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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LANCE DE VÊNUS / Steven Saylor
O LANCE DE VÊNUS / Steven Saylor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LANCE DE VÊNUS

 

Estão ali dois visitantes, Senhor. Belbo olhava para mim de sobrolho franzido, transferindo o peso do corpo de uma perna para a outra, indeciso.

 

Como se chamam?

 

Não quiseram dizer.

 

São caras conhecidas?

 

Eu nunca os tinha visto, Senhor.

 

Disseram o que queriam?

 

- Não, Senhor.

 

Ponderei o assunto por momentos, contemplando as chamas da braseira.

 

- Estou a ver. Dois homens...

 

- Não exactamente, Senhor...

 

Dois visitantes, disseste tu. São dois homens ou não?

 

- Bem disse Belbo, franzindo a testa -, tenho quase a certeza de que um deles é um homem. Pelo menos parece...

 

- E o outro?

 

É uma mulher acho eu. Ou talvez não... Olhou pensativo, mas pouco preocupado, para meia distância, como se estivesse a tentar recordar-se daquilo que tinha comido ao pequeno-almoço.

 

Eu ergui uma sobrancelha e olhei para além da braseira em chamas; pela janela estreita, avistei o jardim, onde a estátua de Minerva vigiava um pequeno tanque com peixes. O Sol começava a baixar. Em Januaríus, os dias são muito pequenos, em especial para um homem de cinquenta e quatro anos, como eu, com idade bastante para sentir o frio nos ossos. Mas a luz do dia ainda era suficiente para se ver com clareza, e certamente permitiria perceber se a pessoa que nos tinha batido à porta era um homem ou uma mulher. Teria Belbo começado a ver mal?

 

Belbo não será o mais inteligente dos escravos. Mas sempre compensou em volume aquilo que lhe falta em cérebro. Há muito tempo que esta massa imensa de músculos protuberantes e cabelo cor de palha é o meu guarda-costas, embora nos últimos anos os seus reflexos se tenham tornado consideravelmente mais lentos. Eu tinha pensado começar a usá-lo como porteiro, considerando que o facto de ter passado muitos anos ao meu serviço lhe permitiria reconhecer a maioria das pessoas que me visitavam, e que o seu tamanho intimidaria aqueles que não reconhecesse. Mas se ele nem conseguia distinguir um homem de uma mulher, dificilmente poderia tê-lo à porta.

 

Belbo terminou a sua ponderação de meia distância e pigarreou.

 

- Mando-os entrar, Senhor?

 

- Deixa-me ver se compreendi o que disseste: dois estranhos de sexo indeterminado, que se recusam a dizer o nome, vieram bater à porta de um homem que passou a vida a granjear inimigos, aqui, na cidade mais perigosa do mundo. Mandá-los entrar, perguntas tu? Por que não?

 

Ao que parece, o meu sarcasmo foi excessivamente subtil. Belbo acenou com a cabeça e saiu da sala antes que eu pudesse detê-lo.

 

Momentos depois, regressou com os visitantes. Eu levantei-me para os receber, e percebi que os olhos de Belbo continuavam tão perspicazes como sempre, provavelmente mais do que os meus. Se eu tivesse visto este casal do outro lado da rua ou a atravessar o Fórum, talvez tivesse pensado que eram exactamente aquilo que pareciam, um homem de feições delicadas, razoavelmente jovem, vestindo uma toga que lhe caía mal e com um chapéu de abas largas (apesar do tempo encoberto), e uma mulher bastante mais velha e corpulenta, envolvida numa estola que a cobria modestamente da cabeça aos pés. Contudo, se analisados com maior cuidado, percebia-se que havia ali qualquer coisa que não jogava bem.

 

Eu não conseguia ver nenhuma parte do corpo do homem mais novo, escondido pelas pregas amplas da toga, que era grande demais para ele, mas o seu rosto não era como devia ser; não vi sinais de barba nas faces e as suas mãos suaves e cuidadosamente tratadas moviam-se com uma delicadeza nada masculina. Por outro lado, o seu cabelo parecia ter sido puxado para cima e metido por baixo do chapéu, em vez de cair por trás das orelhas e sobre o pescoço, o que significava que devia ser excepcionalmente comprido. Além disso, tinha uma cor estranha era escuro nas raízes e louro na zona onde estava virado para cima, à volta da aba do chapéu, que ele se recusou a tirar.

 

Quanto à mulher, uma manta de lã enrolada à volta da cabeça obscurecia a maior parte do seu rosto, mas eu percebi que ela pintara as faces, de forma um tanto atabalhoada, com uma tinta de maquilhagem cor-de-rosa. As rugas do pescoço caíam-lhe em pregas consideravelmente mais frouxas do que as pregas da estola, que lutavam para conter o seu volume, especialmente a meio do tronco. Os seus ombros pareciam um tanto largos de mais e as coxas excessivamente estreitas. E as suas mãos também não pareciam adequadas, porque as matronas romanas têm orgulho na sua pele clara, e as dela eram escuras e estragadas, como se tivessem estado expostas ao sol durante muitos anos; por outro lado, se era de esperar que qualquer mulher suficientemente vaidosa para pintar o rosto também cuidasse das unhas, as da minha visitante estavam partidas e roídas até ao sabugo.

 

O casal manteve-se mudo ao lado da braseira.

 

- Creio que vieram visitar-me disse eu por fim.

 

Eles limitaram-se a acenar com a cabeça. O homem mais jovem franziu os lábios e olhou para mim com uma expressão tensa. A mulher mais velha inclinou a cabeça, de tal maneira que a braseira lhe iluminou os lábios. Por entre as pestanas pintadas de preto com antimónio, detectei um brilho de apreensão.

 

Fiz sinal a Belbo, que trouxe um par de cadeiras dobráveis e as colocou diante da minha.

 

- Sentem-se propus. Assim fizeram, demonstrando ainda mais claramente que as coisas não eram o que pareciam. Usar uma toga é uma arte, como o é usar uma estola, imagino eu. Pela manifesta inépcia de ambos, pareceu-me altamente improvável que o jovem tivesse alguma vez usado uma toga, ou que a sua companheira costumasse usar uma estola. A falta de jeito de ambos era quase cómica.

 

- Tomam um pouco de vinho? ofereci-lhes.

 

- Sim! disse o jovem, inclinando-se para diante com o rosto subitamente animado. Tinha um tom de voz agudo e, por assim dizer, excessivamente delicado, tal como as suas mãos. A velha mulher tornou-se rígida e murmurou: Não! numa voz rouca. Brincou nervosamente com os dedos e depois mordeu o polegar.

 

Eu encolhi os ombros.

 

- Por mim, preciso de qualquer coisa que combata este frio. Belbo, pede a uma das raparigas que traga água e vinho. E talvez qualquer coisa para comer? olhei inquiridoramente para os meus visitantes.

 

O jovem animou-se e acenou avidamente. A mulher franziu o sobrolho e agarrou-lhe o braço, fazendo-o estremecer.

 

- Estás louco? sussurrou asperamente. Pareceu-me detectar uma ligeira pronúncia, e estava a tentar localizá-la quando ouvi o estômago dela roncar.

 

- Sim, claro, exactamente resmungou o jovem. Ele também tinha uma pronúncia, pouco pronunciada mas vagamente oriental. O que era curioso, porque só os cidadãos romanos usam toga.

 

- Comida não, obrigado disse ele.

 

Que pena disse eu há uns bolos de mosto óptimos, que sobraram do pequeno-almoço desta manhã, aromatizados com mel e pimenta ao estilo egípcio. A minha mulher é natural de Alexandria, compreendem? Eu próprio vivi algum tempo nessa cidade quando era jovem oh, deve ter sido há uns trinta anos. Os pãezinhos egípcios são famosos, como certamente saberão. A minha mulher diz que o segredo do fermento foi descoberto por um pasteleiro que vivia na foz do Nilo, que dedicou o seu primeiro pão ao grande Alexandre, aquando da fundação da cidade.

 

A boca da mulher começou a retorcer-se. Ela apertou o manto para esconder os olhos, mas eu senti-os poisados sobre mim, quentes como as chamas da braseira. O rosto do jovem perdeu a sua animação e voltou a ficar rígido.

 

Belbo regressou com uma mesinha dobrável, que montou entre nós. Atrás dele, entrou uma rapariga com três copos e dois jarros, um de água e outro de vinho. A rapariga deitou vinho nos copos e depois foi-se embora, deixando a meu cargo a distribuição da água.

 

- Por mim, nos meses mais frios, tomo-o quase sem nada disse eu, inclinando-me para diante e acrescentando apenas uma gota de água ao copo mais próximo. Como preferem? Olhei para o jovem. Ele ergueu o indicador e tocou com o polegar na primeira articulação. Meio dedo de água disse eu, servindo-o, e depois olhei para a companheira. Vais acompanhar-nos? Ela hesitou, e depois copiou o gesto do jovem. Reparei novamente nas unhas roídas e na pele das suas mãos, comida pelo sol.

 

- Não te arrependerás disse eu. Este vinho é de produção minha. Ainda me restam alguns vasos da minha breve passagem pela Etrúria, como camponês, há uns anos. Foi um ano muito bom pelo menos para o vinho. Entreguei um copo a cada um. Antes de ter tempo de pegar no meu, a mulher pousou rapidamente o seu e estendeu a mão para o meu.

 

- Mudei de ideias murmurou roucamente. Prefiro beber com menos água. Se não te importas.

 

- Claro que não. Peguei no copo que ela tinha abandonado e levei-o até junto dos lábios, fingindo cheirar o bouquet. Ela observou-me intensamente e colocou o copo sob o nariz carnudo, cheirando cautelosamente sem se incomodar a fingir que estava a gostar, à espera que eu bebesse um gole antes de poder fazer a mesma coisa. Foi um momento absurdo, que mais parecia uma cena de uma comédia vulgar, embora se estivéssemos em palco o público nos tivesse certamente apupado por desempenharmos os nossos papéis com demasiada lentidão.

 

Por fim, levei o copo à boca e bebi, deixando o vinho vermelho demorar-se nos meus lábios por momentos antes de o limpar com a língua, para lhe mostrar que tinha engolido. Só então ela beberricou cautelosamente do seu copo. O companheiro, tendo observado a cena como se estivesse à espera de autorização, levou o copo aos lábios e bebeu o vinho todo de um trago.

 

- Excelente! exclamou, com a voz a deslizar para um registo mais agudo. Pigarreou. Excelente repetiu, numa voz mais grave mas ainda claramente feminina.

 

Por momentos, beberricámos o vinho em silêncio, ouvindo a braseira crepitar.

 

- Parecem hesitantes em declarar ao que vêm disse eu por fim.

- Talvez possam começar por me dizer como se chamam.

 

O jovem olhou para a mulher, que desviou o rosto das chamas e o escondeu na sombra. Passado um momento, olhou novamente para mim.

 

- Nomes não disse ele suavemente. Pelo menos por enquanto. Eu acenei com a cabeça.

 

- Como queiram. De qualquer maneira, os nomes não são muito importantes. Os nomes são apenas uma capa, um fato que os homens vestem e despem. Um disfarce, se quiserem. Não concordam?

 

O jovem olhou para mim com os olhos brilhantes estaria intrigado, ou teria simplesmente bebido o vinho depressa demais? A companheira manteve o rosto na sombra, mas eu voltei a sentir o calor do seu olhar.

 

- Um nome não é o mesmo que uma coisa murmurou ela por fim. Eu acenei com a cabeça.

 

- Foi isso que me ensinaram há já muito tempo na verdade, foi quando vivia em Alexandria. Contudo, sem os nomes, não podemos discorrer uns com os outros acerca das coisas que esses nomes representam.

 

A manta de lã moveu-se gravemente para cima e para baixo.

 

Uma coisa tem um nome em Grego e outro em Latim disse eu. Mas a coisa é sempre a mesma. E aquilo que se aplica às coisas também tem de se aplicar às pessoas. O Rei Ptolemeu do Egipto, por exemplo, continua a ser o Rei Ptolemeu, quer lhe demos o título grego, basileus, ou latino, rex.

 

A figura da estola inspirou audivelmente e pareceu estar prestes a falar, mas conteve-se.

 

- O mesmo acontece com os próprios deuses prossegui eu. Os Romanos chamam Júpiter ao pai dos deuses; os Gregos chamam-lhe Zeus. ”Júpiter” é uma onomatopeia do som do relâmpago atingindo a terra, enquanto ”Zeus” capta o som de um trovão atravessando o ar. E assim que os nomes transmitem ao ouvido aquilo que os olhos e a alma do homem percebem, ainda que de maneira imperfeita.

 

- Exactamente! murmurou o meu visitante. Inclinou a cabeça, tornando visíveis os olhos, que estavam fixos em mim com o interesse de um professor que ouve um aluno repetir-lhe uma lição há muito aprendida e não mais esquecida.

 

- Ainda assim, os nomes não são coisas disse eu e, por muito que o estudo dos nomes nos fascine, é o estudo das coisas ou, mais precisamente, da percepção humana das coisas, que deve ocupar aqueles que se preocupam com as questões filosóficas. Por exemplo, estou a ver a chama desta braseira, mas como posso saber que ela existe?

 

O jovem, que se tinha servido de mais vinho durante o meu discurso, riu-se ruidosamente.

 

- É simples, pões a mão na chama!

 

Eu estalei a língua em sinal de desaprovação.

 

Deves pertencer à escola epicurista, se achas que podemos determinar a existência pela simples percepção sensorial. Epicuro ensinava que todas as sensações são verdadeiras; no entanto, o facto de eu me queimar não pode ser, para ti, uma prova da existência do fogo, porque tu não sentirias a dor.

 

- Ah, mas ouviria o teu grito.

 

Talvez; mas há quem consiga suportar essa dor sem gritar. Se eu não gritasse, o fogo seria menos real? E se eu gritasse e tu fosses surdo e estivesses a olhar para outro lado eu ter-me-ia queimado, apesar de tudo? Por outro lado, se eu gritasse e tu me ouvisses, ainda assim não terias maneira de saber se a minha dor era real ou fingida.

 

- Pareces saber muito sobre essas coisas disse o jovem, que sorriu e tomou outro gole. Reparei que tinha entornado um pouco de vinho na toga.

 

- Sei um pouco. É claro que a filosofia foi uma criação dos Gregos, mas um romano também pode tentar compreendê-la. Cícero, o meu antigo patrono, transformou-se de alguma maneira num especialista em filosofia, de forma a melhorar a sua oratória. Com os Cépticos, aprendeu que é sempre mais fácil falsificar do que provar uma proposição um conhecimento útil para um advogado, especialmente se não tiver escrúpulos em defender um homem culpado.

 

Bebi um longo gole de vinho. O estado de espírito da sala tinha mudado por completo. As gélidas suspeitas dos meus visitantes tinham-se derretido em confiança. A cadência reconfortante do discurso filosófico era terreno conhecido, tal como eu suspeitara.

 

- Mas um simples nome não é uma coisa, por isso a aparência não é existência prossegui eu. Pensem nisto: batem à minha porta dois visitantes. À primeira vista, parecem ser um homem e uma mulher, e esta é claramente a impressão que querem transmitir. Mas, observados mais atentamente, isso é apenas uma impressão, e não a verdade; é o que me dizem os sentidos e a minha capacidade de dedução lógica. Seguem-se as perguntas: se o homem não é um homem e a mulher não é uma mulher, o que são? Quem são? Por que desejam ser vistos como algo que não são? Quem estão eles a tentar enganar, e por quê? E por que vieram bater à porta de Gordiano, o Descobridor.

 

- E conheces as respostas a todas essas perguntas? perguntou asperamente o visitante que vestia a estola.

 

- Julgo que sim, pelo menos à maioria. Embora ainda me sinta intrigado com alguns pormenores relativos ao teu companheiro... Olhei para o jovem, que sorria de uma maneira que eu não consegui explicar, até perceber que ele não estava a sorrir para mim, mas para alguém colocado atrás de mim.

 

Voltei-me e vi a minha filha, Diana, à porta.

 

A sua postura era ensaiada, como se apenas tivesse feito uma pausa para olhar para dentro da sala e se preparasse para avançar a qualquer momento. Vestia a toga de manga comprida que usam as crianças de ambos os sexos mas, aos treze anos, começava a encher o fato de uma forma inequivocamente feminina. A toga azul-escura misturava-se com a obscuridade do corredor, de tal maneira que o seu rosto, iluminado pela braseira, parecia flutuar no ar. A sua pele, com a textura cremosa e o brilho rosado que as faces pintadas do meu visitante imitavam de forma tosca, tornava ainda mais pronunciado o negro das suas compridas pestanas e sobrancelhas espessas. As chamas faziam brilhar o seu longo cabelo preto, que lhe caía até aos ombros, penteado com risco ao meio. Os seus olhos castanhos observaram-nos com curiosidade e uma sugestão de divertimento. Ela fora sempre muito parecida com a mãe e era-o ainda mais cada dia que passava. Por vezes, parecia-me que eu não tivera qualquer influência na sua criação, de tal maneira ela era feita à imagem de Betesda.

 

Sorriu ao de leve e começou a afastar-se.

 

- Diana disse eu vem cá um momento.

 

Ela entrou na sala, com aquele sorriso misterioso que herdara da mãe.

 

- Sim, papá.

 

- Temos visitas, Diana.

 

- Sim, papá, eu sei. Vi Belbo mandá-las entrar. Ia dizer à mãe, mas decidi vir primeiro vê-las melhor.

 

- Vê-las melhor?

 

Ela lançou-me um olhar divertido e exasperado, como aquele que Betesda me lança quando eu insisto no óbvio.

 

- Bem, papá! Não é todos os dias que um eunuco e um homem vestido de mulher vêm bater-te à porta, pois não?

 

Olhou para os meus visitantes e sorriu docemente. Eles não corresponderam ao seu sorriso, preferindo olhar sombriamente um para o outro.

 

- Eu bem te disse que não valia a pena fingir. Até uma criança percebeu! resmungou o velhote, deixando de disfarçar a voz e a pronúncia alexandrina. Aborrecido, tirou o manto da cabeça. Tinha o cabelo prateado afastado do rosto e preso na parte de trás do pescoço, e a testa enrugada e coberta de manchas. As pregas de carne penduradas do queixo estremeceram e, subitamente, ele ficou com o aspecto ridículo de um velhote infeliz com as faces e os olhos pintados.

 

O eunuco que vestia a toga tapou a boca e riu-se ebriamente. Ficas tão bonito com a maquilhagem!

 

- Chega! resmungou o velho egípcio. Franziu a boca e deixou cair o maxilar enquanto olhava tristemente para as chamas, com os olhos cheios de desespero.

 

- Esta é a minha filha, Gordiana, que nós tratamos por Diana. Peguei-lhe na mão suave e macia. Diana, fomos honrados com a visita de Díon de Alexandria, filósofo e professor, membro estimado da Academia e, actualmente, principal embaixador do povo do Egipto em Roma.

 

Com a dignidade natural de um homem distinto habituado a ser formalmente apresentado e a ouvir recitar os seus títulos, Díon levantou-se, apertou as mãos diante de si, e endireitou os ombros.

 

A sua tranquilidade parecia contrastar de forma peculiar com o singular vestuário que trajava; com o rosto pintado e as roupas femininas, mais parecia um sacerdote de um culto oriental que era precisamente a função do seu companheiro.

 

- E este, disse Díon, apontando para o pequeno eunuco, que também se levantou, embora um pouco ebriamente, é Trigónion, um sacerdote do templo de Cibele, aqui em Roma.

 

O eunuco fez uma pequena vénia e tirou o chapéu, de onde saiu uma massa de cabelo amarelo-claro. A cor era um louro artificial e descolorado. Ele passou os dedos pelo cabelo e abanou a cabeça para desmanchar os caracóis.

 

- Um filósofo... e um gallus. disse Diana espantada. A última palavra sobressaltou-me.

 

Gallus é a palavra latina que significa sacerdote castrado da Grande Mãe, Cibele. Os galli são todos estrangeiros, dado que os Romanos são proibidos por lei de o serem. Trata-se de uma palavra piedosa na boca dos fiéis da deusa, mas os outros usam-na por vezes como epíteto ordinário (”Seu gallus miserável!”); a ideia de os homens se fazerem eunucos, mesmo ao serviço de uma divindade, continua a ser estranha e repulsiva para muitos romanos. Não me lembrava de ter ensinado a palavra a Diana, mas a verdade é que ela está sempre a aparecer com coisas que eu não lhe ensinei. Suspeito de que as aprende com a mãe.

 

- Sim disse Díon lugubremente - espanta-te, Gordiano: o que poderão um filósofo e um gallus ter em comum um homem que vive pela razão e um homem cuja vida é a total submissão da razão? Ha! As circunstâncias colocam estranhos parceiros na nossa cama. E, quando mais desesperadas são as circunstâncias, mais bizarros são os parceiros.

- Lançou um sombrio olhar de esguelha ao eunuco, e subitamente pareceu indeciso. - Não queria dar a esta metáfora um sentido literal, evidentemente. Vocês também usam esta expressão em Latim, não usam? Sobre as circunstâncias e os parceiros de cama?

 

- Usamos uma parecida.

 

Ele acenou com a cabeça, satisfeito por se ter feito entender. Na verdade, o seu Latim era impecável, embora a pronúncia fosse distintamente alexandrina, com a particular inflexão dos nascidos no Egipto cujos antepassados são Gregos e cuja língua materna é o Grego. Ouvindo-o falar livremente, recordei-me da sua voz, de muitos anos antes. Tornara-se mais rouca com a idade, mas não havia dúvida de que era a mesma voz que eu tinha escutado com grande atenção nos degraus exteriores do templo de Serápis, em Alexandria, quando era um jovem ansioso por aprender o máximo que pudesse acerca do mundo. A voz de Díon fez-me recuar a memória para longe de Roma.

 

Terminadas as apresentações, voltámos a sentar-nos, à excepção de Diana, que pediu licença e saiu da sala, certamente para ir contar à mãe.

 

Díon pigarreou.

 

- Quer dizer que te lembras de mim?

 

- Mestre - disse eu, porque era assim que o tratava em Alexandria, e agora parecia-me estranho tratá-lo pelo nome, embora tivesse ultrapassado há muito a idade da deferência -, claro que me lembro de ti. Seria difícil esquecer um homem como tu!

 

- Pensei que, passados tantos anos... Por outro lado, quando me disseram o teu nome, como poderia eu ter a certeza de que se tratava do mesmo Gordiano que conhecera há tanto tempo? É certo que o nome é invulgar, e eles estavam convencidos de que tu tinhas estado em Alexandria na tua juventude; e o que me disseram acerca de ti parecia descrever a árvore mais passível de se ter desenvolvido a partir daquele arbusto - vocês também têm esta expressão, não é verdade? E os tempos dos verbos estavam certos? Óptimo. Ainda assim, com tantos perigos à minha volta, tantas traições - compreendes por que não podia vir ter contigo abertamente? Por que hesitei em me revelar? Por que suspeitei até do teu excelente vinho? Olhou para mim pouco à-vontade e mordeu o polegar. Mesmo quando te vi, não tive a certeza absoluta de que fosses o Gordiano que eu tinha conhecido em Alexandria. O tempo muda-nos a todos, e tu também usas uma espécie de disfarce, como sabes.

 

Ele apontou para o meu rosto. Levei a mão ao queixo e percebi que se referia à minha barba.

 

Sorri.

 

- Sim, nessa altura não usava barba. Alexandria é quente demais para um homem usar barba, e de qualquer maneira eu era jovem demais para ter uma barba decente. Ou estás a falar dos pêlos grisalhos que aparecem no meio dos pretos? Acho que o cabelo grisalho e as rugas são uma espécie de disfarce involuntário usado por todas as pessoas quando chegam a uma certa idade.

 

Díon acenou com a cabeça e estudou-me o rosto, ainda a tentar decidir se podia confiar em mim ou não.

 

- Tenho de ter muito cuidado disse ele.

 

- Sim, eu sei alguma coisa acerca da tua situação disse eu. Da tua viagem desde Alexandria, dos ataques à comitiva depois de terem chegado a Neápolis, das ameaças de que foste objecto aqui em Roma, do facto de o Senado desviar os olhos. Tem-se falado muito no Fórum acerca daquilo a que as pessoas chamam ”a situação egípcia”.

 

- Ainda assim, como é que adivinhaste que era Díon? perguntou o jovem gallus, servindo-se de mais um copo de vinho Os nossos disfarces permitiram-nos atravessar as ruas de Roma sem problemas. É certo que deviam ser menos convincentes quando vistos ao pé...

 

- Sim disse Díon como podias saber que era eu? Certamente não reconheceste a minha cara, escondida na sombra e pintada como a de uma mulher, ainda por cima passados tantos anos. E certamente não foi a minha voz, porque eu tentei falar como uma mulher e o mínimo possível, e tu não me ouviste falar durante muito tempo.

 

- Mestre, não sei bem por que vieste falar comigo, mas presumo que tenha alguma coisa a ver com a fama que criei: chamam-me o Descobridor. Percebi quem devias ser quase imediatamente. Se não tivesse sido capaz de descobrir uma coisa tão insignificante como essa, teria sido uma perda de tempo vires falar comigo.

 

Elucida-me disse Díon, na sua voz de professor, uma voz desprovida de expressão.

 

- Sim, explica-te! riu-se o jovem gallus, erguendo o copo de vinho e sacudindo os caracóis descolorados.

 

Muito bem. Que não eram o que queriam parecer tornou-se-me imediatamente evidente, como o foi para Diana, e mesmo para Belbo, o meu porteiro.

 

- O que foi que me denunciou? perguntou Díon. Encolhi os ombros.

 

- Pequenas coisas. Não é possível apresentar uma lista de todas as diferenças entre a maneira como os homens e as mulheres falam, andam, se comportam. Em cima do palco, um actor pode ser convincente quando representa uma mulher, mas um actor treina-se para esse papel. Não basta pintar o rosto e vestir uma estola.

 

- Quer dizer que o disfarce não foi convincente? Sê mais específico! Tenho de saber, porque, se não fui bem sucedido com este disfarce, terei de procurar outro. Isso pode significar a diferença entre a vida e... Recomeçou a roer as unhas mas, não encontrando já nada que trincar, puxou nervosamente as pregas do pescoço.

 

- Para começar, foste denunciado por essas unhas. As matronas romanas fazem do cuidado das mãos um ritual.

 

- Ah! Olhou para as unhas com desagrado. É um hábito horrível. Só o adquiri depois de chegar a Itália. Não consigo evitar.

 

Mesmo que deixasses crescer as unhas, as tuas mãos continuariam a denunciar-te. São castanhas e gastas nenhuma matrona romana tem as mãos como as tuas, e o mesmo se aplica a qualquer cidadão de posição. Só os escravos e os agricultores têm as mãos assim ou os visitantes de climas estrangeiros, onde o Sol é quente durante todo o ano e queima todos por igual, desde o Rei Ptolemeu até ao mais humilde escravo dos campos.

 

- Ptolemeu! Díon cuspiu o nome.

 

Sim, observei a tua agitação quando há bocado pronunciei o nome, o que me confirmou uma vez mais aquilo de que eu já suspeitava: que Díon de Alexandria viera visitar-me.

 

- Mas ainda não explicaste como é que começaste por ter essa suspeita disse o gallus. ”Elucida-me!” ordenou num tom sarcástico, imitando Díon.

 

- Vamos então por partes: o meu visitante está vestido de mulher mas não é uma mulher. Logo, o meu visitante tem de ser um homem que tem razões para se esconder confesso que não pensei na possibilidade de um de vós ser um eunuco. Um homem que tem problemas, se calhar até corre perigo o que parecia provável pelos teus maneirismos nervosos e pelo facto de teres recusado a comida, apesar de o teu estômago roncar. Pelas tuas mãos castanhas e pela tua pronúncia, percebi que devias ser estrangeiro. Encolhi os ombros.

 

- Mas chega um momento em que as explicações de passos discretos em progressão lógica do pensamento se tornam demasiadamente entediantes não concordas, Mestre? É como pedir a um tecelão que explique como foi feita uma tapeçaria, obrigando-o a descrever fio após fio que trapalhada que isso seria! Basta que vos diga que, dado aquilo que já tinha deduzido, se me tornou óbvia a suposição de que o meu visitante devia ser Díon de Alexandria. Ouvi falar dos teus problemas; diz-se que tens estado escondido em casas privadas, aqui no Monte Palatino; subitamente, ocorreu-me que este estrangeiro com um comportamento desesperado podia ser Díon. Para testar essa possibilidade, fiz a experiência. Falei de filosofia, dos meus tempos de Alexandria, do Rei Ptolemeu. A tua reacção confirmou as minhas suspeitas. Isto não é filosofia nem matemática, Mestre, mas acho que te permite perceber como funciona a minha inteligência e como apliquei o modo de pensar que me ensinaste há já tanto tempo.

 

Díon sorriu e acenou com a cabeça. Era curioso que, na quinta década da minha vida, ainda me ”sentisse satisfeito com a aprovação de um professor que não vira e no qual mal pensara durante trinta anos!

 

- E Trigónion? disse Díon.

 

- Sim, o que pensaste de mim? perguntou o jovem gallus com os olhos a brilhar. (Falo dele, embora muitas pessoas preferissem falar dela; a maioria das vezes, os eunucos são referidos como mulheres, o que parece agradar-lhes.)

 

- Confesso, Trigónion, que me confundiste. Sabia que não eras o que fingias ser, mas percebi mal. Presumi que fosses uma mulher jovem vestida de toga e chapéu, tentando passar por homem.

 

O gallus lançou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

 

- Suponho que, para aqueles que pensam que só se pode ser uma coisa ou outra, é uma combinação equilibrada pensar numa jovem mulher vestida de toga acompanhada de um homem velho vestindo uma estola!

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Exactamente! Foi a expectativa da simetria que me induziu em erro.

 

- Quer dizer que pensaste que eu era uma mulher! disse Trigónion, encostando-se e fixando-me com uma expressão felina. Quem é que pensaste que seria essa mulher a escrava do filósofo, a sua filha, a sua mulher? Estendeu o braço e tocou na mão enrugada de Díon com as pontas dos dedos; o filósofo fez uma careta e retraiu-se. Ou talvez uma Amazona, sua guarda-costas? Trigónion riu-se.

 

Encolhi os ombros.

 

- As tuas feições e a tua voz confundiram-me. É raro ver eunucos em Roma; ignorei essa possibilidade. Percebi que não estavas habituado a andar de toga, como seria de esperar de uma mulher mas também de um estrangeiro. Reparei na tua pronúncia, mas é pouco vincada, e não é egípcia; frigia, presumo, agora que sei que és um gallus. Falas Latim quase como um romano. Deves viver na cidade há muito tempo.

 

- Há dez anos. Vim servir para o templo da Grande Mãe aqui em Roma quando tinha quinze anos, no mesmo ano em que me consagrei ao seu culto. Esta consagração significava a castração; Díon estremeceu. Quer dizer que o gallus foi um enigma mais difícil de resolver do que o filósofo disse o jovem sacerdote, mostrando-se satisfeito consigo próprio.

 

- Como é lógico disse Díon irritado -, dado que os filósofos procuram a clareza de raciocínio, enquanto os sacerdotes de Cibele fazem da mistificação dos sentidos uma religião.

 

- E, no entanto, a jovem filha do nosso anfitrião percebeu imediatamente a verdade disse Trigónion.

 

- Uma bela rapariga disse Díon suavemente, enrugando a testa.

 

- Uma tal percepção por parte de uma criança é quase preternatural, não achas, Gordiano? Trigónion olhou para mim com astúcia. Talvez a tua filha seja uma bruxa.

 

Díon franziu o sobrolho e agitou-se na cadeira, pouco à vontade, mas eu decidi condescender com o sentido de humor do gallus, em vez de me ofender.

 

- A mãe de Diana cresceu no Egipto, onde existem muitos eunucos. Diana nasceu com o Egipto no sangue, por isso presumo que não tenha dificuldade em detectar um eunuco. Gostaria de poder atribuir a mim próprio a sua inteligência, mas não tenho dúvidas de que a sua argúcia tem origem, parcialmente, na mãe.

 

- Talvez sejam ambas bruxas disse Trigónion.

 

- Chega de indelicadezas grunhiu Díon. Estes galli acham que podem dizer o que lhes apetece e comportar-se como querem dentro da casa de qualquer pessoa. Não têm vergonha nenhuma.

 

- Mas essa não é a única coisa que nos falta disse Trigónion fazendo uma cara séria.

 

Fosse qual fosse a origem da sua argúcia, Diana também pusera o dedo no mais estranho mistério que estava por trás dos pouco convincentes disfarces dos meus visitantes: o que faziam eles na companhia um do outro? Era claro que não se amavam.

 

- Se já beberam o suficiente disse eu, sabendo perfeitamente que Trigónion tinha bebido mais do que devia, enquanto Díon mal tocara no copo -, e se acham que já falámos o suficiente sobre os vossos disfarces, talvez seja altura de passarmos a coisas mais sérias. Por que vieste bater-me à porta, Mestre, e o que pretendes de mim?

 

Díon pigarreou.

 

- Falaste há pouco daquilo a que os Romanos chamam ”a situação egípcia”. Presumo, portanto, que conheces o falso testamento do Rei Alexandre, os esquemas de César e Pompeu para se apoderarem das riquezas do Egipto, os assassínios em massa dos meus colegas que vieram pedir justiça ao Senado de Roma...

 

Ergui uma mão.

 

-Talvez seja melhor começares pelo princípio, explicando-me todos os passos que te trouxeram até minha casa. Mas, para começar, quero que me dês respostas simples a duas perguntas simples. Primeiro: por que vieste bater-me à porta?

 

Díon olhou para mim por momentos, depois contemplou as chamas da braseira. A sua voz tremeu.

 

- Vim bater-te à porta porque não há em Roma mais ninguém a quem possa pedir ajuda, ninguém em quem possa confiar e nem sequer sei se posso confiar em ti.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

- E a segunda: o que queres de mim, Mestre?

 

- Quero que me ajudes a... Ele engasgou-se com as palavras. Desviou os olhos da braseira para mim, de tal maneira que eu via as chamas dançarem-lhe nos olhos. Tinha o maxilar a tremer e as pregas de carne do seu pescoço agitaram-se quando engoliu com dificuldade.

- Ajuda-me, por favor! Quero que me ajudes a...

 

- Que te ajude a quê?

 

- A continuar vivo!

 

Com a sua enorme juba de cabelo escuro, o seu físico altaneiro (ainda não atingido pela gordura) e as suas maneiras amáveis, o filósofo Díon fora uma figura notória na Alexandria da minha juventude. Tal como muitos egípcios da classe alta, Díon tinha sangue grego com um vestígio de cítio, afirmava ele, o que explicava a sua altura, e um pouco de etíope, que justificava a sua compleição escura. Era uma presença habitual nos degraus da biblioteca ligada ao Templo de Serápis, onde os filósofos se encontravam para discutir uns com os outros e instruir os seus alunos.

 

Eu era jovem, chegava a Alexandria depois de uma longa viagem e decidi permanecer na cidade durante algum tempo. Foi aí que conheci a minha futura mulher, Betesda, ou, mais precisamente, que a adquiri; ela era uma escrava muito jovem e extremamente bela, que estava à venda no grande mercado de escravos. (Também era uma mulher conflituosa, admitira de má vontade o vendedor, e foi por essa razão que eu tive dinheiro que chegasse para poder comprá-la; mas, se aquilo que ela me proporcionava eram problemas, eu apenas ansiava por mais.) E assim passei as quentes noites de Alexandria numa névoa de luxúria; durante o dia, enquanto Betesda se mantinha ocupada no meu pequeno e miserável apartamento ou ia ao mercado, eu gravitava pelos degraus da biblioteca, à procura de Díon. Não era propriamente um estudante de filosofia não tinha posses suficientes para receber uma educação formal -, mas havia entre os filósofos alexandrinos a tradição de se entreterem à conversa com homens vulgares, sem nada cobrarem por isso.

 

Agora, trinta anos mais tarde, só conseguia recordar fragmentos dessas conversas, mas lembrava-me vivamente da forma como os enigmas retóricos de Díon tinham inflamado a minha paixão juvenil pela verdade em chamas rubras-brancas, da mesma maneira que Betesda atiçara outras paixões. Nesses dias, eu tinha tudo aquilo que podia desejar, o que para um jovem não é grande coisa: uma cidade praticamente desconhecida para explorar, uma parceira de cama e um mentor. As pessoas não esquecem as cidades, nem as amantes, nem os professores da sua juventude.

 

Díon estava ligado à escola académica. O seu mentor era Antíoco de Ascalão, que poucos anos depois se tornaria o chefe da Academia; Díon era um dos principais protegidos do filósofo. Na minha ignorância, perguntara certa vez a Díon onde era a Academia; ele rira-se, explicando-me que, embora o nome tivesse tido origem num local específico - uma pequena mata próxima de Atenas, onde Platão ensinava -, não se aplicava já a um lugar nem a um edifício determinado, mas a uma disciplina, a uma escola de pensamento. A Academia transcendia as fronteiras; os reis podiam tornar-se seus patronos, mas não tinham hegemonia sobre ela. A Academia transcendia as línguas (embora, naturalmente, todas as grandes obras de filosofia, incluindo as dos Académicos, estejam escritas em Grego). A Academia incluía todos os homens, mas não pertencia a ninguém. Como poderia ser de outra maneira com uma instituição dedicada à descoberta das verdades fundamentais?

 

Como pode um homem saber aquilo que sabe? Como pode estar seguro das suas percepções, já para não falar das dos outros? Os deuses existem? Poderá a sua existência ser demonstrada? Qual é a sua forma e natureza, e como podem os homens discernir a sua vontade? Como podemos determinar o bem e o mal? Poderá uma acção boa ter um resultado mau ou uma acção má, um efeito bom?

 

Para um jovem romano de pouco mais de vinte anos, vivendo numa metrópole povoada de gente como Alexandria, estas eram perguntas estonteantes. Mas Díon tinha-as investigado, e a sua busca do saber era uma profunda fonte de inspiração para mim. Díon seria uns dez anos mais velho do que eu, mas parecia-me infinitamente sábio e mundano. Na sua presença, eu sentia-me perfeitamente incapaz e fiquei imensamente lisonjeado pelo facto de ele gastar o seu tempo e os seus esforços a explicar-me as suas ideias. Sentados nos degraus da biblioteca enquanto os seus escravos nos faziam sombra com guarda-sóis, discutíamos a diferença entre o intelecto e a sensação, classificávamos os sentidos por ordem de fiabilidade, e considerávamos as maneiras específicas como os homens utilizam a lógica, o odor, o paladar, a visão, a audição e o tacto para compreender o mundo.

 

Tinham passado trinta anos. Díon modificara-se, evidentemente. Na altura, parecera-me velho, mas agora estava realmente velho. A juba de cabelo escuro tornara-se grisalha. A sua barriga aumentara de tamanho e tinha a pele frouxa e enrugada. Mas as suas costas largas mantinham-se direitas. Pouco habituado a ter os braços tapados, puxou para cima as mangas da estola, revelando um par de antebraços musculados, escuros e gastos como as mãos. Parecia tão saudável como eu próprio e, dado o seu tamanho e a sua robustez, era provavelmente mais forte.

 

Seria difícil esquecer um homem como tu, tinha-lhe dito. Agora, quando ele me implorava que o ajudasse a manter-se vivo, quase acrescentei: Pareces um homem a quem seria difícil matar.

 

Em vez disso, depois de uma pausa considerável, mudei de assunto.

 

- Aquilo que me parece surpreendente, Mestre, é que tu te lembres de mim depois de tantos anos. Fui teu aluno de maneira totalmente informal, e o tempo que passei em Alexandria foi relativamente breve. Depois de me vir embora, ouvi dizer que o teu mentor, Antíoco, tinha sucedido a Fílon à frente da Academia; depois disso, deves ter tido uma vida muito activa: conversar com reis, receber diplomatas, aconselhar os grandes e poderosos. É curioso que te recordes de ter conhecido um jovem romano que gostava de se demorar nos degraus da biblioteca a ouvir os discursos dos mais velhos e que, ocasionalmente, se atrevia a conversar com eles.

 

- Tu eras um pouco mais do que isso disse Díon. Afirmas que serias um pobre Descobridor se não tivesses conseguido deduzir a identidade de um visitante como eu. Pois bem, que género de filósofo seria eu, se não conseguisse reconhecer e recordar um espírito afim?

 

- Lisonjeias-me, Mestre.

 

- Certamente que não. Eu nunca lisonjeio ninguém, nem sequer os reis. Nem sequer o Rei Ptolemeu! É por isso que me encontro nesta situação terrível. Sorriu debilmente, mas eu detectei nos seus olhos a expressão obsessiva de um homem oprimido pelo medo constante. Levantou-se e começou a andar nervosamente à volta do pequeno compartimento, de braços cruzados diante do peito e abanando a cabeça. Trigónion deixou-se estar sentado com as mãos entrelaçadas, observando-o com uma expressão curiosa, contentando-se em manter o silêncio.

 

- Lembras-te das coisas de que falávamos nos degraus da biblioteca, Gordiano?

 

- Nem por isso, lamento. Mas lembro-me da tua eloquência quando falavas da percepção e da verdade, do modo como os ensinamentos de Platão e dos Estóicos tinham sido clarificados, e não refutados, pela Academia...

 

- É disso que te lembras? Que estranho! As minhas memórias das nossas conversas são totalmente diferentes.

 

- Mas nós falávamos de mais alguma coisa, para além da filosofia? Díon abanou a cabeça.

 

- Não me lembro de falar de filosofia contigo, embora presuma que isso tenha acontecido. Todas aquelas questões abstractas e divagações superiores como eu devia parecer-te pomposo!

 

- Nem pensar...

 

- Não, eu lembro-me é das histórias que tu me contaste, Gordiano.

 

- Que histórias?

 

- Acerca das tuas aventuras no grande mundo! Da tua longa e tortuosa viagem de Roma até ao Egipto, da tua visita às Sete Maravilhas e das tuas façanhas em Alexandria. Que desinteressante me parecia a minha vida em comparação com a tua. Fazias-me sentir tão velho, como se a vida tivesse passado por mim! Enquanto os meus colegas e eu preguiçávamos à sombra dos guarda-sóis, discutindo o bem e o mal, tu andavas pelas ruas, deparando com o bem e o mal em carne e osso, participando no turbilhão dos dramas da vida e da morte. Quem era eu para falar da distinção entre a verdade e a falsidade, quando sentado ao meu lado nos degraus da biblioteca estava um jovem romano que tinha resolvido o enigma do gato assassinado no bairro de Rhakotis, que levou metade da população da cidade a amotinar-se?

 

- Lembras-te dessa história? disse eu, espantado.

 

- Nunca me esqueci! Ainda agora, sou capaz de fechar os olhos e te ouvir narrar o caso enquanto os filósofos e os comerciantes se reuniam à nossa volta a ouvir, espantados.

 

- A morte de um simples gato provocou um motim na cidade? Espantado, Trigónion olhava alternadamente para cada um de nós, por baixo das longas pestanas.

 

- É óbvio que nunca estiveste em Alexandria, onde os gatos são deuses disse Díon secamente. Ainda há poucos anos, ocorreu um incidente parecido. O culpado foi um romano, pelo menos foi o que se disse. Mas, dado o clima político que se tem vivido em Alexandria nos últimos tempos, qualquer pretexto serve para lançar a multidão atrás de um romano pelas ruas da cidade, seja ele um assassino de gatos, ou não.

- Parou de andar de um lado para o outro e inspirou profundamente.

 

- Achas que podíamos retirar-nos para outra divisão? Esta braseira é quente demais. O ar está a ficar abafado.

 

Posso chamar o Belbo para abrir outra janela sugeri.

 

- Não, não, talvez possamos ir lá para fora por momentos?

 

Como preferires.

 

Levei-os até ao jardim. Trigónion estremeceu e enrolou os braços à volta do corpo com aparato, dobrando as pregas da toga de uma forma pouco digna e decididamente nada romana. Díon estudou o tanque de peixes com uma expressão abstracta, depois ergueu os olhos para o céu, que escurecia, inspirou profundamente várias vezes e recomeçou a andar de um lado para o outro, acabando por se deter, sobressaltado, diante da estátua de Minerva. A deusa virgem empunhava uma lança numa das mãos e segurava um escudo com a outra. Tinha um mocho empoleirado num ombro e uma serpente enrolada aos pés. A estátua estava pintada com umas cores tão realistas, que a deusa parecia respirar e olhar para nós por baixo do visor do capacete emplumado.

 

- Magnífica murmurou. Trigónion, leal à Grande Mãe, limitou-se a lançar um olhar passageiro à deusa da sabedoria.

 

Eu aproximei-me de Díon e ergui os olhos para o rosto da estátua, que me era tão familiar.

 

- É a única mulher desta casa que nunca me responde. Mas a verdade é que também não parece ouvir o que eu digo.

 

- Deve ter custado uma pequena fortuna.

 

- Provavelmente, embora não te possa dizer quanto. Foi-me legada, tal como o resto da casa. É uma história que daria para encher um livro.

 

Díon observou o pórtico que rodeava o jardim, nitidamente impressionado.

 

- Estes azulejos multicolores por cima das portas...

 

- Obra dos artesãos de Arrécio. Foi o que me disse certa vez o meu falecido benfeitor, Lúcio Cláudio, quando eu era apenas uma visita nesta casa.

 

- E estas colunas finamente trabalhadas...

 

Nota: Ver O Enigma de Catilina, Livros Quetzal, 2000.

 

- Recuperadas de uma villa de Baias, tal como a estátua de Minerva, e trazidas para aqui com enorme dificuldade, segundo me disseram. São todas de desenho e produção grega. Lúcio Cláudio tinha um gosto excelente e recursos consideráveis.

 

- E agora tudo isto te pertence? Saíste-te bem Gordiano. Muito bem, mesmo. Quando me disseram que habitavas uma excelente casa no Palatino, perguntei a mim próprio se se trataria do mesmo homem que vivia como um vagabundo em Alexandria, ganhando apenas o necessário para comer.

 

Encolhi os ombros.

 

- Posso ter sido um vagabundo, mas sempre tive a humilde casa do meu pai aqui em Roma, no Monte Esquilino.

 

- Mas com certeza que não seria uma casa tão boa como esta. Prosperaste espantosamente. Estás a ver, avaliei-te bem quando te conheci, há já tantos anos, em Alexandria. Conheci muitos sábios, filósofos que anseiam pelo conhecimento como outros homens anseiam por vinhos finos ou roupas sumptuosas ou uma bela escrava como uma propriedade cintilante, que lhes proporcione conforto e lhes permita conquistar a estima dos outros homens. Mas tu perseguias a verdade como se tencionasses casar com ela. Tu suspiravas pela verdade, Gordiano, como se não pudesses viver sem respirar o seu perfume todas as manhãs e todas as noites. Amavas todos os seus mistérios com igual intensidade

- tanto os grandes mistérios da filosofia como o mistério prático da descoberta do assassino de um gato de Alexandria. Procurar a verdade é uma virtude. Os deuses recompensaram-te pela tua virtude.

 

Não soube que responder, por isso limitei-me a encolher os ombros. Ao longo dos trinta anos que tinham decorrido desde a última vez em que vira Díon, podia perfeitamente ter morrido umas cem vezes, porque a minha actividade me levara frequentemente a confrontar-me com o perigo, ou ter-me arruinado, como tantos outros homens. Em vez disso, tinha uma excelente casa no Palatino e entre os meus vizinhos contavam-se senadores e comerciantes abastados. A explicação que Díon apresentara para a minha sorte era tão razoável como outra qualquer, embora me parecesse que nem os filósofos sabem o que leva a Fortuna a sorrir a um homem e a desprezar outro. Vendo-o recomeçar a andar de um lado para o outro com passadas irregulares, não consegui deixar de pensar que, apesar de todos os seus anos de devoção à causa da verdade, Díon tinha a expressão alterada de um homem abandonado pela Fortuna.

 

Há algum tempo que eu não conversava calmamente com um filósofo. Já me esquecera de como eles gostavam de falar, ainda mais do que os políticos, e nem sempre centrados no mesmo assunto. Tínhamo-nos afastado muito do objectivo da visita de Díon. Estava a começar a ficar frio no jardim.

 

- Vamos voltar para dentro de casa. Se a braseira estiver quente demais, eu peço à rapariga que te traga um pouco de vinho fresco.

 

- Para mim, vinho aquecido disse Trigónion, estremecendo.

 

Sim, mais um pouco do teu excelente vinho murmurou Díon. Tenho uma certa sede.

 

- E fome? perguntei eu. O meu estômago roncava.

 

- Não! insistiu ele. Mas, ao passar pela porta, tropeçou e, quando eu estendi a mão para o amparar, senti-o tremer.

 

Quando foi a última vez que comeste? Ele abanou a cabeça.

 

- Não sei bem.

 

- Não te lembras?

 

- Ontem, atrevi-me a sair para dar um passeio, disfarçado como agora me vês, e comprei pão no mercado. Abanou a cabeça. Devia ter comprado mais, para comer esta manhã mas a verdade é que alguém podia envenená-lo enquanto eu dormia...

 

Quer dizer que não comeste absolutamente nada o dia todo?

 

- No último sítio onde fiquei alojado, os escravos tentaram envenenar-me! Nem em casa de Tiro Copónio me sinto seguro. Se é possível subornar os escravos de um homem para que matem um convidado, também é possível subornar os escravos de outro homem qualquer. Não como nada, a não ser que observe os preparativos com os meus próprios olhos, ou que tenha sido eu próprio a comprar os alimentos nos mercados, onde não seria possível adulterá-los.

 

- Há homens que têm escravos que lhes provam a comida disse eu, sabendo que essa prática era especialmente comum na Alexandria de Díon, onde monarcas rivais e consanguíneos e os respectivos representantes faziam constantes atentados secretos à vida uns dos outros.

 

- Claro que eu tinha um provador! disse Díon. Como é que julgas que escapei à tentativa de envenenamento? Mas o problema relativamente aos provadores é que eles têm de ser substituídos, e a minha estadia em Roma exauriu-me os recursos. Nem sequer tenho dinheiro para regressar a Alexandria quando o tempo aquecer e começar a estação da navegação. Voltou a tropeçar e quase caiu de encontro à braseira.

 

- Mas tu estás a cair de fome! protestei eu, agarrando-lhe no braço e conduzindo-o a uma cadeira. Insisto em que comas. Em minha casa, a comida é perfeitamente segura e a minha mulher... ia acrescentar uma avaliação extravagante dos dotes culinários de Betesda mas, tendo acabado de ser elogiado como amante da verdade, preferi dizer: A minha mulher não é má cozinheira, especialmente quando prepara algum prato ao estilo alexandrino.

 

- A tua mulher cozinha? disse Trigónion. Numa casa magnífica como esta?

 

- A propriedade é mais impressionante do que a minha bolsa. Além disso, ela gosta de cozinhar e tem uma escrava que a ajuda. Aí vem ela acrescentei, ao ver Betesda à entrada da sala.

 

Ia acrescentar qualquer coisa, à laia de apresentação, mas a sua expressão silenciou-me. Ela olhava de Díon para Trigónion, e novamente para Díon, que mal parecia ter-se apercebido da sua presença devido à fraqueza, e depois para mim, com um ar de censura que, embora vivesse com ela há trinta anos, eu não consegui compreender. O que teria eu feito desta vez?

 

- Diana disse-me que tinhas visitas disse por fim. O seu antigo sotaque egípcio tornou-se mais pronunciado e o tom de voz era ainda mais altivo do que habitualmente. Ela observou os meus visitantes com tal severidade, que Trigónion baixou nervosamente os olhos e Díon, tendo finalmente reparado nela, pestanejou e recuou como se tivesse olhado para o Sol.

 

- Aconteceu alguma coisa? disse eu, fazendo-lhe uma careta discreta com um dos lados da cara. Pensei que isso a fizesse sorrir. Estava enganado.

 

- Presumo que queiram comer qualquer coisa disse ela num tom desprovido de expressão. A maneira como retorceu os lábios teria estragado as feições de uma mulher menos bela.

 

Ah, então era isso, pensei eu ela estava à porta há mais tempo do que eu pensava e tinha-me ouvido corrigir a minha opinião acerca dos seus dotes culinários. Ainda assim, um simples arquear da sobrancelha teria sido suficiente para expressar o seu desagrado. Talvez fosse o facto de eu ter de fazer as malas para a viagem que ia empreender no dia seguinte, e ter deixado todo o trabalho a seu cargo, enquanto recebia os meus visitantes no escritório uns visitantes particularmente dúbios. Voltei a olhar para Díon, com a sua estola amarrotada e a maquilhagem desajeitada, e para Trigónion, que brincava com o cabelo descolorado e fazia agitar nervosamente as pregas da toga sob o olhar severo de Betesda, e vi como eles deviam parecer-lhe. Há muito que Betesda aceitou as personagens pouco recomendáveis que desfilam pela nossa casa, mas nunca escondeu o seu desdém pelas que lhe desagradam. Era claro que o embaixador egípcio e o seu companheiro lhe mereciam muito pouco respeito.

 

- Qualquer coisa para comer, sim, julgo que sim disse eu, erguendo a voz para captar a atenção dos visitantes, porque pareciam ambos enfeitiçados pelo olhar de Betesda. Para ti, Trigónion?

 

O jovem gallus pestanejou e conseguiu acenar com a cabeça.

 

E para ti, Mestre? insisto! Não permitirei que saias de minha casa sem comeres alguma coisa, para recuperares as forças.

 

Díon inclinou a cabeça, parecendo cansado e perplexo, tremendo de agitação, e certamente de fome. Murmurou qualquer coisa para si próprio, e por fim ergueu os olhos para mim e acenou com a cabeça.

 

- Sim falaste de um prato alexandrino?

 

O que podemos oferecer aos nossos visitantes? Betesda, estás a ouvir?

 

Ela pareceu acordar de um sonho, depois pigarreou.

 

Posso fazer um pouco de pão raso egípcio... e talvez qualquer coisa com lentilhas e carne...

 

- Oh sim, isso seria excelente disse Díon, olhando para ela com uma expressão estranha. É verdade que era filósofo, mas a fome e as saudades podem desorientar qualquer pessoa.

 

Subitamente, Diana apareceu ao lado de Betesda. Díon pareceu mais confuso do que nunca, olhando de mãe para filha. A semelhança entre ambas é de facto notória.

 

Betesda desapareceu tão abruptamente como tinha chegado. Diana deixou-se ficar mais uns momentos e pareceu imitar a censura da mãe. Quanto mais tempo vivo com uma mulher, mais misteriosa se torna essa experiência, e agora que há duas mulheres a viver em minha casa, o mistério duplicou.

 

Diana voltou-se e seguiu a mãe com os mesmos passos rápidos e altivos. Eu olhei para os meus convidados. Na verdade, compreender outro homem mesmo que ele fosse um filósofo vestindo uma estola ou um gallus que tinha abdicado por completo do sexo não era uma tarefa assim tão difícil, se comparada com a de compreender uma mulher.

 

A rapariga trouxe-nos vinho e umas crostas de pão para acalmar a fome enquanto a refeição era preparada. Vinha algum frio do jardim, por isso pedi a Belbo que alimentasse a braseira enquanto eu fechava as portadas. Olhei para fora e vi o crepúsculo descer sobre o átrio, lançando no rosto de Minerva uma sombra impenetrável.

 

Com mais algum vinho no estômago, e um pouco de pão, Díon acabou por encontrar forças suficientes para descrever os acontecimentos que o tinham conduzido àquele estado de incerteza e de medo.

 

- O melhor será começar pelo princípio suspirou Díon, na medida em que isso é possível, com uma história tão retorcida. Já conheces alguns elementos da narrativa...

 

Refresca-me a memória disse eu.

 

- Muito bem. Toda a minha vida Alexandria tem sofrido convulsões políticas. Os membros da família real ptolemaica travam uma batalha interminável uns contra os outros. Para o povo de Alexandria, isso tem implicado massacres sangrentos e impostos esmagadores. Uma vez e outra, o povo tem-se revoltado, expulsando da capital um governante após outro. Quando um Ptolemeu parte para o exílio, outro toma o seu lugar não vale a pena recitar-te a lista. O vencedor ocupa Alexandria, os seus enormes celeiros e o tesouro real. O vencido foge para Chipre e conspira com o objectivo de regressar. A sorte muda e os governantes trocam de lugar, enquanto o povo sofre. Já não sei qual era o Ptolemeu que ocupava o trono quando estiveste em Alexandria, Gordiano...

 

- Era Alexandre, julgo eu.

 

- Sim, era isso; poucos anos depois, foi expulso da cidade pela multidão irada e morreu em circunstâncias pouco claras. Nessa altura, subiu ao trono Sóter, o irmão de Alexandre. Oito anos mais tarde, Sóter morreu, sem deixar filhos legítimos. Isso foi há vinte e quatro anos.

 

Díon juntou as pontas dos dedos.

 

- O único herdeiro legítimo com o sangue ptolemaico era o sobrinho de Sóter, chamado Alexandre, como o pai. Aquando da morte de Sóter, residia aqui em Roma, sob a protecção do ditador Sula; é então que Roma entra na história. Apoiado pela diplomacia romana e pelos fundos emprestados pelos banqueiros romanos -, Alexandre II regressa ao Egipto para reclamar o trono. Para isso, teria de se casar com a sua tia, a viúva de Sóter, porque ela recusava-se a abandonar a sua posição de Rainha. E assim fez assassinando-a depois sumariamente. A Rainha era muito amada. A sua morte despoletou a ira da multidão.

 

- A mesma multidão que se amotinou por causa da morte de um gato? fungou Trigónion. Tremo ao pensar no que terão feito ao assassino de uma rainha que era objecto dos seus favores!

 

- Estás a antecipar a história disse Díon, assumindo o seu tom professoral. Alexandre II anunciou aumentos de impostos, para poder pagar aos seus apoiantes romanos. Foi a chispa que ateou o fogo. Dezanove dias depois de ter ascendido ao trono, o novo rei foi arrastado para fora do palácio imperial e assassinado pela multidão, que o desfez em pedaços.

 

São histórias como estas que os Romanos gostam de citar, para se sentirem orgulhosos da relativa civilidade da nossa república. Quando era jovem, eu admirava a paixão que os alexandrinos tinham pela política, embora nunca me tivesse habituado à sua propensão para a violência súbita e extrema. Os médicos alexandrinos vendem um cataplasma cujo nome egípcio significa ”tratamento-para-a-mordedura-humana-que-deita-sangue” e são muitos os que guardam em casa uma certa quantidade desse medicamento um facto que diz muito acerca dos alexandrinos.

 

- Chegamos agora ao princípio da crise actual a situação egípcia, como tu lhe chamaste, Gordiano. Depois do breve e inglório reinado do primo, Alexandre II, dois filhos ilegítimos de Sóter reclamaram o seu direito ao trono.

 

- Homens corajosos! observou Trigónion com sarcasmo.

 

- Um dos filhos ilegítimos apoderou-se de Chipre. O outro, do Egipto, onde reina há vinte anos provando que um homem pode manter-se num trono sem possuir uma única virtude real. O seu nome completo em Grego, Díon inspirou como um orador é Ptolomaios Theos Philopator Philadelphos Neos Dionysos.

 

- Ptolemeu, Deus: Aquele que ama o Pai, Aquele que ama o Irmão, o Novo Dionísio traduzi eu.

 

Díon enrolou o lábio.

 

- Em Alexandria, tratamo-lo por Ptolemeu Auletes o Tocador de Flauta.

 

- O Flautistal riu-se Trigónion.

 

- Sim, Rei Ptolemeu, o Flautista disse Díon sombriamente cujo único talento conhecido é a sua habilidade para a flauta, que adora tocar dia e noite, esteja sóbrio ou embriagado. Ensaia coros no palácio real e toca o acompanhamento. Estreia as suas próprias composições em jantares diplomáticos. Organiza concursos, onde compete com músicos vulgares. O que fez o Egipto para merecer semelhante Rei? Ele condensa e exagera as mais vis qualidades da sua decrépita linhagem é indolente, vaidoso, amante do luxo, licencioso, preguiçoso...

 

- Devia ser um gallus e não um rei riu-se Trigónion. Díon olhou para ele de esguelha.

 

- Sinto-me tentado a concordar contigo.

 

Lembro-me de uma coisa que Cícero afirmou sobre ele num discurso disse eu. ”Quase toda a gente concorda com a afirmação de que o homem que neste momento ocupa o trono do Egipto não é um Rei, nem pela sua linhagem, nem pelas suas atitudes.” E há quem diga que o reinado do Flautista é ilegítimo e sempre foi, porque existe um testamento, feito pelo seu infeliz predecessor.

 

Ah, sim, acabas de pôr o dedo na ferida disse Díon. Pouco depois da morte de Alexandre II às mãos da multidão, e logo desde o começo do reinado do Rei Ptolemeu, começou a circular um boato segundo o qual Alexandre II teria deixado um testamento, legando todo o Egipto ao Senado e ao povo de Roma.

 

Trigónion ergueu as sobrancelhas.

 

- Que prémio extraordinário! Os celeiros! A casa do tesouro! Os crocodilos! Mas com certeza ninguém acredita numa história dessas! Uma generosidade assim é absurda!

 

Díon suspirou, exasperado.

 

- Isso mostra a tua ignorância, tanto de política, como de História, gallus. Por muito absurda que seja, tal ideia tem precedentes. Átalo de Pérgamo legou o seu reinado a Roma há mais de setenta anos; ele tornou-se uma província do império, e ainda hoje fornece ao povo desta cidade cereais subsidiados pelo Estado. Há quarenta anos a esta parte, Ápion deixou Cirene a Roma; Ápion era um Ptolemeu e Cirene já fez parte do Egipto. E, há menos de vinte anos, o último Rei da Bitínia legou-a a Roma em testamento.

 

- Mas o que pode levar um Rei a fazer uma coisa dessas? perguntou Trigónion.

 

- Salvar o seu país do banho de sangue que acompanha qualquer sucessão disputada; irritar os seus presumíveis herdeiros; proteger o seu povo de ser conquistado por reinos rivais, ainda mais opressivos do que Roma; aceitar a submissão à maré da expansão romana. Díon suspirou. Durante a minha vida, Roma obteve Pérgamo, Cirene e a Bitínia por herança, o Ponto e a Síria por conquista. Há dois anos, tomou Chipre sem uma escaramuça; o irmão do Rei Ptolemeu suicidou-se, Roma chegou primeiro que o Oriente. De todos os reinados resultantes do império de Alexandre, o Grande-, um só permanece ainda: o Egipto.

 

- E agora, voltam a circular boatos acerca de um testamento de Alexandre II, legando o Egipto a Roma disse eu. O Rei Ptolemeu não deve dormir descansado.

 

Trigónion acenou gravemente com a cabeça.

 

- Não gostaria de ser o escravo encarregado de lhe mudar a roupa da cama.

 

- Grosseiro, grosseiro murmurou Díon com os dentes cerrados. Neste momento, Roma domina o Oriente. Isto é um facto que ninguém nega. Mas o povo do Egipto exige um governante que resista a esse domínio. O nosso país já era mais antigo do que a imaginação é capaz de conceber antes de Alexandre, o Grande, ter fundado Alexandria. A beleza e o saber já floresciam no reinado que ele estabeleceu quando Rómulo e Remo ainda mamavam do leite da loba. Nós não precisamos dos métodos romanos nem da governação romana para nada. Mas, em vez de se opor firmemente à dominação Romana, o Rei Ptolemeu treme de medo e faz todas as concessões que lhe exigem. O povo de Alexandria exige que ele recupere o Chipre e volte a integrar esse território no seu reinado e ele recebe na sua corte o funcionário enviado por Roma para saquear a ilha. Para acalmar os boatos sobre o alegado testamento, oferece um ”presente” de trinta e cinco milhões de denários a César e a Pompeu, para César subornar o Senado Romano e Pompeu pagar às suas tropas. Essa conta é paga pelo povo do Egipto, sob a forma de um aumento dos impostos. Os nossos impostos vão directamente para os bolsos dos senadores e dos soldados Romanos é como se fôssemos uma província romana! E o que recebe o Rei Ptolemeu em troca? Um tímido reconhecimento pelo Senado romano da sua legitimidade como Rei e uma placa colocada no Monte Capitolino, com uma inscrição em honra de Ptolomaios Theos Philopator Philadelphos Neos Dionysos, ”Amigo e Aliado do Povo Romano”. Ser amigo e aliado é uma coisa excelente mas, para pagar esse privilégio, ele sangra o seu povo até à medula com impostos. A ira do povo acabou por levar Ptolemeu a fugir da cidade, temendo pela sua vida. Fugiu para Roma, onde Pompeu o instalou numa enorme villa, cheia de escravos domésticos ao seu serviço.

 

- Por trinta e cinco milhões de denários, era de esperar esse género de tratamento real! disse Trigónion.

 

Díon franziu o sobrolho.

 

Passa o tempo a estudar flauta e a escrever cartas ao Senado, suplicando que voltem a colocá-lo no trono, contra a vontade do povo egípcio. Mas é tarde de mais para isso. A sua filha Berenice já foi nomeada Rainha do Egipto.

 

- Uma mulher? disse Trigónion, que parecia genuinamente intrigado.

 

A decisão não foi minha apressou-se Díon a responder. Se os filósofos têm influência em Alexandria, o mesmo acontece com os astrólogos. Foram os estudiosos das estrelas que declararam que chegara a altura de o Egipto ser governado por uma mulher da linhagem ptolemaica.

 

- Parece-me que julgas o Rei Ptolemeu com severidade excessiva, Mestre disse eu cautelosamente. Toda a sua vida ele viu um reinado após outro ser engolido pelo imperialismo romano, umas vezes pela guerra, outras pela política. A sua posição sempre foi precária. Ele deve saber que só se manteve no trono durante tanto tempo porque os Romanos não conseguem decidir qual deles ficará com o saque quando o Egipto for tomado. Sei alguma coisa sobre estes assuntos, Mestre. Um homem não pode viver em Roma e ignorar por completo aquilo que se passa no Fórum. Durante o reinado de Ptolemeu, o Senado fez várias tentativas de agir com base no alegado testamento de Alexandre II e reclamar o Egipto. Só as altercações no interior do Senado evitaram que essas tentativas fossem levadas para diante. Lembro-me de que, durante o consulado de Cícero, César e Pompeu tentaram constituir um corpo governativo que supervisionasse a tomada do Egipto. Cícero fez abortar essa legislação com um dos seus discursos brilhantes afirmando, literalmente, que César e Pompeu acabariam por se tornar reis. Por isso, César e Pompeu decidiram extorquir dinheiro directamente ao Rei Ptolemeu.

 

Agitado, Díon começou a falar, mas eu ergui a mão.

 

- Ouve-me até ao fim, Mestre. Se Ptolemeu se inclina perante os desejos romanos a fim de preservar o poder, mantendo assim os Romanos à distância, mesmo que pague esse privilégio com prata, como podes criticá-lo por isso? Até agora, de uma maneira ou de outra, ele impediu que os Romanos entrassem em Alexandria e tomassem o palácio imperial. Quanto a mim, isso é uma prova de que o Rei Ptolemeu possui mais talentos diplomáticos do que aqueles que tu estás disposto a atribuir-lhe.

 

- Ele inclina-se demasiado diante dos Romanos teimou Díon. Que importância tem que não nos conquistem oficialmente, se usam o Rei Ptolemeu como cobrador de impostos, sugando-nos o sangue da vida?

 

-Talvez, mas parece-me detectar aí uma contradição, Mestre. Por que resistes à governação romana, se desprezas assim tanto os teus próprios governantes?

 

Díon suspirou.

 

- Porque, em última análise, os Ptolemeus governam o Egipto por vontade do povo. Quando governam mal, o povo revolta-se e expulsa-os. Quando governam toleravelmente, o povo tolera-os. Este sistema pode não ter a perfeição da república ideal de Platão, mas satisfaz o povo do Egipto há centenas de anos. Mas, se o Egipto se tornar uma província de Roma, sujeito à autoridade de um governador romano, o povo não será mais do que um vassalo de Roma, e deixaremos de ter qualquer controlo sobre o nosso destino. Seremos obrigados a combater em guerras que não escolhemos. Seremos obrigados a respeitar leis que nos terão sido impostas por um Senado de romanos abastados, que vivem demasiadamente longe de Alexandria para poderem ouvir as queixas do seu povo. Passaremos a ser mais um posto avançado do império romano, vendo a nossa riqueza transformar-se em saque para os Romanos. As nossas estátuas, as nossas carpetes e os nossos quadros passarão a decorar as casas dos ricos de Roma; os nossos cereais encherão o estômago da turba romana, e podes ter a certeza de que o que quer que recebamos em troca será injusto. O Egipto é uma nação grande e livre; não estamos dispostos a tornar-nos lacaios de Roma. Díon inspirou profundamente. Uma lágrima brilhou nos seus olhos, e a gravidade da sua expressão foi estranhamente acentuada pela cosmética feminina que cobria o seu rosto descolorido e cheio de rugas. O absurdo do fato não podia disfarçar a profundidade da sua comoção.

 

- Mas tudo isto é académico, se me perdoam o trocadilho disse Trigónion suavemente, mas com um brilho travesso nos olhos. Se o anterior Rei, Alexandre II, deixou de facto um testamento em que legava o Egipto a Roma...

 

Díon explodiu.

 

- No Egipto, ninguém acredita na validade do chamado testamento, porque não há em Roma ninguém que seja capaz de o apresentar! O testamento de Alexandre II é uma ficção, uma fraude, um pretexto para o Senado romano continuar a imiscuir-se nos assuntos egípcios, um dispositivo para fazer com que os governantes do Egipto se arrojem aos seus pés. ”Podes ser tu a governar neste momento”, dizem eles, ”mas não serás o governante legítimo sem a nossa aprovação, e nunca passarás de um impostor, porque o Egipto foi-nos legado pelo nosso fantoche, Alexandre II, e nós podemos decidir exercer a nossa hegemonia a qualquer momento.” Acenam com um pedaço de pergaminho imaginário e chamam-lhe testamento. O Rei Ptolemeu foi um louco por ceder a essa mentira. ”Amigo e Aliado”, pois não! A placa do Capitólio devia dizer ”Flautista e Fantoche do Povo Romano”.

 

- Mas vocês substituíram o fantoche disse eu.

 

- O Flautista saiu do palco apupado por todos! exclamou Trigónion. Díon cerrou os dentes.

 

- A crise à volta do trono do Egipto pode ser matéria de diversão para ti, gallus, mas garanto-te que, para o povo de Egipto, não o é. Ultimamente, os diplomatas e os mercadores romanos de Alexandria evitam sair à rua, com medo de serem despedaçados pela multidão. Há agitadores que fazem discursos contra a ganância romana, e até os meus colegas filósofos esquecem os seus ensinamentos para se envolverem em discussões acesas a respeito da ameaça romana. Foi por isso que eu vim a Roma, à frente de uma delegação de cem Alexandrinos: para exigir ao Senado romano que pare de se imiscuir nos assuntos egípcios e solicitar o seu reconhecimento da Rainha Berenice.

 

- Detecto aí uma contradição, Mestre disse eu suavemente. Solicitar a aprovação do Senado para o vosso novo monarca implica, em si mesmo, que o Senado tem o direito de se imiscuir nos vossos assuntos.

 

Díon pigarreou.

 

- Em filosofia, procuramos o ideal. Mas eu aprendi, para meu amargo esclarecimento, que em política procuramos aquilo que funciona. Foi por isso que vim a Roma, à cabeça de uma delegação de cem homens. Não era possível, pensámos nós, que tantas vozes distintas fossem ignoradas, mesmo por aqueles senadores pomposos. E é aqui que esta farsa desprezível se transforma em tragédia!

 

Levou as mãos ao rosto e, subitamente, começou a chorar, tão copiosamente que o próprio Trigónion se espantou. Na verdade, o jovem gallus pareceu profundamente comovido pelas lágrimas do velho filósofo, mordendo os lábios com compaixão, mexendo no cabelo descolorado e esfregando as mãos em sinal de desconforto. Ouvi dizer que os galli, afastados para sempre do círculo das paixões terrenas, são dados a transportes súbitos de extrema e inexplicável emoção.

 

Díon demorou uns momentos a recompor-se. O facto de um filósofo com a sua estatura ter perdido o autocontrole, ainda que de forma breve, mostrava a profundidade do seu desespero.

 

- Foi assim: acostámos a Neápolis no Outono, mesmo no final da época de navegação. Eu tinha amigos na cidade, membros da Academia que nos ofereceram alojamento. Nessa noite, homens armados com punhais e mocas entraram ruidosamente nas casas onde estávamos alojados. Deitaram abaixo a mobília, pegaram fogo aos cortinados, esmagaram estatuetas preciosas. Nós acordámos subitamente, aturdidos, incapazes de nos defendermos. Houve ossos partidos e sangue derramado, mas ninguém morreu e os assaltantes fugiram. O ataque lançou o terror entre alguns membros do nosso grupo, que partiram para Alexandria no dia seguinte.

 

Díon cerrou os maxilares.

 

- Os ataques foram bem organizados e antecipadamente planeados. Se eu tenho provas da cumplicidade do Rei Ptolemeu? Não, não tenho. Mas também não precisamos de ver o Sol para deduzirmos a sua presença do recorte de uma sombra. Não tenho nenhuma dúvida de que os ataques dessa noite em Neápolis foram planeados pelo Rei Ptolemeu. Ele sabia que nós vínhamos pôr em causa o seu direito ao trono. Os seus esbirros estavam à nossa espera.

 

- Depois disso, mudámo-nos para residências mais seguras, em Putéolos, para voltarmos a reunir-nos e planearmos a nossa estratégia de abordagem ao Senado. Mantivemo-nos juntos e montámos guarda durante a noite, mas cometemos o erro de pensar que podíamos andar pelo Fórum da cidade durante o dia sem problemas. Certa tarde, um grupo de quinze homens, encabeçado por um dos meus colegas da Academia, Onclépion, foi comprar provisões para a viagem até Roma. Foram rodeados por um bando de miúdos saídos não se sabe de onde, que começaram a apedrejá-los. Os miúdos gritavam maldições. Quando os transeuntes paravam para lhes perguntar por quê, eles diziam-lhes que os alexandrinos tinham difamado a honra de Pompeu e das suas tropas com calúnias torpes. Alguns membros do grupo de Onclépion, no simples intuito de se protegerem, começaram a empurrar os miúdos e tentaram afastá-los, apedrejando-os também. Subitamente, um dos rapazes começou a gritar, agarrado à cabeça, e caiu no pó, suspeito de que se tratou de um colapso fingido, porque disseram-me que o corpo nunca foi encontrado. A multidão que se tinha reunido ficou frenética e, dentro de pouco tempo, uma turba de homens e mulheres adultos juntou-se aos rapazes, apedrejando os alexandrinos, que se encontraram rodeados de três lados e encurralados contra um muro. Alguma vez assististe a um apedrejamento, Gordiano? Díon estremeceu. Ao seu lado, o jovem gallus arrepiou-se, num movimento de empatia. Nesse dia, morreram treze homens, apedrejados ou pisados. Só Onclépion e o seu escravo conseguiram escapar. Onclépion içou o escravo até ao cimo do muro e o escravo conseguiu puxá-lo atrás de si. Mas Onclépion ficou cego de um olho e o escravo perdeu vários dentes.

 

Isso foi o atentado em Putéolos. Nessa noite, desertaram da delegação mais alguns homens, de maneira que só restavam sessenta dos cem originais. Pareceu-me que seria melhor dirigirmo-nos imediatamente para Roma, antes que ocorresse mais algum incidente. A viagem não foi fácil. Os bois que tínhamos alugado para nos puxarem as carroças caíram sobre as patas dianteiras à saída de Cápua e morreram com uma bílis verde a escorrer-lhes da boca envenenados, sem dúvida nenhuma, já que morreram todos no período de uma hora. Mais deserções nos elementos da delegação.

 

A meio caminho de Roma, parámos para passar a noite na Via Ápia, na propriedade de um conhecido meu, Palas. Trata-se de uma casa rústica, no meio de uns bosques, que ele usa para a caça ao javali, simples e sem luxos, mas com espaço para uma quantidade significativa de visitantes. Palas estava ausente, numa das suas villas no norte de Roma, mas tinha mandado dizer aos escravos que nos recebessem. Para nos acomodarem a todos, eles dispuseram as nossas camas ao lado umas das outras, bloqueando os corredores. Isso foi quase desastroso.

 

A meio da noite, fui acordado por um grito de Onclépion. A princípio, pensei que ele tivesse gritado de dor, por causa do olho cego.

 

Depois, cheirou-me a fumo. Só pela vontade dos deuses é que ninguém morreu queimado nessa noite, porque as portas tinham sido bloqueadas do exterior com carretas, do tipo das que os escravos usam para transportar medas de feno. O edifício ficou rapidamente cheio de fumo. Por fim, conseguimos abrir uma das portas. A carreta que a bloqueava estava cheia de pedras! Não sei como, escapámos todos para os bosques, onde ficámos a ver a casa ser consumida pelas chamas. Nunca na minha vida tive tanto medo como nessa noite, enquanto esperava que os homens do Rei Ptolemeu caíssem sobre nós a qualquer momento, vindos dos bosques, e nos obrigassem a escolher entre sermos retalhados até à morte ou fugirmos para dentro da casa em chamas. Mas o ataque não chegou a dar-se. Por que havia o Rei Ptolemeu de incomodar-se a montar um ataque em forma, quando uma mão-cheia de esbirros seus podiam pegar fogo a uma casa, tendo assim oportunidade de matar toda a gente ao mesmo tempo? Especialmente se contassem com a ajuda de alguém de dentro.

 

- Então achas que Ptolemeu tinha agentes entre os membros da delegação?

 

- Desde o princípio! Oh sim. Não tenho dúvida nenhuma disso, por muito que me envergonhe de o dizer. De outro modo, como haviam os homens de saber que casas deviam atacar em Neápolis? Ou em que altura o grupo de Onclépion tinha ido ao mercado de Putéolos, para lançar os miúdos sobre eles? Como é que alguém envenenou a água dos bois naquela manhã, em Cápua, sem ninguém se aperceber? O Rei Ptolemeu tem governado o Egipto durante todos estes anos por meio de subornos, da traição e do terror. Os seus esbirros sabem bem como utilizar os fracos e silenciar o fortes.

 

Na manhã seguinte à destruição da casa de Palas, convoquei uma reunião da delegação junto a um ribeiro, nos bosques, e pus os escravos de Palas de vigia, para nos avisarem de algum ataque que eu ainda receava que pudesse ocorrer. Esperava algumas deserções, mas fiquei chocado com o reduzido número dos que ainda estavam decididos a progredir até Roma. Só quinze! Até Onclépion se juntou às fileiras daqueles que decidiram regressar nessa manhã. Eu disse-lhes que ficariam retidos em Putéolos ou em Neápolis, por causa do Inverno, que não encontrariam navios que os transportassem, porque a época da navegação tinha terminado. Mas eles não se deixaram dissuadir. Quando o Rei Ptolemeu percebesse que tinham voltado costas a Roma e tinham desistido de se dirigir ao Senado, suspenderia os ataques contra eles foi o que eles pensaram, e nenhum dos meus argumentos os faria mudar de opinião. Onclépion chegou mesmo a envolver-me num simulacro de debate sobre a questão. Fiquei espantado com a maneira espalhafatosa como ele disfarçou a sua cobardia com argumentos sofísticos. Ainda mais espantoso foi o facto de, terminada a discussão, cinco dos homens que tinham estado do meu lado nessa manhã, terem declarado que a eloquência de Onclépion os tinha convencido a juntarem-se aos desertores!

 

Dos cem homens que tinham vindo de Alexandria para se confrontarem com o Senado, armados com uma recta indignação e seguros do favor dos deuses para uma causa justa, só restavam dez. Esfarrapados e acompanhados apenas pelos nossos escravos pessoais, metemo-nos ao caminho até Roma. Não fizemos uma entrada gloriosa! Passámos furtivamente pelas portas da cidade, como ladrões, na esperança de que ninguém reparasse em nós. Dispersámos pela cidade, alojando-nos em casa de amigos e conhecidos; foram muitos os que se recusaram a abrir-nos as suas portas, ao saberem das tribulações que tínhamos imposto aos nossos anfitriões em Neápolis e Putéolos, e da destruição da casa de Palas! Entretanto, solicitámos uma audiência ao Senado mas o Senado respondeu-nos com o silêncio!

 

Voltou-se para a braseira e contemplou as chamas.

 

- Que Inverno! Nenhum Inverno em Alexandria foi jamais frio como este! Como é que os Romanos suportam este tempo? À noite, tapo-me com cobertores, mas continuo cheio de arrepios. Que infelicidade! E os assassinos...

 

Começou a tremer e não conseguia parar.

 

- Queres que peça a um escravo para te trazer um cobertor? disse eu.

 

- Não, não, não é do frio. Pôs os braços à volta do corpo, e por fim conseguiu inspirar profundamente e parou de tremer. Durante aqueles dias terríveis que passámos em Neápolis e em Putéolos e pelo caminho, eu não conseguia deixar de pensar numa só coisa: Quando chegarmos a Roma, dizia a mim próprio, quando chegarmos a Roma...

 

Mas, estás a ver, havia uma falácia no meu raciocínio. Quando chegarmos a Roma e então? Terei dito a mim próprio: quando chegarmos a Roma, seremos apenas dez? Terei alguma vez pensado que o Senado nos ignoraria, recusando-se a ouvir-me? Ou que continuaria a haver traições, que me levariam a perder a confiança nos homens em quem mais confiava ao sair de Alexandria? Ou que seríamos assassinados, um após outro, até restar apenas uma mão-cheia que eram, pelo próprio facto de terem sobrevivido, os traidores e instrumentos do Rei Ptolemeu? Compreendes o que me aconteceu, Gordiano? Ergueu as mãos num gesto de súplica, e eu vi no seu rosto toda a extensão do seu desespero. Saí de Alexandria cheio de preocupações, mas também cheio de esperança. Agora...

 

- Assassínios, disseste tu. Aqui em Roma?

 

- Sim. Pelo menos três, desde que chegámos. Estávamos todos alojados em casas diferentes, sob o tecto de homens em quem julgávamos poder confiar. Eu temia outro ataque em grande escala, compreendes?, até me ter apercebido de que Roma é Roma, não é Neápolis nem Putéolos. Nem mesmo o Rei Ptolemeu se atreveria a montar um ataque maciço ou a provocar um tumulto à sombra do Senado. Os homens que governam Roma toleram este género de crimes flagrantes à distância, mas não na sua presença. Nenhum rei estrangeiro seria autorizado a agitar as massas ou a provocar incêndios, ou a praticar uma guerra aberta no interior de Roma.

 

- Tens razão. Os Senadores reservam esses privilégios para si próprios.

 

- Por isso, o Rei mudou de táctica. Em vez de tentar matar-nos a todos de uma vez só, resolveu assassinar-nos um por um.

 

- Por que meios?

 

- Discretamente. Veneno. Sufocação. Ataques com punhais.

 

- Com a cumplicidade dos anfitriões? Díon fez uma pausa.

 

- Talvez. Ou talvez não. Por vezes, é possível subornar os escravos ou exercer chantagem sobre eles. Mas os senhores também podem ser subornados ou chantageados, especialmente quando a pressão tem origem no tipo de homens que são aliados do Rei Ptolemeu.

 

- Homens como Pompeu? Ele acenou com a cabeça.

 

- E eu suspeito de que há romanos muito respeitáveis talvez mesmo senadores que não se importam de cometer um ou dois assassínios para conquistar os favores de Pompeu ou pagar alguma dívida que tenham para com ele.

 

- Tem cuidado, Díon. Até agora, só acusaste o teu Rei de estar por trás desta matança. Agora, estás a implicar um homem que por acaso é o general mais amado de Roma, e muito possivelmente o futuro ditador.

 

- Pois eu digo-te que são esses os homens que estão por trás dos assassínios. O Rei Ptolemeu já nem sequer está em Roma. Retirou-se para Éfeso, onde vai passar o Inverno, deixando tudo nas mãos de Pompeu. Por que não? Pompeu tem tanto a ganhar como Ptolemeu com o facto de o Rei manter o seu trono, por isso prosseguiu os ataques contra a delegação. Desde que chegámos a Roma, os seus esbirros têm-nos destruído um por um.

 

Eu abanei a cabeça.

 

- Admitiste que não tens provas dessas alegações contra o Rei Ptolemeu, Díon. Tens alguma prova daquilo que dizes contra Pompeu?

 

Ele olhou para mim e manteve o silêncio durante muito tempo.

 

- Há uns dias, alguém tentou envenenar-me em casa de Lúcio Luceio. Queres uma prova disso? O meu escravo morreu de uma forma horrível, contorcendo-se e arquejando no chão, momentos depois de ter provado uma taça de sopa que me foi servida no meu quarto, à noite!

 

Sim, mas...

 

- E o meu anfitrião, Lúcio Luceio, apesar dos seus conhecimentos de filosofia, apesar do desdém que exibe pelo Rei Ptolemeu, é amigo de Pompeu.

 

Conheces a origem do veneno?

 

- Nesse dia, Lúcio tinha recebido a visita de um certo Públio Asício. Um jovem belo, vi-o por acaso, quando ele ia a sair, e perguntei a Luceio como se chamava. Nessa noite, o meu escravo foi envenenado. Na manhã seguinte, depois de ter fugido de casa de Luceio, fiz indagações sobre o seu visitante. Dizem que este Públio Asício é um jovem de moral pouco rígida, que gosta de poesia e de vinho, e orbita à roda dos políticos sem objectivos definidos, disposto a fazer seja o que for para conquistar os favores de quem quer que possa fazer progredir a sua carreira.

 

Suspirei.

 

- Acabas de descrever uma geração inteira de jovens romanos, Mestre. Muitos deles serão capazes de cometer assassínios, incluindo, possivelmente, esse Públio Asício. Mas a simples proximidade da cena de um crime não é...

 

- Também se diz que Asício está em dívida para com Pompeu, porque o general lhe fez uns empréstimos generosos.

 

-Ainda assim...

 

- Estás a ver, não tens resposta para isso, Gordiano. A cadeia vai até Pompeu, e dele até ao Rei Ptolemeu.

 

- O teu anfitrião, Luceio, confrontaste-o com as tuas suspeitas?

 

- Com o meu provador a contorcer-se no chão! Insisti em que Luceio fosse pessoalmente testemunhar a atrocidade. Exigi que descobrisse como é que a sopa tinha sido envenenada.

 

- O que respondeu ele?

 

- Fingiu-se chocado, evidentemente. Disse-me que interrogaria pessoalmente cada um dos escravos de sua casa, torturando-os, se necessário fosse. Talvez o tenha feito, ou talvez não. Eu parti na manhã seguinte, ansioso por me distanciar daquela casa. Disse a Luceio que ficaria alojado em casa de Tito Copónio, mas ele não fez qualquer esforço para me contactar.

 

Trigónion, que estava silencioso há algum tempo, pigarreou.

 

- Tendo escapado com vida de casa desse homem, talvez tivesse sido mais sensato não dizeres a Luceio onde te dirigias. O gallus fez uma careta, e parecia estar novamente com disposição de arranjar sarilhos, mas o que ele dizia era razoável.

 

- Queres dizer que devo comportar-me como um fugitivo ou como um criminoso? perguntou Díon. Esgueirando-me de sombra em sombra, na esperança de que ninguém me veja, rezando para que o mundo se esqueça da minha existência? Já visto este disfarce absurdo para poder circular durante o dia não será isso vergonha suficiente? Recuso-me a desaparecer por completo. Fazê-lo seria proporcionar ao Rei Ptolemeu uma vitória incondicional. Não compreendes? Eu sou o único que resta da delegação de cem homens que veio falar em nome do povo de Alexandria e da sua Rainha. Se permitir que o medo me torne invisível e mudo, então será como se nunca tivesse vindo a Roma. Será como se estivesse morto!

 

Com isso, Díon voltou a estremecer e recomeçou a chorar. Eu vi-o tentar conter as lágrimas e lutar para recuperar a compostura. Durante os últimos meses, tinha sofrido muito e assistido a tragédias indescritíveis e, apesar de todos esses sofrimentos, apenas mostrava amargura e vergonha. Eu estava espantado com a sua perseverança.

 

- Mestre disse eu o que queres de mim? Eu não posso obrigar o Senado a ouvir as tuas exigências. Não posso forçar Pompeu a retirar o seu apoio ao Rei Ptolemeu. Não posso ressuscitar os mortos nem reparar as traições de que foste objecto.

 

Esperei pela resposta de Díon, mas ele ainda não se tinha recomposto, por isso prossegui.

 

- Talvez queiras que eu desenterre a verdade, para que se faça justiça. Geralmente, é para isso que os homens me procuram. Mas, pelo que vejo, tu já conheces a verdade. Não sei bem que vantagens poderás retirar dela. É isso que a verdade tem de bizarro, o facto de a desejarmos ardentemente, embora ela seja, a maioria das vezes, inútil. Se estás a pensar apresentar queixa contra o Rei Ptolemeu por assassínio, não estou certo de que os tribunais romanos tenham jurisdição sobre um monarca estrangeiro aliado de Roma; mas estou certo de que nada poderá ser feito sem a intervenção do Senado, e nós sabemos que não podes confiar nos seus membros. Se estás a pensar em apresentar queixa contra Pompeu, aconselho-te a que penses duas vezes. Pompeu tem inimigos, é certo, mas nenhum deles está disposto a atacá-lo abertamente em tribunal, por muito irrecusáveis que sejam as provas. Pompeu é demasiadamente forte.

 

Franzi a testa.

 

- Talvez seja contra esse Públio Asício que queres apresentar queixa, por tentativa de envenenamento. Se ele convenceu os escravos de Luceio a fazê-lo, talvez consigas alguma coisa, desde que Luceio não seja o fantoche de Pompeu que tu suspeitas que é, e esteja disposto a permitir que os seus escravos testemunhem contra Asício. Podia ser um julgamento útil. Esse Públio Asício não deve ser assim tão importante, porque eu nunca ouvi falar dele, o que significa que pode ser vulnerável. Um julgamento contra ele chamaria a atenção para a tua causa e suscitaria simpatia. Ainda assim...

 

- Não, Gordiano disse Díon. O que eu quero não é um julgamento. Achas que eu posso ter alguma esperança de que um tribunal romano me faça justiça? Vim ter contigo apenas para tentar salvar a vida, para poder prosseguir a minha missão.

 

Mordi o lábio.

 

- Mestre, não posso oferecer-te alojamento sob o meu tecto. Por um lado, não posso garantir a tua segurança. Embora confie nos meus escravos domésticos, esta casa dificilmente seria segura contra assassinos tão determinados como parecem ser os teus inimigos. Além disso, poria em perigo a minha família. Tenho mulher, Mestre, e uma filha jovem...

 

- Não, Gordiano, não estou a pedir-te para passar uma única noite na tua esplêndida casa. Aquilo de que eu preciso é da tua ajuda para decidir em quem posso e em quem não posso confiar. Dizem que tu tens maneiras de descobrir a verdade, que tens faro para isso, como outros homens têm faro para outras coisas. Dizes que muitas vezes a verdade é inútil, mas nesta altura pode salvar-me. Posso confiar no meu novo anfitrião, Tito Copónio? Conheci-o em Alexandria. E abastado, culto, estuda Filosofia mas poderei confiar-lhe a minha vida? Virá a atraiçoar-me? Será outro dos instrumentos de Pompeu? Tu deves ter maneira de descobrir essas coisas.

 

- Talvez disse eu cautelosamente -, mas a tarefa é mais complicada do que possas pensar. Se tivesses vindo ter comigo para eu descobrir um anel roubado, ou tentar perceber se um comerciante rico tinha, ou não, assassinado a mulher, ou procurar a origem de uma carta ameaçadora... Isso são mistérios simples, relativamente seguros. Mas fazer o tipo de perguntas que a tua exigência me levaria a fazer àqueles que conhecem as respostas atrairia quase de certeza a atenção de homens poderosos...

 

- Referes-te a Pompeu.

 

- Sim, talvez até do próprio Pompeu. Tamborilei nervosamente no queixo. Não gostaria que pensasses que sou um cobarde, Mestre, que receio mexer-me com medo de ofender homens poderosos. Em anos passados, atrevi-me a desafiar alguns leões quando a causa o exigia. Sula, o Ditador, foi um deles, quando procurei a verdade escondida por trás do assassínio de Sexto Róscio. Ou Marco Crasso, que queria mandar matar todos os escravos de uma casa. E mesmo Cícero, quando o poder o tornou temerário, no ano do seu consulado. Felizmente, até agora, nunca me atravessei no caminho de Pompeu. Não desejo fazê-lo. À medida que vai envelhecendo, tornando-se presumivelmente mais sensato, um homem vai sendo mais cauteloso.

 

- Então não queres ajudar-me? O desespero presente na sua voz fez-me sentir o ferrão da vergonha.

 

Mestre, não posso. Mesmo que estivesse disposto a fazê-lo, ser-me-ia impossível, pelo menos por agora, porque vou fazer uma viagem longa. Parto de madrugada. A minha mulher tem estado todo o dia ocupada a fazer-me as malas... Fiz uma pausa, surpreendido com o tom vazio das minhas palavras. Estava a dizer a verdade, e há muito tempo que esta viagem estava planeada. Por que razão sentia que estava a inventar desculpas?

 

- Então não podes ajudar-me disse Díon, olhando fixamente para o chão.

 

- Se fosse uma viagem menos importante comecei, e encolhi os ombros. Mas vou visitar o meu filho Meto. Ele combate sob o comando de César, na Gália. Há meses que não o vejo. Neste momento, está alojado na Ilíria, no quartel de Inverno de César. Não é perto, mas é consideravelmente mais perto do que a Gália, e talvez não fique por lá muito tempo. Não posso perder a oportunidade de o ver.

 

- Compreendo disse Díon.

 

Noutras circunstâncias, recomendar-te-ia que recorresses ao meu filho mais velho, Eco. É duas vezes mais inteligente do que eu era mas ele vai comigo. Estaremos ambos fora pelo menos até ao fim do mês, talvez mais. Sabes como as viagens de Inverno são incertas... Uma vez mais, as palavras pareciam-me vazias. Mexi-me na cadeira, pouco à-vontade, e subitamente a sala pareceu-me muito quente. Claro que, depois da viagem, isto é, quando regressar a Roma...

 

Díon fixou em mim um olhar que me fez arrepiar os pêlos da nuca. Só uma vez eu tinha observado um olhar vítreo como o seu, nos olhos de um morto, e por momentos fiquei tão enervado, que me senti incapaz de falar. Pigarreei.

 

- Quando regressar a Roma, não me esquecerei de mandar um mensageiro a casa de Tito Copónio...

 

Díon baixou os olhos e suspirou.

 

- Vamos, gallus, temos de nos ir embora. Estivemos a perder o nosso tempo.

 

- Não, não o perdemos, se este cheiro é do que eu penso que é disse Trigónion alegremente, como se não tivesse reparado no que acabava de se passar entre Díon e eu. Momentos depois, uma das raparigas passou pelo corredor transportando um tabuleiro de comida, seguida por outras duas, com pequenas mesas dobráveis.

 

Retirámo-nos para a sala de jantar, anexa àquela, onde cada um de nós se reclinou num canapé. As mesas dobráveis foram montadas à nossa frente. Betesda apareceu, com Diana atrás, mas não se juntaram a nós. Eram elas que traziam o primeiro prato, e fizeram questão de o servir, depositando as primeiras porções de lentilhas com carne nos pratos dos meus convidados, depois no meu, e observando-nos em seguida, enquanto comíamos. Sob o escrutínio de ambas, o filósofo, o gallus e eu acenámos com a cabeça e fizemos ruídos de aprovação. Satisfeitas, Betesda e Diana retiraram-se, deixando o serviço a cargo das jovens escravas.

