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O LOBO DAS ESTEPES / Hermann Hesse
O LOBO DAS ESTEPES / Hermann Hesse

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LOBO DAS ESTEPES

 

Este livro contém as anotações que nos ficaram desse ho­mem a quem chamávamos "Lobo das Estepes" , expressão que ele próprio várias vezes utilizava. Fica em aberto se o seu ma­nuscrito necessitava de um prefácio introdutor; para mim, em qualquer caso, impõe-se como uma necessidade juntar ao texto do "Lobo das Estepes" algumas páginas em que procuro regis­tar as recordações que dele guardo. É bem pouca coisa aquilo que sei dele, como aliás de todo o seu passado e do seu futuro, que para mim ainda são uma incógnita. No entanto, a sua per­sonalidade deixou em mim uma impressão forte e, valha a ver­dade, apesar de tudo simpática.

O Lobo das Estepes era um homem a rondar os cinquenta, que, há alguns anos, apareceu um belo dia em casa da minha tia procurando um quarto mobilado para alugar. Ficou com a mansarda lá em cima nas águas-furtadas e com o pequeno quar­to-de-dormir anexo, voltou passados dias com duas malas e um grande caixote de livros e ali viveu connosco nove ou dez meses. Levava uma vida muito calma e fechada, e não fora a vizinhan­ça dos nossos quartos ter proporcionado vários encontros for­tuitos na escada e no corredor, certamente nem sequer teríamos­ travado conhecimento, porque sociável o homem não era, pelo contrário, era insociável e a um alto grau, como eu até aí jamais vira em pessoa alguma; era realmente, como às vezes di­zia de si próprio, um lobo das estepes, uma criatura estranha, selvagem, e medrosa também, muito medrosa mesmo, vinda de um outro mundo que não era o meu. É facto que só mais tarde me apercebi, pelas notas que aqui deixou, de quanto era pro­funda a solidão em que mergulhara, por razões da sua natureza e do seu destino, e consciente o reconhecimento desta solidão como destino seu; mas já antes o conhecia minimamente, de en­contros breves e conversas várias, e a imagem extraída a partir dos seus apontamentos apresentava-se-me em traços gerais con­sonante com aquela que para mim emergia das nossas relações pessoais, esta no entanto bem mais apagada e truncada.

Quis o acaso que eu assistisse ao momento em que o Lobo das Estepes entrou pela primeira vez em nossa casa para alugar um quarto à minha tia. Veio pela hora do almoço, ainda a mesa não estava levantada, quando ainda me faltava meia hora para sair para o escritório. Ainda hoje me lembro da impressão es­tranha, e discrepante, que em mim despertou dessa primeira vez que nos encontramos. Entrou pela porta de vidro depois de pu­xar pela campainha, e a Tia perguntou-lhe no vestíbulo meio sombrio o que desejava. Mas ele, o Lobo das Estepes, emperti­gando a cabeça afilada de cabelo curto, e farejando nervosa­mente com o nariz para um lado e para o outro, a tomar os ares, proclamou mesmo antes de responder ou de se apresentar: "Hum! Cheira bem, aqui". E abriu um sorriso, ao que a boa da minha tia sorriu também; eu não, achei aquelas palavras de saudação algo esquisitas, e senti certa irritação contra ele.

"Ora bem", disse ele, "Venho por causa do quarto que a Senhora tem para alugar" .

quando nos dirigíamos os três escada acima às águas-fur­tadas pude observar o homem com maior atenção. Não era es­pecialmente alto, embora tivesse o porte e a postura de cabeça dos homens de estatura desenvolvida; trazia um casacão de in­verno moderno e confortável, e no restante vestia com dignida­de e algum descuido; a barba era bem escanhoada e o cabelo aparado, com uma ou outra mecha já branqueando. A princí­pio a sua presença não me agradou mesmo nada, tinha algo de laborioso e irresoluto que não condizia com o perfil arguto e vi­goroso, nem tão-pouco com o tom e o temperamento do seu discurso. Só mais tarde reparei e apurei que era doente, e que o andar lhe era custoso. Com um sorriso característico que na al­tura igualmente me desagradou, passou os olhos pelas escadas, pelas paredes e pelas janelas, e pelos armários grandes no vão da escada, e tudo aquilo aparentemente o satisfez, embora lhe parecesse, de certo modo, risível. Aliás, todo ele dava a impres­são do visitante chegado até nós de um mundo estranho, quiçá terras de além-mar, e achando tudo nestas bandas incontesta­velmente lindo, mas algo insólito. Era delicado, não há outra palavra para o exprimir, simpático mesmo, e desde logo e sem reservas lhe agradou a casa, o quarto, o preço do aluguer com pequeno-almoço e tudo o resto; no entanto, emanava de toda a sua pessoa uma atmosfera estranha e, pelo que me queria pare­cer, viciosa mesmo, hostil. Alugou a mansarda, ficou também com o quarto-de-dormir, inquiriu do aquecimento, água, servi­ço e rotina da casa, tudo escutou atenta e afavelmente, concor­dando com tudo, e ofereceu de imediato um adiantamento da renda; no entanto, durante todo esse tempo, dir-se-ia não estar bem no seu elemento, era como se se achasse esquisito no agir e não se levasse a si próprio a sério, como se achasse estranheza e novidade em alugar um quarto e falar alemão, quando na reali­dade e no seu íntimo estava voltado para coisas bem diferentes. Foi pouco mais ou menos esta a minha impressão, impressão que, não fora ser contrariada e corrigida por múltiplos porme­nores, teria permanecido má. Foi sobretudo a cara do homem que desde o princípio me cativou; apesar daquela expressão de reserva, tinha qualquer coisa, o seu quê de peculiar, de triste também, mas era cheia de vida, rica de pensamento, trabalhada e espiritualizada. Mas depois, como que a predispor-me à tré­gua, havia aquela cortesia, aquela afabilidade muito sua, que embora parecesse exigir-lhe algum esforço era totalmente despi­da de soberba - pelo contrário, havia ali algo que raiava o en­ternecedor, algo de suplicante, talvez, que só mais tarde conse­gui explicar, mas que desde logo me fez interessar minimamente por ele.

Ainda a inspecção das duas divisões e o ajuste dos últimos pormenores não tinham terminado e já a minha hora de almoço estava a passar; tinha de voltar para o escritório. Apresentei as minhas despedidas e deixei-o entregue à Tia. Quando voltei, à tardinha, contou-me ela que o desconhecido sempre ia ficar e entrava num desses dias, tendo apenas pedido para não se de­clarar a sua nova residência na Polícia, pois adoentado como era não suportava aquelas formalidades, aquelas esperas inter­mináveis nas repartições policiais e outras coisas do género. Ainda me lembro perfeitamente como isso na altura me deixou perplexo, e os avisos que fiz à minha tia para não embarcar nes­se requisito. É que esses receios da Polícia combinavam dema­siado bem com o que no homem havia de desusado, de distante, para que não despertassem suspeita. Expliquei-lhe que a pretex­to nenhum ela podia ceder perante alguém que lhe era total­mente estranho numa exigência para mais algo peculiar, e cuja concretização, nalguns casos, quem sabe, lhe traria mesmo con­sequências funestas. Mas aí vem a verificar-se que a Tia já as­sentira na realização do seu desejo, e mais ainda, que já se tinha deixado prender e seduzir pelo dito desconhecido; porque nun­ca na vida tinha aceite inquilinos com quem não viesse a estabe­lecer uma qualquer relação humana, de amiga, tia, ou mais ain­da de mãe, o que também não deixara de ser fartamente apro­veitado por vários dos seus anteriores inquilinos. E foi assim que nas primeiras semanas as minhas objecções ao novo inquili­no iam proliferando, ao mesmo tempo que a minha tia sistemá­tica e calorosamente o protegia.

Como não me agradasse aquela questão de esquecer a decla­ração na Polícia, resolvi pelo menos apurar o que a Tia sabia do estranho, dos seus antecedentes e das suas intenções. E ela real­mente já sabia uma coisa ou outra, embora ele tivesse saído muito pouco tempo depois de eu ter voltado para o trabalho a seguir ao almoço. Tinha-lhe contado que tencionava ficar uns meses na nossa cidade para dar uma volta pelas bibliotecas e co­nhecer as antiguidades. De facto, não era muito conveniente para a Tia que ele lhe tomasse os quartos por tão pouco tempo, mas tudo indicava que já a tinha ganho para a sua causa, apesar da sua entrada em cena um tanto singular. Resumindo, os quar­tos estavam alugados e as minhas objecções vinham tarde de­mais.

"Por que raio terá ele dito que aqui cheira muito bem?" perguntei.

E responde-me a minha tia, que às vezes se saía com bons al­vitres: "Não sei bem. Aqui em casa cheira a asseio e a ordem, e a uma vida simpática e decente, e ele gostou disso. Dá a ideia de já não estar habituado a coisas destas, e que sente falta disso".

Pois seja, pensei eu, cá por mim acho óptimo... "Agora", voltei, "se ele não está habituado a uma vida disciplinada e de­cente, então como é que há-de ser? O que é que fazes se ele for pouco asseado e emporcalhar tudo, ou se começar a entrar em casa a altas horas da noite com os copos?"

"Se assim for, logo se verá", disse ela, rindo. E eu deixei fi­car as coisas por ali.

Na realidade, os meus receios eram infundados. O inquili­no; embora estivesse longe de levar uma vida regrada, razoável, nunca nos importunou nem nos prejudicou, e ainda hoje o re­cordamos com agrado. Apesar disso, no nosso íntimo, na nossa alma, aí esse homem não deixou de nos marcar e afectar, e mui­to, e para falar francamente ainda hoje está em aberto o meu contencioso com ele. Às vezes, de noite, sonho com ele, e sinto­-me no meu íntimo perturbado e desassossegado pela simples existência de uma criatura assim, embora acabasse por gostar sinceramente dele.

 

Dois dias depois apareceu um carregador a depositar a ba­gagem do estranho, que se chamava Harry Haller. Fiquei bem impressionado com uma bela mala de couro, e havia outra, maior e achatada, que parecia apontar para anteriores viagens de longo curso - pelo menos estava coberta de etiquetas de ho­téis e agências de viagens de vários países, inclusivé transa­tlânticos.

Depois fez ele a sua chegada, e foi a partir daí que entrei aos poucos e poucos no conhecimento do insólito personagem. Ao princípio nada fazia pelo meu lado por isso. Embora Haller me despertasse interesse desde o primeiro minuto em que o vi, nas primeiras semanas não dei um passo para me encontrar ou en­trar em conversa com ele. Em contrapartida, devo confessá-lo, desde a primeira hora andei um pouco de olho nele, e inclusivé cheguei a entrar-lhe uma vez ou outra no quarto em sua ausên­cia; enfim, por pura e simples curiosidade, fiz um pouco de es­pionagem.

No tocante à aparência exterior do Lobo das Estepes, já avancei algumas referências. Dava nitidamente e logo à primei­ra vista a impressão de um tipo notável, fora do comum e invul­garmente dotado; o rosto era cheio de espírito, e o jogo fisionó­mico, excepcionalmente delicado e maleável, espalhava uma vi­da interior interessante, de sobremaneira agitada, extraordina­riamente delicada e sensível. Conversando com ele, se acaso passava as fronteiras do convencional, o que nem sempre era o caso, e abandonava o seu jeito distante e singular para proferir opiniões que lhe eram próprias, muito suas, então todos pelo nosso lado nos tínhamos de render à nossa inferioridade, sem mais rodeios; tinha reflectido mais que as outras pessoas, e nas coisas do espírito mostrava a objectividade quase gelada, o sóli­do pensamento e o firme saber só próprios dos que são verda­deiramente intelectuais, despidos de toda a ambição, e jamais apostados em brilhar, persuadir ou ter a última palavra.

Recordo-me, dos últimos tempos da sua estadia, de uma afirmação dessas - afirmação propriamente não era, porque afinal não passava de um simples olhar. Estava na altura anun­ciada para a Aula Magna uma conferência de um conhecido fi­lósofo historiador e crítico do sistema, de renome europeu, e eu tinha conseguido convencer o Lobo das Estepes, que inicial­mente não estava nada inclinado para isso, a ir comigo. Fomos juntos e ficamos sentados um ao lado do outro no auditório. Quando o orador subiu ao púlpito e começou a sua palestra, decepcionou muitos dos presentes, que vinham a contar encon­trar nele uma espécie de profeta, pelo jeito algo afectado e pre­sumido da sua apresentação. Porém, mal começou a falar, di­ringindo-se desde logo à assistência com elogios vários e agrade­cendo-lhes a sua numerosa presença,. o Lobo das Estepes lan­çou-me um olhar muito rápido, de crítica àquelas palavras e a toda a pessoa do conferencista, oh!, um olhar inesquecível, ter­rível, cujo significado daria para escrever um tratado! Era um olhar que não se limitava a criticar aquele orador, destruindo o famoso personagem com a sua ironia leve, mas categórica; não, isso ainda era o menos que nele se lia. Era um olhar mais triste do que irónico, de uma tristeza mesmo abismal, sem esperança; continha em si um desespero silencioso, desespero de .certo mo­do estabilizado, de certo modo já feito hábito e forma. Não se limitava a perpassar coma sua lucidez extremada a pessoa do presumido orador, ironizando ao mesmo tempo e desfazendo a situação do momento, a expectativa e a disposição do público, o título algo presunçoso da anunciada palestra - não, o olhar do Lobo das Estepes trespassava toda a nossa época, toda a la­boriosa afectação, estratagemas, vaidade, todo o jogo superfi­cial de um intelectualismo arrogante e leviano. E não ficava por aí, infelizmente, era um olhar que ia mais fundo ainda, bem pa­ra além das carências e desesperos do nosso tempo, da nossa es­piritualidade, da nossa cultura. Atingia o coração de toda a hu­manidade, expressava eloquentemente num só segundo toda a dúvida de um pensador, de alguém porventura sabedor da dig­nidade, do sentido da própria vida humana. Esse olhar dizia: "Olha a figura de macaco que nós fazemos! Sim, vê bem, o ho­mem é isto!" e toda a celebridade, toda a sagacidade, todas as realizações do espírito, todos os ensaios de aproximação ao su­blime, à grandeza e à longevidade no humano caíam por terra e não passavam duma macacada!

Alonguei-me já muito e aliás, contra o meu plano e a mi­nha vontade, no fundo até já disse o essencial sobre Haller, quando afinal, originalmente, a minha intenção era só aos pou­cos e poucos trazer a descoberto a sua imagem, à medida que fosse narrando a evolução das nossas relações.

Uma vez que assim fui adiantando, é escusado falar mais da enigmática "estranheza" de Haller e contar em pormenor co­mo gradualmente fui idealizando e reconhecendo as razões e os significados dessa estranheza, desse extraordinário e terrível isolamento. Tanto melhor, porque gostaria de manter a minha própria pessoa tanto quanto possível em segundo plano. Não pretendo vir aqui apresentar as minhas confissões, nem tão­-pouco contar novelas ou fazer psicologia, mas tão somente contribuir alguma coisa, na qualidade de testemunha ocular, para a imagem descritiva do singular personagem que aqui dei­xou este manuscrito do Lobo das Estepes.

Logo ao primeiro olhar, no instante em que o homem trans­pôs a porta envidraçada da Tia, empertigando a cabeça tão ao jeito de pássaro e elogiando o bom cheiro reinante na casa, de certo modo me ressaltou o insólito que nele havia, e a minha primeira e ingénua reacção foi de desagrado. Pressenti - e a minha tia, que pelo contrário é tudo menos uma intelectual, pressentiu praticamente o mesmo - que o homem era doente, de uma qualquer doença do espírito, da alma ou do carácter, e ergui-me contra isso com o instinto do são. Essa resistência, com o correr do tempo, deu lugar à simpatia, apoiada numa grande compaixão por aquele profundo e permanente sofredor, a cujo isolamento e morte interior eu assistia. Ao longo dessa época cada vez me consciencializei mais de que a sua doença não assentava em quaisquer carências da sua natureza, mas, pe­lo contrário, apenas numa sobre-abundância de dons e forças a que ele não conseguira emprestar harmonia. Apercebi-me de que Haller era um génio do sofrimento e que, no sentido de vá­rias afirmações de Nietzsche, acumulara em si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível. Ao mesmo tempo re­conheci que a base do seu pessimismo não era o desprezo pelo mundo mas sim o desprezo por si próprio pois, por impiedosa e destrutiva que fosse a crítica de pessoas ou instituições, nunca se excluía a si próprio de tal tratamento, e era contra si próprio que em primeiro lugar apontava a sua flecha, era a si próprio que antes de tudo odiava e reprovava...

Impõe-se-me aqui inserir um comentário psicológico. Em­bora saiba muito pouco da vida do Lobo das Estepes, tenho to­das as razões para crer que foi criado por pais e mestres extre­mosos, mas severos e muito religiosos, dentro daquela ideia­-mestra que faz da "quebra da vontade" pilar de toda a educa­ção. Só que esse aniquilamento da personalidade, essa quebra da vontade, não tinham vingado neste aluno, que era demasia­do forte e duro, demasiado orgulhoso e inteligente para vergar. Em vez de lhe aniquilarem a personalidade, apenas tinham con­seguido ensiná-lo a odiar-se a si próprio. Desde então e para to­da a vida, era contra si próprio, contra esse objecto inocente e nobre que dirigia toda a genialidade da sua imaginação, toda a força da sua faculdade de pensamento. Pois ao desencadear an­tes de tudo e acima de tudo contra si próprio toda a acerbidade, todas as críticas, violências e repudiações de que se servia, era Cristo de pessoa inteira, era mártir de pessoa inteira. No que respeitava aos outros, ao mundo circundante, continuamente se esforçava, em luta das mais heróicas e sérias, por amá-los, fa­zer-lhes justiça, não lhes fazer mal, pois o "amor ao próximo" estava tão profundamente cravado nele como o ódio a si pró­prio; e assim toda a sua vida era um exemplo de que sem amor a si próprio também o amor ao próximo é impossível, que o ódio a si próprio é exactamente a mesma coisa que o egoísmo nu e cru, e acaba por gerar o mesmo sinistro isolamento, o mesmo desespero.

Mas vai sendo altura de deixar para trás os meus pensamen­tos para falar de realidades. A primeira coisa, portanto, que apurei sobre o Sr. Haller, em parte através da minha espiona­gem, em parte por observações da minha tia, reportava-se ao seu modo de viver. Breve me foi dado verificar que era homem de ideias e de livros e não exercia nenhum ofício prático. Ficava sempre até muito tarde na cama, muitas vezes só se levantava por volta do meio-dia e transpunha em roupão os poucos pas­sos que separavam o quarto-de-dormir da sua sala. Esta, uma mansarda grande e agradável com duas janelas, apresentava lo­go após os primeiros dias um aspecto diferente da época em que fora ocupada pelos anteriores inquilinos. Estava mais cheia, e com o tempo veio quase a abarrotar. Nas paredes pendurou quadros, pregou desenhos, por vezes ilustrações recortadas de revistas, que substituia frequentemente. Havia também uma paisagem do Sul, fotografias de uma aldeia alemã, provavel­mente terra natal de Haller, de permeio com garridas e lumino­sas aguarelas que, como só mais tarde viemos a saber, ele pró­prio havia pintado. Havia também a fotografia de uma linda e jovem mulher ou rapariga. Durante um tempo esteve um Buda siamês pendurado na parede, depois substituido por uma repre­sentação da "Noite" de Michelangelo e depois ainda por um re­trato de Mahatma Gandhi. Os livros não enchiam apenas a vo­lumosa estante, também os havia por todo o lado, por cima das mesas, na linda secretária antiga, no divã, nas cadeiras, pelo chão, livros entremeados de marcadores de papel, que muda­vam constantemente. Os livros multiplicavam-se a fio, pois não eram só os pacotes maciços que trazia das bibliotecas, também os recebia amiúde em encomendas postais. O homem que habi­tava aquela sala podia ser um sábio. O fumo do charuto a en­volver tudo, e as beatas e taças cheias de cinza abandonadas por toda a parte contribuiam para criar essa imagem. Grande parte dos livros, no entanto, não era de teor erudito, a larga maioria eram obras de poetas de todos os tempos e povos. Durante cer­to tempo andaram pelo divã, onde frequentemente passava dias inteiros estendido, os seis grossos volumes de uma ob,ta intitula­da Viagens de Sofia de Memel à Saxónia, dos fins do século de­zoito. Uma edição completa das obras de Goethe e outra de Jean-Paul pareciam ter bastante uso, e Novalis também, mas não menos Lessing, Jacobi e Lichtenberg. Alguns dos livros de Dostoiewski transbordavam de papelinhos rabiscados. Em ci­ma da mesa maior, entre os muitos livros e escritos, havia mui­tas vezes um ramo de flores, e por ali andava também uma cai­xa de aguarelas por sinal sempre empoeirada, ao lado os cinzei­ros e, para também não deixar passar em branco este porme­nor, toda a casta de garrafas de bebidas. Uma delas, envolvida em palhinha, continha normalmente vinho tinto italiano, que ele trazia de uma lojeca ali perto; às vezes tinha também uma garrafa de Borgonha, ou Málaga, e uma ou outra mais larga com aguardente de cereja; essa vi eu esvaziar quase até ao fun­do em bem pouco tempo, mas logo depois sumiu para um canto da sala para criar pó, sem que o remanescente tivesse sofrido maior redução. Não tenciono justificar-me pela espionagem que pratiquei, e abertamente também confesso que nos primei­ros tempos todos esses indícios de vida sem dúvida recheada de interesses espirituais, mas não menos desregrada e desperdiça­da, despertaram em mim aversão e suspeita. Não me limito a ser burguês, homem de vida regrada, habituado ao trabalho e a uma repartição bem definida do tempo, sou também abstémio e não fumador, e aquelas garrafas no quarto de Haller ainda me agradavam menos que a restante pictórica barafunda.

Assim como no sono e no trabalho, também na comida e na bebida o estranho era muito irregular e caprichoso. Havia dias em que não saía de todo e não comia nada para além do peque­no-almoço; às vezes a Tia ia dar com uma casca de banana co­mo único resto da sua refeição, mas havia dias em que ia ao res­taurante, tão depressa escolhendo o bom e requintado como a tasquinha dos arrabaldes. O seu estado de saúde não parecia bom; além da afecção nas pernas, que arrastava muitas vezes penosamente para subir as escadas, parecia sofrer de outros achaques, e uma vez contou-me incidentalmente em conversa que há vários anos não digeria nem dormia bem. Atribuí-o an­tes de mais à bebida. Mais tarde, quando de tempos a tempos o acompanhava a um dos seus bares, cheguei a vê-lo tragar o vi­nho em goladas bruscas e demoradas, mas verdadeiramente bê­bado nunca eu nem ninguém o viu.

Jamais hei-de esquecer o primeiro encontro que tivemos de carácter mais pessoal. Conhecíamo-nos apenas e nem mais nem menos do que se conhecem vizinhos de quartos sub-alugados numa mesma casa. Um dia, chego do escritório à tardinha e, para meu espanto, vou encontrar o Sr. Haller sentado no pata­mar da escada entre o primeiro e o segundo andar. Tinha-se ins­talado no degrau de cima e afastou-se para o lado para me dei­xar passar. Perguntei-lhe se não se sentia bem e acabei por me oferecer para o acompanhar até lá acima.

Haller olhou para mim e reparei que o tinha despertado de uma espécie de sonho. Lentamente, abriu um sorriso - aquele seu sorriso encantador de queixume, que tantas vezes me aper­tara o coração -, e convidou-me a sentar-me a seu lado. Agra­decendo, disse-lhe que não estava habituado a sentar-me na es­cada diante dos apartamentos das outras pessoas.

"Ah! pois", respondeu ele. E sorrindo mais declaradamen­te: "Tem razão. Mas espere só um momento, é que não quero deixar de lhe mostrar porque é que tive de sentar-me aqui um instante" .

E apontou para o átrio do apartamento do primeiro andar, onde morava uma viúva. No pequeno vestíbulo forrado a par­qué, entre a escada, a janela e a porta envidraçada estava um grande armário de mogno encostado à parede e em frente do ar­mário, no chão, apoiadas em dois suportes pequenos e baixos, duas plantas, em grandes potes, uma azália e uma araucária. As plantas eram lindas e andavam sempre impecavelmente cuida­das, muito asseadas, eu próprio já tinha reparado nisso, e com agrado.

"Está a ver?", prosseguiu Haller, "este vestibulozinho com a araucária tem um perfume espantoso. Muitas vezes não consi­go mesmo passar por aqui sem parar um instante. Na casa da Senhora sua Tia também cheira lindamente e reina a ordem, um asseio como nunca vi, mas este canto aqui da araucária é tãó ra­diosamente limpo, espanado, encerado e esfregado, tão imacu­ladamente asseado, que irradia, literalmente. Tenho sempre de parar para inspirar fundo, encher os pulmões - não sente tam­bém este cheiro? É o cheiro do encerado com uma leve reminis­cência de terebentina, aliado ao mogno, à folhagem lavada das plantas e a tudo o mais, deita um aroma que é expoente superla­tivo do asseio burguês, do esmero, da minúcia, do cumprimen­to do dever e da fidelidade em ponto pequeno. Não sei quem aímora, mas por trás dessa porta envidraçada deve reinar um pa­raíso de asseio e burguesismo espadanado, de ordem e ame­drontada e enternecedora dedicação a pequenos hábitos e obri­gações" .

Como eu me mantivesse calado, continuou: "Por favor não julgue que estou a ser irónico! Caro Senhor, longe, muito longe de mim querer de algum modo ridicularizar este burguesismo e esta ordem! Está bem, eu próprio vivo num outro mundo, não vivo neste, e talvez não fosse capaz de aguentar um só dia que fosse numa casa com araucárias destas. Mas embora eu seja um lobo das estepes velho e um tanto gasto, também eu não deixo de ser filho de uma mãe, mãe essa que também era burguesa e tinha flores em casa, que cuidava e zelava pelo quarto e pela escada, pelos móveis e pelos cortinados, e esforçava-se por manter na sua casa e na sua vida todo o asseio, limpidez e apru­mo de que era capaz. É tudo isso que evoca em mim a exalação de terebentina e a araucária, e aqui me sento de vez em quando a olhar para este silencioso jardinzinho da ordem, a regozijar­-me por ainda haver coisas destas" .

Fez menção de se levantar, mas era-lhe penoso, e não me re­peliu quando o ajudei. Quanto a mim, mantinha-me calado, mas sentia-me dominado, como já antes a minha tia, por um qualquer encantamento que esse homem tão invulgar por vezes emanava. Lentamente, subimos as escadas e, diante da sua por­ta, já de chave na mão, fixou-me mais uma vez com aquele olhar intenso e gentil e disse: "Vem do seu trabalho? Bem, dis­so não percebo eu nada, vivo um pouco à parte, um pouco àmargem, sabe? Mas parece-me que também se interessa por li­vros e coisas do género, a sua tia contou-me uma vez que fez o liceu e que era bom a grego. É que dei hoje de manhã com uma frase do Novalis, quer que lha mostre? Também vai gostar" .

Levou-me ao quarto, que cheirava intensamente a tabaco, tirou um livro de uma das pilhas, folheou, procurando a pági­na, e leu:

"Esta aqui também é boa, muito boa", disse, "ora oiça só a frase: 'Devíamos orgulhar-nos de sofrer - todo o sofrimento é lembrança da nossa elevada categoria.' Lindo! Oitenta anos antes de Nietzsche! Mas não é este o dito de que eu estava a fa­lar - espere aí - pronto, está aqui. É assim: 'A maioria das pessoas não querem nadar antes de saber.' Não tem piada? É óbvio que não querem nadar! Pois se nasceram para a terra, e não para a água! E é óbvio que não querem pensar; foram fei­tos para viver, não para pensar! Pois aquele que pensa, aquele que tudo centra no pensar, pode realmente ir muito longe nesse campo, mas para todos os efeitos trocou a terra pela água, e um dia há-de ir ao fundo".

Tinha conseguido cativar-me, e ali fiquei algum tempo com ele; e desde então não raro aconteceu ficarmos um pouco a con­versar quando nos encontrávamos nas escadas ou na rua. Das primeiras vezes, como já com a araucária, lá me vinha aquela ténue sensação de que bem no fundo troçava de mim. Mas não. O que tinha por mim, e também pela araucária, era verdadeira estima, estava tão conscientemente persuadido do seu isola­mento, do seu desenraizamento, de nadar em águas que não eram as suas, que na realidade e sem ponta de ironia a visão de um acto burguês do dia-a-dia, por exemplo a pontualidade com que eu saía para o trabalho no escritório, ou as palavras de al­gum criado ou condutor de eléctrico, chegavam a encantá-lo. Ao princípio pareceu-me aquilo bastante risível e exagerado, as­sim um capricho de gente distinta e ociosa, um sentimentalismo frívolo. Mas cada vez mais me vi forçado a admitir que no fun­do daquele vazio isolamento, por trás de todo o seu perfil de lo­bo das estepes, afinal admirava e amava sinceramente o peque­no mundo burguês como coisa sólida e segura, longínqua e inacessível, como a pátria e a paz para as quais nenhum caminho se lhe abria. Diante da nossa mulher-a-dias, uma boa mulher, tira­va sempre o chapéu com verdadeiro respeito, e quando aconte­cia a minha tia conversar um pouco com ele ou chamar-lhe a atenção para qualquer arranjo necessário na sua roupa, algum botão do casaco a cair, escutava com singular atenção e defe­rência, como se num esforço imenso e desesperado de penetrar por qualquer brecha neste mundo pequeno e sossegado e lá se aclimatar até se sentir, nem que fosse por uma hora, no seu am­biente.

naquela primeira conversa junto à araucária se tinha au­to-denominado Lobo das Estepes, e também isso me causava alguma estranheza e perturbação. Que expressão mais esquisi­ta! Mas cá me ficou, e não foi só a habituação que me levou a usá-la como coisa assente; passado pouco tempo já eu, falando de mim para mim em pensamento, não lhe chamava senão Lo­bo das Estepes. Ainda hoje, se me perguntassem, não acharia nenhum termo que melhor se ajustasse ao fenómeno. Um lobo das estepes extraviado entre nós, que vem cair, desgarrado, na cidade e na vida do rebanho - nenhuma outra imagem o retra­taria tão incisivamente, a si, ao seu amedrontado distanciamen­to, à sua selvajaria, agitação, nostalgia e degredo.

Uma vez tive ocasião de o observar uma noite inteira, num concerto sinfónico onde para minha surpresa fui dar com ele sentado numa fila um pouco mais adiante, sem que se aperce­besse da minha presença. Primeiro tocou-se Handel, uma músi­ca nobre e bela, mas o Lobo das Estepes manteve-se submerso em si mesmo, sem contacto nem com a música nem com o que o rodeava. Ali estava, deslocado de tudo, sozinho e alheio, de olhar baixo num rosto apático mas inquieto. Depois veio um outro trecho, uma pequena sinfonia de Priedemann Bach, e aí, qual não foi o meu espanto, a minha estranheza, logo aos pri­meiros compassos, abre um sorriso e abandona-se, afunda-se ainda mais em si mesmo e oferece, durante uns bons dez minu­tos, uma tal imagem de felicidade, recolhido e perdido em quaisquer belos sonhos, que acabei por lhe prestar mais atenção a ele do que à música. Terminada a peça, despertou, endireitou­-se no assento e fez menção de se levantar, nas ficou 110 lugar para ouvir ainda o último trecho, umas variações de Reger, mú­sica que a muitos pareceu demasiado longa e cansativa. E o Lo­bo das Estepes, que no princípio também escutara com atenção e bom grado, de novo desligou, enfiou as mãos nos bolsos e voltou a recolher-se sobre si próprio, só que desta vez já não fe­liz e sonhador, mas triste e por fim mesmo irritado; a cara reto­mou a expressão distante, sombria e apagada, e todo ele parecia avelhentado, doente e insatisfeito.

Depois do concerto vi-o outra vez na rua, e resolvi segui-lo; bem aconchegado no seu casacão, ia caminhando lasso, sem gos­to, na direcção do nosso bairro; diante de um pequeno bar de gosto antigo, porém, deteve-se, olhou indeciso para o relógio e acabou por entrar. Obedecendo a um capricho do momento, en­trei também. Lá estava sentado a uma mesa de bar pequeno-bur­guesa; a patroa e a criada saudaram-no como cliente assíduo, e eu, cumprimentando-o, sentei-me junto dele. Ali estivemos uma hora, e enquanto eu bebia dois copos de água mineral, mandou vir para si meio litro e depois mais um quarto de vinho tinto. Contei-lhe que tinha estado no concerto, mas ele não adiantou conversa. Lendo o rótulo da minha garrafa de água, perguntou­-me se não queria vinho, e ofereceu-me desde logo um copo. Quando ouviu da minha boca que nunca bebia, o seu rosto to­mou novamente aquela expressão de desamparo para dizer: "Pois, faz muito bem. Eu próprio vivi anos e anos em abstinên­cia, e outro tanto também a dieta, mas actualmente ando de no­vo sob o signo do Aquário, um signo húmido e escuro".

Como eu, por gracejo, pegasse naquela referência e insi­nuasse que me parecia improvável uma pessoa como ele acredi­tar na astrologia, ele retoma aquele seu tom demasiado correc­to, que tantas vezes me ofendera, e diz: "Tem toda a razão, in­

felizmente nesta ciência também não posso acreditar".

Levantei-me para sair e despedi-me. Ele só voltou para casa

altas horas da noite, mas o seu passo estava normal; como sem­pre, não se deitou logo de seguida (vivendo eu no quarto ao la­do, percebia isso distintamente), ficando a pé ainda bem uma hora, à luz da sua sala.

Há uma outra noite que também não esqueci. Dessa vez es­tava eu sozinho em casa, a Tia tinha saído; tocaram à porta da rua, e fui atender; quando abri, deparei com uma mulher nova e muito bonita, e quando a ouço perguntar pelo Sr. Haller, re­conheci-a; era a fotografia que ele tinha no quarto. Indicando­-lhe a porta, retirei-me; ela ficou algum tempo lá em cima, mas depois senti-os descer as escadas e sair em alegre e animada con­versa de galhofa. Surpreendeu-me muito que o eremita tivesse uma apaixonada, para mais tão jovem, bela e elegante, e de no­vo se baralharam todas as minhas conjecturas sobre ele e sobre a sua vida. Mas nem uma hora tinha passado e já ele estava de volta, sozinho. Subiu as escadas num passo triste e arrastado e depois, horas e horas infindas, passeou na sua sala de cá para lá e de lá para cá, de mansinho, tal qual um lobo a rondar na jau­la, pela noite fora, quase até que a luz da manhã lhe entrou pelo quarto.

Não sei absolutamente nada sobre esta ligação, e só quero acrescentar isto: ainda o vi uma outra vez com essa mulher, pas­seavam os dois pela rua, algures na cidade. Iam de braço dado, ele com ar felicíssimo, e de novo me admirou quanta doçura, quanta pureza infantil aquele rosto preocupado e solitário sabia mostrar. Compreendi então essa mulher, e compreendi a solici­tude que a minha tia tinha para com esse homem. Mas nessa noite, quando voltou para casa, estava de novo triste e abatido; encontrei-o à porta de entrada trazendo como seu costume por baixo do casaco a garrafa de vinho italiano, com que passou metade da noite lá em cima no seu covil. Fazia-me dó, mas tam­bém, que raio de vida ele levava, desesperada, perdida, desam­parada!

Bem, mas basta de conversa. Não é preciso mais relatos e descrições para mostrar que o Lobo das Estepes levava uma vi­da de suicida. Apesar disso, não acredito que se tenha suicida­do, daquela vez em que inopinadamente e sem despedidas, mas tendo liquidado todas as contas em atraso, abandonou um belo dia a nossa cidade para desaparecer sem deixar rasto. Nunca mais soubemos nada dele, e ainda temos guardadas algumas cartas que depois disso continuaram a vir-lhe dirigidas. Para trás, não deixou senão um manuscrito que escreveu ao longo da sua estadia cá e que me dedicou em breves linhas, anotando que fizesse dele o qué quisesse.

Não me foi possível atestar o grau de veracidade das expe­riências de que fala o manuscrito de Haller. Não tenho dúvidas que sejam em grande parte fantasia, não porém no sentido de uma invenção arbitrária, mas antes como ensaio de exterioriza­ção que apresenta fenómenos interiores em roupagem de acon­tecimentos visíveis. As aventuras parcialmente imaginárias do escrito de Haller datam provavelmente dos últimos tempos da sua estadia cá, e não duvido que na sua origem esteja também uma fracção de vivência real e exterior. Nessa época, com efei­to, o nosso hóspede mostrava um comportamento e um aspecto alterados, andava muito fora de casa, por vezes noites inteiras, e pelo aspecto dos livros, sempre nos mesmos lugares, via-se que não lhes tocava. Das poucas vezes que por essa altura o en­contrei, pareceu-me especialmente animado e rejuvenescido, uma ou outra vez mesmo francamente radiante. Mas logo de­pois veio nova e grave depressão, e então passava dias inteiros na cama, sem querer comer; e foi também por essa altura que sobreveio uma desavença com a apaixonada reaparecida, tão acesa, tão brutal, que toda a casa se indignou e o próprio Haller dias depois apresentou desculpas à minha tia.

Não, estou convencido que não se suicidou. Ainda está vi­vo, arrastando algures as pernas cansadas para subir ou descer as escadas de casas em nada suas, fixando algures, deliciado, soalhos de parqué com o lustro puxado e araucárias impecavel­mente cuidadas, passando os dias nas bibliotecas e as noites nas cervejarias ou preguiçando nalgum divã alugado, sentindo pul­sar para lá dos vidros o mundo e as pessoas, sabendo-se excluí­do - mas não se mata, porque um resto de fé lhe diz que tem de beber até à última gota aquele cálice, aquela amaldiçoada dor que tem no coração, e que é esse sofrimento que tem de lhe dar a morte. Penso muitas vezes nele. Não me fez a vida fácil, não tinha o poder de suster e encorajar aquilo que em mim ha­via de forte e de jovial, oh!, bem pelo contrário! Mas eu não sou ele, e não levo a vida dele, levo a minha, pequena e burgue­sa, mas segura e cheia de obrigações. Assim, podemos pensar nele com todo o sossêgo, com toda a amizade, eu e a minha tia - que teria muito mais a dizer sobre ele do que eu, mas isso guarda ela para sempre escondido no segredo do seu coração generoso.

 

Passando então aos escritos de Haller, essas singulares fan­tasias, em parte doentias, em parte belas e ricas de pensamen­tos, tenho de confessar que, se essas folhas me tivessem vindo parar à mão por acaso, e eu não soubesse quem era o autor, de certeza que as teria deitado fora, indignado. Mas, graças ao meu relacionamento com Haller, tornou-se-me possível enten­dê-las em parte, e mesmo fazer-lhes justiça. Teria escrúpulos em comunicá-las a outras pessoas, se apenas visse nelas as lucu­brações patológicas de um pobre doente de espírito, isolado de todos. Mas vejo mais, vejo um documento da época, porque a doença espiritual de Haller - sei-o hoje - não é achaque de um homem só, mas sim a doença da própria época, a neurose de toda uma geração a que Haller pertence e que está longe de atacar os indivíduos fracos e inferiores, antes colhendo precisa­mente os fortes, mais dotados, de intelectualidade mais eleva­da.

Este manuscrito - independentemente do muito ou pouco de vivência real que lhe possa estar subjacente - é um ensaio de superação do grave mal da época, não por rodeios e paliativos, mas pela tentativa de fazer da própria doença objecto da expo­sição. Representa textualmente uma viagem através do inferno, viagem ora amedrontada, ora destemida, através do caos de um mundo espiritual obscurecido, empreendida com a firme deter­minação de cruzar o inferno de lés-a-lés, de oferecer o flanco ao caos, de suportar o mal até ao fim.

Foi uma frase de Haller que me deu a chave deste raciocí­nio. Disse-me uma vez, falávamos nós das pseudo-atrocidades da Idade Média: "Estas atrocidades afinal não são atrocidades nenhumas. Um homem da Idade Média havia de abominar to­do o estilo da nossa vida de hoje, havia de achá-lo pior que cruel: terrível e bárbaro! Cada época, cada cultura, cada costu­me e tradição tem o seu estilo, as suavidades e durezas, atroci­dades e belezas que lhe assentam, aceita como naturais determi­nados sofrimentos, suporta pacientemente determinados males. O verdadeiro sofrimento, o autêntico inferno, esse só advém na vida humana onde e quando duas épocas, duas culturas e duas religiões se intersectam. Um homem da Antiguidade que tivesse tido de viver na Idade Média, teria asfixiado miseravelmente, como também asfixiaria um selvagem transportado à nossa ci­vilização. Agora, há épocas em que toda uma geração se encon­tra a tal ponto enfaixada entre duas épocas, entre dois estilos de vida, que perde toda a naturalidade, toda a moral, toda a segu­rança e inocência. É claro que nem todos sentem isto com a mesma intensidade. Uma natureza como a de Nietzsche teve de suportar com mais de uma geração de avanço a miséria dos nos­sos dias - o cálice que teve de beber até ao fim, sozinho e in­compreendido, é sofrimento que hoje aflige milhares."

Quando lia o manuscrito, estas palavras vinham-me muitas vezes à ideia. Haller é um daqueles que são apanhados entre duas épocas, que foram despojados de toda a segurança e de to­da a inocência, que têm por destino experimentar toda a ques­tionabilidade da vida humana elevada a tormento individual, até ao inferno.

reside, segundo creio, o sentido que para nós podem ter os seus apontamentos, e daí a minha decisão de os divulgar. De resto, não é minha intenção nem defendê-los nem julgá-los ­que cada leitor o faça segundo a sua consciência!

 

                           MANUSCRITO DE HARRY HALLER

para loucos o dia passara igual a todos os outros, eu assassinara-o doce­mente naquele meu jeito de viver primitivo e envergonhado; trabalhara umas horas, remexera em livros velhos, tivera por duas horas dores iguais às que as pessoas idosas costumam ter, tomara uma cápsula e alegrara-me de ver que as dores iam ce­dendo; mergulhara num banho escaldante e absorvera aquele calor benfazejo, recebera o correio três vezes e percorrera com os olhos todas aquelas dispensáveis cartas e impressos; fizera os meus exercícios respiratórios, mas os exercícios mentais, esses, pusera-os por ora de lado, a bem da preguiça; saíra a passear uma hora e descobrira, desenhadas no céu, amostras de nuven­zinhas penugentas, belas, delicadas, preciosas. Era realmente lindo, como era também agradável folhear os livros velhos e alongar-me no banho quente; mas, tudo somado, não fora pro­priamente um dia delicioso, radioso, de felicidade e alegria, fo­ra sim um daqueles dias que já há muito tempo deveriam ser pa­ra mim normais e corriqueiros: dias moderadamente agradá­veis, francamente suportáveis, mornos e medianos, de um se­nhor a entrar na idade, insatisfeito, dias sem padecimentos e sem preocupações de maior, sem aflições propriamente ditas, sem desespero, dias em que até a questão de saber se não terá chegado a altura de seguir o exemplo de Adalberto Stifter e ter um acidente ao fazer a barba, se pondera sem emoção nem re­ceios, pragmática e tranquilamente.

Quem experimentou já os outros, os maus dias das crises de gota ou daquelas terríveis enxaquecas que se enfaixam solida­mente por trás do globo ocular e demoniacamente enfeitiçam, de alegria para tortura, toda a actividade da vista e do ouvido; ou aqueles dias de morte na alma, aqueles amaldiçoados dias de desespero e vazio interior em que no seio da terra devastada e depauperada pelas grandes companhias, o mundo dos homens e a chamada civilização, com o seu enganoso e ordinário ful­gor de metal de feira, a cada passo nos lançam em rosto um meio sorriso, qual vomitivo, concentrado e impelido ao cúmulo do abominável no nosso próprio eu adoecido - quem experi­mentou esses dias infernais, dá-se por bem satisfeito perante dias normais como o de hoje, dias assim-e-assim; chega-se agra­decido ao calor do fogão, agradecido se constata, lendo o ma­tutino, que hoje também não rebentou nenhuma guerra, não se instituiu qualquer nova ditadura, não se descobriu qualquer su­jeira especialmente abjecta na política ou nos negócios; agrade­cido afina as cordas da sua lira enferrujada para um salmo de graças moderado, mediocremente jovial, quase jubiloso, com o qual irá enfadar o seu deus da satisfação, deus do assim-e-as­sim, doce, tranquilo, algo atordoado de brometo; e na morna e densa atmosfera desse enfado satisfeito, dessa ausência de dor que tão grande reconhecimento nos merece, um outro, o deus assim-e-assim, mornamente cabeceando, e o homem assim-e­-assim, levemente grisalho, cantando um salmo abafado, asse­melham-se como gémeos.

Há qualquer coisa de belo na alegria, na ausência de dor, nesses dias suportáveis e amainados em que nem a dor nem o prazer ousam gritar, em que tudo sussurra e anda de mansinho em bicos de pés. Mas comigo, infelizmente, acontece que é pre­cisamente essa alegria que eu menos tolero; após algum tempo ela torna-se-me insuportável, de odiosa e repugnante, forçan­do-me a fugir, de desespero, para outras temperaturas, porven­tura trilhando caminhos de luxúria, mas se necessário for tam­bém de sofrimento. Quando passo algum tempo sem alegrias nem penas, respirando a sofribilidade morna e insípida dos cha­mados dias bons, nasce na minha alma de criança um tormen­to, uma revolta tão inflamada, que atiro a enferrujada lira da gratidão ao beatífico rosto do deus meio-adormecido da satisfa­ção, e preferia uma dor francamente diabólica fervilhando den­tro de mim a esta aprazível temperatura ambiente. Irrompe en­tão em mim uma feroz avidez de sensações, de emoções fortes, uma raiva contra esta vida descolorada, banal, estandardizada e esterilizada, e um avassalador desejo de arrasar qualquer coi­sa, um armazém ou uma catedral, sei lá, ou eu próprio, pôr-me a fazer disparates arrojados, arrancar as perucas a uns tantos ídolos venerados, proporcionar a uns tantos rapazinhos estu­dantes em revolta o ansiado salto até Hamburgo, seduzir uma miúda ou torcer o pescoço a uns tantos representantes da or­dem universal burguesa. É que não havia coisa que eu mais de­testasse, abominasse e execrasse no mais íntimo do meu ser: es­sa beatitude, essa saúde, esse bem-estar, esse acalentado opti­mismo do burguês, essa cultura farta e próspera do medíocre, do normal, do mediano.

Foi portanto nessa disposição que acabei esse dia sofrível, ao romper da escuridão. Não o terminei como seria normal e aconselhável num homem bastante doente, deixando-me engo­dar por uma cama já aprontada e guarneci da de uma botija de água quente à laia de isco, não - descontente e enjoado com a minha pequena dose de labuta quotidiana, aborrecido até mais não, calcei os sapatos, enfiei o casacão e, saindo por entre tre­vas e bruma, dirigi-me ao centro da cidade para ir beber, na cer­vejaria Capacete de Aço, aquilo a que os homens que bebem desde sempre convencionaram chamar' 'um copito de vinho" .

E lá desci a escada da minha mansarda, aqueles degraus cus­tosos de subir de uma morada estranha, tão burgueses, esfrega­dos, asseados, da irrepreensível casa tri-dividida em cujo sótão tenho o meu cantinho. Não sei como explicá-lo, mas acontece; eu, Lobo das Estepes sem eira nem beira, solitário abominador do mundo pequeno-burguês, acabo por andar sempre por boas casas burguesas, é um velho sentimentalismo meu. Não vivo nem em palácios nem em casas de proletários, mas sempre e precisamente nestes ninhos de pequeno-burgueses altamente de­centes, altamente insipientes, impecavelmente cuidados, que cheiram um pouco a terebentina e um pouco a sabão, e onde se entra em pânico quando alguma vez se bate com mais força a porta de entrada ou se entra em casa com os sapatos sujos. O apego a este ambiente data seguramente dos meus tempos de criança, e a secreta nostalgia de uma pátria ou algo q_e lhe este­ja próximo, continuamente me faz trilhar, sem esperança, estes velhos e tontos caminhos do passado. Pois é assim!, e também gosto do contraste entre a minha vida, esta vida solitária, atri­bulada e sem amor, totalmente desregrada, e este meio familiar e burguês. É bom respirar nas escadas este cheiro a calma, a or­dem, a asseio, a decência e mansidão, que, apesar do meu ódio ao burguesismo, ainda tem para mim algo de enternecedor, e é bom depois passar o limiar do meu quarto, onde tudo isso aca­ba, onde entre as pilhas de livros andam beatas de Cigarro e gar­rafas de vinho, onde tudo é desordenado, desconfortável e des­cuidado, e onde tudo, livros, manuscritos, pensamentos, estámarcado e impregnado pela miséria do solitário, pela proble­mática da existência humana, pela ânsia nostálgica de empres­tar um novo sentido à vida humana feita absurdo.

E passo diante da araucária. Está no primeiro andar, onde a escada se abre para a pequena ante-câmara de um apartamento que é sem dúvida ainda mais irrepreensível, mais asseado e mais esfregado que os outros, porque este atriozinho irradia um es­mero sobre-humano, é templo pequeno e resplandecente da or­dem. Assentes num soalho de parqué que receamos pisar, dois graciosos banquinhos, cada um com um grande vaso de plan­tas, num uma azália, no outro uma araucária de porte já gran­de, árvore-criança viçosa e robusta da mais acabada perfeição, onde a última ponta do último ramo ainda reluz da mais imacu­lada lavagem. Uma vez por outra, quando sei que não tenho ninguém a observar-me, faço de tal paragem um templo, sento­-me num degrau da escada acima da araucária, descanso um pouco e, juntando as mãos, baixo contemplativo os olhos sobre este jardinzinho de ordem, cujo tocante esmero e risibilidade solitária de algum modo me tocam na alma. Adivinho por trás deste átrio, por assim dizer à sombra sagrada da araucária, um apartamento cheio de mogno lustroso e vida bem-comportada, saúde, alvoradas matutinas, deveres cumpridos, festas de famí­lia medianamente animadas, visitas dominicais à igreja e noites de deitar cedo.

Com simulada animação, lá fui batendo a passo apressado o asfalto das ruelas, embutido de humidade. Os clarões velados e lacrimejantes dos candeeiros a gás sobressaiam da nebulosidade fresca e húmida, e arrancavam do chão molhado mornos refle­xos luminosos. Vieram-me então à memória os anos esquecidos da juventude - como amava então essas noites sombrias e pe­sadas de outono e inverno tardio, e com que sofreguidão e em­briaguês absorvia as impressões de solidão e melancolia! Acon­chegado noite fora no meu casacão, percorria debaixo de chuva e temporal a natureza hostil e desfolhada, solitário também já na altura, mas cheio de um profundo desfruir, e, transbordante dos versos que depois ia escrevinhar à luz da vela no meu quar­to, sentado na beira da cama. Enfim, águas passadas, o cálice estava bebido até à última gota, e mais não encheria para mim. Pena? Não, não era pena. Nada do que ficava para trás era pe­na. Pena era o agora e o hoje, todas essas horas, esses dias in­contáveis que perdia, que suportava, nada mais, que não me traziam nem graças nem convulsões. Mas, louvado seja Deus, também havia excepções, horas raras que traziam convulsões, bençãos também, que despedaçavam muros e me transporta­vam, a mim, o transviado, de regresso ao seio vivo do universo. Triste, mas tocado no mais íntimo do meu ser, procurei recor­dar a última experiência desse tipo. Era num concerto, tocava­-se música antiga da mais bela; de repente, entre dois compas­sos de um trecho tocado numa pianola, abriu-se-me de novo a porta para o além, cruzei os céus e vi Deus a trabalhar, sofri do­res bem-aventuradas e já nada me revoltava neste mundo, jánada receava neste mundo, disse a tudo que sim, a tudo aban­donei o meu coração. A visão pouco tempo durou, um quarto de hora talvez, mas nessa noite reapareceu em sonhos, e desde então, ao longo de todos esses dias soturnos, era um cintilar furtivo de vez em quando, chegava a distingui-la, com nitidez, minutos inteiros, cruzando a minha vida como um traço de ou­ro divino, quase sempre soterrada bem fundo na lama e no pó, para logo de novo ressaltar brilhante de centelhas douradas, pa­recendo nunca mais poder perder-se, mas logo depois profun­damente perdida! Uma vez, de noite, estava eu acordado, achei-me de repente a dizer versos, demasiado belos e estranhos para poder sequer pensar em registá-los, versos que de manhã já não conseguia reproduzir, mas que sabia escondidos dentro de mim como uma noz pesada em casca velha e frágil. Uma ou­tra vez reapareceu-me na leitura de um poeta, na meditação de um pensamento de Descartes, de Pascal; outra vez ainda rea­cendeu-se luminosa, estava eu com a minha amante, e levou-me num rasto de ouro ao mais fundo dos céus. Ah!, é bem difícil encontrar este traço divino no meio desta vida que levamos, desta época tão satisfeita e instalada, tão burguesa, tão alheia ao espírito, em face destas arquitecturas, destes negócios, desta política, destes homens! Que outra coisa poderia eu ser senão lobo das estepes e eremita agreste no meio de um mundo de cu­jas ambições não partilho minimamente, e cujos prazeres nada me dizem! Não consigo aguentar muito tempo nem num teatro nem num cinema, mal posso ler um jornal, e raramente um li­vro contemporâneo, não consigo entender o gozo e a alegria que as pessoas procuram nos combóios e hotéis superlotados, nos cafés a abarrotar de gente, ao som de uma música opressiva e acalorada, nos bares e cabarés das' elegantes cidades de luxo, nas exposições universais, nos corsos, nas conferências para de­voradores de instrução, nos grandes estádios - não consigo en­tender nem comungar de todos esses prazeres, que até estariam ao meu alcance, e que fazem correr e suar milhares de outros. E em contrapartida, aquilo que me acontece nas minhas raras ho­ras de alegria, aquilo que para mim é encanto, emoção, êxtase e elevação, isso o mundo só conhece, só procura e só aprecia, quando muito na poesia, porque na vida considera-o loucura. E, de facto, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, es­ses divertimentos de massas, essa gente americanizada satisfeita com tão pouco tem razão, então sou eu que estou fora da ra­zão, então sou eu o louco, então sou eu realmente o lobo das es­tepes, como muitas vezes me intitulava a mim próprio, animal desgarrado num mundo que lhe é estranho e incompreensível, e que já não consegue dar com a sua terra, os seus ares, o seu ali­mento.

Cheio destes costumeiros pensamentos, lá ia seguindo pela pedra húmida, algures num dos bairros mais silenciosos e anti­gos da cidade. E eis que em frente, do outro lado da ruela, vejo, erguido na escuridão, um velho muro de pedra cinzenta que eu por hábito me atardava a contemplar - ali estava sempre, ve­tusto e calmarento como agora, entre uma igrejinha e um velho hospital. De dia, muitas vezes repousava os meus olhos na sua superfície rugosa - e poucas superfícies havia tão tranquilas e mudas como aquela, no coração da cidade, onde em contrapar­tida de meio em meio metro quadrado uma loja, um advogado, um inventor, um médico, um barbeiro ou um calista nos atirava à cara o seu nome. Mais uma vez, como sempre até então, eu via o velho muro silenciosamente envolto na sua paz; no entan­to, algo se modificara: ao meio da pedra erguia-se agora uma graciosa portinha em ogiva; desconcertado, fiquei francamente sem saber se a porta sempre ali estivera ou se seria aquisição re­cente. Velha parecia, sem dúvida, velhíssima mesmo; talvez a pequena entrada de madeira escura conduzisse, de há séculos atrás, a um qualquer claustro sonolento, e ainda hoje assim fos­se, embora o convento já não estivesse de pé, e talvez eu já ti­vesse visto a porta centenas de vezes sem nunca ter reparado ne­la; quem sabe se não teria ultimamente levado nova pintura, e por isso me teria chamado a atenção? Fosse como fosse, detive­-me a observá-la cuidadosamente, sem no entanto atravessar para o lado de lá, a rua estava cheia de água e de lama; fiquei no passeio, olhando simplesmente em frente, já a escuridão cobria tudo; e pareceu-me que a entrada tinha a rodeá-la uma grinalda entrelaçada ou qualquer coisa multicolor, não sei bem o quê. Esforçando-me por ver melhor, distingui por cima uma tabuleta luminosa que, segundo me pareceu, trazia alguns dizeres. Forcei a vista e, esquecendo a lama e as poças, acabei por atravessar para o outro lado. Vi então em cima da porta, sobre o descolo­rido verde-acinzentado do muro, uma mancha de brilho mate, e sobre essa mancha corriam letras garridas dançantes, que logo desapareciam e se reacendiam depois para de novo se desvane­cerem. E disse para comigo: não é que até o bom do muro secu­lar já estragaram com um anúncio luminoso! Entretanto deci­frei algumas das palavras que fugazmente iam aparecendo, eram difíceis de ler, e metade tinha de se adivinhar - as letras apareciam a intervalos irregulares, tão esbatidas e fraquejantes, e dissipavam-se tão rapidamente! O homem que assim preten­dia lançar um bom negócio não era nada engenhoso, era um lo­bo das estepes, coitado do tipo...; porque teria ele posto a luzir as suas letras aqui neste muro, na viela mais escura da velha ci­dade, a esta hora do dia, em tempo de chuva, num sítio onde ninguém passava? E porque seriam as letras assim tão esquivas, saltitantes, caprichosas e ilegíveis? Mas, espera!, agora já con­seguia apanhar umas tantas palavras seguidas:

 

                 Teatro mágico

                               Entrada não para todos

                                         - não para todos...

