bem — minha esposa também.

— Estão querendo deixar o emprego? Por quê? Não estão satisfeitos?

— Estamos, o emprego é ótimo — disse William Cleaver, o mordomo, sem esconder o seu nervosismo — mas chegamos à conclusão de que a vida no campo não nos convém e ofereceram-nos uma excelente situação na cidade.

— Muito bem — disse Jim secamente.

Abriu a gaveta da sua mesa, retirou a caixa onde guardava o dinheiro e disse, estendendo um maço de notas ao mordomo:

— Aqui está o seu ordenado até à data.

— Quando é que o senhor acha que poderíamos ir embora? — quis saber o mordomo.

— Agora — foi a lacônica resposta. — Há um trem para a sua amada "cidade" daqui a uma hora e espero que, a esta altura já tenham saído desta casa. Entendido, Cleaver?

— Sim, senhor — disse o desconcertado mordomo. — Outros empregados estão querendo sair, mas achei melhor o senhor se entender com eles.

— Entendo — disse Jim. — Mande-os entrar, por favor. Primeiro entrou a cozinheira, mulher enorme mas mane irosa.

— Quero pedir licença para deixar o emprego, Sr. Morlake.

— Por quê? — perguntou Jim, sem meias-medidas.

— Bem, acontece que a minha sobrinha está doente e precisa de mim para cuidar dela.

— Quer dizer que a senhora gostaria de partir imediatamente?

— Não quero deixá-lo na mão — apressou-se a dizer a mulher — e obrigá-lo a...

— Nada disso — atalhou Jim Morlake. — Pode ir embora agora mesmo. Se a sua sobrinha está doente, é melhor a senhora ir antes que ela morra. Aqui está o seu ordenado.

Seguiu-se uma procissão de empregados. Todos eles tinham uma razão para quererem ir embora o mais depressa possível, mas só uma falou sinceramente. De rosto tisnado e corpo atarracado, ela postou-se diante da mesa, as mãos enormes nos quadris.

— Por que é que você está querendo ir embora, Jessie? — perguntou Jim.

— Porque o senhor é um ladrão — foi a resposta brutal e, recostando-se na cadeira, Jim riu às gargalhadas.

— Acho que lhe devo 10 libras. Aqui estão 20. Permite que eu, um ladrão, a cumprimente como a única pessoa honesta entre os meus empregados? Não olhe para essa nota como se ela fosse mordê-la: não é falsa nem foi roubada.

Quando todos eles já se tinham ido, com suas malas, atadas com cordas, postas em táxis que ele mandara vir da aldeia, Jim fechou os portões e voltou para a casa vazia.

Mandar vir Binger era inútil. Além disso, precisava dele em Londres; e Mahmet, embora preparasse o melhor café do mundo, decerto fracassaria em todos os outros ramos da arte culinária. Pôs-se a andar pela casa deserta, da cozinha até o sótão. Estava limpíssima e permaneceria assim durante um ou dois dias.

— Só há uma coisa sensata a fazer — disse ele para si mesmo — é voltar para Londres.

Mas Jim era por demais lutador para se acovardar diante da crise que a sua criadagem lhe tinha acarretado. Nessa noite, tomou apenas chá com biscoitos — começaria a cozinhar no dia seguinte.

Logo cedo, pôs-se a preparar o café da manhã e, diante do problema de carregar as coisas da cozinha, resolveu levar um fogãozinho de piquenique para o seu bagunçado escritório. Tinha feito o chá e posto a mesa com um jornal fazendo de toalha. Agora, era só cozinhar os ovos. Jim pouco sabia da arte de fritar ovos, apenas que eram necessários calor, ovos e uma frigideira. O escritório estava cheio de fumaça e cheirando a frigideira queimada, quando uma visita inesperada chegou.

Entrou pela porta aberta e ficou, boquiaberta, contemplando aquela tentativa frustrada de cozinhar.

— Que é que o senhor está fazendo? — perguntou ela, espantada e, entrando pelo escritório, tirou a frigideira fumegante da mão dele. — Não pôs gordura na frigideira! — exclamou. — Como quer fritar ovos sem usar algum tipo de gordura?

Ele ficou sem fala. A última pessoa que esperava ver na Quinta Wold, naquele momento de crise, era Jane Smith. Mas lá estava ela, mais bonita do que nunca no seu simples vestido azul.

— De onde você surgiu?

— Estou vindo da aldeia — disse ela, franzindo o nariz numa expressão de sufoco. — Por favor, abra a janela!

— Por quê? Não gosta de ovos?

— Não de ovos cremados.

Ele não se mexeu.

— Suponho que você saiba...

— Sei fazer de tudo — atalhou ela, pousando a frigideira. — Vim tomar conta do senhor — pobre enjeitado americano!

Jim carregou, obedientemente, o fogareiro, as xícaras, os pires e a chaleira rachada para a cozinha.

— Sua mãe sabe que você está aqui? — perguntou ele, de repente.

— Espero que sim — disse ela. — Minha mãe já está no céu.

— E seu pai?

— Está em Londres, lugar muito diferente. Procure na despensa e veja se tem um pouco de banha.

— É lá que se guarda?

— Tem leite? — perguntou ela, quando Morlake voltou com a banha.

— Leite fresco, não, mas tenho muitas latas de leite em pó.

— Não tem nem uma vaca?

Ele sacudiu a cabeça.

— Não tenho certeza. Nunca me interessei por esses detalhes, mas tenho a impressão de que não tenho vacas.

— Por que fica aqui? — perguntou ela, olhando-o com curiosidade. — Por que não volta para Londres? Tem um apartamento na cidade, não?

— Prefiro ficar aqui — respondeu ele.

— Que senhorial. Prefiro ficar aqui — imitou ela. — Vai morrer de fome aqui, e de frio também. Deveria saber que os habitantes de Creith nunca consentiriam em macular as suas almas em contato com um homem com o seu passado! Procure trazer criados de Londres: lá as pessoas não têm tantos preconceitos. Em Londres há cinemas, que ensinam ao povo todas as nuanças da criminalidade. Por que não manda vir Binger?

— Você o conhece? — perguntou Jim, surpreso.

— Falei com ele — disse ela. — Quando o senhor estava preso, telefonei para ele, para saber se podia fazer alguma coisa. Foi preciso muito tato da minha parte, porque não podia dar a entender que sabia que o senhor estava preso. Perguntei-lhe onde o senhor estava e ele disse que estava "fora".

— Quando eu estava "dentro" — riu Jim.

— Fora ou dentro, ele mostrou-se deliciosamente diplomático. Vi também o seu mouro e a sua linda sala. O senhor morou em Marrocos?

— Durante algum tempo — disse ele.

Ela concentrou-se no preparo dos ovos e Jim percebeu que estava imersa em pensamentos.

— Naturalmente, o senhor sabe o porquê desse antagonismo. Não foi inteiramente espontâneo, nem devido à pureza moral dos habitantes de Creith. Há uma semana, Ralph Hamon veio até aqui e falou com o seu mordomo. Sei, porque a minha criada, que mora na aldeia...

— A sua o quê? — perguntou ele, imediatamente.

— Uma mocinha que nós criamos — disse ela, sem perder o sangue-frio. — Essa mocinha, que mora na aldeia e adora uma fofoca, me contou.

— Quer dizer que você estava aqui?

— Não, eu a essa altura estava em Londres. Ela me disse depois que eu voltei. Pronto, aqui estão os seus ovos.

— Não sou capaz de comer três — disse ele.

— Nem é para comer: um é para mim — retrucou ela. Foi até o hall e trouxe uma sacola com uma bisnaga e um pequeno pacote de manteiga.

— Vamos comer na cozinha, sinto-me mais à vontade lá — declarou. —Depois, vou ver o que é preciso fazer. Só posso ficar algumas horas cada dia.

— Vai voltar amanhã? — perguntou ele, ansioso. Ela fez que sim e ele suspirou de alívio.

— O mais engraçado é que não a vi chegar, embora estivesse olhando pela janela.

— Não vim pela estrada — explicou ela. — Descobri uma pinguela que atravessa o rio, ligando o parque da Mansão Creith aos seus campos. Naturalmente, ainda conservo algum amor-próprio, de modo que vim sem ser vista.

Ele riu.

— Se você está tentando me fazer acreditar que liga para o que a aldeia pensa de você, pode perder as ilusões — disse Jim. — O que me intriga — e hesitou — é você dizer que é uma aldeã. Não duvido que more na aldeia, pois conhece bastante as pessoas daqui. Mas não posso acreditar que pertença às chamadas classes inferiores.

— Vá buscar o aspirador — ordenou ela — e já lhe provarei que, pertença ou não às classes inferiores, eu estou acostumada a trabalhar.

Jim teve a impressão de que só se tinham passado 10 minutos, quando ela entrou no escritório, para se despedir. — Não vá já embora! — exclamou ele, consternado.

— Vou, sim, — disse ela — e o senhor vai me fazer o favor de ficar onde está e não procurar me seguir. Confio também em que não irá perguntar a nenhum dos seus conhecidos na aldeia — que, se não me engano, a esta altura serão muito poucos — quem eu sou, ou quem é a minha família. Quero manter o nome Smith impoluto. É um belo nome.

— Não conheço outro melhor — concordou ele, entusiasticamente. — Até amanhã, Jane.

Estendeu a mão e ficou muito satisfeito de ver o rubor subir às faces dela.

Jane Smith voltou na manhã seguinte e algo na sua aparência chamou a atenção de Jim.

— Você esteve chorando — disse.

— Não, nada disso. Apenas dormi pouco.

— Você andou chorando — insistiu ele.

— Se o senhor repetir isso, vou-me embora. Nunca pensei que pudesse ser impertinente.

Jim ficou calado, mas não pôde deixar de se sentir preocupado. Teria ela tido algum dissabor pelo fato de o estar ajudando?

Estavam almoçando num ambiente meio pesado, quando ele de repente perguntou:

— Onde você mora?

— Por aí — respondeu ela, vagamente.

— Você nunca fala a verdade, menina?

— Eu era a pessoa mais verdadeira deste mundo, até que... — conteve-se a tempo.

— Até que...? — quis saber ele.

— Até que comecei a mentir. É muito fácil.

— Oh, a propósito — lembrou ele, de repente — duas antigas empregadas vieram falar comigo, esta manhã, enquanto você estava arrumando o quarto. Querem voltar.

— Não as aceite de volta — apressou-se ela a dizer. — Se fizer isso, eu nunca mais volto.

Mas, dando-se conta do seu egoísmo, acrescentou:

— É, aceite-as de volta, se puder. Acho que deve aceitar de volta toda a sua criadagem. Seguiram o exemplo de Cleaver e a maioria deve estar ansiosa por voltar Só quero que me avise, antes que voltem.

Jim ajudou-a a lavar a louça do almoço e depois subiu para o seu escritório, a fim de escrever algumas cartas, enquanto ela preparava o jantar antes de ir embora. A escada da cozinha levava ao hall dos fundos e Jim ficou muito surpreso quando, ao sair no patamar, viu uma moça de pé, no hall de entrada. Deixara a porta escancarada e ou não a tinha ouvido tocar a campainha, ou ela não se dera a esse trabalho. Era muito bonita e estava muito bem vestida, e Jim pensou, por um momento, se não seria uma delegação das mulheres de Sussex, pedindo-lhe que saísse imediatamente do condado.

Sorrindo, ela avançou para ele.

— Sr. Morlake, não? — disse, apertando a mão que ele lhe estendia. — Vi o seu retrato. O senhor não me conhece.

— Receio não ter tido esse prazer — retrucou Jim, fazendo-a entrar na sala de visitas.

— Resolvi vir até aqui lhe falar, Sr. Morlake. Essa rixa estúpida entre o senhor e o meu irmão tem de acabar.

— Seu irmão? Como assim?

— Ora, não finja que não tem uma raiva muito grande do pobre do Ralph.

Morlake estava começando a perceber.

— Quer dizer que a senhorita é irmã dele? — perguntou.

— Claro que sim. Meu nome é Lydia Hamon. Vim de Paris especialmente para falar com o senhor. Ralph está muito preocupado com a horrível desinteligência entre os dois.

— Suponho que sim — disse Jim, com sutileza. — E a senhorita veio de Paris só para ver se consegue que façamos as pazes, não? Claro, agora estou me lembrando! Que estupidez a minha! Lembro-me de tê-la conhecido há muitos anos, antes do seu irmão ficar próspero.

Lydia Hamon não tinha o menor desejo de que se lembrassem de como era muitos anos atrás e tratou de mudar de assunto.

— Diga-me uma coisa, Morlake, não é possível o senhor e o meu irmão se encontrarem e...

A porta abriu-se abruptamente e Jane Smith entrou na sala.

— Pensei que estivesse no escritório... — começou ela, mas logo os seus olhos caíram sobre a visitante.

Se o aparecimento de Lydia Hamon a surpreendeu, o efeito em Lydia foi espantoso. Olhou para a outra com horror.

— Devo estar enganada! — exclamou. — Não pode ser Lady Joan Carston!

— Diabo! — praguejou Joan.

Lady Joan Carston! Jim não podia crer no que ouvia.

— Sem dúvida está enganada, Srta. Hamon! — disse ele. — Esta é a Srta....

— É Lady Joan Carston — atalhou a outra — e folgo em ver que são tão bons amigos. Tenho a certeza de que a noiva do meu irmão me ajudará a fazer as pazes entre Ralph e o senhor.

— Quem é a noiva do seu irmão? — perguntou Joan, atônita.

— Todo o mundo sabe que é a senhora — sorriu Lydia.

— Pode todo o mundo saber dentro dos manicômios, onde muita gente pensa até que é parente de Napoleão Bonaparte — disse Joan, secamente — mas nem eu nem meu pai sabemos disso. E deveríamos ser os primeiros a saber.

Lydia deu de ombros. Estava procurando encontrar uma explicação para a presença daquela moça naquela casa e, na sua opinião, só havia uma explicação possível. Foi então que se deu conta de que a casa estava vazia, com exceção de Morlake e da moça, e a sua atitude e a sua voz denotaram imediatamente choque.

— Imagino que seu pai esteja aqui, Lady Joan? — perguntou, com ar puritano.

— Meu pai não está em Creith — respondeu a moça, percebendo aonde ela queria chegar. — Nem a minha tia, nem nenhum dos meus primos. Realmente, não tenho guardião algum em Wold senão o fogão da cozinha e o sentimento da minha imensa superioridade.

As sobrancelhas ruivas da outra se ergueram.

— Não creio que Ralph gostasse disto... — disse ela.

— Há muita coisa de que Ralph não gosta — intrometeu-se Jim, poupando a Joan a humilhação de pedir desculpas pelas coisas que indubitavelmente teria dito — mas não vou me dar ao trabalho de catalogá-las. Não me parece, Srta. Hamon, que devamos envolver Lady Joan nas nossas velhas rixas.

Voltou-se para a moça.

— Sou-lhe extremamente grato — disse ele. — Pode parecer lugar-comum, mas expressa muito bem o que sinto.

Esperava que ela ficasse embaraçada e o sangue-frio dela impressionou-o.

— Acho melhor ir procurar as suas criadas — disse Joan, com um brilho nos olhos — e dizer-lhes para virem amanhã, às 2h da tarde.

Sublinhou as palavras e um peso rolou do coração dele, pois compreendeu que Joan Carston estaria lá para o café da manhã.

Lydia ficou vendo a outra sair.

— Então é verdade que Lady Joan é sua noiva? — perguntou ela e o queixo de Jim caiu. — Ela me disse isso, mas pensei que ela estivesse — bem, blefando.

— Minha noiva? — repetiu ele, atônito. — Ela — ela disse isso?

Lydia sorriu com desdém.

— Logo vi que não era verdade. Ela é sua amiga?

— Uma grande amiga — respondeu Jim, vagamente — mas só no sentido em que uma lady é amiga de um aldeão acamado.

— E o senhor é o aldeão acamado?

Forçou um sorriso, mas Jim leu-lhe no rosto um resto da emoção que ela procurava esconder, ao voltar ao assunto que a trouxera ali.

— Falando sério, Sr. Morlake — disse — não acha que já é tempo de acabar com a estúpida briga entre o senhor e Ralph?

— Devo tomá-la como uma mediadora de paz? — perguntou ele, divertido. — Porque, se for como todos os embaixadores, a senhorita deve ter algo a me oferecer, além de uma intangível amizade, de qualidade muito duvidosa.

Ela atravessou a sala, fechou a porta e, aproximando-se dele, disse, em voz baixa:

— Ralph disse-me que o senhor queria algo que ele tinha — pois bem, ele já não o tem!

Jim franziu a testa.

— Destruiu-o?

— Não está mais com ele — repetiu a moça. — Está em outras mãos.

Jim olhou para ela incrédulo.

— Está falando sério?

Ela fez que sim.

— Então, como é possível que o seu irmão esteja à solta? — perguntou e ela explodiu:

— Não sei o que o senhor está querendo dizer, Sr. Morlake. "À solta?" Acha então que o meu irmão deveria estar na prisão?

— Deveria — disse Jim calmamente. — Mas se o documento — e parto do princípio de que a senhora esteja se referindo a um certo documento — caiu em outras mãos, então não há dúvida, a não ser que tenha caído em mãos de um ladrão ou de um chantagista, de que o seu irmão deveria estar aguardando julgamento.

Jim percebeu que ela falara no escuro e que não tinha a menor idéia da natureza do documento.

— Que é que ele quer que eu faça? — prosseguiu Jim.

— Antes de mais nada, quer a sua amizade — respondeu ela. — Pediu-me que lhe dissesse que não há diferença entre os dois que não possa ser aplainada.

— Por outras palavras, se o cavalheiro em cujas mãos o documento caiu resolver trazê-lo a público, seu irmão deseja que eu testemunhe em seu favor.

Lydia hesitou.

— Não sei se é isso o que ele quer — talvez seja. Ele não me disse mais do que estou lhe dizendo, que aquilo que o senhor queria já não está em seu poder, e que ele gostaria de contar com a sua amizade.

Jim encaminhou-se para a janela e olhou para fora, procurando resolver o impasse em que ela o colocara, ao mesmo tempo em que não podia deixar de pensar na extraordinária descoberta de que Jane Smith era Joan Carston, a filha do Conde de Creith.

Mas essa era apenas a primeira dentre as muitas surpresas que esperavam por James Morlake.

— Não sei o que posso fazer — disse ele, voltando-se para Lydia. — A desinteligência, como a senhorita chama, entre mim e o seu irmão depende de ele querer repará-la. Pode lhe dizer isso.

— Quer dizer que a guerra vai continuar? — perguntou ela dramaticamente.

Ele sorriu, mas logo ficou sério.

— Sim, receio que a guerra vá continuar.

Lydia mordeu o lábio, procurando pensar rapidamente. Suas instruções eram um tanto vagas e Ralph Hamon deixara a seu cargo o método pelo qual ela deveria pôr em prática as suas sugestões. Havia uma atitude alternativa que ela poderia tomar, e Lydia decidiu ser chegado o momento de lançar-se no seu novo papel.

— Será que o senhor se dá conta do que isso significa para mim, sua única irmã? — perguntou, com voz trêmula. — Sabe o que significa, ficar noite após noite sem poder dormir, pensando, preocupada, no que o dia seguinte poderá trazer?

— Sinto dizer que não. Francamente, Srta. Hamon, isso não me comove. Se é verdade que sente todo esse medo e preocupação — bem, sinto muito.

Aproximou-se dela e encarou-a.

— Pode dizer ao seu irmão que pretendo ir até o fim. Corri muitos riscos e não desistirei enquanto a minha missão não tiver terminado.

— Onde já se viu um ladrão ter uma missão! — troçou ela.

— Divertido, não? — disse ele, bem-humorado.

Se antes tivera dúvidas quanto à sinceridade dela, agora não tinha mais. A moça era uma atriz, e das más; não conseguira manter o ar preocupado ante a continuação da briga; ou esconder o aborrecimento por ter fracassado.

— Demos-lhe uma oportunidade, Morlake — disse ela. — Não sei qual o desentendimento entre você e Ralph, mas ele é esperto demais para você, como mais tarde ou mais cedo você verá. Estou farta de tudo isso! Se Ralph é ladrão, você o que é? Será que o que existe no mundo não chega para vocês dois?

— Agora, sim, estou reconhecendo Lydia Hamon — disse Jim Morlake, acompanhando-a até a porta.

 

Em apenas uma semana, uma mudança extraordinária se processara em Ralph Hamon. Havia ocasiões em que, aos olhos da irmã, parecia um velhinho. Seu cabelo estava mais grisalho, novas rugas tinham surgido no seu rosto desagradável e ele parecia mais inclinado. Lydia, preocupada com a sua própria regeneração, não procurou ver qual era a causa. Para sua surpresa, quando lhe comunicara o resultado do seu encontro com Morlake, o irmão reagira com a maior calma. Nem mesmo o fato de ela lhe informar da presença de Joan Carston na Quinta Wold o tinha exaltado.

No dia seguinte ao da sua entrevista com Jim, Lydia foi ao escritório do irmão, passagem de trem na bolsa, bagagem já na estação.

— Vou voltar para Paris hoje à tarde — disse — e preciso de algum dinheiro.

Ele olhou para ela.

— E quem lhe disse que você ia voltar para Paris? — perguntou ele, indiferente à surpresa simulada pela irmã. — Você vai ficar em Londres até eu lhe dizer que pode ir. Já lhe disse isso faz uma semana. Podemos ter de ir embora, e bem depressa.

— O que é que há? — perguntou Lydia, percebendo, pela primeira vez, a seriedade da situação. — As coisas estão assim tão más?

— Piores — respondeu Hamon, e acrescentou — por ora. Você compreende, Lydia — prosseguiu, num tom mais suave — que eu não queira ficar sozinho num momento destes. Além disso — hesitou — prometi a Sadi levar você para Tânger.

Ela não falou enquanto não puxou uma cadeira para junto da mesa e se sentou diante dele, cotovelos na mesa, olhos fixos nos do irmão.

— Você prometeu algo mais a Sadi? — perguntou. Hamon evitou o olhar da irmã.

— Há cinco ou seis anos, você estava muito interessado em que eu morasse em Tânger — disse ela. — Por quê? Que foi que você prometeu a Sadi?


— Nada, na verdade. Você antes gostava dele, Lydia.

— Naquele tempo, ele me interessava. Qualquer mocinha se interessaria por um mouro pitoresco — e, pelo que você me conta, nem sequer pitoresco ele é, agora. Além disso, tenho a minha vida organizada.

— Sadi me é muito útil — extremamente útil. Pertence a uma das mais importantes famílias de Marrocos, é cristão — pelo menos, é o que parece — e rico.

Ela sorriu com desdém.

— Tão rico, que você lhe paga uma boa soma trimestralmente! Não, Ralph, você não pode iludir-me. Sei tudo a respeito de Sadi, tudo o que me interessa. Ele não passa de um mouro manhoso e, se você pensa que eu vou bancar a Desdêmona para ele, pode tirar o cavalinho da chuva. Otelo nunca foi a minha peça predileta. Ele é muito divertido, concordo, e pessoa importante em Tânger. Pode até ser cristão, embora eu duvide. Mas eu é que não vou ser a n.° 23 do seu harém. Deus não há de querer que eu termine os meus dias num harém abafado, mesmo sendo a principal esposa do Xarife Sadi Hafiz. Li uma porção de livros sobre o assunto, ultimamente — continuou ela — e vejo que o deserto é apresentado como algo muito romântico, mas, para quem quer que tenha farejado o Oriente Próximo, não há romance que compense o mau cheiro. Nas últimas semanas que estive em Paris, recebi várias cartas suas, Ralph, falando das alegrias de Marrocos, e estava mesmo querendo saber o que você estava arquitetando.

— Sadi gosta muito de você — disse Hamon, embaraçado — e esses casamentos muitas vezes dão certo. O Governo tem-no em grande consideração e ele possui mais condecorações do que um general.

— Nem que ele tivesse todas as condecorações deste mundo me atrairia — atalhou ela. — Por isso, vamos encerrar o assunto.

— Como você quiser — concordou ele, para surpresa da irmã. — Mas você vai ter de ficar em Londres até eu ter terminado esse outro assunto.

Assim que ela foi embora, Hamon fez um esforço para trabalhar, mas não conseguiu.

Deu ordem para que lhe servissem um almoço frugal no próprio escritório e, depois, mandou chamar o secretário. Tirando o livro de cheques da gaveta, preencheu relutantemente um deles.

— Retire esta quantia do banco em notas de cinco libras.

O secretário não se espantou ao ver a quantia, pois estava acostumado a lidar com grandes somas, mas nunca o patrão mandara retirar tanto dinheiro.

Voltou dali a meia hora com crês grandes maços, que Hamon nem se deu ao trabalho de contar.

— Estou esperando o Sr. Marborne — disse ele, ao mesmo tempo em que guardava o dinheiro numa gaveta. — Quando ele chegar, mande-o entrar.

Marborne era esperado às 2h30min. Eram quase 3h quando ele entrou no escritório. Tirou o grande charuto da boca e cumprimentou jovialmente o homem por trás da secretária.

— Bom dia, Hamon! Desculpe se estou um pouco atrasado, mas é que tive de dar um ou dois telefonemas. Está com o dinheiro, cara!

Sem dizer palavra, Hamon abriu a gaveta e jogou as notas em cima da mesa.

— Obrigado — disse Marborne. — Que tal ter um dependente, hem?

Hamon apoiou os cotovelos na mesa e olhou para o chantagista.

— Escute aqui, Marborne. Estou disposto a financiá-lo, mas você vai ter de cumprir a sua promessa.

— Não me lembro de ter feito nenhuma promessa — retrucou o outro, calmamente. — Disse-lhe que o seu segredinho estava a salvo comigo. Você não vai regatear despesas de novo, vai? — perguntou, bem-humorado. — Tenho uma posição a manter. Por ter trabalhado para você, fui chutado para fora da polícia sem direito a aposentadoria. Você teria me deixado morrer de fome, se a sorte não estivesse do meu lado e eu não fosse naturalmente bisbilhoteiro.

— Onde foi que você deixou — aquele papel? Suponha que ele caia em mãos alheias? — perguntou Hamon, e Marborne riu.

— Você acha que eu sou idiota a ponto de pôr a perder uma boa vida? — replicou, desdenhoso.

Apertou inconscientemente com a mão o seu flanco esquerdo. Um movimento involuntário, mas que não escapou a Hamon.

— Está num cofre — disse Marborne — à prova de ladrões e à prova de incêndio, e eu sou a única pessoa que tem a chave, entende?

— Entendo — disse Hamon e estava quase alegre, ao abrir a porta e se despedir do visitante.

Voltou para o escritório e, sem hesitar, pegou num formulário e redigiu um telegrama para "Colport, Hotel Cecil, Tânger". Só havia uma solução para acabar com a tirania de Marborne. Ele tinha de seguir o mesmo caminho do marujo desconhecido, que um motorista encontrara, moribundo, na estrada de Portsmouth.

 

Havia dois homens estranhos na aldeia. Joan viu-os antes dos fofoqueiros de Creith lhe informarem que eram dois homens de negócios, passando férias no campo. Vira-os chegar de carro na tarde do dia anterior, dois homens de aspecto saudável, que pareciam dispor de todo o tempo deste mundo.

Assim que chegou à Quinta Wold para fazer o café da manhã — eram 9h30min quando bateu à porta — ela contou a novidade.

Jim Morlake fez que já sabia.

— Sim — o Sargento Finnigan e o Detetive Spooner, da Central de Polícia. Vi-os chegar na noite seguinte à da minha volta. Vieram no último trem e foram transportados da estação num carro da polícia local.

Notou a preocupação estampada no rosto dela e riu.

— Você pensava que a polícia me largaria tão facilmente? Welling mandou-os para estudarem os meus hábitos. Vão ficar pelo menos mais uma semana aqui. Pensei em convidá-los para jantar uma noite destas. Desconfio que a comida que lhes servem no Leão Vermelho não os satisfaça inteiramente.

Ela não respondeu e passou a outro assunto.

— Não vou voltar mais aqui. Pode reunir a sua criadagem. Encontrei ontem Cleaver na aldeia e ele quase chorou ante a possibilidade de perder um emprego tão bom.

— Já o perdeu — disse Jim gravemente. — Está despedido — para sempre! Nunca o aceitaria de volta.

— Se ele lhe pedir para voltar, você deve aceitá-lo — ponderou ela. — Não seja fraco! Claro que ele deve voltar.

— Você acha?

— Não se trata do que eu acho ou deixo de achar. Não esconda a sua fraqueza atrás de mim. Você deve recebê-lo de volta porque não pode brigar com as pessoas desse jeito.

Joan ouviu-o rir e franziu a testa.

— Perdoe se rio, Lady Joan — disse ele, penitente — mas é que há tanto tempo não sei o que é uma bronca! Prometo aceitar Cleaver e todos os demais de volta. Por que foi que você disse a Lydia...

Fez uma pausa e ela estacou, frigideira na mão, olhos fitos nos dele.

— Que foi que eu disse a Lydia?

— Oh, nada... Imagino que tenha dito aquilo para chateá-la. Pelo menos, é o que ela acha.

Sentia-se embaraçado. Sentiu-se corar e, quanto mais procurava controlar-se, mais incoerentes lhe saíam as palavras e mais gauche era a sua atitude.

— Refere-se a eu lhe ter dito que era sua noiva? — perguntou Joan, calmamente. — É, eu quis chocá-la e o seu nome foi o primeiro que me ocorreu — ficou aborrecido?

— Aborrecido, eu?... Não, de maneira alguma...!

— Espero que não. Quando me lembrei, depois de ter ido embora, que confiara o meu terrível segredo a Lydia Hamon, quase tive um ataque.

Joan tirou destramente os ovos da frigideira e colocou-os no prato.

— Fiquei com medo de tê-lo comprometido irreparavelmente — você é casado, claro!

— Não sou casado — respondeu ele, violentamente — nem nunca fui.

— A maioria das pessoas de bem é casada — disse ela, com tal indiferença, que o deixou gelado — e eu acredito que você seja uma pessoa de bem... é, estou certa de que você é, mesmo. Não ponha o cotovelo no ovo — muito obrigada!

Ele não queria saber de ovos. Detestava ovos: só de olhar para uma gema já ficava arrepiado.

— Sinto que você seja Lady Joan. Gostava de Jane... também gosto de Joan. Conheci uma moça em Springfield, Connecticut...

— Acha mesmo necessário me contar os seus casos? — atalhou ela. — Sou jovem demais para estar interessada.

— Mas esse não foi um caso — protestou Jim. — O nome dela era Joan e ela me chamava de Jim. O pai dela era vereador.

— Meu nome é Joan e, se quiser me chamar de Joan, não faça cerimônia — disse ela, sentando-se à mesa da cozinha. — Posso chamá-lo de Jim, mas papai tem um gato persa chamado Jim e, se eu o chamar assim, vou ficar esperando que você mie! Não gosto de Lexington — parece o nome de uma estação. E não gosto de Morlake. Acho melhor não lhe chamar nada... A respeito desse nosso noivado, você se incomodaria se eu o rompesse por uma semana? Ralph Hamon tem planos para mim e para o meu futuro.

— E se ele contar essa história ridícula a seu pai? — perguntou Jim, preocupado.

— Eu é que deveria chamá-la de "história ridícula" — retrucou Joan, friamente — mas, como você a classificou primeiro, acho que meu pai a acharia divertida.

— Por que é que Hamon tem tanta influência nesta parte do país? — perguntou ele.

Joan contou-lhe, com toda a franqueza, a situação que Hamon ocupava na região, e Jim assobiou.

— Como você vê, o nosso título nada representa. O verdadeiro Senhor de Creith é Hamon e eu sou uma espécie de camareira dele. Quer casar comigo, como é costume, nas histórias, os homens maus quererem casar com as filhas dos condes arruinados. Para completar, eu deveria estar loucamente apaixonada pelo fazendeiro pobre mas honesto, que é o verdadeiro herdeiro das terras. Mas todos os fazendeiros das redondezas são ricos e papai diz que não confiaria a nenhum deles nem um carregamento de estrume.

Jim ouvia-a falar sem despegar os olhos dela, fascinado. Não era a beleza de Joan que o atraía, nem o seu maravilhoso sangue-frio, nem o humor por trás da ironia. Um pouco de cada coisa, talvez, mas havia algo mais. Lembrava-se da manhã — fora mesmo um dia antes? — em que ela chegara com a marca inconfundível de lágrimas nos olhos. Aquele lado duro, prático dela, aqueles comentários aparentemente indiferentes, não revelavam a verdadeira Joan Carston. Ela o intrigava bastante, mas também o assustava.

— Não fique me olhando, James — é melhor James do que Jim, embora pareça nome de mordomo. Não sabia que é falta de educação olhar fixamente? Queria também perguntar-lhe uma coisa... o que era mesmo? Ah, já sei! Ontem à noite, pedi emprestado a Stephens um binóculo. Da minha janela, posso ver a Quinta "Wold. À noite, vê-se um clarão amarelo, que não conseguia identificar. Com o binóculo, vi que era a janela da biblioteca. E vi a sua silhueta passar para cá e para lá, por trás da veneziana. Por que é que você mandou colocar venezianas, James? Não, não precisa responder. Você ainda estava andando de um lado para o outro quando fui me deitar, à uma da manhã. Fiquei uma hora inteira olhando para você... de que é que você está rindo?

— Finnigan e Spooner ficaram mais tempo ainda — explicou ele, entre risadas. — Fizeram um relatório especial sobre a minha falta de sono, posso jurar.

— Como é que você sabe que eles estavam olhando?

— Depois que escureceu, coloquei fios pretos no chão — disse ele. — Esta manhã, todos os fios estavam partidos, bem como a meada que prendi de um lado a outro do portão, deixado intencionalmente destrancado. Debaixo da janela, estendi folhas de papel de embrulho cobertas com excrementos de pássaros — hoje de manhã, encontrei-as na estrada.

Os olhos dela brilhavam, divertidos.

— O garoto que engraxa os sapatos no Leão Vermelho é meu amigo. Fui até lá de manhã bem cedo e encontrei-o raspando a sujeira dos sapatos de Finnigan, e as calças de Spooner estavam um nojo — ele deve ter-se sentado em cima dos excrementos! Eles vão-me vigiar, claro — seriam idiotas se não o fizessem.

Terminada a refeição, eles estavam lavando a louça, quando Joan perguntou:

— Em que é que você estava pensando, ontem à noite, que não conseguia dormir?

— Nos meus pecados — respondeu Jim solenemente e, por alguma razão, a atitude dela, durante o resto da manhã, foi um pouco fria com relação a ele.

Cleaver, o mordomo, chegou à tarde, todo humilde, contando uma longa e inconvincente história para explicar por que pedira a demissão. Jim Morlake não o deixou prosseguir.

— Pode voltar — disse ele — e contratar qualquer empregado que queira voltar também. Mas, agora, todo o mundo tem de estar recolhido às 10h e sob nenhum pretexto você ou quem quer que seja poderá me interromper, quando eu estiver trabalhando no meu escritório.

— Se o Sr. Hamon não tivesse por assim dizer me atraído com promessas de emprego... — começou Cleaver.

— Já vi o Sr. Hamon representar muitos papéis — interrompeu Jim — mas confesso que Hamon bancando a sereia é algo novo para mim.

O escritório ficava na extremidade da casa, na parte mais próxima à Mansão dos Creiths. Era uma peça longa e bastante estreita, com duas portas, uma deitando para o hall e a outra para uma saleta, de onde uma escada estreita levava diretamente ao quarto de dormir, situado logo acima do escritório, mas em ângulo reto com ele, pois, enquanto o escritório ocupava a parte frontal da casa, o quarto se estendia da frente até os fundos.

Enquanto Cleaver reunia a sua equipe, Jim telefonou a Binger, em Londres e, depois, subindo pela escada até o quarto, trancou a porta e, levantando um canto do tapete, abriu um pequeno alçapão que havia no chão e tirou uma caixa de metal preto, que levou para cima da mesa, dela retirando o seu estojo de ferramentas, um revólver e o inevitável quadrado de seda preto. Levou tudo para o escritório e guardou as coisas na gaveta.

Apesar de estar sendo vigiado por detetives, e embora á ameaça de uma condenação à prisão perpétua pairasse sobre ele qual uma nuvem, o Homem de Preto precisava prosseguir no seu trabalho, pois a voz do morto voltava a sussurrar, urgente, insistente, e Jim Morlake não hesitava em obedecer.

Tirou o carro e foi até a garagem da aldeia. O complicado conserto que ele descreveu ao mecânico não podia ser feito em Creith, conforme Jim sabia de sobra.

— É melhor levar o carro a Horsham, Sr. Morlake — disse o mecânico. — Não conheço suficientemente esse tipo de carro para poder fazer o conserto que o senhor quer.

O detetive encarregado de vigiá-lo viu-o sair da garagem e foi até lá, cientificar-se do que estava havendo.

— A direção não está obedecendo — disse o mecânico. — Ele deu um jeito por conta própria, mas eu disse-lhe que é perigoso andar com o carro assim, e ele levou-o ao Bolley's, em Horsham.