 

Por muito infeliz e desesperado que se sentisse, Díon era também um homem faminto. Engoliu grandes colheradas de comida e pediu mais à rapariga. Ao seu lado, Trigónion comia ainda com maior satisfação e uma espantosa falta de educação, utilizando o polegar para empurrar a comida para dentro da colher e metendo os dedos na boca. Diz-se que, impedidos de usufruir dos êxtases do sexo, os galli são reputados glutões.

 

A noite de Inverno desceu sobre Roma, fria, clara e silenciosa.

 

Depois de terem comido, os meus convidados apressaram-se a partir. A narração da história tinha esgotado Díon. Ter o estômago cheio tornara-o sonolento. Estava pronto para se ir deitar cedo. Picado por uma pontada de culpa, eu estive prestes a arrepender-me de lhe ter recusado hospitalidade e a oferecer-lhe onde dormir, quanto mais não fosse naquela noite; mas, com umas frases curtas e secas, Díon deixou perfeitamente claro que tencionava regressar a casa de Tito Copónio. Como podia querer-lhe mal por ser severo comigo? Ele tinha vindo pedir ajuda a um velho conhecimento e partia de mãos vazias. Os homens desesperados mesmo que sejam filósofos não aceitam a rejeição com facilidade.

 

Insisti com Díon para que Belbo o acompanhasse até casa. Era o mínimo que podia fazer. Trigónion escondeu o cabelo comprido dentro do chapéu e ajustou a toga. Díon tapou a cabeça com a manta; voltaram a transformar-se em impostores da masculinidade e da feminilidade romanas. A coberto da noite, partiram como tinham chegado.

 

Tendo-me despedido dos meus convidados, confrontei-me com a tarefa de acabar de fazer os preparativos para a viagem à Ilíria, onde ia encontrar-me com Meto. Betesda já se tinha encarregado da maior parte, mas há certas coisas que só podem ser feitas pela pessoa que vai viajar. No Inverno, os dias são curtos, proporcionando-nos menos luz para viajar; eu planeara partir de manhãzinha, por isso esperava deitar -me cedo, mas os preparativos obrigaram-me a ficar acordado até à meia-noite. Menos mal; quando finalmente me meti na cama, não consegui dormir, pensando em Díon e na situação em que se encontrava. Estendi a mão para tocar no ombro de Betesda, mas ela afastou-se de mim, irritada com qualquer coisa.

 

Enquanto eu ponderava a estranha visita, ocorreu-me que havia algumas coisas que me tinha esquecido de perguntar. Alguém tinha recomendado a Díon que viesse falar comigo. Quem? O que fazia ele na companhia do jovem gallus? Pareciam como o óleo e a água, mas a verdade é que Díon confiava suficientemente em Trigónion para sair à rua disfarçado na sua companhia.

 

Ah, bem, pensei ensonado, estas perguntas podiam esperar até ao meu regresso da Ilíria, altura em que voltaria a encontrar-me com Díon. Mas, logo que este pensamento me atravessou a mente, lembrei-me da expressão que tinha visto nos olhos do filósofo a expressão de um homem que já tinha morrido. Tive um sobressalto e, subitamente, encontrei-me perfeitamente desperto.

 

Virei-me para o lado e estendi o braço para Betesda. Ela suspirou ruidosamente e afastou-me. Eu pronunciei docemente o seu nome, mas ela fingiu estar a dormir. O que teria eu feito? Com que se teria ela ofendido? Um raio de luar incidiu sobre a nossa cama, iluminando-lhe o cabelo. Ela tinha-o enxaguado com hena naquele dia, para lhe dar brilho e cobrir os cabelos brancos. O cheiro era familiar, reconfortante, erótico. Ela podia ter-me ajudado a adormecer, pensei, mas parecia tão disposta a reconfortar-me como eu me dispusera a ajudar Díon. Olhei para a massa dos seus cabelos, uma floresta impenetrável, compacta e escura. Sacudi-me e voltei-me e, por fim, rolei para fora da cama e pus-me de pé. Tinha vestido uma túnica comprida, para me manter aquecido. Meti os pés nos sapatos e estendi o braço para a capa de lã.

 

Já no átrio, mergulhado na sombra sob o olhar de Minerva, ergui os olhos para o firmamento, onde tremeluziam as estrelas. O ar estava frio e limpo. Estudei as constelações e, no intuito de fatigar a mente, tentei recordar-me dos seus nomes, tanto em Latim como em Grego, que tinha aprendido quando era jovem, em Alexandria: a Ursa Maior, a que Homero chamava a Carroça e a que outros chamam os Sete Bois puxando o Arado; a Ursa Menor, a que alguns chamam Cauda de Cão; Capricórnio, que alguns dizem ser a cauda de um peixe...

 

Continuava sem sono. Precisava de andar um pouco. Umas voltas à fonte, no átrio, não seriam certamente suficientes para esgotar a minha inquietação. Dirigi-me à porta de casa e destranquei-a. Atravessei a soleira e pus o pé na rua de pavimento homogéneo.

 

À noite, o Palatino é provavelmente o bairro mais seguro de Roma. Na minha infância, era tão misturado como qualquer outro bairro da cidade; aqui viviam, lado-a-lado, ricos e pobres, patrícios e plebeus.

 

Depois, iniciou-se a grande expansão do império romano, e algumas famílias tornaram-se, não apenas abastadas, mas fenomenalmente ricas; o Palatino, dada a sua proximidade do Fórum e a sua distância dos ares menos higiénicos do Tibre e dos vales apertados, transformou-se no bairro de eleição para essas pessoas. Com o passar dos anos, os edifícios altos de arrendamento e as habitações familiares apertadas foram sendo deitados abaixo um após outro, substituídos por grandes casas, separadas aqui e ali por tiras de relva e pequenos jardins. Ainda há habitações humildes por entre as mansões do Palatino, e ocupantes que estão longe de ser abastados (eu sou um deles) mas, de uma forma geral, o bairro transformou-se num enclave dos ricos e poderosos. Eu vivo no lado sul, mesmo por cima da Casa das Vestais e do Fórum. Num círculo com uma circunferência não muito grande à volta de minha casa pouco mais do que o voo de uma seta -, conto entre os meus vizinhos Crasso, o homem mais rico de Roma, e Cícero, o meu antigo patrono, que em Setembro passado fez um triunfante regresso do seu exílio político e tem estado ocupado a reconstruir a casa que uma turba irada destruiu há dois anos.

 

Estes homens têm guarda-costas muitos guarda-costas, que não são apenas brutos, mas gladiadores bem treinados e impõem a ordem, pelo menos na sua vizinhança mais próxima. Os bandos errantes de bêbedos e desordeiros que aterrorizam a Subura à noite sabem que é preferível não levarem a sua turbulência até ao Palatino. Os violadores e os pequenos ladrões praticam os seus crimes noutros sítios, em presas mais vulneráveis. Por isso, depois de escurecer, as ruas do Palatino ficam silenciosas e quase desertas. Um homem pode dar um passeio revigorante pela rua numa noite fria de Inverno, à luz branca da Lua, embrenhado nos seus pensamentos, sem temer pela vida.

 

Apesar disso, quando ouvi o som de vozes de bêbedos que se aproximavam, pareceu-me mais prudente esconder-me até eles terem passado. Encostei-me a um muro, abrigado na sombra produzida pelo ramo de um teixo. Encontrava-me diante de um venerável edifício de três andares, na extremidade da minha rua. Era uma construção de qualidade excepcional, pertencente aos Clódios, uma antiga e distinta família de patrícios. Tinha resistido às mudanças introduzidas no Palatino, e continuava dividido em lojas no andar de baixo e apartamentos por cima. O andar do meio estava todo arrendado a Marco Célio, o jovem que me tinha envolvido, uns anos antes, no combate de galos que Cícero mantivera com Catilina. Era a sua voz, juntamente com outra, que eu ouvia aproximar-se, vindas da extremidade leste da rua.

 

Mantive-me escondido na sombra. Nada tinha a temer de Célio, mas não estava com disposição para conversas, especialmente com homens embriagados. Enquanto ele e o amigo se aproximavam, querenando pela rua acima, comecei por distinguir as sombras de ambos, recortadas à sua frente pelo luar, como espectros araneiformes e alongados. Caminhavam com os braços à roda dos ombros um do outro, em diagonais sucessivas, rindo e conversando aos gritos e em sussurros. Não era a primeira vez que eu via Marco Célio regressar a casa naquele estado. Célio era um homem extraordinariamente belo com pouco mais de trinta anos, que fazia parte da classe de jovens romanos de que Díon falara naquela tarde, quando descrevera Públio Asício, o homem que ele suspeitava que tentara envenená-lo: jovens encantadores e de palavra fácil, pertencentes a boas famílias mas com um futuro incerto, conhecidos pela sua total ausência de escrúpulos, inteligentes e cultos, com gosto pela bebida e pela poesia escandalosa, afáveis, insinuantes, e que não podiam, em circunstância alguma, ser dignos de confiança. Célio e o amigo regressavam, muito provavelmente, de uma festa nocturna numa casa conhecida das redondezas. A única surpresa residia no facto de não trazerem consigo uma ou duas jovens, a não ser, evidentemente, que planeassem entreter-se um ao outro durante o resto da noite.

 

Pararam na rua, diante da entrada privada de Célio. Este bateu à porta e, enquanto esperavam que o escravo viesse abri-la, chegaram-me aos ouvidos algumas palavras da conversa. Quando ouvi Célio pronunciar o nome ”Asício”, tive um sobressalto. Provavelmente, pensei, é imaginação minha, estou só ajuntar um suspiro e um assobio; estivera a pensar na descrição que Díon fizera de Públio Asício, por isso tinha o seu nome na cabeça. Mas depois voltei a ouvir:

 

- Asício disse Célio, seu imbecil, desta vez quase te afundaste outra vez! Duas asneiras seguidas!

 

- Eu? exclamou o outro homem. Não conseguia vê-lo bem por causa da escuridão mas, tal como Célio, parecia ser alto e de ombros largos. As palavras saíam-lhe enroladas, umas gritadas, outras murmuradas, por isso eu apenas consegui captar alguns fragmentos do que ele dizia: Não fui eu que... não me disseste o que eu tinha de fazer... e depois, encontrar... já!... e o olhar dele... oh, vai para o Hades, Célio, tu e esse miserável egípcio...

 

A porta raspou no chão e abriu-se. Célio e o amigo tentaram entrar ao mesmo tempo e chocaram um com o outro. Qualquer coisa caiu no chão com um ruído metálico; o luar incidiu no aço. Célio recuou, baixou-se e apanhou o punhal que tinha caído. Foi nessa altura que ergueu os olhos e me viu, oculto pela sombra, do outro lado da rua.

 

Pestanejou por causa da embriaguez, e inclinou a cabeça, tentando perceber se eu era um homem ou apenas uma sombra. Sustive a respiração. Ele dirigiu-se lentamente na minha direcção, com o punhal na mão.

 

- Em nome do Hades, o que vais fazer agora? resmungou Asício. Anda embora, Célio, está frio cá fora. Prometeste que me aquecias!

 

- Cala-te! murmurou Célio com voz rouca. Já ia a meio da rua e olhava de frente para mim.

 

- Célio, o que... está aí alguém?

 

- Cala-te, Asício!

 

A noite estava de tal maneira silenciosa, que eu achei que eles tinham de ouvir o bater do meu coração. O punhal de Célio brilhava ao luar. Ele aproximou-se e tropeçou numa pedra do pavimento. Eu encolhi-me.

 

- Sou eu, vizinho disse, por entredentes.

 

- és tu, Gordiano! Célio riu-se e baixou o punhal. Eu suspirei de alívio.

 

- Quem é? perguntou Asício, pavoneando-se por trás de Célio e metendo a mão dentro da túnica. Há problemas?

 

- Oh, provavelmente não disse Célio. À luz do luar, com um sorriso nos lábios, ele parecia um Apolo de mármore branco. Não andas à procura de problemas, pois não, vizinho?

 

Vim dar um passeio disse eu. Parto em viagem amanhã e não consigo dormir.

 

- Está frio para dar passeios, não achas? disse Asício.

 

- Não tão frio que vocês não andem na rua disse eu.

 

Asício resmungou, mas Célio deu-lhe uma palmada no ombro e riu-se.

 

- Vai para casa dormir, Gordiano! Só as pessoas que não andam a fazê-la boa passeiam a estas horas da noite. Vamos embora, Asício. São horas de eu te ir aquecer. Pôs o braço à volta dos ombros do companheiro e conduziu-o na direcção da entrada. Desapareceram dentro de casa e a porta bateu atrás deles.

 

No silêncio da noite, do outro lado da porta fechada, ouvi as vozes abafadas de ambos e o ruído dos seus passos pesados na escada. Estes sons extinguiram-se rapidamente, e a calma da rua vazia pareceu-me quase preternatural. Subitamente, o frio penetrou-me dentro da capa, fazendo-me estremecer. Regressei a minha casa com passos rápidos e cuidadosos. Todas as coisas eram de um branco suave de ostra com sombras de um preto abissal. O luar frio tinha transformado o mundo em pedra.

 

Voltei a meter-me na cama. Talvez tivesse ficado acordado durante muito tempo, a olhar fixamente para a escuridão do tecto, mas Betesda rolou na minha direcção, aconchegou-se a mim, e eu adormeci quase imediatamente.

 

Conforme tínhamos planeado, o meu filho Eco veio bater-me à porta antes do nascer do dia. Belbo trouxe os cavalos do estábulo, e partimos os três pelas ruas cinzentas e silenciosas da cidade adormecida. Tomámos a Via Flamínia e passámos pela Porta Fontinal, deixando para trás de nós os perigos e as traições da cidade, pelo menos por algum tempo.

 

A viagem decorreu sem incidentes, à excepção da travessia, breve mas sacudida pelas ondas, desde Fanum Fortunae, na extremidade da Via Flamínia, até à costa da Ilíria. No Inverno, são poucos os barqueiros que transportam passageiros para o outro lado do Mar Adriático; nesta viagem descobrimos por quê, já que só por pouco escapámos a uma borrasca súbita, que podia ter arrastado o barco, juntamente com Belbo, os cavalos, Eco e eu próprio, para o fundo do mar.

 

Antes de partirmos de Fanum Fortunae, eu insisti para que visitássemos o famoso recinto consagrado à deusa da Fortuna, e deixássemos umas moedas no seu templo.

 

- Seriam melhor empregues como gorjeta ao barqueiro murmurou Eco. Mas, depois de termos sobrevivido à travessia molhada e ventosa, foi Eco quem sugeriu que fôssemos dar graças ao templo mais próximo da deusa da Fortuna. A chuva martelada transformava o telhado de madeira num tambor. Dentro do pequeno templo rústico, o incenso subia em espirais, as moedas chocalhavam e a deusa sorria, enquanto o tremor dos meus joelhos e as náuseas do meu estômago iam gradualmente passando.

 

Já com os pés novamente em terreno sólido, a dura viagem debaixo de chuva até ao quartel de Inverno de César, ao longo da escarpada linha de costa e pelas colinas açoitadas pelo vento, pareceu-nos um passeio.

 

Depois de ele se ter tornado soldado nas legiões de Gaio Júlio César, na Gália, eu passava meses seguidos sem ver o meu filho Meto, embora conversássemos frequentemente por carta. Isto acabou por ser benéfico, de uma maneira que eu nunca poderia ter previsto.

 

As cartas de Meto chegavam-me às mãos por meio de mensageiros militares. Trata-se de um método comum para trocar todo o tipo de correspondência, uma vez que só os homens muito ricos podem permitir-se ter escravos exclusivamente dedicados à tarefa de transportar cartas, e os mensageiros militares atravessam todo o império e são mais fiáveis do que os comerciantes ou os que viajam por prazer. Acontece que as cartas enviadas do acampamento de César não eram completamente privadas, já que os mensageiros que as transportavam costumavam lê-las, para se assegurarem de que não continham informações comprometedoras. Um dos mensageiros mais fiáveis de César, impressionado com o estilo e as observações de Meto, entregou uma cópia de uma das suas cartas a um dos secretários de maior confiança de César, que achou que valia a pena mostrá-la ao próprio César, que ordenou a Meto que trocasse a tenda para onde fora enviado, com o encargo de polir armaduras recém-chegadas, pela tenda do pessoal de comando.

 

Parece que, entre a conquista da Gália e a luta pelo controlo de Roma, o grande homem ainda arranja tempo, no seu horário fortemente preenchido, para manter um diário minucioso e pormenorizado. Se outros políticos deixam as suas memórias como monumentos para a posteridade, César tenciona servir-se das suas (suspeita Meto) como instrumento eleitoral. Assim, o povo de Roma terá conhecimento dos extraordinários talentos de comando de César e dos seus triunfos na expansão da civilização romana, e acorrerá a apoiá-lo nas mesas de voto

- desde que as coisas continuem a correr como César deseja na Gália, evidentemente.

 

César tem escravos a quem dita, naturalmente Meto diz que é frequente o comandante ditar enquanto vai a cavalo de um campo para outro, para não perder tempo -, e escravos que o ajudam no cotejo e na compilação das suas notas mas, como a minha própria experiência me ensinou muitas vezes, os ricos e poderosos sabem usar os talentos dos outros homens onde quer que os encontrem. Acontece que César aprecia o estilo de prosa de Meto apesar de ele ter nascido escravo, de ter recebido apenas orientações esporádicas em Matemática e em Latim depois de eu o ter adoptado, e de não ter qualquer prática de retórica. Igualmente irónico é o facto de Meto, que optou pela carreira militar contra a minha vontade, ser agora um colaborador literário confinado a uma tenda, em vez de um legionário queimado pelo sol e açoitado pelos ventos. Presumo que teria sido difícil uma pessoa com as suas origens humildes ascender muito mais, com tantos patrícios e filhos de ricos disputando a honra e a glória dos postos mais elevados.

 

O que não significa que ele tenha deixado de se confrontar com o perigo. O próprio César corre riscos extraordinários, diz-se que um dos segredos do domínio que ele tem sobre os seus homens é o facto de enfrentar o inimigo ao seu lado e, sejam quais forem os seus deveres de todos os dias, Meto já participou em muitas batalhas. O seu papel de secretário de César, a par de muitos outros, implica apenas que, em tempos de calma, em vez de construir catapultas, de cavar trincheiras ou de fazer estradas, Meto trabalha os esboços do seu comandante. Melhor assim; Meto nunca teve muito jeito para trabalhar com as mãos ou para dobrar as costas. Mas, quando chegam os momentos de crise e é necessário enfrentar o inimigo, o meu filho poisa o estilete e pega na espada.

 

Meto tinha muitas histórias arrepiantes com que entreter o irmão e pôr em franja os nervos do seu velho pai. Emboscadas ao amanhecer, ataques à meia-noite, batalhas contra tribos de bárbaros com nomes impronunciáveis eu ouvia os pormenores e desejava poder tapar os ouvidos, enquanto corriam tumultuosamente pela minha cabeça imagens de Meto em combate corpo-a-corpo contra um gaulês corpulento e cabeludo, ou evitando uma chuva de setas, ou saltando abaixo de uma catapulta em chamas. Entretanto, observava-o com os olhos muito abertos, simultaneamente espantado, horrorizado, orgulhoso e melancólico perante o desaparecimento do rapazinho, agora substituído pelo homem. Embora tivesse apenas vinte e dois anos, contei uns quantos cabelos brancos por entre as guedelhas de caracóis escuros e despenteados, e vi-lhe o queixo coberto de uma barba por fazer. O seu discurso, especialmente na excitação da narrativa de uma batalha, estava salpicado de um calão de soldado seria realmente este o rapaz cuja prosa César achava tão admirável? Enquanto se descontraía nos seus alojamentos, Meto costumava usar o mesmo traje dia após dia, uma túnica de lã azul-escura, já muito gasta. Eu ergui uma sobrancelha ao ver aquele desmazelo, mas nada disse, nem sequer quando reparei nas numerosas manchas escuras, grandes e pequenas, que sujavam o tecido em diversos pontos. Depois apercebi-me de que estas manchas se concentravam nos pontos de junção da armadura e à volta da cota de couro. As nódoas eram manchas de sangue, feitas nos pontos onde o sangue dos outros homens tinha atravessado os arreios da batalha.

 

Meto falou-nos das montanhas que tinham atravessado e dos rios que tinham passado a vau, das aldeias gaulesas, com a sua organização peculiar e os seus cheiros específicos, do génio com que César vencia as tribos e dominava as rebeliões. (A mim parecia-me que o comportamento do comandante podia ser descrito, em grande parte, como uma série de actos de crueldade gratuita ou de traição vil mas, como é óbvio, não o disse.) Confirmou que os Gauleses eram extraordinariamente grandes, muitos deles verdadeiros gigantes.

 

- Eles acham que nós somos uma raça de anões, e fazem troça da nossa cara disse ele. Mas não se riem durante muito tempo.

 

Estava ansioso por saber notícias de Roma. Eco e eu contámos-lhe todas as bisbilhotices de que nos recordávamos, incluindo as últimas manobras relativas à situação egípcia.

 

- Pompeu e o teu amado comandante parecem ter empatado no último assalto observou Eco -, extorquindo iguais quantidades de prata ao Rei Ptolemeu em troca dos subornos ao Senado para que sorria às suas pretensões do trono do Egipto. Foi Crasso quem ficou de fora.

 

- E para que precisa Crasso do Egipto? perguntou Meto, que tinha razões pessoais para não gostar do milionário, para além da sua lealdade a César. Já é suficientemente rico.

 

- Crasso nunca será suficientemente rico para satisfazer Crasso disse eu.

 

- Se ele quiser manter um pé na corrida disse Meto, levando distraidamente a mão à espada curta e brincando com o copo terá de arrancar outro comando militar ao Senado e de obter algumas vitórias, a fim de impressionar o povo. A prata compra votos, mas só a glória compra a grandeza. Perguntei a mim próprio se estas palavras seriam do próprio Meto ou de César, cujas finanças se iam tornando mais precárias à medida que aumentava a lista das suas conquistas.

 

- Mas Pompeu pacificou o Oriente e agora César está a pacificar a Gália disse Eco. O que resta para Crasso?

 

- Terá de ir procurar mais longe disse Meto.

 

- Bem, não consigo pensar em nada mais longe do que o Egipto disse eu, e passei a narrar o que tinha ouvido a Díon na noite anterior à nossa partida de Roma. Dada a sua proximidade de César e dos seus comandantes, Meto já tinha ouvido falar dos assassínios dos enviados egípcios, mas não se apercebera da enormidade do escândalo. Parecia genuinamente chocado, e eu perguntei a mim próprio como é que uma pessoa tão habituada às carnificinas da guerra podia ainda sentir-se alarmada com simples assassínios. O pensamento deixou-me pouco à vontade, e subitamente apercebi-me da crescente distância que se estabelecera entre Meto e eu. Depois, quando descrevi as peculiares circunstâncias da visita de Díon e os absurdos disfarces dos meus visitantes o filósofo, de mulher, o gallus, de homem -, Meto desatou a rir. O seu riso encorajou-me a acrescentar novos pormenores, que o fizeram rir ainda mais. Subitamente, o queixo por barbear e as manchas de sangue desapareceram da minha vista. As histórias lancinantes e o calão de soldado ficaram esquecidos. Eu ouvi o riso do rapazinho que adoptara anos antes, e encontrei aquilo de que tinha vindo à procura.

 

Acontece que Eco e eu estivemos fora de Roma quase um mês, e só regressámos depois do Idos de Februarius. Primeiro, fomos detidos por uma tempestade de neve. Depois, eu adoeci com uma tosse. Depois, quando voltei a ficar em condições de viajar, Belbo adoeceu com a mesma coisa. Embora alguns homens pudessem zombar perante a ideia de adiar uma viagem para amimar um escravo, para mim não fazia sentido viajar por estradas secundárias e perigosas com um guarda-costas doente. Além disso, qualquer desculpa para passar mais algum tempo junto de Meto era bem-vinda.

 

Durante a viagem de regresso, foi o mesmo barqueiro intrépido que nos fez atravessar o Adriático, no mesmo barco da vez anterior. Não tive dificuldades em convencer Eco a passar por momentos pelo templo da Fortuna antes de partirmos. Felizmente para a nossa travessia, o céu estava limpo e as águas calmas.

 

De regresso a Roma, Betesda pareceu-me consideravelmente mais animada do que estava quando eu me tinha ido embora. Na verdade, as suas atenções na noite do meu regresso poderiam ter feito parar o coração de um homem mais débil. Em tempos, um mês de separação seria suficiente para elevar o nosso apetite um pelo outro a cumes de avidez; eu convencera-me de que esses dias tinham passado há muito, mas nessa noite Betesda conseguiu fazer-me sentir mais um jovem de vinte e quatro anos do que um avô barbado de cinquenta e quatro. Apesar das dores e dos maus jeitos resultantes das longas horas passadas a cavalo nos dias anteriores, na manhã seguinte acordei com excelente disposição.

 

Enquanto comíamos um pequeno-almoço de pão raso egípcio e papas de milheto com passas, Betesda pôs-me a par das últimas bisbilhotices. Eu fui beberricando um copo de vinho aquecido com mel, enquanto a ouvia contar, distraído, que o senador forreta que vivia do outro lado da rua tinha finalmente mandado retelhar a casa, e que um grupo de prostitutas etíopes pareciam ter fixado residência em casa de um viúvo rico que tem um apartamento ao cimo da rua. Quando ela passou aos assuntos do Fórum, comecei a prestar mais atenção.

 

Betesda tinha um fraquinho por Marco Célio, o nosso jovem e belo vizinho, com quem eu me tinha cruzado na noite antes da minha partida. De acordo com Betesda, Célio acabava de levar a tribunal um caso que tinha posto a cidade em ebulição.

 

- Eu fui assistir disse ela.

 

- Foste? Para assistir ao julgamento ou para ver o acusador?

 

- Ambas as coisas, evidentemente. E então? Tornou-se defensiva.

- Vivendo contigo há tanto tempo, conheço bastante bem o funcionamento dos tribunais e da lei.

 

- Sim, e Marco Célio fica excepcionalmente bem-parecido quando se anima todo com uma oratória emocionante, os olhos brilhantes, as veias salientes na testa e no pescoço...

 

Betesda parecia prestes a responder, mas pensou melhor e olhou para mim de frente.

 

- Uma acusação disse eu por fim. Contra quem?

 

- Contra um tal Béstia.

 

- Lúcio Calpúrnio Béstia? Ela acenou com a cabeça.

 

- Deves estar enganada disse eu, com a boca cheia de milheto.

 

- Não me parece. Ela tomou uma expressão distanciada.

 

- Mas Célio apoiou a candidatura do velho Béstia a pretor no Outono passado. Eram aliados políticos.

 

- Pois já não são.

 

Isto era totalmente credível, dada a fama de inconstância de Célio, tanto no amor como na política. Mesmo quando se aliava publicamente a um candidato ou a uma causa, nunca se podia ter bem a certeza das suas reais intenções.

 

- Qual foi a acusação?

 

- Suborno eleitoral.

 

- Ha! No Outono, faz campanha a favor de Béstia e na Primavera leva o homem a tribunal porque a campanha foi ilegal. Eis os políticos romanos! Abanei a cabeça. Quem o defendeu?

 

- O teu velho amigo Cícero.

 

Oh, a sério?

 

Isto acrescentava um novo matiz ao assunto. Marco Célio fizera a sua entrada na vida pública como discípulo e protegido de Cícero. Depois, durante o turbilhão da revolta de Catilína, afastara-se do seu mentor ou talvez tenha apenas fingido que o fazia, a fim de servir de espião a Cícero. Ao longo de todo esse tumultuoso episódio, o verdadeiro objecto da lealdade de Célio foi um mistério, pelo menos para mim. Depois, Célio partira de Roma e passara um ano em África, como funcionário do governo. Ao regressar, parecia ter abandonado definitivamente o campo do seu mentor, opondo-se a Cícero em tribunal e levando mesmo a melhor ao seu mestre da oratória. Mais tarde, quando o Senado exilou Cícero e os seus inimigos organizaram um tumulto e destruíram a bela casa de Cícero, no Palatino, foi o meu vizinho Marco Célio que veio bater-me à porta para me dar a notícia queixando-se de que das janelas do seu apartamento não via bem e perguntando-me se podia observar as chamas da minha varanda! Pela expressão sinistra que lhe dançava no belo rosto, era impossível dizer se Célio estava chocado ou divertido, ou talvez ambas as coisas.

 

Depois de muitas discussões políticas, o Senado autorizara Cícero a regressar do exílio, e ele voltara a Roma. A sua casa no Palatino tinha sido reconstruída. E agora, segundo Betesda, voltara a confrontar-se em tribunal com o seu antigo discípulo, Marco Célio.

 

- Bem, não me mantenhas em suspenso disse eu. Qual foi o resultado do caso?

 

- Cícero venceu disse Betesda. Béstia foi ilibado. Mas Célio afirma que o júri foi subornado e declarou que voltará a levar Béstia a tribunal.

 

Eu ri-me.

 

- É teimoso, hein! Imagino que, depois de ter derrotado Cícero em tribunal uma vez, não suporte ser derrotado pelo antigo professor. A não ser que um discurso não tenha sido suficiente para Célio difamar adequadamente Béstia.

 

- Oh, quanto a isso, parece-me que o discurso foi perfeitamente adequado.

 

Cheio de veneno?

 

- A pingar de veneno. No resumo, Célio invocou a morte da mulher de Béstia, no ano passado, e a morte da sua anterior mulher. Praticamente, acusou Béstia de as ter envenenado.

 

- Não estou a ver bem que relação haverá entre assassinar a mulher e subornar votantes.

 

-Talvez não haja nenhuma, mas quando Célio mencionou o assunto, parecia fazer todo o sentido.

 

- Destruição da credibilidade disse eu, a pedra de toque da jurisprudência romana. O acusador recorre a todos os meios para destruir a reputação do acusado, o que faz com que pareça mais provável que ele tenha cometido o crime de que é acusado. É muito mais fácil do que apresentar provas. Depois, o defensor faz a mesma coisa, mas ao contrário, acusando os acusadores de diversas abominações, a fim de destruir a sua credibilidade. É estranho pensar que houve tempos em que eu tive um certo respeito, e mesmo admiração, pelos advogados. Bem, na verdade, ouvi dizer que Béstia tinha dado cabo das duas mulheres. Ambas morreram relativamente jovens, sem terem estado doentes, e sem quaisquer marcas, por isso, as pessoas acabaram naturalmente por dizer que ele as tinha envenenado, embora até o veneno costume deixar marcas.

 

- Não teria havido grandes provas se ele tivesse feito a coisa como Marco Célio sugeriu disse Betesda.

 

- E como foi?

 

Ela encostou-se e pôs a cabeça de lado.

 

- Lembra-te de que isto foi dito em tribunal, diante de uma audiência de homens e mulheres, e não numa taberna, durante uma das suas orgias. Marco Célio é um jovem muito descarado. O seu tom de voz não era totalmente reprovador.

 

- E também é um orador descarado. Bem, desembucha. O que disse ele?

 

- De acordo com Célio, o veneno mais rápido de todos é o Acónito. Eu acenei com a cabeça. Muitos anos de investigação dos sórdidos

 

métodos do assassínio proporcionaram-me alguma familiaridade com venenos.

 

- O Acónito, também chamado Morte-de-Pantera, é retirado da planta de raiz-de-escorpião. Sim, as suas vítimas sucumbem rapidamente. Mas, quando engolem uma quantidade suficiente para produzir a morte, costuma haver reacções visíveis na vítima e provas irrefutáveis de morte provocada.

 

- Ah, mas de acordo com Célio, o veneno não foi engolido.

 

- Não estou a perceber.

 

- De acordo com Célio, se o Acónito tocar nos órgãos genitais de uma mulher, ela morrerá no prazo de um dia.

 

Ergui uma sobrancelha. Apesar de toda a minha experiência com venenos, esta informação era nova para mim, e eu não estava bem certo de acreditar nela.

 

É possível que aquilo que Célio diz seja verdade, embora eu me sinta um tanto espantado com a possibilidade de alguém ter descoberto uma coisa tão curiosa. Mas também presumo que não haja muitas coisas que Marco Célio ignore a respeito dos órgãos genitais femininos.

 

- Ha! Os olhos de Betesda faiscaram. Nem Cícero se lembrou dessa.

 

Eu voltei as palmas das mãos para cima, numa exibição de modéstia.

 

- Quer dizer que Célio acusou Béstia de ter envenenado as mulheres através... Não terminei a frase. Não me pareceu haver nenhuma maneira delicada de a completar.

 

- Ele não acusou propriamente Béstia. Tendo estabelecido as propriedades do acónito e tendo atingido um pico de frenesim, Célio apontou o dedo a Béstia e gritou: ”Juizes, não aponto o dedo da culpa aponto para o dedo culpado.”

 

Eu engasguei-me com a papa que tinha na boca.

 

- Chocante! Precisamente quando eu começava a pensar que os oradores romanos tinham degradado a sua arte ao mais baixo nível de decência e de mau gosto, aparece uma nova geração que faz recuar ainda mais esse limite. Oh, Minerva acrescentei baixinho, lançando os olhos pela janela para a estátua do jardim -, guarda-me de ter de voltar a um tribunal! ”Aponto para o dedo culpado”. Ha!

 

Betesda beberricou do seu copo de vinho com mel.

 

- Seja como for, Béstia foi ilibado, com o dedo e tudo.

 

- Presumo que Cícero tenha feito um discurso inflamado em sua defesa.

 

Ela encolheu os ombros.

 

- Não me lembro.

 

Era provável que o discurso de Cícero a tivesse impressionado mais, pensei eu, se o orador fosse tão jovem e belo como Marco Célio.

 

Portanto, a Fortuna sorriu a Lúcio Calpúrnio Béstia.

 

- Mas não às suas mulheres disse Betesda friamente. Houve nos seus olhos um brilho de qualquer coisa semelhante à ira, mas depois os seus lábios abriram-se num sorriso. Por falar do jovem Célio, ouvi outra bisbilhotice no Fórum disse ela.

 

- Também tem a ver com Célio?

 

- Não, tem a ver com o senhorio dele.

 

- Estou a ver: Em que novo escândalo se envolveu Públio Clódio?

- Clódio era o proprietário do edifício ao fundo da rua, onde Célio morava. Com trinta e poucos anos e patrício de linhagem impecável, Clódio tornara-se particularmente temido nos últimos anos como instigador de tumultos e explorador de ressentimentos populistas. Fora Clódio, na sua qualidade de orador, quem superintendera à tomada de Chipre por Roma, com o objectivo de financiar o seu esquema de distribuição gratuita de cereais ao povo de Roma. Tendo sido amigo de Cícero no passado, promovera quase sozinho o exílio de Cícero e era actualmente seu arqui-inimigo. As suas tácticas políticas eram primárias, implacáveis e violentas. Da mesma maneira que homens como Célio procuravam estender os limites da oratória nos tribunais, homens como Clódio alargavam os limites da intimidação política. Não era de surpreender que a relação entre os dois homens ultrapassasse a vulgar relação entre senhorio e arrendatário. Eles eram frequentemente aliados políticos, e também tinham uma ligação pessoal. Era sabido que Célio era o amante, ou pelo menos um dos amantes, da irmã mais velha do instigador de tumultos, a viúva Clódia.

 

- Bem, não assisti pessoalmente ao incidente, mas ouvi falar dele no mercado de peixe disse Betesda, praticamente a ronronar. Parece que Pompeu estava no Fórum, tendo vindo com a sua comitiva assistir a um julgamento que estava prestes a começar.

 

- Seria o julgamento do confederado de Pompeu, Milo, por ter infringido a paz?

 

Betesda encolheu os ombros.

 

- Era Clódio o acusador? perguntei.

 

- Sim, era isso, porque Clódio também lá estava, com uma grande comitiva, ao que parece constituída por tipos um tanto rudes.

 

Descrever os membros do conhecido bando de desordeiros de Clódio como ”rudes” era um eufemismo. Eles eram brutamontes do pior, uns contratados, outros ligados a Clódio por obrigações de vários tipos, outros ainda voluntariamente ao seu serviço para satisfazer o seu apetite pela violência.

 

Parecia irónico um homem como Clódio acusar outra pessoa de ter infringido a paz, mas o mais provável era que, neste caso, a acusação fosse justificada. O acusado, Milo, tinha o seu próprio bando de rufias, prontos para levar o tumulto às ruas, em apoio da causa política em que o seu senhor estivesse interessado naquele momento. Enquanto homens grandes como Pompeu, César e Crasso se contestavam uns aos outros nas esferas superiores das proezas financeiras e militares, lutando pelo domínio do mundo, Clódio e Milo combatiam pelo controlo das ruas de Roma. Os grandes poderes aliavam-se a estes pequenos poderes a fim de conseguirem os seus próprios objectivos, e vice-versa. De momento, era Milo quem fazia cumprir a vontade de Pompeu em Roma, por isso Pompeu era obrigado a acorrer em defesa de Milo. Por seu lado, Clódio, quer agisse em nome de César, de Crasso, ou em seu próprio nome, parecia atacar Milo apenas para atingir Pompeu. Aparentemente, Clódio estava decidido a minar as tentativas de Pompeu de controlar a famosa situação egípcia...

 

Esta cadeia de pensamentos fez-me recordar a visita de Díon, no mês anterior, e de repente senti-me inquieto.

 

- A propósito disse lembras-te daquele estranho par que veio visitar-me na véspera da minha partida para a Ilíria? Ouviste alguma coisa sobre eles ou sabes...

 

Betesda lançou-me o seu olhar de Medusa. Não consentiria que a sua história fosse interrompida.

 

Reuniu-se uma grande multidão para o julgamento de Milo, tantos que não cabiam na praça para onde estava marcado, por isso a multidão espalhou-se pelas ruas mais próximas. Quando Pompeu chegou, ouviram-se grandes aclamações entre a multidão. Sabes como as pessoas adoram Pompeu.

 

- O Conquistador do Oriente.

 

Exacto. Mas depois Clódio apareceu num ponto alto qualquer e começou a gritar para a multidão que, ao que parece, estava semeada de apoiantes seus. A maioria das pessoas estava demasiadamente afastada para perceber o que ele estava a gritar, mas sempre que ele se calava, a multidão gritava a uma só voz: ”Pompeu!” Até aqueles que estavam longe demais para conseguirem ouvir Clódio, ou sequer para o verem, ouviam gritar em uníssono o nome de Pompeu. Era como um canto lento: ”Pompeu!” Pausa. ”Pompeu!” Pausa. ”Pompeu!” Bem, aparentemente, Pompeu ouviu chamar pelo seu nome, porque dizem que arrebitou as orelhas e fez um grande sorriso, depois mudou de percurso e começou a dirigir-se para o local dos gritos, pensando que a multidão entoava cantos em seu louvor.

 

- Um político típico observei eu -, caminhando em direcção aos seus apoiantes como um bezerro se dirige à teta.

 

- Só que este leite era amargo. Quando ele se aproximou, o sorriso morreu-lhe nos lábios. Primeiro, viu Clódio, a andar de um lado para o outro no alto do peitoril, dirigindo-se à multidão e rindo à gargalhada sempre que eles gritavam: ”Pompeu!” Quando se aproximou o suficiente para ouvir o que Clódio estava a gritar, ficou da cor do fogo.

 

- E por que ficaram as faces de Pompeu em brasa?

 

- Clódio estava a fazer uma série de perguntas, como se fossem adivinhas, uma após outra, e a resposta era sempre a mesma: ”Pompeu!”

 

- E que perguntas eram?

 

- Tal como o seu amigo e locatário, Marco Célio, Clódio também é muito descarado...

 

- Por favor, mulher, deixa-te de falsas modéstias. Já te ouvi lançar aos comerciantes aldrabões, pragas que fariam corar de vergonha um homem como Clódio.

 

- Exageras, marido.

 

- Só ligeiramente. E então? Ela inclinou-se para diante.

 

- O canto era mais ou menos assim:

 

Como se chama o general que é geralmente obsceno?

 

Pompeu!

 

Quem levanta as abas dos soldados quando eles marcham em parada?

 

Pompeu!

 

Quem coça a cabeça com um dedo?

 

Pompeu!

 

Esta última pergunta era uma referência a um sinal usado pelos iniciados quando procuravam a companhia íntima de membros do seu próprio sexo, mas que deixara há muito de ser secreto; havia certos dias em que metade da clientela das termas parecia andar de um lado para o outro a coçar a cabeça só com um dedo. Estas adivinhas eram invectivas típicas do género das que eram dirigidas a qualquer político ou general. No fundo, eram piadas bastante inofensivas, que ficavam aquém da graça de Célio relativamente ao dedo culpado de Béstia. Mas a verdade é que Pompeu não estava tão habituado como outros políticos a ser o bobo do Fórum. Estava acostumado a ser obedecido sem hesitações, e não a ser insultado em público pela turba romana. Os generais dão políticos muito susceptíveis.

 

- Mas por fim disse Betesda, inclinando-se para diante e baixando a voz foi Clódio quem ficou mal. Como é que isso aconteceu?

 

Alguns homens de Milo ouviram a gritaria e vieram a correr. Passado pouco tempo, eram suficientes para afogar Clódio e o seu bando. E os cantos deles eram positivamente escandalosos.

 

Oh, provavelmente não eram assim tão escandalosos disse eu, fingindo-me indiferente e construindo ociosamente pequenas montanhas e vales com o que restava da minha papa.

 

Betesda encolheu os ombros.

 

Tens razão, na verdade não eram nada escandalosos, esses boatos já são todos conhecidos. Embora eu imagine que Clódio se tenha contorcido ao ouvi-los ser entoados por uma multidão no Fórum.

 

Que boatos eram? perguntei eu, cedendo.

 

Acerca de Clódio e da irmã mais velha. Ou meia-irmã, diga-se em abono da verdade.

 

De Clódio e Clódia? Oh, sim, já ouvi alguns murmúrios e umas quantas piadas de mau gosto a esse respeito. Não conheço pessoalmente nenhum dos irmãos, que são com certeza pessoas encantadoras, por isso não me atrevo a pôr-me a adivinhar os segredos dos seus aposentos privados.

 

Betesda fungou delicadamente.

 

Não consigo perceber por que fazem os Romanos tanto alarido acerca das relações entre um irmão e uma irmã. No Egipto, foram os deuses que deram início a esse género de uniões, que têm uma tradição antiga e sagrada.

 

Não existe tradição semelhante em Roma, posso garantir-te disse eu. O que cantava a multidão?

 

Bem, começou com uma coisa qualquer sobre Clódio se vender a outros homens quando era rapaz...

 

Sim, já ouvi contar essa história: quando a morte prematura do pai os deixou em apertos financeiros, os rapazes Clódios arrendavam o irmão mais novo, Públio, como catamita, aliás com êxito considerável. Pode ser uma mentira rancorosa, evidentemente.

 

Evidentemente. Mas o canto era mais ou menos assim: Clódio fazia de menina.

 

Quando não passava de um rapaz.

 

Agora, Clódiafez de homem

 

Com o seu brinquedo privado.

 

E continuava no mesmo tom, mas de forma mais explícita.

 

O vício grego, combinado com o vício egípcio observei. E os Orientais ainda se queixam de que os Romanos não são versáteis em matéria de sexo. Como reagiu Clódio?

 

Tentou manter os seus cantos contra Pompeu mas, quando os homens de Milo começaram a afogá-lo, desapareceu a grande velocidade, e não ia muito bem-disposto. Os cantos acabaram por se transformar numa rixa entre os bandos de Milo e de Clódio.

 

Mas não foi coisa séria, espero.

 

Pelo menos não foi suficientemente séria para perturbar o julgamento.

 

Deve ter havido apenas umas cabeças partidas. E qual foi o resultado do julgamento? Milo foi ilibado ou considerado culpado de perturbar a paz?

 

Betesda olhou para mim sem expressão e depois encolheu os ombros.

 

Não me lembro. Nem tenho a certeza se cheguei a saber.

 

Provavelmente porque isso não interessa a ninguém. Aquilo de que todos se lembram e de que hão-de continuar a falar é do escândalo de o famoso incesto de Clódio com a irmã ter sido proclamado aos gritos no Fórum. Que diferença de idades têm eles?, cinco anos? Bem, é um facto que a viúva tem fama de gostar de homens mais jovens, como o nosso vizinho Marco Célio. Pergunto a mim próprio o que teria ele pensado ao ver o alegado incesto da sua amante transformado em cançoneta da turba.

 

Na verdade, Célio e Clódia deixaram de ser amantes, e Célio já não está de muito boas relações com Clódio disse Betesda.

 

Como é possível que tu saibas semelhante coisa? Abanei a cabeça, espantado. Não te imiscuíste numa dessas festas loucas do Monte Palatino, nem andaste a conviver com esse grupinho jovem e sofisticado na minha ausência, pois não?

 

Não. Ela recostou-se no canapé com um sorriso e esticou luxuriosamente os braços por cima da cabeça. O gesto era descaradamente sensual, evocando memórias dos prazeres da noite, como que a demonstrar que, apesar da minha troça, se adequaria perfeitamente aos deboches do Monte Palatino, se não estivesse tão consciente e tão determinada a proteger o seu papel, duramente conquistado, de matrona romana respeitável.

 

Ou é o jovem Célio que te confia os segredos da sua vida amorosa sempre que te encontra por acaso na rua? disse eu.

 

Também não. Mas nós temos maneiras de partilhar aquilo que sabemos.

 

”Nós”?

 

Nós, as mulheres disse Betesda encolhendo os ombros. Era sempre vaga relativamente à sua rede de informadoras, mesmo comigo. Eu passara a minha vida a descobrir segredos, mas por vezes Betesda conseguia fazer-me sentir um amador.

 

Qual foi a causa da separação? perguntei eu. Certamente que amantes sofisticados como Clódia e Célio não se abandonam um ao outro por ninharias como a infidelidade ou uma pontinha de incesto.

 

Não, dizem que foi... Subitamente, Betesda estremeceu e franziu o sobrolho.

 

Estava novamente a arreliar-me, pensei, tentando aumentar o suspense da história.

 

Então? disse eu por fim.

 

A política, ou qualquer coisa parecida disse ela apressadamente.

Houve uma discussão entre Clódio e Célio, e depois um problema entre Célio e Clódia.

 

Estás quase a fazer um poema, como a multidão no Fórum: Clódio e Célio e Célio e Clódia. Só te falta inserir uns quantos verbos obscenos. Que género de discussão? Sobre quê?

 

Ela encolheu os ombros.

 

Sabes que eu não estou informada sobre política disse, subitamente fascinada com as unhas.

 

A não ser que se trate de alguma história interessante. Vamos, mulher, sabes mais do que estás a contar-me. Devo recordar-te que é teu dever, e mesmo tua obrigação legal, contar ao teu marido tudo aquilo que sabes? Ordeno-te que fales! Falei num tom ligeiro, como se estivesse a dizer uma piada, mas Betesda não se mostrou divertida.

 

Muito bem disse ela. Acho que teve qualquer coisa a ver com aquilo a que vocês chamam a situação egípcia. Houve uma discussão entre Célio e Clódio. O que sei eu sobre os negócios privados de homens como eles? E não será normal que uma prostituta velha como Clódia perca subitamente os seus encantos aos olhos de um jovem belo como Célio?

 

Há muito que eu tinha aprendido a suportar as alterações de humor de Betesda, como é necessário suportar as súbitas mudanças da maré em alto mar, mas nunca aprendera a compreendê-las. Havia qualquer coisa que a enervava, mas o quê? Tentei recordar-me da frase ou do assunto que a teria ofendido, mas a súbita frieza que se instalou na sala enublou-me o espírito. Decidi mudar de assunto.

 

De qualquer maneira, essas pessoas pouco me importam. Peguei no copo vazio, retorci o pulso para fazer redemoinhar as borras, e fiquei a olhar para o vórtice. Estava a pensar há bocado naquelas visitas que recebi na véspera da minha viagem.

 

Betesda olhou para mim sem expressão.

 

Foi há um mês. Deves recordar-te o jovem gallus e o velho filósofo de Alexandria, Díon. Veio pedir-me ajuda, mas eu não podia ajudá-lo, pelo menos nessa altura. Ele voltou cá enquanto eu estive fora?

 

Fiquei à espera de uma resposta mas, quando ergui os olhos, vi que Betesda estava a olhar para outro sítio.

 

Esta pergunta é bastante simples disse eu suavemente. O velho filósofo veio perguntar por mim enquanto eu estive fora?

 

Não disse ela.

 

É estranho. Pensei que o fizesse; estava tão perturbado. Preocupei-me com ele enquanto andei de viagem. Talvez tenha acabado por não precisar da minha ajuda. Ouviste contar alguma coisa sobre ele, através da tua vasta rede de espiões e informadores?

 

Ouvi disse ela.

 

O quê? Quais são as novidades?

 

Ele morreu disse Betesda. Foi assassinado, julgo eu, na casa onde estava alojado. Não sei mais nada.

 

As borras que redemoinhavam no meu copo pararam lentamente de girar, a papa que eu tinha no estômago transformou-se em pedra e a boca soube-me a cinzas.

 

Só alguns dias depois de regressar a Roma arranjei tempo para escrever a Meto. Narrei-lhe os acontecimentos que tinham ocorrido durante a minha ausência a vitória de Cícero sobre Célio no julgamento de Béstia, apesar da acusação do ”dedo culpado” (uma anedota excelente para Meto contar aos seus companheiros!), a vergonha que Pompeu sofrera a caminho do julgamento de Milo, o canto obsceno sobre Clódio e Clódia.

 

Uma vez que lhe tinha descrito com tantos pormenores a visita de Trigónion e de Díon, achei que devia contar-lhe agora o que acontecera ao filósofo. Apenas para mantê-lo informado, disse a mim próprio, enquanto começava a compor as palavras. Mas, à medida que as ia escrevendo, comecei a perceber que esta narrativa fora a principal razão que me levara a escrever a carta. A morte de Díon tinha-me deixado um incómodo sentimento de culpa, e narrar a Meto os fatídicos eventos, por muito doloroso que fosse, aliviava-me de alguma maneira a consciência, como se descrever um acontecimento pudesse mitigar o seu carácter horrível.

 

No que diz respeito à correspondência, eu não sou Meto; a minha prosa nunca suscitará a admiração do grande César. No entanto, gostaria de copiar uma parte do que escrevi ao meu filho naquele último dia de Februarius:

 

Além disso, filho, deves lembrar-te da história que te contei, acerca da visita de Díon, o filósofo que conheci em Alexandria, há já tantos anos, e do jovem gallus chamado Trigónion. Riste-te quando te descrevi os disfarces absurdos com que aqui chegaram Díon vestido de mulher e o eunuco metido numa toga, tentando fazer-se passar por romano.

 

Receio que a sequela não seja tão divertida, bem pelo contrário.

 

Aquilo que Díon temia acabou por acontecer, horas depois de ele me deixar. Nessa mesma noite, enquanto eu me preparava para partir, Díon era traiçoeiramente assassinado na casa do seu anfitrião, Tito Copónio.

 

Foi Betesda quem me contou que Díon fora assassinado, na manhã do dia seguinte ao do meu regresso a Roma. Afirmou não saber pormenores. Betesda não gostou de Díon desde o momento em que o viu e sabes como ela é a partir desse momento, foi como se ele não existisse; nem o seu apetite pela coscuvilhice se deixa entusiasmar por este assassínio. Tive de descobrir os pormenores sozinho, fazendo perguntas discretas nos sítios adequados. Não foi difícil, embora me tivesse tomado algum tempo.

 

Parece que já tinha havido uma tentativa fracassada para o envenenar. Ele próprio me falou nisso na noite em que veio visitar-me. Aparentemente, alguns escravos do seu anterior anfitrião, Lúcio Luceio, tinham sido subornados (indubitavelmente por esbirros do Rei Ptolemeu) para envenenar a comida de Díon, mas apenas conseguiram assassinar o único escravo que lhe restava, que assumira o cargo de provador. Díon fugiu da casa de Luceio para a de Copónio.

 

Foi quando estava em casa de Copónio que Díon veio visitar-me, pedindo-me ajuda. Se ao menos eu lhe tivesse proposto que passasse a noite em minha casa! Mas, nesse caso, os assassinos poderiam ter feito o seu trabalho aqui, sob o meu tecto. Quando penso em Betesda, e particularmente em Diana, tremo perante essa possibilidade.

 

Como o veneno não resultou, os inimigos de Díon recorreram a meios menos subtis. Depois de sair de minha casa, Díon regressou a casa de Copónio o mais depressa que pôde a noite já tinha caído e Díon temia andar pelas ruas, mesmo disfarçado de mulher e acompanhado por Belbo. Quanto a Trigónion, Belbo disse-me que foi até à porta de Copónio, e depois seguiu o seu caminho, talvez regressando à Casa dos Galli, que também fica aqui no Palatino, perto do templo de Cibele. Ninguém parece conhecer este gallus e ninguém sabe que relação tinha com Díon.

 

O que se segue são informações em segunda-mão, algumas em terceira-mão ou seja, no fundo, bisbilhotices -, mas julgo que são fiáveis.

 

Ao regressar a casa de Copónio, Díon fechou-se no quarto, sozinho, recusando-se a jantar. (Já tinha comido em minha casa, e estava cheio de medo de ser envenenado.) A família de Copónio deita-se cedo e, pouco depois de escurecer, estava toda a gente na cama, à excepção do escravo que tinha sido colocado à porta, do lado de dentro, para ficar de vigia durante a noite. A certa altura (antes da meia-noite, de acordo com o guarda), houve um barulho nas traseiras da casa, onde Díon estava alojado.

 

O guarda foi investigar. A porta do quarto de Díon estava trancada. O escravo chamou pelo seu nome e bateu à porta. A certa altura, bateu com tanta força, que acordou o próprio Copónio (que dormia num quarto ao lado), que foi ver o que se passava. Por fim, arrombaram a porta e descobriram Díon na cama, deitado de costas, com os olhos e a boca muito abertos e o peito cheio de feridas. Tinha sido esfaqueado até à morte na sua própria cama.

 

Havia uma janela no quarto, que dava para um pequeno pátio. As portadas da janela estavam abertas e o trinco tinha sido forçado a partir do exterior. Aparentemente, o assassino ou os assassinos treparam um muro alto, atravessaram furtivamente o pátio, entraram no quarto de Díon pela janela, assassinaram-no e voltaram a sair em silêncio.

 

O assassino ou assassinos escaparam sem serem vistos.

 

Foi um fim terrível para uma vida notável. O facto de Díon ter previsto a sua destruição e ter passado os últimos dias da sua vida numa cidade estrangeira, temendo cada sombra, lança um manto ainda mais sombrio sobre o seu destino. O facto de ter vindo pedir-me ajuda no próprio dia em que foi assassinado enche-me de agitação. Poderia eu ter evitado o que aconteceu? Quase de certeza que não, digo a mim próprio, porque os homens que queriam ver Díon morto têm recursos muito superiores àquilo que eu teria podido prever. Contudo, parece uma brincadeira cruel dos deuses terem-no trazido de volta à minha vida tantos anos depois, para o arrebatarem logo a seguir, de forma tão violenta. Vi muitas carnificinas e muito sofrimento ao longo da minha vida, mas nunca é fácil suportar estas coisas. Pelo contrário, elas tornam-se cada vez mais difíceis de compreender.

 

Todos os membros da embaixada enviada de Alexandria no Outono passado que não foram assassinados regressaram ao Egipto ou desapareceram da vista. (Segundo me disseram, os poucos que ainda permanecem em Roma declararam a sua lealdade ao Rei Ptolemeu ou foram subornados para se manterem em silêncio; alguns deles eram certamente espiões do Rei desde o princípio.) O povo de Roma devia sentir-se envergonhado com o facto de atrocidades semelhantes terem podido acontecer, não apenas em Itália, mas no próprio coração da cidade. É verdade que há quem diga que o assassínio de Díon foi um escândalo tal, que o Senado acabará por fazer alguma coisa para castigar os culpados (se não o Rei Ptolemeu, pelo menos os homens contratados por ele), quanto mais não seja por vergonha. O Senado poderá mesmo decidir repudiar o Rei e reconhecer a Rainha Berenice, que era o objecto da missão de Díon. Enquanto ele viveu, os membros do Senado nem sequer lhe permitiram a dirigir-se-lhes pessoalmente, mas é possível que, com a sua morte, Díon tenha conseguido o que pretendia: um Egipto com um governante independente.

 

Poderá haver justiça numa tragédia como a morte de Díon? Considerando o estado dos tribunais romanos e as pessoas cujos interesses estão em causa, duvido muito. Mas recuso-me a pensar excessivamente no assunto. Se tivesse aceite a incumbência de Díon de denunciar os seus inimigos, talvez sentisse alguma obrigação de levar a cabo a tarefa de entregar os seus assassinos à justiça. Felizmente, a minha rejeição da sua incumbência foi explícita. Disse-lhe que não podia ajudá-lo e dei-lhe uma boa razão. Tenho a consciência limpa. A tarefa de descobrir a lâmina que esgotou o sangue da vida de Díon, e de castigar a mão que a empunhava, não me compete.

 

O que quer que aconteça a seguir não é comigo, e sinto-me satisfeito por isso.

 

Ao ler novamente a carta, percebi que as minhas afirmações relativamente às circunstâncias da morte de Díon estavam desfiguradas por diversos erros, alguns deles de alguma monta. Mas nenhuma afirmação era mais errada do que a última, que li com um arrepio de espanto. Como podia eu ter sido tão jovial, tão presunçosamente imprevidente? Que perigoso é o mundo em que nos movemos, como homens de olhos vendados. O passado e o futuro são igualmente obscuros, e a luz do dia pode esconder tantos perigos como a paisagem da noite.

 

                       NOXIA
Passou quase um mês antes que tivesse ocasião de voltar a escrever a Meto.

 

Ao meu amado filho Meto, sob o comando de Gaio Júlio César, na Gália, do seu querido pai, em Roma, que a Fortuna esteja contigo.

 

Escrevo-te esta carta no dia 29 de Martius, um dia anormalmente quente, tendo em conta que a Primavera mal começou, abrimos todas as janelas e o Sol da tarde bate-me nos ombros e faz-me calor. Quem me dera que aqui estivesses.

 

Infelizmente, não estás. Nem estás na segurança da Ilíria, onde te vi pela última vez. Ouvi falar no Fórum da vossa súbita transferência para a Gália, pouco depois da minha visita. Dizem que César foi chamado para controlar uma revolta de uma tribo qualquer, com um nome impronunciável - nem sequer tentarei escrevê-lo. Presumo que tenhas ido com ele.

 

Tem cuidado, Meto.

 

Dadas as vossas movimentações, não tenho maneira de saber se a minha carta do mês passado te chegou às mãos, se chegará depois desta, ou se te chegará de todo mas, visto que um dos mensageiros de César (um jovem soldado que já noutras ocasiões te levou correio meu) está prestes a partir para a Gália e me disse que levará uma carta minha se eu a tiver pronta dentro de uma hora, escrevo-te muito rapidamente, apenas para te dar as notícias que puder, mesmo com o risco de te falar de acontecimentos que talvez não façam muito sentido para ti fora de contexto. (Por favor, não mostres esta carta ao teu comandante. Receio que um homem que dita as suas memórias a cavalo tivesse dificuldade em aceitar a pressa como desculpa para frases tão-pouco claras.)

 

Espero que tenhas recebido a minha última carta e que estejas informado da morte de Díon. Eu troçava daqueles que diziam que a morte de Díon era um acontecimento demasiadamente importante para passar despercebido, e que o escândalo resultaria na punição de alguns, mas parece que eles tinham razão e eu não, pelo menos até certo ponto.

 

O escândalo foi enorme. Díon era mais conhecido e apreciado do que eu imaginara ou então foi o assassínio que fez dele um mártir e o tornou maior e mais amado na morte do que fora em vida. Para um homem de quem agora se fala com tanto respeito, não há dúvida de que foi tratado com razoável mesquinhez nos últimos meses da sua vida, correndo de casa de um anfitrião relutante (e talvez traiçoeiro) para a de outro, gastando os seus recursos até ficar com a bolsa vazia. Os senadores que agora falam de Díon como de um segundo Aristóteles e choram ao ouvir mencionar o seu nome são os mesmos homens que se recusaram a permitir que Díon falasse na sua câmara ainda não há muito tempo.

 

(Recordei-me subitamente de um velho problema que Díon me propôs quando era jovem e vivia em Alexandria: será melhor ser amado em vida e desprezado depois da morte ou ser desprezado em vida e reverenciado depois da morte?)

 

E assim prossegue o debate no Senado relativamente à questão egípcia, agora alimentado por este escândalo vergonhoso. Entretanto, Públio Asício foi recentemente objecto de uma acusação de assassínio.

 

Devo dizer que não me surpreendeu ver Asício acusado do assassínio de Díon. O próprio Díon suspeitava de que este jovem estava implicado na tentativa fracassada de envenenamento em casa de Lúcio Luceio, e disse-mo quando veio visitar-me. No dia em que o provador de Díon morreu envenenado, Asício tinha ido visitar Luceio. Em si mesma, a relação é apenas circunstancial. Mas a verdade é que, depois de Díon ter saído de minha casa, e provavelmente pouco depois de ter sido esfaqueado na cama, eu me cruzei por acaso com Asício e o nosso vizinho M. C. na rua e, embora não os tenha ouvido dizer coisa alguma que fosse directamente incriminatória, as circunstâncias desse encontro me parecem, pelo menos retrospectivamente, muito suspeitas.

 

Por isso, quando ouvi falar da acusação que pendia sobre Asício, senti-me aliviado, pensando que, se ele era culpado, talvez a verdade acabasse por vir ao de cima sem que eu tivesse de me envolver no assunto. (Imagino que sentirás por vezes um alívio semelhante no teu trabalho junto de César, quando uma tarefa odiosa é inesperadamente realizada sem qualquer esforço da tua parte, como se um deus amigável tivesse decidido fazer-te um favor.)

 

Mas os deuses podem pregar-nos partidas com os seus favores.

 

Quem achas que se ofereceu para defender Asício? Sim, o melhor advogado de defesa de Roma, o nosso querido amigo Marco Cícero.

 

Quando ouvi a novidade, as minhas esperanças desvaneceram-se quase por completo. Podem acontecer muitas coisas num tribunal em que Cícero seja um dos advogados, mas raramente a emergência da verdade é uma delas. Se a justiça triunfa, isso acontece apesar do fumo e dos espelhos de Cícero, e nada tem a ver com o facto de a verdade ser ou não declarada.

 

Dizem que Cícero e Asício estavam ambos fora de Roma, na costa, quando Asício foi processado Cícero em Neápolis, Asício do outro lado da baía, na villa da sua família, em Baias. Asício mandou buscar Cícero para discutir o caso com ele, fazendo-o transportar para Baias na sua magnífica liteira. Bem, a liteira não era exactamente dele, fora emprestada a Asício pelo Rei Ptolemeu não é inacreditável?

 

(Esta cumplicidade é absolutamente condenatória! Seria de pensar que um homem acusado de assassinar o inimigo do Rei Ptolemeu ocultasse as suas relações com o Rei em vez de fazer gala delas mas, tal como muitos homens da sua geração, Asício parece não ser capaz de resistir a uma oportunidade de dar espectáculo.)

 

A liteira era uma coisa enorme, transportada por oito homens, elaboradamente decorada (comparados com as liteiras egípcias, os mais elegantes veículos romanos parecem vulgares) e acompanhada por nada menos de cem guarda-costas armados, igualmente emprestados a Asício pelo Rei Ptolemeu. (Se o Rei forneceu os guarda-costas a Asício para sua defesa pessoal, quem poderá deixar de concluir que também foi o rei que contratou Cícero para defender Asício?) Consegues imaginar Cícero e Asício discutindo o julgamento, enquanto progridem ao longo da costa em cima de uma liteira, refastelados num luxo egípcio, com cem homens armados atrás?

 

Não assisti ao julgamento; uma recaída na tosse que apanhei na Ilíria impediu-me de me aventurar até ao Fórum. Betesda foi assistir, mas imaginas que género de histórias me contou fui informado de que Asício é bastante agradável à vista, embora um pouco gasto e pálido (Betesda ouviu dizer que bebe excessivamente); que o amigo de Asício, o nosso jovem e belo vizinho M. C., não estava presente; e que Cícero foi palavroso e aborrecido como sempre.

 

E, oh, sim, que Asício foi ilibado de ter assassinado Díon.

 

Lamento agora não ter assistido ao julgamento, porque gostaria de ter visto pessoalmente que provas tinham sido apresentadas. Mas não lamento não ter assistido aos truques de prestidigitação a que Cícero terá recorrido para distrair, desorientar e por fim convencer os juizes. Não tenho necessidade de me irritar mais.

 

E assim, para o melhor e para o pior, o caso chegou ao fim. O pobre Díon continuará por vingar, mas ainda é possível que o seu legado venha a triunfar...

 

Levantei o estilete do pergaminho, distraído por uma pancada na porta. Voltei-me e vi Belbo à entrada.

 

- O mensageiro regressou, Senhor. Diz que, se queres que leve a tua carta, tens de lha entregar imediatamente.

 

Resmunguei.

 

- Manda-o entrar. Não há necessidade de o obrigares a esperar no vestíbulo. Voltei à carta.

 

Tenho de terminar abruptamente. O mensageiro de César regressou.

 

Estupidamente, gastei esta hora a contar-te bisbilhotices ouvidas no Fórum, e fiquei sem tempo para falar de coisas relacionadas com a família. Estamos todos bem. Betesda como sempre, e Diana cada dia mais parecida com a mãe (mais bela e misteriosa). Eco continua a prosperar, embora eu pense muitas vezes que preferia ter-lhe ensinado um ofício menos perigoso que o do seu pai, e a sua querida Menénia é uma mulher de inigualável paciência, especialmente no que diz respeito à educação dos gémeos, que estão incontroláveis. Imagina dois miúdos de quatro anos a discutir, a espernear e a apanhar constipações...

 

Tenho de acabar. O mensageiro entrou no escritório e está de pé à minha frente, olhando por cima do ombro para a estátua de Minerva postada no átrio cheio de sol e tamborilando impacientemente com o pé.

 

Cuida de ti, Meto!

 

Sequei o pergaminho com areia fina, depois fechei os lábios e soprei a areia com cuidado. Enrolei o pergaminho, meti-o num invólucro de pele e selei o cilindro com cera. Enquanto o entregava relutantemente ao mensageiro, pensando nas coisas que tinham ficado por dizer, observei melhor o homem. Estava vestido de soldado, coberto de tiras de pele, de lã vermelha e de aço reluzente. Tinha os maxilares rígidos e um semblante austero.

 

- Que idade tens, soldado?

 

- Vinte e dois anos,

 

Era exactamente da idade de Meto; não era de espantar que o sujeito me parecesse uma criança a brincar aos soldados. Estudei-lhe o rosto, à procura de algum sinal dos horrores a que ele já devia ter assistido na sua curta vida, mas apenas detectei a suave inocência da juventude enquadrada pelo elmo de um soldado.

 

Subitamente, a sua expressão austera suavizou-se. Ele pareceu espantado. Percebi que olhava para além de mim, para alguém que estava à porta.

 

Enquanto me voltava, ouvi Belbo soprar.

 

- Senhor, outro convidado disse-lhe que esperasse à entrada, mas ele insistiu em vir atrás de mim...

 

A princípio, tive alguma dificuldade em detectar o visitante, bloqueado como estava pelo volume de Belbo. Depois, ele tornou-se visível, e aquilo que lhe faltava em estatura era mais do que compensado pelo esplendor garrido do seu traje. Estava coberto, do pescoço para baixo, por um fato vermelho berrante e amarelo. Tinha pulseiras de prata nos pulsos, um peitoral de prata com contas de vidro pendurado ao pescoço e aros de prata nas orelhas e nos dedos. O seu rosto estava pintado de branco. Na cabeça, usava um turbante multicolor, de onde o seu cabelo descolorado caía em tranças onduladas. Da última vez que o vira, usava uma toga, em vez das vestes de um sacerdote de Cibele.

 

- Trigónion disse eu. Ele sorriu.

 

- Quer dizer que te lembras de mim?

 

- Lembro, pois. Está tudo bem disse a Belbo, que continuava por ali, hesitante, preparado para se interpor entre o gallus e eu. Belbo não teria tido qualquer dificuldade em erguer o jovem sacerdote acima da cabeça, e seria provavelmente capaz de o partir ao meio, mas mantinha-se à distância, com medo de tocar num eunuco sagrado. Trigónion avançara decididamente em direcção ao meu escritório, embora um homem com um triplo do seu tamanho lhe tivesse ordenado que não o fizesse.

 

Belbo lançou ao gallus um olhar irritado e retirou-se. Ouvi alguém pigarrear atrás de mim e, quando me voltei, vi o soldado meter a minha carta numa bolsa de couro.

 

- Vou-me embora disse ele, acenando com a cabeça na minha direcção e olhando em seguida para o eunuco com um misto de curiosidade e desagrado.

 

- Que Mercúrio te guie disse eu.

 

- E que o sangue purificador da Grande Deusa jorre de entre as suas pernas para te lavar! acrescentou Trigónion. Juntou as palmas das mãos, fazendo tilintar as pulseiras, e inclinou a cabeça. O soldado franziu a testa e apressou-se a partir, sem saber bem se tinha sido abençoado ou amaldiçoado. Ao aproximar-se da porta estreita, voltou-se de lado para evitar tocar no eunuco, mas Trigónion mudou deliberadamente de posição, de maneira que os ombros de ambos roçaram um no outro, e eu vi o soldado estremecer. Era notório o contraste entre o jovem Romano, sério e viril, com o seu traje militar, e o pequeno e risonho gallus, nascido noutro país, vestindo o seu fato sacerdotal. Que estranho, pensei, que fosse o maior e mais forte, treinado para matar e para se defender, a estremecer de medo.

 

Trigónio parecia estar a pensar a mesma coisa porque, enquanto o soldado atravessava pesadamente o corredor, o eunuco ficou a olhar para ele e soltou uma gargalhada que parecia um trinado. Mas, quando se voltou novamente para mim, o sorriso morreu-lhe rapidamente no rosto.

 

- Gordiano disse suavemente, inclinando a cabeça num gesto de saudação. Sinto-me novamente honrado por ser admitido em tua casa.

 

- Parece-me que não fui eu a decidir se queria admitir-te ou não, tendo em conta que os gigantes se afastam do teu caminho e os soldados fogem de ti em pânico.

 

Ele riu-se, mas não era um trinado como aquele com que troçara do soldado. Foi um cacarejo rouco, como os que os homens trocam quando ouvem piadas no Fórum. O gallus parecia capaz de mudar de personalidade quando queria, passando de feminino a masculino, nunca parecendo ser totalmente um ou o outro, mas qualquer coisa que não era nenhum deles.

 

- Mandaram-me vir-te buscar.

 

- Ah sim?

 

- Sim, imagina um sacerdote de Cibele, enviado como moço-de-recados. Ergueu uma sobrancelha.

 

- Enviado por quem?

 

- Por uma certa dama.

 

- E ela tem nome?

 

- Claro que tem tem muitos nomes, embora eu te aconselhe a que evites os mais escandalosos e a trates pelo nome que o pai lhe deu, a não ser que desejes levar uma bofetada. Isto é, enquanto não a conheceres melhor.

 

- E que nome é esse?

 

- Ela vive aqui, no Palatino, a curta distância. Fez um gesto na direcção da porta com um sorriso insinuante.

 

- Apesar disso, antes de ir vê-la, acho que gostaria de saber o nome dela e o que quer de mim.

 

- O que ela quer de ti está relacionado com um conhecido de ambos. Dois conhecidos de ambos, na verdade. Um vivo; outro... morto.

- Fez uma expressão recolhida, depois melancólica. Nenhuma delas parecia inteiramente genuína, como se ele tivesse trocado uma máscara por outra. Dois conhecidos de ambos repetiu. Um deles é um assassino o outro, uma vítima de assassínio. Um deles anda neste momento pelo Fórum, rindo-se com os amigos e atirando obscenidades aos seus inimigos, enquanto o outro se move pelo Hades, uma sombra por entre sombras. Talvez tenha encontrado Aristóteles e dispute com ele face-a-face, para que os mortos possam decidir qual deles sabia mais acerca dos vivos.

 

- Díon sussurrei.

 

- Sim, estou a falar de Díon e do assassino de Díon. Foi disso que vim falar contigo.

 

- Disso, de quê?

 

- É isso que a minha dama quer de ti. Ela tomou-o como coisa sua.

 

- Quem é ela? disse eu, já impaciente.

 

- Anda ver. Ela está desejosa por te conhecer. Ergueu uma sobrancelha e olhou-me lubricamente, como um proxeneta oferecendo uma prostituta.

 

- Como é que ela se chama? disse eu lentamente, procurando manter a calma.

 

Trigónion suspirou e fez rolar os olhos.

 

- Pronto, está bem. Chama-se Clódia. Fez uma pausa, viu expressão do meu rosto e desatou a rir. -Ah, vejo que já ouviste falar dela!

 

Quando íamos a sair, cruzámo-nos com Betesda e Diana no corredor.

 

- Onde vais?

 

Betesda atirou um olhar gélido de reconhecimento a Trigónion, cruzou os braços e lançou-me o seu olhar de Medusa. Como é que uma mulher como esta podia alguma vez ter sido escrava, e ainda por cima minha? Diana estava ao lado e ligeiramente atrás da mãe. Também endireitou os ombros e cruzou os braços, afivelando o mesmo olhar imperioso.

 

- Vou sair disse eu. Os braços de Betesda permaneceram cruzados. A resposta não era suficiente. O gallus talvez tenha um trabalho para mim acrescentei.

 

Ela fixou o jovem sacerdote com uma intensidade tal, que eu não me surpreenderia se o visse transformar-se em pedra. Mas ele sorriu-lhe. Pareciam insensíveis um ao outro. Trigónion não se sentia intimidado; Betesda não se deixou encantar.

 

- É melhor levares o Belbo contigo foi o seu único comentário, antes de descruzar os braços e de continuar pelo corredor fora. Diana seguiu-a, imitando os movimentos da mãe com inquietante precisão até eu me voltar e lhe fazer cócegas debaixo dos braços. Ela largou um grito de riso e correu para diante, tropeçando em Betesda. Voltaram-se ambas para olhar para mim, Diana a rir-se, Betesda com uma sobrancelha erguida e uma ligeiríssima sugestão de um sorriso nos lábios.

 

- Leva o Belbo! repetiu, antes de se voltar e continuar o seu caminho. Já percebi, pensei; ela lembra-se de que Trigónion vinha com Díon, sabe que Díon morreu e, vendo-me sair com Trigónion, tem receio de que me aconteça qualquer coisa. Que querida!

 

Saímos os três o gallus, Belbo e eu para o brilhante Sol da tarde. Dentro do meu escritório, parecera-me que a temperatura estava agradável e que o ar era doce, como o do princípio da Primavera; mas aqui na rua, o Sol tinha aquecido as pedras do pavimento e o ar era quente. Trigónion tirou um minúsculo guarda-sol amarelo de dentro das pregas do fato, abriu-o e segurou-o no alto.

 

- Se calhar, devia ter trazido o meu chapéu de abas largas disse eu, olhando de lado para o céu sem nuvens.

 

- A distância é pequena disse o gallus. Seguimos em frente durante um ou dois quarteirões e depois viramos à direita.

 

Subimos a rua e passámos pelo edifício de apartamentos onde vivia Marco Célio. As portadas das janelas de cima estavam todas fechadas, apesar do calor. Estaria a dormir, a esta hora do dia? Que vida!

 

O edifício era propriedade de Públio Clódio, o instigador de tumultos; e eu ia visitar a irmã dele. Roma era mesmo uma cidade pequena, pensei, e está mais pequena a cada ano que passa. Eu não conhecia os dois Clódios mais famosos. Eram primos afastados do meu antigo patrono, Lúcio Cláudio, mas os nossos caminhos nunca se tinham cruzado. O que me agradava. Nos últimos anos, tinha-me tornado cada vez mais selectivo, tanto em relação àqueles que decidia ajudar, como em relação aos que escolhia ofender. Por aquilo que ouvira dizer acerca deles, Clódia e Clódio pertenciam ao grupo daqueles que eu preferia simplesmente evitar.

 

Um cidadão obscuro que lamentava o roubo das pratas da família; um velho conhecido ameaçado por cartas anónimas; uma jovem esposa injustamente acusada de adultério por uma sogra vingativa na minha semi-reforma, este parecia-me ser o género de pessoas a quem eu devia ceder os meus conhecimentos. Homens que lidam com o poder em estado selvagem, que controlam vastas redes de operacionais secretos, que enviam homens armados para esmagar os seus opositores os Pompeu e os Reis Ptolemeu deste mundo esses pareciam-me ser homens que devia ter o máximo cuidado em evitar, ainda que isso implicasse passar ao lado da oportunidade de ajudar um velho amigo; ainda que isso tivesse significado voltar as costas a Díon de Alexandria.

 

Mas agora estava a caminho da casa de Clódia, supostamente para discutir uma questão relacionada com o assassínio de Díon, seguindo um sacerdote de Cibele que segurava num guarda-sol amarelo-claro pelas ruas soalheiras do Palatino. Os deuses adoram surpreender os homens com o inesperado e são famosos pela crueldade do seu regozijo.

 

A casa de Clódia estava situada na extremidade de um pequeno beco sem saída, que dava para uma rua sossegada. Tal como as casas pertencentes a grande parte das famílias patrícias, parecia velha e a face que mostrava para a rua era despretensiosa. A frontaria sem janelas estava pintada de uma suave cor amarela. A entrada era pavimentada com ladrilhos esmaltados, vermelhos e pretos. Dois ciprestes gémeos enquadravam a rústica porta de carvalho. As árvores eram muito altas; eu tinha reparado nelas por várias vezes da varanda das traseiras de minha casa, mas não sabia exactamente onde estavam localizadas. Era óbvio que, tal como a casa, também os ciprestes estavam ali há muitos anos.

 

O escravo que veio abrir a porta era um jovem corpulento com uma barba preta cuidadosamente aparada e sobrancelhas espessas, que se juntavam por cima de uns expressivos olhos castanhos. Abriu apenas metade da porta e sorriu afectadamente quando viu Trigónion. Mal olhou para mim e para Belbo.

 

- Ela saiu disse, cruzando os braços e encostando-se à armação da porta.

 

- Saiu? disse o gallus. Mas eu deixei-a agora mesmo, para ir buscar este amigo.

 

O porteiro encolheu os ombros.

 

- O que queres que eu te diga? Já sabes como ela é.

 

- Mas ela sabia que eu voltava já, disse Trigónion num tom petulante. Onde é que ela foi?

 

- Foi até ao rio.

 

- O quê, aos mercados?

 

O escravo estreitou os olhos.

 

- Claro que não. Sabes bem que ela deixou de ir aos mercados públicos. Tem medo que andem por ali os homens de Milo e comecem com cantos sobre ela. Finge que não se importa, mas sabes que ela detesta isso. O escravo arqueou a sobrancelha direita, criando um efeito curioso, uma vez que tinha as sobrancelhas juntas. Foi até à casa do Tibre. Disse que era o único sítio onde se podia estar num dia bonito como o de hoje. ”Deve estar toda a gente ao pé do rio”, disse ela. Foi ver as vistas, imagino eu, os nadadores. Um súbito revirar no canto da boca transformou-se num sorriso, quando uma mão pertencente a uma pessoa escondida atrás da porta deslizou pela abertura e abriu caminho para o traseiro do escravo. O fragmento de pulso que era visível moveu-se de forma sinuosa, como uma cobra coleante. O jovem porteiro teve uma pequena reacção às cócegas e flectiu os musculosos antebraços. Devia ter-me levado com ela suspirou -, mas eu vou conseguindo manter-me ocupado.

 

Deixou algum recado para mim? disse Trigónion, exasperado.

- Deve ter deixado!

 

De trás da porta, ouvi um riso de mulher, seguido do aparecimento de um rosto sorridente, encostado ao do corpulento porteiro.

 

Não te preocupes, ela não se esqueceu de ti, trinou a mulher. A voz tinha uma entoação culta e o cabelo cor de avelã estava extravagantemente penteado para cima, embora algumas madeixas tivessem escapado aos alfinetes e pentes. As rugas que tinha à volta dos olhos e da boca estavam sabiamente disfarçadas com maquilhagem, mas eu percebi que já não era nova. Barnabás está a arreliar-vos! Não estás, Barnabás? Malvado! Deu uma dentadinha na orelha do escravo.

 

Barnabás riu-se bruscamente e desviou-se, libertando a orelha dos dentes brancos e brilhantes da mulher e as nádegas da sua mão.

 

Desaparece, vá! disse ela, rindo-se e estalando os dedos. Embora! Eu já trato de ti. Roncou do fundo da garganta e bateu com os dentes. O escravo da porta foi-se embora.

 

- É um nome hebraico, sabiam? disse ela, voltando-se novamente para nós. Refiro-me a Barnabás. Clódia diz que significa ”consolo”. E ela deve saber! A mulher riu-se e eu percebi que o hálito dela cheirava a vinho.

 

- O que disse Clódia sobre mim? perguntou o gallus.

 

- Sobre ti, Trigónion? Hum, bem, todos nós conhecemos a origem do teu nome, não é verdade? Olhou para ele com um ar conhecedor.

 

Deixa lá! exclamou o gallus. O que disse ela antes de sair? A expressão da mulher azedou, desfazendo a ilusão da maquilhagem.

 

- Pronto, está bem. Ela disse que não aguentava estar dentro de casa nem mais um momento, e que andava há vários dias ansiosa por ir até à casa ao pé do rio; ordenou a Crisis que mandasse vir os carregadores de liteira e que emalasse algumas coisas e partiram as duas no meio de uma nuvem de poeira. Perguntou-me se eu também queria ir, mas eu disse-lhe que estava muito, muito desanimada, e precisava de consolo. Ha! Lançou uma gargalhada, exibindo uns dentes perfeitamente brancos. Por isso, como eu não quis ir, Clódia deixou-me uma mensagem para vocês, se por acaso passassem por aqui; que te dissesse para tu e os teus olhou para Belbo e para mim, indecisa, como se só agora tivesse reparado em nós, os teus amigos, ou lá o que é que eles são, seguirem a trote para o rio, ao encontro dela. Parece-te claro?

 

- Sim, obrigado disse Trigónion com secura. Voltou-se e afastou-se apressadamente, com passos tão longos quanto lho permitiam as suas curtas pernas.

 

- Cortem-lhes as bolas e verão em que pestes se transformam murmurou a mulher entredentes. Encolheu os ombros e bateu com a porta.

 

- Que mulher horrível! disse Trigónion, quando Belbo e eu o apanhámos.

 

- Mais devagar queixei-me. Quem é ela?

 

- É uma vizinha? Não é ninguém. É uma prima, ou coisa assim. Não tenho dinheiro para uma liteira, e tu? Acho que podemos ir a pé.

 

Assim fizemos. Enquanto descíamos a encosta ocidental do Palatino, passávamos pelos mercados de gado, atravessávamos a ponte e subíamos a margem ocidental do Tibre, considerei por diversas vezes a possibilidade de dizer a Trigónion que tinha mudado de ideias e queria voltar para trás. O que estava eu a fazer ali, respondendo ao apelo de uma mulher que tinha evitado até agora, para minha felicidade, a fim de discutir uma questão da qual me tinha deliberadamente distanciado? A culpa era de Cibele, pensei, enquanto seguia o sacerdote da deusa, que levava o guarda-sol decididamente erguido ao alto.

 

Ter um pedaço de terra ajardinado nas margens do Tibre é um sinal de riqueza e bom gosto. Estas propriedades são uma espécie de cruzamento de parques com jardins; os seus proprietários chamam-lhes hortos. Em geral, têm uma estrutura qualquer nuns casos, apenas um retiro rústico, com instalações para o jardineiro e alguns convidados, noutros casos, um complexo de edifícios. Os terrenos são frequentemente uma combinação de estado selvagem e cultivado, dependendo da dimensão da propriedade, das tendências do proprietário e da habilidade do jardineiro; por vezes, há zonas de ervas altas e arborizadas, intercaladas com roseirais, tanques com peixes, fontes e caminhos pavimentados de pedras, adornados com estátuas.

 

O horto de Clódia era anormalmente perto. Há cem anos a esta parte, a propriedade devia estar situada em pleno campo mas, desde essa altura, a cidade sofreu uma grande expansão. Tratava-se de uma localização invejável para uma propriedade à beira-rio, e devia pertencer à família há várias gerações.

 

A impressão de antiguidade era reforçada pelos próprios terrenos que, num dia quente e parado como aquele, tinham a aparência de um local onde o tempo há muito parara de correr. A abordagem imediata era uma viela longa e estreita, ladeada por altos arbustos de bagas, que se uniam por cima das nossas cabeças, sombreando a passagem. Este caminho em forma de túnel dava para um campo aberto de erva, que um par de cabras, que baliram à nossa passagem, mantinha cuidadosamente aparado. De frente para o prado e perpendicular ao rio, que ficava quase totalmente escondido por uma fila de árvores densas, via-se uma casa comprida e estreita com telhado vermelho e um pórtico ao longo da frontaria. O prado aberto era tão privativo como qualquer jardim murado da cidade, porque era resguardado de todos os lados por ciprestes altos e teixos majestosos.

 

- Ela não deve estar em casa, mas talvez seja melhor irmos dar uma vista de olhos disse Trigónion.

 

Atravessámos o campo e avançámos para a sombra do pórtico. Trigónion bateu à porta mais próxima, depois abriu-a, entrou, fazendo-nos sinal para que o seguíssemos. Cada uma das salas da comprida casa dava para a seguinte, e todas elas tinham uma porta que abria para o pórtico, de maneira que era possível atravessar a casa de uma ponta à outra, quer ao longo do corredor exterior, quer atravessando sucessivamente cada sala.

 

Percebi imediatamente que a casa estava vazia. Dava a sensação de ser uma casa que não fora ocupada durante todo o Inverno e que ainda não voltara a ser trazida à vida. O ar era parado e fresco, as paredes e o mobiliário esparso exalavam um cheiro ligeiramente bafiento, e todas as superfícies estavam cobertas por uma fina camada de pó.

 

Seguimos lentamente atrás de Trigónion, de sala em sala, enquanto ele ia chamando por Clódia. Em algumas das salas, os objectos estavam cobertos com panos. Noutras, os panos tinham sido retirados, ao que parecia há pouco tempo, porque ainda estavam descuidadamente amontoados no chão. Tendo adquirido uma casa mobilada no Palatino, tenho alguns conhecimentos de mobiliário. As peças que vi na casa de Clódia junto ao Tibre são do tipo de peças que atingem actualmente preços espantosos nos leilões, especialmente entre os novos-ricos do nosso império em expansão, cujas famílias obscuras não possuem estes tesouros, canapés salvos das chamas de Cartago, com as almofadas de pelúcia tão desbotadas, que quase não se vêem os padrões exóticos; armários e baús dourados com pesadas dobradiças em ferro, que já não se fazem; cadeiras dobráveis antigas, onde os Cipiões ou os irmãos Graco devem ter-se sentado.

 

Também havia quadros em todas as salas, e não eram esses murais teatrais ultimamente em voga entre os ricos, mas retratos e cenas históricas pintados em encáustico sobre madeira e enquadrados por elaboradas molduras. Tinham sido escurecidos pelo tempo e as superfícies macias estavam cobertas por uma rede de pequenas rachas. Os coleccionadores dão grande valor a estas qualidades, que só o tempo pode produzir e que não podem ser imitadas por artistas humanos. Também se viam pequenas esculturas, colocadas aqui e ali, sobre pedestais, nenhuma delas mais alta que o antebraço de um homem, a condizer com a escala reduzida das salas, e uma série de objectos rústicos adaptados ao ambiente rústico da casa, pequenas estátuas de Pa e de Sileno, de um jovem escravo a tirar um espinho do pé, de uma ninfa de madeira ajoelhada numa rocha.

 

Chegámos à extremidade da casa e saímos para o pórtico coberto. Trigónion espreitou na direcção dos bosques, do outro lado do prado, onde eu nada consegui ver.

 

- Não, não deve estar nas cozinhas, nem nos quartos dos escravos, nem no estábulo disse ele. Foi para o pé da água, evidentemente.

- Voltámos a atravessar o prado, em direcção ao bosque que ficava ao longo do rio. À sombra das árvores, deparámos com uma estátua de Minerva não era um pequeno objecto decorativo como os que havia dentro da casa, mas um bronze enorme e magnífico, colocado sobre um pedestal de mármore. A deusa olhava para a água com uma expressão de contentamento quase presumido, como se o rio fluísse com o único objectivo de criar música para os seus ouvidos, e a cidade que se estendia na margem oposta tivesse sido erigida exclusivamente para sua distracção.

 

- Extraordinário murmurei. Ao meu lado, Belbo ergueu os olhos para a estátua, com uma expressão de temor religioso.

 

- Achas? disse Trigónion. Devias ver a que ela tem na casa da cidade. Voltou-se e continuou a caminhar, cantarolando baixinho um hino a Cibele. Parecia estar cada vez mais bem-disposto, à medida que nos íamos aproximando do rio e da tenda de riscas vermelhas e brancas montada na margem.

 

Saímos de baixo das árvores e avançámos para a luz. Uma brisa suave abanava as ervas viçosas. A tenda salientava-se de forma notória no meio da erva verde-clara, do verde mais escuro do rio, para além dela, e do azul brilhante do céu, no alto. Os panos de seda fina estremeciam por acção da brisa suave. As riscas vermelhas ondulavam como cobras rastejando contra um campo de branco e depois, por efeito de uma ilusão de óptica, o padrão invertia-se e as riscas transformavam-se em cobras brancas contra um fundo vermelho.

 

Ouvimos o som de corpos a bater na água, mas a tenda e as árvores altas que a ladeavam bloqueavam a minha visão do rio.

 

- Esperem aqui disse Trigónion. Entrou na tenda. Pouco depois, meteu a cabeça pela abertura. Entra, Gordiano. Mas deixa o teu guarda-costas aí fora.

 

Quando me aproximava da abertura, fui puxado para o lado a partir do interior, por uma mão invisível. Entrei na tenda.

 

A primeira coisa de que me apercebi foi do cheiro, um perfume que não conhecia esquivo, subtil e intrigante. Logo que o cheirei, percebi que nunca mais o esqueceria.

 

A seda vermelha e branca tornava a luz do Sol mais suave, enchendo a tenda de um brilho acolhedor. Os panos que davam para o rio tinham sido enrolados para cima, deixando ver a paisagem e contornando-a como se fosse um quadro. A luz do Sol dançava na água verde, criando losangos de luz no interior da tenda, que saltitavam e dançavam nas minhas mãos e no meu rosto. Voltei a ouvir o som de corpos na água, e nessa altura vi de onde provinha, de um grupo de homens e rapazes, quinze ou mais, que se divertiam na água mesmo à frente da tenda. Alguns deles tinham pedaços de tecidos de cores brilhantes à volta dos rins, mas a maioria estava nua. Algumas gotas de água ficavam presas à sua pele lustrosa e eles brilhavam à luz do Sol como se estivessem cobertos de jóias. Quando entravam nas sombras das árvores, ficavam sarapintados, como faunos cobertos de manchas. Eram os seus movimentos na água que faziam com que os losangos de luz dançassem de forma extravagante dentro da tenda.

 

Dirigi-me ao centro da tenda, onde Trigónion esperava por mim com um sorriso radiante. Estava de pé, ao lado de um canapé alto, coberto de almofadas às riscas vermelhas e brancas, e tinha na sua a mão de uma mulher, reclinada nesse canapé. A mulher estava voltada, por isso não pude ver-lhe o rosto.

 

Antes de eu chegar ao canapé, uma figura surgiu de repente diante de mim. Parecia pouco mais velha do que uma criança, mas usava o cabelo cor de avelã puxado para o alto da cabeça e tinha vestido um fato verde comprido.

 

- Senhora! chamou ela, mantendo os olhos fixos nos meus. Senhora, chegou o teu convidado.

 

- Trá-lo cá, Crisis. A voz era quente e calma, mais profunda do que a de Trigónion, mas indubitavelmente feminina.

 

- Sim, Senhora. A jovem escrava pegou-me na mão e levou-me até junto do canapé. O cheiro do perfume acentuou-se.

 

- Não, não, Crisis disse a senhora, rindo suavemente. Não o coloques à minha frente. Está a tapar-me a vista.

 

Crisis puxou-me a mão, a brincar, e empurrou-me para um lado.

 

- Isso mesmo, Crisis. Agora vai-te embora. Tu também, Trigónion

- solta-me a mão, pequeno gallus. Vai arranjar qualquer coisa para Crisis fazer dentro de casa. Ou então vão à procura de pedras bonitas na margem do rio. Mas não deixem que um daqueles sátiros do rio vos apanhe, senão quem sabe o que pode acontecer-vos!

 

Crisis e Trigónion foram-se embora, deixando-me a sós com a mulher recostada no canapé alto.

 

- Os jovens que vês ali no rio vestidos com tangas são meus. Isto é, são meus escravos são os homens que transportam a minha liteira e que me servem de guarda-costas. Aqui no horto, deixo-os andar de tanga. Afinal, posso vê-los despidos sempre que quiser. Além disso, assim é mais fácil atrair os outros. Qualquer jovem romano que valha a pena ver despido sabe que pode vir nadar para a minha parte do Tibre sempre que quiser desde que venha nu. Descem da estrada por um pequeno caminho escondido por trás daquelas árvores e deixam as túnicas penduradas nos ramos. No pino do Verão, nas tardes mais quentes, chegam a juntar-se aqui uns cem, mergulhando, chapinhando-se uns aos outros, tomando banhos de sol nas rochas nus por decreto meu. Olha para os ombros daquele...

 

Dei por mim a olhar fixamente para uma mulher já de alguma idade tendo em conta que era cerca de cinco anos mais velha que o irmão, Públio Clódio, calculei que tivesse uns quarenta, mais ano menos ano. Era difícil dizer se parecia ter essa idade ou não. Mas, fosse qual fosse a sua idade aparente, adequava-se-lhe. A pele de Clódia era certamente mais fina do que a da maioria das mulheres de quarenta anos, cor de rosas brancas, muito cremosa e macia; talvez a luz filtrada da tenda a beneficiasse, pensei. Tinha o cabelo preto e lustroso, preso no alto da cabeça por uma magia oculta de alfinetes e pentes, num labirinto de caracóis. O modo como o cabelo lhe caía sobre a testa salientava os admiráveis ângulos dos seus malares e a linha altiva do nariz, quase, mas não inteiramente, grande demais. Os seus lábios eram de um vermelho sumptuoso, que não podia ser natural. Os seus olhos pareciam brilhar com raios de azul e amarelo, mas sobretudo verde, a cor das esmeraldas, reflectindo a luz do Sol que incidia no Tibre verde. Eu já tinha ouvido falar daqueles olhos; os olhos de Clódia eram famosos.

 

Olha como estão arrepiados! Riu-se. É espantoso como conseguem tomar banho. O rio ainda deve estar gelado nesta altura do ano, por muito quente que esteja o Sol. Vê como se lhes enruga a virilidade; é uma pena, porque normalmente isso é metade da graça do espectáculo. Mas repara que nenhum deles está a tremer. Não querem que eu os veja tremer, estes queridos rapazes, tão corajosos e tão tolos. Riu-se de novo, com uma gargalhada baixa e rouca.

