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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ILUMINADO / Stephen King
O ILUMINADO / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ILUMINADO

Parte I

 

Entrevista de trabalho

Jack Torrance pensou: Cretino.

Uliman media um metro e sessenta e se locomovia com maneiras afetadas que parecem ser exclusividade de todo homem gordo e baixo. O cabelo bem repartido, e o terno escuro, sóbrio, mas confortável. Sou o homem para quem você pode trazer seus problemas, dizia o terno ao cliente. Como entrevistador, porém, falava mais asperamente: Acho bom tudo correr muito bem. Tinha um cravo na lapela, talvez para que ninguém na rua tomasse Stuart Uliman pelo empresário local.

Enquanto ouvia Ullman, Jack admitiu que, naquelas circunstâncias, não poderia gostar de nenhum homem do outro lado da mesa.

Ullman fez uma pergunta que ele não entendeu. Isso era ruim; UlIman era o tipo de homem que arquivava tais lapsosnnum arquivo mental, circular, para consultas posteriores.

- Como disse?

- Perguntei se sua mulher compreendeu qual seria sua função aqui. Há também seu filho, claro. - Lançou o olhar sobre o formulário de solicitação de emprego que estava a sua frente. Daniel. Sua mulher não está um pouco atemorizada com a idéia?

- Wendy é uma mulher extraordinária.

- E seu filho também é extraordinário?

Jack sorriu, um largo sorriso de relações-públicas.

- Assim suponho. É uma criança muito segura para seus cinco anos.

Ullman não sorriu. Colocou o formulário de Jack de volta na pasta e devolveu-a à gaveta. A mesa estava agora completamente limpa, exceto por um mata-borrão, um telefone, um foco de luz e uma caixinha de entrada e saída de papéis, que também estava vazia.

Uliman levantou-se e foi até o arquivo do canto.

- Fique aí na mesa, por favor, Sr. Torrance. Vamos dar uma olhada na planta dos andares do hotel.

Trouxe cinco folhas grandes de papel e colocou-as sobre a mesa de nogueira polida. Jack ficou de pé ao lado, sentindo o perfume da colônia de Uliman. Ou todos os meus Juncionários usam English Leather ou nuío usam nada, veio à sua mente sem motivo algum, e teve que segurar a língua entre os dentes para evitar uma gargalhada. Podiam-se ouvir os ruídos da cozinha do Hotel Overlook nos preparativos para almoço.

- O último andar - disse Uliman alegremente. - O sótão. No momento não existe nada ali a não ser quinquilharias. O Overlook já mudou de dono várias vezes desde a Segunda Guerra Mundial, e parece que todos os gerentes resolveram colocar tudo aquilo que não queriam no sótão. Quero ratoeiras e veneno espalhados por todo o lugar. Algumas camareiras do terceiro andar dizem que já escutaram barulhos. Nunca acreditei nisso um só momento, mas não pode haver a menor possibilidade de que um rato sequer continue vivendo no Hotel Overlook.

Jack, que sempre suspeitara da existência de ratos em todos os hotéis do mundo, segurou a língua.

- Naturalmente o senhor não deixará seu filho ir ao sótão em hipótese alguma.

- Não - disse Jack, e deu novamente o largo sorriso de relações-públicas. Situação humilhante, aquela. Por acaso, este cretino estaria pensando que ele pudesse deixar seu filho brincar num sótão cheio de ratoeiras, móveis velhos e sabe Deus o que mais?

Ullman tirou a planta do sótão de cima da mesa e colocou-a por baixo das outras folhas grandes.

- O Overlook tem cento e dez apartamentos de hóspedes

- disse com uma voz de sábio. - Trinta deles, todos suítes, estão aqui no terceiro andar. Dez na ala oeste (incluindo a suíte presidencial), dez ao centro, e mais dez na ala leste. Todos com vistas deslumbrantes.

Poderia pelo menos dispensar a conversa de vendedor?

Mas continuou quieto. Precisava do emprego.

Ullman colocou a planta do terceiro andar por baixo da pilha e começaram a estudar o segundo andar.

- Quarenta apartamentos - disse Ullman -, trinta de casal e dez de solteiro. E no primeiro andar, vinte de cada.

Mais três rouparias em cada andar, e uma despensa que fica no fim da ala leste, no segundo pavimento, e outras na extremidade da ala oeste, no primeiro. Alguma pergunta?

Jack balançou a cabeça. Ullman pôs de lado as plantas do segundo e primeiro andares.

- Vejamos agora o saguão. Aqui no meio está a recepção. Atrás, os escritórios. O saguão é circular, com um raio de seis metros, partindo do balcão de recepção, que fica no centro. Bem aqui, na ala oeste, estão o restaurante do Overlook e o Salão Colorado. Os salões de banquete e baile ficam na ala leste. Alguma pergunta?

- Apenas sobre o subsolo - disse Jack. - Para um empregado de temporada de inverno, esta é a área mais importante de todas. É onde se concentra o movimento, por assim dizer.

- Watson vai mostrar-lhe tudo. A planta do subsolo está na parede da sala da caldeira. - Franziu a testa, talvez para mostrar que, como gerente, não se preocupava com aspectos tão irrelevantes do funcionamento do Overlook. - Não seria má idéia colocar algumas armadilhas lá também. Um momento.

Rabiscou um bilhete num bloco que tirou do bolso de dentro do paletó (cada folha do bloco tinha a inscrição de seu nome em negrito), e colocou-o na caixinha de saída de papéis. Aquele papel ficou ali sozinho. O bloco voltou para o bolso do paletó de Ullman como num passe de mágica. Está vendo, Jack? Agora não está vendo mais. Este cara é realmente um saco.

Voltaram a seus lugares. Ullman por trás da mesa e Jack adiante, entrevistador e entrevistado, suplicante e relutante patrono. Ullman juntou as mãos por sobre a mesa, e fixou o olhar em Jack, um homem careca, baixo, vestido com um terno de banqueiro e uma gravata cinza e modesta. Numa lapela tinha uma flor e na outra um broche com a palavra “pessoal” em letras douradas e pequenas.

- Serei franco com o senhor. Albert Shockley é um homem poderoso, com muito interesse no Overlook, o que resultou em lucro nesta temporada pela primeira vez na história. O Sr. Shockley também faz parte do conselho diretor, mas não é um hoteleiro por excelência, e é o primeiro a admitir tal fato. Porém seus desejos, em relação ao assunto de que estamos tratando, são óbvios. Ele quer que você seja admitido. E eu o farei. Mas, se me fosse dada a possibilidade de opção, não o admitiria.

As mãos suadas de Jack estavam apertadas sobre suas pernas. Cretino, cretino.

- Não creio que me dê muita importância, Sr. Torrance. Não me importo. Sua opinião a meu respeito na realidade não interfere na minha certeza de que o senhor não é a pessoa certa para este trabalho. Durante a temporada, isto é, de 15 de maio a 30 de setembro, o Overlook emprega cento e dez funcionários em regime de tempo integral; um para cada apartamento do hotel, pode-se dizer. Acho que a maioria não gosta de mim, e acredito mesmo que alguns deles me considerem um filho da puta. Estão corretos no julgamento do meu caráter. Tenho que ser um filho da puta para poder dirigir este hotel da maneira que ele merece.

Olhou para Jack à espera de comentários, e o sorriso de relações-públicas deste iluminou-se, largo e cheio de dentes.

- O Overlook foi construído entre 1907 e 1909 continuou Uliman. - A cidade mais próxima é Sidewinder, a sessenta e cinco quilômetros a leste daqui, em estradas que ficam fechadas desde fins de outubro ou novembro até abril. Um homem de nome Robert Townley Watson, avô do nosso gerente de suprimentos, construiu-o. Aqui já se hospedaram os Vanderbilt, os Rockefeller, os Astor e os Du Pont. Quatro presidentes já ocuparam a suíte presidencial: Wilson, Harding, Roosevelt e Nixon.

- Não me orgulharia tanto de Harding e Nixon - murmurou Jack.

Ullman franziu a testa e prosseguiu indiferente.

- Foi um investimento pesado para o Sr. Watson, e o hotel precisou ser vendido em 1915. Foi novamente vendido em 1922, em 1929, e em 1936. Ficou abandonado até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando foi comprado e totalmente reformado por Horace Derwent, interventor, piloto, produtor de cinema e empresário milionário.

- Conheço-o de nome - disse Jack.

Sim. Tudo o que ele tocava parecia transformar-se em ouro.., com exceção do Overlook. Empatou cerca de um milhão de dólares no negócio, antes que o primeiro hóspede do pós-guerra víesse, transformando-o num lugar de exibição. Foi Derwent que construiu a quadra de roque que você admirava quando chegou.

- Roque?

- Uma versão britânica do nosso croqué, Sr. Torrance.

croqué é um roque degenerado. De acordo com a história, Derwent aprendeu o jogo com sua secretária particular e apaixonouse por ele. A nossa quadra deve ser a melhor da América.

Não duvido - disse Jack seriamente. Uma quadra de roque, uma topiaria de arbustos cortados em desenhos de animais, o que mais? Estava cansado do Sr. Stuart Uliman, mas podia notar que ele não havia concluído. ainda continuaria até a última palavra do que tinha a dizer.

- Depois de perder três milhões, Derwent vendeu o hotel a um grupo de investidores da Califórnia, cuja experiência com o Overlook foi igualmente ruim. Não eram pessoas com prática de hotelaria. Em 1970, o Sr. Shockley e um grupo de sócios compraram o hotel e encarregaram-se de sua gerência. Estivemos deficitários durante muitos anos, mas posso assegurar-lhe, com felicidade, que a confiança dos proprietários atuais em mim nunca foi abalada. Encerramos o último ano em equilíbrio: sem lucros nem prejuízos. E pela primeira vez em sete décadas, nosso livro de contabilidade não encerrou o ano em vermelho.

Jack supôs que o orgulho desse homenzinho complicado era justificável, e sua antipatia por ele passou como o fluxo de uma onda.

- Não vejo nenhuma ligação entre a história gloriosa do Overlook e sua impressão de que eu seja a pessoa errada para ocupar o cargo, Sr. Uliman - disse Jack.

- Uma das razões pela perda de tanto dinheiro reside no fato de ocorrer uma depreciação a cada inverno. Essa depreciação diminui a margem de lucro mais do que se possa pensar, Sr. Torrance. Os invernos são profundamente cruéis. A fim de suportar o problema, criei o cargo de operador de caldeira, em regime de tempo integral e rotativo. Consertar os vazamentos, pois isso acontece, e fazer reparos, de tal forma que os elementos não fiquem sem um ponto de apoio. Estar em constante alerta em toda e qualquer contingência. Durante nosso primeiro inverno, empreguei uma família ao invés de um único homem. Foi uma tragédia. Uma tragédia terrível.

Ullman olhou Jack friamente.

- Cometi um erro. Admito. O homem era beberrão.

Jack esboçou um sorriso vago e sem graça.. . a antítese do sorriso de relações-públicas.

Então é isso? Surpreendeu-me que Al não lhe tenha dito. Regenerei-me.

- Sim, o Sr. Shockley me disse que o senhor não bebe mais. Ele também me contou sobre seu último emprego... seu último cargo de confiança, digamos assim. O senhor lecionava inglês numa escola em Vermont. Perdeu o controle. Não creio que precise ser mais específico do que isto. Mas realmente acredito que o caso de Grady tenha alguma relação, e foi por isso que trouxe à baila o assunto de seus. . . antecedentes. No inverno de 1970f71, depois da reforma do Overlook, e antes da nossa primeira temporada, admiti este. . . este coitado cha. mado Delbert Grady. Mudou-se para as dependências que o senhor e sua família irão ocupar. Ele tinha mulher e duas filhas. Eu tinha minhas preocupações a respeito, sendo as principais o rigor do inverno e o isolamento dos Grady do mundo exterior, por cinco ou seis meses.

- Mas isso não é verdade, é? Há telefones aqui e um radiotransmissor. E o Parque Nacional das Montanhas Rochosas está ao alcance de um ou dois helicópteros.

- Não sei - disse Uliman. - O hotel realmente tem um radiotransmissor que o Sr. Watson vai mostrar-lhe, juntamente com a lista das freqüências corretas para comunicação em caso de socorro. As linhas telefônicas daqui para Sidewinder ainda não são subterrâneas, e caem quase todo inverno em um lugar ou outro, e assim ficam durante semanas. Temos um trenó e um equipamento de transmissão também.

- O lugar não fica isolado, portanto.

Ullman ficou aflito.

- Suponhamos que seu filho ou sua mulher tropecem na escada e fraturem o crânio, O senhor pensaria no isolamento do lugar?

Jack sentiu a intenção. Um trenó em alta velocidade poderia levá-lo a Sidewinder em uma hora e meia. . . talvez. Um helicóptero do Serviço de Salvamento poderia chegar aqui em três horas. . . sob condições favoráveis. Numa tempestade de neve, talvez não possa nem levantar vôo, e não se pode contar com um trenó correndo em alta velocidade, mesmo que a gente se arrisque a uru acidente grave sob temperatura de quarenta graus abaixo de zero, e contra o vento gelado.

- No caso de Grady - disse Ullman - ponderei mais, da mesma forma que o Sr. Shockle parece ter feito no seu caso. O excesso de cuidado pode ser prejudicial. E melhor para um homem estar junto de sua família. Se houvesse um transtorno, pensei, isto seria menos importante do que uma fratura de crânio. um acidente com as máquinas de força, ou algum outro tipo de distúrbio, Uma gripe forte, uma pneumonia, um braço quebrado ou até mesmo uma apendicite. Haveria tempo para tudo. Acho que o que aconteceu foi o resultado de excesso de uísque barato, que Grady tinha em grande estoque, e que era de meu total desconhecimento, e uma situação curiosa que se chamava “complexo de solidão”. Conhece a expressão? - UlIman deu um sorrisinho superior, pronto para a necessária explicação, assim que Jack admitisse sua ignorância, mas o rapaz folgou em responder rápida e decisivamente.

- É uma gíria para uma reação de claustrofobia que pode ocorrer quando um grupo de pessoas é confinado. A sensação de claustrofobia é exteriorizada na forma de antipatia pelas pessoas que estão confinadas em sua companhia. Em casos extremos, isso pode resultar em alucinações e violência. . . já houve, inclusive, casos de assassinato gerado por problemas sem importância, tais como uma comida queimada ou uma discussão sobre quem deveria lavar os pratos.

Uliman ficou embaraçado; o que deixou Jack realizado. Este resolveu ir mais longe, mas, em seu pensamento, prometeu a Wendy manter-se calmo.

- Acho que o senhor se enganou em relação ao assunto. Ele os agrediu?

- Matou-os, Sr. Torrance, e depois cometeu suicídio. Matou as duas meninas com um machadinho, a mulher com um revólver e se suicidou da mesma forma. Sua perna estava quebrada. Sem dúvida, deveria estar tão bêbado, que rolou escada abaixo. - Ullman espalmou as mãos e olhou para Jack de modo justificado.

- Ele era formado?

- Não - disse Ullman firmemente. - Pensei que... digamos, um indivíduo menos ilustrado fosse menos suscetível

aos rigores, à solidão.

- Foi seu erro - disse Jack. - Um idiota é mais propenso à claustrofobia, da mesma forma que é mais propenso a atirar em alguém numa mesa de jogo, ou cometer um roubo sob um impulso repentino. E se cansa. Quando chega o inverno, não tem nada para fazer, a não ser assistir à televisão, ou jogar paciência e roubar quando não consegue eliminar os ases. Não tem nada para fazer, a não ser explorar a mulher e resmungar para as crianças e beber. Vem a insônia, pois não há nada para se escutar. Assim, bebe até conseguir dormir, e acorda de ressaca. Torna-se impaciente. Talvez o telefone emudeça e a ante. na da televisão enguice. Não há nada para se fazer. Só pensar, roubar no jogo de paciência e ficar cada vez mais impaciente. Finalmente... bum, bum, bum.

- Enquanto um homem mais culto, assim como o senhor?

- Minha mulher e eu gostamos de ler. Tenho uma forma de entreter-me que Al Shockley provavelmente já lhe deve ter contado. Danny tem seus quebra-cabeças, seus livros para colorir e seu rádio. Pretendo ensiná-lo a ler, e também quero ensiná-lo a deslizar na neve. Wendy também gostaria de aprender. Realmente acho que temos meios de nos ocupar individualmente, se a televisão pifar. - Fez uma pausa. - Aldisse mesmo a verdade quando lhe contou que não bebo mais. Já bebi, e muito. E se bebi um copo de cerveja nos últimos catorze meses foi muito. Não pretendo trazer bebida alcoólica alguma para cá, e não creio que haja condição de se obter bebida depois que a neve começar a cair.

- Quanto a isso, está absolutamente correto - disse Ullman. - Mas, uma vez estando os três aqui, o potencial de problemas multiplica-se. Disse isto ao Sr. Shockley, e ele assume total responsabilidade. Bem, já lhe disse tudo, e aparentemente o senhor está disposto a arcar com a responsabilidade.

- Estou.

- Está muito bem. Aceito, pois me resta pouca chance de escolha. Mas continuo preferindo um jovem universitário descompromissado. Bem, talvez dê certo. Vou encaminhá-lo ao Sr. Watson, que o levará ao subsolo e demais lugares. A não ser que o senhor ainda tenha alguma pergunta.

- Não, nenhuma.

UlIman pôs-se de pé.

- Espero que não haja ressentimento, Sr. Torrance. Não há nada de pessoal nas coisas que disse. Só quero o que for bom para o Overlook. E um grande hotel. E quero que continue assim.

- Não. Nenhum ressentimento.

O sorriso de relações-públicas iluminou-se novamente, mas Jack ficou feliz por Uliman não ter estendido a mão. Havia ressentimentos. De todos os tipos.

 

Boulder

Ela olhou pela janela da cozinha e o avistou sentado no meio-fio, sem brincar com seus caminhõezinhos, carrinhos, nem com o planador que o tinha distraído durante toda a semana, desde que Jack lhe dera de presente. Só estava sentado ali, esperando o Volkswagen sujo, os cotovelos enterrados nas coxas, e o queixo apoiado nas mãos, um menino de cinco anos à espera do pai.

De repente, Wendy sentiu-se mal, e quase começou a chorar.

Pendurou a toalha perto da pia e desceu abotoando os dois primeiros botões de seu vestido de usar em casa. Jack e seu orgulho! Não, Al, não preciso de adiantamento. Por enquanto estou bem. As paredes do corredor de entrada eram esburacadas e rabiscadas. A escada era íngreme e lascada. O prédio todo cheirava a mofo, e afinal de contas isso não era lugar para Danny, depois de já ter morado numa casa arrumada e de tijolos, em Stovington. As pessoas que moravam no terceiro andar não eram casadas, e, apesar de isso não a aborrecer, suas brigas constantes e violentas não lhe agradavam. Amedrontavam-na, O rapaz chamava-se Tom, e depois de os bares estarem fechados o casal voltava para casa e as brigas começavam . o resto da semana, em comparação, era apenas uma preliminar. Apesar de não serem nada engraçadas, Jack batizara as crises de “brigas das sextas-feiras”. A moça - Elaine - por fim debulhava-se em lágrimas, repetindo sempre: “Não, Tom. Não, por favor. Por favor, não”. E ele gritava. Chegaram, uma vez, a acordar Danny, e ele dormia como uma pedra. Na manhã seguinte, Jack encontrou Tom de saída, e os dois conversaram na calçada por algum tempo. Tom começou a vociferar, e Jack lhe disse uma meia dúzia de palavras. Tom limitou-se a balançar a cabeça com raiva e foi embora. Jack falara em voz baixa, de modo que Wendy não pôde ouvir. Isso acontecera fazia uma semana; as coisas melhoraram durante alguns dias, mas, depois do fim de semana, tudo voltou ao normal... ou melhor, ao anormal. Isso não era bom para o menino.

A tristeza tomou conta dela, mas teve que sufocá-la, pois já estava na calçada. Segurando o vestido e sentando-se no meio-fio, disse:

- O que há, doutor?

Danny olhou-a com um sorriso superficial.

- Oi, mãe.

O planador estava entre os pés de Danny, e ela viu que uma das asas estava se quebrando.

- Quer que veja se consigo consertar, meu bem?

Danny voltou a olhar para a rua.

- Não, papai vai consertar.

- Pode ser que papai chegue só depois do jantar, doutor. O caminho até as montanhas é longo.

- Você acha que o Fusca pode enguiçar?

- Não, acho que não. - O filho acabara de lhe dar mais um motivo para preocupação. Obrigada, Danny. Só faltava isso.

Papai disse que sim - falou Danny quase aborrecido.

- Ele disse que a bomba de gasolina era uma merda.

- Não diga isso, Danny.

- Bomba de gasolina? - indagou, inocentemente.

Wendy suspirou.

- Não. Não diga “merda”.

- Por quê?

- Porque é vulgar.

- O que quer dizer “vulgar”, mamãe?

- É você limpar o nariz à mesa, ou fazer pipi com a porta do banheiro aberta. Ou então dizer palavras como “merda”. E uma palavra vulgar. Gente educada não diz isso.

- Mas papai diz. Um dia, quando estava consertando o motor do Fusca, ele disse: “Deus, esta bomba de gasolina é uma merda”. Papai não é uma pessoa educada?

Como é que se sai desta, Winnifred? Exercitando?

- Ele é educado, mas é também um adulto. Ele cuida para não dizer coisas assim diante de pessoas que poderiam não compreender.

- Como tio Al, por exemplo?

- Isso mesmo. Como tio Al.

- Quando crescer, vou poder dizer?

- Suponho que sim, mesmo que eu não goste.

- Com quantos anos?

- O que você acha de vinte, doutor?

- ainda tenho que esperar muito.

- Acho que sim. Mas você vai tentar, não vai?

- Está bem.

O menino voltou a observar a rua. Esticava um pouco o pescoço, mas o Fusca que estava chegando era muito mais novo e de um vermelho mais vivo. Descontraiu-se novamente. Ela começou a pensar no quanto aquela mudança para o Colorado havia sido penosa para Danny. Este não falava nada a respeito, mas incomodava-a vê-lo sozinho por tantas horas. Em Vermont, três colegas de Jack tinham filhos da idade de Danny. . . e havia também o jardim de infância. Mas, na vizinhança atual, não existia nenhuma criança com quem pudesse brincar. A maioria dos apartamentos era ocupada por estudantes da Universidade do Colorado, e, dos poucos casais da Arapahoe Street, apenas uma pequena percentagem tinha filhos. Descobrira talvez uns doze no curso secundário, três bebês e só.

- Mamãe, por que papai perdeu o emprego?

Fora sacudida no meio de um sonho, e debatia-se por uma resposta. Jack e ela já haviam estudado meios de contornar uma resposta a uma pergunta desse tipo. Tais meios variavam de evasivas à verdade nua e crua. Mas Danny nunca fizera perguntas. E logo agora, quando ela estava deprimida e bem menos preparada, ele tocara no assunto. Assim, ali estava o filho, lendo a confusão em seu rosto e formando suas idéias próprias a respeito do assunto. Wendy achava que, para as crianças, os motivos e as atitudes dos adultos eram tão fortes e agourentos quanto a visão de animais selvagens nas sombras das florestas. Eram manobradas como marionetes, com noções muito vagas dos porquês. O pensamento levou-a de volta para muito próximo das lágrimas, e enquanto lutava contra elas, inclinou-se, tomou o planador e segurou-o em suas mãos.

- Seu pai era o instrutor da equipe de debates. Lembra-se, Danny?

- Claro. Discussões como divertimento, certo?

- Certo. - Examinava o planador, as estrelas pregadas nas asas, e, de repente, viu-se contando a verdade ao filho. - Havia um rapaz chamado George Hatfield, que papai havia excluído da equipe. Isso porque ele não era tão bom quanto os demais alunos. George disse que seu pai excluiu-o porque não gostava dele, e não porque não fosse tão bom. George fez uma coisa feia. Acho que você sabe.

- Foi ele quem fez os buracos nos pneus do Fusca?

- Exatamente. Depois da aula. E seu pai surpreendeu-o.

- Mais uma vez ela hesitou, mas já não havia razão para evasivas; tinha de decidir entre a verdade e a mentira. - Seu pai. . . às vezes faz coisas de que se arrepende. Às vezes, não pensa antes de agir. Isso não acontece sempre, mas às vezes sim.

- Ele machucou George Hatfield, como fez comigo quando molhei os papéis dele?

As vezes..

(Danny com o braço engessado)

faz coisas de que se arrepende.

Wendy piscou os olhos com força, contendo as lágrimas.

- Como nesse caso, meu bem. Papai bateu em George para fazê-lo parar de cortar os pneus, e George bateu-lhe na cabeça. Então, os homens que tomam conta da escola disseram que George não poderia mais voltar às aulas e seu pai não poderia mais voltar a ensinar.

Interrompeu, pois lhe faltavam palavras, e esperou amedrontada por uma avalancha de perguntas.

- Oh - disse Danny. E voltou a prestar atenção à rua. Aparentemente o assunto estava encerrado. Seria bom se se encerrasse tão calmamente.

Wendy levantou-se.

- Vou subir e tomar uma xícara de chá, doutor. Aceita uns biscoitos e um copo de leite?

- Acho que vou esperar papai.

- Não creio que ele vá chegar muito antes das cinco.

- Talvez chegue cedo.

- Talvez - concordou. - Talvez chegue.

Estava no meio da escada, quando ouviu:

- Mamãe?

- Que é, Danny?

- Você quer ir morar naquele hotel no inverno?

Qual das cinco mil respostas deveria dar àquela pergunta? O que pensara ontem à noite, ou o que pensara esta manhã? Seu pensamento oscilava de róseo a negro.

- O que seu pai quiser estará bom para mim. E você?

- Acho que quero - disse ele, finalmente. - Não há ninguém para brincar comigo aqui.

- Sente falta de seus amigos, não sente?

- Às vezes, sinto falta de Scott e Andy. Mas é só.

Voltou e beijou-o, acariciando seus cabelos claros, que já estavam perdendo a delicadeza do cabelo de bebê. Era um menino muito sério. Wendy imaginava como é que ele podia sobreviver, tendo Jack e ela como pais. As esperanças que tinham

desabaram nesse prédio desconfortável, numa cidade que não conheciam. Veio-lhe à mente a imagem de Danny engessado. Alguém no Departamento de Recrutamento e Seleção do Céu havia cometido um erro que ela temia não poder ser corrigido e pelo qual só o espectador mais inocente poderia pagar.

- Não fique no meio da rua, doutor - falou, abraçando-o com força.

- Claro, mamãe.

Subiu e foi para a cozinha. Ajeitou o bule de chá e colocou alguns biscoitos num prato para Danny, caso ele resolvesse subir quando estivesse deitada. Sentada à mesa, com a grande xícara de cerâmica à sua frente, avistou-o pela janela, ainda sentado no meio-fio, com a grande camiseta da escola de Stovington, e o planador a seu lado. As lágrimas que havia contido durante todo o dia explodiam agora, e, inclinada sobre o vapor cheiroso e sinuoso do chá, chorou. De tristeza e saudade do passado, e de medo do futuro.

 

Watson

Perdeu o controle, dissera Uliman.

- Muito bem. Eis aqui a fornalha - disse Watson, acendendo a luz do cômodo escuro e cheirando a mofo.

Watson era forte, cabelos espessos e encaracolados, camisa branca e calças verdes. Abriu um painel de grades de metal na sala da fornalha, e os dois ficaram lado a lado.

- Esta é a lâmpada-piloto.

Um bocal azul e branco assobiando em direção a uma força destrutiva canalizada, a palavra-chave porém, pensou, era “destrutiva » e não “canalizada”: se colocasse o dedo ali, o churrasco estaria pronto em três segundos.

Perdeu o controle.

(Você está bem, Danny?)

A fornalha ocupava todo o cômodo, e era realmente a maior e a mais velha que já vira.

- O piloto tem um mecanismo de segurança - disse Watson -, sensível ao calor. Se a temperatura baixar a um certo nível, acionará um alarme em seu quarto. A caldeira está do outro lado. Vou mostrar-lhe tudo.

Bateu com força a porta de grades e encaminhou Jack para trás da parte principal da fornalha de ferro, em direção à outra porta. O ferro irradiava um calor tremendo, e por alguma razão Jack imaginou um gato grande e sonolento. Watson balançava as chaves e assobiava.

Perdeu o...

(Ao voltar ao escritório, lá encontrara Danny usando apenas calças plásticas, e uma nuvem lenta e vermelha de fúria tomou conta de sua razão. A lentidão era subjetiva, pois tudo deve ter acontecido em menos de um minuto. Tudo fora tão vagaroso quanto um sonho mau. Todas as portas e gavetas do escritório pareciam ter sido saqueadas em sua ausência. Armário, prateleiras, estante. Todas as gavetas arrancadas, O manuscrito da peça de três atos que vinha desenvolvendo devagar, com base numa novelinha que escrevera sete anos antes, quando ainda estudante, estava espalhado pelo chão. Tomava uma cerveja e trabalhava na revisão do segundo ato, quando Wendy o chamou para atender a um telefonema. Danny entornara a cerveja em todas as páginas. Provavelmente para ver a espuma. Ver a espuma, ver a espuma, as palavras brincavam em sua mente como uma corda partida de um piano desafinado. Tudo isso aumentava sua raiva. Deu um passo deliberado em direção ao filho de três anos, que o olhava com um sorriso de prazer; o prazer de haver concluído, com sucesso, um trabalho no escritório do pai; Danny dissera alguma coisa quando ele agarrou sua mão, dobrando-a, para fazê-lo largar a borracha da máquina de escrever e a lapiseira. Danny gritou um pouco. . . não.

não... diga a verdade.., ele berrou. Era tudo muito duro para ser lembrado através de uma névoa de raiva, de uma corda partida. Wendy, de algum lugar da casa, perguntando se havia algo errado. Sua voz débil e umedecida por uma neblina interior. Era isso que havia entre eles. Rodopiara Danny para espancá-lo; seus dedos grandes de adulto cravando-se na pele do braço da criança, apertando seu pulso. O estalar do osso quebrado não foi alto, não foi alto. . . foi muito alto, IMENSO. Som suficiente para abrir uma fenda na névoa vermelha, como uma flecha. . . deixando passar através de si uma nuvem escura de vergonha e remorso, terror e convulsões da alma, ao invés da

luz do sol. Um som claro, que trazia de um lado o passado, e do outro todo um futuro, som como o de um lápis se partindo contra o joelho. Um momento de silêncio absoluto de um lado, em respeito ao futuro que talvez estivesse começando agora. Vendo a face de Danny perder a cor e se tornar branca como cera, vendo seus olhos, sempre grandes, tornarem-se ainda maiores e ficarem vidrados; Jack certo de que o menino iria cair morto por sobre a cerveja e os papéis; sua própria voz, fraca e bêbada, fluida, tentando voltar atrás e encontrar um meio de eliminar a lembrança do som alto do osso se partindo. . . existe um status quo nesta casa? Você está bem, Danny? A resposta gritada de Danny, depois a aproximação de Wendy ofegante quando viu o ângulo estranho que o braço formava com o cotovelo; nenhum braço deveria estar pendurado daquela forma, num mundo de famílias normais. Seu próprio grito quando o acolheu em seus braços e o murmúrio idiota: Ó Deus. Meu santo Deus. Meu bom Deus. Seu pobre bracinho. E Jack ali parado, atordoado e idiota, tentando entender como uma coisa como essa podia ter acontecido. Seus olhos encontraram-se com os da mulher, e pôde perceber que ela o odiava. Não lhe ocorreu o que aquele ódio significava em termos práticos; só mais tarde pôde constatar que ela poderia tê-lo abandonado naquela noite, ido para um hotel e constituído um advogado para o divórcio na manhã seguinte; ou mesmo chamado a polícia. Viu apenas que a mulher o odiava; sentiu-se tonto com isso, e profundamente só. Sentiu-se péssimo. Era como se a morte estivesse chegando. Então, ela voou para o telefone e ligou para o hospital, com o menino preso em seus braços, aos berros. Jack não fora atrás dela, ficara ali pensando, estático sobre as ruínas do escritório fedendo a cerveja.)

Perdeu o controle.

Esfregou a mão na boca e seguiu Watson até a sala da caldeira. Era um lugar úmido, mas algo além da umidade trazia o suor viscoso e doentio à sua testa, barriga e pernas. A lembrança. A cena toda fizera aquela noite de dois anos passados parecer como se tivesse acontecido há duas horas. Como se não houvesse o espaço de tempo. Voltara o sentimento de vergonha e repulsa, a sensação de inutilidade, a vontade de beber, a vontade de beber trouxe um desespero ainda maior. . . poderia haver um momento, não uma semana ou um dia, apenas um momento, em que o desejo de beber não o surpreendesse dessa forma?

Watson sacudiu a cabeça com veemência, fazendo o cabelo

- A caldeira - anunciou Watson. Tirou do bolso traseiro um lenço grande vermelho e azul, assoou o nariz com força, e enfiou o lenço de volta no bolso, reparando se havia dentro dele alguma coisa interessante.

A caldeira ficava sobre quatro blocos de cimento; era um tanque cilíndrico, grande, de cobre e cheio de remendos. Escondia-se em um emaranhado de tubos e ductos que ziguezagueavam no teto daquele subsolo. A direita de Jack, dois canos de aquecimento saíam dos fornos da sala ao lado através da parede.

- O manômetro está aqui. Libras por centímetro quadrado. Creio que sabe. Regulei-o agora para cem, e os apartamentos ficam um pouco frios à noite. Poucos hóspedes reclamam. São mesmo doidos de virem para cá em setembro. Além do mais, isto aqui já está velho. Tem mais remendos do que roupa de mendigo.

O lenço. O assoar, O reparar. De volta ao bolso.

- Estou com uma merda de resfriado - disse Watson informalmente. - Sempre fico gripado em setembro. Fico aqui remendando esta bosta, depois saio para cortar grama ou trabalhar no campo de roque com o ancinho. Apanho friagem e fico gripado. Era o que minha velha mãezinha dizia... Deus a tenha. . . costumava dizer. Morreu há seis anos. O câncer apanhou-a. E você sabe: câncer chegando, prepare seu testamento, pois a morte vem aí.

“Não queira elevar a pressão a mais de cinqüenta ou sessenta. O Sr. Uliman manda aquecer a ala oeste num dia, a ala central no seguinte e a ala leste no outro. Não é maluco? Odeio aquele filho da puta. Au-au-au o dia inteiro. Ele é como aqueles cachorros que lhe mordem o tornozelo, depois correm e mijam no tapete. Se o cérebro dele fosse pó preto, não poderia sequer assoar o nariz. E uma pena ver-se certas coisas e não se ter um revólver na mão.

“Veja. Os ductos são abertos e fechados com estas argolas. Marquei-as todas para você. As etiquetas azuis são para os quartos da ala leste; as vermelhas para os do meio e as amarelas para a ala oeste. Quando for aquecer a ala oeste, tem que se lembrar que esse é o lado mais frio. Aqueles quartos ficam mais gelados que uma mulher fria com uma pedra de gelo na vagina. Nos dias de ala oeste, pode elevar a pressão a oitenta. É o que eu faria.”

- Os termostatos lá em cima. . . - Jack ia dizendo.

pular.

- Não estão montados. Estão lá só como exibição. Esse pessoal da Califórnia só acha que o calor está suficiente quando vêem crescer uma palmeira na merda do quarto. O calor todo sai daqui. Tem-se que verificar a pressão. Está vendo como ela aumenta?

Watson deu um tapa no mostrador principal, que se movera de 100 para 102 libras por centímetro quadrado, enquanto monologava. Jack sentiu, de repente, um arrepio passando pelas vértebras, e pensou: A morte passou por mim. Depois, Watson girou a roda e desligou a caldeira. Houve um silvo alto e o marcador caiu a 91. Watson fechou a válvula e o silvo silenciou.

- Ela aumenta - disse Watson. - Você diz isso àquele pica-pau gordo, Ullman, ele agarra os livros de contas, e passa três horas explicando que não terá condições de comprar uma máquina nova até 1982. Qualquer dia, isso aqui vai voar pelos ares, e só espero que aquele filho da puta esteja aqui dentro para pilotar o foguete. Meu Deus, gostaria de ser tão caridoso quanto minha mãe. Ela via o lado bom de todos. Eu sou tão ruim quanto uma cobra venenosa. Por que, afinal, um homem não consegue ser bom?

“Tem de se lembrar de vir aqui duas vezes ao dia e uma vez à noite antes de deitar-se. A pressão tem que ser verificada. Se se esquecer, ela vai aumentando, aumentando e provavelmente você e sua família vão acordar quando estiverem na Lua. É só diminuí-la um pouco, não haverá problema.”

- Qual seria a pressão máxima?

- Teoricamente, pode ser regulada para duzentos e cinqüenta, mas explodiria com muito menos do que isto. Ninguém me faria ficar junto dela a cento e oitenta.

- Não existe regulagem automática?

- Não. Foi construída antes de tais coisas serem exigidas. O governo federal está em todas nos últimos tempos, não é? O FBI violando a correspondência, a CIA censurando os telefones... e veja o que aconteceu com o tal do Nixon... Não foi uma desgraça? Mas, se vier aqui regularmente e verificar a pressão, tudo estará muito bem. E lembre-se de ligar os ductos como ele quer. Nenhum dos apartamentos receberá muito mais de quarenta e cinco libras, a não ser que não se tenha inverno. E seu apartamento também ficará quentinho como você gosta.

- E o encanamento?

- Já ia tocar nisso. Vamos por este arco.

Caminharam por uma comprida sala retangular, que parecia esticar-se por quilômetros. Watson puxou uma corda e acendeu uma fraca lâmpada de setenta e cinco watts, que balançava sobre eles. Adiante estava o poço do elevador com os cabos pesados, sujos de graxa, que passavam por roldanas de seis metros de diâmetro, e um motor imenso. Havia jornais por toda parte:

empacotados, amarrados e encaixotados. Caixas de papelão marcadas com Registros ou Faturas ou Recibos - GUARDE! Tudo amarelado e mofado! Algumas caixas de papelão estavam desmontando, entornando no chão folhas de papel finas e amareladas que já deviam ter vinte anos. Jack olhou em redor, fascinado. A história do Overlook deveria estar aqui, enterrada nestas caixas podres.

- Aquele elevador é uma merda para se pôr em funcionamento. Sei que Uliman anda pagando bons jantares ao inspetor estadual para conseguir manter o homem da manutenção a distância. Eis aqui o coração do sistema.

Diante deles, havia cinco tubos grandes, que nasciam nas sombras a perder de vista, cada um preso e isolado com tiras de aço.

Watson apontou para uma prateleira cheia de teias de aranha ao lado do cabo. Havia ali alguns tapetes sujos de graxa e um fichário.

- Ali está todo o sistema de encanamento. Não acho que vá ter problemas de vazamento.., nunca houve. Mas, às vezes, os canos congelam. A única forma de acabar com isso é abrir um pouco as torneiras durante a noite, mas há mais de quatrocentas torneiras nesta merda de lugar. Aquele gordo fresco lá em cima berra quando vê a taxa de água e esgoto.

- Diria que é uma análise extraordinariamente astuta.

Watson olhou-o com admiração.

- É você tem mesmo uma mentalidade universitária. Fala como um livro. Admiro isso, desde que o cara não seja fresco. Uma porção deles é. Sabe quem agitou as greves estudantis alguns anos atrás? Os homossexuais. Ficam frustrados e precisam de uma compensação. Fugir da rotina, eles dizem. Que merda! Não sei o que será do mundo.

“Se houver congelamento, é provável que seja aqui no cano. Fica então bloqueada a passagem de calor. Caso aconteça, use isto.” Apanhou um bujão cor de laranja e acionou uma pequena tocha de gás. “Você remove a correia de isolamento

no lugar onde estiver o bloco de gelo e dirige-lhe o calor. Entendeu?”

- Mas o que me diz se o cano congelar fora dessa área?

- Isso não acontecerá, se cumprir sua tarefa de manter o lugar aquecido. Os outros canos não podem ser atingidos. Não se preocupe. Não haverá problemas. Lugar abominável. Cheio de teias de aranha. Apavora-me.

- Ullman contou-me que o zelador do inverno anterior matou a família e se suicidou.

- Sim, aquele tal de Grady. Deduzi que era um péssimo elemento logo na primeira vez que o vi. Sempre sorrindo como um bobo. Mas o gordo empregaria até mesmo o Estrangulador de Boston, caso trabalhasse por um salário mínimo. Foi um guarda-florestal do Parque Nacional que os encontrou; o telefone estava pifado. Todos eles no terceiro andar da ala oeste, gelados. Coitadas das meninas. Tinham oito e seis anos. Lindas. Foi um inferno. O tal do Ullman estava na Flórida, pois dirige um prostíbulo por lá, quando não estamos em época de temporada. Tomou um avião até Denver, alugou um trenó para trazêlo de Sidewinder, pois as estradas estavam bloqueadas. . . um trenó, pode imaginar? Fez das tripas coração para evitar os jornais. Tenho que confessar que fez um bom trabalho. Houve uma nota no Denver Post. Razoável, considerando-se a reputação do lugar. Esperava que algum repórter fosse mexer no assunto novamente e usar Grady como pretexto para divulgar escândalos.

- Que escândalos?

- Em qualquer hotel grande há escândalos, da mesma forma que todo grande hotel tem um fantasma. Por quê? Ora, as pessoas vêm e vão. As vezes, alguém cai duro no chão, ataque do coração, infarto ou coisa semelhante. Os hotéis são lugares supersticiosos. Nada de décimo terceiro andar ou apartamentos de número 13, espelhos atrás da porta de entrada, coisas assim. Acabamos de perder uma senhora em julho. UlIman teve que tomar conta do assunto, e pode apostar sua vida, pois ele cuidou. É por isso que lhe pagam vinte e dois mil dólares por temporada, e seu salário aumenta na mesma proporção que aumenta meu ódio por ele. E como se as pessoas viessem aqui só para vomitar. Empregam-no para limpar-lhes a sujeira. Um exemplo típico é uma mulher com seus desgraçados sessenta anos. . . minha idade! . . . com cabelos pintados, tão vermelhos quanto a luz de um puteiro, os peitos caídos até o umbigo, varizes inchadas por toda a perna, mais parecendo um mapa rodoviário, jóias despencando pelo pescoço, braços e orelhas. E em sua companhia um rapazinho de seus dezessete anos, com cabelos compridos até o rabo e com a virilha saliente como se a tivesse recheado com as páginas de uma revista pornográfica. Ficam por uma semana, dez dias talvez, e toda noite o mesmo exercício. Descem para o Salão Colorado das cinco às sete, ela misturando bebidas como se amanhã fossem ser proibidas, e ele bebendo uma única garrafa de cerveja em goles pequenos para fazê-la durar. Ela conta piadas bobas, e ele se vê obrigado a rir como se tivesse elásticos amarrados nos cantos da boca. Deus sabe em que tinha que pensar para manter sexo com a velha. Jantam, em seguida ele caminha e ela cambaleia, bêbada como um peru. Ele bolina as garçonetes e sorri para elas, quando a velha não está olhando. Já havíamos até apostado quanto tempo ele agüentaria.

Watson encolheu os ombros.

- Uma noite, ele desce por volta das dez, dizendo que sua “esposa” está “indisposta”. . . o que significa que ela havia desmaiado como todas as outras noites. . . e ele vai comprar um remédio para o estômago. Sai então, no pequeno Porsche em que chegaram, e esta é a última vez que o vemos. Na manhã seguinte ela desce, fingindo que não está dando importância ao caso, mas vai ficando cada vez mais pálida. Ullman pergunta diplomaticamente se gostaria que a polícia fosse avisada, talvez em caso de um pequeno acidente ou coisa assim. Arrepia-se como um gato. “Não, não, não, ele é um bom motorista”, e ela não está preocupada, tudo está sob controle, “ele estará de volta para o jantar.” Naquela tarde entra no Colorado por volta das três e não almoça. Sobe ao quarto em torno de dez e meia e esta é a última vez que alguém a vê viva.

- O que aconteceu?

- O investigador disse que ela tomou cerca de trinta pílulas para dormir em cima de toda a bebida. O marido apresentou-se no dia seguinte, com um advogado importante de Nova York. Uliman viu o diabo em figura de gente. Vou processar isso e aquilo, e quando o caso estiver concluído o senhor não terá sequer suas cuecas, e assim por diante. Mas Ullman foi esperto. Acalmou o homem. Talvez tenha perguntado ao cara importante se gostaria de ver a fotografia de sua mulher em todos os jornais de Nova York: “MULHER DE HOMEM IMPORTANTE.. . Blábláblá. . . ENCONTRADA MORTA COM A BARRIGA

CHEIA DE BARBITÚRICOS, DEPOIS DE BRINCAR DE ESCONDEESCONDE COM UM RAPAZ QUE PODERIA SER SEU NETO”.

“Os policiais encontraram o Porsche em Lyons, e Uliman teve que dar tratos à bola para liberá-lo para o advogado. Depois, ambos se uniram ao velho Archer Houghton, o investigador municipal, e fizeram-no mudar o veredicto para morte acidental. Ataque cardíaco. Hoje, Archer está por aí dirigindo um Chrysler. Não o invejo.”

O lenço. O assoar, O reparar. Sumiu.

- O que aconteceu então? Uma semana depois a idiota da camareira, Delores Vickery, sente-se mal enquanto arruma o quarto onde os dois haviam estado e cai dura. Quando volta a si, diz que vira a morta no banheiro, deitada nua na banheira. “Seu rosto estava roxo e inchado”, diz ela, “e sorria para mim.” Ullman então deu-lhe um dinheiro equivalente a duas semanas de trabalho e lhe pediu para sumir. Calculo um número de talvez quarenta e cinco pessoas mortas neste hotel, desde que meu avô o inaugurou em 1910.

Olhou para Jack com perspicácia.

- Sabe como a maioria se vai? Ataque cardíaco ou infarto, enquanto estão na cama com uma dama. Os balneários têm muito disso, gente velha que quer experimentar o sexo pela última vez. Eles sobem às montanhas para fingir que ainda têm vinte anos. Às vezes acontece alguma coisa, e nem todos os gerentes deste lugar foram tão espertos quanto Ullman, ao tentar afastar os jornais. O Overlook, portanto, conserva sua reputação. Aposto como a merda do Biltmore, na cidade de Nova York, goza de reputação, se fizer a pergunta às pessoas certas.

- Mas nenhum fantasma?

- Sr. Torrance, sempre trabalhei aqui. Aqui brincava quando tinha a idade de seu filho na fotografia que você me mostrou. ainda não vi nenhum fantasma. Venha comigo, vou mostrar-lhe o depósito.

- Está bem.

Enquanto Watson apagava a luz, Jack disse:

- Realmente há muito papel por aqui.

- Não está enganado. Parece que remontam a cem anos. Jornais, notas fiscais, conhecimentos de transportadoras e sabe Deus o que mais. Meu pai mantinha-os em dia quando tinha uma fornalha a lenha, mas hoje isso não existe mais. Um desses anos vou apanhar um menino para arrastar a papelada até Sidewinder e queimar tudo. Se Uliman pagar a despesa. Aho que não vou ter problemas, se o aborrecer bastante.

- Há ratos?

- Sim, acho que alguns. Comprei as ratoeiras e o veneno. O Sr. Ullman quer que você os ponha no sótão e aqui embaixo. Preste atenção em seu filho, Sr. Torrance. Você não gostaria que nada acontecesse a ele, gostaria?

- Não, claro que não. - O conselho, vindo de Watson, não o aborrecia.

Foram até a escada e ali pararam por um momento, enquanto Watson assoava o nariz.

- Encontrará todas as ferramentas que precisar, e que não precisar, ali. Há também as telhas. Ullman disse alguma coisa a respeito?

- Sim. Ele quer que as telhas da ala oeste sejam trocadas.

- Aquele gordo cretino vai usar e abusar de você, e quando chegar a primavera vai lamuriar-se pelo trabalho que não foi feito como devia. Uma vez falei na cara dele.

A voz de Watson ia desmaiando num sussurro enquanto subiam as escadas. Jack Torrance olhou para trás, aquela escuridão impenetrável e fedorenta, e pensou que aquele seria o lugar ideal para fantasmas. Pensou em Grady, trancado pela neve macia e implacável, enlouquecendo pouco a pouco e cometendo a atrocidade. Teria gritado? Pobre Grady, cada dia mais comprimido e consciente de que, para ele, a primavera nunca viria. Não devia ter vindo. E não devia ter perdido o controle.

Enquanto passava pela porta, atrás de Watson, as palavras ecoaram como um dobrar de sinos a finados, seguido de um estalido agudo. . . como um lápis se partindo. Santo Deus, uma bebida cairia bem. Ou centenas delas.

 

A terra das sombras

Danny se cansou e subiu às quatro e quinze para tomar o leite e comer os biscoitos. Devorava-os enquanto olhava pela

janela, e em seguida foi beijar a mãe, que estava deitada. Ela sugeriu que ele ficasse e assistisse a “Vila Sésamo” - o tempo passaria mais rápido -‘ mas Danny sacudiu a cabeça decidido e voltou para a calçada.

Eram cinco horas, e, apesar de não ter um relógio e não saber ver as horas muito bem, estava consciente do passar do tempo, pelo crescer das sombras e pelo dourado matiz do fim de tarde.

Com o planador nas mãos, cantarolava uma cantiga infantil.

Os meninos a cantavam na escola maternal, em Stovington. Aqui, ele não estava freqüentando a maternal, porque o pai não tinha condições. Sabia que os pais se preocupavam com que isso aumentasse sua solidão (e sério, silencioso, Danny os culpava), de qualquer forma ele não queria voltar àquela escola. Era para bebês. Ele ainda não estava muito crescido, mas também não era mais bebê. Os meninos grandes iam para a escola grande e almoçavam comida quente. Primeiro ano. No próximo ano. Ele então estaria entre ser bebê e um menino crescido. Era razoável. Ele realmente sentia falta de Scott e Andy - principalmente Scott -, mas estava tudo bem. Era melhor esperar sozinho por qualquer coisa que pudesse acontecer.

Entendia uma porção de coisas sobre seus pais, e sabia que muitas vezes eles não gostavam de sua compreensão ou não acreditavam nela. Mas algum dia teriam que acreditar. Sentiase feliz por esperar.