Satisfeito, o Detetive Spooner contou ao chefe o que soubera. Ao escurecer, Jim voltou no ônibus que ligava, três vezes por dia, Creith a Horsham. Spooner também relatou isso.

— Não sei para que é que estamos aqui — disse o Sargento Finnigan. — Este lugar é o fim do mundo e não acredito que Morlake vá fazer nada por algum tempo. O julgamento assustou-o.

— Gostaria que ele se acostumasse a ir para a cama cedo — resmungou o seu subordinado. — Conversei com o mordomo — vai voltar a trabalhar para ele, sabia? — e ele me disse que, antes, o patrão nunca sofria de insônia.

— Talvez seja a consciência pesada — disse Finnigan, esperançoso.

Pouco depois de Jim voltar, Binger chegou de Londres com uma pequena mala cheia de mudas de roupa, e William Cleaver levou-o ao quarto do patrão.

— Tenho um trabalho para você que, tenho a certeza, você vai adorar, Binger — disse Jim. — É ficar sentado numa poltrona sem fazer nada durante cinco ou seis horas, todas as noites. Vai poder dormir de dia e não tenho a menor dúvida de que também vai tirar uns cochilos quando em serviço

Binger, que estremecera à palavra trabalho, sorriu.

— Não é que eu seja um homem naturalmente preguiçoso — explicou — mas, a esta altura da vida, noto que me canso muito facilmente. Acho que deve ser ainda da febre que peguei na índia. Não é que eu seja preguiçoso — nada disso! Adoro trabalhar. Está passando um mau pedaço, hem, patrão? Espero que sim! Naturalmente, as pessoas devem ter ficado chocadas com isso de o senhor ser ladrão. A perseguição dos repórteres, quando o senhor estava em cana, foi uma vergonha. Botaram a minha foto nos jornais — o senhor viu?

— remexeu no bolso e tirou uma foto toda amassada, ampliada e um tanto melhorada, da sua pessoa. — Não que eu goste de publicidade, patrão, mas, quando a gente cai no domínio do público, não tem jeito de pular fora. Já o Mommet — era assim que ele chamava Mahmet — não liga. Como é africano, não entende de nada. O senhor desistiu, eu espero?

— Desisti do quê? — perguntou Jim.

— De roubar, claro!

Viu um objeto novo sobre uma mesa lateral.

— Está-se ligando na música, patrão? — perguntou.

Jim olhou para a vitrola portátil que lhe fora entregue alguns dias antes.

— É. Descobri que gosto muito de música moderna — respondeu. — Agora, preste bem atenção às minhas instruções, Binger, pois faço questão de que elas sejam executadas ao pé da letra. Esta noite, às 10h, você vai ocupar o seu posto do lado de fora da minha porta. Pode escolher a melhor poltrona da casa e não me importo que cochile. Mas ninguém deve entrar aqui, entende? E não quero ser interrompido de jeito nenhum. Se algum detetive bater à porta...

— Detetive? — repetiu o espantado Binger.

— É, há dois em Creith — respondeu Jim calmamente — mas não creio que o incomodem. Se eles vierem até aqui, baterem à porta ou fizerem qualquer outra coisa depois das 10h da noite, não os deixe entrar, a menos que tragam uma ordem assinada por um magistrado, o que é pouco provável. Entendeu? v

— Entendi, patrão. Quer que eu lhe traga um café?

— Não quero que você me traga nada — retrucou Jim, cortante. — Se você tentar entrar ou me interromper, será despedido na hora.

Jim teve um belo jantar essa noite, pois a maioria dos criados voltara ao serviço. Às 9h30min, falou com Cleaver, que já estava se preparando para dormir.

Jim desceu ao jardim e chegou-se ao portão. A estrada estava deserta, mas, atrás de uma sebe, viu uma centelha de luz que se acendia e apagava regularmente. Era o charuto do detetive e ele sorriu para si mesmo.

Voltando ao escritório, viu que Binger, munido de uma poltrona e de uma manta, já tomara posição no hall.

— Boa noite, Binger — disse ele e trancou a porta a chave. Sobre a mesa do escritório havia uma lamparina, que projetava uma luz potente sobre a secretária. O abajur fora removido e o brilho da chama era quase ofuscante.

Jim pegou na vitrola portátil e colocou-a sobre a mesa, no meio do escritório, regulando-a de modo a rodar o mais lentamente possível. Depois, tirou da mesa uma comprida vara de aço, que aparafusou à ponta do prato. Nessa vara ele fixara uma diminuta figura de papelão, a silhueta de um homem com as mãos atrás das costas, amarrada a um pedaço de arame forte. Prendeu o arame à extremidade da vara de aço e, levantando a lamparina da mesa, colocou-a no centro do prato e ligou a vitrola. O disco começou a girar lentamente, junto com a lamparina e a figura de papelão. Não demorou que uma silhueta surgisse através da veneziana.

— Lá está ele de novo! — gemeu o Detetive Spooner, ao ver a sombra passar. — Até quando vai ficar nisso?

Aparentemente, não por muito tempo, pois Jim desligou a vitrola e, subindo para o seu quarto, vestiu uma calça e uma suéter pretas. Por cima, enfiou um comprido sobretudo escuro e colocou na cabeça um chapéu preto de aba larga. Guardou as ferramentas e o revólver no bolso, junto com uma pequena lanterna, e olhou para o relógio. 10h30min. A casa toda estava em silêncio. Voltou ao escritório e, aproximando-se da porta, chamou Binger.

— Tudo bem aí?

— Tudo bem, patrão.

— Lembre-se de que não quero ser interrompido.

— Muito bem, patrão, eu entendi.

Pela voz, percebeu que Binger já estava cochilando.

Ligou de novo a vitrola, regulou a velocidade do prato e, subindo novamente para o quarto, dirigiu-se à janela dos fundos, que abriu, passando para um pequeno terraço.

Dali a um minuto estava no jardim, avançando furtivamente por entre as sebes, até à pinguela que levava à propriedade dos Creiths. Caminhando uns 10 minutos, chegou a um celeiro isolado, onde o seu carro estava esperando...

— Lá está ele de novo — disse Spooner ao sargento, quando este foi ter com o detetive. — Está vendo? — e apontou para uma sombra que se aproximava da janela.

Spooner resmungou:

— Vamos ficar aqui a noite toda.

Nesse exato momento, o carro de Jim corria velozmente, em meio à chuva.

 

Marborne recolheu-se tarde aos seus aposentos. Tinha jantado e bebido bem.

Tirou o paletó e entrou no quarto. Acendendo a luz, ainda na porta, a primeira coisa em que os seus olhos pousaram foi no novo cofre. Estava a um canto do quarto, sobre um estrado de madeira.

Olhou para ele estupidificado, sem compreender, até que, com um grito de raiva, penetrou no quarto e começou a revistar o negro interior do cofre. A porta estava aberta e o cofre estava vazio!

Quando conseguiu dominar um pouco a fúria, fez uma rápida busca. Não havia dúvida de que o ladrão subira pela escada de incêndio, entrara pela janela do quarto e trabalhara à vontade.

Correu para a rua e abriu a porta. O Capitão Welling, as mãos atrás das costas, a cabeça inclinada para um lado, estava de pé na calçada, olhando atentamente para as janelas iluminadas do apartamento.

— Capitão Welling, preciso do senhor! A voz de Marborne traía a sua agitação.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou Welling, aproximando-se. — Engraçado, eu estar aqui.

— Fui roubado — roubado! — disse Marborne. — Alguém arrombou o meu cofre.

Subiu a escada, à frente do outro, murmurando coisas incoerentes. Ajoelhando-se diante do cofre arrombado, Welling examinou-o rapidamente.

— É, ele trabalhou bem — comentou. — Mas os chamados cofres à prova de ladrões são canja para um bom profissional. Não toque em nada até de manhã, vamos colher as impressões digitais.

Saiu, pela janela, para a escada de incêndio.

— Ei, o que é isto? — disse ele, apanhando algo no patamar.

— Uma luva de algodão. Imagino que encontraremos a outra no fundo da escada. Não acho que seja necessário colhermos impressões digitais.

Examinou a luva à luz.

— E não adianta seguir a pista destas luvas. Receio que ele tenha escapulido mesmo. Quanto dinheiro você perdeu?

— Entre 2 mil e 3 mil libras, acho — gemeu Marborne.

— Mais alguma coisa?

O ex-inspetor olhou, irritado, para Welling.

— Que mais poderia haver? — perguntou, furioso. — Já não chega, perder 2 mil libras?

— Você não tinha nenhum livro, nenhum documento?

— Não no cofre — disse Marborne e acrescentou, depressa: — nem em qualquer outro lugar.

— Está-me parecendo obra do Homem de Preto — murmurou Welling, voltando para junto do cofre. — Parece mesmo. E não entendo como pode ser isso. Você tem telefone?

— Na sala — disse Marborne.

Welling pediu uma chamada interurbana e voltou para tentar uma busca, que desde já sabia infrutífera, de pistas.

Evidentemente, o ladrão não se satisfizera com o dinheiro que encontrara no cofre. Todas as gavetas tinham sido revistadas e seu conteúdo espalhado no chão. A cômoda fora arrombada, o mesmo acontecendo com um baú que havia debaixo da cama. Até esta fora revirada, cobertor por cobertor, lençol por lençol, e o colchão jazia metade no chão, metade na cama.

Welling voltou para a sala. Não havia armários nem gavetas, a não ser três no aparador, que estavam vazias. Olhou para as paredes. Um dos quadros estava torto.

— É, ele estava procurando algo, o nosso amigo. O que era? — perguntou.

— Como é que eu vou saber? — retrucou Marborne, furioso. — De qualquer maneira, não encontrou o que queria.

— Não sei como você pode dizer isso, se não sabe o que ele estava procurando — observou Julius, suavemente.

O telefone tocou e Welling atendeu.

— Capitão Welling falando. É você, Finnigan?

— Sou, capitão. Recebi um recado de que o senhor queria falar comigo.

— Onde está o nosso homem?

— Na casa dele — pelo menos, estava, faz cinco minutos.

— Tem certeza?

— Certeza absoluta. Não o vi, mas vi a sombra dele. Está em casa. Além disso, está sem carro. Levou-o para Horsham, hoje mesmo, para consertar.

— Ah, sim? — disse Welling, sempre suave. — Muito bem.

Recolocou o fone no gancho e voltou para junto de Marborne, ao mesmo tempo em que olhava, desanimado, para os estragos.

— Acho melhor você telefonar para a polícia local e pedir que mandem um detetive, Marborne — disse o velho policial. — Mas não creio que possam ajudar — foi uma pena, você perder todo esse dinheiro. Os bancos são mais seguros.

Marborne não respondeu.


 

Sadi

Se o viajante subisse a rua estreita e íngreme que vai da Grande Mesquita até o Grande Suk* de Tânger, e virasse abruptamente à direita, como se o seu objetivo fosse o Kasbah**, encontraria à esquerda um muro alto e branco, atravessado apenas por um portão maciço, de dobradiças verde-bronzeadas.

* Suk — mercado. (N. da T.) ** Kasbah — Castelo, em árabe. (N. da T.)

 

Atrás desse muro havia um jardim malcuidado e uma fonte de pedra quebrada e o suficientemente consertada, por um biscateiro europeu, de modo a permitir que um esguicho fraco de água subisse espasmodicamente para o ar, antes de cair num tanque preto, onde, entre o lixo de anos, nadavam lânguidos peixinhos dourados.

A casa de Sadi Hafiz formava um ângulo reto com o muro. Era uma casa feia, caiada, mais parecendo um celeiro dotado de varanda e alpendre, onde, quando o tempo estava quente, Sadi Hafiz se sentava numa poltrona desbotada, bebendo chá de hortelã e fumando. Era um mouro alto e pálido, de gordas bochechas e um arremedo de barba, e sempre com um ar meio-adormecido. Ficava sentado, logo de manhã, um cigarro pendendo do grosso beiço inferior, os olhos mortiços fixos num gerânio murcho que havia no centro do pátio.

O Xarife Sadi Hafiz tinha tido muitos cargos de confiança em vários governos, mas nunca por muito tempo. Servira a dois sultões e a quatro pretendentes, fora agente confidencial de seis consulados europeus e um americano, e acabara roubando ou traindo todos eles. Dominando várias línguas, amigo dos árabes que carregavam os seus rifles sempre que iam a Tânger fazer compras, sua influência estendia-se aos lugares mais estranhos e distantes e era um traficante de concessões sem rival.

Ao pôr-do-sol de um belo dia, um homenzinho chamado Colport, agente em Tânger das companhias de Ralph Hamon foi procurá-lo em casa.

— Boa tarde — sirva-se de um drinque — grunhiu o xarife em inglês. — Recebeu alguma resposta ao seu telegrama?

— Ele mandou dizer que só daqui a um mês vai mandar o pagamento referente a este trimestre — informou Colport e o mouro cuspiu com desdém.

— E gastou 20 pesetas para mandar esse telegrama? Alá! Eu preciso do dinheiro agora. O homem vem aí?

— Não sei, ele não falou.

O mouro olhou para ele por debaixo das pálpebras cansadas.

— Lydia vem com ele? Claro! Durante cinco anos, veio sempre, mas passaram-se outros cinco anos em que ela não pôde vir. Estou farto de Hamon. Trata-me pior do que Hassim, o judeu. Dou-lhe participações nos negócios, ele ganha milhões e só me paga um tanto de três em três meses. Sabe o que eu fiz por ele, anos atrás? Pergunte a Hamon!

Colport deixou-o falar. Sadi estava sempre se queixando, sempre falando de misteriosos serviços prestados.

— Ele não se importaria de me ver no Kasbah, acorrentado pela perna e morrendo à míngua de água. E olhe que tenho duas novas maravilhas para ele — um filão de prata nas montanhas! Ah, ah, como os seus olhos brilham! Só nessa concessão há 50 milhões de pesetas. Quem mais poderia encontrar maravilhas dessas, senão o xarife? Sou o homem mais poderoso do Marrocos — maior do que um paxá* — maior do que o sultão...

* Paxá — Governador (do árabe basha). (N. da T.)

 

Continuou a falar, até Colport aproveitar uma deixa:

— O Sr. Hamon diz que vai lhe mandar o dinheiro e mais 500 libras esterlinas, mas que o senhor vai ter de mandar imediatamente... espere!

Tirou o telegrama do bolso e alisou-o em cima do joelho.

— "Diga a Sadi que preciso de outro Ali Hassan" — que será que isso quer dizer, Sadi?

Os olhos de Sadi estavam agora arregalados e os seus dedos manchados de tabaco acariciavam o queixo barbudo.

— Ele está em maus lençóis — disse, lentamente. — Foi o que pensei, Mas os Alis Hassans não crescem em qualquer cacto, Colport.

Ficou calado um bocado de tempo, pensando, e os seus pensamentos não eram agradáveis. Por fim, disse:

— Telegrafe para ele dizendo que vai custar mil libras. Traga-me o dinheiro amanhã à tarde. Mesmo assim... mas vou dar um jeito.

Bateu palmas indolentes e disse, rindo, à moça que acorreu:

— Traga-me chá, sua besta negra.

Deu a Colport à honra inusitada de acompanhá-lo até o portão e depois voltou para a velha poltrona e sentou-se, cotovelo fincado no joelho, queixo apoiado na mão, até que a chamada do muezim* o tirou dos seus devaneios para a oração do anoitecer.

* muezim — Funcionário encarregado de anunciar, do alto do minarete, as cinco preces cotidianas do Islã. (N. da T.)

 

Terminada a oração, ergueu-se com dificuldade e chamou o homem que lhe fazia ao mesmo tempo as vezes de escriba e valet.

— Por acaso você conhece Ahmet, o arrieiro?

— Conheço, excelência. Foi ele que matou o cambista e alguns dizem que assaltou outro judeu e o atirou num poço. É um homem mau.

— Ele fala inglês?

— Dizem que fala inglês e espanhol. Era guia em Casablanca, mas roubou uma mulher e foi chicoteado.

Sadi inclinou a cabeça.

— Ele vai ser o meu Ali Hassan — decretou. —Vá.até as casas baixas junto à praia. Se ele estiver bêbado, deixe-o em paz, pois não quero que a polícia francesa o veja. Se estiver, sóbrio, traga-o até aqui quando for meia-noite.

O único relógio público de Tânger estava dando meia-noite, quando o criado mandou passar o mal-encarado arrieiro.

— Que a paz reine nesta casa e Deus lhe dê bons sonhos! — disse ele, ao ver a figura vestida de branco do xarife surgir diante dele, ao luar.

— Ahmet, você já esteve na Inglaterra?

Estava no meio do pátio, longe dos ouvidos que escutavam por trás das três janelas de rótula.

— Já, xarife.

— Pois agora você vai voltar. Há um homem precisando de você. Lembre-se de que eu o salvei por duas vezes da morte. Por duas vezes, quando a corda já estava no seu pescoço, eu. o Xarife Sadi de Ben-Aza, intercedi junto ao paxá e consegui salvar você da morte. Mas na Inglaterra não haverá ninguém para salvá-lo, se você agir como um idiota. Venha me ver amanhã, que eu lhe darei uma carta.

 

Jim Morlake voltou para casa às primeiras horas da manhã. Às 3h30min, Spooner viu a veneziana da janela se abrir e Jim surgir, recortado contra a forte luz do escritório. Um minuto mais tarde, ele abriu a porta que dava para o jardim e saiu, atravessando o gramado na direção do portão. O detetive buscou a proteção das sombras, mas a voz de Jim perguntou:

— Quem está aí? É você, Finnigan, ou é o Spooner?

— Spooner — respondeu o policial meio desconcertado, saindo das sombras.

— Entre e tome um copo d'água — disse Jim, abrindo o portão. — Espera dolorosa, não?

— Como é que o senhor sabia que nós estávamos aqui?

Jim riu.

— Não seja bobo — retrucou. — Claro que eu sabia que vocês estavam aí.

O detetive bebeu a água com avidez.

— Também acho uma estupidez — disse ele — desperdiçar assim o tempo de um homem...

— De dois homens — corrigiu Jim.

— O senhor nunca dorme? — perguntou o detetive, escolhendo um charuto da caixa que Jim lhe estendia.

— Muito raramente — respondeu gravemente o dono da casa. — Andar de um lado para o outro me relaxa.

— Como é que o senhor faz? Só o vejo passar numa direção.

— Geralmente, ando quilômetros em volta da mesa — explicou Jim.

 

Marborne passou o dia numa atmosfera de desespero.

De manhã, mandara uma intimação a Hamon e recebera umas míseras 500 libras. Despachara imediatamente uma segunda mensagem, mas recebera a resposta de que Hamon viajara, coisa que Marborne tomou como um pretexto esfarrapado, até se dar ao trabalho de ir à casa do financista. O mordomo informou-lhe que a Srta. Hamon também viajara. Saíra nessa mesma manhã, de trem, para Paris, onde deveria ficar uma semana.

Marborne tirou um baralho da gaveta e começou a jogar paciência, mas, como estava por demais nervoso, tinha resolvido sair, quando a campainha da porta tocou.

Marborne abriu cautelosamente a porta e deparou com um marinheiro alto e de aspecto estrangeiro.

— Desculpe — disse o homem, com um sotaque gutural — mas gostaria de falar com o Sr. Marborne.

— Sou eu.

— Trouxe isto para o senhor — disse o estranho, mostrando um grande envelope. — É de parte do Sr. Hamon. Mas primeiro quero ter a certeza de que o senhor é mesmo Marborne.

— Entre — disse rapidamente o ex-policial.

Hamon mudara de idéia, pensou ele, satisfeito. Aquele envelope continha dinheiro. Hamon às vezes usava estranhos mensageiros. O homenzarrão entrou e olhou fixo para o outro.

— O senhor é mesmo Marborne? — perguntou, num inglês estropiado.

— Sou, sim — disse Marborne, quase sorridente, e o homem pousou o envelope na mesa.

— Isto é para o senhor — disse ele. — Quer fazer o favor de abrir e me fazer um sinal?

— Está querendo dizer para eu assinar?

— Isso mesmo — assinar.

Marborne rasgou o envelope. Durante um segundo, ficou de costas para o visitante e Ahmet, o arrieiro, não perdeu tempo em puxar do bolso um punhal curvo e desferir um golpe para cima, com um "Ah!" gutural.


 

O cordão

O que fez com que Marborne erguesse os olhos, ele não saberia dizer. No espelho que havia em cima da lareira, viu o brilho do punhal e pulou para a frente, empurrando a mesa. Voltara-se para enfrentar o assassino e, nesse instante, levantara a beira da mesa, jogando-a contra o assaltante. Ao mesmo tempo em que ele puxava do revólver, as luzes se apagavam, porque embora Ahmet, o arrieiro, fosse um bárbaro, morava numa cidade dotada de luz elétrica e sabia o valor de um interruptor por perto.

Marborne ouviu o barulho de seus pés descendo a escada e correu atrás dele, tropeçando e caindo por cima da mesa. Quando as luzes se apagaram, a escada e o corredor estavam vazios. Nem na rua havia sinais do homem e, trancando duplamente a porta, Marborne voltou para os seus aposentos e pegou numa garrafa de uísque, não se dando ao trabalho de misturá-lo com água.

— Maldito! — praguejou. Pousou a garrafa e examinou o envelope que o homem deixara.

Continha apenas jornais velhos.

Estava agora calmo, embora a cabeça lhe latejasse. Então aquele era Hamon — o verdadeiro Hamon, que não hesitaria diante de nada para reaver o que tinha perdido. Ficou meia hora sentado, pensando e, depois, levantando-se, tirou o paletó, a camisa e a camiseta. Preso ao seu corpo com tiras de adesivo, havia um saquinho de seda, através da qual se podiam distinguir algumas das palavras constantes do documento que Hamon, não menos que Morlake, tanto cobiçava.

Prendeu-o com mais duas tiras de adesivo, vestiu-se e, examinando cuidadosamente o revólver, enfiou-o no bolso da calça. Só havia uma coisa a fazer, e tinha de ser feita imediatamente. Precisava correr, antes que o quase-assassino voltasse. Vestiu o sobretudo, pegou numa bengala de ponta afiada e saiu.

Jim Morlake era a solução dos seus problemas, o escudo para o perigo que corria. Percebia isso com espantosa nitidez.

Pegou um táxi até a Estação de Victoria e viu que ainda tinha de esperar meia hora pelo trem. Nova dose de uísque fortificou-o e, quando o trem chegou, enfiou-se num compartimento de primeira classe, ocupado por dois outros homens.

À 11 h da noite, Jim, que estava trabalhando no seu escritório, escutou passos subindo pelo caminho de cascalho e, ao abrir a porta, ouviu uma discussão entre Binger e um desconhecido. Não demorou que Binger viesse falar com ele, num estado de grande agitação.

— É o maldito do Marborne — murmurou ele.

— Mande-o entrar — disse Jim, após um minuto de reflexão.

Que poderia querer Marborne?, pensou ele. Que suspeitasse de que ele era o Homem de Preto era natural, mas isso não o levaria a tomar um trem e fazer uma viagem àquela hora da noite — fosse para interrogá-lo, ou para tomar satisfações.

— Diga-lhe para entrar.

Marborne pareceu-lhe muito abatido. Esperava um encontro desagradável, mas a atitude e o jeito do homem eram o supra-sumo da amabilidade.

— Sinto incomodá-lo a estas horas, Sr. Morlake — disse ele — e espero que não pense que vim vê-lo por causa do que aconteceu ontem à noite.

Jim ficou calado.

— O caso é que — começou Marborne, abaixando a voz — eu estou em... — De repente, deu meia-volta e perguntou, com voz rouca: — Que foi isso?

Ouviram-se passos lentos no cascalho do jardim.

— Quem está aí? — perguntou Marborne, tenso.

— Vou ver — disse Jim.

Ele próprio abriu a porta ao visitante.

— Entre, Welling. Você é á penúltima pessoa que eu esperava receber esta noite, aqui.

— Quem era a última? — perguntou Welling.

— Um velho amigo seu, que acaba de chegar — Marborne. As sobrancelhas brancas do Capitão Welling arquearam-se.

— Marborne! Que interessante! — exclamou. — Ele veio até aqui para reaver o dinheiro sumido?

— A princípio, foi o que pensei — respondeu Jim, bem-humorado — e, naturalmente, não poderia recusar. Mas não, acho que se trata de outra coisa, muito mais séria do que a perda do dinheiro.

O alívio de Marborne ao ver Welling era tão evidente, que Jim ficou intrigado.

— Esperando um amigo, Marborne? — perguntou Julius, sorridente.

— N-não, senhor — gaguejou o outro.

— Achei que não. Pode guardar o revólver. Mau negócio, andar armado. Fico espantado de ver um velho policial, como você, recorrer a revólveres. Um policial só precisa de um cassetete — e de rapidez!

Marborne recuperara um pouco do seu sangue-frio, ao ver o homem que, mais do que qualquer outro, fora o responsável pela sua ruína. De repente, parecia ver-se livre do terror que o envolvera como uma nuvem, alguns momentos antes.

— Não quero incomodá-lo com as minhas coisas hoje, Sr, Morlake. Talvez o senhor me possa conceder alguns minutos, amanhã de manhã...

— Se é por minha causa... — disse Welling.

— Absolutamente. Onde posso pernoitar? Deve haver um hotel por aqui, não?

— Há uma estalagem — disse Welling — O Leão Vermelho. Estou hospedado lá. Mas posso esperar, meu assunto não é muito importante. Só queria fazer uma ou duas perguntas ao Sr. Morlake.

— Não, deixo para amanhã — disse Marborne.

Tomara uma decisão. Daria a Hamon a última oportunidade. Ele estava ali, a dois passos. De manhã, iria procurá-lo e talvez, se o acusasse de ter tentado matá-lo, Hamon concordasse em lhe pagar mais e sem delongas.

— Vai encontrar dois amigos seus lá fora — Finnigan e Spooner — disse Julius Welling. — Não os corrompa, Marborne!

— Que é que há com ele? — perguntou o velho policial, assim que o outro saiu.

— Não sei. Falou que estava em... acho que ia dizer "perigo". Talvez esteja bêbado.

Welling abanou a cabeça.

— Não, não estava bêbado — retrucou. — Que será que ele quis dizer? — perguntou aos seus próprios botões. — Vamos dizer-lhe que volte, Morlake. Deve estar falando com os meus homens.

Saíram para a estrada e os dois detetives aproximaram-se deles.

— Marborne está com vocês?

— Não, senhor — respondeu Finnigan.

— Já foi embora?

— Não estou entendendo, capitão. Não o vimos.

— Não o viram? — gritou Welling. — Ele não saiu por este portão há uns dois minutos?

— Não, senhor — disseram os dois policiais ao mesmo tempo. — Ninguém saiu por esse portão.

Algum de vocês tem uma lanterna? — perguntou Welling, após uma pausa.

Como resposta, a lanterna de bolso de Finnigan projetou um leque de luz no chão e, agarrando-a, Welling recuou e iluminou o caminho de um lado ao outro.

A meio-caminho entre o portão e a casa, parou e alumiou os arbustos que bordejavam o jardim.

Marborne estava caído de bruços. Tinha um leve ferimento na nuca, mas fora o cordão de seda amarrado à volta da garganta que o matara.

 

— Acho que não há mais nada a fazer — disse Jim, depois de meia hora tentando reanimar o homem caído no chão do escritório.

Aplicara-lhe respiração artificial, mas em vão. Marborne devia ter morrido segundos antes de o terem encontrado.

— Completa! — exclamou Welling, mordendo o lábio, pensativo. — Minuciosa e rápida. Como podem ver, a revista foi completa.

As roupas do morto tinham sido rasgadas, descobrindo-lhe o peito.

— Era aí que a coisa estava escondida — presa à pele. Um velho expediente, que Marborne deve ter aprendido no decurso da sua carreira de policial.

Finnigan, que fora encarregado de revistar as imediações, voltou desanimado.

— Não podemos fazer nada antes de amanhecer, a não ser prevenir a polícia local. Cuide disso, Spooner. Ponha todos os homens disponíveis procurando nos campos. O assassino deve ter fugido por aí, já que não saiu pelo portão. Pode-se refugiar na floresta, mas duvido. Morlake, você, que conhece a topografia da região, para que lado acha que ele deve ter ido?

— Depende de ele a conhecer também — disse Jim. — Sugiro a pinguela que atravessa o rio e o caminho que leva à estrada de Amdon. Mas há uma meia dúzia de atalhos que ele pode ter tomado e também pulado muros. Aliás, isso talvez seja o mais provável.

Mas aí ele se enganava.

Nem o dia nem os batedores da polícia revelaram o paradeiro do assassino. A única descoberta — e de primordial importância — foi feita por Spooner, que encontrou, perto do rio, um longo punhal curvo, que o assassino deixara cair, na fuga.

— Marroquino — disse Jim. — Ou melhor, fabricado em Birmingham e vendido em Marrocos, principalmente entre os camponeses. Se não tiver sido usado para despistar, o que é possível, podem expedir uma ordem de captura de qualquer marroquino encontrado num raio de 30 km daqui, nas próximas horas.

A única informação que conseguiram foi que um marinheiro de aspecto estrangeiro fora visto na estrada de Shoreham, mas não era negro, acrescentava o relatório. Welling disse isso a Jim.

— Que é que você acha dos idiotas? — gemeu. — Não era negro! De que cor deveria ser?

— Branco, provavelmente — respondeu Jim. — Muitos mouros são mais brancos do que eu ou você.

A policia londrina tinha revistado os aposentos de Marborne e encontrado tudo revolvido.

— Isso explica o que aconteceu — disse Welling. — O homem foi ao apartamento de Marborne e os dois lutaram. A sala de jantar estava em desordem, mesa e cadeiras reviradas, e encontraram uma carta falsa dirigida a Marborne, provavelmente o pretexto que o homem deu para entrar. Marborne deve ter lutado com ele, antes de vir procurá-lo.

— Por quê?

— Evidentemente, porque queria vender-lhe o documento com que estava chantageando Hamon. Por conseguinte, deve ter pensado que Hamon mandara o mouro matá-lo. Portanto, Hamon deve estar a par do crime e — acrescentou, em desespero — não temos provas suficientes contra Hamon para justificar sequer uma ordem de busca!

Welling fizera da Quinta Wold o seu quartel-general — escolha estranha, pensou e disse Ralph Hamon, ao ser chamado para falar com Julius Welling, no escritório de Jim.

— Pode ser estranho e pode ser trágico — disse Julius, pondo de lado a suavidade — mas o lugar serve para mim e, portanto, temo que tenha também de servir para o senhor. Já sabe das novidades, Sr. Hamon?

— Que Marborne foi assassinado? Já, pobre homem!

— Era seu amigo?

— É, eu conhecia-o. Sim-, quase posso dizer que ele era meu amigo — respondeu Hamon.

— Quando foi que o senhor o viu pela última vez?

— Há vários dias que não o via.

— E o seu último encontro com ele, foi amistoso?

— Muito. Ele foi-me pedir dinheiro para iniciar um negócio.

— E o senhor emprestou, claro? — perguntou Welling, secamente. — Isso pretende explicar as transações financeiras entre os dois.

— Que está querendo dizer? — retrucou Ralph Hamon. — Por acaso insinua que eu esteja mentindo?

— Estou dizendo, e não insinuando, que o senhor está mentindo — atalhou Welling. — Não insinuo nada, quando investigo uma acusação de homicídio. Repito que o senhor está mentindo. O senhor deu-lhe dinhero, mas não para iniciar um negócio. Ele estava de posse de um documento que o senhor estava ansioso por recuperar e, como ele não o queria devolver, o senhor pagou-lhe grandes quantias de dinheiro, à guisa de chantagem.

O rosto de Hamon estava cinzento.

— O senhor está fazendo uma declaração que pode ser investigada em tribunal.

— Será, certamente, se eu pegar o assassino — disse Welling.

— Já pensou — lembrou Hamon, com ar desdenhoso — que Marborne era inimigo de Morlake e que foi encontrado morto na quinta dele?

— Pensei nisso várias vezes, esta noite — disse Welling. — Só que, infelizmente para a sua teoria, Morlake estava comigo quando o homem foi assassinado, e o embrulho preso ao seu corpo com tiras de adesivo foi roubado.

Viu o brilho nos olhos de Ralph Hamon, mas a expressão de terror logo desapareceu. Em toda a sua longa experiência de policial, nunca vira uma transformação facial tão notável.

— Ah, não sabia? Pois é, o seu homem pegou o embrulho.

— O meu homem? — replicou imediatamente Hamon. — Que está querendo insinuar? Tome cuidado, Welling. Você não é assim tão poderoso, que não possa ser derrubado!

— E nem o senhor é tão poderoso, que não possa ser enforcado — retrucou Welling, calmamente. — Ora, Sr. Hamon, não vamos brigar. Só queremos saber a verdade. É verdade que Marborne o chantageava? Vou-lhe poupar trabalho, dizendo que temos provas convincentes de que ele o chantageava.

Hamon deu de ombros.

— Só posso lhe dizer que emprestei dinheiro para que ele iniciasse um negócio e, se tiver provas em contrário, pode apresentá-las.

Ninguém sabia melhor do que ele que essas provas não existiam. Welling viu que o seu blefe falhara, mas não se importou muito. Tentou um novo método.

— Ultimamente, o senhor tem mandado uma porção de telegramas para Marrocos, principalmente um em código no qual se referia a Ali Hassan. Quem é ele?

A ansiedade tornou a velar momentaneamente o rosto de Hamon, para logo sumir e o deixar calmo e sorridente.

— Agora vejo por que os detetives são chamados "cães de fila" — disse ele. — Não descuidaram nenhuma pista! Ali Hassan é uma marca de charutos marroquinos.

Olhou para Jim, que confirmou com a cabeça.

— É verdade. É também o nome de um célebre assassino marroquino, enforcado há uns 25 anos.

— Então, escolha — disse Hamon, sorrindo para Welling.

— Esta letra é sua? — perguntou, de repente, Welling, pondo um envelope debaixo dos olhos de Hamon.

— Não, não é minha — disse Hamon, sem hesitar. — Que está insinuando, inspetor?

— Estou insinuando que Marborne foi morto por um mouro que o senhor mandou vir de propósito.

— Em outras palavras, eu seria seu cúmplice? Welling assentiu.

— Se a idéia não fosse divertida, eu ficaria muito zangado — disse Hamon — e, seja como for, recuso-me a lhe dar mais informações. — Já na porta, parou. — O senhor não pode me obrigar — ninguém sabe melhor disso do que o senhor, Capitão Welling. Ouviu bem? Não lhe darei mais informações.

Welling fez que entendia.

— Já nos deu mais informações do que imagina — comentou, depois que a porta se fechou atrás do financista. — Quem é Sadi Hafiz?

— Um personagem peçonhento, que mora em Tânger — disse imediatamente Jim. — Um homem inteiramente sem escrúpulos, mas muito útil para gente como Hamon e outros aventureiros, que precisam de uma fachada plausível. É agente de Hamon. Conheci-o faz anos — na verdade, tivemos uma espécie de duelo — quando eu estava encarregado de estudar a viabilidade da construção de uma estrada de ferro em Fez. Contavam-se histórias fantásticas a respeito dele, algumas, até, incríveis. Ele leva dinheiro de meia dúzia de grupos e imagino que tenha mais crimes sérios na consciência do que qualquer outro homem em Marrocos.

— Crimes de morte, por exemplo? — perguntou Welling. Jim sorriu.

— Eu disse "crimes sérios". O homicídio não é considerado um crime sério, nas montanhas de Rifi.

Welling cocou o nariz.

— Se conseguirmos pegar o tal mouro, ele falará.

— Não dirá nada contra Sadi Hafiz — disse Jim. — Morrerá, mas não dirá uma palavra que incrimine Sadi ou qualquer outra pessoa.

A notícia do assassinato chegou a Joan através de uma empregada e, de início, ela ficou em pânico.

— No jardim do Sr. Morlake? Tem certeza? — perguntou.

— Absoluta. O Sr. Welling, um senhor de Londres e o Sr. Morlake encontraram o corpo e parece que o pobre homem foi assassinado um minuto depois de ter estado na companhia deles. Todo o mundo está dizendo que é castigo por causa de termos deixado que o Sr. Morlake continuasse na aldeia.

— Pode dizer, a quem falar isso, que não sabe o que está dizendo — retrucou Joan, aliviada.

Depois do almoço, Lorde Creith foi até a aldeia e, ansioso por participar das investigações, acabou tocando a campainha de Morlake. Era a primeira vez que o visitava, e Jim ficou surpreso ao vê-lo.

— Entre, Lorde Creith — disse. — Que honra inesperada!

— Se eu não viesse agora, nunca viria — explicou o conde, com um brilho nos olhos. — Quero saber todos os detalhes do crime e a opinião da polícia.

Jim ficou calado. Não podia expressar opiniões que incriminassem o hóspede de Lorde Creith, de modo que limitou a sua narrativa a uma descrição completa do que acontecera na noite em que Marborne fora morto. O conde ouviu com atenção. Como decano dos magistrados locais, caber-lhe-ia efetuar o inquérito preliminar, no caso de ser feita uma acusação formal.

