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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O INIMIGO DE DEUS / Bernard Cornwell
O INIMIGO DE DEUS / Bernard Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O INIMIGO DE DEUS

Primeira Parte

 

A Estrada Sombria

Hoje tenho estado a pensar nos mortos.

 

Estamos no último dia do ano velho. Os fetos que cobrem a colina tingiram-se de uma tonalidade acastanhada, os ulmeiros nas extremidades do vale perderam as folhas e a matança de Inverno das nossas cabeças de gado já começou. Esta noite é Véspera do Samain.

 

Esta noite, a cortina que separa os mortos dos vivos estremecerá, desfiar-se-á e acabará por desaparecer. Esta noite, os mortos atravessarão a ponte das espadas. Esta noite os mortos chegarão, vindos do Outro Mundo, mas nós não os veremos. Serão sombras diluídas na escuridão, simples sussurros numa noite sem vento, mas estarão presentes.

 

O bispo Sansum, o santo que governa a nossa pequena comunidade de monges, faz troça desta crença. Os mortos, diz ele, não têm corpos feitos de sombra, tão-pouco são capazes de atravessar a ponte das espadas. Em vez disso, jazem nos seus túmulos frios aguardando a última vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. É uma atitude digna, diz ele ainda, recordar os mortos e rezar pela imortalidade das suas almas, mas os seus corpos desapareceram para sempre. São corruptos. Os olhos derreteram-se para dar lugar a buracos negros incrustados nos crânios, os vermes liquefazem-lhes as barrigas e os ossos estão forrados com húmus. O santo insiste em dizer que os mortos não perturbam os vivos na Véspera do Samain, mas até ele tomará as precauções necessárias para deixar um pão junto da lareira do mosteiro, esta noite. Fará de conta que se tratou de um descuido da sua parte, mas seja como for esta noite haverá um pão e um cântaro com água ao lado das cinzas da cozinha.

 

Eu deixarei mais qualquer coisa. Uma taça de hidromel e um pedaço de salmão. São oferendas humildes, mas é tudo o que posso dar, e esta noite colocá-las-ei no meio das sombras, junto à lareira. Em seguida irei até à minha cela de monge para acolher os mortos que virão até esta casa fria, situada nesta colina despida.

 

Passo a nomear os mortos. Ceinwyn, Guinevere, Nimue, Merlim, Lancelote, Galaad, Dian, Sagramor. A lista daria para encher dois pergaminhos. Tantos mortos. O som dos seus passos não provocará o mínimo sobressalto, tão-pouco assustará os ratos que vivem no telhado de colmo do mosteiro, mas até o bispo Sansum sabe que os nossos gatos arquearão os respectivos corpos e bufarão pelos cantos da cozinha quando as sombras que não são sombras se aproximarem da nossa lareira, ao encontro das oferendas que as dissuadem de fazer tropelias.

 

Hoje tenho estado, então, a pensar nos mortos.

 

Estou velho agora, talvez tão velho como era Merlim, embora nem por sombras tão sábio. Penso que o bispo Sansum e eu somos os únicos homens que sobreviveram aos dias gloriosos, e eu sou o único que os recordo com ternura. É provável que outros vivam ainda. Na Irlanda, talvez, ou nas terras desoladas a norte de Lothian, mas eu nada sei deles, ainda que esteja certo do seguinte: se outros há que de facto vivem ainda, então eles, tal como eu, evitam a escuridão avassaladora como gatos fugindo das sombras desta noite. Tudo o que amávamos foi destruído, tudo o que construímos foi arrasado, tudo o que semeámos está a ser colhido pelos Saxões. Nós, os Britânicos, mantemo-nos fiéis às terras altas a oeste e falamos de vingança, mas não há nenhuma espada capaz de lutar contra a grande escuridão. Momentos há, agora demasiado frequentes, em que tudo o que desejo é estar na companhia dos mortos. O bispo Sansum aplaude este meu desejo e diz-me que está certo que eu anseie por estar no Céu, à direita de Deus, mas não creio que alguma vez chegue a entrar no paraíso dos santos. Pequei demasiado e por isso temo o inferno, embora ainda acalente a esperança de, contrariando assim a minha fé, passar para o Outro Mundo. Aí, à sombra das macieiras espalhadas entre as quatro torres de Annwn, espera-me uma mesa repleta de comida e povoada pelos corpos-sombra dos meus velhos amigos. Merlim dividir-se-á entre adulações, palestras, queixumes e zombarias. Galaad arderá de impaciência por interrompê-lo e Culhwuch, enfadado com tanta conversa, surripiará uma porção de carne maior, julgando que ninguém se terá apercebido do seu gesto. E Ceinwyn lá estará também, a querida e encantadora Ceinwyn, apaziguando o tumulto gerado por Nimue.

 

Eu, porém, ainda me encontro sob a maldição da vida. Enquanto os meus amigos festejam, eu continuo a viver, e enquanto viver hei-de escrever esta história de Artur. Escrevo por ordem da rainha Igraine, a jovem esposa do rei Brochvael de Powys, o protector do nosso pequeno mosteiro. Igraine quis saber tudo o que eu pudesse lembrar-me acerca de Artur, por isso comecei a escrever estas histórias. O bispo Sansum, porém, não aprova este meu trabalho. Ele diz que Artur era o Inimigo de Deus, um rebento do diabo, pelo que estou a escrever estas histórias em saxão, a minha língua materna, que o santo desconhece. Tanto eu como Igraine dissemos ao santo que estou a escrever o evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo na língua do inimigo. É possível que ele acredite em nós, ou então talvez esteja a aguardar a hora certa para desmascarar a nossa mentira e castigar-me, em seguida.

 

Escrevo todos os dias. Igraine desloca-se frequentemente ao mosteiro para pedir a Deus que abençoe o seu ventre com um filho. Terminadas as orações leva consigo as peles já preenchidas e pede ao escrivão de Brochael que as traduza para britânico. Acho que ela altera a história nessa altura, fazendo-a coincidir com o Artur que ela deseja que exista e não com o Artur que de facto existiu. Mas é provável que isso não tenha importância, pois quem irá ler esta história? Sinto-me como um homem que constrói uma parede de lama e vime, com o objectivo de conter uma inundação iminente. A idade das trevas, um tempo em que nenhum homem lerá uma linha que seja, está a chegar. Haverá apenas Saxões.

 

Estou então a escrever sobre os mortos, e a escrita ajuda-me a passar o tempo que me resta até poder juntar-me a eles; o tempo em que o irmão Derfel, humilde monge de Dinnewrac, tornará a ser Lorde Derfel Cadarn, Derfel, o Poderoso, Paladino de Dumnónia e amigo dilecto de Artur. Agora, porém, sou apenas um velho monge enregelado que escrevinha memórias com a única mão que lhe resta. E esta noite é Véspera do Samain e amanhã começa um novo ano. O Inverno está a chegar. Empurradas pelo vento, as folhas outonais jazem sobre as sebes em montículos cintilantes, tordos-piscos revoluteiam em torno dos restolhos, as gaivotas trocaram o mar pela terra e as galinholas reúnem-se à luz da lua cheia. É uma boa estação, segundo me disse Igraine, para escrever sobre coisas antigas. Por essa razão trouxe-me uma pilha de peles novas, um frasco de tinta acabada de misturar e um molho de penas. Fala-me de Artur, pede-me ela, do Artur de ouro, a nossa última e melhor esperança, o nosso rei que nunca chegou a ser rei, o Inimigo de Deus e o flagelo dos Saxões. Fala-me de Artur.

 

Um campo de batalha é uma visão horrível.

 

Saíramos vitoriosos, mas nas nossas almas não havia qualquer vestígio de júbilo, apenas fadiga e alívio. Trémulos, juntávamo-nos em volta das nossas fogueiras e fazíamos por não pensar nos vampiros e espíritos que trilhavam a escuridão onde jaziam os mortos do Vale do Lugg. Alguns de nós dormiam, mas ninguém conseguia um sono descansado, pois os pesadelos do final da batalha não nos davam tréguas. Acordei em plena noite, sobressaltado pela lembrança da estocada de uma lança que por pouco não se enterrara na minha barriga. Issa salvara-me, afastando a lança inimiga com o rebordo do seu escudo, mas a memória do que quase acontecera continuava a atormentar-me. Tentei voltar a adormecer, mas a recordação daquela lança manteve-me acordado até que, por fim, trémulo e exausto, levantei-me e enrolei-me na minha capa. O vale estava iluminado por fogueiras que se iam consumindo lentamente, e nos intervalos escuros entre as chamas espalhava-se um miasma formado pelo fumo e pela neblina que se elevava do rio. Algumas silhuetas moviam-se envoltas na cortina de fumo, mas se eram fantasmas ou criaturas vivas não sei dizer.

 

Não consegues dormir, Derfel? disse uma voz suave, vinda do limiar do edifício romano onde repousava o corpo do rei Gorfyddyd.

 

Voltei-me e vi que Artur me observava.

 

Não, não consigo dormir, Senhor admiti.

 

Ele avançou com cuidado pelo meio dos guerreiros adormecidos. Usava uma daquelas longas capas brancas de que tanto gostava e, na noite feérica, a peça de vestuário parecia resplandecer. Não apresentava qualquer vestígio de lama, ou de sangue, e percebi que ele devia tê-la enrolado em lugar seguro a fim de ter uma peça de vestuário limpa para vestir depois da batalha. Nenhum de nós se teria importado de chegar ao fim do combate completamente nu desde que estivesse vivo, mas Artur sempre foi um homem dado a minúcias. Tinha a cabeça descoberta e o cabelo ainda traía as reentrâncias deixadas pelo elmo no sítio onde este lhe apertara o crânio.

 

Nunca durmo bem depois de uma batalha disse ele durante uma semana, pelo menos. Depois disso surge então uma noite de abençoado descanso sorriu para mim. Estou em dívida para contigo.

 

Não, senhor disse eu, embora ele estivesse de facto em dívida para comigo. Sagramor e eu tínhamos defendido o Vale do Lugg durante todo aquele longo dia, lutando dentro do escudo defensivo contra uma vasta horda de inimigos, e Artur não conseguira vir socorrer-nos. O auxílio acabara por chegar, e com ele a vitória, mas de todas as batalhas travadas por Artur, Vale do Lugg foi a que esteve mais perto da derrota. Até à última batalha.

 

Eu, pelo menos, hei-de recordar esta dívida disse ele, com afecto, ainda que tu não o faças. Já é tempo de fazer de ti um homem rico, Derfel, a ti e aos teus homens.

 

Sorriu e, segurando-me pelo cotovelo, conduziu-me até a um pedaço de terra vazio onde as nossas vozes não perturbariam o sono agitado dos guerreiros, deitados perto das fogueiras. O chão estava húmido e a chuva cobrira com lama as marcas fundas deixadas pelos cascos dos enormes cavalos do exército de Artur. Perguntei a mim mesmo se os cavalos sonhariam com batalhas e, depois, se os mortos recém-chegados ao Outro Mundo ainda estremeciam perante a recordação do golpe da espada ou da lança que atirara as suas almas para o outro lado da ponta das espadas.

 

Gundleus está morto, suponho? Artur interrompeu o fio dos meus pensamentos.

 

Está sim, Senhor confirmei. O Rei da Silúria morrera ao princípio da noite, mas eu não via Artur desde o instante em que Nimue pusera fim à vida do seu inimigo.

 

Ouvi-o gritar disse Artur num tom de voz neutro.

 

A Bretanha inteira deve tê-lo ouvido gritar respondi eu numa inflexão de voz igualmente seca. Nimue destruíra a tenebrosa alma do rei pedaço por pedaço, nunca deixando de trautear a meia voz a sua vingança sobre o homem que a violara e lhe arrancara um dos olhos.

 

Nesse caso, a Silúria precisa de um rei disse Artur, contemplando o vale imenso até onde as silhuetas negras flutuavam no meio da neblina e do fumo. As chamas projectavam sombras no seu rosto glabro, emprestando-lhe um aspecto macilento. Não era um homem bonito, mas tão-pouco era feio. Possuía, antes, um rosto singular: comprido, ossudo e resoluto. Em repouso era um rosto triste que denotava compaixão e um carácter sério, mas em momentos de conversa era animado pelo entusiasmo e por um sorriso fácil. Ainda era jovem nessa altura, tinha apenas trinta anos, e entre os seus cabelos curtos não se vislumbrava ainda qualquer fio grisalho.

 

Vem tocou-me no braço e fez um gesto na direcção do vale.

 

Ousaríeis caminhar entre os mortos? Recuei, horrorizado. Eu teria esperado até que a madrugada tivesse afugentado os vampiros antes de me aventurar para longe da luz protectora das fogueiras.

 

Fomos nós quem os transformou em mortos, Derfel, tu e eu disse Artur, por isso é natural que tenham medo de nós, não é?

 

Nunca foi um homem supersticioso, ao contrário de nós, que suspirávamos por bênçãos, venerávamos amuletos e nunca desistíamos de procurar presságios que pudessem pôr-nos de sobreaviso contra perigos iminentes. Artur movia-se naquele mundo de espíritos como um homem cego.

 

Vem disse, tocando-me de novo no braço.

 

Penetrámos, então, na escuridão. Não estavam todas mortas, aquelas coisas que jaziam enleadas na neblina, já que algumas imploravam por socorro em lamentos compungidos. Artur, porém, normalmente o mais bondoso dos homens, manteve-se surdo aos seus clamores débeis. Pensava na Bretanha.

 

Amanhã sigo para Sul disse. Vou encontrar-me com Tewdric. O rei Tewdric de Gwent era nosso aliado, mas recusara-se a enviar os seus homens para o Vale do Lugg, crente da impossibilidade de uma vitória. Agora, o rei estava em dívida para connosco, pois tínhamos ganho uma guerra que era dele em seu lugar. Artur, no entanto, não era homem que guardasse ressentimentos.

 

Pedirei a Tewdric que envie um grupo de homens para Leste, para lutar contra os Saxões continuou Artur mas vou enviar Sagramor também. Isso deverá ser suficiente para segurar a fronteira durante o Inverno. Os teus homens brindou-me com um sorriso rápido, merecem um descanso.

 

O sorriso dele disse-me que não haveria descanso.

 

Eles farão tudo o que lhes pedirdes respondi, obediente. Caminhava hirto, olhando com desconfiança para as sombras que nos rodeavam e fazendo o gesto destinado a afastar o mal com a mão direita. Certas almas, recém-arrancadas aos respectivos corpos, não conseguem encontrar a porta de entrada para o Outro Mundo e, ao invés, deambulam pela superfície da Terra em busca dos seus antigos corpos procurando vingar-se de quem as assassinou. Muitas dessas almas estavam no Vale do Lugg nessa noite e eu temia-as, mas Artur, esquecido da ameaça que elas representavam, deambulava despreocupadamente pelo campo de morte, segurando as dobras da capa com uma das mãos a fim de a manter fora do alcance da erva molhada e da lama espessa.

 

Quero os teus homens na Silúria disse, em tom decidido. Oengus Mac Airem há-de querer saqueá-la, mas tem de ser detido.

 

Oengus era o rei irlandês de Demétia que, ao mudar de partido durante a batalha, dera a vitória a Artur. O preço do irlandês era uma parte dos escravos e das riquezas do reino do falecido Gundleus.

 

Ele pode levar uma centena de escravos decretou Artur, e um terço dos tesouros de Gundleus. Concordou com estes termos, mas ainda assim tentará enganar-nos.

 

Assegurar-me-ei de que não o fará, Senhor.

 

Não, tu não. Permites que Galaad conduza os teus homens? Assenti, escondendo a minha surpresa.

 

Que pretendeis então de mim? perguntei.

 

A Silúria é um problema continuou Artur, ignorando a minha pergunta. Deteve-se, franzindo o sobrolho ao pensar no reino de Gundleus. Tem sido mal governada, Derfel, mal governada.

 

Falou com profundo desagrado. Para os restantes de nós, as governações corruptas eram tão naturais como a neve no Inverno ou as flores na Primavera, mas Artur sentia-se genuinamente horrorizado com isso. Nos dias que correm recordamos Artur como um senhor da guerra, como o homem extraordinário que metido numa reluzente armadura de latão polido fez de uma espada uma lenda. Ele, porém, teria preferido que o lembrassem apenas como um governante bom, honesto e justo. A espada deu-lhe poder, mas ele colocou esse poder ao serviço da lei.

 

Não é um reino importante continuou ele, mas será uma eterna fonte de problemas, se não impusermos a ordem. Pensava em voz alta, tentando antecipar todos os obstáculos que se interpunham entre aquela primeira noite depois da batalha e o seu sonho de uma Bretanha unida e pacificada. A solução ideal disse seria dividi-la entre Gwent e Powys.

 

E porque não o fazemos? perguntei.

 

Porque prometi a Silúria a Lancelote disse ele, numa voz que não admitia oposição.

 

Eu nada disse, limitei-me a tocar o punho da Hywelbane, para que o ferro protegesse a minha alma das coisas demoníacas daquela noite. Olhei para sul, na direcção do local onde os mortos jaziam mansamente e, como o curso de um regato, junto à sebe de árvores onde os meus homens tinham combatido o inimigo durante aquele longo dia.

 

Muitos homens valentes tinham participado naquele combate. Lancelote, no entanto, não o fizera. Ao longo de todos estes anos que tenho combatido por Artur e desde que conheço Lancelote nunca o vi combater no escudo defensivo. Vira-o perseguir fugitivos derrotados, ou fazer prisioneiros e exibi-los perante multidões excitadas, mas nunca me fora dado vê-lo sofrer os efeitos da pressão terrível, abrasadora e clangorosa da luta árdua no perímetro de um escudo defensivo. Ele era o rei exilado de Benoic, destronado pela horda de francos que tinham irrompido da Gália decididos a apagar da memória dos homens o reino de seu pai, e nem uma vez, tanto quanto me era dado saber, brandira uma lança contra um grupo de guerreiros francos, apesar de a sua bravura ser cantada por todos os bardos de norte a sul da Bretanha. Ele era Lancelote, o rei sem terra, o herói de cem combates, a espada dos Bretões, o formoso senhor da desventura, o modelo da perfeição, e toda a sua reputação fora construída ao som de melodias e não, pelo que eu sabia, com uma espada. Eu era seu inimigo, e ele meu, mas ambos éramos amigos de Artur e essa amizade impunha tréguas pouco cómodas à nossa inimizade.

 

Artur conhecia a minha hostilidade. Tocou-me no cotovelo fazendo sinal para que ambos caminhássemos para sul, na direcção do tapete de mortos.

 

Lancelote é amigo de Dumnónia insistiu ele, e se for ele a governar a Silúria não teremos nada a temer. Além disso, se Lancelote desposar Ceinwyn contará também com o apoio de Powys.

 

Pronto, estava dito, e agora a minha hostilidade misturava-se com um sentimento de raiva. Todavia, nada disse contra os planos de Artur. Que poderia eu dizer? Era filho de um escravo saxão, um jovem guerreiro com um bando de homens mas sem terra, e Ceinwyn era uma princesa de Powys. Chamavam-na Seren, a estrela, e ela cintilava numa terra sem interesse como uma centelha de sol caída na lama. Estivera noiva de Artur, mas perdera-o para Guinevere, e essa perda desencadeara a guerra que neste momento chegava ao fim com o massacre do Vale do Lugg. Agora, em nome da paz, Ceinwyn deveria desposar Lancelote, o meu inimigo, enquanto eu, que valia pouco mais que nada, estava apaixonado por ela. Usava o pregador dela e a sua imagem nunca me saía do pensamento. Chegara até a jurar que a protegeria, um juramento que ela não repelira. A aceitação dela fizera nascer em mim a esperança louca de que o meu amor por ela não era impossível, mas era-o de facto. Ceinwyn era uma princesa e como tal deveria casar com um rei, e eu era um soldado, escravo de nascença, e casar-me-ia com quem me aceitasse.

 

Nada revelei, por isso, acerca do meu amor por Ceinwyn e Artur, que naquela noite vitoriosa punha e dispunha da Bretanha, não suspeitou de nada. E porque haveria de o fazer? Se lhe tivesse confessado que estava apaixonado por Ceinwyn ele teria considerado o facto como uma ambição tão injuriosa quanto a de um galo de capoeira que quisesse acasalar com uma águia.

 

Conheces Ceinwyn, não conheces? perguntou-me ele.

 

Sim, Senhor.

 

E ela gosta de ti disse ele, em jeito de pergunta incompleta.

 

Ouso pensar que sim respondi eu com sinceridade, revendo em espírito a beleza pálida e argentina de Ceinwyn e abominando a ideia de a mesma vir a ser entregue à guarda do formoso Lancelote. Ela gosta de mim o suficiente prossegui para me ter dito que não sente qualquer entusiasmo em relação a este casamento.

 

E porque haveria de sentir? perguntou Artur. Ela nunca viu Lancelote. Não espero entusiasmo da parte dela, Derfel, apenas obediência.

 

Hesitei. Antes da batalha, quando Tewdric tentava desesperadamente pôr fim à guerra que ameaçava destruir os seus domínios, eu fora enviado à presença de Gorfyddyd numa missão de paz. A missão falhara, mas eu falara com Ceinwyn e contara-lhe as esperanças acalentadas por Artur de vê-la casada com Lancelote. Não rejeitara a ideia, mas tão-pouco a recebera de bom grado. Naquela época, ninguém acreditava que Artur fosse capaz de derrotar o pai de Ceinwyn numa batalha, mas Ceinwyn levara em consideração essa possibilidade inverosímil e pedira-me que transmitisse a Artur um pedido seu, caso ele saísse vencedor do conflito. Queria a protecção dele, e eu, consumido de paixão por ela, transformara o seu pedido num apelo para que ela não fosse forçada a um casamento contrário aos seus desejos. Agora dizia a Artur que ela implorara a sua protecção.

 

Ela esteve prometida em casamento demasiadas vezes, Senhor acrescentei e por demasiadas vezes se sentiu desiludida. Julgo que ela quer que a deixem tranquila durante algum tempo.

 

Tempo! riu-se Artur. Ela não tem tempo, Derfel. Tem quase vinte anos. Não pode continuar solteira como um gato que não caça ratos. E com quem mais poderia ela casar? avançou alguns passos. Ela tem a minha protecção disse, mas que melhor protecção poderia ela querer do que estar casada com Lancelote e poder sentar-se num trono? E tu? perguntou ele, inesperadamente.

 

Eu, Senhor? Por momentos pensei que ele estaria a sugerir que eu deveria desposar Ceinwyn e o meu coração teve um sobressalto.

 

Tens quase trinta anos disse, é tempo de te casares. Trataremos disso depois de regressarmos a Dumnónia. Agora, quero que vás até Powys.

 

Eu, Senhor? Powys?

 

Tínhamos acabado de combater e de derrotar o exército de Powys e não me passava pela cabeça que alguém em Powys estivesse disposto a acolher amigavelmente um guerreiro inimigo.

 

Artur agarrou-me pelo braço.

 

O facto mais importante das próximas semanas, Derfel, é garantir que Cuneglas seja proclamado rei de Powys. Ele julga que ninguém o desafiará, mas quero estar certo disso. Quero um dos meus homens em Caer Sws para servir de testemunha da nossa amizade. Nada mais. Quero apenas que todo aquele que pense em lançar um desafio saiba que terá de lutar comigo e com Cuneglas. Se lá estiveres e se fores visto como amigo dele, essa mensagem será clara.

 

Nesse caso, porque não enviar uma centena de homens? perguntei eu.

 

Porque assim parecerá que estamos a impor Cuneglas no trono de Powys. Não quero isso. Preciso dele como amigo e não quero que ele regresse a Powys como um homem derrotado. Além disso sorriu, vales tanto como uma centena de homens, Derfel. Provaste isso ontem.

 

Fiz uma careta, pois os elogios extravagantes deixavam-me sempre pouco à vontade. No entanto, se o elogio significava que eu era o homem certo para ser o enviado de Artur a Powys, então sentia-me feliz por isso, pois estaria de novo perto de Ceinwyn. Ainda conservava a preciosa recordação do toque dela na minha mão, da mesma forma que guardava religiosamente o pregador que ela me dera há tantos anos atrás. Ela ainda não estava casada com Lancelote, disse para comigo mesmo, e tudo o que eu queria era uma oportunidade para me entregar de corpo e alma às minhas esperanças impossíveis.

 

E depois de Cuneglas ter sido proclamado rei perguntei, que faço então?

 

Esperas por mim disse Artur. Seguirei para Powys logo que possa, e uma vez assinada a paz e assegurado o noivado de Lancelote regressaremos a casa. E no próximo ano, meu amigo, comandaremos os exércitos da Bretanha contra os Saxões. Sentia um prazer raro ao falar da arte de guerrear. Era um bom soldado, que gostava das batalhas graças às emoções vivas e desenfreadas que tomavam conta da sua alma, habitualmente caracterizada pela prudência. Todavia, nunca procurava a guerra quando a paz era uma possibilidade real, pois suspeitava das incertezas da batalha. Neste caso, porém, nem a diplomacia nem o tacto lograriam alguma vez derrotar o invasor saxão, que se expandia para Oeste, alastrando por todo o território da Bretanha como se fosse uma praga de parasitas. Artur sonhava com uma Bretanha ordenada, dotada de um governo legítimo e pacífica e os Saxões não faziam parte desse sonho.

 

Marchamos na Primavera? perguntei.

 

Com o despontar das primeiras folhas.

 

Então gostaria de pedir-vos que me concedêsseis um favor, antes disso.

 

Qual? retorquiu ele, encantado com o facto de eu querer algo como recompensa por ter contribuído para a sua vitória.

 

Quero marchar com Merlim, Senhor disse eu.

 

Não respondeu logo. Limitou-se a fitar o chão enlameado, onde estava caída uma espada cuja lâmina estava dobrada quase em dois. Algures no escuro um homem gemeu, chamou e calou-se em seguida.

 

O Caldeirão disse Artur, finalmente, com voz carregada.

 

Sim, Senhor disse eu. Merlim viera ao nosso encontro durante a batalha e pedira às duas facções envolvidas que suspendessem os combates e o seguissem na demanda do Caldeirão de Clyddno Eiddyn. O Caldeirão era o maior Tesouro da Bretanha, a oferenda mágica dos velhos Deuses, e havia séculos que se desconhecia o seu paradeiro. Merlim dedicara a sua vida à recuperação desses Tesouros, e o Caldeirão era a maior recompensa que poderia conquistar. Se conseguisse encontrá-lo, dissera ele, poderia devolver a Bretanha aos seus Deuses legítimos.

 

Artur meneou a cabeça.

 

Acreditas mesmo que o Caldeirão de Clyddno Eiddyn tem estado escondido durante todos estes anos? perguntou-me ele. Durante todos os anos de domínio romano? Foi levado para Roma, Derfel, e fundido para fazer alfinetes, ou pregadores, ou moedas. O Caldeirão não existe!

 

Merlim diz que sim, Senhor insisti eu.

 

Merlim deu ouvidos a historietas de velhas retorquiu Artur, zangado. Sabes quantos homens pretende ele arrastar nessa demanda do seu Caldeirão?

 

Não, Senhor.

 

Oitenta, disse-me ele. Ou cem. Ou, melhor ainda, duzentos! Ele nem sequer diz onde está o Caldeirão, quer apenas que eu lhe dê um exército e que o autorize a marchar até um qualquer local inóspito. Até à Irlanda, provavelmente, ou para o Deserto. Não! Deu um pontapé na espada dobrada e em seguida enterrou um dos dedos no meu ombro. Ouve-me, Derfel, no próximo ano vou precisar de todas as lanças que conseguir reunir. Vamos acabar com os Saxões de uma vez por todas, e eu não posso abdicar de oitenta ou cem homens e deixá-los partir em busca de uma taça que desapareceu há quase quinhentos anos. Logo que os saxões de Aelle estejam derrotados serás livre para ir atrás desse disparate, se a isso te sentes obrigado. Mas isso é um disparate, digo-te eu. O Caldeirão não existe. Virou-se e começou a falar para as fogueiras. Segui-o, desejoso de contra-argumentar, mas sabia que nunca seria capaz de persuadi-lo do contrário, pois ele iria precisar de todas as lanças que conseguisse reunir se de facto pretendia derrotar os Saxões, e neste momento nada faria para reduzir as suas probabilidades de vitória na Primavera. Sorriu para mim, como se assim quisesse compensar-me pela áspera resposta ao meu pedido.

 

Se o Caldeirão realmente existe disse ele, então pode muito bem continuar escondido por mais um ano ou dois. Entretanto, Derfel, tenho planos para fazer de ti um homem rico. Arranjar-te-emos um casamento próspero deu-me uma palmada nas costas. Uma última campanha, meu querido Derfel, um último grande massacre, e depois teremos paz. A paz total. Não precisaremos de caldeirões nessa altura. Falava em tom exultante. Nessa noite, rodeado pelos mortos, ele viu de facto o advento da paz.

 

Caminhámos na direcção das fogueiras que circundavam a casa romana onde Gorfyddyd, o pai de Ceinwyn, jazia morto. Artur sentia-se feliz nessa noite, genuinamente feliz, pois via o seu sonho tornar-se realidade. E tudo parecia tão fácil. Haveria mais uma guerra e, depois, a paz eterna. Artur era o nosso senhor da guerra, o maior guerreiro da Bretanha. No entanto, naquela noite, após a batalha, vagueando entre as almas agonizantes dos mortos envoltos em fumo, a paz era tudo o que ele desejava. Cuneglas de Powys, o herdeiro de Gorfyddyd, comungava do sonho de Artur. Tewdric de Gwent era um aliado, Lancelote ficaria com o reino da Silúria e, juntamente com o exército dumnoniano de Artur, os reis unidos da Bretanha derrotariam os invasores Saxões. Sob a protecção de Artur, Mordred cresceria e assumiria o trono de Dumnónia e nessa altura Artur retirar-se-ia para desfrutar a paz e a prosperidade que a sua espada concedera à Bretanha.

 

Artur determinava assim o futuro dourado.

 

Todavia, não estava a contar com Merlim. Merlim era mais velho, mais sensato e mais ardiloso do que Artur. E Merlim pressentira a presença do Caldeirão. Encontrá-lo-ia, e o seu poder espalhar-se-ia por toda a Bretanha como um veneno.

 

Pois era, de facto, o Caldeirão de Clyddno Eiddyn. O Caldeirão que destruía os sonhos dos homens.

 

E Artur, apesar de todo o seu espírito prático, era um sonhador.

 

Em Caer Sws, as folhas sucumbiam ao peso dos últimos frutos do Verão.

 

Eu viajara para norte na companhia do rei Cuneglas e do seu exército derrotado. Era, por isso, o único dumnoniano que estava presente quando o corpo do rei Gorfyddyd foi cremado no cume de Dolforwyn. Vi as chamas da sua pira funerária elevarem-se bem alto na escuridão da noite no momento em que a sua alma atravessou a ponte das espadas e entrou no Outro Mundo. Em torno da fogueira estavam alinhados os lanceiros de Powys, formando dois anéis e empunhando tochas flamejantes que oscilavam em uníssono enquanto eles cantavam o Lamento da Morte de Beli Mawr. Cantaram durante muito tempo, e o som das suas vozes ecoou nas colinas próximas como um coro de fantasmas. Caer Sws estava mergulhada numa grande consternação. Muitos eram os habitantes da região que tinham ficado viúvos ou órfãos, e na manhã seguinte à cremação do velho rei no momento em que um fio de fumo ainda se desprendia da sua pira elevando-se na direcção das montanhas a norte, a notícia da queda de Ratae veio aumentar ainda mais a tristeza. Ratae fora uma grande fortaleza na fronteira leste de Powys, mas Artur entregara-a aos Saxões comprando assim a paz de que necessitava enquanto combatia Gorfyddyd. Ninguém, em Powys, sabia desta deslealdade de Artur e eu nada lhes disse.

 

Não vi Ceinwyn durante três dias, já que esses eram os dias de luto por Gorfyddyd e as mulheres não estavam autorizadas a participar na cremação. Em vez disso, as mulheres nobres de Powys vestiam-se de lã preta e permaneciam confinadas à ala do palácio que lhes estava destinada. Não podiam ouvir música, bebiam água e o seu único alimento consistia em pão seco e numa papa de aveia muito rala. No exterior, os guerreiros de Powys reuniram-se para aclamar o novo rei e eu, obedecendo às ordens de Artur, tentei descobrir se algum dos homens presentes seria capaz de desafiar o direito de Cuneglas ao trono. Nem um murmúrio de oposição se ouviu.

 

Ao fim dos três dias, a porta da ala das mulheres foi aberta. Uma serva assomou à porta e espalhou arruda no umbral e nas escadas. Um instante depois, uma onda de fumo irrompeu através da porta, sinal de que as mulheres estavam a queimar o leito nupcial do velho rei. O fumo escapava-se, rodopiante, pela porta e janelas dos aposentos das mulheres, e foi só depois de o fumo se ter dissipado que Helledd, agora Rainha de Powys, desceu os degraus para ajoelhar perante o marido, o Rei Cuneglas de Powys. Usava um vestido de linho branco que, no momento em que Cuneglas a fez levantar, ostentava marcas de lama nos sítios onde ajoelhara. Beijou-a e depois conduziu-a de volta aos seus aposentos. Vestido de negro, lorweth, o druida de Powys, seguiu o rei até à ala das mulheres, enquanto no exterior, rodeando os muros de madeira do palácio em fileiras de ferro e couro, os guerreiros sobreviventes de Powys observavam expectantes.

 

Esperaram enquanto um coro de crianças entoava o dueto de amor de Gwydion e Aranrhod, a Canção de Rhiannon e em seguida cada um dos longos versos da Marcha para Caer Idion, de Gofannon. Foi só quando terminou esta última melodia que lorweth, agora vestido de branco e empunhando uma vara negra encimada por visco-branco, assomou à porta e anunciou que os dias de luto tinham finalmente chegado ao seu termo. Os guerreiros deram vivas e desfizeram fileiras para ir ao encontro das respectivas esposas. Amanhã, Cuneglas será aclamado no cimo do monte Dolforwyn e se algum homem quiser desafiar o seu direito ao trono de Powys, o momento da aclamação será a oportunidade ideal. Essa será também a ocasião em que poderei vislumbrar Ceinwyn pela primeira vez desde o dia da batalha.

 

No dia seguinte, fixei o meu olhar em Ceinwyn enquanto lorweth executava os ritos de aclamação. Estava de pé, de olhos postos no irmão e eu fitava-a, atónito, perguntando a mim próprio como poderia uma mulher ser tão encantadora. Hoje estou velho, por isso é provável que a minha memória de velho exagere a beleza da princesa Ceinwyn, mas julgo que não. Não era impunemente que lhe chamavam Seren, a estrela. Era de estatura mediana, mas tinha uma constituição muito delicada e essa esbelteza emprestava-lhe uma aparência de fragilidade que era, conforme mais tarde vim a descobrir, enganadora, pois Ceinwyn era acima de tudo dotada de uma vontade férrea. Tinha cabelos louros como os meus. Os dela, porém, eram de um dourado pálido e brilhante como o Sol enquanto os meus se aproximavam mais do tom de palha suja. Os olhos eram azuis, o seu comportamento recatado e o seu rosto doce como o mel de uma colmeia silvestre. Naquele dia estava vestida com um trajo de linho azul, guarnecido com a pele prateada e malhada de negro do arminho, o mesmo vestido que usava quando tocara a minha mão e aceitara o meu juramento. O seu olhar cruzou-se com o meu uma vez, e ela sorriu gravemente. Juro que o meu coração parou de bater durante uns segundos.

 

Os ritos da realeza de Powys não eram diferentes dos nossos. Cuneglas desfilou em torno do círculo de pedras de Dolforwyn, recebeu os símbolos da realeza e depois foi proclamado rei por um guerreiro, que desafiou todos os presentes a questionarem a aclamação. A resposta ao desafio foi o silêncio. As cinzas da enorme pira ainda fumegavam, para lá do círculo, assinalando a morte de um rei. Todavia, o silêncio que reinava em torno das pedras era a prova de que um novo rei reinava agora. Em seguida, Cuneglas foi presenteado com oferendas. Artur, conforme eu bem sabia, traria ele próprio o seu magnífico presente, mas tinha-me confiado a espada de guerra de Gorfyddyd que fora encontrada no campo de batalha e que eu agora devolvia ao filho de Gorfyddyd como símbolo do desejo de Dumnónia de assinar a paz com Powys.

 

Depois da proclamação houve um banquete no edifício solitário situado no cimo de Dolforwyn. Foram festejos modestos, mais ricos em hidromel e em cerveja do que em comida, mas foi uma oportunidade para Cuneglas comunicar aos seus guerreiros as esperanças que alimentava para o seu reino.

 

Começou por falar da guerra que acabava de chegar ao fim. Evocou os mortos do Vale do Lugg e prometeu aos seus homens que aqueles guerreiros não tinham morrido em vão.

 

O seu feito disse foi terem conseguido impor a paz entre os Bretões. Uma paz entre Powys e Dumnónia.

 

Estas palavras desencadearam alguns protestos entre os guerreiros, mas Cuneglas silenciou-os erguendo uma das mãos.

 

O nosso inimigo disse, e a sua voz soou subitamente dura não é Dumnónia. O nosso inimigo é o saxão!

 

Fez uma pausa, e desta vez não se ouviram protestos. Esperavam apenas, em silêncio, observando o seu novo rei, que na verdade não era um grande guerreiro, mas sim um homem bom e honesto. Estas qualidades pareciam estar estampadas no seu rosto redondo e sincero ao qual ele tentara, em vão, imprimir dignidade deixando crescer um bigode longo e entrelaçado que lhe chegava ao peito. Poderia não ser um guerreiro, mas era arguto o suficiente para saber que tinha de oferecer a estes guerreiros a oportunidade de combater numa guerra, pois só através dela é que um homem pode conquistar a glória e a riqueza. Ratae, prometeu-lhes, seria reconquistada e os Saxões punidos pelos horrores que tinham infligido aos seus habitantes. Lloegyr, as Terras Perdidas, seriam reclamadas aos Saxões e Powys, em tempos o mais poderoso dos reinos da Bretanha, tornaria a estender-se das montanhas ao mar Germânico. As cidades romanas seriam reconstruídas, os seus muros tornariam a erguer-se, gloriosos, e as estradas seriam reparadas. Haveria terras cultiváveis, saques e escravos saxões para cada um dos guerreiros de Powys. Estes aplaudiram esta perspectiva, pois Cuneglas oferecia aos seus desiludidos chefes militares as recompensas que homens como eles sempre procuravam obter dos seus soberanos. No entanto, continuou ele depois de ter erguido uma mão a fim de silenciar os aplausos, as riquezas de Lloegyr não seriam reclamadas apenas por Powys.

 

Agora advertiu os seus seguidores, marchamos lado a lado com os homens de Gwent e ao lado dos lanceiros de Dumnónia. Eram os inimigos de meu pai, mas são meus amigos, e é por esse motivo que Lorde Derfel está aqui presente sorriu para mim. E é por esse motivo continuou, que na próxima lua cheia, a minha querida irmã assumirá o seu noivado com Lancelote. Será rainha na Silúria e os homens naturais deste país marcharão connosco, e com Artur e com Tewdric, para expulsar os Saxões. Destruiremos o nosso verdadeiro inimigo. Destruiremos os Sais!

 

Desta vez, a aclamação elevou-se sem entraves. Conquistara-os. Oferecia-lhes a riqueza e o poder da velha Bretanha e eles aplaudiam e batiam os pés para demonstrar a sua aprovação. Cuneglas permaneceu de pé durante algum tempo, deixando que a aclamação continuasse, depois sentou-se e sorriu para mim como se reconhecesse que Artur teria aprovado as palavras que acabara de proferir.

 

Não fiquei em Dolforwyn para o festim que se prolongaria pela noite fora. Em vez disso regressei a Caer Sws atrás da carroça puxada por bois que transportava a rainha Helledd, as suas duas tias e Ceinwyn. As nobres damas desejavam estar de volta a Caer Sws à hora do crepúsculo e eu acompanhei-as, não porque me sentisse hostilizado na companhia dos homens de Cuneglas mas sim porque não tivera qualquer oportunidade de falar com Ceinwyn. Assim, como um vitelo aluado, juntei-me ao reduzido grupo de soldados que escoltava a carroça até ao seu destino. Vestira-me com esmero nesse dia, desejando impressionar Ceinwyn. Limpara a minha cota de malha, escovara a lama que manchava as minhas botas e a minha capa e depois prendera os meus longos cabelos louros numa longa trança que caía ao longo das minhas costas. Usava o pregador dela na minha capa, em sinal da minha vassalagem para com ela.

 

Pensei que ela iria ignorar-me, pois durante a longa caminhada de volta a Caer Sws seguiu sentada na carroça sem olhar para mim. Finalmente, porém, depois da curva e quando a fortaleza se tornou visível virou-se e apeou-se esperando por mim na berma da estrada. Os soldados que a escoltavam afastaram-se para me deixar caminhar ao lado dela. Ela sorriu ao reconhecer o pregador, mas não fez qualquer referência ao mesmo.

 

Estávamos curiosas, Lorde Derfel disse ela, em vez disso, por conhecer os motivos que o trouxeram até aqui.

 

Artur queria que alguém de Dumnónia testemunhasse a aclamação do seu irmão, Senhora respondi.

 

Ou será que Artur queria certificar-se de que ele iria ser aclamado? perguntou ela, sagazmente.

 

Também admiti eu. Ela encolheu os ombros.

 

Mais ninguém a não ser ele poderia ser rei. O meu pai garantiu que assim fosse. Havia um chefe chamado Valerin que poderia ter contestado a ascensão ao trono de Cuneglas, mas segundo as notícias que nos chegaram, Valerin morreu na batalha.

 

Sim, Senhora, assim foi disse eu, sem acrescentar contudo que fora eu quem matara Valerin num combate corpo a corpo junto ao vau, no Vale do Lugg. Era um homem valente, tal como o vosso pai. Lamento, por vós, que ele tenha morrido.

 

Avançou alguns passos em silêncio sob o olhar desconfiado de Helledd, a rainha de Powys, que permanecia na carroça.

 

O meu pai disse Ceinwyn algum tempo depois era um homem muito amargurado. Mas sempre foi bom para mim o tom da sua voz era triste, mas nenhuma lágrima foi derramada. Já tinha vertido todas as lágrimas e agora o irmão era rei e ela, Ceinwyn, tinha pela frente um novo futuro. Puxou as saias para cima para passar por cima de uma mancha de lama. Chovera durante a noite anterior e as nuvens que se acumulavam a ocidente prometiam mais chuva para breve. E Artur, virá até cá? perguntou ela.

 

Pode chegar a qualquer momento, Senhora.

 

E vem acompanhado de Lancelote? perguntou ela

 

Julgo que sim. Ela fez uma careta.

 

No nosso último encontro, Lorde Derfel, eu estava prometida em casamento a Gundleus. Agora é Lancelote. Um rei atrás do outro.

 

Sim, Senhora disse eu. Era uma resposta inadequada, estúpida até, mas eu tinha sido assaltado por um intenso e estranho nervosismo que ata a língua dos amantes. Tudo o que sempre desejara era estar com Ceinwyn, mas sempre que me encontrava a seu lado não era capaz de dizer o que me ia na alma.

 

Estou então destinada a ser Rainha da Silúria disse Ceinwyn sem demonstrar qualquer vislumbre de satisfação perante a perspectiva. Parou e indicou com um gesto o amplo vale do Severn, atrás de nós. Logo depois de passarmos Dolforwyn disse-me, há um pequeno vale escondido com uma casa e algumas macieiras. Quando era uma rapariguita costumava pensar que o Outro Mundo se parecia com esse vale; um lugar pequeno e seguro onde eu poderia viver, ser feliz e ter filhos riu para si própria e recomeçou a andar. Em toda a Bretanha há raparigas que sonham casar-se com Lancelote e em serem rainhas de um palácio, e tudo o que eu quero é um pequeno vale com as suas macieiras.

 

Senhora disse eu, enchendo-me de coragem para dizer aquilo que realmente queria dizer, mas ela adivinhou de imediato o que me ia no espírito e tocou o meu braço para me impor silêncio.

 

Tenho de cumprir o meu dever, Lorde Derfel disse ela, advertindo-me para ter tento na língua.

 

Estou ligado a vós por um juramento de fidelidade deixei escapar abruptamente. Era o mais próximo que eu conseguia chegar de uma confissão de amor naquele momento.

 

Eu sei disse ela em tom grave, e é meu amigo, não é? Queria ser mais do que um amigo, mas assenti.

 

Sou vosso amigo, Senhora.

 

Então digo-vos tornou ela o que disse ao meu irmão. Fitou-me com os seus olhos azuis muito sérios. Não sei se quero casar-me com Lancelote, mas prometi a Cuneglas que o conheceria antes de tomar a minha decisão. Tenho de o fazer, mas se vou ou não casar-me com ele, não sei.

 

Deu alguns" passos em silêncio e eu senti que ela ponderava se devia ou não dizer-me alguma coisa. Finalmente decidiu-se a confiar em mim.

 

Desde a última vez que estive convosco continuou visitei a sacerdotisa em Maesmwyr, que me levou para a caverna dos sonhos e me fez dormir no leito de caveiras. Queria descobrir o meu destino, mas não me recordo de ter sonhado fosse o que fosse. No entanto, quando acordei a sacerdotisa disse que o próximo homem que quisesse casar comigo casaria com os mortos e não comigo fitou-me. Achais que isto faz algum sentido?

 

Nenhum, Senhora disse eu e toquei o ferro que forrava o punho da Hywelbane. Estaria ela a avisar-me? Nunca tínhamos falado de amor, mas ela deve ter pressentido a intensidade do meu desejo.

 

Para mim também não faz qualquer sentido confessou, por isso perguntei a lorweth qual era o significado da profecia e ele disse-me que eu devia parar de me preocupar. Disse que a sacerdotisa fala por enigmas, porque é incapaz de se expressar de forma coerente. Penso que a profecia significa que não devo casar-me de todo, mas não sei. Sei apenas uma coisa, Lorde Derfel. Não me casarei de forma leviana.

 

Sabeis duas coisas, Senhora disse eu.

Sabeis que o meu juramento continua de pé.

 

Sei isso também concordou ela e depois sorriu de novo para mim. A vossa presença aqui deixa-me feliz, Lorde Derfel. E com estas palavras correu e voltou a trepar para a carroça, deixando-me a braços com a resolução daquele enigma, sem encontrar qualquer resposta que desse paz à minha alma.

 

Artur chegou a Caer Sws três dias mais tarde, acompanhado de vinte cavaleiros e de uma centena de lanceiros. Com ele vinham também bardos e harpistas. Trouxe Merlim, Nimue e oferendas em ouro tiradas aos mortos do Vale do Lugg e ainda Guinevere e Lancelote.

 

Soltei um lamento de desaprovação quando vi Guinevere. Tínhamos conseguido uma vitória e feito a paz, mas mesmo assim achei cruel da parte de Artur fazer-se acompanhar da mulher por amor de quem tinha repelido Ceinwyn. Guinevere, porém, insistira em acompanhar o marido e foi assim que chegou a Caer Sws numa carroça puxada por bois guarnecida de peles, decorada com panos de linho tingidos e adornada com ramos de verdura em sinal de paz. A rainha Elaine, mãe de Lancelote, viajava na carroça com Guinevere, mas era esta e não a rainha quem atraía as atenções. Levantou-se no momento em que a carroça transpunha lentamente os portões de Caer Sws e manteve-se de pé à medida que os bois a conduziam até à entrada do grande castelo de Cuneglas, onde outrora fora uma exilada indesejada e onde agora chegava como uma conquistadora. Vestia um vestido de linho tingido de dourado, trazia ouro ao pescoço e nos pulsos, enquanto a sua farta cabeleira ruiva estava presa por um aro de ouro. Estava grávida, mas a gravidez ainda não era visível sob o precioso linho dourado. Parecia uma deusa.

 

Todavia, se Guinevere parecia uma deusa, Lancelote entrou em Caer Sws como um deus. Muita gente pensou que se tratava de Artur, pois o seu aspecto era magnífico, montado num cavalo branco ornamentado com um pano de linho de cor pálida guarnecido de pequenas estrelas douradas. Usava a sua armadura de lâminas metálicas dispostas em forma de escamas e esmaltada de branco, a espada enfiada numa bainha igualmente branca e uma longa capa branca, forrada a vermelho, que lhe caía sobre os ombros. O belo rosto moreno estava emoldurado pelo rebordo dourado do elmo, agora encimado por um par de asas de cisne abertas, em vez das asas de águia-marinha que usara em Ynys Trebes. As pessoas sustinham a respiração ao vê-lo passar e eu pude ouvir um murmúrio que rapidamente percorreu a multidão informando que aquele não era Artur, afinal, mas sim o rei Lancelote, o herói trágico do reino perdido de Benoic e o homem que iria desposar Ceinwyn, a sua princesa. Senti um aperto no coração quando o vi, pois receei que a sua magnificência deslumbrasse Ceinwyn. A multidão quase nem reparou em Artur, que usava um justilho de couro e uma capa branca e parecia embaraçado por estar em Caer Sws.

 

Naquela noite houve um banquete. Duvido que Cuneglas se sentisse muito inclinado a acolher amigavelmente Guinevere, mas ele era um homem paciente e sensato que, ao contrário de seu pai, não encarava como ofensa todas as hipotéticas manifestações de descortesia. Por isso tratou Guinevere como uma rainha. Serviu-lhe vinho, comida e inclinou a cabeça para conversar com ela. Artur estava sentado do outro lado de Guinevere, irradiando satisfação. Era sempre a imagem da felicidade quando estava com a sua Guinevere e deve ter sentido um prazer genuíno ao vê-la ser tratada com tanta cerimónia, precisamente no mesmo palácio onde a entrevira pela primeira vez, no meio dos simples, perdida no fundo da multidão.

 

Artur concentrava quase todas as suas atenções em Ceinwyn. Todos os que estavam presentes no salão sabiam que ele a desprezara em tempos, desfazendo o noivado entre ambos para casar com a arruinada Guinevere. Muitos dos homens de Powys haviam jurado que jamais perdoariam Artur por essa humilhação, embora Ceinwyn o tivesse feito e o demonstrasse agora de modo bastante óbvio. Sorria para ele, descansava uma mão no braço dele e inclinava-se até ficar bem perto dele. Mais tarde, no decorrer dos festejos, quando o hidromel já havia diluído todas as antigas hostilidades, o rei Cuneglas tomou a mão de Artur, depois a de sua irmã e uniu as duas entre as suas debaixo dos aplausos de todos os convivas, que ao testemunhar aquele gesto de paz dava largas à sua alegria. Um insulto antigo era assim anulado.

 

Instantes depois, em mais um gesto simbólico, Artur tomou a mão de Ceinwyn e conduziu-a até um assento que fora deixado vago ao lado de Lancelote. Nova aclamação. Vi, com o rosto impassível, quando Lancelote se levantou para receber Ceinwyn e depois se sentou ao lado dela e lhe serviu um pouco de vinho. Tirou uma pesada pulseira de ouro do seu pulso e ofereceu-lha e embora Ceinwyn tivesse feito menção de recusar a generosa oferta acabou por enfiá-la no braço, onde o ouro cintilou à luz das velas. Os guerreiros espalhados pelo pavimento do salão pediram para ver a pulseira e ergueu timidamente o braço para exibir o pesado aro de ouro. Fui o único que não aplaudiu. Deixei-me ficar sentado à medida que o som dos aplausos estrondeava à minha volta e a chuva intensa fustigava a cobertura do telhado. "Ficara deslumbrada", pensei, "ficara deslumbrada". A estrela de Powys sucumbira ante a beleza morena e elegante de Lancelote.

 

Teria abandonado o palácio naquele preciso momento carregando comigo a minha infelicidade para a noite varrida pela chuva, se Merlim não tivesse pisado o chão do salão. No início do banquete sentara-se na mesa principal, mas abandonara-a para se passear entre os guerreiros, detendo-se aqui e ali para escutar uma conversa ou sussurrar qualquer coisa ao ouvido de alguém. O seu cabelo branco estava puxado para trás e apanhado numa trança comprida que ele prendera com uma fita negra, enquanto a longa barba estava entrançada e presa de forma semelhante. O seu rosto, escuro como as castanhas romanas tão apreciadas em Dumnónia, era comprido, sulcado de rugas profundas e perpassado por uma expressão divertida. "Está a preparar alguma travessura", pensei eu, e encolhi-me no meu lugar para que ele não me escolhesse como alvo das suas judiarias. Gostava de Merlim como de um pai, mas não estava com disposição para mais enigmas. Queria apenas manter-me tão longe de Ceinwyn e de Lancelote quanto os deuses me permitissem.

 

Esperei até julgar que Merlim se encontrava no extremo mais afastado do salão e que poderia sair sem receio que ele me visse, mas justamente nesse instante a sua voz soou no meu ouvido.

 

Estavas a esconder-te de mim, Derfel? perguntou, soltando em seguida um elaborado suspiro ao instalar-se no chão ao meu lado. Gostava de fingir que a sua idade avançada o fragilizara e, numa atitude teatral, massajou os joelhos gemendo ao sentir dores nas articulações. Tirou depois o corno do hidromel que eu segurava na minha mão e esvaziou-o.

 

Observa a princesa virgem disse, indicando Ceinwyn com o corno vazio, caminhando para o seu terrível destino. Vejamos coçou os intervalos das tranças da barba enquanto reflectia sobre as suas próximas palavras. Meio mês até ao noivado? Casamento uma semana depois e em seguida uma série de meses até que a criança a mate. Não há qualquer hipótese de que um bebé consiga passar através daquelas ancas estreitas sem a partir ao meio e riu. Seria o mesmo que uma gata dar à luz um boi. Muito desagradável, Derfel olhou-me com atenção, retirando prazer do meu desconforto.

 

Julguei respondi, em tom azedo, que tínheis feito um amuleto da felicidade para Ceinwyn.

 

E fiz disse ele suavemente. E daí? As mulheres gostam de ter bebés, e se a felicidade de Ceinwyn consiste em ser rasgada em duas metades ensanguentadas para dar à luz o seu primogénito, então o meu amuleto terá funcionado, não é verdade? sorriu para mim.

 

"Ela nunca subirá alto disse eu, citando a profecia de Merlim, a mesma que ele proferira naquele mesmo palácio havia menos de um mês, nunca descerá baixo, mas será feliz."

 

Que memória prodigiosa para trivialidades, a tua! O carneiro está péssimo, não achas? Mal cozido, percebes? E nem sequer está quente! Não suporto comida fria o que não o impediu de roubar uma porção do meu prato. Achas que ser rainha da Silúria é subir alto?

 

E não é? perguntei, irritado.

 

Oh, pelos Deuses, não. Que ideia absurda! A Silúria é o lugar mais deplorável à superfície da Terra, Derfel. Vales pejados de bichos, praias rochosas e pessoas feias, nada mais, estremeceu. Queimam carvão em vez de madeira e em resultado disso, a maioria dos habitantes é preta como Sagramor. Desconfio que nem sequer sabem o que é lavar-se arrancou um pedaço de cartilagem com os dentes e atirou-o a um dos cães que deambulavam entre os convivas. Lancelote depressa se cansará da Silúria! Não estou a ver o nosso galante Lancelote capaz de suportar aqueles preguiçosos feios e enegrecidos pelo carvão durante muito tempo. Assim sendo, se sobreviver ao parto, o que eu duvido, a pobre Ceinwyn será abandonada tendo apenas um monte de carvão e um bebé chorão por companhia. Isso será o fim dela! A perspectiva parecia agradar-lhe. Já reparaste, Derfel, em como encontramos uma jovem no auge da sua beleza, com um rosto capaz de fazer desaparecer as próprias estrelas dos céus, e um ano mais tarde surpreendemo-la tresandando a leite e a excremento de bebé e perguntamos a nós próprios como pudemos tê-la considerado bela? Os bebés fazem isso às mulheres. Por isso olha para ela agora, Derfel, olha para ela agora, pois ela nunca mais voltará a ser tão encantadora.

 

Estava encantadora, e pior do que isso, parecia feliz. Usava um vestido branco nessa noite e em torno do pescoço trazia uma estrela prateada enfiada numa corrente de prata. Os cabelos doirados estavam presos por um laço prateado e eram igualmente de prata as gotas de chuva que pendiam das suas orelhas. E Lancelote estava tão atraente quanto Ceinwyn, nessa noite. Era considerado o homem mais belo da Bretanha e assim era, caso se gostasse do seu rosto moreno, comprido e magro, quase reptiliano. Estava vestido com um casaco preto às riscas brancas, usava um colar dourado de metal torcido e um aro em ouro prendia os seus longos cabelos negros e oleados, que acompanhavam os contornos do couro cabeludo antes de cair em cascata ao longo das suas costas. A barba, aparada para formar um bico, estava também oleada.

 

Ela disse-me disse eu a Merlim, consciente de que estava a expor em demasia os segredos do meu coração àquele velho perverso que não está segura quanto a um casamento com Lancelote.

 

Bom, é natural que diga isso, não é? respondeu Merlim despreocupadamente, fazendo sinal a um escravo que levava um prato com carne de porco destinado à mesa principal. Serviu-se de uma mão-cheia de costeletas, que colocou no regaço da sua imunda túnica branca, e começou a chupar cupidamente uma delas. Ceinwyn prosseguiu depois de já ter descamado a quase totalidade da costeleta é uma tola romântica. Não sei como nem porquê conseguiu convencer-se a si própria que podia casar com quem quisesse, ainda que só os Deuses saibam por que razão tal ideia cruzaria o espírito de qualquer rapariga! Agora disse com a boca cheia de carne de porco, é claro que tudo muda. Ela conheceu Lancelote! A esta altura estará deslumbrada por ele. Talvez nem espere até ao dia do casamento. Quem sabe? Talvez, esta mesma noite, na privacidade dos seus aposentos ela cubra o malandro. No entanto, é pouco provável que isso aconteça. É uma rapariga muito convencional. As três últimas palavras foram proferidas num tom depreciativo. Come uma costeleta ofereceu ele. Já é tempo de estares casado.

 

Não há ninguém com quem deseje casar-me disse eu, mal-humorado. À excepção de Ceinwyn, claro, mas que esperanças poderia eu alimentar perante um rival como Lancelote?

 

O casamento nada tem que ver com querer ou não querer disse Merlim, com desdém. Artur julgou que sim e vê como ele é um idiota em questões de mulheres! O que tu queres, Derfel, é uma rapariga bonita na tua cama, mas só os idiotas julgam que uma rapariga e uma esposa têm forçosamente de ser a mesma criatura. Artur é de opinião que deverias casar-te com Gwenhwyvach. O nome dela foi dito em tom despreocupado.

 

Gwenhwyvach! exclamei eu em tom demasiado elevado. Tratava-se da irmã mais nova de Guinevere, uma rapariga gorda, estúpida e deslavada que Guinevere considerava insuportável. Não tinha qualquer motivo para não gostar de Gwenhwyvach, mas tão-pouco conseguia imaginar-me casado com alguém tão porco, vulgar e infeliz como ela.

 

E porque não? perguntou Merlim fingindo-se ofendido. É um bom partido, Derfel. O que és tu, afinal, a não ser o filho de um escravo saxão? E Gwenhwyvach é uma princesa genuína. Não tem dinheiro, claro, e é mais feia do que a porca selvagem de Llyffan, mas pensa só em como ela te ficará grata! Olhou-me de soslaio. E pensa nas ancas de Gwenhwyvach, Derfel! Não há qualquer perigo de um bebé ficar preso entre elas. Ela cuspirá as pestezinhas como se fossem pevides gordurosas!

 

Perguntei a mim mesmo se Artur teria de facto sugerido aquele casamento ou se teria sido ideia de Guinevere? O mais certo é que tivesse sido uma lembrança desta última. Fitei-a, envolta em ouro, sentada ao lado de Cuneglas, e a expressão de triunfo do seu rosto era inegável. Estava invulgarmente bela nessa noite. Foi sempre a mulher mais atraente de toda a Bretanha, mas naquela noite chuvosa e festiva em Caer Sws parecia resplandecente. Talvez isso se devesse à gravidez, mas a explicação mais provável residia no profundo prazer que sentia perante o poder que agora detinha sobre as pessoas que outrora a tinham rejeitado tratando-a como uma exilada sem recursos. Hoje, graças à espada de Artur, podia dispor dessas pessoas da mesma forma que o marido dispunha dos seus reinos. Guinevere, e eu bem o sabia, era a principal defensora de Lancelote em Dumnónia, fora ela quem obrigara Artur a prometer o trono da Silúria a Lancelote, fora ela, por fim, quem decidira que Ceinwyn deveria ser a noiva de Lancelote. Agora, suspeitava eu, queria castigar-me pela hostilidade que eu demonstrava para com Lancelote impondo a sua inconveniente irmã como minha noiva.

 

Pareces infeliz, Derfel. Merlim provocou-me. Não cedi à sua provocação.

 

E vós, Senhor? perguntei eu. Estais feliz?

 

E isso preocupa-te? perguntou ele, alegremente.

 

Amo-vos, Senhor, como um pai disse eu.

 

Soltou um assobio ao ouvir as minhas palavras e quase se engasgou com uma lasca de carne de porco, mas ainda ria quando recobrou fôlego.

 

Como um pai! Oh, Derfel, que criatura absurdamente emotiva me saíste. A única razão que me levou a criar-te foi por pensar que os Deuses te consideravam especial, e talvez sejas. Os Deuses, por vezes, escolhem as criaturas mais estranhas para amar. Diz lá, então, filho putativo, o teu amor filial inclui o serviço?

 

Que serviço, Senhor? perguntei eu, embora soubesse muito bem o que ele queria. Queria lanceiros que partissem com ele em busca do Caldeirão.

 

Baixou a voz e aproximou-se ainda mais de mim, ainda que eu duvidasse que algum dos convivas presentes naquele salão ruidoso e embriagado pudesse ouvir a nossa conversa.

 

A Bretanha disse ele sofre de dois males, mas Artur e Cuneglas apenas reconhecem um deles.

 

Os Saxões. Ele assentiu.

 

No entanto, a Bretanha sem Saxões continuará doente, Derfel, pois corremos o risco de perder os Deuses. O Cristianismo está a espalhar-se mais depressa do que os Saxões, e os cristãos constituem uma ofensa maior para os nossos deuses do que qualquer saxão. Se não contivermos os cristãos, os Deuses abandonar-nos-ão por completo, e o que é a Bretanha sem os seus Deuses? Todavia, se protegermos os deuses e restaurarmos a sua legitimidade na Bretanha, tanto os Saxões como os cristãos desaparecerão. Estamos a atacar a doença errada, Derfel.

 

Olhei para Artur que escutava atentamente algo que Cuneglas dizia. Artur não era um homem descrente, mas lidava com as suas crenças de forma pouco séria e na sua alma não havia lugar para ódio em relação aos homens e mulheres que acreditavam noutros deuses. Mas eu sabia que Artur detestaria ouvir Merlim falar da luta contra os cristãos.

 

E ninguém vos dá ouvidos, Senhor? perguntei a Merlim.

 

Alguns sim respondeu, ressentido. Poucos, um ou dois. Artur, não. Pensa que sou um velho idiota à beira da senilidade. E tu, Derfel? Também achas que sou um velho tolo?

 

Não, Senhor.

 

E acreditas na magia, Derfel?

 

Sim, Senhor disse eu. Tinha visto a magia funcionar, mas também a vira falhar. Era algo difícil, a magia, mas eu acreditava nela.

 

Merlim inclinou-se ainda mais, aproximando-se do meu ouvido.

 

Então vai ao cume do Dolforwyn esta noite, Derfel sussurrou, e eu conceder-te-ei o desejo da tua alma.

 

Um tocador de harpa fez soar a corda que convocava os bardos para a sessão de cânticos. As vozes dos guerreiros esmoreceram quando uma rajada de vento gélido empurrou alguns pingos de chuva para dentro do salão através da porta aberta e fez estremecer as pequenas chamas das velas de sebo e das velas de pavio ensopadas em gordura.

 

O desejo da tua alma tornou a sussurrar Merlim. Todavia, quando olhei para a minha esquerda ele tinha desaparecido sem que eu soubesse como.

 

E na noite a trovoada rugia. Os deuses estavam ausentes no estrangeiro e eu tinha sido chamado ao Dolforwyn.

 

Abandonei o banquete antes da troca de oferendas, antes que os bardos tivessem começado a cantar e que as vozes dos guerreiros bêbedos se elevassem entoando os sons da obsessiva Canção de Nwyfre. Ouvia a canção muito para trás de mim enquanto descia, sozinho, o vale do rio, onde Ceinwyn me falara da sua visita ao leito de caveiras e da estranha profecia que não fazia sentido.

 

Usava a minha armadura, mas não levava escudo. Hywelbane, a minha espada, estava comigo e sobre os ombros tinha a minha capa verde. Nenhum homem penetrava na noite de ânimo leve, pois a noite pertencia aos vampiros e aos espíritos, mas eu tinha sido convocado por Merlim e por isso sabia que estava em segurança.

 

O meu caminho acabou por revelar-se fácil, já que havia uma estrada que seguia para leste das muralhas, na direcção da vertente sul das colinas onde se situava Dolforwyn. Era uma caminhada longa, quatro horas na escuridão húmida e a estrada era negra como breu. Os Deuses, porém, deviam estar interessados em que eu chegasse ao meu destino, pois nem me perdi nem tropecei em quaisquer perigos nocturnos.

 

Sabia que Merlim não podia levar-me muito avanço e embora eu fosse duas vidas mais jovem do que ele, não só não o alcancei como também não o ouvi. Aos ouvidos chegava-me apenas o som esbatido das canções e, mais tarde, quando as notas das melodias se diluíram na noite escutei o rumorejar do rio que corria sobre as pedras, o bater da chuva nas folhas, o grito de uma lebre apanhada por uma doninha e o grito estridente de um texugo chamando pela companheira. Passei por dois acampamentos, onde o brilho ténue das fogueiras espreitava através das aberturas baixas por baixo dos tectos de fetos. De dentro de uma das cabanas soou uma voz masculina chamando em tom de desafio, mas eu respondi-lhe que viajava em paz e ele calou o cão que desatara a ladrar.

 

Deixei a estrada para ir dar a um carreiro estreito que subia, serpenteante, a encosta de Dolforwyn. Tive medo que a escuridão me afastasse do caminho que seguia sob as copas dos carvalhos frondosos que povoavam a encosta, mas as nuvens de chuva tornaram-se menos compactas para deixar penetrar um luar pálido através da densa folhagem tornando visível o trilho empedrado que subia pela colina real, na direcção do Sol. Ninguém ali vivia. Era um sítio para os carvalhos, as pedras e o mistério.

 

O trilho ligava o arvoredo ao vasto espaço aberto do cume onde se erguia, solitária, a sala das celebrações e onde o círculo de pedras erectas marcava o local onde Cuneglas fora aclamado. Este cume era o local mais sagrado de Powys. Todavia, durante a maior parte do ano permanecia deserto, sendo usado apenas para celebrações importantes e em épocas de grande solenidade. Agora, à luz pálida do luar, a sala estava envolta na escuridão e o topo da colina estava, aparentemente, vazio.

 

Detive-me junto à orla de carvalhos. Uma coruja branca voou sobre a minha cabeça, o seu corpo atarracado roçando apressadamente a crista do meu elmo, adornado com uma cauda de lobo. A coruja era um presságio, mas eu não conseguia saber se esse presságio era bom ou mau e, de súbito, senti-me assustado. A curiosidade atraíra-me até este lugar, mas agora eu pressentia o perigo. Merlim não me ofereceria os desejos da minha alma a troco de nada, o que significava que eu estava aqui para fazer uma escolha, uma escolha, suspeitava eu, que eu não iria querer fazer. De facto, o meu medo era tal que quase virei costas e me encaminhei para o arvoredo envolto na escuridão. Foi então que um latejar na cicatriz da minha mão esquerda me obrigou a permanecer no mesmo lugar.

 

A cicatriz fora ali colocada por Nimue e sempre que ela latejava eu sabia que o meu destino tinha escapado a qualquer possibilidade de escolha da minha parte. Estava ligado a Nimue por um juramento. Não podia retroceder.

 

A chuva parara e as nuvens pareciam agora em farrapos. Um vento frio varria as copas das árvores, mas não chovia. Ainda estava escuro. A madrugada já não devia tardar, mas não se vislumbrava ainda qualquer indício da luminosidade rosada por detrás das colinas a Leste. Havia apenas o luar bruxuleante que transformava as pedras do círculo real de Dolforwyn num conjunto de silhuetas prateadas incrustadas na escuridão.

 

Avancei na direcção do círculo de pedras e o bater do meu coração abafava o ruído provocado pelas minhas botas pesadas. No entanto, ninguém apareceu e, por instantes, perguntei a mim próprio se se trataria de uma das elaboradas brincadeiras de Merlim. Então, no centro do anel de pedras, onde repousava a única pedra da realeza de Powys, vi um clarão mais brilhante do que qualquer reflexo de luar num rochedo varrido pela chuva.

 

Aproximei-me com o coração a ribombar, depois penetrei no círculo de pedras e vi o reflexo da Lua numa taça. Uma taça de prata. Uma pequena taça de prata que, conforme pude ver quando me aproximei da pedra real, continha um líquido escuro, banhado pelo luar.

 

Bebe, Derfel disse a voz de Nimue, num sussurro que mal se sobrepunha ao som do vento entre os carvalhos. Bebe.

 

Virei-me, procurando-a, mas não consegui ver ninguém. O vento levantou a minha capa e fez saltar a cobertura de colmo do telhado da sala.

 

Bebe, Derfel repetiu a voz de Nimue, bebe.