 

Clódia estava reclinada no canapé, encostada a uma pilha de almofadas, com as pernas dobradas debaixo do corpo. Uma estola comprida, de seda amarelo-claro, franzida por baixo dos seios e de novo na cintura, cobria-a do pescoço para baixo. Só os braços estavam nus. Ainda assim, ninguém diria que o seu vestuário era modesto. O tecido era tão fino que se tornava transparente, de tal maneira que era difícil perceber, à luz brilhante do rio coberto de sol, que parte da luminosidade dos seus contornos provinha da seda fina e que parte se devia à carne macia por ela coberta. Eu nunca tinha visto um vestido assim. Isso deve ter-se notado na minha expressão, porque Clódia voltou a rir-se, e desta vez não foi dos jovens que tomavam banho no rio.

 

- Gostas? Olhou-me firmemente nos olhos, enquanto passava suavemente a mão pela anca e depois pela coxa, até à dobra do joelho. A seda parecia ondular como água adiante da ponta da sua mão. Veio de Cós. É um produto novo, de um famoso artífice de seda. Julgo que mais nenhuma mulher em Roma tem um vestido assim. Ou talvez sejam como eu e não tenham coragem suficiente para usar um traje destes em público. Sorriu com modéstia afectada e levou a mão ao colar de prata. Abriu os dedos e eu percebi claramente, graças à transparência da seda, que enquanto rolava um dos berloques em lápis-lazúli entre o polegar e o indicador, dava umas palmadinhas com o mindinho num dos mamilos grandes e pálidos, para ele ficar excitado.

 

Pigarreei e olhei por cima do ombro. Os jovens que tomavam banho entretinham-se agora a atirar uma bola de pele uns aos outros, mas de vez em quando lançavam olhares à tenda. Não era de espantar que tivessem vindo para o pé da tenda logo que o tempo começara a aquecer, pensei. Vinham olhar para ela, tal como ela vinha olhar para eles. Voltei a pigarrear.

 

- Tens a garganta seca? Vieste a pé desde o Palatino? Parecia genuinamente curiosa, como se andar na rua, para perto ou para longe, fosse uma actividade que ela vira os carregadores da sua liteira fazer, mas a que nunca se tinha aventurado sozinha.

 

- Sim, vim a pé.

 

- Pobre querido, então deves estar com sede. Olha, antes de se ir embora, Crisis trouxe-nos uns copos. O cântaro de barro tem água fresca. O vinho que está no decantador de prata é Falerniano. Nunca bebo outra coisa.

 

As taças estavam colocadas numa mesinha ao lado dela. Mas não se via nenhuma cadeira. Parecia que os visitantes deviam ficar de pé.

 

Eu tinha de facto a boca um tanto seca, e não era apenas do calor do dia. O copo de Clódia já estava cheio de vinho, por isso eu estendi a mão para o cântaro de água e servi-me de um copo, bebendo-a lentamente antes de me servir de outro.

 

Não queres vinho? Parecia desiludida.

 

- Não me parece. Um homem com a minha idade não deve beber vinho depois de ter feito tanto exercício com este calor. Se não me fizesse mal às entranhas, pensei, pelo menos perturbar-me-ia a clareza das ideias em tal companhia. Qual seria o aspecto do vestido de seda transparente depois de um ou dois copos de Falerniano?

 

- Como quiseres. Encolheu os ombros. A seda juntou-se à volta dos seus ombros, depois ondulou como uma corrente de água por cima dos seios.

 

Terminei o segundo copo de água e poisei-o.

 

- Mandaste-me o gallus por algum motivo?

 

- Mandei sim. Desviou os olhos e poisou-os nos jovens que tomavam banho no rio. Eu vi-lhos saltitarem de um lado para o outro, seguindo a bola de pele. O rosto permanecia impassível.

 

- Trigónion disse-me que era qualquer coisa relacionada com Díon. Ela acenou com a cabeça.

 

- Talvez fosse melhor baixar as abas da tenda disse eu.

 

- O que haviam de pensar os jovens? A ideia do escândalo parecia diverti-la, como a divertia a minha crescente consternação.

 

- Se achas que precisamos de uma dama-de-companhia, chama a tua criada.

 

Precisamos de uma dama-de-companhia? A expressão dos seus olhos era enervante. É óbvio que não conheces Crisis; ela dificilmente cumpriria esse papel.

 

- Então chama Trigónion.

 

Ao ouvir isso, ela soltou uma gargalhada e abriu a boca para falar, mas depois pensou melhor.

 

- Perdoa-me disse. Quando tenho coisas a tratar com um homem bonito, gosto de começar por arreliá-lo um bocadinho. É um defeito meu. Os meus amigos aprenderam a ignorá-lo. Espero que também ignores esse defeito, Gordiano, agora que já to confessei.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

- Muito bem. Sim, queria consultar-te relativamente à morte prematura do nosso amigo comum, Díon de Alexandria.

 

- O nosso amigo comum?.

 

- Sim, meu e teu. Não te mostres tão surpreendido, Gordiano. Há provavelmente muitas coisas sobre Díon que tu desconheces. E, já agora, deve haver muitas coisas que desconheces sobre mim, apesar de tudo o que possas ter ouvido dizer. Vou tentar ser breve e precisa. Fui eu que sugeri a Díon que fosse a tua casa pedir-te ajuda na noite em que foi assassinado.

 

-Tu?

 

- Sim.

 

- Mas tu não me conheces.

 

- Ainda assim, ouvi falar de ti, tal como tu terás certamente ouvido falar de mim. A tua reputação é muito antiga, Descobridor. Eu era uma rapariga de dezassete anos, que ainda vivia em casa da sua família, quando Cícero deu brado na defesa daquele homem acusado de parricídio. Lembro-me de o meu pai falar do caso durante muito tempo, mesmo depois de ele ter terminado. Evidentemente, só tive conhecimento do papel que tu desempenhaste muitos anos depois, quando ouvi contar os pormenores ao próprio Cícero. Cícero adorava falar daquele caso antigo, uma vez e outra, até que finalmente o triunfo sobre Catilina lhe proporcionou outro tema sobre que cacarejar! Cícero falou muitas vezes de ti ao meu falecido marido; em certas ocasiões, chegou mesmo a recomendar a Quinto que procurasse os teus serviços, mas Quinto sempre insistiu em usar os seus próprios homens para mexericar e outras actividades quejandas. Vou ser honesta contigo: Cícero nem sempre te elogiou. Quer dizer, de vez em quando o teu nome era mencionado, e ele usava por vezes algumas palavras que não devem ser repetidas em voz alta por uma respeitável matrona romana como eu. Mas todos nós tivemos os nossos desencontros com Cícero, não é verdade? O que é importante é que, mesmo quando se enfurecia contigo, Cícero insistia sempre em elogiar a tua honestidade e integridade. De facto, quando Quinto era governador da Gália Cesalpina, Cícero e a sua mulher Terência vieram fazer-nos uma visita, e certa noite, depois do jantar, fizemos um jogo de perguntas e respostas; quando Quinto perguntou a Cícero que homem tinha a certeza de que diria a verdade, fossem quais fossem as circunstâncias, sabes quem foi que ele nomeou? Sim, Gordiano, nomeou-te a ti. Portanto, estás a ver, quando Díon nos perguntou a quem devia ir pedir ajuda, o nome de Gordiano, o Descobridor, veio-me imediatamente ao espírito. Nessa altura, não sabia que tu e Díon já se conheciam. Foi Trigónion que mo contou depois da visita.

 

- Creio que me sinto lisonjeado disse eu. Sabes portanto que eu conheci Díon há muitos anos.

 

Trigónion explicou-mo.

 

- Mas como é que tu conhecias Díon?

 

- Porque ele teve relações com o meu irmão Públio.

 

- Que género de relações?

 

- Conheceram-se brevemente depois de Díon ter chegado a Roma. Tinham muito sobre que conversar.

 

Eu diria que Díon e Públio Clódio teriam alguma dificuldade em se encontrar um terreno comum, tendo em conta que foi o teu irmão que planeou a tomada de Chipre pelos Romanos.

 

- Isso são águas passadas, como dizem os Etruscos. Muito mais importante para Díon era o facto de o meu irmão se opor a Pompeu. Públio ofereceu a Díon um aliado no Senado, e isso era para ele um bem precioso. Díon ofereceu a Públio uma oportunidade de desviar Pompeu das suas pretensões ao Egipto.

 

- E qual foi o teu papel em tudo isso?

 

Há qualquer coisa nos homens maduros e inteligentes que é para mim completamente irresistível. Ela lançou-me outro dos seus olhares enervantes.

 

- E o que foi que Díon viu em ti? disse eu bruscamente.

 

- Talvez tenha sido o meu famoso amor pela poesia. Clódia encolheu os ombros com elegância, o que fez com que a seda fina ficasse suspensa sobre os mamilos, e depois escorregasse diante deles.

 

- Se tu e o teu irmão eram tão amigos e tão grandes apoiantes de Díon, por que não ficou ele alojado em vossa casa, onde estaria a salvo, em vez de andar da casa de um anfitrião duvidoso para a de outro, fugindo com dificuldade ao seu assassino?

 

- Díon não podia ficar alojado em minha casa pela mesma razão por que tu não podes baixar as abas desta tenda, Gordiano. Um homem e uma mulher juntos, compreendes? A posição de Díon junto do Senado já era demasiadamente precária para ser ainda mais erodida com insinuações sexuais. Nem podia ficar alojado em casa de Públio; imagina os boatos que correriam acerca das maquinações do desordeiro egípcio com o famoso instigador de tumultos. A notoriedade cobra o seu preço. Por vezes, temos de manter os amigos à distância para o seu próprio bem.

 

- Muito bem, Díon era teu amigo, ou aliado, ou fosse o que fosse e tu mandaste-o pedir-me ajuda. Eu tive de recusar. Horas depois, ele estava morto. Tu e o teu irmão não foram muito eficazes a protegê-lo, pois não?

 

Os lábios dela apertaram-se e os olhos faiscaram.

 

- Nem tu disse ela friamente, que o conhecias há muito mais tempo do que eu, e cujas obrigações deviam ser muito mais profundas.

 

Eu encolhi-me.

 

- É verdade. Mas, mesmo que eu tivesse aceite o pedido de Díon, seria tarde de mais para o salvar. Quando eu acordei na manhã seguinte

- não, ainda antes de eu ter adormecido nessa noite já ele estava morto.

 

- E se tu tivesses dito que sim a Díon? E se tivesses concordado em começar a cuidar da sua segurança na manhã seguinte, ajudando-o a decidir em quem podia confiar e quem devia temer? Não sentirias uma certa obrigação, depois da sua morte, de tentar levar o assassino perante a justiça?

 

-Talvez...

 

- E não sentes essa obrigação, por simples respeito por uma amizade antiga? Por que hesitas em responder?

 

- Não é do conhecimento comum quem esteve por trás do assassínio de Díon?

 

- Quem?

 

- O Rei Ptolemeu, claro.

 

- Foi o Rei Ptolemeu que envenenou a sopa de Díon em casa de Luceio? Foi Ptolemeu que entrou pessoalmente no quarto de Díon e o esfaqueou até à morte?

 

- Não, claro que não. Foi alguém que agiu em nome do Rei...

 

- Exactamente. E não sentes a obrigação de fazer com que essa pessoa seja castigada, quanto mais não seja para dar repouso à sombra de Díon?

 

Asício já foi julgado por esse crime...

 

- E foi ilibado, o porco! Os olhos dela faiscaram. Némesis terá de lidar com ele à sua maneira. Mas há outro homem, mais culpado do que Asício, que ainda não foi apresentado perante a justiça. Tu podias contribuir para que isso acontecesse, Gordiano.

 

Embora não houvesse qualquer possibilidade de os homens que tomavam banho no rio nos ouvirem, eu baixei a voz.

 

Referes-te a Pompeu...

 

- A Pompeu! Achas que eu te ia mandar atrás de Pompeu? Seria o mesmo que mandar um gladiador só com um braço para a arena defrontar um elefante. O riso dela era como areia na minha cara. Não, Gordiano, aquilo que eu pretendo de ti é muito simples, e está perfeitamente dentro das tuas capacidades. Quantas vezes investigaste as circunstâncias de um assassínio? Quantas vezes ajudaste um advogado a descobrir factos que pudessem provar que um homem era culpado ou inocente de determinado crime? É apenas isso que pretendo de ti. Não te peço que derrubes o Rei do seu trono nem que deites abaixo um colosso. Apenas que me ajudes a fazer cair a ira da lei sobre o homem que matou Díon com as suas mãos. Ajuda-me a castigar o assassino impiedoso que mergulhou o punhal no peito de Díon!

 

Eu suspirei audivelmente e voltei-me para olhar a luz do Sol que incidia no rio.

 

- Por que hesitas, Gordiano? Tenciono pagar-te, é claro, e generosamente. Mas eu esperava que agarrasses esta oportunidade com as duas mãos, por respeito a Díon. A sombra dele não te sussurra aos ouvidos neste preciso momento, pedindo-te que a vingues? Já uma vez te pediu que o ajudasses, quando ainda estava vivo...

 

- Ultimamente, costumo transferir casos deste género assassínios para as mãos do meu filho Eco. Ele é mais jovem, mais forte, mais rápido. Essas coisas costumam ser importantes quando a parada é tão alta. Ouvidos e olhos atentos podem significar a diferença entre a vida e a morte. Um velhote como eu...

 

Mas o teu filho não conheceu Díon, pois não?

 

- Ainda assim, acho que Eco é o teu homem.

 

Bem, sem nunca o ter visto, tenho dificuldade em dizer se ele é o meu homem ou não. Ele é uma versão mais jovem da tua pessoa?

- Olhou-me de alto a baixo, como se eu fosse um escravo em leilão.

 

Eu mordi o lábio por ter mencionado Eco, imaginando-o no meu lugar, a sós com esta criatura. O que me teria passado pela cabeça para tê-lo recomendado?

 

- Os meus filhos são ambos adoptados disse eu. Não são nada parecidos comigo.

 

- Então devem ser feios disse ela, franzindo o sobrolho com desapontamento fingido. Muito bem, nesse caso, o meu homem és tu, Gordiano, e pronto. Vais ajudar-me ou não?

 

Eu hesitei.

 

- Por Díon?

 

Suspirei, não vendo maneira de recusar.

 

- Queres que eu descubra quem assassinou Díon?

 

- Não, não! Ela abanou a cabeça. Não fui clara? Nós já sabemos quem foi. Aquilo de que eu preciso é que tu me ajudes a reunir provas para condenar o homem.

 

- Sabes quem assassinou Díon?

 

- Claro. E tu também o conheces. Até há poucos dias, ele vivia na tua rua, em frente à tua casa. Chama-se Marco Célio.

 

Eu olhei para ela, desorientado.

 

- Como é que sabes?

 

Ela inclinou-se para diante, passando distraidamente as mãos pelas coxas. O movimento juntou-lhe os seios e fez brilhar o tecido fino que lhe delineava os mamilos.

 

- Até há pouco tempo, Marco Célio e eu tínhamos relações íntimas. Ele e o meu irmão também eram grandes amigos. Pode-se dizer que Célio era quase um irmão para nós.

 

Pela maneira como ela dizia aquilo, a sugestão era vagamente obscena.

 

- Continua.

 

- Pouco antes da tentativa de envenenamento de Díon em casa de Lúcio Luceio, Célio pediu-me emprestada uma soma considerável.

 

-E...?

 

- Disse-me que precisava do dinheiro para pagar uns jogos que estavam a ser organizados na sua cidade natal, Interâmnia. Aparentemente, Célio ocupa uma posição honorífica no governo local. Em troca, tem a obrigação de ajudar a financiar as festas locais; pelo menos foi assim que ele me explicou a coisa. Não era a primeira vez que me pedia dinheiro emprestado.

 

- E tu sempre lho emprestaste?

 

- Normalmente sim. Digamos que desenvolvi o hábito de fazer as vontades a Marco Célio. Ele sempre me pagou, mas raramente em dinheiro.

 

- Então como?

 

- Com favores.

 

- Favores políticos? Clódia riu-se.

 

- Não! Digamos que eu tinha uma comichão e que Célio sabia coçar-me. Mas estamos a desviar-nos do assunto. Como eu estava a dizer, a soma em dinheiro que ele me pediu emprestada foi bastante grande consideravelmente maior do que as que me pedira anteriormente.

 

- O suficiente para pagar uma data de coçadelas disse eu. Os olhos dela faiscaram.

 

- De facto, e se calhar foi isso mesmo que eu pensei quando concordei tolamente em lhe emprestar o dinheiro. Mas depois senti-me apreensiva e fiz algumas perguntas. Imagina o meu desagrado quando descobri que os jogos de Interâmnia têm lugar no Outono, e não na Primavera. O pretexto de Célio para o empréstimo era completamente falso.

 

- Não seria propriamente o primeiro homem a mentir a uma bela mulher para conseguir que ela lhe desse dinheiro.

 

Clódia sorriu ao ouvir isto e eu apercebi-me de que lhe tinha chamado bela mulher sem pensar; certamente queria ter dito ”mulher mais velha”. A lisonja era tanto mais sincera por ser espontânea, e julgo que ela sentiu isso.

 

O sorriso morreu-lhe nos lábios.

 

- Estou convencida de que Marco Célio utilizou esse dinheiro para obter veneno, e depois para subornar um ou vários escravos de Luceio para que matassem Díon.

 

- Dizes que era uma grande soma.

 

- Os venenos não são baratos; tem de ser uma coisa fiável, e o mesmo se aplica à pessoa que o vende. E também custa dinheiro subornar os escravos de um senhor rico para cometerem um crime desses. Clódia falava com autoridade, como se tivesse conhecimento pessoal dessas matérias. Só mais tarde me ocorreu a ligação, depois de Díon ter morrido. Foram pequenas coisas o tom de voz de Célio, a sua expressão sempre que se falava de Díon, alguns comentários críticos que ele fez, a minha própria intuição.

 

- Isso não são propriamente provas.

 

- Foi por isso que te contratei, Gordiano.

 

- Seja qual for a verdade, não foi o veneno que matou Díon. E o ataque a punhal?

 

- No dia do assassínio, ao fim da tarde, Célio esteve em minha casa, que não é longe da de Tito Copónio, onde Díon foi morto. Célio levava um punhal, escondido na túnica.

 

- Se estava escondido, como...

 

- Garanto-te que nenhum dos pormenores da pessoa de Célio me passou despercebidos nessa noite disse ela com um sorriso débil. Ele levava uma adaga. Além disso, estava nervoso e agitado, como eu nunca o vira. E bebeu mais do que devia. Perguntei-lhe o que se passava; ele disse-me que o esperava uma tarefa desagradável e que se sentiria aliviado quando a tivesse cumprido. Insisti com ele para que me dissesse do que se tratava, mas ele recusou-se. ”Vocês, os homens, e os vossos segredinhos,” disse eu. ”Essa tarefa desagradável que tanto receias espero que não seja a tarefa que te pedi que viesses aqui cumprir.” ”Claro que não!” disse ele, e procedeu à demonstração dessa afirmação. Mas o modo como fizemos amor nessa noite foi uma decepção, para dizer o mínimo. Célio foi tão eficaz como um daqueles jovens enrugados que vês ali no rio. Depois, quando o seu amigo Asício veio buscá-lo, Célio mostrou-se ansioso por partir. Muito bem, pensei eu, vão brincar um com o outro, meus meninos. Um pouco mais tarde, nessa mesma noite calculo que momentos depois de ambos deixarem a minha casa

- Díon foi esfaqueado até à morte.

 

Fiz uma pausa prolongada antes de falar, intrigado, não com os pormenores da história de Clódia, mas com a maneira como ela os contara. Nunca tinha ouvido uma mulher falar das suas relações sexuais com tanta acidez na voz.

 

- Compreendes que tudo aquilo que me disseste, relacionando Célio com o assassínio de Díon, é puramente circunstancial?

 

- Há mais uma circunstância: na noite seguinte, quando veio visitar-me, Célio trouxe-me um pequeno presente, um colar de prata com berloques em lápis-lazúli e cornalina e gabou-se de estar em condições de me pagar todos os sestércios que tinha pedido emprestados.

 

- E pagou? Ela riu-se.

 

- Claro que não. Mas, pela maneira como falava, não tive dúvidas de que ele tinha ganho algum dinheiro. Tinha cumprido a sua missão, percebes, e fora generosamente remunerado.

 

- Isso é apenas uma presunção tua?

 

Clódia não me ouviu. Olhava fixamente para o tecto da tenda, recordando-se.

 

- Nessa noite, fizemos amor de maneira totalmente diferente. Célio comportou-se como um verdadeiro Minotauro com os cornos em riste, os olhos brilhantes, os flancos luzindo de suor...

 

Abri a boca para falar mas, antes que eu pudesse interrompê-la, ela foi interrompida pelo riso de um homem, fundo e rouco, acompanhado por passos chapinhados. Clódia acordou do seu sonho e sentou-se direita. No seu rosto, havia uma expressão de alegria pura.

 

Voltei-me e vi um homem avançar a passos largos por entre as sombras da margem, em direcção à tenda. À semelhança dos outros homens que tomavam banho no rio, também ele estava nu. A luz do Sol descendente incidia na água, atrás dele, enquadrando-o numa silhueta difusa; as gotas de água que tinha nos ombros e nos membros brilhavam como pontos de fogo branco, delineando a massa escura do seu corpo. Ao emergir do rio, ergueu as mãos e sacudiu a água do cabelo, exibindo os músculos lustrosos dos ombros e dos braços. Em terra seca, os seus passos tornaram-se afectados e, embora as suas feições continuassem ensombradas, vi no seu rosto o clarão de um sorriso aberto.

 

- Querido! A palavra emergiu dos lábios de Clódia como a respiração tornada audível, tão espontânea como um queixume ou um suspiro. Não havia fingimento nem troça na sua voz, nem astúcia ou insinuações. Ergueu-se do canapé para ir ao encontro do homem quando ele entrou na tenda. Era difícil dizer qual deles parecia mais despido, se o homem vigoroso de membros compridos que nada vestia para além de gotas de água, ou Clódia, com o seu fato transparente de seda amarela. Abraçaram-se e beijaram-se na boca.

 

Momentos depois, Clódia recuou e tomou-lhe as mãos nas suas. Nos pontos onde a estola tinha ficado molhada por ter sido pressionada contra o corpo dele, a seda era ainda mais transparente e estava moldada a ela como uma segunda pele. Ela voltou a cabeça, viu-me olhar de boca aberta e riu-se. O homem fez o mesmo, como se fosse a imagem dela num espelho.

 

- Querido disse ela, apertando-lhe as mãos e rindo como uma miúda -, por que não entraste pela aba da tenda? O que estavas a fazer ali na água com os outros? E quando te juntaste a eles? Como é que eu não reparei?

 

- Cheguei agora mesmo disse ele, com um riso mais grave do que o de Clódia, mas inquietantemente parecido com o dela. Pensei que seria divertido meter-me no meio dos teus admiradores e ver se conseguia atrair a tua atenção. Aparentemente, não consegui!

 

- É que eu estava concentrada, querido, numa coisa muito importante! Fez um sinal com a cabeça na minha direcção e simulou uma expressão grave. O tom brincalhão regressara à sua voz. Estava novamente a representar, mas para quem? Tem a ver com Díon, querido, e com o julgamento. Este é Gordiano, o homem de quem de falei. Ele vai ajudar-nos a castigar Marco Célio.

 

O homem voltou o seu sorriso radioso para mim. Nesta altura, reconheci-o. Tinha-o visto no Fórum, à distância, em diversas ocasiões, arengando à turba dos seus seguidores ou fazendo companhia às grandes potências do Senado, mas nunca o vira despido e molhado, com o cabelo alisado para trás. Públio Clódio era parecidíssimo com a irmã, especialmente quando estavam os dois juntos, lado-a-lado.

 

- Lembro-me de uma coisa que tu me costumavas dizer, papá, quando eu estava a começar: ”Nunca aceites um trabalho sem receberes um adiantamento, por muito pouco que seja.” Eco inclinou a cabeça e lançou-me um olhar penetrante.

 

O que queres dizer com isso? perguntei.

 

- Bem, quando esta tarde saíste do horto de Clódia, tinhas a bolsa mais pesada do que quando lá chegaste? Era a maneira de ele perguntar se eu tinha aceite a incumbência de Clódia, de investigar a morte de Díon era típico de Eco ir directo ao assunto!

 

Apesar do calor que fizera durante o dia, a noite tinha caído cedo; afinal, ainda estávamos no mês de Martius. Quando saí do horto de Clódia, pouco depois da chegada do irmão, já o Sol se afundava, transformando o Tibre num lençol de ouro flamejante. Belbo e eu chegámos a casa ao crepúsculo, depois de termos atravessado a ponte, passado pelos mercados de gado, fechados a esta hora, e regressado ao Palatino. Caía a noite e o ar arrefecera ligeiramente. Depois de uma refeição apressada com Betesda e Diana, apesar do cansaço que sentia nas pernas, voltei a sair com Belbo e atravessei a cidade para ir aconselhar-me com o meu filho mais velho.

 

Estávamos sentados no escritório da casa do Monte Esquilino, que já fora minha, e antes disso pertencera ao meu pai. Agora, era de Eco e da sua descendência. A mulher, Menénia, estava noutro ponto da casa, provavelmente a tentar deitar os desordeiros gémeos, cujos gritos agudos de riso atravessavam ocasionalmente o ar fresco da noite.

 

Eu acabara de descrever a Eco a minha entrevista com Clódia, até à chegada do irmão dela e à minha partida, pouco depois.

 

- Quando saí do horto da dama disse eu tinha a bolsa substancialmente mais pesada.

 

- Quer dizer que aceitaste a incumbência? Acenei com a cabeça.

 

Então estás convencido de que Marco Célio assassinou Díon.

 

- Nunca disse isso.

 

- Mas vais procurar provas que permitam condená-lo.

 

- Se essas provas existirem.

 

- As razões de Clódia para suspeitar dele parecem-me ténues, na melhor das hipóteses - disse Eco. - Mas a verdade é que já iniciaste outras investigações com menos bases e conseguiste desenterrar a verdade.

 

Pois foi. Mas, para ser honesto, sinto-me pouco à-vontade com isto tudo.

 

- Também acredito!

 

O que queres dizer?

 

- Bem, papá, toda a gente sabe que Célio e Clódia eram amantes, e que Célio e Clódio são aliados políticos e companheiros de copos, ou foram. Já agora, pode ter havido algo mais do que simples amizade entre esses dois. Ou entre os três.

 

- Referes-te aos três na mesma cama? Eco encolheu os ombros.

 

Não te mostres tão surpreendido. Uma mulher como Clódia bem, tu próprio disseste que não havia mais nenhuma peça de mobiliário na tenda, para além do canapé dela.

 

- E então?

 

- Papá! Tu presumiste que isso significava que devias ficar de pé. Pelo que ouvi dizer, a mulher é um pouco mais hospitaleira. Se não havia cadeiras, e só havia um canapé, talvez isso significasse que tu eras convidado a reclinar-te.

 

-Eco!

 

- Bem, pelo vestido que dizes que ela trazia...

 

- Devia ter sido menos ilustrativo.

 

- Devias era ter-me levado contigo, para eu ver.

 

- Já vais bem entrado nos trinta. Devias ser capaz de pensar noutras coisas, para além de sexo.

 

Menénia não se queixa. Ele riu-se.

 

Eu tentei emitir um resmungo de desaprovação, que saiu mais como um sussurro de curiosidade. Eco tinha escolhido para mulher uma beleza de cabelo escuro não muito diferente de Betesda. Em que outros aspectos seria ela parecida com a minha mulher? De vez em quando, eu fazia esta pergunta a mim próprio, com a naturalidade com que um homem da minha idade reflecte sobre a geração seguinte e o seu modo de ser. Eco e Menénia... Clódio nu e a irmã vestindo uma estola transparente...

 

Naquele preciso momento, um dos dois gémeos lançou um grito, algures no meio da casa. Eu despertei violentamente dos meus sonhos, recordando de forma brusca que o prazer físico pode ter consequências.

 

- Estamos a afastar-nos do assunto disse eu. Eu dizia-te que me senti pouco à-vontade com esta incumbência de Clódia e tu respondeste: ”Também acredito!”

 

- Bem, tudo isto parece um pouco equívoco, não achas? Talvez mesmo suspeito. Quer dizer, tem um cheiro estranho. Olha, papá, aquilo que realmente ficaste a saber acerca de Célio na tua entrevista com Clódia foi que ele pediu dinheiro emprestado a uma mulher rica e já com alguma idade com falsos pretextos, é certo e não lhe pagou. Ah, e que ele levava consigo um punhal, o que é tecnicamente ilegal dentro dos muros da cidade, mas é uma prática comum entre pessoas de bom senso. Até há muito pouco tempo, os dois eram amantes, e agora ela anda à procura de provas para o incriminar por assassínio. Que dizer de tudo isso? Célio era confidente do irmão dela, e agora os dois Clódios acusam-no de ser um assassino a soldo do Rei Ptolemeu, ou de Pompeu, que é a mesma coisa. Vejamos, Clódio é o senhorio de Célio. Célio vive naquele apartamento na tua rua.

 

Abanei a cabeça.

 

- Já não. Clódio pô-lo na rua.

 

- Quando?

 

- Há uns dias. Só o soube hoje, quando Clódio me disse ali de pé na tenda, nu, a pingar, discutindo descontraidamente as suas propriedades comigo. Engraçado, o gallus e eu passámos pelo prédio a caminho de casa de Clódia e, quando eu vi as portadas todas fechadas num dia quente como o de hoje, pensei que Célio ainda devia estar a curar a ressaca. Célio foi viver para casa do pai, na Colina Quirinal onde irá certamente ficar até ao fim do julgamento.

 

- Quer dizer que eles não têm dúvidas de que vão acusá-lo?

 

- Vão, vão, já entregaram a queixa. Mas não foi Clódio que a apresentou.

 

- Quem foi?

 

- Não adivinhas?

 

Eco abanou a cabeça.

 

- Marco Célio tem demasiados inimigos para eu me pôr a tentar adivinhar.

 

- A queixa foi apresentada pelo filho de Lúcio Calpúrnio Béstia, um rapaz de dezassete anos.

 

Eco riu-se e imitou, com o braço estendido.

 

- ”Juizes, não aponto o dedo da culpa aponto para o dedo culpado.”

 

- Quer dizer que conheces essa história?

 

- Claro, papá. Toda a gente sabe que Célio acusou Béstia de envenenar as mulheres. Só lamento que tu e eu tivéssemos ido visitar Meto na altura do julgamento. Foi Menénia que me contou.

 

- Também foi Betesda que me contou. Bem, ao que parece, em breve Béstia se vingará de Célio.

 

- A data do julgamento já está marcada?

 

- Já. A acusação foi entregue há cinco dias. Tendo em conta os dez dias habitualmente concedidos aos dois lados para prepararem os argumentos, o início do julgamento deve ser daqui a cinco dias.

 

- Já? Não te resta muito tempo.

 

- Como sempre. Eles vêm ter connosco pensando que nós podemos arranjar as provas no ar.

 

Eco inclinou a cabeça.

 

- Estás a dizer que o julgamento começa dois dias depois dos Nonos de Aprilis? Se durar mais de dois dias, vai-se sobrepor à inauguração do festival da Grande Mãe.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

- O julgamento continua, apesar das festividades. Os tribunais menores suspendem a sua actividade durante o festival, mas as sessões do tribunal de terrorismo político prosseguem.

 

-Terrorismo político? Quer dizer que não vai ser um simples julgamento por assassínio?

 

- Pois não. Há quatro acusações contra Célio. As primeiras três acusam-no de organizar os ataques à embaixada alexandrina os ataques a meio da noite em Neápolis, o apedrejamento de Putéolos e o incêndio à propriedade de Palas. Eu não vou participar na investigação desses assuntos. A minha única preocupação é a quarta acusação, que se relaciona directamente com Díon. Célio é acusado de ter tentado envenenar Díon em casa de Luceio.

 

- E o assassínio propriamente dito, o esfaqueamento em casa de Copónio?

 

- Tecnicamente, isso também está incluído. Mas Públio Asício já foi ilibado e a acusação hesita em tentar provar o mesmo contra Célio. Preferem concentrar-se na anterior tentativa de envenenamento. Claro, eu fui encarregado de descobrir o que puder acerca do esfaqueamento em casa de Copónio, como pormenor corroborativo.

 

- É para satisfazeres a tua curiosidade.

 

Naturalmente.

 

Eco uniu as pontas dos dedos.

 

- Um julgamento com conotações políticas, levado a cabo durante as festividades, uma altura em que Roma estará cheia de visitantes, com o ex-protegido de Cícero como acusado e uma mulher de vida escandalosa em fundo poderá transformar-se num espectáculo, papá.

 

Eu gemi.

 

Mais uma razão para eu me sentir apreensivo. Só me falta um dos homens de Pompeu ou do Rei Ptolemeu vir-me bater à porta, avisando-me de que não devo prosseguir as investigações.

 

Eco ergueu uma sobrancelha.

 

- Achas que isso é provável?

 

Espero que não. Mas tenho um mau pressentimento quanto a isto tudo. Como tu disseste, não me cheira bem. Não me agrada.

 

- Nesse caso, por que não recuas? Não deves nenhum favor a Clódia pois não? Contaste-me tudo o que aconteceu naquela tenda hoje? Simulou um sorriso insinuante.

 

- Não sejas absurdo. Tudo o que eu devo àquela mulher é o adiantamento que ela me deu. Mas sinto uma certa obrigação.

 

Ele acenou com a cabeça.

 

Para com Díon, queres tu dizer.

 

Sim. Recusei-me a ajudá-lo quando ele veio ter comigo. Depois convenci-me a não ir assistir ao julgamento de Asício...

 

- Estavas doente, papá.

 

- Sim, mas estaria assim tão doente? E depois, quando Asício foi ilibado, disse a mim próprio que tinha acabado tudo. Mas como podia ter acabado, se ninguém tinha sido condenado pelo crime? Como podia Díon repousar? Apesar disso, consegui afastar a obrigação que sentia, empurrar esses pensamentos para a parte de trás do pensamento - até hoje, quando o gallus me bateu à porta, obrigando-me a confrontar-me com as minhas responsabilidades. Foi Clódia quem me convocou, mas não foi apenas ela.

 

- Foi também o irmão, Clódio?

 

- Não, o que eu quero dizer é que eles são apenas os representantes de uma coisa maior. Começou com Díon, mas onde acaba só o tempo o dirá. Há um poder maior que parece decidido a meter-me neste assunto.

 

Némesis?

 

- Estava a pensar noutra deusa: Cibele. Foi um dos seus sacerdotes que acompanhou Díon a minha casa e foi o mesmo sacerdote quem veio buscar-me ontem. Achas que é apenas por coincidência que o julgamento tem lugar durante o festival da Grande Mãe a celebração consagrada a Cibele? Sabes, foi uma das antepassadas de Clódia que salvou a estátua de Cibele de se perder no Tibre quando ela foi trazida do Oriente, há muito tempo. Não sentes a ligação?

 

- Papá, estás a ficar mais religioso com a idade disse Eco suavemente.

 

- Talvez esteja. Pelo menos, com mais temor aos deuses, se não com mais respeito por eles. Mas está bem, deixemos os deuses de fora. Digamos que isto é apenas entre mim e a sombra de Díon. Que o meu sentido de obrigação é mais profundo do que a minha apreensão.

 

Eco acenou com a cabeça, gravemente. Como de costume, compreendia-me totalmente.

 

- O que queres de mim, papá?

 

- Ainda não sei bem. Talvez nada. Talvez queira apenas ouvir as minhas dúvidas e ver-te acenar com a cabeça se eu disser alguma coisa que faça sentido, ainda que remotamente.

 

Ele pegou-me na mão.

 

- Se precisares de mais do que isso diz-me, papá. Prometes?

 

- Prometo, Eco.

 

Soltou-me a mão e encostou-se. Ouvi um dos gémeos guinchar noutro ponto da casa. Com certeza que já eram horas de irem para a cama, pensei. Através dos espaços por entre as portadas, percebi que já estava escuro.

 

- O que pensa Betesda? disse Eco. Sorri.

 

- Por que julgas que eu lhe disse alguma coisa?

 

Deves ter-lhe contado qualquer coisa esta noite, ao jantar.

 

- Sim uma versão, por assim dizer, expurgada da minha visita ao horto de Clódia.

 

- Ha! Aposto que Betesda teria apreciado o pormenor dos nadadores despidos. Eco riu-se.

 

- Talvez, mas eu não lhe falei nisso. Tal como omiti a descrição do vestido que parece ter-te intrigado tão profundamente.

 

Penso que primeiro te intrigou a ti, papá. E a emergência de Clódio do rio, despido como um peixe saído do mar?

 

- Omitido embora tivesse referido o abraço dos irmãos.

 

- E o beijo?

 

- E o beijo. Tinha de dar a Betesda alguma coisa para contar às amigas.

 

Qual é a opinião dela sobre a acusação feita a Marco Célio?

 

- Betesda declarou calmamente que era absurda.

 

- A sério?

 

- ”É impossível!” disse ela. ”Marco Célio nunca poderia ter cometido esse crime! Essa mulher está a difamá-lo!” Perguntei-lhe em que baseava a sua opinião, mas o olhar de Medusa foi a única resposta que obtive. Betesda sempre teve um fraquinho pelo nosso jovem e fogoso vizinho. Ou melhor, ex-vizinho.

 

- Vai sentir a falta dele ao cimo da rua.

 

Todos nós vamos sentir a falta do ocasional espectáculo que era Célio a tropeçar diante da porta de sua casa a meio do dia, com o cabelo desgrenhado e os olhos injectados de sangue, de o ver cambalear pela rua acompanhado por uma prostituta da Subura, de ouvir os seus amigos embriagados recitarem poemas obscenos da janela, a meio da noite...

 

- Papá, pára! Eco engasgou-se com o riso.

 

- Não me parece que seja motivo para graças disse eu, subitamente grave. Está em causa a vida deste jovem. Se for condenado, o melhor que Marco Célio pode esperar é que lhe dêem uma oportunidade para fugir para o exílio. A família ficará coberta de vergonha, será o fim da sua carreira, a ruína de todas as suas perspectivas de futuro.

 

- Não me parece castigo suficiente, se ele for culpado.

 

- Se ele for culpado disse eu. Compete-me descobrir se é.

 

E se descobrires que não é ele o culpado?

 

- Di-lo-ei a Clódia.

 

- E isso terá alguma importância para ela? disse Eco astutamente.

 

- Sabes tão bem como eu, Eco, que em Roma os julgamentos só por acaso estão relacionados com a culpa e a inocência.

 

- Queres dizer que Clódia está mais interessada em destruir Célio do que em castigar o assassino de Díon?

 

- Essa ideia passou-me pela cabeça. Uma mulher desprezada...

 

- A não ser que tenha sido ela a desprezá-lo a ele, papá.

 

- Suponho que essa é uma das coisas que eu tenho de descobrir.

 

- A fazer fé nos rumores, Célio não foi o primeiro homem que ela destruiu disse Eco. Embora me pareça que o exílio e a humilhação são mais clementes do que o veneno.

 

- Referes-te ao boato de que ela assassinou o marido, há uns anos? Ele acenou com a cabeça.

 

- Dizem que Quinto Metelo Celer estava de boa saúde num dia e morto no dia seguinte. Dizem que o casamento com Clódia sempre foi tempestuoso e que Celer e o irmão dela, Clódio, se tinham tornado inimigos ferozes. Ostensivamente, a fractura teve a ver com a política mas que homem poderia suportar ter um cunhado como rival na sua cama:

 

- Resta saber qual dos cunhados foi o usurpador Clódio... ou Celer.

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Suponho que tenha sido Clódia a decidir. Celer foi o derrotado; perdeu a vida. E agora Célio? Talvez qualquer homem que se interponha entre os dois irmãos se arrisque a mais do que pensa.

 

Abanei a cabeça.

 

- Repetes essas acusações escandalosas como se soubesses que são verdade, Eco.

 

- Apenas porque acho que deves pensar cuidadosamente no género de pessoas com que estás a lidar. Quer dizer que já decidiste empenhar-te nisto?

 

- Em tentar descobrir a verdade sobre o assassínio de Díon, sim.

 

- Sob os auspícios de Clódia?

 

- Foi ela quem me contratou. As circunstâncias conduziram-me até ela as circunstâncias ou Cibele.

 

- Mas os perigos políticos de te associares, seja de que maneira for, a Clódio...

 

- Já tomei a minha decisão.

 

Ele deu umas pancadinhas do queixo, pensativo.

 

Então penso que, pelo menos, temos de rever aquilo que sabemos sobre estes Clódios, antes de te lançares na defesa dos interesses deles ou de meteres ao bolso mais alguma da sua prata.

 

- Muito bem, o que sabemos nós acerca deles? E sejamos cuidadosos em separar os factos das calúnias.

 

Eco acenou com a cabeça. Falava pausadamente, moldando os pensamentos com todo o cuidado.

 

- São patrícios. Pertencem a uma família muito antiga e distinta. Têm muitos antepassados de renome, vários dos quais foram cônsules, e cujas obras públicas estão espalhadas por toda a Itália estradas, aquedutos, templos, basílicas, portas, pórticos, arcos. Os seus parentes casam-se com membros de famílias de igual estatura, numa rede tal, que nem um fabricante de seda seria capaz de desenredar todos os fios. Os Clódios são o coração da classe governante de Roma.

 

- Por muito fracturada e em conflito consigo própria que essa classe esteja. Sim, a respeitabilidade da sua linhagem e das suas relações é inquestionável concordei eu. Embora convenha sempre perguntar como é que os ricos e poderosos se tornaram ricos e poderosos.

 

Eco agitou um dedo na minha direcção.

 

- Ora, papá, já violaste a tua própria regra, estás a misturar factos com insinuações.

 

- Só os factos concedi. Ou então, tudo aquilo que não for um facto deve ser claramente identificado como boato, emendei, apercebendo-me de que, de outra maneira, talvez fosse difícil falar de Clódia e de Clódio.

 

Muito bem continuou Eco -, para começar, temos o nome. A forma patrícia é Cláudio, e o pai de ambos chamava-se Ápio Cláudio. Mas, há uns anos, Clódio e três das suas irmãs alteraram o nome da família para a forma mais comum, substituindo o au, com um som mais elegante, por um o. Deve ter sido na altura em que Clódio decidiu tentar a sua sorte como político populista e instigador de tumultos. Suponho que esse retoque popular será uma ajuda quando ele se mistura com os homens de mão e os atiradores de tijolos, e anda a angariar votos entre aqueles que vivem das ofertas de cereais que ele próprio decretou.

 

- Sim, mas que vantagem é que isso pode trazer a Clódia? perguntei eu.

 

- Pela tua descrição do que se passou naquele horto esta tarde, imagino que ela também suspire por um retoque popular. É bisbilhotice, confesso! acrescentou Eco apressadamente, quando eu levantei um dedo.

 

- Outro facto disse eu. Eles são apenas meios-irmãos.

 

- Não sabia.

 

- Pois são; Clódia é a mais velha, e julgo que a sua mãe morreu aquando do seu nascimento. Pouco depois, Ápio Cláudio voltou a casar-se e teve mais três filhos e duas filhas; Públio Cláudio, agora Clódio, é o mais novo dos rapazes. Clódio deve ser da tua idade, Eco, terá uns trinta e cinco anos, e Clódia deve ser cerca de cinco anos mais velha que ele.

 

- Com que então são apenas meios-irmãos disse Eco. Quer dizer que a copulação seja ela conjectural ou não seria apenas meio-incesto, não?

 

- Não é que essa distinção tenha uma grande importância para qualquer pessoa que habite deste lado do Egipto disse eu. Na verdade outra bisbilhotice, ouvi dizer que Clódio foi amante das três irmãs, das duas mais novas e da irmã mais velha, Clódia. Tal como ouvi dizer que, em miúdo, Clódio foi adestrado como catamita pelos irmãos mais velhos, que vendiam os seus favores sexuais a pervertidos abastados.

 

- Mas eu pensei que Clódio e a família já eram ricos.

 

- Eram fabulosamente ricos em comparação connosco, Eco, mas não em comparação com os seus pares. Durante as guerras civis, quando Clódia e Clódio eram miúdos, Ápio, o pai de ambos, estava do lado de Sula. Quando a estrela de Sula entrou em declínio, Ápio teve de fugir de Roma durante vários anos. Os filhos tiveram de prover ao seu próprio sustento, numa cidade pejada de inimigos. Clódia, a mais velha, acabava de entrar na adolescência. Não deve ter sido fácil para eles. Foram anos difíceis para toda a gente. Isso era uma coisa que eu não precisava propriamente de dizer a Eco; nesses anos de guerras civis caóticas, o pai dele tinha morrido e a mãe fora reduzida a um tal estado de pobreza, que acabara por abandoná-lo nas ruas; fora nessa altura que eu o recolhera e o adoptara.

 

Quando Sula finalmente triunfou e se tornou ditador, Ápio Cláudio regressou e, durante algum tempo, prosperou. Foi eleito cônsul no ano em que Sula se retirou. Depois recebeu a sua recompensa, um governo provincial acho que na Macedónia onde poderia sangrar os habitantes locais com impostos e colectar tributos aos respectivos chefes, proporcionando assim aos seus filhos prata suficiente para eles iniciarem as suas carreiras políticas e às filhas os dotes que elas esperavam. É o que acontece aos romanos com carreiras políticas bem sucedidas. Mas não foi o que aconteceu a Ápio Cláudio. Ele morreu na Macedónia. Os impostos e os tributos foram colectados pelo seu sucessor, e a única coisa que os filhos de Ápio Cláudio receberam da Macedónia foram as cinzas do pai. Depois disso, devem ter passado um mau bocado. Nunca foram tão pobres que tenham desaparecido da vista, mas não é difícil imaginá-los a economizar e a cortar nas arestas para manterem as aparências aquele género de humilhaçõezinhas tão amargas para os patrícios, habituados a privilégios.

 

Sem o pai a mandar em casa, os filhos devem ter feito as suas próprias regras. Clódio e as irmãs ter-se-ão comportado como carneiros com cio na ausência de um pastor que os separasse? Não sei, mas crescerem numa cidade turbulenta, muitas vezes hostil, com o pai ausente durante anos seguidos, e depois perderem-no quando eram ainda muito jovens, deve ter aproximado bastante os irmãos talvez de uma forma pouco comum ou mesmo pouco natural. E, embora eu duvide muito de que o jovem Clódio tenha alguma vez sido um prostituto no sentido comercial estrito esse género de conversa tresanda a calúnia -, dadas as circunstâncias, não é difícil imaginá-lo a utilizar os atributos que possuía para obter favores junto de todos aqueles que pudessem ajudá-lo, e aos seus irmãos, a sobreviver. Como não é difícil imaginar que houvesse quem o considerasse desejável. Clódio ainda agora parece um rapazinho esguio de membros, esguio de coxas, largo de peito. Pele macia. Um rosto como o da irmã...

 

- Sim, estava a esquecer-me de que tu o tinhas visto nu disse Eco, erguendo as sobrancelhas.

 

Eu ignorei a provocação.

 

- O terceiro nome desta linha dos Cláudios é Pulcher, sabias? ”belo”. O nome completo de Clódio é Públio Clódio Pulcher, e o da irmã é Clódia Pulcher. Não sei até onde remonta o nome, ou qual dos antepassados foi suficientemente vaidoso para tê-lo acrescentado, mas não há dúvida de que assenta bem à actual geração. Pulcher, sem dúvida! E, dizes bem, falo com conhecimento, já que acabei de os ver a ambos despidos, ou quase isto, são factos, e não bisbilhotices! Sabes, não tenho dificuldade em imaginar que, tendo-os visto juntos, haja quem goste de imaginar Clódia e Clódio a fazer amor, quer isso seja verdade, quer não.

 

- Papá, estás a ficar com os olhos vidrados!

 

- Certamente que não. Mas deixa lá isso. Toda a gente sabe que os Clódios são belos e toda a gente suspeita de que ambos têm demasiadas relações sexuais, o que não é bom para ninguém. Que mais sabemos acerca deles? Acho que a primeira vez que ouvi falar de Clódio foi quando ele foi o acusador nos julgamentos das Virgens Vestais.

 

- Ah, sim, quando acusou Catilina de ter seduzido a Vestal Fábia.

 

- Mas, quando Catilina e a Vestal foram ambos absolvidos, as coisas aqueceram de tal maneira para Clódio em Roma, que ele teve de fugir para Baias até o furor acalmar. Queimou os dedos com esse episódio. Calculo que ainda não tivesse trinta anos. Nunca consegui perceber qual era o objectivo dele, para além de provocar sarilhos. Talvez ainda não se sentisse seguro, e quisesse testar o seu poder.

 

- E lembro-me de um episódio em que ele esteve envolvido uns anos depois disse Eco. Teve qualquer coisa a ver com a provocação de um motim entre as tropas.

 

- Ah, sim, quando ele partiu para o Leste como lugar-tenente de Luculo, o cunhado. Clódio apresentou-se como defensor dos soldados. Eles andavam insatisfeitos com a maneira como Luculo os levava de campanha em campanha, sem fim à vista, sem perspectivas seguras de recompensa, enquanto as tropas de Pompeu, com menos anos de serviço, já recebiam quintas e propriedades. Clódio fez um famoso discurso às tropas, dizendo-lhes que mereciam mais do seu general do que a possibilidade de perderem a vida para protegerem a sua caravana pessoal de camelos, carregados de ouro. ”Se temos de continuar a combater, não será preferível reservarmos os nossos corpos e as nossas almas para um comandante que ponha a sua glória na riqueza dos seus homens?”

 

- Papá, tu sempre tiveste uma memória incrível para discursos, mesmo para aqueles que só ouviste em segunda-mão!

 

Essa memória tanto pode ser uma bênção como uma maldição, Eco. De qualquer maneira, como vês, já nessa altura Clódio inflamava as multidões, apresentando-se como o advogado das massas, opondo-se ao status quo. Não é de espantar que tenha adoptado a forma plebeia do seu nome.

 

E depois, mais escândalos disse Eco. O caso da Boa Deusa.

 

Sim. Só foi há seis anos? É irónico que um homem que começou por perseguir uma Virgem Vestal e o seu alegado amante se tenha envolvido num escândalo tão sacrílego. Diz-se, e isto é bisbilhotice, não são factos que Clódio andava envolvido com a mulher de César, Pompeia, mas César descobriu e encarregou a mãe de vigiar Pompeia como um falcão, de tal maneira que se tornou impossível aos amantes encontrarem-se. Não sendo homem para permitir que lhe seja negada a satisfação dos seus apetites, Clódio maquinou um esquema para chegar até Pompeia. Decidiu entrar sorrateiramente na casa onde teriam lugar as celebrações da Boa Deusa, Fauna, que nesse ano era a de César. Os homens estão proibidos de participar, naturalmente. Então, como é que Clódio conseguiu entrar? Vestido de mulher! Imagina-o aperaltado como uma cantora, com um fato cor de açafrão, meias e chinelos roxos

- pergunto a mim próprio se as irmãs o terão ajudado.

 

- Talvez não fosse a primeira vez que vestia uma estola disse Eco.

 

- Calculo que não tenha resistido à ideia de possuir Pompeia na própria cama de César, com a própria mãe de César e dezenas de mulheres a cantar e a queimar incenso no quarto ao lado. Pergunto-me se Clódio teria planeado manter a estola vestida enquanto o fazia.

 

- Papá, protesto! Estás a permitir que a tua imaginação lúrida te induza a aceitar mexericos, e depois completas a calúnia.

 

-Tens razão, Eco. Vou tentar regressar aos factos. Diz-se que Clódio quase conseguiu. Por entre a bruma do incenso e a confusão de cantos e danças quem sabe em que género de rituais se envolvem essas mulheres à porta fechada? Clódio conseguiu entrar na casa e descobrir uma das jovens escravas de Pompeia, que estava à espera dele. A rapariga foi chamar a sua senhora mas, como ela não voltasse, Clódio começou a sentir-se impaciente e avançou pela casa sozinho, mantendo-se nas zonas menos iluminadas, observando os procedimentos.

 

- Não adoravas saber o que ele viu?

 

- Qualquer homem adorava, Eco. Mas Clódio teve o azar de ser descoberto por outra criadita, que viu a sua atitude hesitante e lhe perguntou, inocentemente, de que andava ele à procura. Ele disse-lhe que andava à procura da jovem escrava de Pompeia, mas não foi capaz de disfarçar a voz. A rapariga soltou um guincho. Clódio conseguiu esconder-se numa despensa, mas as mulheres acenderam tochas e revistaram a casa até que o encontraram e o expulsaram.

 

- Bem disse Eco com uma expressão perversa pelo menos Clódio infirmou a antiga superstição que todos aprendemos em miúdos, de que qualquer homem que assistisse às cerimónias secretas da Boa Deusa ficaria instantaneamente cego.

 

- É certo que Clódio não ficou cego, mas talvez tivesse desejado ficar surdo, para não ter de ouvir o clamor que provocou. As mulheres foram para casa contar aos maridos, e tu sabes como são os homens com a bisbilhotice. Na manhã seguinte, o escândalo era motivo de conversa em todas as tabernas e esquinas de Roma. Os piedosos estavam escandalizados, os ímpios divertidos, e eu não tenho nenhuma dúvida de que haveria alguns, de ambos os campos, que estavam mais do que ligeiramente invejosos. O assunto foi muito comentado durante algum tempo e depois esquecido durante meses, até que alguns inimigos de Clódio decidiram levá-lo a tribunal por sacrilégio.

 

No julgamento, Clódio declarou que estava inocente e que as mulheres estavam enganadas porque, durante as celebrações da Boa Deusa, ele se encontrava a setenta e cinco quilómetros de Roma. Nessa altura, Clódio e Cícero ainda tinham uma relação de amizade e, quando a acusação convocou Cícero como testemunha, Clódio esperava que ele confirmasse o seu alibi. Mas Cícero declarou respeitosamente que tinha visto Clódio em Roma no dia em questão. Clódio ficou furioso. Foi o começo das desavenças entre ambos.

 

- Apesar disso, Clódio foi absolvido disse Eco.

 

- Sim, por uma escassa maioria de cinquenta e poucos jurados. Dizem alguns que houve corrupção declarada de ambos os lados; outros, que os jurados se limitaram a respeitar as suas preferências políticas. Seja como for, Clódio foi justificado e emergiu mais forte do que nunca. Tornou-se mais arrojado na utilização dos bandos de ruas que faziam parte da sua comitiva, a fim de intimidar os seus inimigos. Quanto a César, o marido enganado, a sua única reacção foi divorciar-se de Pompeia, embora tenha declarado publicamente que não houvera entre ela e Clódio nenhum acto impróprio. Quando lhe apontaram o paradoxo por que se divorciava de Pompeia, se ela lhe fora fiel? -, disse: ”Não tenho qualquer dúvida acerca da sua fidelidade, mas a mulher de César nem sequer pode ser objecto de suspeita!” Bem, César não deve ter ficado muito ofendido com Clódio, já que os dois acabaram por se tornar grandes aliados.

 

- Como ficou demonstrado pela forma como César ajudou Clódio a conseguir o tribunato.

 

- Exacto. Clódio queria ser eleito tribuno, mas esse cargo estava-lhe vedado, dado que é estritamente plebeu, estando fora do alcance dos patrícios. Qual foi a solução de Clódio? Com César a fazer avançar a papelada, conseguiu ser adoptado por um plebeu quase com idade para ser seu filho, e foi oficialmente registado como plebeu para escândalo dos outros patrícios e delícia da multidão, que o elegeu tribuno. Clódio era finalmente um homem comum, tanto de facto como de nome.

 

- Estou a ver aqui um padrão disse Eco. Se um homem não pode assistir aos ritos da Boa Deusa, Clódio transforma-se em mulher. Se um patrício não pode concorrer a tribuno, Clódio, que tinha a mais patrícia das linhagens de Roma, transforma-se em plebeu.

 

Não é homem que se deixe deter por pormenores concordei eu.

- Durante o ano em que foi tribuno, conseguiu uma série de coisas introduziu a distribuição de cereais para agradar à multidão, organizou a tomada do Chipre egípcio por Roma, para financiar essa distribuição, e fez aprovar a lei que enviou Cícero para o exílio.

 

Eco acenou com a cabeça.

 

- Mas agora Cícero regressou e César, o aliado de Clódio, partiu à conquista da Gália. A grande questão política do momento é a crise egípcia, o que nos faz regressar à malfadada missão de Díon. Se acreditarmos em Clódia, Clódio tornou-se amigo do pobre Díon antes de ele ser morto e agora, eles querem que tu descubras provas contra Marco Célio, o amante de Clódia, para poderem acusá-lo de assassínio.

 

- Um resumo admirável disse eu. Penso que conseguimos retirar algumas verdades das calúnias e chegar a conclusões acerca do carácter de Clódio, embora eu não saiba bem onde é que isso poderá levar-nos. Não mudei de opinião. Já trabalhei para homens cujos hábitos e cuja moral eram tão questionáveis como os dele. Não vejo razões para recusar uma incumbência de Clódio, se isso me conduzir à descoberta da verdade sobre a morte de Díon.

 

- Então e Clódia?

 

- O que é que tem? Muito bem, vamos analisar Clódia. Com as mesmas regras: só a verdade, a não ser que identifiquemos a coscuvilhice como tal embora me pareça que a regra é ainda mais difícil de observar no caso de Clódia do que no de Clódio. Acho que sobre ela ouvimos dizer mais e sabemos menos. Mas vamos a isto. É a primeira filha de Ápio Cláudio e foi educada pela madrasta com os meios-irmãos mais novos esta circunstância tê-la-á tornado mais forte, mais responsável, mais independente? Mera especulação. Sabemos que casou jovem, antes de o pai morrer e deixar a família em dificuldades financeiras, por isso conseguiu levar um bom dote para o seu casamento com um primo, Quinto Metelo Celer o que pode ajudar a explicar a sua independência quando teve de marrar com o marido por discussões familiares e divergências políticas. Em qualquer discussão, mesmo com Celer, parece ter escolhido sempre o lado dos irmãos.

 

- Os Clódios contra o mundo? disse Eco.

 

- Dito dessa maneira, parece uma coisa admiravelmente romana. E se todos esses boatos de incesto se limitassem a reflectir a inveja de estranhos menos belos, menos amados? Por que não havemos de dar a Clódia o benefício da dúvida e atribuir os rumores dos seus adultérios e do incesto a línguas maliciosas?

 

- Foste tu que passaste a tarde no horto dela, papá, a vê-la comer com os olhos homens nus.

 

- Pois, bem, é verdade que ela não se esforça muito por contrariar as mentiras que correm sobre ela, se de facto são mentiras. E não há dúvidas de que o casamento com Celer foi tempestuoso. Há muitas testemunhas disso, incluindo Cícero, que era uma visita frequente na época em que estava de boas relações com os Clódios. Mas é significativo que, apesar dos problemas que tinham, Clódia e Celer tenham permanecido casados durante vinte anos...

 

- Até Celer morrer misteriosamente, há três anos.

 

- Pois, bem, já falámos acerca do boato de que ela o envenenou. Vale a pena notar que nunca ninguém apresentou qualquer acusação contra ela, coisa que qualquer membro da família de Celer podia perfeitamente ter feito, se houvesse alguma prova. Sempre que um cidadão notável de Roma morre de outra coisa, que não seja de acidente, há alguém que diz que ele foi envenenado. Tal como há sempre quem murmure que qualquer mulher ou homem, já agora excepcionalmente bela é uma prostituta. Embora tenhamos ambos ouvido muitos boatos, na realidade não sabemos assim muitas coisas sobre Clódia, pois não?

 

Eco encostou-se e juntou as pontas dos dedos.

 

- Julgo, papá, que estás a permitir que o fato amarelo-transparente obscureça a tua capacidade de julgar.

 

- Que disparate!

 

- Ele cobre-te os olhos como um véu. -Eco!

 

- Falo a sério, papá. Pediste-me que fosse honesto contigo, e sê-lo-ei. Julgo que Clódia é provavelmente uma mulher muito perigosa, e não me agrada que trabalhes para ela. Se tens de o fazer, por Díon, então espero que a vejas o mínimo possível.

 

- Já a vi bastante.

 

- Estou a falar a sério, papá. Não havia ligeireza na sua voz. Não gosto nada disto.

 

- Nem eu. Mas há caminhos que um homem tem de percorrer, deixando-se conduzir para onde os deuses querem levá-lo.

 

- Bem disse Eco com uma entoação ligeiramente cortante suponho que um argumento religioso pode pôr fim a qualquer discussão.

 

E, se não fosse um argumento religioso, seria o que aconteceu a seguir, porque naquele momento entraram disparados na sala dois minúsculos mísseis humanos, como bolas de fogo lançadas de uma catapulta. Um deles corria atrás do outro, a uma velocidade tal, que eu não consegui perceber quem era o perseguidor e quem era o perseguido; é frequente eu ter dificuldade em distinguir os gémeos, mesmo quando estão quietinhos. Aos quatro anos, não havia grande coisa que os diferenciasse. Gordiana (a quem Meto chamara Titânia desde o nascimento, por ela ser muito grande) era talvez ligeiramente maior do que o irmão Tito, mas ambos estavam preparados para se irem deitar e vestiam túnicas idênticas de manga comprida que lhes chegavam aos tornozelos, e tinham os mesmos caracóis louros compridos um legado da família da mãe, e talvez fosse por isso que, até ao momento, Menénia se tinha recusado a tosquiar-lhes um só caracol.

 

Sem abrandarem um segundo, os dois atravessaram o escritório e desapareceram no compartimento seguinte. Momentos depois, surgiu a mãe. Parecia bastante calma, e até sorria.

 

- Acabaram finalmente as vossas discussões sérias? perguntou. Menénia pertence a uma família plebeia muito antiga, tão respeitável quanto obscura. Há centenas de anos a esta parte, alguns antepassados seus conseguiram obter um consulado; isso terá sempre algum valor, mas não como fonte de rendimentos. Ainda assim, considerando a linhagem bastante menos distinta do seu pai adoptivo, Eco teve sorte em fazer um tal casamento e, pessoalmente, Menénia está acima de qualquer crítica em todos os campos; é um modelo de matrona romana. É mesmo capaz de lidar com a sogra com um tacto desprovido de esforço; quem me dera conseguir estar nas boas graças de Betesda com tanta frequência como ela.

 

- Sim, mulher disse Eco. Acho que já acabámos de discutir a vida e a morte, a justiça e os deuses, e outros assuntos triviais do mesmo género.

 

- Óptimo. Nesse caso, talvez disponham ambos de um momento para gastar com a vossa prole. A única razão por que os gémeos andam naquele frenesim, é porque se recusam a ir-se deitar sem dizerem boa-noite ao avô.

 

- Bem, então não precisam de esperar mais tempo disse eu, rindo-me e, antes que tivesse oportunidade de me preparar, surgiram do nada duas bolas de fogo de cabelos claros que se precipitaram para o meu colo.

 

Estava a fazer-se tarde; Betesda devia estar à minha espera em casa. Despedi-me rapidamente de Eco e Menénia, consegui finalmente libertar-me das mãos surpreendentemente firmes de Tito e Titânia o que não foi tarefa fácil, porque cada um deles segurava uma das minhas mãos, recusando-se a largar-me. Quando gritei por Belbo para que fosse ajudar-me, não estava inteiramente a brincar.

 

Belbo e eu descemos o Monte Esquilino sob uma lua quase cheia, voltámos a passar pela Subura, cujas ruas estavam repletas de gente, apesar do adiantado da hora, e atravessámos o Fórum, onde os templos estavam mergulhados em silêncio e as praças, amplas e iluminadas pela Lua, praticamente desertas. Por cima das nossas cabeças, o céu frio estava pejado de estrelas. Quando passámos pela Casa das Vestais, eu estremeci e apertei a capa com mais força à volta da garganta, pensando que era o ar da noite a infiltrar-se-me nos ossos.

 

Mesmo por trás da Casa das Vestais, junto aos degraus do Templo de Castor, virámos para Norte, na direcção do caminho amplo chamado a Rampa, que é o melhor atalho para subir a encosta íngreme do Monte Palatino, desde o Fórum até à zona residencial. A Rampa é bem frequentada; porém, mesmo à luz do dia, tem passagens isoladas e secretas: na zona inferior, está rodeada pela base de pedra do Palatino e pelas altas paredes das traseiras da Casa das Vestais, e na parte superior do percurso está resguardada de ambos os lados por carreiras apertadas de ciprestes. Depois de escurecer, a Rampa é um local de sombras profundas, mesmo em noites de Lua cheia. É o sítio ideal para um assassínio

- dissera Betesda um dia, antes de voltar para trás a meio do caminho, recusando-se a passar novamente por lá.

 

Senti outro arrepio súbito e percebi que não tinha nada a ver com o ar da noite. Estávamos a ser seguidos, não por acaso mas sub-repticiamente, porque quando fiz sinal a Belbo para que parasse, ouvi atrás de nós um ruído incerto de passos, que pararam um momento depois. Voltei-me e observei o caminho estreito, mas não consegui distinguir qualquer movimento por entre as sombras densas.

 

- Um homem ou dois? murmurei para Belbo. Ele franziu a testa.

 

- Um, julgo eu, Senhor.

 

- Concordo. Os passos pararam todos ao mesmo tempo, sem hesitações nem murmúrios. Achas que nós os dois temos alguma coisa a temer de um homem, Belbo?

 

Belbo olhou para mim, pensativo. Uma ponta do luar iluminava-lhe as sobrancelhas hirsutas.

 

- Não, a não ser que ele tenha um amigo à espera ao fim da rua, Senhor. Isso equilibraria as forças.

 

- E se ele tiver mais do que um amigo lá em cima?

 

- Queres voltar para trás, Senhor?

 

Espreitei para a escuridão abaixo de nós, e depois para as sombras à nossa frente.

 

- Não. Estamos quase a chegar. Belbo encolheu os ombros.

 

- Há homens que têm de ir até à Gália para morrer. Outros fazem-no mesmo à porta de casa.

 

- Mete a mão dentro da túnica, e segura o punhal, que eu farei o mesmo. E mantém um passo constante.

 

Enquanto nos aproximávamos do final da rua, eu apercebi-me de que esse seria o local ideal para uma emboscada. Há uns tempos a esta parte, eu subia aquele caminho íngreme sem dificuldades, mas agora já não; um homem sem fôlego é um alvo fácil. Até Belbo respirava com mais força. Pus-me à escuta dos passos atrás de nós, e tentei ouvir alguma coisa à nossa frente, mas só ouvi o bater do meu coração e a torrente de ar nas narinas.

 

Quando nos aproximávamos do alto da Rampa, os ciprestes tornaram-se menos densos de ambos os lados da rua e o caminho abriu-se, com o luar a dispersar as sombras e a proporcionar-nos vislumbres das casas à nossa frente. Consegui mesmo avistar uma ponta do telhado de minha casa, o que me fez sentir simultaneamente tranquilo e apreensivo. Tranquilo por me encontrar mais perto da segurança, apreensivo porque por vezes os deuses recorrem às mais espantosas ironias para darem cumprimento ao destino dos mortais. Estávamos quase a sair da rua, mas ainda havia muitas sombras onde poderiam estar escondidos diversos assassinos. Preparei-me para um ataque e espreitei para as bolsas de escuridão.

 

Finalmente, saímos da Rampa para a rua pavimentada, a poucas portas de minha casa. O caminho estava livre de ambos os lados. A rua estava deserta e silenciosa. De um andar superior ali perto, chegou aos meus ouvidos a voz suave de uma mulher trauteando uma canção de embalar. Tudo estava tranquilo.

 

- Talvez devêssemos ser nós a emboscar-nos sussurrei a Belbo depois de recuperar o fôlego, porque ouvi aproximarem-se os passos do nosso perseguidor. Se alguém vinha a perseguir-nos, gostaria de saber quem era.

 

Recuámos para as sombras e esperámos.

 

Os passos estavam próximos e, a qualquer momento, o homem chegaria junto de nós e seria iluminado pelo luar.

 

A meu lado, Belbo arquejou. Eu imobilizei-me, perguntando a mim próprio o que se passaria.

 

Depois, Belbo espirrou.

 

Foi apenas um espirro parcial porque ele fez o possível por abafá-lo, mas o silêncio era tal, que o ruído foi equivalente ao de um trovão. Os passos detiveram-se. Eu espreitei para a escuridão e consegui distinguir os contornos vagos do homem, uma silhueta por entre sombras pintalgadas. Do local onde se encontrava, parecia estar a espreitar-me também, tentando perceber a origem do espirro. Instantes depois, desapareceu, e eu ouvi os seus passos de corrida pela Rampa abaixo.

 

Belbo fez um movimento.

 

- Vamos atrás dele, Senhor?

 

Não. Ele é mais jovem do que nós provavelmente é muito mais veloz.

 

Como é que sabes?

 

- Ouviste-o arquejar? -Não.

 

- Exactamente. Nem eu, e ele estava suficientemente perto de nós para podermos ouvi-lo se viesse sem fôlego. Tem uns pulmões fortes.

 

Belbo baixou a cabeça, desgostoso.

 

- Senhor, desculpa ter espirrado.

 

Há coisas que nem os deuses podem evitar. Talvez tenha sido melhor assim.

 

- Achas mesmo que ele estava a seguir-nos?

 

- Não sei. Mas que nos assustou, disso não tenho dúvidas.

 

- E nós também o assustámos!

 

Então talvez estejamos pagos, e ponto final disse eu, mas sentia-me apreensivo.

 

Subimos rapidamente a rua até minha casa. Belbo bateu à porta. Enquanto esperávamos que o escravo nos abrisse, eu disse-lhe:

 

- Belbo, quer tenhamos sido seguidos, quer não, não fales nisto à tua senhora. Não há necessidade de arranjar problemas. Compreendes?

 

- Claro, Senhor disse ele gravemente. Fiquei a pensar por momentos.

 

E também não contes a Diana.

 

- Nem falar, Senhor. Belbo sorriu. Depois o seu maxilar começou subitamente a tremer e o seu rosto contorceu-se. Eu agarrei-lhe no ombro, alarmado.

 

Belbo atirou a cabeça para trás e espirrou novamente.

 

Na manhã seguinte, levantei-me cedo, comi um pequeno-almoço frugal de mel e pão, ofereci a cara a Belbo para que me aparasse a barba (não confio a mais ninguém o uso de objectos afiados perto do meu pescoço), vesti a toga, porque tencionava fazer umas visitas formais, e saí de casa. O ar fresco e orvalhado era tonificante; o frio da noite, que ainda se fazia sentir, era temperado pelo Sol quente da manhã. Enchi os pulmões inspirando profundamente e subi a rua com Belbo a meu lado.

 

O Palatino pareceu-me especialmente encantador naquela manhã. Ultimamente, sempre que deixava a proximidade imediata de minha casa, ficava espantado com a sujidade e a porcaria que tomavam conta de uma parte tão significativa de Roma, especialmente a Subura, com os seus bordéis, as suas tabernas e as ruelas laterais malcheirosas, e o Fórum, com as suas multidões de políticos e financeiros de toga, ocupados nos seus negócios frenéticos. Quão mais agradável era o Palatino, com as suas ruas sombrias e bem pavimentadas, as suas lojinhas exóticas, os apartamentos ordenados e as casas elegantes. Nesse bairro, era possível respirar e caminhar, mesmo nas horas mais movimentadas do dia, sem andar às cotoveladas a centenas de estranhos desagradáveis, que também nos empurravam.

 

Percebi que me tinha habituado a viver num bairro de ricos, e a adaptação não fora mesmo nada difícil. O que diria o meu pai, que toda a vida tinha vivido na Subura? Provavelmente, pensei, sentir-se-ia orgulhoso do êxito material do seu filho, apesar da forma pouco convencional como fora alcançado. Também era provável que me recordasse que devia manter a perspicácia e não me deixar enganar pelas aparências. As coisas raras e belas que a riqueza e o poder podem comprar não passam, muitas vezes, de decorações que escondem o modo como essa riqueza e esse poder foram adquiridos. Sim, um homem respira livremente no arejado e espaçoso Palatino e também pode parar de respirar. O que acontecera a Díon fora qualquer coisa mais terrível do que as cotoveladas de estranhos. A qualidade dos lençóis onde um homem dorme é totalmente irrelevante se o sono for para sempre.

 

A caminho de casa de Lúcio Luceio, tínhamos de passar diante do edifício de apartamentos de onde Marco Célio fora recentemente expulso. Ao passar, eu parei e ergui os olhos. Não só o andar de cima estava deserto, como tinha sido pintado um letreiro em grandes letras pretas no canto do edifício:

 

PARA VENDA PELO PROPRIETÁRIO PÚBLIO CLÓDIO PULCHER

 

Por baixo, havia um desenho qualquer. Atravessei a rua para observar melhor e vi que se tratava de um grafitto obsceno com um homem e uma mulher envolvidos numa relação sexual. À primeira vista, pareceu-me que as posições de ambos eram absurdamente acrobáticas; vendo melhor, decidi que eram fisicamente impossíveis. Da boca aberta da mulher, saía uma legenda garatujada, com erros de ortografia em quase todas as palavras:

 

NÃO HÁ COMO O AMOR DE UM IRMÃO

 

O artista não tinha suficiente talento para o desenho para conseguir captar feições reconhecíveis, mas eu não tinha dúvidas de quem as duas figuras em posição de cópula queriam representar. O grafito devia ter sido feito por um dos rufias de Milo, pensei, embora Clódio e a irmã tivessem muitos outros inimigos. Considerando os erros de ortografia, o vandalismo dificilmente poderia ser atribuído a Marco Célio. Ou poderia? Célio tinha uma inteligência suficientemente perversa para disfarçar deliberadamente a sua obra fazendo-a passar pela de outro com menor entendimento.

 

Belbo e eu avançámos. Depois de termos dado numerosas voltas e reviravoltas, descendo pequenas ruelas laterais e estreitas, chegámos a casa de Lúcio Luceio. Como convinha ao domicílio de um senador já de alguma idade, abastado e respeitado, a casa tinha uma fachada irrepreensível. A única ornamentação era a maciça porta de madeira, que parecia muito antiga e era entalhada com torcidos e maciços cravos de ferro, que tinham o aspecto primitivo do melhor artesanato cartaginês. Não era improvável que a porta tivesse sido trazida do saque da própria Cartago; já vi muitos troféus semelhantes nas casas daqueles cujas famílias conquistaram os rivais de Roma. Sem se deixar perturbar pela sua história e pelo seu desenho, Belbo bateu.

 

A porta foi rapidamente aberta pelo escravo porteiro, com quem Belbo trocou as necessárias formalidades. Momentos depois, fui admitido no vestíbulo, e depois conduzido a um escritório escassamente mobilado. As paredes estavam decoradas com troféus de guerra cartagineses lanças, espadas, pedaços de armaduras e mesmo um par de presas de elefante. O dono da casa, um homem de cabelo branco, estava sentado diante de uma mesa coberta de rolos de pergaminho, estiletes, tabuinhas para escrita em cera e bocados de pergaminho.

 

- Só posso conceder-te um momento disse ele, sem erguer os olhos. Sei quem és, evidentemente, e posso adivinhar o que vieste cá fazer. Tens aí uma cadeira. Senta-te. Finalmente, pousou o rolo de pergaminho que estivera a examinar e olhou para mim com os olhos franzidos. Sim, lembro-me da tua cara. A primeira vez que te vi foi quando Cícero te apontou no Fórum, numa ocasião em que eu estava com ele deve ter sido há uns quinze anos durante os julgamentos das Virgens Vestais. Maldito Catilina, corrompeu uma Vestal e saiu impune! Fui eu que o levei a tribunal, sabias?, um ano antes de ele ter encenado aquela insurreiçãozita. Não ganhei esse caso, pois não? Provavelmente, teria sido melhor para todos os implicados se tivesse ganho, incluindo Catilina, podia estar neste momento algures a gozar o exílio, sodomizando todos os rapazinhos bonitos de Massília ou de outro sítio qualquer. Por Hércules, tu pareces estar em forma! Pensei que, por esta altura, estivesses tão envelhecido como eu! Lúcio Luceio fez um grande sorriso e afastou a cadeira da mesa. Era um homem espantosamente feio, com grandes sobrancelhas eriçadas e uma juba desgrenhada de cabelo branco.

 

Encostou-se e esfregou os olhos.

 

- De qualquer maneira, precisava de fazer um intervalo. Estou a trabalhar na minha história das guerras cartaginesas. O meu tetravô ajudou Cipião, o Africano, a dar cabo de Aníbal e legou à família uma pilha de pergaminhos onde ninguém põe os olhos há anos. Um material fascinante. Quando acabar de a escrever, vou obrigar a minha família e todos os meus amigos a comprarem um exemplar. Nenhum deles se incomodará a lê-los, mas o trabalho entretém-me. Gordiano, Gordiano devaneou, olhando fixamente para mim e franzindo o sobrolho. Pensei que te tivesses reformado, que nem sequer vivesses em Roma. Parece que alguém me disse que tinhas ido viver para a tua quinta da Sicília.

 

Era na Etrúria. Mas isso foi há algum tempo. Já regressei a Roma há uns anos.

 

Continuas reformado?

 

Sim e não. Aceito casos simples, de vez em quando, só para estar ocupado. Mais ou menos como tu com a tua História, imagino eu.

 

Pelo brilho que iluminou os seus olhos frisados, percebi que Luceio levava o seu papel de historiador mais a sério do que a sua modéstia indicava.

 

- Bem disse ele secamente, Cícero mandou-te recolher o meu depoimento. Receio que não esteja pronto.

 

Olhei para ele sem expressão.

 

Bem, tenho tido tanto que fazer disse ele. Foi por isso que vieste, não foi? Esse assunto do jovem Marco Célio, levado a tribunal por aqueles malandros que afirmam que ele tentou matar Díon?

 

- Sim disse eu lentamente. É por isso que estou aqui.

 

- Surpreendeu-me bem, surpreendeu toda a gente. Imagino quando ouvi dizer que Cícero ia tratar da defesa do rapaz. Pensei que aqueles dois se tinham zangado definitivamente, mas afinal... As coisas complicam-se e o aluno endiabrado volta a correr para junto do seu tutor. É comovente, na verdade.

 

Pois é disse eu com suavidade. Seria realmente possível que Cícero tivesse assumido a defesa de Marco Célio? A notícia era espantosa, mas perfeitamente lógica. Cícero tivera êxito com a defesa de Asício, e provavelmente fizera-o para agradar a Pompeu. Pompeu também gostaria de ver Célio ilibado, e Cícero era o homem ideal para isso. Quanto ao conflito entre Célio e Cícero, o mesmo pragmatismo que é capaz de transformar amigos em inimigos com um piscar de olhos também pode produzir o contrário. Quer dizer que o teu depoimento para Cícero ainda não está pronto? perguntei eu.

 

- Não. Volta cá amanhã. Na verdade, surpreende-me que ele te tenha mandado buscá-lo em vez de ter mandado aquele secretário, um que embirra com os mais pequenos pormenores.

 

-Tiro?

 

- Esse mesmo. Um escravo inteligente.

 

- Pois, bem, suspeito que acabará por ser Tiro a vir buscar o depoimento. Mas, já que aqui estou, talvez possa fazer-te umas perguntas.

 

- Avança.

 

- Sobre Díon.

 

Ele fez um gesto de mãos.

 

- Está tudo no depoimento.

 

- Ainda assim, talvez nos poupasse algum tempo a ti, a mim, a Tiro, a Cícero se me desses uma ideia exacta do que vais escrever.

 

- Só aquilo que já disse a Cícero. Díon foi meu convidado durante algum tempo e depois mudou de casa. É tão simples como isso. Esse disparate todo sobre venenos ”Os boatos sórdidos espalham-se como o azeite e deixam uma mancha igual à do vinho tinto”.

 

- Mas houve uma morte nesta casa, não houve? O escravo de Díon, o provador...

 

- Esse escravo inútil morreu de morte natural, e ponto final.

 

- Então, por que se mudou Díon para casa de Tito Copónio?

 

- Porque Díon andava com medo da própria sombra. Via um pau no chão, dizia que era uma cobra. Luceio resfolegou. Díon estava tão seguro aqui em casa como uma virgem na Casa dos Galli. E mais nada.

 

- Contudo, Díon estava convencido de que alguém nesta casa tinha tentado envenená-lo.

 

- Díon era totalmente desprovido de bom senso. Olha o que lhe aconteceu em casa de Copónio, e diz-me onde é que ele estava mais seguro!

 

- Vejo o que queres dizer. Então vocês os dois eram bons amigos, tu e Díon?

 

- Claro! O que é que achas, que eu ia convidar um inimigo para dormir debaixo do meu tecto? Ele sentava-se aí durante o dia, onde tu estás agora sentado, e conversávamos sobre Aristóteles, sobre Alexandria, ou sobre Cartago nos dias de Aníbal. Dava-me boas ideias para a minha história. Luceio olhou para o lado e mordeu o lábio. Não era mau tipo. Tive pena de o ver partir. Claro que ele tinha uns hábitos horríveis. Sorriu com um ar sinistro. Apanhava a fruta antes de estar madura e coisas assim.

 

- O quê?

 

Deixa lá. Não vale a pena contar mexericos sobre os mortos.

 

- ”Apanhava a fruta...”

 

- Gostava delas novas. Era desses. Não tem nada de mal, só que um homem deve evitar tocar naquilo que pertence ao seu anfitrião. Nada mais direi. E, pela sua expressão, percebi que assim seria.

 

Disseste que o escravo de Díon tinha morrido de morte natural. O que foi que o matou?

 

- Como queres que eu saiba?

 

- Mas uma morte em casa...

 

- A morte de um escravo, que era o escravo de outro homem.

 

Certamente alguém terá observado os sintomas.

 

- O que é que achas, que eu chamo o médico grego que está na moda sempre que um escravo tem uma dor de barriga? Os escravos adoecem todos os dias, e às vezes morrem.

 

- Então não podes ter a certeza de que não tenha sido veneno. Díon achou que tinha sido.

 

- Díon achava muitas coisas. Tinha uma imaginação razoável era melhor filósofo do que historiador.

 

- Ainda assim, se algum dos habitantes desta casa pudesse dizer-me exactamente como morreu o escravo, aquilo de que se queixava antes do fim...

 

Fui detido pela expressão que vi no rosto de Luceio. Ele olhou para mim por longos momentos. As suas espessas sobrancelhas juntaram-se acima dos seus olhos franzidos.

 

Quem te mandou cá?

 

- Prefiro não dizer.

 

Não foi Cícero, pois não?

 

- Venho como amigo de Díon.

 

Ou seja, não foi? Sai.

 

- O meu único interesse é descobrir a verdade acerca da morte de Díon. Se fosses realmente seu amigo...

 

Sai! Vá, vá. Levanta-te! Sai! Lúcio Luceio pegou num estilete e agitou-o como se fosse um punhal, olhando-me com uma expressão ameaçadora enquanto eu me levantava e me dirigia à porta. Deixei-o debruçado sobre os rolos de pergaminho, murmurando irritado consigo próprio.

 

O escravo que me tinha mandado entrar estava à espera no corredor para me conduzir à saída mas, antes de chegarmos ao vestíbulo, uma mulher enorme saiu para o corredor e bloqueou-nos o caminho.

 

- Podes ir, Cléon disse ela. Eu acompanho o nosso visitante. Pelo tom de voz, percebi que se tratava da dona da casa e, pelas maneiras obsequiosas do escravo, enquanto recuava, calculei que não fosse o género de matrona romana que concedesse grandes latitudes aos escravos.

 

A mulher de Luceio era tão feia como o marido, embora não fosse nada parecida com ele. Em vez de umas sobrancelhas hirsutas, tinha apenas duas linhas, pintadas por cima dos olhos. Devia ter o cabelo tão branco como o dele, mas pintava-o com hena vermelha. Vestia uma volumosa estola verde e usava um colar de contas de vidro verdes, com brincos a condizer.

 

- Então és tu o Gordiano, o Descobridor?, disse abruptamente, avaliando-me com um olhar cáustico. Ouvi o escravo anunciar o teu nome ao meu marido.

 

- E que mais ouviste? perguntei eu. A minha franqueza agradou-lhe.

 

- Ouvi tudo. Tu e eu devíamos conversar. Olhei por cima do ombro.

 

- Não te preocupes disse ela -, nesta casa, ninguém me espia. Sabem que é melhor não o fazer. Vem por aqui.

 

Segui atrás dela para uma ala diferente da casa. Foi como se entrasse noutro mundo. Se o escritório de Luceio era um museu austero de troféus de guerra e documentos antigos, os aposentos da mulher estavam flamejantemente decorados com intrincados bordados suspensos nas paredes e objectos preciosos, de metal e de vidro. Numa parede comprida, estava pintado um jardim de Primavera em flor, todo em tons de verde-pálido, cor-de-rosa e amarelo-suave.

 

- Enganaste o meu marido disse ela obliquamente.

 

- Ele achou que eu fora enviado por Cícero. Eu não o contradisse.

 

- Ou seja, limitaste-te a deixá-lo acreditar naquilo em que ele queria acreditar. Sim, é essa a melhor maneira de lidar com Lúcio. Ele não estava a mentir-te intencionalmente, sabes. Convenceu-se de que nada de impróprio se passou nesta casa. Lúcio tem dificuldade em lidar com a verdade. Tal como a maioria dos homens, a maior parte do tempo disse ela entredentes. Andava pelo quarto, pegando em coisas e voltando a poisá-las.

 

Continua, por favor disse eu.

 

Para Lúcio, as aparências são mais importantes do que os factos. Ter tido um convidado que foi envenenado debaixo do seu tecto, ou mesmo um escravo de um convidado, é impensável para ele. Por isso, muito simplesmente, nunca aconteceu, compreendes? Lúcio nunca, mas nunca admitirá o contrário.

 

- Mas isso aconteceu defacto.

 

Ela aproximou-se de uma mesinha coberta com uma série de figuras de barro, todas idênticas umas às outras. Eram aproximadamente do tamanho do punho de uma criança e estavam pintadas com cores fortes. Pegou numa delas e voltou-a ociosamente na mão.

 

- Quem te mandou cá fazer essas perguntas?

 

- Como disse ao teu marido, um amigo de Díon. Ela resfolegou.

 

Deixa lá. Eu sei quem te mandou.

 

- Sabes?

 

Clódia. Não foi? Não te incomodes a responder. Leio as tuas expressões com a mesma facilidade com que leio as de Lúcio.

 

- Como é que podes ter adivinhado quem me contratou?

 

Ela encolheu os ombros e fez rodopiar a figurinha de barro entre o indicador e o polegar. Era uma estátua votiva de Átis, o eunuco consorte da Grande Mãe, Cibele, com as mãos poisadas sobre a barriga roliça e na cabeça o barrete vermelho frígio, com a ponta redonda voltada para a frente.

 

- Nós temos maneiras de partilhar aquilo que sabemos.

 

- ”Nós”?

 

- Nós, as mulheres.

 

Tive uma sensação de formigueiro na espinha, a noção de já ter tido aquela mesma conversa com Betesda, quando ela me tinha dito que Clódia e Célio já não eram amantes, e eu lhe tinha perguntado como é que ela podia saber tal coisa. Nós temos maneiras de partilhar aquilo que sabemos. Por instantes, tive um vislumbre de pressentimento, como se uma porta se tivesse aberto, apenas o suficiente para me permitir captar uma visão momentânea de uma sala desconhecida. Depois, ela recomeçou a falar e a porta fechou-se.

 

- Não há dúvida de que o escravo de Díon foi envenenado. Devias ter visto o pobre desgraçado. Se Lúcio tivesse mantido os olhos abertos em vez de os desviar quando o homem estava a morrer, talvez tivesse mais dificuldades em emitir aquela declaração ligeira acerca da ”morte natural”. Mas a verdade é que Lúcio sempre foi muito susceptível. Não se importa de escrever aqueles relatozinhos de mulheres espetadas com lanças e crianças cortadas aos bocados na queda de Cartago, mas não suporta ver um escravo vomitar.

 

- Foi esse um dos sintomas?

 

- Sim. O homem ficou branco como mármore e começou a ter convulsões.

 

- Mas, se o escravo foi envenenado por ter provado alimentos destinados a Díon, como é que o veneno foi parar a esses alimentos?

 

- Foi lá posto por alguns dos escravos da cozinha, evidentemente. E eu acho que sei quais.

 

-Sim?

 

- Juba e Lácon. Aqueles dois andavam sempre a tramar alguma. Não lhes fazia bem serem tão espertos. Tinham fantasias de virem um dia a comprar a sua liberdade. Juba deve ter-se esgueirado para a rua nessa tarde, porque eu apanhei-o a regressar à socapa e, quando o interroguei, ele tentou safar-se fingindo-se estúpido e falando muito depressa, como os escravos costumam fazer. Disse que tinha ido ao mercado comprar uma coisa, não me lembro o quê, e até ergueu um saco para me mostrar. Que descaramento! Provavelmente, era o veneno. Mais tarde, apanhei-o a murmurar com Lácon na cozinha e perguntei a mim própria o que estariam a maquinar. Foram eles que prepararam o prato que matou o escravo de Díon.

 

- Díon contou-me que o teu marido tinha tido uma visita nesse dia.

 

- Públio Asício. Foi ele que foi depois acusado de esfaquear Díon em casa de Copónio, embora não tivessem conseguido prová-lo em tribunal. Sim, ele veio fazer uma visita a Lúcio mais ou menos na mesma altura em que Juba devia estar a escapulir-se. Mas não me parece que Asício tenha trazido o veneno, se é isso que estás a pensar. Ele não se aproximou dos escravos da cozinha.

 

- Mas podia ter funcionado como distracção, mantendo o teu marido ocupado enquanto Juba se esgueirava para a rua para ir ter com outra pessoa, que lhe daria o veneno.

 

- Que imaginação a tua! disse ela olhando-me de esguelha.

 

- Onde está Juba? Deixas-me falar com ele?

 

- Se pudesse deixava, mas ele foi-se embora. Juba e Lácon foram-se ambos embora.

 

Para onde?

 

- Depois da morte do provador, Díon ficou bastante perturbado. Gritou e arengou, exigindo a Lúcio que determinasse qual dos escravos tinha tentado envenená-lo. Eu apontei o comportamento suspeito de Juba e Lácon, mas Lúcio não quis ouvir falar de venenos. Apesar disso, uns dias depois, decidiu que Juba e Lácon escravos treinados para a cozinha seriam mais úteis se se dedicassem ao trabalho manual numa mina. Lúcio tem uma participação numa mina de prata em Piceno. Por isso, os escravos foram mandados para lá, para fora do alcance da vista, para longe do pensamento.

 

Ergueu a figurinha de barro de Átis e deu-lhe uma pancadinha com o indicador.

 

- Mas o facto mais curioso é o seguinte: quando Lúcio declarou que ia mandar Juba e Lácon para Piceno, subitamente, eles ofereceram-se para comprar a sua liberdade. Lúcio dava-lhes todos os anos umas moedas para eles celebrarem as Saturnálias e, de alguma maneira, eles tinham conseguido poupar o seu próprio valor em prata.

 

- Isso era possível?

 

- De modo nenhum. Lúcio acusou-os de surripiarem nos cofres da casa.

 

E eles podiam ter feito isso?

 

- Achas que eu sou o género de mulher cujos escravos têm facilidade em roubar? Lançou-me um daqueles olhares destinados a fazer um escravo sujar-se de medo. Mas foi essa a explicação que Lúcio decidiu adoptar, e nada o dissuadirá. Tirou-lhes a prata, mandou-os para uma morte antecipada nas minas, e fim da história.

 

- Onde é que tu achas que os escravos obtiveram a prata?

 

- Não te faças de tolo disse ela. Alguém os subornou para que envenenassem Díon, evidentemente. O mais provável é terem recebido apenas uma parte do pagamento, uma vez que não completaram o trabalho. Se eu fosse o senhor desta casa, tê-los-ia torturado até eles dizerem a verdade. Mas os escravos pertencem a Lúcio.

 

- Os escravos sabem a verdade.

 

Os escravos sabem qualquer coisa. Mas, neste momento, estão muito longe de Roma.

 

- E, de qualquer maneira, não podem ser forçados a testemunhar sem o consentimento do seu senhor.

 

- Coisa que Lúcio nunca dará.

 

- Quem lhes terá dado a prata? murmurei eu. Como será possível descobri-lo?

 

- Suponho que é isso que te compete fazer disse ela rudemente. Voltou à mesinha e poisou a estatueta de prata de Átis no seu lugar. Eu aproximei-me dela e estudei as figurinhas.

 

- Por quê tantas, todas iguais?

 

- Por causa do festival da Grande Mãe, naturalmente. São imagens de Átis, o seu consorte. Servirão de presente.

 

- Nunca ouvi falar desse costume.

 

- Trocamo-las entre nós. ”Nós”?

 

- Não tens nada a ver com isso.

 

Estendi a mão para pegar numa das figurinhas, mas ela agarrou-me no pulso e apertou-mo com uma força que me espantou.

 

- Já te disse que não tens nada a ver com isto. Momentos depois libertou-me, e a seguir bateu as palmas. Uma rapariguinha entrou a correr. É melhor ires andando. A escrava acompanha-te.

 

O percurso mais directo até casa de Tito Copónio, onde Díon tinha morrido, levava-me por onde tinha vindo. Ao passar de novo diante da antiga residência de Marco Célio, reparei que o letreiro que dizia VENDE-SE estava intacto, mas que o graffito obsceno que havia por baixo já tinha sido coberto de tinta. Os homens de mão de Clódio podiam ser acusados de muitas coisas, mas não de ociosidade.

 

Tito Copónio recebeu-me imediatamente, e dentro em breve estava sentado no seu escritório com uma taça de vinho nas mãos. Se o escritório de Lúcio Luceio era uma venerável homenagem à conquista de Cartago, o de Tito Copónio era um tributo ao duradouro triunfo da cultura grega. Havia taças de vinho pretas e vermelhas, demasiadamente antigas e preciosas para serem usadas, em exposição em prateleiras. Em pedestais encostados às paredes viam-se pequenas estátuas dos grandes heróis e bustos dos mais importantes pensadores. Havia uma estante com orifícios para rolos de pergaminho cheia de estojos de couro cilíndricos e, nas pequenas etiquetas coloridas penduradas nos cilindros, distingui os nomes dos antigos dramaturgos e historiadores gregos. O compartimento estava impecavelmente mobilado, com cadeiras gregas de costas altas e uma carpete grega com um desenho geométrico, tudo em proporções harmoniosas com o espaço que ocupavam.

 

Copónio era um homem alto com um rosto comprido e rectangular e um nariz perfeito; mesmo sentado, tinha um ar imponente. O seu cabelo, que usava curto, era muito encaracolado, preto no alto da cabeça mas grisalho dos lados. As suas roupas e as suas maneiras eram tão elegantes como a sala onde nos encontrávamos sentados.

 

- Presumo que vieste por causa de Díon começou ele.

 

- O que te faz pensar isso?

 

- Vá lá, Gordiano. Conheço a tua reputação. E também sei que o filho de Béstia levou Marco Célio a tribunal por tentativa de envenenamento de Díon, entre outras coisas. Não é propriamente necessário ser filósofo para descobrir por que razão vieste à casa onde Díon morreu. Aquilo que eu não sei é quem te enviou, o rapaz de Béstia, pela acusação, ou Célio, pela defesa.

 

- Na verdade, não foi um nem o outro.

 

- Ora, isso é um mistério.

