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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM DE TERNO PRETO / Stephen King
O HOMEM DE TERNO PRETO / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOMEM DE TERNO PRETO

 

SOU AGORA UM homem muito velho, e o que conto a seguir aconteceu quando eu tinha apenas nove anos de idade. Foi no verão de 1914, um ano depois de meu irmão Dan morrer no oeste e três anos antes de a América entrar na Primeira Guerra Mundial. Jamais contei a alguém o que ocorreu na bifurcação do rio naquele dia, e jamais contarei... não com a boca, pelo menos. Mas resolvi escrever a história neste livro que deixarei na mesinha junto à minha cama. Atualmente não consigo escrever por muito tempo, minhas mãos tremem demais e quase não tenho força. Mas acho que não será tão longo.

Um dia, alguém pode encontrar o que escrevi. Acho isso provável, já que é da natureza humana ler um livro com o título de DIÁRIO, depois da morte do dono. Então, sim — minhas palavras provavelmente serão lidas. Uma questão mais interessante é se alguém acreditará nelas ou não. Possivelmente não, mas isso não importa. Não estou interessado em que acreditem em mim, e sim em liberdade. Descobri que escrever pode dar liberdade. Por 20 anos, escrevi uma coluna chamada “Há muito tempo e bem longe” para o Call de Castle Rock, e sei que às vezes funciona deste modo — o que se escreve às vezes nos abandona para sempre, como velhas fotos deixadas ao sol brilhante que vão desbotando até o branco total.

Rezo por esse tipo de libertação.

Um homem com mais de 90 anos deveria estar bem além dos terrores da infância. Entretanto, enquanto as enfermidades vão subindo lentamente por mim como ondas lambendo cada vez mais de perto um castelo constando despreocupadamente na areia, aquele rosto terrível se torna cada vez mais nítido em minha mente. Fulgura como uma estrela sombria nas constelações da minha infância. O que posso ter feito ontem, a quem vi aqui no quarto deste abrigo para idosos, o que terei dito a eles e eles a mim... essas coisas desapareceram, mas o rosto do homem de terno preto se torna cada vez mais nítido, cada vez mais próximo, e lembro de cada uma de suas palavras. Não quero pensar nele, mas não posso evitá-lo, e às vezes, à noite, meu velho coração bate com tanta força e tão rápido que parece prestes a se despedaçar. Portanto, desenrosco a tampa da caneta-tinteiro e forço minha velha mão trêmula a escrever esta história sem sentido no diário que uma de minhas bisnetas — não consigo lembrar seu nome com certeza, pelo menos não neste instante, mas começa com S — me deu no último Natal. Ainda não escrevi nada nele, mas vou fazê-lo agora. Vou escrever a história de como conheci o homem de terno preto à margem do rio Castle numa tarde do verão de 1914.

 

 

A cidade de Motton era um mundo diferente naqueles dias — mais diferente do que posso explicar. Era um mundo sem aviões zumbindo lá no alto, um mundo quase sem carros e caminhões, onde os céus não eram cortados em pistas e fatias por linhas de energia acima de nossas cabeças.

Não havia nem uma estrada pavimentada na cidade inteira, e o distrito comercial consistia do Armazém Geral de Corson, Provisões para Cavalos & Ferragens de Thut, a Igreja Metodista em Chrisfs Corner, a escola, a prefeitura e o Harry’s Restaurant a uns 800 metros dali, chamado por mamãe, com infalível desdém, de “a casa da bebida”.

A diferença principal, entretanto, estava no modo como as pessoas viviam — a que ponto eram isoladas. Não sei se os nascidos na segunda metade do século XX podem acreditar nisso, embora talvez digam que sim por uma questão de educação para com gente velha como eu. Um dos motivos daquele isolamento era a ausência de telefones no oeste do Maine. O primeiro só seria instalado dali a cinco anos e, quando nossa casa recebeu um aparelho, eu já tinha 19 anos e estava prestes a entrar para a Universidade do Maine em Orono.

Mas isso é apenas a ponta do iceberg. O médico mais próximo ficava em Casco, e apenas uma dúzia de casas povoava o que se podia chamar de cidade. Não havia vizinhança (nem sei se conhecíamos a palavra, embora tivéssemos um verbo — vizinhar — que descrevia as funções da igreja e os bailes em granjas) e os campos abertos fossem mais a exceção do que a regra. Fora da cidade, as casas eram propriedades rurais isoladas umas das outras, e de dezembro a meados de março nos amontoávamos nos bolsões de calor do fogão a que chamávamos famílias, ouvindo o vento na chaminé e esperando que ninguém ficasse doente, quebrasse uma perna ou tivesse uma idéia ruim, como a do lavrador em Castle Rock que esquartejara a mulher e os filhos invernos atrás e dissera ao tribunal que fizera aquilo obrigado pelos fantasmas. Naqueles dias antes da Grande Guerra, a maior parte de Motton era composta de bosques e brejos, locais escuros e extensos cheios de alces americanos, mosquitos, serpentes e segredos. Naqueles dias, havia fantasmas por toda parte.

 

 

O que estou contando aconteceu num sábado. Meu pai me deu uma lista de tarefas para fazer, inclusive algo que teria cabido a Dan, se ainda fosse vivo. Dan era o meu único irmão e morrera depois de ser picado por uma abelha. Já se passara um ano e mamãe ainda não acreditava nisso; ela dizia que fora outra coisa, tinha que ser, que nunca ninguém morrera por picada de abelha. Quando Mama Sweet, a mulher mais idosa do Auxílio das Senhoras Metodistas, tentou contar a ela — no jantar da igreja no inverno anterior — que o mesmo acontecera a seu tio preferido no ano de 1873, mamãe tapou os ouvidos com as mãos, levantou e saiu do subsolo da igreja. Desde então, jamais voltou, e nada que papai dissesse a fez mudar de idéia. Ela afirmou que a igreja era assunto liquidado, e que se tivesse que ver Helen Robichaud (o verdadeiro nome de 34 Mama Sweet) de novo, lhe arrancaria os olhos com um bofetão. Não poderia evitá-lo.

Naquele dia, papai determinou que eu trouxesse lenha para o fogão, capinasse o mato dos feijões e pepinos, retirasse o feno do galpão com o forcado, pegasse duas jarras de água para colocar na despensa gelada e raspasse a tinta velha do telhado do depósito o máximo que pudesse. Depois eu poderia pescar, disse ele, se não me incomodasse em ir sozinho — ele tinha que falar com Bill Eversham sobre algumas vacas. Respondi que não me incomodava e papai sorriu, como se dissesse que aquilo não o surpreendia muito. Ele me dera uma vara de bambu na semana anterior — não porque fosse meu aniversário ou coisa assim, mas porque às vezes gostava de me dar coisas — e eu estava louco para experimentar a vara no rio Castle, de longe o riacho mais recheado de trutas em que já pesquei.

— Mas não entre muito no bosque — disse ele. — Não depois da bifurcação.

— Está bem.

— Prometa.

— Prometo, pai.

— Agora prometa à sua mãe.

