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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM SOLITÁRIO / Georges Simenon
O HOMEM SOLITÁRIO / Georges Simenon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

        Não passavam ainda das nove da manhã e já fazia calor. Maigret, que tirara o paletó, examinava lentamente a correspondência, olhando de vez em quando pela janela; as folhagens das árvores do Quai des Orfèvres1 não se mexiam, o Sena imóvel e liso como seda.

       Transcorria o mês de agosto. Lucas, Lapointe e mais da metade dos inspetores estavam de férias. Janvier e Torrence tiraram as suas em julho e Maigret esperava passar boa parte de setembro em sua casa de Meung-sur-Loire, que mais parecia um presbitério.

       Há mais de uma semana, diariamente, no fim da tarde, um temporal rápido e violento caía e a chuva ruidosa obrigava as pessoas a correrem rente às casas. O calor mais intenso chegava ao fim e a temperatura, pelo resto da noite, tornava-se amena.

       Paris esvaziara-se. Até os ruídos das ruas não eram os mesmos. A estes entremeavam-se súbitos silêncios.

       O que mais se via, eram os ônibus de todas as cores e de todas as nacionalidades que paravam invariavelmente nos mesmos lugares para despejar seus turistas: Notre-Dame, o Louvre, a praça de la Concorde, o Arco do Triunfo, o Sacré-Coeur e, inevitavelmente, a torre Eiffel.

       Quando se passeava pelas ruas, chegava a ser uma surpresa ouvir falar francês.

       O chefão da Polícia Judiciária também se encontrava de férias, o que os liberava do relatório cotidiano. As cartas eram poucas e os delitos mais frequentes os furtos.

 

 

 

 

       A campainha do telefone sacudiu o comissário do seu torpor. Tirou o aparelho do gancho.

       — É o comissário da primeira circunscrição; quer falar-lhe pessoalmente... Pode atendê-lo?

       — Posso, sim.

       Maigret conhecia-o bem. Um homem um tanto vaidoso, que se vestia com elegância e também muito culto; militara durante vários anos como advogado antes de ingressar na polícia.

       — Alô!... Ascan?...

       — Atrapalho?

       — Não mesmo...

       — Telefono-lhe, pois achei que o caso surgido hoje de manhã interessá-lo-ia de perto...

       — De que se trata?

       — Um assassinato... Mas não um crime como os outros... Seria muito complicado explicar-lhe desta forma... Quando terá um tempo livre?

       — Agora.

       — Peço desculpas por marcar o encontro no meu gabinete, mas tudo aconteceu numa ruela quase desconhecida, perto dos Halles2...

       — Chegarei em alguns minutos.

       Resmungou como se estivesse aborrecido; mas, na realidade, foi com satisfação que abandonou um pouco a rotina dos últimos dias. Entrou na sala dos inspetores. Normalmente, levaria Janvier, mas precisava que um homem, de inteira confiança, capaz de iniciativas permanecesse no Quai des Orfèvres durante sua ausência.

       — Venha comigo, Torrence... Apanhe um dos carros do pátio...

       A delegacia não ficava longe, na rua dos Prouvaires. Maigret dirigiu-se logo ao escritório do comissário Ascan.

       — Vai deparar com o espetáculo mais surpreendente de sua vida. Prefiro nada dizer, ainda. Olá, Torrence! É melhor deixar o carro... Fica logo ali...

       Contornaram os Halles cujo cheiro, devido ao calor, era muito forte; trabalhava-se, aqui, apesar do mês de agosto... Passaram por pequenas ruas, estreitas, ladeadas por lojinhas e casas de cômodos, mais ou menos suspeitas. Viam-se alguns mendigos e uma mulher, completamente embriagada apoiava-se nos muros para não cair.

       — Por aqui...

       Chegaram à rua da Grande-Truanderie e Ascan meteu-se por outra, tão estreita, que não permitia a passagem de um caminhão.

       — A travessa do Vieux-Four, anunciou. Nada mais do que umas dez velhas casas; no meio, o vazio deixado por um prédio já demolido. Os demais imóveis teriam o mesmo destino, e achavam-se, assim desabitados.

       Em alguns casos, andaimes foram erguidos para impedir que as paredes ruíssem.

       A habitação diante da qual o comissário parou, não possuía mais janelas e nem mesmo uma parte de suas molduras. A porta de entrada fora substituída por tábuas; Ascan retirou duas, despregadas, atrás das quais existia um largo corredor.

       — Cuidado com a escada! Faltam três degraus e os outros não são lá essas coisas...

       Reinava um odor de podridão e de poeira, acrescentando-se, ainda, o proveniente dos Halles.

       Subiram dois andares. Um menino de seus doze anos, sentado contra a parede rachada, pôs-se de pé, num pulo, os olhos brilhando, ao perceber a aproximação dos três homens.

       — O senhor é o comissário Maigret, não é?

       — Sou.

       — Se me dissessem que um dia, veria o senhor em carne e osso... Colo em um caderno todas as suas fotos publicadas nos jornais...

       Ascan explicou:

       — É o jovem Nicolier... Seu nome é Jean, certo?

       — Sim, senhor.

       — O pai é açougueiro, na rua Saint-Denis. Foi o único, no bairro, que não fechou em agosto... Conte-nos, Jean...

       — Aconteceu como já disse... A maioria dos meus colegas viajou... Como não posso brincar sozinho, ando por aí... Procuro locais que não conheço, apesar de ter nascido aqui... Hoje de manhã reparei nesta casa... Ao tentar retirar as tábuas que servem de porta descobri que não estavam pregadas... Entrei... Gritei: — Alguém em casa?... O eco devolveu minha voz. Não procurava por nada em especial. Segui adiante, só para ver. Empurrei esta porta toda estragada, à direita, e foi aí que divisei o homem... Desci correndo e cheguei, sem fôlego, à delegacia...

       — Tenho que entrar, novamente, no quarto?

       — Creio não ser necessário...

       — Fico aqui?

       — Sim...

       Maigret abriu a porta, que nem como lenha prestava, de tão podre. Deteve-se na soleira e percebeu então porque o comissário quisera-lhe fazer esta surpresa.

       O cômodo era bastante amplo, com as vidraças das duas janelas substituídas por cartolina ou papelão. O assoalho irregular, com fendas de vários centímetros entre as ripas, estava entulhado; uma mistura inimaginável de objetos em sua maioria partidos e sem a menor utilidade.

       O que logo atraía a atenção, num leito de ferro, coberto por velho colchão, era um homem completamente vestido e evidentemente morto. Sangue coagulado cobrira o seu peito, mas o rosto permanecera sereno.

       As roupas, de um mendigo, contrastavam com o rosto e as mãos. Idoso, de longos cabelos prateados com reflexos azulados. Seus olhos, azuis também; mas sua imobilidade incomodou Maigret, que os fechou.

       Usava um bigode branco, ligeiramente retorcido, e uma barbicha, à Richelieu.

       Além disto, apresentava-se escanhoado, e bem. O pasmo tomou novamente conta de Maigret, ao verificar o extremo cuidado que recebiam as mãos da vítima.

       — Dir-se-ia um velho ator representando o papel de mendigo, murmurou. Encontraram seus documentos?

       — Nada. Nem carteira de identidade. Nem cartas. Meus inspetores que trabalham no bairro, vieram dar uma olhada, mas não o reconheceram. Somente um, acredita tê-lo visto remexendo as latas de lixo...

       O homem era muito alto, de um porte excepcional, sua calça, demasiado curta, mostrava um buraco no joelho esquerdo; o paletó, usado, um verdadeiro trapo, achava-se no chão, em meio à poeira.

       — O médico-legista já veio?

       — Ainda não. Mas deve chegar a qualquer momento... Desejei que o senhor o visse antes de tocarem em qualquer coisa...

       — Torrence... Telefone do primeiro café e envie a turma da Identidade Judiciária o mais cedo possível... Peça, ainda, que previnam o Ministério Público...

       Este rosto, na cama de ferro retorcido continuava a fasciná-lo. Os bigodes, a barba, aparados com carinho o que, certamente, fora feito na véspera. Quanto às mãos tão cuidadas, de unhas pintadas, não se podia imaginá-las revolvendo latas de lixo.

       No entanto, o homem fazia-o há muito tempo. Os mais disparatados objetos entulhavam a peça. Quase todos quebrados. Um velho moedor de café. Vasilhas de esmalte, com grandes rachaduras, baldes amolgados, um lampião sem pavio nem querosene, sapatos disparatados.

       — Preciso fazer um inventário de tudo isto...

       Havia uma pia na parede e Maigret, em vão, abriu a torneira. Como esperava, a água fora cortada. A luz e o gás também, como em todos os imóveis destinados à demolição.

       Durante quanto tempo morara ali? O bastante para ter colecionado aquelas velharias. Impossível interrogar porteira ou vizinhos — inexistiam. O comissário dirigiu-se ao patamar e chamou o jovem Nicolier.

       — Quer fazer um favor? Vá até a calçada, e quando os outros chegarem, dentro de alguns momentos, traga-os até aqui...

       — Sim, senhor...

       — Não esqueça de chamar atenção para os degraus que faltam. Maigret ia e vinha, tocando certos objetos; descobriu assim um pedaço de vela e uma caixa de fósforos. A vela fora colada no fundo de uma xícara rachada.

       Pela primeira vez, em sua vida, assistia a semelhante espetáculo; e seu assombro só fazia aumentar.

       — Como morreu?

       — Várias balas no peito e no ventre.

       — Grosso calibre?

       — Médio... Provavelmente um 32...

       — Alguma coisa nos bolsos do paletó?

       Imaginava a cara do comissário, tão elegante e delicado, a revistar os trapos imundos.

       — Um botão, pedaços de barbante, uma fatia de pão duro...

       — Dinheiro?

       — Duas moedas de vinte e cinco cêntimos...

       — E nas calças?

       — Um molambo que devia usar como lenço, algumas "guimbas" numa lata de pastilhas contra a tosse.

       — Carteira?

       — Não...

       Até os mendigos dos cais, que dormiam sob as pontes, possuíam um documento qualquer, nem que fosse uma simples carteira de identidade.

       Torrence, de regresso, mostrava-se tão pasmado quanto Maigret.

       — Já vêm...

       De fato, Moers e os homens da Identidade Judiciária seguiam o jovem Nicolier, pelas escadas; olharam em volta, perplexos.

       — Um crime?

       — Sim... Suicídio não pode ser; não há arma alguma no local.

       — Por onde começamos?

       — Pelas impressões digitais; a primeira coisa a fazer é identificá-lo...

       — É pena estragar mãos tão bem cuidadas... Tiraram as impressões assim mesmo.

       — Fotografia?

       — Claro.

       — Sabe, é um homem bonito, e deve ter sido forte à beça.

       Ouvia-se agora os passos prudentes do representante do Ministério Público, do juiz de instrução Cassure e do escrivão. Os três, com grande espanto, fitavam o espetáculo que se lhes oferecia no quarto.

      — Quando foi morto? — perguntou o representante do Ministério Público.

       — Logo saberemos. Eis o doutor Lagodinec.

       Este era jovem e cheio de entusiasmo. Apertou a mão de Maigret, saudou os outros e dirigiu-se para o leito. Outro destroço humano encontrado na rua, num terreno baldio.

       — Identificaram-no?

       — Não...

       Olhavam para o chão, com certo receio. Havia muitas pessoas no cômodo que oscilava, parecendo prestes a desmoronar.

       — Corremos o risco de parar no andar de baixo... — observou o jovem médico.

       Aguardou que terminassem com as fotos; aproximou-se então do corpo para iniciar o exame. Desnudaram-lhe o peito e viram os buracos negros causados pelas balas.

       — Utilizaram três cartuchos, a menos de um metro de distância; o assassino atirou com cuidado e é bem provável que a vítima dormisse. De outra forma, as balas não estariam tão bem agrupadas.

       — Morte instantânea?

       — Sim. O ventrículo esquerdo foi atingido.

       — Acha que os projéteis atravessaram o corpo?

       — Saberei quando virá-lo...

       Um dos fotógrafos ajudou-o. Só uma bala traspassara o peito do estranho mendigo; encontrá-la-iam, certamente, no colchão.

       — Temos água por aqui?

       — Não, foi cortada.

       — E onde se lava tão cuidadosamente, pois seu corpo está limpo?...

       — Pode estabelecer, aproximadamente, a hora da morte?

       — Entre dezenove e vinte e três horas. Maior precisão, só após a autópsia... Foi identificado?

       — Ainda não. Vamos fornecer o retrato aos jornais. Aliás, quando teremos as primeiras fotos?

       — Dentro de uma hora, mais ou menos...

       O fotógrafo partiu enquanto os técnicos procuravam impressões digitais em todos os objetos.

       — Suponho que não precisa mais de mim? — murmurou o representante do Ministério Público.

       — E de mim também não? — acrescentou o juiz Cassure.

       Maigret, distraído, fumava lentamente seu cachimbo. Demorou alguns segundos antes de perceber que falavam com ele.

       — Não. Mantê-los-ei informados... E, para o médico-legista:

       — O senhor julga que estivesse bêbedo?

       — É pouco provável. Mas o conteúdo do estômago é quem vai dizer... A primeira vista, não me parece que este homem bebesse.

       — Um mendigo que não bebe, — sussurrou Ascan. — Coisa rara...

       — E se não fosse um mendigo? — redarguiu Torrence.

       Maigret, por seu turno, nada dizia. Seu olhar parecia, por assim dizer, fotografar os menores objetos, os mais ínfimos detalhes do cômodo. Ainda não decorrera um quarto de hora — o pessoal da Identidade Judiciária prosseguia em sua tarefa — quando o furgão do Instituto Médico Legal parou na travessa, e o jovem Nicolier desceu para mostrar o caminho aos dois homens que conduziam a maca.

       — Sim, podem levá-lo...

       Viram-no ainda uma vez de frente, o rosto nobre e a barbicha tão bem talhada.

       — Esse "cara" é um bocado pesado, — disse um dos carregadores.

       E foi com dificuldades que desceram com o seu fardo, devido aos degraus que faltavam. Maigret chamou o menino.

       — Diga-me, rapaz, existe no bairro uma escola de cabeleireiro?

       — Sim, senhor Maigret. Na rua Saint-Denis, a três passos do nosso açougue.

       Dez anos antes, Maigret fora chamado a um desses estabelecimentos, quando procurava um criminoso. Haveria outros, em Paris, bem mais luxuosos. Mas, no bairro dos Halles, não encontraria salões de primeira categoria.

       E, certamente, a escola da rua Saint-Denis, como outras, recorria a mendigos para as experiências desajeitadas dos alunos iniciantes. Havia homens e mulheres, sem falar das futuras manicuras.

       Mas, antes de para lá se dirigir, Maigret necessitava das fotos. Por enquanto, restava-lhe aguardar o resultado das impressões digitais.

       Deixou Moers e sua equipe a trabalhar, e desceu com Torrence e Ascan. Sentiram-se aliviados ao respirar o ar relativamente puro da travessa.

       — Por que razão acha que o mataram?

       — Não tenho a menor ideia.

       No fim da abóbada havia um pátio, entulhado de velhas caixas e outros detritos. Ainda assim Maigret descobriu a resposta para uma das perguntas do médico. Pregada a uma parede havia uma bomba e, no chão, um balde em relativamente bom estado. Experimentou a bomba. Custou um pouco a pegar, mas finalmente a água começou a jorrar.

       Não seria este o local onde o desconhecido se lavava? Imaginava-o, de torso nu, a enxugar-se.

       Despediu-se do comissário de polícia Ascan e tomou a direção da rua da Grande-Truanderie e, em seguida, dos Halles. Fazia cada vez mais calor, e como precisasse telefonar, aproveitou para entrar num bar, de aspecto razoável, e pediu um chope, no que foi acompanhado por Torrence.

       — Ligue-me com a Identidade Judiciária!

       Mandou em seguida chamar o inspetor Lebel, que se ocupara das impressões digitais do homem.

       — Alô... Lebel?... Teve tempo de consultar os fichários?

       — Acabo de voltar. Nada que corresponda às impressões do desconhecido.

       Outra anomalia. A maioria dos mendigos, em uma ocasião ou outra, já enfrentou a justiça.

       — Obrigado... E quanto às fotos?

       — Em dez minutos... Dez minutos, Mestral?

       — Digamos quinze...

       A P.J. ficava próxima e em alguns instantes os dois chegavam ao Quai des Orfèvres. Maigret subiu aos laboratórios e teve que aguardar que os retratos secassem. Deixara Torrence na sala dos inspetores.

       Apanhou, em triplicata, cada uma das fotos, retornou à P.J. e encarregou o inspetor Lourtie de levá-las aos jornais, principalmente os vespertinos.

       — Bem, Torrence. Ainda falta uma hora para o almoço, vamos bater de porta em porta.

       Passou-lhe um jogo completo.

       — Mostre-as aos donos das lojas e dos bares próximos aos Halles. Encontrar-nos-emos perto do carro...

       Ele mesmo, a pé, foi para a rua Saint-Denis. Estreita, permanecia ruidosa apesar das férias, pois a pequena população do bairro não era a que frequenta normalmente as praias.

       O comissário olhava a numeração. O que lhe indicaram pertencia a uma loja de sementes. À esquerda da vitrina, abria-se um corredor que conduzia a um pátio. No meio do caminho, uma escada, com duas placas esmaltadas fixadas à parede, outrora verde, mas agora de uma cor indefinida.

        

       Joseph

        Escola de cabeleireiro e de manicure

 

        

       E uma seta indicava a escada, ao lado das palavras: "Na sobreloja".

       Logo abaixo, a outra:

        

       Viúva Cordier

        Flores artificiais

         

       Aqui, também uma flecha apontava para os degraus, informando: "Segundo andar".

       Maigret enxugou o suor, subiu à sobreloja, empurrou uma porta e encontrou-se num cômodo espaçoso, sombrio apesar das duas janelas. A luz, provinha de dois lustres desbotados que pendiam do teto.

       Deparou com duas filas de poltronas, aparentemente uma para os homens e outra para as mulheres. Rapazes e moças trabalhavam sob a direção de homens mais idosos, e um personagem baixo e magro, quase calvo, com os bigodes pintados de preto, supervisionava o conjunto.

       – Suponho que seja o dono?

       – Sim, sou o senhor Joseph.

       Tanto podia ter sessenta como setenta e cinco anos. Maigret, maquinalmente, olhava os homens e mulheres sentados nas cadeiras, certamente compradas de segunda mão. Julgava encontrar-se no Exército da Salvação ou sob as pontes, pois em mendigos de ambos os sexos, os aprendizes manejavam pentes, tesouras e navalhas. Era mais impressionante ainda, devido à péssima claridade. Por causa do calor as duas janelas achavam-se abertas trazendo os ruídos da rua, o que tornava o ambiente da escola ainda mais irreal.

       Antes que Joseph perdesse a paciência, Maigret tirou as fotos do bolso, passando-as ao homenzinho.

       — O que preciso fazer com elas?

       — Olhe-as... Diga-me depois se o reconhece?

       — E ele, o que fez? O senhor é da polícia, não? Mostrava-se visivelmente desconfiado.

       — Comissário Maigret, da Polícia Judiciária. O que pouco impressionou o senhor Joseph.

       — Procura-o?

       — Não. Infelizmente já o encontramos. Levou três tiros no peito.

       — E onde aconteceu?

       — Na casa dele... Se assim podemos dizer... O que sabe de sua residência?

       — Nada...

       — Instalara-se num imóvel em vias de demolição. Um guri que brincava pelo prédio descobriu-o e avisou a polícia. Conhece-o?

       — Sim... Aqui, chamavam-no de Aristo3.

       — Vinha com frequência?

      — Dependia. Certas ocasiões sumia durante um mês inteiro; em seguida, aparecia duas ou três vezes por semana.

       — Sabe o seu nome?

       — Não.

       — E o sobrenome?

       — Não.

       — Falava parcimoniosamente?

       — Não falava nada. Sentava-se na primeira cadeira livre, fechava os olhos e permitia que agíssemos à vontade. Fui eu quem pediu que deixasse crescer os bigodes e a barbicha. Está novamente na moda e os jovens barbeiros devem saber apará-los, o que é mais difícil do que se pensa.

       — Há quanto tempo?

       — Uns três ou quatro meses.

       — Antes, não usava barba?

       — Não... Tem magníficos cabelos, muito jeitosos.

       — Faz tempo que frequenta sua escola?

       — Cerca de quatro anos.

       — O senhor só atende mendigos...

       — Quase exclusivamente. Sabem que no fim da manhã ou da tarde, dou-lhes sempre uma moeda de cinco francos.

       — A ele também?

       — Claro.

       — Ele conhecia alguns dos seus habitués?

       — Jamais o vi falando com alguém; e quando lhe dirigiam a palavra fingia não ouvir.

       Quase meio-dia. As tesouras funcionavam mais rapidamente. Dentro de mais alguns minutos, seria a debandada, como na escola...

       — O senhor mora por aqui?

       — Sim, com a minha esposa, no primeiro pavimento deste imóvel, bem em cima de suas cabeças.

       — Já lhe sucedeu encontrar nosso homem pelas ruas do bairro?

       — Acho que não. De qualquer forma, se aconteceu, o fato não me impressionou. Queira desculpar-me, mas está na hora...

       Foi apertar uma campainha e instalou-se atrás de uma espécie de balcão, diante do qual uma fila formou-se.

       Maigret desceu lentamente. Após tantos anos de Polícia Judiciária, incluindo o serviço de ruas e estações, julgava conhecer toda a fauna de Paris. Ora, não se recordava de ter encontrado um homem parecido com este tal de Aristo.

       Caminhou vagarosamente para o carro, estacionado na esquina da rua Rambuteau. Torrence chegou quase ao mesmo tempo, limpando o suor da testa.

       — Alguma novidade?

       — Primeiro a padaria, na rua do Cygne, onde comprava pão.

       — Diariamente?

       — Quase. E sempre no fim da manhã.

       — A dona da padaria nada sabe a seu respeito?

       — Nada mesmo. Só abria a boca para fazer sua encomenda.

       — Nunca comprara outras coisas?

       — Ali, não. Na rua Coquilière adquiria fatias de salaminho, ou pasta de fígado. Na esquina existe uma carrocinha de batatas fritas que, principalmente à noite, vende salsichas quentes. Às vezes, por volta das três da madrugada, levava um saco de batatas e uma salsicha...

       — Mostrei as fotos em dois ou três bares. Viam-no regularmente, e sempre pedia uma xícara de café. Não tomava vinho nem álcool...

       O personagem tornava-se cada vez mais estranho. O Aristo, para usar a linguagem do senhor Joseph, parecia não ter contato algum com outros seres humanos. Devia trabalhar, durante a noite, nos Halles — quando encontrava emprego — descarregando caminhões de legumes ou frutas.

       Preciso telefonar para o Instituto Médico Legal, lembrou o comissário.

       Isto permitir-lhe-ia o segundo chope da manhã...

       — O doutor Lagodinec, por favor...

       — Espere, vou chamá-lo. Está justamente de saída.

       — Alô! Lagodinec? Fala Maigret... Suponho que ainda não iniciou a autópsia...

       — Hoje à tarde...

       — Poderia não tocar no rosto? Necessito de outras fotos.

       — É fácil. Quando enviará os fotógrafos?

       — Amanhã cedo, em companhia de um aprendiz de cabeleireiro...

       — O que pretende?

       — Raspar-lhe a barba e os bigodes...

       Torrence deixou-o em frente de casa, no boulevard Richard- Lenoir.

       — Continuo, depois do almoço? — perguntou.

       — Sim...

       — Sempre no mesmo bairro?

       — Pelos cais, também. Talvez dormisse por lá, numa certa época.

        

       A senhora Maigret logo constatou sua inquietação; não o demonstrou, porém.

       — Com fome?

       — Não muita.

       Era ele que se sentia impelido a relatar os acontecimentos da manhã.

      — Acabo de encontrar um dos tipos mais estranhos que jamais conheci...

       — Um criminoso?

       — Não. Uma vítima. O homem morreu... Instalara-se numa casa vazia, de há muito destinada à demolição. Ocupava a única peça mais ou menos habitável, e colecionava os objetos mais heteróclitos possíveis, que apanhava nas latas de lixo e nos terrenos baldios...

       — Um mendigo, em suma.

       — Só que apresentava um aspecto bastante distinto.

       Contou a história da escola de cabeleireiro, e mostrou as fotos à sua esposa.

       — Claro que é difícil julgar pelas fotos de um morto...

       — Lá em seu bairro, devem conhecê-lo, não?

       — Ninguém sabe seu sobrenome, nem mesmo seu nome. Na escola chamavam-no de Aristo... Os retratos serão publicados nos jornais da tarde. Imagino somente se os leitores reconhecê-lo-ão...

       Como dissera, comeu com pouco apetite. Detestava não entender as coisas. Ora, nada compreendia no que dizia respeito à sua descoberta matinal.

       Às duas horas, sentado em seu gabinete, encheu o cachimbo e terminou a leitura da correspondência. Ao lhe mostrarem os periódicos, constatou que dois publicaram a foto na primeira página.

       "Conhecem este homem?" perguntava um. O outro anunciava: "Um morto sem nome"

       Havia jornalistas no corredor e Maigret recebeu-os. Quase nada havia a declarar, a não ser que se esforçava na identificação do homem da travessa do Vieux-Four.

       — E a hipótese de suicídio?

       — Não encontramos arma alguma, não só no quarto, como em todo o prédio.

       — Podemos fotografá-lo?

       — O corpo já foi retirado, é claro.

       — Retratos do ambiente...

       — Se quiserem... Há um guarda na entrada. Digam que vieram em meu nome.

       — O senhor parece preocupado.

       — Procuro compreender, e espero consegui-lo, cedo ou tarde. Desta vez não escondo o jogo. Disse-lhes tudo o que sabia. Quanto mais falarmos, melhor será...

       Por volta das quatro horas, começaram os telefonemas. Alguns partiam de engraçadinhos, outros dos amalucados que sempre surgem em casos semelhantes. Uma jovem indagou:

       — Ele tem uma verruga na face?

       — Não.

       — Não se trata, então, de quem eu pensava...

       Quatro ou cinco pessoas compareceram à Polícia Judiciária. Maigret recebeu-os pacientemente, mostrando as diferentes fotos.

       — Reconhecem-no?

       — Existe uma certa semelhança com um de meus tios que já sumiu várias vezes... Mas, não... Não é ele... Era alto, não?

       — Um metro e oitenta, mais ou menos.

       — Meu tio era baixo e muito magro...

       Pela primeira vez, durante a semana, a tempestade não se desencadeou e estava terrivelmente abafado.

       Pelas cinco horas, Torrence regressou.

       — Encontrou algo?

       — Quase nada... Sob a Pont-Marie, um velho mendigo lembrou-se vagamente do nosso homem, mas não sei até onde merece confiança. Parece que anos atrás o desconhecido dormia sob as pontes...

       Não era muito sociável. Calculavam que passasse uma parte das noites nos Halles, mas é tudo que se pode afirmar...

       — Nem nome, nem sobrenome, nem apelido...

       — Um apelido, sim: o mudo.

       — Nada mais?

       — De vez em quando comprava uma vela.

       Às seis, obteve, finalmente, novidades mais precisas. O doutor Lagodinec, terminada a autópsia, telefonava-lhe.

       — Envio o relatório completo amanhã de manhã. Mas posso adiantar, grosso modo, o que sei. Em minha opinião, o homem é menos idoso do que parece. Quanto calcula que tem, Maigret?

       — Sessenta e cinco? Setenta anos?