Pena que, especialmente em horas como aquela, não acreditavam nele. Mamãe estava deitada, quase chorando de preocupação por papai. Algumas de suas preocupações eram de gente grande, e Danny não conseguia entender - coisas vagas que se relacionavam com segurança, com a auto-imagem de papai, sentimentos de culpa e raiva e o medo do desconhecido

-, mas as duas coisas mais importantes em sua mente no momento eram que o carro de papai pudesse estar enguiçado nas montanhas (então por que não telefona?) e que papai estivesse fazendo a “coisa feia”. Danny sabia muito bem o que era a “coisa feia”, pois Scott Aaronson, que era seis meses mais velho, havia explicado. Scott sabia, pois seu pai também fazia a «Coisa feia”. Uma vez, Scott contou que o pai dera um soco no olho da mãe e a derrubara no chão. Finalmente, conseguiram o divórcio por causa da “coisa feia”, e, quando Danny o conheceu, Scott morava com a mãe e só via o pai nos fins de semana. O maior terror na vida de Danny era o divórcio, uma palavra que vinha sempre à sua mente como um cartaz escrito em letras vermelhas e coberto de serpentes venenosas. No divórcio, os pais não vivem mais juntos. Batalhavam por você perante um juiz (de tênis? De peteca? Danny não sabia qual era o juiz, mas papai e mamãe jogavam tênis e peteca em Stovington, e ele concluiu então que poderia ser qualquer um dos dois), e a gente tinha de ficar com um deles, sem praticamente ver o outro, e aquele com quem se ficava podia casar-se novamente com uma pessoa desconhecida. A coisa mais terrível sobre o divórcio era que ele compreendia que a palavra - ou conceito, como queiram - boiava na cabeça de seus próprios pais, algumas vezes como uma idéia difusa ou distante, outras forte, negra e terrífica como um trovão. Foi naquele dia em que papai o castigara por estragar os papéis no escritório e o médico colocara seu braço no gesso. Aquela lembrança já estava apagada, mas a lembrança dos pensamentos sobre divórcio estava nítida. Mamãe pensara mais, e ele ficara debaixo de um medo constante de que ela pudesse arrancar a palavra de seu cérebro e concretizá-la pela boca. DIVÓRCIO. Era uma corrente de pensamentos, o pouco que podia detectar, como o compasso de uma música simples. Mas, como o compasso, o pensamento central formava apenas o eixo de pensamentos mais complexos, pensamentos que, por enquanto, não podia nem começar a interpretar. Vinham-lhe coloridos e tristes. O eixo dos pensamentos sobre divórcio era o que acontecera em Stovington, quando papai perdera o emprego. Aquele tal de George Hatfield que tinha ficado danado da vida com papai e furara os pneus do Fusca. Os pensamentos de papai quanto ao divórcio eram mais complexos, pintados de roxo e correndo por veias negras de pavor. Ele parecia pensar que tudo melhoraria, se ele saísse de casa. As mágoas cessariam. As mágoas que papai causava eram sempre por causa da “coisa feia”. Sua necessidade de sentar-se num quarto escuro, assistir à televisão, comer amendoim e fazer a “coisa feia” até seu cérebro se acalmar e deixá-lo em paz.

Mas desta vez sua mãe não tinha razão para se preocupar e ele tinha vontade de poder ir até ela e dizer-lhe isso. O Fusca não estava enguiçado. Papai não estava em lugar nenhum fazendo a “coisa feia”. Estava quase chegando a casa, engasgando pela estrada entre Lyons e Boulder. Por enquanto, papai não pensava na “coisa feia”. Pensava em. . . em.

Danny olhou furtivamente para a janela da cozinha. Pensar muito causava-lhe algo. Fazia as coisas - coisas reais - se dissiparem, e em seguida via coisas que não estavam ali. Certa vez, pouco tempo depois que lhe colocaram o gesso, aconteceu issO na hora do jantar. Não estavam conversando muito. Mas pensavam. Oh, sim. Pensamentos sobre DIVÓRCIO pairando sobre a mesa de jantar como uma nuvem escura, cheia de chuva e pronta para explodir. A sensação era tão ruim que o deixava sem vontade de comer. pensamento de comer sob aquela nuvem negra do DIVÓRCIO fazia-o ter vontade de vomitar. E, como fosse importante, mergulhou totalmente em concentração e algo aconteceu. Quando voltou à realidade, estava deitado no chão com grãos de feijão e purê no colo, sua mãe segurando-o e chorando e o pai ao telefone. Ficou amedrontado, tentou explicar-lhes que não houvera nada de errado, que isso, às vezes, acontecia, quando se concentrava para ter uma compreensão maior das coisas. Tentava falar sobre Tony, a quem chamavam seu “amigo invisível”.

- Ele está tendo uma A-LU-CI-NA-ÇÃO. Parece estar bem, mas quero que seja visto por um médico - dizia seu pai.

Depois que o médico saiu, mamãe fê-lo prometer que nunca mais faria aquilo, que nunca mais os assustaria daquela forma, e Danny concordara. Ele próprio estava com medo, pois ao se concentrar sua mente voltara-se para o pai, e por um momento Tony aparecera (muito longe, como sempre o fazia, chamando-o a distância e as coisas estranhas escureceram a cozinha e o bife sobre o prato. Por apenas um instante, seu próprio consciente penetrara através da mente do pai, encontrando uma palavra incompreensível, mais pavorosa do que DIVÓRCIO: SUICÍDIO. Danny nunca mais penetrara a mente do pai e naturalmente nunca mais procurou fazê-lo. Não se importou em saber exatamente o significado daquela palavra.

Mas realmente gostava de se concentrar, pois, às vezes, Tony aparecia. Nem sempre. Às vezes, as coisas ficavam confusas por alguns segundos e, em seguida, elucidavam-se - na verdade, isso acontecia com mais freqüência - mas outras vezes Tony aparecia dentro de seu limite visual, chamando de longe e acenando. .

Acontecera duas vezes, desde que se mudaram para Boulder, e lembrava-se quão agradável e surpreendente era saber que Tony viera com ele de Vermont. Assim, não teria deixado todos os amigos para trás.

A primeira vez em que estivera no quintal, nada de muito importante acontecera. Apenas Tony acenando, em seguida a escuridão e poucos minutos depois uns vagos fragmentos de lembrança, como um sonho confuso. A segunda vez, duas semanas atrás, fora mais interessante. Tony acenando, chamando de longe «Danny. . venha ver. . . “ Parecia estar se levantando e depois caindo num buraco grande, como Alice no País das Maravilhas. Em seguida, foi ao porão do edifício e Tony estava com ele, apontando para o baú onde seu pai guardava os papéis importantes, « A PEÇA” em especial.

- Veja - dizia Tony com sua voz musical. - Está debaixo da escada. Exatamente debaixo da escada. Os carregadores colocaram-no exatamente. . . debaixo. . . da escada.

Danny deu um passo à frente para ver a maravilha mais de perto e então começou a cair novamente, desta vez da gangorra onde estivera sentado todo o tempo. Ficara sem fôlego.

Três ou quatro dias depois, seu pai estava revirando tudo, dizendo à mãe furiosamente que procurara por todo o maldito porão e o baú não estava lá, e que iria processar a maldita transportadora por tê-lo largado em algum lugar entre Vermont e Colorado. Como é que ele poderia terminar “A PEÇA”, se essas coisas continuassem a acontecer?

- Não, papai - falou Danny. - Está debaixo da escada. A transportadora colocou-o bem embaixo da escada.

Papai lançou-lhe um olhar e desceu para ver. O baú estava lá, onde Tony mostrara. O pai colocou Danny a seu lado, sentou-o no colo e perguntou quem o levara ao porão. Teria sido Tom, o vizinho de cima? O porão era perigoso, papai disse. Por isso o proprietário mantinha-o trancado. Se alguém estava deixando a porta aberta, gostaria de saber quem era. Estava feliz por ter seus papéis e sua “PEÇA”, mas não valeriam nada, se Danny caísse na escada e quebrasse. . . uma perna. Danny disse ao pai seriamente que não havia estado no porão. A porta estava sempre trancada. E mamãe concordou.

- Danny nunca foi lá - disse ela -, pois é úmido, escuro e cheio de insetos. E ele não mente.

- Então, como é que você ficou sabendo, doutor?

- Tony me mostrou.

Pai e mãe entreolharam-se. Isso acontecera por vezes. E por ser assustador tiraram imediatamente o pensamento da cabeça. Mas Danny sabia que se preocupavam com Tony, especialmente mamãe, e cuidava em pensar num modo de fazer Tony

aparecer onde ela não pudesse ver. Estava pensando que ela devia estar deitada, concentrou-se então profundamente para ver se conseguia entender em que papai estava pensando.

Franziu a testa e suas mãos um pouco sujas apertaram-se sobre as calças de brim. Não fechou seus olhos - não era preciso -, mas baixou-os, imaginando a voz do pai, a voz de Jack, a voz de John Daniel Torrance, grossa e monótona, às vezes ardilosa de satisfação, ou mais grossa de raiva, ou então monótona, quando estava pensando. Pensando. Pensando...

(pensando)

Danny suspirou silenciosamente e seu corpo caiu na calçada como se seus músculos tivessem sido desligados. Estava plenamente consciente; via a rua e o casalzinho passeando na calçada do outro lado, de mãos dadas, pois estavam

(amando?)

tão felizes por estarem juntos naquele dia. Viu as folhas de outono caindo na sarjeta ao soprar do vento, rodas amarelas de carros. Viu a casa por onde passavam e viu o telhado coberto de

(telhas. acho que não vai haver problema, se estiver iluminado é. . estará tudo bem, aquele watson. deus, que figura. quem me dera ter um papel para ele na «PEÇA”. vou acabar com toda a miserável humanidade nela, se não tomar cuidado. é.. . telhas. há pregos por lá? que merda, esqueci de perguntar. bem, são fáceis de se conseguir. loja de ferragens de sidewinder. vespas. nesta época do ano estão acasalando. devo precisar de uma daquelas bombas contra insetos, caso haja alguma por lá quando retirar as telhas velhas, telhas novas, velhas.)

telhas. Então era nisso que ele estava pensando. Conseguira o emprego e pensava em telhas. Danny não sabia quem era Watson, mas tudo o mais parecia suficientemente claro. E pode ser que chegue a ver um ninho de vespas. Tão lógico quanto seu nome

Danny... Dannyyy...

Levantou os olhos e lá estava Tony, no final da rua, ao lado de um sinal luminoso, acenando. Danny, como sempre, sentiu uma imensa explosão de prazer ao ver o velho amigo. Desta vez, parecia sentir também um pouco de medo, pois havia atras de Tony uma nuvem escura. Um monte de vespas que, quando libertadas, picariam, deixando seu ferrão.

Mas não havia razão para não ir.

Abaixou-se mais no meio-fio, as mãos escorregando relaxadamente pelas coxas e balançando abaixo dos quadris. O queixo mergulhado no tórax. Houve então um puxão indolor quando parte dele se levantou e correu atrás de Tony escuridão adentro.

Dannyyy...

A escuridão foi invadida por um turbilhão de testemunhas. Um som de tosse e sombras curvadas e torturadas que se decompunham em pinheiros durante a noite, empurradas pela ventania. Um torvelinho de neve. Neve por toda a parte.

- Muito profundo - disse Tony da escuridão, e havia uma tristeza em sua voz que amedrontava Danny. - Muito profundo para se poder sair.

Uma outra sombra. O aparecimento gradativo de um vulto, erguendo-se imenso e retangular. Um telhado inclinado. Testemunha obscurecida pela escuridão da tempestade. Muitas janelas. Um edifício comprido, coberto de telhas de madeira. Algumas telhas eram mais verdes e mais novas. Seu pai as tinha colocado. Com pregos da loja de ferragens de Sidewinder. A neve estava agora cobrindo as telhas. Cobria tudo.

Uma lâmpada verde brilhava em frente ao prédio, luz bruxuleante que se transformava num gigante, uma caveira sorridente sobre dois ossos cruzados.

- Veneno - disse Tony da escuridão. - Veneno.

Outros avisos bruxuleavam por seus olhos, alguns em letras verdes, outros em quadros enfiados na massa de neve acumulada pelo vento. “PROIBIDA A NATAÇÃO. PERIGO! Fios DE ALTA TENSÃO. PROPRIEDADE CONDENADA. ALTA VOLTAGEM. TERCEIRO TRILHO. PERIGO DE MORTE. MANTENHA DISTÂNCIA. MANTENHA-SE AFASTADO. ENTRADA PROIBIDA. VIOLADORES SERÃO FUZILADOS.” Ele não entendia nada daquilo - não sabia ler! -, mas captava o sentido, e um pavor nebuloso boiava dentro de seu corpo oco como uma sementinha que morreria à luz do sol.

Apagaram-se. Estavam agora numa sala cheia de móveis estranhos, uma sala escura. A neve borrifava as janelas como se fosse areia. Sua boca estava seca, seus olhos como duas bolas de gude quentes, seu coração batendo. Lá fora um estrondo terrível de uma porta sendo aberta. Passos. Do outro lado da sala havia um espelho refletindo a palavra “REDRUM”.

A sala escureceu. Outra sala. Ele conhecia (conheceria) esta sala. Uma cadeira derrubada. Uma janela quebrada deixando entrar a neve; já havia coberto a borda do tapetes As cortinas soltas e caídas de um trilho quebrado. Um armário pequeno ao lado.

Mais ruídos ocos, altos, monótonos, compassados, horríveis. Vidro quebrado. A aproximação da destruição. Uma voz rouca, a voz de uma mulher, fez tudo parecer mais terrível por ser familiar:

Saia! Saia, seu pedaço de merda! Tome seu remédio!

Creque, creque, creque. Madeira lascada. Um berro de raiva e satisfação simultâneos. REDRUM. Aproximando-se.

Movendo-se pela sala. Quadros arrancados da parede. Um toca-discos

(o toca-discos de mamãe?)

derrubado no chão. Seus discos: Grieg, Haendel, Beatles, Art Garfunkel, Bach, Liszt espalhados por toda parte. Quebrados em pedacinhos negros. Um raio de luz vinha de outro cômodo, o banheiro, luz clara e desagradável, e uma palavra bruxuleando no espelho do armário de remédios como um olho vermelho, REDRUM. REDRUM. REDRUM.

- Não - murmurou ele. - Não, Tony, por favor.

E, pendurada na porcelana branca da banheira, estava uma mão. Flácida. Sangue escorrendo lentamente (REDRUM), pelo dedo médio, pela unha bonita e pingando no ladrilho.

- Não, não, não.

(oh por favor, Tony, você está me apavorando)

REDRUM, REDRUM, REDRUM.

(pare com isso, Tony!)

Apagou-se a imagem.

Na escuridão, o barulho aumentava, mais e mais, ecoando em todos os lugares.

Estava agora agachado num corredor escuro, sobre um tapete de desenhos pretos, ouvindo os estrondos se aproximando, e um vulto dobrou o corredor caminhando em sua direção, cambaleando, com cheiro de sangue e abatido. Segurava um taco de pólo e balançava-o (REDRUM) de um lado para outro, batendoo contra a parede, rasgando o papel de seda e gritando fantasmagoricamente.

Venha tomar seu remédio! Seja homem!

O vulto avançava em sua direção, exalando um cheiro forte e desagradável de suor, o taco de pólo cortando o ar num assobio, e então o estrondo surdo do seu impacto contra a parede, espalhando poeira numa lufada sarnenta e de cheiro seco. Pequeninos olhos vermelhos brilhavam no escuro, monstro estava em cima dele, descobrira-o, agachado diante de uma parede nua. E o alçapão no teto estava fechado.

Escuridão. Movimento.

- Tony, por favor, leve-me de volta...

E voltou. Sentado no meio-fio da Arapahoe Street, a camisa colada às costas, o corpo banhado de suor. E seus ouvidos ainda escutavam aquele estrondo e ele podia sentir o cheiro de sua própria urina enquanto se abandonava ao terror. Podia ver aquela mão flácida balançando no canto da banheira, com o sangue correndo pelo dedo médio, e aquela palavra inexplicável muito mais terrível do que todas as outras: REDRUM.

Agora, então, a luz do sol. Coisas reais. Exceto Tony, seis quarteirões dali, apenas uma mancha parada na esquina, sua voz desmaiada, alta e meiga.

- Cuidado, doutor...

Depois, no instante seguinte, Tony se foi, e o Fusca vermelho do papai dobrava a esquina, trepidando pela rua, soltando fumaça azul. Danny pulou do meio-fio num segundo, acenando, pulando num pé e noutro, gritando:

- Papai! Oi, papai! Oi! Oi!

O pai encostou o VW no meio-fio, desligou o motor e abriu a porta. Danny correu em sua direção e depois arrefeceu arregalando os olhos. O coração pulava na garganta. Congelouse. No banco do lado, estava um taco de póio com a cabeça coberta de sangue e cabelo. Depois, foi como se ele fosse um saco de mercearia.

- Danny... você está bem, doutor?

- Sim. Estou bem.

Correu e enterrou-se na jaqueta do pai, num abraço muito apertado. Jack o abraçava também, um pouco confuso.

- Ei, doutor. Não fique no sol tanto tempo assim. Você está pingando.

- Acho que adormeci. Eu o amo, papai. Fiquei esperando por você.

- Eu também adoro você. Trouxe algumas coisas. Acha que consegue carregá-las até lá em cima?

- Claro.

- Doutor Torrance, o homem mais forte do mundo, e

cujo passatempo é adormecer deitado numa esquina disse Jack desmanchando o cabelo do filho.

Caminhava para a porta e mamãe os esperava na entrada. Danny parou no segundo degrau para admirar o beijo. Estavam felizes por estarem juntos. Exteriorizavam seu amor, da mesma forma que o casalzinho que caminhara pela calçada de mãos dadas. Danny estava feliz.

O saco de mercearia - apenas um saco de mantimentos

- apertado nos braços. Estava tudo bem. Papai estava em casa, mamãe o amava. Não havia nada ruim. E nem tudo o que Tony mostrava acontecia.

Mas o medo havia tomado conta de sua cabeça. Medo relacionado com aquela palavra indecifrável que vira no espelho de sua alma.

Cabine telefônica

Jack estacionou o VW em frente ao Centro Comercial e deixou o motor morrer. Pensou se não seria melhor substituir a bomba de gasolina, porém concluiu mais uma vez que não tinha dinheiro. Se o carrinho conseguisse andar até novembro, aposentar-se-ia com uma medalha de honra ao mérito. Em novembro a neve nas montanhas estaria cobrindo o teto do Fusca. . . talvez até mesmo cobrindo três Fuscas colocados um sobre o outro.

- Fique no carro, está bem, doutor? Vou trazer-lhe uma barra de chocolate.

- Por que não posso ir com você?

- Tenho que dar um telefonema. Coisa particular.

- Foi por isso que você não ligou de casa?

Exatamente.

Wendy insistira em ter um telefone em casa, apesar da situação financeira não muito boa. Argumentara que com uma criança pequena - especialmente um menino como Danny, que as vezes sofria desmaios - não poderiam ficar sem telefone.

Jack então arcou com a despesa suficientemente pesada de trinta dólares, pela instalação, e com o depósito de noventa d. lares, realmente elevado. E até aquele momento o telefone estivera mudo, a não ser por duas chamadas por engano.

- Você pode trazer-me um chocolate bem grande?

- Trago. Fique aí quietinho, e não mexa na alavanca de câmbio, certo?

- Certo. Vou ficar olhando os mapas.

- Está muito bem.

Quando Jack saiu, Danny abriu o porta-luvas e retirou cinco mapas: Colado, Nebrasca, Utah, Wyoming e Novo México. Adorava mapas rodoviários, adorava acompanhar o caminho das estradas com seu dedo. Achava que a melhor coisa que acontecera na mudança para o oeste fora a possibilidade de ver mapas novos.

Jack foi ao balcão da loja, comprou uma barra de chocolate para Danny, um jornal e um exemplar de outubro da Revista do Escritor. Pagou com uma nota de cinco dólares e pediu o troco em moedas. Caminhou para a cabine telefônica. Dali, podia ver Danny no Fusca. A cabeça inclinada estudando os mapas. Jack sentiu uma sensação de amor sufocante pelo menino. A emoção petrificou-se em sua fisionomia.

Achou que poderia ter feito este telefonema de agradecimento a Al de sua casa; certamente não iria dizer nada a que Wendy objetasse. Seu orgulho não permitiria. Nos últimos tempos, quase sempre escutava o que seu orgulho lhe ditava, pois, além da mulher e filho, seiscentos dólares numa conta bancária e um Volks-wagen 1968, seu orgulho era tudo que lhe restava. A única coisa que era realmente sua. Até a conta bancária era conjunta. No ano passado lecionara inglês numa das melhores escolas da Nova Inglaterra. Tinha amigos - apesar de não serem os mesmos de antes - alegres, companheiros do corpo docente que admiravam sua eficiência numa sala de aula e sua dedicação pessoal à literatura. Seis meses atrás, as coisas estavam bem. De repente, havia dinheiro sobrando para abrir uma caderneta de poupança. Na época em que bebia, nunca sobrara um centavo, mesmo com Al Shockley pagando muitas rodadas. Wendy e ele haviam conversado seriamente sobre a compra de uma casa financiada em doze meses. Uma casa no campo, levando uns oito anos para reformá-la, ora essa, eram jovens, tinham o tempo a seu favor.

Então, perdera o controle.

George Hatfield.

O cheiro de esperança transformara-se em cheiro de couro no escritório de Crommert, tudo como uma cena de sua própria peça: os velhos retratos dos diretores anteriores de Stovington, pendurados na parede, desenhos da escola, em placas de metal, de 1879, quando foi inaugurada, e de 1895, quando Vanderbilt pôde construir a casa que ainda se erguia no fundo do campo de futebol, imensa, coberta de hera. A hera de abril farfalhava na janela trincada da sala de Crommert, do aquecedor saía o ruído monótono da fumaça, não era uma fantasia. Era a realidade. Sua vida. Como pôde ter-se afundado tanto?

- É uma situação difícil, Jack. Terrivelmente difícil, O Conselho pediu-me para comunicar-lhe a decisão.

O Conselho queria a demissão de Jack e ele demitiu-se. Em circunstâncias diferentes, teria obtido direito de posse sobre o terreno, naquele junho.

O que se seguiu àquela entrevista no escritório de Cromrnert foi a noite mais escura e mais terrível de sua vida. A vontade, a necessidade de se embriagar, nunca fora tão forte. Suas mãos tremiam. Derrubava coisas. E queria descarregar tudo sobre Wendy e Danny. Sentia-se como um animal selvagem atrelado. Temia agredir mulher e filho. Viu-se parado diante de um bar, e a única coisa que o impediu de entrar foi a consciência de que, se o fizesse, Wendy o abandonaria, levando Danny. Morreria.

Ao invés de entrar no bar, onde as sombras pairavam sobre as garrafas de “elixires de esquecimento”, foi para a casa de Al Shockley. A decisão do Conselho tinha sido de seis votos contra um. Al fora esse um.

Ligando agora para a telefonista, fora informado de que, por um dólar e cinqüenta e oito centavos, poderia falar durante tres minutos com Al, que estava a três mil quilômetros dali. O tempo é relativo, meu caro, pensou ele, e depositou dois dolares Podia ouvir ao longe os ruídos da sua ligação sendo completada

O pai de Al, Arthur Longley Shocldey, fora o barão do aço. Deixara para o filho, Albert, uma fortuna imensa, investimentos, diretorias e a presidência de vários conselhos. Um dos cargos era o de membro do Conselho Diretor da Academia Preparatória de Stovington, a obra de caridade favorita do velho. anto Arthur quanto Albert eram bacharéis, e Al morava em iarre, próximo o bastante para ter um interesse particular pela escola. Durante muitos anos, Al fora o treinador de tênis de Stovington.

Jack e Al tornaram-se amigos acidentalmente: estavam presentes em muitas das reuniões da escola, e em todas elas eram as duas pessoas mais embriagadas. Shockley era separado da mulher, e o próprio casamento de Jack estava fracassando, apesar de ainda amar Wendy e de prometer-lhe sincera e freqüentemente regenerar-se.

Os dois saíam das festas do corpo docente, indo de bar em bar, até que estivessem fechados, terminando então numa mercearia para uma cerveja, que bebiam dentro do carro. Havia dias em que Jack chegava em casa cambaleando, de manhã, e encontrava Wendy e Danny no sofá. Danny encolhido junto à mãe. Olhava-os e, sentindo nojo de si, limpava a garganta numa onda de amargura mais forte do que o gosto da cerveja, dos cigarros e martínis - marcianos, como dizia Al. Nesses momentos sua mente voltava-se, pensativa e sensatamente, para o revólver, a corda ou a gilete.

Se a farra era em dia de semana, dormia por três horas, levantava-se, vestia-se, tomava quatro pílulas de Exedrin e saía às nove para a aula de poesia americana, ainda bêbado. Bom dia, rapazes, hoje o Monstro de Olhos Vermelhos vai contarlhes como Longfellow perdeu a mulher num incêndio.

Não podia admitir que fosse um alcoólatra, pensava Jack, enquanto o telefone chamava na casa de Al. As aulas que havia perdido, ou dado sem se barbear, ainda com o hálito forte dos marcianos da noite anterior. Eu não, posso parar a qualquer hora. As noites que Wendy e ele passaram em camas separadas. Ouça, estou bem. Pára-lamas amassados. Claro que consigo dirigir. As lágrimas que ela derramara no banheiro. Olhares desconfiados dos colegas, em qualquer festa em que bebida alcoólica era servida, até mesmo vinho. A consciência de que falavam dele. A convicção de que não produzia nada do seu trabalho, a não ser bolas de papel em branco que terminavam na cesta de lixo. Fora uma boa presa para Stovington, talvez um escritor americano que desabrochava, e decididamente um homem qualificado para ensinar o grande mistério: como escrever criativamente. Publicara duas dúzias de contos. Estava trabalhando numa peça e pensava que existisse uma novela incubada no fundo do cérebro. Agora não produzia nada e já não lecionava com tanta eficiência.

Tudo terminou numa noite, um mês depois de Jack ter quebrado o braço do filho. Aquilo, pareceu-lhe, acabara com seu casamento. Tudo que restou fora a força de Wendy. . . se a mãe dela não fosse tão miserável, Wendy teria tomado um ônibus de volta a New Hampshire, logo que Danny pudesse viajar. Fim.

Passava um pouco de meia-noite. Jack e Al voltavam para Barre. Al dirigia como um louco. Ambos estavam muito bêbados; os marcianos haviam aterrado naquela noite, com força total. Faziam a última curva, antes da ponte, a cento e vinte quilômetros, e havia uma bicicleta de criança na estrada; houve então o frear agudo, enquanto o pneu se cortava em tiras e Jack lembrava-se do rosto de Al aparecendo gradativamente sobre o volante, como uma lua cheia. Depois, o impacto da bicicleta ao ser atingida a setenta quilômetros. Voara como um pássaro, o guidom chocando-se contra o pára-brisa, e subindo novamente, deixando os estilhaços do vidro diante dos olhos esbugalhados de Jack. Segundos depois, o estrondo final ao cair na estrada atrás do carro. Alguma coisa chocou-se contra eles, quando os pneus passaram por cima. O carro derrapou, Al ainda manobrava o volante, e de longe, muito longe, Jack ouvia sua própria voz dizendo:

- Santo Deus, Al. Atropelamos alguém. Acabei de sentir.

O telefone continuava a tocar em seu ouvido. Vamos logo, Al. Atenda. Deixe-me acabar com isto.

Al parara o carro num abrigo a um metro da ponte. Dois pneus estavam vazios. Haviam deixado no asfalto marcas sinuosas de borracha queimada numa extensão de quarenta metros. Entreolharam-se e voltaram correndo na escuridão.

A bicicleta estava esmigalhada. Uma das rodas sumira, e, olhando para trás, Al avistou-a no meio da estrada, com meia dúzia de raios levantados como corda solta de um piano. Al disse hesitante:

- Acho que foi por cima disto que passamos, amigo.

Então, onde está a criança?

- Você viu alguma criança?

Jack franziu as sobrancelhas. Tudo acontecera em velocidade tão alta. Na curva. A bicicleta aparecendo gradativamente no farol do automóvel. Al gritando. A colisão, e a longa derrapagem.

Colocaram a bicicleta no acostamento. Al voltou ao carro e ligou os faróis. Procuraram com uma lanterna de longo alcance, durante duas horas. Nada. Apesar de tarde, vários carros passavam. Nenhum parou. Jack imaginou mais tarde que uma espécie de providência divina, inclinada a dar aos dois uma última chance, mantivera os guardas afastados, sem que os outros motoristas os pudessem avisar.

Às duas e quinze, voltaram ao carro, sóbrios mas enjoados.

- Se não havia ninguém dirigindo, o que fazia a bicicleta no meio da estrada? - indagou Al. - Não estava parada no acostamento; estava no meio da estrada!

Jack limitava-se a balançar a cabeça.

A pessoa não responde - disse a telefonista. - Quer que continue tentando?

Mais algumas vezes, telefonista. Não se importa? Não senhor.

Vamos, Al!

Al marchou pela ponte em direção ao telefone mais próximo, chamou um advogado amigo e disse que lhe pagaria cinqüenta dólares, se pegasse na garagem os pneus especiais para neve e os trouxesse para a ponte da Estrada 31, fora de Barre. O amigo chegou vinte minutos mais tarde, vestido em calças de brim e paletó de pijama. Examinou o carro.

- Matou alguém?

Al já estava levantando a traseira do carro com o macaco, e Jack afrouxando as porcas.

- Graças a Deus, ninguém - disse Al.

- Acho que vou embora. Pague-me pela manhã. Está bem disse Al, sem levantar os olhos.

Os dois colocaram os pneus, sem incidentes, e juntos voltaram para a casa de Al Shockley. Al colocou o carro na garagem e desligou o motor.

No silêncio da escuridão disse:

- Acabou-se a bebedeira, amigo. Tudo encerrado. Liquidei meu último marciano.

E agora, suando na cabine telefônica, ocorreu a Jack que nunca duvidara da vitória de Al. Voltou para casa dirigindo o VW com o rádio ligado, tocando músicas em alto volume e algum conjunto musical entoava sem cessar, magicamente, na casa, antes do anoitecer:

“Faça-o de qualquer maneira .. você quer fazê-lo. faça-o como quiser. .

Apesar da altura, ouvia ainda o frear estridente dos pneus e o impacto. Com os olhos cerrados, via aquela única roda amassada com os raios apontando para o céu.

Quando chegou, Wendy dormia no sofá. Foi ao quarto de Danny e ele estava deitado no berço, dormindo profundamente, com o braço ainda enfiado no gesso. Pela luz filtrada que vinha da rua podia ver no gesso os rabiscos das assinaturas de todos os médicos e enfermeiras da Pediatria.

Foi um acidente. Caiu na escada.

(seu mentiroso sem-vergonha)

Foi um acidente. Perdi o controle.

(seu beberrão, filho da puta, sacana)

Ouça, ei, vamos, por favor, apenas um acidente.

A última justificativa foi no entanto afastada pela imagem da lanterna na busca pelo capim seco de novembro, à procura do corpo caído que devia estar ali, esperando a polícia. Não importava que Al estivesse dirigindo. Havia noites em que ele dirigia.

Cobriu Danny, foi para o quarto e tirou seu Liama calibre 38, um revólver espanhol, da prateleira de cima do armário. Estava numa caixa de sapatos. Sentou-se na cama, segurando-o por quase uma hora, observando-o, fascinado com seu brilho.

Amanhecia quando o colocou de volta na caixa e no armário.

Pela manhã, telefonou para Bruckner, chefe do departamento, e pediu-lhe a gentileza de substituí-lo nas aulas. Estava gripado. Bruckner concordou, com menos boa vontade que de costume. Jack Torrance estivera muito suscetível a gripes, no último ano.

Wendy preparou-lhe café e ovos mexidos. Comeram em silêncio. O único ruído era o de Danny no quintal brincando com seus caminhões e areia, com uma só mão.

Wendy, lavando os pratos, de costas para ele, disse:

Jack, estive pensando.

- Esteve?

Acendeu um cigarro com as mãos trêmulas. Não estava de ressaca, por estranho que fosse. Apenas os tremores. Piscou os olhos, e nesse instante de escuridão a bicicleta voava contra o para-brisa, quebrando o vidro. Os pneus rasgavam-se. A luz da lanterna.

- Quero conversar com você sobre. . . sobre o que é melhor para mim e para Danny. Talvez para você também. Não sei. Devíamos ter conversado antes, creio eu.

- Faça-me um favor - pediu, olhando para a ponta do cigarro. - Você me faria um favor?

- O quê? Sua voz era insensível e neutra. Continuava de costas.

- Falemos sobre isso daqui a uma semana. Se ainda quiser.

Voltou-se para ele, as mãos envolvidas em espuma, o rosto bonito pálido e desiludido.

- Jack, promessas não adiantam. Você simplesmente continua a.

Ela parou, olhando em seus olhos, fascinada, repentinamente insegura.

- Daqui a uma semana - disse ele. Sua voz perdeu a vitalidade e transformou-se num sussurro. -. Por favor. Não estou prometendo nada. Se ainda quiser conversar, conversaremos. Sobre qualquer coisa que você queira.

Fitaram-se por longo tempo, e quando ela voltou a lavar a louça sem dizer nada, Jack começou a tremer. Deus, precisava beber. Apenas um gole.

- Danny sonhou que você sofreu um acidente de carro disse ela abruptamente. - De vez em quando ele tem sonhos engraçados. Contou-me esta manhã, quando eu o estava vestindo, É verdade Jack? Você sofreu um acidente?

- Não.

Ao meio-dia a vontade de beber era imensa. Foi à casa de Al.

- Sóbrio? - Al perguntou, enquanto Jack entrava.

Al estava horrível.

- Sóbrio de corpo e alma. Você está parecendo Lon Chaney no Fantasma da ópera.

- Entre.

Jogaram buraco a tarde inteira. Não beberam. Passou-se uma semana. Wendy e ele quase não conversaram. Mas sabia que ela o observava, sem acreditar. Bebia café e infindáveis latas de Coca-Cola. Uma noite bebeu toda uma caixa de Coca e depois correu para o banheiro e vomitou. O número de garrafas de bebida alcoólica no armário não diminuía. Depois da aula, ia para a casa de Al Shockley - ela odiava Al Shockley mais do que qualquer outra pessoa - e quando voltava Wendy podia jurar que ele estava cheirando a

uísqUe Ou gim, mas Jack conversava lucidamente antes do jantar, bebia café, brincava com Danny depois do jantar, repartindo com ele a Coca, lia-lhe uma história antes de dormir, e sentava-se para corrigir redações bebendo uma xícara de café após outra, e ela então admitia seu erro.

Passaram-se semanas sem que se tocasse no assunto. Jack estava consciente de que não mais bebia, mas sabia que não seria para sempre. As coisas começavam a ficar mais fáceis. Em seguida, George Hatfield. Perdera o controle mais uma vez, desta vez totalmente sóbrio.

- O telefone não atende, senhor...

- Alô? - A voz de Al sem fôlego.

- Pode falar - disse a telefonista rispidamente.

- Al, Jack Torrance falando.

- Jack, amigo! Que prazer! Como vai?

- Bem. Estou telefonando para agradecer. Consegui o emprego. Tudo certo. Se não conseguir terminar a peça neste inverno, não termino nunca mais.

- Vai terminar.

- Como vão as coisas? - Jack perguntou, hesitante.

- Sóbrias - respondeu Al. - E você?

- De corpo e alma.

- Está sentindo falta?

- Diariamente.

Al riu.

- Entendo, mas não sei como conseguiu ficar sóbrio depois do episódio com Hatfieid. Foi além da expectativa.

- Desgracei-me.

Merda. Vou reunir o Conselho na primavera. Effinger já está dizendo que talvez tenha sido muito precipitado da parte deles. E se a idéia persistir.

Sim. Ouça, meu filho ficou no carro, Al. E já deve estar impaciente.

Claro. Entendo. Desejo-lhe uma boa temporada de inverno por aí, Jack. Fico feliz por ter podido ajudá-lo.

Mais uma vez, obrigado, Al.

Desligou, fechou os olhos na cabine quente, e novamente viu a bicicleta e a lanterna. O jornal publicara uma nota no dia seguinte, apenas para ocupar espaço, mas não mencionava o nome do dono da bicicleta. Por que estaria durante a noite, no meio de uma estrada, seria sempre um mistério e talvez o fosse.

Voltou para o carro e entregou a Danny a barra de chocolate um pouco derretido.

- Papai?

- O quê, doutor?

Danny hesitou, olhando para a fisionomia absorta do pai.

- Quando eu estava esperando você voltar do hotel, tive um pesadelo. Lembra-se? Quando adormeci?

Hum... hum...

De nada adiantou. A cabeça de papai estava em outro lugar. Pensando na “coisa feia” de novo.

(Sonhei que você havia me machucado, papai.) Qual foi o sonho, doutor?

- Nada - disse Danny enquanto saíam do estacionamento. Colocou os mapas de volta no porta-luvas.

- Tem certeza?

Tenho.

Jack lançou-lhe um olhar ligeiro e confuso, e sua mente voltou-se para a peça.

 

Conversando com o travesseiro

Amaram-se e seu homem dormia ao lado.

Seu homem.

Sorriu na escuridão, o sêmen ainda escorrendo morno e vagaroso por suas coxas ligeiramente separadas, e o sorriso era tanto de prazer, quanto de mágoa, pois a expressão seu homem englobava uma centena de sentimentos. Cada sentimento por si só era desorientador. Juntos, nesta escuridão impregnada de sono, eram como a melodia distante de uma balada num bar vazio, triste, porém agradável.

“Amá-lo, meu bem, é como rolar um pião.

Mas se não posso ser sua mulher, com certeza não serei seu cão.”

Isso era de Billie Holiday? Ou de alguém mais prosaico, como Peggy Lee? Não importava. Era baixo e claro, e, no silêncio de sua mente, tocava suavemente, como se estivesse saindo de um daqueles gramofones antigos, um Wurlitzer, talvez, meia hora antes de fechar.

Agora, no caminho do inconsciente, imaginava em quantas camas já dormira com aquele homem deitado a seu lado. Conheceram-se na faculdade e amaram-se pela primeira vez no apartamento dele. . . isso fora uns três meses depois de sua mãe tê-la expulsado de casa, dizendo que nunca mais voltasse, e que, se quisesse ir a algum lugar, que fosse para junto do pai, uma vez que fora ela a responsável pelo divórcio. Isso em 1970. Fazia tanto tempo? Seis meses depois, foram viver juntos, encontraram emprego durante o verão e continuaram no apartamento, até o último ano de faculdade. Lembrava-se nitidamente daquela cama, grande, com um buraco no meio. Quando faziam amor, o colchão de molas rangia no mesmo ritmo. Conseguira finalmente livrar-se da mãe no outono. Jack ajudou-a. Ela quer continuar a agredi-la, dizia Jack. Quanto mais telefonar e se curvar, implorando perdão, mais ela agredirá você e seu pai. Faz bem a ela, Wendy, pois pode continuar fazendo de conta que você foi a culpada. Mas não faz bem a você. Discutiram sobre isso milhares de vezes naquela cama, durante um ano.

(Jack sentado, com o lençol enrolado na cintura, um cigarro queimando entre os dedos, fixando-lhe o olhar - ele tinha um jeito todo especial de fazer aquilo -, dizendo: - Ela lhe disse para nunca mais voltar, certo? Nunca mais aparecer, nem mesmo como visita, certo? Então, por que ela não desliga o telefone, quando sabe que é você? Por que só lhe diz que não quer que você apareça em casa, em minha companhia? Porque acha que acabar com esse teatrinho. Ela quer desgraçá-la, amor. E você é tola permitindo tal coisa. Ela lhe disse para nunca mais voltar, então por que não segue suas instruções? - Silenciava. Finalmente percebia seu ponto de vista.)

Jack achara melhor uma separação. . . dissera que precisava fazer um balanço do relacionamento dos dois. Temia que estivesse interessado em outra pessoa. Mais tarde descobriu que não era essa a razão. Estavam juntos novamente na primavera, e ele perguntou se estivera com o pai. Assustou-se.

Como sabia?

O Sombra sabe.

Anda me espionando?

E sua risada impaciente, que a deixava sem graça. . . con se ela tivesse oito anos, e ele pudesse perceber suas reações melhor do que ela própria.

Você precisava de tempo, Wendy.

Para quê?

Acho. . . que para ver com qual dos dois queria casar-se.

Jack, o que está dizendo?

Acho que estou pedindo sua mão.

O casamento. O pai estava presente, a mãe, não. Descobriu que poderia suplantar a situação com Jack a seu lado. Depois veio Danny, o filho maravilhoso.

Aquele fora o melhor ano, a melhor cama. Depois que Dan ny nasceu, Jack arranjou-lhe um emprego de datilógrafa para uma meia dúzia de professores do departamento de inglês - testes, exames, resumos de aulas, pontos, textos. Terminou datilografando um romance para um deles, um romance que nunca foi publicado. . . para satisfação pessoal de Jack. A quarenta dólares por semana, era um bom emprego, e, durante os dois meses em que datilografou o romance, chegou a ganhar sessenta. Compraram o primeiro carro, um Buick de cinco anos, com uma cadeira de bebê. Um jovem casal inteligente, em ascensão social. Danny estimulou uma reconciliação entre ela e sua mãe, uma reconciliação sempre tensa e nunca feliz, mas, ainda assim, uma reconciliação. Quando levava Danny para visitá-la, ia sem o marido. E não dizia a Jack que a mãe sempre recolocava as fraldas de Danny, franzia a testa quanto a sua maneira de educá-lo, e sempre criticava acusativamente os primeiros sinais de assadura na bundinha do bebê. Nunca dizia as coisas abertamente, mas através de indiretas: era o preço que tinha que pagar (talvez para sempre) pela reconciliação. . . a sensação de não ser uma boa mãe. Era a maneira de sua mãe espezinhá-la.

Durante o dia, Wendy ficava em casa, trabalhando nas tarefas domésticas, dando as mamadeiras para Danny na cozinha clara do sobrado de quatro cômodos e tocando seus discos na vitrola portátil que tinha desde os tempos de escola. Jack chegava em casa às três (Ou às duas, se percebia que podia enforcar a última aula) e, enquanto Danny dormia, ele a levava para o quarto, e a sensação de impropriedade logo terminava.

À noite, enquanto datilografava, ele escrevia e preparava as aulas. Naqueles dias saía do quarto onde estava a máquina de escrever e encontrava os dois dormindo no sofá do escritório,

jack vestido apenas de cueca, Danny deitado confortavelmente 5obre seu peito com o dedo na boca. Colocava o filho no berço, lia qualquer coisa que Jack havia escrito, e depois o acordava para ir para a cama. A melhor cama, o melhor ano.

“Dias melhores virão.

Naquela época Jack bebia com moderação. Aos sábados à noite uma porção de colegas chegava, e havia então uma caixa de cerveja e discussões de que raramente participava, pois sua área era sociologia e a dele, inglês: debates acerca dos diários de Pepys como literatura ou história; discussões sobre a poesia de Charles Olson, às vezes a leitura de algum trabalho em andamento. Essas e centenas de outras. Não, milhares. Não sentia desejo de participar: contentava-se em sentar na cadeira de balanço ao lado de Jack, que se sentava no chão com uma lata de cerveja numa das mãos e a outra segurando a barriga da perna da mulher ou envolvendo o tornozelo dela.

A disputa na Universidade de New Hampshire fora violenta, e Jack acumulou excesso de trabalho escrito. Passava pelo menos uma hora, todas as noites, escrevendo. Era a sua rotina. As reuniões dos sábados eram terapia, do contrário as coisas se acumulariam dentro dele, até explodir.

Quando concluísse seu trabalho universitário, assumiria o emprego em Stovington, especialmente por causa de seus contos. . . quatro deles já publicados, um deles na Esquire. Lembrava-se nitidamente daquele dia; três anos não bastavam para esquecê-lo. Quase jogara fora o envelope pensando que fosse oferta para assinatura da revista. Ao abri-lo encontrou uma carta da Esquire, dizendo que gostariam de publicar o conto de Jack A respeito dos buracos negros, no início do próximo ano. Pagariam novecentos dólares, mediante sua aceitação. Isso correspondia a aproximadamente seis meses de trabalho de datilografia, e ela voou para o telefone, deixando Danny na cadeira de refeições, seguindo-a comicamente com os olhos, o rosto sujo de sopa.

Jack chegou da universidade quarenta e cinco minutos mais tarde, O Buick não agüentou o peso de sete amigos e uma caixa de cerveja. Após um brinde formal (Wendy também bebeu uro copo, apesar de não gostar de cerveja), Jack assinou a carta de aceitação, colocou-a no envelope de devolução e foi até a caixa da correio, na esquina. Quando voltou, parou sério à porta e disse “Veni, vidi, vier”. Houve aclamações e aplausos Quando a caixa se esvaziou, às onze da noite, Jack e os outros dois únicos companheiros capazes de andar foram circular pelos bares.

Chamou-o em particular no corredor de entrada do prédio Os dois outros já estavam no carro, cantando embriagados o hino do Estado de New Hampshire. Jack estava ajoelhado, atrapalhado como uma coruja com os cadarços dos sapatos.

- Jack - disse ela -, você não devia. . . Não consegue nem amarrar seus sapatos, quanto mais dirigir.

O marido levantou-se e colocou as mãos calmamente sobre seus ombros.

- Esta noite poderia pilotar um foguete à Lua, se quisesse.

- Não. Nem por todos os contos da Esquire.

Volto cedo.

Mas só chegou às quatro da manhã, cambaleando e resmungando pela escada, acordando Danny ao entrar em casa. Jack tentou acalmar a criança e deixou-a cair no chão. Wendy precipitou-se, pensando no que sua mãe diria se visse aquele machucado - que Deus a proteja, que Deus proteja os dois -, apanhou Danny, sentou-se com ele na cadeira de balanço, acalmou-o. Pensara na mãe durante quase todo o período de cinco horas que Jack passara fora, na profecia da mãe, de que Jack nunca seria alguém. Grandes idéias, dissera a mãe. Claro. As luas da Previdência Social estão cheias de bobalhões cultos com grandes idéias. A história da Esquire tornava a mãe certa ou errada? Winnifred, você não está segurando o bebé da maneira correta. Deixe-me carregá-lo. Estaria ela segurando o marido de maneira correta? Por que outro motivo extravasava sua alegria fora de casa? Uma espécie de medo brotou dentro de si, e não lhe ocorreu que ele tivesse saído por motivos Outros.

Parabéns - disse ela, balançando Danny, que já estava quase dormindo novamente. - Talvez você lhe tenha provocado uma concussão.

- E apenas um machucado. - Ele falava zangado, como se estivesse arrependido: uma criança. Durante um minuto ela o odiou.

- Talvez sim - disse ela firme. - Talvez não.

Ouvia a voz da mãe em sua própria voz. Sentia-se enjoada e amedrontada.

- Tal mãe, tal filha - resmungou Jack.

- Vá pra cama! - gritou com raiva. Vá pra cama, você está bêbado!

- Não me dê ordens.

- Jack. . . por favor, não devemos. . . não. . . - Não havia palavras.

- Não me dê ordens - repetiu mal-humorado, e entrou no quarto. Sentia-se abandonada na cadeira de balanço com Danny, que dormia novamente. Cinco minutos depois, os roncos de Jack chegavam à sala. Foi a primeira noite em que dormiu no sofá.

Estava agora deitada na cama, virando de um lado para outro, já sonolenta. Sua mente, sem conciliar o sono, voltava ao passado, para o primeiro ano em Stovington, para as épocas ruins que viveram, quando o marido quebrara o braço de Danny, e para aquela mesa de café da manhã.

Danny no quintal brincando com os caminhões na pilha de areia, o braço ainda engessado. Jack sentado à mesa, pálido e grisalho, um cigarro tremendo entre os dedos. Decidira consultá-lo sobre o divórcio. Ponderara a questão em suas centenas de aspectos durante seis meses. Se não fosse por Danny já teria tomado a decisão com mais antecedência, mas nem isso era verdade. Sonhava, nas noites longas em que Jack não estava em casa, com o rosto da mãe e com seu próprio casamento.

(Aceita-a como sua legítima esposa? O pai de pé, vestido com seu melhor terno, que não era grande coisa - ele era caixeiro viajante de uma firma de produtos enlatados que estava falindo -, o rosto cansado, parecia tão velho, tão pálido. Sim.)

Até mesmo depois do acidente - se é que se podia chamar acidente - não pudera extravasar completamente, admitir que seu casamento era uma frustração. Esperara bobamente que ocorresse um milagre, e que Jack visse o que estava acontecendo, não só com ele, mas com ela. Mas não houve melhoras. Um gole antes de sair para a faculdade. Duas ou três cervejas no almoço. Três ou quatro martínis antes do jantar. Mais cinco ou seis enquanto corrigia redações. Os fins de semana eram piores. As noites em que saía com Al Shockley, piores ainda. Nunca imaginara que pudesse haver tanta agonia numa vida, quando não ha nada fisicamente errado. Agredia-o o tempo inteiro. Seria sua culpa? Assombrava-se. Sentia-se como sua mãe. Como seu pai. As vezes, quando se sentia ela mesma, imaginava como seria

para Danny, e temia o dia em que ele já estivesse crescido o bastante para culpá-los. E imaginava para onde iriam. Não tinha dúvida de que sua mãe a receberia, e não duvidava de que seis meses depois de ver sua mãe colocando as fraldas a sua maneira, fazendo novamente as sopinhas, trocando as roupas de Danny em sua ausência, cortando o cabelo da criança, ou colocando os livros, que considerava inadequados para a idade de Danny no sótão. . . seis meses depois de tudo isso, Wendy sofreria uma crise nervosa. E sua mãe, acariciando sua mão e confortandoa diria: Apesar de não ser sua culpa, é exclusivamente sua Culpa. Você não estava preparada. Mostrou suas garras quando Chegou para ficar entre mim e seu pai.

Meu pai, o pai de Danny. Meu, dele.

(Aceita-a como sua legítima esposa? Sim. Morto de um ataque cardíaco seis meses depois.)

Na noite anterior, deitara-se pensando, decidindo.

O divórcio era necessário. Seus pais não faziam parte da decisão. Nem seus sentimentos de culpa por seu casamento, nem seus complexos. Era necessário por causa do filho e por ela mesma, se não quisesse ter a sensação de uma vida perdida. A visão era brutal, porém clara, O marido era um alcoólatra. Tinha temperamento difícil, que não podia mais controlar devido a tanta bebida, e não escrevia mais tão bem. Casualmente ou não, ele quebrara o braço de Danny. Iria perder o emprego mais cedo ou mais tarde, Já observara os olhares de compaixão das mulheres dos demais professores. Dizia para si mesma que tolerara a tarefa árdua de seu casamento até onde fora possível. Agora, tinha que recusá-la. Jack teria todo direito a visitas, e ela receberia pensão somente até encontrar alguma coisa, tomando pé na situação. . . e isso teria que ser rápido, pois não sabia até quando Jack poderia sustentá-la. Faria tudo da forma menos dolorosa possível. Mas tinha que haver um fim.

Assim pensando, adormecera, assombrada pelos rostos de seus pais. Você não é nada. E apenas uma destruidora de lares, dizia a mãe. Aceita-a como sua legítima esposa?, dizia o pastor. Sim. Mas na manhã ensolarada ainda se sentia da mesma forma. De costas para ele, as mãos envolvidas pela espuma, iniciara a conversa pouco amena.

- Quero conversar com você sobre o que é melhor para mim e para Danny. Talvez para você também. Não sei. Deveríamos ter conversado antes, creio eu.

E então ele dissera uma coisa estranha. Esperara provocar sua raiva, amargura, recriminações. Esperara uma corrida ao armário de bebidas. Mas nunca esta resposta calma, sem cor, tão

contrária a seu modo de ser. Era como se o Jack com quem tinha Vivido durante seis anos não tivesse voltado para casa na noite anterior, como se tivesse sido substituído por um ser sobrenatural, que ela não conhecia, e com quem não estava acostumada.

- Você me faria um favor? Um favor?

- O quê? - Precisou controlar a voz para que não saísse trêmula.

- Falemos sobre isso daqui a uma semana. Se ainda quiser.

E ela concordara. Ficou tudo guardado no silêncio entre eles. Naquela semana vira Al Shockley mais do que nunca, mas o marido voltava para casa mais cedo, sem estar cheirando a bebida. Pensava que estivesse sentindo o cheiro, mas sabia que não estava. Mais uma semana. Mais outra.

O divórcio voltou para decisão da comissão, e não foi votado.

O que acontecera? ainda pensava, e não tinha ainda a menor idéia. O assunto era um tabu entre eles. Jack estava como um homem que dobrara a esquina e vira um monstro inesperado, à espreita, agachado em meio aos ossos daqueles que havia matado. A bebida continuava no armário, mas ele não a tocava. Considerou, por dezenas de vezes, a hipótese de jogar tudo fora, mas sempre voltava atrás, como se o ato fosse quebrar a magia.

Tinha-se que considerar Danny também.

Sentindo que não conhecia o marido, ficava então amedrontada pela criança. Medo, no sentido mais amplo da palavra: uma espécie de pavor supersticioso, indefinido.