Estávamos em pé no alpendre dos fundos; eu me dirigia com as jarras d'água para o pequeno telheiro perto do rio onde refrigerávamos as coisas, quando papai me deteve. Então virou-me para que eu encarasse mamãe, junto à bancada de mármore e ao forte sol da manhã que entrava pela janela dupla sobre a pia. Um cacho do cabelo dela escorregara sobre a testa e tocava-lhe a sobrancelha — está vendo como me lembro de tudo? A luz brilhante transformava o pequeno cacho em filamentos de ouro, e isso me deu vontade de correr para abraçá-la. Naquele instante, eu a vi como uma mulher, eu a vi como papai deveria vê-la. Lembro que usava um vestido caseiro com pequenas rosas estampadas e que amassava pão. Nosso terrier escocês preto, Candy Bill, estava junto dela, alerta, olhando para cima à espera de que algo caísse. Mamãe me encarou.

— Prometo — disse eu.

Ela sorriu. Mas do modo preocupado como sorria desde que papai carregara Dan do campo oeste até em casa. Ele entrara soluçando e de peito nu, pois havia tirado a camisa para cobrir o rosto de Dan, que inchara e mudara de cor. Meu filho!, ele chorava. Ah, olha só o meu filho! Jesus, olha só meu filho! Lembro como se fosse ontem. Foi a única vez em que ouvi papai invocar o nome do Senhor em vão.

— Promete o quê, Gary? — perguntou ela.

— Prometo que não estou indo pra cima da bifurcação.

— Além da bifurcação.

— Além.

Ela me olhou paciente e silenciosa enquanto suas mãos trabalhavam a massa, que tinha agora uma aparência macia e sedosa.

— Prometo que não vou além da bifurcação, mãe.

— Obrigada, Gary. E lembre-se que a gramática serve para a escola e para aqui fora também.

— Certo, mãe.

 

 

Candy Bill seguiu-me enquanto eu cumpria minhas tarefas, e sentou entre meus pés enquanto eu engolia o almoço correndo; olhava-me com a mesma atenção com que olhara mamãe enquanto ela amassava o pão. Mas quando peguei a vara de bambu nova, minha velha e lascada cesta de pesca e saí para o pátio, Candy Bill parou na poeira junto a um velho rolo de ripas usadas como anteparo de neve e ficou observando. Chamei-o, mas ele não me obedeceu. Latiu uma ou duas vezes, como se me dissesse para voltar, mas foi só.

— Então fique — disse eu, fingindo não dar importância. Mas eu dava sim, pelo menos um pouco. Candy Bill sempre ia pescar comigo.

Mamãe veio até a porta e me olhou, a mão esquerda levantada para proteger os olhos. Ainda posso vê-la assim, e é como olhar para a foto de alguém que depois se tornou infeliz, ou morreu de repente.

— Lembre-se do que seu pai disse, Gary!

— Pode deixar, mãe.

Ela deu adeus. Eu respondi. Então virei as costas e fui me afastando.

 

Poderoso e quente, o sol me martelou a nuca nos primeiros 400 metros, mais ou menos. Em seguida, mergulhei no bosque, onde uma dupla sombra caía sobre a estrada, deixando o ar frio e cheirando a pinheiro; podia-se ouvir o vento assobiando por entre o profundo bosque atapetado de agulhas. Caminhei com a vara no ombro como os garotos faziam então, segurando com a outra mão a cesta de pesca como se fosse a valise ou a maleta de amostras de um vendedor. Cerca de uns três quilômetros bosque adentro ao longo da estrada, que na verdade era apenas um sulco duplo com uma faixa relvada na corcova central, comecei a ouvir o cochicho apressado e ansioso do rio Castle. Pensei nas trutas com os dorsos brilhantes salpicados de manchas, os ventres de um branco puro, e meu coração palpitou mais forte.

A corrente fluía sob uma pequena ponte de madeira, e as margens que levavam até a água eram íngremes e cobertas de mato. Fui descendo laboriosamente e com cautela, segurando onde podia e firmando os calcanhares. Parecia que eu deixara o verão para trás e voltara a meados da primavera. O frio erguia-se suavemente da água, assim como um cheiro verde que parecia limo. Quando cheguei à beira d’água, fiquei imóvel durante um tempo, respirando profundamente o cheiro de limo, observando as libélulas circularem e os insetos roçarem o rio. Então, mais distante, vi uma truta saltar em direção a uma borboleta — uma grande e boa truta de riacho, talvez de uns 35 centímetros de comprimento — e lembrei que não viera apenas para apreciar a paisagem.

Caminhei ao longo da margem seguindo a corrente e molhei a linha pela primeira vez, com a ponte ainda sendo vista rio acima. Algo retesou a ponta da vara uma ou duas vezes e comeu a isca, mas era muito matreiro para minhas mãos de nove anos — ou talvez não bastante faminto para ser descuidado — e então prossegui.

Parei em dois ou três outros lugares antes de chegar ao ponto onde o rio Castle se bifurca, rumando a sudoeste para Castle Rock, e a sudeste, para o distrito de Kashwakamak. Num desses locais, peguei a maior truta que já pescara na vida, uma beleza que media 50 centímetros da cabeça à cauda na reguazinha que eu trazia na cesta. Era uma truta-de-riacho monstro, mesmo para aqueles tempos.

Se eu a tivesse aceito como um presente bastante bom para um dia de pescaria e ido embora, não estaria escrevendo estas linhas (que vão se revelando mais extensas do que imaginei), mas não o fiz. Em vez disso, peguei a minha presa e ali mesmo, como papai me ensinara, limpei-a, coloquei-a sobre o mato seco no fundo da cesta e a cobri de mato úmido. Então, continuei a pescar. Com nove anos, eu achava que pegar uma truta-de-riacho de 50 centímetros não era tão fantástico, embora lembre de ter ficado surpreso de a vara não ter quebrado quando eu, sem rede e sem perícia, icei a truta e puxei-a para mim num arco desajeitado, a cauda espadanando.

Dez minutos depois, fui para o local onde o rio se dividia naquela época (ele já desapareceu; onde outrora corria o rio Castle há um conjunto de casas geminadas e também uma escola do distrito, e se há um rio, ele flui na escuridão), em torno de uma enorme rocha cinzenta mais ou menos do tamanho da nossa privada fora da casa. Havia uma agradável planície ali, macia e coberta de relva, debruçando-se para o que papai.e eu chamávamos de Ramo Sul. Agachei-me, joguei a linha na água e quase imediatamente puxei uma bela truta arco-íris. Não tinha o tamanho de minha truta-de-rio — só uns 30 centímetros, mais ou menos — mas, mesmo assim, era um bom peixe. Limpei-a antes que as barbatanas parassem de mexer, guardei-a na cesta e novamente joguei a linha na água.

Desta vez não houve nenhuma mordida imediata. Assim, deitei-me ali, olhando a faixa azul do céu que podia ver ao longo do curso do rio. Nuvens flutuavam de oeste para leste, e tentei imaginar com que se pareciam. Vi um unicórnio, depois um galo e a seguir um cachorro que lembrava Candy Bill. Estava esperando a próxima, quando cochilei.