 

Olhei para o céu e rezei a Lleullaw pedindo-lhe que velasse por mim. A minha mão esquerda, que latejava agora com as dores, apertava-se em torno da bainha da Hywelbane. Queria fazer aquilo que era mais seguro e isso, sabia-o, consistia em sair dali e regressar ao calor da amizade de Artur. Todavia, a infelicidade que invadia a minha alma trouxera-me até esta colina fria e agreste e a ideia da mão de Lancelote sobre o pulso delgado de Ceinwyn fez-me baixar os olhos e fitar a taça.

 

Ergui-a, hesitei, e depois esvaziei-a.

 

O líquido tinha um sabor amargo que me fez estremecer quando acabei de engolir a última gota. Voltei a colocar, com cuidado, a taça na pedra do rei e o sabor desagradável permanecia na minha boca e garganta.

 

Nimue? chamei em tom quase implorante, mas não tive resposta à excepção do vento soprando entre as árvores.

 

Nimue! tornei a chamar, pois agora sentia a cabeça a andar à roda. As nuvens agitavam-se em negros e cinzentos e a Lua estilhaçava-se em pontos de luz prateada que retalhavam o rio distante e se despedaçavam na escuridão das árvores sinuosas. Nimue! chamei, à medida que os meus joelhos cediam e a minha cabeça rodopiava em sonhos lúridos. Ajoelhei aos pés da pedra real que, de súbito, se agigantara e surgia diante dos meus olhos tão grande como uma montanha. Depois caí para a frente e o meu peso era tal que ao esticar o braço fiz voar a taça vazia. Sentia-me enjoado mas não conseguia vomitar, havia apenas sonhos, sonhos terríveis, pesadelos povoados de vampiros soltando gritos estridentes dentro da minha cabeça. Chorava, suava abundantemente e os meus músculos contraíam-se em espasmos incontroláveis.

 

Depois, umas mãos agarraram a minha cabeça. O meu elmo foi puxado para cima e uma fronte foi pressionada contra a minha. Era uma testa branca e fresca e os pesadelos esfumaram-se para serem substituídos pela visão de um longo corpo branco e desnudado, de coxas delgadas e seios pequenos.

 

Sonha, Derfel. Nimue tranquilizou-me, afagando-me os cabelos com as duas mãos, sonha, meu amor, sonha.

 

Eu chorava descontroladamente. Era um guerreiro, um Senhor de Dumnónia, amado por Artur e a sua dívida para comigo depois da última batalha era de tal modo grande que ele me agraciaria com terras e riquezas com que eu jamais sonhara. E, no entanto, naquele momento chorava como uma criança órfã. O desejo da minha alma era Ceinwyn, mas Ceinwyn estava a deixar-se fascinar por Lancelote e eu julgava que nunca mais poderia conhecer a felicidade.

 

Sonha, meu amor cantarolava Nimue, e deve ter estendido uma capa negra sobre as cabeças de ambos, pois subitamente a noite cinzenta desapareceu e eu fiquei imerso numa escuridão silenciosa com os braços dela a rodear-me o pescoço e o seu rosto colado ao meu. Ajoelhámos, as nossas faces sempre juntas, as minhas mãos estremecendo espasmódica e descontroladamente sobre a pele fresca das suas coxas desnudadas. Deixei que o peso do meu corpo contorcido encontrasse apoio nos ombros magros dela e, aí, entre os seus braços, as lágrimas cessaram, os espasmos serenaram e eu fiquei subitamente calmo. Nenhum acesso de vómito me apertava a garganta, as dores nas pernas tinham desaparecido e eu senti-me quente, tão quente que continuei a transpirar. Permaneci imóvel, não queria mexer-me, mas deixar apenas que o sonho acontecesse.

 

Começou por ser um sonho maravilhoso, pois era como se me tivessem dado as asas de uma grande águia e eu voava agora muito alto sobre um país que não conhecia. Então vi que se tratava de um país horrível, dilacerado por abismos profundos e altas montanhas feitas de rochedos escarpados, ao longo dos quais pequenos riachos escorriam em cascata e iam morrer em lagos negros e turfosos. As montanhas pareciam não ter fim, ou refúgio, pois à medida que sobrevoava os seus contornos nas asas do meu sonho não via cavalos, nem abrigos, nem campos, nem rebanhos ou manadas, nem almas, apenas um lobo correndo entre as rochas escarpadas e as ossadas de um veado abandonado numa mata. O céu por cima de mim era tão cinzento como uma espada, as montanhas por baixo tão escuras como sangue seco e o ar sob as minhas asas frio como um punhal enterrado nas costelas.

 

Sonha, meu amor murmurava Nimue, e no sonho as minhas largas asas ajudaram-me a descer o suficiente para distinguir uma estrada serpenteante entre as montanhas escuras. Era uma estrada de terra batida, cortada por rochas, fazendo a ligação entre vales ao longo do seu percurso cruel, subindo por vezes por passagens sinistras antes de tornar a descer até às pedras descarnadas do leito de mais um vale. A estrada passava à beira de lagos negros, atravessava abismos mergulhados num mar de sombras, contornava colinas cobertas de neve, mas seguia sempre para Norte. Porquê para norte, não sabia, mas este era um sonho em que o conhecimento não necessita de explicações.

 

As asas do sonho baixaram-me até à superfície da estrada e, de súbito, deixei de voar para passar a caminhar estrada acima na direcção de uma passagem estreita entre as colinas. As encostas, em ambos os lados da passagem eram lajes íngremes em ardósia negra por onde escorria água. Todavia, algo me dizia que a estrada acabava logo depois do desfiladeiro escuro e que se eu conseguisse forçar as minhas pernas cansadas a andar mais um pouco poderia atravessar o cume e encontrar o desejo da minha alma no extremo mais afastado.

 

Respirava agora com dificuldade, por arfadas angustiadas enquanto, no sonho, percorria o pouco que me restava para chegar ao fim do caminho quando, de súbito, chegado ao cimo, vi luz, cor e calor.

 

De facto, a estrada começava a descer continuando para além da passagem até uma zona costeira onde havia árvores e campos. Para lá da costa via-se o mar cintilante onde havia uma ilha e nesta, resplandecendo sob o Sol inesperado, um lago.

 

Aí está! exclamei eu em voz alta, pois sabia que a ilha era a minha meta. Todavia, no preciso momento em que parecia que me tinham concedido energias redobradas para percorrer os últimos metros de estrada e mergulhar naquele mar banhado pelo Sol, um vampiro atravessou-se no meu caminho. Era uma coisa negra metida dentro de uma armadura preta e da sua boca saíam limos negros. Na mão que terminava numas garras negras segurava uma espada com uma lâmina negra duas vezes mais comprida do que a Hywelbane. Gritou, lançando-me um desafio.

 

Gritei também e o meu corpo ficou rígido entre os braços de Nimue. Os braços dela apertaram-se em torno dos meus ombros.

 

Viste a Estrada Sombria, Derfel sussurrou ela, viste a Estrada Sombria.

 

De súbito afastou-se de mim, a capa foi arrancada das minhas costas e eu caí para a frente sobre a erva húmida do Dolforwyn enquanto o vento frio uivava à minha volta.

 

Fiquei ali deitado durante longos minutos. O sonho terminara e perguntei a mim mesmo o que é que a Estrada Sombria teria que ver com o desejo da minha alma. Em seguida fiz um movimento brusco e comecei a vomitar. Depois disso, as ideias voltaram a ficar claras na minha cabeça e eu vi a taça prateada caída a meu lado. Peguei nela, endireitei-me e vi que Merlim me observava do canto mais afastado da pedra real. Nimue, sua amante e sacerdotisa, estava a seu lado, o corpo magro envolto numa ampla túnica negra, o cabelo preto preso por uma fita e o olho dourado brilhava à luz da Lua. O olho daquela órbita tinha sido alvo da cobiça de Gundleus, e por isso ele fora obrigado a pagar um preço mil vezes superior.

 

Nenhum deles falou, apenas me observavam enquanto eu cuspia o último vómito, limpava os lábios, abanava a cabeça e tentava pôr-me de pé. O meu corpo ainda estava fraco, ou então era a cabeça que continuava a andar à roda, pois não conseguia levantar-me. Em vez disso, ajoelhei-me ao lado da pedra e apoiei-me nos cotovelos. Breves espasmos ainda me provocavam convulsões de tempos a tempos.

 

O que me obrigastes a beber? perguntei, tornando a colocar a taça prateada sobre a pedra.

 

Não te obriguei a beber nada respondeu Merlim. Bebeste por tua livre e espontânea vontade, Derfel, do mesmo modo que vieste até aqui por tua livre e espontânea vontade. A sua voz, tão maliciosa no castelo de Cuneglas, soava agora fria e distante. Que viste tu?

 

A Estrada Sombria respondi, obediente.

 

Ali está ela disse Merlim apontando para Norte, na noite escura.

 

E o vampiro? perguntei.

 

É Diwrnach respondeu ele.

 

Fechei os olhos, pois agora sabia o que ele queria.

 

E a ilha disse, abrindo de novo os olhos, é Ynys Mon?

 

Sim disse Merlim. A Ilha Abençoada.

 

Antes da chegada dos Romanos e antes mesmo que alguém sonhasse com a existência dos Saxões, a Bretanha era governada pelos deuses, que comunicavam connosco de Ynys Mon. A ilha, porém, fora saqueada pelos Romanos que tinham abatido os carvalhos, destruído os seus bosques sagrados e massacrado os seus guardiões, os druidas. O Ano Negro ocorrera mais de quatrocentos anos antes desta noite, mas Ynys Mon era ainda território sagrado para os poucos druidas que, tal como Merlim, tentavam fazer com que os Deuses regressassem à Bretanha. Agora, porém, a ilha abençoada fazia parte do reino de Lleyn, e Lleyn era governada por Diwrnach, o mais terrível de todos os reis irlandeses, que atravessara o mar da Irlanda para invadir e dominar a Bretanha. Dizia-se que Diwrnach pintava os seus escudos com sangue humano. Não havia em toda a Bretanha rei mais cruel ou mais temido e apenas as montanhas que o cercavam e a pequenez do seu exército o impediam de espalhar o seu reino de terror para sul através de Gwynned. Diwrnach era uma besta que não podia ser morta; uma criatura que permanecia à espreita nos recantos obscuros da Bretanha e, mediante um acordo comum, ninguém o provocava.

 

Quereis disse eu a Merlim que eu vá até Ynys Mon?

 

Quero que venhas connosco até Ynys Mon disse ele, indicando Nimue. Connosco e com uma virgem.

 

Uma Virgem? perguntei.

 

Porque só uma virgem, Derfel, pode encontrar o Caldeirão de Clyddno Eiddyn. E nenhum de nós, julgo eu, corresponde a este requisito acrescentou estas últimas palavras sarcasticamente.

 

E o Caldeirão disse eu, lentamente está em Ynys Mon. Merlim assentiu com um movimento de cabeça e eu estremeci ao pensar

 

em tal empresa. O Caldeirão de Clyddno Eiddyn era um dos treze Tesouros Mágicos da Bretanha que tinha sido disperso quando os Romanos arrasaram Ynys Mon, e a última ambição da longa vida de Merlim era conseguir reunir os Tesouros, embora o Caldeirão fosse o seu verdadeiro prémio. Com o Caldeirão, alegava ele, poderia controlar os deuses e destruir os Cristãos, razão pela qual, com um gosto amargo na boca e o estômago atacado pela acidez, eu me encontrava ajoelhado no cimo de uma colina húmida em Powys.

 

A minha missão disse eu a Merlim é lutar contra os Saxões.

 

Louco! Merlim disse com brusquidão. A guerra contra os Sais está perdida, a não ser que recuperemos os Tesouros.

 

Artur não é dessa opinião.

 

Então Artur é tão louco como tu. Que importância têm os Saxões, estúpido, quando os nossos Deuses nos abandonaram?

 

Jurei prestar serviço a Artur protestei.

 

Agora estás ligado ao meu chamamento também disse Nimue, erguendo a mão esquerda para exibir uma cicatriz igual à minha.

 

Mas não quero um homem na Estrada Sombria disse Merlim, que não venha por sua livre e espontânea vontade. Tens de escolher a quem dedicar a tua lealdade, Derfel, e eu posso ajudar-te a escolher.

 

Afastou a taça que estava em cima da pedra e em seu lugar colocou uma pilha com os ossos das costeletas que comera no festim de Cuneglas. Ajoelhou-se, pegou num osso e colocou-o no centro da pedra real.

 

Isto é Artur disse, e isto tirou outro osso, é Cuneglas, e deste colocou um terceiro osso de modo que este formasse um triângulo juntamente com os dois primeiros, falaremos mais tarde. Este depôs um quarto osso atravessado sobre um dos ângulos do triângulo é Tewdric de Gwent, e isto é a aliança entre Artur e Tewdric e isto a sua aliança com Cuneglas.

 

O segundo triângulo erguia-se então sobre o primeiro e ambos se assemelhavam agora a uma estrela de seis pontas imperfeita.

 

Aqui está Elmet começou a formar a terceira camada que era paralela à primeira, e aqui a Silúria, e este osso ergueu o último representa a aliança entre todos estes reinos. Pronto.

 

Inclinou-se para trás e fez um gesto na direcção da precária torre de ossos que se erguia no centro da pedra.

 

Aqui tens, Derfel, o cuidadoso plano de Artur, embora te diga, te assevere, que sem os Tesouros o plano falhará.

 

Calou-se. Fitei os nove ossos. Todos eles, à excepção do misterioso terceiro osso, ainda tinham lascas de carne, tendões e cartilagem. Apenas aquele terceiro osso fora completamente chupado. Toquei-o muito ao de leve com o dedo, tomando precauções para não perturbar o frágil equilíbrio da atarracada torre.

 

E o terceiro osso, o que é? perguntei. Merlim sorriu.

 

O terceiro osso, Derfel disse ele é o casamento entre Lancelote e Ceinwyn. Deteve-se. Tira-o.

 

Não me mexi. Tirar o terceiro osso significaria fazer desmoronar a frágil rede de alianças de Artur, a sua melhor, a sua única, para ser mais exacto, esperança de derrotar os Saxões.

 

Merlim riu da minha relutância, em seguida apoderou-se do terceiro osso mas não o soltou.

 

Os Deuses detestam a ordem disse com rispidez. A ordem, Derfel, é o que destrói os Deuses, por isso eles têm de destruir a ordem. Puxou o osso para fora e de imediato a pilha de ossos se desmoronou. Artur tem de reintegrar os Deuses, Derfel disse Merlim, se quiser estender a paz a toda a Bretanha. Estendeu-me o osso. Leva-o.

 

Não me mexi.

 

É apenas uma pilha de ossos disse Merlim, mas este osso, Derfel, é o desejo da tua alma. Mantinha o osso limpo estendido na minha direcção. Este osso representa o casamento de Lancelote com Ceinwyn. Parte este osso em dois, Derfel, e o casamento nunca se realizará. Mas deixa este osso intacto, Derfel, e o teu inimigo levará a tua mulher para a sua cama e tratá-la-á como um cão. Tornou a empurrar o osso na minha direcção e, mais uma vez, não lhe toquei. Julgas que o teu amor por Ceinwyn não está estampado no teu rosto? perguntou Merlim com ironia. Leva-o! Porque eu, Merlim de Avalon, concedo-te a ti, Derfel, o poder deste osso.

 

Peguei nele, que os deuses me perdoem, mas peguei nele. Que outra coisa poderia ter feito? Estava apaixonado e peguei naquele osso limpo e coloquei-o na minha bolsa.

 

Não te servirá de nada. Merlim troçou de mim a não ser que o quebres.

 

Poderá não me servir de nada, seja de que forma for disse eu, descobrindo por fim que conseguia manter-me de pé.

 

És um tolo, Derfel disse Merlim. Mas és um tolo que maneja bem a espada e é por isso que preciso de ti, se decidirmos percorrer a Estrada Sombria, ergueu-se. A escolha é tua, agora. Podes partir o osso e Ceinwyn virá ter contigo, prometo-to. Nesse momento, porém, ficarás ajuramentado à demanda do Caldeirão. Ou, então, podes casar com Gwenhwyvach e desperdiçar a tua vida demolindo escudos saxões enquanto os cristãos inventam estratagemas para dominar Dumnónia. Deixo esta escolha ao teu cuidado, Derfel. Agora fecha os olhos.

 

Fechei os olhos e, obedientemente, mantive-os fechados durante muito tempo. Por fim, quando todas as instruções tinham sido dadas, abri-os.

 

O cimo da colina estava vazio. Nada ouvira, mas Merlim, Nimue, os oito ossos e a taça prateada tinham desaparecido. A aurora rompia a oriente, os pássaros chilreavam nas árvores e eu tinha um osso descarnado dentro da minha bolsa.

 

Desci a encosta da colina até chegar à estrada que seguia ao longo do rio. Na minha cabeça porém via outra estrada, a Estrada Sombria que conduzia ao covil de Diwrnach, e senti-me assustado.

 

Passámos a manhã a caçar javalis e quando saíamos de Caer Sws, Artur procurou deliberadamente a minha companhia.

 

Saíste cedo ontem à noite, Derfel cumprimentou ele. O meu estômago, Senhor disse eu. Não queria contarlhe a verdade, dizer-lhe que estivera com Merlim, pois isso levá-lo-ia a desconfiar de que eu ainda não abandonara a ideia da demanda do Caldeirão. Era preferível mentir.

 

Tive uma indisposição de estômago expliquei. Ele riu

 

Nunca percebo por que razão lhes chamamos banquetes disse ele, pois mais não são do que uma desculpa para beber.

 

Parou para esperar por Guinevere, que gostava de caçar e nessa manhã tinha calçado umas botas e vestido um par de calças axadrezadas em pele bem cingidas às suas longas pernas. Escondia a gravidez sob um colete de couro sobre o qual usava uma capa verde. Trouxera consigo uma parelha dos seus adorados galgos escoceses e passou-me as trelas dos mesmos, para que Artur pudesse carregá-la sobre o vau que corria ao lado da velha fortaleza.

 

Lancelote ofereceu a mesma cortesia a Ceinwyn, que soltou um grito de inegável prazer quando Lancelote a tomou nos braços. Ceinwyn também estava vestida com roupas de homem, mas as suas não eram tão justas nem tão finas como as de Guinevere. Ceinwyn tomara provavelmente de empréstimo toda a roupa de caça que o irmão já não queria, e as peças de vestuário largas e demasiado compridas faziam com que se parecesse com um rapazinho, emprestando-lhe um ar juvenil em comparação com a elegância sofisticada de Guinevere. Nenhuma das mulheres tinha lança, mas Boars, primo de Lancelote e seu paladino, carregava uma arma a mais caso Ceinwyn quisesse participar numa matança. Artur insistira para que Guinevere, que estava grávida, não levasse nenhuma arma.

 

Tens de ter cuidado hoje disse ele, quando a pousou no chão, na margem sul do Severn.

 

Preocupas-te demais disse ela, após o que pegou nas trelas dos galgos, que eu segurava, passou uma das mãos pelos espessos e longos cabelos ruivos e virou-se para Ceinwyn. Basta que engravides disse para que os homens logo pensem que és feita de vidro.

 

Acertou o seu passo com o de Lancelote, Ceinwyn e Cuneglas, deixando que Artur seguisse a meu lado na direcção do vale coberto de folhas onde, segundo os batedores de Cuneglas, havia caça em abundância. Devíamos ser cinquenta caçadores ao todo, na sua maioria guerreiros, embora um grupo de mulheres tivesse decidido acompanhar-nos e cerca de quarenta criados fechassem o cortejo. Um deles fazia soar um corno a fim de avisar os batedores de caça que se encontravam no extremo mais afastado do vale que era chegada a hora de empurrar a caça para baixo, na direcção do rio, enquanto nós erguíamos as nossas longas e pesadas lanças de javali à medida que nós nos íamos posicionando em linha. Era um frio dia de final de Verão, suficientemente frio para que a nossa respiração formasse nuvens de vapor. No entanto, a chuva parara e o Sol brilhava sobre os campos em pousio adornados pela neblina matinal. Artur estava de muito bom humor, deleitando-se com a beleza daquele dia, com a sua juventude e com a perspectiva de uma caçada.

 

Mais um festim disse-me, e depois podes ir para casa e descansar.

 

Mais um festim? perguntei, desencorajado, o espírito toldado pelo cansaço e pelos últimos resquícios do líquido que Merlim e Nimue me tinham dado para beber, fosse ele o que fosse, no cimo de Dolforwyn.

 

Artur deu-me uma palmada no ombro.

 

O noivado de Lancelote, Derfel. Em seguida regressamos a Dumnónia. E atiramo-nos ao trabalho! Parecia encantado com a perspectiva e cheio de entusiasmo falou-me sobre os seus planos para o Inverno que se aproximava. Queria reconstruir quatro pontes romanas que haviam sido destruídas, depois os pedreiros do reino seriam enviados para acabar o palácio real em Lindinis. Lindinis era a cidade romana próxima de Caer Cadarn, o local onde eram realizadas as aclamações reais, e Artur queria fazer dela a nova capital.

 

Há demasiados cristãos em Durnovária disse, embora se apressasse a acrescentar, como era próprio dele, que pessoalmente nada tinha contra os Cristãos.

 

Acontece, Senhor disse eu secamente, que eles têm algo contra vós.

 

Alguns sim admitiu ele. Antes da batalha, quando a causa de Artur parecia irremediavelmente perdida, uma das facções que se opunham a Artur era liderada por cristãos, os mesmos que detinham a guarda de Mordred. A causa próxima da sua hostilidade fora um empréstimo que Artur arrancara à força à Igreja, destinado a financiar a campanha que terminara no Vale do Lugg, empréstimo esse que fizera nascer uma amarga inimizade. "Estranho", pensei eu, "como a Igreja pregava as virtudes da pobreza, mas nunca perdoava um homem pelo dinheiro que lhe pedia emprestado."

 

Queria falar contigo sobre Mordred disse Artur, explicando o que o levara a procurar a minha companhia naquela bela manhã. Dentro de dez anos continuou terá idade suficiente para assumir o trono. Já não falta muito para isso, Derfel, não falta mesmo muito, e é necessário educá-lo bem durante esses dez anos. Tem de aprender a ler e a escrever, a manejar a espada e tem de aprender a ser responsável. Acenei com a cabeça em sinal de concordância, embora sem qualquer entusiasmo. Mordred, que tinha cinco anos de idade, iria certamente aprender tudo o que Artur desejava que ele aprendesse, mas eu não percebia o que é que isso tinha que ver comigo. Artur pensava de forma diferente.

 

Quero que sejas seu protector disse ele, apanhando-me de surpresa.

 

Eu! exclamei.

 

Nabur está mais preocupado com a sua própria prosperidade do que com o carácter de Mordred disse Artur. Nabur era o magistrado cristão, actual protector de Mordred, e fora ele quem conspirara com mais vigor para destruir o poder de Artur; Nabur e, é claro, o bispo Sansum. E Nabur não é de modo nenhum um soldado prosseguiu Artur. Rezo para que Mordred reine em paz, Derfel, mas ele precisa de aprender as artes da guerra, todos os reis precisam, e não me ocorre ninguém melhor do que tu para treiná-lo.

 

Eu não! protestei. Sou demasiado jovem! Artur riu perante esta objecção.

 

Os jovens devem ser educados pelos jovens, Derfel disse ele.

 

Uma trombeta distante soou anunciando que no fundo do vale se iniciara a caçada. Nós, os caçadores, enterrámo-nos no arvoredo passando por cima do emaranhado de roseiras bravas e troncos mortos carregados de fungos. Avançávamos devagar, agora, à espera de ouvir o som aterrorizador de um javali fazendo estalar os arbustos.

 

Além disso continuei, o meu lugar é no seio do vosso escudo defensivo, não nos aposentos de Mordred.

 

Continuarás a fazer parte do meu escudo defensivo. Julgas que me daria ao luxo de te perder, Derfel? disse Artur com um sorriso. Não te quero amarrado a Mordred, quero apenas que ele vá para tua casa. Preciso que ele seja educado por um homem honesto.

 

Ignorei o elogio e depois pensei, assaltado pela culpa, no osso limpo e intacto que guardava dentro da minha bolsa. "Seria honesto", cismei, "servir-me da magia para fazer com que Ceinwyn mudasse de ideias?" Fitei-a, e ela olhou na minha direcção sorrindo timidamente.

 

Não tenho casa disse eu a Artur.

 

Mas em breve terás uma disse ele. Depois ergueu uma mão e eu gelei, escutando os sons que se faziam sentir à nossa frente. Uma coisa pesada pisava o chão entre as árvores e ambos nos agachámos, instintivamente, as nossas lanças quase roçando o solo. Foi então que vimos que a besta assustada era um belo veado com um bom par de chifres e quando o animal se afastou tornámos a descontrair.

 

Caçá-lo-emos amanhã, talvez disse Artur, ao ver o veado a afastar-se. Deixa os teus galgos darem uma boa corrida esta manhã! gritou para Guinevere.

 

Ela riu e desceu a colina vindo ao nosso encontro, os cães exercendo pressão sobre as trelas.

 

Isso agradar-me-ia disse ela. Os seus olhos estavam brilhantes e tinha as faces ruborizadas pelo frio. A caça é melhor aqui do que em Dumnónia afirmou.

 

Mas a terra não é; contrapôs Artur, dirigindo-se a mim. Há uma propriedade a norte de Durnovária continuou, que pertence a Mordred por direito próprio. Tenciono fazer de ti o seu rendeiro. Dar-te-ei outras terras, para os teus, mas poderás construir um castelo nas terras de Mordred e educá-lo aí.

 

Conheces a propriedade disse Guinevere. É aquela que fica a norte da herdade de Gyllad.

 

Sei qual é disse eu. A propriedade possuía boas terras alagadiças, ideais para sementeiras, e óptimas terras altas para criar carneiros. Mas não estou certo de saber como educar uma criança resmunguei. As trombetas soaram alto um pouco mais à frente e os galgos dos batedores de caça latiram. Ao longe, à nossa direita, ouviram-se vivas, sinal que alguém encontrara uma presa, se bem que a zona do bosque onde nos encontrávamos ainda estivesse vazia. Um pequeno riacho rumorejava à nossa esquerda e à direita trepava a paisagem florestal. As rochas e as raízes torcidas das árvores estavam forradas de musgo.

 

Artur fez desaparecer os meus medos.

 

Não serás tu quem educará Mordred disse ele, mas quero que ele seja educado em tua casa, na companhia dos teus criados, segundo as tuas maneiras, a tua moral e os teus juízos.

 

E acrescentou Guinevere, com a tua mulher.

 

O estalar de um galho obrigou-me a olhar para o cimo da colina. Lancelote e o primo Bors estavam lá, os dois em frente de Ceinwyn. A haste da lança de Lancelote estava pintada de branco e ele usava botas altas de cabedal e uma capa de pele macia. Voltei a fitar Artur.

 

A esposa, Senhor disse eu, é uma novidade para mim. Apertou-me o cotovelo, esquecendo a caça ao javali.

 

Estou a pensar nomear-te paladino de Dumnónia, Derfel disse ele

 

É uma honra demasiado elevada para mim, Senhor disse eu, cauteloso. Além do mais, o paladino de Mordred sois vós.

 

O Príncipe Artur disse Guinevere, pois gostava de tratá-lo por Príncipe, ainda que ele fosse filho bastardo, já preside ao Conselho. Não pode ser paladino em simultâneo, a não ser que se espere que seja ele a fazer tudo o que há a fazer em Dumnónia?

 

É certo, Senhora disse eu. Não era avesso à honra, pois a mesma era elevada, embora tivesse um preço. Em caso de batalha teria de lutar contra todo e qualquer paladino que se apresentasse para um combate individual, mas em tempo de paz essa honra traduzir-se-ia em riquezas e num estatuto muito acima da minha condição presente. Já tinha o título de Lorde, bem como os homens condizentes com esse tipo de título e o direito de pintar a minha própria divisa nos escudos desses homens. No entanto estas honrarias eram partilhadas com outros quarenta senhores da guerra de Dumnónia. Como paladino do rei tornar-me-ia o principal guerreiro de Dumnónia, embora eu não conseguisse ver de que modo é que um homem, fosse ele quem fosse, poderia reclamar esse estatuto enquanto Artur fosse vivo Ou enquanto Sagramor fosse vivo, de facto.

 

Sagramor disse, cauteloso, é melhor guerreiro do que eu, meu Príncipe. Na presença de Guinevere não podia esquecer-me de tratá-lo ocasionalmente por Príncipe, embora este título lhe desagradasse.

 

Artur demoliu a minha objecção.

 

Vou nomear Sagramor Senhor das Pedras disse ele. É tudo o que ele quer. A tutela das Pedras transformaria Sagramor no responsável pela fronteira saxónica e não me era difícil acreditar que o negro Sagramor, pele e olhos escuros, ficaria bem satisfeito com uma nomeação de características tão bélicas. Tu, Derfel bateu-me no peito, serás o paladino.

 

E quem perguntei em tom seco, será a esposa do paladino?

 

A minha irmã, Gwenhwyvach disse Guinevere, olhando-me fixamente.

 

Senti-me agradecido por ter sido prevenido por Merlim.

 

Concedeis-me uma honra demasiado elevada, Senhora disse eu, suavemente.

 

Guinevere sorriu, satisfeita pelo facto de as minhas palavras implicarem aceitação.

 

Alguma vez pensaste vir a casar com uma princesa, Derfel?

 

Não, Senhora disse eu. Gwenhwyvach, tal como Guinevere, era de facto uma princesa, uma princesa de Henis Wyren, embora Henis Wyren já não existisse. O infeliz reino chamava-se agora Lleyn e era governado pelo tenebroso invasor irlandês, o rei Diwrnach.

 

Guinevere deu um puxão nas trelas para conter a excitação dos cães

 

Podemos celebrar o noivado quando regressarmos a Dumnónia disse ela. Gwenhwyvach já deu o seu consentimento

 

Há um impedimento, Senhor disse eu a Artur

 

Guinevere tornou a puxar as trelas dos cães desnecessariamente, mas não tolerava qualquer oposição e descarregava a sua frustração nos cães em vez de o fazer sobre mim. Eu não lhe desagradava naquela época, mas ela tão-pouco nutria um sentimento especial por mim. Conhecia a minha aversão a Lancelote e era inegável que esse facto a predispunha contra mim No entanto, não teria atribuído grande significado aos meus sentimentos de antipatia, pois via-me apenas como mais um dos senhores da guerra do marido; um homem alto, desinteressante, loiro como o trigo desprovido das graciosas e civilizadas maneiras que Guinevere tanto apreciava

 

Um impedimento? perguntou-me Guinevere, perigosamente

 

Meu Príncipe disse eu, insistindo em falar com Artur e não com a sua esposa, estou ligado a uma dama por um juramento. Lembrei-me do osso que tinha na minha bolsa. Não tenho quaisquer direitos sobre ela, nem posso esperar nada da sua parte, mas se ela me quiser serei forçado a aceitá-la.

 

Quem? perguntou de imediato Guinevere

 

Não posso revelar, Senhora.

 

Quem? insistiu Guinevere.

 

Ele não precisa de o revelar defendeu-me Artur. Sorriu. Durante quanto tempo pode esta senhora reclamar a tua lealdade?

 

Pouco, Senhor disse eu, apenas durante mais alguns dias. Pois uma vez Ceinwyn estando comprometida com Lancelote eu poderia considerar sem validade o juramento que lhe fizera.

 

Muito bem disse ele energicamente e sorriu a Guinevere como se pretendesse convidá-la a partilhar o prazer que ele sentia. Guinevere, porém, franziu o sobrolho. Detestava Gwenhwyvach, considerando-a sem graça e maçadora e queria casar a irmã a toda a força para que esta saísse da sua vida

 

Se tudo correr bem disse Artur, poderás casar em Glevum ao mesmo tempo que Lancelote desposar Ceinwyn.

 

Ou será que estás a pedir esses poucos dias que faltam perguntou Guinevere, com acidez, para inventar motivos para não te casares com a minha irmã?

 

Senhora reagi, sério seria uma honra para mim desposar Gwenhwyvach. Esta, era, creio eu, a pura verdade, pois Gwenhwyvach revelar-se-ia certamente uma esposa honesta. Agora, saber se eu daria um bom marido era outra questão, já que o único motivo que me levaria a casar com Gwenhwyvach seriam o elevado estatuto social e a grande riqueza que ela traria no dote. Estes, contudo, eram para a maioria dos homens o objectivo primordial do casamento. E se eu não podia ter Ceinwyn, que importância tinha a pessoa com quem viesse a casar? Merlim sempre nos advertira para não confundirmos amor com casamento e apesar do cinismo do conselho, ele continha também um quê de verdade. Ninguém esperava que eu amasse Gwenhwyvach, apenas que me casasse com ela, e a sua posição social e riqueza seriam as minhas recompensas por ter lutado durante todo aquele longo e sangrento dia, no Vale do Lugg. Ainda que maculadas pelas zombarias de Guinevere, estas recompensas não deixariam de constituir um belo presente.

 

Desposarei a vossa irmã com prazer prometi a Guinevere, desde que a dona do meu juramento nada me reclame.

 

Rezo para que não o faça disse Artur com um sorriso, virando-se subitamente quando um grito soou no alto da colina.

 

Bors estava agachado, segurando a lança. Lancelote estava a seu lado, mas olhava para a base da colina, na nossa direcção, preocupado talvez com a possibilidade de o animal poder esgueirar-se pela abertura que havia entre nós. Gentilmente, Artur fez recuar Guinevere e, com um gesto, indicou-me que subisse a colina e tapasse a abertura.

 

São dois! gritou Lancelote.

 

Um deverá ser uma porca replicou Artur correndo alguns passos rio acima antes de iniciar a subida da colina. Onde? perguntou. Lancelote apontou o sítio com a sua lança branca, mas eu continuava sem distinguir nada no meio dos arbustos.

 

Ali! disse Lancelote, petulante, picando um emaranhado de roseiras bravas com a ponta da lança.

 

Artur e eu subimos mais alguns metros e então conseguimos finalmente ver o javali bem escondido no matagal. Era um animal enorme e velho com dois dentes amarelos, olhos pequenos e bocas de músculo sob a pele escura e cheia de cicatrizes. A massa muscular permitia-lhe mover-se à velocidade da luz e enterrar os dentes aguçados com uma perícia fatal. Todos nós já víramos homens morrerem em consequência de feridas provocadas por dentadas de javali e nada tornava um javali mais perigoso do que ser encurralado por uma porca. Todos os caçadores rezavam para que um javali atacasse em campo aberto, permitindo-lhes assim aproveitar a velocidade e a corpulência do animal para enterrar a lança no seu corpo. Um confronto como este exigia sangue-frio e perícia, mas não tanto sangue-frio como aquele que era necessário quando um homem tinha de atacar frontalmente o javali.

 

Quem o viu primeiro? perguntou Artur.

 

O meu Rei e Senhor, Bors indicou Lancelote.

 

É vosso, então, meu Rei, graciosamente, Artur cedeu a Lancelote a honra da matança.

 

Ofereço-vos, Senhor respondeu Lancelote. Ceinwyn estava de pé atrás dele, mordendo o lábio inferior de olhos muito abertos. Pegara na lança sobressalente que pertencia a Bors, não porque tivesse esperanças de servir-se dela mas para aliviá-lo daquele fardo, e agora segurava a arma nervosamente.

 

Atiça-lhe os cães! Guinevere juntou-se a nós. Os seus olhos brilhavam e o seu rosto estava animado. Julgo que ela se sentia entediada dentro dos grandes palácios de Dumnónia e o terreno de caça proporcionava-lhe a excitação por que tanto ansiava.

 

Vais perder os dois cães advertiu Artur. Este porco sabe lutar. Avançou com cuidado, avaliando qual seria a melhor forma de provocar o animal. Em seguida deu alguns passos enérgicos em frente e bateu vigorosamente nos arbustos com a lança, como se assim quisesse oferecer ao javali uma porta de saída do seu refúgio. A besta rugiu, mas não se mexeu, nem mesmo quando a flamejante lâmina da lança lhe rasou o focinho, passando a escassos centímetros de distância. A porca estava atrás do javali, observando-nos.

 

Já fez isto antes disse Artur, feliz.

 

Deixai-me apanhá-lo, Senhor disse eu, subitamente ansioso.

 

Achas que perdi a habilidade? perguntou Artur com um sorriso. Agitou de novo os arbustos, mas as roseiras bravas não baixavam e o javali não se movia. Que os deuses te abençoem disse Artur dirigindo-se ao animal, após o que gritou um desafio e mergulhou num emaranhado de espinhos. Saltou para um dos lados do trilho que tão cruamente abrira e ao fincar os pés no chão atirou a lança para a frente, apontando a sua lâmina cintilante para o flanco esquerdo do javali.

 

A cabeça do javali pareceu contrair-se. Foi uma contracção ligeira, mas suficiente para desviar a lâmina da lança de um dos dentes, rasgando a pele do animal e abrindo uma ferida inofensiva ao longo de um dos flancos. Em seguida atacou. Um bom javali pode passar da imobilidade total à loucura instantânea, cabeça apontada para o chão e dentes preparados para investir em sentido ascendente. O animal encontrava-se já fora do alcance da ponta da lança de Artur no momento da investida fazendo com que ele ficasse preso no silvado.

 

Dei um grito no intuito de distrair o javali e enterrei a minha própria lança na sua barriga. Artur estava caído no chão, de costas, a lança caída e o javali sobre o seu corpo. Os cães uivaram e Guinevere gritou por ajuda. A minha lança penetrara fundo na barriga do animal e o seu sangue jorrava para as minhas mãos à medida que eu levantava a lança como se fosse uma alavanca, a fim de afastar o animal ferido de cima do meu Senhor. A criatura pesava mais do que dois sacos cheios de sementes, e a sua musculatura fazia lembrar cordas de ferro torcendo a minha lança. Segurei-a com firmeza e dei um puxão. Nesse momento, porém, a porca investiu e fez-me perder o equilíbrio.

 

Caí, e o meu peso pressionou a haste da lança para baixo fazendo com que o javali se encavalitasse de novo sobre a barriga de Artur.

 

Sem que se soubesse como, Artur conseguira agarrar os dois dentes do animal e, apelando a todas as suas forças, empurrava agora a cabeça para longe do seu peito. A porca desapareceu, precipitando-se colina abaixo na direcção do riacho.

 

Mata-o! gritou Artur, embora ainda conseguisse esboçar um meio sorriso. Estava a escassos centímetros da morte, mas estava a adorar o momento. Mata-o! repetiu. As patas traseiras do javali agitavam-se e a sua saliva salpicava o rosto de Artur, e as roupas estavam ensopadas no sangue do animal.

 

Eu estava deitado de costas, o rosto dilacerado pelos espinhos. Pus-me de pé atabalhoadamente e tentei alcançar a minha lança que se contorcia e agitava ainda enterrada na barriga daquele enorme brutamontes. Nesse momento, porém, Bors espetou uma faca no pescoço do javali e eu vi quando a imensa força do animal começou a diminuir enquanto Artur conseguia forçar a cabeça compacta, malcheirosa e ensanguentada a afastar-se das suas costelas. Agarrei na minha lança e torci a lâmina, procurando o sangue vital do animal escondido bem no fundo das suas entranhas enquanto Bors o esfaqueava uma segunda vez. De súbito, o javali urinou para cima de Artur, desferiu um último golpe desesperado com o seu pescoço enorme e depois, sucumbiu abruptamente. Artur estava empapado no sangue e urina do animal, soterrado como estava debaixo do seu corpo.

 

Cautelosamente, soltou os dentes do javali e depois desfez-se numa gargalhada descontrolada. Bors e eu agarrámos em cada um dos dentes e, com um impulso concertado, levantámos o corpo e afastámo-lo de cima de Artur. Um dos dentes ficou preso no colete de Artur, rasgando o tecido no momento em que o retirávamos. Pousámos o animal sobre o matagal e ajudámos Artur a levantar-se. Ficámos os três de pé a sorrir, com as roupas enlameadas, rasgadas e cobertas de folhas, raízes e do sangue do javali

 

Vou ficar com uma nódoa negra aqui disse Artur dando uma palmada no peito. Virou-se para Lancelote, que permanecera imóvel durante a refrega.

 

Após uma brevíssima pausa, Artur inclinou a cabeça.

 

Agraciastes-me com uma nobre oferenda, meu Rei disse ele, e eu aceitei-a da forma mais ignóbil, limpou os olhos. Mas apesar de tudo gostei. E havemos de desfrutá-lo na tua festa de noivado olhou para Guinevere e vendo-a pálida, quase trémula, dirigiu-se imediatamente para ela:

 

Estás doente?

 

Não, não disse ela, enlaçando-o e descansando a sua cabeça no peito ensanguentado do marido. Estava a chorar. Era a primeira vez que eu a via chorar.

 

Artur fez-lhe uma festa nas costas.

 

Não houve qualquer perigo, meu amor disse ele, nenhum perigo. Só transformei a matança num picado de carne.

 

Estás ferido? perguntou Guinevere, afastando-se dele e limpando as lágrimas.

 

São só arranhões. O rosto e as mãos estavam dilaceradas pelos espinhos, mas não havia outras mazelas, à excepção da nódoa negra provocada pelo dente do javali. Afastou-se dela, pegou na lança e gritou: Há uma dúzia de anos que ninguém me atirava ao chão daquela maneira!

 

O rei Cuneglas chegou correndo, preocupado com os seus convidados, e os batedores de caça apareceram logo em seguida para levar dali o corpo. Todos eles devem ter-se apercebido da discrepância entre as roupas imaculadas de Lancelote e o estado de desalinho em que nós nos encontrávamos, mas ninguém fez qualquer comentário. Estávamos todos excitados, satisfeitos por termos sobrevivido e ansiosos por partilhar a história em que Artur afastara a fera bruta do seu corpo, segurando-a pelos dentes. A história espalhou-se e as gargalhadas dos homens soaram alto entre as árvores. Lancelote era o único que não se ria.

 

Agora temos de encontrar um javali para si, meu Rei e Senhor disse-lhe eu. Estávamos a poucos passos de distância da multidão excitada que se juntara para ver os batedores de caça tirar as vísceras ao javali e arranjar assim uma boa refeição para os cães de Guinevere.

 

Lancelote mirou-me de soslaio com olhos avaliadores. Detestava-me tanto quanto eu o detestava a ele, mas inesperadamente sorriu.

 

Um javali disse seria melhor do que uma porca, julgo eu

 

Uma porca? perguntei, pressentindo um insulto.

 

A porca não vos atacou? perguntou ele e depois abriu muito os olhos francos. Certamente não pensais que eu estava a referir-me ao vosso casamento! Presenteou-me com uma vénia irónica. Não posso deixar de vos felicitar, Lorde Derfel! Pelo casamento com Gwenhwyvach!

 

Contive a raiva com todas as minhas forças e fiz um esforço para fitar o seu rosto zombeteiro com a sua barba delicada, olhos escuros e longos cabelos oleados tão escuros e brilhantes como asas de corvo

 

E eu devo felicitar-vos, meu Rei e Senhor, pelo vosso noivado.

 

Com Seren disse ele, a estrela de Powys.

 

Olhou para Ceinwyn, que permanecia de pé com as mãos no rosto enquanto os punhais dos caçadores iam rasgando as longas pregas dos intestinos do javali. Parecia tão jovem, com o seu cabelo brilhante puxado para a nuca.

 

Não é encantadora? perguntou-me Lancelote numa voz que soava como o ronronar de um gato. Tão vulnerável. Nunca acreditei nas histórias que contavam sobre a sua beleza, pois quem esperaria encontrar uma joia como esta entre as crias de Gorfyddyd. Mas é bela e eu sou um homem muito afortunado.

 

Sois, sim, meu Rei e Senhor.

 

Riu e virou-se. Era um homem no auge da sua glória, um rei que vinha buscar a sua noiva e era também meu inimigo. Eu, porém, tinha o osso dele dentro da minha bolsa. Toquei-a, preocupado em saber se a luta com o javali tinha partido a costeleta. Esta, no entanto, estava intacta, escondida ainda, esperando apenas os desígnios da minha vontade.

 

Cavan, o meu segundo-comandante, chegou a Caer Sws na véspera do noivado de Ceinwyn acompanhado de quarenta dos meus lanceiros. Galaad mandara-os regressar, concluindo que o seu trabalho na Silúria poderia ser terminado pelos outros vinte homens que lá ficavam. Os habitantes da Silúria, segundo parece, tinham aceite tristemente a derrota do seu país e não se tinha verificado qualquer agitação quando as notícias da morte do seu rei se espalharam, tão só uma dócil submissão às exigências dos vitoriosos. Cavan disse-me que Oengus de Demétia, o rei irlandês que possibilitara a vitória de Artur no Vale do Lugg, reivindicara a parte que lhe cabia em escravos e tesouros, roubados mais uma vez, e partira deixando para trás os Silurianos nitidamente felizes pelo facto de o famoso Lancelote ser agora o seu rei.

 

Suponho que o patife será bem acolhido disse Cavan quando me encontrou no castelo de Cuneglas, onde eu tinha estendido o meu cobertor e comia as minhas refeições. Coçou um piolho que passeava pela sua barba. Um lugar sujo, a Silúria.

 

Geram bons guerreiros disse eu.

 

Lutar para fugir à pátria; nada que me surpreenda. Fungou. O que é que vos arranhou o rosto, Senhor?

 

Espinhos. Uma luta com um javali.

 

Julguei que talvez tivésseis casado enquanto eu estava distraído disse ele, e que esse tinha sido o presente de casamento dela.

 

Vou casar-me em breve contei-lhe no momento em que saíamos do salão em direcção ao sol de Caer Sws e eu contei-lhe a proposta de Artur, que pretendia fazer de mim paladino de Mordred e seu cunhado. Cavan recebeu as notícias da minha prosperidade iminente com grande satisfação, pois era um irlandês condenado ao exílio que procurara transformar o seu talento para manusear a lança e a espada em fortuna, na Dumnónia de Uther. No entanto, esta fortuna teimava de certo modo em iludi-lo. Tinha o dobro da minha idade, era um homem atarracado, de ombros largos, barba grisalha e com umas mãos cobertas pelos anéis típicos dos guerreiros, que forjávamos a partir das armas dos inimigos derrotados. Estava feliz pelo facto de o meu casamento significar ouro e deu provas de muito tacto no que se referia à noiva que traria esse metal.

 

Não é uma beldade como a irmã disse ele.

 

É certo admiti.

 

Na verdade disse ele, abdicando do tacto, é feia como um saco de sapos.

 

Não tem de facto nenhuma beleza especial acedi.

 

Mas são as menos bonitas que fazem as melhores esposas, Senhor declarou ele, que nunca tinha sido casado mas que tão-pouco era um homem solitário. E ela vai trazer prosperidade para todos nós acrescentou feliz; esta era obviamente a razão que me levava a casar com a infeliz Gwenhwyvach. O meu bom senso não podia depositar qualquer tipo de fé na costeleta de porco que guardava dentro da minha bolsa, e o meu dever para com os meus homens era recompensá-los pela sua lealdade, recompensas estas que tinham escasseado durante o ano anterior. Tinham perdido virtualmente tudo o que possuíam com a queda de Ynys Trebes e em seguida tinham combatido contra o exército de Gorfyddyd, no Vale do Lugg. Agora estavam cansados, mais pobres, e não havia homens que merecessem mais da parte do seu amo e senhor do que eles.

 

Saudei os meus quarenta homens, que esperavam indicações para se instalarem. Senti-me contente ao ver Issa no meio deles, já que ele era o melhor dos meus lanceiros: um moço de lavoura, dotado de uma força imensa e de um optimismo inesgotável, que protegia o meu flanco direito nas batalhas. Abracei-o e depois expressei o meu pesar por não ter oferendas para lhes dar.

 

Mas a nossa recompensa está para breve acrescentei, olhando em seguida para as duas dúzias de raparigas que deviam ter seduzido na Silúria, ainda que me sinta muito satisfeito por ver que a maioria de vós já encontrou algumas recompensas por iniciativa própria.

 

Riram. A rapariga de Issa era uma bonita criança de cabelo escuro de talvez catorze Verões. Ele apresentou-ma.

 

Scarach, Senhor pronunciou o nome dela com orgulho.

 

Irlandesa? perguntei-lhe. Ela acenou afirmativamente.

 

Era uma das escravas de Ladwys, Senhor. Scarach falava a língua da Irlanda, um idioma como o nosso, mas com as diferenças suficientes, como o nome dela por exemplo, para identificar a raça a que pertencia. Supus que tivesse sido capturada pelos homens de Gundleus numa das suas incursões às terras do rei Oengus, na Demétia. A maioria dos escravos irlandeses provinha de povoações situadas na costa ocidental da Bretanha, embora eu suspeitasse que nenhum tivesse alguma vez sido capturado em Lleyn. Só um louco se aventuraria a penetrar no território de Diwrnach sem ser convidado.

 

Ladwys! disse eu. Como está ela? Ladwys fora amante de Gundleus. Era uma mulher alta e morena que Gundleus desposara em segredo, embora estivesse disposto a renegar esta união quando Gorfyddyd lhe oferecera a mão de Ceinwyn.

 

Está morta, Senhor disse Scarach alegremente. Matámo-la na cozinha. Enterrei-lhe um espeto na barriga.

 

É boa rapariga disse Issa, ansiosamente.

 

Nota-se disse eu, por isso toma conta dela. A última rapariga que tivera, abandonara-o trocando-o por um dos missionários cristãos que deambulavam pelos caminhos de Dumnónia. No entanto, duvidava que a temível Scarach incorresse em semelhante loucura.

 

Nessa tarde, usando alguma da cal armazenada nas arrecadações de Cuneglas, os meus homens pintaram uma nova divisa nos seus escudos. A honra de usar a minha própria divisa fora-me concedida por Artur, na véspera da batalha do Vale do Lugg, mas não houvera tempo para mudar os escudos que, até este momento, tinham ostentado a figura de um urso, o símbolo de Artur. Os meus homens esperavam que eu escolhesse uma máscara de lobo como insígnia, fazendo eco das caudas de lobo que tínhamos começado a usar nos nossos elmos, nas florestas de Benoic. Eu, no entanto, insisti em que cada um de nós pintasse uma estrela de cinco pontas.

 

Uma estrela! resmungara Cavan, desapontado. Pretendia algo feroz, com garras, focinho e dentes, mas eu não abdiquei da estrela.

 

Seren disse eu, pois somos nós as estrelas do escudo defensivo A explicação agradou-lhes e ninguém suspeitou do romantismo sem futuro subjacente à minha escolha. Assim, começámos por aplicar uma camada de pez negra sobre as formas arredondadas dos escudos feitos de pau de salgueiro e forrados a pele; em seguida pintámos as estrelas com cal servindo-nos da bainha de uma espada para manter os extremos direitos. Quando a cal ficou seca aplicámos uma camada de verniz feito de resina de pinheiro e clara de ovo, que protegeria as estrelas da chuva durante alguns meses.

 

Fica diferente concedeu Cavan de má vontade enquanto admirávamos os escudos depois de pintados.

 

Está esplêndido disse eu, e nessa noite, quando jantava entre o círculo de guerreiros que comiam deitados no chão do palácio, Issa estava perfilhado atrás de mim como meu escudeiro. O verniz ainda estava húmido, mas isso só fazia com que a estrela parecesse mais brilhante. Scarach serviu-me. Era uma refeição pobre composta por papas de cevada, mas as cozinhas de Caer Sws não estavam em condições de fornecer uma refeição mais requintada, pois estavam atarefadas com a preparação da grande festa da noite seguinte. Na verdade, todo o palácio estava ocupado com os preparativos para esse acontecimento. O salão tinha sido decorado com ramos de faia vermelho-escuros, o chão tinha sido varrido e coberto de junco fresco e dos aposentos das mulheres chegavam relatos sobre os vestidos que estavam a ser confeccionados e delicadamente bordados. Pelo menos quatrocentos guerreiros estavam agora hospedados em Caer Sws, instalados na sua maioria em abrigos improvisados nos campos que ficavam do lado de fora das muralhas, enquanto no interior da fortaleza se concentrava uma multidão formada pelas esposas dos guerreiros, crianças e cães. Metade dos homens pertenciam a Cuneglas e a outra metade eram dumnonianos. No entanto, apesar da guerra recente não se registavam distúrbios, nem sequer quando se espalhou a notícia da queda de Ratae que caíra nas mãos da horda saxónica de Aelle graças à traição de Artur. Cuneglas devia ter desconfiado que Artur comprara a paz a Aelle por esse meio e aceitou o juramento de Artur, quando este lhe prometeu que os homens de Dumnónia vingariam os mortos de Powys que jaziam entre as cinzas da fortaleza capturada.

 

Não via Merlim ou Nimue desde a noite em que fora ao Dolforwyn Merlim deixara Caer Sws, mas Nimue, segundo me constara, encontrava-se ainda no interior da fortaleza e estava escondida nos aposentos das mulheres onde, a acreditar nos rumores que corriam, passava muito tempo na companhia da princesa Ceinwyn. Isso parecia-me pouco provável, já que Nimue e Ceinwyn eram muito diferentes uma da outra. Nimue era alguns anos mais velha do que Ceinwyn. Era uma mulher morena e ardente, vacilando eternamente na estreita fronteira que separa a loucura da raiva, enquanto Ceinwyn era loura, suave e, como me dissera Merlim, extremamente convencional. Não conseguia imaginar que alguma delas tivesse muito para dizer uma à outra, por isso concluí que os boatos eram falsos e que Nimue estaria com Merlim que, julgava eu, partira à procura de homens dispostos a carregarem as suas espadas até aos terríveis domínios de Diwrnach, em busca do Caldeirão.

 

E eu? Juntar-me-ia a ele? Na manhã do noivado de Ceinwyn encaminhei-me para norte, na direcção dos grandes carvalhos que circundavam o imenso vale de Caer Sws. Procurava um local em particular e Cuneglas dissera-me onde podia encontrá-lo. Issa, o meu fiel Issa, acompanhou-me, embora não fizesse a mais pequena ideia do motivo que nos levava àqueles bosques densos e escuros.

 

Esta terra, o coração de Powys, ficara quase incólume à passagem dos Romanos. Estes tinham construído fortes na região, como Caer Sws, e tinham deixado algumas estradas que corriam ao longo dos vales ribeirinhos, mas não se viam grandes villas ou cidades como as que existiam em Dumnónia e lhe conferiam o brilho de uma civilização perdida. Aqui, no coração dos domínios de Cuneglas, também não havia muitos cristãos. O culto dos antigos deuses tinha sobrevivido em Powys sem o rancor que enquinava a religião no reino de Mordred, onde cristãos e pagãos rivalizavam pela obtenção de favores reais e pelo direito de erigir os seus santuários em locais sagrados. Nenhum altar romano havia substituído os bosques dos druidas de Powys e nenhuma igreja cristã se erguia sobre os seus poços sagrados. Os Romanos tinham demolido alguns santuários, mas muitos tinham sido preservados e era para um destes locais sagrados antigos que Issa e eu nos dirigíamos sob a penumbra folhosa da floresta batida pelo Sol do meio-dia.

 

Era um santuário druida, um pequeno bosque de carvalhos perdido nos confins de uma floresta densa. A folhagem suspensa sobre o santuário ainda não se tingira de bronze, mas isso não tardaria a suceder e então as folhas tombariam sobre o baixo muro de pedra disposto em semicírculo no centro do bosque. Dois nichos tinham sido escavados na parede e neles tinham sido colocados dois crânios humanos. Outrora, eram muitos os locais como este em toda a Dumnónnia e muitos mais tinham sido reconstruídos depois da partida dos Romanos. Demasiadas vezes, porém, os cristãos apareciam e partiam os crânios, destruíam os muros feitos de pedras secas e cortavam os carvalhos. No entanto, este santuário de Powys poderia continuar perdido neste denso bosque durante um milhar de anos. Pequenos fios de lã tinham sido enfiados entre as pedras, assinalando assim as orações oferecidas pelos crentes neste bosque.

 

O silêncio pairava sobre os carvalhos. Era um silêncio pesado. Issa observava-me, desde o arvoredo, enquanto eu caminhava até ao centro do semicírculo, onde desapertei o pesado cinto da Hywelbane.

 

Depus a espada sobre a pedra lisa que assinalava o centro do santuário e de dentro da minha bolsa tirei o osso branco que me conferia poderes sobre o casamento de Lancelote. Coloquei-o ao lado da espada. Por último, coloquei sobre a pedra o pequeno pregador dourado que Ceinwyn me dera muitos anos antes. Estendi-me sobre a cama de folhas.

 

Dormi, na esperança de ter um sonho que me dissesse o que havia de fazer, mas tal não aconteceu. Talvez devesse ter sacrificado um pássaro ou um animal antes de ter adormecido, uma oferenda que podesse ter incitado uma divindade a conceder-me a resposta que eu procurava. Nenhuma resposta, porém, veio em meu auxílio. Apenas o silêncio. Colocara a minha espada e o poder do osso nas mãos dos deuses, à guarda de Bei e Manawydan, de Taranis e Lleullaw, mas eles ignoraram as minhas oferendas. Ouvia-se apenas o sussurro do vento entre a folhagem alta, o arranhar das patas dos esquilos nos ramos dos carvalhos e a súbita algazarra de um pica-pau.

 

Deixei-me ficar deitado, imóvel, quando acordei. Não tivera qualquer sonho, mas sabia o que queria. Queria pegar no osso e parti-lo em dois, e se semelhante gesto implicasse percorrer a Estrada Sombria e penetrar no reino de Diwrnach, paciência. No entanto, queria também que a Bretanha de Artur fosse una, boa e verdadeira. E queria que os meus homens tivessem ouro, terras, escravos e títulos. Queria expulsar os Saxões de Lloegyr.

 

Queria ouvir o alarido que se libertava de um escudo defensivo desfeito e o estridor das trombetas de guerra à medida que um exército vitorioso perseguia e levava o seu inimigo à ruína. Queria marchar com os meus escudos estrelados na direcção das planícies a leste que nenhum bretão livre, via há uma geração. E queria Ceinwyn.

 

Sentei-me. Issa viera sentar-se ao meu lado. Deve ter perguntado a si próprio por que razão eu olhava tão fixamente para o osso, mas não fez quaisquer perguntas.

 

Pensei na pequena e atarracada torre de ossos de Merlim que representava o sonho de Artur e perguntei a mim próprio se aquele sonho se desmoronaria de facto, caso Lancelote não desposasse Ceinwyn. O casamento dificilmente podia ser considerado como o elo que mantinha intacta a aliança de Artur; era apenas uma conveniência destinada a atribuir um trono a Lancelote e garantir a Powys um aliado no interior da casa real da Silúria. Se o casamento nunca viesse a realizar-se, os exércitos de Dumnónia, Gwent, Powys e Elmet não deixariam de marchar contra os Sais. Tudo isso eu sabia, tudo isso era verdade. No entanto, também pressentia que o osso podia de alguma forma abalar o sonho de Artur. No momento em que partisse o osso em dois estaria a jurar fidelidade à demanda de Merlim, uma demanda que prometia instalar a inimizade em Dumnónia; a inimizade dos antigos pagãos que tanto odiavam a recente religião cristã.

 

Guinevere proferi subitamente o nome em voz alta.

 

Senhor? perguntou Issa, perplexo.

 

Abanei a cabeça para mostrar que não tinha mais nada a dizer. Na verdade, não era minha intenção pronunciar o nome de Guinevere em voz alta. De súbito, porém, compreendera que o gesto de partir o osso faria muito mais do que apenas encorajar a campanha de Merlim contra o Deus cristão, também faria de Guinevere minha inimiga. Fechei os olhos. Poderia a esposa do meu Senhor ser minha inimiga? E se o fosse? Artur continuaria a amar-me, e eu a ele, e as minhas lanças e escudos estrelados tinham mais valor para ele do que toda a fama de Lancelote.

 

Levantei-me e recuperei o pregador, o osso e a espada. Issa viu-me tirar um fio de lã verde da minha capa, que depus entre as pedras.

 

Não estavas em Caer Sws perguntei-lhe, quando Artur rompeu o noivado com Ceinwyn?

 

Não, Senhor. Mas ouvi falar nisso.

 

Foi durante a festa de noivado disse eu, uma festa exactamente igual àquela a que assistiremos esta noite. Artur estava sentado na mesa principal com Ceinwyn a seu lado quando viu Guinevere no fundo do salão. Ela vestia uma capa velha e gasta e tinha os galgos a seu lado. Artur viu-a ali e as coisas nunca mais foram as mesmas. Só os Deuses sabem quantos homens morreram por ele ter visto aquela cabeleira ruiva. Virei-me para o muro de pedra baixo e reparei que havia um ninho abandonado no interior de um dos crânios forrados de musgo. Merlim diz que os Deuses amam o caos disse eu.

 

Merlim ama o caos disse Issa em tom despreocupado, embora as suas palavras contivessem mais verdade do que ele supunha.

 

Merlim ama-o, sim concordei, mas a maioria de nós teme o caos e é por isso que tentamos impor a ordem. Pensei na pilha de ossos cuidadosamente ordenada. Mas quando se tem ordem não se precisa dos Deuses. Quando tudo está bem ordenado e disciplinado não há espaço para o inesperado. Quando compreendemos tudo disse, cuidadoso, deixa de haver espaço para a magia. E é só no momento em que nos sentimos perdidos e assustados e mergulhados no escuro que invocamos os Deuses, e eles gostam que nós os invoquemos. Fá-los sentir poderosos, e é por isso que eles gostam que vivamos no caos. Limitava-me a repetir as lições que aprendera na infância, as lições que nos eram dadas no Tor de Merlim. E agora temos oportunidade de escolher disse eu a Issa. Podemos viver na Bretanha bem ordenada de Artur ou podemos seguir Merlim rumo ao caos.

 

Eu seguir-vos-ei, Senhor, em quaisquer circunstâncias disse Issa. Não creio que ele tenha compreendido o que eu tinha estado a dizer, mas estava contente por confiar em mim de qualquer maneira.

 

Quem dera saber o que fazer confessei.

 

"Quão fácil seria", pensei, "se os Deuses andassem pela Bretanha como antes. Nesses tempos podíamos vê-los, ouvi-los, falar-lhes. Agora, somos como homens de olhos vendados procurando uma agulha num palheiro."

 

Ajustei a espada na sua posição habitual e depois tornei a meter o osso intacto dentro da bolsa.

 

Quero que transmitas uma mensagem aos homens disse eu a Issa. Não a Cavan, pois com ele falarei pessoalmente, mas quero que lhes digas que se algo de estranho suceder esta noite, eles estão desobrigados do juramento que me fizeram.

 

Ele olhou-me, franzindo o sobrolho.

 

Desobrigados dos nossos juramentos? perguntou e depois abanou a cabeça energicamente. Eu não, Senhor.

 

Fiz sinal para que se calasse.

 

Diz-lhes também prossegui que se algo de estranho acontecer de facto, e pode ser que não aconteça, a lealdade ao meu juramento poderá ter como significado lutar contra Diwrnach.

 

Diwrnach! disse Issa. Cuspiu e fez o símbolo para afastar o mal com a mão direita.

 

Diz-lhes isto, Issa disse eu.

 

E o que poderá acontecer esta noite, então? perguntou ele, ansiosamente.

 

Nada, talvez disse eu, absolutamente nada pois os Deuses não me tinham revelado qualquer sinal no bosque e eu ainda não sabia qual seria a minha escolha. Ordem ou caos. Ou nenhum dos dois, pois talvez o osso mais não fosse do que um resto de comida cozinhada e o facto de o partir fosse apenas o símbolo da destruição do amor que eu próprio sentia por Ceinwyn. Contudo, havia apenas uma forma de o saber, e essa era partir o osso. Se eu ousasse tal feito.

 

Na festa de noivado de Ceinwyn.

 

De todas as festas que marcaram aquelas noites de fim de Verão, a festa de noivado de Lancelote e Ceinwyn foi a mais sumptuosa. Até os Deuses pareciam favorecê-la, pois a Lua surgiu cheia e clara, o que era um presságio maravilhoso para um noivado. A lua subiu pouco depois do pôr do Sol, uma orbe de prata crescendo, imensa, sobre os cumes onde ficava Dolforwyn. Perguntara a mim mesmo se a festa decorreria no castelo de Dolforwyn, mas Cuneglas, ao ver o elevado número de bocas que havia para alimentar, decidira circunscrever as celebrações ao interior de Caer Sws.

 

Havia demasiados convidados para que todos coubessem dentro do salão do rei, pelo que apenas os mais privilegiados foram autorizados a instalar-se entre as suas grossas paredes de madeira. Os restantes sentaram-se no exterior, dando graças aos deuses por aquela noite seca. O solo ainda estava húmido da chuva que caíra no início da semana, mas havia grande abundância de palha para que os homens arranjassem assentos secos. Tochas ensopadas em pez tinham sido amarradas a estacas e, momentos depois de a Lua ter nascido, foram acesas e o recinto real foi subitamente iluminado por chamas tremeluzentes. A cerimónia de casamento seria realizada à luz do dia para que Gwydion, o Deus da Luz, e Belenos, o Deus do Sol, concedessem a sua bênção, mas o noivado estava sob a bênção da Lua. De quando em vez, a fagulha de uma tocha flutuaria até ao solo para pousar num pedaço de palha e logo ressoariam gargalhadas, gritos de criança, latidos de cães e um acesso de pânico até o fogo ser extinto.

 

Mais de cem homens tinham sido convidados a transpor os muros do palácio de Cuneglas. Grupos de círios e velas de pavio projectavam sombras estranhas e vacilantes nos altos tectos de colmo, onde os pequenos ramos de folhas de faia se misturavam agora com as primeiras bagas de azevinho do ano. A única mesa que havia no salão fora colocada sobre o estrado, debaixo de uma fileira de escudos, cada um dos quais tinha um círio na base que iluminava a divisa pintada sobre o couro. Ao centro estava o escudo real de Powys, pertença de Cuneglas, com a sua águia de asas abertas, enquanto num dos lados da águia aparecia o urso negro de Artur e no outro o dragão vermelho de Dumnónia. A divisa de Guinevere, um veado coroado pela lua, estava pendurado ao lado do urso, enquanto a águia-marinha de Lancelote voava ao lado do dragão, com um peixe preso entre as garras. Não estava presente nenhum representante de Gwent, mas Artur insistira em que o touro negro de Tewdric fosse pendurado juntamente com o cavalo vermelho de Elmet e a máscara de raposa da Silúria. Os símbolos reais marcavam a grande aliança, a barreira defensiva que repeliria os Saxões para a costa.

 

lorweth, o druida supremo de Powys, anunciou o momento em que dava como certo o desaparecimento definitivo dos últimos raios do sol moribundo no longínquo mar da Irlanda, após o que os convidados de honra ocuparam os respectivos lugares sobre o estrado. Quanto a nós, já estávamos sentados no chão do salão, onde os homens reclamavam uma quantidade do famoso e poderoso hidromel de Powys superior à que fora especialmente preparada para essa noite. Vivas e aplausos acolheram os convidados de honra.

 

A rainha Elaine foi a primeira a entrar. A mãe de Lancelote estava vestida de azul. Em volta do pescoço trazia uma corrente de ouro de metal torcido e um fio também dourado prendia os caracóis dos seus cabelos grisalhos. Em seguida, uma sonora aclamação recebeu Cuneglas e a rainha Helled. O rosto redondo do rei irradiava prazer perante a perspectiva das celebrações da noite, em honra das quais atara pequenas fitas brancas aos bigodes balouçantes. Artur vinha sobriamente vestido de negro, enquanto Guinevere, que o seguia até ao estrado, estava esplêndida, no seu trajo de linho ouro pálido. Tinha sido habilidosamente cortado e cozido para que o precioso tecido, tingido com ferrugem e goma, desse a impressão de se colar ao seu corpo alto e direito. A sua barriga mal traía sinais da gravidez e entre os homens espantados ouviu-se um murmúrio de admiração pela sua beleza. Pequenas lascas douradas tinham sido cozidas no tecido do vestido, pelo que o seu corpo parecia reluzir à medida que ela caminhava devagar atrás de Artur até ao centro do estrado. Sorriu ao ver o desejo que sabia que provocava, e que queria provocar, pois nessa noite Guinevere estava empenhada em ofuscar Ceinwyn. Um pequeno aro dourado mantinha os seus cabelos ruivos no devido lugar, um cinto de argolas de ouro rodeava-lhe a cintura e, em honra de Lancelote, um alfinete dourado com uma águia-marinha adornava o pescoço de Guinevere. Beijou as faces da rainha Elaine, depôs outro beijo numa das faces de Cuneglas, inclinou a cabeça perante a rainha Helled e depois sentou-se à direita de Cuneglas enquanto Artur deslizava para o assento vago ao lado de Helled.

 

Sobravam ainda dois lugares, mas antes que qualquer deles fosse ocupado Cuneglas levantou-se e bateu ao de leve com o punho na mesa. O silêncio desceu sobre os convivas, e no mutismo que entretanto se formou Cuneglas indicou com um gesto os tesouros dispostos na extremidade do estrado, em frente ao pano de linho que pendia da mesa.

 

Esses tesouros eram os presentes que Lancelote trouxera para Ceinwyn e a sua magnificência desencadeou uma tempestade de aplausos que ressoou por todo o salão. Todos nós tínhamos inspeccionado as oferendas e eu ouvira, irritado, os elogios que os homens iam tecendo à generosidade do rei de Benoic. Havia correntes de ouro, correntes de prata e correntes feitas de uma mistura de ouro e prata. As correntes eram tantas que apenas serviam de base para os restantes presentes. Viam-se espelhos de mão romanos, frascos de vidro romano e pilhas de jóias também romanas. Havia ainda colares, pregadores, jarros de água, alfinetes e fivelas. Uma fortuna digna de um rei composta de metal cintilante, esmalte, coral e pedras preciosas. Tudo aquilo, sabia eu, tinha sido retirado de Ynys Trebes em chamas quando Lancelote, desdenhando erguer a sua espada contra os furiosos francos, fugira no primeiro navio que encontrara a fim de escapar ao massacre da cidade.