Quase dormindo, surgiu a imagem do momento do nascimento do filho. Deitada na mesa de parto, banhada de suor, o cabelo preso, os pés afastados nos estribos

(e um pouco anestesiada pelo gás que sopravam; num determinado momento resmungara que se sentia como uma propaganda de um estupro, e a enfermeira, uma fulana que assistira a tantos nascimentos que o número de crianças seria suficiente para encher uma escola, achou aquilo muitíssimo engraçado)

o médico entre suas pernas, a enfermeira ao lado arrumando os instrumentos e cantarolando com os lábios fechados. As dores agudas a intervalos cada vez menores, várias vezes ela gritara, apesar da vergonha.

O médico então lhe disse que fizesse FORÇA, e ela fez, e em seguida sentiu algo sendo tirado de dentro dela. Uma sensação clara e distinta que jamais poderia esquecer - a coisa tirada. O médico levantou o filho junto a suas pernas - ela vira o pequenino pênis e soube então que era um menino - e, enquanto o médico apalpava a máscara de oxigênio, vira mais alguma coisa, algo tão horrível, que ela encontrou força para gritar mais uma vez, depois de pensar que todos os seus gritos se haviam esgotado.

Ele não tem rosto!

É claro que havia um rosto, o próprio rosto meigo de Danny, e a placenta que o envolvia estava agora num jarrinho que guardara muito envergonhada. Não acreditava em superstições, todavia resolveu guardar a placenta. Não acreditava em historinhas de comadres, mas, desde o início, o menino fora diferente. Não acreditava em sexto sentido, mas.

Papai se acidentou? Sonhei que papai sofreu um acidente.

Alguma coisa o modificara. Não acreditava que pudesse ter sido apenas o divórcio que tivesse motivado a mudança. Alguma coisa acontecera naquela madrugada. Alguma coisa acontecera enquanto ela dormia. Al Shockley disse que nada havia acontecido, absolutamente nada, mas ele desviara os olhos ao afirmar o fato, e, se fosse acreditar em boatos do corpo docente, Al havia também embarcado em canoa furada.

Papai se acidentou?

Talvez o destino, nada de mais concreto. Lera o jornal do dia e o do dia seguinte com mais atenção que de costume, mas não viu nada que tivesse ligação com Jack. Que Deus a perdoasse, mas procurava por um acidente tipo “atropelou-fugiu” ou uma briga de bar que tivesse resultado em ferimentos graves ou. . . quem sabe? Quem queria saber? Mas não aparecera nenhum policial para investigações ou com ordens para inspecionar o pára-choque do VW. Nada. Apenas a mudança de cento e oitenta graus do marido e a pergunta do filho ao acordar:

Papai se acidentou? Sonhei.

Agüentava Jack mais por causa de Danny do que seu consciente admitia, mas agora, ligeiramente adormecida, podia admitir. Danny era a menina dos olhos de Jack desde o início. Assim como ela tinha sido a menina dos olhos do pai desde o início. Não se lembrava de Danny ter algum dia vomitado a mamadeira sobre a camisa de Jack. jack conseguia fazê-lo comer depois que ela já tivesse desistido das tentativas, até mesmo quando os dentes de Danny começaram a aparecer, causandolhe dores visíveis. Quando Danny tinha cólicas, ela precisava

fliná-lo durante uma hora, até que ele ficasse quieto; mas bastava Jack tomá-lo nos braços, dar duas voltas pelo quarto, e Danny adormecia com o dedo na boca.

Ele não se importava em trocar fraldas, até mesmo aquelas que chamava de encomendas especiais. Sentava-se com Danny em seu colo durante horas, balançando-o, mexendo com os dedos das mãos, fazendo caretas enquanto Danny bisbilhotava seu nariz e morria de rir. Ele fazia as mamadeiras e dava na hora certa e só se levantava depois do último arroto. Levava Danny consigo no carro para comprar jornais, leite, ou pregos na loja de ferragens, mesmo quando o filho ainda era bebê. Os dois foram juntos a um jogo de futebol, quando Danny tinha apenas seis meses, e ficou quieto, imóvel, sentado no colo do pai durante todo o jogo, enrolado num cobertor, e uma pequena flâmula do time de Stovington presa no pulso gordinho.

Gostava da mãe, mas o pai era seu dengo.

E não sentia ela, por vezes, a oposição silenciosa do filho pela idéia do divórcio? Se estivesse pensando no assunto ao cortar as batatas para o jantar, ao voltar o rosto via-o sentado na cadeira da cozinha, de pernas cruzadas, olhando-a amedrontado e acusador. Passeando pelo parque, ele de repente agarrava suas mãos e perguntava. . . quase peremptório: “Você me ama? Você ama papai?” E ela, confusa, balançava a cabeça ou dizia:

“Claro que sim, meu bem”.

Ele corria então para o lago dos patos, que fugiam em pânico para o outro lado, batendo as asas diante de tanta ferocidade, deixando-a preocupada.

Havia ocasiões em que sua determinação em pelo menos discutir o assunto com Jack se desfazia, não por fraqueza, mas devido à vontade do filho.

Não acredito em tais coisas.

Mas em sonhos acreditava, e em sonhos, com o sêmen do marido ainda secando em suas coxas, sentia que os três formavam um só corpo. . . e, se a trindade fosse desfeita, não o seria por nenhum deles, mas por algo exterior.

A maior parte de suas crenças girava em torno de seu amor Por Jack. Nunca deixara de amá-lo, a não ser talvez durante aquela fase negra que se seguiu ao “acidente”. Amava o filho. E, acima de tudo, amava-os juntos no dia-a-dia, a cabeça grande de Jack e a pequenina de Danny enquanto liam uma revistinha, dividindo uma garrafa de Coca-Cola. Adorava tê-los com ela, e pedia a Deus que este emprego de zelador do hotel, que Al arranjou para Jack, fosse o reinício dos bons tempos.

“E o vento vai soprar

E levar embora minhas tristezas. .

Suave, doce e melodiosa a música veio-lhe, fazendo-a dormir profundamente, onde os pensamentos cessavam e onde os rostos que apareciam em sonhos se tornavam esquecidos.

 

Em outro quarto

Danny acordou com o estrondo ainda em seus ouvidos, e a voz bêbada, selvagem, rabugenta, gritando rouca: Saia e venha tomar seu remédio! Vou encontrá-lo! Vou encontrá-lo!

O estrondo agora era apenas do seu coração disparado, e a única voz no meio da noite era o som de uma sirene da polícia ao longe.

Estava imóvel; deitado na cama, olhando para as sombras das folhas, agitadas pelo vento e refletidas no teto do quarto. Entrelaçavam-se sinuosamente, formando desenhos de trepadeiras numa selva, como se fossem tecidas no pêlo de um tapete grosso. Entre o pijama e a pele vestia uma camiseta.

- Tony? sussurrou. - Você está aí?

Silêncio.

Escorregou da cama, arrastou-se até a janela e olhou a Arapahoe Street, agora calma e silenciosa. Eram duas da madrugada. Não havia nada lá fora, a não ser calçadas vazias com montes de folhas secas, carros estacionados e um sinal luminoso na esquina do posto de gasolina Cliff Brice. Com o topo coberto e a base estática, o poste parecia um monstro numa exibição espacial.

Olhou para ambos os lados da rua, esticando os olhos a procura da figura pequena de Tony acenando, mas não havia ninguém.

O vento suspirava por entre as árvores, e as folhas caídas chocaffiam sobre a calçada e em volta das calotas dos carros estacion os. O ruído era fraco e triste, e o menino pensou que talvez fosse o único habitante de Boulder acordado àquela hora e capaz de ouvir o ruído. Pelo menos, o único ser humano. Não havia outro meio de saber o que mais poderia estar solto no meio da noite, andando faminto, às escondidas, por entre as sombras, sentindo o perfume da brisa.

Vou encontrá-lo! Vou encontrá-lo!

- Tony? - murmurou novamente, mas sem muita esperança.

Só o vento respondeu, desta vez mais forte, espalhando folhas no telhado em cima de sua janela. Algumas escorregavam para a calha e ali ficavam como bailarinas cansadas.

Danny... Dannyy...

Pôs-se na direção do som daquela voz familiar e debruçouse na janela, as mãozinhas no peitoril. A voz de Tony parecia dar vida à noite, sussurrando, até quando o vento cessava e as folhas se aquietavam e as sombras se imobilizavam. Pensou que tivesse visto uma sombra mais escura no ponto do ônibus no outro quarteirão, mas era difícil dizer se era algo real ou uma ilusão de óptica.

Não vá, Danny...

O vento, então, soprou forte mais uma vez, fazendo-o piscar, e a sombra do ponto do ônibus desapareceu... Se é que estivera ali. Ficou junto à janela durante

(um minuto? uma hora?)

algum tempo; mas não houve mais nada. Finalmente, voltou para a cama, cobriu-se e observou as sombras lançadas pela luz do poste da rua transformarem-se numa selva sinuosa cheia de plantas carnívoras que queriam apenas mover-se em torno dele, sugar-lhe a vida, arrastando-o para a escuridão onde uma palavra desastrosa flamejava:

REDRUM.

 

Último dia

Uma Visão do Overlook

Mamãe estava preocupada.

Temia que o Fusca não agüentasse as subidas e descidas das montanhas e que ficassem encalhados na estrada até que alguém, vindo em sentido contrário, se chocasse contra eles. Danny estava mais otimista; se papai pensava que o Fusca agüentaria essa última viagem, isso então provavelmente aconteceria.

- Estamos quase chegando - disse Jack.

Wendy escovou os cabelos para trás.

- Graças a Deus.

Estava sentada, no banco da direita, com um livro aberto no colo. Usava o vestido azul, aquele que Danny achava o mais bonito. Tinha gola de marinheiro e fazia-a parecer muito jovem, como uma menina pronta para a formatura de ginásio. Papai punha-se a alisar-lhe as coxas, e ela, rindo, o afastava dizendo:

- Dê o fora, mosca.

Danny estava impressionado com as montanhas. Certo dia papai os levara às que ficavam perto de Boulder, mas estas aqui eram muito maiores, e na mais alta delas podiam-se ver vestígios de neve, o que papai dizia serem permanentes.

Estavam praticamente dentro das montanhas, sem brincadeira. Montanhas íngremes envolvendo-os, tão altas que dificilmente se enxergavam os cumes, mesmo se se esticasse o pescoço para fora da janela. Quando saíram de Boulder, a temperatura estava em torno de vinte graus. Agora, pouco depois de meiodia, o ar aqui em cima era fresco e frio como em Vermont em novembro, e papai ligara o aquecedor... apesar de não funcionar bem. Passaram diante de várias placas que diziam “ÁREA DE DESLIZAMENTO DE PEDRAS” (mamãe lia cada uma para ele), e, apesar de Danny ter ansiado pelo deslizamento de alguma pedra, nada acontecera. Pelo menos por enquanto.

Meia hora antes haviam cruzado uma outra placa que papai dizia ser muito importante. A placa dizia “LIMITE DE SIDEWINDER”, e papai disse ser o ponto máximo que as máqui nas de limpar neve alcançavam, no inverno. Dali em diante a estrada tornava-se muito íngreme. No inverno, ficava bloqueada a partir da cidadezinha de Sidewinder, na qual haviam entrado pouco antes da placa, até Buckland, no Estado de Utah.

Passavam agora diante de uma outra placa.

- O que diz aquela, mamãe?

- “VEÍCULOS EM BaiXA VELOCIDADE USEM PISTA DA DIREITA”. Isto é, nós.

- O Fusca vai agüentar disse Danny.

- Por favor, meu Deus disse mamãe, cruzando os dedos.

Danny olhou para os pés dela e viu que nas sandálias abertas seus dedos também estavam cruzados. Deu uma risadinha. Ela lhe retribuiu o sorriso, mas ele sabia que a mãe ainda estava preocupada.

A estrada era sinuosa, com uma série de curvas em S, e Jack reduziu a marcha de quarta para terceira e, em seguida, para segunda. O Fusca reclamou e protestou, e Wendy mantinha os olhos fixos no velocímetro, que caía de quarenta para trinta, vinte, ficando aí indeciso.

- A bomba de gasolina. . . - disse ela, timidamente.

- A bomba de gasolina ainda vai agüentar mais cinco quilômetros - retrucou Jack, taxativo.

A encosta da montanha desapareceu, dando lugar a um vale, que parecia não ter fim, delineado de verde-escuro por pinheiros e abetos. Os pinheiros davam lugar a penhascos que caíam a grandes profundidades antes de se tornarem planos. Ela viu a queda-d’água sobre o rochedo, o sol da tarde faiscando na água como um peixe dourado preso em uma rede azul. Eram montanhas belíssimas, mas duras. Não achava que pudessem perdoar muitos erros. Um pressentimento triste brotou em sua garganta. Adiante, a oeste, em Serra Nevada, os pioneiros, no episódio de Donner Party, viram-se cercados de neve e recorreram ao canibalismo como meio de sobrevivência. As montanhas não perdoavam muitos erros.

Com uma pisadela na embreagem e um solavanco, Jack engatou a primeira, e começaram a subir, o motor do Fusca batendo resolutamente.

- Você sabe - disse ela. Não creio que tenha visto

mais de cinco carros desde que ultrapassamos Sidewinder. E um deles era a limusine do hotel.

Jack assentiu.

- Vai direto ao Aeroporto de Stapleton, em Denver. Já há alguns sinais de neve para além do hotel, segundo Watson, e prevêem mais neve para amanhã. Qualquer um que viaje pelas montanhas agora quer trafegar pela estrada principal, como garantia. Aquele desgraçado do Ullman... acho bom que ainda esteja lá em cima. Creio que estará.

- Tem certeza de que a despensa está cheia? - perguntou ela, ainda pensando nos pioneiros.

- Diz ele que sim. Gostaria que Hallorann a examinasse com você. Hallorann é o cozinheiro.

- Oh - disse desanimada, olhando para o velocímetro. Caíra de vinte e cinco para quinze quilômetros por hora.

- Lá está o topo disse Jack apontando. - Existe ali um mirante, de onde se pode ver o Overlook. Vou encostar e dar um descanso ao Fusca. - Esticou o pescoço sobre o ombro, olhando para Danny, que estava sentado numa pilha de cobertores. - O que acha, doutor? Talvez vejamos algum cervo. Ou caribu.

- Claro, papai.

O VW subiu, subiu. O velocímetro caía a pouco mais de oito quilômetros por hora e começava a engasgar, quando Jack encostou e puxou o freio de mão.

(“O que diz aquela placa, mamãe?” “MIRANTE”, leu ela obediente.)

- Vamos - disse ele, saindo.

Caminharam juntos para a cerca de segurança.

- Aí está - disse Jack, apontando para a paisagem.

Para Wendy, era como se estivesse descobrindo a verdade em clichê: faltou-lhe o ar. Estavam parados próximos ao topo de um pico. Do outro lado - ninguém sabe a que distancia - uma montanha ainda mais alta empinava-se no céu, com o cume recortado, apenas uma silhueta aureolada pelo sol que começava a se pôr. O vale estendia-se a seus pés, os aclives que haviam subido no valente Fusca dissolviam-se com tal rapidez que ela sabia que, se olhasse para baixo por muito tempo, sentiria nauseas e vomitaria, A imaginação parecia criar vida para além uo reino da razão, e olhar era ver inutilmente o âmago de cada um submergindo gradativamente, céu e encostas invertendo suas posições em lentas cambalhotas, o grito desgarrandos da boca como um balão preguiçoso, enquanto o cabelo e o vestido revolviam-se.

Sua atenção foi desviada quase à força e acompanhou o dedo de Jack. Podia ver a estrada agarrada na encosta desta torre de catedral em caracol, mas sempre rumando a noroeste ainda subindo, porém menos íngreme. Mais adiante, muito bem postos na encosta, viu os pinheiros rigidamente fixados darem lugar a um gramado muito verde tendo ao centro, contemplan do tudo, o hotel. O Overlook. Ao vê-lo, tomou fôlego e recuperou a voz.

- Oh, Jack, é esplêndido!

- É, sim. Uliman diz que esse é o lugar mais lindo da América. Não lhe dou muita importância, mas creio que esteja. . . Danny! Danny, você está bem?

Wendy procurou por ele à sua volta e, por incrível que fosse, a preocupação empanou tudo o mais. Correu rapidamente em sua direção. Danny segurava com força a cerca de segurança, admirando o hotel. O rosto pálido. Os olhos tinham o vazio de alguém à beira de um desmaio.

Ela ajoelhou-se a seu lado e calmamente pousou as mãos sobre seus ombros.

- Danny, o que...

Jack ao lado dela.

- Você está bem, doutor? - deu-lhe uma sacudidela e seus olhos se iluminaram.

- Estou bem, papai. Estou bem.

- O que foi, Danny? - perguntou a mãe. - Ficou tonto, meu bem?

- Não, estava apenas. . . pensando. Desculpe. Não quis preocupar ninguém. - Olhou para os pais ajoelhados diante dele e deu um sorriso embaraçado. - Talvez tenha sido o sol. O soi nos meus olhos.

- Vamos levá-lo para o hotel e você vai beber um pouco de água - disse o pai.

- Está bem.

E no Fusca, que subia com mais segurança os aclives menos íngremes, Danny, no meio dos dois, olhava para fora; a estrada desenrolava-se, possibilitando vistas ocasionais do Hotel Overlook, o bloco maciço de janelas voltadas para oeste, refletindo o sol. Era o lugar que vira no meio da tempestade de neve, o lugar escuro do estrondo, onde uma criatura incrivelmente familiar procurava-o pelos corredores cobertos de mato.

O lugar contra o qual Tony o havia alertado. Era aqui. Fosse o que fosse, REDRUM seria aqui.

 

Deixando o hotel

Ullman esperava por eles por trás daquelas portas largas e antigas. Apertou a mão de Jack e cumprimentou Wendy com um frio aceno de cabeça, talvez porque percebesse como os olhares a acompanhavam quando ela entrou no saguão; os cabelos louros caídos sobre os ombros do vestido simples tipo marinheiro. A bainha ia até alguns poucos centímetros acima do joelho, mas não era preciso ver-se mais para saber que se tratava de belas pernas.

Ullman foi caloroso apenas com Danny, mas Wendy já estava acostumada com aquele tipo de coisa. Danny era o tipo de criança de quem os adultos gostavam. Curvou-se e estendeu a mão para Danny. O menino apertou-a formalmente, e sem sorrir.

- Meu filho, Danny - disse Jack. - E minha mulher, Winnifred.

- Muito prazer em conhecê-los. Quantos anos você tem, Danny?

- Cinco, senhor.

- Senhor, ainda. - Ullmann sorriu e lançou o olhar para Jack. - É muito bem-educado.

- Claro que é - disse Jack.

- E a Sra. Torrance. - Curvou-se diante dela também,

e por um instante Wendy pensou que ele fosse beijar sua mão.

Estendeu-a, e ele a tomou, mas, muito rapidamente, sua mão pousou entre as mãos dele. Mãos pequenas, secas, macias, que a fizeram pensar que estivessem cheias de talco.

O saguão estava um alvoroço. Quase todas as cadeiras antigasde espaldar alto estavam tomadas. Carregadores corriam de ca para lá com malas, e na recepção havia uma fila comandada por uma enorme caixa registradora. Os decalques de cartões de crédito nela colocados pareciam dissonantemente anacrônicos.

À sua direita, em direção a duas portas duplas abertas e isoladas por cordas, havia uma lareira antiga com o fogo ardendo. Três freiras estavam sentadas no sofá colocado pratica mente dentro da lareira. Conversavam, e sorriam, tendo as malas amontoadas de cada lado, à espera de que a fila de pessoas que encerravam a conta diminuísse um pouco. Enquanto Wendy as observava, explodiram num coro de risadinhas, como se fossem adolescentes. Sentiu um sorriso aflorar em seus próprios lábios; nenhuma delas poderia ter menos de sessenta anos.

Ao fundo, havia o constante zumbido da conversa, o tilintar em surdina da campainha prateada ao lado da caixa registradora quando um dos dois funcionários de serviço a tocava, e os pedidos ligeiramente impacientes de «A frente, por favor”. Vieram-lhe lembranças doces e profundas de sua lua-de-mel com Jack em Nova York, no Beekman Tower. Pela primeira vez, permitiu-se acreditar que era daquilo exatamente que os três precisavam: uma temporada juntos, longe do mundo, uma espécie de lua-de-mel em família. Sorriu afetuosamente para Danny, que arregalava os olhos para tudo. Uma outra limusine, cinza como o colete de um banqueiro, encostara à entrada.

- O último dia da temporada - dizia Uliman. - Dia de encerramento. Sempre excitante. Esperava-os por volta das três, Sr. Torrance.

- Quis dar uma folga ao Volks, caso resolvesse ter um colapso nervoso - disse Jack. - Não teve.

- Que sorte - disse Ullman. - Gostaria de levar os três para um passeio por aí um pouco mais tarde, e é lógico que Dick Hallorann quer mostrar à Sra. Torrance a cozinha do Overlook. Mas receio que...

Um dos funcionários aproximou-se, afobado.

- Com licença, Sr. Ullman...

- Sim. O que é?

E a Sra. Brant - disse o funcionário, constrangido. - Ela se recusa a pagar a conta com qualquer coisa que não seja o cartão de crédito do American Express. Disse-lhe que desde a última temporada não estamos mais aceitando o American Express, mas ela não. - Seus olhos fixaram-se na família Torrance e, em seguida, em Uliman. Encolheu os ombros.

- Deixe que cuido do assunto.

- Obrigado, Sr. Uliman.

O funcionário voltou à recepção, onde a intrépida mulher, empacotada num longo casaco de pele e num boá de penas negras, protestava em voz alta.

- Desde 1955 venho ao Overlook - dizia ela ao funcionário risonho e de ombros encolhidos. - Continuei a vir, até mesmo depois da morte de meu segundo marido, vítima de um infarto naquela quadra enfadonha de roque. eu lhe disse que o sol estava muito quente naquele dia. . e nunca. . . repito: nunca. . . paguei com coisa alguma que não fosse meu cartão de crédito do American Express. Se quiser, pode chamar a polícia! Eles que me arrastem! E ainda assim me recusarei a pagar com algo diferente do meu cartão de crédito do American Express. Repito.

- Com licença - dissè Ullman.

Observaram-no cruzar o saguão, segurar com deferência o braço da Sra. Brant, estender as mãos e curvar a cabeça, quando ela se voltou para ele com o longo discurso de crítica. Uliman ouviu-a complacentemente, inclinou a cabeça mais uma vez, e retrucou alguma coisa. A Sra. Brant sorriu triunfante, voltou se para o infeliz funcionário e disse em voz alta:

- Graças a Deus, existe um empregado neste hotel que ainda não se transformou completamente num filisteu.

Consentiu que Ullman, que dificilmente chegava à altura do volumoso ombro do casaco de pele, lhe tomasse o braço e a levasse a outro lugar, provavelmente seu escritório.

- Ora, vejam! - disse Wendy, sorrindo. - Lá está o Janota que sabe ganhar dinheiro.

- Mas ele não gostou daquela senhora - disse Danny, imediatamente. - Estava fingindo que gostava dela.

Jack sorriu-lhe malicioso.

Estou certo de que sim, doutor. Mas a lisonja é a mola mestra do mundo.

- O que é lisonja?

Lisonja - disse-lhe Wendy - é quando seu pai diz que gosta de minhas novas calças amarelas, mesmo não gostando, ou então quando diz que não preciso perder uns quilinhos

- Já sei. Uma mentirinha de brincadeira?

- Qualquer coisa desse tipo.

Olhou-a mais de perto e disse:

- Você é bonita, mamãe. - E franziu as sobrancelhas confuso, quando os pais se entreolharam e explodiram numa gargalhada.

- Uliman não desperdiçou muita lisonja comigo - disse Jack. - Venham até a janela. Sinto-me desconcertado parado aqui assim, com este paletó. Francamente, não pensei que hovesse muita gente por aqui em dia de encerramento de temporada. Acho que errei.

- Você está bonito - disse ela, e riram novamente, Wendy pondo a mão na boca. Danny ainda não entendia, mas paciência. Estavam se amando. Danny pensou que este lugar lembrava à mãe um outro

(o Beekman Tower)

onde ela fora feliz. Seria bom que gostasse tanto dali quanto ela gostava, mas dizia a si próprio, repetidamente, que nem sempre o que Tony dizia se realizava. Tomaria cuidado. Prestaria atenção a alguma coisa chamada REDRUM. Mas não diria absolutamente nada, a menos que fosse forçado. Por estarem felizes, riam, e não tinham maus pensamentos.

- Olhem só a paisagem - disse Jack.

- Oh, é deslumbrante! Veja, Danny.

Mas Danny particularmente não achava tão deslumbrante. Não gostava de alturas; ficava tonto. Adiante da ampla varanda da frente, que abrangia toda a extensão do hotel, um belo gramado, bem-tratado (havia um arbusto à direita), acompanhava a rampa que levava a uma grande piscina retangular. Um aviso de “FECHADO” estava sobre um tripé numa das extremidades da piscina; “Fechado” era um aviso que conseguia ler, assim como “Pare”, “Saída”, “Pizza”, e alguns outros.

Adiante da piscina um caminho de cascalho serpenteava por entre pinheirinhos, abetos e álamos. Havia aqui uma placa que não conhecia: “ROQUE”. Havia uma seta embaixo.

- O que é “R-O-Q-U-E”, papai?

- Um jogo - respondeu o pai. - É um pouco parecido com croqué; a diferença é que se joga numa quadra de cascalho cujos lados se assemelham a uma mesa de bilhar. E um jogo muito antigo, Danny. Às vezes há torneios aqui.

- A gente joga com um taco de croqué?

Parecido - concordou Jack. - Só que o cabo é mais curto e a ponta tem dois lados. Um lado é de borracha e o outro é de madeira.

(Saia, seu pedaço de merda!)

- Pronuncia-se “roque” - disse papai. - Posso ensiná-lo a jogar, se quiser.

- Talvez - disse Danny com uma voz estranha e sem vida, que fez os pais se entreolharem confusos. - Pode ser que eu não goste.

- Bem, se não gostar, doutor, não precisa jogar. Entendido?

- Claro.

- Você gosta de animais? - perguntou Wendy. - Isto aqui é chamado de topiaria. - Adiante do caminho, na quadra de roque, havia uma cerca-viva cortada no formato de vários animais. Danny, de olhos fixos, visualizou um coelho, um cachorro, um cavalo, uma vaca e um grupo de três animais maiores que pareciam leões traquinas.

- Esses animais foram a razão de tio Al ter pensado em mim para o emprego disse Jack. - Sabia que quando eu estava na universidade trabalhava para uma empresa de paisagismo, cuidando de gramados, arbustos e cercas-vivas. Estava acostumado a podar a topiaria de uma senhora.

Wendy tapou a boca prendendo o riso. Olhando-a, Jack disse:

- É... eu costumava podar sua topiaria pelo menos uma vez por semana.

- Dê o fora, seu sem-vergonha. - Wendy disse, prendendo o riso novamente.

- Ela tinha uma cerca-viva bonita, pai? - perguntou Danny, e então os dois sufocaram uma explosão de gargalhadas. Wendy riu tanto que lágrimas rolaram-lhe pelo rosto e teve que tirar o lenço de papel da bolsa.

- Não eram animais, Danny - disse Jack quando conseguiu controlar-se. - Eram cartas. Espadas, copas, paus e ouros. Mas as cercas-vivas crescem, veja.

(Elas crescem, dissera Watson. . . não, não as cercas-vivas, a pressão da caldeira. Tem que estar atento todo o tempo, do Contrário ele e sua família terminarão lá em cima na porra da Lua.)

Olharam-no confusos. O sorriso desaparecera de seu rosto. Pai? - perguntou Danny.

Piscou-lhes o olho, como se estivesse voltando de muito longe.

Elas crescem, Danny, e perdem sua forma. Preciso então apará-las uma ou duas vezes por semana, até que com o frio param de crescer o resto do ano.

- E há um playground, também - disse Wendy. Meu menino felizardo.

O playground ficava depois da topiaria. Dois escorregadores, um conjunto de seis balanços de diferentes alturas, gangorras, um túnel de manilhas, uma caixa de areia e uma casa de bonecas que era uma réplica do próprio Overlook.

- Está gostando, Danny? - perguntou Wendy.

- Claro que sim - disse ele na esperança de parecer mais entusiasmado do que estava na realidade. - É bacana.

Adiante do playground havia uma imperceptível cerca de arame, depois dali, a estrada larga, pavimentada, que levava ao hotel, e, mais além, o vale estendendo-se sob a neblina azul da tarde. Danny não conhecia a palavra “isolamento”, mas se alguém a tivesse explicado aceitaria. Lá embaixo, deitada ao sol como uma longa cobra negra que decidira tirar uma soneca por algum tempo, estava a estrada de volta a Boulder, que, conseqüentemente, passava pelo desfiladeiro de Sidewinder. A estrada que ficaria fechada por todo o inverno. Sentiu-se um pouco sufocado com o pensamento, e quase saltou, quando o pai colocou as mãos sobre seus ombros.

- Vou comprar o refrigerante assim que puder, doutor. Estão um pouco ocupados agora.

- Claro, papai.

A Sra. Brant saiu do escritório com um ar de triunfo. Minutos depois, dois carregadores debatendo-se em meio a oito malas seguiam-na da melhor maneira possível, enquanto ela transpunha a porta triunfalmente. Danny olhava pela janela um homem de uniforme cinza e boné como um capitão do Exército, que havia trazido o grande carro prateado até a porta e saltara, O homem tirou o chapéu para a mulher e correu para abrir o porta-malas.

E, num desses lampejos que às vezes vinham, visualizou-a por completo, um pensamento vagava em meio ao burburinho de emoções e cores que, em geral, se apossavam dele em lugares movimentados.

(gostaria de entrar-lhe calça adentro)

Danny franziu as sobrancelhas, enquanto os carregadores colocavam a bagagem no porta-malas. Ela olhava fixamente para o homem de uniforme cinza, que supervisionava o carregamento. Por que queria a calça daquele homem? Estaria com frio, mesmo metida naquele longo casaco de pele? E se estava com tanto frio, por que não colocara sua própria calça? Mamãe usava calça praticamente todo o inverno.

O homem de uniforme cinza fechou o porta-malas e voltou para ajudá-la a entrar no carro. Danny observou mais de perto para ver se a mulher diria alguma coisa sobre a calça dele mas ela apenas sorriu e lhe deu uma nota de um dólar - uma gorjeta. Minutos depois, guiava o grande carro prateado estrada abaixo.

Pensou em perguntar à mãe por que razão poderia a Sra. Brant querer a calça do homem do carro, mas resolveu não dizer nada. Perguntas, às vezes, metiam-no em confusão. Já acontecera antes.

Ao invés disso, espremeu-se entre os dois no pequeno sofá, olhando para as pessoas que iam embora. Estava contente por mamãe e papai estarem felizes e se amando, mas não podia ignorar sua preocupação. Não podia.

 

O cozinheiro não correspondia em nada à imagem que Wendy tinha da personagem da cozinha de um balneário. Para começar, tal personagem era chamada chef, nada tão pejorativo como cozinheiro - cozinhar era o que ela fazia na cozinha do apartamento, quando jogava as sobras num pirex untado e acrescentava macarrão. Além disso, o especialista em culinária de um lugar como o Overlook, que anunciava na seção de balneario do New York Times de domingo, deveria ser baixo, gordo e pálido (como um pedaço de massa); deveria ter um bigode fino como os astros de comédias da década de 40, olhos escuros, sotaque francês e uma personalidade detestável.

Disso tudo Hallorann só tinha os olhos negros. Era um nomem negro, alto, com um discreto penteado afro, que começava a esbranquiçar Tinha um leve sotaque de sulista e ria muito, exibindo dentes muito brancos e uniformes que só poderiam ser uma dentadura da Sears, safra de 1950. O pai de Wendy tivera um par, que chamava de Roebuckers, e por vezes, olhando para ela, pressionava-a para fora comicamente, mesa do jantar. . . sempre, lembrava-se Wendy agora, quando a mãe estava na cozinha apanhando alguma coisa ou falando ao telefone.

Danny arregalou os olhos diante do gigante negro vestido de azul, e sorriu quando Hallorann o carregou com facilidade e colocou-o nos braços, dizendo:

- Você não vai ficar bobeando por aqui o inverno todo, não é?

- Vou, sim - disse Danny, com um sorriso tímido.

- Não, você vai comigo para St. Pete e vai aprender a cozinhar, vai à praia toda noite procurar caranguejos. Certo?

Danny deu uma risada, encantado, e balançou a cabeça como se dissesse “não”. Hallorann colocou-o no chão.

- Se vai mudar de idéia - disse Hallorann, inclinandose sobre ele muito sério -, é melhor se apressar. Em trinta minutos estou em meu carro. Duas horas e meia depois estarei sentado na sala de espera do portão 32 do Aeroporto Internacional de Stapleton, pelas bandas de Denver, Colorado. Três horas depois disso, estarei alugando um carro no Aeroporto de Miami a caminho da ensolarada St. Pete, esperando meter-me em meu calção e dando uma banana para todo mundo preso na neve. Entendeu, meu rapaz?

Sim, senhor - disse Danny, sorrindo.

Hallorann voltou-se para Jack e Wendy.

- Parece um bom menino.

- Achamos que ele vai topar - disse Jack, estendendo a mão. Hallorann apertou-a. - Sou Jack Torrance. Minha mulher, Winnifred. Danny você já conhece.

E foi um prazer. Como é, moça, você é Winnie ou Freddie?

- Sou Wendy - disse ela, sorrindo.

- Muito bem. Antes assim. Por aqui. O Sr. Uliman quer que façam uma excursão, e é exatamente o que vamos fazer.

Sacudiu a cabeça e murmurou entre dentes: - Perguntem se estou feliz em vê-lo pela última vez.

Hallorann começou o passeio pela maior cozinha que Wendy já vira em toda a sua vida. Recendia a limpeza. Todas as superfícies polidas. Era algo mais além de grande; era intimidante. Caminhava ao lado de Hallorann, enquanto Jack, to talmente desambientado, retraía-se um pouco com Danny. Um suporte comprido de madeira com instrumentos cortantes que iam de facas a talhadores de dois dentes, junto a quatro pias. A tábua de pão era tão grande quanto a mesa de cozinha do apartamento de Boulder. Um impressionante desfile de potes e panelas de aço inoxidável pendurados do chão ao teto, cobrindo toda uma parede.

- Acho que vou ter que deixar um rastro de migalhas de pão toda vez que vier aqui - disse ela.

- Não se deixe impressionar - disse Hallorann. - É grande mas, ainda assim, é só uma cozinha. A maioria das coisas você não irá sequer tocar. Mantenha-a limpa, é tudo o que peço. Aqui está o fogão que eu usaria, se fosse você. Há, ao todo, três, mas este é o menor.

Menor, pensou ela distante, olhando para o fogão. Tinha doze bocas, dois fornos comuns e um holandês, uma chapa para cozinhar molhos ou feijão, uma grelha e um aquecedor. . mais um milhão de mostradores e medidores.

- Tudo a gás - falou Hallorann. - Já cozinhou com gás, Wendy?

- Já...

- Adoro gás - disse ele abrindo uma das bocas. Uma chama azul explodiu e ele ajustou-a para vermelho com um leve toque. - Gosto de ver a chama com que se cozinha. Está vendo onde os acendedores estão?

- Sim.

- E os mostradores do forno estão marcados. Eu, por mim, prefiro o do meio porque assa mais por igual, mas você use o que achar melhor. . . ou os três, se quiser.

- Um pacote de comida congelada em cada um - disse Wendy, sorrindo.

Halborann deu uma gargalhada.

Se gostar, tudo bem. Deixei perto da pia uma lista do que há para comer. Está vendo?

- Aqui, mamãe! - Danny trouxe duas folhas de papel, escritas dos dois lados.

Bom menino - disse Hallorann pegando os papéis e Passando a mão na cabeça da criança. - Tem certeza de que não quer ir para a Flórida comigo, rapaz? Aprender a cozinhar O camarão mais delicioso deste lado do paraíso?

Danny colocou as mãos na boca dando uma risadinha, e Se retirou para o lado do pai.

- Vocês três têm comida para um ano, acho eu - disse Hallorann. - Temos uma despensa, um congelador, um depósito de legumes e duas geladeiras. Venham, vou mostrar-lhes.

Durante os dez minutos seguintes, Hallorann abriu depósitos e portas, exibindo quantidades de comida que Wendy nunca vira, O estoque de comida impressionou-a, mas não a tranqüilizou tanto quanto imaginara: a história dos pioneiros canibais voltava-lhe à mente, não como idéia fixa de canibalismo (com toda essa comida certamente levaria tempo até que chegassem a comer um ao outro), mas imaginando que aquilo era realmente um negócio muito sério: quando a neve caísse, sair dali não seria questão de uma viagem de uma hora a Sidewinder, mas uma operação bem mais complicada. Sentar-seiam neste grande hotel deserto, comendo a comida que tinha sido deixada, como personagens de uma fábula, ouvindo o vento amargo no telhado cercado de neve. Em Vermont, quando Danny quebrara o braço

(quando Jack quebrara o braço de Danny)

chamara o serviço médico de urgência, discando o número que havia num cartão colado ao telefone. Dez minutos depois, estavam em sua casa. Havia outros números escritos naquele cartãozinho. Em cinco minutos, lá estaria o carro de polícia, e o caminhão de bombeiros em menos tempo ainda, pois o Corpo de Bombeiros ficava a três quarteirões de sua casa. Havia alguém a quem chamar no caso de falta de luz, ou no caso de o chuveiro enguiçar, ou de a televisão pifar. Mas como seria ali se Danny tivesse um de seus desmaios e enrolasse a língua?

(oh, Deus, que pensamento!)

E se o lugar pegasse fogo? E se Jack caísse no poço do elevador e fraturasse o crânio? E se (e se tivessem uma temporada maravilhosa? Agora pare com isso, Winnifred!)

Hallorann mostrou-lhes o congelador em primeiro lugar, onde encheram os pulmões como balões de histórias em quadrinhos. No congelador era como se o inverno já tivesse chegado.

Hambúrgueres em grandes sacos plásticos, cinco quilos em cada saco, doze sacos ao todo. Quarenta galinhas penduradas por ganchos enfileirados nas paredes revestidas de madeira. Presuntos enlatados empilhados como fichas de pôquer, uma dúzia deles. Abaixo das galinhas, dez mantas de carne assada, dez de porco assado e um imenso quarto de carneiro.

- Gosta de carneiro, doutor? perguntou Hallorann, sorrindo malicioso.

- Adoro - respondeu Danny, imediatamente. Nunca comera.

- Eu sabia que você gostava. Não há nada como duas boas fatias de carneiro com geléia de menta numa noite fria. Aqui também há geléia de menta. Carneiro faz bem ao estômago. Não é um tipo de carne muito procurada.

Por trás deles, Jack disse, curioso:

- Como sabia que o chamávamos “doutor”?

Hallorann voltou-se.

- Sim?

- Dinny. Às vezes o chamamos “doutor”. Como nos quadrinhos.

- Ele parece um doutor, não parece? - Franziu o nariz para Danny, estalou os lábios e disse: - Ehhh, o que há de novo, doutor?

Danny deu uma risadinha, e então Hallorann disse alguma coisa

(Tem certeza de que não quer ir para a Flórida, doutor?)

para ele, muito claramente. Ouviu cada palavra. Olhou para Hallorann, chocado e um pouco apavorado. Hallorann piscou misterioso e voltou-se para a comida.

Por trás das costas largas do cozinheiro, Wendy olhou o filho. Tinha a estranha sensação de que alguma coisa se passara entre eles, alguma coisa que não conseguira captar.

- Há doze pacotes de lingüiça, doze de bacon. De porco e só. Nesta gaveta, dez quilos de manteiga.

Manteiga mesmo? - perguntou Jack.

De primeiríssima qualidade.

- Acho que não como manteiga de verdade desde minha infância em Berlin, New Hampshire.

- Bem, aqui você vai comer até se fartar disse Hallorann, rindo. - Aqui neste depósito vocês têm o pão. .. trinta formas de pão branco, vinte de pão preto. Tentamos manter o equilíbrio racial, sabe? Reconheço que cinqüenta formas não são muito, mas há ingredientes suficientes, e pão fresco é melhor do que o congelado em qualquer dia da semana.

“Aqui vocês têm o peixe. Comida para o cérebro, certo, doutor?”

Ë, mamãe?

- Se o Sr. Hallorann está dizendo, meu bem. Ela sorriu. Danny franziu o nariz.

- Não gosto de peixe.

- Está profundamente enganado - disse Hallorann.

Nunca comeu nenhum peixe que gostasse de você. Estes peixes aqui vão gostar à beça de você. Dois quilos e meio de truta furta-cor, cinco quilos de rodovalho, quinze latas de atum.

Ah, sim, gosto de atum.

- . .e dois quilos e meio da solha mais deliciosa que já nadou no mar. Meu filho, quando a primavera chegar, você vai agradecer ao velho. . . - Estalou os dedos como se tivesse esquecido alguma coisa. - E agora? Qual é mesmo o meu nome? Acho que escapuliu de minha cabeça.

- Sr. Hallorann - disse Danny com uma risadinha. - Dick, para os íntimos.

- Isso mesmo! E, sendo amigo, você pode chamar-me de Dick.

Enquanto eram levados para o outro lado, Jack e Wendy trocaram um olhar confuso, ambos tentando lembrar se Hallorann havia dito seu primeiro nome.

- E este aqui eu coloco em lugar especial disse Hallorann. - Espero que gostem.

- Oh! Na realidade, não deveria disse Wendy comovida. Era um peru de dez quilos, enrolado numa larga tira vermelha com um laço em cima.

- Têm que ter peru para o Dia de Ação de Graças, Wendy - disse Hallorann muito sério. - Acho que há algum capão por aí para o Natal. Com certeza, vocês vão topar com ele. Vamos sair daqui antes que a gente apanhe uma pneumonia. Certo, doutor?

- Certo!

Havia mais maravilhas na despensa fria. Uma centena de caixas de leite em pó (Hallorann advertiu a Wendy que comprasse leite fresco para a criança em Sidewinder sempre que fosse possível), trinta quilos de açúcar, um garrafão de melado, cereais, arroz, macarrão; filas de latas de compotas de frutas e salada de frutas; uma caixa de maçãs frescas que faziam o lugar recender a outono; passas, ameixas e damascos (“Você tem que ser controlada, se quiser ser feliz”, disse Hallorann, dando uma gargalhada para o teto da despensa fria, onde uma lâmpada antiga estava pendurada por uma corrente); um caixote fundo

cheio de batatas; e um esconderijo pequeno de tomates, cebolas, nabos, abobrinhas e repolhos.

- Minha opinião... - disse Wendy, enquanto saíam. Mas ao ver toda aquela quantidade de comida fresca, comparada a seu orçamento para mercearia, ficou tão atordoada que nem pôde dizer qual era sua opinião.

- Estou um pouco atrasado - disse Hallorann olhando o relógio. - Deixarei vocês então darem uma passada pelos armários e geladeiras depois de acomodados. Temos queijos, leite condensado, fermento, bicarbonato, tortas, alguns cachos de bananas que não estão sequer perto de ficarem maduras.

- Chega - disse ela, levantando a mão e rindo. - Não vou conseguir nunca me lembrar de tudo. É formidável. E prometo deixar tudo limpo.

- É tudo o que peço. - Voltou-se para Jack. - O Sr. Ullman desfiou-lhe o rosário sobre os ratos da torre?

Jack deu uma risadinha.

- Ele disse que possivelmente existem alguns no sótão, e o Sr. Watson falou que pode ser que haja outros no porão. Deve haver umas duas toneladas de papel por lá, mas não vi nada roído para ninhos.

- Aquele Watson - disse Hallorann, sacudindo a cabeça fingindo tristeza. - Ele não é o cara mais idiota que já se viu?

- Ele é uma figura - concordou Jack. - O próprio pai era um grande idiota.

- É uma pena - disse Hallorann, levando-os em direção às portas giratórias que davam para a sala de jantar do Overlook. - A família tinha dinheiro, há muito tempo. O avô ou bisavô de Watson. . . não me lembro. . . construiu este lugar.

- Foi o que eu soube - disse Jack.

- O que aconteceu? - perguntou Wendy.

Bem, não souberam fazer a coisa andar - falou Hallorann. - Watson vai contar-lhe a história toda. . . duas vezes ao dia, se você deixar. O velho ficou doido neste lugar. Deixou-se abater, eu acho. Tinha dois filhos, e um morreu num acidente ao montar, quando o hotel ainda era apenas um prédio. Isso talvez tenha sido em 1908 ou 9. A mulher morreu de uma gripe, e então restaram só o velho e o filho mais novo. Terminaram como zeladores do hotel que o velho construíra.

- E uma pena - disse Wendy.

Jack.

- Enfiou o dedo numa tomada, por descuido, e esse foi seu fim - respondeu Hallorann. - Por volta do início da década de 30, antes que a Depressão fechasse o hotel por dez anos. De qualquer forma, Jack, gostaria que você e sua mulher ficassem atentos para os ratos na cozinha, também. Caso vejam. . . ratoeiras. Veneno, não.

Jack piscou.

- Claro. Quem é que colocaria veneno para ratos na cozinha?

Hallorann riu zombeteiramente.

Sabe quem? O Sr. Uliman. Foi sua brilhante idéia no outono passado. Ponderei com ele: «O que me diz se, no próximo mês de maio, chegarmos aqui, e eu servir o tradicional jantar de abertura. . que sempre coincide ser salmão com um molho muito bonito. . . e todo mundo ficar doente, e o médico chegar aqui e disser: ‘Ullman, o que é que você tem feito por aqui? Temos oitenta dos caras mais ricos da América envenenados com remédio para ratos’ “.

Jack jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada alta:

O que é que Uliman dísse?

Hallorann enrolou a língua como que sentindo um pouco de comida no canto da boca.

- Ele disse: “Apanhe umas ratoeiras, Hallorann”.

Neste momento, todos riram, até Danny, apesar de não ter entendido muito bem a piada, exceto o fato de ter alguma coisa a ver com o Sr. Uliman, que, afinal de contas, não era o dono da verdade.

Os quatro passaram à sala de jantar, agora vazia e silenciosa, com sua maravilhosa vista para os picos polvilhados de neve. Cada toalha branca de linho fora coberta com um pedaço de um resistente plástico transparente. O tapete, agora, estava enrolado, em pé, no canto, como uma sentinela.

Do outro lado da larga sala, uma porta de vaivém dupla, e em cima dela uma placa antiga escrita em letras douradas:

“SALÃO COLORADO”.

Com o olhar fixo, Hallorann disse:

- Se gosta de beber, espero que tenha trazido suprimento próprio. Esse lugar está limpo, não há absolutamente nada. Festa dos empregados ontem à noite, sabe? Tudo quanto é camareiro e carregador está por aí hoje com dor de cabeça, inclusive eu.

- Não bebo disse Jack objetivo. Voltaram ao saguão.

O hotel esvaziara bastante durante a meia hora que passaram na cozinha. A grande sala principal começava a ficar em silêncio, com ar de deserta, e Jack supôs que fosse logo se habiÀ mar com isso. As cadeiras de espaldar alto estavam vazias. As

freiras que tinham estado sentadas perto da lareira tinham ido embora, e o próprio fogo caíra numa confortável cama de carvão incandescente. Wendy olhou para o estacionamento e viu que todos os carros, excluindo cerca de umadúzia, haviam desaparecido. Surpreendeu-se desejando tomar o VW e voltar para Boulder. . . ou qualquer outro lugar.

Jack procurava por Uliman, mas ele não estava no saguão. Uma jovem empregada, com o cabelo louro-acinzentado preso, aproximou-se.

- Sua bagagem está no portão, Dick.

- Obrigado, Sally. - Deu-lhe um beijo ligeiro na testa.

- Aproveite o inverno. Vai se casar, ouvi dizer por aí.

Voltou-se para os Torrance, enquanto ela andava, rebolando atrevida.

- Tenho que ir andando, se quiser apanhar o avião. Desejo-lhes boa sorte. Tenho certeza de que terão.

- Obrigado - disse Jack. - Você foi muito gentil.

- Vou tomar conta de sua cozinha - prometeu Wendy mais uma vez. - Divirta-se na Flórida.

Divirto-me sempre - disse Hallorann. Colocou as mãos nos joelhos e curvou-se para Danny. - Última chance, rapaz. Quer ir para a Flórida?

- Acho que não - respondeu Danny, sorrindo.

- OK. Quer dar-me uma ajuda levando as malas para o carro?

- Se mamãe deixar.

Pode ir - falou Wendy. - Mas tem que abotoar o casaco Curvou-se para fazê-lo, mas Hallorann tornou-lhe a frente, dedos grandes movimentando-se com suave destreza.

Daqui a pouco o devolvo - disse Hallorann.

- Muito bem - concordou Wendy, seguindo-os até a Porta. Jack aínda procurava por Ullman. Os últimos hóspedes do Overlook fechavam a conta na recepção.

- O que aconteceu com ele? O velho? - perguntou

 

A luz

Havia uma pilha de quatro malas bem à porta. Três eram enormes, malas velhas e gastas cobertas com uma imitação de couro escuro de jacaré. A última era uma imensa sacola xadrez, desbotada, fechada por zíper.

- Você agüenta aquela, não agüenta? - Hallorann perguntou. Pegou duas das malas grandes e segurou a outra debaixo do braço.

- Claro - disse Danny. Agarrou-a com as duas mãos e seguiu o cozinheiro pelos degraus da varanda, tentando corajosamente não gemer, e disfarçar o peso que carregava.

Um vento frio e cortante de outono batia desde que chegaram; assobiava no estacionamento, fazendo Danny apertar os olhos, enquanto carregava a mala de zíper à sua frente, batendo-a contra os joelhos. Umas poucas folhas soltas de álamo chocalhavam e reviravam no asfalto então deserto, fazendo Danny pensar momentaneamente naquela noite da semana anterior, quando acordara no meio do pesadelo e ouvira - ou pelo menos imaginara ouvir - Tony lhe dizendo para não ir.

Hallorann colocou as malas junto ao porta-malas de um Plymouth bege.

- Este é alugado. O meu Bessie está do outro lado. Aquilo, sim, é um carro. Um Cadillac 50, e como roda! Pode ter certeza. Está guardado na Flórida porque é muito velho para estas subidas todas. Quer uma ajuda?

- Não, senhor - disse Danny. Conseguiu carregá-la os últimos dez ou doze passos sem gemer e colocá-la no chão com um grande suspiro de alívio.

- Muito bem - falou Hallorann. Mexeu com as chaves dentro do bolso da jaqueta azul e abriu o porta-malas. Levantando as malas, disse: - Você é iluminado, garoto. Mais do que qualquer outro que já conheci em minha vida. E veja que vou completar sessenta anos em janeiro próximo.

- Hum?

- Você é especial - disse Hallorann, voltando-se para ele. - Sempre chamei isso de luz interior. Era como minha avó chamava. Ela também tinha. Costumávamos sentar na cozinha quando eu era um menino da sua idade, e tínhamos longas conversas sem sequer abrir a boca.

- É mesmo?

Hallorann sorriu ao ver Danny boquiaberto, com uma expressão quase faminta, e disse:

- Venha e entre no carro comigo um pouco. Quero conversar com você.

Bateu a tampa do porta-malas.