       — Pelo estado dos órgãos e das artérias, no máximo, cinquenta e cinco.

       — Levou, naturalmente, uma existência difícil... O que encontrou no estômago?

       — Devo dizer, em primeiro lugar, que foi morto entre as duas e as cinco da madrugada; ou melhor, antes três do que cinco... Sua última refeição, semi-digerida, compunha-se de fritas e salsicha. Deve tê-los ingerido por volta das duas horas, antes de voltar para casa e deitar-se.

       — E aproveitaram seu sono para...

       — Para que? — objetou o médico. — Seu visitante talvez fosse alguém em quem confiasse; assim...

       — Não posso imaginá-lo confiando em quem quer que seja... E quanto a doenças?

       — Nenhuma... Nenhuma deformação, também... Um homem bem forte e particularmente resistente.

       — Muito obrigado, doutor. Aguardo seu relatório. Se quiser, aliás, mando apanhá-lo amanhã...

       — Mas não antes das nove, por favor...

       — Certo. Às nove, então...

       O que mais impressionara Maigret fora a idade de Aristo. Aparentava ser mendigo há muitos anos e estes, geralmente, são bem mais velhos. Tendem, também, a ligar-se uns com os outros. De uma ponta do cais de Paris, rio acima, à outra, rio abaixo, conhecem-se, ou quase; e um recém-chegado logo instigaria a curiosidade dos veteranos...

       — O que mais descobriu, Torrence?

       — Quase nada. Além do velho da Pont-Marie, os outros não se recordam dele. E alguns já se acham pelas redondezas há mais de dez anos. Fui à tabacaria mais próxima de sua casa; comprava fósforos ali.

       — E cigarros?

       — Não. Contentava-se com as "guimbas" que recolhia pelas calçadas.

       O telefone tocou.

       — Alô!... Senhor Maigret?...

       Uma voz de mulher, e parecia jovem.

       — Sou eu, sim... Com quem tenho a honra de falar?

       — Meu nome não importa... O homem que encontraram hoje, possuía uma cicatriz no couro cabeludo?

       — Confesso que ainda ignoro... Espero que, se existir uma, seja assinalada no relatório do médico-legista que receberei amanhã de manhã...

       — Já tem uma ideia de quem se trata?

       — Por enquanto, não.

       — Ligarei amanhã, durante o dia...

       E sem acrescentar mais nada, desligou. Maigret percebeu então que não precisaria aguardar o relatório para responder à pergunta da mulher. Discou para a escola de cabeleireiros e chamou Joseph.

       – Fala o comissário Maigret. Há uma pergunta que só me ocorreu agora. O senhor chegou a pentear Aristo?

       – Sim, para mostrar aos meus alunos...

       – Notou alguma cicatriz no couro cabeludo?

       – Sim. Mas não ousei indagar a causa.

       – Grande?

       – Uns seis centímetros. Como não houve sutura, a cicatriz ficou bem larga...

       — Dava para ver, apesar dos cabelos?

       — Não, quando bem penteados. Sua cabeleira era linda, creio que já lhe disse...

       — Obrigado...

       Durante alguns instantes um contato fora estabelecido. Em algum lugar de Paris, havia uma jovem ou uma senhora, que conhecia Aristo, pois estava a par de sua cicatriz. Tomara o cuidado de desligar antes que Maigret fizesse mais perguntas. Telefonaria, novamente, como prometera?

       Maigret ardia de impaciência. Sentia pressa em dar um nome a este desconhecido e descobrir a razão ao seu modo de vida.

       Os singulares objetos que abarrotavam o quarto da travessa do Vieux-Four pertenceriam a um louco, a um colecionador? Para que juntar assim, peças que jamais poderia vender, e que de nada serviam?

       Mas Maigret recusava-se a admitir a ideia da loucura.

       O telefone soou novamente. Desde a publicação das fotos, Maigret esperava por isso e era o que desejava.

       — Alô!... O comissário Maigret?...

       — Sim... Com quem tenho a honra?...

       Como a interlocutora de há pouco, esta, que não parecia jovem, também não respondeu; mas, como por acaso, fez a mesma pergunta.

       — Ele tem uma cicatriz no alto da cabeça?...

       — Neste caso, sabe de alguém que se pareça com ele? Silêncio do outro lado.

       — Por que não responde?

       — Também não me respondeu.

       — Ele apresenta, realmente, uma cicatriz, de seis centímetros, mais ou menos, na parte superior do crânio...

       — Obrigado...

       E desligou, como a primeira. Existiam, portanto, duas mulheres que conheciam Aristo e que não se falavam; caso contrário, um único telefonema bastaria.

       Como encontrá-las entre cinco milhões de habitantes? E por que esta insistência em manter-se incógnitas?

       Isto irritava Maigret que saiu da Polícia Judiciária, resmungando. Entretanto, aprendera alguma coisa: seu homem solitário não fora sempre tão solitário assim...

       Duas mulheres. Duas mulheres que guardavam sua lembrança, mas que não desejavam ser interrogadas.

       — Por que?

       Refrescara um pouco, apesar da ausência do temporal. Uma leve brisa começava a soprar, impelindo pequenas nuvens róseas no firmamento, como num cenário de ópera.

       Tomou um chope. Prometera ao doutor Pardon não exagerar mais. Seria, porém demasiado, ingerir, durante um dia inteiro, três copos de cerveja?

       Tentava afastar Aristo de seus pensamentos. Imaginava quem descobrira seu estranho refúgio e a razão de havê-lo morto.

       Encolheu os ombros, de mau humor. Estava errado e bem o sabia; como em todos os inquéritos almejava compreender tudo, imediatamente. E, cada vez, resmungava como se o destino lhe reservasse alguma injustiça.

       Depois, nos dias que se seguiam, a verdade surgia. E agora, as coisas passar-se-iam também dessa forma?

       Tentou assobiar, subindo as escadas do seu prédio.

         

       Na manhã seguinte, Maigret perdera seu mau humor; foi a pé até o Quai des Orfèvres. Os caminhões da limpeza urbana percorriam as ruas quase desertas, deixando um rastro de chão molhado; uma ligeira bruma escapava do Sena.

       Subia as escadas da Polícia Judiciária quando viu um fotógrafo, carregado de máquinas, esperando-o. Figura habitual. Participava de todos os casos. Trabalhava para uma agência e poderia aguardar horas a fio que sucedesse algo. Ruivo. Parecia mais um adolescente. Quando despachavam-no por uma porta, regressava por outra ou por uma janela.

       Seus colegas chamavam-no de "Coco". Seu nome era Marcel Caune. Fotografou, ao acaso, Maigret subindo. Tratava-se talvez, do ducentésimo retrato do comissário.

       — O senhor convocou testemunhas?

       — Não.

       — Alguém aguarda-o no corredor.

       — Boa notícia.

       De fato, sentado sobre o banco, havia um homem. Bastante idoso, mas de postura ainda correta; ergueu-se com vivacidade.

       — Poderia dizer-lhe algumas palavras, senhor comissário?

       — Relativas ao caso dos Halles?

       — Sim... O crime da travessa do Vieux-Four...

       – Atendo-o num minuto...

       Conforme um antigo hábito seu, dirigiu-se, primeiro, à sala dos inspetores. Em mangas de camisa, todos, e a janela escancarada. Torrence lia um jornal com a seguinte manchete:

       "O comissário Maigret segue uma pista." Mas, na realidade, não havia pista alguma.

       — Nada de novo, crianças?

       — Cartas anônimas, como sempre. E daquelas doidas, também...

       Do seu gabinete, Maigret telefonou para a escola de cabeleireiros.

       — Senhor Joseph?... Preciso de um favor seu... Poderia mandar um de seus aprendizes ao Instituto Médico Legal, raspar os bigodes e a barbicha do Aristo?... Pagarei o serviço, é claro...

       — Prefiro ir eu mesmo. É uma tarefa delicada.

       Ligou, depois, para a Identidade Judiciária e falou com Moers.

       — Mestral encontra-se aí?

       — Acaba de chegar.

       — Quer fazer a gentileza de enviá-lo ao Instituto Médico Legal? Um barbeiro raspará o rosto do nosso desconhecido. Assim que terminar, gostaria de algumas boas fotos, sob diversos ângulos. É urgente... — Mal desligou e o telefone tocou.

       — Alô!... Comissário Maigret?... Pensou reconhecer a voz.

       — Telefonei ontem, a respeito do crime dos Halles... A voz jovem. Não a outra.

       — Suponho que deseja repetir a pergunta?

       — Sim.

       — A senhora não é a única.

       — Ah!

       — Uma outra mulher ligou e usou as mesmas palavras...

       — E o que lhe respondeu?

       — Dir-lhe-ei se vier até aqui ou se me der seus nome e endereço...

       — Não faço questão...

       — Como quiser...

       E, desta vez, foi Maigret quem desligou, resmungando:

       — Filha da p...!

       Pelo menos três pessoas, em suma, conheciam a identidade de Aristo: as duas mulheres que telefonaram com respeito à cicatriz, e o assassino, é claro.

       Maigret abriu a porta. Seu visitante, baixo e magro, levantou- se rapidamente e caminhou em sua direção.

       — Temi que o senhor não me recebesse.

       Havia, em seu modo de andar, em sua atitude, em sua fala, algo que impressionou o comissário; mas não atinou o que.

       — Meu nome é Emile Hugon e resido na rua Lepic, no mesmo apartamento que meus pais habitavam quando nasci...

       — Sente-se.

       — Com esta cara, tenho oitenta e cinco anos...

       Parecia muito orgulhoso de sua excelente aparência.

       — Vim de Montmartre a pé; e caminho diariamente pelo menos, durante duas horas...

       Maigret percebeu que seria inútil fazer-lhe muitas perguntas.

       — No bairro, conhecem-me como Coronel. Fique sabendo que jamais cheguei a coronel, só capitão... Quando a guerra de 1914 rebentou, cursava a escola de sub-oficiais... Lutei em Verdun e no Chemin des Dames... De Verdun consegui sair ileso... Mas no Chemin des Dames recebi estilhaços de obus na perna, e manco até hoje. Durante a segunda grande guerra, já ultrapassara a idade e não me aceitaram...

       A satisfação personificada, e o comissário armava-se de paciência, augurando que o Coronel não lhe contasse toda sua vida em detalhes.

       Em vez disto, perguntou bruscamente:

       — Já o identificou?

       — Ainda não...

       — A não ser que muito me engane — o que me causaria espécie — chama-se Marcel Vivien...

       — Conhece-o pessoalmente?

       — Possuía uma oficina no pátio, bem embaixo de meu apartamento. Quando eu saía, costumava passar por lá e desejar-lhe bom-dia...

       — Quando ocorreu isto?

       — Logo após a segunda guerra, em 1945...

       — Qual a idade dele?

       — Trinta e cinco anos, mais ou menos... Rapaz alto e forte, com o rosto inteligente e franco...

       — Sua profissão?

       — Marceneiro... Além do mais, concluíra cursos de arte decorativa... Sua especialidade, a restauração de móveis antigos. Vi alguns, esplêndidos, tudo em marchetaria...

       — Habitava o mesmo prédio que o senhor?

       — Não. No imóvel tinha somente a oficina. Vinha de manhã e partia ao entardecer.

       — Assemelhava-se mesmo ao retrato publicado nos jornais?

       — Juraria que sim; porém sem a barba e os bigodes...

       — Casado?

       — Claro... Uma senhora da mesma idade do que ele vinha buscá-lo no fim do dia... Tinha uma menina de oito anos que, muitas vezes, saindo da escola, passava e dava-lhe um beijo.

       — E quando perdeu-o de vista?

       — No final de 45 ou no início de 46. Um belo dia, não apareceu. No dia seguinte, também não, nem nos outros... Depois, surgiu sua senhora, com a chave... Entrou na oficina e lá permaneceu muito tempo, como a fazer um inventário...

       — Tornou a vê-la?

       — Ainda mora no mesmo bairro. Faz frequentemente suas compras nas barracas da rua Lepic... Durante vários anos ainda encontrei sua filha na rua... Ficou uma moça e acho que se casou...

       — O que aconteceu aos móveis da oficina?

       — Um caminhão de mudanças apanhou-os. Um serralheiro instalou-se no local...

       Mostrou as diferentes fotos do homem da travessa do Vieux-Four. O Coronel examinou-a cuidadosamente.

       — Continuo com a mesma opinião. Tenho quase certeza de que é ele. Há muito que me aposentei. No verão, sento-me no banco de um parque e olho as pessoas passarem... Tento adivinhar sua profissão, seu modo de vida... isto habituou-me a observar...

       — Que o senhor saiba, foi vítima de algum acidente?

       — Não tinha carro...

       — Existem outros tipos de acidente... Nunca foi ferido na cabeça?

       O Coronel deu um tapa na testa.

       — Mas é claro... Em pleno verão... Fazia muito calor, como agora... Trabalhava no pátio, reparando uma cadeira... Via-o, pela janela, quando o vaso de gerânios espatifou-se sobre sua cabeça... Fora a senhorita Blanche, inquilina do terceiro andar, que o empurrara por descuido, ao regar as flores...

       "Nada de hospital nem de médico... Desinfetou sozinho a ferida e foi à farmácia, em frente, onde fizeram-lhe um curativo..."

       — A cicatriz tornou-se visível?

       — Seus cabelos, longos e grossos, ocultavam-na. ..

       — Não se recorda de mais nada? Não tornou a revê-lo no bairro?

       — Não...

       — Mas a esposa e a filha continuaram por lá? Não se mudaram juntos, então?

       — É verdade.

       — Bebia?

       — Claro que não... Todas as manhãs, por volta das dez horas, fechava a oficina por uns minutos e tomava um cafezinho no bar ao lado...

       — Ainda habitam o imóvel alguns inquilinos daquela época?

       — Deixe-me ver... A porteira... Sim, ainda é a mesma... Seu marido, que era policial, morreu ... Ela envelheceu muito... A senhorita Blanche, de quem já falei, também vive; mas permanece o tempo todo em sua poltrona, e dizem que não está muito lúcida... Nos outros andares... Ah! os Trébuchet, no terceiro... Ele pertencia aos quadros da municipalidade... Aposentado, como eu... Todos mais idosos, é lógico.

       — Julga que reconheceriam Marcel Vivien?

       — Talvez. Mas as janelas dos Trébuchet dão para a rua... Observavam, portanto, menos do que eu o que se passava no pátio...

       — Obrigado por ter vindo, senhor Hugon... Creio que seu depoimento ser-nos-á de grande valia... Peço-lhe que acompanhe este inspetor até uma outra sala, onde fará a gentileza de repetir o que acaba de me relatar...

       — Serei chamado como testemunha, no tribunal? Dominava-o, já, uma grande excitação.

       — Calma! Precisamos, primeiro, apanhar o assassino e estabelecer, em definitivo, a identidade da vítima.

       Maigret abriu a porta da sala dos inspetores e escolheu Lourtie, o mais rápido com a máquina de escrever.

       Explicou-lhe o que desejava e o inspetor ocupou-se do Coronel. Haviam, aparentemente, deparado com uma boa pista. Maigret aguardava os retratos antes de ir à rua Lepic. Sabia que Mestral trabalhava ligeiro e, abrindo a correspondência, tentou aplacar a impaciência.

       Às dez e meia, chegou, finalmente, com uma série de provas.

       — Ele remoçou, o senhor não acha?

       — Sim... Mas parece entretanto que não era muito velho... O médico-legista dá-lhe quarenta e cinco anos, no máximo... Quantas cópias tirou?

       — Temos aqui cinco de cada pose, se podemos falar de pose no caso de um morto... O barbeiro, aliás, ficou tão impressionado, que pensei que fosse cair duro...

       — Obrigado... Pode preparar outras mais para todos os jornais. Maigret enfiou duas cópias de cada retrato no bolso e deu uma outra para Coco, o fotógrafo mais obstinado de Paris.

       — Olhe... Realizamos uma parte de seu trabalho. .. É o nosso homem, depois de escanhoado... Sua agência pode reproduzi-la e enviá-la aos jornais que preferir.

       Leduc, um dos inspetores novatos recebeu, também, duas.

       — Leve isto aos principais vespertinos... Estamos em cima da hora, pois, na realidade, são impressos logo após o almoço... Tome o cuidado de entregá-las pessoalmente ao redator-chefe ou ao secretário da redação...

       Dirigiu-se finalmente para a sala onde Lourtie transcrevia, à máquina, o testemunho do Coronel. Este, como anteriormente, ergueu-se de um salto.

       — Pode permanecer sentado... Quero apenas que veja algo...

       E estendeu-lhe as novas fotos. Assim que as viu, o rosto do Coronel iluminou-se.

       — É ele. Agora tenho certeza. É claro que envelheceu, mas é Vivien...

       Indicou a Lourtie que prosseguisse e retornou à sala dos inspetores.

       — Apanhe o seu chapéu, Torrence...

       — Vamos pra longe?

       — Até Montmartre. Rua Lepic, mais exatamente ... Mostrou os retratos ao inspetor.

       — Fizeram-lhe a barba?

       — Hoje de manhã. Acabo de receber um antigo capitão, agora com oitenta e cinco anos, que afirma reconhecê-lo, embora não o veja há uns vinte anos...

       — Quem é?

       — Talvez um ebanista que possuía uma oficina na rua Lepic, e que sumiu da noite para o dia.

       — Há vinte anos atrás?!

       — É isso.

       — Tinha família?

       — Aparentemente esposa e filha...

       — Desapareceram, também?

       — Não. Permaneceram no bairro ainda por algum tempo.

       Utilizaram uma das numerosas viaturas pretas da P.J., seguindo para a rua Lepic atravancada por barracas de feira.

       O 65-b ficava no alto da rua, à esquerda.

       — Estacione por aí e venha encontrar-se comigo. Estarei certamente com a porteira.

       Esta, ainda jovem e simpática, observou o comissário através a porta envidraçada de seu cubículo. Maigret bateu. Ela abriu.

       — O senhor deseja?

       — Comissário Maigret da Polícia Judiciária...

       — Trata-se de algum dos meus inquilinos? — perguntou espantada.

       — Alguém que, outrora, foi seu inquilino...

       — Não me enganei, então...

       — O que quer dizer?

       — Ontem, quando vi o jornal, pensei logo no senhor Vivien... Falei até com a dona do armazém, mas acrescentei:

       "— Não pode ser ele... Um rapaz tão legal, tão trabalhador... Jamais imaginei que se transformasse num mendigo..."

       Maigret mostrava-lhe as novas fotos, quando Torrence entrou.

       — Um dos meus inspetores... Olhe bem estas provas...

       — Oh! Nem é preciso... É ele... O que atrapalhava um pouco, ontem, eram os bigodes e a barbicha... Rasparam-lhe a barba...

       Completou, sem deixar de contemplar as fotografias :

       — Estou abobalhada...

       — A senhora recorda-se da forma como deixou o local? Despediu-se dos vizinhos? Entregou aos clientes os móveis nos quais trabalhava?

       – Nada disso... Um belo dia, simplesmente, não apareceu mais; e nunca mais foi visto no bairro...

       — Avisaram a polícia?

       — Não sei, talvez a mulher... Vinha raramente vê-lo durante o dia... De vez em quando passava e dava-lhe um abraço... Moravam perto, na rua Caulaincourt; o número, não sei, mas ficava próximo a uma tinturaria...

       — Reviu a esposa, mais tarde?

       — Frequentemente, perto das barracas... Continuou fazendo compras na rua Lepic... O cabelo encaneceu e emagreceu muito; naquela época era bem gorduchinha...

       — Falou com ela?

       — Cruzamos uma com a outra por duas ou três vezes; mas parece que não me reconheceu.

       — Recentemente?

       — Não. Há vários meses... Talvez um ano...

       — E a filha? Deve contar agora vinte e oito anos...

       — Falaram-me, não sei mais quem, que se casara e tivera filhos.

       — Vive em Montmartre?

       — Aparentemente. Mas não sei onde.

       — Posso dar uma olhada na oficina?

       — Siga o corredor e abra a porta do pátio. Encontrará o senhor Benoit, o serralheiro, trabalhando.

       Deparou com um homem de uns trinta anos, extremamente simpático.

       — Em que lhe posso ser útil? Maigret exibiu sua identidade.

       — Suponho que se trata do homem assassinado com três tiros no peito?... Comentavam o caso hoje cedo, no bar onde tomo um trago todas as manhãs.

       — Conheceu-o?

       — Claro que não. Quando saiu daqui eu era uma criança com apenas dez anos... Um tapeceiro e decorador ocupou o lugar, durante uns quinze anos. Mas, não sendo muito jovem, decidiu terminar seus dias no campo. Foi então que aluguei o local...

       — Houve alguém que pedisse informações sobre Marcel Vivien?

       — Ninguém... Mas desde ontem os velhos da rua não cessam de falar... Hoje, na hora do café, não se tocava em outra coisa. Todos os que dele se recordam não entendem porque transformou-se em mendigo... Dizem que era um homem bonito, alto e forte, com uma boa profissão, ganhando muito bem... No entanto, sumiu do dia para a noite sem avisar a ninguém...

       — Nem mesmo à sua esposa?

       — Parece que não... Ignoro se é verdade... Repito somente o que ouvi... Corre o boato de que decorreram vários dias, uma semana talvez, após o seu desaparecimento, antes que ela aparecesse para saber o que sucedera... Eis o que sei; mas se desejar ouvir mais a respeito, basta ir ao bar, aqui ao lado...

       — Obrigado.

       Retornou à rua Lepic, em companhia de Torrence. A identidade do morto dos Halles, delineava-se. Entraram os dois no café vizinho. Notaram, de imediato que, a freguesia junto ao balcão – um balcão à moda antiga — era composta por habitués.

       — O que lhes posso servir?

       — Um chope.

       — Para mim também, — completou Torrence.

       Reinava um odor agradável de frutas e legumes, proveniente das barracas alinhadas ao longo da calçada.

       Foram servidos pelo dono.

       — O senhor não é o comissário Maigret?

       — Sou.

       — Acredito que veio por causa do homem cuja foto os jornais de ontem à tarde publicaram?...

       Agora, todos olhavam-nos. O problema resumia-se em quem falaria em primeiro lugar...

         

       E foi um homem forte, com enormes braços, de avental branco manchado de sangue, um açougueiro.

       — Quem sabe se ele não se "mandou" com uma mocinha e quando esta o deixou, faltou-lhe coragem para enfrentar a mulher? Tive um empregado durante quase dez anos. O sujeito mais pacato do mundo. Ora, um dia ele desaparece, sem mais nem menos. Partira com uma jovem de dezoito anos. E ele, com quarenta e cinco. Dois anos mais tarde encontraram sua pista no serviço de assistência aos desempregados, em Estrasburgo...

       Os demais aprovaram com a cabeça. Era um bar típico dos bairros populosos. A maioria dos presentes compunha-se de artesãos, pequenos comerciantes, aposentados que tomavam um trago no meio da manhã.

       — Alguém o viu, após o sucedido? Olharam-se, uns aos outros.

       Um magricela, de avental de couro, expressou a opinião geral.

       — Ele não seria tão idiota para voltar ao bairro.

       — Conheceu sua esposa?

       — Não. Nem mesmo onde residia. Encontrava-o somente aqui, quando vinha para o café. Não era dos mais conversadores...

       — Era orgulhoso, então?

       — Orgulhoso não, apenas não sentia vontade de falar.

       Maigret bebericava o seu chope. O primeiro do dia. Contava-os. Quando encontrasse o doutor Pardon, citar-lhe-ia as cifras, com certa vaidade. Era bem verdade que, quanto ao fumo, os resultados surgiam menos brilhantes. Continuava a fumar o seu cachimbo durante o dia inteiro. Não podiam suprimir todos os seus prazeres só porque atingia os cinquenta e cinco anos.

       — Penso tê-lo encontrado, certa vez, na rua da Cossonnerie. Mas de cabelos inteiramente brancos e maltrapilho como um mendigo. Julguei que me enganara e continuei andando.

       Um velhinho, que tomava um aperitivo fora de moda há uns quarenta anos, assim falara.

       — Há quanto tempo?

       — Talvez uns três meses... Mais, pois a primavera, atrasada, ainda não começara...

       — Obrigado, senhores.

       — De nada. Às suas ordens. Espero que consiga agarrar o crápula que atirou no pobre coitado.

      Caminharam em direção à rua Caulaincourt. Bateriam em todas as portas, interrogariam todas as porteiras, para descobrir a esposa de Vivien, se é que ainda morava no bairro?

       Faltou a Maigret, devido ao calor, a coragem suficiente; dirigiu-se para a delegacia de polícia da rua Lambert.

       Conhecera, outrora, um homem que se esfumaçara nas mesmas condições que o ebanista; ignorava, entretanto, se os motivos eram idênticos.

       Tratava-se de um rico industrial parisiense, aparentemente sem problemas. Um cinquentão, com esposa e dois filhos dos quais um, com vinte e um anos, cursava a universidade. Quanto à filha, três anos mais jovem nada corria de desabonador a seu respeito.

       Certa manhã, na hora habitual, saíra para a fábrica, em Levallois. Ele mesmo dirigia. Entretanto, ficaram sem notícias suas durantes vários anos.

       Seu carro foi encontrado perto da rua do Temple. Não se tinha conhecimento de que possuísse amantes. Seu médico atestou de que não sofria de moléstia grave podendo ainda viver longo tempo.

       A polícia procurou-o por toda a parte, menos, evidentemente, onde se achava. De fato, resolvera, de um dia para o outro, transformar-se em mendigo. Vendera suas roupas a um comerciante da rua dos Blancs-Manteaux, e vestira verdadeiros trapos. Desde então, deixara de se barbear.

       Três anos depois, um de seus antigos fornecedores reconheceu-o em Nice, apesar do rosto escondido por espessa barba. Vendia jornais nos terraços dos cafés. O homem, julgando agir corretamente, avisou a polícia e a esposa. Mas, ao iniciarem a busca pela cidade, não mais o encontraram. Maigret pensava muito nele.

       — A senhora deveria ordenar que cessassem as investigações... Tem agora a prova de que não morreu e leva esta vida por vontade própria...

       — Não pretende insinuar que virou mendigo propositalmente?...

       Ela não compreendera. Mas Maigret guardara sua carteira de identidade e assim foi possível prevenir a família, quinze anos mais tarde, quando ele faleceu, na parte velha de Marselha, ainda existente naquela época.

       — Bom dia, Dubois, — disse Maigret para o sargento atrás de uma escrivaninha.

       Por milagre, ou talvez por causa da estação, a delegacia encontrava-se vazia.

       — O chefe acaba de sair, mas volta logo.

       — Não preciso falar com ele. Gostaria simplesmente que o senhor consultasse os arquivos e me informasse se uma certa senhora Vivien, a senhora Marcel Vivien ainda mora no bairro...

       — Tem alguma ideia de seu último domicílio?

       — Rua Caulaincourt, mas ignoro o número.

       — É recente?

       — Não. Tem uns vinte anos...

       O policial abriu vários livros pretos, enormes, percorrendo com o indicador algumas páginas. Um quarto de hora mais tarde, encontrou.

       — Seu nome é Gabrielle?

       — Isto mesmo.

       — Os registros indicam rua Caulaincourt, número sessenta e sete.

       — Muito obrigado, Dubois. Conseguimos economizar pelo menos uma hora, batendo de porta em porta, pois a rua é comprida.

       Os dois foram de carro, embora houvesse apenas trezentos metros a percorrer. O sessenta e sete situava-se mais ou menos na altura da praça Constantin-Pecquer.

       — Devo acompanhá-lo?