 

Os aplausos dirigidos às oferendas ainda ressoavam quando Lancelote entrou em toda a sua glória. Tal como Artur, ele vinha vestido de negro. No entanto, as roupas negras de Lancelote eram adornadas por uma orla feita de um raro tecido dourado. O seu cabelo negro tinha sido oleado e puxado para trás de forma a ficar bem junto ao crânio estreito, colando-se à nuca sem uma única ruga. Os dedos da mão direita cintilavam com anéis de ouro enquanto a esquerda ostentava os baços anéis de guerreiro, nenhum dos quais, concluí irritado, fora ganho em batalha. Em torno do pescoço usava uma pesada corrente de ouro rematada por pedras reluzentes e, sobre o peito, em honra de Ceinwyn exibia o símbolo da família real a que ela pertencia: uma águia de asas abertas. Não trazia armas, já que homem algum fora autorizado a entrar no palácio do rei acompanhado de uma só espada que fosse, mas usava o cinto da espada com que Artur o presenteara. Agradeceu a aclamação erguendo uma das mãos, beijou a mãe, cumprimentou Guinevere com um beijo na mão, fez uma vénia a Helled e sentou-se.

 

Um dos assentos continuava vazio. Uma harpista tinha começado a tocar, mas as notas clangorosas que produzia mal se faziam ouvir sobre os ruídos das conversas. O cheiro a carne assada deslizou suavemente para o interior do salão, onde jovens escravas distribuíam jarros de hidromel. lorweth, o druida, percorria o salão para cima e para baixo em grande azáfama, abrindo um corredor entre os homens sentados no chão coberto de juncos. Afastou os convivas para os lados, saudou o rei com uma vénia depois de ter aberto o corredor e pediu silêncio com um movimento do bastão.

 

Uma grande saudação irrompeu no seio da multidão que se encontrava no exterior.

 

Os convidados de honra tinham entrado no salão pela retaguarda, subindo para o estrado vindos directamente das sombras da noite. Ceinwyn, no entanto, faria a sua entrada através da enorme porta situada em frente ao salão e para chegar a essa porta teria de caminhar por entre a multidão de convidados que se apinhavam no recinto iluminado por fogueiras. A aclamação que tínhamos acabado de ouvir era o som dos aplausos desses convidados ao vê-la sair dos aposentos das mulheres, enquanto no interior do palácio do rei nós aguardávamos a sua entrada debaixo de um silêncio expectante. Até a harpista afastou os seus dedos das cordas e dirigiu o seu olhar para a porta.

 

Primeiro entrou uma criança. Era uma menina vestida de linho branco que caminhava virada de costas ao longo da ala aberta por lorweth para permitir a passagem de Ceinwyn. A criança ia espalhando pétalas secas de flores primaveris sobre os juncos recentemente dispostos sobre o pavimento. Ninguém falava. Todos os olhares estavam fixos na porta à excepção do meu, que observava o estrado. Lancelote fitava a porta, o rosto iluminado por um meio sorriso. Cuneglas não parava de secar as lágrimas que teimavam em assomar-lhe aos olhos, tão grande era a sua felicidade. Artur, o autor da paz, estava radiante. Só Guinevere não sorria. Exibia apenas uma expressão de triunfo. Em tempos fora objecto de escárnio neste mesmo castelo e agora punha e dispunha da filha do seu senhor, impondo-lhe um casamento.

 

Eu observava Guinevere enquanto, com a mão direita, tirava o osso de dentro da minha bolsa. A costeleta parecia macia sob os meus dedos e Issa, perfilhado atrás de mim com o meu escudo, deve ter perguntado a si mesmo que significado poderia ter para mim aquele resto de comida naquela noite de ouro e fogo, iluminada pela luz da Lua.

 

Olhei para a enorme porta do salão no preciso instante em que Ceinwyn apareceu e, nos segundos que antecederam a explosão de vivas que ressoou por todo o salão, ouviu-se uma exclamação de admiração. Nem todo o ouro da Bretanha, nem nenhuma das rainhas de outrora poderiam ter ofuscado Ceinwyn naquela noite. Não precisei sequer de olhar para Guinevere para saber que ela tinha sido completamente vencida pela astúcia naquela noite de beleza.

 

Esta era, eu bem o sabia, a quarta festa de noivado de Ceinwyn. Viera aqui uma vez por Artur, mas ele quebrara o compromisso deixando-se enfeitiçar pelo amor de Guinevere. Em seguida, Ceinwyn ficara noiva de um Príncipe da distante Rheged. Este, porém, morrera em consequência de uma febre antes do casamento; depois, ainda não há muito tempo, usara o colar de noivado por Gundleus da Silúria, mas este perecera gritando às mãos cruéis de Nimue. Agora, pela quarta vez, Ceinwyn transportava o colar por um homem. Lancelote dera-lhe um tesouro imenso, mas o costume ditava que ela lhe retribuísse presenteando-o com um vulgar cabresto de boi, significando dessa forma que a partir desse dia se submeteria à autoridade dele.

 

Lancelote levantou-se quando ela entrou e o meio sorriso converteu-se num olhar de alegria, o que não era de surpreender, já que a sua beleza era arrebatadora. Nos noivados anteriores, tal como convinha a uma princesa, Ceinwyn aparecera envolta em jóias e prata, ouro e adornos vários. Esta noite, no entanto, usava apenas um simples vestido branco, cingido por um cordão azul-pálido que caía ao longo da saia singela que terminava em borlas. Nem um fio de prata embelezava os seus cabelos, nem o mais pequeno vestígio de ouro cintilava no seu pescoço, não trazia quaisquer jóias preciosas, apenas o vestido de linho e, em torno do cabelo louro-pálido, uma delicada grinalda azul feita com as últimas violetas estivais. Não calçava sapatos, mas caminhava descalça sobre as pétalas. Não evidenciava sinais de realeza ou quaisquer símbolos de riqueza. Deslocara-se até ao salão vestida de forma tão singela como uma camponesa e conseguiu um triunfo. Não era de admirar que os homens suspirassem, não era de admirar que a aplaudissem à medida que ela avançava, lenta e timidamente, por entre os convivas. Cuneglas lacrimejava de felicidade, Artur liderava as aclamações, Lancelote alisava o cabelo e a mãe dele irradiava alegria e aprovação. Por momentos, o rosto de Guinevere ficou imperscrutável, mas depois abriu-se num sorriso, um sorriso de puro triunfo. Podia ter sido ofuscada pela beleza de Ceinwyn, mas esta ainda não deixara de ser a noite de Guinevere, que via assim a sua velha rival ser entregue a um casamento que ela própria arquitectara.

 

Vi o sorriso afectado e vitorioso que assomou no rosto de Guinevere e talvez tivesse sido a sua satisfação maldosa que me fez decidir. Ou talvez tivesse sido o ódio que sentia por Lancelote, ou o meu amor por Ceinwyn, ou talvez Merlim estivesse certo e os Deuses amem de facto o caos, pois num súbito acesso de raiva, agarrei o osso com as duas mãos. Não pensei nas consequências da magia de Merlim, no seu ódio pelos cristãos ou no risco de virmos a acabar todos mortos em plena demanda do Caldeirão, no reino de Diwrnach. Não pensei na ordem prudente de Artur, tinha apenas consciência de que Ceinwyn ia ser entregue a um homem que eu odiava. Eu, como os restantes convivas espalhados pelo salão, estava de pé observando Ceinwyn por entre as cabeças dos guerreiros. Ela alcançara já o grande pilar central de carvalho do salão principal, onde foi envolvida e cercada pelo feroz estridor dos aplausos e assobios. Eu era o único que me mantinha silencioso. Sem desviar os meus olhos dela coloquei os meus dois polegares na parte central da costeleta e prendi as extremidades entre os punhos. "Agora, Merlim" pensei, "agora, velho patife, deixa-me testar a tua magia."

 

Parti a costeleta. O ruído que provocou ao desfazer-se diluiu-se no meio dos aplausos.

 

Enfiei as duas metades do osso dentro da minha bolsa e juro que quase não sentia o bater do meu coração enquanto observava a princesa de Powys, que saíra da noite com flores no cabelo.

 

E que nesse momento se deteve subitamente. Parou, mesmo junto ao pilar decorado com bagas e folhas.

 

Desde que entrara no salão, Ceinwyn não tirara os olhos de Lancelote e assim continuava, o rosto sempre iluminado por um sorriso. No entanto, parou e a sua súbita imobilidade fez com que um silêncio perplexo descesse lentamente sobre o aposento. A criança que espalhava as pétalas franziu o sobrolho e olhou em volta à espera de instruções. Ceinwyn não se mexeu.

 

Artur, sorrindo ainda, deve ter pensado que ela se deixara dominar pelo nervosismo, pois acenou-lhe encorajadoramente. O cabresto oscilava nas suas mãos trémulas. A harpista fez vibrar uma corda hesitante, depois afastou os dedos da harpa e à medida que as suas notas eram abafadas pelo silêncio vi uma figura vestida de negro avançar no meio da multidão, do outro lado da coluna.

 

Era Nimue, cujo olho dourado reflectia as chamas que brilhavam no salão estupefacto.

 

O olhar de Ceinwyn deixou Lancelote para se fixar em Nimue. Em seguida, muito lentamente, ergueu um braço envolto numa manga branca. Nimue segurou na mão dela e olhou para a princesa com uma expressão zombeteira. Ceinwyn parou por uma fracção de segundo, depois fez um aceno de consentimento quase imperceptível. De súbito, o som de vozes encheu o salão, quando Ceinwyn virou as costas ao estrado e, guiada por Nimue, desapareceu por entre a multidão.

 

As conversas morreram, pois ninguém conseguia encontrar uma explicação para o que estava a acontecer. Lancelote, que fora abandonado em pé no estrado, limitava-se a olhar. A boca de Artur permanecera aberta enquanto Cuneglas, meio erguido no seu assento, olhava incrédulo enquanto a irmã abria caminho através da multidão que se afastava perante o rosto feroz, marcado e irónico de Nimue. Guinevere parecia estar disposta a matar.

 

Foi então que o olhar de Nimue se cruzou com o meu e ela sorriu fazendo com que eu sentisse o meu coração bater como o de um animal selvagem enjaulado. Nesse momento, Ceinwyn sorriu para mim e eu deixei de ter olhos para Nimue, apenas conseguia ver Ceinwyn, a doce Ceinwyn, que transportava o cabresto de boi através da multidão de homens na direcção do lugar que eu ocupava no salão. Os guerreiros abriram alas, mas eu parecia feito de pedra, incapaz de me mexer ou de falar à medida que Ceinwyn, com os olhos marejados de lágrimas, avançava para mim. Ela nada disse, limitava-se a segurar o cabresto estendendo-o na minha direcção. Um murmúrio de espanto cresceu à nossa volta, mas eu ignorei as vozes. Em vez disso, caí de joelhos e aceitei o cabresto. Depois segurei as mãos de Ceinwyn e pressionei-as de encontro ao meu rosto que, tal como o dela, estava lavado em lágrimas.

 

O salão explodiu numa manifestação de fúria, protesto e estupefacção, mas Issa permanecia atrás de mim erguendo o meu escudo. Nenhum homem trazia uma arma de lâmina afiada para dentro do palácio de um rei, mas Issa segurava o escudo com a sua estrela de cinco pontas como se estivesse pronto a abater qualquer um que ousasse desafiar aquele momento espantoso. No outro lado, Nimue rogava pragas a todo o salão num tom de voz sibilino, instigando qualquer dos presentes a desafiar a escolha da princesa.

 

Ceinwyn estava ajoelhada e o seu rosto estava próximo do meu.

 

Fizestes um juramento, Senhor sussurrou ela, em como me protegeríeis.

 

Sim, Senhora.

 

Liberto-vos desse juramento, se é esse o vosso desejo.

 

Nunca prometi eu. Ela afastou-se ligeiramente.

 

Não me casarei com nenhum homem, Derfel preveniu-me suavemente, os olhos fixos nos meus. Dar-vos-ei tudo, excepto o casamento.

 

Então dais-me tudo o que eu poderia desejar, Senhora disse eu, com um nó na garganta e os olhos toldados por lágrimas de felicidade. Sorri e devolvi-lhe o cabresto. É vosso disse.

 

Ela sorriu perante o meu gesto, depois deixou cair o cabresto sobre a palha e beijou-me suavemente numa das faces.

 

Acho murmurou-me ao ouvido, maliciosamente, que esta festa correrá melhor sem a nossa presença.

 

Nesse momento levantámo-nos e, de mãos dadas, ignorando perguntas, protestos e até alguns vivas encaminhámo-nos para a noite enluarada. Atrás de nós cresceu a confusão e a fúria e à nossa frente estendia-se uma multidão de pessoas perplexas que atravessámos lado a lado.

 

A casa por baixo de Dolforwyn disse Ceinwyn está à nossa espera.

 

A casa que tem as macieiras? perguntei, recordando o que me dissera sobre a pequena casa com que sonhava quando era criança.

 

Essa mesmo disse ela. Para trás ficara a multidão aglomerada às portas do salão e caminhávamos agora na direcção do portão de Caer Sws, iluminado por tochas. Issa juntara-se a mim depois de ter ido buscar as nossas espadas e lanças, e Nimue seguia ao lado de Ceinwyn. Três das servas de Ceinwyn corriam atrás de nós, assim como uma vintena dos meus homens.

 

Tendes a certeza disto? perguntei a Ceinwyn como se de alguma maneira ela pudesse inverter o curso dos últimos minutos e devolver o cabresto a Lancelote.

 

Estou mais certa disto disse Ceinwyn calmamente do que de qualquer coisa que tenha feito até aqui lançou-me um olhar divertido. Alguma vez duvidaste de mim, Derfel?

 

Duvidei de mim mesmo disse eu.

 

Ela apertou a minha mão.

 

Não pertenço a homem nenhum disse ela, sou apenas senhora de mim mesma. Depois riu deliciada, largou a minha mão e desatou a correr. As violetas soltavam-se dos seus cabelos à medida que ela corria através da erva, impelida por uma alegria genuína. Corri atrás dela, enquanto nas nossas costas, desde a estupefacta entrada do palácio, Artur chamava por nós pedindo-nos que regressássemos.

 

Mas nós continuámos a correr. Direitos ao caos.

 

No dia seguinte peguei numa faca afiada e desbastei as extremidades dos dois pedaços de osso. Em seguida, com muito cuidado, fiz duas incisões estreitas e alongadas nos punhos de madeira da Hywelbane. Issa foi até Caer Sws e trouxe uma porção de grude, que passámos pelo fogo. Quando ficou claro que as duas incisões coincidiam exactamente com a configuração dos fragmentos de osso enchemos as incisões com o grude e encaixámos os dois fragmentos no punho da espada. Retirámos o excesso de grude e envolvemos os pedaços colados com faixas feitas de tendões, apertando-as bem para que os fragmentos de osso ficassem bem incrustados na madeira.

 

Parece marfim disse Issa com admiração quando o trabalho ficou concluído.

 

Pedaços de osso de porco desmenti eu, embora os dois pedaços de osso evocassem realmente o marfim e conferissem a Hywelbane uma aparência distinta. O nome da espada derivava do seu primeiro dono, Hywel, o criado de Merlim que me iniciara no manuseio das armas.

 

Mas os ossos têm magia? perguntou Issa, ansiosamente.

 

A magia de Merlim respondi-lhe, sem adiantar mais explicações. Cavan veio ter comigo ao meio-dia. Pousou um dos joelhos sobre a relva e curvou a cabeça, mas não falou. Nem precisava de o fazer, pois eu conhecia os motivos da sua vinda.

 

És livre de partir, Cavan disse-lhe. Liberto-te do teu juramento.

 

Ele ergueu os olhos e fitou-me. A libertação de um juramento, porém, era algo demasiado difícil para que ele fosse capaz de dizer fosse o que fosse. Sorri-lhe, então.

 

Já não és um jovem, Cavan disse eu, e mereces servir um senhor que te ofereça ouro e conforto, em vez de uma Estrada Sombria e de uma vida de incertezas.

 

Tenho uma cisma, Senhor conseguiu, finalmente, falar. Morrer na Irlanda.

 

Para que possas estar com os teus?

 

Sim, Senhor. Mas não posso regressar como um homem pobre. Preciso de ouro.

 

Queima o teu escudo, nesse caso aconselhei-o.

 

Sorriu ao ouvir as minhas palavras e em seguida beijou o punho da Hywelbane.

 

Sem ressentimentos, Senhor? perguntou, ansioso.

 

Nenhuns disse eu. E se alguma vez precisares da minha ajuda, avisa-me.

 

Levantou-se e abraçou-me. Voltaria para servir Artur e levaria com ele metade dos meus homens, já que comigo ficavam apenas vinte. Os restantes, ou temiam Diwrnach ou estavam demasiado sequiosos de riquezas, e eu não podia culpá-los por isso. Tinham conquistado honrarias, anéis de guerreiros e caudas de lobo ao meu serviço, mas pouco ouro. Autorizei-os a manter as caudas de lobo nos elmos, já que as tinham ganho no decurso dos terríveis combates de Benoic. Obriguei-os, porém, a apagar as estrelas recentemente pintadas nos seus escudos.

 

As estrelas estavam reservadas aos vinte homens que tinham escolhido ficar comigo, e estes eram os mais jovens, os mais fortes e os mais aventureiros de todos os meus lanceiros. Só os Deuses sabem como precisavam sê-lo, pois ao fazer estalar o osso eu tinha-os ligado indissoluvelmente à Estrada Sombria.

 

Não sabia quando seríamos convocados por Merlim, por isso deixei-me ficar à espera na pequena casa para onde Ceinwyn nos levara naquela noite enluarada. A casa ficava situada a Norte e a Leste do Dolforwyn, num pequeno vale muito escarpado, onde as sombras apenas abandonavam o riacho quando o Sol ia já a meio do seu curso no céu matinal. As encostas íngremes do vale estavam forradas por carvalhos, mas em volta da casa via-se um conjunto de campos minúsculos, cuja disposição fazia lembrar uma manta de retalhos, onde alguém plantara uma vintena de macieiras. A casa não tinha nome, tal como o vale, de resto. Era apenas conhecido como Cwm Isaf, o Vale Baixo, e era agora a nossa casa.

 

Os meus homens construíram abrigos entre as árvores, na encosta sul do vale. Não sabia como iria cuidar de vinte homens e das respectivas famílias, pois a pequena quinta de Cwm Isaf mal tinha capacidade para alimentar um rato do campo, quanto mais um bando de guerreiros. Ceinwyn, no entanto, tinha ouro e, tal como ela me prometera, o irmão não nos deixaria morrer à fome. A quinta, dissera ela, tinha pertencido a seu pai, sendo uma entre as milhares de propriedades arrendadas que tinham alimentado a riqueza de Gorfyddyd. O último arrendatário fora um primo do fabricante de velas de Caer Sws, que falecera antes da batalha do Vale do Lugg, e até ao momento ninguém fora escolhido para o substituir. A casa propriamente dita era muito modesta, consistindo num pequeno rectângulo de pedra coberto por um telhado feito de uma espessa camada de palha de centeio e fetos, que carecia de uma reparação urgente. No interior havia três divisões. Uma delas, a principal, abrigara outrora os poucos animais da quinta. Varremo-la e limpámo-la para a transformar num espaço minimamente habitável. As outras duas divisões correspondiam aos quartos de dormir, um para Ceinwyn e outro para mim.

 

Prometi a Merlim dissera ela naquela primeira noite, tentando justificar a existência dos dois quartos de dormir.

 

Senti uma desagradável sensação de formigueiro espalhar-se pela minha pele.

 

O que é que lhe prometeste? perguntei.

 

Ela deve ter corado, mas o luar não conseguia penetrar nas profundezas de Cwm Isaf impedindo-me assim de distinguir o seu rosto. Apenas podia sentir a pressão dos dedos dela entrelaçados nos meus.

 

Prometi-lhe disse, lentamente que me manteria virgem até encontrarmos o Caldeirão.

 

Nesse momento comecei a compreender quão subtil fora Merlim. Subtil, perverso e esperto. Precisava de um guerreiro que o protegesse durante a viagem até Lleyn e precisava de uma virgem para encontrar o Caldeirão, por isso manipulara-nos a ambos.

 

Não! protestei. Tu não podes entrar em Lleyn!

 

Só uma virgem pode descobrir o Caldeirão sussurrara-nos Nimue na escuridão. Preferias que levássemos uma criança, Derfel?

 

Ceinwyn não pode ir para Lleyn insisti.

 

Silêncio. Ceinwyn calara-me. Eu prometi. Fiz um juramento.

 

Sabes o que é Lleyn? perguntei-lhe. Sabes o que faz Diwrnach?

 

Sei disse ela que a viagem até lá é o preço que tenho de pagar para estar aqui contigo. E prometi a Merlim repetiu ela. Fiz um juramento.

 

Foi assim que dormi sozinho naquela noite. Na manhã seguinte, no entanto, depois de termos partilhado um modesto pequeno-almoço na companhia dos nossos lanceiros e criados e antes de eu ter incrustado os fragmentos de osso no punho da Hywelbane, Ceinwyn acompanhou-me num passeio ao longo do ribeiro de Cwm Isaf. Escutou os meus argumentos inflamados contra a sua intenção de percorrer a Estrada Sombria, mas rejeitou-os a todos alegando que se Merlim estava connosco, quem poderia triunfar sobre nós?

 

Diwrnach disse eu, num tom resoluto.

 

Mas tu irás acompanhar Merlim, não é verdade? perguntou-me.

 

Sim.

 

Nesse caso, não tentes impedir-me insistiu. Estarei contigo, e tu estarás comigo. E recusou-se a dar ouvidos a outros argumentos.

 

Não era mulher para se vergar à autoridade de um homem. A sua decisão estava tomada.

 

Depois, é claro, conversámos sobre os acontecimentos dos últimos dias e as nossas palavras jorraram desordenadas. Estávamos apaixonados, tão enfeitiçados um pelo outro como Artur por Guinevere e não nos cansávamos de querer conhecer os pensamentos e as histórias de ambos. Mostrei-lhe o osso de porco e ela riu quando lhe disse que esperara até ao último momento antes de o partir em dois.

 

Na verdade, não sabia se ousaria virar costas a Lancelote admitiu Ceinwyn. Desconhecia tudo sobre o osso, claro. Pensei que tivesse sido Guinevere quem me tinha forçado a tomar uma decisão.

 

Guinevere? perguntei, surpreendido.

 

Não consegui suportar o seu regozijo. Será que isso faz de mim uma pessoa horrível? Senti-me como se fosse o seu gatinho de estimação e não consegui suportá-lo. Caminhou em silêncio durante algum tempo. Folhas caíam das árvores, a maioria das quais estavam ainda verdes. Nessa manhã, ao acordar na primeira madrugada que passei em Cwm Isaf, vira uma andorinha levantar voo do telhado. Não voltou e calculei que até à Primavera não tornaríamos a ver mais nenhuma. Ceinwyn caminhava descalça ao longo da margem do ribeiro, a sua mão na minha.

 

E tenho andado a pensar naquela profecia do leito de caveiras continuou. Acho que significa que não devo casar-me. Estive noiva por três vezes, Derfel, três vezes! E por três vezes perdi o meu prometido. Se isso não é uma mensagem dos Deuses, o que é então?

 

Oiço Nimue disse eu. Ela riu.

 

Gosto dela.

 

Nunca poderia imaginar que vocês gostassem uma da outra confessei.

 

E porque não haveríamos de gostar? Gosto do seu carácter beligerante. Temos de agarrar a vida com as nossas próprias mãos, não submeter-nos a ela. Durante toda a minha vida, Derfel, fiz aquilo que as pessoas me diziam para fazer. Sempre fui muito bem comportada disse, dando à expressão "bem comportada" uma inflexão irónica. Sempre fui aquela rapariguinha obediente, a filha respeitadora. Era fácil, claro, pois o meu pai gostava de mim e ele gostava de muito poucas pessoas, mas deram-me tudo o que sempre quis e, em troca, tudo o que queriam de mim era que eu fosse bonita e obediente. E eu era muito obediente.

 

Bonita, também.

 

Enterrou um cotovelo nas minhas costelas, num gesto de reprovação. Um bando de lavandiscas sarapintadas levantou voo no meio da neblina que envolvia o ribeiro, que se estendia diante de nós.

 

Fui sempre obediente disse Ceinwyn, tristonha. Sabia que teria de casar com aquele que escolhessem para meu marido, e isso não me preocupava porque é o que fazem as filhas dos reis. Lembro-me da felicidade que senti quando conheci Artur. Julguei que a vida afortunada que tivera até esse momento iria prolongar-se indefinidamente. Tinha sido agraciada com um homem tão bom. Então, subitamente, ele esfumou-se.

 

E nem sequer reparaste em mim disse eu.

 

Eu era o mais jovem dos lanceiros da guarda de Artur quando ele viera a Caer Sws, a fim de celebrar o seu noivado com Ceinwyn. Foi nessa altura que ela me deu o pequeno pregador que ainda usava nessa época. Ela presenteara toda a escolta de Artur, mas nunca soube o fogo que ateara na minha alma, nesse dia.

 

Tenho a certeza que reparei em ti, sim disse ela. Quem poderia ignorar um latagão grande, desajeitado e com cabelos louro-palha como tu? Riu e depois deixou que a ajudasse a saltar por cima de um carvalho derrubado. Usava o mesmo vestido de linho que vestira na noite anterior, embora a saia branco-pálido estivesse agora manchada de lama e musgo. Em seguida fiquei noiva de Caelgyn de Rheged continuou o seu relato, e já não estava tão certa de ser uma pessoa afortunada. Era um bruto intratável, mas prometeu ao meu pai uma centena de lanceiros e uma quantia em ouro como dote e eu convenci-me que seria feliz na mesma, ainda que tivesse de ir viver para Rheged. Mas Caelgyn morreu com uma febre. Depois houve Gundleus a recordação fê-la franzir o sobrolho. Nesse momento compreendi que não passava de um peão num jogo de guerra. O meu pai amava-me, mas ter-me-ia entregue a Gundleus, se isso significasse mais armas para lutar contra Artur. Foi aí que compreendi pela primeira vez que nunca seria feliz a não ser que eu própria construísse a minha felicidade, e foi precisamente nessa altura que tu e Galaad vieram visitar-nos. Lembras-te?

 

Lembro. Acompanhara Galaad na sua fracassada missão de paz e Gorfyddyd, em jeito de insulto, obrigara-nos a jantar nos aposentos das mulheres. Aí, à luz das velas, ao som da música tocada por uma harpista, conversara com Ceinwyn e jurara protegê-la.

 

Tu importavas-te com a minha felicidade.

 

Estava apaixonado por ti confessei. Era um cão latindo a uma estrela.

 

Ela sorriu.

 

Depois veio Lancelote. O adorável Lancelote. O bonito Lancelote. Todos me diziam que eu era a mulher mais afortunada da Bretanha, mas queres saber qual era o meu pressentimento? Que para Lancelote eu seria apenas mais uma das suas possessões, e ele parece já ter tantas. No entanto, ainda não tinha a certeza do que iria fazer. Então Merlim apareceu e conversou comigo. Deixou ficar Nimue, que falou, falou, falou. Eu, porém, já sabia que não queria pertencer a homem nenhum. Toda a minha vida pertenci a homens. Então, Nimue e eu fizemos um juramento a Don e eu Jurei-Lhe que se Ela me concedesse as forças de que precisava para conquistar a minha liberdade nunca me casaria. Amar-te-ei prometeu-me, erguendo os olhos para fitar o meu rosto, mas nunca pertencerei a homem nenhum.

 

"Talvez não", pensei, "mas ela, tal como eu, era ainda um joguete nas mãos de Merlim." Como se tinham afadigado, ele e Nimue. No entanto, nada adiantei sobre isso, nem sobre a Estrada Sombria.

 

A partir de agora serás inimiga de Guinevere adverti Ceinwyn.

 

Sim disse ela, mas sempre fui, desde o momento em que ela decidiu roubar-me Artur. Nessa altura, porém, eu não passava de uma criança e não sabia como havia de lutar contra ela. A noite passada ripostei, embora daqui para o futuro pretenda apenas manter-me discreta. Sorriu. E tu deverias ter casado com Gwenhwyvach?

 

Pois devia confessei.

 

Pobre Gwenhwyvach disse Ceinwyn. Ela foi sempre muito boa para mim enquanto elas viveram aqui, mas lembro-me que sempre que a irmã entrava no quarto ela fugia. Era como se ela fosse um rato enorme e anafado e a irmã fosse o gato.

 

Artur veio até ao vale nessa tarde. O grude que segurava os fragmentos de osso secava no punho da Hywelbane quando os seus guerreiros surgiram entre as árvores que cobriam a encosta sul de Cwm Isaf, em frente à nossa casa. Os lanceiros não vinham para nos ameaçar, apenas tinham feito um desvio na longa marcha de regresso a casa, a aprazível Dumnónia. Não vimos sinais de Lancelote, nem de Guinevere, à medida que Artur atravessava sozinho o ribeiro. Não trazia nem a espada nem o escudo.

 

Recebemo-lo à porta de nossa casa. Ele cumprimentou Ceinwyn com uma vénia e depois sorriu-lhe.

 

Querida Senhora disse simplesmente.

 

Estais zangado comigo, Senhor? perguntou-lhe ela, ansiosa. Ele fez uma careta.

 

A minha mulher julga que sim, mas não estou. Como posso eu estar zangado? Apenas fizestes o mesmo que eu fiz outrora, e vós tivestes a gentileza de o fazer antes do juramento tornou a sorrir-lhe. Talvez tenhais causado um certo contratempo, mas eu mereci-o. Posso caminhar um pouco com Derfel?

 

Metemos pelo mesmo caminho que eu percorrera com Ceinwyn nessa manhã, e mal se apanhou fora do alcance dos seus lanceiros, Artur pôs um braço em volta dos meus ombros.

 

Muito bem, Derfel disse ele, suavemente.

 

Lamento, se o que fiz vos magoou, Senhor.

 

Não sejas tolo. Fizeste aquilo que eu fiz em tempos e invejo-te pela frescura com que levaste a cabo os teus planos. Isso apenas muda as coisas, é tudo. É, como já disse, um contratempo.

 

Não serei o paladino de Mordred disse eu.

 

Não. Mas alguém há-de ser. Se dependesse de mim, meu amigo, levava-vos a ambos para casa, nomeava-te paladino e dava-te tudo o que tenho para dar. Mas as coisas nem sempre podem ser como nós queremos.

 

Quereis dizer disse eu, sem cerimónia, que a princesa Guinevere nunca me perdoará.

 

Não, confirmou Artur tristemente. Nem Lancelote suspirou. Que hei-de fazer com Lancelote?

 

Casai-o com Gwenhwyvach sugeri eu, e enterrai-os a ambos na Silúria.

 

Ele riu.

 

Se ao menos pudesse fazê-lo. Vou enviá-lo para a Silúria, isso é certo, mas duvido que a Silúria o prenda. As suas ambições ultrapassam os limites daquele pequeno reino, Derfel. Tinha esperanças que o facto de ter Ceinwyn e uma família pudessem prendê-lo lá, mas agora? Encolheu os ombros. Teria feito melhor se te tivesse dado o reino a ti. Tirou o braço de cima dos meus ombros e olhou-me de frente. Não vou libertar-vos dos vossos juramentos, Lorde Derfel Cadarn anunciou ele, em tom formal, ainda sois um dos meus homens e quando mandar chamar-vos vireis ter comigo.

 

Sim, Senhor.

 

Isso acontecerá na Primavera acrescentou. Jurei manter a paz com os Saxões durante três meses e cumprirei esse juramento; e quando esses três meses se tiverem esgotado, o Inverno forçar-nos-á a manter as nossas lanças empilhadas. Mas na Primavera marcharemos e vou querer os teus homens no meu escudo defensivo.

 

Eles lá estarão, Senhor prometi eu.

 

Levantou as duas mãos e pousou-as nos meus ombros.

 

Também juraste obediência a Merlim? perguntou-me ele, olhando-me fixamente.

 

Sim, Senhor admiti.

 

Partirás então em busca de um Caldeirão que não existe?

 

Partirei em busca do Caldeirão, sim. Cerrou os olhos.

 

Quanta estupidez! Deixou cair as mãos e abriu os olhos. Eu acredito nos Deuses, Derfel, mas será que os Deuses acreditam na Bretanha? Esta já não é a antiga Bretanha disse ele com veemência. É provável que em tempos tivéssemos sido um único povo de um só sangue e uma só carne, mas hoje? Os Romanos trouxeram homens de todos os cantos do mundo! Sarmáticos, Líbios, Gauleses, Númidas, Gregos! O sangue deles misturou-se com o nosso, da mesma forma que este fervilha de sangue romano e se mistura agora com sangue saxão. Somos o que somos, Derfel, e não aquilo que fomos outrora. Hoje em dia existe uma centena de deuses e já não apenas os velhos deuses; não podemos inverter o curso dos anos, mesmo que o Caldeirão ou todos os Tesouros da Bretanha estejam em nosso poder.

 

Merlim não é dessa opinião.

 

E Merlim obrigar-me-ia a lutar contra os cristãos apenas para que os deuses dele possam prevalecer? Não, não o farei, Derfel. Falava com raiva. Podes procurar o teu Caldeirão imaginário, mas não julgues que irei jogar o jogo de Merlim perseguindo os cristãos.

 

Merlim disse eu, na defensiva deixará o destino dos Deuses nas mãos dos deuses.

 

E que outra coisa somos nós senão os instrumentos dos Deuses? perguntou Artur. Não vou lutar contra outros bretões só porque eles adoram outro deus. Nem tu, Derfel, enquanto o teu juramento se mantiver válido.

 

Não, Senhor.

 

Ele soltou um suspiro.

 

Odeio todo este rancor em torno dos Deuses. Mas Guinevere não se cansa de me dizer que sou cego em relação aos Deuses. Segundo ela é o meu único defeito sorriu. Se estás ligado a Merlim por um juramento, Derfel, então tens de acompanhá-lo. Para onde te leva ele?

 

Para Ynys Mon, Senhor.

 

Fitou-me em silêncio durante alguns segundos e depois estremeceu.

 

Vais para Lleyn? perguntou, incrédulo. Ninguém sai vivo de Lleyn.

 

Eu sairei vangloriei-me eu.

 

Faz por isso, Derfel, faz por isso. Parecia melancólico. Preciso que me ajudes a derrotar os Saxões. Depois disso, talvez possas regressar a Dumnónia. Guinevere não é mulher que guarde ressentimentos.

 

Tinha dúvidas quanto a isso, mas nada disse.

 

Mandarei chamar-te na Primavera, então prosseguiu Artur, e rezo para que sobrevivas a Lleyn. Enfiou um dos braços no meu e acompanhou-me de regresso à casa. E se alguém te perguntar alguma coisa, Derfel, acabei de te repreender violentamente. Amaldiçoei-te e cheguei mesmo a agredir-te.

 

Desatei a rir.

 

Perdoo-vos a agressão, Senhor.

 

Considera-te repreendido disse ele, e considera-te também continuou o segundo homem mais afortunado da Bretanha.

 

"O homem mais afortunado do Mundo", pensei eu, já que tinha junto a mim o desejo da minha alma.

 

Ou viria a ter, que os Deuses nos livrassem do mal!, quando Merlim tivesse o seu.

 

Fiquei de pé observando a partida dos lanceiros. O estandarte de Artur, representando um urso, espreitou brevemente por entre as árvores. Ele acenou, montou no seu cavalo e partiu.

 

E nós ficámos sozinhos.

 

Não estava, pois, em Dumnónia para assistir ao regresso de Artur. Teria gostado disso, pois ele regressava como herói a um país que desdenhara as suas hipóteses de sobrevivência e conspirara para o substituir por criaturas menores.

 

A comida escasseava no Outono, já que a guerra inesperada tinha esgotado as novas colheitas. Não havia fome, no entanto, e os homens de Artur cobravam tributos justos. Podem parecer progressos de pouca monta, mas depois dos acontecimentos de anos recentes causaram grande agitação por todo o país. Só os ricos pagavam tributos ao Tesouro Real. Alguns faziam-no em ouro, mas a maioria contribuía com cereais, couro, linho, sal, lã e peixe seco que, em contrapartida, lhes haviam sido entregues pelos respectivos arrendatários. Nos últimos anos, os ricos pouco tinham pago ao rei enquanto os pobres tinham pago muito aos ricos. Deste modo, Artur ordenou aos seus lanceiros que inquirissem junto dos pobres qual o tributo que lhes tinha sido cobrado e que, com base nas suas respostas, procedessem à cobrança junto dos ricos. No final, um terço da colheita foi entregue a igrejas e magistrados, para que estes pudessem distribuir alimentos durante o Inverno. Esse acto só por si foi o suficiente para que Dumnónia percebesse que o país tinha um novo poder, e apesar de alguns sinais de descontentamento entre os ricos, nenhum deles se atreveu a oferecer qualquer oposição a Artur. Ele era o senhor da guerra do reino de Mordred, o vencedor do Vale do Lugg, o chacinador de Reis, e aqueles que antes lhe ofereciam resistência hoje temiam-no.

 

Mordred foi entregue aos cuidados de Culhwuch, primo de Artur e um guerreiro rude e honesto que, provavelmente, estava pouco interessado no destino de uma criança pequena e difícil. Culhwuch estava demasiado ocupado em conter a revolta desencadeada por Cadwy de Isca nas longínquas regiões ocidentais da Dumnónia, e segundo ouvi dizer liderou os seus homens numa campanha-relâmpago através das imensas charnecas, rumando depois para Sul para as paisagens agrestes da costa. Arrasou o coração dos domínios de Cadwy e em seguida tomou de assalto o príncipe rebelde na velha fortaleza romana de Isca. As muralhas estavam degradadas e os veteranos do Vale do Lugg galgaram as muralhas da cidade e perseguiram os rebeldes através das ruas. O príncipe Cadwy foi capturado num santuário romano e aí foi desmembrado. Artur ordenou que partes do seu corpo fossem exibidas pelas cidades de Dumnónia e a sua cabeça, ostentando as inequívocas tatuagens azuis no rosto, foi enviada ao rei Mark de Kernow, o instigador da revolta. Em resposta, o rei Mark enviou um tributo em lingotes de estanho, uma selha de peixe defumado, três carapaças de tartaruga polidas que tinham dado à costa nesta região agreste e um protesto de inocência, negando qualquer cumplicidade na rebelião de Cadwy.

 

Durante a tomada da fortaleza de Cadwy, Culhwuch encontrara algumas cartas que enviara a Artur. As cartas tinham sido enviadas pela facção cristã de Dumnónia e tinham sido escritas antes da campanha que culminara no Vale do Lugg. Nelas se explicitavam em pormenor os planos destinados a livrar Dumnónia da presença de Artur. Os cristãos tinham antipatizado com Artur desde que ele revogara a lei do Rei Supremo Uther, que isentava a igreja do pagamento de impostos e empréstimos, e tinham-se convencido que o seu deus iria conduzir Artur para uma grande derrota às mãos de Gorfyddyd. Fora a perspectiva dessa derrota quase certa que os encorajara a pôr os seus pensamentos por escrito, e eram esses mesmos escritos que estavam agora na posse de Artur.

 

As cartas revelavam uma comunidade cristã ansiosa, que queria a morte de Artur mas que temia igualmente as incursões dos lanceiros pagãos comandados por Gorfyddyd. Para se salvarem a si mesmos e às suas riquezas estavam dispostos a sacrificar Mordred, e as cartas incitavam Cadwy a marchar sobre Durnovária durante a ausência de Artur, matar Mordred e em seguida entregar o reino a Gorfyddyd. Os cristãos prometiam-lhe auxílio e esperavam que as lanças de Cadwy os protegessem quando Gorfyddyd reinasse.

 

Em vez disso foram punidos. Melwas, o Rei dos Belgas, apoiante dos cristãos que se opunham a Artur foi designado como o novo governante dos domínios de Cadwy. Isto dificilmente podia ser considerado uma recompensa, já que obrigava Melwas a viajar para muito longe das suas gentes até um lugar onde Artur poderia seguir os seus movimentos de perto. Nabur, o magistrado cristão que detivera a guarda de Mordred e que se servira dessa posição para formar a facção que se opunha a Artur, e que era também o autor das cartas sugerindo o assassinato de Mordred, foi crucificado no anfiteatro de Durnovária. Nos dias que correm, obviamente, é considerado um santo e um mártir, mas quanto a mim apenas recordo Nabur como um mentiroso e um corrupto. Dois padres, um outro magistrado e dois proprietários rurais foram também condenados à morte. O último conspirador era o bispo Sansum, embora este fosse demasiado astuto para deixar que o seu nome ficasse registado por escrito. Foi essa astúcia, aliada à estranha amizade que mantinha com Morgana, a irmã aleijada e pagã de Artur, que salvou a vida de Sansum. Jurou lealdade eterna a Artur, colocou uma mão sobre um crucifixo e jurou que nunca conspirara para matar o rei e isso valeu-lhe uma nomeação como guardião do santuário do Espinheiro Sagrado, em Ynys Wydryn. Sansum podia ser posto a ferros e ameaçado com uma espada ao pescoço, mesmo assim ele conseguiria libertar-se.

 

Morgana, a sua amiga pagã, fora a sacerdotisa de confiança de Merlim até Nimue, mais jovem do que ela, ter usurpado a sua posição. Merlim e Nimue, porém, estavam ambos ausentes em paragens longínquas, o que colocava Morgana na posição de soberana virtual das terras de Merlim, em Avalon. Morgana, o rosto destruído pelo fogo escondido sob a sua máscara dourada e o corpo deformado pelas chamas envolto numa túnica negra, assumiu os poderes de Merlim tendo sido ela quem terminou a reconstrução do castelo de Merlim, no Tor, e quem organizou a cobrança de tributos na região norte das terras de Artur. Morgana tornou-se um dos conselheiros de maior confiança de Artur; na verdade, após a morte do bispo Bedwin no Outono desse ano, na sequência de uma febre, Artur chegou a sugerir, contrariando todos os precedentes, que Morgana fosse nomeada conselheira efectiva. Nunca até então uma mulher tinha feito parte de Conselho do Rei na Bretanha e Morgana poderia muito bem ter sido a primeira, mas Guinevere impediu que tal se concretizasse. Guinevere não permitiria que nenhuma mulher fosse nomeada conselheira se ela própria não pudesse sê-lo. Além do mais, Guinevere odiava tudo o que era feio e, como os Deuses bem sabem, a pobre Morgana era grotesca, mesmo quando usava a máscara dourada. Morgana permaneceu, então, em Ynys Wydryn, enquanto Guinevere supervisionava a construção do novo palácio em Lindinis.

 

Era um palácio deslumbrante. A antiga villa romana que Gundleus incendiara foi reconstruída e ampliada de forma que as suas alas formadas por claustros albergassem dois enormes pátios fechados, onde a água corria através de canais de mármore. Lindinis, que ficava próximo da colina real de Caer Cadarn, seria a nova capital de Dumnónia, embora Guinevere tivesse tomado as providências necessárias para que Mordred, aleijado do pé esquerdo, não obtivesse autorização para se aproximar do local. Só as pessoas formosas poderiam permanecer em Lindinis, e nos seus pátios servidos por arcadas. Guinevere reuniu estátuas provenientes de villas e santuários de toda a Dumnónia. Não havia um santuário cristão, mas Guinevere mandou erigir um enorme e sombrio salão dedicado à deusa ísis, bem como um elegante conjunto de aposentos onde Lancelote podia ficar instalado quando visitava o palácio, vindo da Silúria, o seu novo reino. Elaine, a mãe de Lancelote, vivia nesses aposentos e ela, que outrora transformara Ynys Trebes num sítio extremamente belo, ajudava agora Guinevere a fazer do palácio de Lindinis um santuário de beleza.

 

Artur, segundo sei, raramente se deslocava a Lindinis. Estava demasiado ocupado com os preparativos da grande guerra contra os Saxões, e a pensar nela dera início à refortificação das antigas cidadelas de terra do sul da Dumnónia. Até Caer Cadarn, perdida no coração do nosso país, viu as suas muralhas serem reforçadas ao mesmo tempo que novas plataformas de combate em madeira eram colocadas nos contrafortes. Os trabalhos de maior vulto, contudo, tiveram lugar em Caer Ambra, a uma escassa meia-hora de caminho a leste das Pedras; esta deveria ser a sua nova base de combate contra os Sais. Os antigos tinham aí construído um forte, mas durante o Outono e o Inverno os escravos trabalharam arduamente para fortalecer as antigas paredes de terra e construir novas paliçadas e plataformas de combate no cimo das muralhas. Outras fortificações foram reparadas a sul de Caer Ambra, com o objectivo de defender as terras mais baixas de Dumnónia das investidas dos saxões do sul liderados por Cerdic, que com certeza atacariam enquanto Artur assaltava Aelle, no Norte. Nunca desde o tempo dos Romanos, atrevo-me a dizer, se tinha visto cavar tanta terra britânica ou serrar tanta madeira, e os tributos honestos cobrados por Artur jamais seriam suficientes para pagar metade de todo esse esforço. Foi então que ele decidiu impor um imposto às prósperas e poderosas igrejas cristãs do sul da Bretanha, as mesmas que haviam apoiado as diligências de Nabur e de Sansum para derrubá-lo. O dinheiro destes impostos acabaria por ser devolvido, tendo protegido os cristãos das sinistras atenções dos saxões idólatras. Os cristãos, porém, nunca perdoaram Artur, da mesma forma que não se aperceberam que impostos semelhantes foram cobrados a um conjunto de santuários pagãos que ainda possuíam algumas riquezas.

 

Nem todos os cristãos eram inimigos de Artur. Pelo menos um terço dos seus soldados era cristão, e estes homens eram tão leais como qualquer pagão. Muitos outros cristãos aprovavam a sua governação, mas a maioria dos dirigentes eclesiásticos deixaram que a sua cobiça ditasse as leis que regiam a sua lealdade e eram esses os seus verdadeiros opositores. Acreditavam que o seu deus haveria de regressar à terra um dia e caminhar no meio de nós como qualquer mortal. No entanto, Ele só voltaria quando todos os pagãos tivessem sido convertidos à Sua fé. Os pregadores, cientes de que Artur era pagão, lançavam-lhe maldições, mas Artur ignorava as suas palavras durante os seus infindáveis périplos pelo sul da Bretanha. O dia chegaria em que ele e Sagramor estariam juntos na fronteira de Aelle e, no dia seguinte, estariam a lutar contra um dos bandos de guerreiros de Cerdic que avançavam pelos vales a sul. Depois cavalgaria para norte, através da Dumnónia e direito a Isca depois de ter atravessado Gwent, onde negociaria com os chefes locais o número de soldados que poderiam ser recrutados a ocidente de Gwent e a leste da Silúria. Graças ao Vale do Lugg, Artur era agora muito mais do que o Senhor Supremo de Dumnónia e do que o tutor de Mordred. Era o senhor da guerra da Bretanha, o líder indiscutível de todos os nossos exércitos, e não havia rei que se recusasse a atender aos seus chamados ou que, naqueles dias, quisesse fazê-lo.

 

No entanto, tudo isto eu perdi, pois encontrava-me em Caer Sws na companhia de Ceinwyn, apaixonado. E esperava Merlim.

 

Merlim e Nimue chegaram a Cwm Isaf escassos dias antes do solstício de Inverno. Nuvens negras acumulavam-se mesmo por cima das copas desfolhadas dos carvalhos nas serranias em volta e a geada matinal persistia já a tarde ia avançada. O ribeiro era um labirinto de placas de gelo e de água escorrendo gota a gota, as folhas mortas estavam quebradiças e o solo do vale era duro como pedra. Acendêramos uma fogueira no aposento central e a nossa casa estava suficientemente aquecida, ainda que estivesse saturada de fumo que revoluteava em torno do travejamento irregular antes de encontrar a pequena abertura na linha de junção do telhado. Outras fogueiras ardiam nos abrigos que os meus soldados tinham erigido em toda a extensão do vale; pequenas cabanas resistentes feitas de terra e pedras que suportavam telhados de madeira e fetos. Tínhamos construído um abrigo para os animais na parte de trás da casa, onde um touro, duas vacas, três porcas, um javali, uma dúzia de carneiros e uma vintena de galinhas ficavam guardadas durante a noite, a salvo dos ataques dos lobos. Havia muitos lobos nos bosques em redor e os seus uivos ecoavam todos os dias à hora do crepúsculo; em certas noites era possível ouvir o arranhar das suas garras do outro lado da cabana dos animais. Os carneiros baliam tristemente, as galinhas cacarejavam assaltadas pelo pânico, e Issa, ou quem quer que estivesse de guarda, gritava e atirava violentamente um tição na direcção da orla do bosque para espantar os lobos. Uma manhã bem cedo, quando me dirigia até ao ribeiro a fim de ir buscar água, dei comigo frente a frente com um lobo velho e enorme. Tinha estado a beber água, mas no momento em que saí do meio dos arbustos, ele ergueu o focinho cinzento, fitou-me e depois esperou pela minha saudação antes de se afastar silenciosamente rio acima. Era, decidi eu, um bom presságio e durante aqueles dias em que aguardávamos a chegada de Merlim valorizávamos os presságios.

 

Também caçávamos lobos. Cuneglas dera-nos três parelhas de cães de lobo peludos, maiores e mais hirsutos do que os famosos galgos de Powys e iguais aos que Guinevere tinha em Dumnónia. O desporto mantinha activos os meus soldados e até Ceinwyn gostava daqueles dias longos e frios passados nos bosques frondosos. Usava calções de couro, botas altas, um justilho de pele e uma comprida faca de caça presa à cintura. Entrançava os cabelos loiros e apanhava-os na nuca, depois escalava rochedos, descia ravinas, saltava por cima de árvores mortas no encalço da sua parelha de galgos escoceses presos por longas cordas feitas de crinas de cavalo, que faziam as vezes de trelas. A maneira mais simples de caçar lobos era com arco e flecha, mas como poucos de nós possuíam talento para tal usávamos cães, lanças de guerra e facas. Quando Merlim finalmente regressou, a arrecadação de Cuneglas albergava já uma rima de peles de lobo. O rei expressara a sua vontade de que regressássemos a Caer Sws, mas Ceinwyn e eu sentíamo-nos tão felizes quanto a antecipação da prova a que seríamos submetidos por Merlim nos permitia, pelo que nos deixámos ficar no nosso pequeno vale contando os dias.

 

E como fomos felizes em Cwm Isaf. Ceinwyn sentia um prazer ridículo na execução de todas as tarefas que até então tinham estado a cargo dos seus servos. Estranhamente, porém, nunca conseguiu torcer o pescoço de um frango e eu jamais fui capaz de conter o riso sempre que a via matar uma galinha. Não tinha necessidade de o fazer, já que qualquer um dos servos poderia ter morto a ave e os meus soldados estavam dispostos a fazer tudo por Ceinwyn, mas ela insistia em dividir as tarefas, ainda que quando se tratava de matar galinhas, patos e gansos não conseguisse fazê-lo como devia ser. O único método que foi capaz de inventar foi deitar a pobre criatura no chão, colocar um dos seus pequenos pés sobre o pescoço da ave e, em seguida, fechando os olhos com força, aplicar um golpe rápido e decisivo na cabeça.

 

Tinha mais sucesso com a roca. Todas "as mulheres da Bretanha, à excepção das muito abastadas, nunca se separavam da roca e do fuso, já que fiar era uma daquelas tarefas infindáveis que provavelmente durarão até o Sol concluir a sua última volta em torno da Terra. Mal os tosões de um determinado ano acabavam de ser transformados em fio, já os tosões do ano seguinte enchiam as arrecadações, e as mulheres juntavam grandes quantidades de lã que lavavam e desembaraçavam antes de retomarem a fiação. Fiavam enquanto caminhavam, fiavam enquanto conversavam, fiavam sempre que nenhuma outra tarefa as obrigava a usar as mãos. Era um trabalho monótono, estúpido, mas que exigia perícia. No início, Ceinwyn apenas conseguia produzir pequenos e patéticos farrapos de lã, mas foi-se aperfeiçoando com o tempo, embora nunca chegasse a ser tão rápida como as mulheres que fiavam lã desde o primeiro dia em que as suas mãos tinham atingido o tamanho suficiente para segurar a roca. Sentava-se, à noite, e contava-me como lhe tinha corrido o dia enquanto virava o esteio com a mão esquerda e, com a direita, afastava o fuso pesado que pendia da roca para assim alongar e torcer o fio que entretanto surgia. Quando o fuso tocava o chão, ela enrolava o fio em volta dele, prendia o rolo de fio com uma mola feita de osso na parte superior do fuso e recomeçava a fiar. A lã que ela fiou naquele Inverno era grumosa ou frágil, mas, lealmente, usei uma das camisas feitas por ela com esse fio até a mesma se desfazer.

 

Cuneglas visitava-nos com frequência, embora a esposa, Helled, nunca o acompanhasse. A rainha Helled era muito convencional e reprovava profundamente a atitude de Ceinwyn.

 

Ela acha que isso prejudica a família disse-nos Cuneglas, alegremente.

 

Tal como Artur e Galaad, ele tornou-se um dos meus amigos mais queridos. Julgo que ele se sentia só em Caer Sws, onde além de lorweth e de alguns dos druidas mais jovens tinha poucos homens com quem conversar sobre outros assuntos que não fossem a caça e a guerra. Acho que acabei por substituir os irmãos que ele havia perdido. O mais velho, que deveria ter-se tornado rei, morrera em consequência de uma queda de cavalo, o outro fora atingido por uma febre mortal e o mais novo tombara num combate contra os Saxões. Cuneglas, tal como eu, discordava por completo da ida de Ceinwyn à Estrada Sombria, mas disse-me que só o gume de uma espada a deteria.

 

Todos a vêem como uma pessoa muito doce e gentil disse-me, mas tem uma vontade férrea. Obstinada.

 

Não consegue matar um frango.

 

Nem consigo imaginá-la a tentar fazê-lo! riu ele. Mas está feliz, Derfel, e estou-te grato por isso.

 

Eram tempos felizes, um dos períodos mais felizes entre os mais felizes, embora sempre ensombrado pela certeza da vinda de Merlim, que chegaria para exigir-nos o cumprimento dos nossos juramentos.

 

Chegou numa tarde gelada. Eu estava cá fora partindo com um machado de guerra saxão uma série de toros acabados de cortar, e Ceinwyn estava dentro de casa, tentando serenar uma altercação que se desencadeara entre as suas servas e a impetuosa Scarach, quando os sons emitidos por um corno ressoaram por todo o vale. Era um sinal dos meus homens, avisando-nos que um estranho se aproximava de Cwm Isaf e mal tivera tempo de baixar o machado quando pude vislumbrar a figura alta de Merlim entre as árvores. Nimue acompanhava-o. Ficara connosco uma semana depois da noite do noivado de Lancelote e depois, sem uma palavra de explicação, esgueirara-se durante a noite para regressar agora, vestida de negro, ao lado do seu amo, que usava a sua longa túnica branca.

 

Ceinwyn saiu da casa. Tinha o rosto enfarruscado e as mãos manchadas com o sangue de uma lebre que estivera a amanhar.

 

Pensei que ele viria com um bando de guerreiros disse ela, fixando os olhos azuis em Merlim.

 

Fora isso que Nimue nos dissera antes de partir; que Merlim estava a reunir o exército que o protegeria ao longo da Estrada Sombria.

 

Talvez os tenha deixado junto ao rio sugeri eu.

 

Afastou uma madeixa de cabelo da cara, acrescentando uma mancha de sangue à fuligem que lhe cobria o rosto.

 

Não tens frio? perguntou ela, pois eu despira-me da cintura para cima enquanto cortava a lenha.

 

Ainda não respondi, mas vesti uma camisa de lã à medida que Merlim saltava o ribeiro com as suas longas pernas. Os meus soldados, antecipando as novidades, deixavam os seus abrigos para segui-lo, mas permaneceram do lado de fora da casa quando ele baixou o seu corpo alto para transpor o nosso lintel baixo.

 

Não esboçou qualquer gesto de saudação, limitando-se a passar por nós e a entrar em nossa casa. Nimue seguiu-o e quando Ceinwyn e eu entrámos ambos estavam já agachados junto ao fogo. Merlim aproximou as mãos esquálidas do braseiro e, em seguida, pareceu soltar um longo suspiro. Não falou e nenhum de nós queria questioná-lo. Eu, tal como ele, fui sentar-me à beira das chamas enquanto Ceinwyn colocava metade da lebre dentro de uma taça e limpava as mãos ensanguentadas. Fez sinal às servas e a Scarach para que deixassem a casa e depois sentou-se ao meu lado.

 

Merlim estremeceu e depois pareceu relaxar. As suas longas costas curvaram-se quando ele arqueou os ombros e se chegou para a frente com os olhos fechados. Permaneceu naquela posição durante muito tempo. O seu rosto castanho exibia as marcas deixadas pelas rugas pronunciadas e a barba estava tingida de um branco surpreendente. Como todos os druidas rapara a parte anterior do crânio, mas naquele momento a sua tonsura estava encoberta por uma fina camada de cabelos brancos curtos, a prova de que andava em viagem havia muito tempo sem ter acesso a uma navalha de barba e a um espelho de bronze. Tinha um ar tão envelhecido naquele dia e curvado como estava, à beira da lareira, parecia até frágil.

 

Nimue estava sentada em frente dele, sem dizer palavra. Levantou-se uma vez para pegar na Hywelbane, que estava pendurada num gancho suspenso da trave principal do tecto, e vi-a sorrir quando reconheceu os dois fragmentos de osso incrustados no punho da espada. Desembainhou a lâmina, aproximando-a em seguida da zona da lareira onde havia mais fumo. Quando o metal ficou coberto de fuligem rabiscou com cuidado uma inscrição com um pedaço de palha. As letras eram diferentes destas com que eu agora escrevo, e que são empregues tanto por nós como pelos Saxões; eram caracteres mágicos e antigos, simples traços cortados por barras que só os druidas e os feiticeiros utilizavam. Apoiou a bainha da espada contra a parede e tornou a pendurar a espada no gancho respectivo, mas não adiantou qualquer explicação sobre o significado do que tinha estado a escrever. Merlim ignorou-a.

 

Abriu os olhos subitamente e a debilidade que aparentara foi substituída por uma terrível ferocidade.

 

Lanço uma maldição disse, lentamente sobre as criaturas da Silúria. Estalou os dedos na direcção do fogo e uma língua de chamas mais vivas fez estalar a madeira. Que as suas colheitas mirrem rugiu, o seu gado se torne estéril, os filhos aleijados, as lâminas das suas espadas se partam e os seus inimigos saiam vitoriosos.

 

Para ele tratava-se de uma maldição suave, mas a sua voz deixava transparecer uma malevolência sibilante.

 

E quanto a Gwent continuou, ordeno que sobre ela se abata a peste, que caiam geadas no Verão e que os ventres mirrem até se tornarem ocos cuspiu para as chamas. Em Elmet disse ele, as lágrimas formarão lagos, as pragas encherão as sepulturas e os ratos tomarão conta dos lares tornou a cuspir. Quantos homens levarás contigo, Derfel?

 

Todos os que tenho, Senhor hesitei em admitir quão reduzido era o seu número, mas por fim respondi: vinte escudos.

 

E os teus homens que ainda estão com Galaad? Lançou-me um rápido olhar de relance, os olhos escondidos debaixo das farfalhudas sobrancelhas brancas. Quantos são?

 

Não tive notícias deles, Senhor. Esboçou um sorriso de escárnio.

 

Formaram uma guarda palaciana para Lancelote. Ele insistiu nisso. Transformou o irmão em porteiro.

 

Galaad era meio-irmão de Lancelote e o mais diferente dele que se possa imaginar.

 

Ainda bem Merlim olhou para Ceinwyn que não haveis desposado Lancelote, Senhora.

 

Ela sorriu-me.

 

Também penso assim, Senhor.

 

Ele acha a Silúria um tédio. Não posso censurá-lo por isso, mas irá procurar os confortos de Dumnónia e será uma serpente no seio de Artur sorriu. Vós, Senhora, deveríeis ter sido o seu brinquedo.

 

Prefiro estar aqui disse Ceinwyn, indicando com um gesto as nossas toscas paredes de pedra e o travejamento do tecto manchado pelo fumo.

 

Mas ele tentará atingir-vos preveniu-a Merlim. O seu orgulho voa mais alto do que a águia de Lleullaw, Senhora, e Guinevere amaldiçoou-vos. Matou um cão no templo de ísis e forrou uma cadela estropiada com a sua pele, dando-lhe depois o vosso nome.

 

Ceinwyn empalideceu, fez o sinal para afastar o mal e cuspiu para o fogo.

 

Merlim encolheu os ombros.

 

Eu contra-ataquei essa maldição, Senhora disse ele, esticando depois os longos braços e inclinando a cabeça para trás, de modo que as tranças adornadas por fitas quase tocaram o chão coberto de juncos. ísis é uma deusa estrangeira disse, e o seu poder é fraco nestas paragens. Tornou a puxar a cabeça para a frente e esfregou os olhos com as mãos compridas. Voltei de mãos vazias disse, tristemente. Não houve um só homem em Elmet que tivesse dado um passo em frente, ninguém que o tivesse feito em lado nenhum. As suas lanças, dizem eles, estão guardadas para as barrigas saxãs. Não lhes ofereci ouro, nem prata, apenas um combate em nome dos deuses. Em troca, eles ofereceram-me as suas preces e deram ouvidos às mulheres, que lhes falaram de filhos, cantos de fogão e cabeças de gado e eles afastaram-se, furtivos e envergonhados. Oitenta homens! Era tudo o que eu queria. Diwrnach é capaz de juntar duzentos, talvez uns quantos mais, mas oitenta seriam suficientes. No entanto, nem oito se mostraram dispostos a acompanhar-me. Os seus senhores prestam agora vassalagem a Artur. O Caldeirão, dizem eles, pode esperar até que Lloegyr seja de novo nossa. Querem as terras saxãs e o ouro saxão e eu nada mais lhes ofereci a não ser sangue e frio na Estrada Sombria.

 

Seguiu-se um silêncio. Um toro desmoronou-se na lareira e lançou uma constelação de faíscas na direcção do tecto escurecido.

 

Não houve um só homem que tivesse colocado a sua lança à disposição? perguntei, pasmado com as notícias.

 

Alguns disse ele, com desdém, mas ninguém em quem eu pudesse confiar. Ninguém que fosse digno do Caldeirão fez uma pausa, parecendo de novo cansado. Luto contra o engodo do ouro saxão e contra Morgana. Ela está contra mim.

 

Morgana! Não consegui esconder o meu espanto. Morgana, a irmã mais velha de Artur, fora a companheira mais próxima de Merlim até Nimue ter usurpado o seu lugar, e embora Morgana odiasse Nimue nunca pensei que o seu ódio se estendesse também a Merlim.

 

Morgana disse ele, num tom inexpressivo. Espalhou uma mentira por toda a Bretanha. Segundo ela, os deuses opõem-se à minha demanda e eu estou condenado a sair derrotado; e a minha morte arrastará também a morte de todos os meus companheiros. Sonhou com esta história e o povo simples acredita nos sonhos dela. Estou velho, diz ela, e fraco e doido.

 

Ela diz interveio Nimue, suavemente, que serás morto por uma mulher, não por Diwrnach.

 

Merlim encolheu os ombros.

 

Morgana está a fazer o seu próprio jogo, que ainda não compreendo. Remexeu dentro de um dos bolsos da túnica e tirou uma mão-cheia de erva seca atada num nó. Todos os caules pareciam iguais aos meus olhos, mas ele estudou-os e escolheu um que estendeu na direcção de Ceinwyn.

 

Liberto-vos do vosso juramento, Senhora.

 

Ceinwyn olhou-me de soslaio e depois tornou a fixar a erva.

 

Ainda ides tomar a Estrada Sombria, Senhor? perguntou ela a Merlim.

 

Sim.

 

Mas como ides encontrar o Caldeirão sem mim?

 

Encolheu os ombros, mas não respondeu.

 

E como ides encontrá-lo com ela? perguntei eu, pois ainda não tinha percebido a razão por que deveria ser uma virgem a encontrar o Caldeirão, ou por que motivo essa virgem tinha de ser Ceinwyn.

 

Merlim tornou a encolher os ombros.

 

O Caldeirão disse sempre foi guardado por uma virgem. É-o neste momento, se a informação dos meus sonhos está correcta, e só outra virgem poderá revelar o local onde ele se encontra escondido. Sonhareis com ele disse para Ceinwyn, se estiverdes disposta a vir comigo.

 

Irei, Senhor disse Ceinwyn, tal como vos prometi.

 

Merlim tornou a guardar a erva dentro do bolso antes de passar novamente as suas longas mãos pelo rosto.

 

Partimos dentro de dois dias anunciou, sem rodeios. Têm de cozer pão, embalar carne e peixe secos, afiar as vossas armas e certificarem-se de que têm peles suficientes para enfrentar o frio.

 

Olhou para Nimue.

 

Dormiremos em Caer Sws. Vem.

 

Podeis ficar aqui sugeri.

 

Tenho de falar com lorweth, pôs-se de pé e a sua cabeça ficou ao nível das vigas do tecto. Liberto-vos a ambos dos vossos juramentos disse num tom muito formal, mas rezo para que mesmo assim me acompanhem. Será, no entanto, uma provação mais dura do que imaginam, e mais dura ainda do que fazem prever os vossos mais terríveis pesadelos, pois eu ofereci o sacrifício da minha própria vida em troca do Caldeirão.

 

Baixou os olhos para nós e o seu rosto espelhava uma tristeza imensa.

 

No dia em que pisarmos a Estrada Sombria disse-nos, começarei a morrer, pois esse é o meu juramento, e não posso de modo nenhum garantir que este juramento será coroado de êxito. Se esta demanda fracassar, morrerei e vocês ficarão sozinhos em Lleyn.

 

Teremos Nimue disse Ceinwyn.

 

E ela será tudo o que terão disse Merlim, com uma expressão carregada, virando-se em seguida para a porta. Nimue seguiu-o.

 

Ficámos sentados em silêncio. Acrescentei mais um toro ao fogo. Estava verde, pois toda a nossa lenha era composta de madeira ainda não amadurecida e cortada recentemente, razão pela qual ardia tão mal. Vi o fumo engrossar e rodopiar na direcção do travejamento do tecto e depois segurei na mão de Ceinwyn.

 

Queres morrer em Lleyn? ralhei-lhe.

 

Não respondeu ela, mas quero ver o Caldeirão. Olhei fixamente para o fogo.

 

Ele enchê-lo-á com sangue disse, baixinho. Os dedos de Ceinwyn acariciaram os meus.

 

Quando era criança disse, ouvi todas as histórias sobre a Bretanha, como os Deuses viviam entre nós e toda a gente se sentia feliz. Não havia fome nesses tempos, nem pestes, só nós, os Deuses e paz. Quero essa Bretanha de volta, Derfel.

 

Artur diz que nunca poderemos tê-la de volta. Somos aquilo que somos e não o que outrora fomos.

 

E em qual dos dois acreditas tu, então perguntou ela, em Artur ou em Merlim?

 

Meditei durante muito tempo.

 

Em Merlim admiti, finalmente, talvez porque quisesse acreditar na sua Bretanha, onde todos os nossos sofrimentos desapareceriam por artes mágicas. Gostava igualmente da ideia que Artur fazia da Bretanha, mas esta implicava guerra, sacrifício e a fé em que todos os homens se portariam bem se fossem bem tratados. O sonho de Merlim exigia menos e prometia mais.

 

Nesse caso acompanharemos Merlim disse Ceinwyn. Hesitou, fitando-me. Estás preocupado com a profecia de Morgana? perguntou

 

Abanei a cabeça.

 

Ela é poderosa disse eu, mas não tanto como ele. Nem como Nimue.

 

Nimue e Merlim tinham sido ambos atingidos pelas Três Feridas da Sabedoria, enquanto Morgana sofrera apenas a ferida do corpo e nunca a ferida do espírito ou a ferida do orgulho. No entanto, a profecia de Morgana era uma história arguta, pois em certo sentido Merlim estava a desafiar os deuses. Queria domar os seus caprichos e, em troca, oferecer-lhes-ia a devoção de um país inteiro. Mas por que razão haveriam os deuses de querer ser subjugados? Talvez tivessem escolhido os poderes menores de Morgana como instrumento contra as interferências de Merlim, pois que outra coisa poderia explicar a hostilidade de Morgana? Ou talvez Morgana, tal como Artur, acreditasse que a demanda de Merlim era um disparate, a procura desesperada de um velho por uma Bretanha que desaparecera com a chegada das Legiões. Para Artur, a luta era apenas uma: expulsar os reis saxões da Bretanha. E Artur teria dado cobertura aos rumores postos a circular pela irmã se isso significasse que nenhuma lança bretã seria desperdiçada contra os escudos tingidos de sangue de Diwrnach. Talvez Artur estivesse a servir-se da irmã para se certificar de que nenhuma das vidas preciosas de Dumnónia seria dissipada em Lleyn. À excepção da minha vida, da dos meus homens e da minha adorada Ceinwyn. Pois nós estávamos presos por um juramento.

 

No entanto, Merlim desobrigara-nos e eu fiz uma derradeira tentativa para persuadir Ceinwyn a permanecer em Powys. Contei-lhe que Artur acreditava que o Caldeirão já não existia, que devia ter sido roubado pelos Romanos e transportado para a grande arca de tesouros que era Roma, para ser derretido e transformado em pentes para o cabelo, pregadores, moedas ou alfinetes. Disse-lhe tudo isto e quando me calei ela sorriu e voltou a perguntar em qual dos dois eu acreditava: Merlim ou Artur.