— Que coisa extraordinária! — comentou, depois que Jim acabou de falar. — Tipicamente oriental, no planejamento e na execução. Vivi alguns anos na índia e esse tipo de crime não é novidade para mim. Quais são as teorias da polícia?

Mas Jim pediu desculpa e, vendo Welling pela janela, aproveitou a oportunidade para pôr o conde em contato direto com a autoridade.

— O mais estranho — disse Lorde Creith — é que eu tive a sensação de que algo fora do comum acontecera. Acordei uma hora mais cedo do que de costume. Deveria ter sabido do caso logo, pelo carteiro, que é um grande leva-e-traz, mas, por coincidência, esta manhã não tivemos correspondência. Na verdade — prosseguiu Lorde Creith — hoje só chegou uma carta, à 1h da tarde, e mesmo assim para o meu hóspede.

Welling virou-se mais que depressa.

— Para o Sr. Hamon? — perguntou.

— Exatamente.

— De Londres?

— Não, por estranho que pareça, não veio de Londres e sim de um povoado a uns 10 km daqui. Tencionava perguntar a Hamon quem era o misterioso correspondente, mas provavelmente ele está comprando mais terras nas vizinhanças — sei que está — acrescentou, num tom sombrio.

— Qual o nome do povoado?

— Little Lexham.

— A carta era pesada?

— Era. A minha primeira impressão foi a de que dentro havia um lenço. Mas por que está me fazendo todas essas perguntas? Não vai me dizer que a correspondência do meu hóspede lhe interessa, Capitão Welling...

— Interessa, sim, e muito. Por ventura se lembra do tipo de letra do envelope?

Lorde Creith franziu a testa.

— Não estou entendendo o porquê deste interrogatório — disse ele — mas lembro-me do tipo de letra. O envelope estava escrito em letra de forma.

Welling tomou uma decisão.

— Vou pô-lo a par do que se passa, Lorde Creith. Tenho razões para crer que Marborne foi morto por estar de posse de ura documento que o Sr. Hamon estava ansioso por ter.

— Deus do céu! — exclamou Lorde Creith, atônito.

— Se a minha teoria estiver certa — e o documento foi levado do corpo do morto — o assassino meteu o que encontrou num envelope endereçado e que lhe fora previamente fornecido.

— Sabe o que está dizendo? — perguntou Lorde Creith, alarmado.

— Estou apenas lhe expondo confidencialmente a minha teoria, coisa a que o senhor tem direito, na sua qualidade de magistrado. Seria possível ver esse envelope?

Lorde Creith pensou um momento.

— Venha comigo — disse ele. — Confesso que estou tonto, mas, daqui até cm casa, terei tempo de me recuperar um pouco.

Stephens disse-lhes que Hamon tinha ido dar uma volta pelo parque.

— Nem sei o que fazer — confessou Sua Excelência. — Bem, pode dar uma olhada no quarto dele.

Welling deu uma busca rápida e completa, mas que resultou inútil. Havia uma secretária e um cesto de papéis, vazio

— tinha sido esvaziado de manhã cedo.

— Ah, lá está! exclamou Welling de repente, apontando para a lareira.

Um pedaço de papel queimado ficara preso a um canto o ele apanhou-o, triunfante.

Pegou numa pequena porção de cinzas e cheirou-as.

— Não é papel! — repetiu e olhou para o teto, à procura de inspiração. — Não, não consigo descobrir o que é. Pode me dar um envelope?

Colocou as cinzas em dois envelopes separados e guardou-os no bolso, saindo depois com Jim. Lorde Creith acompanhou-os até o portão e, ao voltar, entrou na biblioteca, onde encontrou Hamon de costas para a lareira, com uma expressão furiosa no rosto.

— Meu valet contou-me que o senhor deixou a polícia entrar no meu quarto. Quer me explicar por quê?

— Porque sou o principal magistrado da região e não posso negar um pedido que me é feito por um policial responsável

— respondeu Lorde Creith calmamente.

— Suponho que de vez em quando o senhor se lembre de que está casa é minha, não?

— Nunca me esqueço disso — retrucou o conde — mas, mesmo que toda esta região lhe pertencesse, Hamon, para mim isso não faria a menor diferença. Se o senhor estivesse sob suspeita de homicídio...

— Sob suspeita de homicídio? Que quer dizer com isso? Não vá me dizer que acreditou nessa história maluca. Que é que a polícia quer? Por que revistaram o meu quarto? Que esperavam encontrar?

Desfechou essas perguntas uma atrás da outra.

— Esperavam encontrar um envelope queimado — disse Lorde Creith, e experimentou certa satisfação malévola ao ver o outro estremecer. — O envelope da carta que lhe foi enviada esta manhã, de Little Lexham.

— Não o encontraram — disse Hamon, ansioso.

— Mas encontraram as cinzas — retrucou Lorde Creith, e acrescentou: — Descobri que o crime já não me fascina como antigamente.-A propósito, Hamon, a que horas quer o carro?

— Para que é que vou querer o carro?

— Porque você vai voltar esta mesma noite para Londres — respondeu Sua Excelência, jovialmente. — Está sempre me recordando que esta casa lhe pertence. Deixe-me recordar-lhe que o usufruto é meu e que, até eu passar desta para a melhor, tenho toda a autoridade, tanto legal quanto moral, de o pôr para fora da minha casa, coisa que estou fazendo neste momento e nos termos mais simples deste mundo!

— É um gesto incrível da sua parte, Lorde Creith — disse Hamon, num tom mais manso.

— Não sei se é incrível ou não, só sei que é necessário — replicou o conde e, sem mais conversa, deu ordens para que o carro estivesse pronto dali a uma hora.

O valet levou a notícia a Ralph Hamon.

— Não vamos voltar para Londres — disse este. — Vá até o Leão Vermelho e me reserve uma suíte.

Tudo aquilo tinha-lhe alterado consideravelmente os planos. A morte de Marborne e a posse do documento, que tantos riscos lhe custara, não lhe prometiam completa segurança. E agora, que estava sob suspeitas, havia uma razão a mais para não sair de Creith enquanto a sua missão não estivesse terminada e até ele ter a certeza de que o perigo não viria de alguma fonte insuspeitada.

Além disso, dera instruções a Ahmet para ferir o outro, e não para matá-lo! Não era sua culpa se o idiota se excedera. Dera ordens semelhantes a um certo Ali Hassan, com as mesmas infelizes conseqüências; mas Ali Hassan era viciado em haxixe e, como tal, irresponsável.

Lorde Creith soube que o seu hóspede se mudara para o Leão Vermelho e não se sentiu mal por isso.

— Não sei como é o Leão Vermelho hoje em dia — disse ele para a filha — mas, na minha mocidade, era conhecido como um lugar cheio de pulgas, e confio em que não tenha mudado. O ar já está mais limpo, não nota? Esse Hamon não é flor que se cheire.

 

Os habitantes de Creith espantaram-se ao ver o principal hóspede do conde e, a acreditar nos boatos, futuro dono da propriedade mudar-se para a estalagem da vila. Mas Hamon já não ligava para o que eles pudessem pensar. Uma semana atrás, uma tal afronta à sua dignidade tê-lo-ia enfurecido, mas agora havia coisas mais importantes em jogo. De repente, o seu mundo oscilava perigosamente.

Telegrafou a Lydia para que se encontrasse com ele em Londres no dia seguinte e, assim que escureceu, saiu do hotel e dirigiu-se para o bangalô do jardineiro. A Sra. Cornford abriu-lhe a porta e não o reconheceu logo, no escuro da noite.

— Preciso lhe falar, Sra. Cornford — disse ele.

— Quem é o senhor? — perguntou ela.

— Ralph Hamon.

Ela ficou algum tempo imóvel e depois, abrindo mais a porta, disse:

— Entre — e recebeu-o na salinha de visitas.

— A senhora não mudou quase nada — disse Hamon, sem saber como abordar o assunto que o levara até ali.

Ela não respondeu. Era uma situação embaraçosa e ele tentou de novo uma saída.

— Suponho que ainda esteja com raiva de mim...

— Não — respondeu ela, calmamente. — Não quer sentar-se, Sr. Hamon?

— Não há razão para a senhora ter raiva de mim. Fiz tudo o que podia por Johnny.

— Onde é que ele está? — perguntou ela.

— Não sei — imagino que tenha morrido — disse Hamon, e ela estremeceu ligeiramente diante da brutalidade da resposta.

— Também acho que ele esteja morto — concordou. — O senhor tinha a certeza de que ele estava vivo há 12 anos — recordou, tranqüilamente. — Que foi feito do dinheiro dele, Sr. Hamon?

— Ele perdeu-o. Já lhe disse isso antes — falou Hamon, impaciente.

Ela não tirou os olhos dele.

— Escreveu-me de Marrocos, dizendo que tinha visto a mina e que era esplêndida. Um mês depois, escreveu-me de Londres, contando que ia acertar tudo com o senhor. Depois, nunca mais tive notícias dele.

— Desapareceu, é tudo o que eu sei — disse Hamon. — Estava esperando por ele no meu escritório, para finalizar a compra das ações, mas nunca apareceu. Mandei-lhe imediatamente um telegrama, perguntando se a senhora sabia onde ele estava.

O tom de Hamon era desafiante.

— Só sei que ele retirou 100 mil libras do banco e que nem ele nem o dinheiro foram encontrados — disse a Sra. Cornford com firmeza. — Não vou dizer que eu e meu marido fôssemos muito felizes. Ele era de temperamento muito volúvel, tinha muitos amigos de ambos os sexos cuja companhia eu não aprovava, era um alcoólatra, mas, sob vários aspectos, era um bom homem. Nunca me teria deixado sem dinheiro, como aconteceu.

Hamon deu de ombros.

— Por que é que a senhora não procurou a polícia? — perguntou, velhaco. — Se tinha dúvidas quanto a mim...

Ela olhou para ele e um sorriso de desprezo perpassou-lhe o rosto cansado.

— O senhor me suplicou que não comunicasse nada à polícia — recordou-lhe, em voz baixa. — Agora vejo como fui idiota. O senhor me suplicou, no meu interesse e no de meu marido, que não comunicasse o seu desaparecimento.

— Acha que não pus anúncios em todos os jornais? Que não mandei agentes a todos os lugares onde ele pudesse estar? — perguntou Hamon, com simulada indignação. — Francamente, Sra. Cornford, não acho que a senhora esteja sendo justa comigo.

Era inútil argumentar com ele. Hamon fizera com que ela não procurasse o marido até os mais experientes detetives da Inglaterra acharem impossível seguir uma pista, de tanto que ela demorara a tomar uma iniciativa. Da noite para o dia, ela passara de mulher rica e independente a uma criatura sem vintém.

Se John Cornford fosse um homem de negócios comum, ela teria notificado imediatamente a polícia do seu desaparecimento. Mas Johnny Cornford tinha o hábito de sumir misteriosamente e ela aprendera, no decurso da sua vida em comum, a agir com discrição, a esperar em silêncio.

— Por que é que o senhor veio até aqui? — perguntou ela.

— Porque queria pôr o caso de Johnny em pratos limpos. Sinto-me responsável pelo seu desaparecimento, pelo fato de tê-lo levado a Londres. Quer-me mostrar a carta que ele lhe escreveu de lá?

Ela abanou a cabeça.

— Não é a primeira vez que me pede para vê-la, Sr. Hamon. É a única prova que eu tenho de que ele voltou para a Inglaterra. Há algum tempo, um homem lhe perguntou o que tinha acontecido com meu marido e o senhor lhe disse que ele se perdera no deserto de Marrocos. Centenas de pessoas que o conheceram têm a impressão de que ele morreu lá.

— Vou-lhe dizer o que pretendo fazer, Sra. Cornford. Se me deixar ver essa carta, vou-lhe contar toda a verdade sobre a morte de Johnny.

— Quer dizer que ele morreu? — perguntou ela, acabrunhada, e Hamon fez que sim.

— Morreu há 10 anos.

Após um momento de indecisão, ela levantou-se, entrou no quarto e fechou a porta atrás de si, voltando dali a minutos com uma pequena caixa de ébano.

— Aqui está a carta — disse, abrindo a caixa. — Pode lê-la.

Sim, era azul! Hamon sabia que fora escrita em papel do Critton Hotel — e o papel do Critton era azul. Leu a carta, datada de um hotel londrino.

 

Vou-me encontrar hoje com Ralph Hamon, para acertar a compra das ações. A única coisa de que não estou certo — e que preciso descobrir — é se a propriedade que vi é mesmo a mina de Hamon, ou uma mina muito próspera, mas sem nenhuma ligação com a companhia de Ralph. Isso não quer dizer que eu pense que ele seria capaz de me enganar.

 

Ela ficou a olhar para ele atentamente, pronta a arrancar-lhe a carta se ele tentasse metê-la no bolso, mas Hamon devolveu-a e ela colocou de novo na caixa, que trancou e levou de volta para o quarto, cuja porta por sua vez fechou a chave. Enquanto isso, Hamon seguia-lhe os movimentos com um brilho divertido no olhar...

Assim que Hamon saiu, a Sra. Cornford perguntou de si para si por que razão ele teria ido visitá-la e por que teria querido ver a carta. Tinha-lhe pedido para vê-la havia anos, mas ela sempre se recusara, sentindo que a sua posse representava a última lembrança da fortuna que lhe escorregara das mãos.

Correra um grande risco ao deixá-lo tocar na carta e agradecia a Deus não ter havido nenhuma conseqüência grave. Antes de se deitar, abriu a gaveta da sua escrivaninha, retirou a pequena caixa de ébano e abriu-a. Lá estava a carta azul desbotada, bem em cima. Já estava fechando a tampa, quando teve a idéia de ler a última mensagem que o marido lhe enviara, e desdobrou a folha. Qual não foi o seu espanto quando viu que nada tinha escrito.

Ralph Hamon sabia a cor da carta, o seu formato e o seu tamanho. Tinha-lhe sido fácil trocá-la.

Que podia ela fazer? Era muito tarde. Deveria ir até a mansão e pedir ajuda a Lorde Creith? Só o vira uma vez e já lhe devia favores. Foi então que se lembrou de Jim — aquele homem calado, que tanta confiança inspirava — e, vestindo-se às pressas, dirigiu-se para a Quinta Wold.

Um hotel tem vantagens e desvantagens. A desvantagem, do ponto de vista de Ralph Hamon, era que todo o mundo podia entrar. Ele estava sentado diante da lareira, no seu quarto, pois a noite estava fria, fumando o último charuto e passando em revista os últimos acontecimentos quando, sem que ninguém batesse, a porta se abriu e Jim Morlake entrou.

— Tenho duas notícias para você, Hamon. A primeira é que o seu mouro foi apanhado. A segunda é que você vai me devolver a carta que roubou da Sra. Cornford, e imediatamente.

Hamon pôs-se de pé, mãos nos bolsos, queixo beligerante.

— O meu mouro, como você lhe chama, não me interessa e essa história do roubo de uma carta nem sequer me diverte.

— Não vim aqui a esta hora da noite para fazer você rir — retrucou Jim. — Quero a carta.

Avançou dois passos e, de repente, Hamon interpôs-se entre ele e a cômoda.

— Ah, está aí, não? Saia da frente!

Empurrou o homem para o lado como se fosse uma criança e abriu a gaveta. Bem em cima havia uma carteira, que ele tirou para fora.

— Ladrão! — berrou Hamon, pulando em cima dele. Mas logo teve de recuar.

— Aqui está a carta — disse Jim. — Agora, se...

Não acabou a frase. Rindo de raiva, Hamon viu-o procurar na carteira, mas a outra coisa não estava lá.

— Como é, encontrou? — perguntou, exultante.

— Encontrei a carta — é o bastante — disse Jim, enfiando-a no bolso e jogando a carteira outra vez na gaveta. — Pode chamar a polícia, se quiser. Não me importo — já estou acostumado. Pode me acusar de invasão de domicílio e roubo!

Hamon ficou calado.

— Se o seu mouro falar, a coisa vai repercutir em Wall Street — nada desvaloriza mais as ações de uma companhia do que a morte, na forca, do seu presidente!

Hamon continuou calado. Escancarou a janela e, debruçando-se, seguiu Morlake com os olhos até ele desaparecer na noite. Depois voltou para as suas reflexões interrompidas, só que agora num outro plano. Invariavelmente os seus pensamentos voltavam ao ponto de partida, que era Joan Carston

— Joan, ligada, de maneira indefinível, a Jim Morlake. Lydia dissera-lhe que eles estavam noivos e ele rira da idéia. Seria Morlake a barreira? Se ele pudesse ter a certeza...!

Partiu para Londres na manhã seguinte e, à tarde, foi esperar Lydia na Estação de Victoria. Ela soubera da morte de Marborne pelos jornais de Paris e estava um pouco assustada e nervosa. Hamon ficou espantado de ver como a notícia a afetara.

— Como foi que aconteceu, Ralph? — perguntou ela, no carro, a caminho de casa. — Que coisa horrível! Ele foi mesmo morto por um mouro? Você não sabe de nada, sabe, Ralph?

— Agarrou-lhe as mãos e olhou-o bem no rosto. — Não foi você, foi? Seria horrível se eu pensasse que tinha sido você. Mas não foi!

— Você está ficando histérica, Lydia. Claro que nada sei sobre a morte desse pobre-diabo. Foi um choque para mim, embora eu não finja que gostava dele.

— Que é que você vai fazer, Ralph?

— Vou-me embora daqui — replicou Hamon. — Estou farto da Inglaterra!

— Vai para Marrocos?

Ele viu a cara dela e disse:

— É, para Marrocos. Vamos pelo Natal. É a melhor quadra.

— Mas não para sempre?

— Claro que não. Se você se chatear, pode dar um pulo a Gibraltar ou a Algeciras. Não precisa ficar lá — consolou-a. — Talvez eu nem vá. Estou precisando ir a Nova Iorque, fechar uns negócios. Na semana passada você me falou de uma francesa rica, amiga sua, que estava fretando um iate para um cruzeiro nos Mares do Sul. A coisa foi por água abaixo, não?

— Foi — disse ela, olhando para ele sem entender.

— Você acha que poderia fretar o iate para o inverno?

— Por que não vamos pelo caminho de costume, Ralph? É mais confortável — ponderou ela.

— Prefiro ir por mar.

Ela não respondeu, embora soubesse que o irmão enjoava.

— Quer ver se pode fretá-lo? — insistiu Hamon.

— Está bem, Ralph. O Conde Lagune está no momento em Londres. Acho que não vai ser difícil.

Nessa mesma noite ela lhe deu a boa nova. Tinha fretado provisoriamente o iate, e o Conde Lagune telegrafara para Cherbourg, pedindo que mandassem o barco para Southampton. Lydia encontrou o irmão feliz da vida, pois o marroquino tinha conseguido fugir da pequena cadeia rural para onde fora levado, e quase matara um policial.

— O seu mouro vai falar! — disse ele, arremedando Jim.

— Imagino que ele deva estar falando!

Lydia olhou para ele, horrorizada.

— Ralph! — gaguejou. — N-não é verdade! Você não disse que não sabia nada desse caso?

— Claro que não, sua tola! — retrucou ele, brutalmente.

— Eles é que pensavam que eu sabia. Aquele maldito do Morlake praticamente me acusou — disse que o homem estava a meu serviço, o que é mentira. Nunca ouvi falar nele.

Nessa mesma noite, Hamon escreveu uma carta ao Conde de Creith, na qual se mostrava ao mesmo tempo conciliatório e lógico.

— Devo confessar — disse Sua Excelência, abanando a cabeça — que o diabo não é tão feio quanto parece. Escreveu uma carta muito simpática e até me arrependo de ter sido tão rude com ele.

— O único homem de quem o senhor podia falar assim é o Sr. Hamon — disse a moça, com um sorriso.

Tirou a carta da mão do pai e leu:

 

Receio ter estado intratável nos últimos dias, mas aconteceram tantas coisas, que os meus nervos se ressentiram e eu saí do normal. Espero que não pense mal de mim e que, daqui a um ou dois anos, ambos possamos rir da absurda insinuação de que fui, de algum modo, responsável pela morte do pobre Marborne. Fui chamado inesperadamente aos Estados Unidos, o que alterou consideravelmente os meus planos, pois estava preparando um cruzeiro pelo Mediterrâneo, e vejo-me agora com um iate às minhas ordens. Será que posso persuadi-los a fazer a viagem? Ficariam a sós e tenho a certeza de que se divertiriam. Só lamento não podermos, nem eu nem a minha irmã, acompanhá-los. O iate é o L'Esperance e estará em Southampton na terça-feira. Posso pedir-lhes, como um grande favor, que usem o iate como se fosse seu, poupando-me do que, para um financista, é a pior coisa que pode acontecer — ter a sensação de haver jogado fora o meu dinheiro?

 

— Hum! — disse o conde. — Naturalmente, se ele também fosse fazer a viagem, eu lhe escreveria uma carta muito educada, dizendo-lhe que em circunstância alguma poderia compartilhar a viagem dele. Mas isso é diferente, você não acha, querida?

E abanou de novo a cabeça.

— Acho que uma viagem dessas seria uma boa coisa para nós — disse ele.

Sabendo o que ela pensava de Hamon, Lorde Creith esperava a oposição da filha. Ficou, portanto, agradavelmente surpreendido quando ela apoiou a idéia. Creith estava-lhe dando nos nervos, também — Creith e Jim, que ela nunca via e ansiava por ver.

As primeiras notícias da programada viagem chegaram a Jim, como de costume, através de Binger, que as ouvira no bar do Leão Vermelho.

— Parece que o tal iate foi alugado por Hamon.

— Que é que você quer dizer com "foi alugado" — foi fretado?

— Isso mesmo, patrão — se quem me informou não estiver enganado.

— E não deve estar. Para onde é que eles vão — você sabe?

— Para o Mediterrâneo, patrão. O Sr. Hamon e a irmã vão até a América — ainda bem!

— Para o Mediterrâneo?

Jim olhou para o interior do cachimbo, pensativo.

— Isso quer dizer... Quando é que vão?

— No sábado, patrão.

— Não diga! — falou Jim.

Porque o Mediterrâneo significava Tânger, e Tânger, para Jim, queria dizer Sadi Hafiz e o belo inferno das montanhas de Rifi.

Lydia estava supervisionando a arrumação das malas, quando o irmão chegou, e mostrou-se mais amável com ele do que de costume.

— Já voltou, Ralph? — disse ela. — Queria lhe perguntar uma ou duas coisas. Você não imagina como estou feliz por você ter resolvido ir à América. Sempre quis conhecer os Estados Unidos. Vamos a Palm Beach, não vamos...?

— Vamos é esclarecer uma coisa, antes de mais nada — atalhou Hamon. — Não vamos mais aos Estados Unidos!

Toda a alegria dela desapareceu.

— Vamos para Marrocos.

— Para Marrocos! — repetiu ela. — Mas, Ralph, você já fez as reservas.

— Foi preciso fazer as reservas porque não queria que ninguém soubesse dos meus planos.

— Mas você emprestou o iate a Lorde Creith. Disse que detestava a idéia de uma viagem por mar...

— Vamos de trem — como você sugeriu — disse Hamon. — Meus negócios exigem que eu vá, e é absolutamente necessário que eu fale com Sadi antes do Natal.

Ela ficou calada e furiosa, mordendo o lábio e olhando para o irmão de testa franzida.

— Não estou gostando, Ralph — falou. — Há algo errado em tudo isso.

— Há mais do que algo errado, minha cara — retrucou ele. — O universo inteiro está oscilando e refiro-me principalmente ao meu universo. Digo-lhe francamente: não vou desistir de Joan Carston.

Lydia olhou para ele.

— Está querendo dizer que quer casar com ela?

— Quero casar com ela se for possível — respondeu ele, cauteloso. — No momento há certos obstáculos, mas eles não vão continuar por muito tempo.

— Mas, e se ela não gosta de você... ?

— Qual o casal que gosta um do outro? — disse Ralph, irritado. — Pode haver atração — ou amor, como lhe chamam. Mas gostar é algo que exige tempo, que parte do respeito. E pode-se fazer com que uma mulher nos respeite de várias maneiras diferentes. A primeira coisa, o essencial para se ser respeitado, é inspirar medo. Decifre isso, menina.

— Eu também preciso ir?

— Claro que precisa — respondeu ele mais que depressa. Ela puxou de um cigarro e acendeu-o, olhando-o fixamente.

— Imagino que você esteja querendo que Sadi Hafiz o ajude? — insinuou ela.

— Sem dúvida.

— E acha que Sadi vai ser mais acessível — se eu for também?

Lydia não se iludiu com o simulacro de surpresa do irmão.

— Nunca pensei nisso sob esse ponto de vista — disse ele.

— Detesto aquele lugar! — exclamou ela, batendo, furiosa, com o pé. — Aquela casa velha e horrível, aquele jardim mal-cuidado, aquelas mulheres espionando por trás das gelosias...

— É uma bela casa — interrompeu ele, entusiasticamente — e o ar é uma delícia...

— Você deve estar-se referindo a outra casa — atalhou Lydia. — Ele tem outra casa?

— Acho que tem, lá nas montanhas — respondeu Hamon e recusou-se a falar mais no assunto.

 

Quando Jim devolvera à Sra. Cornford a carta que Hamon lhe tinha roubado, ela lhe falara da ligação entre Ralph Hamon e o seu marido. Obedecendo a um impulso, Jim resolveu fazer-lhe outra visita.

— Espero que não tenha vindo num momento inconveniente?

Ela abanou a cabeça.

— Faça o favor de entrar, Sr. Morlake — disse, levando-o para a salinha do bangalô.

— Sra. Cornford, será que pode me dizer exatamente quando foi que o seu marido desapareceu?

— Há quase 11 anos — respondeu ela. — A última vez que tive notícias dele foi em maio — aquela carta que o senhor recuperou do Sr. Hamon.

— Posso vê-la? — perguntou Jim.

Ela trouxe-lhe a carta e ele leu-a duas vezes.

— Pouco depois do desaparecimento do seu marido, eu tive uma estranha aventura, mas é absurdo associar as duas coisas. Tem alguma foto dele?

Ela fez que sim e foi até o quarto, onde se demorou algum tempo. — Tive de procurar a foto — desculpou-se. — Guardei-a em lugar seguro.

Jim tirou-lhe a foto da mão.

Era o retrato de um homem de aproximadamente 40 anos, bem apessoado e evidentemente satisfeito consigo mesmo.

Mas era mais do que isso: era o rosto do marinheiro moribundo que ele recolhera na estrada de Portsmouth e que, antes de morrer, lhe contara a história mais estranha que James Morlake jamais ouvira.

John Cornford era, pois, o marujo desconhecido, que repousava numa cova sem nome, em Hindhead! Durante 10 anos, Jim seguira os passos do homem responsável pela sua morte, à procura de provas que o levassem ao banco dos réus.

— O senhor conhece-o? — perguntou a Sra. Cornford, ansiosa.

Ele devolveu-lhe a foto.

— Conheci-o — respondeu simplesmente, e ela percebeu, pelo tom de voz, que ele falava a verdade.

— Ele morreu?

Jim assentiu gravemente.

— É, morreu, sim, Sra. Cornford — e ela deixou-se cair numa poltrona e cobriu o rosto com as mãos.

Jim pensou que estivesse chorando, mas não demorou que ela levantasse a cabeça.

— Sempre achei que ele tivesse morrido — disse. — Onde foi que ele morreu?

— Na Inglaterra.

— Eu sabia que ele tinha morrido na Inglaterra — disse ela. — Hamon contou que ele se perdera no deserto. Pode me dizer como foi que ele morreu?

— Prefiro não dizer — retrucou Jim, relutante — pelo menos por ora. A senhora pode esperar um pouco mais?

Ela sorriu tristemente.

— Já esperei tanto, que acho que posso esperar mais um pouco. Por favor, entenda, Sr. Morlake, que, embora seja um choque para mim, eu e meu marido não éramos — e hesitou — não éramos felizes. Acho que não combinávamos bem e talvez a culpa, em grande parte, fosse minha, embora seja muito difícil saber de quem era a culpa, após tantos anos.

— Posso ficar com essa foto? — perguntou ele.

Ela deu-lhe a foto sem dizer palavra.

— Só mais uma coisa. Antes de morrer, seu marido me deu uma quantia para que eu entregasse à sua esposa... — E, vendo a surpresa e a dúvida no rosto dela, apressou-se a explicar: — Compreenda, por favor, Sra. Cornford, que eu não sabia o nome dele.

— Não sabia o nome dele? — repetiu ela, espantada. — Então, como é que... ?

— É uma longa história, mas peço-lhe que confie em mim. De repente, ela se lembrou dos antecedentes de Jim e da acusação contra ele.

— Meu marido estava metido em alguma — em alguma... — Não sabia como lhe perguntar, sem ofender.

— Em alguma falcatrua? — sorriu Jim. — Não, pelo menos que eu saiba. Quando o encontrei, não sabia quem ele era. Estou-lhe dizendo que nem o nome dele eu sabia.

Jim foi-se embora antes que ela se perguntasse como era possível que o marido lhe tivesse entregue dinheiro sem lhe dizer o nome da esposa a quem esse dinheiro deveria ser dado.

Não tinha decorrido nem meia hora, quando Binger bateu à porta do bangalô e lhe entregou um embrulho, contendo 100 notas de 10 libras e um cartão de visita, onde se lia: — Por favor, confie em mim.

Ela guardou o dinheiro sem se sentir embaraçada.

— Você esperou? — perguntou Jim a Binger.

— Esperei, sim, senhor, mas ela disse que não havia resposta.

— Ótimo — disse Jim, com um suspiro de alívio.

— O senhor já fez planos, patrão?

— Em que sentido?

— Para o futuro, para voltar a Londres. Se quer que lhe diga a verdade — continuou Binger — não gosto do campo. O ar não é igual ao de Londres. Alguns gostam dos ares do campo, mas eu, pessoalmente, prefiro o de Barking Road.

Jim pensou no assunto.

— Pode voltar no próximo trem — disse ele. — Ligue para Londres e chame Mahmet ao telefone.

Em circunstância alguma Mahmet tocava num telefone. Fazia bom uso de todos os outros inventos da civilização, mas havia algo naquele terrível aparelho que o apavorava.

Binger partiu no trem seguinte na maior das alegrias. Era o protótipo do Cockney, do homem nascido e criado em Londres, para quem a calma e o silêncio do campo eram uma praga. E Jim não lamentou vê-lo partir, pois Binger era uma espécie de robô humano, que fazia sempre a mesma coisa à mesma hora. De manhã, trazia o chá quanto o relógio marcava 7 h; 7h15min, enchia a banheira; às 7h45min, os sapatos de Jim caíam, com estrondo, do lado de fora da porta do seu quarto. O valet recordava-lhe constantemente que o tempo voava.

Jim Morlake precisava de ficar só, pois um novo fator surgira, uma nova pista para a solução do seu mistério. E, por uma dessas coincidências que aparecem freqüentemente no decorrer das investigações, no mesmo dia em que a Sra. Cornford revelava a identidade do marinheiro morto, Julius Welling descobria um fio que o levaria à mesma pista.


 

Capitão Welling, investigador

Mal Julius Welling entrou na seção de arquivos, o oficial de serviço apressou-se a lhe perguntar o que desejava, pois o velho policial raramente consultava pessoalmente os arquivos e a sua presença ali só podia significar assunto sério.

— Quero que me diga se a minha memória está falhando. Faz 10 anos que a carreira do Homem de Preto começou, não foi, sargento?

O sargento abriu uma gaveta, consultou uma ficha e disse:

— Isso mesmo, inspetor. Faz 10 anos este mês.

— Ótimo! Agora, dê-me uma lista de todos os crimes de morte cometidos durante o ano anterior.

Outra gaveta se abriu sem fazer barulho.

— Quer que eu faça uma lista, inspetor, ou prefere veias fichas? Ternos um resumo dos crimes.

— Deixe-me ver as fichas.

Cinqüenta grandes fichas foram colocadas diante dele e, à medida que as ia passando, Welling falava consigo mesmo:

— Adams, John, enforcado; Bonfield, Charles, internado num manicômio; Brasfield, Dennis, enforcado — todos esses são "conhecidos", sargento.

— Os desconhecidos estão no fundo, inspetor.

Welling passou-os em revista sem fazer comentários, até chegar ao último.

— Homem desconhecido, suspeita de homicídio. Autor desconhecido...

De repente, arregalou os olhos.

— Heureca! — gritou, exultante, e leu, em voz alta:

— "Homem, aparência de marinheiro, encontrado inconsciente à beira do Punch Bowl, em Hindhead. Ferimentos causados por instrumento cortante e contusão no couro cabeludo. Identidade não estabelecida. O morto foi encontrado por um motorista, de identidade igualmente desconhecida. (U.S.D.I.6. Ver F. O. Regulamento dos Oficiais do Serviço Secreto Estrangeiro, c. 970.) A vítima morreu logo após ter dado entrada no hospital local. Todas as delegacias notificadas e a foto do morto publicada, sem qualquer resultado."

Welling olhou por cima dos óculos.

— O que vem a ser isso de U.S.D.I.6? — perguntou.

— É a sigla de United States Diplomatic Intelligence — Serviço Secreto Diplomático dos Estados Unidos. Seis é o número do departamento — disse prontamente o sargento. — O Regulamento do Foreign Office estabelece o tratamento a ser dado aos oficiais dos serviços secretos estrangeiros, neste país. Ainda no outro dia eu o consultei.

— E que diz esse regulamento?

— Diz que, se os oficiais estiverem agindo a serviço do seu Governo e com o conhecimento das nossas autoridades, não podem ser perturbados, a menos que sejam suspeitos de espionagem.

Julius Welling cocou o nariz.

— Então, o motorista era um oficial do serviço secreto de um Governo estrangeiro. Presumo que, quando lhe perguntaram a identidade do morto, ele tenha entregue o seu cartão à polícia local e o inspetor, de acordo com o regulamento, não tenha posto o nome dele no relatório.

— Isso mesmo, inspetor.

— Nesse caso, será preciso falar com o inspetor da polícia local — disse Welling.

Nessa mesma tarde ele chegava a Hindhead e pedia para falar com o comissário de polícia.

— O inspetor que fez esse relatório aposentou-se há alguns anos, Capitão Welling — disse o comissário. — Temos a nossa ficha do caso, mas o nome do homem não aparece nela.

— Qual o nome do inspetor?

— Inspetor Sennet. Está morando em Basingstoke. Lembro-me do dia em que esse marinheiro foi encontrado. Na ocasião, eu era sargento e fui o primeiro a chegar ao hospital, mas ele já tinha morrido.

No hospital, deram a Welling todos os detalhes técnicos que ele pediu, junto com uma descrição da roupa que a vitima usava, ao dar entrada, inconsciente, no hospital. Welling leu a ficha com a máxima atenção. Nos seus bolsos não havia dinheiro, agendas ou documentos de qualquer espécie, que pudesse identificá-lo.

— Acho — disse Welling, ao saírem do hospital — que vou querer ver o local em que o corpo foi encontrado, se é que o senhor sabe onde foi.

— Posso lhe mostrar o local exato — afirmou o comissário.

Entraram no carro dele e dirigiram-se para um trecho deserto da estrada, à beira de um barranco conhecido localmente como Punch Bowl.

— Foi aqui — disse o policial, parando o carro e apontando para um matinho que crescia à beira da estrada.

Welling desceu e ficou muito tempo olhando para o local.

— O senhor esteve aqui depois que o homem foi encontrado? — perguntou.

— Estive — respondeu o outro.

— Não viu nenhum sinal de luta — nenhuma arma?

— Nada! A impressão que tive foi que a vítima fora trazida para aqui, inconsciente, e atirada nesse mato.

— Ah! — exclamou Welling, com um brilho no olhar. — Essa me parece uma hipótese inteligente.

Examinou toda região, começando pela parte mais funda e terminando na colina que se erguia do lado oposto da estrada.

— De quem é aquela casa? — perguntou.

O comissário disse-lhe que pertencia a um médico local.

— Há quanto tempo ele mora aí?

— Há 15 ou 20 anos. Ele próprio construiu a casa.

Os olhos do detetive desviaram-se para o outro lado.

— E de quem é aquele bangalô? Parece vazio.

— Ah, é um bangalô que pertenceu a um advogado falecido há dois ou três anos.

— Quanto tempo morou nele?

— Uns anos.

— E antes disso? — perguntou Welling, prosseguindo na sua inspeção das redondezas.

— Antes disso... — O comissário franziu a testa, esforçando-se por se lembrar do nome do anterior proprietário. — Já sei: pertencia a um certo Hamon.

— O quê! Ralph Hamon?

— Isso mesmo. Agora, ele é milionário. Nesse tempo, não era tão rico e costumava vir aqui passar o verão.

— Ah, sim? — disse Welling, suavemente. — Gostaria de ver esse bangalô.

O caminho que levava até a colina estava coberto de mato, embora se visse que o abandono era recente, pois fora coberto de cascalho e, em alguns lugares, tinha degraus para facilitar a subida. A casa parecia abandonada: as janelas estavam fechadas com gelosias, e grandes teias de aranhas adornavam as ombreiras das portas.