       — Talvez seja melhor que eu vá só. Juntos, poderemos assustá-la.

       — Espero-o, então, no Chez Manière...

       A famosa cervejaria ficava a dois passos. Maigret bateu na porta do cubículo da porteira, onde via uma jovem arrumando frutas numa travessa.

       — Entre...

       Ele empurrou a porta.

       — Em que lhe posso ser útil?

       — Preciso de uma informação. A senhora Vivien ainda mora aqui?

       — No quarto andar.

       — O mesmo apartamento que ocupava com o marido?

       — Eu ainda não trabalhava aqui. Era muito jovem. Creio que trocou de andar, para um apartamento menor: duas peças e uma cozinha nos fundos...

       — Está em casa?

       — Com toda certeza. Só sai de manhã cedo, para as compras. E olhe lá! Assim mesmo, nem todos os dias.

       Havia um pequeno elevador, para o qual Maigret se dirigiu. A porteira alcançou-o, dizendo:

       — É a porta da esquerda...

       — Obrigado...

       Maigret achava-se mais impaciente do que nunca. Considerava-se no bom caminho e, dentro de alguns minutos, assim julgava, conheceria toda a verdade a respeito do homem da travessa do Vieux-Four.

       Apertou a campainha e ouviu seu eco do outro lado. A porta abriu-se mostrando uma mulher de certa idade, a fisionomia severa, que o fitou, franzindo as sobrancelhas.

       — A senhora Vivien?

       — O que deseja? É jornalista?

       — Não. Sou o comissário Maigret, da P.J., e penso que me telefonou ontem.

       Não houve resposta, nem um convite para que entrasse. Encaravam-se, sem tomar uma decisão, e foi o comissário quem, finalmente empurrou a porta e penetrou no vestíbulo.

       — Nada tenho a declarar, — exclamou, como a encerrar o assunto, em definitivo.

       — Peço-lhe somente que responda algumas perguntas.

       Uma porta entreaberta, mostrava um salão que mais parecia uma oficina de modista. A máquina de costura, colocada sobre uma pequena mesa; uma outra, bem maior, estava coberta de vestidos inacabados.

       — A senhora agora é costureira?

       — Cada um ganha a vida como pode.

       As cadeiras estavam tão apinhadas quanto a mesa e Maigret permaneceu de pé. Sua interlocutora, também.

       O que mais impressionava era a dureza do seu rosto, a rigidez do seu corpo. Sentia-se que sofrerá muito, tornando-se introvertida, reservada.

       Devia ter sido bonita, quando bem arrumada; mas agora, não mais ligava para o seu aspecto.

       — Duas pessoas, mulheres, telefonaram-me ontem, fazendo a mesma pergunta; e ambas desligaram, logo, como se não desejassem ser identificadas... Suponho que a segunda seja sua filha...

       Não houve resposta.

       — Casou-se? Tem filhos?

       — O que tem o senhor com isto? Não nos pode deixar em paz? Se continuar, aparecerão os jornalistas, os fotógrafos...

       — Prometo-lhe não indicar seu endereço... Ela deu de ombros, resignada.

       — Seu marido foi identificado por várias pessoas. Não existe, portanto, dúvida alguma. Chegou a conhecer o seu modo de vida?

       — Não.

       — O que lhe disse quando partiu, há vinte anos atrás?

       — Nada.

       — Houve alguma modificação em sua atitude, nos últimos tempos?

       Ela estremecera? Ou fora somente uma impressão?

       — Continuou sempre o mesmo.

       — Seu relacionamento com ele era bom?

       — Era a sua esposa.

       — Marido e mulher, com frequência, brigam muito, e a vida do casal torna-se difícil.

       — O que não sucedia conosco!

       — Ele saía, à noite, sozinho?

       — Não. E quando acontecia eu acompanhava-o.

       — Onde iam, por exemplo?

       — Ao cinema. Ou passeávamos pelo bairro.

       — Nos dias que precederam sua partida, pareceu-lhe preocupado?

       — Não.

       Maigret calculou que, se utilizava na maioria das vezes, monossílabos, era porque mentia.

       — Amigos seus vinham visitá-los?

       — Não.

       — Família?

       — Nem eu nem ele tínhamos parentes em Paris.

       — Onde o encontrou?

       — Na loja em que eu trabalhava.

       Possuía a tez pálida, apagada dos que vivem sempre trancados; seu corpo perdera toda a leveza.

       — É tudo.

       — Tem uma foto dele?

       — Não.

       — Vejo uma sobre a lareira.

       Um Marcel Vivien jovem, de bom humor, quase brincalhão.

       — Esta não sai daí!

       — Devolvo-lhe assim que a reproduzirmos.

       — Digo que não... O senhor não me vai privar da única coisa que me resta...

       Ela caminhou em direção à porta.

       — Posso obter o endereço de sua filha?

       — Onde encontrou o meu?

       — Na delegacia.

       Esteve a ponto de dizer que procurasse o da filha da mesma forma, mas encolheu os ombros pela segunda vez.

       — Contava apenas oito anos quando ele se foi...

       — Casou-se, não?

       Havia ainda, sobre a lareira, o retrato de duas crianças, entre seis e quatro anos.

       — Sim, sim, casou-se. Chama-se agora Odette Delaveau, e mora na rua Marcadet, doze. Gostaria, agora, que me deixasse em paz. Aguardo uma cliente que vem experimentar um vestido, de tarde, e não terminei...

       — Obrigado — proferiu Maigret com certa ironia.

       — De nada.

       Restavam outras perguntas, mas sentia que seria inútil. Necessitava de mais tempo para domá-la, se tal ocorresse algum dia...

       Encontrou Torrence no Chez Manière.

       — Um chopinho? — perguntou o inspetor.

       E Maigret caiu em tentação. Era o segundo.

       — Que tal a mulher?

       — Durona.

       Aborrecia-o sua insistência em ficar calada; mas, no fundo, compreendia-a.

       Reclamaria o corpo do marido para realizar um enterro decente? Pensara no assunto antes que Maigret a descobrisse, na rua Caulaincourt?

       Torrence adivinhara seu pensamento, pois resmungou:

       — De qualquer forma, será preciso enterrá-lo. ..

       — É...

       — Com a presença de repórteres e jornalistas...

       — Leve-me à rua Marcade, doze.

       — Fica pertinho daqui.

       — Eu sei. Em Montmartre, tudo é pertinho... Tratava-se também de um dos bairros de Paris onde as pessoas residiam maior número de anos no mesmo local. Alguns mesmo jamais iam até o centro da cidade.

       — Vamos à casa da filha?

       — Sim.

       O imóvel era idêntico ao da rua Caulaincourt, de construção mais recente, porém, e com um elevador mais espaçoso.

       — O senhor sobe sozinho?

       — Sim. A julgar pela recepção da mãe, não creio que demore muito...

       Informou-se com a porteira, bastante idosa.

       — Segunda porta à direita... Chegou com as crianças há uns quinze minutos.

       — O marido almoça em casa?

       — Não. Nem teria tempo. Ocupa um cargo importante. É chefe de seção numa grande loja.

       Maigret encaminhou-se ao segundo pavimento, tocou na porta indicada através da qual ouvia vozes de crianças. O andar era claro e, naquele momento, o sol inundava-o.

       A moça que abriu a porta encarou-o, desconfiada.

       — O senhor não é o comissário Maigret?

       — Sou.

       — Quem lhe forneceu meu endereço?

       — Sua mãe. Venho de lá.

       — Ela concordou em recebê-lo?

       — Sim... Não tem culpa alguma, não é?

       — Claro que não, mas detesta reviver o passado.

       — No entanto, ainda conserva um retrato de seu pai.

       As duas crianças, ajoelhadas, brincavam com um trem elétrico.

       — Não entendo por que desligou, quando eu tinha tantas perguntas a fazer.

       — Não pretendo que apontem para mim na rua.

       — E o que pensam as pessoas?

       — Que meu pai faleceu há vinte anos e que minha mãe é viúva.

       — Mas suponho que identificará o corpo e solicitará licença para realizar um enterro decente.

       — Nem pensei nisto.

       — Vocês duas permitiriam que fosse inumado numa vala comum?

       — Repito que não pensei no assunto.

       — Lembra-se bem de seu pai?

       — Muito bem. Não se esqueça de que eu já tinha oito anos quando ele partiu.

       — Que tipo de homem era ele?

       — Bonito, muito forte, quase sempre alegre; levava-me frequentemente a passear. Comprava sorvetes e fazia todas as minhas vontades.

       — Sua mãe, não?

       — Mamãe era mais severa. Ficava sempre com medo que eu me sujasse...

       — Como soube que seu pai não voltaria? Enviou alguma carta?

       — Se o fez, mamãe jamais me contou... Não creio que tenha escrito... De nada sabíamos... Mamãe passava o dia inteiro na expectativa e, diariamente, comparecia à oficina, na rua Lepic para verificar se retornara...

       — Nos últimos tempos, chegou a notar qualquer coisa?

       — Não. Mamãe nada lhe disse?

       — Obtive como respostas apenas alguns monossílabos. Julga que tenha algo a relatar?

       — Não sei. Nunca lhe perguntei. Mas tenho a impressão de que sempre me ocultou um fato qualquer...

       — Agora que não é mais uma criança, posso-lhe perguntar se ouviu falar de uma amante de seu pai...

       Ela corou.

       — É engraçado. Também pensei nisto... Mas, levando em conta seu caráter, é pouco provável. Não nos abandonaria por uma mulher, ou então, agiria abertamente...

       — Possuía amigos?

       — Não que eu conhecesse. Jamais aparecia alguém lá em casa. E não era do tipo que sai à noite para jogar cartas num café...

       — Sua mãe e ele discutiam?

       — Nunca reparei.

       — Tem alguma ideia da razão pela qual virou mendigo?

       — Nenhuma. E até ontem nem poderia acreditar no fato.

       — Era católico?

       — Não. Não possuía religião e nem me inculcou qualquer sentimento religioso. Mas não era contra. Indiferente, é só.

       — A senhora também?

       — Sim.

       — E sua mãe?

       — Na sua mocidade, foi bastante mística, mas isto diminuiu com o passar do tempo. Casaram-se na igreja mais por tradição...

       — Visita constantemente sua mãe?

       — Não. É ela quem aqui vem, quase todos os domingos, ver as crianças.

       — Traz-lhes balas?

       — Não é de seu temperamento.

       — Brinca com elas?

       — Não. Permanece sentada numa cadeira, rígida, pois não aceita uma poltrona e fica a olhá-las enquanto brincam. Às vezes, meu marido e eu aproveitamos para ir ao cinema...

       — Obrigado. Não tem mais nada a dizer?

       — Não. Gostaria de evitar os jornalistas e os fotógrafos.

       — Farei o possível, mas quando sua mãe for reconhecer o corpo, será difícil impedir os jornais de tocar no assunto.

       — Tente, por favor!

       Abria a porta, quando ela acrescentou:

       — Podemos vê-lo?

       — Sim...

       — Gostaria muito...

       Ela, ao contrário da mãe, perdera a frieza. Fora, sem dúvida, o tipo da filha que adora o pai.

         

       Às duas e meia, Maigret bateu à porta do gabinete do juiz de instrução. No longo corredor, pessoas aguardavam, em todos os bancos, algumas entre dois agentes, outras algemadas. Reinava um silêncio de convento.

       — Entre...

       O gabinete do juiz Cassure situava-se na parte dos edifícios ainda não modernizada; o ambiente era o de um romance de Balzac. Como nas velhas escolas, a escrivaninha, pintada de preto, era trabalhada e pastas empilhavam-se no chão, a um canto da sala. O escrivão, apesar de não usar mangas de lustrina, parecia encontrar-se ali desde o século passado.

       — Sente-se, Maigret...

       Cassure ainda não passara dos trinta, e, outrora, seria impossível que já ocupasse um posto em Paris.

       Maigret, habitualmente, desconfiava dos jovens magistrados, cheios de teorias mal assimiladas, que faziam questão de aplicar imediatamente. Exteriormente, Cassure parecia um deles. Um rapagão magro e ágil, impecavelmente vestido, cheirando ainda à escola.

       — Imagino que se pediu para falar comigo, é porque tem novidades importantes.

       — Gostaria que o senhor estivesse a par do andamento do inquérito.

       — Em circunstâncias normais, a polícia aguarda o último momento para entrar em contato conosco, a não ser quando da necessidade de um mandado de prisão...

       Sorriu, com certo ar de nostalgia.

       — O senhor, Maigret, tem a reputação de ir a qualquer lugar, de interrogar as porteiras nos seus cubículos, os artesãos em suas oficinas e as donas de casa em suas cozinhas ou salas de jantar...

       — É verdade...

       — Isto, nós não podemos fazer. A tradição nos confina em nossos gabinetes, excetuando-se os casos especiais, quando ficamos perdidos entre uma série de especialistas e técnicos, de tal maneira, que tudo não passa de uma formalidade.

       "Soube, pelos jornais, que nosso mendigo é um tal Vivien, outrora marceneiro..."

       — Exatamente...

       — Já fez alguma ideia do motivo pelo qual abandonou a família e o trabalho para tornar-se mendigo?

       — Conversei com a esposa e a filha. Nem uma nem a outra puderam responder a esta pergunta. Conheci um outro caso, há anos; em Londres, um banqueiro inglês muito conhecido agiu exatamente da mesma forma.

       — E quando sucedeu?

       — Em 1945.

       — E no que diz respeito à amantes ou a um segundo lar?

       — Até agora nada. Meus homens passam o pente fino no bairro. O que complica as buscas é que só podemos interrogar as pessoas de certa idade. Hoje de manhã, em vão, questionei vários artesãos, comerciantes e aposentados. Foi no bar onde Vivien costumava tomar café todas as manhãs. Conheciam-no bem, mas desconheciam quase tudo a seu respeito, pois não se relacionava com ninguém.

       — É curioso que, vinte anos mais tarde, alguém resolvesse assassiná-lo...

       — Eis a razão porque revolvo desesperadamente seu passado... A não ser que admitamos que um louco decidisse subitamente atacar o primeiro mendigo encontrado, o que é pouco provável...

       — Que tal sua esposa?

       — Desagradável. É bem verdade que sua vida não foi fácil. Da noite para o dia, ficou sem recursos, com uma criança de oito anos. Felizmente, era costureira. Começou trabalhando para as vizinhas, aumentando depois a clientela.

       — Mudou-se?

       — Não. Reside ainda no mesmo prédio, na rua Caulaincourt, como no tempo do marido. Trocou apenas de andar, ocupando um apartamento menor e mais barato. É uma mulher não só sem idade definida, como também sem vontade de viver. Tem os olhos fixos, e as pupilas desbotadas de quem sofreu muito...

       — O que sabe a respeito da fuga do marido?

       — Só consegui arrancar-lhe algumas palavras. Se conhece algo, não contará a ninguém e nada fará com que mude de atitude...

       — A filha?

       — Tem agora vinte e oito anos. Casou com um homem trabalhador, que não vi. É um pouco mais loquaz do que a mãe, mas também fica na defensiva. Seus dois filhos, um casal, estão com seis e quatro anos.

       — E suas relações com a mãe?

       — Nem boas, nem más. Veem-se quase todos os domingos, devido às crianças, mas parece não existir muito afeto entre elas. Odette, a filha, admirava muito o pai, admiração que ainda persiste, aliás. Acho que esta tarde ou amanhã, irão ao Instituto Médico Legal, identificar o corpo.

       — Juntas?

       — Duvido. Informei-as que poderiam, desde já, cuidar do enterro. Temem, muito, os fotógrafos e jornalistas... Se o senhor concordar comigo, tratarei de não tornar público este aspecto do caso...

       — Claro. Entendo bem estas duas mulheres. Continua sem a menor ideia de quem cometeu o crime?

       — Não há, até agora, a menor pista. Em toda minha carreira, jamais vi um homem tão solitário. Além de habitar, sozinho, uma casa abandonada, sem água nem luz, é praticamente impossível saber como passava os seus dias.

       — Qual a opinião do médico-legista? Gozava de boa saúde?

       — Excelente. Exteriormente, aparentava sessenta e cinco anos, mas contava somente cinquenta e cinco e todos os seus órgãos encontravam-se em perfeito estado...

       — Obrigado pelo relato. Se bem entendo, o inquérito poderá demorar...

       — A não ser por um golpe de sorte ou o auxílio do acaso... Se a senhora Vivien abandonasse seu mutismo, creio que nos relataria muitas coisas.

       Maigret retornou ao seu gabinete e ligou para o Instituto Médico Legal.

       — Alô!... Pode-me informar se uma certa senhora Vivien já reconheceu o corpo do marido?

       — Saiu há cerca de meia-hora.

       — Alguma dúvida quanto à identidade?

       — Reconheceu-o imediatamente.

       — Chorou?

       — Não. Permaneceu certo tempo, imóvel, hirta fitando-o. Perguntou-me quando poderia tratar do enterro e recomendei que falasse com o senhor. O doutor Lagodinec não necessita mais do corpo. Fez o que podia...

       — Obrigado. Vai receber, certamente, uma outra visita, a da filha...

       — Estarei às ordens!

       Maigret abriu a porta da sala dos inspetores e chamou Torrence.

       — Nada de novo?

       — Como o senhor pediu, seis homens percorrem o bairro, partindo das ruas Lepic e Caulaincourt e interrogam os comerciantes, os fregueses dos bares e dos cafés e mesmo simples passantes mais idosos que poderiam, eventualmente, ter conhecido Vivien, antes do seu desaparecimento...

       Nada provava que, ao abandonar a família e a oficina, sem deixar pistas, transformara-se imediatamente em mendigo. Talvez mudasse de bairro ou vivesse certo tempo no interior.

       Dada a impossibilidade de cobrir toda a França, Maigret limitava-se a Montmartre, intuitivamente, sem saber exatamente a razão.

       Pouco mais tarde, telefonou para a senhora Vivien, cujo número constava do catálogo. Já regressara. Atendeu, desconfiada, como alguém sempre à espera de más notícias.

       — Alô!... Quem fala?

       — Maigret... Soube que foi reconhecer o corpo... É realmente seu marido?

       Ela deixou escapar um "sim", seco.

       — Mudou muito nestes vinte anos?

       — Como todos nós.

       — Acabei de deixar o gabinete do juiz. Falei-lhe do enterro. Concorda com a devolução do corpo, para as exéquias; concorda, ainda, que, na medida do possível, afastemos a imprensa dos acontecimentos.

       — Obrigada.

       — Imagino que não faz questão de que o transportem para a rua Caulaincourt?

       — Claro!

       — Quando realizará o enterro?

       — Depois de amanhã. Aguardava notícias suas para chamar o representante da agência funerária.

       — Tem túmulo reservado em algum dos cemitérios de Paris?

       — Não. Meus pais não eram ricos.

       — Neste caso, a inumação terá lugar, provavelmente no cemitério de Ivry.

       — Minha mãe foi enterrada ali.

       — Contatou sua filha?

       — Ainda não.

       — Peço-lhe que me informe a hora da cerimônia.

       — O senhor pretende comparecer?

       Inexistia, na pergunta, o menor traço de amabilidade.

       — Não se preocupe. Nem notará minha presença.

       — A menos que os jornalistas sigam-no...

       — Cuidarei para que não suceda.

       — Não posso impedi-lo, não é?

       Sua profunda amargura escapava. Havia vinte anos que se sentia assim. Fazia parte de seu caráter? E quando vivia com seu marido?

       Ocorriam a Maigret todas as perguntas possíveis e imagináveis, inclusive as aparentemente ridículas. Tentava, em vão, reconstituir mentalmente a personalidade de Marcel Vivien, o solitário dos solitários.

       A maioria das pessoas, por mais fortes que sejam, precisam de conviver com outros seres humanos. Ele não. Instalara-se na grande casa abandonada, ameaçada de demolição, e juntava no quarto objetos os mais estranhos e inúteis.

       Os demais mendigos conheciam-no de vista. Alguns dirigiram-lhe a palavra, mas Vivien prosseguira seu caminho, sem responder. No salão de Joseph, ao qual comparecia duas ou três vezes por semana, para receber a moeda de cinco francos, também não falava; olhava fixamente o espelho à sua frente.

       — Vão enterrá-lo depois de amanhã, — informou Maigret a Torrence. — Prometi fazer o impossível para que a imprensa fique de fora.

       — Há jornalistas telefonando várias vezes por dia.

       — Responda que não há novidades.

       — É exatamente o que venho dizendo, e também os outros inspetores, em minha ausência. Mas não estão satisfeitos, certos de que lhes ocultamos algo...

       O que aliás era verdade. Um repórter mais vivo não poderia descobrir a mesma coisa que Maigret?

       No dia seguinte, os homens de Maigret continuaram mostrando as fotos de Marcel Vivien e fazendo perguntas, sem qualquer resposta positiva.

       Maigret ligara para Odette Delaveau. Ela também reconhecera o pai.

       — A senhora já sabe a hora do enterro?

       — Minha mãe não lhe disse?

       — A última vez que falamos, ela ainda não estivera com o funcionário da funerária.

       — Amanhã, às nove horas.

       — Com cerimônia religiosa?

       — Não. Não passaremos pela igreja. Só minha mãe, meu marido e eu acompanharemos o caixão até Ivry...

       Maigret lamentava a promessa feita de manter os jornais afastados. Talvez, como sucede com frequência, o assassino se encontrasse nas proximidades do Instituto Médico Legal ou então no cemitério.

       Conhecera Vivien vinte anos antes? Não havia provas. O mendigo poderia, bem mais tarde, ter atraído a ira de alguém.

       Talvez um outro mendigo imaginasse haver dinheiro escondido no quarto?

       Pouco provável. Jamais possuem arma de fogo e muito menos uma pistola calibre 32.

      Mas, quantas coisas aconteceram nestes vinte anos? Maigret, entretanto, retornava ao ponto inicial: o desaparecimento de Vivien, o dia em que saíra de casa, como habitualmente, e nunca chegara à sua oficina, na rua Lepic.

       Uma amante? Mas, neste caso, por que abandoná-la em seguida, para transformar-se em mendigo? Entre as cartas recebidas pela P.J., após a publicação das fotos e dos artigos, nada havia concernente qualquer mulher desconhecida na vida de Vivien.

       Nessa noite, para evitar que remoesse o problema que já começava a aborrecê-lo viu um "bang-bang" na televisão. A senhora Maigret lavou a louça e sentou-se a seu lado, evitando perturbá-lo com perguntas.

       — Acorde-me, amanhã, meia-hora mais cedo. Ela não indagou a razão. Ele acrescentou:

       — Vou a um enterro.

       Entendeu do que se tratava e trouxe-lhe a primeira xícara de café às sete horas.

       Pedira a Torrence que viesse apanhá-lo às oito e meia, num dos pequenos carros da P.J. Este chegou pontualmente.

       —Imagino que passamos antes pelo Instituto Médico Legal?

       — É.

       O carro fúnebre encontrava-se estacionado ao longo da calçada, além de um outro, da agência funerária, onde estavam as duas mulheres e o marido de Odette. Torrence parou, de modo a não ser visto. Não havia jornalistas nem fotógrafos. Quatro homens trouxeram o caixão, que parecia bem pesado, e alguns minutos mais tarde, o cortejo dirigiu-se para Ivry.

       Desde a véspera, o céu cobrira-se de nuvens e fazia menos calor. A meteorologia anunciava chuva para a região oeste de Paris, no fim da tarde.

       Torrence permanecia longe do carro ocupado pela família. Maigret fumava seu cachimbo, sem nada dizer, olhando para a frente; era impossível adivinhar seus pensamentos.

       Torrence respeitou o seu mutismo, o que não era fácil, pois consideravam-no o inspetor mais falador da P.J.

       O carro fúnebre percorreu quase a metade do cemitério, parando finalmente diante de um túmulo aberto numa nova quadra, onde havia vários lugares vazios. Maigret e o companheiro mantinham-se a mais de cem metros. A senhora Vivien, a filha e Delaveau, conservavam-se imóveis à beira da cova, enquanto desciam o caixão. Cada uma das mulheres segurava um pequeno buquê.

       Passaram a pá à costureira para que fosse a primeira a lançar terra sobre o caixão; mas, surpreendendo Maigret, sacudiu negativamente a cabeça e contentou-se em jogar as flores. Odette agiu da mesma forma e, finalmente, foi Delaveau quem cumpriu a tarefa.

       Não conhecera Marcel Vivien. Era muito jovem. Maigret dava-lhe uns trinta anos. Vestia-se de preto, o que no fim das contas deveria ser a roupa com que trabalhava. Não era feio e usava bigodes quase negros, como os cabelos.

       Tudo terminado. A cerimônia — se cerimônia houvera — durara apenas alguns minutos. O carro com a família partiu. Maigret observando as redondezas não notara nenhuma silhueta suspeita. Agora, com o enterro do mendigo, parecia-lhe que a verdade recuara ainda mais.

      De péssimo humor, continuava calado, como a remoer, incessantemente, o mesmo problema.

       Por que matar Marcel Vivien, sem mesmo revistar o colchão, onde os pobres costumam esconder seu dinheiro?

       Contra sua vontade, Maigret retrocedia, sempre, vinte anos. Eis porque enviara seis inspetores a Montmartre.

       Teve uma boa surpresa ao chegar a P.J. Um deles esperava-o, excitado.

       — O que descobriu?

       — Qual a data do desaparecimento de Vivien?

       — Vinte e três de dezembro...

       — E não foi mais visto?

       — Certo...

       — Comprou o presente de Natal de sua filha?

       — Não me lembrei de perguntar à esposa.

       — O senhor conhece o Cyrano, uma cervejaria perto da place Blanche?

       — Sim.

       — Um dos empregados, hoje com sessenta anos, a quem mostrei as fotos, reconheceu Vivien.

       — E quando travou conhecimento com ele?

       — Depois do vinte e três de dezembro. Fim de janeiro do ano seguinte.

       — Como pode estar tão certo, após tanto tempo?

       — Porque só começou a trabalhar no Cyrano em janeiro.

       — Viu-o muitas vezes?

       — Umas dez, pelo menos, em janeiro e em fevereiro de 1946. E não estava só. Acompanhava-o uma jovem, morena, que sempre segurava-lhe a mão.

       — A que horas o casal costumava aparecer?

       — Por volta das onze e meia, ao fecharem os cinemas.

       — O garçom não tem mesmo a menor dúvida de que é Vivien?

       — Afirma que não, pois só bebia água mineral, ao passo que sua companheira pedia sempre um Cointreau. — Era a primeira vez que trabalhava como garçom. Antes era camareiro num grande hotel...

       — Nunca os encontrou em algum outro lugar?

       — Não. Julien — este é o seu nome — morava muito longe, no boulevard da Crapelle...

       — E quando deixou de avistar o casal?

       — Uns dois meses depois.

       — E nunca mais reviu Vivien?

       — Não.

       — Nem a moça?

       — Também não.

       — Chegou a ouvir Marcel chamá-la pelo nome?

       — Não. Parece que é tudo o que sabe.

       Em conclusão, se Julien não se enganasse, Marcel Vivien não abandonara a família para transformar-se em mendigo. Partira por causa de uma mulher. Contava, certamente, refazer sua vida.

       Mas por que não evitara o bairro? A cervejaria ficava a duzentos metros de sua oficina e a menos de um quilômetro do apartamento que ocupava com a mulher e a filha.

       Não temia ser reconhecido? Era-lhe indiferente? Avisara a esposa de que passaria a viver com outra? Seria esta a razão da atitude tão feroz da senhora Vivien?