 

 

Ou talvez tenha dormido, não sei ao certo. Só sei que um puxão na linha, tão forte que quase me arrancou a vara da mão, foi o que me trouxe de volta à tarde. Sentei segurando a vara e, de repente, notei que algo pousara na ponta do meu nariz. Envesguei os olhos e vi uma abelha. Senti o coração morrer dentro do peito e, por um horrível segundo, tive a certeza de que ia molhar as calças.

O puxão na linha voltou, desta vez mais forte. No entanto, ainda que eu continuasse agarrando a vara para que não fosse puxada para o rio e talvez levada pela corrente (acho que tive presença de espírito até para deter a linha com o indicador), não fiz nenhum esforço para puxar a presa para fora d’água. Toda a minha atenção, horrorizada, fixava-se na gorda coisa preta e amarela que usava meu nariz como local de descanso.

Lentamente, estiquei o lábio inferior e soprei para cima. A abelha se agitou um pouco, mas continuou no lugar. Soprei de novo e ela se mexeu novamente... mas desta vez parecia também impaciente; não ousei mais soprar com medo de que ela perdesse totalmente as estribeiras e me picasse. Estava excessivamente perto de mim para que eu pudesse ver com nitidez o que fazia, mas era fácil imaginá-la comprimindo o ferrão numa de minhas narinas e disparando o veneno bem na direção de meus olhos. E de meu cérebro.

Ocorreu-me uma idéia terrível: a de que aquela fosse a mesma abelha que matara meu irmão. Eu sabia que não era verdade, e não só porque abelhas que fabricam mel provavelmente não vivem mais de um ano (a não ser talvez as rainhas — quanto a estas, eu não tinha certeza). Aquilo não podia ser verdade porque abelhas morrem quando picam, e mesmo aos nove anos eu sabia disso. Seus ferrões são farpados, o que faz com que elas se dilacerem quando tentam se afastar depois da picada. Mesmo assim, a idéia continuou martelando. Aquela era uma abelha especial, uma abelha-demônio, e voltara para liquidar o último dos filhos de Albion e Loretta.

E outra coisa: eu já fora mordido por abelhas antes e, embora as picadas talvez inchassem mais do que o habitual (não posso dizer com certeza), nunca morri por causa delas. Acontecera apenas com meu irmão, uma terrível armadilha montada para ele por sua própria susceptibilidade, uma armadilha da qual eu de algum modo escapara. Mas, enquanto eu envesgava os olhos até doerem num esforço para focalizar a abelha, a lógica não existia. Era a abelha que existia, apenas isso, a abelha que matara meu irmão. matara-o de tal maneira que meu pai abaixara as tiras do macacão para tirar a camisa e cobrir com ela o rosto inchado e ingurgitado de Dan. Mesmo nas profundezas de sua dor, ele fizera aquilo, pois não quisera que a mulher visse no que se transformara o filho. Agora a abelha voltara e me mataria. Me mataria e eu ia morrer em convulsões na margem do rio, espadanando como uma truta-de-riacho depois que lhe tiram o anzol da boca.

Enquanto eu continuava ali tremendo, à beira do pânico e prestes a simplesmente dar um pulo e fugir para algum lugar, ouvi um barulho atrás de mim. Era áspero e peremptório como um tiro de pistola, mas eu sabia que não era tiro: alguém batera palmas uma vez. Diante disso, a abelha cambaleou e caiu no meu colo. Ficou ali sobre a calça com as patas para cima e o ferrão transformado num fio negro e inofensivo contra o velho e gasto cotelê marrom. Notei imediatamente que estava morta como um prego. No mesmo instante, a vara deu outro arranco — ainda mais forte — e quase a perdi novamente.

Agarrei-a com as duas mãos e puxei-a com uma força estúpida que teria feito papai pôr as mãos na cabeça, se tivesse visto. Uma truta arco-íris, bem maior do que a que eu já pegara, saiu da água torcendo-se num flash molhado, borrifando finas gotas de água com os filamentos da cauda. Parecia uma daquelas fotos românticas de pescaria que costumavam pôr nas capas de revistas masculinas como True e Man’s Adventure nos anos 1940 e 1950. Naquele momento, entretanto, capturar um peixe grande era a última coisa em que eu pensava, e mal notei quando a linha rebentou e o peixe caiu de novo no rio. Virei a cabeça para ver quem batera palmas. Havia um homem em pé lá em cima, no limite das árvores. Tinha o rosto muito comprido, pálido e estreito, e seu cabelo escuro penteado para trás seguindo o formato do crânio era repartido com rigoroso cuidado do lado esquerdo. O homem, muito alto, vestia um terno preto completo, com colete, e eu soube imediatamente que não era um ser humano porque seus olhos tinham o vermelho alaranjado das chamas de um fogão à lenha. Não estou me referindo às íris; ele não tinha íris, nenhuma pupila também, e certamente nenhum branco dos olhos. Seus olhos eram totalmente da cor laranja — um laranja que mudava e bruxuleava. E é tarde demais para não dizer exatamente o que pretendo, não é? Ele pegava fogo por dentro, e seus olhos eram como as pequenas vigias transparentes que se vêem às vezes nas portas dos fogões.

Minha bexiga se soltou, e o gasto cotelê marrom onde jazia a abelha morta ficou de um marrom mais escuro. Eu mal tinha noção do que acontecera, e não conseguia tirar os olhos do homem me olhando do alto da margem, o homem que saíra de 50 quilômetros de bosques do Maine ocidental sem trilha, num bom terno preto e sapatos bicudos de couro cintilante. Eu podia ver a corrente do relógio que lhe atravessava o colete brilhar ao sol de verão. Não havia sequer uma agulha de pinheiro no homem. E ele sorria.

— Ora, um garoto pescador! — exclamou numa voz agradável e suave. — Imagine só! Já nos conhecemos, garoto pescador?

— Olá, senhor — disse eu. Minha voz não tremeu, mas também não parecia a minha e sim de alguém mais velho. Como a de Dan, talvez. Ou até a de meu pai. E eu só pensava que talvez ele me deixasse ir embora se eu fingisse não ter notado o que ele era. Se fingisse não ver as chamas fulgurando e dançando onde deveriam estar seus olhos.

— Salvei você de uma picada péssima — disse ele. E então, para meu horror, desceu até a margem onde eu estava sentado com a abelha morta no colo úmido e uma vara de bambu nas mãos sem nervos. Seus sapatos urbanos de sola lisa deveriam ter escorregado no mato baixo que cobria a margem íngreme, mas não o fizeram. E vi que também não deixavam vestígios atrás de si. Onde seus pés tocavam — ou pareciam ter tocado — não havia um único graveto quebrado, folha amassada ou marca de pegada.

Mesmo antes de ele chegar até mim, reconheci o aroma que cozinhava em sua pele sob o terno — o cheiro de fósforo queimado. O cheiro de enxofre. O homem de terno preto era o Diabo. Saíra dos bosques profundos entre Motton e Kashwakamak e agora estava em pé ao meu lado. Com o canto do olho, pude ver uma mão tão pálida como a de um boneco à janela de uma loja. Seus dedos eram horrivelmente longos.