 

- Ao que parece, não o é para toda a gente disse eu, pensando na mulher de Luceio. Será importante saber quem me enviou, desde que eu procure encontrar a verdade?

 

- Por vezes, os homens têm outras motivações, mesmo quando procuram a verdade. Vingança, justificação, poder...

 

- Justiça. Por Díon.

 

Copónio pousou a taça de vinho e entrelaçou no colo as mãos compridas e elegantes.

 

- Um dia, quando ambos tivermos bastante mais tempo, discutiremos essa palavra, justiça, para ver se conseguimos chegar a uma definição mutuamente aceitável. De momento, presumo que queiras dizer que andas à procura da verdade com o objectivo de identificares o assassino de Díon. É uma ambição perfeitamente clara mas não me parece que te possa ajudar.

 

- Por que não?

 

- Não posso dizer-te aquilo que não sei.

 

- Talvez saibas mais do que pensas.

 

- Isso é um enigma, Gordiano?

 

- A vida está cheia deles.

 

Copónio contemplou-me com um olhar felino.

 

- Tanto quanto julgo saber, as acusações contra Célio incluem ataques à comitiva egípcia, quando se dirigia para Roma, e uma alegada tentativa de envenenar Díon quando ele estava alojado em casa de Luceio. O que aconteceu nesta casa nem sequer é citado na lista formal das acusações.

 

- Tecnicamente, até é. Mas a acusação tenciona concentrar-se na tentativa de envenenamento e utilizar o assassínio propriamente dito como um pormenor corroborativo.

 

- Então sempre vens da parte da acusação. Copónio lançou-me um sorriso inseguro. Não me compreendas mal. Não me importo que venhas fazer-me perguntas. Já passei por tudo isto, quando Asício foi acusado. Contei tudo o que sabia aos dois lados, e acabei por não ajudar nenhum deles. O facto é que os assassinos nada deixaram atrás de si que pudesse denunciá-los. Asício foi acusado com base em rumores, e não em provas. Sim, ”toda a gente sabe” que ele esteve, de alguma maneira, envolvido, tal como ”toda a gente sabe” que o Rei Ptolemeu deve estar por trás disto, mas nunca houve provas, e não será nesta casa que as encontrarás.

 

Ainda assim, gostaria de saber o que aconteceu aqui.

 

Copónio bebeu um gole de vinho e voltou a lançar-me o seu olhar felino.

 

- Conheci Díon em Alexandria disse por fim. Há uns anos, o meu irmão e eu vivemos aí uns tempos. Gaio, que sempre foi um homem prático, estava interessado em estudar o funcionamento financeiro dos mercados de cereais. Por mim, fui atraído para os degraus da biblioteca, no Templo de Serápis, onde os filósofos discutiam aquilo mesmo de que nós estamos a falar a verdade, a justiça, enigmas diversos. Foi assim que conheci Díon.

 

- Também foi assim que eu o conheci disse eu. Copónio ergueu uma sobrancelha.

 

- Conheceste Díon em Alexandria?

 

- De forma breve, e há muito tempo. Eu era bastante jovem. A instrução que recebi de Díon foi estritamente informal.

 

Copónio compreendeu imediatamente.

 

- Ah, eras um daqueles jovens sem dinheiro para pagar lições que vagueiam pelos degraus na esperança de captar a atenção de um dos filósofos. Mendigos da sabedoria, era como Díon chamava a esses jovens.

 

- Era mais ou menos isso.

 

- Não há vergonha nenhuma nessa mendicância. Quanto mais tem de lutar pela sabedoria, maior honra a pessoa atribui à sua aquisição. Calculo que a minha relação com Díon tenha sido mais formal do que a tua. Mas, na altura em que o conheci, ele tinha sido elevado a um dos cargos superiores da Academia, e raramente aparecia nos degraus da biblioteca; foi só por acaso que o conheci. Convidei-o para jantar em diversas ocasiões, com Gaio e comigo, na casa que tínhamos arrendado no bairro imperial. Díon conhecia os pensadores gregos todos de cor. Podia discursar durante horas acerca das leis da percepção e do pensamento racional. Gaio bocejava e ia-se deitar cedo, mas eu ficava a ouvi-lo até de madrugada.

 

- O teu irmão não se interessa por filosofia? Copónio sorriu.

 

- Nem por isso. Mas Gaio e Díon acabaram por descobrir que tinham interesses comuns. Quando eles partiam em busca de aventuras no bairro de Rakotis, era eu que ficava de fora. Ergueu uma sugestiva sobrancelha.

 

- Díon nunca me pareceu particularmente aventureiro.

 

- Então não o conheceste como eu o conheci, e certamente que não como Gaio o conheceu.

 

- O que queres dizer com isso?

 

- Díon era consideravelmente mais velho do que o meu irmão e eu, mas ainda tinha apetites. Apetites bastante vorazes, na verdade. Divertiu-se a mostrar a Gaio aquilo a que chamava ”os segredos de Alexandria”.

 

- ”Apanhava a fruta antes de estar madura” disse eu baixinho.

 

- O quê?

 

- Foi uma coisa que me disseram sobre Díon.

 

- A maturação é uma questão de gosto. Eu diria que, com Díon, era mais uma questão de pisar a fruta.

 

- Não compreendo.

 

Copónio voltou a fixar-me com o seu olhar felino.

 

- Há quem diga que os apetites particulares de Díon constituíam uma falha no seu carácter, um sinal de desequilíbrio dos seus humores. Por mim, nunca fui escravo da carne; a minha vida é uma vida do espírito, e isso parece-me o ideal. Dado o meu temperamento, é frequente sentir-me tentado a julgar as fraquezas dos outros homens, mas com os amigos abstenho-me desse género de juízos. Convém recordar que, embora tivesse sangue grego, Díon tinha um génio egípcio. Essas pessoas são mais mundanas do que nós, mais grosseiras, mais rudes e primitivas em muitos aspectos. Têm mais tolerância relativamente a coisas que a nós nos parecem passar dos limites. Por um lado, Díon era um modelo de lógica e racionalidade; mas, por outro, podia entregar-se a um estado de êxtase que estava para além dos limites da razão. Se o seu prazer dependesse por vezes de actos que tu e eu talvez considerássemos cruéis e excessivos...

 

- Não compreendo. Copónio encolheu os ombros.

 

- O que importa isso? O homem morreu. O seu legado são os seus ensinamentos, juntamente com os esforços que fez em prol dos seus compatriotas. Poucos homens podem reclamar tão grandioso monumento. Levantou-se e começou a passear lentamente de um lado para o outro, passando a palma da mão sobre a cabeça dos bustos alinhados na parede. Mas tu vieste falar sobre a morte de Díon, e não sobre a sua vida. O que pretendes saber, Gordiano?

 

- Já conheço os factos relativos ao assassínio aquilo que toda a gente sabe, como tu dizes. Mas a água que sai da boca do rio é mais fresca. Gostaria de ouvir tudo aquilo que tu e qualquer outro habitante da casa queiram contar-me acerca das circunstâncias dessa noite.

 

- Deixa-me tentar recordar... Fez uma pausa diante de um busto de Alexandre. Eu estava aqui no escritório na noite em que Díon chegou. Tinha acabado de jantar, sozinho, e tinha vindo para aqui ler. Ouvi algumas escravas mais jovens a rir baixinho no corredor. Chamei-as e perguntei-lhes por que se estavam a rir. Elas disseram-me que o meu convidado tinha chegado vestido de mulher!

 

- Ele nunca tinha usado aquele fato?

 

- Aparentemente tinha, entrando e saindo de casa à socapa sem que eu o visse, acompanhado por aquele pequeno gallus que vinha visitá-lo a toda a hora. Díon comportava-se com grande secretismo nesta casa. Metia-se no quarto e trancava a porta. Nem sequer queria acompanhar-me às refeições. Quando me pediu para se instalar cá em casa, eu tive esperanças de que pudéssemos ter algumas conversas civilizadas, como as que tínhamos tido em Alexandria, que jantássemos juntos e discutíssemos Filosofia e Política. Fiquei bastante desiludido com o seu distanciamento, e mesmo um pouco irritado.

 

Ele era um homem muito assustado.

 

Sim, apercebi-me disso. E foi por essa razão que o deixei em paz. Se ele queria esconder-se no quarto o dia todo, ou entrar e sair de casa à socapa sem me dizer, isso era com ele. Quem me dera ter tomado medidas para intervir, embora não saiba bem o que poderia ter feito.

 

- Díon era um homem perseguido. Como deves saber, corria perigos terríveis.

 

Claro. Foi por isso que mandei colocar um guarda à porta de casa todas as noites. Apesar disso, nunca imaginei que alguém chegasse a entrar nesta casa e cometesse tal atrocidade. Parecia-me impensável.

 

- Não te importas de me mostrar onde teve lugar essa coisa impensável?

 

Copónio desceu comigo um longo corredor, até às traseiras da casa.

 

- O guarda estava no átrio, na parte da frente da casa. Quando os assassinos entraram no quarto de Díon, ele não os ouviu. Eu próprio estava a dormir no quarto ao lado e não ouvi nada.

 

- Díon gritou?

 

- Se gritou, ninguém o ouviu.

 

- E tu tê-lo-ias ouvido?

 

- Estava a dormir, com te disse, mas acho que um grito me acordaria. As paredes não são assim tão espessas. Houve outras noites em que consegui ouvir mas deixemos isso.

 

- Ias dizer alguma coisa?

 

- O quarto é este. Copónio empurrou uma porta e convidou-me a entrar com um gesto.

 

Era um quarto pequeno e com pouca mobília: um canapé, uma cadeira e um par de mesinhas. O chão estava coberto por uma carpete. Nas paredes, havia ganchos de metal, onde se podiam pendurar roupas e lamparinas.

 

- Como é que os assassinos entraram? perguntei eu.

 

- Por esta janela, ao lado do canapé. Estou certo de que as portadas estavam corridas e fechadas. Díon teria tido o cuidado de as deixar assim, quanto mais não fosse para impedir a entrada do frio. O fecho foi arranjado, mas ainda podes ver o ponto onde a madeira ficou estilhaçada, quando as portadas foram abertas à força.

 

- O fecho antigo era de bronze, como este?

 

- Este é o mesmo fecho, endireitado por um ferreiro e pregado num sítio diferente.

 

- Parece-me ser um fecho bastante forte. Diria que forçá-lo a partir do exterior provocaria algum ruído.

 

- Suponho que sim.

 

- Um ruído considerável.

 

- Não pode ter sido assim tanto...

 

- Talvez não fosse um ruído suficientemente forte para te acordar no quarto ao lado, ou sequer para ser ouvido pelo teu guarda, na porta da frente, mas certamente que teria sido suficiente para Díon ouvir, se estava deitado no canapé.

 

- Julgo que sim. Mas, tal como te disse, ninguém ouviu Díon gritar. Calculo que ele tivesse o sono muito pesado. Ou então a quebra do fecho não fez tanto barulho como tu pareces pensar.

 

- Podíamos discutir esse ponto até ao fim dos nossos dias disse eu. Mas também podemos fazer um teste empírico.

 

- Queres dizer...?

 

Se me permitires. Copónio encolheu os ombros.

 

- Vai em frente.

 

Eu abri o fecho da janela e saltei por cima do parapeito, para o pátio, que era rodeado por uma parede alta. Dentro do quarto, Copónio fechou as portadas. Eu empurrei-as, testando a sua resistência, e apercebi-me de que seria necessária uma pressão considerável para abri-las à força. Olhei à volta e descobri uma pedra solta. Apertando-a na mão, bati com toda a força nas portadas. Com um som de madeira estilhaçada, as portadas abriram-se e o fecho de metal voou pelo quarto, indo cair em cima da carpete.

 

Eu trepei por cima do parapeito da janela.

 

- Diz-me uma coisa, o fecho partido foi encontrado do outro lado do quarto como está agora, caído no chão?

 

- Bem, sim, tenho a certeza de que foi. Lembro-me disso porque, quando entrei no quarto, pisei o fecho e cortei o pé, porque vinha descalço.

 

- Então podemos presumir que, nessa noite, as portadas foram abertas pelo menos com a mesma força, e devem ter feito o mesmo ruído. Eu diria que o barulho foi suficiente para acordar quem quer que estivesse neste quarto.

 

- Pois foi concordou Copónio, batendo com o indicador nos lábios, irritado.

 

- E, contudo, Díon não gritou.

 

- Talvez tivesse despertado de um sono profundo, sem perceber o que se estava a passar. Ou talvez tivesse percebido bem demais e ficasse paralisado pelo terror.

 

Talvez. Cortaram-lhe o pescoço?

 

- Não. Todas as feridas foram no peito.

 

- Quantas feridas?

 

- Não sei bem quantas. Foram bastantes.

 

- Devia haver uma grande quantidade de sangue.

 

- Havia algum sangue, sim.

 

- Um homem que se debate, que é atingido repetidamente no peito

- o quarto devia estar coberto de sangue.

 

Copónio franziu a testa.

 

- Quando entrámos no quarto, estava muito escuro, evidentemente. Os escravos traziam lamparinas. As sombras dançavam no quarto. Lembro-me de ver sangue, não sei em que quantidade. Isso importa?

 

- Provavelmente não. Por acaso não guardaste a túnica que Díon tinha vestida, nem as almofadas sobre as quais ele dormia?

 

- Claro que não. Foram queimadas.

 

Olhei à volta do quarto, imaginando Díon no canapé, em silêncio, aterrorizado, sendo repetidamente esfaqueado no peito. Por qualquer razão, a imagem não fazia sentido.

 

- Finalmente, o guarda que tinhas posto à porta ouviu qualquer coisa e veio investigar.

 

- Sim.

 

- Permites-me que fale com ele?

 

- Claro. Copónio mandou chamar o escravo, um grego jovem e robusto de nome Fílon, que parecia bastante esperto. Perguntei-lhe o que tinha ouvido exactamente na noite da morte de Díon.

 

- Um ruído, vindo deste quarto.

 

- Que género de ruído?

 

- Um ruído tipo pancada.

 

- Não foi um grito nem um gemido?

 

- Não.

 

- De madeira a despedaçar-se, dobradiças a estalar?

 

- Não, foi mais como se qualquer coisa estivesse a ser atirada ao chão.

 

- Quando nós entrámos interveio Copónio -, estava tudo num grande rebuliço. As mesas estavam voltadas ao contrário, a cadeira tombada. Os rolos de papiro que Díon guardava ao lado da cama estavam espalhados pelo chão.

 

- Quando ouviste esse ruído que parecia uma pancada disse eu a Fílon, quanto tempo demoraste?

 

- Vim imediatamente. Ouvi mais alguns ruídos enquanto corria pelo corredor.

 

Como é que sabias de onde vinham esses ruídos?

 

- À medida que me ia aproximando, percebi que vinham de dentro deste quarto.

 

- Por isso tentaste abrir a porta? O escravo hesitou.

 

- Não foi logo.

 

- Porque estavas assustado?

 

- Não...

 

- Não?

 

É necessário ter coragem para abrir uma porta quando se ouvem ruídos estranhos do outro lado, especialmente a meio da noite.

 

- Não estava assustado. Estava excitado, de certa maneira, o coração batia-me com toda a força, mas não estava assustado.

 

- Então por que não tentaste abrir a porta, Fílon?

 

- Preferi chamar Díon.

 

E ele respondeu?

 

- Não. Ouvi outra pancada.

 

- Nessa altura tentaste abrir a porta.

 

- Não foi logo...

 

- Estavas à espera de quê?

 

- Que eles acabassem! disse Fílon, exasperado.

 

Que acabassem de matar Díon?

 

- Claro que não! Que Díon acabasse o que estava a fazer, se era isso que ele queria. O escravo fez uma careta e desviou os olhos. O senhor sabe o que eu quero dizer.

 

Olhei para Copónio, que olhou para mim com um rosto desprovido de expressão e apertou os lábios.

 

Fílon quer dizer que esses ruídos podiam significar outra coisa, para além de... perigo.

 

De perigo para Díon, pelo menos disse Fílon baixinho.

 

- Chega, Fílon cortou Copónio. Volta para o que estavas a fazer.

 

O escravo deixou-nos. Eu voltei-me para Copónio.

 

- Esses ruídos... Ele suspirou.

 

Pouco depois de Díon se ter instalado cá em casa, como é que eu hei-de dizer isto? apropriou-se de uma das minhas escravas para seu uso.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

- O seu último escravo tinha morrido a provar-lhe a comida.

 

- Não era isso que eu queria dizer.

Copónio abanou a cabeça. Ele era um homem perturbado, estava sob grande tensão. Se algum homem teve necessidade de alguma coisa que o distraísse dos seus problemas, foi Díon. Houve uma jovem escrava que lhe chamou a atenção. Ele decidiu utilizá-la. Para o seu prazer. Utilizava-a quase todas as noites.

 

- Com a tua permissão?

 

- Na verdade, eu nunca fui consultado. Claro que foi uma presunção de Díon ter-se apoderado daquilo que queria mas, tendo em conta as circunstâncias, eu decidi que seria um anfitrião egoísta se impedisse um convidado de utilizar uma escrava, especialmente tendo em conta que a rapariga não me interessava, pelo menos da mesma maneira.

 

- Estou a ver. Quer dizer que Fílon pensou que estava simplesmente a ouvir os sons de Díon a utilizar a rapariga.

 

- Exactamente.

 

- Todas aquelas pancadas e aqueles baques certamente que tu também os ouviste.

 

- Acabei por acordar com eles. A princípio, presumi o mesmo que Fílon. ”Está outra vez naquilo!”, pensei. Fechei os olhos e tentei voltar a adormecer.

 

- Díon fazia sempre tanto barulho?

 

- Nem sempre.

 

- Mas que raio fazia ele à rapariga?

 

- Não percebo bem o que tens tu a ver com isso, Gordiano. Já fui indiscreto ao dizer-te o que te disse. Que a sombra de Díon me perdoe. Começo a ficar cansado desta entrevista...

 

- Mas Fílon acabou por perceber que se passava qualquer coisa terrível disse eu, insistindo.

 

- Sim. Quando as pancadas e os baques terminaram, as coisas ficaram excessivamente silenciosas. Ele chamou Díon pelo nome, cada vez mais alto eu ouvi-o chamar, por isso Díon também o teria ouvido. E também o ouvi bater à porta de Díon, que estava trancada, claro. Nessa altura, levantei-me e disse a Fílon que fosse chamar outros escravos. Eles trouxeram tochas e juntos conseguiram deitar a porta abaixo. Lá dentro, encontrámos as portadas abertas, o quarto numa confusão... e Díon morto no canapé.

 

E a jovem escrava?

 

- Afinal nunca tinha estado no quarto. Estava a dormir nas acomodações dos escravos.

 

Eu aproximei-me da janela e espreitei para fora.

 

- E como é que os assassinos chegaram à varanda? Parece estar rodeada por um muro alto.

 

Devem tê-lo escalado. Não podiam ter entrado pela frente por causa de Fílon, e os muros laterais estão encostados às casas de cada lado. O muro que rodeia o pequeno pátio das traseiras dá para uma viela. Esse muro tem um portão, mas o portão estava bem fechado. A única hipótese é terem trepado a partir da viela.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

O muro é alto alto de mais para um homem o trepar sem ajuda, dá-me a impressão.

 

- Também queres testá-lo? Copónio ergueu uma sobrancelha.

 

- Não. Acho que podemos presumir que os assassinos eram pelo menos dois, e que se ajudaram um ao outro a trepar o muro. Os teus vizinhos viram alguma coisa?

 

- Nenhum dos meus vizinhos consegue ver o pátio das traseiras da casa. A viela quase nunca é utilizada. Duvido de que alguém pudesse ver fosse o que fosse, a não ser que estivesse por acaso em cima de um telhado, o que seria improvável numa fria noite de Januarius. Além disso, se alguém tivesse visto alguma coisa, ter-me-ia dito. Tenho boas relações com os meus vizinhos. Todos eles ficaram bastante abalados por causa do assassínio.

 

Dei uma volta ao quarto, passando ociosamente os dedos pelos ganchos de metal afixados nas paredes.

 

- Quer dizer que a jovem escrava não estava com Díon quando o assassínio teve lugar.

 

- Como já te disse, estava a dormir nas acomodações dos escravos.

 

- Posso falar com ela? Copónio abanou a cabeça.

 

Impossível.

 

- Por quê?

 

- Vendi-a a um comerciante de escravos da cidade.

 

- Havia algum problema com ela? Copónio hesitou.

 

- Depois da utilização que Díon lhe tinha dado, deixara de ser adequada para servir em minha casa.

 

- Quer dizer que ficou aleijada?

 

- Claro que não. Oh, talvez com algumas marcas de correias e umas nódoas negras, mas nada que não desaparecesse com o tempo. Possivelmente uma ou duas cicatrizes, mas que só se viam quando estava nua. Apesar disso, era propriedade defeituosa. Não podia, pura e simplesmente, mantê-la em casa; preferi vendê-la. Tenho a certeza de que haverá outros senhores que a considerem adequada talvez até achem que ficou valorizada com aquilo que Díon lhe ensinou. Encolheu os ombros. Nunca pretendi que ela fosse uma escrava para o prazer, mas deve ter sido a vontade das Parcas.

 

- Ou de Díon. Eu tinha a boca seca.

 

- O assunto desagrada-me disse Copónio. Na verdade, toda esta conversa começa a fatigar-me. Parece-me que já descobriste mais do que aquilo que precisas de saber.

 

- Pelo menos, mais do que tencionava.

 

- Então talvez seja melhor ires andando. Vou chamar um escravo para te acompanhar. Bateu as palmas.

 

O escravo que veio a correr era Fílon. Copónio não reparou. Tendo-me mandado embora, o seu estado de espírito toldou-se abruptamente. Nem sequer se despediu de mim quando me aproximei da janela e olhei para o pátio banhado pelo sol, passando ociosamente os dedos de uma mão pelo fecho recentemente quebrado.

 

No átrio, pus uma mão no ombro de Fílon e chamei-o aparte.

 

- A rapariga de que estávamos a falar como se chama ela?

 

- Zótica. Mas já não está cá em casa.

 

- Eu sei. O teu senhor vendeu-a a um comerciante. Não sabes quem é ele, pois não?

 

O escravo hesitou, observando-me com atenção. Espreitou para o corredor e mordeu o lábio.

 

- O senhor vendeu-a a um homem da rua dos Fabricantes de Foices

- disse ele por fim. Não sei como se chama.

 

Acenei com a cabeça.

 

- Deixa-me ver se compreendi bem: quando lhe entraste pelo quarto dentro e o encontraste morto, Díon estava sozinho. Zótica não estava com ele.

 

- Exactamente.

 

- Mas já tinha lá estado, nessa mesma noite?

 

Ele olhou para mim e depois espreitou novamente para o corredor.

 

- Oh, pronto, o melhor é dizer-te. De qualquer maneira, ela já se foi embora, pobre criança. Sim, ”Louca, esteve com Díon nessa noite. Ele entrou vestido com aquele fato ridículo, trazia uma estola, imagina só, e estava maldisposto, ainda mais do que o habitual. Estalou os dedos na direcção de Zótica, e disse-lhe que fosse com ele para o quarto. ”Para o ajudar a levantar a estola”, disse uma das outras escravas com sarcasmo. ”Não, só para o ajudar a levantar!” respondeu outra. Costumavam ser maldosas com Zótica por ela ser a mais jovem e a mais bonita, mas eu acho que também se sentiam satisfeitas por Díon ter decidido usá-la, em vez de as usar a elas.

 

- Então Díon foi para o quarto e levou a rapariga com ele.

 

- Sim, mas depois deve tê-la mandado embora.

 

- Por que dizes isso?

 

- O resto da casa já tinha ido para a cama. Eu tinha ficado de vigia à porta da frente. Ouvi qualquer coisa no corredor e fui ver. Era Zótica, que atravessava o salão, afastando-se do quarto de Díon. Ia nua, agarrada ao vestido e soluçava com o rosto escondido nas mãos.

 

- Agarrada ao vestido? Por que não o levava posto?

 

- O que achas? Presumo que o velhote lho tenha arrancado e rasgado de tal maneira, que ficou inutilizado. Perguntei-lhe o que se passava, mas ela limitou-se a abanar a cabeça e correu na direcção das acomodações dos escravos. Presumi que ele tivesse acabado mais cedo, e que tivesse sido ainda mais bruto do que habitualmente.

 

- Isso foi quanto tempo antes do barulho que ouviste mais tarde, quando vieram os assassinos?

 

- Oh, bastante tempo.

 

- Mas, quando ouviste os ruídos e foste investigar, disseste-me que tinhas pensado que podia ser Díon com Zótica...

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Pensei que ela podia ter-se esgueirado outra vez para o quarto dele. Mas não tinha. Quando nós arrombámos a porta do quarto de Díon, Zótica estava nas acomodações dos escravos com as outras raparigas. Não há qualquer dúvida sobre isso. Acordou algumas escravas quando entrou a chorar, e depois manteve-as acordadas continuando a soluçar, mesmo quando elas ameaçaram bater-lhe. Não há dúvida de que ela estava com as outras escravas quando Díon foi esfaqueado.

 

-Ainda assim, gostaria muito de conversar com ela. Diz-me, quando entraste no quarto, o que foi que viste exactamente?

 

Fílon mostrou-se pensativo.

 

-A cadeira e as mesas viradas ao contrário. As portadas das janelas abertas. Díon no canapé, morto.

 

- Como é que percebeste que ele estava morto?

 

- Pela expressão do rosto! Fílon ficou pálido ao recordar-se. Era uma expressão tal, tinha os olhos e a boca muito abertos, com uma expressão de puro horror, como se tivesse visto o rosto do próprio Cérbero.

 

- De puro horror, e, no entanto, nunca o ouviste chamar.

 

- Nunca.

 

- Mas, para ter essa expressão no rosto, ele deve ter sabido que estava a ser atacado, deve ter sentido os golpes. Por que não gritou?

 

- Não sei. Só sei que nunca o ouvi gritar.

 

- Viste as feridas?

 

- Muito claramente. Ajudei a despi-lo, mais tarde, quando os homens da necrópole vieram buscá-lo.

 

- Quantas vezes foi esfaqueado?

 

- Seis ou sete vezes, julgo eu. Talvez mais. Todas no peito, perto umas das outras.

 

- Muito perto?

 

Ele ergueu as palmas das mãos e juntou-as.

 

- Duas mãos teriam coberto as feridas.

 

- Mas com certeza que ele se agitou. Um homem assustado, acordado de forma súbita, horrorizado. E esfaqueado, uma vez com certeza que grita. Com certeza que se agita e se volta, para evitar o golpe seguinte.

 

- Talvez lhe tivessem agarrado os braços e tapado a boca.

 

- Quantos homens seriam necessários para isso?

 

- O quarto estava uma confusão. Talvez fosse um bando inteiro.

 

- Talvez. Presumo que houvesse sangue por toda a parte, nas paredes, na carpete?

 

Fílon franziu o sobrolho.

 

- Nem por isso.

 

- E a túnica com que ele dormia deve ter ficado ensopada em sangue.

 

- À volta das feridas, sim.

 

Mas não...

 

- Fílon! Pensei que tivesses acompanhado Gordiano à saída. Copónio apareceu na outra extremidade no corredor. Cruzou os braços.

 

- Sim, Senhor!

 

Eu tinha-me esquecido de lhe perguntar uma coisa disse eu. Era um pormenor.

 

Adeus, Gordiano. Inspirei profundamente.

 

- Adeus, Tito Copónio.

 

Belbo estava à minha espera à porta, sentado numa mancha de sol quente. Juntos, atravessámos em silêncio as ruas do Palatino, inspirando os odores da refeição do meio-dia, ouvindo os ruídos que subiam do Fórum. Andava apenas por andar, sem um objectivo definido. Precisava de pensar.

 

Começava a descobrir um lado de Díon de cuja existência nunca me tinha apercebido. Isso perturbava-me. Também começava a juntar as peças que formavam os seus últimos dias, as suas últimas horas. O drama sangrento da sua morte parecia perfeitamente claro; só faltava determinar quem tinha entrado no seu quarto naquela noite fatídica. Mas eu não conseguia afastar uma sensação incómoda de que havia ali qualquer coisa muito, muito estranha.

 

- A rapariga é importante. Não sei bem por quê, mas não consigo tirar essa ideia da cabeça.

 

- Qual rapariga? perguntou Eco.

 

- A escrava, Zótica. Aquela que Díon...

 

- Importante? disse Eco. Mas por quê? Se estivesse no quarto quando os assassinos entraram, seria uma testemunha, embora eu duvide de que eles a deixassem viva. A não ser que ela fizesse parte dos planos deles, claro, caso em que não teriam tido necessidade de arrombar as portadas ela deixava-os entrar. Mas, se assim fosse, eles tinham arrombado as portadas e tinham-na morto na mesma, para a impedirem de falar... mas tudo isto se afasta daquilo que nós sabemos, ou seja, que a rapariga não se encontrava no quarto quando Díon foi morto.

 

-Apesar disso...

 

Eu tinha acabado por me cansar de andar de um lado para o outro sem destino, a pensar, e tinha ido a casa comer qualquer coisa, descobrindo que Eco e a família lá estavam. Enquanto as mulheres e as crianças se entretinham no jardim, a meio da casa, Eco e eu sentámo-nos no pequeno átrio à saída do vestíbulo, gozando uma tira estreita de sol quente. Contei-lhe tudo o que ficara a saber naquela manhã, nas minhas visitas a Luceio e a Copónio.

 

- É uma pena que Cícero tenha entrado no quadro disse Eco. Depois abanou a cabeça. Imagina, Cícero encarregar-se da defesa de Marco Célio depois de tudo o que aconteceu entre eles!

 

- Está muita coisa em jogo disse eu. As acusações são graves

- suficientemente graves para levarem um rapaz impertinente como Célio a recorrer ao seu antigo professor. Tenho a certeza de que Cícero o obrigou a prometer que daqui para a frente seria um menino bem-comportado e apoiaria o status quo. Deve ter sido uma jogada e tanto para Cícero, trazer a ovelha perdida de novo para o rebanho.

 

- E, se Cícero conseguir safá-lo, Célio voltará a ter oportunidade de trair novamente o seu antigo mentor observou Eco.

 

Eu ri-me.

 

- Exactamente. Suponho que aqueles dois se merecem um ao outro.

 

- Ainda assim, é uma pena que o defensor seja Cícero. Mesmo que encontres provas definitivas contra Célio...

 

- ... o mais provável é Cícero conseguir fazê-las desaparecer numa nuvem de fumo enquanto conduz os juizes por um caminho totalmente irrelevante em direcção à absolvição de Célio. Sim, estava a pensar a mesma coisa. Ambos trabalhámos para Cícero, e sabemos bem que ele é totalmente desprovido de escrúpulos e tremendamente persuasivo. Não é muito divertido estar do lado oposto.

 

Eco fechou os olhos e encostou-se a um pilar, deixando o Sol aquecer-lhe o rosto.

 

- Mas a má notícia é mesmo o envio dos escravos da cozinha de Luceio para as minas de Piceno. Se a mulher de Luceio tiver razão, eles encontram-se no coração da tragédia. Se foram subornados para administrar o veneno, devem ter alguma ideia de quem lhes pagou, ou pelo menos devem ser capazes de fornecer uma pista. São os elos da cadeia, aqueles que tens de procurar em seguida. Mas estão em Piceno e, saibam o que souberem, não parece provável que Luceio viesse alguma vez a permitir que testemunhassem.

 

- Sim, é frustrante. Mas suponho que alguém podia ir até Piceno e tentar encontrá-los. Mesmo que não possam testemunhar, poderão conduzir-nos a alguém que possa fazê-lo.

 

Eco semiabriu um olho e olhou para mim de lado.

 

- Não tenho nenhum assunto premente durante os próximos dias, e é sempre agradável sair de Roma. Basta dizeres, papá.

 

Sorri e acenei com a cabeça.

 

- Talvez. Suponho que esse é o próximo passo lógico. No entanto, não consigo deixar de pensar na rapariga...

 

- Na rapariga?

 

- Na escrava, Zótica. Devia falar com ela. Talvez saiba alguma coisa.

 

- Tenho a certeza de que ela sabe uma data de coisas, papá. Mas tens realmente vontade de que ela tas conte?

 

- O que queres dizer?

 

Eco olhou para mim com astúcia, estreitando os olhos por causa da luz do Sol.

 

- Diz-me uma coisa, papá, queres falar com essa Zótica para veres o que ela sabe sobre o assassínio, que provavelmente é nada ou queres falar com ela para satisfazeres a tua curiosidade lúbrica acerca das coisas que Díon lhe fazia?

 

-Eco!

 

- Se ela te dissesse que o tratamento que recebia de Díon não era tão cruel como foste levado a pensar, sentir-te-ias aliviado, não é verdade?

 

Eu suspirei. -É.

 

- E se acontecesse o contrário? Se as coisas que Díon lhe fazia fossem tão terríveis como tu receias, e ainda piores? Sei como te sentes por causa de Díon, papá pela maneira como ele morreu, pelo facto de ter vindo pedir-te ajuda. Mas também conheço a força dos teus sentimentos relativamente às pessoas que abusam dos escravos dessa maneira.

 

- Copónio podia estar a caluniar Díon disse eu.

 

- Não me parece. Pelo que tu me contaste, Copónio mostrou-se relutante em falar dos hábitos de alcova de Díon, e estava mais embaraçado do que escandalizado, como se estivesse a contar-te que Díon tinha flatulência ou ressonava. E quanto ao escravo, Fílon? Ele também te contou a mesma história.

 

- Os escravos gostam tanto de coscuvilhar como os seus senhores.

- Abanei a cabeça. Não quero ficar com as minhas recordações de Díon manchadas por mexericos.

 

- Ah, mas se a rapariga o confirmasse, já não seria um mexerico.

 

- Então achas que eu só quero encontrar esta rapariga para ficar descansado acerca de Díon?

 

- E não será isso, papá? O seu olhar compreensivo fez-me sentir subitamente inseguro.

 

- Em parte, sim. Mas essa não é a única razão insisti eu. Há mais alguma coisa, uma coisa que eu não consigo explicar.

 

- Outra intuição da deusa Cibele, que te orienta neste caminho?

 

- Estou a falar a sério. Não consigo deixar de sentir que esta Zótica sabe alguma coisa, ou que fez alguma coisa...

 

- Ou que lhe fizeram alguma coisa a ela disse Eco em voz baixa.

 

- Eco, disseste-me que podia contar com a tua ajuda. Preciso que me faças o seguinte: que descubras esse comerciante de escravos da Rua dos Fabricantes de Foices. Que descubras o que aconteceu a Zótica.

 

- Tens a certeza, papá? Parece-me que o meu tempo seria melhor empregue a tentar contactar os escravos da cozinha de Luceio. Mas, para isso, tenho de me pôr a caminho. Demoro um dia a chegar a Piceno, outro dia a regressar, mais o tempo que vou lá estar. Dado que o julgamento é daqui a quatro dias...

 

- Não, descobre primeiro o que aconteceu à rapariga. Ainda podes começar hoje. De qualquer maneira, já é tarde para partires para Piceno.

 

Eco abanou a cabeça perante a minha teimosia.

 

- Muito bem, papá. Vou ver se consigo descobrir-te essa tal Zótica. Suponho que, se a história dela for suficientemente horrível, isso me poupará o trabalho de ir a Piceno.

 

- Por que dizes isso?

 

- Bem começou Eco, mas foi interrompido.

 

- Mas afinal, se Díon era esse género de homem, por que estão a incomodar-se a descobrir quem o matou?

 

- Diana! Voltei-me e vi a minha filha à porta.

 

- Posso vir para o pé de vocês, papá? Aproximou-se de mim e tomou-me a mão. O seu cabelo preto, liso e comprido, brilhava à luz do Sol. A mãe e a Menénia não param de falar acerca dos gémeos e os gémeos só estão interessados em me puxar os cabelos e me gritar aos ouvidos. São uns belos monstrozinhos! Prefiro estar contigo e com Eco.

 

Diana, por que dizes isso?

 

- Porque os gémeos são uns monstros Titânia é uma harpia e Tito é um ciclope!

 

- Não, o que disseste sobre Díon? Ninguém disse que ele era um homem mau.

 

Diana olhou para mim sem expressão.

 

- Tenho a impressão disse Eco de que alguém esteve a escutar atrás da porta durante bastante tempo.

 

- Não estive nada!

 

- Isso é um péssimo hábito, Diana, especialmente quando o teu irmão e eu estamos a discutir um caso.

 

- Mas já te disse que não estive a escutar à porta. Ela recuou, cruzou os braços, e lançou-me a sua versão do olhar de Medusa.

 

- Diana...

 

- Além disso, papá, não é de escutar atrás das portas que tu e Eco vivem? Não percebo por que hás-de implicar comigo por fazer o mesmo, ainda que fosse o caso, e não era.

 

- É uma questão de respeito pelo papá disse Eco.

 

- Nesta casa, ninguém parece ter respeito por mim disse Diana.

- Sempre que os monstros cá vêm, é como se eu fosse de pedra. Voltou-se e saiu da sala.

 

- Ora, ora disse Eco. É isto que significa viver com uma filha de treze anos?

 

- Espera e verás suspirei eu.

 

- Talvez tenhas andado a prestar pouca atenção a Diana.

 

- É provável. Ela está a tornar-se difícil.

 

- Foi a mesma coisa com Meto, não te lembras?

 

- Com Meto começou mais tarde e foi diferente. Eu compreendia o que se passava com ele, quer me agradasse, quer não. Mas com Diana, não compreendo. Nada de nada. É a única filha que tenho que tem a mesma carne e o mesmo sangue que eu, mas às vezes acho que Betesda a criou sozinha.

 

- Ela é mais parecida contigo do que tu pensas, papá.

 

- Sim, deves ter razão. Tentei lembrar-me de que estávamos a falar mas, em vez disso, dei por mim absorto no odor a jasmim que se demorava no ar quente. Diana começara recentemente a usar o mesmo óleo fragrante que Betesda usava para perfumar o cabelo, tal como tinha começado a usar, ocasionalmente, as jóias e os lenços da mãe. Fechei os olhos. Inspirei a fragrância; podia ter origem em qualquer delas. Diana estava a tornar-se tão parecida com a mãe...

 

Fui interrompido pelo som de alguém a pigarrear. Abri os olhos, pestanejando por causa do brilho do Sol.

 

- O que se passa, Belbo?

 

- Uma visita, Senhor. É outra vez o pequeno gallus. Diz que tens de ir imediatamente com ele.

 

- Ir com ele? Voltei o rosto para o Sol e fechei novamente os olhos. Doíam-me as pernas da caminhada da manhã. O brilho do Sol estava a pôr-me sonolento.

 

- Sim, tens de vir! pipilou uma voz conhecida. Abri os olhos e vi Trigónion passar por Belbo e entrar no átrio. As suas pulseiras de prata chocalhavam e brilhavam ao sol e as suas roupas amarelas e vermelhas eram estonteantes. Eco ergueu as sobrancelhas. Belbo bateu com o pé no chão, frustrado.

 

- Clódia precisa de ti disse Trigónion. Imediatamente! É uma questão de vida ou de morte!

 

- De vida ou de morte? disse eu cepticamente.

 

- É de envenenamento! disse Trigónion, desesperado. O monstro planeia envenená-la!

 

- Quem?

 

- Célio! Clódia!

 

Trigónion, o que estás para aí a dizer?

 

Tens de vir imediatamente. Está uma liteira à espera lá fora. Eu levantei-me penosamente.

 

- Queres que eu vá contigo, papá? perguntou Eco.

 

- Não, preferia que fosses começar a procurar Zótica.

 

- Leva o Belbo contigo, papá.

 

- Não precisas de trazer contigo esse bruto pesadão disse Trigónion. Vais na liteira. Ela está bem guardada.

 

- Digo a Betesda que voltas para o jantar? perguntou Eco, erguendo uma sobrancelha.

 

Atormenta-me se quiseres, Eco. Não te deixo vir comigo disse eu. As gargalhadas dele seguiram-me para fora do átrio.

 

A liteira que estava parada diante de minha casa era bastante mais impressionante do que a que eu esperaria que Clódia, apesar de ser quem era, mandasse para buscar um simples assalariado. O pavilhão era forrado de seda às riscas vermelhas e brancas, como a tenda de Clódia nas margens do Tibre. As varas eram de carvalho polido, transportadas por um grupo de escravos de peito largo com ombros de touro, que vestiam tangas brancas e usavam sandálias de solas espessas. Eram todos louros Cítios, talvez, ou Gauleses capturados nas conquistas de César. Eu já os tinha visto, no meio dos jovens que faziam cabriolas no rio, diante do horto de Clódia. Atrás deles, vinha uma pequena comitiva de guarda-costas, provavelmente recrutados do bando de Clódio. Não gostei do seu aspecto, o que significava que tinham o aspecto que deviam ter para guarda-costas.

 

Trigónion estalou os dedos. Com uma eficácia resultante do treino, os carregadores baixaram a liteira. Um escravo poisou no chão um bloco de madeira para que nós pudéssemos entrar.

 

Com um gesto, indiquei a Trigónion que subisse, mas ele abanou a cabeça.

 

Tenho outras coisas a tratar. Anda, sobe!

 

Subi para o bloco e afastei as cortinas. Lá de dentro, vinha uma mistura de odores exóticos. O jasmim era um deles, juntamente com o incenso e o sândalo e odores mais esquivos era o cheiro de Clódia. Os forros eram de um tecido pesado e opaco, que fazia com que o interior da liteira parecesse muito escuro, depois do brilho do Sol da rua. Eu já estava lá dentro, encostado contra as almofadas e a ser erguido no ar, quando me apercebi de que não estava sozinho.

 

- Obrigada por teres vindo. Uma mão tocou-me no braço. Senti a sua presença, cheirei o seu perfume, senti o calor do seu corpo.

 

- Clódia!

 

Ela agitou-se ao meu lado. A sua perna roçou na minha. Riu-se com suavidade e eu senti o odor do seu hálito quente e húmido contra o meu rosto, cheirando vagamente a alho.

 

- Pareces surpreendido por me ver, Gordiano.

 

- Pensei que a liteira estivesse vazia. Quando os meus olhos se adaptaram à obscuridade, vi que havia ainda outro ocupante. Diante de nós, encostada às almofadas da parte da frente da liteira, seguia Crisis, a criada de cabelos ruivos. Sorriu-me e inclinou a cabeça.

 

- Uma mulher aprende muito cedo a não subir para uma liteira sem saber quem vai lá dentro disse Clódia. Julguei que os homens conheciam essa regra, embora para eles os perigos sejam outros.

 

O passo dos carregadores era impecavelmente suave. Abri a cortina mais próxima e vi que avançávamos com bastante rapidez. De trás de nós, chegava até mim o som do trote dos guarda-costas, seguindo o ritmo dos carregadores.

 

- Não me parece que estejamos a dirigir-nos a tua casa, Clódia.

 

- Não estamos. Prefiro discutir aquilo que tenho para te dizer longe de ouvidos curiosos. Ela viu-me olhar para a criada. Não te preocupes com Crisis. Não há ninguém mais leal do que ela. Clódia estendeu a perna e tocou com o pé descalço no da escrava. Inclinou-se para diante e o mesmo fez Crisis. Quando os rostos de ambas se encontraram, Clódia beijou a rapariga na testa e deu-lhe uma palmadinha suave na cara.

 

Clódia recostou-se. Voltei a sentir o seu calor contra mim.

 

- Está muito escuro murmurou ela. Crisis, querida, abre as cortinas de dentro.

 

A jovem escrava moveu-se com agilidade dentro do pavilhão, puxando as pesadas cortinas de dentro e prendendo-as aos ganchos dos cantos. A liteira continuou reservada, escondida pelas cortinas translúcidas, às riscas vermelhas e brancas, que deixavam entrar a brisa. Os sons da rua aumentavam e diminuíam à medida que passávamos por eles a toda a velocidade. De vez em quando, o chefe dos carregadores assobiava para assinalar uma curva, uma paragem ou uma mudança de ritmo, mas a liteira nunca oscilou nem se inclinou. Uma letárgica sensação de fausto tomou conta de mim, a sensação de ser transportado sem esforço pelo ar, num mundo privado, longe da sordidez da rua.

 

A súbita e inesperada proximidade do corpo de Clódia era embriagadora. Ela estava tão próxima que eu apenas podia vê-la com olhares de esguelha, e nunca toda de uma vez só; tal como um objecto colocado demasiadamente perto dos olhos, dominava os meus sentidos embora lhes escapasse. Ao brilho filtrado do Sol que passava pelas cortinas de seda, a carne dos seus braços e do seu rosto parecia tão suave como a cera, mas irradiando um calor interior. A estola que trazia vestida era tão transparente como a do dia anterior, mas tinha uma cor diferente, um branco-cremoso que era exactamente da cor da sua carne. Enquanto passávamos por fragmentos manchados de sol e sombra, a ilusão de que estava nua era por vezes inquietante, mas depois ela mexia-se e o vestido ganhava vida própria, como se o tecido brilhante, provocado pelos seus movimentos, procurasse acariciar todos os lugares escondidos do seu corpo.

 

O pavilhão estava suspenso de forma a manter-se equilibrado quando os postes foram inclinados, mas eu percebi que tínhamos iniciado a descida íngreme da encosta ocidental do Palatino, na direcção do Fórum Boário. Os ruídos provenientes do exterior aumentaram quando passámos pelo enorme mercado de carne. As ruas congestionadas obrigavam os carregadores a parar numerosas vezes, e os cheiros da carne assada e dos animais vivos que ali se vendiam misturavam-se com o perfume de Clódia. O feitiço no interior da liteira abrandou. Pareceu-me acordar de um sonho.

 

Onde vamos? perguntei.

 

- A um sítio onde poderemos falar em privado.

 

- Ao teu horto no Tibre?

 

- Verás. Conta-me o que descobriste hoje.

 

Enquanto passávamos pelo mercado do gado, e depois por uma porta no antigo muro da cidade e entrávamos no Fórum Holitório, o grande mercado dos vegetais, eu contei-lhe o que tinha sabido nas casas de Luceio e de Copónio. Fiz-lhe um relato mais oficial e circunspecto do que aquele que fizera a Eco; afinal, ela não me pagava para bisbilhotar os hábitos sexuais de Díon.

 

- Percebes agora por que razão seria tão difícil manter uma acusação contra Célio por ter morto Díon disse ela. Não foi possível provar o crime quando o acusado era Asício, e o mais provável é não ser possível prová-lo tendo Célio como acusado, embora toda a gente saiba que ambos foram cúmplices. A tentativa de envenenamento é a chave. Mas tens razão, Luceio nunca autorizará os seus escravos a testemunharem. Preferia matá-los a enfrentar um julgamento público. Que hipocrisia! Um verdadeiro anfitrião gostaria de ver vingado um crime contra um convidado seu, em vez de fingir que ele nunca aconteceu.

 

- Agitou-se ao meu lado e pareceu-me que o seu corpo tinha ficado mais quente. Pergunto a mim própria se seria possível enganar Luceio e comprar-lhe esses dois escravos.

 

- É possível disse eu. Mas não provável.

 

- Depois poderia obrigá-los a testemunharem. O tribunal insistiria em que esse testemunho lhes fosse lhes arrancado por meio da tortura, evidentemente, o que o colocaria fora do meu controlo...

 

- Foi para discutir estratégias que me chamaste? Pela atitude de Trigónion, pensei que havia uma crise terrível. Ele falou de venenos...

 

- Abri um pouco a cortina mais próxima para olhar para o mercado. Os feirantes vendiam galinhas depenadas e ramos de espargos temporãos.

 

Clódia levou um dedo aos lábios.

 

- Estamos quase a chegar.

 

Momentos depois, parámos. Pensei que tivéssemos chegado a outra zona congestionada, mas depois senti a liteira ser baixada e vi Crisis levantar-se para abrir as cortinas exteriores. Tirou uma capa com um capuz que colocou habilmente sobre os ombros da sua senhora enquanto Clódia descia da liteira. Eu deixei-me estar, sem ter bem a certeza se devia segui-la. Parecia-me que estávamos no sopé do lado sul do Capitólio, na extremidade do mercado dos vegetais, ainda muito perto do coração da cidade. Que género de privacidade poderia um local como este proporcionar?

 

Crisis voltou a encostar-se nas almofadas. Sorriu e ergueu uma sobrancelha.

 

- Podes avançar! Não sejas acanhado. Não és o primeiro homem a atravessar aquelas portas na sua companhia.

 

Eu saí da liteira. Clódia esperava por mim envolta na sua capa e, quando me viu aparecer, voltou-se e avançou rapidamente na direcção de uma parede de tijolo que parecia proteger um canto de terreno encostado à base escarpada do Capitólio. Na parede, havia uma porta de madeira, na qual ela meteu uma chave. As dobradiças rangeram quando ela empurrou a porta. Eu segui-a e ela fechou a porta atrás de nós.

 

À nossa volta, havia sepulcros de mármore desgastado pelo tempo, adornados com placas e inscrições, tabuinhas gravadas e estátuas. Ciprestes e teixos erguiam-se por entre a floresta de mármores. O muro de tijolos distanciava-nos da cidade repleta de gente. A base perpendicular do Capitólio avolumava-se diante de nós, com o céu azul por cima.

 

- Não há local mais retirado em toda a cidade disse Clódia.

 

- Que sítio é este?

 

- É o antigo lugar de enterramento dos Cláudios. Foi-nos concedido nos recuados dias de Rómulo, quando os nossos antepassados vieram das terras sabinas para Roma. Fomos inscritos no número dos patrícios e foi-nos concedida esta parcela, mesmo à saída dos antigos limites da cidade, para recinto de enterramento da nossa família. Ao longo dos séculos, tem-se enchido de túmulos e sepulcros. Clódio e eu costumávamos vir brincar para aqui quando éramos pequenos, imaginando que era uma cidadezinha completa. Escondíamo-nos um do outro nos sepulcros e andávamos pelos caminhos em procissões fingidas. Os sepulcros eram grandes palácios, templos e fortalezas, e os caminhos eram avenidas largas e passagens secretas. Eu costumava assustá-lo, fingindo acordar os lémures dos nossos antepassados. Clódia riu-se. Cinco anos é uma diferença tão grande entre crianças. -Tirou a capa dos ombros e poisou-a descuidadamente em cima de um banco de pedra.

 

A luz do Sol, que avançava para oeste, reflectia a face pedregosa do Capitólio, lançando um suave brilho cor de laranja sobre todas as coisas, incluindo Clódia e a sua estola brilhante. Tentando evitar olhar para ela, dei por mim a examinar o muro de um túmulo próximo, e a tabuinha onde estavam esculpidos os rostos manchados e gastos pelo tempo de um marido e uma esposa mortos há muito.

 

- Depois, quando já era mais velha, vinha até aqui para estar sozinha disse Clódia. Caminhava entre os monumentos, passando a mão pelas pedras gastas. Foram anos maus, em que o meu pai estava sempre ausente, quer exilado pelos seus inimigos, quer combatendo por Sula. A minha madrasta e eu não nos dávamos bem. Olhando agora para trás, percebo que ela estava doente de preocupação, mas na altura não conseguia estar em casa com ela, por isso vinha até aqui. Tens filhos, Gordiano?

 

- Dois filhos e uma filha.

 

- Eu tenho uma filha. Quinto sempre quis ter um filho. Havia uma sugestão de amargura na sua voz. Que idade tem a tua filha?

 

- Treze anos. Faz catorze este Verão.

 

- Exactamente como a minha Metela! Começam a entrar naquela idade difícil, em que muitos pais gostam de empurrar as filhas para o casamento, transferindo o problema para outra pessoa.

 

- Nós ainda não fizemos planos para Diana.

 

- Ela tem sorte em viver em casa da família, e sorte em ter lá o pai. As raparigas precisam disso, sabes. Toda a gente fala sobre os rapazes e os pais. As pessoas só se preocupam com os filhos. Mas uma rapariga também precisa do pai, para lhe dar mimos, para a ensinar. Para a proteger.

 

Ficou perdida nos seus pensamentos por longos momentos, depois pareceu acordar para o que a rodeava. Sorriu.

 

- E, claro, quando era um pouco mais velha, trazia para aqui os rapazes. A minha madrasta permitia que os meus irmãos fizessem tudo o que lhes apetecia, mas era muito rigorosa com as filhas e comigo, ou tentava ser, embora isso apenas lhe tenha provocado mais sofrimento. Oh, houve muitos encontros secretos neste sítio, atrás destas árvores, naquele banco que ali vês. Claro que tudo isso acabou quando o meu pai me prometeu em casamento ao primo Quinto disse ela sombriamente.

 

- E agora que és viúva, continuas a trazer aqui os teus pretendentes? Clódia riu-se.

 

- Que ideia absurda. Por que perguntas?

 

- Por causa de uma coisa que Crisis disse quando eu ia a sair da liteira.

 

A Crisis é uma marota. Estava a brincar contigo, com certeza. Oh, calculo que haja mexericos desses sobre mim, ”Clódia encontra-se com os seus amantes à meia-noite no cemitério claudiano! Arrasta os jovens para os sepulcros e desflora-os enquanto os seus antepassados se engasgam de escândalo!” A verdade é que, ultimamente, prefiro de longe um canapé com almofadas. E tu?

 

Ela estava de lado e voltou o rosto para me olhar de frente. A luz do Sol reflectia-se-lhe na estola, parecendo transformá-la numa névoa fina, que se pegava à sua carne nua e poderia ser dissipada com um sopro.

 

Eu desviei os olhos e fiquei a olhar de frente para um imponente baixo-relevo da cabeça de um cavalo, o antigo símbolo da morte. A morte como partida; a morte como uma coisa mais poderosa do que o homem.

 

- Ias explicar-me essa conversa acerca do veneno.

 

Ela sentou-se num banco, utilizando a capa como almofada.

 

- Marco Célio conspira para me assassinar antes do julgamento. Ela deixou que a afirmação reverberasse por momentos, depois continuou.

 

- Sabe que eu possuo provas. Sabe que tenciono testemunhar contra ele. Quer ver-me morta e, se levasse a sua avante, eu iria juntar-me às sombras dos meus antepassados antes de amanhã ao pôr do Sol. Felizmente, os escravos que Célio julgou poder seduzir preferiram ser-me leais e informaram-me da conspiração.

 

- Que conspiração?

 

Esta manhã, Célio obteve o veneno que tenciona usar. Comprou um escravo para o experimentar. O infeliz morreu numa agonia horrível, enquanto Célio assistia. Bastaram uns momentos. Célio pretendia um veneno de acção rápida, compreendes?, e tinha de ter a certeza de que resultava.

 

- Como soubeste isso?

 

- Porque tenho espiões em casa de Célio, naturalmente. Tal como ele pensa que tem espiões em minha casa. Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. A conspiração era a seguinte: um amigo dele encontrar-se-ia com alguns dos meus escravos amanhã à tarde nas termas senianas e entregava-lhes o veneno; eles levavam o veneno para casa e Crisis punha-o na minha comida. O amigo dele abordou os meus escravos ontem, incluindo Crisis. Os escravos fingiram concordar, mas vieram ter comigo e contaram-me tudo.

 

O que levou Célio a pensar que podia subornar os teus escravos?

 

- Marco Célio costumava ser bem recebido em minha casa quando lá ia como convidado. Acabou por conhecer bastante bem alguns dos meus escravos, nomeadamente Crisis o suficiente, julgo eu, para pensar que podia agitá-los com promessas de prata e de liberdade se eles o ajudassem a assassinar a sua senhora. Subestimou a sua lealdade por mim. Olhei-a fixamente tentando decidir se devia acreditar nela, mas, em vez disso, dei por mim a estudar a forma do seu corpo. Abanei a cabeça.

 

- Quer dizer que a conspiração foi descoberta. Mataste-a na semente. Por quê todo este secretismo? Por que me falas nela?

 

- Porque Marco Célio não sabe que a conspiração foi anulada. Está convencido de que os meus escravos concordaram em seguir as suas ordens. Planeia avançar. Amanhã à tarde, o amigo dele vai às termas senianas, levando consigo a caixinha do veneno. Os meus escravos estarão lá para o receber acompanhados de testemunhas. Apoderar-nos-emos do veneno e denunciaremos o amigo; depois, apresentaremos as provas em tribunal, juntando outra acusação de tentativa de assassínio às que já foram feitas contra Marco Célio.

 

- E queres que eu também esteja presente? perguntei Ela aproximou-se de mim.

 

- Sim, para nos ajudares a apanhar o veneno. Para assistires a tudo.

 

- Tens a certeza de que podes confiar nos teus escravos, Clódia?

 

- Claro.

 

- Talvez eles não estejam a contar-te tudo.

 

- Todos nós temos de acabar por confiar nos nossos escravos, não é verdade?

 

- Então, por que me trouxeste até aqui, para longe de tua casa, para longe dos guarda-costas e dos carregadores da liteira, onde nem Crisis pode ouvir-nos?

 

Ela baixou os olhos.

 

- Sou transparente para ti. É verdade, não posso ter a certeza. Ninguém pode estar totalmente certo do que quer que seja neste mundo. Sim, estou um pouco assustada até com os meus escravos. Mas, por qualquer razão, confio em ti, Gordiano. Imagino que já outros te terão dito o mesmo.

 

Ela tinha a cabeça inclinada e os olhos baixos, por isso pude reparar na extraordinária linha das suas sobrancelhas, que pareciam as asas de um pássaro em voo. Depois, ela ergueu o rosto e eu só consegui ver os seus olhos verdes, profundos e luminosos.

 

Clódia, pediste-me que encontrasse provas de que Marco Célio tentou matar Díon. Se o teu objectivo é a justiça, a obtenção de vantagens políticas, ou simplesmente ferir Célio, não sei, nem me interessa assim muito. Concordei em participar por uma razão: para fazer o que puder para dar paz à sombra de Díon. Esta guerra entre ti e Célio um caso de amor interrompido, um ódio inflamado, seja o que for não me diz respeito.

 

Ela aproximou-se ainda mais e olhou-me firmemente nos olhos. Eu senti o calor do seu corpo, como o sentira na liteira. Os seus olhos pareciam impossivelmente grandes.

 

- O amor e o ódio nada têm a ver com isto. Não percebes, Gordiano, que está tudo relacionado com o assassínio de Díon? É por isso que Célio quer matar-me, não é porque eu o amei e deixei de amá-lo, mas porque estou a tentar provar o que ele fez a Díon. É por isso que eu quero que vás amanhã às termas senianas, para nos ajudares a frustrar esta conspiração contra mim e a denunciá-la diante de Roma inteira. Isto faz tudo parte das acusações contra Célio, e é a única maneira de levar o assassino de Díon perante a justiça.

 

Eu recuei, afastando-me dela.

 

- As termas senianas disse lugubremente. Acho que um mergulho quente não pode fazer-me mal. A que horas?

 

Um seus lábios registaram um sorriso fugidio.

 

- Mando uma liteira a tua casa amanhã à tarde. Crisis também irá, para te dar mais pormenores pelo caminho. Pegou na capa e entregou-ma, depois voltou-se para que eu pudesse pôr-lha sobre os ombros. Inclinou-se para trás, encostando ligeiramente o seu corpo contra o meu.

- Oh, e esta noite mando-te a prata de que talvez estejas a precisar.

 

Para que é a prata?

 

- Para comprares aqueles dois escravos da cozinha de Luceio, naturalmente, os que participaram na conspiração contra Díon. Isto é, se conseguires descobri-los. Vais precisar de prata viva para poderes comprá-los mesmo debaixo do nariz do capataz de Luceio, naquela mina do Norte, ou suborná-lo para que tos ceda. Que quantidade de prata te parece que será necessária? Bem, diz-me antes de nos separarmos, que eu mando-ta esta noite.

 

- Eu mando-te um recibo pelo mesmo mensageiro disse eu. Ela apertou a capa à volta do pescoço e sorriu.

 

- Não é necessário. Tenho a certeza de que, depois do julgamento, me devolverás a que não tiveres utilizado. Como vês, Gordiano, confio realmente em ti.

 

- Importas-te que façamos um pequeno desvio? perguntou Clódia quando já estávamos dentro da liteira e no ar.

 

- Desde que eu volte a tempo para o jantar disse eu, pensando em Betesda.

 

- São só uns momentos. Apetece-me imenso subir ao Capitólio, para apreciar a vista. O ar está hoje tão limpo, e o Sol vai pôr-se a ocidente. Fez um sinal a Crisis, que meteu a cabeça de fora das cortinas e deu instruções ao chefe dos carregadores.

 

Voltámos a passar pelos mercados de vegetais e de gado, atravessámos o vale entre o Monte Palatino e o Capitólio e entrámos no Fórum. O dia declinava, mas uma vista de olhos ao exterior fez-me perceber que as praças ainda estavam cheias de homens vestidos de togas a tratar dos seus negócios. Apreciei a privacidade de uma liteira fechada de que outra maneira pode um homem atravessar o local mais movimentado de Roma ao lado de uma mulher escandalosa sem que ninguém o veja?

 

Contudo, a comitiva de Clódia não passou despercebida. A certa altura, cruzámo-nos com o bando de Milo, que deve ter reconhecido as cortinas às riscas vermelhas e brancas da liteira.

 

- Façam sair a prostituta! gritou um deles.

 

- Estás aí dentro com ela, Clódio?

 

- Molhaste outra vez a cama e vais a correr ter com a mana mais velha?

 

- Ela dá-lhe um beijinho e fica tudo bem!

 

- Ou então fá-lo crescer!

 

Subitamente, houve um solavanco e a liteira parou. Lá fora, ouviram-se outros insultos obscenos, seguidos do som de uma escaramuça. O momento tinha uma peculiar qualidade de pesadelo; dentro da liteira, nós permanecíamos escondidos, mas também cegos para o que se passava no exterior, de maneira que as obscenidades pareciam provir de vozes desencarnadas e os ruídos de briga eram tanto mais alarmantes pelo facto de a sua origem permanecer invisível. Ouvi deslizar o aço tirado de bainhas, e depois mais gritos. Ao meu lado, o corpo de Clódia parecia irradiar calor. Olhei para o seu rosto, que se mantinha impassível.

 

Pareceu-me que as suas orelhas estavam a ficar vermelhas, mas também pode ter sido um efeito de luz no interior da liteira.

 

A liteira começou novamente a mover-se, depois parou abruptamente.

 

- Virem-na ao contrário! gritou alguém.

 

- Façam uma fogueira com a cabra!

 

Olhando em frente sem pestanejar, Clódia estendeu a mão para a minha e apertou-a. Eu cerrei os dentes e contive a respiração. Lá de fora, chegava-me o ruído do choque do aço, juntamente com gritos e gemidos.

 

Por fim, a liteira recomeçou a mover-se e ganhou rapidamente velocidade, deixando para trás de nós um coro de insultos obscenos. Clódia continuava a olhar em frente. Gradualmente, foi abrandando a pressão e por fim largou-me a mão. Soltou um suspiro quase inaudível, depois teve um sobressalto quando uma voz grosseira chamou pelo seu nome do exterior.

 

- É o chefe dos guarda-costas disse-me ela, recuperando a compostura. Afastou a cortina. Um gladiador de cabelo cor de palha com o nariz em gancho trotava a par da liteira.

 

- Desculpa o que o que se passou disse ele. Não aconteceu nada de especial. Eles foram os mais atingidos. Tão cedo os homens de Milo não tentarão outra habilidade daquelas!

 

Clódia acenou com a cabeça. O homem riu-se, mostrando os dentes podres, e Clódia deixou cair a cortina.

 

Virámos bruscamente para a esquerda, e depois novamente para a direita, subindo a longa rampa inclinada que vai dar ao alto do Capitólio.

 

Passámos pelos principais monumentos, o Auguraculum e o grande Templo de Júpiter, e atravessámos a Rocha Tarpeia em direcção ao sopé do lado sul da colina, onde há menos construções. A liteira parou. Clódia pôs a capa aos ombros e saímos. O sítio estava deserto e silencioso, à excepção do som do vento nos meus ouvidos.

 

No céu por cima de nós viam-se remoinhos de nuvens cor de laranja e roxas, num pôr do Sol espectacular. O Tibre era um lençol de ouro e, para ocidente, o horizonte estava em chamas.

 

- Estás a ver? disse Clódia, enrolando-se na capa. Eu sabia que seria maravilhoso!

 

Eu estava ao lado dela, contemplando o pôr do Sol. Ela apontou para qualquer coisa mesmo abaixo de nós.

 

- Se olhares lá para baixo a direito, por cima da ponta do penhasco, consegues ver um bocadinho do muro de tijolos que rodeia o cemitério claudiano, onde estivemos há bocado. Estás a ver, ali? E, mesmo por trás, o Templo de Belona, construído na mesma parcela de terreno por um dos meus antepassados, o Ápio Cláudio que venceu a batalha contra os Etruscos há duzentos anos. Em vez de organizar uma parada triunfal, construiu um templo à sua própria custa, dedicou-o a Belona, a deusa da guerra, e ofereceu o monumento ao povo de Roma. Sula tinha uma predilecção especial por Belona, sabias? Atribuía-lhe todas as suas vitórias. Lembro-me de ele dizer ao pai certa vez: ”Agradece ao teu antepassado em meu nome, da próxima vez que falares com ele, por ter construído aqui em Roma um lugar tão belo para Belona viver.”

 

Sorriu e voltou as costas ao pôr do Sol, caminhando lentamente até ao outro lado da colina. À nossa frente, erguia-se o Palatino, com a sua imensa confusão de telhados. Um pouco mais para sul, a paisagem abria-se. No vale entre os Montes Palatino e Aventino, ficava a vasta extensão do Circo Máximo, com a comprida pista de corridas. Clódia apontou para as regiões para além dele.

 

- Ali começa a Via Ápia, que vai para sul, na direcção da Campânia e para além dela. E ali, cruzando-se com a Via Ápia, ao longo de uma extensão do muro, fica o aqueduto ápio, que abastece de água a cidade há quase trezentos anos. Estas obras são o legado da minha família. E os homens com que nos cruzámos no Fórum atrevem-se a chamar-me nomes!

 

Ficou a contemplar a paisagem durante algum tempo, pestanejando como se o vento lhe tivesse atirado pó para os olhos, e depois olhou por cima do ombro. A pouca distância, ficava o templo que coroa a zona sul do Capitólio.

 

- Tenho de entrar, só por um momento disse ela. Avançou para os degraus do templo, deixando-me para trás; eu fiquei a pensar se teria acabado de assistir ao desejo piedoso de uma patrícia queimar um pouco de incenso em honra dos seus antepassados, ou à necessidade de uma mulher esconder um súbito ataque de choro.

 

Os carregadores da liteira descansavam. Os guarda-costas jogavam aos dados. Crisis continuava dentro do pavilhão. Eu arrastei os pés na praça pavimentada diante do templo, com os olhos fixos nas lajes.

 

Subitamente, apercebi-me de que se tratava do Templo da Religião Pública, e lembrei-me da inscrição que tinha sido acrescentada há uns tempos ao parapeito de mármore da frontaria do edifício.

 

A inscrição não era difícil de descobrir. A luz estava a desaparecer, mas ainda era possível distinguir as letras gravadas, que li com um estranho sentimento de indiferença.

 

PTOLEMAIOS THEOS PHILOPATOR PHILADELPHOS NEOS DIONYSOS

AMIGO E ALIADO DO POVO ROMANO

 

Ditas e feitas todas as coisas, o Rei Ptolemeu era a causa que estava por trás de tudo: da viagem de Díon para Roma e da sua arrepiante morte, das maquinações egípcias de Pompeu e de Clódio e dos restantes membros do Senado romano, do iminente julgamento de Marco Célio. Mas, como salientam os filósofos, o tronco de uma árvore detecta-se de forma clara na raiz, mas vai-se tornando cada vez mais obscuro à medida que se avança para os ramos.

 

Não tive de erguer os olhos para perceber que Clódia tinha terminado o que estivera a fazer no templo e descia silenciosamente os degraus em direcção a mim. Senti o seu perfume.

 

Desci da liteira de Clódia para a rua diante da minha porta no momento em que os últimos vestígios da luz do dia recuavam dos telhados das casas para o éter. A liteira às riscas vermelhas e brancas afastou-se. O bater dos pés dos guarda-costas de Clódia deixou atrás de si uma nuvem de pó, que tornou ainda mais sombria a rua vazia ao lusco-fusco. Bati à porta de minha casa, mas Belbo demorou a responder.

 

Um receio qualquer - a Fortuna a dar-me uma pancadinha no ombro, como se costuma dizer - fez-me olhar para trás.

 

Do outro lado da rua, vi a figura de um homem. Vestia uma toga e, pela sua pose, parecia estar parado a observar-me. Voltei-me e bati novamente à porta. Tentei o fecho, para o caso de a terem deixado destrancada. Não tinham. Voltei a olhar para trás.

 

A figura tinha-se aproximado, ia a meio da rua. Por causa da obscuridade e da poeira, eu apenas conseguia distinguir uma silhueta.

 

Onde estava Belbo quando eu precisava dele? Não precisas de trazer contigo esse bruto pesadão, tinha-me dito Trigónion quando saímos de casa. Vais na liteira. Ela está bem guardada. Pois agora estava sozinho nos degraus de minha casa, sem guarda-costas e sem uma arma. Voltei a bater à porta e depois virei-me para encarar o homem. Se ele tencionava esfaquear-me, preferia olhá-lo de frente do que ter as costas voltadas. Claro, o mais provável era o homem ser apenas um estranho que passava por ali, pensei, enquanto percorria o meu catálogo mental de todas as pessoas que podiam ter vontade de pôr fim às minhas investigações relativas ao assassínio de Díon - o Rei Ptolemeu, Pompeu, Marco Célio, Milo, o inimigo de Clódio, cujo bando acabava de ameaçar Clódia no Fórum homens conhecidos por recorrerem aos meios que fossem necessários para abafar a sua oposição.

 

A figura aproximou-se, coxeando. Era a maneira como ele caminhava que me assustava. Se me conhecia, por que não se limitava a dirigir-se a mim ou a tratar-me pelo nome? Se estava simplesmente a passar por ali, a atravessar a rua a caminho do seu destino, por que se aproximava de forma tão hesitante?

 

Subitamente, recordei-me do homem que nos tinha perseguido pela Rampa acima na noite anterior, a figura que se voltara subitamente, fugindo na direcção da noite.

 

- Cidadão disse por fim, recuperando a voz. Eu conheço-te? Um sopro de vento fez com que o pó que estava suspenso no ar rodopiasse, dispersando-se. Algures muito acima da terra, a ponta de uma nuvem captou um último raio de luz, lançando um débil brilho sobre a rua sombria, e eu tive um vislumbre do rosto do estranho. Não era certamente um assassino, pensei. Com uma cara daquelas...

 

Apesar disso, o coração começou a bater-me dentro do peito.

 

A porta estalou. Vindo de dentro, chegou até mim o som da barra a ser levantada. A porta oscilou e abriu-se e eu recuei rapidamente, colidindo com qualquer coisa; quando me voltei, vi Belbo a olhar para mim envergonhado.

 

- Desculpa ter demorado tanto tempo, Senhor. A Senhora insistiu em que fosse ajudá-la...

 

Deixa lá, Belbo. Conheces aquele homem?

 

- Que homem, Senhor?

 

A figura tinha desaparecido, tão rápida e seguramente como o pó que havia no ar rodopiara e se desvanecera ao menor sopro do vento. Olhei para um lado e para o outro da rua.

 

- Quem era, Senhor?

 

- Não sei, Belbo. Talvez não fosse ninguém.

 

- Ninguém?

 

- Um estranho, quero eu dizer. Um homem que por acaso ia a passar. Não era mesmo ninguém.

 

Apesar disso, nessa noite, já tarde, dei por mim a recordar o rosto do jovem um rosto magro e escuro, com a barba rala e os olhos salientes. Era um rosto marcado por uma catástrofe terrível, com o género de expressão que se observa nos habitantes de uma cidade caída, paralisados pela aflição à excepção dos olhos, cobertos de uma ansiedade desesperada, de tal maneira pungente que se torna insuportável. A recordação fez-me estremecer. Não era um rosto que eu tivesse vontade de rever.

 

Eram horas de jantar. Betesda recebeu os meus elogios ao guisado de borrego com lentilhas com um aceno de cabeça quase imperceptível e comentou que fora Diana a fazer quase tudo.

 

Um pouco mais tarde, chegou um mensageiro de Clódia, com a prata que ela me tinha prometido. Devia ter sido ela a contar pessoalmente as moedas. Cheiravam ligeiramente ao seu perfume.

 

Enquanto nos preparávamos para nos deitarmos, Betesda perguntou-me como ia o meu trabalho. Suspeitando de que Diana lhe teria contado o que me ouvira discutir com Eco, dei-lhe uma resposta tão superficial quanto possível, sem lhe dizer nenhuma mentira.

 

- E o que queria aquela mulher de ti esta tarde? perguntou ela, desapertando o cinto da estola.

 

- Queria saber o que eu tinha para lhe contar. Nada disse acerca da alegada nova conspiração ou do plano de Clódia para as termas senianas, em que eu estava incluído.

 

- Essa mulher orientou-te para o caminho errado, sabias?

 

- Para o caminho errado?

 

- Aquele que conduz a Marco Célio.

 

- Mas, Betesda, ”toda a gente sabe” que Célio está implicado. Betesda deixou cair a estola e passou para fora dela, ficando nua por momentos.

 

- Arrelias-me por eu acreditar numa coisa só porque é uma coscuvilhice. Por quê? Porque eu sou mulher? Quem está a dar crédito às coscuvilhices és tu. Estendeu a mão para a camisa de dormir e vestiu-a. Eu tentei imaginá-la com um vestido de seda transparente de Cós. Betesda viu o meu olhar e suavizou-se um pouco. Não tens nenhuma razão para suspeitar de Célio, para além da palavra daquela mulher. Seria uma coisa terrível, um jovem ser punido por um crime que não cometeu.

 

- E se ele cometeu o crime?

 

Ela abanou a cabeça e começou a puxar os diversos alfinetes e ganchos que lhe seguravam o cabelo. Sentou-se diante do espelho da mesinha onde estavam dispostas as suas caixas de cosméticos e unguentos começou a escovar o cabelo. Pareceu um pouco surpreendida, mas não protestou quando eu lhe tirei a escova da mão e a substituí nessa tarefa. Nem protestou quando poisei a escova e lhe passei as mãos pelos ombros, inclinando-me em seguida para lhe poisar os lábios no pescoço.

 

Nessa noite, fizemos amor com um calor que anulou o frio do quarto. Eu fiz um esforço enorme para não pensar em Clódia. Talvez tivesse conseguido, se não fosse o seu perfume, que me tinha permeado a roupa e a pele. Ficara-me nas mãos por ter tocado nas moedas, e passou para Betesda. O odor era vago, esquivo, insidioso. Logo que eu me esquecia dele, perdido no labirinto do cabelo de Betesda, voltava a tornar-se presente, enchendo-me a cabeça e conjurando imagens que estavam fora do meu controlo.

 

Na manhã seguinte, Eco apareceu, trazendo notícias de Zótica, a jovem escrava. Na tarde anterior, enquanto eu atravessava a cidade na liteira de Clódia, ele fora à Rua dos Fabricantes de Foices e localizara o comerciante de escravos.

 

- Zótica já não está em Roma disse ele. O comerciante afirma que tentou colocá-la em casa de um homem abastado, convencido de que conseguiria obter o melhor preço se a devolvesse ao género de sítio de onde ela tinha vindo. Mas, aparentemente, as marcas que ela tinha no corpo eram um pouco mais evidentes do que Copónio quis admitir. Ninguém se mostrou interessado nela, nem para a cozinha, nem para criada de quarto. O homem acabou por vendê-la a outro comerciante, especialista em escravos para o prazer.

 

Quer dizer que ela acabou num bordel?

 

- Talvez, mas não em Roma. O segundo comerciante hesitou, gaguejou, estendeu a mão à espera de umas moedas e por fim recordou-se de que a tinha mandado com uma remessa de escravos para um estabelecimento de Putéolos.

 

- Eu reembolso-te essas moedas, Eco. Entretanto, quanto te parece que custaria comprar essa escrava? Mostrei-lhe a bolsinha de prata que Clódia me tinha emprestado.

 

- Consideravelmente menos do que aí está disse Eco. De onde veio isso?

 

Eu expliquei-lhe.

 

- Clódia é uma mulher inteligente disse ele. Tenho cada vez mais vontade de a conhecer. Quem me dera que o meu pai não me impedisse.

 

- Clódia comia-nos os dois ao pequeno-almoço, chupava-nos a medula e jogava aos dados com os ossos dos nossos dedos sem pestanejar.

 

- Isso seria uma experiência memorável.

 

- Aconselho-te a firmares-te em Menénia, e a não largares o assunto.

 

- Então volto a dizê-lo: Clódia é uma mulher inteligente. É uma excelente ideia, tentar comprar aqueles escravos debaixo do nariz de Luceio. Claro, um tipo pode ser morto a tentar fazer uma coisa dessas.

 

- Não precisas de te preocupar com isso.

 

- Papá, estou a brincar. Claro que vou a Piceno ver se consigo encontrar esses escravos e descobrir o que eles sabem. E, se for possível, trago-os comigo para o julgamento.

 

- Não vais, não.

 

- Papá, não estás a pensar em ir lá tu?

 

- Não.

 

- Então tenho de ir eu. A sela deixa-me todo dorido, mas Menénia tem um remédio para isso em que irei a pensar todo o caminho.

 

- Não, Eco, não vais a Piceno. Mas podes ficar igualmente dorido com a viagem de ida e volta a Putéolos.

 

- A Putéolos? Papá, certamente que não queres que eu vá atrás de Zótica em vez de ir procurar os escravos da cozinha, que podem ser a chave para tudo. Não posso de maneira nenhuma fazer as duas coisas. Piceno é ao norte e Putéolos ao sul, e o julgamento começa dentro de três dias. Mal terei tempo para ir a um dos sítios e voltar. Terá de ser um ou o outro.

 

- Pois é. E vai ser Zótica.

 

- Papá!

 

- Eco, tens de fazer o que eu te peço.

 

- Papá, estás a deixar que os sentimentos te obscureçam a razão.

 

- Os sentimentos não têm nada a ver com isto. Ele abanou a cabeça.

 

- Papá, eu sei como funciona a tua cabeça. Por qualquer razão, achas que te compete redimir essa escrava. Muito bem terás muito tempo para isso depois de o julgamento terminar. Neste momento, é dos dois escravos que estão em Piceno que nós precisamos. É uma perspectiva bastante dúbia, é certo, considerando todas as complicações que podem surgir, mas pelo menos faz sentido. Pelo menos não será uma perda de tempo.

 

- Então achas que vais perder tempo indo a Putéolos à procura de Zótica para descobrires o que ela sabe?

 

- Sim, vai ser uma terrível perda de tempo, tendo em conta os elementos de que dispomos. O que pode essa Zótica saber acerca da morte de Díon?

 

- Vai procurá-la, Eco. Coloquei-lhe a bolsa com a prata nas mãos.

- E vou-te provar que os sentimentos não têm nada a ver com isto. Se a rapariga não souber nada, se não tiver nada para nos dizer acerca do assassínio de Díon, então não te incomodes a comprá-la. Deixa-a onde está. Mas, se ela tiver alguma coisa a dizer, compra-a e trá-la contigo.

 

Ele mordeu os lábios e passou a bolsa entre as duas mãos.

 

- Isso não é justo, papá. Tu sabes que, em qualquer circunstância, eu acabarei por comprá-la, só para te agradar.

 

- Faz como achares melhor, Eco. Mas sugiro-te que partas. Os dias continuam a ser pequenos e tu estás a perder as melhores horas para andar a cavalo.

 

Nessa tarde, veio buscar-me uma liteira, tal como Clódia prometera.

 

Era uma coisa bastante mais discreta do que a sua grandiosa liteira pessoal, com o pavilhão vermelho e branco. Esta tinha cortinas vulgares de lã e espaço apenas para duas pessoas, de frente uma para a outra. Belbo juntou-se à meia dúzia de guarda-costas, enquanto eu trepava para o pavilhão e me sentava de frente para Crisis, que olhou para mim com um sorriso enigmático no rosto, enrolando ociosamente o cabelo ruivo à volta do indicador. Dei por mim a pensar que ela não podia de maneira nenhuma ser tão jovem e ingénua como parecia. A liteira ergueu-se e começou a andar.

 

- Muito bem disse eu o que quer exactamente Clódia que eu faça hoje nas termas?

 

Crisis parou de brincar com o cabelo e passou o indicador sobre os lábios como que para apagar o sorriso, deixando no rosto uma expressão ainda mais enigmática. Aquele gesto recordou-me a sua senhora.

 

- É muito simples. Na verdade, é quase nada. Tens de esperar no vestiário. Um dos homens de Clódia irá ter contigo.

 

- E como é que eu sei quem ele é?

 

- Ele sabe quem tu és. Agora, o amigo de Célio, o homem que traz o veneno, chama-se Públio Licínio. Conhece-lo?

 

- Julgo que não.

 

- Não importa. O homem de Clódia há-de indicar-to, quando ele chegar.

 

- E depois?

 

- De acordo com o plano de Célio, Licínio vai entregar o veneno a um dos escravos de Clódia. Mas, logo que Licínio estenda a caixa com o veneno, alguns amigos de Clódia apanham-no e armam um incidente. Abrem a caixa para mostrar a toda a gente o que há lá dentro. Depois torcem o braço a Licínio até ele confessar o que estava a preparar e quem o enviou.

 

- E acham que ele confessa?

 

- Alguns amigos de Clódia têm muito jeito para torcer braços. Literalmente. Crisis riu-se da sua própria graça.

 

- E eu faço o quê? Sou um descobridor, não sou um torcedor de braços.

 

- Tu estarás lá para testemunhar o que vai acontecer.

 

- Por quê?

 

- Clódia diz que tu tens fama de ser bom observador. Descemos um caminho sinuoso ao longo da encosta leste do Palatino e em breve estávamos na praça, diante das termas senianas, aos encontrões às outras liteiras.

 

- Eu espero aqui disse Crisis. Vem-me dizer logo que aconteça alguma coisa. E não faças malandrices com os outros rapazes.

 

- O quê?

 

- Por favor! Nós sabemos o género de coisas que vocês, os homens, gostam de fazer uns com os outros nas termas. Ergueu uma sobrancelha, imitando outro dos gestos de Clódia.

 

- Todos os escravos da tua senhora são tão insolentes como tu?

 

- Só os seus favoritos. Quando se ria, Crisis parecia-se ainda mais com uma criança.

 

Eu subi os degraus, fazendo sinal a Belbo para que me seguisse.

 

Paguei ao empregado do átrio, que entregou uma toalha a Belbo. Descemos um corredor e entrámos no vestiário comprido e estreito, com o tecto elaboradamente apainelado e as filas de bancos de madeira. Entravam e saíam cidadãos em diversos estádios de nudez. Alguns escravos completamente vestidos andavam ociosamente por ali, sozinhos ou em pequenos grupos, à espera que os seus senhores terminassem as suas imersões. Sempre que a pesada porta de madeira que dava para as salas de banhos se abria, vinham lá de dentro ecos de conversas e risos e o som da água a bater. O odor distintivo das termas tomou conta de mim

- uma mistura de suor e vapor de água, acentuada pelo cheiro forte do fumo de madeira proveniente das fornalhas, com uma sugestão bafienta de bolor.

 

Demorei-me por ali algum tempo, à espera que alguém me abordasse, depois comecei a sentir-me observado, por continuar vestido como na rua. Tirei a túnica e entreguei-a a Belbo, que a meteu num nicho vazio que descobriu entre os orifícios quadrados alinhados nas paredes. Ergui os braços e Belbo enrolou-me a toalha à volta da cintura. Tirei os sapatos e dei um pequeno suspiro quando os meus pés descalços tocaram no chão, aquecido à temperatura ideal pelos canos de água quente que passavam por baixo dele.

 

Conheço esse suspiro! disse uma voz ao meu lado. É como um poema: o som que um homem produz no momento em que os seus dedos poisam no chão aquecido.

 

Voltei a cabeça e fiz um ligeiro aceno, pensando que o homem devia ser apenas outro cidadão. Depois, vi-lhe o rosto.

 

O olhar de desespero tinha desaparecido, substituído por um sorriso sardónico. Era um rosto belo, apesar do aspecto macilento e da barba rala, mas os seus olhos castanhos tinham uma vivacidade tal, que se tornava difícil olhar para eles.

 

Tu estavas à entrada de minha casa ontem à noite disse eu.

 

- Julgo que sim.

 

Isso explicava tudo ele era o homem de Clódia, aquele com quem eu vinha encontrar-me. Apesar disso, por que me teria seguido pela Rampa acima, para depois fugir? Por que se detivera à entrada de minha casa na noite anterior, desaparecendo em seguida sem dizer quem era?

 

- As termas senianas continuam a ser as melhores de Roma disse ele, cobrindo o cabelo húmido com uma toalha. Estava nu e ainda molhado em consequência da imersão na água quente, e subiam-lhe da carne pequenas nuvens de vapor de água. Tinha os membros esguios e o peito estreito. Não havia nele ponta de gordura. Podiam-se-lhe contar as costelas e tocar tambor nos ossos das suas ancas. A água fria está mesmo fria e a água quente, a escaldar. São perto do Fórum, por isso há sempre alguém interessante com quem conversar. Mas não são excessivamente longe da Subura, por isso costuma haver alguma escória para animar um pouco as coisas. Como Vibénio, aquela serpente libertina.

 

- Vibénio?

 

Ele fez um gesto de cabeça na direcção da outra ponta da sala.

- Estás a ver aqueles três tipos ali? Vibénio é o que tem um ar folgazão, com um colar de carne até aos joelhos, encostado à parede com os braços cruzados e nada a esconder. Dedinhos Activos, é como lhe chamam, por mais do que uma razão. Olha-me para aquele ar de satisfação é evidente que está a preparar qualquer coisa reles. Aquele é o filho dele, o tipo jovem com as nádegas espantosamente peludas que está encostado ao banco a tirar os sapatos. Alguma vez viste um traseiro tão cheio de lã? Na verdade, repugna-me olhar para aquilo, parece uma barba que cresceu onde não devia. Mas talvez seja apropriado, tendo em conta que ele usa aquele orifício como se fosse uma boca. Pela maneira como flecte e bamboleia as nádegas, parece que está a mastigar uma coisa dura. É óbvio que é nisso que está a pensar aquele terceiro tipo, o careca sentado ali no banco a olhar de boca aberta para o traseiro peludo do rapaz. Não percebo por que pôs a toalha no colo, e tu? Não é com ela que esconde o que lhe vai na cabeça. Parece um soldado de sentinela a uma tenda! Achas que o palerma está à espera de um beijo dos lábios peludos do rapaz?

 

Olhei para o estranho sentado ao meu lado, tentando perceber o significado da sua expressão desdém, divertimento, inveja? Fosse qual fosse, as suas preocupações pareciam muito longe da razão imediata que nos levara às termas, e eu ia dizer isso mesmo quando ele me agarrou no braço e acenou com a cabeça com um ar concentrado.

 

- Olha, o rapaz acabou de se despir. Está a inclinar-se para pegar nos sapatos bem, formou um U perfeito. Agora endireitou-se, pegou nas roupas, voltou-se para a parede. Achas mesmo que ele tem de se pôr nas pontas dos pés daquela maneira para chegar ao nicho, ou estará apenas a mostrar as suas belas coxas? Não há dúvida de que o careca gosta do espectáculo oh, Eros, está a apalpar-se! Olha para aquele sorrisinho no rosto do papá Vibénio. Agora o rapaz avança majestosamente para a porta que vai dar às piscinas, arqueando os ombros, espetando o traseiro, andando ligeiramente nas pontas dos pés um catamita egípcio não faria melhor. Obviamente, o palerma morde o isco. Levantou-se, vai atrás daquelas nádegas peludas como um cão atrás de um coelho. Está à porta, passou a porta. E agora, olha para o Dedinhos Activos]

 

Enquanto estávamos a observá-lo, Vibénio olhou discretamente para a direita e para a esquerda, descruzou os braços, voltou-se e começou à procura dentro de um dos nichos.

 

- Oh, francamente, isto é de mais! O homem que estava ao meu lado atirou a toalha ao chão e atravessou a sala. Eu segui-o, com Belbo no meu encalço.

 

O homem aproximou-se de Vibénio e deu-lhe uma pancadinha num ombro. Vibénio teve um sobressalto e voltou-se com uma expressão culpada.

 

Continuas com os teus velhos truques, Dedinhos Activos! A roubar os frequentadores lúbricos enquanto o teu filho os atrai para outro lado?

 

- O quê? O homem ficou estupefacto por momentos, depois fez um sorriso hesitante. Catulo! Em nome do Hades, o que estás tu aqui a fazer? Pensei que andasses a brincar aos governadores imperiais.

 

- Andei, mais ou menos. Um ano na Bitínia com Gaio Mémio foi o suficiente. Pensei que ia enriquecer graças a ele, mas Mémio só me levou para me ouvir ler os meus poemas. Não posso censurá-lo por desejar um pouco de cultura; a Bitínia é um buraco. Estava ansioso por sair dali; voltei mais cedo, logo que o tempo o permitiu. É tão bom regressar a um sítio verdadeiramente civilizado como Roma, onde um tipo pode ser roubado enquanto persegue lubricamente um par de nádegas peludas.

 

O quê? Vibénio riu-se nervosamente e olhou à volta com um ar manhoso.

 

- Vibénio, tu desgostas-me. Por amor de Cibele, deixa em paz as coisas do pobre palerma. O que esperavas encontrar que valesse a pena levar? Uma tanga malcheirosa?

 

- Catulo, seu brincalhão. Estava apenas a verificar se o meu filho tinha arrumado os sapatos. Oh, mas isso explica tudo devo estar confuso. Tenho estado a procurar num nicho que não é o dele. Perguntava a mim próprio por que razão todas estas coisas me pareciam tão estranhas!

 

Catulo riu-se com desprezo e abanou a cabeça.

 

- Vibénio, devia fazer queixa de ti à administração. Mas o mais provável era eles cortarem-te esses dedinhos activos e lançarem-nos na fornalha, e depois tínhamos todos de aguentar o fedor. E se fosses ver o que anda o teu filho a tramar? Depois podem fazer os dois o outro truque das termas.

 

- O quê?

 

Não sabes, aquele em que o rapaz descobre um recanto escuro e se agarra aos tornozelos para atrair um palerma ingénuo e, logo que o tem bem preso com aquela boca peluda, tu vais por trás e começas a massajar as partes do tipo com os teus dedinhos, preparando-o para o que está para vir.

 

Catulo, estás a difamar-me!

 

- Pelo contrário, Vibénio, as tuas ”massagens” são famosas. Vibénio cruzou os braços e levantou o nariz.

 

- A avaliar pela tua disposição, eu diria que te faria bem uma bela ”massagem”, Catulo.

 

- Se te aproximas mais de mim com essa coisa horrível, Vibénio, eu dou-lhe um nó.

 

- E se a corda não for suficientemente frouxa para conseguires atá-la? disse Vibénio, sorrindo afectadamente.

 

Catulo deu um passo na direcção dele. Eu recuei na direcção de Belbo, na expectativa dos socos. Em vez disso, porém, Catulo riu-se.

 

- Oh, Vibénio, é mesmo bom regressar. Vibénio abriu os braços.

 

- Seu bode perverso, tivemos imensas saudades da tua língua afiada disse ele, abraçando Catulo e dando-lhe umas palmadas nas costas.

 

Eu pestanejei, sem ter bem a certeza do que havia de pensar daquelas manifestações, e depois tive um sobressalto, quando uma mão me tocou no ombro.

 

Gordiano? disse uma voz por trás de mim.

 

Voltei-me e vi o rosto vagamente familiar de um jovem corpulento com a barba muito bem aparada e uns emotivos olhos castanhos. Foi a maneira como as sobrancelhas dele se juntavam, formando uma linha contínua, que me despertou a memória era o escravo que me tinha aberto a porta em casa de Clódia. Estava na minha frente, completamente vestido e ligeiramente arquejante.

 

Barnabás disse eu. Que em Hebraico significa ”consolo”.

 

- Isso mesmo. Ele acenou com a cabeça e baixou a voz. Crisis disse-me que já aqui estavas. Públio Licínio vem a caminho, com a caixa.

 

Eu franzi o sobrolho.

 

- É contigo que eu devo encontrar-me? -É.

 

- Então quem...? Voltei-me para Catulo e tive apenas um vislumbre do seu sorriso enigmático antes de Barnabás me puxar para si e me sussurrar ao ouvido. Licínio acaba de entrar! Vem comigo. Pegou-me no braço e conduziu-me através da sala, com Belbo arrastando-se pesadamente atrás de nós. É o que veste a túnica verde murmurou Barnabás.

 

O jovem parecia-me conhecido, embora eu nunca lhe tivesse sido apresentado, vira-o no Fórum e a passar pelas ruas do Palatino na companhia de Marco Célio. Olhava nervosamente de um lado para o outro, enquanto brincava com uma coisa que tinha na mão.

 

- É melhor separarmo-nos sussurrou Barnabás. Observa, mas não intervenhas. Não tires os olhos do estojo! Ele referia-se à caixinha que Licínio trazia na mão, um desses recipientes elaboradamente decorados, com uma tampa em dobradiças e um fecho, onde as mulheres gostam de guardar os seus pós e unguentos e os envenenadores os seus venenos. O estojo que Licínio tinha na mão parecia ser de bronze, com nós em relevo e embutidos de mármore. Ele dava-lhe voltas e mais voltas na palma da mão.

 

Licínio detectou Barnabás e suspirou de alívio. Avançou ao encontro do escravo, mas Barnabás fez-lhe um sinal com a cabeça, indicando-lhe que deviam retirar-se para um canto do compartimento. Quando Barnabás se voltou, os seus olhos encontraram-se com os meus por um curto momento, para ter a certeza de que eu o seguia. Eu olhei por cima do ombro, perguntando a mim próprio para onde teriam ido Catulo e Vibénio, mas não consegui descobri-los no meio da multidão de carne vestida e despida. Subitamente, o vestiário parecia estar bastante mais cheio.

 

Barnabás aproximou-se do canto e virou-se. Licínio chegou junto dele e começou a estender a mão, obviamente ansioso por se livrar do estojo. Nessa altura, começou a confusão e a gritaria.

 

Desde que tinha chegado ao vestiário, eu estivera a observar a multidão, tentando descobrir os torcedores de braços de Clódia. Tinha marcado vários candidatos prováveis, escolhendo-os pela dimensão da sua musculatura, e naturalmente que eles estavam entre os homens que subitamente correram na direcção de Licínio. Mas eram mais do que eu teria esperado, pelo menos dez. Entre eles, e para minha surpresa, estava Vibénio, o dos dedinhos activos.

 

Aproximaram-se para prender Licínio no momento em que o estojo mudasse de mãos, mas avançaram prematuramente. Alguém gritou um instante antes do momento ideal, ou alguém avançou para a caixa antes do que devia, ou talvez Licínio estivesse tão nervoso, que ficou imóvel a meio da transacção e entrou em pânico antes de a caixa chegar às mãos de Barnabás. Fosse qual fosse a sequência exacta dos acontecimentos, o estojo não chegou a mudar de mãos. Continuou na posse de Licínio, que se virou assustado e desatou a correr, fugindo pela sala e escapando às mãos dos seus captores. Eu tive um vislumbre do seu rosto e pensei que nunca tinha visto um homem que se parecesse tanto com um coelho, um coelho assustado. Mas o estojo continuava firmemente preso na sua mão, cujos nós dos dedos estavam brancos.