 

Merlim repeti.

 

Eu também disse Ceinwyn. E partirei.

 

Cozemos pão, embalámos comida e afiámos as nossas armas. E na noite seguinte, na véspera da nossa partida e do início da demanda de Merlim, caíram as primeiras neves.

 

Cuneglas deu-nos dois póneis, que carregámos com a comida e as peles. Depois pusemos a tiracolo os escudos decorados com uma estrela de cinco pontas e tomámos a estrada que seguia para Norte. lorweth abençoou-nos e os lanceiros de Cuneglas acompanharam-nos durante os primeiros quilómetros. Todavia, logo que passámos os vastos e gelados baldios do paul de Dugh, do outro lado das colinas a norte de Caer Sws, os soldados afastaram-se e deixaram-nos sozinhos. Dera a minha promessa a Cuneglas que protegeria a vida da irmã com a minha própria vida. Depois de me ter abraçado, ele sussurrou-me ao ouvido:

 

Mata-a, Derfel disse, mas não deixes que Diwrnach a leve. Tinha os olhos marejados de lágrimas e, ao vê-las, quase fui levado a mudar de ideias.

 

Se lhe ordenardes que não vá, meu Rei e Senhor disse eu, talvez ela vos obedeça.

 

Nunca disse ele, mas ela sente-se mais feliz neste momento do que alguma vez até hoje. Além disso, lorweth diz-me que ides regressar. Vai, meu amigo.

 

Recuou, deixando como prenda de despedida um saco com lingotes de ouro, que acomodámos num dos póneis.

 

A estrada coberta de neve seguia para Norte, indo dar a Gwynned. Nunca estivera naquele reino antes e achei que era um lugar rude e inóspito. Os Romanos tinham chegado até ali, mas apenas no intuito de extrair chumbo e ouro. Tinham deixado marcas escassas na região e não a tinham dotado de qualquer legislação. Os seus habitantes viviam em cabanas escuras e atarracadas, que se amontoavam, desordenadas, no interior de muralhas circulares em pedra, no cimo das quais se viam cães que rosnavam na nossa direcção e onde tinham sido colocados crânios de lobos e de ursos para amedrontar os espíritos. Dólmens coroavam os cumes das colinas e de tantos em tantos quilómetros deparávamos com um mastro enterrado à beira da estrada, de onde pendiam ossos humanos e panos cortados em farrapos. As árvores eram raras, os ribeiros estavam gelados e a neve bloqueava alguns dos desfiladeiros. Pernoitámos nas casas amontoadas, onde pagámos para nos aquecer com lascas de ouro raspadas dos lingotes oferecidos por Cuneglas.

 

Vestíamo-nos com peles. Ceinwyn e eu, à semelhança do que acontecia com os meus homens, estávamos envoltos em peles de lobo e de veado desparasitadas, mas Merlim usava um fato feito com o pêlo de um enorme urso negro. Nimue protegia-se com peles de lontra, muito mais leves do que as nossas. Ainda assim, ela parecia insensível ao frio, ao contrário dos restantes de nós. Nimue era a única que não levava armas. Merlim tinha o seu bastão preto, uma arma terrível durante uma batalha, enquanto os meus homens estavam armados de lanças e espadas; até Ceinwyn transportava uma lança leve e atara à cintura a faca de caça. Não usava adornos de ouro e as pessoas que nos davam abrigo não faziam a mais pálida ideia da sua condição. Reparavam no seu cabelo brilhante e concluíam que, tal como Nimue, era uma das adeptas de Merlim. Gostavam de Merlim, pois todos tinham ouvido falar dele e traziam os filhos aleijados até junto dele, para que ele os tocasse.

 

Demorámos seis dias a chegar a Caer Gei, onde Cadwallon, Rei de Gwynned, passava o Inverno. Tratava-se de uma fortaleza erigida no topo de uma colina. Abaixo do rebordo saliente da construção estendia-se um vale fundo coberto de árvores altas que cresciam ao longo das encostas escarpadas. No fundo do vale, uma paliçada feita de toros rodeava um castelo de madeira, algumas arrecadações e uma vintena de abrigos, todos eles tingidos de branco pela neve e com longos pingentes de gelo suspensos nos beirais, o que emprestava ao quadro uma aparência fantasmagórica. Cadwallon revelou-se um velho azedo; o seu castelo tinha apenas um terço do tamanho do castelo de Cuneglas e a turba de guerreiros tentou fazer-nos crer que o chão em terra batida estava já apinhado de camas. Entre resmungos lá conseguiram arranjar espaço para nós e colocar um biombo num dos cantos para Nimue e Ceinwyn. Nessa noite, Cadwallon brindou-nos com um banquete. Uma refeição pobre à base de carneiro em salmoura e cenouras estufadas, mas era o melhor que as suas arrecadações tinham para nos oferecer. Generosamente prontificou-se a livrar-nos do fardo que Ceinwyn representava para nós fazendo dela a sua oitava esposa, mas não se mostrou nem ofendido nem decepcionado quando ela recusou. As suas sete esposas, ainda vivas, eram mulheres morenas e carrancudas que partilhavam uma cabana redonda, onde se envolviam em altercações ruidosas e perseguiam os filhos umas das outras.

 

Caer Gei era um lugar deplorável, embora real, e custava a acreditar que Cunedda, o pai de Cadwallon, fora o Rei Supremo que antecedera Uther de Dumnónia. As lanças de Gwynned viviam tempos de vacas magras desde aqueles anos gloriosos. Era difícil acreditar, também, que Artur tinha sido criado naquele lugar, à sombra daqueles cumes que naquele momento refulgiam sob o efeito do gelo e da neve. Fui ver a casa que tinha oferecido abrigo a sua mãe depois de Uther a ter repudiado e descobri que se tratava de uma construção com paredes de terra, sensivelmente do mesmo tamanho da nossa casa de Cwm Isaf. Ficava no meio de abetos, cujos ramos vergavam sob o peso da neve e estava virada para Norte, na direcção da Estrada Sombria. A casa servia agora de morada a três soldados, suas famílias e respectivas cabeças de gado. A mãe de Artur era meia-irmã do rei Cadwallon, que era assim tio de Artur, embora Artur fosse filho ilegítimo e dificilmente se pudesse esperar que essa relação gerasse muitas lanças destinadas à campanha da Primavera contra os Saxões, liderada por Artur. Na verdade, Cadwallon enviara homens para combater Artur no Vale do Lugg, embora o envio desses soldados tivesse resultado de uma medida de precaução no sentido de conservar a amizade de Powys e não tanto do ódio que o rei de Gwynedd pudesse alimentar contra Dumnónia. Na maioria das vezes, as lanças de Cadwallon estavam apontadas para Norte, na direcção de Lleyn.

 

O rei mandou chamar Byrthig, o Príncipe Herdeiro, para que este se juntasse ao banquete e nos falasse sobre Lleyn. O príncipe Byrthig era um homem baixo e atarracado, marcado por uma cicatriz que ia desde a têmpora esquerda até à barba espessa, passando pelo nariz partido. Tinha apenas três dentes, o que tornava os seus esforços para mastigar demorados e atabalhoados. Servia-se dos dedos para roçar a carne contra o único dente da frente e deste modo desfazer a comida em lascas que empurrava com goles de hidromel. Toda esta operação laboriosa sujara a sua eriçada barba negra com o suco da carne e lascas meio mastigadas. Cadwallon, no seu jeito sombrio, ofereceu-o como marido a Ceinwyn e de novo pareceu ter ficado insensível perante a recusa gentil dela.

 

Diwrnach, contou o príncipe Byrthig, instalara a sua morada em Boduan, uma fortaleza situada no extremo ocidental da península de Lleyn. O rei era um dos Senhores Irlandeses do Outro Lado do Mar, mas o seu grupo de guerreiros, ao contrário do de Oengus de Demétia, não era composto por homens oriundos de uma única tribo irlandesa. Era, sim, um conjunto de fugitivos saídos de todas as tribos.

 

Ele acolhe todos aqueles que atravessam as águas, e quanto mais sanguinários forem, melhor disse-nos Byrthig. Os Irlandeses servem-se dele para se livrarem dos seus fora-da-lei e nos últimos tempos o seu número tem aumentado.

 

Cristãos resmungou Cadwallon, numa breve explicação, e depois deu uma cuspidela.

 

Lleyn é cristã? perguntei eu, surpreendido.

 

Não, disparou Cadwallon, como se eu já devesse saber a resposta à minha pergunta. Mas a Irlanda está a vergar-se ao Deus cristão. A vergar-se em rebanho, e aqueles que não conseguem suportar esse Deus fogem para Lleyn. Tirou a lasca de um osso da boca e inspeccionou-a com uma expressão sisuda. Em breve teremos de combatê-los acrescentou.

 

As tropas de Diwrnach estão a crescer? perguntou Merlim.

 

É o que nos dizem, embora ouçamos pouca coisa replicou Cadwallon.

 

Olhou para o tecto no momento em que o calor que enchia o salão derretia uma porção da neve que cobria o telhado inclinado. Ouviu-se um ruído áspero e prolongado seguido de um estalido suave quando a massa de gelo deslizou pela cobertura de colmo.

 

Diwrnach explicou Byrthig e a sua voz soava sibilina devido aos dentes deteriorados quer apenas que o deixem em paz. Se não o incomodarmos, só ocasionalmente ele fará o mesmo connosco. Os seus homens vêm para fazer escravos, mas já há poucas pessoas no Norte, e os homens dele não viajam para muito longe. No entanto, se o seu bando de guerreiros for superior às colheitas de Lleyn ele partirá em busca de novas terras, fiquem elas onde ficarem.

 

Ynys Mon é famosa pelas suas colheitas disse Merlim. Ynys Mon era a grande ilha que ficava ao largo da costa norte de Lleyn.

 

Ynys Mon produz o suficiente para alimentar um milhar de bocas concordou Cadwallon, mas só se houver pessoas em número suficiente para semear e ceifar, e as vidas dos seus habitantes não são poupadas. Ninguém escapa. Todos os bretões de bom-senso deixaram Lleyn há muitos anos e os que ficaram estão subjugados pelo terror. O mesmo fariam vocês, se Diwrnach vos fizesse uma visita à procura do que lhe interessa.

 

Que é? perguntei eu. Cadwallon olhou-me, fez uma pausa e depois encolheu os ombros.

 

Escravos disse.

 

E vocês inquiriu Merlim, num tom de voz insinuante pagam-lhe o tributo exigido?

 

É um pequeno preço a pagar, a bem da paz. Cadwallon rejeitou a acusação.

 

Quantos? quis saber Merlim.

 

Quarenta por ano admitiu finalmente Cadwallon. A maior parte são crianças órfãs e, por vezes, alguns prisioneiros. As raparigas, no entanto, são o que o deixam mais satisfeito. Lançou um olhar pensativo a Ceinwyn. Ele tem uma queda por raparigas.

 

Muitos homens têm, meu Rei respondeu Ceinwyn, secamente.

 

Não como Diwrnach advertiu-a Cadwallon. Os feiticeiros dele disseram-lhe que um escudo forrado com a pele curtida de uma virgem seria invencível numa batalha. Encolheu os ombros. Quanto a mim, não posso dizer que alguma vez o tenha experimentado.

 

Envia-lhe crianças, então? disse Ceinwyn, em tom acusatório.

 

Conheceis outro tipo de virgens? retorquiu Cadwallon.

 

Nós pensamos que ele foi tocado pelos Deuses disse Byrthig, como se isso explicasse o apetite de Diwrnach por escravas virgens, pois parece louco. Um dos seus olhos é vermelho interrompeu-se para triturar um pedaço de carneiro cinzento com o dente da frente. Ele forra os escudos com pele continuou, depois de ter reduzido a carne a uma película fina, e depois pinta-os com sangue. Por isso é que os seus homens chamam a si mesmos Escudos Sanguinários.

 

Cadwallon fez o sinal para afastar os espíritos maléficos.

 

E alguns homens dizem que ele come a carne das raparigas prosseguiu Byrthig, mas não sabemos se isso é verdade. Quem sabe aquilo de que os loucos são capazes?

 

Os loucos são íntimos dos Deuses rugiu Cadwallon. Era óbvio que se sentia aterrorizado pelo seu vizinho do Norte, "e não era para menos", pensei eu.

 

Certos loucos são íntimos dos Deuses disse Merlim, mas não todos.

 

Diwrnach é preveniu-o Cadwallon. Ele faz o que quer, a quem quer, como quer e os deuses protegem-no enquanto o faz.

 

Uma vez mais fez o gesto para afastar o mal, e de súbito desejei estar de volta à longínqua Dumnónia, onde havia tribunais, palácios e longas estradas romanas.

 

Duzentas lanças disse Merlim seriam suficientes para expulsar Diwrnach de Lleyn. Poderiam empurrá-lo para o mar.

 

Tentámos uma vez disse Cadwallon, e cinquenta dos nossos homens morreram afogados na maré no espaço de uma semana, enquanto outros cinquenta tiritavam, inundados pelos seus próprios excrementos. Nem uma só vez os seus guerreiros deixaram de nos cercar montados nos seus póneis, uivando e manuseando as suas longas lanças que jorravam da noite. Quando chegámos a Boduan tudo o que havia era um muro enorme onde estavam penduradas coisas moribundas que se esvaíam em sangue, gritavam e se contorciam nos ganchos que as prendiam. Nenhum dos meus homens se atreveu a trepar por aquele horror acima. Nem eu admitiu. E se o tivesse feito, de que me serviria isso? Ele teria fugido para Ynys Mon e eu teria precisado de dias e semanas até conseguir arranjar barcos para segui-lo por água. Não disponho nem de tempo, nem de soldados, nem de ouro suficientes para empurrar Diwrnach para o mar, por isso entrego-lhe as crianças.

 

Gritou para um escravo, para que este lhe trouxesse mais carne e em seguida lançou um olhar irritado a Ceinwyn.

 

Entregue-a a ele disse ele a Merlim e então ele talvez lhe dê o Caldeirão.

 

Não lhe darei nada em troca do Caldeirão ripostou Merlim. Além do mais, ele nem sabe que o Caldeirão existe.

 

Agora já sabe acrescentou Byrthig. Toda a Bretanha conhece a razão que vos leva a viajar para Norte. E por acaso pensais que os feiticeiros dele não querem encontrar o Caldeirão?

 

Merlim sorriu.

 

Enviai os vossos lanceiros comigo, meu Rei, e juntos nos apoderaremos do Caldeirão e de Lleyn.

 

Cadwallon bufou ao ouvir a proposta.

 

Diwrnach, Merlim, ensina a um homem como há-de ser bom vizinho. Permitirei que atravesses o meu território, pois temo as pragas que me possas rogar se o não fizer. Mas nem um dos meus homens te acompanhará, e quando os teus ossos forem enterrados nas areias de Lleyn direi a Diwrnach que nada tive que ver com o facto de teres violado a minha propriedade.

 

Ireis revelar-lhe a estrada que vamos tomar? perguntou Merlim, já que nesse momento tínhamos de escolher entre duas estradas. Uma contornava a costa e era a estrada para norte habitualmente usada no Inverno, e a outra era a Estrada Sombria que muitos homens reconheciam ser intransitável durante o Inverno. Merlim esperava que viajando pela Estrada Sombria poderia surpreender Diwrnach e sair de Ynys Mon antes mesmo que ele tivesse dado pela nossa presença.

 

Cadwallon sorriu pela única vez naquela noite.

 

Ele já sabe disse o rei, olhando depois para Ceinwyn, a figura mais resplandecente entre todas as que se encontravam no salão escurecido pelo fumo. E sem dúvida que aguarda ansiosamente a vossa chegada.

 

Será que Diwrnach sabia que estávamos a pensar percorrer a Estrada Sombria? Ou estaria Cadwallon a fazer conjecturas? Fosse como fosse cuspi, para que todos ficássemos protegidos do mal. O Solstício estava para breve, a longa noite do ano em que a vida está em declínio, a esperança vacila e os demónios dominam os ares. E seria nessa altura que atravessaríamos a Estrada Sombria.

 

Cadwallon tomava-nos por loucos, Diwrnach aguardava-nos e nós cobrimo-nos com as nossas peles e adormecemos.

 

Na manhã seguinte, o Sol brilhava, transformando os cumes circundantes em espigões de um branco ofuscante que feria os olhos. O céu estava quase límpido e um vento forte arrancava a neve ao solo formando nuvens de partículas reluzentes que deslizavam com suavidade ao longo da terra alva, Carregámos os póneis, aceitámos a pele de carneiro com que Cadwallon nos presenteou de má vontade e iniciámos a nossa marcha na direcção da Estrada Sombria, que começava precisamente a norte de Caer Gei. Era uma estrada despovoada, onde não havia uma única quinta, uma só alma que nos oferecesse abrigo. Nada, a não ser um trilho acidentado que furava a barreira formada pelas montanhas agrestes e protegia o coração do território de Cadwallon dos Escudos Sanguinários de Diwrnach. Dois postes assinalavam o início da estrada, ambos encimados por crânios humanos embrulhados em farrapos e de onde pendiam longos pingentes de gelo que retiniam embalados pelo vento. Os crânios estavam virados para norte, na direcção de Diwrnach, quais dois talismãs destinados a manter a influência maléfica deste e do outro lado das montanhas. Vi Merlim tocar um amuleto de ferro que trazia pendurado ao pescoço no momento em que passávamos entre os dois crânios e recordei a terrível promessa segundo a qual começaria a morrer no instante em que pisasse a Estrada Sombria. No momento em que as nossas botas calcaram a imaculada camada de neve que cobria a estrada, eu soube que aquele juramento de morte começara a funcionar. Fitei-o, mas não vi sinais de angústia ao longo de todo aquele dia à medida que escalávamos as colinas, deslizando na neve e caminhando penosamente, envoltos na nuvem de neblina formada pela nossa própria respiração. Nessa noite pernoitámos na cabana abandonada de um pastor que, ditosamente, ainda conservava um telhado grosseiro feito de tábuas velhas e palha podre com a qual ateámos uma fogueira que tremeluzia debilmente na escuridão nívea.

 

Na manhã seguinte, ainda não tínhamos percorrido uns duzentos e cinquenta metros quando um corno soou nas nossas costas. Parámos, virámo-nos e fazendo uma pala com as mãos para proteger os olhos vimos uma fila de homens formando uma linha escura no cume de uma colina ao longo da qual tínhamos deslizado na tarde do dia anterior. Eram quinze, todos armados com escudos, espadas e lanças, e quando viram que tinham atraído as nossas atenções iniciaram a descida da traiçoeira colina coberta de neve, ora correndo ora escorregando ao longo da encosta. À medida que avançavam produziam grandes nuvens turvas que o vento empurrava para oeste.

 

Sem esperarem pelas minhas ordens, os meus homens formaram uma linha, desapertaram os escudos e baixaram as lanças para constituir um escudo defensivo que atravessava a estrada. Eu atribuíra as responsabilidades de Cavan a Issa e ele gritou-lhes que se mantivessem firmes. No entanto, mal ele acabara de falar quando eu reconheci a curiosa insígnia pintada num dos escudos agora cada vez mais próximos. Era uma cruz, e eu só conhecia um único homem que usasse aquele símbolo cristão. Galaad.

 

Companheiros! gritei para Issa e depois desatei a correr. Naquele momento conseguia ver claramente os homens que se aproximavam. Todos eles faziam parte do grupo de soldados que eu deixara na Silúria, forçados a servir na guarda palaciana de Lancelote. Os seus escudos ainda ostentavam a máscara de urso que era a insígnia de Artur, embora fossem comandados pela cruz de Galaad. Tal como eu, Galaad acenava e gritava, pelo que nenhum de nós ouviu uma só palavra do que o outro disse até termos caído nos braços um do outro.

 

Meu Príncipe saudei-o e tornei a abraçá-lo, pois ele foi de facto o melhor de todos os amigos que alguma vez tive.

 

Tinha cabelos loiros e um rosto tão largo e vigoroso quanto o de Lancelote, seu meio-irmão, era estreito e delicado. Tal como Artur, a sua figura inspirava confiança e se todos os cristãos tivessem sido como Galaad, creio] que teria abraçado o culto da cruz naqueles dias longínquos.

 

Passámos a noite do outro lado da montanha indicou com um gesto a estrada atrás de nós e metade dos homens ficaram enregelados;! vocês, no entanto, devem ter descansado ali, não? Apontou para a coluna de fumo que ainda se desprendia da nossa fogueira.

 

Quentes e secos disse eu, e depois de os recém-chegados terem saudado os seus velhos camaradas, eu próprio os abracei a todos e disse a Ceinwyn como se chamavam. Um por um ajoelharam e juraram-lhe lealdade.! Todos sabiam que ela se escapulira da sua festa de noivado para se juntar a mim, e amavam-na por isso, erguendo agora as lâminas descobertas das espadas para que as mesmas pudessem ser agraciadas com o seu toque real. E que é feito dos outros homens? perguntei a Galaad.

 

Foram juntar-se a Artur. Fez uma careta. Nenhum dos cristãos veio comigo, infelizmente. Excepto eu.

 

Achas que um Caldeirão pagão compensa tudo isto? perguntei] eu, indicando com um gesto a estrada gelada que se estendia à nossa frente.

 

Diwrnach espera-nos no fim da estrada, meu amigo disse Galaad, e segundo oiço dizer, a sua crueldade iguala tudo o que alguma vez possa ter saído de dentro do covil do diabo. A missão de um cristão é combater o mal e por isso aqui estou.

 

Saudou Merlim e Nimue e, em seguida, enquanto príncipe com a mesma condição social de Ceinwyn, abraçou-a.

 

Sois uma mulher afortunada ouvi-o sussurrar. Ela sorriu e beijou-lhe a face.

 

E agora mais ainda, meu Príncipe, pois estais aqui connosco. Isso é verdade, claro Galaad deu um passo atrás e o seu olhar pousou em cada um de nós, alternadamente. Toda a Bretanha fala de vocês os dois.

 

Porque toda a Bretanha está cheia de línguas ociosas interveio Merlim, num surpreendente acesso de mau génio, e temos uma viagem pela frente quando os dois tiverem dado por terminada a tagarelice.

 

O seu rosto estava tenso e o seu humor irritadiço. Atribuí-o à idade e ao caminho árduo que percorríamos em tempo frio e fiz por não pensar no seu juramento de morte.

 

A travessia das montanhas demorou outros dois dias. A Estrada Sombria não era longa, mas era acidentada, seguindo por colinas íngremes e furando vales profundos onde o mais ínfimo dos sons ressoava cavernoso e frio nas] paredes geladas. Encontrámos um povoado abandonado onde passámos a nossa segunda noite na estrada. Era um conjunto de 'cabanas de pedra redondas, amontoadas no interior de uma muralha com a altura de um homem, sobre a qual colocámos três homens de guarda às encostas que reluziam sob a claridade brilhante da lua. Não tínhamos com que atear uma fogueira, pelo que nos sentámos muito juntos entoando melodias, contando histórias e tentando não pensar nos Escudos Sanguinários. Naquela noite, Galaad contou-nos novidades da Silúria. O irmão, disse ele, recusara-se a ocupar a antiga capital de Gundleus em Nidum, pois era muito distante de Dumnónia e não tinha outros confortos para além de um aquartelamento romano em ruínas. Assim, mudara a sede do governo da Silúria para Isca, a enorme fortaleza romana que se erguia nas margens do Usk, no extremo mais remoto do território da Silúria e muito próximo de Gwent. Era o mais perto que Lancelote conseguia chegar de Dumnónia, sem sair da Silúria.

 

Ele gosta de pavimentos de mosaico e paredes de mármore disse Galaad, e em Isca há-os em quantidades suficientes para o manter satisfeito. Juntou todos os druidas da Silúria à sua volta.

 

Não há druidas na Silúria rugiu Merlim. Nenhum que seja bom, em todo o caso.

 

Aqueles que se auto-intitulam druidas, então disse Galaad, pacientemente. Há dois que ele estima particularmente e paga-lhes para que lancem maldições.

 

Sobre mim? perguntei, tocando o ferro que cobria o punho da Hywelbane.

 

Entre outros disse Galaad, olhando de soslaio para Ceinwyn e fazendo o sinal da cruz. Com o tempo ele acabará por esquecer acrescentou, tentando tranquilizar-nos.

 

Esquecerá quando estiver morto disse Merlim, e mesmo assim continuará a guardar ressentimento quando atravessar a ponte das espadas. Estremeceu, não por temer a inimizade de Lancelote, mas porque estava com frio. Quem são esses supostos druidas que ele tanto estima?

 

Os netos de Tanaburs disse Galaad, e eu senti uma mão gelada apertar-se em redor do meu coração. Eu matara Tanaburs, e embora tivesse o direito de roubar a sua alma, sabia que aquele que ousava matar um druida não deixava de ser um louco corajoso. A maldição lançada por um Tanaburs moribundo ainda me perseguia.

 

No dia seguinte avançámos devagar, acertando o passo pelo de Merlim. Ele insistia em dizer que se sentia bem e recusava a minha ajuda, mas cambaleava com frequência, o rosto tornara-se amarelado e macilento e respirava com dificuldade. Julgávamos que ao anoitecer já teríamos ultrapassado o último desfiladeiro, mas à hora em que a claridade diurna entrava em declínio ainda escalávamos a subida que nos conduziria até à passagem. Durante toda a tarde, a Estrada Sombria serpenteara colina acima, embora na realidade a designação de estrada soasse ridícula, pois nada mais era do que um medonho caminho pedregoso aqui e ali interrompido por um ribeiro gelado, frequentemente pontuado por pequenas quedas de água de cujos rebordos pendiam pingentes de gelo. Os póneis não paravam de escorregar e, por vezes, recusavam-se pura e simplesmente a mover-se; tínhamos a impressão de passar mais tempo a ampará-los do que a conduzi-los, mas no momento em que as últimas luzes frias morriam a ocidente chegámos ao desfiladeiro, que era tal e qual como eu o entrevira no sonho arrepiante que tivera no cume do Dolfworwyn. Era tão ermo quanto gelado, embora não houvesse nenhum vampiro negro barrando a Estrada Sombria, que agora se precipitava a pique para a estreita planície costeira de Lleyn seguindo depois para norte, em direcção à costa.

 

E para além da costa ficava Ynys Mon.

 

Eu nunca vira a ilha abençoada. Ouvira falar nela durante toda a minha vida, conhecia o seu poder e lamentava a destruição infligida pelos Romanos no Ano Negro, mas nunca a tinha visto a não ser em sonhos. Naquele momento, no crepúsculo de Inverno, não apresentava qualquer semelhança com a sua imagem idealizada. Não estava banhada pelo Sol, mas sim obscurecida pelas nuvens, o que fazia com que a grande ilha parecesse sombria e ameaçadora, um prenúncio agravado pelo cintilar sinistro dos lagos negros que trespassavam as suas colinas pouco elevadas. A ilha quase não tinha neve, mas as suas cristas rochosas surgiam esbranquiçadas, fruto da erosão provocada pela ferocidade do mar cinzento. Caí de joelhos perante a visão da ilha, todos nós o fizemos à excepção de Galaad; mas até ele acabou por apoiar um dos joelhos no solo em sinal de respeito. Enquanto cristão sonhava por vezes com uma viagem a Roma ou à longínqua Jerusalém, se é que esta existia realmente, mas Ynys Mon era a nossa Roma e a nossa Jerusalém, e naquele momento o seu solo sagrado desdobrava-se perante os nossos olhos.

 

Além disso estávamos em Lleyn. Tínhamos atravessado a fronteira não demarcada e, abaixo de nós estendiam-se os esparsos povoados da planície costeira, as terras arrendadas de Diwrnach. Os campos estavam ligeiramente cobertos de neve, colunas de fumo escapavam-se das cabanas, mas nenhum movimento humano parecia visível naquele espaço escuro e todos nós, creio eu, perguntávamos a nós próprios como iríamos atravessar o espaço que separava o continente da ilha.

 

Existem barqueiros nos estreitos disse Merlim, lendo os nossos pensamentos.

 

Ele era o único que já estivera em Ynys Mon, mas isso acontecera muitos anos antes, muito antes de ele ter ficado a saber que o Caldeirão ainda existia. Deslocara-se até lá no tempo em que Leodegan, o pai de Guinevere, governava o país antes da chegada dos navios grosseiros de Diwrnach, vindos da Irlanda com o fito de arrasar Leodegan e expulsar do país as suas filhas órfãs de mãe.

 

De manhã disse Merlim, caminharemos até à costa e pagaremos aos nossos barqueiros. Quando Diwrnach souber que pisámos os seus domínios, já teremos partido.

 

Ele seguir-nos-á até Ynys Mon disse Galaad, nervoso.

 

Nessa altura também já teremos partido disse Merlim. Espirrou. Parecia transido de frio. O nariz pingava, as faces estavam pálidas e de tempos a tempos tremia incontrolavelmente. Apesar disso conseguiu descobrir umas ervas poeirentas que guardava dentro de uma pequena bolsa de couro e engoliu-as juntamente com uma mão-cheia de neve derretida, insistindo em dizer que se sentia bem.

 

Na manhã seguinte, o seu aspecto era ainda pior. Tínhamos pernoitado numa fenda entre as rochas, onde não ousáramos acender uma fogueira, apesar do feitiço dissimulador que Nimue conseguira fazer com a ajuda de um crânio de doninha que encontráramos num ponto mais elevado da estrada. As nossas sentinelas tinham ficado de guarda à planície costeira, onde três pequenos clarões de luz traíam a presença de vida, enquanto nós permanecíamos muito juntos, entre os rochedos, tremendo e maldizendo o frio e imaginando se a aurora chegaria a romper. Ela chegou, enfim, espalhando uma claridade penetrante e desagradável que fazia com que a ilha distante parecesse mais escura e ameaçadora do que nunca. Todavia, o feitiço de Nimue pareceu surtir efeito, pois nenhum lanceiro guardava o fim da Estrada Sombria.

 

Merlim tremia e estava demasiado fraco para poder andar. Por isso, quatro dos meus soldados transportavam-no numa padiola feita de capas e lanças, enquanto deslizávamos sem ser notados até às primeiras árvores de Lleyn, vergadas pelo vento. A estrada fazia um rombo naquele ponto e os sulcos que rasgavam a sua superfície estavam gelados nos sítios onde ela serpenteava por entre carvalhos arqueados, azevinho franzino e pequenos campos votados ao abandono. Merlim gemia e estremecia, e Issa perguntou se não seria melhor voltar para trás.

 

Voltar a atravessar as montanhas disse Nimue seria com certeza a morte dele. Seguimos em frente.

 

Chegámos a uma bifurcação e aí encontrámos o primeiro indício de Diwrnach. Era um esqueleto, atado com cordas feitas de crina de cavalo e pendurado num poste, cujas ossadas ressequidas chocalhavam agitadas pelo vento agreste que soprava de Oeste. Por baixo dos ossos viam-se três corvos fixos ao poste com pregos, e Nimue cheirou os corpos rígidos tentando decidir que tipo de magia fora impregnada nas suas mortes.

 

Mija! Mija! Merlim conseguiu dizer, deitado na sua liteira. Depressa, rapariga! Mija! Tossiu horrivelmente e depois virou a cabeça para cuspir a expectoração para a vala.

 

Não vou morrer! disse para si mesmo. Não vou morrer! Tornou a deitar-se quando Nimue se agachava junto ao poste.

 

Ele sabe que estamos aqui advertiu-me Merlim.

 

Ele está aqui? perguntei, baixando-me até junto dele.

 

Alguém está. Tem cuidado, Derfel. Fechou os olhos e suspirou. Estou tão velho disse em voz baixa, terrivelmente velho. Existe uma maldição aqui, sobre nós. Abanou a cabeça. Leva-me para a ilha, nada mais. Chega à ilha, é tudo o que te peço. O Caldeirão curará tudo.

 

Nimue terminou, depois esperou para ver a direcção que tomavam os vapores da sua urina, que o vento empurrou para a direita da bifurcação. E foi esse presságio que decidiu o nosso caminho. Antes de partirmos, Nimue dirigiu-se até um dos póneis e procurou um saco de couro de onde tirou um punhado de pontas de seta em sílex e pedras-d'água que distribuiu pelos soldados.

 

Protecção explicou enquanto depunha uma amotite na padiola de Merlim. Em frente ordenou ela.

 

Caminhámos toda a manhã, retardando a marcha para transportar Merlim. Não vimos ninguém e essa ausência de vida fez nascer um medo terrível entre os meus homens, pois parecia que tínhamos penetrado numa terra de mortos. As sebes estavam cobertas de sorvas e bagas de azevinho, os ramos das árvores serviam de poiso a tordos e piscos, mas não havia nem gado, nem carneiros, nem homens. Vimos uma povoação de onde se desprendia uma coluna de fumo que se elevava nos ares, impelida pelo vento, mas estava muito distante de nós e ninguém parecia estar a observar-nos desde a muralha circular.

 

No entanto, havia homens naquela terra desolada. Comprovámo-lo quando parámos para descansar num pequeno vale, onde um ribeiro corria, indolente, entre as suas margens geladas, abrigado por um bosque de pequenos carvalhos escuros e vergados pelo vento. Cada um dos intrincados ramos estava delicadamente ornamentado por uma camada de geada branca. Descansámos sob eles até Gwilym, um dos soldados que guardava a nossa retaguarda, me ter chamado.

 

Fui até à orla de carvalhos e vi que uma fogueira tinha sido ateada em baixo, na encosta montanhosa. Não havia vestígios de chamas, apenas um véu espesso de fumo cinzento que se agitava furiosamente antes de ser varrido pelo vento oeste. Gwilym apontou na direcção do fogo com a lâmina da espada e depois cuspiu para afastar o mal que dela poderia advir.

 

Galaad veio ao meu encontro.

 

Um sinal? perguntou.

 

Provavelmente.

 

Então eles sabem que estamos aqui? Benzeu-se.

 

Sabem. Nimue juntou-se a nós. Carregava o pesado bastão negro de Merlim e era a única que parecia transbordar de energia naquele lugar frio e morto. Merlim estava doente, nós estávamos paralizados pelo medo, mas quanto mais penetrávamos nas terras sombrias de Diwrnach, mais feroz Nimue se tornava. Estava a aproximar-se do Caldeirão, e a atracção que este exercia inflamava-lhe os ossos. Estamos a ser observados.

 

Podes esconder-nos? perguntei, desejoso de um dos seus feitiços de dissimulação.

 

Abanou a cabeça.

 

Estamos no país deles, Derfel, onde os Deuses deles são poderosos. Esboçou um sorriso escarninho quando Galaad fez o sinal da cruz pela segunda vez.

 

O vosso Deus crucificado não derrotará Crom Dubh disse.

 

Ele está aqui? perguntei, receoso.

 

Ou alguém como ele disse ela.

 

Crom Dubh era o Deus Negro, um horror estropiado e malévolo que provocava pesadelos aterradores. Os outros deuses, dizia-se, evitavam Crom Dubh, o que indicava que estávamos sós, à mercê do seu poder.

 

Nesse caso estamos condenados disse Gwilym, num tom categórico.

 

Louco! invectivou Nimue. Só estaremos condenados se não conseguirmos encontrar o Caldeirão. Então, sim, estaremos todos irremediavelmente perdidos. Vais ficar a olhar para aquele fumo o dia inteiro? perguntou-me ela.

 

Afastámo-nos. Merlim já não conseguia falar e os seus dentes tiritavam, ainda que amontoássemos peles sobre ele.

 

Ele está a morrer disse Nimue, calmamente.

 

Nesse caso deveríamos procurar um abrigo disse eu, e acender uma fogueira.

 

Para que todos possamos estar quentes quando formos massacrados pelos soldados de Diwrnach? escarneceu ela. Ele está a morrer, Derfel explicou, porque está perto do seu sonho e porque fez um acordo com os Deuses.

 

A vida dele em troca do Caldeirão? perguntou Ceinwyn, aproximando-se do lado oposto.

 

Não exactamente admitiu Nimue. Mas enquanto vocês dois arranjavam a vossa casinha fez esta observação num tom sarcástico, nós fomos até Cadair Idris. Fizemos um sacrifício, o sacrifício antigo, e Merlim ofereceu a sua vida como garantia, não ao Caldeirão, mas à demanda. Se encontrarmos o Caldeirão, ele viverá, mas se fracassarmos morrerá e a alma-sombra do sacrifício poderá reclamar a alma de Merlim para toda a eternidade.

 

Eu sabia o que era o sacrifício antigo, embora nunca tivesse ouvido dizer que continuava a ser praticado no nosso tempo.

 

Quem foi o sacrificado? perguntei.

 

Ninguém que conheças. Ninguém que nós conhecêssemos. Um homem, apenas. Nimue falou com desdém. Mas a sua alma-sombra está aqui, observando-nos, e quer que fracassemos. Quer a vida de Merlim.

 

E se Merlim acabar por morrer? perguntei.

 

Não morrerá, louco! Não, se encontrarmos o Caldeirão.

 

Se eu o encontrar disse Ceinwyn, nervosa.

 

Encontrarás retorquiu Nimue, confiante.

 

Como?

 

Sonharás disse Nimue, e o sonho conduzir-nos-á até ao Caldeirão.

 

E Diwrnach, compreendi quando chegámos aos estreitos que separavam o continente da ilha, queria que o encontrássemos. A fogueira fora o sinal de que estávamos a ser vigiados pelos seus homens, mas estes não se tinham nem mostrado nem tentado impedir a nossa viagem, o que sugeria que Diwrnach estava ao corrente da nossa demanda e queria que a mesma fosse bem sucedida para que ele próprio pudesse apoderar-se do Caldeirão. Não havia outra explicação para o facto de não estar a levantar obstáculos à nossa viagem até Ynys Mon.

 

Os estreitos não eram largos, mas a água cinzenta rodopiava, sugava e formava espuma à medida que varria impetuosamente o canal. O mar corria veloz por entre aquelas passagens estreitas, formando perigosos redemoinhos ou quebrando-se em vagas de espuma branca contra rochedos escondidos. O mar, porém, não era tão assustador como a costa distante, que se erguia perante os nossos olhos absolutamente vazia, escura e desabrigada, quase como se esperasse a oportunidade certa para sugar as nossas almas. Estremeci ao observar a colina coberta de erva, perdida na distância, sem poder deixar de pensar naquele longínquo Dia Negro em que os Romanos chegaram a esta mesma costa rochosa e em que a distante margem oposta se enchera de druidas, que lançavam as suas temíveis maldições na direcção dos soldados estrangeiros. As maldições tinham falhado, os Romanos tinham feito a travessia até à outra margem e Ynys Mon perecera. Agora ali estávamos nós, no mesmo local, num último e desesperado esforço para fazer recuar os anos e rebobinar séculos de tristezas e sofrimentos, para que a Bretanha voltasse a ser o estado abençoado que era antes da chegada dos Romanos. Nessa altura seria a Bretanha de Merlim, a Bretanha dos Deuses, a Bretanha liberta dos Saxões, a Bretanha repleta de ouro, salões rejubilantes e milagres.

 

Caminhámos para Leste, na direcção da zona menos larga dos estreitos e aí, depois de contornar um rochedo e por baixo de uma fortaleza deserta, encontrámos dois barcos que tinham sido içados até ficar sobre os seixos de uma enseada minúscula. Uma dúzia de homens aguardava junto aos barcos, quase como se estivessem à nossa espera.

 

São os barqueiros? perguntou-me Ceinwyn.

 

Os barqueiros de Diwrnach respondi eu e levei a mão à cobertura de ferro do punho da Hywelbane. Querem que atravessemos disse eu, e senti medo pois o rei estava a facilitar demasiado a nossa missão.

 

Os marinheiros não se sentiam de modo nenhum atemorizados pela nossa presença. Eram criaturas atarracadas, de aspecto endurecido, com escamas de peixe espetadas na barba e vestidos com grossas vestimentas de lã. Não tinham quaisquer armas para além das facas de amanhar o peixe e os arpões. Galaad perguntou-lhes se tinham visto alguns dos lanceiros de Diwrnach, mas eles limitaram-se a um encolher de ombros, como se a língua que ele falava não tivesse qualquer significado para eles. Nimue dirigiu-se a eles em irlandês, a sua língua de origem, e eles responderam-lhe com um mínimo de educação. Alegaram que não tinham visto nenhum dos Escudos Sanguinários, mas disseram-lhe que tínhamos de esperar até que a maré atingisse o nível desejado para que pudéssemos fazer a travessia. Só então, ao que parecia, os estreitos seriam seguros para os barcos.

 

Fizemos uma cama para Merlim num dos barcos, depois Issa e eu escalámos a fortaleza deserta e espreitámos para o seu interior. Uma segunda coluna de fumo elevava-se para o céu, desde o vale dos carvalhos retorcidos. Fora isso, porém, nada mudara e não havia inimigos à vista. Eles estavam lá, no entanto. Não era necessário ver os seus escudos toscamente pintados de sangue para saber que estavam por perto. Issa tocou a lâmina da espada.

 

Creio, Senhor disse ele, que Ynys Mon seria um bom lugar para morrer.

 

Sorri.

 

Seria um lugar ainda melhor para viver, Issa.

 

Mas as nossas almas estarão com certeza a salvo, se morrermos em solo sagrado? perguntou ele, ansiosamente.

 

Estarão a salvo prometi-lhe, e tu e eu atravessaremos juntos a ponte das espadas.

 

E Ceinwyn, jurei a mim mesmo, estaria um passo ou dois à nossa frente, pois eu próprio a mataria antes que um dos homens de Diwrnach pudesse tocá-la. Saquei a Hywelbane, cuja lâmina estava ainda manchada pela fuligem sobre a qual Nimue escrevera o seu feitiço, e encostei a ponta ao rosto de Issa.

 

Jura ordenei-lhe. Apoiou-se sobre um dos joelhos.

 

Dizei, Senhor.

 

Se eu morrer, Issa, e Ceinwyn ainda viver, deves matá-la com um golpe de espada antes que os homens de Diwrnach possam capturá-la.

 

Ele beijou a ponta da espada.

 

Juro, Senhor.

 

À hora da maré alta, o redemoinho de correntes desapareceram e o mar ficou calmo à excepção das ondas batidas pelo vento, que faziam flutuar os dois barcos elevando-os acima dos seixos da praia. Colocámos os póneis a bordo e em seguida ocupámos os nossos lugares. Os barcos eram compridos e estreitos e, mal nos tínhamos instalado entre as pegajosas redes de pesca, os barqueiros fizeram-nos sinal para que tirássemos a água que se infiltrara através das tábuas revestidas de alcatrão. Usámos os nossos elmos para vazar o mar gelado e mandá-lo de volta ao seu devido lugar, e eu rezei a Manawydan, o deus do mar, para que ele nos poupasse enquanto os barqueiros enfiavam os remos compridos entre os toletes. Merlim tremia. Nunca até aí vira o seu rosto tão pálido, ainda que tingido por um amarelo repugnante e salpicado da espuma que escorria dos cantos dos lábios. Não estava consciente e murmurava coisas estranhas no meio do seu delírio.

 

Os barqueiros entoavam um estranho cântico à medida que manejavam os remos, mas ficaram em silêncio quando chegaram à zona central dos estreitos. Pararam, e um homem em cada um dos barcos gesticulou na direcção do continente, que ficara para trás.

 

Virámo-nos. De início, só consegui distinguir a faixa escura da costa, sob a sombra alva como a neve e negra como ardósia das montanhas. Depois vi uma forma negra e andrajosa movendo-se logo depois da praia de seixos. Era um estandarte, simples faixas de trapos flutuantes amarradas a um mastro. Instantes depois, porém, uma fila de guerreiros perfilou-se acima da margem do estreito. Riam-se na nossa direcção, e as suas gargalhadas sonoras furavam o vento gelado e sobrepunham-se ao rumorejar das ondas. Todos eles montavam póneis felpudos e todos estavam vestidos com o que pareciam ser tiras de um pano preto andrajoso que, agitadas pela brisa, flutuavam como flâmulas. Estavam armados com escudos e empunhavam as lanças de guerra extremamente compridas de que os Irlandeses tanto gostavam. Nem os escudos nem as lanças me assustaram, mas algo na sua aparência selvagem, esfarrapada e nas cabeleiras longas fez com que o meu corpo fosse subitamente percorrido por um calafrio. Ou, então, talvez este calafrio tivesse sido provocado pela saraiva que começara a trespassar o vento oeste, agitando a superfície cinzenta do mar.

 

Os andrajosos cavaleiros negros observavam-nos enquanto os nossos barcos atracavam em Ynys Mon. Os barqueiros ajudaram-nos a içar Merlim e os póneis e a depô-los na margem, em segurança, e depois tornaram a fazer-se ao mar.

 

Não deveríamos ter deixado ficar os barcos aqui? perguntou-me Galaad.

 

Como? perguntei. Teríamos de dividir os homens e colocar alguns a guardar os barcos e destacar outros para acompanhar Ceinwyn e Nimue.

 

Então, como é que saímos da ilha? perguntou Galaad.

 

Com o Caldeirão, adoptei a confiança de Nimue, tudo é possível. Não tinha outra resposta para lhe dar e não me atrevia a contar-lhe a verdade. A verdade é que me sentia condenado. Era como se, até naquele momento, todas as maldições dos druidas antigos nos deixassem a alma gelada.

 

Deixámos a praia e rumámos para Norte. As gaivotas gritavam na nossa direcção, revoluteando à nossa volta no meio da saraiva, que caía misturada com chuva à medida que escalávamos as rochas em direcção a uma charneca batida pelo vento, pontuada aqui e ali por um ou outro afloramento rochoso. Nos velhos tempos, antes de os Romanos terem destruído Ynys Mon, aquelas terras tinham sido densamente povoadas por carvalhos sagrados, à sombra dos quais eram executados os grandes mistérios da Bretanha. As novas saídas desses rituais governavam as estações na Bretanha, Irlanda e até na Gália, pois fora aí que os Deuses tinham descido à terra e fora aí que se estabelecera o mais forte dos laços que unira os homens aos Deuses, antes que o mesmo fosse quebrado pelas espadas curtas dos Romanos. Estávamos em solo sagrado, e penoso também, já que depois de uma escassa hora de marcha chegámos a um vasto paul que parecia barrar o caminho que nos conduziria ao interior da ilha. Percorremos a linha fronteiriça do paul, procurando um trilho, mas não havia nenhum. Deste modo, quando a luminosidade começou a definhar, usámos as hastes das lanças para descortinar a passagem mais firme por entre as ervas altas e pontiagudas e as devoradoras e traiçoeiras manchas pantanosas. Tínhamos as pernas encharcadas de lama gelada e a saraiva conseguia infiltrar-se na nossa pele. Um dos póneis ficou preso e o outro entrou em pânico, forçando-nos a descarregar os dois animais para distribuir os fardos que eles transportavam entre nós, e depois abandonámo-los.

 

Continuámos a caminhar com esforço. De quando em vez sentávamo-nos sobre os nossos escudos circulares que faziam as vezes de pequenos barcos delgados onde apoiávamos o nosso peso até que, inevitavelmente, a água salobra ultrapassava o rebordo e forçava-nos a ficar novamente de pé. A saraiva tornou-se mais intensa e mais densa, fustigada por um vento cada vez mais forte que achatava a erva pantanosa e impelia o frio a penetrar bem fundo, até aos ossos. Merlim gritava palavras estranhas e sacudia a cabeça de um lado para o outro, enquanto alguns dos meus homens começavam a soçobrar, exauridos pelo frio e pela malevolência dos Deuses, fossem eles quem fossem, que governavam aquela terra arruinada.

 

Nimue foi a primeira a alcançar o extremo mais longínquo do paul. Saltava de tufo em tufo, indicando-nos o trilho a seguir até que, finalmente, pisou terreno firme sobre o qual se pôs a saltar provando que em breve estaríamos em segurança. Então, ficou petrificada durante alguns segundos, até se decidir a apontar o bastão de Merlim na direcção de onde viéramos.

 

Virámo-nos para descobrir que éramos seguidos pelos cavaleiros negros, que nesse momento eram mais numerosos. Uma horda de Escudos Sanguinários andrajosos observavam-nos desde o lado mais afastado do paul. Três estandartes esfarrapados tinham sido içados diante deles, um dos quais em jeito de saudação irónica, antes de os cavaleiros virarem os seus póneis para leste.

 

Nunca deveria ter-te trazido até aqui disse eu a Ceinwyn.

 

Não me trouxeste, Derfel disse ela. Eu vim de livre e espontânea vontade. Tocou o meu rosto com um dedo enluvado. E haveremos de partir da mesma maneira, meu amor.

 

Escalámos o paul e, do outro lado da pequena elevação, deparámo-nos com uma paisagem formada por pequenos campos cultivados encaixados entre charnecas grosseiras e inesperados afloramentos rochosos. Precisávamos de um refúgio para a noite e encontrámo-lo num povoado constituído por oito cabanas de pedra circundadas por uma muralha da altura de uma lança. O local estava deserto, embora se notassem indícios evidentes da presença de pessoas, pois os pequenos abrigos de pedra estavam limpos e as cinzas das lareiras ainda estavam quentes. Retirámos o telhado de turfa que cobria um dos abrigos e partimos as vigas do tecto em pedaços, que usámos para acender uma fogueira para Merlim, que nesse momento tremia e delirava. Colocámos um soldado de guarda, despimos as nossas peles e tentámos secar as botas encharcadas e as perneiras húmidas.

 

Então, no instante em que a última réstea de luz morria no céu cinzento, subi à muralha e perscrutei a paisagem circundante. Não vi nada.

 

Quatro dos elementos do grupo ficaram de guarda durante a primeira parte da noite e, em seguida, Galaad e outros três soldados encarregaram-se de vigiar o que restava daquela escuridão varrida pela chuva. Nenhum de nós ouviu qualquer outro ruído para além do vento e do crepitar do fogo no interior do abrigo. Não ouvimos nada, não vimos nada. Todavia, às primeiras luzes pálidas da manhã, uma cabeça de carneiro recentemente cortada e ensanguentada decorava uma das zonas da muralha.

 

Com um gesto zangado, Nimue arrancou a cabeça de carneiro da cumeeira da muralha, gritando um desafio aos céus. Tirou uma bolsa de pó cinzento e espalhou-o sobre o sangue fresco, em seguida deu uma pancada seca e breve na muralha com o bastão de Merlim e disse-nos que a malevolência tinha sido contrariada. Acreditámos nela porque queríamos acreditar nela, da mesma forma que queríamos acreditar que Merlim não estava a morrer. Ele, no entanto, exibia uma palidez mortal, a sua respiração era fraca e não produzia qualquer som. Tentámos alimentá-lo com o que sobrava do nosso pão, mas ele cuspiu as migalhas, atabalhoadamente.

 

Temos de encontrar o Caldeirão hoje Nimue disse calmamente, antes que ele morra.

 

Juntámos as nossas coisas, pusemos os escudos ao ombro, pegámos nas lanças e seguimo-la para Norte.

 

Nimue conduzia o grupo. Merlim contara-lhe tudo o que sabia sobre a ilha sagrada e esse conhecimento guiou-nos para Norte durante toda a manhã. Os Escudos Sanguinários apareceram pouco depois de termos deixado o abrigo e, agora que nos aproximávamos da nossa meta, tornavam-se mais ousados, havendo sempre cerca de uma vintena de homens sempre visíveis e, por vezes, o triplo desse número. Formavam um círculo amplo à nossa volta, mas tomavam as precauções necessárias para se manterem fora do alcance das nossas lanças. A saraiva parara com o amanhecer, deixando ficar apenas um vento frio e húmido que fazia vergar as ervas que cobriam a charneca e agitava os farrapos escuros das capas dos cavaleiros negros.

 

Pouco passava do meio-dia quando chegámos ao local que Nimue designava por Lleyn Cerrig Bach. O nome significava "lago das pequenas pedras" e era um lençol de água escura, pouco profundo e rodeado de pauis. Ali, disse Nimue, os antigos Bretões tinham realizado as suas cerimónias mais sagradas e seria também ali, acrescentou, que teria início a nossa demanda. Aquele, porém, parecia um lugar inóspito para procurar o maior Tesouro da Bretanha. Para oeste havia um pequeno braço de mar pouco fundo, para além do qual ficava situada uma outra ilha; para sul e para norte viam-se apenas terras de cultivo e rochedos e a leste erguia-se uma pequena colina escarpada coroada por um grupo de rochas cinzentas semelhantes a um conjunto de afloramentos rochosos por que passáramos nessa manhã. Merlim parecia morto. Tive de ajoelhar-me ao seu lado e encostar o meu ouvido ao seu rosto para poder ouvir o arranhar quase inaudível de cada uma das suas penosas exalações. Pus a minha mão sobre a testa dele e senti-a fria. Beijei-lhe a face.

 

Vivei, Senhor sussurrei-lhe, vivei.

 

Nimue disse a um dos meus homens que enterrasse uma lança no solo. Ele pressionou a ponta da lança na terra rija, depois Nimue pegou em meia dúzia de capas, pendurou-as no topo da lança, e prendendo as bainhas das capas com pedras formou uma espécie de tenda. Os cavaleiros negros formaram um círculo à nossa volta, permanecendo no entanto a uma distância suficiente para não interferirem com a nossa actividade, nem nós com a deles.

 

Nimue remexeu debaixo das suas peles de lontra e tirou a taça prateada pela qual eu bebera no cimo do Dolforwyn e uma pequena garrafa de barro vedada com cera. Agachou-se debaixo da tenda e fez sinal a Ceinwyn para que a seguisse.

 

Enquanto esperava contemplei as pregas escuras que o vento desenhava na superfície do lago. Foi então que Ceinwyn soltou um grito inesperado. Tornou a soltar um grito terrível e eu precipitei-me para a tenda, mas fui detido pela lança de Issa. Galaad, que como cristão que era, não era suposto acreditar em nada do que se estava a passar, colocou-se ao lado de Issa e encolheu os ombros.

 

Agora que chegámos até aqui disse ele, devemos ir até ao fim.

 

Ceinwyn gritou de novo, e desta vez Merlim ecoou o grito dela soltando um gemido fraco e patético. Ajoelhei a seu lado e tentei não pensar nos horrores que Ceinwyn estaria a sonhar no interior da tenda negra.

 

- Senhor chamou Issa.

 

Virei-me para ver que ele estava a olhar para sul, para o sítio onde um grupo de guerreiros acabava de se juntar ao círculo formado pelos Escudos Sanguinários. A maioria dos recém-chegados vinha montada em póneis, embora um dos homens montasse um esquálido cavalo negro. O homem, sabia-o, tinha de ser Diwrnach. O seu estandarte esvoaçava atrás dele: um mastro, no cimo do qual estava encaixada uma cruz onde estavam pendurados dois crânios e um conjunto de fitas negras. O rei estava envolto numa capa preta e sobre o dorso do seu cavalo preto fora colocada um teliz negro. Empunhava uma enorme lança negra que endireitou no ar antes de começar a avançar num trote lento. Estava sozinho, e quando ficou a cinquenta passos de distância de nós desapertou o escudo redondo e, com aparato, virou-o mostrando que não vinha à procura de confronto.

 

Caminhei ao encontro dele. Nas minhas costas, Ceinwyn arfava e gemia no interior da tenda em torno das quais se perfilavam os meus homens formando um anel protector.

 

O rei vestia uma armadura de couro negro por baixo da capa e não usava elmo. O seu escudo parecia lascado pela ferrugem e eu supus que as lascas fossem as camadas de sangue seco, da mesma forma que a cobertura de pele só poderia ser a pele esfolada de uma jovem escrava. Deixou o escudo sinistro suspenso ao lado da bainha da longa espada negra enquanto refreava o cavalo e apoiava a extremidade da enorme lança no chão.

 

Sou Diwrnach disse ele. Inclinei a cabeça perante ele.

 

Sou Derfel, meu Rei. Ele sorriu.

 

Bem-vindo a Ynys Mon, Lorde Derfel Cadarn disse ele, e não restavam dúvidas de que queria surpreender-me revelando que conhecia o meu nome completo e o meu título, embora o que mais me tivesse espantado tivesse sido o facto de ele ser um homem atraente. Estava à espera de encontrar um vampiro de nariz adunco, uma personagem saída de um pesadelo. Diwrnach, porém, estava no início da maturidade, tinha uma testa larga, uma boca grande e uma barba negra bem aparada, que acentuava uma linha do maxilar pronunciada. A sua aparência nada tinha de demente, embora ele tivesse de facto um olho vermelho, o que era suficiente para o tornar uma figura assustadora. Encostou a lança ao flanco do cavalo e tirou um bolo de farinha de aveia de dentro de uma bolsa. Pareceis estar com fome, Lorde Derfel disse ele.

 

O Inverno é uma época de fome, meu Rei.

 

Mas com certeza que não ireis recusar a minha oferenda? Partiu o bolo de aveia em dois e atirou-me uma das metades. Comei.

 

Aceitei o bolo e, em seguida, hesitei.

 

Jurei que não comeria, Senhor, até ter cumprido a minha missão.

 

A vossa missão! provocou-me. Depois, em movimentos lentos, enfiou a metade dele na boca. Não estava envenenada, Lorde Derfel disse, quando acabou de comê-la.

 

E porque haveria de estar, meu Rei?

 

Porque eu sou Diwrnach e tenho muitas formas de matar os meus inimigos. Tornou a sorrir. Falai-me sobre a vossa missão, Lorde Derfel.

 

Vim para rezar, meu Rei.

 

Oh! exclamou ele, proferindo a interjeição como se pretendesse sugerir que eu tinha clarificado todo aquele mistério por completo. E as orações proferidas em Dumnónia são assim tão-pouco eficazes?

 

Estamos em território sagrado, Senhor disse eu.

 

Estamos também no meu território, Lorde Derfel Cadarn ripostou ele, e segundo creio, todos os estranhos deveriam procurar obter a minha autorização antes de defecar nas minhas terras ou mijar para as minhas paredes.

 

Se vos ofendemos, Senhor disse eu, pedimos-vos perdão.

 

É demasiado tarde para isso retorquiu ele, suavemente. Estais aqui agora, Lorde Derfel, e eu consigo sentir o cheiro dos vossos excrementos. Tarde de mais. Que vou então fazer convosco? Falava num tom de voz baixo, quase gentil, sugerindo que ali estava um homem que facilmente veria a razão. Que vou então fazer convosco? perguntou de novo, e eu nada disse.

 

O círculo de cavaleiros negros permanecia imóvel, o céu apresentava-se carregado de nuvens e os gemidos de Ceinwyn tinham-se transformado em queixumes breves. O rei ergueu o escudo, não num gesto de ameaça mas sim porque o seu peso assentava desconfortavelmente na sua anca e eu vi, horrorizado, que a pele de um braço e uma mão humanos pendia do rebordo inferior. O vento agitava os dedos gordos da mão. Diwrnach viu o meu horror e sorriu.

 

Era minha sobrinha disse e depois olhou para além de mim e outro sorriso lento iluminou o seu rosto. A raposa saiu da toca, Lorde Derfel disse ele.

 

Virei-me e vi que Ceinwyn tinha saído de debaixo da tenda. Despira as peles de lobo e usava o vestido branco que exibira na sua festa de noivado, a bainha ainda manchada pela lama em que ela mergulhara o tecido de linho no momento da fuga de Caer Sws. Estava descalça, tinham-lhe soltado os cabelos doirados e aos meus olhos parecia estar imersa num transe.

 

A princesa Ceinwyn, julgo disse Diwrnach.

 

Exactamente, Senhor.

 

É ainda uma donzela, segundo julgo saber? perguntou o rei. Não, respondi. Diwrnach inclinou-se para a frente para abanar as orelhas do cavalo afectuosamente.

 

Teria sido delicado da parte dela ter vindo cumprimentar-me quando entrou no meu país, não achais?

 

Também ela tem as suas orações para fazer, Senhor.

 

Nesse caso esperemos que elas produzam resultados riu. Entregai-ma, Lorde Derfel, ou caso contrário sofrereis a mais lenta das mortes. Tenho homens que conseguem arrancar a pele a um animal centímetro a centímetro até ele não ser mais do que uma amálgama de carne viva e sangue, conseguindo no entanto manter-se de pé. Andar, até! Afagou o pescoço do cavalo com uma mão enluvada de negro e depois voltou a sorrir-me. Já sufoquei homens no seu próprio estrume, Lorde Derfel, esmaguei-os debaixo de pedras, queimei-os, enterrei-os vivos, deitei-os juntamente com víboras, afoguei-os, matei-os à fome, cheguei até a matá-los de susto. Tantas formas interessantes; mas entregai-me a princesa Ceinwyn, Lorde Derfel, e eu prometo-vos uma morte tão lesta como a queda de uma estrela brilhante.

 

Ceinwyn começara a caminhar na minha direcção e os meus homens tinham agarrado subitamente a padiola de Merlim, as suas capas, armas e fardos, para se juntarem a ela. Ergui os olhos para Diwrnach.

 

Um dia, Senhor disse eu, atirarei a vossa cabeça para dentro de um fosso e soterrá-la-ei em excrementos de escravos. Afastei-me dele.

 

Ele riu.

 

Sangue, Lorde Derfel! gritou atrás de mim. Sangue!! É disso que os Deuses se alimentam, e o vosso dará um néctar excelente! Obrigarei a vossa mulher a bebê-lo na minha cama! E, dito isso, picou os flancos do cavalo com as esporas e virou-o na direcção dos seus homens.

 

São setenta e quatro disse-me Galaad, quando cheguei junto dele. Setenta e quatro homens e outras tantas lanças. Nós somos trinta e seis lanças, um homem moribundo e duas mulheres.

 

Eles não vão atacar já tranquilizei-o. Esperarão até que tenhamos descoberto o Caldeirão.

 

Ceinwyn devia estar gelada sob o vestido fino e sem botas, mas em vez disso transpirava como se estivéssemos num dia de Verão, enquanto cambaleava sobre as ervas. Tinha dificuldade em manter-se de pé, e ainda mais em caminhar, e contorcia-se da mesma forma que eu me contorcera no cume do Dolforwyn, depois de ter ingerido o líquido que estava dentro da taça prateada.

 

Nimue, porém, estava ao seu lado, falando-lhe e reconfortando-a, embora também lutasse para desviá-la da direcção que ela queria tomar. Os cavaleiros negros de Diwrnach seguiam-nos de perto, um anel móvel de Escudos Sanguinários que avançava através da ilha, formando um círculo amplo que tinha como centro o nosso reduzido grupo.

 

Apesar do seu estado delirante, Ceinwyn quase corria agora. Parecia estar no limiar da consciência e balbuciava palavras que eu não conseguia entender. O seu olhar parecia vazio. Nimue não parava de a arrastar para um lado, obrigando-a a seguir um carreiro de ovelhas que serpenteava para norte, perto de um pequeno monte coroado por pedras cinzentas. No entanto, quanto mais nos aproximávamos desses rochedos altos e cobertos de líquenes maior era a resistência que Ceinwyn oferecia, até que Nimue se viu obrigada a recorrer a todas as suas forças para a manter dentro dos limites do carreiro estreito. A fila da frente do círculo formado pelos cavaleiros negros já tinha passado o pequeno e íngreme monte de terra, e este, tal como nós, estava agora no interior do círculo. Ceinwyn choramingava e protestava e depois começou a bater nas mãos de Nimue, que continuava a segurá-la firmemente e a arrastá-la, enquanto os homens de Diwrnach seguiam os nossos movimentos.

 

Nimue esperou até que o trilho se aproximasse o mais possível do cume dos rochedos escarpados e, então, deixou que Ceinwyn corresse livremente.

 

Para as rochas! gritou ela. Todos! Para as rochas! Corram! Corremos. Percebi então a atitude de Nimue. Diwrnach não se atreveria a tocar-nos antes de saber para onde íamos, e se tivesse visto Ceinwyn dirigir-se para o pequeno monte de rochas teria certamente enviado uma dúzia de soldados para o guardar e, em seguida, o resto dos seus homens para nos capturar. Agora, porém, graças à manobra inteligente de Nimue, podíamos contar com a protecção oferecida pela amálgama de enormes pedregulhos, os mesmos que caso Ceinwyn estivesse certa tinham protegido o Caldeirão de Clyddno Eiddyn durante mais de quatro séculos e meio de escuridão.

 

Corram! gritava Nimue, e à nossa volta os póneis eram instigados a avançar à medida que o círculo dos cavaleiros negros se ia fechando à nossa volta para nos barrar a saída.

 

Corram! tornou a gritar Nimue. Eu ajudava a carregar Merlim, Ceinwyn escalava as rochas com esforço e Galaad gritava aos homens incitando-os a descobrir posições no meio das rochas onde pudessem esconder-se e manejar as lanças. Issa ficou junto de mim, a lança pronta a rasgar qualquer cavaleiro negro que chegasse perto de nós. Gwilym e outros três arrancaram Merlim das nossas mãos e levaram-no até à base dos rochedos no preciso instante em que os dois Escudos Sanguinários que lideravam o grupo nos alcançavam. Gritaram um desafio picando as montadas com as esporas para incitá-las a subir a colina, mas eu afastei a comprida lança do primeiro soldado com o meu escudo e depois fiz girar a minha espada de forma que a lâmina de aço se abatesse como um taco sobre o crânio do pónei. O animal relinchou e caiu de lado, e enquanto Issa enterrava a sua lança no abdómen do cavaleiro eu golpeava o segundo soldado com a minha lança. O cabo da lança dele embateu sonoramente na minha e depois ele ultrapassou-me; mas eu consegui agarrar um punhado das suas longas faixas andrajosas e pude assim puxá-lo para trás e obrigá-lo a desmontar do pequeno animal. Ele atingiu-me quando caiu. Pus uma bota sobre a garganta dele, ergui a lança e cravei-a com força no coração. Por baixo da sua túnica andrajosa havia uma couraça de couro, mas a lança trespassou ambas e logo a sua barba negra se tingiu de uma espuma ensaguentada.

 

Para trás! bradou Galaad, e Issa e eu atirámos os nossos escudos e lanças para os homens que já se encontravam em segurança no topo dos altos rochedos, após o que nos dispusemos a escalá-los. Uma lança de cabo preto embateu sonoramente nas rochas ao meu lado, em seguida uma mão forte alcançou-me, agarrou-me pelo pulso e levantou-me no ar. Merlim tinha sido içado até aos rochedos da mesma maneira, sendo em seguida largado sem cerimónias na zona central do cimo do rochedo, onde, qual taça coroada por um anel feito de imensos pedregulhos, havia uma funda concavidade de pedra. Ceinwyn estava lá dentro, esgaravatando as pedrinhas que enchiam a taça como um cão enlouquecido. Tinha vomitado e as suas mãos moviam-se, absortas, entre a amálgama de vomitado e pedras frias e pequenas.

 

O pequeno monte era excelente como local de defesa. Os inimigos apenas podiam escalar as rochas com a ajuda das mãos e dos pés, enquanto nós poderíamos abrigar-nos nas gretas do cume e enfrentá-los à medida que fossem surgindo. Alguns deles tentaram chegar até nós, gritando quando as lâminas lhes retalhavam os rostos. As lanças choveram sobre as nossas cabeças, mas nós conservámos os escudos erguidos e as armas embatiam com ruído mas sem perigo. Coloquei seis homens na concavidade central e eles usaram os respectivos escudos para proteger Merlim, Nimue e Ceinwyn enquanto os restantes lanceiros guardavam a orla exterior do cume rochoso. Tendo abandonado os póneis, os Escudos Sanguinários fizeram nova investida e durante alguns instantes não tivemos descanso, apunhalando e golpeando. Um dos meus homens ficou ferido num braço durante essa breve escaramuça, mas foi a única baixa. Os cavaleiros negros, pelo contrário, levaram quatro mortos e seis feridos de volta ao sopé do monte.

 

É o que acontece disse eu aos meus homens aos escudos feitos com a pele de donzelas.

 

Esperámos pela investida seguinte, mas nada aconteceu. Em vez disso, Diwrnach subiu a colina a cavalo, sozinho.

 

Lorde Derfel? chamou, na sua voz falsamente agradável e, quando espreitei entre duas rochas, propôs-me com um sorriso plácido:

 

O meu preço subiu disse o rei. Agora, em troca de uma morte fulminante para vós, exijo a princesa Ceinwyn e o Caldeirão. Foi o Caldeirão que vieram buscar, não foi?

 

É o Caldeirão de toda a Bretanha, Senhor disse eu.

 

Ah, e julgais que eu seria um guardião indigno? Meneou a cabeça tristemente. Lorde Derfel, com que facilidade insultais um homem. Como é que seria? A minha cabeça num fosso atolada em excrementos de escravos? Que imaginação miserável, a vossa. A minha, temo, parece excessiva por vezes, inclusive aos meus próprios olhos.

 

Fez uma pausa e ergueu os olhos para o céu, como se pretendesse avaliar o tempo que lhe restava em termos de luz do dia.

 

Tenho poucos guerreiros, Lorde Derfel prosseguiu na sua voz controlada, e não quero que as vossas lanças me façam perder mais nenhum. Mas mais cedo ou mais tarde tereis de sair do meio das rochas e eu estarei à vossa espera, e enquanto estiver à vossa espera deixarei que a minha imaginação se eleve a novos cumes. Apresentai os meus cumprimentos à princesa Ceinwyn e dizei-lhe que aguardo com ansiedade o momento em que possamos conhecer-nos melhor.

 

Ergueu a lança numa saudação trocista e em seguida fez o caminho de volta até ao círculo de cavaleiros negros, que nesse momento cercavam por completo o monte.