Ele se agachou ao meu lado, os joelhos dobrados como os de um homem normal. No entanto, quando moveu as mãos e as fez pender entre os joelhos, vi que seus dedos compridos não terminavam numa unha e sim numa garra longa e amarela.

— Você não respondeu à minha pergunta, garoto pescador — disse ele com sua voz suave. Agora que lembro disso, acho que sua voz era como a daqueles anunciantes de rádio nos shows de grandes orquestras que viriam anos depois, aqueles que vendiam certos tônicos e Ovomaltine.

— Já nos conhecemos?

— Por favor, não me faça mal — murmurei, numa voz tão baixa que eu mesmo quase não consegui ouvi-la. Estava com mais medo do que posso descrever, mais medo do que tenho vontade de lembrar... mas lembro. Lembro sim. Sequer me passou pela cabeça a esperança de estar sonhando, mas, se eu fosse mais velho, poderia ter passado. Mas eu não era mais velho; tinha nove anos, e reconhecia a verdade quando ela se agachava ao meu lado. Conhecia a diferença entre um falcão e um serrote de mão, como papai teria dito. O homem que saíra do bosque naquele sábado de verão era o Diabo, e no interior dos buracos vazios de seus olhos o cérebro dele queimava.

— Ah, estou sentindo o cheiro de alguma coisa? — perguntou, como se não tivesse me ouvido... embora eu soubesse que ouvira. — Estou sentindo o cheiro de algo... molhado?

Inclinou-se para mim com o nariz empinado, como alguém que quer cheirar uma flor. E notei uma coisa horrível: à medida que a sombra de sua cabeça viajava pela margem, a relva debaixo dela amarelava e morria. Ele abaixou a cabeça na direção da minha calça e cheirou. Os olhos fulgurantes meio fechados, como se ele inalasse um cheiro sublime e quisesse se concentrar apenas nisso.

— Ah, que mau! — exclamou ele. — Adoravelmente mau! — E a seguir cantarolou: — Opala! Diamante! Safira! Jade! Sinto o cheiro da limonada do Gary! — Então jogou-se de costas na pequena planície e riu selvagemente. Era o riso de um lunático.

Pensei em correr, mas minhas pernas pareciam estar a léguas do meu cérebro. Mas eu não chorava; molhara as calças como um bebê, mas não chorava. Estava assustado demais para chorar. Subitamente, soube que ia morrer, e provavelmente de forma dolorosa, mas o terrível é que isso poderia não ser o pior.

O pior podia vir mais tarde. Depois que eu estivesse morto.

Ele sentou subitamente, o cheiro de fósforos queimando evolando-se de seu terno e fazendo com que a náusea me subisse à garganta. Ele me olhou solenemente com seu estreito rosto branco e seus olhos ardentes, mas também com um ar de riso. Tinha sempre um ar de riso.

— Más notícias, garoto pescador. Eu trouxe más notícias.

Eu só podia olhá-lo — o terno preto, os bonitos sapatos pretos, os longos dedos brancos que terminavam em garras.

— Sua mãe morreu.

— Não! — gritei. Pensei nela fazendo pão, no cacho em sua testa que apenas lhe tocava a sobrancelha, o forte sol matinal que a banhava, e o terror me varreu de novo... mas desta vez não por mim. Pensei na imagem que vi quando saí de casa, mamãe em pé à porta da cozinha com a mão protegendo os olhos, e como ela me parecera naquele momento a foto de alguém que se espera ver de novo, mas que nunca mais se consegue ver. — Não, você está mentindo! — gritei.

Ele sorriu — o sorriso triste, paciente, do homem que é acusado falsamente com freqüência.

— Acho que não — disse. — Foi o mesmo que aconteceu com seu irmão, Gary. Uma abelha.

— Não, não é verdade — disse eu e então comecei a chorar. — Ela é velha, tem 35 anos, e se uma picada de abelha pudesse matar ela como matou Danny, ela teria morrido há muito tempo, você é um canalha mentiroso!

Eu chamara o Diabo de canalha mentiroso. De certo modo, eu tinha consciência disso, mas a maior parte da minha mente fora invadida pela enormidade do que ele dissera. Minha mãe morta? Era o mesmo que dizer que um novo oceano tomara o lugar das Montanhas Rochosas. Mas acreditei nele. Em algum nível, acreditei totalmente nele, como de algum modo sempre acreditamos na pior coisa que se pode imaginar.

— Entendo o seu sofrimento, garotinho pescador, mas esse argumento em especial não se sustenta. — Falava num falso tom de consolo que era horrível, enlouquecedor, sem remorso ou piedade. — Alguém pode passar a vida inteira sem ver um tordo, sabe, mas isso não significa que ele não existe. Sua mãe...

Um peixe pulou abaixo de nós. O homem de terno preto franziu a testa e lhe apontou um dedo: a truta teve uma convulsão no ar, curvando o corpo tão energicamente que por uma fração de segundo pareceu tentar morder a própria cauda. Quando caiu de novo no rio Castle, estava morta, flutuando na corrente. Bateu na grande rocha cinzenta onde as águas se dividiam, girou duas vezes no redemoinho que se formava ali e a seguir flutuou para longe na direção de Castle Rock. Enquanto isso, o terrível estranho novamente pousara os olhos ardentes em mim, os lábios arreganhados exibindo a minúscula fileira de dentes agudos num sorriso de canibal.

— Sua mãe passou a vida toda sem ser picada por uma abelha — disse ele. — Mas então, menos de uma hora atrás na verdade, uma abelha entrou pela janela da cozinha enquanto ela tirava o pão do forno e o colocava na bancada para esfriar.

— Não, não vou ouvir isso, não vou ouvir isso, não vou!

Ergui as mãos e tapei as orelhas. Ele afunilou os lábios como se fosse assobiar e soprou suavemente na minha direção. Foi apenas um pequeno sopro, mas o fedor era absolutamente medonho — esgotos entupidos, privadas que jamais haviam conhecido uma borrifada de desinfetante, galinhas mortas depois de uma enchente.

Minhas mãos deslizaram pelo rosto.

— Ótimo — disse ele. — Você precisa escutar isso, Gary; precisa escutar, meu garotinho pescador. Foi sua mãe quem passou essa fraqueza mortal para seu irmão Dan; você recebeu um pouco dela, mas também teve a proteção de seu pai, o que o pobre Dan, de algum modo, perdeu. — Afunilou os lábios de novo, só que desta vez emitiu um tsk tsk, um ruidozinho cruelmente engraçado, em vez de soprar a respiração nojenta em cima de mim. — Então, embora eu não goste de falar mal dos mortos, é quase um caso de justiça poética, não é? Afinal de contas, ela matou seu irmão Dan do mesmo modo como se tivesse apontado a arma para a cabeça dele e puxado o gatilho.

— Não — murmurei. — Não é verdade.