— Quanto tempo o senhor disse que o advogado morou aqui?

— Ele nunca morou aqui. Comprou a casa, mas acho que ninguém morou nela depois do Sr. Hamon — aliás, tenho a certeza disso. O Sr. Hamon vendeu-a ao advogado com móveis e tudo. Tenho certeza, porque o Sr. Steele — o advogado — me disse que pretendia alugá-la mobiliada.

Welling tentou abrir uma das gelosias e acabou conseguindo. As janelas estavam cobertas de poeira e era impossível ver o interior.

— Preciso entrar — disse Welling, quebrando, com o cassetete, uma das vidraças.

Enfiando a mão, conseguiu abrir a janela. O quarto nada tinha de especial. Estava mobiliado de maneira simples e, embora coberto de uma grossa camada de poeira, a arrumação dos móveis não dava a impressão de abandono. Nos outros cômodos também nada havia de extraordinário. Os móveis eram bons e os tapetes, que haviam sido enrolados, estavam quase novos.

Mas o mobiliário não parecia interessar a Welling. Sua atenção voltava-se para as paredes, todas de um rosa desbotado. Nos fundos da casa havia uma cozinha de tamanho razoável, com janelas gradeadas.

— Quer que procure na escrivaninha?...

Welling abanou a cabeça.

— Não vamos encontrar nada lá — disse ele. — Estou procurando é...

Abriu a janela e empurrou para fora a gelosia.

— Agora, acho que vou encontrar o que procuro — disse e, apontando, perguntou: — Está vendo aquele remendo?

— Não vejo nada — respondeu o inspetor, intrigado.

— Não está vendo que uma parte da parede foi retocada? A cozinha era de um branco desbotado e a marca irregular da tinta nova se destacava.

— Aqui está outra — disse, de repente, Welling.

Tirou uma faca do bolso e começou a raspar cuidadosamente a parede.

— Os crimes sempre aparecem — disse, falando consigo mesmo.

— Que crimes? — perguntou o outro, espantado.

Como resposta, Welling apontou para uma mancha em forma de pêra, que a sua faca revelara.

— Se não me engano, é uma mancha de sangue — disse. Limpou com o lenço a poeira da mesa e examinou o tampo, centímetro por centímetro.

— Também foi raspado, sente?

Passou a mão pela superfície do tampo de pinho.

— É, foi raspado.

— O senhor está insinuando...?

— Estou insinuando que o seu marinheiro desconhecido foi massacrado aqui, nesta cozinha — disse Welling.

— Mas o Sr. Hamon teria sabido.

— Provavelmente, estava fora — falou Welling e o seu colega aceitou essa explicação como se isentasse de qualquer responsabilidade o antigo proprietário do bangalô.

— Naturalmente, ninguém pensaria em revistar uma casa próxima, para descobrir como um pobre marujo foi morto — disse Welling. — Pronto, isso é tudo o que eu queria saber, comissário. Acho melhor o senhor mandar botar pregos nas janelas e dar instruções para quem quiser comprar a casa vir primeiro falar comigo, pois quero este bangalô vazio durante pelo menos 15 dias.

Desceu a encosta e mediu, com os passos, a distância entre o lugar onde o caminho se juntava à estrada e o local onde o homem fora encontrado, ao mesmo tempo em que tomava algumas notas.

— Agora, comissário, se me emprestar o seu carro para ir até Basingstoke, acho que não vou incomodá-lo mais.

Não teve dificuldade em encontrar o policial reformado

— era bastante conhecido na localidade — mas foi bem mais difícil convencê-lo a falar, mesmo para um inspetor da Scotland Yard — ou talvez por causa disso, já que a rivalidade entre a polícia rural e a londrina é proverbial.

Mas o Capitão Welling tinha um jeito todo seu, uma coleção de anedotas destinadas a amaciar o mais amargo policial aposentado.

— É contra o regulamento — disse o ex-policial, por fim,

— mas posso lhe dizer tudo o que o senhor quer saber, porque guardei o cartão de visitas dele como curiosidade. Esse pessoal do serviço secreto não costuma envolver-se em questões policiais e, naturalmente, a minha curiosidade foi espicaçada.

A procura do cartão de visitas levou uma hora, pois o velho tinha acumulado um sem-número de curiosidades e recordações, através dos anos.

— Aqui está! — disse, finalmente, entregando a Welling um cartão amarelado.

Julius Welling ajustou os óculos e leu:

"James L. Morlake, Consulado dos Estados Unidos, Tânger."

Devolveu o cartão com um sorriso de felicidade.

Apenas um mistério não fora resolvido e esse desafiava todas as soluções. Era o mistério da relutância de Ralph Hamon em se desfazer da sua própria sentença de morte.

 

Joan nunca mais vira Jim, nem ouvira falar dele desde o crime, e resolveu ir até à Quinta Wold para se despedir.

Cleaver atendeu e informou-a de que o Sr. Morlake viajara.

Joan voltou para casa culpando-o por ter viajado sem lhe dizer — ilogicamente, já que ela não lhe tinha dito que ia fazer uma viagem.

Ao chegar em casa, encontrou o pai supervisionando a colagem de etiquetas na bagagem, o que significava que todas as malas tinham etiquetas erradas.

— Olá, Joan — disse ele — espero que você tenha acabado de fazer as suas malas. Não encontro o meu rifle de caça e acho que não vamos estar prontos a tempo...

Se ela estava esperando que um milagre acontecesse e Tini reaparecesse no último momento, enganava-se. O carro que os levou, a ela e ao pai, a Southampton, passou pela Quinta Wold e Joan pôs a cabeça para fora da janela, na esperança de vê-lo, antes de partir. Depois que passaram o portão, ela olhou pela janela traseira.

— Esperando alguém, querida? — perguntou Lorde Creith, secamente. — Esqueceu alguma coisa?

— É, papai, esqueci — respondeu ela.

— Você pode comprar o que quiser em Cádiz — disse o conde, fazendo-se de desentendido.

A primeira emoção que Joan sentiu, ao ver o iate ancorado em Southampton, foi uma agradável surpresa. Esperava encontrar um iate comum e sentira-se até um pouco receosa ao pensar em atravessar a baía de Biscaia numa pequena embarcação. Mas o L'Esperance mais parecia um navio e era grande demais até para um iate de oceano. A mesma idéia ocorreu a Lorde Creith.

— Isso deve ter custado uma fortuna ao amigo Hamon — disse ele. — Afinal, parece um transatlântico!

O comandante, um inglês, deu-lhes as boas-vindas e. aparentemente, tudo estava pronto para partir assim que eles embarcassem.

— Ouvi dizer que o Sr. Hamon não vem — disse o Capitão Green, um típico marinheiro, de rosto curtido pelo sol. — Se quiser, conde, podemos zarpar. O mar no canal da Mancha não está forte e, com um pouco de sorte, poderemos atravessar a baía sem jogar.

— Vamos, então — disse Lorde Creith alegremente.

O camarote de Joan estava lindamente decorado e cheio de flores. Ela não se deu ao trabalho de perguntar quem as tinha mandado. Ralph Hamon não perderia a oportunidade de enfatizar a sua devoção. Joan gostava demais de flores para atirá-las ao mar, mas saber que ele as mandara roubava-lhes um pouco da beleza.

Ela e Lorde Creith jantaram sozinhos, essa noite. O comandante estava na ponte, pois atravessavam o congestionado canal e o serviço de meteorologia previra nevoeiro entre Portland Bill e Brest.

— Jantar delicioso — comentou Lorde Creith, satisfeito.

— Tem um ótimo cozinheiro, comissário.

— Obrigado — disse o primeiro comissário, um francês que falava inglês muito melhor do que o conde falava francês. — Temos dois cozinheiros.

— Suponho que, como o iate é francês, toda a tripulação seja francesa, não?

O comissário abanou a cabeça.

— Não, conde, a maioria dos tripulantes é composta de ingleses e escoceses. O dono do iate prefere uma tripulação britânica. Temos também alguns franceses a bordo — na verdade, temos gente de todas as nacionalidades, inclusive um homem que deve ser turco, ou mouro. Embarcou à última hora, para trabalhar na despensa, mas tem estado doente desde que salmos de Solent. Acho que ele é empregado do proprietário. Vamos desembarcá-lo em Casablanca.

Serviu o café e Lorde Creith fez uma careta logo ao primeiro gole.

— Acho que elogiei o jantar cedo demais, comissário — observou, bem-humorado. — O café está horrível.

O comissário pegou na xícara e desapareceu nas regiões misteriosas dos fundos do salão. Ao voltar, pediu desculpas.

— O chef vai-lhe mandar outro café, conde. Temos um novo ajudante de cozinheiro que não está à altura do cargo que ocupa.

Depois do jantar, Joan foi passear no convés. A noite estava calma, o mar absolutamente tranqüilo. Através da névoa, podiam-se ver as estrelas tremeluzindo no céu e, a estibordo, uma luz brilhante se acendia a intervalos regulares.

— Aquele é o farol de Portland — explicou um dos oficiais — e a última luz da Inglaterra que a senhora verá até voltar.

— Vamos ter nevoeiro? — perguntou Joan.

— Não muito. Acho que a viagem vai ser ideal, para esta época do ano. Se pudermos passar Cherbourg sem diminuir a velocidade, estaremos livres do fog.

Joan ficou apoiada ao corrimão da popa, conversando com o oficial, até Lorde Creith ir ter com eles, fumando um comprido charuto e em paz com o mundo. Trouxera um casaco, que Joan vestiu de bom grado, pois a noite estava muito fria — coisa em que ela só reparara ao sair para o deck.

Ficaram lado a lado, olhando, em silêncio, para a leve fosforescência da água.

— Feliz, Joan? — perguntou, por fim, Lorde Creith.

— Muito, papai.

— Por quem você estava suspirando ainda agora? Ouviu-a rir, e sorriu, no escuro.

— Não sabia que estava suspirando. Estava pensando em Jim Morlake.

— Sujeito muito agradável — disse Sua Excelência. — Americano, mas muito agradável. Naturalmente, não quero um ladrão na família, mas preferia um ladrão a um agiota. Não sei se estou sendo ingrato para com o nosso querido anfitrião, mas há algo no ar marinho que me obriga a ser sincero.

Os dias que se seguiram foram, para Joan, de perfeita paz. O iate fora construído para atravessar mares. "O conforto e o luxo da decoração e a visão do sol quase esquecido contribuíam para a sua sensação de felicidade. Se, por milagre — o toque de uma varinha de condão ou alguma poderosa encantação — ela pudesse trazer Jim para bordo... suspirou.

 

 

A viagem prosseguiu sem novidades até a manhã do dia em que chegaram a Cádiz. Algo fez com que Joan passasse do sono profundo ao mais completo estado de alerta. Não se ouviam senão o vento e o mar, além do monótono ranger peculiar a todos os barcos. A luz cinza do amanhecer entrava pela vigia e iluminava fracamente o camarote. Sentando-se na cama, Joan olhou em volta.

Um movimento junto à porta chamou-lhe a atenção. A porta estava-se fechando lentamente. Pulando da cama, Joan correu e abriu-a a tempo de ver um vulto enorme desaparecer na penumbra do corredor. Foi então que algo estranho aconteceu. O homem estava quase chegando ao extremo do estreito corredor, quando algo se ergueu debaixo dos seus pés e o fez tropeçar. Apesar do ruído do mar, ela ouviu-o bater contra o chão do convés. Pôs-se de pé, mas logo voltou a cair. Forçando a vista, distinguiu um homem de pé sobre ele, levantando-o do chão. Um instante depois, os dois tinham desaparecido.

Joan trancou a porta e voltou para a cama, mas não conseguiu dormir. Podia ter sido um acidente, mas também podia ser que um dos membros da tripulação fosse ladrão. Talvez tivesse sido descoberto por um vigia e daí a pequena luta corporal que ela testemunhara. Não queria preocupar o pai, mas, tão logo se vestiu, foi em busca do primeiro comissário, a quem contou o acontecido. Ele ficou muito preocupado.

— Não sei quem possa ter sido — disse. — O vigia estava no convés, esfregando o deck, ao romper do dia, e há um taifeiro de guarda toda a noite, no corredor. Como era o homem?

— Não pude ver-lhe a cara, mas sei que usava camiseta branca e calças azuis.

— Era alto ou baixo?

— Muito alto — disse ela, e o comissário passou mentalmente a tripulação em revista.

— Vou falar com o imediato — disse.

— Não quero causar problemas.

— Os problemas provavelmente aumentarão, se não tomarmos providências — retrucou ele.

Lorde Creith, que sempre procurava a explicação mais cômoda, sugeriu que ela devia ter sonhado — sugestão que Joan repeliu, indignada.

— Então, minha querida — disse ele — provavelmente o homem era sonâmbulo! Você devia ter trancado a porta do camarote.

Joan passou dois dias maravilhosos em Cádiz, cidade de mulheres belas e lânguidas e de homens de barba por fazer. Foi até Jerez, ver as uvas serem prensadas, e ficou sabendo — embora tivesse uma vaga idéia de já ter aprendido isso na escola — que a palavra Jerez dera, em inglês, sherry e virará nome de vinho.

Zarparam de Cádiz à meia-noite do terceiro dia e, ao amanhecer, Joan acordou com as máquinas paradas. Ouviu o ruído da âncora sendo lançada à água e, olhando através da vigia, viu uma fileira de luzes bem perto. Era a sua primeira visão da África e ela ficou fascinada pelo mistério que o Continente Negro encerrava. À luz do dia, porém, grande parte do encanto se escoou, ao ver uma porção de casinhas brancas bordejando uma praia de areias amarelas e, ao fundo, o azul das montanhas. À luz fria da manhã, o mistério sumira e Joan estremeceu.

A camareira acorreu ao seu chamado.

— Onde estamos? — perguntou Joan.

— Em Suba, um vilarejo costeiro.

Nesse momento, através da vigia, Joan viu um bole descer do iate e desaparecer.

— A tripulação está indo a terra para trazer uns caixotes de curiosidades que o Sr. Hamon quer que levemos para a Inglaterra — explicou a camareira, enquanto Joan via o bote se afastar.

Lorde Creith bateu nesse momento à porta da cabina e entrou vestindo o robe.

— Estamos em Suba — disse, desnecessariamente. — Ponha o seu casaco e suba ao convés, Joan.

Ela enfiou o casaco de peles e subiu com o pai para o deck, onde só havia um marinheiro. Na ponte de comando, um único oficial olhava para o bote sem demonstrar interesse.

— Quase não ficou ninguém no barco — comentou Joan, olhando em volta.

Lorde Creith deitou um olhar de marinheiro para as nuvens.

— Até um garoto seria capaz de fazer este barco navegar, num dia assim — observou. — Nada de vento.

Nesse mesmo momento, olhando para bombordo, viu uma vela alta e branca avançando lentamente na direção deles.

— Parece que há vento suficiente — sorriu Joan. — Não acha que estão se aproximando demasiado?

— Que nada! — retrucou o conde, alegremente. — Esses sujeitos entendem mais de barcos do que qualquer europeu. Os árabes são marinheiros natos e, a julgar pelo formato da vela, acho que se trata de um barco mouro. Estamos em plena zona de piratas.

Joan olhou nervosamente para a embarcação, mas Lorde Creith prosseguiu, despreocupado da impressão que estava causando na filha:

— Durante séculos, todos os barcos que passavam por aqui eram obrigados a pagar uma taxa aos piratas. A palavra "tarifa" vem de Tarfa, uma aldeia do outro lado do estreito de Gibraltar...

Parou, de repente, e Joan virou-se. Ambos tinham ouvido uma exclamação de dor.

— Que foi isso? — perguntou Lorde Creith. — Parecia alguém machucado.

Não se via vivalma e ele foi até a ponte. Nisso, um homenzarrão subiu a escada e Joan reconheceu nele o vulto que vira no corredor. Descalço, o homem aproximou-se do oficial, que olhava, distraidamente, para o mar.

— Cuidado! — gritou Lorde Creith.

O oficial virou-se a tempo de evitar que o outro lhe batesse na cabeça, mas o golpe acertou-lhe no ombro e ele caiu com um grito de dor. O homenzarrão também se virou e Joan viu, horrorizada, que ele carregava na mão um enorme martelo.

Ferido como estava, o oficial jogou-se para a frente e escorregou pela íngreme escada, indo cair no deck. Levantou-se imediatamente e desceu por outra escada, com o enorme mouro sempre atrás dele.

— Desça, depressa! — gritou Lorde Creith e Joan obedeceu.

Enquanto descia a escada, viu a vela alta e branca do dhow* erguer-se acima da borda do iate e ouviu a algaravia de vozes excitadas e guturais.

* Dhow — embarcação árabe, dotada de uma vela latina. (N. da T.)

 

— Corra e meta-se no meu camarote — gritou Lorde Creith. Joan caiu, ofegante, no sofá, enquanto o pai trancava a porta da cabina e, abrindo a mala, revirava tudo.

— Meu revólver sumiu — disse ele.

— Que está havendo? — perguntou Joan, agora calma.

— Está-me cheirando a motim — disse o conde, preocupado. Joan ouviu passos correndo no deck, acima deles, e vozes gritando.

— Vieram no dhow e abordaram-nos — disse Lorde Creith, em voz baixa. Nisso, alguém praguejou na cabina ao lado.

— Quem está aí? — perguntou Lorde Creith.

A divisão entre os camarotes não chegava até em cima e um espaço de uns 10 cm tornava possível a conversa. Era o oficial ferido, descobriram. Não tinha nenhuma fratura, tranqüilizou-os, mas fortes dores.

— Tem alguma arma de fogo em seu poder? — perguntou ele, ansioso.

Lorde Creith teve de confessar que estava desarmado.

— Que aconteceu? — perguntou.

— Não sei — respondeu o oficial. — A maior parte da tripulação está em terra. O comandante e o primeiro e segundo oficiais foram apanhar uns caixotes.

— Quantos tripulantes ficaram a bordo? O oficial calculou depressa e depois disse:

— Seis, incluindo o comissário. Um grumete, dois cozinheiros e o ajudante, além de, é claro, o árabe que contratamos em Southampton. Foi ele quem me atacou. Acho que devem ter dominado o grumete, e os cozinheiros não reagiram. Isso nos deixa apenas com o ajudante de cozinheiro.

Riu amargamente.

— E ele vai passar um mau pedaço — disse, após uma pausa. — Surrou o árabe faz alguns dias. Só soube disso hoje de manhã. Lembra-se que a sua filha se queixou — ela está com o senhor, não?

— Está — respondeu Lorde Creith. — Foi o tal mouro quem abriu a porta do camarote dela?

— Ele mesmo. Acho que estava à procura de armas — disse o oficial. — O ajudante de cozinheiro estava de serviço, viu o sujeito e surrou-o. Mas agora é que vão ser elas — lá vêm eles!

Ouviu-se o ruído de pés descalços correndo pelo corredor e alguém bateu à porta da cabina.

— Senhor sair, senhor não ser machucado — disse uma voz roufenha.

Lorde Creith não respondeu.

A porta estremeceu com o golpe, mas era evidente que o estreito corredor não dava espaço para brandir o martelo, pois a fechadura permaneceu intacta. Novo golpe e uma grande fenda se abriu num dos painéis da porta.

Lorde Creith olhou em volta, sem saber o que fazer.

— Não temos nenhuma arma — disse, em voz baixa. Olhou para a escotilha.

— Você acha que pode sair por ela? Joan abanou a cabeça.

— Não vou deixá-lo sozinho, papai — disse a moça e o pai acariciou-a.

— Tampouco acho que você possa passar — disse ele, olhando, duvidosamente, para a escotilha.

Bangue! O painel partiu-se, mas não foi isso o que eles ouviram. Do lado de fora do corredor, chegou até eles o ruído de pés correndo, e o barulho de um tiro, logo seguido de outro. Depois, da extremidade do corredor, ouviram-se três tiros em rápida sucessão. Alguém caiu pesadamente contra a parede, com um uivo de dor, e fez-se silêncio momentâneo.

— Que foi isso? — perguntou o oficial, no camarote ao lado.

— Acho que era alguém atirando — disse Lorde Creith. Olhou através do painel estilhaçado pelos golpes de martelo. O homem caído no chão continuava a gritar, mas não se ouvia mais nada.

— Olhe, papai! — gritou Joan, excitada. — O barco está voltando.

Apontou para a escotilha e, por cima do ombro dela, o conde viu os dois botes avançando, com remadas furiosas, para o iate.

No corredor, o pandemônio parecia ter voltado. De novo, ouviu-se uma correria de pés e o staccato ensurdecedor de uma automática.

— Quem será? Só pode ser um dos grumetes. Mas onde será que ele conseguiu a arma?

As perguntas eram desferidas através da parede que separava as duas cabinas, mas Lorde Creith só prestava atenção à luta que se desenrolava do lado de fora. Os tiros tinham cessado, mas os gritos enfurecidos dos contendores continuavam. De repente, ouviu-se um berro exultante e o ruído de alguém sendo arrastado pelo corredor.

— Pegaram-no! — exclamou Lorde Creith, em voz tensa. — Quem será ele?

Nesse momento, uma voz dirigiu-se a eles, em inglês, ao mesmo tempo em que o líder do motim passava diante da porta.

— Não abram a porta enquanto a tripulação não subir a bordo. Já estão voltando!

Joan ficou petrificada ao ouvir aquela voz e, empurrando o pai para o lado, abaixou-se para olhar através da fenda no painel. Viu um homem debatendo-se nas mãos dos seus captores: um homem alto, vestido de cozinheiro — Jim Morlake!

Joan gritou e tentou abrir a porta.

— A chave, papai! A chave — disse ela, desesperada. — É o Jim!

Mas o conde arrastou-a da porta.

— Minha querida, você não vai ajudar Jim Morlake entregando-se nas mãos desses selvagens — falou ele e, por fim, ela parou de lutar e deixou-se cair pesadamente nos braços do pai.

Lorde Creith deitou-a no sofá e correu para a escotilha. Os botes estavam-se aproximando do iate e ele viu, pela atitude do comandante, de pé na proa, revólver na mão, que tinha sido avisado do motim. Nenhum barulho vinha do corredor nem do deck; apenas os gemidos do homem ferido, do lado de fora da porta, quebravam o completo silêncio. Um minuto depois, ouviram os botes bater contra a quilha do iate e o estrondo de pés calçados de botas, correndo acima deles. E, pouco depois, a voz do comandante, perguntando:

— Há alguém aí?

Lorde Creith abriu a porta do camarote e passou por cima do homem caído.

— Graças a Deus o senhor está bem! — disse o Capitão Green, aliviado. — E sua filha — também está bem?

Joan recuperara-se e, embora continuasse deitada, estava consciente. Mas, percebendo que só ela tinha o segredo da verdadeira identidade do "cozinheiro", pôs-se de pé.

— Jim! Eles levaram Jim! — disse, desesperada.

— O seu cozinheiro — explicou Lorde Creith.

— Como assim? — retrucou o intrigado comandante, até que uma luz se fez nele. — Ah, o senhor está-se referindo ao ajudante de cozinheiro — ao homem que contratei em Southampton? Foi ele quem fez isso? — e olhou para o vulto caído a seus pés.

— Se eles o pegaram, deve estar a bordo do dhow — disse o comandante. — Desencostou assim que subimos a bordo.

Subiu ao deck e Joan fez o possível para imitá-lo, mas toda ela tremia e sentia-se estranhamente fraca. O dhow já estava a uns 12 m do iate e afastava-se rapidamente, tocado pela brisa fresca que vinha de terra.

— Tem a certeza de que o levaram? — perguntou o comandante. — Ele pode estar entre os... — Não terminou a frase.

Um dos tripulantes estava morto e outro, tão ferido, que não se esperava que sobrevivesse. O comandante mandou que procurassem outros mortos ou feridos, mas nem sinal de Jim.

— Acho que podemos pegá-los — disse Lorde Creith e o comandante concordou.

— Vou levantar âncora, mas não tenho a certeza de que possamos pegá-los, a não ser que eles sejam bobos de ficar em mar aberto. O mais provável é que naveguem junto à costa e aí não vou poder segui-los, exceto com botes.

O dhow cada vez se distanciava mais e a esteira branca aumentava.

Felizmente, o rádio-operador, a postos na sua pequena cabina no deck superior, tinha sido esquecido pelos mouros, e fora ele quem avisara o comandante. Fizera mais: entrara em contato com um destróier americano, navegando a umas 20 milhas de distância, e um penacho de fumaça apareceu no horizonte.

— Não sei se vai chegar a tempo de pegar o dhow — disse o comandante.

Nesse momento, o veleiro mudou o curso e o capitão resmungou:

— Está-se dirigindo para terra. Como eu previa.

— Que será que vão fazer com ele? — perguntou Joan e, por um instante, o comandante ficou sem saber a quem ela se referia.

— Ah, com o cozinheiro? Não creio que lhe aconteça nada de mal. Se pensassem que era alguém importante, pediriam resgate. Sendo apenas um ajudante de cozinheiro, provavelmente vão tratá-lo bem. Os árabes não costumam ser vingativos para com os inimigos que capturam numa luta leal.

O vento aumentara e estava soprando com força, quando o iate deu meia-volta, em perseguição da embarcação moura, mas, a essa altura, o dhow já bordejava o promontório que se projetava duas milhas mar adentro e, quando por sua vez o iate deu a volta ao promontório, o veleiro já estava tão perto de terra, que parecia ter fundeado.

— Estão desembarcando — disse o Comandante Green, olhando pelo binóculo. — E lá se vai o meu cozinheiro!

Joan quase lhe arrancou o binóculo, para olhar a praia. Suas mãos tremiam de tal maneira, que só conseguiu ver uma mancha de figuras vestidas de branco e areia amarela. Por fim, conseguindo dominar a emoção, distinguiu um vulto alto e moreno, que subia, calmamente, praia acima.

— Lá está ele — murmurou. — Oh, Jim!

— A senhora conhece-o? — perguntou o comandante. Ela fez que sim.

— Então, não preciso mais fingir — disse o capitão — mas peço-lhe que não diga nada aos meus patrões. Eu e o Sr. Morlake somos velhos conhecidos, do tempo em que eu estava em Tânger. Na sexta-feira à noite, antes de zarparmos, ele veio procurar-me e suplicou-me que o deixasse embarcar, como parte da tripulação. Sabedor de que ele sempre esteve envolvido em estranhas aventuras — foi oficial do serviço secreto e pode ser que ainda seja — aceitei-o a bordo, como ajudante de cozinheiro. Ele me preveniu do que iria acontecer e, como um idiota, achei que estava exagerando.

— Ele lhe preveniu sobre o ataque? — disse Lorde Creith, estupefato. — Como é que ele poderia saber que ia acontecer?

O comandante abanou a cabeça.

— Isso eu não sei lhe dizer, mas ele sabia, embora eu imagine que não estava certo de que fosse ocorrer, porque não disse nada quando fui a terra apanhar os malditos caixotes — que, claro, não estavam lá!

O destróier era agora visível a olho nu.

— Já não nos pode ajudar — disse o comandante. — Antes que eles possam fazer algo, esses bandidos já se terão internado no deserto. — Mordeu o lábio, pensativo. — Não vão fazer nada com Morlake. Ele fala bem a língua e não existe figurão em Marrocos que não o conheça. Calculo que, a estas horas, o capitão do dhow deve estar apavorado, ao descobrir quem é o seu prisioneiro.

Assestou novamente o binóculo.

— Dois europeus! — exclamou. — Quem será o outro homem que eles capturaram? Você o conhece, Johnson? — perguntou, virando-se para o imediato.

— Estava olhando para ele, mas não sei quem é — respondeu o oficial.

Firmou o telescópio num pé-de-carneiro e olhou de novo.

— Não há dúvida de que é um europeu e de que não é um marinheiro. Está usando um sobretudo civil.

— Posso olhar?

Ajudada pelo oficial, Joan assestou o telescópio no homem que caminhava ao lado de um árabe vestido de branco. Jim desaparecera do outro lado de uma duna e aqueles dois caminhavam juntos, o mouro gesticulando, o outro enfatizando algo com o punho cerrado.

Joan abanou a cabeça.

— Não o conheço — disse ela. — Aliás, não esperava conhecê-lo.

Era uma confissão humilhante, pois ela uma vez se jactara de ser capaz de conhecer Ralph Hamon em qualquer lugar e em qualquer traje! E era Ralph Hamon quem caminhava, furioso, ao lado do mestre do dhow.

 

Tremendo no seu terno leve, apesar do pesado sobretudo, Ralph Hamon resmungava imprecações, enquanto subia penosamente a íngreme vertente da duna, e o árabe é uma língua que parece ter sido feita de propósito para praguejar.

— Você é um imbecil! — falou. — Não lhe disse mais de cem vezes o que fazer?

O barbudo capitão do dhow deu de ombros.

— A culpa foi do meu imediato, que a estas horas estará assando no inferno. Eu lhe disse para, antes de mais nada, silenciar todos os tripulantes que tinham ficado a bordo, mas esqueceram se do marinheiro que tinha a pistola.

— Por que é que você não o abateu? Por que o trouxe para bordo? — grunhiu Hamon.

— Porque os homens querem ajustar contas com ele à sua maneira. Ele matou Yussef, que os meus homens adoravam. Acho que ele vai sentir pena de não ter morrido — disse o capitão, mas Ralph Hamon não se convenceu.

— Do que é que ele vai ou não ter pena não me interessa — rosnou ele. — Você teve a mulher nas mãos e não a pegou.

— Se esse marinheiro da pistola — começou de novo o comandante, mas Ralph Hamon calou-o.

— Pare de falar no marinheiro! — berrou ele. — Você acha que eu passei dois dias de cama no seu maldito barco só para capturar um marinheiro?

— Se o senhor o vir... — disse o mouro.

— Não quero vê-lo e não quero que ele me veja. Se vocês deixaram a mulher escapar, podem deixá-lo fugir também. Adia que vou querer que ele conte, em Tânger, que eu estava com você no seu dhow? Faça o que quiser com ele.

Viu o prisioneiro a distância — um homem alto, cujo rosto era irreconhecível sob a máscara de sujeira e sangue — mas não se aventurou a chegar perto dele. Uma tropa de mulas esperava por eles num vilarejo e, ao pôr os olhos numa delas, mais ricamente ajaezada do que as outras, com uma sela de couro macio e vermelho, e guizos à volta do pescoço, Ralph Hamon mordeu o lábio até sair sangue. Era a montaria que ele destinara a Joan.

Todos montaram e não tardou que uma tropa de 12 mulas atravessasse a região. Pararam por duas horas, durante a tarde, e logo retomaram viagem, acampando para passar a noite nas proximidades de uma aldeia de queimadores de carvão.

— Não quer assistir ao espetáculo? — perguntou o comandante. — O homem pertence à sua raça e talvez o senhor não gostasse de os ver surrá-lo.

— Gostaria — retrucou Ralph, brutalmente — mas acontece que estou cansado.

Armaram uma tenda para ele perto da do chefe e Hamon já ia se recolher, embora o sol mal tocasse no horizonte, quando ouviu os homens da caravana falando alto e em tom excitado, e resolveu perguntar a causa.

— El Zafouri — foi a resposta lacônica.

Ralph sabia o nome do chefe insurgente, embora nunca o tivesse visto.

— Ele está aqui? — perguntou

— Está vindo — disse o outro, indiferente — mas eu sou amigo dele e não há nada a temer.

Uma nuvem de poeira na estrada da colina revelava bem o tamanho e a importância das tropas de El Zafouri. E quando, meia hora mais tarde, ele armou o seu acampamento ao lado deles, Ralph Hamon deu graças pelo fato de o chefe rebelde não vir como inimigo.

Tratou de ir, pessoalmente, cumprimentar o célebre xarife e encontrou-o sentado diante da sua tenda, um homem atarracado e forte, negro de cor e de feições.

— A paz esteja na sua casa, Zafouri! — disse Hamon, convencionalmente.

— E na sua também — retrucou Zafouri, olhando fixamente para o estrangeiro. — Acho que o conheço. Você não é Hamon?

— É, o meu nome é esse — disse Ralph, satisfeito pelo fato de a sua fama ter-se estendido tão longe.

— Você não é amigo do Xarife Sadi Hafiz?

Ralph Hamon sentiu que pisava terreno delicado. Sadi mudava tão rapidamente de amigos que, naquele momento, podia muito bem ser inimigo mortal do homem que olhava para ele.

— Sadi é meu agente — respondeu, cauteloso. — Mas quem pode dizer que ele continue sendo meu amigo? Todo o mundo sabe que Sadi só serve a quem brilha forte.

Estava perfeitamente a salvo dizendo aquilo, pois a reputação de Sadi Hafiz era do domínio público, e ficou secretamente aliviado ao ver o brilho divertido nos olhos escuros de Zafouri.

— Isso é verdade — disse ele. — Para onde estão indo, haj* — perguntou ao capitão do dhow, que ficara de pé, ao lado de Ralph.

* Haj — título árabe. (N. da T.)

 

— Para as colinas de Rifi, xarife — respondeu ele, e o mouro cofiou a barba.

— Estão indo pelo caminho mais demorado — disse, significativamente. — É verdade que têm um prisioneiro?

O comandante do dhow assentiu.

— Meus homens me falaram nele. Dizem que vai morrer, não? Bem, é a melhor coisa para ele e para todos. Quando um homem está dormindo, não prejudica ninguém e é feliz. Vou assistir ao espetáculo.

Ralph também, deveria ir, mas não pôde. Havia 48 horas que não dormia e, tão logo se deitou na esteira que o criado lhe estendera dentro da tenda, adormeceu.

O espetáculo fora marcado para uma hora depois do pôr-do-sol, e era novidade para Zafouri. Os homens formaram duas fileiras com um estreito corredor entre eles, por onde o prisioneiro deveria passar, para o que, aparentemente, seria a sua salvação, porque, se chegasse ao fim do corredor e fosse ágil o bastante para escapar aos dois homens munidos de espadas que esperavam, na extremidade, para lhe dar o golpe de misericórdia, estaria livre. Jim ouvira falar desse velho castigo, usado para acertar contas com malfeitores e inimigos políticos, e tinha a certeza de que, por mais rápido que corresse, não sobreviveria à saraivada de golpes que cairiam sobre ele, pois cada homem, nas duas fileiras, estava armado de um cajado de madeira.

Seus captores trouxeram-lhe fruta e água.

— Se você for rápido, terá sorte — disse um deles, rindo, e ficou espantado quando Jim lhe respondeu em árabe, com um provérbio muito conhecido:

— A justiça é mais veloz do que os pássaros e mais terrível do que os leões.

— Oh! — exclamou o carcereiro, surpreso. — Você fala a língua de Deus! Amigo, fale bem de mim aos djins*, pois esta noite você habitará entre os fantasmas!

* Djins — entidade corporal, mas imperceptível aos sentidos, na crença muçulmana. (N. da T.)

Levaram-no para ser julgado e o comandante do dhow, sentado num tapete de seda, deu a sentença:

— Morte por morte. Quem mata será morto — recitou, num cantochão monótono.

— Não se esqueça disso, homem — retrucou Jim gravemente, e Zafouri, que compartilhava o tapete de seda, lançou um olhar rápido para o prisioneiro.

Trouxeram um jarro de vidro cheio de água e o comandante lavou, cerimoniosamente, as mãos do prisioneiro.

— Escute, homem sem nome — disse Jim em árabe fluente. — Se eu morrer, as pessoas vão falar e as conseqüências recairão sobre você onde quer que você esteja, e você será enforcado no souk**, e a sua alma descerá ao geena e se encontrará com a minha...

** Souk — mercado (palavra árabe). (N. da T.)

 

— Levem-no daqui — ordenou o comandante.

— Deixe-o ficar — disse Zafouri.

— A paz esteja com você, Milaka. — Era o velho nome pelo qual os mouros o chamavam, e os olhos de Jim brilharam.

— A paz esteja com você, Zafouri — volveu Jim, reconhecendo o homem.

Zafouri levantou-se e, pondo os braços em volta do prisioneiro, beijou-o no ombro.

— Se alguém ousar condenar o meu amigo à morte, que ouse agora — disse ele, ao mesmo tempo em que a sua mão esquerda se fechava sobre o cabo da sua espada curva.

O comandante ficou calado.

 

Tânger jazia banhada no sol da manhã, um vasto mosaico verde e branco, e Joan Carston contemplava, deslumbrada, a beleza da cidade, enquanto ò iate entrava lentamente na baía. O céu estava azul e sem nuvens e a brisa que vinha de terra trazia até ela um aroma ao mesmo tempo leve, acre e indescritível.

— Eis o Oriente — farejou Lorde Creith. — Quer ir a terra?

Ela fez que sim.

Lorde Creith deitou uma olhadela furtiva para a filha.

— Você não está mais preocupada a respeito de — a respeito de Morlake?

Joan pensou um pouco, antes de responder:

— É difícil dizer o que eu sinto. Tenho tanta fé nele e o sentimento de que, se algo terrível lhe tivesse acontecido, eu saberia...