 

Deixei-me cair na taça encaixada no centro do monte e percebi que fosse o que fosse que encontrássemos seria demasiado tarde para Merlim. A morte estava estampada no seu rosto. O maxilar estava descaído e os olhos tão vazios como o espaço entre os mundos. Os dentes tiritaram uma vez em sinal de que ainda vivia, mas essa vida era agora um ténue fio que estava a esboroar-se rapidamente. Nimue pegara na faca de Ceinwyn e começara a escarafunchar e a desfazer as pedras pequenas que enchiam a concavidade onde nos encontrávamos, enquanto Ceinwyn, uma expressão exausta no rosto, sucumbira junto a um rochedo, tremendo e observando as escavações de Nimue. Fosse qual fosse o transe que se tinha apoderado de Ceinwyn, neste momento já passara e eu ajudei-a a limpar a porcaria das mãos, descobri o seu fato de pele de lobo e cobri-a.

 

Ela puxou as luvas.

 

Tive um sonho sussurrou-me, e vi o fim.

 

O nosso fim perguntei, alarmado. Ela abanou a cabeça.

 

O fim de Ynys Mon. Havia linhas de soldados, Derfel, vestidos com saias e couraças romanas e elmos de bronze. Grandes linhas de soldados, com os braços que manejavam as espadas tingidos de sangue até aos ombros, porque matavam, matavam e continuavam a matar. Atravessavam as florestas formando uma enorme linha e matando, apenas. As armas subiam e desciam, todas as mulheres e crianças fugiam, só que não havia sítio para fugir e os soldados cercavam-nos cada vez mais, massacrando-os. Crianças, Derfel!

 

E os druidas?

 

Todos mortos. Todos, excepto três, e trouxeram o Caldeirão para aqui. Já tinham aberto um poço para colocá-lo, percebes, antes de os Romanos terem atravessado as águas, e enterraram-no aqui cobrindo-o depois com pedras tiradas do lago e depois cobriram as pedras com cinzas e atearam um fogo com as suas próprias mãos para que os Romanos pensassem que nada poderia estar enterrado aqui. E depois de tudo isto estar feito caminharam cantando na direcção dos bosques para morrer.

 

Nimue assobiou em sinal de alarme e quando me virei vi que ela tinha descoberto um pequeno esqueleto. Remexeu entre as saias de lontra e tirou um saco de couro que abriu para deixar sair duas plantas secas. As folhas eram pontiagudas e tinham pequenas flores de um dourado esbatido. Sabia que ela estava a aplacar os ossos mortos oferecendo-lhes asfódelo.

 

Foi uma criança que eles enterraram. Ceinwyn justificou o tamanho reduzido das ossadas, a guardiã do Caldeirão e filha de um dos três druidas. Tinha cabelos curtos e uma bracelete de pele de raposa no pulso. Enterraram-na viva para que pudesse guardar o Caldeirão até nós o encontrarmos

 

Uma vez aplacada a alma morta da guardiã do Caldeirão com o asfódelo, Nimue arrastou os ossos da garota afastando-os das pedras pequenas e em seguida concentrou-se no buraco cada vez mais fundo com a sua faca, ao mesmo tempo que pedia a minha ajuda num tom de voz brusco.

 

Escava com a tua espada, Derfel! ordenou, e obedientemente comecei a golpear o poço com o punho da Hywelbane.

 

E encontrei o Caldeirão.

 

Inicialmente tudo não passou de um lampejo de ouro sujo, depois um movimento rápido da mão de Nimue revelou um pesado rebordo dourado O Caldeirão era muito maior do que o buraco que tínhamos escavado, pelo que ordenei a Issa e a outro homem que me ajudassem a torná-lo maior. Removemos as pedras com a ajuda dos nossos elmos, trabalhando com uma pressa desesperada, pois a alma de Merlim soltava já o seu último sopro de vida. Nimue estava ofegante e carpia enquanto atacava as pedras muito juntas que tinham sido trazidas até este cume desde o lago sagrado de Llyn Cerrig Bach.

 

Ele está morto! gritou Ceinwyn. Estava ajoelhada ao lado de Merlim.

 

Não está morto! Nimue cuspiu por entre os dentes cerrados, em seguida agarrou o rebordo dourado com as duas mãos e desatou a abanar o Caldeirão com todas as forças que tinha. Juntei-me a ela e pareceu-me impossível que conseguíssemos mover o enorme cálice devido ao peso das pedras que continuavam a exercer pressão no seu interior fundo. Sem que soubéssemos como, porém, com a ajuda de Deus, deslocámos aquele enorme objecto de ouro e prata e sacámo-lo para fora do poço escuro onde estava enterrado.

 

E foi assim que expusemos o Caldeirão perdido de Clyddno Eiddyn à luz do dia.

 

Era uma taça enorme, tão larga como as mãos de um homem estendidas e tão funda como a lâmina de uma faca de caça. Era feito de prata maciça, assentava sobre três curtos pés dourados e estava decorada com sumptuosos arabescos em ouro. Três aros dourados estavam fixos no rebordo para que pudesse ser pendurado sobre o fogo. Era o maior Tesouro da Bretanha e nós arrancámo-lo ao túmulo onde jazia; podia ver como o ouro que o decorava fora trabalhado por forma a retratar figuras de guerreiros, Deuses e veados. Todavia, não tínhamos tempo para admirar o Caldeirão, pois frenética, Nimue espalhou as últimas pedras que estavam dentro dele e tornou a colocá-lo no buraco antes de rasgar as peles negras que cobriam o corpo de Merlim.

 

Ajuda-me! gritou e, juntos, fizemos rolar o velho para dentro do poço e enfiámo-lo nas entranhas da grande taça de prata. Nimue aconchegou as pernas dele e cobriu-o com uma capa. Foi só nesse momento que ela se recostou nos pedregulhos. Estava um frio de rachar, mas o rosto dela brilhava de suor.

 

Está morto disse Ceinwyn numa voz sumida e assustada.

 

Não insistiu Nimue, cansada, não está, não.

 

Estava frio! protestou Ceinwyn. Estava frio e não se conseguia ouvir a sua respiração. Colou-se a mim e começou a chorar baixinho. Está morto.

 

Vive disse Nimue rispidamente.

 

Tinha recomeçado a chover. Era uma chuva miudinha e batida pelo vento, que polia as pedras e cobria de gotas as lâminas ensanguentadas das nossas espadas. Merlim jazia, tapado e inerte na cavidade do Caldeirão, os meus homens vigiavam o inimigo no topo das pedras cinzentas, os cavaleiros negros cercavam-nos e eu perguntava a mim mesmo que tipo de loucura nos trouxera até aquele lugar miserável, no extremo mais frio da Bretanha.

 

Que fazemos agora? perguntou Galaad.

 

Esperamos ripostou Nimue, esperamos, apenas.

 

Nunca esquecerei o frio que fazia naquela noite. A geada formara cristais sobre as rochas e tocar uma lâmina de aço significava deixar uma lasca de pele colada ao metal. Estava um frio medonho. De madrugada, a chuva passou a neve, depois parou e depois do nevão o vento passou a soprar mais baixo e as nuvens foram arrastadas para leste deixando a descoberto uma enorme lua cheia, elevando-se no céu. Era uma lua cheia de portento; uma bola prateada inchada toldada pelos reflexos de nuvens distantes suspensas sobre um oceano repleto de ondas negras e prateadas. As estrelas nunca me tinham parecido tão brilhantes. Os contornos enormes do carro de Bei refulgiam sobre as nossas cabeças, em eterna perseguição da constelação a que chamávamos a truta. Os Deuses viviam entre as estrelas e eu enviei uma prece que se elevou no ar gelado, na esperança de que chegasse até esses fogos brilhantes.

 

Alguns de nós dormitavam, mas era o sono leve próprio de homens exaustos, enregelados e assustados. Os nossos inimigos, cercando o monte com as suas lanças tinham acendido fogueiras. Alguns póneis transportavam combustível para uso dos Escudos Sanguinários e as chamas erguiam-se altas no escuro da noite, espalhando faíscas na direcção do céu claro.

 

Tudo estava imóvel na cavidade do Caldeirão, onde o corpo coberto de Merlim estava protegido da luz da lua pelo vulto dos rochedos elevados de onde observávamos, por turnos, as silhuetas dos cavaleiros que se recortavam contra as fogueiras. De quando em vez, uma lança comprida zunia na escuridão da noite e a sua cabeça cintilava ao luar antes da arma embater sonoramente nas pedras.

 

E agora, que vais fazer com o Caldeirão? perguntei a Nimue.

 

Até ao Samain, nada disse ela, inexpressiva. Estava deitada, enrugada, próximo do monte de fardos abandonados que tinham sido atirados para a concavidade no topo da elevação, assentando os pés sobre o entulho que com gestos desesperados tínhamos retirado de dentro do poço. Tudo tem de estar certo, Derfel. Tem de estar lua cheia, o tempo tem de ser o correcto e todos os treze Tesouros têm de estar reunidos.

 

Fala-me dos Tesouros pediu Galaad, falando do canto mais afastado da concavidade.

 

Nimue cuspiu.

 

Para que possas fazer troça de nós, cristão? desafiou-o. Galaad sorriu.

 

Há milhares de pessoas, Nimue, que fazem troça de vocês. Dizem que os Deuses estão mortos e que deveríamos transferir a nossa fé para os homens. Devíamos seguir Artur, dizem, e acreditam que a vossa demanda de caldeirões, capas, facas e cornos não passam de uma série de disparates que morreram juntamente com Ynys Mon. Quantos reis da Bretanha enviariam os seus homens para vos acompanhar numa demanda como esta? Mexeu-se, tentando encontrar algum conforto na noite fria. Nenhum, Nimue, porque fazem troça de vós. É demasiado tarde, dizem eles. Os Romanos mudaram tudo e todos os homens sensatos alegam que o vosso Caldeirão está tão morto como Ynys Trebes. Os cristãos dizem que fazes o trabalho do Diabo, mas este cristão, cara Nimue, trouxe a sua espada até este lugar e por esse facto, cara dama, deves-me pelo menos um gesto de boa educação.

 

Nimue não estava habituada a ser repreendida, excepto por Merlim talvez, e ficou rígida ao ouvir a censura moderada de Galaad. Por fim cedeu. Puxou a pele de urso de Merlim para cima dos ombros e curvou-se para a frente.

 

Os Tesouros disse ela foram-nos deixados pelos Deuses. Foi há muito tempo, quando a Bretanha estava completamente sozinha no mundo. Não havia outros países; apenas a Bretanha e um vasto mar coberto por uma espessa neblina. Nesse tempo havia doze tribos na Bretanha e doze reis e doze salões de consagração e apenas doze Deuses. Estes Deuses caminhavam pela terra tal como nós, e Bei, um deles, chegou a casar com uma humana; e esta Senhora, fez um gesto na direcção de Ceinwyn, que a escutava com uma atenção tão ávida como qualquer um dos soldados descende desse casamento.

 

Calou-se quando um grito soou no círculo de fogueiras. Esse grito, porém, não pressagiava qualquer ameaça e o silêncio tornou a cair sobre a noite enquanto Nimue prosseguia o seu relato.

 

Outros Deuses, no entanto, que sentiam inveja dos doze que governavam a Bretanha desceram das estrelas e tentaram roubar a Bretanha aos doze Deuses, e as doze tribos sofreram durante as batalhas. Uma lança arremessada por um deus podia matar uma centena de pessoas e nenhum escudo terreno era capaz de deter a espada de um deus; por isso, os doze Deuses, em virtude do amor que sentiam pela Bretanha, deram às doze tribos doze Tesouros. Cada Tesouro devia ser guardado num castelo real e a presença do Tesouro impediria que as lanças dos deuses atingissem o castelo ou qualquer um dos seus habitantes. Não eram coisas grandiosas. Se os doze Deuses nos tivessem oferecido coisas esplêndidas, os outros Deuses tê-las-iam visto, adivinhado a sua finalidade e tê-los-iam roubado para sua própria protecção. Por isso, as doze oferendas eram apenas objectos comuns: uma espada, um cesto, um corno, um carro, um cabresto, uma faca, uma pedra de amolar, um casaco com mangas, uma capa, um prato, um escudo e um anel de guerreiro. Doze objectos comuns, e tudo o que os deuses nos pediram foi que preservássemos os doze Tesouros, que os guardássemos em local seguro e que os venerássemos. Em troca, para além de ter a protecção dos Tesouros, cada tribo podia usar o seu presente para convocar o seu deus. Tinham direito a uma convocação por ano, e apenas uma, mas essa convocação conferia às tribos algum poder na terrível guerra dos Deuses.

 

Interrompeu o relato e aconchegou ainda mais as peles em torno dos ombros magros.

 

As tribos possuíam então os seus Tesouros prosseguiu, mas graças ao grande amor que Bei sentia por essa rapariga terrena presenteou-a com um décimo terceiro Tesouro. Ofereceu-lhe o Caldeirão e disse-lhe que sempre que começasse a envelhecer apenas tinha de encher o Caldeirão com água e mergulhar lá dentro para recuperar a juventude. Desse modo poderia caminhar ao lado de Bei para sempre, no auge da sua beleza. E o Caldeirão, como pudeste ver, é esplêndido; é todo feito de ouro e prata, mais belo do que qualquer coisa que um homem é capaz de fazer. As outras tribos viram-no e sentiram ciúmes e foi assim que deflagraram as guerras da Bretanha. Os Deuses guerrearam-se no ar e as doze tribos digladiaram-se na terra, e um por um os Tesouros foram capturados ou então foram trocados por guerreiros até que, movidos pela ira, os Deuses retiraram a sua protecção. O Caldeirão foi roubado, a amada de Bei envelheceu e morreu e Bei rogou-nos uma maldição. Essa maldição foi a existência de outros países e outros povos, embora Bei nos tivesse prometido que se por altura de um Samain, voltássemos a reunir os doze Tesouros das doze tribos, realizássemos os ritos adequados e enchêssemos o décimo terceiro Tesouro com a água que nenhum homem bebe mas sem a qual nenhum homem consegue sobreviver, os doze Deuses viriam de novo em nosso auxílio. Deteve-se, encolheu os ombros e olhou para Galaad. Aí tens, cristão disse ela, as razões por que a tua espada veio até aqui.

 

Seguiu-se um longo silêncio. O luar desceu sobre as rochas deslizando vagarosamente no sentido do poço onde Merlim jazia, coberto por uma fina capa.

 

E os doze Tesouros estão todos em teu poder? perguntou Ceinwyn.

 

A maior parte respondeu Nimue evasivamente. Mas mesmo sem os doze, o poder do Caldeirão é imenso. Enorme. O seu poder é maior do que o de todos os Tesouros juntos. Lançou um olhar agressivo para o outro lado da cavidade, onde estava Galaad. E que farás tu, cristão, quando vires esse poder?

 

Galaad sorriu.

 

Recordar-te-ei que empunhei a minha espada na sua demanda respondeu num tom de voz suave.

 

Todos nós o fizemos. Somos os guerreiros do Caldeirão disse Issa em voz baixa, exibindo um talento poético que eu desconhecia nele, perante o sorriso dos outros soldados. As suas barbas estavam cobertas de neve, as mãos envolvidas em faixas de tecido e peles e o seu olhar parecia vazio. No entanto tinham encontrado o Caldeirão e o orgulho que sentiam por tal façanha cumulava-os, ainda que, às primeiras horas da manhã, tivessem de enfrentar os Escudos Sanguinários e começassem a perceber que todos nós estávamos condenados.

 

Ceinwyn encostou-se a mim, partilhando a pele de lobo que me cobria. Esperou até Nimue ter adormecido e depois encostou o seu rosto ao meu.

 

Merlim está morto, Derfel disse em voz baixa e triste.

 

Eu sei respondi eu, pois do poço onde estava o Caldeirão não vinha nem movimento nem som.

 

Senti o rosto e as mãos dele sussurrou ela, e estavam ambas frias como gelo. Aproximei a lâmina da minha faca da boca dele e nada aconteceu. Ele está morto.

 

Eu não disse nada. Amava Merlim porque ele fora como um pai para mim e não conseguia realmente acreditar que tivesse morrido naquele momento de triunfo, mas tão-pouco podia reunir esperanças de chegar a ver de novo a vida da sua alma.

 

Devíamos enterrá-lo aqui disse Ceinwyn suavemente, dentro do seu Caldeirão.

 

Mais uma vez não respondi. A mão dela encontrou a minha.

 

O que é que vamos fazer? perguntou ela. "Morrer", pensei, mas continuei calado.

 

Não deixarás que me levem, pois não? murmurou ela.

 

Nunca, disse eu.

 

O dia em que vos conheci, Lorde Derfel Cadarn disse ela, foi o melhor dia da minha vida.

 

E as suas palavras fizeram com que os meus olhos se enchessem de lágrimas. Se eram lágrimas de alegria ou um lamento por tudo aquilo que iria perder na fria madrugada que se aproximava, não sei dizer.

 

Caí num sono pouco profundo e sonhei que estava preso num lodaçal, cercado por cavaleiros negros capazes de atravessar magicamente a terra ensopada. Depois descobri que não conseguia erguer o braço onde segurava o escudo e vi a espada abater-se sobre o meu ombro direito; acordei sobressaltado esticando o braço na direcção da minha lança para ver que fora Gwilym quem inadvertidamente tocara no meu ombro quando se preparava para escalar a rocha e iniciar o seu turno de guarda.

 

Perdão, Senhor sussurrou ele.

 

Ceinwyn dormia na curva do meu braço e Nimue estava aninhada no outro lado. Galaad, cuja barba loura estava manchada de neve, ressonava baixinho e o resto dos meus soldados dormitavam ou permaneciam deitados numa apatia gelada. A lua estava agora quase por cima de mim, a sua claridade inclinando-se para pôr a descoberto as estrelas pintadas nos escudos amontoados dos meus homens e na parede rochosa do poço que tínhamos escavado no cume côncavo. A neblina que encobrira a face inchada da lua quando esta estava suspensa sobre o mar tinha desaparecido e nesse momento ela era um disco puro, duro, claro e frio, de contornos tão definidos como uma moeda acabada de cunhar. Lembrei-me vagamente da minha mãe dizendo-me o nome do homem da lua, mas não conseguia fixar a memória. A minha mãe era saxã e eu estava na barriga dela no momento em que fora capturada numa incursão dumnoniana. Tinham-me dito que ela ainda estava viva e que estava na Silúria, mas nunca mais a vira desde o dia em que o druida Tanaburs me arrancara dos braços dela e tentara matar-me no poço da morte. Merlim criara-me e eu tinha-me tornado bretão, um amigo de Artur e o homem que tinha levado a estrela de Powys do castelo do irmão dela. "Que fio de vida tão estranho", pensei, "e como era triste que tivesse de ser cortado tão cedo aqui, na ilha sagrada da Bretanha."

 

Suponho disse Merlim que não há por aqui nenhum pedaço de queijo?

 

Fitei-o, pensando que devia estar a sonhar.

 

Daquele tipo esbranquiçado, Derfel disse ele, ansioso, que se esfarela. Não aquela massa rija, amarelo-escuro. Não suporto aquele queijo rijo amarelo-escuro.

 

Estava de pé dentro da concavidade e olhava-me com uma expressão atenta e séria, com a capa que tinha coberto o seu corpo pendurada nos ombros, como se fosse um xaile.

 

Senhor? disse eu, numa voz fraca.

 

Queijo, Derfel. Não ouviste o que eu disse? Apetece-me comer queijo. Tínhamos um pedaço. Estava embrulhado em linho. E onde está o meu bastão? Um homem deita-se para dormir um pouco e logo lhe roubam o bastão. Será que já não há gente honesta? Vivemos num mundo terrível. Não há queijo, não há honestidade, não há bastão.

 

Senhor!

 

Pára de me gritar, Derfel. Não estou surdo, apenas tenho fome.

 

Oh, Senhor!

 

Agora choras! Odeio lágrimas. Tudo o que peço é um pedaço de queijo e tu começas a choramingar como uma criança. Ah, eis o meu bastão. Óptimo.

 

Apanhou o bastão, que estava ao lado de Nimue, e serviu-se dele para sair da cavidade. Os outros soldados estavam agora acordados e olhavam-no boquiabertos. Depois, Nimue mexeu-se e eu ouvi a respiração ofegante de Ceinwyn.

 

Suponho, Derfel disse Merlim enquanto caminhava entre os fardos empilhados procurando o seu pedaço de queijo, que nos colocaste numa posição difícil? Estamos cercados, não é verdade?

 

Sim, Senhor.

 

E somos inferiores em número?

 

Sim, Senhor.

 

Ora, ora, Derfel. E consideras-te tu um líder de guerreiros? Queijo! Cá está ele. Eu sabia que havia algum. Excelente.

 

Apontei um dedo trémulo na direcção da cavidade.

 

O Caldeirão, Senhor. Queria saber se o Caldeirão tinha operado um milagre, mas estava demasiado confuso pela estupefacção e o alívio para que pudesse ser coerente.

 

E que belo Caldeirão este, Derfel. Espaçoso, fundo, dotado de todas as qualidades que se exige a um Caldeirão. Deu uma dentada no queijo.

 

Estou esfomeado! Deu nova dentada, em seguida recostou-se nos rochedos e sorriu para todos nós. Inferiores em número e cercados! Bem, Bem!! Que virá a seguir? Enfiou o resto do pedaço de queijo na boca e sacudiu as migalhas das mãos. Dedicou um sorriso especial a Ceinwyn e depois estendeu um dos seus longos braços na direcção de Nimue. Está tudo bem? perguntou-lhe.

 

Tudo bem disse ela calmamente enquanto se aninhava entre os braços dele. Era a única que não parecia surpreendida com o aparecimento dele ou com o seu evidente estado de boa saúde.

 

A não ser que estamos cercados e somos inferiores em número! disse ele em tom zombeteiro. O que é que vamos fazer? Normalmente, o melhor que há a fazer numa situação de emergência é sacrificar alguém. Lançou um olhar expectante pelo círculo de homens atónitos. O seu rosto tinha recuperado as cores e toda a sua energia perversa regressara. Derfel, talvez?

 

Senhor! protestou Ceinwyn.

 

Senhora! Vós não! Não, não, não, não, não. Já haveis feito o suficiente.

 

Sacrifício, não, Senhor implorou Ceinwyn.

 

Merlim sorriu. Nimue parecia ter adormecido nos braços dele, mas nenhum de nós que ali estávamos poderia voltar a adormecer. Uma lança ressoou nas rochas mais baixas e o som fez com que Merlim me estendesse o seu bastão.

 

Sobe até ao cimo, Derfel e aponta para Oeste com o meu bastão. Para Oeste, não te esqueças, não para Leste. Tenta fazer uma coisa como deve ser por uma vez, está bem? É claro que quando se quer que uma tarefa seja executada correctamente devemos sempre fazê-la nós mesmos, mas eu não quero acordar Nimue. Vai.

 

Empunhei o bastão e galguei as rochas até chegar ao ponto mais elevado do monte e aí, seguindo as instruções de Merlim, apontei-o na direcção do oceano distante.

 

Não o abanes! gritou Merlim. Aponta-o! Sente o seu poder! Não é um aguilhão para espicaçar bois, rapaz, é o bastão de um druida!

 

Mantive o bastão apontado para Oeste. Os cavaleiros negros de Diwrnach devem ter pressentido a presença da magia, pois os seus feiticeiros começaram a uivar subitamente ao mesmo tempo que um grupo de lanceiros corria apressadamente colina acima, pronto a arremessar as suas armas contra mim.

 

Agora gritou Merlim à medida que as lanças caíam aos meus pés, dá-lhe poder, Derfel, dá-lhe poder!

 

Concentrei-me no bastão, mas a verdade é que não senti nada, embora Merlim parecesse satisfeito com o meu esforço.

 

Agora baixa-o disse ele, e descansa um pouco. Temos uma caminhada razoável pela frente, de manhã. Temos mais queijo? Era capaz de comer um saco cheio!

 

Ficámos deitados ao frio. Merlim recusava-se a falar sobre o Caldeirão, ou sobre a sua doença, mas eu sentia a mudança de estado de espírito que se verificara em todos nós. Sentíamo-nos de súbito esperançosos, íamos viver, e Ceinwyn foi a primeira a entrever o caminho da nossa salvação. Beliscou-me e depois apontou para a Lua. Nesse momento vi que aquilo que fora uma forma de contornos precisos e nítidos aparecia agora toldada por um véu de neblina cintilante. Os pontos minúsculos cintilavam com tal intensidade em redor da lua cheia e prateada que este colar nebuloso fazia lembrar um anel de gemas pulverizadas.

 

Merlim não prestava qualquer atenção à Lua e continuava a falar sobre queijos.

 

Havia uma mulher em Dun Seilo que fazia um queijo mole fabuloso disse-nos. Embrulhava-o em folhas de urtiga se bem me lembro, depois fazia questão que ele passasse seis meses em repouso numa selha de madeira que tinha estado em infusão em urina de carneiro. Urina de Carneiro! Há pessoas que possuem as superstições mais absurdas, mas seja como for ela fazia um queijo muito bom. Soltou um riso abafado. Obrigava o pobre do marido a recolher a urina. E como é que ele o fazia? Nunca gostei de perguntar. Agarrando-o pelos cornos e fazendo-lhe cócegas, perguntarão vocês? Ou talvez usasse a sua própria urina sem nunca lhe dizer nada. Era o que eu teria feito. Está a ficar mais quente, não acham?

 

A neblina gelada e brilhante que rodeava a Lua dissipara-se, mas esse facto não tornara os contornos da Lua mais apagados. Pelo contrário eram agora toldados por uma neblina mais translúcida, empurrada com suavidade por um vento ligeiro que soprava de Oeste e que era, de facto, mais quente. As estrelas cintilantes apareciam turvas, o gelo de cristal que cobria as rochas dissolvia-se num esplendor húmido e todos nós tínhamos parado de tremer. Podíamos de novo tocar as pontas das nossas lanças e estava a levantar-se um nevoeiro.

 

Os Dumnonianos, é claro, teimam em dizer que o seu queijo é o melhor de toda a Bretanha dizia Merlim num tom convicto, como se nenhum de nós tivesse outra coisa melhor para fazer a não ser escutar uma palestra sobre queijos, e reconheço que ele pode ser bom, mas na maioria das vezes é rijo. Lembro-me que em certa ocasião Uther partiu um dente ao morder um pedaço de queijo proveniente de uma quinta perto de Lindinis. Em duas metades perfeitas! Pobre homem, as dores não o largaram durante semanas. Nunca conseguiu suportar a ideia de arrancar um dente. Eu dizia-lhe insistentemente que usaria um pouco de magia, mas, coisa estranha, a magia nunca resulta quando se trata de dentes. Olhos, sim, intestinos, sempre, e por vezes miolos até, embora nos dias que correm existam muito poucos na Bretanha. Mas dentes!? Nunca. Tenho de estudar esta questão quando tiver algum tempo livre. E eu até gosto de arrancar dentes, imaginem só. Sorriu de uma forma extravagante, expondo a sua dentadura de uma perfeição rara. Artur fora bafejado com a mesma bênção, mas os restantes de nós conhecíamos os tormentos das dores de dentes.

 

Levantei os olhos para ver que o topo das rochas mais altas estava quase escondido pelo nevoeiro que se adensava a cada minuto que passava. Era um nevoeiro criado por um druida, denso e branco sob a Lua e envolvendo Ynys Mon no seu espesso manto de vapor.

 

Na Silúria disse Merlim servem-nos uma taça com uma mistela sem cor e chamam-lhe queijo. É tão repelente que nem os ratos lá vão. Mas que mais se poderia esperar da Silúria? Há alguma coisa que me queiras dizer? Pareces excitado.

 

Nevoeiro, Senhor disse eu.

 

Que homem perspicaz disse ele, com admiração. Nesse caso, talvez possas tirar o Caldeirão de dentro do buraco? É hora de partir, Derfel, hora de partir.

 

E assim aconteceu.

 

A Guerra Interrompida

 

Não! protestou Igraine, ao olhar para o mais recente dos manuscritos.

 

Perguntei' educadamente.

 

Não podes interromper a história nesta fase dos acontecimentos! disse ela. O que é que aconteceu?

 

Saímos dali, claro.

 

Oh, Derfel! Atirou o pergaminho para o chão. Conheço moços de cozinha que sabem contar uma história melhor do que tu! Diz-me como tudo se passou, insisto!

 

Assim fiz.

 

Era quase madrugada, e o nevoeiro era de tal modo denso que quando conseguimos descer do alto dos rochedos para o campo de erva que forrava o cume do outeiro corríamos o risco de nos perdermos de vista uns aos outros com um simples passo em falso. Merlim pediu-nos que formássemos uma corrente, que cada um de nós segurasse a capa do companheiro que seguia à sua frente. Deste modo, com o Caldeirão preso às minhas costas, deslizámos lenta e silenciosamente pela encosta abaixo. Com o bastão apontado para a frente, Merlim conduziu-nos sem percalços através do acampamento dos Escudos Sanguinários, sem que fôssemos vistos. Ouvia os gritos de Diwrnach, ordenando aos seus homens que dispersassem. Os cavaleiros negros, no entanto, sabiam que aquele era um nevoeiro de bruxo e preferiam manter-se perto das fogueiras. Aqueles primeiros passos, porém, foram os mais perigosos da nossa viagem.

 

Mas as histórias, insistiu a minha rainha, contam que todos vocês desapareceram. Os homens de Diwrnach afiançaram que vocês deixaram a ilha voando. É uma história famosa! A minha mãe contou-ma. Não podes vir agora dizer-me que muito simplesmente saíram dali.

 

Mas foi o que fizemos disse eu.

 

Derfel! admoestou-me ela.

 

Nenhum de nós desapareceu retorqui eu, com paciência, nem voou, apesar do que a vossa mãe vos possa ter contado.

 

Que se passou, então? perguntou ela, ainda desiludida com a versão pedestre da história.

 

Caminhámos durante horas, seguindo Nimue, que possuía um estranho talento para se orientar no meio da escuridão ou do nevoeiro. Fora ela quem guiara os meus guerreiros na noite que antecedera a batalha do Vale do Lugg, e naquele momento, furando o denso nevoeiro de Inverno que descera sobre Ynys Mon, era novamente ela quem abria o caminho que nos levaria até um dos grandes cabeços forrados de erva, criados pelo Povo Antigo. Merlim conhecia o lugar para onde nos dirigíamos tinha lá dormido alguns anos antes, segundo dizia e ordenou a três dos meus homens que afastassem as pedras que bloqueavam a entrada, situada entre dois taludes curvos feitos de terra coberta de erva, que sobressaíam como se fossem cornos. Só então, um por um, apoiados nas nossas mãos e joelhos, rastejámos até ao centro sombrio do pequeno outeiro.

 

O outeiro era uma sepultura feita de enormes pedregulhos empilhados, dispostos de forma a abrir um corredor central do qual saíam seis câmaras mais pequenas. Uma vez concluída a obra, o Povo Antigo tapara o corredor e as câmaras com lajes de pedra cobrindo-as depois com terra. Eles não queimavam os seus mortos como nós fazíamos, nem os abandonavam debaixo da terra fria como os cristãos. Colocavam-nos em câmaras de pedra, onde ainda jaziam, acompanhados dos seus tesouros: cálices em forma de corno, chifres de veado, cabeças de lança em pedra, facas em sílex, um prato de bronze e um colar feito de preciosas pedras de âmbar-negro, enfiadas num fio de tendão apodrecido. Merlim não se cansava de nos dizer que não devíamos perturbar os mortos, pois éramos seus convidados; por isso aconchegámo-nos no corredor central e deixámos as câmaras com os ossos entregues à sua solidão. Entoámos cânticos e contámos histórias. Merlim contou-nos que o Povo Antigo tinha sido o guardião da Bretanha antes da chegada dos Britânicos e, segundo ele, vivia ainda em determinados lugares. Ele estivera nesses vales fundos e perdidos em terras inóspitas e aprendera uma parte da sua magia. Contou-nos que pegavam no primeiro cordeiro do ano, atavam-no com vimes e enterravam-no num local de pastagem para garantir que os outros cordeiros nascessem fortes e saudáveis.

 

Nós ainda fazemos isso disse Issa.

 

Porque os teus antepassados aprenderam com o Povo Antigo disse Merlim.

 

Em Benoic afirmou Galaad costumávamos tirar a pele ao primeiro cordeiro e pregá-la a uma árvore.

 

Também resulta. A voz de Merlim ecoou no corredor gelado e escuro.

 

Pobres cordeiros disse Ceinwyn, e todos riram. O nevoeiro levantou, mas resguardados como estávamos nas profundezas do pequeno outeiro mal nos apercebíamos da sucessão dos dias e das noites, excepto nas ocasiões em que desbloqueávamos a entrada para que alguns de nós pudessem sair. Éramos obrigados a fazê-lo a intervalos regulares, para não ficarmos atolados nos nossos próprios excrementos; se por acaso fosse dia, escondíamo-nos no meio das saliências de terra do pequeno outeiro e víamos os cavaleiros negros passar em revista campos, cavernas, charnecas, rochedos, cabanas e pequenos bosques de árvores vergadas pelo vento. As suas buscas duraram cinco longos dias, e durante todo esse intervalo de tempo, alimentámo-nos com as últimas migalhas da comida que tínhamos trazido e matámos a sede com a água que se infiltrava através das paredes do outeiro. Por fim, Diwrnach decidiu que a nossa magia era superior à sua e desistiu da perseguição. Esperámos mais dois dias, para nos certificarmos de que ele não estava a tentar atrair-nos para fora do nosso esconderijo, e então saímos, por fim. Acrescentámos ouro aos tesouros dos mortos como pagamento de uma renda, bloqueámos a entrada e rumámos para Leste alumiados pelo Sol de Inverno. Uma vez chegados à costa servimo-nos das nossas espadas para requisitar dois barcos de pesca e fizemo-nos ao mar deixando para trás a ilha sagrada. Virámos para Leste, e enquanto for vivo jamais esquecerei o refulgir dos ornamentos dourados do Caldeirão e da sua cavidade bojuda e prateada, à medida que as velas esfarrapadas nos conduziam para um porto seguro. Compusemos uma canção enquanto velejávamos, A Canção do Caldeirão, que ainda hoje é cantada em certas ocasiões, ainda que seja um contributo bem modesto quando comparada com as canções dos bardos. Aportámos em Cornóvia e daí seguimos para Sul, atravessando Elmet e alcançando o território amigo de Powys.

 

E é por isto, Senhora concluí, que todos os relatos dizem que Merlim desapareceu.

 

Igraine franziu as sobrancelhas.

 

E os cavaleiros negros não revistaram o outeiro?

 

Duas vezes respondi mas ignoravam que a entrada podia ser desimpedida, ou então sentiram medo dos espíritos dos mortos que jaziam no seu interior. E Merlim tinha obviamente criado um encantamento que nos ocultava ainda mais.

 

Quem dera que tivessem voado resmungou. Daria uma história muito melhor. Suspirou por um sonho perdido. Mas a história do Caldeirão não termina aqui, pois não?

 

Desgraçadamente, não.

 

Então...

 

Então contá-la-ei em seu devido tempo interrompi-a. Mostrou-se aborrecida. Vestia a capa de lã cinzenta ornada por um rebordo de pele de lontra, que a fazia parecer muito bonita. Ainda não engravidou, o que me leva a pensar que, ou não está predestinada a ter filhos ou então o marido, o rei Brochvael, passa demasiado tempo na companhia de Nwylle, sua amante. O dia está frio, rajadas de vento fustigam a minha janela e agitam as pequenas chamas da lareira, que é suficientemente ampla para abrigar um fogo dez vezes maior do que aquele que o bispo Sansum me autoriza a acender. Consigo ouvir o santo ralhando com o irmão Arun, o cozinheiro do nosso mosteiro. A papa de aveia desta manhã estava demasiado quente e escaldou a língua de S. Tudwal. Tudwal é uma criança que vive no nosso mosteiro, o companheiro próximo do bispo no seio de nosso Senhor Jesus Cristo. No ano transacto, o bispo elevou Tudwall à categoria de santo. O demónio espalha muitas ciladas na via que conduz à fé verdadeira.

 

Então foste tu e Ceinwyn acusou Igraine.

 

Nós o quê? perguntei.

 

Tornaste-te amante dela disse Igraine.

 

Para toda a vida, Senhora confessei.

 

E nunca casaram?

 

Nunca. Não esqueçais que ela tinha feito um juramento.

 

Mas ela tão-pouco -, e partiu em duas metades ao dar à luz disse Igraine.

 

A terceira criança quase lhe roubou a vida disse eu mas em relação aos outros tudo correu mais facilmente.

 

Igraine agachara-se junto ao fogo, aproximando as mãos pálidas das chamas patéticas.

 

És um homem afortunado, Derfel.

 

Sou?

 

Por ter conhecido um amor assim.

 

A sua expressão era melancólica. A rainha tem a mesma idade que tinha Ceinwyn quando a vi pela primeira vez e, tal como Ceinwyn, Igraine é bela e merecedora de um amor digno dos versos de um bardo.

 

Tive sorte admiti.

 

Do lado de fora da minha janela, o irmão Maelgwyn está em vias de fazer desaparecer uma pilha de toros, rachando os cepos com um malho e um martelo e cantarolando à medida que vai trabalhando. A sua canção conta a história de amor de Rhydderch e Morag, o que significa que será repreendido, mal S. Sansum tenha acabado de humilhar Arun. Somos irmãos em Cristo, diz o santo, unidos no amor.

 

E Cuneglas não ficou zangado com a irmã pelo facto de ela ter fugido contigo? perguntou Igraine. Nem um bocadinho?

 

Nem por sombras disse eu. Ele queria que voltássemos para Caer Sws, mas ambos gostávamos de viver em Cwm Isaf. Além disso, Ceinwyn nunca gostou verdadeiramente da cunhada. Helled era uma resmungona e tinha duas tias muito azedas. Nenhuma delas via Ceinwyn com bons olhos e foram elas quem puseram a circular toda a espécie de mexericos, embora nós nunca tivéssemos causado escândalo. Fiz uma pausa, recordando aqueles tempos passados. A maioria das pessoas eram na verdade muito gentis prossegui. Em Powys havia ainda um certo ressentimento por causa do Vale do Lugg. Demasiadas pessoas tinham perdido pais, irmãos e maridos, e a desobediência de Ceinwyn constituía para eles uma espécie de recompensa. Agradara-lhes ter visto o embaraço de Artur e de Lancelote; por isso, para além de Helled e das suas tias pavorosas, ninguém era indelicado connosco.

 

E Lancelote não lutou por ela? perguntou Igraine, surpreendida.

 

Oxalá o tivesse feito disse eu, secamente. Teria gostado disso.

 

E Ceinwyn limitou-se a tomar uma decisão própria? perguntou Igraine, estupefacta perante a ideia de uma mulher sequer ousar fazer tal coisa. Levantou-se e caminhou até à janela, onde se demorou durante alguns momentos escutando a canção de Maelgwyn. Pobre Gwenhwyvach disse ela, de súbito. Falas dela como se ela fosse muito feia, gorducha e desinteressante.

 

Ela era tudo isso, infelizmente.

 

Nem todas as pessoas podem ser bonitas disse ela, com a segurança de alguém que o era.

 

Pois não, concordei, mas vós não quereis uma história sobre coisas vulgares. Quereis a Bretanha de Artur, lívida de paixão, e eu não era capaz de sentir qualquer sombra de paixão por Gwenhwyvach. Não se pode comandar o amor, Senhora, só a beleza ou a luxúria conseguem isso. Quereis que o mundo seja justo? Imaginai, então, um mundo sem reis, nem rainhas, nem senhores, nem paixão nem magia. Gostaríeis de viver num mundo tão monótono?

 

Isso nada tem que ver com beleza protestou Igraine.

 

Tem tudo que ver com beleza. O que é a nossa condição, senão o fruto do acaso do nosso nascimento? E o que é a nossa beleza senão outra obra do acaso? Se os Deuses... parei e corrigi, se Deus quisesse que fôssemos iguais, ter-nos-ia feito todos iguais, e se fôssemos todos iguais que destino teria a vossa novela de cavalaria.

 

Abandonou a discussão.

 

Acreditais na magia, irmão Derfel? desafiou-me. Reflecti sobre a pergunta dela.

 

Sim respondi. Mesmo enquanto cristãos podemos acreditar nela. O que são os milagres senão magia?

 

E Merlim era de facto capaz de fazer levantar o nevoeiro? Franzi o sobrolho.

 

Tudo o que Merlim fazia, Senhora, tinha outra explicação. Os nevoeiros nascem no mar, de facto, e todos os dias encontramos coisas perdidas.

 

E os mortos ressuscitam?

 

Lázaro ressuscitou disse eu e o mesmo aconteceu com o nosso Salvador. Benzi-me.

 

Respeitosamente, Igraine fez o sinal da cruz.

 

E Merlim, ele ressuscitou dos mortos? perguntou ela.

 

Não sei se ele chegou a estar morto retorqui, cauteloso.

 

Mas Ceinwyn estava certa disso?

 

Até ao dia em que morreu, Senhora.

 

Igraine torceu o cinto entrançado do vestido, que segurava entre os dedos.

 

Mas não era essa a magia do Caldeirão? O poder de restituir a vida?

 

É o que dizem.

 

E não há dúvida que a descoberta do Caldeirão, por Ceinwyn, foi mágica disse Igraine.

 

Talvez disse eu, mas talvez fosse apenas uma questão de senso comum. Merlim passara meses tentando descobrir todos os elementos dispersos sobre Ynys Mon. Sabia onde os druidas tinham construído o seu santuário, que ficava próximo de Llyn Cerrig Bach, e Ceinwyn apenas nos conduziu ao local mais próximo onde o Caldeirão poderia estar escondido em segurança. No entanto, ela teve de facto um sonho.

 

Tal como tu, disse Igraine, no Dolforwyn. O que foi que Merlim te deu a beber?

 

O mesmo que Nimue deu a Ceinwyn em Llyn Cerrig Bach disse, provavelmente uma infusão à base do capucho vermelho.

 

O cogumelo! A voz de Igraine soou aterrada. Fiz um aceno de cabeça.

 

Por isso me contorcia e não conseguia ficar de pé.

 

Mas podias ter morrido! protestou ela. Abanei a cabeça, negativamente.

 

Poucos morrem por causa dos capuchos vermelhos, e além disso, Nimue era habilidosa nesse tipo de coisas.

 

Decidi não lhe dizer que a melhor forma de tornar o capucho vermelho inofensivo era que o próprio feiticeiro comesse o cogumelo e depois desse a beber ao sonhador uma taça cheia com a sua própria urina.

 

Ou talvez tenha usado oídio de centeio disse eu mas julgo que foi capucho vermelho.

 

Igraine adoptou uma expressão carrancuda quando S. Sansum ordenou ao irmão Maelgwyn que interrompesse a sua canção pagã. O santo anda mais irascível do que habitualmente, por estes dias. Sente dores intensas quando tem de urinar, talvez devido a um cálculo. Nós rezamos por ele.

 

E o que é que aconteceu depois? perguntou Igraine, ignorando o palavreado oco de Sansum.

 

Fomos para casa disse eu. Regressámos a Powys.

 

E para junto de Artur? perguntou ela, ansiosa.

 

Para junto de Artur também disse eu, pois esta é a sua história, a história do nosso querido senhor da guerra, o gerador das nossas leis, o nosso Artur.

 

Aquela Primavera em Cwm Isaf foi verdadeiramente gloriosa. Ou talvez suceda que quando se está apaixonado tudo nos aparece com plenitude e esplendor redobrados. Seja como for, naquela época tinha a sensação que o mundo nunca estivera tão repleto de primaveras e mercuriais, de campainhas e violetas, de lírios e extensos campos de trevos. Borboletas azuis assediavam o prado, de onde tirámos fardos emaranhados da relva que florescera sob a floração rosa das macieiras. Os papa-formigas cantavam pousados nas flores das árvores, alguns maçaricos deambulavam junto ao ribeiro e uma lavandisca construía o seu ninho debaixo do telhado de colmo de Cwm Isaf. Tínhamos cinco vitelos de olhos ternos, todos eles saudáveis e insaciáveis, e Ceinwyn estava grávida.

 

Eu tinha feito dois anéis de namorados para ambos, depois do regresso a Ynys Mon. Os anéis tinham uma incisão em forma de cruz mas não a cruz dos cristãos e era frequente as raparigas usarem-nos quando deixavam de ser donzelas e passavam a ser mulheres. A maioria das raparigas aceitava um ramo de palha entrançada oferecido pelo homem amado e usava-o como um emblema, enquanto as mulheres dos lanceiros usavam um anel de guerreiro com uma cruz desenhada. As mulheres de condição elevada, no entanto, raramente usavam anéis, que menosprezavam como símbolos vulgares. Certos homens usavam também anéis como estes, e Valerin, o chefe de Powys, usava um anel de compromisso com uma cruz gravada quando morrera no Vale do Lugg. Valerin tinha sido o prometido de Guinevere antes de ela ter conhecido Artur.

 

Os nossos eram anéis de guerreiro feitos a partir da cabeça de um machado saxão. Antes de me ter separado de Merlim, que continuou viagem para Sul na direcção de Ynys Wydryn, tirei secretamente um dos motivos decorativos do Caldeirão. Era uma lança dourada em miniatura, presa entre as mãos de um guerreiro, e saiu com facilidade. Escondi o ouro dentro de uma bolsa e, uma vez regressado a Cwm Isaf, peguei no fragmento de ouro e nos dois anéis de guerreiro e levei-os a um artesão de metais que, na minha presença, derreteu e moldou o ouro em duas cruzes que incrustou no ferro. Deixei-me ficar ao seu lado para que ele não substituísse o ouro. Em seguida dei um dos anéis a Ceinwyn e passei eu próprio a usar o outro. Ceinwyn riu quando viu o anel.

 

Um ramo de palha entrançada teria sido o suficiente, Derfel disse ela.

 

Ouro retirado do Caldeirão será melhor respondi.

 

Nunca tirávamos os anéis, para grande desgosto da rainha Helled.

 

Artur veio visitar-nos durante aquela deliciosa Primavera. Encontrou-me despido até à cintura arrancando a relva, uma tarefa tão infindável como era a de fiar lã. Saudou-me desde as margens do ribeiro e depois subiu a pequena encosta para me cumprimentar. Vestia uma túnica em linho cinzento e perneiras escuras e não trazia espada.

 

Gosto de ver um homem trabalhar disse, em jeito de provocação.

 

É mais difícil arrancar relva do que combater resmunguei, fazendo pressão com as mãos na zona dos rins. Vindes para nos ajudar?

 

Vim visitar Cuneglas disse ele, sentando-se sobre um bloco de pedra arredondado, próximo de uma das macieiras que salpicavam o prado.

 

Guerra? perguntei, como se Artur pudesse ter outros assuntos a tratar em Powys para além deste.

 

Meneou a cabeça.

 

É tempo de reunir lanças, Derfel. Sobretudo sorriu as dos Guerreiros do Caldeirão.

 

Depois insistiu em ouvir toda a história, embora já lha devessem ter contado uma dúzia de vezes, e no final teve a gentileza de pedir desculpa por ter duvidado da existência do Caldeirão. Tenho a certeza que Artur continuava a pensar que tudo não passava de um disparate, de um disparate perigoso até, pois o sucesso da nossa demanda espalhara a ira entre os cristãos de Dumnónia que, tal como dissera Galaad, acreditavam que tudo era obra do demónio. Merlim trouxera o precioso Caldeirão de volta a Ynys Wydryn, onde seria guardado numa torre especialmente destinada a esse efeito. No momento certo, dizia Merlim, invocaríamos os seus imensos poderes, mas naquela época, só pelo facto de estar em Dumnónia e apesar da hostilidade dos cristãos, o Caldeirão instilava um novo sentimento de confiança por todo o país.

 

Embora deva confessar disse Artur que ganho mais confiança vendo os soldados todos reunidos. Cuneglas disse-me que partirá na próxima semana, os silurianos de Lancelote estão a reunir-se em Isca e os homens de Tewdric estão prontos para partir. E vamos ter um ano seco, Derfel, um bom ano para combater.

 

Concordei. Os freixos tinham-se coberto de verdura antes dos carvalhos, o que significava que tínhamos pela frente um Verão quente, e os Verões quentes implicavam solo firme para os escudos defensivos.

 

Onde quereis então os meus homens? perguntei.

 

Comigo, é claro respondeu ele, fazendo depois uma pausa antes de me brindar com um sorriso malicioso. Julguei que irias felicitar-me, Derfel.

 

A vós, Senhor? perguntei, fingindo ignorância para que fosse ele próprio a contar-me a novidade.

 

O sorriso dele alargou-se.

 

Guinevere deu à luz há um mês atrás. Um rapaz, um belo rapaz!

 

Senhor! exclamei, fingindo ter ficado surpreendido com a notícia que ele me dava, embora na semana anterior nos tivessem chegado relatos do nascimento.

 

É saudável e comilão! Um bom presságio. Estava visivelmente encantado, mas as coisas simples da vida faziam-no sempre sentir desmesuradamente satisfeito. Ansiava por ter uma família unida instalada numa casa de paredes sólidas, rodeada por campos de cereais devidamente cuidados. Chamámos-lhe Gwydre disse ele, e repetiu o nome com afecto, Gwydre.

 

É um bom nome, Senhor disse eu, após o que lhe comuniquei que Ceinwyn estava grávida. Imediatamente, Artur decretou que a criança que ela esperava tinha de ser uma filha e que, evidentemente, desposaria o seu Gwydre quando esse momento chegasse. Pôs um braço em volta dos meus ombros e acompanhou-me até à casa, onde encontrámos Ceinwyn que estava ocupada desnatando leite. Artur abraçou-a ternamente e, em seguida, insistiu com ela para que deixasse aquela tarefa ao cuidado das suas servas e saísse para conversar um pouco.

 

Sentámo-nos num dos bancos feitos por Issa, à sombra da macieira plantada ao lado da porta da casa. Ceinwyn perguntou-lhe por Guinevere.

 

O parto foi fácil?

 

Foi, sim. Tocou um amuleto de ferro que trazia pendurado ao pescoço. Muito fácil, na verdade, e ela está bem. Fez uma careta. Está um pouco preocupada com a hipótese de parecer mais velha depois da gravidez, mas isso é um disparate. A minha mãe nunca teve um ar envelhecido. E ter um filho fará bem a Guinevere.

 

Sorriu perante a ideia que Guinevere amaria um filho tanto como ele próprio. Gwydre, é claro, não era o primeiro filho dele. Ailleann, a sua amante irlandesa, havia-lhe dado dois gémeos, Amhar e Loholt, que tinham então idade suficiente para ocupar as posições que lhes estavam destinadas no escudo defensivo. Artur, no entanto, não ansiava pela companhia dos filhos.

 

Não sentem afecto por mim admitiu quando lhe perguntei pelos gémeos, mas gostam do nosso velho amigo Lancelote. Lançou-nos um olhar tristemente apologético ao mencionar aquele nome. E vão combater ao lado dos homens dele acrescentou.

 

Combater? perguntou Ceinwyn, desconfiada. Artur brindou-a com um sorriso gentil.

 

Venho roubar-vos Derfel, Senhora.

 

Trazei-mo de volta. Foi a sua única resposta.

 

Carregado de tesouros suficientes para fundar um reino prometeu Artur; logo em seguida, porém, virou-se e olhou para as paredes baixas de Cwm Isaf e para o monte saliente de colmo que nos mantinha aquecidos e ainda para a pilha de estrume fumegante que jazia para além da extremidade da empena. Não era tão grande como a maioria das quintas de Dumnónia, mas ainda assim era o género de quinta pequena que qualquer próspero homem livre de Powys poderia possuir, e nós estávamos satisfeitos com ela. Pensei que Artur se preparava para tecer qualquer comentário comparativo entre a minha presente condição humilde e a minha fortuna futura, e estava pronto a defender Cwm Isaf de uma tal comparação. Em vez disso, porém, o seu rosto ostentava uma expressão pesarosa. Invejo-te realmente por tudo isto, Derfel.

 

É vossa, quando quiserdes, Senhor disse eu, captando a nota de ansiedade na sua voz.

 

Estou condenado a viver entre colunas de mármore e frontões imponentes riu-se. Parto amanhã disse ele. Cuneglas seguir-me-á dentro de dez dias. Irás com ele? Ou antes, se puderes. E traz o máximo de comida que conseguires transportar.

 

Para onde? perguntei.

 

Corinium replicou ele, depois pôs-se de pé e contemplou a quinta uma vez mais antes de tornar a sorrir-me. Uma última palavra, pediu.

 

Tenho de certificar-me de que Scarach não está a queimar o leite disse Ceinwyn, compreendendo as implicações contidas nas palavras dele

 

Desejo que saiais vitorioso, Senhor disse para Artur e levantou-se para um abraço de despedida.

 

Artur e eu subimos uma encosta pouco pronunciada, de onde admirámos as vedações recém-entrançadas, as macieiras aparadas e o pequeno lago com peixes no dique que tínhamos construído no ribeiro.

 

Não cries muitas raízes nesta terra, Derfel disse-me ele. Quero-te de volta em Dumnónia.

 

Nada me daria mais prazer, Senhor disse eu, ciente de que não era Artur quem me mantinha afastado da minha pátria, mas sim a sua esposa e Lancelote, seu aliado.

 

Artur sorriu, mas não adiantou mais nada sobre o meu regresso.

 

Ceinwyn disse, em vez disso parece ser muito feliz.

 

E é. Ambos somos.

 

Hesitou durante alguns segundos.

 

És capaz de vir a descobrir disse ele com a autoridade de um pai recente que a gravidez lhe causará uma certa instabilidade.

 

Até agora, não, Senhor disse eu embora ainda estejamos nas primeiras semanas.

 

És um homem de sorte por tê-la disse ele em voz baixa, e agora que o recordo julgo que essa terá sido a primeira vez que o ouvi proferir a mínima crítica a Guinevere. O parto é um momento de tensão acrescentou em jeito de explicação apressada, e estes preparativos para a guerra não ajudam nada. Infelizmente, não posso estar em casa tanto tempo quanto desejaria. Deteve-se junto a um carvalho antigo que fora atingido por um relâmpago e cujo tronco enegrecido pelo fogo estava agora rachado em dois, sem que isso impedisse a velha árvore de lutar para fazer nascer novos rebentos. Tenho um favor a pedir-te disse em voz baixa.

 

Tudo o que quiserdes, Senhor.

 

Não te precipites, Derfel, ainda não sabes de que favor se trata. Fez uma pausa e, perante o embaraço dele, pressenti que era um pedido difícil. Por momentos não conseguiu formular nenhum pedido, limitando-se a contemplar os bosques que se estendiam a sul da quinta, murmurando algo sobre veados e campainhas.

 

Campainhas? perguntei, julgando ter percebido mal as suas palavras.

 

Perguntava apenas por que razão é que os veados nunca comem campainhas? disse, evasivo. Comem tudo o resto.

 

Não sei, Senhor.

 

Hesitou durante uma fracção de segundo e depois olhou-me directamente nos olhos.

 

Pedi uma reunião de Mitras, em Corinium admitiu, por fim. Compreendi o que se seguiria e endureci o meu coração para receber a notícia. A guerra proporcionara-me muitas recompensas, mas nenhuma tão preciosa como a irmandade de Mitras. Este fora o Deus romano da guerra e permanecera na Bretanha depois da partida dos Romanos; os únicos homens que tinham acesso aos Seus mistérios eram eleitos pelos seus iniciados. Estes iniciados vinham de todos os reinos e lutavam entre si com a mesma frequência com que lutavam lado a lado, mas quando se reuniam no Castelo de Mitra faziam-no em paz e apenas elegiam para seu companheiro o mais corajoso entre todos os homens de coragem. Ser um iniciado de Mitras significava receber o louvor dos melhores guerreiros da Bretanha e esta era uma honra que eu não atribuía levianamente a homem nenhum. As mulheres, obviamente, não estavam autorizadas a adorar Mitras. Na verdade, se alguma mulher chegasse a ver os mistérios seria morta.

 

Convoquei a reunião disse Artur porque quero que admitamos Lancelote nos mistérios.

 

Eu sabia que era essa a razão. Guinevere fizera-me o mesmo pedido no ano anterior e nos meses que se lhe seguiram tive esperanças que a ideia se desvanecesse. Agora, porém, em vésperas de guerra, renascia.

 

Dei uma resposta política.

 

Não seria melhor, Senhor perguntei, que o rei Lancelote esperasse até os Saxões terem sido derrotados? Por essa altura, certamente que já o teremos visto combater.

 

Nenhum de nós tinha ainda visto Lancelote lutar num escudo defensivo e, para ser franco, seria para mim uma grande surpresa vê-lo combater durante o Verão que se aproximava; mas esperava que a minha sugestão retardasse esse terrível momento de escolha por mais alguns meses.

 

Artur descreveu um gesto vago como se a minha sugestão fosse de certo modo irrelevante.

 

Existem pressões disse vagamente, para que ele seja eleito já.

 

Que pressões? perguntei.

 

A mãe dele não está bem. Desatei a rir.

 

Essa dificilmente será uma razão de peso para eleger um homem para Mitras, Senhor.

 

Artur franziu as sobrancelhas, numa expressão mal-humorada, ciente da fragilidade dos seus argumentos.

 

Ele é um rei, Derfel disse e comanda um exército real nas nossas guerras. Não gosta da Silúria e não posso culpá-lo por isso. Anseia pelos poetas, harpistas e salões de Ynys Trebes, mas perdeu este reino porque eu não consegui cumprir o meu juramento e não conduzi o meu exército em socorro de seu pai. Devemos-lhe isso, Derfel.

 

Eu não, Senhor.

 

Devemos-lhe isso insistiu Artur.

 

Mesmo assim, ele devia esperar por Mitras disse eu, com firmeza. Se propuserdes o seu nome neste momento, Senhor, receio bem que ele seja rejeitado.

 

Ele temera que eu fosse dizer isso, mas mesmo assim não abdicou dos seus argumentos.

 

És meu amigo disse ele e com um gesto silenciou qualquer comentário que eu pudesse fazer, e dar-me-ia grande prazer, Derfel, se o meu amigo fosse tão honrado em Dumnónia como é em Powys. Tinha estado a olhar fixamente para o tronco do carvalho destruído pelo relâmpago, mas nesse momento virou o rosto para mim. Quero-te em Lindinis, meu amigo, e se tu, mais do que todos os outros, apoiares o nome de Lancelote no templo de Mitras, a sua eleição estará assegurada.

 

As palavras de Artur continham mais implicações do que à partida se poderia julgar. De uma forma subtil, ele estava a confirmar-me que era Guinevere quem reclamava a candidatura de Lancelote, e que aquilo que aos olhos de Guinevere constituíam ofensas da minha parte ser-me-iam perdoadas caso eu lhe concedesse este desejo. Elegendo Lancelote para o círculo de Mitras, estava ele a dizer-me, poderia levar Ceinwyn para Dumnónia e aceitar a honra de ser o paladino de Mordred, juntamente com todas as riquezas, terras e privilégios sociais que acompanhavam uma tão elevada posição.

 

Observei um grupo de lanceiros que desciam a elevada colina a norte. Um deles trazia nos braços um cordeiro, e concluí que devia tratar-se de uma cria órfã que necessitaria de ser alimentada à mão por Ceinwyn. Era uma tarefa cansativa, pois o cordeiro tinha de ser alimentado com uma teta de pano embebida em leite; além disso, era frequente as pobres criaturas morrerem, embora Ceinwyn insistisse em tentar salvar as suas vidas. Ela proibira terminantemente que os seus cordeiros fossem sepultados com vimes ou que a sua pelagem fosse pregada a uma árvore, e aparentemente o rebanho não tinha sido afectado por esta decisão. Suspirei.

 

Nesse caso disse, ireis propor Lancelote, em Corinium.

 

Não, eu não. Bors fará isso. Já o viu combater.

 

Então, só nos resta esperar, Senhor, que Bors tenha o dom da palavra.

 

Artur sorriu.

 

Não podes dar-me uma resposta agora?

 

Nenhuma que quisésseis ouvir, Senhor.

 

Encolheu os ombros, segurou-me pelo braço e juntos fizemos o caminho de regresso.

 

Odeio estas associações secretas disse ele, brandamente, e eu acreditei pois nunca até então encontrara Artur numa reunião de Mitras ainda que soubesse que ele havia sido iniciado muitos anos antes. Os cultos como os de Mitras disse ele existem supostamente para unir os homens, mas apenas servem para separá-los. Despertam invejas. No entanto, por vezes é necessário combater um mal com outro, Derfel, e estou a pensar em formar uma nova associação de guerreiros. Todos os homens que lutarem contra os Saxões farão parte dela, todos, e eu farei deles a formação mais respeitada de toda a Bretanha.

 

E a mais numerosa também disse eu.

 

Os soldados contratados não entram acrescentou, restringindo o ilustre grupo aos homens que empunhavam as suas lanças por juramento e não por obrigação. Os homens preferirão pertencer à minha associação do que a qualquer mistério sagrado.

 

E que nome lhe dareis? perguntei.

 

Não sei. Guerreiros da Bretanha? Os Companheiros? As Lanças de Cadarn? Falava num tom ligeiro, mas eu via que estava decidido.

 

E pensais que se Lancelote fizer parte desses Guerreiros da Bretanha disse eu, apoderando-me de uma das designações que ele sugerira, não se importará com o facto de lhe ser vedada a adesão à Mitras?

 

Isso poderá ajudar admitiu, mas não é essa a razão principal que me leva a fazê-lo. Vou impor uma obrigação a esses guerreiros. Para que possam ser admitidos terão de fazer um juramento de sangue em como nunca mais voltarão a combater uns contra os outros. Esboçou um sorriso rápido.

 

Se os reis da Bretanha armam questiúnculas, então farei com que os seus guerreiros não tenham hipótese de combater entre si.

 

Isso é praticamente impossível disse eu, mordaz. Um juramento real inviabiliza todos os outros, até o vosso juramento de sangue.

 

Nesse caso criarei entraves insistiu porque terei paz, Derfel, terei paz. E tu, meu amigo, irás partilhá-la comigo em Dumnónia.

 

Assim espero, Senhor. Abraçou-me.

 

Vemo-nos em Corinium disse ele. Ergueu uma das mãos num gesto de saudação aos meus lanceiros e depois tornou a fitar-me. Pensa em Lancelote, Derfel. E pondera sobre a seguinte verdade: por vezes temos de ceder um pouco no nosso orgulho em troca de uma grande paz.

 

E com estas palavras afastou-se, enquanto eu me predispunha a avisar os meus homens de que o tempo da lavoura chegara ao fim. Tínhamos lanças e espadas para afiar e escudos para pintar, envernizar e forrar. Estávamos de novo em guerra.

 

Partimos dois dias antes de Cuneglas, que aguardava a chegada dos chefes dos territórios ocidentais, acompanhados dos seus guerreiros endurecidos pelos jejuns passados nas montanhas de Powys. Pediu-me que transmitisse a Artur a promessa de que os homens de Powys estariam em Corinium dentro de uma semana, depois abraçou-me e jurou-me pela sua vida que Ceinwyn ficaria a salvo. Ela ia mudar-se para Caer Sws, onde uma pequena guarnição ficaria encarregue de proteger a família de Cuneglas durante o tempo que durasse a guerra. Ceinwyn mostrara alguma relutância em deixar Cwm Isaf para mudar-se para os aposentos das mulheres onde Helled e as suas tias mandavam, mas eu recordei-lhe a história de Merlim sobre um cão que fora morto e cuja pele fora utilizada para cobrir uma cadela aleijada no templo de ísis mandado construir por Guinevere. Por isso implorei a Ceinwyn que se refugiasse e ela finalmente acedeu.

 

Acrescentei seis dos meus homens à guarda palaciana de Cuneglas, e os restantes, todos eles Guerreiros do Caldeirão, marcharam para Sul. Todos usávamos a estrela de cinco pontas pintada nos nossos escudos, transportávamos duas lanças cada um, as nossas espadas e fardos enormes com pão bem cozido, carne conservada em sal, queijo curado e peixe seco presos às nossas costas. Era bom marchar de novo, ainda que o nosso itinerário nos obrigasse a atravessar o Vale do Lugg, onde os mortos tinham sido desenterrados por javalis fazendo com que os campos do vale parecessem um cemitério de ossos. Tive medo que ao verem os ossos os homens de Cuneglas se recordassem da sua derrota, pelo que fiz questão de perder meio dia para tornar a sepultar os cadáveres, a quem tinham amputado um pé antes de os terem enterrado pela primeira vez. Nem todos os mortos puderam ser queimados, como teríamos gostado, pelo que enterrámos a maior parte deles não sem que antes tivéssemos amputado um dos pés a fim de impedir que a alma caminhasse. Tornámos então a enterrar os mortos com um só pé, mas mesmo depois daquele meio dia de trabalho o local ainda fazia lembrar um açougue. Fiz uma pausa no trabalho para visitar o santuário romano onde a minha espada matara o druida Tanaburs e onde Nimue aniquilara a alma de Gundleus e, aí, no solo manchado pelo seu sangue, estendi-me entre as pilhas de crânios forrados por teias de aranha e pedi para regressar ileso para junto de Ceinwyn.

 

Passámos a noite seguinte em Magnis, uma cidade que nada tinha que ver com caldeirões enredados em neblinas e outras histórias de embalar sobre os Tesouros da Bretanha. Estávamos em Gwent, em território cristão, e tudo ali era lúgubre. Os ferreiros forjavam pontas de lanças, os curtidores de peles fabricavam coberturas de escudos, bainhas, cintos e botas, enquanto as mulheres coziam os pães duros e delgados que podiam durar semanas. Os homens do rei Tewdric vestiam os seus uniformes romanos: couraças de bronze, saias de pele e longos mantos. Uma centena deles já tinha iniciado a marcha para Corinium e outros duzentos seguí-los-iam, ainda que não sob o comando do seu rei, pois Tewdric estava doente. O seu filho, Meurig, o Príncipe Herdeiro de Gwent, seria o seu líder em título embora o verdadeiro comando fosse realmente exercido por Agrícola. Nessa época, Agrícola já era um homem velho, mas tinha as costas direitas e o seu braço carregado de cicatrizes ainda conseguia manejar uma espada. Era tido por ser mais romano do que os próprios Romanos, e eu sempre sentira um certo receio da expressão severa do seu rosto. Naquele dia de Primavera, porém, à entrada de Magnis ele saudou-me como um igual. A cabeça coroada por cabelos grisalhos cortados curtos baixou-se para passar por baixo do lintel da sua tenda e depois, no seu uniforme romano, avançou na minha direcção e, para meu espanto, cumprimentou-me com um abraço.

 

Inspeccionou os meus trinta e quatro guerreiros. Ao lado dos seus homens bem barbeados, os meus pareciam desgrenhados e desleixados. Ele, no entanto, mostrou-se satisfeito com as armas e, mais ainda com a quantidade de comida que transportávamos connosco.

 

Passei anos rugiu ele a ensinar que é inútil enviar um lanceiro para a guerra sem um bom farnel, mas que faz Lancelote da Silúria? Envia-me uma centena de lanceiros sem uma migalha de comida. Convidou-me para a sua tenda, onde me serviu um vinho azedo e deslavado. Devo-vos um pedido de desculpas, Lorde Derfel disse.

 

Tenho dúvidas quanto a isso, Senhor disse eu. Sentia-me embaraçado por partilhar daquela maneira a intimidade de um famoso guerreiro com idade suficiente para ser meu avô.

 

Ele afastou a minha modéstia com um gesto.

 

Devíamos ter estado no Vale do Lugg.

 

Parecia um combate sem futuro, Senhor disse eu e estávamos desesperados. Vós não.

 

Mas haveis ganho, não é verdade? resmungou. Virou-se no momento em que uma rajada de vento tentava deslocar uma apara de madeira sobre a sua mesa, que estava coberta por dezenas de aparas semelhantes, cada uma delas apensa a listas de homens e rações. Equilibrou o pedaço de madeira com um tinteiro feito de chifre e depois tornou a fitar-me

 

Segundo oiço dizer deveremos encontrar-nos com o touro.

 

Em Corinium confirmei. Agrícola, ao contrário de Tewdric, seu amo, era pagão, embora não tivesse tempo para deuses da Bretanha, só para Mitras.

 

Para eleger Lancelote disse Agrícola, irritado. Ouviu a voz de um homem que gritava ordens aos seus soldados, mas não escutando nada que o obrigasse a abandonar a tenda fitou-me. Que sabeis acerca de Lancelote? perguntou.

 

O bastante disse eu para me opor à sua entrada.

 

Insultarias Artur? Parecia surpreendido.

 

Ou insulto Artur disse eu com amargura, ou Mitras. Fiz o sinal para afastar o mal. E Mitras é um deus.

 

Artur falou comigo no caminho de regresso a Powys disse Agrícola e disse-me que a eleição de Lancelote fortaleceria a união da Bretanha interrompeu-se, com uma expressão taciturna. Deu a entender que eu lhe devia um voto, para compensar a nossa ausência no Vale do Lugg

 

Aparentemente, Artur andava a comprar votos a todo o custo.

 

Votai então nele, Senhor disse eu pois a sua exclusão apenas depende de um voto, e o meu será suficiente.

 

Não minto a Mitras reagiu Agrícola, tal como não gosto do rei Lancelote. Ele esteve cá há dois meses atrás, para comprar espelhos.

 

Espelhos! Não pude deixar de me rir. Lancelote sempre coleccionara espelhos, e no alto e arejado palácio de seu pai, em Ynys Trebes, chegara a forrar as paredes de um quarto com espelhos romanos. Devem ter derretido durante o incêndio, quando hordas de Francos escalaram os muros do palácio. Ao que parecia, Lancelote estava a reconstituir a sua antiga colecção.