— Eu lhe asseguro que é — disse ele. — A abelha entrou pela janela e pousou no pescoço de sua mãe, que lhe deu um tapa antes mesmo de saber o que fazia... você foi mais esperto do que ela, não foi, Gary?... e a abelha a picou. Sua mãe sentiu a garganta fechar imediatamente. É o que acontece com gente alérgica ao veneno de abelha. A garganta fecha e eles se afogam no ar aberto. Foi por isso que o rosto de Dan estava tão inchado e roxo. Foi por isso que seu pai o cobriu com a camisa.

Olhei fixamente para ele, incapaz de falar. As lágrimas escorriam pelo meu rosto. Não queria acreditar nele, aprendera na igreja que o Diabo é o pai das mentiras, mas acreditei mesmo assim. Acreditei que ele tinha estado no nosso quintal, espiando pela janela da cozinha enquanto mamãe caía de joelhos segurando a garganta inchada e Candy Bill dançava à sua volta, latindo esganiçadamente.

— Ela fez ruídos maravilhosamente pavorosos — disse o homem de terno preto, pensativo — e arranhou muito o rosto, acho eu. Seus olhos se esbugalharam como os de uma rã. Ela chorou. — O homem fez uma pausa e acrescentou: — Ela chorou enquanto morria, não foi delicado da parte dela? E aqui está a coisa mais linda: depois que ela morreu... depois que já estava no chão há uns 15 minutos, sem nenhum som por ali a não ser o palpitar do fogão, e com a pequena haste do ferrão da abelha ainda espetada no pescoço... tão pequena, tão pequena... sabe o que Candy Bill fez? O patifezinho lambeu as lágrimas dela. Primeiro de um lado... depois do outro.

Ele fitou a corrente por um momento, o rosto triste e pensativo. Então virou-se para mim e a expressão de consternação desapareceu como um sonho. Seu rosto era tão frouxo e ávido quanto o de um cadáver cuja causa da morte fora a fome. Seus olhos fulguravam. Entre os lábios pálidos, eu podia ver os dentinhos agudos.

— Estou morrendo de fome — disse abruptamente. — Vou matar você, dilacerá-lo e comer suas tripas, garotinho pescador. O que acha?

Não, tentei dizer, por favor, não, mas nenhum som saiu da minha garganta. Eu sabia que ele queria fazer aquilo. Queria mesmo.

— É que estou tão faminto — disse ele, petulante e provocativo. — E de qualquer forma, você não vai querer viver sem sua preciosa mãe, acredite. Porque seu pai é o tipo de homem que vai precisar de algum buraco quente para enfiar a coisa, e se o único disponível for o seu, então terá que servir, não há dúvida. Vou salvar você dessa situação desagradável, desse desconforto. Além disso, você vai para o Céu, pense nisso. As almas assassinadas sempre vão para o Céu. Assim, nós dois estaremos servindo a Deus nesta tarde, Gary. Não é simpático?

Ele esticou novamente as mãos compridas e pálidas para mim, e sem pensar no que fazia eu abri a tampa da minha cesta, revirei o conteúdo até o fundo e tirei de lá a truta monstruosa que pescara antes — aquela com que eu deveria ter me contentado. Estendi-a cegamente para ele, os dedos no talho vermelho do ventre cujas entranhas eu removera, enquanto o homem de terno preto ameaçava remover as minhas. Os olhos vidrados do peixe fixavam-se sonhadoramente em mim, o anel dourado em volta do centro escuro me fazendo lembrar a aliança de mamãe. E naquele momento eu a vi deitada no caixão, o sol refletindo-se na aliança, e então soube que era verdade — ela fora picada por uma abelha, afogara-se no ar tépido da cozinha cheirando a pão, e Candy Bill lambera as lágrimas moribundas nas faces inchadas.

— Peixe grande! — gritou o homem de terno preto numa voz gutural e cobiçosa. — Ah, peeixe graande!

Ele o arrebatou de minha mão e enfiou-o na boca, que se abriu mais do que a de qualquer ser humano. Muitos anos depois, quando eu já tinha meus 65 anos (sei que a idade era essa porque foi no verão em que me aposentei como professor), fui ao New England Aquarium e finalmente vi um tubarão. Quando se abriu, a boca do homem de terno preto era como a boca do tubarão, e senti o calor cozinhando lá dentro me atingir o rosto, a mesma súbita onda de calor como quando um pedaço de lenha seca pega fogo na lareira. E aquele calor também não foi imaginação minha, sei que não porque, pouco antes de ele enfiar a cabeça da truta de 50 centímetros entre os maxilares escancarados, vi as escamas nas laterais do peixe se erguerem e se encresparem como pedaços de papel flutuando sobre um incinerador aberto.

Ele fez o peixe deslizar para dentro como a espada de um engolidor de espadas num espetáculo ambulante. Não mastigou, e seus olhos flamejantes esbugalharam-se como num esforço. O peixe foi entrando, entrando, e a garganta do homem ficando volumosa enquanto o alimento descia através do esôfago. Então o homem de terno preto começou a chorar... mas lágrimas de sangue, um sangue escarlate e espesso.

Acho que foi a visão daquele sangue que trouxe meu corpo de volta. Não sei por quê, mas acho que a razão foi esta. Levantei de um pulo como um boneco de mola libertado da caixa e, com a vara de bambu ainda na mão, fugi margem acima, curvado para a frente e agarrando-me aos ásperos capins com a mão livre, num esforço para subir mais rapidamente a ribanceira.

Ele emitiu um ruído estrangulado, furioso — o som de qualquer homem com a boca excessivamente cheia — e só olhei para trás quando cheguei ao alto. Ele vinha no meu encalço, a parte de trás do terno esvoaçando, a corrente de ouro do relógio cintilando e tremeluzindo ao sol. A cauda do peixe ainda se projetava de sua boca, e eu sentia o cheiro do resto da trutra assando no forno daquela garganta.

O homem estendeu as mãos tentando me segurar com suas garras, e voei pelo alto da margem. Depois de uns 100 metros mais ou menos, consegui usar minha voz e passei a gritar — gritar de medo, claro, mas também de sofrimento por minha bela mãe morta.

Ele veio atrás de mim. Eu ouvia ramos se quebrando e moitas sendo empurradas, mas não olhei para trás de novo. Abaixei a cabeça, semicerrei os olhos para protegê-los das moitas e dos galhos baixos da margem do rio e corri o mais rápido que pude. A cada passo, esperava sentir as mãos do homem de terno preto caindo nos meus ombros, puxando-me de volta para um quente abraço final.

Isso não aconteceu. Algum tempo depois — não podia ser mais de cinco ou dez minutos, acho eu, mas deu a impressão de eternidade —, vi a ponte através de folhas e pinheiros. Ainda gritando, mas já sem fôlego, soando como uma chaleira quase esturricada de tão seca, alcancei a segunda margem, mais íngreme, e disparei por ela acima.

A meio caminho do alto, um escorregâo me fez cair de joelhos, e olhei por cima do ombro. Vi o homem de terno preto quase nos meus calcanhares, o rosto branco torcido numa convulsão de fúria e avidez. Suas faces estavam sujas das lágrimas de sangue, e a boca de tubarão pendia aberta como uma dobradiça.