 

Tentei abrir a porta, mas a tranqueta velha e pesada não ce­dia a nenhuma pressão. A dança das letras tinha acabado, subi­tamente quedara-se, tristemente, consciente da sua inutilidade. Recuei uns passos, enterrando-me profundamente na lama; não aparecia nem mais uma letra, o jogo tinha-se apagado; ali fiquei, aguardando longamente na lama - em vão.

eu tinha voltado ao passeio, derrotado da espera, quando vejo gotejar diante de mim sobre o asfalto espelhado várias le­tras luminosas de variegadas cores.

E li:

 

                   Só - para -Iou – cós!

 

Tinha os pés molhados, e estava gelado, mas ali fiquei ainda algum tempo, na expectativa. Nada mais. Pensando, enquanto aguardava, como eram lindos aqueles fogos-fátuos, caracteres finos e policromáticos, recortados no muro húmido e no asfalto brilhante de negro, voltou-me subitamente à ideia um fragmen­to dos meus anteriores pensamentos: o símbolo do rasto de ou­ro cintilante, num instante tornado longínquo e impossível de agarrar.

Gelado, continuei caminho, sonhando com aquele rasto, desejando profundamente aquela porta de entrada para um tea­tro mágico só para loucos. Entretanto tinha-me abeirado da zo­na do mercado abastecedor, onde não faltavam as diversões noctuumas, a cada passo pendia uma tabuleta com um letreiro a anunciar: Orquestra Feminina - Variedades - Cinema - Soi­rée Dançante -, mas isso, para mim, não valia nada, era para "todos" , para os normais, esses que eu via por todo o lado, aos bandos, acotovelando-se a cada porta para entrar. No entanto, a minha tristeza desanuviara um pouco, sempre fora bafejado por um sinal, uma aproximação do outro mundo, na minha al­ma tinham dançado e foliado letras garridas que haviam tocado em cordas recônditas, reaparecera uma réstia do traço de ouro.

Encaminhei-me para o bar antigo e acanhado; nada tinha mudado desde a minha primeira estadia nesta cidade, há bem vinte e cinco anos; a proprietária ainda é a mesma, e vários dos frequentadores de hoje também já na altura ali se vinham sen­tar, nos mesmos lugares, diante dos mesmos copos. Entrei na modesta cervejaria, tinha ali um refúgio. Refúgio não maior, é certo, que o do patamar da araucária, ali também não encon­trava pátria nem comunidade, mas antes e não mais que uma si­lenciosa sala de espectadores diante de um palco onde gente es­tranha tocava peças estranhas; mas a própria sala, tranquila jáde si, tinha algo de precioso: a ausência da multidão, da grita­ria, da música, e só aqueles pacíficos burgueses sentados a me­sas de madeira a descoberto (nem mármore, nem zinco esmalta­do, nem pelúcia, nem latão dourado!); e em frente de cada um a bebida da noite, um copo de vinho bom, sólido. Talvez estes fregueses assíduos, todos eles meus conhecidos de vista, fossem autênticos burgueses e erguessem nas suas casas burguesas insí­pidos altares domésticos a divindades satisfeitas e estúpidas; mas talvez, como eu, fossem também tipos votados ao isola­mento e ao descarrilamento, alcoólicos, silenciosos e pensativos perante ideais em bancarrota, lobos das estepes e pobres dia­bos, eles também; não sabia dizê-lo. Cada um deles era ali atraí­do pela saudade da sua terra, por uma desilusão, uma premên­da de ersatz - o homem casado ia ali procurar a atmosfera dos seus anos de solteiro, o velho funcionário público, o eco dos seus tempos de estudante; todos eles eram bastante calados, to­dos eles bebedores e preferindo, como eu, sentar-se diante de um bom meio-litro de vinho alsaciano a ver tocar um conjunto feminino. Ali, eu podia lançar a âncora; ali, conseguia aguentar uma hora, mesmo duas. Mal sorvi o primeiro gole do alsaciano apercebi-me de que desde o pequeno-almoço não comia nada.

É espantoso, o que uma pessoa consegue ingerir! Durante cerca de dez minutos estive a ler um jornal, deixando penetrar em mim, através da vista, o espírito de um homem irresponsá­vel que mastiga e volta a mastigar na boca as palavras dos ou­tros e as devolve ensalivadas, mas não digeridas. Foi isso que consumi, num lapso de tempo bastante considerável. Depois devorei um bom bocado de fígado extraído do ventre de um vi­telo abatido. Esquisito! O melhor era o Alsácia. Não gosto de vinhos selvagens, violentos, pelo menos não para todos os dias, daqueles que exalam fascínios poderosos e possuem travos es­peciais e afamados. O que mais aprecio são pequenas colheitas particulares, vinhos muito puros, leves e modestos, sem nomes especiais; podem beber-se fácil e inofensivamente em grande quantidade, e têm um sabor doce e agradável a campo e a terra, a céu e a bosque. Não há melhor refeição que uma taça de Alsá­cia e um naco de bom pão. Mas entretanto eu já tinha ingerido uma bela dose de fígado, delícia sem igual para mim, que tão raramente como carne, e ia na minha segunda taça de vinho. Coisa esquisita, também, que algures lá para aquelas bandas, em verdejantes vales, gente boa e sã cultivasse a vinha e espre­messe as uvas em vinho para que aqui e ali no mundo, bem lon­ge deles, alguns burgueses desiludidos, beberrões calmarentos, e outros tantos lobos das estepes tresmalhados, pudessem sugar nos seus copos um pouco de coragem e de boa disposição!

Pois que fosse esquisito, que me importava a mim?! Era bom, era uma ajuda - a boa disposição estava a aparecer. So­bre a palavrosa salgalhada do artigo de jornal elevou-se em mim retrospectivamente uma gargalhada libertadora, e subita­mente, numa fracção de segundo, acorreu-me de novo à ideia a melodia esquecida daquela pianola, e ei-la que sobe dentro de mim como uma bolinha de sabão espelhada, reflectindo cinti­lante o mundo inteiro, pequena e colorida, para de novo suave­mente se desvanecer. Se era possível que esta pequena melodia celestial se alojasse secretamente na minha alma e um dia de no­vo desabrochasse em mim a sua flor maravilhosa de cores de en­cantar, poderia eu estar de todo perdido? Mesmo sendo um ani­mal desgarrado, incapaz de compreender o mundo em seu re­dor, mesmo assim, a minha vida absurda tinha um sentido, algo em mim respondia, era como que um receptor de apelos de mundos longínquos e elevados; no meu cérebro amontoavam­-se imagens aos milhares:

Eram multidões de anjos de Giotto na abóbada azul de uma igrejinha de Pádua, e junto deles Hamlet e Ofélia engrinaldada, belos símbolos de toda a tristeza e de todos os mal-entendidos do mundo; era o navegador aéreo Gianozzo no seu balão em chamas, a tocar corneta; era Attila Schmelzle com o chapéu no­vo na mão, era o Borobudur a soprar pelos ares as suas monta­nhas esculpidas. E que importava todas essas belas figuras tam­bém viverem em mil outros corações, se havia outras tantas dez mil imagens e melodias desconhecidas, cuja pátria, vista e ouvi­do só em mim e no meu íntimo existiam? O vetusto muro do hospital, com o seu velho verde pardacento manchado e deca­dente, de fissuras e eflorescências a deixar adivinhar milhares de frescos - quem lhe dava resposta, quem lhe abria a alma, quem o amava, quem sentia o fascínio das suas cores suavemen­te agonizantes? Os velhos livros dos monges, com as miniaturas delicadamente, iluminadas, as obras dos poetas alemães de há duzentos e de há cem anos, esquecidas do seu povo, todos os volumes esboroados e bolorentos, e as edições e manuscritos dos velhos músicos, folhas enrijecidas e amareladas de notas com as suas divagações de sons entorpecidos - quem ouvia as suas vozes engenhosas, as suas vozes sagazes e nostálgicas? Quem transportava um coração cheio do seu espírito e do seu encanto através de uma época diferente, deles alienada? Quem recordava ainda aquele cipreste pequeno e tenaz lá no alto da montanha de Gubbio, que vergara e fendera por um desaba­mento de pedras, mas que se apegara à vida e engendrara novos e débeis rebentos? Quem fazia justiça à diligente dona-de-casa do primeiro-andar e à sua lustrosa araucária? Quem decifrava pela noite, sobre o Reno, os nebulosos escritos das névoas on­deantes? Era o Lobo das Estepes. E quem procurava por entre os escombros da sua vida o fugidio sentido? Quem sofria o apa­rentemente absurdo, vivia o aparentemente irrazoável, esperava ainda secretamente no caos derradeiro e demente pela revela­ção, pela presença de Deus?

Afastei com determinação o copo que a patroa me queria voltar a encher, e levantei-me. Já não precisava de vinho. O ras­to de ouro luzia, e eu fora transportado ao mundo da eternida­de, de Mozart, das estrelas. Tinha de novo uma hora para respi­rar, podia de novo viver, existir, não precisava de passar tor­mentos, receios, vergonhas.

Quando saí para a rua emudecida, um chuvisco macio, desalinhado pelo vento cortante, batia ressoante contra os can­deeiros, cintilando com fulgor cristalino. Se nesse momento ti­vesse estado na minha mão exprimir um voto mágico, teria prontamente solicitado uma bela salinha Luís XVI, onde um grupo de bons músicos me tocassem duas ou três peças de Hãn­del e Mozart. Era essa a minha disposição do momento, e essa música, fresca e nobre, tê-la-ia saboreado como os deuses sabo­reiam o néctar. Oh! Tivesse eu nesse instante tido um amigo, numas quaisquer águas-furtadas, meditando à luz da vela com o violino ao lado! Teria, oh!, como me teria sorrateiramente in­troduzido no seu silêncio nocturno, e trepado de mansinho as escadas para depois o ir surpreender! E como teríamos celebra­do, com as nossas palavras e a nossa música, horas noctuumas supra-terrestres! Noutros tempos, anos atrás, experimentara muitas vezes essa ventura, mas também essa, com o tempo, se apartara e se desprendera de mim, entre um e outro momento mediavam anos desfolhados.

Hesitante, tomei o caminho de casa, puxei para cima a go­la do casaco e bati com a bengala na calçada húmida. Por muito lenta que fizesse a marcha, ver-me-ia sempre cedo de­mais de volta à minha mansarda, à minha pseudo-pátria, que não amava mas que não podia dispensar, pois longe ia o tem­po em que podia passar uma noite invernosa de chuva calcor­reando as ruas. Bem, mas valha-nos Deus!, não ia agora dei­xar estragar aquela boa disposição da noite, nem com a chu­va, nem com a gota ou a araucária, e se não se podia arranjar orquestra de câmara, se não se encontrava o amigo solitário mais o violino, pois aquela melodia encantadora ainda assim soava dentro de mim, e eu podia ainda assim tocá-la para mim, sussurrando baixinho a intervalos rítmicos. Pensativo, continuava a andar. Não, também passava sem a música de câmara e sem o amigo, e era ridículo uma pessoa deixar-se consumir numa impotente fome de calor. Solidão é indepen­dência, eu tinha-a desejado e adquirido no decorrer de longos anos. Era fria, oh! se era, mas também era calma, maravilho­samente calma, e imensa como o espaço frio e calmo em que giram os astros.

Passando diante de um dancing, vem-me embater no ouvi­do, soante, quente e bruta como o fumo da carne crua, uma violenta música de jazz. Detive-me um momento; aquele tipo de música, por muito que a detestasse, sempre exercera sobre mim um secreto fascínio. O jazz repugnava-me, mas preferia-o cem vezes a toda e qualquer música académica da época, com a sua selvajaria jovial e rude; tocava-me, a mim também, bem fundo no mundo dos instintos, exalava uma sensualidade cân­dida e franca.

Durante um momento, ali fiquei de narinas abertas a inspi­rar aquela música sangrenta, estridente, a farejar, enfurecido e lúbrico, a atmosfera daquela sala. Uma parte dessa música, a lí­rica, era piegas, sobre-açucarada e transbordante de sentimen­talismo, a outra, selvagem, caprichosa e vigorosa; no entanto, as duas partes co-existiam natural e pacificamente, e formavam um todo. Era uma música de decadência, na Roma dos últimos imperadores devia ter havido música assim. Claro que, compa­rada com Bach e Mozart e com a verdadeira música, era uma bela porcaria - mas porcaria também era toda a nossa arte, to­do o nosso pensamento, toda a nossa pseudo-civilização, assim nos pusessemos a compará-los com a verdadeira cultura. E esta música tinha a vantagem de uma grande sinceridade, de uma negritude atraente e não falseada, de um humor jovial de crian­ça. Tinha algo do negro e algo do americano, que a nós, euro­peus, se apresenta, em toda a sua pujança, com a frescura da adolescência e a ingenuidade da infância. A Europa tornar-se­-ia também assim? Estaria já nesse caminho? Seríamos nós, ve­lhos eruditos e admiradores da Europa antiga, da verdadeira música e da verdadeira poesia de outros tempos, seríamos nós apenas uma minoria reduzida e idiota de complicados neuróti­cos, amanhã esquecidos e escarnecidos? Aquilo a que chamávamos "cultura", espírito, alma, que apelidávamos de belo e sa­grado, seria mero espectro morto de há muito tempo e real e vi­vo apenas no crer de uns tantos loucos que somos nós? Quem sabe se pura e simplesmente nunca teria sido real nem vivo? Quem sabe se o que nos movia a nós, idiotas, nunca teria passa­do de um fantasma?

O velho bairro acolheu-me; apagada e irreal, a igrejinha ...

destacava-se no fundo pardacento. De repente, veio-me de no­vo à memória o incidente da noite, com a misteriosa porta ogi­val, a misteriosa tabuleta a encimá-la, as letras luminosas em zombeteira dança. O que é que dizia a inscrição? "Entrada não para todos". E: "Só para loucos". Os meus olhos buscaram, escrutinadores, o velho muro em frente, secretamente desejan­do que a magia recomeçasse, que a inscrição me convidasse, a mim, o louco, que a pequena porta se abrisse para eu entrar. Quem sabe se ali não estaria aquilo por que eu ansiava, quem sabe se ali não tocaria a minha música... ?

O sombrio muro de pedra contemplava-me, imperturbável, em profunda obscuridade, fechado, mergulhado no abismo dos seus sonhos. E não se vislumbrava nenhuma porta, não se vis­lumbrava nenhuma ogiva, apenas o muro sombrio e calmo, sem qualquer abertura. Com um sorriso, prossegui caminho, ace­nando amigavelmente à muralha. "Dorme bem, muro, não te vou acordar. Há-de vir o tempo em que te hão-de desbaratar ou atulhar de cobiçosos anúncios comerciais, mas entretanto aí es­tás e aí vais ficando, belo e calmo, e eu gosto de ti".

Do negro abismo de uma ruela irrompe um homem, bem junto a mim, fazendo-me estremecer, passeante solitário e tar­dio de regresso a casa, arrastando, cansado, o passo. Tinha um boné na cabeça, vestia uma blusa azul, ao ombro levava uma percha com uma tabuleta, e sobre a barriga, "presa a uma cor­reia, uma caixa de gaveta aberta como as que usam os vendedo­res de feira. Estafado, passou adiante de mim sem se voltar; se o fizesse, tê-lo-ia abordado e oferecia-lhe um charuto. À luz do candeeiro mais próximo, tentei ler os dizeres que levava a tabu­leta vermelha na ponta da vara, mas baloiçava dum lado para o outro e eu não conseguia decifrar nada. Então, chamei-o e pe­di-lhe que me mostrasse a tabuleta. Detendo-se, o homem endi­reitou um pouco a vara e eu pude distinguir estas letras dançan­tes e vacilantes:

 

               Noite anárquica!

                         Teatro mágico!

                                   Entrada não para to...

 

"Ah! Era mesmo do Senhor que eu andava à procura!", ex­clamei alegremente. "O que é isso dessa sua sessão da noite? Onde é que é? E quando?"

Ele já retomara o passo.

            "Não para todos" , disse, indiferente, com voz ensonada. E continuou a andar. Estava farto, queria ir para casa.

            "Espere aí!" exclamei, correndo .atrás dele. "O que é que tem aí nessa caixa? Eu quero comprar-lhe uma coisa qualquer".

Sem parar, o homem meteu a mão na caixa, mecanicamen­te, tirando para fora um livrito, um folheto, que me estendeu. Agarrei-o rapidamente, e pu-lo no bolso. Enquanto desabotoa­va o casaco à procura do dinheiro, o homem vira ao lado e en­fia por um portal, fecha a porta atrás de si e desaparece. Os seus passos ressoaram no átrio, primeiro em pedra, depois subindo degraus de madeira, e não ouvi mais nada. E, de repente, tam­bém eu me senti extremamente cansado, e veio-me a sensação de que era muito tarde e que era altura de voltar para casa. Apressei o passo e, cruzando ruelas adormecidas dos arrebal­des, em breve me achei na minha zona, junto às fortificações, onde funcionários e pequenos pensionistas habitam andares pe­quenos e asseados diante de um pedaço de relva e outro tanto de hera. Passando a hera, a relva e o pinheiro baixinho, cheguei fi porta de casa, dei com a fechadura, localizei o botão da luz, passei de mansinho pelas portas vidradas, pelos armários poli­dos e plantas de vaso, e abri a porta do meu quarto, a minha pe­quena pseudo-pátria, onde me esperavam a poltrona e o fogão, o tinteiro e a caixa de pinturas, o Novalis e o Dostoiewski, exac­tamente como os outros, a gente decente, são esperados, quan­do regressam a casa, pela mãe, ou pela esposa, os filhos, as cria­das, os cães e os gatos.

Quando ia a tirar o casaco encharcado, as minhas mãos fo­ram de novo encontrar o livrinho. Tirei-o para fora para o ob­servar; era um folheto fino, mal impresso em mau papel, típico exemplar de feira, como aqueles fascículos Os nascidos em Ja­neiro, ou Como rejuvenescer vinte anos em oito dias.

Mas uma vez aninhado na minha poltrona, e enfiados os óculos para ler, foi com verdadeiro espanto e um sentido de predestinação subitamente espertado que li na capa desse fascí­culo de feira este título: Tratado do Lobo das Estepes. Não pa­ra todos.

E rezava assim o escrito que devorei, em tensão sempre cres­cente, de um fôlego só:

 

           TRATADO DO LOBO DAS ESTEPES

                         Só para loucos

 

Era uma vez um tal Harry, mais conhecido por "Lobo das Estepes". Andava sobre duas pernas, vestia roupa e era ho­mem, mas no fundo o que realmente era, era um lobo das este­pes. Tinha aprendido muito daquilo que as pessoas sensatas po­dem aprender, e era um homem bastante esperto. Mas uma coi­sa ele não tinha aprendido - era a estar satisfeito consigo pró­prio e com a sua vida. Isso não o conseguia, era uma pessoa in­satisfeita. E provavelmente a razão seria o desde sempre saber (ou julgar saber) no íntimo do seu coração, que na realidade não era de todo um homem, mas sim um lobo vindo da estepe. Os inteligentes que argumentassem entre si se seria na verdade

um lobo, se originalmente, talvez mesmo antes do seu nasci­mento, teria sido transformado por qualquer magia de lobo em homem, ou se teria nascido homem, mas já dotado de uma al­ma de lobo da estepe que de todo o possuira, ou ainda se aquela convicção de ser realmente um lobo não passava de imaginação ou doença sua. Seria, por exemplo, bem possível que aquele ho­mem na sua infância, digamos, tivesse sido selvagem, rebelde e desregrado, e que os seus educadores se tivessem esforçado por destruir a besta que nele existia, levando-o precisamente por aí a imaginar e a crer que na realidade era mesmo uma besta, que apenas com uma leve roupagem de educação e de humani­dade. Poderíamos alongar-nos a falar sobre isto, conversa por sinal bem interessante, e até livros escreveríamos; mas isso em nada serviria o Lobo das Estepes, porque a ele era-lhe absoluta­mente indiferente se o lobo se introduzira nele por bruxedo ou àpancada, ou se não passava de uma construção da sua alma. O que os outros e ele próprio também pudessem pensar sobre isso, a isso não ligava nem um bocadinho, até porque nada disso lhe ia arrancar o lobo que em si morava.

O Lobo das Estepes tinha, portanto, duas naturezas, uma natureza humana e uma natureza lupina, era esse o seu destino, e nada nos diz que esse destino fosse assim tão singular, tão ra­ro. Possivelmente todos nós encontramos já pessoas, e não poucas, que tinham em si muito do cão ou da raposa, do peixe ou da cobra, sem que isso lhes tivesse criado dificuldades de maior. Nessas pessoas co-existiam precisamente o homem e a raposa, o homem e o peixe, lado a lado, sem se atormentarem um ao outro, pelo contrário, entreajudando-se até, e há vários casos de homens que chegaram longe na vida e que todos inve­jam, em que é mais a raposa ou o macaco do que propriamente o homem que actuaram como obreiros da sua felicidade. Isto é um facto bem conhecido de todos. Em Harry, em contraparti­da, a coisa era diferente, nele o homem e o lobo não coexistiam pacificamente, muito menos se entreajudavam, andavam numa permanente inimizade de vida ou de morte, e um não vivia se­não para mortificar o outro, e quando dois, num só sangue e numa só alma, nutrem entre si ódio mortal, então a vida torna­

-se desgraçada. Enfim, cada um tem a sorte que tem, e nenhuma será fácil.

Com o nosso Lobo das Estepes, o que se passava realmente era que no seu intimo se sentia viver ora como lobo ora como homem, como acontece com todos os seres mistos; só que, quando era lobo, o homem em si vigiava permanentemente, es­pectador, juiz e orientador - e nas alturas em que erà homem, o mesmo se passava com o lobo. Por exemplo, quando Harry, homem, tinha algum pensamento belo, experimentava qual­quer sensação nobre e delicada ou praticava aquilo a que se convenciona chamar uma boa acção, o lobo dentro de si arrega­nhava os dentes e largava a rir, mostrando-lhe com virulento es­cárneo como era ridículo todo aquele sublime espectáculo aos olhos de um animal da estepe, que no intimo do seu coração es­tava perfeita e rigorosamente ciente daquilo que lhe cabia pal­milhar a estepe, solitário, uma vez por outra encher a goela de sangue ou andar atrás de uma loba; e assim, na perspectiva do lobo, toda e qualquer acção humana parecia horrivelmente có­mica e desajeitada, estúpida e presumida. Mas o mesmo exacta­mente acontecia quando Harry se sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes, quando experimentava ódio e inimizade mortal para com todos os homens, e para com as suas maneiras e costumes falsos e degenerados. Nessas altu­ras, era a sua parte humana que se punha em vigilância, obser­vava o lobo, chamava-lhe besta e animal e amargava e corroia todas as alegrias da sua natureza simples, sã e selvagem de lobo.

Assim -era a condição do Lobo das Estepes, e facilmente se imagina que Harry não teria uma vida propriamente agradável, feliz. O que não quer dizer também que tenha sido extrema­mente infeliz (embora ele próprio de facto assim julgasse, aliás todas as pessoas consideram a cruz que lhes cabe como a mais pesada de todas). É uma coisa que não se devia dizer de nin­guém. Mesmo aquele que não tem lobo em si não é forçosamen­te feliz. E até a vida mais desgraçada tem as suas horas de sol e os seus trevozinhos de quatro folhas a prenunciar sorte. Era as­sim também com o Lobo das Estepes. Era infeliz a maior parte do tempo, isso não vamos negar, e sabia também fazer infelizes os outros, sobretudo quando gostava deles e eles de si. Porque todos os que o conseguiam conquistar viam nele sempre uma só das duas facetas. Alguns apreciavam nele o espírito fino, o ho­mem inteligente e especial, e ficavam depois horrorizados e de­cepcionados quando subitamente se lhes revelava o lobo que nele existia. Mas a descoberta era forçosa, porque Harrry, co­mo qualquer criatura, queria ser amado no seu todo, e não po­dia por isso camuflar nem falsificar o lobo precisamente aos olhos daqueles cujo amor mais prezava. Havia, no entanto, também quem amasse nele justamente o lobo, justamente tudo o que ele tinha de livre, selvagem, insubmisso, perigoso e forte, e esses, por sua vez, caiam na mais profunda desilusão e desgra­ça quando repentinamente a besta feroz e selvagem para cúmu­lo se revelava homem, experimentando dentro de si a nostal­gia da ternura e da bondade, desejando ouvir Mozart e ler ver­sos, e nutrindo ideais humanos. Eram esses precisamente que na maioria dos casos mais desapontados e contrariados fica­vam, e é assim que o Lobo das Estepes, com a sua própria dua­lidade e ambivalência, acabava por afectar todos os destinos que cruzava.

Agora, quem pense conhecer o Lobo das Estepes e ser capaz de imaginar e conceber a sua vida lamentável e dilacerada, está enganado, porque está longe de saber tudo. Não sabe que, ape­sar de tudo (pois não há regra sem excepção, e um pecador às vezes é mais caro a Deus que noventa e nove justos), havia em Harry excepções e bafejos da sorte, que também havia alturas em que, ora o lobo, ora o homem, chegavam a respirar, a pen­sar e a sentir em condição pura e inteira, livre de interferências, e que até, às vezes, em horas raras, os dois faziam as pazes e vi­viam em recíproca afeição, de tal maneira que não só um dor­mia enquanto o outro se mantinha desperto, mas inclusive am­bos se fortaleciam e se completavam mutuamente. Na vida des­te homem, como em todo o mundo, tudo o que era habitual, quotidiano, reconhecido e regular, parecia às vezes não existir senão para perdurar, aqui e ali, o lapso de um segundo, ser des­pedaçado e dar lugar ao extraordinário, ao milagre, à miseri­córdia. Agora, se essas horas breves e raras de felicidade com­pensavam e aliviavam o triste fado do Lobo das Estepes, de modo a que a felicidade e a dor acabavam por se equilibrar na balança, ou se possivelmente até a felicidade breve mas intensa dessas escassas horas absorvia todo o sofrimento e o balanço era positivo, isso é outra questão, sobre a qual se poderão de­bruçar a seu bel-prazer os ociosos. O próprio lobo reflectia so­bre ela, e eram esses os seus dias de improficuidade e lazer.

 

Impoe-se aqui acrescentar uma última coisa. Existe um nú­mero bastante significativo de pessoas do mesmo género de Harry; entre os artistas, sobretudo, há muitos que pertencem a essa casta. São pessoas que têm em si duas almas, duas essên­cias, neles o divino e o diabólico, o sangue materno e o sangue paterno, o dom da felicidade e o dom do sofrimento, co-exis­tem e interpenetram-se tão hostil e desordenadamente como o lobo e o homem em Harry. E essas pessoas, cuja vida é de imen­so desassossego, experimentam por vezes nos seus raros mo­mentos de felicidade uma sensação de tão indizível beleza e de uma tal intensidade, a escuma dessa momentânea felicidade ir­rompe por vezes tão alta e resplandecente por sobre o mar do seu sofrimento, que essa felicidade breve e luminosa na sua irra­diação também aflora e enfeitiça os outros. É assim que nas­cem, como espuma de felicidade fugaz e preciosa acima do mar do sofrimento, todas aquelas obras de arte pelas quais um homem sofredor se elevou tão alto, no espaço de uma hora, aci­ma do seu próprio destino, que a sua felicidade irradia como uma estrela e aparece a todos os que a vêem como algo de eter­no, e como o seu próprio sonho de felicidade. Todas essas pes­soas, quáisquer que sejam os nomes dos seus actos e das suas obras, não têm realmente vida de espécie nenhuma, quer dizer, a sua vida não é existir, não tem forma, nãose trata de heróis, artistas ou pensadores no sentido em que outros são juízes, mé­dicos, sapateiros ou professores, não, a sua vida é um fluxo, uma rebentação eterna e penosa, é miserável e dolorosamente despedaçada, e é horrenda e vazia de sentido, se não estivermos dispostos a descobrir-lhe um sentido naquelas tais raras vivên­cias, acções, pensamentos e obras que resplandecem por sobre o caos de uma vida assim. Entre os homens dessa espécie nasceu a perigosa, a terrível ideia que talvez toda a vida humana não passe afinal de um grave equívoco, de um aborto violento e fra­cassado da Mãe primeira, de uma tentativa selvagem e sinistra­mente malograda da Natureza. Mas entre eles surgiu também aquela outra ideia de que o homem talvez não seja apenas um animal medianamente racional, mas antes um filho dos deuses, e destinado à imortalidade.

Cada casta de homens tem as suas marcas distintivas, as suas insígnias, cada uma as suas virtudes e os seus vícios, os seus pecados mortais. Uma das características do Lobo das Es­tepes era ser um homem nocturno. Para ele a manhã era a pior hora do dia, receava-a e dela nunca lhe adviera nada de bom.

Jamais, em manhã alguma da sua vida, estivera propriamente bem disposto, jamais, em hora alguma antes do meio dia, fizera qualquer coisa de bom ou tivera algum bom pensamento, ja­mais conseguira propiciar alegria a si próprio e aos outros. Sócom o decorrer da tarde ia lentamente aquecendo e animando, e só para a noite, quando estava nos seus dias bons, se tornava fecundo, vivo, ocasionalmente ardente e jovial. Com isso se prendia, aliás, a sua necessidade de solidão e de independência. Jamais alguém experimentou uma necessidade de independên­cia tão profunda e tão apaixonada como a sua. Na sua juventude, quando ainda era pobre e penava para ganhar o seu pão, preferia morrer de fome e andar esfarrapado unicamente para em troca poder salvar uma pequena parcela de independência. Nunca se vendeu, nem pelo dinheiro nem pelo bem-estar, nem tão-pouco às mulheres ou aos poderosos; e cem vezes rejeitou e recusou aquilo que aos olhos de todo o mundo lhe trazia benefi­cio e felicidade, para em contrapartida conservar a sua liberda­de. Não havia para si perspectiva mais odiosa e terrível que a de um dia ter de exercer uma função, submeter-se a uma distribui­ção de tempo diária e anual, obedecer aos outros. Um escritó­rio, um gabinete, uma repartição, odiava tudo isso como a pró­pria morte, e o pior, o mais sinistro que podia viver em sonhos, era a prisão numa caserna. Perante tais situações, sabia esqui­var-se, muitas vezes a custo de grandes sacrifícios. Aí residia a sua força e a sua virtude, aí era invergável e incorruptível, aí o seu carácter era firme e rectilíneo. No entanto, esta virtude tra­zia estreitamente ligados a si também o seu sofrimento e o seu destino. Acontecia-lhe o que a todos acontece: aquilo que por impulso da sua mais intima natureza demandava e em que se empenhava com a maior pertinácia, era-lhe concedido, mas ul­trapassando aquilo que ao homem é benéfico. O que começava por ser sonho e felicidade, redundava em amargo destino. O homem do poder destrói-se pelo poder, o homem do dinheiro, pelo dinheiro, o subserviente pelo servir, o sequioso de prazer pela luxúria. E o Lobo das Estepes, esse, destruiu-se pela inde­pendência.

Atingira o seu objectivo, ganhara uma independência cada vez maior, não tinha ninguém a comandá-lo, ninguém a quem se submeter, dispunha por si só, livremente, do que fazia e do que não fazia. Porque todo o homem forte alcança inevitavel­mente aquilo que um verdadeiro impulso o faz demandar. No entanto, no cúmulo da felicidade alcançada, Harry apercebeu-se subitamente de que a sua liberdade era uma morte, que estava sozinho, que o mundo o deixava sinistramente em paz, que ele próprio já não ligava nada às pessoas, aliás nem tão pouco a si próprio, que lentamente ia asfixiando numa atmosfera cada vez mais rarefeita de vedação e isolamento. Pois sucedia agora que essa solidão e a independência haviam deixado de ser desejo e objectivo, para se tornarem fado e condenação, que o voto má­ gico fora formulado e já não se podia voltar atrás com o feitiço, que já não adiantava nada abrir os braços, cheio de saudade e empenhamento, predisposto ao relacionamento e à comunidade: agora todos o deixavam sozinho. Não que fosse odiado e evita­do, por atacante, pelas pessoas. Pelo contrário, tinha muitos amigos. Havia muito quem o estimasse. Mas o que encontrava não passava de simpatia e afabilidade, convidavam-no, presen­teavam-no, escreviam-lhe cartas agradáveis, mas ninguém se che­gava a ele, nunca surgia uma ligação; partilhar a sua vida, ninguém estava disposto ou apto a fazê-lo. Rodeava-o agora a atmosfera dos solitários, um ambiente silencioso, um deslizante apartamento do mundo circundante, uma incapacidade de relacionamento, perante os quais vontade e nostalgia de nada serviam. Era este um dos sinais mais distintos da sua vida.

Um outro era contar-se entre o número dos suicidas. Diga-se a propósito que é errado chamar suicidas apenas àqueles que na realidade põem termo à vida. Entre esses há muitos até que em certa medida só por acaso se tornam suicidas, muitos cuja natureza não comporta necessariamente o suicídio. Entre os homens sem personalidade, sem cunho marcado, sem destino vincado, entre essas dúzias, milhares de homens, há quem aca­be por suicídio, sem por isso, por tudo aquilo que os marca e caracteriza, pertencerem ao tipo dos suicidas; em contrapartida, entre aqueles que pela sua essência cabem entre os suicidas, muitos, talvez a maior parte, jamais atentam realmente contra a sua vida. O "suicida" - e Harry era-o - não tem necessaria­mente de viver numa relação particularmente acesa com a mor­te - isso também pode acontecer sem que se seja suicida. Mas épróprio do suicida sentir o seu eu, com ou sem razão, como ger­me da natureza especialmente perigoso, equívoco e ameaçado, crer-se sempre extraordinariamente exposto e ameaçado, como se estivesse suspenso no mais afilado cume de um rochedo onde um ligeiro toque do exterior ou a mínima fraqueza do interior bastariam para o precipitar no vácuo. Esta casta de pessoas dis­tingue-se, na sua linha de destino, por ter o suicídio como géne­ro de morte mais provável, pelo menos na sua própria concep­ção. Esta disposição, que quase sempre se manifesta já na pri­meira juventude, acompanhando essas pessoas ao longo de to­da a sua vida, não pressupõe uma vitalidade especialmente fra­ca, pelo contrário, entre os "suicidas" encontram-se naturezas sobremaneira tenazes, cobiçosas e mesmo intrépidas. Mas as­sim como existem naturezas que à menor indisposição tendem para sintomas de febre, assim também estas naturezas que ape­lidamos de "suicidas", e que são sempre muito sensíveis e im­pressionáveis, se entregam apaixonadamente, ao menor abalo, à perspectiva do suicídio. Tivéssemos nós uma ciência que possuísse a audácia e o sentido da responsabilidade necessários pa­ra se ocupar dos homens, e não apenas dos mecanismos dos fe­nómenos vitais, tivessem os nós qualquer coisa como uma an­tropologia, como uma psicologia, e estes factos seriam de todos conhecidos.

O que aqui dissemos dos suicidas fica-se evidentemente ape­nas pelo superficial, é psicologia, portanto uma parcela da físi­ca. Do ponto de vista metafísico, a questão é diferente, e muito mais clara, pois nessa perspectiva os "suicidas" apresentam-se como tomados pelo sentimento de culpa da individualização, como aquelas almas que já não vêem como meta para a sua vida o seu próprio aperfeiçoamento e desenvolvimento, mas apenas a sua dissolução, o regresso à Mãe, o regresso a Deus, o regres­so ao Todo.

De entre essas naturezas, muitas há completa­mente incapazes de alguma vez atentar contra a sua vida, por terem reconhecido profundamente o pecado em que incorre­riam. Para nós, no entanto, não deixam de ser suicidas, por­que vêem na morte, e não na vida, a sua liberdade, estão dis­postos a precipitar-se, a abandonar-se, a extinguir-se e a re­gressar ao princípio.

Assim como qualquer força pode (e mesmo deve, em deter­minadas circunstâncias) tornar-se fraqueza, do mesmo modo e inversamente o suicida típico pode muitas vezes fazer da sua aparente fraqueza uma força e um apoio, e fá-lo mesmo com extrema frequência. Era esse o caso de Harry, o Lobo das Este­pes. Como milhares dos seus iguais, não se limitou, partindo da ideia de que lhe estava aberto a qualquer momento o caminho da morte, a engendrar um jogo de imaginação de melancólico adolescente, fez desses mesmos pensamentos consolação e am­paro. É certo que, como em todos os da sua espécie, qualquer abalo, qualquer dor, qualquer situação de contrariedade na vi­da despertava de imediato em si o desejo de se evadir através da morte. Gradualmente, no entanto, ia criando a partir desta pró­pria inclinação uma filosofia útil à vida. A familiaridade com a ideia de que aquela saída de emergência lhe estava permanente­mente aberta, dava-lhe forças, despertava-lhe a curiosidade de saborear dores e situações penosas, e no cúmulo da desdita, chegava por vezes a sentir com alegria feroz como que um pra­zer diabólico; "Estou mesmo curioso em ver quanto é que uma pessoa de facto é capaz de aguentar! Se atingir o limite do ainda suportável, então basta-me abrir a porta e estou salvo"! Há muitos suicidas que vão buscar forças inimagináveis a esta ideia.

Por outro lado, todos os suicidas também conhecem bem a luta contra a tentação do suicídio. Todos eles se apercebem per­feitamente, nalgum recanto da sua alma, que o suicídio é na verdade saída, mas nada mais que uma saída de emergência um tanto envergonhada e ilegítima, que no fundo é mais nobre e mais belo deixarmo-nos vencer e abater pela vida em si do que pela nossa própria mão. Esta ciência, esta consciência culposa, cuja origem é a mesma por exemplo dos remorsos dos chama­dos onanistas, conduz a maioria dos "suicidas" a um perma­nente combate contra a sua tentação. Lutam como o cleptoma­níaco luta contra o seu vício. O Lobo das Estepes também esta­va familiarizado com este combate, a que se abalançara com as mais variadas armas. Por fim, tinha ele cerca de quarenta e sete anos de idade, veio-lhe uma ideia luminosa e não desprovida de humor, que frequentemente o alegrava. Estabeleceu o seu quin­quagésimo aniversário como a data em que se poderia permitir o suicídio. Nesse dia, assim acordou consigo próprio, havia de lhe estar aberta a possibilidade de utilizar ou não a saída de emergência, conforme a sua disposição na altura. Acontecesse portanto agora o que acontecesse, caísse ele em doença, misé­ria, sofrimento ou amargura - tudo tinha um prazo bem defi­nido, tudo, fosse o que fosse, apenas poderia durar, no máxi­mo, aqueles breves anos, meses, dias, cujo número só ia bai­xando! E, realmente, suportava agora muito mais facilmente adversidades várias, que anteriormente o teriam torturado bem mais profunda e longamente, chegando porventura mesmo a abalá-lo até à raíz. Quando por qualquer razão se sentia espe­cialmente mal, qUàndo à devastação, isolamento e depaupera­ção da sua vida se vinham ainda juntar sofrimentos ou perdas suplementares, estava em posição de dizer às dores: "Esperem só, mais dois anos e hei-de ser o vosso rei e senhor"! E abando­navq-se profunda e amorosamente à perspectiva do seu quin­quagésimo aniversário - de manhã chegariam as cartas e os pa­rabéns, enquanto ele, seguro da sua lâmina de barbear, se des­pediria de todas as dores, fechando a porta atras de si. E então é que a gota nos ossos, a melancolia, as enxaquecas e as dores de estômago haviam de ver onde iriam parar...

 

Resta explicar o fenómeno particular do Lobo das Estepes, nomeadamente o seu singular relacionamento com o burguesis­mo, fazendo remontar essas manifestações às suas leis funda­mentais. E, porque a ocasião se nos proporciona por si pró­pria, tomemos como ponto de partida precisamente essa sua re­lação com o "burguês".

O Lobo das Estepes situava-se, no seu próprio entender, to­talmente fora do mundo burguês, pois não conhecia nem vida de família nem ambição social. Sentia-se inteiramente como ser à parte, ora maníaco estranho e eremita mórbido, ora também criatura supra-normal, de pendor genial, superior às normas mesquinhas da vida comum. Conscientemente, desdenhava o burguês e orgulhava-se de o não ser. No entanto, em vários as­pectos vivia em perfeito burguês; tinha dinheiro no banco e sus­tentava parentes pobres, vestia sem grande apuro, é certo, mas digna e discretamente, e procurava viver em paz e harmonia com a Polícia, o Fisco e poderes quejafldos. Mas não era só is­so, constantemente se sentia atraído por intensa e secreta nos­talgia pelo pequeno mundo burguês, pelas casas de família tran­quilas e respeitáveis com jardinzinhos cuidados, escadas de ma­deira a brilhar e todo o seu modesto ambiente de ordem e de­cência. Tinha gosto em cultivar os seus pequenos vícios e extra­vagâncias, em sentir-se extra-burguês, espeCial ou génio, mas nunca ficava nem habitava, por assim dizer, nas províncias da vida onde já não existe burguesia. Não se sentia à vontade, nem na atmosfera dos homens violentos e excepcionais, nem entre criminosos ou faltosos privados dos seus direitos, antes perma­necendo sempre em morada de província burguesa e mantendo continuamente laços com os seus hábitos, as suas normas e a sua atmosfera, embora em oposição e revolta. Além disso, cres­cera em meio e educação pequeno-burguesas, de que herdara uma infinidade de conceitos e padrões. Em teoria, não levanta­va objecção nenhuma, mínima que fosse, à prostituição, mas pessoalmente teria sido incapaz de levar a sério uma prostituta e de a olhar realmente como sua igual. Era pessoa para amar co­mo irmão o criminoso político, o revolucionário ou o aliciador intelectual que Estado ou sociedade banissem, mas perante o gatuno, o bandido, o assassino estuprador, não sabia senão la­mentá-los em jeito consideravelmente burguês. Assim, reconhecia e apoiava sempre com uma parte do seu ser e do seu agir aquilo que com a outra parte combatia e nega­va. Criado em casa burguesa de gente culta, segundo normas e costumes apertados, ficara sempre apegado numa parcela da sua alma às regras desse mundo, mesmo depois de há muito se ter individualizado acima dos padrões que a burguesia admite, e de há muito se ter libertado das crenças e ideais de teor burguês.

O "burguês", portanto, como condição eternamente pre­sente do humano, não é mais que um ensaio de igualização, a luta por uma média equilibrada entre os inúmeros extremos e antíteses duais do comportamento humano. Tomemos como exemplo uma qualquer de entre estas antíteses, digamos o santo e o debochado, e a nossa comparação logo se tornará inteligí­vel. O homem tem a possibilidade de se entregar de corpo e al­ma ao espírito, à tentativa de aproximação ao divino, ao ideal da santidade. Em contrapartida, tem também a possibilidade de se entregar de corpo e alma à vida dos sentidos, às exigências dos instintos, canalizando toda a sua luta para a angariação do prazer momentâneo. A primeira dessas vias conduz à santida­de, ao martírio do espírito, ao abandono de si próprio a Deus. A segunda leva ao deboche, ao martírio dos sentidos, a um abandono de si próprio, à putrefacção. O burguês, esse, procu­ra viver no meio temperado entre uma e outra. Jamais se entre­gará, quer ao vício, quer à ascese, jamais será mártir, jamais consentirá na sua aniquilação - pelo contrário, o seu ideal não é a entrega, mas sim a conservação do eu, a sua luta não de­manda nem a santidade nem o inverso, não suporta o absoluto; quer servir a Deus, mas ao prazer também, quer ser virtuoso, mas gozar também um tudo nada das coisas boas e agradáveis desta terra. Resumindo, tenta instalar-se entre os extremos, a igual distância de um e de outro, em zona temperada e acolhe­dora sem tumultos nem borrascas violentas, e consegue-o, em­bora com sacrifício daquela intensidade de vivência e de senti­mento que uma vida voltada para o extremo e para o absoluto proporciona. Só se pode viver intensamente com sacrifício do eu. Ora, não há nada que o burguês mais alto estime que o seu eu (por sinal um eu que não passou de um estádio rudimentar de desenvolvimento). Assim, em detrimento da intensidade, al­cança a conservação e a segurança; em lugar do êxtase em Deus, colhe a tranquilidade da consciência, em lugar da volú­pia, o bem-estar, em lugar da liberdade, o conforto, em lugar do ardor mortal, uma temperatura amena. O burguês é por isso mesmo, pela sua própria natureza, uma criatura de fraca vitali­dade, medrosa, receosa de todo e qualquer abandono da suá pessoa, facilmente governável. Por isso colocou, no lugar do poder, a maioria, no lugar da força, a lei, no lugar da responsa­bilidade, o exercício do voto.

É claro que este ser débil e angustiado, por elevado que seja o número em que exista, não consegue vingar, e devido às suas características, não poderia desempenhar no mundo outro pa­pel que não o de um rebanho de ovelhas entre lobos errantes. No entanto, vemos que em épocas de império de naturezas mui­to fortes, o burguês é imediatamente encostado à parede, mas jamais se perde, parecendo por vezes mesmo dominar o mun­do. Como é possível? Nem o elevado número do rebanho, nem a virtude, nem o common sense, nem a organização teriam for­ça suficiente para o salvar da morte. Não há medicina no mun­do que possa conservar a vida àquele cuja intensidade vital àpartida se encontra tão debilitada. E, no entanto, o burguesis­mo existe, é forte e floresce. - Porquê?

A resposta é esta: por causa dos lobos das estepes. Na reali­dade, a força vital da burguesia não assenta de modo nenhum nas qualidades dos seus membros comuns, mas sim nas dos out­siders extraordinariamente numerosos que, em consequência da indeterminação e elasticidade dos seus ideais, consegue chamar a si. Na franjas do mundo burguês paira sempre uma enorme quantidade de naturezas fortes e selvagens. O nosso Lobo das Estepes, Harry, é exemplo característico disso. Ele que evoluiu no sentido do indivíduo muito para lá dos limites acessíveis ao burguês, ele que conhece tanto as delícias da meditação como os obscuros encantos do ódio para com os outros e para consi­go próprio, ele que desdenha a lei, a virtude e o common sense, não deixa de ser um recluso da burguesia, de que não pode eva­dir-se. E assim se acumulam em volta da massa fundamental da burguesia propriamente dita largas camadas de humanidade, muitos milhares de vidas e inteligências, cada uma das quais, embora enxertada do burguês e destinada a uma vida no abso­luto, permance ligada à existência burguesa por sentimentos in­fantis; embora em parte contaminada pela debilitação da suà força vital, mantém-se de certo modo integrada na burguesia, como que dela dependente e servidora, e para com ela obriga­da. Pois para a burguesia vale a máxima inversa dos grandes: quem não é contra mim, é por mim!

Examinando a essa luz a alma do Lobo das Estepes, ele apresenta-se-nos como homem votado, pelo elevado grau do seu individualismo, ao não-burguesismo - pois todo o indivi­dualismo que é levado ao extremo se volta contra o eu e tende para a destruição. Vemos que reune em si fortes tendências, quer para a santidade, quer para o deboche, mas que por qual­quer fraqueza ou indolência seria incapaz de dar o salto para o espaço universal, livre e agreste, ficando preso à pesada conste­lação materna do burguesismo. É esta a sua situação no espaço do mundo, esta a sua sujeição. A grande maioria dos intelec­tuais, a maior parte dos homens artistas, pertence a esse tipo. Só os mais fortes de entre eles conseguem penetrar na atmosfe­ra da terra burguesa e alcançar o cosmos, todos os outros aban­donam ou estabelecem compromissos, desprezam o burguesis­mo, embora no entanto lhe pertençam, o fortaleçam e o glorifi­quem, na medida em que em última análise são obrigados a rea­firmá-lo, para ainda poder viver. Daí advem para essas inúme­ras existências, não propriamente a tragédia, mas um infortú­nio e uma adversidade bastante consideráveis, em cujo inferno os seus talentos são bem cozinhados e fecundados. Os poucos que se conseguem libertar vão parar ao absoluto e acabam ad­miravelmente, são os trágicos, cujo número é restrito. Mas os outros, os que se mantiveram em sujeição, a cujos talentos a burguesia muitas vezes presta honroso tributo, esses vêem abrir-se diante de si um terceiro reino, um mundo imaginário, mas soberano: o humor. Os lobos das estepes que não conhe­cem a paz, esses permanentes e horríveis sofredores, que vêem recusado o impulso necessário à tragédia, ao salto rompente pa­ra o espaço estelar, que se sentem destinados ao absoluto e no entanto não conseguem viver nele - a esses se oferece, quando o seu espírito se torna forte e flexível pelo sofrimento, a saída conciliadora do humor. O humor será sempre em certa medida burguês, embora o verdadeiro burguês seja incapaz de o com­preender. Na sua esfera imaginária, o intrincado e multi-faceta­do ideal de todos os lobos das estepes torna-se realidade: aí épossível não só aceitar simultaneamente o santo e o debochado, vergar os polos até à junção, como também ainda integrar o burguês nessa aceitação. É perfeitamente possível ao possesso de Deus aceitar o criminoso, e inversamente também; aos dois, porém, e a todos os outros absolutos, é impossível aceitar ainda por cima o burguesismo, aquele meio neutro e morno. Só o hu­mor, a espantosa descoberta dos entravados no seu destino de grandiosidade, dos quase-trágicos, dos infelizes altamente dota­dos, só o humor (talvez a criação mais singular e mais genial da humanidade) realiza este impossível, reveste e une todas as áreas da natureza humana com as radiações dos seus prismas.

Viver no mundo como se não fosse o mundo, respeitar a lei pai­rando embora acima dela, possuir "como se não possuísse", renunciar como se não houvesse renúncia - só o humor é ca­paz de realizar todas estas exigências corriqueiras e tão frequen­temente formuladas de uma apurada ciência da vida.

E se o Lobo das Estepes, a quem não faltam os dons e as faculdades necessárias, ainda conseguisse, no sufocante dédalo do seu inferno, deixar ferver à decocção e exsudação esta poção mágica, então estaria salvo. Mas para isso ainda lhe faltam muitas coisas. A possibilidade, no entanto, existe, assim como a esperança. Quem gostar dele, quem partilhar da sua pessoa, que lhe deseje essa salvação. É certo que ficaria para sempre in­serido no burguesismo, mas os seus males tornar-se-iam supor­táveis, fecundos mesmo. A sua relação com o mundo burguês, no amor e no ódio, perderia o seu sentimentalismo, e o seu acorrentamento a esse mundo deixaria de o atormentar como perpétua vergonha.

Para atingir essa meta, ou talvez em última análise para sempre se poder aventurar ao salto para o infinito, um Lobo das Estepes como esse deveria um dia ser colocado em confron­to consigo próprio, mergulhar o seu olhar bem fundo no caos do seu próprio ser e chegar a uma perfeita consciência de si mesmo. A sua questionável existência revelar-se-ia então a seus olhos em toda a sua inalterabilidade e tornar-se-lhe-ia para mais impossível continuar sempre fugindo do inferno dos seus senti­dos para o refúgio de consolações sentimentais e filosóficas, e voltar a evadir-se destas para o cego delírio da sua natureza de lobo. O homem e o lobo ver-se-iam então obrigados a reconhe­cer-se reciprocamente sem enganosas máscaras sentimentais, a olhar-se, nus, nos olhos. E nessa altura, ou se despedaçariam, indo cada um para seu lado definitivamente, de maneira que deixaria de existir Lobo das Estepes, ou fariam entre si um casa­mento de conveniência, à luz nascente. do humor.

É possível que um dia Harry se veja colocado diante desta última possibilidade. É possível que um dia aprenda a conhe­cer-se, ou porque lhe venha parar à mão um dos nossos espelhi­nhos, ou porque cruze o imortal, ou porque talvez encontre num dos nossos teatros mágicos aquilo de que precisa para li­bertação da sua alma degenerada. Esperam-no milhares dessas possibilidades, o seu destino atrai-as irresistivelmente, todos es­tes apêndices externos do burguesismo vivem na atmosfera des­tas perspectivas mágicas. Basta um nada para que afaísca salte.

E o Lobo das Estepes está bem ciente de tudo isto, mesmo que nunca venha a passar os olhos por este sutnário da sua bio­grafia interior. Adivinha o seu lugar no edifício universal, adi­vinha e conhece o imortal, adivinha e teme a possibilidade de um encontro consigo próprio, sabe da existência daquele espe­lho onde tão desesperadamente precisaria de se mirar, onde tão mortalmente receia olhar-se.

 

Para finalizar o nosso estudo, resta-nos ainda deslindar uma última ficção, uma ilusão fundamental. Todas as "explica­ções", toda a psicologia, todos os ensaios de compreensão ne­cessitam, como se sabe, de expedientes, de teorias, de mitolo­gias, de mentiras; e um autor como deve ser não devia deixar de deslindar estas mentiras, na medida do possível, no termo de uma exposição. Se digo "em cima" e "em baixo", estou já a fazer uma afirmação que exige ser explicada, porque altos e bai­xos só há no pensamento, na abstracção. O mundo em si pró­prio não conhece altos nem baixos.

Assim também, resumindo, o Lobo das Estepes não é senão uma ficção. Quando Harry se sente e se assume homem-lobo, e se crê constituido por duas naturezas hostis e opostas, isso não passa de uma mitologia simplificadora. Harry não é de modo nenhum homem-lobo, e se nós, aparentemente, sem nos aperce­bermos, assumimos essa sua mentira, por ele próprio inventada e feita realidade, e procuramos efectivamente encará-lo e inter­pretá-lo como ser duplo, como Lobo das Estepes, mais não fi­zemos do que aproveitar-nos de um equívoco, na esperança de melhor sermos compreendidos, equívoco esse que agora impor­ta tentar corrigir.

A dicotomia lobo-homem, espírito-instinto, através da quál Harry procura tornar mais inteligível o seu destino, é uma sim­plificação bem grosseira, uma violação do real em favor de uma explicação plausível mas falaciosa das contradições com que es­se homem depara dentro de si próprio e que lhe parecem ser a fonte dos seus não ligeiros sofrimentos. Harry encontra em si um "homem", ou seja um mundo de ideias, de sentimentos, de cultura, de uma natureza domada e sublimada, e conjuntamen­te descobre também um "lobo", ou seja, um obscuro mundo de instintos, selvajaria e ferocidade, de uma natureza crua, não sublimada. Apesar desta separação aparentemente tão distinta do seu ser em duás esferas hostis entre si, já experimentou vezes sem conta instantes, momentos felizes, em que o lobo e o ho­mem se suportaram mutuamente. Se Harry quisesse, em cada momento isolado da sua vida, a cada um dos seus actos e sensa­ções, tentar apurar qual a quota-parte de homem e qual a quo­ta-parte de lobo, entraria imediatamente nutn impasse, e toda a sua bela teoria do lobo cairia por terra. Pois não há homem ne­nhum, nem mesmo o primitivo negro ou sequer o idiota, tão convenientemente simples que a sua natureza se possa explicar pela soma de apenas dois ou três elementos principais; e expli­car com esta ingénua divisão em lobo e homem uma pessoa tão heterogénea como Harry é uma tentativa inglória e infantil. Harry não contém em si dois seres, mas cem, ou mil. A sua vida não ostila apenas (como a de qualquer pessoa) entre dois polos, como por exemplo o instinto e o espírito, o santo e o debocha­do, oscila entre milhares, entre um sem número de extremos opostos.

Não devemos admirar-nos que um homem tão culto e tão inteligente como Harry se possa assumir como "Lobo das Este­pes", pense poder abarcar a rica e complexa estrutura da sua vi­da numa fórmula tão simples, tão brutal e tão primitiva. O ho­mem não é capaz de pensar em grande escala, e mesmo o mais inteligente e instruído entre todos está sempre a ver o mundo e a ver-se a si próprio - sobretudo a si próprio - através dos ócu-" los de fórmulas altamente ingénuas, simplificadoras e deturpa­doras. Pois é necessidade ao que parece inata e imperiosa de to­dos os homens idealizar o seu eu como uma unidade. Por muito frequentemente, por muito profundamente que essa ilusão seja abalada, recompõe-se sempre. O juíz que está sentado diante do assassino e o olha nos olhos, ouve-o falar um instante com a sua própria voz (a do juíz) e vê retratadas no seu íntimo todas as emoções, faculdades e possibilidades do criminoso; mas no momento seguinte volta a ser um só, a ser jutz, nutn repente volta à concha do seu eu imaginado, cumpre o seu dever e con­dena o assassino a pena de morte. E quando em almas humanas especialmente dotadas e de estrutura delicada desponta o pressentimento da sua mu/tiplicidade, quando essas almas que­bram, como todos os génios, a ilusão da personalidade una, e se sentem multifacetadas, feixe de muitos eus, basta que o exterio­rizem para que logo a maioria o ponha atrás de grades, chame a ciência em socorro, constate a esquizofrenia e proteja a huma­nidade do grito de verdade saído da boca desses infelizes. Mas para quê estar aqui a desperdiçar palavras, para quê dizer coisas que todo o ser pensante é suposto saber por si, mas que não é costume exprimir? - E assim, quando um homem se aventura a estender a ilusória unidade do seu eu à dualidade, é já quase um génio, ou pelo menos uma rara e interessante excepção.