No saguão do Overlook, Wendy Torrance viu o filho entrar no carro de Hallorann e sentar-se no banco ao lado do motorista. Uma pontada aguda de medo atingiu-a, e abriu a boca para dizer a Jack que Hallorann não mentira quanto ao fato de levar seu filho para a Flórida. . . havia um seqüestro em ação. Mas os dois ficaram apenas sentados lá. Enxergava com dificuldade o contorno da cabeça do filho, voltada atentamente para a cabeça grande de Hallorann. Mesmo a distância, ela reconhecia o jeito daquela cabecinha. . . era assim que o filho ficava quando assistia na televisão a alguma coisa que o fascinava, ou quando ele e o pai jogavam cartas. Jack, que ainda estava procurando Uliman, não percebera. Wendy ficou calada, observando, nervosa, o carro de Hallorann, conjeturando o que poderiam estar falando, o que seria capaz de fazer Danny levantar a cabeça daquela maneira.

No carro, Hallorann dizia:

- Não se sente sozinho, pensando que é o único?

Danny, que estivera amedrontado e por vezes se sentira só, aquiesceu.

- Sou o único que o senhor já viu? - perguntou.

Hallorann riu e sacudiu a cabeça.

Não, criança, não. Mas você é o mais iluminado.

- Há muitos, então?

- Não - disse Hallorann -, mas você realmente os ultrapassa. Uma porção de gente tem um pouquinho dessa luz interior. Não sabem, mas sempre aparecem com flores quando as esposas estão angustiadas com suas menstruações, fazem boas provas na escola sem terem sequer estudado, sentem as pessoas logo que chegam. Já topei com uns cinqüenta ou sessenta indivíduos assim. Mas talvez só uma dúzia, contando minha avó, sabia que era iluminado.

- Puxa - disse Danny, e pensou sobre o assunto. E dePois: - O senhor conhece a Sra. Brant?

Ela? - Hallorann perguntou com desprezo. – Ela não é iluminada. Simplesmente devolve o jantar duas ou três vezes toda noite.

- Sei que não - disse Danny, seriamente. - Mas você conhece o homem de uniforme cinza que apanha os carros?

- Mike? Claro que conheço Mike. Por quê?

- Sr. Hallorann, por que poderia ela querer a calça dele?

- De que você está falando, menino?

- Bem, quando olhava para ele, ela pensava que gostaria mesmo de entrar-lhe calça adentro, e fico pensando por que.

Mas não foi adiante. Hallorann jogou a cabeça para trás, e uma gargalhada cheia saiu de seu peito, ressoando no carro como um canhão. O banco balançou com a força. Danny sorriu, confuso, e finalmente a tempestade cessou aos poucos. Hallorann puxou um grande lenço de seda do bolso da camisa, como uma bandeira de paz, e enxugou os olhos.

- Menino - disse ele ainda bufando -, você vai saber tudo sobre a condição humana antes de completar dez anos. Não sei se devo invejá-lo.

- Mas a Sra. Brant.

- Não se incomode com ela - disse o cozinheiro. - E também não vá começar a fazer perguntas a sua mãe. Você só a deixaria triste.

- Sim, senhor - disse Danny. Entendera muito bem. Já entristecera sua mãe antes.

- Aquela tal de Sra. Brant é apenas uma sem-vergonha ardendo em desejo, é tudo o que precisa saber. - Olhou, pensativo, para Danny. - Até onde consegue ir, rapaz?

- Hum?

- Mande-me uma carga. Pense em mim. Quero ver se você tem tanto quanto imagino.

- Pensar em quê?

Em qualquer coisa. Pense com força.

- OK - disse Danny. Refletiu por um momento, e então concentrou-se e dirigiu sua concentração para Hallorann. Nunca fizera nada semelhante, e, no último instante, uma parte instintiva de si veio à tona e abrandou a força bruta do pensamento. . . não queria magoar o Sr. Hallorann. ainda assim, o pensamento disparou para fora de si com uma força que nunca teria acreditado. Foi como um arremesso de Nolan Ryan , um pouco mais forte.

Jogador americano de beisebol. (N. do T.)

(Deus, espero não machucá-lo.)

E o pensamento foi:

( ! OK, DICK )

Hallorann tremeu e sacudiu-se no banco. Os dentes trincaram com um estalido forte, arrancando algumas poucas gotas de sangue do lábio inferior. Por um momento, suas pálpebras tremeram involuntariamente, e Danny sentiu medo.

- Sr. Hallorann? Dick? O senhor está bem?

- Não sei - falou Hallorann, dando uma risada fraca. - Honestamente não sei. Meu Deus, menino, você é como um raio.

- Sinto muito - disse Danny, alarmado. - Quer que eu chame papai? Vou correndo buscá-lo.

- Não, aqui estou eu. Estou bem, Danny. Fique sentadinho aí. Estou me sentindo um pouco tonto, é só.

- Não fiz com tanta força - confessou Danny. - Fiquei com medo, no último instante.

- Sorte minha você não.., do contrário, meus miolos sairiam pelos ouvidos. - Viu o rosto alarmado de Danny e sorriu. - Não foi nada, Como se sentiu?

- Como se fosse Nolan Ryan arremessando uma bola com força - respondeu.

- Você gosta de beisebol, não gosta? - Hallorann esfregava a testa cautelosamente.

- Papai e eu torcemos pelos Angeis. O Red Sox no Campeonato Americano do Leste, e os Angeis, no oeste. Assistimos ao jogo do Red Sox contra o Cincinnati no Campeonato Mundial. Eu era muito menor. E papai estava.

o rosto de Danny ficou sombrio e agitado.

- Estava o quê, Dan?

- Eu esqueço disse Danny. Colocou o dedo na boca e começou a chupá-lo, mas essa era uma artimanha de criança. Colocou as mãos sobre as pernas novamente.

- Consegue dizer em que sua mãe e seu pai estão pensando, Danny? - Hallorann o observava de perto.

- Na maioria das vezes, se eu quiser. Mas geralmente não tento.

- Por que não?

- Bem. - fez um minuto de pausa, agitado. - Seria como espreitar pelo quarto enquanto eles estão fazendo aquela Coisa que faz bebês. Conhece aquela coisa?

- Já ouvi falar - respondeu Hallorann, muito sério.

- Não gostariam. E não gostariam de me ver espreitando seus pensamentos. Seria sujeira.

Entendo.

- Mas sei como se sentem - falou Danny. - Não posso fazer nada. Sei também como você se sente. Machuquei-o Desculpe-me.

- E só uma dor de cabeça. Já tive ressacas piores. Conse gue ler o pensamento de outras pessoas, Danny?

- Não sei ler ainda, a não ser algumas palavras. Mas, neste inverno, papai vai ensinar-me. Papai ensinava composição e leitura numa escola grande. Mais escrita, mas ele entende de leitura também.

- Eu perguntei se você consegue dizer o que alguém está pensando.

Danny pensou.

- Consigo se for alto - disse o garoto, finalmente. - Como no caso da Sra. Brant e a calça. Ou como uma vez, quando mamãe e eu estávamos numa grande loja para comprar sapatos para mim, e havia um menino grande olhando para os rádios e ele pensava em levar um, sem comprar. Depois o menino pensava no que ia acontecer, se fosse apanhado. Depois pensava que realmente queria o rádio. Depois, pensava novamente em ser apanhado. Ele estava ficando doente e me fazendo doente. Mamãe estava conversando com o homem que vendia os sapatos, e então fui até lá e disse: “Garoto, não leve esse rádio. Vá embora!” E ele ficou com medo mesmo. Foi embora depressa.

Hallorann abriu-se num largo sorriso.

- Aposto como foi mesmo. Consegue fazer mais alguma coisa, Danny? São só pensamentos e sensações, ou há mais alguma coisa?

Com cautela:

- Acontecem outras coisas com o senhor?

- Às vezes - disse Hallorann. - Nem sempre. As vezes. . . às vezes há sonhos. Você sonha, Danny?

- Às vezes, sonho quando estou acordado. Depois que Tony aparece. - O dedo queria entrar pela boca mais uma vez. Nunca comentara com ninguém a respeito de Tony, a não ser com a mãe e o pai. Fez a mão voltar para o colo.

- Quem é Tony?

E, de repente, Danny teve um daqueles lampejos de compreensão que mais o apavoravam; era como a aparição rápida e repentina de uma máquina estranha que podia salvar ou podia ser mortal. Era muito jovem para saber. Era muito jovem para entender.

- Há alguma coisa errada? - gritou. - Está me perguntando tudo isso porque está preocupado, não está? Por que se preocupa comigo? Por que se preocupa conosco?

Hallorann pôs suas mãos grandes e negras sobre os ombros do menino.

- Pare - disse o cozinheiro. - Talvez não seja nada. Mas se é alguma coisa. . bem, você tem uma coisa muito grande em sua cabeça, Danny. Você ainda tem que crescer muito para poder compreender, eu acho. Tem que ser corajoso.

- Mas eu não entendo as coisas! - explodiu Danny. - Entendo, mas não entendo! As pessoas. . . sentem coisas, e eu sinto, mas não sei o que sinto! - Olhou, triste, para o colo. - Quem dera eu soubesse ler. Às vezes, Tony me mostra placas e dificilmente consigo ler qualquer uma delas.

- Quem é Tony? perguntou Hallorann novamente.

- Mamãe e papai dizem que ele é meu “amigo invisível”

- respondeu Danny, recitando as palavras com cuidado. - Mas ele é verdadeiro mesmo. Pelo menos, eu acho que é. Às vezes, quando me esforço para entender as coisas, ele vem. E diz: “Danny, quero mostrar-lhe uma coisa”. E é como se eu desmaiasse. Só que. . . tenho sonhos, como você disse. - Olhou para Hallorann e engoliu. - Costumavam ser bons. Mas agora. . . não me lembro da palavra que se usa para os sonhos que apavoram e fazem a gente chorar.

- Pesadelos? - perguntou Hallorann.

- Sim. Isso mesmo. Pesadelos.

- Com este lugar? Com o Overlook?

Danny olhou para o dedo novamente.

- Sim - sussurrou. Depois, começou a falar com voz estridente, olhando para o rosto de Hallorann: Mas não posso contar para meu pai, e você também não pode! Ele precisa do emprego, pois foi o único que tio Al conseguiu para ele, e precisa terminar a peça, ou então pode começar a fazer a “coisa feia” de novo, e eu sei o que é isso, é ficar embriagado, é exatamente isso, é quando ele costumava embriagar-se, e isso era uma “coisa feia”. - falou, quase chorando.

- Psiu - disse Hallorann, e puxou o rosto de Danny Para Junto do tecido grosso de sua jaqueta, que cheirava a naftalina. Tudo bem, filho. E, se aquele dedo gosta de sua boca, deixe-o ir onde quiser. - Mas seu rosto estava agitado. E Continuou: - O que você tem, filho, eu chamo de luz interior, a Bíblia chama de visões, e há cientistas que chamam de premonição. Já li sobre isso, filho. Já estudei. Tudo isso significa ver o futuro. Entende?

Danny meneou a cabeça contra o casaco de Hallorann.

- Lembro-me da visão mais forte que já tive. . . não SOU dado a esquecimento. Foi em 1955. Eu ainda estava no Exército, servindo na Alemanha Ocidental. Faltava uma hora para o jantar, e eu estava parado perto da pia, brigando com um dos ajudantes da cozinha, porque desperdiçava a batata ao descascá-la. Dizia eu: “Olhe aqui, deixe-me mostrar como se faz isso”. Ele segurou a batata e o descascador e então a cozinha inteira desapareceu. Simplesmente desapareceu. Você diz que vê este cara, Tony, antes... de sonhar?

Danny concordou.

Hallorann pôs um braço em volta do garoto.

- Comigo é o cheiro de laranjas. Aquela tarde inteira eu passei sentindo o cheiro delas sem pensar, pois fazia parte do menu da noite. . . tínhamos trinta caixotes. Todo mundo naquela cozinha desgraçada cheirava a laranja naquela noite.

“Por um minuto, era como se eu tivesse desmaiado. E então ouvi uma explosão e vi chamas. Havia gente gritando. Sirenes. E ouvi um chiado que só podia ser vapor. E depois parecia que eu me havia aproximado da coisa, qualquer que fosse ela, e vi um vagão de trem descarrilhado e tombado com a inscrição ‘Estrada de Geórgia e Carolina do Sul’, e sabia, como num lampejo, que meu irmão Cari estava naquele trem que virara, e Carl estava morto. Assim. A imagem desapareceu e eis que vejo o ajudante da cozinha medroso e idiota, diante de mim, ainda segurando a batata e o descascador. Disse ele: ‘O senhor está bem, sargento?’ E eu: ‘Não. Meu irmão acaba de morrer na Geórgia!’ E quando, finalmente, consegui uma ligação internacional com minha mãe, ela me contou como foi.

“Mas veja, garoto, eu já sabia como fora.” Sacudiu a cabeça devagar, como se livrando da lembrança, e olhou para os olhos arregalados do menino. “Mas o que você precisa lembrar, meu garoto, é isto: essas coisas nem sempre acontecem. Lembro-me quando, há quatro anos, trabalhava como cozinheiro numa colônia de férias de meninos, em Long Lake, Maine. Estava eu sentado junto ao portão de embarque no Aeroporto de Boston, esperando meu vôo, e comecei a sentir cheiro de laranja. pela primeira vez em cinco anos talvez. Pensei cá comigo: ‘Meu Deus, o que vai acontecer agora neste show maluco?’, e corri para o banheiro, sentando-me na privada para ficar sozinho. Não cheguei a desmaiar, mas comecei a ter a sensação, cada vez mais forte, de que meu avião ia cair. A sensação desapareceu junto com o cheiro de laranjas, e eu sabia que estava terminado. Fui ao balcão da companhia aérea e mudei meu vôo para três horas depois. E sabe o que aconteceu?”

- O quê? - sussurrou Danny.

- Nada! - disse Hallorann, rindo, sentindo-se aliviado ao ver o menino rir também. - Absolutamente nada! Aquele velho avião aterrou no horário e sem nenhum solavanco ou batida. Você pode ver então. . . às vezes estas sensações não dão em nada.

- Oh! - exclamou Danny.

- Veja, por exemplo, quando vou ao hipódromo. Vou lá com freqüência e, geralmente, me dou muito bem. Fico parado junto à grade quando vão largar, e às vezes me vem uma intuição sobre esse ou aquele cavalo. Geralmente, essas sensações ajudam a me sentir muito bem. Digo sempre a mim mesmo que qualquer dia desses vou apostar num azarão e ganhar o suficiente para logo me aposentar. Isso ainda não aconteceu. Mas houve ocasião em que voltava do hipódromo para casa, a pé, ao invés de tomar um táxi, com a carteira recheada. Ninguém acerta o tempo todo, com exceção talvez de Deus, lá no céu.

- Sim, senhor - disse Danny, pensando quando, no ano passado, Tony lhe mostrara um bebê deitado num berço em sua casa em Stovington. Ficara feliz com aquilo, esperara mesmo, sabendo que levaria tempo, mas não viera bebê algum.

- Agora, ouça - falou Hallorann, segurando as duas mãos de Danny. - Já tive sonhos maus aqui, e já tive sensações desagradáveis. Já trabalhei aqui durante duas temporadas, e talvez por uma dúzia de vezes já tive. . . bem, pesadelos. E talvez, por meia dúzia de vezes pensei ter visto coisas. Não, não direi o quê. Não são para meninos como você. Coisas sórdidas, apenas. Uma vez, foi alguma coisa relacionada com a droga daqueles arbustos, tosquiados para parecerem animais. Outra vez, foi uma empregada, Delores Vickery era seu nome, e ela era um pouco iluminada, mas não creio que soubesse. O Sr. Ullman demitiua. . . você sabe o que é isso, rapaz?

Sim, senhor - respondeu Danny, candidamente.

Meu pai foi demitido da escola, e eu acho que é por isso que estamos no Colorado.

- Bem, o Sr. Uliman demitiu-a porque ela afirmou ter visto alguma coisa em um dos quartos, onde. . . bem, onde aconteceu uma coisa ruim. Era o quarto 217, e quero que me prometa que não vai lá, Danny. O inverno inteiro. Mantenha-se afastado.

- Está bem - disse Danny. - A senhora, a camareira, ela lhe pediu para ir ver?

- Pediu. E havia uma coisa ruim lá. Mas. .. não acho que era uma coisa ruim que pudesse ferir qualquer um, Danny, é o que estou tentando dizer. Os iluminados às vezes podem ver coisas que vão acontecer, e acho que, às vezes, podem ver coisas que aconteceram. Como se fossem desenhos num livro. Já viu algum desenho num livro que o tenha apavorado, Danny?

Já - respondeu o menino, pensando na história do Barba Azul, e o desenho era da mulher do Barba Azul abrindo a porta e vendo as cabeças.

- Mas sabia que não o feriam, não sabia?

- Si... im - disse Danny, um pouco incerto.

- Bem, assim é neste hotel. Não sei por quê, mas parece que todas as coisas ruins que já aconteceram aqui ainda têm pedacinhos espalhados, como pedacinhos de unha cortada ou melecas que alguém muito porco limpou debaixo de uma cadeira. Não sei por que só aqui; coisas ruins acontecem em todo hotel do mundo, acho eu, e já trabalhei numa porção deles e nunca tive problemas. Só aqui. Mas, Danny, não acho que essas coisas possam atingir qualquer pessoa. - Enfatizou cada palavra da frase sacudindo de leve os ombros do menino. - Portanto, se enxergar alguma coisa, num corredor, quarto ou lá fora perto dos arbustos. . . olhe para o outro lado e, quando se voltar, já terá desaparecido. Está bem?

- Sim concordou Danny. Sentiu-se muito melhor, mais calmo. Ajoelhou-se no banco, beijou o rosto de Hallorann e deu-lhe um abraço apertado. Hallorann abraçou-o também.

Quando soltou o menino, perguntou:

- O pessoal de sua família não é iluminado, é?

- Não. Acho que não.

- Testei-os como fiz com você - disse Hallorann. - Sua mãe é um pouquinho iluminada. Acho que todas as mães têm um pouco de luz, sabe? Pelo menos até os filhos já estarem crescidos e responsáveis. Seu pai.

Hallorann fez uma pausa momentânea. Sondara o pai do menino e simplesmente não sabia. Não era como conhecer alguém que tivesse luz, ou alguém que definitivamente não tivesse. Bisbilhotar o pai de Danny era. . . estranho, como se Jack Torrance tivesse alguma coisa - alguma coisa - que escondesse. Ou algo que guardava tão profundamente dentro de si que era impossível alcançar.

- Não acho que seja de forma alguma iluminado - concluiu Hallorann. - Portanto, não se preocupe com eles. Cuide-se. Não creio que haja alguma coisa aqui que o possa ferir. Apenas, controle-se, OK?

-OK.

- Danny! Ei, doutor.

Danny olhou a seu redor.

- É mamãe. Está me chamando. Tenho que ir.

- Eu sei - disse Hallorann. - Divirta-se por aqui, Danny. Da melhor maneira possível.

- Vou me divertir. Obrigado, Sr. Hallorann. Sinto-me bem melhor.

O pensamento feliz veio à sua mente:

(Dick, para os amigos.)

(Sim, Dick, está bem.)

Entreolharam-se, e Dick Hallorann piscou.

Danny arrastou-se no banco do carro e abriu a porta. Quando saía, Hallorann falou:

- Danny?

- O quê?

- Se houver problemas... dê um sinal. Um chamado forte como o que você deu minutos atrás. Pode ser que eu o escute até mesmo lá da Flórida. E, se isso acontecer, virei correndo.

- OK - disse Danny, com um sorriso.

- Juízo, meu garoto.

Fique tranqüilo.

Danny bateu a porta e correu atravessando o estacionamento em direção à varanda, onde Wendy estava parada segurando os cotovelos por causa do vento frio. Hallorann observava, com seu largo sorriso aos poucos murchando.

Não creio que haja alguma coisa aqui que o possa ferir. Não creio.

Mas, e se ele estivesse errado? Sabia que essa fora sua Ultima temporada no Overlook, desde que vira aquela coisa na banheira do quarto 217. Fora pior do que qualquer desenho em qualquer livro, e, olhando daqui, o menino correndo parecia tão pequeno...

Não creio.

Seus olhos voltaram-se para os arbustos em forma de

animais.

Ligou o carro bruscamente, engrenou-o e saiu, tentando não olhar para trás. E é claro que o fez, e naturalmente a porta estava fechada. Tinham entrado. Era como se o Overlook os tivesse engolido.

 

O maravilhoso passeio.

O que vocês conversaram, meu bem? - perguntou Wendy quando entraram.

- Nada de importante.

- Para uma coisa sem importância até que rendeu muito.

O filho encolheu os ombros, e Wendy sentiu no gesto o ar paternal de Danny; Jack dificilmente o faria melhor. Não arrancaria mais nada de Danny. Sentiu uma forte irritação misturada com um amor ainda maior: o amor não a ajudava em nada, a irritação veio da sensação de estar deliberadamente excluída. Com os dois, às vezes sentia-se como uma intrusa, um pouco como uma atriz que por acaso voltava ao palco, enquanto a cena mais importante estava sendo encerrada. Bem, seus dois homens irritantes não poderiam excluí-la neste inverno; estariam muito próximos para isso. De repente caiu em si, e notou que estava sentindo ciúme do apego entre o marido e o filho. Sentiu-se envergonhada. Isso se parecia muito com o que sua mãe deveria ter sentido. . parecido demais para servir de consolo.

O saguão agora estava vazio, restando apenas Uliman e o chefe da recepção (estavam na caixa registradora, contando o dinheiro), algumas empregadas em calças de lã e suéteres, paradas junto à porta da frente, olhando para fora com a bagagem em volta, e Watson, o gerente de suprimentos. Surpreendeu-a olhando para ele e piscou o olho. .. decididamente uma piscadela maliciosa. Wendy voltou os olhos para o outro lado. Jack estava na janela, bem junto do restaurante, estudando a paisaGem. Parecia absorto e sonhador.

A caixa registradora aparentemente batera, pois agora Uliman a fechava com um tapa autoritário. Rubricou a fita e guardou-a numa pasta de zíper. Wendy, em silêncio, aplaudia o chefe da recepção, que parecia aliviado. UlIman era o tipo de homem capaz de arrancar a pele do empregado. . . sem derramar uma gota de sangue. Wendy não dava muita importância a UlIman ou a sua maneira alvoroçada. Era como todos os patrões que conhecia, homens ou mulheres. Para os hóspedes, doce como sacarina, e um tirano nos bastidores com o pessoal de apoio. Mas os deveres terminaram e o prazer do chefe da recepção estava escrito no rosto. Terminaram para todos, exceto para Jack, Danny e ela.

Sr. Torrance - gritou Ullman, peremptório. - Quer vir até aqui, por favor?

Jack caminhou, fazendo um sinal com a cabeça para que Wendy e Danny fossem também.

O chefe da recepção, que saíra dali, voltava vestindo um casaco.

- Desejo-lhe um inverno muito agradável, Sr. Ullman.

- Duvido muito - falou Ullman, de longe. - Dia 12 de maio, Braddock. Nem um dia antes. Nem um dia depois.

- Sim, senhor.

Braddock deu a volta na recepção, o rosto sóbrio e cheio de dignidade, adequado a sua posição, mas quando estava de costas para Uliman, deu uma risadinha marota. Falou um pouco com as duas moças ainda junto da porta, esperando pela carona, e finalmente explodiu numa gargalhada sufocada.

Agora, Wendy começava a perceber o silêncio do lugar. Caíra sobre o hotel como um cobertor pesado cobrindo tudo, quebrado apenas pela vibração leve do vento da tarde, lá fora. De onde estava podia ver o escritório muito limpo e muito arrumado, com as duas mesas totalmente vazias e os dois arquivos cinzentos. Adiante, podia ver a imaculada cozinha de Hallorann, as grandes portas duplas abertas e presas por cunhas de borracha.

- Pensei em tomar uns poucos minutos a mais e mostrarlhes o Hotel - disse Ullman, e Wendy pensou que se podia sempre ouvir aquele H maiúsculo na voz de Ullman. – Estou certo de que seu marido conhecerá muito bem as entradas e saídas do Overlook, Sra. Torrance, mas a senhora e seu filho vão, sem dúvida, ficar mais pelo térreo e primeiro andar, onde estão seus alojamentos.

Sem dúvida - murmurou Wendy, afetada, e Jack lançou-lhe um olhar furtivo.

E um lugar maravilhoso - disse UlIman, expansivo.

- Gosto muito de exibi-lo.

Nota-se, pensou Wendy.

- Vamos ao terceiro andar e de lá iremos conhecer os demais lugares - disse Uliman. Falava positivamente entusiasmado.

- Se estivermos atrapalhando. . . - começou Jack.

- Não, não - interrompeu Uliman. - O movimento está encerrado. Tout fini, pelo menos por esta temporada. E pretendo pernoitar em Boulder. . . no Boulderado, claro, O único hotel decente do lado de cá de Denver. . . com exceção do próprio Overlook, naturalmente. Por aqui.

Tomaram, juntos, o elevador. Era ornado com arabescos de cobre e latão, mas parou muito antes de Uliman puxar a grade. Danny agitou-se desconfortável, e Ullman sorriu para ele. Danny tentou retribuir o sorriso sem nenhum sucesso.

- Não se preocupe, homenzinho - disse Ullman. - Seguro como uma casa.

- O Titanic também era - falou Jack, olhando para o globo de vidro lapidado no centro do teto do elevador. Wendy mordeu o canto da boca para não rir.

Uliman não achou graça. Abriu a grade interna com muito barulho.

- O Titanic só fez uma viagem, Sr. Torrance. Este elevador já fez milhares, desde que foi instalado em 1926.

Isso é reconfortante - disse Jack, agitando o cabelo de Danny. - O avião não vai cair, doutor.

Ullman levantou a alavanca e, por um momento, não houve nada a não ser um estremecimento sob seus pés e o choro torturante do motor debaixo deles. Wendy teve uma visão dos quatro ficando presos entre os andares como moscas numa garrafa e sendo encontrados na primavera. . . faltando-lhes pedaços. . . como os pioneiros canibais.

(Pare!)

O elevador começou, no início, a subir, com vibrações, batidas e pancadas. Depois, a subida ficou mais suave. No terceiro

andar, Ullman parou o elevador com um impacto, empurrou a grade e abriu a porta. O elevador ainda estava a alguns centímetros abaixo do nível do piso. Danny olhou atento para a diferença de altura entre o piso do terceiro andar e o do elevador, como se tivesse percebido que o universo não era tão racional como lhe fora dito. Ullman limpou a garganta e subiu o carro um pouco mais, parou-o com um solavanco (ainda cinco centímetros abaixo) e eles subiram o degrau de saída. Sem o peso, o elevador deu um solavanco e desceu quase até o andar térreo, coisa que Wendy não achou nada agradável. Seguro como uma casa ou não, decidiu usar a escada para subir ou descer neste lugar. E, em hipótese alguma, permitiria que os três entrassem juntos naquela geringonça.

-. O que está olhando, doutor? - indagou Jack, irônico.

- Está vendo manchas?

- Claro que não - disse Ullman irritado. - Todos os tapetes foram lavados com xampu, há dois dias.

Wendy olhou o tapete. Bonito, mas definitivamente não era o que escolheria para sua casa, se é que algum dia teria uma. Um tapete grosso, azul, estampado com o que parecia ser uma cena de uma selva surrealista, cheia de cipós, trepadeiras e árvores cheias de pássaros exóticos. Era difícil determinar o tipo de pássaros, porque todo o desenho fora feito em preto, sem sombreado, mostrando apenas os contornos.

Gosta do tapete? - perguntou Wendy a Danny.

- Gosto, mamãe - disse ele sem vivacidade.

Caminharam pelo corredor, que era confortavelmente amplo. O papel de parede era de seda, de um azul mais claro para fazer contraste com o tapete. Tocheiras elétricas estavam dispostas em intervalos de três metros, numa altura de dois metros. Adaptadas para parecerem com os lampiões de Londres, as lâmpadas ficavam disfarçadas por trás dos vidros foscos cercados com tiras de aço.

- Muito bonitas - disse Wendy.

Ullman concordou satisfeito.

- O Sr. Derwent instalou-se no hotel depois da guerra.. da Segunda Guerra, quero dizer. Aliás, a maior parte. . . não toda. . . da decoração do terceiro andar foi planejada por ele. Aqui está o número 330, a suíte presidencial.

Girou a chave na fechadura das largas portas de mogno e as abriu. A vista da sala de estar os deixou assombrados, o que era provavelmente a intenção de Ullman. Sorriu.

- Bela paisagem, não é?

E mesmo - disse Jack.

A janela corria de ponta a ponta, e diante dela o sol equilibrava-se entre os dois picos, espalhando luz pelas encostas e pela neve nos cumes. As nuvens, que cercavam este cartãopostal, eram também matizadas de dourado, e um raio de sol cintilava, leve, por entre os troncos dos pinheiros.

Jack e Wendy estavam tão distraídos com a vista, que fluo perceberam que Danny fitava com olhos fixos, não a paisagem, mas o papel de parede de seda, listrado de vermelho e branco, onde uma porta à esquerda dava para um quarto. E seu espanto, que se misturava ao deles, não teve nada a ver com a beleza.

Placas grandes de sangue seco, salpicadas de pedacinhos de tecido acinzentado, estavam grudadas no papel de parede. Danny sentiu nojo. Era como um desenho louco feito em sangue, uma gravura surrealista do rosto de um homem possuído pelo terror e dor, a boca aberta e metade da cabeça triturada.

(Portanto, se enxergar alguma coisa, olhe para o outro lado e, quando se voltar, já terá desaparecido. Está bem?)

Deliberadamente, olhou para a janela tendo o cuidado de não demonstrar nada na expressão, e, quando a mão de sua mãe se aproximou da sua, ele segurou-a, cuidando para não apertá-la, ou dar qualquer espécie de sinal.

O gerente dizia alguma coisa ao pai sobre a necessidade de manter o janelão bem fechado para que o vento forte não entrasse ali. Jack balançava a cabeça, concordando. Danny, com cuidado, olhou de volta para a parede. A mancha grande de sangue desaparecera. Aqueles pedacinhos de tecido acinzentado espalhados também haviam desaparecido.

Em seguida, Ullman os levou para outro lugar. Mamãe perguntou se achava as montanhas bonitas. Danny disse que sim, apesar de, de uma forma ou de outra, não ter dado muita importância às montanhas. Enquanto Uliman fechava a porta, Danny olhou de volta sobre os ombros. A mancha de sangue voltara, só que agora era fresca. O sangue corria. Ullman, olhando diretamente para o lugar, prosseguia com o comentário sobre os homens famosos que já haviam se hospedado ali. Danny descobriu que mordera o lábio com força o suficinte para sangrá-lo, e nem sequer sentira. Andando pelo corredor, ficou um pouco atrás, limpou o sangue com a mão, e pensou sobre

(sangue)

(O Sr. Hallorann vira sangue, ou coisa pior?)

(Não creio que essas coisas possam feri-lo.)

Havia um grito estridente por trás de seus lábios, não o deixaria escapar. Seus pais não podiam ver tais coisas; nunca conseguiam. Ficaria calado. Papai e mamãe estavam-se amando, e aquilo era uma coisa real, O resto era como desenhos de um livro. Alguns eram assustadores, mas não lhe podiam fazer mal. Eles. . . não lhe podiam. . . fazer mal.

O Sr. Ullman mostrou mais alguns quartos no terceiro andar, levando-os por corredores que se emaranhavam e davam voltas. Como um labirinto. Tudo é uma delícia, aqui em cima, disse o Sr. Ullman, apesar de Danny não ver nenhum doce. Mostrou-lhes alguns quartos onde uma senhora chamada Marilyn Monroe ficara uma vez quando era casada com um homem de nome Arthur Miller (Danny entendeu vagamente que Marilyn e Arthur se divorciaram não muito tempo depois de passarem pelo Hotel Overlook).

- Mamãe?

- Que é, meu bem?

- Se eram casados, por que tinham nomes diferentes? Você e papai têm os mesmos nomes.

- Sim, mas nós não somos famosos, Danny --- disse Jack.

- As mulheres famosas conservam os mesmos nomes mesmo depois de casadas, pois seus nomes são seu ganha-pão.

- Ganha-pão - repetiu Danny, completamente iludido.

- O que papai quer dizer é que o povo gostava de ir ao cinema e ver Marilyn Monroe - disse Wendy -, mas podia ser que não gostassem de ver Marilyn Milier.

- Por que não? Ela seria ainda a mesma mulher. Ninguém saberia disso?

- Sim, mas. . . - Olhou para Jack sem saber o que dizer. Truman Capote ficou uma vez neste quarto - interrompeu Uliman, impaciente. Abriu a porta. - Foi na minha epoca, Um homem tremendamente simpático. Fino.

Não havia nada de extraordinário em nenhum desses quartos (exceto a falta de doces, a que o Sr. Uliman ficava-se referindo), nada que Danny pudesse temer. Aliás, havia apenas uma Coisa ou outra no terceiro andar que o aborrecia, e não sabia dizer por quê. Era o extintor de incêndio que vira na parede exatamente antes de voltarem para o elevador que lá estava parado esperando, como se fosse uma boca cheia de dentes de Ouro.

Era um extintor antigo, a mangueira achatada e dobrada umas doze vezes sobre si própria, uma extremidade presa a uma grande válvula vermelha, a outra terminando num bocal de metal. As dobras da mangueira eram presas a uma dobradiça por uma tira vermelha de aço. Em caso de incêndio, removia-se a tira de aço com um empurrão forte, e a mangueira estaria pronta. Danny olhava aquilo tudo; gostava de observar o funcionamento das coisas. Quando tinha dois anos e meio conseguia abrir a grade protetora que o pai instalara no topo da escada, na casa de Stovington. Vira como funcionava o cadeado. O pai dizia que era uma questão de JEITO. Algumas pessoas tinham JEITo, outras não.

Este extintor era um pouco mais antigo do que Outros que já vira - o do jardim de infância, por exemplo -, mas não era tão fora do comum. No entanto, sentia-se incomodado em ver a mangueira enrolada junto ao papel de parede azul-claro, como uma cobra adormecida. E ficou feliz quando não a viu mais.

- É claro que todas as janelas têm que ficar fechadas - disse o Sr. Uliman enquanto entravam no elevador. Mais uma vez o carro desceu. - Mas me preocupo principalmente com a janela da suíte presidencial. A primeira conta de conserto da. quela janela foi de quatrocentos e vinte dólares, e isso há trinta anos. Hoje, sua recolocação custaria oito vezes mais.

- Vou mantê-la fechada - disse Jack.

Desceram ao segundo andar, onde havia mais quartos, mais emaranhados e voltas dos corredores. A luz das janelas começava a morrer, agora que o sol estava indo para trás das montanhas. O Sr. Ullman mostrou um ou dois quartos, e foi só. Passaram em frente ao 217, aquele contra o qual Dick Hallorann o prevenira, com grande ênfase. Danny olhou para a plaqueta da porta com inquietante fascinação.

De volta ao primeiro andar. Ali o Sr. Ullman não mostrou nenhum quarto até chegarem à escada finamente atapetada, que levava de volta ao saguão.

- Aqui estão seus aposentos - disse ele. - Creio que ficarão satisfeitos.

Entraram. Danny estava preparado para qualquer coisa que estivesse ali, Não havia nada.

Wendy Torrance sentiu uma sensação forte de alívio. A suíte presidencial, com sua elegância austera, fez com que ela se sentisse estranha e desajeitada - uma coisa era visitar um edifício histórico restaurado, com uma placa ornamental mdicando que Abraham Lincoin ou Franklin D. Roosevelt haviam dormido ali, mas outra coisa inteiramente diferente era imaginar-se deitada com o marido, debaixo de lençóis de linho, e talvez fazendo amor, onde os homens mais famosos do mundo deitaramse uma vez (os mais poderosos, enfim, corrigiu ela). Mas este apartamento era mais simples, mais aconchegante, quase convidativo. Pensou que poderia tolerar o lugar durante a temporada sem grande dificuldade.

É muito agradável - disse ela a Ullman, e sentiu gratidão na própria voz.

Uliman meneou a cabeça, concordando.

- Simples, mas confortável. Durante a temporada, aqui ficam o cozinheiro e sua mulher, ou o cozinheiro e seu auxiliar.

- O Sr. Hallorann morou aqui? - interrompeu Danny.

O Sr. Ullman inclinou, condescendente, a cabeça para Danny.

- Digamos que sim. Ele e o Sr. Nevers. - Voltou-se para Jack e Wendy. - Esta é a sala de estar.

Havia várias cadeiras que pareciam confortáveis sem serem caras, uma mesinha de canto que já fora elegante, mas que tinha agora uma grande lasca do lado, duas estantes (cheias de condensações de livros publicados pelo Reader’s Digest, e trilogias de histórias de detetives da década de 40, que Wendy viu com satisfação), e uma televisão comum, menos elegante do que os consoles de madeira amarela dos quartos.

- Não há cozinha, naturalmente - disse Ullman -, mas há um elevador para comida. Este apartamento está exatamente em cima da cozinha.

Foi para junto de um painel e dali tirou uma bandeja quadrada, larga. Empurrou-a e ela desapareceu, arrastando a corda atrás de si.

- É uma passagem secreta! - disse Danny, excitado, para a mãe, esquecendo momentaneamente todos os medos com relação àquele cabo atrás da parede. - Exatamente como Abbot e Costeilo encontram os monstros!

O Sr. Ullman franziu a testa, mas Wendy sorriu indulgente. Danny correu até o elevador e observou o cabo com atenção.

- Por aqui, por favor.

Uliman abriu a porta no fundo da sala de estar. Dava para um quarto espaçoso e arejado. Havia duas camas. Wendy olhou Para o marido sorrindo, encolhendo os ombros.

- Não há problema - disse Jack. - Juntaremos as camas.

O Sr. Ullman olhou de soslaio, realmente confuso.

- Como?

- As camas falou Jack, satisfeito. - Podemos juntá-las.

- Ah, sim - disse Ullman, ainda confuso. Em seguida, sua fisionomia clareou e ele ficou vermelho. - Como quiserem.

Levou-os de volta à sala de estar, onde uma outra porta dava para um segundo quarto, este equipado com um beliche. Um aquecedor zunia num canto, e o tapete no assoalho era de um estampado horrível de selva e cactos. . . Danny já estava apaixonado por ele, Wendy percebeu. As paredes deste quarto menor eram revestidas com lambri de pinho.

- Acha que dá para agüentar isto aqui, doutor? - perguntou Jack.

- Claro que sim. Vou dormir na cama de cima. OK?

- Se é o que quer.

- Gosto do tapete, também. Sr. Ullman, por que não coloca todos os tapetes iguais?

o gerente parecia ter enterrado os dentes num limão. Em seguida, sorriu e deu uma batidinha na cabeça de Danny.

- São seus aposentos - disse ele -, exceto o banheiro, que dá para o quarto principal. Não é um apartamento enorme, mas naturalmente terão o resto do hotel para se espalharem. A lareira do saguão está funcionando bem, assim me disse Watson, e sintam-se à vontade se quiserem comer no restaurante.

Falava como se estivesse concedendo um grande favor.

- Muito bem - disse Jack.

Vamos descer? - perguntou Uliman.

- Vamos - respondeu Wendy.

Desceram pelo elevador, e o saguão estava agora completamente deserto, restando somente Watson, que estava recostado à porta principal, vestindo uma jaqueta de couro cru, com um palito entre os dentes.

- Pensei que já estivesse a quilômetros daqui .- disse Ullman, com a voz um pouco fria.

- Estou por aqui só para lembrar ao Sr. Torrance sobre a caldeira - falou Watson se ajeitando. - Fique de olho nela, cara, e tudo vai correr bem. Baixe a pressão algumas vezes durante o dia. Ela costuma aumentar.

Ela aumenta, pensou Danny, e as palavras ecoaram pelo

corredor comprido e silencioso de sua mente, um corredor cheio de espelhos para onde as pessoas raramente olhavam.

- Fique tranqüilo disse o pai.

- Tudo de bom - desejou Watson, estendendo a mão. Jack apertou-a. Watson voltou-se para Wendy e inclinou a cabeça. - Madame - disse ele.

- Muito prazer - respondeu Wendy, e pensou que o que dissera tinha sido um absurdo. Não. Viera da Nova Inglaterra, onde passara a vida, e parecia-lhe que em poucas palavras este homem, Watson, de cabelos encaracolados, resumira o que era o oeste. E não se incomodou com a piscadela safada de horas antes.

- Jovem Mestre Torrance - disse Watson sério, estendendo a mão. Danny, que há um ano aprendera a cumprimentar, estendeu a mão com energia, e sentiu-a engolida. - Cuide bem deles, Dan.

- Sim, senhor.

Watson largou a mão de Danny e ajeitou-se. Olhou para UlIman.

- Até o ano que vem, penso eu falou, estendendo a mão.

Ullman tocou-a com frieza. Seu anel rosado brilhava terrivelmente sob as luzes do saguão.

- Doze de maio, Watson. Nem antes, nem depois.

- Sim, senhor disse Watson, e Jack quase que podia ler o pensamento de Watson eu velho filho da puta.

- Felicidades, Sr. Hullman.

- Oh, duvido muito retrucou Ullman, sem dar importância.

Watson abriu uma das duas grandes portas principais; o vento assobiou mais alto e sacudiu a gola de sua jaqueta.

- Juízo, pessoal.

- Sim, senhor, teremos - respondeu Danny.

Watson, de quem um parente não muito distante fora proprietário do lugar, escorregou pela porta. Ela se fechou atrás dele, amortecendo o vento. Juntos, observaram-no descer os largos degraus de entrada com as botas velhas de vaqueiro. Folhas frágeis, amarelas, de álamo rolavam em volta de seus calcanhares, enquanto atravessava o pátio para tomar a caminhonete. Uma fumaça azul saiu do carro enferrujado e cansado, quando o mesmo foi ligado. A força mágica do silêncio envolveu-o, enquanto watson engatava a ré e deixava o estacionamento. A caminhonete desapareceu no alto da colina e reapareceu em seguida menor, na estrada principal, rumo oeste.

Por um momento, Danny sentiu-se mais solitário do que nunca.

 

A entrada

A família Torrance estava parada na grande varanda de entrada do Hotel Overlook como se estivesse posando para uma fotografia, Danny no meio, com a jaqueta do outono passado fechada até o pescoço, e que já estava muito pequena e começando a esgarçar no cotovelo; Wendy atrás dele com a mão sobre seu ombro, e Jack à esquerda, com a mão levemente pousada sobre a cabeça do filho.

O Sr. Ullman estava um degrau abaixo deles, enfiado num casaco de pêlo de cabra angorá, marrom e de aparência cara. O sol estava agora completamente por trás das montanhas, infiltrando-se como fogo dourado, fazendo as sombras em redor ficarem compridas e de cor violeta. Os únicos três carros que estavam no estacionamento eram o caminhão do hotel, o Lincoln Continental de Ullman e o VW arrebentado de Torrance.

- Está com as chaves, então - disse Uliman a Jack -, e tudo entendido sobre a fornalha e a caldeira?

Jack balançou a cabeça afirmativamente, sentindo verdadeira pena de Ullman. Tudo pronto, e a bola de barbante estava cuidadosamente enrolada até 12 de maio próximo - nem um dia antes, nem depois -, e Ullman, o responsável por tudo que se referia ao hotel com inconfundível paixão, não podia disfarçar a preocupação.

- Acho que está tudo sob controle - disse Jack.

- Bom. Vou comunicar-me com você. - Mas Ullman ainda hesitava, como se esperasse que o vento o tomasse pela mão e talvez o levasse até o carro. Suspirou. - Muito bem. Desejo-lhes felicidades, Sr. Torrance, Sra. Torrance. Para voce também, Danny.

- Muito obrigado, senhor disse Danny. - Desejo-lhe o mesmo.

- Duvido muito - repetiu Ullman, triste. - O lugar para onde vou na Flórida é uma porcaria, para dizer a verdade. É emprego, não é trabalho. O Overlook é o meu verdadeiro trabalho. Cuide dele por mim, Sr. Torrance.

- Acho que ele ainda vai estar no mesmo lugar, quando o senhor voltar, na primavera disse Jack, e um pensamento lampejou na mente de Danny (e nós, estaremos?) e desapareceu.

- Claro. Claro que estará.

Ullman olhou para o parque onde os arbustos em formato de animais farfalhavam ao vento. Baixou a cabeça, mais uma vez, de modo muito profissional.

- Então, até a próxima.

Caminhou apressado e afetado para o carro - aliás, um carro grande, ridículo para um homem tão pequeno - e se enfiou nele. O motor do Lincoln roncou e as lanternas traseiras acenderam-se enquanto saía da vaga. Quando o carro partiu, Jack conseguiu ler a plaquinha que dizia: “RESERVADO PARA O SR. ULLMAN, GERENTE”.

- Certo - disse jack, calmamente.

Ficaram olhando o carro até o perderem de vista, no declive. Quando desapareceu, os três se entreolharam em silêncio, e quase apavorados. Estavam sozinhos. Folhas de álamo rodopiavam e deslizavam sem rumo, pela grama muito bem cortada e longe dos olhos de qualquer hóspede. Não havia ninguém para ver as folhas de outono correndo furtivas pela grama, só os três. Jack teve uma curiosa sensação de voltar atrás, como se sua vida se tivesse reduzido a uma simples faísca, enquanto o hotel e o solo de repente duplicavam seu tamanho e tornavam-se sinistros, tolhendo-os com um poder sombrio e inanimado.

Wendy disse então:

- Veja só, doutor. Seu nariz está escorrendo como mangueira de um extintor de incêndio. Vamos entrar.

E entraram, fechando a porta com força contra o incessante assobio do vento.

 

O ninho de vespas

No telhado

Oh, sua desgraçada filha da puta!

Jack Torrance gritou estas palavras tanto de surpresa quanto de aflição, dando um tapa com a mão direita na camisa de cambraia azul, afugentando a vespa lenta e grande que o aferroara. Começou a escalar então o teto, o mais rápido que podia, olhando para trás para ver se os irmãos e irmãs da vespa levantavam-se do ninho que descobrira, para lhe declarar guerra. Se o fizessem, não seria nada bom; o ninho ficava entre ele e a escada, e o alçapão que dava para o sótão estava trancado por dentro, O teto ficava a vinte metros do chão cimentado do pátio, entre o hotel e a grama.

O ar sobre o ninho estava parado e tranqüilo.

Jack assobiou, aborrecido, por entre os dentes, sentou-se com as pernas abertas, no topo do telhado, e examinou o dedo indicador direito. Já estava inchando, e supôs que teria que procurar rastejar até a escada, passando pelo ninho, para poder descer e colocar gelo no dedo.

Era 20 de outubro. Wendy e Danny tinham ido a Sidewinder no caminhão do hotel (um Dodge velho e barulhento que ainda assim era mais digno de confiança do que o Volkswagen que agora estava cansado, e chegara ao fim) para comprar leite e fazer compras de Natal. Era cedo para tais compras, mas não se podia dizer quando a neve viria para ficar. Já tinham tido uma neve fraquinha, e em alguns lugares a estrada abaixo do Overlook estava escorregadia.

Até agora, o outono tinha sido de uma beleza quase sobrenatural. As três semanas que já haviam passado ali tinham sido de dias dourados. Manhãs frias de um grau abaixo de zero davam lugar às tardes de temperatura por volta dos quinze graus, que eram perfeitas para se subir no telhado da ala oeste O Overlook e trabalhar nas telhas de madeira. Jack admitira francamente para Wendy que poderia ter terminado o trabalho quatro dias antes, mas não viu nenhuma necessidade real de se apressar. A vista dali de cima era espetacular, mesmo comparada à da suíte presidencial. Mais importante do que o próprio trabalho, era a calma. No telhado, sentia-se curado das feridas sofridas nos últimos três anos. No telhado, sentia-se em paz. Aqueles três anos começavam a parecer pesadelos turbulentos.

As telhas de madeira estavam podres, algumas totalmente quebradas pelas tempestades do inverno anterior. Ele as removera todas gritando “Fora, porcarias”, jogando-as para o lado, pois não queria que Danny fosse atingido, caso estivesse andando por ali. Estava arrancando um caibro podre quando a vespa o atingiu.

A parte irônica da história é que ele se acautelara toda vez que subira no telhado, ficando de olho nas vespas; levara a bomba de inseticida só para constar. Mas esta manhã a calma e a paz tinham sido tão completas, que seu poder de observação falhara. Voltara ao mundo da peça que estava criando aos poucos, rascunhando na cabeça uma cena qualquer em que trabalharia naquela noite. A peça ia bem e, apesar de Wendy não ter feito muitos comentários, sabia que ela estava gostando. Tivera um bloqueio na cena crucial, durante os últimos infelizes seis meses em Stovington, meses esses em que a ânsia de beber era tanta que só com muita dificuldade podia concentrar-se nas atividades da sala de aulas, afastando suas ambições literárias extracurriculares.

Mas nas últimas doze noites, sentado diante da escrivaninha que tomara emprestado do escritório do andar de baixo, o bloqueio praticamente desaparecera, tão magicamente quanto algodão-doce se dissolvendo na boca. Tivera quase sem esforço a visão, que sempre lhe faltara, do caráter de Denker, o diretor sádico, e reescrevera a maior parte do segundo ato, adequadamente, fazendo-o girar em torno da nova cena. E o terceiro ato, cada vez mais claro, já revolvia sua mente, quando a vespa interrompeu sua imaginação. Pensou que pudesse rascunhá-lo em duas semanas, e ter o original definitivo da maldita peça no Ano-Novo.

Ele tinha uma representante em Nova York, uma mulher valente chamada Phyllis Sandler, que fumava cigarros Herbert Tareytons, bebia John Beam em copo de papel e achava que a literatura começava e terminava com Sean O’Casey. Ela escolhera três contos de Jack, incluindo o da Esquire. Ele lhe escrevera sobre a peça que se chamava A pequena escola e que descrevia o conflito básico entre Denker, um estudante privilegiado que fracassara ao se tornar o diretor estúpido de uma escola preparatória entre um século e outro, na Nova Inglaterra, e Gary Benson, o aluno que ele vê como a versão de si mesmo. Phyllis respondera demonstrando interesse e o advertindo para que lesse O’Casey antes de escrever a peça. Ela escrevera novamente naquele ano perguntando em que ponto, afinal, estava a peça. Jack respondera com evasivas que A pequena escola estava indefinidamente - e talvez definitivamente - parada entre a pena e a página “naquele interessante deserto de Góbi intelectual, conhecido como bloqueio mental do autor”. Agora, sentia que ela receberia a peça. Se era boa ou não, ou se na realidade seria produzida, era outro negócio. E ele não parecia dar muita importância a esse tipo de coisa. Sentia-se como se a peça em si, a coisa toda, fosse uma síntese, um símbolo colossal dos anos tristes na escola preparatória de Stovington, do casamento que quase fracassara como se fosse um rapaz maluco dirigindo um calhambeque, o monstruoso ataque ao filho, o incidente com George Hatfield no estacionamento, que hoje não via mais como uma simples explosão de seu temperamento. Achava agora que parte do seu problema com bebida resultara de um desejo inconsciente de se ver livre de Stovington, e a segurança por ela representada, a qual sufocava qualquer estímulo criativo que tivesse. Parara de beber, mas a necessidade de se libertar era igualmente grande. Daí, George Hatfield. Agora, tudo que restava daqueles dias era uma peça sobre a escrivaninha no quarto que dividia com Wendy, e que depois de pronta e enviada à caixa postal de Phyllis, em Nova York, permitiria que ele se voltasse para outras coisas. Não um romance, não estava preparado para agüentar outro emprego de zelador por mais três anos, mas, com certeza, mais contos. Talvez um volume deles.

Movimentando-se com cuidado, engatinhou pelo telhado abaixo, passando pela linha de demarcação. Chegou ao canto esquerdo do ninho das vespas que descobrira e moveu-se cauteloso em sua direção, pronto para sair de perto e correr escada abaixo, se as coisas ficassem pretas.

Inclinou-se sobre o buraco e o examinou.