— Garoto pescador! — rosnou ele, e correu pela margem atrás de mim, agarrando meu pé com a mão comprida. Eu me soltei, virei-me e joguei nele a vara de pescar. Ele a repeliu facilmente, mas de algum modo ela se emaranhou em seus pés e ele caiu de joelhos. Não esperei para ver mais; virei e corri como um raio para o alto da ribanceira. Quase escorreguei lá de cima, mas consegui agarrar uma das escoras de apoio que percorriam a ponte por baixo e me salvei.

— Você não pode escapar, garoto pescador! — gritou o homem de terno preto atrás de mim. Parecia furioso, mas também era como se estivesse rindo. — É preciso mais do que um pouco de truta para me satisfazer!

— Me deixe em paz! — gritei. Agarrei o parapeito da ponte e me ergui até ela num atrapalhado sobressalto, enchendo as mãos de farpas e batendo a cabeça com tanta força nas tábuas quando aterrissei ali que vi estrelas. Rolei de barriga para baixo e comecei a me arrastar. Levantei pouco antes do final da ponte, tropecei uma vez, recuperei o ritmo e então comecei a correr. Corri como só os garotos de nove anos conseguem correr — que é como o vento. Meus pés pareciam tocar no chão somente a cada três ou quatro passadas, e tanto quanto sei, isso pode ter sido verdade. Corri reto pelo sulco deixado na estrada pelas rodas do lado direito, corri até que as têmporas latejassem e os olhos pulsassem nas órbitas, corri até sentir uma fisgada no lado esquerdo, das costelas à axila, corri até sentir um gosto de sangue e aparas de metal na garganta. Quando não consegui mais correr, cambaleei e parei. Então olhei para trás, ofegando e soprando como um cavalo com pulmoeira. Tinha certeza de que o veria em pé bem atrás de mim com seu elegante terno preto, a cintilante corrente do relógio atravessando frouxamente o colete e nenhum fio de cabelo fora do lugar.

Mas ele desaparecera. Na estrada que se estendia na direção do rio Castle, entre a massa escura de pinheiros e espruces, não havia ninguém. E mesmo assim eu o sentia por perto naquele bosque, observando-me com seus olhos incendiados, exalando o cheiro de fósforo queimado e de peixe assando.

Eu me virei e comecei a andar tão rápido quanto podia, mancando um pouco — sofrerá distensões musculares nas duas pernas, e quando saí da cama no dia seguinte estava tão dolorido que quase não conseguia andar. Mas não notei tais coisas naquele momento. Continuei olhando por cima do ombro, precisando verificar repetidamente se a estrada atrás de mim continuava vazia. Constatei que continuava a cada vez que olhei, mas essas olhadelas para trás aumentavam ainda mais o meu medo, em vez de diminuí-lo. Os pinheiros davam a impressão de estarem mais escuros e maciços, e continuei a imaginar o que jazia atrás das árvores que marchavam ao lado da estrada — longos e emaranhados corredores de floresta, fossos-armadilhas que podiam quebrar uma perna, ravinas onde qualquer coisa poderia viver. Até aquele sábado de 1914, eu achava que o pior que a floresta podia conter eram ursos.

Agora sabia que não.

 

 

Cerca de um quilômetro e meio estrada acima, pouco além do lugar onde ela saía do bosque e se unia à estrada Geegan Fiat, vi meu pai caminhando em minha direção e assobiando “The Old Oaken Bucket”. Ele carregava sua vara de pesca, aquela com o chique carretel para recolher linha, comprada numa loja de departamentos. Na outra mão, levava sua cesta de pesca, em cuja alça mamãe bordara uma fita quando Dan ainda estava vivo. DEDICADO A JESUS, dizia a fita. Eu caminhava, mas, quando vi papai, comecei a correr de novo e a gritar Papai! Papai! Papai! com todas as forças dos meus pulmões, cambaleando, as pernas frouxas e cansadas como um marinheiro bêbado. Sua expressão de surpresa ao me reconhecer poderia ser engraçada em outras circunstâncias, mas não naquelas. Deixou cair a vara e a cesta na estrada sem olhá-las e correu para mim. Nunca vi papai correr mais rápido em toda a sua vida; quando nos encontramos, só um milagre impediu que o impacto nos nocauteasse; bati com o rosto na fivela do seu cinto com tanta força que isso me provocou um pequeno sangramento pelo nariz. No entanto, só reparei nisso mais tarde. Naquele momento, apenas estendi os braços e abracei papai com todas as minhas forças. Agarrei-o e esfreguei meu rosto quente contra a barriga dele, cobrindo sua velha camisa azul de trabalho com sangue, lágrimas e muco.

— O que foi, Gary? O que aconteceu? Você está bem?

— Mamãe morreu! — solucei. — Encontrei um homem no bosque e ele me disse! Mamãe morreu! Foi picada por uma abelha, inchou do mesmo modo que Dan e morreu! Está no chão da cozinha e Candy Bill... lambeu as l-l-lágrimas... do seu... do seu...

Rosto era a última palavra que eu precisava dizer, mas meu peito arfando aos repelões não permitiu. Senti as lágrimas correrem de novo pelas minhas faces, fazendo o espantado e assustado rosto de papai borrar-se em três imagens superpostas. Comecei a uivar — não como uma criança que esfolou o joelho, mas como um cão que viu algo ruim ao luar — e papai apertou a minha cabeça contra a sua barriga de novo. Libertei-me de sua mão e olhei por cima do ombro. Queria ter certeza de que o homem de terno preto não estava ali. Nem sinal dele; a estrada serpenteando para o bosque estava completamente vazia. Prometi a mim mesmo que jamais voltaria àquela estrada, nunca mais, fosse qual fosse o motivo, e acho agora que a melhor bênção de Deus às Suas criaturas cá embaixo é o fato de elas não poderem prever o futuro. Saber que eu palmilharia aquela estrada até o rio apenas duas horas mais tarde teria me tirado a razão. Naquele momento, contudo, sentia-me aliviado por ver que ainda estávamos sós. Então pensei em mamãe — minha bela mãe que morrera — e apertei de novo o rosto contra a barriga de papai, berrando mais um pouco.

— Gary, escute — disse ele alguns momentos depois. Continuei chorando. Ele deixou que eu prosseguisse por mais um tempo e então estendeu a mão, levantando-me o queixo para que pudéssemos nos encarar. — Sua mãe está bem.

Fitei-o com as lágrimas deslizando, sem acreditar nele.

— Não sei quem lhe disse o contrário, ou que patife nojento ia querer assustar um garoto, mas juro por Deus que sua mãe está bem.

— Mas... mas ele disse...