Mas na realidade nenhum eu, nem mesmo o mais ingénuo, é uma unidade, antes sim um mundo extremamente multifaceta­do, um pequeno céu estrelado, um caos de formas, estádios e condições, heranças e possibilidades. Ofacto de cada um por si aspirar a considerar este caos uma unidade, e falar do seu eu co­mo se se tratasse de uma manifestação simples, fixa e solida­mente modelada, claramente delimitada - esse engano, que é inerente a qualquer ser humano (mesmo superior), parece ser uma necessidade, uma exigência da vida, como a respiração ou a alimentação.

O erro assenta numa simples transferência. De corpo, todo o homem é uno;. de alma, nunca. Também a poesia, mesmo a mais apurada, opera segundo a tradição com personagens apa­rentemente inteiros, aparentemente indivisos. Na poesia até ho­je produzida, os especialistas, os conhecedores, apreciam acima de tudo o drama, e com razão, pois oferece (ou poderia ofere­cer) a maior possibilidade de representação do eu como mu/ti­plicidade - se a isso não viesse opôr-se a mais grosseira evidên­cia, que nos apresenta cada um dos personagens individuais de um drama como unidade, por estar inserido num corpo incon­dicionalmente único, uniforme, isolado. Por isso também a es­tética nalve aprecia acima de tudo o chamado drama de caracte­res, em que cada figura aparece muito distinta e demarcada­mente como unidade. Só a pouco e pouco e de longe desperta em alguns a suspeita de que tudo aquilo talvez não passe de uma estética superficial barata, de que erramos quando aplica­mos aos nossos grandes dramaturgos os conceitos de beleza ­admiráveis sim, mas não inatos, apenas inculcados em nós ­da Antiguidade, Antiguidade essa que afinal inventou, sempre partindo do corpo invisível, a ficção do eu, da pessoa. Os poe­mas da Índia antiga desconhecem totalmente este conceito, os heróis das epopeias hindus não são pessoas, mas aglomerados de pessoas, séries de incarnações. E no nosso mundo moderno há obras em que, por trás do véu do jogo de personagens e ca­racteres, se tenta, sem que o próprio autor disso se aperceba plenamente, representar uma multiplicidade de alma. Quem. pretenda entender isto terá de se predispor a encarar as figuras de um poema desses, não como seres individuais, mas como partes, faces, aspectos diversos de uma unidade superior (a al­ma do poeta, digamos). Quem olhar por exemplo para o Faus­to, desta perspectiva, verá que Fausto, Mefistófeles, Wagner e todos os outros formam uma unidade, um "sobre-persona­gem", e é só nesta unidade superior, não nas figuras isoladas, que se encontra alguma alusão à verdadeira essência da alma. Quando FauSto diz aquela frase popular entre mestres e admi­ rada até ao arrepio pelos filisteuS: "Duas almas, ai de mim!, habitam o meu peito!", esquece o Mefistófeles e uma quantida­de de outras almas que o seu peito igualmente alberga. O nosso Lobo das Estepes também julga trazer no peito duas almas (lo­bo e homem), e já assim sente o peito profundamente oprimi­do. Ora o peito, o corpo, fazem um só, mas as almas que nele habitam não são duas nem cinco, mas incontáveis; o homem é um bolbo formado por centenas de películas, um tecido com­posto por múltiplos filamentos. Os antigos asiáticos realizaram isso, conheceram-no com rigor, e o Yoga budista descobriu e detem a técnica exacta de desnudação da crença errónea da per­sonalidade. Os jogos da humanidade são engraçados e variega­dos: a ilusão, que a Índia durante. mil anos tão arduamente se esforçou por desmascarar, é a mesma ilusão que o Ocidente com igual empenhamento luta para apoiar e reforçar.

Encarando o Lobo das Estepes desta perspectiva, torna-se­-nos clara a razão por que ele tanto sofre com a sua risível duali­dade. Supõe, como Fausto, que duas almas já são demais para um só peito, e acabam por despedaçá-lo. Mas, em contraparti­da, também são demasiado poucas, e Harry martiriza horrivel­mente a sua pobre alma ao procurar abraçá-la num quadro tão primitivo. Embora instruído e cultivado, Harry procede quase como um ignorante grosseiro, que só sabe contar até dois. A uma parte de si próprio dá o nome de homem, à outra de lobo, e julga que isso é tudo e que já se esgotou. O "humanismo", as­sim crê, abarca tudo o que em si descobre de espiritual, subli­mado ou cultivado: o "lobo", tudo o que é instintivo, selvagem e caótico. Mas a vida não é tão simples como os nossos pensa­mentos, e Harry ilude-se duplamente ao empregar este método obscuro de lobo. Harry atribui ao "homem", receamos bem, regiões inteiras da sua alma que estão longe de ser humanas, e imputa ao lobo fracções da sua natureza que há muito ultrapas­saram o lupino.

Como todas as pessoas, Harry julga saber perfeitamente o que o homem é, mas está bem longe de o saber, embora não ra­ro o pressinta em sonhos e outros estados de consciência dificil­mente controláveis. Oxalá não esqueça tais pressentimentos, oxalá os assuma tanto quanto lhe for possível! Porque o ho­mem não é uma construção sólida e duradoura (o ideal da Anti­guidade, apesar das suspeitas contraditórias dos seus sábios), mas um ensaio e uma transição, não é mais do que a ponte es­treita entre a natureza e o espírito. A mais íntima determinação impele-o para o espírito, para Deus; a mais fervente nostalgia atrai-o de retorno à Natureza, à Mãe: entre estas duas forças, a vida oscila, receosa e trémula. Aquilo que os homens entendem pelo conceito de "humano" não passa sempre de um efémero arranjo burguês. Determinados instintos dos mais brutais são desprezados e banidos por essa convenção, exige-se uma parce­la de consciência, moralidade e desbestialização, não só se acei­ta como até se requer um tudo nada de espírito. O "homem" desta convenção é, como qualquer ideal burguês, um compro­misso, um ensaio tímido e ingenuamente astuto de ludibriar nas suas severas exigências, não só a maifazeja mãe Natureza, co­mo o incómodo pai Espírito, e viver entre os dois numa média confortável. Por isso o burguês permite e tolera aquilo a que chama "personalidade", entregando-a embora ao mesmo tem­

po ao moloch "Estado", contrapondo continuamente um ao outro. Por isso o burguês queima hoje por hereje e enforca por criminoso aquele a quem amanhã levanta estátuas.

A presciência de que o "homem" não é produto de uma criação, mas exigência do espírito, possibilidade longínqua, tão desejada quanto receada, e de que o caminho até lá é sempre e apenas trilhado, numa pequeníssima fracção e em tormentos e êxtases terríveis, precisamente por aqueles raros indivíduos a quem hoje erguem o cadafalso e amanhã o monumento memo­rial - essa presciência, dizia, também mora no Lobo das Este­pes. Mas aquilo a que em si chama "homem", em oposição ao seu "lobo", em grande parte não passa daquele mesmo "ho­mem" medíocre da convenção burguesa. Harry pode muito bem pressentir o caminho para o verdadeiro homem, para o imortal, avança aqui e ali não mais que um passinho, ínfimo e tímido, e paga-o com pesados sofrimentos, com doloroso isola­mento. Teme, porém, no mais íntimo da sua alma, consentir e desejar essa exigência suprema, palmilhar esse caminho único e estreito para a imortalidade. Sente-o claramente: há-de condu­zi-lo a tormentos ainda maiores, à proscrição, à derradeira re­núncia, quem sabe se ao cadafalso; e mesmo que no final desse caminho esteja a imortalidade a atraí-lo, nem por isso está dis­posto a suportar todos aqueles sofrimentos, a morrer todas aquelas mortes. Embora mais consciente que os burgueses da finalidade da criação humana, fecha os olhos e não quer saber que o apego desesperado ao eu, a resistência desesperada à morte é o caminho mais seguro para a morte eterna, enquanto poder morrer, descobrir os véus, abandonar eternamente o eu à mudança, isso leva à imortalidade. Quando presta culto aos que de entre os imortais lhe são queridos, a Mozart, por exem plo, no fundo acaba sempre por vê-lo com olhos de burguês e, precisamente como um mestre pedagogo, tende a atribuir a per­feição de Mozart a um dom específico e apurado, em vez de a explicar pela grandeza do seu abandono, pela sua aceitação do sofrimento, a sua indiferença perante os ideais burgueses, a car­ga suportada daquele extremo isolamento que, em volta do que sofre e se faz homem, rarefaz toda a atmosfera burguesa até ao gelado éter do mundo, à solidão do jardim de Getsémani. Em todo o caso, o nosso Lobo das Estepes pelo menos des­cobriu em si a dualidade faustiana, reconheceu que a unidade do corpo não implica a unidade da alma, e que quando muito se encontra apenas no caminho da longa peregrinação até ao ideal desta harmonia. Desejaria, ou superar a sua parte de lobo e tor­nar-se inteiramente homem, ou renunciar ao homem e levar, pelo menos enquanto lobo, uma vida una e não despedaçada. Provavelmente nunca observou de perto um lobo verdadeiro ­ talvez nessa altura tivesse reparado que os animais também não têm uma alma indivisível, que neles também habita, por trás da bela e tensa forma do corpo, uma multiplicidade de estados e aspirações, que o lobo também encerra abismos, que o lobo também sofre. Não, com o "regresso à natureza" o homem to­ma sempre o caminho errado, caminho penoso e vazio de espe­rança. Harry nunca poderá tornar-se inteiramente lobo, e mes­mo que assim fosse, veria que o lobo afinal também não é nada de simples e primitivo, mas já qualquer coisa de muito diversifi­cado e complicado. Também o lobo tem duas almas e mais que duas no seu peito de fera, e quem aspira a ser lobo incorre no mesmo esquecimento do homem que entoava aquele refrão: "Oh! Ventura de ser ainda criança!". O homem simpático mas sentimental que entoa a canção da criança feliz também deseja o retorno à natureza, à inocência, aos princípios, esquecendo completamente que as crianças de modo nenhum são felizes, que são susceptíveis de muitos conflitos, de muitas discordân­cias, de todos os sofrimentos.

Não há caminho nenhum que conduza atrás, nem ao lobo, nem à criança. No princípio de todas as coisas não há inocência nem ingenuidade; tudo o que é criado, mesmo aquilo que pare­ce mais simples, já de si é culpado, multifacetado, lançado na torrente lamacenta da evolução, e nunca, nunca mais poderá voltar a subir a corrente. O caminho da inocência, do incriado, de Deus, não conduz atrás, mas adiante, não conduz ao lobo ou à criança, mas sempre mais adiante na culpabilidade, sempre mais fundo na criação humana. Mesmo o suicídio, pobre Lobo das Estepes, não te servirá de grande coisa, hás-de sempre ter de seguir a via mais longa, mais penosa e mais difícil da criação humana, ainda hás-de ter de multiplicar muitas vezes a tua dua­lidade, complicar muito mais a tua complexidade. Em vez de restringir o teu mundo, de simplificar a tua alma, hás-de ter de chamar a ti cada vez mais mundo, e finalmente terás de chamar o universo inteiro ao seio da tua alma dolorosamente expandi­da, talvez para utn dia alcançar o repouso, o fim. Foi este o ca­minho trilhado por Buda, trilhado por todos os grandes ho­mens, uns consciente, outros inconscientemente, tanto quanto o seu temerário empreendimento os pôde levar. Cada nasci­mento significa a separação do todo, significa delimitação, de­marcação de Deus, renovação dolorosa. Regresso ao todo, sus­pensão do torturante individualismo, transformação em Deus significa: ter alargado a sua alma até ela conseguir de novo abraçar o todo.

Aqui não se trata do homem que a escola, a economia na­cional e a estatística conhecem, nem do homem tal como anda aos milhões por essas ruas fora, e que não é de considerar dife­rentemente da areia da praia ou dos sal picos da rebentação: uns milhões a mais, uns milhões a menos, pouco importam, é tudo material, mais nada. Não, aqui falamos do homem no sentido elevado, da meta ao longo do caminho da transformação hu­mana, do homem soberano, do imortal. O génio não é tão raro como muitas vezes nos quer parecer, e sem dúvida também não é tão corriqueiro como o fazem crer a história da literatura e do universo ou mesmo os jornais. O Lobo das Estepes Harry teria, parece-nos, suficiente génio para tentar a corajosa aventura da transformação humana, em vez de a cada obstáculo se entrin­cheirar, choroso, atrás do seu imbecil Lobo das Estepes.

O facto de homens com possibilidades dessas recorrerem a lobos das estepes e a "duás almas, oh!" é tão surpreendente e confrangedor como o cobarde amor que tantas vezes nutrem pelo burguesismo. Um homem que é capaz de entender Buda, um homem que tem uma presciência dos céus e abismos da hu­manidade, não deveria viver num mundo em que reina o com­mon sense, a democracia e a educação burguesa. Só por cobar­dia o habita, e quando as suás dimensões o oprimem, quando a apertada divisão burguesa se lhe torna demasiado opressiva, atira as culpas para o "lobo" e não quer saber que o lobo por vezes é aquilo que em si tem de melhor. A tudo o que em si al­berga de selvagem, chama lobo e julga mau, perigoso, espanta­lho burguês - mas ele, que afinal crê ser artista e possuir senti­dos apurados, não consegue discernir que para lá do lobo, para trás do lobo, ainda existe em si muita outra coisa, que nem tudo o que morde é lobo, que há ainda a contar as raposas, os dra­gões, os tigres, os macacos e as aves do paraíso. E que todo esse universo, todo esse jardim paradisíaco de figuras belas e hor­rendas, grandes e pequenas, fortes e delicadas, é esmagado e encarcerado pela lenda do lobo, da mesma maneira que o ho­mem verdadeiro que nele existe é esmagado e encarcerado pelo pseudo-homem, pelo burguês.

Imaginemos um jardim, com centenas de árvores das mais variadas, milhares de flores das mais variadas, centenas de fru­tos, de ervas das mais variadas. Se se dá o caso de o jardineiro desse jardim não conhecer outra diferenciação botânica que não seja a de "comestível" e "erva daninha", então não saberá lidar com nove décimos do seu jardim, arrancará as flores mais encantadoras, abaterá as árvores mais nobres ou pelo menos há-de odiá-las e olhá-las de través. Assim age o Lobo das Este­pes para com os milhares de flores da sua alma. O que não cabe nas rúbricas "Homem" ou ," Lobo", isso nem sequer vê. E a quantidade de coisas que atribui ao "Homem"!? Todas as co­bardias, macacadas, idioteiras e mesquinhices, desde que não sejam propriamente bestiais, tudo isso faz caber no humano, do mesmo modo que refere ao lupino tudo o que é força e no­ breza, uni_amente porque ainda não foi capaz de se tornar seu' senhor.

Despeçamo-nos de Harry, deixemo_lo prosseguir sozinho o seu caminho. Se já estivesse entre os imortais, se já tivesse chega­do onde o seu espinhoso percurso parece conduzir, como con­templaria deslumbrado estes avanços e recuós, este ziguezaguear desnorteado e indeciso da sua linha, como sorriria encorajador, reprovador, apiedado e divertido a esse Lobo das Estepes!

 

Quando acabei de ler, lembrei-me que semanas antes, algu­res a meio da noite, tinha rabiscado uns versos assaz estranhos que também tratavam do Lobo das Estepes. Rebusquei no tur­bilhão de papéis da minha secretária atulhada, encontrei e li:

 

Lobo da Estepes sou, errando, errando,

Em volta a neve, na vastidão do mundo,

O corvo na bétula abre asas para voar

Mas nem lebre ou corça vejo para amar!

As corças trazem-me tão enamorado,

Uma que fosse, não mais, desejo ver!

Tomá-la-ia nas mãos, nos dentes,

Oh! Maravilha sem fim, igual não pode haver.

Amá-la-ia de todo o coração,

A sua carne delicada seria meu alimento,

O seu sangue vermelho vivo minha bebida

E depois ulularia solitário pela noite adentro.

Uma lebre só, mais não queria,

Como é doce a sua carne quente na noite fria

Ah! Ter-se-ão apartado para longe de mim

As coisas que dão encanto e sabor à vida?

O pêlo na minha cauda vai sendo grisalho

Os olhos também já me não deixam ver bem

Já há muito morreu a minha esposa amada.

E agora, só e errante, com corças sonho,

Ando só e errante e com lebres sonho,

Ouço o vento soprar na noite de inverno,

De neve sacio a minha goela ardente,

E a minha pobre alma ao diabo entrego.

 

Tinha assim em mãos dois retratos de mim próprio, este úl­timo um auto-retrato em verso tosco, contristado e angustioso como eu próprio, o outro traçado friamente e com foros de su­prema objectividade, visto por um estranho, de fora e de cima, escrito por alguém que de mim sabia mais e no entanto menos do que eu próprio. E esses dois retratos vistos no conjunto, o meu poema desoladamente soluçado e o acutilante estudo de mão desconhecida, um e outro me faziam mal, um e outro ti­nham razão, um e outro pintavam sem meias-tintas a minha mi­serável existência, um e outro mostravam distintamente quão insuportável e insustentável era a minha condição. Esse Lobo das Estepes tinha de morrer, tinha de pôr termo, pela sua pró­pria mão, à sua odiosa existência -ou então, fundido no fogo mortal de uma renovada inspecção a si próprio, transformar-se, arrancar a máscara e recriar um novo eu. Ah! Este processo não me era novo nem desconhecido, conhecia-o bem, já várias vezes o experimentara nos estádios de supremo desespero. De cada vez essa tumultuosa experiência desfizera em pedaços. o meu eu de então, de cada'vez as forças do abismo o tinham abalado e destruído, de cada vez uma fracção de vida particularmente ca­ra, acarinhada, revoltara-se, infiel, e abandonara-me. Um dia perdera a minha reputação burguesa juntamente com a minha fortuna, e tivera de aprender a renunciar à estima daqueles que até então me tiravam o chapéu. Depois, uma outra vez, a minha vida familiar despedaçara-se de um dia para o outro; a minha mulher, que vinha sofrendo de perturbações mentais, expulsa­ra-me de casa e do bem-estar, o amor e a confiança tinham-se subitamente transformado em ódio e luta mortal, e eu partira sob o olhar compadecido e despeitado dos vizinhos. Aí começa­ra o meu isolamento. E mais tarde, amargos e difíceis anos mais tarde, quando eu, na mais rigorosa solidão e no mais penoso egocentrismo, já havia construído uma vida nova, um ideal as­cético-espiritual, quando de novo atingira uma certa tranquili­dade, uma certa elevação na vida, entregue ao exercício abs­tracto do espírito e a uma meditação estritamente regulamenta­da, mais uma véz essa outra forma de vida se desmoronara e perdera bruscamente o seu sentido nobre e sublime. De novo me vira arrastado por esse mundo fora em viagens desnorteadas e esgotantes, e novos sofrimentos se acumularam, novas culpas. E de cada vez o arrancar de uma máscara, o desmoronar de um ideal haviam sido precedidos daquele vazio e silêncio sinistros, daquele estrangulamento mortal, daquele isolamento e clausu­ra, daquele inferno morno e desolado do desespero, vazio de amor, que agora tinha de atravessar mais uma vez.

A cada um desses abalos da minha vida, acabara por ganhar alguma coisa, há que dizê-lo, em liberdade, espírito e profundi­dade, mas não menos em solidão, incompreensão dos outros, frieza. Na perspectiva burguesa, a minha vida, de convulsão em convulsão, fôra um ininterrupto declínio, um distanciamento cada vez maior do normal, do permitido, do são. Com o correr dos anos fizera-me homem sem profissão, sem família, sem pá­tria, encontrava-me fora de todos os grupos sociais, só, depre­ciado por muitos, amado por ninguém, em permanente e acer­bo conflito com a opinião pública e a moral; e embora ainda vi­vesse no quadro burguês, era um estranho no seio desse mundo, pela minha maneira de sentir e de pensar. Religião, pátria, fa­mília, Estado, estavam desvirtuados aos meus olhos e já nada tinham a ver comigo, o pedantismo da ciência, das artes, das capelinhas, enojava-me; as minhas concepções, o meu gosto, todo o meu pensamento, com os quais outrora brilhara em ho­mem talentos o e popular, eram agora negligenciados e violenta­dos, e inspiravam suspeita. Talvez, em todas as minhas tão do­lorosas mutações, tivesse ganho alguma coisa, um tudo-nada imperceptível e imponderável - mas bem caro tivera de o pa­gar, e de cada vez a minha vida se tornara mais dura, mais difí­cil, mais solitária, mais ameaçada. Na verdade, não tinha razão para desejar continuar por esse caminho, que me conduzia a at­mosferas sempre mais rarefeitas, como o fumo na Canção de Outono de Nietzsche.

Oh! sim, conhecia bem essas experiências, essas mutações que o destino reservava para os seus filhos difíceis, mais delica­dos - conhecia-as, e bem demais. Conhecia-as como um caça­dor ambicioso mas mal-sucedido conhece as etapas de uma ba­tida, como um velho jogador da Bolsa conhece os estádios da especulação, do ganho, da incerteza, da vacilação, da bancar­rota. Teria realmente de voltar a viver tudo isso? Todo aquele sofrimento, toda aquela louca privação, todas aquelas revela­ções da baixeza e indignidade do meu próprio eu, todo aquele terrível receio da derrota, todo aquele temor da morte? Não se­ria bem inteligente, bem mais simples evitar a repetição de tan­tos sofrimentos, sumir? Claro que era mais simples e mais inte­ligente. Fossem quais fossem as afirmações do folheto do Lobo das Estepes sobre os "suicidas", ninguém me pode privar do prazer de me poupar a mim próprio, com a ajuda de gás de car­vão, duma lâmina da barba ou duma pistola, a repetição de um processo cuja dor amarga eu tivera de saborear com suficiente frequência e intensidade. Não, diabos me levassem se havia al­gum poder no mundo capaz de me exigir que passasse mais uma vez pelos mortais arrepios de um encontro comigo próprio, por uma re-criação, uma nova incarnação, cujo fim e objectivo não era a paz e a tranquilidade, mas sempre uma nova auto-destrui­ção, uma nova auto-formação. O suicídio talvez fosse estúpido, cobarde e miserável - a verdade era que para sair desta forja de sofrimentos todo e qualquer caminho, mesmo o mais igno­minioso, era profundamente desejável, ali já não havia espectá­culo de nobreza e heroísmo, ali via-me, sim, colocado diante da escolha simples entre uma dor ligeira e efémera e um sofrimento infinito, inconcebivelmente lancinante. Já bem bastava as vezes que na minha vida tão difícil, tão louca, fizera de nobre Don Quixote, preferira a honra ao conforto e o heroísmo ao bom senso. Mais não, acabou!

A manhã entrava já, ensonada ainda, pela vidraça, manhã plúmbea, amaldiçoada, de um dia chuvoso de inverno, quando finalmente me deitei. Levei para a cama a minha decisão. Mas eis que, no instante derradeiro, na última fronteira da consciência, no momento de adormecer, se acende reluzente diante de mim, no espaço de um segundo, aquela estranha passagem do livrinho do Lobo das Estepes onde se falava dos "imortais", arrastando consigo a perturbadora lembrança dos vários ins­tantes, um dos quais ainda bem recente, em que me havia senti­do bastante próximo dos imortais para saborear, num acorde de música antiga, toda a sua sabedoria fria, clara, duramente ri­sonha. Irrompeu, cintilou, desvaneceu-se; e, pesado como uma montanha, o sono veio assentar na minha fronte.

Acordando por volta do meio-dia, logo reencontrei em mim a situação esclarecida, a brochura lá estava abandonada na me­sa-de-cabeceira, o meu poema também, e do emaranhado da minha vida recente, a minha decisão contemplava-me, esmeril~

a­da e solidificada por uma noite de sono, com afável frieza. Não havia pressa, a minha resolução de morrer não era capricho de uma hora, era fruto maduro, apurado, lentamente criado e en­chido e suavemente embalado pelo vento do destino, cujo pró­ximo sopro o faria cair.

Tinha na minha farmácia de viagem um excelente remédio para acalmar as dores, um preparado de ópio especialmente forte, cujas delícias só raramente me permitia gozar, e de que muitas vezes me privava meses a fio; só tomava essa droga pesa­damente estupefaciente quando as dores físicas me torturavam até mais não poder suportar. Infelizmente, não servia para o suicídio, já o tinha experimentado uma vez, muitos anos atrás. Numa época em que mais uma vez me vira assoberbado pelo desespero, ingerira uma dose maciça, suficiente para matar seis pessoas, mas mesmo assim não bastara para me matar a mim. Adormeci realmente, e mantive-me algumas horas em total en­torpecimento, mas depois, para terrível desilusão minha, fui se­mi-despertado por violentas convulsões do estômago, vomitei, sem retomar inteiramente consciência, todo o veneno, e voltei a adormecer, para acordar de vez a meio do dia seguinte em atroz desembriaguês, com o cérebro vazio e causticado, e quase des­memoriado. Além de um período de insónia e violentas dores de estômago, nada ficou dos efeitos do veneno.

Estava, portanto, posto de lado esse meio. Mas moldei a mi­nha decisão da seguinte forma: logo que as coisas chegassem ao ponto em que tivesse de recorrer mais uma vez a esse opiáceo, ser-me-ia permitido saborear, não aquele breve paliativo, mas a grande libertação, a morte, e uma morte que fosse segura, cer­ta, por bala ou lâmina de barbear. Assim se esclarecia a situa­ção - esperar até ao aniversário dos meus cinquenta anos, se­gundo a espirituosa receita da brochura do Lobo das Estepes, parecia-me de facto demasiado longo, ainda faltavam dois anos até lá. Fosse daí a um ano, um mês, ou já amanhã, isso não im­portava - a porta estava aberta.

 

Não posso dizer que essa "decisão" tenha modificado signi­ficativamente a minha vida. Tornou-me um pouco mais indife­rente às adversidades, um pouco mais despreocupado no consu­mo do ópio e do vinho, um pouco mais curioso perante as fron­teiras do suportável - mais nada. As outras experiências dessa noite, essas sim, tiveram em mim uma ressonância mais forte. Voltei a ler várias vezes o tratado do Lobo das Estepes, ora com abandono e gratidão, como se soubesse o meu destino destra­mente guiado por um mágico invisível, ora com escárnio e des­prezo contra o rudimentar prosaísmo do estudo, que me pare­cia não entender minimamente a atmosfera e a tensão particular da minha vida. O que lá se escrevia sobre os lobos das estepes e os suicidas talvez fosse interessante, inteligente, aplicava-se a uma espécie, a um tipo, era uma abstracção engenhosa; mas não me parecia que a minha pessoa, a minha verdadeira alma, o meu destino próprio e único pudessem prender-se em malha tão grosseira.

O que mais me preocupava, no entanto, era aquela alucina­ção ou visão junto ao muro da igreja, a auspiciosa predição da­quela insígnia luminosa e dançante, que coincidia com alusões do tratado. Muito me fôra então prometido, as vozes daquele mundo estranho tinham espicaçado violentamente a minha cu­riosidade, muitas vezes meditava em tudo aquilo, recolhido e mergulhado horas a fio nos meus pensamentos. E o aviso da­queles dizeres falava-me com clareza sempre maior: "Não para todos!" e "Só para loucos"! Eu devia realmente estar louco, e bem afastado de "todos", se aquelas vozes me atingiam, se aqueles mundos me falavam. Meu Deus!, então eu não estava há muito retirado e bem retirado da vida do comum da gente, da existência e do pensamento dos normais, não estava há mui­to segregado e demente? No entanto, no meu íntimo eu enten­dia muito bem o apelo, a incitação à loucura, ao desapego da razão, dos escrúpulos, do burguesismo, ao abandono ao mun­do flutuante e sem lei da alma e da fantasia.

Um dia, depois de mais uma vez ter percorrido em vão as ruas e as praças em busca do homem da tabuleta, e de várias ve­zes me ter abeirado subrepticiamente do muro com a porta invi­sível, ali me atardando à espreita, cruzei-me, lá para os subúr­bios de Martin, com um cortejo fúnebre. Contemplando os ros­tos dos enlutados que seguiam em passo miúdo, maquinal, atrás do carro funerário, pensei: Haverá nesta cidade, neste mundo, alguma pessoa cuja morte eu chorasse? Ou alguma pes­soa para quem a minha morte significasse alguma coisa? Estábem, havia a Erika, a minha amante: mas há muito tempo que a nossa ligação andava frouxa, raramente nos víamos sem en­trar em desavença, e nesta altura nem sabia onde parava. Uma vez por outra vinha ter comigo, ou ia eu vê-la, e como somos ambos pessoas solitárias e difíceis, algures irmanadas na alma e na doença, perdurava apesar de tudo um elo entre nós. Mas não iria ela talvez respirar fundo e sentir um grande alívio ao saber da minha morte? Não sabia dizer, como também nada sabia da segurança dos meus próprios sentimentos. Tem de se viver no normal e no possível, para se conseguir descortinar um pouco essas coisas.

Entretanto, num capricho do momento, tinha-me associado ao cortejo fúnebre, seguindo atrás dos enlutados; em passo ca­denciado, até ao cemitério, um cemitério moderno, cimentado, patenteado, com crematórios e todos os requintes. O nosso de­funto, porém, não foi incinerado, o caixão foi descarregado diante de uma cova simples e lisa; e pus-me a observar o padre e os outros abutres, funcionários de uma agência funerária, nas suas lides, a que procuravam dar a aparência de alta solenidade e grande luto, caindo no ridículo pela sobre-dose de encenação, embaraço e falsidade; vi o uniforme negro do ofício esvoaçan­do em seu redor, e vi como se esforçavam por dar o tom à enlu­tada assembleia, obrigando-a a vergar o joelho diante da majes­tade da morte. Esforço inútil, ninguém chorava, o morto pare­cia não fazer falta a ninguém. Também não havia jeitos de des­pertar na assistência o pendor devoto, e quando o celebrante, ao dirigir-se-lhe, repetia "Caríssimos irmãos em Cristo", todas as silenciosas caras comerciais daqueles negociantes e mestres­-padeiros, e respectivas mulheres, se recolhiam em forçada gra­vidade, embaraçadas e hipócritas, e movidas por nenhum outro desejo que não o de ver o mais rapidamente possível terminada aquela incomodativa cerimónia. Lá terminou, finalmente; os dois irmãos em Cristo mais à frente apertaram a mão ao ora­dor, esfregaram os sapatos no tufo de relva mais próximo, para limpar a lama húmida onde tinham depositado o seu morto, os rostos retomaram prontamente a expressão humana e costu­meira, e um deles pareceu-me de repente familiar - lembrava­-me o homem que naquela noite trazia a tabuleta e me tinha passado para a mão o folheto.

No momento em que julguei reconhecê-lo, voltou-se para o outro lado, baixou-se, levou as mãos às calças pretas, enrolan­do-as judiciosamente acima dos sapatos, e afastou-se rapida­mente, com um guarda-chuva enfiado debaixo do braço. Corri atrás dele, apanhei-o e fiz-lhe um sinal de cumprimento com a cabeça, mas ele parecia não me reconhecer.

"Hoje não há sessão da noite?" perguntei, tentando ao mesmo tempo piscar-lhe o olho, como fariam entre si os cúm­plices de um mesmo segredo. Mas longe, demasiado longe ia o tempo em que esses exercícios mímicos me eram corriqueiros, e eu, que com o meu jeito de viver já quase desaprendera a fala, eu próprio senti que apenas arrancava um esgar idiota.

"Sessão da noite?" resmungou o homem, olhando-me nos olhos com distância. "Se está com ânsias, homem, então é ir ao Águia Negra!" .

Na realidade, já não estava seguro de que fosse mesmo ele. Decepcionado, retomei o meu caminho, sem direcção certa, pa­ra mim não havia metas, aspirações ou obrigações. A vida era de um amargor repugnante, sentia que a náusea de há muito crescente atingia o seu cúmulo, sentia a vida rejeitar-me e ati­rar-me fora. Enfurecido, ia percorrendo a cidade cinzenta, on­de tudo parecia cheirar a terra molhada e enterro. Não, ne­nhum daqueles pássaros da morte haveria de se aproximar da minha sepultura, com a sua sotaina e o seu ciciar sentimental dos irmãos em Cristo. Oh!, para onde quer que olhasse, para onde quer que voltasse os meus pensamentos, em parte alguma me esperava uma alegria, um apelo, em parte alguma sentia uma atracção; tudo tresandava a desgaste fétido, a satisfação assim-e-assim fétida também, tudo estava velho, murcho, car­regado, lasso, esgotado. Meu Deus, como era possível? Como podia eu ter chegado a esse ponto, eu, o adolescente alado, o poeta, o amigo das musas, o peregrino do mundo, o idealista inflamado? Como se tinham apoderado de mim, assim tão len­ta e sorrateiramente, aquela paralisia, aquele ódio contra mim e contra todos, aquele bloqueamento de todos os sentimentos, aquele humor agreste profundo ,e despeitoso, aquele antro de imundície do coração esvaziado e do desespero?

Passando diante da biblioteca, veio ao meu encontro um jo­vem professor com quem eu de vez em quando conversava e que visitara mesmo várias vezes em sua casa, da minha última estadia na cidade, anos atrás, para falarmos das mitologias orientais, assunto que na altura me interessava muito. O letrado vinha em sentido contrário, hirto e um pouco míope, e só me reconheceu quando eu já estava quase a cruzá-lo. Avançou pa­ra mim com grande entusiasmo, e eu, na deplorável condição em que me encontrava, quase lhe fiquei grato por isso. Estava realmente satisfeito, e mais animado ficou, recordando-me por­menores das nossas conversas de outrora, assegurando-me que devia muito às minhas pistas inspiradoras e que pensara muitas vezes em mim; raramente tivera desde então com os colegas dis­cussões tão vivas e tão frutuosas. Perguntou-me há quanto tem­po estava na cidade (menti, disse: há uns dias) e porque não o tinha ido procurar. Fitei aquele homem tão amável no seu rosto erudito e prazenteiro, achei a cena no fundo algo ridícula, mas saboreei, como cão esfaimado, a migalha de calor, o gole de afeição, o naco de apreço. Enternecido, o Lobo das Estepes, Harry, mostrava os dentes num sorriso, escorrendo-lhe a baba pela goela ressequida; o sentimentalismo vergava-o, contra a sua vontade. E lá continuei zelosamente com os meus expedien­tes de mentira, explicando que só estava de passagem na cidade, por razões de estudo, e que além disso não andava muito bem de saúde, de outra forma naturalmente que o teria ido procu­rar. E quando ele, nessa sequência, me convidou com o maior empenho a jantar e passar o serão em sua casa, aceitei reconhe­cido, e pedi-lhe que mandasse os meus cumprimentos à esposa; com todo aquele discurso pressuroso e todos aqueles sorrisos, até me doiam os maxilares do rosto, desabituados já daquele ti­po de esforço. E enquanto eu, Harry Haller, ali estava, na rua, agradavelmente desconcertado e lisonjeado, cortês e atencioso, sorrindo ao rosto míope e prazenteiro daquele homem simpáti­co, o outro Harry estava ali ao meu lado, mostrando também os dentes num sorriso irónico, ali estava sorrindo e dizendo pa­ra consigo que tinha um irmão esquisito, desaparafusado e hi­pócrita como ninguém, que ainda dois minutos antes arrega­nhara furiosamente os dentes a todo esse mundo amaldiçoado, e agora, ao primeiro gesto, ao primeiro contacto inofensivo de um bom e respeitável burguês, acorria comovido e sobre-zeloso com sins e ámens, espojando-se como um porco a saborear um pouquinho de benevolência, estima e simpatia. E ali estavam os dois Harrys, ambos figuras extremamente antipáticas, diante do bom professor, escarnecendo-se, observando-se, cuspindo um no outro, e, como sempre em situações dessas, interrogando-se se aquele egoísmo sentimental, aquela falta de carácter, aquela insalubridade e duplicidade de sentimentos seriam pura estupidez e fraqueza humana, sorte comum a todos os homens, ou se pelo contrário não passariam de apanágio pessoal do Lo­bo das Estepes. Se aquela sujeira era comum a todos os ho­mens, poderia lançar sobre ela, com renovada violência, o meu desprezo universal; se não passava de fraqueza individual mi­nha, então teria ensejo para uma orgia de auto-desprezo.

A disputa entre os dois Harrys quase me fez esquecer o pro­fessor; subitamente, ele tornava-se-me pesado, e logo tratei de me desembaraçar dele. Durante muito tempo segui-o com os olhos, vendo-o afastar-se ao longo da desnudada avenida, com o passo bonacheirão e algo cómico de um idealista, de um cren­te. A batalha clamava com ímpeto dentro de mim, e ao mesmo tempo que mecanicamente dobrava e estendia os dedos entor­pecidos, lutando contra a gota que dissimuladamente se insi­nuara, ia confessando a mim próprio que me tinha deixado en­redar, e estava agora a braços com um convite para jantar às se­te e meia mais os deveres de boa educação, o paleio científico e a contemplação da harmonia familiar alheia. Enraivecido, vol­tei para casa, enchi um copo com água e conhaque, tomei numa golada as minhas pílulas da gota, estendi-me no divã e tentei põr-me a ler. Quando finalmente tinha conseguido avançar um pouco na minha Viagem de Sofia de Memel à Saxónia, delicio­so alfarrábio do século XVIII, de novo me veio à ideia o convi­te, e capacitei-me de que tinha a barba por fazer e estava por ar­ranjar. Sabe Deus porque é que eu me tinha metido numa coisa daquelas! Bem, Harry, levanta-te lá, põe o livro de lado, ensa­boa-te, escanhoa-me esse queixo até fazer sangue, veste-te e compraz-te uma vez na vida com os homens! E enquanto me ensaboava, ia pensando na lamacenta e imunda fossa do cemi­tério onde as cordas hoje tinham descido e deposto o desconhe­cido e nos rostos contraídos dos enfadados fiéis, e nem sequer conseguia rir. Parecia-me que ali, naquela cova suja, nas pala­vras idiotas e embaraçadas do oficiante, nas expressões idiotas e embaraçadas da assistência em luto, no aspecto desconsolador de todas as cruzes e placas de zinco e mármore, em todas aque­las flores artificiais de arame e vidrilhos - ali não acabava só o desconhecido, ali acabaria eu também, amanhã ou depois-de­-amanhã, soterrado, enfiado na imundície sob a presença inco­modada e a impostura dos circunstantes; não, tudo acabava as­sim, todas as nossas aspirações, toda a nossa cultura, todas as nossas crenças, toda a nossa alegria de viver e a nossa vivacida­de, que tão enfermas andavam e em breve também ali seriam le­vadas a enterrar. O nosso mundo civilizado era um cemitério, onde Jesus Cristo e Sócrates, Mozart e Haydn, Dante e Goethe não passavam já de meros nomes cegos sobre enferrujadas pla­cas de zinco, rodeados de enlutados incomodados e impostores que muito teriam dado para conseguir ainda acreditar nas pla­cas metálicas que outrora tinham por sagradas, que muito te­riam dado para conseguir pronunciar uma palavra só que fosse, mas honesta e grave, de queixume e desespero perante este mundo naufragado, mas a quem nada restava em contrapartida senão arrastar-se pelas covas de um cemitério com ar e esgar de atrapalhação. Enfurecido, acabei por me cortar no queixo, no mesmo sítio de sempre, e tentei por momentos cauterizar o gol­pe, mas não sem ter de mudar segunda vez o colarinho, que ain­da há pouco tirara da gaveta, e tudo isso sem saber porque o fa­zia, porque não me apeteciaminimanente ir àquele jantar. Mas entretanto, uma fracção de Harry ia encenando de novo uma comédia, dizia para consigo que o professor era um tipo simpá­tico, ansiava nostalgicamente por um pouco de cheiro humano, conversa e sociabilidade, lembrava-se da bela esposa do profes­sor, achava a ideia de uma noite com anfitriões agradáveis no fundo bastante estimulante, e ajudava-me a colar o adesivo in­glês no queixo, a vestir-me e a apertar o nó de uma gravata de­cente, dissuadindo-me suavemente de seguir o meu verdadeiro desejo de ficar em casa. Enquanto isto, eu ia pensando: da mes­ma maneira que eu agora me estou a vestir para sair, visitar o professor e trocar com ele amabilidades mais ou menos falsas, tudo sem realmente o querer, assim também vivem e àgem a maior parte das pessoas, dia a dia, hora a hora, por obrigação e sem realmente o quererem, fazendo visitas, mantendo conver­sas, sentando-se horas a fio em repartições e escritórios, tudo compulsiva, mecânica e involuntariamente, quando afinal tudo isso podia ser feito com igual resultado por máquinas, ou sim­plesmente deixar de se fazer; e é essa mecânica, em eterno movi­mento, que os impede, como a mim, de olhar criticamente a sua própria vida, de reconhecer e sentir a sua estupidez e a sua insi­piência, a sua questionabilidade de trejeito abominável, a sua miséria e solidão desesperadas. Oh!, e têm razão, os homens, infinitamente razão, por viverem assim, por brincarem aos seus joguinhos, por correrem atrás dos seus valores, em vez de se voltarem contra a mecânica acabrunhante para olhar, desespe­rados, no vazio, como eu, homem descarrilado, o faço. Se eu nestas folhas às vezes desdenho e escarneço os homens, que nin­guém julgue que estou a atirar a culpa para os outros, que os quero incriminar ou responsabilizar pela minha miséria pes­soal! Eu, no entanto, que já fui tão longe e me abeirei dos limi­tes da vida, onde ela se precipita em escuridão sem fundo, faço mal e minto quando tento fazer crer aos outros e a mim próprio que aquela mecânica ainda me rege a mim também, que conti­nuo a pertencer ao delicioso mundo infantil da eterna brinca­deira.

A noite, como prenunciavam todos estes considerandos, foi maravilhosa. Aproximando-me da casa do professor meu co­nhecido, detive-me um momento, a contemplar as janelas. Ali vive este homem, pensei eu, ali vai prosseguindo, ano após ano, o seu trabalho, lendo e comentando textos, procurando concor­dâncias entre as mitologias da Índia e do Próximo Oriente e comprazendo-se nisso, pois acredita no valor da sua actividade, acredita na ciência, de que é servidor, acredita no valor do sa­ber puro e simples do armazenamento, pois tem fé no progres­so, no desenvolvimento. Não viveu a guerra, nem o abalo das traves-mestras do pensamento instalado com Einstein (isso, pensa ele, só aos matemáticos diz respeito); não se apercebe de como em sua volta se prepara a próxima guerra, considera odiá­veis judeus e comunistas; é um garoto simpático, contente e despreocupado, que se toma a si próprio a sério; é bem digno de inveja. Empertigando-me num sacão, avancei para a porta; atendeu-me uma criada de avental branco e, não sei por que pressentimento, anotei com atenção o lugar onde deixou o meu chapéu e o meu casaco; fui conduzido a uma sala bem ilumina­da e aquecida e solicitado a aguardar e, em vez de recitar uma prece ou passar pelo sono, deixei-me ir atrás de um impulso frí­volo e agarrei no primeiro objecto que me veio à mão. Era uma pequena gravura emoldurada que tinha pois o assente na mesa redonda, e que um suporte rígido de cartão mantinha inclinada. A imagem representava o poeta Goethe, velho imponente de personalidade, de cabeleira sublime e rosto formosamente mol­dado, onde não faltava nem o afamado olhar de fogo nem o traço de solidão e tragédia, que o artista vincara com especial empenho, um pouco ao sabor cortesão. Tinha conseguido em­prestar ao diabólico ancião, sem prejuízo da sua profundidade, um ar algo professoral ou mesmo teatral de domínio e integri­dade, esboçando com tudo isso uma figura de velho francamen­te atraente, que embelezaria qualquer morada burguesa. Possi­velmente, a imagem não seria mais idiota que todas as do seu género, todos aqueles encantadores apóstolos, salvadores, he­róis, génios do espírito e homens de Estado, produzidos por ar­tífices diligentes; aquela irritação talvez adviesse apenas de uma qualquer pretensão de virtuosismo que exalava; fosse como fos­se, aquela representação satisfeita e presumida do velho Goethe desde logo embateu comigo, chocante como uma dissonância fatal, mostrando-me que eu estava deslocado ali. Ali era lugar de velhos mestres e grandes nomes nacionais alindadamentees­tilizados, não de lobos das estepes.

Se o dono da casa tivesse entrado nesse momento, talvez eu, invocando quaisquer pretextos aceitáveis, tivesse logrado fazer uma retirada. Mas quem apareceu foi a sua mulher, e eu aban­donei-me à minha sorte, embora adivinhasse desastre. Cumpri­mentamo-nos, e novas e fortes dissonâncias se vieram juntar àinicial. Começou por me felicitar pelo meu bom aspecto, estan­do eu perfeitamente ciente, demasiado até, de quanto envelhe­cera desde o nosso último encontro; já quando me apertara a mão as dores nos dedos tolhidos pela gota mo tinham sinistra­mente recordado. E mais, depois perguntou-me como passava a minha cara esposa, e tive de lhe confessar que ela me tinha dei­xado e que estávamos divorciados. Ficamos ambos aliviados quando o professor entrou. Cumprimentou-me também efusi­vamente, e logo a falsidade e comicidade da situação encontraram a sua expressão mais pitoresca.

Trazia na mão um jornal que assinava, órgão do partido militarista e acirrador da guer­ra, e depois de me ter estendido a mão, apontou para o papel e contou-me que algures na prosa vinha qualquer coisa sobre um homónimo meu, um publicista Haller, que devia ser um tipo as­queroso, sem qualquer espécie de patriotismo: tinha feito pou­co do Kaiser e manifestara frontalmente a opinião de que a sua pátria em nada era menos responsável pelo desencadear da guerra que os países inimigos. Que patife, hein! Vá lá que o tipo tinha levado o que merecia, a redacção tinha eliminado o para­sita levando-o ao pelourinho. Mas breve se mudou de assunto, mal o meu anfitrião se apercebeu de que aquele não me interes­sava; e tanto ele como ela estavam longe de admitir sequer que aquele monstro pudesse estar ali sentado diante deles; mas as­sim era, o monstro era eu. Oh!, mas para quê armar barulho e desassossegar as pessoas?! Interiormente, larguei a rir, mas dei por perdida a esperança de ainda experimentar nessa noite fosse o que fosse de agradável. Recordo com nitidez esses momentos. Nesse mesmo instante em que o professor falava do traidor à pátria Haller, adensava-se em mim aquela terrível sensação de abatimento e desespero que em mim tomara forma desde a cena do funeral, e que desde então não deixara de crescer, fazendo­-se crispação horrenda, dor corporal a nascer no baixo ventre, presságio estrangulante e angustioso do destino. Sentia qual­quer coisa à minha espreita, um qualquer perigo a espiar-me pe­las costas. Felizmente, vieram anunciar que o jantar estava ser­vido. Passamos à sala ao lado, e enquanto eu incansavelmente me esforçava por dizer ou perguntar qualquer coisa de inofensi­vo, ia comendo mais do que me era habitual, e de minuto para minuto me sentia pior. Meu Deus!, pensava eu a cada instante, porque é que havemos de nos esforçar desta maneira?! Percebia nitidamente que os meus anfitriões também não se sentiam na­da à vontade, e que aquela sua animação era forçada, ou por­que a minha presença os tolhesse, ou porque os humores na ca­sa não andassem de feição. Perguntavam-me coisas e mais coi­sas para as quais não havia resposta franca, e em breve eu esta­va enterrado até ao pescoço na mentira, e lutando a cada pala­vra contra a repulsa. Finalmente, em manobra de diversão, co­mecei a falar do enterro a que assistira horas antes. Mas não en­contrava o tom certo, os meusanseios de humor saíam gorados e só realçavam o mal-estar, o abismo cavava-se mais entre nós, dentro de mim o Lobo das Estepes arreganhava os dentes, sar­cástico; e na hora da sobremesa já estávamos os três profunda­mente silenciosos.

Voltamos à primeira sàla para tomar o café e os licores; tal­vez isso nos fizesse recobrar os ânimos. Mas eis que o príncipe dos poetas se vem colocar de novo diante dos meus olhos, em­bora tivesse sido retirado da cena e posto de lado numa cómo­da. Não conseguia alhear-me dele, e, não sem ter ouvido dentro de mim vozes de advertência, voltei a pegar-lhe e lancei-me em confronto com ele. Estava como que enfrenesiado pela sensa­ção de que a situação se tornava insuportável, de que agora ti­nha de conseguir, das duas uma, ou aquecer e arrebatar os meus anfitriões, afinando-os pelo meu tom, ou então desenca­dear uma explosão que pusesse termo àquilo tudo:

"Esperemos", comecei, "que Goethe não tivesse realmente este aspecto! Sim, toda esta presunção, esta pose de nobreza, esta dignidade a fazer olhinhos às reverências presentes, e por baixo da capa de virilidade, este mundo de sentimentaleira ado­rável! Está bem que se possa ter muitas coisas contra ele, eu próprio me volto muitas vezes contra este velho petulante; ago­ra, representá-lo assim, não, francamente, é ir longe demais".

A dona da casa, com uma cara de profunda aflição, deitou o café nas chávenas e saiu precipitadamente, ao que o marido me revelou, meio embaraçado, meio censurador, que o retrato de Goethe era pertença da esposa e que ela lhe tinha uma estima muito especial. "E mesmo que objectivamente você tivesse ra­zão, do que aliás duvido, isso não lhe dava o direito de se expri­mir de uma maneira assim tão crua" .

"Tem toda a razão", confessei. "Infelizmente é um hábito, um vício meu, isto de me decidir sempre pela expressão mais crua que encontro - o que de resto Goethe também fazia, nos seus momentos felizes. É verdade que este Goethe de salão, to­do doçura e lugar-comum, nunca teria empregado uma expres­são crua, genuína, espontânea. As minhas desculpas, a si e à sua mulher - faça o favor de lhe dizer que sou esquizofrénico. E aproveito para lhe apresentar as minhas despedidas; se me dá licença, retiro-me".

O embaraçado anfitrião não deixou de levantar ainda algu­mas objecções, mais uma vez foi buscar as nossas antigas con­versas, tão interessantes, tão vivas, aquelas minhas especula­ções sobre Mithra e Krischna, que tão profunda impressão lhe tinham causado... e estava na esperança de que hoje mais uma vez... Enfim, por aí adiante. Agradeci-lhe e disse que aquelas palavras eram muito simpáticas da sua parte, mas que infeliz­mente, tanto o meu interesse por Krischna, como o meu gosto pelos diálogos científicos, se tinham evaporado completamen­te; que eu ali naquele espaço de tempo já lhe tinha mentido umas poucas de vezes; para começar não tinha chegado à cida­de há dias, mas há muitos meses, só que vivia muito fechado so­bre mim e já não era homem para frequentar as melhores casas, porque antes de mais andava sempre de mau-humor e cheio de gota, e em segundo lugar quase sempre bêbado. E mais - para

pôr os pontos nos iis e fazer tábua rasa daquilo tudo, e pelo me­nos não me ir embora como mentiroso, tinha de afirmar ao meu caro professor que no meio daquilo tudo ele também me ti­nha ofendido profundamente. Tinha feito sua a atitude estúpi­da e tacanha daquele jornal reaccionário para com as opiniões de Haller, digna de um oficial na reserva mas não de um sábio. Esse "tipo asqueroso", esse sem-pátria chamado Haller, não era outro senão eu, e seria melhor para o nosso país e para o mundo se ao menos as poucas pessoas capazes de pensar se pro­nunciassem pela razão e pelo pacifismo, em vez de se lançarem como cegos e possessos numa nova guerra. E pronto, com aquela me ia.

Levantei-me, despedi-me de Goethe e do professor, arran­cando de fugida as minhas coisas do cabide da entrada e saíporta fora. Perfidamente regozijante, o lobo uivava alto e bom som na minha alma, desenrolava-se entre os dois Harrys tumul­tuoso confronto. Porque aquela desagradável reunião noctuuma, desde logo me apercebi, tinha para mim significado bem mais profundo que para o indignado professor; para ele não passava de uma desilusão, um ligeiro aborrecimento, ao passo que para mim era um derradeiro fracasso, uma derradeira inva­são, era o meu adeus ao mundo burguês, moral, erudito, era uma vitória total do Lobo das Estepes. E era uma despedida co­mo desertor e derrotado, uma declaração de falência perante mim mesmo, uma despedida desconsolada, sem superioridade, sem humor. Dizia adeus ao meu mundo, à minha pátria antiga, ao burguesismo, à moral e à erudição, da mesma maneira que o homem com úlcera de estômago volta as costas ao porco assa­do. Enfurecido, ia correndo pela rua sob os candeeiros de gás, cheio de uma tristeza de morte. Mas que dia aquele, tão deses­perante, tão mau, tão humilhante, de manhã à noite, desde o cemitério à cena em casa do professor! Mas para quê? Porquê? Fazia algum sentido lançar sobre mim o peso de mais dias as­sim, engolir mais petiscos daqueles? Não! E pronto, nessa noite punha um ponto final na comédia. Vai para casa, Harry, e dá­-me um bom corte nessa garganta! Já esperaste tempo demais por isso.

Corria de um lado para o outro pelas ruas fora, possesso de miséria. Claro que tinha sido estupidez minha pôr-me a dene­grir o adorno de salão daquela boa gente, estupidez e maldade, mas não podia, é que não podia mesmo fazer doutra maneira, já não podia suportar aquela vida doméstica, hipócrita e bem­-comportada! E se, por outro lado, aparentemente, também jánão conseguia suportar a solidão, se até a minha própria com­panhia se me tornara indescritivelmente odiosa e repugnante, se me debatia, sufocado, no vácuo do meu inferno, que outra saí­da podia ainda haver? Nenhuma. Ó meu pai e minha mãe, ó cha­ma longínqua e sagrada da minha juventude, ó mil alegrias, tra­balhos e metas da minha vida! Nada disso me ficara, nem mesmo o arrependimento, apenas a repulsa e a dor. Parecia-me que nun­ca o simples ter-de-viver me doera tanto como nessa hora.

Entrei numa tasca miserável dos arrabaldes para descansar um instante, bebi água com conhaque e continuei a minha corre­ria, perseguido pelo diabo, subindo e descendo as ruelas abrup­tas e sinuosas da cidade antiga, atravessando as avenidas e a pra­ça dos caminhos de ferro. Partir!, pensei; entrei na estação, cra­vei os olhos nos horários afIxados pelas paredes, bebi uns goles de vinho e procurei reflectir. E diante dos meus olhos vi erguer­-se, cada vez mais próximo, cada vez mais nítido, o fantasma que eu temia. Era o regresso a casa, era voltar ao meu apartamento, era ter de me quedar em face do desespero! Mesmo que conti­nuasse correndo horas a fio por essas ruas fora, não haveria de escapar-lhe, acabaria sempre diante da minha porta, da mesa com os livros, do divã com a fotografia da minha amante por ci­ma; não escaparia ao momento em que teria de sacar da lâmina da barba e cortar a garganta. A imagem desenrolava-se sempre mais nítida diante dos meus olhos; com igual nitidez e o coração a bater desenfreadamente, eu ia sentindo o terror dos terrores: o terror da morte. Embora não descortinasse nenhuma outra saí­da, embora a repulsa, o sofrimento e o desespero se amontoas­sem à minha volta, embora já nada fosse capaz de me prender, de me dar alegria ou esperança, sentia um indizível horror da execução, do último instante, do golpe frio a rasgar a minha própria carne.

Não via caminho algum para fugir ao que temia. Se na luta entre o desespero e a cobardia também vencesse mais uma vez a cobardia, amanhã e todos os dias de novo se ergueria diante de mim o desespero, ainda reforçado pelo desprezo por mim pró­prio. Havia de agarrar na lâmina e voltar a pô-la de lado muitas e muitas vezes, tantas, que um dia acabaria por levar a coisa até ao fim. E se assim era, então mais valia que fosse já! Falava-me a razão a mim próprio, como uma criança assustada, mas a crian­ça não me dava ouvidos, esquivava-se, queria viver. Palpitante, arrastado sem parar pela cidade fora, contornava em largos cír­culos a minha casa, cismando sempre no regresso, e adiando-o sempre. Aqui e ali ficava por instantes pendurado num bar, o instante de um, de dois copos esvaziados, e de novo era empurra­do para mais longe, em amplos círculos em torno do alvo, em torno da lâmina de barbear, em torno da morte. Mortalmente cansado, deixava-me por vezes cair num banco, na borda de uma fonte, num marco de pedra; ouvia bater o meu coração, limpava o suor da testa e de novo me lançava em correria, cheio de um terror mortal, cheio de uma vacilante nostalgia de viver.