 

Tewdric vendeu-lhe um belo espelho de ouro argênteo disse-me Agrícola. Tão grande como um escudo, e igualmente extraordinário. Era, tão límpido que era como olhar para um lago negro num dia bonito. E pagou bom dinheiro por ele.

 

"Devia ter pago, de facto", pensei, pois os espelhos de ouro argênteo, uma amálgama de ouro e prata, eram de facto muito raros.

 

Espelhos comentou Agrícola, em tom sarcástico. Devia estar a cuidar dos seus interesses na Silúria e não a comprar espelhos.

 

Agarrou na espada e no elmo quando um corno soou na cidade. O som ecoou por duas vezes, um sinal que Agrícola reconheceu.

 

O Príncipe Herdeiro rugiu, e encaminhou-me para a claridade para ver Meurig que passava naquele momento pelas muralhas romanas de Magnis. Estou acampado aqui disse Agrícola enquanto via a sua guarda de honra formar duas fileiras, para ficar fora do alcance dos padres deles.

 

O príncipe Meurig chegou acompanhado por dois padres cristãos que corriam para acompanhar a passada imposta pelos cavalos do Príncipe Herdeiro. O príncipe era um jovem e eu vira-o pela primeira vez quando era criança não havia ainda muito tempo. Ele, porém, disfarçava a sua juventude com uma atitude impertinente e irritável. Era baixo, pálido e magro, com uma barba fina e castanha. Era conhecido por ser uma criatura chicaneira com um gosto especial pelos subterfúgios próprios dos tribunais e as quezílias da igreja. A sua erudição era reconhecida; nenhum de nós punha em causa o seu talento para refutar a heresia pelagiana que tanto incomodava a igreja cristã da Bretanha, conhecia de cor os dezoito capítulos da lei tribal britânica e era capaz de nomear as genealogias de dez reinos britânicos das últimas vinte gerações, bem como a linhagem de todos os seus clãs e tribos; e isso, segundo diziam os seus admiradores, era apenas uma ínfima parte dos conhecimentos de Meurig. Aos olhos dos seus admiradores surgia como um modelo juvenil de erudição e como um exemplo do maior retórico da Bretanha; na minha opinião, porém, o príncipe parecia ter herdado toda a inteligência de seu pai e nenhuma da sua sensatez. Fora Meurig, mais do que qualquer outro homem, quem persuadira Gwent a abandonar Artur antes do Vale do Lugg e só por essa razão não sentia nenhum tipo de afecto por ele. Obedientemente, porém, ajoelhei-me enquanto ele desmontava.

 

Derfel disse ele, na sua voz estranhamente aguda. Lembro-me de vós.

 

Não fez sinal para que me levantasse, limitando-se a passar por mim a caminho da tenda.

 

Agrícola fez-me sinal para que entrasse, poupando-me assim à companhia dos quatro padres ofegantes cuja única missão era manterem-se próximos do seu príncipe que, vestido com uma toga e com uma pesada cruz de madeira enfiada numa corrente de prata pendurada ao pescoço, parecia irritado com a minha presença. Lançou-me um olhar mal-humorado e continuou a lamentar-se a Agrícola, mas como falavam em latim eu não fazia ideia do tema da conversa. Meurig sustentava a sua argumentação numa folha de pergaminho que agitava diante de Agrícola que, por sua vez, suportava o discurso, pacientemente.

 

Por fim, Meurig desistiu da discussão, enrolou o pergaminho e enfiou-o na toga. Virou-se para mim.

 

Não esperais certamente disse, de novo em britânico, que sejamos nós a alimentar os vossos homens?

 

Transportamos a nossa própria comida, meu Príncipe disse eu, após o que perguntei pela saúde de seu pai.

 

O rei sofre de uma fístula na virilha explicou Meurig, na sua voz aguda. Já aplicámos cataplasmas e os médicos sangram-no com regularidade, mas infelizmente, não foi da vontade de Deus mitigar o seu sofrimento.

 

Mandai chamar Merlim, Senhor sugeri.

 

Meurig pestanejou. Era extremamente míope, e eram talvez os seus olhos debilitados que emprestavam ao seu rosto uma expressão de permanente irascibilidade. Soltou uma curta gargalhada trocista.

 

Vós, é claro, perdoai-me o reparo disse em tom falso, sois famoso por ser um dos tolos que correram o risco de enfrentar Diwrnach só para trazer uma tigela de volta à Dumnónia. Uma tigela de cozinha, não foi?

 

Um caldeirão, meu Príncipe.

 

Os lábios finos de Meurig abriram-se num sorriso rápido.

 

Não pensais, Lorde Derfel, que os nossos ferreiros poderiam ter concebido uma dúzia de caldeirões no mesmo período de tempo?

 

Da próxima vez saberei onde ir buscar os meus tachos de cozinha, meu Príncipe disse eu. Meurig ficou rígido perante o insulto, mas Agrícola sorriu.

 

Haveis entendido alguma coisa disto tudo? perguntou-me Agrícola depois de Meurig ter saído.

 

Não sei latim, Senhor.

 

Queixava-se do facto de um dos seus chefes não ter pago os tributos devidos. O pobre homem deve-nos trinta salmões fumados e vinte carregamentos de madeira cortada; não recebemos o salmão e ele apenas nos entregou cinco carregamentos de madeira. No entanto, Meurig não percebe que as pobres gentes de Cyllig foram vítimas da peste no último Inverno, o rio Wye foi esvaziado por pescadores furtivos e ainda assim Cyllig traz consigo duas dúzias de lanceiros. Agrícola cuspiu, descontente. Dez vezes por dia! disse ele O príncipe vem até aqui dez vezes por dia apresentar um problema que qualquer funcionário do tesouro com dois dedos de testa poderia resolver em menos de nada. Quem dera que o pai se recompusesse e voltasse a ocupar o trono.

 

Qual é a gravidade do estado de saúde de Tewdric? Agrícola encolheu os ombros.

 

Está cansado, não doente. Quer abdicar do trono. Diz que vai cortar o cabelo e tornar-se padre. Tornou a cuspir para o chão da tenda. Mas eu controlo o nosso Príncipe Herdeiro. Assegurar-me-ei de que as suas damas entrem na guerra.

 

Damas? perguntei, sentindo a minha curiosidade desperta pela inflexão irónica que Agrícola dera à palavra.

 

Ele pode ser cego como uma toupeira, Lorde Derfel, mas ainda consegue distinguir uma rapariga tão bem quanto um falcão vê uma víbora. Ele gosta das suas damas, Meurig, e gosta delas em grande número. E porque não? É próprio dos príncipes, não é? Desapertou o cinto da espada e pendurou-o num prego que estava fixo num dos postes da tenda. Marchais amanhã?

 

Sim, Senhor.

 

Jantai comigo esta noite disse ele. Depois acompanhou-me até ao exterior e observou o céu com os olhos semicerrados. Vamos ter um Verão seco, Lorde Derfel. Um Verão para matar saxões.

 

Um Verão para criar grandes canções disse eu, entusiasticamente.

 

Penso muitas vezes que o problema dos bretões como nós, disse Agrícola, melancolicamente é o facto de passarmos demasiado tempo a cantar e tempo insuficiente a matar saxões.

 

Não este ano disse eu não este ano. Pois aquele era o ano de Artur, o ano do massacre do Sais. O ano da vitória total suplicava eu.

 

Depois de termos deixado Magnis marchámos ao longo das estradas romanas que uniam o coração da Bretanha. Fizemos um bom tempo, chegando a Corinium em apenas dois dias, satisfeitos por estar de volta a Dumnónia. A estrela de cinco pontas pintada no meu escudo podia ser uma insígnia estranha, mas no momento em que ouviam o meu nome os camponeses ajoelhavam-se para receber a minha bênção, pois eu era Derfel Cadarn, o vencedor do Vale do Lugg, um Guerreiro do Caldeirão e aparentemente muito famoso na minha pátria. Pelo menos entre os pagãos. Nas cidades e aldeias de maiores dimensões, onde os cristãos existiam em maior número havia mais possibilidades de sermos recebidos por pregações. Diziam-nos que marchávamos para cumprir a vontade de Deus, combatendo os Saxões, e que se morrêssemos durante a batalha as nossas almas iriam para o inferno, caso ainda adorássemos os antigos Deuses.

 

Temia mais os Saxões do que o inferno cristão. Os Sais eram um inimigo terrível; pobres, desesperados e numerosos. Uma vez chegados a Corinium ouvimos relatos agoirentos sobre novos navios que fundeavam quase diariamente na costa leste da Bretanha, carregados de guerreiros selvagens e famílias esfomeadas. Os invasores queriam as nossas terras e para as conquistar eram capazes de reunir centenas de lanças, espadas e machados de dois gumes. No entanto, sentíamo-nos confiantes. Insensatos como éramos marchávamos quase alegremente para aquela guerra. Suponho que depois dos horrores do Vale do Lugg acreditávamos que éramos invencíveis. Éramos jovens, fortes, amados pelos Deuses e tínhamos Artur.

 

Encontrei-me com Galaad em Corinium. Desde o dia em que nos separáramos, em Powys, ajudara Merlim a transportar o Caldeirão para Ynys Wydryn e depois passara a Primavera em Caer Ambra. Partindo da sua fortaleza reconstruída, tomara parte num ataque súbito a Lloegyr juntamente com as tropas de Sagramor. Os Saxões, advertira ele, estavam preparados para a nossa chegada e tinham ateado fogueiras em todas as colinas para assinalar a nossa vinda. Galaad deslocara-se a Corinium para participar no grande Conselho de Guerra convocado por Artur, fazendo-se acompanhar de Cavan e dos homens que se tinham recusado a marchar para norte, em direcção a Lleyn. Cavan ajoelhou e suplicou-me que o autorizasse a ele e aos seus homens a renovar os antigos juramentos de vassalagem para comigo.

 

Não fizemos mais nenhum juramento garantiu-me, excepto a Artur, e ele diz que devemos servir-vos se o quiserdes.

 

Julgava que a esta altura já tinhas enriquecido disse eu a Cavan e regressado à pátria, na Irlanda.

 

Sorriu.

 

Ainda tenho o escudo, Senhor.

 

Aceitei-o novamente ao meu serviço. Ele beijou a lâmina da Hywelbane e em seguida perguntou se ele e os seus homens podiam pintar a estrela branca nos respectivos escudos.

 

Podem fazê-lo disse eu mas com quatro pontas, apenas.

 

Quatro, Senhor? Cavan olhou para o meu escudo. O vosso tem cinco.

 

A quinta ponta disse eu a Cavan é para os Guerreiros do Caldeirão.

 

Pareceu ficar insatisfeito, mas acedeu. Artur tão-pouco teria aprovado, pois teria percebido e com razão que esta quinta ponta era uma marca de divisão que implicava a superioridade de um grupo em relação a outro. Os guerreiros, porém, gostavam destas distinções e os homens que tinham ousado aventurar-se pela Estrada Sombria mereciam-no.

 

Avancei para saudar os homens que acompanhavam Cavan e encontrei-os acampados nas margens do rio Churn, que corria para leste de Corinium. Uma centena de homens, pelo menos, estava instalada junto ao pequeno rio, já que dentro das muralhas da cidade não havia espaço suficiente para acolher todos os guerreiros que se tinham reunido em torno das muralhas romanas. O exército propriamente dito juntara-se perto de Caer Ambra, mas cada um dos comandantes que vinha participar no Conselho de Guerra trouxera consigo alguns servidores que, só por si, eram suficientes para transmitir a sensação de que nos prados alagadiços do Churn se reunira um pequeno exército. Os escudos empilhados eram a prova do sucesso da estratégia de Artur, pois com um único olhar eu podia ver o touro negro de Gwent, o dragão vermelho de Dumnónia, a raposa da Silúria, o urso de Artur e os escudos de homens como eu, que tinham a honra de ter a sua própria insígnia: estrelas, falcões, águias, javalis, a temível caveira de Sagramor e a solitária cruz cristã de Galaad.

 

Culhwuch, primo de Artur, que estava acampado com os seus lanceiros, apressou-se a vir ao meu encontro para saudar-me. Era bom voltar a vê-lo. Combatera a seu lado em Benoic e aprendera a amá-lo como um irmão. Era vulgar, engraçado, jovial, fanático, ignorante e grosseiro; não havia melhor companheiro de luta.

 

Dizem-me que puseste um pão no forno da princesa disse ele depois de me ter abraçado. Saíste-me cá um sortudo. Pediste a Merlim que te fizesse um feitiço?

 

Um milhar deles. Riu-se.

 

Não tenho razões de queixa. Tenho três mulheres agora, todas elas prontas para arrancarem os olhos umas às outras e todas grávidas. Sorriu e coçou a virilha. Piolhos disse, não consigo livrar-me deles. Mas pelo menos infestaram aquela peste que é Mordred.

 

O nosso Rei e Senhor? provoquei-o.

 

Patifório disse, vingativo. Digo-te, Derfel, estou farto de lhe bater, mas ainda assim não há meio de aprender. Bajulador traiçoeiro cuspiu. Então, amanhã vais votar contra Lancelote?

 

Como é que sabes?

 

Não conversara com ninguém, à excepção de Agrícola, sobre o meu firme propósito, mas as novidades tinham arranjado forma de preceder a minha chegada a Corinium; ou então, a minha antipatia pelo rei da Silúria era por demais conhecida para que as pessoas acreditassem que a minha atitude podia ser outra.

 

Toda a gente sabe disse Culhwuch, e todos te apoiam. Olhou por cima do meu ombro e cuspiu subitamente. Corvos resmungou.

 

Virei-me e vi uma procissão de padres cristãos caminhando ao longo da margem mais afastada do Churn. Eram cerca de uma dúzia, todos trajados de negro, rostos barbudos, entoando um dos hinos fúnebres da sua religião. Uma vintena de lanceiros seguia os padres, e, para minha surpresa, os seus escudos ostentavam ou a raposa da Silúria ou a águia-marinha de Lancelote.

 

Pensava que os ritos só se celebrariam daqui a dois dias disse eu a Galaad, que ficara junto de mim.

 

E são respondeu ele. Os ritos eram o preâmbulo da guerra e exigiriam que a bênção dos Deuses descesse sobre os nossos homens, bênção essa que seria procurada quer junto do Deus cristão quer junto das divindades pagãs. Parece mais um baptismo acrescentou Galaad.

 

O que é um baptismo, em nome de Bei? perguntou Culhwuch. Galaad suspirou.

 

É um sinal exterior, meu caro Culhwuch, de que os pecados de um homem foram lavados por obra da graça de Deus.

 

A explicação fez com que Culhwuch explodisse em gargalhadas, o que provocou um olhar reprovador de um dos padres, que prendera o hábito no cinto e chapinhava agora no rio pouco fundo. Usava uma vara para descobrir uma zona suficientemente profunda onde pudesse executar o rito baptismal, e a sua procura atabalhoada atraiu uma multidão de lanceiros entediados até à margem coberta de juncos, oposta àquela onde se encontravam os cristãos.

 

Durante algum tempo, pouco aconteceu. Os lanceiros da Silúria formavam uma guarda envergonhada enquanto os padres entoavam a sua canção e o indivíduo solitário tacteava o fundo do rio com a extremidade da sua comprida vara, encimada por uma cruz prateada.

 

Nunca vais apanhar uma truta com isso gritou Culhwuch, experimenta com um arpão! Os lanceiros riram e os padres lançavam-nos olhares carrancudos enquanto cantavam numa toada desoladora. Algumas mulheres da cidade tinham vindo até ao rio e tinham-se juntado aos cânticos. É uma religião de mulheres cuspiu Culhwuch.

 

É a minha religião, caro Culhwuch murmurou Galaad. Ele e Culhwuch tinham discutido o assunto durante a longa guerra em Benoic, e a discussão entre ambos, tal como a amizade que os unia, não tinha fim.

 

O padre encontrou um local suficientemente fundo, tão fundo que a água lhe chegava à cintura. Aí tentou fixar a vara no leito do rio, mas a força da corrente continuava a pressionar a cruz ainda mais para o fundo, e cada fracasso desencadeava um coro de gargalhadas e frases trocistas da parte dos soldados que assistiam a tudo na margem. Alguns dos espectadores eram eles próprios cristãos, mas não esboçaram quaisquer tentativas para dar por terminada a zombaria.

 

O padre conseguiu finalmente fixar a cruz, ainda que de forma precária, e saiu do rio. Os soldados explodiram em assobios e apupos quando viram as suas pernas delgadas e pálidas, e ele baixou apressadamente as dobras encharcadas do hábito para escondê-las.

 

Foi então que surgiu uma segunda procissão, e o seu aparecimento fez com que um silêncio descesse sobre a margem do rio onde nos encontrávamos. Era um silêncio respeitoso, pois uma dúzia de lanceiros escoltava uma carroça puxada por bois, decorada com linhos brancos, onde viajavam duas mulheres e um padre. Uma das mulheres era Guinevere e a outra era a rainha Elaine, a mãe de Lancelote. No entanto, o mais surpreendente era a identidade do padre. Tratava-se do bispo Sansum. Trazia as insígnias de bispo, uma capa de asperges numa cor garrida e xailes bordados; em torno do pescoço usava uma pesada cruz de ouro verdadeiro. A tonsura rapada, na parte da frente da cabeça estava queimada pelo sol e, mais acima, o cabelo preto estava espetado, fazendo lembrar orelhas de rato. Lughtigern, era como Nimue o chamava, Lorde Rato.

 

Julgava que Guinevere não o suportava disse eu, pois Guinevere e Sansum sempre tinham sido inimigos figadais. No entanto, ali estava Lorde Rato, aproximando-se do rio na carroça de Guinevere. E não é verdade que caiu em desgraça? acrescentei.

 

A merda por vezes flutua rugiu Culhwuch.

 

E Guinevere nem sequer é cristã protestei.

 

E olha para o outro exemplo de merda que está com ela disse Culhwuch e apontou para um grupo de seis cavaleiros que seguiam atrás da pesada carroça. Lancelote comandava-os, montado num cavalo negro e usando apenas um simples par de calças de pano e uma camisa branca. Os gémeos Amhar e Loholt, filhos de Artur, ladeavam-no, vestidos com o uniforme de guerra: elmos emplumados, cotas de malha e botas altas. Atrás deles vinham outros três cavaleiros, um vestido com uma armadura e os outros envoltos nas longas túnicas brancas próprias dos druidas.

 

Druidas? disse eu. Num baptismo?

 

Galaad encolheu os ombros, incapaz, tal como eu, de encontrar explicação para a cena. Os dois druidas eram jovens musculados com atraentes rostos morenos, espessas barbas negras e longos cabelos negros que saíam das suas tonsuras estreitas. Empunhavam bastões negros encimadas por visco-branco e ainda uma outra peça, nada habitual nos druidas: espadas. O guerreiro que os acompanhava não era um homem, mas sim uma mulher, uma mulher alta, de costas direitas e cabelos ruivos, cujas tranças extravagantemente compridas caíam em cascata sob o elmo prateado até roçarem o dorso do seu cavalo.

 

Ade, é como lhe chamam disse-me Culhwuch.

 

Quem é? perguntei.

 

Quem achas que é? A criada? Mantém a cama dele quente riu Culhwuch. Não te faz lembrar ninguém?

 

Lembrava-me Ladwys, a amante de Gundleus. Seria o destino de todos os reis da Silúria, perguntei a mim mesmo, ter uma amante que montasse a cavalo e manejasse uma espada como um homem? Ade trazia uma espada presa à anca, uma lança na mão e o escudo com a águia-marinha enfiado no braço.

 

A amante de Gundleus disse eu a Culhwuch.

 

Ruiva daquela maneira? reagiu Culhwuch com desdém.

 

Guinevere disse eu, e havia de facto uma estranha semelhança entre Ade e a altiva Guinevere, sentada na carroça, ao lado da rainha Elaine.

 

A rainha era pálida, mas à parte isso eu não via vestígios da doença que segundo se dizia estava a matá-la. Guinevere parecia tão atraente como sempre e não deixava entrever qualquer sinal do sofrimento causado pelo parto. Não trouxera o filho com ela, mas eu tão-pouco esperava que o fizesse. Gwydre estava sem dúvida em Lindinis, em segurança, nos braços de uma ama e suficientemente longe para que o seu choro não perturbasse o sono de Guinevere.

 

Os filhos de Artur desmontaram, atrás de Lancelote. Eram ainda muito jovens, de facto tinham apenas a idade suficiente para carregar uma lança e partir para a guerra. Vira-os muitas vezes e não gostava deles, pois não possuíam nenhum do sentido pragmático de Artur. Tinham sido mimados desde a infância e o resultado fora um par de jovens impetuosos, egoístas e ambiciosos que alimentavam um ressentimento em relação ao pai, desprezavam a mãe, Aillean, e desforravam-se da sua condição de bastardos em pessoas que não ousavam opor-se à descendência de Artur. Eram desprezíveis. Os dois druidas desmontaram e ficaram de pé, ao lado da carroça.

 

Foi Culhwuch quem primeiro entendeu o que Lancelote estava a fazer.

 

Se ele for baptizado resmungou na minha direcção, não poderá juntar-se a Mitras, pois não?

 

Isso não aconteceu com Bedwin assinalei e Bedwin era bispo.

 

O querido Bedwin explicou-me Culhwuch jogava nos dois lados do tabuleiro. Quando morreu encontrámos uma imagem de Bei em sua casa, e a mulher disse-nos que ele tinha estado a oferecer-lhe sacrifícios. Não, verás se não tenho razão. Esta é a forma que Lancelote encontrou para evitar ser rejeitado por Mitras.

 

Talvez tenha sido tocado por Deus protestou Galaad.

 

Então, a esta hora, o teu Deus já deve ter as mãos sujas reagiu Culhwuch, de tanto suplicar o teu perdão ao ver que ele é teu irmão.

 

Meio-irmão disse Galaad, não querendo ser associado a Lancelote. A carroça parara muito perto da margem do rio. Sansum desceu do seu leito com esforço, sem se preocupar em arregaçar as suas esplêndidas vestes, afastou os juncos e entrou no rio. Lancelote desmontou e ficou a aguardar na margem que o bispo alcançasse a cruz e a agarrasse. Sansum é um homem baixo e a água chegava-lhe até à pesada cruz que estava ao nível do seu peito estreito. Olhou para nós, para a sua congregação involuntária e elevou a sua poderosa voz.

 

Esta semana gritou enfrentareis o inimigo com as vossas lanças e Deus abençoar-vos-á. Deus ajudar-vos-á! E hoje, aqui neste rio, ides testemunhar um sinal do poder do nosso Deus.

 

Os cristãos espalhados pelo prado benzeram-se enquanto alguns pagãos, como Culhwuch e eu próprio, cuspíamos para afastar os demónios.

 

Vede aqui o rei Lancelote! clamou Sansum, gesticulando na direcção de Lancelote como se nenhum de nós o tivesse reconhecido. Ele é o herói de Benoic, o Rei da Silúria e o Senhor das Águias!

 

O Senhor de quê? perguntou Culhwuch.

 

E esta semana Sansum prosseguiu, esta mesma semana deveria ter sido acolhido no pernicioso círculo de Mitras, o falso Deus do sangue e da ira.

 

Não é verdade rugiu Culhwuch por entre outros murmúrios de protesto que cresceram no seio de um grupo de mitraístas presentes.

 

Mas ontem a voz de Sansum calou os protestos este nobre rei foi visitado por uma visão. Uma visão! Não um pesadelo provocado por uma beberagem qualquer ou gerado por um feiticeiro ébrio, mas sim um sonho belo e puro enviado pelo céu num par de asas douradas. Uma visão santa!

 

Ade levantou as saias resmoneou Culhwuch.

 

A santa e abençoada mãe de Deus apareceu ao rei Lancelote gritou Sansum. Era a Virgem Maria em pessoa, a senhora das dores, de cujas entranhas imaculadas e perfeitas nasceu o Deus-Menino, o Salvador de toda a Humanidade. E ontem, numa explosão de luz, numa nuvem de estrelas douradas, ela desceu até ao rei Lancelote e com a sua mão encantadora tocou Tanlladwyr!

 

Tornou a fazer um gesto para trás das costas e, solenemente, Ade desembainhou a espada de Lancelote que se chamava Tanlladwyr, ou seja, "Assassina Cintilante" e ergueu-a. O sol reflectiu-se no aço, cegando-me por alguns instantes.

 

Com esta espada gritou Sansum, a nossa abençoada Senhora prometeu ao rei que daria a vitória à Bretanha. Esta espada, disse Nossa Senhora, foi tocada pela mão trespassada de pregos do seu Filho e abençoada pela carícia de Sua mãe. De hoje em diante, decretou Nossa Senhora, esta espada será conhecida como a espada-de-Cristo, pois foi santificada.

 

Lancelote, honra lhe seja feita, parecia estranhamente embaraçado com este sermão. Toda a cerimónia, aliás, deve tê-lo deixado embaraçado, pois era um homem com um orgulho imenso mas com uma dignidade frágil. Mesmo assim deve ter pensado que seria preferível ser mergulhado num rio a ser publicamente humilhado, perdendo a eleição para o círculo de Mitras. A certeza desta rejeição deve tê-lo incitado a este repúdio público de todos os deuses pagãos. Guinevere, vi eu, mantinha teimosamente o olhar desviado do rio, fitando em vez disso os estandartes de guerra que tinham sido içados sobre as muralhas de madeira e de terra de Corinium. Era pagã, uma adoradora de ísis; de facto, o ódio que dedicava ao Cristianismo era sobejamente conhecido, embora este sentimento tivesse sido claramente suplantado pela necessidade de apoiar esta cerimónia pública que poupava Lancelote à humilhação de Mitras. Os dois druidas conversavam com ela em voz baixa, fazendo-a rir por vezes.

 

Sansum virou-se e encarou Lancelote.

 

Meu rei chamou em voz suficientemente alta para que todos os que se encontravam na margem pudessem ouvi-lo, vinde agora! Vinde e entrai nas águas da vida, vinde como uma criancinha e recebei o vosso baptismo pela igreja abençoada do único Deus verdadeiro.

 

Guinevere virou-se lentamente para ver Lancelote entrar no rio. Galaad benzeu-se. Os padres cristãos, na margem mais distante, tinham aberto os braços numa atitude de oração, enquanto as mulheres da cidade tinham caído de joelhos contemplando estaticamente o homem alto e bonito que avançava lentamente na direcção do bispo Sansum. O Sol projectava reflexos cintilantes sobre a água e extraía cintilações dourados da cruz de Sansum. Lancelote manteve os olhos baixos, como se não quisesse ver o rosto daqueles que testemunhavam o rito humilhante.

 

Sansum pôs a mão na coroa que adornava a cabeça de Lancelote.

 

Abraçais gritou para que todos pudessem ouvi-lo a verdadeira fé, a única fé, a fé de Cristo que morreu pelos nossos pecados?

 

Lancelote deve ter dito "Sim", ainda que nenhum de nós tivesse conseguido ouvir a resposta.

 

E clamou Sansum ainda mais alto com isso renunciais a todos os outros Deuses e a todas as outras fés e a todos os outros espíritos malignos, demónios, ídolos e criaturas demoníacas, que iludem este mundo com os seus actos hediondos?

 

Lancelote meneou a cabeça e murmurou o seu consentimento.

 

E Sansum continuou com prazer evidente denunciais e troçais as práticas de Mitras, declarando-as, como na verdade são, o excremento de Satanás e o horror de nosso Senhor Jesus Cristo?

 

Sim. Esta resposta de Lancelote soou claramente aos nossos ouvidos.

 

Então, em nome do Pai bradou Sansum, do Filho e do Espírito Santo, pronuncio-te cristão. E ao dizer isto deu um grande impulso que fez desaparecer o cabelo oleado de Lancelote e empurrou o rei para o fundo das águas frias do Churn. Sansum manteve Lancelote nessa posição durante tanto tempo que eu cheguei a pensar que o patife se teria afogado. Mas Sansum levantou-o por fim. E Sansum terminou enquanto Lancelote arfava e cuspia água, proclamo-vos abençoado, chamo-vos cristão e recebo-o no santo exército sagrado dos guerreiros de Cristo.

 

Guinevere, sem saber bem como reagir, aplaudiu educadamente. As mulheres e os padres irromperam num novo cântico que, para música cristã, evocava surpreendentemente as melodias dos duendes.

 

Que diabo perguntou Culhwuch a Galaad é o Espírito Santo?

 

Galaad, porém, não esperou para responder. Num assomo de felicidade, provocado pelo baptismo do irmão mergulhou no rio e atravessou-o, emergindo das águas ao mesmo tempo que o seu ruborizado meio-irmão. Lancelote não esperava vê-lo e durante alguns segundos ficou tenso, lembrando-se sem dúvida da amizade que Galaad sentia por mim; logo depois, porém, recordou-se do dever do amor cristão que acabava de lhe ser imposto e aceitou o abraço entusiástico de Galaad.

 

Também vamos beijar o patife? Culhwuch perguntou-me com um sorriso irónico.

 

Deixa-o estar disse eu. Lancelote não me vira e eu não sentia qualquer necessidade de ser visto. Nesse preciso momento, contudo, Sansum, que saíra do rio e tentava escorrer a água que ensopava as suas vestes, viu-me. Lorde Rato era incapaz de resistir à tentação de provocar um inimigo e naquela ocasião não fugiu à regra.

 

Lorde Derfel! chamou o bispo.

 

Ignorei-o. Ao ouvir o meu nome, Guinevere ergueu bruscamente os olhos. Tinha estado a conversar com Lancelote e com o meio-irmão deste, mas nesse momento deu uma ordem ao condutor da carroça, que picou os flancos dos animais com o aguilhão para fazer avançar o carro. Apressado, Lancelote trepou para o veículo em movimento, abandonando os seus seguidores nas margens do rio. Ade seguiu-o, segurando o cavalo dele pelas rédeas.

 

Lorde Derfel! tornou a chamar Sansum. Relutante, virei-me para enfrentá-lo.

 

Bispo? respondi.

 

Poderei persuadir-vos a imitar o rei Lancelote, entrando como ele no rio sagrado?

 

Tomei banho na última lua cheia, bispo gritei em resposta, provocando algumas gargalhadas no grupo de guerreiros que estava na mesma margem onde nós estávamos.

 

Sansum fez o sinal da cruz.

 

Devíeis ser banhado no sangue sagrado do Cordeiro de Deus clamou ele, para assim lavar a mácula de Mitras! És uma coisa maligna, Derfel, um pecador, um idólatra, uma criatura do demónio, um descendente de Saxões, um companheiro de meretrizes!

 

Este último insulto despertou a minha fúria. Os restantes insultos não passavam de palavras; mas Sansum, embora fosse esperto, nunca era um homem prudente em confrontos públicos e não conseguiu resistir ao insulto final dirigido a Ceinwyn. A sua provocação impeliu-me a passar ao ataque ao som dos vivas dos guerreiros da margem leste do Churn, vivas que cresceram quando Sansum, em pânico, se virou e fugiu. Levava um bom avanço em relação a mim e era um homem ágil e rápido, mas as dobras encharcadas das suas pesadas vestes enrodilharam-se debaixo dos seus pés permitindo que eu o alcançasse a poucos passos de distância da margem mais afastada do rio. Com a minha espada fi-lo perder o equilíbrio e obriguei-o a estatelar-se no meio das margaridas e das primaveras.

 

Foi então que saquei a Hywelbane e encostei a lâmina ao pescoço dele.

 

Não ouvi muito bem, bispo disse eu o último nome que me chamaste.

 

Ele nada disse, olhou apenas na direcção dos quatro companheiros de Lancelote que se aproximavam naquele momento. Amhar e Loholt tinham desembainhado as espadas, ao contrário dos dois druidas que se limitavam a fitar-me com os seus rostos impenetráveis. A essa altura, Culhwuch já tinha atravessado o rio e estava a meu lado, tal como Galaad, enquanto os apreensivos lanceiros de Lancelote nos observavam à distância.

 

Que palavra usaste, bispo? perguntei, acariciando-lhe o pescoço com a lâmina da Hywelbane.

 

A meretriz da Babilónia! disse precipitadamente. Todos os pagãos a adoram. A mulher escarlate, Lorde Derfel, a besta! O anti-Cristo!

 

Sorri.

 

E eu a pensar que estavas a insultar a princesa Cenwyn.

 

Não, Senhor, não! Não! Entrelaçou os dedos. Nunca!

 

Juras? perguntei.

 

Juro, Senhor! Pelo Espírito Santo, juro-o.

 

Não sei quem é o Espírito Santo, bispo disse eu, golpeando ao de leve a maçã de Adão dele com o punho da Hywelbane. Jura pela minha espada disse eu beija-a e acreditarei em ti.

 

Nesse momento odiou-me. Antipatizara comigo antes, mas agora odiava-me. No entanto, aproximou os lábios da lâmina da Hywelbane e beijou o aço.

 

Não tinha qualquer intenção de insultar a princesa disse ele juro. Deixei a Hywelbane tocar os lábios dele por uma fracção de segundo,

 

depois retirei a espada e deixei que se levantasse.

 

Pensava, bispo disse eu que tinhas um Espinheiro Sagrado para guardar, em Ynys Wydryn.

 

Escovou a erva que se tinha colado às vestes húmidas.

 

Deus chama-me para realizar coisas mais elevadas disse.

 

Fala-me delas.

 

Olhou-me, o ódio estampado nos olhos, mas o medo que sentia sobrepôs-se à repugnância.

 

Deus chamou-me para que ficasse ao lado do rei Lancelote, Lorde Derfel disse ele e a Sua graça tem servido para suavizar o coração da princesa Guinevere. Tenho esperanças em que ela possa, um dia, ver a Sua luz eterna.

 

Desatei a rir ao ouvir isto.

 

Ela tem a luz de ísis, bispo, e tu sabes isso. Além disso, ela odeia-te, criatura malvada; como podes então tê-la convencido mudar de ideias?

 

Convencido, Senhor? perguntou ele, de modo pouco franco. Que tenho eu para convencer uma princesa? Não tenho nada, sou um pobre ao serviço de Deus, sou apenas um humilde sacerdote.

 

És um bajulador, Sansum disse eu, embainhando a Hywelbane. Não passas da lama que piso com as minhas botas. Cuspi para afastar o mal que provinha dele. Nas suas palavras adivinhei que fora ele quem tivera a ideia de propor o baptismo a Lancelote, e que essa ideia servira para poupar embaraços ao rei da Silúria relativamente a Mitras. No entanto, não acreditava que esta sugestão tivesse tido o condão de reconciliar Guinevere com Sansum e a sua religião. Deve ter-lhe dado qualquer coisa, ou então prometeu-lhe alguma coisa, embora eu soubesse que ele nunca mo confessaria. Tornou a cuspir, e Sansum, interpretando o cuspo como sinal da sua libertação, desatou a fugir na direcção da cidade.

 

Bela exibição disse um dos druidas, em tom cáustico.

 

E Lorde Derfel Cadarn disse o outro não é lá muito famoso pela beleza. Meneou a cabeça quando olhei para ele. Dinas disse ele, apresentando-se.

 

E eu sou Lavaine disse o companheiro. Eram ambos altos e jovens, ambos tinham a constituição física de um guerreiro e rostos duros e confiantes. As suas vestes eram de um branco cintilante e os longos cabelos negros estavam cuidadosamente penteados, traindo um carácter difícil de contentar que a sua atitude calma tornava de certo modo arrepiante. Era a mesma calma de homens como Sagramor. Artur não era assim. Era demasiado inquieto. Sagramor, no entanto, tal como outros grandes guerreiros, possuía uma calma arrepiante numa situação de batalha. Num combate, nunca temo os homens barulhentos, mas acautelo-me quando um inimigo é calmo, pois estes são os indivíduos mais perigosos; e estes dois druidas possuíam essa mesma confiança tranquila. Eram também muito parecidos e tomei-os por irmãos.

 

Somos gémeos disse Dinas, talvez lendo os meus pensamentos.

 

Como Amhar e Loholt acrescentou Lavaine, gesticulando na direcção dos filhos de Artur, cujas espadas continuavam desembainhadas. Mas é possível distinguir um do outro. Tenho uma cicatriz aqui disse Lavaine, tocando a face direita no sítio onde uma cicatriz branca desaparecia sob a barba hirsuta.

 

Que ganhou no Vale do Lugg disse Dinas. Tal como a do irmão, a sua voz era extraordinariamente grave, uma voz áspera e desagradável que não condizia com a sua juventude.

 

Vi Tanaburs no Vale do Lugg disse e lembro-me de lorweth, mas não me recordo de ter visto mais nenhum druida no exército de Gorfyddyd.

 

Dinas sorriu.

 

No Vale do Lugg disse combatemos como guerreiros.

 

E matámos a nossa quota parte de dumnonianos acrescentou Lavaine.

 

E apenas cortámos o cabelo depois da batalha explicou Dinas. Tinha um olhar impassível e perturbador. E agora disse em voz baixa, servimos o rei Lancelote.

 

Os juramentos dele são os nossos juramentos disse Lavaine. As suas palavras continham uma ameaça, mas era uma ameaça subtil, não desafiadora.

 

Como é que druidas podem servir um cristão? provoquei-os.

 

Unindo uma magia mais antiga à sua magia, claro respondeu Lavaine.

 

E nós fazemos de facto magia, Lorde Derfel disse Dinas, e dito isso ergueu a mão vazia, fechou-a, virou-a, esticou os dedos e na palma da sua mão dele apareceu um ovo de tordo. Atirou fora o ovo, num gesto despreocupado. Servimos o rei Lancelote por opção própria disse, e os amigos dele são nossos amigos.

 

E os seus inimigos nossos inimigos. Lavaine concluiu por ele.

 

E vós Loholt, o filho de Artur, não resistiu a aderir à provocação sois um inimigo do nosso rei.

 

Fitei os gémeos mais jovens; rapazes imberbes, desajeitados que sofriam de um excesso de orgulho e de uma escassez de sabedoria. Ambos tinham herdado o rosto comprido e ossudo do pai. mas os seus eram perpassados pela petulância e pelo ressentimento.

 

De que modo é que sou inimigo do vosso rei, Loholt? perguntei-lhe. Ficou sem saber o que dizer e nenhum dos outros presentes respondeu

 

em seu lugar. Dinas e Lavaine eram demasiado sensatos para iniciar uma luta naquele momento, mesmo com todos os lanceiros de Lancelote por perto, pois Culhwuch e Galaad estavam comigo e um número considerável dos meus apoiantes aguardava a escassos metros de distância, do outro lado do Churn. Loholt enrubesceu, mas não disse nada.

 

Afastei a espada dele com a Hywelbane e depois aproximei-me dele.

 

Permite-me que te dê um conselho, Loholt disse em voz baixa: escolhe os teus inimigos de forma mais sensata do que escolhes os teus amigos. Nada tenho contra ti, nem é meu desejo vir a ter, mas se for essa a tua vontade juro que o meu amor pelo teu pai e a amizade que me liga à tua mãe não me impedirão de enterrar a Hywelbane nas tuas entranhas e de soterrar a tua alma num monte de estrume. Guardei a minha espada. Agora vão.

 

Pestanejou, mas não estava com disposição de lutar. Foi buscar o cavalo e Amhar acompanhou-o. Dinas e Lavaine riram-se, e Dinas chegou até a fazer-me uma vénia.

 

Uma vitória! aplaudiu.

 

Fomos derrotados disse Lavaine, mas que outra coisa poderíamos esperar de um Guerreiro do Caldeirão? pronunciou o título de modo zombeteiro.

 

E de um assassino de druidas acrescentou Dinas, sem qualquer vestígio de troça.

 

O nosso avô, Tanaburs disse Lavaine, e eu recordei a advertência que Galaad me fizera na Estrada Sombria acerca da inimizade destes dois druidas.

 

É considerado insensato disse Lavaine na sua voz desagradável matar um druida.

 

Sobretudo tratando-se do nosso avô disse Dinas que era como um pai para nós.

 

Uma vez que o nosso verdadeiro pai morreu disse Lavaine.

 

Quando éramos jovens.

 

De uma doença revoltante explicou Lavaine.

 

Ele também era um druida disse Dinas e ensinou-nos alguns feitiços. Sabemos destruir colheitas.

 

Podemos fazer gemer mulheres acrescentou Lavaine.

 

Podemos azedar o leite.

 

Enquanto ainda está no seio disse Lavaine, após o que se virou abruptamente e, com uma agilidade impressionante, saltou para a sela.

 

O irmão montou o seu cavalo e pegou nas rédeas.

 

Mas podemos fazer muito mais para além de azedar leite disse Dinas, fitando-me sinistramente do alto da sua montada. Depois, tal como fizera antes, estendeu a mão vazia, fechou-a, virou-a e tornou a abri-la para deixar ver, na palma da mão, uma estrela de cinco pontas feita de pergaminho. Sorriu, rasgou o pergaminho e espalhou os fragmentos sobre a erva.

 

Podemos fazer com que as estrelas percam o brilho disse em jeito de despedida e depois fez mover o cavalo com um toque de calcanhares.

 

Afastaram-se a galope. Cuspi. Culhwuch recuperou a minha lança que estava caída no chão e devolveu-ma.

 

Quem diabo são eles? perguntou.

 

Os netos de Tanaburs. Cuspi uma segunda vez para afastar o mal. As crias de um mau druida.

 

E podem fazer desaparecer as estrelas? A sua voz soava duvidosa.

 

Uma estrela. Olhei para os dois cavaleiros. Ceinwyn, sabia-o bem, estava em segurança no castelo do irmão; mas sabia também que teria de matar os gémeos silurianos se essa fosse a forma de garantir a segurança dela. A maldição de Tanaburs perseguia-me e chamava-se Dinas e Lavaine. Cuspi pela terceira vez e depois toquei o punho da Hywelbane para dar sorte.

 

Devíamos ter morto o teu irmão em Benoic, Culhwuch rugiu para Galaad.

 

Deus me perdoe disse Galaad, mas tens razão.

 

Dois dias mais tarde, Cuneglas chegou e nessa noite houve um Conselho de Guerra. Depois do conselho, à luz de uma lua em quarto-minguante e alumiados por tochas, colocámos as nossas lanças ao serviço da guerra contra os Saxões. Nós, guerreiros de Mitras banhámos as nossas espadas em sangue de touro, mas não fizemos nenhuma reunião para eleger novos iniciados. Não era preciso; com o seu baptismo, Lancelote furtara-se à humilhação da rejeição, embora ninguém me conseguisse explicar o mistério de ter um cristão que era servido por druidas.

 

Merlim chegou nesse dia também e foi ele quem presidiu aos ritos pagãos. lorweth de Powys ajudou-o, mas não houve sinal de Dinas ou de Lavaine. Cantámos a Canção de Batalha de Beli Mawr, lavámos as nossas espadas em sangue, comprometemo-nos a matar todo e qualquer saxão e, no dia seguinte, seguimos caminho.

 

Havia dois chefes saxões importantes, em Lloegyr. Tal como nós, os Saxões tinham chefes e reis menores e estavam organizados em tribos, algumas das quais nem sequer respondiam pelo nome de saxões preferindo ser conhecidas por Anglos ou Jutos. Para nós, porém, eram todos saxões e nós sabíamos que apenas possuíam dois reis importantes: Aelle e Cerdic, que se odiavam um ao outro.

 

Naquela época, Aelle era obviamente o mais célebre. Designava-se a si mesmo por Bretwalda, que na língua saxónica significava o "Senhor da Bretanha", e os seus domínios estendiam-se desde a faixa a sul do Tamisa até à fronteira da longínqua Elmet. O seu rival era Cerdic, cujo território ocupava a costa sul da Bretanha fazendo apenas fronteira com as terras de Aelle e a Dumnónia. Aelle era o mais velho dos dois reis, mais rico em terras e mais forte em termos de guerreiros, o que o tornava o nosso principal inimigo; a derrota de Aelle, acreditávamos nós, precipitaria a queda inevitável de Cerdic.

 

O príncipe Meurig de Gwent, vestido com a sua toga e uma ridícula coroa de bronze sobre o seu cabelo fino castanho-claro, propusera uma estratégia diferente no Conselho de Guerra. Com a modéstia exagerada e humildade fingida que lhe eram habituais sugerira que fizéssemos uma aliança com Cerdic.

 

Deixemo-lo lutar por nós! dissera Meurig. Deixemo-lo atacar Aelle a sul, enquanto nós invadimos a oeste. Bem sei que não sou um estratega fez uma pausa para esboçar um sorriso afectado, convidando um de nós a contradizê-lo, mas todos mordemos as nossas línguas e ficámos calados, mas até o espírito menos iluminado não terá dificuldade em perceber com toda a clareza que é melhor lutar contra um inimigo do que contra dois.

 

Mas nós temos dois inimigos disse Artur sem rodeios.

 

É certo que temos, não tenho nenhuma dúvida a esse respeito, Lorde Artur. No entanto, o meu ponto de vista, se é que podeis compreender-me, é fazer de um desses inimigos nosso amigo. Entrelaçou os dedos e piscou os olhos fixos em Artur. Um aliado acrescentou Meurig, não fosse dar-se o caso de Artur não ter ainda percebido o significado das suas palavras.

 

Cerdic, falou Sagramor no seu britânico atroz não tem honra. Quebrará um juramento com a mesma facilidade com que uma pega destrói um ovo de pardal. Não farei qualquer paz com ele.

 

Não estais a compreender protestou Meurig.

 

Não farei a paz com ele Sagramor interrompeu o príncipe, proferindo estas palavras tão pausadamente como se falasse com uma criança. Meurig enrubesceu e calou-se. O Príncipe Herdeiro de Gwent tinha um medo terrível do alto guerreiro númida, o que não era de espantar, pois a reputação de Sagramor era tão temível quanto o seu aspecto. O Senhor das Pedras era um homem alto, muito magro e rápido como um corisco. Os cabelos e o rosto eram negros como pez; o seu rosto comprido, marcado por uma vida de lutas e combates, exibia uma perpétua expressão carrancuda que escondia um carácter divertido e até generoso. Apesar do domínio imperfeito da nossa língua, Sagramor era capaz de prender a atenção de um acampamento inteiro durante horas, com as suas histórias sobre terras longínquas. A maior parte dos homens, no entanto, apenas o conheciam como o mais feroz de todos os guerreiros de Artur, o implacável Sagramor, temível durante as batalhas e melancólico em tempo de paz, que os Saxões viam como um demónio negro enviado pelo mundo subterrâneo. Conhecia-o bem e gostava dele; na verdade fora Sagramor quem me iniciara no culto de Mitras e fora ele, também, quem lutara ao meu lado durante o longo dia da batalha do Vale do Lugg.

 

Agora arranjou uma mocetona saxã murmurara Culhwuch ao meu ouvido durante o Conselho. Alta como uma árvore e cabelo como feno. Não admira que esteja tão magro.

 

As tuas três mulheres conservam-te bem forte disse eu, beliscando-lhe as costelas substanciais.

 

Escolho-as consoante o jeito que têm para cozinhar, Derfel, e não pelo aspecto que têm.

 

Tendes algum contributo para a nossa discussão, Lorde Culhwuch? perguntou Artur.

 

Nenhum, primo! respondeu Culhwuch, com jovialidade.

 

Nesse caso podemos prosseguir tornou Artur. Perguntou a Sagramor quais eram as hipóteses de os homens de Cerdic virem a combater ao lado de Aelle, e o númida, que durante todo o Inverno guardara a fronteira saxã, encolheu os ombros e respondeu que tratando-se de Cerdic tudo era possível. Ouvira dizer que os dois saxões se tinham encontrado e trocado oferendas, mas não havia notícias de que tivessem celebrado uma aliança. Para Sagramor, o mais provável era que Cerdic ficaria satisfeito se visse a posição de Aelle enfraquecida e que enquanto o exército de Dumnónia estivesse ocupado nesta tarefa ele atacaria ao longo da costa, num esforço para conquistar Durnovária.

 

Se assinássemos uma paz com ele... Meurig fez nova tentativa.

 

Não assinaremos disse secamente o rei Cuneglas, e Meurig, ultrapassado pelo único rei presente no Conselho, calou-se novamente.

 

Um último pormenor, apenas advertiu Sagramor. Os Sais têm cães, agora. Cães enormes. Abriu as mãos para indicar as dimensões enormes dos cães de guerra saxões. Todos nós já tínhamos ouvido falar nestes animais e temíamo-los. Dizia-se que os Saxões soltavam os cães escassos segundos antes do embate entre os escudos defensivos, e que esses ferozes animais eram capazes de abrir buracos enormes para dentro dos quais choviam lanceiros inimigos.

 

Eu encarregar-me-ei dos cães disse Merlim. Foi o único contributo dele no Conselho, mas a afirmação feita num tom calmo e confiante tranquilizou as preocupações de alguns homens. A presença inesperada de Merlim junto do exército era contributo suficiente, pois a posse do Caldeirão tornava-o, inclusive aos olhos de muitos cristãos, uma figura investida de um poder mais temível do que nunca. Não que muitos compreendessem a finalidade do Caldeirão, mas o facto de o druida ter manifestado o desejo de acompanhar o exército deixava-os satisfeitos. Com Artur no comando e Merlim ao nosso lado, como poderíamos sair derrotados?

 

Artur apresentou o seu plano. O rei Lancelote, disse ele, auxiliado pelos lanceiros da Silúria e por um destacamento de soldados de Dumnónia guardaria a fronteira sul protegendo-a de um ataque de Cerdic. Quanto a nós reunir-nos-íamos em Caer Ambra e marcharíamos para Leste através do vale do Tamisa. Lancelote expressou com alarde a relutância que sentia em ver-se assim separado do exército principal, que teria de combater Aelle. Culhwuch, ao ouvir estas ordens, abanou a cabeça de espanto.

 

Ele está a escapar-se à batalha mais uma vez, Derfel! sussurrou-me.

 

Não, se Cerdic atacar disse eu.

 

Culhwuch lançou um olhar a Lancelote, ladeado pelos gémeos Dinas e Lavaine.

 

E vai permanecer perto da sua benfeitora, não é verdade? disse Culhwuch. Não convém que se afaste muito de Guinevere, senão terá de andar pelos seus próprios pés.

 

Nada daquilo me interessava. Sentia-me apenas aliviado pelo facto de Lancelote e os seus homens não integrarem o exército principal. Já era suficiente ter de enfrentar os Saxões, não precisaria de me preocupar com os netos de Tanaburs ou de temer que um punhal siluriano fosse enterrado nas minhas costas.

 

Iniciámos então a marcha. Formávamos um exército andrajoso, contingentes oriundos de três reinos britânicos enquanto alguns dos nossos aliados mais distantes não chegavam. Tinham-nos prometido reforços de Elmet, de Kernow até, mas eles viriam atrás de nós ao longo da estrada romana que se prolongava para Sudeste, desde Corinium, e depois para Leste, na direcção de Londres.

 

Londres. Os Romanos tinham-na designado por Londinium, e antes disso chamara-se simplesmente Londo, que segundo me dissera Merlim em certa ocasião significava "lugar selvagem". Agora era a nossa meta, a única grande cidade que fora outrora a maior cidade da Bretanha romana e que agora definhava, perdida entre as terras roubadas de Aelle. Em tempos, Sagramor comandara uma famosa incursão à velha cidade e dera com os seus habitantes britânicos amedrontados pelos novos senhores. Agora, porém, tínhamos esperança de reconquistar a cidade. Esta esperança cresceu como fogo no seio do exército, embora Artur a negasse com veemência. A nossa missão, dizia ele, era forçar os Saxões a combater e não deixar-nos seduzir pelas ruínas de uma cidade morta, embora aqui Artur contasse com a oposição de Merlim.

 

Não venho convosco para ver um punhado de saxões mortos disse-me ele, com desdém. Que utilidade posso eu ter quando se trata de matar saxões?

 

Toda a utilidade, Senhor respondi eu. A vossa magia assusta o inimigo.

 

Não sejas absurdo, Derfel. Qualquer idiota é capaz de saltitar na frente de um exército, fazendo caretas e lançando pragas. Assustar saxões não é um trabalho que requeira grande engenho. Até os druidas ridículos de Lancelote podiam fazê-lo! E não é por serem druidas genuínos.

 

Não são?

 

Claro que não! Para ser um verdadeiro druida é preciso estudar. É preciso submeter-se a exames. Temos de convencer outros druidas de que conhecemos o nosso ofício, e nunca ouvi dizer que Dinas e Lavaine tivessem sido submetidos a qualquer avaliação por algum druida. A não ser que Tanaburs o tenha feito. E que tipo de druida era ele? Não era lá muito bom, falando francamente, caso contrário nunca teria permitido que sobrevivesses. Acho a incompetência algo deplorável, de facto.

 

Eles conseguem fazer magia, Senhor disse eu.

 

Fazer magia! Assobiou ao ouvir isto. Um daqueles desgraçados faz aparecer um ovo de tordo e tu pensas logo que se trata de magia? Os tordos passam o tempo a fazer isso. Agora, se ele tivesse produzido um ovo de ovelha, aí sim eu prestar-lhe-ia atenção.

 

Ele também fez aparecer uma estrela, Senhor.

 

Derfel! Que homem absurdamente crédulo me saíste! exclamou ele. Uma estrela feita com papel e tesoura? Não te preocupes, ouvi falar nessa estrela e a tua preciosa Ceinwyn não corre qualquer perigo. Nimue e eu certificámo-nos disso queimando três crânios. Não precisas saber pormenores, mas podes ficar descansado porque se aquele par de fraudes se aproximarem de Ceinwyn serão transformados em cobras. Nessa altura poderão pôr ovos para sempre.

 

Fiquei-lhe grato por isto e depois perguntei-lhe apenas por que razão acompanhava o exército se não era para nos ajudar a combater Aelle.

 

Por causa do pergaminho, é claro disse ele e apalpou um dos bolsos da imunda túnica negra para me provar que o pergaminho estava em segurança.

 

O pergaminho de Caleddin? perguntei.

 

E há outro? contrapôs ele.

 

O pergaminho de Caleddin era o tesouro que Merlim trouxera de Ynys Trebes, e aos olhos dele, era tão valioso quanto todos os Tesouros da Bretanha, o que não era de surpreender, pois o segredo destes Tesouros encontrava-se descrito no documento antigo. Os druidas estavam proibidos de escrever fosse o que fosse, pois acreditavam que o acto de registar um feitiço significava destruir o poder de fazer funcionar a magia daquele que escrevia. Assim, todo o seu saber, ritos e conhecimentos eram passados apenas por via oral. Contudo, os Romanos, antes de terem atacado Ynys Mon, temiam de tal modo a religião britânica que subornaram um druida chamado Caleddin, persuadindo-o a ditar tudo o que sabia a um escriba romano. Foi assim que o pérfido pergaminho de Caleddin acabara por preservar a sabedoria antiga da Bretanha. Merlim contou-me em certa ocasião que a maior parte dela tinha caído no esquecimento com o passar dos séculos, já que os Romanos tinham perseguido os druidas de forma cruel, e muita da antiga sabedoria acabara por se diluir na poeira do tempo. Agora, porém, que o pergaminho estava nas suas mãos, ele reabilitaria o poder perdido.

 

E o pergaminho atrevi-me a dizer menciona Londres?

 

Vejam só, como és curioso zombou Merlim; mas em seguida, talvez pelo facto de o dia estar bonito e ele estar bem-humorado, cedeu. O último Tesouro da Bretanha está em Londres disse ele. Ou estava apressou-se a acrescentar. Está enterrado lá. Pensei em dar-te uma pá e deixar que cavasses a coisa cá para fora, mas tu provavelmente irias estragar tudo. Lembra-te só do que fizeste em Ynys Mon! Inferiores em número e cercados, francamente. Imperdoável. Por isso decidi fazê-lo eu mesmo. Primeiro tenho de descobrir onde está enterrado, claro, e isso pode revelar-se difícil.

 

E por isso, Senhor perguntou, haveis trazido os cães? Merlim e Nimue tinham, de facto, reunido um grupo tinhoso de rafeiros de dentes afiados, que agora acompanhavam o exército.

 

Merlim suspirou.

 

Derfel disse ele permite-me que te dê um conselho. Ninguém compra um cão para que seja ele próprio a ladrar. Eu sei qual é a finalidade dos cães, Nimue sabe-o, tu não. É essa a vontade dos Deuses. Mais alguma pergunta? Ou será que agora posso gozar este passeio matinal? Esticou o passo, pontuando cada uma das suas enfáticas passadas com uma pancada do comprido bastão preto.

 

Mal passámos Calleva fomos recebidos por grandes fogueiras. Estas eram os sinais feitos pelo inimigo para avisar que estávamos dentro do seu campo de visão, e sempre que um saxão avistava uma coluna de fumo como aquela cumpria as ordens recebidas que o obrigava a arrasar as terras. Os celeiros eram esvaziados, as casas incendiadas e o gado afugentado. Aelle, porém, não deixava de recuar, mantendo sempre um dia de avanço em relação a nós e atraindo-nos cada vez mais para as zonas devastadas Sempre que a estrada atravessava uma zona de floresta deparávamo-nos com árvores caídas barrando-nos o caminho e, por vezes, enquanto os nossos homens lutavam para afastar os troncos e desimpedir o caminho, uma seta ou uma lança furavam a folhagem para ceifar uma vida; ou então um dos enormes cães de guerra saxões aparecia, saltando e salivando. Estes, porém, eram os únicos ataques de Aelle e nem por uma vez vislumbrámos o seu escudo defensivo. Recuávamos para em seguida tornar a marchar em frente, e todos os dias as lanças ou os cães inimigos nos roubavam uma vida ou duas.

 

A doença causou mais estragos entre nós. Sucedera o mesmo antes da batalha do Vale do Lugg e descobríramos que sempre que um exército numeroso se reunia, os deuses decidiam atormentá-lo com doenças. Os doentes obrigavam-nos a diminuir terrivelmente o ritmo de marcha, pois se não pudessem avançar pelos seus próprios meios tinham de ser colocados em local seguro, guardados por soldados que os protegiam dos bandos de guerreiros saxões que perambulavam em todos os flancos. Durante o dia, o inimigo surgia diante dos nossos olhos em forma de figuras andrajosas e distantes e todas as noites as suas fogueiras tremeluziam no horizonte. Todavia, não eram os doentes quem provocava os maiores atrasos, mas sim a inevitável morosidade com que um número de homens tão elevado avançava. Não conseguia perceber por que razão é que num dia sem sobressaltos trinta soldados podiam percorrer facilmente uma distância de vinte milhas, quando um exército vinte vezes mais numeroso percorreria na melhor das hipóteses oito ou nove, mesmo que se esforçasse muito para isso. Os nossos pontos de referência eram as pedras romanas colocadas nas bermas dos caminhos e que assinalavam o número de milhas que nos separavam de Londres. Passado algum tempo recusava-me a olhar para elas com medo da mensagem deprimente que transmitiam.

 

As carroças puxadas por bois também nos obrigavam a progredir mais devagar. Possuíamos quarenta carros, nos quais transportávamos a comida e as armas sobressalentes. Estes carros deslocavam-se a passo de caracol na retaguarda do exército. O príncipe Meurig comandava esta retaguarda e revoluteava enervado em volta dos carros, contando-os obsessivamente e queixando-se sem cessar que os soldados que seguiam à frente marchavam demasiado depressa.

 

Os famosos cavaleiros de Artur conduziam o exército. Eram cinquenta agora, todos montados em cavalos enormes e felpudos, criados no coração de Dumnónia. À frente seguiam outros cavaleiros, que não usavam a armadura característica do grupo de Artur e eram os nossos batedores. Por vezes, estes homens desapareciam, embora acabássemos sempre por encontrar as suas cabeças decepadas à nossa espera, à medida que avançávamos estrada fora.

 

O corpo principal do exército era composto por quinhentos lanceiros. Artur decidira não levar voluntários com ele, pois sendo trabalhadores rurais nunca tinham armas apropriadas; assim sendo éramos todos guerreiros ajuramentados, todos possuíamos lanças e escudos e alguns de nós tinham também espadas. Nem todos tinham posses para ter uma espada, mas Artur ordenara que em todos os lares de Dumnónia onde houvesse uma espada que já não estivesse ajuramentada ao serviço do exército, esta deveria ser entregue. As oitenta espadas assim reunidas tinham sido distribuídas entre os soldados do seu exército. Alguns homens poucos transportavam machados de guerra saxões que tinham capturado, embora outros, como eu próprio, não gostássemos da inépcia da arma.

 

E quem pagaria tudo isto? Como pagar as espadas e as novas lanças e os novos escudos e carros e bois e farinha e botas e estandartes e freios e tachos e elmos e capas e facas e ferraduras e carne salgada? Artur riu-se quando lhe fiz a pergunta.

 

Tens de agradecer aos cristãos, Derfel.

 

Eles renderam ainda mais? Julguei que essa fonte estava seca.

 

Agora está disse ele, num tom severo, mas é espantoso ver o quanto saiu dos seus santuários quando prometemos sacrificar os seus guardiões, e mais espantosa ainda é a quantia que combinámos pagar-lhes.

 

Alguma vez devolvemos o dinheiro ao bispo Sansum? perguntei. O mosteiro dele, em Ynys Wydryn, fornecera a fortuna que comprara a paz de Aelle durante a campanha de Outono que culminara no Vale do Lugg.

 

Artur abanou a cabeça.

 

E ele não me deixa esquecer o assunto.

 

O bispo disse eu com cautela parece ter feito novos amigos. Artur riu perante a minha demonstração de tacto.

 

É o capelão de Lancelote. Ao que parece é impossível reprimir o nosso querido bispo. Acaba sempre por voltar a subir à superfície, tal como uma maçã dentro de uma selha com água.

 

E fez as pazes com a vossa esposa observei.

 

Gosto que as pessoas resolvam as suas quezílias disse ele, em voz baixa. Mas é verdade que nos dias que correm o bispo Sansum conta com estranhos aliados. Guinevere tolera-o, Lancelote promove-o e Morgana defende-o. E esta? Morgana!

 

Sentia afecto pela irmã e custava-lhe vê-la tão afastada de Merlim. Governava Ynys Wydryn com uma competência feroz, como se assim pretendesse provar a Merlim que era melhor companheira para ele do que Nimue; mas há muito que Morgana perdera a batalha para ser a suprema sacerdotisa de Merlim. Era apreciada por Merlim, segundo dizia Artur, mas queria ser amada, e quem, perguntou-me Artur tristemente, seria capaz de amar uma mulher tão marcada, engelhada e desfigurada pelo fogo?

 

Merlim nunca foi amante dela disse-me Artur, embora ela fingisse que assim era e ele nunca ter dado importância à farsa, pois quanto pior é a ideia que as pessoas fazem dele mais feliz ele se sente. A verdade, porém, é que ele não suporta olhar para Morgana sem a máscara. Ela sente-se só, Derfel.

 

Não era por isso de surpreender que Artur estivesse contente com a amizade nascida entre a irmã estropiada e o bispo Sansum, embora eu não conseguisse perceber como é que o mais feroz dos adversários do cristianismo em Dumnónia podia ser tão amigo de Morgana, uma sacerdotisa pagã famosa pelos seus poderes. "O Lorde Rato", pensei, "era como uma aranha tecendo uma estranha teia." Com a última teia tentara apanhar Artur e falhara e perguntava a mim próprio quem seria o seu alvo desta vez?

 

Nunca tornámos a receber notícias de Dumnónia depois de o último grupo de aliados se ter juntado a nós. Estávamos isolados, cercados por saxões, ainda que as últimas novas da pátria tivessem sido tranquilizadoras. Cerdic não atacara as tropas de Lancelote, nem avançara para leste a fim de apoiar Aelle; era o que se dizia, pelo menos. As últimas tropas aliadas a juntarem-se a nós foram um grupo de guerreiros de Kernow, liderados por um velho amigo que veio ter comigo, galopando ao longo da coluna. Quando se aproximou, desmontou de imediato e caiu aos meus pés. Era Tristão, Príncipe Herdeiro de Kernow que, levantando-se, sacudiu a poeira da capa e me abraçou.

 

Podes ficar descansado, Derfel disse ele chegaram os guerreiros de Kernow. Tudo correrá bem.

 

Ri-me.

 

Tendes bom aspecto, meu Príncipe. E era verdade.

 

Estou longe de meu pai explicou. Ele deixou-me sair da gaiola. Provavelmente tem esperanças que um machado saxão me rache a cabeça. Fez uma careta grotesca, imitando a expressão de um homem moribundo e eu cuspi para afastar influências malignas.

 

Tristão era um homem bonito, bem constituído e de cabelos negros, barba bifurcada e longos bigodes. Tinha uma pele pálida e um rosto frequentemente perpassado pela tristeza, embora naquele dia irradiasse alegria.

 

Desobedecera a seu pai ao trazer um pequeno grupo de soldados para combater no Vale do Lugg. Segundo tínhamos ouvido dizer, esse acto custara-lhe o confinamento numa remota fortaleza na costa norte de Kernow, durante um Inverno inteiro. O rei Mark tornara-se entretanto menos severo e autorizara o filho a participar nesta campanha.

 

Agora somos da mesma família explicou Tristão.

 

Família?

 

O meu querido pai disse ele, ironicamente, está novamente noivo. De lalle de Broceliande.

 

Broceliande era o último reino britânico de Armórica e era governado por Budic Camran, que por sua vez era casado com Anna, irmã de Artur, o que significava que lalle era sobrinha de Artur.

 

E como é perguntei, esta é a tua sexta madrasta?

 

A sétima corrigiu Tristão, e tem apenas quinze Verões de idade, enquanto o pai deve ter pelo menos cinquenta. Eu já tenho trinta! acrescentou, melancólico.

 

E ainda solteiro?

 

Ainda. Mas o meu pai encarrega-se de casar por nós dois. Pobre lalle. Dá-lhe quatro anos, Derfel, e verás se não estará morta como todas as outras. Mas ele está feliz por agora. Está a desgastá-la, tal como faz com todas. Colocou um braço em volta dos meus ombros. E segundo oiço dizer estás casado, não é?

 

Casado, não, mas bem preso.

 

À lendária Ceinwyn! Riu-se. Muito bem, meu amigo, muito bem. Um dia também eu hei-de encontrar a minha Ceinwyn.

 

Oxalá a encontreis em breve, meu Príncipe.

 

Terá de ser! Estou a ficar velho! Antiquado! Ainda há dias descobri um fio de cabelo branco, aqui na minha barba. Puxou o queixo. Consegues vê-lo? perguntou, ansioso.

 

Vê-lo? trocei dele. Pareceis um texugo.

 

Haveria talvez três ou quatro fios de cabelo grisalho espreitando entre os pêlos escuros, mas era tudo.

 

Tristão riu e em seguida olhou de relance para um escravo que caminhava ao longo da berma da estrada com uma dúzia de cães presos por uma trela.

 

Rações de emergência? perguntou-me.

 

Magia de Merlim, e ele não me diz o que vai fazer com eles.

 

Os cães do druida eram um incómodo; necessitavam de comida que não podíamos dispensar, mantinham-nos acordados durante a noite com os seus latidos e lutavam como demónios com os outros cães que acompanhavam os nossos homens.

 

Um dia depois de Tristão se ter juntado a nós chegámos a Pontes, onde a estrada atravessa o Tamisa através de uma primorosa ponte de pedra construída pelos romanos. Esperávamos encontrar a ponte destruída, mas os nossos batedores informaram-nos que estava intacta e, para nosso espanto, ainda estava inteira quando os nossos lanceiros lá chegaram.

 

Aquele foi o dia mais quente desde que iniciáramos a marcha. Artur proibiu-nos a todos de atravessar a ponte até que os carros se tivessem juntado ao corpo principal do exército. Enquanto isso, os nossos homens dispersaram pela margem do rio, à espera. A ponte tinha onze arcos, dois assentes em cada margem, onde a estrada se elevava descrevendo uma curvatura formada por sete arcos suspensos sobre o leito do rio. Três troncos e outros detritos flutuantes tinham-se acumulado no lado da ponte contrário à corrente, fazendo com que a oeste o rio fosse mais largo e fundo do que a leste; além disso, a represa improvisada obrigava a água a correr veloz e a fazer espuma entre os montículos rochosos. Havia uma povoação romana na margem mais recuada. Era um conjunto de construções de pedra rodeados pelo que restava de um talude, enquanto do nosso lado da ponte uma enorme torre guardava a estrada que passava por baixo do arco em ruínas, onde ainda se podia ver uma inscrição romana. Artur traduziu-a para mim, dizendo-me que fora o Imperador Adriano quem ordenara a construção da ponte.

 

Imperator disse eu, espreitando para a placa de pedra. Isso quer dizer Imperador?

 

Exactamente.

 

E um imperador está acima de um rei? perguntei.

 

Um imperador é um Senhor de reis disse Artur. A ponte tornara-o melancólico. Deambulou junto dos arcos rústicos, depois caminhou até à torre e colocou uma das mãos sobre as suas pedras enquanto espreitava a inscrição. Imagina que tu e eu queríamos construir uma ponte como esta disse ele. Como faríamos isso?

 

Encolhi os ombros.

 

Fazíamo-la de madeira, Senhor. Com bons toros de ulmeiro e o resto de carvalho.

 

Ele fez uma careta.

 

E será que ela ainda estaria de pé no tempo dos nossos trinetos?

 

Eles poderão construir as suas próprias pontes sugeri. Ele acariciou a torre.

 

Não temos ninguém que saiba trabalhar a pedra desta maneira. Ninguém que saiba enterrar um cais de pedra no leito de um rio. Nem sequer ninguém que se lembre como é que isso se faz. Somos como homens que possuem um tesouro escondido, Derfel, que dia após dia vem diminuindo sem que nós saibamos nem como impedir que isso aconteça nem como aumentar o nosso espólio.

 

Olhou para trás e viu o primeiro dos carros de Meurig aparecer no horizonte. Os nossos batedores tinham revistado muito bem os bosques que cresciam nos dois lados da estrada e tinham comunicado que não tinham visto nem cheirado nenhum saxão. Artur, porém, alimentava ainda algumas suspeitas.