— Não importa o que disseram. Voltei de Eversham mais cedo do que pensava... ele não quer vender vaca nenhuma, é só conversa... e vi que tinha tempo para alcançar você. Peguei a vara, a cesta, e sua mãe fez uns dois sanduíches de geléia para nós. Com o pão que acabou de fazer ainda quente. Então ela estava bem meia hora atrás, Gary, e ninguém que veio por este lado tem uma notícia diferente, garanto a você. Não em meia hora. — Ele olhou por cima do meu ombro. — Que homem era esse? Onde está? Vou procurá-lo e lhe dar uma sova que ele não vai esquecer.

Pensei mil coisas em dois segundos — pelo menos deu essa impressão —, mas o último pensamento foi o mais poderoso: se papai encontrasse o homem de terno preto, acho que a sova não seria dada pelo papai. Ou que ele fosse embora.

Lembrei novamente dos compridos dedos brancos que terminavam em garras.

— Gary?

— Acho que não me lembro — disse eu.

— Você estava lá onde o rio se divide? Naquela pedra grande?

Nunca pude mentir para meu pai quando ele fazia uma pergunta direta — nem para salvar sua vida nem a minha.

— Lembro sim, mas não vá lá. — Agarrei o seu braço com as duas mãos e puxei-o com força. — Por favor, não vá. Era um homem apavorante. — Uma inspiração me ocorreu, fulminante como um relâmpago: — Acho que estava armado.

Ele me olhou pensativo.

— Talvez não fosse um homem — disse, erguendo a voz um pouco na última palavra e transformando-a quase numa pergunta. — Filho, quem sabe você adormeceu enquanto pescava e teve um pesadelo? Como os que teve com Danny no inverno passado?

Eu tive tido um monte de sonhos ruins com Dan no inverno passado, sonhos em que eu abria a porta do armário ou do escuro galpão de sidra cheirando a fruta e o via em pé ali, olhando para mim com seu rosto roxo de estrangulado. Acordara de muitos desses sonhos gritando, acordando meus pais também. Eu dormira na margem do rio por algum tempo — cochilara, de qualquer modo —, mas não sonhara, e tinha certeza de que acordara pouco antes de o homem bater palmas e matar a abelha. Estava certo de que não sonhara com ele como sonhara com Dan, embora meu encontro com ele já parecesse uma espécie de sonho, como acho que sempre acontece com algo sobrenatural. Mas se papai achava que o homem existia apenas na minha mente, talvez fosse melhor. Melhor para ele.

— É, pode ser — disse eu.

— Bem, vamos voltar para pegar sua vara e sua cesta.

Então começou a andar na direção do rio. Puxei-o freneticamente pelo braço para detê-lo de novo.

— Depois — disse eu. — Por favor, papai. Preciso ver mamãe com meus próprios olhos.

Ele pensou um pouco e concordou com a cabeça.

— É, acho que precisa.

Voltamos à fazenda juntos, papai com a vara de pescar no ombro como se fosse um amigo meu, eu carregando sua cesta e nós dois comendo os sanduíches feitos com o pão de mamãe e geléia de frutas silvestres.

— Pescou alguma coisa? — perguntou ele enquanto avistávamos a granja.

— Pesquei. Uma arco-íris. Bem grandinha — E uma truta-de-riacho muito maior, pensei comigo mesmo. Maior do que qualquer uma que já vi, para dizer a verdade, mas não a guardei para mostrar, papai, eu a dei ao homem de temo preto para que ele não me comesse. E funcionou... por um triz.

— Só isso? Nada mais?

— Depois que peguei essa, dormi. — Não era de fato uma resposta, mas também não era mentira.

— Uma sorte você não ter perdido a vara. Não perdeu, não é, Gary?

— Não, pai — respondi com muita relutância. Mentir sobre aquilo não ia adiantar, mesmo se eu conseguisse inventar uma mentira fantástica, não se ele estava decidido a voltar para pegar minha cesta, de qualquer modo, e eu via por sua expressão que estava.

Mais adiante, Candy Bill saiu correndo pela porta de trás, latindo esganiçadamente e sacudindo o traseiro para a frente e para trás como fazem os terriers escoceses quando estão contentes. Não pude mais ficar quieto: esperança e ansiedade borbulhavam em minha garganta como espuma. Corri para casa, ainda agarrado à cesta de papai e ainda acreditando bem no fundo que ia encontrar mamãe no chão da cozinha, morta, o rosto inchado e roxo como o de Dan quando papai, chorando e gritando o nome de Jesus, trouxera-o do campo oeste.

Mas ela estava diante da bancada de mármore e tão bem como antes, cantarolando de boca fechada ao debulhar ervilhas numa tigela. Ela me olhou primeiro surpresa e depois com medo, ao notar meus olhos arregalados e meu rosto pálido.

— O que foi, Gary? O que aconteceu?

Não respondi, apenas corri para ela e a cobri de beijos.

— Não se preocupe, Lo, ele está bem — disse papai quando entrou. — Só teve um daqueles pesadelos no riacho.

— Deus queira que seja o último — disse ela, e me abraçou mais apertado, enquanto Candy Bill dançava à nossa volta com seu latido esganiçado.

 

 

— Não precisa voltar comigo se não quiser, Gary — disse papai, embora tivesse deixado claro que eu devia voltar e enfrentar o meu medo, como acho que as pessoas diriam hoje. Isso está muito bem com coisas temíveis, mas de faz-de-conta; porém, duas horas não haviam mudado muito a minha certeza de que o homem de terno preto era real. Mas eu não conseguiria convencer papai do fato. Acho que nunca houve um garoto de nove anos que conseguisse convencer o pai de ter visto o Diabo de terno preto sair do bosque.

— Eu vou — decidi. Saíra de casa para me juntar a ele antes que partisse, reunindo toda a coragem para me pôr em movimento, e agora estávamos perto do cepo de cortar carne e legumes no pátio lateral, não longe da pilha de lenha.

— O que está escondendo atrás das costas? — perguntou papai.

Fui mostrando o objeto aos poucos. Eu ia com meu pai, esperando que o homem de terno preto e com o cabelo repartido para a esquerda reto como uma flecha tivesse ido embora... se não, eu queria estar preparado. Tão preparado quanto possível, de qualquer modo. Levava na mão a Bíblia da família e mostrei-a. Tinha resolvido levar só o Novo Testamento, que eu ganhara por decorar a maioria dos salmos na competição de quinta à noite da Associação da Juventude (consegui oito, embora a maioria deles, à exceção do 23º, tenha sumido da minha cabeça em uma semana), mas achei que o pequeno Testamento de capa vermelha talvez fosse insuficiente para enfrentar o próprio Diabo, mesmo com as palavras de Jesus sublinhadas em tinta vermelha.

Papai olhou a velha Bíblia inchada de fotos e documentos da família e achei que fosse me mandar guardá-la novamente, mas não o fez. Uma expressão de dor e solidariedade passou pelo seu rosto, e ele balançou a cabeça concordando.

— Muito bem. Sua mãe sabe que você pegou isso?

— Não, pai.

Ele concordou com a cabeça de novo.

— Então vamos torcer para ela não perceber antes da gente voltar. Vamos indo. E não a deixe cair.