O ninho ali estava, encolhido no espaço entre o caibro ve‘no e o forro do telhado. Era um ninho enorme. A bola de papel acinzentada parecia a Jack ter quase sessenta centímetros de diâmetro. A forma não era perfeita, pois o espaço entre o caibro e o forro era muito estreito, mas ainda assim achava que os pequenos insetos haviam executado um trabalho razoavelmente respeitável. A superfície do ninho estava cheia de insetos lentos e pesados. Eram perigosos. Tinham-se rendido estupidamente devido à queda de temperatura no outono, mas Jack, que entendia de vespas desde a infância, deu-se por feliz por ter sido picado só uma vez. E, pensou, se Ullman quisesse o trabalho feito em pleno verão, o cara que arrancasse aquele pedaço de caibro teria uma enorme surpresa. De verdade. Quando uma dúzia de vespas perigosas ataca você de uma só vez e começa a picar-lhe o rosto, as mãos e braços e, ainda, as pernas por cima das calças, é inteiramente possível que você esqueça que está a uma distância de vinte metros do soio. Pode-se despencar telhado abaixo, enquanto se tenta fugir delas. Tudo por causa dessas coisinhas, a maior delas com apenas a metade do comprimento de um toco de lápis.

Lera em algum lugar - um pedaço de um suplemento de domingo ou algum artigo de revista - que sete por cento de todas as fatalidades automobilísticas são inexplicáveis. Nenhuma falha mecânica, nem excesso de velocidade, bebida alcoólica, ou mau tempo. Simplesmente, um carro se acidenta em áreas desertas das estradas (um único morto, o motorista, sem poder explicar o que aconteceu). O artigo incluía uma entrevista com um policial que teorizava que muitos desses tais “acidentes inexplicáveis” resultaram de insetos no carro. Vespas, abelhas, possivelmente até aranhas ou mariposas. O motorista entra em pânico, tenta dar um golpe violento no inseto ou abrir a janela para deixá-lo sair. Provavelmente o inseto o pica. Talvez o motorista perca o controle. De qualquer forma, é pancada. . . para tudo quanto é lado. E o inseto, geralmente ileso, zumbindo feliz, deixa os destroços em chamas à procura de pastos melhores. O policial era a favor de que os patologistas procurassem pelo veneno do inseto ao fazerem a autópsia em tais vítimas, lembrava-se Jack.

Agora, observando o ninho, parecia-lhe que servia tanto como uma imagem aperfeiçoada do que vivera quanto como presságio de dias melhores. De que outra forma se poderia explicar o que lhe acontecera? Pois ainda sentia que as experiências negativas que tivera em Stovington tinham que ser olhadas com Jack Torrance como agente passivo. Não fizera coisas; coisas haviam sido feitas com ele. Conhecera muitas pessoas do

corpo docente de Stovington, duas delas exatamente no departamento de inglês, que eram beberronas. Zack Tunney tinha o hábito de pegar um barril cheio de cerveja, nas tardes de sábado, colocá-lo no quintal, no meio da neve, e acabar com ele no dia seguinte, assistindo ao futebol e aos filmes velhos. ainda assim, a semana inteira, Zack era sóbrio como um juiz: um pequeno coquetel no almoço era uma festa.

Al Shockley e ele eram alcoólatras. Procuravam-se um ao outro como dois rejeitados, que ainda eram sociáveis o bastante para preferirem afogar-se juntos, ao invés de fazerem-no sozinhos, O mar tinha cevada, ao invés de sal.

Olhando para as vespas, enquanto elas, devagar, executavam seu trabalho instintivo antes que o inverno chegasse para matá-las todas, deixando apenas a rainha hibernada, ele ia mais longe. ainda era um alcoólatra, sempre seria, talvez o fosse desde o primeiro ano do curso colegial noturno, quando bebera seu primeiro drinque. Não tinha nada a ver com força de vontade, moralidade, fraqueza ou força de caráter. Havia um parafuso solto em algum lugar lá dentro, ou um interruptor qualquer que não funcionava, e ele tinha sido impelido pela correnteza, a princípio devagar, depois acelerando, à medida que Stovington o pressionava. Ou como se estivesse num escorregador gigante, onde, no final, havia uma bicicleta despedaçada e sem dono, e um filho com um braço quebrado. Da mesma forma, Jack Torrance como agente passivo, com seu temperamento difícil. A vida inteira tentando controlá-lo. Recordava-se de quando tinha sete anos, sendo espancado por uma vizinha, porque brincava com fósforos, Saíra e atirara uma pedra num carro que passava. O pai, tendo visto, agrediu o pequeno Jacky, aos berros. Deixou seu traseiro vermelho.., e o olho roxo. E quando o pai entrou em casa, resmungando, para assistir à televisão, Jack viu um cachorro vira-lata e chutou-o para a sarjeta. Tivera duas dúzias de brigas no primário, mais outras ainda no ginásio, que lhe garantiram duas suspensões e incontáveis castigos, apesar das boas notas. O futebol funcionava como uma válvula parcial de escape, apesar de se lembrar perfeitamente de que passava os Jogos inteiros puro da vida, bloqueando e derrubando os jogadores Como se fossem seus inimigos pessoais. Era um bom jogauor, participara dos campeonatos intercolegiais do ginásio e do colégio, e sabia muito bem que lhe era difícil agradecer. . . ou Culpar. Não gostava de futebol. Toda partida era um horror.

E ainda assim, apesar de tudo, não se sentia um filho da puta. Não se considerava sórdido. Julgava-se um sujeito bacana que só tinha que aprender a lutar contra seu mau gênio, antes que se metesse em confusão. Assim como tinha que aprender a lutar contra a bebida. Mas era um alcoólatra emocional tanto quanto físico, ambos, sem dúvida, ligados em algum ponto, em seu interior, onde não se podia ver. Mas não lhe importava muito se as causas primárias eram interligadas ou independentes, sociais, psicológicas ou fisiológicas. Tinha que arcar com as conseqüências: espancamentos, tapas de seu velho, suspensões, tentativas de explicar o uniforme de escola rasgado nas brigas no parque, e, mais tarde, as ressacas, a lenta dissolução de seu casamento, aquela única roda de bicicleta com os raios tortos apontados para o céu, o braço quebrado de Danny. E George Hatfield, naturalmente.

Sentiu que tinha inconscientemente enfiado a mão no “maior ninho de vespas do mundo”. Como imagem era péssima. Como perfil da realidade, considerava-o útil. Enfiara a mão num caibro podre em pleno verão, e aquela mão e o braço inteiro consumiram-se em fogo sagrado, destruindo todo pensamento consciente, tornando esquecido o conceito de comportamento civilizado. Pode-se esperar que alguém aja como um ser humano racional, quando sua mão está sendo espetada por malditas agulhas incandescentes? Pode-se esperar que se ame o próximo, quando a nuvem escura e furiosa se ergue de um buraco num caibro (caibro esse que você julgava tão inocente) e se lança como flecha em sua direção? Pode alguém considerar-se responsável por suas próprias ações, quando enlouquece em cima de um telhado a vinte metros do solo, sem saber para onde correr, em pânico, quando um passo em falso poderá leválo acidental e desastradamente para a morte, no concreto, vinte metros abaixo? Jack não achava que isso fosse possível. Quando, inadvertidamente, alguém enfia a mão em um ninho de vespas, é como se fizesse um pacto com o Diabo, jogando para o alto seu eu civilizado com os conceitos de amor, respeito e honra. A coisa simplesmente acontece. Passivamente, sem nenhum aviso, você deixa de ser uma criatura racional, para tornar-se um ser irracional; de homem civilizado a deplorável macaco, em apenas cinco segundos.

Pensou em George Flatfield.

Alto e louro, George era um rapaz de uma beleza quase agressiva. Nos jeans apertados e desbotados e na camiseta de Stovington com as mangas cuidadosamente dobradas até os cotovelos, exibindo os braços bronzeados, lembrava a Jack um Robert Redford jovem, e duvidava que George tivesse muita dificuldade em marcar tentos - não mais do que aquele jovem demônio do futebol que Jack Torrance fora há dez anos. Podia dizer, honestamente, que não tinha inveja de George, ou de sua aparência; aliás, começara quase que inconscientemente a visualizar George como a encarnação do herói de sua peça, Gary Benson - o oposto do negro Denker, fracassado e envelhecido, que veio a odiar Gary com intensidade. Mas ele, Jack Torrance, nunca se sentira assim em relação a George. Se algum dia sentiu, não se deu conta. Estava certo disso.

George boiava em suas aulas em Stovington. Astro do futebol e do beisebol, seu currículo deixava muito a desejar, mas ele se contentava com notas 4 e esporádicos 7 em história e botânica. No campo, era um competidor feroz, mas na sala de aula era um aluno indiferente e distraído. Jack estava habituado com o tipo, mais pela vivência de seu tempo de estudante secundário e universitário do que por suas observações como professor experimentado. George Hatfield era um atleta. Podia ser uma figura calma e insignificante na sala de aula, mas, quando lhe eram aplicados os estímulos competitivos certos (como elétrodos nas têmporas do monstro de Frankenstein, pensou Jack), podia transformar-se em um ídolo.

Em janeiro, George se candidatara, com mais doze alunos, à equipe de debates. Fora muito franco com jack. O pai era advogado de empresa, e queria que o filho seguisse sua carreira. George, que não tinha vocação para mais nada, concordara. Suas notas não eram das melhores, mas, afinal de contas, aquela era apenas uma escola preparatória, e ainda havia tempo. Se as suposições se concretizassem, o pai poderia mexer os pauzinhos. A própria habilidade atlética de George abriria ainda outras portas. Mas Brian Hatfield achava que o filho devia fazer parte da equipe de debates. Seria bom como experiência, e era algo a que os conselhos de admissão das escolas de direito sem pre davam valor. Então, George entrou para a equipe de debates, e, em fins de março, Jack excluiu-o da equipe.

Os últimos debates do inverno entre as diversas equipes irritaram o espírito competitivo de George Hatfield. Ele torflOu-se um péssimo argumentador, com seus prós e contras feOZrnente preparados. Não importava que o assunto fosse a iegalizç0 da maconha, o restabelecimento da pena de morte,

-Ou subsídios à exploração do petróleo. George tornou-se conhecido, e era chauvinista o bastante para sinceramente valorizar sua posição, uma qualidade rara e valiosa até em argumentado res de alto nível, sabia Jack. As personalidades de um aventureiro político e de um argumentador não estavam muito longe uma da outra; ambas apaixonadamente ficavam à espreita da melhor oportunidade. Até aqui tudo bem.

Mas George Hatfield era gago.

Isso não era um obstáculo que aparecesse na sala de aula, onde George se mantinha sempre impassível e indiferente (tivesse ou não feito os deveres de casa), e, especialmente, nas quadras de esportes de Stovington, onde conversar não era uma virtude e, às vezes, até expulsavam jogadores por excesso de discussão.

Quando George se envolvia totalmente em um debate, a gagueira aparecia. Quanto mais impaciente ficava, pior se tornava. E quando marcava um opositor, uma espécie de febre intelectual parecia implantar-se entre o centro da fala e sua boca, e ficava mais forte à medida que o tempo passava. Era doloroso de se ver.

- En-t-t-tão, eu ach-ch-cho que p-p-podemos dizer que os f-f-f-fatos no c-caso de as cidades do Sr. D-D-D-Dorsky serem dadas como ob-b-b-bsoletas por c-causa da última d-d-decisão tomada...

A campainha tocava, e George, confuso, olhava furioso para Jack, sentado ao lado. O rosto de George naqueles momentos ruborizava-se, ao mesmo tempo que ele amassava nervosamente seus apontamentos.

Na esperança que desse um bom resultado, Jack insistira com George muito tempo antes de o rapaz ter deliberadamente cortado os pneus de seu carro. Lembrava-se de um fim de tarde, cerca de uma semana antes de ter, com relutância, entregado os pontos. George ficara na escola, depois de os outros terem saído, e então defrontou-se com Jack, com raiva.

- Você adiantou o cr-cr-cronômetro.

Jack levantou os olhos dos papéis que colocava de volta na pasta.

- George, de que você está falando?

- Você não me deu os cinco m-m-minutos completos. Adiantou o cr-cr-cronômetro. Eu estava olhando o rererelóg10.

- O relógio e o cronômetro podem ter uma pequena diferença, George; mas nunca procurei adiantar porcaria nenhuma. Eu lhe asseguro.

- V-V-Você fez isso sim!

O modo violento e incisivo com que George olhava acendeu o mau gênio de Jack. Fazia dois meses que não bebia, muito tempo, e ele estava arrasado. Tentou conter-se pela última vez.

- Posso garantir-lhe que não, George. É a sua gagueira. Tem alguma idéia da causa? Você não gagueja em aula.

- Eu n-n-não s-s-sou g-g-gag-gago!

- Fale baixo.

- V-V-Você q-quer p-pegar-me! Você n-não me q-quer ria sua m-m-maldita t-turma!

- Fale baixo, já disse. Sejamos racionais.

- Uma p-p-porra!

- George, se controlar sua gagueira, ficarei contente em tê-lo na equipe. Você está bem preparado e tem boa cultura, o que significa que raramente é apanhado de surpresa. Mas tudo isso não significa muito, se não puder controlar essa.

- N-n-nunca gaguejei! - gritou o rapaz. - É v-você! Se outra p-p-pessoa ficasse enc-encarregada da e-q-q-quipe de d-d-d-debates, eu poderia.

Jack não conseguiu conter seu mau gênio.

- George, você nunca será um bom advogado, nem de empresa nem de qualquer outra especialidade, se não conseguir controlar-se. Direito não é futebol. Duas horas de treino toda noite não vão acabar com isso. O que você vai fazer, pôrse de pé diante do conselho diretor e dizer: “Ag-ggg-gora, s-senhores, sobre este p-problema”?

De repente, Jack ruborizou-se, não de raiva, mas de vergonha por sua crueldade. Na sua frente não havia um homem, mas sim um rapaz de dezessete anos, que enfrentava a primeira grande derrota de sua vida, e talvez usasse da única maneira que dispunha para fazer Jack ajudá-lo a vencer.

George lançou-lhe um olhar final e furioso, contorcendo os lábios, lutando contra as palavras que se engarrafavam por tras e faziam esforço para sair.

- V-V-Você m-mesmo ad-d-admite! Você m-me d-d-detesta P-porque s-s-s-sabe. . . você sabe. . . s-s-s-.

Com um grito inarticulado correu para fora da sala de aula, batendo a porta com força suficiente para fazer estalar o vidro reforçado por arame. Jack ficara ali parado, sentindo, ao Uives de ouvir, o eco dos seus passos no corredor vazio. ainda sob o domínio do temperamento e da vergonha por ter zombado da gagueira de George, o seu primeiro pensamento foi uma espécie de alegria doentia: pela primeira vez na vida, George Hatfield quisera algo que não poderia ter. Pela primeira vez havia alguma coisa errada que nem todo o dinheiro do pai poderia comprar. Não se pode subornar o centro da fala. Não se pode oferecer cinqüenta dólares por semana e mais uma bo nificação de Natal à língua, para que ela concorde em parar de vibrar como uma agulha de vitrola numa ranhura. Em seguida, a alegria foi simplesmente sufocada pela vergonha, exatamente o que sentira depois que quebrou o braço de Danny.

Deus do céu, eu não sou um filho da puta. Por favor.

Aquela alegria doentia pela saída abrupta de George era mais típica de Denker, na peça, do que de Jack Torrance, o autor da peça.

Voce me detesta porque sabe.

Porque sabia o quê?

O que poderia por acaso saber sobre George Hatfield, que o faria detestá-lo? Que o futuro se abria diante dele? Que se parecia um pouco com Robert Redford e que as meninas paravam de falar quando ele se exibia na piscina? Que jogava futebol e beisebol com uma graça inata?

Ridículo. Totalmente absurdo. Não invejava George Hatfield em nada. Se a verdade podia ser dita, sentia-se pior, por causa de sua gagueira infeliz, do que o próprio George, pois realmente poderia tornar-se um grande orador. E se Jack tivesse adiantado o cronômetro - e é claro que não o fizera - seria porque tanto ele quanto os demais membros da equipe sentiam constrangimento pelo esforço de George e se angustiavam como quando o orador do período noturno esquecia alguns trechos. Se tivesse adiantado o cronômetro, seria apenas para... poupar George de sua desgraça.

Mas não adiantara o cronômetro. Tinha certeza.

E uma semana mais tarde ele o excluiu, e, durante esse tempo, manteve-se calmo. Os gritos e ameaças partiram de George. Uma semana depois, fora, no meio da aula, até o estacionamento para apanhar uma pilha de livros de consulta que deixara no porta-malas do VW, e lá estava George, ajoelhado, com os cabelos compridos caídos no rosto, uma faca de caçador na mão. Estava cortando o pneu dianteiro direito. Os pneus traseiros já estavam rasgados, e o Fusca acachapado com Os pneus furados como um cachorro cansado.

Jack não vira mais nada, e lembrava-se muito pouco da

luta que se seguira. Lembrava-se de um resmungo grosso que parecia escapar de sua garganta:

- Muito bem, George. Se é assim que você quer, venha aqui tomar seu remedinho.

Lembrava-se de George erguendo os olhos, alarmado e amedrontado. Dissera:

- Sr. Torrance. .. - Como se explicando que tudo aquilo era apenas um engano, os pneus já estavam vazios quando chegou, e ele só estava limpando a sujeirinha das bandas de rodagem dianteiras com a ponta da faca que casualmente estava com ele, e.

Jack investira de punhos cerrados para ele, e parece que houve um sorrisinho. Mas não estava certo.

A última lembrança que tinha era de George levantando a faca e dizendo:

- É melhor não chegar mais perto.

E depois, só se lembrava da Srta. Strong, a professora de francês, segurando seu braço, gritando, berrando:

- Pare com isso, Jack! Pare! Pare! Você vai matá-lo!

Ali estava ele com cara de idiota. Adiante, a faca reluzia inofensiva no asfalto do estacionamento, a três metros de distância. E seu Volkswagen, seu pobre Fusca velho e estragado, veterano de muitas bebedeiras, se apoiava sobre três sapatos furados. Lá estava uma nova saliência no pára-lama dianteiro direito, notou ele, e havia algo no meio da saliência que seria tinta vermelha, ou sangue. Por um momento, seus pensamentos ficaram confusos

(deus do céu afinal de contas o atropelamos)

sobre aquela outra noite, Em seguida, seus olhos voltaram-se para George, George esticado, tonto, no asfalto. A equipe de debates saíra e todos se acotovelavam à porta, olhando para George. Havia sangue em seu rosto, provocado por um machucado no crânio que parecia pequeno, mas havia sangue também saindo de um dos ouvidos, e isso provavelmente significava uma concussão. Quando George quis levantar-se, Jack desvencilhouse da Srta. Strong e foi até ele. George encolheuse de medo.

Jack colocou as mãos sobre o peito de George e deitou-o.

- Fique quieto aí - disse ele. - Não se mexa. - VoltOu se para a Srta. Strong, que olhava para os dois, horrorizada.

Por favor, chame o médico da escola, Srta. Strong.

A professora voou para a secretaria. Jack olhou, então, para a equipe de debates incisivamente, pois novamente ele era o professor, ele mesmo, e quando podia ser inteiramente ele não havia cara mais bacana no Estado de Vermont. Certament sabia disso.

- Podem ir para casa - disse-lhes com calma. - Nós nos veremos amanhã novamente.

Mas, no fim daquela semana, seis dos seus alunos afasta. ram-se, dois deles do grupo de teatro, mas naturalmente isso não importava muito, pois, na mesma ocasião, foi informado de que deveria demitir-se.

ainda assim, de alguma forma, conseguiu ficar sem beber, e supôs que significasse alguma coisa.

E não odiara George Hatfield. Tinha certeza disso. Não agira, fora coagido a isso.

Você me detesta porque sabe.

Mas não sabia nada. Nada. Juraria diante do trono do Todo-Poderoso, exatamente como juraria que adiantara o cronômetro não mais do que um minuto. E não por ódio, mas por pena.

Duas vespas rastejavam, preguiçosas, pelo telhado, ao lado do buraco no caibro.

Observou-as até que abriram suas asas aerodinâmicas, silenciosas, porém estranhamente eficientes, e lançaram-se ao sol de outubro, talvez para picar outra pessoa. Deus achara conveniente dar-lhes ferrões e jack supunha que tinham que usá-los em alguém.

Há quanto tempo estaria sentado aqui, olhando o buraco com suas surpresas desagradáveis, digerindo lembranças, Olhou o relógio. Quase meia hora.

Deixou-se escorregar para o centro do telhado, baixou uma perna, e tateou com o pé até encontrar o degrau da escada. Iria ao depósito de equipamentos, onde havia guardado a bomba de inseticida, numa prateleira alta, e, então, as vespas é que teriam uma surpresa. “Quem com ferro fere, com ferro será ferido.” Acreditava nisso sinceramente. Dali a duas horas o ninho não seria mais do que papel picado, e Danny poderia tê-lo em seu quarto, se quisesse - Jack tivera um, em seu quarto, quando menino. Tinha um cheiro leve de madeira queimada e gasolina. Poderia guardá-lo junto à cabeceira da cama. Não O machucaria.

Estou melhorando.

O som de sua própria voz, confiante, no silêncio da tarde, tranqüillo, apesar de não ter desejado falar alto. Estava melhorando. Era possível passar de passivo a ativo, considerar a coisa que quase o levara à loucura como um prêmio sem importânCia que não passava de um interesse ocasional. E se havia um lugar onde a coisa pudesse ser feita, com certeza seria este.

Desceu a escada para pegar a bomba de inseticida. Pagariam. Pagariam por tê-lo picado.

 

No jardim

Jack encontrara, há duas semanas, uma imensa cadeira de vime pintada de branco nos fundos do depósito de equipamentos, e a arrastara para a varanda, sob os protestos de Wendy, que dizia ser realmente a coisa mais feia que já vira na vida. Estava sentado nela agora, distraindo-se com uma edição de E. L. Doctorow, Bem-vindo aos dias difíceis , quando a mulher e o filho irromperam pela entrada de carros no caminhão do hotel.

Wendy estacionou, acelerou e desligou o motor. A única lanterna traseira apagou-se. O motor continuou a bater e finalmente parou. Jack levantou-se da cadeira e, devagar, desceu para encontrá-los.

- Oi, pai - gritou Danny, correndo para Jack. Tinha uma caixa em uma das mãos. - Veja o que mamãe comprou para mim.

Jack tomou o filho nos braços, balançou-o duas vezes, e beijouo carinhosamente na boca.

- Jack Torrance, o Eugene O’Neil de sua geração, o Shakespeare americano! - disse Wendy, sorrindo. - Tão agradável encontrá-lo aqui, tão longe nas montanhas.

- A plebe cansou-me, cara senhora - disse ele, escorregando os braços em volta dela. Beijaram-se. - Como foi de Viagem?

Título original: Welcome to hard limes. (N. da T.)

- Muito bem. Danny reclamou que fico dando solavancos com o veículo, mas não o deixei morrer uma só vez e. . . oh Jack, pare com isso!

Ela olhava o telhado, e Danny a observava com atenção. Um leve desagrado tomou conta do rosto do menino, quando viu a grande extensão de telhas novas no topo da ala oeste do Overlook, um verde mais claro do que o resto do telhado. Olhou então para a caixa em sua mão e o rosto iluminou-se novamente. À noite, os quadros que Tony mostrara voltavam a assombrá-lo com sua limpidez natural, mas, à luz do dia, eram mais fáceis de esquecer.

- Veja, papai, veja.

Jack tomou a caixa do filho. Era um carro, uma das miniaturas que Danny admirara no passado. Este era o Violento Volkswagen Violeta, e o desenho na caixa mostrava um imenso Fusca roxo, com lanternas grandes de um Cadillac Coupé de Vilie 59, brilhando sobre uma estrada de poeira. Por uma abertura na capota saía um monstro gigante cheio de verrugas, com olhos vermelhos esbugalhados, um riso de tarado, um capacete gigante de corrida caído nas costas, e mãos agarradas ao volante.

Wendy sorria para ele, e Jack piscou-lhe o olho.

- O que admiro em você, doutor - disse Jack, devolvendo a caixa -, é o seu gosto pelo discreto, pelo sóbrio, pelo introspectivo. Tal pai, tal filho.

- Mamãe me disse que você vai ajudar-me a montá-lo, assim que eu terminar a primeira cartilha.

- Isso tem que ser até o fim de semana - falou Jack.

- O que mais você trouxe aí nesse caminhão elegante, madame?

- Uh-uh. - Wendy agarrou-lhe o braço e puxou-o. - Deixe de brincadeira. Alguns daqueles troços são para VOCê. Danny e eu vamos levá-los para dentro. Apanhe o leite. Esta na carroceria.

- Só sirvo para isso - gritou Jack, batendo com a mão na testa. - Apenas um burro de carga, um jumento do mato. Carregue isso, carregue aquilo, o tempo todo.

- Então carregue aquele leite direto para a cozinha, senhor.

- Assim também é demais! - gritou ele atirando-se ao chão, enquanto Danny, trepado sobre ele, dava risadas.

- Levante-se, seu burro - falou Wendy, cutucando-o com a ponta do tênis.

- Está vendo? - disse ele para Danny. - Ela me chamou de burro. Você é testemunha.

- Testemunha, testemunha! - concordou Danny alegre, e deu um salto de cima do pai caído.

Jack sentou-se.

- Isto me faz lembrar, amigo. Tenho uma coisa para você, também. Na varanda, ao lado do cinzeiro.

- O que é?

- Esqueci. Vá lá e veja.

Jack levantou-se e os dois ficaram juntos de pé, olhando Danny correr pela grama e subir os degraus da varanda de dois em dois. Passou a mão em volta da cintura de Wendy.

- Está feliz, amor?

Ela olhou-o com seriedade.

- Nunca estive tão feliz, desde que nos casamos.

- Verdade?

- Juro.

Ele apertou-a com força.

- Eu a amo.

Wendy apertou-o emocionada. Estas palavras não eram uma coisa sem importância na boca de John Torrance; podia contar nos dedos o número de vezes que as ouvira, tanto antes, quanto depois do casamento.

- Eu também o amo.

- Mamãe! Mamãe! Danny estava na varanda, gritando feliz. - Venha ver! Puxa! Que bacana!

- O que é? - perguntou Wendy enquanto saíam do estacionamento, de mãos dadas.

- Esqueci - respondeu Jack.

- Ah, você vai ver - disse ela, cutucando-o. - Vai ver só.

- Pensei em ver hoje à noite - observou ele, e ela riu. Um minuto depois, ele perguntou: Você acha que Danny esta feliz?

- Você é quem devia saber. Você é que tem longas conversas com ele toda noite, antes de dormir.

Geralmente é sobre o que ele quer ser quando crescer, OU se Papai Noel existe mesmo. Isso tem muita importância Para ele. Acho que o velho amiguinho Scott andou falando no assunto. Não, não me disse nada sobre o Overlook.

- Nem para mim - falou Wendy. Subiam os degraus da varanda. - Mas ele passa muito tempo calado. Acho que emagreceu, Jack, acho mesmo.

- Ele está crescendo.

Danny estava de costas para eles. Examinava alguma coisa junto à mesa de Jack, mas Wendy não sabia o que era.

- Não está comendo muito bem, também. Costumava ser um comilão. Lembra-se do ano passado?

- Isso é só uma fase - disse ele de modo vago. - Acho que já li isso no Spock. Vai voltar a comer como um leão, quando estiver com sete anos. Pararam no último degrau.

- Está se esforçando demais naquelas leituras, também

- disse ela. - Sei que está querendo nos agradar. . . lhe agradar - completou, relutante.

- Para agradar a si próprio, acima de tudo - disse Jack.

- Não tenho puxado muito por ele em nada. Aliás, gostaria que não se esforçasse tanto.

- Acharia besteira eu marcar hora para ele fazer um exame médico? Há um clínico geral em Sidewinder, um médico jovem, pelo que disse o caixa do mercado.

- Você está um pouco preocupada com a neve, não está?

Wendy encolheu os ombros.

- Acho que sim. Se você acha que é besteira.

- Não acho. Aliás, pode marcar hora para nós três. Pegamos nosso atestado de saúde, e assím poderemos dormir tranqüilos.

- Vou marcar as consultas hoje à tarde - disse ela. Mãe! Veja, mamãe!

Veio correndo para ela com uma coisa cinza grande nas mãos, e, por um momento tragicômico, Wendy pensou que fosse um cérebro. Viu o que era e recuou instintivamente.

Jack abraçou-a.

- Tudo bem. Os inquilinos, que não fugiram voando, foram despejados. Usei a bomba de inseticida.

Ela olhou para o ninho grande de vespas que o filho segurava, mas não o tocou.

- Tem certeza de que não há perigo?

- Absoluta. Tive um em meu quarto quando menino. Presente de meu pai. Quer colocá-lo em seu quarto, Danny?

- Quero! Agora mesmo!

Deu as costas e saiu correndo, entrando pelas portas gran des

Os pais podiam ouvir o ruído surdo de seus pés na escada principal.

- Havia vespas lá - disse ela. - Você foi picado? Onde está minha condecoração? - perguntou ele, exibindo o dedo. Estava menos inchado, mas ela se espantou, para sua satisfação, e beijou-o com cuidado.

- Arrancou o ferrão?

- Vespas não deixam ferrão. As abelhas é que deixam. Têm ferrões ásperos. Os ferrões das vespas são mais lisos. Isso é o que as torna tão perigosas. Podem picar muitas vezes.

- Jack, tem certeza de que não há perigo em Danny

guardá-lo?

- Segui as instruções da bomba. E morte certa para todo e qualquer inseto em duas horas, e então se dissipa, sem deixar resíduo.

Odeio-as - disse ela.

- O quê. . . as vespas?

- Qualquer coisa que pica - disse ela. As mãos agarravam os cotovelos, os braços cruzados sobre os seios.

- Eu também - concordou Jack, abraçando-a.

 

Danny

No quarto, Wendy podia ouvir a máquina de escrever, que Jack trouxera lá de baixo, batucando durante trinta segundos, cair em silêncio por um minuto ou dois, e então chocalhar novamente por pouco tempo. Era como ouvir o disparo de uma metralhadora dentro de um abrigo isolado de concreto armado. O ruído era música para seus ouvidos, Jack não escrevia tão desde o segundo ano de seu casamento, quando escreveu a história que a Esquire comprara. Ele achava que até o final do ano estaria tudo pronto, de qualquer forma, e então Começaria uma coisa nova. Dizia que não se importaria se A Pequena escola não suscitasse entusiasmo quando Phyllis a mostrasse aos produtores teatrais, não se importava se desaparecesse sem deixar rastros, e Wendy tinha a mesma opinião. O próprio fato de ele estar escrevendo a enchia de esperança, não porque esperasse por um grande sucesso, mas porque o marido parecia estar lentamente fechando uma enorme porta de um cômodo cheio de monstros. Virara as costas para a porta já havia muito tempo, mas finalmente ela agora estava fechada.

Cada tecla batida fechava a porta um pouco mais.

- Veja, Dick, veja.

Danny estava debruçado sobre a primeira das cinco cartilhas velhas, fruto de uma seleção impiedosa por um punhado de lojas de livros de segunda mão em Boulder. Levariam Danny exatamente para o nível de leitura de segundo ano, um programa que ela já dissera a Jack achar demasiado ambicioso, O filho era inteligente, sabiam disso, mas seria um erro pressioná-lo demais e depressa. Jack concordara. Não haveria pressões. Mas, se o menino aprendesse rápido, estariam preparados. E agora imaginava se Jack não estaria certo quanto a isso, também.

Danny, preparado por quatro anos de Vila Sésamo e três anos de Professor Eletrônico, parecia estar pegando as coisas com uma velocidade espantosa. Isso a incomodava. Ele ficava debruçado sobre os livrinhos inocentes, o radinho de pilha e o planador na prateleira em cima dele, como se sua vida dependesse da alfabetização. Seu rostinho estava mais tenso e pálido do que ela gostaria, sob o brilho aconchegante e próximo da lâmpada do abajur que colocaram no quarto. Ele levava isso muito a sério, tanto a leitura quanto a série de exercícios que o pai preparava para ele todas as tardes. Desenho de uma maçã e um pêssego. A palavra “maçã” escrita abaixo com a caligrafia muito clara e limpa de Jack. Faça um círculo em torno do desenho certo, aquele que combina com a palavra. E o filho olhava, atentamente, da palavra para os desenhos, os lábios se movendo, falando, com dificuldade. Com o lápis vermelho, tamanho gigante, torcendo com o esforço seu pulso direito gordinho, podia agora escrever cerca de três dúzias de palavras sozinho.

O dedo acompanhava lentamente as palavras na leitura. Sobre elas estava um desenho que Wendy ainda recordava do seu tempo de alfabetização, havia dezenove anos. Um garoto risonho com cabelos castanhos encaracolados. Uma menina de vestido, cabelos com cachos dourados, uma corda de pular em uma das mãos. Um cachorro saltitante correndo atrás de uma

grande bola de borracha vermelha, O trio do primeiro ano:

Dick, Jane e Jip.

- “Jip vê a bola” - Danny lia devagar. - “Veja, Jip, veja. Veja, veja, veja.” - Parava, acompanhava a frase com o dedo. - “Veja a...” - Curvava-se para mais perto, o nariz quase encostando na página. - “Veja a. .

- Não chegue tão perto, doutor - disse Wendy, com calma. - Não faz bem aos olhos. E...

- Não diga! - disse ele, sentando-se aos arrancos. A voz alarmada. - Não diga, mamãe, eu sei!

- OK, meu bem. Mas não é uma coisa tão importante. Não é, mesmo.

Sem prestar atenção, Danny curvou-se de novo sobre o livro. No seu rosto havia a expressão que seria mais adequada para um universitário durante os exames em alguma faculdade. Ela sentia cada vez menos satisfação.

- Veja a.. . B-O, BO. L-A, LA. Veja a loba? Veja a loba, Bola! - Triunfalmente, Feroz. A ferocidade em sua voz a amedrontava. - Veja a bola!

- Isso mesmo - disse ela. - Meu bem, acho que por hoje chega.

- Mais algumas páginas, mamãe? Por favor?

- Não, doutor. - Fechou, firme, o livro de capa vermelha. - Para a cama.

- Por favor?

- Não me aborreça com isso, Danny. Mamãe está cansada.

- OK. - Mas olhou ansioso para a cartilha.

Vá dar um beijo em seu pai e lavar o rosto. Não esqueça de escovar os dentes.

Está bem.

Saiu desanimado, um menininho de pijama de flanela com o desenho de uma bola no paletó e a inscrição “Patriotas da Nova Inglaterra” nas costas.

A máquina de Jack silenciou, e ela ouviu o beijo de Danny.

- Boa noite, papai.

Boa noite, doutor. Como está?

- Bem, eu acho. Mamãe me fez parar.

- Mamãe está certa. Já passa de oito e meia. Está indo ao banheiro?

- Estou.

- Bom. Estão brotando batatas de seus ouvidos. E cebo las, e cenouras, e cheiro-verde, e.

A risada de Danny, sumindo, e em seguida desaparecendo ao trancar a porta do banheiro. Gostava de privacidade no banheiro, enquanto ela e Jack eram um pouco promíscuos. Mais um sinal - e eles se multiplicavam a toda hora - de que havia um outro ser humano ali, não apenas uma cópia de um deles, ou uma combinação dos dois. Ficou triste. Algum dia seu filho seria um estranho para ela, e ela seria uma estranha para ele.

mas não tão estranha quanto sua própria mãe se havia tornado para ela. Por favor, não deixe que isso aconteça, Deus. Deixe-o crescer e ainda amar sua mãe.

A máquina de Jack reiniciou sua marcha.

Ainda sentada na cadeira, ao lado da mesa de leitura de Danny, deixou seus olhos passearem pelo quarto do filho. A asa do planador caprichosamente consertada. A mesa, cheia de livros com gravuras, livros de colorir, revistinhas velhas do Homem-Aranha, com metade das capas arrancadas, lápis de cor, e uma pilha desarrumada de tocos de madeira. A miniatura do Volkswagen estava cuidadosamente colocada sobre essas coisas menores, o envoltório de plástico ainda intocável. Ele e o pai estariam montando amanhã à noite, ou depois de amanhã, se Danny mantivesse a média, e adeus fim de semana. As fotos de Pooh, Eyore e Christopher Robin estavam presas na parede, para, em breve, serem substituídas por posters de pin-up irls e fotos de cantores de rock drogados, supunha ela. Da inocência à experiência. Natureza humana, amor. Agarre-a, com unhas e dentes. ainda se sentia triste. Ano que vem estaria na escola, e ela perderia, pelo menos, metade dele, talvez mais, para seus amigos. Jack e Wendy tentaram ter outro filho quando as coisas pareciam correr bem em Stovington, mas ela voltara a tomar pílulas. As coisas mostravam-se muito incertas. Só Deus sabia onde estariam dali a nove meses.

Seus olhos bateram no ninho de vespas.

Ocupava o lugar de destaque no quarto de Danny, descansando sobre um prato plástico na mesa-de-cabeceira. Não gostava dele, mesmo vazio. Imaginava vagamente se teria germes, pensou em perguntar a Jack, depois achou que ele iria rir dela. Mas perguntaria ao médico amanhã, se tivesse uma chan ce de falar com ele longe de Jack. Não gostava da idéia daquela coisa, construída de picadas e saliva de tantas criaturas hostiS, ali a poucos centímetros da -cabeça de seu filho.

A água ainda corria no banheiro, e ela levantou-se e foi até o quarto grande para se certificar de que tudo estava bem. Jack não levantou os olhos; estava perdido no mundo que criava, olhando fixamente para a máquina de escrever, um cigarro apertado entre os dentes.

Bateu de leve na porta do banheiro.

- Tudo bem, doutor? Está acordado?

Nenhuma resposta.

- Danny?

Nenhuma resposta. Tentou abrir a porta. Estava trancada.

- Danny? - Estava agora preocupada. A ausência de qualquer outro ruído a não ser a água correndo, regular, deixou-a inquieta. - Danny, abra a porta, meu bem.

Nenhuma resposta.

- Deus do céu, Wendy, não vou conseguir pensar, se você ficar esmurrando essa porta a noite inteira.

- Danny trancou-se no banheiro e não responde.

Jack deu a volta na mesa, sem graça. Esmurrou a porta com força.

- Abra, Danny. Não estou brincando.

Nenhuma resposta.

Jack bateu com mais força.

-- Deixe de brincadeira, doutor. Hora de ir dormir é hora de ir dormir. Se você não abrir, vai apanhar.

Está perdendo a calma, pensou ela, e sentiu mais medo. Jack não tocara em Danny com raiva, desde aquela noite, há dois anos, mas agora parecia estar com raiva suficiente para faze-lo.

Danny, meu bem. .. - começou ela.

Nenhuma resposta. Apenas a água correndo.

- Danny, se me fizer quebrar a fechadura posso garantir-lhe que vai passar o resto da noite dormindo de bruços - advertiu Jack.

Nada.

- Arrombe - disse ela, e de repente teve dificuldade em falar. Rápido.

Ele levantou um pé e arremessou-o contra a porta à direita da maçaneta. A fechadura era fraca; cedeu imediatamente e a porta, estremecendo abriu, batendo no azulejo do banheiro, voltou e ficou entreaberta.

Danny - berrou ela.

A água corria com toda a força no lavatório. Ao lado, um tubo de pasta de dentes, sem tampa. Danny estava sentado na beirada da banheira, do outro lado, segurando a escova de dentes, limpa, na mão esquerda, e com a espuma fina da pasta de dentes em volta da boca. Os olhos arregalados, como que em êxtase, para o espelho do armário sobre a pia. Sua fisionomia era de horror entorpecido, e seu primeiro pensamento foi que ele estivesse tendo um ataque epiléptico, e que tivesse engolido a língua.

- Danny!

Danny não respondeu. Sons guturais saíam de sua garganta.

Foi então empurrada para o lado com tanta força, que bateu no porta-toalha, e Jac estava ajoelhado em frente ao menino.

- Danny - disse ele. - Danny, Danny! Estalou os dedos diante dos olhos vazios de Danny.

- Ah, claro - disse Danny. - Torneio. Ponto...

- Danny...

- Roque! - falou Danny, com a voz subitamente grossa, quase como um homem. - Roque. Ponto. O taco de roque. . . tem duas extremidades.

- Oh, Jack, meu Deus, o que está acontecendo?

Jack agarrou os cotovelos do menino, e sacudiu-o com força. A cabeça de Danny balançou para trás, e então caiu para frente como um balão pendurado num pau.

- Roque. Ponto. Redrum.

Jack sacudiu-o mais uma vez, e os olhos de Danny de repente se iluminaram. A escova caiu de sua mão com um barulhinho sobre o ladrilho.

- O quê? perguntou, olhando em redor. Viu o pai ajoelhado diante de si, Wendy encostada na parede. - O quê?

- perguntou Danny de novo, em crescente alarme. - O q-q-q-que e-s-s-t...

- Não gagueje! - berrou Jack de repente. Danny gritou com o choque, o corpo tenso, tentando livrar-se do pai, e em seguida explodindo em lágrimas. Arrependido, Jack puxou-o para junto de si. - Oh, meu bem, desculpe-me. Desculpe-me, doutor. Por favor. Não chore. Desculpe-me. Está tudo bem.

A água jorrava sem parar na pia, e Wendy sentiu que, de repente, penetrara em um pesadelo terrível onde o tempo voltava atrás, à época em que o marido, bêbado, quebrara o braço

do filho, e em seguida choramingara sobre ele quase que com as mesmas palavras.

(Oh, meu bem. Desculpe-me. Desculpe-me, doutor. Por favor. Desculpe-me.)

Correu para eles, de alguma forma arrancou Danny dos braços de Jack (viu a raiva brotar, de novo, no rosto do marido, mas se desfazer para posteriores considerações), e levantou-o. Levou-o para o quarto pequeno, Danny abraçado a ela, e Jack os seguindo.

Sentou-se na cama de Danny e balançou-o em seus braços, acalmando-o com palavras soltas repetidas. Olhou pára Jack, e só havia agora preocupação em seu olhar. Ele levantou as sobrancelhas como se perguntasse alguma coisa. Wendy meneou levemente a cabeça.

Danny - disse ela. Danny, Danny, Danny. Está bem, doutor. Tudo bem.

Finalmente, Danny acalmou-se, com leves tremores em seus braços. ainda assim, foi com Jack que primeiro falou, Jack, que estava agora sentado na cama, ao lado deles, e ela sentiu um impulso de ciúme

(Ele é, e sempre será o primeiro)

. Jack gritara com ele, ela o confortara, ainda assim foi com o pai que Danny falou.

Desculpe-me, se fui mau.

- Não há nada que desculpar, doutor. - Jack afagoulhe os cabelos. - Que diabo aconteceu lá dentro?

Danny sacudiu a cabeça devagar, meio tonto.

- Não. . . não sei. Por que me disse para parar de gaguejar, papai? Não sou gago.

Claro que não - disse Jack, afetuoso, mas Wendy sentiu um aperto no coração. Jack de repente ficou apavorado,

como se tivesse visto alguma coisa, um fantasma.

Alguma coisa sobre o cronômetro... - resmungou Danny.

O quê? - Jack curvou-se, e Danny retraiu-se nos braços da mãe.

Jack, você o está amedrontando! - disse ela, com a VOZ alta e acusatória. De repente, ocorreu-lhe que estavam todos apavorados, Mas com quê?

- Não sei, não sei - dizia Danny ao pai. - O que eu disse, papai?

Nada - resmungou Jack. Tirou o lenço do bolso e enxugou a boca. Wendy teve, por um momento, aquela sensação nauseante de voltar no tempo. Era um gesto que lembrava bem os dias de embriaguez do marido.

- Por que trancou a porta, Danny? - perguntou ela, gentil. - Por que fez isso?

- Tony - disse ele. - Tony mandou.

Trocaram um olhar por sobre a cabeça do filho.

Tony disse por quê, filho? - perguntou Jack, com calma.

- Eu estava escovando os dentes e pensando em minha leitura - disse Danny. - Pensando mesmo. E. . . e vi Tony lá no fundo do espelho. Disse que tinha que me mostrar de novo.

- Quer dizer que ele estava atrás de você? - perguntou Wendy.

- Não ele estava no espelho. - Danny foi enfático neste ponto. - Lá no fundo. E então eu entrei pelo espelho. Depois, só me lembro quando papai me sacudiu e pensei que estivesse sendo mau de novo.

Jack estremeceu como se atingido.

- Não, doutor - disse ele, calmo.

- Tony lhe disse para trancar a porta? - perguntou Wendy, alisando-lhe o cabelo.

- Disse.

- E o que ele queria mostrar?

Danny ficou tenso em seus braços; era como se os múscolos do corpo do garoto estivessem esticados como uma corda de piano.

- Não me lembro - disse ele, perturbado. - Não me lembro. Não me pergunte. Eu. . . eu não me lembro de nada!

Ch - fez Wendy, alarmada. E começou a balançá-lo de novo. - Se você não se lembra, está bem, amor. Claro que está.

Finalmente, Danny voltou a relaxar-se.

- Quer que eu fique aqui um pouquinho? Leia uma his tória?

- Não. Só a luz do abajur. - Olhou timidamente para o pai. - Você fica, papai? Só um pouquinho?

- Claro, doutor.

Wendy suspirou.

- Vou para a sala, Jack.

-OK.

Ela se levantou e olhou Danny, que se enfiava debaixo das cobertas. Parecia muito pequeno.

- Tem certeza de que está bem, Danny?

- Estou bem. Só acenda o abajur, mamãe.

- Claro.

Acendeu-o, e fez aparecer Snoopy dormindo no telhado de sua casinha de cachorro. Até mudarem para o Overlook, ele nunca fizera questão de abajur, e então pediu um, em especial. Apagou a luz e a lâmpada de cabeceira, e olhou mais uma vez para eles, o pequeno círculo branco do rosto de Danny e Jack acima. Hesitou

(e então eu entrei pelo espelho)

e deixou-os rapidamente.

- Está com sono? - perguntou Jack, tirando o cabelo de Danny da testa.

- Estou.

- Quer um copo d’água?

- Não...

Houve cinco minutos de silêncio. Suas mãos ainda estavam na cabeça de Danny. Pensando que o menino adormecera, estava praticamente se levantando e saindo, quando Danny falou quase dormindo:

- Roque.

Jack voltou-se, sem nada entender.

- Danny...

- Você não seria capaz de machucar mamãe, seria, papai?

- Não.

- Nem a mim?

- Não.

Silêncio novamente, prolongado.

- Papai?

- O quê?

- Tony veio e me falou sobre roque.

- Foi, doutor? O que foi que disse?

Não me lembro bem. Somente Tony dizendo que os tempos são contados como em beisebol. Não é engraçado?

  1. - O coração de Jack batia forte. Como era possível O menimo saber uma coisa dessas? Roque era jogado por tempos, não como no beisebol, mas como no críquete.

- Papai...? - Estava quase dormindo.

- O quê?

O que é redrum?

- Red-drum? Soa-me como alguma coisa que os índios levam para a guerra.

Silêncio.

- Ei, doutor.

Mas Danny dormia, ressonando, coração batendo, lento. Jack sentou-se olhando o filho por um momento, e ondas de amor o sufocaram. Por que gritara com o menino? Era perfeitamente normal gaguejar um pouco. Saíra de um estado de torpor, ou alguma espécie estranha de transe, e a gagueira era perfeitamente normal naquelas circunstâncias. Perfeitamente. E não dissera “cronômetro” de forma alguma. Fora outra coisa, bobagem, linguagem inarticulada.

Como sabia que roque era jogado em tempos? Alguém lhe dissera? Ullman? Hallorann?

Olhou suas mãos. Os punhos cerrados e apertados pela tensão

(Deus, preciso de um gole)

e as unhas enterradas nas palmas como pequenos estigmas. Aos poucos, foi forçando para que abrissem.

- Eu o amo, Danny - sussurrou. - Só Deus sabe quanto.

Saiu do quarto. Mais uma vez perdera a calma, só um pouco, mas o bastante para se sentir mal e com medo. Um gole abrandaria essa sensação, oh, sim. Abrandaria isso

(Alguma coisa a ver com o cronômetro)

e tudo o mais. Não havia a menor dúvida quanto àquelas palavras. Nenhuma. Cada uma fora tão clara quanto o repicar de um sino. Parou no corredor, olhou para trás e, automaticamente, enxugou os lábios com o lenço.

Suas silhuetas eram apenas formas negras no brilho da luz da noite. Wendy, de calcinhas, foi até a cama de Danny e o cobriu novamente; ele se havia descoberto. Jack parou na porta, observando-a colocar a mão na testa do filho.

- Está febril?

- Não. - Beijou seu rosto.

- Graças a Deus você marcou consulta - disse ele, quando a mulher voltou para o quarto. - Acha que o cara entende da coisa?

- O caixa disse que ele é muito bom. É só o que sei.

- Se houver algo de errado, vou mandar vocês dois para a casa de sua mãe, Wendy.

- Não.

Eu sei como se sente - falou Jack, abraçando-a.

Você não tem idéia de como me sinto em relação a ela.

- Wendy, não há outro lugar para onde possa mandá-los. Você sabe disso.

- Se você viesse.

- Sem este emprego, estamos liquidados - disse ele, objetivo. - Você sabe disso.

Sua silhueta concordou, vagarosa. Ela sabia.

- Quando tive a entrevista com Ullman, achei que fosse balela. Agora, não estou tão certo disso. Talvez não devesse ter-me submetido a isso, junto com vocês. A sessenta quilômetros da civilização.

- Eu o amo. E Danny o ama ainda mais. Se é que é possível. Ele ficaria com o coração partido, Jack. Ficará, se você nos mandar embora.

- Não pinte a coisa assim.

- Se o médico disser que há alguma coisa errada, vou procurar emprego em Sidewinder - disse ela. - Se não o conseguir, Danny e eu iremos para Boulder. Não posso ir para a casa de minha mãe, Jack. Não nessa situação. Não me peça. Simplesmente... não posso.

- Acho que entendo. Sorria. Talvez não seja nada.

- Talvez.

- O médico é às duas?

- Sim.

- Vamos deixar a porta do quarto aberta, Wendy.

- Está bem. Mas acho que ele vai dormir a noite inteira.

Mas não dormiu.

Bum... bum... bumbumBUMBUM

Fugia dos sons pesados, estilhaçantes, e dos ecos pelo labirinto de corredores, de pés descalços que deslizavam sobre uma selva espessa de azul e negro. Cada vez que ouvia o taco de roque atirar-se contra a parede em algum ponto atrás de si, sentia vontade de gritar bem alto. Mas não devia. Não devia. Gritando, se trairia e então

(então REDRUM)

(Venha cá tomar seu remédio, seu chorão miserável!)

Ele podia ouvir o dono daquela voz vindo, vindo em sua direção, correndo pelo corredor como um tigre numa selva azul e negra. Um canibal.

(Venha cá, seu pequeno filho da puta!)

Se conseguisse descer as escadas, se conseguisse sair deste terceiro andar, poderia ficar bem. Até o elevador. Se pudesse lembrar o que tinha sido esquecido. Mas estava escuro e, aterrorizado, perdera o rumo. Dobrava um corredor, e outro, o coração na boca como fogo e gelo, temendo que cada curva o levasse face a face com o tigre humano nos corredores.

O estrondo estava agora bem atrás dele, o terrível grito rouco.

A cabeça do taco assobiava cortando o ar

(roque... ponto... roque.. . ponto... REDRuM)

antes de se arremessar sobre a parede. O deslizar macio dos pés no tapete de selva. Na boca, o gosto amargo de pânico.

(Vai lembrar-se do que foi esquecido... mas lembraria? O que era?)