Assim me vi arrebatado, a altas horas da noite, em subúr­bio afastado e para mim pouco conhecido, para junto de um bar de cujas janelas se desprendia uma impetuosa música de dança. Por cima da porta, li, ao entrar, uma velha tabuleta: Águia Negra. Lá dentro era noite de festa, balbúrdia e multi­dão de gente, fumo, vapores de vinho e gritaria; na sala trasei­ra dançava-se, aí bramava a música. Fiquei na primeira sala, onde se juntava a gente mais simples, alguns modestamente vestidos; na sala de baile, pelo contrário, distinguiam-se tam­bém silhuetas elegantes. Empurrado pelo aperto, vi-me encur­ralado, junto ao bufete, de encontro a uma mesa diante da qual estava sentada, num banco encostado à parede, uma lin­da e pálida rapariga em vestido de noite fino, fundamente de­cotado, e com uma flor murcha nos cabelos. Ao ver-me apro­ximar, fitou-me com olhar intenso e simpático e chegou-se um pouco para o lado, com um sorriso, a fazer-me lugar.

"Dá licença?" perguntei, sentando-me junto dela. "Claro que dou", disse ela: "Ora vamos lá a saber, quem és tu?"

"Obrigado", tornei eu. "Não posso de maneira nenhuma ir para casa, não posso, não posso, quero ficar aqui ao pé de você, se mo permitir. Não, não posso voltar para casa".

Ela assentiu com a cabeça, como se me atendesse, e ao baixá-la, reparei no caracol que lhe caía sobre a orelha, e vi que a flor murcha era uma camélia. A música chegava-nos ressoante, do fundo, e no bufete as criadas clamavam, apres­sadas, pelas encomendas.

"Fica à vontade", disse ela numa voz que me fez logo bem. "Mas então porque é que não podes voltar para casa"?

"Não posso. Tenho lá uma coisa à minha espera... não, não posso, é demasiado horrível".

"Então isso que espere e tu ficas aqui. Vá, e primeiro limpa­-me esses óculos, que não consegues com certeza ver um palmo à frente. Dá aí o teu lenço, pronto. E o que é que vamos beber? Um Borgonha?"

Limpou-me as lentes. E só então a vi distintamente - o ros­to lívido e firme com a boca desenhada a vermelho sangue, os olhos cinzento-claro, a testa lisa e fria, o caracol curto e teso junto à orelha. Afável e um tudo-nada zombeteira, tomou-me a seu cuidado, mandou vir o vinho, brindou comigo, e entretanto baixou os olhos e espreitou-me os sapatos.

"Meu Deus! Mas por onde é que tens andado? Até parece que vieste a pé de Paris aqui. Não são maneiras de se vir a um baile, que raio!"

Eu disse-lhe que sim e mais que também, tentei uma garga­lhada, deixei-a falar. Agradava-me mesmo, e muito, e isso es­pantava-me, porque tinha sempre evitado aquele género de ra­parigas, olhando-as mesmo com desconfiança. E conduzia-se comigo exactamente como eu nesse momento estava a pedir ­

oh! e desde então sempre e a qualquer hora assim foi comigo. Tratava-me com todo o cuidado de que eu precisava, e com to­da a mofa que eu exigia. Mandou vir uma sanduíche e ordenou­-me que a comesse. Encheu-me o copo e intimou-me a beber um gole, mas não depressa demais. Por fim elogiou a minha do­cilidade.

"És bem-comportadinho" , opinou, encorajadora, "não fa­zes a vida negra a uma pessoa. Vamos apostar que já lá vai mui­to longe o tempo em que pela última vez tiveste de obedecer a alguém?"

            "É verdade, ganhou a sua aposta. Mas como é que adivi­nhou?"

"Não é artimanha nenhuma. Obedecer é. como comer e be­ber - quando se passou muito tempo sem isso, não há nada que o valha. Gostas de me obedecer, não gostas?"

            "Gosto muito. Você sabe tudo".

"Tu facilitas as coisas a uma pessoa. Talvez eu também te pudesse dizer o que é que lá tens em casa à tua espera, amigo, e o que é que te atemoriza assim tanto. Mas se tu próprio o sabes, não precisamos de estar a falar nisso, não é? Que coisa estúpi­da! Ou bem que uma pessoa põe a corda ao pescoço, e então pendura-se mesmo, e pronto, lá há-de ter as suas razões para is­so; ou bem que continua a viver, e então só tem que se preocu­par com a vida. Não há nada mais simples".

"Oh!", exclamei eu, "se fosse assim tão simples como isso...! Sabe Deus aquilo que eu me tenho preocupado já com a vida, e sem ter servido de nada. Pendurar a corda ao pescoço talvez seja difícil, não sei. Mas viver, viver é muito mais difícil! Sabe Deus o difícil que é!"

"Bem, hás-de ver que é canja. O princípio já nós o fizemos, limpaste os óculos, comeste, bebeste. Agora vamos ali dar uma escovadela nas tuas calças e nos teus sapatos, que bem preci­sam. E depois vais dançar um shimmy comigo" .

"Ora vê", exclamei acalorado, "que eu sempre tinha razão! Não há nada que me custe mais do que não poder cumprir uma ordem sua. Mas esta não posso mesmo cumprir. Não sei dançar o shimmy, e a valsa e a polca e essas coisas todas também não, nunca na vida aprendi a dançar. Está a ver agora que nem tudo é assim tão simples como você julga?"

A linda rapariga sorriu com os seus lábios vermelho-sangue, abanando ao mesmo tempo a cabeça firme de cabelo penteado à rapaz. Olhando para ela, julguei ver o retrato de Rosa Kreis­ler, a primeira rapariga por quem me apaixonara em adolescen­te; mas não, a Rosa era amorenada e de cabelo escuro. Não, não. sabia quem é que esta rapariga desconhecida me fazia lem­brar, apenas sabia que era alguma coisa dos meus tempos de tenra juventude, de adolescência.

"Calma aí!", exclamou ela, "calma aí! com que então não sabes dançar, é? De todo? Nem sequer um onestep? E ainda afirmas que só Deus sabe os trabalhos que tens passado na tua vida! Aí aldrabaste, meu menino! E isso é uma coisa que na tua idade já não devias fazer. Sim, como é que podes dizer que tens passado trabalhos com a tua vida, se nem sequer queres dan­çar?? !"

"Pois se não sei! Nunca na vida aprendi".

Ela riu.

            "Mas a ler e a escrever aprendeste, não foi? E a fazer contas

também, e se calhar latim e francês e todas essas coisas, não? Aposto que andaste uns dez ou doze anos pela escola e pelo li­ceu, e quando Deus quer ainda tiraste algum curso superior, e se calhar até te doutoraste e sabes chinês e espanhol. Ou não é assim? Pois é... Mas gastar um bocadinho de tempo e dinheiro numas tantas lições de dança, isso não conseguiste! Pois então!"

"Foram os meus pais", justifiquei-me, "foram eles que me fizeram aprender o latim e o grego e essa coisa toda. Mas apren­der a dançar, não me deixaram, não era moda, lá pelas nossas bandas; eles próprios nunca dançaram" .

Fixou-me com um olhar frio, cheio de despeito, e de novo no seu rosto se desenhava alguma coisa que me lembrava a mi­nha primeira juventude.

"Bem, então os teus pais é que devem ter a culpa! E tu por acaso perguntaste-lhes se esta noite podias ir ao Águia Negra? Perguntaste? Morreram há muito tempo, dizes tu? E então?! Se foi por pura docilidade que em rapaz não quiseste aprender a dançar - seja! Embora não acredite que nessa altura fosses um menino prodígio! Agora, mais tarde - o que é que andaste a fazer esses anos todos?"

"Oh!", confessei, "já nem eu próprio sei bem. Estudei, fiz um bocado de música, li livros, escrevi livros, fiz viagens..."

"Curiosas perspectivas tu tens sobre a vida! Quer dizer, fi­zeste sempre coisas difíceis e complicadas, e as simples nunca aprendeste? Não tinhas tempo? Não tinhas vontade? Como queiras! Graças a Deus não sou tua mãe! Agora, fazer como se tivesses experimentado tudo na vida, e não tivesses lucrado na­da, isso não!"

"Não ralhe comigo!", pedi. "Eu já sei que sou louco". "Olha, olha!, não me venhas com cantigas! Estás longe de ser louco, Senhor Professor, cá para mim até não és louco bas­tante! Para mim pareces mesmo aquela inteligenciazinha idiota de professor. .. Anda, come mais uma sanduíche! Depois contas mais coisas.

Mandou vir mais um pão para mim, deitou-lhe um pouco de sal, barrou-o com outro tanto de mostarda, cortou um canto para si e ordenou-me que comesse. Comi. Teria feito tudo o que me mandasse, excepto dançar. Sabia imensamente bem obedecer a alguém, estar sentado ao lado de alguém que nos fa­zia perguntas, que nos dava ordens, que ralhava connosco. Se o professor ou a mulher tivessem feito isso umas horas antes, muito me teria sido poupado. Não, vendo bem, era melhor as­sim, porque dessa maneira também muito me ficaria vedado!

            "Como é que te chamas, no meio disto tudo?" perguntou ela abruptamente.

            "Harry" .

"Harry? É nome de miúdo! Aliás miúdo é o que tu és,

Harry, apesar duma ou outra mancha grisalha aí nos cabelos. És um miúdo, e devias ter alguém que olhasse um pouco por ti. Da dança nem vou falar mais. Mas esse cabelo, o estado em que anda! Então não tens mulher, não tens querida?"

"Mulher já não tenho, estamos divorciados. Querida, sim, mas não mora cá, vejo-a muito pouco; não nos damos muito bem" .

Ela assobiou de mansinho entre dentes.

            "Está-me cá a parecer que és um senhor muito complica­ do... pois se nenhuma pára ao pé de ti...! Mas diz-me lá: o que é que aconteceu esta noite assim de tão especial, para tu andares para aí a correr que nem louco pelas ruas fora? Andaste na bri­ga com alguém? Perdeste ao jogo?"

Bem, era difícil de explicar.

            "Sabe" , comecei, " no fundo foi uma ridicularia. Eu estava convidado para jantar em casa de um professor - embora eu próprio não o seja -, e no fundo não devia de todo lá ter ido, já não estou habituado a ir assim a casa das pessoas, a estar a conversar numa sala, foi coisa que desaprendi. E já entrei na­quela casa com a sensação de que a coisa não ia correr bem ­

ao pendurar o chapéu, veio-me logo a ideia de que se calhar não tardava muito voltava lá a buscá-lo outra vez. Pois, e depois, na sala, fui dar lá em cima da mesa com uma gravura qualquer, uma gravura idiota, que me irritou..."

"Que gravura? E irritou-te porquê?" interrompeu-me ela.

            "Bem, era uma gravura que representava Goethe - sabe, o poeta Goethe? Mas o retrato não o apresentava tal qual ele foi, na realidade - aliás isso é uma coisa que não se pode saber de todo com exactidão, visto que ele morreu há cem anos. Um pin­tor qualquer moderno lá resolveu embonecá-lo à sua maneira de ver, e o retrato buliu-me com os nervos, ganhei-lhe logo uma aversão terrível - não sei se compreende isto...?!"

"Compreendo muito bem, não te preocupes. Continua!"

            "Já antes eu estava em desacordo com o professor; como quase todos os professores, é um grande patriota e ajudou du­rante a guerra, com todo o empenho, a entrujar o povo - na melhor das boas fés, naturalmente. Ora eu, não; eu sou um ini­migo da guerra. Enfim, é indiferente. Adiante. Vendo bem, eu escusava de me ter posto a inspeccionar o retrato".

"De facto, escusavas".

            "Mas, para já, fazia-me dó, por causa do Goethe, que me é, deixe que lhe diga, muito, muito querido; e depois, o que acon­teceu foi que me pus a pensar... enfim, pensei ou senti mais ou menos isto: aqui estou eu de convívio com as pessoas que consi­dero meus iguais e que julguei que, à minha semelhança, tam­bém haviam de gostar de Goethe e fazer dele uma imagem se­melhante à minha; mas não é assim, têm para aqui esta imagem falseada, doirada, sem gosto nenhum, e acham-na uma maravi­lha, e nem sequer reparam que o espírito desta imagem é exac­tamente o oposto do espírito de Goethe. Acham o retrato es­pantoso, e que achem à vontade - só que, para mim, também logo ali toda a confiança que tinha nessa gente, toda a minha amizade, e todo aquele sentimento de afinidade e solidariedade se esvaem, morrem de vez. Aliás a amizade já de si não era grande. Portanto fiquei furioso, e vi que estava completamente sozinho e que ninguém me entendia. Consegue perceber?".

            "É fácil de perceber, Harry. E depois? Atiraste-lhes a gra­vura a cabeça.

            "Não, pus-me a disparatar, e saí dali para fora, queria ir pa­ra casa, mas...

"Mas aí não havia nenhuma mãezinha para consolar ou ra­lhar com o parvinho do garoto. É mesmo, Harry, quase que me fazes pena, és um pateta, como já não se vê para aí".

Sem dúvida, eu estava ciente disso, ou pelo menos assim jul­gava. Deu-me um copo de vinho a beber. Era realmente uma mãezinha para mim. Entretanto ia-me apercebendo, por instan­tes, de quanto era bonita e jovem.

"Bem", recomeçou ela, "portanto o Goethe morreu há cem anos e o Harry gosta muito dele e faz dele uma ideia mara­vilhosa, dele e do aspecto que ele possa ter tido, e está no seu di­reito, o Harry, não? Mas o pintor, que também delira com o Goethe e faz uma imagem dele à sua maneira, esse não tem esse direito, e o professor também não, e ninguém tem esse direito, porque o Harry não está para aí virado, não suporta isso; e por­tanto toca de disparatar e de se pôr a andar! Se fosse esperto, ria-se pura e simplesmente do pintor e do professor. Se fosse doido, atirava-lhes à cara o seu querido Goethe. Mas como não passa de um garoto pequeno, corre para casa e quer pendurar uma corda ao pescoço... Compreendi muito bem a tua história, Harry. É uma história engraçada. Faz-me rir. Alto, não bebas tão depressa! O Borgonha é para se beber devagar, senão sobe demais. Mas a ti têm de se dizer as coisas todas, como elas são, miúdo!"

Tinha o olhar severo e advertidor de uma governanta de ses­senta anos.

"Oh! sim", pedi, contente, "diga-me tudo, peço-lhe". "O que é que te hei-de dizer?"

"Tudo o que lhe apetecer" .

            "Está bem. Vou-te dizer uma coisa. Há uma hora que me estás a ouvir tratar-te por tu, e continuas a tratar-me por você. Sempre o grego e o latim, sempre o mais complicado que hou­ver!

Se uma rapariga te trata por tu e não te desagrada, então também tu a tratas por tu a ela. Pronto, já aprendeste alguma coisa. Mais: há meia hora que sei que te chamas Harry. Sei, porque to perguntei. Ora tu não queres saber como eu me cha­mo".

"Quero, sim senhora, gostava imenso".

            "Tarde demais, menino! Se um dia nos voltarmos a ver, perguntas-me outra vez. Hoje já não digo. Bem, e agora quero ir dançar" .

Como fizesse menção de se levantar, senti de repente que a minha disposição caía de novo no mais fundo dos abismos, e ti­ve medo que ela se fosse embora e me deixasse sozinho, porque tudo voltaria a ser como dantes. Como uma dor de dentes pas­sageiramente amainada que de súbito reaparece e arde como fo­go, assim voltavam de um momento para o outro o medo e o terror. Oh! Meu Deus, podia eu realmente ter esquecido aquilo que me esperava? Alguma coisa teria mudado?

"Espere!", exclamei, suplicante, "não se vá... não te vás embora! Claro que podes dançar tanto quanto te apetecer, mas não te demores muito, vem outra vez, vem outra vez para aqui! "

Levantou-se numa gargalhada. Tinha-a imaginado mais al­ta, era magra, mas não muito grande. De novo me fez lembrar alguém:.. mas quem? Não havia maneira de descobrir.

" Voltas?"

            "Volto, mas é capaz de demorar um bocado, meia-hora ou mesmo uma hora inteira. Vou-te dizer uma coisa: fecha os olhos e vê se dormes alguma coisa; é disso que estás a precisar" .

Levantei-me para a deixar passar, e ela afastou-se; a sua saia curta aflorou-me o joelho; andando sempre, mirou-se num mi­núsculo espelho de bolso redondo, levantou as sobrancelhas, passou uma minúscula borla de pó-de-arroz pelo queixo e desa­pareceu na sala de baile. Olhei à minha volta: caras estranhas, homens a fumar, cerveja entornada no tampo de mármore, al­gazarra e gritaria por todo o lado, ali adiante a música para dançar. Eu que dormisse, tinha ela dito.

Oh!, querida filha, fa­zes lá ideia do que é o meu sono, mais espantadiço que uma do­ninha! Dormir no meio desta feira, sentado à mesa, entre cane­cas de cerveja a tinir! Sorvi o vinho em goles, tirei um charuto do bolso, olhei em volta à procura de fósforos, mas no fundo não me apetecia nada fumar, e pousei o charuto diante de mim na mesa. "Fecha os olhos", tinha-me ela dito. Sabe Deus onde a rapariga tinha ido buscar aquela voz, aquela voz benéfica e al­go profunda, uma voz maternal. Fazia bem obedecer àquela voz, já o tinha experimentado. Obedientemente, fechei os olhos, encostei a cabeça à parede, sentindo centenas de ruídos violentos a ressoar-me em volta dos ouvidos, sorri à ideia de dormir naquele lugar, resolvi ir até à porta da sala e deitar uma olhadela ao baile - sim, tinha de ver dançar a minha beleza-, mexi os pés por baixo da cadeira, e só então senti sobre mim o infinito cansaço daquela correria desatinada de horas seguidas; e deixei-me ficar sentado. E já o sono me invadia; fiel ao co­mando materno, eu dormia, cheio de avidez e gratidão, e so­nhava, sonhava com uma nitidez e uma beleza que há muito o sonho me não dava. Era assim o sonho:

Eu estava sentado e aguardava numa antecâmara antiqua­da. A princípio apenas sabia que tinha encontro marcado com uma Excelência qualquer, mas depois lembrei-me que era o Sr. de Goethe que me ia receber. Infelizmente, eu não viera ali a tí­tulo meramente privado, mas na qualidade de correspondente de uma revista, isso contrariava-me muito, e eu não conseguia entender por que diabo tinha vindo parar àquela situação. Para mais, andava desassossegado com um escorpião que tinha aca­bado de descobrir e que tentava trepar-me pela perna acima. Tentava livrar-me do escuro reptilzinho sacudindo-me e sacu­dindo-o, mas não sabia onde ele se tinha metido, e não ousava avançar a mão fosse para que lado fosse.

Também não tinha bem a certeza se por engano me não te­riam marcado encontro com Matthisson em vez de Goethe, mas aquele eu confundia no sonho com Bürger, porque lhe atribuia os Poemas a Mol/y. De resto, muito me teria agradado uma en­trevista com Molly, imaginava-a maravilhosa, doce, musical, noctuuma. Ah! se não tivesse estado ali a representar aquela amaldiçoada redacção! O meu mau-humor acirrava-se, e trans­feria-se pouco a pouco ao próprio Goethe, que agora, de um momento para o outro, me despertava todas as críticas e censu­ras possíveis e imaginárias. A audiência prometia ser bonita! O escorpião, esse, embora perigoso e porventura dissimulado al­gures ali bem perto de mim, talvez afinal não fosse tão mau co­mo isso; quem sabe se não teria mesmo em si algo de simpático? Era muito possível que tivesse algo a ver com Molly, que fosse uma espécie de emissário ou animal heráldico seu_ um belo e pe­rigoso brasão da feminilidade e do pecado. Quem sabe se o bi­cho não se chamava Vulpius? Mas um criado abriu de rompan­te a porta, e eu levantei-me e entrei.

estava o velho Goethe, pequenino, muito empertigado, e, bem a condizer, trazia pendurada no seu peito de clássico uma pesada condecoração em estrela. Parecia ainda governar, continuar a dar audiências, continuar a controlar o mundo a partir do seu museu de Weimar. Porque mal pôs os olhos em mim, abanou a cabeça sacudidamente como um velho corvo e falou solenemente: "Bem, vocês, a gente nova, devem estar pouco de acordo connosco e com os nossos esforços, não?".

"É exactamente como diz", respondi eu, siderado pelo seu olhar de ministro. "Nós, a gente nova, realmente não estamos de acordo consigo, velho Senhor. Vossa Excelência é para nós demasiado solene, demasiado vaidoso e cheio da sua pessoa e demasiado pouco sincero. O essencial é capaz de ser isso: é de­masiado pouco sincero".

O velho homenzinho inclinou a cabeça ligeiramente para a frente, e quando vejo aquela boca dura, de trejeito oficial, dis­tender-se num pequeno sorriso e encher-se deliciosamente de vi­da, sinto de repente um baque no coração, porque subitamente vem-me à ideia aquele poema Dammrung senkte sich von oben (1) e realizo que era daquele homem e daquela boca que ti­nham nascido aqueles versos.

 

(1) N. do T.: "Do alto desce o crepúsculo" .

 

No fundo, fiquei completamente desarmado e subjugado, a partir desse momento, e só me apete­cia cair de joelhos diante dele. Mas mantive-me teso e direito, para ouvir daquela boca sorridente estas palavras: "Olha, olha! Então é de insinceridade que me acusam? Mas que termos es­ses! Não quererá explicitar, talvez?"

Claro que queria, queria muito, mesmo.

            "Senhor de Goethe, o Senhor, como todos os grandes espí­ritos, reconheceu e sentiu com agudeza a dubiez, o desespero da vida humana: o esplendor do momento e o seu miserável defi­nhamento; a impossibilidade de pagar um instante sublime do sentimento de outra maneira que não pela canga do dia-a-dia; a ardente nostalgia do reino do espírito defrontada em combate eterno e mortal com o amor igualmente ardente e sagrado pela inocência perdida da natureza; toda esta suspensão, este terrível pairar no vazio e no incerto, esta condenação ao transitório, ja­mais ilimitadamente válido, ao eternamente experimentável e diletante - em suma, toda a ausência de horizontes, todo o desnorteamento e impasse, todo o fervente desespero da humanidade, tudo isso o Senhor conheceu, e confessou mesmo vezes sem conta; e no entanto, com o exemplo da sua vida, pregou o contrário, fez prova de fé e optimismo, encenou perante si pró­prio e perante os outros uma longevidade e um sentido para os nossos esforços espirituais. Rejeitou e abafou o_ confessores do abismo, as vozes da desesperante verdade, em si próprio como em Kleist e em Beethoven. Durante dezenas de anos, quis fazer crer que o armazenamento de saber e de valores, a escrita e compilação de cartas, toda a sua existência senil em Weimar, eram na realidade um meio de eternizar o instante - que afinal não conseguia senão mumificar -; de espiritualizar a natureza - que afinal não conseguia senão estilizar em máscara. É essa a insinceridade que em si censuramos".

            Pensativo, o velho conselheiro privado olhou-me nos olhos, com a boca ainda a sorrir.

            E logo, para espanto meu, perguntou: "Então a Flauta Má­gica de Mozart deve-lhe parecer odiosa ao máximo, não?"

E antes que eu pudesse protestar, continuou: "A Flauta Mágica apresenta a vida como um hino delicioso, celebra os nossos sentImentos, que não deixam de ser efémeros, como al­go de eterno e divino, não se põe nem do lado do Sr. de Kleist nem do lado do Sr. Beethoven; prega, sim, o optimismo e a fé" .

"Eu sei, eu sei!", exclamei, furioso. "Sabe Deus porque é que o Senhor havia de ir buscar precisamente a Flauta Mágica, que é aquilo que eu mais gosto no mundo! Mas Mozart não chegou aos oitenta e dois anos, e não emprestou à sua vida pri­vada, como o Senhor, essas pretensões de longevidade, de or­dem, de dignidade empertigada! Não se armou em importante! Cantou as suas melodias divinais, e foi sempre pobre e morreu cedo, pobre, depreciado de todos..."

O fôlego quase me faltava. Ter-se-ia imposto dizer ali mil coisas em dez palavras... O suor gotejava-me já na fronte.

Goethe, porém, respondeu com afabilidade: "Que eu tenha chegado aos oitenta e dois anos, isso talvez seja imperdoável. Agora, o prazer que eu tinha nisso era menor do que possa pen­sar. Tem razão: sempre fui assediado por um desejo imenso de durar, sempre receei e combati a morte. Sou de opinião que a luta contra a morte, a vontade incondicional e obstinada de vi­ver, é o impulso que fez agir e viver todos os homens excepcio­nais. Que apesar disso tudo, no fim se tem mesmo de morrer, isso, meu jovem amigo, demonstrei-o eu com oitenta e dois anos tão concludentemente como se tivesse morri do garoto de escola. Se isso puder contribuir para a minha justificação, ain­da tenho a dizer mais uma coisa: havia na minha natureza mui­ta criancice, muita curiosidade e pendor para a brincadeira, muito gosto em dissipar o tempo. Bem, e aí precisei realmente de um certo tempo para me aperceber de que um dia a brinca­deira teria de acabar"

E sorria ao falar assim, cheio de malícia, maroto, mesmo. A sua estatura ganhara vulto, e fora-se a postura rígida e a digni­dade constrangida no rosto. E o ar em nossa volta transbordava agora de mil melodias, inúmeras canções de Goethe, ouvindo­-se destacadamente a Veilchen(l), de Mozart, e Füllest Wieder Busch und Tal(2), de Schubert. O rosto de Goethe estava rosa­do, jovem, e ria, assemelhando-se como irmão, ora a Mozart, ora a Schubert; e a estrela que trazia ao peito enchera-se de mil flores dos campos, com uma primavera amarela desabrochan­do, gorda e festiva, a partir do centro.

Não me convinha propriamente que o velhote se andasse as­sim a esquivar tão jocosamente às minhas perguntas e acusa­ções, e deitei-lhe um olhar reprovador. Ele inclinou-se para a frente e, chegando a sua boca, aquela boca já a raiar o infantil, bem junto à minha orelha, sussurrou-me baixinho ao ouvido: "Rapaz, tu levas o velho Goethe demasiado a sério. A gente ve­lha, que já morreu, não se deve levar a sério, porque isso é fa­zer-lhes mal a eles. Nós, os imortais, não gostamos de coisas sé­rias, o que gostamos é da brincadeira. A seriedade, meu rapaz, tem a ver com o tempo, nasce, que te digo eu, de uma sobresti­mação do tempo. Eu próprio sobrestimei outrora o valor do tempo, e por isso queria chegar aos cem anos. Mas na eternida­de, sabes, o tempo não existe; a eternidade não passa de um ins­tante, um instante que dura para uma brincadeira" .

De facto já não se conseguia falar a sério com o homem, dan­çarinhava alegre e ligeiro de um lado para o outro, ora projec­tando para fora da estrela, como um foguete, a sua primavera, ora reduzindo-a e fazendo-a sumir. Ao vê-lo brilhar assim, ra­diante, em passos e figuras de bailarino, involuntariamente pen­sei que o homem que tinha diante de mim pelo menos não tinha descurado a aprendizagem da dança. E dançava maravilhosa­mente. Então lembrei-me outra vez do escorpião, ou antes de Molly, e voltei-me para Goethe, perguntando: "Diga-me lá, a Molly não está aqui?"

Goethe largou sonora gargalhada. Dirigindo-se à secretária, abriu uma gaveta, tirou para fora um precioso estojo de couro ou veludo, abriu-o e colocou-mo diante dos olhos.

 

(1) N. do T.: "Violeta".

(2) N. do T.: "Enches de novo o bosque e o vale".

 

No veludo negro repousava uma minúscula perna feminina, lustrosa, im­pecável e maneirinha, uma perna encantadora com o joelho li­geiramente dobrado e o pé esticado, a morrer na mais graciosa das pontas.

Estendi a mão para agarrar aquela perna tão pequena que me enamorava, mas quando ia a tocar-lhe com os dois dedos, o brinquedo pareceu mexer-se num imperceptível abalo, e de re­pente veio-me a suspeita de que pudesse tratar-se do escorpião. Goethe pareceu adivinhá-lo, parecia aliás ter mesmo querido e visado aquilo, aquele profundo constrangimento, aquele palpi­tante dilema entre o desejo e o medo. Chegando-me o encanta­dor escorpiãozinho bem junto à cara, via-me cobiçá-lo, via-me recuar de arrepiado, e parecia encontrar nisso o maior deleite. Enquanto me provocava com o fascinante e perigoso objecto, ia envelhecendo de novo, mais, cada vez mais, até aos mil anos de idade, e a sua cara definhada de ancião, com cabelos bran­cos de neve, ria docemente, em surdina, ria em vigorosa garga­lhada interior, com um humor senil de abismo.

 

Quando acordei, tinha esquecido o sonho, e só mais tarde me voltei a lembrar dele. Tinha dormido bem uma hora, no meio de música e algazarra, sentado à mesa da cervejaria, coisa que nunca teria imaginado pudesse acontecer. A atraente rapa­riga estava ali diante de mim, com uma mão pousada no meu ombro.

            "Dá-me aí uns dois ou três marcos", disse-me, "fiz consu­mo ali dentro" .

            Dei-lhe a minha bolsa do dinheiro, e ela afastou-se, para voltar pouco depois.

            "Pronto, agora posso ficar mais um bocadinho aqui senta­da ao pé de ti, e depois tenho de sair, tenho um encontro" .

            Estremeci. "Com quem?" perguntei precipitadamente.

            "Com um senhor, Harry querido. Convidou-me para ir até ao bar do Odéon".

            "Oh!, e eu que pensei que não me ias deixar sozinho..."

            "Se assim era, devias-me ter convidado tu. Assim, houve quem se te adiantasse. Ao menos é bom dinheiro que poupas. Conheces o Odéon? Depois da meia-noite, só champanhe. Ca­deirinha almofadada, orquestra negra, não há mais fino".

Nada daquilo me tinha passado pela cabeça.

            "Oh!", disse em tom suplicante, "deixa-me lá ser eu a le­var-te! Pensei que nem era preciso dizer, uma vez que ficamos amigos. Deixa-me convidar-te para um sítio qualquer que quei­ras, peço-te".

"É simpático da tua parte. Mas repara, o prometido é devi­do, eu aceitei, agora vou. Deixa lá isso! Anda, bebe mais um gole, ainda temos vinho na garrafa. Vais beber até ao fim, e de­pois vais com juizinho para casa dormir. Promete que vais" .

"Não, que coisa! Para casa não posso ir".

            "Ai tu e mais as tuas histórias...! Ainda não arrumaste esse assunto do Goethe? (Foi aí que me lembrei outra vez do sonho do Goethe). Mas se não queres mesmo ir para casa, então fica por aqui, há aí quartos para alugar. Queres que te arranje um?"

A ideia do quarto agradou-me, e perguntei-lhe quando po­deria voltar a vê-la. Mas onde é que morava? Não me quis di­zer. Eu que procurasse um bocadinho só, que havia de encon­trá-la com certeza.

"Não te posso convidar?"

"Para ir aonde?"

"Onde quiseres, e quando quiseres".

"Está bem. Terça-feira, jantar ao Velho Franciscano, no primeiro andar. Adeus!"

Estendeu-me a mão, e só então reparei bem nessa mão que condizia exactamente com a sua voz, bela e cheia, inteligente e agradável. Quando lha beijei, riu em jeito de mofa.

No último momento, voltou-se ainda uma vez para mim e disse-me: "Há mais uma coisa que te quero dizer, acerca do Goethe. Imagina que aquilo que te aconteceu com o Goethe, de não poderes suportar o retrato dele, é o que me acontece às ve­zes a mim, com os santos".

"Com os santos? És assim tão religiosa?"

"Não, não sou religiosa, infelizmente, mas em tempos já fui, e hei-de um dia voltar a ser. Uma pessoa não tem tempo pa­   ra ser religiosa" .

"Não tem tempo? Mas é preciso tempo para isso?"

"Se é! Para se ser religiosa é preciso tempo, e até é preciso mais: estar independente do tempo! Tu não podes ser verdadei­ramente religioso e ao mesmo tempo viver na realidade e ainda por cima levá-la a sério: ao tempo, ao dinheiro, ao Odéon-bar e   isso tudo" .

"Percebo. Mas como é que é isso dos santos?"

"Bem, há alguns santos de que gosto especialmente: o San­to Estêvão, o São Francisco e outros. E às vezes vejo imagens deles, e também do Salvador e da Mãe de Deus, tão deturpadas, tão falseadas e tão embrutecedoras, que também mal as consigo suportar, como tu àquele retrato do Goethe. Quando estou diante de um Nosso Senhor ou de um São Francisco desses, tão doce e tão aparvalhado, e vejo como há pessoas que os acham lindos e edificantes, essa atitude atinge-me como ofensa ao ver­dadeiro Jesus Cristo, e ponho-me a pensar: oh!, para que é que ele viveu e sofreu tão horrivelmente, se as pessoas já se acomo­dam com uma imagem dele tão idiota? Mas no fundo sei que a minha imagem do Nosso Senhor ou de São Francisco também não passa de uma imagem humana, e não se aproxima do mo­delo; sei que aos olhos do Salvador a própria imagem interior que dele faço havia de parecer tão idiota e truncada como a mim me parecem aquelas reproduções lamechas. Não te estou a dizer isto para te dar razão na tua desavença, na tua fúria con­tra o retrato do Goethe; não, tu não tens razão. Só to digo para te mostrar que te consigo compreender. Vocês, os letrados e os artistas, têm realmente um monte de coisas fora de série nas vossas cabeças, mas são pessoas como as outras, e nós, os ou­tros, também temos na cabeça os nossos sonhos e os nossos jo­gos. Aliás, meu douto Senhor, reparei que ficaste um pouco embaraçado quando tiveste de me contar lá a tua cena com o Goethe - tiveste de fazer um esforço para fazer compreender a uma simples rapariga como eu as tuas fantasias.

Pois bem, gos­tava de te mostrar que não precisas de te esforçar tanto. Perce­bo-te muito bem. Bom, e agora acabou-se! Tens mas é de te me­ter na cama" .

se foi. Um idoso criado da casa fez-me subir dois lan­ces de escada, ou melhor, começou por me pedir a bagagem, e ao saber que eu não trazia nenhuma, fez-me pagar adiantado por "noite inteira" como lhe chamou. Depois, trepando uns degraus gastos e sombrios, levou-me a um pequeno quarto e deixou-me. Tinha uuma austera cama de madeira, muito curta e muito dura, e, suspensos na parede, um sabre e um retrato colorido de Garibaldi, além de uuma grinalda de flores mur­chas de alguma festa do clube. Teria dado muito por um ca­misão de noite. Pelo menos tinha água e toalhete, pelo que pude fazer as minhas abluções; estendi-me depois todo vestido na cama e, deixando o candeeiro aceso, pude finalmente en­tregar-me com vagar à reflexão. A questão do Goethe, por­tanto, já estava arrumada. Que maravilha ter vindo ao meu encontro em sonhos! E aquela rapariga formidável - se ao menos lhe tivesse sabido o nome! De um momento para o ou­tro aparecia um ser humano, um ser vivo a despedaçar a turva campânula de vidro da minha mortal apatia e estender-me a mão, uma mão amável, bela e quente! De um momento para o outro ressurgiam coisas que me tocavam de perto, em que eu podia pensar com alegria, preocupação, excitação! De um momento para o outro abria-se-me uma porta através da qual a vida irrompia e vinha até mim! Talvez eu pudesse voltar a viver, talvez pudesse voltar a ser um homem... A minha alma, entorpecida pelo frio, quase gelada, voltava a respirar, batia, sonolenta, as suas asas miúdas e débeis. Goethe viera ter co­migo. Uma rapariga tinha-me intimado a comer, beber e dor­mir, tinha demonstrado simpatia para comigo, tinha troçado de mim, tinha-me chamado garoto idiota. E essa amiga mara­vilhosa também me tinha falado dos santos e mostrado que, mesmo nas minhas excentricidades mais singulares, eu não me achava só e incompreendido, não era excepção doentia; tinha irmãos e irmãs, as pessoas entendiam-me. Voltaria a vê-la?

Sim, com certeza, ela era de fiar. "O prometido é devido".

E adormeci, outra vez, e dormi quatro, cinco horas. Já pas­sava das dez quando acordei, com a roupa amarfanhada, amas­sado, esgotado, com a cabeça cheia da lembrança de algo de terrível passado na véspera, mas vivo, cheio de esperança e de bons pensamentos. Ao entrar em casa não senti já quaisquer vestígios do espantalho que na véspera aquele regresso repre­sentara para mim.

Na escada, acima da araucária, cruzei-me com a "Tia", a minha senhoria, que raras vezes via, mas cuja afável natureza muito apreciava. O encontro não me caíu bem, sempre estava um tanto desarranjado, descomposto da noitada, e tinha o ca­belo por pentear e a barba por fazer. Cumprimentei-a e fiz menção de continuar caminho. Normalmente ela respeitava sempre a minha necessidade de estar sozinho e passar desper­cebido, mas hoje, realmente, parecia que entre mim e o mun­do à minha volta se rasgara um véu, se abatera uma barreira - e ela, com um sorriso na boca, deteve-se.

"O Senhor andou na boa-vai-ela, hein, Sr. Haller? Nem sequer foi à cama. Há-de estar completamente estafado!".

"É, disse eu, que não pude deixar de rir também, "esta noite foi de facto um bocado animada, e como não queria ir contra o estilo da sua casa, fiquei num hotel. Tenho um gran­de respeito pelo sossego é pela dignidade da sua casa, às vezes até me sinto assim um corpo estranho aqui dentro".

"Está a brincar, Senhor Haller"! "Oh!, eu só brinco comigo próprio".

            "Pois é isso precisamente que não devia fazer. Não tem nada que se sentir um 'corpo estranho' na minha casa. Tem é que viver como gosta e fazer aquilo que lhe apetece. Já tive inquilinos muito respeitáveis, respeitabilíssimos, jóias de res­peitabilidade, mas nenhum era mais sossegado e nos incomo­dava menos que o Senhor. E agora, quer uma chávena de chá?".

Não resisti. Serviu-me chá na sua sala de visitas, entre os be­los retratos dos antepassados e os belos móveis dos antepassa­dos, e ali ficamos um pouco à conversa; a simpática senhora, mesmo sem perguntar, ficou a saber uma coisa e outra da mi­nha vida e dos meus pensamentos, escutando-me com aquela mistura de deferência enão-levar-muito-a-sério que as mulheres inteligentes têm para com as esquisitices dos homens. Também se falou no sobrinho, e foi-me mostrar no quarto ao lado a últi­ma obra das suas horas de lazer, uma telefonia. Era ali que o es­tudioso jovem passava os serões a remexer e encaixar as peças do dito aparelho, fascinado pela ideia do sem-fio, orando, de­votadamente ajoelhado, ao deus da técnica, que conseguiu, após milhares de anos, descobrir e representar com a maior im­perfeição coisas que qualquer pensador desde sempre sabia e utilizava com superior habilidade. Alongamo-nos um pouco em volta disso, porque a Tia tem um ligeiro pendor para a religiosi­dade, e não lhe desagradam as conversas piedosas. Disse-lhe que a omnipresença de todas as forças e acções fora coisa bem conhecida dos antigos hindus, e que a técnica se limitara a levar à consciência universal um mero fragmento desse facto, côns­truindo para as ondas sonoras um emissor e um receptor por enquanto horrivelmente rudimentares. A essência daquele anti­go conhecimento, a irrealidade do tempo, até ao momentó ain­da não tinha sido identificada pela técnica, mas um dia também ela naturalmente havia de acabar por ser "descoberta" e cair nas mãos dos industriosos engenheiros. Havia de descobrir-se, talvez até muito em breve, que não só pairavam ininterrupta­mente em nosso redor imagens e acontecimentos actuais, pre­sentes, - por exemplo a música de Paris e Berlim agora podia escutar-se em Frankfort ou Zurique -, como também tudo o que acontecera era registado e conservado do mesmo modo, e que um dia, com ou sem fio, com ou sem perturbadoras interfe­rências, havíamos com certeza de ouvir falar o rei Salomão e Walther von der Vogelweide. E que tudo isso, tal como hoje os primórdios da rádio, apenas serviria aos homens como meio de se alhearem de si próprios e dos seus objectivos, e de se rodea­rem de uma malha cada vez mais espessa de distracções e esté­reis ocupações. Mas não afirmei todas estas coisas, para mim corriqueiras, com o habitual tom de rancor e despeito para com o tempo e a técnica, não, fi-lo alegre e folgazão; e a Tia sorriu, e ali ficamos bem uma hora juntos, bebendo chá, satisfeitos.

Tinha convidado para terça-feira à noite a bela e notável ra­pariga do Águia Negra, e matar o tempo até lá não foi coisa fá­cil. E quando finalmente chegou terça-feira, a importância das minhas relações com aquela rapariga desconhecida revelara-se­-me com assustadora nitidez. Só pensava nela, esperava tudo dela, estava disposto a sacrificar-lhe tudo e a tudo arrojar a seus pés, sem no entanto me sentir minimamente apaixonado por ela. Bastava pôr-me a imaginar que ela pudesse anular ou es­quecer o nosso encontro, para logo me aperceber do que me aconteceria; o mundo estaria de novo vazio, cada dia que pas­sasse seria tão sombrio e despido de sentido como o anterior, de novo viria cercar-me toda aquela lúgubre calmaria e desolação; e perante aquele silencioso inferno, nenhuma outra saída além da lâmina de barbear. E a lâmina da barba nestes últimos dias em nada se tornara mais sedutora aos meus olhos, nada perdera do seu horror. Era aliás isso o mais odioso: tinha um profundo receio, que me oprimia o coração, do golpe que me rasgaria a garganta; temia a morte com uma violência tão selvagem, resis­tente, tenaz e enrijecida como se tivesse sido o mais são dos ho­mens, e a minha vida um paraíso. Reconhecia a minha condi­ção com nitidez nua e crua, e reconhecia que era aquela insu­portável tensão entre não conseguir viver e não conseguir mor­rer que me tornava tão importante a desconhecida, a pequena e bela dançarina do Águia Negra. Ela era a pequena janelinha, a minúscula fresta de luz no meu escuro inferno de terror. Era a libertação, a porta para os espaços livres e abertos. Tinha de me ensinar a viver ou a morrer, e com a sua mão. firme e bela, tocar ao de leve no meu coração empedernido, para que ao contacto da vida ele desabrochasse ou ruísse em cinzas. Onde iria ela bus­car aquela força? Donde lhe viria a magia? Que misteriosos abismos teriam engendrado aquela profunda relevância que ti­nha para mim? Não conseguia fazer luz em tudo aquilo, e aliás também me era indiferente; não tinha especial empenho em sa­bê-lo.

Já não me importava minimamente sequer com qualquer conhecimento ou noção, pois disso precisamente estava eu mais quê enfartado; para mim, o tormento, o mais agudo e irónico ultraje, era precisamente o facto de distinguir com tanta nitidez o meu próprio estado, de estar tão profundamente consciente dele. Via aquele tipo, aquele animal daquele Lobo das Estepes diante de mim como mosca em teia de aranha; presenciava co­mo o seu destino vogava ao sabor e no rumo do seu desfecho, da resolução final; como se debatia nas malhas, enredado e im­potente; como a aranha se aprontava para o devorar, e também como, bem próximo dele, uma mão aparecia para o salvar. Po­deria ter afirmado as coisas mais engenhosas e acertadas sobre as condicionantes e as origens do meu sofrimento, da minha doença de alma, do meu enfeitiçamento e da minha neurose, a sua mecânica era para mim transparente. Mas não era o saber e o compreender que me faziam tão grande falta, que eu tão de­sesperadamente demandava, mas sim a vivência, a decisão, o embate, o salto.

Embora eu naqueles dias de espera nem uma só vez duvidas­se que a minha amiga cumpriria a sua palavra, no último dia não pude evitar uma grande inquietação e incerteza; nunca na minha vida tinha ansiado com igual impaciência pelo anoitecer de um dia qualquer. E ao mesmo tempo que toda aquela tensão e impaciência se me tornavam quase insuportáveis, eram para mim bálsamo maravilhoso: para mim, o desencantado, que há muito nada esperava e com nada se alegrava, era incalculavel­mente belo e novo, espantoso, mesmo, correr o dia inteiro cheio de desassossego, ansiedade e vibrante expectativa de um lado para o outro, pôr-me a imaginar de antemão o encontro, as conversas, os acontecimentos dessa noite, fazer a barba e vestir-me para esse momento (com especial esmero: camisa no­va, gravata nova, atacadores novos nos sapatos). Fosse quem fosse essa rapariguinha esperta e misteriosa, tivesse ela entrado na minha vida, naquela relação comigo, de uma ou outra ma­neira, isso para mim não importava; tinha aparecido e ali esta­va, o milagre acontecera - eu voltava a encontrar uma pessoa e um interesse novo na vida! O essencial era que tudo continuasse assim, que eu me abandonasse àquela fonte de atracção, seguis­se aquela estrela.

Momento inesquecível, aquele em que voltei a vê-la! Estava sentado a uma mesinha do velho e confortável restaurante, que desnecessariamente tinha reservado pelo telefone, a estudar a ementa, e tinha diante de mim, num copo de água, duas lindas orquídeas que comprara para a minha amiga. Esperei por ela ainda um certo tempo, mas sentia-me seguro da sua vinda e portanto já não inquieto. E ei-la que surge finalmente, detém-se junto ao vestiário e cumprimenta-me com um relance incisivo, algo prescrutador, dos seus olhos cinzentos claros. Vigiei com desconfiança a atitude do empregado para com ela. Não, gra­ças a Deus, nada de familiaridades, guardava as devidas distân­cias, era impecavelmente correcto. E no entanto já se conhe­ciam, ela tratava-o por Emílio.

Quando lhe ofereci as orquídeas, mostrou-se agradada e pôs-se a rir. "Mas que simpático da tua parte, Harry! Querias dar-me um presente, não era? E não sabias bem o que havias de escolher, não sabias ao certo em que medida estarias realmente em posição, no direito de me oferecer alguma coisa, se isso não me iria ofender, e aí compraste orquídeas, são só flores, mais nada, mas custam bem caro. Pois muito obrigada, sim senhor. Mas quero-te dizer desde já uma coisa: de ti não quero receber prendas. Os homens são o meu ganha-pão, mas de ti não quero ganha-pão nenhum. Mas olha como tu te modificaste, hein!? Ninguém te havia de reconhecer. No outro dia parecias mesmo mais morto que vivo, acabadinho de desenterrar, e agora estás aí quase um homem, outra vez! A propósito, cumpriste as mi­nhas ordens?"

"Quais ordens?"

            "Andas assim tão esquecido? Quero dizer se já sabes dançar

o fox-trot? Disseste-me que não havia coisa que mais desejasses do que receber ordens minhas, que o teu maior prazer era obe­decer-me. Lembras-te?"

            "Se me lembro! Disse, e continuo a dizer. Estava a falar a sério" .

            "Então, e mesmo assim não aprendeste a dançar?"

            "Mas isso é coisa que se faça assim tão depressa, em tão poucos dias?"

            "Claro. O fox aprendes tu numa hora, o boston em duas. O tango demora mais, mas isso não precisas de todo".

"Bem, mas agora tenho é finalmente de saber o teu nome!" Ela fitou-me um instante em silêncio.

"Talvez consigas adivinhá-lo. Ficava bem satisfeita, se con­seguisses. Ora toma bem atenção, e olha bem para mim! Ainda não reparaste que eu às vezes tenho cara de rapaz? Como ago­ra, por exemplo?"

Não havia dúvida, agora que lhe contemplava de perto o rosto, tinha de lhe dar razão, era mesmo um rosto masculino. E, deixando correr uns instantes, comecei a ler qualquer coisa nessa cara, lembrava-me a minha própria adolescência e o meu amigo de então que se chamava Hermano. Por instantes, pare­ceu-me transformada nesse Hermano.

            "Se fosses rapaz", disse eu, perplexo, "tinhas de te chamar Hermano" .

            "Quem sabe, se calhar sou mesmo, e estou é disfarçada", disse ela, gracejando.

            "Chamas-te Hermínia?"

            Ela fez que simocom a cabeça, radiante, feliz por eu ter adi­vinhado. Nesse momento serviram a sopa. Começamos a co­mer, e ela animou-se como uma criança. De tudo o que nela me agradava e fascinava, o mais espantoso e singular era aquela sua capacidade de repentinamente passar da mais profunda gra­vidade para a mais divertida jovialidade, e inversamente, sem por isso se tornar minimamente diferente ou afectada, não, era como uma criança dotada. Começou por estar bem-disposta al­gum tempo, provocou-me a propósito do fox-trot, chegando a bater-me com o pé debaixo da mesa, elogiou fervorosamente a comida, comentou que eu me tinha esmerado no vestir, mas ainda achou uma série de críticas a fazer à minha apresentação.

Entretanto, perguntei-lhe: "Mas como é que fizeste para de repente pareceres um rapaz e eu conseguir adivinhar o teu no­me?"

"Oh!, isso foste tu sozinho que fizeste. Não entendes, dou­to senhor, que se eu te agrado e tenho importância para ti, éporque funciono para ti como uma espécie de espelho, porque tenho dentro de mim alguma coisa que te responde e te com­preende? Aliás, todas as pessoas deviam ser espelhos assim umas para as outras, e responder-se e corresponder-se assim; mas os espécimens como tu, esses são mesmo esquisitos, e apa­nham facilmente um tal enguiço que já não conseguem ver nem ler nada nos olhos dos outros, desligam pura e simplesmente deles. E quando um tipinho desses de repente acaba por reen­contrar uma cara que o olha frontalmente, em que divisa qual­quer coisa que lembra um resposta, uma afinidade, então, na­turalmente, isso dá-lhe alegria" .

"Tu sabes tudo, Hermínia!", exclamei, estupefacto. "É exactamente como estás a dizer. Embora não deixes de ser com­pletamente diferente de mim! És o meu oposto; tens tudo aqui­lo que a mim me falta"

" Julgas que é assim", disse ela, lacónica, "e mais vale as­sim" .

E subitamente perpassou-lhe o rosto, que se me apresentava realmente como um espelho mágico, uma pesada nuvem de gra­vidade, subitamente toda aquela face já só exprimia sombra, tragédia, e dir-se-ia abismal, sem fundo, como os olhos vazios de uma máscara. Lentamente, como se cada palavra lhe fosse arrancada, disse-me:

"Olha lá, não te esqueças daquilo que me disseste! Disseste­-me que te desse ordens, e que seria para ti um prazer obedecer a todos os meus comandos. Não te esqueças disso! Tens de sa­ber uma coisa, meu querido Harry: o que te acontece comigo, de achares resposta na minha cara, e algo em mim que vai ao teu encontro e te empresta confiança - o mesmo se passa comi­go em relação a ti. Quando há dias te vi entrar no Águia Negra, tão estafado e ausente e já quase fora deste mundo, percebi ­ logo: aquele ali vai-me obedecer, anseia pelas minhas ordens! E é isso que vou fazer, por isso meti conversa contigo, e por isso ficamos amigos.

Falava tão cheia de acabrunhante seriedade, com uma tal opressão na alma, que me foi difícil acompanhá-la, e procurei acalmá-la e distraí-la. Com um mero arquear de sobrancelhas, dissuadiu-me disso, e, fitando-me peremptória, prosseguiu nu­ma voz totalmente gelada: "Tens de cumprir a tua palavra, me­nino, isso digo-te eu, ou hás-de arrepender-te. Hás-de receber imensas ordens minhas, e hás-de acatá-las, ordens maravilho­sas, ordens agradáveis, vai ser para ti um prazer obedecer-lhes. E no fim hás-de cumprir também a minha última ordem, Harry" .

"Cumprirei, sim", disse eu, meio contrafeito. "Qual vai ser a tua última ordem?" Mas eu já a adivinhava, sabe Deus por­quê.

Ela estremeceu como que num ligeiro arrepio de frio, e pa­receu despertar lentamente daquela letargia, daquele recolhi­mento. Os seus olhos não me largavam. Subitamente, o rosto ensombreceu-lhe ainda mais.

"Seria mais inteligente da minha parte não te dizer isto. Mas não quero ser inteligente, Harry; desta vez, não. Quero outra coisa bem diferente. Presta atenção, abre os ouvidos! Hás-de ouvir, depois hás-de voltar a esquecer, depois hás-de rir à conta disso, e chorar à conta disso. Toma atenção, pequeno! Vou brincar contigo à vida e à morte, maninho, e vou-te pôr as car­tas na mesa, bem à vista, ainda antes de começarmos o jogo" .

Como era belo e etéreo o seu rosto quando me falava assim! No fundo dos seus olhos flutuava uma tristeza ciente e experi­mentada, aqueles olhos pareciam ter já padecido todos os sofri­mentos possíveis e imagináveis, e todos ter acolhido com um sim. A boca balbuciava a custo, como que tolhida, assim como se fala quando se tem a cara entorpeci da por um frio gelado; mas entre os lábios, nas linhas de junção, no movimento da pon­ta da língua que raramente se mostrava, corria, em contraste com o olhar e a voz, uma sensualidade forte, doce, a querer di­versão, um profundo desejo de volúpia. Na fronte lisa e calma vinha cair um caracol, pequeno e solto, e era daí, desse recanto de testa com o caracol, que se desprendia e afluía de tempos a tempos como que um sopro de vida, aquela onda de aproxima­ção masculina, de magia hermafrodita. Eu escutava-a angustia­do mas como que atordoado, meio ausente.

"Tu gostas de mim", continuou ela, "pela razão que já te disse; quebrei a tua solidão, deitei-te a mão mesmo já às portas do inferno, e despertei-te outra vez. Mas quero mais de ti, mui­to mais do que isso. Quero fazer com que te apaixones por mim. Não, não me venhas contradizer, deixa-me falar! Gostas muito de mim, vejo isso perfeitamente, e estás-me grato, mas apaixonado por mim, não estás. Quero fazer com que o fiques, isso faz parte da minha profissão; aliás até ganho a vida a fazer com que os homens se apaixonem por mim. Mas presta bem atenção, olha que se o faço, não é por te achar a ti especialmen­te atraente. Não estou apaixonada por ti, Harry, estou-o tão pouco como tu o estás por mim. Mas preciso de ti, como tu pre­cisas de mim. Precisas de mim agora, neste momento, porque estás desesperado e te faz falta um empurrão que te atire à água e te restitua a vida. Precisas de mim para aprender a dançar, a rir, a viver. Eu, pelo meu lado, preciso de ti não hoje, mas mais tarde, também para uma coisa muito importante e bela. Quan­do estiveres apaixonado por mim, hei-de dar-te a minha última ordem, e tu hás-de obedecer, e isso há-de ser bom para ti e para mim" .

Ergueu no copo ligeiramente uma das orquídeas castanho­-violeta raiadas de verde, e inclinando por instantes o rosto so­bre ela, olhou fixamente a flor.

"Não te vai ser fácil, mas hás-de fazê-lo. Hás-de executar a minha última ordem e hás-de matar-me. É isso. Não perguntes mais nada!"

Com os olhos ainda postos na orquídea, emudeceu; o rosto distendeu-se, como botão de rosa desabrochando, abriu-se para libertar toda a tensão, todo o peso, e subitamente os lábios ani­maram-se de um sorriso encantador, enquanto que o olhar se mantinha ainda por instantes rígido, como que enfeitiçado. E põe-se a abanar a cabeça com o pequeno caracol agarotado, be­be um gole de água e, apercebendo-se subitamente de que esta­vamos à mesa, lança-se com jovial apetite sobre as iguarias.

Eu ouvira distintamente, palavra por palavra, o seu sinistro discurso, adivinhara mesmo aquela sua "última ordem" ainda antes de ela a ter proferido, e aquele "hás-de matar-me" já não me tinha assustado. Tudo o que ela dizia me soava convincente e predestinado, aceitava sem me insurgir; e no entanto, apesar da lúgubre gravidade com que ela falara, nada daquilo me pare­cia inteiramente verídico e sério. Uma parte da minha alma be­bia as suas palavras e fiava nelas, uma outra parte abanava a cabeça com benevolência e registava que aquela Hermínia tão esperta, tão sã e tão segura, afinal também tinha as suas fanta­sias e os seus arroubos visionários de semi-inconsciência. Mal lhe ouvi pronunciar a última palavra, uma nuvem de irrealidade e inverosimilhança veio encobrir toda a cena.

Apesar de tudo, eu não conseguia transpor, com a ligeireza acrobática de Hermínia, o salto de regresso ao plausível, ao real.

"Então vou mesmo matar-te, qualquer dia?" perguntei, algo sonhador, enquanto ela, rindo outra vez, dissecava zelosamente a sua ave.