Lorde Creith apressou-se a concordar. Estava sempre disposto a concordar com tudo o que fosse agradável e a discordar violentamente das predições desagradáveis.

— O comandante diz que pensa ficar aqui uma semana e acho que é uma ótima idéia.

Tinha reservado aposentos no grande hotel branco que dava para a praia e, ao fim da tarde, do amplo terraço do seu apartamento, Joan pôde olhar, maravilhada, para a confusão de edifícios que formavam a moderna Tânger.

— Parece algo saído do Velho Testamento e iluminado a eletricidade — comentou o conde. — Não sei se li isso, ou se o inventei. Se inventei, saí-me muito bem.

— Jim viveu anos aqui — disse ela.

— Que é que ele fazia em Tânger?

— O Capitão Green diz que era do corpo diplomático. Vou saber.

No dia seguinte, Joan dirigiu-se à rua tortuosa em que estavam situados vários consulados. Não conseguiu, porém, colher informações precisas sobre Jim Morlake. Devido justamente à sua profissão, os funcionários dos consulados e das embaixadas mostraram-se reticentes. Não obstante, Joan pôde confirmar o que o comandante do iate lhe dissera, e era novidade para ela: que, durante anos, Jim Morlake ocupara um cargo importante naquela cidade. Lorde Creith conhecia o embaixador britânico, que os convidou a tomar chá na embaixada, e Joan ouviu, sem escutar, Sua Excelência falar de concessões e representações, dos problemas sanitários e das tremendas injustiças infligidas pelo paxá aos infelizes súditos do sultão. No terceiro dia, Joan já estava ficando farta da cidade.

— A parte mais bonita de Tânger a gente não vê. Lembra-se daquela rua horrível por onde passamos, nos fundos da mesquita? — perguntou ela. — Uma porta muito velha abriu-se e entrevi um jardim deslumbrante, com duas mulheres veladas numa sacada, dando de comer aos pombos. Uma cena tão bonita, que eu quase entrei.

Lorde Creith disse algo a respeito da falta de condições sanitárias das casas e pôs-se a discutir a conta apresentada pelo hotel. Essa mesma tarde, a caminho do mercado, ele continuou com a sua dissertação.

— O Oriente é o Oriente, e o Ocidente, o Ocidente — disse ele. — O que me interessa realmente nesses sujeitos é o que eles estão pensando. Você não pode compreender o Oriente se não entender a sua psicologia.

A moça, que caminhava atrás dele, não respondeu, mas Lorde Creith já estava acostumado a falar sem ter resposta.

— Agora, se você me perguntasse... — começou e virou-se, para melhor enfatizar o que ia dizer.

Joan sumira!

Voltou a subir a rua. Numa esquina, um mendigo pedia esmola cm nome de Alá; uma mulher gorda e velada carregava um cesto de artesanato local — mas nem sinal de Joan. O conde olhou para os altos muros que ladeavam a rua, como se esperasse encontrá-la miraculosamente empoleirada no alio de um deles.

De repente, deu-se conta da seriedade da rua empedrada. Olhou para a esquerda e para a direita, mas nada de Joan. Numa rua viu quatro homens transportando um caixote de madeira e cantando, à medida que avançavam. Voltou para onde estava o mendigo e já ia perguntar-lhe se não tinha visto uma moça passar, quando reparou que o homem era cego.

— Joan! — gritou.

Não houve resposta. Um homem que dormia à sombra de uma porta acordou, estremunhado, olhou para o velho e, amaldiçoando todos os estrangeiros que perturbavam o descanso dos fiéis, deitou-se e adormeceu de novo.

Vendo ao longe um policial, Lorde Creith correu para ele.

— Por acaso viu uma moça européia — minha filha...? — disse, incoerentemente.

E contou a história do desaparecimento de Joan.

— Vai ver que entrou numa das casas. O senhor tem amigos aqui? — perguntou o guarda.

— Nenhum! — respondeu Lorde Creith, enfaticamente.

— Onde é que ela estava, quando o senhor a viu por último? — e Lorde Creith apontou.

— Perto daqui, há uma ruela que corta caminho para o souk — sugeriu o guarda, caminhando à frente do conde.

Mas Joan não estava no grande mercado e Lorde Creith voltou correndo para o hotel. O gerente disse-lhe que Lady Joan ainda não regressara. Não estava no terraço. A única pessoa que lá estava era um homem alto, de roupa cinza, que se abanava com o chapéu de aba larga.

Olhou em volta, ao ouvir a voz de Lorde Creith e, levantando-se, correu para ele.

— Morlake! — exclamou o conde. — Joan...!

— Que foi que aconteceu com ela? — perguntou Jim, depressa.

— Desapareceu! Meu Deus, estou com medo — estou com muito medo!


 

A casa de Sadi

Jim falou rapidamente com o chefe de polícia, antes que Lorde Creith o levasse até o local onde Joan desaparecera.

— Exatamente o que eu pensava!

Disse algo em voz baixa ao chefe de polícia e Lorde Creith viu-o abanar a cabeça, ao mesmo tempo em que dizia:

— Não posso fazer nada. Só poria em perigo a minha carreira. A única coisa que posso fazer é estar a postos, se precisarem de mim.

— Isso basta — disse Jim.

Havia uma pequena porta na parede e Jim bateu nela. Após um momento, o postigo abriu-se e um rosto negro apareceu.

— O xarife não está em casa — disse a escrava, numa voz gutural.

Jim olhou em volta. O policial recuara para uma distância discreta.

— Abra a porta, minha Rosa de Sharon — disse Jim. — Venho de parte do paxá e trago notícias para o xarife.

A mulher hesitou e abanou a cabeça.

— Não posso abrir — disse ela, com um tom de indecisão na voz de que Jim imediatamente se valeu.

— Trago um recado de Hamon — disse ele, em voz baixa.

— Vá dizer isso ao xarife.

O postigo fechou-se e Jim olhou para o nervoso Lorde Creith.

— Acho melhor o senhor juntar-se ao nosso amigo — aconselhou-o, em voz baixa.

— Mas, se ela estiver aí dentro, eu posso insistir... Jim abanou a cabeça.

— A única maneira de insistir é a que eu vou usar — disse ele. — O senhor me ajudaria muito, Lorde Creith, se não interferisse.

Pouco depois de o conde ter-se resignado a juntar-se ao chefe de polícia, Jim ouviu ranger o ferrolho, uma chave girou na enferrujada fechadura e o portão abriu-se alguns centímetros, mal lhe permitindo entrar no pátio tão seu conhecido. Olhou para o velho chafariz, para a abandonada varanda, com suas poltronas desbotadas e, ao ver um homem surgir na soleira, dirigiu-se para ele, galgando de uma só vez os degraus do alpendre.

— Sadi Hafiz, preciso de você — disse ele e o som da sua voz espantou o marroquino.

— Alá seja louvado! exclamou. — Não sabia que você estava em Tânger, Milaka!

Seu rosto pálido parecia ter empalidecido ainda mais.

— Que posso fazer por você, meu caro Capitão Morlake? — perguntou ele, no seu excelente inglês. — Não há dúvida de que é uma surpresa — uma agradável surpresa. Por que não mandou dizer quem era...

— Porque você não me teria deixado entrar — atalhou Jim. Onde está Lady Joan Carston?

O rosto do outro permaneceu inalterado.

— Lady Joan Carston? Creio que nunca ouvi esse nome — disse ele. — É alguma funcionária da Embaixada Britânica?

— Onde está a moça que foi atraída para cá faz meia hora? — insistiu Jim. — E vou desde já lhe dizendo, Sadi Hafiz, que não sairei desta casa sem ela.

— Deus é testemunha — protestou o outro, vigorosamente — de que eu não conheço essa senhora, nem nunca a vi. Por que haveria ela de estar aqui, nesta minha humilde casa, sendo ela uma lady, um membro da aristocracia inglesa?

— Onde está Lady Joan Carston? — teimou Jim. — Acho melhor me dizer logo, Sadi, ou terei de responder pela morte de um homem.

Puxou do revólver e o brilho da arma pareceu ofuscar o mouro, que fechou os olhos e pestanejou.

— Isto é um desaforo — disse ele e, à medida que ia ficando mais nervoso, mais o seu inglês sofria. — Vou fazer queixa ao Consulado...

Jim empurrou-o para o lado e entrou no hall de lajotas, abrindo, com um chute, uma porta à esquerda. Não havia dúvida de que era a sala de fumo de Sadi, pois fedia a haxixe e a tabaco. Numa das extremidades havia uma escada de ferro em espiral, que levava ao andar superior — coisa que não combinava com aquela primitiva decoração oriental. Sem hesitar, Jim subiu correndo a escada e, soltando um grito, uma jovem deitada num sofá pôs-se de pé num pulo e puxou o véu para tapar o rosto.

— Onde está a moça inglesa? — perguntou Jim, sem perder tempo.

— Senhor — respondeu a jovem, trêmula — não vi nenhuma moça inglesa.

— Quem mais está aqui?

Atravessou a sala semi-escurecida, correndo os cortinados dos três dormitórios, mas Joan não estava lá. Desceu a escada e enfrentou o ultrajado Sadi.

Jim sabia o que ia acontecer antes de Sadi atirar, pois tinha cometido o crime imperdoável de invadir os aposentos das mulheres.

— Abaixe o revólver, Sadi — ordenou ele — ou você é um homem morto. Fique sabendo que o estou cobrindo com a minha arma.

Sadi atirou para onde Jim desaparecera e, de repente, o intruso apareceu atrás de uma coluna e Sadi ergueu as mãos. No mesmo instante Jim caía sobre ele e lhe arrancava o revólver.

— Agora me diga, onde está Joan Carston?

— Já lhe disse que não sei.

Um magote de criados assustados se juntara na porta e Jim correu a fechá-la.

— Onde está Joan Carston?

— Foi embora — disse o homem, derrotado.

— Você está mentindo. Ela não teve tempo de ir embora.

— Esteve aqui só por um minuto, depois entrou na Rua da Escola — há outra porta no pátio.

— Com quem?

— Não sei — foi a resposta desafiante.

Jim era duas vezes mais alto do que ele, as mãos nos quadris, os olhos quase invisíveis.

— Sadi — disse, calmamente — você conhece Zafouri? Ontem à noite, ele me disse que quer a sua cabeça porque você o traiu junto do Governo, pediu-lhe dinheiro para comprar fuzis e usou-o em proveito próprio. Eu posso salvar a sua vida.

— Não é a primeira vez que sou ameaçado, Sr. Morlake — retrucou Sadi Hafiz, recuperando um pouco da sua audácia — e que foi que aconteceu? Continuo vivo. Estou-lhe dizendo que nada sei a respeito dessa moça.

— Você acaba de me dizer que ela esteve neste pátio e foi levada daqui para a Rua da Escola. Quem a levou?

— Juro por Alá que não sei — gritou o homem em árabe, e Jim esbofeteou-o.

— Você vai pagar caro, Sadi Hafiz — disse Jim. Abriu a porta e levou o indicador à garganta.

— Zafouri vai acertar contas com você — disso não há dúvida. Mas ainda é mais certo que, se algo acontecer com Lady Joan Carston, eu voltarei para cortar você em pedacinhos.

Bateu a porta e saiu para o pátio.

Um breve exame mostrou-lhe que o homem até certo ponto falara a verdade, pois havia realmente outra porta, deitando para a ruela que Lorde Creith revistara.

Foi então que se lembrou de que o conde vira quatro homens carregando um pesado caixote. Saiu para a rua e chamou o policial.

— Quero que descubram que direção tomaram os quatro homens que foram vistos carregando um pesado caixote pela Rua da Escola. Devem ter atravessado o souk.

Não foi difícil averiguar isso. Um guarda vira-os dirigir-se para a estrada de Fez e colocar o caixote numa pequena camioneta que esperara toda a manhã naquele local. Um cameleiro, que estivera descansando daquele lado da estrada, perto da camioneta, confirmou as palavras do guarda e disse que algo dentro do caixote se mexera e que, quando ele perguntara aos carregadores o que havia lá dentro, eles tinham dito que se tratava de um carregamento de galinhas.

— Espere aqui — disse Jim.

Atravessou, correndo, pelo meio da multidão reunida no mercado e desapareceu no meio do povo. Dez minutos mais tarde, Lorde Creith viu chegar um carro, a toda a velocidade, pela estrada, e Jim estava ao volante.

— Encontrei-o do lado de fora do Hotel d'Angleterre — disse ele, ofegante. — Só Deus sabe quem é o dono. -

Lorde Creith pulou para dentro do carro.

— Receio não poder ir também — desculpou-se o policial, que obedecia cegamente a todos os regulamentos. — A minha jurisdição acaba aqui.

Jim fez que compreendia e entrou com o cano na estrada de Fez. As marcas da camioneta ainda eram visíveis no chão c, a uns 20 km de Tânger...

— Lá está a camioneta! — exclamou Jim.

Fora abandonada à beira da estrada e o caixote ainda estava intacto. E se ele estivesse enganado e tivessem seguido a pista errada? Seu coração afundou, só de pensar nisso.

Encostou o carro e pulou para a camioneta. Foi então que viu que o caixote estava vazio e a tampa fora jogada no mato, à beira da estrada.

Mas não totalmente vazio, pois no fundo havia um sapato branco e, quando ele o retirou Lorde Creith gemeu:

— O sapato de Joan!

 

Joan Carston estava andando atrás do pai e chegara diante de uma porta aberta num muro quando, de repente, a vira abrir-se e parará para olhar para dentro. À primeira vista, o pátio nada tinha de bonito, mas a negra sorridente que abrira a porta apontou, como se houvesse algo digno de ser visto, e Joan, picada pela curiosidade, resolvera entrar. Imediatamente a porta se fechara, uma grande mão escura lhe tapara a boca e ela fora empurrada contra a porteira, que lhe murmurara algo ao ouvido. Algo ininteligível, mas indubitavelmente uma ameaça.

Antes de que ela pudesse perceber o que estava acontecendo, quatro homens, surgidos como por milagre, caíram sobre ela, amarrando-lhe os tornozelos com uma echarpe, enfiando-lhe um grande chumaço de algodão no rosto, para que ela não pudesse ver nem gritar — e Joan sentiu-se carregada no ar.

Lutara, debatera-se furiosamente, mas logo viu que não tinha chance e, passado o primeiro momento de terror, ficou passivamente no chão de lajotas, enquanto lhe atavam as mãos uma contra a outra. Depois, ergueram-na de novo e ela sentiu o cheiro de madeira recém-cortada. Tiraram-lhe o algodão do rosto e um negro inexpressivo amarrou-lhe outra echarpe de seda em volta da boca, deixando-lhe espaço para respirar. Um minuto depois, a tampa do caixote foi fechada e Joan sentiu-se de novo transportada no ar.

Estava muito abafado dentro do caixote. Joan temeu morrer sufocada e tentou levantar a tampa com a cabeça, mas ela tinha sido fechada por fora. Durante o que lhe pareceu uma eternidade, oscilou nos ombros dos carregadores, até que, com um solavanco, o caixote foi colocado numa superfície plana. Joan reconheceu logo o que era, pelo ronco e pelo pulsar do motor. O veículo começou a andar, cada vez mais depressa, apesar da precariedade da estrada. Não tardou que Joan sentisse dores em todo o corpo.

Devia ter desmaiado, pois despertou de repente deitada à margem da estrada. A camioneta e o caixote tinham desaparecido, e os seus quatro captores, as cabeças embrulhadas em echarpes, olhavam para ela. Um deles inclinou-se e a pôs de pé, dizendo algo em árabe que ela não entendeu. Abanou a cabeça, para mostrar que não compreendia a língua, e foi então que viu a tropa de mulas. Pondo a ao colo, o enorme negro sentou-a numa das mulas e puxou o animal por uma encosta perpendicular à estrada, seguido dos seus companheiros

Joan sentia a cabeça rodar, numa tonteira horrível. Além disso, tinha uma sede quase insuportável. Mas não andaram muito. Viu um dos homens, evidentemente o líder, olhar para trás, ansioso, e imaginou o que ele temia. Deviam estar atrás dela para salvá-la, pensou, e o seu coração bateu mais forte. Mas já estavam chegando. Numa espécie de vale havia uma casa baixa, rodeada por um muro alto e branco, com um portão pelo qual entraram.

O pátio era uma maravilha de flores outonais, com o inevitável chafariz no meio. Joan esperou, enquanto fechavam o portão, mas logo o homem lhe fez sinal para desmontar e bateu à porta da casa, que se abriu imediatamente. Joan entrou no hall. A princípio, estava tão escuro, que ela não pôde distinguir nada, mas aos poucos foi-se destacando a silhueta de uma jovem moura. Joan achou-a bonita, apesar da doentia palidez da pele. Guiada pela moça, passou para uma longa sala, cujo chão estava coberto por tapetes baratos e onde a única mobília era um divã.

A luz entrava por pequenas janelas abertas ao alto da parede, e Joan reconheceu o lugar, através de descrições que lera, como sendo o harém de uma casa moura. Não havia mais ninguém na sala e a jovem que a levara até ali desapareceu quase imediatamente, fechando a porta atrás de si.

Joan sentou-se na beira do divã e escondeu o rosto nas mãos. Tinha de enfrentar o perigo com bravura, disse entre si, por mais terrível que fosse esse perigo. Não tinha ilusões quanto ao significado das duas tentativas contra a sua liberdade. A primeira fracassara, mas agora ela tinha a certeza, embora já o suspeitasse, de que o ataque ao iate, em Suba, tinha por intenção capturá-la, e não havia sido, como dissera o comandante e Lorde Creith acreditara, um ataque ocasional de piratas.

O seqüestro fora tão bem executado, que só podia ter sido planejado. Como. é que eles sabiam que ela iria passar por aquela porta? Deviam ter esperado dias, para executá-lo. E quem seriam "eles"?

A cabeça doía-lhe; sentia-se exausta. Mesmo assim, pôs-se de pé, ao ver a porta abrir-se e uma jovem entrar com uma grande bandeja contendo pão árabe, fruta e uma garrafa térmica de café, junto com uma xícara lascada.

— Você fala inglês? — perguntou Joan.

A moça abanou a cabeça. Joan experimentou o francês, com idêntico resultado.

— Sei um pouco de espanhol — disse a jovem, mas, embora Joan entendesse a língua, sabia muito pouco para poder falar com ela.

Assim que a moça se retirou, Joan encheu a xícara de água e bebeu avidamente. Olhou para a comida com desconfiança, mas acabou comendo um pouco de pão.

Joan Carston — disse ela para si mesmo — você está em muito maus lençóis. Foi seqüestrada por mouros! Parece um pesadelo, pois essas coisas só acontecem nos livros. Mas não, você não está sonhando. E pode comer. Não creio que vão tentar envenená-la — por ora! Se o fizerem, talvez seja até melhor para você.

— Duvido — disse uma voz por trás dela e Joan voltou-se com um grito.

Um homem entrara no quarto, sem que ela o visse, e a estivera contemplando durante algum tempo, antes de se dar a conhecer.

— Você! — exclamou Joan.

Ralph Hamon sorriu velhacamente.

— Que prazer inesperado! — disse ele.

Aos poucos, Joan foi-se dando conta do verdadeiro significado da presença ali, daquele homem.

— Quer dizer que foi o senhor? — disse ela, lentamente. — Foi por isso que nos convidou a fazer esta viagem? O senhor era o outro homem que eu vi na praia? Devia ter suspeitado. Onde está Jim Morlake?

O queixo dele caiu.

— Jim Morlake? De que é que você está falando? Ele está na Inglaterra.

— Não está. Onde é que ele está? — insistiu ela.

— Não sei, estou-lhe dizendo. Espero que esteja morto, o maldito ianque!

— Só se o senhor o matou, ao descobrir que o tinha nas mãos.

O espanto dele era evidente.

— Nas mãos? Não estou entendendo. Quando é que o tive nas mãos?

— Ele era o marinheiro que o senhor tirou do iate — disse ela. — O cozinheiro.

— Não pode ser! — explodiu Hamon, recuando. — Você está querendo me enganar! Aquele não era Morlake. Era um marinheiro — o cozinheiro.

— Era Jim Morlake — volveu ela. — Que foi que o senhor fez com ele?

— Diabo! — praguejou Hamon. — Aquele maldito do Zafouri libertou-o... — De repente, estacou e mudou de tom: — Ele morreu — disse. Foi executado pela tripulação do dhow...

O senhor não está falando a verdade. O Sr. Morlake conseguiu fugir!

Hamon não respondeu. Ficou olhando para ela, os lábios trêmulos.

— Morlake em Tânger! Não é possível! — exclamou. — Você inventou isso, Joan. Pensei que ele estivesse a quilômetros de distância, mas logo ficarei sabendo se ele está mesmo em Tânger. — E saiu por onde tinha entrado, por uma portinhola atrás do cortinado.

Poucos minutos depois de ele ter saído, a jovem moura voltou e conduziu Joan a um aposento nos fundos da casa. Havia uma banheira de tijolos afundada no chão e moça fez sinal a Joan para se despir. Jogadas sobre o espaldar de uma cadeira, Joan viu algumas peças de roupa que, deduziu, deviam ser típicas do vestuário das mulheres árabes, e a princípio ela se recusou, mas a moça apontou significativamente para a porta e imaginando que, se oferecesse resistência, seria pior, Joan despiu-se sob o olhar vigilante da marroquina e entrou na banheira.

Quando saiu e foi embrulhada numa toalha quente, viu que as suas roupas haviam sumido.

— Quer que vista essas aí? — perguntou, num espanhol estropiado.

— Si, señorita — disse a jovem e Joan vestiu-se devagar.

Nunca tinha usado nada semelhante e a sua primeira sensação foi de conforto. A única coisa que lhe permitiram conservar foram as meias. Felizmente, ela não tivera de andar muito, pois perdera um sapato e, embora a sola da meia estivesse marrom da poeira da estrada de Fez, não se desgastara. Quando terminou de se vestir, a jovem levou-a de novo para o quarto e deixou-a sozinha.

Já estava ficando escuro quando Ralph Hamon voltou a entrar.

— Seu noivo não-oficial meteu-se em sérios apuros com as autoridades marroquinas — disse ele — mas tudo por culpa dele! Um homem que viveu tantos anos em Tânger devia ter pensado duas vezes antes de invadir os aposentos das mulheres de um nobre marroquino. Talvez lhe interesse saber que ele seguiu a sua pista, hoje à tarde.

— Tudo o que me contar a respeito dele me interessa — retrucou ela, satisfeita por ver a cara dele.

— Acho melhor você mudar de idéia, Joan, e modificar a sua atitude — disse ele. — A sua vida e a minha vão mudar muito.

Sentou-se ao lado dela no divã, mas Joan afastou-se e acabou se levantando.

— Vou levar a vida que sempre desejei — continuou ele. — O dolce far niente, que na Itália é apenas uma frase, em Marrocos é uma coisa real.

— O senhor pensa que está fora do alcance da lei? — perguntou ela.

— Ora, a lei! — caçoou ele. — Aqui nas montanhas a única lei é a do fuzil e do chefe de cada região. Minha querida Joan, nenhum país vai entrar em guerra para salvar você. Provavelmente, estou-lhe prestando um grande serviço — prosseguiu ele. — Você vai conhecer a vida — a vida que vale a pena viver.

— Em que posição? — perguntou ela, olhando para ele gravemente.

— Como minha esposa — respondeu Hamon. — Vai haver alguma dificuldade para nos casarmos, durante um ou dois anos, mas os casamentos marroquinos são muito mais fáceis. Você vai aprender árabe. Vou ser seu professor e leremos juntos os poemas de Hafiz. Você vai sentir pena da antiga Joan Carston, que não conhecia nada desta felicidade...

— O senhor fala muito bem — interrompeu ela. — Ninguém poderia imaginar que um homem da sua idade, e com a sua cara, fosse capaz de falar de poesia.

Olhou para ele, as mãos atrás das costas, obviamente interessada.

— O senhor é mesmo um homem fora de série — disse, enfaticamente. — Não sei quantos crimes já cometeu, e quem sabe se toda a sua fortuna não se baseia em algum crime horrível?

— Como é que você ousa dizer uma coisa dessas, diabo? — retrucou ele, quase soluçando de raiva.

Ia dizer algo mais, mas mudou de idéia e, dando meia-volta, saiu rapidamente. Joan não voltou a vê-lo, essa noite, mas, quando ela estava cochilando no divã, ouviu a porta abrir-se e, sentando-se, viu a jovem moura entrar com uma longa capa azul. Sem dizer palavra, colocou-a nos ombros de Joan, dando-lhe a entender que a segunda parte da sua viagem ia começar.

Aonde levaria ela? Confiando em que a levaria a Jim, Joan saiu, impaciente por iniciá-la.

 

Hamon não dissera mais do que a verdade, ao anunciar que Jim se metera em sérios apuros com as autoridades. Mas era o tipo de apuros de que ele sabia sair. O paxá de Tânger, governador e senhor dos fiéis, estava tomando café, quando Jim foi. anunciado pelo mordomo. O paxá puxou da barba e franziu horrivelmente a testa.

— Diga a Sua Excelência que não posso recebê-lo. O Xarife Sadi Hafiz apresentou uma queixa que deve ser examinada amanhã pelas autoridades consulares.

O mordomo desapareceu, mas não demorou a voltar.

— Meu senhor — disse ele — Morlake pede para lhe dizer uma palavra e espera a sua resposta.

— Você é mesmo um idiota — disse o paxá, furioso. — Já lhe disse que não quero recebê-lo. Qual é a palavra?

— "Açúcar", senhor.

Uma palavra bastante inocente, mas a mão do governador pôs-se, nervosamente, a cofiar a barba.

— Mande-o entrar — disse, após um momento, e Jim foi levado à presença do paxá.

— A paz esteja em sua casa, Tewfik Paxá! — saudou ele.

— E na sua também! — retrucou o outro, mandando, com um gesto de mão, o mordomo para fora da sala. — Deixe-me dizer-lhe, Excelência, que as coisas estão feias em Tânger. O Xarife Sadi Hafiz acusou-o de invadir — e abaixou a voz — o seu harém.

— E eu vim até aqui para falar de haréns, Tewfik? — disse Jim, com desdém. — Vim aqui para falar de açúcar — grandes caixotes de açúcar, que lhe chegaram às mãos na primavera do ano do levante, e nas quais estavam fuzis, que foram despachados para o pretendente.

— Que Alá tenha piedade de mim! — gemeu o paxá. — Que é que eu posso fazer? Quando Sadi apresenta uma queixa, tenho de lhe dar atenção, ou era uma vez a minha autoridade. Quanto ao açúcar...

— Não falemos de açúcar — disse Jim, sentando-se numa almofada diante do divã do paxá. — Falemos de uma moça inglesa, que foi levada desta cidade, graças à conivência de Sadi Hafiz.

— Se for capaz de provar isso...

— E é possível provar alguma coisa em Tânger? — retrucou Jim, desdenhoso. — Onde se podem comprar mil testemunhas por 10 pesetas, de cada lado? Você conhece Sadi, Tewfik: ele tem sido seu inimigo.

— Também tem sido meu amigo — atalhou Tewfik, embaraçado.

— Mas agora é seu inimigo. Há uma semana, mandou dizer ao sultão que você estava planejando vender uma concessão para a construção de uma ferrovia.

— Oxalá ele morra! — explodiu o paxá. — Tudo o que fiz foi dar uma festa para um nobre espanhol...

Jim interveio de novo.

— Só lhe disse isso para que saiba como Sadi é seu amigo. Agora, dê-me autoridade para lidar com ele.

O paxá hesitou.

— Ele é um homem muito poderoso e os Angera são seus amigos. Se eu não agir...

— Como é que você pode agir, com Sadi Hafiz na prisão? — perguntou Jim calmamente, e o paxá deu um pulo.

— Na prisão? Por Alá? Eu nunca poderia pôr um homem da importância dele no kasbah! Você está louco, Morlake! De que crime iria eu acusá-lo?

— Pense num crime quando for o momento — disse Jim. Tirou do bolso uma bolada de notas de mil pesetas e atirou-os no regaço do governador de Tânger. — Deus lhe dê paz! — disse, levantando-se.

— Que Alá lhe dê muitos sonhos felizes! — retrucou mecanicamente o paxá, acariciando amorosamente as notas.

De volta ao hotel, Jim foi ao encontro de Lorde Creith, que, pela primeira vez na vida, não se irritou por estar sendo incomodado.

— Vai ser difícil revistar as casas onde ela pode estar escondida — disse Jim. — Já me meti em maus lençóis. As únicas buscas que podemos fazer são sem autorização. De uma coisa estou certo — eles não seguiram pela estrada de Fez. Percorri 30 km além do lugar onde encontramos a camioneta, e ninguém viu nada. Devem estar nas vizinhanças e hoje à noite vou sair para investigar sozinho.

Estava impaciente para sair. Lorde Creith subiu ao seu quarto a fim de buscar uma autorização que obtivera dos consulados internacionais e, enquanto esperava, Jim foi até a varanda. A noite estava fria, mas a lua cheia pairava, serena, no céu sem nuvens e, por um momento, ele ficou extasiado com a beleza da paisagem. O amplo terraço estava deserto, exceto por um homem sentado com o colarinho do sobretudo virado para cima e os pés no parapeito de pedra.

Americano ou inglês, pensou Jim. Ninguém mais faria a loucura de se arriscar a pegar o sereno da noite, naquela cidade oriental.

O desconhecido fumava um charuto. Jim farejou o aroma e achou-o muito agradável, mas nesse momento Creith chegou com a autorização.

— Receio que não vá ajudar muito, Morlake — disse ele — mas nos lugares em que o sultão é lei, você conseguirá a ajuda das autoridades locais. — Estendeu a mão e disse: — Boa sorte! Traga de volta a minha menina — quero-a de volta, e acho que você também.

Jim apertou a mão do velho e assentiu. Depois, abriu a porta de vidro e fê-lo entrar no hall do hotel.

Ficou um momento vendo o conde atravessar, as costas encurvadas, o corredor atapetado; depois, dando meia-volta, dirigiu-se à escada que levava à Rua da Praia. Já ia descer, quando uma voz por trás dele disse:

— Oi!

Era o homem do charuto. Pensando que ele se tivesse enganado, Jim continuou a andar, mas o outro insistiu:

— Oi, Morlake! Venha cá!

Surpreso, Jim virou-se e encaminhou-se para o desconhecido.

— Já que o senhor me conhece suficientemente bem para me chamar pelo nome, sinto-me à vontade para lhe dizer que estou com muita pressa — disse ele.

— Imagino que sim — retrucou o homem, sem se levantar e cruzando confortavelmente as pernas. — O que eu quero saber é o seguinte: tem visto o meu amigo Hamon?

Jim inclinou-se para melhor olhar a cara do homem. Era Julius Welling!

— Que diabos você está fazendo aqui?

— Cortejando um ataque de reumatismo — grunhiu Welling. — Você diz que está com pressa: aconteceu algo?

— Lady Joan desapareceu — disse Jim e contou-lhe, em resumo, o que sabia do seqüestro da jovem.

O velho policial ouviu com atenção.

— Isso é mau — disse, por fim. — Ouvi contar que tinha havido um tumulto na cidade, mas não entendi do que se tratava. Meu espanhol é muito fraco e o meu árabe é praticamente nulo, embora o árabe não seja necessário para quem viaja pelo Marrocos. Lady Joan seqüestrada! Isso é mau! Para onde você está indo?

— Procurá-la — respondeu Jim concisamente.

— Não vou detê-lo. Nenhum sinal de Hamon? Jim abanou a cabeça.

— Não há dúvida de que está em Marrocos. Você sabe, não? Segui-o até Cádiz. Ele veio no Peleago até Gibraltar. Lá perdi-o de vista. Saiu de Gibraltar sem deixar pista.

A notícia deixou Jim boquiaberto. Não tinha visto Hamon no dhow, ou depois disso, e raciocinou rapidamente.

— Pode ser que ele esteja aqui — disse — mas eu não o vi. Tenho partido do princípio de que Sadi Hafiz foi o responsável por tudo o que aconteceu até agora, mas è muito possível que Hamon esteja nos bastidores, mexendo os pauzinhos.

Já ia embora, quando teve uma idéia.

— Seria bom você ir falar com Lorde Creith. Ele está bastante abatido.

Vai lhe poder contar o que aconteceu em Suba — e, despedindo-se apressadamente, desceu correndo os degraus a caminho das portas da cidade.

Na mesma hora em que Jim Morlake deixava o hotel, Lydia Hamon chegava ao dela.

— Chegou uma carta para a senhorita — disse o funcionário da recepção do Continental, tirando um envelope da cesta de correspondência.

Estava endereçado na letra de Ralph e Lydia ficou com medo de abri-lo. Levou-o para a sala de leitura e lá rasgou o envelope, tirando a folha de papel que ele continha. Dizia o seguinte:

 

Assim que você chegar, dirija-se à casa de Sadi Hafiz. Preciso urgentemente falar com você. Não diga a ninguém que estou aqui.

 

Mal acabou de ler, Lydia jogou a carta na lareira e ficou a ver o fogo consumi-la. Depois, com um suspiro, voltou à recepção.

— Preciso de um garoto para me levar até o souk — disse ela.

O funcionário da recepção saiu para a rua e voltou com um garotinho segurando uma lanterna. Aparentemente, já lhe tinha dito aonde ela queria ir, pois o garoto não lhe fez perguntas, limitando-se a guiar Lydia até à praça do mercado.

— Quero ir à casa de Sadi Hafiz — disse ela, quando estavam chegando ao alto da rua. Sem dizer palavra, o garoto deu meia-volta c, parando diante do imponente portão, bateu nele com os punhos fechados.

Passou-se muito tempo antes que viessem abrir.

— Espere por mim aqui — disse ela em espanhol. — Volto logo.

O garoto resmungou, apagou a vela por motivos de economia e acocorou-se, protegendo a cabeça com o capuz esmo-lambado.

O portão foi aberto por uma moça, que examinou Lydia à luz da lanterna e logo se pôs a andar diante dela na direção da casa. Antes que chegassem à porta, Sadi, resplandecente numa túnica de seda azul, saiu ao encontro da visitante.

— Que grande honra recebê-la na minha humilde casa, Srta. Hamon! — disse ele em inglês.

— Ralph está aqui? — perguntou ela, interrompendo a torrente de amabilidades.

— Não, foi chamado para fora de Tânger, mas espero que volte muito em breve.

Conduziu-a à sala que Jim Morlake revistara e bateu palmas. Meia dúzia de servas se apressaram a vir â presença dele.

— Tragam algo para a senhora comer e chá inglês — ordenou Sadi. — E cigarros também, rápido!

A sala estava muito pouco iluminada. Uma lâmpada, envolta numa lanterna pseudo-oriental, proporcionava a única luz e mais da metade do aposento estava mergulhada nas trevas.

— Não quer sentar-se e comer algo, após a longa viagem? — sugeriu ele. — Seu irmão não vai demorar.

— Tem certeza de que ele vai vir? — perguntou ela, desconfiada. — Não vou ficar aqui — entende?

— Naturalmente — replicou Sadi, com um quê de aspereza na voz. — Minha humilde casa não é suficientemente boa para uma lady.

— Não é nada disso, apenas prefiro o hotel — retrucou ela. Ele a estaria enganando?, pensou Lydia. Mas logo conteve a respiração, ao ouvir a voz de Ralph do lado de fora. Olhou para ele, espantada. Nunca o tinha visto em trajes árabes. Hamon tirou os chinelos amarelos e avançou para ela, pondo para trás o capuz do seu djellaba*.

*Djellaba — espécie de túnica longa, usada pelos árabes. (N. da T.)

 

— Até que enfim você chegou — disse ele, aborrecido. — Pensei que ia chegar ontem.

— Ficamos detidos em Lisboa. Que é que você quer? No último momento, Ralph mudara de planos e viajara à frente dela, deixando-a seguir por terra até Lisboa, enquanto ele continuava até Gibraltar.

A um sinal de Hamon, Sadi Hafiz retirou-se sem fazer barulho, puxando as cortinas que escondiam a feiúra da porta gradeada, antes de sair.

— Lydia, você precisa saber que estou em maus lençóis — disse Hamon. — Se o que essa moça me contou é verdade, cometi um erro muito grave.

— Que moça? — perguntou ela, depressa.

— Estou falando de Joan.

— De Joan? Ela está aqui? Onde é que ela está?

— Não importa onde — sim, ela está aqui.

— Oh, claro! — A tensão no rosto dela diminuiu. — Você me assustou, Ralph! Claro, o iate está na baía. Vi-o, quando cheguei. Você a viu?

— Ela não está no iate, se é isso o que você está querendo dizer — retrucou Ralph brutalmente. — Está numa das casas de Sadi, a 30 km daqui e me é duplamente necessária. Para começar, é minha refém. Morlake está em Tânger.

Lydia não disse nada. Olhava para ele como se não pudesse acreditar no que ouvia.

— Você tem em seu poder Joan Carston! Que é que você quer dizer — que a pegou à força?

Hamon fez que sim.

— Oh, meu Deus! Ralph, será que você enlouqueceu?