       — Volte ao bairro ainda esta tarde e continue a interrogar. Inclusive no Cyrano; há outros empregados idosos? Talvez o dono...

       — O dono tem trinta anos. É o filho do antigo proprietário que foi morar no campo.

       — Precisamos saber onde.

       — Certo, chefe.

       — Existe, no bairro, uma quantidade enorme de pequenos hotéis. Devem ser visitados também. Ainda mais porque naquela época era quase impossível encontrar um apartamento...

       Maigret bem sabia que acabaria indo ao Cyrano, ele mesmo, e rondando pelos lados de Rochechouart.

       Almoçou em casa, mas, antes de pegar um táxi, tomou um aperitivo na Brasserie Dauphine.

         

       Como previra, por volta das duas e meia, Maigret chegou ao Cyrano. Reinava grande animação na Place Blanche, devido aos ônibus e aos turistas, que, em grupos como cachos, máquinas a tiracolo, fotografavam, todos eles, ou quase, o Moulin Rouge, ao lado da cervejaria.

      Casa repleta, interna e externamente; não havia uma única cadeira vazia. Os garçons que corriam por entre as mesas — e eram três — aparentavam ser bastante jovens; mas, na penumbra do interior, Maigret notou um, já perto dos sessenta.

       Entrou, sentou numa banqueta.

       — Um chope...

       Não trouxera Torrence junto, pois sentia-se um tanto perturbado pelo seu crescente interesse a respeito de Marcel Vivien.

       — Chama-se Julien? — perguntou ao servirem-no. — Foi com o senhor que um de meus homens falou esta manhã?

       — O senhor é o comissário Maigret?

       — Sou.

       — É uma grande honra conhecê-lo. Acho que já contei tudo ao seu inspetor.

       — E suas lembranças datam realmente de 1945?

       — Sim. Se sou tão categórico, é porque este foi o meu primeiro serviço de garçom.

       — Fins de dezembro, início de janeiro?

       — Não posso dizê-lo com exatidão. No fim do ano, por causa das festas, o movimento é grande, e não há tempo para observar os clientes...

       Chamaram-no a uma mesa, fizeram o pedido e ele retornou com dois copos de cerveja.

       — Desculpe, mas fico sozinho aqui e os outros lá fora. O que dizia eu? Janeiro, sim... Provavelmente fevereiro também, pois acostumei-me a eles, o que deve ter levado algum tempo.

       — Não paira então, em seu espírito, a menor dúvida de que é Marcel Vivien?

       — Desconhecia o seu nome, mas era ele, com toda certeza, que vinha todas as noites, acompanhado por uma linda jovem.

       — Quase sempre à hora da saída dos cinemas?

       — Sim. Isto me impressionou, não sei por que.

       — Reconheceria a moça?

       — O senhor sabe, as mulheres, vinte anos depois... Uma ideia súbita assaltou-o...

       — Mas creio que sim...

       — Por que?

       — Tinha uma mancha roxa na face...

       — Esquerda ou direita?

       — Espere... Sentavam-se quase sempre nesta mesa... Era portanto a face esquerda que eu divisava quando atendia-os.

       Afastou-se novamente para servir um cliente que pedia uma cachaça.

       — Não tornou a vê-la com outro homem?

       — Não. Não que me lembre. Notaria por certo, pois acostumara-me ao seu rosto e ao seu modo de vestir.

       — Como assim?

       — Sempre de preto. Um vestidinho preto e um casaco da mesma cor, com gola de pele.

       — O casal possuía carro?

       — Não. Vinham a pé, como se morassem perto.

       — Pegavam táxi, às vezes?

       Havia um ponto bem em frente à cervejaria.

       — Não que eu visse...

       — E, saindo daqui, não se dirigiam para o metrô?

       — Não. Pensei que fossem do bairro. Depois da meia-noite, é diferente, pois uma clientela internacional invade os cabarés. Mas aqui é como se estivéssemos na outra margem. Existe uma grande diferença entre os dois lados do boulevard.

       Bateu com a mão na testa.

       — O que lhe disse eu há pouco? Falei em 1945? De tanto responder às perguntas... Foi em 1946, claro. Em 1945 eu ainda trabalhava como camareiro no Grand Hotel...

       E foi atender outra mesa. Ao voltar, explicou:

       — Gosto do bairro. É diferente do resto de Paris. Ainda existem muitos artesãos com suas oficinas no pátio. Muitos empregados, também, funcionários, vendedores e vendedoras. Numerosos aposentados muito ligados a Montmartre, para que se mudem daqui... – Posso-lhe ser útil em mais alguma coisa?

       – Julgo que não... Se lhe ocorrer uma lembrança qualquer, faça o favor de telefonar para o Quai des Orfèvres...

       – Já vou! Já vou!... — gritou para quatro novos clientes que começavam a impacientar-se.

       Nuvens acumulavam-se a oeste, enquanto metade do céu permanecia mais ou menos limpo. De quando em vez soprava uma leve brisa.

       Maigret bebericava sua cerveja, jurando a si mesmo que seria a única do dia. Preparava-se para pagar a conta, ao ser interpelado por seu vizinho.

       — Ouvi bem? O senhor é o comissário Maigret? Desculpe-me se falo assim com o senhor...

       Era imenso, rubicundo, com queixo triplo e um enorme ventre.

       — Nasci em Montmartre e aqui morei a vida inteira. Fui dono de uma vidraçaria no boulevard Rochechouart. Passei a loja há três anos, mas guardei meus hábitos...

       Maigret olhava-o curiosamente, sem entender suas intenções.

       — Contra a minha vontade, escutei parte de seu diálogo com o garçom. Trata-se do mendigo que foi assassinado numa rua dos Halles? Atentei para as fotos dos jornal se posso quase jurar que não me engano.

       — Conhece-o?

       — Sim.

       — Viu-o recentemente?

       — Não. Isto remonta há uns vinte anos. Reconheci-o melhor nas fotos sem os bigodes.

       — Visitou-o em sua oficina, na rua Lepic?

       — Não. Pelo que dizem os jornais ele já não se encontrava mais lá. Como Julien, passou-se em 1946.

       — Em que época?

       — A partir de fevereiro. Durante uns seis meses cruzei regularmente com ele.

       — Morava perto de sua casa?

       — Não sei onde habitavam; mas ele e a amiga almoçavam sempre no mesmo restaurante que eu, o La Bonne Fourchette, na rua Dancourt. É um estabelecimento pequeno, com meia dúzia de mesas, e todos acabam por se conhecer.

       — E tem certeza, mesmo, de que isto durou seis meses?

       — Deparei com eles em agosto, antes de passar três semanas na Cote d'Azur...

       — E quando voltou?

       — Procurei-os, maquinalmente. Não os vi. Pedi notícias suas a Boutant, o dono. Respondeu-me que, subitamente, deixaram de aparecer.

       — Quem sabe, partissem, também, de férias?

       — Não. Voltariam no outono. Nunca mais os encontrei, nem no boulevard, nem nas outras ruas.

       O relato do homem perturbou profundamente Maigret; parecia agir de boa fé e possuir excelente memória. Acrescentando estas recordações às do garçom, concluía que, imediatamente após abandonar a esposa e a filha, na rua Caulaincourt e sua oficina na rua Lepic, Marcel Vivien vivera com uma jovem, sem a menor preocupação de mudar de bairro.

      Durante dois meses frequentaram o Cyrano, à saída do cinema Dancourt, a alguns metros de distância.

       Qual seu meio de subsistência? Vivien teria economias? Levara-as, então, sem nada dizer à esposa e a filha?

       Outra pergunta a fazer a senhora Vivien, pois sua filha talvez de nada soubesse. E ela responderia?

       Suspirou, pagou a cerveja, agradeceu a Julien e a seu vizinho, o vidraceiro.

       — O que lhe contei foi de alguma utilidade?

       — Claro.

       Seguiu a pé, pelo boulevard, enchendo o cachimbo. Na rua Dancourt, logo achou o La Bonne Fourchette. A sala era pequena, com a porta aberta, para arejar um pouco. No balcão, um homem de certa idade, certamente o dono, lia o jornal.

       Era um restaurante à moda antiga, com receptáculos nas paredes para os guardanapos dos clientes. Havia ainda uma outra porta, envidraçada, que dava para a cozinha.

       A tal hora, é lógico, não havia ninguém.

       — Deseja tomar algo?

       Maigret caminhou para o balcão.

       — Não, obrigado; mas gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.

       — Quem é o senhor?

       — Comissário da P.J.

       — Sabia que a polícia apareceria, mais cedo ou mais tarde.

       — Por que?

       — Porque Vivien, o mendigo esquisito, frequentou meu estabelecimento durante vários meses.

       — Quando?

       — Em 1946.

       — Sozinho?

       — Não. Sempre acompanhado por uma mocinha, bem bonita, que vivia enroscando-se nele.

       — E como se lembra com tanta clareza?

       — Os empregados e os fregueses sorriam, assim que chegavam. Pareciam tão apaixonados... Paravam de comer para se beijar, diante de todos...

       — O fato não lhe causou espécie?

       — Olhe, na minha profissão, vemos de tudo e não nos surpreendemos facilmente. Ele aparentava quinze anos mais do que ela; mas há muitos casais nestas condições...

       — Chegou a saber onde moravam?

       — Não. Aqui pelo bairro, provavelmente, pois vinham a pé, de braço dado, despreocupadamente.

       — Nunca saíam de táxi?

       — Jamais reparei.

       — Jantavam aqui, também?

       — Não. Mas não me surpreendi; ao meio-dia, temos como clientes os que trabalham nas vizinhanças e que retornam aos seus lares no fim do dia. A noite, os frequentadores são de outro tipo.

       — Quando deixaram de vir?

       — Meados de agosto... Fechei a casa por quinze dias para levar minha mulher ao campo e pescar um pouco... Voltando não os revi mais... Escolheram com certeza um outro restaurante...

       Maigret agradeceu e saiu. Andou vagarosamente pelo boulevard Rochechouart, como os habitantes do bairro. Ele não compreendia.

       Havia algo errado em toda a história. Marcel Vivien saíra de casa dois dias antes do Natal. Parecia gostar muito da filha, que contava somente oito anos e desaparecera em menos de três dias.

       Será que só então conhecera a jovem com quem passara a viver? Deparou com uma cabine telefônica e entrou. Encontrou o número da senhora Vivien, ligou e ouviu sua voz seca.

       — Quem é?

       — Sou eu, mais uma vez. O comissário Maigret. Vou-lhe fazer apenas uma pergunta, mas é extremamente importante para o andamento do inquérito. Ao abandoná-la, seu marido deixou dinheiro em casa?

       — Não!

       — Não tinha conta bancária ou caderneta de poupança?...

       — Uma conta, num banco, pois alguns clientes pagavam com cheque...

       — E levou tudo?

       — Sim.

       — A senhora previa sua partida?

       — E como poderia?

       — Suspeitava de sua conduta?

       — Não. E não faço questão de saber mais nada... E desligou.

       Agosto de 1946: Marcel Vivien morava ainda em Montmartre com a amante. Depois, sua pista se esfumaçava. Viajara para o interior, para o estrangeiro ou optara, naquela ocasião, pela vida de mendigo?

       O que sucedera à sua companheira, que provocava sorrisos ternos nos clientes do La Bonne Fourchette, tão apaixonada se mostrava.

       Maigret teve a sorte de apanhar um ônibus com plataforma. Um dos últimos, pois, aos poucos, desapareciam.

       Fumava tranquilamente seu cachimbo, deixando seu olhar vagar pelo espetáculo, a cada instante diferente, de Paris.

       Que ilações tirar do pouco que sabia? Conhecia, no fim das contas, o início, a misteriosa partida de Marcel Vivien, de boa profissão, com esposa e filha que, num clarão, tudo abandonara por causa de uma mulher.

       Quanto tempo duraram suas economias? E o que fizera, quando terminaram?

       Era como um corte, uma fenda brutal em sua vida. Em 1946, agosto, cliente habitual do Cyrano e do La Bonne Fourchette, em Montmartre.

       Depois, um grande vazio, um novo desaparecimento. Cansara-se da amante ou ocorrera o contrário?

       Desaparecia então completamente e descobriam-no morto, dezenove anos mais tarde, no quarto de uma casa arruinada. Morava sozinho. Sem amigos. Duas ou três vezes por semana ia à escola de cabeleireiros e entregava-se às mãos de um aluno.

       O homem que o matara, não o fizera por acaso, pois, geralmente, não se passeia com um 32 no bolso.

       Precisaria procurar o motivo do crime no passado, nos últimos meses de Montmartre, ou na atividade que exerceu nos anos seguintes?

      Nem mesmo se sabia há quantos anos resolvera habitar perto dos Halles.

      E quanto à sua companheira? Qual o seu nome? Maigret, instintivamente, dirigira-se para a travessa do Vieux-Four. Havia um policial na porta da casa em que vivera Marcel Vivien.

       Ocupara o local durante um certo tempo, para juntar o monte de trastes que tomava o quarto. Sofreria das faculdades mentais? Ainda estaria lúcido? Joseph, o dono da escola, nada notara de anormal. Mas, na verdade, habituara-se mais a alcoólatras e tipos excêntricos do que a pessoas normais.

       Maigret subiu. Pela primeira vez ia só àquela casa sombria, úmida, sempre a estalar. Nada procurava, em particular; queria simplesmente rever o cenário.

       No quarto, as únicas impressões digitais existentes eram as do próprio, o que levava a crer que o assassino usava luvas.

       No assoalho divisava-se mesmo uma luminária a petróleo, em pedaços. Que pretendera fazer com ela? Sapatos disparatados e de tamanhos diferentes. Uma mala dilacerada, outrora elegante.

       Habitara, por acaso, outros quartos do imóvel, abandonando-os à medida que se entulhavam? Maigret subiu os degraus, não muito sólidos, com espaços vazios. No quarto andar, não havia nem portas nem janelas; no chão, velhas caixas e embrulhos.

       Desceu, sempre a revistar, tentando evitar a poeira. Imaginava o velho, voltando à noite, só, caminhando pelas escadas escuras, riscando um fósforo. A questão, agora, não era saber quem era ele e qual o seu passado longínquo; mas sim, há quanto tempo levava aquela vida?

       Saudou o agente, dirigiu-se para a rua dos Prouvaires e entrou na delegacia. Ascan recebeu-o imediatamente.

       — Parece que preciso do senhor...

       — Descobriu mais alguma coisa, além do que os jornais relataram?

       — Sim. Mas ainda não quero que se espalhe. Quando deixou seu domicílio, no dia vinte e três de dezembro, Vivien não mudou de bairro. Não sei para onde foi, mas encontramo-lo, em janeiro, na companhia de uma linda jovem, numa cervejaria da praça Blanche, o Cyrano.

       — Bem ao lado de sua oficina.

       — Sim. Dava a impressão de não querer se ocultar, chegando às raias da inconsciência... Um mês mais tarde, sempre acompanhado pela mulher, começa a almoçar num restaurante de habitues da rua Dancourt. Não sai do bairro. Levanta as economias depositadas. Talvez eu consiga descobrir seu montante. Deixa a esposa e a filha sem recursos e frequenta o mesmo restaurante até meados de agosto.

       — Perdemo-lo em seguida de vista para reencontrá-lo só, mendigo nos Halles. Agora chega sua parte. Os Halles estão sob sua jurisdição. Há numerosos mendigos, antigos detentos e velhas prostitutas ... Entre os seus agentes, alguns devem ser especialistas nesta fauna...

       — São quatro, ao todo...

       — Pode pedir-lhes que façam algumas perguntas por mim? Meus homens não saberiam com quem falar, nem por onde começar...

       — É fácil. O senhor tem as fotos? Principalmente as de bigode e barbicha?

       — No momento, somente conto com um jogo. Telefonarei ao meu escritório para que lhe tragam outros.

       — É difícil jurar que consigam, mas farão o possível. O que deseja, exatamente?

       — Saber há quanto tempo Vivien era mendigo. O que pode representar alguns meses ou quase vinte anos. Os mendigos conhecem-se de vista, pelo menos, e observam com interesse os novatos, mesmo evitando interrogá-los...

       — Sim. Seria interessante não nos limitarmos aos Halles e verificar os que vivem junto ao cais.

       — É justamente o que pretendo. Permite que use o seu telefone? Ligou para a P.J. e chamou Moers.

       — Fala Maigret... Mestral está?... Sim?... Gostaria que preparasse com urgência quatro ou cinco jogos de fotografias, principalmente daquelas com a barbicha e os bigodes. Terá de entregá-las ainda hoje, na delegacia da rua dos Prouvaires, pessoalmente ao Comissário Ascan... Obrigado Moers... Até... E, a Ascan:

       — Recebê-las-á, no máximo, em uma hora.

       — Colocarei meu pessoal em ação na próxima noite.

       Quando Maigret saiu, a chuva caía, abundante. Grossas gotas ricocheteavam no calçamento. O céu obscurecera completamente e a sorte bafejou o comissário, que encontrou um táxi livre.

       — Para a P.J., — disse.

       Sentia-se cansado de pensar sempre nas mesmas perguntas, sem achar as respostas. Na sala dos inspetores, indagou:

       — Quem está livre, amanhã cedo?

       Entreolharam-se, todos. Três ergueram a mão.

       — Solicitarão fotos à Identidade Judiciária. Irão em seguida para Montmartre, principalmente nos arredores do boulevard Rochechouart e visitarão todos os hotéis. Existem possibilidades de que Marcel Vivien e sua amiga habitassem um deles, durante uns seis meses. A jovem interessa-me particularmente. Falem com os comerciantes do bairro, principalmente os do setor de alimentos. Boa sorte, meus filhos...

       Entrou em seu gabinete, literalmente perseguido por Torrence.

       — Quais as novas, chefe?

       Faltou-lhe coragem para recomeçar a história e murmurou:

       — Amanhã. Janvier pode chamar os seis homens de volta.

       Cochilou mais ou menos meia hora, em sua poltrona, enquanto a chuva penetrando pela janela aberta molhava o assoalho.

         

       No dia seguinte, chegou bem cedo ao escritório. Quando foi a vez dos inspetores, já lera toda a correspondência. Acreditava que quanto mais rápido conduzisse um inquérito, mais rápido chegaria a bom termo.

       Os homens da primeira circunscrição trabalharam para ele durante toda a noite; mas não telefonou ao comissário Ascan, uma vez que não queria dar-lhe a sensação de que o apressava. Janvier cuidava dos casos correntes, com os poucos inspetores disponíveis. As salas achavam-se quase vazias.

       Não mais chovia. Num céu azul, havia somente tênues nuvens brancas que o sol tingia de rosa.

       — Vamos lá, Torrence.

       Não seguia um plano bem definido, guiava-se mais pelo instinto. Que plano, aliás, estabelecer em semelhante caso, onde não existia a menor base sólida, o mínimo indício material?

       — Rua Lepic... Parece que notei uma agência do Crédit Lyonnais em frente à oficina de Vivien...

       Chegaram logo, pois, à esta hora, quase não havia tráfego.

       — Dê um jeito, estacione por aqui e espere-me. Dirigiu-se a um dos guichês.

       — Gostaria de falar com o gerente.

       — Da parte de quem?

       — O comissário Maigret...

       — O senhor tem sorte. Chegou ontem mesmo das férias...

       Não aguardou muito. Conduziram-no a um gabinete onde deparou com um homem de seus quarenta anos, rosto franco, bronzeado, que lhe ofereceu uma cadeira.

       — Em que posso ajudá-lo, senhor comissário?

       — Se o senhor leu os jornais destes últimos dias sabe da existência de um caso Vivien. Marcel Vivien possuía uma oficina — era marceneiro — bem em frente desta agência. Isto há vinte anos. Seus extratos bancários podem ser localizados?

       — Vinte anos, não? Quando uma conta é encerrada, isto é, quando um cliente retira todo o seu montante, conservamos a ficha por alguns meses; depois enviamo-la à nossa Sede, no boulevard dos Italiens...

       — E ali, por quanto tempo são estes documentos guardados?

       — Não conheço exatamente o período, mas não deve ultrapassar os dez anos. Se assim não fosse, imagine o local necessário para armazenar toda essa papelada.

       — Vi, num dos guichês, um homem de certa idade...

       — O senhor Frochot... É o nosso mais antigo colaborador... Trabalha conosco há quarenta anos e se aposenta no fim do mês...

       — Permite que converse com ele?

       O diretor tocou uma campainha. A porta abriu-se e surgiu um jovem.

       — Chame o senhor Frochot...

       O homem exibia um rosto malicioso e olhos brilhantes atrás das espessas lentes de seus óculos.

       — Sente-se, senhor Frochot. Apresento-lhe o comissário Maigret que deseja-lhe fazer algumas perguntas.

       — É uma grande honra...

       — Tem boa memória, senhor Frochot?

       — Dizem que sim...

       — O cliente que me interessa deixou o bairro há vinte anos e creio que encerrou sua conta...

       — Marcel Vivien?

       — Como sabe?

       — Leio os jornais, e já que o senhor veio até aqui...

       — Tem razão... Recorda-se aproximadamente do valor de sua conta?

       — Era modesta e flutuava conforme os depósitos ... O saldo médio variava entre dez e quinze mil francos... No fim de cada mês sacava o necessário para viver, cerca de dois mil francos...

       — Quando viu Vivien pela última vez?

       — Um dia, pela manhã, logo ao abrir a caixa. Contou-me que se mudava e, desta forma, retirava todo o saldo. Perguntei pelo novo endereço e respondeu-me que se instalaria em Montparnasse...

       — Qual o valor do cheque?

       — Uns doze mil e quinhentos francos...

       — Aparentava nervosismo?

       — Não. Mostrava-se sempre alegre e tinha uma excelente profissão. Mesmo os antiquários mais famosos enviavam-lhe peças para conserto...

       — Durante quanto tempo manteve sua oficina na rua Lepic?

       — Pouco menos de dez anos. Oito ou nove. Um homem tranquilo; seu endereço oficial era o da rua Caulaincourt.

       — Meus agradecimentos, senhor Frochot... Um instante... Mais uma pergunta... Tornou a encontrá-lo, posteriormente, na rua?

       — Não. E não entendo por que virou mendigo; pareceu-me, sempre, uma pessoa equilibrada.

       Maigret retornou à viatura da P. J. onde Torrence aguardava-o.

       — Resultados positivos, chefe?

       — Sim e não. De qualquer forma, o pouco que aprendi não me serve de muito.

       — E agora?

       As donas de casa rodeavam as barracas dos fruteiros e verdureiros; as vozes formavam um rumor contínuo.

       — Para o Quai!

       Nesse exato momento, pelo bairro, três inspetores iam de hotel em hotel procurando a pista de Vivien. A operação poderia durar dias e dias, pois os pequenos hotéis são numerosos na região. Por outro lado, com a ajuda do acaso, seria possível a um dos investigadores, acertar na mosca.

       Em parte, foi o que sucedeu. Mal sentou-se Maigret em seu gabinete, quando um dos três inspetores, Dupeu, telefonou.

       — De onde fala, Dupeu?

       — Do Hotel du Morvan, na rua de Clignancourt. Vivien morou aqui há tempos, e o dono lembra-se muito bem dele. Talvez fosse melhor interrogá-lo.

       — Torrence, lá vamos nós outra vez...

       Torrence apreciava o serviço externo; e suas funções de motorista do chefe agradavam-lhe bastante.

       — Rua de Clignancourt. Hotel du Morvan.

       Encontraram Dupeu fumando um cigarro na calçada. Uma placa em marmorite, anunciava, próximo à porta do hotel: "Quartos por mês, por semana, por dia."

       Entraram, os três. O dono, um homem barrigudo, arrastava os pés chatos em chinelos de flanela. Não se barbeara. E, certamente, nem tomara banho; a camisa, aberta, mostrava um peito peludo.

       Parecia perpetuamente cansado e seus olhos lacrimejavam.

       — Então o senhor é o comissário Maigret, disse, estendendo a mão de uma limpeza duvidosa.

       — Informaram-me que o senhor, em 1946, já era o dono do estabelecimento...

       — Muito antes, até...

       — E topou com o nome de Marcel Vivien em seus registros?

       — Não conservo meus registros durante vinte anos.

       — Mas recorda-se dele?

       — Muito bem. Um homem bonito, agradável.

       — Quanto tempo permaneceu como hóspede?

       — De janeiro a junho...

       — Tem certeza de que não ficou até agosto?

       — Absoluta, pois seu lugar foi ocupado por uma "fofoqueira" que praticamente expulsei do hotel.

       — Vivien não estava só. Sabe o nome de sua amiga? Deve ter preenchido uma ficha, também.

       — Não foi necessário. Ela não dormia aqui...

       — Quer dizer que não viviam juntos?

       — Isto mesmo.

       Maigret, boquiaberto, parou. Não contava com esta, absolutamente...

       — Ela jamais vinha ao hotel?

       — Às vezes, no fim da manhã, passava para apanhá-lo. Acordava tarde, pois chegava, sempre, às duas ou três da madrugada...

       — E desacompanhado?

       — Sim. Caso contrário seria obrigado a registrá-la. A Delegacia de Costumes não brinca com estas coisas.

       – Ela nunca subia ao seu quarto?

       — Frequentemente, mas sempre durante o dia, o que eu podia impedir.

       — Sabe o seu nome?

       — Ouvi-o chamá-la de Nina...

       — Possuía algum sinal particular?

       — Uma pequena mancha roxa na face.

       — Como se vestia?

       — Sempre de preto. Pelo menos, cada vez que a vi.

       — Vivien trouxe muitas bagagens?

       — Só uma pequena mala, novinha, do tipo comum, que devia ter comprado na véspera de sua chegada...

       Os três homens olharam uns para os outros. Haviam descoberto somente um fato novo: Vivien deixara o Hotel du Morvan em junho; passara portanto julho e parte de agosto em outro local.

       Quanto à jovem, nada se conhecia a seu respeito, nem mesmo seu sobrenome. Morara em outro hotel, na casa de parentes ou alugara um pequeno apartamento?

       A manhã transcorreu em idas e vindas. A chuva da véspera não diminuíra o calor. Ao contrário, estava ainda mais quente do que nos dias precedentes e muitos homens carregavam seus paletós no braço.

       Maigret chegara à P. J. há uns quinze minutos, quando o telefone soou. Agora era Lourtie, que também chamava de Montmartre. A sorte bafejara os dois.

       — Estou na praça das Abbesses, chefe, telefonando de um bar, em frente ao Hotel Jonard. O dono não parece ter conhecimento de grandes coisas, mas julguei que gostaria, assim mesmo, de interrogá-lo.

       — A caminho, Torrence...

       — Para onde, agora?

       — Hotel Jonard, praça das Abbesses...

       Apresentava a fachada recoberta de cerâmica e o vestíbulo cheirava a alho.

       — Já relatei o que sabia ao seu inspetor.

       O homem não era loquaz. Nem muito amável.

       — Lembra-se bem dele?

       — Bem é maneira de dizer. Recordo-me porque tinha uma amiga engraçadinha...

       — Hospedada aqui?

       — Não. Nunca passou a noite no hotel. Subia, às vezes, durante o dia.

       — Quando registrou-se?

       — Em junho, creio.

       — E partiu?...

       — No decorrer de agosto... Ou melhor, no fim do mês... Muito correto, muito educado, o que é raro entre os hóspedes...

       Era desanimador não obter a menor informação sobre a moça, além da mancha roxa na face esquerda.

       — Pode regressar ao Quai, disse Maigret a Lourtie.

       Ele dirigiu-se à delegacia da primeira circunscrição. O comissário Ascan, cuja porta achava-se aberta, veio ao seu encontro.