Fugiu por um outro corredor e notou, desesperado, que estava num beco sem saída. Pelos três lados, as portas olhavam-no com censura. A ala oeste. Estava na ala oeste e podia ouvir a tempestade que gritava lá fora, parecendo sufocar sua garganta negra cheia de neve.

Encostou-se na parede, chorando de medo, o coração agora batendo como o de um coelho apanhado numa armadilha. Quando suas costas estavam apoiadas no papel de parede azulclaro, perdeu o controle das pernas e desmaiou, ofegante, sobre o tapete, as mãos abertas sobre a seIva de trepadeiras e plantas trançadas.

Mais alto. Mais alto.

Havia um tigre no corredor, e agora estava já no outro corredor ainda berrando naquela ira aguda, dominadora e alucinada, o taco de roque batendo, pois o tigre andava sobre duas patas e era.

Acordou sufocado, de repente; sentou-se na cama, de olhos arregalados e fixos no escuro, as mãos cruzadas sobre o rosto.

Alguma coisa na mão. Rastejando.

Vespas. Três.

Picaram-no como se fossem agulhas, e foi quando todas as imagens se diluíram, e caíram sobre ele como um avalancha negra e começou a gritar no escuro, as vespas agarradas à sua mão esquerda, picando uma vez após outra.

As luzes se acenderam, e papai parado ali de calção, olhos penetrantes Mamãe, atrás dele, com sono e apavorada.

- Tire todas elas daqui! gritava Danny.

- O meu Deus - disse Jack. E viu.

- Jack, o que está acontecendo com ele? O quê?

O marido não respondeu. Correu para a cama, pegou o travesseiro de Danny, e bateu com ele sobre a mão esquerda do filho. De novo. Wendy viu insetos grandes levantarem-se no ar, zumbindo.

- Pegue uma revista! - gritou ele. - Mate-as!

- Vespas? - disse ela, e por um momento viu-se dentro de si própria, praticamente sem iniciativa, A raiva crescendo, e o raciocínio ligado à emoção. - Vespas, santo Deus, Jack, você disse.

- Cale a boca e acabe com elas! - gritou ele. - Faça o que estou mandando!

Uma delas pousara sobre a escrivaninha de Danny. Ela apanhou um livro de colorir e bateu com ele sobre a vespa. Ficou a mancha escura e viscosa.

- Há uma outra na cortina - disse ele, passando por ela com Danny nos braços.

Levou o menino para seu quarto e colocou-o na cama, no lado de Wendy.

- Deite-se aí, Danny. Não volte até que eu avise. Entendeu?

Com o rosto cheio de lágrimas, Danny concordou.

- Meu menino valente.

Jack correu até as escadas. Atrás, ouviu os dois ruídos do livro de colorir e, em seguida, a mulher gritando de dor. Não parou, e correu escada abaixo, descendo os degraus de dois em dois, até o saguão escuro. Passou pelo escritório de Ullman a caminho da cozinha, batendo a coxa contra a ponta da mesa de madeira do gerente, quase sem sentir. Bateu nos objetos pendurados na parede da cozinha e foi até a pia. Os pratos lavados do jantar ainda estavam empilhados no escorredor, onde Wendy os arrumara. Apanhou o pirex grande de cima. Um prato

caiu no chão e quebrou. Ignorando-o, Jack voltou pelo escritório e subiu as escadas.

Wendy parada na porta do quarto de Danny, sem fôlego. O rosto da cor de uma toalha de mesa. Os olhos brilhando e sem vida; o cabelo desalinhado caindo sobre o pescoço.

- Peguei todas - disse ela, estupidamente -, mas uma me picou. Jack, você disse que estavam todas mortas, Começou a chorar.

Passou por ela sem dizer nada e levou o pirex para cima do ninho ao lado da cama de Danny. O ninho estava parado. Não havia nada ali. Pelo menos, no lado de fora. Abafou-o com a travessa.

- Isso - disse ele. - Vamos.

Voltaram ao quarto.

- Onde a picaram? - perguntou Jack.

- Meu. . meu pulso.

- Vamos ver.

Ela mostrou-lhe. Exatamente em cima das linhas que separam a palma da mão do pulso, havia um pequeno círculo. A pele ao redor estava inchada.

- Você tem alergia a picadas de ‘insetos? - perguntou.

- Pense bem! Se você for alérgica, Danny pode ser também. Os desgraçados picaram-no umas cinco ou seis vezes.

- Não - respondeu ela, mais calma. - Eu. . . só as detesto, é só. Detesto.

Danny estava sentado aos pés da cama, segurando a mão esquerda e olhando as picadas. Os olhos anuviados olhavam para Jack reprovadoramente.

- Papai, você disse que matou todas: Minha mão. . . está doendo muito.

- Vamos ver, doutor. . . não, não vou tocar. Isso faria doer ainda mais. Só me mostre.

Mostrou e Wendy gemeu.

- Oh, Danny, oh, sua mãozinha!

Depois, o médico contaria onze picadas distintas. Agora, tudo o que viam era uma mancha com pequenos buracos, como se a palma da mão e os dedos tivessem sido salpicados com pedacinhos de papel vermelho. Estava muito inchada. A mão começava a parecer com aquela de desenhos animados, quando o Frajola ou o Piu-Piu se machucam com um martelo.

- Wendy, vá buscar aquele spray no banheiro - disse ele.

Ela foi, e Jack sentou-se junto de Danny, escorregando um braço sobre seus ombros.

- Depois que aplicar o spray em sua mão, quero tirar umas fotografias com a máquina Polaroid, doutor. Depois, voce vai dormir o resto da noite conosco, OK?

- Está certo - respondeu Danny. - Mas por que vai tirar fotografias?

- Talvez possamos, assim, processar alguns canalhas.

Wendy voltou com o tubo de spray em formato de extintor de incêndio.

- Não vai doer, doutor - disse ela, destampando o objeto.

Danny mostrou a mão e ela colocou o spray dos dois lados até melhorar. Ele deu um suspiro profundo.

- Dói muito? - perguntou Wendy.

- Não. Melhorou.

- Agora tome isto. Mastigue. - Deu-lhe cinco aspirinas infantís, sabor laranja.

Danny segurou-as e triturou-as na boca, uma por uma.

- Não é aspirina demais? - perguntou Jack.

- As picadas são muitas - retrucou ela, rispidamente.

Vá, e livre-se daquele ninho, Jack Torrance. Agora mesmo.

Um minuto só.

Foi ao armário e apanhou a Polaroid na gaveta de cima. Procurou no fundo e encontrou alguns cubos de flash.

- Jack, o que está fazendo? - perguntou, um pouco histérica.

- Ele vai tirar umas fotografias de minha mão - disse Danny muito sério -, e então vamos processar alguns canalhas. Certo, papai?

- Certo - respondeu Jack, sorrindo. Colocou um flash na máquina. - Segure firme, filho. Calculo uns cinco mil dólares por picada.

- De que está falando? -, Wendy quase gritou.

- Vou dizer-lhe. Segui as instruções daquela porra de bomba. Vamos processá-los. A porcaria está defeituosa. Tem que estar. De que outra forma se pode explicar isso?

Oh - disse ela baixinho.

Jack tirou quatro fotografias, puxando cada filme para que Wendy marcasse o tempo no relógio pequeno que trazia pendurado no pescoço, como um medalhão. Danny, fascinado com a ideia de que suas picadas poderiam valer milhares e milhares de dólares começou a perder o medo e tomar interesse ativo. A mão latejava forte, e ele sentia dor de cabeça.

Quando Jack guardou a máquina e espalhou as fotos sobre o armário, para secar, Wendy disse:

Acha que deveríamos levá-lo ao médico hoje à noite?

- Não, a não ser que doa muito - falou Jack. - Se uma pessoa tem forte alergia ao veneno de vespas, é atingida em trinta segundos.

- Atingida? O que você.

- Coma. Ou convulsões.

- Oh! O meu Deus! - Cruzou os braços e abraçou-se, pálida e abatida. Como se sente, filho? Acha que consegue dormir?

Danny piscou. O pesadelo transformara-se num cenário inexpressivo e estúpido em sua mente, mas ele ainda estava com medo.

- Se puder dormir com vocês.

- Claro - disse Wendy. - Oh, meu bem, desculpe-me.

- Está tudo bem, mamãe.

Ela voltou a chorar, e Jack colocou as mãos sobre seus ombros.

- Wendy, juro que segui as instruções.

- Vai livrar-se dele amanhã de manhã? Por favor?

- Claro que vou.

Os três foram para a cama juntos, e Jack já estava quase dormindo, quando resolveu levantar-se de novo. Quero uma foto do ninho, também.

- Volte para a cama.

- Daqui a pouco.

Foi ao armário, apanhou a máquina e o último flash, e levantou o polegar para Danny. O garoto sorriu e fez-lhe o mesmo sinal com a mão sadia.

Um garotão, pensou, enquanto ia para o quarto de Danny. Como se já não bastasse o que acontece.

O capacete ainda estava lá. Jack cruzou o beliche e, quando olhou para a mesa ao lado, arrepiou-se. Os cabelos do pescoço ficaram em pé.

Só com dificuldade podia ver o ninho através do vidro transparente da travessa. O interior do pirex estava cheio de vespas. Era difícil dizer quantas. Pelo menos cinqüenta. Talvez cem.

Com o coração batendo forte e devagar no peito, tirou as fotografias e descansou a máquina à espera da revelação. Enxugou os lábios com a palma da mão. Um pensamento repetiase em sua mente, ecoando com

(Perdeu a calma. Perdeu a calma. Perdeu a calma.)

um temor quase supersticioso. Voltaram. Ele as havia matado, mas as vespas voltaram.

Em sua mente, ouvia sua própria voz gritando no rosto do filho apavorado e chorando: Não gagueje.

Enxugou os lábios novamente.

Foi até a escrivaninha de Danny, deu uma busca nas gavetas e encontrou a caixa de um quebra-cabeça. Levou-a para a mesa-de-cabes e com cuidado escorregou o pirex e o ninho sobre ela. As vespas zumbiram raivosas dentro de sua prisão. Em seguida, colocando a mão sobre o pirex, para que não escorregasse, foi ao corredor.

- Você vem para a cama, Jack? - perguntou Wendy.

- Vem para a cama, papai?

- Tenho que ir lá embaixo um instante - disse ele, fazendo voz suave.

Como acontecera? Como, pelo amor de Deus?

A bomba sem dúvida foi um fracasso. Ele vira a fumaça espessa e branca saindo, quando empurrara o anel. E quando voltou, duas horas depois, sacudira um mar de corpúsculos mortos do buraco.

Então como? Geração espontânea?

Loucura. Besteira do século XVII. Insetos não passavam por geração espontânea. E mesmo que ovos de vespas amadurecessem tornando-se insetos adultos em doze horas, esta não era época de a rainha botar ovos. Acontecia em abril ou maio. O outono era época de sua extinção.

Uma contradição biológica, as vespas zumbiam furiosas debaixo do pirex.

Desceu com elas e passou pela cozinha. No fundo, havia uma porta que dava para fora. O vento frio da noite soprava contra seu corpo semidespido, e seus pés paralisaram-se, quase que instantaneamente, no piso de concreto frio da plataforma, onde as entregas de leite se processavam na época de temporada do hotel. Colocou a caixa e o pirex no chão, com cuidado, e, quando se levantou olhou o termômetro pendurado do lado de fora da porta.

O termômetro marcava quatro graus abaixo de zero. O frio mataria todas as vespas pela manhã. Entrou e fechou a porta com firmeza. Depois de um minuto de reflexão, resolveu tranca-la também.

Atravessou a cozinha novamente, apagou as luzes. Ficou Parado por um instante na escuridão, pensando, desejando um gole. De repente, o hotel parecia estar cheio de milhares de sussurros: estalos e gemidos, e o assobio furtivo do vento sob as telhas, onde talvez mais ninhos de vespas estivessem pendu. rados como frutos venenosos.

Elas haviam voltado.

E num relance descobriu que não gostava do Overlook tanto quanto antes, como se não fossem vespas que tivessem picado o filho, vespas que miraculosamente sobreviveram à bomba contra insetos, mas o próprio hotel.

O último pensamento antes de subir ao encontro da mulher e do filho

(daqui para a frente você vai conter seu gênio. Não importa como)

foi firme, decidido e definitivo.

Enquanto atravessava o saguão, limpou os lábios com a mão.

 

No consultório

Só de cueca, deitado na mesa de exame, Danny Torrance parecia muito pequeno. Olhava para o Dr. (“Simplesmente me chamam de Bili”) Edmonds, que deslizava uma grande máquina negra para o seu lado. Danny o acompanhava com os olhos.

- Não se deixe impressionar, cara - disse Bili Edmonds.

- E um eletroencefalograma, e não machuca.

- Eletro.

O apelido é EEG. Vou pregar uma porção de fios em sua cabeça. . . não, não vou colar, vou só prender com uma fita adesiva. . . e as canetinhas deste dispositivo vão detectar suas ondas cerebrais.

- Como no Homem de Seis Milhões de Dólares?

- Mais ou menos a mesma coisa. Você gostaria de ser como o Steve Austin quando crescer?

- De jeito nenhum - disse Danny, enquanto a enfermeira começava a pregar os fios em pequenos pontos rapados de seu crânio. - Meu pai diz que, qualquer dia desses, ele vai dar um curto-circuito e vai. . . vai embarcar em canoa furada.

- Sei bem o que são essas canoas - disse o Dr. Edmonds muito cordialmente. - Já passei por isso algumas vezes, e sem remo. Um EEG nos pode dizer uma porção de coisas, Danny.

- Como o quê?

- Como, por exemplo, se você tem epilepsia. Esse é um probleminha que.

- Sim. Eu sei o que é epilepsia.

- Sabe mesmo?

- Claro. Havia um menino no maternal em Vermont. fui para o maternal quando era pequeno. . . e ele tinha epilepsia. Ele não podia usar o quadro luminoso.

- O que era isso, Dan? - O médico se voltou para a máquina. Traços finos começaram a riscar seu caminho pelo papel.

- Tinha luzes de todas as cores. E quando você ligava, algumas luzes coloridas se acendiam, mas não todas. E você tinha que contar as cores e, se empurrasse o botão certo, podia desligar. Brent não conseguia fazer isso.

- Isso porque luzes brilhantes, às vezes, causam um ataque epiléptico.

- O senhor quer dizer que, usando o quadro luminoso, ele poderia desmaiar?

Edmonds e a enfermeira trocaram um olhar rápido e divertido.

- Pouco delicado, mas colocado acuradamente, Danny.

- O quê?

- Falei que você está certo, porém deve dizer “ataque” ao invés de “desmaiar”.

“Isso não é muito cordial. . . OK, deite-se imóvel como um rato.”

-OK.

- Danny, quando você tem esses. . . seja lá o que for, lembra-se de ver luzes brilhantes antes?

Não.

Ruídos engraçados? Campainhas? Sinos?

- Hum, hum.

- E o que me diz de um cheiro estranho, talvez laranjas OU serragem? ou um cheiro de alguma coisa podre?

- Não, senhor.

- As vezes, tem vontade de chorar antes de perder os sentidos, mesmo não se sentindo triste?

- De jeito nenhum.

- Muito bem, então.

- Tenho epilepsia, Dr. BilI?

- Não acho que tenha, Danny. Fique quietinho aí. Está quase pronto.

A máquina zuniu e rabiscou por mais uns cinco minutos e, então, o Dr. Edmonds desligou-a.

- Tudo pronto, cara disse Edmonds, alegre. - Deixe Sally tirar esses eletrodos e depois venha para a sala ao lado. Quero conversar um pouco com você. OK?

- Está bem.

- Sally, continue e aplique o teste de agulha antes de ele vir.

- Sim.

Edmonds rasgou o longo rolo de papel que a máquina expelira e foi para a outra sala, examinando-o.

- Vai ser só uma picadinha - disse a enfermeira, depois que Danny vestiu as calças. E para certificar que você não tem tuberculose.

- Aplicaram isso em minha escola, no ano passado - falou Danny, sem interesse.

- Mas isso foi há muito tempo, e você agora já está crescido, certo?

- Acho que sim. Danny suspirou, oferecendo o braço para o sacrifício.

Quando já estava vestido e calçado, passou pela porta e entrou na sala do Dr. Edmonds. Ele estava sentado no canto da mesa, balançando as pernas, pensativamente.

- Oi, Danny.

-Oi.

- Como está a mão agora? - Apontou para a mão esquerda de Danny, que estava levemente enfaixada.

- Quase boa.

- Ótimo. Verifiquei seu EEG e parece bom. Mas vou enviá-lo a um amigo meu de Denver que ganha a vida lendo essas coisas. Só quero ter certeza.

Sim, senhor.

- Conte-me sobre Tony, Dan.

Danny arrastou os pés.

- Ele é apenas um amigo invisível - disse o garoto. - Inventei-o. Para me fazer companhia.

Edmonds riu e colocou as mãos sobre os ombros de Danny.

- Isso é o que seu pai e sua mãe dizem. Mas só entre

nós, cara. Sou seu médico. Conte a verdade e prometo que não vou dizer nada a ninguém, a menos que você me autorize.

Danny pensou a respeito. Olhou para Edmonds e então, com um pequeno esforço de concentração, tentou captar os pensamentos de Edmonds ou pelo menos a cor do seu espírito. E de repente obteve uma imagem estranhamente reconfortante em sua cabeça: arquivos, gavetas escorregando uma após outra, trancando-se com um dique. Escrito nas pequenas plaquinhas no centro de cada gaveta estava: A-C, Secreto; D-G, Secreto; e assim por diante. Isso fez Danny ficar mais tranqüilo.

Com cuidado, o garoto disse:

- Não sei quem é Tony.

- Ele tem sua idade?

- Não. Ele tem pelo menos onze anos. Acho que pode ser até mais velho. Nunca o vi de perto. Ele pode ter idade suficiente para dirigir um carro.

- Você só o vê a distancia, bem?

- Sim, senhor.

- E ele sempre aparece justamente antes de você perder os sentidos?

- Bem, eu não perco os sentidos. E como se eu fosse com ele. E ele me mostra coisas.

- Que tipo de coisas?

- Bem... - Danny relutou por um momento e então falou a Edmonds sobre o baú do pai com todos os seus escritos dentro, e como os carregadores, afinal de contas, não o haviam perdido no caminho entre Vermont e o Colorado. Estivera debaixo da escada o tempo todo.

E seu pai encontrou-o onde Tony disse que ele encontraria?

Oh, sim, senhor. Só que Tony não me disse. Ele me mostrou

- Entendo. Danny, o que Tony lhe mostrou ontem à noite? Quando você se trancou no banheiro.

- Não me lembro - disse Danny, rapidamente.

- Tem certeza?

- Sim, senhor.

Há poucos momentos eu disse que você trancou a porta do banheiro. Mas não estava certo, estava? Tony trancou a porta.

- Não, senhor. Tony não poderia trancar a porta porque ele não é real. Ele quis que eu o fizesse, e eu obedeci. Tran quei-a.

- Tony sempre lhe mostra onde estão as coisas perdidas?

- Não, senhor. As vezes, ele me mostra coisas que ainda vão acontecer.

- É mesmo?

- É. Como uma vez quando Tony me mostrou os divertimentos e o parque de animais selvagens de Great Barrington. Tony me disse que papai iria levar-me até lá no meu aniversário. E ele levou.

O que mais ele lhe mostra?

Danny franziu a testa.

- Cartazes. Está sempre me mostrando cartazes idiotas. E dificilmente consigo lê-los.

- Por que você acha que Tony faria isso, Danny?

- Não sei. - Os olhos de Danny brilharam. Mas meu pai e minha mãe estão me ensinando a ler, e tenho me esforçado.

- Assim você conseguirá ler os cartazes de Tony.

- Bem, eu realmente quero aprender. Mas isso também.

- Você gosta de Tony, Danny?

O garoto olhou para o chão ladrilhado e não disse nada.

- Danny?

- É difícil dizer - falou Danny. - Gostava. Costumava esperar que ele viesse todo dia, porque sempre me mostrava coisas boas, especialmente desde que mamãe e papai não pensam mais em DIVÓRCIO. Os olhos do Dr. Edmonds se aguçaram, mas Danny não percebeu. Estava olhando fixamente para o chão, concentrando-se em se expressar bem. - Mas, agora, não importa, quando vem mostra-me coisas ruins. Coisas horríveis. Como no banheiro ontem à noite. As coisas que ele mostra me aferroam como as vespas me aferroaram. Só que as coisas de Tony me aferroam aqui em cima. - Bateu, muito sério, com o dedo na testa, uma criança inconscientemente parodiando O suicídio.

- Que coisas, Danny?

- Não me lembro! - gritou Danny, agoniado. - soubesse, diria! Acho que não me lembro porque é tão ruim que não quero me lembrar. Tudo que lembro quando acordo é

REDRUM

- Red drum ou red rum?

-Rum.

- O que é isso, Danny?

- Não sei.

- Danny?

- Senhor?

- Você conseguiria fazer Tony aparecer agora?

- Não sei. Ele nem sempre aparece. Eu nem sei se quero que ele apareça mais.

- Experimente, Danny. Vou ficar aqui.

Danny olhou para Edmonds em dúvida. O médico balançou a cabeça encorajando-o.

Danny emitiu um longo suspiro e concordou.

- Mas não sei se vai funcionar. Nunca fiz diante de outra pessoa. E de qualquer forma não é sempre que Tony aparece.

Se não aparecer, não apareceu - disse Edmonds. - Só quero que você experimente.

- Está bem.

O garoto olhou para baixo, em direção aos mocassins de Edmonds, que balançavam devagar, e dirigiu sua mente para o pai e a mãe. Estavam ali em algum lugar. . exatamente por trás daquela parede com o quadro pendurado. Na sala de espera por onde entraram. Sentados lado a lado, mas em silêncio. Folheando revistas. Preocupados. Com ele.

Concentrou-se mais profundamente, as sobrancelhas franzidas, tentando captar o pensamento da mãe. Era sempre mais difícil quando não estavam com ele. Começou então a captar. Mamãe pensava na irmã. Irmã dela. A irmã estava morta. Wendy pensava que aquilo fora a coisa mais importante que transformara sua mãe numa

(miserável?)

galinha velha. Porque sua irmã morrera. Quando menina, ela fora

(atropelada oh deus não poderia nunca agüentar alguma coisa assim novamente como aileen mas e se ele estivesse doente realmente doente com câncer meningite leucemia tumor cerebral como o filho de john gunther ou distro fia

“Reddrum”_ “tambor vermelho”; “red rum” = “rum vermelho”.

muscular oh minha nossa crianças nessa idade têm leucemia tratamento de rádio o tempo todo quimioterapia não temos condições para pagar coisas desse tipo mas natural nente não podem em absoluto matá-lo no meio da rua e de qualquer forma ele está bem bem bem você não devia ficar pensando)

(Danny...)

(sobre aileen e)

(Dannyy...)

(aquele carro)

ÇDannyy...)

Mas Tony não estava ali. Somente sua voz. E, enquanto se afastava, Danny a seguia pela escuridão, caindo e rolando por algum buraco mágico entre os mocassins do Dr. Bili, que balançavam passando por ruídos altos de pancadas; mais adiante, uma banheira atravessada silenciosamente na escuridão com alguma coisa horrível refestelada no interior, passando pelo doce dobrar dos sinos da igreja, e, ainda, por um relógio dentro de uma redoma de vidro.

A escuridão foi então atravessada por uma única lâmpada fraca, cercada de teia de aranha, O brilho frágil exibia um chão de pedra que parecia úmido e desagradável. Em algum lugar não muito distante havia um ruído mecânico constante; em surdina, porém sem aterrorizar. Soporífero. O tipo da coisa que podia ser esquecida, pensou Danny, cheio de sonhos.

Quando seus olhos se adaptaram ao brilho, pôde ver Tony à sua frente, uma silhueta. Tony olhava alguma coisa e Danny esticou os olhos para ver o que era.

(Seu pai. Está vendo seu pai?)

Claro que via. Como poderia deixar de vê-lo, mesmo sob a lâmpada fraca do porão? Papai estava ajoelhado no chão, dirigindo a lanterna para caixas de papelão velhas e caixotes de madeira. As caixas de papelão eram velhas e apodrecidas; algumas abriam-se e entornavam os papéis no chão. Jornais, livros, pedaços de papel impresso que pareciam notas de despesas. Papai examinava tudo com grande interesse. Em seguida, papai olhou para cima e voltou a lanterna para outra direção. O fa cho de luz iluminou um outro livro, um livro grande, branco, amarrado com um cordão dourado. A capa parecia de couro branco. Era um álbum de recortes. Danny, de repente, precisou chamar o pai, para avisá-lo que deixasse o álbum ali, que alguns livros não deviam ser abertos. Mas o pai subia para apa nhá-lo ,.

O som mecanico que agora reconhecia como vindo da caldeira do Overlook, que papai controlava três ou quatro vezes ao dia, desenvolvera um ritmado ruído profético. Começava a soar como... como pancada. E o cheiro de mofo, umidade e papel podre transformava-se em outra coisa. . . em cheiro forte de “coisa feia”. Flutuava sobre o pai como vapor enquanto ele subia para apanhar o livro. . . e agarrá-lo.

Tony estava em algum lugar na escuridão

(Este lugar desumano cria monstros humanos. Este lugar desumano)

repetindo vezes sem conta a mesma coisa sem nexo.

(cria monstros humanos.)

Mergulhou novamente na escuridão, acompanhado pelo forte trovão de pancadas que já não era mais a caldeira, mas um som de um taco assobiador batendo contra as paredes de papel de seda, lançando baforadas de gesso calcinado. E rastejando inutilmente sobre o tapete de selva azul e negra.

(Saia)

(Este lugar desumano)

(e tome seu remédio!)

(cria monstros humanos.)

Com um suspiro que ecoou em sua própria cabeça, ele se retirou da escuridão. Havia mãos sobre ele e, a princípio, assustou-se, pensando que aquela coisa negra no Overlook, do mundo de Tony, o tivesse, de alguma forma, seguido ao mundo das coisas reais. . . e em seguida o Dr. Edmonds dizia:

- Você está bem, Danny. Está bem. Está tudo bem.

Danny reconheceu o médico e os contornos do consultório. Começou a tremer sem parar. Edmonds segurou-o.

Quando a reação começou a diminuir, Edmonds perguntou:

Você disse alguma coisa sobre monstros, Danny. . . o que era?

Este lugar desumano - disse o garoto, naturalmente. Tony me disse. . . este lugar desumano. . . cria. . . cria. . . - Sacudiu a cabeça. - Não consigo lembrar-me.

Tente!

Não consigo.

Tony apareceu?

Sim.

- O que foi que ele lhe mostrou?

- Escuro. Pancadas. Não me lembro.

- Onde estava?

- Deixe-me em paz! Não me lembro! Deixe-me em paz!

- Começou a soluçar sem parar, de medo e frustração. Estava tudo acabado, dissolvido na desordem como um pacote de papel molhado, a memória falha.

Edmonds foi ao bebedouro e lhe trouxe um copo d’água. Danny bebeu, e Edmonds trouxe outro.

- Melhor?

- Sim.

- Danny, não quero cansá-lo. . . chateá-lo com isso, realmente não quero. Mas consegue lembrar-se de alguma coisa antes de Tony aparecer?

- Minha mãe - disse Danny, devagar. - Está preocupada comigo.

- As mães sempre se preocupam, cara.

- Não.. . Mamãe tinha uma irmã que morreu quando era menina. Alleen. Ela estava pensando em como Alleen foi atropelada por um carro, e por isso ela está preocupada comigo. Não me lembro de mais nada.

Edmonds o olhava fixamente.

- Ela estava pensando nisso agora mesmo? Na sala de espera?

- Sim, senhor.

- Danny, como sabe?

- Não sei - disse Danny, pálido. - Acho que é a luz.

- O quê?

Danny meneou a cabeça devagar.

Estou muito cansado. Posso ver minha mãe e meu pai? Não quero mais responder a perguntas. Estou cansado. E meu estômago está doendo.

- Vai vomitar?

- Não, senhor. Só quero ver minha mãe e meu pai.

- OK, Dan. - Edmonds levantou-se. - Vá, fique com eles por um minuto e depois mande-os entrar para que eu possa conversar com eles. OK?

- Sim, senhor.

Há livros lá fora para você olhar. Você gosta de livros, não gosta?

Sim, senhor falou Danny, obediente.

- Você é um bom menino, Danny.

O menino deu-lhe um vago sorriso.

Não encontrei nada de errado nele - disse o Dr. Edmonds aos Torrances. Fisicamente, nada. Mentalmente, ele

é inteligente e muito criativo. Acontece. As crianças precisam

de estímulos para extravasar sua imaginação. A de Danny ainda

é muito grande. Seu QI já foi testado alguma vez?

- Não acredito nesses testes - disse Jack. - Eles reprimem as aspirações tanto dos pais quanto dos professores.

o Dr. Edmonds concordou.

- Pode ser. Mas, se o testassem, apurariam que ele não está na escala de seu grupo etário. Sua habilidade verbal, para um menino de cinco, quase seis anos, é estupenda.

- Nós não o reprimimos - falou Jack, com traços de orgulho.

Duvido que precisassem para se fazerem entender. - Edmonds fez uma pausa, batendo com a caneta. - Ele entrou em transe enquanto esteve comigo. A meu pedido. Exatamente como vocês o descreveram no banheiro ontem à noite. Os músculos frouxos, o corpo caído, os olhos girando. Auto-hipnose. Fiquei assombrado. ainda estou.

Os Torrance sentaram-se mais para a frente.

- O que aconteceu? - perguntou Wendy, tensa. E Edmonds, com cuidado, relatou o transe de Danny, a frase murmurada, da qual Edmonds só conseguira arrancar as palavras “monstros”, “escuro”, “pancada”. As lágrimas, a quase histeria, e a dor de estômago nervosa, como conseqüência.

Tony outra vez - falou Jack.

O que isso tudo significa? - perguntou Wendy. - O senhor tem idéia?

Poucas. Podem não gostar delas.

- De qualquer forma, continue - disse Jack.

Pelo que Danny me disse, seu “amigo invisível” era realmente um amigo até que vocês se mudaram da Nova Inglaterra para cá. Tony só se tornou uma figura apavorante depois a mudança. Os agradáveis interlúdios tornaram-se pesadelos, ate1 mais apavorantes para seu filho, pois ele não consegue lembrar-se exatamente de como são os pesadelos. Isso é bastante comum. Todos nós nos lembramos de nossos sonhos agradáveis com mais clareza do que daqueles que nos amedrontam. Parece haver um sujeito em algum lugar entre o consciente e o subconsciente, e uma porção de puritanos mora ali. Esse censor só permite a entrada de algumas poucas coisas, e freqüentemente o que entra é apenas simbólico. É simplificar demais Freud, mas descreve razoavelmente o que sabemos sobre a interação da mente com ela própria.

- O senhor acha que a mudança entristeceu Danny tanto assim? - perguntou Wendy.

Pode ser, se aconteceu sob circunstâncias traumatizantes - respondeu Edmonds. Aconteceu?

Wendy e Jack trocaram olhares.

- Eu lecionava numa escola preparatória - disse Jack devagar. - Perdi o emprego.

- Entendo - falou Edmonds. Colocou a caneta com que brincava firmemente no porta-caneta. Temo haver mais alguma coisa. Pode ser penoso para vocês. Seu filho parece acreditar que vocês dois tenham seriamente estudado a possibilidade de um divórcio. Falou disso, muito por alto, mas apenas porque acredita que não estejam mais considerando o fato.

Jack ficou boquiaberto, e Wendy recuou como se tivesse levado um tapa. O sangue fugiu de seu rosto.

- Nós nunca sequer discutimos sobre isso! - disse ela.

- Nem diante dele, nem diante de nós mesmos! Nós...

- Acho que seria melhor, se o senhor entendesse tudo, doutor - interrompeu Jack. - Pouco tempo depois que Danny nasceu, tornei-me um alcoólatra. Tive problemas com bebida durante toda a faculdade, que diminuiu um pouco depois que Wendy e eu nos conhecemos, aumentou mais ainda depois que Danny nasceu, e quando minha capacidade de escrever, o que considero meu verdadeiro trabalho, decresceu. Na época em que Danny tinha três anos e meio, derramou cerveja numa porção de papéis em que eu estava trabalhando. . . papéis que, de qualquer forma, eram só um embuste. . . e eu. . . bem.

que merda. - Sua voz falhou, mas os olhos continuaram secos e firmes. - Parece tão desgraçadamente idiota dito em VOZ alta. Quebrei-lhe o braço segurando-o para espancá-lo. Tres meses depois, larguei a bebida. E desde então não toquei mais nela.

- Entendo - disse Edmonds, impassível. - Sabia que o braço havia sido quebrado, claro. Foi bem engessado. - Afastou-se um .pouco da mesa e cruzou as pernas. - Se posSO ser franco, é óbvio que não houve nada que o tenha prejudicado

desde então. A não ser pelas picadas, não há nada com ele, apenas machucados e cicatrizes normais que qualquer criança tem em abundância.

- Claro que não - disse Wendy, com violência. . . - Jack não quis...

- Não, Wendy - interrompeu Jack. - Quis, sim. Acho que lá no fundo de mim fiz com ele realmente o que queria. Ou alguma coisa ainda pior. - Olhou de volta para Edmonds.

- Sabe de uma coisa, doutor? Esta é a primeira vez que a palavra divórcio foi mencionada entre nós. E alcoolismo. E surra em criança. Três primeiras vezes em cinco minutos.

Isso pode ser a raiz do problema - falou Edmonds.

- Não sou um psiquiatra. Se quiserem que Danny seja consultado por um psiquiatra infantil, posso recomendar um médico muito bom que trabalha no Centro Médico de Boulder. Mas estou seguro do meu diagnóstico. Danny é um menino inteligente, com muita imaginação e percepção. Não creio que esteja tão triste com seus problemas conjugais quanto vocês acham. Crianças são muito suscetíveis. Não entendem a vergonha, ou a necessidade de esconder coisas.

Jack estudava as mãos. Wendy segurou uma delas e apertou-a.

- Contudo, percebeu as coisas que estavam erradas continuou o médico. - A principal delas, do seu ponto de vista, não era o braço quebrado, mas a quebra do laço entre vocês dois. Mencionou o divórcio para mim, mas não o braço quebrado. Quando a enfermeira disse que estava tudo bem, ele simplesmente esqueceu. Não era nada que o pressionasse. Aconteceu há muito tempo”, é o que acho que ele disse.

- Aquele menino - resmungou Jack. Os maxilares apertados, os músculos da face salientes. - Nós não o merecemos.

Mas o têm, apesar de tudo - disse Edmonds, secamente. - De qualquer forma, ele se isola, por vezes, no mundo da fantasia. Nada de incomum nisso; muitas crianças o fazem. Até onde me lembro, eu mesmo tive meu amigo invisível quando tinha a idade de Danny, um galo falante chamado Chug-Chug. Naturalmente ninguém via Chug-Chug a não ser eu. Tinha dois irmãos mais velhos que sempre me deixavam para trás, e nessas horas Chug-Chug vinha para me dar força. E naturalmente vocês dois devem entender porque o amigo invisível de Danny se chama Tony, ao invés de Mike, Hal ou Dutch.

- Sim - disse Wendy.

- Alguma vez já mostraram isso a ele?

- Não - respondeu Jack. - Deveríamos?

- Por que se preocupar? Deixem-no cair em si na hora certa, por sua própria lógica. Vejam bem, as fantasias de Danny eram consideravelmente mais profundas do que as que crescem em torno da síndrome de amigo invisível em geral, mas sentia que precisava de Tony nessa proporção. Tony aparecia e mostrava coisas agradáveis. As vezes, coisas surpreendentes. Sempre coisas boas. Uma vez Tony mostrou onde estava o baú do pai que estava perdido. . . debaixo da escada. De outra vez, Tony mostrou que papai e mamãe o levariam a um parque de diversões no aniversário.

- Em Great Barrington! - exclamou Wendy. - Mas como poderia saber essas coisas? As coisas com ele, às vezes, são misteriosas. Quase como se.

- Fosse vidente? - perguntou Edmonds, sorrindo.

- Ele nasceu com a cabeça envolta na placenta - disse Wendy, fracamente.

O sorriso de Edmonds transformou-se numa gargalhada. Jack e Wendy trocaram olhares e, em seguida, também sorriram, ambos espantados com a simplicidade da coisa. As “felizes suposições” ocasionais de Danny sobre os fatos eram alguma outra coisa sobre a qual não haviam discutido muito.

Daqui a pouco vocês vão dizer-me que ele levita - disse Edmonds, ainda sorrindo. - Não, não, não, temo que não. Não há nada de extra-sensorial, mas apenas a velha percepção humana, que no caso de Danny é extraordinariamente aguda. Sr. Torrance, ele disse que seu baú estava debaixo das escadas, pois o senhor havia procurado por todos os outros lugares. Processo de eliminação. É tão simples que Ellery Queen riria disso. Mais cedo ou mais tarde vocês mesmos concluiriam. Por exemplo, o parque de diversões de Great Barrington, de quem foi a idéia original? De vocês ou dele?

- Dele, claro -respondeu Wendy. - Anunciavam em todos os programas infantis matinais. Ele estava louco para ir. Mas o negócio, doutor, é que não tínhamos condições de levalo. E havíamos dito a ele.

- Então, uma revista para homens, à qual eu vendern um conto em 1971, enviou-me um cheque de cinqüenta dolares - disse Jack. - Estavam reeditando o conto na publícação anual, ou coisa do gênero. Então, decidimos gastá-los com Danny.

Edmoflds encolheu os ombros.

Desejo de satisfação, mais uma feliz coincidência.

- Diabos. Aposto como está certo - falou Jack.

EdmondS sorriu um pouco.

- E o próprio Danny me disse que freqüentemente Tony mostrava coisas que nunca aconteciam. Visões baseadas em falsa percepção, é só. Danny está fazendo subconscientemente o que os chamados místicos e leitores da mente fazem muito consciente e cinicamente. Admiro-o por isso. Se a vida não se encarregar de inibir suas antenas, acho que será um grande homem.

Wendy concordou - claro que pensava que Danny seria um grande homem - mas a explicação do médico era uma lengalenga. Tinha mais gosto de margarina do que de manteiga. Edmonds não morava com eles. Não estava lá quando Danny encontrou botões perdidos, disse-lhe que o Guia de TV estava debaixo da cama, que achava melhor usar galochas para ir ao maternal, mesmo fazendo sol lá fora . . e depois naquele dia tiveram que voltar para casa debaixo do guarda-chuva. Edmonds não podia saber do modo curioso como Danny previa coisas. Ela decidia, de repente, tomar uma xícara de chá: ia à cozinha e encontrava a xícara com o saco de chá dentro. Lembrava-se de que precisava devolver os livros para a biblioteca, e os encontrava arrumados e empilhados na mesa da saIa, com o cartão da biblioteca em cima. Ou jack resolvia encerar o Volkswagen e encontrava Danny já lá fora, escutando seu rádio de pilha, sentado na calçada, para observar o pai.

Ela disse alto;

- Então, por que os pesadelos? Por que Tony mandou que ele trancasse a porta do banheiro?

- Creio que seja porque Tony suplantou sua utilidade - disse Edmonds. - Ele nasceu. .. Tony, não Danny. .. numa epoca em que a senhora e seu marido se esforçavam por manter seu casamento de pé. Seu marido bebia demais. Houve o incidente do braço quebrado. O silèncio agourento entre vocês.

Silêncio agourento, sim, aquela expressão era verdadeira, de qualquer forma. As refeições densas e tensas onde a única conversa fora, por favor, passe a manteiga, ou Danny, coma o resto das cenouras, ou com licença, por favor. As noites em que Jack saía e ela se deitava, olhos secos, no sofá, enquanto ‘Janny assistia à televisão. As manhãs em que Jack e ela se aproximavam silenciosamente, um do outro, como dois gatos enfurecidos com um rato tremendo de medo entre eles. . Era tudo verdade;

(santo Deus, cicatrizes velhas algum dia param de doer?)

verdade nua e crua.

Edmonds prosseguiu.

- Mas as coisas mudaram. Vocês sabem, o comportamen to esquizóide é algo perfeitamente comum em crianças. É aceitável, pois nós todos, adultos, temos uma opinião inexprimível de que as crianças são lunáticas. Têm amigos invisíveis. Podem sentar-se no armário quando deprimidas, esquivando-se do mundo. Dão uma importância talísmânica a um cobertor em especial, ou a um ursinho, ou a um tigre de pelúcia. Chupam o dedo. Quando um adulto vê coisas, nós o consideramos pronto para o asilo de loucos. Quando uma criança diz ver alguma coisa em seu quarto ou um vampiro na janela, limitamo-nos a rir indulgentes. Temos a explicação em uma sentença, que explica toda a extensão de tais fenômenos em crianças.

- Isso passa - disse Jack.

Edmonds piscou.

- É exatamente o que penso - falou o médico. - Sim. Agora, diria que Danny esteve numa ótima situação para desenvolver uma psicose total. Vida familiar infeliz, forte imaginação, o amigo secreto, que era tão real para ele, tornou-se real para vocês. Ao invés de ultrapassar a esquizofrenia infantil, pode ter muito bem mergulhado nela.

- Tornando-se um autista? - perguntou Wendy. Lera sobre autismo. A própria palavra a aterrorizava; soava como medo e alienação.

- Possível, mas não necessariamente. Pode ser que ele tenha simplesmente entrado no mundo de Tony algum dia e nunca ter voltado ao que ele chama “coisas reais”.

- Deus - disse Jack.

- Mas, agora, a situação básica mudou drasticamente. O Sr. Torrance não bebe mais. Vocês estão num lugar novo, onde as condições obrigaram os três a uma unidade familiar mais estreita do que nunca. . . com certeza mais estreita do que a minha própria, onde minha mulher e filhos podem ver-me duaS ou três horas por dia. Na minha opinião, ele está em condição perfeitamente saudável. E acho que o próprio fato de ser capaz de diferenciar, com tanta nitidez, o mundo de Tony das “coisas reais” significa muito sobre seu estado mental, fundamentalmente sadio. Ele diz, que vocês dois não estão mais pensando em divórcio. Ele esta certo?

- Está - disse Wendy, e Jack apertou sua mão com força, quase machucando-a. Ela também apertou.

Edmoflds balançou a cabeça.

- Realmente, Danny não precisa mais de Tony. Ele o está expulsando de seu sistema. Tony não mais traz visões agradáveis, mas pesadelos hostis, cuja lembrança é tão aterrorizante para ele que só consegue lembrar-se fragmentariamente. Ele interiorizou Tony durante uma difícil. . . desesperada. . . situação de vida, e Tony não vai embora facilmente. Mas vai. Seu filho é um pouco como um alcoólatra abandonando o vício.

Levantou-se, os Torrance também.

- Como disse, não sou psiquiatra. Se os pesadelos continuarem, quando concluir seu trabalho no Overlook, na primavera, Sr. Torrance, recomendo-lhe seriamente levá-lo a este homem em Boulder.

- Levarei.

- Bem, vamos lá fora dizer que ele pode ir para casa - falou Edmonds.

- Quero agradecer-lhe - disse Jack, com dificuldade.

- Há muito tempo não me sentia tão bem.

- Eu também - falou Wendy.

A porta, Edmonds parou e olhou para Wendy.

- A senhora tem ou teve uma irmã, Sra. Torrance? Chamada Alleen?

Wendy olhou-o com espanto.

- Tive, sim. Ela morreu fora de nossa casa em Somerworth, New Hampshire, quando tinha seis e eu dez anos. Corria atrás de uma bola no meio da rua e foi atropelada por um furgão.

- Danny sabe disso?

- Não sei, não creio que saiba.

- Diz ele que a senhora estava pensando nela na sala de espera.

Estava - disse Wendy, devagar. - Pela primeira vez em... oh, não sei há quanto tempo.

A palavra “redrum” significa qualquer coisa para algum de Vocês?

Wendy sacudiu a cabeça, mas Jack disse:

Ele mencionou esta palavra ontem à noite, antes de dormir Red drum.

- Não, rum - corrigiu Edmonds. - Ele enfatizou muito isso. Rum. Como a bebida. A bebida alcoólica.

- Oh! - exclamou Jack. - Combina, não?

Tirou o lenço do bolso e enxugou os lábios.

- A expressão “iluminado” significa algo para vocês?

Desta vez, ambos sacudiram a cabeça.

Acho que não importa - disse Edmonds. Abriu a porta que dava para a sala de espera. - Há alguém aqui chamado Danny Torrance, que gostaria de ir para casa?

- Oi, papai! Oi, mamãe! Levantou-se da mesinha onde estivera folheando devagar um exemplar de Fauna e Flora, e murmurando as palavras que conhecia.

Correu para Jack, que o segurou nos braços. Wendy afagou-lhe os cabelos.

Edmonds consultou-o.

- Se não gostar de seu pai e de sua mãe, pode ficar aqui com o amigo BilI.

Não, senhor! - disse Danny, enfático. Jogou um braço em torno do pescoço de jack, e o outro em torno de Wendy, e parecia radiante.

- Muito bem - falou Edmonds, sorrindo. Olhou para Wendy. - Telefone, se tiver algum problema.

- Está bem.

- Não creio que terá - concluiu Edmonds, ainda sor rindo.

 

O álbum de recortes

Jack encontrou o álbum de recortes no dia 1.0 de novembro, enquanto a mulher e o filho limpavam a estrada velha que ia dos fundos da quadra de roque a uma serraria abandonada, a três quilômetros dali. O tempo ainda estava bom, e os treS estavam com um leve bronzeado de outono.

Fora ao porão, regular a pressão da caldeira, e depois, num impulso, tirara a lanterna da prateleira onde estavam os diagramas do sistema hidráulico, e resolvera olhar alguns papéis velhos. Procurava também lugares próprios, onde pudesse montar as ratoeiras, apesar de não pretender executar a tarefa até o mês seguinte. - “quero-os todos em casa depois das férias”, dissera a Wendy.

Acendendo a lanterna, passou pelo cabo do elevador (diante da insistência de Wendy não haviam usado o elevador, desde que se mudaram) e pelo pequeno arco de pedra. Franzia o nariz por causa do cheiro de papel mofado. Atrás, a caldeira engasgava, num estrondo, assustando-o.

Dirigiu a luz em derredor, assobiando entre os dentes. Havia aqui uma miniatura dos Andes, dúzias de caixas e caixotes cheios de papel, a maior parte deles branca e sem forma, devido ao tempo e à umidade. Outras haviam-se aberto, derramando folhas amareladas de papel no chão de pedra. Havia fardos de jornal amarrados por uma corda. Algumas caixas continham o que pareciam livros razões, e outras, notas atadas por elástico. Arrastou uma e dirigiu-lhe a lanterna.

“EXPRESSO MONTANHA ROCHOSA LTDA.

Para: HOTEL OVERLOOK

De: ARMAZÉM SIDEY 16th Street, 1210 - Denver, CoLoRADO

Via: ESTRADA DE FERRO CANADIAN PACIFIC

Conteúdo: 400 CAIXAS DE PAPEL HIGIÊNICO DELSEY 1 GROSA CADA.

Assinado: DEF

Data:  24 de agosto de 1954”

            Sorrindo, Jack deixou o papel cair de volta na caixa.

            Dirigiu a luz para cima e viu uma lâmpada pendurada, quase perdida entre as teias de aranha. Não havia corrente.

            Apoiou-se na ponta dos pés e tentou torcer a lâmpada. acendeu, uma luz muito fraca. Apanhou a nota fiscal do papel higiênico mais uma vez, e a usou para limpar algumas teias de aranha. O brilho não foi muito maior.

            ainda com a lanterna, caminhou por entre as caixas e caixotes de papel, procurando sinais de ratos. Passaram por ali, mas ha muito tempo. talvez anos. Encontrou restos de excrementos esbranquiçados pelo tempo, vários ninhos muito bem arrumados feitos de papel picado velho e fora de uso.

Jack puxou um jornal de um dos fardos e olhou a manchete.

“JOHNSON PROMETE TRANSIÇÃO PACÍFICA

Diz que o trabalho iniciado por JFK Continuará no próximo ano”

O jornal era o Rocky Mountain News, de 19 de dezembro de 1963. Jogou-o de volta à pilha.

Fascinou-se com a sensação de lugar-comum da história, que qualquer pessoa pode ter ao olhar as notícias de primeira mão de dez ou vinte anos passados. Encontrou defasagens nas pilhas de jornal e notas, nada de 1937 a 1945, de 1957 a 1960, de 1962 a 1963. Períodos em que o hotel estivera fechado, pensou. Quando pertencera a aventureiros, tentando a sorte.

As explanações de Ullman a respeito da carreira diversificada do Overlook ainda não lhe soavam como verdadeiras. Parecia que a localização espetacular do Overlook seria o bastante para garantir a continuidade de seu sucesso. Sempre houve americanos do jet set, mesmo antes da invenção do jato, e a Jack parecia que o Overlook deveria ser uma escala em suas migrações. Fazia algum sentido, O Waldorf em maio, o Bar Harbor House em junho, o Overlook em agosto e princípio de setembro, antes da mudança para as Bermudas, Havana e Rio, ou o lugar que fosse. Encontrou uma pilha de registros velhos de portaria que o ajudaram. Nelson Rockefeller em 1930. Henry Ford e família em 1927. Jean Harlow em 1930. Clark Gable e Carole Lombard. Em 1956, todo o andar superior fora reservado durante uma semana por Darryl F. Zanuck e família! O dinheiro deve ter rolado pelos corredores e entrado pela máquina registradora como uma mina de ouro do século XX.

Havia história ali, muito bem, e não só nas manchetes dos jornais. Estava enterrada naqueles livros razões, livros de coatas e notas de pequenas despesas onde não se podia vê-la muito bem. Em 1922, Warren G. Harding pedira um salmão inteiro às dez horas da noite, e uma caixa de cerveja Coors. Mas com quem estaria ele comendo e bebendo? Teria sido um jogo de pôquer? Uma aula de estratégia? O quê?

Jack olhou o relógio e ficou surpreso, pois quarenta e cinco minutos haviam voado, desde que descera até o porão. Seus braços e mãos estavam sujos, e provavelmente cheiravam mal.

Resolveu subir e tomar um banho, antes que Wendy e Danny voltassem.

Caminhou devagar por entre as montanhas de papel, a mente viva e remoendo possibilidades numa velocidade tal que o divertia. Há anos não se sentia assim. De repente, parecia que o livro que se prometera, quase de brincadeira, realmente poderia acontecer. Poderia, inclusive, estar ali, perdido, naqueles amontoados. Poderia ser um trabalho de ficção, história, ou ambos: um livro longo explodindo daquele lugar central, em centenas de direções.

Parou ao lado da lâmpada com as teias, puxou o lenço do bolso traseiro sem pensar, e com ele esfregou os lábios. Foi quando viu o álbum de recortes.

Uma pilha de cinco caixas dispunha-se à sua direita como uma espécie de Torre de Pisa. A caixa de cima estava recheada de mais notas e livros razões. Equilibrado em cima, mantendo seu ângulo de repouso, Deus sabe há quanto tempo, estava um grosso álbum de recortes com capa de couro, as páginas atadas com duas tiras de cordão de ouro, que formavam laços enfeitando a capa.

Curioso, foi até lá e pegou-o. A capa da frente estava grossa de poeira. Segurou-o diante do rosto, ao nível da boca, soprou a poeira transformada em nuvem, e abriu-o. Assim fazendo, um cartão voou e ele agarrou-o no ar, antes que caísse no chão de pedra. Era de bom gosto e de cor creme, com um alto-relevo do Qverlook com todas as luzes acesas. O jardim e o playground eram decorados com lanternas japonesas acesas. Parecia quase como se pudesse entrar por ele, um Hotel Overlook que existiu há trinta anos.