"Pois claro", assentiu ela com despreocupação, "mas basta de falar nisso, estamos à mesa. Harry, sê simpático e manda vir mais uma dose de salada para mim! Então não estás com apeti­te? Parece-me que tens de começar por aprender tudo o que énatural e evidente nas outras pessoas, até o prazer de comer. Portanto, olha, menino, isto aqui é uma perninha de pato, e quando uma pessoa consegue desprender do osso a bela carne branca, é uma autêntica festa, e deve-se encher o coração com o desejo, a excitação e o reconhecimento do apaixonado que pela primeira vez ajuda a sua amada a despir-se. Percebeste? Não? És mesmo pateta. Repara, vou-te dar aqui um bocado desta lin­da perninha de pato, vais ver. Vá, abre lá a boca! - Oh!, que monstro tu me saíste! Então agora não vai primeiro deitar o rabo ­ do olho para um lado e para o outro a ver se as outras pessoas estão a reparar que ele está a comer uma garfada do meu prato! Não te preocupes, meu filho pródigo, que não te vou fa­zer passar por vergonha nenhuma. Mas também te digo, se para te divertires ou teres prazeres precisas primeiro da autorização dos outros, então és mesmo um pobre diabo!"

A cena anterior tornava-se cada vez mais irreal, e era cada vez menos crível que aqueles olhos ainda há instantes me pudes­sem ter fixado com um brilho tão pesado e sinistro. Oh!, mas aí, Hermínia era como a própria vida: sempre e apenas o mo­mento presente, sempre imprevisível. Neste instante comia, 'e a perna de pato e a salada, a tarte e o licor eram tomados a sério, tornavam-se objecto de alegria e crítica, conversa e fantasia. Quando o prato era levantado, um novo capítulo se abria. Esta mulher, que tão fundo tinha penetrado no meu íntimo, que pa­recia saber mais da vida que todos os sábios do mundo, fazia-se criança para assim jogar, brincar ao jogo da vida, aquele jogo do momento presente, com uma arte que indiscutivelmente fa­zia de mim mero aluno seu. Fosse aquilo alta sabedoria ou inge­nuidade da mais cândida, isso pouco importava: quem assim sabia viver, quem assim existia para o momento presente e tão prazenteira e despreocupadamente sabia colher as florinhas do caminho e apreciar a mais pequena, a mais frívola dádiva de ca­da instante, - contra esses, a vida nada podia. E aquela alegre criança, com o seu sadio apetite, a sua folgazã gulodice, seria ao mesmo tempo uma sonhadora e uma histérica, que desejava a morte, ou uma calculista judiciosa que pretendia fazer de mim, em plena consciência e coração frio, um apaixonado e um escravo? Não podia ser. Não, abandonava-se, sim, e de tal ma­neira, ao momento presente, que acolhia, como porta aberta, não só todo e qualquer capricho divertido, como todo o arrepio passageiro e sombrio vindo das longínquas profundezas da al­ma, que saboreava até nele se esgotar.

Essa Hermínia, que hoje ria pela segunda vez, sabia tudo e mais alguma coisa sobre mim, parecia-me impossível guardar­-lhe segredo fosse do que fosse. Talvez não tivesse compreendido inteiramente a minha vida intelectual, possivelmente não teria podido acompanhar-me no meu relacionamento com a música, com Goethe, Novalis ou Baudelaire - mas também aí eu nada podia asseverar, provavelmente nem mesmo isso lhe exigiria es­forço. Aliás, vendo bem, o que é que ainda restava da minha "vida intelectual"? Não se desfizera tudo em cacos, não perde­ra tudo sentido? No entanto, os meus outros problemas e dese­jos mais íntimos e pessoais, esses ela havia de compreender por inteiro, disso não tinha eu dúvida. Em breve me acharia a falar com ela do Lobo das Estepes, do tratado, de tudo, absoluta­mente tudo aquilo que até então apenas existia exclusivamente para mim, coisas sobre as quais eu jamais dissera uma palavra a alguém. Não pude resistir a começar logo ali.

"Hermínia", disse, "aqui há dias aconteceu-me uma coisa esquisitíssima. Um desconhecido deu-me um livrinho impresso, assim como aqueles folhetos de feira, e vinha lá descrita toda a minha história, e tudo o que me diz respeito, com imenso rigor. Diz-me lá, não é esquisito?"

            “Como é que se chama o livrinho?", perguntou ela despreocupadamente.

            "Tratado do Lobo das Estepes. "

            "Oh!, essa do Lobo das Estepes é espantosa! E o Lobo das Estepes és tu? É suposto seres tu?"

            "Pois, sou eu. Sou uma pessoa que tenho metade de ho­mem e metade de lobo, ou que julga ser assim" .

Ela não respondeu. Olhou-me nos olhos com uma atenção inquiridora, fitou-me as mãos, e por instantes de novo lhe acor­reu ao olhar e ao rosto aquela profunda gravidade, aquele som­brio fervor de há pouco. Julguei adivinhar-lhe os pensamentos: seria eu suficientemente lobo para conseguir executar a sua' 'úl­tima ordem?"

"Claro que é imaginação tua", disse ela, retomando a ligei­reza, "ou, se quiseres, poesia. Mas há aí qualquer coisa. Hoje não és lobo nenhum, mas há dias, quando te vi entrar naquela sala, que mais parecias caído da lua, aí já tinhas qualquer coisa de besta, foi isso precisamente que me agradou" .

Interrompeu-se com uma ideia súbita e, meia surpreendida, disse: "Sou tão idiota, essa palavra, 'besta', ou 'fera'! Não se deve falar assim dos animais. Está bem que muitas vezes são horrorosos, mas sempre são bem mais genuínos que Os homens" .

"'Genuínos'? O que é que queres dizer com isso?" "Bem! Olha bem para um animal, um gato, um cão, um pássaro ou mesmo um daqueles bichos grandes bem bonitos do Jardim Zoológico, um puma ou uma girafa. Não podes deixar de ver que são todos genuínos, que não há um que esteja emba­raçado ou que não saiba o que há-de fazer ou como se há-de comportar. Não andam sempre a bajular-te, a querer impres­sionar-te. Não há comédia. São como são, como as pedras e as flores ou como as estrelas no céu. Entendes?"

Eu entendia.

            "A maior parte do tempo os animais andam tristes", conti­nuou ela. "E quando uma pessoa está realmente triste, não por lhe doerem os dentes ou por ter perdido dinheiro, mas porque um dia, no espaço de uma hora, se apercebe de como tudo isto, a vida, realmente é, e isso o põe mesmo triste, então fica sempre um pouco parecida com um animal - fica com um ar infeliz, mas mais genuíno e mais belo que antes. É assim mesmo, e era esse ar que tu tinhas, Lobo das Estepes, quando te vi pela pri­meira vez" .   '

"Bem, Hermínia, e o que é que pensas afinal daquele livro onde eu venho descrito?"

"Ah!, sabes, eu nem sempre gosto de pensar. Falamos nisso doutra vez. Até mo podes dar um dia para ler. E daí, não; se um dia me der, para voltar às leituras, então dás-me mas é um dos livros que tu próprio escreveste" .

Pediu café, e durante alguns instantes pareceu alheada e dis­traída, mas logo se iluminou, radiante, parecendo ter atingido alguma meta nas suas elocubrações.

"Ena!", exclamou alegremente, "já sei!"

"Já sabes o quê?"

"Aquela questão do fox-trot não havia meio de me sair da cabeça. Ora diz-me lá: não tens um quarto onde nós os dois pudéssemos de vez em quando dançar uma horita? Não faz mal que seja pequeno, o que não pode é haver um tipo qualquer a morar por baixo que depois suba lá acima e arme um escândalo por sentir tudo a abanar em cima dele. Pois, isso é bom, muito bom, mesmo! Assim podes aprender a dançar em tua casa".

"Pois" , disse eu timidamente, "tanto melhor. Mas eu pen­sei que se precisasse também de música" .

"Claro que se precisa. Por isso toma atenção, a música compra-la tu, não te custa mais que um curso de dança com professora. Poupas na professora, que sou eu. E assim temos música sempre que quisermos, e além disso ainda nos resta o gramofone.

"O gramofone?"

"Evidente. Vais comprar um aparelhozinho desses e uns disquinhos de dança para a acompanhar..."

"Estupendo!", exclamei. "E quando realmente conseguires ensinar-me a dançar, ficas tu com o gramofone à laia de hono­rário. Certo?"

Falava com ardor, mas as palavras não me vinham do cora­ção. Não conseguia imaginar um aparelho daqueles, que de modo nenhum me era simpático, no. meu gabinetezinho de tra­balho; e a dança também me levantava várias objecções. Sem­pre tinha pensado que, se alguma vez se proporcionasse, era de experimentar, embora estivesse convicto de que era velho e rígi­do demais para isso, e que já não ia aprender nada. Agora, as­sim desta maneira, a martelo, era demasiado rápido e forte para mim; e senti levantar-se dentro de mim a resistência de tudo aquilo que eu, como velho e requintado amador de música, ti­nha a opor ao gramofone, ao jazz e às modernas músicas de dança. Pôr a tocar de um momento para o outro no meu quar­to, na minha célula de meditação, no meu refúgio, êxitos musi­cais americanos, e ainda por cima ter de dançar em consonân­cia, isso francamente ninguém me podia exigir. Mas não era "ninguém" , não era qualquer pessoa que o exigia, era a Hermí­nia.

Cabia-lhe ordenar. A mim, cabia obedecer. E, naturalmen­te, obedeci.

Encontramo-nos no dia seguinte à tarde, num café. Hermí­nia já lá estava quando entrei, sentada a beber um chá, e mos­trou-me a sorrir um jornal em que tinha descoberto o meu no­me. Era um dos pasquins reaccionários da minha terra, onde periodicamente apareciam artigos de insultuosa diatribe contra mim. Insurgira-me contra a guerra enquanto ela decorrera, e terminadas as hostilidades, apelara à paz, à tolerância, à huma­nidade e à auto-crítica, opondo-me à agitação nacionalista cada dia mais agudizada, mais disparatada e feroz. Este era mais um desses ataques, de prosa tosca, em parte redigido pelo próprio redactor, em parte plagiado dos muitos arrazoados semelhantes da imprensa que lhe era próxima. Ninguém escreve reconheci­damente pior que os defensores de ideologias absoletas, nin­guém desempenha o seu ofício com tão pouca limpeza e labor. Hermínia tinha lido o artigo e ficara sabendo que Harry Haller era um vil parasita e um sem-pátria da pior espécie, e que a pá­tria naturalmente só cairia em desgraça enquanto se tolerassem pessoas e ideias dessas, e se educasse a juventude em ideias hu­manitárias sentimentalistas, em vez de nela inculcar a vingança bélica contra o inimigo ancestral da raça.

"És mesmo tu?" perguntou Hermínia, apontando para o meu nome. "É que foste mesmo arranjar uma bela casta de ini­migos, Harry! Incomodam-te, estas coisas?"

Li algumas linhas, e era o habitual, com os anos já conhecia de sobejo, à saciedade, cada uma daquelas palavras injuriosas de cliché.

"Não", respondi, "não me incomodam, já estou habitua­do. Exprimi algumas vezes a opinião de que todos os povos e mesmo cada homem individualmente devia, em vez de se deixar embalar pelo entorpecimento das fraudulentas "questões de culpabilidade" política, perscrutar-se a si próprio e averiguar até que ponto ele próprio seria responsável pela guerra e todas as outras calamidades do mundo por motivo das suas faltas, das suas omissões e dos seus hábitos perniciosos; era essa a úni­ca via de talvez conseguir evitar a próxima guerra. Isso eles não me perdoam, porque evidentemente que eles próprios estão to­talmente inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes indus­triais, os políticos, os jornais - ninguém tem nada, a mínima coisa a censurar-se, ninguém tem a mínima culpa! Poderia jul­gar-se que anda tudo às mil maravilhas, neste mundo, só que hádoze milhões de homens assassinados na Terra inteira. E olha, Hermínia, se estes artigos insultuosos já não conseguem irritar­-me, às vezes não deixam de me entristecer. Dois terços dos meus compatriotas lêem este género de jornais, lêem todas as manhãs e todas as noites estas toadas, todos os dias são traba­lhados, seringados, exasperados, desiludidos e enfurecidos, e a meta e o objectivo de tudo isso é mais uma vez a guerra, uma outra guerra que está para vir, que tenho a certeza será ainda mais atroz que esta. Tudo isso é límpido e simples, qualquer pessoa entenderia, poderia numa só hora de reflexão chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer isso, ninguém quer evitar a próxima guerra, ninguém quer poupar-se a si próprio e pou­par os filhos a mais uma carnificina de milhões, se for esse o preço que tiver de pagar. Meditar uma hora, recolher-se um ins­tante sobre si próprio e interrogar-se em que medida cada um de nós contribui e é responsável pelo desacerto e pela maldade no mundo - vês tu, isso ninguém quer! E por isso as coisas hão-de continuar neste caminho, e a próxima guerra está a ser preparada dia a dia fervorosamente por muitos milhares de ho­mens. Desde que o sei que isso me traz tolhido, desesperado, para mim já não há "pátria" nem ideal, um e outro não passam de cenário e decorações para os senhores que trabalham na pró­xima matança. Não vale a pena pensar, dizer ou escrever algu­ma coisa de humano, burilar na cabeça pensamentos bonitos ­ por cada duas, três pessoas que fazem isso, aparecem dia a dia milhares de jornais, revistas, discursos, reuniões públicas e pri­vadas, todos a lutar e até a conseguir exactamente o contrário". Hermínia escutara com interesse.

"Sim", disse em seguida, "nisso tens razão. É claro que vai haver outra guerra, não é preciso ler jornais para perceber isso.

Naturalmente que é caso para se ficar triste, mas isso não tem valor. É exactamente como quando uma pessoa anda triste por­que, por muito que faça, apesar de se empenhar à última, um dia há-de forçosamente ter de morrer. A luta contra a morte, meu querido Harry, é sempre uma coisa linda, nobre, maravi­lhosa e venerável, como também o é, consequentemente, a luta contra a guerra. Mas também é sempre uma quixotada inglória" .

"Talvez seja verdade", exclamei acaloradamente, "mas são verdades desse estilo - que no fundo todos temos de morrer e que portanto tudo é indiferente, podemos marimbar em tudo - que tornam uma vida inteira banal e idiota. Achas portanto que o que há a fazer é voltar costas a tudo, renunciar a todo o espírito, a todo o esforço, a toda a humanidade, deixar perdu­rar o reino da ambição e do dinheiro e aguardar a próxima mo­bilização diante de um copo de cerveja?"

O olhar que Hermínia agora me lançava era estranho, era um olhar cheio de divertimento, ironia e traquinice, de condes­cendente camaradagem, mas ao mesmo tempo tão cheio de pe­so, saber e gravidade abismal!

"Isso acho que não deves fazer", disse ela, toda maternal. "E a tua vida também não se torna banal e idiota por saberes que a tua luta será vã. É muito mais banal, Harry, lutares por algo de bom e de ideal e pores-te a pensar que hás-de lá chegar. Sim, imaginas então que os ideais existem para se atingir? Vive­remos nós, as pessoas, para acabar com a morte? Não, vivemos para a temer e por vezes também para a amar, e é precisamente graças a ela que há uma fracção de vida que por vezes irradia, no espaço de uma hora, uma chama tão bela. És mesmo uma criança, Harry! Agora sê bom menino e vem comigo, hoje te­mos muito que fazer. Hoje já não estou para me preocupar mais com a guerra e com os jornais. E tu?"

Oh!, eu também não, estava pronto para o que dela viesse.

            Fomos juntos - era o nosso primeiro passeio na cidade - a

uma loja de música, e lá estivemos a ver gramofones, abrindo e fechando alguns, pondo outros a tocar; quando encontramos um mesmo a calhar, engraçado e barato, quis logo comprá-lo, mas Hermínia não se dava tão depressa por satisfeita. Disse-me que não nos íamos decidir assim de repente, e ainda tive de pro­ curar com ela uma segunda loja e aí revistar aparelhos dos mais variados sistemas e tamanhos, do mais caro ao mais barato, só então acedendo a minha companheira em voltar à primeira loja para lá comprar o originalmente escolhido.

            "Vês", disse-lhe eu, "escusávamos de ter tido este trabalho todo.".

"Achas? E depois se calhar amanhã víamos o mesmo apare­lho exposto noutra montra qualquer por vinte francos menos. E além disso é divertido andar em compras, e as coisas diverti­das são para se gozar mesmo a fundo. Ainda tens muito que aprender" .

            Acompanhados pelo moço de fretes, transportamos para o meu apartamento a nossa compra.

Hermínia inspeccionou minuciosamente a minha sala, elo­giou a lareira e o divã, experimentou as cadeiras, pegou num ou noutro livro, deteve-se longamente diante da fotografia da mi­nha amante. Tínhamos colocado o gramofone em cima de uma cómoda, entre pilhas de livros. E a lição começou. Pondo a to­car um fox-trot, exibiu-me os primeiros passos, pegou-me na mão e começou a conduzir-me. Docilmente, eu ia trotando a compasso, topando nas cadeiras, escutando as suas ordens, sem as entender, tropeçando-lhe nos pés, enfim, mostrava-me tão desajeitado quanto diligente. Após a segunda dança, ela atirou­-se sobre o divã, rindo como uma criança.

"Meu Deus, és podão de todo! Porque é que não te deixas simplesmente ir, como se estivesses a passear!? Não vale a pena essa tensão, esse esforço todo. Parece-me que até já estarás a suar, não? Bem, descansemos uns cinco minutos! Sabes, dan­çar, quando se chega a saber, é exactamente tão simples como pensar, e então aprender é mais fácil ainda. Vais ver que hás-de passar a impacientar-te menos por as pessoas não quererem ha­bituar-se a pensar, e preferirem chamar ao Sr. Haller traidor àpátria, aguardando tranquilamente a próxima guerra" .

Uma hora depois foi-se embora, garantindo-me que da pró­xima vez as coisas haviam de correr melhor. Eu não pensava as­ sim, e estava bem desiludido com a minha estupidez e falta de jeito; durante aquela lição a sensação que me dava era não ter aprendido absolutamente nada, e não acreditava que alguma vez pudesse correr melhor. Não, para dançar era preciso empe­nhar qualidades próprias, que a mim me faltavam por comple­to: jovialidade, candura, ligeireza, calor. Aliás, sempre assim pensara.

Mas, coisa inacreditável, da segunda vez a coisa correu realmente melhor e começou até a divertir-me; e, no final da lição, Hermínia afirmou que eu já sabia o fox-trot. Mas quando, par­tindo daí, concluíu que no dia seguinte eu iria com ela dançar a um restaurante, apavorei-me horrivelmente, e insurgi-me com a maior veemência. Friamente, recordou-me o meu voto de obe­diência, e marcou encontro comigo para tomar chá no dia se­guinte no Hotel Balances.

Nessa noite fiquei em casa. Tentei ler, mas não conseguia. Tinha medo do amanhã; horrorizava-me pensar que eu, velho maníaco insociável e sensível, tivesse não só de entrar num da­ queles estúpidos chás-dançantes modernos, com o seu conjunto de jazz, como inclusive aparecer como dançarino no meio da­ quela gente estranha, sem saber ainda nada de nada. E confesso que ria de mim próprio, mas me envergonhava ao mesmo tem­po da minha figura, quando, sozinho no meu tranquilo escritó­rio, acabei por abrir e pôr a tocar o gramofone para de mansi­nho, em peúgas, ensaiar os passos do meu fox.

No outro dia, no Hotel Balances, tocava um pequeno con­junto, e serviam chá e uísque. Tentei distrair a atenção de Her­mínia, oferecendo-lhe bolos, seduzindo-a com uma garrafa de bom vinho, mas ela manteve-se implacável.

"Não vieste hoje aqui para te divertires. Isto é uma lição de dança".

Tive de dançar com ela duas, três vezes, e entre uma e outra volta, apresentou-me ao saxofonista, um homem novo, moreno e atraente, de origem espanhola ou sul-americana, que, segun­do ela me disse, sabia tocar todos os instrumentos e falar todas as línguas do mundo. O seflor parecia conhecer e dar-se muito bem com Hermínia; tinha diante de si dois saxofones de tama­nhos diferentes, tocando intercaladamente um e outro, ao mes­mo tempo que, com os seus olhos negros e reluzentes, ia estu­dando atenta e deleitadamente os pares que evoluíam na pista. Para meu próprio espanto, senti por aquele belo músico inofen­sivo qualquer coisa como ciúme, não ciúme amoroso, visto que o amor não estava de todo em causa entre mim e Hermínia, mas um ciúme de amizade, mais espiritual, e isto porque ele não me parecia, de longe, assim tão digno de interesse, da marcante de­ferência, mesmo da admiração que ela lhe demonstrava. Mas que conhecimentos tão esquisitos me estão a impingir... pensei, rezinguento.

Depois Hermínia foi convidada para dançar, uma vez, outra e mais outra, e eu fiquei sozinho diante do meu chá, a escutar aquela música, um género de música que até então nunca con­seguira suportar. Santo Deus!, pensei, ter de me introduzir e aclimatar num sítio destes, neste mundo que me é tão estranho e tão repugnante, que eu até agora tão cuidadosamente evitava, tão profundamente desprezava, mundo de ócio e de prazer, mundo vulgar e banal, de cliché, de mesinhas de mármore, mú­sica dejazz, meninas fáceis e caixeiros-viajantes! Cabisbaixo, ia sorvendo o meu chá, fixando a multidão semi-elegante. Duas lindas raparigas chamaram-me a atenção, ambas boas dançari­nas, e contemplei-as com reverência e inveja, belas, elásticas, alegres e seguras nas suas evoluções.

A certa altura Hermínia reapareceu, mostrando-se desde lo­go descontente comigo. Eu não estava ali, respingou ela, para me pôr com um carão daqueles e ficar ali especado à mesa do chá, que me sacudisse agora e fosse dançar! O quê, eu não co­nhecia ninguém? Mas isso não fazia mal nenhum! Então não estava ali nenhuma rapariga que me agradasse?

Apontei-lhe uma, bem bonita, ali bem perto de nós, e que, com a sua engraçada saia curta de veludo, os cabelos curtos e espessos e os braços cheios e femininos, era realmente encanta­dora.

Hermínia insistiu comigo para que fosse lá imediatamente convidá-la. E revoltei-me desesperadamente.

"Mas eu não posso!", exclamei, infeliz. "Sim, se ao menos fosse um rapaz novo, bem-parecido! Agora, um pobre coitado como eu, velho jarreta todo empenado, que nem sequer sabe dançar... ela desatava a rir-se de mim!"

Hermínia olhou-me com desdém.

            "E se for eu a rir-me de ti, isso claro que te é indiferente...

Que cobardolas me saíste! Qualquer homem que se aproxima de uma rapariga arrisca-se a que se riam dele; é esse o preço. Portanto, arrisca tu também, Harry, e se der para o torto, dei­xa-a mesmo rir-se de ti, e pronto - senão, digo-te já, acabou-se a minha fé na tua obediência" .

Não cedia. Angustiado, levantei-me a dirigi-me para a bela rapariga, no preciso instante em que a música recomeçava.

"Bem, livre, livre, não estou", disse ela, fitando-me com curiosidade do fundo dos seus olhos grandes e frescos, "mas o meu par parece que ficou ali pendurado no bar. Portanto, ve­nha daí!"

Enlaçando-a, avancei os primeiros passos, ainda espantado por ela não me ter recambiado antes de se ter levantado da ca­deira. Apercebendo-se logo da minha dificuldade, assumiu ela a condução. Dançava maravilhosamente, e arrebatava-me; por momentos esqueci todas as minhas regras e princípios de dança, flutuava simplesmente, levado por ela; sentia as ancas tesas, os joelhos rápidos e maleáveis do meu par, olhava-a no rosto jo­vem e radioso - e ouvi-me confessar-lhe que era a primeira vez na vida que dançava. Sorrindo, encorajou-me, e respondia aos meus olhares admiradores e palavras lisonjeiras com maravi­lhosa insinuação, sem falar, mas com movimentos suaves e en­cantadores, que nos aproximavam aconchegada e deliciosa­mente. Com a mão direita a enlaçá-la estreitamente pela cintu­ra, ia seguindo, ditoso e sôfrego, os movimentos das suas per­nas, dos seus braços, dos seus ombros; para meu espanto, nem uma só vez lhe tropecei nos pés, e acabada a música, ficamos de pé a aplaudir, até que a dança foi bisada e eu, mais uma vez, acaloradamente, amorosamente, devotamente, consumei o rito.

Quando a dança terminou, demasiado cedo para o meu gos­to, a linda rapariga da saia aveludada retirou-se, e de repente, a meu lado, estava de novo Hermínia, que estivera a observar­-nos. .

"Vês", riu ela, aprovadora. "Não descobriste que as pernas de uma mulher não são propriamente pernas de mesa? Bravo, sim senhor! O fox já tu sabes, graças a Deus; amanhã arranca­mos com o boston, e daqui a três semanas temos baile de más­caras nos salões do Globo" .

Estávamos de novo sentados, depois de anunciarem o inter­valo, quando apareceu a juntar-se a nós o belo e jovem Senhor pablo, saxofonista, que, depois de nos fazer um sinal de cum­primento, se sentou ao lado de Hermínia. Parecia estar de mui­to boas relações com ela. Eu, pelo meu lado, confesso que aquele senhor, já do nosso primeiro encontro, não me agradava mesmo nada. Atraente era, isso não o podia negar, belo de cor­po e belo de rosto, mas não conseguia descobrir-lhe outros atri­butos. Quanto ao poliglotismo, não lhe devia dar muitas dores de cabeça, porque não falava literalmente nada, ou quando muito, coisas soltas, como se faz favor, obrigado, sim senhor, com certeza, alô, e coisas do género, que essas, sim, sabia em várias línguas. Não, não falava nada, o señor Pablo, e a ques­tão é que também não pensava muito mais, o galante cabal/ero. O seu ofício era tocar saxofone na banda de jazz, ofício a que parecia dedicar-se com paixão e calor; às vezes punha-se a bater as palmas em plena exibição musical, ou permitia-se outros ar­roubos de entusiasmo, lançando-se, por exemplo, em exclama­ções entoadas como: "o o o o, ha ha, hal/o!" De contrário, dir­-se-ia estar neste mundo exclusivamente para ser belo, agradar às mulheres e andar com colarinhos e gravatas da última moda e múltiplos anéis nos dedos. A sua sociabilidade consistia em es­tar sentado ao pé de nós, sorrir para nós, olhar para o seu reló­gio de pulso e enrolar cigarros, coisa que fazia com a maior des­treza. Os seus lindos olhos escuros de crioulo, os seus caracóis negros, não dissimulavam qualquer romantismo, qualquer pro­blema ou pensamento - visto de perto, o formoso e exótico se­mi-deus era um rapaz bem-disposto e um pouco mimado, de trato agradável, mais nada. Falei-lhe do seu instrumento e das tonalidades e timbres do jazz, para que visse que tinha diante de si um velho amador e entendido na música. Mas ele não adian­tou o assunto, e quando eu, por delicadeza para com ele ou mais concretamente para com Hermínia, empreendi algo como uma justificação músico-teórica do jazz, abriu diante de mim e dos meus esforços um sorriso inócuQ, ignorando provavelmen­te de todo que antes e para além do jazz existiam outras músi­cas. Simpático, era, simpático e gentil, sorrindo amavelmente com os seus olhos grandes e vazios; mas entre mim e ele dir-se­-ia não haver nada de comum - nada daquilo que ele teria de algum modo por importante e sagrado poderia sê-lo também para mim, vínhamos de confins opostos da terra, nem uma pa­lavra falávamos da mesma língua. (Mas, mais tarde, Hermínia contou-me uma coisa curiosa. Contou-me que depois daquela conversa, falando sobre mim, Pablo lhe tinha dito que lidasse com aquele homem com cuidado, porque, coitado, era mesmo muito infeliz. E como ela lhe perguntasse o que o fazia pensar assim, ele tinha respondido: "Pobre tipo, pobre tipo... Olha para os olhos dele! Não sabe rir".

Quando o olho-moreno se despediu de nós e a música reco­meçou, Hermínia pôs-se de pé. "Agora talvez pudesses vir dan­çar comigo, Harry. Ou já não te apetece?"

Também com ela eu dançava agora com outra ligeireza, com desprendimento e alegria, embora não tão desinibido e abandonado como com aquela outra. Hermínia deixava-me conduzir, e moldava-se a mim ligeira e frágil como uma pétala de flor; e também nela eu encontrava e sentia agora todas aque­las maravilhas, ora insinuantes, ora fugidias, também ela tinha perfume de mulher e de amor, também a sua dança cantava do­ce e intimamente a terna e sedutora canção do sexo; - e, no en­tanto, eu não conseguia responder fi tudo isso com inteira liber­dade, com inteira satisfação, não conseguia esquecer-me e abandonar-me totalmente. Hermínia era-me demasiado próxi­ma, era a minha camarada, a minha irmã, minha igual, parecia­-se comigo próprio e com Hermano, o meu amigo de juventu­de, o sonhador entusiasta, o poeta, o companheiro efervescente dos exercícios e das intemperanças do meu espírito.

"Eu sei", disse-me ela depois, quando lhe falei nisso, "sei muito bem. Mas isso não tira, ainda hei-de fazer com que te apaixones por mim, não há é ,pressa nenhuma. Para já somos camaradas, pessoas que esperam tornar-se amigas, por se terem reconhecido. Para já vamos aprender um com o outro, e brin­car um com o outro. Eu mostro-te o meu teatrozinho, ensino-te a dançar e a ser um tudo-nada bem disposto e um tudo-nada idiota, e tu mostras-me os teus pensamentos e alguma coisa do teu saber".

"Ah! Hermínia, não há muito para te mostrar, sabes muito mais do que eu. És mesmo uma criatura notável, rapariga! Compreendes-me em tudo, em tudo me levas a dianteira. Serei realmente alguma coisa para ti? Não me acharás porventura en­fadonho?"

Com olhar ensombrado, ela fitou o chão.

            "Não gosto de te ouvir falar assim. Pensa na noite em que desesperado, desfeito, fugido da tua tortura e da tua solidão, me viestes sair ao caminho para te tornares meu camarada! Porque é que julgas então que eu nessa altura te consegui reco­nhecer e entender?"

"Porquê, Hermínia? Diz-me".

            "Porque sou como tu. Porque sou exactamente tão sozinha como tu, e não consigo gostar e levar mais a sério do que tu a vida, as pessoas e eu própria. Há sempre pessoas dessas, que exigem o máximo da vida e não conseguem acomodar-se à sua estupidez e crueza" .

"Ai, Hermínia, Hermínia!" exclamei, profundamente sur­preendido. "Eu entendo-te, camarada, não há ninguém que te perceba melhor do que eu. Mas não deixas de ser um enigma para mim. Tu que levas e comandas a vida como que a brincar, tu com aquela tua maravilhosa deferência pelas pequenas coisas e pelos pequenos prazeres, tu, artista como ninguém do saber viver - como é que podes sofrer com a vida? Como é que po­des desesperar?"

"Eu não desespero, Harry. Mas sofrer com a vida, nisso, sim, sou eu experimentada. Admiras-te que nao seja feliz dan­çando como danço e aguentando-me tão bem pela rama da vi­da. E eu, amigo, admiro-me que sejas tão desiludido da vida, tu que tão bem conheces e privas precisamente com as coisas mais belas e mais profundas: o espírito, a arte, o pensamento! É por isso que nos sentimos atraídos um para o outro, é por isso que somos irmãos. Vou-te ensinar a dançar, a brincar e a sorrir, sem que mesmo assim fiques satisfeito. E de ti vou aprender a pen­sar e a saber, sem que mesmo assim fique satisfeita. Sabes que somos os dois filhos do diabo?"

"Sim, é isso. O diabo é o espírito, e nós os seus filhos desgraçados. Precipitados para fora da natureza, pairamos suspen­sos no vazio. Mas agora me lembro de uma coisa: naquele trata­do do Lobo das Estepes, de que te falei, vem lá qualquer coisa mais ou menos a dizer que é pura ilusão de Harry julgar possuir uma ou duas almas, ser composto por uma ou duas personali­dades. Todas as pessoas têm em si dez, cem, mil almas".

"Gosto disso, muito, mesmo", exclamou Hermínia. "Em ti, por exemplo, o intelectual está altamente desenvolvido, mas em compensação estás muito atrasado na arte de viver, com to­dos os seus pequenos expedientes. O pensador Harry tem cem anos de idade, mas o dançarino Harry nem meio-dia sequer. É esse dançarino que vamos agora fazer progredir, e todos os seus irmãozinhos, que são tão garotos, tão parvos e tão imberbes co­mo ele".

Olhava-me com um sorriso. E, docemente, com voz altera­ da, perguntou:

"E então a Maria, agradou-te?"

"A Maria? Mas quem é ela?"

            "É aquela com quem tu dançaste. Uma rapariga bonita, bem bonita. Estavas um bocadinho embeiçado, se bem me apercebi" .

"Mas tu conhece-la, então?"

"Oh! sim, conhecemo-nos muito bem. Ficaste muito inte­ressado?"

            "Agradou-me, e fiquei satisfeito por ela ter sido tão indul­gente com um dançarino como eu".

"Que coisa! Só isso, mais nada?! Devias fazer-lhe um boca­dinho a côrte, Harry. Ela é linda, e dança maravilhosamente, e de qualquer maneira embeiçado já tu estás. Acho que te vais      sair bem".

"Oh!, não tenho pretensões dessas".

"Desta vez estás a mentir um bocadinho. Está bem, sei que algures no mundo tens uma amante e que estás com ela uma vez de seis em seis meses, para te pôres a discutir com ela. Fica-te muito bem quereres manter-te fiel a essa tua namorada, mas a mim permite-me que não te leve assim muitoa sério! Aliás, le­vas-me a suspeitar que tomas terrivelmente a sério o amor. Fá­-lo à vontade, podes amar lá ao teu jeito ideal quanto e como te apetecer, isso é lá contigo, eu não sou para aí chamada. Mas onde sou chamada, aí sim, é a ensinar-te melhor as pequenas artes, os jogos ligeiros da vida, nesse capítulo sou tua professo­ra, e vou ser melhor professora para ti do que a tua amada ideal alguma vez foi, isso te garanto eu! Estás a precisar imenso de voltar a dormir com uma rapariga bonita, Lobo das Estepes" .

"Hermínia!", lancei, aflito, "olha bem para mim, eu sou um velho!"

"Um rapazinho, é o que tu és. E da mesma maneira que não tiveste pressa nenhuma em aprender a dançar, a ponto de quase o fazeres tarde demais, assim também preguiçaste em aprender a amar. O amor ideal é trágico, amigo, esse conhece-lo tu .com certeza primorosamente, não duvido, e a isso levanto eu o meu chapéu! Mas agora vais aprender a amar também duma manei­ra mais prosaica, mais humana. O caminho está aberto, dentro de pouco tempo podemos deixar-te ir a um baile. Agora, para is,so, ainda te falta aprender o boston, e é isso que vamos come­çar amanhã. Vou ter contigo às três horas. A propósito, que tal te agradou a música aqui?"

"Adorei" .

"Vês, já é um progresso, aprendeste mais qualquer coisa;

Até agora não conseguias suportar toda esta música de dança, o jazz, não era suficientemente séria e profunda para ti; e agora percebeste que não é de todo preciso tomá-la a sério, e que até pode ser bem divertida, deliciosa, mesmo. Bem, aliás, se não fosse o Pablo,o conjunto não valia nada. É ele que o conduz, é ele que lhe dá o tom e o leva ao rubro" .

 

Assim como o gramo fone contaminava a atmosfera de ascé­tica intelectualidade do meu escritório, e as danças americanas irrompiam descabidas, perturbadoras, destrutivas, até, no refi­nado mundo da minha música, assim também na minha vida, antes tão rigidamente delineada e tão estritamente delimitada, de todos os lados irrompia algo de novo, de temível, de desagre­gante. O Tratado do Lobo das Estepes e Hermínia tinham ra­zão na sua teoria das mil almas; diariamente se revelavam em mim umas tantas novas almas, a juntar-se às antigas, fazendo exigências, celeuma; e, com a nitidez de uma imagem, aparecia­-me agora diante dos olhos a ilusão da minha anterior persona­lidade. Até então, limitara-me a fazer valer as tantas capacida­des e estudos em que por acaso era mestre, e pintava a imagem de um Harry que afinal nada mais era senão um especialista de formação bem rudimentar em poesia, música e filosofia - todo o resto da minha pessoa, todo o restante caos de faculdades, instintos, aspirações, eu tomara por incomodativo e rotulara com o nome de Lobo das Estepes.

No entanto, essa conversão do meu equívoco, essa desagre­gação da minha personalidade estavam longe de ser apenas uma agradável e divertida aventura, pelo contrário, muitas vezes eram amargamente dolorosas, outras tantas quase insuportá­veis. O gramo fone não raras vezes soava como algo de franca­mente diabólico no meio daquele ambiente, onde tudo estava afinado por diapasões tão diferentes. E às vezes, quando dan­çava os meus one-steps nalgum restaurante da última moda, en­tre elegantes figuras de budistas e disfrutadores da vida, afigu­rava-se-me ser agora traidor perante tudo aquilo que na vida sempre tivera por venerável e sagrado. Se Hermínia me tivesse deixado sozinho nem que fosse por oito dias, eu imediatamente teria fugido a todos aqueles esforçados e ridículos ensaios de vi­da de gozador e ocioso. Mas Hermínia não me largava; embora não a visse todos os dias, era ela que não deixava de me ver, de me acompanhar, de me vigiar, de me aconselhar - e até as mi­nhas enraivecidas ideias de revolta e fuga me lia no rosto, sem­pre com um sorriso nos lábios.

Com a progressiva destruição daquilo a que anteriormente chamava a minha personalidade, comecei também a compreen­der a razão por que, apesar de todo o meu desespero, eu sempre tivera um tal pavor da morte; e comecei a aperceber-me de que aquele atroz e vergonhoso receio da morte, também ele era uma fracção da minha antiga existência burguesa e hipócrita. Este Sr. Haller, o até então talentoso escritor, amador e especialista de Mozart e Goethe, o autor de meditações de leitura a não per­der sobre a metafisica da arte, sobre o génio e a tragédia, sobre a humanidade, o melancólico eremita na sua célula repleta de li­vros, via-se passo a passo entregue à auto-crítica, sucumbindo a cada golpe. Este interessante e dotado Sr. Haller tinha realmen­te pregado o bom-senso e a humanidade, e protestado contra a bestialidade da guerra; simplesmente, uma vez rebentada essa guerra, não se tinha deixado encostar à parede e fuzilar, como teria sido de esperar em verdadeira consumação do seu pensa­mento; antes encontrara uma qualquer forma de acomodação, altamente digna e nobre, claro está, mas para todos os efeitos um compromisso. Mais, - era inimigo do poder e da explora­ção, mas tinha depositadas no banco várias acções de empresas industriais, cujos dividendos consumia sem o menor peso na consciência. E em tudo era assim. Harry Haller tinha-se real­mente disfarçado maravilhosamente de idealista e desdenhador do mundo, de eremita sombrio e profeta trovejante, mas no fundo era sempre um burguês; considerava reprovável uma vi­da como a que Hermínia levava; censurava-se pelas noites des­perdiçadas no restaurante dançante, pelas notas de banco por lá delapidadas; sentia a consciência desassossegada, e não ansiava de modo nenhum pela sua libertação e pelo seu aperfeiçoamen­to, aspirando, pelo contrário, ardentemente, pelo regresso àconfortável época em que as suas brincadeiras intelectuais ain­da lhe davam gozo e angariavam fama. Assim também os leito­res de jornais que desprezava e escarnecia ansiavam regressar àépoca ideal do ante-guerra, porque isso lhes era mais cómodo do que tirar lições do sofrimento vivido. Fui! Era de fazer náu­seas, aquele Sr. Haller! E no entanto, eu agarrava-me a ele ou àlarva que dele já se desprendia, aos seus conquetismos como in­telectual, ao seu receio burguês do desregrado e do aleatório (a que a morte também pertencia) e, sardónico e invejoso, compa­rava o novo Harry em formação, este diletante algo envergo­nhado e ridículo dos salões de dança, com aquela antiga ima­gem de Harry, falseadamente ideal, em que entretanto desco­brira todos os infelizes traços que recentemente tanto tinham chocado aquele na água-forte de Goethe em casa do professor. Ele próprio, o velho Harry, fora exactamente um desses Goe­thes burguesmente idealizados, um desses heróis do intelecto de olhar demasiado sublime, imbuído de nobreza, espírito e huma­nidade, como pasta de brilhantina, e quase enternecido com a sua própria elevação de alma! Mas, com os diabos!, aquela en­cantadora imagem tinha-se degradado, como que esburacado miseravelmente, o ideal Sr. Haller fora lamentavelmente des­mantelado! Parecia como que um alto dignatário de calças es­farrapadas, surpreendido e despojado por salteadores de estra­da, que teria feito melhor em aprender desde logo o papel de maltrapilho, mas que em vez disso continuava envergando os seus andrajos como se estivessem ainda cobertos de condecora­ções, e reivindicando chorosamente a dignidade perdida.

Encontrava agora muitas vezes o músico Pablo, e acabei por ter de rever o conceito que dele tinha, quanto mais não fos­se pelo facto de Hermínia gostar tanto dele e procurar com tan­to empenho a sua companhia. Na minha memória, Pablo esta­va classificado como um agradável zero, um pequeno galã um tanto inchado de si, uma criança alegre e sem problemas, que bufa contente na sua corneta de feira e se deixa facilmente con­duzir com elogios e chocolates. Mas Pablo não queria saber das minhas opiniões, eram-lhe tão indiferentes como as minhas teo­rias musicais. Escutava-me delicada e amigavelmente, sempre com um sorriso nos lábios, mas nunca lhe ouvi uma verdadeira resposta. Em contrapartida, dir-se-ia que apesar de tudo eu lhe tinha despertado interesse, era visível que se esforçava por me agradar e me testemunhar simpatia. Quando eu, num desses vãos diálogos, me mostrei uma vez irritado, quase grosseiro, fi­tou-me atónito e triste, e, pegando-me na mão esquerda e afa­gando-ma, sacou de uma caixinha dourada e ofereceu-me qual­quer coisa para cheirar que, no seu dizer, me havia de fazer bem. Interroguei Hermínia com o olhar e, como ela assentisse com a cabeça, aceitei e cheirei. Realmente, daí a pouco sentia­-me refrescado e revigorado, provavelmente o pó tinha um pou­co de cocaína. Hermínia contou-me que Pablo possuía muitas daquelas drogas, angariadas por vias secretas, que de vez em quando oferecia aos amigos, e em cuja mistura e dosagem era mestre: drogas para acalmar as dores, para dormir, para dar bons sonhos, para dispor bem, para enamorar.

Uma vez encontrei-o na rua, para as bandas do cais, e logo, sem hesitar, veio ter comigo, ficando a acompanhar-me. Desta vez e finalmente consegui pô-lo a falar.

"Sr. Pablo", disse-lhe, vendo-o brincar com uma fina ben­galinha negra e prateada, "o Senhor é amigo da Hermínia, essa a razão por que me interesso por si. Mas tenho de confessar que não me faz a conversa propriamente fácil. Tentei várias vezes falar consigo sobre música - interessava-me ouvir a sua opi­nião, as suas objecções, o seu juízo; mas o Senhor não se tem dignado dar-me a mínima resposta" .

Rindo abertamente, do coração, e não se esquivando, por esta vez, à réplica, disse serenamente: "Sabe o Senhor, é que na minha opinião falar de música não serve para nada. Nunca falo de música. Por isso, o que é que havia de responder às suas pa­lavras tão inteligentes e tão acertadas? O Senhor tinha tanta ra­zão naquilo que dizia... Só que, repare, eu sou músico, não sou homem de estudos, e não creio que na música ter razão sirva se­ja para o que for. Na música, o que conta não é ter-se razão, ter gosto, instrução e essas coisas todas.

"Está bem. Mas então, o que é que conta?"

            "O que conta, Sr. Haller, é fazer música, é fazer música tanto quanto se puder! É isso, monsieur. Eu posso ter na cabe­ça as obras completas de Bach e de Haydn, e dizer as coisas mais inteligentes que há sobre isso, que ninguém vai beneficiar com elas. Agora, se eu pegar no meu tubo de sopro para tocar um shimmy bem aviado, cheio de ritmo, o shimmy pode ser bom ou mau, mas há-de arrebatar as pessoas, tomar-lhes as pernas e o sangue. É isso e só isso que conta. Há-de reparar um dia num salão de baile nas caras das pessoas no instante em que a música recomeça depois de um intervalo mais comprido ­são os olhos que faíscam, as pernas que estremecem, os rostos que se abrem a rir! É para isso que se faz música".

"Muito bem, Sr. Pablo. Mas não existe só a música sensual, também há a espiritual. Não existe unicamente aquela que se to­ca num determinado momento, há também a imortal, que conti­nua a viver, mesmo quando não está a ser tocada ali no momen­to. Basta que alguém esteja estendido na cama sem mais nin­guém e evoque mentalmente uma melodia da Flauta Mágica ou da Paixão segundo S. Mateus, para que aconteça música, sem para isso ser preciso um homem que fosse soprar numa flauta ou fazer vibrar as cordas de um violino".

"Sem dúvida, Sr. Haller. O Yearning e o Valência também são reproduzidos silenciosamente todas as noites por muita gente solitária e sonhadora; até a mais modesta das dactilógrafas no seu escritório trauteia na cabeça o último one-step, e matraqueia nas suas teclas esse ritmo. Estão na razão, toda essa gente solitá­ria; que fiquem todos à vontade com a sua música muda, seja el_ o Yearning, seja a Flauta mágica ou o Valência! Mas onde é que essa gente vai buscar essa sua música muda e solitária ? Vai bus­cá-la aos músicos; primeiro ela tem de ser tocada e ouvida, de­pois entra no sangue, e só depois uma pessoa pode levá-la para casa e pensar e sonhar com ela no quarto".

"De acordo" , disse eu, friamente. "No entanto não se pode de maneira nenhuma colocar Mozart e o último fox-trot no mesmo nível. E não é a mesma coisa apresentar às pessoas mú­

sica divina e imortal ou tocar-lhes música barata de ocasião".

Ao aperceber-se da exaltação da minha voz, Pablo apres­sou-se a tomar a sua expressão mais carinhosa e, apertando-me ternamente o braço, emprestou à sua voz uma incrível doçura.

"Ah!, meu caro Senhor, talvez nessa questão dos níveis te­nha muita razão. Não me oponho nada, claro está, a que colo­que Mozart e Haydn e o Valência nos níveis que a si lhe aprou­ver! A mim é-me completamente indiferente, não sou chamado a decidir sobre esses níveis, ninguém me pede isso. Talvez Mo­zart ainda seja tocado daqui a cem anos, e o Valência em dois anos saia do ouvido - julgo que é uma coisa que podemos pura e simplesmente entregar a Deus, ele é justo e tem na mão a lon­gevidade de todos nós, inclusive a de qualquer valsa ou fox­-trot, há-de com certeza fazer aquilo que for melhor. Mas nós, os músicos, temos de fazer o que nos compete, aquilo que é o nosso dever e a nossa missão: tocar aquilo que as pessoas mais desejam naquele preciso momento, e tocar com toda a qualida­de, beleza e insinuação de que formos capazes" .

Com um suspiro, desisti. Com aquele homem não havia na­da a fazer.

Havia momentos em que o velho e o novo, a dor e o prazer, o medo e a alegria se interpenetravam e misturavam em mim do jeito mais estranho. Tão depressa me achava no céu, como no inferno, a maior parte das vezes num e noutro ao mesmo tem­po. O velho Harry e o novo viviam ora em conflito dos mais acesos, ora em paz um com o outro. O velho Harry parecia às vezes morto, bem morto e enterrado, mas subitamente retoma­va vida, ordenava, tiranizava, sabia tudo como ninguém, e o novo, pequeno e jovem Harry, envergonhava-se, emudecia e deixava-se encostar à parede. Noutras alturas, era o jovem Harry que agarrava o velho pelo pescoço e braviamente acome­tia com a faca, e eram só gemidos, muito combate mortal, mui­tas evocações da lâmina de barbear.

Porém, muitas vezes, o sofrimento e a felicidade vinham so­bre mim como uma onda, a submergir-me. Foi um instante co­mo esse que vivi quando, poucos dias depois do meu primeiro ensaio de dança em público, de volta ao meu quarto-de-dormir, e para meu indizível espanto, perplexidade, susto e deleite, fui encontrar a bela Maria deitada na minha cama.

De todas as surpresas a que a Hermínia até então me tinha exposto, esta era a mais violenta. Sim, porque nem um instante duvidei que fosse ela a emissária desta ave do paraíso. Excep­cionalmente naquela noite eu não tinha estado com Hermínia, para ir assistir a um bom concerto de música religiosa antiga na catedral - uma excursão bela e saudosa à minha vida de outro­ra, à paisagem da minha juventude, ao território do Harry ideal. Na alta nave gótica da igreja, cujas lindas abóbadas en­trançadas pareciam vacilar como espectro nas frouxas luzes en­trecruzadas,escutara trechos de Buxtehude, Pachelbel, Bach e Haydn, voltara a trilhar os velhos e bem-amados caminhos, voltara a ouvir a soberba voz de uma cantora de Bach outrora minha amiga com quem vibrara em múltiplas e extraordinárias audições. As vozes da música antiga, a sua grandeza e santidade infinitas, ti:nham despertado em mim todos os entusiasmos, êx­tases e elevações da adolescência; triste e recolhido sobre mim próprio, ali estivera sentado no alto coro da igreja, transporta­do por uma hora àquele mundo sublime e bem-aventurado que outrora fora a minha pátria. Em pleno dueto de Haydn, as lá­grimas tinham-me subitamente acorrido aos olhos, e, sem espe­rar pelo final do concerto e renunciando a um reencontro com a cantora (oh!, quantos serões radiosos eu passara nessé tempo com os artistas depois desses concertos!), tinha-me esgueirado para fora da catedral e lançara-me a correr as vielas nocturnas onde aqui e ali, por trás das vidraças dos restaurantes-dançan­tes, bandas de jazz tocavam as melodias da minha vida actual. Oh! como a minha vida se fizera caos morno e turvo!

Durante esse passeio nocturno, reflectira longamente sobre o meu singular relacionamento com a. música, e reconhecera mais uma vez nesse elo tão funesto quanto era comovente o des­tino de todo o intelectualismo alemão.

O espírito alemão está dominado pelo direito materno, pelo acorrentamento à nature­za sob forma de uma hegemonia da música, como jamais algum povo conheceu. Nós, os intelectuais, em vez de nos insurgirmos virilmente contra isso e prestar obediência ao espírito, ao logos, ao verbo, e proporcionar-lhes meios de se fazerem ouvir, so­nhamos todos com uma linguagem sem palavras, que diga o inexprimível e represente o amorfo, não enformável. Em vez de tocar tão fiel e honradamente quanto possível o seu instrumen­to, o alemão intelectual sempre assestou a sua funda contra o verbo e a razão, e fez a côrte à música. E é na música, em prodi­giosas e celestiais construções melodiosas, em maravilhosos, re­quintados sentimentos e estados de alma, nunca impelidos para uma realização, que o espírito alemão se deleitou à exaustão, tendo negligenciado a maior parte das suas verdadeiras tarefas. Para nós, intelectuais, a realidade não era o nosso elemento, éramos-lhe estranhos e hostis; por isso também foi tão lamentá­vel o papel do espírito na nossa realidade alemã., na nossa histó­ria, na nossa política, na nossa opinião pública. Enfim, muitas vezes eu meditara nestes pensamentos, não sem de vez em quan­do sentir uma ânsia ardente de um dia poder participar na mo­delação da realidade, de um dia agir séria e responsavelmente, em vez de me quedar eternamente pelo terreno da estética e do artesanato intelectual. Mas tudo acabava sempre na resignação, na capitulação perante a fatalidade. Os senhores generais e os reis da indústria pesada tinham muita razão: nós, os "intelec­tuais", não servíamos para nada, éramos um bando de inteli­gentes e verbosos tagarelas, irresponsáveis, alheios à verdade e supérfluos. Fui! T'arrenego! Lâmina da barba!

Assim, cheio destes pensamentos e das ressonâncias da mú­sica, com o coração pesado de tristeza e de uma desesperada ân­sia de viver, de verdade, de sentido, do irreparavelmente perdi­do, tinha finalmente voltado a casa, subira as escadas, acendera o candeeiro da sala e em vão tentara ler um pouco, pensara no encontro que tinha marcado e que me obrigaria a ir na noite se­guinte dançar e beber uísque ao Cécil Bar, e sentira revolta e amargura, não só contra mim mesmo, como também contra Hermínia. Ela podia ter as melhores, as mais sinceras intenções deste mundo, podia ser a pessoa mais espantosa deste mundo - mas isso não importava, antes me tivesse deixado ir abaixo naquela altura, em vez de me arrastar e de me rebocar de um la­do para o outro, de cima para baixo, neste mundo desordena­do, estranho e fervilhante, onde de qualquer maneira eu seria para sempre um estranho, e onde aquilo que havia de melhor em mim definhava e se corrompia!

E assim, tristemente, apagara a luz, tristemente me dirigira para o quarto e tristemente começara a despir-me. De súbito e para minha perplexidade, senti nas narinas um desusado odor, cheirava ligeiramente a perfume; e foi então que, voltando­-me, deparei com a bela Maria deitada na minha cama, sorri­dente, um pouco desassossegada, com os seus olhos grandes e AZUIS.

"Maria!", exclamei.

E a primeira coisa que me ocorreu foi que a senhoria me despediria pela certa se soubesse disto.

            "Vim ter consigo", disse-me de mansinho. "Não me leva a mal por isso, não?"

            "Não, não. Eu sei, a Hermínia deu-lhe a chave. Óptimo, óptimo" .

            "Oh!, está mesmo zangado comigo. Eu vou-me já embora" .

"Não, Maria bonita, fique, fiique! Só que esta noite, preci­samente, sinto-me muito triste, hoje não vou conseguir estar alegre; talvez amanhã consiga, outra vez" .

Tinha-me inclinado ligeiramente para ela, e, de repente, ela tomou-me a cabeça entre as mãos grandes e firmes, e, puxando­-a para si, beijou-me longamente. Sentei-me então na cama, a seu lado, peguei-lhe na mão, pedi-lhe que falasse o mais baixo possível para que ninguém nos ouvisse, e ali fiquei de olhos bai­xados sobre aquele rosto belo e cheio que repousava na minha almofada, estranho e maravilhoso como uma grande flor. Len­tamente, levou-me a mão à suà boca, puxou-a para debaixo da roupa e pousou-a sobre o seu peito quente, que arfava tranqui­lamente.

"Não precisas de estar alegre", disse ela, "a Hermínia já me disse que andas com problemas. Isso qualquer pessoa vê. Mas diz-me lá, então já não sentes nada por mim? Há dias, a dan­çar, estavas todo entusiasmado!"

Beijei-lhe os olhos, a boca, o pescoço e os seios. Ainda há instantes pensara em Hermínia com azedume e reprovação. Agora tinha nas mãos uma prenda sua e estava-lhe grato por is­so. As carícias de Maria não feriam a maravilhosa música que eu acabava de ouvir, eram dignas dela, eram a sua consumação. Lentamente, retirei para o lado a roupa que encobria o formoso corpo de mulher, e avancei com os meus beijos até aos seus pés. Quando me deitei a seu lado, a flor do seu rosto abriu-me um sorriso cheio de bonomia e esperteza.

Nessa noite, ao lado de Maria, dormi pouco, mas profunda e tranquilamente como uma criança. E entre dois sonos bebia a sua bela e alegre juventude, e ia aprendendo em leve murmúrio muitas e preciosas coisas sobre a sua vida e a vida de Hermínia. Conhecia muito pouco daquele tipo de gente e de vida, só no teatro ocasionalmente me cruzara com existências semelhantes, tanto mulheres como homens, meios artistas, meios mundanos. Só agora descortinava um pouco destas extraordinárias vidas, estranhamente inocentes, estranhamente depravadas. Estas ra­parigas, nascidas na sua maioria em pobreza, demasiado esper­tas e bonitas para fazer assentar a sua vida exclusivamente num qualquer ganha-pão insípido e magramente retribuído, viviam todas, ora de algum trabalho de ocasião, ora dos seus encantos e sedução. Tão depressa passavam dois ou três meses diante de uma máquina de escrever, como outros tantos em amantes de mundanos abastados, recebendo dinheiro e presentes; tão de­pressa viviam em grandes hóteis, automóveis e peles, como em modestas mansardas; deixavam-se conquistar para o casamento por uma proposta vantajosa, mas em princípio não estavam mi­nimamente inclinadas para isso. Algumas faziam amor sem de­sejo, e era contra si próprias e regateando o melhor preço que finalmente concediam os seus favores. Outras, e Maria conta­va-se entre elas, eram invulgarmente dotadas e sequiosas no amor, entregando-se quase todas a práticas heterossexuais; vi­viam exclusivamente para o amor, e ao lado das amizades ofi­ciais do dinheiro, cultivavam sempre outras ligações amorosas. Assíduas e buliçosas, preocupadas e levianas, espertas mas ata­rantadas, assim viviam estas borboletas a sua vida tão infantil quanto requintada, independentes, não se vendendo ao primei­ro aparecido, esperando o melhor da sorte e do bom tempo, apaixonadas pela vida e no entanto menos agarradas a ela que os burgueses, sempre prontas a seguir um príncipe encantado até ao seu castelo, sempre cientes mas semi-inconscientes de um fim triste e sombrio.