       — Recebeu meu recado?

       — Não. Venho de Montmartre.

       — Telefonei para informar que conseguimos alguns resultados. Nada sensacional ainda, mas talvez seja-lhe de utilidade. Sente- se, por favor.

       Maigret encheu o cachimbo, devagar, e enxugou a testa antes de acendê-lo.

       — Meus inspetores apanharam o mendigo mais velho dos Halles, um tal de Toto. Sua presença nas redondezas data de uns quinze anos. Mas deti-o, assim mesmo, pois pessoas como ele nem sempre são fáceis de encontrar...

       Um agente foi buscar Toto. Um homem já de certa idade, cheirando a vinho, mas lúcido.

       — Ainda vou ficar muito tempo nesta gaiola? Sou um homem livre, não? Até que minha ficha é virgem...

       — O comissário Maigret tem algumas perguntas a fazer-lhe...

       — De onde veio, quando chegou aos Halles?

       — De Toulouse.

       — E o que fazia por lá?

       — Quase o mesmo que aqui. Apenas, criavam-me maiores problemas.

       — Nunca trabalhou com regularidade?

       Pensou seriamente.

       — Sempre carreguei caixas e cestos.

       — E quando jovem?

       — Deixei meus pais com quatorze anos. Reconduziram-me três vezes o que não impediu que fugisse de novo. Precisariam amarrar-me.

       — Há quanto tempo está em Paris?

       — Quinze anos. Conheci todos os mendigos... Vi morrerem os mais velhos e outros chegarem...

       — Conheceu Marcel Vivien?

       — Só soube o seu nome quando este senhor aqui me disse... Já se achava pelas paragens quando cheguei... Não conversava muito... Sempre só... Quando falavam com ele, respondia com monossílabos, ou nem mesmo isso.

       — Onde dormia?

       — Naquela época, não sei. Encontrei-o algumas vezes no Exército da Salvação... Depois, comentaram que se instalara num prédio a ser demolido ...

       — Nunca o viu em companhia de uma mulher?

       Começou a rir, como se a questão fosse muito engraçada.

       — Não, senhor comissário. Aqui, não é bem esse o gênero... Sobretudo para um homem que já foi alguém, eu poderia jurar... Fique sabendo, aliás, que numa determinada época tivemos um ex-médico; mas ele bebia muito e não aguentou a parada...

       — E em companhia de algum desconhecido?

       — Não... Aliás, não tinha porque observá-lo ...

       — Obrigado...

       Toto virou-se para Ascan.

       — Posso ir embora?

       — Sim...

       — A seguinte! — acrescentou.

       — Uma mulher?

       — É.

       Parecia um monstro. De tão volumosa, mal cabia na cadeira. As pernas inchadas, os punhos também. Ligeiramente bêbeda, encarava as pessoas com ar de desafio.

       — O que têm agora contra Nana?

       — Nada — redarguiu o comissário. — Só umas perguntinhas...

       — Ganho uns trocados para comprar vinho?

       — Certo...

       Levantou-se estendendo a mão imunda. Preferia pagamento adiantado; o comissário entregou-lhe cinco francos.

       — Rápido, pois sinto sede!

       — Disse ao inspetor que a interrogou esta noite que viu alguém entrando na casa da travessa do Vieux-Four?

       — É a "verdade verdadeira".

       — Quando?

       — Há uns três ou quatro dias... Nunca sei a data certa... Eu, sabe, estou sempre na minha. Só posso dizer que foi na noite anterior àquela em que encontraram o corpo de um mendigo...

       — A que horas?

       — Por volta das três da madrugada.

       — Que tipo de homem?

       — De certa idade, mas não um velho. Mantinha-se ereto. Percebia-se logo que não era um habitué dos Halles...

       — Por que?

       — Não sei. Isto se nota logo.

       — Já o vira antes?

       — Sim.

       — Quando?

       — Naquela mesma noite, por volta das dez horas. Saiu de Chez Pharamond, o restaurante e observou a descarga dos legumes, das frutas e dos peixes. Dava na cara que não estava acostumado... Tudo parecia interessá-lo.

       — Marcel Vivien encontrava-se ali?

       — Aquele do retrato nos jornais. Acho que sim...

       — Este homem, que reviu às três horas da manhã, dirigiu-lhe a palavra?

       — Não... Não sei... Vão fundir minha cuca com todas estas perguntas e morro de sede...

       Maigret indicou que já terminara e deixaram-na sair. Dentro de uma hora, com o litro de vinho que iria comprar, topariam com ela numa calçada, inteiramente bêbeda.

       Ascan avisou:

       — Meus homens prosseguem sua busca na próxima noite, mas julguei que estes dois tinham coisas interessantes a contar.

       — Sim, — replicou Maigret, reacendendo o cachimbo que se apagara. — Sabemos, em primeiro lugar, que Vivien aqui se achava há mais de quinze anos. Depois, um homem, desconhecido no local, surgiu na noite em que foi assassinado... Notou, forçosamente, sua atividade... Procurava-o? Ignoramos ... Acontece que, pelas três horas da manhã, foi mais uma vez visto, desta vez na travessa do Vieux-Four...

       — Se realmente atirou, é possível que, no intervalo, tenha ido à sua casa apanhar o revólver; é improvável que jantasse no Chez Pharamond com uma arma desse calibre no bolso...

       — Apenas, permanecemos na ignorância de quem é, e onde mora... E pode muito bem ter vindo do interior...

       — Julga que a mulher inventou a história?

       — Duvido... Este tipo de gente não gosta da polícia em suas pegadas... Pode-lhes causar muitos aborrecimentos...

       — Sobram ainda cinco anos entre os pequenos hotéis e os Halles... É possível que os passasse aqui...

       — Toto é o mendigo mais antigo... Eles não vivem muito... A escola de cabeleireiros ainda não existia... Quanto aos comerciantes, fazem bons negócios, aposentam-se e abandonam a cidade grande... Não vai ser fácil encontrar um remanescente de 1946...

       — Obrigado, — suspirou Maigret, levantando-se. — São excelentes as informações que obtiveram. Gostaria que sucedesse o mesmo em Montmartre.

       — Não deram com a sua pista?

       — Sim. E não só num hotel, mas em dois. Mas a amante não dormia com ele. Ou morava num terceiro ou possuía casa própria. Se residisse com os pais, não voltaria para casa todas as noites, de madrugada. Nem nome, nem endereço. Só uma pequena mancha roxa na face esquerda...

       – Acabará encontrando...

       — Só com uma sorte daquelas... Quanto ao cliente do Chez Pharamond é improvável que retorne aos Halles; se é o assassino de Vivien não deseja forçosamente que o identifiquem...

       — Continuamos as buscas, assim mesmo...

       — Obrigado Ascan...

       Já no carro, Maigret pediu que o reconduzissem ao Quai des Orfèvres. Após uma curta pausa, recomeçara o forte calor. Maigret também gostaria de carregar seu paletó no braço. Mas só chegando ao seu gabinete, retirou-o.

       — Algo de novo?

       — Telefonou uma senhora... A senhora Delaveau... A filha de Vivien.

       — Não disse o assunto?

       — Não. Mas pode ligar para ela. Ficará em casa esta manhã... Maigret solicitou que completassem a chamada e ouviu sua voz em meio a gritos de crianças.

         

       — Alô! Comissário Maigret?

       — Sim, senhora.

       A voz da jovem perdera a agressividade do primeiro encontro.

       — Não posso calcular se o pouco que tenho a lhe dizer será de alguma valia, mas se passar em casa depois do almoço, contar-lhe-ei tudo o que sei. Mais tarde, sairei com as crianças. Creio que me sentirei aliviada após falar com o senhor...

       Comeu em casa. Sua esposa serviu-lhe coq au vin, um de seus pratos favoritos. Mas a refeição decorreu em silêncio, sem o menor comentário de sua parte.

       — Nervoso? — arriscou ela. — Desde o início deste caso você não está muito católico. Existe algo que o aborrece...

       — Você me conhece e sabe muito bem que em todos os inquéritos há sempre uma encruzilhada em que perco a confiança em mim mesmo. Acontece que, desta vez, vou de encruzilhada em encruzilhada. Quando julgo dar um passo à frente, na realidade fiquei onde me encontrava. Não esqueça de que tento, em grande parte, reconstituir o que sucedeu há vinte anos... Além do mais, Marcel Vivien, o que foi morto nos Halles, em determinados momentos parece-me simpático; já em outros, chego a odiá-lo...

       — Tudo acabará dando certo...

       — Vai ser preciso, de uma forma ou de outra. Lembrei-me, agora, preciso ver o juiz...

       Passou pelo Quai e Torrence retomou seu papel de motorista.

       — Os Halles? Montmartre?

       — Montmartre. A casa de Odette Delaveau, na rua Marcadet.

       Usava um vestido florido, alegre, que a tornava particularmente juvenil.

       — Sente-se, por favor.

       As crianças certamente dormiam, pois reinava a quietude e não as via no vestíbulo. Odette Delaveau, aliás, falava à meia-voz.

       — Descobriu o endereço da moça? — perguntou.

       Os jornais, entretanto, não haviam tocado no assunto. Era um aspecto do inquérito que preferira não divulgar de imediato. Replicou, com falsa inocência:

       — Que moça?

       Ela sorriu, maliciosamente.

       — O senhor teme comprometer-se, não é? Não confia inteiramente em mim.

       — Não respondeu à minha questão.

       — A moça pela qual meu pai nos deixou. Na ocasião, eu não sabia. Minha mãe nada me contou. Contrariamente ao que afirma, ela é muito ciumenta e em várias ocasiões seguiu papai à saída da oficina. — Descobriu, portanto, a ligação, antes que meu pai partisse. Nada dizia, mas começou a viver retraída. E nem mais tarde, quando atingi a idade para compreender as coisas, ela tocou no assunto comigo. — Já fazem muitos anos e ainda morávamos juntos. Tenho um tio em Meaux, o tio Charles, atacadista de adubos, que nos visitava, quando de passagem por Paris. Ao ficarmos sem dinheiro, sem apoio, foi ele, estou certa, quem auxiliou mamãe até que encontrasse meios de subsistência.

       Maigret, maquinalmente, enchera o cachimbo, mas não o acendera.

       — O senhor pode fumar... Meu marido fuma a noite inteira, olhando a televisão.

       — Um dia, achava-me em meu quarto, mas com a porta da sala não muito bem fechada. O tio Charles chegara e ouvi toda a conversa. Tenho ainda gravadas as palavras de minha mãe:

      — No fim das contas, consegui livrar-me. Não suportaria, por mais tempo, viver com um homem que tem uma amante.

       — Tem certeza?

       — Segui-os várias vezes. Conheço mesmo os seus hábitos e sei onde ela mora... Nem se deram ao trabalho de mudar de bairro. Marcel "gamou" por ela. Nunca vi um homem ficar assim. Fará tudo para não perdê-la...

       — O senhor ouviu o que mamãe disse ao tio Charles:

       — Sei onde ela mora...

       — Foi disto que me lembrei, de repente; eis a razão de meu telefonema.

       — Ela não indicou o endereço ao seu tio?

       — Não. Falaram de números. Meu tio perguntou se havia pagamentos a fazer, se clientes deviam-nos dinheiro... Suponho que este endereço interessa-lhe?

       — Muito. Vários de meus inspetores procuram, em vão, todo este tempo. Nem temos ideia de seu nome.

       — Posso quase jurar que minha mãe sabe. Não lhe diga que fui eu quem o enviou...

       — Fique tranquila... E muito obrigado... Imagino que não se recorda de um homem alto, muito magro, de rosto alongado e olhos azuis?

       — Em que época tê-lo-ia encontrado?

       — Não sei. Talvez há vinte anos. Talvez nos últimos tempos.

       — Não vejo ninguém que corresponda à esta descrição. É importante?

       — Segundo uma testemunha, seria o assassino de seu pai. Uma sombra perpassou nos olhos da jovem.

       — Não. Não conheço.

       Apertou-lhe a mão, quando saiu.

       — Boa sorte com minha mãe...

       Mandou que o conduzissem à rua Caulaincourt e decorreu algum tempo até que abrissem a porta.

       — É o senhor! — suspirou a esposa de Vivien, com certo despeito. — Precisará aguardar no vestíbulo, pois estou com uma cliente...

       Indicou-lhe uma cadeira, não das mais confortáveis. Sentou-se, calmamente, com o chapéu no colo e o cachimbo apagado na mão direita. Ouvia vozes de mulher no cômodo vizinho, mas tudo muito vago; conseguia distinguir somente uma ou outra palavra.

       Sua espera durou aproximadamente meia-hora. A freguesa, uma loira, de seios opulentos, com um largo sorriso, olhou-o atentamente, caminhando para a porta. Após fechá-la, a senhora Vivien encarou-o.

       — Não pretende deixar-me em paz?

       — Fique certa de que procuro-a o menos possível. ..

       — Imagino então o que seria, não fosse a amabilidade...

       — Respeito seu luto...

       Ela replicou em tom áspero:

       — Não se trata de luto, e só compareci ao enterro porque o senhor insistiu... Agora que assisti a cerimônia e ele encontra-se sob a terra, está satisfeito? ...

       — Guarda-lhe muito rancor...

       — É verdade!

       Haviam passado para o cômodo contíguo, onde um vestido coberto por alfinetes jazia sobre a mesa.

       — Por causa de sua amante?

       Ela deu de ombros como se a pergunta fosse ridícula.

       — Ouça, senhor comissário... É melhor conversarmos francamente... Durante anos, Marcel foi um homem extraordinário, trabalhador, excelente marido. Só saía comigo ou com a filha... Um belo dia, tudo mudou... Permanecia fora de casa quase todas as noites, e nem se dava ao trabalho de inventar uma desculpa... Simplesmente, saía... E regressava muito depois da meia-noite...

       — Seguiu-o, então?

       — O que qualquer mulher faria, não?

       Ela amara-o? Não se sentia tão seguro assim. Era seu companheiro, é verdade, e provia o sustento da família. Mas, algum dia, demonstrara ternura em relação a ele?

       — Segui-os, sim. Pois, é claro, ele não saía sozinho. Comportavam-se como dois jovens apaixonados, brincando, aproveitando o prazer de se encontrarem juntos... Sua amiga mal chegava aos vinte anos, e ele com trinta e cinco...

       "Nem se dava conta do quanto era ridículo. Segurava-a pela cintura. Às vezes, em plena calçada, ensaiavam um passo de dança, depois beijavam-se e riam às gargalhadas. E por que? Porque faziam-no à luz de um poste...

       "Entrei num cinema, atrás deles; seu comportamento era péssimo. Em seguida tomavam um chope numa cervejaria próxima.

       — O Cyrano.

       — O senhor já sabe?

       — Isto ocorria em 1946... Janeiro ou fevereiro ...

       — Janeiro, sim... Acabava de me abandonar... Mas eu já o seguia enquanto ainda morava aqui...

       — Nunca falou com ele?

       — Não... Nada tinha a dizer... Não podia obrigá-lo a voltar, não é? Tornara-se, aliás, um outro homem cuja existência eu jamais ousaria imaginar ...

       — Vivia no Hotel du Morvan?

       — Como descobriu?...

       — Em junho instalou-se no Hotel Jonard, na praça das Abbesses...

       — Perdera-o de vista, nesta época.

       — Mas sua companheira não dormia com ele.

       — Possuía um apartamento no boulevard Rochechouart, que herdara da mãe, morta um ano antes...

       – Conhece o seu nome?

       — Sim. Perguntei à porteira. Chama-se Nina Lassave...

       — Viu-a durante os últimos vinte anos?

       — Não.

       — Nunca se dirigiu ao boulevard Rochechouart para obter qualquer notícia?

       — Menos ainda... Comecei a trabalhar...

       Exprimia-se num tom duro e frio, sem o menor resquício de emoção.

       — Rochechouart, que número?

       — Não sei... O imóvel fica próximo à praça Pigalle. De um lado há uma farmácia, do outro uma padaria e confeitaria...

       — A transformação de seu marido, não a surpreendeu? — O fato, pelo menos, serviu para provar que já não viviam juntos...

       — Por quanto tempo frequentou os Halles?

       — No mínimo quinze anos, provavelmente mais...

       — Bem feito...

       Maigret conteve-se para não sorrir. Ela irradiava o mais profundo ressentimento.

       — Obrigado por me receber.

       — Agora que conhece meus sentimentos, poderei gozar de alguma tranquilidade?...

       — Tudo farei neste sentido... Falou em Nina Lavasse, não? Ela por acaso trabalhava?

       — No início de sua "amizade" era vendedora em uma loja de roupas na rua Lepic. Mas logo deixou o emprego... Encontrara uma fonte de rendas mais fácil...

       — Obrigado, senhora...

       Saudou-a quase cerimoniosamente e deixou-a remoendo sua raiva. Encontrou Torrence lendo um vespertino.

       — Passe pela rua Lepic.

       — Na altura da oficina?

       — Não. Uma loja de confecções. Creio já tê-la visto, bem no início da rua...

       Tinha uma vitrina estreita. No interior, uma solteirona magra, do outro lado do balcão, dobrava combinações. Espantou-se ao ver um homem entrando sozinho em seu estabelecimento.

       — Em que posso ajudá-lo?

       — Sou comissário da Polícia Judiciária... Procuro uma mulher que trabalhou aqui tempos atrás... Há quantos anos é dona desta loja?

       — Quarenta, senhor...

       — Então, por volta de 1945 e 1946, já se encontrava aqui...

       — Nunca tirei três meses de férias em minha vida. Antes, contava com o auxílio de minha irmã, mas ela faleceu no ano passado.

       — Recorda-se de uma certa Nina Lavasse?

       — Foi minha funcionária durante dois anos. Quando se apresentou, não completara ainda dezoito anos e era bem bonita...

       — Alguma queixa a seu respeito?

       — Nos últimos tempos sua conduta aborreceu-me. Observara um homem bem mais velho, a esperar por ela na calçada em frente, quando fechava a casa. Demorou ainda uns dois meses até que pedisse as contas.

       — Para casar? — perguntou.

       Soltou uma gargalhada como se ele contasse alguma piada.

       — Viu-a depois?

       — Não. Nem sei o que foi feito dela. Temo que acabasse mal. Mas, repito-lhe, quando aqui chegou era tão bonita, tão gentil...

       Maigret agradeceu e retomou seu lugar no carro preto da P.J.

       — O senhor interessa-se agora por roupa branca de senhoras?

       — Conheci finalmente o nome da amante de Vivien... Há vinte anos, trabalhou nesta loja... Agora, vamos ver onde habitou naquela época. Talvez ainda se encontre por lá, pois herdou o apartamento da mãe...

       — Endereço?

       — Boulevard Rochechouart. Perto de Pigalle. Entre uma farmácia e uma confeitaria...

       — Já sei!... Obteve aqui esta novidade...

       — Não. Foi a senhora Vivien quem me informou ... Ou melhor, não informou, cuspiu literalmente... Nunca vi tanto ódio; seus olhos faíscam quando toca no marido e na amante...

       A calma dominava as ruas e avenidas. Notaram inicialmente a farmácia, depois a padaria. Entre as duas, uma grande porta pintada de marrom, na qual havia uma outra, menor, aberta. Do outro lado do pórtico, um pátio pavimentado e uma tília magnífica.

       Maigret bateu no cubículo da portaria. Uma jovem de avental branco veio atendê-lo.

       — Procura alguém?

       — Imagino, pela sua idade, que não se acha aqui há muito tempo.

       — Cinco anos, pelo menos.

       — Tem uma inquilina chamada Nina Lavasse?

       — Nunca ouvi este nome.

       — E o de Vivien?

      — O tipo que foi morto perto dos Halles? Li nos jornais dos últimos dias...

       — O que foi feito da antiga porteira?

       — Retornou à sua cidade natal. O filho tem uma vinha... Perto de Sancerre...

       — Como se chama?

       — Espere... Quase não a via... Michou... Isto mesmo... Um nome fácil de guardar... Clémentine Michou.

       — Obrigado.

       E para Torrence:

       — Voltamos ao Quai.

       — Sem mesmo um chopezinho?

       Tomaram um num bar da rua Notre-Dame-de-Lorette. Maigret começava a enxergar mais claro. Agora, de posse da identidade da moça, não tardaria a encontrá-la.

       — Assim que chegarmos ao escritório, suba até os fichários e verifique se temos algo sobre Nina Lassave... Se nada encontrar, fale com a Delegacia de Costumes... Nunca se sabe...

       Maigret, em seu gabinete, começou por tirar o casaco e encher o cachimbo, de pé, face à janela. Apesar de tudo, sua satisfação não era total e a senhora Maigret, certamente, diagnosticaria nervosismo ...

       E era verdade. Conduzira o inquérito da melhor forma possível, no presente e no passado. Obtivera resultados apreciáveis. Mas sentia que omitira algo. O quê? Não conseguia discernir claramente o que lhe causava um certo mal-estar.

       — Senhorita, gostaria de falar com a gendarmaria de Sancerre... Com o comandante, é claro... Se tiver saído?... Então, com um auxiliar direto...

       Começou a andar de um lado para o outro. Em duas semanas, dizia para si mesmo, uma vez concluído o caso, descansaria com a esposa em sua casa de campo de Meung-sur-Loire. Não ficava longe de Sancerre.

       — Alô, sim... O comandante da gendarmaria de Sancerre? Aqui Maigret, comissário da Polícia Judiciária. Desculpe o incômodo por causa de simples informações; mas trata-se de um assunto que talvez seja muito importante. Há, em sua cidade, um viticultor de nome Michou...

       — Existem dois Michou, e o mais engraçado é que não são parentes...

       — Um deles tem em sua companhia, há uns cinco anos, a mãe que foi porteira em Paris durante muito tempo...

       — Clementine Michou, sim...

       — Continua com o filho?

       — Faleceu, no ano passado...

       Sempre a mesma coisa: um passo para a frente, dois para trás...

       — Quer falar com o filho?

       — Não adianta. Somente ela poderia responder às minhas perguntas. Um caso já com vinte anos...

       — Posso calcular... O caso Vivien, não é? Como vai indo?

       — Mal... Principalmente agora... Contava com a senhora Michou e acontece que já morreu!... De qualquer forma, obrigado. Que tal o vinho na presente temporada?

       — Se o tempo prossegue assim, será excepcional.

       — É o que desejo... Obrigado...

       Sentou-se. Telefonara de pé, olhando pela janela. Um rebocador preto e vermelho, puxando quatro chatas, fascinara-o.

       — Venho lá de cima, chefe...

       — Nada?

       — Nada mesmo! E o pessoal dos Costumes nunca ouviu falar nela...

       O telefone tocou.

       — Trata-se de alguém que não quer identificar-se, senhor comissário.

       — Atendo assim mesmo...

       Ouviu uma voz abafada. Seu interlocutor usava obviamente um lenço, para disfarçar a voz.

       — Quer uma boa dica, senhor Maigret?

       — A respeito de quê?

       — A respeito do caso que o preocupa neste momento. Anote com atenção o nome que vou lhe dar: Mahossier... Só isto... Sua vez de jogar...

       E o homem desligou.

         

       — Torrence! Traga-me a lista telefônica da sala dos inspetores... Maigret procurou Mahossier. Não imaginara encontrar onze pessoas com o mesmo nome, só em Paris. Qual deles quiseram designar?

       Maigret começou as ligações, após prevenir o telefonista de que necessitaria de várias linhas.

       Na primeira chamada, a um Mahossier cujo nome não vinha acompanhado da profissão, não houve resposta; o mesmo sucedeu com o segundo.

       Depois, foi um florista de Passy.

       — Seu marido está?

       — Já não tenho marido. Divorciei-me há cinco anos.

       Em seguida, outro número mudo. A maioria dos parisienses encontrava-se de férias.

       Falou após com uma escola de datilografia e taquigrafia, no boulevard Voltaire.

       Novo chamado mudo. O quarto. Houve sete, ao todo. Torrence de pé próximo à janela, admirava-se com a paciência do comissário.

       Não ligou para o número seguinte, pertencente a um médico da praça dos Vosges. Atenderam, no subsequente, de uma companhia especializada em pintura de paredes, na avenida Trudaine.

       — Alô! Com quem deseja falar?

       — O senhor Mahossier, por favor.

       — O senhor Mahossier viajou ontem para La Baule.

       — Por quanto tempo?

       — Pelo menos três semanas. Talvez quatro. Quem está no aparelho?

       — Este número é da sua residência?

       — Não. Dos escritórios e das oficinas. O senhor e a senhora Mahossier moram na rua de Turbigo.

       — Possuem uma casa de campo em La Baule?

       — Sim. Os "Pins Parasols". Já há dez anos que passam as férias ali.

       A avenida Trudaine trazia-o de volta a Montmartre. E a rua de Turbigo situava-se nas proximidades dos Halles.

       Começou a andar de um lado para o outro. Mesmo diante de Torrence, receava parecer ridículo. Não teria dispensado demasiada atenção a um simples telefonema anônimo?

       — Chame a Air-Inter. Pergunte se há um voo amanhã de manhã para La Baule e se dá para voltar no mesmo dia.

       Torrence ligou da sala ao lado. Retornou alguns minutos mais tarde.

       — Um aparelho sai de Paris às dez e dez. Outro, de La Baule, às dezoito e trinta. Reservo um lugar?

       — Por favor...

       Mahossier... Mahossier... Maigret repetia o nome, num esforço quase doloroso de memória. Conhecia-o. Em todo caso ouvira-o ou lera-o em alguma vitrina.

       Subiu ao gabinete do juiz.

       — O que há de novo, senhor Maigret? – perguntou amavelmente o juiz Cassure.

       — Pouca coisa; só que agora conheço o nome e o antigo endereço da jovem pela qual Vivien abandonou a mulher e a filha.

       — O que foi feito dela?

       — A porteira do prédio é nova. A antiga faleceu em Sancerre onde morava desde a aposentadoria. Os inquilinos, todos eles, têm menos de quarenta anos.

       Hesitou um instante e tomou coragem.

       — Acabo de receber um telefonema anônimo...

       — Algum doido?

       — Não sei. Mas devemos tentar. Falaram num certo Mahossier. Há onze no catálogo. Sete estão de férias. Entre os outros quatro, só encontrei, como possível suspeito, um empreiteiro...

       — Vai visitá-lo?

       — Com a sua permissão, pois ainda ontem foi, com a esposa, para La Baule, onde tem uma casa, e volta somente dentro de três semanas. Nada prova sua relação com nosso caso, mas, não sei por que, somente ficarei tranquilo depois de vê-lo e falar-lhe.

       — Deseja, então, dar um pulo a La Baule?

       — Um avião da Air-Inter parte pela manhã, retornando no fim da tarde.

       — É o senhor quem dirige o inquérito...

       — Obrigado. Talvez seja melhor levar uma carta rogatória, para o caso de surgir algum problema ...

       O juiz Cassure preparou-a logo.

       — Boa sorte, Maigret.

       Chegou cedo em casa. Jantou frios, queijo e salada. Passou o resto da noite vendo televisão. De vez em quando dizia baixinho, como num encantamento:

       — Mahossier... Mahossier...

       Mas nenhuma lembrança concreta surgia em sua mente.

       — A propósito, — disse à esposa, — amanhã não venho almoçar.

       — Muito trabalho?

       — Não particularmente. Preciso ir a La Baule.

       — La Baule?

       — É. Necessito ver alguém. Farei o trajeto de avião. Chegarei em casa por volta das vinte e trinta.