“Horace M. Derwent tem o prazer de convidar V. Ex.’ para o baile de máscaras que fará celebrar na grande abertura do HOTEL OVERLOOK

A ceia será servida às 20:00 horas.

Retirada das máscaras e baile à meia-noite. 29 de agosto de 1945 RSvP”

Ceia às oito da noite! Retirada das máscaras à meia-noite! d Quase podia vê-los na sala de jantar, os homens mais ricos da America e suas mulheres. Smokings e camisas engomadas;

vestidos longos; a orquestra tocando; saltos altos cintilantes. Os brindes, o alegre espocar das rolhas de champanha. A guerra terminara, ou quase. O futuro se abria à frente, limpo e Claro. A América era o colosso do mundo e, finalmente, descobria e aceitava o fato.

E mais tarde, à meia-noite, o próprio Derwent gritando. “Retirem as máscaras! Retirem as máscaras” As máscaras sendo retiradas e.

(A Máscara da Morte Rubra dominava tudo!)

Franziu a testa. De onde viera isso? Era Poe, o Grande Fiasco da Literatura Americana. E é claro que o Overlook este Overlook iluminado, cintilante no convite que segurava em suas mãos era o grito mais distante e imaginável de E. A. Poe.

Guardou o convite e virou a página. Um recorte colado de um dos jornais de Denver, com a data escrita embaixo: 15 de maio de 1947.

“ELEGANTE ESTÂNCIA DE SERRA REABRE COM

HÓSPEDES DE PRIMEIRA CATEGORIA

Derwent diz que o Overlook será ‘o lugar da moda do mundo’

Por David Felton, editor de quadrinhos

O Hotel Overlook foi aberto e várias vezes reabriu ao longo dos trinta e seis anos de sua história, mas nunca com tanta pompa e esplendor, conforme prometido por Horace Derwent, o misterioso milionário da Califórnia, atual proprietário do hotel.

Derwent, que não faz segredo do fato de ter empregado mais de um milhão de dólares em sua mais recente aventura

- e alguns dizem que a cifra está próxima dos três milhões -, diz que ‘o novo Overlook será um dos lugares da moda, o tipo de hotel do qual você se lembrará durante trinta anos’.

Quando Derwent, sobre quem corre o boato de deter substancial quantidade de ações em Las Vegas, foi questionado sobre se a compra e reforma do Overlook assinala o marco na batalha para a legalização dos cassinos no Colorado, o magnata de aviões, cinemas, munições e navios negou. . . com um sorriso. ‘O Overlook se baratearia com o jogo’, disse ele, ‘e não creiO que esteja criticando Las Vegas! Há dinheiro meu suficiente por

lá para eu me permitir fazer isso! Não tenho interesse algum

em tentar obter a aprovação de um projeto para a legalização do jogo no Colorado. Seria malhar em ferro frio.’

Quando o Overlook abrir oficialmente (houve uma enorme e bem-sucedida festa lá, há alguns anos, quando o trabalho atual foi concluído), os apartamentos recentemente pintados, forrados e decorados serão ocupados por uma lista de astros e estrelas, que vão desde o chic desenhjsta Corbat Stani até. .

Sorrindo confuso, Jack virou a página. Olhava agora para um anóncio de página inteira do New York Times de domingo, Caderno de Turismo. Na página seguinte, uma história sobre o próprio Derwent, um homem careca, com olhar penetrante em uma foto de jornal. Usava óculos sem aro, e mesmo com o bigodinho fino, dos anos 40, não conseguia parecer-se com Errol Flynn. Sua fisionomia era a de um contador. Eram seus olhos que o denunciavam.

Jack leu o artigo às pressas. A maior parte da informação ele tivera de uma história sobre Derwent publicada no Newsweek do ano anterior. Nascido pobre em St. Paul, nunca concluiu o curso secundário; alistou-se, ao invés disso, na Marinha. Subiu rapidamente, apesar de amargar a derrota ao tentar patentear um novo tipo de navio acionado por hélice, que ele desenhara. Na guerra entre a Marinha e um jovem desconhecido, chamado Horace Derwent, Tio Sam sagrou-se o previsto vencedor. Mas Tio Sam nunca obteria outra patente, e houve uma porção delas.

No fim da década de 20 e início da de 30, Derwent voltou-se para a aviação. Comprou uma companhia falida de pulverizadores de plantação transformou-a em serviço de correio, e prosperou. Mais patentes se seguiram: um novo desenho da asa de um monoplano, um carregador de bomba usado nas Fortalezas Voadoras que fizeram chover fogo sobre Hamburgo, Dresden e Berlim, uma metralhadora refrigerada a álcool, um Protótipo de assento ejetável, usado mais tarde nos jatos americanos.

1 E, ao longo do tempo o contador, que vivja na mesma peiedo inventor, acumulava investimentos. Uma insignificante

cadeia de fabricas de munição em Nova York e Nova Jersey. mco industrias têxteis na Nova Inglaterra. Indústrias químias ralidas e sem expressão no sul. No fim da Depressão, sua ortuna se constituía de uma porção de ações compradas a preços baixíssimos e vendidas a preços ainda mais baixos. A certa altura, Derwent se gabava de poder vender tudo e conseguir apenas o suficiente para comprar um Chevrolet velho.

Houve rumores, Jack se lembrava, de que alguns dos meios que Derwent empregou para tirar a corda do pescoço eram ilícitos. Envolvimento com contrabando de bebida alcoólica. Prostituição no centro-oeste. Contrabando na costa sul, onde ficavam suas fábricas. Finalmente, uma associação com os crescentes lucros de jogo no oeste.

É provável que o investimento mais famoso de Derwent tenha sido a compra do estúdio Top Mark, falido, que não tivera um ídolo desde sua estrela infantil, a Pequena Margery Morris, que morrera de uma dose excessiva de heroína em 1934, aos catorze anos. A Pequena Margery, que se especializara em doces canções que salvavam casamentos e vidas de cachorros injustamente acusados de matar galinhas, teve o maior funeral da história de Hollywood, patrocinado pelo Top Mark - a versão oficial foi de que a Pequena Margery contraíra uma tuberculose enquanto cantava para um orfanato de Nova York -, e alguns cínicos sugeriram que o estúdio exibira toda aquela cena, pois sabia que estava enterrando a si próprio.

Derwent empregou um esperto homem de negócios e tarado sexual, de nome Henry Finkel, para dirigir o Top Mark, e nos dois anos antes de Pearl Harbor o estúdio produziu sessenta filmes, cinqüenta e cinco dos quais geraram conflitos com a censura, conflitos esses que não deram em nada. Os outros cinco foram filmes de propaganda do governo. Os filmes de longa metragem foram de enorme sucesso. Durante um deles um determinado desenhista de moda fez um sutiã sem alças especialmente para a estrela do filme aparecer na cena do grande baile, onde revelava tudo, escondendo apenas uma possível mancha de nascença abaixo do traseiro. Derwent também recebeu crédito pela invenção, e sua reputação - ou notoriedade - cresceu.

A guerra fizera-o rico e ainda estava rico. Morando em Chicago, raramente visto, a não ser nas reuniões de conselho das empresas Derwent (que dirigia com mão de ferro), comentava-se que era o dono da Unnited Alr Lines, de Las Vegas (On era sabido que tinha ações majoritárias de quatro hotéis-cassinos e algum envolvimento em pelo menos outros seis), de Los Angeles e dos próprios Estados Unidos. Conhecido como amigo da realeza, presidentes e representantes do submundo, muitos supunham que era o homem mais rico do mundo.

Mas não conseguira tocar o Overlook para a frente, pensOU Jack. Colocou o álbum de lado por um momento e pegou a caderneta e a lapiseira que sempre levava no bolso da camisa. Rabiscou: “Verificar H. Derwent, biblioteca de Sidewinder”. Guardou a caderneta e apanhou o álbum. O rosto estava preocupado, os olhos distantes. Limpava a boca com as mãos, repetidas vezes, enquanto dobrava as páginas. Passou os olhos no material que se seguia, fazendo anotações mentais para lê-lo mais atentamente depois. Recortes colocados em muitas das páginasFulano de Tal é esperado no Overlook na próxima semana, Beltrano dará um show no salão (no tempo de Derwent era o Salão Olho Vermelho). Muitos dos artistas eram nomes de Las Vegas, e muitos dos convidados, executivos e astros do Top Mark.

Depois, num recorte datado de 1.0 de fevereiro de 1952:

“EXECUTIVO MILIONÁRIO VENDE INVESTIMENTOS NO COLORADO

Acordo feito com investidores no Overlook,

outros investimentos, revelações de Derwent

Por Rodney Conklin, editor financeiro

Em comunicado breve, ontem, de Chicago, nos escritórios das monolíticas empresas Derwent, foi revelado que o milionario (talvez bilionário) Horace Derwent vendeu tudo no Colorado, em um surpreendente jogo financeiro que estará concluido por volta de 1.0 de outubro de 1954. Os investimentos de Derwent incluem gás natural, carvão, usina hidrelétrica e uma companhia de desenvolvimento agrário chamada Colorado Sunshine, mc., que possui ou detém ações preferenciais de mais de quinhentos mil acres no território do Colorado.

A mais famosa propriedade rural de Derwent no Colorado, o Hotel Overbook já foi vendida, revelou Derwent numa rara entrevista ontem. O comprador foi um grupo de investidores da Califórnia encabeçado por Charles Grondim, ex-diretor da Empresa de Desenvolvimento Agrário da Califórnia. En. bUarito Derwent recusava-se a divulgar cifras, informaram as rontes . .

Liquidara tudo, móveis e utensílios, não fora sÓ O Overlook. Mas de algum modo... de algum modo...

Jack enxugou os lábios com a mão e desejou um gole. Seria melhor com um gole. Virou mais páginas.

O grupo da Califórnia abrira o hotel durante duas temporadas e, em seguida, vendeu-o a um grupo do Colorado chama do Estâncias Montanhosas. O grupo faliu em 1957, em meio a acusações de corrupção, desfalque e ludíbrio aos acionistas, O presidente da companhia suicidou-se, dois dias depois de ser intimado a comparecer diante do tribunal.

O hotel estivera fechado durante o resto da década. Havia uma única história a respeito, uma manchete de domingo, “ANTIGO GRANDE HOTEL EM DECADÊNCIA”. As fotos que se seguiam partiram o coração de Jack: a pintura da entrada principal descascando, a grama, uma desordem, sem plantas, áspero, janelas quebradas por tempestades e pedras. Esta seria uma parte do livro, se é que na realidade escreveria - a fênix queimada para renascer das cinzas. Prometeu a si próprio que tomaria conta do lugar, com muito cuidado. Parecia que até ontem não tinha entendido realmente a extensão de sua responsabilidade para com o Overlook. Era quase como se tivesse responsabilidade para com a história.

Em 1961, quatro escritores, dois deles ganhadores do prêmio Pulitzer, alugaram o Overlook e o reabriram como uma escola de escritores. Isso durou um ano. Um dos alunos embriagara-se no apartamento do terceiro andar, atirou-se pela janela e caiu morto no terraço de cimento. O jornal sugeria suicídio.

Todo grande hotel tem seus escândalos, dissera Watson, assim como todo grande hotel tem um fantasma. Por quê? Diabos, as pessoas vêm e vão.

De repente, parecia que podia quase sentir o peso do Overlook sobre si, cento e dez apartamentos, as despensas, cozinha, copa, congeladores, salão, saguão, restaurante.

(No apartamento as mulheres vêm e vão)

...e a Máscara da Morte Rubra dominava tudo.)

Esfregou os lábios e virou as páginas do álbum. Estava agora no último terço, e pela primeira vez imaginou conscientemente de quem poderia ser o livro, deixado por cima da pilha mais alta de registros no porão.

Uma nova manchete, esta datada de 10 de abril de 1963.

“GRUPO DE LAS VEGAS COMPRA RENOMADO HOTEL NO COLORADO

Pitoresco Overlook torna-se clube privado

Robert T. Leffing, representante de um grupo de investidores sob o nome de High Country Investments, anunciou hoje em Las Vegas que o High Country negociou um acordo para o famoso Hotel Overbook, uma estância localizada no topo das Rochosas. Leffing não mencionou os nomes dos investidores, mas disse que o hotel se transformaria em um clube privado. Disse que o grupo que representa espera vender títulos a grandes executivos de empresas americanas e estrangeiras.

O Grupo High Country possui também hotéis em Montana, Wyoming e Utah.

O Overlook tornou-se conhecido mundialmente nos anos de 1946 a 1932, quando era de propriedade do ardiloso multimilionário Horace Derwent, que.

O tema da próxima página era uma mera sátira, datada de quatro meses mais tarde, O Overbook se abrira sob a nova direção. Aparentemente, o jornal não descobrira, ou não estava interessado em quem eram os investidores, pois nenhum nome foi mencionado, a não ser o de High Country Investments

o nome de empresa mais anônimo que Jack já ouvira, perdendo apenas para uma cadeia de lojas de bicicletas e peças a oeste da Nova Inglaterra, sob o nome de Business, mc.

Virou a página e deu uma olhadela no recorte colado ali.

“MILIONÁRIO DERWENT DE VOLTA AO COLORADO PELA PORTA DOS FUNDOS?

Alto executivo identificado como Charles Grondin Por Rodney Conklin, editor financeiro

O Hotel Overlook, um deslumbrante palácio de prazer nas montanhas do Colorado e uma vez o brinquedo pessoal do milionárioHorace Derwent, está no centro de um embaraço fnanceiro , que só agora começa a ser esclarecido.

No dia 10 de abril do ano passado, o hotel foi comprado por Uma firma de Las Vegas, High Country Investments, para e tornar um clube privado para executivos ricos de origem estrangeira ou local. Agora, dizem as fontes de informação que a High Country é presidida por Charles Grondin, cinqüenta e três anos, presidente do Grupo de Desenvolvimento Agrário da Califórnia até 1959, quando se demitiu para assumir o cargo de um vice-presidente qualquer, no escritório central das Empresas Derwent.

O fato levou a especulações de que a High Country Investments pode ser controlada por Derwent, que pode ter adquirido o Overlook pela segunda vez e, decididamente, sob circunstâncias estranhas.

Grondin, que foi acusado e absolvido por sonegação de imposto de renda em 1960, não pôde ser localizado para comentários, e Horace Derwent, que zela suspeitosamente por sua privacidade, não fez comentários quando consultado por telefone. O Deputado Dick Bows, de Golden, solicitou completa investigação do.

Aquele recorte era datado de 27 de julho de 1964. O próximo era uma coluna de um jornal de domingo de setembro do mesmo ano. Era de autoria de Josh Brannigar, um investigador para casos de corrupção da turma de Jack Anderson. Torrance lembrava-se vagamente de que Brannigar morrera em 68 ou 69.

“ZONA FRANCA DA MÁFIA NO COLORADO?

Por Josh Brannigar

Parece agora possível que o local mais recente de cura e repouso dos chefes supremos da Organização nos Estados Unidos está localizado num hotel afastado e aninhado no centro das Rochosas. O Hotel Overlook, um elefante branco que foi, sem sorte, dirigido por quase uma dúzia de diferentes grupos e indivíduos desde sua inauguração em 1910, está agora sendo operado como um clube privado muitíssimo fechado, aparentemente por desprendidos homens de negócios. A pergunta e, realmente, em que negócio estão os proprietários do Overlook metidos?

Os sócios presentes à reunião da semana de 16 a 23 de agosto podem nos dar uma idéia. A lista abaixo foi obtida por um ex-empregado da High Country Investments, uma companhia a princípio tida como simulacro de empresa de propriedade do Grupo Derwent. Parece, ao que tudo indica, que O interesse de Derwent na High Country (se é que há algum)

só é ultrapassado pelos interesses dos diversos barões de Las Vegas. E estes mesmos gângsteres estiveram, no passado, ligados a suspeitos e convictos chefes do submundo presentes no Overlook durante a ensolarada semana de agosto, estavam:

Charles Grondin, presidente da High Country Investments. Quando se tornou público em julho deste ano que estava dirigindo o barco High Country, foi anunciado - consideravelmente depois do fato - que ele havia anteriormente se demitido de seu cargo no Grupo Derwent. Grondin, o cabeleira de prata, que se recusou a conversar comigo para esta coluna, foi uma vez julgado e acusado de sonegação de impostos (1960).

Charles ‘Baby Charlie’ Battaglia, um empresário de Las Vegas, de sessenta anos (acionista do Greenback e do Lucky Bones, na área de Strip). Battaglia é amigo íntimo de Grondin. Seus antecedentes criminais remontam a 1932, quando foi julgado e acusado como assassino da quadrilha de Jacy ‘Holandesinho’ Morgan. As autoridades federais o suspeitam de envolvimento com tráfico de drogas, prostituição e mandante de crimes, mas ‘Baby Charlie’ foi apenas uma vez para trás das grades, por sonegação de impostos, em 1955-56.

Richard Scarne, o principal acionista da indústria de caça-níqueis Fun Time. Esta fabrica caça-níqueis para o pessoal de Nevada, jogos mecânicos e máquinas de música (Moeda Melódica) para o resto do país. Cumpriu pena por assalto a mão armada (1940), porte ilegal de arma (1948) e por fraude de imposto (1961).

Peter Zeiss, importador baseado em Miami, com aproximadamente setenta anos. Durante os últimos cinco anos tem lutado contra deportação como persona non grata. Foi condenado por acusações de receber e ocultar propriedades roubadas (1958), e por fraude de imposto (1954). Atraente, distinto e elegante, Peter Zeiss é chamado ‘Poppa’ pelos íntimos, e foi acusado de assassinato e cumplicidade. Grande acionista da Scarne’s Fun Time, tem também participação nos lucros de quatro cassinos de Las Vegas.

Vittorio Gienelli, também conhecido como ‘Vito, o Açougueiro , julgado duas vezes por massacres, um deles, o crime machado de Boston, do vice-chefe supremo, Frank Scott. Gienelli foi acusado vinte e três vezes, julgado catorze, e condenavo apenas uma vez por assalto a lojas em 1940. Foi dito que nos últimos anos Gienelli se tornou poderoso na operação oeste da Organização, que é centralizada em Las Vegas.

Cari ‘Jimmy-Ricks’ Prashkin, um investidor de San Fran cisco, famoso por ser o provável herdeiro do poder exercido agora por Gienelli. Prashkin detém grande número de ações do Grupo Derwent, High Country Investments, Máquinas Automáticas Fun Time e de três cassinos de Las Vegas. Prashkin é limpo na América, mas acusado no México de fraude, suspeita que foi rapidamente afastada três semanas depois de levantada. Comenta-se que Prashkin pode ser acusado de estelionato nas operações do cassino de Las Vegas, e de dirigir as grandes importâncias de volta às legítimas operações oeste da Organização. E, agora, tais operações podem incluir o Hotel Overlook, no Colorado.

Outros visitantes durante a estação incluem...

Havia mais, porém Jack passou por cima, sempre enxugando os lábios com a mão. Um banqueiro com ligações em Las Vegas. Homens de Nova York que aparentemente faziam outras coisas no distrito de Garment, além de roupas. Homens citados por envolvimento com drogas, vícios, roubos, assassinatos.

Deus, que história! E estiveram todos aqui, exatamente aqui em cima, naqueles apartamentos vazios. Talvez trepando com putas de luxo no terceiro andar. Bebendo litros de champanha. Fazendo negócios que se transformariam em milhões de dólares, talvez na mesma suíte onde presidentes tinham estado. Havia uma história, muito bem. Uma tremenda história. Um pouco frenético, tirou a caderneta do bolso e rabiscou outro lembrete para verificar toda essa gente na biblioteca em Denver, quando o trabalho de zeladoria estivesse concluído. Todo hotel tem seus fantasmas? O Overlook tinha uma assembléia inteira deles. Primeiro suicídio, depois a Máfia, o que em seguida?

O recorte seguinte era uma rejeição furiosa de Charles Grondin contra as acusações de Brannigar. Jack sorriu maliciosamente.

O recorte da outra página era tão grande que estava dobrado. Jack abriu-o, e suspirou fundo. A foto ali parecia projetar-se: o papel de parede fora mudado desde junho de 1966, mas conhecia aquela janela e a vista muito bem. Era a paisagem a oeste da suíte presidencial. O assassinato vinha a seguir. A parede da saleta junto à porta que levava ao quarto estava salpicada de sangue e do que poderia ser partículas de cérebro. Um guarda, com o rosto sem expressão, de pé, junto a um cadáver escondido por um cobertor. Jack olhou fascinado e os olhos correram então para a manchete.

“MASSACRE EM HOTEL DO COLORADO

Famoso chefe de crimes assassinado em clube privativo.

Mais dois mortos.

Sidewinder, Colorado (upi) - A sessenta quilômetros desta pacata cidade do Colorado, um crime ocorreu no coração das montanhas Rochosas. O Hotel Overbook, comprado há três anos para ser um clube privado por uma firma de Las Vegas, foi palco de um assassinato triplo. Dois dos homens eram ou companheiros ou guarda-costas de Vittorio Gienelli, também conhecido como ‘O Açougueiro’ por seu envolvimento em um assassinato em Boston há vinte anos.

A polícia foi chamada por Robert Norman, gerente do Overlook, que disse ter ouvido tiros, e alguns dos hóspedes informaram que dois homens, com o rosto escondido por meias e empunhando armas, fugiram pela escada de incêndio, e saíram num antigo conversível marrom.

O policial Benjamin Moorer descobriu dois homens mortos, mais tarde identificados como Victor Boorman e Roger Macassi, ambos de Las Vegas, do lado de fora da suíte presidencial, onde já se hospedaram dois presidentes americanos. No interior, Moorer encontrou o corpo de Gienelli esticado no chão. Gienelli estava aparentemente fugindo dos criminosos, quando foi morto. Moorer disse que Gienelli foi morto por uma metralhadora, a curta distância.

Charles Grondin, o representante da companhia que agora e proprietária do Overbook, não pôde ser encontrado para...

Abaixo do recorte, em rabiscos fortes de esferográfica, alguem escrevera: “Levaram-lhe os ovos”. Jack olhou fixo para a luz durante muito tempo, sentindo frio. De quem era esse album?

Finalmente, virou a página, engolindo em seco. Outra coluna de Josh Brannigar, esta datada de 1967. Leu apenas a manchete: “HOTEL FAMOSO VENDIDO DEPOIS DE ASSASSINATO DE PERSONALIDADE DO SUBMUNDO”.

As folhas que se seguiam estavam vazias.

(Levaram-lhe os ovos.)

Folheou de volta para o começo, procurando um nome ou endereço. Mesmo um número de apartamento, pois tinha certeza de que, fosse quem fosse, a pessoa que fizera o álbum de recortes ficara no hotel. Mas não havia nada.

Aprontava-se para repassar os recortes mais atentamente desta vez, quando uma voz chamou-o das escadas.

- Jack? Amor?

Wendy.

Sobressaltou-se, quase com cumplicidade, como se estivesse bebendo às escondidas, e ela pudesse sentir o cheiro do álcool. Ridículo. Esfregou os lábios com a mão e respondeu:

- Sim, bem. Procurando ratos.

Ela estava descendo. Escutou-a nas escadas, e em seguida atravessando a sala da caldeira. Rapidamente, sem pensar por quê, escondeu o álbum sob uma pilha de notas e faturas. Levantou-se enquanto ela atravessava o arco.

- Que, diabos, está fazendo aqui embaixo? São quase três horas.

Ele sorriu:

- Já é tão tarde? Estava aqui mexendo nestas coisas. Tentando descobrir onde os corpos estão enterrados, acho.

As palavras ressoaram viciosamente dentro de sua cabeça. Ela se aproximou, olhando-o, e inconscientemente ele se afastou, sem poder conter-se. Sabia o que ela estava fazendo. Tentava sentir o cheiro de bebida. Talvez nem mesmo ela soubesse, mas ela estava, e isso o fez sentir-se culpado e furioso.

- Sua boca está sangrando - disse ela com curiosa monotonia.

- Hum? - Levou a mão aos lábios e se assustou com a ferida, O dedo indicador ficou sujo de sangue. Seu sentimento de culpa aumentou.

- Ficou esfregando a boca de novo, não é?

Ele baixou os olhos e encolheu os ombros.

- E, acho que sim.

- Tem sido um inferno para você, não tem?

- Não, nem tanto.

- Já se tornou mais fácil?

Levantou os olhos para ela e começou a caminhar. Unia

vez andando, ficava mais fácil. Colocou-se ao lado da mulher, e passou um braço em volta de sua cintura. Afastou uma mecha de seu cabelo louro e beijou-lhe o pescoço.

- Sim - disse ele. - Onde está Danny?

- Por aí. Começou a ficar nublado lá fora. Com fome?

Escorregou a mão sobre o ventre da mulher, coberto pelos jeans apertados, com simulada sensualidade.

- Como um urso, madame.

- Olhe aí, seu preguiçoso. Não comece o que não pode terminar.

Uma trepadinha, madame? - perguntou ele, ainda a acariciando. - Filmes pornô? Posições diferentes?

Enquanto atravessavam o arco, .Jack lançou o olhar para a caixa onde o álbum

(de quem?)

estava escondido. Com a luz apagada era apenas uma sombra. Aliviou-se por ter conseguido afastar Wendy. O apetite sexual tornou-se menos simulado, mais natural ao se aproximarem da escada.

Talvez - disse ela. - Depois que comermos um sanduíche. . . ai! - Fugiu dele, rindo. - Faz cócegas!

- Isso não é nada comparado com o que Jack Torrance gostaria de fazer, madame.

- Caia fora, Jack. O que me diz de um misto quente. antes de tudo?

Subiram as escadas juntos e Jack não olhou para trás de novo. Mas pensou nas palavras de Watson:

Todo grande hotel tem um fantasma. Por quê? Diabos, as Pessoas vêm e vão.

Wendy então fechou a porta do porão, que ficou atrás deles na escuridão.

 

Em frente ao 217

Danny lembrava-se das palavras de outra pessoa que trabalhara no Overlook durante a estação:

Ela dizendo que vira algo em um dos quartos onde

uma coisa ruim acontecera. Isso foi no apartamento 217 e quero que me prometa que não vai entrar lá, Danny... mantenha... se afastado.

Era uma porta comum, em nada diferente das demais portas dos primeiros andares do hotel. Era cinza-escuro, na metade do corredor, em ângulo reto com o corredor principal do segundo andar. Os números na porta não pareciam diferentes dos números dos apartamentos no edifício de Boulder, onde moravam. Um 2, um 1 e um 7. Grande coisa. Exatamente abaixo deles um pequenino círculo de vidro, um olho-mágico. Danny já tinha experimentado vários deles. De dentro, tinha-se uma visão maior do corredor. De fora, podia-se enterrar os olhos de todas as formas imagináveis e ainda assim não ver nada. Um blefe.

(Por que está aqui?)

Depois do passeio por trás do Overlook, ele e a mãe voltaram e ela lhe preparara seu almoço favorito, um sanduíche de queijo e mortadela, e mais sopa de feijão. Comeram na cozinha de Dick e conversaram. O rádio de pilha estava ligado, tocando baixinho, e estalando, músicas da estação Park Estes. A cozinha era seu lugar favorito no hotel, e achava que mamãe e papai deviam sentir a mesma coisa, pois, após experimentarem tomar as refeições no restaurante por dois ou três dias, começaram a comer na cozinha, em comum acordo, colocando cadeiras em torno da tábua de carne de Dick Hallorann, que era quase tão grande quanto a mesa de jantar em Stovington. O restaurante era muito deprimente, mesmo com as luzes acesas e a música do sistema de toca-fitas do escritório. Você era, apenas, uma das três pessoas sentadas a uma mesa, cercada por dúzias de outras, todas vazias e cobertas com estes forros de plástico transparente. Mamãe disse que era como jantar no meio de um conto de Horace Walpole, e papai, rindo, concordou. Papai não tinha idéia de quem era Horace Walpole, mas sabia que a comida de mamãe começara a ficar mais gostosa, logo que passara a comer na cozinha. Danny ficava descobrindo pequenos traços da personalidade de Dick Hallorann por ali, e esses traços tranqüilizavam-no, como um carinho.

Mamãe comera meio sanduíche, sem sopa. Disse que papai devia ter ido dar um passeio a pé, uma vez que tanto o Volks wagen quanto o caminhão do hotel estavam no estacionamento. Disse que estava cansada e que iria deitar-se durante mais OU menos uma hora, e perguntou se Danny achava que podia distrair-se sozinho, sem se meter em confusão. Danny respondeu com a boca cheia de queijo e mortadela que achava que podia.

- Por que não vai ao playground? Pensei que você adoraria aquele lugar, com um monte de areia para seus caminhões e tudo o mais.

Engoliu e a comida desceu por sua garganta como um amontoado seco e duro.

- Talvez eu vá - disse o garoto, voltando-se para o rádio e prestando atenção nele.

- E aqueles animais bacanas feitos de plantas - disse ela, retirando o prato sujo. Seu pai vai ter que apará-los logo, logo.

- E...

(Só coisas ruins. . . uma vez que tinha a ver com aqueles arbustos desgraçados, aparados para parecerem animais. .

- Se encontrar seu pai antes de mim, diga que estou deitada.

- Está bem, mamãe.

Ela colocou os pratos sujos na pia e voltou-se para ele.

- Está feliz aqui, Danny?

Ele a olhou com sinceridade, um bigode de leite sobre o.

Hum. Rum.

- Nenhum pesadelo?

- Não. - Tony aparecera uma vez, uma noite quando estava deitado na cama, chamando seu nome de muito longe. Danny fechara os olhos bem apertados até que Tony desapareceu.

- Tem certeza?

Tenho, mamãe.

Ela parecia satisfeita.

Como está a mão?

Ele a estendeu:

Tudo bem.

Wendy meneou a cabeça. Jack levara o ninho e o pirex, cheio de vespas congeladas, para o incinerador, atrás do galpão

equipado e os queimara. Desde então, nunca mais viram vespas. Ele escrevera para um advogado em Boulder, anexando as fotos da mão de Danny, e o advogado respondeu, havia dois dias - isso deixara jack de mau humor a tarde inteira.

O advogado duvidava de que a companhia que fabricara a bomba de inseticidas pudesse ser processada com sucesso, pois havia apenas Jack para testemunhar que seguira as instruções impressas na caixa. Jack perguntara ao advogado se não poderiam comprar algumas outras e testá-las da mesma forma. Sim, disse o advogado, mas os resultados seriam altamente duvidosos, mesmo que todas as bombas de teste não funcionassem bem. E contou a Jack um caso que envolvia uma companhia que fabricava escadas e um homem que quebrara a espinha. Wendy sentira pena de Jack, mas, no fundo, sentia-se feliz por Danny ter-se saído sem maiores problemas. Era melhor deixar ações judiciais para quem entendesse delas, e aí não se incluíam os Torrance. E desde então nunca mais viram vespas.

- Vá brincar, doutor. Divirta-se.

Mas não se divertira. Caminhou sem rumo pelo hotel, remexeu os armários das empregadas e os quartos dos zeladores, procurando alguma coisa interessante, sem encontrar, um menino se arrastando ao longo de um tapete azul-escuro trançado com linhas negras sinuosas. Tentava abrir, de vez em quando, porta por porta, mas, naturalmente, estavam todas trancadas. As chaves estavam penduradas no escritório, sabia onde, mas papai dissera que ele não deveria tocar nelas. E ele não queria. Queria?

(Por que está aqui?)

Não havia nada sem propósito naquilo tudo. Fora levado ao apartamento 217 por uma curiosidade mórbida. Lembrava-se de uma história que papai contara uma vez, quando estava bêbado. Isso, há muito tempo, mas a história estava tão vívida agora, como quando papai a contara. Mamãe ralhara com papai e perguntara o que ele estava fazendo, lendo para uma criança de três anos algo tão horrível, O nome da história era Bluebeard 1, Aquilo estava claro em sua mente, também, pois a princípio pensou que papai estivesse dizendo Bluebird2, e não havia pássaros azuis na história, ou pássaros de qualquer espécie. Na realidade, a história era sobre a mulher de Barba Azul, uma mulher bonita, de cabelos louros como os de mamãe. Depois que Barba Azul se casou com ela, foram morar em um castelo grande e bonito, que não era como o Overlook. Todos os dias Barba Azul saía para trabalhar, e todos os dias dizia a sua bela mulher que não abrisse a porta de um determinado quarto,

“Bluebeard” “Barba Azul”. (N. da T.)

2 “Bluebird” = “pássaro azul”. (N. da T.)

apesar de a chave dele estar pendurada em um gancho, exatamente como a chave mestra estava pendurada na parede do escritório. A mulher de Barba Azul foi ficando cada vez mais curiosa. Tentou espiar pelo buraco da fechadura, da mesma forma que Danny tentara olhar pelo olho mágico do apartamento 217, também não conseguindo. Havia até um desenho da mulher se ajoelhando e tentando olhar por baixo da porta, mas a fresta era muito estreita. A porta abriu-se e.

O velho livro de histórias retratara sua descoberta em detalhes horrorosos. A imagem se iluminava na mente de Danny. As cabeças degoladas das sete mulheres do Barba Azul estavam no quarto, cada uma em seu pedestal, os olhos virados, as bocas tortas e abertas em gritos silenciosos. De alguma forma, elas se equilibravam sobre pescoços irregulares decepados pela espada de folha larga e havia sangue escorrendo pelos pedestais.

Apavorada, tentou fugir do quarto e do castelo, encontrou Barba Azul no corredor, os olhos terríveis, acesos. “Disse-lhe que não entrasse no quarto”, falou Barba Azul, desembainhando a espada. “Meu Deus, você é tão curiosa quanto as outras sete, e eu que pensei amá-la mais. . seu fim será como o delas. Prepare-se para morrer, mulher ordinária!

Parecia-lhe vago que a história tivesse tido um final feliz, mas isso fora ofuscado diante das duas imagens dominantes: a porta trancada, firme, louca, que guardava um grande segredo, e o próprio segredo terrível, repetido mais de dúzia e meia de vezes. A porta trancada e atrás dela as cabeças, as cabeças degoladas

Sua mão ergueu-se e tocou a maçaneta da porta, furtivamente. Perdera a noção do tempo que estivera ali, parado, hipnotizado diante da porta cinza, tranqüilamente fechada.

(E talvez por três vezes imaginei ter visto coisas... coisas ruins. .

Mas o Sr. Hallorann-Dick - também disse que não achava que essas coisas pudessem atingi-lo. Eram como desenhos assustadores em um livro, só isso. E talvez ele não visse nada. Por outro lado..

Enfiou a mão esquerda no bolso e segurou a chave mestra. Estivera ali o tempo todo, claro.

Segurava-a pela placa quadrada de metal que havia na extremidade, com a palavra “ESCRITÓRIO” gravada. Girava a chave na corrente, observando-a rodar e rodar. Depois de alguns minutos, parou e meteu a chave mestra na fechadura. Ela entrou facilmente, sem embaraços, como se quisesse ter estado ali todo o tempo.

(Imaginei ter visto coisas. . . coisas ruins. . . prometa que não vai entrar lá.)

(Prometo.)

E é claro que uma promessa era muito importante. ainda assim, sua curiosidade coçava tão alucinadamente quanto hera venenosa num lugar que não deve ser coçado. Mas era uma espécie terrível de curiosidade, o tipo que faz a pessoa roer as unhas, nas partes mais assustadoras de um filme de terror. O que estava por trás da porta não seria nenhum filme.

Não acho que essas coisas possam atingi-lo. . . como desenhos assustadores em um livro.

De repente, ergueu a mão esquerda, sem ter certeza do que ia fazer, até retirar a chave mestra e enfiá-la de volta no bolso. Olhou fixo para a porta por mais tempo, olhos azulacinzentados arregalados, em seguida deu as costas rapidamente e caminhou pelo corredor, em direção ao corredor principal, que formava um ângulo reto com aquele onde se encontrava.

Alguma coisa o fez parar ali e, por um momento, não tinha certeza do que era. Depois lembrou-se de que adiante, a caminho das escadas, havia um desses antigos extintores de incêndio enrolado na parede. Enrolado como uma cobra modorrando.

Não eram extintores químicos, disse papai, apesar de haver vários deles na cozinha. Estes eram o precursores dos modernos sprinklers. As mangueiras de lona estão ligadas diretamente ao sistema hidráulico do Overlook, e ligando-se uma única válvula você sozinho podia tornar-se um Corpo de Bombeiros: papai disse que os extintores químicos, que pulverizam espuma de CO2, eram muito melhores. Os químicos extinguiam incêndios, retiravam o oxigênio que necessitavam para queimar, enquanto um pulverizador de alta pressão pode apenas alastrar as chamas. Papai disse que o Sr. Ullman deveria substituir as mangueiras antigas, como também as grelhas, mas o Sr. Ullman talvez não fizesse nenhuma das duas coisas, pois era um CRETINO. Danny sabia que este era um dos piores epítetos que o pai usava. Era aplicado a certos médicos, dentistas e mecânicos, e também ao chefe do departamento de inglês de Stovington, que rejeitara alguns dos pedidos de livros de papai, pois dizia que iam além do orçamento. “Além do orçamento, merda”, ouvira Danny do quarto, onde deveria estar dormindo.

“Está apenas guardando os últimos quinhentos dólares para si, o CRETINO.”

Danny espreitou.

O extintor lá estava, uma mangueira achatada, dobrada dezenas de vezes sobre si mesma, o tanque vermelho preso na parede. Sobre ele um machado numa caixa de vidro como um museu, com palavras brancas em fundo vermelho: “EM CASO DE EMERGÊNCIA, QUEBRE O VIDRO”. Danny conseguia ler a palavra “emergência”, que era também o nome de um de seus programas favoritos na televisão, mas não tinha certeza do resto. Mas não gostava da forma como a palavra era usada em conexão com aquela mangueira longa e achatada. “EMERGÊNCIA” era fogo, explosões, acidentes de carro, hospitais, às vezes morte. E não gostava da forma como a mangueira se pendurava ali tão suavemente na parede. Quando estava só, sempre apressava o andar ao passar pelos extintores. Nenhuma razão especial. Sentia-se melhor indo depressa. Era mais seguro.

Agora, o coração batendo forte no peito, fez a curva e olhou no corredor, depois do extintor, a escada! Mamãe estava lá embaixo, dormindo, E se papai estivesse de volta de seu passeio, provavelmente estaria sentado na cozinha, comendo um sanduíche e lendo um livro. Passaria pelo extintor velho e desceria as escadas.

Começou a caminhar, aproximando-se da parede até seu braço esquerdo encostar no caro papel de seda, Seis metros. Cinco. Quatro.

Quando faltavam três metros, o bocal de aço de repente se desenrolou de onde estivera pousado,

(dormindo?)

e caiu sobre o tapete do corredor com um barulho surdo. Ali estava, o buraco escuro de seu focinho apontando para Danny. O garoto parou imediatamente, estremecendo de pavor. O sangue latejando forte em seus ouvidos e têmporas. A boca seca e amarga, as mãos apertadas. No entanto, o focinho da mangueira continuava apenas ali, com o envoltório de aço brilhando suave, a lona dando uma volta e subindo em direção ao suporte pintado de vermelho aparafusado na parede.

Caíra, e daí? Era apenas um extintor de incêndio, nada mais. Era idiotice pensar que parecia uma cobra venenosa do Mundo dos Animais, que o ouvira e acordara. Simplesmente passaria por cima e andaria em direção à escada, indo um pouco mais rápido, talvez para ter certeza de que ele não sairia correndo atrás dele e não se enrolaria em seu pé.

Enxugou os lábios com a mão esquerda, uma imitação inconsciente do pai, e deu um passo à frente. Nenhum movimento da mangueira. Outro passo. Nada. Está vendo o quão idiota você é? Elaborou tudo, pensando naquele apartamento idiota e naquela história idiota de Barba Azul, e talvez essa mangueira estivesse pronta para desabar há anos. Só isso.

Danny olhou fixo para a mangueira no chão, e pensou nas vespas.

Faltavam dois metros, o focinho vislumbrava-o calmamente como se dissesse: Não tenha medo. Sou só uma mangueira, só isso. E mesmo que não fosse só isso, o que eu faria a você não seria pior do que a ferroada de uma abelha. Ou a ferroada de uma vespa. O que eu poderia fazer com um menininho bonzinho como você. senão morder.. . morder. e morder?

Danny deu mais um passo, e outro. A respiração seca e áspera na garganta. O pânico agora estava próximo. Começou a desejar que a mangueira se movesse, e então finalmente saberia, teria certeza. Deu mais um passo e estava agora surpreendentemente próximo. Mas ela não lhe vai bater, pensou histérico. Como lhe pode bater, morder, sendo somente uma mangueira?

Talvez esteja cheia de vespas.

Sua temperatura caiu para vinte e cinco graus abaixo de zero. Olhou fixamente para o buraco negro no meio do focinho, quase hipnotizado. Talvez estivesse cheio de vespas, vespas secretas, marrons e intumescidas de veneno, tão cheias de veneno do outono, que escorria de seus ferrões em gotas claras de fluido.

De repente, descobriu que estava quase congelado de terror; se não fizesse com que seus pés andassem agora, eles ficariam presos ao tapete e ele permaneceria ali, olhando para o buraco negro no meio do focinho de aço, como um passarinho olhando uma cobra, ficaria ali até que o pai o encontrasse, e então, o que aconteceria?

Com um gemido alto, pôs-se a andar. Ao chegar à mangueira, uma ilusão de óptica fez o focinho parecer movimentarse, remexer como se fosse atingi-lo, saltando sobre ele: em seu estado de pânico parecia que as pernas o empurravam para o teto, que podia sentir o tapete tocando o teto de gesso do corredor, apesar de mais tarde ter percebido que tal não acontecera.

Passou pelo outro lado da mangueira e correu, e de repente ouviu-a seguindo-o, a escada parecia muito distante; parecia retroceder um passo, para cada passo dado em sua direção.

Papai! Tentou gritar, mas a garganta fechada não deixava passar o som. Estava só. Atrás dele o ruído aumentava, o som seco da cobra deslizando rapidamente sobre as fibras secas do tapete. Agora, próxima aos calcanhares, talvez se levantando com a baba clara de veneno saindo do focinho de aço.

Danny chegou à escada e teve que agitar os braços como louco, para se equilibrar. Por um momento, pensou que teria que dar cambalhotas até o pé da escada.

Olhou para trás.

A mangueira não tinha se movido, Estava ali estática, uma parte fora do suporte, o focinho de aço no chão apontando desinteressadamente para longe dele. Está vendo, idiota! censurou-se. Você criou tudo, seu gatinho assustado. Foi tudo sua imaginação, gatinho assustado, gatinho assustado. Agarrou-se ao corrimão, as pernas trêrnulas.

(Ela não o seguiu)

disse-lhe sua mente, e prosseguiu com este pensamento, brincando com ele.

(Não o seguiu, não o seguiu, não, não.)

Não havia nada a temer. Assim, poderia voltar e colocar a mangueira no suporte, se quisesse. Poderia, mas não achava que iria. Mas, e se ela tivesse resolvido segui-lo, e desistido quando viu que não podia. . na verdade. . . apanhá-lo?

A mangueira repousava sobre o tapete, parecendo perguntar-lhe se gostaria de voltar e tentar novamente.

Ofegante, Danny desceu as escadas.

 

Conversando com o Sr. Uliman

A Biblioteca Pública de Sidewinder era um edifício pequeno e afastado, a um quarteirão do comércio da cidade. Era um Prédio modesto, coberto de trepadeiras, e a calçada larga de concreto que ia até a porta estava forrada de restos de flores do último verão. No jardim, uma estátua de bronze de um general da Guerra Civil, de que Jack nunca ouvira falar, apesar de ter sido, na adolescência, um estudioso da história americana.

Os arquivos de jornais eram guardados no subsolo. Consistiam na Gazette de Sidewinder, que falira em 1963, no diário de Estes Park, e no Camera de Boulder. Nenhum jornal de Denver.

Suspirando, Jack dirigiu-se para o Camera.

Quando os arquivos chegaram a 1965, os jornais atuais eram substituídos por carretéis de microfilmes (“Uma concessão federal”, dissera a bibliotecária alegremente. “Esperamos poder microfilmar de 1938 a 1964, quando o próximo cheque chegar, mas são tão vagarosos, não são? Vai ter cuidado, não vai? Sei perfeitamente que terá. Chame, se precisar de mim.”) A única máquina para leitura tinha uma lente que de alguma forma empenara, e quando Wendy pôs a mão sobre seu ombro, cerca de quarenta e cinco minutos depois de ter largado os jornais e passado a utilizar a máquina, Jack estava com uma enxaqueca tremenda.

- Danny está no parque - disse ela -, mas não quero que fique lá fora muito tempo. Quantos minutos acha que vai levar ainda?

- Dez minutos - respondeu Jack. Na realidade, descobrira o último tópico da fascinante história do Overlook: os anos entre o massacre e a posse de Stuart Ullman & Cia. Mas sentiu-se da mesma forma reticente para com Wendy.

Por falar nisso, o que você anda fazendo? - perguntou Wendy. Assanhou-lhe o cabelo enquanto falava, mas havia uma ponta de ironia na voz dela.

- Buscando a história antiga do Overlook – responde ele.

- Alguma razão especial?

- Não,

(e por que diabos está tão interessada?)

só curiosidade.

Encontrou alguma coisa interessante?

- Nada de mais - disse ele, esforçando-se por manter um tom de voz agradável. Bisbilhotava, da mesma forma que sempre bisbilhotara a vida dele, quando estavam em Stovington e Danny ainda era um bebê. Aonde vai, Jack? A que horas volta? Está levando dinheiro? Quanto? Vai de carro? Al vai com você? Algum dos dois vai conseguir manter-se sóbrio? E assim por diante. Ela, perdoem a expressão, levara-o à bebida. Talvez essa não fosse a única razão, mas, por Nosso Senhor Jesus Cristo, digamos a verdade aqui, e admitamos que foi uma delas. Reclamando, reclamando, reclamando até você sentir vontade de esmurrá-la para fazê-la calar a boca e acabar com

(Onde? Quando? Como? Está? Vai?)

a avalanche de perguntas. Davam realmente

(dor de cabeça? ressaca?)

dor de cabeça. A lente. A desgraçada lente que distorcia a impressão. Era por isso que estava com uma dor de cabeça tão filha da puta.

- Jack, você está bem? Está pálido.

Afastou a cabeça dos dedos da mulher.

Estou bem.

Ela rechaçou os olhos raivosos do marido com um sorriso, sem graça.

Bem. . . se está.. . vou esperar no parque com Danny. . . - E, ao se afastar, o sorriso transformou-se em uma confusa expressão de dor.

- Wendy? - chamou Jack.

Ela voltou o olhar e, do pé da escada, respondeu.

- Que é, Jack?

Levantou-se e caminhou para ela.

- Desculpe, amor. Acho que não estou bem. Aquela máquina. . . a lente está empenada. Estou com uma dor de cabeça tremenda. Tem aspirina aí?

- Claro. - Tateou a bolsa e tirou uma caixinha de Anacin. - Fique com ela.

Ele pegou a caixinha.

- Não tem Excedrin? Percebeu a pequena retração no rosto da esposa e entendeu. Havia uma espécie amarga de piada entre os dois, antes de a bebida ter-se tornado algo muito sério para brincadeiras. Ele alegava que Excedrin era a única droga vendida, sem prescrição médica, capaz de curar uma ressaca. Simplesmente, a única. Começou a classificar as dores de cabeça causadas por ressacas como Dores de Cabeça Excedrin N.° Vat 69.

- Excedrin, não tenho - respondeu Wendy. - Des culpe.

- Não há problema - disse ele. - Estes servem.

Mas é claro que não serviriam, e ela deveria saber. Às vezes, ela conseguia ser de uma idiotice atroz.

- Quer um copo d’água? perguntou Wendy, alegre.

(Não, só quero que você vá PARA O INFERNO!)

- Vou ao bebedouro quando subir. Obrigado.

- OK. - Começou a subir as escadas, pernas bonitas, movendo-se com graciosidade debaixo de uma saia curta de lã marrom. - Estaremos no parque.

Certo. - Escorregou a caixinha de Anacin para o bolso, voltou para a lente, e desligou-a. Quando se certificou de que a mulher tinha ido embora, ele mesmo subiu. Deus, era uma dor de cabeça terrível. Se era preciso agüentar uma pressão como esta, teria que lhe ser permitido o prazer de alguns goles, como compensação.

Tentou afastar o pensamento, mais nervoso do que nunca. Foi ao balcão principal, segurando uma caixa de fósforos com um número de telefone escrito.

- Senhora, a senhora tem telefone público?

- Não, senhor, mas pode usar o meu, se a ligação for local.

- E interurbano, desculpe.

- Bem, então acho que a drogaria seria o melhor lugar. Têm uma cabine.

- Obrigado.

Saiu, passou pelo general anônimo da Guerra Civil. Começou a andar em direção ao comércio, mãos enfiadas nos bolsos, a cabeça batendo como um sino de chumbo. O céu também estava como chumbo, era 7 de novembro, e com o novo mês o tempo tornava-se assustador. Caíram alguns flocos de neve. Houve neve em outubro também, mas essa derretera. Os flocos recentes haviam permanecido, uma cobertura leve sobre tudo, brilhando ao sol como puro cristal. O sol não brilhara hoje e, quando chegou à drogaria, houve até uma leve pancada de neve.

A cabine telefônica ficava nos fundos do prédio, e estava no meio da ala de remédios controlados, e ele sacudiu as moedas dentro do bolso, quando seus olhos bateram nas caixas brancas com letras verdes. Levou uma ao caixa, pagou e voltou à cabine telefônica. Fechou a porta, colocou as moedas e a caixa de fósforos na prateleira, e discou O.

- Sua chamada, por favor?

- Fort Lauderdale, Flórida, telefonista. - Deu-lhe o número de lá e o número da cabine. Quando foi informado de que custaria um dólar e noventa cents pelos primeiros três minutos, depositou oito moedas de vinte e cinco cents, estremecendo cada vez que o sinal batia em seu ouvido.

Em seguida, atento aos sinais distantes da ligação, tirou o vidro verde de Excedrin do bolso, examinou a tampa branca e jogou o chumaço de algodão no chão da cabine. Segurando o telefone com o ombro, sacudiu três dos comprimidos brancos

e os alinhou sobre a prateleira ao lado das moedas restantes.

Tampou o vidro e colocou-o no bolso.

Do outro lado, o telefone foi atendido ao primeiro sinal. Estância Surf-Sand, em que poderemos ser úteis? - perguntou uma voz feminina muito viva.

- Gostaria de falar com o gerente, por favor.

- O senhor quer dizer o Sr. Trent ou.

- Quero dizer o Sr. Ullman.

- Creio que o Sr. Ullman está ocupado, mas se quiser posso verificar.

Gostaria. Diga-lhe que é jack Torrance, ligando do Colorado.

- Um momento, por favor.

A antipatia de Jack por aquele cretino e pretensioso do Ullman voltou. Apanhou um dos Excedrins da prateleira, exai minou-o por instantes, colocou-o na boca e começou a mordê-lo, devagar e com gosto. O sabor aflorou-lhe na memória, fazendo a saliva fluir numa mistura de prazer e tristeza. Um sabor seco, amargo, mas constrangedor. Engoliu com uma careta. Mastigar aspirina tinha sido um hábito para ele nos tempos de alcoólatra; desde então, nunca mais mastigara nenhuma. Mas quando a dor de cabeça era suficientemente forte, uma dor de cabeça de ressaca ou coisa do gênero, mastigá-las parecia tornar o efeito mais rápido. Lera em algum lugar que mastigar aspirina podia tornar-se um vício. Onde lera isso? Franzindo a testa, tentou pensar. E então Ullman veio ao telefone.

- Torrance? O que houve?

- Não houve nada. A caldeira está em ordem e nem cheguei ainda a matar minha mulher. Estou esperando para depois das festas, quando as coisas ficarem monótonas.