— Estou até muito sensato — disse ele. Procurou no bolso e, puxando da cigarreira, acendeu um cigarro. — Muito sensato — repetiu.

— Você — você não a machucou, machucou?

— Não diga bobagens — retrucou ele, furioso. — Por que haveria de machucá-la? Ela vai ser minha mulher.

— Mas, Ralph, como é que você espera escapar ao castigo? — gemeu ela.

— Não só espero, como tenho a certeza — disse ele. A lei é letra morta, em Marrocos: enfie isso na sua cabeça. Não precisa se preocupar comigo. E, Lydia, vim para ficar.

— Em Marrocos? — perguntou ela, horrorizada.

Ele fez que sim.

— Sou amigo da maioria dos homens importantes da terra — explicou Hamon — e, passado algum tempo, quando as coisas se acalmarem e Joan se tiver acostumado à nova vida, pode ser que eu pense em me mudar, mas, de momento, vou ficar aqui.

— Naturalmente, você vai querer que eu volte — disse ela, nervosa. — Alguém tem de cuidar dos seus negócios, em Londres.

— Já estão cuidados — retrucou ele. — Vendi a casa, antes de vir embora. Na verdade, vendi tudo menos Creith. Quero que os meus filhos o herdem.

— Mas eu tenho uma porção de coisas para cuidar, Ralph — disse Lydia, desesperada. — Não posso ficar aqui. Posso voltar, se você quiser...

— Você não vai a lugar nenhum — sentenciou ele. — Agora, escute bem, Lydia. O sucesso dos meus planos depende de Sadi Hafiz. É essencial que eu conserve a sua amizade e o seu apoio. Minha vida pode depender disso, entende?

— Você — você matou alguém? — murmurou ela.

— Sou responsável por, pelo menos, duas mortes — disse ele, e Lydia, chocada, deixou-se cair no divã. — Enquanto você levava uma vida boa em Paris, alguma vez se preocupou em saber de onde vinha o dinheiro? Não que eu tenha ganho um centavo sequer com a morte de Cornford — acrescentou — mas vou ganhar — vou ganhar! Foi isso o que me decidiu a ficar aqui. Então, não fará diferença o que eles souberem.

Ela levantou-se, trêmula.

— Ralph, vou-me embora — disse. — Não agüento mais. Estendeu a mão, mas ele não a apertou e, com um suspiro, ela dirigiu-se para os cortinados. Correu-os e girou a maçaneta da porta, mas em vão.

— Trancada — disse o irmão, lacônico. — Quer dizer que você vai embora? Não vai, não, Lydia — esta será a sua casa, doravante. Esta e a casa que Sadi tem nas montanhas. Garanti um bom casamento para você.

Lydia olhou para ele sem poder acreditar.

— Você está me querendo dizer... está querendo que eu case com um mouro? Ralph, não é possível que você queira isso!

— É isso mesmo — disse ele. — Lydia, é preciso tirar o melhor partido das coisas. Esta casa é horrível, concordo, mas a outra, nas montanhas, é maravilhosa. E vai ser bom para Joan ter a companhia de uma mulher como você. — Riu. — Ter Sadi Hafiz como cunhado vai acabar com o orgulho dela.

A idéia parecia diverti-lo, pois riu de novo.

Ela estava perdida — tão perdida quanto Joan Carston. Sabia que não adiantava suplicar ao irmão. Ralph Hamon nunca recuara diante do sacrifício dos parentes, e não iria recuar agora.

Ela ia falar, quando a porta se abriu e Sadi Hafiz entrou correndo.

— Depressa! — disse ele. — Saia pela portinhola! A casa está cercada por soldados do paxá. Podem ter vindo prender-me. Saberei logo, mas nada pode me acontecer. Leve-a daqui!

Ralph agarrou a irmã pelo braço e arrastou-a para o pátio. Parecia saber o caminho de cor, pois logo chegou à portinha que dava para a Rua das Escolas. A porta já fora destrancada e, assim que saíram, o próprio Hafiz a fechou. Já estavam muito longe e ainda ouviam bater no portão principal.

A visão de um mouro acompanhado de uma mulher européia não provocou comentários. O rosto tapado pelo capuz, Ralph avançava ao lado dela, sem lhe soltar o braço. Chegaram ao souk, deserto àquela hora da noite, e ela voltou-se instintivamente para a encosta que levava ao hotel.

— Nada disso — falou ele, entre dentes. — Sei de um lugar onde você pode passar a noite.

— Ralph, pelo amor de Deus, me solte! — suplicou ela.

Foi então, que do meio das trevas, surgiu um homem vestindo um sobretudo forrado de pele. Tinha a gola virada para cima e por entre as suas pontas emergia o clarão de um charuto aceso.

— Posso ajudá-la, Madame?

Ralph ouviu a voz dele e, largando o braço da irmã, desatou a correr noite adentro.

Havia muitas pessoas que ele esperava encontrar em Tânger, mas Julius Welling não se contava entre elas.

Ao chegarem à esquina da rua, Julius esperou que a moça se acalmasse.

— Obrigada, obrigada! — soluçava ela, histericamente. — Pode me acompanhar até o hotel? Estou-lhe tão grata!

— Aquele homem a estava importunando? — perguntou Welling.

— Estava — bem, não — era um amigo. Era meu irmão.

Ele estacou.

— Seu irmão?

Nesse momento, à luz de um poste, ela viu o rosto dele.

— Capitão Welling! — exclamou.

— Exatamente. E a senhorita deve ser Lydia Hamon. Procurei-a por toda a cidade. Aquele era seu irmão?

Ela engoliu em seco.

— Não — respondeu.

— Estou vendo que era — disse o imperturbável detetive. — Por estranho que pareça, nunca o imaginei vestindo trajes marroquinos. Não esperava essa encenação por parte dele. Mas até que fica muito bem. Estou pensando em comprar um djellaba para levar para Londres — acrescentou mas nem a imagem do Capitão Julius Welling metido numa túnica branca e de mangas largas divertiu Lydia.

Foram a pé até o hotel dela e Lydia deu graças por ter uma oportunidade de fazer planos. Iam andando pela rua estreita em que está situado o Continental, quando, de repente, ela disse:

— Capitão Welling, tenho medo do meu irmão.

— Não é de espantar — murmurou o policial. — Eu também tenho um pouco de medo dele — de certa maneira.

— Seria possível — pediu ela — destacar alguém para me proteger? Pode parecer estúpido, mas...

— Acho que entendo — disse o detetive. — É fácil conseguir. Qual o número do seu apartamento?

— Não sei ainda — respondeu ela, mas, logo teve uma idéia: — O senhor também está hospedado no Continental?

Ele fez que sim.

— Acho que posso mudar-me para um apartamento vizinho ao seu — disse ele, mas, ao examinar o livro de registro, viu que isso era desnecessário. Ela ocupava um apartamento na extremidade do corredor do segundo andar e, por coincidência, bem ao lado do de Julius Welling.

À 11h30min, quando as portas do hotel já estavam se fechando, chegou um mouro com uma carta endereçada a Lydia, e Welling encarregou-se de entregá-la. Ela abriu a porta, desfez o envelope e leu; depois, sem dizer palavra, mostrou a carta ao detetive.

 

Tudo acabou bem. Era só onda do paxá. Sadi Hafiz diz que Morlake foi ver o paxá esta tarde e que a batida foi o resultado disso. Venha até aqui e seja gentil com Sadi. Eu a levarei de volta ao hotel.

 

— Posso responder? — perguntou Welling, com um brilho nos olhos.

Ela concordou e ele escreveu, no fundo da página:

 

Venha até aqui para conversarmos. — J. W.

 

Pondo o recado num envelope, levou-o ao mensageiro, à espera na porta.

— Acho que ele não virá — disse Julius, ao voltar para junto da moça. — Por sua causa, espero que não venha.

Welling foi dormir, essa noite, sem nenhum receio de ser incomodado. Hamon não correria o risco de se pôr no caminho do detetive porque, embora a polícia quase não tivesse provas contra ele e as que tinha não fossem suficientes para justificar sequer uma detenção, quanto mais uma condenação, ele não sabia disso e a sua consciência ocuparia as falhas que Welling procurava preencher.

Tinha o sono leve e despertou logo à primeira pedra que lhe acertou a vidraça. Não acendeu a luz. Saiu da cama sem fazer barulho, abriu a metade da janela e olhou cautelosamente para fora.

Havia dois homens, um carregando uma lanterna, na rua, embaixo. Viu um deles levantar a mão e atirar uma pedra.

Dessa vez, foi bater na janela de Lydia e Welling ouviu-a atravessar o quarto.

— É a Srta. Hamon? — perguntou uma voz baixa.

— Sou — respondeu ela. — Quem está aí?

— Sadi Hafiz. Seu irmão deu um tiro na cabeça. Welling ouviu o grito dela, mas não se mexeu.

— Desça! — disse a voz, urgentemente, e acrescentou: — Temo que ele não resista e entregou-me uma coisa para lhe dar, algo que ele quer que a senhora dê ao Sr. Morlake.

— Espere — já vou descer — disse ela.

Welling não esperou mais. Enfiou os chinelos e o sobretudo. Lydia já devia estar vestida, pois não a viu quando saiu para o corredor, mas ouviu-a mexer nos ferrolhos da porta principal. Por fim, conseguiu abri-la e, olhando do alto da escada, Welling viu o mouro entrar.

— Quando foi que aconteceu? A voz dela tremia.

— Ontem à noite. Parece que seu irmão viu um policial seu conhecido e voltou para minha casa num estado de grande agitação. Fui buscar um café e mal tinha dado as costas, quando ouvi um tiro e o vi caído no divã.

— Ele não morreu?

Sadi Hafiz abanou a cabeça.

— Ainda não. Não precisa ter medo, porque a casa está cercada pelos soldados do paxá e o Sr. Morlake está lá. Venha comigo!

— O senhor disse que tinha algo para me dar.

Ele entregou-lhe um pequeno embrulho e Lydia saiu atrás dele para a rua escura.

Apesar da idade, Welling pulou os últimos seis degraus e, correndo pelo hall, alcançou-a quando ela ia pôr o pé na calçada.

— Um minuto! — disse, empurrando-a porta adentro.

E, com extraordinária agilidade, desviou-se para o lado a fim de evitar o golpe dirigido contra ele por um homem escondido na soleira. Um segundo depois, estava dentro do hotel, com as portas trancadas e a luz do hall acesa.

— Conseguimos enganá-los! — exclamou, ofegante.

— Mas, Sr. Welling — meu irmão...

— Seu irmão não tentou o suicídio. Não é do tipo que tenta.

Tirou-lhe o envelope da mão.

— Queriam matar dois coelhos com uma só cajadada, mas eu era o principal. Essa coisa maravilhosa é, naturalmente, uma folha de papel em branco.

Levou-a de volta para o apartamento dela, ainda estonteada pelo que acontecera.

— O senhor acha que não é verdade?

— Eu sei que não é verdade — disse ele. — Jogaram uma pedra na minha vidraça para me acordar, para eu ouvir a conversa. E a idéia era, tão logo eu pusesse o pé na rua, me liquidarem com um golpe certeiro na nuca — e quase conseguiram! Acho que, de modo geral, não valorizei bastante a esperteza oriental. Eles são espertos!

 

Essa noite seria para Joan Carston, uma experiência incrível. Durante quatro horas, montada numa mula, atravessou um país que não podia ver, e cujas características eram um mistério para ela. Pelo que podia ver, não seguiam pela estrada e, de vez em quando, os seus pés ficavam presos em arbustos espinhemos, que se agarravam à suave túnica branca que ela usava.

Ao romper do dia, viu que estavam numa região selvagem e aparentemente desabitada. A comitiva constava de seis homens e da moça que cuidara dela. Um dos homens acendeu uma fogueira e colocou em cima uma vasilha de água, enquanto outro levava as mulas para um riacho que corria ali por perto, mas que Joan não conseguia ver.

A marroquina trouxe-lhe uma grande caneca de café e um bolo de aveia e Joan deu graças, pois nada tinha comido desde o almoço, no dia anterior.

— Ainda temos de andar muito? — perguntou, num espanhol capenga.

A moura abanou a cabeça, mas não disse mais nada.

Após duas horas de descanso, puseram-se novamente em andamento. As colinas estavam cada vez mais perto e Joan viu uma pequena mancha branca numa encosta, sem saber que aquele era o seu objetivo. Quando começaram a subir, ela não pôde deixar de admirar a bela localização da casa. Parecia uma jóia branca e, mesmo a distância, Joan podia adivinhar o esplendor dos jardins dispostos em terraços, em cima e embaixo.

O terreno começava a serpentear e abriam caminho por entre os arbustos, quando ela reparou num homem montado num cavalo de aspecto lamentável, um pouco à direita deles. Os demais membros da comitiva não lhe deram atenção, mas a marroquina, que cavalgava ao lado dela, empregou uma palavra que Joan entendeu.

— Um mendigo? — repetiu, surpresa e, se as circunstâncias fossem outras, podia ter achado graça no fato de um mendigo andar a cavalo.

Era um homem idoso, de barba grisalha. Seu rosto parecia nunca ter visto água e sabão. O turbante que usava na cabeça era velho e imundo. Ficou olhando para o grupo e a marroquina deixou cair o véu e fez sinal a Joan para que fizesse o mesmo.

Joan olhou para o homem, curiosa. Reparou no djellaba roto que lhe cobria o tronco encurvado, na camisa desbotada que lhe assomava no pescoço, e pensou que nunca vira figura mais repulsiva.

— Uma esmolinha! — suplicou o mendigo, quando passaram junto dele. — Uma esmolinha, em nome de Alá!

Um dos cavaleiros atirou-lhe uma moeda de cobre, que ele apanhou destramente nas mãos sujas.

— Uma esmolinha! ó, minha bela rosa, em nome de Alá Misericordioso, tem pena dos pobres!

E a sua voz perdeu-se num tom lamurioso.

Joan estava quase desmaiando de cansaço quando chegaram aos portões abertos e entraram nos jardins da casa. Vista de perto, a casa, toda branca, ainda era mais bonita do que parecia a distância. Apesar de quase nova, tinha as paredes cobertas de begônias.

— Deve ser lindo, no verão — disse ela em inglês sem se lembrar de que a moça a seu lado não podia entender.

Em frente à porta principal havia um grande alpendre com colunas, contrastando de tal maneira com a harmonia arquitetônica, que Joan ficou pensando quem teria convencido o proprietário a acrescentar aquele toque europeu a um prédio cujas linhas simples e graciosas eram tão satisfatórias.

Ao entrar na casa, a moura — que parecia nunca ter estado ali — correu a perguntar, num sussurro, algo às mulheres que assistiam, curiosas, à chegada do grupo. Uma delas adiantou-se — uma mulher forte de corpo e com um rosto pesado, momentaneamente desfigurado pela testa franzida e por uma expressão contrariada. Disse algo em voz de comando e, quando Joan abanou a cabeça, para mostrar que não entendia, ela estalou impacientemente os lábios. Apontando para uma porta, a jovem moura, que parecia ter medo da mulher forte, abriu-a e fez sinal a Joan para entrar.

A sala estava mobiliada com requinte e lembrou a Joan uma sala de visitas inglesa, a não ser pelas janelas que, como na maioria das casas marroquinas, tinham grades. Olhou em volta e depois perguntou, em espanhol:

— Quem é a mulher gorda?

A marroquina riu estridentemente.

— É a Señora Hamon — respondeu, e Joan sentou-se no divã mais próximo e desandou a rir.

Ela podia vir a ser a principal, mas não seria a primeira mulher de Ralph Hamon!


 

Na Casa Branca

— Quem são as outras mulheres? Também são esposas dele? — perguntou Joan.

A jovem marroquina abanou a cabeça.

— Aqui só há uma esposa — disse ela e Joan conseguiu entender o espanhol sem dificuldade. — As outras são atendentes. A esposa não mora aqui, chegou há pouco tempo. Há muitos anos que não vê o marido.

Falava lentamente, repetindo as palavras cujo sentido Joan demorava a pegar.

— Obrigada — disse Joan.

— Claro? — perguntou a moura, que se chamava Zuleika.

— Perfeitamente claro — respondeu Joan, com um sorriso. Não entendia por que se sentia tão alegre diante do que prometia ser o momento mais trágico da sua vida. Talvez fosse o ar puro da montanha. Ou seria a consciência de que o futuro não reservava mais surpresas para ela, que lhe permitia encarar as coisas do lado positivo? O teto lembrava-lhe a sala de Jim, todo em gesso branco, na qual artesãos marroquinos haviam esculpido arabescos tão delicados, que até parecia ser forrado de espuma ou de renda.

Os móveis e os lambris deviam ter sido fornecidos por casas européias. O grande tapete azul, orlado de desenhos marrons e dourados, tinha vindo diretamente dos teares persas. Joan reconheceu o toque europeu na lareira de mármore branco, com suas colunas verdes e seus leões agachados. Toda a sua vida Ralph Hamon devia ter planejado acabar morando ali, pois via-se que tudo naquela sala fora escolhido com o máximo cuidado.

Era bela a sala, embora não deixasse de ser uma prisão! Mas podia ser pior.

Na extremidade da sala havia uma grande janela, revestida, exteriormente de uma grade de ferro forjado a mão. Joan abriu a janela e olhou para fora, apreciando a beleza do vale. A distância, o mar coruscava e, virando a cabeça, ela viu ao longe o maciço vulto de Gibraltar.

Notou que algo se movia no vale e protegeu os olhos do brilho do sol poente. Era o mendigo, voltando, a cavalo, pela estrada de Tânger.

Fechando a janela, dirigiu-se para a porta e girou a maçaneta de prata. Para sua surpresa, a porta abriu-se. O hall estava deserto; as portas duplas não estavam trancadas. Aparentemente, ela teria certa liberdade — e Joan sentiu-se grata por isso.

Mas, ao sair para o jardim, viu que nunca poderia escapar. O muro que rodeava a propriedade era mais alto do que o comum, mesmo para uma casa marroquina, e tinha a encimá-lo pedaços de vidro, que refulgiam ao sol, como se para lembrar-lhe que era inútil tentar fugir por ali.

O portão também estava fora de cogitação. Havia uma pequena guarita de tijolo, construída contra o muro, na qual o porteiro dormia, e Joan lembrou-se — com um misto de saudade e tristeza — de Creith e da casa vazia do guarda que Lorde Creith nunca pudera pagar.

Cansada e deprimida por não conseguir manter a determinação de expulsar da cabeça todas as recordações de casa, do pai e de uma outra pessoa, Joan voltou para a grande sala, evidentemente reservada para ela, já que ninguém vinha aliviá-la da sua solidão.

Ralph Hamon soubera que a fuga terminara bem e naquele momento cavalgava através da montanhosa região, uma sensação de triunfo exultando dentro dele, os olhos postos na casa branca, sobre o vale.

Até que enfim Joan Carston era sua, em toda a acepção da palavra! Tivera uma entrevista secreta com um homem de barba ruiva, em Tânger, e agora a sua felicidade era completa. Já Sadi Hafiz, que cavalgava a seu lado, não estava tão feliz. Tinha visto estilhaçar-se a sua taça de felicidade quando já ia levá-la aos lábios, e Ralph Hamon encontrara nele uma companhia mal-humorada e renitente.

— Chegaremos logo depois do pôr-do-sol — disse Ralph.

— Por que é que eu estou indo, só Deus sabe — retrucou Sadi, com ar contrariado. Falava sempre em inglês, orgulhando-se, e com razão, não só do seu grande conhecimento do idioma, como da sua fluência. — Você só me trouxe aborrecimentos, Hamon!

Ralph Hamon riu grosseiramente, pois a alegria não lhe permitia zangar-se, mesmo diante de acusação tão injusta.

— Quem é que entrou correndo para avisar que o paxá e os seus homens estavam na porta? Quem praticamente a pôs fora de casa, quando já a tinha no papo? Quem bolou o plano de acordar o detetive para pô-lo fora de combate, quando teria sido tão fácil ter trazido Lydia para a sua casa? Não fui eu, Sadi. Você precisa ter paciência. Lydia continua em Tânger, provavelmente ficará lá mais alguns dias e não será difícil; se eu pude trazer a minha garota para aqui...

— Se você pôde! — repetiu o outro. — Por Alá! Quem foi que a trouxe, senão eu, o Xarife Sadi Hafiz?

— Ela é linda! — disse o entusiasmado Hamon.

— Por que outra razão eu estaria fazendo esta viagem? — replicou Sadi friamente, e algo no seu tom de voz fez com que Ralph Hamon despertasse.

— Você pode satisfazer a sua curiosidade e depois — disse, secamente — ir dispensar as suas atenções onde houver probabilidade de serem aceitas. Não quero que haja mal-entendidos a respeito disto, Sadi: a moça vai casar comigo.

O Xarife deu de ombros.

— O que não falta são mulheres e mendigos — disse ele e apontou, com a cabeça, para o mendigo que vinha na direção deles.

— Uma esmolinha, em nome de Alá Misericordioso! — gemeu o pedinte e Ralph olhou para ele sem interesse. Estava farto de ver mendigos.

— Um velho desdentado — comentou e atirou-lhe uma moeda à maneira do Oriente.

— Que Alá lhe dê felizes sonhos — entoou o mendigo, esporeando o cavalo atrás deles. — Que o céu lhe dê alegrias e o prazer dos profetas — continuou — em troca de um lugar onde dormir esta noite, pois sou um pobre velho...

Sendo árabe, Sadi suportou filosoficamente o cantochão; Mas Ralph virou-se, com um sorriso, e olhou fixo nos olhos lacrimejantes do velho.

— Cai fora, cão sarnoso! — trovejou, mas o mendigo continuou a segui-los e a suplicar num tom monótono.

— Deixe-me dormir à sombra da sua casa! Oh, minha bela ave do paraíso! Dê-me um cobertor e um teto, pois as noites estão frias e eu sou um pobre velho.

— Deixe-o em paz — disse Sadi. — Por que é que você discute com mendigos, depois de tantos anos de Marrocos?

Deixaram, pois, que o velho os seguisse a distância, até que o portão se fechou no focinho do seu cavalo e o mendigo desceu, resmungando e gemendo, a encosta. Mais tarde, Hamon viu o cavalo pastando, amarrado pela perna, e uma fumaça azul subindo dentre os arbustos onde o velho pedinte preparava a sua refeição da noite.

Ralph Hamon tinha uma tarefa desagradável a cumprir e não tinha pressa de enfrentá-la. Jantou com Sadi numa pequena saleta.

— Que amante tão pouco ardente! — comentou o mouro. — Já esteve com ela?

— Ela pode esperar — retrucou Hamon.

— Então, vou eu vê-la — disse Sadi, manhosamente. E, vendo a hesitação do outro: — Afinal, você não é muçulmano e acho que a moça gostaria de conhecer um cavalheiro mouro e ver que somos bem educados.

— Mais tarde apresento-o a ela, mas agora tenho outra coisa a fazer — atalhou Ralph.

A "outra coisa" era falar com uma mulher que ele não via há oito anos. Ao entrar no quarto dela, pareceu-lhe impossível que aquela mulher gorda e de má catadura tivesse sido uma jovem marroquina de grande beleza, esbelta e encantadora.

— Até que enfim você veio, hem, Hamon? — disse ela, com voz dura. — Passaram-se todos esses anos, sem que eu o visse nem tivesse notícias suas.

— Por acaso você passou fome? — perguntou Hamon friamente. — Dormiu na rua?

— Quem é essa moça que você trouxe para aqui? — perguntou a mulher, desconfiada.

— Ela vai casar comigo — respondeu Hamon e a mulher pôs-se de pé num pulo, trêmula de raiva.

— Então, para que você me trouxe aqui? — explodiu ela. — Para me fazer passar por idiota diante dos meus criados? Por que não me deixou em Mogador? Pelo menos, tenho amigos lá. Aqui, neste deserto, sinto-me enterrada viva. E para quê? Para ser uma escrava da sua nova esposa? Não farei isso, Hamon!

Ele sentiu-se seguro de si mesmo.

— Pode voltar para Mogador na próxima semana. Você está aqui com um fim.

— Ela sabe disso? — perguntou a mulher, após uma pausa.

— Dei instruções para lhe dizerem, de modo que suponho que já saiba — disse Hamon, despreocupado.

Realmente, ele tinha um fim em vista. Mandara buscar a sua "esposa" marroquina às pressas para que Joan a visse e, vendo-a, compreendesse. Era um ótimo exemplo da maneira sutil com que a mente de Ralph Hamon trabalhava.

Voltou para junto de Sadi Hafiz.

— Vou ver a minha amada — disse — e depois você poderá cumprimentá-la.

Bateu à porta da sala e, não tendo resposta, girou a maçaneta e entrou. Joan estava sentada ao piano de cauda, as mãos cruzadas no regaço. Esforçara-se por sentir vontade de tocar e acabava de sentar-se ao piano, quando Hamon entrou.

— Está confortável? — perguntou.

Ela não respondeu e ele ficou um momento calado, admirando a silhueta esbelta e o rosto calmo e imperturbável de Joan.

— É uma bela casa, hem? Uma das mais bonitas de Marrocos — continuou. — Lugar bom para uma moça viver feliz durante um ou dois anos. Já viu a Número Um?

Sentou-se, sem pedir licença, e acendeu um charuto.

— Presumo que a Número Um seja a Sra. Hamon, não? Ele assentiu. Joan nunca o vira tão alegre, tão satisfeito.

— Ao dizer "a Sra. Hamon" revelo, naturalmente, a minha ignorância dos costumes marroquinos — disse Joan prudentemente. — Seja como for, foi a única que eu vi.

— E a única que você verá, Joan — retrucou ele, rindo. — Como diz o povo, os casamentos são talhados no céu. Em Marrocos podem-se fazer alianças agradáveis, mas a Número Um, primeira e última, será sempre Lady Joan Hamon.

Sorriu.

— Soa repulsivamente, não? — disse Joan, com franqueza brutal.

Tinha o condão de irritá-lo mais do que qualquer outro ser humano. Durante um segundo os olhos dele dardejaram, mas logo forçou uma risada. Secretamente, Hamon admirava a calma insolência dela e gostaria de imitá-la, se pudesse.

— Pode não soar bem, mas para mim é um nome bom — disse ele.

— Também é um costume marroquino? — perguntou ela, friamente. — A moça adotar o nome do homem que a rapta? O senhor precisa instruir-me nas leis matrimoniais marroquinas. Receio ignorar totalmente o assunto.

Hamon aproximou-se dela, arrastando a cadeira consigo.

— Escute, Joan — disse ele em voz baixa. — Não vai haver casamento à moda marroquina. Vai haver um casamento perfeitamente legal, celebrado por um ministro da Igreja Episcopal, com aliança e tudo o mais. Ainda agora lhe perguntei se você tinha visto a minha esposa marroquina e acho que você viu. Que acha dela?

Joan não respondeu. Estava tentando descobrir até onde ele queria chegar.

— Que é que você acha dela? — repetiu Hamon.

— Sinto muita pena dela. Não foi muito simpática comigo mas tenho muita pena dela.

— Ah, tem? Pois é isso o que significa ser uma esposa marroquina. Joan, você quer ser uma esposa à moda marroquina?

Ela olhou firme para ele.

— Não quero ser sua esposa de jeito nenhum — respondeu.

— Você quer ser uma esposa à moda marroquina — repetiu ele — ou quer se casar comigo e ter filhos que possam usar o seu nome e herdar o título do seu pai?

Joan levantou-se abruptamente do tamborete do piano e foi para o extremo da sala, virando as costas para ele.

— Vamos pôr de lado o assunto, por ora — disse Ralph, levantando-se também. — Gostaria que você conhecesse um grande amigo meu, Sadi Hafiz, e se mostrasse gentil com ele, mas não demasiado gentil.

Algo no tom de Hamon fez com que ela se virasse.

— Por quê? — perguntou.

— Porque ele está zangado comigo. Gosta muito de Lydia e ela lhe escapou. Não quero que ele faça idéias a seu respeito.

Deixou-a meditando sobre essa advertência e saiu, para voltar logo depois com Sadi, envolto numa túnica de seda. Bastou Joan olhar para ele para ver que aquele homem era tão perigoso quanto Ralph Hamon. Ou mais ainda, pois embora fosse igualmente inescrupuloso, era menos suscetível, já que não tinha a vaidade humana que tornava Ralph Hamon tão fácil de tratar. Joan odiou-o, odiou o seu rosto gordo e inexpressivo e os seus olhos escuros e fixos, que a examinavam como se ela fosse gado.

Sadi Hafiz não se demorou muito — só o suficiente para causar uma impressão. No caso de Joan, teria ficado surpreso se pudesse ler-lhe os pensamentos, pois se jactava da sua capacidade de se impor junto às mulheres.

— Que é que você achou dele? — perguntou Ralph, assim que Hafiz saiu.

— Não formei uma opinião — mentiu ela.

— É um ótimo amigo e um péssimo inimigo — sentenciou Hamon. — Gostaria que Lydia tivesse mais juízo. Ela me deve muita coisa.

Joan pensou que talvez ele também devesse alguma coisa a Lydia, mas não estava com vontade de falar. De repente, ele levantou-se.

— Bem, vou indo. Espero que já saiba onde é o seu quarto. Durma bem!

Joan não respondeu.

Já na porta, ele virou-se.

— É muito melhor ser uma esposa cristã do que uma esposa marroquina. Acho que você já constatou isso.

Ela continuou calada.

— Casaremos daqui a dois dias — disse ele e, com um sorriso velhaco: — Quer que eu convide alguém mais para o casamento?

— O senhor não ousaria — falou ela, não se contendo. — Não ousaria trazer um ministro inglês!

— Ah, não? — retrucou ele. — Não só vou trazê-lo, como ele vai nos casar, diga você o que quiser e por mais que você proteste.

 

Sadi estava à espera dele na sala de fumo e tão absorto nos seus pensamentos, que só se deu conta da presença de Hamon quando este o chamou pelo nome.

— Alá, você me assustou — disse, erguendo os olhos. — Sim, ela é uma bonita mulher — não do tipo marroquino e magra demais para o meu gosto. Mas vocês, europeus preferem-nas assim, por que eu não sei.

Hamon não se deixou enganar. A moça tinha causado uma tremenda impressão no mouro e ele ficou alerta.

— Gosta mais dela do que de Lydia? — perguntou, bem-humorado, enquanto servia uns drinques.

O mouro deu de ombros.

— Sob certos aspectos, Lydia é impossível — disse.

Era um mau sinal e Hamon sabia disso. Lydia nunca saíra da cabeça do marroquino e agora ele era capaz de falar dela com espírito crítico e sem calor — um péssimo sinal.

— Vai voltar para Tânger amanhã? — perguntou, e seus olhos se estreitaram ao ver o mouro abanar a cabeça.

— Não. Resolvi ficar mais um tempo. Preciso da mudança de ares. Tive muitos contratempos.

— Mas você me prometeu trazer um ministro?

— Ele virá sem que seja preciso eu ir buscá-lo. Falei com um dos meus homens. Além disso, o seu agente inglês pode se encarregar de trazê-lo. Ele virá desde que você lhe pague.

— Você o conhece bem? — perguntou Hamon.

— Conheço de ouvir falar. Chama-se Bannockwaite e é muito conhecido em Tânger — disse Sadi Hafiz. — É um homem inteiramente sem princípios, mas por que é que você faz questão de se casar? Sempre escravo das convenções, não meu amigo?

Ralph sorriu.

— Não tanto quanto você pensa — retrucou. — Tenho uma razão para querer me casar. O título dos Creiths passará da minha esposa para os meus filhos.

O mouro deu outra vez de ombros.

— Um simples capricho — disse ele — mas os caprichos têm sido responsáveis pela sua queda, Hamon.

— Ainda não caí — rosnou Hamon.

— Mas vai acabar caindo — disse o outro e acrescentou, rapidamente, ao ver o olhar de desconfiança de Hamon — a menos que se decida a ficar aqui em Marrocos, fora da jurisdição das embaixadas.

Esticou os braços e bocejou.

— Vou me deitar — disse. — Acho que você gostará de saber que resolvi voltar para Tânger amanhã bem cedo.

Viu a expressão de alívio do outro e sorriu intimamente.

— E vou-lhe mandar o seu ministro com uma escolta. Quando Hamon acordou, na manhã seguinte, soube que

o xarife partira e deu graças aos céus. Não foi procurar Joan, embora a visse passeando no jardim.

Os planos de Hamon não eram totalmente ditados pelo desejo de entrar para a nobreza. Como genro de Creith, ele teria uma enorme influência e não era provável que o conde continuasse zangado depois que a filha se casasse.

Na manhã seguinte, Joan dormia profundamente, quando Zuleika lhe trouxe café e frutas e descerrou as cortinas, e mal se tinha vestido e tomado café quando Ralph entrou. Parecia apressado e deu-lhe um bom-dia sorridente.

— Joan, quero apresentar-lhe o Reverendo Aylmer Bannockwaite — anunciou. — Ele vai celebrar a cerimônia que marcará, segundo espero, o início de uma vida mais feliz para nós dois.

Ela não respondeu.

— Que tal ser sensata, Joan? Estou tentando fazer as coisas como elas devem ser feitas. Você está absolutamente sozinha aqui e não há ninguém, num raio de centenas de quilômetros, capaz de socorrê-la se eu resolver acabar com a sua vida.

Mas a expressão dela não mudou.

— Recuso-me absolutamente a casar com o senhor — disse ela — e se esse tal Reverendo Bannockwaite tem algum resquício de decência, ele se recusará a realizar essa cerimônia.

— Você está certa num ponto — disse Hamon. — Ele não tem o menor resquício de decência. Acho melhor apresentá-los.

Joan estremeceu ao ver o homem entrar na sala, com a mão gorducha estendida para ela. Parecia-lhe estar vendo uma horrível encarnação do mal.

Olhou para a cara dele e estremeceu de novo. Dali por diante, não se atreveu a olhar acima do segundo botão do colete manchado do homem.

— Não vou me casar, Sr. Bannockwaite. Quero que o senhor entenda que, se me casar, será contra a minha vontade.

— Xi! Calma! — disse Bannockwaite, bem alto. — Imaginem só, uma noiva tímida! Bendito seja Deus! O casamento é o estado natural das criaturas humanas. Sempre me lamentei de não...

— Não vou casar com ele, não vou e não vou! — explodiu ela. — Se tiver de casar, quero casar decentemente, numa cerimônia oficiada por um homem limpo e com um homem limpo! — Virou-se para Hamon: — Prefiro casar com o mendigo que vi à beira da estrada. Prefiro casar com o escravo mais humilde do que com você, um ladrão e um assassino — um homem para quem nenhum crime é baixo demais. Prefiro casar com...

— Um assaltante? — disse ele, branco de fúria.

— Dez mil vezes sim — se está se referindo a Jim Morlake. Amo-o, Hamon. Continuarei a amá-lo até morrer!

— Ah, sim? — murmurou ele. E, dando meia-volta, saiu correndo da sala, deixando-a a sós com o ministro.

— Como é que pode, o senhor, um ministro de Deus, ter descido tão baixo? — perguntou Joan. — Será que não há nada, no senhor, a que uma mulher possa apelar?

— Não quero ouvir sermões — grunhiu ele. — Quero que entenda que sou seu superior intelectualmente, seu igual socialmente...

— E, moralmente, a lama cm que eu piso — completou ela, com desprezo.

Por um momento, temeu que ele lhe batesse. Seu rosto grosseiro ficou roxo de raiva e depois empalideceu.

— Sou seu superior intelectualmente e seu igual socialmente — repetiu ele. — Sou superior aos seus insultos. Telum imbelle sinc ictu!*

* Dardo impotente e sem força (em latim, no original). A frase é de Vergílio, Eneida, II, 544. (N. da T.)

 

Nisso entrou na sala Hamon, desvairado, arrastando um homem que fez com que Joan estremecesse. Era o mendigo — um velho sorridente, bajulador desdentado, horrível de se olhar, principalmente em contraste com aquela sala tão bonita.

— Aqui está o seu marido! — gritou o enlouquecido Hamon. — Olhe para ele! Você não disse que preferia casar com um mendigo? Pois bem, vai casar com ele e passar a lua-de-mel no deserto!

Joan olhou para o mendigo e para o ministro e, apesar de toda a sua aflição, não pôde deixar de pensar que nunca, em toda a sua vida, vira dois homens mais repulsivos.

— Pegue no livro, homem de Deus! — berrou Hamon. O ministro tirou do bolso um livrinho e abriu-o.

— Vou precisar de testemunhas — disse, e Hamon saiu de novo voltando com meia dúzia de criados.

E ali, sob os olhares curiosos dos marroquinos, Lady Joan Carston tornou-se mulher de Abdul Azis. Hamon murmurou algo em árabe para o mendigo e a jovem sentiu-se agarrada pelo braço, puxada e levada através do hall, para o jardim.

Hamon arrastou-a até os portões abertos e empurrou-a para fora com tal violência, que ela quase caiu.

— Leve o seu marido para Creith! — berrou ele. — Juro por Deus que você ainda vai me pedir para aceitá-la de volta!