       Sabia, por experiência, que muitos criminosos foram detidos graças a um telefonema anônimo ou a um delator. Quando se levantou, o sol já ia alto, sempre brilhante, sem a menor brisa. Isto deixou-o satisfeito pois não apreciava particularmente o avião, que lhe causava, sempre, um sentimento de claustrofobia.

       — Até logo!

       — Talvez tenha tempo de tomar um banho de mar, — brincou a senhora Maigret.

       Referia-se ao banho, pois Maigret não sabia nadar. Eis porque jamais passavam suas férias à beira-mar.

       O avião, um pequeno bi-motor, com capacidade para oito passageiros, parecia um brinquedo perto dos enormes jatos transcontinentais. Maigret olhou-os vagamente. Havia duas crianças que permaneciam em seus lugares e falavam o tempo todo.

       Tentou, sem êxito, cochilar. Finalmente, após duas horas de voo, o aparelho aterrissou no aeroporto de La Baule. Há já bastante tempo, vislumbrava-se, do alto, o mar cintilando e, ao largo, um navio dava a impressão de seguir a linha do horizonte.

       Achou logo um táxi.

       — Conhece um sítio denominado os "Pins Parasols"?

       — Sabe o endereço?

       — Não.

       — E o nome dos proprietários?

       — Mahossier... Louis Mahossier...

       — Aguarde um instante.

       O motorista foi a um bar, onde consultou o catálogo telefônico da região.

       — Pronto! — anunciou.

       — É longe daqui?

       — Atrás do hotel Hermitage...

       A mudança era total. Ali, os homens usavam bermudas, e camisa aberta, desnudando-lhes o peito. Em toda a extensão da praia — alguns quilômetros — havia várias fileiras de barracas e milhares de pessoas, umas torravam-se ao sol, ao passo que outras banhavam-se.

       A casa era imponente, num caminho arborizado, bem afastado da estrada.

       Maigret, em vão, procurou uma campainha. A porta, pintada de branco, achava-se entreaberta. No terraço, uma mesa e cadeiras de jardim.

       Empurrou a porta e gritou:

       — Olá!

       Não responderam de imediato. No terceiro chamado, uma empregada, bastante jovem, surgiu da penumbra do corredor.

       — Quem é?

       — Gostaria de falar com o senhor Mahossier.

       — Agora os patrões estão na praia. Se quiser voltar à tarde...

       — Prefiro encontrá-los logo.

       — Conhece-os?

       — Não.

       — No fim da primeira rua à esquerda, uma escada desce até a praia. A barraca deles é a quarta... Tem o número vinte e quatro impresso na lona...

       — Não quer vir comigo?

       — Não posso deixar a casa sozinha.

       — Qual a idade do senhor Mahossier?

       — Não sei ao certo. Trabalho para eles somente durante as férias. Talvez uns cinquenta anos...

       — Que tal sua aparência?

       — Bem conservado, bonito mesmo; alto, magro, cabelos cinzentos...

       — E a senhora Mahossier?

       — É muito mais jovem. Não passa dos quarenta.

       — Qual é mesmo, o número da barraca?

       — Vinte e quatro...

       Famílias passavam, de roupa de banho; algumas pessoas já tinham a pele em carne viva, devido ao sol.

       Encontrou a descida, e abriu caminho entre os corpos deitados na areia. Sem dificuldades deparou com a barraca, alaranjada, número vinte e quatro.

       Uma mulher, cujo rosto não se via, estava deitada de bruços; suas costas, cobertas de óleo, brilhavam ao sol.

       Olhou à sua volta, procurando um homem suscetível de ser Louis Mahossier. Perto do local onde o mar, preguiçosamente, acariciava a areia, uns vinte homens, enfileirados, faziam ginástica, sob as ordens de um monitor. Havia um, maior e mais magro do que os outros. Mahossier?

       Maigret não podia interromper a aula. Permaneceu de pé, a um metro da mulher da barraca vinte e quatro. Sentira sua presença? Ajeitou a parte superior de seu maio de duas peças, pouco maior do que um biquíni, e virou de lado.

       Pareceu surpresa ao notar, perto dela, um homem de terno e gravata. Maigret era, com toda certeza, o único nestes trajes, em toda a praia.

       — Procura alguma coisa? — acabou perguntando.

       Seu rosto também estava coberto de óleo ou de pomada. Era gorduchinha e aparentava bom humor.

       — Senhora Mahossier?

       — Sim. Como sabe?

       — Sua empregada informou-me o número de sua barraca. Gostaria de conversar com seu marido ...

       — Terá de esperar... Que horas são?

       — Quase meio-dia e trinta...

       — A aula de ginástica acaba dentro de alguns minutos...

       — É o mais alto de todos, não?

       — Sim. O terceiro à direita... Apesar de magro e sem uma grama de gordura, quando estamos aqui não perde uma aula.

      Olhava-o com curiosidade, sem coragem de fazer perguntas mais diretas.

       — O senhor chegou hoje de manhã?

       — Sim.

       — De carro?

       — Não. De avião.

       — Também viajaríamos assim se, aqui, não necessitássemos do carro. Hospedou-se no Hermitage?

       — Não me registrei em hotel algum. Volto hoje à tarde.

       Os exercícios de educação física findaram e o alto e magro caminhava em direção à sua barraca. Franziu as sobrancelhas quando reparou em Maigret conversando com a esposa.

       — Eis alguém que veio de Paris especialmente para vê-lo. Chegou de avião esta manhã e retorna à tardinha.

       Mahossier demonstrava visível descontentamento.

       — Senhor?...

       — Maigret, da Polícia Judiciária.

       — E quer falar comigo?

       — Sim. Apenas algumas perguntas...

       Ele correspondia a descrição fornecida: o homem que saíra de Chez Pharamond e observara Vivien descarregando legumes. Fora também notado na travessa do Vieux-Four, entrando no imóvel prestes a ser demolido, onde o mendigo buscara refúgio.

       — O senhor é empreiteiro, especializado em pinturas de paredes, não?

       — Isto mesmo...

       Um início de diálogo bastante estranho, devido ao ambiente, ao barulho da praia, os gritos das crianças e, finalmente, pelo fato de seu interlocutor estar de calção.

       — Há muito tempo?

       — Uns quinze anos.

       — E antes?

       — Era empregado.

       — E sempre em Montmartre?

       — Qual o motivo destas perguntas, comissário? Estou de férias. Não entendo com que direito o senhor vem aborrecer-me.

       Maigret mostrou-lhe o documento preparado pelo juiz Cassure, lendo o texto cuidadosamente.

       — E por que tudo isto?

       — Há alguns dias o senhor jantou nos Halles, mais precisamente no restaurante Chez Pharamond...

       Ele encarou a esposa, como a pedir-lhe que o ajudasse a refrescar a memória.

       — Foi na noite em que mamãe comeu lá em casa. Como você a detesta, resolveu ficar pela cidade ...

       — Que fez depois?

       — Caminhei, e voltei para casa...

       Maigret percebeu um certo rubor nas faces da mulher. Abriu a boca para interferir, mas preferiu permanecer calada.

       — Na verdade, subiu ao seu apartamento por alguns instantes... E, olhando fixamente o homem, lançou de repente:

       — Qual o calibre de seu revólver?

       — Não possuo arma.

       — Cuidado, senhor Mahossier. Devo preveni-lo de que qualquer mentira pode virar-se contra o senhor. Se não me responder francamente, pedirei ao juiz um mandado para revistar seus escritórios e sua residência.

       A mulher fitava o marido, espantada.

       Mahossier, com o olhar feroz, parecia prestes a lançar-se sobre o comissário.

       — Tenho uma velha automática, agora provavelmente enferrujada, e nem me lembro onde a guardei.

       — Calibre trinta e dois?

       — Suponho que sim. Não entendo de armas.

       — É pena que não se recorde onde a colocou. Poderia pedir a um de seus funcionários que me fosse entregue.

       — Mas, bolas, qual a razão de tudo isto?

       — Coisa séria, senhor Mahossier; trata-se de um crime. Quando descobrir sua arma, saberei em algumas horas, graças ao serviço de balística, se existe algo contra o senhor ou não.

       — Faça o que quiser. Não responderei mais as suas ridículas perguntas.

       Apertou a mão de um homem gordo, de calção, que passava e que foi deitar-se um pouco adiante.

       — Conheceu, há vinte anos, uma jovem chamada Nina Lassave, não é? E, por seu intermédio, travou conhecimento com Marcel Vivien...

       — O mendigo dos Halles?

      — Naquela ocasião não era mendigo, mas sim marceneiro na rua Lepic...

       — E julga que eu saiba alguma coisa?

       — Sim.

       — Lamento decepcioná-lo mas estas pessoas não fazem partes de minhas relações.

       — O boulevard Rochechouart não lhe diz nada?

       Pela primeira vez Maigret realizava um interrogatório na praia. A esposa de Mahossier, apoiada no cotovelo esquerdo, acompanhava a conversa com visível interesse.

       — Como qualquer parisiense, conheço o boulevard Rochechouart, é claro.

       — Onde residia em 1946?

       — Já faz muito tempo; eu mudava frequentemente de endereço, habitava pequenos hotéis.

       — De Montmartre?

       — É verdade. Meu patrão concentrara seus negócios neste bairro.

       — Hotel du Morvan?

       — Não me lembro.

       — Hotel Jonard, na praça das Abbesses?

       — Talvez.

       — Durante algum tempo, naquele verão, fez suas refeições no La Fourchette, situado na rua Dancourt? O pai Boutant ainda vive e poderá reconhecê-lo, pois goza de excelente memória.

       — O que o senhor fala é grego para mim...

       — Desconhece a existência deste restaurante?

       — Possivelmente, almocei ou jantei ali, uma ou outra vez. Restam-lhe ainda muitas questões?

       — Não. Suas respostas são bem evasivas. Pode-me informar, pelo menos, em que ano casou?

       — Em 1955.

       — Rompera, então, com Nina?

       — O senhor delira, comissário.

       — Recobrou a memória quanto ao revólver? Ou continua a ignorar seu destino?

       — Nem mesmo sei se ainda o tenho.

       — Comprou-o quando?

       — Ganhei-o de um dos meus operários. Com dois filhos em casa, não queria uma arma à solta.

       — E este homem prossegue trabalhando?

       — Sim.

       — Seu nome?

       — Oscar Raison. Encontrá-lo-á na avenida Trudaine. É um dos meus primeiros funcionários. Agora, espero que nada mais tenha a perguntar...

       — Agradeço sua boa vontade. Desculpe, minha senhora, se estraguei seu banho de sol...

       Ela não respondeu, mas olhou o marido com ar interrogador. Maigret encontrou, numa rua transversal, um pequeno restaurante italiano e sentiu uma vontade louca de comer uma pizza. Enquanto aguardava, pediu frutos do mar e uma garrafa de moscatel, pois não havia meias-garrafas.

       Sua expressão era séria e calma. Parecia-lhe que não perdera a viagem. Após o café, foi para Saint-Nazaire, onde julgava existir um posto da Polícia Judiciária. Dirigiu-se à prefeitura, de onde o enviaram a Nantes. Três inspetores achavam-se num local bastante exíguo.

       Foi reconhecido e o trio pareceu surpreendido ao vê-lo.

       — La Baule pertence à sua jurisdição?

       — Sim. Mas raramente nos chamam, pois nada sucede. É uma praia familiar...

       — Gostaria que vigiassem, dia e noite, um homem que ali passa suas férias. É possível?

       — Tudo é possível, evidentemente. Mas não somos numerosos... Maigret mostrou-lhes a carta rogatória.

       — Faremos o que quiser, chefe...

       Descreveu Louis Mahossier, a esposa e forneceu-lhes o endereço.

       — Se um dos dois deixar La Baule, peço-lhes que me telefonem imediatamente, mesmo para minha casa, se for necessário...

       Deixou-lhes seu número.

       — E quero saber, é claro, que direção tomaram.

       — Certo, senhor comissário. Não aceita um copinho de moscatel?

       — Acabei de beber. E o médico recomendou-me moderação...

       Deixou-os e voltou de táxi para La Baule. Alguns homens, sobre o aterro, vestidos como ele, levavam o paletó no braço. Ele imitou-os.

         

       De Orly rumou diretamente para casa. Sua esposa, que o aguardava, desandou a rir.

       — O que aconteceria se você passasse uma semana na praia?

       — O que pretende dizer?

       — Só ficou um dia, e queimou-se desse jeito... Vá olhar-se no espelho...

       Era verdade. Seu rosto apresentava-se como um pimentão. E tinha pressa em tirar os sapatos cheios de areia. Não resistira ao desejo infantil de caminhar ao longo da praia, próximo à água. Andara assim umas duas horas, num universo colorido e barulhento, evitando como podia as bolas das crianças.

       — Você jantou?

       — Belisquei, no avião. Preciso telefonar à P.J.

       Na sala dos inspetores, atendeu Janvier. Admirado, perguntou:

       — Ainda no escritório?

       — Um assalto a uma agência dos correios deu-nos muito trabalho. Apanhamos os dois principais autores e recuperamos o dinheiro. Um terceiro homem, o que permanecia de vigia, escapou. E o senhor, chefe?

       — Só dentro de alguns dias concluirei se minha viagem foi ou não proveitosa. Enquanto isso, você tem dois inspetores, a partir desta noite para um trabalho de vigia?

       — Vamos dar um jeito. Mas a equipe está reduzida ao mínimo.

       — Tome nota... Avenida Trudaine, perto do liceu Rollin. Os canteiros de obras e as oficinas do empreiteiro Louis Mahossier. Não tenho a menor ideia do que pode acontecer, mas ficarei mais tranquilo se mantiver o local sob vigilância. O segundo homem deve controlar o domicilio do mesmo, na rua de Turbigo... O apartamento não está vazio... Uma velha cozinheira vem frequentemente...

       — Certo... E se Mahossier aparecer num desses lugares?

       — Sigam-no e anotem seus menores gestos e ações...

       Maigret dormiu mal; começou a transpirar o que fez arder seu rosto. Guardava nos ouvidos o ruído do mar e o colorido da praia parecia impresso em sua retina.

       Acordou cedo no dia seguinte e foi de táxi para a rua de Turbigo. Tratava-se de um daqueles antigos prédios do Marais4 que, restaurado exteriormente, retomara seu aspecto de rico hotel particular.

       — Desculpe, minha senhora, o apartamento do senhor Mahossier, por favor...

       — Viajou... Foi com a esposa para La Baule onde têm uma casa de...

       — Já sei. Mas também sei que a senhorita Berthe, a cozinheira, encontra-se lá em cima...

       — Como quiser... Primeiro andar, à direita... Na realidade, tanto faz direita ou esquerda, pois ocupam todo o andar...

       Não havia elevador, mas a escada era larga e pouco íngreme. Tocou a campainha em uma porta de madeira antiga, envernizada; demoraram a atender. Finalmente, ouviu leves passos no apartamento e a porta abriu-se.

       — O senhor e a senhora Mahossier estão...

       — Em La Baule, obrigado. Vim para vê-la.

       — A mim?

       — É a senhorita Berthe, a cozinheira, não?

       — Entre. Não fique aí fora.

       Conduziu-o a um salão, espaçoso, iluminado por três grandes janelas e mobiliado mais ou menos ao estilo do imóvel.

       — Sente-se. Vende aspiradores?

       — Não. Pertenço à Polícia Judiciária.

       Examinou-o da cabeça aos pés, sem pudor. Aparentava ser uma mulher franca e desinibida.

       — O senhor não é o comissário Maigret?

       — Sou.

       — Trata então daquele mendigo cujo nome esqueci?... Já não me lembro mais dos nomes...

       — Vivien...

       — Sim. Que ideia, matar um mendigo, não acha? A não ser que seja um daqueles falsos mendigos, que escondem um tesouro no colchão.

       — Não é este o caso. Vi seu patrão ontem, em La Baule.

       — Ah!

       — Conheceu-o antes do casamento?

       — Quando ficou noivo da senhorita Cassegrain. Continuei a trabalhar para ela. O senhor Cassegrain é tabelião, na avenida Villiers. Tem a esposa quase sempre doente. Havia uma arrumadeira que cuidava dela e cozinhava.

       — Foi o senhor Cassegrain quem insistiu para que acompanhasse sua filha, quando ela casou.

       — Há quantos anos?

       — Uns quinze. A diferença é que aqui não temos arrumadeira e eu faço tudo... Ora, não é bem assim... A patroa me ajuda e ela entende de cozinha tão bem quanto eu...

       — Saem com frequência?

       — Raramente. Quando muito vão ao cinema ou a um teatro. Recebem somente alguns amigos, sempre os mesmos.

       — Dão-se bem?

       — Não brigam por qualquer motivo, se é isto que quer saber.

       — Acredita que ainda se amam? Sua resposta foi o silêncio.

       — O senhor Mahossier tem uma amante?

       — Ignoro. Mas não seria a mim que ele contaria.

       — Acontece que se ausente à noite, sozinho, e regresse tarde?

       — Nunca... Ou melhor, sucedeu na semana passada... Por volta das onze horas, quando a patroa levara a mãe, que jantara aqui, embora. Entrou como um furacão e foi até o quarto. Depois, saiu tão rapidamente quanto entrara... Quando a patroa voltou, resolveu não esperá-lo e deitou-se. Não sei se ouviu quando retornou, pois fê-lo silenciosamente ... O que sei, é que eram mais de três horas da manhã...

       — Há muito tempo que dormem em quartos separados?

       — Desde os primeiros meses do casamento. O patrão levanta de madrugada para chegar cedo às obras. Assim, não acorda a patroa que gosta de ficar na cama até bem tarde...

       Bastava observá-la falando para constatar que não gostava de Mahossier; mas demonstrava pela patroa verdadeira adoração.

       — Que idade tinha, ao casar?

       — Só vinte anos e um mês...

       — Sabe onde se encontraram?

       — Não. Quando solteira ela saía muito, o senhor conhece a juventude, não?

       — Ela é feliz?

       Outro silêncio, eloquente.

       — Decepcionou-se com o casamento?

       — Não é do tipo de mulher que se lamente ou finge melancolia. Encara os fatos com naturalidade...

       Maigret percebeu um retrato do casal sobre o piano. Louis Mahossier usava um bigode que já raspara. Quanto à mulher, tinha os cabelos louros, encaracolados.

       A cozinheira, que seguia o olhar de Maigret, indagou de repente:

       — O que fez ele?

       — Por que a pergunta? Talvez nada tenha feito...

       — De outra forma o senhor não se acharia aqui. Quando um homem como o comissário Maigret desloca-se...

       — Quer levar-me ao seu quarto?

       — Se ele souber, ficará furioso. Azar! Não tenho medo dele. Atravessaram a sala de jantar e um corredor.

       — Aqui, — disse abrindo a porta, — é o quarto da patroa...

      Um aposento alegre, em tons de cinza pálido mesclado ao azul. O tapete, branco, macio, fazendo com que os pés afundassem.

       Ao lado, o quarto de Mahossier; mais sóbrio, evidentemente, mas de bom gosto.

       — Quem escolheu os móveis e a decoração?

       — A patroa. Fez cursos de história da arte, no Louvre, e frequentou também a escola de artes decorativas.

       — Toca piano?

       — Quando sozinha.

       Predominavam agora, o bege e o marrom.

       — Diga-me, Mahossier tem um revólver?

       — Sim. Vi-o há uns quinze dias.

       — Uma arma com tambor?

       — O senhor quer dizer uma espécie de cilindro onde as balas são colocadas?

       — É.

       — Não. É achatado.

       — Uma automática!

       — Vou mostrá-la ao senhor.

       Foi até à mesa de cabeceira e abriu a gaveta superior. Seu rosto exprimiu assombro.

       — Sumiu!

       — Não a levaria para a praia?

       — Claro que não. Eu fiz as malas.

       — Talvez mudasse de lugar?

       Ela abriu as outras gavetas que continham chaves, um canivete e carteiras de sócio de numerosos clubes.

       — Desde que trabalho aqui, o revólver sempre ficou nesta gaveta.

       — Viu-o há quinze dias, não foi? Havia cartuchos junto?

       — Uma caixa cheinha. Desapareceu também. Procurou nos armários, na cômoda e até no banheiro.

       Fitou novamente Maigret, desta vez com o rosto sério, um pouco pálido.

       — Começo a adivinhar o porquê de sua presença aqui...

       — Isto surpreende-a?

       — Um pouco. Mas não muito. O motivo que vou apresentar pode parecer ridículo. Mas ele não gosta de animais. Não quer gato nem cachorro em casa. A patroa possuía um "coccer" que lhe fazia companhia e ele obrigou-a a despachá-lo...

       — Acho melhor que não saia de Paris nos próximos dias. É possível que venha a precisar da senhora.

       — Às suas ordens.

       E, enquanto atravessavam o salão:

       — Viu a patroa, em La Baule?

       — Aposto que se banhava ao sol!

       — Exatamente.

       — Na praia, é assim que passa seus dias. Quando criança já ia para La Baule com os pais...

       — Eles não querem filhos?

       — Não me falaram a respeito, mas creio que não fazem muita questão.

       — Agradeço-lhe muito, senhorita Berthe. Ajudou-me bastante...

       — É de meu interesse... Maigret não acrescentou:

       — Colocar o meu patrão numa situação daquelas!...

       Um taxi levou-o ao Quai des Orfèvres. Torrence anunciou-lhe que telefonaram de Nantes informando não haver novidades nos Pins Parasols. Perguntavam ainda se a vigilância deveria prosseguir.

       — Ligue e diga que sim.

       — Colocou os homens onde ordenei? — inquiriu a Janvier que se encontrava em seu posto.

       Era o único a quem tratava por "tu" regularmente. As vezes ocorria o mesmo com o jovem Lapointe, o último a entrar para o grupo. Quanto aos outros, o tratamento era mais cerimonioso, a não ser que estivesse distraído ou no calor de uma ação.

       — Quem foi para a rua de Turbigo? Deve ocultar-se muito bem, pois acabo de chegar de lá e não notei ninguém. É bem verdade que há um bar em frente...

       — Baron, na rua de Turbigo... Neveu em Montmartre...

       Maigret foi para o corredor dos juízes e bateu à porta do juiz Cassure. Recebeu um "sim" e entrou.

       — Novidades?

       — De certa forma... Creio mesmo que seria interessante uma autorização para que seguíssemos oficialmente, determinada pessoa.

       — Ora, ora, fale-me a respeito...

       E Maigret, sentando numa desconfortável cadeira, contou-lhe suas peregrinações dos dois últimos dias.

       — Não posso ainda provar que seja o assassino de Vivien; mas existem provas suficientes que justifiquem um interrogatório mais sério e não numa praia...

       — Também acho... E como agirá? Enviará dois de seus homens buscá-lo ou encarregará a gendarmaria local?

       — Mandarei meus inspetores, se encontrar alguém disponível... Trabalhamos agora com efetivos tão reduzidos, que se os bandidos soubessem, não deixariam de aproveitar...

       — Assino agora o mandado...

       Preencheu um formulário que Maigret conhecia muito bem.

       — O nome?

       — Louis.

       — Mahossier com "h"? Não sei por que, tenho vontade de escrever com "r"...

       — Obrigado, senhor juiz...

       — Já foi até a avenida Trudaine?

       — Não. Hoje de manhã, talvez...

       E saiu à procura de Janvier.

       — Preciso, de qualquer maneira, de dois homens.

       O coitado não sabia como "se virar".

       — Por muito tempo?

       — O tempo de apanhar alguém em La Baule.

       Olhou Maigret, no fundo dos olhos, e eles entenderam-se.

       — Percebo! Leve então Véran e Loubet.

       Maigret conduziu-os ao seu gabinete, instruindo-os; entregou-lhes em seguida o mandado.

       — Há um avião dentro de uma hora... Peguem-no, mas prefiro que voltem de trem.

       — Passamos-lhe as algemas?

       — Se tentar escapar, sim. De outra forma, acho que é inútil.

       Chamou Torrence.

       — Venha, motorista...

       Esta fora, de fato, sua função nos últimos dias.

       — Avenida Trudaine... Em frente ao liceu Rollin...

       — Vai prendê-lo?

       — Vigiá-lo e detê-lo para interrogatório. Depois, veremos...

       Um grande pátio, cheio de escadas e uma espécie de garagem repleta de enormes latões de tinta. Numa placa esmaltada lia-se "escritório" e Maigret seguiu a seta.

       Uma única peça, bastante espaçosa, onde um homenzinho, de fisionomia fechada, debruçava-se sobre faturas.

       — Comissário Maigret...

       — E deseja falar comigo?

       — O seu nome, por favor?

       — Vannier... Gérard Vannier e não imagino por que a polícia...

       — Não se trata do senhor.

       — De um de nossos operários, então? Encontram-se agora trabalhando nas diferentes obras. São pessoas sérias, nossos funcionários há anos...

       — A sala à esquerda é a do patrão?

       — Sim. Mas não fica muito tempo por aqui. Visita sempre nossas construções.

       — Os negócios andam bem?

       — Não nos podemos queixar.

       — O senhor é sócio?

       — Não, infelizmente. Apenas o contador.

       — Quando foi fundada a firma?

      — Não sei. Apenas que, em 1947, o dono foi à falência. Mas, na verdade, passava quase todo o tempo nos bares e havia muito desperdício de dinheiro ... O senhor Mahossier assumiu a direção e mudou todo o pessoal...

       — E o senhor?...

       — Inicialmente um contador, duas noites por semana, cuidava dos livros. Porém, com o incremento das atividades, contratou-me por tempo integral, no final de 1948.

       — Trabalha muito?

       — Tudo passa por suas mãos. Mal tem tempo de almoçar.

       — Qual sua atitude em relação aos empregados?

       — Trata-os com amizade, mas existe um limite que não pode ser ultrapassado, e eles sabem disto muito bem.

       — Quantos operários?

       — Por enquanto, oito, se contarmos o aprendiz...

       — Já viu um revolver no escritório?

       — Um revolver? Não. Para que serviria? O dinheiro quase sempre nos chega em cheques e são imediatamente depositados no banco que fica na esquina da avenida.

       — Com licença!

       O homem ficou indignadíssimo quando Maigret penetrou no gabinete de Mahossier e abriu todas as gavetas. Não encontrou a arma.

       — O que o trouxe até aqui?

       — Minha investigação...

       — Quando o senhor Mahossier souber disto...

       — Falei com ele ontem.

       — Foi até La Baule?

       — Sim. E amanhã de manhã, o mais tardar, chegará a Paris.

       — Mas ele só regressaria dentro de três semanas ou um mês.

       — Consegui que mudasse de opinião...

       — E ele não protestou?

       O pequeno Vannier mostrava-se colérico, nervoso, como um galo de briga.

       — Gostaria de saber que história é esta...

       — Não tardará muito...

       — Abrir gavetas como em sua casa... Fazer perguntas imbecis... E imaginar que pode obrigar o patrão o voltar de La Baule...

       Maigret saiu, sem nada dizer, deixando Vannier entregue às suas queixas.

         

       Maigret mal chegara ao Quai des Orfèvres, quando telefonaram de la Baule. Era Véran, um dos inspetores enviados em busca de Mahossier.

       — Como foram as coisas?

       — Inicialmente, mal. Começou demonstrando muita altivez e recusando-se a acompanhar-nos. Falou em amigos seus de prestígio e do escândalo que o fato provocaria.

       — Qual a reação da esposa?

       — Ela ouvia, surpresa. Deixei-o discutir durante alguns minutos, depois apanhei as algemas no bolso dizendo que se não viesse por bem, viajaria com aquela "pulseira". O sangue subiu-lhe à cabeça.

        — O senhor ousaria fazê-lo?

       — Sim.

       — Mas por que, diabos?

        — Imagino que sofria muito com a humilhação. Finalmente, acompanhou-nos à estação e tomamos o trem da noite. Sua mulher queria acompanhá-lo, mas ele recusou afirmando que regressaria em quarenta e oito horas.

        — De nada podem me acusar, você entende? E eles é que ficarão muito embaraçados...

        

       Na manhã seguinte, Maigret sentou-se em sua sala, escolheu um cachimbo que encheu lentamente e fez um sinal a Torrence para que se instalasse na ponta da mesa, com um bloco. Normalmente, era Lapointe quem estenografava os interrogatórios, pois tratava-se do melhor taquígrafo da P. J.; Torrence, entretanto, também "quebrava o galho".

       Maigret apertou um botão e Véran entrou com um Mahossier de cara fechada e olhar imóvel.

       — Sente-se.

       — Protesto contra esta injustificável detenção e reservo-me o direito de processá-lo, seja o senhor quem for, comissário.

       Maigret não se moveu.

       — Quer informar-me, senhor Mahossier, onde está o seu revólver?

       — Que revólver?

       — O que ficava na gaveta superior de sua mesa de cabeceira, ainda há uns dias. Um trinta e dois, se não me engano.

       — Nada entendo de armas e julgo-me incapaz de dizer qual o calibre desta arma, que me foi presenteada há muito tempo.

       — E onde se encontra, agora?

       — Provavelmente na mesma gaveta.

       Falava com voz impregnada de ódio e seus olhos, encarando o comissário, expressavam intenso rancor. Mas não haveria medo também?

       — A arma sumiu. O que fez dela?

       — Não sou o único que tem acesso ao apartamento.

       — O que pretende? Que a senhorita Berthe furtasse-a? Não brinque, por favor. De nada adiantará.

       — Não disse que a cozinheira...

       — Sua sogra, talvez? Encontrava-se justamente em sua casa na noite em que jantou sozinho, no chez Pharamond e voltou às três da madrugada ...

       — Nunca voltei às três horas da manhã...

       — Quer enfrentar uma testemunha que o viu perfeitamente e não deixará de reconhecê-lo?

       Torrence, com a testa coberta de suor, escrevia o mais rapidamente possível.

       — Tenho aqui, à minha inteira disposição, alguém que reparou quando entrava, pouco antes das três horas na travessa do Vieux-Four; mas, outra pessoa ouviu, quando regressou ao seu apartamento, alguns minutos mais tarde.

       Ele ironizou:

       — Minha esposa, talvez?

       — Se assim fosse, não poderia depor contra o senhor.

       Maigret, contrariamente ao seu interlocutor, era a calma personificada.

       — Então foi aquela velha p... da Berthe. Sob o pretexto de que criou minha esposa, é tão ciumenta que não me suporta.

       — Onde conheceu Marcel Vivien?

       — Não sei de que fala.

       — Não lê os jornais?

       — Os acontecimentos corriqueiros, não.

       — Mas tem conhecimento, pelo menos, de que foi assassinado, enquanto dormia? Levou três tiros no peito.

       — E isto relaciona-se comigo?

       — Talvez. Seria formidável para o senhor se encontrasse sua arma.

       — Teria de saber, em primeiro lugar quem o levou ou mudou-o de lugar.

       Era um homem capaz de continuar na negativa, por mais óbvios que se apresentassem os fatos. Acendeu um cigarro com a mão a tremer. Raiva?

       — Imagino que nunca foi à travessa do Vieux-Four?

       — Nem mesmo sei onde fica.

       Maigret mudou bruscamente de assunto, confundindo assim Mahossier.

       — O que sucedeu a Nina Lassave?

       — Devo conhecê-la? Seu nome nada me diz, absolutamente.

       — Em 1945 e 1946 o senhor morou em Montmartre, num hotel próximo ao boulevard Rochechouart.

       — Habitei o bairro, mas não me lembro do ano.

       — Ela possuía um apartamento no boulevard Rochechouart.

       — É possível. Existem milhares de pessoas na mesma situação. Devo conhecê-las também?

       — Conheceu provavelmente Nina e Marcel Vivien, seu amante. Reflita, antes de responder. Não ocorreu o mesmo com o senhor?

       — Nem preciso pensar. Não. Naquela época, ainda solteiro, tive várias amantes, mas esta não; e jamais encontrei o tal Marcel Vivien.

       — Em suma, o senhor nada tem a ver com o caso?

       — Nada mesmo.

       Tornava-se insolente, mas seu nervosismo aumentava e não conseguia controlar o tremor dos seus dedos.

       — Para que possa meditar melhor, vou enviá-lo ao Depósito de Presos.

       — Não tem o direito...

       — Esquece o mandado, devidamente assinado pelo juiz de instrução?

       — Se pensa interrogar-me novamente, exijo a presença de meu advogado.

       — Poderia recusar. O advogado só pode intervir junto ao juiz. Mas desejo que tenha todas as oportunidades. Qual o seu nome?

       — Loiseau. Doutor Loiseau. Mora no boulevard Beaumarchais, trinta e oito.

       — Avisá-lo-ei assim que se fizer necessário.

       Maigret levantou e foi até a janela aberta sobre um céu desesperadamente azul, sem a menor nuvem. Todos, menos nas praias, clamavam por chuvas, que não caíam; e a temperatura tendia a subir.

       O inspetor Véran reconduziu Mahossier à sua cela.

       — Não me pega não, — resmungava ele, em voz baixa, referindo-se certamente ao comissário Maigret.

       E Maigret, por seu turno, dirigindo-se a Torrence :

       — Ele é fogo. Bata à máquina as anotações que tomou; da próxima vez ele assinará o depoimento.

       — O senhor julga mesmo que ele conheceu Nina Lassave?

       — É possível. Joguei verde. Mas creio que reagiu, pois não contava que tocasse em seu nome.

       Trocou de cachimbo e colocou o chapéu.

       — Se precisarem de mim com urgência estarei no Parisien Liberé...

       Torrence olhou-o, surpreso, mas nada comentou. Maigret tomou inicialmente um chope na Brasserie Dauphine e depois apanhou um táxi.

       — Ao Parisien Liberé.

       Recordava-se de que fora um dos primeiros jornais a surgir após a Libertação. Ele, em 1946, achava-se fora de Paris. Naquela época, desagradara ao diretor da P.J., aposentado alguns meses mais tarde, e enviaram-no a Luçon. Nada tendo a fazer, passava o tempo a jogar bilhar. Aborrecera-se durante quase um ano; e a senhora Maigret também não se adaptara ao local.

       Felizmente o novo diretor reconduzira-o a Paris. Ainda não era comissário-chefe, e nem dirigia a brigada criminal, mas, simplesmente, comissário.

       Sua passagem por Luçon, era como um vazio em sua carreira e em suas lembranças.

       — Gostaria de falar com o redator-chefe.

       — Da parte de quem?

       — Comissário Maigret.

       O redator-chefe, muito jovem e a quem não conhecia, saiu de sua sala para recebê-lo.

       — A que devo a honra desta sua visita?

       — Ao trabalho — confessou Maigret.

       — Em que podemos ajudá-lo?

       — Suponho que conservam todos os números do seu jornal.

       — Claro. Classificados por ano...

       — Preciso consultar os de 1945 e 1946...

       — Venha comigo...

       Caminharam por longos corredores, chegando finalmente a um cômodo sombrio; nas prateleiras arrumavam-se enormes encadernações de tela preta.

       — Quer alguém para auxiliá-lo?

       — Não, obrigado. Além do mais isto pode durar algumas horas.

       Era justamente o que Maigret esquecera de fazer, desde o início do inquérito. Pensara no assunto em determinado momento, mas o raciocínio fugira-lhe, por assim dizer, da memória.

       — Posso encomendar cerveja... O bar, em frente, está habituado...

       — Agradeço-lhe, mas acabo de tomar um copo...

       Ao ficar só, tirou o paletó, arregaçou as mangas e apanhou o volume correspondente ao ano de 1945.

       Uma hora mais tarde, terminou. Evidentemente, lia somente as manchetes. Nada encontrara relacionado a Marcel Vivien, Nina Lassave ou Louis Mahossier.

       Recolocou-o em seu lugar e, já com dor de cabeça, dedicou-se a 1946. Por duas vezes o redator-chefe veio assegurar-se de que tudo corria bem.

       — Continua sem sede?

       — Aceitaria um chope, com prazer.

       A fumaça do cachimbo tornara o ar azulado. A peça recendia a papel velho e tinta de imprensa.

       Deparou com manchetes que o surpreenderam: casos que na época causaram enorme reboliço, mas agora completamente esquecidos.

       Janeiro... Fevereiro... Março... Abril...

       O mês de agosto, finalmente. E no dia dezessete, o seguinte título:

        

       “Jovem estrangulada no boulevard Rochechouart.”

        

       A manchete não era das maiores nem constava da primeira página. O fato não despeitara maior atenção.

       "Uma moça de vinte e dois anos, Nina Lassave, foi encontrada morta, estrangulada, inteiramente despida, sobre o leito do quarto que ocupava no boulevard Rochechouart. O aposento, bem como o resto do apartamento encontrava-se em absoluta ordem. A porteira, interrogada, nada informou que pudesse auxiliar as investigações."

       “Durante vários anos, Nina Lassave trabalhou como vendedora numa loja de roupa branca feminina na rua Lepic. A proprietária, interrogada, declarou que fora uma excelente funcionária.”

       "No final de 1945 deixou bruscamente o trabalho. Havia um homem em sua vida, mas raramente encontravam-se na casa desta. O que sucedeu na noite de sua morte? O caso apresenta-se difícil, pois a porteira, já bastante idosa, não liga muito para quem entra ou sai do imóvel.”

       “O comissário Piedboeuf assumiu a direção do inquérito.”

       No número seguinte, lia-se: “Nada de novo em relação ao crime do boulevard Rochechouart.”

       Algumas linhas somente, informando que pesquisavam a vida pregressa da jovem. O relatório do médico-legista estabelecia, em termos técnicos, que morrera por estrangulamento. Não sofrera outras sevícias.

       Interrogada novamente, a porteira confirmou que um homem, ainda bastante jovem, acompanhava-a, subindo às vezes ao seu apartamento; mas jamais pernoitava.

       Vira-o em uma ou duas ocasiões. Não se julgava capaz de reconhecê-lo. Há dois meses mais ou menos, outro homem, vinha durante a tarde. Sua descrição seria mais fácil, pois a claridade permitira que o examinasse perfeitamente.

       Era bem alto, magro, de olhos escuros. Subia os degraus de quatro em quatro e, uma hora mais tarde, saía sozinho.

       Três dias mais tarde, o Parisien Liberé comunicava aos seus leitores:

       "Suspeito interrogado pelo comissário Piedboeuf.”

      “Um grande mistério cerca a atividade da Polícia Judiciária. Identificaram, de fato, o segundo indivíduo que visitava Nina Lassave no boulevard Rochechouart. Trata-se de um certo Louis M..., pintor de paredes, que mora num pequeno hotel do bairro. Reconhece ter sido amante da jovem, mas afirma que não esteve com ela no dia de sua morte. A porteira, entretanto, diz peremptoriamente que se encontrava na escada quando ele apareceu, “naquele dia, por volta das quatro horas da tarde.”

       “Devido à falta de provas, M... foi colocado em liberdade, mas prosseguem as investigações a seu respeito.”

       “Quanto a Marcel V..., marceneiro, amante de Nina Lassave há seis meses, conseguiu provar que se achava num café do boulevard da Chapelle, no momento do crime.”

       Maigret fazia inúmeras anotações em seu antigo caderno preto. O garçom de uma das cervejarias das redondezas trouxera-lhe um chope espumante; e o interesse despertado pelas revelações do jornal curara-lhe a dor de cabeça.

       Tentou dirigir-se à sala do redator-chefe, mas perdeu-se pelos corredores e foi obrigado a solicitar auxílio.

       — Existe algum inconveniente em que eu mande fotografar alguns artigos arquivados?

       — De forma alguma.

       — Permite que use o telefone? Ouviu a voz de Moers.

       — Mestral está?... Peça-lhe que venha até o Parisien Liberé; encontrar-me-á no setor de arquivos.

       Maigret retornou ao seu lugar e prosseguiu folheando os antigos números do jornal. Falavam cada vez menos de Nina Lassave — umas poucas linhas — pois um grande processo político apaixonava a França.

       “Parece que Louis M..., que a porteira alega ter visto subir ao apartamento de Nina Lassave, por volta das quatro horas da tarde, também possui um álibi. O comissário Piedboeuf e seus inspetores continuam o inquérito, mas nenhum elemento novo foi descoberto.”

       Era quase o enterro do caso do boulevard Rochechouart. O jornal não publicara nem o retrato de Mahossier, nem o de Marcel Vivien.

       Interrogaram Mahossier, duas ou três vezes, no Quai des Orfèvres. Conduziram-no à presença do juiz Coméliau, que ainda vivia, mas devido à ausência de qualquer prova, foi finalmente ilibado.

       Mestral chegou meia hora mais tarde, com um conjunto de máquinas fotográficas e “flashes”.

       — Muitas páginas a fotografar?

       — Uns poucos artigos, e bem curtos. Maigret acompanhou seu trabalho, indicando os textos.

       — Dá para receber as provas durante a tarde?

       — Digamos quatro horas, se permitir que eu almoce. Maigret agradeceu ao redator-chefe.

       — Encontrou o que procurava?

       — Sim.

       — Suponho que ainda não possa divulgar nada?

       — No momento oportuno, prometo-lhe um furo...

       — Obrigado. Até breve, espero...

       Passava, já, do meio-dia. Da rua de Enghien ao boulevard Richard-Lenoir havia cerca de trinta minutos de caminhada; Maigret, de bom humor, olhava os transeuntes, as vitrinas e os ônibus de turistas. Havia dois ou três na Bastilha, que os estrangeiros fotografavam, como fotografaram o Arco do Triunfo e a Torre Eiffel. A maioria parecia cansada, mas não desejava perder nada das curiosidades prometidas.

       Entrou cantarolando em seu apartamento.

       — Parece que as coisas melhoraram, — observou a senhora Maigret começando a servi-lo.

       — Acho que trabalhei bem. Não sei ainda qual será o resultado, mas algo vai acontecer. Pena que uma pessoa não possa falar.

       — Quem?

       — Marcel Vivien. Tenho, aliás, uma novidade que não preciso ocultar. Nina Lassave foi assassinada em seu apartamento, em agosto de 1946.

       — A tiros?

       — Estrangulada.

       — E você a procurá-la!

       — É mesmo. Interroguei Mahossier que se torna cada vez mais rebarbativo.

       Comeu com apetite. Um pernil de carneiro, malpassado, com uma gotinha de sangue junto ao osso.

       — Delicioso, — suspirou, cortando outra fatia.

       — Acredita que se aproxima do final?

       — Uma afirmação seria prematura, mas já percorremos um bom pedaço. O mais engraçado é que tudo o que descobri hoje no Parisien Liberé deve-se encontrar, com maiores detalhes, nos arquivos da P.J. Não pensei nisto antes pois sucedeu na época em que estávamos em Luçon...

       — Nunca me aborreci tanto na vida...

       — E eu?

       — Quer um pêssego? Veja só, bem maduros e sumarentos...

       — Vá lá...

       Sentia-se em paz com o mundo e consigo mesmo.

       Desta vez, foi de táxi para o escritório. Pelas janelas, como nos dias anteriores, escancaradas, chegavam sopros de ar ligeiramente mais fresco, que circulavam pelo aposento.

       — Torrence!...

       — Sim, chefe.

       — Terminou de datilografar o depoimento?

       — Antes mesmo do meio-dia.

       — Traga-me uma cópia, sim? Recebeu-a e disse ao inspetor:

       — Dê um pulo aos Arquivos; nos processos relativos a 1946, deve haver alguma coisa concernente ao assassinato de Nina Lassave, no boulevard Rochechouart...

       — Bem que achei o nome conhecido... Agora me recordo... Foi o comissário Piedboeuf quem cuidou do caso.

       — Exatamente. Quero a pasta o quanto antes. Releu, palavra por palavra, com uma pausa de vez em quando, para pensar ou acender o cachimbo, as perguntas que fizera de manhã e as respostas de Mahossier.

       Cada frase tinha sua importância.

       No texto escrito, as declarações de Mahossier mostravam-se bem mais desordenadas.

       Terminando, Maigret permaneceu imóvel, com os olhos semicerrados. Dir-se-ia que cochilava, mas sua mente trabalhava mais ativamente do que nunca. Tentava lembrar-se dos menores detalhes do inquérito. Analisava detalhadamente todas as fases.

       Não sentia a menor pressa em concluir. Resolveu de repente ligar para Ascan, o comissário de polícia da primeira circunscrição.

       — Sinto muito, senhor comissário! Meus homens nada mais descobriram...

       — Não foi por isto que telefonei. Gostaria, se fosse possível, que apanhassem o homem e a mulher que interroguei em seu gabinete. Se conseguirem, mande os dois para cá...

       — Cuidado com as pulgas...

       — Não seria a primeira vez. Riscos da profissão ...

       — Neste bairro temos de tudo... A que horas, então?

       — Se der, lá pelas quatro...

       — Vamos tentar... Conto, no momento, com o pessoal adequado...

         

       Maigret pediu à telefonista que ligasse para o advogado Loiseau, no boulevard Beaumarchais.

       Ela chamou em seguida informando que o causídico não se encontrava em seu escritório mas, provavelmente, no Tribunal.

       — Experimente, então, o Palácio da Justiça.

       Desta vez levou quase quinze minutos. Procuraram-no, certamente, por todos os lados.

       — Loiseau...

       — Comissário Maigret... Eis do que se trata, doutor. Após um recente caso de assassinato, detive um cliente seu, Louis Mahossier... Hoje, pela manhã, tentei, em vão, fazer-lhe algumas perguntas, mas não obtive resultado algum... Só deseja falar em sua presença e não vejo inconveniente... Haveria alguma possibilidade de nos encontrarmos, às quatro, em meu gabinete?

       — Impossível. Tenho uma audiência às três... Mas às cinco, se quiser...

       — Certo, às cinco...

       Mal Maigret desligara, Torrence trouxe-lhe uma pasta, bem fina, do caso Nina Lassave, em 1946. Tirou, inicialmente o paletó, acendeu um novo cachimbo e sentou-se diante dos documentos.

       Havia em primeiro lugar o testemunho da porteira, na delegacia do bairro; como não vira sua inquilina às duas horas da tarde, logo num dia em que regressara, cedo, subira e batera à sua porta.

       Como estivesse entreaberta, penetrou no apartamento.

       — Encontrara tudo em ordem. As gavetas arrumadas, cada coisa em seu lugar. No quarto, a pobre moça estendida sobre o leito, nua, o rosto contorcido e o olhar vazio fitando o teto...

       Seguia-se o relatório elaborado pelo comissário de polícia, Maillefer que visitara o local em companhia do agente Patou. Depara com a vítima exatamente como descrevera a porteira. Suas roupas, entre outras um vestido estampado, arrumavam-se sobre uma cadeira próxima à cama.

       — O roubo não parecia ter sido o móbil do crime. Além disto a nudez da vítima provava que conhecia o assassino, pois não procurara cobrir-se e permitira que se aproximasse dela...

       O comissário de polícia telefonara, do quarto, à Polícia Judiciária. Piedboeuf dissera-lhe que chegaria em seguida, recomendando-lhe que não tocasse em nada; solicitara-lhe, ainda, que ligasse para o juiz de instrução.

       Se Maigret não se enganava, Piedboeuf contava na época pouco menos de cinquenta e cinco anos. Um homem que entendia de sua profissão e que não se deixava iludir. Era, talvez, um tanto rude e perdia facilmente a paciência.

       Fazia-se acompanhar por dois inspetores, um dos quais ainda não se aposentara.

       Do longo relatório de Piedboeuf constava também uma planta do apartamento.

       "— Tudo parecia em ordem nos móveis dos diferentes cômodos, e encontrei, na bolsa da vítima, trezentos francos, bem à vista, sobre a mesa de cabeceira..."

       Resumia também o que se passara quando do comparecimento dos juízes, cuja presença não passava de mera formalidade.

       Anexos ao do comissário havia dois laudos, bem como algumas fotografias da vítima, tal como fora encontrada. O primeiro, de Moers, falava da inexistência, no apartamento, de outras impressões digitais que não as da própria vítima; as da maçaneta, pertenciam à porteira.

       E Maigret anotou.

       O outro relatório continha a assinatura de um homem com quem trabalhara durante muito tempo e que, infelizmente, falecera. O doutor Paul, médico-legista e gastrônomo por excelência.

       Concluía, em termos científicos, que a morte se dera por estrangulamento. As marcas deixadas pelo assassino no pescoço da vítima mostravam que era dotado de mãos particularmente vigorosas.

       O interrogatório dos inquilinos do prédio, em pequeno número, resultou inútil. Ninguém ouvira, nem vira nada.

        

       — Nina Lassave recebia muitas visitas?

       — Não.

       — Mas alguém aparecia com frequência?

       — Sim, dois homens.

       — Ao mesmo tempo?

       — Não. Separadamente. O mais alto vinha à tarde... O outro aparecia de noite e saíam juntos. Não sei aonde iam, mas um dia, ou melhor, uma noite, vi-os no "Cyrano"...

       — Qual o mais antigo?

       — O da noite... O outro surgiu há uns dois meses...

       — No dia do crime, não deparou com nenhum dos dois na escada?...

       — Para dizer a verdade fiquei em casa até às seis horas da noite...

        

       Os outros locatários quase nada sabiam. Um deles, solteirão, funcionário de um banco dos Grands Boulevards5, saía de casa às oito da manhã e só voltava às vinte e uma horas.

       — Ignorava por completo a existência desta mulher; e mais ainda a presença, intermitente, de seus amantes no prédio...

       Graças à porteira, descobriram Mahossier. Chegara certa tarde numa camioneta onde, em letras amarelas, lia-se: Lesage & Gélot. Pinturas. Boulevard des Batignolles.

       Sempre mais relatórios. A menor pergunta feita a uma testemunha era objeto de uma exposição, com frases estereotipadas. Relendo-os, Maigret não podia deixar de sorrir!

       "De ordem do comissário Piedboeuf dirigi-me à empresa de pinturas Lesage & Gélot, no boulevard das Batignolles, número vinte e cinco. Falei somente com o senhor Gélot, dada a ausência de seu sócio. Perguntei quantos operários tinha e respondeu-me que, em virtude da época contava somente com quatro."

       “Forneceu-me os nomes e as idades. Três passavam dos quarenta e um inclusive atingira os sessenta.”

       "Só um certo Louis Mahossier estava com vinte e seis anos. Aguardei-o cerca de meia-hora, pois levara material a uma obra. Dirigia a camioneta descrita pela porteira do boulevard Rochechouart.

       "Mahossier ficou furioso. Indagou com que direito eu o interrogava e começou negando conhecer qualquer Nina Lassave. Convidei-o a seguir-me ao imóvel da vítima e a porteira reconheceu-o sem a menor dúvida. Fora ele, realmente, quem vira na escada, na antevéspera, aproximadamente no momento em que assassinaram a jovem."

       "Assim, pedi-lhe que me acompanhasse ao Quai des Orfèvres e entreguei-o ao meu chefe, o comissário Piedboeuf."

       Maigret enxugou o suor.

       Submeteram Mahossier a quatro interrogatórios, mas suas declarações permaneciam as mesmas. Afirmava que, naquele dia, por volta da hora do assassinato encontrava-se na camioneta conduzindo latões de tinta para uma obra na rua de Courcelles.

       Os colegas que receberam o material, confirmaram o fato, sendo entretanto menos precisos quanto à hora.

       O juiz de instrução Coméliau fez-lhe, também, inúmeras perguntas.

       Interrogaram ainda Marcel Vivien, o dono e um garçom de um café do boulevard da Chapelle.

       Vivien mostrava-se extremamente abatido. A morte de sua amante parecia tê-lo destruído. Nada existindo contra ele, retornou ao seu hotel, na praça das Abbesses.

       Mahossier foi objeto de um inquérito mais rigoroso; por falta de provas porém, decidiram deixá-lo em paz.

       A pasta não continha a menção "Caso Encerrado", uma vez que a polícia não arquiva os casos sem solução; mas, no fundo, dava no mesmo...

       — Torrence!... Dentro de quinze minutos, vá, por favor, ao Depósito de Presos e traga-me Mahossier.

       Isto permitia-lhe tomar um chope na Brasserie Dauphine. Se o advogado Loiseau fosse tão "durão" quanto seu cliente, o interrogatório prometia ser muito espinhoso.

       Ao voltar, deparou com Mahossier já numa cadeira de seu gabinete e Torrence instalado diante do bloco de taquigrafia.

       — Precisamos aguardar o doutor Loiseau...

       Mahossier não demonstrou ter ouvido. Maigret folheava negligentemente a pasta, relembrando alguns detalhes.

       Loiseau chegou, de toga, pela porta que liga o Palácio da Justiça à Polícia Judiciária.

       — Desculpe-me, mas a audiência sofreu um pequeno atraso.

       — Sente-se, por favor. Vou fazer um certo número de perguntas. Até agora ele negou tudo, sistematicamente. Sabe qual a acusação que pesa sobre seu cliente?

       — Acusação? Palavra um tanto pesada! Imagino que a instrução nem começou.

       — Digamos então que o consideramos culpado do assassinato de Marcel Vivien, mendigo, num prédio em ruínas da travessa do Vieux-Four.

       Maigret encarou Mahossier.

       — Vamos, inicialmente, estabelecer sua presença nos Halles na noite em questão.

       — O senhor tem testemunhas dignas de fé?

       — Julgará sozinho...

       Solicitou a Torrence que encaminhasse o assim chamado Toto, que uma viatura da primeira circunscrição transportara até à P.J., acompanhado da gorda Nana. Toto, muito à vontade, como um homem já habituado à polícia, fitava um por um. Quando seu olhar caiu sobre Mahossier, o rosto abriu-se num sorriso.

       — Este "cara" eu conheço... Como vai, meu "chapa"?... Só espero que não esteja numa "fria"...

       Maigret indagou:

       — Onde e quando o encontrou?

       — Nos Halles, ''ora bolas"... Passo lá todas as minhas noites...

       — Diga-nos, precisamente, em que local...

       — A menos de dez metros do Chez Pharamond... Apreciava descarregarem um caminhão... Tinha um "colega" lá... Bem, "colega" não é exatamente o termo, pois ele não era amigo de ninguém... Chamava-se Vivien... Enquanto ele trabalhava com o caminhão de legumes eu esperava a chegada de um outro para arrumar um servicinho...

       — O que sucedeu em seguida?

       — Abriu-se a porta de Chez Pharamond e o cavalheiro aí saiu do restaurante. Parou algum tempo para observar os sujeitos que trabalhavam na descarga. Aproveitei, aproximei-me dele e pedi um trocado para um vinhozinho. Em vez de um franco deu-me uma prata de cinco e pude comprar uma garrafa inteirinha...

       — Vira-o antes, nos Halles?

       — Nunca...

       — E quanto ao senhor?

       — Há quinze anos, todas as noites...

       — Doutor Loiseau, se desejar, pode ocupar-se, também, da testemunha.

       — Obrigado. Em que dia sucedeu o que acaba de relatar?

       — E o senhor pensa que eu conto os dias? De qualquer forma foi na noite em que Vivien "bateu as botas"...

       — Tem certeza?

       — Absoluta.

       — Não estava bêbedo?

       — Às três horas da manhã, talvez; mas às dez, nunca...