 

Os musculosos torcedores de braços podiam ser captores persuasivos, mas aquilo que lhes sobrava em músculo faltava-lhes em agilidade. Os braços fechavam-se no ar enquanto o coelho escapava. As cabeças batiam umas nas outras enquanto Licínio deslizava por baixo das suas tenazes. Parecia um espectáculo cómico, representado por actores, mas com uma coreografia muito mais elaborada do que aquelas que eu tenho visto nos palcos.

 

O coelho dirigiu-se à saída dos homens, mas o caminho estava barrado.

 

- Entrega o estojo! gritou alguém.

 

- Sim, o estojo!

 

- Entrega-o!

 

- Veneno! Veneno!

 

As pessoas que assistiam ao espectáculo tinham no rosto expressões diversas, de confusão, ultraje ou hilariedade. Alguns pareciam pensar que se tratava apenas de um jogo, enquanto outros disputavam a zona de segurança por baixo dos bancos de madeira. No meio da confusão, detectei Catulo, o da língua afiada, que observava surpreendido, com os olhos muito abertos.

 

Licínio, impossibilitado de passar pela entrada, que estava barrada, olhou à volta e começou a dirigir-se para a porta que dava para as salas de banhos, que não estava guardada. Quando lá chegou, a porta foi aberta por um velhote embrulhado numa toalha. Licínio atirou-o ao chão. Com enorme algazarra, os torcedores de braços de Clódia seguiram atrás dele, saltando por cima do velhote como cães sobre um tronco.

 

- Maldição! murmurou Barnabás ao passar por mim, agarrando-me no braço.

 

Seguimos atrás do coelho, passámos por uma piscina gigante cheia de utilizadores, que gritavam e riam. Um dos torcedores de braços tinha caído no chão molhado e continuava a escorregar enquanto tentava pôr-se de pé. Passámos por ele e entrámos por outra porta, para o compartimento mais interior, onde o ar era espesso por causa do vapor de água proveniente da piscina quente. A confusão reinava; um tumulto de pancadas na água e um coro de gritos ecoaram pelo compartimento mal iluminado.

 

Bloqueiem a porta! Ele vai tentar sair!

 

- Veneno!

 

- Não o deixem atirar o estojo para dentro da piscina!

 

- Alguém falou em ”veneno dentro da piscina”?

 

- Veneno? Deixem-me sair!

 

Houve uma série de corridas, escorregadelas e colisões, enquanto os torcedores de braços tentavam encontrar Licínio. Alguns deles meteram-se na piscina de água a escaldar com assobios de desconforto e procuravam às apalpadelas.

 

- Ele tem de estar aqui! dizia Barnabás. A porta está bloqueada e não há mais nenhuma saída.

 

- Claro que há disse eu, apontando para um canto escuro. A porta que dá para o compartimento da fornalha.

 

Barnabás soltou um gemido e correu a empurrar a porta. Da passagem escura que ficava para além dela proveio um calor sufocante. Barnabás deu uns passos hesitantes, tropeçou em qualquer coisa e arfou.

 

- Hades. Um cadáver!

 

Havia qualquer coisa no escuro aos pés dele, mas não era um cadáver, a não ser que os cadáveres tenham duas cabeças e se contorçam.

 

- Desaparece! gemeu uma das cabeças.

 

- Vai arranjar um para ti! arquejou a outra. Barnabás teve um sobressalto.

 

- O que...?

 

- É o traseiro lãzudo e o palerma careca! disse eu.

 

Isto nada significava para Barnabás, mas ele percebeu rapidamente o que se passava.

 

- Alguém passou por aqui?

 

- Passou arquejou uma das vozes. O idiota pisou-me a mão! Deve ter atravessado o compartimento da fornalha e nesta altura já deve estar lá fora. Por isso se não te importas...

 

Barnabás gemeu.

 

As figuras contorcidas que estavam no chão agitaram-se, arquejaram e baliram de êxtase.

 

Eu puxei Barnabás para o compartimento dos banhos e fechei a porta atrás de nós. Agora, a farsa estava completa, até tivera o seu clímax.

 

                           NOX
Crisis, agitou-se todo o caminho de regresso a casa de Clódia. Insistiu em que eu fosse com ela para explicar o que se tinha passado. Pareceu-me que receava estar sozinha quando tivesse de comunicar a má notícia à sua senhora.

 

Os carregadores da liteira entraram no pequeno beco sem saída, com os guarda-costas e Belbo atrás, e depositaram-nos diante da casa. Belbo e eu esperámos na entrada de ladrilhos vermelhos e pretos, erguendo os olhos para os altos ciprestes plantados de ambos os lados, enquanto Crisis batia à porta, agarrando-me em seguida na mão para me levar para dentro. Belbo seguiu-nos.

 

- O quê, ela não está cá? ouvi-a dizer ao escravo que abriu a porta.

 

- Saiu disse o velhote. Não sei para onde.

 

- Por quê? Há quanto tempo? Ele encolheu os ombros.

 

- Ninguém me diz nada. Mas...

 

- Certamente não decidiu ir ter às termas senianas resmoneou Crisis, mordendo a unha. Não, ter-me-ia visto. A não ser que tivéssemos passado por ela no caminho. Oh, Átis! Crisis soltou um pequeno ganido de frustração. Espera aqui disse-me, enquanto avançava pelo corredor. Ou então no jardim acrescentou, apontando vagamente na direcção do centro da casa.

 

Enquanto Belbo se deixava estar na sala, eu atravessei o átrio, percorri um corredor largo, passei por uma arcada colunada e por fim desci um curto lance de escadas em direcção ao ar e ao sol. O jardim era quadrado, e rodeado por um pórtico coberto. Na outra extremidade, via-se uma plataforma baixa que parecia um palco, porque atrás dela erguia-se uma parede pintada com uma animada paisagem urbana, como se fosse um cenário de teatro. Diante da plataforma, havia um pequeno relvado, com espaço para várias filas de cadeiras. Nos quatro cantos do jardim, viam-se ciprestes, mais altos do que o telhado. No centro, havia uma pequena fonte, com uma estátua de Adónis nu. Aos seus pés, peixes de bronze esvaziavam a água das bocas abertas para a piscina. Aproximei-me para ver os mosaicos alinhados no fundo. Por baixo dos salpicos de água, imagens de golfinhos e polvos agitavam-se contra um campo brilhante de azul.

 

O Adónis fora imobilizado no acto de se ajoelhar tinha os joelhos dobrados, as palmas das mãos levantadas e abertas, o rosto voltado para cima com uma expressão radiante. Era óbvio a quem protestava a sua obediência, porque nas escadas que eu acabava de descer, no cimo de um alto pedestal voltado para o jardim, via-se uma enorme estátua de bronze de Vénus, ainda mais esplendorosa e opulentamente pormenorizada do que aquela que decorava o horto de Clódia, no Tibre. A deusa estava nua da cintura para cima; as pregas da sua veste, franzida à volta das ancas, pareciam voltear até ao chão. As curvas do seu corpo eram sumptuosas, e o bronze pintado transmitia a ilusão da elasticidade da carne, mas a dimensão da estátua era desproporcionada, de uma grandeza desconcertante, mais intimidante do que bela. As suas mãos tinham sido captadas em gestos de eloquente ternura, mais maternais do que eróticos, o que estava em desacordo com o rosto, estranhamente impassível, de uma beleza severa. Os seus olhos de lápis-lazúli fixavam-me sem pestanejar.

 

Estava eu diante da fonte, estudando a Vénus do ponto de vista do Adónis, quando comecei a aperceber-me de uns ecos de cantos e música provenientes da vizinhança, que aumentavam e diminuíam, quando se lhes sobrepunha o ruído da água da fonte, tornando-se depois, subitamente, mais fortes e mais rápidos. Ouvi o som das flautas, dos tamborins e das campainhas, juntamente com um estranho ulular que em nada se parecia com os cantos vulgares. Pareceu-me ouvir palavras, mas o ruído da água da fonte impedia-me de as distinguir. A música continuou a aumentar de volume e o ritmo a acelerar. Olhei para o rosto de Vénus. Quanto mais fixava os seus olhos cor de lápis-lazúli, mais me parecia que a estátua podia começar a mexer-se ou a falar a qualquer momento. Ela pestanejou ou então fui eu que pestanejei e eu tive um súbito arrepio de apreensão. Não estava sozinho.

 

Mas não era a deusa que tinha chegado. A voz que ouvi atrás de mim era decididamente masculina.

 

Lá estão eles outra vez!

 

Voltei-me e vi um homem em cima do palco, vestindo uma toga. Da última vez que eu o vira, estava nu.

 

- Todos os anos é a mesma coisa. Clódio encolheu os ombros e fez uma careta. Se eu fosse a Clódia, queixava-me, mas suponho que a minha querida irmã se sente demasiadamente fascinada pelos galli para querer pôr fim à sua alegria. E a verdade é que é só uma vez por ano.

 

- O que é que é só uma vez por ano?

 

- O festival da Grande Mãe, claro. O Templo de Cibele é mesmo ali disse Clódio, apontando para trás de si. A Casa dos Galli é ao lado. Antes do festival, eles ensaiam e ensaiam e ensaiam, durante dias. Parece tudo horrivelmente louco e dissonante para um ouvido romano, não achas? E as canções pouco mais são do que gritos. Bem, pensando melhor, eu também gritava se me tivessem cortado as bolas. Saltou do palco abaixo para o relvado e avançou vagarosamente em direcção a mim. Sabes uma coisa?, é um absurdo, mas esqueci-me do teu nome.

 

- Gordiano.

 

- Oh, pois. O novo homem de Clódia, o que ela mandou atrás de Marco Célio. Tens tido muito que fazer?

 

- Bastante.

 

- Clódia não está. Foi tratar de um assunto qualquer. O escravo da porta devia ter-te dito. Está a ficar velho.

 

- Bem, na verdade, ele disse qualquer coisa. Mas Crisis sugeriu-me que esperasse aqui.

 

- Estou a ver. Oh, é isso, era para hoje que estava marcado aquele pequeno drama nas termas senianas. Como é que correu?

 

- Foi por isso que eu vim. Para contar a Clódia.

 

Ele olhou para mim com aqueles olhos verdes estranhamente idênticos aos da irmã.

 

- E então? O que aconteceu? Vendo-me hesitar, franziu o sobrolho, assumindo uma expressão impossível de decifrar. Estaria a simular petulância infantil ou a demonstrar uma irritação genuína? O sobrolho franzido em nada diminuía a sua beleza; apenas a reorganizava. Oh, percebo disse ele. Vieste contar o que se passou a Gládio, e não a mim. Ela disse-me que tu eras do tipo leal. Coisa rara em Roma, nestes tempos. Mas a minha irmã e eu não temos segredos um para o outro. Absolutamente nenhuns. E eu espero que tu não tenhas nada a esconder-me, Gordiano. Por mim, posso garantir-te que nada te escondi. Lançou-me um olhar astucioso. Vendo que eu não respondia, riu-se. Era uma graça. Por causa do que eu trazia vestido no dia em que nos conhecemos.

 

Abanou a cabeça. Ela também disse que tu não tinhas nenhum sentido de humor.

 

Parece que vocês falaram muito sobre mim.

 

A minha irmã gosta de saber a minha opinião sobre os homens com quem lida. E bem precisa de conselhos! Clódia nem sempre sabe escolher adequadamente as pessoas em quem confia. Como aconteceu no caso de Marco Célio, o que nos faz regressar às termas senianas. Como é que correu? Anda, vem-te sentar neste banco à sombra e, se tivermos sorte, Crisis aparece por aí e eu peço-lhe que nos traga um pouco de vinho.

 

Quando nos sentávamos, reparei que outro homem tinha subido para cima do estrado, um gigante cujo rosto brilhava ao sol como um fragmento de ébano quebrado. Encostou-se à parede pintada, com os braços cruzados, a observar-nos de longe. Era incrivelmente feio, com um pescoço bovino e braços enormes. Ao seu lado, Belbo pareceria uma criança. Enrolou o lábio superior numa careta que me fez gelar o sangue.

 

Clódio apercebeu-se da minha reacção e olhou por cima do ombro.

 

- Aquele é o Etíope. Deu-mo Clódia o ano passado. Vai comigo para todo o lado. Vigia-me. É do tipo leal, tal como tu. Há uns meses, um dos homens de Milo aproximou-se de mim no Fórum e agitou um punhal na minha frente. Nem deu pela aproximação do Etíope não te deixes enganar pelo seu tamanho, ele é rápido como um raio. O Etíope agarrou no tipo por trás e partiu-lhe os dois braços, assim. Clódio fez estalar duas vezes os dedos. Nunca mais ninguém me ameaçou no Fórum. Mas não te preocupes, é completamente inofensivo para os meus amigos. Oh, o barulho! Se aqueles galli ainda não forem loucos, ao fim do dia devem ter-se enlouquecido uns aos outros. Imaginas o que será estar na mesma sala que eles? Que género de deusa estaria interessada em comparecer num templo com uma balbúrdia daquelas? Muito bem, quanto às termas...

 

Contei a Clódio a farsa a que tinha assistido. Ele escutou-me em silêncio, com expressões de desgosto e divertimento.

 

- Quer dizer que Licínio saiu limpo? disse por fim.

 

- Sim.

 

- E o estojo com ele?

 

Receio que sim.

 

Ele resfolegou.

 

- Quem me dera lá ter estado. Tinha agarrado Licínio pelas bolas e tinha-lhas apertado até ele grasnar tudo o que sabia. Depois metia-lhe o veneno pela garganta abaixo, com estojo e tudo. Pendurava o cadáver pelos tornozelos e arrastava-o até ao julgamento dessa maneira como prova da acusação! Queres provas, Cícero? Aqui tens as tuas provas!

 

Em cima do palco, o Etíope ouviu a irritação na voz do seu senhor e olhou para mim como se estivesse a tentar decidir que braço havia de partir. Eu mexi-me no banco, pouco à-vontade.

 

- Presumo que a tua irmã não vai ficar nada satisfeita.

 

A atitude de Clódio mudou num abrir e fechar de olhos. Ele riu-se.

 

- Não contes com isso. Ela adora uma pontinha de drama, compreendes? E ainda gosta mais de comédias. Repara no que ela fez neste jardim. Transformou-o num teatro privado, manda vir mimos do Egipto para entreter os amigos e organiza recitais em honra do último poeta que lhe tenha chamado a atenção. Não, acho que depois de ter atirado um ou dois vasos preciosos pela sala e dado uma valente tareia a uns escravos, Clódia verá a graça da coisa. Olha quem está aqui justamente quando eu estava a ficar com a garganta seca.

 

Crisis apareceu no alto das escadas, ao lado da Vénus. Quando nos viu, começou a voltar costas, mas Clódio bateu as palmas e fez-lhe sinal.

 

- Crisis, querida, traz-nos um pouco de vinho com mel apetece-me uma coisa doce. E talvez umas tâmaras. E daqueles bolinhos de sementes que o cozinheiro de Clódia costuma fazer. Achas bem, Gordiano?

 

Eu acenei com a cabeça.

 

- É tudo? disse Crisis, baixando os olhos. Clódio resmungou.

 

- Não me arrelies, pequenina.

 

- Não pretendia arreliar-te disse Crisis, mantendo a cabeça inclinada.

 

- Harpia! Vai buscar o vinho, antes que eu te agarre e te viole aqui mesmo, diante do convidado. Ou então, ainda melhor, ponho o Etíope a tratar disso e Gordiano e eu ficamos a ver enquanto vocês os dois fazem um bebé ali no palco. Crisis empalideceu e afastou-se rapidamente. É tão jovem murmurou Clódio, olhando fixamente para ela. Aquele cabelo ruivo, aquela pele fresca. Delicioso gostaria de lhe deitar vinho com mel por cima do corpo todo e depois lambê-lo. Mas Clódia proibiu-me. Não me deixa tocar na rapariga. Presumo que esteja convencida de que vou dar cabo dela. Ou talvez Crisis esteja apaixonada por outro escravo; Clódia é sentimental até esse ponto. Seja como for, eu não lhe toco. A minha irmã e eu sempre respeitámos a propriedade um do outro.

 

Reparei que os cantos dos galli tinham parado por momentos. Subitamente recomeçaram, com assobios agudos e toques de címbalos. Clódio fez uma careta.

 

- Bem, calculo que possamos, de alguma maneira, ultrapassar a perda do estojo disse ele, olhando distraído para a estátua de Adónis. Esta tentativa idiota de envenenar Clódia era apenas mais uma confirmação da acusação de que Célio tentou fazer o mesmo a Díon em casa de Luceio. Ele usou o dinheiro de Clódia para comprar o veneno e subornar os escravos de Luceio, ela suspeitou dele, e agora ele está a tentar evitar que ela conte o que sabe, envenenando-a. Um homem temerário e desesperado será esse o quadro que apresentaremos aos juizes. Clódia disse-me que tu descobriste uns escravos que Luceio escondeu numa mina qualquer.

 

- Talvez.

 

- Ela não te deu alguma prata, para comprares esses escravos, no caso de os encontrares?

 

- Falou-se nisso disse eu, sentindo-me pouco à-vontade. Mas pode não resultar em nada de válido.

 

- É melhor que resulte. Precisamos de provas mais claras. Nós ficámos encarregados, percebes?, Clódia e eu, de descobrir alguma coisa sobre Célio relativamente à tentativa de envenenamento de Díon. Há outros que estão encarregados dos crimes que Célio perpetrou contra os egípcios quando eles vinham a caminho de Roma. Esperemos que eles descubram alguma coisa mais sólida. Testemunhas! É disso que nós precisamos. Testemunhas credíveis podíamos ir agora mesmo ao Fórum e encontrávamos dez homens capazes de jurar que Célio é culpado, mas seriam tão fiáveis como um general embriagado; as más testemunhas só servem para afundar uma boa oração. A coisa mais forte que temos a nosso favor é a pergunta que vai estar na mente de toda a gente: se não foi Marco Célio que assassinou Díon, então quem foi?

 

Eu próprio tenho andado a pensar nisso.

- Mas não nos interessa que os juizes pensem demasiado. Podem descobrir outra pessoa! Clódio sorriu travesso.

 

- Não acreditas que Célio seja culpado?

 

- Claro que acredito disse ele com brusquidão. Tu não tens mesmo sentido de humor nenhum, pois não?

 

- Como é que vocês estão os dois envolvidos neste caso, tu e a tua irmã?

 

- Ambos temos razões para querer que Marco Célio receba o castigo que merece. Tal como tu.

 

-Eu?

 

- Célio assassinou o teu velho professor. Não é por isso que estás aqui? Tens uma razão pessoal, tal como Clódia. As minhas razões são políticas. Cada um de nós tem o seu próprio incentivo. O que interessa isso aos juizes?

 

Eu acenei com a cabeça.

 

- O que eu queria perguntar é se tu e a tua irmã fazem tudo juntos? Apercebi-me do duplo sentido assim que pronunciei aquelas palavras, mas já era tarde demais para as retirar.

 

- Parece que o vinho e os bolos de sementes vêm aí disse Clódio. Crisis descia as escadas com um tabuleiro, seguida por outra escrava,

 

que trazia uma mesa dobrável. Enquanto elas pousavam a comida e o vinho na nossa frente, os cantos provenientes da Casa dos Galli pararam por momentos, regressando em seguida com um tom e um ritmo diferentes. Os sacerdotes estavam a cantar uma nova canção, se é que se podia chamar canção àqueles lamentos.

 

Clódio deu uns golinhos do seu copo e mostrou-se pensativo.

 

Sempre que bebo vinho com mel, penso nos maus velhos tempos.

 

- Os maus velhos tempos? Clódia tinha usado uma expressão semelhante.

 

- Depois da morte do papá. Os anos magros. Estávamos à espera que ele regressasse da Macedónia com carroças cheias de ouro, e afinal ele deixou-nos soterrados em dívidas. Bem, essas crises acontecem, até nas melhores famílias. Mas acabou por ser bom: aguçou-nos a esperteza. Fazemos o que temos de fazer. Provamos a nós próprios que conseguimos vencer sozinhos, e nunca mais voltamos a ter medo do mundo.

 

Aproximou-nos uns dos outros; aprendemos que podíamos confiar uns nos outros. Clódia era a mais velha e a mais esperta. Foi uma mãe para todos nós.

 

- Tu já tinhas uma mãe.

 

- Clódia foi mais do que uma mãe. Pelo menos para mim. Baixou os olhos para o copo. Mas eu estava a falar de vinho com mel. Nós éramos pobres, como sabes, mas nunca deixámos de organizar jantares. Eram o nosso investimento no futuro, aqueles jantares. As minhas irmãs precisavam de arranjar maridos. Os meus irmãos mais velhos tinham de lançar as suas carreiras. Por isso, todas as noites havia jantares. Para os convidados, vinho com mel. Mas para nós não. Nos nossos copos, os escravos deitavam em segredo o pior vinho. Nós bebíamos com um sorriso. Intrujávamos os convidados, que nunca souberam que o nosso dinheiro não chegava para servir vinho com mel a toda a gente. Foi um treino excelente para uma carreira no Fórum, aprender a fazer boa cara, mesmo quando uma coisa desagradável nos desce pela garganta abaixo.

 

Levou o copo aos lábios e bebeu. Eu fiz o mesmo.

 

- O vinho é excelente disse eu. Mas, se a tua irmã não está cá, acho que será melhor eu ir andando.

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Pode regressar a qualquer momento.

 

- Onde foi ela?

 

Provavelmente ao horto, ou a casa de alguém. Metela também foi.

 

- A filha? Parecia-me difícil imaginar Clódia no papel de mãe, ou imaginar como seria a filha dela.

 

- A minha querida sobrinha. Voluntariosa como a mãe. Mas também é muito bela, tal como a mãe. E adora o tio.

 

Tal como a mãe?

 

Ele deu uma dentada num bolo de sementes.

 

- Talvez não tanto. Maldição, recomeçaram as cantorias!

 

- Acho que estou a ficar habituado disse eu. Eles repetem uma frase que acaba por ser bastante agradável. Ouve, lá está. A música flutuava por cima das nossas cabeças.

 

Clódio riu-se e abanou a cabeça.

 

- Tem cuidado, senão quando deres por ti estás a sentir um estranho impulso de partir para a Frigia e mandar cortar as bolas. Serviu-se de outro copo de vinho e insistiu em me servir também.

 

O vinho espalhou-se dentro de mim com um calor delicioso.

 

- Já que estou aqui, gostava de te perguntar uma coisa disse eu.

 

- Avança.

 

- Há uns dias, saí depois de escurecer e reparei que havia alguém a seguir-me. Julgo ter detectado o mesmo homem à porta de minha casa a noite passada, e hoje ele falou comigo nas termas. Pensei que se tratasse de um dos homens de Clódia, mas depois descobri que estava enganado. Sabes alguma coisa sobre isso?

 

- Sobre o homem que anda a seguir-te? Não.

 

- Pareces ter um forte sentimento de protecção em relação à tua irmã. Pensei que talvez...

 

- Que eu tivesse mandado seguir-te, para investigar o homem de mão da minha irmã? Não sejas ridículo. Eu dou conselhos a Clódia quando ela mos pede, mas ela trata com quem muito bem entende. Eu não lhe controlo os colaboradores, nem os amigos, nem os amantes. Que aspecto tinha esse tipo?

 

- Era jovem ainda não teria trinta anos. De altura mediana. Magro e escuro. Com uma barba rala, mas acaba de chegar de uma viagem; talvez tivesse ido às termas para se barbear. Elegante, embora do género faminto. Os olhos tinham qualquer coisa de estranho, quase trágico. Mas hoje, nas termas, não parecia nada triste. Tinha a língua afiada.

 

Clódio olhou para mim com curiosidade.

 

- Ele disse-te como se chamava?

 

- Não, mas ouvi alguém chamar-lhe...

 

- Catulo disse Clódio.

 

- Como é que sabias?

 

- Só há um: Gaio Valério Catulo. Quer dizer que ele já regressou?

 

- O amigo dele, lá nas termas, disse qualquer coisa sobre o seu regresso de um cargo de governo, no Leste.

 

- Eu já sabia que ele ia detestar. Catulo adora Roma. Acontece sempre com os miúdos do campo, quando cheiram a grande cidade.

 

- Ele não nasceu em Roma?

 

- Não. Vem das berças, de um sítio qualquer do norte; Verona, acho eu. Clódia conheceu-o no ano em que Quinto foi o governador da Gália Cisalpina, e eles estiveram metidos naquele buraco.

 

- Então sempre há alguma relação entre Clódia e esse tal Catulo?

 

Já houve. Acabou antes de Catulo sair de Roma, na Primavera passada. Pelo menos, acabou do lado de Clódia. Achas que ele andava a seguir-te?

 

- Acho. Fazes ideia por quê? Clódio abanou a cabeça.

 

- Ele é um tipo estranho. Difícil de perceber. Não se interessa por política; acha que é um poeta. Clódia também achava; metade dos poemas eram sobre ela. As mulheres adoram esse género de coisas, especialmente da parte de idiotas como Catulo. Do género que sangra de amor; é uma hemorragia ambulante, e mostra-se amargo com o facto. Lembro-me de o ouvir recitar neste mesmo palco, numa noite de Verão, naquele sítio onde está o Etíope, rodeado de jovens e belos poetas e dos respectivos admiradores, com os grilos a cantar e a Lua cheia. Ele embalava-os com palavras de mel, depois virava o pote ao contrário e mostrava-lhes os vermes que havia no fundo. Muito cheio da sua própria virtude, falador, sofredor. Até fez um sobre mim.

 

Um poema?

 

Clódio apertou o maxilar.

 

- Não era muito melhor do que os versos macarrónicos do bando de Milo, e era consideravelmente mais sórdido. Quer dizer que ele voltou? Clódia não tardará a saber, imagino eu. Se voltares a apanhá-lo a seguir-te, aconselho-te a que lhe dês um belo soco nos queixos. Ele não sabe lutar. A sua arma é a língua. Serve-lhe para fazer insultos e poemas, e para pouco mais, segundo aqueles que têm razões para saber. Ouve, este aperitivo só serviu para me abrir o apetite, e o Sol está a baixar. Não tenciono ir-me embora antes de Clódia chegar. Janta comigo, um jantar a sério.

 

Eu hesitei.

 

- Já te disse que ela pode voltar a qualquer momento. E vai querer que tu lhe contes exactamente o que aconteceu nas termas. Se eu tentar contar-lhe, das duas uma: ou me irrito e me engasgo, ou então desato a rir quando não devo.

 

Os escravos vieram buscar o resto do vinho e dos bolos. Eu pedi a um deles que fosse chamar Belbo, que estava na sala de estar. Ele aproximou-se, descendo pesadamente as escadas, olhando para a monstruosa estátua de Vénus com uma expressão adequada de temor. Depois avistou o Etíope do outro lado. Os dois flectiram os ombros, dilataram as narinas e trocaram olhares de desconfiança.

 

- Sim, Senhor?

 

- Vais levar uma mensagem a Betesda disse-lhe eu. Dizes-lhe que eu não vou jantar a casa.

 

- Jantas aqui, Senhor?

 

- Sim, aqui, em casa de Clódia. Estremeci, pensando como aquilo soaria aos ouvidos de Betesda. Se ela soubesse que eu ia jantar sozinho com outro homem, ao som de cantos de eunucos, e com um etíope gigante como dama-de-companhia!

 

- E depois volto cá, Senhor?

 

Antes que eu pudesse responder, Clódio ergueu a mão.

 

- Não é preciso, Gordiano. Eu trato de fazer com que tu chegues a casa em segurança.

 

Lançou-me um olhar frio, desafiando-me a duvidar dele. Eu encolhi os ombros e acenei com a cabeça.

 

- Não é necessário regressares, Belbo disse eu. Eu volto bem para casa.

 

Belbo lançou um último olhar de desconfiança ao Etíope, depois voltou-se e inclinou o pescoço para captar por completo o terrível esplendor da Vénus, enquanto subia as escadas.

 

O crepúsculo foi descendo sobre nós. Depois de um furioso crescendo de tamborins e assobios agudos, o canto dos galli cessou abruptamente. Seguiu-se um silêncio sereno.

 

- Bem disse Clódio -, calculo que até os eunucos tenham de comer. Está uma noite quente. Agora que a algaraviada terminou, que achas de comermos aqui no jardim?

 

Os escravos trouxeram os canapés, juntamente com as lamparinas. O jantar foi simples, mas requintado. Aparentemente, entre os prazeres de Clódia incluía-se o de ter um excelente cozinheiro. Era uma refeição para ser lentamente ingerida e saboreada, acompanhada por uma conversa ociosa.

 

- Os galli, disse Clódio, sorvendo ruidosamente a sopa de peixe.

- Que sabes tu acerca do culto de Cibele, Gordiano?

 

- Não sei muito. Às vezes, vejo os galli pelas ruas, naqueles dias do ano em que são autorizados a ir pedir em público. Já ouvi as invocações a Cibele no festival da Grande Mãe. E, claro, conheci o amigo da tua irmã, Trigónion. Mas nunca tinha ouvido nada que se parecesse com a música que ouvi esta tarde.

 

- O culto é muito antigo em Roma, mas a maioria das pessoas não sabe grande coisa sobre ele. É uma história interessante, a forma como Cibele veio para Roma.

 

O vinho e a comida tinham-me descontraído. Quase me sentia capaz de esquecer a presença carrancuda do etíope, ali de pé, no palco, com os braços cruzados, a ver-nos comer.

 

Conta-ma.

 

Foi no tempo em que Aníbal alvoroçava a Itália, e ninguém conseguia expulsá-lo. O Colégio dos Quinze Sacerdotes consultou os Livros Sibilinos, e encontrou um oráculo: se um invasor se estabelecer em Itália, a única maneira de o expulsar será trazer a Grande Mãe do seu altar da Frigia para Roma. Nessa altura, a Frigia era governada pelo Rei Atalo, que por acaso era nosso aliado. Ainda assim, era necessário consultar a deusa. Quando os sacerdotes frígios lhe colocaram a questão, ela fez abalar a terra e disse-lhes: ”Deixem-me ir! Roma é um local digno para qualquer divindade!” Por isso, o Rei Átalo concordou em oferecer a estátua de Cibele, juntamente com a grande rocha preta que caiu do céu no amanhecer dos tempos, inspirando os homens ao seu culto.

 

- Como é que sabes isso tudo? disse eu.

 

Gordiano, tu és um homem ímpio. Não sabes que eu pertenço ao Colégio dos Sacerdotes? Tenho o privilégio de consultar os Livros Sibilinos. Tenho assento na comissão que orienta os galli e o culto da Grande Mãe. O que é natural, porque existe uma relação familiar que remonta à chegada de Cibele a Roma.

 

- Estás a falar da lenda de Cláudia Quinta? perguntei eu.

 

- Conheces a história?

 

- Só vagamente, e nunca me foi contada por um dos descendentes dessa grande mulher.

 

Clódio sorriu.

 

- O barco que trazia a pedra celeste e a estátua de Cibele chegou à boca do Tibre e subiu o rio até Roma, onde era esperado pela multidão que se tinha juntado nas margens. Mas, quando o navio acostou à doca para descarregar a carga divina, abriu um rombo e começou a afundar-se. Os dignitários que esperavam no cais entraram em pânico. Imagina só: de repente, o grupo de políticos que tinham reservado o dia para impressionar as massas deu por si no meio de um presságio de catástrofe

- a Deusa-Mãe que vinha salvar Roma de Aníbal estava prestes a afundar-se no Tibre! Mais um pouco de vinho com mel?

 

- Para mim não.

 

- Só mais um pouco. Com um gesto, indicou a um dos escravos que me enchesse o copo. Seja como for, foi a minha antepassada, Cláudia Quinta, quem salvou a situação. Só as virgens mais puras e as mais íntegras esposas foram autorizadas a ir receber a Grande Mãe aquando da sua chegada a Roma e, aparentemente, tinha havido alguns resmungos pelo facto de Cláudia Quinta ser autorizada a participar na cerimónia. Qualquer coisa acerca da sua moral dissoluta e das suas más companhias soa-te a alguém nosso conhecido? Mas nesse dia ela desforrou-se. Agarrou na corda de ancoragem e, miraculosamente, o navio começou a regressar à superfície. E foi assim que Cibele mostrou a sua aprovação divina a Cláudia Quinta. Os mais devotos dizem que ela provou a sua pureza. Claro que, quando imaginamos a cena uma mulher a estender a mão para pegar numa corda escorregadia, o navio balançando à superfície como um odre inchado bem, Cláudia Quinta devia ter um espantoso jeito de mãos.

 

A estátua e a pedra celeste, salpicada de lama, foram descarregadas do navio e limpas o banho ritual da estátua ainda faz parte das festividades anuais. O Templo de Cibele foi construído aqui no Palatino, e dedicado com uma grande cerimónia, em que Cláudia Quinta foi a convidada de honra. Tal como fora prometido pelo oráculo, Aníbal foi expulso de Itália. E hoje, algumas gerações mais tarde, nós temos de aturar as cantorias do galli aqui no jardim de Cláudia!

 

O que terão eles pensado, os nossos graves e severos antepassados, quando olharam pela primeira vez para os sacerdotes que acompanhavam Cibele, com os seus estranhos fatos e todas aquelas jóias, os cabelos compridos e descolorados, e as vozes agudas com pronúncia ceceada? Ou quando viram a forma como os sacerdotes prestavam culto a Cibele, com danças e piruetas e uma excitação frenética, e cerimónias secretas a meio da noite? Ou quando souberam que o consorte da Grande Mãe era um jovem belo e castrado chamado Átis? Não é o género de consorte que possa dar grande prazer a uma mulher, julgo eu. Talvez Cibele prefira uma mulher com jeito de mãos, como Cláudia Quinta. Por mim, prefiro Vénus. Não há qualquer ambiguidade quanto àquilo que Vénus pretende de Adónis, pois não? Ergueu os olhos para a gigantesca estátua. Quando começaram a aperceber-se do que era realmente o culto da Grande Mãe, os nossos rígidos e austeros antepassados devem ter-se sentido um tanto nauseados.

 

Mas a verdade é que Roma tem uma maneira de engolir tudo aquilo que aterra no seu prato, para depois o evacuar como uma coisa aceitavelmente romana, arte, fatos, costumes, e até deuses e deusas. É esse o génio de Roma, conquistar o mundo e adaptá-lo às suas conveniências. O culto de Cibele foi, muito simplesmente, purificado para consumo popular. O festival da Grande Mãe é igual às outras festividades, com peças e corridas de carros e espectáculos de animais no Circo Máximo. Nada desses ritos imperscrutáveis que os seguidores de Cibele praticam no Oriente tumultos extáticos nas ruas, vigílias de noite inteira de homens e mulheres no templo, fiéis escolhidos a rastejarem por entre túneis a escorrer sangue. Nós, os Romanos, não gostamos muito desse género de coisas, seja qual for o pretexto religioso. E nem sequer se fala em Átis! Preferimos não pensar no amante castrado. Por isso, a celebração oficial de Cibele transformou-se em mais uma oportunidade para os sacerdotes do Estado e os políticos organizarem peças e espectáculos de circo para o povo. Claro que aquilo que os galli e o seu círculo íntimo de adoradores fazem à porta fechada já é outra coisa... Oh, não acredito!

 

Com um crepitar de tamborins, a música tinha recomeçado.

 

Devem ter acabado de jantar e estão outra vez naquilo disse Clódio de mau-humor. Achas que eles comem como as pessoas normais?

 

- Trigónion exibiu um apetite saudável na noite em que comeu em minha casa.

 

- Quando foi isso?

 

- Quando lá foi com Díon, para me pedir ajuda. Na noite em que ele foi assassinado.

 

- Ah, sim. Quando ele convenceu o velhote a brincar com ele às mascaradas. Clódia falou-me disso. Díon a sair à rua vestido com uma estola não consigo imaginar. É mesmo de Trigónion, querer ser uma coisa que não é e empurra os outros para o seu mundo de fantasia.

 

- Esse gallus parece ter uma relação curiosa com a tua irmã. Clódio sorriu.

 

- É outro exemplo do questionável discernimento de Clódia. Tal como Catulo, e Marco Célio.

 

- Não estás a dizer-me que ela e Trigónion...?

 

- Não sejas estúpido. Mas, em certos aspectos, ele é igual aos homens que entram e saem desta casa com as bolas intactas: todos eles permitem que Clódia os trate como escravos pelo menos durante algum tempo. Ultimamente, Trigónion tem andado desaparecido. Está ocupado a preparar-se para as festividades com os outros galli. Se calhar é ele que estamos a ouvir neste momento a tocar a flauta. Franziu o sobrolho. Achas que Clódia está na Casa dos Galli a planear um número qualquer para a festa dela?

 

- A festa dela?

 

- Clódia dá sempre uma festa na véspera do festival da Grande Mãe. É o acontecimento social da Primavera. Será daqui a três noites.

 

- Mas esse é o primeiro dia do julgamento.

 

- Pura coincidência. Mais uma razão para celebrar, se tudo correr bem. O jardim vai estar cheio de gente e ali em cima do palco bem, todos os anos Clódia tem de se superar. Talvez este ano Trigónion toque o seu instrumento em nossa honra. Riu-se num tom grosseiro. Eu não poderei estar presente. Este ano fui eleito edil, por isso estou encarregado de vigiar os eventos oficiais da festa estarei demasiadamente ocupado para poder gastar tempo com prazeres. O mais provável é também não assistir ao julgamento. O que é uma pena. Gostava de ver Célio contorcer-se. Adoro um bom julgamento. Os seus olhos verdes brilharam. À luz da lamparina, parecia-se de forma inquietante com a irmã. Até do meu julgamento gostei. Lembras-te dele, não lembras, Gordiano?

 

- Não assisti disse eu cautelosamente. Mas acho que toda a gente se recorda do caso da Boa Deusa.

 

Ele bebeu diversos goles de vinho com mel.

 

Aprendi três coisas com essa provação. Primeiro, a nunca confiar no apoio de Cícero. O mais provável é ele esfaquear-nos pelas costas! Segundo, que quando se suborna um júri, tem de se contar com uma razoável margem de vitória. Dorme-se melhor na noite anterior. Foi o que me aconteceu.

 

- E terceiro?

 

- A pensar duas vezes antes de vestir roupas de mulher, seja por que razão for. Não me serviu de nada.

 

- Também não serviu de nada a Díon disse eu. Clódio soltou uma gargalhadinha seca.

 

- Afinal, parece que sempre tens algum sentido de humor.

 

Quanto mais velho sou, mais facilmente adormeço sem querer.

 

No final da nossa refeição, Clódio levantou-se, dizendo que tinha de ir aliviar-se. Eu descontraí-me e fechei os olhos, escutando os cantos dos galli. A agradável frase que tinha ouvido anteriormente foi repetida, e eu segui atrás dela até me parecer que flutuava ao sabor da estranha música, erguia-me acima do jardim de Clódia, levitava diante da monstruosa Vénus, voando depois cada vez mais alto. Abaixo de mim, Roma era uma cidade de brinquedo, iluminada pela Lua e com templos feitos de pequenos tijolos. A música subia e baixava, e eu era transportado com ela como uma bolha numa onda, como uma pena no nevoeiro, até que alguém me murmurou ao ouvido:

 

- Se não foi Marco Célio que matou Díon, quem foi.

 

Acordei sobressaltado. A voz era tão clara, tão próxima, que eu fiquei espantado por me encontrar sozinho. As lamparinas tinham-se apagado. O céu estava coberto de estrelas. O jardim estava escuro e silencioso, à excepção dos suaves salpicos da fonte. Alguém me tinha tapado com um cobertor.

 

O cobertor cheirava ao perfume de Clódia.

 

Bebi demasiado vinho com mel, pensei. Comi demasiadas coisas requintadas. Contudo, sentia-me fresco e com a cabeça limpa. Quanto tempo teria dormido?

 

Afastei o cobertor. A noite estava excessivamente quente para aquele agasalho. Levantei-me, estendi os braços e olhei à volta, ainda sem ter a certeza de estar sozinho. Mas não havia ninguém no jardim, à excepção do Adónis suplicante e da gigantesca Vénus, com a sua enorme e escura silhueta. Os seus olhos tinham um brilho apagado, que reflectia as estrelas. Tive de novo a sensação enervante de que a estátua estava prestes a ganhar vida. Estremeci e, subitamente, senti-me ansioso por deixar aquele jardim.

 

No topo das escadas, fiz uma pausa para chamar suavemente:

 

- Clódio? Clódia? Crisis? -, mas não obtive resposta. A casa estava absolutamente silenciosa. Parecia um templo vazio, encerrado para a noite. Atravessei o corredor e o átrio e entrei na sala de estar. Certamente haveria um escravo à porta, talvez o mesmo velho que nos tinha deixado entrar nessa tarde.

 

Mas o escravo da porta era Barnabás, e dormia a sono solto. Estava sentado no chão, encostado à porta com a cabeça inclinada para trás, de tal maneira que, à débil luz das estrelas que penetrava do átrio, eu consegui distinguir o seu rosto de sobrancelhas juntas. Havia qualquer coisa enroscada ao pé dele, no chão, uma forma intrigante que acabei por perceber tratar-se do corpo de Crisis, que adormecera com a cabeça poisada no seu colo. O silêncio era tal, que eu conseguia ouvir a suave respiração de ambos.

 

Clódio tinha-me prometido que trataria de que eu chegasse a casa são e salvo, o que eu presumi ser uma referência a uma escolta. Era razoável acordar Crisis e Barnabás para lhes comunicar a minha necessidade. Mas eles repousavam de uma forma tão perfeita, que eu tive receio de me mexer, pois não queria incomodá-los.

 

Senti uma mão tocar-me no ombro. Voltei-me e fiquei a olhar para as trevas. O Etíope era tão escuro, que por momentos não consegui distinguir-lhe os contornos.

 

- O meu Senhor disse-me que tomasse conta de ti se tu acordasses

- disse ele, com uma pronúncia que eu mal percebi.

 

- Clódio ainda cá está?

 

O gigante acenou com a cabeça.

 

- E Clódia?

 

- Chegou enquanto tu dormias.

 

- Talvez fosse melhor falar com ela antes de me ir embora.

 

- Já se foram deitar.

 

- Estão a dormir?

 

- O que importa isso? A luz era fraca, por isso não consegui perceber se o gigante se estava a rir para mim ou a ranger os dentes. O seu hálito a alho era devastador. Os gladiadores e os guarda-costas costumam comer alho cru para lhes dar forças.

 

Ele destrancou a porta e abriu-a, deixando-a bater contra as figuras adormecidas no chão com um sorriso de desprezo. Crisis soltou um gemido sonolento. Barnabás resmungou.

 

- Belo porteiro zombou o Etíope. Ela é muito mole com os escravos. Bem, vamos embora. Eu vou atrás de ti.

 

- Não disse eu.

 

Eu vou sozinho. O homem deixava-me pouco à vontade.

 

O Etíope cruzou os braços e olhou para mim com o sobrolho franzido.

 

O Senhor deu-me ordens específicas.

 

Eu vou sozinho disse eu. Subitamente, aquilo transformou-se numa batalha de vontades.

 

Por fim, o Etíope fez uma careta de desagrado e encolheu os ombros musculosos.

 

- Como queiras disse, e fechou-me a porta na cara.

 

A minha casa era tão perto, e a noite, tão densa e silenciosa, que certamente eu nada teria a temer.

 

Roma dormia. As grandes casas e os edifícios de apartamentos do Palatino estavam às escuras. As ruas estavam silenciosas, à excepção do som dos meus próprios passos. Que horas seriam? O crepúsculo e a aurora pareciam-me igualmente distantes, como margens opostas e impossíveis de alcançar a partir do centro de um vasto e obscuro mar. Sentia-me completamente sozinho, o último homem acordado de Roma.

 

Depois ouvi passos atrás de mim.

 

Parei. Os passos pararam um momento depois.

 

Dei mais uns passos. Os passos atrás de mim recomeçaram.

 

Gordiano, murmurei para mim próprio, caíste finalmente, correste o último risco de uma vida cheia de riscos insensatos. Deixaste-te arrastar pelo hábito perigoso de confiar nos favores da Fortuna, presumindo que a deusa fará concessões à tua insensatez e te protegerá no último momento, porque se sente intrigada pelo drama singular da tua vida e deseja que a tua existência prossiga. Agora, o interesse da Fortuna dissipou-se; ela desviou a sua atenção durante um piscar de olhos, e tu vais ser apagado da história do mundo para sempre.

 

Uma parte de mim acreditou nisto e preparou-se para o pior. Mas havia outra parte de mim que sabia que eu não podia morrer já e se limitava a adular a Fortuna para que ela percebesse que não a tomava como certa, e a recordar-lhe suavemente que era melhor que ela fizesse qualquer coisa, e depressa.

 

Os passos atrás de mim aceleraram. Eu combati o impulso de desatar a correr e voltei-me. Recusava-me a acabar como um desses cadáveres que eram encontrados com feridas de punhais nas costas.

 

A rua era estreita, as sombras profundas. A figura avançou na minha direcção com um passo ligeiramente instável. O homem estava sozinho e, a não ser que eu estivesse enganado, tinha bebido demasiado. Afinal é o poeta Catulo, pensei, o homem que Clódio me disse que não temesse.

 

A não ser que seja Marco Célio, claro, embriagado e a perseguir-me com um punhal. Ou um homem sem nome, assalariado do Rei Ptolemeu. Ou um gladiador a cheirar a alho, enviado por Pompeu. Ou outra pessoa qualquer com motivos para me matar, porque pensa que eu sei qualquer coisa que não sei.

 

Ele parou a uns passos de distância de mim. Eu continuava a não ser capaz de lhe distinguir as feições, mas era óbvio que não se tratava do Etíope; não era suficientemente grande. Parecia um homem esguio e de altura mediana. Quando falou, reconheci a voz de Catulo.

 

- Quer dizer que ela se cansou de arrancar as maçãs da árvore quando estão maduras. Agora procura por entre as folhas secas. Parecia apenas ligeiramente embriagado, sarcástico mas não particularmente ameaçador.

 

- Receio não estar a perceber disse eu.

 

Tu não és horrivelmente velho para teres lugar na cama dela?

 

- Na cama de quem? Não faço ideia do que estás a falar. Ele aproximou-se um pouco mais.

 

- Devíamos avançar para uma zona de luz para eu poder observar-te enquanto me mentes. Sabes bem a que cama me refiro.

 

- Talvez saiba. Mas estás enganado.

 

- Estou? O maldito gallus transporta mensagens de um lado para o outro, leva-te ao horto dela. Tu andas por aí na liteira dela com as cortinas fechadas e ficas lá em casa até meio da noite. Deves ser o novo amante.

 

- Não sejas absurdo.

 

Ele recuou um pouco e começou a andar em círculos à minha volta. Subitamente, apercebi-me de que era possível que ele tivesse mais medo de mim do que eu tinha dele. Era ele que se tinha voltado e fugido na Rampa.

 

- Pelo menos acabou com Célio, embora eu não perceba bem como é que ela pôde trocá-lo por um tipo como tu.

 

Estás a insultar-me disse eu. Devo insistir em dizer a verdade

- que não sou amante de Clódia mantendo o desdouro à minha masculinidade? Ou será melhor dizer uma mentira para refutar o insulto, dizer que Clódia é de facto minha amante e costuma dizer-me que eu sou muito mais homem do que Célio, e muito mais ainda do que tu, Gaio Valério Catulo?

 

Pensei que se calhar tinha ido longe demais, mas os meus instintos estavam correctos: ele estacou e soltou uma gargalhada.

 

- Deves ser um excelente orador, como Célio. Como aqueles advogados do Fórum, que retorcem a verdade e matam um homem com as palavras. Por que é que eu nunca ouvi falar de ti, velhote?

 

- Porque eu não sou um orador. Sou um descobridor, Catulo.

 

- Bem, descobriste o meu nome. E tu, como te chamas?

 

- Gordiano.

 

Ele acenou com a cabeça. Agora, via-o melhor. Continuava a ter uma barba rala, apesar da ida às termas. Voltara-lhe aos olhos a expressão trágica, mesmo quando sorria.

 

- Tens sede, Gordiano?

 

- Nem por isso.

 

- Eu tenho. Vem comigo.

 

- Onde?

 

- Temos de conversar. Sobre ela.

 

- Não perguntei por quê. Perguntei onde.

 

- Onde é que havemos de ir, a estas horas?

 

Desce-se o caminho sinuoso até à base do Palatino, mesmo por trás do Templo de Castor e Pólux. Vira-se à esquerda. Desce-se a ruela (a feder a urina, e à noite preta como breu) que passa por trás dos edifícios situados na zona norte do Fórum. Quando a encosta do Palatino fica para a esquerda, permitindo à ruela alargar um bocadinho, chega-se a uma zona cheia de pequenas oficinas e armazéns, a sul do Fórum e a leste dos mercados de gado e do rio. Procuram-se os pequenos pilares que dão nome às lojas e aos negócios. Perto do nono poste, avista-se a poça de luz criada pela lamparina pendurada à entrada, que dá as boas-vindas àqueles que não conseguem ou não querem dormir, e que não conseguem ou não querem parar de beber, de jogar e de frequentar as prostitutas. Foi a este sítio que Catulo chamou a Taberna Salaz.

 

Na verdade, o lugar não tem nome, ou pelo menos não há qualquer nome afixado no poste com a lamparina. No alto do pequeno pilar, em vez de uma inscrição, vê-se um falo de mármore na vertical. A lamparina que emite o brilho tétrico tem a mesma forma sugestiva. Talvez inspirados por estes requintados exemplos, artistas menos dotados desenharam graffiti grosseiros na parede exterior, descrevendo graficamente diversas utilizações a dar aos falos.

 

Catulo bateu à porta. Abriu-se uma pequena nesga. Um olho injectado de sangue espreitou. A porta abriu-se para trás.

 

Eles conhecem-me disse Catulo. E eu conheço-os. O vinho é péssimo, as prostitutas estão cheias de piolhos, e os cidadãos são do mais baixo que há. Sei, porque tenho cá vindo todas as noites desde que regressei.

 

Entrámos numa sala comprida e estreita, repartida em diversos compartimentos por meio de divisórias móveis. A sala estava pejada de cidadãos, de pé e em grupos, ou sentados em cadeiras e bancos à volta de pequenas mesas. As lamparinas eram alimentadas por um óleo de qualidade inferior, que criava tanto fumo como luz, enchendo o compartimento de um nevoeiro cor de âmbar que me fez humedecer os olhos. Ouviam-se risos e pragas e o ruído dos dados, seguido de assobios de triunfo e gemidos de desespero. A multidão era constituída quase exclusivamente por homens. As poucas mulheres estavam obviamente ali para exercer o seu ofício.

 

Subitamente, uma delas emergiu do nevoeiro e enroscou-se à volta de Catulo como uma videira à volta do suporte. Eu pisquei os olhos húmidos e a videira transformou-se numa ruiva maleável com o rosto em forma de coração.

 

- Gaio ronronou ela. Uma das raparigas disse-me que tinhas voltado. E de barba! Vem cá, deixa-me beijá-la.

 

Catulo tornou-se rígido e recuou com uma expressão de desagrado.

 

- Hoje não, Ipsitila.

 

- Por quê? Há mais de um ano que não te como. Estou faminta. Catulo conseguiu sorrir.

 

- Hoje não.

 

Ela recuou, baixando os olhos.

 

Continuas a sofrer pela tua Lésbia?

 

Ele estremeceu e tomou-me o braço, puxando-me para um banco que acabava de vagar. Um escravo trouxe-nos vinho. Catulo tinha razão; a qualidade era péssima, especialmente depois do vinho com mel que Clódio me tinha servido. Mas Catulo bebeu sem hesitação.

 

Ao nosso lado, um grupo de jovens de aspecto rude jogava aos dados à volta de uma mesinha; utilizavam umas peças feitas à maneira antiga, a partir de ossos rectangulares dos tornozelos de ovelhas, com números I, III, IV, VI pintados nos lados compridos. À vez, os homens metiam os dados dentro de uma taça, misturavam-nos, gritavam o nome de uma divindade ou da sua amante, e atiravam-nos para cima da mesa. Um árbitro fazia a soma e gritava o número do lance, a que se seguiam gritos de regozijo ou derrota.

 

- Quando eu era novo, as leis contra o jogo eram aplicadas com maior rigor disse eu -, excepto durante as Saturnálias, claro.

 

- Dentro da Taverna Salaz, é sempre época de Saturnálias, observou Catulo com sarcasmo.

 

- Hércules! gritou um dos jogadores. O copo matraqueou e ouviu-se o barulho dos ossos. Lance de Touro! declarou o árbitro

 

- três uns e um seis.

 

O jogador seguinte gritou o nome de uma mulher e lançou os dados.

 

- Cães! gritou o árbitro. Quatro uns não há nada mais baixo!

 

- O jogador gemeu com o azar e amaldiçoou a amante cujo nome tinha invocado para lhe dar sorte.

 

Catulo olhava para a multidão com os olhos turvos. A névoa era tão espessa, que eu quase não conseguia distinguir os rostos, quanto mais reconhecer fosse quem fosse.

 

- Tu querias conversar disse eu.

 

- Perdi a vontade. Quero mais vinho.

 

- Então falo eu. Foste tu que me seguiste pela Rampa acima há duas noites?

 

- Fui.

 

- Quem te mandou?

 

- Ninguém.

 

- Então por que me seguias?

 

-Já te seguia antes disso. Talvez não sejas tão perspicaz como pensas. Estava à porta de casa dela quando tu lá foste bater naquela tarde, com Trigónion. Tinha acabado de regressar.

 

- Mal chegaste, foste logo a casa de Clódia? Ele levou um dedo aos lábios.

 

- Aqui, ela chama-lhe Lésbia.

 

- Por quê?

 

- É o nome que eu lhe dou em segredo. Nos poemas. Em sítios como este.

 

- Por quê ”Lésbia”?

 

Lesbos era a ilha de Safo, e nenhum poeta compreendeu o amor melhor do que ela. E Homero dizia que as mulheres de Lesbos eram ”as mais belas do mundo”.

 

- Homero não era cego?

 

Ele lançou-me um olhar azedo.

 

É uma fala de Agamemnón.

 

- Muito bem: Lésbia. Quando foste a casa de Lésbia, naquele dia, não te disseram que ela tinha saído?

 

- Não. Não bati à porta. Fiquei à espera. A observar. Ainda não estava preparado para voltar a vê-la cara a cara.

 

- Ficaste à espera e a observar de onde? Aquilo é um beco sem saída.

 

- Há portas que têm soleiras onde a pessoa se consegue esconder. Depois chegaste tu, com o teu guarda-costas e o jovem gallus. Eu estava suficientemente perto para ouvir a palavra ”horto”, por isso, quando te foste embora, segui-te. O que estiveram vocês os dois a fazer, sozinhos dentro da tenda?

 

- Não me parece que tenhas alguma coisa a ver com isso.

 

- Para sermos mais precisos, o que fizeram os três depois de Lésbio chegar, nu e a pingar água do rio?

 

- Lésbio?

 

- Sabes bem a quem me refiro.

 

- Viste-o entrar na tenda?

 

- Estava escondido entre as árvores e os arbustos, na margem do rio. Sorriu com uma expressão triste.

 

Deves pensar que eu sou completamente doido.

 

- Seguiste-me quando me vim embora?

 

- Até tua casa, depois até à outra casa na Subura, e outra vez de volta. Só percebeste na Rampa, não foi? Armaste-me uma cilada lá em cima, tu e o teu guarda-costas, por isso eu fiz como os coelhos. Calculei que, se fosses um daqueles grosseirões que ela costuma ter como amantes, devias ser perigoso.

 

- Já te disse que não sou amante dela. Sou apenas o ”assalariado”, como me chama Clódio.

 

Lésbio insistiu ele. O vinho barato começava a fazer efeito.

- De qualquer maneira, podias ser assalariado e amante dela, ao mesmo tempo. Ela está muito acima de tipos como tu, mas é conhecida por se inclinar por amor.

 

- Lance de Vénus! gritou o árbitro, provocando um tumulto ao nosso lado. Alguém deu um murro na mesa, fazendo saltar os dados, e gritou, acusando o outro de batota. Os restantes cerraram fileiras para o acalmarem.

 

- Lance de Vénus disse Catulo. É quando os quatro dados têm números diferentes. Não é a soma mais elevada, é apenas a sorte maior. Por que te parece que é assim?

 

- Porque Vénus gosta de variar?

 

- Tal como Lésbia. Excepto quando suspira pela sua própria carne:

 

Lésbio é Pulcher o que significa belo, e tem de sê-lo, porque Lésbia ama-o

 

bem mais do que a Catulo e ao seu clã,

 

que Lésbio venderia à beira-rio

 

para pagar a três homens probos, que lhe permitissem lançar-lhes... um beijo!

 

Eu sorri e acenei com a cabeça.

 

- Clódio disse-me que os teus poemas eram melhores que os dos homens de Milo. E mais sórdidos.

 

- Lésbio insistiu Catulo rebaixa-me com esse elogio.

 

- Afinal, parece que estás bastante falador.

 

- Mas continuo cheio de sede. Onde está esse escravo? Bateu com o copo contra o banco, mas o ruído perdeu-se no meio da confusão.

 

- Presumo que acabarás por voltar a vê-la disse eu. Ele olhou tristemente para a névoa cor de âmbar.

 

- Já a vi.

 

- Quero eu dizer, frente-a-frente. A falar com ela.

 

- Falei com ela hoje. Passei a tarde com ela.

 

- O quê?

 

- Esta manhã, bati-lhe finalmente à porta. O velho escravo disse-me que ela tinha saído cedo, tinha ido com a filha visitar uma prima. Por isso, fui dar umas voltas e acabei nas termas senianas. Foi por coincidência que te encontrei, e que assisti àquela perseguição ridícula ao amigo de Célio. Afinal o que era aquilo?

 

- Conto-te depois. Continua, sobre... Lésbia.

 

- Saí das termas e voltei a casa dela. Pelo caminho, reconheci a sua liteira à porta de casa de um dos Metelos. Ela vinha a sair, na companhia da filha. Estavam as duas à porta. Antes que eu pudesse voltar-me, ela viu-me. Foi difícil decifrar-lhe a expressão do rosto. O seu rosto sempre foi difícil de decifrar. Não se parece com mais nenhum, com uma excepção. Achas que Lésbia e Lésbio percebem o que vai na alma um do outro com um simples olhar? Que é como verem-se ao espelho?

 

Nós estudamos-lhes as expressões durante horas, e mesmo assim não temos a certeza do que está por trás delas. Há qualquer coisa naqueles olhos é como um poema numa língua estrangeira. Mas é mais perfeito do que um poema. Mais doloroso.

 

”Ela convidou-me a subir para a liteira. ”Para onde vais?” perguntei-lhe. ”Para casa. Estou à espera que um homem me traga novidades”, disse ela. Presumo que estivesse a falar de ti. ”Se vai lá estar outra pessoa, não quero ir”, disse-lhe eu. Ela fez uma longa pausa, olhando para mim. Por fim, disse: ”Metela pode ficar com a prima mais algum tempo. Tu e eu vamos ao horto”.

 

”Foi um erro, claro. Num dia quente como o de hoje, com todos aqueles imbecis a saltitarem nus dentro de água, e a lançarem-lhe olhares lúbricos, e Lésbia a corresponder. Estaria a namoriscar com eles apenas para me magoar? Ou estarei a julgar-me mais do que sou? Pelo menos Crisis não estava lá, para levar o imbecil mais simpático à sua presença; é o jogo habitual. Ela convidou-me para a festa que vai dar em breve. Foi muito polida. ”Deves ter alguns poemas novos e podias lê-los, coisas inspiradas nas tuas viagens.” Como se eu fosse um conhecido a quem ela pode pedir que entretenha os seus admiradores. Mas sabes uma coisa?

- Sorriu com uma expressão ameaçadora. Acontece que eu tenho um poema novo, e vou mesmo lê-lo na festa. É uma coisa relacionada com o festival da Grande Mãe. Presumo que também estarás presente.

 

Eu? Não fui convidado. Estranho, não é?, tendo em conta que até sou o novo amante dela.

 

- Não me piques, Descobridor. Já fui suficientemente espetado, para um dia só. Ao cair do dia, ela decidiu que eram horas de partir, exactamente quando eu tinha decidido dizer-lhe o que precisava de lhe dizer. Tinha de ir buscar Metela, disse, e o irmão ia visitá-la esta noite. ”Tenho todo o gosto em que venhas também” disse ela como se eu aguentasse estar com os dois ao mesmo tempo. Disse-lhe que voltava a pé para a cidade.

 

- Mas acabaste outra vez à porta de casa dela.

 

- Como uma traça atraída pela luz, só que esta luz gela em vez de aquecer.

 

O escravo apareceu subitamente e, por insistência de Catulo, deitou-nos mais vinho nos copos. Eu provei o vinho e senti-me tentado a cuspi-lo, mas Catulo bebeu sem se queixar.

 

- Então diz-me lá, o que foi exactamente que aconteceu hoje nas termas? disse ele. No horto, quando eu disse a Lésbia que tinha estado nas termas senianas, subitamente, ela mostrou-se muito atenta, insistindo comigo para que lhe contasse tudo o que tinha visto. Que perseguição ridícula. Ela sabia do que se tratava, não sabia? Mas manteve a boca tão fechada como tu.

 

Percebia agora por que razão Clódia não se tinha incomodado a acordar-me ao chegar. Primeiro Catulo e depois Barnabás, deviam ter-lhe contado a captura fracassada de Licínio e do estojo com suficientes pormenores. Ou estaria tão ansiosa por se encontrar com o irmão, que ignorou o relatório do assalariado?

 

- Conheces as acusações pendentes contra Marco Célio? perguntei eu.

 

- Não ouço falar de outra coisa desde que cheguei a Roma. Diz-se que, desta vez, ele está afundado até ao pescoço.

 

- A tua Lésbia e o teu Lésbio participam na acusação. Não oficialmente, mas ficaram encarregados de reunir provas contra ele relativamente a uma acusação específica de tentativa de assassínio.

 

- Foi o que eu ouvi dizer. Foi para isso que ela te contratou?

 

- Foi.

 

- Então foi a isso que as coisas chegaram, entre ela e Célio. Eu fui amante de ambos. A brilhante Vénus da sociedade romana, o petulante Adónis. Não foi surpresa para ninguém quando eles decidiram amar-se e expulsar das suas camas o rústico de Verona. Aqueles dois juntos, sem mim não consegui suportar a ideia. Começava a ficar com a fala entaramelada, por causa do vinho. Era melhor quando o marido dela era vivo. O bom e velho Quinto Metelo Celer, o bode voraz. Nessa altura, ela era-me fiel! Mas, quando Celer morreu, tornou-se senhora de si própria e passou a ser a mulher de todos. Mesmo isso, era preferível a vê-la escolher um favorito e expulsar-me por completo. Mas depois, agarrou-se a Célio, e eu passei a ser mais um dos seus muitos amantes gastos. Esta taberna está cheia desses pobres diabos. Posso apontar-te uma dúzia de homens a quem ela já pertenceu. Pensei que um ano de separação acalmaria a dor. Mas a ferida continua a sangrar, e eu continuo a desejar o punhal que me feriu.

 

- Ela deixou de amar Célio disse eu. Pelo que percebi, ele rejeitou-a. Ela sente-se amargurada. Está decidida a fazer com que ele seja destruído, está obcecada com a ideia, se isso te consola.

 

Consola? Saber que outro homem teve tanta influência sobre ela, que foi suficientemente importante para a fazer sofrer quando se afastou, que a magoou o suficiente para ela querer destruí-lo? A mim, mandou-me embora com um gesto de mãos acabaram as migalhas para o cão! Célio abandona-a e ela enlouquece. Que consolo é que isso pode ser?

 

O desejo de destruição é mútuo, pelo menos é o que Lésbia afirma. O incidente nas termas teve a ver com isso. Licínio, o amigo de Célio, ia entregar um veneno a alguns dos escravos dela, porque Célio tentou suborná-los para que assassinassem a sua senhora.

 

- Para eles assassinarem Clódia? Catulo ficou suficientemente espantado, ou estava suficientemente bêbedo, para esquecer o pseudónimo. Não, Célio nunca faria isso. Não acredito.

 

Ela afirma que ele começou por testar o veneno num escravo, e viu o homem morrer na sua frente.

 

- Nisso acredito. Célio era capaz de matar um escravo sem ponta de remorso. Mas não acredito que usasse o mesmo veneno para a matar a ela.

 

- Nem sequer por desespero? As acusações contra ele são muito graves. Se for considerado culpado, a sua vida fica destruída. Será humilhado, esquecido, exilado de Roma.

 

- Exilado de Roma eu conheço essa solidão. Catulo olhou fixamente para o copo.

 

- Não acreditas que, para se salvar, Célio estivesse disposto a destruir a tua Lésbia?

 

- A destruir Lésbia? Não. Ele nunca a destruiria.

 

Talvez nunca a tivesse amado tanto como tu a amaste.

 

Nenhum deles a amou como eu. Catulo olhou sombriamente para a multidão, depois tornou-se rígido. Hades! murmurou. Olha quem acaba de entrar.

 

Eu estreitei os olhos e olhei através da névoa para os três recém-chegados, que estavam parados à entrada, à procura de um lugar para se sentarem.

 

- Marco Célio em pessoa disse eu. Acompanhado, se não estou enganado, pelos seus amigos Asício e Licínio.

 

Célio viu Catulo. O seu rosto registou apenas surpresa, seguida de um súbito clarão de emoção. Depois, a máscara voltou ao seu lugar, sendo de novo levantada por instantes quando me viu. Hesitou, fez um gesto aos companheiros para que o seguissem, e aproximou-se de nós.

 

- Catulo! disse ele, exibindo um riso sardónico. Há quanto tempo voltaste?

 

- Há uns dias.

 

- E não foste cumprimentar-me? Sinto-me magoado.

 

- Na verdade, fui bater-te à porta disse Catulo. À tua antiga casa. Os vizinhos disseram-me que Clódio te tinha expulso e posto o edifício à venda. Disseram-me que estavas a viver no casebre do teu pai, na Colina Quirinal.

 

- Passa por lá. O sorriso de Célio não vacilou.

 

- A Quirinal está um pouco fora da minha órbita usual. Além disso, calculo que a casa do teu pai não seja o sítio ideal para receberes os teus convidados com o teu estilo habitual.

 

- Não percebo o que queres dizer.

 

- O vinho, as canções, as prostitutas, as combinações imaginativas para a noite. Não estou a ver o teu paizinho a dar a sua aprovação.

 

- Tudo isso ficou para trás disse Célio.

 

- Pelo menos até ao julgamento. Depois, talvez tenhas mesmo de deixar tudo isso para trás, quer queiras, quer não.

 

A máscara esteve prestes a desmanchar-se.

 

- O que eu queria dizer é que achei melhor abandonar alguns dos hábitos mais ruidosos da minha juventude e cortar com algumas ligações menos recomendáveis. Talvez tivesses feito bem em não me ir visitar, afinal de contas, Catulo. Não podemos descer abaixo de certos padrões quando convidamos alguém para casa do nosso pai. Foi atencioso da tua parte poupares-me ao embaraço de te fechar a porta na cara.

 

Houve uma longa pausa, durante a qual Catulo fez girar as borras no fundo do copo e ficou a vê-las redemoinhar, apertando os lábios com uma expressão pensativa.

 

- Parece-me disse ele por fim, numa voz dura e contida que me fez suster a respiração que para me insultares dessa maneira, Marco Célio...

 

Célio tornou-se rígido, e o mesmo aconteceu aos seus amigos.

 

- Que para me insultares dessa maneira prosseguiu Catulo isto é, construindo um argumento com frases complicadas, através de um progresso lógico bem, o que me parece, Marco Célio, é que tu não bebeste o suficiente esta noite!

 

O rosto de Célio ficou sem expressão, depois ele deu uma gargalhada.

 

- Não bebi mesmo. E para tu me insultares dessa maneira atabalhoada, Gaio Catulo, acho que já deves ter bebido de mais!

 

- Não o nego disse Catulo, rindo e engolindo as borras.

 

- Deixa lá disse Célio. A noite ainda é uma criança. Há muito tempo para eu ficar a cair de bêbedo, e para tu voltares a ficar sóbrio.

 

- Presumo que conheças este meu amigo, Gratidiano disse Catulo.

 

- Gordiano corrigi-o eu. Sim, Marco Célio e eu conhecemo-nos. Éramos vizinhos.

 

- E os nossos caminhos já se cruzaram algumas vezes nos tribunais

- acrescentou Célio. Embora nunca como desta vez.

 

Eu encolhi os ombros.

 

- Não sei bem se...

 

- Não é verdade, Gordiano, que uma certa dama te contratou, e que não foi com o propósito com que costuma contratar os homens?

 

- Tu não és digno de lhe beijar o dedo grande disse Catulo, que tinha abandonado o tom amigável. E certamente não vales o suficiente para poderes insultá-la.

 

Subitamente, Licínio, que tinha estado a observar-me, falou.

 

- Espera aí, já me lembro onde vi este homem. Ele estava lá hoje, nas termas, quando eu...

 

Cala-te Licínio resmungou Célio.

 

- Não é verdade, pois não, Célio? Catulo inclinou-se para diante com um ar sério; o seu estado de espírito tinha mudado com um piscar de olhos. Não é verdade, aquilo que Gratidiano me contou tu nunca lhe farias mal, pois não? Tu não lhe farias mal. Fosse por que motivo fosse. E certamente não com...

 

- Cala-te, Catulo disse eu, cerrando os dentes.

 

- Espera aí, eu também estou a reconhecê-lo! Asício aproximou-se, observando-me. Era aquele que estava escondido nas sombras em frente ao teu antigo apartamento no Palatino, Célio, na noite em que nós tratámos do velho...

 

- Cala-te Asício! exclamou Célio, suficientemente alto para surpreender os jogadores da mesa ao nosso lado. Um deles atirou os dados com demasiada força, e eles foram cair ao chão um mau presságio, que levou alguns a levantarem-se imediatamente da mesa, fazendo com que os que ficaram começassem a gritar acusações de má-fé aos outros. Catulo ergueu-se, um pouco desequilibrado.

 

- Estás à procura de um sítio para te sentares, Célio? Toma, fica com o meu lugar. De repente, a Taberna Salaz tornou-se excessivamente salaz, até para o meu gosto. Vens, Gratidiano?

 

- Gordiano disse eu baixinho, levantando-me. Asício e Licínio passaram por mim, dando-me um encontrão, e sentaram-se no banco. Quando eu me aproximei dele, Célio agarrou-me no braço e colou a boca ao meu ouvido.

 

- Estás enganado, sabias? Eu não matei Díon. Juro.

 

- Essa é apenas uma das acusações contra ti, Marco Célio.

 

Ele apertou-me o braço com mais força, fazendo-me doer, e continuou a falar em voz baixa.

 

- Mas tu só estás preocupado com Díon, não é verdade? Queres que o seu espírito repouse, porque o conheceste em Alexandria nos velhos tempos. O seu belo rosto perdera o ar descontraído. Um homem temerário e desesperado, dissera Clódio sobre ele. Eu olhei para os seus olhos e li neles o medo.

 

- Como é que tu sabes essas coisas, Marco Célio? Como é que sabes que relação tinha eu com Díon, e que Clódia me contratou?

 

- Deixa lá isso. O que importa é que estás enganado. Não fui eu. Não fui eu que matei o velho egípcio. Juro-te pelas sombras dos meus antepassados.

 

- E o teu amigo Asício?

 

- Também não foi ele.

 

- Quem foi?

 

- Não sei. Mas não fui eu.

 

- Na noite do assassínio onde é que tinhas estado com o teu amigo Asício, antes de eu vos ver? O que estavam vocês a tramar? Responde-me a isso, e jura pelos teus antepassados.

 

- Isso não te posso contar.

 

- Então não chega. Célio apertou-me o braço.

 

- Gordiano...

 

- Gratidiano! disse Catulo, agarrando-me no outro braço. Célio libertou-me e eu dei por mim a ser arrastado para a porta, com a cabeça a andar à roda por causa do fedor do fumo do óleo e do vinho barato.

 

Por trás de mim, ouvi uma voz estranha gritar:

 

- Por Vénus! Aposto tudo e ponho a minha confiança na deusa do amor! Depois o barulho dos dados, e a seguir a mesma voz, exultante por entre os gemidos de derrota: Lance de Vénus! Lance de Vénus! Bate todos!

 

Já na rua, inspirei o ar fresco e ergui os olhos para um céu limpo salpicado de estrelas.

 

- Por quê tanta pressa de me arrastar para fora daquele sítio?

 

- Não podia deixar-te para trás, para lhes contares tudo o que eu te tinha dito... acerca dela.

 

- Eu não ia fazer isso. E por favor, pára de me chamar Gratidiano. Eu chamo-me...

 

- Eu sei como te chamas. Mas, para mim, hás-de ter sempre outro nome, aquele que eu te dei. Tal como ela tem outro nome. Para o caso de eu escrever um poema sobre ti.

 

- Não consigo imaginar que género de poema seria. -Não?

 

Gratidiano pensa que é esperto, e deve ser, porque Lésbia gosta dele, bem mais do que de Catulo e do seu clã...

 

- Pára com isso, Catulo. Estás bêbedo de mais para saberes o que dizes.

 

- Um homem nunca está bêbedo de mais para fazer um poema.

 

- Mas pode estar bêbedo de mais para dizer coisa com coisa. Acho que é melhor eu ir para casa. Olhei para a viela. Para além do brilho mortiço da lamparina fálica colocada por cima da porta, o caminho estava mergulhado numa escuridão que não transmitia grande segurança.

 

- Eu levo-te a casa ofereceu-se Catulo.

 

Um poeta embriagado como guarda-costas! O que aconteceria se Célio e os amigos decidissem vir atrás de nós?

 

- Então despacha-te. Conheces outro caminho? Um caminho por onde ninguém se lembrasse de nos seguir?

 

Conheço todos os caminhos que vão dar à Taberna Salaz. Vem comigo.

 

Conduziu-me por um percurso sinuoso, por entre armazéns tão chegados uns aos outros que eu tinha de andar de lado para poder passar, contornando pilhas de lixo onde os ratos corriam e guinchavam, e por fim subindo um caminho que ia dar à encosta oeste do Palatino. Parecia um excelente percurso para evitar assassinos, mas era um tanto traiçoeiro para um homem que tinha bebido como Catulo. Eu esperava que ele caísse e partisse o pescoço a qualquer momento, arrastando-me consigo, mas ele atacou a subida só com um ou outro tropeço. A subida pareceu devolver-lhe a sobriedade. Os seus pulmões eram bastante resistentes. Enquanto eu tinha de me esforçar para conseguir respirar, ele ainda dispunha de ar suficiente para ventilar os seus pensamentos.

 

- Se ao menos pudéssemos ser todos eunucos! declarou ele. Que homem não seria mais feliz do que no seu estado actual?

 

- Acho que podíamos tornar-nos eunucos, se quiséssemos.

 

Ha! O acto é mais doloroso do que possas pensar. Eu sei, porque já vi com os meus próprios olhos. Quando estava na Bitínia, fiz uma viagem às ruínas da velha Tróia, à procura do sítio onde está sepultado o meu irmão. Tão longe de casa! No regresso, um estranho perguntou-me se eu gostaria de assistir aos ritos de iniciação dos galli. Queria dinheiro, claro. Levou-me a um templo na encosta do Monte Ida. O sacerdote também quis dinheiro. Eu senti-me uma espécie de turista espantado, atirando moedas a todas aquelas mãos ansiosas, mais um romano idiota à procura de emoções fortes, interessado em conhecer o gosto do ”verdadeiro” Oriente. Levaram-me até uma sala tão cheia de fumo de incenso que quase não se conseguia ver, e o barulho das flautas e dos tamborins era tal, que eu pensei que ficava surdo. O rito já tinha começado. Os galli cantavam e moviam-se numa dança esquisita, como os dedos da deusa a reter o tempo. O jovem iniciado tinha entrado em delírio, estava nu e coberto de suor, e ondulava ao ritmo da música. Alguém lhe pôs nas mãos um caco de um vaso partido ”Era um vaso sanitário”, murmurou-me o guia ao ouvido, ”é o único que evita que a ferida fique pútrida.” O sujeito transformou-se num gallus diante dos meus olhos. Completamente sozinho ninguém o ajudou. Foi um espectáculo e tanto. Depois, com o sangue a correr-lhe pelas pernas abaixo e ele sem forças para se manter de pé, foi rodeado pelos outros, que se agitavam, cantando e guinchando. O guia ria à socapa, e dava-me cotoveladas nas costelas, tapando ostensivamente as bolas. Eu fugi dali em pânico.

 

Catulo deixou-se estar calado por momentos. Chegámos ao fim do caminho e metemos por um labirinto de ruas escuras e silenciosas.

 

- Imagina a liberdade que não seria murmurou Catulo. Esquecer os apetites da carne.

 

Os galli também têm apetites disse eu. Comem como os homens.

 

- Está bem, mas um homem come e pronto. A fome de que eu estou a falar alimenta-se a si própria. Quanto mais se come, mais fome se tem.

 

- Um romano controla os seus apetites, e não vice-versa.

 

- Então, se calhar nós deixámos de ser romanos. Aponta-me um homem em Roma que seja maior do que os seus apetites.

 

Pensei naquilo enquanto avançávamos pelas ruas sinuosas e mergulhadas na sombra.

 

Mas a verdade é que nem a castração pode garantir o fim da paixão recomeçou Catulo. Pensa em Trigónion!

 

- O que é que tem?

 

- Não sabes de onde vem o nome dele? Não conheces o famoso epitáfio de Filodemo?

 

- Devia reconhecer esse nome?

 

Bárbaro! Filodemo de Gadera. Provavelmente o maior poeta vivo de língua Grega.

 

- Oh, esse Filodemo. Um epitáfio, dizes tu?

 

- Escrito há anos e anos, para um gallus morto chamado Trigónion. Consegues seguir o Grego?

 

- Eu traduzo mentalmente. Muito bem:

 

Aqui jaz a terna criatura de membros femininos Trigónion, príncipe dos emasculados de sexo morto Amado pela Grande Mãe, Cibele, O único gallus que foi seduzido por uma mulher. Terra sagrada, que esta pedra tumular tenha Uma almofada de violetas brancas em flor.

 

- E deste poema antigo que vem o nome do nosso Trigónion. Não me lembro como é que ele se chamava, era um nome frígio impronunciável. Certa vez, querendo arreliá-lo por causa do seu fraco por Lésbia, eu chamei-lhe o nosso pequeno Trigónion, o gallus que se apaixonou por uma mulher. O nome pegou a Trigónion como Trigónion está pegado a Lésbia. Penso nele sempre que considero a possibilidade de me castrar. É provável que não valesse de muito, compreendes? Seria um gesto inútil. Por vezes, a paixão é mais forte do que a carne. O amor pode durar para além da morte e, em alguns casos raros, a fraqueza de um homem pela beleza pode mesmo sobreviver aos seus testículos.

 

- Trigónion é assim tão dedicado a Lésbia?

 

- Sofre como eu sofro, mas com uma grande diferença.

 

- Que é?

 

- Trigónion sofre sem esperança. -E tu?

 

- Enquanto tiver as suas bolas, um homem não perde a esperança!

- Catulo riu-se, com as suas gargalhadas peculiares, que pareciam o ladrar de um cão. Até os escravos têm esperança, enquanto tiverem as suas bolas. Mas um gallus apaixonado por uma bela mulher...

 

- Tão apaixonado que faria fosse o que fosse por ela?

 

- Fosse o fosse, sem dúvida nenhuma.

 

- Tão apaixonado, que se deixasse cegar pelo ciúme?

 

- Enlouquecido por ele!

 

- Podia ser perigoso. Imprevisível...

 

- Não tão perigoso como Lésbia. Subitamente, Catulo tornou-se leviano, trotando à minha frente e voltando para trás, dando saltos para tocar em lamparinas penduradas nas janelas dos andares superiores, ao longo da rua. Maldita cabra! A Medeia do Palatino!

 

- Medeia era uma bruxa, tanto quanto me lembro, e bastante perversa.

 

- Mas só porque tinha ”o coração doente, ferido pelo amor cruel”, como diz a peça. Era uma bruxa, de facto, e estava ferida mas sou eu que estou embruxado, e foi Célio quem a feriu. A Medeia do Palatino! A Clitemnestra por uma moeda! cantou ele.

 

- Uma moeda? Só?

 

- Por que não? É o preço de entrada nas termas senianas.

 

- Mas Clitemnestra assassinou o marido.

 

- Agamémnon merecia ser assassinado! Deu uma volta sobre si próprio, como um gallus frenético. A Medeia do Palatino! A Clitemnestra por uma moeda! cantou.

 

- Quem é que lhe chama essas coisas?

 

- Eu! disse Catulo. Subitamente, parou de rodopiar e cambaleou diante de mim, arquejante. Acabo de as inventar. O que é que achas? Vou precisar de novos piropos para conseguir que ela volte a reparar em mim.

 

- És um estranho pretendente, Catulo.

 

Estou apaixonado por uma mulher estranha. Queres saber um segredo sobre ela? Uma coisa que mais ninguém no mundo sabe, nem sequer Lésbio? Eu próprio não saberia, se não a tivesse espiado certa noite. Sabes aquela monstruosidade gigante em forma de Vénus que ela tem no jardim?

 

Reparei nela, sim.

 

- O pedestal parece inteiriço, mas não é. Há um bloco de pedra que desliza e sai, e dá acesso a um compartimento secreto. É aí que ela guarda os seus troféus.

 

- Troféus?

 

Recordações. Memórias. Uma noite em que eu estava na cama com ela, a dormitar depois de termos feito amor durante horas, senti uma comichão na virilha. Abri um olho e vi-a cortar-me uns pêlos púbicos! Saiu do quarto com aquilo. Eu segui-a até ao jardim. Escondido nas sombras, vi-a abrir o pedestal e meter lá dentro o que me tinha tirado. Mais tarde, voltei lá, descobri como se abria o compartimento e vi o que ela guardava ali. Poemas que eu lhe tinha mandado. Cartas de outros amantes. Pequenas jóias, tufos de pêlos, presentes infantis que o irmão devia ter-lhe dado quando eram pequenos. Os seus troféus de amor!

 

Subitamente, cambaleou em direcção a um muro e apertou o rosto entre as mãos.

 

- Tive vontade de destruir aquilo tudo murmurou com uma voz rouca. Tive vontade de agarrar naqueles tesouros todos, de os atirar para a braseira e de os ver desfazerem-se em chamas. Mas não consegui. Senti o olhar da deusa pousado sobre mim. Recuei e ergui os olhos para o seu rosto. Deixei as recordações em paz. Sabia que, se as destruísse, ela nunca me perdoaria.

 

- Quem é que nunca te perdoaria Vénus ou Lésbia? Ele olhou para mim com uma expressão trágica.

 

- Há alguma diferença?

 

A ira de Aquiles empalidece diante da ira de Betesda.

 

A sua fúria é fria. Gela, em vez de queimar. E invisível, secreta, insidiosa. Não se faz sentir por meio de acções ruidosas, mas através de uma inacção fria e calculada, de palavras não ditas, de olhares não correspondidos, de súplicas de misericórdia não atendidas. Julgo que Betesda demonstra a sua fúria desta forma passiva porque nasceu escrava, e foi escrava a maior parte da sua vida, até eu a alforriar e me casar com ela, para que a nossa filha nascesse livre. O seu comportamento é um comportamento de escrava (e do herói da Ilíada de Homero): amua, matuta e espera pela sua hora.

 

Já tinha sido suficientemente mau eu mandar Belbo embora sozinho, ficando em casa de Clódia sem um guarda-costas com quem atravessar o Palatino à noite. E também fora bastante mau ter regressado a casa a cheirar a vinho barato e a fumo rançoso das lamparinas de uma taberna. Mas ter passado a noite com aquela mulher!

 

Isto era ridículo, evidentemente, e eu disse-lho, em especial porque não tinha visto Clódia toda a noite.

 

Nesse caso, como explicava que o seu perfume se demorasse em mim?

 

Um homem mais inteligente (ou mesmo eu próprio, se estivesse menos cansado e com menos sono) teria pensado duas vezes antes de responder que o perfume provinha de um cobertor com que a dama em questão devia ter-me coberto quando eu adormeci involuntariamente no seu jardim...

 

Foi a estocada final. Passei o resto da noite a tentar encontrar uma posição confortável num apertado canapé, no meu escritório. Estou habituado a dormir com um corpo quente ao meu lado.

 

E também estou habituado a dormir, pelo menos, até ao nascer do dia, especialmente depois de ter estado a pé até meio da noite. Mas não seria assim. Não é que Betesda me tivesse acordado. Simplesmente, fez as coisas de maneira a que me fosse impossível continuar a dormir.

 

Seria mesmo necessário mandar a criada limpar o meu escritório de madrugada?

 

Tendo-me acordado, Betesda não deixou de me alimentar. Mas a papa de milheto estava fria e cheia de grumos, e foi-me recusada qualquer troca de palavras que permitisse aquecê-la um pouco.

 

Depois do pequeno-almoço, enxotei a criada do meu escritório e fechei a porta. Era a altura ideal para escrever uma carta, decidi.

 

Ao meu amado filho Meto, sob o comando de Gaio Júlio César, na Gália, do seu querido pai, em Roma, que a Fortuna esteja contigo.

 

Escrevo-te esta carta apenas três dias depois da última; Martius acabou e chegaram as Calendas de Aprilis. Entretanto, aconteceram muitas coisas, todas relacionadas com o assassínio de Díon.

 

O nosso vizinho Marco Célio (agora ex-vizinho; Clódio pô-lo na rua) foi acusado do assassínio de Díon e de outros crimes relacionados com a perseguição aos enviados egípcios, bem como de um anterior atentado (com veneno) à vida de Díon. Eu fui contratado por amigos da acusação para ajudar a encontrar provas contra Célio. O meu único interesse é decidir quem matou Díon e acabar com este assunto desagradável, para minha própria paz de espírito, senão para que se faça justiça.

 

Tentarei explicar-te os pormenores noutra altura. (Talvez quando terminar o julgamento, que começa depois de amanhã.) Neste momento, tem prioridade no meu espírito outro problema, que gostaria de discutir contigo se aqui estivesses.

 

Que loucura é essa a que os poetas chamam amor?

 

Que poder empurra um homem a lançar-se contra a dilacerante indiferença de uma mulher que deixou de o amar? O que leva uma mulher a procurar a total destruição de um homem que a rejeitou? Que cruel apetite faz com que um homem de espírito racional anseie pelo rebaixamento dos seus desamparados parceiros sexuais? Como explicar que um eunuco, supostamente insensível ao amor, se apaixone por uma bela mulher? Será natural irmão e irmã partilharem a mesma cama, como fazem por vezes, segundo nos contam, os deuses e as deusas do Egipto? O que levará os membros do culto da Grande Mãe a emascular-se em êxtase religioso? O que levará uma mulher a cortar alguns pêlos púbicos ao seu amante, guardando-os depois como recordação?

 

Deves perguntar a ti próprio se estarei louco, para fazer estas perguntas. Na verdade, elas podem estar tão intimamente relacionadas com o assassínio de Díon e o iminente julgamento de Célio como as intrigas da política egípcia, e eu sinto-me desconcertado. Temo já não ter idade para este género de trabalho, que exige um espírito em empatia com o mundo que o rodeia. Gostaria de pensar que sou mais sensato do que no passado, mas como pode a sensatez explicar um mundo que segue os ditames da louca paixão? Sinto-me como se fosse um homem sóbrio embarcado num navio cheio de homens embriagados.

 

Costuma-se dizer que é a mão de Vénus que obriga a estes estranhos comportamentos, como se isso resolvesse o assunto, quando na verdade falamos da ”mão de Vénus” precisamente porque não compreendemos essas paixões e não conseguimos explicá-las, porque somos afectados por elas sem querer e assistimos, perplexos, ao sofrimento dos outros...

 

Alguém bateu à porta. Eu preparei-me para uma corrente de ar gelado e respondi:

 

- Entre. Mas não foi Betesda que entrou, foi Diana.

 

Fechou a porta atrás de si e sentou-se na cadeira colocada diante da minha mesa de trabalho. Havia uma sombra no seu rosto. Qualquer coisa a perturbava.

 

- A mãe está zangada contigo disse ela.

 

- Está? Não tinha reparado.

 

- O que estás a fazer?

 

- A escrever uma carta ao Meto.

 

- Não lhe escreveste há poucos dias?

 

- Escrevi.

 

- A carta é sobre quê?

 

- Nada de especial.

 

- É sobre o teu trabalho?

 

- De certa maneira. Sim, é sobre o meu trabalho.

 

- Estás a escrever ao Meto porque mandaste o Eco de viagem e precisas de falar com alguém. Não é?

 

- És muito perspicaz, Diana.

 

Ela ergueu a mão e afastou uma madeixa de cabelo que lhe tinha caído para o rosto. Tinha um cabelo extraordinariamente lustroso, tal como a mãe antes de os fios cinzentos terem começado a diminuir-lhe a força. Caía-lhe sobre os ombros quase até aos seios, enquadrando-lhe o rosto e o pescoço. Na suave luz da manhã, a sua pele brilhava como pétalas escuras de rosa.

 

Por que não me contas os teus problemas, papá? A mãe conta-me tudo.

 

- Suponho que o mundo é assim. Mães e filhas, pais e filhos.

 

Ela olhou firmemente para mim. Eu tentei corresponder-lhe, mas dei por mim a desviar os olhos.

 

- Os rapazes são mais velhos do que tu, Diana. Já partilharam o meu trabalho, as minhas andanças. Sorri. Metade das vezes, quando eu começo uma frase, o Eco sabe como vou terminá-la.

 

- E o Meto?

 

- O Meto é diferente. Já tinhas idade para te lembrares de algumas coisas que aconteceram quando vivíamos na quinta de Catilina, dos problemas entre o Meto e eu, da decisão que o Meto tomou de seguir a vida militar. Foi o grande teste ao laço que existe entre nós. Agora, ele é um homem independente e eu nem sempre o compreendo. Apesar disso, sinto-me à vontade para lhe dizer o que penso.

 

- Mas nem o Eco nem o Meto são da tua carne. Foram adoptados. Eu tenho o mesmo sangue que tu, papá.

 

Sim, Diana, eu sei. Então por que razão és tão misteriosa, pensei, e como explicas que haja um abismo intransponível entre nós? E por que guardo eu estes pensamentos só para mim, em vez de os dizer em voz alta?

 

- Posso ler a carta, papá?

 

A pergunta apanhou-me de surpresa. Baixei os olhos para o pergaminho, passando-os pelas palavras escritas.

 

- Não tenho a certeza de que a compreendas, Diana.

 

Se não compreender, podes explicar-me.

 

- Não sei bem se quero. Se fosses mais velha, talvez.

 

Já não sou uma criança, papá. Eu abanei a cabeça.

 

- A mãe diz que já sou uma mulher. Eu pigarreei.

 

- Pois, bem, nesse caso, acho que tens todo o direito de ler as cartas pessoais da tua mãe.

 

- Isso foi uma crueldade, papá. Sabes bem que a mãe não sabe ler nem escrever, e que isso não é culpa dela. Se tivesse sido educada como uma rapariga romana...

 

Em vez de o ter sido como uma escrava egípcia, pensei eu. Seria isso que perturbava Diana, as origens da sua mãe, o facto de ser filha de uma mulher que nascera escrava? Diana e eu nunca tínhamos verdadeiramente conversado sobre isto, mas eu presumira que, de alguma maneira, Betesda discutira o assunto com ela. Elas passavam tanto tempo a conversar uma com a outra em privado. Teria Diana algum ressentimento contra mim, por eu ter comprado a sua mãe num mercado de escravos de Alexandria? Mas eu também era o homem que tinha alforriado Betesda. De repente, tudo aquilo parecia terrivelmente complicado.

 

- Nem todas as mulheres romanas aprendem a ler, Diana.

 

- Presumo que a mulher para quem estás a trabalhar saiba ler.

 

- Calculo que sim.

 

- E tu quiseste que eu também aprendesse.

 

- Pois foi.

 

- E para que serve ter essa competência, se tu me proíbes de a usar?

- Olhou para a carta que eu tinha diante de mim.

 

Era inquietante a forma como ela usava os estratagemas da mãe para conseguir o que queria a lógica circular, uma persistência teimosa, pôr a descoberto culpas que eu nem sabia que sentia. Dizem que os deuses podem assumir a personalidade de uma pessoa nossa conhecida e viver entre nós sem que ninguém se aperceba disso. Por um breve e estranho momento, pareceu-me que tinha caído um véu, e eu senti que era a própria Betesda que estava ali comigo, disfarçada para me confundir. Quem era afinal esta Diana, e de onde tinha vindo tal criatura?

 

Estendi-lhe a carta e fiquei a observá-la. Ela leu-a devagar, movendo ligeiramente os lábios. Não tinha sido tão bem ensinada como Meto.

 

Esperava que ela me interrogasse sobre a identidade das pessoas mencionadas, ou talvez que me pedisse algum esclarecimento sobre as paixões que eu descrevia mas, quando poisou a carta, ela disse:

 

- Por que queres tanto descobrir a pessoa que matou Díon, papá?

 

- Não leste o que eu dizia na carta? ”Para minha própria paz de espírito”.

 

- Mas por que é que o teu espírito há-de estar perturbado?

 

- Diana, se tivessem feito mal a uma pessoa que fosse muito importante para ti, não gostarias de vingar essa pessoa, de compensar o mal que tinha sido feito, se pudesses?

 

Ela pensou naquilo.

 

Mas tu não eras amigo de Díon.

 

- Estás a presumir coisas que não sabes, Diana.

 

- Mal o conhecias.

 

De certa maneira, isso é verdade. Mas, de outra maneira... Ela pegou na carta.

 

- É dele que estás a falar quando referes este ”homem de espírito racional”?

 

- Sim, na verdade é.

 

Quer dizer que ele era um homem cruel?

 

Não sei bem.

 

- Mas na carta dizes...

 

Eu sei o que digo. Estremeci interiormente perante a ideia de a ouvir ler a passagem em voz alta.

 

- Como é que sabes que ele era assim? Ela observou-me intensamente.

 

Eu suspirei.

 

- Por causa de umas coisas que me disse o homem que o recebeu em sua casa. Aparentemente, Díon serviu-se de algumas das suas escravas mais jovens. Parece que foi um tanto violento. Mas também não sei bem. As pessoas não gostam de falar desse género de coisas.

 

- Ele não era assim quando tu o conheceste, em Alexandria?

 

- Se era, eu não sabia. Eu conheci um lado muito diferente dele. Ela olhou para mim pensativa por longos momentos. Não era um olhar que tivesse aprendido com Betesda. Era um olhar intenso e meditativo, muito profundo e totalmente seu, talvez o tivesse aprendido comigo, pensei lisonjeado. Que tolo e distante me pareceu subitamente aquele momento estranho e perturbador em que eu imaginara que Diana era a sua mãe disfarçada.

 

Ela levantou-se e acenou gravemente com a cabeça.

 

- Obrigada por me teres deixado ler a carta, papá. Obrigada por teres conversado comigo. Depois saiu do escritório.

 

Eu peguei na carta e reli-a do princípio ao fim. Estremeci diante do catálogo de paixões que tinha enumerado, e especialmente do que tinha dito acerca de Díon: Que cruel apetite faz com que um homem de espírito racional anseie pelo rebaixamento dos seus desamparados parceiros sexuais?

 

O que me teria passado pela cabeça, para colocar tais pensamentos numa carta?