Empurrou o mendigo atrás dela e bateu com o portão.

Joan procurou andar, tropeçou, tentou de novo e não viu mais nada. Quando voltou a si, estava deitada à sombra de um junípero. Seu rosto e seu pescoço estavam molhados. A seu lado havia uma vasilha com água. O velho mendigo desaparecera e, apoiando-se no cotovelo, ela soergueu-se e viu-o desatrelando o seu triste cavalo. Que fazer? Pôs-se, a muito custo, de pé e olhou em volta, desesperada. Era impossível fugir.

Foi então que ela viu, muito longe, no vale, uma nuvem de pó. Aproximava-se gente e, forçando a vista, Joan distinguiu o branco dos djellabas e o fulgir do aço. Era uma cavalgada de mouros, provavelmente Sadi Hafiz voltando — dali não viria ajuda.

Olhou de novo para o marido. O velho estava enrolando o rosto e a cabeça em vários panos, até só a barba cinzenta e a ponta do nariz curvo e vermelho aparecerem.

Viu-a e aproximou-se dela, puxando o cavalo. Joan obedeceu à sua mímica e montou. Caminhando à frente, a mão na rédea, Joan notou que ele tomava um atalho perpendicular à estrada principal de Tânger. Uma ou duas vezes ela olhou para trás, primeiro para a casa e depois para a cavalgada, que avançava velozmente. Joan reconheceu Sadi no homem que chefiava o grupo. E viu, também, que cada homem carregava um fuzil.

De repente, o mendigo mudou de direção e, pelo que Joan deduziu, pôs-se a andar paralelamente à cavalgada, pois o bando já não era visível, e a subir a montanha. Pelos olhares ansiosos que deitava para trás, ela calculou que ele temesse que Hamon, num momento de lucidez, se tivesse arrependido da sua loucura. Puxou o cavalo para um riacho e seguiu-lhe o leito tortuoso, mantendo o animal na água rasa. Não tardou que Joan ouvisse um tiro, logo seguido de outro. O estampido ecoou nas montanhas e ela olhou, aflita, para o velho. — Que foi isso? — perguntou, em espanhol. Ele abanou a cabeça sem olhar para trás. Outro tiro soou e ela imaginou a razão. Os tiros destinavam-se a atrair a atenção do mendigo e a chamá-lo e, evidentemente, ele achou o mesmo, pois puxou as rédeas do animal para que ele trotasse e pôs-se a correr agilmente a seu lado. Chegaram a um pequeno pinhal e o mendigo fez sinal para que Joan esperasse em cima do cavalo, enquanto ele voltava atrás a pé. Passou-se quase meia hora antes que ele regressasse e, esticando a mão, ergueu-a da sela. Joan fechou os olhos para não lhe ver o rosto. Após algum tempo, ele foi buscar água ao riacho e, abrindo um pequeno embrulho, mostrou-lhe comida, mas ela estava demasiado cansada para fazer mais do que beber a água fria e deliciosa. Tão cansada que, quando se deitou no tapete que ele estendeu, esqueceu-se do perigo que corria, esqueceu a ironia do destino que a tornara mulher de um mendigo, e mergulhou imediatamente num sono profundo. Ralph Hamon estava sentado no seu quarto, roendo as unhas, sentindo-se fraco e doente. O acesso de fúria que o levara a cometer aquele ato de loucura tinha passado, deixando-o trêmulo e desesperado. Pela janela, viu o mendigo carregando a moça montanha abaixo e, ao se dar conta do que estava acontecendo, pôs-se de pé de um pulo: aquele seu gesto de insensatez ainda podia ser remediado.

Entre os seus criados havia um homem que fora seu capanga durante anos, um velho de cabelos grisalhos. Mandou chamá-lo.

— Ahab — disse ele — você conhece o mendigo que anda a cavalo?

— Conheço, sim, patrão.

— Ele acaba de levar consigo a dona do meu coração. Vá buscá-la e dê ao mendigo este dinheiro. — Tirou um punhado de notas do bolso e colocou-as na palma da mão do criado. — Se ele relutar — mate-o!

Ralph subiu para o seu quarto, a fim de ver sair o seu emissário e foi então que avistou o bando de homens a cavalo, subindo a vertente.

— Sadi — murmurou, adivinhando o significado daquela visita.

Era tarde demais para chamar de volta o mensageiro, e correu ao portão para dar as boas-vindas ao seu agente ocasional. Sadi Hafiz desmontou do cavalo e toda a sua atitude mudara. Já não era o produto, educado e refinado, da escola missionária, e sim o chefe marroquino, insolente, tirânico, de má catadura.

— Você sabe por que voltei, Hamon — disse ele, as mãos nos quadris, os pés separados, a cabeçorra inclinada para a frente. — Onde está a moça? Vim buscá-la. Presumo que não se tenham casado, mas, se tiverem, não faz diferença.

— Eu não me casei — disse Hamon — mas ela casou!

— Que é que você quer dizer com isso? Hamon apressou-se a explicar.

— Ela disse que preferia um mendigo, que antes se casaria com o velho pedinte do cavalo do que comigo — e o seu desejo foi realizado.

Os olhos de Sadi eram dois traços.

— Casaram faz meia hora e foram naquela direção — disse Hamon, apontando para o campo.

— Você está mentindo, Hamon — acusou o outro. — Essa história eu não engulo. Vou revistar a sua casa como Morlake revistou a minha.

Hamon não respondeu. Atrás de Sadi havia 20 homens armados e, a uma ordem do chefe, ele seria um homem morto.

— Pode revistar toda a casa, desde a cozinha ao harém. — disse, e o mouro não esperou ouvir duas vezes.

A revista não demorou muito, pois ele voltou quase imediatamente.

— Falei com os seus criados e eles confirmaram o que você disse. Para que lado ela foi?

Hamon apontou e o mouro deu uma ordem aos seus homens. Um dos cavaleiros atirou para o ar. Seguiram-se mais dois tiros.

— Se isso não o trouxer de volta, irei atrás dele — disse Sadi.

— Pelo que me diz respeito — e Ralph deu de ombros — você pode fazer o que quiser. Meu interesse pela moça evaporou-se.

Não estava sendo sincero, mas o mouro acreditou.

— Você foi um idiota em deixá-la escapar — disse, menos brutalmente.

— Se eu não a tivesse deixado, você provavelmente me teria persuadido — replicou Hamon e o lento sorriso de Sadi confirmou as suas suspeitas.

Um minuto mais tarde, o bando descia a encosta, espalhando-se para a direita e para a esquerda, numa tentativa de descobrir a trilha do mendigo e sua esposa. Hamon seguiu-os com os olhos antes de voltar para casa, a fim de reunir os pedaços dos seus sonhos dispersos, e ver quais dos fragmentos tinham um valor mais sólido.

Tirou uma carteira preta de um bolso interno e, esvaziando-a, colocou o seu conteúdo em cima da mesa e examinou-o cuidadosamente, até chegar a um papel oblongo, coberto de uma caligrafia disciplinada. Hindhead parecia muito longe dali — Hindhead e Jim Morlake, mais o abelhudo do Welling e Creith, com suas avenidas e pradarias. Hamon sabia o que estava escrito de cor, mas, mesmo assim, leu de novo:

 

Suspeitando que Ralph Hamon, que acreditava ser meu amigo, planeja a minha morte, quero esclarecer as circunstâncias em que me encontro preso numa pequena casa próxima a Hindhead. Agindo como representante, e a conselho de Hamon, fui a Marrocos inspecionar uma mina, que pensava lhe pertencesse. Voltamos a Londres secretamente, de novo a conselho de Hamon, que explicou ser fatal para os seus planos vir a saber-se que ele estava transferindo os seus interesses na mina. Desconfiando de que essa propriedade, que ele afirmava ser sua, na realidade nada tinha a ver com a sua companhia, vim para Hindhead, decidido a não lhe dar o dinheiro até que ele me pudesse provar que eu estava enganado. Tomei uma precaução que acreditava, e ainda acredito, ser eficaz. Em Hindhead, minhas suspeitas foram confirmadas e recusei-me a lhe dar o dinheiro. Ele me trancou na cozinha, sob a guarda de um mouro que trouxe de Tânger. Já fizeram uma tentativa contra a minha vida e temo que a próxima...

 

A acusação terminava abruptamente nesse ponto, Hamon dobrou-a e, metendo-a na carteira, junto com os demais pertences, tornou a enfiá-la no bolso interior. Ao fazer isso, lembrou-se da descrição de Jim Morlake. A mão do macaco estava dentro da cabaça e ele chegara ao ponto em que não podia soltá-la.

Entrementes, um dos homens de Sadi descobrira a trilha dos fugitivos, e Sadi e dois outros homens tinham chegado à beira do riacho.

— Desmontem e prossigam a pé — ordenou ele. Seguiram o curso do riacho até o xarife se convencer de que não podiam ter ido naquela direção. Dali, ele via toda a região. Além disso, passaram por um trecho muito raso, com um fundo arenoso, onde não havia marcas de cascos.

— Vamos voltar — disse, liderando os demais.

Após uma hora de caminhada, chegaram a um lugar onde o riacho corria entre margens altas. Os olhos atentos do marroquino avistaram marcas recentes de cascos e fez sinal aos homens para que se calassem. Com extraordinária agilidade, escalou a margem e foi-se arrastando...

Joan acordou com os olhos negros de Sadi fixos nela.

— Onde está o seu amigo? — perguntou ele, inclinando-se para ajudá-la a se levantar.

Ela olhou em volta, ainda tonta de sono.

— Meu amigo? Está-se referindo a Abdul?

— Quer dizer que você sabe o nome dele? — retrucou Sadi, risonho.

— Que é que o senhor quer comigo? — perguntou ela.

— Levá-la de volta a Tânger, para os seus amigos — disse ele, mas Joan sabia que ele estava mentindo.

Olhando em volta, não viu sinais do mendigo. O cavalo dele continuava a pastar debaixo de uma árvore, mas o velho tinha desaparecido. Sadi mandou um dos seus homens trazer o animal e ajudou-a a montar.

— Fiquei muito preocupado — disse ele, no seu excelente inglês — quando o nosso amigo Hamon me contou a coisa estúpida que tinha feito. Há vezes em que Hamon parece louco e eu fico furioso com ele. Gosta de Marrocos, Lady Joan?

— Não muito — disse ela, e ele riu.

— Imagino que não. — Olhou para a moça com admiração. — Que bem lhe fica esse traje marroquino! Parece ter sido desenhado especialmente para a senhora.

Caminhava ao lado dela e um dos seus homens puxava o cavalo. Após algum tempo, chegaram ao local onde haviam começado a seguir o curso do riacho. O resto dos homens esperava por seu chefe sentado na margem e, a um sinal dele, todos montaram.

— Talvez tenha sido melhor eu não haver encontrado o seu marido — disse Sadi, ameaçador. — Espero que ele não a tenha incomodado?

Joan não estava com vontade de conversar. Respondeu lacônica mente e ele pareceu achar graça. Passaram-na do cavalo do mendigo para um esplêndido animal, trazido especialmente para ela, e Joan não pôde deixar de pensar que, mesmo que se tivesse casado com Ralph, não havia dúvida de que ela ainda teria montado aquele cavalo antes do dia terminar. Casada ou não, Sadi Hafiz voltara para levá-la com ele à sua casinha no vale.

Cavalgou ao lado dela a maior parte do dia, falando alegremente de pessoas e coisas, e Joan ficou surpresa com a latitude dos seus conhecimentos.

— Fui agente de Hamon em Tânger e suponho que a senhora tenha formado a idéia de que eu era uma espécie de criado superior — disse ele. — Mas não gostei de trabalhar para ele. É um homem destituído de escrúpulos e de sentimento de gratidão.

Esse era um sentimento que Joan nunca creditaria a Sadi Hafiz.

Antes do pôr-do-sol pararam e armaram acampamento. Apesar do frio da noite, os homens prepararam-se para dormir ao ar livre, embrulhados nas suas túnicas de lã, mas armaram para a jovem uma tenda no lugar mais protegido dos ventos que Sadi pôde arranjar.

— Vamos descansar aqui até a meia-noite — disse ele. — Tenho de chegar ao meu destino antes do amanhecer.

Joan deitou-se mas ficou acordada, escutando as conversas e vendo a sombra das fogueiras, que o sol poente projetava nas finas paredes da tenda. Aos poucos, as conversas foram morrendo, até que tudo mergulhou em silêncio, apenas quebrado pelo relincho ocasional de algum cavalo. Olhou para o relógio, a única peça de joalheria que conservava. Eram 9h. Tinha três horas para tentar fugir.

Puxou para o lado a cortina da pequena tenda e, olhando para fora, viu um vulto escuro — uma sentinela, imaginou. Por aquele lado era impossível fugir. Procurou levantar a cortina na parte de trás da tenda, mas estava firmemente presa. Enfiando a mão por baixo da cortina, tateou à procura do gancho, até encontrá-lo. Foi necessária toda a sua força para soltá-lo, mas, após um momento e com supremo esforço, conseguiu levantar a cortina um pouco mais e passar a cabeça por baixo dela. Com perseverança, o resto do corpo passou também.

À sua frente havia impenetráveis moitas de espinheiros. Deu a volta, abaixada, pelo lado de fora da tenda, consciente de que, se a sentinela virasse a cabeça, a sua roupa branca seria detectada. Nisso, viu uma abertura no mato e esgueirou-se por ela. Ao ouvir o estalar dos arbustos, a sentinela virou-se e gritou algo em árabe. Desesperada, Joan pôs-se de pé e largou a correr. Mal podia ver um palmo diante de si. A certa altura, foi de encontro a uma árvore anã e caiu, momentaneamente estonteada, mas logo se pôs de pé. A lua estava saindo e iluminava um trecho plano e pouco arborizado, à sua frente, mas também a revelava aos seus perseguidores.

O acampamento estava agora em pé de guerra. Joan ouviu gritos e a voz tonitruante de Sadi Hafiz, logo seguida do tropel de cavalos. Era o próprio Sadi que vinha atrás dela. Tinha a certeza disso mesmo sem o ver e, apavorada, aumentou a velocidade. Mas não podia esperar correr mais depressa do que um cavalo. Ele estava cada vez mais perto, até que a ultrapassou e deu meia-volta.

— Oh, não, minha rosinha! — exclamou Sadi, exultante. — Esse não é o caminho para a felicidade!

Esticou o braço e agarrou-a pela túnica. Depois, debruçando-se, tomou-a nos braços.

— Esta noite eu vivo! — gritou, com voz roufenha.

— Esta noite você morre!

Virou-se, surpreso, e, deparando com o velho mendigo, mergulhou a mão direita nas pregas do seu djellaba.

Joan Carston ficou como que petrificada, olhando para o mendigo. Tinha diante dela o rosto repulsivo de Abdul Aziz, mas fora a voz de Jim Morlake que falara!


 

A fuga

Ouviram-se dois tiros ao mesmo tempo e Sadi Hafiz caiu de joelhos com um gemido e tombou para o lado.

— Suba nesse cavalo, depressa! — disse Jim, quase a atirando para cima da sela.

Em um segundo ele montava atrás dela.

— Jim! — murmurou Joan e o braço que a enlaçava estreitou-a com mais força.

Apesar da carga, o possante animal partiu a galope e Jim, olhando para trás, viu que os homens de Sadi tinham parado para socorrer o chefe caído.

— Temos 10 minutos de vantagem sobre eles — disse Jim — e, com um pouco de sorte, devemos poder escapar-lhes.

Confiou, sabiamente, a direção ao cavalo, que devia conhecer a região e cujos olhos detectariam os obstáculos abundantes naquela planície. Não havia sinal dos perseguidores, mas Jim não tinha ilusões. Se Sadi fosse capaz de dar ordens, a perseguição continuaria. Após uma hora de galope, o cavalo começou a dar mostras de cansaço e Jim desmontou e seguiu a pé.

— Costumava haver uma casa de guarda na costa — disse ele — embora não me pareça que os guardas espanhóis sejam muito melhor companhia do que o cavalheiro que deixamos atrás de nós.

Ela olhava para ele, procurando reconhecer, naquele rosto horrível, um único vestígio do Jim que conhecia.

— É mesmo você?

— Sim, sou eu — riu ele. — Que tal o disfarce? Se Sadi não fosse tão burro, ter-se-ia lembrado de que esse é um velho disfarce meu. O nariz é o mais difícil — acrescentou, pesaroso. — A cera derrete ao sol e precisa ser remodelada, mas o resto é fácil.

— Mas você está sem dentes! — exclamou Joan, olhando para a cavidade escura em que se transformara a boca de Jim.

— Eles estão lá dentro, sossegue — retrucou Jim, despreocupado. — Uma escova de dentes e um sabonete vão modificar radicalmente a minha aparência, Joan.

Ela abriu a boca e emitiu um som abafado.

— Que foi? — perguntou ele.

— Nada — retrucou Joan e acrescentou: — Que engraçado!

— Se o seu senso de humor está voltando, é sinal de que você está salva! — disse ele.

Antes do amanhecer, pararam perto de um córrego, desmontaram e deram de beber ao cavalo.

— Não posso lhe dar nada para comer — disse Jim. — A única coisa que posso fazer...

Despiu o djellaba, desabotoou a camisa rota e tirou do bolso uma pequena bolsa à prova d'água, que carregou até o riacho.

Quando voltou, era de novo Jim Morlake e Joan só pôde ficar sentada, olhando para ele.

— Estou sonhando — disse ela. — Vou acordar e ver que estou... Estremeceu.

— Mais acordada do que você está agora, vai ser difícil — atalhou Jim. Estamos a 5 km da costa e, a menos que o nosso amigo Sadi tenha dado ordens muito enfáticas, seus homens não nos seguirão até a casa da guarda.

Seu cálculo mostrou-se correto e não voltaram a ver nenhum vulto de branco a caminho da casa da guarda.

— Daqui, teremos de seguir pelo litoral e correr o risco — disse Jim, depois de falar com o oficial de serviço. — Os espanhóis não nos podem escoltar até Tânger por razões políticas, mas não creio que sejamos molestados.

Essa noite, acamparam quase à vista das luzes de Tânger. Jim pedira emprestados cobertores aos guardas espanhóis e estendeu-os para a moça debaixo das ruínas de um velho castelo mouro.

— A propósito — disse ele, ao lhe desejar boa-noite, antes de se retirar para o outro lado da muralha — esta manhã você disse que havia uma coisa muito engraçada — o que era?

— Não vou lhe dizer — respondeu Joan com firmeza.

Ao se acomodar para dormir, ela ficou pensando se a cerimônia daquela manhã teria sido legal e para valer — e rezou para que fosse.

 

Enquanto isso, Sadi Hafiz era levado para a casa nas colinas, numa viagem interminável para quem, como ele, tinha uma bala no ombro. Ralph Hamon foi despertado de um sono intermitente por furiosas batidas nos portões da sua casa, e correu à janela.

Os portões estavam trancados com ferrolho e não podiam ser abertos sem a sua permissão. Viu o brilho de lanternas do lado de fora e, logo a seguir, uma voz estridente chamou-o pelo nome — a voz de Sadi. Descendo a escada a correr, foi ter com o desconfiado porteiro, que parlamentava através do postigo. — Deixe-os entrar — disse ele, levantando uma das trancas.

Um olhar para Sadi bastou-lhe para ver que algo de muito sério acontecera e ajudou o ferido a entrar em casa.

— Alá, estou liquidado! — gemeu Sadi. — Aquele maldito suíno! Se a pistola não se tivesse enredado nas dobras do meu djellaba, a estas horas ele estaria no inferno!

Hamon mandou vir uma mulher e examinou o ferimento.

— Não é nada — disse Sadi, impaciente. — Da última vez que ele me deu um tiro, foi bem mais sério.

— Da última vez que ele lhe deu um tiro? — repetiu Hamon, como se não tivesse entendido.

Sadi notara uma estranha modificação no comportamento do outro, não totalmente explicável pela sua aparência alterada. Parecia estar pensando tão obcecadamente em algo, que não tinha tempo nem paciência para se interessar pelo que estava acontecendo.

— Que é que há com você?

— Nada — disse Hamon, acordando do seu devaneio. — Que é que você estava dizendo...?

— Estava dizendo que, da última vez que ele atirou em mim, foi bem mais sério.

— Afinal, quem atirou em você? — perguntou Hamon. — Não foi o mendigo...

— Foi o mendigo, sim — disse o outro, gravemente.

O diálogo foi interrompido pela entrada da mulher a quem a jovem marroquina chamara de Señora Hamon. Carregava uma grande bacia de água e panos limpos, e Hamon ficou a vê-la limpar e vendar o ferimento. Depois que ela foi embora, retomou o fio da conversa:

— Nunca pensei que ele lhe fosse fazer mal. Tão velho e tão fraco! Você não me disse que o conhecia.

— Eu não sabia que o conhecia — retrucou o mouro — ou que você o conhecia. Mas Morlake é um velho inimigo meu!

Hamon olhou para ele sem compreender.

— Você não estava falando do mendigo? — perguntou, franzindo a testa. — Estou tão confuso! Você estava falando do mendigo, do Abdul.

— Estou falando de Morlake — disse o outro, entre dentes. — Do homem que você casou esta manhã com a sua garota!

— Oh! — exclamou Hamon, aturdido.

Não podia acreditar no que ouvia. Passou a mão pelos olhos cansados.

— Não estou entendendo — murmurou. — Você diz que o mendigo era Morlake? Mas, como é possível? Ele era um velho.

— Se eu tivesse sido mais esperto — disse o outro, amargamente — logo teria visto que era Morlake. Era o seu disfarce predileto, quando ele estava no Intelligence Service, em Marrocos.

Hamon sentou-se no sofá onde Sadi estava deitado.

— O mendigo era Morlake — repetiu, estupidamente. — Deixe-me ordenar as idéias. E eu casei os dois!

Caiu na risada e Sadi, com seu conhecimento da natureza humana, percebeu que o seu anfitrião estava à beira de um esgotamento nervoso. Mas Hamon não demorou a se acalmar.

— Ele a pegou? Claro que sim. Tirou-a de você e lhe deu um tiro. Meu Deus, que idiota que eu fui!

— Ele odeia você — disse o mouro, após um longo silêncio. — O que há por trás disso?

— Quer algo que eu tenho — só isso. — O rosto vermelho e a voz pastosa de Hamon despertaram as suspeitas de Sadi. Teria ele bebido?

Como se lhe lesse o pensamento, Hamon interpelou-o:

— Você pensa que eu estou bêbado, não? Mas não estou, nunca estive mais sóbrio. Apenas... — Hesitou, à procura da palavra certa. — Apenas me sinto diferente, mais nada.

Saiu abruptamente, deixando Sadi a meditar em algo que lhe causava muito mais preocupação do que o seu ferimento. Era preciso acabar com Hamon, decidiu, friamente. Se era verdade que havia um policial inglês procurando por ele em Tânger, o policial teria a sua presa. Só assim Sadi se reabilitaria aos olhos dos seus muitos patrões. Hamon deixara de ser lucrativo, estava chegando ao fim dos seus recursos. O astuto marroquino mediu a situação com a sua experiência de muitos anos. Não conseguiu dormir, o ombro doía-lhe muito. Assim que amanheceu, foi em busca do dono da casa.

Hamon estava na sala que Joan ocupara. Ele, pelo menos, conseguira dormir e, sobre a mesa, onde a sua cabeça descansava, apoiada nos braços cruzados, via-se uma carteira aberta e uma porção de papéis espalhados, que Sadi examinou furtivamente.

Havia várias ordens de pagamento, em nome de um certo "Sr. Jackson Brown" e também um papel branco, dobrado em quatro...

Hamon acordou e ergueu lentamente a cabeça. O mouro estava lendo o papel.

— Isso é meu, que é que você quer saber? — perguntou Hamon.

Sem se desconcertar, Sadi deixou cair o papel em cima da mesa.

— Então é isto? Quis saber do que é que você tinha tanto medo. Esse papel pode lhe custar a forca. Por que você não o queima?

— Quem lhe mandou lê-lo? — retrucou o outro, os olhos cm brasa. — Quem lhe mandou entrar aqui e me espionar?

— Você é mesmo idiota. Estou cheio de dores e chateado, de modo que vim até aqui, bater um papo.

Ralph reunia lentamente os seus pertences.

— A culpa foi minha, por tê-los deixado espalhados — disse. — Agora, você sabe de tudo.

Sadi assentiu.

— Por que não destrói essa prova? — perguntou.

— Porque não quero! — gritou Hamon, enfiando a carteira no bolso.

Seguiu Sadi com o olhar, até o mouro sair da sala, e ficou sentado, imóvel, olhando para a porta e passando, pensativo o dedo pelos lábios.

Ao cair da tarde, viu um dos homens de Sadi montar um cavalo e descer a encosta puxando outro pela rédea. Aquilo só podia significar uma coisa: o mensageiro dirigia-se a Tânger sem parar no caminho, a não ser para mudar de montaria. E ele só podia estar indo para Tânger com um fito. Ralph Hamon riu. Por alguma razão, aquilo o divertia. Sadi Hafiz estava salvando a própria pele à sua custa. Dali a dois dias — ou talvez no dia seguinte -- viria uma autorização de parte do Sultão e ele, Ralph Hamon, seria preso graças ao homem que tratara como amigo, e levado para Tânger, de onde seria extraditado e julgado por — por quê?

Assobiou longamente. Inconscientemente, levou a mão à carteira que tinha no bolso. Ali não havia cofres nem caixas-fortes onde esconder a prova e, no entanto, um simples fósforo o livraria de todo o perigo. Só que ele não queria, não podia queimar o maldito documento. Conhecia-se o bastante para saber era fisicamente incapaz desse último e drástico ato.

Nos fundos da casa ficavam as cocheiras e as acomodações dos cavalariços. Foi até lá e chamou o cavalariço-mor.

— Vou fazer uma viagem esta noite, mas é segredo. Você se encarregará de levar o seu cavalo e o meu até o rio, no lugar onde a estrada passa. Vamos até a costa e dali entraremos em território espanhol. Tome estas mil pesetas e terá outras mil se for discreto.

— Patrão, o senhor costurou a minha boca com fios de ouro — disse o homem poeticamente.

Hamon dirigiu-se aos aposentos de Sadi, para jantar com ele, e mostrou-se desusadamente animado.

— Acha que eles chegarão a Tânger? — perguntou.

— Sem dúvida — disse Sadi — mas já tenho uma história engatilhada. Disse à moça que ia levá-la de volta aos seus amigos. Não lhe toquei num fio de cabelo e acho que vou poder provar ao consulado que a jovem ficou apavorada sem motivo. E por que atirei no mendigo? Porque não sabia que ele era o Sr. Morlake. Para mim, era um diabo velho, de cujas garras eu estava salvando a moça. É, o consulado aceitará a minha história.

— E você acha que eu vou poder convencer o consulado? — perguntou Hamon, fixando os olhos em brasa no ferido.

Sadi deu de ombros e gemeu de dor.

— Você é um homem rico e poderoso — respondeu, diplomaticamente. — Eu sou um pobre mouro, à mercê dos estrangeiros. Amanhã, volto para Tânger — disse ele. — E você?

— Talvez eu também vá a Tânger amanhã — disse Hamon, sem tirar os olhos do outro — e viu-o mudar inconfortavelmente de posição.

— Deus é quem sabe dessas coisas — ponderou, filosoficamente, Sadi.

Todo o mundo se recolheu cedo. Os homens de Sadi tinham sido acomodados dentro de casa, para agradar ao chefe. O pequeno relógio de parede da sala de visitas estava dando meia-noite, quando Hamon, em roupa de montar e vestindo um sobretudo que lhe chegava aos joelhos, desceu a escada de pedra que levava ao hall. Calçara galochas por cima dos sapatos e não fez barulho ao se dirigir à porta do quarto onde Sadi dormia e girar cuidadosamente a maçaneta. Apenas uma vela ardia no quarto e Hamon ficou um momento junto da porta aberta, até ouvir a respiração regular do ferido. Puxou, então, de um punhal comprido e entrou no quarto. Não demorou senão alguns minutos e, antes de sair, apagou a vela.

Galopou durante duas horas e só parou para o cavalariço aquecer um pouco d'água e preparar algo para comer. À luz da fogueira, o homem exclamou, alarmado:

— Patrão, o senhor tem a manga e as mãos sujas de sangue!

— Não é nada — retrucou Hamon calmamente. — Esta manhã, um dos cães da minha casa quis me morder, e tive de matá-lo.

O sol banhava Tânger numa luz amarela. A superfície da baía fulgia como se fosse ouro e tudo parecia combinar-se para aumentar ainda mais a beleza da paisagem. Mas os dois homens idosos, debruçados na balaustrada do terraço do hotel, não contemplavam a magnificência do panorama: um deles sofria horrivelmente e o outro sofria por ele.

O vapor de Cádiz estava na baía e nesse exato momento efetuava-se o embarque dos passageiros.

— Disse-lhe que não poderia ir ao cais, de modo que ela não vai ficar muito desapontada — disse Welling.

— Quem? Lydia Hamon? Welling assentiu com a cabeça.

— Deve estar feliz de ver Tânger pelas costas. — E, após uma pausa: — Essa moça tem tudo para se tornar uma ótima mulher.

— Todas as mulheres têm — disse Lorde Creith suavemente. — Pelo menos, essa tem sido à minha experiência.

Welling fungou ceticamente.

— Nenhuma notícia?

Lorde Creith abanou a cabeça e os seus olhos fixaram-se no luxuoso iate ancorado na baía.

— Vai esperar aqui até ter alguma notícia? — perguntou Welling.

— Acho que sim — respondeu o outro, desanimado. — E o senhor?

— Minha missão está praticamente terminada — disse Welling, tirando uma baforada do charuto. — Vim a Tânger para investigar os começos de Hamon e esclareci praticamente a obscuridade dos seus princípios. Especializou-se em fundar companhias fictícias e obteve bastante sucesso até trazer a Marrocos um inglês desconhecido, que tinha algum dinheiro. Instalaram-se na casa de Sadi Hafiz e demoraram-se aqui cerca de uma quinzena, quando Hamon e o inglês partiram juntos de Tânger. Descobri que o desconhecido lhe pagou uma considerável soma de dinheiro — o Crédit Lyonnais mostrou-me o cadastro. A transação é muito clara: a importância paga foi de 50 mil libras por conta.

— Por conta de quê? — perguntou Lorde Creith, interessado, apesar das suas preocupações.

— Isso é o que eu queria saber. Aparentemente, uma importância ainda maior deveria ser paga, mas não figura na conta de Hamon aqui.

— O senhor não sabe o nome desse misterioso inglês?

O velho detetive abanou a cabeça.

— Não sei, mas desconfio que o dinheiro tenha sido pago. Presumo que o pagamento final tenha sido feito nas proximidades de Hindhead — se eu tivesse a certeza disso, Hamon nunca mais mostraria as caras em Tânger.

— De qualquer maneira, não vai mostrar — disse Creith, determinado. — Por Deus, Welling, se o governo deste maldito país não fizer alguma coisa até amanhã, vou armar uma expedição e internar-me no deserto até achar a minha filha! E o dia em que encontrar Ralph Hamon será o seu último dia de vida!

Welling deu nova tragada no charuto, os olhos fixos nas águas, iluminadas de sol, da baía.

— Se Jim Morlake não conseguir encontrá-la, o senhor também não conseguirá — disse ele.

— Onde estará ele? — gemeu Creith. — É essa incerteza que me está tolhendo os movimentos.

— Ninguém sabe.

Duas pessoas cavalgavam ao longo da praia, na direção da cidade. Estavam a 1 km de distância, mas se destacavam pela animação.

— Não é comum ver um homem e uma mulher árabes conversando dessa maneira em público, não acha? — perguntou Welling.

— O cavaleiro menor é uma mulher? — perguntou Creith.

— Acho que sim. Pelo menos, monta à amazona.

Lorde Creith ajustou o binóculo e olhou para os dois. Nesse instante, a mulher ergueu a mão e acenou, aparentemente para ele.

— Estão fazendo sinais para nós?

— Assim parece — disse Welling.

De repente, Lorde Creith empalideceu.

— Não pode ser — disse, numa voz trêmula. E, dando meia-volta, desceu correndo a escada para a praia enquanto os dois cavaleiros viravam os animais na sua direção e se aproximavam a galope.

Welling assistiu à cena sem nada compreender. Viu a marroquina pular de repente da sela para os braços do velho e, logo depois, o mouro desmontar e ser abraçado calorosamente.

— Macacos me mordam se aquele não é Jim Morlake — murmurou Welling.

E largou a correr pela areia ao encontro deles. Uma pequena multidão de marroquinos tinha visto o estranho comportamento da mulher sem véus e não escondia a sua indignação ante a escandalosa conduta.

— Nem ligo — disse Joan, rindo. — Estou louca de felicidade.

Dali a uma hora, quatro pessoas felizes saboreavam a primeira refeição digna desse nome que havia dias faziam. Welling saiu logo depois do almoço e voltou dali a uma hora, com a notícia de que o paxá mandara um destacamento prender Hamon, com base numa denúncia de Sadi Hafiz.

— Isso quer dizer que Sadi, tendo escapado com vida, está agora tratando de salvar a pele — comentou Jim. — De certa forma, estou satisfeito por não o ter matado. — Virou-se para Lorde Creith. — O senhor vai pôr Joan para fora daqui o mais depressa possível, não?

— Embarcamos esta mesma noite — disse o conde — e, mesmo que haja mau tempo no canal da Mancha e tempestade no golfo de Biscaia, vamos direto a Southampton. Você vem também, Morlake?

Jim abanou a cabeça.

— Ainda não — disse ele. — Vim até aqui com dois objetivos. Um, até certo ponto, já está resolvido, mas o outro ainda não.

— Refere-se a Hamon?

Ele fez que sim.

— Não pense que vou deixá-lo aqui sozinho — pulou Joan. — Tenho o direito de exigir que você volte conosco!

Mas Jim fincou pé nisso. Um dia após o iate haver zarpado, recebeu a notícia da morte de Sadi Hafiz e da fuga do assassino, e se amaldiçoou por não ter seguido os impulsos do seu coração. Voou para Cádiz na esperança de pegar o iate no porto, mas, ainda do avião, viu o L'Esperance fazer-se ao largo. Pegou o trem da tarde para Madri e estava no cais de Southampton para recebê-los.

Mas outro mês se passaria antes que Joan voltasse a ver o homem que amava, pois Jim Morlake fora acometido de uma súbita timidez, e uma dúvida se transformara, no seu espírito, em verdadeira obsessão.

Quando Welling foi visitá-lo, Jim estava estudando um grande mapa de Marrocos e analisando as possibilidades de fuga.

— Fazendo planos para a lua-de-mel? — perguntou Welling, alegremente.

— Nada disso — respondeu ele, algo secamente.

— Então, você está perdendo o seu tempo — disse o detetive. — O seu homem está vivo.

— Hamon? — perguntou Jim, erguendo a cabeça. O detetive fez que sim.

— Duas ordens de pagamento foram emitidas em Tânger, numa importância considerável. Ambas pagáveis a Hamon sob um nome fictício — só descobri isso ontem, quando fui a um dos bancos em que ele tem conta. Acontece que Hamon abriu várias contas e foi difícil descobri-las todas. As ordens de pagamento foram depositadas na Inglaterra.

Jim ficou sério.

— Quer dizer que ele chegou a Tânger?

— Sem dúvida, mas isso não deve ter sido difícil. Estou disposto a aceitar a sua teoria de que ele atravessou o território espanhol. De Tetuán a Tânger é só um pulo. Acho que um dos vapores de Gibraltar toca em ambos os portos.

— Se ele tiver juízo, ficará lá.

— Mas ele não tem juízo — retrucou Welling. — A situação já está bastante perigosa para ele, em Tânger. Se for descoberto, será julgado pela morte de Sadi Hafiz. O simples fato de ter retirado todo esse dinheiro me parece prova de que está pensando deixar Tânger tão logo lhe seja possível — provavelmente, a estas horas já estará saindo de lá. Acho engraçado você estar mexendo com esse atlas. Eu fiz a mesma coisa esta manhã, tentando adivinhar os caminhos que ele escolheria...

— E quais seriam eles?

— Gibraltar — Gênova ou Gibraltar — Nápoles e de Gênova ou de Nápoles para Nova Iorque ou Nova Orleãs. De Nova Iorque ou de Nova Orleãs para Londres ou talvez Cádiz, onde tomaria um barco bananeiro para o rio Tâmisa — isso me parece o mais provável.

— Você acha que ele viria para Londres? — perguntou Jim, surpreso.

— Claro — disse Welling. — E o que é mais, nunca o pegaremos.

Jim pousou o atlas e recostou-se na poltrona.

— Está querendo dizer que nunca o capturaremos? — perguntou, espantado.

O detetive abanou a cabeça.

— Talvez o capturemos, embora no momento não tenhamos provas suficientes — disse ele — mas de nada adiantará, porque ele está louco, Morlake! Vi o relatório do médico que examinou Sadi Hafiz, quando ele foi encontrado, e posso lhe dizer, porque estudei medicina legal, que Ralph Hamon está completamente louco.