Maria ensinou-me - naquela primeira, estranha noite e nos dias seguintes - muita coisa, não apenas jogos desconhecidos e maravilhosos, êxtases dos. sentidos mas também uma nova compreensão, novas perspectivas, um novo amor. O mundo dos dancings e centros de diversão, dos cinemas, dos bares e sa­lões de chá de hotel, que para mim, eremita e esteta, tinham ainda algo de inferior, proibido e degradante, era para Maria, Hermínia e as suas companheiras pura e simplesmente o mundo, o único mundo que havia; não era nem bom nem mau, nem admirável nem detestável, mas nele desabrochava e floria a sua vida breve e árida, nele se sentiam aclimatadas e experimenta­das. Apreciavam uma garrafa de champanhe ou uma especiali­dade recomendada no grill, como qualquer um de nós aprecia­ria um compositor ou um poeta; e gastavam no último êxito de música de dança ou na melodia sentimental e lamechas de um cantor de jazz o mesmo arrebatamento, emoção e enterneci­mento que nós dispensamos.a um Nietzsche ou a Hamsun. A certa altura Maria falou-me de Pablo, o belo saxofonista, e de um song americano que ele às vezes lhes cantava, e fê-lo com um entusiasmo, um fervor e um enlevo que me comoveram e transportaram bem mais que os êxtases de uma qualquer douta eminência a propósito dos prazeres artísticos mais selectos e re­quintados. Sentia-me predisposto a vibrar com ela, fosse como fosse aquele song; as acariciantes palavras de Maria, o seu olhar a desabrochar nostalgia rasgavam largas brechas na minha esté­tica. Existiam sem dúvida coisas belas, de uma beleza rara e se­lecta - a obra de Mozart em primeira linha - que me pare­ciam acima de qualquer debate ou dúvida, mas onde estava a fronteira? Não tínhamos nós, conhecedores e críticos, amado fervorosamente na nossa juventude artistas e obras de arte que hoje se nos afiguravam questionáveis e enfadonhas? Não era o que nos tinha acontecido em relação a Liszt, Wagner, e a mui­tos, até em relação a Beethoven? Aquele enternecimento infan­til e florescente de Maria pelo song americano não era uma vi­vência artística tão pura, bela e indubitavelmente sublime como o arroubo de um qualquer professor em face do Tristão e Isolda ou a exaltação de um maestro a dirigir a Nona Sinfonia? E aquilo não assentava curiosamente bem nas opiniões dos Sr. Pablo, não lhe vinha dar razão?

Este Pablo, este belo galã, parecia também estar bem dentro do coração de Maria!

"É um belo homem" , disse eu, "também gosto bastante de­le. Mas diz-me lá, Maria, como é que tu ao mesmo tempo me podes amar também a mim, que sou um velho jarreta chato, nada bonito e já com brancas a aparecer, que não sabe tocar sa­xofone nem cantar cantigas de amor em inglês?"

"Não digas disparates!" exclamou, reprovadora. "É a coi­sa mais natural que há, que diabo! Tu também me agradas, tu também tens qualquer coisa de belo, de querido e de especial, não tens nada de ser diferente daquilo que és. Não se deve falar dessas coisas e pedir contas. Vê bem, quando me beijas o pesco­ço ou a orelha, sinto que gostas de mim, que te agrado; tens uma maneira de beijar muito tua, assim um bocadinho tímida, e isso diz-me: ele gosta de ti, ele está-te grato por seres bonita. E eu gosto disso, muito, mesmo! O que não quer dizer que noutro homem não goste precisamente do contrário: que pareça não me ligar absolutamente nada e me beije como se me concedesse uma graça" .

Mais uma vez o sono nos veio tomar. E mais uma vez acor­dei, sem que tivesse deixado de a enlaçar nos meus braços, a flor linda, linda.

E, coisa esquisita! A bela flor, apesar de tudo, permanecia ainda como prenda das mãos de Hermínia! Por trás dela estava sempre Hermínia, dentro dela estava Hermínia, como que dis­farçada em máscara de Maria. Entretanto, subitamente, dei co­migo a pensar em Erika, a minha distante e perversa bem-ama­da, a minha pobre amiga. Era quase tão bonita como Maria, embora não tão viçosa e liberta, e mais modesta nos pequenos e brilhantes expedientes da arte amorosa: e, durante certo tempo, ela ali ficou diante de mim como uma imagem, nítida e doloro­sa, querida e profundamente entrelaçada no meu destino, para depois se esbater de novo no sono, no esquecimento, em lonju­ra semi-chorada.

E assim vi erguerem-se diante de mim, nessa noite linda e terna, múltiplos quadros da minha vida, eu que tão longamente vivera pobre, vazio e sem imagens. Agora, tocada pelo mágico poder de Eros, a fonte das imagens jorrava fértil e profunda, e por momentos o meu coração quedava-se de encanto e tristeza ao ver como era rica a galeria de retratos da minha vida, como era cheia de constelações altíssimas e astros eternos a alma do pobre Lobo das Estepes. Infância e mãe contemplavam-me, ternas e luminosas, como longínquos picos de montanha trans­portados ao azul infinito. Brônzeo e sonoro ressoava o coro das minhas amizades, encabeçado pelo fabuloso Hermano, irmão espiritual de Hermínia. Perfumadas e etéreas como nenúfares abrindo sobre a água, flutuavam diante de mim as imagens de muitas mulheres que eu tinha amado, desejado ou cantado, das quais apenas algumas eu atingira ou tentara possuir. A minha esposa também surgia, aquela com quem eu partilhara largos anos da minha vida, que me ensinara a camaradagem, o confli­to, a resignação, e em quem eu, apesar de todas as falhas e atri­tos do caminho, depositara uma profunda confiança, preserva­da até ao dia em que, louca e doente, ela me abandonara a uma fuga repentina, a uma revolta feroz; e apercebi-me de quanto a devia ter amado, e de quão sólido teria sido o elo que me ligava a ela, para que aquela traição à fé que nela tinha me pudesse ter ferido tão profundamente e abalado para toda a vida.

Aquelas imagens - e havia-as às centenas, com e sem no­mes - reapareciam-me todas as noites diante dos olhos, brota_ vam, jovens e regeneradas, da fonte dessa noite de amor; e eu de novo me capacitava daquilo que esquecera no meio da mi­nha miséria, sabia que eram valor e propriedade da minha vida e que permaneciam indestrutíveis, emoções cristalizadas em es­trelas - que eu podia esquecer mas não aniquilar - cuja cons­telação era a legenda, e o esplendor, preço indestrutível da mi­nha existência. A minha vida fora dura, extraviada e infeliz, conduzia à renúncia e à recusa, amargava pelo sabor do destino de toda a humanidade, mas era rica, fora rica e orgulhosa, so­berana mesmo, na sua miséria. Não importava que o pequeno troço que faltava trilhar até ao abismo fosse também por si la­mentavelmente desgarrado; o âmago dessa vida era nobre, e era uma vida com carácter, com raça, não se regateava o tostão, re­gateavam-se as estrelas.

Isso já lá vai há um certo tempo, e de então para cá muita coisa aconteceu e se modificou, já só me consigo lembrar de al­guns pormenores isolados dessa noite, palavras trocadas entre nós, gestos e atitudes de profunda meiguice amorosa, instantes estrelados em que despertávamos do pesado sono da lassidão do amor. Foi no entanto nessa noite que, pela primeira vez des­de a época da minha decadência, a minha própria vida me con­templava com olhos implacavelmente fulgurantes, onde voltei a reconhecer no acaso, o destino, nas ruínas da minha existência, um fragmento divino. De novo a minha alma respirava, os meus olhos se abriam, e, por instantes, tive a fervente revelação de que me bastava agarrar e reunir o mundo de imagens disper­sas, de elevar em imagem, como um todo, a minha vida de Harry Haller, Lobo das Estepes, para entrar eu próprio nesse mundo de imagens e me tornar imortal. Pois não era esse o ob­jectivo perante o qual toda e qualquer vida humana era mero ensaio e tentativa?

No dia seguinte, de manhã, depois de partilhar com Maria o meu pequeno-almoço, tive de fazê-la passar clandestinamente para fora de portas, o que consegui. Ainda nesse dia aluguei pa­ra os dois um quartinho num bairro ali próximo, apenas desti­nado aos nossos encontros.

A minha professora de dança, Hermínia, ia aparecendo conscienciosamente para as lições, e tive de aprender o boston. Severa e implacável, não me deixava perder uma única aula, visto que estava decidido que iria com ela ao próximo baile de máscaras. Tinha-me pedido dinheiro para o disfarce, sobre o qual entretanto se recusava a adiantar o mínimo pormenor. E continuava a ser-me vedado ir vê-la a sua casa ou mesmo saber onde morava.

Esse período de cerca de três semanas que antecedeu o baile de máscaras foi'para mim bálsamo indizível. Maria aparecia-me como a primeira e verdadeira amante que jamais tivera em toda a minha vida. Sempre exigira inteligência e cultura às mulheres que amara, mas jamais me apercebera inteiramente de que nem mesmo a mais brilhante e relativamente mais culta alguma vez dava resposta ao fogos em mim, antes se lhe opondo permanen­temente; transferia para elas os meus problemas e os meus pen­samentos, e ter-me-ia parecido totalmente impossível amar por mais de uma hora uma rapariga que mal tivesse lido um livro, que mal soubesse o que é a leitura e que não tivesse conseguido distinguir um Tchaikowsky de um Beethoven. Maria não tinha instrução, não precisava desses expedientes, desses mundos de ersatz, os seus problemas brotavam directamente dos seus senti­dos. Conquistar com os sentidos que lhe eram dados, com a sua própria figura, as suas cores, o seu cabelo, a sua voz, a sua pe­le, o seu temperamento,. todo o êxtase sensual e amoroso que lhe era possível; encontrar e fazer nascer no amante, por encan­tamento, resposta, entendimento e eco vivo e gratificante para cada um dos seus dotes, cada frémito ondulado das suas linhas, cada modelação supremamente delicada do seu corpo, essa sim, era a sua arte, essa a sua tarefa. Já daquela primeira vez que ti­midamente dançara com ela eu sentira isso, colhera aquele per­fume de sensualidade genial, deliciosamente requintada, e ficara enfeitiçado. Certamente não era por acaso que Hermínia,a om­nisciente, tinha posto Maria no meu caminho. O seu perfume e todo o seu cunho eram estivais, sabiam a rosa.

Eu não tinha a felicidade de ser o amante exclusivo ou pre­ferido de Maria, era um entre vários. Muitas vezes ela não tinha tempo para mim, às vezes uma hora durante a tarde, raras vezes uma noite. Não aceitava dinheiro meu, no que certamente an­daria a mão da Hermínia. Mas recebia com agrado presentes, e quando eu um dia lhe ofereci um pequeno porta-moedas em couro lacado a vermelho, permitiu-me que lá enfiasse duas ou três moedas de ouro. Aliás não me poupou a zombaria por cau­sa desse porta-moedas vermelho! Era bem jeitoso, mas já não se usava de todo, mais parecia da idade da pedra. Nesse domí­nio, que sempre fora chinês para mim, aprendi muito com Ma­ria. Aprendi antes de mais que esses brinquedos, esses objectos de luxo e da moda, eram mais do que bujigangas e pirosismos inventados por fabricantes e comerciantes gananciosos; eram justificados, belos, multi-facetados, eram um pequeno ou antes grande mundo de objectos cujo único fito era servir o amor, re­finar os sentidos e reavivar o universo inanimado, dotando-o magicamente de novos instrumentos de amor, do pó-de-arroz e perfume ao sapato de dança, do anel à caixa de cigarros, da fi­vela de cinto à carteira. Essa carteira não era carteira, o porta­-moedas não era porta-moedas, as flores não eram flores, o le­que não era leque; tudo era matéria plástica do amor, da magia, da sedução, tudo era mensagem, contrabandista, arma, grito de guerra.

Quem seria o verdadeiro eleito do coração de Maria? Pensa­va muitas vezes nisso. Julgo que quem ela mais amava seria o jovem Pablo, o saxofonista, com os seus olhos negros e perdi­dos e as suas mãos pálidas, nobres e melancólicas. No amor, te­ria imaginado esse Pablo um tanto adormecido, mimado e pas­sivo, mas Maria assegurou-me que embora fosse realmente di fi­cil de levar ao rubro, depois tornava-se mais tenso, mais duro, viril e exigente que qualquer pugilista ou jóquei. E assim eu ia descobrindo e registando coisas secretas sobre uns e outros, so­bre O músico de jazz, sobre o actor, sobre várias mulheres, mo­ças e homens do nosso meio; entrava em toda a casta de misté­rios, descortinava ligações e inimizades não visíveis à superfície e, lentamente, ia-me insinuando, acabando por ser absorvido (eu que nesse mundo fôra corpo estranho desligado de tudo e todos). Também vim a saber muita coisa sobre Hermínia. Mas quem eu agora encontrava com certa frequência era o Sr. Pa­blo, que Maria amava fervorosamente. De vez em quando tam­bém ela precisava das suas drogas secretas, proporcionando-me então a mim esses prazeres, e era com pressurosa solicitude que Pablo me vinha oferecer os meus préstimos. Um dia disse-me sem rodeios: "Você está tão infeliz! Isso não é bom, não se de­ve andar assim. Faz-me pena. E se fumasse um cachimbo de ópio, uma coisa ligeira?" A minha opinião sobre esse homem alegre, vivo, acriançado, mas insondável, alterava-se constante­mente, tornávamo-nos amigos, e não raras vezes eu aceitava to­mar um pouco daquilo que me oferecia. Algo divertido, ele ia assistindo ao meu embeiçamento por Maria. Um dia organizou uma "grande festa" no seu quarto, as águas-furtadas de um hotel da periferia. Só havia uma cadeira, e Maria e eu tivemos de nos sentar na cama. Ofereceu-nos uma bebida, uma mistura maravilhosa e misteriosa de licores vertidos de três garrafas. Depois, quando me viu francamente bem-disposto, propôs-me, de olho brilhante, celebrar uma orgia amorosa a três. Recusei abruptamente, era-me impossível embarcar numa coisa daque­las; no entanto, não resisti a um relance furtivo para Maria, cu­rioso de saber como reagiria, e embora ela aprovasse de imedia­to a minha recusa, não deixei de lhe notar um fulgor nos olhos, e adivinhei quanto lhe custava ter de renunciar. Pablo ficou de­sapontado com a minha recusa, mas não ofendido. "É pena", observou, "o Harry tem demasiados preconceitos morais na ca­beça. Não há nada a fazer. Mas tinha sido maravilhoso, mara­vilhoso! Não faz mal, tenho aqui uma boa compensação". Ca­da um de nós recebeu uma dose de ópio para fumar e, sentados e imóveis, de olhos abertos, ali vivemos todos três a cena por ele sugerida. Maria vibrava de êxtase. Quando pouco depois me sobreveio uma ligeira indisposição, Pablo deitou-me em cima da cama, deu-me umas gotas de remédio a beber e, quando por instantes fechei os olhos, senti pousar _m cada uma das pálpe­bras um beijo fugaz, pouco mais que um sopro. Acolhi-o como se julgasse vir de Maria. Mas sabia perfeitamente que era dele.

E uma noite surpreendeu-me ainda mais. Apareceu-me de repente em casa a dizer que precisava de vinte francos e que me vinha pedir esse dinheiro. Em troca, prescindia de Maria por es­sa noite e punha-a à minha disposição.

"Pablo!" , exclamei, estarrecido, "você não sabe o que está a dizer. Ceder a sua amante a um outro em troca de dinheiro, na nossa terra não há coisa mais vergonhosa! É como se não ti­vesse ouvido a sua proposta, Pablo".

Fixou-me compassivo. "Você não quer, Sr. Harry. Muito bem. Está sempre a criar-se dificuldades a si próprio. Mas en­tão, pronto, não durma esta noite com aMaria, se assim prefe­re, e dê-me na mesma o dinheiro, sem mais nada, depois hei-de devolver-lho. Preciso absolutamente dele".

"Mas para quê?"

            "Para o Agostino - sabe, aquele miúdo segundo violino. Já há oito dias que está doente, e não tem ninguém que trate de­le, não tem um tostão, e agora também eu já estou liso".

Por curiosidade e um pouco também para me penitenciar, acompanhei-o a casa de Agostino, uma mansarda miserável.

Deixou-lhe leite e remédios, sacudiu-lhe e ajeitou-lhe a roupa da cama, arejou-lhe o quarto e rodeou-lhe a cabeça febril com uma bela compressa, artisticamente preparada, tudo isso com a prontidão, a doçura e a perícia de uma boa enfermeira. Nessa mesma noite, vi-o tocar até de madrugada no City-Bar.

Com Hermínia eu conversava longa e detalhadamente sobre Maria, as suas mãos, os seus ombros, as suas ancas, a sua ma­neira de rir, de beijar, de dançar.

"Ela já te mostrou isto?" perguntou Hermínia uma vez, descrevendo-me um jeito especial da língua no beijo. Pedi-lhe que mo ensinasse ela própria, mas negou-se gravemente. "Lá chegaremos", disse ela, "para já ainda não sou tua amante".

Quis saber como era possível que estivesse familiarizada com a arte de beijar de Maria e certas particularidades íntimas da sua vida, apenas conhecidas do amante.

"Oh!" exclamou ela, "mas então nós não somos amigas? Julgas tu que íamos ter segredos entre nós? Já dormi e brinquei com ela bastantes vezes. Mas é assim, coube-te em sorte uma bela rapariga, ela sabe mais que as outras".

"Mas estou em crer, Hermínia, que ainda há-de haver coi­sas que vocês escondem uma da outra. Ou também já lhe con­taste tudo o que sabes de mim?"

"Não, isso é um assunto à parte, são coisas que ela não ha­via de compreender. A Maria é espantosa, tiveste ,sorte, mas en­tre mim e ti há coisas de que ela nem sequer faz ideia. Falei-lhe muito de ti, claro, muito mais do que tu na altura terias gostado - eu tinha de a aliciar para ti! Mas compreender-te, amigo, co­mo eu te compreendo, isso nem a Maria nem nenhuma outra te há-de alguma vez compreender. Mesmo assim, houve pormeno­res a teu respeito que foi ela a revelar-me - estou informada sobre a tua pessoa pela medida em que a Maria te conhece. Co­nheço-te quase tão bem como se tivéssemos dormido juntos vá­rias vezes".

Quando voltei a encontrar-me com Maria, senti estranheza e mistério ao consciencializar-me de que ela tivera Hermínia bem junto ao coração, como agora me tinha a mim, que palpa­ra, beijara, saboreara e experimentara os seus membros, os seus cabelos e a sua pele, como agora fazia comigo. Surgiam diante de mim relações e ligações novas, indirectas, complicadas, no­vas perspectivas de amor e de vida - e pensei nas mil almas do Tratado do Lobo das Estepes.

 

No breve período que mediou entre o dia em que conheci Maria e o grande baile de máscaras, andei francamente feliz, sem contudo jamais experimentar uma sensação de desprendi­mento libertador, uma bem-aventurança alcançada; pelo con­trário, estava perfeitamente ciente de que aquilo não passava de um prelúdio, de uma preparação, que tudo pressionava violen­tamente para a frente, que o real ainda estava para vir.

Entretanto, tinha aprendido tão bem a dançar que já me pa­recia possível participar no baile, baile esse que cada vez andava mais nas bocas de toda a gente. Hermínia tinha o seu segredo, insistia, inflexível, em não me revelar qual o disfarce em que iria aparecer. Eu havia de reconhecê-la, de certeza, dizia ela, e se por acaso não conseguisse, ela me ajudaria, mas até lá eu não podia saber nada. Do mesmo modo se mostrava de todo desin­teressada em relação aos meus planos de vestimenta; e resolvi não me mascarar, pura e simplesmente. Quanto a Maria, quan­do a quis convidar para o baile, declarou-me que para essa festa já tinha acompanhante, aliás até já tinha recebido o cartão de entrada, e eu percebi, não sem algum desapontamento, que te­ria de ir sozinho. Era o baile de máscaras mais bem cotado da cidade, organizado todos os anos pela associação dos artistas nos salões do Hotel do Globo.

Durante esses dias, raramente vi Hermínia, mas na véspera do baile bateu-me à porta - vinha buscar o bilhete que eu tinha arranjado -; e deixou-se ficar algum tempo, amenamente sen­tada no meu quarto; e foi então que avançamos por uma con­versa que me pareceu bastante estranha e me impressionou mes­mo profundamente.

"Realmente já andas com outro aspecto, até pareces outro", disse ela, "a dança põe-te como novo. Quem não te ti­vesse visto há um mês, mal te reconheceria" .

            "É" , confessei, "há anos que não me sentia tão bem. Tudo isso graças a ti, Hermínia".

            "Oh!, e a tua bela Maria, não conta?"

            "Não. Ela própria também foi presente teu. É uma maravi­lha" .

"É a amante de que estavas a precisar, Lobo das Estepes. Bonita, nova, bem-disposta, sabida no amor e nem sempre acessível. Se não a tivesses de partilhar com outros, se ela não fosse sempre para ti uma companhia passageira, as coisas não andariam tão bem" .

Era assim mesmo, também isso tinha de admitir.

            "Portanto, agora, vistas as coisas, tens tudo aquilo de que precisas, não?"

"Não, Hermínia, não é assim. Tenho uma coisa muito bela, espantosa, uma grande alegria, uma consolação bem-aventura­

  1. Sou francamente feliz..."

            "E então! O que é que queres mais?"

            "Quero mais. Ser feliz não me satisfaz, não sou talhado pa­

ra isso, não é esse o meu destino. O meu destino é o contrário" .

"O quê, ser infeliz? Bem, isso tiveste tu e à farta, na altura em que já não conseguias voltar para casa por causa da lâmina de barbear" .

"Não, Hermínia, é outra coisa, não vês? Nessa altura, está bem, eu andava pelas ruas da amargura; mas isso era uma infe­licidade idiota, estéril".

            "Mas porquê?"

            "Porque de outra maneira não me teria visto forçado a te­mer daquela maneira a morte, receio esse que no entanto eu de­sejava! A infelicidade de que careço e por que anseio é diferen­te; é de molde a fazer-me sofrer com avidez e a morrer com vo­lúpia. É essa a infelicidade ou felicidade que aguardo" .

"Estou a perceber. Nisso somos irmãos. Mas o que é que tens contra a felicidade que agora encontraste com a Maria? Porque é que não estás satisfeito?"

"Não tenho nada contra essa felicidade, isso não; amo-a, e estou-lhe grato. É bela como dia de sol em verão chuvoso. Mas sinto que não pode durar. Também é uma felicidade estéril. Traz-me satisfeito, mas a satisfação para mim não é alimento. Adormece o Lobo das Estepes, sacia-o. Mas não é felicidade             para se morrer por ela" .

"Mas então é mesmo preciso morrer, Lobo das Estepes?" "Sim, creio que sim. Estou muito satisfeito com a minha fe­licidade, ainda a posso suportar por bastante tempo. Só que, quando essa felicidade às vezes me deixa respirar uma hora, pa­ra despertar a consciência e sentir nostalgia, então toda essa saudade se orienta, não para conservar sempre essa felicidade, mas para voltar a sofrer, apenas mais esplendorosa e menos modestamente que dantes. Tenho sede de um sofrimento que me dê disposição e vontade de morrer".

Hermínia olhou-me ternamente nos olhos, com aquela ex­pressão sombria que tão subitamente lhe aparecia. Que olhos espantosos e terríveis! Lentamente, escolhendo uma a uma as palavras e colocando-as uma a uma pela ordem certa, disse ­tão de mansinho, que tive de me esforçar para ouvi-la:

"Hoje tenho uma coisa para te dizer, uma coisa que já sei há muito tempo, e que tu também já sabes, só que talvez não te­nhas ainda dito a ti próprio. Vou-te dizer agora aquilo que sei sobre ti e sobre o nosso destino. Tu, Harry, foste um artista e um pensador, um homem cheio de alegria e confiança, sempre em demanda do sublime e do eterno, nunca satisfeito com o be­lo e o medíocre. Mas quanto mais a vida te despertou e te reve­lou a ti próprio, maior se tornou o teu mal, mais fundo te enter­raste, e até ao pescoço, no sofrimento, na angústia e no deses­pero; e todas as coisas belas e sagradas que outrora conheceste, amaste e veneraste, toda a tua antiga fé nos homens e no nosso destino elevado, se revelaram impotentes para te ajudar, perde­ram o valor e desfizeram-se em pedaços. A tua fé já não tinha ar para respirar. E a asfixia é uma morte cruel. Não é assim, Harry? Não é esse o teu destino?"

Baixando a cabeça,- fiz que sim, sim, sim...

            "Tinhas dentro de ti uma imagem da vida, uma crença, uma

exigência, estavas predisposto a feitos, sofrimentos e sacrifícios - e depois, pouco a pouco, foste reparando que o mundo não te exigia nenhum feito, nenhum sacrifício, e coisas do género, que a vida não é nenhuma epopeia, com papéis de heróis e coi­sas assim, mas uma boa sala burguesa, onde comer e beber, to­mar café e tricotar meias, pegar num baralho de tarocco e ouvir rádio bastam para contentar a gente. E quem quiser outra coisa e a tiver dentro de si, o heróico e o belo, a veneração pelos gran­des poetas ou a adoração dos santos, é um imbecil e um Don Quixote. Bem. E comigo passou-se exactamente a mesma coisa, meu amigo! Eu era uma rapariga bem dotada, destinada a viver por altos padrões, a fazer-me a mim própria grandes exigências, a desempenhar missões nobres e dignas. Podia chamar a mim um papel de sorte grande, sei lá, ser mulher de um rei, amante de um revolucionário, irmã de um génio, mãe de um mártir. Mas a vida não me permitiu ir além de cortesã de gosto sofrivelmente bom - e mesmo aí as coisas não me foram facilitadas! Foi assim a mi­nha história. Primeiro andei inconsolável, durante um certo pe­ríodo, e ainda durante muito tempo procurei a culpa em mim própria. Em última análise, pensava, será sempre a vida que tem razão, e se a vida zombava dos meus sonhos bonitos, então esses sonhos é que deviam ser idiotas e descabidos. Mas isso não aju­dava nada. E como eu tinha bons olhos e bons ouvidos, e além disso era um bocado curiosa, pus-me a observar com toda a aten­ção a vida, a pretensa, assim chamada vida, os meus amigos, os meus vizinhos, mais de umas cinquenta pessoas e destinos, e aí, Harry, o que é que vi? Que os meus sonhos estavam certos, co­mo os teus também. E a vida, a realidade, essa não estava certa. Que uma mulher do meu género não encontrasse outra saída se­não envelhecer diante de uma máquina de escrever ao serviço de um magnate dos negócios, ou casar com um ricaço desses pelo seu dinheiro, ou então tornar-se uma espécie de prostituta, isso estava tão pouco certo como uma pessoa como tu, solitária, fe­chada e desesperada, não ver outra saída senão o recurso à lâmi­na da barba. No meu caso, a miséria talvez fosse mais material e moral, no teu era mais espiritual mas o caminho era o mesmo. Julgas que não consigo compreender o teu receio do fox-trot, a tua renitência pelos bares e pistas de dança, o teu horror à músi­ca de jazz e a todas essas porcarias? Percebo até bem demais, as­sim como também percebo a tua repugnância pela política, o teu desencanto pelo paleio e pelas actuações ostensivas e irresponsá­veis dos partidos e da imprensa, o teu desespero perante a guer­ra, tanto pela que houve como pela que há-de vir, perante a ma­neira como hoje se pensa, se lê, se constrói, se faz música, se ce­lebram festividades, se fabrica o sistema de educação! Razão tem-la tu toda, Lobo das Estepes, mil vezes razão, mas mesmo assim tens de desaparecer. És demasiado exigente e esfomeado para um mundo como o de hoje, simples, cómodo e contente com tão pouco, é esse mundo que t_ vomita para fora, tens para ele uma dimensão a mais. Quem quer viver e disfrutar da sua vi­da nos nossos dias, não pode ser uma pessoa como tu ou eu. Para quem requer música em vez de barulheira, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, trabalho puro em vez de ac­tivação, paixão pura em vez de brincadeira, este mundo lindíssi­mo não é pátria..."

Olhou para o chão, pensativa.

            "Hermínia", exclamei, ternamente, "irmã minha, como são bons e gentis os teus olhos! E no entanto foste tu que me en­sinaste o fox-trot! Mas como é que tu vês isto: achas que pes­soas como nós, pessoas com uma dimensão a mais, não podem viver aqui? Mas qual será a razão? Será um fenómeno exclusi­vamente dos nossos dias? Ou terá sido sempre assim?"

"Não sei. A bem da dignidade do mundo, quero crer que se­ja apenas do nosso tempo, que não passe duma doença, duma desgraça momentânea. Os líderes trabalham valorosa e vitorio­samente na próxima guerra, e nós, entretanto, vamos dançan­do o fox-trot, ganhando dinheiro e chupando bombons - nu­

ma época como a nossa, o mundo realmente não podia ter as­pecto mais digno, mais razoável.. Esperemos que houvesse ou­tras épocas melhores, e que outras venham a haver, melhores também, mais ricas, mais vastas, mais profundas. Mas isso não nos adianta nem nos atrasa. E quem sabe se não foi sempre as­sim...

"Sempre assim como agora? Sempre um mundo só para os políticos, os escroques e os trapaceiros, os criados de café e os disfrutadores da vida, e sem ar para as pessoas?"

"Pois é, não sei, e ninguém sabe. Aliás pouco importa. Mas agora, meu amigo, veio-me à ideia o teu bem-amado, de que me tens falado algumas vezes e até lido cartas, o Mozart. Como es­tavam as coisas, no tempo dele? Quem é que governava o mun­do, arrebanhava sempre o melhor, dava o tom e pontuava algu­ma coisa: Mozart ou os obreiros dos negócios, Mozart ou as pessoas simples e comezinhas de todos os dias? E como é que ele morreu e foi enterrado? Por isso creio que provavelmente terá sido sempre assim e sempre assim há-de ser, e aquilo a que na escola se chama "história universal" e que nos obrigam lá a aprender de cor, para nos instruirmos, com todos aqueles he­róis e génios, aqueles feitos e sentimentos elevados - não passa de uma intrujice inventada pelos mestres para haver ensino e para que os miúdos andem ocupados com alguma coisa durante aqueles anos regulamentares. Sempre foi assim, e sempre assim há-de ser: o tempo e o mundo, o dinheiro e o poder, pertencem aos pequenos, aos comezinhos, e os outros, os verdadeiros ho­mens, não possuem nada. Nada, excepto a morte" .

"Nada a não ser isso?"

"Sim, têm a eternidade".

"Queres dizer o nome, a glória para a posteridade?" "Não, Lobinho, não é a glória - então a glória tem algum valor? Acreditas por acaso que todos os homens verdadeira­mente grandes, acabados, se tornaram célebres e ficaram para a posteridade?"

"Não, claro que não" .

"Portanto, não se trata de glória. A glória só existe para o ensino, é um assunto dos mestres de escola. Não é a glória, não! É aquilo a que eu chamo a eternidade. Os crentes chamam-lhe o reino de Deus. Ponho-me a pensar: nós, que somos todos ho­mens, nós os mais exigentes, os nostálgicos, os que têm uma di­mensão a mais, não conseguiriamos de todo viver se fora da at­mosfera deste mundo não houvesse um outro ar para respirar, se para lá do tempo não existisse ainda a eternidade, e essa eternida­de é o reino do verdadeiro. É a ela que pertencem a música de Mozart e os versos dos teus grandes poetas, a ela pertencem os santos, que fizeram milagres, sofreram e morreram como márti­res e deram um grande exemplo aos homens. Mas à eternidade pertencem igualmente a imagem de toda a acção verdadeira, a força de todo o sentimento verdadeiro, mesmo que ninguém dê conta deles, os veja, os registe e os guarde para a posteridade. Na eternidade não há vindouros, só há contemporâneos".

"Tens razão", disse eu.

"Os crentes", prosseguiu ela, pensativa, "mesmo assim es­tiveram mais avançados do que os outros nesse conhecimento. por isso instituiram os santos e aquilo a que chamam a 'comu­nhão dos santos'. Os santos, esses são os verdadeiros homens, os irmãos mais novos do Salvador. É para eles que caminhamos durante toda a nossa vida, com cada boa acção que fazemos, cada pensamento corajoso, cada amor. Antigamente, a comu­nhão dos santos era representada pelos pintores num céu doira­do, bela, radiosa, serena - não é outra coisa senão aquilo a que há pouco chamei "eternidade". É o reino situado para além do tempo e da aparência. É a ele que nós pertencemos, é lá que fica a nossa pátria, é nesse sentido que gravita o nosso cora­ção, Lobo das Estepes, e por isso nós ansiamos pela morte. Hás-de lá reencontrar o teu Goethe é o teu Novalis e o teu Mo­zart, e eu os meus santos, o Cristóvão, o Filipe de Néri e todos os outros. Há muitos santos que começaram por ser grandes pe­cadores, sim, Porque o pecado também pode abrir o caminho àsantidade, o pecado e o vício. Vais-te rir, mas muitas vezes po­nho-me a pensar que o meu amigo Pablo também podia ser um santo camuflado. Ah! Harry, temos de topar em tanta porcaria e tanto absurdo até chegarmos à nossa terra! E não temos nin­guém que nos conduza, o nosso único guia é a nostalgia da nos­sa terra".

Estas últimas palavras de novo as proferira num murmúrio, ao mesmo tempo que uma atmosfera de paz e tranquilidade in­vadia a sala; o sol, prestes a pôr-se, fazia luzir as letras doura­das nas lombadas dos muitos livros da minha biblioteca. To­mando nas mãos a cabeça de Hermínia, beijei-a na fronte e en­costei a sua face à minha, fraternalmente; assim ficamos certo tempo. Teria preferido continuar assim e não sair mais nesse dia. Mas Maria tinha-se guardado para mim nessa noite, véspe­ra do grande baile.

No caminho para o encontro, no entanto, não pensava em Maria, apenas me ocupavam as palavras que ouvira a Hermí­nia. Queria-me parecer que talvez não fossem os seus próprios pensamentos, mas os meus, que aquela clarividente teria lido e inspirado e devolvido depois moldados numa outra forma, apa­recendo-me eles agora como novos diante de mim. Aquilo que eu mais profundamente lhe agradecia naquela hora era ter ex­primido o pensamento da eternidade. Precisava dele, sem ele não podia viver nem morrer. Recebera hoje da minha amiga e mestra de dança a dádiva do além sagrado, do intemporal, do mundo do valor eterno e da substância divina. Não pude deixar de pensar no meu sonho com Goethe, na figura do velho sábio que rira tão desumanamente e se lançara em imortal brincadeira comigo. Só agora eu compreendia o riso de Goethe, o riso dos imortais. Era sem objecto, esse riso, era apenas luz, claridade, era aquilo que resta quando um homem verdadeiro passou pe­los sofrimentos, vícios, erros, paixões e mal-'entendidos da hu­manidade e conseguiu alcançar o eterno, o universal. E a 'eter­nidade" não era outra coisa senão a libertação do tempo, era de certo modo o seu regresso à inocência, a sua refundição em es­paço.

Tinha combinado encontrar-me com Maria no restaurante onde costumavamos jantar nas nossas noites em comum, mas ela ainda não tinha chegado. Ali fiquei à espera na pequena tas­ca da periferia, sentado diante de uma mesa posta, com o pen­samento ainda cheio da nossa conversa. Todas as ideias que en­tão haviam surgido entre mim e Hermínia me pareciam tão fa­miliares,. tão intimamente conhecidas, tão talhadas da minha mitologia, do meu mundo mais particular de imagens! Os imor­tais, tal como vivem no espaço intemporal, ali transportados, feitos imagem, a eternidade cristalina vertida qual eter em seu redor, e a alegria frígida deste mundo extra-terrestre, brilhando como estrela - onde é que eu me tinha familiarizado com tudo aquilo? Reflecti, e vieram-me à ideia passagens das Cassations de Mozart, do Cravo bem temperado de Bach; por toda a parte nessa música julguei ver luzir essa fria claridade astral, cintilar essa luminosidade etérea. Sim, era isso, essa música era qual­quer coisa como tempo congelado em espaço, e sobre ela palpi­tava infinitamente uma jovialidade sobre-humana, um riso eterno e divino_ Oh! sim, e o velho Goethe do meu sonho assen­tava também lindamente ali! E de repente, ouvi em meu re­dor aquele riso insondável, ouvi rir os imortais. Enfeitiçado, ali fiquei preso ao assento; enfeitiçado ainda, puxei do lápis de dentro do bolso, procurei papel, dei com a lista dos vinhos na minha frente, virei-a de costas e pus-me a escrevinhar, escrevi­nhei versos que só no dia seguinte voltei a encontrar no bolso. Eram assim:

 

                 OS IMORTAIS

Do fundo dos vales terrestres, continuamente,

Até nós sobem os vapores do impulso da vida,

Miséria bravia, ébria abundância,

Fumo sangrento de mil festins de verdugos,

Espasmo de volúpia, desejos sem fim,

Mãos de assassinos, mãos de usurários, mãos de prece,

Multidão humana flagelada pelo medo e pela luxúria,

Exalando podridão quente, abafante e crua,

Respirando felicidade, ardor selvagem,

Devorando-se e vomitando-se,

Parindo guerras e artes,

Em sonhos decorando a casa de prazer em chamas

Entrelaçando-se, consumindo-se, prostituindo-se

Pelas delícias de feira do seu mundo infantil,

Em cada um renascendo das ondas cada dia

Para depois se desfazer em fétido excremento.

Em gelo de eter, perpassado de luz astral,

Encontramo-nos nós, afinal,

Onde não há homens nem mulheres, nem novos nem velhos,

Onde não se conhecem nem dias nem horas.

Os vossos pecados e as vossas angústias,

Os vossos crimes e miseráveis deleites,

São para nós espectáculo de sóis em rotação, Cada dia é para nós o mais longo. Tranquilos, sorrindo à vossa vida palpitante,

Tranquilos, olhando os astros em rotação constante,

Respiramos o inverno do espaço universal,

Somos amigos do dragão celestial;

Imóvel e glacial é a nossa existência infinita,

Estelar e glacial o nosso riso eterno.

 

Pouco depois chegava Maria, e após uma animada refeição encaminhei-me com ela para o nosso quartinho. Nessa noite, pareceu-me mais bela, ardente e efusiva do que nunca; e fez-me disfrutar ternuras e jogos que eu sentia serem provas de supre­mo abandono.

"Maria", disse eu, "hoje estás pródiga como uma deusa. Não nos mates completamente, porque amanhã, não te esque­ças, há o baile de máscaras. Quem é que vais ter como galã a acompanhar-te, amanhã,? Tenho bastante medo, minha florzi­nha querida, que seja um príncipe de conto de fadas e que te deixes arrebatar por ele e nunca mais ninguém te veja. Hoje es­tás a fazer amor comigo quase como fazem os bons amantes na despedida, da última vez que se vêem" .

Colando os lábios à minha orelha, sussurou:

"Não digas isso, Harry! Cada vez pode ser a última. Quan­do a Hermínia te levar, já não voltas para mim. Quem sabe se ela não te leva já amanhã!"

Nunca experimentei tão intensamente como naquela noite antes do baile a sensação característica daqueles dias, aquela dupla emoção estranhamente agri-doce. Era felicidade, aquilo que eu sentia: a beleza e o abandono de Maria, aquele saborear, palpar, respirar de mil sensualidades preciosas e requintadas que eu tão tardiamente, entrando já na idade, aprendera a co­nhecer, aquele espraiar regalado em onda doce e embaladora de volúpia. E, no entanto, aquilo não passava de uma concha: por dentro, tudo era cheio de significado, tensão, destino; e en­quanto eu amorosa e ternamente me entretinha com as gostosas e tocàntes ninharias do amor, aparentemente transbordando, nadando em amena felicidade, sentia no coração o meu destino desarvorar vertiginosamente, precipitando-se, em desnorteado e escoiceante galope, qual cavalo espantado, na direcção do abismo, rumo à queda, cheio de angústia, de nostalgia, de abandono à morte. Assim como eu ainda recentemente resisti­ra, tímido e amedrontado, à doce ligeireza do amor puramente sensual, do mesmo modo que sentira receio perante a risonha beleza de Maria, pronta a oferecer-se, assim também experi­mentava agora receio da morte - mas era um receio já ciente de uma breve transformação em entrega e libertação.

Enquanto silenciosamente mergulhávamos nos diligentes jogos do nosso amor, pertencendo um ao outro mais fervorosa­mente do que nunca, a minha alma ia-se despedindo de Maria, despedindo de tudo aquilo que ela representara para mim. Através dela, eu aprendera a confiar-me uma última vez antes do fim, infantilmente, aos jogos de superfície, a procurar as alegrias mais efémeras, a ser criança e animal na inocência do sexo - estado que eu apenas conhecera, ao longo da minha vi­da anterior, em casos raros e excepcionais, porque para mim. a vida dos sentidos e o sexo sempre haviam tido o sabor amargo da culpa, o gosto doce mas angustiante do fruto proibido, pe­rante o qual um homem intelectual se deve acautelar. Agora, Hermínia e Maria tinham-me mostrado aquele jardim na sua inocência, e eu fôra o visitante reconhecido; - mas breve che­gara a altura de partir para mais longe, sentia-me demasiado aconchegado, demasiado bem naquele jardim. Estava-me desti­nado bater-me ainda mais pela coroa da vida, expiar ainda mais o infinito pecado da vida. Vida fácil, amor fácil, morte fácil ­isso não era para mim.

Alusões várias das moças levavam-me a crer que se prepara­vam para o baile do dia seguinte, ou para depois da festa, delei­tes e deboches especialíssimos. Talvez fosse esse o fim, quem sa­be se Maria não teria razão no seu pressentimento de que era a última vez que assim estávamos estendidos lado a lado na mes­ma cama, quem sabe se o destino não inverteria marcha já ama­nhã? Sentia-me tomado de uma ardente nostalgia, uma angús­tia sufocante; e, selvaticamente, agarrei-me a Maria, percorri mais uma vez, sequioso e inflamado, os atalhos e espessuras do seu jardim, mordi mais uma vez à boca cheia o fruto da árvore do paraíso.

 

Recuperei o sono perdido dessa noite no dia seguinte, pela manhã fora e tarde adentro. Mal me levantei, enfiei-me no ba­nho, depois, mortalmente cansado, voltei para casa. Fechei tu­do para fazer o quarto escuro e começando a despir-me, dei com o meu poema no bolso e esqueci-o instantes depois; deitei­-me de seguida, esquecendo Maria, Hermínia e o baile de más­caras, e dormi todo o dia. Quando acordei, já a noite tinha caí­do, e só ao fazer a barba me lembrei de que o baile já começava daí a uma hora, e que tinha de me ataviar em traje de cerimó­nia. Aprontei-me bem-disposto e saí, decidido a ir primeiro co­mer qualquer coisa.

Era o primeiro baile de máscaras em que tomava parte. Não quer dizer que noutros tempos não tivesse assistido a festas des­sas, chegando mesmo a achar-lhes certo encanto; só que, não dançando, apenas lá estivera como espectador, e o entusiasmo com que ouvia os outros falar delas, a excitação com que eram aguardadas, sempre ine tinham parecido um tanto cómicos. Ora hoje o baile também para mim era um acontecimento, que eu esperava com ansiedade e não sem angústia. Como não tinha dama a acompanhar, decidi ir só bastante mais tarde, aliás tam­bém por recomendação de Hermínia.

Nestes últimos tempos, raramente tinha entrado no Capace­te de Aço, meu antigo refúgio, onde os maridos desenganados dissipavam os serões sorvendo vinho e brincando aos solteiros; já não condizia com o estilo da minha vida actual. Mas nessa noite senti-me naturalmente impelido para lá. Naquela disposi­ção de alegria e angústia, destino e despedida que ultimamente me ia invadindo, todas as estações e marcos distintivos dami­nha vida ganhavam aquele brilho dolorosamente belo do passa­do, e assim era com aquele restaurantezinho enevoado do taba­co, onde eu ainda há pouco era recebido como freguês assíduo, onde ainda há pouco o rudimentar estupefaciente de uma gar­rafa de vinho caseiro teria bastado para que conseguisse deitar­-me por mais uma noite na minha cama solitária, suportar por mais um dia a vida. Desde então tinha provado outras drogas, aliciantes mais poderosos, saboreara venenos mais insinuantes. Com um sorriso nos lábios, entrei na velha casa, acolhido pelas boas-vindas da patroa e o cumprimento de cabeça dos clientes silenciosos. Serviram-me um frango assado previamente reco­mendado, e no bojudo copo artesanal correu o jovem e claro vi­nho da Alsácia; as asseadas mesas de madeira branca, a vetusta e amarelenta parede de painéis olhavam-me com afabilidade. E enquanto comia e bebia, sentia crescer em mim aquela sensação de emurchecimento, de despedida, aquela sensação doce e dolo­rosamente profunda de uma aderência, um apego - jamais to­talmente rompido, mas abeirando-se agora do ponto de ruptura - a todos os cenários e objectos da minha vida antiga. O ho­mem "moderno" chama a isso sentimentalismo; já não aprecia os objectos, nem mesmo aquilo que tem de mais sagrado, o seu automóvel, que só espera poder trocar o mais breve possível por uma marca melhor. Este homem moderno é realmente vi­vo, hábil, são, frio e rijo, é um tipo formidável; há-de dar pro­vas magníficas na próxima guerra. A mim isso não me dizia na­da, eu não era um homem moderno nem tão-pouco um bota­-de-elástico, tinha-me precipitado para fora do tempo e pairava nas franjas da morte, a ela votado. Não tinha nada contra o sentimentalismo, estava feliz e agradecido por ainda experimen­tar no meu coração causticado qualquer coisa que minimamen­te se assemelhava a um sentimento. Abandonei-me, portanto, às recordações do velho restaurante, ao meu apego às cadeiras velhas e toscas; abandonei-me ao cheiro do fumo e do vinho, ao fulgor de hálito, de calor, de evocação da pátria que tudo aqui­lo tinha para mim. Dizer adeus é bom, suaviza a disposição. Como gostava daquele meu assento duro, do meu copo rústico, do travo fresco, temperado a fruta, do vinho da Alsácia, da mi­nha intimidade com tudo e todos naquela sala, dos rostos dos bebedores sonhadoramente recolhidos, dos desencantados de quem muito tempo fôra irmão! Eram sentimentalismos burgue­ses que eu ali sentia, ligeiramente acondimentados com uns po­zinhos de romantismo caduco de cervejaria dos tempos de ado­lescente, quando a taberna, o vinho e o charuto ainda eram ta­bus misteriosos e aliciantes. Mas nenhum Lobo das Estepes se erguia a arreganhar-me os dentes e desfazer em farrapos os meus enternecimentos. Ali fiquei tranquilamente, inflamado pelo passado, pela frouxa irradiação de um astro entretanto ex­tinto.

Apareceu um vendedor ambulante com castanhas assadas, e comprei-lhe uma mão-cheia delas. Apareceu uma velha a ofere­cer-me flores, comprei-lhe dois ou três cravos e ofereci à pro­prietária. Só quando ia para pagar e em vão buscava com a mão a habitual algibeira do casaco voltei a aperceber-me de que esta­va vestido a rigor. O baile de máscaras! Hermínia!

Mas ainda era cedíssimo, não conseguia decidir-me a ir já para o Globo. Aliás experimentava, como me vinha acontecen­do em todos os divertimentos dos últimos tempos, sensações várias de resistência e inibição, uma relutância em entrar em grandes salas, atulhadas de gente e barulho, um acanhamento de miúdo de escola perante a atmosfera estranha, perante o mundo da diversão e do ócio, perante a dança.

Nas minhas deambulações, passei à porta de um cinema, vi cintilar feixes de luz e gigantescos cartazes coloridos, avancei mais uns passos, fiz meia volta e entrei. Bela ideia, poder ali fi­car tranquilamente sentado na escuridão até cerca das onze ho­ras. Conduzido pela lanterna do arrumador, atravessei as corti­nas e avancei aos tropeções pela sala escura, dei com um lugar e de repente achei-me em pleno Velho Testamento. O filme era uma daquelas super-produções de grande estadão de gastos e requintes, realizado, como é voz corrente, não para ganhar di­nheiro, mas com intuitos mais sublimes, sagrados, e onde os professores de religião, às matinés, levam os seus alunos. Re­presentava-se a história de Moisés e dos Israelitas no Egipto, com um portentoso manancial de homens, cavalos, palácios, esplendores faraónicos e tormentos judaicos espraiados pelas ardentes areias do deserto. Vi Moisés, penteado um pouco à maneira de Walt Whitman, um magnífico Moisés de teatro, correndo o deserto adiante dos Judeus, fogoso e sombrio, a passo de gigante, apoiado no longo bastão. Vi-o orar a Deus, suplicante, nas margens do Mar Vermelho, e vi o Mar Verme­lho apartar-se em dois abrindo um caminho, passagem estreita entre paredes de água estancada (os meios utilizados pelos ci­neastas para realizar tal prodígio eram tema de interrogações e debate entre os confirmandos levados a esse filme pelo seu pas­tor); vi passar o profeta e o povo cheio de temor; vi aparecer mais atrás os carros de combate do faraó; vi os Egípcios estacar e confundir-se às beiras do mar, e depois abalançar-se valorosa­mente em frente, e vi as paredes de água juntarem-se e abate­rem-se sobre o esplêndido faraó, couraçado em ouro, e todos os seus carros e soldados, não podendo deixar de evocar um mara­vilhoso dueto de Handel para dois baixos onde esse aconteci­mento é magnificamente glorificado. Depois vi Moisés subir ao Sinai, sombrio herói em sóbria aridez de penhascos, e Jeová que lhe comunicava os Dez Mandamentos, através de temporal, trovoada e sinais luminosos, enquanto o povo indigno, no sopé do monte, erguia um altar ao vitelo de ouro, entregando-se a práticas de diversão bastante selvagens. Parecia-me estranho e inacreditável estar ali a assistir a coisas daquelas assim naqueles moldes, de ver representar assim, contra bilhete de entrada, as histórias santas, os seus heróis e os milagres, que tinham feito pairar sobre a nossa infância a primeira réstea de suspeita de um outro mundo, de algo de sobre-humano; e tudo aquilo dian­te de um público agradecido que ainda mastigava a última trin­ca da bucha de casa - pequena e encantadora amostra do gi­gantesco refugo, dos formidáveis saldos de civilização da nossa época. Meu Deus!, para evitar essa sujeira, antes tivessem desa­parecido naquela altura, com os Egípcios, os Judeus e todos os outros homens, mas de morte violenta e digna, não desta sinis­tra morte aparente, de meias-tintas, com que acabamos hoje. Assim mesmo, pois então!

As minhas secretas inibições, o meu inconfessado receio do baile de máscaras em nada haviam amainado com o cinema e a inerente distracção, antes se tinham desagradavelmente reforça­do; e tive de me sacudir a mim próprio, pensando em Hermínia, para finalmente me resolver a ir para o Hotel do Globo e entrar na festa. Fizera-se entretanto tarde, e o baile há muito atingira o seu auge; não contagiado ainda, e envergonhado, imediata­mente me vi arrebatado, mesmo antes de ter deixado o casaco, num impetuoso tumulto de máscaras, e eram toques e empur­rões familiares daqui e dacolá, mulheres fazendo-se convidadas para uma visita à mesa do champanhe, palhaços a bater-me no ombro e a tratar-me por tu. Indiferente a quaisquer avanços, abri caminho penosamente através das salas transbordantes de gente, até chegar ao vestiário, e mal recebi a ficha como meu número, enfiei-a com todo o cuidado na algibeira, na ideia de que provavelmente pouco faltaria para voltar a precisar dela, quando me enfastiasse de toda aquela confusão.

Por toda a parte no grande edifício reinava um ambiente de festa, dançava-se em todas as salas, mesmo na cave, todos os corredores e escadas estavam submersos em máscaras, dança, música, risos e perseguições. Apertado e abafado, ia-me esguei­rando por entre a multidão, da orquestra negra até à música al­deã, do grande e fulgurante salão central para os corredores, as escadas, os bares, os bufetes, os balcões de espumante. As pare­des haviam sido encobertas quase por inteiro com bárbaras e bem-dispostas telas de artistas nascentes. Havia ali de tudo, ar­tistas, jornalistas, letrados, homens de negócios e, como não podia deixar de ser, o círculo de mundanos da cidade. Numa das orquestras fui encontrar o Mister Pablo, bufando empolga­do no seu canudo chanfrado; quando deu por mim, cantou-me alto e bom som a sua saudação de boas-vindas. De todos os la­dos acotovelado e empurrado ao sabor da turba, tão depressa me achava numa sala, como noutra, tão depressa subia as esca­das, como voltava a descê-las; um corredor na cave tinha sido transformado e decorado pelos artistas em inferno, onde uma banda de demónios se debatia e contorcia freneticamente, co­mo cães raivosos, em gritaria musical. Pouco a pouco, comecei a espiar à direita e à esquerda em busca de Hermínia e Maria, e lancei-me em sua procura, tentando várias vezes abrir caminho até ao salão principal, mas falhando sempre o rumo, ou tendo de remar contra a maré dos presentes. À meia-noite ainda não tinha encontrado ninguém; embora ainda não tivesse dançado, já sentia calor e tonturas; e deixei-me abater sobre a primeira cadeira, entre gente totalmente estranha, mandei vir vinho e ob­servei com os meus botões que festas de balbúrdia como aquela não eram para um pobre velho como eu. Resignado, bebi o co­po de vinho, e detive-me a contemplar as costas e os braços des­nudados das mulheres, os múltiplos e grotescos travestis que passavam voltejantes diante de mim, deixando-me acotovelar de um e de outro lado, e recambiando silenciosamente as rapa­rigas que faziam menção de se sentar nos meus joelhos ou dan­çar comigo. "Ai, que velho mais chato, desmancha-prazeres!" lançou uma delas, e cheia de razão. Resolvi beber, para me in­suflar um pouco de coragem e boa-disposição, mas nem o vi­nho me sabia bem, e mal consegui acabar o segundo copo. Pou­co a pouco, fui-me apercebendo de que o lobo das estepes se er­guia por trás de mim, de língua estendida para fora. Não havia nada afazer, eu estava deslocado ali. Tinha vindo na melhor das intenções) mas não conseguia chamar a mim a alegria dos outros, aquela animação de ruído e buliço; as gargalhadas e to­da aquela balbúrdia à minha volta pareciam-me estúpidas e afectadas.

E foi assim que, por volta da uma hora, desiludido e furio­so, me esgueirei por entre o tumulto até ao vestiário, para enfiar o casaco e ir-me embora. Era uma derrota, um resvalar reinci­dente para o terreno do Lobo das Estepes, que Hermínia segu­ramente não me perdoaria. Mas eu não podia fazer outra coisa. No caminho para o bengaleiro, penosamente aberto através da turba, ainda percorrera mais uma vez com os olhos toda aquela gente, na esperança de encontrar uma das minhas duas amigas. Mas em vão. E ali estava agora ao balcão, com o delicado em­pregado já de mão estendida a pedir-me o número; rebusquei a algibeira - e a ficha não estava lá! C'os diabos!, só faltava es­sa! Mais de uma vez, .durante as minhas tristonhas deambula­ções pelas salas, ou quando entre uma e outra me sentava à mesa do vinho insípido, tinha levado a mão ao bolso, debatendo-me contra aquela vontade premente de sair dali, e sempre lá sentira a ficha redonda e chata. E agora tinha desaparecido. Estava tu­do contra mim!

"Perdeste o número?" perguntou junto de mim um diabre­te vermelho e amarelo, numa voz estridente. "Toma lá, cama­rada, podes ficar com o meu" , continuou, estendendo-me já a mão com a ficha. E enquanto eu, maquinalmente, a aceitava e rolava entre os dedos, já a pequena e ligeira criatura tinha sumido.

Mas quando cheguei perto dos olhos a pequena moeda re­donda de cartão para ler o número, não vi algarismo nenhum, em seu lugar surgiam uns rabiscos escrevinhados em miúdo. Pe­di ao empregado que esperasse, e aproximei-me do lustre ao la­do para decifrar os gatafunhos. A ficha dizia, em letrinhas vaci­lantes, difíceis de identificar:

 

Hoje à noite a partir das quatro horas: Teatro Mágico

- Só para Loucos ­-

Preço de entrada: a razão.

Não para todos. Herminia está no inferno.