 

Esperaria pelo final do julgamento para escrever a Meto; nessa altura, teria alguma coisa mais substancial para relatar. Chamei uma escrava, e disse-lhe que acendesse um círio no lume da cozinha e mo trouxesse. Quando ela voltou, tirei-lhe o círio da mão, meti o pergaminho na braseira vazia e transformei-o em cinzas.

 

Passei o dia a bisbilhotar de um lado para o outro.

 

Se de facto Célio tinha conspirado para envenenar Díon e Clódia, onde tinha ele obtido o veneno?

 

Os envenenamentos tornaram-se lamentavelmente comuns em Roma e, nos últimos anos, eu tenho conhecido mais poções e pós letais do que julgaria possível existirem. De vez em quando, passam-me pelas mãos quantidades apreciáveis de diversos tipos de venenos, e eu guardo-os num cofre especial; depois de se apoderarem de uma certa quantidade de veneno como prova, os clientes preferem que seja eu a ficar com ele em vez de o manterem em casa, especialmente quando suspeitam de que algum escravo ou um membro da sua família têm interesse em os eliminar.

 

Qualquer um pode obter venenos em Roma, desde que esteja disposto a pagar por isso, mas as fontes fiáveis e discretas do tipo das que eu achava que Célio teria utilizado são relativamente limitadas. Ao longo dos anos, o meu trabalho tem-me feito conhecer a maioria, de uma maneira ou de outra. Conversar com estas criaturas era uma tarefa que eu preferia ter deixado ao cuidado de Eco mas, estando o meu filho fora da cidade, decidi-me a empreendê-la pessoalmente, levando uma bolsa de moedas para os subornos e Belbo como protecção. Era uma tarefa miserável, mais parecida com descobrir cobras debaixo de rochas. Como eu até conheço as pedras que as cobras preferem, limitei-me a passar de uma a outra, erguendo-as sucessivamente e preparando-me para uma série de encontros desagradáveis.

 

A minha procura conduziu-me a diversas lojas de má reputação, na periferia do Fórum; às velhas termas situadas por cima do Circo Flamínio e agora fechadas; aos estaleiros da beira-rio e aos armazéns de Navalia; e por fim, seguindo os conselhos de um informador, novamente ao sítio a que Catulo chamara a Taberna Salaz. À luz do dia, ela tinha um aspecto mais decrépito do que salaz; os jogadores tinham desaparecido e as prostitutas pareciam dez anos mais velhas. Os únicos cidadãos presentes eram uns quantos alcoólicos com a barba por fazer, que pareciam incapazes de se levantar dos bancos onde estavam sentados; aparentemente, alguns deles, que reconheci da noite anterior, não tinham chegado a sair dali.

 

Tinham-me dito que perguntasse por um homem chamado Salaz (”Foi ele que deu o nome à taberna”, tinha brincado a minha fonte.) Não seria difícil descobri-lo, porque tinha um nariz de couro. (”Aconteça o que acontecer, não lhe perguntes como foi que perdeu o nariz!”, tinham-me avisado.) Ele não hesitou em admitir que conhecia Marco Célio um frequentador da taberna -, mas declarou-se totalmente ignorante relativamente ao veneno, e também não se mostrou mais informado quando eu fiz matraquear as moedas da bolsa. Preferiu apontar para as prostitutas ociosas, sugerindo-me outra maneira de aliviar o seu peso.

 

Já tinha levantado todas as rochas que conhecia. As cobras tinham-me mostrado as suas presas e sibilado na minha direcção mas, para o melhor ou para o pior, nenhuma delas produzira o veneno.

 

Era possível, e mesmo provável, que não tivesse sido Célio a obter o veneno; ele poderia ter provindo da mesma fonte que o tinha contratado ou compelido a molestar os enviados egípcios o próprio Rei Ptolemeu, ou talvez Pompeu, o amigo do Rei. Nesse caso, não era de esperar que eu conseguisse descobrir o percurso do veneno. A rede de espiões e lacaios que trabalhavam para Pompeu e para o Rei nunca revelaria coisa alguma a um estranho.

 

Se Célio tinha morto Díon por ordem dos inimigos de Díon, por que razão o teria feito? Porque estava em dívida para com Pompeu? Parecia-me perfeitamente possível. Se assim fosse, talvez eu descobrisse alguém que estivesse, pelo menos, informado acerca da dívida. Regressei ao Fórum e dediquei-me a procurar um grupo diferente de fontes, mais relacionadas com a política do que com venenos. Não era difícil encontrar pessoas dispostas a falar, mas foi impossível descobrir factos. Era como Clódio tinha dito: muitas pessoas declaravam ”conhecer” a ”verdade” (Célio tentara envenenar Díon e fracassara, depois Célio e Asício tinham esfaqueado Díon), mas ninguém parecia dispor de provas.

 

Encontrei alguns homens que tinham assistido ao julgamento de Asício e conversei longamente com eles. Era do conhecimento geral que Asício era culpado e toda a gente sabia disso mas, entre os juizes, os fracos de espírito tinham ficado deslumbrados com a defesa de Cícero, e os de moralidade fraca foram subornados pelo ouro do Rei Ptolemeu

- juntos, formaram uma maioria segura. Contudo, quando interroguei estes homens acerca do julgamento propriamente dito, acerca dos discursos e das testemunhas, pareceu-me que a acusação pouco mais tinha conseguido apresentar do que aquilo de que eu próprio dispunha boatos e insinuações. Talvez os juizes se tivessem limitado a absolver Asício por falta de provas.

 

Foi um dia frustrante.

 

O Sol começava a pôr-se quando Belbo e eu subimos a Rampa. Subitamente, apercebi-me de que não tinha visto Catulo todo o dia. Talvez o tivesse finalmente convencido de que não era seu rival no amor. O absurdo da ideia fez-me sorrir.

 

Mas o sorriso tornou-se rígido quando cheguei ao alto da Rampa e vi o que estava diante da minha casa.

 

- Belbo, devo estar a ver coisas. Pelo menos assim espero.

 

- O que queres dizer, Senhor?

 

- Estás a ver um grupo de guarda-costas ociosos a preguiçar à entrada de minha casa?

 

- Estou, Senhor.

 

- E parecem-te conhecidos?

 

- Parecem, Senhor. São muito feios.

 

- E não é uma liteira que eu vejo no meio deles, encostada ao muro com os carregadores a descansar no meio da rua?

 

É sim, Senhor.

 

- E a liteira não tem umas cortinas às listas vermelhas e brancas, que estão corridas, dando a ver que o interior está vazio?

 

- Assim é, Senhor.

 

- Sabes o que isto significa, Belbo? Ele vacilou, quando percebeu.

 

- Acho que sim, Senhor...

 

- Cibele me proteja a masculinidade! Clódia está em minha casa e Betesda também.

 

Um dos guarda-costas de Clódia teve a audácia de me desafiar diante da porta de minha casa. Felizmente, o capitão do homem reconheceu-me. Repreendeu severamente o subalterno, e teve mesmo a gentileza de me pedir desculpa. Nem todos os bandidos de Clódio eram completamente bárbaros, mas todos eles pareciam capazes de matar um homem sem pestanejar. Vê-los reunidos à minha porta punha-me os nervos em franja.

 

Lá dentro, chamei à parte uma jovem escrava que ia a passar pela sala.

 

- A tua senhora está cá?

 

- Sim, Senhor. Está no jardim.

 

- Shh. Não levantes a voz. Veio alguém para mim?

 

- Veio alguém, sim, Senhor.

 

- Diz-me que a tua senhora está a dormitar no jardim e que a visitante está calmamente fechada no meu escritório.

 

A escrava olhou para mim, perplexa.

 

Não, Senhor. A Senhora está a conversar com a visitante no jardinzinho das traseiras.

 

- Oh, céus. Essa visitante chegou há muito tempo?

 

- Há algum tempo, Senhor. O suficiente para terem bebido o primeiro jarro de vinho e pedido outro.

 

Ouviste... gritos?

 

Não, Senhor.

 

Alguma discussão? Ela franziu o sobrolho.

 

- Por favor, Senhor, eu não costumo ouvir às portas.

 

- Mas saberias, se a tua senhora tivesse, digamos, estrangulado a outra mulher, ou vice-versa?

 

A rapariga olhou para mim com uma expressão estranha, e depois soltou uma gargalhada embaraçada.

 

- Oh, estás a brincar, não estás, Senhor?

 

- Estou?

 

- Queres que vá dizer à Senhora que já chegaste?

 

- Não! Vai fazer o que tens a fazer, como se eu não tivesse chegado. Dirigi-me em silêncio às traseiras da casa. À saída do meu quarto,

 

havia um pequeno corredor que me permitia observar, através de uma cortina de hera, o jardinzinho privado onde Betesda e Clódia se tinham acomodado. Não estavam sozinhas. Crisis estava sentada numa almofada, aos pés da sua senhora. Diana estava sentada ao lado da mãe, e dava-lhe a mão. Falavam em voz baixa, quase num murmúrio, num tom melancólico. Pareciam imersas numa conversa solene. Era a última coisa de que eu estava à espera. O que poderiam estas mulheres ter em comum?

 

Estendi a mão e, com o indicador, afastei uma folha de hera para poder ver melhor Clódia. A modesta estola de suave lã cinzenta não a tornava menos bela. Pelo menos, tinha tido o bom senso de vestir um fato decente antes de vir bater à minha porta. Olhei para Betesda, à espera de ver a marca da inveja no seu rosto. Mas a sua expressão era pensativa e melancólica, reflectindo a das outras mulheres.

 

O tom de voz de Clódia era tão baixo, que eu tive de fazer um esforço para ouvir.

 

- Comigo, foi um tio; não era do meu sangue, era irmão da minha madrasta. Tal como tu, eu não contei a ninguém. Tinha quinze anos, era pouco mais velha do que a tua Diana. O meu pai acabava de me prometer em casamento ao meu primo Quinto, mas estava ausente de Roma, por isso o casamento teve de ser adiado. Eu não me importei. Não estava ansiosa por me casar, como algumas raparigas. Mas, claro que se fosse casada, talvez... Suspirou e depois continuou. O tio Marco sempre tinha olhado para mim de uma maneira especial. Percebem o que eu quero dizer. As outras mulheres fizeram um aceno de compreensão. Talvez tenha sido o contrato de casamento que desencadeou as coisas. Se calhar pensou que, estando eu a viver com Quinto, ele nunca mais teria oportunidade de o fazer. Um dia, apanhou-me sozinha no horto da família. Inspirou profundamente. Mais tarde, a pessoa pergunta a si própria como podem os deuses permitir que tais coisas aconteçam.

 

- Nunca contaste à tua madrasta? perguntou Betesda.

 

Nessa altura, odiava-a. Fiquei a odiá-la ainda mais depois daquilo que o tio Marco me fez. Afinal, ele era irmão dela. Eu não confiava nela. Achava que ela podia pôr-se do lado dele.

 

- E os teus irmãos? disse Diana.

 

Devia ter-lhes contado. Contei a Públio, mas só muitos anos depois, já o tio Mário tinha morrido.

 

- Mas as tuas irmãs deves ter-lhes contado disse Betesda.

 

- As minhas meias-irmãs eram mais chegadas à mãe delas do que a mim. Eu não tinha a certeza de que não fossem contar-lhe. Não, a única pessoa a quem eu contei foi a uma velha escrava que pertencia ao meu pai desde muito antes do meu nascimento, e só lhe contei quando comecei a perceber que o tio Mário tinha plantado uma criança dentro de mim. Ela disse-me o que devia fazer, mas avisou-me de que, se abortasse, podia nunca vir a ter filhos rapazes.

 

Uma superstição romana! Betesda estalou a língua.

 

- Apesar disso, foi verdade. Essa foi outra das razões por que nunca disse ao meu marido o que o tio Marco me tinha feito, e as consequências que isso tinha tido; Quinto ter-me-ia dito que era por minha culpa que tínhamos tido uma rapariga e não um rapaz. Provavelmente, ter-me-ia acusado de seduzir o tio Marco. É assim que os homens pensam. Quinto sabia que não tinha sido o primeiro, mas nunca soube do que se passara com o tio Marco. Morreu sem saber.

 

Eu ouvia, perturbado, e depois atónito com o que Clódia fez a seguir; inclinou-se para diante e pegou na mão de Betesda, aquela que Diana não segurava, e apertou-a entre as suas.

 

- Mas tu disseste que te tinha acontecido a mesma coisa, Betesda e que tu não contaste a ninguém.

 

Betesda baixou os olhos.

 

- A quem é que eu podia contar? Uma rapariga romana livre podia recorrer à lei ou à sua família mas uma escrava egípcia, em Alexandria? O homem tinha feito a mesma coisa frequentes vezes à minha mãe quando ela era viva; ela disse-me que a violência do Senhor acabaria por dar cabo dela, e deu mesmo. Quando ela morreu, foi a minha vez. Eu era muito mais nova do que tu, Clódia, não tinha ainda idade para gerar um filho. Ele só me fez aquilo uma vez, ou tentou. Deve ter pensado que eu seria dócil, como a minha mãe, mas depois das coisas que ela me tinha contado, eu sabia o que me esperava e tinha decidido que preferia morrer a deixar que ele me fizesse o que queria. Ele atou-me os pulsos com uma corda, como a tinha atado tantas vezes. Gostava de a pendurar num gancho, na parede. Eu tinha-a visto naquela posição, tinha visto o que ele lhe fazia e, quando ele tentou fazer-me a mesma coisa, fui tomada por uma espécie de loucura, a loucura que os deuses concedem aos homens e às mulheres e que lhes dá forças que ultrapassam em muito a fragilidade dos seus corpos. Eu era mais ágil do que ele pensava. Contorci-me e consegui libertar-me. Aquilo transformou-se numa batalha. Eu mordi-o com quanta força tinha. Ele atirou-me contra a parede, com uma violência tal, que eu pensei que tinha ficado esmagada, como um insecto. Não conseguia respirar. O meu coração parou de bater. Ele podia ter-me morto. Era um homem poderoso, respeitado. Ninguém o criticaria pela morte de uma escrava. Ninguém questionara a morte da minha mãe. Ninguém questionaria a minha morte.

 

- Oh, mãe! Diana aproximou-se mais dela. Clódia mordeu o lábio. Crisis inclinou a cabeça. Os olhos de Betesda brilharam, mas as suas faces continuaram secas. Estava caída no chão, imóvel. Não conseguia mover-me, nem sequer um dedo. Esperei que o céu me caísse em cima. Mas sabem o que ele fez? Ficou branco como uma nuvem, murmurou uma praga e saiu do quarto. Acho que a sombra da minha mãe lhe deve ter falado ao ouvido, cobrindo-o de vergonha. Em vez de me mandar matar, livrou-se de mim. Mandou-me para o mercado de escravos. Aparentemente, eu não era uma escrava satisfatória. Conseguiu fazer um sorriso débil. Os homens compravam-me e devolviam-me antes do final do dia. Fui devolvida e revendida tantas vezes, que o homem do mercado de escravos já brincava com isso. Ainda era jovem. Suponho que era bonita quase tão bonita como tu, Diana. Mas corria entre os compradores o rumor de que eu era venenosa, e ninguém me licitava. Finalmente, apareceu o homem indicado para mim. Acho que deve ter sido um capricho da deusa a que os Romanos chamam Vénus que o mandou ao mercado de escravos naquele dia, com muito poucas moedas na bolsa. Eu era a escrava mais barata do grupo, mas apesar disso o dinheiro dele era mesmo à justa!

 

As outras mulheres riram-se ao ouvir aquilo, ao mesmo tempo que limpavam os olhos.

 

E nunca contaste ao teu marido o que aconteceu antes de vocês se conhecerem? Nem aquilo que o homem te fez, a ti e à tua mãe? disse Clódia.

 

- Nada, nunca lhe contei, e acho que nunca hei-de contar. Contei à minha filha, porque achei que ela devia saber o que tinha acontecido à avó. E agora contei-te a ti.

 

Eu estava espantado, desorientado, confuso não apenas por aquilo que Betesda tinha dito, e pelo facto de ela nunca me ter revelado aquele segredo, mas por causa da inexplicável intimidade que se estabelecera entre as mulheres sentadas no meu jardim. Que estranha alquimia tivera lugar, que as tornara tão abertas umas às outras? O que acontecera às normais barreiras entre a escravatura e o estatuto, que deviam separá-las? Parecia que o mundo me tremia debaixo dos pés, como os meus dedos tremiam quando fechei o orifício de espião que tinha aberto na hera e fugi em silêncio para o meu escritório.

 

Por fim, mandei uma escrava informar Betesda de que tinha regressado e estava no meu escritório. Clódia apareceu pouco depois, acompanhada de Crisis. Vinham ambas a sorrir, como se tivessem acabado de partilhar umas boas gargalhadas. Aparentemente, o encontro com Betesda e Diana terminara com uma nota de alegria, o que me confundia ainda mais como podiam elas separar-se a rir depois de terem falado de coisas tão horríveis?

 

- Vim até cá ver se tinhas alguma coisa para me comunicar, e tu não estavas disse Clódia, fingindo-se petulante. Espero que tenhas andado ocupado por minha causa, a tentar descobrir alguma coisa útil acerca de Célio talvez notícias sobre os escravos que ele subornou para envenenarem Díon?

 

- Receio não ter descoberto nada tão útil como isso. Chegaste há muito tempo?

 

- Algum.

 

- Espero que não te tenhas aborrecido.

 

- De maneira nenhuma. A tua mulher recebeu-me muito bem.

 

- Foi? -Foi.

 

- Óptimo.

 

Foi esta a essência da entrevista; pouco depois, Clódia e Crisis saíam.

 

A noite caiu. Serviu-se o jantar. Eu sentia-me incomodado, incapaz de olhar da mesma maneira para Betesda ou para Diana. Perguntei a Betesda o que tinha achado da nossa visitante.

 

Uma mulher interessante foi o seu comentário.

 

- Presumo que ela tenha satisfeito a tua curiosidade, quanto ao meu paradeiro a noite passada.

 

- Sim. Betesda não elaborou.

 

- Pois muito bem. Quer dizer que voltou tudo ao normal?

 

- Não me pareceu que tivesse havido alguma perturbação na nossa rotina disse Betesda.

 

Dei uma dentada num pão. O que me dispensou de morder a língua. Foi uma refeição calma. Durante o último prato, cebolas com segurelha em vinho, Betesda pigarreou.

 

- A nossa visitante convidou-nos para uma festa.

 

- Uma festa?

 

- Depois de amanhã. Clódia disse que organiza uma festa todos os anos, para marcar o início do festival da Grande Mãe.

 

- E convidou-te?

 

Betesda eriçou-se com o meu cepticismo.

 

- Convidou-nos aos dois.

 

- Não me parece que as festas de Clódia sejam do género de...

 

- Não sei se tenho alguma estola adequada à ocasião. Ela olhava pensativamente para meia distância, contemplando o seu guarda-roupa.

 

Eu suspirei. Para Betesda, um convite pessoal de uma patrícia como Clódia devia ser quase bom demais para ser verdade, uma oportunidade a não perder; era a entrada na sociedade do Palatino. Por mim, fiquei surpreendido, embora começasse a aprender a não me surpreender com nada do que Clódia fazia.

 

Mais tarde, já na cama, Betesda encostou-se a mim e pediu-me que a abraçasse. Quando a tomei nos meus braços, tive vontade de lhe dizer que conhecia o seu segredo, que compreendia o seu silêncio, que não tinha importância. Mas as palavras morreram-me na garganta. Preferi usar as mãos, os lábios e a língua para lhe mostrar o que sentia. Depois disso, ela caiu num sono profundo. Mas eu continuei acordado durante muito tempo, olhando fixamente para a escuridão, pensando que um homem nunca pode estar convencido de que conhece toda a verdade sobre o que quer que seja.

 

Na manhã seguinte, enviei um mensageiro a casa de Eco, para ver se ele já tinha chegado. O mensageiro regressou com a notícia de que eu estava à espera: Eco ainda não tinha voltado. Ele viria ter comigo logo que chegasse, pensei, fossem que horas fossem.

 

Se demorasse muito, a sua investigação tornar-se-ia inútil. O julgamento começava na manhã seguinte.

 

Decidi passar o dia no escritório, em vez de descer novamente ao Fórum, à procura de provas relativas a Célio e ao veneno. Já tinha falado com pessoas suficientes; a notícia daquilo que eu procurava espalhar-se-ia sem mim. Talvez um ramo que ontem era estéril desse fruto hoje. Se assim fosse, valia a pena estar num sítio onde qualquer mensageiro tivesse a certeza de me encontrar. E, claro, Eco podia chegar a qualquer momento.

 

Comecei a escrever outra carta a Meto, mas acabei por queimá-la, como tinha feito à anterior. Aquilo que me ocupava o espírito não era coisa que pudesse partilhar com ele numa carta. Betesda e Diana passaram o dia a coser no jardim. Pareciam estar de bom humor, rindo e falando uma com a outra em voz baixa. Eu vigiava-as em silêncio, satisfeito com a simples observação, como um guarda de vigilância a uma casa.

 

Não foi um informador, mas Trigónion, quem veio finalmente bater-me à porta nessa tarde, com um frenesim tal, que Belbo não fez qualquer esforço para evitar que o pequeno gallus corresse para o meu escritório.

 

- Anda! gritou ele, a tremer e a arquejar. Vem imediatamente!

 

- O que é desta vez, Trigónion? suspirei eu.

 

- Foi ele! Conseguiu o que queria! Apesar de todas as precauções dela. Oh, Cibele lhe cegue os olhos! Apertou as faces e bateu com os pés no chão.

 

- Trigónion! O que aconteceu?

 

- Ele envenenou-a. Ela está a morrer! Oh, por favor, vem imediatamente!

 

Não era estranho que Trigónion estivesse sem fôlego; tinha vindo a correr todo o caminho, desde a casa de Clódia, e esperava que eu fosse a correr ao seu lado durante todo o caminho de regresso. Quando chegámos à ruela sem saída parecíamos corredores arquejando no final da maratona. A porta de casa de Clódia nem sequer tinha sido fechada, continuava aberta, como Trigónion a deixara.

 

- Depressa! Ele agarrou-me na mão e puxou-me atrás de si. Era surpreendentemente forte, para uma pessoa de aspecto tão delicado. Eu tentei acompanhá-lo, mas ele foi mais rápido, e acabou por me arrastar através da sala e do átrio, ao longo do jardim central, do pórtico e de um comprido corredor. À saída de uma porta, adornada com um pesado cortinado, estava reunido um grupo de escravos, que conversavam uns com os outros. Afastaram-se para dar passagem a Trigónion, que me empurrou para dentro do compartimento situado do outro lado da cortina.

 

Lá fora, o Sol brilhava, mas dentro do quarto era como se fosse noite. Tal como a porta, as janelas estavam tapadas com pesadas cortinas. A única luz provinha das poucas lamparinas que ardiam com uma chama reduzida.

 

Quando os meus olhos se adaptaram à escuridão, vi Clódia reclinada num canapé ornamentado com pernas de marfim trabalhado e almofadas de pelúcia. Estava tapada com um cobertor de lã. O seu rosto e as suas mãos tinham um aspecto pálido sob a luz mortiça.

 

- Trigónion! murmurou.

 

Senhora! exclamou ele, dirigindo-se a ela como se fosse seu escravo. Correu para o seu lado e tomou-lhe a mão. Voltei logo que pude.

 

Gordiano veio contigo?

 

Sim. Não te canses a falar, por favor.

 

- Por quê? Achas que já não duro muito? Ela riu-se fracamente. O gallus contorceu o rosto. Trigónion acha que eu vou morrer disse ela, voltando os olhos brilhantes para mim.

 

- O que aconteceu, Clódia?

 

- Acho que deve ter sido qualquer coisa que eu comi. Fez uma expressão maliciosa e depois estremeceu.

 

Já chamaste um médico?

 

- O meu irmão possui um médico muito capaz, que por acaso tem bastantes conhecimentos sobre venenos. Públio tem razões para se preocupar com venenos, como calculas. O médico veio cá enquanto Trigónion te foi buscar. Calculo que esteja aí à porta; não suportava tê-lo dentro do quarto comigo.

 

- O que disse ele? perguntou Trigónion, frenético.

 

- Disse: ”Acho que deve ter sido de alguma coisa que tu comeste”. Sorriu com um ar triste. Queria saber que quantidade de pó eu tinha engolido, e quando. Foi hoje de manhã, disse-lhe eu, mas só comecei a sentir os efeitos quase ao meio-dia. Diz ele que eu tenho muita sorte em ter comido tão-pouco. Assim sendo...

 

- Que pó foi esse? disse eu.

 

- Trigónion não te explicou?

 

- Não houve tempo. Viemos a correr o caminho todo disse o gallus.

 

- Era o pó que estava na cozinha disse ela. Imagina! Quantas vezes vou eu à cozinha de manhã antes do pequeno-almoço? Nunca. Mas hoje, por qualquer razão, acordei cedo e com fome; chamei Crisis e ela não veio, por isso fui eu à cozinha. Devias ter visto o salto que Crisis deu quando eu entrei. Estava ao lado de uma mesinha, e sobre a mesa estava uma taça de milheto com mel. ”Isso é para mim?” perguntei-lhe. Crisis não disse nada. Eu aproximei-me da taça e vi a caixinha ao lado, e um pó fino amarelo lá dentro. ”É alguma especiaria?” disse eu. Não suspeitei de nada, compreendes?

 

- Um pó fino amarelo?

 

- Sim, não conheço nenhuma especiaria assim. Molhei o dedo na língua, meti-o no pó e voltei a tocar na língua. Fiz aquilo sem pensar. O pó não era mau, sabia um bocado a terra. Depois vi a expressão no rosto de Crisis. Percebi imediatamente.

 

Ouvi uns gemidos estranhos atrás de mim. Voltei a cabeça. Os gemidos pareciam provir do canto oposto do quarto, de junto ao chão. Depois, os meus olhos aperceberam-se de um ligeiro movimento, mais acima. Confuso, forcei a vista naquela escuridão sombria, e subitamente detectei a forma de um corpo suspenso do tecto, de pernas para o ar. Era uma mulher nua, pendurada de uma corda atada aos tornozelos, que se torcia lentamente. Ela voltou a gemer.

 

- Silêncio! gritou Clódia. Sentou-se direita, depois voltou a deixar-se cair contra as almofadas. Trigónion agitou-se à sua volta, até ela lhe afastar as mãos com uma palmada. Mandei imediatamente chamar Trigónion. Ele veio a correr da Casa dos Galli. Foi ele que se lembrou de mandar vir o médico de Públio. Eu fartei-me de esperar até o homem chegar; acontece que ele tinha ido ao mercado de ervas e ninguém sabia onde se encontrava. A princípio, não estava preocupada. Sentia-me bem. Depois, ao meio-dia, comecei a sentir-me desconfortável, e o médico ainda sem chegar. Fui-me deitar, Trigónion continuava a agitar-se à minha volta, até que me lembrei de lhe dizer que te fosse buscar, Gordiano.

 

- Para quê?

 

- Tu deves saber mais sobre venenos do que muitas pessoas. Pensei que pudesses dizer-me alguma coisa acerca do pó amarelo. Vai buscá-lo, Trigónion.

 

Ele afastou-se dela e foi até junto de uma mesinha cheia de caixas e frascos. Na parede sobre a mesa estava pendurado um espelho polido, que reflectia a luz sombria das lamparinas e proporcionava um vislumbre assustador do corpo de Crisis, pendurada do tecto, do outro lado do quarto. Trigónion regressou com um pequeno estojo. Eu aproximei-me da lamparina mais próxima e examinei o conteúdo.

 

- Consegues ver alguma coisa, apesar da escuridão? perguntou Clódia. Não suporto uma luz mais forte. Fere-me os olhos.

 

Vejo o suficiente. Posso estar enganado, mas suspeito de que se trata de uma substância chamada Cabelo de Górgona. Provém da raiz de uma planta selvagem que se desenvolve nas costas da Mauritânia. Costumava rarear na cidade, mas ultimamente é cada vez mais frequente. É muito forte, tem uma acção bastante rápida, e é praticamente desprovida de sabor, de maneira que pode ser misturada com quase todos os tipos de comida.

 

Clódia fechou os olhos e acenou com a cabeça.

 

- Estás a ver, Trigónion? Eu bem te disse que Gordiano havia de saber. O médico disse a mesma coisa.

 

- E explicou-te os efeitos?

 

Não foi preciso. Eu descobri-os sozinha.

 

- Tonturas, náuseas, uma sensação de frieza, sensibilidade dolorosa à luz?

 

Ela acenou com a cabeça, mantendo os olhos fechados.

 

- Que quantidade engoliste?

 

- Só aquele bocadinho. Quando vi a expressão de Crisis, percebi o que tinha feito.

 

Voltei a ouvir os gemidos provenientes do canto do quarto.

 

Silêncio! gritou Clódia.

 

- Se não engoliste mais do que isso...

 

- Não morro desta, não é? Foi o que disse o médico.

 

Só um médico estúpido diria a uma mulher influente e perigosa que ela ia morrer, se houvesse uma possibilidade, mesmo que reduzida, de ela sobreviver. Os poderosos não gostam que lhes dêem más notícias, especialmente se vier a verificar-se que eram falsas. Era preferível o médico garantir à irmã do seu senhor que ela não morreria; se morresse, não estaria em condições de se mostrar desiludida com ele. Mas era provável que o médico tivesse razão. Eu conhecia um pouco os efeitos do Cabelo de Górgona, e não me parecia provável que uma dose tão pequena pudesse matá-la.

 

- Se o médico te disse que ias melhorar, estou certo...

 

- Qual é a tua opinião? O seu tom de voz era cortante. Reconheceste o veneno. Deves saber como funciona.

 

- Conheço muitos venenos pelo aspecto, mas são outros que os usam.

 

- Claro que não vais morrer! insistia Trigónion. Clódia permitiu que ele lhe aconchegasse o cobertor e lhe acariciasse as mãos.

 

- Pensei que te tinhas antecipado à conspiração para te envenenar

- disse eu.

 

- E antecipei. Mas a farsa nas termas senianas deve ter sido apenas uma diversão encenada por Célio. Ele queria que eu pensasse que tinha levado a melhor sobre ele, quando a víbora já vivia no meu peito. A escrava em quem eu confiava mais do que em qualquer outro!

 

No canto, Crisis gemeu e retorceu-se no ar. Os meus olhos tinham-se habituado à escuridão e já conseguia vê-la melhor. A sua carne macia e nua estava esfolada com tiras mosqueadas.

 

- A espiazinha está a gemer porque eu a mandei açoitar disse Clódia em voz baixa. O castigo ainda agora começou.

 

- Ela confessou?

 

- Ainda não. Mas é natural que Célio tenha espiões cá em casa, tal como eu tenho espiões em casa dele. Quem melhor do que Crisis? E eu apanhei-a a envenenar-me a comida! Se não tivesse ido por acaso à cozinha naquele momento...

 

- Por que achas que esse veneno veio de Célio?

 

Clódia fulminou-me de tal maneira com o olhar, que eu inspirei audivelmente. Teria Catulo conhecido aquele olhar? Depois estremeceu e fechou os olhos.

 

- De quem havia de ter vindo? perguntou com uma voz enfraquecida. Nós sabemos que ele já tinha o veneno. O que eu não sabia era a que escravo tencionava ele recorrer para introduzir o produto em minha casa. Afinal era Crisis e não Barnabás!

 

- Achas que se trata do mesmo veneno que ele experimentou no escravo dele?

 

- Claro.

 

- Mas não é.

 

Ela mordeu os lábios e moveu-se por baixo do cobertor.

 

- O que queres dizer?

 

- O veneno que Célio administrou ao escravo actuou com grande rapidez. Tu própria mo disseste, e eu presumo que os teus espiões te tenham fornecido um relato preciso. ”O escravo morreu agonizante”, disseste tu, enquanto Célio observava. ”Bastaram uns momentos”, disseste tu. Não pode ser o mesmo veneno. Os Mauritânios dizem que o Cabelo de Górgona é como ”uma cobra enrolada na barriga”. Uma vez ingerida, demora algum tempo a morder. A vítima não sente quaisquer efeitos negativos durante algum tempo, depois os sintomas manifestam-se subitamente. Tu disseste-me que provaste o pó de manhã e só começaste a sentir os efeitos ao meio-dia. Não me parece propriamente o veneno ”de efeito rápido” de Célio.

 

- E então? Ele decidiu usar um veneno diferente.

 

- Talvez. Se me permites, levo comigo o que resta do veneno. Se bem me lembro, tenho uma pontinha de Cabelo de Górgona em minha casa, fechada no cofre onde guardo estas coisas. Um homem cuja mulher andava a tentar envenená-lo dera-o ao meu filho Eco, uns meses antes. Eco passara-o para as minhas mãos por razões de segurança; não queria ter venenos em casa, por causa dos gémeos. Eu quase me havia esquecido de que o tinha. Gostava de comparar este pó com o bocadinho que tenho em casa...

 

Clódia hesitou.

 

Mas quero que mo devolvas murmurou, fechando os olhos. É uma prova contra Célio.

 

A entrevista parecia ter terminado. Clódia voltou-se na cama, desconfortável. Crisis girou nas cordas. Depois, Trigónion inclinou-se, aproximando-se do ouvido de Clódia, e disse em voz baixa:

 

- A outra caixa. Ela estremeceu.

 

- Senhora, a outra caixa disse ele novamente.

 

A careta que ela fez não foi provocada pelo desconforto físico.

 

- Sim, mostra-lhe. Ele que veja.

 

Trigónion tirou-me a caixa de veneno da mão. Foi até à mesinha dos cosméticos e voltou com outro estojo na palma da mão, franzindo o nariz e com o braço estendido, numa tentativa de manter a coisa o mais longe possível de si. Eu reconheci-o imediatamente.

 

- É o mesmo estojo que Licínio tinha consigo nas termas senianas

- disse eu.

 

- Tens a certeza? murmurou Clódia.

 

- De bronze, com nós em relevo e embutidos de mármore. É exactamente o mesmo.

 

- O bruto! O monstro! disse Trigónion, estendendo-mo. Vê o que tem dentro.

 

- Chegou esta manhã disse Clódia. Foi deixado à porta por um mensageiro. O que queria ele? Torturar-me com essa piada obscena quando eu estivesse a morrer? Estará a rir-se neste momento? Estremeceu e começou a chorar.

 

Eu peguei no pequeno estojo e abri-o. Lá dentro, havia um líquido opalescente cor de pérola; devia ser uma espécie de loção ou de creme, pensei eu. Toquei-lhe com o dedo, e tive um sobressalto tão grande que larguei o estojo, espalhando no chão o seu conteúdo. Trigónion olhava fixamente para os glóbulos de sémen coagulado, com uma repulsa fascinada.

 

- Maldito seja! Clódia agitava-se na cama. Trigónion correu para ela. Eu recuei e bati na mesa dos cosméticos. Voltei-me e olhei fixamente para os unguentos e os filtros, sem os ver. Reparei que, no meio deles, havia uma estatueta de barro de Atis, o consorte eunuco de Cíbeíe, exactamente igual às que eu tinha visto na sala da mulher de Lúcio Luceio. A luz mortiça da lamparina incidiu no barrete vermelho da figurinha, iluminando-lhe o rosto sereno e sorridente.

 

Clódia continuava a gemer e a praguejar. Trigónion estava debruçado sobre ela. O estojo que eu deixara cair permanecia no chão e o seu conteúdo brilhava à luz da lamparina.

 

Voltei a recuar. Uma das lamparinas apagou-se e a escuridão aumentou dentro do quarto. Eu bati numa coisa sólida, mas mole. A corda deu uns estalidos no alto, atrás de mim. De baixo, veio um gemido suave. Voltei-me de um salto e percebi que tinha colidido com o corpo suspenso de Crisis. As suas narinas e os seus olhos abertos, voltados de pernas para o ar e iluminados pela luz vacilante das lamparinas, eram tão grotescos, que o seu rosto se tornou inumano, indiscernível. Os seus lábios moveram-se. Eu inclinei a cabeça, esforçando-me por ouvir, mas o murmúrio foi apagado pelo grito choroso de Clódia, atrás de mim.

 

Castiguem-na! Voltem a castigá-la!

 

Do outro lado do pesado cortinado que bloqueava a porta, ouvi um murmúrio e um movimento entre os escravos reunidos no corredor. Olhei para os lábios de Crisis, que se moviam sem emitir qualquer ruído, sem ter bem consciência do que estava a ver, e finalmente recuperei a compostura. Dirigi-me à porta e afastei a cortina.

 

Os escravos que estavam no corredor dispersaram-se e reagruparam-se como galinhas chocas. Enquanto descia o corredor, uma figura aproximou-se e passou por mim, dirigindo-se ao quarto de Clódia com passadas grandes e rápidas. Era o escravo, Barnabás, que levava na mão um chicote de couro. Olhava em frente, com os maxilares apertados. O seu rosto estava totalmente desprovido de emoção, à excepção dos olhos, onde distingui uma estranha combinação de decisão e temor.

 

Em casa, encontrei Betesda a percorrer o guarda-roupa, tentando encontrar uma coisa adequada para levar à festa de Clódia.

 

O que é que achas, a estola azul ou a verde? E o colar levo as contas de cornalina ou as de lápis-lazúli que me deste o ano passado?

 

- Receio que não seja muito provável que a festa se realize.

 

- Mas por quê?

 

- Clódia está doente. Explicar o que acabava de acontecer em casa de Clódia estava para além das minhas forças.

 

Talvez amanhã se sinta melhor disse Betesda, franzindo o sobrolho.

 

- Talvez. Veremos se aparece no julgamento, amanhã de manhã.

 

Pois, o julgamento! Ela não pode faltar. De certeza que se vai sentir melhor, e depois há-de dar a festa. Ela fez tantos planos.

 

- Para o julgamento?

 

Para a festa, tonto! Eu acenei com a cabeça.

 

- Não há notícias de Eco?

 

- Não.

 

Subitamente, apercebi-me de que me tinha esquecido da caixa de Cabelo de Górgona que tencionara trazer de casa de Clódia, para o comparar com o veneno que tinha guardado no meu cofre. Não tinha qualquer desejo de lá voltar, para ir buscá-la. Decidi pôr o assunto de lado para já.

 

Betesda foi presciente. Na manhã seguinte, quando chegámos ao Fórum para assistir ao julgamento, já Clódia se encontrava na grande praça diante da Rostra, sentada atrás dos acusadores no meio de muitos dos membros da sua comitiva. Estava pálida e os seus olhos mostravam-se apáticos, mas aparentemente a crise tinha passado. Olhou para nós e sorriu fracamente não para mim, mas para Betesda, que inclinou a cabeça e lhe respondeu com um sorriso. Para mim, Clódia não teve sorrisos, limitando-se a erguer uma sobrancelha, como que para me perguntar se eu tinha mais alguma informação para lhe dar. Eu apertei os lábios e abanei a cabeça. Eco continuava sem regressar, e nenhuma das minhas redes apanhara peixe.

 

Era a véspera do início do festival da Grande Mãe. Durante seis dias, Roma celebraria com jogos e competições, procissões e peças religiosas, festas privadas e cerimónias públicas. Depois das festividades, os membros do Senado reunir-se-iam brevemente, antes de partirem para as suas propriedades rurais, onde passariam as tradicionais férias de Aprilis. Roma estaria encerrada, como um grande moinho de cereais parado. Na véspera de tudo isto, o estado de espírito no Fórum era uma combinação de agitação e descontracção de pressa febril para tratar de um último assunto, juntamente com uma deliciada antecipação dos dias de indolência e prazer que se aproximavam.

 

O frívolo estado de espírito do Fórum era ainda reforçado pela atmosfera animada que costuma rodear os julgamentos importantes, particularmente um julgamento tão fértil em promessas de escândalo como este. Os restantes tribunais tinham interrompido as suas actividades, de maneira que todos os advogados de Roma estavam presentes, e a profusão de discussões recentes sobre a situação egípcia e a morte de Díon atraíra igualmente a maioria dos membros do Senado. Os que tinham sido suficientemente sensatos e previdentes tinham enviado os seus escravos para o Fórum de madrugada, para abrirem cadeiras dobráveis e lhes guardarem lugar. Eu tinha mandado Belbo com essa incumbência, para Betesda e para mim próprio. Observei as filas ruidosas e detectei-o a fazer-nos sinal de um excelente lugar perto da frente, mesmo atrás dos bancos onde se sentariam os setenta e tantos juizes. Abrimos caminho até aos nossos lugares. Antes de Belbo se juntar à enorme multidão de patetas e ociosos que continuava a reunir-se na periferia, eu disse-lhe que estivesse atento à chegada de Eco, que ainda podia aparecer no último momento.

 

Diante de nós, para além dos bancos dos juizes, ficava situado o espaço aberto de onde os advogados pronunciariam os seus discursos. À esquerda, sentar-se-iam os acusadores, com os seus assistentes e as suas testemunhas. Era aí que se encontrava Clódia. Tinha Barnabás ao seu lado e mais adiante reconheci Vibénio, o Dedinhos Activos e vários outros dos que tinham participado na vã perseguição nas termas senianas.

 

Em frente dos acusadores, à nossa direita, ficavam os bancos dos acusados, acompanhados pelos seus advogados, a família, os apoiantes e as testemunhas abonatórias. Os parentes de Marco Célio estavam todos vestidos de preto, como se estivessem de luto. A mãe tinha os olhos vermelhos e inchados e as faces molhadas de lágrimas; o pai tinha a barba branca por fazer e o cabelo em desalinho, o que lhe dava a aparência de um homem semienlouquecido pelas preocupações. Todos os parentes dos acusados têm o mesmo aspecto em tribunal. Se Célio tivesse filhos, eles estariam ali de pé, andrajosos, a chorar. Estas formas tradicionais de evocar a piedade dos juizes iniciaram-se há tanto tempo, que nenhum advogado permitiria que a família do seu cliente se mostrasse menos do que desgraçada.

 

Ao lado de Célio, estavam sentados os seus advogados. Cícero parecia mais magro e anguloso do que da última vez que eu o vira; um ano de amargo exílio tinha-lhe aparado a barriga e as bochechas e dado aos seus olhos um brilho mais puro. Para trás ficara a gorda complacência que se instalara nele depois do seu ano de consulado e do triunfo sobre Catilina. Em seu lugar, havia agora uma expressão simultaneamente obsessiva e ardente obsessiva porque ele tinha aprendido quão perversa Roma podia ser para com os seus, e ardente porque tinha conseguido superar os seus inimigos, e estava de novo na mó de cima. A ânsia que li nos seus olhos recordou-me o advogado jovem e determinado que eu conhecera há muitos anos, mas a dureza do seu maxilar e a linha amarga dos seus lábios pertenciam a um homem muito mais velho. Como advogado, Cícero fora desde o princípio ambicioso, brilhante e desprovido de escrúpulos um homem perigoso de enfrentar em tribunal. Agora, parecia mais formidável do que nunca.

 

Quanto a Marco Crasso, nos últimos tempos, o homem mais rico de Roma parecia ter parado de envelhecer. Era uns anos mais velho do que eu, mas parecia estar mais perto dos quarenta do que dos sessenta. Havia quem dissesse, a brincar, que Crasso tinha feito um pacto com os deuses, que lhe permitia enriquecer com a passagem do tempo, em lugar de envelhecer. Se assim era, nem esse acordo era suficiente para lhe trazer alegria; tinha o mesmo aspecto carrancudo e descontente de sempre. Crasso era um homem que nunca seria suficientemente bem sucedido para sua própria satisfação. Esta inquietação levava-o de triunfo em triunfo nas arenas financeira e política, estabelecendo um ritmo com o qual os seus parceiros menos dotados não podiam ter esperanças de competir, o que os melindrava amargamente.

 

Ao lado destas duas raposas velhas, Marco Célio parecia extraordinariamente jovem e fresco, quase um adolescente. Uma boa noite de sono, ou qualquer outro tónico, tinham apagado a expressão de dissolução indolente que eu detectara no seu rosto na Taberna Salaz. Célio sempre fora uma espécie de actor, capaz de assumir sucessivos papéis conforme as necessidades do momento, e para esta ocasião assumira com inquietante precisão o papel do jovem inocente de olhos brilhantes. A sua esperteza já lhe permitira livrar-se de problemas noutras ocasiões; nos últimos anos tinha-se afastado dos seus mentores, Crasso e Cícero, e talvez os tivesse mesmo atraiçoado na busca da sua própria fortuna. Seria razoável que eles lhe tivessem voltado as costas, mas aparentemente todas as diferenças tinham sido ultrapassadas. Eram três raposas sentadas ao lado umas das outras.

 

Voltei os olhos da defesa para a acusação, presidida pelo jovem Lúcio Semprónio Atratino. Se Célio parecia muito novo ao lado dos seus advogados, Atratínio tinha uma aparência positivamente infantil. Tinha apenas dezassete anos, mal chegara à idade adulta aos olhos da lei. Mas a paixão da juventude pode ter muito peso junto dos juizes romanos, que já ouviram demasiados discursos para se deixarem impressionar por falsas indignações ou fanfarronices cansadas, por mais experiente que seja o advogado. O interesse do jovem Atratínio na acusação a Célio era a defesa da honra da sua família; fora contra o pai de Atratínio, Béstia, que Célio lançara a famosa anedota do ”dedo culpado”. A perseguição a Célio por Atratínio era um acto virtuoso aos olhos de qualquer tribunal romano, para quem a lealdade aos pais tem uma grande importância.

 

Flanqueavam Atratínio os seus colegas acusadores. Eu pouco sabia acerca deles. Lúcio Herénio Balbo era amigo de Béstia e eu conhecia-o melhor de vista do que de ouvido; nunca tinha assistido a nenhum caso defendido por ele, mas a visão do seu corpo bem alimentado a correr de um lado para o outro no Fórum (Eco dizia que ele parecia um ovo gigante de toga) estava impressa na minha memória. Públio Clódio era o terceiro acusador não se tratava do irmão de Clódia, mas de um dos seus libertos, que por essa razão tinha o mesmo nome que ele; desse modo, os Clódios estavam representados entre os acusadores de maneira indirecta, como certamente preferiam estar, pelo nome e não pelo sangue.

 

Gneu Domício, o magistrado que presidiria ao julgamento, subiu ao tribunal. Os juizes fizeram o juramento. A sessão iniciou-se com a leitura das acusações formais.

 

Eram, ao todo, cinco acusações. As primeiras quatro estavam relacionadas com os incidentes de violência contra os dignitários estrangeiros; a violência exercida contra eles era, tecnicamente, violência exercida contra o seu protector, o Estado Romano, sendo por isso uma violação da lei de prevenção do terror político. As acusações eram graves: que Marco Célio dirigira os ataques de Neápolis a fim de intimidar a recém-chegada delegação alexandrina; que instigara um tumulto contra a delegação em Putéolos; que perpetrara fogo posto contra a delegação durante a sua estadia na propriedade de Pala, quando se dirigia a Roma; que tentara envenenar o chefe da delegação, Díon, e subsequentemente participara no assassínio de Díon.

 

A estas fora acrescentada uma nova alegação: que Célio tentara envenenar Clódia. Houve reacções de surpresa entre muitos dos presentes, incluindo Betesda.

 

- O que é aquilo? murmurou ela.

 

Eu encolhi os ombros e tentei mostrar-me ignorante.

 

Disseste-me que ela estava doente, não me disseste que tinha sido envenenada!

 

Eu pus um dedo sobre os lábios e apontei na direcção do banco dos acusados, onde Crasso se erguera para fazer uma declaração.

 

- O magistrado que preside a este tribunal, Gneu Domício, e os juizes, devem ter em conta que esta última acusação é nova; na verdade, só ontem foi acrescentada pela acusação. À defesa não foi concedido o tempo habitual para preparar um argumento em resposta a uma acusação com esta gravidade. Por isso, estamos no nosso direito de protestar contra a inclusão desta acusação, na verdade, de insistir em que ela seja eliminada e discutida noutro julgamento ou, se for incluída, de exigir um adiamento deste julgamento. Além disso, dado que este é um tribunal convocado com o propósito exclusivo de julgar casos de violência política, não nos parece adequado incluir uma acusação de tentativa de envenenamento de uma cidadã privada. Contudo, visto que a acusação parece estar convencida de que esta acusação está realmente relacionada com as outras, e que o meu estimado amigo e colega Marco Cícero me garante que está totalmente preparado para defender o nosso cliente contra ela, não faremos objecções à sua inclusão neste julgamento.

 

Crasso inclinou gravemente a cabeça ao magistrado presidente e aos juizes e sentou-se. Detectei no rosto de Cícero a tremura de um sorriso mal contido. Era uma expressão que eu conhecia bem; o grande orador estava cheio de si por qualquer motivo. Estaria secretamente satisfeito com o facto de a acusação de tentativa de envenenamento de Clódia ter sido incluída entre as restantes acusações? Que truque de prestidigitação estaria a preparar desta vez?

 

Concluídas as formalidades, iniciou-se o julgamento. Os três acusadores seriam os primeiros a falar, e Célio e os seus advogados responder-lhes-iam. Depois das orações, as testemunhas de ambos os lados fariam os seus depoimentos. Dado o número de oradores e as numerosas acusações a discutir, era quase certo o julgamento prolongar-se por mais de um dia.

 

Um julgamento romano só ostensivamente é acerca do estabelecimento da culpa ou da inocência. Em Roma, todos os julgamentos são de certa maneira políticos, e uma acusação de violência política é-o abertamente. Os juizes romanos não são meros cidadãos que procuram a verdade relativamente a um acto específico; são uma comissão do Estado, e o seu objectivo é fazer um juízo político e moral. Tipicamente, um julgamento abrange toda a vida do acusado a sua reputação, as suas conexões familiares, simpatias políticas, práticas sexuais, virtudes e vícios. Não versa apenas sobre o facto de o acusado ter, ou não, cometido um crime específico, mas sobre a totalidade do seu carácter, e visa o bem do corpo político como um todo. O próprio Cícero deixou isto bem claro no julgamento em que participou no ano anterior ao seu exílio: ”Quando pronunciarem o seu veredicto, os juizes terão de ter em conta o bem da comunidade e as necessidades do Estado”.

 

Além disso, toda a gente sabe que os juizes se deixam influenciar mais pelas orações dos advogados do que pelos depoimentos das testemunhas. ”Os argumentos são mais importantes do que as testemunhas” dizia Cícero frequentemente. As deduções que um bom orador faz a partir das provas de um caso (quando afirma: Tendo em conta isto, é razoável pensar que...) são mais convincentes do que as declarações secas de qualquer testemunha, ainda que ela as faça sob juramento (ou, no caso dos escravos, sob tortura).

 

Atratínio levantou-se para fazer a primeira alocução. A sua voz jovem e clara tinha um alcance extraordinário, e a sua prestação oratória, se não possuía um brilho ofuscante, estava pelo menos marcada pelo selo da sinceridade.

 

Atratínio limitou-se ao carácter de Célio à sua conhecida dissipação, à sua extravagância, aos antros vergonhosos que era sabido que ele frequentava. A indignação virtuosa de Atratínio teria parecido falsa e forçada se fosse expressa por um advogado mais velho, mas Atratínio era suficientemente jovem e puro para ser credível quando franzia o sobrolho aos excessos de Célio.

 

Célio não era digno de confiança, dizia Atratínio. Nenhum homem sensato voltaria as costas a Célio, pois corria o risco de este o caluniar e troçar dele, como caluniara e troçara dos seus próprios mentores nas suas costas, daqueles mesmos que neste momento estavam tão próximos dele, a sua notória falta de respeito por esses homens era tristemente evidente para todos os presentes no tribunal, aparentemente à excepção dos próprios. Agora que se tinha finalmente envolvido em problemas mais complicados do que aqueles com que era capaz de lidar, este oportunista crasso não se importava de recorrer aos homens mais velhos que atraiçoara, não apenas aos seus mentores, mas ao seu próprio pai, que abandonara para ir viver sozinho num apartamento no Palatino, para poder dedicar-se aos seus vícios longe dos olhos paternos, e fazer troça da humilde casa da Colina Quirinal de onde fugira, e para a qual regressara agora involuntariamente, para seu grande aborrecimento. Havia maneiras mais sinceras de mostrar respeito pelos pais, insistia Atratínio, fazendo uma pausa com um sorriso cheio de significado para que a ninguém escapasse o exemplo que ele próprio constituía.

 

Mas também nenhuma mulher sensata voltaria as costas a Célio, disse ele, porque o homem era capaz de bem pior do que calúnias e troças como veríamos quando outro orador tratasse da acusação de tentativa de envenenamento a Clódia.

 

Atratínio insistiu nos temas da dissipação e da conduta vergonhosa, voltando-os de um lado e de outro, como um homem faz girar na mão uma jóia preciosa, para apreciar as diversas formas como ela capta a luz. Umas vezes procurava indignar os juizes, outras apelar ao sentimento, outras ainda fazê-los rir.

 

Politicamente, dizia, Célio tinha namoriscado com a causa do revolucionário depravado, Catilina. Sexualmente, tinha assaltado as mulheres de cidadãos romanos; algumas testemunhas confirmariam essas acusações. Outras testemunhas atestariam a natureza violenta de Célio; seria citado o caso de um senador chamado Fúfio, espancado por Célio nas eleições pontifícias diante de uma multidão de espectadores horrorizados. E, se estas indicações do carácter de Célio não fossem suficientemente devastadoras, que se considerasse a forma como ele se pavoneava e se empertigava para pronunciar os seus discursos quando assumia o papel de acusador nos julgamentos de outros homens, ou em debates no Senado. E a escandalosa cor da tira da sua toga de Senador! Quando a de todos os outros era tradicionalmente escura, quase preta, a sua era de um roxo-vivo, atrevido e aparatoso. Ao serem recordados desta impropriedade, vi alguns juizes acenar com as cabeças grisalhas.

 

Mas o pior de tudo porque era este vício que mais seriamente ameaçava destruir a república era a extravagância de Célio com o dinheiro. Nisto, Célio encarnava a pior característica da sua geração, tão fortemente distanciada, tanto da dos homens mais velhos e mais sensatos como os juizes, como da dos jovens menos experimentados, mas mais virtuosos, da idade de Atratínio, que olhavam com temor e consternação os hábitos perdulários de homens como Célio. O que seria da república, se esses homens não fossem detidos? Eles dissipavam fortunas em comportamentos licenciosos e gastavam enormes somas de dinheiro em subornos eleitorais, corrompendo todos e tudo aquilo em que tocavam. Depois, quando descobriam que estavam na bancarrota, como era inevitável que acontecesse, sendo totalmente desprovidos de sentimentos morais por causa da sua devassidão, esses homens recorriam sem hesitar aos piores crimes com o fito de voltar a encher os seus cofres. Para se apoderar do ouro egípcio, Célio cobrira as mãos de sangue egípcio. Ao fazê-lo, manchara de sangue a dignidade e a honra do Estado Romano.

 

- Se há caso que demonstre a triste necessidade de haver tribunais, é este. Se há homem que mereça toda a condenação deste tribunal, Marco Célio é esse homem. E foi assim que Atratínio concluiu.

 

Voltei-me para Betesda e perguntei-lhe o que achava.

 

- É um pouco novo para o meu gosto disse ela. Mas tem uma voz agradável.

 

A seguir, falou o liberto Públio Clódio. O tema do seu discurso foram as primeiras três acusações contra Célio. Onde Atratínio mostrara uma espécie de desagrado cerimonioso perante a ideia de ter de se poluir com o catálogo dos crimes de Célio, Clódio investiu com a satisfação de um homem que empunha um ferro em brasa. Não hesitou em dar golpes e fazer ataques brutais, mas também recuava de tempos a tempos, confiante no poder da sua arma de infligir danos mesmo à distância. Paroxismos de aversão eram pontuados por silêncios abruptos, durante os quais, imóvel e seco, Clódio pronunciava alguns dos seus comentários mais ácidos, provocando sobressaltos e risos entre a multidão. Foi um discurso tecnicamente estonteante.

 

As virtudes e os vícios do carácter de Célio até podiam ser questões de opinião, concedia ele, especialmente num tempo em que tantos romanos se sentiam tristemente confusos quanto a essas coisas, mas os ultrajes cometidos contra os enviados alexandrinos eram simples questões de facto. Cem dos mais respeitados homens do Egipto tinham partido para Roma, em resposta a uma solicitação do Senado. Como embaixadores, estavam sob a protecção dos deuses e do Estado. Mas eis que deparam com a violência de intimidações constantes, com o fogo e por fim com o assassínio. As notícias deste escândalo tinham-se propagado para além dos Pilares de Hércules, até às fronteiras da Partia, minando o prestígio de Roma junto dos seus aliados e dos povos submetidos e inflamando as suas já precárias relações com o volátil reinado do Egipto.

 

Os locais e as datas destes ataques estavam perfeitamente documentados. A acusação apresentaria testemunhas que jurariam que, em todos os casos em Neápolis, em Putéolos e em casa de Pala -, Marco Célio fora visto nas redondezas pouco antes dos ataques, na companhia de assassinos conhecidos. Além disso, como atestariam outras testemunhas, Célio fora ouvido a gabar-se desavergonhadamente em público do papel que tivera nos massacres. Que homem seria tão imprudente que se gabasse de ter organizado tais atrocidades? Claramente, um homem com o carácter depravado de Marco Célio.

 

Clódio prosseguiu, fazendo um vivo relato de cada ataque, detendo-se nos pormenores sangrentos, pintando quadros de piedade e terror, invocando as sombras dos mortos por vingar.

 

Por que razão, perguntou, tinha Marco Célio perpetrado tais violências? A razão era óbvia: o lucro financeiro. Um homem como Marco Célio, originário de uma família humilde mas respeitável, dificilmente podia manter o nível de vida pelo qual era famoso sem incorrer em enormes dívidas. Não era difícil apresentar testemunhas dos seus imprudentes hábitos despesistas. Se Célio desejava pôr em causa essas testemunhas, se não tinha nada a recear, que mostrasse ao tribunal os seus livros privados de contas. Estava disposto a fazê-lo? Se não, por que não? Porque, alegava Clódio, esses livros revelariam os pagamentos que Célio tinha recebido para montar esta campanha de terror contra os enviados alexandrinos. Para financiar os seus chocantes prazeres, Célio vendera o bom nome de todo o povo Romano. A indignação de Clódio atingiu um clímax adequadamente trovejante, que levou a multidão a bater com os pés em seu apoio. O orador regressou ao banco limpando o suor da testa como se fosse um pugilista.

 

Voltei-me para Betesda e ergui uma sobrancelha.

 

- Então?

 

- Toda a gente sabe que os libertos se esforçam mais disse ela.

- Mas aqueles dramatismos e os gestos de braços só servem para me pôr nervosa.

 

- Reparei que estavas enervada. Estás com medo pelo teu querido Marco Célio?

 

- ”A oratória serve para as ocasiões em que não existem factos” disse ela. Olhei-a espantado, como sempre acontece quando Betesda cita inesperadamente um provérbio romano. É natural que ela aprenda essas coisas comigo e nos julgamentos a que assiste, é claro, mas há qualquer coisa de chocante no facto de eu as ouvir repetidas com pronúncia egípcia. E, até agora prosseguiu eles nada disseram acerca da morte de Díon, nem da tentativa de envenenamento de Clódia.

 

- Suspeito de que isso vem agora.

 

Lúcio Herénio Balbo subiu à Rostra para concluir as acusações. Se Atratínio tinha desempenhado o papel do jovem ultrajado, Herénio foi o tio grave e admoestador, castigando o carácter de Célio da perspectiva de um homem mais velho, mais sábio, mas não menos escandalizado. Começou e terminou o discurso com a recitação da ladainha dos vícios de Célio. Pelo meio, referiu-se à morte de Díon e ao ”salvamento por um triz” de uma certa dama romana, que tivera a infelicidade de estar mais informada sobre os crimes de Célio do que seria saudável para ela.

 

A senhora, disse ele, testemunharia acerca do empréstimo que fizera a Célio, ostensivamente para ele organizar jogos públicos na sua cidade natal, com o fito de promover a sua carreira política quando na verdade tais jogos não tinham tido lugar. O dinheiro que ela lhe emprestara fora usado para subornar alguns escravos da casa de Lúcio Luceio, numa tentativa de assassinar Díon por envenenamento, pondo assim fim, de uma vez por todas, à já reduzida delegação alexandrina, através da destruição do seu chefe. Essa conspiração tinha fracassado, mas Díon, alertado para o perigo, fugira para outra casa, e fora aí que acabara por morrer. Por que mão, era algo que todos os presentes no tribunal deviam saber: a do assassino Públio Asício. Que importava que Asício tivesse sido absolvido no seu julgamento? Era do conhecimento geral que a acusação e a defesa tinham conspirado para decidir o caso a favor de Asício. Célio e Asício, companheiros em tantos outros vícios, tinham-se acompanhado em mais este ultraje haveria depoimentos que permitiriam localizá-los a ambos na casa onde Díon estava alojado na noite do seu assassínio. Como uma árvore de muitos ramos, a delegação alexandrina fora sendo brutalmente cortada, membro após membro, até restar apenas o tronco. Célio não ficara satisfeito até ele ser igualmente destruído.

 

Nesta altura, Hermínio pronunciou um encómio a Díon, recitando as suas múltiplas honras e feitos, nomeando os homens que tinham tido a coragem de lhe dar abrigo nos seus dias de desespero, chorando a perda de um filósofo tão brilhante, lamentando a vergonha que o seu assassínio fizera cair sobre Roma.

 

E que dizer da última acusação contra Célio, de ter tentado impiedosamente envenenar uma grande senhora romana, descendente de uma das mais antigas e valorosas famílias da cidade, viúva de um dos seus mais distintos cidadãos? A senhora estava presente e testemunharia pessoalmente, se as forças lho permitissem, quanto ao ultraje contra ela perpetrado.

 

A certa altura, Célio fora aliado do irmão da senhora fora mais uma das suas instáveis alianças, que nunca eram de fiar -, o que lhe permitira aproximar-se da sua vítima. Triste dia para ela! Jovem e belo, Célio era encantador, disso ninguém duvidava a prova era que conseguira que dois homens que tinha esfaqueado pelas costas estivessem hoje aqui a representá-lo! Recorrendo a toda a sua habilidade e encanto, conseguira extorquir à senhora em questão um empréstimo bastante elevado. Mais tarde, ela tivera razões para lamentar a sua confiança no patife, não só porque o empréstimo nunca fora pago típico, previsível! -, mas porque se apercebera, com horror crescente, da utilização que Célio dera ao dinheiro. Os cofres egípcios tinham secado, porém a missão não terminara, por isso ele utilizou o ouro para subornar os escravos de outro homem, a fim de conseguir que eles envenenassem Díon. A percepção desta realidade chocou a senhora. Escandalizada com a indecência de Célio e as suas inclinações assassinas, indignada com o facto de ter sido enganada e levada a financiar os seus crimes, ela decidiu agir; concordou em comparecer como testemunha neste julgamento. Um acto de coragem, tornar-se inimiga de um assassino um acto quase fatal, como se viu. Para a silenciar, Célio decidiu envenená-la.

 

- Nós, os que assistimos a demasiados julgamentos por assassínio, conhecemos o padrão disse Herénio, baixando a voz para um tom de confidência. Um homem que tenha descido a usar veneno noutro ser humano voltará, mais cedo ou mais tarde, a tentar a mesma coisa. Os envenenamentos transformam-se num hábito, num vício secreto, como outras coisas que os homens fazem às escuras. Enquanto não for detido, pelas leis ou pelos deuses, um envenenador há-de repetir o seu crime abjecto uma vez e outra.

 

Assim, tendo caído neste vício com a tentativa de envenenamento de Díon e terá sido esse o seu primeiro acto? -, não era de espantar que Célio tivesse recorrido ao veneno para se livrar da senhora que estava disposta a causar-lhe problemas. Começara por experimentar o produto num escravo. (A vítima não fora um dos seus escravos mais antigos e fiáveis, naturalmente; Célio adquirira um escravo com o objectivo específico de experimentar o veneno, como se compra um tecido barato para ser usado como trapo, atirando-o em seguida para o lixo. Se quisesse negar o facto, bastava que Célio apresentasse o referido escravo em tribunal, vivo e de boa saúde.) Depois, Célio abordou alguns dos escravos da senhora (repetindo o mesmo estilo de operação, como um envenenador típico), e tentou suborná-los para que lhe administrassem o veneno. Mas os escravos foram leais e revelaram a conspiração à sua senhora, e ela teve a inteligência de tentar apanhar o agente de Célio no acto de transferência do material letal.

 

Herénio passou a fazer uma descrição totalmente séria do desastre nas termas senianas, que provocou alguns relinchos entre os espectadores; a história já era conhecida. Para confirmar o incidente, disse ele, os escravos que Célio julgara ter subornado viriam testemunhar. Por forma a não serem obrigados a sofrer a indignidade da tortura, e como recompensa pela sua lealdade, esses escravos tinham sido alforriados e testemunhariam na condição de libertos.

 

Herénio suspirou exasperado.

 

- A tentativa de Célio de envenenar Díon falhou. O mesmo aconteceu com o seu primeiro atentado à senhora. Mas Célio não desistiu! Há apenas algumas horas, a senhora esteve às portas da morte, graças aos implacáveis e insidiosos esforços de Célio para a eliminar. Olhem para ela, para o seu rosto pálido e os seus olhos lânguidos, observem como não consegue deixar de tremer! Basta vê-la para perceber que lhe aconteceu alguma coisa verdadeiramente terrível. ”Que coisa tremenda lhe fizeram?” perguntarão. Mas não, eu evitarei relatar os pormenores sórdidos desta última tentativa, quase eficaz, de a assassinar. Já que os deuses acharam conveniente poupá-la às conspirações assassinas de Célio, será ela a narrar a sua história. O relato da forma como escapou à morte por um triz emergirá do seu próprio e chocante depoimento. Só peço aos deuses que continue a recuperar e tenha forças suficientes para testemunhar!

 

A respeito deste último ultraje, os juizes ouviriam igualmente a confissão escrita da perversa escrava que Célio seduzira, levando-a a trair a sua senhora. O seu testemunho estava neste momento a ser extraído sob tortura, como exigia a lei.

 

Uma terceira testemunha, uma testemunha-surpresa, corroboraria estes factos. Herénio lançou um sorriso gelado ao banco dos acusados.

 

- Calculo que o testemunho desse homem seja de especial interesse para a defesa. O próprio Marco Cícero, nosso estimado concidadão, declarou que essa testemunha é ”o homem mais honesto de Roma”. Ouvirão o que esse homem tem a dizer acerca das tentativas de envenenamento desta senhora. Cícero! Pergunto a mim próprio o que poderás tu responder em defesa do assassino depravado que se senta ao teu lado!

 

Pareceu-me um dispositivo inteligente mas perigoso da parte de Herénio, deixar uma revelação prejudicial a cargo de uma testemunha, que emergiria de forma surpreendente no final do julgamento, em vez de a introduzir na sua oração, onde poderia dar forma à acusação e apresentá-la pessoalmente. A vantagem era a simpatia que uma sobrevivente a uma tentativa de envenenamento suscitaria ao contar a sua história; a defesa seria obrigada a prever e anular antecipadamente quaisquer surpresas que pudessem emergir desse testemunho. E quem seria, perguntei a mim próprio, esse alegado ”homem mais honesto de Roma”? Olhei para Cícero, para ver qual fora a sua reacção e estranhei vê-lo olhar fixamente para mim.

 

- Não acredito nem por um momento que ele a tenha envenenado

 

- disse Betesda -, como não acredito que ele tenha morto o egípcio.

 

Depois de três longas orações, o tribunal terminara mais cedo a sessão, a fim de permitir aos advogados de defesa que apresentassem as suas respostas de uma vez só, no dia seguinte. Betesda e eu dirigimo-nos imediatamente a casa, onde ela se dedicou aos preparativos para a festa de Clódia, embora o final do dia ainda estivesse a umas horas de distância.

 

- Mas Clódia insiste nisso.

 

- Está enganada. Betesda franziu o sobrolho diante do espelho polido que tinha na mão. Este colar não fica nada bem aqui. Passa-me o de prata.

 

- Não pode ser ambas as coisas disse eu. Um deles tem de estar a mentir. É uma pena teres de escolher entre Clódia e Célio. Que decisão difícil!

 

- Neste momento, estou a tentar escolher um colar disse ela.

 

- O de prata, por favor.

 

Eu procurei um colar de prata no aparador, mas senti-me perdido entre os recipientes de barro com unguentos e os pequenos frascos de perfume. O meu olhar detectou um brilho vermelho.

 

- O que é isto?

 

- O quê?

 

Peguei na figurinha de barro de Átis, idêntica àquelas que tinha visto em casa da mulher de Luceio e no aparador de Clódia. O eunuco sorridente tinha as mãos poisadas sobre a barriga gorda, e um chapéu frígio vermelho-claro na cabeça. Betesda olhou para o seu reflexo e baixou o espelho.

 

- Não mexas aí.

 

- De onde veio isto?

 

- Chegou hoje, quando estávamos no tribunal.

 

- Não perguntei quando tinha vindo, mas de onde.

 

- Foi um presente.

 

- De quem?

 

- O que é que achas? Betesda tirou-me a estatueta da mão. Voltou a poisá-la no aparador, depois pegou num comprido colar de prata e estendeu a mão para o espelho. És um inútil. Vai-te embora e diz a Diana que me venha ajudar a vestir.

 

Chegámos a casa de Clódia ao cair do crepúsculo, no momento em que as arestas aguçadas do mundo começam a suavizar-se e se tornam enubladas como a mente de um homem que se prepara para ir dormir. Mas, embora o mundo pudesse sentir-se sonolento, os convidados para a festa de Clódia estavam bem despertos. A sala de jantar, fortemente iluminada, estava cheia de vida, de música e de conversas. Quando nós chegámos, os escravos já tinham começado a conduzir os convidados para os respectivos lugares na sala de jantar. Estes eram uma curiosa mistura de patrícios impecavelmente vestidos e jovens poetas mal arranjados, de políticos radicais e cortesãs envelhecidas, de estrangeiros de aspecto exótico e mesmo de alguns galli. O ar estava carregado da sofisticação fatigada que nos últimos tempos passa por estilo em Roma.

 

Betesda apertou-me o braço. O seu rosto tinha uma expressão tão rara nela, que eu demorei um momento a perceber do que se tratava: pânico.

 

- O que é que nós estamos aqui a fazer? murmurou ela.

 

- Viemos ao que me parece ser uma festa da moda, com gente da moda.

 

- Por quê?

 

- Acho que foste tu que insististe em que viéssemos disse eu, friamente.

 

- Devia estar doida. Leva-me para casa imediatamente.

 

- Mas ainda não jantámos. Os odores que vinham da cozinha estavam a fazer-me água-na-boca. Ainda nem sequer cumprimentámos a nossa anfitriã.

 

- É por isso mesmo que temos de partir já. É como se não tivéssemos chegado a vir.

 

- Betesda...

 

- Isto é absurdo. Olha para mim. Eu recuei um passo e obedeci.

 

Sim? Estou a ver uma bela mulher, impecavelmente vestida e maquilhada e que não se assemelha a nenhum dos presentes.

 

- Exactamente! Qualquer pessoa percebe que eu não devia estar aqui.

 

- Por quê?

 

- Nem sequer sou romana

 

Claro que és. És minha mulher.

 

- Tu não és rico.

 

- Ninguém diria, pelas jóias que tens postas.

 

A minha pronúncia!

 

- Dá-te um ar de mistério.

 

- Não vejo nenhuma mulher mais velha do que eu.

 

- Ele está coberto de razão, sabias? Voltei-me e vi Catulo encostado ao meu cotovelo, com um copo de vinho na mão e um sorriso indolente.

- Gratidiano, não esperava ver-te aqui.

 

- Foi Clódia que nos convidou disse Betesda, com uma ponta de ansiedade.

 

Ela também me convidou, queres acreditar? disse Catulo. Foi uma atitude de total falta de discernimento, ou pelo menos deve ser essa a opinião do irmão. Mas ele não veio anda ocupado com as festividades de amanhã e eu vim, por isso para o Hades com ele! Nada estragará o meu regresso triunfante à sociedade do Palatino! Que bando de sanguessugas, libertinos e derrotados. Catulo observou a multidão, com um sorriso carregado de ácido. Que bizarra colecção juntou Clódia: os piores poetas e os mais corruptos políticos de Roma; nobres arruinados e ex-escravos obscenamente ricos; lindos rapazes e prostitutas grosseiras. Eu disse grosseiras? Suficientemente feias para transformarem um homem em pedra sem qualquer sentido obsceno. E aqui na minha frente, o homem mais honesto de Roma, acompanhado por... Fez uma pausa e a sua expressão adoçou-se um pouco. Como tu próprio disseste, Gordiano: a mais bela de todas as mulheres presentes.

 

- A minha mulher disse eu. E este, Betesda, é Gaio Valério Catulo, recém-chegado da Bitínia depois de uma missão de um ano como funcionário.

 

Betesda fez um gesto de reconhecimento.

 

O poeta disse ela.

 

Ele ergueu uma sobrancelha.

 

- Sou assim tão famoso? Ou tens andado a falar de mim nas minhas costas, Gordiano?

 

- Não, não tenho disse eu, tentando compreender o sorriso críptico que Betesda tinha no rosto e perguntando a mim próprio que mais lhe teria Clódia confidenciado acerca de Catulo no primeiro e único encontro de ambas. Pelo menos, Betesda parecia começar a sentir-se à vontade, o que me alegrou.

 

Aproximou-se de nós uma escrava, que nos conduziu aos nossos lugares. Os canapés estavam dispostos em U à volta das mesas de serviço. A arrumação era de duas pessoas por canapé, com muito espaço para nos sentarmos ou reclinarmos. Acontece que Catulo tinha sido colocado no canapé ao lado do nosso, à minha direita. De momento, não havia mais ninguém com ele. Ter-nos-ia Clódia colocado ao lado uns dos outros de propósito, ou apenas por sermos convidados de última hora? O nosso grupo de canapés estava situado num canto da sala, o mais distanciado da anfitriã. Isso agradava-me; permitiria a Betesda sentir-se menos notada. Mas Catulo não gostou.

 

- Expulso para a Bitínia ouvi-o resmungar.

 

Um senador chamado Fúfio foi conduzido ao canapé à esquerda de Betesda. Tratava-se do homem que Atratínio acusara Célio de ter atacado durante umas eleições, e que seria testemunha da acusação. Fúfio vinha acompanhado por uma cortesã muito jovem. Betesda ergueu uma sobrancelha, e eu percebi o que ela estava a pensar: a rapariga pouco mais velha era do que Diana. Mas Betesda mostrou-se mais apaziguada quando o senador lhe lançou um olhar de avaliação e um sorriso apreciativo.

 

Clódia ainda não tinha aparecido e o seu canapé estava vazio. Catulo perscrutou os rostos daqueles que ainda estavam de pé e que giravam de um lado para o outro.

 

- Quem irá ocupar esta noite o lugar de honra, ao lado da nossa anfitriã? Deixa-me ver: o marido Quinto desceu ao Hades, o irmão Públio está ausente, a tratar de questões de última hora relacionadas com as festividades de amanhã, e o amante Célio ah, está a ser julgado por assassínio, não é verdade? Com veneno, não foi? Bem, suponho que ninguém gostaria de jantar com um envenenador, por muito impressionante que seja a sua virilidade. Ainda assim, alguém terá de partilhar o canapé da nossa Rainha. Não será nenhum dos outros irmãos, julgo eu; Públio ficaria louco de inveja. Talvez o liberto empolado que falou hoje no julgamento. Tem o mesmo nome que Públio, ainda que não disponha da sua beleza, e já vimos que é capaz de substituir o seu antigo senhor, pelo menos nos discursos públicos. Mas é um pouco difícil imaginá-lo com a cabeça poisada no colo dela, sendo delicadamente alimentado a miolos de pardal salteados, não acham? Ah, eis que chega a nossa Lésbia. Vénus Toda-Poderosa! Onde foi ela buscar aquele vestido?

 

É completamente transparente murmurou Betesda.

 

- Por acaso, eu sei que o tecido veio de Cós disse eu, para dar nas vistas. É uma coisa nova, de um famoso fabricante de sedas.

 

Pensei que não eras amante dela resmungou Catulo. Estaria novamente a arreliar-me, ou estaria verdadeiramente irritado? Subitamente, lançou uma gargalhada ladrada, tão alta que várias cabeças se voltaram. Oh, não, Egnácio não! murmurou. Pensei que ela tinha acabado com ele.

 

Clódia tomou o seu lugar no canapé. A seu lado, estava um jovem alto e musculoso com uma grossa barba preta e um sorriso estonteante. Reconheci-lhe o rosto da Taberna Salaz.

 

- Muito interessante disse Betesda.

 

- Se um garanhão conseguisse pôr-se de pé e sorrir, seria parecido com Egnácio, e calculo que as mulheres diriam que ele era interessante. Catulo enrolou o lábio superior. O espanhol da boca grande e do sorriso brilhante. Bem, os Espanhóis têm sempre os dentes mais brancos, não é verdade? Sabem como se fica com os dentes assim brancos, não sabem?

 

Betesda inclinou a cabeça inquiridoramente.

 

Se Egnácio é o senhor da festa, só me resta dizer: verifiquem bem o que está dentro do vosso copo antes de beberem.

 

- Por que dizes isso? perguntou Betesda. Catulo pigarreou e começou:

 

Egnácio sorri constantemente, exibindo um sorriso estonteante. Levado a tribunal...

 

Começou-se a rir e tapou a boca até conseguir parar. O senador e a sua cortesã inclinaram-se para diante para conseguirem ouvir.

 

- Não esperem, deixem-me começar do princípio, vou fazer umas alterações, especialmente para esta noite. Deixem-me pensar... Bateu as palmas. Pronto:

 

Egnácio sorri constantemente, exibindo um sorriso estonteante. Amanhã, no tribunal, Cícero porá toda a gente a chorar:

 

- Pobre prisioneiro, eiró, prisioneiro! à excepção de Egnácio, que continuará a sorrir.

 

E, quando Célio for expulso da cidade, a sua mãe há-de lamentá-lo:

 

- O meu único filho! É como se tivesse morrido! por causa dela, Egnácio há-de sorrir.

 

Aquele sorriso é uma doença: sempre e em toda a parte. Graça social? Eu diria que é uma moléstia social! Olha, Egnácio, ouve: Se tivesses nascido romano, ou sabino, ou tiburtino, etrusco obeso ou pateta umbriano, ou um trigueiro lanúvio com dentes assim perfeitos, ou um traspadano da minha querida Verona, ou um homem qualquer, que lava os dentes da maneira habitual, ainda assim, eu amaldiçoaria esse sorriso. É inane. É ofensivo! Ah, mas tu vieste de Espanha e, como sabemos, todas as manhãs os Espanhóis esfregam os dentes para ficarem brancos e [friccionam as gengivas para ficarem rosadas com o produto que lhes sai da bexiga. Sabão amarelo! Por isso, mostra-nos esse sorriso perfeito para nós vermos que mergulhaste no bacio. Por mim, preferia que os meus dentes apodrecessem!

 

O velho senador bateu as palmas. A sua cortesã riu-se. Betesda fez um sorriso de viés e murmurou-me ao ouvido:

 

- Os poemas dele são todos assim grosseiros?

 

- Todos os bocados que eu ouvi.

 

- Certamente que os poemas de amor são diferentes suspirou, parecendo confusa. A atracção de Clódia por Marco Célio era perfeitamente compreensível para ela, mas o seu interesse por Catulo parecia-lhe um mistério.

 

Naquele momento, chegou o companheiro de canapé de Catulo. Eu devia ter adivinhado quem seria; a sua presença acrescentava o toque final de desequilíbrio perverso ao nosso grupinho de jantar.

 

- Cheguei mesmo no fim de um dos teus poemas? observou Trigónion sarcasticamente, sentando-se no canapé. Que sorte.

 

Catulo franziu o sobrolho e resfolegou, mas fê-lo apenas para esconder uma reacção mais profunda. O seu maxilar tornou-se rígido e estremeceu e ele começou a pestanejar descontroladamente. Clódia não se limitara a expulsá-lo para a Bitínia; sentara-o ao lado do seu emasculado bichinho amestrado. Aparentemente, mais ninguém se apercebeu de que só com dificuldade Catulo continha as lágrimas.

 

Quando todos estavam sentados, Clódia deu as boas-vindas aos seus convidados com um discurso muito breve e a promessa de que se esforçaria por recebê-los de uma forma mais pessoal à medida que a noite fosse avançando; isto evocou um assobio discreto mas sugestivo da parte de um jovem de barba rala com um péssimo corte de cabelo sentado a uma mesa ali perto. Os seus companheiros deram-lhe umas palmadas ostensivas, castigando-o pela sua presunção. Vi Catulo estremecer.

 

A noite começou com a chegada do primeiro prato, uma pasta de fígado de ganso adequada aos deuses do Olimpo. Um requintado vinho Falerniano lavava todos os cuidados. Dentro de pouco tempo, Betesda encantava o senador Fúfio com histórias da sua Alexandria natal, enquanto a jovem cortesã, já esquecida, brincava com a comida e fazia beicinho. O senador parecia genuinamente fascinado com tudo aquilo que Betesda lhe contava.

 

- Nunca estive no Egipto arquejava ele -, mas claro que, com as discussões e controvérsias dos últimos tempos, é natural que nos interroguemos sobre o motivo de tanto rebuliço. Até Trigónion e Catulo entabularam uma espécie de conversa, feita de ataques e arranques, quanto mais não fosse porque nenhum deles era capaz de estar calado durante muito tempo. Trocavam farpas e lançavam calúnias à vez sobre todos os presentes. Não se pronunciavam sobre aqueles que estavam ao alcance da sua voz e eu decidi que essa era a grande vantagem de estar sentado junto de ambos.

 

Por fim, o jantar terminou, ou pelo menos terminou o primeiro jantar da noite; mais tarde, voltaríamos a comer e a beber. Chegara o momento do espectáculo. Os convidados passaram ao jardim; diante do pequeno palco, tinham sido dispostas cadeiras e canapés dobráveis. Eu senti-me satisfeito por me afastar de Catulo e Trigónion, mas o senador não largou Betesda, com a cortesã atrás. Os escravos continuavam a movimentar-se por entre os convidados, oferecendo guloseimas e petiscos aos de estômago ilimitado e vigiando para que nenhum copo estivesse vazio durante muito tempo.

 

O espectáculo começou com um número de mimos, um daqueles números em que um mesmo actor, sem máscara, representa todos os papéis. O actor era novo em Roma (”Recém-chegado à cidade”, anunciou Clódia, ”depois de ter espalhado o riso desde Chipre até à Sicília”), mas as pequenas peças que representou eram sátiras com temas sexuais que repetiam os padrões antigos: o escravo que responde ao seu senhor, a casamenteira que tenta convencer um marido de que ele precisa de uma segunda mulher, o médico que trata acidentalmente o paciente errado com uma série de curas hilariantemente dolorosas. O actor sugeria alterações de fatos num instante e recorrendo a um número limitadíssimo de dispositivos teatrais um cachecol transformava-o numa jovem tímida, uma pulseira horrendamente exagerada fazia dele uma mulher rica, uma espada de madeira de brincar, um general insolente.

 

A multidão estremecia de riso a cada obscenidade, gemia com as anedotas de péssimo gosto e explodia em gargalhadas no clímax de cada peça. O actor era extraordinário; Clódia sabia escolhê-los. Nos intervalos entre as pequenas peças, Betesda ia informando o velho senador de que os mimos eram originários das ruas e praças de Alexandria, onde os actores errantes montavam as suas barracas e organizavam espectáculos improvisados a troco das moedas que a multidão lhes atirava ao passar. Essa continuava a ser a melhor maneira de assistir a um espectáculo de mimo, insistia Betesda, embora ela achasse que o homem descoberto por Clódia devia ser suficientemente talentoso para o público romano.

 

O actor concluiu a sua última peça e recebeu um grande aplauso. Clódia subiu ao estrado.

 

- E agora, uma coisa muito especial disse ela. Um velho amigo que regressou das suas viagens pelo Oriente...

 

- Como Odisseu? perguntou alguém. Eu olhei à volta e vi que fora o jovem com o corte de cabelo horrível.

 

- Se Catulo é Odisseu, isso quer dizer que Clódia é Penélope? disse um dos amigos dele.

 

- Espero que não disse outro. Sabes o que Odisseu fez aos pretendentes de Penélope entrou violentamente numa festa e matou-os a todos!

 

- Como eu ia dizendo prosseguiu Clódia, erguendo a voz acima dos risos -, um amigo nosso regressou do Oriente. Presume-se que vem mais sensato; certamente estará mais velho, ainda que apenas um ano; e com novos poemas para partilhar connosco. Refiro-me ao nosso querido amigo de Verona, Gaio Valério Catulo, cujas palavras nos tocaram a todos.

 

- E feriram alguns de nós! gritou alguém.

 

- Disse-me Catulo que, enquanto esteve no Oriente, foi visitar as ruínas da antiga Tróia. Trepou ao Monte Ida, agora coberto de pinheiros, onde Júpiter se sentava a observar Gregos e Troianos combatendo mais abaixo, na planície. Descobriu o local onde está sepultado o seu querido irmão, e realizou um rito funerário. E, enquanto ali se encontrava, viu uma coisa a que poucos homens assistiram. Foi convidado a testemunhar os ritos secretos do Templo de Cibele, incluindo a cerimónia durante a qual um homem se transforma em gallus ao serviço da Grande Mãe.

 

Eu esperava ouvir mais comentários lúbricos neste ponto, mas o silêncio abateu-se sobre a multidão.

 

Catulo disse-me que esta experiência o levou a compor um poema em honra de Átis, o consorte de Cibele, o amante que desistiu do sexo para melhor honrar a deusa, e que é a fonte de inspiração de todos os galli. Na véspera das festividades da Grande Mãe, nada poderia ser mais adequado do que a primeira recitação pública deste poema.

 

Desceu da plataforma. Catulo tomou o seu lugar. Ao subir para o palco, parecia estar confuso, ter as pálpebras pesadas e dificuldade em não cair. Eu contive a respiração, perguntando a mim próprio como seria ele capaz de recitar em público. Estava demasiadamente embriagado, amargo, inseguro, fraco. Ele parecia estar a pensar a mesma coisa. Durante muito tempo, manteve-se totalmente imóvel, de ombros caídos, olhando primeiro para os pés, depois para qualquer coisa situada por cima das cabeças dos elementos do público. Estaria perturbado com a Vénus gigante que se elevava atrás de nós, ou estaria simplesmente a olhar o espaço?

 

Mas, quando finalmente abriu a boca, a voz que dela emergiu não se assemelhava a coisa alguma que eu já tivesse ouvido. Era leve e delicada, mas estranhamente poderosa, como uma rede brilhante lançada sobre a audiência, como um sussurro num sonho.

 

Tenho ouvido incontáveis oradores no Fórum, escutado muitos actores no palco. As suas vozes são o seu instrumento, especializaram-se em dar forma às formulações adequadas a cada ocasião; as palavras emergem por sua ordem como escravos preparados para determinada tarefa. Mas com Catulo tudo parecia ser ao contrário. Eram as palavras que o controlavam; o poema comandava o poeta, usando a sua voz e todo o seu corpo, dando forma ao seu rosto, fazendo gestos com as suas mãos, levando os seus pés a encaminharem-se para o palco, a fim de realizar o objectivo do poema. O poema teria existido com ou sem o poeta. A sua presença era uma simples conveniência; por acaso, ele tinha uma língua que o poema podia utilizar para se comunicar aos ouvidos dos convidados de Clódia naquela noite quente de Primavera, no seu jardim do Palatino.

 

”Átis fez-se transportar no seu barco veloz pelas ondas profundas E poisou os seus pés ávidos em solo frígio. Avançou pela floresta onde o Sol não entra, onde o seu espírito se tornou tão escuro como as matas densas que o rodeavam. Movido pela loucura, pegou numa pedra angulosa. Cortou a sua masculinidade. Ergueu-se transfigurado: Uma mulher, a pingar sangue por entre as pernas Dando vida à terra fria e espinhosa.

 

Átis pegou num tambor e começou a tocá-lo, fazendo música Em honra da Grande Mãe e dos seus mistérios, Cantando num falsete arrebatado aos servidores de Cibele: ”Vinde, oh galli, vinde todos, para os bosques da montanha. O sal do mar faz arder a ferida - afastai-vos do mar. Afastai-vos de Vénus. Libertai-vos da vossa masculinidade. Abandonai essa espécie desprezível de amor, Abraçai os êxtases da paixão desprovida de sexo...»

 

Era um poema longo e estranho. Por vezes, transformava-se num canto, e o poeta era um bailarino, que balançava o corpo e batia os pés, movido pelo poema que o possuía. O público via e ouvia, suspenso.

 

Era a história de Átis, da loucura de Átis, que o levara, numa noite escura, numa floresta densa longe de sua casa, a castrar-se e a consagrar a sua existência à Grande Mãe, Cibele. Ainda a escorrer sangue da ferida, ele chamava os seguidores da deusa e subia à frente deles as encostas do Monte Ida, numa procissão desenfreada e extática até ao templo da deusa. Entoavam cantos agudos, tocavam os tambores, faziam soar os címbalos, rodopiavam em danças frenéticas e delirantes, com Átis à sua frente, até caírem exaustos num sono profundo e sem sonhos.

 

Quando Átis acordava, a loucura tinha-lhe passado. Apercebia-se do que fizera. Ficava horrorizado. Corria para a beira-mar e olhava fixamente para o horizonte, lamentando ter partido da sua terra. Em rapaz, fora campeão nos jogos, atleta condecorado, era lutador. A barba fizera dele um homem da cidade, conhecido, respeitado, solicitado. O que era ele agora? Uma alma encalhada, impossibilitada de voltar a casa, que não era homem nem mulher, um fragmento do seu ser anterior, estéril, miserável, terrivelmente só. A sua devoção fanática tinha-o afastado de tudo aquilo que era importante para ele, tinha-lhe custado tudo, incluindo a sua humanidade.

 

No alto do Monte Ida, Cibele ouviu o seu lamento. Olhou para baixo e viu Átis a chorar na praia. Terá Cibele tido piedade de Átis, ou terá sido apenas por razões práticas que mandou o seu leão buscá-lo, mas também apoderar-se da sua mente e enlouquecê-lo para sempre? São de espírito, Átis seria demasiadamente infeliz para poder viver uma vida de culto a Cibele; porém, naquele estado desprovido de sexo, que outra vida seria adequada para ele? Assim, o leão desceu a encosta da montanha, abrindo caminho ao som dos rugidos, e levou Átis novamente para a floresta, para a loucura e o êxtase delirante, de regresso a uma vida de submissão à Grande Mãe, uma vida leal à deusa e desprovida de sexo.

 

Catulo estremeceu, como se o poema estivesse lentamente a soltá-lo das suas garras. A sua voz começou a diminuir de intensidade, de tal maneira que as últimas linhas foram quase inaudíveis:

 

Oh Deusa, Grande Mãe Cibele, Guardiã do Ida, Enlouquece os outros homens que não a mim! Concede aos outros o teu sonho delirante. Desvia a tua fúria de minha casa. Atrai outros aos teus esquemas!

 

Catulo estava transformado. Ao subir ao palco, parecera um homem entorpecido pelo vinho e a autopiedade, mole e hesitante. Agora, tinha um ar esgazeado e os seus olhos brilhavam, como quem emerge de uma provação terrível, tendo sido tocado até ao mais fundo de si. Cambaleou um pouco ao sair do palco, não como um homem embriagado, mas como um homem que esgotou por completo a sua energia.

 

O jardim estava mergulhado em silêncio. À minha volta, vi sobrolhos erguidos, olhares concentrados e hesitantes, acenos pensativos, caretas de desagrado. Sentada ao pé do palco, Clódia olhava fixamente e sem pestanejar para o ponto de onde Catulo desaparecera. O seu rosto estava desprovido de expressão. Teria considerado o poema um tributo à sua pessoa ou, pelo contrário, um insulto? Seria possível que não se visse retratada naquele poema de um jovem sobre uma obsessão inescapável, a obliteração da dignidade e da liberdade em troca de uma paixão avassaladora, e a união desigual e desastrosa de um simples mortal com uma deusa longínqua e indiferente?

 

Atrás de mim, ouvi um soluço abafado, parecido com um choro de mulher, tão suave que, se o silêncio não fosse absoluto, eu não teria reparado nele. Voltei a cabeça. Longe dos outros convidados, nos degraus que iam dar ao jardim, vi uma figura sentada no pedestal da Vénus monstruosa e oculta na sua sombra. Apertava-lhe os tornozelos como que para evitar tremer, e tinha o rosto escondido nos joelhos, mas pelo fato percebi que se tratava de Trigónion.

 

Depois da apresentação de Catulo, a festa nunca mais recuperou a mesma leveza, apesar da implacável parada de diversões que se seguiu. Nelas se incluíram diversos outros poetas, mais conhecidos do que Catulo, que tinham sido colocados no princípio da noite como uma espécie de preparação para o que se seguiria. Mas nenhum dos poetas que nessa noite recitaram os seus versos deixou uma impressão duradoura, pelo menos aos meus ouvidos.

 

Também houve dançarinas e acrobatas, e por fim um grupo que apresentou peças de mímica, terrivelmente grosseiras, mas muito divertidas. Durante um intervalo do espectáculo, a nossa anfitriã dirigiu-se ao recanto onde nos encontrávamos. Cumprimentou Betesda com os braços abertos e um beijo.

 

Recebeste o presente?

 

- Sim, obrigada. Chegou lá a casa enquanto estávamos no Fórum.

- Betesda lançou-me um olhar de esguelha.

 

Clódia acenou com a cabeça.

 

- Excelente. Agora fazes parte do grupo. Sim, vi-vos aos dois no julgamento. O que te pareceu, Gordiano? Como achas que nos correram hoje as coisas?

 

- Acho que Betesda fez o melhor resumo da situação: ”A oratória serve para as ocasiões em que não existem factos”.

 

Clódia lançou-me um sorriso zombeteiro.

 

- Foi Betesda que disse isso? Pensei que tinha sido o meu antepassado, Ápio Cláudio, que... bem, deixa lá. Posso falar contigo em privado? Senador, entretém esta senhora por momentos enquanto eu trato de negócios com o marido.

 

Levou-me para fora do jardim, até um compartimento privado. As paredes estavam pintadas de um vermelho-forte, decorado com cenas rústicas de sátiros e ninfas.

 

- Estás hoje com muito melhor aspecto disse eu.

 

- Achas? Esta manhã, quando me vi ao espelho, pareceu-me que estava com um aspecto horrível. Pensei na possibilidade de desconvocar a festa, mas teria sido a primeira vez que não dava um jantar na véspera do festival da Grande Mãe. Até quando estava com Quinto na Gália Cisalpina...

 

- Mandaste torturar Crisis hoje?

 

Por momentos, ela olhou para mim com um rosto desprovido de expressão. Mesmo à luz da lamparina reflectida nas paredes vermelhas, tinha um aspecto pálido.

 

- Na verdade, chamei-te aparte para te falar de coisas mais importantes. Mas, já que perguntas, Gordiano sim, Crisis foi torturada hoje. Não por mim, naturalmente. Por funcionários do tribunal. Sabes com certeza que um escravo não pode testemunhar em tribunal sem ser torturado? De outra maneira, podia limitar-se a declarar o que a sua senhora lhe tivesse ordenado que declarasse.

 

- É essa a lógica.

 

- A cadela preparava-se para me envenenar. Eu apanhei-a com o veneno nas mãos.

 

- E ela confessou?

 

- Sim.

 

- Implicou Célio?