       — E reconhece-o, sem a menor dúvida?...

       — E ele também. Vê-se pela sua cara...

       Maigret dirigiu-se a Mahossier.

       — É verdade?

       — Nunca vi este farrapo humano...

       — Farrapo humano... Farrapo humano...

       Torrence conduziu-o para fora e deixou entrar a gorda mulher, de pernas inchadas e dedos semelhantes a salsichões. Ainda não bebera, mas não se apresentava muito firme.

       Assim que se acomodou, fitou os presentes e ergueu a mão direita para Mahossier.

       — É ele, — rouquejou no que seria, talvez, sua voz normal.

       — Fala de quem?

       — Do homem que saiu, por volta das dez horas da noite, do restaurante onde os ricos vão comer dobradinha...

       — Sabe o nome do estabelecimento?

       — Chez Pharamond.

       — E está certa de que era ele, o homem?

       — Cem por cento. Vi até quando falava com Toto. Depois ele me contou que o sujeito dera-lhe uma moeda de cinco francos, e ofereceu-me um copo de vinho.

       — Reconhece-a, Mahossier?

       — Não. Nunca a vi e ela jamais me viu e muito menos nos Halles...

       Maigret virou-se para a enorme mulher.

       — Tornou a encontrá-lo?

       — Na mesma noite, lá pelas três horas. Sentara-me num recanto sombrio da esquina da rua da Grande-Truanderia com a travessa do Vieux-Four. Ouvi passos e um indivíduo alto e magro passou bem a meu lado. Foi fácil perceber quem era pois seu rosto destacou-se na luz do poste existente logo no começo do beco.

       — Sabe para onde ele se dirigiu?

       — Para uma casa, condenada há mais de dez anos e que acabará caindo sozinha...

       — Então, Mahossier. Reconhece esta mulher?

       — Reafirmo o que disse...

       O advogado suspirou:

       — Se todas as testemunhas tiverem este gabarito...

       — Torrence, leve-a para o corredor...

       — E faço entrar o próximo?

       — Num instante... Quando interrogado pela primeira vez, Mahossier, o senhor negou ter jantado, naquela noite, no Chez Pharamond... Mantém a declaração?...

       — Claro...

       — Onde comeu? Não foi em sua casa, devido à visita de sua sogra com quem não "cruza" muito bem...

       — Num barzinho dos Grands Boulevards...

       — Reconhecê-lo-ia?

       — Talvez...

       — Bebeu?

       — Nunca bebo, a não ser um copo de vinho durante as refeições...

       — Portanto, não pôs os pés no Chez Pharamond?

       Maigret acenou a Torrence que introduziu um homem de seus cinquenta anos, vestido de preto da cabeça aos pés.

       — Sente-se, senhor Genlis.

       — Em minha profissão sou mais conhecido como Robert.

       — Pode-nos dizer qual é, e onde a exerce?

       — Sou o "maître" auxiliar do Chez Pharamond ...

       — Deve portanto atentar para as idas e vindas dos clientes...

       — Na maioria das vezes, arranjo-lhes as mesas ...

       — Há alguém nesta sala que o senhor conheça?

       — Sim.

       E designou Mahossier, que empalideceu um pouco.

       — Quando viu-o pela última vez?

       — Encontrei-o numa única ocasião, segunda-feira à noite. Achava-se só, o que é raro em nossa clientela. Comeu rapidamente, e fui eu quem abriu a porta, quando saiu.

       — Concorda, senhor Mahossier?

       — Não vou ao Chez Pharamond há mais de dez anos. E este homem tem a coragem de afirmar que reparou em mim, uma vez somente, numa sala repleta?

       — E como sabe que estava cheia?

       — Imagino, pela fama da casa...

       — Veja, — disse o "maitre", — raramente deparo com um cliente tão alto e tão magro...

       — Perguntas, doutor Loiseau?

       — Nenhuma. Aguardarei o interrogatório oficial.

       — Obrigado, senhor Genlis. Não quero retê-lo por mais tempo.

       — Comissário, o senhor tem outras testemunhas?

       — Por hoje, encerramos este caso. O advogado ergueu-se, aliviado.

       — Passaremos agora ao segundo.

       — Existe mais um? Acusar meu cliente da morte de um mendigo que jamais conheceu, não basta?

       Mahossier, desta vez, empalidecera realmente. Assim, sobressaíam suas olheiras e a linha amarga de seus lábios cerrados.

       — Vamos então, comissário...

       — Lembra-se do dia seis de agosto de 1946, senhor Mahossier?

       — De forma alguma. E nem tenho motivo para tanto. Como nos outros dias, certamente trabalhava. Naquela época nem tirava férias, para juntar algum dinheiro.

       — Era empregado de Lesage & Gélot?

       — Exatamente.

       Parecia surpreso, inquieto.

       — Dirigia com frequência uma camioneta da firma, com estes dois nomes pintados na porta?

       — Sim.

       — Naquele dia, o senhor entregou numerosos galões de tinta aos seus colegas que trabalhavam numa obra da rua de Courcelles.

       — Não me recordo.

       — Tenho aqui sua declaração, feita ao comissário Piedboeuf. Imagino que admite ter sido interrogado várias vezes pelo mesmo?

       Maigret mostrou-lhe a pasta.

       — O que pretende provar?

       — Onde morava?

       — Não me lembro mais. Vivia em pequenos hotéis que trocava com frequência...

       — Vou refrescar-lhe a memória. No hotel Jonard, situado na praça das Abbesses. Sabe quem habitava ali também?

       — Não conhecia ninguém.

       — Sim, pois acabou de encontrá-lo nos Halles, após vinte anos. Falo de Marcel Vivien, antigo amante de Nina Lassave.

       — Isto não me concerne.

       — Engano seu. Ela visitava frequentemente Vivien. Não sei se a seguiu, mas a porteira reconheceu-o e afirmou que durante os dois últimos meses o senhor aparecia com regularidade.

       O advogado perguntou:

       — Esta porteira acha-se presente?

       — Não, morreu anos atrás na aldeia onde morou nos últimos tempos.

       — Em outras palavras, não poderá testemunhar. Até o momento, o senhor apresentou dois bêbedos imundos, um homem que vive de gorjetas e agora uma morta. Quem será o próximo?!

       — Cada coisa a seu tempo, — murmurou Maigret enchendo um outro cachimbo.

         

       O advogado consultou seu relógio que, como o de Maigret, deveria marcar seis e dez. Era jovem, ainda, e esforçava-se em parecer importante. Levantou-se com agilidade.

       — Terminou com o meu cliente, comissário?

       — Não sei.

       — Vejo-me obrigado a sair, pois tenho um encontro, dentro de vinte minutos em meu escritório, e não posso faltar.

       O comissário esboçou um gesto vago, significando:

       — O problema é seu.

       Loiseau virou-se para Mahossier.

       — Um bom conselho. Se lhe fizerem mais perguntas, não responda. Pela lei, ninguém pode obrigá-lo a falar.

       Mahossier permaneceu imóvel. Tornara-se mais grave, menos agressivo. Dava a impressão de que começava a perceber a seriedade da situação; compreendia também que seu advogado valia-se das circunstâncias para ganhar prestígio.

       Loiseau partiu com o mesmo ar de superioridade com que chegara. Como quem não quer nada. Maigret murmurou:

       — Um bom conselho. Se levarem-no a júri, mude de advogado. Este só conseguirá indispor os magistrados e os jurados...

       E acrescentou:

       — É seu direito, na verdade, nada dizer. Isto, porém, poderia ser considerado como um indício, ou melhor, uma prova de culpa. Não lhe farei mais perguntas, mas se o desejar, pode interromper-me.

       Observava atentamente Mahossier. Sua hostilidade, em relação a La Baule e ao início do interrogatório, diminuíra bastante. Lembrava agora uma criança que continua de cara feia, apesar de saber que não tem razão.

       — O comissário Piedboeuf foi um excelente policial, que não se julgava infalível e a quem só a verdade interessava. Aliás, Nina Lassave tinha uma mancha roxa na face esquerda, não?

       — É uma armadilha?

       — Nada disto. O inquérito conduzido pelo meu colega prova que o senhor foi amante da jovem.

       — A porteira morreu.

       — Mas os depoimentos continuam válidos. Eis o resumo de uma acareação entre vocês dois. Desafiando-a, o senhor perguntou:

       "— Como soube meu nome?"

       O senhor tinha certeza de que ela não conseguiria responder. No entanto, veja como replicou:

       "— Certo dia, encontrava-me em meu cubículo com uma amiga que de vez em quando lancha comigo — e posso-lhe fornecer seu nome e endereço — quando este homem passou (ela apontou para o senhor) e vimo-lo claramente através a porta envidraçada. Ela ficou surpresa."

       "— Ora! Mas é o meu pintor... Foi ele quem pintou minha cozinha e atapetou a sala de jantar. Chama-se Louis Mahossier e é empregado de uma firma lá pelos lados de Batgnolles... "

       "Esta amiga, Lucile Grosset ouviu e confirmou o diálogo. Assim, foi graças a ela que o localizaram tão rapidamente. "

       "No dia em que, por volta das quatro horas, Nina foi estrangulada, o senhor trabalhava na rua Baliu, o apartamento da viúva Grosset. Como ela fora às compras, o senhor velozmente saiu e..."

       Mahossier olhava-o, franzindo as sobrancelhas. Parecia não entender algo.

       — Posso ainda citar o testemunho da porteira. O carteiro trouxera uma carta expressa para um inquilino do terceiro andar. Ela, ao descer, cruzou com o senhor que se dirigia ao apartamento de Nina. Continua negando?

       Não houve resposta. A medida que Maigret falava, tornava-se mais calmo, mas sempre alerta.

       — Dois homens enfeitiçados. Não sei qual o seu dom para desencadear tais paixões, mas por ela Marcel Vivien abandonara a mulher e a filha. Ela, entretanto, nem desejava viver com ele. Nunca passou uma noite inteira em sua companhia. Na sua também não, diga-se de passagem. Talvez resquícios de educação...

       Maigret falava com voz um pouco abafada. De vez em quando virava, maquinalmente, as folhas da pasta que tinha diante de si.

       — Voltando à tarde do crime; Marcel Vivien possuía realmente um álibi, mas com algumas falhas ...

       Mahossier redobrou a atenção.

       — Esta manhã deparei com uma anotação feita pelo meu colega Piedboeuf na margem de uma das páginas. Leio-a para o senhor:

       "Um antigo frequentador do bar do boulevard da Chapelle apresentou-se espontaneamente e, como de hábito, um tanto bêbedo. Chama-se Arthur Gilson, vulgo "Perna-de-Pau"; um defeito obriga-o a andar como se usasse uma perna artificial."

       "Afirma que no decorrer desta mesma tarde, ao redor das três e meia, Marcel Vivien entrou no bar e tomou dois conhaques, um após o outro. Fato surpreendente pois o marceneiro, habitualmente, só ingeria café. Segundo ele, Vivien dirigira-se em seguida para o boulevard Rochechouart".

       Maigret calou-se fitando insistentemente Mahossier.

       — Devo dizer-lhe que nenhum dos presentes naquele momento no bar confirmou a história. Ou melhor, o dono admitiu que a cena ocorrera, mas no dia seguinte ao assassinato.

       "Dos dois, um está certo e o outro errado. Meu colega parece ter acreditado no dono..." Mahossier não se conteve e perguntou:

       — E o senhor?

      — Sinto-me inclinado a crer no "Perna-de-Pau". Embora velho, era lúcido. Já morreu. Só temos a anotação do comissário Piedboeuf... Vivien tornara-se amante de Nina há seis meses. Após cortar todos os laços com a família, considerava-a como propriedade sua... Ela encontrou o senhor e entregou-se, embora mantendo relações íntimas com Vivien...

       "Este, raramente visitava-a durante o dia. Saíam à noite, jantavam juntos..."

       A fisionomia de Mahossier endureceu novamente.

       — Durante o inquérito a porteira não se recordou de tê-lo visto entrar ou sair. Perguntaram-lhe o que fazia durante o dia; respondeu que tricotava perto da janela, ouvindo rádio. Ora, dali, dificilmente controlaria as pessoas que passavam...

       — E onde pretende chegar?

       — À suspeita de que Vivien assassinou a amante, que também era sua. Provavelmente notou-o deixando o prédio... Mas isto nunca saberemos. Dominaram-no, entretanto, a fúria e a dor.

       "Talvez viesse ao boulevard Rochechouart sem a intenção de matá-la, pois não carregava arma alguma. Talvez desejasse surpreendê-los juntos."

       Deparou com ela, nua, sobre o leito. Ora, se não aguardava a visita dele, Mahossier, por que estaria assim?

       "Pensava em tudo que fizera por ela. Sentia vergonha em ter abandonado a mulher e a filha sem recursos. E agora ela enganava-o com qualquer um."

       "É impossível descobrir o que se passou entre eles. De qualquer forma, Nina Lassave não conseguiu acalmá-lo. Não o temia, também, como prova a posição em que foi encontrada... Acontece, porém, que o descontrole levou-o a estrangulá-la... Era um ponto final em sua vida... Impossível retornar à rua Caulaincourt ou à oficina da rua Lepic... Nada mais o interessava... Talvez nem se preocupasse muito se acusassem o senhor do assassínio que cometera..."

       — Foi mais ou menos o que aconteceu, não só naquela época, mas também agora, com o senhor, comissário. E eu sempre neguei o fato.

       — Quando descobriu sua morte?

       — Um quarto de hora mais tarde. Vi Marcel Vivien saindo às pressas e afastando-se em direção à praça Blanche. Quis perguntar a Nina o que sucedera.

       "Entrei, e, subindo as escadas, cruzei com a porteira. Chegando ao apartamento, deparei com a porta entreaberta, o que estranhei... Logo depois dei com o corpo... Apaguei então minhas impressões digitais, limpando tudo em que tocara, mesmo nos dias anteriores... E com isto, devo ter eliminado também as de Vivien..."

       — Por que não o acusou?

       — Porque decidira fazer justiça pelas minhas próprias mãos...

       O pobre Torrence esforçava-se para acompanhar o ritmo rápido do diálogo em que se transformara o solilóquio de Maigret.

       O comissário encontrara a fenda e Mahossier perdera toda a aspereza.

       — Sua paixão era tão grande assim?

       — Foi a única mulher que realmente amei...

       — E sua esposa?

       — Gosto dela e acho que é recíproco; mas, de ambas as partes, não é aquela paixão...

       — Já se passaram vinte anos, Mahossier.

       — Eu sei. Mas ainda penso nela todos os dias.

       — E não julga que com Vivien fosse idêntico? Um amor, tão grande como o seu, levou-o ao crime. E nem tentou refazer sua vida. Preferiu afundar imediatamente... Foi um mendigo quem encontrou, por acaso, vinte anos mais tarde...

         

       Mahossier permanecia calado, olhando fixamente os sapatos. Perdera a arrogância, tornara-se mais humano.

       — Ele gozou a vida por vinte anos...

       Voltou o olhar para Maigret, e havia em seus finos lábios a sombra de um sorriso pleno de ironia.

       — Não a matei, é verdade. Mas, indiretamente, fui o responsável...

       — O senhor trabalhou pesado, economizou. Estabeleceu-se por conta própria e fez bons negócios... Tem uma esposa bonita e simpática... Mora num magnífico apartamento e possui uma casa de campo em La Baule... No entanto, jogou tudo por terra para tirar a vida de um homem que não via há vinte anos e que durante este tempo transformara-se num trapo...

       — Eu jurara vingar-me.

       — Por que não deixou este cuidado à justiça?

       — Ele alegaria crime passional e receberia a pena mínima. Assim, há muito já estaria em liberdade...

       — Seu advogado fará o mesmo...

       — Agora, pouco importa... Ainda ontem, dispunha-me a negar, a defender-me...

       — Pense o que pensar, as provas são irrefutáveis... O telefone tocou.

       — Fala Ascan. Tudo bem?

      — Muito bem. Tenho Mahossier em meu gabinete há mais de duas horas.

       — Confessou?

       — Sim.

       — Não havia mesmo outra saída. Crianças que brincavam num terreno baldio ao lado da casa que servia de abrigo a Vivien, acabam de trazer-me uma pistola calibre trinta e dois. Faltam três balas no carregador. Um dos meus homens já segue para a P.J. a fim de entregá-la diretamente ao senhor.

       — Uma prova a mais.

       — Matou Nina Lassave também?

       — Não.

       — Quem, então? Vivien?

       — É...

       — Isto significa que, depois de vinte anos, a paixão de Mahossier continuava tão forte que levou-o a vingar a antiga amante...

       — Sim... Obrigado, Ascan... Seu auxílio foi inestimável... Aliás, a parte mais espinhosa do inquérito foram vocês que realizaram...

       — O senhor exagera, comissário... Bem, vou deixá-lo trabalhar...

       Mahossier tentara entender a conversa, mas Maigret pronunciava somente palavras sem sentido, quando ouvidas fora do seu contexto.

       — Durante estes vinte anos procurou-o, em Paris?

       — Não sistematicamente... Olhava os transeuntes... Tinha certeza, não sei por que, de encontrá-lo um dia... Jantei realmente no Chez Pharamond. Viera aos Halles a pé; o restaurante trouxe-me à mente velhas reminiscências, de uma época em que o Pharamond representava para mim o cúmulo do luxo, muito além do meu alcance... Entrei e comi sozinho... Minha sogra detesta-me e vive às turras comigo... Não admite que tenha começado a ganhar a vida como pintor de paredes... Descobriu também que nasci em Belleville e que não tive pai...

       Alguns minutos mais tarde, Joseph, o velho contínuo, bateu na porta.

       — Um inspetor da primeira circunscrição quer-lhe entregar um pacote em mãos.

       — Mande-o entrar.

       O homem era jovem, irrequieto.

       — Vim o mais rápido possível, senhor comissário... Preciso dar-lhe isto...

       E estendeu um embrulho, feito com papel já usado, todo amarrotado. Olhou curiosamente para Mahossier.

       — Ainda necessita de mim, senhor comissário?

       — Não, obrigado.

       Quando o inspetor saiu, Maigret abriu o pacote.

       — É a sua arma?

       — Parece-se com ela.

       — Pode muito bem constatar que mesmo sem suas confissões chegaríamos à verdade. As balas restantes, serão retiradas e comparadas com as encontradas no peito de Vivien... Temia tanto ser apanhado com a arma, que livrou-se dela em seguida, atirando-a num terreno baldio...

       Mahossier encolheu os ombros.

       — Na realidade, dei mesmo uma moeda de cinco francos a um mendigo e notei a mulher obesa que parecia completamente bêbeda. Quando reconheci Vivien, que descarregava legumes, o ódio acumulado subiu-me à cabeça; corri então para casa e apanhei a pistola... — Permaneci nas sombras, esperando... Demorou muito, pois um segundo caminhão chegou e ele, juntamente com outros, trabalhou bastante.

       — Seu rancor não diminuiu?

       — Não. Minha impressão era de cumprir um dever.

       — Para com Nina?

       — Sim... Além do mais, este homem, este Vivien, parecia em paz consigo mesmo. Mendigo? A escolha fora sua e dava a impressão de haver-lhe transmitido grande tranquilidade... E era o que me enraivecia...

       — Aguardou então até às três da madrugada?

       — Não exatamente... Duas e meia... Segui-o à travessa do Vieux-Four... A enorme mulher de antes, deitada no chão, parecia dormir, totalmente bêbeda... Nem imaginei que poderia tornar-se perigosa... Loiseau ficará furioso devido a esta confissão, mas tanto faz, agora...

       — Reparei quando entrou na casa... Caminhei atrás dele na escada e ouvi quando fechou a porta... Sentei-me num degrau cerca de meia-hora...

       — Para apanhá-lo dormindo?

       — Não. Não conseguia tomar uma decisão.

       — O que foi, então, que o levou a agir?

       — Recordações. Pensava em Nina e na manchinha roxa sobre sua face e que lhe dava um ar tão enternecedor...

       — Ele acordou?

       — Após a primeira bala, abriu os olhos e pareceu surpreso. Ignoro se me reconheceu...

       — Falou-lhe?

       — Não. Talvez lamentasse ter vindo, mas já era demasiado tarde. Acredite-me ou não, atirei duas vezes mais para acabar com seu sofrimento.

       — Depois, tentou escapar.

       — Isto mesmo. Creio que é o instinto... Vivien também não foi à polícia contar que assassinara a amante...

       Sua face crispou-se ao pronunciar as últimas palavras. Depois, encolheu novamente os ombros.

       — Aliás, o que foi feito da senhora Vivien?

       — Habita ainda a rua Caulaincourt. O mesmo prédio, mas um apartamento menor. É costureira, e parece dispor de uma boa clientela.

       — E sua filha?

       — Casou-se e tem dois filhos.

       — Não me parece que sentissem muito. Maigret preferiu calar-se.

       — O que fará comigo?

       — Retornará à sua cela no Depósito. Amanhã será interrogado pelo juiz, que assinará, provavelmente, um mandado de prisão. Enquanto durar a instrução, permanecerá na Santé6; em seguida, interná-lo-ão em Fresnes7 até a data do julgamento.

       — Não reverei minha esposa?

       — Por algum tempo.

       — Quando anunciarão os jornais minha prisão?

       — Amanhã. Creio mesmo que um jornalista e um fotógrafo encontram-se no corredor.

       Maigret estava um pouco cansado. Mas sentia-se também descontraído e com uma certa impressão de vazio. Apesar do alívio, não aparentava seu ar triunfal.

       Tinha dois assassinos em lugar de um. Fora isto que tanto procurara?

       — Vou-lhe fazer um pedido que o senhor, é lógico, poderá recusar. Não gostaria que minha esposa tomasse conhecimento do que me acontece pelos jornais, e menos ainda por um telefonema de sua mãe ou de uma amiga. É hora do jantar. Tenho certeza de encontrá-la em casa...

       — Qual o número do aparelho?

       — Cento e vinte e quatro...

       — Alô, senhorita, ligue-me com La Baule, cento e vinte e quatro, por favor. É urgente, sim...

       Agora era ele quem tinha pressa em recobrar sua liberdade. Ao cabo de três minutos obteve a ligação.

       — É dos Pins Parasols?

       — Sim.

       — Senhora Mahossier? É o comissário Maigret. Seu marido acha-se em meu gabinete e quer dizer-lhe algumas palavras.

       Maigret dirigiu-se para a janela, onde permaneceu, fumando lentamente seu cachimbo.

       — Sim. Sou eu. Você está só?

       — Com a empregada.

       — Ouça bem... Vai receber um grande choque ...

       — Acredita mesmo?

       — Sim. Acabo de confessar. Não havia outra saída.

       Contrariamente ao que esperava, ela permanecia calma.

       — Os dois?

       — Como assim?

       — Os dois crimes?

       — O do boulevard Rochechouart não fui eu, mas Vivien...

       — Tive esta intuição... E, quando o reencontrou, depois de vinte anos, o ciúme também voltou...

       — Você sabia?

       — Foi a primeira coisa em que pensei.

       — Por que?

       — Conheço-o bem...

       — O que será de você?

       — Em primeiro lugar, termino minhas férias aqui, a menos que o juiz me convoque. Depois... não sei. Nunca houve muita paixão entre nós; na realidade fui apenas uma substituta... Minha mãe insistirá, provavelmente, para que eu peça o divórcio...

       — Ah!

       — Surpreso?

       — Não... De fato... Até logo, Odette...

       — Até logo, Louis...

       Tremia, ao desligar. Não imaginara que a conversa terminasse assim. Não somente o que fora dito, mas todas as implicações. Quinze anos de sua vida acabavam de ser apagados em alguns minutos.

       Maigret abriu seu armário e encheu um cálice de conhaque.

       — Beba...

       Mahossier hesitou, encarando Maigret com espanto nos olhos.

       — Eu não sabia... — balbuciou.

       — Que sua esposa adivinhara?

       — Vai pedir o divórcio...

       — E o que pretendia? Que esperasse pelo senhor?

       — Não entendo mais nada...

       Tomou a bebida de um só gole e tossiu. Depois, ainda de pé, murmurou:

       — Obrigado pela sua paciência...

       O gordo Torrence parecia transtornado. Mahossier aguardava por ele no centro da sala. Curiosamente, já não parecia tão alto e seu rosto, embaraçado, tornara-se banal.

       Quase estendeu a mão, mas conteve-se.

       — Adeus, comissário.

       — Adeus...

       Maigret sentia-se pesadão. Ia e vinha, vagarosamente, enquanto Torrence não voltava.

       — Acho que, numa certa hora, fiquei comovido, — confessou.

       — Um chope, na praça Dauphine?

       — Com prazer...

       Caminharam e entraram no bar que lhes era tão familiar. Havia alguns inspetores presentes, mas somente um da brigada criminal.

      — O que posso lhe servir hoje, comissário? — perguntou solícito, o dono.

       — Um duplo. O maior que existir...

       Torrence pediu o mesmo. Maigret ingeriu-o quase que de um único sorvo e estendeu o copo para que o dono enchesse-o novamente.

       — Está com sede, hoje...

       E Maigret, repetiu maquinalmente, como se o sentido das palavras fugisse-lhe...

       — É, estou com sede...

        

       Regressou de táxi.

       — Francamente, não sabia se você vinha ou não jantar.

       Ele deixou-se afundar em sua poltrona e começou a enxugar-se.

       — No que me diz respeito, o caso terminou...

       — Detiveram o culpado?

       — Sim.

       — Aquele que você visitou em La Baule?

       — É.

       — Não quer comer fora? Só tenho frios e salada mista...

       — Não tenho o menor apetite...

       — Mas já pus a mesa e você vai jantar assim mesmo...

       Naquela noite ele não viu televisão e deitou-se às dez horas.

 

 

      

                    Notas:

        1  Quai des Orfévres (Cais dos Ourives), rua central de Paris onde se localiza a sede da Polícia Judiciária (PJ), que se comunica com o Palácio de Justiça. (Nota do Editor do epub)

       2  Les Halles de Paris foi um mercado de Paris, França. Les Halles de Paris foi o nome dado ao mercado atacadista de produtos alimentares frescos, localizado no coração de Paris, no 1º arrondissement, que deu seu nome ao Quartier Les Halles. No auge de sua atividade e falta de espaço, as barracas dos mercadores se estabeleceram mesmo em ruas adjacentes. (N.E.)

       3  Uma abreviação de Aristocrate (aristocráta). (N.E.)

       4  Bairro de Paris constituído pela parte oriental da terceira circunscrição e, ainda, pela praça dos Vosges e suas vizinhanças. Tornou-se no século XIII o centro aristocrático da cidade. Conserva da época numerosos hotéis suntuosos que se encontram, em sua maior parte, em péssimo estado de conservação. Uma cuidadosa restauração, datada de nosso século, devolveu o primitivo esplendor a alguns deles, sobretudo o hotel Sully. (a palavra hotel é aqui utilizada no sentido de casa ou edifício suntuoso onde vivem pessoas abastadas). (Nota dos Tradutores)

       5  Termo aplicado às artérias compreendidas entre a praça da Madeleine e a praça da República; local de grande movimento onde se concentram cinemas de classe, teatros, luxuosas lojas e numerosos cafés (N.T.)

       6  Prisão situada em Paris, na rua do mesmo nome, datando de 1867. Atualmente transformada em casa de detenção para homens ou condenados políticos (N.T.)

       7  Prisão departamental construída em 1899, nos subúrbios de Paris. Durante a Segunda Guerra foi utilizada pelos alemães para o internamento de prisioneiros políticos (N.T.)

 

 

                                                                  Georges Simenon

 

 

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