 

Se eu estivesse no lugar deles deixaria passar o nosso exército e depois atacaria os carros disse ele.

 

Por isso decidira colocar uma guarda avançada do outro lado da ponte, conduzir os carros até ao que restava da decrépita muralha da povoação e só então mandar vir o grosso do exército.

 

Os meus homens compunham a guarda avançada. A terra do outro lado do rio era coberta por uma vegetação menos densa e embora algumas das árvores que restavam estivessem suficientemente próximas umas das outras para esconder um pequeno exército, ninguém apareceu para nos desafiar. O único sinal da presença dos saxões foi uma cabeça de cavalo decepada que nos aguardava na zona central da ponte. Nem um dos meus homens se atreveu a passar por ela sem que antes Nimue avançasse para afastar o espírito maligno que a habitava. Ela limitou-se a cuspir para cima da cabeça. A magia saxã, dizia ela, era fraca, e uma vez dissipado o mal que a habitava, Issa e eu atirámo-la para longe.

 

Os meus homens guardavam a muralha de terra enquanto os carros e respectivas escoltas atravessavam o rio. Galaad viera comigo e, juntos, demos uma volta pelos edifícios reunidos dentro da muralha. Por algum motivo, os Saxões tinham aversão pelas povoações romanas, preferindo as suas casas de madeira e telhado de colmo. No entanto, alguém habitara ali até há pouco tempo, pois as lareiras estavam cheias de cinzas e alguns dos pavimentos tinham sido varridos.

 

Podiam ter sido os nossos disse Galaad, já que havia muitos bretões que viviam entre os saxões, muitos na condição de escravos, mas alguns como homens livres que tinham aceite um domínio estrangeiro.

 

Os edifícios pareciam ter sido casernas militares outrora, embora houvesse ainda duas casas e aquilo que eu julguei ser um enorme celeiro mas que, quando escancarámos a sua porta destruída, se revelou um curral de animais onde o gado era guardado durante a noite, a salvo do ataque dos lobos. O chão era um lodaçal feito de palha e excrementos de tal modo malcheiroso que eu teria abandonado o edifício naquele preciso momento, se Galaad não tivesse entrevisto qualquer coisa escondida nas sombras, no canto mais afastado da divisão. Segui-o, então, ao longo do chão húmido e viscoso.

 

O canto mais recuado do edifício não era uma parede direita de empena, era sim interrompido por um abside curvo. Ao alto, no estuque manchado que cobria o abside, quase dissimulado pela poeira e a sujidade velha de anos via-se um símbolo pintado que fazia lembrar um grande X no qual estava sobreposto um P. Galaad fitou o símbolo e fez o sinal da cruz.

 

Foi uma igreja, em tempos, Derfel disse, maravilhado.

 

Fede disse eu.

 

Olhou com reverência para o símbolo.

 

Estiveram aqui cristãos.

 

Agora já cá não estão. Estremeci ao inspirar o fedor avassalador e afugentei, inutilmente as moscas que zuniam em torno da minha cabeça.

 

Galaad não se importava com o cheiro. Enterrou a ponta da lança na massa compacta de excremento de vaca e palha podre e logrou, finalmente, pôr a descoberto uma pequena mancha de chão. O que encontrámos apenas o levou a redobrar os seus esforços até conseguir revelar a parte superior de um homem representado em pequenos azulejos. O homem estava vestido como um bispo, tinha uma auréola em torno da cabeça e num dos braços erguidos segurava um pequeno animal com um corpo esquelético e uma grande cabeça peluda.

 

São Marcos e o seu leão disse Galaad.

 

Julgava que os leões eram animais gigantescos disse eu, desapontado. Sagramor diz que são maiores do que cavalos e mais ferozes do que ursos. Dei uma olhadela ao animal sujo de excrementos. Aquilo não passa de um gatinho.

 

É um leão simbólico censurou ele. Tentou limpar um pouco mais o chão, mas a porcaria era demasiado antiga, espessa e glutinoso. Um dia continuou construirei uma grande igreja como esta. Uma igreja enorme. Um lugar onde um povo inteiro possa reunir-se na presença do seu Deus.

 

E quando morreres puxei-o para trás, na direcção da porta, um patife qualquer enfiará lá dentro umas cabeças de gado para aí passarem o Inverno e ficar-te-á muito grato.

 

Insistiu em ficar mais um minuto e, enquanto eu lhe segurava no escudo e na lança, abriu os braços e ofereceu uma nova oração num lugar antigo.

 

É um sinal de Deus disse, excitado, seguindo-me finalmente de regresso à luz do Sol. Reabilitaremos o Cristianismo em Lloegyr, Derfel. É um sinal de vitória!

 

Pode ter sido um sinal de vitória para Galaad, mas por pouco que aquela velha igreja não era a causa da nossa derrota. No dia seguinte, quando seguimos para leste na direcção de Londres, que agora estava tentadoramente próxima, o príncipe Meurig deixou-se ficar em Pontes. Mandou seguir os carros com a maior parte das respectivas escoltas, mas manteve cinquenta homens com ele para limpar a imundície que se acumulara na igreja. Meurig,. tal como Galaad, ficou muito comovido com a existência daquela antiga igreja e decidiu tornar a dedicar o santuário ao seu Deus, pelo que ordenou aos seus lanceiros que depusessem as respectivas armas de guerra e desimpedissem o edifício dos excrementos e da palha em que estava atolado para que os padres que o acompanhavam pudessem rezar as orações necessárias à restauração do carácter sagrado do edifício.

 

E enquanto a nossa retaguarda transportava excrementos, os saxões, que tinham vindo a seguir-nos, atravessaram a ponte.

 

Meurig escapou. Tinha um cavalo, mas a maioria dos carregadores de excrementos pereceu, bem como dois dos padres. Em seguida, os saxões invadiram a estrada e capturaram os carros. O resto da retaguarda deu luta, mas estavam em desvantagem numérica e os saxões cercaram-nos pelos flancos, dominaram-nos e desataram a dizimar os bois pesados até que, um por um, os carros pararam a sua marcha e caíram nas mãos do inimigo.

 

A essa altura já nos tínhamos apercebido da agitação. O exército imobilizou-se quando os cavaleiros de Artur partiram a galope na direcção dos sons da chacina. Nenhum destes cavaleiros estava devidamente equipado para uma batalha, pois o tempo estava demasiado quente para que um homem usasse a armadura durante um dia inteiro; o seu aparecimento súbito foi suficiente para lançar o pânico entre os saxões, mas os danos já estavam feitos. Dezoito dos quarenta carros tinham sido imobilizados e, sem os bois, teriam de ser abandonados. A maior parte desses dezoito fora saqueada e barris cheios com a nossa preciosa farinha tinham sido espalhados pela estrada fora. Salvámos o máximo de farinha que pudemos e guardámo-la em capas, embora com ela não pudéssemos cozer senão um pão miserável, recheado de poeira e galhos. Já antes da incursão inimiga tínhamos começado a racionar a comida, tendo chegado à conclusão que a comida duraria mais duas semanas. Agora, porém, atendendo a que a maior parte da comida era transportada nos veículos da retaguarda corríamos o risco de ter de suspender a marcha dentro de uma escassa semana e mesmo assim as reservas de comida seriam quase insuficientes para garantir um regresso seguro a Calleva ou Caer Ambra.

 

Há peixe no rio lembrou Meurig.

 

Peixe outra vez não, meus deuses resmungou Culhwuch, recordando as privações dos últimos dias passados em Ynys Trebes.

 

Não há peixe em quantidade suficiente para alimentar um exército. Artur respondeu em tom zangado. Ele teria gostado de ter gritado com Meurig, de ter desmascarado a sua estupidez, mas Meurig era um príncipe e o sentido que Artur tinha das conveniências nunca lhe teria permitido humilhar um príncipe. Se tivesse sido eu ou Culhwuch que tivéssemos dividido a retaguarda e exposto os carros, Artur teria perdido a calma, mas a posição social de Meurig protegia-o.

 

Estávamos num Conselho de Guerra, a norte da estrada que atravessava uma planície desinteressante, coberta de erva, juncada por maciços de árvores e taludes dispersos de giesta e espinheiros. Todos os comandantes estavam presentes e dúzias de homens de condição menor tinham-se reunido para escutar as nossas deliberações. Meurig, é claro, negava quaisquer responsabilidades.

 

Se lhe tivessem dado mais homens, alegava, aquela situação desastrosa nunca se teria verificado.

 

Além do mais disse, e perdoar-me-ão pelo que vou dizer, embora se trate de um ponto tão óbvio que quase dispensa explicações, um exército que ignore Deus não pode ter esperanças de vir a ser bem sucedido.

 

Então, porque é que Deus nos ignorou? perguntou Sagramor. Artur silenciou o númida.

 

O que está feito não tem remédio disse ele. Temos de pensar no que acontecerá em seguida.

 

No entanto, o que aconteceria em seguida dependia mais de Aelle do que de nós. Tinha obtido a primeira vitória, embora fosse provável que desconhecesse a verdadeira extensão do seu triunfo. Estávamos já bem dentro do seu território e corríamos o risco de vir a morrer de fome a não ser que conseguíssemos montar uma cilada ao seu exército, destrui-lo e assim alcançar um território que não tivesse sido saqueado. Os nossos batedores tinham-nos trazido veado e uma vez por outra encontravam vacas ou ovelhas. Estes acepipes, no entanto, eram raros e insuficientes para compensar a farinha e a carne seca que tínhamos perdido.

 

Não restam dúvidas de que ele terá de defender Londres, não? alvitrou Cuneglas.

 

Sagramor abanou a cabeça.

 

Londres é habitada por bretões disse ele. Os saxões não gostam da cidade. Ele deixar-nos-á ficar com Londres.

 

Haverá comida em Londres disse Cuneglas.

 

Mas quanto tempo durará ela, meu Rei? perguntou Artur. E se a levarmos connosco, que faremos? Deambularemos eternamente, à espera de um ataque de Aelle? Tinha os olhos fixos no chão e o rosto comprido espelhava concentração. As tácticas de Aelle eram claras: os saxões deixar-nos-iam marchar, marchar e os seus homens estariam sempre um passo à nossa frente, prontos a eliminar todos os vestígios de comida que houvesse no nosso caminho e quando já estivéssemos fracos e desmoralizados, seríamos cercados por hordas de saxões. O que temos de fazer disse Artur, é atraí-los até nós.

 

Meurig piscou os olhos rapidamente.

 

Como? inquiriu, num tom que sugeria que Artur estava a ser ridículo.

 

Os druidas que nos acompanhavam, Merlim, lorweth e outros dois oriundos de Powys, estavam sentados num dos cantos do Conselho. Merlim, que conseguira descobrir um assento num oportuno formigueiro, exigiu a atenção dos presentes erguendo o seu bastão.

 

Que fazemos perguntou calmamente quando queremos obter algo valioso?

 

Tomamo-lo rugiu Agravain, que comandava os possantes cavaleiros de Artur, deixando este último livre para comandar a totalidade do exército.

 

Quando queremos que os Deuses nos concedam algo valioso? Merlim corrigiu a sua pergunta, que fazemos?

 

Agravain encolheu os ombros e nenhum de nós foi capaz de fornecer uma resposta.

 

Merlim pôs-se de pé a fim de dominar o Conselho do alto da sua elevada estatura.

 

Se queremos obter alguma coisa disse ele com toda a simplicidade como se fosse nosso professor e nós os seus alunos, temos de dar algo em troca. Temos de fazer uma oferta, um sacrifício. Aquilo que eu mais queria neste mundo era recuperar o Caldeirão, por isso ofereci a minha vida à sua demanda e o meu desejo foi-me concedido. Mas se eu não tivesse oferecido a minha alma por ele, esta oferenda nunca me teria sido atribuída. Temos de sacrificar alguma coisa.

 

Meurig sentiu-se insultado na sua fé cristã e não conseguiu resistir à tentação de dirigir um comentário sarcástico ao druida.

 

A vossa vida, talvez, Lorde Merlim? Resultou da última vez. Soltou uma gargalhada e procurou os padres sobreviventes para que estes rissem com ele.

 

As gargalhadas morreram quando Merlim apontou o seu bastão negro à figura do príncipe. Manteve o bastão imóvel, a sua extremidade a escassos centímetros do rosto de Meurig, e assim continuou muito depois de o riso ter esmorecido. Merlim continuou a segurar o bastão na mesma posição, prolongando o silêncio até aos limites do intolerável. Agrícola, sentindo que devia apoiar o seu príncipe, pigarreou, mas um movimento do bastão negro calou qualquer protesto que ele estivesse a pensar fazer. Meurig retorcia-se, constrangido, mas parecia ter perdido a voz. Corou, piscou os olhos e contorceu-se embaraçado. Artur franziu as sobrancelhas numa expressão carrancuda, mas nada disse. Nimue sorria antecipando o destino do príncipe, enquanto todos nós observávamos em silêncio, alguns trémulos de medo. No entanto, Merlim não se moveu até Meurig, finalmente, não conseguir suportar por mais tempo a tensão.

 

Foi apenas um gracejo quase gritou, desesperado. Não era minha intenção ofender-vos.

 

Haveis dito alguma coisa, meu Príncipe? inquiriu Merlim num tom ansioso, fingindo que as palavras carregadas de pânico que Meurig acabara de proferir o tinham arrancado aos seus devaneios. Baixou o bastão. Devia estar a sonhar acordado. Onde ia eu? Oh, sim, um sacrifício. Que temos nós de mais precioso, Artur?

 

Artur reflectiu durante alguns segundos.

 

Temos ouro disse ele prata, a minha armadura.

 

Ninharias respondeu Merlim sem contemplações. Instalou-se um silêncio durante algum tempo, até que os homens que não faziam parte do Conselho apresentaram as suas sugestões. Alguns tiraram as correntes que traziam ao pescoço e agitaram-nas no ar. Outros alvitraram que prescindíssemos das nossas espadas, e alguém chegou até a proferir o nome da espada de Artur: Excalibur. Os cristãos não apresentaram qualquer sugestão, porque se tratava de um procedimento pagão e eles nada mais ofereceriam para além das suas orações. Um homem de Powys, contudo, sugeriu que sacrificássemos um cristão, ideia que logo desencadeou sonoros aplausos. Meurig voltou a corar.

 

Por vezes penso disse Merlim quando o rol de sugestões se esgotou, que estou condenado a viver no meio de idiotas. Terá o mundo inteiro enlouquecido, à excepção de mim próprio? Será que nenhum de vós, pobres idiotas de vistas curtas, consegue ver qual é o bem mais precioso que possuímos? Nem um?

 

Comida disse eu.

 

Ah! exclamou Merlim, encantado. Muito bem, meu pobre idiota de vistas curtas! Comida, estúpidos. Cuspiu um insulto dirigido ao Conselho. Os planos de Aelle assentam na convicção de que não temos comida, pelo que temos de provar o contrário. Temos de desperdiçar comida tal como os cristãos desperdiçam orações, temos de espalhá-la aos quatro ventos, temos de esbanjá-la, deitá-la fora, temos fez uma pausa para enfatizar ainda mais a palavra que se seguiria de sacrificá-la.

 

Esperou que alguém o contrariasse, mas ninguém falou.

 

Descobre um lugar perto daqui, Merlim ordenou a Artur, onde desejes bater-te com Aelle. Não demonstres demasiado empenhamento, pois não queres que ele se recuse a combater. Estás a tentá-lo, não te esqueças, e tens de convencê-lo que é capaz de te derrotar. De quanto tempo precisará ele para preparar os seus exércitos para combater?

 

Três dias respondeu Artur. Suspeitava que os homens de Aelle estavam dispersos ao longo do círculo de soldados que nos escoltavam, e o saxão necessitaria de pelo menos dois dias para apertar esse círculo e reduzi-lo a um exército compacto e outro dia inteiro para organizar a formação de ataque.

 

Vou precisar de dois dias disse Merlim, para cozer pão duro em quantidade suficiente para nos mantermos vivos durante cinco dias ordenou. Não será uma ração generosa, Artur, pois o nosso sacrifício tem de ser genuíno. Procura então o teu campo de batalha e aguarda. Deixa o resto ao meu cuidado. Mas quero que Derfel e uma dúzia dos seus homens desempenhem uma árdua tarefa. E haverá alguém entre os presentes elevou a voz para que todos os homens reunidos em torno do Conselho pudessem ouvi-lo que tenha jeito para esculpir madeira?

 

Escolheu seis homens. Dois eram naturais de Powys, e um deles usava um escudo com o falcão de Kernow pintado; os outros vinham de Dumnónia. Receberam machados e facas, mas as ferramentas para esculpir só lhes seriam entregues quando Artur tivesse encontrado o seu campo de batalha.

 

Encontrou-o numa charneca ampla que se elevava para formar um cume de contornos suaves encimado por uma pequena mata de teixos e lódãos-brancos. A encosta não era nada escarpada, mas mesmo assim poderíamos contar com a protecção de um terreno elevado. Foi aí que Artur enterrou os seus estandartes, em torno dos quais cresceu um acampamento de abrigos cobertos de colmo feitos com ramos das árvores que povoavam a mata. Os nossos lanceiros formariam um círculo em volta dos estandartes e aí, esperávamos nós, enfrentariam Aelle. O pão que iria manter-nos vivos enquanto esperávamos pelos saxões foi cozido em fornos de turfa.

 

Merlim escolheu para si um local a norte da charneca. Havia um prado, uma paisagem de amieiros enfezados e ervas daninhas à beira de um regato que serpenteava para Sul, na direcção do longínquo Tamisa. Os meus homens receberam ordens para abater três carvalhos, descascar os galhos e a própria casca das árvores e, finalmente, cavar três valas onde os carvalhos seriam enterrados como se fossem colunas. Antes disso, porém, os seis entalhadores transformaram os troncos de carvalho em três ídolos macabros. lorweth ajudou Nimue e Merlim, e os três deliciaram-se com a tarefa, já que ela lhes permitia imaginar e conceber as coisas mais sinistras e assustadoras que pouco se pareciam com qualquer dos deuses que eu jamais conhecera. Merlim, no entanto, não se importava. Os ídolos, dizia ele, não são para nós mas sim para os Saxões. E foi assim que ele e os seus entalhadores conceberam três figuras horrorosas com rostos de animais, seios de mulher e órgãos genitais masculinos. Quando as colunas ficaram prontas, os meus homens interromperam as suas tarefas e enterraram as três figuras nas respectivas valas enquanto Merlim e os entalhadores calcavam a base com terra até as colunas ficarem finalmente na posição vertical.

 

O pai Merlim saltou em frente dos ídolos, o filho e o espírito santo! anunciou entre gargalhadas.

 

Entretanto, os meus homens tinham empilhado enormes quantidades de lenha em frente às valas, e foi sobre a lenha assim amontoada que atirámos o que restava dos nossos mantimentos. Matámos os últimos bois e içámos os seus corpos pesados para cima do monte de lenha de forma que o seu sangue ainda quente escorresse através das camadas de madeira. Para cima dos bois atirámos ainda tudo aquilo que eles tinham transportado: carne e peixe secos, queijo, maçãs, cereais e feijões. No topo destes preciosos géneros colocámos as carcaças de dois veados recém-caçados e um carneiro acabado de esfolar. A cabeça do carneiro, com os seus cornos idênticos, foi decepada e presa ao pilar central.

 

Os saxões observavam-nos enquanto trabalhávamos. Estavam acampados na margem mais distante do regato e, no primeiro dia, as suas lanças tinham trespassado a superfície da água por uma ou duas vezes. No entanto, depois dessas primeiras tentativas inúteis para interferir com a nossa rotina tinham-se contentado em observar-nos para tentar perceber exactamente que actividade estranha era aquela a que nos entregávamos. Eu pressentia que o seu número não parava de aumentar. No primeiro dia, não tínhamos vislumbrado mais do que uma dúzia de homens escondidos entre as árvores distantes, mas no final da tarde do segundo dia via-se pelo menos uma vintena de fogueiras ardendo por detrás da vegetação.

 

Agora disse Merlim nessa noite, damos-lhe algo que podem observar.

 

Trouxemos fogo dentro de tachos de cozinha desde o monte pouco elevado da charneca até à enorme coluna de lenha e atirámo-lo para o meio do emaranhado de ramos. A madeira estava verde, mas nós tínhamos amontoado braçados de ervas secas e galhos quebrados no meio e ao anoitecer o fogo lavrava ferozmente. As chamas iluminavam os nossos ídolos grosseiros com um brilho lúgubre, o fumo agitava-se numa coluna imensa que deslizava na direcção de Londres e o cheiro a carne queimada flutuava perversamente até ao nosso acampamento esfomeado. O fogo estalava e desabava, atirando para o ar um mar de fagulhas, e no topo abrasador os animais mortos contraíam-se e contorciam-se à medida que as chamas lhes encolhiam os tendões e faziam explodir os seus crânios. A gordura derretida estalava no meio do braseiro e depois inflamava-se bruscamente, branca e brilhante, projectando sombras negras sobre os três ídolos hediondos. A fogueira ardeu toda a noite, queimando as nossas últimas esperanças de abandonar Lloegyr sem uma vitória, e de madrugada vimos os saxões aproximarem-se para investigar os restos fumegantes da grande fogueira.

 

E ficámos à espera. Não éramos totalmente passivos. Os nossos cavaleiros cavalgaram para Oeste a fim de fazer o reconhecimento da estrada para Londres e regressaram com notícias sobre bandos de saxões em marcha. Outros cortaram madeira e usaram-na para começar a construir um castelo perto da pequena mata que ficava no topo da pequena elevação da charneca. Não tínhamos necessidade de um castelo desses, mas Artur queria dar a impressão que estávamos a estabelecer uma base em pleno território de Lloegyr, a partir da qual faríamos as nossas incursões até aos territórios de Aelle. Essa crença, se Aelle se deixasse convencer, não deixaria de o incitar à batalha. Iniciámos a construção de uma muralha de terra, mas desprovidos das ferramentas adequadas, o resultado foi terrivelmente modesto, embora deva ter contribuído para tornar o estratagema mais real.

 

Estávamos muito ocupados, mas isso não impediu que se verificasse uma cisão rancorosa no seio do exército. Alguns, como Meurig, estavam convencidos de que tínhamos adoptado a estratégia errada desde o início. Teríamos feito melhor, dizia então Meurig, se tivéssemos enviado três ou quatro exércitos mais pequenos para conquistar as fortalezas fronteiriças dos saxões. Devíamos ter assediado e provocado, mas em vez disso estávamos cada vez mais esfomeados e presos em Lloegyr numa armadilha que nós próprios armáramos.

 

Ele talvez tenha razão confessou-me Artur na manhã do terceiro dia.

 

Não, Senhor insisti eu, e para provar o que queria dizer fiz um gesto para norte, na direcção da enorme mancha de fumo que indicava o local, para lá do ribeiro, onde uma horda crescente de saxões se reunia.

 

Artur abanou a cabeça.

 

O exército de Aelle está ali, quanto a isso não restam dúvidas disse - mas isso não significa que ele vá atacar. Vão observar-nos, e se ele tiver um pingo de bom senso, deixar-nos-á ficar aqui a apodrecer.

 

Podíamos atacá-lo sugeri eu. Tornou a abanar a cabeça.

 

Conduzir um exército entre o arvoredo e obrigá-lo a atravessar um curso de água é a melhor receita para um desastre. Esse será o nosso último recurso, Derfel. Reza para que ele venha hoje.

 

Mas tal não aconteceu, e estávamos no fim do quinto dia depois de os saxões terem destruído os nossos mantimentos. No dia seguinte comeríamos migalhas e no espaço de dois dias estaríamos famintos. Passados três dias seríamos obrigados a enfrentar o terrível olhar da derrota. Artur não traía qualquer sinal de preocupação, fosse qual fosse a perdição vaticinada pelos resmungões do exército. Foi num desses fins de tarde, quando o Sol desaparecia no horizonte sobre a distante Dumnónia, que Artur fez sinal para que subisse e me juntasse a ele no cimo da parede cada vez mais alta do castelo grosseiro que estávamos a construir. Trepei pelos toros de madeira e icei-me até ao cimo da parede.

 

Olha disse ele, apontando para leste. Lá longe, eu conseguia distinguir outra mancha de fumo cinzento e por baixo dela, com os seus edifícios iluminados pela claridade oblíqua do Sol, via-se uma cidade enorme, maior do que todas as que eu já vira até então. Maior do que Glevum ou Corinium, maior até do que Aquae Sulis. Londres disse Artur numa voz maravilhada. Alguma vez pensaste vê-la?

 

Sim, Senhor. Ele sorriu.

 

O meu sempre confiante Derfel Cadarn.

 

Ele estava empoleirado no topo da parede, apoiado numa coluna inacabada e olhava fixamente para a cidade. Atrás de nós, no rectângulo formado pelas tábuas do salão, estavam guardados os cavalos do nosso exército.

 

Os pobres animais estavam já esfomeados, pois havia pouca erva naquelas terras ressequidas e nós não tínhamos trazido forragem para lhes dar.

 

É estranho disse Artur, sem desviar o olhar de Londres, pensar que a esta altura Lancelote e Cerdic poderão já ter-se defrontado e nós não temos forma de o saber.

 

Rezai para que Lancelote saia vencedor disse eu.

 

É o que faço, Derfel, é o que faço. Bateu com os calcanhares na parede meio construída. Que sorte tem Aelle disse ele, de súbito. Pode fazer tombar os melhores guerreiros da Bretanha aqui mesmo. No final deste ano, os homens dele poderão perfeitamente ter tomado os nossos castelos. Poderão chegar ao mar de Severn em ritmo de passeio. Tudo desaparecido. A Bretanha inteira! Desaparecida. A ideia parecia diverti-lo. Depois virou-se e olhou para baixo, para onde estavam os cavalos. Podemos sempre comê-los disse.

 

A sua carne manter-nos-á vivos durante uma ou duas semanas.

 

Senhor! protestei, querendo contrariar o pessimismo dele.

 

Não te preocupes, Derfel riu-se. Enviei uma mensagem ao nosso velho amigo Aelle.

 

Uma mensagem?

 

A mulher de Sagramor. Malla é como se chama. Que nomes esquisitos têm os Saxões. Conhece-la?

 

Já a vi, Senhor.

 

Mala era uma rapariga alta com pernas musculosas e ombros tão largos quanto uma barrica. Sagramor fizera-a prisioneira no decurso de uma das suas incursões do ano anterior e ela parecia ter aceite o destino que lhe estava reservado com uma passividade que se reflectia no seu rosto inexpressivo quase apático, emoldurado por uma massa de cabelos louros. Para além do cabelo, Malla não possuía outros atractivos, mas fosse como fosse não deixava de ser estranhamente sedutora. Era uma criatura grande, forte, lenta e robusta dotada de uma graciosidade tranquila e um comportamento tão taciturno quanto a do seu amante númida.

 

Vai fingir que escapou ao nosso cativeiro explicou Artur, e neste exacto momento deve estar a contar a Aelle que estamos a planear ficar aqui até ao próximo Inverno. Está a dizer que Lancelote vem juntar-se a nós com mais trezentas lanças e que necessitamos que ele venha, porque muitos dos nossos homens estão debilitados pela doença, apesar de dispormos de excelentes reservas de comida, sorriu. Está a servir-lhe uma série infindável de disparates, ou pelo menos assim o espero.

 

Ou talvez esteja a dizer-lhe a verdade sugeri, melancólico.

 

Talvez. Não parecia preocupado. Fitou uma fila de homens que carregavam água de uma nascente que borbulhava no sopé da encosta sul.

 

Mas Sagramor confia nela acrescentou, e eu há muito que aprendi a confiar em Sagramor.

 

Fiz um sinal para afastar os demónios.

 

Eu não permitiria que a minha mulher fosse enviada ao campo do inimigo.

 

Ela ofereceu-se disse Artur. Diz que os saxões não lhe farão mal algum. Parece que o pai dela é um dos seus chefes.

 

Rezemos para que ela o ame menos do que ama Sagramor. Artur encolheu os ombros. O risco já tinha sido corrido e discuti-lo não iria certamente diminuir os perigos nele implicados. Mudou de assunto.

 

Quero-te em Dumnónia quando tudo isto tiver terminado.

 

Irei de bom grado, Senhor, se prometerdes que Ceinwyn estará a salvo respondi e, quando ele tentou afastar os meus receios com um aceno, insisti. Ouvi histórias sobre um cão que teria sido morto e cuja pele ensanguentada teria sido colocada sobre uma cadela.

 

Artur virou-se, passou as pernas sobre a parede e deixou-se cair para dentro dos estábulos improvisados. Afastou um dos cavalos para o lado e fez-me sinal para que o seguisse até onde ninguém nos poderia ver ou ouvir. Estava zangado.

 

Repete o que ouviste dizer ordenou.

 

Que um cão tinha sido morto disse depois de ter saltado para dentro do estábulo, e que a sua pele ensanguentada servira para cobrir uma cadela aleijada.

 

E quem fez isso? exigiu saber.

 

Alguém amigo de Lancelote respondi, não querendo nomear a esposa dele.

 

Deu um soco na grosseira parede de madeira, sobressaltando os cavalos que se encontravam mais perto de nós.

 

A minha mulher disse ele é amiga do rei Lancelote. Fiquei calado.

 

Tal como eu acrescentou em jeito de desafio, mas eu continuei em silêncio. Ele é um homem orgulhoso, Derfel, e perdeu o reino de seu pai porque eu não cumpri o meu juramento. Estou em dívida para com ele. As últimas palavras foram ditas friamente.

 

Correspondi à frieza da sua voz falando num tom igualmente distante.

 

Disseram-me, disse que a cadela aleijada recebeu o nome de Ceinwyn.

 

Basta! Tornou a golpear a parede com a mão. Histórias! Tudo isso não passam de histórias! Ninguém nega que não exista ainda algum ressentimento em relação à atitude que tanto tu como Ceinwyn tomaram, Derfel, não sou estúpido, mas não tolerarei um disparate destes vindo de alguém como tu! Guinevere atrai este tipo de rumores. As pessoas alimentam ressentimentos contra ela. Qualquer mulher que seja bonita, inteligente e que tenha opiniões firmes e não tenha medo de as divulgar atrai o ressentimento por parte dos outros. Mas tu estás a tentar dizer-me que ela teria feito um feitiço obsceno contra Ceinwyn? Que ela massacraria um cão e o esfolaria? Acreditas nisso?

 

Gostaria de não acreditar disse eu.

 

Guinevere é minha mulher. Falava em voz mais baixa, mas o tom não perdera a amargura. Não tenho outras mulheres, não levo escravas para o meu leito, pertenço-lhe e ela pertence-me, Derfel, e não tolerarei nenhuma crítica contra ela. Nenhuma! gritou a última palavra e eu perguntei a mim mesmo se ele estaria por acaso a recordar-se dos insultos obscenos que Gorfyddyd gritara no Vale do Lugg. Gorfyddyd afirmara que tinha dormido com Guinevere e acrescentara que uma infinidade de homens tinha igualmente dormido com ela. Lembrava-me do anel de compromisso de Valerin, com uma cruz incrustada e decorado com o símbolo de Guinevere, mas afastei essas recordações do espírito.

 

Senhor disse calmamente, eu nunca mencionei o nome de vossa esposa.

 

Ele fitou-me e por breves segundos julguei que fosse agredir-me. Em seguida abanou a cabeça.

 

Ela pode ser uma pessoa muito difícil, Derfel. Há momentos em que desejaria que ela não estivesse tão pronta a expressar o seu desdém, mas não consigo conceber a minha vida sem os conselhos dela interrompeu-se e esboçou um sorriso triste. Não consigo imaginar a minha vida sem ela. Ela não matou cão nenhum, Derfel, ela não matou cão nenhum. Confia em mim. A deusa que ela adora, ísis, não exige sacrifícios, pelo menos no que se refere a criaturas vivas. Ouro, sim sorriu, de novo bem-humorado. ísis suga ouro.

 

Acredito em vós, Senhor disse eu mas isso não garante a segurança de Ceinwyn. Dinas e Lavaine ameaçaram-na.

 

Ele abanou a cabeça.

 

Estás a magoar Lancelote, Derfel. Não te censuro por isso, pois conheço os teus motivos. Mas poderás tu censurá-lo por estar ressentido contigo? E Dinas e Lavaine servem Lancelote e é mais do que justo e correcto que partilhem as mágoas do seu amo. Quando esta guerra tiver terminado, Derfel continuou, faremos uma reconciliação. Todos nós! Quando transformar o meu grupo de guerreiros em irmãos, faremos a paz uns com os outros. Tu, Lancelote e toda a gente. E até que isso se torne realidade, Derfel, prometo-te que protegerei Ceinwyn. Jurarei pela minha vida, se insistires. Podes impor o juramento que quiseres, Derfel, podes exigir o preço que quiseres: a minha vida, a do meu filho até, porque eu preciso de ti. A Dumnónia precisa de ti. Culhwuch é um bom homem, mas não é capaz de dominar Mordred.

 

E eu serei? perguntei.

 

Mordred é obstinado? Artur ignorou a minha pergunta, mas que podemos nós esperar? É o neto de Uther, tem sangue real nas veias e nós não queremos que ele seja uma criatura efeminada. Mas a verdade é que precisa de disciplina. De orientação. Culhwuch julga que bater-lhe é suficiente, mas isso só serve para torná-lo mais teimoso. Quero que tu e Ceinwyn o eduquem.

 

Estremeci.

 

Tornais a perspectiva do regresso a casa ainda mais atraente, Senhor. Ele acolheu a ligeireza do meu comentário com uma expressão carrancuda.

 

Nunca esqueças, Derfel, que jurámos dar a Mordred o trono que é dele por direito. Foi por isso que regressei à Bretanha. É esse o meu primeiro dever na Bretanha e todos os que me estão ligados por juramento estão-no também a esta promessa. Ninguém disse que iria ser fácil, mas será feito. Dentro de nove anos aclamaremos Mordred em Caer Cadarn. Nesse dia, Derfel, todos nós ficaremos livres do juramento e eu imploro a todos os deuses que me queiram ouvir para que nesse dia eu possa pendurar a Excalibur e nunca mais tornar a combater. Mas até que esse dia glorioso chegue, sejam quais forem as dificuldades que se apresentem, não quebraremos o nosso juramento. Compreendes isto?

 

Sim, Senhor respondi, humildemente.

 

Óptimo Artur afastou um cavalo para o lado. Aelle virá amanhã disse, confiante, à medida que nos afastávamos, por isso dorme bem.

 

O Sol desapareceu por detrás de Dumnónia, afogando-se numa bola de fogo avermelhada. A norte, o nosso inimigo entoava os seus cânticos de guerra enquanto nós, reunidos em volta das fogueiras, cantávamos cantigas da pátria. As nossas sentinelas perscrutavam a escuridão, os cavalos relinchavam, os cães de Merlim uivavam e alguns de nós dormiam.

 

De madrugada descobrimos que os três pilares de Merlim tinham sido derrubados durante a noite. Um feiticeiro saxão, cujos cabelos terminavam em espigões e cujo corpo desnudado estava praticamente visível debaixo da pele de lobo feita em farrapos que caía sobre os seus ombros presa por uma fita em torno do pescoço, rodopiava executando uma dança no sítio onde tinham estado os pilares. A visão do feiticeiro convenceu Artur que Aelle planeava o seu assalto.

 

Deliberadamente, não demos mostras de estar preparados para combater. As nossas sentinelas continuavam nos seus postos de guarda; outros lanceiros preguiçavam na encosta mais avançada como se estivessem à espera de mais um dia sem sobressaltos. Atrás deles, porém, imersos nas sombras dos abrigos e debaixo dos restos dos teixos e dos lódãos-brancos, do outro lado das paredes do castelo inacabado, o grosso dos nossos homens entregava-se aos preparativos para o confronto.

 

Ajustávamos as cordas dos escudos, afiávamos espadas e gumes já desgastados, prendíamos as cabeças das lanças aos respectivos cabos. Tocávamos os nossos amuletos, abraçávamo-nos uns aos outros, comíamos o pouco pão que nos restava e rezávamos aos Deuses em que acreditávamos, fossem eles quais fossem, para que nos ajudassem durante aquele dia. Merlim, lorweth e Nimue deambulavam entre os abrigos tocando lâminas e distribuindo raminhos secos de verbena para nossa protecção.

 

Vesti o meu uniforme de batalha. Calcei umas botas pesadas que chegavam até aos joelhos e tinham tiras de ferro incrustadas para proteger as minhas canelas dos golpes de lança que são desferidos por baixo do rebordo do escudo. Pus uma túnica feita com a lã grosseiramente fiada por Ceinwyn e sobre ela uma cota de couro na qual pregara o pequeno alfinete de ouro que pertencia a Ceinwyn e que usava como talismã havia já muitos anos. Sobre o couro enfiei uma cota de malha, um luxo que herdara de um chefe de Powys morto no Vale do Lugg. Era uma cota antiga de fabrico romano e fora concebida com um talento que nenhum homem de hoje possui, e muitas vezes perguntei a mim mesmo que outro lanceiro teria usado aquela mesma cota comprida até aos joelhos, feita de aros de ferro interligados. O guerreiro de Powys morrera com ela vestida, o crânio aberto por a Hywelbane, mas eu suspeitava que pelo menos outro dos donos da cota tinha sido morto com ela vestida, pois havia um grande rasgão no peito esquerdo. A malha danificada fora grosseiramente reparada com aros de ferro.

 

Nos dedos da mão esquerda enfiei os anéis de guerreiro, que numa batalha serviam de protecção. No entanto, não pus anéis na mão direita pois os aros de ferro dificultavam o manuseamento das espadas ou das lanças. Prendi caneleiras de couro nos antebraços. O meu elmo era em ferro, um objecto simples em forma de tigela com um rebordo de tecido forrado de pele e uma tira grossa de pele de porco na parte detrás para protecção do pescoço. No início da Primavera pagara a um ferreiro de Caer Sws para que ele cravasse dois pedaços de osso nos lados. O elmo era encimado por uma protuberância de ferro de onde pendia uma cauda de lobo, caçado nas florestas de Benoic. Prendi a Hywelbane à cintura, enfiei a mão esquerda através das presilhas de couro do escudo e sopesei a minha lança de guerra. Era mais alta do que um homem, a sua haste era mais grossa do que o pulso de Ceinwyn e terminava por uma lâmina comprida, pesada em forma de folha. Estava extremamente afiada e as extremidades em aço tinham sido polidas de forma que a lâmina não pudesse ficar presa na barriga ou na armadura do inimigo. Não pus capa pois estava demasiado calor para isso.

 

Cavan, vestido com a sua armadura, veio ter comigo e ajoelhou-se.

 

Se eu lutar bem, Senhor perguntou, posso pintar uma quinta ponta no meu escudo?

 

Espero que os meus homens lutem bem disse eu porque hei-de então recompensá-los por fazerem aquilo que se espera deles?

 

E se vos trouxer um trofeu, Senhor sugeriu. O machado de um chefe? Ouro?

 

Traz-me um chefe saxão, Cavan disse eu e poderás acrescentar cem pontas à tua estrela.

 

Cinco serão suficientes, Senhor respondeu ele.

 

A manhã passou devagar. Aqueles de nós que tinham vestido armaduras de metal suavam abundantemente por causa do calor. Visto do lado oposto do ribeiro situado a norte, no sítio onde os saxões se encontravam reunidos ocultos pelo arvoredo, o nosso acampamento devia parecer adormecido, ou então povoado por homens doentes e imóveis. Essa ilusão, porém, não levava os saxões a avançar através do arvoredo. O Sol elevava-se cada vez mais no céu. Os nossos batedores, os cavaleiros que se deslocavam transportando apenas um feixe de flechas como únicas armas, deixaram o acampamento nas suas montadas. Não teriam lugar numa batalha travada entre dois escudos defensivos e por isso conduziriam os respectivos cavalos nervosos para sul, na direcção do Tamisa. Poderiam regressar rapidamente, embora tivessem ordens para, caso a batalha resultasse num desastre para nós, seguir para oeste e levar as notícias da nossa derrota até à distante Dumnónia. Os cavaleiros de Artur vestiram as pesadas armaduras de couro e ferro e, em seguida, servindo-se de tiras que enrolaram em volta das cernelhas dos cavalos, penduraram os desajeitados escudos de couro que protegiam o peito das respectivas montadas.

 

Artur, escondido juntamente com os seus cavaleiros no interior do castelo inacabado usava a sua famosa armadura de escamas, um fato romano feito de milhares de pequenas placas de metal cozidas a um colete de couro de forma que ficassem todas sobrepostas umas nas outras como se fossem escamas de peixe. No meio do ferro havia placas de prata pelo que o fato parecia reluzir sempre que ele se movia. Usava uma capa branca e a Excalibur, envolta na sua mágica bainha em forma de cruz que protegia o seu dono de influências malignas, pendia na sua anca esquerda. Hygwydd, o seu servo, segurava a sua comprida lança, o elmo prateado com a sua pluma de penas de ganso e o escudo redondo forrado com uma cobertura de prata e cintilante como um espelho. Em tempo de paz, Artur gostava de trajar modestamente, mas na guerra era flamejante. Gostava de pensar que a sua reputação fora construída com base numa governação honesta, mas a armadura ofuscante e o escudo bem polido revelavam que ele sabia qual era a verdadeira origem da sua fama.

 

Em tempos, Culhwuch fizera parte dos cavaleiros de Artur. Naquele momento, porém, tal como eu, comandava um grupo de lanceiros e ao meio-dia procurou-me e deixou-se cair ao meu lado, à sombra do meu abrigo de turfa. Usava uma couraça em ferro, um colete de couro e protegera as canelas nuas com caneleiras de bronze romano.

 

O maldito não vem resmungou.

 

Amanhã, talvez? alvitrei.

 

Fungou, desgostoso, e depois lançou-me um olhar sério.

 

Já sei o que vais dizer, Derfel, mas pergunto-te na mesma, ainda que gostaria que tivesses em consideração uma coisa antes de me responderes. Quem foi que lutou ao teu lado em Benoic? Quem permaneceu ao teu lado, escudo ao lado de escudo, em Ynys Trebes? Quem partilhou a sua cerveja contigo e até deixou que seduzisses aquela rapariga pescadora? Quem segurou a tua mão no Vale do Lugg? Fui eu. Lembra-te disso quando me responderes. Que quantidade de comida tens escondida?

 

Sorri.

 

Nenhuma.

 

És um sacana de um saxão sem uma ponta de coragem disse ele, é isso que és.

 

Olhou para Galaad, que descansava ao lado dos meus homens.

 

Tendes comida, meu Príncipe? perguntou.

 

Dei a última côdea que tinha a Tristão respondeu Galaad.

 

Um gesto cristão, suponho? perguntou Culhwuch, com desdém.

 

Gostaria de pensar que assim foi disse Galaad.

 

Não admira que eu seja pagão disse Culhwuch. Preciso de comida. Não posso matar saxões com a barriga vazia.

 

Lançou olhares carrancudos aos meus homens, mas nenhum lhe ofereceu fosse o que fosse, pois nada tinham para oferecer.

 

Vais então livrar-me daquele patifório que é Mordred? perguntou-me depois de ter abandonado a esperança de encontrar um pedaço de comida.

 

É essa a vontade de Artur.

 

É essa a minha vontade disse ele, energicamente. Se tivesse comida neste momento, Derfel, dava-ta toda até à última migalha, em troca desse favor. Podes ficar com aquele hipocritazinho. Que ele transforme a tua vida num inferno em vez da minha. Mas aviso-te, vais gastar o teu cinto na pele do maldito.

 

É capaz de não ser lá muito sensato da minha parte disse eu, cauteloso, desatar a sovar o meu futuro rei.

 

Pode não ser sensato, mas não há dúvida que dá prazer. Bajulador desprezível. Torceu-se todo para olhar para ver o que estava do outro lado do abrigo. O que é que se passa com estes malditos saxões? Não querem combater?

 

A resposta às suas interrogações chegou quase logo a seguir. Subitamente, ouviu-se o som grave e lúgubre de um corno, seguido do rufar de um dos enormes tambores que os saxões transportavam para a guerra e todos acudimos a tempo de ver o exército de Aelle sair do arvoredo, na outra margem do ribeiro. O que momentos antes não era mais do que uma paisagem vazia composta por folhas e iluminada por um Sol primaveril acabava de ser invadida pelo inimigo, num abrir e fechar de olhos.

 

Eram às centenas. Centenas de homens ataviados com peles e aplicações de ferro, transportando machados, cães, lanças e escudos. Os seus estandartes eram crânios de touro espetados em mastros e decorados com faixas de tecido, e atrás via-se uma horda de feiticeiros com cabelo espetado que avançavam e gritavam as suas maldições na nossa direcção.

 

Merlim e os outros druidas desceram a encosta ao encontro dos feiticeiros. Não se mexeram, mas tal como faziam todos os druidas antes de uma batalha, apoiaram-se numa só perna e mantiveram o equilíbrio com a ajuda dos seus bastões enquanto elevavam as mãos no ar. Detiveram-se a cerca de cem passos de distância dos feiticeiros que estavam mais próximos e retribuíam as suas maldições enquanto o grupo de padres cristãos se mantinha no topo da encosta de mãos abertas, olhando para o céu como se assim implorassem a ajuda do seu Deus.

 

Entretanto, nós formámos uma linha. Agrícola estava à esquerda com os seus soldados vestidos com uniformes romanos, nós ocupávamos o centro, e os cavaleiros de Artur, que de momento continuavam escondidos dentro do castelo grosseiro, posicionar-se-iam na ala direita. Artur colocou o elmo, montou Llamrei, espalhou a capa branca sobre a garupa do cavalo e depois aceitou a pesada lança e o escudo reluzente que Hygwydd lhe estendia.

 

Sagramor, Cuneglas e Agrícola comandavam os peões. Num primeiro momento, e só até os cavaleiros de Artur aparecerem, os meus homens ocuparam o extremo direito da linha e eu percebi que havia probabilidades de que viéssemos a ser dominados, já que a frente de batalha dos saxões era muito mais comprida do que a nossa. Eles eram mais numerosos do que nós. Os bardos dir-vos-ão que havia milhares de vermes saxões naquela batalha, mas eu suspeito que Aelle não trouxe com ele mais de seiscentos homens. O rei saxão, possuía obviamente muito mais lanceiros do que aqueles que se perfilavam diante de nós, embora ele, tal como nós, se tivesse visto forçado a deixar fortes guarnições de soldados nas suas fortalezas fronteiriças. No entanto, apesar dos seiscentos homens, não deixava de ser um exército enorme. E havia outros tantos seguidores logo atrás do escudo defensivo; na sua maioria eram mulheres e crianças que não tomariam parte na batalha mas que, sem dúvida, esperavam limpar os nossos cadáveres quando o combate tivesse terminado.

 

Os nossos druidas tornaram a subir a colina com grande esforço, apoiados num pé. O suor escorria pelas faces de Merlim e desaparecia nas tranças da sua longa barba.

 

Não há magia nenhuma disse-nos. Os feiticeiros deles não conhecem a verdadeira magia. Não há perigo. Passou por entre os nossos escudos e foi à procura de Nimue. Os saxões marcharam lentamente na nossa direcção. Os feiticeiros deles cuspiam e gritavam, os homens ordenavam aos seus seguidores que mantivessem a linha direita enquanto outros nos insultavam aos gritos.

 

Os nossos cornos de guerra tinham começado a fazer soar o seu clamor desafiador e os homens começaram a cantar. No extremo do escudo defensivo onde nos encontrávamos cantava-se a grande Canção de Batalha de Beli Mawr, um grito de massacre triunfante capaz de incendiar as entranhas de um homem. Dois dos meus homens dançavam na frente do escudo defensivo, caminhando e saltando sobre as espadas e lanças que tinham sido dispostas em cruz sobre a terra. Chamei-os e pedi-lhes que regressassem ao escudo, porque pensei que os saxões continuariam a sua marcha em frente até atingirem a pequena elevação e assim precipitar um embate rápido e sangrento. Em vez disso, porém, pararam a cem passos de distância de nós e realinharam os seus escudos para formar uma parede contínua compostas por madeira reforçada a couro. Guardaram silêncio enquanto os feiticeiros deles urinavam na nossa direcção. Os seus cães enormes ladravam e contorciam-se presos pelas trelas, os tambores de guerra continuavam a rufar e de vez em quando um corno soltava o seu lamento triste. Fora isso, porém, os saxões permaneceram silenciosos limitando a bater as pontas das suas lanças nos escudos ao mesmo ritmo do rufar dos tambores.

 

Os primeiros saxões que vejo. Tristão colocara-se ao meu lado e fixava o exército saxão com as suas grossas armaduras de pêlo, os machados de dois gumes, os seus cães e as suas lanças.

 

Morrem como toda a gente disse-lhe.

 

Os machados não me agradam confessou, tocando o rebordo de ferro do seu escudo para lhe dar sorte.

 

São objectos toscos tentei tranquilizá-lo. Uma investida e já não servem para mais nada. Ampara o golpe com o teu escudo na vertical e desfere um golpe baixo com a espada. Resulta sempre.

 

Ou quase sempre.

 

O tambor saxão calou-se subitamente, a linha inimiga abriu-se ao centro e Aelle em pessoa surgiu. Estava de pé e fitou-nos durante alguns segundos, cuspiu e depois, num gesto ostensivo, deixou cair a lança e o escudo para mostrar que queria dialogar. Caminhou na nossa direcção, um homem enorme, alto e de cabelo escuro vestido com uma grossa pele de urso preta. Dois feiticeiros acompanhavam-no, juntamente com um homem magro e calvo que eu supus ser o seu intérprete.

 

Cuneglas, Meurig, Agrícola, Merlim e Sagramor avançaram ao seu encontro. Artur decidira ficar junto dos seus cavaleiros e, dado que Cuneglas era o único rei no nosso lado do campo de batalha, devia ser ele a falar em nosso nome. Convidou, no entanto, outros para que o acompanhassem e fez-me sinal para que me juntasse ao grupo e fosse o seu intérprete. Foi assim que me encontrei com Aelle pela segunda vez. Era um homem alto, de peito amplo com um rosto inexpressivo, duro e olhos escuros. Tinha uma barba negra e farta, as faces marcadas por cicatrizes, o nariz partido e na sua mão direita faltavam dois dedos. Vestira um fato de malha e calçara botas de couro e usava ainda um elmo de ferro onde tinham sido colocadas dois cornos de touro. Em torno do seu pescoço e dos pulsos via-se ouro britânico. As vestes feitas com pele de urso que cobriam a sua armadura deviam ser sufocantemente incomodativas naquele dia abrasador, mas uma pele daquelas era tão impermeável a um golpe de espada quanto uma armadura de ferro. Fitou-me.

 

Lembro-me de ti, verme disse ele. Um vira-casaca saxão. Inclinei a cabeça num movimento breve.

 

Saudações, meu Rei. Cuspiu.

 

Julgas que só pelo facto de seres educado terás uma morte fácil?

 

A minha morte nada tem que ver convosco, meu Rei disse eu. Mas espero vir a falar da vossa aos meus netos.

 

Ele riu e em seguida lançou um olhar trocista aos cinco chefes.

 

Cinco! E eu sou só um! E onde está Artur? Esvaziando as entranhas, aterrorizado?

 

Apresentei os nossos chefes a Aelle e depois Cuneglas passou a dirigir a conversa, que eu ia traduzindo. Começou, como era costume, por exigir a rendição imediata de Aelle. Seríamos misericordiosos, disse Cuneglas. Exigiríamos a vida de Aelle, a totalidade dos seus tesouros, armas, mulheres e escravos, mas os seus lanceiros seriam livres de partir ainda que sem as respectivas mãos direitas.

 

Aelle, como era costume, escarneceu das nossas exigências, expondo uma boca repleta de dentes podres e sem cor.

 

Será que Artur pensa perguntou ele, que por ficar escondido não sabemos que ele está cá, juntamente com os seus cavalos? Diz-lhe, verme, que esta noite descansarei a minha cabeça sobre o seu cadáver. Diz-lhe que a mulher dele será minha meretriz e que depois de a ter esgotado a entregarei aos meus escravos. E diz àquele idiota de bigode fez um gesto na direcção de Cuneglas, que ao anoitecer este lugar ficará para sempre conhecido como a Sepultura dos Bretões. Diz-lhe continuou, que lhe vou arrancar as patilhas e farei delas um joguete para os gatos da minha filha. Diz-lhe que do seu crânio farei uma caneca e que a sua barriga servirá de alimento para os meus cães. E diz àquele demónio inclinou a barba para indicar Sagramor, que hoje a sua alma demoníaca será entregue aos terrores do Tor e que para sempre se contorcerá no círculo de serpentes.

 

E quanto a ele olhou para Agrícola, há muito que desejo a sua morte e a recordação da mesma será para mim uma forma de divertimento nas longas noites que se avizinham. E diz àquela coisa límpida cuspiu na direcção de Meurig, que lhe cortarei os órgãos genitais e farei dele meu servo. Diz-lhes tudo isto, verme.

 

Ele recusa disse a Cuneglas.

 

Sem dúvida que disse mais do que isso? Meurig que só estava presente devido à sua condição social, insistiu com pedantismo.

 

Nada que queirais saber disse Sagramor com um tom cansado.

 

Todo o conhecimento é relevante protestou Meurig.

 

Que estão eles a dizer, verme? perguntou Aelle, ignorando o seu intérprete.

 

Estão a deliberar sobre qual dos cinco terá o prazer de vos matar, meu Rei disse eu.

 

Aelle cuspiu.

 

Diz a Merlim, o rei saxão olhou de relance para o druida, que não proferi qualquer insulto contra ele.

 

Ele já sabe isso, meu Rei disse eu pois fala a vossa língua. Os Saxões temiam Merlim e nem mesmo naquele momento desejavam criar qualquer antagonismo com ele. Os dois feiticeiros saxões lançavam-lhe maldições, mas era essa a sua função e Merlim não se sentia insultado. Tão-pouco parecia prestar atenção às conversações, limitando-se a fixar o olhar no horizonte distante, embora não tivesse esboçado qualquer sorriso na direcção de Aelle depois do elogio deste.

 

Aelle fitou-me durante alguns instantes. Por fim perguntou-me:

 

A que tribo pertences?

 

Dumnónia, meu Rei.

 

Antes disso, estúpido! De nascimento!

 

À vossa, Senhor disse à tribo de Aelle.

 

O teu pai? perguntou.

 

Nunca o conheci, Senhor. A minha mãe foi capturada por Uther quando eu ainda estava no ventre dela.

 

E o nome dela?

 

Tive de pensar durante um ou dois segundos.

 

Erce, meu Rei lembrei-me finalmente do nome dela. Aelle sorriu ao ouvir o nome.

 

Um bom nome saxão! Erce, Deusa da terra e mãe de todos nós. Como está a tua Erce?

 

Não a vejo, Senhor, desde que era criança, mas ouvi dizer que ainda vive.

 

Fitou-me com uma expressão pensativa. Meurig pairava, impaciente, exigindo saber o que estava a ser dito, mas acalmou-se quando viu que todos o ignoravam.

 

Não é bom disse Aelle, que um homem ignore a sua mãe. Como te chamas?

 

Derfel, meu Rei.

 

Cuspiu sobre a minha cota de malha.

 

Então devias era ter vergonha de ti mesmo, Derfel, por ignorares a tua mãe dessa maneira. Não queres lutar ao nosso lado, hoje? Ao lado do povo da tua mãe?

 

Sorri.

 

Não, meu Rei, mas fazeis-me sentir honrado.

 

Que a tua morte seja rápida, Derfel. Mas diz a esses miseráveis indicou os nossos quatro chefes, que vim para comer os seus corações. Cuspiu pela última vez, virou-se e voltou para junto dos seus homens.

 

E que disse ele, então? perguntou Meurig.

 

Falou comigo, meu Príncipe disse eu sobre a minha mãe. E recordou-me os meus pecados.

 

Deus me ajude, mas naquele dia senti afecto por Aelle.

 

Ganhámos a batalha.

 

Igraine há-de querer que eu adiante mais pormenores. Ela quer grandes acções heróicas, e a verdade é que as houve. Mas também houve gestos cobardes e homens que sujaram os calções, tal era o terror que os assaltava, mas que mesmo assim não abandonaram o seu posto no seio do escudo defensivo. Homens houve que não mataram ninguém, apenas defenderam desesperadamente; outros lançaram novos desafios aos poetas para que encontrassem as palavras certas que melhor descrevessem os seus feitos. Foi, em resumo, uma batalha. Amigos pereceram, nomeadamente Cavan, amigos ficaram feridos, Culhwuch estava entre eles, e outros amigos escaparam ilesos, como Galaad, Tristão e Artur. Eu fui atingido por um golpe de machado no ombro esquerdo e embora a minha cota de malha tivesse amparado a maior parte da força da lâmina, a ferida demorou semanas a sarar e ainda hoje tenho uma cicatriz avermelhada que fica dorida com o frio.

 

O importante não foi a batalha, mas sim o que aconteceu depois. Em primeiro lugar, porém, dado que a minha querida rainha Igraine insistirá comigo para que eu escreva os actos heróicos praticados pelo avô do marido, o rei Cuneglas, contarei rápido, como tudo aconteceu.

 

Os saxões atacaram-nos. Aelle precisou de mais de uma hora para persuadir os seus homens a atacar o nosso escudo defensivo e durante todo esse tempo os feiticeiros de cabelos espetados não pararam de nos gritar, os tambores não se calaram e odres de cerveja circularam sem cessar entre as fileiras saxãs. Muitos dos nossos homens bebiam hidromel, pois embora pudéssemos ter esgotado as nossas reservas de alimentos, não havia um exército britânico que ficasse sem hidromel. Pelo menos metade dos homens que participaram naquela batalha estavam embriagados, mas assim acontecia em todas as batalhas pois não há muito mais coisas que instilem nos guerreiros a coragem de tentar a mais temível das manobras: tomar de assalto um escudo defensivo. Mantive-me sóbrio porque era assim que sempre procedia, mas a tentação de beber era forte. Alguns saxões tentaram provocar-nos e incitar-nos a desencadear uma investida fora de tempo aproximando-se da nossa linha e pavoneando-se sem escudos nem elmos, mas a única reacção que obtiveram em resposta às suas provocações foi o arremesso de algumas lanças mal direccionadas. Algumas delas eram devolvidas, mas a maior parte limitava-se a atingir sem perigo os nossos escudos. Dois homens nus, enlouquecidos pela bebida ou pela magia atacaram-nos, e Culhwuch abateu o primeiro e Tristão o segundo. Saudámos as duas vitórias. Os saxões, as línguas afiadas pela cerveja, gritaram-nos insultos.

 

O ataque de Aelle correu terrivelmente mal. Os saxões esperavam que os seus cães de guerra fossem capazes de furar a nossa linha, mas Merlim e Nimue tinham os seus próprios cães a postos. Os nossos, porém, não eram cães mas cadelas, algumas das quais estavam com o cio, o que foi suficiente para enlouquecer os animais dos saxões. Em vez de nos atacarem, os possantes cães de guerra foram direitos às cadelas e logo se instalou um reboliço de rugidos, lutas, latidos e uivos. Em pouco tempo ficámos rodeados de cães que fornicavam, enquanto outros lutavam para afastar os mais afortunados. Nem um cão, porém, mordeu um único bretão, e os saxões, que estavam preparados para a sua investida fatal, ficaram aturdidos com o falhanço dos seus cães. Hesitaram. Então, Aelle, receando uma investida da nossa parte, mandou-os avançar e eles vieram ao nosso encontro. Mas vieram desordenados em vez de formarem uma linha disciplinada.

 

Os cães que fornicavam uivaram à medida que iam sendo pisados e depois os escudos chocaram produzindo aquele ruído terrível e monótono cujos ecos permanecem anos a fio nos ouvidos de quem os ouve. É o som da batalha, o som dos cornos de guerra, dos gritos dos homens e depois o embate surdo e estilhaçado de escudo contra escudo. Depois do embate, começaram os gritos à medida que as lâminas das lanças iam encontrando as aberturas entre os escudos e que os machados trespassavam os ares velozmente. Mas foram os saxões quem mais sofreu naquele dia. Os cães que se encontravam entre os dois escudos defensivos tinham quebrado o alinhamento de ambos e nos pontos onde isso sucedeu no escudo defensivo do inimigo, os nossos lanceiros descobriram brechas e penetraram no seu interior, enquanto as fileiras da retaguarda faziam funil junto dessas mesmas brechas formando cunhas compostas por escudos e armaduras que penetravam cada vez mais fundo na massa de soldados saxões. Cuneglas liderou um destes grupos e por pouco não alcançou Aelle. Não vi Cuneglas durante o combate, embora mais tarde os bardos tivessem cantado os seus feitos e ele, modestamente, me tivesse assegurado que não tinham exagerado muito.

 

Fiquei ferido muito cedo. O meu escudo desviou-se do golpe de machado e suportou a maior parte da sua força, mas ainda assim a lâmina conseguiu atingir-me no ombro e adormecer o meu braço esquerdo; apesar disso, o ferimento não impediu a minha lança de trespassar a garganta do dono do machado. Depois, quando o número de homens era já demasiado elevado para a minha lança, desembainhei a Hywelbane, golpeei e enterrei a sua lâmina naquela massa de homens grunhidores que oscilavam e empurravam sem descanso. Tornou-se um jogo do empurra, mas é isso que acontece em todas as batalhas até um dos lados ceder. Apenas um jogo do empurra suado, quente e sujo.

 

Este foi dificultado pelo facto de a linha formada pelos saxões, que tinha a profundidade de cinco homens em todo o seu comprimento, rodear o nosso escudo defensivo. Para evitar que fôssemos completamente cercados tínhamos recuado ligeiramente nas extremidades para assim apresentar ao inimigo dois escudos defensivos mais pequenos. Durante algum tempo, esses dois flancos saxões hesitaram, talvez na esperança de que os homens que ocupavam as posições centrais conseguissem furar o nosso escudo em primeiro lugar. Então, um chefe saxão aproximou-se da extremidade da linha onde eu me encontrava e incitou os seus homens a atacar. Avançou sozinho, afastou para o lado duas lanças com o seu escudo e lançou-se com violência para o centro da frente de combate do nosso flanco. Cavan morreu em consequência disso, trespassado por um golpe de espada do chefe saxão; a visão daquele homem corajoso furando sozinho o nosso flanco arrastou atrás dele os seus homens que se precipitaram para a frente numa corrida feroz e exultante.

 

Foi nesse momento que Artur irrompeu vindo do castelo inacabado. Não vi a sua carga, mas ouvi-a. Os bardos contam que os cascos dos seus cavalos fizeram tremer o mundo, e de facto o chão pareceu estremecer debaixo de nós, embora seja provável que se tratasse apenas do ruído produzido pelos poderosos animais, cujas patas tinham sido ferradas com placas de ferro, presas directamente nos cascos. Os cavalos enormes alcançaram a extremidade exposta da frente de batalha saxã e esse impacte pôs realmente termo ao confronto. Aelle acreditara que os seus homens seriam capazes de nos quebrar com a ajuda dos cães e que as fileiras da sua retaguarda conseguiriam conter os nossos cavaleiros com os seus escudos e as suas lanças, pois sabia perfeitamente que nenhum cavalo poderia penetrar com sucesso num escudo de lanceiros bem defendido, e eu não tinha dúvidas de que o tinham informado de que fora assim que os lanceiros de Gorfyddyd tinham conseguido manter Artur afastado no Vale do Lugg. Todavia, o flanco saxão exposto tornara-se desorganizado durante o ataque e Artur planeou o momento da sua entrada em cena na perfeição. Não esperou que os seus cavaleiros assumissem as suas posições, limitou-se a irromper das sombras, gritando aos seus homens que o seguissem e, energicamente, conduziu Llamrei para a zona desguarnecida das fileiras saxãs.

 

Eu cuspia para um saxão barbudo e desdentado que nos amaldiçoava por cima do rebordo de dois escudos quando Artur atacou. A sua capa branca esvoaçou nas nossas costas, as suas plumas brancas elevaram-se acima das nossas cabeças e o seu escudo reluzente derrubou o estandarte do chefe saxão um crânio de touro pintado com sangue enquanto a sua lança era arremetida para a frente. Abandonou a lança na barriga de um saxão e desembainhou a Excalibur, brandindo-a para a direita e para a esquerda à medida que penetrava nas linhas inimigas. Agravain apareceu em seguida, dispersando saxões aterrorizados com o seu cavalo, e depcis Lanval e os outros precipitaram-se sobre o inimigo agitando as suas espadas e lanças.

 

Os homens de Aelle cederam como ovos atingidos por um golpe de martelo. Fugiam e nada mais. Duvido que a batalha tenha durado mais do que dez minutos desde o seu início, com o lançamento dos cães, até ao final com o aparecimento dos cavalos, embora os nossos cavaleiros tivessem levado uma hora ou mais para terminar o seu massacre. Os cavaleiros mais ligeiros percorriam a charneca a grande velocidade, gritando à medida que golpeavam o inimigo em fuga com as suas lanças. Os cavalos de Artur, por seu turno, mais possantes, vagueavam no meio dos homens dispersos matando sem cessar seguidos pelos lanceiros, ansiosos pela mais pequena oportunidade de saque.

 

Os saxões corriam como veados. Desfaziam-se das capas, das armaduras e das armas tal era o desejo de escapar. Aelle tentou controlá-los durante alguns instantes, depois viu que isso era uma tarefa vã e, atirando para o lado a pele de urso, desatou a correr juntamente com os seus homens. Conseguiu desaparecer entre o arvoredo escassos segundos antes de ser alcançado pelos nossos cavaleiros mais rápidos.

 

Eu deixei-me ficar no meio dos feridos e dos mortos. Alguns cães feridos uivavam de dor. Culhwuch cambaleava devido à coxa ferida, mas sobreviveria, por isso ignorei-o e agachei-me junto de Cavan. Nunca o tinha visto chorar antes, mas o sofrimento dele era terrível pois a espada do chefe saxão enterrara-se precisamente na barriga. Segurei a mão dele, sequei as suas lágrimas e disse-lhe que ele matara o inimigo com o seu golpe de resposta. Se era verdade ou não, não sabia nem me importava, o meu único desejo era que Cavan acreditasse nas minhas palavras. Foi isso que me levou a prometer-lhe que ele atravessaria a ponte das espadas com uma quinta ponta pintada no seu escudo.

 

Serás o primeiro de nós a alcançar o Outro Mundo disse-lhe, e arranjarás lugar para nós.

 

Assim farei, Senhor.

 

E nós iremos juntar-nos a ti.

 

Rangeu os dentes e arqueou as costas, tentando sufocar um grito, e eu coloquei a minha mão direita em redor do seu pescoço, mantendo a minha face encostada à dele. Eu chorava.

 

Quando chegares ao Outro Mundo segredei-lhe ao ouvido, diz-lhes que Derfel Cadarn te saúda como homem de coragem.

 

O Caldeirão disse ele. Devia...

 

Não, interrompi-o, não. Então, com um gemido surdo, morreu.

 

Fiquei sentado ao lado do seu corpo, embalando-o para a frente e para trás por causa da dor que sentia no ombro e do sofrimento que me enchia a alma. As lágrimas deslizavam ao longo do meu rosto. Issa estava de pé, ao meu lado, sem saber o que dizer e por isso guardando silêncio.

 

Ele sempre quis regressar à pátria para aí poder morrer disse eu, na Irlanda.

 

"E depois desta batalha", pensei, "poderia ter feito precisamente isso cheio de honrarias e tesouros."

 

Senhor disse Issa.

 

Julguei que ele estava a tentar consolar-me, mas eu não queria que me consolassem. A morte de um homem corajoso merece lágrimas e por isso ignorei Issa continuando a segurar o corpo de Cavan enquanto a sua alma iniciava a sua última viagem até à ponte das espadas, que fica para lá da Caverna de Cruachan.

 

Senhor tornou a dizer Issa, e algo no seu tom de voz fez-me levantar os olhos.

 

Vi que ele apontava para leste, onde ficava Londres, mas quando me virei naquela direcção não consegui distinguir nada pois as lágrimas turvavam-me a vista. Limpei-as com um gesto zangado.

 

E foi então que vi que outro exército alcançara o campo de batalha. Mais um exército envolto em peles, perfilado debaixo de estandartes representando crânios e cornos de touro. Mais um exército armado com cães e machados. Mais uma horda de saxões.

 

Cerdic chegara.

 

Mais tarde apercebi-me que todos os ardis por nós imaginados para induzir Aelle a atacar-nos e toda a comida que tínhamos destruído para levar as suas tropas a atacar-nos não tinham passado de esforços inúteis. Bretwalda devia ter conhecimento da chegada iminente de Cerdic, para além de saber que este não vinha para nos atacar a nós, mas sim para tomar de assalto o seu compatriota saxão. Na verdade, Cerdic pretendia aliar-se a nós e Aelle decidira que a melhor hipótese de sobreviver à reunião dos dois exércitos seria derrotar Artur em primeiro lugar e lidar com Cerdic, em seguida.

 

Aelle perdera esta aposta arriscada. Os cavaleiros de Artur desarmaram-no e Cerdic chegou demasiado tarde para poder juntar-se ao combate, embora, durante breves momentos pelo menos, Cerdic se tivesse sentido tentado a atacar Artur. Uma investida rápida e fulminante ter-nos-ia destruído e uma semana de campanha teria certamente acabado com o exército debilitado de Aelle, elevando Cerdic à condição de governador único e absoluto do sul da Bretanha. Cerdic deve ter-se sentido tentado, mas hesitou. Dispunha de menos de trezentos homens, o número de soldados suficiente para dominar todos os bretões que ainda pudessem estar escondidos no pequeno monte da charneca. Todavia, o corno prateado de Artur não parava de soar, convidando a cavalaria pesada de Artur a abandonar o seu esconderijo entre o arvoredo e a fazer uma demonstração de coragem no flanco norte do exército de Cerdic. Este nunca defrontara aqueles cavalos enormes e a sua aparição deu a Sagramor, Agrícola e Cuneglas o tempo necessário para formar um escudo defensivo no cume do pequeno monte da charneca. Era um escudo perigosamente pequeno, já que a maior parte dos nossos homens estavam ainda demasiado atarefados perseguindo os guerreiros de Aelle ou pilhando o seu acampamento em busca de comida.