 

- Naturalmente. Amanhã, ouvirás a leitura do seu depoimento, mesmo antes do meu próprio testemunho.

 

- Do depoimento que ela prestou sob tortura.

 

- Pareces estar hoje com uma fixação na tortura, Gordiano. Pensei que tivesse sido tortura suficiente ouvires aquele poema horrível de Catulo! Francamente, quando ele me disse que tinha um poema ideal para o festival da Grande Mãe... Teve um pequeno arrepio, mas depois animou-se. Mas espero não ter de usar a tortura para te convencer a testemunhar amanhã.

 

-Eu?

 

- Claro. A quem pensas que Herénio estava a referir-se quando disse que aquele a quem Cícero chamava ”o homem mais honesto de Roma” testemunharia amanhã contra Célio? Basta que contes aquilo a que assististe com os teus próprios olhos nas termas senianas e ontem, aqui em minha casa, quando vieste ver o que me tinham feito.

 

- E se eu me recusar a testemunhar?

 

Ela pareceu admirada.

 

- Ninguém poderá obrigar-te. Mas eu pensei que tu querias que Célio fosse punido.

 

- Eu queria descobrir o assassino de Díon.

 

É a mesma coisa, Gordiano. Já toda a gente percebeu isso em Roma, por que não o percebeste tu? Oh sim, já sei, és um homem que exige provas. Pois então, devias ter apresentado aqueles escravos de Luceio, os que estiveram implicados na conspiração. Disseste-me que tencionavas descobri-los e comprá-los. Conseguiste?

 

-Não.

 

Foi uma pena. Teriam sido testemunhas soberbas. Eu dei-te alguma prata para os comprares, não dei?

 

Eu devolvo-te a prata.

 

- O julgamento ainda não terminou. Não há pressa.

 

- Tenho de esperar até o meu filho Eco regressar a Roma...

 

Deixa lá a prata, Gordiano. Não precisas de ma devolver. Compreendes?

 

- Não sei bem.

 

Fica com ela, como parte dos teus honorários. Agora, claro que vais testemunhar amanhã. Tens de o fazer.

 

Tenho?

 

- Se estás interessado em que se faça justiça. Se queres dar repouso à sombra de Díon.

 

- Se ao menos eu percebesse exactamente como Díon morreu. Ela suspirou, exasperada.

 

- Asício e Célio entraram por arrombamento em casa de Copónio e esfaquearam o pobre desgraçado.

 

Eu ignorei-a, contando os dias de cabeça.

 

Ainda é possível que Eco regresse esta noite, ou amanhã...

 

- Óptimo. Se isso acontecer, e se ele trouxer notícias dos escravos, talvez possamos acrescentar o seu testemunho. Mas, como já te disse, deixa lá a prata.

 

Estávamos a falar de coisas tão diferentes, que eu quase não ouvi o que ela estava a dizer.

 

- Há mais uma coisa disse eu. Uma coisa de que eu me tinha esquecido. Quando ontem saí de tua casa, tencionava levar comigo aquele bocadinho de Cabelo de Górgona, para o comparar com a porção do mesmo veneno que tenho no meu cofre. Por qualquer razão, esqueci-me... Estremeci, recordando-me da fealdade da degradação de Crisis e da minha fuga do quarto de Clódia. Posso levar um pouco de Cabelo de Górgona esta noite? Clódia hesitou.

 

- Receio que não. É Herénio quem o tem. Disse-me que talvez precisasse de o mostrar amanhã, como prova, quando eu estivesse a dar o meu testemunho. Embora eu tenha a impressão de que um bocado de veneno não impressionará tanto os juizes como se lhes apresentássemos um punhal ensanguentado ou outra coisa semelhante. Isso é importante?

 

- Não, acho que não. Só queria ter a certeza de que sabia do que se tratava, para minha satisfação pessoal.

 

- Se isso contribui para te convenceres a testemunhar, então gostaria de o ter comigo. Acho que posso pedir a Herénio que mo devolva, embora seja um bocado tarde. E amanhã de manhã, não teremos assim muito tempo...

 

Eu abanei a cabeça.

 

- Não te incomodes.

 

- Não? Óptimo! Ela riu-se fracamente. Acho que não era capaz de resolver nem mais um pormenor complicado esta noite. Estou mesmo terrivelmente cansada. O médico de Clódio diz que não devo esperar sentir-me completamente bem senão dentro de algum tempo. Para te dizer a verdade, sinto-me bastante mal. Não consegui comer nada do que me apresentaram esta noite. Terei de acreditar que o cozinheiro esteve ao seu habitual nível. Agora, Gordiano, garante-me que vais testemunhar amanhã. Não me obrigues a ir para a cama preocupada com isso. Como já te disse, só terás de dizer ao tribunal aquilo que viste com os teus próprios olhos.

 

Eu olhei para ela por longos momentos, para os seus enormes olhos verdes que a doença tornara ainda mais brilhantes, para a carne branca e fresca do seu pescoço, a curva que ia dar aos seios, as linhas esguias do seu corpo envolvido em seda transparente. Inspirei o seu perfume. E se Célio tivesse conseguido envenená-la? Ela estaria morta, já teria começado a apodrecer. A ideia era horrível, intolerável: aqueles olhos brilhantes fechados para sempre, aquele corpo perfeito comido pelos vermes, o fedor da putrefacção sobrepondo-se ao seu perfume.

 

- Sim, vou testemunhar. Não vejo por que não.

 

Ela sorriu e beijou-me, em cheio na boca, encostando o seu corpo ao meu como se me tivesse adivinhado os pensamentos e quisesse mostrar-me que continuava bem viva e quente. Do jardim, chegou-me o som de um poeta a declamar, pontuado por risos e aplausos.

 

Clódia terminou o beijo e recuou.

 

- É melhor levar-te para junto de Betesda antes que ela venha à tua procura. Dizem-me que as mulheres egípcias são terrivelmente ciumentas.

 

A festa não acabou formalmente, pelo menos enquanto eu lá estive. Depois do encore do mimo, houve outra refeição, com os convidados sentados em grupos diferentes. Por fim, aqueles que já tinham comido, conversado, rido e bebido o suficiente começaram a dirigir-se para a porta. Betesda e eu fomos dos primeiros a partir. Catulo e Trigónion pareciam ter desaparecido.

 

- Estás muito pensativo disse Betesda a caminho de casa.

 

- E tu pareces muito satisfeita. Divertiste-te assim tanto?

 

- O objectivo não era bem divertir-me disse ela, num momentâneo assomo de altivez.

 

- O que significava aquilo que Clódia te disse?

 

- Quando?

 

- Quando te perguntou se tinhas recebido a estatueta de Átis. Tu disseste que sim e ela respondeu: ”Excelente. Agora fazes parte do grupo”.

 

- Ela disse isso?

 

- Betesda, não estou com disposição para me arreliares.

 

- Queria dizer que eu tinha sido aceite pelas outras mulheres do Palatino. Pelo menos pelas mulheres que importam. Graças a Clódia.

 

- Era só isso?

 

- Só isso? Pensa bem, de onde eu venho, no que sou. Tive muito receio, quando deixámos a quinta e voltámos para Roma, quando viemos viver para esta casa, para um bairro como este. Tu nunca percebeste como eu me sentia, claro, porque eu não deixei que percebesses, mas aconteceu exactamente o que eu temia. A princípio, elas trataram-me muito mal.

 

- Trataram-te mal?

 

- Ignoraram-me. Mas, depois desta noite, as coisas vão mudar. As outras não me vão continuar a tratar-me da mesma maneira. Vão-me tratar como se eu pertencesse ao grupo.

 

Isto pareceu-me muito improvável, mas eu limitei-me a encolher os ombros.

 

- Por que não? Hoje em dia, quase tudo parece possível em Roma.

 

Por qualquer razão, Betesda ofendeu-se com este comentário e não me disse nem mais uma palavra até chegarmos a casa.

 

Diana estava à nossa espera. Exigiu que a mãe lhe contasse tudo o que se tinha passado na festa. Enquanto elas se sentavam no quarto de Diana, falando daquilo que as mulheres levavam vestido e dos respectivos penteados, eu fui para o nosso quarto.

 

Tirei a toga e vesti uma túnica velha. Deixei a lamparina acesa para que Betesda não tropeçasse nas coisas. Deitei-me no canapé e fechei os olhos para evitar a luz tremeluzente, mas não consegui dormir. Tinha bebido demais, comido demais, ouvido demasiada poesia. Do fundo do corredor, chegava até mim o riso abafado de Diana e Betesda. O som recordava-me o dos risos longínquos no jardim, quando Clódia me tinha beijado...

 

Eu tinha-lhe pedido qualquer coisa, não tinha? O veneno, era isso! O Cabelo de Górgona, para poder compará-lo com a porção do mesmo produto que Eco me tinha dado a guardar. Uma vez mais, regressara a casa sem ele. Mas a verdade é que não precisava da amostra de Clódia para fazer a comparação; lembrava-me bastante bem do aspecto do produto. Tinha-o observado à luz da lamparina, enquanto Crisis se contorcia e soluçava no canto...

 

Mudei de posição, decidido a adormecer, mas os risos que vinham do quarto de Diana mantinham-me acordado, e os meus pensamentos giravam interminavelmente no espaço, como Crisis suspensa do tecto, de pernas para o ar. Finalmente, levantei-me e estendi a mão para a lamparina.

 

Havia uma pequena despensa ao fundo do corredor do nosso quarto, cheia de carpetes enroladas, cadeiras dobradas e caixas de madeira. Após uma pesquisa breve, encontrei o cofre. Tentei recordar-me onde tinha arrumado a chave, mas depois percebi que não precisava dela. A pequena fechadura tinha sido violada.

 

Levei o cofre para o quarto e coloquei a lamparina de maneira a que ela iluminasse o interior.

 

Não havia grande coisa lá dentro um punhal sujo de sangue que tinha sido importante noutro julgamento, algumas cartas e outras recordações em que eu não queria que mais ninguém tocasse. Entre elas, o pequeno estojo de veneno que Eco me tinha pedido que lhe guardasse, para não o ter em casa, por causa dos gémeos.

 

Peguei no estojo pela borda da tampa, que se abriu. Tive um sobressalto, pensando que tinha espalhado desajeitadamente o conteúdo, mas depois percebi que não havia conteúdo nenhum para espalhar.

 

O estojo estava vazio. Só restavam uns vestígios do veneno, compactados contra os cantos interiores da caixa e idênticos ao pó fino amarelo que Clódia me tinha mostrado.

 

O que significava aquilo?

 

Pus o estojo de lado e olhei para o interior do cofre, pensando que o veneno devia ter-se espalhado lá dentro. Não vi nenhum pó amarelo, mas vi outra coisa, um pequeno objecto que podia passar facilmente despercebido: um brinco. Era um objecto simples, um pequeno aro de prata ornamentado com uma conta de vidro verde. Reconheci-o imediatamente: era um velho brinco de Betesda.

 

O aro do brinco estava dobrado. Voltei a olhar para a fechadura violada do cofre. O metal estava coberto de pequenos riscos. A abertura era pequena; o aro do brinco devia ter o tamanho ideal.

 

Era óbvio o que se tinha passado: o brinco tinha sido usado para abrir a fechadura.

 

Sentei-me a olhar estupidamente para o brinco, para o cofre e para o estojo vazio, a princípio confuso, depois espantado, e por fim furioso.

 

Diana e a mãe apanharam um susto quando eu afastei a cortina e entrei no quarto. Tinha o estojo vazio na mão estendida.

 

- Como explicas isto? disse eu, tentando manter um tom firme.

 

Ambas olharam para mim como se não me conhecessem. Provavelmente, eu próprio não me reconheceria se me visse ao espelho naquele momento.

 

Nenhuma delas falou.

 

- Perguntei como explicavas isto disse eu. Elas olharam para mim, emudecidas.

 

- Muito bem. Não há explicação nenhuma a dar. Apresentei o brinco. Devias estar cheia de pressa, Betesda, para teres deixado isto lá dentro. Foi um descuido, um grande descuido. Não percebeste que eu acabaria por descobri-lo?

 

Ela olhou para o brinco com o rosto desprovido de expressão.

 

- Por favor, Betesda, não finjas que não o reconheces. Até eu o reconheci, e tu sabes que eu não reparo em jóias! Pertence a um par que tens há anos. Suspirei, subitamente mais triste do que irritado. Era assim tão importante para ti conquistares os seus favores? Não sabias o que ela ia fazer com o veneno que ia enganar o tribunal, mas também fazer de mim tolo! Fechei o estojo com um estalido, e atirei o brinco ao chão. Diana teve um sobressalto e encostou-se à mãe, assustada. Por momentos, senti-me envergonhado, mas depois voltei a ficar irritado. Comecei a andar de um lado para o outro.

 

E também fez de ti tola, não percebes? Convidou-te para a festa, mandou-te aquela estátua abominável, fez-te pensar que pertencias ao seu círculo. Partilhou segredos vergonhosos contigo, a sussurrar nas minhas costas, no jardim! Calculo que tenha inventado exactamente aquilo que tu querias ouvir. Ela tem muita prática nisso. Usa essa técnica com os amantes, por que não havia de fazer o mesmo contigo? Pensaste realmente que ela queria ser tua amiga, que uma mulher que fala dos seus antepassados como se fossem deuses se curvaria a partilhar bisbilhotices com uma mulher que era escrava quando nasceu?

 

 

Parei de andar de um lado para o outro, tentando conter a ira, mas só conseguia sentir-me cada vez mais irritado. Apertei o estojo com tanta força, que os cantos me cortaram a palma da mão.

 

- Mulher, colaboraste numa tentativa para me enganar! Negas que assim foi?

 

Betesda não respondeu.

 

- Enganaste-me deliberadamente. Negas que assim foi?

 

- Mãe... disse Diana, apertando o braço de Betesda. Betesda tapou a cara da filha e puxou Diana para o seu peito, para a acalmar.

 

- Negas que assim foi? gritei eu.

 

Betesda olhou-me nos olhos sem se deixar desorientar, alerta até ao último momento.

 

- Não, marido, não o nego.

 

- Colaboraste numa tentativa para me enganar?

 

- Colaborei.

 

Olhámo-nos de frente por longos momentos. Betesda não pestanejou. Eu atirei o estojo ao chão e saí do quarto furioso. Os meus gritos tinham acordado Belbo, que me seguiu a correr quando eu saí a passos largos de casa e subi a rua escura como breu.

 

A maneira mais cortês de bater a uma porta é com o pé, mas nessa noite eu usei o punho para bater à porta de Clódia. O ruído reverberou no ar silencioso da noite, o suficiente para acordar os vizinhos, pensei eu, mas os escravos demoraram muito tempo a responder. Teriam ficado assustados com o barulho, ou teriam simplesmente pensado que eu era mal-educado? Por fim, a abertura de segurança foi destapada e dois olhos espreitaram por ela. Apesar da escuridão, reconheci-os pelo sobrolho unificado que os cobria.

 

- Quero falar com a tua senhora, Barnabás.

 

- Já é tarde. Podes falar com ela amanhã, no tribunal.

 

- Não, tem de ser esta noite.

 

Os olhos estudaram-me desapaixonadamente. Percebi que devia estar com um aspecto estranho, trazia vestida a túnica de dormir e tinha o cabelo em desalinho. A abertura de segurança foi tapada. Eu comecei a andar de um lado para o outro na estreita entrada, enquanto Belbo se mantinha na rua, atrás de mim, bocejando e piscando os olhos.

 

Por fim, a porta abriu-se. Eu entrei, mas Barnabás fechou a porta na cara de Belbo.

 

Atravessámos a sala de estar, descemos as escadas e passámos pelo jardim. À luz de umas quantas lamparinas com o pavio baixo, consegui perceber que o jardim não estava totalmente vazio. Pares de figuras moviam-se e murmuravam nas sombras. Subitamente, passou diante de nós uma rapariga nua a correr em grandes passadas, que mais parecia um fauno na floresta. Era a jovem que acompanhava o senador Fúfio. Voltou a cabeça e deu uma gargalhada ao passar, desaparecendo em seguida. Momentos depois, Fúfio corria atrás dela, nu e embriagado.

 

Barnabás conduziu-me ao quarto apainelado a vermelho ao lado do jardim. Poisou uma lamparina sobre uma mesinha e saiu. Eu tive muito tempo para estudar as ninfas e os sátiros pintados nas paredes antes de Clódia aparecer à porta. O cabelo solto caía-lhe abaixo dos ombros. Usava um fato branco transparente, apertado na cintura e ligeiramente aberto entre os seios. A mancha nua de carne brilhava à luz vermelha reflectida das paredes. Ela sorriu fatigadamente.

 

- Se querias ficar, Gordiano, por que te foste embora? Ah, sim, para levares Betesda a casa. Mas agora regressaste. Alguém te chamou a atenção durante a festa? Avançou sinuosamente em direcção a mim, com as pálpebras pesadas, um sorriso esbatido nos lábios.

 

- Hoje mandaste torturar uma escrava sem motivo nenhum.

 

As suas pálpebras tornaram-se mais pesadas. O sorriso cristalizou.

 

- Outra vez? Por favor, Gordiano, certamente que um homem com a tua idade já se habituou aos costumes do mundo.

 

- Há coisas a que um homem nunca se habitua. Às mentiras, às fraudes, às conspirações.

 

- O que estás tu a dizer?

 

- E aos subornos, claro. A prata era para isso, não era? Não era para comprar os escravos para que eles testemunhassem, era um suborno puro e simples, nem mais nem menos para que, quando chegasse o momento, eu fizesse o que tu querias. O homem cuja honestidade foi gabada pelo próprio Cícero era para isso que tu me querias, pensaste que eu acabaria por te servir, de uma maneira ou de outra. Ah, sim: lançamos o tipo à cara de Cícero no último dia do julgamento. Deixamos Cícero tecer a sua oração, e depois o tipo que Cícero diz ser a honestidade em pessoa enuncia o seu depoimento, fazendo com que Cícero pareça um idiota. Achaste que podias comprar-me com prata? Ou nunca conheceste nenhum homem que não fosse possível comprar, nem com prata, nem com esse teu sorriso?

 

- Por favor, Gordiano, é horrivelmente tarde...

 

- ... e o julgamento já vai demasiadamente avançado para eu poder prejudicar os teus esquemas. A suposta entrega de veneno nas termas senianas também foste tu que organizaste isso?

 

- Não sejas absurdo!

 

Talvez isso tenha feito parte dos teus esquemas, ou talvez não. Mas, fossem quais fossem as tuas intenções, houve qualquer coisa que correu mal. As provas contra Célio que esperavas obter, ou produzir, não chegaram a aparecer. Percebeste que a simples alegação de que Célio queria envenenar-te não impressionaria os juizes. Por isso, inventaste outro esquema. Como é que sabias que havia veneno em minha casa? Ou foi Betesda quem teve a iniciativa de falar nisso, e tu percebeste imediatamente como poderias usar essa informação?

 

- Não sei do que estás a falar. Já te disse, Gordiano, que é tarde...

 

- Limitaste-te a fingir os sintomas? O médico do teu irmão podia ter-te dito o que havias de fazer, quando lhe mostraste o tipo de veneno que tinhas arranjado. Ou engoliste mesmo um bocadinho, depois de ele te ter aconselhado quanto à dose não o suficiente para te matar, claro, apenas o bastante para ficares doente, para que a representação fosse perfeita, para teres a certeza de que me enganavas, a mim e a todos os outros. Sim, penso que isso está mais de acordo contigo, levares até aos limites o instinto dramático, aproximares-te do perigo, jogares com a parada mais alta. Mas entregares aquela pobre escrava aos carrascos só para garantir a autenticidade das circunstâncias francamente, Clódia, isso foi de mais, mesmo para ti. Claro que tinhas a certeza de que ela havia de lhes contar exactamente a história que tu pretendias que ela contasse, porque eles ta devolveriam quando tivessem acabado, e se ela não tivesse feito o que devia, seria ainda pior. Este absurdo de torturar os escravos para chegar à verdade...

 

Enlouqueceste de todo, Gordiano. Estás a delirar.

 

- Então como explicas que me sinta de repente perfeitamente lúcido, pela primeira vez desde que te conheci? É exactamente como se diz: tu lanças um feitiço sobre as pessoas. Eu pensei que estava imunizado, mas só um louco poderia pensar tal coisa, e foi num louco que tu me tornaste. Mas agora tenho os olhos abertos, e é natural que pergunte a mim próprio até que ponto te envolveste nesta campanha de destruição de Marco Célio. Se as acusações de envenenamento são falsas, o que dizer das acusações de assassínio? E Díon ”o pobre desgraçado”, como tu lhe chamaste? Talvez tu própria tenhas participado no assassínio sem outra razão para além de incriminar Marco Célio.

 

- Ridículo! Quando Díon morreu, Célio e eu ainda éramos...

 

Então é possível que Célio tenha realmente participado no assassínio. Mas talvez seja o teu irmão que está por trás disto tudo, se ele e Célio ainda eram aliados nessa altura, tal como tu e Célio eram amantes. E esse dinheiro que emprestaste a Célio, e que tu afirmas que ele usou na sua conspiração para envenenar Díon talvez soubesses para que era o dinheiro; talvez a conspiração tenha sido ideia tua, e Célio outro dos teus fantoches. Eu tenho os olhos abertos, Clódia, mas as coisas são cada vez mais obscuras para mim. À luz da minha crescente confusão, acho que devo declinar testemunhar amanhã, não achas? Pelo menos pela acusação. Talvez possa testemunhar pela defesa sim, talvez Cícero convoque o homem mais honesto de Roma para falar acerca da armadilha que Clódia montou para acusar Marco Célio de a envenenar.

 

- Não te atreverias!

 

Não? Então sugiro que elimines tudo aquilo que tem a ver com este falso envenenamento. Retira o depoimento que Crisis prestou sob tortura. Não digas uma palavra acerca do Cabelo de Górgona quando testemunhares. Compreendes? Porque, se o fizeres, eu também testemunharei, refutando tudo o que tu disseres. Nessa altura, denunciados os teus esquemas, o que achas que os juizes vão pensar acerca das tuas acusações a Célio? Tanto pior para as chocantes revelações que Herénio prometeu como clímax do julgamento!

 

Os olhos de Clódia relampejaram. Os seus lábios tremeram. A ira tomou-lhe o rosto, diluindo-se logo a seguir, com o esforço que ela fez para se conter. Uma vez mais, fiquei impressionado com o seu aspecto doentio e macilento seria ela suficientemente louca para se ter de facto envenenado de propósito? Estaria consumida de forma tão completa e implacável pelo desejo de destruir Célio? Que amor era aquele, que terminava em tal ódio e degradação? Mas havia outra coisa mais espantosa, pelo menos para mim: como era possível que, naquele momento com o corpo devastado por um veneno auto-induzido, a sua duplicidade revelada e os seus esquemas para me usar reduzidos a escombros -, Clódia pudesse ainda parecer-me insuportavelmente bela? Tão bela, que eu não consegui continuar a olhar para ela, e tive de lhe voltar as costas para olhar para outro sítio, para as ninfas e os sátiros com o cio que cabriolavam pelas paredes com paixão distraída, estéril e desprovida de culpas.

 

- Ultrajante murmurou ela por fim. Aquilo que me disseste é totalmente ultrajante. Nem sei por onde começar? É um absurdo. É uma loucura. Foi Célio quem te virou? Ou Cícero? Por que te voltaste contra mim, Gordiano?

 

- Disse-te desde o princípio que o meu único interesse era descobrir o assassino de Díon. Não me deixarei usar como instrumento para satisfazer o teu despeito contra um ex-amante. Presumo que estejas habituada a usar os homens e a que eles gostem de ser usados, mas eu não tenho qualquer apetite para esse género de coisa, Clódia.

 

- Sim, eu apercebi-me disso desde o princípio. A sua voz era baixa e cansada. Embora tivesse as costas voltadas, senti-a aproximar-se. Senti o seu hálito quente contra a parte de trás do meu pescoço. Foi por isso que nunca tentei usar esse género de persuasão contigo. Não teria conseguido enganar-te e arriscava-me a aborrecer-te. Tu és um homem invulgar, Gordiano. Não estou habituada a esse género de força, de integridade sim, como dizia Cícero. Feliz Betesda! Por isso, nunca pensei em te seduzir, Gordiano. Rejeitei a ideia, sabendo que apenas poderia ofender-te. Embora me sentisse tentada, mais do que uma vez...

 

Eu inspirei profundamente e voltei-me para ela. O seu rosto tinha uma expressão abatida, pungente, totalmente convincente.

 

- Clódia. Tu és uma mulher notável. Nunca desistes, pois não? Estava à espera de um relâmpago de fúria ou da sugestão de um sorriso, mas ela apenas se mostrou mais perplexa, mais dorida.

 

- Notável! murmurei eu.

 

Passei por ela, subitamente ansioso por sair dali, pensando que ainda podia fazer qualquer coisa de que viesse a arrepender-me. Mas a porta estava barrada por um jovem imponente, alto e musculoso, de braços cruzados, vestindo apenas uma tanga reduzida. O poema de Catulo era estranho e inquietantemente correcto. Embora estivesse a barrar-me ostensivamente a passagem, Egnácio, o Espanhol, tinha um sorriso nos lábios.

 

- Quem é este verme? disse ele. Queres que lhe desfaça a cara?

 

- Cala-te, idiota rosnou Clódia. Sai da frente dele. Egnácio afastou-se para o lado. Ao passar por ele, franzi o nariz.

 

Cheirou-me a vinho bafiento, mas fingi que era outra coisa.

 

- É a urina que o teu hálito cheira?

 

O sorriso do espanhol quebrou finalmente.

 

Belbo estava à minha espera à porta. Sem uma palavra, eu comecei a descer a rua, mas depois apercebi-me de que não sabia para onde havia de ir. Voltar para casa, para junto de Betesda, estava fora de questão. Podia ir-me apresentar a Menénia, mas o que pensaria a minha nora se eu lhe batesse à porta a meio da noite para lhe pedir alojamento? Quem me dera que Eco regressasse.

 

Subitamente, Belbo grunhiu e puxou-me para o lado. O seu alarme foi provocado por uma figura que estava escondida nas sombras da entrada. O pobre Belbo pensou que o homem podia ser um ladrão ou um assassino. Mas eu sabia de quem se tratava.

 

Abanei a cabeça, em parte indignado, em parte aliviado.

 

- Catulo! Não tens outro sítio onde estar a estas horas da noite?

 

- Não. E, aparentemente, tu também não. Avançou e mostrou um rosto que parecia tão macilento e dorido como o de Clódia, no último vislumbre que eu tivera dela. Olhámo-nos de frente, ao brilho do luar. Espero não estar com tão mau aspecto como tu, disse Catulo.

 

- Ia dizer exactamente a mesma coisa. Ele conseguiu fazer um sorriso retorcido.

 

- O que havemos de fazer?

 

- Esperar que o Sol nasça, não?

 

- E até lá? Para onde vamos?

 

- Para onde havemos de ir?

 

A Taberna Salaz estava a fazer muito negócio na véspera do grande festival. Tivemos sorte em encontrar lugares sentados.

 

- Não gosto do aspecto deste sítio, Senhor disse Belbo.

 

- Ah, mas algumas raparigas parecem gostar do teu aspecto, grandalhão disse Catulo. Belbo olhou à volta, hesitante.

 

- Espero que não voltemos a cruzar-nos com Marco Célio e com os seus amigos. Observei a multidão através da névoa cor de âmbar provocada pelo fumo e a luz das lamparinas.

 

Aqui? Em pleno julgamento? Catulo soltou uma gargalhada.

- Não é provável. Deve estar em casa com o papá e a mamã, murmurando hinos fúnebres e passando os olhos pelo guarda-roupa à procura de qualquer coisa suficientemente gasta para vestir amanhã. ”Oh papá, eu sei que devia parecer devastado, mas não tenho culpa de ter sempre este aspecto estonteante.”

 

Até Belbo sorriu. Trouxeram-nos vinho. Catulo bebeu avidamente e limpou a boca.

 

- O que estavas a fazer em casa dela esta noite, só com uma velha túnica de dormir?

 

Catulo, por favor! Já chega desses disparates acerca dela... e de mim.

 

- Então explica-me por quê.

 

- Tinha uma coisa a resolver com ela.

 

- A meio da noite?

 

- Era urgente.

 

Ele resfolegou, depois fez um gesto ao escravo que andava a servir, pedindo-lhe mais vinho.

 

Eu fiz rodopiar o vinho que tinha no copo, e no qual não tinha tocado.

 

- Não será suficiente que Célio seja culpado daqueles crimes contra os enviados alexandrinos? Por que havia ela de andar a inventar novas acusações contra ele? Tu conhece-la melhor do que eu. Achas que ela era capaz de se envenenar para fazer com que as outras pessoas pensassem que Célio a tinha envenenado?

 

Estás a distrair-me com enigmas resmungou Catulo.

 

É Clódia quem nos distrai aos dois.

 

- Lésbia! insistiu ele.

 

Eu olhei para o vinho e senti-me enjoado.

 

- Só consigo beber isto se lhe misturar muita água.

 

- Pois bem, vamos pedir ao homem que te vá buscar um jarro de água ao aqueduto apiano!

 

- Aquele que os antepassados dela construíram? disse eu.

 

- Exactamente! sorriu Catulo. Depois, podemos percorrer uma das estradas que os seus atenciosos antepassados nos legaram...

 

- E fazer uma libação a um deus num dos templos que eles construíram.

 

Catulo riu-se.

 

- Estou a ver que ela te fez o seu discurso acerca dos grandiosos feitos dos seus antepassados e da sua incomparável generosidade. Roma ainda seria uma pocilga à beira do Tibre se não tivessem sido todos esses Ápios Cláudios que viveram na aurora da história.

 

- Clódia Lésbia parece estar convencida disso.

 

- Mas eu aposto que ela não te falou do Ápio Cláudio que tentou violar Vergínia.

 

- Não. É um escândalo?

 

- Bem, não é propriamente uma daquelas edificantes lendas sobre os seus antepassados que os Clódios gostam de repetir a todas as pessoas que conhecem. Mas nem por isso deixa de ser verdadeira, e é mais informativa acerca de Lésbia do que todas essas gabarolices relativas aos aquedutos e às estradas.

 

- Conta lá.

 

Catulo fez uma pausa para estender o copo ao escravo que servia às mesas, mas era um alvo tão oscilante, que o vinho se entornou todo no chão.

 

- Talvez já tenhas bebido o suficiente disse eu.

 

- Talvez tenhas razão.

 

- Aquilo de que eu preciso é de uma cama onde me deitar. Catulo arrotou e acenou com a cabeça.

 

- Eu também.

 

- Onde é que estás instalado?

 

- Tenho um apartamento no Palatino. E só uma cama e uns livros. Queres ir até lá?

 

- Não te importas de partilhar a tua cama comigo?

 

- Não serias o primeiro! Catulo riu-se. Traz o teu escravo como cão de guarda. Ele pode dormir no chão na antessala e começar a ladrar se te ouvir gritar ”Estou a ser violado!”

 

A casa de Catulo no Palatino tinha muito poucos móveis, tal como ele dissera. Encostado a uma das paredes, havia um enorme canapé. Encostada a outra, uma estante com orifícios cheia de pergaminhos.

 

Ele viu-me olhar de soslaio para as pequenas etiquetas à luz mortiça da lamparina.

 

- É sobretudo poesia grega explicou, enquanto tirava a toga. Livros e uma cama. É tudo aquilo de que um homem precisa. Mais coisas só servem para distrair.

 

- Da leitura?

 

- Da utilização da cama. Vestiu uma túnica e voltou a deitar-se.

- Anda cá, há espaço para os dois. Embora seja melhor avisar-te de que estou suficientemente embriagado para te fazer avanços.

 

Eu sou um velhote com as juntas rígidas e uma barba grisalha.

 

Sim, mas tens um cheiro irresistível.

 

- A quê?

 

- Ao perfume dela.

 

- E tu fedes a vinho, Catulo. Bem, sempre é melhor do que urina.

 

- O quê?

 

Contei-lhe resumidamente o meu encontro com Egnácio, pensando que o divertiria o facto de eu ter usado um verso do seu poema como deixa final; só quando já estava a contar a história me apercebi de que fora um erro.

 

- Quer dizer que ela está com ele neste momento disse Catulo rangendo os dentes. Egnácio e Lésbia. Malditos sejam os dois!

 

-Tinhas começado a contar-me uma história na taberna disse eu, tentando distraí-lo.

 

- Uma história?

 

De um escândalo com um dos antepassados dela. Um Ápio Cláudio. Que não era o construtor do templo nem do aqueduto...

 

- Ah, pois, aquele que tentou violar Vergínia. O único antepassado sobre quem eles não gostam de falar. E, no entanto, ele exemplifica melhor a geração actual do que aqueles modelos ideais, postos num pedestal. Perguntaste-me se ela faria alguma coisa tão louca como envenenar-se, só para despeitar um amante. Claro que sim. Está-lhe no sangue.

 

- No sangue?

 

- Vou-te contar a história. Foi há muito tempo, nos primeiros dias da república, depois de os reis terem sido expulsos, mas antes de patrícios e plebeus terem descoberto maneira de viverem juntos e em paz. A cronologia é um pouco incerta para mim eu sou um poeta, não sou um historiador! mas, a determinada altura, um grupo de dez homens conseguiu apoderar-se do controlo do Estado. Chamaram a si próprios decenvirato e iniciaram um reinado de terror. Para bem de Roma, evidentemente para resolverem a crise, como reacção à crescente situação de emergência que então se vivia, etc., etc.

 

- E Ápio Cláudio era um desses decênviros ?

 

- Era. Ora, vivia em Roma uma linda rapariga chamada Vergínia, filha de Vergínio. Era virgem e estava prometida a um jovem político em ascensão. Mas certo dia Ápio viu-a no Fórum, a caminho da escola, e sentiu-se inflamado de desejo. Começou a segui-la para toda a parte, tentando atraí-la para longe dos olhos vigilantes da ama, decidido a seduzi-la. Mas Vergínia era uma jovem virtuosa, e nada queria com o depravado. Recusou-o imediatamente mas, quanto mais ela o rejeitava, mais decidido ele estava a possuí-la.

 

Finalmente, concebeu um plano para se aproximar dela, pelo menos o tempo suficiente para lhe tocar. Esperou por uma altura em que o pai estava ausente da cidade, a participar numa campanha militar, e deu instruções a um dos seus homens de mão, um tal Marco. Certa manhã em que Vergínia entrava no Fórum com a ama, a caminho da escola, Marco e os seus homens apoderaram-se dela. Os transeuntes que assistiram à cena ficaram chocados e perguntaram o que se passava. Marco disse que a rapariga era sua escrava e que estava apenas a recuperá-la. As pessoas sabiam perfeitamente que Vergínia era filha de Vergínio, mas também sabiam que Marco era um homem de mão de Ápio Cláudio, e tinham medo dele; por isso, quando o viram manifestar-se daquela maneira ruidosa, falando acerca da justiça, da lei e dos seus direitos, deixaram-no levar Vergínia a tribunal, para que fosse a lei a decidir a questão.

 

Naturalmente, o único juiz era, nada mais, nada menos, do que o decênviro Ápio Cláudio. Marco, o seu homem de mão, recitou uma história disparatada: que Vergínia não era nada filha de Vergínio que era filha de um dos seus escravos, e fora roubada de sua casa em criança e apresentada a Vergínio como se fosse da sua carne e do seu sangue. Marco afirmava poder fornecer provas de tudo aquilo. O importante era que a rapariga era uma escrava, sua escrava, e ele estava a reclamá-la, como era seu direito legal.

 

Do alto da tribuna, Ápio Cláudio fingiu considerar tudo aquilo como se tivesse acabado de o ouvir pela primeira vez, quando evidentemente era ele o autor da história. Não é difícil imaginá-lo a mexer os lábios ao mesmo tempo que Marco, ao ouvi-lo recitar o que ele próprio tinha escrito! Finalmente, declarou que só numa audiência formal seria possível determinar o estatuto da jovem. Os amigos de Vergínia explicaram-lhe que o pai dela estava em campanha militar, mas regressaria a Roma no dia seguinte. Ápio Cláudio concordou em adiar o julgamento do caso. Entretanto, decidiu, a rapariga seria entregue à custódia de Marco. Vergínia guinchou! A multidão gritou os seus protestos e a ama da jovem desmaiou, mas Ápio Cláudio fez notar que, de acordo com a lei, Marco não podia ser obrigado a entregar a pequena à custódia de outro, que não fosse o seu pai, e que, não estando Vergínio presente, ela teria de ser entregue à custódia de Marco até o pai regressar e a reclamar. Vergínia estaria nas mãos de Marco em poder de Ápio Cláudio durante toda a noite seguinte. Consegues ver a raposa a lamber os beiços no tribunal, a brincar sozinho por baixo da toga?

 

A decisão era absurda, e ouviram-se muitos resmungos indignados, mas ninguém se atreveu a opor-se-lhe abertamente. As pessoas acobardam-se quando estão sujeitas ao poder de um decenvirato. Marco preparava-se para sair do tribunal, arrastando consigo Vergínia, que não parava de chorar.

 

Nesta altura, entra em cena o jovem a quem Vergínia fora prometida, o político em ascensão, que faz um discurso, mostrando-se escandalizado com a forma como Ápio Cláudio estava a usar a lei para transformar todos os habitantes de Roma em escravos, com o único objectivo de satisfazer a sua luxúria. Ele preferia morrer, declarou o jovem, a permitir que a sua prometida passasse a noite fora da casa do seu pai. A jovem era virgem, e era com uma virgem que ele tencionava casar.

 

Estas palavras agitaram a multidão, que ficou frenética. Ápio Cláudio chamou lictores armados para imporem a ordem, e ameaçou prender o jovem orador sob a acusação de provocar um tumulto. Mas, para evitar que a situação escapasse por completo ao seu controlo, concordou em permitir que a jovem fosse passar a noite em casa do tio, mas obrigou o homem a depositar uma enorme soma de dinheiro para garantir que, no dia seguinte, Vergínia comparecia em tribunal.

 

Na madrugada do dia seguinte, a cidade acordou numa febre de excitação. Vergínio, que regressara da sua campanha, apareceu no Fórum com a filha pela mão ele de luto, ela coberta de andrajos, seguidos por todas as mulheres da família, mergulhadas em choros e lamentos. Houve um julgamento, ou uma coisa parecida com um julgamento, com Ápio Cláudio como único juiz, em que as duas partes apresentaram os seus argumentos. As provas e o senso comum foram inúteis. O veredicto estava decidido antes do início da sessão. Logo que terminaram os discursos, Ápio Cláudio anunciou que Vergínia era escrava de Marco, e não filha de Vergínio. Marco podia reclamar o que lhe pertencia.

 

É

 

”A multidão ficou estupefacta. Ninguém pronunciou palavra. Marco começou a abrir caminho por entre a multidão, dirigindo-se a Vergínia. As mulheres que a rodeavam desataram a chorar. Vergínio agitou o punho na direcção de Ápio e gritou: ”Eduquei a minha filha para o leito conjugal e não para o teu bordel! Nenhum homem que saiba usar a espada aceitará ultraje semelhante!”

 

Ápio Cláudio estava preparado para aquilo. Tinha recebido relatórios alarmantes de que estava a ser planeada uma sublevação contra o decenvirato, afirmou, e por isso mandara pôr em estado de alerta uma tropa de lictores armados, encarregados de manter a ordem. Chamou-os e disse-lhes que empunhassem as espadas e abrissem caminho, para que Marco pudesse recuperar o que lhe pertencia. Quem quer que se opusesse a este acto de justiça seria considerado um perturbador da paz e imediatamente morto. Marco avançou no meio do cordão de aço e agarrou em Vergínia.

 

Nesse momento, Vergínio pareceu perder finalmente a coragem. Com lágrimas nos olhos, apelou a Ápio Cláudio: ”Talvez eu tenha, andado terrivelmente enganado todos estes anos. Sim, talvez eu esteja enganado e a pequena não seja realmente minha filha. Deixa-me afastar um momento com a menina e a ama, para poder conversar com elas em privado. Se conseguir resignar-me a aceitar este erro, entregar-ta-ei sem violências.” Ápio concedeu-lhe o que ele pedia, embora seja difícil não nos interrogarmos, retrospectivamente, acerca da razão por que o fez. Se calhar desejava saborear o momento de conquista da jovem, o momento em que a veria cair nas garras de Marco, e talvez tivesse ficado satisfeito com aquela desculpa para adiar um pouco mais esse momento.

 

Vergínio levou a filha até uma pequena rua lateral à saída do Fórum. Entrou num talho, agarrou numa faca e voltou a correr para junto de Vergínia. Antes que alguém pudesse impedi-lo, esfaqueou-a no coração. Ela morreu-lhe nos braços, em convulsões e a cuspir sangue, enquanto ele lhe afagava o cabelo e lhe murmurava, uma vez e outra: ”Era a única maneira de te libertar, minha filha, a única maneira.” Depois voltou ao Fórum, com o corpo nos braços. A multidão abriu-se para o deixar passar, atordoada e silenciosa, de tal maneira que os gritos de Vergínio ecoavam por todo o Fórum. ”Este sangue manchará as tuas mãos, Ápio Cláudio! A maldição do sangue da minha filha virgem cairá sobre a tua cabeça!”

 

Tentei imaginar Cícero o afectado e dispéptico Cícero como amante, mas estava com demasiado sono para conseguir fazer esse esforço mental, ou então com medo de que isso me provocasse pesadelos.

 

- Amanhã oh não, a luz está a entrar pelas portadas. O céu já começa a iluminar-se. Catulo gemeu. Pronto, não é amanhã; é hoje. Hoje começam as festividades da Grande Mãe, e alguém vai ser destruído no Fórum.

 

- Como é que sabes?

 

Ele deu umas pancadinhas no lóbulo do ouvido.

 

- Os deuses murmuram aos ouvidos dos poetas. Hoje, alguém será publicamente aniquilado. Humilhado. Arruinado para sempre.

 

Estás a falar de Marco Célio?

 

- Estarei?

 

Senão, de quem?

 

Ele distendeu o corpo num paroxismo de bocejo.

 

- As coisas podem correr para um lado ou para o outro. Até os deuses terão de esperar para ver.

 

- O que queres tu dizer com isso? murmurei. Depois, devo ter adormecido, ou então foi Catulo que adormeceu, porque nunca cheguei a ouvir a resposta.

 

                           NEXUS
Depois de uma hora ou duas de sono irregular, abri os olhos. A luz da manhã entrava pelo contorno das portadas das janelas, mas julgo que foi o ressonar de Catulo que me despertou.

 

Arrastei-me para a antessala, acordei Belbo com o pé, e disse-lhe que corresse até casa a grande velocidade e me trouxesse a minha melhor toga. Ainda eu não tinha acabado de lavar a cara e já ele estava de volta.

 

- Calculo que alguém estivesse a vigiar à porta disse eu, enquanto ele me ajudava a vestir.

 

- Sim, Senhor.

 

- Não havia notícias de Eco?

 

- Não, Senhor.

 

- Nada de nada?

 

- Nada, Senhor.

 

- A tua senhora já se tinha levantado?

 

- Já, Senhor.

 

- O que disse ela? Alguma mensagem para mim?

 

- Não, Senhor. Não disse nada. Mas parecia...

 

- Sim, Belbo?

 

- Parecia mais aborrecida do que habitualmente, Senhor.

 

- Parecia? Vamos, Belbo, temos de nos apressar, se quisermos apanhar o começo do julgamento. Tenho a certeza de que conseguimos arranjar qualquer coisa que se coma pelo caminho. Vamos encontrar muitos vendedores ambulantes por causa das festividades. Já íamos a sair, quando Catulo apareceu, vindo do quarto, com um aspecto macilento e os olhos inchados. Garantiu-me que estaria no Fórum antes de o julgamento começar, mas a mim pareceu-me que ele teria primeiro de ser erguido de entre os mortos.

 

Belbo e eu chegámos no momento em que a defesa iniciava os seus argumentos. Não tendo mandado nenhum escravo à minha frente para me guardar lugar, tive de ficar no meio da multidão, que era ainda maior do que no dia anterior. Tinha de me pôr em bicos de pés para conseguir ver, mas não tinha qualquer dificuldade em ouvir. A voz de Marco Célio, que era a voz de um orador bem treinado, atravessava toda a praça.

 

Tal como Atratínio, o mais jovem dos acusadores, iniciara os discursos no dia anterior, também foi o jovem Célio a dar início à sua defesa; tal como Atratínio se detivera na consideração do carácter do acusado, o mesmo fez Célio. Seria este o jovem assassino moralmente depravado, ansioso por sensações novas e excessivamente belo retratado pela acusação? A avaliar pela sua aparência e atitude, ninguém diria. Vestia uma toga tão velha, que qualquer pobre a teria deitado fora. Devia tê-la encontrado num canto bolorento do sótão do pai.

 

A sua atitude era tão humilde como as suas roupas eram coçadas. O jovem e inflamado orador, conhecido pelas suas invectivas mordazes, falava hoje numa cadência calma, equilibrada e modesta, exsudando respeito pelos juizes. Declarou-se inocente de todas as acusações; esses ataques horríveis e infundados tinham-lhe sido feitas por pessoas que no passado se haviam declarado suas amigas mas eram agora suas inimigas, e o seu único objectivo era destruí-lo para sua satisfação pessoal. Um homem não podia ser considerado culpado pelas traições de falsos amigos; apesar disso, Célio lamentava ter-se enganado a ponto de ter chegado a associar-se com esse género de pessoas, pois via agora a dor e o sofrimento que causara a seu pai e a sua mãe, hoje aqui presentes junto dele, vestidos de luto e com dificuldade em controlar as lágrimas. Lamentava igualmente o fardo que o julgamento colocara sobre os ombros dos seus leais amigos, amados mentores e fiéis advogados, Marco Crasso e Marco Cícero, dois verdadeiros romanos, cujo exemplo ele confessava não ter sido capaz de imitar, mas para quem se voltaria de novo em busca de renovada inspiração uma vez terminada esta prova, desde que os juizes, na sua sabedoria, achassem adequado conceder-lhe essa oportunidade.

 

Célio mostrou-se deferente, mas não servil; modesto, mas não adulador; inflexível quanto à sua inocência, mas não hipócrita; entristecido pela maldade dos seus inimigos, mas não vingativo. Apresentou-se como um modelo de cidadão superior falsamente acusado e confiante em que as reverenciadas instituições da lei lhe fariam justiça.

 

Senti uma palmadinha no ombro e, quando me voltei, vi os olhos injectados de sangue de Catulo.

 

- Calculo que não tenha ainda perdido muito sangue disse ele.

 

- Eu diria que perdeste leite e mel observou sarcasticamente um homem ali ao pé. Este Célio seria incapaz de fazer mal a uma mosca!

- Ouviu-se um murmúrio de riso, seguido de pedidos de silêncio por parte daqueles que não queriam perder uma palavra do discurso.

 

- O leite pode azedar sussurrou-me Catulo ao ouvido -, e às vezes encontram-se abelhas afogadas no mel, com o ferrão intacto.

 

- O quê?

 

- Célio combate melhor com a espada do que com o escudo. Vamos continuar a ouvir.

 

E de facto o tom do discurso de Célio começava a mudar, como se, tendo resolvido a inescapável questão de se humilhar, fosse altura de passar à ofensiva. A mudança foi tão gradual, as sugestões de sarcasmo de tal maneira subtis, que era impossível dizer exactamente quando é que o discurso se transformara, de um protesto humilde de inocência, numa invectiva mordaz contra os seus acusadores. Célio atacou os discursos da acusação, salientando que se baseavam em provas circunstanciais e em segunda-mão, os seus lapsos de lógica, a sua óbvia intenção de lhe manchar o carácter. Fez com que os acusadores parecessem, não apenas vingativos, mas também mesquinhos e ligeiramente absurdos, sobretudo porque o próprio Célio conseguiu manter uma aura de impecável dignidade enquanto lhes insultava a lógica e as motivações, e os atacava com trocadilhos traiçoeiros.

 

- Ferrões no mel sussurrou Catulo.

 

- Como é que sabias? Ele encolheu os ombros.

 

- Esqueces que conheço Célio muito bem. Podia ter-te descrito todo o percurso da sua oração. Por exemplo, a seguir vai falar dela. Olhou na direcção do banco onde Clódia estava sentada, e o sorriso sardónico que tinha nos lábios foi-se desvanecendo, até ele ficar com o mesmo ar lúgubre que ela apresentava.

 

É claro que Célio avançou para um ataque velado a Clódia, embora sem pronunciar o seu nome. Por trás da acusação e dos seus pretensos argumentos, disse ele, estava a tentativa de uma certa pessoa de o prejudicar e não o contrário, como ela sustentara. Os juizes deviam saber a quem ele se referia ”Clitemnestra por uma moeda”. A piada bruta, que implicava que Clódia era a assassina do marido e, ao mesmo tempo, uma prostituta barata, provocou uma onda de gargalhadas roucas. Onde é que eu já tinha ouvido aquilo?

 

- Não afirmo desconhecer a dama dizia Célio. Sim, conheço-a

- ou conheci-a bastante bem. Para meu descrédito, infelizmente, e para minha infelicidade. Mas não para meu proveito; por vezes, Cós na sala de jantar transforma-se em Nola no quarto. Isto provocou novas gargalhadas e mesmo alguns aplausos de apreciação. A piada era múltipla e a sua intrincância perversa fazia com que fosse tanto mais mordaz. Cós era uma referência à ilha de origem das sedas transparentes que Clódia usava, e portanto ao patente e vulgar atractivo do sexo; Nola era famosa pela sua impregnável fortaleza, que resistira, não apenas a Aníbal, mas a um cerco do pai da própria Clódia. Mas Cós era também um trocadilho com coitus, sexo, e Nola com nolo, a ausência de sexo. Por outras palavras, as lúbricas promessas da senhora ao jantar não eram depois cumpridas no quarto, por motivos de frigidez. Com uma simples frase, e sem nada dizer de explícito, Célio tinha conseguido sugerir que Clódia não era apenas uma tentadora, mas uma tentadora frustrante (que pouco dava, mesmo em troca de uma só moeda!), e que ele nunca tinha realmente dormido com ela; para além de recordar ao tribunal uma das derrotas militares do seu pai, o cerco de Nola. Depois de uma pausa momentânea, ouviram-se mais aplausos difusos, à medida que novos ouvintes iam percebendo a gema de compressão que Célio acabava de emitir.

 

Reparei que Catulo não se rira nem aplaudira.

 

- Perversamente inteligente disse eu, perguntando a mim próprio se ele teria compreendido o trocadilho.

 

Obrigado murmurou ele, aparentemente sem ouvir. Os seus olhos estavam poisados em Clódia, que parecia nitidamente desconfortável. Catulo fez um sorriso triste.

 

Célio desenvolveu a metáfora. Da mesma maneira que um homem podia estar às portas de Nola sem conseguir penetrar nas suas muralhas (mais risos, daqueles que estavam finalmente a compreender a piada), assim também era possível que alguém estivesse nas proximidades de Neápolis e Putéolos sem ser responsável pelos ataques aos visitantes estrangeiros; ou que desse um passeio inocente pelo Palatino, à noite, sem se deter a assassinar um embaixador.

 

- Foi a isto que chegámos? dizia Célio. Não a culpas por associação, mas a culpas por proximidade geográfica? Deverão os inimigos de um homem segui-lo pelas ruas, anotar os crimes que têm lugar na área circundante, e depois acusá-lo de forma a que ele não disponha de um álibi? Não me parece credível que o mais inepto dos advogados tenha a esperança de que um painel de juizes romanos leve a sério este género de ”prova”. As acusações devem basear-se naquilo que se viu, e não naquilo que não se viu; no que se sabe e não naquilo de que apenas se ”suspeita”. Tirou um pequeno objecto das dobras da toga. Alguns espectadores das primeiras filas riram-se quando viram do que se tratava.

 

- Por exemplo prosseguiu, erguendo o objecto de tal maneira que ele brilhava ao Sol -, quando alguém vê um pequeno estojo como este, o que julga que ele contém? Um unguento médico ou um pó cosmético, ou talvez um perfume em infusão de cera o género de coisa que alguém podia levar consigo para as termas. Pelo menos seria isso que qualquer pessoa sensata presumiria. Uma pessoa com um estado de espírito mais mórbido talvez achasse que havia outra coisa dentro do estojo veneno, por exemplo. Especialmente se essa pessoa estivesse familiarizada com a utilização de venenos. Do ponto distante em que me encontrava, não me era possível perceber exactamente como era o estojo. Deve ter sido a minha imaginação que me levou a pensar que era de bronze, com nós em relevo e embutidos de mármore que brilhavam ao sol idêntico ao estojo que Licínio, o amigo de Célio, tinha levado para as termas senianas e que fora deixado à porta de Clódia, cheio de um produto inqualificável, enquanto ela jazia envenenada dentro de casa.

 

Mais risos percorreram a multidão. Eu olhei para Clódia. Os seus olhos estavam em chamas e os seus maxilares pareciam de granito.

 

- Uma imaginação particularmente lúbrica poderá conceber que este pequeno e inocente estojo contém algo ainda mais revoltante talvez um penhor de desejos consumados, depositado por um amante frustrado, já cansado de tentar abalar as muralhas de Nola. Estas palavras provocaram explosões declaradas de riso. Fosse como fosse, a história do conteúdo obsceno do estojo já devia ter-se espalhado pela cidade. Quem teria repetido uma história tão escabrosa um escravo da casa de Clódia? Ou o homem que lhe tinha enviado o estojo? A expressão de Clódia tornava óbvio que a indiscreta alusão de Célio à indecente oferta fora para ela uma completa surpresa e que o insensível divertimento dos espectadores ainda a chocava mais. Sem olhar para ela uma única vez, Célio poisou o estojo e sorriu brandamente.

 

Senhor! Belbo puxava-me a toga.

 

Belbo, estou a tentar ouvir.

 

Mas, Senhor, ele já chegou!

 

Voltei-me, disposto a repreendê-lo, mas depois senti uma onda de alegria. Não muito longe, na orla da multidão, vi Eco em bicos de pés, observando atentamente o mar de cabeças.

 

- Belbo, os teus olhos são preciosos! Anda, ele nunca conseguirá dar por nós no meio da multidão. Vamos nós ter com ele.

 

- Não te vais embora, pois não? - disse Catulo.

 

- Volto já.

 

- Mas o melhor ainda está para vir.

 

- Decora as piadas para me contares depois - disse eu. Chegámos junto de Eco no momento em que ele se preparava para abrir caminho por entre o ajuntamento. Tinha a túnica suja e a testa empastada de suor, como seria de esperar de um homem acabado de chegar de uma dura cavalgada desde Putéolos. Estava pálido mas, quando me viu, os seus olhos iluminaram-se e conseguiu fazer-me um sorriso cansado.

 

Papá! Não, não me abraces, por favor. Estou nojento. E dorido! Cavalguei a noite toda, porque sabia que o julgamento já devia ter começado. Ainda não acabou, pois não?

 

- Ainda não. Falta um dia inteiro de discursos...

 

Óptimo. Então, talvez ainda haja tempo.

 

Para quê?

 

Para salvar Marco Célio.

 

No caso de ele precisar de ser salvo - disse eu, pensando que Célio estava a defender-se bastante bem. Ou de merecer que o salvem.

 

- Só sei que ele não merece ser castigado pelo assassínio de Díon.

 

O quê?

 

- Não foi Célio que matou Díon.

 

Tens a certeza?

 

- Tenho. Descobri a jovem escrava, Zótica, a que estava com Díon na noite em que ele morreu...

 

Se não foram Célio e Asício, quem foi?

 

Trouxe a rapariga comigo... - Subitamente, Eco pareceu-me muito cansado.

 

Foi a rapariga que matou Díon? Franzi o sobrolho. Já tínhamos considerado e rejeitado essa possibilidade.

 

-Não.

 

Mas sabe quem foi?

 

- Não propriamente. - Por que razão Eco se recusava a olhar-me de frente? - Só posso dizer-te que a tua intuição estava correcta, papá. A rapariga era a chave.

 

- E então? O que foi que descobriste?

 

- Acho melhor falares com ela pessoalmente, papá.

 

Atrás de nós, a multidão riu-se de qualquer coisa, e depois voltou a rir-se, mais alto. Eu olhei por cima do ombro.

 

- Célio está a chegar ao âmago do seu discurso. Depois fala Crasso, e depois Cícero...

 

Mesmo assim, acho que é melhor vires, papá. Depressa, antes que o julgamento avance mais.

 

- Não me podes simplesmente contar o que te disse a rapariga? O seu rosto ensombrou-se.

 

- Acho que não seria sensato, papá. Não seria razoável.

 

Para quem? Para a escrava?

 

Por favor, papá! Vem comigo. A expressão do seu rosto convenceu-me. Que segredo terrível enervara daquela maneira o meu filho, que conhecia toda a corrupção e duplicidade que Roma tinha para oferecer?

 

Ele deixara a rapariga em sua casa, na Subura. Fomos até lá o mais depressa que nos foi possível, avançando pelas ruas povoadas de vendedores de comida, acrobatas e actores.

 

Onde a encontraste? perguntei eu, desviando-me de um grupo de gladiadores embriagados que subiam a rua. Eles rosnaram a Belbo ao passar.

 

- Numa das cidades da colina, do outro lado do Vesúvio, ainda longe de Putéolos. Foi preciso procurar bastante. Primeiro, tive de descobrir o dono do bordel que tinha comprado o lote de escravos onde Zótica fora incluída. Fazes ideia de quantos estabelecimentos do género há na zona da baía? Um após outro, foram-me dizendo que nunca tinham visto Zótica, e todos eles queriam dinheiro, só para me dizerem isso, e mesmo então todos pareciam estar a mentir, só para me aborrecer. Por fim, descobri o homem que a tinha adquirido. Mas não lhe serviu para nada, disse-me ele. ”Era pior do que inútil ninguém está interessado numa rapariga cheia de cicatrizes”, contou-me, ”nem sequer os mais perversos.” Para além disso, ela tinha-se tornado bravia. Bravia?

 

- Foi o termo que ele usou. Calculo que um homem daqueles vê os escravos em situações em que a maioria das pessoas não os vê, pelo menos com frequência. Talvez ela tenha sido sempre um bocado desorientada; não sei, acho que no princípio devia ser razoavelmente bem tratada em casa de Copónio, embora os outros escravos gostassem de se meter com ela. Depois chegou Díon. A pequena era inocente, ingénua, talvez ainda fosse virgem. Não fazia ideia do género de coisas que Díon queria fazer-lhe. Não conseguia compreender por que razão ele queria castigá-la se ela não tinha feito mal nenhum. A princípio, manteve-se calada, tinha demasiado medo de Díon para lhe opor resistência, e demasiada vergonha de contar o que se passava. Quando finalmente se queixou aos outros escravos, alguns tentaram interceder por ela, mas Copónio não quis aborrecimentos. Depois, quando Díon apareceu morto, Copónio livrou-se rapidamente dela. Desde então, tem sido passada de mão em mão, violentada, maltratada, não desejada. Deve ter-lhe parecido um pesadelo do qual não conseguia acordar. A cabeça não resistiu. Por vezes, está perfeitamente lúcida, mas depois... vais ver. Já não serve para nada. Quando finalmente a descobri, vivia nos campos, à saída da casa de um agricultor. Ele tinha-a comprado como escrava de cozinha, mas até para isso ela era inútil. ”A rapariga arranha e morde”, disse-me ele. ”Arranha e morde sem qualquer motivo, como um gato egípcio. Nem sequer pára quando leva uns açoites.” Ninguém a queria comprar, por isso o agricultor libertou-a, como se costuma fazer aos escravos velhos ou aleijados, para que cuidem de si. Nem sequer tive de a comprar. Bastou-me encontrá-la e trazê-la comigo. Pensei que lhe tinha conquistado a confiança, mas mesmo assim ela tentou fugir-me por duas vezes, primeiro à saída de Putéolos, e depois quando estávamos a chegar a Roma, esta manhã. Já percebes porque demorei tanto tempo a regressar. E eu que pensei que me tinhas encarregado de uma tarefa fácil, papá!

 

- Se a rapariga te disse o que nós queríamos saber, talvez devesses tê-la libertado.

 

O seu rosto voltou a ensombrecer-se.

 

- Não, papá, não podia simplesmente repetir-te a história. Tinha de a trazer para Roma; queria que tu a ouvisses.

 

Menénia estava à nossa espera à porta, com os braços cruzados e uma expressão carregada, nada característica dela. Pensei que fosse por causa de Eco, por ele ter saído a correr à minha procura depois de ter largado a escrava em casa as jovens esposas esperam um pouco mais de atenção dos maridos, quando estes chegam a casa depois de uma viagem. Mas logo a seguir percebi que o objecto do seu olhar era eu. O que teria eu feito, para além de me ter incompatibilizado com a minha mulher e de não ter voltado a casa a noite passada? Não era possível que Menénia já tivesse sido informada ou era? Por vezes, acho que o subsolo da cidade deve estar cheio de túneis e passagens, que são constantemente percorridos por mensageiros, com comunicações secretas enviadas pelas mulheres de Roma umas às outras.

 

Eco tinha trancado a rapariga numa pequena despensa à saída da cozinha. Quando nos viu, ela saltou da arca de madeira onde estivera sentada e agachou-se contra a parede.

 

- Calculo que esteja com medo de Belbo disse Eco.

 

Eu acenei com a cabeça e mandei-o sair do compartimento. A pequena descontraiu-se, mas não muito.

 

- Não precisas de ter medo. Já te expliquei isso, não foi? disse Eco, num tom mais exasperado do que reconfortante.

 

Em circunstâncias menos penosas, Zótica poderia ter sido, pelo menos, razoavelmente bonita. Era demasiadamente jovem para o meu gosto, magra e ossuda como um rapaz, mas era possível detectar a delicada sugestão de um rosto de mulher nos seus malares altos e nas sobrancelhas escuras. Mas agora, com o cabelo por lavar, eriçado e coberto de suor, e círculos negros à volta dos olhos, era difícil imaginá-la como objecto de desejo, fosse de quem fosse. Era óbvio que não havia lugar para ela num bordel. Parecia mais uma daquelas crianças abandonadas e furtivas que povoam as ruas da cidade à procura de restos de comida e se organizam em bandos como animais selvagens.

 

Eco suspirou.

 

- Comeste alguma coisa, Zótica? Disse à minha mulher que te desse de comer.

 

A rapariga abanou a cabeça.

 

- Estou cansada demais para conseguir comer. Quero dormir.

 

Também eu. Vais dormir em breve. Mas agora quero que fales com uma pessoa.

 

A rapariga olhou para mim cautelosamente.

 

- Este é o meu pai prosseguiu Eco, e eu perguntei a mim próprio que significado teria aquela palavra para uma criança que provavelmente nunca tinha conhecido o seu. Quero que lhe contes aquilo que me contaste a mim. Sobre aquele homem que ficou alojado em casa do teu senhor, aqui em Roma.

 

A simples menção de Díon fê-la estremecer.

 

- Sobre a morte dele?

 

- E não só. Quero que lhe contes tudo.

 

A pequena olhou desamparadamente para o espaço.

 

Estou tão cansada. Dói-me o estômago.

 

Zótica, eu trouxe-te comigo para tu falares ao meu pai sobre Díon.

 

- Não era assim que eu lhe chamava. Nem sequer sabia o nome dele antes de tu mo dizeres.

 

- Ele ficou alojado em casa do teu senhor durante algum tempo.

 

Até morrer disse ela numa voz monótona.

 

- E foi violento contigo.

 

- Por que é que o Senhor o permitiu? Eu pensei que o Senhor não sabia, mas sabia. Só que não se importou. Depois, eu fiquei estragada e ele teve de se ver livre de mim. Agora, já não sirvo para nada.

 

- Olha para os pulsos dela, papá. A corda cortou-os de tal maneira, que ainda se vêem as cicatrizes.

 

- Era porque eu puxava murmurou a rapariga, esfregando os pulsos. Ele apertava-os com toda a força, depois pendurava-me no gancho.

 

- No gancho? disse eu.

 

- Havia uns ganchos de metal nas paredes do quarto. Ele atava-me os pulsos, levantava-me os braços e pendurava-me no gancho, e eu ficava com os dedos dos pés um bocadinho acima do chão. Os meus pulsos sangravam. A corda apertava ainda mais quando ele me fazia girar. Usava-me de frente, depois de trás. Batia-me e beliscava-me e picava-me. E metia-me coisas na boca para eu não fazer barulho.

 

- Devias ver as cicatrizes, papá, mas eu tenho vergonha de lhe dizer que levante o vestido para tas mostrar. Percebeste que ela estava a falar de Díon? Eco olhou para mim acusadoramente, como se eu fosse responsável pelos vícios secretos de um homem que admirara durante tantos anos. Eu senti o rosto quente.

 

- Um gancho sussurrei.

 

- O quê?

 

- Um gancho.

 

- Sim, papá, imagina!

 

- Não, Eco, é outra coisa...

 

- Sim, não acaba aqui. Continua Zótica. Conta-lhe o que aconteceu na última noite.

 

-Não.

 

- Tens de contar. Depois disso, deixamos-te em paz, prometo-te. Poderás dormir todo o tempo que quiseres.

 

A rapariga estremeceu.

 

- Ele entrou vestido... Fez uma expressão de desprezo e encolheu os ombros. Acho que parecia uma mulher. Tinha um aspecto horrível. Mandou-me chamar ao quarto dele. Mandou-me despir o vestido. ”Usa-o como um pano”, disse ele. ”Limpa-me esta maquilhagem idiota.” Sentou-se numa cadeira enquanto eu lhe limpava a cara. Estava constantemente a interromper-me, a acariciar-me, metia-me a mão entre as pernas, obrigava-me a inclinar para a frente como sempre fazia. A rapariga abanou a cabeça e pôs os braços à volta do corpo.

 

Mas depois empurrou-me para longe dele. Fez uma careta e agarrou-se ao estômago. Rastejou em direcção à cama e obrigou-me a deitar ao seu lado. Disse-me que tinha frio. Mas a mim parecia-me quente. Encostava-se a mim, eu estava nua, e parecia que ardia sempre que ele me tocava. Depois começou a tremer, de tal maneira que os dentes lhe estalavam, e mandou-me ir buscar mais cobertores. Disse-me que baixasse o pavio da lamparina, porque a luz lhe feria os olhos. Tentou levantar-se da cama, mas estava muito tonto. Eu perguntei-lhe se queria que eu fosse chamar alguém, mas ele disse-me que não. Estava com medo. Eu nunca tinha visto ninguém com tanto medo, nem um escravo prestes a ser espancado. Estava com tanto medo que eu quase deixei de o odiar. Tapou-se com os cobertores e voltava-se de um lado para o outro na cama, apertando o corpo, mordendo as mãos. Eu estava do outro lado do quarto, o mais longe que podia, com os braços à volta do corpo porque estava nua e tinha frio. Depois, ele voltou-se de lado e vomitou no chão. Foi horrível. Fechou os olhos e arquejou, sem conseguir respirar. A seguir, ficou quieto. Momentos depois, eu abanei-o, mas ele não acordou. Deixei-me estar ali sentada na cama durante muito tempo, a olhar para ele, com medo de me mexer. Depois acabou.

 

- Acabou como?

 

Ela olhou-me de frente pela primeira vez.

 

Ele morreu. Eu vi-o morrer.

 

Como é que podes ter a certeza?

 

De repente, o corpo foi sacudido de uma maneira horrível. Ele abriu os olhos e a boca escancarou-se, como se fosse gritar, mas não saiu nada, só um ruído rouco e medonho. Eu saltei da cama e encostei-me à parede. Parecia que, de repente, ele se tinha transformado em pedra, com os olhos e a boca muito abertos. Passado algum tempo, cheguei-me ao pé dele e encostei-lhe o ouvido ao peito. Não ouvi bater o coração. Se tivesses visto os olhos dele qualquer pessoa percebia que eram os olhos de um morto.

 

- Então as punhaladas disse eu. A janela aberta à força e o quarto de pernas para o ar...

 

- Deixa-a acabar, papá. Eco fez sinal à rapariga.

 

- Não sabia o que havia de fazer. O queixo estremeceu-lhe e ela limpou os olhos. Só conseguia pensar que o Senhor ia achar que a culpa era minha e castigar-me. Que ele ia pensar que eu tinha morto o velho. Por isso, limpei o vómito com o meu vestido, com que antes lhe tinha limpo a cara. E saí do quarto sem fazer barulho.

 

- Foi nessa altura que Fílon, o porteiro, te viu passar no corredor

- disse eu -, nua, a chorar e agarrada ao vestido. Ele pensou que Díon tivesse acabado o que fazia contigo mais cedo do que habitualmente. Mas Díon já estava morto. Contaste ao teu senhor?

 

Ela abanou a cabeça.

 

Mas por quê?

 

- Estive acordada toda a noite nas acomodações dos escravos, a pensar no que tinha acontecido. O Senhor ia pensar que eu tinha envenenado o homem. Não envenenei! Mas o Senhor ia pensar que sim, e depois o que é que me ia fazer? Chorei a noite toda, enquanto os outros escravos me mandavam calar e dormir. Mas como é que eu podia dormir?

 

Depois, ouviu-se uma confusão enorme no quarto do velho. Toda a casa acordou. Tinham entrado à força no quarto dele e tinham-no encontrado. Agora vêm ter comigo, pensei eu. Vão-me matar, aqui mesmo! O coração saltava-me no peito, com tanta força que eu pensei que morria. Soltou um soluço, depois retorceu os lábios num sorriso forçado.

 

- Mas tinha acontecido uma coisa espantosa. Não me acusaram de nada. Pensaram que o velho tinha morrido esfaqueado. Disseram que, depois de eu sair, tinham entrado uns assassinos no quarto dele, e o tinham cortado todo com punhais. Eu não sabia o que havia de pensar. Mas o Senhor não me acusou de nada, por isso eu nunca disse a ninguém o que tinha acontecido. Morto o velho, pensei que tudo ia voltar a ser como dantes. O sorriso desvaneceu-se. Mas afinal tudo mudou. O Senhor vendeu-me. As coisas foram-se tornando cada vez mais horríveis...

 

- Agora não te vai acontecer mais nada disse Eco suavemente. A rapariga cambaleou contra a parede e fechou os olhos.

 

- Por favor, não me obriguem a falar mais. Se me deixassem dormir...

 

- Acabou-se a conversa concordou Eco. Ficas aqui de momento. Vou-te mandar um dos escravos, que te vai mostrar onde podes dormir.

 

Saímos dali, deixando-a a chorar e a murmurar baixinho, com o rosto encostado à parede como se pudesse, de alguma maneira, fundir-se nela.

 

Eu fui até ao jardim atrás de Eco.

 

- O que significa isto?

 

- Significa que Díon foi envenenado, papá.

 

- Mas as punhaladas...

 

- Ele foi apunhalado depois de ter morrido. Tu próprio observaste que parecia ter havido muito pouco sangue para tantas feridas, que as feridas tinham sido todas feitas no peito, e que não havia sinais de que ele tivesse reagido. Ele já estava morto.

 

Mas alguém entrou no quarto naquela noite e provocou uma enorme balbúrdia. Alguém o esfaqueou. Por quê?

 

- Talvez tenha sido o próprio Tito Copónio, porque não queria que se soubesse que Díon tinha sido envenenado debaixo do seu tecto, e preferia que a sua morte parecesse obra de assassinos. Mas a questão não é essa, pois não?

 

O que queres dizer com isso, Eco?

 

- O importante é que Díon foi envenenado.

 

- Mas como? Onde? Por quem? Sabemos que ele não tocava em comida em casa de Copónio. E pouco tempo antes tinha saído de minha casa com o estômago cheio! Cauteloso como era, não é provável que tenha comido mais nada nessa noite.

 

- Exactamente, papá.

 

- Eco, explica-te!

 

Não é preciso gritares, papá. Deves estar a pensar o mesmo que eu. Eu parei de andar de um lado para o outro. Olhámo-nos fixamente.

 

- Talvez.

 

Os sintomas que a rapariga descreveu: se foi veneno, qual te parece...

 

- Cabelo de Górgona disse eu.

 

Sim, foi o que eu pensei. Há uns tempos, eu dei-te um pouco de Cabelo de Górgona a guardar. Não o queria ter em casa por causa dos gémeos. Lembras-te?

 

- Oh, sim disse eu. Tinha a boca seca.

 

Ainda o tens? Ainda está onde tu o puseste?

 

O meu silêncio deu-lhe a resposta. Eco acenou com a cabeça lentamente.

 

A última refeição de Díon foi a que ele comeu em tua casa, papá.

 

Foi.

 

- Deve ter sido aí que foi envenenado. -Não!

 

Alguém usou o Cabelo de Górgona que eu te dei? Ainda o tens ou não?

 

- Clódia! sussurrei eu. Nesse caso, ela não estava a fingir que tinha sido envenenada. Afinal, o Cabelo de Górgona que ela me mostrou podia ter sido mandado por Célio. Não foi Betesda quem lho deu

- porque o Cabelo de Górgona que havia em minha casa já tinha sido usado...

 

- O que estás tu a murmurar, papá?

 

- Mas Célio não podia ter morto Díon, porque ele foi envenenado primeiro. Tens razão, ele está inocente, pelo menos desse crime...

 

Não oiço nada, papá. Eco abanava a cabeça, cansado e exasperado. A única coisa que eu não consigo perceber é por que razão alguém de tua casa havia de querer envenenar Díon. Ninguém conhecia o homem, como é que alguém podia ter motivos para querer que ele morresse?

 

Pensei no meu antigo mentor egípcio, que em segredo gostava de atar jovens escravas e exercer violência sobre elas, e que gostava em particular de lhes atar os pulsos e as pendurar em ganchos. Lembrei-me da conversa das mulheres no meu jardim, partilhando segredos sobre os homens que as tinham violado quando eram jovens. Pensei em Betesda, uma jovem escrava de Alexandria, e no senhor poderoso e respeitado que tinha abusado da sua mãe de forma tão cruel, que acabara por matá-la, e teria feito o mesmo a Betesda, se ela não tivesse reagido, sendo recambiada para o mercado de escravos, onde um romano jovem e pobre, impressionado com a sua beleza, esvaziara a bolsa para comprá-la, sem imaginar que a traria para Roma e faria dela sua mulher, obrigando-a a servir jantares e a oferecer a melhor porção a um visitante estimado como Díon de Alexandria...

 

Eu tinha-lhe dito: Enganaste-me deliberadamente. Negas que assim foi?

 

E ela tinha-me respondido: Não, marido, não o nego.

 

- E eu que pensava ter compreendido!

 

- Papá, fala...

 

- Cibele nos valha! Abanei a cabeça. Acho que já sei a resposta, Eco.

 

Eco insistiu comigo para que eu lhe desse uma explicação, mas eu limitei-me a abanar a cabeça. Regressámos ao Fórum em silêncio, por entre as ruas quentes e animadas da Subura. O céu estava limpo e o Sol ia a pique, lançando uma luz violenta e ofuscante sobre um mundo desprovido de sombras. Assim iluminados, os objectos tornavam-se perversamente indistintos. As suas arestas alinhavam-se e a visão à distância perdia profundidade. Parecia-me que a massa de pessoas que viviam o seu dia de festa não tinha rosto. Eu olhava para elas, sem conseguir distingui-las. Velhas ou novas, homens ou mulheres, sorridentes ou de rosto carregado, calmamente paradas ou abrindo caminho pelas ruas, todas me pareciam confundidas e igualmente estranhas. A própria cidade era irreal, fantástica como nos sonhos e ligeiramente absurda. Este sentimento intensificou-se quando entrámos no Fórum e nos juntámos à imensa multidão que assistia ao julgamento de Marco Crasso.

 

Catulo estava onde eu o tinha deixado.

 

- Perdeste o clímax de Célio! disse ele. Encheu o estojo, para mostrar a toda a gente como é que se fazia. Não, estou a brincar! Mas foi um excelente clímax para todos os implicados. Célio tem uma coisa, gosta de satisfazer os que estão com ele, e não apenas a si próprio. Nem os juizes nem os espectadores permaneceram ansiosos e frustrados diante das muralhas de Nola, por assim dizer.

 

Eu olhei-o confuso, incapaz de compreender o que ele estava a dizer. Mas Catulo prosseguiu.

 

- A seguir, perdeste todo o discurso de Crasso. Mas ainda bem. Com esse, ninguém atingiu nenhum clímax! Parece que Crasso estava a tentar ilibar Célio das acusações relativas àqueles crimes que ocorreram no caminho desde Putéolos até Roma mas, se queres saber, Crasso nunca aprendeu a fazer um bom discurso. Labuta, labuta! Palavras, palavras, mas nem um trocadilho memorável. Devia dedicar-se àquilo que sabe fazer, coleccionar pilhas de dinheiro, e limitar-se a subornar os juizes, em vez de os aborrecer de morte com má retórica. Conseguiu que Célio parecesse tão culpado como Célio tinha conseguido parecer inocente! Agora é a vez de Cícero. Quem é este?

 

- O meu filho disse eu distraído, e apresentei-lhe Eco.

 

- Bem, excelente, chegaram os dois a tempo do verdadeiro discurso. Cícero está a começar. Vamos ver se conseguimos avançar um bocadinho...

 

Conseguimos aproximar-nos bastante mais, de tal maneira que se me tornou possível ver claramente a figura que se aproximava dos juizes. Esguio e frágil quando eu conhecera, há já tantos anos, Cícero tornara-se gorducho e papudo nos seus tempos de prosperidade. O triunfo político do seu consulado fora seguido por uma quase-ruína, quando os seus inimigos conseguiram bani-lo da cidade; a contralegislação que os aliados de Cícero fizeram aprovar permitiu-lhe regressar, mas só depois de o grande homem ter passado dezoito meses no exílio, enquanto as suas propriedades eram destruídas pela populaça. Durante o tempo que passara longe de Roma, Cícero emagrecera em consequência das preocupações, ou pelo menos era o que se dizia. Pela maneira como a toga se lhe adaptava ao corpo enquanto ele se pavoneava diante do tribunal, pareceu-me que não tinha demorado muito a recuperar, tanto a figura, como o estatuto.

 

Em tempos, Clódio fora aliado político de Cícero, e depois sua némesis. Ainda agora, Clódio tentava impedir que Cícero reconstruísse a sua casa arruinada no Palatino, argumentando que a propriedade tinha sido legalmente tomada pelo Estado e santificada com fins religiosos, não podendo por isso ser recuperada por Cícero. Os dois inimigos combatiam-se em todas as arenas possíveis no Senado, nos tribunais, na leitura de presságios por sacerdotes e augures. Havia entre os dois aquele género de ódio ardente que só pode ser extinguido com a morte.

 

Isso talvez fosse uma boa razão para Cícero odiar Clódia, que era a mais dedicada apoiante do irmão e participava em todos os seus esquemas. Mas que dizer do vago boato que Catulo me tinha repetido, acerca de um frustrado caso de amor entre Clódia e Cícero, no tempo em que Clódio e Cícero eram aliados? Talvez ele odiasse Clódia por razões que nada tinham a ver com a política, ou com Clódio. Isso ajudaria a explicar o que lhe fez naquele dia. Ou talvez se tivesse limitado a fazer aquilo que qualquer bom advogado teria considerado necessário para garantir que Marco Célio fosse ilibado das acusações que pendiam sobre ele.

 

Ao ver Cícero pronunciar a oração final do julgamento uma das melhores da sua carreira, diriam alguns mais tarde -, pareceu-me que estava a assistir a uma peça de teatro. Tal como acontece numa peça, a acção parecia estar distante de mim, o diálogo fora do meu controlo; eu era um espectador, impotente para suspender ou alterar o curso dos acontecimentos que se desenvolviam na minha frente. Mas um dramaturgo procura elucidar alguma verdade, seja ela mundana e cómica ou grandiosa e trágica. Ora, onde estava a verdade, nesta estranha peça? Quem era o vilão, quem era a figura trágica? Parecia-me estar a assistir ao género de peça em que a acção se torna cada vez mais enredada e absurda, até não haver maneira de escapar à confusão, a não ser fazendo entrar um deus ou um mensageiro que pronunciam um discurso que torna as coisas compreensíveis. Mas o mensageiro proveniente dos bastidores já tinha chegado: era Eco, que trouxera a rapariga. Agora, eu sabia a verdade acerca da morte de Díon, mas nenhum dos actores a conhecia nem Cícero, nem Célio, nem Clódia. Por meu lado, era-me impossível revelar o que sabia, desempenhar o papel do deus ex machina. Como podia eu incriminar a minha própria mulher?

 

Tinha de me limitar a assistir, impotente e mudo, enquanto a batalha entre Clódia e Célio atingia o seu clímax. Veneno, fraude e falsas acusações tinham sido sucessivamente utilizados para atacar e contra-atacar. Agora era Cícero que, qual velho e encanecido general, vinha chefiar o ataque final. As palavras seriam a sua arma. Ela não compreende o poder das palavras, tinha dito Catulo acerca de Clódia. Pois iria aprender, e diante de Roma inteira.

 

Juizes começou Cícero, inclinando a cabeça em sinal de respeito e olhando um por um os cidadãos que constituíam as longas filas de jurados. Se algum dos presentes desconhecesse os nossos tribunais e os seus costumes, talvez estranhasse a terrível urgência deste caso particular, quando os restantes assuntos públicos se encontram suspensos por causa do festival e este é o único julgamento a decorrer no meio das festividades e dos jogos públicos. Tal observador concluiria indubitavelmente que o acusado deve ser um indivíduo muito perigoso, um criminoso inveterado culpado de um crime tão terrível, que todo o Estado entrará em colapso se as suas transgressões não forem imediatamente castigadas!

 

” Nós explicaríamos a esse observador que dispomos de uma lei especial, referente ao comportamento criminoso contra o Estado. Quando cidadãos romanos cometem actos de traição, pegando em armas para obstruir o Senado, atacar magistrados ou tentar destruir o próprio governo, somos obrigados a proceder ao julgamento desses homens, mesmo que seja um dia de festa. Certamente que o nosso observador não objectaria a uma lei como essa, dedicada à preservação do próprio Estado. Mas gostaria de saber exactamente de que tipo de acusações se estava a falar no presente caso. Imaginem a sua reacção ao ser informado de que não estava em julgamento nenhum crime ou ultraje real. Pelo contrário, este jovem talentoso, vigoroso e bem-amado está a ser acusado pelo filho de um homem contra quem o acusado apresentou recentemente queixas. Além disso, a acusação foi inteiramente organizada e financiada por uma prostituta.

 

A multidão suspendeu colectivamente a respiração. Ouviram-se algumas irrupções de riso, que pareceram mais sonoras devido ao silêncio total. Célio tinha feito alusões elegantes a Clitemnestra, e trocadilhos complicados acerca de Cós e Nola. Até tinha erguido um estojo e aludido à história do recipiente cheio de sémen. Mas Cícero declarava, numa das primeiras frases do seu discurso, que Clódia era uma prostituta. Era um anúncio e uma advertência: de que não haveria contemplações. Eu tentei ver a reacção de Clódia, mas a multidão tinha-se mexido e o meu campo de visão estava bloqueado.

 

- O que pensaria de tudo isto o nosso hipotético observador? continuou Cícero. Certamente concluiria que o principal acusador tinha uma desculpa para apresentar um caso tão superficial Atratínio é muito jovem e pouco experiente, e a devoção que demonstra pelo seu pai é compreensível. O nosso observador concluiria também que a maliciosa petulância da mulher em questão devia ser controlada, ou pelo menos confinada ao seu quarto de cama. Mas o nosso observador concluiria ainda, caros juizes, que estais a ser gravemente sobrecarregados, porque sois os únicos a quem não foi concedido um dia feriado!

 

Isto produziu uma ronda de gargalhadas apreciativas nas primeiras filas e um abrandamento da tensão, excepto na secção dos acusadores, onde consegui vislumbrar Clódia. O seu rosto estava de tal maneira rígido, que parecia que ela tinha posto uma máscara.

 

Cícero prosseguiu com uma defesa do carácter de Célio. Pôs de lado quaisquer divergências políticas que pudessem tê-lo distanciado do seu jovem protegido. Isso tinha terminado. Se Célio cometera alguns erros, estava no seu direito, como qualquer jovem, desde que se conduzisse com integridade e honestidade.

 

- Ah, mas os acusadores disseram que Célio estava cheio de dívidas e, portanto, presumivelmente vulnerável a más influências e a uma vida criminosa. Exigiram que ele apresentasse os seus livros de contas, para que fossem inspeccionados. A minha resposta a isto é muito simples. Esses livros não existem! Um jovem como Célio, ainda dependente da autoridade do seu pai, não tem livros de contas pessoais. A acusação afirma que Célio contraiu grandes empréstimos, mas não será capaz de apresentar provas desse facto. Ah, mas ele deve viver acima dos seus meios, dizem eles, por causa do apartamento luxuoso que mantinha no Palatino, que arrendou a Clódio pela incrível soma (segundo nos disseram) de trinta mil sestércios por ano. O número é absurdo! Talvez dez mil sestércios. Bem, percebemos o que se passa quando recordamos que, recentemente, Clódio pôs o edifício à venda e pede por ele bastante mais do que o seu valor real. A acusação está a fazer um favor a Clódio ao inflaccionar os recibos das rendas, para que ele consiga intrujar um tolo qualquer, levando-o a pagar três vezes mais do que aquele horror infestado de ratos realmente vale!

 

A multidão riu-se. Cícero abanou a cabeça num gesto de desgosto fingido, mas parecia ter dificuldade em evitar sorrir da sua própria esperteza. Um julgamento sério relativo ao assassínio de dignitários estrangeiros transformara-se de repente num inquérito sobre a vingança de uma mulher maliciosa e negócios de propriedades de honestidade duvidosa. Era Célio que estava a ser julgado por assassínio, ou os Clódios pelos seus vícios? A multidão parecia não se importar de ir atrás de Cícero, desde que ele a divertisse.

 

- Censurais Marco Célio por ter trocado a casa de seu pai por aquele apartamento do Palatino, como se isso fizesse dele um mau filho, quando na verdade foi com a bênção do pai que ele o fez. Presumis que se mudou para poder dar festas desenfreadas, quando na verdade o fez porque estava a iniciar a sua carreira política e precisava de viver perto do Fórum. Mas tendes toda a razão quando dizeis que foi um erro Célio arrendar o apartamento do Palatino. Em que fonte de sofrimentos se transformou aquele sítio! Foi aí que começaram todos os seus problemas ou, mais precisamente, a bisbilhotice maliciosa -, quando o garboso Jasão foi dar um passeio e percebeu que se encontrava no bairro da Medeia do Palatino.

 

”A Medeia do Palatino” eu já tinha ouvido aquela frase, tal como tinha ouvido alguém chamar a Clódia ”Clitemnestra por uma moeda” antes de Célio o fazer. Fora a Catulo, na primeira noite em que ele me levou à Taberna Salaz. Quem é que lhe chama essas coisas? tinha-lhe eu perguntado. Eu! Acabo de os inventar. O que é que achas? Vou precisar de novos piropos para conseguir que ela volte a reparar em mim...

 

Voltei-me e olhei para Catulo, que continuou a olhar em frente.

- No devido tempo, voltarei a esta Medeia e ao papel que ela desempenhou neste caso disse Cícero, com uma sugestão de ameaça. Para já, gostaria de dedicar algumas palavras às chamadas testemunhas, e às diversas ficções aparentemente inventadas em apoio da acusação. Uma dessas histórias refere-se a um tal senador Fúfio. O velhote vai supostamente testemunhar que, durante a eleição para os pontífices, Célio o terá atacado fisicamente. Se o senador decidir avançar com o seu testemunho, eu perguntar-lhe-ei por que razão não apresentou queixa pouco depois de o alegado ataque ter ocorrido, em vez de esperar tanto tempo. Avança agora por sua própria iniciativa ou a pedido daqueles que estão por trás da acusação? Se é esse o caso, como penso que todos sabemos que será, que triste reflexão sobre os produtores deste espalhafatoso drama, que apenas sejam capazes de coagir um membro do senado a colocar uma máscara de actor e pronunciar as deixas que eles escreveram!

 

Mas as testemunhas que supostamente nos dirão que as suas virtuosas esposas foram molestadas por Célio quando se dirigiam a casa certa noite, depois de um jantar, também não me impressionam muito. Que elevados princípios devem ter esses falcões nocturnos, para só agora apresentarem tais acusações. Na altura, nem sequer procuraram encontrar-se informalmente com Célio para resolverem quaisquer agravos de que tivessem sido objecto.

 

Supostamente, haverá ainda mais testemunhas, com revelações chocantes. Mas não me parece que devamos esperar ouvir coisa alguma minimamente credível nem ver alguém remotamente fiável no lugar das testemunhas. Conheceis tão bem como eu, oh juizes, o género de canalha que passeia pelo Fórum num dia vulgar, pessoas sem nada que fazer que estão dispostas a testemunhar praticamente seja o que for sob juramento, desde que alguém lhes pague para o fazerem. Se a acusação insistir em apresentar actores contratados neste processo, eu confio, meus senhores, em que a vossa experiência, o vosso discernimento e o vosso bom senso vos permitirão detectar a ganância que sustenta o seu depoimento.

 

Era imaginação minha, ou Cícero estava a olhar directamente para mim? E assim ficava resolvido o problema da testemunha-surpresa que Herénio tinha prometido apresentar, do homem cuja honestidade era temida pelo próprio Cícero! Com uma única observação antecipada, eu fui posto de lado como perjuro subornado. O ataque era inútil, claro, dado que eu já me tinha recusado a apresentar-me como testemunha-surpresa de Clódia. Mas isso era quando eu tinha razões para pensar que o envenenamento dela fora uma farsa, que ela tinha pedido o Cabelo de Górgona a Betesda para me enganar. Agora parecia-me que tinha realmente sido envenenada. Olhei para ela e vi que continuava aparentemente apática. Teria de facto estado às portas da morte?

 

- Pela minha parte prosseguia Cícero não tenho intenção de vos incomodar com testemunhas. Os factos deste caso são sólidos e inabaláveis. A verdade não depende daquilo que uma testemunha possa ou não dizer. De que valem as ”provas”, que podem ser distorcidas e manipuladas, ou pura e simplesmente compradas? Eu prefiro usar o método racional, refutando os erros com demonstrações, respondendo a falsidades com factos, abrindo todas as coisas ao severo escrutínio da razão.

 

Acabais de ouvir o meu colega Marco Crasso fazer isso mesmo. Ele respondeu às acusações relativas ao papel de Célio nos distúrbios que tiveram lugar em Neápolis e Putéolos com uma elucidação tão clara, que eu gostaria que ele tivesse tratado igualmente da questão do assassínio de Díon. Mas, na verdade, que mais há a dizer sobre isso? Todos conhecemos o verdadeiro perpetrador do crime. Também sabemos que ele não teme retribuição e nem se incomoda a negar o que fez. Afinal, trata-se de um Rei, que não está sujeito à justiça romana. Além disso, o homem acusado de ser agente desse Rei Públio Asício já foi levado a tribunal. Foi ilibado. Há quem diga que o julgamento foi viciado, mas eu digo que isso é um disparate e a minha palavra tem o seu peso, porque fui eu que defendi Asício. Agora, os acusadores querem levar-nos a pensar que Célio também era agente do Rei, que colaborou com Asício neste terrível assassínio. Onde esteve a acusação nos últimos meses? Não terão chegado a saber que Asício foi ilibado? Que perda de tempo, oh juizes, para eles e para vós, tentarem relacionar Célio e Asício, tendo em conta que Asício foi ilibado! Cícero estendeu os braços para o céu, num gesto de desespero.

 

” Passemos ao fulcro do problema. A acusação fez um grande alarido sobre questões de carácter. Concordo em absoluto que a questão aqui é de carácter, mas não necessariamente do carácter de Marco Célio. Ontem, oh juizes, reparei que seguíeis atentamente os argumentos do meu amigo Lúcio Herénio. Ele falou muito sobre irresponsabilidade financeira, luxúria desabrida, imoralidade e outros vícios da juventude. Herénio é habitualmente moderado, tolerante, cortês, com uma atitude muito equilibrada e moderna. Mas ontem, aqui no tribunal, parecia ter-se transformado num daqueles velhos e sombrios tutores, moralizadores e sisudos, que nos faziam tremer de medo na nossa juventude. Censurou Marco Célio em termos tão severos, que o pai mais rígido empalideceria. Falou repetidamente acerca dos males de uma vida dissoluta, de tal maneira que até eu vacilei um pouco. Seria adequado, exigia ele saber, eu defender um homem que aceitou alguns convites para jantar, que ia passear para jardins da moda à beira do Tibre, que em uma ou outra ocasião da sua vida apresentava um odor a garrafa, e que até foi veranear, em companhia mista, para as praias de Baias? Este comportamento escandaloso é imperdoável!

 

Será? Vamos, Herénio, acho que todos conhecemos homens que se permitiram alguns momentos mais prazenteiros na sua juventude, e que depois lhes voltaram as costas, transformando-se em cidadãos perfeitamente respeitáveis. Toda a gente concorda que deve ser concedida aos jovens uma certa largueza em termos de ousadia. A Natureza concedeu-lhes um forte apetite sexual e, enquanto eles saciarem esse apetite sem arruinar a família de outro, o mais sensato é deixar a Natureza seguir o seu curso. Compreensivelmente, os de uma geração mais velha, como eu próprio, preocupam-se com os problemas que possam resultar dos excessos da juventude. Mas parece-me injusto, Herénio, que explores esta preocupação razoável para suscitar desconfianças e preconceitos contra determinado jovem em particular. Recitas um catálogo de vícios para incitar à aversão moral, mas a tua atitude distrai-nos da pessoa concreta de Marco Célio. Ele não é mais culpado desses excessos do que a maioria dos jovens. Nem é menos merecedor da nossa indulgência. E não deve ser condenado pelas culpas de toda uma geração!

 

Passemos a uma coisa mais específica, nomeadamente a história do ouro e do veneno. São duas alegadas transacções que giram à volta da mesma pessoa: supostamente, foi Clódia quem emprestou o ouro foi também ela quem recebeu o veneno. Bem, pelo menos neste caso estamos em presença de uma acusação real! Todas as outras acusações são meras insinuações e insultos, mais adequados a um concurso de gritos do que à sobriedade de um tribunal. Dizer que Célio seduz as mulheres dos outros homens, que se envolve em rixas e aceita subornos, e por aí fora são calúnias e não acusações, repreensões sem fundamento pronunciadas por aquele género de acusadores que tende a perder o controlo sobre as suas declamações. Mas nestas duas últimas acusações, relativas ao ouro e ao veneno, há qualquer coisa mais tangível. Sim, pressinto que há alguma coisa nestas acusações ou antes, alguém escondido por trás delas, um certo indivíduo com um objectivo muito específico.

 

Eis a primeira história: Célio precisava de dinheiro e Clódia emprestou-lho sem testemunhas, claro. O que é uma prova de que existia entre ambos uma amizade considerável, não vos parece? A segunda história: Célio decidiu assassinar Clódia, comprou veneno, subornou colaboradores, fixou um tempo e um lugar para entregar o veneno àqueles que iriam administrá-lo. Desta vez, a prova é um ódio opressivo!

 

Juizes, todo este caso gira à volta de Clódia, uma mulher de nascimento superior e baixa reputação. Não estou aqui para provocar escândalo, e não me divirto a contestar a virtude de uma senhora romana. Contudo, dado que o caso contra o meu cliente tem origem nesta mulher, e dado que é meu dever defender o meu cliente, não tenho alternativa senão discutir as acusações tão abertamente quanto possível. Ainda assim, ao falar acerca desta mulher, procurarei não dizer mais do que o necessário para refutar as acusações. Na verdade, sinto-me obrigado a ter muito cuidado com aquilo que digo, porque toda a gente conhece a infeliz inimizade que existe entre mim e o marido desta mulher.