 

Como uma marioneta cujo fio o animador por instantes dei­xou escapar das mãos se reanima após um breve desfalecimen­to, um crispado embotamento, e retoma o seu lugar na cena, dançando e actuando, assim eu me lancei, preso pelo fio mági­co, jovem, maleável e sôfrego, para o tumulto de onde ainda hápouco, lasso e desconsolado, me evadira. Nunca um pecador teve igual pressa em se ver no inferno. Instantes antes os meus sapatos de verniz apertavam-me, a atmosfera densa e perfuma­da enjoava-me, o calor acabrunhava-me; agora, ali estava cor­rendo ligeiro pelas salas, de asas nos pés, ao ritmo do one-step, rumando ao inferno; sentia encanto e magia no ar, deixava-me embalar e transportar pelo calor, pelo furor de toda aquela mú­sica, pela vertigem das cores, pelo doce odor dos ombros femi­ninos, pela embriaguês da multidão, pelo riso, pelo ritmo da dança, pelo fulgor de todos aqueles olhos incendiados. Uma bailarina espanhola veio lançar-se como que em vôo nos meus braços: "Dança comigo!" - "Não pode ser", disse eu, "tenho que fazer no inferno. Mas um beijo teu levo com muito prazer". A boca vermelha meio encoberta pela máscara veio ao meu encontro, e foi então que, naquele beijo, reconheci Maria. Enlacei-a estreitamente nos meus braços, e os seus lábios cheios abriram-se como uma rosa deverão. E dançávamos já, com os lábios ainda unidos, e o rodopio arrastava-nos para as bandas de Pablo, amorosamente inclinado sobre o seu saxofone, meigo e ululante e, radioso e meio ausente, o seu belo olhar animales­co vinha envolver-nos. Mas mal tínhamos feito uns vinte pas­sos, a música parou, e contrariado, tive de libertar Maria do meu amplexo.

"Bem gostava de dançar mais uma vez contigo", disse eu, embriagado pelo seu calor, "anda dar uns passos comigo, Ma­ria, estou apaixonado pelo teu braço lindo; cede-mo ainda por um instante! Mas, sabes, é que a Hermínia chamou-me. Ela es­tá no inferno" .

"Era isso que eu pensava. Adeus, Harry, hei-de guardar-te sempre no coração" . Era a despedida. Despedida, outono, des­tino - esse era o cheiro do perfume maduro e desabrochado da rosa de verão.

Continuei correndo adiante de mim, através de longos cor­redores cheios de deliciosos apertos, e a correr desci as escadas que levavam ao inferno. Lá estavam os fachos de luz crua e ata­cante flamejando nas paredes negras de azeviche, e a demonía­ca orquestra tocando febrilmente. No bar, sentado num tambo­rete, deparei com um belo adolescente sem máscara, de casaca, que logo me inspeccionou num relance fugaz e zombeteiro. O redemoinhar da dança tinha-me encostado à parede, eram cerca de vinte pares no apertado recinto. Ávida e angustiadamente, ia percorrendo com os olhos, uma a uma, todas as mulheres; qua­se todas envergavam ainda o disfarce, algumas sorriam-me, mas nenhuma era Hermínia. Do alto do seu tamborete, o belo adolescente observava-me, trocista.

Logo que haja um interva­lo, pensei, ela vem ter comigo e leva-me. Mas a dança acabou e ela não apareceu.

Dirigi-me para o bar, encurralado no fundo do exíguo com­partimento. Postei-me ao lado da cadeira do jovem e pedi um uísque. Enquanto bebia, observei o perfil do rapaz, que me pa­recia ter algo de familiar e atraente, assim como uma imagem de época longínqua, preciosa através do silencioso e poeirento passado. Oh!, e de repente fez-se luz em mim: era Hermano, o meu amigo da adolescência!

"Hermano!", exclamei, hesitante. Sorriu. "Harry? Encontraste-me?"

Era Hermínia, apenas penteada de maneira um pouco dife­rente e ligeiramente maquilhada; o seu rosto vivo sobressaía, es­tranho e lívido, do moderno colarinho engomado; as suas mãos emergiam singularmente pequenas das amplas mangas negras da casaca, a acabar nos punhos brancos; os seus pés apareciam à boca das longas calças pretas com esquisita graciosidade, en­voltos em peúgas de homem pretas e brancas.

"É com esse disfarce que me queres fazer apaixonar por ti,

Hermínia?' ,

"Até agora", respondeu, assentindo, "ainda só apaixonei umas tantas senhoras. Mas agora é a tua vez. Vamos primeiro beber uma taça de champanhe".

Assim fizemos, encavalitados nos nossos tamboretes, en­quanto à nossa volta a dança prosseguia e a música de cordas se espraiava dilatada, ardente e violenta. E, sem que Hermínia pa­recesse esforçar-se sequer minimamente, daí a pouco eu estava enamorado por ela. Como vestia traje masculino, estava-me ve­dado dançar com ela, permitir-me qualquer carícia, qualquer avanço; e ao mesmo tempo que aparecia distante e neutra no seu travesti masculino, envolvia-me em olhares, palavras e ges­tos carregados de todas as seduções da sua feminilidade. Sem mesmo lhe ter tocado, sucumbi ao seu encanto, e esse mesmo encanto residia e permanecia no seu papel, era um encanto her­mafrodita. Porque ela falava-me de Hermano e da infância, mi­nha e sua, daqueles anos anteriores à puberdade em que a jo­vem pujança amorosa não abraça apenas os dois sexos mas tu­do e todos, o espírito e os sentidos, a tudo emprestando a magia do amor e o dom lendário e fabuloso da transmutação, que só em idades mais avançadas volta a aparecer, nos eleitos e nos poetas. Representava na perfeição o seu papel de rapaz, fuma­va cigarros e cavaqueava com graça e espírito, por vezes com le­ve sarcasmo; mas tudo isso era perpassado de Eros, tudo se transformava, no caminho para os meus sentidos, em requinta­da sedução.

Como se revelava totalmente nova e diferente, naquela noi­te, a Hermínia que eu julgara conhecer tão bem como a mim próprio! Como era doce e imperceptível a ansiada rede que ia tecendo e apertando à minha volta, como sereia artificiosa dan­do-me a beber o veneno delicioso!

Ali estivemos sentados conversando e bebendo champanhe. Depois partimos em deambulação pelas salas, observando da­qui e dali, como aventurosos exploradores, espreitando o jogo amoroso dos pares que detectávamos. Ela apontava-me mulhe­res com quem me fazia dançar, dando-me conselhos sobre as artes de sedução a aplicar com esta ou aquela. Armávamo-nos em competidores, dedicando-nos algum tempo a cortejar a mesma mulher, dançando alternadamente com ela, embora procurando conquistá-la. E no entanto, tudo isso não passava de um jogo mascarado, de um jogo entre nós os dois, que mais intimamente nos entrelaçava, que nos incendiava um para o ou­tro. Tudo era conto de fadas, jogo, símbolo, tudo ganhava mais uma dimensão, se aprofundava em mais um sentido. Vi­mos uma mulher jovem muito bela com ar desconsolado e um pouco sofredor: Hermano foi dançar com ela, fê-la desabro­char, desapareceu com ela para um esconso de caixotes de champanhe e contou-me depois que a tinha conquistado não em homem mas em mulher, pela magia de Lesbos. Para mim, entretanto, toda aquela casa ressonante cheia de salas em ani­mado e ruidoso baile, toda aquela enchente delirante de másca­ras se ia tornando, pouco a pouco, alucinante paraíso de sonho onde eu colhia, uma a uma, as flores mais perfumadas, e afaga­va, brincando, com dedos provadores, os frutos que me apare­ciam no caminho; da sombra verde da espessura espreitavam-me serpentes de olhar tentador; da água negra dos pântanos emer­giam flores de lótus; aves fantásticas gritavam das ramagens, em chamamento; no entanto, tudo isso não fazia senão conduzir-me a um único objectivo desejado, tudo me recarregava de nostalgia pelo único. A dada altura dancei com uma rapariga desconheci­da, ardentemente, ferventemente; transportei-a ao delírio e em­briaguês, e, enquanto vogávamos no irreal, desatou subitamente a rir e lançou-me: "Já nem pareces o mesmo, outra vez. Há bo­cado estavas tão parvo, tão chocho!" E reconheci-a então: era aquela que horas antes me tinha atirado à cara: "Ai, que velho mais chato, desmancha-prazeres!" Julgava ela que me tinha des­ta vez para si, mas na próxima dança já eu tinha desencantado outra por quem de novo me inflamava. Dancei duas horas segui­das ou mais, ininterruptamente, uma música atrás da outra, mes­mo aquelas que nunca chegara a aprender. E Hermano, o jovem sorridente, continuamente surgia a meu lado, a fazer-me sinal, para de novo desaparecer no turbilhão.

Nessa noite de baile foi-me dado viver uma experiência que em cinquenta anos se mantivera desconhecida para mim, embo­ra para qualquer estudante ou menina de liceu não fosse novi­dade: a experiência da festa, o arroubo da solidariedade, da co­munhão no folguedo, o mistério da dissipação do indivíduo na multidão, da união mística da alegria. Tinha ouvido falar nisso muitas vezes, não havia criado de quarto que não soubesse o que isso era; e muitas vezes vira iluminar-se os olhos de quem mo contava, reagindo com um sorriso meio superior, meio in­vejoso. Aquele fulgor no olhar inebriado de um homem trans­portado, desligado de si próprio, aquele sorriso, o arrebata­mento meio demente daquele que floresce na embriaguês da co­munidade, vira-o eu centenas de vezes na vida em exemplos no­bres e inferiores, tanto em recrutas e marujos bêbados como em grandes artistas, porventura no entusiasmo de representações sumptuosamente aplaudidas, e não menos em jovens soldados partindo para a guerra; e ainda há bem pouco tempo tinha ad­mirado, amado, e invejado, e sorrido também a esse fulgor, es­se sorriso de êxtase beatífico na pessoa do meu amigo Pablo,

pendurado sobre o saxofone no delírio da música, ou fixando encantado e estático, o maestro, o homem do tambor, o toca­dor de banjo. Costumava pensar que um sorriso desses, cente­lha radiosa de criança, não era possível senão em pessoas muito jovens ou povos que não se permitiam uma individualização e uma diferenciação marcantes. Mas hoje, nesta noite venturosa, era eu próprio, Lobo das Estepes Harry, que irradiava esse sor­riso, que nadava nessa felicidade profunda, infantil, de conto de fadas, que respirava esse sonho, esse arroubo de fusão e co­munhão, música, ritmo, vinho e volúpia, cujo elogio eu tantas vezes ouvira, em épocas passadas, da boca de algum estudante, a propósito do baile da véspera, com um esgar de sarcasmo e la­mentável superioridade. Eu já não era eu, a minha personalida­de diluira-se no auge da festa como sal em água. Dançava com esta ou aquela mulher, mas não era só ela que enlaçava nos bra­ços, cujo cabelo me afagava, cujo perfume eu inalava, eram to­das as outras mulheres que vogavam na mesma sala, na mesma dança, na mesma música que eu, e cujas faces radiosas paira­vam adiante de mim como grandes flores fantásticas; todas me pertenciam, e eu a todas pertencia, todos éramos parte uns dos outros. E os homens também tinham assento ali, também eles me não eram alheios, o seu sorriso era o meu, a sua luta a mi­nha, a minha luta a sua.

Uma nova dança, um fox-trot intitulado Yearning tinha conquistado o mundo nesse inverno. Esse Yearning era tocado vezes sem fim e bisado outras tantas por insistência do público, e todos nos sentíamos impregnados, embriagados por aquela música, cuja melodia íamos entoando a compasso. Eu dançava ininterruptamente, com qualquer mulher que na altura me aparecesse pela frente, raparigas novinhas, mulheres jovens, botões a abrir, outras cheias e maduras como fruto de verão, outras ainda em dolorosa desfolhada: e cada uma me fazia cativo, ri­sonho, feliz, radiante. Quando Pablo me viu assim rejubilante, eu que ele sempre tinha encarado como um pobre diabo de me­ ter dó, os seus olhos encheram-se de uma imensa alegria, fais­cando a contemplar-me; levantando-se de um salto do meio da orquestra, agarrou violentamente no instrumento e, pulando para cima da cadeira, largou a tocar de bochecha inflada, em­balando-se selvatica e ditosamente a si e ao saxofone ao ritmo do Yearning; e eu e o meu par atiramos-lhe beijos com a mão e acompanhávamo-lo cantando em voz alta. Ah! pensei eu a da­do momento, pouco importa o que me venha a acontecer, ao menos uma vez também eu me senti feliz, radioso, liberto de mim próprio, irmão de Pablo, criança!

Tinha perdido a noção do tempo, não sei quantas horas ou instantes terá durado aquela inebriante felicidade. Nem reparei que, à medida que a festa se ia tornando mais ardente, mais se ia estreitando o espaço a que se confinava. A maior parte dos convidados já tinham saído; nos corredores reinava o silêncio, e muitas das luzes estavam apagadas; a escada estava deserta, co­mo morta, e nas salas do segundo andar, as orquestras, uma após outra, tinham emudecido e partido; só no salão principal e lá em baixo, no inferno, fervilhava ainda o colorido delírio da festa, alimentando-se sempre de mais calor, de nova chama. Como não podia dançar com Hermínia, o adolescente, só pas­sageiramente, no intervalo entre uma e outra dança, nos tínha­mos encontrado e saudado; e, por fim, ela escapara-se-me com­pletamente, não só da vista, como do pensamento. Pensamen­tos era coisa que já não havia. Nadava, desprendido, diluído, no alucinado turbilhão dançante, aflorado por perfumes, sons, suspiros e palavras, abordado e inflamado por olhos estranhos, rodeado de caras, lábios, faces, braços, seios, joelhos estra­nhos, lançado para lá e para cá como uma onda ao compasso da música.

De repente, meio desperto por um instante, distingui entre os últimos convidados que por ali se atardavam e agora en­chiam a apinhar uma das salas mais pequenas, a última onde a música ainda ressoava - descobri uma Pierrete negra com a ca­ra pintada de branco, uma rapariga linda e fresca, a única que ainda trazia máscara a cobrir o rosto, figura encantadora com que eu não me tinha cruzado durante toda a noite. Enquanto que em todas as outras a hora tardia se fazia notar, pelos rostos vermelhos afogueados, os fatos amarrotados e descompostos, os colarinhos e folhos de renda definhados, sem graça, a negra Pierrete aparecia nova e fresca com o seu rosto branco encober­to pela máscara, sem uma única ruga no traje, com o folho da gola intacto, os punhos de renda imaculados e o penteado im­pecável. Senti-me atraído para ela, e enlaçando-a, arrebatei-a na dança. O seu perfume inundava-me, a sua gola vinha fazer­-me cócegas no pescoço, os seus cabelos afagavam-me a face, o seu jovem corpo tenso vinha ao encontro dos meus movimentos com uma ternura e uma intimidade não encontradas em ne­nhum dos meus outros pares dessa noite, esquivava-se-lhes, co­mandava-os e, brincando, aliciava-os a contactos sempre no­vos. De repente, quando eu no meio da dança me inclinei para com os meus lábios procurar os seus, a sua boca abriu-se num sorriso superior e bem familiar, e reconheci aquele queixo fir­me, reconheci com alegria aqueles ombros, aqueles cotovelos, aquelas mãos. Era Hermínia, já não Hermano, diferentemente vestida, fresca, .levemente perfumada e empoáda. Ardentemen­te, os nossos lábios encontraram-se; durante instantes, todo o seu corpo, até aos joelhos, se colou contra mim, com abandono e desejo; depois subtraíu a sua boca ao beijo, dançando reser­vada e esquiva. Quando parou a música, ali ficamos de pé, abraçados, enquanto à nossa volta todos os pares, inflamados, aplaudiam, batiam com os pés e gritavam, fustigando a exte­nuada orquestra para nova rodada do Yearning. E de um mo­mento para o outro, todos sentimos a manhã que chegara, avis­tamos a pálida claridade por trás das cortinas, pressentimos o fim próximo do prazer, adivinhamos o cansaço latente e, mais uma vez, redobradamente, nos lançamos a estalar de rir, cega­mente, desesperadamente, na dança, na música, no mar de luz, rodopiando, atordoadamente, ao ritmo da melodia, sentindo mais uma vez a bênção daquela vaga imensa a abater-se sobre nós e a submergir-nos. Nessa dança, Hermínia pôs de lado toda a sua superioridade, ironia e frieza - sabia que já não tinha mais nada a fazer para me apaixonar por ela. Eu pertencia-lhe. E entregou-se, na dança, no olhar, no beijo, no sorriso. Todas as mulheres dessa noite febril, todas aquelas com quem eu tinha dançado, que me tinham incendiado, todas aquelas que eu cor­tejara, que cheio de desejo apertara contra mim, que seguira com olhar saudoso de amor, se tinham fundido numa só, a de­sabrochar agora nos meus braços.

Essa dança nupcial alongou-se muito. Por duas ou três ve­zes a música afrouxou, os tocadores de sopro deixaram cair os seus instrumentos, o pianista levantou-se do piano, o primeiro violino abanou a cabeça, desistindo; mas a cada passo eram mais uma vez arrebatados pelo delírio suplicante dos últimos pares de dança, e voltavam a tocar, freneticamente, selvatica­mente. Depois - a tampa do piano caíu e fechou-se num estali­do surdo, os nossos braços tombaram, lassos como os dos toca­dores de sopro e de cordas, e o flautista, piscando os olhos, en­fiou a flauta no estojo; abriram-se portas, uma corrente de ar frio invadiu a sala, apareceram criados com casacos, e o empre­gado do bar fechou a luz. A cena transfigurava-se, fantasmagó­rica, arrepiante, tudo se desbaratava, se dissipava; enregelados, os dançarinos, que ainda momentos antes se tinham abrasado em chama tão acesa, corriam a enfiar-se nos seus abafos, levan­tando as golas. Hermínia continuava pálida, mas sorridente. Lentamente, ergueu os braços e alisou os cabelos; a sua axila brilhou na luz, realçando uma sombra fina, infinitamente doce, que de lá partia correndo até ao busto coberto; e aquela linha sombreada e ondulante parecia-me concentrar, como um sorri­so, todo o seu encanto, todos os jogos e recursos do seu corpo formoso.

Continuávamos de pé, olhos nos olhos; éramos os últimos da sala, os últimos da casa. Algures, lá para baixo, ouvi bater uma porta, despedaçar-se um vidro, perder-se um riso abafado, misturado com o ruído atacante e apressado de automóveis a arrancar. Algures, não sei a que distância, não sei em que altu­ras, ouvi estalar uma gargalhada" uma gargalhada extremamente límpida e jovial, mas também estranha e arrepiante, um riso co­mo que de cristal e gelo, luminoso e brilhante, mas frio e impla­cável. Onde é que eu podia ter ouvido aquele insólito riso, que me parecia familiar? Não conseguia lembrar-me.

Estávamos de pé, olhos nos olhos. No espaço de um instan­te, fiquei desperto e sóbrio; senti abater-se sobre mim o peso de um cansaço imenso, colar -se a mim a roupa perpassada de suor repugnantemente húmida e morna, vi as minhas mãos verme­lhas e inchadas de veias saindo dos punhos amarfanhados e su­jos de transpiração. Mas essa sensação logo desapareceu, apa­gada por um relance de Hermínia. Perante o seu olhar, de onde a minha própria alma parecia contemplar-me, toda a verdade se desmoronou, mesmo a verdade do desejo carnal que tinha por ela. Enfeitiçados, olhávamo-nos; a minha alma pobre e peque­ na olhava-me.

"Estás pronto?" perguntou Hermínia, dissipando-se-lhe o sorriso, como se dissipara a sombra acima do peito. Algures, longe e alto, o estranho riso esboroou-se em espaços desconhe­cidos.

Assenti com a cabeça. Oh! sim, estava pronto.

No limiar da porta apareceu Pablo, o músico, lançando-nos um relance luminoso do fundo dos seus olhos joviais - que afi­nal eram verdadeiros olhos de animal, só que os olhos de um animal são sempre graves, e os seus riam continuamente, e era esse riso que os tornava humanos. Com toda a sua calorosa simpatia, levantou o braço e fez-nos sinal. Tinha vestido um ca­saco de trazer por casa em seda multicolor; sobre as abas ver­ melhas, o martirizado colarinho da camisa e o rosto lívido e ex­tenuado apareciam singularmente murchos e descorados, mas os olhos negros radiosos apagavam tal palidez. Também eles apagavam a realidade, também eles enfeitiçavam.

            Correspondendo ao seu sinal, dirigimo-nos para ele e, dian­te da porta, disse-me baixinho: "Irmão Harry, convido-o para um pequeno espectáculo. Entrada, só para loucos; preço: a ra­zão. Está pronto?': Voltei a assentir com a cabeça.

            Amigo do meu coração! Terna e solicitamente pegou-nos pelo braço, Hermínia à direita, eu à esquerda, e conduziu-nos escada acima até a uma pequena sala redonda, com uma frouxa luz azulada a cair de cima, e quase completamente desnudada, onde como única mobília havia apenas uma mesinha redonda e três poltronas, onde nos instalamos.

Onde estávamos nós? Estaria eu a dormir? Em casa? Ao vo­lante de um automóvel, em viagem? Não, estava sentado numa sala redonda iluminada a azul, numa atmosfera rarefeita, numa camada da realidade cada vez menos estanque. Mas porque é que a Hermínia estava tão pálida? E o Pablo, porque é que fala­va tanto? Não seria porventura eu que o fazia falar, que falava através dele? Não era a minha própria alma, pássaro medroso desgarrado, que do fundo dos seus olhos negros me contempla­va, como também do fundo dos olhos cinzentos de Hermínia?

Com cordialidade amável até mais não., mas algo cerimonio­sa, o nosso amigo Pablo fixava-nos nos olhos, e falava, falava longa e profusamente. Ele, a quem eu nunca ouvira dizer nada com princípio, meio e fim, que não se interessava por qualquer discussão ou teoria, que eu mal julgava capaz de um pensamen­to, abrira a fala, tudo dizendo, escorreita e irrepreensivelmente, na sua bela voz quente.

"Amigos, convidei-vos para um espectáculo que o Harry há muito deseja, e que há muito o vem fazendo sonhar. A hora vai um pouco. adiantada, e provavelmente todos estamos um boca­dinho cansados. Por isso vamos primeiro descansar aqui um instante para restaurar forças".

Dirigindo-se a um nicho na parede, pegou em três copinhos e uma garrafa pequena e bizarra, puxou de uma exótica caixi­nha em madeira pintada, encheu até cima os três copos, tirou da caixa três cigarros amarelos, finos e compridos, remexeu o bolso do casaco de seda à procura do isqueiro e ofereceu-nos lu­me. E cada um de nós, recostado para trás na sua poltrona, chupou lentamente o seu cigarro, de fumo espesso como o incen­so, sorvendo em goles pequenos e demorados o líquido agri-do­ce, singularmente desconhecido, de sabor desusado; tinha real­mente em si uma força vivificante e salutar, era como se nos enchêssemos de gás e perdêssemos a noção do peso. Ali ficamos, sentados, fumando em pequenas tiradas, repousando, beberi­cando dos nossos copos, sentindo-nos ficar sempre mais ligeiros e bem dispostos. Entretanto, Pablo dizia, em tom abafado, com a sua voz quente:

"É para mim um prazer, meu caro Harry, ter hoje a oportu­nidade de o acolher como hóspede. Tem-se sentido muitas vezes profundamente desgostoso com a vida, e já procurou deixá-la, não é verdade? Anseia por abandonar este tempo, este mundo, esta realidade, para entrar numa outra realidade mais conforme a si próprio, num mundo para além do tempo. Pois bem, faça-o agora, meu caro amigo, convido-o a isso. Sabe muito bem onde se esconde esse outro mundo, sabe que o que procura é o univer­so da sua própria alma. É só no seu próprio íntimo que habita es­sa outra realidade que deseja. Não lhe posso dar nada que não exista já dentro de si próprio, nem abrir-lhe outra galeria de ima­gens que não a da sua alma. Não posso oferecer-lhe nada senão a oportunidade, o impulso, a chave. Ajudo-o a visualizar o seu próprio mundo, mais nada".

            Remexendo mais uma vez na algibeira, tirou para fora um espelho de bolso circular.

            "Olhe para aqui: é assim que você até agora se via a si pró­prio! "

Ergueu-me o espelhinho diante dos olhos (veio-me à memó­ria um verso de criança: "Espelhinho, espelhinho na minha mão") e vi, algo diluída e nebulosa, uma imagem sinistra que se

movia pela sua própria força, fervilhava e fermentava violenta­mente em si própria: era eu mesmo, Harry Haller; e no interior desse Harry, o Lobo das Estepes, belo, inquieto, mas desgarrado e assustado, com um brilho ora perverso, ora triste nos olhos; e aquela figura de fera revolvia-se em incessante movimento atra­vés de Harry, assim como numa torrente se debate e agita em tu­multo e turbilhão um afluente de uma outra côr, degladiando-se, atormentado; e os dois quase se devoraram um ao outro, cheios de um inconsumável desejo de moldar a sua forma definitiva. Triste, imensamente triste, o lobo ondulante, modelo inacabado, contemplava-me com os seus belos olhos amedrontados.

"É assim que você até agora se via a si próprio" , repetiu Pa­blo, docemente, voltando a meter o espelho no bolso. Agrade­cido, fechei os olhos e sorvi um gole de elixir.

"Bem, já descansamos", disse Pablo, "já restauramos for­ças e já cavaqueamos um pouco. Se vocês já não se sentem can­sados, então vou levá-los agora à minha caixa de surpresas e mostrar-lhes o meu pequeno teatro. Acham bem?"

Levantamo-nos e Pablo, precedendo-nos com um sorriso nos lábios, abriu uma porta e puxou para o lado uma cortina; encontramo-nos no meio do corredor circular de um teatro, em forma de ferradura, ladeado à direita e à esquerda por uma in­crível profusão de portas estreitas que conduziam aos camaro­tes.

"Aqui têm o nosso teatro" , explicou Pablo, "um teatro di­vertido; esperemos que riam e a bom rir cá dentro" . E dito isto, desatou a rir sonoramente, algumas notas apenas, mas que me trespassaram de um lado ao outro, era aquele riso estridente e estranho que eu já tinha ouvido, saído algures lá de cima.

"O meu teatrozinho tem tantos camarotes quantos vocês quiserem, dez, cem ou mil, e por trás de cada porta aguarda-vos aquilo precisamente que vocês buscam. É uma linda galeria de imagens, caro amigo, mas não lhe servia de nada estar a percor­rê-la, no estado em que você está. Ver-se-ia tolhido e cego por aquilo a que está habituado a chamar a sua personalidade. Sem dúvida que já adivinhou há muito que a superação do tempo, a libertação da realidade, e todos os nomes que você queira dar à sua nostalgia não representam outra coisa que não o desejo de se despojar da sua suposta personalidade. Ela é a prisão em que você habita. E se entrasse assim como está no teatro, veria tudo com os olhos do Harry, tudo através dos óculos velhos do Lobo das Estepes. Por isso é convidado a libertar-se desses óculos e a dignar-se muito amavelmente deixar esta sua respeitabilíssima personalidade entregue aqui no vestiário, onde ficará à sua dis­posição em qualquer momento que o deseje. A maravilhosa noite de baile que tem atrás de si, o Tratado do Lobo das Este­pes e finalmente o ligeiro estimulante que acabamos de tomar devem, acho eu, tê-lo preparado suficientemente. Você, Harry, depois de se ter libertado da sua respeitável personalidade, terá à suá disposição o lado esquerdo do teatro, Hermínia o direito, e no interior poderão encontrar-se a vosso bel-prazer. Por fa­vor, Hermínia, vai um instante ali para trás da cortina, primei­ro queria deixar entrar o Harry" .

Hermínia desapareceu do lado direito, passando diante de um gigantesco espelho que cobria a parede traseira do chão ao tecto.

"Pronto, Harry, agora venha daí e ponha-se francamente bem-disposto. Trazer-lhe boa disposição e ensiná-lo a rir é o objectivo de toda esta encenação - espero que me facilite as coisas. Mas sente-se mesmo bem? Sente? Não terá por acaso re­ceio? Então está bem, muito bem. Vai entrar agora, sem receio e com sincero prazer, no nosso mundo de ficção, introduzindo­-se, como é hábito, por um pequeno suicídio fictício".

Voltou a tirar para fora o espelhinho de bolso, colocando­-mo diante do rosto. De novo encarou comigo aquele Harry confuso, nebuloso, perpassado pela figura do lobo em luta, imagem bem familiar, mas francamente não simpática, cuja destruição me não causaria preocupações.

"O meu amigo vai agora apagar este reflexo de espelho, que se tornou prescindível; já não é preciso para nada. Basta que quando a sua disposição o permitir, contemple esta imagem com um sincero sorriso. Isto aqui é uma escola de humor, e vo­cê está aqui para aprender a rir. Ora, todo o humor mais avan­çado começa por deixar de se levar a sério a nossa própria pes­soa".

Fixamente, olhei o espelhinho, espelhinho na mão, onde o lobo Harry procedia às suas convulsões. Por instantes, senti dentro de mim. bem no íntimo, uma palpitação leve mas dolo­rosa, como uma recordação, uma saudade, um remorso. De­pois a ligeira angústia cedeu lugar a uma nova sensação, seme­lhante àquela que se experimenta quando nos arrancam um dente insano do maxilar anestesiado com cocaína, uma sensa­ção de alívio e profunda descontracção, e ao mesmo tempo de espanto por nem sequer ter doído. E a essa sensação veio jun­tar-se uma fresca jovialidade e hilariedade, a 'que não consegui resistir, largando uma gargalhada libertadora.

O nublado reflexo do espelhinho, estremecendo, apagou-se; a pequena superfície redonda pareceu subitamente como que queimada, tornara-se cinzenta, rugosa, opaca. Rindo, Pablo atirou pará longe o vidro inutilizado, que foi rolando pelo chão até se perder algures no infindável corredor.

"Boa gargalhada, Harry", exclamou Pablo, "ainda hás-de aprender a rir como os imortais. Finalmente, mataste o Lobo das Estepes. Com a lâmina da barba, a coisa não se resolve. Vê lá que ele fique bem morto! Já a seguir vais conseguir abando­nar esta idiota realidade. Mal torne a calhar, vamos passar a tratar-nos por .tu. Meu caro, nunca me agradaste tanto como agora. E se isso ainda te disser alguma coisa, também podemos filosofar e discutir um com o outro, e falar de música e de Mo­zart e Gluck e Platão e Goethe tanto quanto quiseres. Hás-de compreender agora porque é que dantes isso não era possível. Esperemos que tudo te corra bem, e que hoje te libertes mesmo do Lobo das Estepes. Porque claro está que o teu suicídio não é definitivo; estamos num teatro mágico, aqui só há imagens, não há realidade. Escolhe as que forem bonitas e alegres e mostra que sinceramente já não estás apaixonado pela tua problemáti­ca personalidade! Mas se no entanto desejares recuperá-la, bas­ta voltares a olhar para o espelho que agora te vou mostrar. Sóque conheces com certeza aquele provérbio tão sábio: mais vale.

um espelho na mão do que dois na parede. Haha! (E mais uma vez largou aquele riso tão belo e tão arrepiante). Bem, agora só falta consumar uma cerimónia engraçada, muito curta. Uma vez deitados fora os óculos da tua personalidade, vem ver-te num espelho genuíno! Hás-de achar divertido".

Por entre risos e pequenas carícias burlescas, fez-me dar meia-volta, colocando-me de frente para o gigantesco espelho da parede. E pude mirar-me a mim próprio.

Vi, num brevíssimo instante, o Harry que me era familiar, apresentando embora desta feita um rosto invulgarmente alegre, luminoso e risonho. Mas mal o tinha reconhecido, desagre­gou-se, libertando ao mesmo tempo uma segunda figura, uma terceirã, uma décima, uma vigésima, e todo o espelho gigante pululava de Harrys, de pedaços de Harry, de inúmeros Harrys que eu só distinguia e reconhecia com a rapidez de um relâmpa­go. Alguns destes últimos Harrys eram da minha idade, outros eram mais velhos, outros ainda já anciãos, e havia-os muito jo­vens, adolescentes, rapazinhos, garotos de escola, miúdos tra­quinas, crianças de berço. Harrys de cinquenta e de vinte anos, de trinta e de cinco, entrecruzavam-se, correndo e saltando, graves e galhofeiros, dignos e ridículos, elegantes e esfarrapa­dos, e havia-os mesmo completamente nus, e calvos, e encara­colados; e todos eram eu, e cada um Iium segundo era divisado e reconhecido por mim para logo desaparecer e espalhavam-se para todos os lados, para a esquerda, para a direita, para o fun­do do espelho, para fora do espelho. Um deles, um jovem ape­raltado, atirou-se a rir para os braços de Pablo e, enlaçando-o, fugiu com ele. E um outro, que me agradava mais do que ne­nhum, um encantador adolescente de deza&seis ou dezassete anos, disparou como um raio pelo corredor dentro, pondo-se a ler uma a uma, avidamente, as tabuletas de todas as portas; cor­ri atrás dele, vi-o parar diante de uma porta, e li a inscrição:

 

            Todas as mulheres são tuas!

             Enfiar um marco na ranhura

 

O atraente jovem precipitou-se em frente, com um salto, e, avançando a cabeça, enfiou-se ele próprio pela abertura, desa­parecendo na porta.

Pablo também tinha desaparecido, do mesmo modo que o espelho parecia ter-se evaporado, levando consigo as suas in­contáveis figuras de Harry. Pressenti que, de ora em diante, es­tava entregue a mim próprio e ao teatro, e cheio de curiosidade, andei de porta em porta, lendo. em cada uma uma legenda, uma tentação, uma promessa.

 

                 Todos à jubilosa caçada

Batida grossa em automóvel tentou-me, e, abrindo a porta estreita, entrei.

Desde logo me vi arrastado para o seio de um mundo ruido­so e turbulento. As ruas estavam cheias de automóveis, quase todos blindados, em acesa perseguição - era a caça aos tran­seuntes, que eles encurralavam de encontro às paredes dos pré­dios, desfazendo-os em papa. Compreendi imediatamente: era a luta entre o homem e a máquina, há muito preparada, espera­da, temida, e agora finalmente desencadeada. Por toda a parte jaziam pelo chão mortos, cadáveres despedaçados, e por toda a parte também carros esfacelados, torcidos e retorcidos, causti­cados, quase reduzidos a cinza; sobre aquele horrendo tumulto, aviões revolviam os ares, também eles alvejados de telhados e janelas com espingardas e metralhadoras. Em todas as paredes, cartazes ferozes, magnificamente incitadores, instigavam a na­ção, em letras gigantescas, flamejantes como tochas, a empe­nhar-se finalmente na defesa dos homens contra as máquinas, a lançar-se finalmente sobre os ricos adiposos, ajanotados e per­fumados, que com as suas máquinas sugavam a gordura dos outros, e acabar com eles e mais os seus enormes automóveis que batiam as ruas em arranques e rosnadelas virulentas, ron­cos e zunidos infernais; a incendiar finalmente as fábricas e sa­near e despovoar um pouco a terra, para que a erva pudesse voltar acrescer, para que do mundo de cimento, a abarrotar de pó e mofo, pudesse voltar a nascer qualquer coisa que nos lem­brasse um bosque, um prado, uma urzeira, um regato, um pân­tano. Outros cartazes, pelo contrário, maravilhosamente pinta­dos, soberbamente estilizados, em cores mais delicadas, menos ingénuas, de combinação extraordinariamente fina, brilhante, preveniam insinuantemente todos os homens de bem e bom sen­so contra o caos ameaçador da anarquia; enunciavam, tocando verdadeiramente no íntimo de cada um, os benefícios da or­dem, do trabalho, da propriedade, da cultura, do direito, e enalteciam as máquinas como invenção última e suprema do homem, graças à qual haveriam de ascender a deuses. Cisman­do e admirando, lia os cartazes, os vermelhos e os verdes, e a sua eloquência inflamante, a sua lógica imperativa iam pene­trando em mim, como um prodígio; tinham razão; e eu, pro­fundamente convencido, quedava-me ora diante de um, ora de outro, embora algo incomodado pelo tiroteio bastante aceso à minha volta. Agora, a essência era clara: era a guerra, uma guerra violenta, de raça, altamente simpática, onde já não ha­via questão de Kaiser, república, fronteiras territoriais, bandei­ras, cores e outras coisas decorativas e teatrais do género, baga­telas, em suma; mas onde todos aqueles a quem o ar começava a faltar, para quem a vida já não tinha sabor, emprestavam ex­pressão virulenta ao seu desencanto e embarcavam na destrui­ção geral deste mundo civilizado do metal polido. Vi irradiar de todos os olhos um límpido e cabal gozo de destruir e matar, e em mim próprio despontavam essas flores ve!melhas e bravias, e era vê-las, grandes e carnudas, rindo também. Alegremente, embrenhei-me no combate.

Mas mais belo que tudo isso foi ver aparecer de repente a meu lado o meu companheiro de escola Gustavo, que eu perde­ra de vista dezenas de anos atrás, e que outrora, de entre os meus amigos de infância, era de todos o mais desassossegado, o mais forte, o mais sequioso de viver. O coração encheu-se-me de alegria ao rever aqueles olhos azuis claros a piscar para mim. Fez-me um sinal, e logo corri a juntar-me a ele.

            "Deus do céu, Gustavo!" , exclamei, feliz, "finalmente apareces outra vez! O que é que é feito de ti?"

            Riu contrariado, tal qual como nos tempos de rapazinho.

"Ó minha cabeça quadrada, mas para quê começar já com perguntas e conversinha? Sou professor de teologia, pronto, aqui tens; mas agora, graças a Deus, já não há para aí teologia nenhuma, rapaz, há mas é a guerra. Anda daí!"

Fazendo pontaria a um pequeno automóvel que se aproxi­mava, bufante, nesse momento, disparou sobre o motorista, que caíu redondo; saltou, lesto como um macaco, para o carro; fê-lo parar e convidou-me a subir; depois, rápidos como o re­lâmpago, desarvoramos dali para fora por entre tiros, balas e viaturas esmagadas, rumo à periferia da cidade.

"Estás do lado dos industriais?" perguntei ao meu amigo.

"Oh!, isso é uma questão de gosto, dáqui a um bocado pensamos nisso, lá mais adiante. Mas não, espera, sou mas é pelo outro partido, embora no fundo isso seja totalmente indi­ ferente, claro. Sou teólogo, e o meu antepassado Lutero na sua época ajudou os príncipes e os ricos contra os camponeses; isso vamos nós agora corrigir qualquer coisa. Que porcaria de car­ro, espera-se que ainda aguente uns quilómetros!"

Velozes como o vento, filho do céu, corríamos por entre o crepitar da máquina; entramos numa paisagem tranquila e ver­dejante, espraiada por várias milhas, passamos por uma vasta planície e trepamos lentamente uma encosta abrupta; aí nos detivemos, em estrada polida e luzidia que subia por entre um mu­ro rochoso escarpado e uma barreira de protecção baixa, no meio de ousadas curvas, a uma altitude imensa, vertiginosa­ mente debruçada sobre um lago espelhado a azul.

"Que lindo sítio", disse eu.

            "Lindíssimo. Podemos chamar-lhe o Monte dos Eixos, pa­rece que por aqui se espatifam uma data deles. Harryzinho, abre os olhos e presta atenção!"

Um grande pinheiro erguia-se no caminho, e no cimo da ramagem avistava-se uma espécie de abrigo feito de tábuas de madeira, uma guarita de vigia e espera de caça. Lançando-me um malicioso piscar dos seus olhos azuis, Gustavo riu sonoramente e, apressados, descemos do carro, trepamos pelo tronco acima e, ofegantes, escondemo-nos na casota, que nos deliciava. Fo­mos lá encontrar espingardas, revólveres e caixas de cartuchos.

E mal nos tínhamos repousado um pouco e instalado no poiso de caça, quando soou ao virar da curva, roufenha e imperiosa, a buzina de um grande automóvel de luxo, que rolava em alta ve­locidade, ronronante, pelo brilhante caminho da montanha. Já tínhamos pegado nas espingardas. Era maravilhosamente exci­tante.

"Aponta ao do volante!", ordenou Gustavo precipitada­mente, no instante em que a pesada viatura passava correndo abaixo de nós. E eu visei e disparei, fazendo pontaria ao boné azul do condutor. O homem sucumbiu; e o carro, continuando em marcha desarvorada, embateu contra a rocha, foi lançado para trás em ricochete, bateu pesada e furiosamente como um abelhãogrande e gordo contra a vedação baixa, capotou e, com um breve e ligeiro estampido, galgou a/barreira e despenhou-se no abismo.

"Pronto, arrumado!", disse Gustavo, a rir. "O próximo é ,meu" .

Já um outro automóvel se aproximava veloz, distinguíamos de longe as figurinhas dos três ou quatro ocupantes abancados; uma ponta de véu ondeava tensa e plana atrás de uma nuca fe­minina, um véu azul claro; no fundo, fazia-me pena, esse véu, quem sabe se não esconderia o mais lindo e sorridente rosto de mulher... Deus do céu!, já que brincávamos aos salteadores, então talvez fosse mais certo e mais elegante seguir o exemplo dos grandes pais e não tornar extensível às mulheres bonitas a nossa sede de sangue. Mas Gustavo já tinha disparado. O con­dutor estremeceu e caíu para o lado; numa guinada, o carro sal­tou para o ar, na vertical, e tornou a cair ruidosamente na estra­da, com as rodas voltadas para cima. Ficamos à espera, mas na­da bulia; como que apanhadas numa ratoeira, as pessoas manti­nham-se mudas e quedas debaixo da chapa. O carro matra­queava e crepitava ainda, girando as rodas grotescamente no ar; mas de repente veio uma poderosa detonação, e largou em chamas brilhantes.

"É um Ford", disse Gustavo. "Temos de ir lá abaixo tirar aquilo dali para deixar a estrada livre".

Descemos e ficamos a examinar a viatura incendiada. Ti­nha-se consumido muito rapidamente; com alavancas entretan­to improvisadas a partir de ramos jovens, levantamos os destro­ços, levamo-los para a borda do caminho e deitámo-los para o abismo; e durante algum tempo ouvimo-los estalar lá em baixo nos arbustos. Dois dos mortos tinham tombado para a estrada na deslocação do carro e ali jaziam, com a roupa meia desfeita pelo fogo. Um deles ainda tinha o casaco relativamente conser­vado, e revistei-lhe as algibeiras para ver se descobríamos a sua identidade. Encontramos uma pasta de couro que trazia dentro cartões de visita. Pegando num deles, li: "Tat twam asi".

"Muito espirituoso", observou Gustavo. "Mas no fundo não serve para nada saber como se chamam as pessoas que ma­tamos. São pobres diabos, como nós, não são os nomes que contam. Este mundo tem de ir abaixo e nós com ele. A solução mais inteligente e menos dolorosa seria pô-lo dez minutos de­baixo de águ_ Bem, vamos ao trabalhinho!"

Lançamos os mortos pelo mesmo caminho do automóvel. Já um outro vinha correndo, a buzinar. A esse atiramos os dois mesmo ali da estrada. Rodopiou ainda alguns metros em bizar­ra embriaguês, deu meia volta e estacou arfante. Um dos via­jantes continuava sentado lá dentro, _móvel, enquanto uma ra­pariga nova e bonita descia, sã e salva, embora pálida e trémula dos pés à cabeça. Saudamo-la cordialmente e oferecemos-lhe os nossos préstimos. Petrificada de medo, não conseguia falar, fi­xando-nos por momentos com olhar alucinado.

"Bem, tratemos primeiro aqui deste idoso senhor", disse Gustavo, dirigindo-se ao passageiro, que continuava preso ao banco, atrás do condutor morto. Era um homem de cabelos gri­salhos curtos, com os olhos vivos cinzento claro bem abertos, mas parecia gravemente ferido, pelo menos o sangue escorria­-lhe da boca, e o pescoço estava sinistramente torcido e rígido.

"Se me dá licença, meu velho senhor, o meu nome é Gusta­voo Tomamos a liberdade de matar o seu motorista. Se nos per­mite a pergunta, com quem temos a honra de falar?"

            O velho fixou-nos fria e tristemente do fundo dos seus miú­dos olhos cinzentos.

"Sou o Sr. Loering, juíz do Supremo", disse lentamente. "Não se limitaram a assassinar o meu pobre motorista, mas também me mataram a mim, sinto que está próximo o fim.

Pos­so saber porque é que dispararam contra nós?"

"Excesso de velocidade". ­

"Íamos a uma velocidade normal".

            "O que ontem era normal, já não o é hoje, senhor procura­ dor geral. Hoje somos de opinião que qualquer velocidade a que um carro possa andar é alta demais. E estamos a dar cabo de todos os automóveis, todos, 'e das outras máquinas também" .

"Das vossas espingardas também?"

            "Também há-de chegar a vez delas, se ainda acharmos tem­po para issso. Se calhar amanhã ou-depois-de-amanhã já esta­mos todos arrumados. O senhor bem sabe que o nosso conti­nente estava horrivelmente sobrepovoado. Pois agora, pelo me­nos, passa a haver ar" .

            "Então o senhor dispara contra qualquer pessoa, indiscriminadamente?'

"Pois disparo. Claro que no caso de alguns não deixa de fa­zer uma certa pena. Por exemplo, ter-me-ia feito pena esta jo­vem menina - é sua filha, não?"

            "Não, é minha estenógrafa".

            "Tanto melhor. E agora faça favor de sair, ou permita-nos que o tiremos daí, porque vamos destruir a viatura" .

            "Prefiro ser destruído com ela".

            "Como queira. Permita-nos só mais uma pergunta! O se­ nhor é juíz do Supremo. Nunca consegui .entender como é que se pode ser juíz. O seu ganha-pão é acusar e condenar a esta ou àquela pena as outras pessoas, quase sempre pobres diabos.. Não é assim?"

"Exactamente. Cumpria o meu dever. Era esse o meu ofícioo. Assim como é ofício do carrasco matar aqueles que eu con­deno. O senhor também escolheu esse ofício. Também mata".

"Certo. Só que nós não matamos por dever, mas por pra­zer, ou antes, por desprazer, por desespero perante este mundo. Por isso o matar nos dá um certo gozo. A si nunca lhe deu gozo matar?"

"O senhor aborrece-me. Faça-me a bondade de levar o seu trabalho até ao fim. Se desconhece a noção do dever..."

            Emudeceu e crispou os lábios, como que para cuspir. Mas apenas saiu um fio de sangue, que ficou colado ao queixo.

"Espere aí!", disse Gustavo, delicadamente. "De facto não conheço a noção do dever. Dantes tinha muito que ver com is­so, profissionalmente, era professor de teologia. Além disso fui soldado e andei na guerra. Aquilo que aparentemente era dever e que me era permanentemente ordenado pelas autoridades e pelos seus superiores, bom não era de certeza, longe disso, e te­ria sempre preferido fazer o contrário. Mas embora já não co­nheça o conceito de dever, tenho em contrapartida a noção de culpa - e quem sabe se não serão ambos a mesma coisa! Quan­do uma mãe me põe no mundo, sou culposo, sou condenado a viver, devo pertencer a um Estado, ser soldado, matar, pagar impostos para armamentos. E agora, neste momento, foi a cul­pa da vida que me levou de novo, como dantes na guerra, a ter de matar. E desta vez não mato com relutância, rendi-me a essa" culpa, não me insurjo nem me oponho a que este mundo estúpi­do e embrutecido se desfaça em >cacos, até tenho gosto em dar uma mão, e com gosto irei ao fundo com ele" .

O juíz fez um grande esforço para abrir um ligeiro sorriso ao canto dos lábios manchados de sangue coagulado. A tentati­va não resultou brilhante, mas era visível a boa intenção.

            "Óptimo", disse ele. "Quer dizer que somos colegas. Faça o favor de cumprir o seu dever, caro colega".

            A linda rapariga tinha-se entretanto deixado cair à beira da estrada, perdendo os sentidos.

            Nesse momento nova buzina se ouviu, e um outro automó­vel apareceu lançado no caminho. Puxamos a rapariga um pou­co mais para o lado, colamo-nos à rocha e aguardamos a coli­são da viatura em andamento com os destroços da sinistrada. Mas ei-la que carrega a fundo nos travões, cabriola no ar e aca­ba por estacar sem o mínimo dano. Rapidamente, pegamos nas espingardas e apontamos aos recém-chegados.

"Desçam imediatamente!" comandou Gustavo. "Mãos no ar!"

Três homens saíram do carro, de mãos docilmente levanta­das.

"Algum de vocês é médico?", perguntou Gustavo. Abanaram as cabeças.

            "Então façam-me a fineza de retirar com toda a cautela es­te senhor aqui do banco, está gravemente ferido. E depois me­tam-no no vosso carro e levem-no à cidade mais próxima. Vá, mexam-se!' ,

            Pouco depois o velhote estava estendido no outro carro, e a uma ordem de Gustavo, o automóvel arrancou.

Entretanto a nossa estenógrafa tinha recuperado os senti­dos, e seguira os acontecimentos. Agradava-me termos captu­rado uma presa linda como aquela.

"Menina", disse Gustavo, "acabou de perder o seu patrão. Esperemos que o velho senhor não lhe fosse mais chegado. A partir de agora, está admitida ao meu serviço, seja uma boa ca­marada para nós! Bem, e agora o tempo aperta. Daqui a pouco a cena não vai ser muito agradável, por aqui. Consegue trepar, menina? Consegue? Então vamos lá, nós pomo-la entre um e outro e ajudamo-la".

E lá subimos todos três, o mais depressa que podíamos, até à nossa guarita da árvore. Lá em cima, a moça quase desfale­ceu, mas logo a fizemos beber um conhaque, e pouco depois sentia-se suficientemente recuperada para poder admirar a sumptuosa vista de mar e montanha e comunicar-nos que se chamava Dora.

Passados instantes avistamos lá em baixo um outro carro a aproximar-se; guiando cautelosamente, passou pelo carro atin­gido sem se deter e acelerou de imediato.

"O malandro! A pirar-se, hein?!" riu Gustavo, disparando sobre o condutor. O carro dançou uns instantes, de um salto foi embater na vedação e, arrombando-a, ficou suspenso mesmo à beira do abismo, enviesado.

"Dora", disse eu, "sabe lidar com espingardas?"

Não sabia, mas logo lhe ensinamos a carregar uma arma. Ao princípio mostrou-se desajeitada, e chegou a ferir-se num dedo, desatando a soluçar e exigindo um curativo. Mas Gusta­vo lá lhe explicou que guerra era guerra, e que tinha de se portar à altura de uma rapariga corajosa, com nível. E ela recom­pôs-se.

"Mas o que é que vai ser de nós?" perguntou então. "Não sei", disse Gustavo. "O meu amigo Harry gosta de mulheres bonitas, vai ser seu amigo".

            "Mas há-de cá chegar a polícia e os soldados, e acabam por nos matar!"

"Polícia e quejandos é coisa que já não há. A escolha é nos­sa, Dora. Das duas uma, ou ficamos calmamente aqui em cima a dar cabo de todos os carros que passam, ou pegamos nós mes­mos numa viatura, metemo-nos à estrada e deixamos que ou­tros nos matem. É indiferente tomarmos um ou outro caminho. Cá por mim sou por que se fique aqui" .

Lá em baixo passava novo automóvel, tocando sonoramen­te a buzina. Não nos fizemos esperar para o arrumar, e ali ficou no caminho, com as rodas para o ar.

"É curioso", disse eu, "como esta coisa de dar tiros pode ser tão divertida! E eu ,que era pacifista!"

Gustavo sorriu. "Pois, o que se passa é que há gente a mais neste mundo. Dantes não se notava tanto. Mas agora já nin­guém se contenta em respirar ar puro, todos querem o seu auto­móvel, agora, sim, já se nota. Claro que aquilo que estamos a fazer não tem lógica nenhuma, é uma criancice, como a guerra também o foi, e da grossa. Um dia mais tarde a humanidade há­-de ter de aprender a refrear o seu crescimento por meios racio­nais. Para já, as nossas reacções perante situações intoleráveis são bastante insensatas, mas no fundo estamos a fazer o que é certo: reduzimos".

"Pois" , disse eu, "o que estamos a fazer se calhar é loucu­ra, mas por outro lado se calhar também é bom e necessário. Émau que a humanidade sobrecarregue a inteligência e procure ordenar através da razão coisas que lhe são de todo inacessíveis. É assim que nascem ideais como o americano ou o bolchevique, um e outro extremamente razoáveis, mas que no entanto violentam e depauperam terrivelmente a vida, por a simplificarem candidamente. A imagem do homem, outrora um ideal subli­me, está a transformar-se em cliché! Talvez nós, os loucos, ain­da venhamos a enobrecê-la outra vez" .

Rindo, Gustavo replicou: "Bolas, rapaz, estás a falar com propriedade, dá gosto e proveito beber dessa tua fonte de sabe­doria. E quem sabe se não terás mesmo um bocado de razão? Mas sê bom menino e recarrega-me essa espingarda, estás-me""a parecer com devaneios a mais. A qualquer momento podem saltar-nos aí coelhos ao caminho, e não é com filosofias que da­mos cabo deles, sempre é preciso balas no cano" .

Um carro que vinha a subir virou-se imediatamente, a estra­da estava obstruída. Um sobrevivente, homem gordo e rubicun­do, pôs-se a gesticular ferozmente junto à máquina desfeita, fa­rejando a toda a volta de olho arregalado; descobrindo o nosso esconderijo, largou a correr na nossa direcção, vociferante, e, sacando de um revólver, disparou repetidas vezes contra nós.

"Ou desaparece daqui neste minuto, ou eu disparo!" gritou Gustavo lá para baixo. Apontando a ele, o homem voltou a ati­rar. Então abatemo-lo, com dois disparos.

Apareceram ainda mais dois automóveis, que também des­pachamos. Depois a estrada ficou silenciosa e vazia, como se se tivesse espalhado a notícia dos seus perigos. Tivemos tempo de contemplar o belo panorama. Do outro lado do lago, bem en­caixada nas profundezas, ficava uma vilória; sobre ela avistava­-se fumo, subindo no ar; e em breve distinguimos labaredas alastrando de telhado em telhado. Ouvíamos tiros, também. Dora choramingou, e eu acariciei-lhe as faces húmidas.

"Será que temos mesmo de morrer todos?" perguntou ela.

Ninguém respondeu. Nesse instante aparecia no caminho um viandante. Ao encarar com as viaturas amolgadas abeirou-se e por ali andou farejando; enfiou o tronco por uma delas e tirou para fora um sombrinha multicolor, uma mala de senhora em couro e uma garrafa de vinho; abancou calmo e despreocupado junto à rocha; bebeu; comeu qualquer coisa embrulhada em fo­lha de estanho que encontrou na carteira; sorveu até à última gota o vinho da garrafa, e prosseguiu alegre e prazenteiro o seu caminho, com a sombrinha enfiada debaixo do braço. Vendo-o afastar-se tranquilamente, eu disse a Gustavo: "Diz-me lá se eras capaz de dar um tiro neste tipo tão simpático e abrir-lhe um buraco no crâneo? Santo Deus!, eu não era" .

"Também ninguém to pede", resmungou o meu amigo. Mas sentia igualmente um certo mal-estar, um aperto no cora­ção. Mal deparávamos com uma pessoa que ainda mostrava uma atitude inofensiva, pacífica e infantil, que ainda vivia em estado de inocência, a nossa actividade tão louvável e impres­cindível parecia-nos de um momento para o outro estúpida e re­pugnante. Fui!, que horror, todo aquele sangue! Sentimo-nos envergonhados de nós próprios. Mas dizem que na guerra até os grandes generais às vezes sentiam isso.

"Não vamos ficar toda a vida aqui" , lamuriou Dora, "va­mos descer, e com certeza que nalgum carro havemos de encon­trar qualquer coisa para comer. Então vocês não têm fome, seus bolcheviques?"

Lá em baixo na vila incendiada os sinos largaram em bada­lada, desaustinados e espavoridos. Pusemo-nos a descer. Quan­do ia a ajudar Dora a saltar o parapeito, beijei-lhe os joelhos. Ela desatou a rir gostosamente. Mas foi então que o tabique ce­deu, e fomos precipitados no vazio...

Achei-me de novo no corredor semi-circular, ainda excitado pela minha aventura de caça. E por todo o lado, em todas aque­las incontáveis portas, estavam os letreiros a aliciar-me:

 

Mutabor

Transformação em plantas e animais

de qualquer espécie

 

Kama Sutra

Introdução à arte amorosa indiana

para iniciados: 42 métodos diferentes

 

Suicídio deleitoso!

De morrer a rir

 

Deseja espiritualizar-se?

Sabedoria oriental

 

Ah! se eu tivesse mil línguas!

Só para cavalheiros

 

O declínio do Ocidente

Preços módicos. Ainda inigualável.

 

Essência da arte

Transformação do tempo em espaço

através da música

 

Lágrimas de fazer rir

Câmara de humor

 

Jogos para solitários

Ersatz integral para qualquer ligação

 

Era uma lista interminável de inscrições. Uma delas dizia:

 

Guia para a reconstrução da personalidade

Sucesso garantido

 

Pareceu-me digno de nota, e entrei por essa porta. Acolheu-me uma peça silenciosa, em lusco-fusco, com um homem sentado no chão, à maneira oriental, que tinha diante de si o que a mim me pareceu um grande tabuleiro de xadrez. À primeira vista tomei-o pelo meu amigo Pablo, pelo menos tra­zia, como ele, um casaco de seda multicolor, e tinha os mesmos olhos negros e radiosos.

"Você é o Pablo?" perguntei.

            "Eu não sou ninguém", explicou, amigavelmente. "Aqui ninguém tem nome, não somos pessoas. Sou jogador de xadrez. Deseja fazer o curso sobre reconstrução de personalidade?"

"Desejo sim, por favor".

"Então faça-me a fineza de colocar à minha disposição umas duas ou três dúzias das suas figuras".

"Das minhas figuras?"

"Sim, das figuras em que viu desagregar-se a sua suposta personalidade. Sem figuras não posso jogar, não é?"

Estendeu-me um espelho, e nele revi a unidade da minha pessoa desintegrar-se em muitos eus, tantos que pareciam até mais do que da primeira vez. Só que as figuras agora eram mui­to pequenas, do tamanho pouco mais ou menos de peças nor­mais de xadrez; e o jogador, pegando com gesto firme e silen­cioso em duas ou três dúzias, colocou-as no chão junto ao seu tabuleiro. E monocordicamente, como alguém que debita uma lição ou um discurso não sei quantas vezes já recitado, falou:

"É já do seu conhecimento a concepção errónea e eventual­mente maléfica de que o homem é uma unidade duradoura. Também é do seu conhecimento que o homem consiste numa multiplicidade de almas, de inúmeros eus. É considerado loucu­ra cindir nestas incontáveis fracções a aparente unidade da pes­soa, é aquilo a que a ciência deu o nome de esquizofrenia. A ciência tem razão no sentido em que não é possível domar uma multidão sem orientação, sem uma certa ordem e um certo agrupamento. Em contrapartida, peca supondo que apenas é possível ordenar os muitos sub-eus uma única vez durante toda a vida, e para sempre. Este erro da ciência tem certas conse­quências funestas, o seu único mérito resume-se em simplificar o trabalho de professores e educadores empregados pelo Esta­do, e poupar-lhes reflexão e experimentação. É na sequência deste erro que se toma por "normal", por expoente social, mui­ta gente que é irremediavelmente louca, e que inversamente se faz passar por loucos outros tantos que afinal são génios. Daí completarmos a lacunar doutrina espiritual da ciência com o conceito a que chamamos 'arte da reconstrução'. Demonstra­mos àquele que assistiu ao despedaçar do seu eu que a qualquer momento pode voltar a arrumar as peças na ordem que lhe aprouver, podendo assim consumar a infinita multiplicidade do jogo da vida. Assim como o escritor a partir de um punhado de personagens cria um drama, assim nós a partir das figuras do nosso eu retalhado construimos grupos sempre novos, com jo­gos e tensões sempre novos, situações eternamente novas. Ora veja! "

Com os dedos hábeis e silenciosos agarrou no meu punhado de figuras, velhos, jovens, crianças, mulheres, uns alegres, ou­tros tristes, uns fortes, outros fracos, uns ágeis, outros desajei­tados, e dispô-las rapidamente no seu tabuleiro, para um lance em que em breve se constituíam em grupos, famílias, amizades e hostilidades, e se empenhavam em jogos e combates, assim construindo um mundo em ponto pequeno. Perante os meus olhos deliciados, fez viver durante instantes aquele pequeno mundo agitado mas perfeitamente conjugado, que bulia, brin­cava e lutava, fazia pactos e guerras, cortejava, casava e se re­produzia; era na realidade um drama de muitos personagens, cheio de acção e expectativa.

Depois, numa atitude despreocupada, passou a mão pelo ta­buleiro e deitou abaixo, pouco a pouco, todas as figuras, empi­lhando-as a um canto; e, cismador, qual artista a burilar em mente a sua obra, pôs de pé, com as mesmas figuras, um jogo totalmente novo, com agrupamentos, ligações e interdependên­cias totalmente diferentes. O segundo jogo tinha, no entanto, certas afinidades com o primeiro: construía a partir do mesmo mundo, com os mesmos materiais; mas a tonalidade era outra, o ritmo diferente, os motivos realçados de outra maneira, as si­tuações apresentadas de ângulos diversos.

E assim o destro construtor foi montando a partir das formas que eram todas e cada uma fragmento de mim próprio, lances vários, uns atrás dos outros, todos vagamente semelhantes en­tre si, todos reconhecidamente pertencentes ao mesmo mundo, provenientes de uma mesma origem, muito embora cada um in­teiramente novo.

"É isto a arte da vida”, proferiu doutamente. "A partir de agora o senhor mesmo poderá moldar e animar, intrincar e en­riquecer o jogo da sua vida como lhe apetecer, está nas suas mãos. Assim como a loucura num sentido elevado é o princípio de toda a sabedoria, assim também a esquizofrenia é o princípio de toda a arte, de toda a imaginação. Até os letrados já o reco­nheceram em certa medida, como se pode tirar por exemplo de O Principe e a cornucópia da abundância, livro encantador em que o labor esforçado e aturado de um sábio é enobrecido pela genial colaboração de uma série de artistas loucos, interna­dos em asilos. Tome, leve consigo estas suas figurinhas, ainda se há_de divertir muitas vezes com este jogo. Há-de depreciar amanhã como inofensiva figura de segundo plano a peça que hoje se agiganta como espantalho a estragar-lhe a partida. E há­-de eleger princesa no próximo jogo a pobre figurinha que por momentos parecia condenada ao maior dos azares e adversida­des. Que se divirta muito, é o que eu lhe desejo, meu caro senhor" .

Inclinei-me profunda e reconhecidamente diante do talento­so xadrezista e, enfiando as peçazinhas na algibeira, meti nova­mente pela porta estreita.

Bem tinha imaginado que logo que saísse me havia de sentar ali mesmo no chão e ficar horas perdidas, infinitas, a brincar com as figuras; mas mal me reencontrei no brilhante corredor semi-circular do teatro, novas torrentes, mais fortes do que eu, me arrastaram adiante de si. De repente, um dístico chamejou, ofuscante, à minha frente:

 

         Prodígio da domesticação do lobo das estepes

 

Esta legenda despertou em mim os mais variados sentimen­tos; e o peso de todas as angústias e opressões da minha vida passada, da realidade desertada veio-me apertar dolorosamente o coração. Com a mão trémula, abri a porta, achando-me nu­ma tenda de feira, onde uma grade de ferro me separava do tos­co estrado de apresentação. No palco estava um domador de fe­ras, um homem empoado, de ar um tanto charlatão, que apesar do bigode farfalhudo, do braço arrogantemente musculoso e do traje aperaltado de circo, se parecia antipática, deploravel­mente até, comigo. O corpulento homem trazia pela trela ­quadro confrangedor! - como se fora um cão, um lobo grande e formoso, mas terrivelmente escanzelado, com olhos brilhan­do num fulgor amedrontado de escravidão. E era tão asqueroso quanto apaixonante, tão abominável quanto secretamente exci­tante ver este domador abrutalhado exibir uma fera tão nobre mas tão vergonhosamente dócil numa sucessão de truques e nú­meros sensacionais.

O homem, gémeo maldito de espelho deformador, tinha realmente amestrado fantasticamente o seu lobo. O animal obe­decia, atento, a todas as ordens, reagia servilmente a todos os chamamentos e estalidos do chicote, punha-se de joelhos, fin­gia de morto, fazia de homenzinho, agarrava no focinho hábil e obedientemente, um naco de pão, um ovo, um pedaço de car­ne, um cestinho; chegava a ter de pegar no chicote que o doma­dor deixava cair e levava-o nas mandíbulas, abanando ao mes­mo tempo a cauda de um jeito intoleravelmente subserviente. Quando lhe trouxeram depois um coelho seguido de um cordei­ro branco, arreganhou realmente os dentes, escorrendo-lhe a saliva de vibrante e incontida avidez, mas não tocou em ne­nhum dos bichos, agachados no chão a tremer; em vez disso, fiel a um comando, saltou-lhes por cima e foi colocar-se entre o coelho e o cordeiro, enlaçando-os aos dois com as patas diantei'­ras e com elas formando um comovente quadro familiar. No fim devorou da mão do homem um bom pedaço de chocolate. Era um suplício presenciar o apuro da aprendizagem daquele lobo, a que extremo fantástico ele levara a renegação da sua na­tureza. E arrepiaram-se-me os cabelos.

Contudo, na segunda parte do espectáculo, tanto o exaltado espectador como o próprio lobo foram compensados daquela tortura. Após a execução daquele requintado programa de amestramento, e depois de o domador se ter inclinado, triun­fante, com um sorriso doce entre os lábios, sobre o grupo for­ mado pelo lobo e pelo cordeiro, os papéis inverteram-se. O do­ mador parecido com Harry, subitamente, numa profunda vé­nia, depôs o chicote aos pés do lobo, e desta vez era ele que tre­mia, se encolhia e metia dó, como anteriormente o animal. O lobo, porém, rindo, lambia o focinho, toda a convulsão e du­plicidade o tinham abandonado, e os olhos luziam-lhe, entesan­do-se todo o seu corpo a desabrochar na braveza realcançada. E era a vez do lobo comandar, e do homem obedecer. À pri­meira ordem o homem caía de joelhos, fazia de lobo, deixava pender a língua para fora, rasgava a veste do corpo com os den­tes chumbados. Depois, conforme lhe ia ordenando o domador de homens, andava a duas ou quatro patas, fazia de homenzi­nho, fingia morrer, deixava o lobo montar-lhe em cima, levava­-lhe o. chicote na boca. Hábil e submissamente, empenhava-se com fantasia a cada humilhação, a cada nova perversão. Uma linda rapariga entrou em cena, aproximou-se do homem ades­ trado, acariciou-lhe o queixo, chegou-lhe a face à sua, afagan­do-a; mas ele manteve-se a quatro patas, continuou cordeiro, abanou a cabeça e começou a mostrar os dentes à beldade, a certa altura tão ameaçadora e bestialmente, que ela se viu obri­ gada a fugir. Apresentaram-lhe chocolat_, mas desdenhosa­ mente o farejou e repeliu. Por fim, trouxeram novamente o cordeiro branco e o coelho suculentamente engordado, o dócil homem, excedendo-se, reagiu como lobo e acolheu-os como manjar delicioso. Com os dedos e com os dentes, agarrou nos bichinhos em guincharia, arrancou-lhes farrapos de pele, com um meio sorriso mastigou-lhes as carnes vivas e, embrenhado, inebriado, com olhos semi-cerrados de volúpia, bebeu-lhes o sangue quente.

Horrorizado, saí porta fora. Estava a ver que aquele teatro mágico não era nenhum paraíso, a sua capa aliciante escondia toda a casta de infernos. Oh!, meu Deus, então nem ali havia li­bertação possível?

Angustiado, corri de um lado para o outro, com o sabor de sangue e chocolate na boca, tão nojento um como o outro, an­siando ardentemente escapar-me àquela vaga lamacenta, lutan­do fervorosamente dentro de mim por imagens mais suportá­veis, mais sorridentes. "á amigos, cenas destas, não, não!" cantava uma voz em mim. E lembrei-me, martirizado, daquelas atrozes fotografias de guerra, imagens das primeiras linhas, que de vez em quando nos passavam pelos olhos, daquelas pilhas de cadáveres emaranhados uns nos outros, com rostos que as más­caras de gás haviam deformado em esgares agonizantes e demo­níacos. Que estúpido e imberbe eu era ainda para assim me hor­rorizar, pacifista e filantropo, perante tais fotografias! Hoje em dia, sabia que nenhum domador de animais, nenhum ministro, nenhum general, nenhum louco era capaz de magicar no cére­bro ideias e imagens que eu próprio não pudesse chamar a mim com igual vileza, selvajaria e perversidade, com a mesma crueza e grosseria.

Respirando aliviado, lembrei-me daquele dístico que há pouco, quando entrara no teatro, tinha arrastado tão impetuo­samente para si aquele lindo adolescente, a legenda:

 

Todas as raparigas são tuás e pareceu-me que, vistas bem as coisas, nada podia ser mais ali­ciante que aquilo. Feliz por mais uma vez poder fugir àquele amaldiçoado mundo de lobo, entrei.

Como bálsamo excêntrico - maravilhoso e ao mesmo tem­po tão intimamente familiar que me fez extremecer - veio atémim, vogando no ar, o perfume da minha adolescência, a at­mosfera dos meus tempos de garoto e de jovem, e afluiu-me ao coração o sangue de outrora. Tudo o que me acabava de fazer, pensar e ser ficou para trás, esfumando-se, e eu era jovem outra vez. Ainda há uma hora, ainda há instantes julgara conhecer o amor, o desejo e a saudade, mas era o amor, a saudade de um homem velho. Agora estava rejuvenescido, e o que sentia den­tro de mim, aquele calor fervilhante, aquela nostalgia premen­te, violenta, aquela paixão a levantar-se como brisa nascente de Março, era jovem, novo e puro. Oh!, como se reacendiam as chamas esquecidas de outrora, como soavam impantes e vivi fi­cadas as melodias do passado, como florescia, chamejante, o sangue, como bradava e cantava a minha alma! Era rapazinho, de quinze ou dezasseis anos, tinha a cabeça cheia de latim e de grego e lindos versos de poetas, o pensamento cheio de ambi­ções, de aspirações, a imaginação cheia de devaneios artísticos; mas, mais profundo, forte e terrível que todos esses fogos abra­sadores, ardia e palpitava em mim a chama do amor, a fome do sexo, o devorador pressentimento da volúpia.

Achava-me numa das encostas rochosas que dominam a mi­nha aldeia natal; cheirava a brisa e às primeiras violetas, lá em baixo, na aldeia, o rio e as janelas da casa dos meus pais cintila­vam-me aos olhos; e tudo aquilo transparecia, ressoava e chei­rava tão rica e inebriantemente, tão radioso de frescura e trans­bordante de criação, tão esplendoroso de colorido, flutuando irreal e transfigurado à aragem da primavera, como eu outrora via o mundo nas horas mais férteis e poéticas da minha primeira juventude. Ali estava de pé ao cimo da encosta, com o vento a afagar-me os cabelos compridos; com a mão errante, perdido em sonhadora nostalgia amorosa, colhi do arbusto há pouco enverdecido um jovem rebento de folha meio aberto, ergui-o diante dos olhos, tomei-lhe o odor (e logo este aroma fez vir a mim, em fervente evocação, todo o ambiente dessa época) e le­vei-o a brincar entre os lábios, que ainda não tinham beijado uma rapariga, trincando-o entre os dentes. E aquele sabor acre, perfumado e ácido, fez-me conhecer de repente com exactidão a hora que revivia, fez-se luz em mim. Atravessava um momen­to do meu último ano de adolescente, uma tarde de domingo no despertar da primavera, aquele dia em que no meu passeio soli­tário tinha encontrado a Rosa Kreisler, saudando-a tão timida­mente, e tão cegamente me apaixonando por ela.

Acolhera com os olhos cheios de ansiante expectativa a bela rapariguinha sonhadora e solitária que vinha caminhando mon­tanha acima, sem ainda ter dado por mim; contemplara os seus cabelos, penteados em duas tranças grossas mas deixando pen­der sobre as faces madeixas soltas que brincavam e ondulavam ao vento. Vira, pela primeira vez na vida, como era linda aquela moça, como era belo e irreal o jogo da brisa nos seus cabelos delicados, formoso o cair do franzino vestido azul ao longo do corpo jovem, a despertar-me desejo; e como o gosto amargo e picante do botão mascado me impregnava de todas as delícias, de todas as angústias suaves e receosas da primavera. E assim a visão daquela rapariga ali aparecida me ia enchendo de toda a mortal presciência.do amor, da primeira revelação da mulher, do abalador pressentimento de possibilidades e promessas imensas, de deleites inefáveis, desorientações, ansiedades e so­frimentos impensáveis, de libertação profunda, culpa abissal. Oh!, como me ardia na língua o amargo sabor da primavera! Como o vento revolvia e brincava nos cabelos soltos que afluíam às suas faces rosadas! Depois, aproximando-se, levan­tara a cabeça e reconhecera-me, ruborescendo levemente por instantes, e desviara o olhar; cumprimentei-a, tirando o meu chapéu de confirmando, e Rosa, já recomposta, retribuíu-me com um sorriso, de cabeça levantada, num jeito algo amaneira­do e, lentamente, continuou caminho, envolvida nos mil e um desejos, pretensões e homenagens que atrás dela lancei.

Assim acontecera, num domingo de há trinta e cinco anos atrás; e tudo o que então se passara voltava a mim neste mo­mento: colina e aldeia natal, vento de Março e cheiro de reben­to, Rosa e os seus cabelos castanhos, ânsia rompente, receio do­ce e sufocante. Tudo era como dantes, e parecia-me que nunca mais na vida amara como naquela altura amava Rosa. Mas, desta vez, era-me dado acolhê-la de um modo diferente. Vi co­mo ruborescia ao dar comigo, como procurava dissimular esse rubor, e percebi logo que gostava de mim, que aquele encontro significava para ela tanto como para mim. E em vez de tornar a erguer o chapéu e ali ficar especado com ele na mão, alegremen­te, a vê-la passar, atirei para trás o medo e o embaraço e, obe­decendo ao chamamento do sangue, exclamei: "Rosa!, Graças a Deus que apareceste, menina linda, linda dos meus olhos. Gos­to tanto de ti!" Talvez não fosse o mais inteligente para se dizer na altura, mas também a inteligência não era chamada para ali, bastava muito bem assim. Rosa não armou em senhora e não continuou caminho; Rosa parou, olhou para mim e, ainda mais corada do que antes, disse: "Olá, Harry! É mesmo verdade que gostas de mim?" E os olhos castanhos luziam-lhe, radiosos, no rosto sadio. Percebi então que toda a minha vida, todos os meus amores passados haviam sido falsos, intrincados e cheios de absurdos revezes, a partir do momento em que naquele do­mingo eu deixara escapar Rosa. Mas agora tinha oportunidade de reparar o meu erro, e tudo se tornava diferente, risonho.

Estendemos as mãos um para o outro e, assim enjaçados, recomeçamos a andar, vagarosamente, indescritivelmente feli­zes, profundamente embaraçados, sem saber o que dizer e o que fazer; e desnorteados de timidez, começamos a apressar o passo, sempre mais e mais, e deitamos a correr, a correr, até que perdemos o fôlego e tivemos de parar, sem soltar as mãos. Ambos éramos ainda crianças, e não sabíamos bem o que ha­víamos de fazer um com o outro; nesse domingo nem chegamos sequer ao primeiro beijo, mas sentíamo-nos imensamente feli­zes. Ali ficamos algum tempo parados, de pé, respirando ofe­gantes; depois sentamo-nos na erva, eu fiz-lhe festas na mão, e ela, envergonhadamente, veio afagar-me os cabelos com a sua; levantamo-nos outra vez e pusemo-nos a tentar medir qual de nós era o mais alto; na realidade eu tinha um centímetro a mais, mas não lho admiti, constatando que éramos exactamente da mesma altura e que o bom Deus nos tinha fadado um para o outro e que um dia havíamos de casar. Então Rosa disse que sentia no ar cheiro a, violetas; ajoelhando-nos na tímida. erva primaveril, lançamo-nos à procura de florinhas, e descobrimos duas violetas de haste curta e eu ofereci-lhe as minhas, e ela ofe­receu-me as suas; e quando arrefeceu e a luz já caía em viés so­bre os rochedos, Rosa anunciou que tinha de ir para casa, e am­bos ficamos muito tristes, porque eu não podia acompanhá-la; mas agora tínhamos um segredo nosso, muito nosso, e era aqui­ lo que tínhamos de mais precioso. Fiquei lá em cima nos mon­tes, a cheirar a violeta de Rosa; estendi-me no chão à borda de uma ravina, com a cara semi-suspensa sobre o abismo, e com os olhos baixados sobre o vale, fiquei espreitando até ver aparecer a sua silhueta terna e miúda lá no fundo, passando pela nascen­te e atravessando a ponte. Depois continuei a segui-la em pensa­mento até chegar a casa do pai e entrar no seu quarto, e eu ali estava e ali ficava, longe dela; mas entre mim e ela corria um la­ço, flui a uma corrente, pairava um segredo.

Voltamos a ver-nos, aqui e ali, nas rochas do monte, junto às sebes dos jardins, ao longo de toda essa primavera, e quando os lilazes desabrochavam trocamos o nosso primeiro beijo ame­ drontado. Como crianças, pouco podíamos dar um ao outro, o nosso beijo ainda era despido de paixão e ardor, e eu apenas me atrevia a afagar docemente as madeixas soltas sobre as duas orelhas; mas todo o amor, toda a alegria de que éramos capa­zes, era genuinamente nosso, e a cada avanço envergonhado, a cada palavra verde de amor, a cada alvoroçada expectativa de encontro, aprendíamos uma nova ventura, subíamos mais um pequeno degrau na escada do amor.

E assim, começando com Rosa e as violetas, atravessei mais uma vez toda a minha vida amorosa, sob estrelas mais sorriden­tes. Rosa perdeu-se, Irmgard apareceu, e o sol deu mais calor, e as estrelas maior fulgor; mas nem Rosa nem Irmgard foram mi­nhas; tive de continuar subindo, degrau a degrau, passar por muito, aprender muito, e também tive ainda de perder Irmgard, e depois Ana. Voltei a amar, uma a uma, todas as raparigas por quem me apaixonara na minha juventude, mas a cada uma con­seguia inspirar amor, oferecer qualquer coisa de mim, receber qualquer coisa dela. Desejos, sonhos e perspectivas que outrora apenas habitavam a minha imaginação, tornavam-se realidade e eu vivia-os em plenitude. Oh!, flores lindas, Ida e Laura, vós todas, que eu outrora amei no espaço de um verão, de um mês, de um dia!

Compreendi que era agora o formoso e arrebatado adoles­cente que hâ pouco vira lançar-se tão precipitadamente para a porta do amor, que provava à saciedade e deixava florescer aquele fragmento de mim próprio, aquela fracção do meu ser e da minha vida concretizada apenas a um décimo, um milésimo, sem interferências e atropelos de todas as outras figuras do meu eu, desembaraçado do pensador, liberto da tortura do Lobo das Estepes, do definhamento do poeta, do utopista, do mora­lista. Não, jâ não era senão o amante, não respirava outra feli­cidade e outras agruras que não as do amor. Irmgard ensinara­-me a dançar, Ida a beijar, e a mais bela de todas, Emma, foi a primeira que numa noite de outono, sob a folhagem ondulante do ulmeiro, me deu a beijar os seus seios acastanhados, me deu a beber a taça da volúpia.

Passei pelas mais variadas experiências no pequeno teatro de Pablo, de que nem um milésimo se poderia descrever em pa­lavras. Todas as moças que eu alguma vez amara eram minhas, cada uma me dava aquilo que só ela tinha para dar, e a cada uma eu dava aquilo que só ela sabia poder colher em mim. Pro­vei e experimentei muito amor, muita ventura, muita volúpia, e também muita desorientação e sofrimento; todos os amores fa­lhados da minha vida desabrochavam magicamente no meu jar­dim nessa hora de sonho, botões cândidos e delicados, flores chamejantes e garridas, sombrias e rapidamente emurchecidas, luxúria ofuscante, devaneio ardente, férvida melancolia, desfalecimento angustiado, jubiloso renascimento. Encontrei mulhe­res que só de passagem e de rompante se conseguiam conquis­tar, e outras que dava gosto e ventura cortejar demorada e cau­telosamente; ressurgiam para mim todos os recantos crepuscu­lares da minha vida em que outrora, por um instante que fosse, a voz do sexo me chamara, um olhar de mulher me incendiara, um vislumbre de pele branca me tentara; e recuperei tudo o que desperdiçara. Todas elas eu possuía, cada uma à sua maneira. A mulher com os estranhos olhos castanho profundo sob cabe­ los brancos de linho, junto à qual eu um dia passara um quarto de hora, à janela do corredor de um râpido, e que mais tarde me aparecera vârias vezes em sonho - essa não disse uma pala­vra, mas ensinou-me artes de amor inimagináveis, assustado­ras, fatais. E a chinesa do porto de Marselha, escorreita, silen­ciosa, de sorriso vítreo, cabelos lisos de azeviche e olhos glau­cos, também sabia coisas inauditas. Cada uma tinha o seu se­gredo, derramava o bâlsamo da sua terra, beijava, ria à sua ma­neira, era púdica ao seu jeito especial, despudorada como nin­guém. Iam e vinham, a corrente trazia-as até mim, arrastava­-me para junto delas, para longe delas, era um boiar, um nadar em folguedo de criança na torrente do sexo, cheia de encantos, perigos e surpresas. E fiquei espantado ao ver como a minha vi­da, a minha vida de Lobo das Estepes, aparentemente tão po­bre e despida de amor, fora rica em envolvimentos amorosos, oportunidades e seduções. Eu desperdiçara e esquivara-me qua­se a todas, galgando-as aos tropeções, esquecera-as o mais de­pressa possível- mas todas me estavam agora guardadas, sem lacunas, às centenas. E desta vez eu apercebia-me delas, aban­donava-me, abria-me a elas, mergulhava e afundava-me no seu mundo subterrâneo em alvorada rósea. Também regressou a chamar-me aquela tentação que Pablo uma vez me oferecera, e outras, mais antigas, de que eu nessa altura nem sequer me ca­pacitara plenamente, jogos fantásticos a três e a quatro, que com um sorriso me arrebatavam na sua dança rodopiante. Mui­ta coisa aconteceu, muitos lances se jogaram que não é possível reproduzir em palavras.

Do fundo da torrente infindável de seduções, vícios e im­bróglios, emergi de novo à superfície, tranquilo, silencioso, couraçado, saturado de conhecimento, sábio, profundamente experimentado, maduro para Hermínia. Como última figura n_ minha mitologia de mil personagens, como último nome da in­terminável cadeia, aparecia ela, Hermínia, e no mesmo instante retomei a consciência e pus termo ao conto de fadas amoroso, porque a ela não queria eu encontrar na média-luz de um espe­lho mágico; o que a ela pertencia não se limitava a uma ou ou­tra figura do meu xadrez, era eu, por inteiro, era o Harry inte­gral. Oh!, mas eu havia de pegar nas peças do meu jogo e redis­pô-las de maneira a que tudo se orientasse para ela e levasse à consumação.

A corrente arrojara-me para terra, e achei-me de novo no silencioso átrio do teatro que abria para os camarotes. E agora? Levei a mão ao bolso para agarrar nas peçazinhas, mas já este impulso perdia momento. Inesgotável, o mundo das portas, das inscrições e do espelho mágico fazia cerco em volta de mim.

Sem ânimo, levei os olhos à legenda mais próxima, e arre­piei-me:

 

Como matar por amor eram as palavras do dístico. Fulminante, acendeu-se em mim a imagem de uma recordação, logo depois desvanecida: Hermí­nia, à mesa de um restaurante, subitamente alheada do vinho e do prato e levada, perdida, para um diálogo de abismo, com o olhar terrivelmente grave, a dizer-me que só me fazia apaixonar por ela para ser morta pela minha mão. Pairou sobre o meu co­ração uma onda sombria e agitada de angústia e de trevas; de repente, tudo me assomava de novo aos olhos, sentia de novo no meu íntimo aflição e destino. Desesperado, levei a mão ao bolso a buscar as figurinhas, para criar um pouco de magia e re­pôr ordem no meu tabuleiro de xadrez. As peças tinham desa­parecido. No seu lugar, saquei da algibeira uma faca. Mortal­mente apavorado, larguei a correr pelo corredor, passando por­tas umas atrás das outras, e estaquei de súbito diante do gigan­tesco espelho, mirando-me nele. Achei diante de mim um lobo belo e enorme, do meu tamanho, quedado a contemplar-me ti­midamente do fundo de um olhar reluzente e irrequieto. Pis­cando-me os olhos tremeluzentes, riu furtivamente, apartando por instantes os beiços a deixar entrever a língua vermelha.

Onde estava Pablo? Onde estava Hermínia? Onde estava o inteligente sujeito que dissertara com tanta propriedade sobre a reconstrução da personalidade?

Olhei outra vez para o espelho. Que estupidez a minha! Não havia lobo nenhum por trás do enorme vidro, lambendo os bei­ços com a língua.

No espelho quem estava era eu, Harry, de rosto abatido, desertado de todos os jogos, lasso de todos os ví­cios, horrivelmente lívido, mas de qualquer forma um homem, de qualquer forma alguém com quem se podia falar.

"Harry!", disse eu, "o que é que estás aí a fazer?" "Nada", disse o do espelho, "estou só à espera. À espera da morte" .

"Mas onde é que está a morte?" perguntei.

            "Está para vir", respondeu o outro. E chegou-me aos ouvi­dos, vinda dos espaços vazios do coração do teatro, uma músi­ca terrível, aquela passagem do Don Juàn que acompanha a aparição do visitante de pedra. Os acordes ressoavam arrepian­tes através do fantasmagórico edifício, viajando das bandas do além, dos imortais.

"Mozart!" pensei, amaldiçoando ao mesmo tempo os mo­delos mais caros e sublimes da minha vida anterior.

Nesse instante estalou atrás de mim uma gargalhada, uma gargalhada sonora e glacial vinda de recantos jamais revelados ao homem, nascida do sofrimento e do humor divino. Voltei­-me, trespassado até aos ossos e enfeitiçado por aquele riso, e ali estava Mozart, aproximando-se de mim, passando por mim sempre a rir, dirigindo-se em passo calmo e despreocupado a um dos camarotes, abrindo a porta e desaparecendo por trás dela. Avidamente, lancei-me atrás dele, o deus da minha juven­tude, objecto do amor e veneração de toda uma vida. A música continuava ecoando. Mozart estava junto à balaustrada do ca­marote, de cotovelos apoiados, e do teatro não havia o menor vestígio, as trevas enchiam o espaço incomensurável.

"Como vê", falou Mozart, "também dá sem saxofone. Embora deva dizer que está longe dos meus intentos menospre­zar esse instrumento famoso".

"Onde estamos nós? perguntei.

            "Estamos no último acto do Don Giovanni, Leporello já caiu de joelhos. Uma cena primorosa, e a música também não é má de ouvir, não senhor. Embora ainda tenha muita coisa de humano, sempre se vislumbra já o além, o riso - não é?"

"É a última música grandiosa que jamais se compôs", disse eu festivamente, como um mestre-escola. "Claro, depois ainda houve um Schubert, um Rugo Wolf, e também não posso omi­ tir o pobre, maravilhoso Chopin. Está a franzir o sobrolho, maestro - ah!, pois, também há o Beethoven, esse também é espantoso. Mas isso tudo, por muito belo que seja, já traz em si laivos de fraccionamento, germes de dissolução, desde o Don Giovanni que homem algum voltou a criar obra de cunho tão perfeito e acabado".

"Não se exceda", riu Mozart, terrivelmente irónico. "Tam­bém é músico, não? Eu cá por mim abandonei o oficio e apo­sentei-me. Só para dar o gostinho ao dedo olho um bocadoaquilo de vez em quando".

Ergueu as mãos, como que a dirigir uma orquestra; algures nas alturas subiu uma lua, ou porventura um astro descorado. Debruçado sobre a balaustrada, contemplei profundezas infin­dáveis; nuvens e brumas vogavam nos ares; montes e areais res­saltavam no crepúsculo e, abaixo de nós, estendia-se, a abarcar o universo, uma planura desértica. Nessa vastidão destacava-se um homem idoso de aspecto venerável, com longas barbas, que encabeçava melancolicamente um imenso cortejo de algumas dezenas de milhares de homens trajados de negro. Parecia de­ primido e desesperado, e Mozart disse:

            "Estás a ver? Aquele ali é o Brahms. Anseia pela libertação, mas daqui até lá ainda tem que esperar um bom bocado".

Fiquei sabendo que os milhares de figuras negras eram os tocadores das sequências e notas que, segundo o juízo divino, haviam sido supérfluas nas suas partituras.

"Uma instrumentação densa demais, um desperdício exage­rado de materiais", observou Mozart, assentindo com a cabe­ça.

E no momento seguinte avistamos Richard Wagner mar­chando diante de um exército igualmente vasto, e sentíamos co­mo aqueles milhares de homens o impeliam e assediavam; e também a ele o víamos arrastar-se, exausto, com passo martiri­zado.

            "Quando eu era novo" observei, contristado, "estes dois músicos eram considerados diametralmente opostos".

            Mozart riu.

            "Pois, é sempre assim. Vistos a alguma distância, esses contrastes costumam sempre aproximar-se. A instrumentação so­brecarregada, de resto, não foi falha pessoal do Wagner ou do Brahms, era um erro da sua época" .

            "O quê? E é esse erro que estão a expiar assim tão penosamente?" exclamei, acusador.

"Pois claro. É a via das instâncias. Só quando tiverem pago pelo pecado da sua época é que se há-de ver se ainda fica sufi­ciente valor pessoal para justificar um ajuste de contas".

            "Mas eles não têm culpa nenhuma!"

            "Naturalmente que não. Mas também não têm culpa ne­nhuma que o Adão tenha trincado a maçã, e no entanto não deixam de ter de expiar por isso" .

            "Mas isso é horrível!"

            "Com certeza, a vida é sempre horrível. Não podemos fazer nada, mas somos responsáveis por isso. Vem-se ao mundo, e por esse simples facto somos logo culpados. Deve ter tido uma catequese muito esquisita, se não lhe ensinaram uma coisa des­sas".

Sentia-me desgraçado até mais não. Via-me peregrino a cair de esgotado, arrastando-me pelo deserto do além, carregado com a pilha de livros dispensáveis que escrevera, com os inúme­ros artigos e folhetins, seguido pela multidão dos tipógrafos que tinham tido de trabalhar em tudo aquilo, do exército de lei­tores que forçadamente haviam engolido tudo aquilo. Meu Deus! E mais, atrás disso ainda vinha o Adão, mais a maçã e to­do o resto do pecado original. Portanto tudo aquilo era para expiar, purgatório infinito, e só então caberia perguntar se no meio de tudo aquilo ainda haveria algo de pessoal, verdadeira­mente meu, ou se toda a minha actividade e respectivas conse­quências não passavam de escuma do mar, de jogo absurdo na torrente da existência.

Mozart desatou a rir vigorosamente, ao ver a minha expres­são abatida.

De tanto e tão forte gargalhar, lançou-se ao ar num pinote, e, cabriolando com as pernas, gritou-me: "Eh! ra­paz, estás abalado, de coração apanhado? Pensas nos teus lei­tores, asnos devoradores? Pensas nos teus compositores, cor­tantes verdugos, hereges instigadores? Apetece demolir, mas éde estoirar a rir, de desfazer a mijar! Ó credulidade em pessoa, como a tua nobreza ressoa! Ó alma em aflição, acende velas à salvação, e será uma gozação! Arenga daqui, baleIa dali, é tra­vessura que traz censura, e dado o percalço te irão no encalço. Por Deus ordenado, pelo diabo serás levado, zurzido e chibata­do por paleio desajuizado - porque o escrito foi plagiado!"

Isto agora já era demais, a cólera tolheu-me ensejo para me­lancolia. Agarrei Mozart pelo rabicho do cabelo; mas ele esca­pou-se e fugiu pelos ares, e o rabicho na minha mão foi-se tor­nando cada vez mais longo, como uma cauda de cometa, em cuja ponta eu, suspenso, rodopiava em turbilhão pelo universo fora. Diabos!, o frio que estava naquele universo! Aqueles imortais aguentavam uma atmosfera glacial abominavelmente rarefeita. Mas sabia bem, aquele ar gelado, ainda pude senti-lo instantes antes de desfalecer. Senti-me trespassado por uma hi­lariedade amarga, cortante, metálica e luzidia como o aço, uma vontade de rir tão imperiosa, desaustinada e extra-terrestre co­mo a de Mozart pouco antes. Mas já a respiração me falhava e a consciência se perdia.

 

Quando dei por mim, atarantado e como que desfeito em pedaços, a luminosidade branca do corredor reflectia-se no soa­lho lustroso. Não estava na morada dos imortais, ainda não. Continuava no aquém dos enigmas, das agonias, dos lobos das estepes, dos imbróglios tormentosos. Lugar de todo inóspito, paragem de todo insuportável. Urgia pôr-lhe fim.

No grande espelho da parede, diante de mim, erguia-se Harry. O seu aspecto não era bom, lembrava até o daquela noi­te depois da visita a casa do professor, no baile no Águia Negra. Mas isso ficava muito para trás, anos, séculos para trás; Harry estava mais velho, tinha aprendido a dançar, frequentara tea­tros mágicos, ouvira rir Mozart, já não receava a dança, as mu­lheres ou as lâminas. Até o homem medianamente dotado, de­pois de palmilhar alguns séculos, acaba por amadurecer. Con­templei Harry no espelho, demoradamente: ainda o reconhecia muito bem, ainda se assemelhava um tudo nada ao Harry dos quinze anos, que num domingo de Março tinha encontrado Ro­sa nas montanhas e a saudara levantando garbosamente o seu chapéu de confirmando. No entanto, de então a esta parte en­velhecera umas boas centenas de anos; dedicara-se à música e àfilosofia e fartara-se de ambas; emborcara vinho da Alsácia no Capacete de Aço e argumentara sobre Krishna com sábios con­ceituados; amara Erika e Maria; tornara-se amigo de Hermínia; abatera automóveis e dormira com a chinesa escorreita; encon­trara-se com Goethe e Mozart e rasgara múltiplos buracos nas malhas do tempo e da pseudo-realidade que ainda o mantinham

preso. Se tinha perdido as suas lindas peças de xadrez, pois em contrapartida ganhara uma boa faca que lhe fora ter à algibei­ra. Em frente, Harry, carcaça velha e cansada!

Raios!, como era amargo o travo da vida! Escarrei sobre o Harry do espelho, dei-lhe pontapés e desfi-lo em cacos. Lenta­mente, encaminhei-me pelo corredor povoado de ecos, obser­vando atentamente as portas, que tanta coisa bela tinham agoi­rado: em nenhuma se via já qualquer legenda. Lentamente, cor­ri todas as cem portas do teatro mágico. Não tinha estado num baile de máscaras? Cem anos haviam entretanto decorrido. Bre­ve deixaria de haver anos. Havia uma última coisa a fazer. Her­mínia aguardava ainda. Singulares núpcias, aquelas! No turbi­lhão de uma vaga suja, deixei-me arrastar até ela, escravo, Lo­bo das Estepes. Que horror!

Na última porta estaquei! A onda conspurcada levara-me ali. Ó Rosa, ó juventude longínqua, ó Goethe e Mozart!

Abri. O que encontrei por trás da porta era um quadro for­moso e singelo. Deitadas no chão em tapetes, vi duas criaturas em corpo nu, a bela Hermínia e o belo Pablo, estendidos lado a lado, profundamente adormecidos, profundamente exaustos do jogo amoroso, que tão inesgotável parece mas tão rapida­mente sacia.

Criaturas lindas, lindas, imagens sumptuosas, cor­pos admiráveis. Sob o seio esquerdo de Hermínia havia uma marca redonda e fresca, corada de negro, uma mordedura amo­rosa dos dentes belos e reluzentes de Pablo. Aí, no sítio da mar­ca, enterrei a minha faca, até desaparecer a lâmina. O sangue correu sobre a pele branca e tenra de Hermínia. Teria lavado aquele sangue à força de beijos, se tudo tivesse sido um pouco diferente, se tudo tivesse corrido de maneira um tanto diferen­te. Assim, não o fiz; ali fiquei contemplando simplesmente o sangue escorrer, e vi que os seus olhos por instantes se entrea­briam, dolorosamente, profundamente espantados. "Porque estará ela espantada?" pensei. Depois ocorreu-me que era me­lhor fechar-lhe os olhos. Mas já eles baixavam a cerrar-se por si. Estava feito. Voltou-se ligeiramente para o lado, mais nada; e distingui um sombreado fino e delicado que ia da axila ao pei­to, provocador, a querer recordar-me qualquer coisa. Esqueci­do! E não mais se moveu.

Durante muito tempo, não tirei os olhos dela. Por fim, es­tremeci num arrepio, como que despertando, e dispus-me a sair. Foi então que vi Pablo abrir os olhos a esticar os membros, inclinar-se sobre a bela morta e sorrir. Este tipo nunca há-de le­var nada a sério, pensei, não há nada que o não faça sorrir. Cui­dadosamente, pegou numa ponta do tapete e cobriu Hermínia até ao peito, de modo a esconder a ferida, saindo depois pé ante pé do camarote. Onde iria? Então todos me abandonavam? Fi­quei sozinho com a morta meio encoberta que eu amava e inve­java. Sobre a fronte lívida pendia o caracol de rapazinho, a bo­ca sobressaía, radiosa de vermelho, entreaberta, de todo o rosto descorado, o cabelo, levemente perfumado, deixava entrever a orelha miúda e delicada.

O seu desejo tinha-se realizado. Mesmo antes de ter sido to­talmente minha, eu matara a minha amada. Fizera o inconcebí­vel; e agora, de joelhos no chão, e olhos cravados nela, ali esta­va sem saber o que aquele acto significava, nem sequer se fora bom e acertado, ou exactamente o contrário. O que teria a dizer o inteligente xadrezista, o que teria a dizer Pablo? Eu não sabia nada, não conseguia pensar. A boca tingia-se de rubro sempre mais incandescente no meio do rosto definhante. Toda a minha vida, o meu vislumbre de felicidade e amor, fora como aquela boca rígida: um rubor de vermelho, pintado sobre o rosto de uma morta.

E da face morta, dos alvos ombros mortos, dos alvos braços mortos desprendeu-se, lentamente insidioso, um hálito de cala­frio, uma solidão, uma nudez invernosa, um frio a nascer deva­gar, devagarinho, a enregelar-me as mãos e os lábios. Teria eu apagado o Sol? Teria morto o coração da vida? Ter-se-ia desen­cadeado o gelo mortal dos universos?

Arrepiado, fixava a fronte petrificada, o caracol inteiriça­do, a sombra fresca e pálida na concha da orelha. O frio que deles irradiava, embora letal, tinha algo de belo: tangia, vibrava deliciosamente, era música!

Não sentira já alguma vez noutros tempos aquele arrepio que simultaneamente trazia qualquer coisa de felicidade? Não ouvira já uma vez aquela música? Sim, ouvira-a em Mozart, nos imortais.

Vieram-me à ideia uns versos que outrora, em época passa­da, encontrara não sei onde:

 

Em gelo de éter, perpassado de luz astral,

Encontramo-nos nós, afinal,

Onde não há homens nem mulheres, nem novos nem velhos,

Onde não se conhecem nem dias nem horas...

Imóvel e glacial é a nossa existência infinita,

Estelar e glacial o nosso riso eterno.

 

Nesse instante abriu-se a porta do camarote para deixar en­trar Mozart, um Mozart que não reconheci à primeira vista, sem o cabelo apanhado atrás, sem calças até ao joelho e sapatos afivelados, trajando modernamente. Veio sentar-se mesmo co­lado a mim, a ponto de quase me apetecer segurá-lo para evitar que se sujasse com o sangue que correra do peito de Hermínia até ao chão. Uma vez instalado, começou a mexer e remexer meticulosamente em aparelhómetros e instrumentos pequenos que por ali jaziam dispersos, parecendo extremamente empe­nhado, encaixando e aparafusando daqui e dali, enquanto eu, cheio de admiração, fitava aqueles dedos hábeis e miúdos que tanto teria gostado de ver sobre as teclas de um piano. Embre­nhado nos meus pensamentos, ou antes, nos meus sonhos, olhava-o, perdendo-me na visão daquelas mãos formosas e des­tras, aconchegado mas um tanto inquietado pela sua presença. Nem reparava no que realmente fazia, que lides de ferramentas e parafusos eram aquelas.

Mas não era senão um aparelho de rádio que acabava de montar e pôr em funcionamento; ligando depois o altifalante, anunciou: "Sintonizam Munique, vamos apresentar o Concer­to Grosso em Fá maior de Handel".

Qual não é o meu espanto, e indizível horror, quando o dia­bólico funil de lata desata a cuspir para fora aquela mistura de mucosidade bronquial e borracha mascada e remascada que os possuidores de gramo fones e os assinantes da T.S.F. convieram em chamar música - e por trás daquela escarradela turva e vis­cosa, daquela rangente grasnadela, ressaltava, genuína como uma bela pintura antiga sob espessa crosta de imundície, a no­bre estrutura dessa música divina, o rasgo soberano, o fôlego amplo e fresco, a sonoridade farta e profunda das cordas.

"Meu Deus!", exclamei, aterrorizado, "mas o que é que es­tá afazer, Mozart? É de propósito que me está a atirar à cara com esta porcaria, a mim e a si próprio? Que lança sobre nós es­te aparelho horroroso, triunfo da nossa época, sua última arma vitoriosa na luta aniquiladora contra a arte? Tem mesmo de ser, Mozart?"

Oh! como se pôs a rir aquele homem impenetrável, com um riso glacial, de espectro, silencioso mas tudo arrasando com o seu gargalhar! Imensamente divertido, presenciava o meu suplí­cio, atarrachando os malditos parafusos, manejando o altifa­lante. Sempre a rir continuou vertendo sobre o quarto a música deformada, envenenada e esvaziada de alma; e a rir me respon­deu:

"Nada de cenas patéticas, senhor vizinho! A propósito, re­parou naquele ritardando? Um achado, hein? Bem, e agora, criatura impaciente, deixe-se penetrar pela música deste ritar­dando - ouve os violoncelos? Bradam como deuses - e permi­ta que este achado do velho Handel penetre no seu coração de­sassossegado para o acalmar! Abra os ouvidos, homenzinho de Deus, esqueça o patético e a brincadeira, e verá se não ouve passar sob o véu de facto desesperantemente idiota deste apare­lho ridículo a longínqua silhueta desta música divinal! Tome atenção, que há-de ganhar alguma coisa com isso. Repare como este desvairado tubo de ressonância parece fazer o que há de mais imbecil, inútil e inadmissível no mundo, arbitrariamente,

estupidamente, brutalmente, e ainda por cima com imensas distorções, lança uma música que algures está a ser tocada para um espaço estranho onde ficará deslocada - e veja como ape­sar de tudo não consegue destruir o espírito primitivo dessa mú­sica, antes não fazendo mais do que provar a sua deplorável técnica e o seu insosso aparato! Ouça, e ouça bem, tipinho, que bem precisa! Portanto, orelhas bem abertas! Bom. E agora o que está a ouvir não é apenas um Handel violentado pela rádio, Handel esse que, diga-se de passagem, não deixa de ser divinal mesmo sob esta forma de expressão perfeitamente abominável - o que escuta e vê, caríssimo, é ao mesmo tempo uma soberba alegoria da própria vida. Quando ouve a rádio, assiste de olhos e ouvidos ao combate original entre a ideia e a forma, a eterni­dade e o tempo, o divino e o humano. Exactamente, meu queri­do amigo, como a telefonia, durante dez minutos, lança arbi­trariamente a música mais maravilhosa deste mundo até aos lu­gares mais inconcebíveis, salões burgueses e águas-furtadas, por entre assinantes a cavaquear, deglutir, bocejar e dormir, assim como despoja essa música da sua beleza sensual, como a corrompe, emporcalha e contamina sem no entanto conseguir assassinar-lhe o espírito - assim também, do mesmo modo, a vida, a dita realidade, arroja pelos ares o glorioso jogo de ima­gens do universo, introduz a seguir a um trecho de Handel uma prelecção sobre técnicas de apresentação de contas nas empre­sas industriais médias, faz de uma encantadora melodia de or­questra um repugnante vómito de sons, impõe e encaixa a sua técnica, o seu bulício, a sua miséria e a sua vaidade entre a ideia e a realidade, entre a música e o ouvido. A vida inteira é assim, meu caro, e nós temos de a deixar como é, e se não formos as­nos chapados, ainda acabamos por rir disso tudo. Pessoas co­mo você não têm nada que se pôr com críticas ao rádio ou à vi­da. Que aprendam primeiro a escutar! Aprendam a tomar a sé­rio aquilo que vale a pena ser tomado a sério, e a rir de tudo o resto! Ou terá você por si arranjado saída melhor, mais nobre, mais inteligente, de bom gosto? Oh! não, senhor Harry, isso é que não arranjou. Fez da sua vida uma horripilante história clí­nica, do seu talento uma infelicidade. E segundo estou a ver, não achou melhor que fazer a uma rapariguinha bonita e en­cantadora como esta do que espetar-lhe uma faca no peito e dar cabo dela! Achará por acaso que isso está certo?"

"Certo? Oh! não!" exclamei, desesperado. "Meu Deus, tu­do é tão falso, tão infernalmente idiota e atroz! Sou uma besta quadrada, Mozart, uma besta imbecil e malvada, doente e conspurcada, aí tem o Senhor toda a razão. Agora, no que toca a esta moça aqui: foi ela própria que assim quis, eu limitei-me a realizar-lhe um desejo".

            Mozart riu silenciosamente, mas desta vez teve a hombrida­de de desligar o rádio.

A minha defesa, em que ainda há pouco acreditava piamen­te, de repente parecia-me a mim próprio francamente dispara­tada. Quando Hermínia, um dia - lembrei-me subitamente ­me falara de tempo e de eternidade, desde logo me dispusera a tomar os seus pensamentos como reflexo dos meus. Agora, nem por. um instante supusera que a ideia de se deixar matar por mim lhe tivesse sido insuflada por mim, antes tomara por evidente que fosse congeminação própria, desejo muito seu. Mas porque não teria eu na altura apenas admitido e tomado por certo aquele plano tão assustador e tão singular, antes che­gando ao ponto de o adivinhar previamente? Talvez porque afinal fosse coisa minha? E porque teria eu assassinado Hermínia no preciso momento em que a encontrei nua nos braços de um outro? O riso silencioso de Mozart soava omnisciente e cheio de sarcasmo.

"Harry", disse ele, "você é um brincalhão de mau gosto. Então acha que esta linda menina não desejava mais nada de si senão uma facada? Vá contar histórias a outro! Vá lá, que ao menos o golpe foi certeiro, a pobre pequena está morta e bem morta. Talvez venha chegando a altura de tomar bem consciên­cia das consequências do seu galanteio para com esta senhora. Ou será que prefere furtar-se a essas consequências?"

"Não!" gritei. "Então o Senhor não entende? Eu, querer escapar-me às consequências! Pois se eu não quero outra coisa senão expiar, expiar, expiar, enfiar a cabeça debaixo da guilho­tina e deixar-me castigar e aniquilar!"

Mozart encarou-me com insuportável ironia.

            "Isto é que você é patético, hein! Mas ainda há-de vir a aprender a galhofar, a ter humor. O humor é sempre humor, e se for preciso há-de aprendê-lo mesmo no cadafalso. Está pre­parado para isso? Está? Óptimo; e nesse caso vá ter com o Mi­nistério Público e deixe desabar sobre si todo o aparelho judi­ciário, até ao glacial rolar da cabeça no pátio da prisão às pri­meiras horas do alvorecer. Está portanto preparado para isso?" Subitamente lampejou-me diante dos olhos uma inscrição:

 

                            Execução de Harry

E eu abaixei a cabeça em sinal de assentimento. Um pátio despi­do entre quatro muros com pequenas janelas gradeadas, uma guilhotina impecavelmente montada, uma dúzia de senhoras em vestes longas e traje de circunstância, e no meio estava eu a tiritar ao ar pardacento da manhã com o coração apertado de miserável angústia, mas preparado e consentidor. Soou a pri­meira ordem e dei um passo em frente, soou nova ordem e ajoe­lhei em terra. O acusador descobriu-se e pigarreou, todos os ou­tros senhores tossicaram também. Depois, pegando num pom­poso documento que desdobrou diante dos olhos, passou a ler:

"Meus senhores, têm diante de vós Harry Haller acusado e condenado por abuso voluntário do nosso teatro mágico. Hal­ler não se limitou a ofender a arte sublime, confundindo a nos­sa bela galeria de imagens com a suposta realidade e assassinan­do um reflexo de mulher com um reflexo de faca; também ma­nifestou a intenção de se servir do nosso teatro como expediente de suicídio sem o mínimo laivo de humor. Pelo que foi dito, se condena Haller à pena de vida eterna e à suspensão por doze horas do direito de admissão no nosso teatro. O réu também não poderá ser dispensado da pena do motejo. Meus senhores, façam favor de me acompanhar: um - dois - três!"

E, ao três, todos os presentes, em irrepreensível entrada, largaram a rir, gargalhada uníssona, riso terrífico do além que um ser humano mal pode suportar.

Quando voltei a mim, Mozart continuava sentado a meu la­do, e, dando-me uma pancadinha no ombro, disse: "Ouviu a sua sentença, não ouviu? Portanto vai ter de se habituar a escu­tar como dantes a música radiofónica da vida. Vai fazer-lhe bem. Você, sujeitinho, é extraordinariamente pouco dotado, mas assim aos poucos e poucos sempre há-de ter ficado com uma ideia daquilo que lhe é exigido. Aprender a rir, é isso que se lhe exige. Tem de atingir, de entender o humor da vida, o hu­mor patibular desta vida. Mas claro está que você está disposto a tudo neste mundo, excepto àquilo que lhe é exigido! Está pre­parado para esfaquear raparigas, está preparado para se deixar executar solenemente, e seguramente estaria também preparado para se mortificar e se flagelar mais cem anos. Ou não é assim?"

"Oh! sim, de todo o coração!" exclamei, no meio da minha aflição.

"Claro! Para tudo o que é imbecil e sem graça, você entre­ga-se de alma e coração, seu mãos largas, para tudo o que é pa­tético e sensaborão! Agora, eu cá por mim não me dou dessa maneira, e para mim toda essa romântica expiação não vale um chavo! Sim, querer ser guilhotinado, querer que lhe cortem a cabeça - está mas é doido varrido, e dos perigosos! Por causa desse estúpido ideal ainda havia de cometer mais uns dez cri­ mes. Você quer morrer, seu cobarde, não quer é viver. C'os dia­ bos!, mas precisamente o que é preciso é viver! O que você me­ recia era que o condenassem à pena mais pesada"

"Ah! E que pena seria essa?"

"Podíamos por exemplo ressuscitar a rapariga e fazê-lo ca­ sar com ela" .

            "Não, para isso nunca estaria preparado. Havia de dar des­graça"

"Como se não fosse já desgraça bastante aquilo que você aliarranjou! Mas, agora, basta de uma vez para sempre de cenasmpatéticas e de assassínios. Já é tempo de tomar juízo, que raio!

Tem de viver, e tem de aprender a rir. Tem de aprender a ouvir a maldita música radiofónica da vida, tem de venerar o espírito subjacente a ela, de levar em zombaria a fantochada que ela tem. E pronto, é isto que se lhe exige, mais nada".

Baixinho" semi-cerrando os dentes, perguntei: "E se eu re­cusar? Se eu lhe negar a si, Senhor Mozart, o direito de pôr e dispor do Lobo das Estepes e de interferir no seu destino?"

"Nesse caso", respondeu Mozart amenamente, "propu­nha-te que fumasses mais um dos meus agradáveis cigarros".

E, no instante em que assim dizia, fazendo aparecer da algibei­ra, por encanto, um cigarro, deixou de ser o mesmo Mozart, passando a fitar-me calorosamente do fundo de dois olhos ne­gros exóticos, e era o meu amigo Pablo, parecendo-se também como gémeo com o homem que me tinha ensinado o xadrez com as figurinhas.

            "Pablo!" exclamei, estremecendo alvoroçado. "Pablo, on­de é que nós estamos?"

            Pablo estendeu-me o cigarro e ofereceu-me lume.

            "Estamos" , respondeu, a sorrir, "no meu teatro mágico, e se por acaso quiseres aprender o tango, ser general ou conversar com Alexandre o Grande, é só dizer, que da próxima vez terás tudo isso à disposição. Mas deixa que te diga, Harry, que me decepcionaste um bocado. Perdeste-te desgraçadamente, violaste O humor do meu teatrozinho e armaste uma autêntica su­jeira, puseste-te às facadas e emporcalhaste o nosso lindo mun­do de imagens com manchas de realidade. Isso não te ficou bem. Espera-se que ao menos o tenhas feito por ciúme, quando deste comigo _ com Hermínia deitados um com o outro. Com essa peça não te desenvencilhaste bem - pensava que tinhas aprendido melhor o jogo. Bem, mas não é coisa que não se pos­sa reparar" .

E pegando em Hermínia, que entre os seus dedos logo se mi­niaturou em anã, enfiou-a naquela mesma algibeira do casaco de onde antes tirara o cigarro.

O fumo doce e espesso exalava um perfume delicioso, sen­tia-me depauperado à exaustão e disposto a dormir um ano.

Oh! como eu compreendia agora tudo!, compreendia Pa­blo, compreendia Mozart; ouvia algures atrás de mim o seu riso aterrador; sentia na minha algibeira todos os milhares e milha­res de peçazinhas do jogo da vida; adivinhava, perturbado, o seu sentido; estava pronto a começar mais uma vez lance após lance, a provar mais uma vez as suas torturas, a arrepiar-me mais uma vez com o seu absurdo, a palmilhar mais uma vez e sempre o inferno do meu interior.

Ainda um dia havia de saber jogar melhor a partida de xa­drez. Ainda um dia havia de aprender a rir. Tinha Pablo à mi­nha espera. Tinha Mozart à minha espera.

 

                                                                                Hermann Hesse  

 

                      

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