 

Aqueles que tinham permanecido no topo do pequeno monte prepararam-se para o embate, que prometia vir a ser duro, pois o escudo defensivo que tínhamos formado à pressa era muito mais pequeno do que a linha de ataque de Cerdic. Nessa altura, obviamente, ignorávamos ainda que se tratava do exército de Cerdic. De início pensámos que estes novos saxões eram reforços do próprio Aelle que chegavam ao local da batalha demasiado tarde; além de que o estandarte que ostentavam um crânio de lobo pintado de vermelho pendurado juntamente com a pele curtida de um homem não tinha qualquer significado para nós. O estandarte habitual de Cerdic era um par de rabos de cavalo presos a um fémur, encaixado transversalmente num poste. Os seus feiticeiros, porém, tinham imaginado esta nova insígnia deixando-nos momentaneamente confundidos. Mais alguns homens regressavam de forma dispersa, abandonando a perseguição ao contingente derrotado de Aelle, e apressavam-se a engrossar as nossas tropas quando Artur conduziu os seus cavaleiros de regresso ao outeiro. Montado em Llamrei passou em revista as nossas fileiras e lembro-me que a sua capa branca estava manchada e raiada de sangue.

 

Eles morrerão como todos os outros! Encorajava-nos enquanto passava por nós empunhando uma Excalibur ensanguentada. Morrerão como todos os outros.

 

Então, do mesmo modo que o exército de Aelle se abrira para deixar passar o seu chefe, também esta nova horda de saxões se apartou e os seus chefes caminharam na nossa direcção. Três deles vinham a pé, mas seis deslocavam-se a cavalo, refreando as montadas para acompanhar o ritmo dos três homens que vinham a pé. Um destes carregava o arrepiante estandarte representando um crânio de lobo; depois um dos cavaleiros ergueu um segundo estandarte e uma exclamação de espanto percorreu as nossas tropas. Esta exclamação fez com que Artur virasse o cavalo e fitasse, horrorizado, os homens que se aproximavam.

 

O novo estandarte representava uma águia-marinha com um peixe entre as garras. Era a bandeira de Lancelote e naquele instante eu próprio pude confirmar que Lancelote era um dos seis cavaleiros. Estava magnífico, na sua armadura de esmalte branco e o elmo decorado com duas asas de cisne, e tinha a seu lado os dois filhos de Artur: Amhar e Loholt. Atrás vinham Dinas e Lavaine, nas vestes características dos druidas, enquanto Ade, a amante ruiva de Lancelote, transportava o estandarte do rei da Silúria.

 

Sagramor aproximara-se de mim e fitava-me para se certificar que eu estava a ver o mesmo que ele. Em seguida cuspiu na direcção da charneca.

 

E Malla, está bem? perguntei-lhe.

 

Sã e salva disse ele, satisfeito por eu ter feito a pergunta. Voltou a olhar para trás, para Lancelote que se aproximava. Compreendes alguma coisa do que está a acontecer?

 

Não.

 

Nenhum de nós compreendia.

 

Artur embainhou a Excalibur e virou-se para mim.

 

Derfel! chamou-me para que eu servisse de intérprete, acenando em seguida na direcção dos outros chefes. Nesse mesmo instante, Lancelote demarcou-se da delegação que estava próxima e cavalgou pela suave encosta acima, direito a nós.

 

Aliados! ouvi Lancelote gritar. Fez um aceno para os saxões. Aliados! tornou a gritar à medida que o seu cavalo se aproximava de Artur.

 

Artur permaneceu calado. Limitou-se a imobilizar o seu cavalo enquanto Lancelote lutava para acalmar o seu enorme garanhão negro.

 

Aliados disse Lancelote pela terceira vez. É Cerdic acrescentou, excitado, gesticulando na direcção do rei saxão que caminhava lentamente ao nosso encontro.

 

Que haveis feito? Artur perguntou calmamente.

 

Trouxe-te aliados! respondeu Lancelote alegremente e depois olhando para mim, acrescentou, altivo: Cerdic tem o seu próprio intérprete.

 

Derfel fica! ripostou Artur, a voz tingida por uma ira súbita e assustadora. Em seguida recordou-se que Lancelote era rei e suspirou: Que haveis feito, meu Rei e Senhor? tornou a perguntar.

 

Dinas, que avançara juntamente com os outros cavaleiros, foi insensato o suficiente para responder por Lancelote.

 

Assinámos a paz, Senhor! disse na sua voz sinistra.

 

Afastai-vos! ordenou Artur, chocando e surpreendendo o par de druidas com a sua ira. Até aí apenas conheciam o Artur calmo, paciente e conciliador, e jamais haviam suspeitado que ele pudesse ser capaz de uma fúria tão intensa. Não era nada quando comparada com a raiva que se apoderara dele no Vale do Lugg no momento em que Gorfyddyd chamara meretriz a Guinevere, mas não deixava de ser um sentimento aterrador. Afastai-vos! gritou para os netos de Tanaburs. Esta é uma reunião de lordes. E vós também apontou para os filhos afastai-vos!

 

Esperou que os seguidores de Lancelote se retirassem e tornou a fitar o rei da Silúria.

 

Que haveis feito? perguntou pela terceira vez, num tom de voz amargo.

 

A dignidade ofendida de Lancelote fê-lo assumir uma postura rígida.

 

Fiz a paz disse, num tom cortante. Impedi que Cerdic vos atacasse. Fiz o que estava ao meu alcance para vos ajudar.

 

O que haveis feito disse Artur numa voz zangada, mas falando tão baixo que nenhum dos homens que compunham o séquito de Cerdic conseguiu ouvi-lo, foi combater na batalha de Cerdic. Acabámos de derrotar Aelle. Qual é o efeito que isto tem sobre Cerdic? Torna-o duas vezes mais poderoso do que era antes. Aí tendes. Que os deuses nos ajudem!

 

Dizendo isto, atirou as suas rédeas a Lancelote um insulto subtil fez girar o cavalo, compôs a capa ensanguentada e olhou com autoridade para os saxões.

 

Era a primeira vez que eu via Cerdic, e embora todos os bardos o descrevessem como um demónio fissípide com língua de serpente, na verdade era um homem baixo e frágil com cabelo louro ralo que usava puxado para trás e preso num nó à altura da nuca. Era extremamente pálido e tinha uma testa larga e um queixo estreito e barbeado. Os lábios eram finos, o nariz afilado e olhos claros como água baça. O rosto de Aelle era um espelho genuíno das suas emoções, mas mesmo num primeiro relance eu duvidava que o autocontrole de Cerdic permitisse que a expressão do seu rosto traísse os seus pensamentos. Usava uma couraça romana, calças de pano e uma capa de pele de raposa. Tinha um aspecto aprumado e meticuloso; aliás, se não tivesse reparado no ouro que trazia ao pescoço poderia tê-lo confundido com um escriba. Os seus olhos, porém, não eram olhos de um funcionário. Nada passava despercebido para aqueles olhos mortiços e nada deixavam transparecer.

 

Sou Cerdic anunciou ele, numa voz suave.

 

Artur afastou-se para o lado para que Cuneglas pudesse apresentar-se, seguido por Meurig, que insistiu em tomar parte na conferência. Cerdic olhou para os dois homens e, considerando-os dignos de pouca importância, tornou a fitar Artur.

 

Trago-vos um presente disse, estendendo a mão na direcção do chefe que o acompanhava. Este produziu uma faca com punho de ouro, que Cerdic apresentou a Artur.

 

O presente traduzi as palavras de Artur deveria destinar-se a Cuneglas, nosso Rei e Senhor.

 

Cerdic colocou o punhal na palma da sua mão esquerda e fechou os dedos em torno dele. Os seus olhos nunca se desviaram dos de Artur e quando abriu a mão a lâmina estava suja de sangue.

 

Este presente é para Artur insistiu ele.

 

Artur aceitou-a. Estava inusitadamente nervoso, receando talvez que a arma ensanguentada pudesse ocultar algum tipo de magia ou que o facto de aceitar o presente o tornasse cúmplice das ambições de Cerdic.

 

Diz ao rei, pediu-me, que não tenho nada para lhe oferecer. Cerdic sorriu. Foi um sorriso glacial e eu pensei no que deveria sentir

 

um cordeiro tresmalhado ao tropeçar num lobo.

 

Diz a Lorde Artur que ele me ofereceu a paz disse-me ele.

 

E se eu escolher a guerra? provocou Artur. Aqui e agora! com um gesto abarcou o topo da colina onde se tinham reunido mais lanceiros, fazendo com que passássemos a ser tão numerosos quanto os soldados de Cerdic.

 

Diz-lhe, ordenou-me Cerdic que alguns destes homens não me pertencem apontou para os soldados do seu escudo defensivo que nos observavam e diz-lhe ainda que o rei Lancelote me ofereceu a paz em nome de Artur.

 

Repeti estas palavras a Artur e vi um músculo latejar na sua face. Ele, porém, conteve a raiva que o assaltava.

 

Dentro de dois dias disse Artur, e não era uma sugestão mas sim uma ordem, encontramo-nos em Londres. Aí discutiremos a paz entre nós.

 

Enfiou o punhal tingido de sangue no cinto e, quando acabei de traduzir as suas palavras, chamou-me. Não esperou pela reacção de Cerdic, limitando-se a guiar-me ao longo da colina até já não haver possibilidade de sermos escutados por ambas as delegações. Reparou no meu ombro pela primeira vez.

 

É grave, o teu ferimento?

 

Há-de sarar respondi.

 

Parou, fechou os olhos e inspirou profundamente.

 

O desejo de Cerdic disse-me quando abriu os olhos é governar Lloegyr. Se permitirmos que isso aconteça ganharemos um terrível inimigo em vez de dois, mais fracos.

 

Deu alguns passos em silêncio, caminhando no meio dos mortos causados pelo ataque de Aelle.

 

Antes desta guerra, continuou num tom amargo Aelle era poderoso e Cerdic era um incómodo; mas depois de destruir Aelle poderíamos ter-nos virado para Cerdic. Agora a situação inverte-se. Aelle está enfraquecido, mas Cerdic é poderoso.

 

Nesse caso, lutai contra ele agora disse eu. Fitou-me com os seus olhos castanhos cansados.

 

Sê honesto, Derfel disse em voz baixa, não gabarola. Sairemos vitoriosos, se lutarmos?

 

Avaliei o exército de Cerdic. Os soldados tinham cerrado fileiras e estavam prontos para combater, enquanto os nossos homens estavam esgotados e famintos. Os homens de Cerdic, porém, nunca tinham defrontado os cavaleiros de Artur.

 

Acho que ganharíamos, Senhor respondi honestamente.

 

Também acho concordou Artur, mas será um combate renhido, Derfel, e no final teremos pelo menos uma centena de homens para levar para casa, enquanto os saxões reunirão todas as guarnições de Lloegyr para nos fazerem frente. Poderíamos derrotar Cerdic aqui, mas nunca chegaríamos a casa vivos. Estamos demasiado dentro de Loegyr fez um trejeito ao imaginar a cena. E se nos extenuamos lutando contra Cerdic julgas que Aelle não estará à nossa espera para nos fazer cair numa emboscada durante o trajecto até casa? Estremeceu, agitado por um súbito acesso de raiva. Em que estaria Lancelote a pensar? Não posso aceitar Cerdic como meu aliado! Ele conquistará metade da Bretanha, há-de virar-se contra nós e ganharemos um inimigo saxão duas vezes mais terrível do que antes, proferiu uma das suas raras imprecações e depois coçou a face ossuda com uma mão enluvada. Bom, o caldo já está entornado prosseguiu, amargamente, mas ainda temos de o beber. A única resposta possível é deixar Aelle com força suficiente para que ele continue a amedrontar Cerdic; por isso vais escolher seis dos meus cavaleiros e vais procurá-lo. Encontra-o, Derfel, e entrega-lhe este objecto desprezível como presente. Meteu à força o punhal de Cerdic na minha mão. Limpa-o primeiro disse, irritado e podes levar também a capa de pele de urso. Agravain encontrou-a. Entrega-lha em forma de segundo presente e diz-lhe que vá a Londres. Diz-lhe que responderei pela sua segurança e que esta é a sua única possibilidade de conservar alguns territórios. Tens dois dias, Derfel, por isso encontra-o.

 

Hesitei, não por discordar dele, mas porque não compreendia por que razão Aelle tinha de ir a Londres.

 

Porque, respondeu Artur cansado, não poderei ficar em Londres sabendo que Aelle está à solta, em Lloegyr. Ele pode ter perdido o exército aqui, mas dispõe de guarnições em número suficiente para formar outro, e enquanto nos desembaraçamos de Cerdic ele poderá perfeitamente arrasar metade de Dumnónia. Virou-se e lançou um olhar sinistro a Lancelote e a Cerdic. Julguei que fosse amaldiçoá-los mais uma vez, mas limitou-se a soltar um suspiro fatigado. Vou fazer a paz, Derfel. Os Deuses sabem que esta não é a paz que eu desejaria, mas se é assim que tem de ser façamo-la como deve ser. Agora vai, meu amigo, vai.

 

Demorei-me o suficiente para me certificar que Issa se encarregaria de cremar o corpo de Cavan e de descobrir um lago em cujas águas atiraria a espada do falecido irlandês. Depois cavalguei para Norte, no encalço de um exército derrotado.

 

Enquanto isso, Artur, o seu sonho distorcido por um tolo insensato, marchava para Londres.

 

Há muito que sonhava com uma ida a Londres, mas nunca, nem nas minhas fantasias mais loucas, imaginei que tal fosse tornar-se realidade. Pensei que seria como Glevum, um pouco maior talvez, mas ainda assim um lugar onde um conjunto de altos edifícios se agrupariam em torno de um espaço central, com ruazinhas comprimidas na retaguarda e uma muralha de terra rodeando tudo. Mas em Londres havia seis espaços abertos como estes, decorados pelas colunas dos palácios, pelos claustros dos seus templos e palácios de tijolo. As casas vulgares, que em Glevum e em Durnovária eram baixas e cobertas por telhados de colmo, tinham aqui dois ou três andares de altura. Muitas delas tinham-se desmoronado com o passar dos anos, mas um número significativo ainda conservava os seus telhados cobertos de telhas e as pessoas ainda subiam as suas íngremes escadas de madeira. A maioria dos nossos homens nunca tinha visto uma escadaria no interior de um edifício e no primeiro dia que passaram em Londres correram como crianças excitadas para admirar a vista desde os andares mais altos. Por fim, um dos edifícios acabou por se desmoronar sob o seu peso e a partir daí Artur proibiu-os de voltar a subir escadas.

 

A fortaleza de Londres era maior do que a de Caer Sws, e era apenas o bastião noroeste da muralha da cidade. No seu interior da fortaleza havia uma dúzia de casernas, cada uma delas maior do que um salão de banquetes e todas feitas de pequenos tijolos vermelhos. Ao lado da construção havia um anfiteatro, um templo e um dos dez balneários públicos da cidade. Algumas cidades tinham instalações como estas, é claro, mas ali tudo era mais alto e mais amplo. O anfiteatro de Durnovária era um espaço com chão de terra batida coberto de ervas, que eu considerava uma construção impressionante até ter visto a arena de Londres que poderia ter engolido cinco anfiteatros iguais aos de Durnovária. A muralha que rodeava a cidade era feita de pedra em vez de terra, e embora Aelle tivesse deixado os seus contrafortes chegarem à ruína, não deixava de ser uma barreira formidável, agora coroada pelos vitoriosos soldados de Cerdic. Este ocupara a cidade e a presença dos seus estandartes nas paredes indicava que ele tencionava manter esse domínio.

 

A margem do rio também possuía uma parede de pedra, inicialmente construída para conter o avanço dos piratas saxões. Algumas aberturas na muralha conduziam a alguns desembarcadoiros, e uma delas em particular dava para um canal que se prolongava até o coração de um enorme jardim em torno do qual se erguia um palácio. Havia ainda bustos e estátuas no palácio, bem como intermináveis corredores forrados a mosaico e um imenso salão com colunas onde, imaginei eu, os nossos governantes romanos se tinham outrora reunido para deliberar. A água da chuva escorria agora pelas paredes pintadas, os mosaicos do chão estavam partidos e o jardim era um emaranhado de ervas daninhas. A glória, porém, continuava presente, ainda que não passasse de uma sombra. A cidade inteira era uma sombra da sua antiga glória. Nenhum dos balneários da cidade estava em funcionamento. As piscinas estavam vazias e cobertas de rachas, as fornalhas frias e os mosaicos dos pavimentos tinham saltado e quebrado sob o peso da geada e das ervas daninhas. As ruas empedradas tinham-se degradado e transformado em trilhos lamacentos. No entanto, apesar da decadência a cidade não perdera a sua imponência e magnificência. Tentei imaginar como seria Roma. Galaad disse-me que Londres era uma simples aldeia em comparação, e que o anfiteatro de Roma era suficientemente grande para albergar vinte arenas iguais às de Londres, mas eu não conseguia acreditar no que ele dizia. Mal podia acreditar em Londres, mesmo vendo-a com os meus próprios olhos. Parecia o resultado de um trabalho de gigantes.

 

Aelle nunca gostara da cidade e não queria lá viver, pelo que os seus únicos habitantes eram um punhado de saxões e os bretões que tinham aceite o domínio de Aelle. Alguns desses bretões tinham prosperado. Na sua maioria eram mercadores que mantinham negócios com a Gália e viviam em casas enormes à beira-rio e cujos armazéns eram guardados por muralhas e lanceiros próprios. A maior parte da cidade, no entanto, estava deserta. Era um espaço moribundo, uma cidade entregue às ratazanas, uma cidade que outrora fora conhecida por Augusta. Chamaram-lhe Londres, a Magnífica e as águas do rio que a atravessava tinham sido outrora sulcadas por um enxame de mastros das galés. Agora era um lugar habitado por fantasmas.

 

Aelle acompanhou-me até Londres. Encontrara-o a meio dia de marcha, a norte da cidade. Tinha encontrado refúgio num forte romano, onde tentava reunir um exército. De início desconfiou da minha mensagem. Gritou, acusando-nos de ter usado a feitiçaria para o derrotar, depois ameaçou matar-me e à minha escolta, mas eu tive o bom-senso de esperar que a sua raiva esmorecesse e, passado algum tempo, ele ficou mais calmo. Arremessara o punhal de Cerdic com um gesto zangado, mas ficara satisfeito por recuperar a sua grossa pele de urso. Não penso que alguma vez tenha corrido perigo, pois sentia que ele gostava de mim; de facto, depois de a sua ira ter desaparecido rodeou-me os ombros com um braço pesado e passeou comigo ao longo das muralhas.

 

Qual é a vontade de Artur? perguntara ele.

 

Paz, meu Rei. O peso do braço dele estava a magoar o meu ombro ferido, mas não me atrevi a protestar.

 

Paz! cuspira a palavra como se fosse um bocado de carne podre, embora sem vestígios do desdém com que rejeitara a oferta de paz feita por Artur antes da batalha do Vale do Lugg. Nessa época, Aelle era mais poderoso e podia dar-se ao luxo de exigir um preço mais elevado. Agora estava mais humilde, e sabia-o.

 

Nós, Saxões disse ele não fomos feitos para viver em paz. Alimentamo-nos das colheitas dos nossos inimigos, vestimo-nos com a lã que eles fiam, gozamos com as suas mulheres. O que é que a paz tem para nos oferecer?

 

Uma oportunidade de reabilitar o vosso poder, meu Rei; caso contrário Cedric alimentar-se-á das vossas colheitas e vestir-se-á com a vossa lã.

 

Aelle sorriu.

 

Ele gostaria de ter as nossas mulheres também. Tirara o braço que me rodeava os ombros e o seu olhar perdia-se a norte, para além dos campos. Terei de ceder alguns territórios rabujou.

 

Mas se optardes pela guerra, Senhor disse eu, o preço será mais elevado. Tereis de defrontar Artur e Cerdic e arriscar-vos-eis a acabar sem terras, à excepção das ervas que crescerem sobre a vossa sepultura.

 

Virou-se e lançou-me um olhar penetrante.

 

Artur só quer a paz para que eu possa lutar contra Cerdic em vez dele.

 

É claro, meu Rei respondi. Riu-se da minha franqueza.

 

E se eu não for a Londres disse, hás-de caçar-me como um cão.

 

Como um enorme javali, meu Rei, cujos dentes ainda estão afiados.

 

Falas tal e qual como combates, Derfel. Bem. Ordenara aos seus feiticeiros que fizessem um cataplasma com musgo e teias de aranha, que aplicaram sobre o meu ombro ferido enquanto ele consultava o seu conselho. A consulta não durou muito tempo, pois Aelle sabia que não dispunha de muitas alternativas. Assim, na manhã seguinte, marchei com ele ao longo da estrada romana que nos levaria de volta à cidade. Ele insistiu em levar uma escolta de sessenta lanceiros.

 

Podes confiar em Cerdic disse-me ele mas não há uma promessa que ele tenha feito que não tenha quebrado. Diz isso a Artur.

 

Dizei-lhe vós mesmo, meu Rei.

 

Aelle e Artur avistaram-se secretamente na noite anterior ao dia em que deveriam negociar com Cerdic, e nessa noite discutiram a sua paz. Aelle fez muitas cedências. Abdicou de grandes faixas de terra na fronteira oeste e concordou em devolver a Artur a totalidade do ouro que este lhe entregara durante o ano anterior, e ainda mais para além disso. Em troca, Artur prometeu-lhe quatro anos de paz e o seu apoio no dia seguinte, caso Cerdic não concordasse com os termos propostos. Selaram a paz com um abraço e, mais tarde, quando regressávamos ao acampamento que ficava fora da muralha ocidental da cidade, Artur abanou a cabeça tristemente.

 

Nunca devíamos encontrar-nos frente a frente com o inimigo disse-me, não quando sabemos que um dia teremos de destrui-lo. É isso ou a submissão dos Saxões à nossa autoridade, e eles nunca o aceitarão. Nunca.

 

Talvez aceitem. Abanou a cabeça.

 

Os Saxões e os Bretões não se misturam, Derfel.

 

Eu misturo-me, Senhor disse. Riu-se.

 

Mas se a tua mãe nunca tivesse sido capturada, Derfel, terias crescido como um saxão e hoje provavelmente farias parte do exército de Aelle. Serias um inimigo. Adorarias os Deuses deles, sonharias os sonhos deles e quererias conquistar as nossas terras. Eles precisam de muito espaço, estes saxões.

 

Mas pelo menos tínhamos conseguido encurralar Aelle e, no dia seguinte, no interior do enorme palácio à beira-rio, encontrámo-nos com Cerdic. O Sol brilhava, fazendo cintilar as águas do canal onde outrora o Governador da Bretanha tinha ancorado a sua barcaça. As partículas de poeira reluzentes escondiam a escória, a lama e a sujidade que obstruía o canal, mas nada conseguia disfarçar o fedor que se libertava dos esgotos.

 

Cerdic começou por realizar um Conselho e enquanto decorriam as deliberações, nós, os bretões, reunimo-nos numa sala situada por cima da parede ribeirinha com vista para o rio, cujo tecto, pintado com seres curiosos, meio-mulheres meio-peixes, estava pintalgado de reflexos difusos de luz ondulante. Os nossos lanceiros guardavam todas as portas e janelas certificando-se de que não seríamos ouvidos.

 

Lancelote estava presente e fora autorizado a trazer Dinas e Lavaine. Os três homens ainda insistiam em afirmar que a paz que tinham acordado com Cerdic fora o resultado de uma decisão sensata, mas Meurig era o único que os apoiava enquanto os restantes de nós nada fazíamos para disfarçar a nossa raiva perante a provocação deles. Artur ouviu os nossos protestos durante algum tempo e depois interrompeu-nos dizendo que não resolveríamos nada continuando a discutir sobre o passado.

 

O que está feito, está feito disse mas preciso de uma garantia. Olhou para Lancelote. Jurai pediu que não haveis feito qualquer promessa a Cerdic.

 

Ofereci-lhe a paz teimou Lancelote e sugeri-lhe que vos ajudasse a combater Aelle. É tudo.

 

Merlim estava sentado perto da janela que dava para o rio. Adoptara um dos gatos abandonados do palácio e acariciava o animal que se aninhara no seu colo.

 

Quais eram as pretensões de Cerdic? perguntou, numa voz suave.

 

A derrota de Aelle.

 

Só? perguntou Merlim, sem se preocupar em disfarçar a sua descrença.

 

Só insistiu Lancelote nada mais. Todos nós o observávamos. Artur, Merlim, Cuneglas, Meurig, Agrícola, Sagramor, Galaad, Culhwuch e eu próprio. Nenhum de nós falou, fitámo-lo apenas. Ele não quis mais nada! tornou a insistir Lancelote e aos meus olhos parecia uma criança contando puras mentiras.

 

Verdadeiramente notável Merlim disse, com placidez da parte de um rei querer tão-pouco. Começou a provocar o gato acariciando as patas do animal com as tranças da barba. E vós, que queríeis? perguntou de novo, ainda em voz suave.

 

A vitória de Artur declarou Lancelote.

 

Por pensardes que Artur não conseguiria a vitória pelos seus próprios meios? sugeriu Merlim, continuando a brincar com o gato.

 

Queria assegurá-la disse Lancelote. Estava a tentar ajudar! Olhou em volta, procurando aliados e não encontrando nenhum a não ser o jovem Meurig. Se não quereis fazer a paz com Cerdic disse com petulância porque é que não lutam contra ele agora?

 

Porque, meu Rei, haveis usado o meu nome para caucionar as tréguas disse Artur, pacientemente e porque o nosso exército está a muitas marchas de distância de casa e os homens dele estão no nosso caminho. Se não tivésseis feito a paz explicou, sem abandonar o tom cortês, metade do seu exército estaria na fronteira vigiando os vossos homens e eu poderia marchar para sul sem problemas e atacar a outra metade. Assim sendo? encolheu os ombros. Que exigências nos fará Cerdic, hoje?

 

Terras, Agrícola disse decidido. É tudo o que os Saxões querem. Terras, terras e mais terras. Não se darão por satisfeitos enquanto não forem donos de todos os pedaços de terra que existem no mundo, e depois partirão em busca de outros mundos onde possam impor o jugo do seu arado.

 

As terras que ele roubou a Aelle disse Artur devem deixá-lo satisfeito. De nós não obterá nada.

 

Nós devíamos tirar-lhe algumas. Falei pela primeira vez. Aquelas terras que ele roubou o ano passado.

 

Era uma área de terrenos alagadiços na nossa fronteira sul, uma extensão fértil e rica que ia desde o alto da charneca até ao mar. Eram terras que tinham pertencido a Melwas, o Rei dos Belgas que Artur condenara ao desterro em Isca, terras que nos faziam imensa falta pois a sua perda fizera com que Cerdic se aproximasse perigosamente das ricas propriedades dos arredores de Durnovária e colocara os seus navios a escassos minutos de distância de Ynys Wit, a imensa ilha a que os Romanos chamavam Vectis, situada ao largo da nossa costa. Havia já um ano que os saxões de Cerdic arrasavam Ynys Wit sem dó nem piedade, e os seus habitantes não se cansavam de pedir a Artur que enviasse mais lanceiros que protegessem as suas terras.

 

Devíamos reconquistar aquelas terras Sagramor apoiou-me. Ele dera graças a Mitras por lhe ter devolvido a sua rapariga saxã sã e salva depondo uma espada capturada ao inimigo no templo londrino dedicado à divindade.

 

Duvido interveio Meurig que Cerdic tenha assinado a paz com a finalidade de ceder terras.

 

Nós também não marchámos para a guerra para ceder terras perguntou Artur, em tom zangado.

 

Julguei, perdoai-me insistiu Meurig, e uma espécie de suspiro surdo percorreu o salão enquanto ele insistia no mesmo raciocínio, mas não haveis dito que não podíeis prosseguir com a guerra? Estando tão longe de casa, como estamos? E, no entanto, agora estais disposto a arriscar as vidas de todos nós por uma língua de terra? Espero não estar a ser insensato riu por entre dentes para indicar que tinha feito um gracejo, mas não consigo compreender por que motivo pomos em risco a única coisa que não podemos dar-nos ao luxo de manter.

 

Meu Príncipe disse Artur, suavemente, podemos ser fracos aqui, mas se denunciarmos a nossa fraqueza, então morreremos aqui. Não iremos ter com Cerdic esta manhã prontos para ceder um rego que seja, iremos preparados para fazer exigências.

 

E se ele recusar? perguntou Meurig, indignado.

 

Nessa altura teremos uma retirada difícil admitiu Artur, com toda a calma. Olhou através da janela que dava para o pátio. Parece que os nossos inimigos estão prontos para nos receber. Vamos ter com eles?

 

Merlim afastou o gato do colo e levantou-se com a ajuda do seu bastão.

 

Não levareis a mal se eu não vos acompanhar? perguntou. Sou demasiado velho para sobreviver a um dia de negociações. Todo aquele reboliço e raiva sacudiu os pêlos de gato que se tinham acumulado nas suas vestes e virou-se lentamente para Dinas e Lavaine. Desde quando perguntou em tom desaprovador é que os druidas usam espadas ou servem reis cristãos?

 

Desde que decidimos fazer as duas coisas respondeu Dinas. Os gémeos, que eram quase tão altos como Artur e muito mais corpulentos, desafiaram-no com os seus olhares impassíveis.

 

Quem vos fez druidas? perguntou Merlim.

 

O mesmo poder que vos fez a vós druida disse Lavaine.

 

E que poder é esse? inquiriu Merlim, e quando os gémeos não responderam sorriu-lhes com desprezo. Pelo menos sabeis como pôr ovos de tordo. Imagino que esse género de truques deva impressionar os cristãos. E também transformam o vinho deles em sangue e o pão em carne?

 

Usamos a nossa magia disse Dinas e a deles também. Já não estamos na velha Bretanha, mas sim numa nova Bretanha que tem novos deuses. Combinamos a magia deles com a antiga. Devíeis aprender connosco, Lorde Merlim!

 

Merlim cuspiu para mostrar a importância que atribuía àquele Conselho e depois, sem proferir palavra, abandonou o aposento. Dinas e Lavaine permaneceram impassíveis perante a hostilidade dele. A sua autoconfiança era extraordinária.

 

Seguimos Artur até ao grande salão decorado com colunas onde, tal como previra Merlim, nos enleámos em altercações, gesticulações, gritos e bajulações. De início, Aelle e Cerdic foram os principais protagonistas da algazarra que se instalou e Artur viu-se forçado a fazer de mediador entre ambos por diversas vezes. No entanto, nem mesmo Artur pôde impedir que o património territorial de Cerdic aumentasse significativamente à custa de Aelle. Assumiria o controlo de Londres e arrecadava para si o vale do Tamisa e extensas faixas de terras férteis a norte daquele rio. O reino de Aelle perdeu um quarto da sua extensão, apesar de continuar a ter um reino, uma conquista que teria de agradecer a Artur. Não expressou qualquer reconhecimento, limitou-se a abandonar a sala uma vez concluídas as conversações e deixou Londres nesse mesmo dia, como um enorme javali ferido que se retira para o seu covil.

 

Aelle partiu a meio da tarde e Artur, usando-me como intérprete, abordou a questão das terras belgas que Cerdic conquistara no ano anterior e continuou a reivindicar a devolução das mesmas, muito tempo depois de todos nós já termos desistido de tamanha empresa. Não fez ameaças, apenas repetiu a sua reivindicação indefinidamente até Culhwuch adormecer, Agrícola começar a bocejar e eu já estava cansado de ser o alvo do veneno que acompanhava as sucessivas rejeições de Cerdic. E, no entanto, Artur persistia. Sentia que Cerdic necessitava de tempo para consolidar os novos territórios que arrancara a Aelle, e ameaçava Cerdic que não lhe daria descanso até que as terras alagadiças fossem devolvidas. Cerdic contra-atacava ameaçando com uma guerra ali, em Londres, mas Artur acabou por revelar que buscaria o auxílio de Aelle caso houvesse confronto e Cerdic sabia que não poderia derrotar dois exércitos.

 

Era quase noite quando Cerdic finalmente cedeu. Não o fez totalmente, mas comunicou de má vontade que iria discutir o assunto com o seu conselho privado. Nessa altura acordámos Culhwuch e saímos do pátio; depois atravessámos um pequeno portão na parede ribeirinha para chegar a um cais de onde ficámos a observar o Tamisa, que deslizava suave e escuro. A maioria permaneceu em silêncio, embora Meurig tivesse brindado Artur com uma prelecção feita em voz irritada sobre o tempo que se desperdiçava com reivindicações impossíveis. Todavia, quando Artur se recusou a contra-argumentar, o príncipe remeteu-se a pouco e pouco ao silêncio. Sagramor sentou-se, apoiou-se na parede e friccionou repetidamente uma pedra de amolar ao longo do gume da espada. Lancelote e os druidas da Silúria mantinham-se afastados de nós; três homens altos e bonitos, mas emproados. Dinas fitava o arvoredo perdido na escuridão que se avistava do outro lado do rio enquanto o irmão me deitava longos olhares especulativos.

 

Esperámos uma hora até que, finalmente, Cerdic se dirigiu até à margem do rio.

 

Diz a Artur o seguinte disse-me sem qualquer preâmbulo, que eu não confio em nenhum de vós, não gosto de nenhum de vós e tudo o que mais desejo é matar-vos a todos. Mas vou ceder-lhe as terras belgas mediante uma condição. Que Lancelote seja coroado rei desses territórios. Que não seja um rei subordinado por laços de vassalagem acrescentou, mas sim um rei com todos os poderes inerentes à realeza independente.

 

Fixei os olhos azul-acinzentados do saxão. Estava tão atónito com a condição por ele imposta que nada disse, nem sequer fiz menção de ter compreendido as suas palavras. Tudo me parecia tão claro subitamente. Lancelote fizera o seu próprio acordo com o saxão, e Cerdic ocultara o pacto secreto celebrado entre ambos por detrás de uma tarde de desdenhosas negativas. Não tinha provas disto, mas sabia que tinha de ser verdade e quando o meu olhar se desviou de Cerdic pude ver que Lancelote me observava com uma expressão expectante. Não falava saxão, mas sabia exactamente o que Cerdic acabara de dizer.

 

Diz-lhe! ordenou Cerdic.

 

Traduzi para Artur. Agrícola e Sagramor cuspiram em sinal de desprezo e Culhwuch soltou uma gargalhada breve e irritada, enquanto Artur se limitou a olhar-me fixamente durante uns breves e pesados segundos antes de aquiescer com um aceno cansado.

 

Concedido disse.

 

Partireis de madrugada disse Cerdic abruptamente.

 

Partiremos dentro de dois dias reagi sem me preocupar em consultar Artur.

 

Concedido respondeu Cerdic e afastou-se. E assim celebrámos a nossa paz com os Sais.

 

Não era a paz que Artur pretendia. Ele acreditara que poderíamos debilitar os Saxões ao ponto de impedir que os seus navios continuassem a atingir as nossas costas vindos do outro lado do mar Germânico, e que no espaço de um ou dois anos teríamos expulso definitivamente da Bretanha o que restasse dos invasores. Mas era paz.

 

O destino é inexorável disse-me Merlim no dia seguinte. Encontrei-o no centro do anfiteatro romano, onde nos demorámos a contemplar os assentos de pedra que se erguiam em círculo em torno da arena. Requisitara quatro dos meus lanceiros, que naquele momento estavam sentados na extremidade da arena observando-o, embora ignorassem tanto como eu a natureza dos deveres que os esperavam.

 

Ainda procurais o último Tesouro? perguntei-lhe.

 

Gosto mesmo deste lugar disse ele, ignorando a minha pergunta e virando-se para lançar um novo e demorado olhar avaliador pela arena. Gosto mesmo.

 

Julgava que odiáveis os Romanos.

 

Eu? Odiar os Romanos? perguntou, fingindo-se insultado. Nem imaginas o quanto eu rezo, Derfel, para que os meus ensinamentos não sejam transmitidos à posteridade através dessa peneira deformada a que chamas cérebro. Eu amo toda a Humanidade! declarou, num tom grandiloquente. E até os Romanos são perfeitamente aceitáveis se se mantiverem em Roma Já te contei que estive em Roma uma vez, não contei? Transbordava de sacerdotes e catamitos. Sansum sentir-se-ia em casa lá. Não, Derfel, o erro dos Romanos foi terem vindo para a Bretanha e terem estragado tudo. No entanto, nem tudo o que fizeram aqui foi mau.

 

Deram-nos isto, de facto disse eu, abarcando com um gesto as doze filas de assentos e a tribuna elevada de onde os senhores romanos contemplavam a arena.

 

Oh, peço-te, poupa-me à entediante prelecção de Artur sobre estradas, tribunais, pontes e estruturas. Cuspiu a última palavra. Estrutura! O que são a estrutura da lei, estradas e fortalezas a não ser um arnês? Os Romanos amansaram-nos, Derfel. Transformaram-nos em pagadores de impostos e foram tão inteligentes que nós acabámos realmente por acreditar que eles estavam a fazer-nos um favor! Em tempos caminhámos com os Deuses, fomos um povo livre e depois enfiámos as nossas cabeças estúpidas na canga romana e tornámo-nos pagadores de impostos.

 

Então perguntei, pacientemente, que fizeram os Romanos de tão bom?

 

Esboçou um sorriso cruel.

 

Outrora encheram esta arena com cristãos, Derfel, e depois atiçaram-lhes os cães. Em Roma, imagina só, faziam-no como deve ser; usavam leões. Com o tempo, porém, os leões acabaram por sair derrotados.

 

Vi uma pintura de um leão disse eu, com orgulho.

 

Oh, estou fascinado disse Merlim, sem se preocupar em disfarçar um bocejo. Porque não me contas como foi? Depois de me ter silenciado daquela maneira, sorriu. Em certa ocasião vi um leão verdadeiro. Era uma criatura surrada, sem brilho. Desconfio que estava a seguir a dieta errada. Talvez estivesse a ser alimentado com mitraístas em vez de cristãos? Isso aconteceu em Roma, é claro. Dei-lhe um pequeno empurrão com o meu bastão e ele limitou-se a bocejar e a coçar uma pulga. Também vi um crocodilo, mas estava morto.

 

O que é um crocodilo?

 

Uma coisa parecida com Lancelote.

 

Rei dos Belgas acrescentei, num tom acre. Merlim riu-se.

 

Ele foi esperto, não foi? Odiava a Silúria, e quem pode culpá-lo por isso? Toda aquela gente andrajosa, enfiada naqueles vales sem graça. Não, realmente não era de todo o lugar ideal para Lancelote. Mas ele gostará das terras belgas. O Sol brilha, há muitas propriedades romanas e, o melhor de tudo, não ficará longe da sua querida amiga Guinevere.

 

E isso é importante?

 

Não sejas dissimulado, Derfel.

 

Não sei o que isso significa.

 

Significa, meu guerreiro ignorante, que Lancelote adopta o comportamento que muito bem lhe apraz em relação a Artur. Ele toma o que quer e faz o que quer, e pode fazê-lo porque Artur possui aquela qualidade ridícula a que chamamos culpa. Nisso é muito cristão. És capaz de entender uma religião que te faz sentir culpado? É uma ideia absurda, mas Artur daria um excelente cristão. Ele acredita que um juramento o obrigava a salvar Benoic e quando fracassou sentiu que tinha decepcionado Lancelote, e enquanto essa culpa fizer sofrer Artur, Lancelote continuará a comportar-se como muito bem entender.

 

Com Guinevere também? perguntei, intrigado pela sua referência anterior à amizade que ligava Lancelote a Guinevere, onde eu notara vestígios de rumores impudicos.

 

Nunca explico o que não tenho meios de saber disse Merlim, arrogante. Mas desconfio que Guinevere se sente entediada na companhia de Artur, e porque não haveria de se sentir? Ela é uma criatura inteligente e aprecia o convívio de outras pessoas inteligentes, e Artur, por maior que seja o amor que lhe tenhamos, não é um indivíduo elaborado. As coisas que ele deseja são pateticamente simples; lei, justiça, ordem, asseio. Ele realmente quer que toda a gente seja feliz, e isso é impossível. Guinevere não partilha de modo nenhum esta simplicidade. Tu sim, é claro.

 

Ignorei o insulto.

 

O que pretende Guinevere, então?

 

Que Artur seja Rei de Dumnónia, é evidente, e que ela própria seja o verdadeiro governante da Bretanha dominando-o a ele. Até que isso aconteça, no entanto, Derfel, ela irá divertir-se da melhor forma que puder. Assumiu uma expressão maldosa no momento em que uma ideia cruzou o seu espírito. Se Lancelote se tornar Rei dos Belgas disse ele, feliz verás como Guinevere decidirá que já não quer instalar o palácio em Lindinis. Há-de descobrir um outro local mais próximo de Venta. Verás se não tenho razão. A ideia fê-lo rir. Foram ambos tão espertos acrescentou admirativamente.

 

Guinevere e Lancelote?

 

Não sejas tão obtuso, Derfel! Quem, com mil demónios, estava a falar de Guinevere? Realmente, a tua tendência para a coscuvilhice é indecente. Estava a referir-me a Cerdic e a Lancelote, é claro. A isto chama-se um exemplo muito subtil de diplomacia. Artur encarrega-se dos combates, Aelle abdica da maior parte das suas terras, Lancelote arrecada para si um reino muito mais conveniente e Cerdic redobra o seu poder e passa a ter Lancelote como vizinho em vez de Artur. Muito bem feito. Como prosperam os pérfidos! Gosto de ver estas coisas. Sorriu e depois virou-se quando Nimue saiu de um dos túneis que iam dar à arena, passando por baixo dos assentos. Caminhou apressada sobre a turfa juncada de ervas daninhas, o rosto iluminado pela excitação. O olho dourado, que tanto assustara os Saxões, brilhava sob o Sol matinal.

 

Derfel! exclamou. O que é que fazes com o sangue de touro?

 

Não o confundas disse Merlim esta manhã está mais estúpido do que é habitual.

 

Em Mitras disse ela, excitada, que fazem ao sangue?

 

Nada disse eu.

 

Misturam-no com aveia e gordura disse Merlim e fazem pastéis.

 

Diz-me! insistiu Nimue.

 

É segredo disse eu, acanhado. Merlim assobiou ao ouvir isto.

 

Segredo? Segredo! "Oh, grande Mitras" explodiu numa voz que ressoou entre os assentos dispostos em fileiras "cuja espada é afiada nos cumes montanhosos e cuja lança foi forjada nas profundezas do oceano e cujo escudo esconde as estrelas mais cintilantes, escuta-nos." Achas que devo continuar, meu rapaz? perguntou. Recitara a invocação com que dávamos início aos nossos encontros e que supostamente fazia parte dos nossos rituais secretos. Afastou-se de mim, desdenhoso. Eles têm um poço, querida Nimue explicou coberto por uma grade de ferro, e a pobre besta jorra a sua vida para dentro dele após o que todos eles mergulham as lanças no sangue, embebedam-se e pensam que fizeram algo de grande significado.

 

Era o que eu pensava disse Nimue e depois sorriu, não existe nenhum poço.

 

Oh, minha querida rapariga! exclamou Merlim com admiração. Querida rapariga! Ao trabalho. Saiu apressado.

 

Onde ides? chamei-o de volta, mas ele limitou-se a acenar gesticulando na direcção dos meus lanceiros indolentes. Segui-o na mesma e ele não fez qualquer tentativa para me deter. Atravessámos o túnel e fomos dar a uma das ruas estreitas ladeadas por edifícios altos, seguimos depois para oeste na direcção da grande fortaleza que constituía o bastião noroeste das muralhas da cidade e, logo depois da fortaleza, apoiado na muralha citadina, encontrámos um templo.

 

Entrei atrás de Merlim.

 

Era uma construção maravilhosa; comprida, estreita e alta com um tecto alto e pintado suportado por duas fileiras com sete colunas cada uma. Era evidente que o local de culto era agora utilizado como arrecadação, conforme indicavam os fardos de lã e o monte alto de peles curtidas esquecidos numa das naves laterais. No entanto, devia haver ainda pessoas que usavam o edifício como local de culto, pois num dos extremos via-se uma estátua de Mitras com o seu estranho chapéu mole e, em frente às colunas estriadas, erguiam-se outras estátuas de menores dimensões. Suponho que aqueles que aqui vinham rezar seriam os descendentes dos povoadores romanos que tinham optado por permanecer na Bretanha depois da partida das legiões; e, aparentemente, tinham abandonado a maioria das divindades dos seus antepassados, incluindo Mitras, a avaliar pelas pequenas oferendas em forma de flores, comida e velas derretidas que se amontoavam apenas em frente a três das imagens. Duas delas eram deuses romanos elegantemente esculpidos, mas o terceiro era britânico: tratava-se de um pequeno e delicado cepo fálico feito em pedra onde tinha sido esculpido um rosto brutal de olhos esbugalhados, a única estátua coberta de sangue seco. Em contrapartida, a única oferenda ao lado da estátua de Mitras era a espada saxã deixada por Sagramor em reconhecimento pelo regresso de Malla. O dia estava soalheiro, a única claridade que penetrava no templo infiltrava-se através de um pedaço de telhado partido, onde as telhas tinham desaparecido. O templo devia ser mantido na penumbra, pois Mitras nascera numa cave e nós adorávamo-lo numa cave escura.

 

Merlim bateu ao de leve com o seu bastão nas lajes que cobriam o pavimento, escolhendo por fim um local ao fundo da nave mesmo por baixo da estátua de Mitras.

 

É aqui que vocês mergulham as vossas lanças, Derfel? perguntou-me.

 

Caminhei ao longo da nave lateral, onde as peles e os fardos de lã estavam empilhados.

 

Aqui disse eu, apontando para um poço pouco fundo, meio escondido por um dos montes.

 

Não sejas ridículo reagiu Merlim. Isso foi feito depois! Achas realmente que estás a esconder os segredos da tua patética religião? Tornou a bater levemente no chão perto da estátua e depois tentou o mesmo alguns metros mais à frente, concluindo que os dois locais produziam sonoridades distintas. Por isso repetiu o mesmo gesto uma terceira vez aos pés da estátua.

 

Cavem aqui ordenou aos meus lanceiros. Estremeci perante aquele sacrilégio.

 

Ela não devia estar aqui, Senhor disse eu referindo-me a Nimue.

 

Mais uma palavra vinda de ti, Derfel, e transformo-te num ouriço-cacheiro esparvoado. Levantem as pedras! ordenou aos meus homens. Usem as lanças como alavancas, idiotas. Vamos lá! Ao trabalho!

 

Sentei-me ao lado do ídolo britânico, fechei os olhos e rezei a Mitras para que ele me perdoasse o sacrilégio. Em seguida rezei pela segurança de Ceinwyn e pedi que o bebé que ela carregava no ventre ainda estivesse vivo; ainda rezava pelo meu filho que estava por nascer quando a porta do templo se abriu e o som de botas pisando as pedras ecoou pelo templo. Abri os olhos, virei a cabeça e vi que Cerdic entrara ali.

 

Vinha acompanhado de vinte soldados, do seu intérprete e, o que era mais surpreendente, de Dinas e Lavaine.

 

Pus-me de pé e toquei os ossos incrustados no punho da Hywelbane para me dar sorte, enquanto o rei saxão caminhava lentamente ao longo da nave.

 

Esta é a minha cidade anunciou Cerdic em voz suave, e tudo o que está entre as suas muralhas me pertence. Fitou Merlim e Nimue durante alguns segundos e depois olhou para mim. Diz-lhes que se expliquem ordenou.

 

Diz ao idiota que se vá embora e enfie a cabeça num balde disse Merlim. Falava saxão fluentemente, mas convinha-lhe fingir o contrário.

 

Aquele é o intérprete dele preveni Merlim, apontando para o homem que estava ao lado de Cerdic.

 

Então pode ser ele a dizer ao seu senhor que vá enfiar a cabeça dentro de um balde.

 

O intérprete assim fez, e o rosto de Cerdic foi iluminado por um sorriso perigoso.

 

Senhor disse eu, tentando remediar os estragos causados por Merlim, o meu Senhor Merlim pretende restaurar a velha condição do templo.

 

Cerdic meditou sobre a resposta enquanto inspeccionava a tarefa em curso. Os quatro lanceiros tinham içado as lajes pondo a descoberto uma amálgama de areia e gravilha e naquele momento removiam a pesada camada que cobria uma plataforma mais baixa feita de tábuas embebidas em pez. O rei espreitou para dentro do poço e depois ordenou aos meus homens que continuassem o seu trabalho.

 

Se encontrarem ouro, no entanto disse-me ele é meu. Comecei a traduzir as suas palavras a Merlim, mas Cerdic interrompeu-me com um aceno.

 

Ele fala a nossa língua disse ele, olhando para Merlim. Foram eles que me disseram. Inclinou a cabeça na direcção de Dinas e de Lavaine.

 

Fitei os gémeos sinistros e depois novamente para Cerdic.

 

Estranhas companhias as vossas, Senhor observei.

 

Não mais estranhas do que as vossas respondeu ele, olhando de relance para o olho dourado de Nimue. Esta sacou-o com um dedo e proporcionou-lhe o espectáculo horrível e integral de ver a sua órbita vazia e engelhada. Cerdic, porém, não pareceu ficar nada perturbado com a ameaça e, em vez disso, pediu-me que lhe contasse o que sabia sobre os diferentes deuses do templo. Dei-lhe a melhor resposta que sabia, mas era óbvio que ele não estava interessado nela. Interrompeu-me para tornar a olhar para Merlim

 

Onde está o teu Caldeirão, Merlim? perguntou.

 

Merlim brindou os gémeos silurianos com um olhar fulminante e depois cuspiu para o chão.

 

Escondido ripostou.

 

Cerdic não parecia surpreendido com aquela resposta. Passou pelo poço cada vez mais fundo e pegou na espada saxã que Sagramor oferecera a Mitras. Trespassou os ares com a lâmina e pareceu ficar satisfeito com o seu equilíbrio.

 

Este Caldeirão perguntou a Merlim possui poderes imensos? Merlim recusou-se a responder, por isso falei eu em seu lugar.

 

É o que dizem, meu Rei.

 

Poderes, Cerdic fitou-me com os seus olhos mortiços que livrarão a Bretanha dos Saxões?

 

É por isso que rezamos, meu Rei respondi.

 

Sorriu ao ouvir as minhas palavras e depois tornou a virar-se na direcção de Merlim.

 

Qual é o vosso preço pelo Caldeirão, velhote? Merlim lançou-lhe um olhar irritado e cruel.

 

Os teus fígados, Cerdic.

 

Cerdic chegou mais perto de Merlim e olhou bem fundo nos olhos do feiticeiro. Não detectei qualquer vestígio de medo em Cerdic, mas ele nunca fora vítima da magia do druida e, para ele, Merlim não passava de um velho sacerdote britânico com uma reputação empolada. Subitamente deu um passo em frente e apoderou-se de uma das tranças pretas da barba de Merlim.

 

Posso oferecer-te muito ouro como preço, velho disse ele.

 

Já fiz o meu preço respondeu Merlim. Tentou afastar-se de Cerdic, mas o rei apertou ainda mais a trança da barba do druida.

 

Pago-te o equivalente ao teu peso em ouro propôs Cerdic.

 

Os vossos fígados contrapôs Merlim.

 

Cerdic ergueu a espada saxã e com um movimento rápido cortou a trança. Afastou-se.

 

Brinca com o teu Caldeirão, Merlim de Avalon disse, atirando a espada para o lado, mas um dia cozinharei o teu fígado dentro dele e dá-lo-ei a comer aos meus cães.

 

Pálida, Nimue olhava para o rei. Merlim estava demasiado chocado para se mexer, muito menos falar, e os meus quatro lanceiros limitavam-se a olhar boquiabertos.

 

Vamos lá continuar, seus idiotas rosnei-lhes. Ao trabalho! Sentia-me envergonhado. Nunca tinha visto Merlim ser humilhado e também nunca quisera ver. Nunca sequer pensara que tal fosse possível. Merlim esfregou a sua barba profanada.

 

Um dia, meu Rei e Senhor disse em voz baixa terei a minha vingança.

 

Cerdic afastou a ameaça débil com um encolher de ombros e voltou para junto dos seus homens. Entregou a trança cortada a Dinas, que fez uma vénia em sinal de agradecimento. Cuspi, pois sabia que agora o par de silurianos eram capazes de causar grandes males. No que diz respeito a feitiços, poucas coisas são tão poderosas como um fio de cabelo abandonado ou uma unha lascada pertencentes a um inimigo. Era por isso que para evitar que objectos como esses caíssem em mãos malevolentes todos nós tratávamos de as queimar. Até uma criança é capaz de fazer maldades com uma madeixa de cabelo.

 

Quereis que resgate a vossa trança, Senhor? perguntei a Merlim.

 

Não sejas absurdo, Derfel disse ele, num tom fatigado, apontando para os vinte lanceiros de Cerdic. Julgas que conseguias matá-los todos? Abanou a cabeça e depois sorriu para Nimue. Vês quão distantes estamos dos nossos Deuses, aqui? disse ele, tentando justificar a sua impotência.

 

Cavem, Nimue ordenou aos meus homens, embora naquele momento já tivessem terminado essa fase do trabalho e estivessem a tentar içar os primeiros barrotes de madeira. Cerdic, que muito simplesmente se deslocara até ao templo porque Dinas e Lavaine lhe tinham dito que Merlim andava à procura do tesouro, ordenou então a três dos seus soldados pessoais que nos ajudassem. Os três saltaram para dentro do poço e enfiaram as lanças debaixo do rebordo da madeira e devagar, muito devagar foram-na forçando até os meus homens conseguirem agarrá-la e soltá-la.

 

O poço era o poço de sangue, o lugar onde a vida do touro moribundo se esvaía para a terra-mãe, mas a determinada altura fora habilidosamente disfarçado com tábuas de madeira, areia, gravilha e pedras.

 

Foi feito confidenciou-me Merlim longe dos ouvidos dos acompanhantes de Cerdic quando da partida dos Romanos.

 

Tornou a esfregar a barba.

 

Senhor disse eu, acanhado, entristecido pela humilhação que ele sofrera.

 

Não te preocupes, Derfel. Tocou o meu ombro, tranquilizando-me. Achas que devia chamar a mim o fogo dos Deuses? Fazer com que a terra se abrisse e o engolisse? Convocar uma serpente do mundo dos espíritos?

 

Sim, Senhor respondi, lastimoso. Falou num tom de voz ainda mais baixo.

 

Não podemos controlar a magia, Derfel, usamo-la; e aqui não há nenhuma que possa ser usada. É por isso que precisamos ter todos os Tesouros em nosso poder. No Samain, Derfel, reunirei os Tesouros e mostrarei o Caldeirão. Atearemos fogueiras e depois faremos um feitiço que fará gritar o céu e gemer a terra. Prometo-te isso. Vivi toda a minha vida em função desse momento e será ele que trará a magia de volta à Bretanha. Apoiou-se na coluna e afagou o sítio onde a barba fora cortada. Os nossos amigos da Silúria disse ele, fitando os gémeos de barba negra pensam desafiar-me, mas um fio de cabelo caído da barba de um velho não vale nada quando comparado com o poder do Caldeirão. Um fio de cabelo não ferirá mais ninguém a não ser eu próprio, mas o Caldeirão, Derfel, o Caldeirão fará tremer toda a Bretanha e obrigará aqueles dois aspirantes a virem até mim, rastejando e implorando a minha misericórdia. Até lá, Derfel, até lá terás de suportar a visão da prosperidade dos nossos inimigos. Os Deuses afastam-se cada vez mais. Enfraquecem e nós que os amamos enfraquecemos também com eles, mas isso não durará para sempre. Havemos de trazê-los de volta, e a magia que é agora tão fraca na Bretanha tornar-se-á tão cerrada como o nevoeiro de Ynys Mon. Voltou a tocar-me no ombro ferido. Prometo-te.

 

Cerdic observava-nos. Não podia ouvir-nos, mas o seu rosto cuneiforme tinha uma expressão divertida.

 

Ele vai ficar com tudo o que estiver dentro do poço, Senhor murmurei.

 

Rezo para que ele ignore o seu valor, Merlim disse em voz baixa.

 

Eles saberão, Senhor disse eu, olhando para os dois druidas trajados de branco.

 

São traidores e serpentes respondeu Merlim suavemente, fitando Dinas e Lavaine que se tinham aproximado do poço, mas mesmo que fiquem com aquilo que encontrarmos agora, eu ainda possuirei onze dos treze Tesouros, Derfel, e sei onde o décimo segundo poderá ser encontrado; e nenhum outro homem jamais reuniu tanto poder na Bretanha no espaço de mil anos. Apoiou-se no bastão. O rei irá sofrer, prometo-te.

 

A última tábua de madeira foi retirada de dentro do poço e atirada para cima das lajes com uma pancada surda. Os lanceiros cobertos de suor recuaram no momento em que Cerdic e os druidas da Silúria avançaram lentamente e olharam para dentro do poço. Cerdic permaneceu na mesma posição durante muito tempo e depois desatou a rir. As suas gargalhadas ressoaram no tecto alto e pintado e atraiu os seus homens até à beira do poço, e também eles explodiram em gargalhadas.

 

Agrada-me ter um inimigo disse Cerdic que põe tanta fé na porcaria. Afastou os lanceiros para o lado e chamou-nos com um aceno. Aproxima-te e vem ver o que descobriste, Merlim de Avalon.

 

Acompanhei Merlim até à beira do poço e vi um emaranhado de madeira velha, escura e destruída pela humidade. Parecia ser apenas um molho de lenha, fragmentos de madeira; alguns deles tinham sido corroídos pela humidade que se tinha infiltrado por um dos cantos do poço revestido por tijolos e os restantes estavam tão velhos e quebradiços que se teriam inflamado e transformados em cinzas em menos de nada.

 

O que é? perguntei a Merlim.

 

Parece disse Merlim em saxão que procurámos no sítio errado. Vamos tornou a falar britânico e tocou-me no ombro, fiz perder tempo a todos nós.

 

Mas não o nosso lançou Dinas, de modo áspero.

 

Estou a ver uma roda disse Lavaine.

 

Merlim recuou lentamente, o rosto devastado. Tentara ludibriar Cerdic e os gémeos silurianos e o logro falhara por completo.

 

Duas rodas disse Dinas.

 

E um eixo acrescentou Lavaine partido em três pedaços. Tornei a olhar para o emaranhado imundo e mais uma vez não vi outra coisa senão pedaços de madeira. Foi nessa altura que me apercebi que algumas das peças eram curvas e que juntando esses fragmentos curvos e prendendo-os aos muitos tirantes formariam de facto um par de rodas. No meio dos pedaços que constituíam as rodas viam-se painéis estreitos e uma haste comprida da grossura do meu pulso; esta era de tal modo comprida que fora partida em três pedaços para assim poder caber dentro do poço. Via-se ainda um cubo de roda com uma ranhura no centro, onde caberia a lâmina de uma faca comprida. O monte de madeira eram as ruínas de um carro antigo semelhante ao que outrora transportava para a batalha os guerreiros da Bretanha.

 

O Carro de Modron, Dinas falou com reverência.

 

Modron disse Lavaine a mãe dos Deuses.

 

Cujo carro continuou Dinas liga a Terra aos céus.

 

E Merlim não o quer disse Dinas, desdenhoso.

 

Nesse caso ficamos nós com ele anunciou Lavaine.

 

O intérprete de Cerdic esmerara-se para traduzir toda esta troca de palavras, mas era óbvio que Cerdic continuava indiferente ao desolado conjunto de madeira partida e apodrecida. Não obstante ordenou aos seus homens que recolhessem os pedaços e os colocassem numa capa de que Lavaine se apropriou. Nimue lançou-lhes uma maldição em surdina, mas Lavaine limitou-se a rir-se dela.

 

Queres lutar connosco pelo carro? perguntou, indicando com um gesto os lanceiros de Cerdic.

 

Não podem escudar-se atrás de saxões para sempre disse eu e o dia virá em que terão de lutar.

 

Dinas cuspiu para o poço inimigo.

 

Somos druidas, Derfel, e não podes tirar-nos as nossas vidas, não sem que antes tenhas de condenar a tua alma, e a alma de todos os teus entes amados, ao horror eterno.

 

Eu posso matá-los. Nimue cuspiu na direcção deles.

 

Dinas fitou-a e em seguida estendeu um punho na sua direcção. Nimue cuspiu para o punho para desviar a sua influência maligna, mas Dinas virou-o, abriu a palma da mão e mostrou-lhe um ovo de tordo. Atirou-o a ela.

 

Aí tens qualquer coisa para encheres a órbita, mulher disse com altivez, após o que se virou para seguir o irmão e Cerdic para fora do templo.

 

Lamento, Senhor disse a Merlim quando ficámos sozinhos.

 

Porquê, Derfel? Achas que poderias ter derrotado vinte lanceiros? suspirou e acariciou a barba profanada. Vês como os poderes dos novos Deuses ripostam? Mas enquanto o Caldeirão estiver em nossa posse o maior poder será nosso. Venham. Estendeu o braço para Nimue, não porque procurasse conforto mas porque queria o apoio dela. Subitamente parecia velho e cansado enquanto caminhava devagar ao longo da nave.

 

Que fazemos, Senhor? perguntou um dos lanceiros.

 

Preparamo-nos para partir respondi. Eu observava as costas curvadas de Merlim. "O facto de lhe terem cortado a barba", pensei, "era uma tragédia mais séria do que ele ousava admitir, e o meu único consolo era o Caldeirão de Clyddno Eiddyn ainda estar na sua posse. O seu poder ainda era grande, mas algo naquelas costas vergadas e naquele lento arrastar de pés era infinitamente triste." Preparamo-nos para partir tornei a dizer.

 

Partimos no dia seguinte. Ainda nos sentíamos esfomeados, mas íamos regressar a casa. E tínhamos paz, de certo modo. A norte da arruinada Calleva, em terras que outrora tinham pertencido a Aelle e que agora eram novamente nossas, esperava-nos o tributo acordado. Aelle mantivera a sua palavra e cumpria a promessa que nos fizera.

 

Não havia guardas, apenas um imenso amontoado de ouro, abandonado na estrada. Cálices, cruzes, correntes, lingotes, alfinetes e torques. Não tínhamos forma de pesar o ouro e tanto Cuneglas como Artur desconfiavam que o tributo acordado não fora pago na íntegra. Era suficiente, porém. Era um tesouro escondido.

 

Guardámos o ouro em capas, acomodámos os pesados fardos nos dorsos das nossas montadas e retomámos a marcha. Artur viajava connosco, parecendo cada vez mais animado à medida que nos aproximávamos de casa, ainda que subsistissem algumas mágoas.

 

Lembras-te do juramento que fiz próximo daqui? perguntou-me pouco depois de termos encontrado o ouro de Aelle.

 

Lembro, Senhor.

 

O juramento fora feito no ano anterior, na noite que se seguira ao dia em que tínhamos entregue muito deste mesmo ouro a Aelle. Esse ouro fora o nosso suborno, destinado a arredar Aelle da nossa fronteira e a empurrá-lo para Rarae, a fortaleza de Powys. Nessa noite, Artur jurara matar Aelle.

 

Agora, em vez disso preservo-lhe a vida comentou, pesarosamente.

 

Cuneglas recuperou Ratae disse-lhe eu.

 

Mas o juramento continua por cumprir, Derfel. Tantos juramentos quebrados. Espreitou um gavião que deslizava em frente de uma enorme massa de nuvens brancas. Sugeri a Cuneglas e a Meurig que dividissem a Silúria em duas partes, e Cuneglas aventou que tu talvez gostasses de ser rei da parte que lhe couber a ele. Gostarias?

 

Estava tão atónito que mal conseguia responder.

 

Se for essa a vossa vontade, Senhor retorqui, por fim.

 

Bom, pois não é. Quero que sejas o tutor de Mordred. Avancei alguns passos, carregando comigo aquela decepção.

 

A Silúria poderá não gostar de ser dividida disse eu.

 

A Silúria fará o que lhe mandarem retorquiu Artur com firmeza e tu e Ceinwyn viverão no palácio de Mordred, em Dumnónia.

 

Se é essa a vossa vontade, Senhor. De súbito senti relutância em abandonar os prazeres mais modestos de Cwm Isaf.

 

Anima-te, Derfel! disse Artur. Não sou um rei, por que razão haverias tu de ser um?

 

Não é a perda de um reino que eu lamento, Senhor, mas a incorporação de um rei ao meu lar.

 

Hás-de saber lidar com ele, Derfel; consegues sempre lidar com tudo.

 

No dia seguinte, o exército dividiu-se. Sagramor já abandonara as fileiras, conduzindo os seus lanceiros que iriam guardar a nova fronteira com o reino de Cerdic. Agora, os restantes de nós seguiam por estradas diferentes. Artur, Merlim, Tristão e Lancelote rumaram para Sul, enquanto Cuneglas e Meurig viraram para Oeste, na direcção dos respectivos territórios. Abracei Artur e Tristão e depois ajoelhei para receber a bênção de Merlim, que este distribuiu benignamente. Recuperara alguma da sua antiga energia depois de termos deixado Londres, mas não conseguia ocultar o profundo abatimento que lhe causara a humilhação a que tinha sido submetido no templo. Podia possuir o Caldeirão, mas os seus inimigos possuíam um pedaço da sua barba e ele iria precisar de toda a sua magia para afastar os seus feitiços. Abraçou-me, eu beijei Nimue e depois fiquei a vê-los afastarem-se durante algum tempo antes de me dispor a seguir para Oeste, atrás de Cuneglas. Dirigia-me para Powys ao encontro da minha Ceinwyn e levava comigo uma quinhão do ouro de Aelle. Mesmo assim não conseguia sentir o sabor do triunfo. Tínhamos derrotado Aelle e garantido a paz, mas Cerdic e Lancelote tinham sido os verdadeiros vencedores da campanha, não eu.

 

Nessa noite descansámos todos em Corinium, mas à meia-noite fui acordado por uma tempestade. A tempestade alastrava bem a sul, mas a violência do trovão distante era tal e os clarões dos relâmpagos eram tão fulgurantes que o seu reflexo reflectia-se nas paredes do pátio onde eu dormia, acabando por despertar-me do meu sono. Ailleann, a antiga amante de Artur e mãe dos gémeos oferecera-me guarida, e naquele momento vi-a sair dos seus aposentos com uma expressão preocupada no rosto. Enrolei a minha capa em volta do corpo e acompanhei-a até às muralhas da cidade, onde se encontravam já metade dos meus homens contemplando o turbilhão que agitava o horizonte. Cuneglas e Agrícola também estavam presentes, ao contrário de Meurig, que se recusara a aceitar os prodígios da natureza, fossem eles quais fossem.

 

Todos nós éramos mais sensatos. As tempestades são mensagens dos Deuses e esta era uma erupção tumultuosa. Não chovia em Corinium, não havia vento que agitasse as nossas capas, mas bem longe, para Sul, algures em Dumnónia, os Deuses flagelavam a Terra. Os relâmpagos rasgavam o céu escuro e apunhalavam a terra como se fossem punhais. Os trovões ribombavam sem descanso, uns a seguir aos outros, e sempre que se ouvia uma pancada retumbante o relâmpago cintilava, ofuscava e espalhava o seu fogo irregular no meio daquela noite de sobressalto.

 

Issa permaneceu junto a mim, o rosto franco iluminado pelos longínquos esguichos de fogo.

 

Terá morrido alguém?

 

Não sabemos, Issa.

 

Estamos amaldiçoados, Senhor? perguntou.

 

Não, respondi com uma confiança que não sentia totalmente.

 

Mas ouvi dizer que tinham cortado a barba a Merlim.

 

Alguns fios de cabelo resumi nada mais. E depois, que tem isso?

 

Se Merlim deixar de ter poderes, quem mais terá?

 

Merlim tem poderes tentei tranquilizá-lo.

 

E eu também. Pois em breve seria o paladino de Mordred e habitaria numa grande propriedade. Moldaria a criança e Artur construiria o reino dessa mesma criança.

 

No entanto, a trovoada ainda me deixava apreensivo. E teria ficado mais, caso tivesse conhecido o seu significado. Pois nessa noite o desastre tornou-se realidade. Não tivemos notícias dele durante os três dias seguintes, mas por fim acabámos por ficar a saber por que motivo o trovão falara e o relâmpago nos atingira.

 

Tinha atingido o Tor, o castelo de Merlim onde os ventos gemiam em torno da sua torre de sonho, vazia. E aí, na hora em que celebrávamos a nossa vitória, o relâmpago iluminara a torre de madeira e as suas chamas tinham causticado, galgado e crepitado pela noite fora; e de manhã, quando as brasas eram borrifadas e extintas sob a chuva da tempestade moribunda, nenhum Tesouro restava em Ynys Wydryn. Não havia nenhum Caldeirão entre as cinzas, apenas um vazio no coração causticado de Dumnónia.

 

Os novos Deuses, ao que parecia, estavam a ripostar. Ou então, os gémeos da Silúria tinham lançado um poderoso sortilégio sobre a barba cortada de Merlim, pois o Caldeirão tinha desaparecido e os Tesouros tinham sumido.

 

Quanto a mim segui para norte, ao encontro de Ceinwyn.

 

                                                                                 CONTINUA 

 

                      

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