 

Ouviu-se uma explosão de riso. Cícero fingiu sentir-se confuso.

 

- Oh, eu disse marido! Queria dizer irmão, naturalmente; não percebo por que estou sempre a cometer o mesmo erro. Encolheu os ombros e sorriu. Pois então, peço desculpa, oh juizes, por ter de arrastar o nome de uma senhora para esta discussão. Na verdade, nunca imaginei vir a tribunal combater uma mulher especialmente esta mulher, de quem se diz que é amiga de todos os homens que conhece.

 

Esperou que os risos morressem. A multidão tinha-se movido e eu conseguia ver Clódia outra vez. O seu rosto estava rígido mas, mesmo à distância, consegui perceber que ela estava assustada. Começava a aperceber-se da magnitude do erro que cometera ao trazer para a arena pública as suas razões de queixa contra Célio.

 

Cícero pigarreou.

 

- Permitam-me que comece por perguntar à senhora em questão o seguinte: devo repreendê-la à maneira severa dos nossos antepassados ou de forma mais suave e mais moderada? No primeiro caso, terei de apelar aos mortos, a um desses sujeitos barbados e de olhar severo que nos olham do alto das velhas estátuas. E por que não aos antepassados da própria senhora? Ápio Cláudio, o Cego, seria adequado, já que não terá se sofrer a dor de olhar para ela.

 

Ouviram-se risos, e depois um murmúrio de antecipação, quando Cícero assumiu o papel do antepassado cego, estreitando os olhos, erguendo os braços, afastando da voz todo e qualquer vestígio de comicidade.

 

- Mulher! Que interesse legítimo poderia ter para ti um homem como Célio, tão mais jovem do que tu? Como te aproximaste dele a ponto de lhe emprestares uma quantia em ouro, ou de sentires um ódio tal, que receaste ser envenenada? Não te resta nenhum orgulho, nenhum sentido de decência? És totalmente ignorante da tua família e das suas realizações? Não sabes que o teu pai, o teu tio, o teu avô, o teu bisavô, o teu trisavô e o pai dele foram todos cônsules? E que tu própria foste mulher, enquanto ele foi vivo, de Quinto Metelo Celer, um homem cujas virtudes se sobrepunham às dos outros homens? Pertencendo a uma casa tão grandiosa, e tendo entrado pelo casamento noutra família tão importante, como te foste meter com esse jovem, Marco Célio? Era teu primo, teu familiar por afinidade, um amigo íntimo do teu marido? Não, não era nenhuma dessas coisas. Que razão tinhas para te insinuares de forma tão íntima na sua vida, excepto um desejo imoderado de exercitares o teu apetite voraz por carne jovem?

 

Ainda a representar o cego Cláudio, Cícero abanou a cabeça e prosseguiu.

 

- Se o exemplo dado pelos homens da tua linhagem não te envergonha, talvez as mulheres consigam envergonhar-te. Que dizer de Cláudia Quinta, que provou a sua pureza ao salvar o navio que trouxe para Roma a Grande Mãe, cuja festa celebramos hoje? Considera a fama que a sua virtude acrescentou à tua casa. Ou a famosa Virgem Vestal, Cláudia, que protegeu o seu pai contra uma multidão irada com o seu corpo puro? Por que partilhas os vícios do teu irmão, e não as virtudes dos teus antepassados? Foi para que tu pudesses conduzir os teus negócios sexuais diários que nós, os famosos Cláudios de antigamente, recusámos a paz oferecida por Pirro e rasgámos o seu acordo? Ou construímos o primeiro aqueduto que trouxe água até Roma para que tu pudesses usá-la para te lavares depois das tuas cópulas incestuosas? Ou construímos a nossa grande via para que pudesses exibir-te para cima e para baixo na companhia dos maridos das outras mulheres?

 

A dureza do tom de voz de Cícero impedia as pessoas de se rirem. Ele baixou os braços e olhou de frente para Clódia, que lhe devolveu o olhar com uma expressão de pura maldade.

 

Desisto deste papel. Falo-te agora directamente. Se tencionas apresentar o teu depoimento, terás de explicar como foi que tais intrigas ocorreram. A teu pedido, os acusadores repetiram aos nossos ouvidos uma lista de frases sugestivas: orgias adúlteras, festas dissolutas na praia, noites inteiras de bacanais, bailes até de madrugada, intermináveis deboches e embriaguez. Pensaste que podias acusar Célio de deboche sem expores a tua própria devassidão ao escrutínio do tribunal? Foi loucura. Percebo pela expressão do teu rosto que gostarias de evitar espectáculo tão desagradável. Agora é tarde!

 

Por longos momentos, Cícero e Clódia fixaram-se nos olhos em silêncio, enquanto os espectadores assistiam. Depois, ele recuou e abrandou a sua atitude. Sorriu docemente.

 

- Mas vejo que não te agrada a abordagem da repreensão severa. Muito bem, esquece esses antepassados rústicos e a sua moral rigorosa. Vou buscar uma voz mais moderna, para tentar trazer-te à razão vou fingir que sou o teu amado irmão mais novo, vê lá! É razoável, não? Não há pessoa mais mundana, isso é certo. E nunca ninguém te amou como ele, desde pequeno. Ele ainda tem aqueles pesadelos que o faziam urinar na cama, e o obrigavam a ir dormir para a tua? É uma pena que esteja hoje encarregado das festividades e não possa estar ao teu lado. Mas eu consigo imaginar o que ele diria.

 

Cícero tomou uma expressão afectada e agitou os braços de forma espasmódica, enquanto a multidão guinchava de riso.

 

- Irmã, minha irmã, em que sarilho te meteste! Que loucura é esta? Perdeste o juízo? Sim, eu sei, eu sei, foi aquele rapaz do fundo da rua, que atraiu a tua cobiça alto, bonito, de belos olhos. Fez-te correr esse sangue velho e cansado. Querias vê-lo mais vezes com tudo o que ele tinha! Devia ser fácil deitar-lhe as mãos, pensaste. Os jovens costumam ter pouco dinheiro, e tu adoras exibir a tua herança.

 

Porém, irmã, minha irmã, as coisas não resultaram como tu querias, pois não? Há jovens que não estão interessados na companhia de uma mulher ávida e mais velha do que eles, por muito dinheiro que ela tenha. Pronto, ultrapassa isso! Tens o teu horto no Tibre, onde podes ir ver e medir os jovens nadadores. Para que serve aquilo, senão para te proporcionar um amante novo todos os dias? Por que continuas a importunar este jovem, que obviamente não te quer?

 

Cícero abandonou a personagem afectada de Clódio e voltou as costas a Clódia. Avançou pelo espaço vazio na direcção do banco do réu.

 

- E agora é a tua vez de seres admoestado, Marco Célio. Agitou o dedo. Célio fez uma cara de rapazinho atento, sobrancelhas erguidas e suave inocência. Vou precisar da voz de um pai para lidar contigo, jovem mas que género de pai? Um daqueles velhos de coração de ferro, que te atribuem todas as culpas, dizendo: ”Mas como é que te lembraste de escolher aquela prostituta? Por que não tiveste o bom senso de fugir no momento em que a viste?” Perante um velho sombrio que assim lhe falasse, Célio poderia defender-se dizendo que nunca se passou nada de impróprio, por muito que a bisbilhotice diga o contrário. Como pode um jovem que habita uma cidade cheia de boatos maliciosos evitar ser manchado pelos rumores? Vivendo tão perto daquela mulher e tendo sido visto na sua companhia, não é de espantar que as pessoas tenham presumido o pior. Nem o irmão da senhora pode visitá-la sem agitar a língua isto é, sem fazer trabalhar as línguas.

 

Muito bem, no que diz respeito a esta mulher, de momento, não é meu objectivo criticá-la. O que eu pretendo é censurar Marco Célio.

 

Muito bem, ultrapassámos os baixios rochosos e os recifes traiçoeiros. A partir daqui, navegaremos em mar aberto! Voltemos às duas acusações contra Célio. O ouro: foi dito que Célio o obteve de Clódia a fim de subornar os escravos de Lúcio Luceio e conseguir que matassem Díon. Acusações graves, é certo, que afirmam que um homem conspirou para matar um enviado diplomático, e instigou os escravos de outro a matarem um convidado do seu senhor, crimes hediondos!

 

Mas eu não posso deixar de perguntar se Clódia terá entregue esse ouro a Célio sem o questionar quanto aos seus objectivos. Certamente que não! Se ele lhe disse que era para assassinar Díon, então, ela fazia parte da conspiração. Foi para isso que vieste aqui hoje, mulher, para fazer uma confissão? Para nos dizer que assaltaste a tua arca secreta, que desnudaste a estátua de Vénus que tens no teu jardim, adornada com os pequenos troféus dos teus amantes, e entregaste o saque a Célio para que ele o usasse de forma criminosa? Transformaste a própria Vénus em tua cúmplice deste crime?

 

Eu olhei de lado para Catulo, porque me pareceu, pelo canto do olho, que o tinha visto mover os lábios, como se estivesse a recitar o discurso de Cícero juntamente com ele. Ele reparou que eu estava a observá-lo, lançou-me um misto de sorriso e crispação, e voltou-se. Depois olhei para Clódia e tive um vislumbre do seu rosto pálido e rígido antes de a multidão bloquear o meu campo de visão.

 

Cícero prosseguiu.

 

- Se Célio era tão íntimo de Clódia como afirmam os acusadores, certamente lhe terá confiado o fim que tencionava dar ao ouro. Por outro lado, se os dois não eram assim tão íntimos, então o mais provável é ela não lhe ter dado ouro nenhum! Qual das alternativas escolhes, Clódia? Emprestaste dinheiro a um homem para ele cometer um crime inominável, tornando-te também criminosa? Ou será verdade que nunca lhe emprestaste dinheiro nenhum?

 

A acusação é, pura e simplesmente, insustentável, e não apenas devido ao facto de o carácter de Marco Célio se não adequar de todo a uma conspiração tão desprezível e cobarde. Em primeiro lugar, ele é demasiadamente esperto. Nenhum homem com um pouco de bom senso confiaria um crime de tal magnitude aos escravos de outro homem! De um ponto de vista puramente prático, tenho de perguntar: como terá Célio entrado em contacto com esses escravos de Lúcio Luceio?

 

Encontrou-se com eles directamente atitude temerária ou por meio de um intermediário? Podem dizer-nos o nome desse moço-de-recados? Não, porque essa pessoa não existe. E podia continuar interminavelmente a fazer perguntas destas. Quantas terei de fazer para vos provar a total implausibilidade da acusação, e a completa ausência de provas que a sustentem?

 

Para acabar com este assunto, oiçamos o próprio Lúcio Luceio, que nos facultou um depoimento jurado sobre o assunto. Recordo-vos que, para além de ter sido um grande amigo de Díon e seu anfitrião, se trata de um homem que presta uma atenção escrupulosa aos pormenores, como poderá atestar qualquer pessoa que conheça os seus escritos sobre história. Certamente que, se tivesse descoberto que escravos seus conspiravam com um estranho para assassinar o seu convidado, se tivesse sequer suspeitado de tal coisa, Luceio teria investigado o caso a fundo. Ouvi, pois, o que ele tem para nos dizer.

 

Um funcionário avançou para ler o documento. Cícero foi até ao banco do réu onde o seu secretário, Tiro, lhe estendeu um copo de água. Recordei a minha entrevista com Luceio, a forma determinada como ele se recusara a reconhecer que houvesse a menor possibilidade de ter acontecido o que quer que fosse em sua casa, as afirmações da sua mulher, o desaparecimento dos escravos da cozinha, que deviam saber alguma coisa mas que tinham sido despachados para as minas e nunca diriam a ninguém aquilo que sabiam.

 

O funcionário pigarreou.

 

- ”Eu, Lúcio Luceio, faço a seguinte declaração sob juramento solene, nas Calendas de Aprilis: Que, durante um certo período do mês de Januarius, Díon de Alexandria, meu estimado amigo, foi meu convidado e viveu sob o meu tecto; que, enquanto ele esteve hospedado em minha casa, nada aconteceu que pusesse em perigo a sua segurança; que quaisquer rumores do contrário, particularmente rumores relativos a qualquer falha na lealdade dos escravos de minha casa, são totalmente soezes; que Díon deixou a minha casa por sua própria decisão e em perfeita saúde; e que eu nada sei que possa lançar luz sobre as circunstâncias da sua morte.”

 

Cícero avançou na direcção dos juizes.

 

- Aí tendes: uma acusação temerária e totalmente desprovida de fundamento, que emana de uma casa pródiga em deboche e perversidade; e uma resposta equilibrada e sóbria, de uma casa de padrões impecáveis.

 

De um lado, temos a palavra de uma mulher temperamental, frenética e louca por sexo; do outro, o depoimento jurado de um dos homens mais respeitados de Roma. Será razoável que hesitemos entre acreditar num ou noutro?

 

Agora sobre as acusações de que Célio conspirou para envenenar Clódia. Confesso que não compreendo nada desta história. Por que havia Célio de querer fazer tal coisa? Para evitar pagar-lhe o alegado empréstimo? Mas Clódia alguma vez lho exigiu? Para evitar que Clódia contasse o que sabia acerca do atentado à vida de Díon? Mas esse atentado nunca existiu, como acabamos de estabelecer. Na verdade, eu gostaria de sugerir que este disparate sobre o ouro e a existência de uma conspiração contra Díon foi inventado precisamente para arranjar um motivo para esta outra invenção, de que Célio tentou envenenar Clódia. A primeira invenção fornece o motivo para a segunda! Mentiras construídas sobre mentiras, calúnias sobre calúnias.

 

A acusação alega que Célio tentou cometer novo assassínio, subornando os escravos de outra pessoa desta vez, os escravos de Clódia, para que matassem a sua senhora. E isto depois de não ter sido bem sucedido numa conspiração semelhante com os escravos de Luceio! Que qualidade de homem põe todo o seu destino nas mãos dos escravos de outra pessoa, não uma, mas duas vezes? Pelo menos aceitem que o meu cliente tem miolos!

 

E de que género de escravos estamos nós a falar? Relativamente à casa de Clódia, isto é um factor importante. Como Célio devia saber se frequentou a sua casa, a relação entre Clódia e os seus escravos não pode propriamente ser descrita como normal. Numa casa como aquela, dirigida por uma mulher que se comporta como uma prostituta, onde são diariamente satisfeitos desejos anormais e praticados vícios inauditos, onde os escravos são convidados a ter uma desordenada série de intimidades com os seus superiores pois bem, esses escravos deixaram de ser escravos. Partilham tudo com a sua senhora, incluindo os seus segredos. Tornam-se parceiros da sua vida dissoluta. Numa casa como essa, as pessoas de baixo estão, por vezes literalmente, em cima.

 

Consegui avistar Clódia, que parecia encolher-se fisicamente diante das rajadas de gargalhadas que ecoavam pelo Fórum. Cícero ergueu a mão para silenciar a multidão.

 

- Manter os escravos nesse regime tem, pelo menos, uma vantagem: deve ser quase impossível subornar escravos corruptos e mimados como esses. Célio devia ter conhecimento disso, já que era tão íntimo de Clódia como nos fizeram crer. Com certeza que, conhecedor da situação, ele não se aventuraria a tentar insinuar-se entre a mulher e os seus escravos um lugar apertado onde qualquer homem teria dificuldade em se introduzir! Se não conhecia a situação, nesse caso, como podia ele ser tão íntimo dos escravos, que pensasse na possibilidade de os subornar? A acusação é autocontraditória.

 

Passemos agora ao alegado veneno à sua origem, à sua entrega, etc. Os acusadores dizem-nos que Célio o tinha em sua casa. Queria testá-lo, por isso comprou um escravo com esse propósito. O veneno foi eficaz. O escravo morreu rapidamente. O veneno...

 

A voz de Cícero ficou subitamente embargada por soluços. Ele cerrou os punhos e ergueu os olhos para o alto.

 

- Oh, deuses imortais! Quando um mortal comete crime tão horrível, por que fechais os vossos olhos? Por que permitis que o canalha permaneça impune? Arquejou e estremeceu, como se estivesse a esforçar-se por não chorar. O jovial discurso foi abruptamente suspenso. Um silêncio desconfortável caiu sobre a multidão.

 

Cícero estava absolutamente imóvel, como um homem paralisado pela emoção que luta por recuperar o controlo.

 

- Perdoai-me disse ele por fim, numa voz rouca e trémula. Mas a simples menção de veneno...

 

Permiti-me que me explique, oh juizes. Foi o dia mais amargo da minha vida, aquele em que vi o meu amigo Quinto morrer diante dos meus olhos. Falo de Quinto Metelo Celer, o homem cuja morte fez daquela mulher uma viúva, permitindo-lhe viver como lhe agradasse. Era um homem excelente, dedicado ao serviço de Roma e cheio de vigor para esse fim! Lembro-me da última vez em que o vi aqui no Fórum, a tratar dos seus assuntos, de excelente saúde e muito bem-disposto, cheio de planos para o futuro. Dois dias depois, fui chamado ao seu leito de morte, onde o encontrei atormentado pelas dores, quase incapaz de respirar. O espírito começava a escapar-lhe, mas já no fim voltou a ficar lúcido. Os seus últimos pensamentos não foram para si próprio, mas para Roma. Fixou o olhar em mim eu chorava e, com palavras alquebradas, tentou avisar-me da tempestade que pendia sobre a minha cabeça, da tempestade que ameaçava todo o Estado. ”Cícero, Cícero, como te aguentarás contra eles, sem mim para os manter à distância?” Nessa altura, chorei, não por ele, mas pelo futuro da cidade que ele amava, e pelos amigos que deixariam de ser objecto da sua protecção. Pergunto muitas vezes a mim próprio se as coisas teriam sido diferentes se ele fosse vivo. Teria o seu primo Clódio levado a cabo um décimo dos seus loucos esquemas se Quinto Metelo Celer vivesse para se lhes opor? Teria a sua mulher, Clódia, caído nesta espiral descendente de descrédito que finalmente nos trouxe hoje aqui?

 

E agora, esta mulher tem a audácia de falar de venenos de acção rápida! O que sabe ela sobre o assunto? Aparentemente, o suficiente! Se avançar com o seu testemunho, talvez possa dizer-nos exactamente o que sabe sobre venenos, e como o aprendeu. Quando penso que continua a viver na casa onde Celer morreu, quando penso naquilo em que transformou a casa dele depois da sua morte, pergunto-me se as próprias paredes não se rebelarão de repugnância, ruindo sobre ela!

 

Cícero inclinou a cabeça por um longo momento, aparentemente dominado pela emoção. Quanto a Clódia, ninguém perceberia a famosa beldade que ela era pelo seu aspecto naquele momento. Os ossos do seu rosto pareciam prestes a rebentar a pele. Os seus olhos brilhavam como carvões. A sua boca era uma linha recta, com uma nesga dos dentes a aparecer por entre os seus lábios esbranquiçados.

 

- Perdoai-me, oh juizes disse Cícero, recuperando a compostura.

- Receio que a recordação deste amigo nobre e valoroso me tenha perturbado profundamente. E vejo que também afectou alguns de vós. Mas continuemos com este assunto desagradável e mesquinho, e acabemos com ele de uma vez.

 

Muito bem: diz-se que, depois de experimentar o veneno num infeliz escravo, Célio o entregou a um amigo seu, Públio Licínio. Ali o vedes, orgulhosamente sentado entre os apoiantes de Célio, sem a mínima vergonha de se mostrar apesar da calúnia que se ergueu contra ele. Diz-se que Licínio devia entregar o veneno a alguns escravos de Clódia num pequeno estojo nas termas senianas. Ah, mas os escravos tinham revelado a conspiração à sua senhora, por isso ela mandou alguns amigos seus emboscarem-se no estabelecimento para apanharem Licínio no momento em que ele entregasse o veneno. Pelo menos é o que se diz.

 

Anseio por descobrir a identidade das íntegras testemunhas que supostamente terão visto com os seus próprios olhos o veneno nas mãos de Licínio. Até agora, os seus nomes não foram mencionados, mas devem ser pessoas muito conceituadas. Em primeiro lugar, são íntimos da senhora. Em segundo lugar, concordaram em se emboscar nas termas em pleno dia, uma tarefa exclusivamente adequada a homens respeitáveis.

 

Senti um formigueiro na parte de trás do pescoço. Cícero falava sobre mim, entre outros. Mesmo sem ouvir mencionar o meu nome, senti-me atingido pelo seu desprezo, denunciado e desorientado. Se eu me sentia assim, como estaria Clódia a sentir-se neste momento?

 

- Mas não tendes de acreditar na minha palavra como penhor do valor destas testemunhas, destes furtivos espiões diurnos de banheira

- continuou Cícero. As suas acções falam por si. Disseram-nos: ”Eles esconderam-se e observaram tudo”. Estou certo disso. Esse género de pessoas adora observar! ”Revelaram-se acidentalmente”. Oh céus, ejaculadores precoces que deplorável falta de autocontrole viril! Diz a história que Licínio fez a sua entrada e estava prestes a entregar o estojo incriminatório mas ainda não o tinha feito, quando estas soberbas testemunhas anónimas irromperam fazendo com que Licínio escondesse o estojo e fugisse dali!

 

Cícero abanou a cabeça e fez uma careta de repugnância.

 

- Por vezes, por muito mal contada que seja uma história, vem à superfície um fragmento da verdade. Por exemplo, este miserável dramazinho, da autoria de uma senhora a quem são atribuídas tantas histórias de mau gosto. Que desprovido de enredo, que tristemente falho de conclusão! Como é possível que todos estes homens tenham deixado Licínio escapar-lhes por entre os dedos, quando estavam nos seus lugares, preparados, e ele não suspeitava de nada? E, de qualquer maneira, de que valia capturá-lo se ele já tinha entregue o veneno? Uma vez passado de mão, ele podia afirmar que nunca o tinha visto. Por que não capturá-lo no momento em que ele entrou nas termas, prendê-lo e obrigá-lo a confessar, tendo como testemunhas todos os presentes? Em vez disso, aí vai Licínio, com o bando da senhora na sua peugada, empurrando-se e tropeçando uns nos outros. No final, ficámos sem o estojo, sem o veneno, e sem uma migalha de prova. Na verdade, o que nós aqui temos é o final de um espectáculo de mimos, não tanto uma peça como deve ser, mas o género de farsa tonta com um fim pouco satisfatório sem clímax, só com uma série de palhaços empurrando-se uns aos outros para fora do palco.

 

Se eles vierem testemunhar, tenho grande curiosidade em ver quem são os actores deste espectáculo de mimos. Umas gargalhadas seriam um alívio neste julgamento! Mostrem-nos então esses jovens peraltas que gostam de desempenhar o papel de guerreiros de brincar sob o comando da sua senhora, explorando o terreno familiar das termas senianas, organizando uma emboscada, juntando-se todos numa banheira e fingindo que ela é o Cavalo de Tróia. Conheço o género: muito volúveis e espirituosos nos jantares, e quanto mais bebem, mais espirituosos se tornam. Mas preguiçar em canapés macios e conversar à luz das lamparinas é uma coisa; dizer a verdade à luz do Sol num tribunal de bancos duros de madeira é outra coisa completamente diferente. Se eles nem sequer conseguem orientar-se nas termas, conseguirão descobrir o lugar das testemunhas? Aviso essas supostas testemunhas: se decidirem apresentar-se, eu estou disposto a voltá-las ao contrário e a abaná-las de tal maneira que lhes caiam as tolices, para todos verem o que resta. Sugiro que mantenham as bocas fechadas e descubram outras maneiras de conquistar os favores da sua dama. Colem-se a ela, façam habilidades e compitam para se arrojar aos seus pés mas poupem a vida e a carreira de um homem inocente!

 

E que dizer do escravo a quem o veneno devia ser entregue, que também deverá testemunhar? Procurei entre os rostos dos presentes sentados nos bancos da acusação um grupo de expressões bastante sombrias naquele momento e detectei Barnabás, o homem de Clódia, que parecia ter engolido qualquer coisa de sabor desagradável. Dizem-me que ele acaba de ser libertado pela sua senhora, feito cidadão por sua mão ou pela mão do seu irmão, já que a lei impede uma mulher de alforriar um escravo. O que esteve por trás deste acto? Terá sido uma recompensa pela sua lealdade e por serviços prestados para além do que lhe exigia o dever? Ou terá sido uma consideração de ordem mais prática? E que, agora que é um cidadão, o homem não pode ser sujeito aos meios normalmente utilizados para se obterem provas de um escravo. A tortura tende a revelar a verdade; nenhum ensaio poderá levar o melhor actor cómico a recitar falsidades diante de um espeto quente.

 

E, já que falamos nisto, não será de surpreender que todas estas movimentações à volta de um estojo tenham dado origem a uma história extremamente indecente acerca de outro estojo e do seu conteúdo. Sabeis que história me refiro, oh juizes. Toda a gente fala disso. Toda a gente parece pensar que é verdadeira. Por que não, dado que se adequa na perfeição à reputação de indecência da dama? E toda a gente acha a história hilariante, apesar da sua obscenidade. O presente não pode ser considerado inadequado, quando se considera a natureza receptiva do objecto da piada! Pronto, vedes como ri a multidão, e vós com ela? Bem, verdadeira ou não, obscena ou não, divertida ou não, a culpa não é de Marco Célio. A piada deve ter sido montada por algum jovem masturbador caprichoso com habilidade de mãos.

 

Uma vez mais, pareceu-me ver pelo canto do olho que Catulo movia os lábios. Quando me voltei para ele, devolveu-me o olhar com uma expressão sombria e afastou-se, perdendo-se no meio da multidão.

 

O rosto de Clódia era um estudo de infelicidade. Cícero aceitou outro gole de água de Tiro e esperou que as gargalhadas esmorecessem.

 

- E assim termino a apresentação do meu caso, oh juizes. A minha tarefa fica concluída. Compete-vos agora a vós decidir o destino de um jovem inocente.

 

Procedeu ao resumo da sua oração: uma recapitulação breve da carreira de Célio, uma recitação das suas virtudes, um apelo à piedade pelo seu pai, profundamente afectado pelo processo, e uma última recusa, carregada de desprezo, das espúrias acusações contra ele. Eu tive dificuldade em ouvir estas palavras. Não conseguia tirar os olhos de Clódia. Via uma mulher com os nervos à flor da pele, pálida, derrotada, confusa, ressentida. Parecia que tinha sido novamente envenenada, e poluída: Medeia transformara-se em Medusa, a avaliar pelos amigos que desviavam os olhos, contorcendo-se nos bancos à sua volta. Olhavam nervosamente de um lado para o outro, mas desviavam o rosto de Clódia, como se um mero vislumbre daqueles olhos acossados pudesse transformar um homem em pedra.

 

Ao discurso de Cícero, seguiu-se um intervalo, a seguir ao qual, declarou o magistrado, começaria a apresentação das testemunhas. O sentimento comum da multidão era de que o julgamento poderia arrastar-se, talvez mais um dia, tendo em conta o número de testemunhas esperadas. Mas, quando a sessão recomeçou, os acusadores tiveram de revelar, embaraçados, que a maioria, na verdade praticamente todas, as testemunhas convocadas se tinham recusado a comparecer. O grupo de jovens que ocupara os bancos à roda de Clódia tinha desaparecido. Bem como a própria Clódia.

 

Os apoiantes de Célio não se esforçaram muito por conter o seu triunfo. Até o pai de Célio, com as suas esfarrapadas vestes funerárias, tinha uma expressão presunçosa.

 

Houve uma mão-cheia de testemunhas que se atreveu a comparecer

- alguns dos maridos ultrajados cujas mulheres tinham sido insultadas por Célio, o senador Fúfio, e mesmo um par de ”espiões de banheira”. Os acusadores, que tinham claramente perdido o ânimo, interrogaram-nos de forma superficial. Cícero contra-interrogou-os com bravata pouco esforçada, evitando as graças, para que não parecessem desperdiçadas em oponentes tão desprovidos de importância. Os espectadores começaram a dispersar. O drama atingira o seu clímax com a oração de Cícero, e só os crentes mais inveterados em finais surpreendentes se deixaram ficar à espera do veredicto.

 

Os juizes contaram os votos e anunciaram a sua decisão: Marco Célio era inocente.

 

Eu senti-me aliviado de um grande peso. O que faria eu se eles o tivessem considerado culpado de todas as acusações, incluindo o assassínio de Díon? Como poderia permanecer em silêncio? Mas eles tinham-no declarado inocente; a crise fora evitada. Apesar de tudo, que dizer da conspiração para envenenar Clódia? Cícero argumentara que tudo aquilo não passava de uma ficção inventada pela própria Clódia, como parte do seu esquema para se vingar de Célio, e os juizes tinham concordado. Mas, e se Célio tivesse efectivamente tentado envenená-la? Não seria obrigação minha falar?

 

O momento tinha passado e não havia maneira de desfazer o que estava feito. Disse a mim próprio que a minha única intenção fora, desde o princípio, descobrir a verdade acerca da morte de Díon. Quanto a Célio e a Clódia, fosse qual fosse a verdade das suas intrigas um contra o outro, certamente que eu nada devia a nenhum deles.

 

Depois de anunciado o veredicto, os apoiantes de Célio desataram aos vivas e reuniram-se em círculo à sua volta. Os acusadores e os seus assistentes dispersaram com expressões carregadas. Alguns dos juizes foram felicitar Célio, e cumprimentar Cícero e Crasso pelas respectivas orações. Os espectadores partiram para ver que actividades relacionadas com o festival da Grande Mãe ainda decorriam na cidade. Os escravos juntaram as cadeiras dobráveis e levaram-nas dali.

 

- Onde vamos agora? disse Eco.

 

- Acho que gostaria de ficar algum tempo sozinho disse eu. Leva Belbo contigo, eu não preciso de guarda-costas. O julgamento acabou e eu já não constituo perigo para ninguém.

 

- Ainda assim, papá, é um dia de festa, as pessoas tornam-se arruaceiras...

 

- Por favor, Eco, leva Belbo contigo. Ou, melhor ainda, manda-o para casa, para junto de Betesda. Sentir-me-ei melhor se souber que ele está lá enquanto eu não estou.

 

- Onde vais?

 

Não sei bem.

 

Por que não vais também para casa? Eu abanei a cabeça.

 

- Por enquanto não.

 

- Papá, o que se passa? Ele baixou a voz. Se Díon foi envenenado em tua casa, quem fez tal coisa? E por quê? Tu sabes, não sabes?

 

Eu abanei a cabeça.

 

- Depois falamos sobre isso.

 

- Mas, papá...

 

- Vou passar a noite a tua casa, se não te importares. Pede aos escravos que me arranjem um canapé para eu dormir.

 

- Claro, papá. Tens a certeza de que não queres que eu vá contigo? Podíamos conversar.

 

- Não é de conversar que eu preciso. Preciso de pensar, e conseguirei pensar melhor se estiver sozinho.

 

Isto acabou por não se verificar. Vagueei pela cidade num estado de confusão, sem perceber bem por onde andava, com os pensamentos às voltas em círculos vagarosos.

 

Por que me tinha Betesda enganado? Se a decisão fosse sua, ter-me-ia chegado a dizer a verdade? Claro, eu sabia por que razão ela mantivera o silêncio. Como é que uma mulher diz ao marido que envenenou um antigo e respeitado mentor mesmo debaixo do seu nariz? Ainda assim, ela tinha os seus motivos. Terá pensado que eu não compreenderia? Por que razão nunca me tinha falado da morte de sua mãe e daquela coisa terrível que lhe tinha acontecido antes de eu a encontrar? Confiaria assim tão-pouco em mim, mesmo depois de todos os anos que tínhamos passado juntos?

 

Os meus próprios sentimentos não eram menos confusos. Sentia-me irritado ou magoado? Queria castigar Betesda ou pedir-lhe que me perdoasse? Sentia que tinha procedido mal, mas não sabia bem em quê. Sabia que tinham feito de mim tolo; Betesda sempre soubera a verdade, mas deixara-me investigar no escuro, na direcção errada. Ter-se-ia divertido com os meus disparates? Temeria a minha reacção, quando descobrisse a verdade? Ou teria simplesmente pensado que podia escapar sem nunca me contar, e considerado que isso era mais simples para todos os envolvidos? Ela sabia como a verdade era preciosa para mim, e afastara-me dela. Eu sentia-me ofendido com isso. Sob o meu tecto, debaixo dos meus olhos, Betesda assassinara um homem que odiava. Eu compreendia os seus motivos mas, apesar disso, sentia-me chocado e abalado pela enormidade do acto. Afinal, talvez ela tivesse razão em não me ter dito a verdade.

 

Passei por folgazões e vendedores de rua, ouvi o rugido da enorme multidão reunida no Circo Máximo, atravessei uma praça onde tinha sido montado um palco para um espectáculo que teria lugar no dia seguinte, ouvi tamborins e ergui os olhos para um grupo de galli que dançavam em cima de um telhado. Aqui e ali, ouvi pedaços de conversas que deviam ser acerca do julgamento: Quer dizer que o rapaz foi totalmente ilibado... Cícero é esperto... não fazia ideia de que a mulher era tão depravada... os Clódios hão-de pensar duas vezes antes de voltarem a tentar uma habilidade do género... toda a gente se riu devias ter visto a cara da cadela... mas a quem é que esses egípcios interessam?... noutros países, estas mulheres são lapidadas... ”Eu disse marido? Queria dizer irmão, naturalmente estou sempre a cometer o mesmo erro”... ”Não é apenas uma prostituta, é uma velha prostituta particularmente lúbrica e depravada”. Por aquilo que se disse sobre ela, se calhar era melhor alguém envenenar o monstro...

 

Continuei a andar. As horas passaram. O céu escureceu. As ruas ficaram vazias. Mas eu continuava a andar. Só soube para onde me dirigia quando lá cheguei.

 

A lamparina fálica por cima da entrada tinha o pavio alto, numa promessa de luz e calor. Eu bati à porta da Taberna Salaz e o porteiro deixou-me entrar.

 

De uma maneira geral, não bebo mais do que os outros homens, e bebo menos do que a maioria. Porém, nessa noite, apetecia-me embriagar-me. O escravo que me trouxe o vinho não se mostrou relutante em me ajudar a concretizar esse desejo.

 

A sala estava tão cheia de barulho, que eu apenas conseguia ouvir pedaços de conversas, muitas das quais eram acerca do julgamento. As piadas de Cícero eram repetidas e obscenamente adornadas. A história do estojo e do seu conteúdo foi narrada com numerosas variações, com discussões acerca da versão correcta. O vinho dava origem a sofisticados processos de raciocínio: Célio pode ter fornicado com a cadela, mas hoje foi Cícero quem a fornicou! Parecia ser consensual que Célio tinha escapado por uma unha negra e que Clódia fora destruída para sempre, e que tanto melhor assim. Eu deixei-me estar sentado a beber, sem fazer nenhum esforço, nem para ouvir, nem para não ouvir, deixando as palavras destes estranhos entrar-me nos ouvidos à sua vontade. Quando o meu copo se esvaziava, chamava o criado para que voltasse a enchê-lo.

 

Já era bastante tarde quando a porta se abriu e entrou um grupo grande e ruidoso. Eram sobretudo jovens, demasiadamente elegantes e bem-vestidos para um sítio como aquele. Vinham obviamente de outro local, mais respeitável. Ouviram-se gritos de boas-vindas, e depois uma saudação geral quando os cidadãos reconheceram Marco Célio. Ele agradeceu o apoio público com um sorriso e um aceno de mão, e depois fez uma vénia de bêbedo, que se transformou num passo em falso. Os seus amigos Licínio e Asício agarraram-no cada um por um braço e endireitaram-no. Eu fiquei admirado, mas não muito, ao ver Catulo no meio do grupo, aparentemente ainda mais embriagado do que Célio.

 

Célio e os seus amigos dirigiram-se a um canto da sala. Ele mandou vir uma rodada do melhor vinho da taberna para todos, o que lhe valeu outro aplauso. O sonolento estado de espírito da taberna, devido ao adiantado da hora, transformou-se de repente em ruído e animação. Eu olhava sombriamente para as borras do meu copo, tentando decidir se devia atrever-me a pedir que voltassem a encher-mo. As trevas da bebida começavam a dissipar-se e eu estava a sentir-me um tanto enjoado. Quando o criado passou por mim, tapei o copo com a mão e abanei a cabeça.

 

- O que se passa? gritou uma voz. Gordiano recusa-se a beber vinho oferecido por mim? Aposto que é melhor do que a água suja que tens estado a emborcar.

 

Voltei-me e vi que Célio me observava do outro lado da sala, com os lábios apertados num trejeito de troça.

 

Não pretendi insultar-te resmunguei.

 

- O quê? Não oiço! Célio pôs a mão atrás da orelha e riu-se. Tens de te aproximar.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Célio estalou os dedos e, momentos depois, um par de guarda-costas musculosos erguia-me pelos cotovelos e transportava-me para o outro lado da sala. Sentaram-me num banco diante de Célio, que se riu e bateu palmas como uma criança assistindo a um truque de magia.

 

Estás hoje muito bem-disposto disse eu.

 

E não é para estar? Se as coisas me tivessem corrido mal, estaria neste momento metido num barco a caminho de Massília. Fez uma careta. Mas não, estou aqui, rodeado pelos meus amigos, no coração da cidade mais maravilhosa do mundo. Licínio e Asício estavam sentados de um dos lados de Célio, Catulo do outro. O resto do grupo tinha-se juntado à roda de uma mesa próxima, para jogar aos dados. Sou livre!

 

- Livre? Pensei que Cícero te tinha outra vez pela trela. Deves-lhe um favor e tanto. Ele sabe que andas na pândega, desmentindo tudo o que ele disse?

 

Cícero? Célio fez um ruído grosseiro com os lábios. Não te preocupes, eu trato dele. Há anos que o faço.

 

- O aluno controla o professor?

 

É mais ou menos isso.

 

- Tu és um fedelho mimado, Marco Célio.

 

- E as pessoas adoram-me por causa disso! Excepto tu. Por que não bebes o vinho que eu ofereci?

 

- Já bebi o suficiente esta noite. E tu também tens ar de quem já bebeu bastante. Tu também, Catulo.

 

Catulo olhou para mim com um ar confuso e pestanejou algumas vezes. Parecia estar a um nível de embriaguez que o tornava, não tolo, nem sentimental, mas apenas estupidificado.

 

- Então achas que já bebemos o suficiente? perguntou Célio.

- Pois ainda agora começámos! Criado! Serve mais vinho a toda a gente, desse melhor!

 

- Tens a certeza de que podes pagar essa extravagância? perguntei eu.

 

Célio sorriu.

 

- As minhas dívidas estão todas saldadas.

 

Pensei que não tinhas dívidas.

 

- Não prestaste atenção ao que Cícero disse hoje no tribunal? Eu nem sequer tenho livros de contas, Gordiano! Todas as minhas finanças estão em nome do papá.

 

- Estou a ver. Tecnicamente, não tens dívidas.

 

- É assim que as coisas funcionam, hoje em dia. Mas, como já te disse, todas as dívidas foram pagas.

 

Incluindo as dívidas para com Pompeu? Ele hesitou, apenas um momento.

 

- Incluindo essas.

 

- Mas não foram pagas em dinheiro?

 

- Não. Em serviços prestados.

 

Ao lado dele, Licínio e Asício tornaram-se rígidos.

 

- Célio! disse Asício. Célio riu-se.

 

- Não se preocupem, os julgamentos acabaram. O teu julgamento, Asício, e o meu, e nós somos inocentes como cordeiros.

 

Devias aprender a calar-te, Célio! atirou Licínio.

 

A calar-se sobre quê? perguntei eu.

 

- Oh, os meus amigos acham que eu falo de mais. Mas agora já não há perigo. Sou livre!

 

- Nesse caso, talvez possas dar-me descanso relativamente a alguns pontos disse eu.

 

Licínio e Asício agitaram-se, mas Célio sorriu-me brandamente.

 

- Por que não? A seu lado, Catulo olhava fixa e cegamente para o espaço e mexia os lábios, talvez compondo um poema de cabeça.

 

- Lembras-te da última vez em que eu te vi, Célio, aqui na taberna? Juraste-me pelas sombras dos teus antepassados que não tinhas assassinado Díon.

 

- Sim, lembro-me. E estava a dizer-te a verdade.

 

- E juraste que também não tinha sido Asício.

 

- O que é igualmente verdade.

 

Mas quando eu te perguntei onde tinhas estado e o que tinhas feito na noite da morte de Díon, tu recusaste dizer-me.

 

- Como podia dizer-te, com o julgamento pendente...

 

- Célio, cala-te! atirou Asício.

 

- Acredito em ti disse eu -, quando juras que não mataste Díon. É minha opinião que ele morreu envenenado. Contudo, alguém entrou à força em casa de Copónio nessa noite, e Díon foi encontrado com o peito cheio de golpes de punhal. Podes explicar-me esses factos, Célio?

 

- Mencionas um ponto muito interessante disse Célio, erguendo uma sobrancelha e na realidade...

 

- Célio, seu louco, cala-te!

 

- Descontrai-te Asício. O julgamento acabou e Gordiano é um homem a quem se pode contar a verdade. Não é assim, Gordiano? Jura-me pela sombra do teu pai que guardarás segredo do que te vou contar.

 

Eu hesitei apenas um momento.

 

- Juro.

 

Célio, és um idiota! Asício bateu com o pé no chão, e saiu da sala, irado. Licínio deixou-se estar, olhando cautelosamente à volta para ver se mais alguém estava a ouvir a conversa. Catulo olhava para o copo, sem expressão.

 

- Asício! Que burro. Ele nunca foi homem para ter uma conversa agradável. Célio sorriu. Onde íamos nós?

 

- Na noite em que Díon morreu...

 

Ah, pois. Aconteceu uma coisa estranhíssima. Estás a ver, eu ia matar Díon. Foi exactamente o que tu pensaste, não foi? O Rei Ptolemeu queria ver-se livre de Díon, e Pompeu também. Eu devia a Pompeu uma pilha de ouro, que nunca poderia pagar-lhe. Por isso, fui encarregado de tratar do velho Díon.

 

- Tal como trataste do ataque aos enviados alexandrinos quando eles chegaram a Neápolis.

 

Célio acenou com a cabeça.

 

- E repeti os ataques em Putéolos e depois a caminho de Roma. Era quase fácil demais assustar aqueles egípcios. Eram tão corajosos como pombos. Mas os pombos dispersam quando são atacados e os malditos eram tantos.

 

- E o último foi Díon.

 

- Exactamente. E esse pombo armou um grande sarilho. Licínio revirou os olhos.

 

- Célio, é uma tolice estares a contar-lhe essas coisas.

 

- Cala-te Licínio. O meu discernimento alguma vez me enganou? Gordiano é como um cão atrás de um osso. Não vai largar isto enquanto não chegar à verdade. Agora que já nada nos pode atingir, o melhor é contar-lhe, para que ele se dedique a roer outro osso. Ele jurou guardar segredo! Onde ia eu?

 

- Todos os egípcios tinham desaparecido, à excepção de Díon.

 

- Ah, pois. Bem, eu tentei envenená-lo em casa de Lúcio Luceio, subornando-lhe os escravos da cozinha, claro. Tinha conhecido aquele idiota do Luceio numa festa, e calculei que seria possível fazer quase tudo debaixo do seu tecto. Mas os escravos atrapalharam-se e mataram o provador de Díon, e ele partiu para casa de Copónio. Ainda bem que Luceio é do tipo de não ser capaz de ver mal em nada, senão podia ter obrigado os seus escravos a testemunhar contra mim e isso tinha dado cabo de tudo.

 

Portanto, teria de ser em casa de Tito Copónio. Tito não é um idiota e não há escravos tão leais como os seus. Além disso, Díon estava mais atento do que nunca, e Pompeu começava a pressionar-me intensamente. Bem, não havia nada a fazer senão afiar os punhais e fazer um ataque a meio da noite. Precisava de ajuda, por isso pedi-a a Asício. Na verdade, foi ele que organizou os ataques aos enviados no sul, por incumbência minha. Há anos que é agente do Rei Ptolemeu. Sabe muito mais acerca de punhais e de sangue e desse género de coisas do que eu.

 

Graças aos deuses que ele não está aqui para te ouvir! gemeu Licínio, cobrindo o rosto. Catulo estava ocupado a empurrar qualquer coisa para o fundo do seu copo de vinho.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

- Então tu e Asício...

 

- Pois, partimos naquela noite com a intenção de matar o velho Díon. Desculpa, eu sei que ele foi teu professor e isso tudo. Mas a política egípcia é uma coisa terrível.

 

- Não tinhas nenhum aliado dentro da casa de Copónio?

 

- Nem um. Era demasiadamente perigoso. Como já te disse, os escravos dele são muito leais.

 

- Mas sabias em que quarto Díon estava instalado. Célio encolheu os ombros.

 

- Não foi muito difícil de perceber. Eu já tinha ficado lá em casa, como convidado.

 

- Então vocês treparam o muro, rebentaram a janela, irromperam no quarto de Díon...

 

- E encontrámo-lo deitado no canapé, tão morto como o Rei Numa. Nunca me esquecerei daquela imagem a boca aberta, os olhos parados. Oh sim, estava decididamente morto.

 

E depois?

 

- O que podíamos nós fazer? Pornpeu tinha-nos mandado matar Díon, e sabia que nós tencionávamos apunhalá-lo. Eu não queria que Pompeu pensasse que Díon tinha morrido devido a causas naturais, ou que outra pessoa o tinha assassinado. Queria que a minha dívida ficasse saldada! Por isso, apunhalei-o na mesma, um número de vezes suficiente para o matar, se ele ainda estivesse vivo...

 

- Mais do que suficiente, pelo que ouvi dizer. Célio encolheu os ombros.

 

- Depois demos um bocado cabo do quarto, como se tivesse havido luta, e saímos dali o mais depressa que pudemos. No dia seguinte, toda a gente dizia que Díon tinha sido esfaqueado até à morte na cama. Pompeu ficou satisfeito, a minha dívida ficou saldada, e eu pensei que as coisas ficavam por ali. Mas Asício nunca fez segredo da sua ligação ao Rei Ptolemeu. Os seus inimigos decidiram levá-lo a tribunal pelo assassínio de Díon. Ptolemeu contratou Cícero para a sua defesa, e Cícero ilibou-o. A acusação nunca chegou a ter provas suficientes contra ele.

 

- Nem contra ti, ao que parece.

 

- Especialmente com Cícero do meu lado. Célio riu-se.

 

- Sim, isso explica tudo disse eu. Apunhalado depois de morto. Em casa de Copónio, ninguém reparou nas discrepâncias o sangue espalhado não era suficiente para tantas feridas, e estas tinham sido feitas muito perto umas das outras, e não em diversos pontos do corpo. Não tinha havido luta. E a rapariga, a escrava, teve medo de dizer o que sabia...

 

- O quê? disse Célio. Estás a falar sozinho, Gordiano.

 

- Estava? É um péssimo hábito que eu tenho. Sim, já posso repousar quanto a Díon. O velho cão pode largar esse osso. Mas tenho outro osso ainda com alguma carne agarrada.

 

- Tens? Criado, mais vinho!

 

- A violência contra Díon e os enviados alexandrinos não foram as únicas acusações.

 

- Não, e ainda bem!

 

- O que queres dizer com isso?

 

Bem, estou a referir-me ao facto de Clódia ter acrescentado a acusação de envenenamento no último minuto. Crasso dizia que não devíamos permitir a sua inclusão. Que, tecnicamente, era tarde demais para os acusadores poderem incluí-la e que não tínhamos tempo de preparar uma defesa. Cícero disse-lhe que ele era louco, que aquilo fora um dom dos deuses. ”Não percebes? Eles deram-nos exactamente aquilo de que nós precisamos! Agora temos todas as razões para arrastar Clódia para o caso, e isso será o fim da acusação.” E tinha razão, evidentemente. Se Clódia não se tivesse mostrado, eu estaria em muito piores lençóis. Mas com Clódia presente, a mostrar a cara, apresentando acusações pessoais contra mim, Cícero virou o julgamento ao contrário. Deixou de ser ”Célio assassinou os egípcios?” e passou a ser ”Por que está aquela mulher perversa a inventar acusações contra o pobre rapaz?” E funcionou brilhantemente! A acusação foi totalmente desacreditada. O facto de me terem acusado de tentar envenenar Clódia enfraqueceu as outras acusações.

 

- Está bem, Célio disse eu suavemente e quanto à acusação propriamente dita?

 

De repente, Catulo ergueu a cabeça do seu copo de vinho e deu sinais de vida. Célio lançou-me um sorriso arrogante.

 

Gordiano, um tribunal romano declarou que sou um homem inocente, indevidamente acusado. Que mais precisas de saber?

 

A verdade disse eu. Agarrei-lhe no braço. A força que usei apanhou-o de surpresa.

 

Ele largou o copo. O vinho espalhou-se no chão. Os guarda-costas de Célio começaram a avançar. Ele fez-lhes um gesto, indicando-lhes que se deixassem estar, e falou-me através dos dentes cerrados.

 

Gordiano, estás a magoar-me o pulso. Larga-me, senão digo-lhes que te cortem a mão.

 

- A verdade, Célio. Não passa daqui. Juro-te pela sombra do meu pai.

 

- A verdade? Aqui o Licínio quase foi apanhado com um estojo cheio de veneno nas termas senianas. Conseguiu despejar o produto para dentro de uma das banheiras quando vinha a sair foi um desperdício! Mas eu voltei a usar o estojo mais tarde.

 

- Célio, cala-te! Licínio apertava os punhos.

 

- E a segunda tentativa? perguntei eu. Catulo olhava fixamente para Célio.

 

- A verdade?

 

Diz-me!

 

Ele soltou o braço e esfregou o pulso.

 

- A segunda tentativa por pouco não foi bem sucedida. Agora, estou satisfeito por não ter sido. Cícero tinha razão. Morta, Clódia teria sido verdadeiramente perigosa para mim, seria objecto de simpatia. Viva, foi objecto de desprezo, foi uma vantagem para mim, apesar de si própria. Por isso, as coisas acabaram por resultar a meu favor. Clódia safou-se com uma indigestãozita, e eu consegui a simpatia dos juizes.

 

- O veneno que usaste para a segunda tentativa...

 

Foi diferente do da primeira vez. Eu queria usar uma coisa de acção rápida; não queria que ela sofresse. Mas Licínio deitou fora o que eu tinha, por isso acabei por experimentar uma coisa chamada como se chamava, Licínio?

 

- Cabelo de Górgona.

 

- Sim, é isso. Disseram-me que demorava um bocadinho mais, mas que era igualmente eficaz. Lamento que Crisis tenha sido apanhada, pobre pequena. É tão delicada, e agora Clódia vai descarregar tudo sobre ela.

 

Catulo falou com uma voz arrastada.

 

Célio, tu disseste-me...

 

Aquilo que tu querias ouvir, Catulo, e tu nunca queres ouvir a verdade, pois não? Sim, tentei envenená-la, e então? Que te importa isso? Ela ainda te despreza mais do que a mim.

 

- Célio, seu bastardo mentiroso! Catulo avançou para ele. Célio recuou e ergueu as mãos, fazendo sinal aos guarda-costas para que o defendessem. Foi tudo tão rápido, que eu senti a viagem desde o banco até à rua como um momento confuso de levitação, seguido de uma aterragem dolorosa sobre o traseiro. Quando a minha cabeça parou de andar à roda, vi Catulo sentado no pavimento, ao meu lado. Passado um momento, avançou de gatas, rastejou até à valeta e vomitou abundantemente.

 

Pouco depois, voltou a rastejar até junto de mim.

 

- Devias experimentar disse ele, limpando o queixo. Sentir-te-ias melhor.

 

- Não me quero sentir melhor.

 

- Seu idiota cheio de autocompaixão. Pareces eu. Por que queres estar triste?

 

Problemas com mulheres.

 

Na tua idade?

 

Se viveres o suficiente, rapazinho, perceberás que eles nunca acabam.

 

Então como é que os homens aguentam? O breve alívio do vómito deu lugar à sua habitual infelicidade. Quer dizer que Célio tentou mesmo envenená-la.

 

- Não uma, mas duas vezes. Não foi isso que ele te disse?

 

Mentiu-me na cara.

 

Imagina! Mas afinal, o que estavas tu a fazer em sua companhia esta noite?

 

Catulo mostrou-se ainda mais infeliz.

 

- Não me contes disse eu. Deixa-me adivinhar. Estavas a comemorar com ele, porque o ajudaste a escrever o discurso. E também ajudaste Cícero a escrever o dele.

 

- Como é que sabias?

 

- Pela tua expressão, hoje no julgamento. Não conseguias deixar de te sentir satisfeito ao ouvires ler as tuas frases em voz alta. Aquela história da ”Medeia do Palatino” e da ”Clitemnestra por uma moeda” tinha de vir de ti. Tal como as referências aos troféus dos amantes que Clódia guarda em segredo, por baixo da estátua de Vénus. Disseste-me que eras o único a saber, e que só tinhas descoberto por acaso. Eu vi a expressão dela quando Cícero mencionou o assunto. E tu também. Isso foi a última acha, foi o momento em que ela quebrou. Ele despiu-a completamente e tu ajudaste. Tu sabias que piadas a magoariam mais. Quais eram os trocadilhos mais cruéis, as metáforas mais horríveis. És o poeta do amor, Catulo, ou o poeta do ódio?

 

Sei odiar e sei amar. Se me perguntares como, não saberei responder-te...

 

Pára de fazer citações de ti próprio. Por que fizeste aquilo?

 

Não percebeste?

 

Pensei que amasses Clódia. Pensei que odiasses Célio.

 

E foi precisamente por isso que o ajudei a destruí-la.

 

Tu confundes-me, Catulo!

 

Ela tinha de ser destruída. Era a única maneira. Agora posso tê-la para mim.

 

O que estás tu para aí a dizer, Catulo? Ele agarrou-me no braço.

 

- Não percebes? Enquanto ela tinha aquela paixão ardente por Célio, eu nunca conseguiria recuperá-la. Ela aturava-lhe tudo, todos os insultos. Mas desta vez ele foi longe demais. Agora, não é possível que ela continue a amá-lo; não pode ser, depois de tudo o que lhe fizeram hoje no julgamento. Célio e os seus advogados fizeram dela o alvo da troça de Roma inteira! Sim, eu ajudei-os. Fui ter com Célio depois de o termos encontrado aqui na taberna. Disse-lhe que tinha umas ideias para o discurso dele. Cícero ficou bastante entusiasmado com a minha colaboração. Divertimo-nos imenso os três, a rever as orações, a acrescentar piadas, pensando até onde podíamos ir. Aquele trocadilho acerca do estojo...

 

Não me obrigues a ouvir tudo outra vez!

 

Não é que me sinta orgulhoso. Mas era preciso fazê-lo. Ela tinha de ser destruída. Estava demasiadamente cheia de si própria, demasiadamente orgulhosa e arrogante, desde que Celer morreu e que ela começou a gerir a sua própria casa. Agora quebrou, e esta era a única maneira de O fazer. Pegámos em tudo aquilo que a tornava forte a beleza, o orgulho, o amor ao prazer e voltámo-lo contra ela. Até os antepassados foram voltados contra ela, aqueles de quem está sempre a gabar-se!

 

Ela nunca mais poderá voltar a referir-se aos monumentos da família sem ouvir alguém fungar nas suas costas. Nem sequer poderá voltar-se para Clódio, pelo menos em público. Será para mim que se voltará. Eu abanei a cabeça.

 

- Catulo, tu és indubitavelmente o homem mais iludido que eu conheço.

 

- Achas? Então vem comigo agora mesmo, vamos a casa dela. Vais ver.

 

Não, obrigado. A casa de Clódia é o último sítio do mundo em que eu quero estar neste momento. Não, não é bem verdade. O último sítio onde eu gostaria de estar é a minha própria casa. Mas esse é também o único sítio onde quero estar.

 

- Agora, quem é que está a dizer tolices? Catulo pôs-se de pé a cambalear. Vens comigo ou não?

 

Eu abanei a cabeça, que parecia continuar a andar à roda depois de me ter levantado.

 

Então adeus, Gordiano.

 

- Adeus, Catulo. E... ele voltou-se e olhou para mim, indeciso

- ... boa sorte.

 

Ele acenou com a cabeça e avançou a tropeçar pela escuridão. Eu esperei que a minha cabeça parasse de andar à roda e tentei lembrar-me para que lado ficava a casa de Eco. A Subura pareceu-me muito distante.

 

Na manhã seguinte, acordei tarde. Sentia a cabeça como se me tivessem enfiado uma toga inteira lá dentro; tinha a boca a saber a lã áspera. Senti-me melhor depois de lavar a cabeça com água fria. E de comer qualquer coisa. Saí com passos trémulos para o jardim que ficava a meio da casa de Eco, e sentei-me ao sol. Passado algum tempo, Menénia atravessou o pórtico. Reconheceu a minha presença com um aceno de cabeça, mas não sorriu. Pouco depois, Eco avançou lentamente em direcção a mim.

 

- Ontem à noite chegaste tardíssimo, papá.

 

- Quem é o filho, e quem é o pai?

 

Já podemos conversar?

 

- Acho que sim.

 

Sobre Díon e a forma como ele morreu. Ontem, não chegaste a dizer-me o que pensavas.

 

Eu suspirei.

 

Tinhas razão sobre o veneno que foi usado em minha casa para o matar.

 

- Mas quem foi?

 

Eu inspirei profundamente uma vez, depois outra. Era difícil dizer aquilo em voz alta.

 

- Betesda.

 

Eco olhou para mim com atenção, menos surpreendido do que eu esperava.

 

- Por quê?

 

Eu narrei-lhe a conversa que tinha ouvido em minha casa entre Clódia e Betesda.

 

- Ela devia estar a falar sobre Díon. Era Díon o homem poderoso e respeitado a quem a mãe dela pertencia. Ela nunca me tinha contado nada daquilo. Nunca! Nem uma palavra! Mas deve ter reconhecido Díon no momento em que o viu.

 

- E ele reconheceu-a?

 

Ele olhou para ela com uma expressão estranha, lembro-me disso. Mas ela pouco mais era do que uma criança da última vez que ele a viu, e ele tinha mais em que pensar. Não, não me parece que soubesse de quem se tratava. Mas ela reconheceu-o, disso não há dúvida. Quando agora me recordo dessa noite, apercebo-me de que ela se comportou de uma maneira estranha. Pensei que fosse por eu ir de viagem! O que eu acho espantoso é a rapidez com que ela tomou a decisão de o matar sem deliberação, sem hesitações. Foi buscar o veneno, preparou o jantar, fez uma porção especial para o convidado, e depois ficou a vê-lo comer, mesmo na minha frente!

 

- Tens de falar com ela, papá.

 

- Ainda não estou preparado. Não sei o que lhe hei-de dizer.

 

Diz-lhe que sabes o que ela fez. Depois avanças a partir daí.

 

- Avanço como se não tivesse grande importância que a minha mulher seja uma assassina? Que tenha comprometido a honra de minha casa matando um convidado? Era ela que devia vir ter comigo.

 

- Antes ou depois de ter envenenado Díon?

 

- Se não antes, então certamente depois! Estás a ver como eu fico irritado quando falo do assunto. Não, ainda não estou preparado para voltar para casa, para junto dela. E pergunto a mim próprio se alguma vez estarei.

 

- Não fales assim, papá. Tens de compreender as razões dela. Olha, eu não fiquei completamente surpreendido com o que tu me disseste. Tive muito tempo para pensar durante a viagem desde Putéolos; fui perguntando a mim próprio como era possível que Díon tivesse sido assassinado em tua casa e por quem. E Betesda quem cozinha, Alexandria era uma circunstância comum calculei que ela pudesse, de alguma maneira, ser responsável. Por isso, tive mais tempo para pensar nisto do que tu, e para decidir que não tem importância nenhuma. Estive com Zótica durante todo esse tempo, vi o que aquele bruto lhe fez. Não consigo lamentar que alguém o tenha morto. Se foi Betesda, e se ela tinha tantas razões para odiar o homem como Zótica, então não há grande coisa a perdoar.

 

Mas foi um assassínio, Eco! A sangue-frio, calculado, cometido em segredo. O meu nome e a minha casa nada representam? Nós não somos assassinos! Levantei-me e comecei a andar à volta do jardim. Não adianta nada conversar. Preciso de estar sozinho outra vez. Preciso de pensar.

 

- Não vais dar outro passeio?

 

- Por quê?

 

Vais gastar as ruas, papá. Onde vais?

 

Ocorreu-me um pensamento completamente diferente.

 

- Vou tratar do último assunto que tenho pendente com Clódia. O dinheiro que te dei para a viagem ao sul ainda te deve ter sobrado muito.

 

- Bastante.

 

- Esse dinheiro é de Clódia. Destinava-se a subornar-me para que eu testemunhasse por ela, ou a comprar os escravos de Luceio. Quem sabe o que ela tinha em mente? De qualquer maneira, não obteve aquilo por que pagou? Não quero que digam que eu sou como Célio, que Clódia me deu dinheiro e eu não lho devolvi. Vai buscá-lo, por favor. Vou levar-lho imediatamente. Pelo menos, posso lavar as minhas mãos do assunto e pô-lo definitivamente para trás das costas.

 

Eco entrou em casa e regressou com uma bolsa cheia de moedas.

 

- A propósito, como vai Zótica? perguntei. Está mais calma, depois de ter descansado?

 

Eco baixou os olhos.

 

- Aconteceu alguma coisa?

 

- Depois de falarmos com ela ontem, Menénia mostrou-lhe um sítio onde ela podia dormir, e deixou-a sozinha. Foi um erro não a ter deixado fechada na despensa. Quando eu regressei do Fórum...

 

- Oh, não!

 

- Fugiu, papá. Não posso dizer que tenha ficado admirado. Já te disse, ela está desorientada, é como um animal. Duvido de que voltemos a vê-la.

 

Se me dirigisse a casa de Clódia pelo caminho mais directo, teria de passar em frente à minha porta, por isso dei uma volta maior. O dia estava quente e o caminho era íngreme. Cheguei lá a suar e sem fôlego.

 

Bati à porta. Passado algum tempo, voltei a bater. Por fim, a abertura de segurança descerrou-se. Fui observado por um olho desapaixonado.

 

- O meu nome é Gordiano disse eu. Tenho um assunto a tratar com a tua senhora.

 

A abertura de segurança cerrou-se. Passado muito tempo, voltou a descerrar-se. O olho que nesta altura me observou estava contornado a maquilhagem. Do outro lado da porta, ouvi uma voz conhecida, mas inesperada.

 

- Não há problema, eu conheço-o. Podemos deixá-lo entrar.

 

A porta abriu-se para trás e lá estava Trigónion, o pequeno gallus. Depois de eu entrar, fez sinal ao escravo para que fechasse a porta.

 

- Que assunto tens a tratar com Clódia? perguntou ele sem mais delongas. Caminhava apressadamente em direcção ao jardim e eu fui atrás dele. Ela esqueceu-se de te pagar?

 

Bem, na verdade, pagou-me demasiado; deu-me dinheiro para despesas que não foi necessário fazer. Agitei a bolsa de moedas. Vim devolver-lho.

 

Trigónion olhou para mim como se eu fosse louco, depois acenou com a cabeça e suspirou.

 

- Compreendo. Querias uma desculpa para voltar a vê-la.

 

- Não sejas ridículo!

 

Não, a sério. Eu compreendo. Mas receio que não possas vê-la.

 

- Por quê?

 

- Ela foi-se embora.

 

- Para onde? Ele hesitou.

 

Para a villa de Solónio. Partiu hoje, antes do amanhecer. Queria sair da cidade sem ser vista. Chegámos aos degraus que davam para o jardim e parámos ao lado da Vénus gigante. Eu dei por mim a olhar para o pedestal, onde Catulo me tinha dito que ela guardava os seus troféus num compartimento secreto. Trigónion reparou.

 

- Esvaziou-o antes de partir. Queimou tudo aquilo que podia ser queimado. Podes ver as cinzas ali naquela braseira. As coisas que não ardiam jóias, colares e coisas assim -, levou-as consigo. Para as atirar ao mar, segundo disse.

 

- Mas por quê?

 

Ele encolheu os ombros.

 

O que sabe um eunuco sobre esse género de coisas? Dirigiu-se à fonte. Subitamente, chegou até nós o som de cantos, proveniente da Casa dos Galli.

 

- Por que não estás com eles?

 

- Vou já para lá. Ela mandou-me chamar por um mensageiro a meio da noite, dizendo que precisava da minha ajuda. ”Tenho de me ir embora”, disse. ”Não suporto ficar aqui.” Ela vai sempre passar um mês ao sul depois do festival da Grande Mãe, como fazem muitos ricos. Normalmente, vai para Baias. Mas desta vez não esperou que as festividades acabassem, e não foi para Baias. ”Solónio”, disse-me. ”É mais perto e nunca ninguém vai para lá. Nunca mais quero voltar a ver ninguém.” Sorriu com um ar triste. Pensei que queria que eu a acompanhasse.

 

Os cânticos aumentaram de volume e de rapidez. Trigónion fechou os olhos e moveu os lábios, acompanhando as palavras, depois pestanejou e olhou para o reflexo da luz do Sol na fonte.

 

Mas não. ”Preciso de alguém que me feche a casa”, disse-me. ”Podia pedir a Clódio, mas ele não pode cá vir, pelo menos durante algum tempo. Não te importas de me fazer esse favor, pois não, Trigónion? Ver se as janelas e as portadas ficam todas fechadas, arrumar o vinho de qualidade para que os escravos não possam chegar-lhe, mandar as últimas cartas, coisas assim.” Eu disse-lhe: ”Sim, claro. Boa viagem”.

 

Juntos, estudámos a incidência do Sol na água.

 

Mesmo antes de sair, quando já ia ao pé da porta, voltou-se. Chamou-me pelo nome. Eu corri para ela. Ela disse-me: ”Ah, e não digas a ninguém para onde fui.” Eu disse-lhe: ”Claro que não digo.” Mas acho que não tem importância dizer-te a ti, Gordiano. Tu sabes guardar um segredo. Tu és o homem mais honesto de Roma, não és? Os seus lábios formaram um sorriso sardónico.

 

Veio alguém visitá-la, ontem à noite?

 

Ele olhou para mim confuso, e por fim sorriu com um ar triste.

 

- Oh, referes-te ao poeta, àquele que recitou aquela coisa horrível sobre Átis na festa. Sim, um dos escravos disse-me que ele veio bater à porta a meio da noite, embriagado e exigente. Era má altura: Clódia não estava com disposição para ser incomodada. Mandou Barnabás e alguns dos libertos mais corpulentos correrem com ele. Acho que ele escapou só com o nariz partido.

 

Pensei no pobre Catulo, deitado sozinho no seu lúgubre quartinho, com os seus livros, a sofrer e com o nariz partido.

 

- E com o coração desfeito. Ela é uma mulher fria. Trigónion olhou para mim com uma expressão cortante.

 

Tu és como os outros todos. Achas que ela não sente nada. Claro que ela sente tudo. Como é possível que não sinta, sendo quem é? Sente tudo. Espanta-me que consiga aguentar.

 

Os cânticos tornaram-se fantásticos, mágicos. As pontadas de sol na água eram estonteantes.

 

E tu, Trigónion? És como ela? Toda a gente acha que tu não sentes nada, mas na verdade...

 

Ele olhou de frente para mim, com os olhos afogados em lágrimas, desafiando-me a prosseguir, mas eu calei o resto dos meus pensamentos.

 

Dei a mesma volta ao regressar a casa de Eco.

 

Por que não escreves ao Meto? sugeriu Eco. Isso costuma ajudar-te a clarear as ideias.

 

- Acho que não seria sensato colocar informações incriminatórias sobre a minha mulher numa carta.

 

Podes sempre queimá-la depois de escrita. De qualquer maneira, fazes isso muitas vezes, não fazes?

 

Por vezes penso que os meus filhos me conhecem bem demais. Pedi a Eco que me mostrasse onde guardava o material de escrita.

 

Sentei-me no seu pequeno escritório a olhar para o pergaminho em branco durante muito tempo, e finalmente escrevi:

 

Ao meu amado filho Meto, sob o comando de Gaio Júlio César, na Gália, do seu querido pai, em Roma, que a Fortuna esteja contigo.

 

Escrevo-te esta carta nos Nonos de Aprilis, no segundo dia do festival da Grande Mãe...

 

Poisei o estilete e voltei a olhar para o pergaminho. Ouvi um som vindo da porta. Ergui os olhos e vi Meto a olhar para mim.

 

Os deuses adoram apanhar-nos desprevenidos. Os fios das nossas vidas passam uns pelos outros, para a frente e para trás, intersectando-se num padrão que nenhum mortal consegue discernir: eu tinha o pensamento voltado para Meto e ali estava ele diante de mim, em carne e osso, como se o meu desejo o tivesse conjurado.

 

- Por Hércules! murmurei. O que estás tu aqui a fazer? Subitamente, o irmão mais velho apareceu atrás dele. Desataram ambos a rir.

 

- Tu sabias, Eco! disse eu. Ele já cá estava quando me sugeriste que lhe escrevesse!

 

Claro! Não consegui resistir a pregar-te a partida. Meto chegou depois de tu teres saído para casa de Clódia. Quando te ouvimos regressar, eu disse-lhe para se esconder. Devias ver a tua cara!

 

Pregarem partidas ao vosso pai é uma atitude desprezível.

 

Sim, mas pelo menos estás a sorrir disse Eco. Eu afastei o pergaminho da minha frente.

 

Ainda bem que chegaste, Meto. Nunca seria capaz de escrever a história toda!

 

Ele sorriu e sentou-se ao meu lado.

 

E tive a sorte de chegar inteiro.

 

Eu pus a mão sobre a dele e suspirei. Ando sempre preocupado com ele, porque conheço os perigos que corre na Gália. Mas não era isso que ele queria dizer.

 

Há um motim no Fórum explicou ele. Ainda não deve ter acabado. Não viste, quando voltavas do Palatino?

 

Vim à volta, não passei por lá.

 

Encenaram uma peça para a festa interrompeu Eco. Aparentemente, um dos rufias de Clódio tomou conta do palco e provocou um motim. Vingança imediata pelas coisas horríveis que disseram sobre ele, ontem no julgamento.

 

- Encarreguem um homem como Clódio da organização de uma festa, e ele há-de usar o facto em benefício dos seus próprios objectivos mesquinhos disse Meto, desgostoso. Os políticos são todos iguais. Mas que julgamento foi esse?

 

Tentei explicar-lhe o mais sucintamente possível mas, passado um momento, Meto ergueu a mão.

 

Isso é tudo muito complicado. Prefiro de longe a estratégia militar!

 

Eu ri-me.

 

Mas o que estás tu a fazer em Roma? César está cá?

 

Está em Ravena, mas não me ouviste dizer isto. Está a ter uma reunião secreta com Crasso. Depois vai para Luca, para se encontrar com Pompeu. César quer nomear mais generais e reunir quatro legiões; vai precisar da ajuda desses dois para conseguir que o Senado aprove os gastos e suprimir as queixas de que está a ficar com demasiado poder. Se querem saber, acho que os três vão ressuscitar o Triunvirato, e desta vez vão fazer com que ele funcione. É inevitável. Mais cedo ou mais tarde, o Senado estará completamente defunto. O Senado não consegue governar-se a si próprio, quanto mais a um Império! É apenas um impedimento, um obstáculo no caminho de César. Um fruto apodrecido que tem de se deitar fora. Todas aquelas discussões judiciais, com os políticos constantemente a arrastarem-se uns aos outros pelos tribunais esses disparates têm de acabar, mais cedo ou mais tarde. Por aquilo que me disseste, o julgamento de Célio é apenas mais um exemplo da decadência das coisas.

 

- Mas qual é a alternativa? perguntou Eco.

 

Meto olhou para o irmão mais velho com uma expressão suave.

 

- César, claro.

 

- Estás a falar de um ditador, como Sula disse eu, abanando a cabeça.

 

Ou pior disse Eco, um Rei, como Ptolemeu.

 

- Estou a falar de um homem capaz de governar. Vi com os meus próprios olhos aquilo de que César é capaz. Todas estas desordens mesquinhas aqui em Roma parecem perfeitamente absurdas vistas da Gália, onde se assiste à conquista do mundo pelos Romanos.

 

Pompeu e Crasso não são propriamente mesquinhos disse eu.

 

É por isso que a solução é um triunvirato disse Meto. Pelo menos temporariamente. Mas tu nunca me ouviste dizer isto.

 

- E homens como Clódio e Milo? disse Eco. Ou Cícero, já agora? Ou Célio?

 

Meto fez uma expressão que demonstrava que esses homens eram menos do que desprezíveis. O que tinha o serviço sob o comando de César feito ao meu filho?

 

Só dispus de um momento para pensar nisso, porque subitamente os gémeos entraram a correr no compartimento, numa explosão de risos e cabelo loiro. Talvez Meto soubesse uma ou duas coisas sobre estratégia militar, mas não estava à altura dos sobrinhos. Titânia avançou pela esquerda, Tito pela direita. Agarraram-lhe cada um num braço, e treparam por ele acima.

 

Eles estão tão grandes! E tão fortes! Meto ria.

 

Tencionam lutar contigo disse Eco, mortificado.

 

Ou pelo menos imobilizar-te disse eu.

 

- E conseguiram resmungou Meto. Os gémeos guincharam de triunfo.

 

- É melhor desistires já, enquanto podes sugeri eu. O tio Meto, que combate nas Gálias, consegue suportar um tratamento bem mais duro do que o delicado avôzinho e eles sabem perfeitamente que assim é.

 

- Desisto! arquejou Meto. Os gémeos largaram-no imediatamente e voltaram-se para mim, com a intenção de organizarem uma escaramuça. Mas afinal fizeram um assalto de abraços e beijos inofensivos, aos quais eu me submeti sem oposição.

 

Mas o que é isto? perguntei eu.

 

- O quê? disse Titânia.

 

- Esta jóia que tens aqui pregada na túnica?

 

- É um olho de górgona! gritou Tito. Dá-lhe poderes mágicos, e eu vou-lho roubar, nem que tenha de lhe cortar a cabeça!

 

- Mas de onde é que isso veio? Subitamente, fiquei com a boca seca. Era um brinco simples, uma argola de prata com uma conta de vidro verde o par do brinco que tinha sido usado para abrir a fechadura do meu cofre, e descuidadamente abandonado pela pessoa que levara o veneno.

 

- Veio da terra da Líbia, onde vivem as Górgonas disse Titânia. Faz com que as pessoas fiquem invisíveis. Foi o Tito que disse.

 

Sim, mas como é que isso veio parar aí? Pelo meu tom de voz, ela percebeu que eu queria uma resposta séria.

 

- Ela deu-mo disse Titânia. Disse-me que tinha perdido o outro e que já não o queria.

 

Quem é que te deu?

 

Titânia disse-me. A cabeça começou a andar-me à roda.

 

Achas que faz mesmo com que as pessoas fiquem invisíveis? perguntou ela.

 

- Não. A voz tremia-me. Quer dizer, sim. Por que não? O par fez com que ela ficasse invisível. Pelo menos para mim. Fez-me pensar que tinha visto a verdade, quando nem sequer tinha começado a detectá-la. Oh, Cibele!

 

Eco franziu o sobrolho.

 

Papá, o que estás tu a dizer?

 

- Tenho de ir imediatamente para casa. Acho que se calhar me enganei, e muito, sobre uma coisa.

 

Foi Belbo quem me abriu a porta. Quando me viu, fez um grande sorriso.

 

- Senhor! Graças aos deuses que voltaste!

 

- Aconteceu alguma coisa?

 

- Não, nada... agora que tu voltaste.

 

- Ela tem andado assim tão maldisposta?

 

Belbo fez rolar os olhos numa espécie de resposta, e depois deu salto ao ouvir uma voz atrás de si.

 

- Quem? A voz de Betesda era como gelo na Primavera.

 

Com um aceno de cabeça, mandei Belbo ir à sua vida, e ele desapareceu rapidamente. Betesda e eu olhámos um para o outro em silêncio durante longos momentos.

 

- Onde tens estado? disse ela por fim.

 

- Passei a noite em casa de Eco?

 

- E a noite anterior?

 

- Dormi com um poeta embriagado, na verdade. Ela fungou.

 

- Assististe ao julgamento, ontem?

 

- Assisti.

 

- Foi um espectáculo e tanto, não foi?

 

- Estiveste lá?

 

Claro. Belbo guardou-me um lugar mesmo à frente. Mas não te vi.

 

- Estava de pé, lá para trás. Também não te vi.

 

- Que estranho, não é? Estivemos tão perto um do outro e não nos vimos. O seu olhar suavizou-se um pouco. Célio foi ilibado. Ainda bem.

 

- Pois foi.

 

- Mas o que eles fizeram a Clódia foi horrível.

 

- Sim, foi escandaloso.

 

- Apetecia-me mandá-los calar. Se pudesse, tinha-os mandado calar.

 

Eu também.

 

Ela saiu da cidade disse Betesda.

 

- Como é que sabias?

 

Betesda viu a minha expressão e franziu o sobrolho.

 

- Não sejas tão desconfiado. Achas que há alguma conspiração secreta entre as mulheres? Esta manhã, um escravo trouxe-me um recado de Clódia. Tínhamos combinado eu ir visitá-la amanhã, e ela queria dizer-me que não estaria em casa. Não me disse para onde ia, mas apenas que saía imediatamente de Roma.

 

Cruzou os braços e avançou para o jardim. Eu fui atrás dela. Ela manteve-se de costas voltadas.

 

Peço desculpa por te ter enganado, marido. Já sabes a verdade, não sabes?

 

- Acho que sim.

 

Devo-te uma explicação. Aquele homem Díon até me custa dizer o nome dele. Em Alexandria, antes de tu me teres comprado...

 

Eu sei.

 

- Como?

 

Ouvi-te falar com Clódia no outro dia, no jardim das traseiras. Ela olhou-me por cima do ombro. Os seus olhos iluminaram-se

 

quando compreendeu, depois ficaram enublados.

 

- Mas eu não disse o nome dele! Não queria dizer a Clódia quem era.

 

- Mesmo assim...

 

Ela acenou com a cabeça e desviou os olhos.

 

- Devias ter-me contado, Betesda. Há muito tempo que devias ter-me contado. Eu aproximei-me e pus-lhe uma mão na parte de trás do pescoço.

 

Ela levantou o braço e tocou-me nos dedos.

 

- Quer dizer que compreendes?

 

Não posso lamentar que Díon tenha morrido. Quando penso no que ele te fez, a ti e à tua mãe, e sabem os deuses a quantas outras...

 

- Então diz que me perdoas.

 

- Perdoa-me tu primeiro, Betesda, por ter menos confiança em ti do que devia.

 

- Perdoo-te, marido.

 

E eu perdoo-te, mulher, por me teres enganado.

 

- E por ter envenenado um convidado em tua casa?

 

Confessas?

 

Ela inspirou profundamente.

 

Sim.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Não. Não posso perdoar-te por teres envenenado Díon. Ela tornou-se rígida.

 

- Mas perdoo-te por continuares a enganar-me com uma falsa confissão.

 

Ela voltou-se. Pela maneira como olhou para mim, perscrutando-me o rosto à procura de sinais daquilo que eu sabia, tive a certeza de que tinha finalmente descoberto a verdade.

 

Um pouco mais tarde, estava sentado na minha biblioteca, olhando para o jardim pelas janelas abertas. As vinhas e as flores estavam em botão. Abelhas e borboletas esvoaçavam à luz brilhante do Sol.

 

Diana apareceu à porta.

 

Querias falar comigo, papá?

 

- Sim.

 

Ela mostrou-se grave por momentos, depois alegrou-se.

 

- A mãe disse-me que o Meto voltou.

 

- Sim, veio passar uns dias. Está em casa do Eco. Não tardam a chegar aí para o jantar.

 

Estou ansiosa por vê-lo.

 

Eu acenei com a cabeça e senti-me incapaz de olhar para ela. Em vez disso, observei as abelhas e as borboletas.

 

A tua mãe disse-te sobre que assunto eu queria conversar contigo?

 

- Disse, papá. Subitamente, ela endureceu a voz, como a mãe costumava fazer no princípio de uma discussão, para mostrar que não se deixaria abater.

 

- Quando foi que a tua mãe te falou acerca de Díon? Acerca do que ele lhe tinha feito?

 

- Foi há anos, papá. Logo que eu tive idade para compreender.

 

- E, no entanto, nunca me contou!

 

- Era uma coisa entre nós, papá. O género de coisa que uma mãe conta a uma filha. Os homens também têm segredos que nunca partilham com as mulheres.

 

- Pois, acho que sim... Por isso, quando Díon veio cá a casa, naquele dia...

 

- Quando tu o apresentaste, eu não fazia ideia de quem se tratava. A mãe nunca me tinha dito o nome do homem, só me tinha falado da sua perversidade. Mas, quando eu disse à mãe o nome do visitante e de onde ele tinha vindo, vi pela sua expressão que havia qualquer coisa que a perturbava profundamente. ”É ele, não é?” disse eu. Ela não tinha bem a certeza, por isso foi ver.

 

- Sim, lembro-me da maneira como vocês olharam para ele, e como ele olhou para as duas. Não é de espantar que tivesse ficado chocado quando vos viu, especialmente as duas lado-a-lado! Tu és parecidíssima com ela, quando era jovem. Eu assisti a todos esses olhares, mas nada compreendi como um cão que assistisse a um debate entre oradores. E pensar que fui eu que sugeri que preparassem qualquer coisa para Díon comer! Foi a tua mãe que te disse para ires buscar o veneno?

 

- Não, papá, fui eu que pensei nisso. Eu sabia onde estava o veneno...

 

- Claro que sabias, eu avisei-te tantas vezes quando o Eco mo entregou. Era tão perigoso, pensei eu, guardar veneno numa casa onde há uma criança. Era perigoso de uma forma que nunca me ocorreu. Mas a tua mãe deve ter percebido, quando tu o misturaste com a parte de Díon.

 

Não. Fiz isso quando ela estava de costas, e depois insisti para ser eu a servir.

 

- Fizeste tudo sozinha! Num piscar de olhos, decidiste matar um homem, foste buscar o veneno, deitaste-lho na comida, e...

 

Diana baixou os olhos.

 

- E fizeste tudo isso sozinha!

 

Ela acenou com a cabeça. Eu abanei a minha.

 

- Quando é que Betesda te deu aqueles brincos de vidro verde? Diana suspirou.

 

- Há imenso tempo, papá. Cansou-se deles, e o vidro estava riscado, por isso deu-mos. Eu usava-os de vez em quando.

 

E eu nunca reparei nisso. Claro, Betesda usa o cabelo para cima, com os brincos à mostra. Tu ainda usas o teu para baixo, és muito jovem...

 

- É estranho. Não me lembro de os ter posto naquele dia. Nem sequer me lembro de os ter usado para abrir a fechadura do cofre onde estava o veneno, mas acho que devo tê-lo feito. É como se tivesse estado a sonhar quando tudo aquilo aconteceu. Só alguns dias depois me apercebi de que tinha perdido o brinco. Procurei por toda a parte. Excepto dentro do teu cofre. Por fim, desisti. Dei o par à Titânia.

 

- Sim, ela disse-me. Abanei a cabeça. Deixaste a fechadura como estava, arrombada. Nem sequer tentaste substituir o veneno que tinhas tirado, nem que fosse por qualquer coisa com um aspecto parecido. Estremeci. Só por si, esse facto devia ter-me feito perceber que Betesda não era responsável. Ela nunca teria deixado rasto! Comportaste-te como uma criança, Diana, ao pensares que podias deixar essas pistas sem vires a ser descoberta. Quando é que contaste à tua mãe?

 

Só lhe contei no outro dia, depois da visita de Clódia.

 

- Por que esperaste tanto tempo? Não me surpreende que não me tenhas contado, mas pensei que não tinhas segredos para a tua mãe.

 

- Tencionava dizer-lhe logo que Díon saiu cá de casa. Queria fazê-lo. Mas, subitamente, tive medo, senti-me confusa. No dia seguinte, depois de tu teres ido embora, ouvimos dizer que Díon tinha morrido. Percebi que a mãe tinha ficado satisfeita, embora ela não tenha dito uma palavra. Mas toda a gente dizia que Díon tinha morrido esfaqueado e, nesse caso, como é que eu podia tê-lo envenenado? Talvez aquele produto fosse inofensivo, pensei eu, se calhar não era veneno nenhum, era apenas uma especiaria amarela. Talvez eu tivesse imaginado que o tinha envenenado. Parecia-me tudo tão estranho. Não sabia o que havia de fazer. Só queria esquecer-me daquilo e pronto.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

- Quer dizer que Betesda só soube a verdade depois da visita de Clódia. Todos os seus protestos da inocência de Célio eram opiniões! Ela também tinha a certeza de que Célio nunca teria envenenado Clódia. Pois bem, enganou-se nos dois casos Célio fez os possíveis por assassinar Díon e Clódia. Belo juiz de personalidades que Betesda me saiu! Tanto pior para mim, o admirador de Díon! Mas por que lhe contaste?

 

- Foi por tê-la ouvido contar a Clódia o que lhe tinha acontecido, e à mãe dela, quando era jovem. Fiquei espantada quando a ouvi falar daquilo a outra pessoa, para além de mim. Até chorei. Nessa altura, decidi contar-lhe que tinha envenenado Díon, não por me sentir orgulhosa disso, mas porque não queria esconder-lhe nenhum segredo. Por isso, nessa noite, depois de Clódia sair, contei-lhe. Ela disse-me que eu não devia contar a ninguém. ”Nem sequer ao papá?” disse eu. ”Muito menos ao papá!”

 

Mas dois dias depois, quando vocês regressaram de casa de Clódia, a mãe veio ao meu quarto contar-me como tinha sido a festa, e depois tu entraste lá dentro daquela maneira, a gritar com ela. Tinhas ido à procura do veneno e tinhas encontrado a fechadura aberta e o estojo vazio. Atiraste com o brinco ao chão e subitamente eu percebi onde é que o tinha perdido. Mas aquilo que tu disseste não fazia sentido. Tu parecias estar convencido de que, por qualquer razão, a mãe tinha roubado o veneno para o dar a Clódia...

 

Eu gemi e abanei a cabeça.

 

- Acusei-a de me enganar e ela admitiu-o mas estávamos a falar de coisas diferentes! Eu pensei que ela tinha dado o veneno a Clódia sem eu saber, mas o engano era uma coisa diferente ela sabia que tu tinhas envenenado Díon e não me contou.

 

Diana acenou com a cabeça.

 

Depois de tu saíres de casa, a mãe disse-me: ”Se ele não descobrir a verdade, não digas nada. Deixa-me ficar com as culpas.” Mas tu descobriste, não foi, papá? Ela não estava a recriminar-me, havia até uma sugestão de orgulho na sua voz em relação a Betesda, por tê-la protegido, e em relação a mim, por ter descoberto a verdade.

 

Eu olhei para o seu rosto à luz suave que entrava do jardim, e vi uma jovem-criança de cabelo preto e lustroso e os começos de uma beleza de mulher.

 

- Não sei o que te hei-de dizer, Diana. Tu és um mistério, tal como a tua mãe. Por que fizeste aquilo? Como é que tiveste força para ir até ao fim?

 

Como é possível que não compreendas, papá? Lembras-te quando aqui estávamos no outro dia, e eu quis ver a carta que tu estavas a escrever ao Meto? Era uma carta sobre o teu trabalho, sobre a procura do assassino de Díon. Eu perguntei-te por que razão era tão importante para ti descobrir quem tinha morto Díon. Tu falaste sobre paz de espírito. E disseste-me: ”Se tivessem feito mal a uma pessoa que fosse muito importante para ti, não gostarias de vingar essa pessoa, de compensar o mal que tinha sido feito, se pudesses?” Claro que sim, papá! Foi exactamente isso que eu fiz. Fi-lo pela mãe. E fi-lo pela avó que nunca hei-de conhecer. Gostavas que o desfizesse, se isso fosse possível? Se pudesses reverter o tempo, preferias que eu não tivesse feito nada?

 

Eu estudei-lhe o rosto, confuso, e tentei recordar-me de tudo aquilo em que acreditava relativamente aos assassínios e à justiça, ao bem e ao mal.

 

- Não terias feito a mesma coisa, papá?

 

Por instantes, o véu do mistério dissolveu-se. Os olhos que olhavam para mim eram-me tão familiares e desprovidos de segredos como os meus próprios olhos ao espelho. Carne da minha carne, sangue do meu sangue. Pus-lhe as mãos nos ombros e beijei-a na testa. Do jardim, vinham até nós os sons da família que chegava para jantar Eco, Menénia, Meto e os gémeos conquistadores. Eu recuei, voltei a olhar Diana nos olhos, e vi, com um arrepio de pena, que o véu baixara de novo sobre eles. Ela voltara a ser um mistério, um ser completo e diferente de mim, outro mortal perdido no cosmos: fora do meu controlo, para além da minha compreensão. O momento de reconhecimento passara, como sempre acontece com esses momentos, como a música que preenche o vazio e se desvanece num piscar de olhos.

 

 

Nota do autor

Num prazo de treze anos, muitos dos participantes no julgamento de Marco Célio estarão, nas palavras do historiador T. P. Wiseman, ”espectacularmente mortos” Clódio assassinado durante uma escaramuça com o bando de Milo (no dia seguinte, uma multidão furiosa pegou fogo ao senado); Crasso massacrado, juntamente com um exército de vinte e cinco mil homens, na sua fatídica campanha contra os Partos, em busca de glória militar; Pompeu vítima da tumultuosa Guerra Civil; Cícero vítima da paz. As restrições judiciais da República contra a ”violência política” foram um fracasso total, como o foi a segunda tentativa de constituição de um triunvirato estabilizador, protagonizada por Crasso, César e Pompeu; no final desse caminho, estava Augusto.

O Rei Ptolemeu também terá morrido, deixando aos seus filhos (incluindo a famosa Cleópatra) o encargo de lutarem pelo Egipto e evitarem o domínio romano por mais algum tempo.

Quanto a Marco Célio, mudou de aliados vezes de mais, e por fim traiu quem não devia. Incapaz de convencer uma guarnição de soldados a revoltar-se contra César durante a Guerra Civil, as suas ambições terminaram em morte violenta. A sua animada correspondência com Cícero chegou até aos nossos dias, fazendo dele o menino bonito de historiadores como Gaston Boissier (”No período histórico que estudamos, talvez não haja outra figura tão curiosa como Célio”) e W. Warde Fowler (que considerava Célio ”a figura mais interessante do seu tempo”). Mas já no século I o comentador Quintiliano transmitia à posteridade a sua própria análise: Marco Célio merecia ter tido ”uma cabeça mais fria e uma vida mais longa”.

De todos eles, Catulo foi o primeiro a encontrar a morte, em 54 a. C., por motivos desconhecidos. Devia ter cerca de trinta anos.

E Clódia? Depois do julgamento, desaparece de cena (embora eu suspeite de que o caminho de Gordiano poderá cruzar-se de novo com o dela). Voltamos a encontrá-la nove anos mais tarde, em algumas cartas de Cícero ao seu amigo Ático, que parece ter mantido boas relações com Clódia. Interessado em comprar uma propriedade num local onde pudesse usufruir de uma reforma descansada (”Um sítio para onde vás envelhecer”, presume Ático, ao que Cícero responde sem rodeios: ”Um sítio onde me enterrem”), Cícero pede ao amigo que investigue diversos hortos que poderão estar à venda nos arredores de Roma. Eis Cícero, na tradução de Shackleton BaileyNT: ”Gosto dos jardins de Clódia, mas não me parece que estejam à venda”. E, uns dias depois: ”Dizes-me uma ou outra coisa sobre Clódia. Onde está ela ou quando regressa? Prefiro a sua propriedade a todas as outras, à excepção da de Oto. Mas não parece que ma venda: ela gosta do sítio e tem muito dinheiro: e sabes bem como a outra coisa é difícil. Mas peço-te que me ajudes a fazer um esforço para pensarmos numa maneira de eu conseguir o que pretendo.” Tanto quanto sei, a última vez que ouvimos falar dela é numa carta de 15 de Abril de 44 a. C., em que Cícero escreve a Ático: Clódia quid egerít, scribas ad me velim (”Gostava que me escrevesses a dizer o que fez Clódia”). Estaria Cícero a tentar esclarecer alguma bisbilhotice que tinha ouvido? Estaria a perguntar por Clódia sem nenhum motivo especial? Não sabemos.

Gostaria de mencionar alguns livros que me ajudaram nas minhas investigações. Antes de mais, Catullus andHis World: A Reappraisal, um livro soberbamente anotado de T. P. Wiseman (Cambridge University Press, 1985) que proporciona um retrato vivo e muito completo de Catulo e do seu círculo, do ponto de vista da história, da ficção e do mito académico.

Abundam os estudos sobre Catulo, desde o venerável Catullus an Horace, de Tenney Frank (Henry Holt and Company, 1928), até ao perspicaz e totalmente moderno Catullus de Charles Martin (Yale University Press, 1992). Há numerosas traduções dos seus poemas. A edição da Penguin, de Peter Wingham, é acessível (em todos os sentidos); a tradução de Horace Gregory, publicada em 1956, talvez seja difícil de encontrar, mas compensa o esforço. Os leitores que tenham alguns conhecimentos de Latim encontrarão em The Poems of Catullus: A Teaching Text, de Phyllis Young Forsyth (University Press of America, 1986) uma obra clara e útil.

Aqui traduzido a partir da tradução inglesa referida.

A famosa oração em defesa de Marco Célio encontra-se na tradução de Michael Grant dos Selected Political Speeches de Cícero (Penguin,

1969). Os comentário de R. G. Austin ao texto latino (Oxford, 1933; terceira edição, 1960) são deliciosamente cortantes.

Outros dados avulso: Cybele and Attis: The Myth and the Cult, de Maarten J. Vermaseren (Thames and Hudson, Londres, 1977), é um tesouro escondido de informações acerca da Grande Mãe e dos sacerdotes eunucos. Back From Exile: Six Speeches Upon His Return, tradução e notas de D. R. Shackleton Bailey (American Philological Association,

1991), proporciona um quadro lúcido do prolongado conflito entre Cícero e Clódio. A lenda melodramática de Ápio Cláudio e da infeliz Vergínia encontra-se no Terceiro Livro da História de Roma, de Tito Lívio. Para uma explicação do trocadilho de Nola no discurso de Célio (de que apenas nos chegaram citações em segunda-mão), veja-se ”In triclinio Coam, in cubículo Nolam: Lesbia and the Other Clodia”, de T. W. Hillard (Liverpool ClassicalMonthly, Junho de 1981).

Grande parte da minha investigação foi feita na Biblioteca Doe da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e na Biblioteca Perry-Castaneda da Universidade do Texas, em Austin.

Gostaria de agradecer especialmente a Brad Craft, que me ajudou a entrar no espírito de Clódia e companhia ao emprestar-me o Manual of Classical Erotology (Defiguris Veneris), de Forberg, publicado em 1844; a Penni Kimmel, pelos seus comentários ao manuscrito; a Perri Odom, por ter lido as provas; a Barbara Saylor Rodgers, que me mostrou que o mundo está cheio das mais inesperadas interconexões; e aos meus amigos de Austin, Gary Coody e Anne e Deborah Odom, que proporcionaram ao autor locais de repouso do seu labor.

 

                                                                                 Steven Saylor  

 

                      

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