 

 

Cerca de meia hora depois, estávamos na margem olhando para o local onde o rio Castle se bifurcava, e o lugar plano onde eu encontrara o homem de olhos vermelho-alaranjados. Segurava minha vara de pesca — recolhera-a debaixo da ponte — e encontrara minha cesta um pouco mais abaixo, no lugar plano. A tampa de vime estava levantada. Papai e eu ficamos olhando para baixo por muito tempo em silêncio.

Opala! Diamante! Safira! Jade! Sinto o cheiro da limonada do Gary! O homem recitara seu desagradável poeminha e se atirara de costas no chão, rindo como uma criança que descobriu ter coragem suficiente para dizer palavras sujas como merda ou mijo. Lá embaixo, o local plano era tão verde e viçoso como qualquer lugar do Maine alcançado pelo sol no início de julho... a não ser onde o estranho deitara. Ali, a relva morta e amarela desenhava o formato de um homem.

Olhei para baixo e vi que estendia para a frente a volumosa Bíblia da família, com os dois polegares brancos de tanto apertarem a capa. Era assim que Norville, o marido de Mama Sweet, segurava um galho bifurcado de salgueiro para sondar a existência de água.

— Fique aqui — disse papai afinal, e derrapou obliquamente margem abaixo, enfiando os sapatos no solo rico e macio e estendendo os braços para manter o equilíbrio. Fiquei onde estava, esticando a Bíblia rigidamente para a frente como uma forquilha de salgueiro, o coração batendo selvagemente. Não sei se tive a sensação de ser observado naquele momento; o medo era grande demais para permitir qualquer sensação, exceto o desejo de estar bem longe daquele local e daquele bosque.

Papai curvou-se, farejou o lugar onde a relva morrera e fez uma careta. Eu conhecia o cheiro que ele estava sentindo: algo como fósforo queimado. Então ele agarrou a minha cesta e voltou depressa para a margem lá em cima. Rapidamente virou a cabeça para trás para assegurar-se de que não vinha nada o seguindo. Não vinha nada. Quando me entregou a cesta, a tampa ainda pendia aberta das pequenas e engenhosas dobradiças de couro. Olhei lá dentro e vi apenas dois punhados de mato.

— Pensei que tivesse pego uma truta arco-íris — disse papai —, mas pode ter sido um sonho também.

Algo na voz dele me picou.

— Não, pai. Eu peguei uma.

— Bem, é certo como dois e dois são quatro que ela não espadanou para fora da cesta se foi estripada e limpa. E você não ia pôr um peixe na cesta sem fazer isso, não é, Gary? Eu lhe ensinei como é o certo.

— Ensinou, pai, mas...

— Então, se a truta não foi sonho e se estava morta na cesta, alguma coisa deve ter comido ela — disse papai, olhando rapidamente para trás de novo, os olhos bem abertos como se ouvisse algo mover-se no bosque. Eu não estava exatamente surpreso ao ver gotas de suor na sua testa como grandes jóias claras.

— Vamos dar o fora daqui — disse papai.

Eu estava de pleno acordo. Voltamos pela margem até a ponte, andando rapidamente e sem falar. Ao chegarmos lá, papai ajoelhou-se e examinou o local onde tínhamos encontrado a minha vara de pescar. Havia outra mancha de relva morta ali, e o chinelo de mulher que se via no chão estava todo marrom e enrascado como se crestado por um grande jorro de calor. Enquanto papai fazia isso, examinei a minha cesta vazia.

— Ele deve ter voltado e comido o outro peixe também — disse eu.

Papai me olhou.

— Outro peixe!

— É, pai. Não contei, mas eu tinha pego uma truta-de-riacho também. Uma grande. Aquele sujeito estava faminto demais, estava mesmo. — Quis continuar a falar; as palavras chegaram aos meus lábios, mas não consegui.

Fomos subindo para a ponte e ajudamos um ao outro até o parapeito. Papai pegou minha cesta, espiou seu interior e atirou-a no rio. Aproximei-me a tempo de vê-la espalhar água ao se chocar com a corrente e flutuar para longe como um barco, deslizando cada vez mais rio abaixo, enquanto a água esguichava pela tessitura do vime.

— Cheirava mal — disse papai, mas não me encarou e sua voz parecia estranhamente defensiva. Foi a única vez em que o ouvi falar desse modo.

— É sim, pai.

— Vamos dizer à sua mãe que não conseguimos achar a cesta. Se ela perguntar. Se não perguntar, não dizemos nada.

— É, não dizemos não.

Ela não perguntou e nós não dissemos nada.

 

 

Aquele dia no bosque ocorreu há 81 anos, e em muitos desses anos nem lembrei do que aconteceu... pelo menos, não acordado. Como qualquer homem ou mulher que já viveu na superfície da Terra, não posso falar de meus sonhos com certeza. Mas agora estou velho, e parece que sonho acordado. As doenças escalam meu ser como ondas que logo atingirão o abandonado castelo de areia feito por uma criança. As lembranças também vêm subindo, fazendo-me recordar os antigos versos que diziam num determinado trecho: “Deixe-os em paz/ Que voltarão logo mais/ Abanando a cauda lá atrás.” Lembro das refeições que comi, dos jogos que joguei, das meninas que beijei no vestiário da escola quando brincávamos de salada mista, dos meninos que eram meus camaradas, a primeira bebida que tomei, o primeiro cigarro que fumei (atrás do chiqueiro de Dicky Hammer) e que me fez vomitar. Entretanto, de todas as lembranças, a do homem de terno preto é a mais forte, e fulgura em sua própria luz espectral e assombrada. Ele era real, ele era o Diabo, e naquele dia eu fui a sua missão ou o seu acaso. Sinto cada vez com mais força que escapar dele foi sorte — apenas sorte, e não a intercessão do Deus que tenho cultuado e ao qual louvei com hinos por toda a minha vida.

Aqui no meu quarto neste abrigo para idosos, e no castelo de areia desmoronando que é o meu corpo, digo a mim mesmo que não preciso temer o Diabo — tive uma vida boa e amável, e não preciso temê-lo. Às vezes, recordo a mim mesmo que fui eu e não meu pai quem afinal convenceu mamãe a voltar à igreja mais tarde naquele verão. No escuro, porém, tais pensamentos não têm poder para confortar ou tranqüilizar. No escuro, uma voz sussurra que o garoto de nove anos que eu fui também nada fizera para ter motivos para temer justificadamente o Diabo... e, no entanto, o Diabo aparecera. E no escuro, às vezes ouço essa voz diminuir ainda mais, baixar a tons inumanos. Peixe grande!, murmura ela numa cobiça abafada, e todas as verdades do mundo moral caem por terra ante sua fome. Peeixe graande!

O Diabo me apareceu certa vez, muito tempo atrás; e se viesse de novo agora? Estou velho demais para correr; não consigo nem ir e voltar do banheiro sem o meu andador. Também não tenho mais uma grande truta-de-riacho para suborná-lo, mesmo por alguns momentos; sou velho e minha cesta de pesca está vazia. E se ele voltar e me encontrar assim?

E se ele ainda estiver com fome?

 

                                                                                            Stephen King

 

 

                      

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