- Engraçado. Por que está telefonando? Estou ocupado...

- Homem ocupado, sim, entendo. Estou telefonando a respeito de algumas coisas que você não me contou na sua história do passado grandioso e nobre do Overlook. Como, por exemplo, o fato de Horace Derwent tê-lo vendido a um bando de vigaristas de Las Vegas, que o negociavam através de tantas empresas, que nem a Receita Federal sabia quem, realmente, era o proprietário. Como esperaram até o momento certo e então o transformaram num playground para os mandachuvas da Máfia, e como teve que ser fechado em 1966, quando um deles morreu. Junto com seus guarda-costas, que estavam à porta da suíte presidencial. Grande lugar, a suíte presidencial do Overlook. Wilson, Harding, Roosevelt, Nixon e Vito, o Açougueiro, certo?

Houve um momento de silêncio surpreso no outro lado da linha, e então Ullman disse, calmamente:

- Não vejo como isso pode afetar seu emprego, Sr. Torrance. É...

- A melhor parte aconteceu depois que Gienelli foi assassinado, não acha? Mais dois passes de mágica, e então o Overlook é repentinamente comprado por um indivíduo, uma mulher chamada Sylvia Hunter. . . que vinha a ser Sylvia Hunter Derwent de 1942 a 1948.

- Seus três minutos já se passaram - disse a telefonista.

Avise quando terminar.

- Meu caro Sr. Torrance, tudo isso é de conhecimento público. . . e história antiga.

- Não era de meu conhecimento disse Jack. - E duvido que muita gente a conheça. Não totalmente. Podem lembrar-se do assassinato de Gieneili talvez, mas duvido que alguém tenha montado o magnífico e estranho quebra-cabeça em que o Overlook esteve, desde 1945. E sempre parece que Derwent ou um sócio de Derwent surge como o premiado. O que Sylvia Hunter fazia por lá em 67 e 68, Sr. Uliman? Era um rendez-vous, não era?

- Torrance. - O choque sLlrtia efeito a três mil quilômetros de cabo telefônico sem perder a força.

Sorrindo, Jack jogou um outro Excedrin na boca e mastigou-o.

Ela vendeu tudo depois que um senador americano, muito conhecido, morreu de um ataque cardíaco lá por cima. Comentou-se que ele foi encontrado nu, de meias de náilon pretas, ligas e um par de sapatos de saltinho. De couro legítimo, diga-se de passagem.

- Isso é uma calúnia! - gritou Uliman.

E mesmo? perguntou Jack. Começava a se sentir melhor. A dor de cabeça estava indo embora. Tomou o último

Excedrin e mastigou-o, apreciando o gosto amargo do comprimido despedaçado na boca.

- Foi um acontecimento desagradável disse Ullman.

- Onde quer chegar? Se está pretendendo escrever algum artigo malicioso. . . se isto é alguma idéia perniciosa, chantagem idiota.

- Nada disso - falou Jack. - Telefonei porque achei que você não jogou limpo comigo. E porque.

- Não joguei limpo? - gritou Ullman. - Meu Deus, você acha que eu lavaria a roupa suja diante do zelador do hotel? Quem diabos você pensa que é? E em que essas histórias velhas o afetam? Ou você acha que há fantasmas rondando pelos corredores da ala oeste cobertos por lençóis e gritando “Uh... uh... oh.. .!“?

- Não, não acho que haja fantasmas. Mas você revolveu um bocado de minha vida privada, antes de me admitir no emprego. Humílhou-me, inquirindo sobre minha capacidade de tomar conta de seu hotel, como uma criança diante do professor, sendo repreendida por ter feito xixi no armário de roupas. Você me deixou sem graça.

- Simplesmente, não acredito em você - disse Ullman. Parecia sufocado. - Gostaria de demiti-lo. E talvez o faça.

- Acho que Al Shockley deverá objetar. Energicamente. E eu acho que deve estar superestimando o compromisso do Sr. Shockley para com o senhor, Sr. Torrance.

A dor de cabeça de Jack voltou, em toda a sua glória, e ele fechou os olhos de dor. Como se a distancia, ouviu-se dizendo:

- Quem é o dono do Overlook agora? ainda é o Grupo Derwent? Ou você é muito insignificante para saber?

- Acho o seguinte, Sr. Torrance. O senhor é um empregado do hotel, em nada diferente de um carregador, ou um lavador de chão da cozinha. Não tenho intenção nenhuma de,

- Muito bem, vou escrever para Al disse Jack. - Ele saberá; além do mais, ele é membro do conselho. E pode ser que eu acrescente um pequeno P5. ao fato de que.

- Derwent não é o dono.

- O quê? Não entendi bem.

- Disse que Derwent não é o dono. Os acionistas são todos do leste. Seu amigo Shockley detém o maior número de ações, mais de trinta e cinco por cento. Você saberia mais do que eu, se ele tivesse qualquer tipo de ligação com Derwent.

- Quem mais?

- Não tenho intenção de lhe divulgar os nomes dos demais acionistas, Sr. Torrance. Pretendo levar o assunto ao conhecimento de.

- Uma outra pergunta.

- Não tenho nenhuma obrigação para com o senhor.

- A maior parte da história do Overlook, agradável ou não, encontrei em um álbum de recortes, que estava no porão. Uma coisa grande com capa de couro branco. Um laço de fita dourada. Tem idéia de quem poderia ser?

Nenhuma.

- É possível que fosse de Grady? O zelador que se matou?

- Sr. Torrance - disse Uliman, com profunda indiferença. - Não tenho a menor idéia se o Sr. Grady sabia ler, e nem se tinha interesse em descobrir os podres com os quais o senhor está me fazendo perder tempo.

- Estou pretendendo escrever um livro sobre o Hotel Overiook. Pensei que, chegando a escrevê-lo, o dono do álbum gostaria de ter uma nota de agradecimento na primeira página.

- Acho que escrever um livro sobre o Overlook seria imprudência - falou Ullman. - Especialmente um livro feito sob o seu. . . ponto de vista.

- Sua opinião não me surpreende. - A dor de cabeça desaparecera. Havia apenas o vestígio da dor, só isso. Sua mente estava aguçada e acurada, aos mínimos detalhes. Era como geralmente se sentia, quando o que escrevia fluía com facilidade, ou depois que bebia uns três drinques. Isso era uma outra coisa que esquecera sobre o Excedrin; não sabia se dava bons resultados para os outros, mas, para ele, mastigar três comprimidos era tiro e queda. Em seguida, disse: - O que o senhor gostaria é de uma espécie de catálogo, que pudesse ser entregue gratuitamente aos hóspedes, quando se registrassem no hotel. Algo com uma porção de fotos brilhantes das montanhas ao nascer e ao pôr-do-sol, e um texto água-com-açúcar para acompanhar. Teria uma parte para as pessoas famosas que estiveram aqui, excluindo, logicamente, os realmente famosos como Gieneili e seus amigos.

- Se eu tivesse certeza de que poderia demiti-lo e ficar cem por cento seguro quanto ao meu próprio emprego, ao invés de noventa e cinco - disse Uliman, num tom abafado -, eu o demitiria agora mesmo, pelo telefone. Mas, uma vez sentindo esses cinco por cento de incerteza, pretendo telefonar para o Sr. Shockley assim que o senhor desligar. . . o que será em breve, ou por outra, o que espero ardentemente.

- Não. Não vai haver nada que não seja verdade no livro, sabe? Não vejo por que florear.

(Por que o molesta? Está querendo ser despedido?)

- Não estou me importando se o capítulo é sobre o papa trepando com a Virgem Maria - disse Ullman aos gritos.

- Quero que você dê o fora do meu hotel.

- Nuio é o seu hotel! - gritou Jack, e bateu o telefone.

Sentou-se no banquinho duro, um pouco apavorado, (um pouco? muito) imaginando, em primeiro lugar, por que, em nome de Deus, telefonara para Ullman.

(Perdeu o controle mais uma vez, Jack.)

Sim, sim, perdeu. Não havia razão para negar. E o pior de tudo era que não fazia idéia da influência que aquele cretino tinha sobre Al, como também não sabia quanta merda Al tiraria dele, em nome do que já se passara. Se Uliman era tão bom quanto se achava, e se desse a Al um ultimato, tipo “ou ele ou eu”, não seria Al obrigado a aceitar? Fechou os olhos e tentou imaginar-se dizer a Wendy: “Adivinhe, amor? Perdi outro emprego. Dessa vez tive que usar três mii quilômetros de cabo telefônico para encontrar alguém para agredir, mas dei um jeito”.

Abriu os olhos e enxugou a boca com o lenço. Queria beber. Merda, precisava. Havia um bar exatamente naquela rua, e logicamente teria tempo para uma cervejinha a caminho do parque, só para afogar as mágoas.

Apertou as mãos inutilmente.

A pergunta persistia: em primeiro lugar, por que telefonara para Ullman? O número do Surf -Sand em Lauderdaie estava escrito em uma caderneta ao lado do telefone e do radiotransmissor no escritório. . . telefones de bombeiros, carpinteiros, vidraceiros, eletricistas e outros. Jack copiara o número na caixa de fósforos, pouco depois de se levantar da cama naquele dia, a idéia de telefonar para Uliman completamente amadurecida e clara em sua mente. Mas com que propósito? Certa vez, durante a fase de bebedeira, Wendy acusara-o de desejar sua autodestruição, sem possuir a fibra necessária para amadurecer um desejo de morte. Então, ele criara meios pelos quais outras pessoas pudessem fazê-lo, arrancando aos poucos pedaços de si mesmo e de sua família. Seria verdade? Temia, em seu íntimo, que o Overlook pudesse ser, exatamente, o que ele precisava para terminar o espetáculo. Estava se entregando? Por favor, meu Deus, não, não permita que seja assim. Por favor.

Fechou os olhos, e uma imagem imediatamente surgiu na tela escura de suas pálpebras: enfiando a mão pelo buraco nas telhas, a repentina espetadela, seu próprio grito de dor e pavor no ar parado e pesado: Oh, sua filha da puta miserável.

Substituída por uma imagem de dois anos passados, ele mesmo cambaleando pela casa adentro, às três da manhã, bêbado, caindo por cima da mesa, e tombando esticado no chão, xingando, acordando Wendy, que dormia no sofá. Wendy acendendo a luz, vendo suas roupas rasgadas e sujas por causa de alguma briga de rua, ocorrida em um bordel qualquer, na fronteira de New Hampshire, horas antes, sangue seco no nariz, olhando agora para sua mulher, piscando os olhos estupidamente sob a luz, e Wendy dizendo sem vida seu filho da puta, acordou Danny. Se não se dá o respeito, não pode dar, pelo menos um pouco, a nós? Oh, por que perco tempo com você?

O telefone tocou, assustando-o. Tirou-o do gancho, desconfiando de que pudesse ser Ullman ou Al Shockley.

- O quê? - gritou ele.

- Seu tempo extra, senhor. Três dólares e meio.

- Tenho que trocar umas moedas - disse ele. - Espere um pouco.

Colocou o telefone na prateleira, depositou as suas seis últimas moedas de vinte e cinco cents, foi então ao caixa para apanhar mais. Fez a transação de modo automático, a mente rodando em um mesmo círculo, como um cachorro atrás do rabo.

Por que ligara para Uliman?

Porque Ullman o humilhara? Já tinha sido humilhado antes, por verdadeiros mestres - o Grande Mestre, claro, sendo ele próprio. Simplesmente para tripudiar sobre ele, desmascarando sua hipocrisia? Jack não se achava tão pequeno. Sua cabeça tentava buscar no álbum de recortes uma razão válida, mas isso não impediria o desenrolar dos fatos. As possibilidades de Uliman saber quem era o dono eram duas em mil. Na entrevista, referira-se ao porão como se fosse um outro país... pelo visto um país tremendamente subdesenvolvido. Se quisesse realmente saber, teria ligado para Watson, cujo número de telefone estava também na caderneta do escritório. Mesmo Watson não teria sido uma coisa certa, porém, mais certa do que Ullman.

E falar-lhe da idéia do livro fora outra idiotice. Idiotice rematada. Além de arriscar seu emprego, poderia estar fechando amplas fontes de informação, uma vez que Ullman poderia dizer às pessoas que tomassem cuidado com essa gente da Nova Inglaterra fazendo perguntas sobre o Hotel Overlook. Podia ter feito suas pesquisas calmamente, expedindo cartas atenciosas, talvez até marcando entrevistas na primavera. . . e então riria a bandeiras despregadas da raiva de UlIman, quando o livro fosse publicado e ele estivesse muito longe dali. . . O Autor Mascarado Ataca Novamente. Ao invés disso fizera aquele telefonema insensato, perdera o controle, indispusera-se com Ullman e revelara as tendências de Pequeno César do gerente do hotel. Por quê? Se não era um esforço para se ver despedido do bom emprego que Al lhe arranjara, então o que era?

Depositou o resto do dinheiro no telefone, e desligou-o. Fora realmente a coisa mais insensata que poderia ter feito, se estivesse bêbado. Mas estava sóbrio; profundamente sóbrio.

Ao sair da drogaria, mastigou um outro Excedrin, fazendo careta, mas ainda sentindo o prazer do gosto amargo.

Na calçada, encontrou Wendy e Danny.

- Oi, estamos procurando você - disse Wendy. - Está nevando, não sabia?

Jack olhou para cima.

- É mesmo. - Nevava muito. A rua principal de Sidewinder já estava toda branca, as faixas já escondidas. Danny tinha a cabeça virada para o céu branco, a boca aberta e a língua de fora para apanhar alguns flocos que caíam.

- Acha que chegou? - perguntou Wendy.

Jack sacudiu os ombros.

- Não sei. Esperava por mais uma ou duas semanas de benevolência do tempo. Pode ser que tenhamos.

Benevolência, isso mesmo.

(Desculpe-me, Al. Benevolência. Tenha piedade. Mais uma oportunidade. Estou sinceramente arrependido.

Quantas vezes, em quantos anos, tinha ele - um homem feito - implorado piedade, por uma outra oportunidade? De repente, estava tão cansado de si, tão revoltado, que poderia ter suspirado alto.

- E a dor de cabeça? - perguntou ela, estudando-o mais de perto.

Pôs os braços em volta dela e abraçou-a apertado.

- Melhor. Venham, vamos para casa, enquanto podemos. Caminharam até o caminhão estacionado no declive, encostado ao meio-fio, Jack no centro, com o braço esquerdo em volta dos ombros de Wendy e a mão direita segurando Danny. Chamara o hotel sua casa, pela primeira vez.

Quando se sentou ao volante do caminhão, ocorreu-lhe que, apesar de estar fascinado pelo Overlook, na realidade não gostava muito dele. Não estava certo de que fosse bom para a mulher, o filho, ou para si próprio. Talvez tenha sido por isso que telefonara para Ullman.

Para ser despedido enquanto havia tempo.

Deu ré no carro, levou-o em direção à saída da cidade e subiu as montanhas.

Conversando com o travesseiro.

Eram dez horas da noite. Nos quartos, todos fingiam dormir.

Jack deitado de lado, virado para a parede, olhos abertos, escutando a respiração baixa e ritmada de Wendy. O gosto de aspirina dissolvida ainda estava em sua língua, deixando-a áspera e levemente dormente. Al Shockley telefonara às cinco e quarenta e cinco (sete e quarenta e cinco, hora do leste). Wendy estava com Danny, sentada em frente à lareira no saguão, lendo.

- Pessoa a pessoa - disse a telefonista. - Para o Sr. Jack Torrance.

- É ele. - Passara o fone para a mão direita, arrancara o lenço do bolso traseiro com a mão esquerda, enxugara os lábios macios. Em seguida, acendeu um cigarro.

A voz de Al então, forte em seu ouvido:

- Jack, o que está pretendendo, em nome de Deus?

- Oi, Al. - Tragou o cigarro e tateou à procura do vidro de Excedrin.

- O que está acontecendo, Jack? Recebi um telefonema esquisito de Stuart Ullman hoje à tarde. E quando Stu Ullman paga uma ligação interurbana, prepare-se, pois lá vem merda.

- Ullman não tem nada com que se preocupar, Al. Nem VOCê.

- O que você quer dizer exatamente com “não tem nada com que se preocupar”? Stu pintou um quadro, mistura de chantagem com manchete de jornal sensacionalista sobre o Overlook. Conte-me, rapaz.

- Eu quis bisbilhotar um pouco - disse Jack. - Quando vim até aqui para ser entrevistado, ele quis arrancar toda a minha roupa suja. Problema de bebida. Perdeu o último emprego por ter arrebentado um aluno. Fico pensando se você é o homem certo para isto, etc. O que me chateou é que ele levantava tudo isso porque adorava o desgraçado do hotel. O maravilhoso Overiook. O tradicional Overlook. O sagrado Overlook. Bem, encontrei um álbum de recortes no porão. Alguém juntou todos os aspectos menos agradáveis da Catedral de Ullman, e me pareceu uma longa cerimônia de missa negra.

- Espero que isso seja uma metáfora, Jack. - A voz de Al era extremamente fria.

- É. Mas realmente encontrei.

- Conheço a história do hotel.

Jack passou a mão pelo cabelo.

- Telefonei, então, para bisbilhotar. Reconheço que não foi muito brilhante de minha parte, e não faria de novo. Fim de papo.

- Stu diz que você está pretendendo lavar a roupa suja em público.

- Stu é um imbecil! - gritou ao telefone. - Disse-lhe que tinha idéia de escrever sobre o Overlook, sim. Tenho. Acho que este lugar constitui uma lista em ordem alfabética de todas as personagens americanas do pós-guerra. Dito assim, parece uma reivindicação pesada. . . sei disso. . . mas está tudo aqui, Al! Meu Deus, seria um grande livro. Mas a longo prazo, posso assegurar-lhe, tenho mais que o necessário, e. Jack, isso não basta.

Viu-se boquiaberto ao telefone, sem poder acreditar no que ouvira.

- O quê? Al, você disse.

- Isso mesmo. Qual é o longo prazo, Jack? Para VoCê pode ser dois anos, talvez cinco. Para mim, trinta ou quarenta, pois espero estar ligado ao Overlook por muito tempo. O pensamento de vê-lo fazendo um trabalho sujo sobre o meu hotel e publicando-o como uma grande obra da literatura americana enoja-me.

Jack ficou mudo.

- Tentei ajudá-lo, rapaz. Passamos juntos pela guerra, e achei que lhe devia ajuda. Lembra-se da guerra?

- Lembro - resmungou, mas os carvões de ressentimento começavam a incandescer em seu coração. Primeiro Ullman, depois Wendy, agora Al. O que era isso? Semana Nacional do Vamos Ver Quem Pega Jack Torrance Primeiro? Apertou os lábios, apanhou os cigarros, e atirou-os ao chão. Alguma vez

já apreciara este cretino, conversando com ele em seu gabinete revestido de mogno em Vermont. Apreciara?

- Antes de você ter agredido aquele menino, Hatfield - dizia Al-, tentei convencer o conselho a não mandá-lo embora, e até mesmo modificar as coisas em termos de normas. Você mesmo estragou tudo. Arranjei-lhe esse negócio do hotel, um lugar calmo e bonito para você se ajustar, terminar sua peça, e esperar até que Harry Effinger e eu pudéssemos convencer o resto dos caras do grande erro que cometeram. Agora, parece que você quer sair lucrando nas minhas costas. É assim que agradece a um amigo, Jack?

- Não - sussurrou.

Não se atrevia a dizer mais nada. A cabeça latejava com as palavras quentes que queriam sair. Tentou desesperadamente pensar em Wendy e Danny, na sua dependência, Danny e Wendy sentados calmamente lá embaixo diante do fogo e trabalhando na cartilha do segundo ano, pensando que estivesse tudo às mil maravilhas. E se perdesse o emprego? Rumo à Califórnia, naquele Volkswagen velho e cansado com a bomba de gasolina caindo aos pedaços, como uma família de foragidos de Oklahoma? Convenceu-se de que se ajoelharia e imploraria a Al antes que isso acontecesse, mas, ainda assim, as palavras relutavam em sair, e ele não conseguia conter sua raiva.

- O quê? - disse Al, com voz aguda.

- Não - falou Jack. - Não é assim que trato meus amigos. E você sabe disso.

- Como sei? Na pior das hipóteses, está pretendendo sujar a reputação do meu hotel, exumando corpos que foram decentemente enterrados, há anos. Na melhor das hipóteses, você telefonou para meu gerente temperamental, mas extremamente competente, e o imbuiu de um frenesi, como parte de um. . jogo idiota de crianças.

- Foi mais do que um jogo, Al. E mais fácil para você. Não precisa aceitar a caridade de um amigo rico. Não precisa de um amigo no tribunal, pois é o próprio tribunal, O fato de que esteve a um passo de se tornar alcoólatra fica razoavelmente escondido, não fica?

- Suponho que sim - falou Al. A voz baixara, e ele parecia cansado de tudo. - Mas Jack, Jack. . . não posso fazer nada. Não posso modificar isso.

- Sei - disse Jack, inutilmente. - Estou despedido? Acho melhor você me dizer se estou.

- Não, se fizer duas coisas para mim.

- Muito bem.

- Não seria melhor ouvir as condições antes de aceitá-las?

- Não. Dê as cartas e as apanharei. Tenho que pensar em Wendy e Danny. Se quiser meus ovos, mandarei por via aérea.

- Tem certeza de que pode se dar ao luxo de autopiedade, Jack?

Fechou os olhos e escorregou um Excedrin por entre os lábios secos.

- A esta altura, sinto que é o único iuxo a que me posso dar. Sem brincadeira.

Al ficou calado por um momento. Disse, então:

- Primeiro, nada de telefonemas para Ullman. Nem se o lugar pegar fogo. Se isso acontecer, telefone para o chefe de manutenção, aquele cara que xinga o tempo todo, sabe a quem me refiro.

- Watson.

- Sim.

- Muito bem.

- Em segundo lugar, prometa, sob palavra de honra: nenhum livro sobre o famoso hotel da montanha do Colorado.

Por um momento, sua raiva era tanta que literalmente não pôde falar. O sangue fervia-lhe nas veias. Era como receber um telefonema de um Príncipe Médici do século XX . . . nenhum retrato de minha família com as verrugas aparecendo, por favor, ou você cai em desgraça. Não patrocino pintura que não seja bonita. Quando pintar a filha de meu bom amigo e sócio, por favor, omita a mancha de nascença, ou você cai em desgraça. Claro que somos amigos. . . somos, ambos, homens civilizados, não somos? Já moramos juntos, comemos juntos, bebemos juntos. Seremos sempre amigos, a coleira com que o tenho preso será sempre ignorada por consentimento mútuo, e serei bom e benevolente para com você. Tudo que peço em troca é sua alma. Coisa pequena. Podemos até ignorar o fato de tê-la entregue a mim, da mesma forma que ignoramos a coleira. Lembre-se, meu talentoso amigo, há Michelangelos mendigando por todos os lugares de Roma...

- Jack, está ouvindo?

Fez um ruído sufocado, que significava sim.

A voz de Al era firme e segura.

- Realmente, não acho que esteja pedindo muito, Jack. E haverá outros livros. Apenas não pode esperar que eu vá ajudá-lo, enquanto...

- Muito bem, concordo.

- Não quero que pense que estou tentando controlar sua vida artística, Jack. Você me conhece bem. E só.

-Al?

- Sim?

- Derwent ainda está envolvido no Overlook? De algum modo?

- Não vejo por que isso tenha alguma coisa a ver com você, Jack.

- Não - disse ele, distante. - Suponho que não. Ouça, Al, acho que estou ouvindo Wendy me chamar. Telefono depois.

- Claro, rapaz. Bateremos um bom papo. Como vão as coisas? Sóbrias?

(JÁ APANHOU SUA PARTE DE CARNE, SANGUE E TUDO. AGORA, QUER DEIXAR-ME EM PAZ?)

- De corpo e alma.

- Por aqui também. Na verdade, estou começando a gostar de ficar sóbrio. Se.

- Voltarei, Al. Wendy...

- Claro, OK.

E, assim que desligou, as cólicas vieram, atingindo-o como relâmpagos, fazendo-o curvar-se diante do telefone como um penitente, as mãos segurando a barriga, a cabeça latejando como um balão gigante.

A vespa, depois de ferroar, prossegue..

Melhorara um pouco, quando Wendy subiu e perguntou quem estivera ao telefone.

- Al- respondeu. - Telefonou para perguntar como estavam as coisas. Disse-lhe que estava tudo bem.

- Jack, você está horrível. Está doente?

- A dor de cabeça voltou. Vou para a cama cedo. Não faz sentido tentar escrever.

- Posso trazer-lhe um copo de leite quente?

Ele sorriu, pálido.

- Seria bom.

Deitava-se agora ao lado dela, sentindo-lhe a coxa quente e adormecida encostada à sua. Pensar na conversa com Al, em como se tinha rebaixado, ainda lhe provocava ondas de frio e calor. Algum dia haveria o ajuste de contas. Algum dia haveria jm livro, não uma coisa leve e refletida como considerara a princípio, mas um trabalho duro de pesquisa, fotografias e tudo, e mostraria a história completa do Overlook, sórdidas negociações de compra ilícitas, e o resto. Exporia tudo ao leitor como um peixe dissecado. E se Al Shockley tivesse ligações com o império de Derwent, então Deus que o ajudasse.

Esticado como uma corda de piano, deitado, olhando a escuridão, sabia que passariam horas até que conseguisse dormir.

Wendy Torrance deitada, olhos fechados, ouvindo o ressonar do marido: a longa inspiração, a pausa breve, a expiração levemente guturai. Aonde ia quando dormia? pensava ela. Para algum parque de diversões, um Great Barrington de sonhos onde os brinquedos eram grátis, e não havia esposas para dizer que já tinha comido bastantes cachorros-quentes, ou que já era hora de ir embora, se quisessem chegar a casa antes do escurecer? Ou seria um bar, onde a bebida nunca acabava e as portas estavam sempre abertas e todos os velhos companheiros reunidos em torno de um jogo eletrônico de hóquei, copos nas mãos, Al Shockley se sobressaindo entre eles com a gravata afrouxada e o coiarjnho desabotoado? Um lugar de onde ela e Danny eram excluídos, e o baile continuava infindável?

Wendy estava preocupada com ele, a velha e inútil preocupação que esperava já estar para sempre atrás de si em Vermont, como se a preocupação de algum modo não pudesse cruzar as fronteiras dos Estados. Não gostava do que o Overlook parecia estar fazendo a Jack e a Danny.

A pior coisa, não mencionada, talvez não mencionável, era que todos os sintomas de alcoolismo de Jack estavam de volta, um por um. . . todos, menos a própria bebida, O constante movimento das mãos ou do lenço nos lábios, como que os livrando do excesso de umidade. Longos intervalos da máquina de escrever, mais bolas de papel na cesta de lixo. Havia um vidro de Excedrin na mesa de telefone aquela noite, depois do telefonema de Al, mas nenhum copo d’água. Estava mastigando os comprimidos de novo. Irritava-se com pequenas coisas. Inconscientemente, estalava os dedos num ritmo nervoso, quando as coisas ficavam muito calmas. Tornava-se excessivamente irreverente. Wendy começava a se preocupar com o temperamento dele também. Seria até um alívio se ele perdesse a calma, como uma válvula de escape, da mesma forma como descia ao porão à primeira hora da manhã e à noite, para regular a pressão da caldeira. Seria quase bom vê-lo xingando e chutando a cadeira pelo quarto ou batendo uma porta. Mas essas coisas, sempre parte integral de seu temperamento, haviam praticamente cessado. ainda assim, sentia que Jack ficava cada vez mais zangado com ela ou Danny, mas recusava-se a extravasar. A caldeira tinha um manômetro velho, quebrado, cheio de óleo, mas ainda funcionando. Jack não tinha nenhum. Nunca pudera entendê-lo muito bem. Danny podia, mas o filho não falava.

E o telefonema de Al. Quase ao mesmo tempo, Danny perdera todo o interesse pela história que estavam lendo. Deixou-a sentada junto lareira e foi para o balcão de recepção, onde Jack construíra uma estrada para seus carrinhos e caminhões, O Violento Volkswagen Violeta estava ali, e Danny começou a empurrá-lo rapidamente para frente e para trás. Fingindo ler, mas na realidade observando Danny por cima do livro, ela viu nele um estranho amálgama dos modos com que ela e Jack expressavam ansiedade, O esfregar dos lábios. Passando nervoso as mãos pelo cabelo, como ela fazia, enquanto esperava Jack voltar para casa da ronda pelos bares. Não acreditava que Al tivesse telefonado apenas para “perguntar como iam as coisas”. Você pode telefonar para Al para falar besteiras. Quando Al telefona, aí então são negócios.

Mais tarde, quando descera de volta, Wendy viu Danny agachado junto ao fogo, lendo com muita atenção a cartilha do segundo ano das aventuras de Joe e Rachei no circo com o pai.

A agitação desaparecera por completo. Observando-o, foi mais uma vez tomada pela certeza esquisita de que Danny sabia e entendia mais do que a vã filosofia do Dr. (“chamem-me de Bill “) Edmonds podia alcançar.

- Ei, hora de dormir, doutor - disse ela.

- Está bem. - O garoto marcou o livro e levantou-se.

- Lave o rosto e escove os dentes.

-OK.

- Não se esqueça de usar o fio dental.

- Não vou esquecer.

Ficaram lado a lado por um momento, olhando o fogo aumentar e diminuir. Quase todo o saguão estava frio e arejado, mas este círculo em torno da lareira encontrava-se magicamente aquecido, e difícil de se abandonar.

- Era tio Al ao telefone - disse ela casualmente.

- Era? - falou Danny, sem surpresa alguma.

- Fico pensando se tio Al está zangado com papai - continuou Wendy, ainda casualmente.

- Ah, sim, ele está mesmo - falou Danny, observando o fogo. - Ele não quer que papai escreva o livro.

- Que livro, Danny?

- Sobre o hotel.

A pergunta congelada em seus lábios era a que ela e Jack faziam a Danny mil vezes: Como é que você sabe? E não foi formulada. Não queria aborrecê-lo antes de ele ir dormir, fazendo-o saber que, ocasionalmente, discutiam o conhecimento que o filho possuía de coisas que não tinha a menor possibilidade de saber. E ele sabia, estava convencida disso. A conversa fiada do Dr. Edmonds sobre raciocínio indutivo e lógica do subconsciente era apenas isso: conversa fiada. Sua irmã. . como Danny sabia que ela estava pensando em Alleen, na sala de espera naquele dia? E

(Sonhei que papai sofreu um acidente.)

sacudiu a cabeça, como que afastando o pensamento.

- Vá lavar o rosto, doutor.

- OK. - Subiu as escadas correndo para o quarto. Franzindo a testa, a mãe foi à cozinha esquentar o leite de Jack numa panela.

E agora, deitada acordada na cama, ouvindo o ressonar do marido e o vento lá fora (miraculosamente, tiveram apenas um pouco de neve à tarde; ainda nenhuma tempestade), dirigiu o pensamento para o filho querido que a preocupava, nascido com a placenta sobre a cabeça, uma simples membrana que os médicos viam talvez uma vez em cada setecentos nascimentos, uma membrana que a crendice popular dizia indicar o sexto sentido.

Resolveu que era hora de conversar com o filho sobre o Overlook. . . e, na ocasião, ela tentaria fazer Danny falar com ela. Amanhã. Com certeza. Os dois iriam à Biblioteca Pública de Sidewinder para ver se conseguiam livros ao nível do segundo ano para todo o inverno, e ela conversaria com o garoto. E francamente. Com esse pensamento sentiu-se melhor e, finalmente, começou a adormecer.

Danny estava deitado acordado no quarto, olhos abertos, o braço esquerdo em volta do travesseirinho velho e levemente gasto, ouvindo o ressonar dos pais. Sentiu-se como se os estivesse guardando sem vontade. As noites eram o pior de tudo. Odiava as noites e o constante uivar do vento no lado oeste do hotel.

O planador flutuava seguro por um cordão. Sobre a escrivaninha a miniatura do VW, trazida da pista montada no saguão, emitia um vago e fluorescente brilho violeta. Os livros estavam na estante, os cadernos de colorir sobre a escrivaninha. Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar, dizia mamãe. Assim você sabe onde está, quando precisar. Mas agora as coisas estavam colocadas fora de lugar. As coisas estavam perdidas. Pior ainda, haviam-se acrescentado coisas, coisas que não se podiam ver bem, como um daqueles quadrinhos que diziam:

“ESTÁ VENDO OS ÍNDIOS?” Se você se esticasse e forçasse a Visão, poderia ver alguns deles - o que imaginava ser um cacto, à primeira vista, era, na realidade, um bravo com uma faca segura nos dentes, e havia outros escondidos nas pedras, e se podiam ver até suas faces impiedosas e cheias de maldade emergindo dos raios de uma roda coberta do vagão. Mas nunca se podiam ver todos eles, e era isso que incomodava. Pois os que não se viam eram os que chegavam por trás, um machado em uma das mãos e uma faca na outra.

Mexeu-se, inquieto, na cama, os olhos buscando o reconfortante tremeluzir da noite. As coisas eram piores ali. Estava certo disso. A princípio, não foram tão ruins, mas aos poucos. . . o pai pensava em beber mais. As vezes, ele se aborrecia com mamãe e não sabia por quê. Andava pelos cantos esfregando os lábios com o lenço e os olhos distantes e nebulosos. Mamãe se preocupava com ele, e Danny também. Não precisava entrar no pensamento dela para saber; ela o questionara de modo ansioso no dia que a mangueira do extintor de incêndio pareceu transformar-se em cobra. O Sr. Hallorann dissera que achava que todas as mães eram um pouco iluminadas, e ela sabia que naquele dia alguma coisa acontecera. Sem saber o quê?

Quase lhe disse, mas algo o impediu. Ela sabia que o médico em Sidewinder rejeitara Tony e as coisas que Tony lhe mostrara como sendo perfeitamente

(bem, quase)

normais. Sua mãe podia não acreditar, se ele lhe contasse sobre a mangueira. Pior, poderia entendê-lo de forma errada, poderia pensar que estava com os PARAFUSOS FROUXOS. Entendia um pouco sobre PARAFUSOS FROUXOS, não tanto quanto sobre TER UM FILHO, o que a mãe explicara com alguns detalhes no ano anterior, mas o suficiente.

Certa vez, na escola maternal, seu amigo Scott mostrou um menino chamado Robin Stenger, embasbacado junto aos balanços com a cara tão comprida que quase pisava nela. O pai de Robin ensinava aritmética na escola de papai, e o pai de Scott ensinava história. A maioria das crianças do maternal estava ligada ou com a Academia de Stovington ou com uma pequena fábrica da IBM, fora da cidade. Os meninos da academia formavam um grupo, os meninos da IBM, outro. Havia amigos de diferentes grupos, é claro, mas era bastante natural que os meninos cujos pais se conheciam se unissem. Quando havia um escândalo no grupo dos adultos, quase sempre se infiltrava nas crianças de forma desenfreada e raramente passava de um grupo para outro.

Ele e Scotty estavam sentados na nave espacial de brinquedo, quando Scotty apontou o polegar para Robin e disse:

Conhece aquele menino?

- Conheço - respondeu Danny.

Scott debruçou-se.

- O pai dele ficou com os PARAFUSOS FROUXOS, ontem à noite. Levaram.no embora.

- E? Só por afrouxar uns parafusos?

O amiguinho pareceu aborrecido.

Ele Ficou doido. Sabe? - Scott ficou estrábico, pôs a lgua de fora e girou o dedo indicador em grandes elipses em Volta das orelhas - Levaram-no para o hospício.

- Nossa - disse Danny. - Quando vão deixá-lo sair?

- Nunca-nunca-nunca - falou Scotty, sombriamente.

Durante aquele dia e o seguinte, Danny ouviu que:

  1. a) o Sr. Stenger tentara matar toda a família, inclusive Robin, com a pistola da Segunda Guerra Mundial que guardava como lembrança;
  2. b) o Sr. Stenger quebrou a casa em pedacinhos enquanto estava BÊBADO;
  3. c) o Sr. Stenger fora apanhado comendo uma tigela de insetos mortos e grama, como se fossem leite com cereais, e gritando enquanto o fazia;
  4. d) o Sr. Stenger tentara estrangular a mulher com uma meia, quando os Red Sox perderam um jogo importante.

Finalmente, muito confuso para calar-se, perguntou ao pai sobre o Sr. Stenger. O pai sentara-o no colo, explicando que o Sr. Stenger estava debaixo de muita tensão, coisas relacionadas com a família e com o trabalho, e que ninguém, só os médicos, podia entender. Tinha crises de choro e, há três noites, começou a chorar sem parar e quebrou uma porção de coisas em sua casa. Não estava com PARAFUSOS FROUXOS, disse o pai, ele estava tendo uma CRISE NERVOSA, e não estava num HOSPÍCIO mas num SANATÓRIO. Contudo, apesar das cuidadosas explicações, Danny tinha medo. Não parecia haver diferença nenhuma entre PARAFUSOS FROUXOS e CRISE NERVOSA, e se se falava HOSPÍCIO OU SANATÓRIO, continuava havendo grades nas janelas e não o deixavam sair se quisesse. E seu pai, muito inocentemente, confirmara outra das expressões de Scotty, sem modificação, uma que enchia Danny de um temor vago e disforme. No lugar onde o Sr. Stenger morava agora, havia OS HOMENS DE CAMISAS BRANCAS. Vieram apanhá-lo em um furgão sem janelas, um furgão cinza. Parara em cima da calçada de sua casa e OS HOMENS DE CAMISAS BRANCAS saíram e o levaram para longe da família e o fizeram viver num quarto com paredes macias. E, se quisesse escrever para casa, tinha que fazê-lo com lápis de cera.

- Quando vão deixá-lo voltar? - perguntou Danny ao pai.

- Assim que estiver melhor, doutor.

- Dan - disse Jack -, NINGUÉM SABE.

E o pior era isso. Era uma outra forma de dizer “nunca

nunca-nunca”. Um mês depois, a mãe de Robin tirou-o do maternal e eles se mudaram de Stovington sem o Sr. Stenger.

Isso fazia um ano, depois que o pai parara de tomar a “coisa feia”, mas antes de ter perdido o emprego. Danny ainda pensava sobre isso com freqüência. As vezes, quando caía, ou machucava a cabeça, ou tinha uma dor de barriga, começava a chorar e a lembrança tomava conta dele, acompanhada do medo de não poder parar de chorar, de que continuasse, chorando e gemendo, até que o pai fosse ao telefone, discasse e dissesse:

“Alô? Aqui é Jack Torrance em Mapleline Way, 149. Meu filho não consegue parar de chorar. Por favor, mandem os HOMENS DE CAMISAS BRANCAS para levá-lo para o SANATÓRIO. Isso mesmo, ele está com os PARAFUSOS FROUXOS. Obrigado”. E o furgão cinza sem janelas estacionaria à sua porta, o carregariam para dentro, ainda chorando histérico, e o levariam. Quando veria o pai e a mãe de novo? NINGUÉM SABE.

Era este medo que o fazia calar. Um ano mais velho agora, tinha certeza de que o pai e a mãe não o deixariam ser levado por pensar que uma mangueira de extintor de incêndio fosse uma cobra, seu pensamento racional estava certo disso, mas, ainda assim, quando pensava em contar aos pais, essa lembrança antiga surgia como uma pedra enchendo-lhe a boca e bloqueando as palavras. Não era como Tony; Tony sempre parecera perfeitamente natural (até os pesadelos, claro), e seus pais sempre pareceram aceitar Tony como um fenômeno mais ou menos natural. As coisas com Tony aconteciam por ser INTELIGENTE, o que os dois assumiam que fosse (da mesma forma que assumiam que fossem INTELIGENTES), mas uma mangueira de extintor que se transformava em cobra, ou a visão de sangue e massa encefálica na parede da suíte presidencial, quando ninguém mais via, coisas desse gênero não seriam naturais. Já o tinham levado a um médico. Não seria razoável admitir que os HOMENS DE CAMISAS BRANCAS viriam em seguida?

ainda assim, se tivesse certeza, contaria a eles, mais cedo Ou mais tarde, e eles o levariam embora do hotel. E ele queria desesperadamente se ver livre do Overlook. Mas também sabia que esta seria a última oportunidade do pai, que estava ali no Overlook para fazer alguma coisa além de tomar conta do lugar. Estava aqui para trabalhar nos papéis. Para se conformar com a perda de emprego. Para amar mamãe Wendy. E até muito recentemente, parecera que todas essas coisas estavam acontecendo. Só ultimamente o pai começava a ter problemas. Desde que encontrou aqueles papéis.

(Este lugar desumano cria monstros humanos.)

O que significava isso? Perguntava a Deus, mas Deus não respondia. E o que faria o pai, se deixasse de trabalhar ali? Tentara descobrir na mente do pai, e ficava cada vez mais convencido de que o pai não sabia. A prova mais forte viera hoje à tardinha, quando tio Al telefonara lhe dizendo coisas humilhantes, e o pai não se atrevera a retrucar, pois tio Al poderia despedi-lo como o Sr. Crommert, o diretor de Stovington, e o conselho diretor o despediram do cargo de professor. E o pai morria de medo disso, por Danny, mamãe, assim como por si próprio.

Não se atrevera, então, a dizer nada. Só conseguia observar inutilmente e esperar que na realidade não houvesse índios de jeito algum, ou, se houvesse, que se contentassem em esperar por um jogo mais importante, e deixassem o pequeno trem de três vagões passar ileso.

Mas não conseguiu acreditar, não importava quanto ten tasse.

As coisas estavam piores agora no Overlook.

A neve estava chegando e, quando viesse, quaisquer simples opções que tivesse seriam liquidadas. E depois da neve? E então, quando permanecessem trancados e à mercê do que quer que se estivesse divertindo à custa deles?

(Saia e tome o remédio!)

E daí? REDRUM.

Arrepiou-se na cam e se virou mais uma vez para o outro lado. Agora, conseguia entender mais. Amanhã, talvez pudesse chamar Tony, tentaria fazer com que Tony mostrasse exatamente o que era REDRUM, e se havia algum modo de impedi-lo. Arriscaria os pesadelos. Precisava saber.

Danny ainda estava acordado muito depois do falso adormecimento dos pais ter-se tornado real. Rolava na cama, torcendo os lençóis, lutando contra um problema muito maior do que ele, acordado na noite como uma única sentinela na guarita. E depois de meia-noite dormiu também e, então, só o vento ficou acordado, espreitando o hotel e uivando em suas empenas sob o brilho das estrelas.

No caminhão

“Vejo o sinal de mau tempo,

Vejo o sinal de confusão.

Vejo terremotos e relâmpagos.

Vejo momentos difíceis para hoje.

Não saía hoje à noite,

Você pode perder sua vida,

Vejo o sinal de mau tempo. 1”

Alguém instalara um rádio de um Buick velho debaixo do painel do caminhão do hotel, e, agora, o som claro do conjunto Creedence Clearwater Revival de John Fogerty saía pelo alto-falante, indistinto e entrecortado pela estática. Wendy e Danny estavam a caminho de Sidewinder. O dia era claro. Danny brincava com o cartão cor de laranja da biblioteca, e parecia alegre, mas Wendy o achava abatido e cansado, como se não tivesse dormido o suficiente e se mantivesse apenas com a energia dos nervos.

A música terminou e o disk jockey falou:

« Creedence. E por falar em mau tempo, parece que muito breve vamos ter tempo ruim na região onde chegam as ondas da nossa KMTX, difícil de acreditar com o tempo bom, típico de primavera, que temos tido nos últimos três dias. O infalível serviço de meteorologia da KMTX informa que a alta densidade do ar dará lugar, por volta de uma hora da tarde, a uma onda de baixa densidade, que vai continuar até parar na região da ICMTX, onde o ar é rarefeito. A temperatura vai cair rapidamente, e precipitações deverão começar ao anoiteçer. Elevações abaixo de dois mil metros, incluindo a região de Denver, poderão apresentar uma combinação de granizo e neve, talvez congelamento em algumas estradas, e por aqui nada a não ser neve, amigos. Esperamos de dois e meio a sete centímetros abaixo de dois mil metros e, possivelmente, acúmulos de quinze a vinte centímetros na região central do Colorado e nas montanhas.

A Tradução de trechos da canção Band moon rising, de J. C. Fogerty, 1969 Jondora Music, Berkeley, Califórnia. Usado com autorização. todos os direitos reservados. (N. da T.)

Polícia Rodoviária avisa que, se você está pretendendo passear de carro pelas montanhas hoje à tarde, ou à noite, deve lembrar-se de que a lei das correntes está em vigor. Não vá a lugar nenhum a menos que precise. Lembre-se”, dizia o locutor jocoso, “foi assim que os pioneiros se complicaram. Não estavam tão perto da lanchonete mais próxima quanto pensavam.”

Um anúncio da Clairol, e Wendy abaixou-se e desligou o rádio.

- Você se importa?

- Não, não tem nada. - Danny olhou para o céu azulclaro. - Acho que papai escolheu o dia certo para cortar os arbustos dos animais, não é?

- Acho que sim - disse Wendy.

- Mas não parece mesmo que vai nevar - acrescentou Danny, esperançoso.

- Está com os pés frios? - perguntou Wendy. ainda estava pensando na piada do disk jockey sobre os pioneiros.

- Não, acho que não.

Bem, chegou a hora. Se vai tocar no assunto, faça-o agora, ou se cale para sempre.

- Danny - disse a mãe, dando à voz a entonação mais casual possível -, você ficaria mais feliz se fôssemos embora do Overlook? Se não passássemos o inverno lá?

Danny baixou os olhos.

- Acho que sim. Mas é o emprego de papai.

- As vezes - disse ela, com cuidado -, fico pensando que papai poderia ser mais feliz longe do Overlook, também.

- Passaram por uma placa que dizia: “Sidewinder - 30 km”,

e então Wendy fez uma curva muito fechada e engatou a segunda. Não se arriscava nos declives, tinha um medo tolo.

- Você acha mesmo? - perguntou Danny. Olhou-a com interesse por um momento, e sacudiu a cabeça. - Não, eu não acho.

- Por que não?

- Porque ele está preocupado com a gente - disse Danny, escolhendo as palavras com cuidado. Era difícil explicar, ele próprio entendia tão pouco sobre o assunto. Viu-se voltando a um incidente que contara ao Sr. Hallorann, o rapaz olhando para as televisões da loja de eletrodomésticos e desejando roubar uma. Aquilo fora penoso, mas, pelo menos, ficara claro O que se passava, até para Danny, então ainda um pouco maior do que um bebê. Mas os adultos estavam sempre metidos em conflitos, todas as possíveis ações turvadas pelas conseqüências, pela dúvida, pela auto-imagem, por sentimentos de amor e responsabilidade. Toda e qualquer escolha parecia ter um empecilho, e, às vezes, ele não entendia por que os empecilhos eram empecilhos. Era difícil.

“Ele acha , começou Danny de novo, e olhou para a mãe rapidamente. Ela observava a estrada, sem olhá-lo, e ele sentiu que podia prosseguir. “Ele acha que talvez nós vamos ficar sozinhos. Depois, ele acha que gosta daqui e que é um bom lugar para nós. Ele adora a gente e não quer que a gente fique sozinho. . . ou triste. . . mas acha que, mesmo que a gente fique, pode ser bom a LONGO PRAZO. Você sabe o que é LONGO PRAZO?”

Ela assentiu.

- Sim, meu bem. Sei.

- Ele está preocupado em sair daqui e não conseguir outro emprego. A gente teria que mendigar, ou coisa parecida.

- Só isso?

- Não, mas o resto está confuso. Pois agora ele está diferente.

- Sim - disse ela quase suspirando. O declive ficou mais suave e, com cuidado, ela engatou de volta a terceira.

- Não estou inventando, mamãe. Juro.

- Sei disso - falou Wendy, sorrindo. - Tony contou?

- Não. Simplesmente eu sei. Aquele médico não acreditou em Tony, acreditou?

- Não se importe com aquele médico. Eu acredito em Tony. Não sei o que ele é ou quem é, se é uma parte de você em especial, ou se vem de. . . outro lugar, mas acredito nele, Danny. E, se você. . . ele. . . achar que devemos ir, nós iremos. Nós dois iremos, e estaremos com papai novamente na primavera.

Ele a olhou com uma esperança aguda.

- Onde? Um motel?

- Não poderíamos pagar um motel, meu bem. Teria que ser na casa de minha mãe.

A esperança morreu no rosto de Danny.

- Sei. . . - disse ele, e parou.

- Que é?

- Nada - murmurou o garoto.

Wendy engatou mais uma vez a segunda quando o declive ficou íngreme novamente.

- Não, doutor, por favor não diga isso. Esta conversa é algo que deveríamos ter tido há semanas, acho. Então, por favor. Você sabe o que é. Não vou ficar aborrecida. Não posso ficar aborrecida, porque isto é muito importante. Seja franco comigo.

- Sei como se sente com relação a ela - disse Danny, e suspirou.

- Como me sinto?

- Mal. Triste. Aborrecida. É como se ela não fosse sua mãe. Como se ela a quisesse engolir. - Ele a olhava com medo. - E eu não gosto de lá. Ela está sempre pensando em como ser melhor para mim do que você. E em como afastar-me de você. Mamãe, não quero ir para lá. Prefiro ficar no Overlook.

Wendy estava abalada. A situação entre ela e a mãe seria tão ruim assim? Deus, e se fosse, que desgraça para o menino, e ele realmente lia os pensamentos de cada um. De repente, sentiu-se completamente despida, como se tivesse sido apanhada num ato obsceno.

- Muito bem - falou. - Muito bem, Danny.

- Você está aborrecida comigo - disse o filho, baixinho, quase chorando.

- Não, não estou. Não estou mesmo. Só estou um pouco abalada. - Passavam pela placa “Sidewinder - 25 km”, e Wendy ficou mais tranqüila. Dali para a frente a estrada era melhor.

- Quero fazer mais uma pergunta, Danny. Quero que responda com a maior sinceridade. Está bem?

- Está bem, mamãe - disse ele, quase sussurrando.

- Seu pai tem bebido novamente?

- Não - disse ele, sufocando as duas palavras que brotaram dentro da boca, depois da simples negativa: ainda não.

Wendy tranqüilizou-se um pouco mais. Pousou a mão sobre a perna de Danny coberta pelos jeans, e apertou-o.

- Seu pai tem se esforçado - falou, suavemente. - Porque nos ama. E nós o amamos, não é?

Ele assentiu muito sério.

Quase falando consigo mesma, Wendy prosseguiu:

- Ele não é um homem perfeito, mas tem se esforçado.

Danny, tem se esforçado muito! Quando ele... parou... passou por uma espécie de inferno. ainda está passando. Acho que, se não fosse por nós, ele simplesmente não agüentaria.

Quero fazer o que for certo. E não sei. Devemos ir? Ficar? É como uma escolha entre a cruz e a caldeirinha.

- Eu sei.

- Pode fazer-me um favor, doutor?

-O quê?

Tente fazer Tony aparecer. Agora mesmo. Pergunte a ele se estamos seguros no Overlook.

- Já tentei - disse Danny, com calma. - Hoje de manhã.

- O que aconteceu? - perguntou Wendy. - O que ele disse?

- Ele não apareceu. Tony não apareceu. - E de repente Danny começou a chorar.

- Danny - disse ela, alarmada. - Meu bem, não chore. Por favor. . . - O caminhão deslizou para a outra pista, e ela controlou-o, amedrontada.

- Não me leve para a casa de vovó - falou Danny, em meio às lágrimas. - Por favor, mamãe, não quero ir para lá, quero ficar com papai.

Muito bem - disse ela com calma. - Muito bem, isto é o que vamos fazer. - Tirou um lenço de papel do bolso da blusa e o entregou ao filho. - Vamos ficar. E tudo vai acabar bem. Muito bem.

 

                                                                                            CONTINUA  

 

                      

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