Welling estava a caminho de casa. Ultimamente, criara o hábito de fazer uma visita a Jim no seu apartamento de Bond Street.

— Por que você não volta à Quinta Wold? — perguntou ele.

— Por ora, prefiro ficar aqui. Está muito frio no campo — desculpou-se Jim.

— De que é que você tem medo? — insistiu o detetive, desdenhoso. — De uma moça?

— Não tenho medo de nada — retrucou Jim, corando.

— Você está com medo de Joan Carston, rapaz — disse Welling e falava a verdade.

Jim acompanhou-o até a porta e voltou ao seu cachimbo e ao seu atlas, mas já não tinha interesse em procurar possíveis rotas de fuga e, fechando o atlas, recolocou-o na estante.

Sim, ele tinha medo de Joan Carston — medo do que ela pudesse sentir e pensar; medo de que, nos seus momentos menos emocionais, Joan pudesse achar que ele se tinha valido do disfarce para casar com ela. Tinha medo de que o casamento não fosse válido — e medo de que fosse. Podia ter aceito um dos convites de Joan, cada vez mais frios, e ido até Creith conversar com ela, mas furtara-se a um encontro.

Olhou para o relógio. Eram 8h da noite e ele ainda não tinha jantado. Binger era mau cozinheiro e Mahmet não voltara de Casablanca. A fim de evitar uma indigestão ou, ao contrário, não morrer de fome, Jim costumava comer num pequeno restaurante de Soho, mas nessa noite sentia vontade de comida caseira e só de pensar nos pratos complicados que o esperavam em Soho, já se sentia enjoado. Ansiava por pratos caseiros, servidos numa grande sala de jantar antiga, com o fogo crepitando na lareira, o vento batendo nos galhos despidos das árvores, lá fora, o gramado coberto de gelo e um rio onde pulavam peixinhos. Tocou a campainha.

— Telefone a Cleaver e avise que vou dormir lá esta noite. Ele que me prepare uma boa carne assada e uma torta enorme de sobremesa. Ah, e não esqueça a cerveja.

— Esta noite? — perguntou Binger, incrédulo. — Já são 8h.

— Nem que fosse meia-noite — retrucou Jim. — Vá buscar o meu sobretudo.

Dali a pouco, estava atravessando a noite ao volante do seu carro, com o vento frio cortando-lhe as faces. Aquilo era muito melhor do que Tânger; melhor do que as brisas quentes e os céus ensolarados eram aquelas nuvens fugitivas, que deixavam entrever a lua. Havia um cheiro de neve no ar: um floco caiu no pára-brisa e, a Sul de Horsham, nevava para valer. As sebes estavam salpicadas de branco e a estrada, iluminada pelos faróis do carro, começava a desaparecer sob um tapete de flocos. Ao ver tudo aquilo, Jim sentiu uma emoção nova. Podia fazer muito frio, cair muita neve ou muita chuva, mas o campo continuava sendo inigualável. Havia algo de errado com as pessoas que preferiam viver o ano todo em Londres, principalmente no inverno. Entre as atrações do campo ele não incluía Joan, mas, se tivesse pensado no campo sem ela, teria achado muito menos graça.

Cleaver recebeu-o com a dose certa de cerimônia que Jim apreciava e apressou-se a lhe tirar o sobretudo molhado.

— O jantar está pronto. Quer que o sirva?

— Por favor, Cleaver — disse Jim. — Tudo em ordem por aqui?

— Tudo. Uma meda de feno pegou fogo na Fazenda Sunning...

— Não diga! — falou Jim. — E isso foi tudo o que aconteceu desde que fui embora?

— Acho que sim — disse Cleaver, gravemente. — A gata teve quatro gatinhos e o preço do carvão subiu, mas, afora isso, muito pouca coisa aconteceu. O campo é muito sem graça.

— Você é dos que acham isso? — disse Jim alegremente, esfregando as mãos diante da lareira. — Pois vá tirando isso da sua cabeça! Descobri esta noite, Cleaver, que o campo é o único lugar onde se pode viver. Quero um bom fogo no meu quarto e acenda todas as luzes do escritório, levante as persianas e abra as cortinas.

Como de costume, antes de se deitar, Joan olhou pela janela do seu quarto e viu a iluminação.

— Ah, então você voltou? — disse em voz baixa e mandou um beijo na direção das luzes.

— O que me preocupa — disse Lorde Creith, ao café — ó o futuro desta desgraçada propriedade.

— Por que, papai? — perguntou ela.

— O que acontecerá, se esse canalha for preso, julgado e enforcado, como é muito provável? Quem vai herdar a propriedade?

Ela não tinha pensado nisso.

— A irmã dele, talvez — disse, após pensar um momento.

— Exatamente — falou Lorde Creith — e nós ficaremos tão mal quando estávamos! Não tenho opção nenhuma, Joan, absolutamente nenhuma!

— O senhor vendeu mesmo a propriedade?

— N-não — disse o conde. — O que eu dei a Hamon foi uma espécie de hipoteca.

— Que espécie de hipoteca? — perguntou ela, sorrindo.

— Bem, ele me deu uma quantia que é humanamente impossível eu poder devolver, de modo que a execução se torna, mais cedo ou mais tarde, inevitável, e, em troca, eu recebi o usufruto da propriedade.

Mencionou uma soma que a fez ficar sem fôlego.

— Ele lhe pagou todo esse dinheiro? — perguntou ela atônita, — E o que é que você fez com ele?

Lorde Creith tratou de mudar de assunto.

— Ouvi dizer que Jim Morlake voltou — disse ele. — Por que razão não veio mais cedo, não entendo. Realmente, os rapazes mudaram muito, desde que eu era jovem. Não que Morlake seja uma criança. Deve ter uns 50 anos.

— Cinqüenta! — exclamou ela. — Deve ter uns 30 e poucos, se muito.

— Há muito pouca diferença entre ter 30 ou 50 anos, como você descobrirá quando tiver a minha idade — retrucou o conde. — Mandei-lhe um bilhete convidando-o a tomar o café da manhã conosco, mas acho que ele ainda não deve ter-se levantado.

— Ele levanta-se às 6h, todas as manhãs, papai — corrigiu ela, severamente. — Horas antes de você sequer sonhar com acordar.

— Eu sonho — murmurou ele —, mas não acordo. Como é que você sabe?

— Ele me contou uma porção de coisas a seu respeito, quando estávamos em Marrocos — disse ela e, nesse exato momento, Jim Morlake entrou.

Todos os seus temores tinham-lhe voltado e a atitude dela não contribuiu em nada para alijá-los. Joan parecia muito pouco interessada na sua narrativa do que tinha feito desde que chegara a Londres, narrativa essa provocada pela pergunta de Lorde Creith:

— Mas por que diabo você não veio antes? Joan...

— Por favor, não me inclua — atalhou Joan. — O Sr. Morlake não está interessado no que eu penso ou deixo de pensar.

— Ao contrário — apressou-se a dizer Jim. — Estou até muito interessado, mas tive muito trabalho.

— Espero que tenha podido trabalhar à vontade — disse Joan. — E agora vou até a granja. Não venha comigo — acrescentou ela, vendo-o fazer menção de se levantar — porque vou estar muito ocupada nas próximas duas horas.

— Fica para almoçar, Morlake?

— Que idéia absurda, papai — contrapôs Joan. — Até parece que o Sr. Morlake veio de Londres para passar só um dia aqui! Estamos transtornando toda a sua rotina doméstica e o admirável Cleaver jamais lhe perdoará por isso.

Depois que Joan saiu, Lorde Creith ficou olhando com ar chateado para o visitante.

— Quer dizer que você não vai almoçar aqui? — perguntou. — Mas decerto vai ficar para a caçada...

— Acho que não. — Jim estava aborrecido, embora se esforçasse por não o mostrar. — O campo não me atrai. Vim só para pôr a casa em ordem. Desde que voltei de Marrocos, só vim uma vez à Quinta Wold. Embarco para a América na semana que vem — acrescentou.

— É um belo país — disse o conde, esquecendo-se de que devia mostrar tristeza ou surpresa.

Jim voltou para casa sentindo-se um verdadeiro idiota e irritado consigo mesmo por ter parecido tão infantil.

Quando Joan entrou para almoçar, ele já se tinha ido.

— Onde está Jim Morlake? — perguntou ela.

— Foi para casa, para onde você o mandou — respondeu Lorde Creith, desdobrando cuidadosamente um guardanapo.

— Mas eu pensei que ele fosse ficar para o almoço.

Lorde Creith ergueu os olhos ao céu, ao ouvir tão chocante incoerência.

— Você devia saber muito bem que ele não ia ficar para almoçar, Joan! — disse, com voz severa. — Como é que o pobre homem ia ficar para almoçar se você o mandou para casa? Amanhã vou a Londres, ao bota-fora dele.

— Para onde é que ele vai? — perguntou ela, boquiaberta.

— Para a América — disse o conde. — Para a América do Sul, provavelmente. E — acrescentou — vai ficar uns 10 anos por lá.

— Ele lhe disse isso? — perguntou ela, olhando fixo para o pai.

— Não especificou os anos que tenciona ficar — retrucou ele, prudentemente — mas, pelo seu modo de ver as coisas, deduzi que ele acha Creith muito monótono e espera que uns bons duelos com uma sucuri, às margens do horrível Amazonas, tragam um pouco de animação à sua vida. De qualquer maneira, ele vai embora. Não que eu goste de ir ao bota-fora dele. Detesto ser incomodado.

— Mas, falando sério, papai, ele vai deixar Creith?

O conde tornou a erguer os olhos e suspirou.

— Já lhe disse duas vezes que ele vai para a América. É a pura verdade. — Puxou de uma cadeira e sentou-se.

— Não quero comer, obrigado, Stephens.

— Você não vai comer? Aposto como andou bebendo leite — acusou Sua Excelência. — Não há como o leite para tirar o apetite. E você vai acabar gorda — acrescentou.

— Não estive bebendo leite. Acontece que não tenho fome.

— Então, é melhor consultar o médico.

Joan apoiou a cabeça nas mãos e os dentes fincaram-se no lábio inferior. O almoço prometia decorrer em silêncio, até que ela disse:

— Não acredito que ele vá!

— Quem?

— De quem é que nós estávamos falando?

— Há mais de um quarto de hora que não falamos — retrucou o conde. — Você é a mulher menos sociável com quem já almocei. Geralmente, as pessoas fazem o possível por me divertir. E, acredite, eu pago para me divertir. Ele vai embora, sim!

Joan ergueu as sobrancelhas, fingindo indiferença.

— Não acredito — disse. — Estou morta de fome e não há nada para comer. Detesto carneiro!

Lorde Creith suspirou pacientemente.

— Vá almoçar com ele, menina, pelo amor de Deus! Diga-lhe, da minha parte, que a cada dia que passa você está ficando mais insuportável. Será que você ainda vai acabar solteirona? Tivemos uma tia, na nossa família, a tia Jemina, acho que você se lembra, que acabou assim. Criava coelhos, se bem me recordo...

Mas Joan não estava com vontade de ouvir falar na tia Jemina e subiu para o seu quarto.

O conde estava no seu escritório quando a viu atravessar os prados, rumo à Quinta Wold, e sacudiu a cabeça. Joan era capaz de acabar com a paciência de um santo...

 

— Obrigado, Cleaver — disse Jim. — Acho que não vou querer almoçar.

— Preparei uma galinhola — acudiu Cleaver. — Ontem à noite, o senhor me disse que gostaria de comer uma galinhola.

Jim estremeceu.

— Leve-a daqui, parece quase humana! Por que é que servem galinholas com cabeça? É completamente descabido.

— Quer que eu lhe prepare uma costeleta?

— Não, obrigado. Traga-me um copo d'água e um pouco de queijo — não, acho que não vou querer queijo. Não quero nada — disse e, levantando-se, remexeu furiosamente as brasas.

— Jane Smith — disse uma voz vinda da porta. — Já me anunciei.

Tirou o casaco e entregou-o a Cleaver.

— Já almoçou?

— Não. Não estou com fome.

Que é que você tem para o almoço? — perguntou ela.

— Uma galinhola — respondeu Jim, desanimado. — Não chega para os dois.

— Nesse caso, você pode comer qualquer outra coisa — disse Joan e tocou a campainha. — Jim, é verdade que você vai para a América?

— Não sei. Quero é sair deste lugar infernal,— disse ele, sombrio. — O campo me dá nos nervos. Toda a manhã nevando e o vento uivando em volta da casa.

— Você não vai a lugar nenhum. Decidi que você vai ficar em Creith — disse Joan.

Devorava pão com manteiga como se nunca tivesse comido.

— Na sua casa não lhe dão de comer? — perguntou Jim.

— Que vamos fazer a nosso respeito? — retrucou a moça.

— Que é que você quer dizer com isso? — perguntou ele, tremendo intimamente.

— É, que vamos fazer a respeito do nosso casamento? Consultei um advogado e não há a menor dúvida de que estamos casados. Ao mesmo tempo, tampouco há a menor dúvida de que não estamos casados. Como você vê, consultei mais de um advogado.

— É mesmo?

Ela fez que sim.

— Bem, não consultei advogados, mas escrevi a dois jornais que dão conselhos legais de graça, e um diz uma coisa e outro, outra. Que é que nós vamos fazer?

— Que é que você quer fazer? — retorquiu ele.

— Quero o divórcio — disse ela, calmamente — mas receio a publicidade. Vou basear o meu pedido na incompatibilidade de gênios.

— Isso só não serve, aqui na Inglaterra.

— Veremos.

— Há outra maneira de resolver o assunto, Sra. Morlake — disse ele.

— Não me chame Sra. Morlake. Em último caso, chame-me de Lady Joan Morlake. Jim, você vai mesmo para a América?

— Tenho pensado seriamente nisso — disse ele. — Mas, voltando ao assunto, Joan, que vamos fazer? Meu advogado diz que não estamos casados porque não foi concedida a licença necessária e o simples fato de um ministro ter realizado a cerimônia não a torna legal.

Ele olhou para ela e viu a consternação no seu rosto.

— Isso que você me diz é verdade? — perguntou Joan.

— Por quê? Você ficou triste?

— Não exatamente triste. Aborrecida, porque vamos ter de nos casar de novo. E isso, Jim, vai levar muito tempo...

Entrando naquele exato momento, Cleaver deu meia-volta e saiu mais que depressa, pois até a galinhola parecia piscar o olho.


 

O regresso

Nevara durante toda a noite. Nas ruas a neve chegava aos tornozelos, mas o homem que avançava teimosamente pelas ruelas da Zona Leste de Londres mal reparava no tempo. Era demasiado cedo para se encontrar um táxi. O vapor entrara com a maré e estava ancorado perto da Tower Bridge. Ele tivera alguma dificuldade em convencer o homem das docas a deixá-lo passar, mas, como não tinha bagagem, conseguira persuadi-lo, e agora dirigia-se para o centro da cidade.

Passou por Billingsgate, cheia de gente mesmo àquela hora da manhã e, subindo Monument Hill, chegou à prefeitura, onde encontrou um táxi que o deixou na extremidade de Grosvenor Place. Não se via ninguém. A neve recomeçara e um vento gélido fizera com que o guarda procurasse refúgio. As venezianas estavam corridas e veio-lhe à idéia que a casa podia estar vazia. Tirando uma chave do bolso, abriu a porta da frente.

Tudo estava como ele deixara. Vendera a casa, mas o novo proprietário tinha-lhe dito que só se mudaria dali a um ano. Deu largas a sua satisfação. Olhou para a sala de visitas e viu que nada fora tocado. Sobre uma das mesas havia uma bolsa. Isso queria dizer que Lydia estava lá, que não voltara para Paris, no que fizera bem. Ao subir a escada, cruzou com uma empregada, que olhou para ele como se estivesse vendo um fantasma. Felizmente, ele a conhecia.

— Não precisa dizer a ninguém que eu voltei — disse, em tom rude, e subiu para o seu quarto.

— Tinha um ar muito desolador, com todos os móveis cobertos de lençóis. O soalho estava sem tapetes e a cama, apenas com o colchão. Tirou o sobretudo e olhou-se no espelho com um sorriso estranho, enquanto ouvia passos no corredor. De repente, a porta se abriu e Lydia entrou, ainda de robe.

— Ralph! — exclamou ela. — Millie disse-me que o tinha visto.

— E disse a verdade — retrucou ele, olhando para ela de modo esquisito. — Quer dizer que você está aqui?

— Estou, Ralph. Vim direto para cá.

— Depois de contar à polícia tudo o que podia a meu respeito, não?

— Eu não contei nada à polícia — replicou ela.

Ele resmungou que não acreditava.

— Ralph, corre por aí uma história sobre Sadi Hafiz. Dizem que ele foi assassinado em Marrocos, e que você — que você estava em casa.

— E daí? — perguntou ele.

— É verdade?

— Não sabia que ele tinha morrido — disse ele, evitando os olhos dela. — Além disso, o que aconteceu em Marrocos nada tem a ver conosco, aqui. Não me podem extraditar por causa disso. E quem poderá provar que fui eu? Sadi Hafiz teve o fim que merecia — disse. — Matei-o porque ele insultou você.

Lydia sabia que o irmão não falava a verdade, mas não discutiu com ele.

— A polícia esteve aqui — disse ela.

— Claro que esteve! E você tem andado com o velho Welling! Ouvi comentários, em Tânger. Quanto à polícia, vou falar com Welling ainda esta manhã

— Não vá, Ralph! — pediu ela, segurando-lhe o braço. Mas ele soltou-se.

— Estou-lhe dizendo que vou procurar Welling ainda esta manhã. Pensei muito, no barco, e estou farto de viver como vim animal acossado. Se tiverem algo contra mim, que apresentem as provas. Se quiserem me julgar, que me julguem! Me veja alguma coisa para comer.

Ela saiu e logo voltou, dizendo que tinha levado uma bandeja para o escritório.

— Suponho que a polícia tenha revistado a casa, não?

— Não revistaram nada, Ralph — respondeu ela. — Só vieram até aqui. Não tinham ordem para revistar a casa...

— Ah, não? — disse ele, com um brilho nos olhos. — Isso quer dizer que não estão certos — acrescentou. — Vou visitar o velho Welling e posso lhe garantir que ele vai ficar muito surpreso. Depois, vou para Creith, para a minha propriedade — disse, enfático.

— Ralph, é uma loucura você ir à polícia — disse ela, com voz trêmula. — Não seria melhor ir para o exterior?

— Estou farto de viagens. Estou-lhe dizendo que vou surpreender o velho Welling.

Welling não era homem de levar sustos, mas, quando um policial entrou no seu gabinete, essa mesma manhã, e lhe colocou um cartão de visita em cima da mesa, ele quase caiu da cadeira.

— O homem está aí? — perguntou, sem poder acreditar.

— Está, inspetor. Na sala de espera.

— Em pessoa?

— Em pessoa, inspetor.

— Diga-lhe que entre — mas mesmo assim não esperava ver Ralph Hamon.

Mas foi o próprio quem entrou no seu gabinete, sorrindo diante da cara de espanto do policial.

— Bom dia, Welling — cumprimentou, bem-humorado. — Ouvi dizer que estava à minha procura?

— Estava, sim — disse Welling, recuperando-se do choque.

— Muito bem, aqui estou — falou Hamon, puxando de uma cadeira e sentando-se.

Parecia 10 anos mais velho do que da última vez que Welling o vira e os pequenos caracóis que lhe cobriam o alto da cabeça tinham desaparecido por completo, deixando-o calvo.

— Quero que me faça um relatório do que fez — ou, pelo menos, dos seus movimentos — em Marrocos — começou Welling, cauteloso. Mas foi logo interrompido pela risada do outro.

— Você não pode me perguntar nada, Welling, nem fazer qualquer inquérito, exceto com uma autorização da polícia do distrito em que Sadi Hafiz morreu. Como vê, não estou escondendo o fato de que sei que você está falando do assassinato de Sadi Hafiz.

O detetive olhou para ele por sob as sobrancelhas espessas.

— E sobre o crime cometido no bangalô que deita para o Vale do Diabo? — perguntou.

O rosto de Ralph Hamon permaneceu impassível.

— Isso é novidade para mim — disse ele — embora o nome da localidade não me seja estranho. Tive uma pequena casa nessa região.

— E é sobre ela que eu estou falando — disse Welling. — Um homem foi morto nela, despido e metido numa farda de marinheiro, e depois abandonado como morto na estrada de Portsmouth. Como você provavelmente sabe, ele foi encontrado por James Lexington Morlake, que o levou para o Cottage Hospital, onde ele morreu. Examinei a casa e encontrei manchas de sangue na parede da cozinha.

Ralph Hamon sorriu lentamente.

— Descobriu também que fui eu quem as fez? — perguntou, secamente. — A verdade, Capitão Welling, é que não estou preparado para discutir detalhadamente esses crimes. Só quero lhe perguntar o seguinte. — Levantou-se e, avançando para junto da mesa, olhou bem no rosto de Welling.

— Tem alguma acusação a fazer contra mim? Porque, se tiver, estou aqui para responder.

Welling calou-se. O inimigo levara a guerra para o seu próprio campo e marcara um tento a seu favor. Estava praticamente exigindo um inquérito e um julgamento. Não havia mandado de captura contra ele, nem mesmo uma acusação formal. Até mesmo a Scotland Yard hesitaria em prender Ralph Hamon com base apenas nas informações que ele possuía; e Welling sabia que o outro tinha razão, ao dizer que não se podia acusá-lo do assassinato de Sadi Hafiz, a menos que o Governo marroquino o pedisse — o que não acontecera.

— A maioria das provas são as que você mesmo traz.—disse ele. — Nem sequer lhe peço que me dê a sua carteira e me mostre o que ela contém.

Enquanto falava, observava o homem. Se Hamon tivesse mostrado o menor embaraço, se tivesse mudado o rumo da conversa, se protestasse contra a sugestão, ele o teria detido na hora e o revistado, com base em qualquer acusação que lhe viesse à cabeça. Mas a resposta de Ralph Hamon foi característica. Enfiou a mão no bolso e atirou a carteira em cima da mesa.

— Veja com os seus próprios olhos — disse — e, se quiser me revistar — abriu os braços — fique à vontade.

Welling abriu a carteira e examinou os papéis nela contidos com olho profissional. Depois, devolveu-a ao seu dono. — Obrigado — disse. — Não vou prendê-lo, Sr. Hamon.

Hamon pegou no chapéu, enfiou as luvas e encaminhou-se calmamente para a porta.

— Se me quiser, sabe onde pode encontrar-me — ou na minha casa de Grosvenor Place, ou na minha residência de campo, a Mansão Creith.

Welling sorriu.

— Nunca encontro ninguém senão no lugar onde o coloco — retrucou.

Ralph Hamon saiu do prédio para a margem do Tâmisa, onde um táxi esperava por ele. Ao atravessar o parque, olhou para trás, perguntando-se em qual dos táxis que o seguiam estaria o detetive que Welling pusera no seu rastro.

Encontrou Lydia à espera, muito nervosa.

— Que foi que eles disseram, Ralph? — perguntou ela, mal ele pôs o pé em casa.

— Que é que podiam dizer? — retrucou ele, sorrindo com desdém.

Dirigiu-se à escrivaninha dela, puxou de um talão de cheques é sentou-se.

— Já que você está tão aflita, acho melhor partir para Paris ainda esta tarde — disse, dando-lhe um cheque.

Lydia olhou para o cheque e abriu a boca.

— Você tem todo esse dinheiro no banco? — perguntou e ele se voltou para olhar para ela.

— Claro que tenho — respondeu.

Voltou-se de novo para a mesa, escreveu outro cheque e enfiou-o num envelope e, com um cartão que dizia: — "Com os Cumprimentos de Ralph Hamon". Endereçou o envelope e tocou a campainha.

— Não temos mais mordomo, Ralph — disse Lydia, com nervosismo. — Quer que eu leve a carta ao correio? Vai ficar em casa? — perguntou.


— Não — respondeu ele, secamente. — Vou ter com a minha esposa.

Lydia levou a mão à boca.

— Com a sua esposa, Ralph? — repetiu ela. — Não sabia que você tinha casado.

— Estou-me referindo a Joan — disse ele gravemente, e subiu para o seu quarto.

Lydia ficou sentada, torcendo nas mãos um lenço. Passado algum tempo, ouviu-o descer e a porta da rua se fechar. Foi até a janela e olhou para fora a tempo de vê-lo entrar no carro e sair. Tinha mudado de roupa e usava o terno que trazia ao chegar, pela manhã. Antes que o carro virasse a esquina, Lydia já estava correndo para o seu quarto, a fim de se vestir, pois sabia que o momento da crise chegara.

 

Welling estava saindo para almoçar quando ela chegou e encontraram-se literalmente na porta.

— Preciso falar com o senhor, Capitão Welling — disse Lydia. — É muito importante.

— Vamos para o meu gabinete — disse ele, imediatamente. — Você não me parece bem, Lydia.

— Estou transtornada. Não sei o que fazer — disse ela, com voz trêmula.

Já no seu gabinete, Welling deu-lhe um copo d'água e esperou até que ela se refizesse o suficiente para lhe expor o objeto da sua visita.

— É a respeito de Ralph — disse ela. — Ele esteve aqui, hoje de manhã?

O detetive fez que sim, com um sorriso.

— Esteve, sim, e saiu-se muito bem — disse. — Nunca vi blefe mais bem arquitetado. Esteve com ele depois disso?

Ela assentiu.

— Voltou para casa e há anos que não o via tão animado. Perguntou-me se não gostaria de ir para Paris e deu-me um cheque. Veja.

Entregou-lhe o cheque e o detetive não pôde deixar de assobiar, ao ver a importância: 1 milhão de libras esterlinas!

— Que é isso? — perguntou, apontando para o envelope na mão da moça. Estava endereçado a ele. — De parte do seu irmão? — perguntou, franzindo a testa.

Ela fez que sim e, rasgando o envelope, dele retirou um segundo cheque, também de 1 milhão de libras. Welling mordeu o lábio.

— Parece-me um péssimo sinal — disse. — Onde é que ele está agora?

— Foi visitar Joan. Chamou-a de sua esposa — disse a moça.

Chorava baixinho e ele passou-lhe a mão em volta do ombro.

— As coisas não vão ser fáceis para você, Lydia — disse ele — mas vou ajudá-la naquilo que eu puder. Mude-se para um hotel, esta noite, mas não diga a ninguém onde está hospedada. Venha almoçar comigo.

Ela disse que não tinha fome, mas ele insistiu e não a deixou enquanto ela não levou a mala para o hall do Grand Central e a entregou aos cuidados do detetive do hotel.

Fora até lá de táxi, mas um grande carro da polícia esperava por ele, com três homens do quartel-general.

Jim estava praticando golfe no gramado, quando o carro chegou.

— Estranha ocupação — disse Welling, pois o gramado estava coberto de neve.

— Mergulhando-se a bola de golfe em tinta... — começou Jim, mas parou, ao avistar os três homens semicongelados dentro do carro. — Entre, Welling — disse. — Qual o problema?

— Vai haver problemas para alguém, mas não tenho bem a certeza de quem será — respondeu Welling.

Contou tudo o que sabia, inclusive a história dos cheques, e Jim ouviu em silêncio.

— Vou pôr dois homens na Mansão Creith — disse o detetive. — Acho melhor você ficar com o outro aqui.

Jim abanou a cabeça.

— Ponha os três na mansão — disse ele. — Eu sei cuidar de mim. Ele já saiu de Londres?

Welling fez que sim.

— Tinha um carro numa garagem, perto de casa. Infelizmente, não consegui descobrir a garagem senão quando já era demasiado tarde. Ele tirou o carro esta tarde e, desde então, não mais foi visto.

Nevava forte quando o carro da polícia atravessou os portões da Mansão Creith. Lorde Creith viu o carro chegar, pela janela da sala de jantar, e desceu para receber a polícia. Ao dar com Welling, sua expressão mudou.

— Já sei que vai haver barulho — disse, irritado.

Os policiais deram graças por entrar no calor da biblioteca, pois lá fora o frio era tanto, que a neve congelava mal tocava o chão.

— De quem estão atrás? — perguntou Creith, ansioso. — Não é de Hamon?

Welling abanou a cabeça afirmativamente.

— Dele mesmo. Está na Inglaterra e, provavelmente, a menos de 10 km de Creith — disse e o conde ficou preocupado.

— Onde está Joan? — perguntou Welling.

— Saiu — disse Creith. — A Sra. Cornford convidou-a para almoçar no bangalô.

Welling sacudiu a cabeça em desaprovação.

— De hoje em diante, até que o homem esteja trancafiado, ela não pode sair sozinha — declarou. — Alguém precisa trazê-la de volta.

Mas Jim já tomara essa iniciativa. Avançou com a neve até os joelhos e, vendo que o atalho que levava ao bangalô acabaria sendo mais demorado, voltou à estrada e seguiu pelo caminho rente ao muro. Não tardou a avistar as marcas das botas de Joan e sentiu-se feliz por ver que ela estava perto.

De repente, sem motivo aparente, as pegadas viraram para a direita, penetrando na neve mais funda, que rodeava uma moita de arbustos. Com uma exclamação de surpresa, Jim resolveu segui-las. Afundavam cada vez mais na neve, até que mudaram novamente de direção e sumiram.

Olhou para dentro dos arbustos, mas não viu nem sinal de Joan. Abrindo caminho por entre os galhos cobertos de neve, deparou com um espaço comparativamente vazio, onde ainda se via grama. Mas nada de Joan. Ela devia ter-se desviado e ele afastou-se novamente dos arbustos, reencontrando as pegadas dela, na direção do atalho.

Parou, a testa franzida, tentando entender a razão dos movimentos excêntricos de Joan. Foi então que viu outras pegadas, claramente recentes, pois a neve ainda não as apagara. Hamon, exclamou Jim! A moça devia estar andando pela trilha e fugido, de repente, rumo ao seu destino.

Voltou atrás, desta vez seguindo as pegadas de Hamon. Havia pegadas na direção da mansão e outras em sentido contrário. Jim não tardou a descobrir o lugar onde o homem dera meia-volta. Correndo tanto quanto a neve permitia, rumou para a casinha do jardineiro, sempre com os olhos nas pegadas. No fim do caminho, os dois grupos de pegadas se separavam — as de Joan, na direção do bangalô. Jim subiu correndo o caminho e uma só olhadela para a casa lhe indicou que algo de incomum acontecera. Todas as janelas tinham as portas de madeira trancadas. Jim bateu à porta e, não recebendo resposta, voltou a bater, com mais força.

— Está aí, Sra. Cornford? — perguntou e, parecendo-lhe que tinha ouvido um estalo lá dentro, atirou-se contra a porta, que estremeceu sob o seu peso.

Uma voz aflita gritou, de dentro:

— Se tentar abrir a porta, atiro! Era a voz de Joan!

— Sou eu, Joan! — disse Jim. — Olhe pelo buraco da fechadura — sou eu, Jim!

Recuou meia dúzia de passos, para que ela pudesse ver bem e, ao fazer isso, sentiu o chapéu voar-lhe da cabeça. Ao mesmo tempo, ouviu uma explosão e virou-se para enfrentar o inimigo, mas não viu ninguém.

Nesse momento, a porta do bangalô se abriu.

— Cuidado! gritou Jim. — Pelo amor de Deus, não saia!

Pum!

A bala acertou na parede do bangalô e, correndo, Jim conseguiu entrar e fechar a porta.

— Oh, estou tão feliz! — soluçou a moça. — Oh, Jim, estou com tanto medo! Vi-o rondando por aqui — prosseguiu ela, depois que ele a acalmara.

— E você se escondeu nos arbustos — segui as suas pegadas. Ele não a viu?

Ela abanou a cabeça.

— Só quando eu já estava perto do bangalô e aí ele correu atrás de mim. A Sra. Cornford tinha-o visto e fechou as janelas. É mesmo o Hamon, não?

Jim fez que sim.

As portas de madeira abriam-se por dentro e Jim levantou cuidadosamente a parte de baixo de uma delas e olhou para fora. Imediatamente, uma bala estilhaçou a vidraça, abriu um grande buraco na porta de madeira e, com o choque adormeceu-lhe temporariamente a mão.

— Acho melhor esperarmos — disse ele. — Welling deve ter ouvido os tiros. Nossa única esperança é que o nosso amigo Hamon deduza da minha apressada retirada, que eu estou desarmado e resolva se aproximar.

— Você está mesmo desarmado? — perguntou ela, aflita. Jim mostrou-lhe uma pequena arma.

— Só isto — disse — o que é a mesma coisa que nada, a não ser de muito perto. Na verdade — e sorriu — é a arma com a qual assustei os vigias noturnos e os pobres funcionários dos bancos, durante os últimos 10 anos.

Jim calculara bem o efeito da sua fuga precipitada sobre o louco, que vigiava a casa atrás de uma pilha de lenha. Hamon sabia que Jim Morlake não entraria na casa se tivesse uma arma à mão e também sabia que o tiroteio não demoraria a atrair a atenção de alguém. Um grupo de crianças curiosas e timoratas já se tinha reunido no meio da rua, a uma distância respeitável e, se ele quisesse levar a cabo a sua grande vingança e o plano que durante três meses lhe ocupara a mente, tinha de agir bem depressa.

Saiu do seu esconderijo e atravessou correndo o pequeno jardim do bangalô; conforme esperava, não dispararam da casa. Olhou em volta, à procura de algo que pudesse usar para arrombar a porta. Seus olhos fixaram-se no monte de lenha e, voltando atrás, apanhou um galho bem pesado e jogou-o contra a porta. Todo o bangalô estremeceu sob o impacto, e Jim, que olhava por uma fenda, percebeu que a fechadura não agüentaria um novo golpe.

— Vá para trás — murmurou ele para a moça e entrou num quarto que dava para a entrada.

Hamon fez nova tentativa e a fechadura partiu-se com estrondo, escancarando a porta. Hamon entrou, arma na mão. Viu a porta do quarto aberta e gritou:

— Saia daí, Morlake! Saia, miserável!

Atirou contra a padieira e a bala ricocheteou e passou rente ao rosto de Jim. Mas este já estava à espera do segundo tiro e, quando Hamon disparou, ele pulou para fora, arma em punho.

Antes que Hamon pudesse atirar de novo, Jim apertou o gatilho. Não se ouviu qualquer explosão. Apenas, do cano do "revólver" preto, esguichou, com força terrível, um vapor asfixiante, que atingiu o quase-assassino no rosto, fazendo-o cair ao chão como se estivesse sufocando.

Os olhos de Jim choravam. Ele próprio tinha dificuldade em respirar e correu para junto de Joan, que levara o lenço ao nariz.

— Abra as janelas — ordenou, depressa, e voltou para perto do homem caldo, na hora em que Welling e os seus homens subiam pelo atalho.

— Nada agradável, hem? — perguntou Jim, olhando para o seu revólver com um sorriso. — Nunca foi carregado porque não dispara balas. Só um jato de puro vapor de amônia, a uma distância considerável.

Foi preciso pôr Hamon numa camisa-de-força para poder levá-lo até a cadeia mais próxima e não voltaram a ver Welling senão no fim da tarde, quando ele foi à mansão dos Creiths, exausto, mas com um brilho de triunfo nos olhos.

— Bem — disse ele, falando para todos em geral, mas dirigindo-se a Jim em particular — descobri o mistério, que afinal de contas não é tanto mistério assim. Por que motivo não acertei com a solução, tão logo soube que você estava assaltando bancos e caixas-fortes a fim de encontrar um documento que incriminasse Ralph Hamon, é que eu não entendo. Talvez esteja ficando velho e gagá.

— Eu também, então — disse Joan — pois confesso que não entendo nada.

Lorde Creith estendeu as mãos para a lareira, esfregou-as uma contra a outra e pôs-se a ruminar profundamente.

— Eu também desisto. O nosso amigo americano que explique. Mas quem sabe você tem o documento, Welling?

O Capitão Welling sorriu.

— Está aqui — disse, mostrando a carteira de Ralph Hamon. — Eu não acreditava que Hamon carregasse com ele um documento escrito pela sua vítima, capaz de levá-lo à forca se fosse apresentado perante um tribunal.

— Então, por que diabos ele não o queimou? — perguntou Lorde Creith, irritado, e, em vez de responder, Welling mostrou o documento.

Lorde Creith leu o que estava escrito e exclamou:

— Mas ele podia tê-lo queimado...

— Veja só o verso — disse Welling e Creith obedeceu.

Ficou um momento olhando para as letras gravadas no verso do documento.

— Deus do céu! — disse ele.

 

A acusação estava escrita no verso de uma promissória no valor de 100 mil libras.

 

— E é essa a razão — disse Jim — pela qual Ralph Hamon não tinha coragem de destruir essa prova de sua culpa.

— Que vão fazer com a promissória? — perguntou Joan.

Foi Welling quem respondeu:

— Depois do julgamento, o dinheiro será entregue à Sra. Cornford, a quem pertence por direito.

— A propósito, Jim, imagino que você e Lady Joan não vão querer passar a lua-de-mel em Marrocos...

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades