Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LOBO DAS TERRAS ALTAS / Hannah Howell
O LOBO DAS TERRAS ALTAS / Hannah Howell

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Annora MacKay sente uma energia perturbadoramente maligna em Dunncraig, a propriedade adquirida por seu primo, um homem cruel e implacável. Somente a afeição que ela tem pela menininha que o primo afirma ser filha dele é que a impede de ir embora. Mas então, um homem misterioso chega ao castelo, e Annora não consegue parar de pensar nele, nem de desejá-lo...

James Drummond foi, no passado, um rico proprietário de terras. Hoje, um renegado sem pátria e sem lar, ele quer de volta o que lhe foi roubado: sua reputação, suas terras e sua filha. Seu disfarce para entrar em Dunncraig é apenas o primeiro passo do plano. Porém, a encantadora mulher de cabelos negros que adora sua filhinha é uma surpresa inconveniente... Porque James veio em busca de vingança, não de amor...

 

 

 

 

Escócia Primavera de 1477

Sir James Drummond, outrora proprietário de Dunncraig, esposo e pai amoroso, rastejou para fora de seu escon­derijo, nas mais remotas montanhas das Terras Altas e se levantou devagar. Inspirou lentamente o ar primaveril, cuja úmida brisa do alvorecer trazia a promessa de calor. Sentia-se como um animal despertando de uma longa hibernação, que, em seu caso, durara três intermi­náveis anos. Estava esfarrapado, imundo e faminto, mas determinado a deixar de se esconder, de se deslocar de um buraco a outro, temeroso de se aproximar de parentes e amigos pelo risco que representava, e de cumprimentar qualquer um, pois poderia ser reconhecido e morto. Che­gara a hora de parar de fugir.

Apertou as mãos com força ao pensar em seu inimigo, sir Donnell MacKay. Mesmo que nunca tivesse gostado dele ou confiado no homem, permitira que frequentasse livremente Dunncraig, pois era parente de Mary. Aquele simples ato de cortesia, aliado a doce inocência de sua es­posa, que nunca via maldade em ninguém, lhe custara à vida. James mal a tinha enterrado e pensava em como poderia provar que Donnell era o responsável por sua morte, quando fora surpreendido pelo próximo ato daquele ho­mem, ao ser declarado culpado pelo assassinato de Mary. Logo depois, tinha sido proscrito e Donnell reclamara para si tanto a propriedade quanto a pequena Margaret, a úni­ca filha de James. As poucas pessoas que tinham tentado ajudá-lo haviam sido mortas, o que fizera com que come­çasse a fugir, a se esconder e a manter-se o mais distante possível daqueles com quem se preocupava.

Estava na hora de parar. James pegou o saco com os escassos pertences e começou a descer a encosta rocho­sa. Enquanto lutava para sobreviver ao inverno, vivendo como um animal e caçando sua comida, havia elaborado um plano. Precisava voltar a Dunncraig e encontrar as provas necessárias para enforcar Donnell MacKay e se libertar. Havia ainda um homem ali a quem sentia poder confiar sua vida, e precisaria da ajuda dele para começar a buscar a verdade e a justiça que almejava. Tanto pode­ria ter êxito e recuperar a reputação, as terras e a filha, como perder tudo, incluindo a vida. De qualquer forma, pelo menos não estaria mais fugindo.

No sopé da colina, parou e olhou na direção de Dunncraig. Seria uma longa e árdua jornada, que levaria semanas para percorrer, uma vez que não tinha um cavalo, mas ele via o lugar com muita clareza em sua mente. Também conseguia visualizar a pequena Meggie com os cachos loiros e grandes olhos castanhos, que herdara da mãe. Ela teria cinco anos agora, percebeu, e sentiu-se toma­do pela ira ao pensar nos anos perdidos ao lado da filha por causa da ganância daquele homem. Sentiu também uma pontada de culpa por ter pensado mais em salvar a própria vida do que no sofrimento da menina sob o jugo daquele tirano.

— Não se preocupe, minha Meggie. Logo estarei em casa e seremos livres — sussurrou antes de endireitar os ombros e dar início à longa caminhada de volta para casa.

 

Dunncraig Verão de 1477

—Limpe a semente com cuidado, Meggie. — Annora sorriu quando a garotinha cumpriu a tarefa com diligência. Margaret, que preferia ser chamada de Meggie, era o que a mantinha em Dunncraig. Seu primo, Donnell, precisava de alguém para tomar conta da criança e ela fora enviada pela família. Isso não a sur­preendia, pois ela era pobre e ilegítima, um fardo do qual qualquer parente ansiaria em se livrar. Dirigira-se até ali para cumprir a incumbência com resignação, até co­nhecer a criança, uma adorável menina de dois anos, e se encantar com ela. Apesar de Donnell ser um homem bruto e aterrador e de ela ter dúvidas quanto a seu di­reito de reclamar a propriedade, três anos depois ainda permanecia no castelo, e não somente por não ter para onde ir. Permanecia por causa da garota, que tinha con­quistado seu coração.

— Sementes são preciosas — disse Meggie.

— São sim — concordou Annora. — Algumas plantas crescem sozinhas novamente na primavera.

— Essas amaldiçoadas sementes fedidas. — Inclinando a cabeça para esconder um sorriso, Annora gentilmente disse:

— Mocinhas não devem falar assim. — Nem mulheres de vinte e quatro anos, refletiu, consciente de onde a me­nina escutara tais palavras. — E, sim, algumas crescem sozinhas em lugares que não desejamos. No entanto, há plantas que não sobrevivem ao inverno. Por isso, preci­samos coletar as sementes ou raízes e guardá-las para plantá-las de novo quando fizer calor.

— Ainda não está fazendo calor.

Annora olhou para cima e viu que a menina fazia uma careta na direção do céu.

— Calor suficiente para semear, querida.

— Tem certeza de que não precisamos embrulhá-las em um pequeno pano quente antes?

— A terra as aquecerá.

— Annora! Seu senhor quer que vá até a vila e veja o cálice que aquele novo homem faz.

Quando se virou para responder ao jovem Ian, viu que eleja retornava ao castelo. Suspirou e coletou com cuida­do todos os pequenos sacos com sementes que pretendera plantar aquela tarde. Ian provavelmente já estaria con­tando a Donnell que ela se dirigia à vila, o que ela certa­mente faria. Ninguém dizia não ao primo. Pegou Meggie pela mão e se apressou para que se aprontassem logo.

Quando estavam prestes a sair, Donnell surgiu do grande salão, interceptando-as. Ficou tensa e sentiu a criança pressionar-se com força contra sua saia. Reprimiu a von­tade de se desculpar por não ter corrido para a vila sem hesitação e respondeu à sua carranca sombria com um ' sorriso tímido.

O primo deveria ser um homem muito charmoso, pen­sou. Tinha espessos cabelos negros e bonitos olhos escu­ros. As feições eram masculinas e a pele não apresentava cicatrizes. No entanto, na maior parte do tempo ostenta­va uma expressão azeda ou zangada que obscurecia sua beleza. Era como se toda a maldade interior se refletisse na aparência. E, pelo que via no momento, não imagina­va como qualquer mulher pudesse achá-lo atraente.

— Por que não estão indo para a vila? — ele pergun­tou rispidamente.

— Estamos indo agora mesmo, primo — disse, esfor­çando-se para parecer doce e obediente. — Só precisáva­mos limpar a terra das mãos.

— Não devia estar trabalhando nos jardins como uma vagabunda qualquer. Pode ser bastarda, mas tem sangue bom. E não devia ensinar essas coisas para Margaret também.

— Algum dia ela será a senhora de algum castelo e deverá administrar o lar. Poderá fazer isso com muito mais habilidade se souber a quantidade de trabalho ne­cessária para executar uma ordem.

Os olhos dele se estreitaram, como se tentasse avaliar se o comentário embutia algum tipo de crítica. Annora sabia que o primo não se importava em medir as ordens que dava. Nunca pensava em como suas necessidades e confortos eram supridos, exceto para punir com selvageria aqueles que julgava responsáveis por qualquer fa­lha. Manteve a expressão inocente ao encontrar o olhar desconfiado, suspirando de alívio em silêncio quando ele decidiu que ela não era tão inteligente para ser sutil.

— Andem, então — disse. — Tenho ouvido muito so­bre o belo trabalho que esse homem faz e quero um cálice ou outra peça para ver suas habilidades com meus pró­prios olhos.

Annora assentiu e passou rapidamente por ele, com a pequena Meggie grudada a ela. Se o tolo estava tão interessado, por que não ia até lá ele mesmo? Foi o medo de expressar esse pensamento que fez com que se apres­sasse. A resposta a tais palavras seria um soco forte, que ela preferia evitar sempre que possível.

— Por que o senhor do castelo precisa de um cálice? — perguntou a menina assim que diminuíram o passo.

— Ele quer ver se o homem que os entalha é tão bom quanto dizem.

— Ele não acredita no que dizem?

— Bem, acho que não.

— Então, por que vai acreditar em nós?

— Uma pergunta muito boa, querida. Não sei porque, já que não escuta ninguém, mas é melhor fazermos o que pediu.

Meggie assentiu, com a expressão surpreendentemen­te solene para alguém tão jovem.

— Sim, ou ele baterá de novo em você e eu não quero que isso aconteça.

Annora também não queria. O primo quase quebrara sua mandíbula e alguns outros ossos da última vez que a espancara. Sabia que deveria estar agradecida, pois Egan, seu segundo em comando, o impedira de continuar, mas não estava. Egan normalmente não se importava com quem apanhava ou com a intensidade dos golpes, pois, na verdade era tão selvagem quanto seu senhor. O fato de ele não querer que apanhasse, ao menos não com tanta violência, a deixava muito nervosa. Assim como a maneira com que sempre a observava. Ela não queria dever nada para aquele homem.

— Nem eu, querida — murmurou por fim, apressando-se a distrair Meggie daqueles pensamentos sombrios ao apontar para o gado pastando na colina.

Durante o percurso, Annora manteve-a entretida, des­viando a atenção da criança para cada detalhe no cami­nho. Cumprimentava algumas pessoas, lamentando o fato de elas duas serem tão rigorosamente vigiadas e de es­tarem sempre confinadas. Apesar de preferir escolher os momentos e motivos para ir até a vila, apreciou a pretensa liberdade, ignorando os guardas que as seguiam. Somente desejava poder fazer aquilo com mais frequência e conhe­cer melhor o povo de Dunncraig.

Suspirou. Não lhe fora dada a chance de se integrar ao lugar, o que era somente parte de seu pesar. Sentia que havia algo errado com a posição que Donnell ocupa­va, com seu domínio sobre aquelas terras e sobre Meggie. Percebera aquilo desde o princípio, mas, após três anos, não havia descoberto nada que reforçasse as suspeitas. Alguém devia conhecer as respostas a todas as dúvidas que a afligiam, mas nunca conseguira driblar os guardas por tempo suficiente para fazer as perguntas.

Ao aproximar-se da oficina do tanoeiro, animou-se um pouco. Se a esposa de Edmund, Ida, estivesse lá, satisfa­ria sua vontade de falar com outra mulher. A expectativa fez com que acelerasse o passo. Amava Meggie, mas a criança simplesmente não conseguia suprir a necessida­de de uma boa e longa conversa feminina.

— Rolf, ela está vindo.

Daquela vez, James levantou imediatamente os olhos de seu trabalho ao ser chamado por Edmund. Demorara mais do que previra para se acostumar ao nome fictí­cio. Odiava admitir, mas o amigo estivera certo quando o tinha aconselhado a ter paciência, pois precisaria de tempo para assumir completamente o disfarce de Rolf Larousse Lavengeance.

— Meggie?

— Sim, mas para você ela deve ser lady Margaret — lembrou-o.

— Sim, claro. Não vou esquecer. Quem vem com ela?

— A senhorita Annora e, logo atrás, dois guardas de Donnell.

James praguejou.

— Esse homem pensa que há algum perigo para elas aqui?

— Acho que somente para ele. MacKay não permite que elas falem com ninguém. Alguns pensam que a moça é muito arrogante para se misturar e está ensinando isso para a menina, mas eu acredito que ela seja obrigada a agir assim. Mesmo quando tem a oportunidade de con­versar com alguém, os guardas sempre estão por perto para ouvir tudo o que é dito.

— É a culpa fazendo com que ele pense que todos es­tão ansiosos para criticá-lo.

— Acho que pode ser isso. Minha Ida diz que a moça é esperta. MacKay pode ter medo de que ela consiga reunir informações e descobrir a verdade. Ele está vivendo uma grande mentira, o que deve pesar em seus ombros.

— Espero que isso quebre as malditas costas dele — resmungou James, tentando limpar-se um pouco. — Melhor ainda, quero que o leve à forca.

— Assim como quase todos por aqui — disse Edmund. James assentiu. Tinha percebido logo como seu povo estava subjugado. Donnell era um proprietário rude e cruel, assim como inábil na administração. Havia muitos sinais de que ele era insaciável em relação às riquezas de Dunncraig, sem pensar em como o povo poderia sobrevi­ver, ou em como era necessário ter cuidado para garantir alimentos para o futuro. As pessoas podiam temer o ho­mem que ocupava aquele posto, mas não ficavam quietas quando estavam entre os seus, e James havia escutado muitos comentários. Donnell estava exaurindo as terras para locupletar o estômago e o bolso. Ida surgiu no aposento.

— A senhorita diz que MacKay a enviou. Ele quer um cálice feito por Rolf.

Antes que pudesse responder, a velha senhora já havia saído. Por um instante, James ficou sentado à sua mesa de trabalho e respirou com calma e vagar para acalmar a excitação e a expectativa. Estava dando o primeiro passo e tinha que ser cauteloso para não tropeçar. Sabia que Donnell gastava muito para manter o castelo tão refina­do quanto o palácio de algum rei francês. Aquilo requeria um carpinteiro habilidoso, e ele queria ser o contratado. —Aquele — disse Edmund, apontando para um cálice grande e ricamente entalhado.

— É, acho que escolheu muito bem, velho amigo — respondeu James, sorrindo.

— Faz tempo que não vejo essa expressão.

— E expectativa.

— Sim. Posso sentir no ar. O homem é um porco vai­doso que gasta moedas demais com coisas de que não precisa, coisas que acha que o fazem parecer importante. Você adivinhou corretamente essa fraqueza. No entanto, acha mesmo que ele deixaria alguma prova de sua culpa por aí?

Edmund já fizera essa pergunta antes e James ainda não estava seguro de que a verdade estivesse dentro do castelo.

— Não posso ter certeza, mas deve haver algo. Ele não pode se livrar de todas as provas. Talvez eu escute algu­ma coisa que me ajude. — Encolheu os ombros. — Tudo o que sei é que devo estar dentro de Dunncraig se quiser ter alguma chance de descobrir a verdade.

— Bem, então vamos colocá-lo lá dentro.

Annora olhou para cima quando Edmund e outro ho­mem saíram da oficina. Encarou o estranho, perguntando-se por que ele cativara sua atenção. Era alto e magro e os cabelos castanho-escuros ultrapassavam os ombros largos. Havia uma cicatriz na face direita e uma venda sobre o olho esquerdo. O que estava descoberto era de um verde tão bonito que o fato de ele ter perdido o outro lhe provocou uma pontada de tristeza. O rosto era lindamente esculpido, ainda que um pouco marcado pelos sinais de fome e preocupações. Aquele homem enfrentara privações e ela compadeceu-se dele. Como não tinha ideia do que provocara aquilo, não conseguia compreender o impulso de confortá-lo e remover aquelas marcas. Alarmou-se ao perceber que a visão dos lábios carnudos a aquecia. Ele exercia um efeito muito estranho sobre ela, o que não a agradava.

Quando viu que ele olhava para Meggie, pôs o braço em volta dos ombros da menina. Apesar de intenso, o olhar não despertava medo, pois não havia alusão de ameaça ou antipatia. Havia necessidade, carência e pesar e ela imaginou que ele poderia ter perdido uma criança. Foi to­mada de novo pela vontade de confortá-lo, o que a deixou nervosa.

Olhou para o cálice nas mãos elegantes e ofegou leve­mente.

— É esse que vai vender para o senhor destas terras? — perguntou.

— Sim — respondeu. — Sou Rolf Larousse Lavengeance. Annora piscou e teve que morder os lábios para não dizer nada. Era um nome muito estranho que, se traduzi­do, queria dizer mais ou menos lobo, ruivo e vingança. Era também esquisito que um pobre trabalhador ostentasse um nome tão elaborado. Tinha que haver uma história por trás daquilo, o que despertou sua curiosidade. Controlou-se, no entanto, pois não perguntaria nada. Sendo uma filha bastarda, sabia muito bem que tipo de mágoa e vergonha poderia advir de tal questionamento, o que nunca infligiria a ninguém.

— É lindo, mestre Lavengeance — disse, estendendo a mão. — Posso olhar?

— Sim.

Pegando o objeto, pensou que ele deveria estar na Escócia tempo suficiente para perder muito do sotaque francês e entender algo de seu idioma. Se Donnell o con­tratasse para trabalhar no castelo, aquilo tornaria a vida dele bem mais fácil. O primo não tinha nenhum conheci­mento do francês e poderia facilmente se enraivecer com um trabalhador que tivesse dificuldade de entender o que dizia. E, olhando para a maravilhosa cena da caçada entalhada no cálice, suspeitava que os serviços daquele carpinteiro seriam requeridos no castelo. O pensamento de ter que vê-lo com frequência para traduzir as ordens deixou-a ansiosa, e sentiu uma súbita necessidade de afastar-se dali.

— Creio que isso agradará meu primo — disse. — Seu trabalho é lindo. O animal parece tão real que quase se espera vê-lo erguer a cabeça.

James somente assentiu e disse o preço. Sem nem pis­car, a mulher pagou-o e apressou Meggie para fora da oficina. Movendo-se rapidamente para olhar pela porta, James viu-a levar sua filha de volta para o castelo, com dois guardas logo atrás delas. Sentiu a mão de Ida tocar seu braço e, virando-se para ela, viu os olhos azuis cheios de compaixão.

— Annora ama a menina.

— Ama mesmo? Ou é somente uma boa babá? — ques­tionou James.

— Ah, sim, ela ama a criança. É lady Margaret quem a mantém em Dunncraig e nada mais. A menina foi ama­da e bem cuidada todo esse tempo, senhor.

James não tinha certeza de que acreditava naquilo. Meggie parecera saudável e feliz, mas não dissera uma palavra. Havia percebido também uma nova seriedade nela. A criança era tão doce e inocente quanto a mãe, mas tinha uma vivacidade que Mary jamais possuíra. Não existia mais sinal desse ânimo, e ele se perguntou o que havia acontecido para apagá-lo. Ainda não culparia a senhorita Annora por aquela mudança, mas a observaria de perto.

Sorriu em seu íntimo, sabendo que não acharia a tare­fa difícil. Ela era uma mulher bonita, cujo corpo delgado e curvilíneo atraía o olhar masculino. O cabelo negro e espesso fazia com que a pele parecesse ainda mais clara e suave e os grandes olhos azuis eram cativantes. Após três anos de solidão, sabia que tinha que tomar cuidado para não permitir que os sentidos famintos o desviassem do caminho, mas certamente estava ansioso para conhe­cê-la melhor.

De repente, ocorreu-lhe que ela poderia ser amante de Donnell e perguntou-se por que aquela ideia o irritava tanto. Convenceu-se de que era porque não queria que tal mulher fosse responsável por sua filha. Talvez fosse injusto acreditar que houvesse algo além do que havia visto, mas sua beleza o levava a crer que o inimigo não a teria deixado em paz. O verdadeiro lugar ocupado por ela no castelo era outro mistério a ser desvendado.

Saindo da oficina de Edmund, contemplou o lugar que já fora seu lar e para onde retornaria em breve. Entraria no castelo como um trabalhador, mas pretendia retomar o seu posto e permanecer ali como o senhor daquelas ter­ras, Apesar de seus encantos, se Annora tivesse qualquer participação nas tramas de MacKay, descobriria que nem toda a beleza a livraria de sua ira.

Uma onda de fúria assolou-a com tanta rapidez que Annora não teve chance de se proteger.

Colocou uma das mãos trêmulas no estômago e apoiou a outra na fria parede de pedras para se restabelecer. Afastar a sensação até deixar de ser consumida por ela exigiu diversos minutos de concentração e inspirações lentas e profundas. No entanto, levou muito tempo para se livrar completamente daquilo. Algumas vezes, real­mente odiava a estranha habilidade de vivenciar as sen­sações de outras pessoas, pois parecia que as mais desa­gradáveis eram as mais fortes e a atingiam com grande intensidade.

Franzindo a testa, olhou ao redor e percebeu que se encontrava a apenas alguns passos dos aposentos de Donnell. A primeira coisa que lhe ocorreu foi de que al­guém havia despertado a fúria dele de novo, mas logo afastou aquela possibilidade. Já havia sido tomada pelo sabor cruel e amargo da ira do primo numerosas vezes, o que diferia muito do que sentia no momento. No entanto, além dele e de Egan, não conhecia ninguém no castelo que pudesse experimentar uma fúria tão violenta.

Recuperando a estabilidade, arrastou-se em direção ao quarto dele. A porta estava aberta e ela não ouvia nem vozes alteradas, nem os sons de punhos batendo em algo, e nem mesmo lamúrias doloridas. Aquilo não fazia sen­tido. Onde estaria a consequência de tamanha ira? Se tivesse vindo de Donnell ou de Egan, não haveria tanta calma e quietude dentro do aposento. Na verdade, ela deveria estar ouvindo e, provavelmente, sentindo, a dor de algum pobre homem ou de uma mulher enquanto es­tivessem sendo punidos.

Repentinamente, temeu que o primo tivesse ferido com gravidade ou talvez até matado alguém. Moveu-se em silêncio para mais perto e espiou com cuidado dentro do aposento. Enquanto fazia isso, uma voz em sua men­te a admoestava por estar agindo com tanta estupidez. Sabia que não poderia ajudar quem quer que tivesse despertado a raiva de um dos dois, mas insistiu em ignorar os avisos. Também não conseguiu evitar o ruído de sur­presa que a entregou ao ver a cena.

Não havia nenhum corpo espancado ou sangrando no chão. Não havia nem sequer um sinal de confronto. Donnell e o charmoso carpinteiro da vila estavam estudando a cornija da lareira e conversando calmamente. Annora se adiantou um pouco mais com prudência, buscando a fonte da ira que a tinha afetado com tanta intensidade e parou abruptamente na porta. Vinha do carpinteiro.

— O que está fazendo aqui? — questionou Donnell. Ela piscou e sentiu-se como se tivesse sido despertada de um sono profundo. O choque com o fato de que o ho­mem modesto de fala suave fosse a origem de tais senti­mentos a tinha deixado atordoada, e o movimento brusco revelara sua presença. Infelizmente, era agora objeto da atenção do primo, algo que sempre fazia o máximo para evitar. Despertar sua irritação costumava provocar mui­tos hematomas.

— Desculpe, primo — disse, dando um passo para trás, na intenção de se retirar. — Escutei vozes e vi sua porta aberta. Como não costuma estar em seus aposen­tos a essa hora, me senti compelida a verificar o que es­tava acontecendo.

— A única coisa a que deveria sentir-se compelida é fa­zer o que foi trazida aqui para fazer, cuidar de Margaret. Nada mais em Dunncraig é de sua conta, exceto obedecer às ordens que lhe são dadas.

— Claro, primo.

A humilhação por ter sido tratada dessa forma dian­te de Rolf Lavengeance atingiu-a com uma intensidade inesperada. Afinal, como ele sempre falava assim com ela, acreditava já estar acostumada. Daquela vez, no en­tanto, teve que usar o restante de sua força de vontade para dominar a necessidade de corar de vergonha. No mínimo, se recusaria a dar-lhe a satisfação de perceber o quanto a tinha magoado. Seu orgulho poderia estar se­riamente danificado após três anos em Dunncraig, mas ainda existia.

— Margaret não está com você também, está? Por quê?

— Ela desceu para me esperar. Só precisava de um instante para pegar seu casaco com Mary, que o levou para lavar ontem à noite.

— Gasta-se muito tempo limpando aquela criança e sua roupa. Se achar muito difícil cuidar dela adequada­mente, talvez esteja na hora de eu encontrar uma babá melhor e mais competente, não? — Donnell disse, com a voz perigosamente suave, observando-a com atenção.

Um arrepio percorreu suas costas. Ele nunca atacara essa fraqueza antes. Annora acreditava ter mantido em segredo o amor que sentia por Meggie, mas suspeitava agora que ele o tivesse descoberto. Havia até a possibili­dade de o primo sempre ter sabido e de ter só esperado o momento perfeito para golpeá-la, usando seu sentimento pela menina como usava os pulsos, para mantê-la dominada. Estava funcionando. Meggie era sua única alegria e o simples pensamento de ser separada dela a aterrorizava.

— Vou me esforçar para melhorar — murmurou, re­zando para soar submissa, sem revelar o medo que confrangia seu coração.

— Sim, faça isso.

Annora fez uma reverência e se afastou. O que realmen­te queria fazer era correr para o salão, agarrar Meggie e fugir de lá. O impulso era tão forte que tremia ao forçar-se a andar com passos firmes, Tudo o que podia fazer era ten­tar com mais empenho ficar fora do caminho, ser humilde, manter-se calada na presença dele e esconder o desespero que sentia para ficar ao lado da criança.

— Pensei que tivesse se perdido.

A voz doce trouxe-a de volta à realidade. Olhou para Meggie, que puxava com delicadeza o casaco que carre­gava. Agachando-se, ajudou-a a vesti-lo e observou cada linha suave daquele rosto encantador. Sempre a surpre­endia que Donnell pudesse ter concebido uma criança tão bonita e meiga, o que a levava a desconfiar dos direitos que ele alegava possuir.

A garota tinha se tornado sua vida, sua felicidade e, de alguma forma, deixara que ele percebesse. Não deveria estar tão surpresa. Considerando a força e a profundidade dos sentimentos que nutria, devia saber que escondê-los completamente seria impossível. Donnell poderia ter per­cebido como a protegia de sua fúria e brutalidade e queria que tivesse consciência disso. Sabia que nunca deixaria de fazê-lo, mas teria que encontrar uma maneira de não ser tão óbvia. Se tivesse que se tornar um fantasma covarde que deslizava pelas sombras de Dunncraig para ficar com Meggie, ela assim o faria.

— Aonde vamos hoje, Annora? — a menina perguntou.

Levantando-se, suprimiu o ímpeto de dizer que fugi­riam para a França. Dunncraig, sob o domínio de Donnell, não era um bom lugar para uma criança tão doce, mas era mais do que Annora poderia oferecer-lhe. Era um teto so­bre a cabeça, uma cama para dormir e comida. Se fosse embora de lá, duvidava que conseguisse suprir as neces­sidades mais básicas da criança. Ficava amargurada ao admitir, mas estavam presas em uma armadilha, força­das a se submeter ao jugo daquele homem para permane­cerem vivas. Ela só tinha que tentar com mais empenho não chamar a atenção nem despertar-lhe a raiva. Antes, era o que tinha feito para evitar as surras, mas essa nova ameaça a aterrorizava mais que toda a violência. Os pu­nhos de Donnell feriam seu corpo, mas, se a afastasse de Meggie, seu coração seria arrancado do peito.

— Vamos andar e olhar as belezas que a primavera sempre traz — respondeu, tomando a mão dela e sain­do do salão. Desejava um dia encontrar uma maneira de continuar caminhando com Meggie, pelos muros de Dunncraig, para fora de seus limites e para muito longe do medo que tinha se tornado sua companhia constante.

James esforçou-se para permanecer impassível enquan­to escutava Donnell tratar a moça daquela forma. Mesmo que o rosto dela não tivesse revelado nada quando MacKay ameaçara substituí-la, não havia sido tão bem-sucedida para disfarçar a tensão. Vira um lampejar breve em seus olhos e a linda pele perdera a cor. Apesar de não se atre­ver a adivinhar os motivos, era óbvio que não queria ser separada de Meggie. O olhar satisfeito de Donnell quando ela se afastara revelou que o homem sabia disso e estava contente com o resultado da ameaça.

— Temo que minha prima algumas vezes pense que é mais do que é — comentou.

— Mais do que é? — murmurou James. Ele espera­va que pronunciar poucas palavras evitasse que alguém percebesse como seu sotaque francês era horrível.

— Sim, mais do que uma bastarda trazida da casa de um de meus parentes. Eu gentilmente abri meu lar para a desclassificada e lhe ofereci uma posição cobiçada como a babá de minha filha, mas ela ainda tenta agir como se fosse igual a mim, uma verdadeira lady.

James apertou as mãos com força atrás das costas, dominando o forte impulso de esmurrá-lo. A forma como se referia ao assunto, desprezando de maneira grosseira a ilegitimidade de Annora, era suficiente para que mere­cesse uma surra. Pelo que ele tinha visto e ouvido até o momento, ela era tudo o que uma lady deveria ser. Ainda não tinha certeza de que pudesse confiar nela, mas escu­tar alguém culpar uma pessoa pelos pecados dos pais era algo que sempre o enraivecera.

No entanto, o fato de Donnell se referir a Maggie como sua filha o tirava do sério. O ímpeto de matá-lo naquele instante o alarmou um pouco. Nunca se considerara um homem sanguinário e acreditava ter aprendido a contro­lar o temperamento.

Porém, não foi o controle que o impediu de dar o bote em MacKay e apertar o pescoço dele. James tinha que provar sua inocência antes de se vingar daquele homem vaidoso e desprezível. Obrigou-se a se agarrar a esse pensamento até conseguir reduzir a ira a um nível tolerável. Quando deixasse de ser um proscrito, obteria a justiça que almeja­va. Apertar o pescoço do inimigo naquele momento o faria sentir-se bem por algum tempo, mas sabia que o prazer e a satisfação seriam fugazes. O ato poderia lhe custar à oportunidade de remover de seu nome a mácula de ser um fora da lei. Recuperar Dunncraig, reclamar sua filha e viver como um homem livre de novo eram coisas muito mais importantes do que esganar aquele sujeito.

— Parece que a criança gosta dela — foi tudo o que ousou dizer.

— Bem, sim, mas o que sabe uma criança de cinco anos, não?

James assentiu, pois não se achava capaz de pronun­ciar mais nenhuma palavra. Tinha ficado satisfeito com o fato de MacKay exigir sua presença no castelo com tan­ta rapidez, após somente uma semana. Acreditava que o homem passara a maior parte desse tempo pensando nas peças que desejava solicitar ao novo carpinteiro. No entanto, foram necessários apenas alguns minutos para perceber que lidar com MacKay exigiria cada grama de sua força de vontade.

Mesmo se ele não tivesse destruído sua vida, James sabia que nunca teria gostado dele. As visitas que rece­bera quando Mary estava viva não haviam revelado sua verdadeira natureza até que fosse tarde demais, mas ti­nham dado diversos sinais. Donnell MacKay era brutal, vaidoso e corrupto. Surpreendia-o que tivesse vivido tan­to, que ninguém ainda o tivesse matado e suspeitava que uma boa dose de astúcia fosse responsável por isso.

— Venha, vou mostrar onde vai dormir e trabalhar — Donnell disse, saindo do aposento. — Reuni madeira de excelente qualidade.

Enquanto o seguia, manteve o olhar atento aos guardas. Muito poucos dos homens de James haviam permanecido ali. Isso poderia dificultar as coisas, mas ele já tinha an­tecipado o fato. Alguém como MacKay naturalmente seria muito cuidadoso na seleção daqueles que o protegeriam.

Após ver a oficina, assim como a madeira selecionada, acomodou-se no pequeno quarto que fora destinado a ele em uma das torres. Esforçara-se para ocultar a surpresa e o deleite ao perceber que ficaria acomodado dentro do castelo. Era um quarto que, em sua época, tinha sido usado como depósito, e imaginou para onde teriam sido levadas as coisas que costumava armazenar ali. Praguejou logo de­pois. A maneira como MacKay usava os suprimentos, sem pensar no futuro, fez com que suspeitasse de que os tecidos, linhas e outras provisões para o lar que costumavam pre­encher o aposento já tinham sido usadas e nunca repostas. Seria preciso muito tempo e dinheiro para recuperar tudo o que fora desperdiçado em tais extravagâncias.

A janela era uma abertura estreita, a cama, um catre simples e havia um pequeno braseiro. Em uma mesa rústica no canto, havia uma jarra de água e uma bacia para que ele se lavasse. MacKay obviamente o conside­rava melhor do que um homem comum. Se não tivesse a garganta apertada de amargura, riria.

Livrando-se dos pensamentos sombrios, colocou as es­cassas posses no pequeno e surrado baú ao lado da cama. Uma vez que ainda era cedo, foi à oficina que lhe haviam preparado. Era o lugar em que as mulheres costumavam lavar as roupas e em que eram preparados os banhos quentes. Permitia o acesso fácil das criadas à água quen­te e as preservava do vento ou do sol enquanto esfregavam as roupas. Evitava também que tivessem que correr para cima e para baixo com baldes cheios cada vez que alguém quisesse tomar banho. James esperava que o fato de ele ocupar aquele aposento não gerasse muito ressen­timento. Para provar sua inocência, não podia se dar ao luxo de fazer inimigos entre os empregados, e seria útil se sentissem que podiam falar abertamente com ele.

Havia vantagens em suas acomodações, pois agora não seria esperado que ele se banhasse ali. O fato de se lavar muito mais que as outras pessoas provocaria estranha­mento. Além disso, poder tomar banho em seu próprio quarto permitiria que mantivesse a privacidade. A última coisa de que precisava era que alguém o visse nu.

Abrindo a porta pesada, deu as boas-vindas à luz da­quele raro dia ensolarado. Saiu até o jardim atrás da co­zinha e inalou o cheiro da roupa úmida pendurada nos varais. Nunca prestara muita atenção a essas coisas antes, mas agora sentia que elas proporcionavam uma sensação de volta ao lar e o tornavam ainda mais deter­minado a retomar a propriedade. Aquele era seu lar e ele nunca deveria tê-lo deixado.

— Bem, parece que está apreciando o conforto. Belo alojamento, não?

James virou-se lentamente para encarar a dona daque­la voz queixosa, e o medo de ser descoberto deixou-o ten­so. Marta lançava-lhe um olhar zangado, os braços finos e musculosos cruzados sobre o peito. Deveria ter imaginado que, mesmo que seus homens não estivessem mais ali, pe­los menos algumas das criadas teriam permanecido. Uma vez que ela era uma excelente cozinheira, aquilo não era surpresa. Infelizmente, era também uma das pessoas que mais e melhor o conheciam. Esperava que a maneira como estreitava os olhos escuros se devesse à claridade, e não ao fato de estar começando a reconhecê-lo.

— Não fui eu quem escolhi, não é mesmo? — resmun­gou, encolhendo os ombros.

Ela revirou os olhos.

— Agora, isso não é ótimo? Você nem mesmo sabe falar bem nosso idioma, não? E aqui estava eu pensando que havia algo familiar a seu respeito. Não deve ser verdade, uma vez que nunca conheci um francês. Bem, acho que não posso realmente culpá-lo pelo quarto — disse e sus­pirou. — É somente outra atitude daquele tolo para fazer de nossa vida um inferno. — Franziu a testa. — Pode compreender melhor do que fala?

— Oui.

— Da maneira como está balançando a cabeça, acredi­to que signifique sim.

— Sim.

— Bem, como é um rapaz charmoso, vou dar a você o mesmo aviso que dei aos outros. Fique longe das moças que trabalham para mim. Já é difícil o suficiente fazer todo o trabalho sem que você e aqueles tolos que MacKay reu­niu fiquem farejando as saias de cada criada por aqui.

James assentiu. Aquela era uma promessa fácil. Após mais de três anos de celibato, estava faminto por uma mulher, mas o risco de ter seu disfarce revelado era mui­to grande. Antes de chegar a Dunncraig, o perigo de ser traído ou capturado havia evitado que tivesse qualquer amante, mesmo uma empregada de taverna que alivia­va os homens em troca de algumas moedas. Ainda que se permitisse deitar-se com alguém, não seria com uma criada que trabalhasse dentro do castelo. Nunca o tinha feito e não o faria agora. Era uma regra que seus pais de criação tinham se assegurado de que ele e os irmãos entendessem.

— Não tenho certeza de que acredito em você mais do que naqueles cães do MacKay, mas veremos. — Ela olhou ao redor. — O que o tolo quer que faça para ele?

— Entalhes. — James apontou para a madeira e para as ferramentas. — Gostou do meu cálice.

— Ah, sei. É realmente muito bonito. Bom trabalho, muito bom. Nunca vi nada melhor. Mais coisas de qua­lidade para nosso grande senhor. As crianças podem se matar de chorar de tanta fome, mas ele terá uma cadeira finamente talhada para sentar-se e um lindo cálice de onde sorver o vinho. — Meneou a cabeça, agitando os cabelos que ficavam grisalhos. — Só não perturbe minhas meninas e mantenha sua bagunça nesse quarto. Não dei­xe esses restos de madeira chegarem à minha cozinha.

Antes que pudesse concordar, ela saiu. Deu um longo e lento suspiro de alívio. Se ela tivesse reparado algo fa­miliar a seu respeito, guardaria para si.

Passou as mãos sobre um grande pedaço de carva­lho. Serviria para fazer uma das elaboradas cornijas de lareira que MacKay tanto desejava. Não se importava em realizar o trabalho. Sempre tinha se queixado da falta de tempo para exercitar suas habilidades. Talvez, enquanto procurasse as evidências necessárias para li­vrar Dunncraig daquele tirano, pudesse finalmente re­alizar algumas das coisas com as quais havia sonhado. MacKay poderia pensar que tudo se destinasse a seu enaltecimento, mas James saberia que, quando estivesse novamente livre, ficaria muito satisfeito com os trabalhos que tivesse concluído.

— Só preciso de tempo e de um pouco de sorte — sus­surrou, analisando o pedaço de madeira para decidir que tipo de entalhe faria.

Assim que pegou uma das ferramentas dispostas para seu uso, Marta entrou no quarto. Colocou na mesa uma bandeja de pão e queijo e fitou-o. James sentiu o suor es­correr pelas costas quando a mulher encarou-o com um brilho de divertimento e satisfação nos olhos límpidos e inteligentes.

— Acho que vai precisar de sua força para o que vem pela frente, rapaz — disse, antes de sair de novo de lá.

James olhou para a bandeja de comida e para a cane­ca de cerveja. Ela sabia. Tinha certeza agora. A pergunta era, como percebera? Ela o conhecia havia muito tempo, assim como Edmund e Ida, mas ambos tinham concorda­do que o disfarce era muito bom.

— Melhor abaixar um pouco mais o olhar, rapaz. É fácil para uma mulher se lembrar de olhos verdes como os seus.

Virou-se para trás, mas só viu um pedaço de suas saias enquanto entrava na cozinha. Praguejou. Sem dú­vida, usar uma venda não seria suficiente. Agora deveria agir com timidez perto de qualquer garota que tentasse falar com ele, pelo menos das que já estivessem por lá em sua época. Quando tudo aquilo acabasse, sua família realmente se divertiria.

Teria que fingir ser humilde e acanhado perto das mulheres e incapaz de falar bem o idioma, além de não poder revelar o amor pela própria filha. Teria também que atuar como um criado com inclinações para o celibato. Acrescentar a isso o fato de que não poderia ceder ao forte impulso de simplesmente matar MacKay antes de encontrar as provas de seus crimes, fez com que James começasse a sentir que se incumbira de um fardo que se­ria incapaz de carregar por muito tempo. Esperava poder provar sua inocência logo ou perderia a cabeça com todos aqueles jogos.

— O que está fazendo?

James ficou feliz por não estar usando ferramentas na­quele momento. A voz doce da criança era tão familiar, um som que ansiava escutar havia tanto tempo, que poderia facilmente ter arrumado a peça na qual trabalhava. Virou-se para olhar a pequena Meggie e apertou as mãos na ten­tativa de dominar a ânsia de tocar o rosto dela. Estava lá havia uma semana e aquela era a primeira vez que ela se aproximava o suficiente para que conversassem.

— Estou fazendo a cornija para a lareira — respondeu. A menina entrou cuidadosamente na oficina. O olhar cauteloso feriu-o. Ela sempre fora uma criança feliz e confiante. Era óbvio que a vida ali a ensinara a ter medo e cuidado. Poderia até ser bom que aprendesse a se pre­caver, mas ter medo, especialmente entre as paredes de seu próprio lar, era inadmissível. O temperamento de MacKay, que ele se esmerava para revelar diversas ve­zes durante o dia, tinha fomentado aquele sentimento tanto em Meggie quanto em diversas outras pessoas que viviam no castelo. James adicionou aquilo à longa lista de crimes pelos quais o homem teria que pagar.

— Estou entalhando a cornija para a lareira dos apo­sentos dele — repetiu ao ver que ela ainda o fitava.

— Ah, eu entendo o senhor, apesar de falar um pouco esquisito. Não, estava somente me perguntando por que MacKay quer que faça isso. Ele já tem uma. Para que precisaria de outra? — Aproximou-se um pouco mais. — É muito bonita.

— Obrigado. Você é gentil. — Ela deu uma risadinha e James pôs as mãos atrás das costas para controlar a necessidade de abraçá-la. — Por que o chama de MacKay? Ele não é seu pai?

— Ele diz a todos que sim, mas não é. — Ela subi­tamente pareceu nervosa. — Mas o senhor nunca deve contar a ninguém que eu disse isso, por favor.

— Claro que não. Será nosso segredo.

— Sim, nosso segredo. Sei que ele beijou minha mãe, o que não o torna meu pai. Ele beijou um monte de mulhe­res. Meu pai era charmoso, gentil e sorria. Sir MacKay só grita e bate nas pessoas. É uma pessoa muito desa­gradável.

Atordoado pela informação de que o homem havia bei­jado Mary, James precisou de um momento para se re­cuperar e reagir com coerência ante as confissões da me­nina.

— Não, beijar não faz de um homem um pai. Onde está sua babá?

— Annora está trabalhando no jardim. Vê? — Estendeu as mãos sujas. — Eu estava ajudando, mas tive sede. — Voltou a examinar o trabalho. — Isso é bonito demais. Quando mi­nhas mãos estiverem limpas, posso tocar?

— Oui. Estou aqui todos os dias. Venha quando quiser.

— Meggie.

— Annora está chamando. É melhor eu voltar. Ela se preocupa comigo.

Antes que James pudesse responder, ela tinha ido. Ele olhou para a porta, mas não viu nada. Foi consumido pe­los próprios pensamentos até ficar cego e surdo a tudo que o cercava. As palavras inocentes da criança ressoa­vam em sua mente.

Sei que ele beijou minha mãe.

Tentou se convencer de que era apenas imaginação, pois ela tinha somente dois anos quando Mary morrera. Seria impossível uma criança daquela idade saber o que tinha visto e lembrar-se por três anos. Ainda assim, não conseguia se livrar das palavras.

Impossível acreditar que Mary tivesse sido infiel. Ela sempre fora tão tímida. Tinha corado e ficado nervosa, mes­mo quando fizeram amor da forma mais controlada possí­vel. Ele não quisera acreditar que ela achasse seu toque de­sagradável e tivera esperança de que, após alguns anos de casamento, ela começasse a apreciar o aspecto mais íntimo da união. Agora era obrigado a se perguntar se o que imagi­nara ser acanhamento tinha sido desagrado, uma aversão provocada pelo fato de ela amar outro homem.

James apertou com mais força o furador que segurava até quase machucar a mão. Nunca compreendera a recep­tividade de Mary em relação a Donnell MacKay, mas tal­vez devesse ter prestado mais atenção. Era difícil aceitar que tinha sido feito de idiota, mas estava na hora de re­ver aquele breve matrimônio com olhos mais críticos. Não queria acreditar que a esposa participara de sua destrui­ção, mas sabia que não poderia ignorar a possibilidade.

Partindo do princípio de que Mary poderia não ter sido aquela mulher doce e tímida, James se perguntou se ela estaria, de fato, morta. O corpo que havia sido en­terrado era do mesmo tamanho, mas fora completamente desfigurado pelo fogo. Admitira que se tratava de Mary, pois testemunhas a tinham visto no pequeno chalé no momento do incêndio. A aliança de casamento tinha sido encontrada em seu dedo, assim como pedaços chamus­cados do vestido que usava naquele dia. Além disso, não concebia que ela fosse capaz de armar tal plano e não po­dia acreditar que ela tivesse paciência para permanecer escondida por muito tempo.

Afastando as questões que o atormentavam, focou a atenção no trabalho. Como sempre, a tarefa lenta e meti­culosa o acalmaria e permitiria que pensasse mais clara­mente. Era evidente que havia muito mais segredos a se­rem desvendados em Dunncraig do que ele havia previsto. Precisaria manter a serenidade e evitar atrair qualquer suspeita sobre si enquanto buscava a verdade. Só espera­va não descobrir ter sido um tolo cego, vítima de sorrisos doces e belos rubores, e ter conduzido seus inimigos para dentro do próprio lar.

— Onde esteve, Meggie? — perguntou Annora quan­do a garotinha surgiu a seu lado. — Precisou beber um balde de água?

Meggie riu e meneou a cabeça.

— Não. Eu estava falando com o homem que faz lin­das imagens na madeira.

Annora olhou para o castelo e franziu o cenho.

— Não deve importuná-lo.

— Ele não se incomodou.

— Só foi educado e não quis pedir que saísse.

— Não. Ele falou comigo.

— Bem, isso foi muito gentil, mas ainda assim deve deixá-lo trabalhar.

— Ele disse que eu posso voltar e tocar a madeira quando minhas mãos estiverem limpas.

O primeiro impulso de Annora foi reprimi-la, mas se conteve. O homem fazia um belíssimo trabalho e compre­endia o interesse da menina. Não seria correto negar-lhe a oportunidade de fazer um amigo só porque temia tanto pela segurança dela. Tais medos podiam sufocar sua alma, e o simples fato de viver ali já era suficiente para tanto.

— Bem, então deve voltar quando estiver limpa — concordou, por fim. — Até mais de uma vez se ele permi­tir. Mas não o perturbe com muita frequência e não fique tagarelando na orelha dele.

— Gosto de falar.

— Todo mundo gosta de falar, mas ele tem trabalho a fazer. Seu pai o contratou para criar coisas que deixarão o castelo muito bonito.

— Dunncraig já é bonito.

— Sim, sei que é, mas...

— E aquele homem não é meu pai.

Annora sempre tivera dúvidas sobre a paternidade, mas nunca as admitiria para Meggie.

— Donnell diz que é — murmurou.

— Ele mente.

Sabia disso e suspeitava que acontecia com uma frequência muito maior do que supunha, mas também não diria isso para a menina.

— Meggie, você era quase um bebê quando sua mãe morreu — começou a falar, mesmo sem ter certeza sobre o que poderia ou deveria dizer.

— Ele não é meu pai! Sei que ele beijou minha mãe, mas isso não faz dele meu pai!

Annora abaixou-se, abraçou-a e acariciou-a nos cabe­los para amenizar a tensão.

— Então, ele não é seu pai. Agora, deve se acalmar ou vai ficar doente. Não a estava chamando de mentirosa. Só fiquei confusa sobre como pode ter tanta certeza, uma vez que era muito nova na época.

— Porque meu pai não me bateria. Nem em você. Ele era charmoso, sorria e me dava beijos.

Aquilo certamente não descrevia Donnell, pensou.

— Você nunca tinha dito isso antes.

— Porque ele me bateria ou em você e eu não queria.

Meggie olhou para as próprias mãos, enquanto me­xia nos cordões do vestido simples e velho de Annora.

— Pensei que ele seria como meu pai algum dia, depois que aprendesse a me amar. Mas não acho que um dia isso vá acontecer. Não acho que Donnell ame alguém.

O coração de Annora se apertou. Havia uma saudade tão dolorida na voz da criança, algo que compreendia bem.

Mesmo que ninguém tivesse certeza de que sir James Drummond estivesse morto, a menina era órfã. A mãe tinha morrido e o pai precisava permanecer escondido, a fim de se manter vivo. A pobre garota desejava e ne­cessitava de uma família e tudo o que tinha era Donnell MacKay. Sabia também que, por mais que a amasse, não conseguiria compensar a ausência dos pais.

— Meggie, meu docinho, deve continuar com o jogo. Compreende isso, não?

— Sim. Sei que ele ficaria muito bravo se escutasse.

— É, sabemos bem que será uma coisa muito ruim. Então, vamos manter esse segredo entre nós duas. — Percebeu um breve lampejo de culpa no olhar da criança, mas decidiu que devia encerrar o assunto no momento. — Agora, vamos terminar o que estávamos fazendo?

Meggie assentiu e voltou para o cantinho do jardim em que estivera plantando. Annora observou-a um pouco antes de voltar a atenção para o que fazia. No entanto, sua mente não parava. A menina era inflexível a respeito do pai. Sabia que uma criança poderia transformar um desejo em fato quando estava infeliz, mas não era típico de Meggie extrapolar os limites da fantasia. Era infeliz às vezes, mas, na maior parte do tempo, limitava-se a evitar ou ignorar Donnell e sua insensibilidade.

O problema era que a convicção da menina alimentava suas dúvidas a respeito das afirmações do primo. A idéia de que Mary tivesse sido sua amante a fazia estremecer de desgosto. Infelizmente, não a conhecera bem e poderia ter sido facilmente enganada. Ainda assim, teria sido ca­paz de ludibriar o marido por tanto tempo? Decidiu que esse era outro enigma que deveria elucidar. Considerando o quanto estava demorando para desvendar os outros, Meggie já estaria casada e com muitos filhos antes que a verdade fosse revelada. Talvez fosse o momento de dei­xar de lado a hesitação, decidiu, desgostosa com a própria covardia. Havia pensado que conseguiria descobrir o que acontecera para que Donnell subitamente enriquecesse e se tornasse proprietário daquelas terras ao conhecer o povo e conversar com as pessoas. O primo, contudo, es­tava fazendo um excelente trabalho ao se assegurar de que aquilo nunca ocorresse. Duvidava que conseguisse se esquivar dos guardas com alguma frequência, além de te­mer levantar suspeitas ao tentar. Então, em vez de recor­rer aos outros para obter as respostas, procuraria dentro do castelo.

Assim que se acostumou com a ideia, passou a acredi­tar que não seria tão difícil. A maioria dos guardas per­manecia perto de Donnell. Portanto, sabendo onde ele se encontrava, poderia esquadrinhar o local com tranquilidade. Como o primo tinha hábitos muito rígidos, seria possível saber exatamente quando estaria no escritório. Provavelmente era o melhor lugar para começar. Só tinha que se assegurar de ter uma rota de fuga ou uma ótima desculpa para estar ali caso fosse apanhada.

— Por que faz isso?

Ao ouvir a voz profunda, Annora quase gritou, assus­tada e temerosa de que, de alguma forma, o homem tivesse adivinhado seus planos. Foi necessário todo seu controle para disfarçar o sobressalto provocado pela súbita apa­rição de Egan. Manteve o olhar no solo por um instante, endireitando o corpo. Assim que se sentou e acalmou-se, olhou para cima e fitou-o. Sentia-se subjugada, ajoelhada a seus pés e olhando para o alto, mas lutou contra o ímpe­to de levantar-se e encará-lo. Tal atitude seria entendida como uma confrontação à qual ele tinha o hábito de reagir sempre da mesma forma. Com os punhos.

— Gosto de trabalhar no jardim — respondeu. — Acalma e me permite participar de algo que vale a pena.

— Esse é um trabalho para as outras moças, que não têm uma origem boa como a sua — disse Egan.

— Elas não hesitariam em fazê-lo se eu pedisse, mas realmente aprecio a atividade. E é bom tomar um sol de vez em quando.

Mantinha a voz suave e baixa e o olhar fixo no rosto marcado pela varíola. Aprendera logo que não era sábio irritá-lo. Ele não tinha feito mais que estapeá-la uma ou duas vezes, mas já espancara quase até a morte muitos outros homens por causa de erros mínimos.

Perguntava-se por que ele era tão rude. Apesar do ros­to marcado, não era feio. Os olhos, de um lindo castanho, seriam atraentes, se não fossem tão frios. Os traços eram um pouco grosseiros, mas uniformes e benfeitos. Ainda assim, quando estava bravo, manifestava uma cruelda­de assustadora. Ela fazia o máximo para nunca deixá-lo zangado.

Desejava que ele não tivesse se interessado tanto por ela. Até o momento, tivera sorte, pois ele não se impusera. Sabia de algumas mulheres que haviam descoberto da pior forma possível que ele não admitia a rejeição. Egan simplesmente tomava o que e quem queria. Duvidava que o primo fizesse algo para impedi-lo ou puni-lo, caso ele a estuprasse. Se não fosse por Meggie, teria desaparecido algumas semanas após a chegada ao castelo e minutos depois do primeiro olhar repleto de luxúria que recebera daquele homem.

— Então, elas deveriam fazer o trabalho porque, até que Donnell encontre uma esposa, você é a dama mais bem-nascida daqui.

— Muitas mulheres bem-nascidas trabalham no jar­dim. Não é como se eu estivesse arando a terra.

Os olhos dele se estreitaram e Annora achou que as palavras soaram mais ríspidas do que havia pretendido. Quando o viu cruzar os braços sobre o peito, reprimiu um suspiro de alívio. A postura demonstrava arrogância, o que a aborrecia, mas não guardava uma ameaça real de violência.

— Melhor não ficar muito tempo no sol ou vai se bron­zear e ficar cheia de rugas como uma daquelas mulheres. Agora, Donnell está procurando você.

— Ah. — Levantou-se e limpou as saias. — Precisa que eu vá novamente até a vila?

— Não. Parece que vai receber visitas e quer que você se assegure de que tudo esteja perfeito.

— Conheço essas pessoas? Se souber quem são será mais fácil decidir sobre a refeição.

— O sr. Chisholm e seus filhos.

Mal conseguiu reprimir um calafrio ante a notícia. Ian Chisholm, o senhor de Dubhuisge, era grande, peludo e fedorento. Os dois filhos desajeitados não eram melho­res. Estava ansioso para se unir a Donnell e expandir seus domínios. Annora temia pelos clãs próximos, que não eram tão fortes nem tão brutais. Já tinham sofrido ataques tan­to de Donnell quanto de Chisholm e não precisavam das privações impostas por aqueles homens para piorar a si­tuação. Além disso, tanto o pai quanto os dois filhos pen­savam que ela deveria fazer parte dos agrados oferecidos a eles como hóspedes. Suspeitava que isso somente não tinha acontecido ainda por causa de Egan. Esperava con­seguir sentir-se grata.

— Bem, então devo falar com Marta.

— Sim, e diga àquela velha que queremos muita car­ne à mesa e é melhor que esteja benfeita.

Foi difícil, mas Annora controlou-se para não mostrar a língua enquanto ele se afastava. Marta era uma exímia cozinheira. Tais críticas às suas habilidades eram injusti­ficadas e ela não tinha intenção de repeti-las. Achava que Egan e Donnell usavam censuras e insultos para manter o povo subjugado e ansioso para agradar. Aparentemente, não percebiam que a tática não funcionava com Marta.

Annora levou Meggie para o quarto e limpou-a. Dei­xou-a, então, aos cuidados de Annie, uma menina de treze anos que gostava de ajudar com a criança, pois a mantinha fora do alcance dos homens de Donnell. Após se lavar, apressou-se para a cozinha.

— Marta — chamou enquanto se aproximava dela, que mexia um grosso ensopado com um cheiro delicioso. — Haverá convidados para o jantar.

— Eu sei — a mulher respondeu, carrancuda. — Aquele velho devasso e seus dois rapazes babões.

— Ah, então não sou necessária aqui.

— Sim, sei que eles vêm e o que precisam comer, mas isso não significa que você não pode ser útil. Apreciaria se cortasse aquelas maçãs que trouxe da despensa.

— Fico feliz em ajudar — disse, sentando-se à gran­de mesa e começando a trabalhar. — Helga está doente? — perguntou, ao reparar na ausência de uma das aju­dantes.

— Pode-se dizer que sim. MacKay estava se sentin­do lascivo na noite passada. Infelizmente, bêbado e cruel também. Helga levará alguns dias para se recuperar.

Annora suspirou e meneou a cabeça.

— Antes as coisas não eram assim?

— Não. Dunncraig era um lugar excelente e seu se­nhor cuidava do povo. Não esperava que as garotas que trabalhavam aqui aquecessem sua cama, apesar de mui­tas desejarem se enfiar entre os lençóis dele após um simples sorriso.

Ela parecia disposta a falar e Annora pretendia tirar vantagem da situação.

— Dizem que ele matou a esposa.

— Não, aquele rapaz nunca teria feito isso e não en­tendo porque acreditaram em tamanha barbaridade. Acho que ninguém sabe exatamente o que aconteceu com Mary Drummond.

— Nunca escutei questionamentos sobre sua morte.

— Bem, você não teria como. Aquele seu primo proíbe que fale com as pessoas. Se pudesse conversar com al­guns dos que trabalham aqui, saberia a verdade sobre sir James Drummond. Ele era bom para o povo e bom para Dunncraig.

Olhando ao redor, Annora percebeu que Marta falava livremente, pois nenhum dos guardas estava por perto De alguma forma, conseguira livrar-se deles no caminho. Não duvidava que, em breve, alguém perceberia que ela fora a algum lugar sem a escolta habitual, onde tal vez escutasse o que Donnell não desejava que soubesse Aproveitaria ao máximo a breve liberdade.

Continuou trabalhando enquanto interrogava Marta Algumas vezes, permitia que ela falasse sem interrompe Ia. Mesmo sabendo que não tinha culpa, envergonhava-a o fato de nunca ter trocado mais que algumas palavras com a mulher durante os três anos em que vivera ali. Quisera fazer isso desde o princípio e, conforme as informações fluíam, percebeu porque tinha sido isolada de todos. Quase praguejou quando os guardas finalmente entraram na co­zinha. Como estava quase terminando de cortar as maçãs, sua presença ali não era mais necessária.

Quando retornou ao seu quarto, estava muito ansiosa com as informações que tinha obtido da cozinheira. Nada daquilo combinava com o que Donnell havia dito a ela. Se tudo fosse verdade, o primo era ainda pior do que sus­peitava. Sir James Drummond fora cruelmente traído e o povo de Dunncraig estava sofrendo com aquela injustiça.

A conversa havia dirimido suas dúvidas e ela sabia que tinha que ser cuidadosa. Como desejava acreditar naquilo, deveria tomar cuidado para não se deixar cegar para qualquer coisa que contradissesse a própria opinião. Tinha certeza, no entanto, de que se esforçaria mais para descobrir toda a verdade. Sua curiosidade exigia isso e o povo de Dunncraig merecia se libertar da tirania de Donnell MacKay.

James estava suando e a demonstração de medo o aborreceu, fazendo com que decidisse entrar no escritório para o qual se dirigira. A sensação de temor, ou mesmo de apreensão, ao deslocar-se em seu próprio castelo inci­tava a ira que se esforçava para controlar. Além disso, o fato de aquela ser a primeira oportunidade de verificar o aposento desde que chegara ao castelo havia quinze dias, só piorava seu humor.

Ao olhar ao redor e não ver ninguém, alcançou a porta e esgueirou-se com rapidez para dentro. O lugar tinha sofrido poucas mudanças, exceto pelas luxuosas tapeça­rias e pelo novo tapete, que deveria ter custado carís­simo. Meneou a cabeça ante os sinais evidentes de que MacKay estava gastando demais com o próprio conforto.

O homem estava drenando a propriedade. Edmund e Ida, assim como Marta, tinham se queixado. Relutava em analisar a contabilidade, pois temia descobrir que, além de espremer cada moeda das terras e das pessoas, ele ain­da tivesse afundado Dunncraig em dívidas.

Livrando-se desse sentimento, sentou-se à escrivani­nha e começou a avaliar os livros, sempre atento a qual­quer ruído que indicasse a aproximação de alguém. Logo ficou claro que MacKay estava agindo exatamente da forma prevista. E, o que era pior, estava constantemen­te atacando os vizinhos e roubando o que poderia muito bem ser produzido ali, caso as obrigações do proprietá­rio estivessem sendo cumpridas. Quando reconquistasse Dunncraig, haveria muito trabalho a ser feito, inclusive para apaziguar os outros clãs.

Encontrou um caderno menor enfiado entre os demais e sentiu calafrios ao virar suas páginas. Edmund não soubera detalhar o destino dos homens que haviam sido fiéis a ele, mas temia que poucos houvessem sobrevivido, O amigo tinha razão. A letra confusa de MacKay regia trará o ocorrido aos homens de James. Alguns tinham conseguido fugir, mas a maioria fora morta. Muitos daqueles haviam sido brutalmente torturados para revelar seu esconderijo. Junto do horrível registro, estavam in­formações sobre todas as pessoas que viviam nas terras, no castelo e na vila. As anotações em cada nome revelavam que MacKay mantinha sob rígida observação cada homem, mulher e criança que estavam sob seu domínio.

Raiva e pesar pela perda de tantas pessoas boas o ce­garam por um momento. O ruído provocado por um mo­vimento no trinco da porta desviou-o dos pensamentos tristes e sombrios, despertando-o para o perigo em que se encontrava. Com agilidade, fechou os cadernos e afas­tou-se da escrivaninha no momento em que a porta se abria. Pensava em uma desculpa plausível para estar ali quando, surpreso, identificou Annora que, de costas para ele, ainda examinava com cuidado o corredor. James se aproximou lentamente.

Com o coração batendo forte, Annora fechou a porta devagar e suspirou aliviada. O primeiro passo para des­vendar a verdade tinha. Entrara sem ser vista no escritório do primo. Agora, tudo o que precisava fazer era revistá-lo sem ser pega. Fez uma careta, imaginando se a curiosidade finalmente a meteria em um problema do qual não conseguiria se livrar.

Endireitando a coluna, determinada a encontrar res­postas, virou-se na direção da escrivaninha de Donnell e se viu diante de um peito largo. De fato, seu nariz prati­camente tocava a grossa camisa de linho que o cobria. O único pensamento claro que teve foi que não estava dian­te do primo ou de Egan e, certamente, aquele não era um dos Chisholm. Nunca conseguiria ficar tão perto de um deles sem que os olhos lacrimejassem por causa do cheiro ruim. Levantando a cabeça, encontrou um lindo olho ver­de. Reconheceu que não estava realmente surpresa, pois havia reconhecido tanto o perfume quanto as sensações incontidas de raiva, tristeza e frustração.

— O que está fazendo aqui, mestre Lavengeance? — questionou, percebendo que, daquela vez, seria melhor en­frentar a situação do que balbuciar desculpas ou correr.

Como sabia que ela falava um francês impecável, James não sentiu necessidade de continuar falando in­glês com sotaque, algo em que era péssimo.

— Acho que devo perguntar o que você está fazendo aqui — replicou em francês.

— Perguntei primeiro.

— Sim, mas acho que sua resposta será bem mais in­teressante do que a minha.

Era estranho responder em inglês ao que era dito em francês, mas Annora adivinhara desde o princípio que ele compreendia perfeitamente o idioma. Franziu a testa para o carpinteiro.

— Preciso escrever algumas cartas — disse.

— Você sabe escrever? — perguntou, sem conseguir esconder a surpresa. A família Murray prezava a instru­ção, mas, de forma geral, era incomum que fosse ensina­do a uma mulher algo além dos cuidados com a casa, com o marido e os filhos.

— Claro que sei!

— Não fique ofendida. A maioria não sabe, e os ho­mens costumam preferir que seja assim.

Annora finalmente deu um passo para trás, sem compre­ender o que a fizera demorar tanto para se afastar dele.

— Bem, morei na casa de várias mulheres que não concordavam com isso. Elas finalizaram o trabalho que minha mãe havia começado. Agora vou deixá-lo a sós, para o que quer que tenha vindo fazer aqui.

Ela nem sequer tinha terminado de se virar para sair quando mãos fortes agarraram seu braço. Ficou ten­sa, acostumada à brutalidade do primo. Porém, mestre Lavengeance conduziu-a até a porta com agilidade e de­licadeza, de forma a não feri-la.

— Pretende se encontrar com seu senhor e contar que estive aqui? — questionou.

Ele aproximou-se, prendendo-a com o corpo e afrouxan­do o aperto em seus braços. Percebeu logo que cometera um erro. O contato atiçou seu desejo e o corpo foi percor­rido por uma onda de calor. Lembrou-se de quanto tempo fazia que não satisfazia aquele tipo de necessidade.

Quase fez uma careta, resistindo em aceitar a verdade.

A sensação era mais que o anseio cego por uma mulher qualquer. Era uma intensa atração por ela. Por seu per­fume, pelos olhos azuis, pelo som de sua voz e pela ma­neira como fazia sua filhinha séria e arisca rir.

Tentando controlar a paixão que o consumia, observou o rosto dela. Quando a agarrara, ela tinha se enrijecido com um pássaro aterrorizado. Sabia que estivera anteci­pando algum tipo de violência, talvez até se preparando para suportar a dor. Ficou contente ao sentir o momento em que percebeu que ele não a trataria com grosseria. No entanto, o simples fato de ela esperar que aquilo aconte­cesse o deixava nervoso e triste. Resolveu que seria me­lhor se concentrar no olhar de aborrecimento e ultraje no rosto adorável. Tendo sido bem treinado pelas mulheres de sua família adotiva, os Murray, sabia que dizer que ela era encantadora quando ficava brava poderia ser fatal.

— Então, pretende fazer com que seu senhor venha atrás de mim? — perguntou de novo.

— Por quê? Você tem feito algo que prejudique Dunncraig?

Percebeu que ela não se referira a MacKay.

— Não. Só queria saber por que sou tão bem remu­nerado pelo meu trabalho enquanto as pessoas na vila passam fome.

— Esse é um enigma de fácil solução. O tolo pensa que deve viver como um rei, que tudo o que cresce, tudo o que é feito e o que se ganha aqui se destina somente a mantê-lo confortável. Você está neste castelo há quinze dias e chegou à vila antes disso. Não deveria estar bisbilhotando para descobrir a dura verdade.

A respiração de Annora se acelerou ao sentir que ele a pressionava um pouco mais. Intuía que era sincero, ainda que escondesse algo. Sentia também que ele não represen­tava uma ameaça para Dunncraig e não se importava se ele quisesse prejudicar Donnell e seus subordinados. Nada daquilo a alarmava. O que a preocupava era a tamanha proximidade, que permitia com que sentisse o desejo dele. O fato de gostar da sensação a surpreendia e amedrontava.

— Não direi nada a Donnell, portanto pode me soltar agora — disse, satisfeita com a calma expressa na voz, que se contrapunha à ansiedade interior.

— Tem certeza de que quer que eu a solte? — James tocou sua testa com os lábios e sentiu-a estremecer. — Acho que não quero deixá-la ir. Vou beijá-la, Annora.

— Isso não seria prudente.

— Pode ter razão, mas no momento não me importo.

Antes que pudesse dizer algo, a boca de Rolf cobriu a dela. Era macia e quente. Ela não somente saboreou o desejo, como o sentiu fluir para ela, intensificando suas próprias sensações. Era como se, por um momento, o co­ração e a alma dele se desnudassem, os sentimentos se misturando aos dela, fortalecendo-os. As emoções eram fortes, e nem todas boas, mas o desejo por ela era real. Apesar de saber que aquilo podia ser algo superficial e efêmero, não hesitou em entreabrir a boca quando ele gentilmente mordiscou seu lábio inferior. O movimento da língua foi o suficiente para fazê-la desprezar toda a cautela e envolvê-lo com os braços. Não se importava com nada, só queria que aquele instante não acabasse.

Ele puxou-a para mais perto, pressionando-a contra o corpo alto e delgado, as mãos acariciando-a nas costas. Sentir a evidência de seu desejo deveria tê-la feito correr para defender a própria virtude. No entanto, Annora es­cutou o próprio gemido.

Quando ele encerrou o beijo, tentou trazê-lo de volta até que um lampejo de bom senso a tomasse, fazendo-a encostar-se à porta. Via como Rolf lutava para se contro­lar e sabia que deveria ficar contente, mas, infelizmente, o bom senso não a ajudou a livrar-se do fogo avivado por aquele beijo. Não compreendia por que ele tinha parado.

— Escutou isso? — James perguntou subitamente, o corpo todo se enrijecendo, como se estivesse se preparan­do para lutar.

— Isso, o quê?

— Alguém está vindo nessa direção.

Annora começava a entrar em pânico quando ele a agarrou pela mão e puxou-a para a parede próxima da pequena lareira.

— Devemos sair daqui — ela disse.

— É exatamente o que vamos fazer.

Ela observou, estupefata, quando ele parou e pressio­nou alguns tijolos ao redor da lareira, fazendo com que a parede se movesse. Ao ser conduzida para um espa­ço muito pequeno, só conseguiu pensar no lado bom de Donnell não ter certas informações sobre Dunncraig. Sabia que ele teria feito um uso abominável de coisas como aposentos e passagens secretas. Ficou tensa ao ver que Rolf empurrou algo ao lado da porta, fazendo com que se fechasse. Estavam muito próximos, na escuridão total. Não se importava de estar tão perto dele, mas ti­nha um medo antigo e profundo do escuro.

— E isso? — perguntou com voz trêmula, embaraçada pelo sinal do receio crescente. — Não há um corredor por onde nos arrastamos para longe?

— Bem, há uma passagem — ele sussurrou em seu ou­vido. — Mas não seria seguro usá-la sem nenhuma luz.

— Ele consegue nos escutar? — Annora murmurou, esperando que aquela conversa a ajudasse a manter o controle.

— Não se falarmos muito baixinho. Nós, por outro lado, conseguiremos escutar tudo o que for dito no escritório.

— Isso pode ser útil.

James envolveu-a e puxou-a para perto de si. Era uma doce tortura, mas conseguiria refrear o desejo, pois sen­tia o medo de Annora. Suspeitava também que ela era virgem, e sexo rápido em um minúsculo quarto escuro com pessoas a alguns passos dali não seria a maneira correta de introduzi-la nos prazeres da paixão, ainda que fosse uma boa maneira de não arriscar seu disfarce.

— Tem medo do escuro?

— Sim, do escuro e de lugares pequenos sem uma rota de fuga visível. — Estremeceu, tomada pelas lembranças sombrias da prima Sorcha. — Uma das mulheres que me pegou após a morte de minha mãe achava que pas­sar algum tempo em um espaço pequeno e escuro era a melhor forma de disciplinar uma criança rebelde. — Mal terminou de falar, perguntou-se por que havia contado isso para ele.

James apertou-a um pouco mais, dominado por um forte ímpeto de punir a mulher. Espantava-se com o fato de sentir-se tão ultrajado por ela, pois mal a conhecia. 0 fato de o beijo tê-lo afetado tanto não significava que devia confiar-lhe seus segredos. Não devia se deixar se­duzir por toda a doçura de Annora.

A voz de MacKay trouxe-o de volta à realidade. James enrijeceu-se e se concentrou para escutar, não querendo perder uma palavra. Ficou um pouco surpreso ao ver que ela fazia o mesmo. Annora não gostava do primo e ele queria saber o motivo, mas as perguntas teriam que es­perar até mais tarde.

— Quando aqueles malditos Chisholm vão partir? — perguntou Egan.

— Quando terminarmos nosso negócio — respondeu Donnell.

— Estão atraindo muita atenção para nós. Não tentam esconder o que estão fazendo. Eu não ficaria surpreso se eles se vangloriassem em cada taberna em que entrem.

— Isso não importa. Não acho que alguém vá dar ou­vidos a eles caso se manifestem contra nós. São conheci­dos como ladrões mentirosos. Não será difícil convencer­mos as pessoas de que estão tentando derrubar alguém junto.

— Pode ser, mas queremos correr o risco? Se você esti­ver errado, seremos enforcados ao lado deles.

Donnell bufou tão alto que Annora escutou claramen­te de seu esconderijo. Estava tentando ignorar o homem que a envolvia, o que se mostrava algo impossível. O me­lhor que podia fazer era ouvir o que era dito no escritó­rio e esperar que pudesse se lembrar das palavras para pensar mais tarde.

Rolf Lavengeance era perigoso, pensou, enquanto a discussão de Donnell e Egan sobre os riscos de manter a aliança com os Chisholm prosseguia. Sabia estar atra­ída por ele desde o princípio, mas, como não tinham tido tanto contato, aquilo não a perturbara muito. Era uma atração segura, que se apreciava à distância, e que acrescentava um brilho romântico a alguns sonhos. Agora, não havia mais segurança. Tinha consciência de que ele a de­sejava e, o que era pior, conhecia seu sabor e a maneira como ele a fazia sentir-se. Manteria o máximo de distân­cia possível entre eles.

Fechou os olhos, tomada por uma súbita sensação de perda. Tentou se convencer de que era tolice, pois não o conhecia bem e não era livre para explorar aquele desejo. Tinha que considerar Meggie, pois sabia que qualquer sinal de impropriedade de sua parte daria a Donnell a desculpa para separá-las. Além disso, ambos correriam perigo se ela cedesse, pois duvidava que Egan apreciaria a ideia. E, finalmente, havia o fato de que ela não queria encontrar-se na mesma situação que havia destruído sua mãe, abandonada solteira e grávida de uma criança que sofreria a vida inteira pelos pecados dos pais. Era im­perativo distanciar-se de Rolf Lavengeance e manter-se bem longe.

Fez uma careta quando uma voz em sua cabeça suge­riu que esperasse para se afastar quando saíssem daquele esconderijo escuro. De qualquer forma, não seria possível fazer aquilo no momento, e a maneira como ele a aninha­va e roubava carícias de seu corpo onde as mãos descan­savam não permitia que o ignorasse.

— Desta última vez, o primogênito de um proprietário de terras foi morto, Donnell — disse Egan.

Aquelas palavras a desviaram de seus pensamentos, deixando-a tensa. Sabia que Donnell estava envolvido em ataques aos outros clãs, apesar de desconhecer a frequência e a intensidade, mas parecia que estivera recen­temente envolvido em um que provocara derramamen­to de sangue. Os saques eram obviamente o motivo da permanência dos Chisholm no castelo. Uma vez que tais crimes eram, de forma geral, cometidos durante a noite, ela nunca havia prestado muita atenção, mas era eviden­te que eles estavam colocando o povo de Dunncraig em perigo. Estavam arriscando a vida de Meggie.

A rigidez do corpo do homem que a abraçava mostrou-lhe que ele provavelmente estava pensando as mesmas coisas. Não tinha certeza sobre o motivo de suas preocu­pações. Talvez houvesse decidido viver ali e tivesse medo de que Donnell ameaçasse a paz de seu novo lar. Paz era uma coisa ilusória na Escócia, sob quaisquer circunstân­cias, mas era loucura fazer coisas que exigiam retaliação e atiçavam contendas sangrentas.

— Sossegue, Egan — disse Donnell, caminhando per­to do esconderijo. — Logo farei com que aquele bastardo esteja tão ligado a mim que será obrigado a se calar, mes­mo que seja pego.

— Espero que tenha razão — falou Egan, seguindo-o.

— Mesmo que eu esteja errado sobre Ian, não estou errado sobre seus filhos. Eles virariam as costas para o próprio pai para proteger-se ou obter o poder que lhes é negado, Assim que eu tiver um dos idiotas ligados a mim, ele fará o melhor para garantir que eu não caia, nem mesmo por ação de seus próprios parentes.

Annora ficou desapontada ao perceber que deixavam o escritório. Apesar de ter ficado feliz com a partida, pois precisava sair do cativeiro e daqueles braços, gostaria que eles tivessem falado mais. Queria ter descoberto que tipo de arma Donnell pensava poder usar contra os Chisholm para forçá-los a protegê-lo.

Vários momentos tensos e silenciosos se passaram. Ela estava prestes a perguntar se sairiam dali quando Rolf abriu a porta. Ela piscou ante a súbita claridade, levando um minuto ou dois para enxergar com nitidez a ira no rosto de Rolf. Como sempre sentia a raiva que emanava dele, não havia prestado muita atenção àquela sensação. Estava claro que a fúria tinha sido desperta­da pelo que ouvira a respeito dos crimes cometidos por Donnell e Egan. Pensava em como era agradável encon­trar um homem que se aborrecia com crimes e injusti­ças quando percebeu que ele estava praguejando, em voz baixa e por um longo tempo, no inglês da Escócia.

— Então, você fala nossa língua — murmurou, sorrin­do. — E muito vivamente.

— Desculpe — ele murmurou em francês, sua tentativa de soar calmo e polido um pouco frustrada pela fúria ocul­ta na voz profunda. — Posso praguejar fluentemente em seu idioma, mas falar como um cavalheiro é mais difícil.

Ela assentiu, mas sabia que estava tão desligada da conversa quanto ele. Agora que não se encontrava mais em seus braços, o diálogo que havia escutado preenchia sua mente, exigindo que refletisse. Também seria uma boa ideia estabelecer logo uma distância entre eles, con­cluiu, dirigindo-se para a porta.

— Acho que seria uma excelente ideia sairmos logo daqui.

— Concordo.

James passou por ela e abriu a porta. Verificou o cor­redor antes de sinalizar para que o seguisse. Do lado de fora, agarrou-a pela mão quando ela começava a se afas­tar e beijou-a antes de soltá-la.

Quase sorriu ao vê-la corar e afastar-se apressada. Sem dúvida, tinha sido um erro lembrá-la do que haviam compartilhado antes de serem interrompidos pelos dois homens, mas não queria que ela fosse embora e esque­cesse. Aquele breve beijo seria um pequeno lembrete e um aviso de que não era o fim, mas o começo de algo. Ele precisava ser cauteloso, mas havia decidido que não conseguiria ignorar o que existia entre eles.

Assim como não podia ignorar o que acabara de es­cutar. Dirigiu-se rapidamente para a oficina, lutando contra o ímpeto de ir até MacKay exigir respostas sobre quem ele atacara e quem tinha morrido. O maldito esta­va ameaçando arrastar Dunncraig e seu povo para uma contenda longa e sangrenta. Talvez fosse algo impossível de ser consertado quando ele provasse sua inocência e recuperasse o controle sobre aqueles domínios. A menos que pudesse servir a cabeça de MacKay em uma travessa para a parte prejudicada, pensou ansioso.

Chegando à oficina, olhou para as ferramentas e soube que seria difícil conseguir a calma necessária, não importando o quanto trabalhasse. Dunncraig estava em perigo. A morte de um herdeiro não era algo pequeno, sobre o que se pudesse conversar ou que pudesse ser comprado. Teria que se livrar de MacKay e recuperar seu nome ra­pidamente. Estava na hora de parar de se mover com tanto vagar e cuidado. Se não impedisse logo os crimes daquele homem, tudo o que teria quando recuperasse o nome, a filha e as terras, seria a destruição.

 

Annora praguejou baixinho ao entrar no grande salão para o desjejum e perceber que os Chisholm ainda es­tavam em Dunncraig. Tivera esperanças de que eles hou­vessem partido ao amanhecer. Pelo que havia escutado no escritório, o ato sangrento tinha sido realizado e não era mais necessário que permanecessem no castelo. No entan­to, ainda assim, estavam ali, arruinando sua manhã.

Sentando-se no lugar de sempre, viu-se de frente para eles. Estava perto demais para sentir-se confortável, mas não poderia simplesmente se mover, pois aquilo seria um insulto óbvio aos convidados, trazendo-lhe problemas que preferia evitar. Para piorar a situação, Egan havia se sentado ao seu lado direito. Como o banco era muito pequeno, ele a tocava frequentemente, de propósito na maior parte das vezes. Perdeu o apetite, mas sabia que deveria ficar ali e fingir que compartilhar uma mesa com cinco homens brutais não a perturbava.

Assim que encheu sua tigela com mingau de aveia, fez o possível para ignorá-los, o que não foi tão fácil. Egan con­tinuava perto demais, pressionando a coxa contra a dela. Os Chisholm revelavam com clareza a completa falta de modos à mesa e Donnell parecia alheio a tudo, exceto à grande quantidade de comida que enfiava na boca. Um homem que estava gastando tanto dinheiro e despenden­do tamanho esforço para equiparar o castelo a um palácio real deveria tentar com mais empenho melhorar o com­portamento. A vaidade do primo era tão grande que ele acreditava ser perfeito, pensou.

Annora estava se servindo de frutas quando Meggie foi trazida para o grande salão por Hazel, uma das criadas. A maioria das mulheres trabalhava duro, mas outras, aque­las dispostas a se deitarem com Donnell, faziam o que queriam. Elas obviamente pensavam que dividir a cama dele as colocava em um lugar especial no castelo e que mereciam alguns privilégios. Aquela que levava a menina até ele ainda tinha alguma bondade e consciência, o que a deixou contente. Meggie sempre tinha medo de ser trazida diante dele e umas das mais insensíveis e arrogantes teria tornado a experiência ainda pior.

A pobre menina parecia tão confusa quanto Annora ao ser apresentada aos Chisholm. A extrema gentileza na voz de Donnell deixou-a nervosa. Quando se dignava a fa­lar com a criança que dizia ser sua, nunca era amável. A forma como os olhos da menina se arregalaram revelou que ela também achava aquela mudança mais alarmante que bem-vinda. Meggie estava certa ao preocupar-se, pois aquilo sem dúvida era sinal de problema.

Um arrepio perpassou-lhe o corpo. Havia somente um motivo para que a filha fosse levada a uma refeição com convidados ou, ao menos, somente uma razão para que um homem como ele o fizesse. Ele desconhecia as realizações e gostos dela e, portanto, não poderia orgulhar-se nem se vangloriar de nada. Donnell estava expondo uma possível noiva para os amigos. O simples pensamento de que um dos Chisholm poria as mãos na doce criança fez com que se sentisse mal.

Observou-os enquanto descascava uma maçã. Eram eles mesmo que Donnell tentava impressionar, talvez mes­mo subornar, pois Egan conhecia Meggie havia muito tem­po e nunca demonstrara qualquer interesse por ela. A for­ma como o mais jovem dos Chisholm a observava, como se tentasse imaginar sua aparência ao crescer, fez com que Annora quisesse agarrá-la e fugir para as montanhas.

Quando a menina finalmente foi dispensada, terminou de comer a maçã devagar e pediu licença para sair. Con­tudo, não foi longe. Afastou-se somente o suficiente para que pensassem que ela tivesse se recolhido. Moveu-se, en­tão, em silêncio de volta até o grande salão, colocando-se contra a parede ao lado da porta. Se Donnell tivesse um plano de casar Meggie com um daqueles rapazes, fala­riam sobre o assunto naquele momento, após a exibição do troféu.

— Uma garota bonitinha — disse Ian Chisholm. — O que acha, Ian?

— Sim, pode muito bem ser uma mulher bonita quan­do crescer — respondeu o primogênito.

Annora quase praguejou em voz alta e pressionou a mão contra a boca para impedir-se de manifestar a raiva. Donnell estava, de fato, tentando arranjar um contrato de casamento entre Meggie e um dos rapazes feios. O primo seguramente ganharia algo com o acordo. Mesmo que eles tivessem se tornado aliados próximos ao roubar dos clãs vizinhos, Annora sentiu que estavam empatados em rela­ção aos crimes cometidos. Portanto, duvidava que Donnell sofresse algum tipo de chantagem para oferecer quem ale­gava ser sua primeira e única filha àqueles homens.

— Por que Ian pode escolher? — resmungou Halbert, o filho mais novo. — Eleja teve duas esposas.

— Porque ele é meu herdeiro, seu imbecil — respon­deu o pai. — Aquelas moças fracas com quem ele se ca­sou não tiveram o filho de que precisamos antes de mor­rerem. Jovem como é, a pequena Meggie já parece uma moça forte e saudável.

— Fiona é uma maldita mulher forte e saudável tam­bém. Por que ele não se casa com ela?

— O que Fiona tem a ver com isso?

— Ele tem compartilhado sua cama e demonstrado que não é tão pequeno, afinal, verdade? Dizem que ela está carregando um filho dele.

Annora escutou o som de algo sendo atingido e de uma queda. Refreou o ímpeto de fugir daqueles ruídos de violência, um cuidado que aprendera rápido na vida em Dunncraig. Pensando no destino que aguardava a crian­ça, encontrou as forças necessárias para permanecer ali e começou a rezar em silêncio para que eles mantivessem a atenção na fértil Fiona. Se aquela mulher estivesse grávida de lan, o assunto do casamento seria esquecido no momento.

— Por que me derrubou?

Annora pensou que, para um homem crescido, lan se lamentava como um bebê.

— Por que não me disse que engravidou Fiona? — questionou o pai.

— Porque ela é uma vagabunda. Não tenho nem cer­teza de que o filho é meu.

— É seu e você sabe disso — afirmou Halbert, a voz repleta de um sarcasmo triunfante. — Assim que colocou seu traseiro na cama dela, ela nunca mais nem falou com outro homem. Todos sabem disso.

— Então, vai se casar com Fiona — determinou o pai.

— Mas ela pode parir uma menina — protestou o filho.

— Você vai engravidá-la até que ela acerte. Ela parece boa para procriar. Halbert será o noivo de Margaret. Se, quando a menina crescer, você não tiver filhos homens e Fiona tiver morrido, como as suas outras esposas, falare­mos de novo do assunto.

— Vamos, então, discutir a possibilidade de um noiva­do, a união de nossas casas — disse Donnell.

Annora teve que se controlar para não invadir o gran­de salão e protestar ou agarrar a criança e fugir. Foi obri­gada a combater ambos os ímpetos com tanta intensi­dade que começou a tremer. Percebendo quanto tempo tinha ficado ali, encontrou, por fim, forças para se mexer e correu para o quarto. Sabia que a garota a estaria es­perando, mas precisava de tempo para se acalmar, para afastar a ideia de aquela menina doce e inocente ser en­tregue a um daqueles homens duros e cruéis.

Chegando ao quarto, atirou-se na cama e respirou deva­gar e com profundidade até que as batidas de seu coração voltassem ao normal e que pudesse voltar a pensar com mais clareza. O primeiro pensamento foi que aquela ame­aça não era iminente. Meggie tinha cinco anos e não po­deria se casar pelo menos nos próximos oito anos. Muitas coisas poderiam acontecer até lá, repetiu diversas vezes até conseguir afastar o pânico.

Sentando-se, olhou para a porta e decidiu que tinha que fazer planos. Como não sabia se poderia ficar com a garota durante todo aquele tempo, precisava de diver­sas opções que cobrissem todas as possibilidades. Saber o que o primo pretendia serviu como um incentivo para descobrir a verdade sobre ele, sua posse de Dunncraig e a alegação de ser pai da menina. Se ele não fosse mais um senhor de terras e se houvesse provas de que ele era um ladrão e um mentiroso, ou até algo pior, a criança estaria livre de todas as promessas que ele fizera.

Destruir Donnell faria com que ela perdesse Meggie, mas essa percepção fez com que hesitasse apenas por um instante. Mesmo o tipo de vida que levara, ou a ausên­cia de comida e abrigo de boa qualidade, seria melhor que ser a mulher de Halbert Chisholm ou de seu irmão. Determinada a fazer o que fosse necessário para manter a menina longe dos Chisholm, Annora finalmente foi en­contrá-la. Donnell descobriria em breve que, no que dizia respeito à segurança e felicidade de Meggie, sua prima, a bastarda indesejável, não era a alma submissa e obe­diente que ele acreditava.

O som da risada de uma menininha levou James à porta da oficina, de onde teve que sair para conseguir vê-la com clareza. Como sempre, Meggie estava com Annora. Parecia haver algo um pouco diferente na forma como Annora a tratava, mas levou alguns minutos para perce­ber o que era. Ela estava agindo de forma mais vigilante e protetora. Ele, de repente, quis saber o motivo, o que ha­via mudado, e deu um passo na direção delas, até sentir alguém agarrar sua camisa e impedi-lo. Olhou para trás e encontrou Marta balançando a cabeça.

— Não, rapaz, é melhor não fazer isso — disse.

— É? Não posso só ir até lá e cumprimentá-las, talvez comentar sobre o tempo agradável? — Desistira de man­ter o disfarce diante da mulher de olhos atentos, mas fa­lava em voz baixa para que ninguém mais escutasse a prova de que ele não era francês.

— Não vê aqueles dois idiotas grosseiros observando-as?

— MacKay as mantém sob vigilância mesmo dentro dos muros do castelo?

— Quando aqueles bastardos dos Chisholm estão aqui, sim. E não é só ele que as quer vigiadas. Egan não quer que eles encontrem Annora sozinha. Dentro do castelo, ela não é muito seguida, pois um grito alto poderia salvá-la se alguém fosse estúpido o suficiente para tentar agarrá-la, e ninguém fala muito com ela por medo de que MacKay des­cubra. As pessoas não querem que ele pense que sabem algo que não deveriam saber. Sim, e cada homem, mulher e criança aqui sabe que nenhuma das duas moças deve ser tocada.

— Fico surpreso que MacKay seja tão protetor em re­lação a uma criança que sabe não ser dele.

Marta cruzou os braços sobre o peito.

— Ah, é? Quem melhor para vigiar que a filha do ho­mem que o quer morto?

James fez uma careta, percebendo que seu ressenti­mento quanto à falsa alegação de MacKay em relação à paternidade dela poderia obviamente cegá-lo para al­guns fatos simples.

— E Annora? Ele não pode achar que eu a conheço. Ela nunca esteve aqui enquanto fui casado com Mary.

— Como acabei de dizer, Egan não quer que ninguém a toque.

— Ele a deseja.

Marta assentiu.

— Ele a quer desde que ela chegou a Dunncraig. A garota demorou para perceber.

— Como homem de confiança de MacKay e alguém que não hesita para tomar o que deseja, por que ele a deixou em paz todo esse tempo?

— Ela pode ser uma bastarda, mas ainda é mais bem-nascida que ele, e quer que ela o aceite sem ser forçada. Acho que é vaidade. Ele quer que todos saibam que ela o escolheu, que deitou-se com ele de boa vontade porque ele é um homem tão importante.

James enfureceu-se, e o desprezo evidente na voz da mulher ao referir-se a Egan não diminuiu sua raiva. Pre­cisou de um minuto para perceber que a sensação era muito semelhante a ciúme. Aquela era uma péssima hora para ser possessivo em relação a uma mulher. Além dis­so, era pior ainda sentir-se daquela maneira em relação a Annora MacKay, a prima de um homem que o destruíra e que dependia dele para sobreviver.

— Você acha que isso vai acontecer? — O ruído desdenhoso emitido por ela desta vez acalmou-o um pouco.

— Não. Acho que ela preferiria estar mendigando na sarjeta a aceitá-lo como seu homem. A moça não pode se misturar conosco, mas, após três anos é possível saber que tipo de mulher ela é. Sim, e a pequena Meggie a ama. Annie, a jovem criada que a ajuda, diz que Annora é uma dama refinada, doce, gentil e paciente com a menina. Para mim... bem, da primeira vez que ela fez a garota rir, soube que era uma pessoa boa. — Marta suspirou. — Sua filha era uma menina triste antes de a moça chegar. E ela faz o possível para assegurar-se de que a criança não fique muito tempo sob a vista de Donnell e, se necessário, atrai a raiva para si.

— Ele bate nelas — disse James em voz baixa, com uma renovada ira apertando sua garganta.

Ele evitava conversar, e tentava falar o mínimo possí­vel, temeroso de arriscar seu disfarce. Mesmo assim, fica­ra sabendo de muitas coisas. As pessoas pareciam gostar de falar com alguém que achavam não entendê-las bem ou, ao menos, não ser capaz de reproduzi-las corretamen­te. Um homem havia dito a ele, após um longo discurso so­bre o que estava errado em Dunncraig depois do domínio de MacKay, que havia algo a respeito dele que inspirava confiança. James não tinha certeza se acreditava, mas aquilo estava sendo bastante útil.

Ficara sabendo que Donnell MacKay e Egan eram ho­mens brutais. Usavam os punhos para impor suas regras e reforçar o controle sobre o povo. Esperava que a tortura e morte de tantos de seus guardas fossem suficientes para que as pessoas compreendessem o perigo de reclamar ou resistir. Ouvir homens fortes e corajosos gritarem era algo que fazia com que muitos parassem, por medo de compar­tilhar tal destino. Escutar que MacKay usara os punhos em Annora e Meggie o enraiveceria a ponto de levá-lo a cometer um ato estúpido. O fato de não poder agir de ime­diato, de ter até mesmo que recuar, caso acontecesse de novo, provocava um nó de ira amarga em seu estômago.

— Sim, ele bate nelas, mas não com tanta força para provocar muitos estragos — confirmou Marta.

— E você espera que isso faça com que eu me sinta melhor?

— Só disse isso para que não tente fazer algo que pos­sa ajudá-las, mas que o faça perder todo o resto. Somente uma vez ele ficou tão enfurecido com Annora que deixou de ter cuidado, mas Egan o afastou antes que a machu­casse mais. Eu tomei conta dela daquela vez e foi ruim, mas nada foi quebrado. Não, nem mesmo o espírito que ela guarda bem escondido. É isso o que a mantém aqui. Isso e seu amor por Meggie.

— Não estou descobrindo o que preciso saber rápido o suficiente — resmungou, correndo a mão pelo cabelo.

— Você não achou que o homem deixaria uma confis­são escrita para ser descoberta, achou?

— Criada impertinente!

— Sim, com muito orgulho. A prova está aqui, tenho certeza. Há algo ou alguém que pode expor as mentiras e trapaças do bastardo.

— Parece segura disso.

— Estou. Ele é cuidadoso, pois sabe que deve haver algo que o atinja. Ele tem segredos que precisa impedir que sejam descobertos.

James assentiu enquanto observava as duas brinca­rem no jardim.

— Se eu conseguisse provar minha inocência, MacKay poderia ser enforcado muitas vezes pelo assassinato de tantos homens bons.

Marta suspirou.

— Sim, foi uma época muito sombria. Acho que posso saber onde alguns dos poucos que escaparam estão es­condidos.

Um lampejo de esperança passou pelo coração de James, mas ele já se desapontara incontáveis vezes nos últimos tempos, para se iludir.

— Onde?

— Saberei logo. Preciso ser cautelosa, pois não quero ser a responsável pela morte daqueles que sobreviveram à chegada de MacKay.

— Não, claro que não.

James suspirou e começava a voltar para sua oficina quando a pequena Meggie subitamente olhou para ele. Sorriu e acenou. Ele correspondeu e viu que Annora o encarava. Ainda sentia seu sabor e suas curvas suaves e escutava os doces suspiros. Tivera os sonhos preenchidos com imagens que o fizeram despertar cheio de desejo. Quando Meggie olhou para ela, Annora sorriu e acenou brevemente antes de levar a criança.

Por um instante, James considerou a ideia de aceitar as ofertas sorridentes que recebera de diversas criadas, pois seu corpo ansiava por uma mulher. Percebeu, contu­do, que era uma mulher específica que desejava, o que, de certa forma, era bom. Envolver-se com uma empregada poderia ser um erro sério, que exporia a fraude que era. Por outro lado, não sabia se gostava do fato de Annora manter seu corpo cativo.

— Ela seria uma boa escolha quando for o senhor des­tas terras novamente — Marta disse calmamente.

Recusando-se a corar ao ser surpreendido, olhando-a com tanto ardor, ele bufou e voltou à oficina.

— Ela é uma MacKay.

O ruído emitido por Marta revelou com clareza o des­prezo por aquela resposta.

— Somente porque sua mãe também era. A moça nunca foi bem tratada pelos parentes. Com certeza, não foi bem tratada por essa parte da família. Não confia em MacKay desde o início. E você achou que era o único fazendo per­guntas sobre o homem, não?

Pensando em como a apanhara entrando no escritó­rio, obviamente para espionar os papéis, James franziu a testa.

— Quem mais está fazendo perguntas? Além de mim e talvez de Annora?

— Bem, seus parentes tentaram, mas não consegui­ram se aproximar o suficiente.

— Sim, e eu deixei claro que esse problema era meu e que eles não deviam arriscar as vidas, pelo menos até que eu tivesse alguma evidência de que ele cometeu o crime do qual eu fui acusado.

— Isso não os impediu, mas não conseguiram se apro­ximar. Não sei como, mas MacKay quase os farejava. Após algumas tentativas, em que seus parentes mal es­caparam com vida, acho que finalmente decidiram espe­rar, conforme havia solicitado. Duvido, no entanto, que não tenham feito nada.

— Também duvido. Infelizmente, a verdade está es­condida aqui. Tenho certeza.

Ela assentiu.

— É mesmo, rapaz, mas, talvez, não esteja tão bem es­condida quanto o bastardo acredita. E difícil manter algo em segredo por tanto tempo em um castelo. Há sempre alguém que viu ou ouviu algo e vai admitir um dia.

— Você escutou alguma coisa?

— Só cochichos por enquanto. Estou mantendo os ou­vidos bem abertos e vou informá-lo quando ouvir algo além de um pequeno boato ou uma suposição.

James suspirou e concordou. Viu-a desaparecer na co­zinha e resistiu à necessidade de arrastá-la de volta e exigir saber que boatos eram aqueles, até mesmo cada pequena suspeita. Sabia que era tolice. Não conquistaria a liberdade com rumores e desconfianças. Mover-se com muita rapidez também poderia silenciar aqueles que co­chichavam e que poderiam revelar algo útil.

Retornando ao trabalho, pensou na obsessão de Egan por Annora. A simples ideia despertava algo intenso e primitivo em seu peito, que gritava que ela pertencia a ele. Porém, teria de ser cuidadoso. O homem poderia provocar sua expulsão de Dunncraig se pensasse que Annora estava interessada nele. E ela era tão inocente que poderia se magoar caso ele oscilasse entre ser receptivo e frio com muita frequência.

Amaldiçoou, meneando a cabeça. Não importava o quan­to dissesse a si mesmo que era ruim sentir-se tão atraí­do por ela; o sentimento não desvanecia. Tinha a forte sen­sação de que encontrara sua companheira. Havia uma só­lida crença entre os Murray de que todos têm uma alma gêmea e, até o momento, nos casais que tinha visto, pare­cia haver alguma verdade naquilo. Não se sentira dessa forma em relação a Mary, o que o fazia sentir-se um pouco culpado, mas aquela intensa percepção de posse que o tomava quando via Annora o levava a acreditar que ela era a pessoa certa.

Além de ser uma estupidez no momento, parecia uma crueldade do destino, pensou. Como um proscrito decla­rado, era um homem morto, e aceitar uma companhei­ra significaria submetê-la à mesma sentença. Teria que controlar com mais empenho o ímpeto de agarrá-la e rei­vindicá-la de todas as formas possíveis.

Afastando os pensamentos, concentrou-se nas peças de madeira. O trabalho proporcionou-lhe certa paz e o alívio da tensão foi bem-vindo. Voltou a se enrijecer ao pa­rar e examinar o que havia feito. No canto da cornija na qual trabalhava havia um rosto de mulher. Era o de Annora, cada traço suave do rosto, já tão familiar.

— Fez um belo trabalho, rapaz — disse Marta atrás dele.

James amaldiçoou em silêncio a impressionante habili­dade que ela tinha de se aproximar no momento errado.

— Sim, vai servir — murmurou, esperando que ela esquecesse o assunto.

— Esse rosto parece bem familiar.

— É mesmo?

— Sim, parece nossa pequena Annora.

— Bem, ela tem um rosto bonito.

Marta riu, bateu em suas costas e se afastou.

— Rapaz, não lute muito.

James gemeu e descansou a cabeça no entalhe que enfeitaria a lareira no quarto do senhor de Dunncraig. Ele provavelmente lutaria contra o que se tornava cada vez mais claro. Era a inclinação natural de um homem resistir a algo que crescia em seu interior. Infelizmente, tinha certeza de que era uma batalha perdida.

Annora despertou e viu que o gato sentado em seu peito a encarava. Sorriu para o animal e acariciou-o nas orelhas. Ele vagara durante alguns dias e temia que nos próximos meses nascessem alguns gatinhos. Teria que tentar encontrá-los e salvá-los do afogamento.

Mungo, nomeado em homenagem a um amigo de in­fância, era um segredo guardado a sete chaves. Não ti­nha dúvidas de que Donnell se aproveitaria do amor pelo gato se o descobrisse. Ele já tinha demonstrado que usa­ria os sentimentos por Meggie para mantê-la obediente.

Sentando-se, destapou o pequeno prato com pedaços de carne de veado e ovo cozido que tinha separado e co­locou-o ao lado da cama. Ronronando alto, Mungo apro­ximou-se para comer e ela acariciou suas costas, desper­tando por completo.

Apesar da profundidade do sono, conseguia se lem­brar de um sonho muito vivido, que tinha tido muitas ve­zes antes. Desta vez, no entanto, o lobo de olhos verdes a estava observando enquanto ela beijava um homem alto de cabelos escuros. Um homem com os olhos da mesma cor dos do lobo, pensou, franzindo a testa. Aquele beijo que compartilhara com Rolf certamente adicionara um novo calor ao sonho, mas somente agora percebia que ele tinha os mesmos olhos que o lobo que freqüentava seus sonhos havia mais de três anos.

— Que estranho, Mungo — murmurou, enquanto o gato se enroscava nela, descansando a cabeça em seu pei­to. — Você acha que meus sonhos são um tipo de visão? Não, não podem ser. Bem, já tenho problemas suficientes tentando não sentir o que todos ao redor de mim estão sentindo. Não preciso me angustiar também com visões.

Mungo bocejou e começou a lavar a pata.

— Ele me beijou, Mungo. Ah, sei que já fui beijada an­tes e que uma ou duas vezes eu desejei ser beijada, mas ninguém me beijou como ele. E eu, certamente, nunca sonhei em ser beijada por algum homem. Claro que não gostaria de sonhar com a maioria deles, mas, sim, um ou dois não me causaram repulsa. No entanto, nem mesmo eles me fizeram sonhar. Rolf só me beijou uma vez e eu não consigo me livrar da lembrança. Ele invade meus sonhos com meu lobo. — Fez uma careta. — Temo que meu coração possa estar se preparando para fazer algo muito tolo.

Vendo que o gato dormia, saiu cuidadosamente da cama. Mesmo perdendo o travesseiro confortável de seu peito e o calor de seu corpo, o bichano nem piscou. Era uma situação triste ter que discutir os problemas com um gato, refletiu, enquanto se apressava para se lavar e se vestir. Conversas sobre beijos e homens eram me­lhores com outras mulheres, mas Donnell se assegurara de que ela não tivesse confidentes entre as pessoas dali. Recusando-se a se tornar sentimental em relação a tudo de que sentia falta, foi dar bom-dia a Meggie. A menina estava sorridente e disparou a falar sobre os planos para o dia. O pequeno grão de tristeza e autopiedade que se instalara em seu coração foi banido. Annie logo a infor­mou de que os convidados tinham partido ao amanhecer e ela sorriu de alívio ante o pensamento de tomar o desjejum sem encará-los novamente.

Após instruir a menina a comer tudo o que Annie ha­via preparado, dirigiu-se ao grande salão. Perguntava-se se toda sua alegria se devia ao fato de os Chisholm terem partido e, como era usual, não retornarem nos próximos meses. Pelo pouco que pudera perceber, e a falta de qual­quer cerimônia apressada, nenhum acordo final tinha sido feito a respeito do noivado. Donnell obviamente que­ria manter a isca por mais algum tempo.

A refeição da noite anterior fora um tormento para ela, algo que não esqueceria tão rápido. Tinha passa­do cada minuto esperando o primo anunciar o noivado.

A conversa que havia escutado entre eles seguramente indicara que tudo estava acertado, mas ela agora duvi­dava. Como não sabia o que cada um queria ou mantinha sobre a cabeça do outro, suspeitava que os motivos seriam difíceis de decifrar. Era tentador simplesmente confron­tar Donnell e exigir algumas respostas, mas estava es­cutando somente a voz da própria frustração. Sabia que era tolice pensar que questioná-lo fosse uma boa ideia, e, com certeza, seria ainda mais estúpido achar que ele aceitaria sua opinião a respeito de qualquer coisa.

Entrando no grande salão, ela suspirou de alívio. Os convidados tinham realmente partido. Não havia sinal deles por ali, e nunca perdiam uma refeição. Egan tam­bém estava ausente e Donnell conversava com Rolf. Era um pouco desconcertante encarar um homem que bei­jara recentemente e em quem se apoiara com tamanho abandono, mas era melhor que ver os outros de novo. O pequeno banco em que sempre se sentava para comer es­tava vazio. Aproximou-se com cuidado, pois não sabia se o primo gostaria que ela estivesse ali enquanto discutia trabalho com mestre Lavengeance. Aliviada ao ver que, após olhá-la brevemente, ele prosseguiu com a conversa, sentou-se e se serviu.

Fingir não escutar o que falavam era difícil, pois es­tavam próximos. Donnell discorria sobre a confecção das cadeiras. Descrevia o que vira no castelo de algum ho­mem rico e queria um jogo semelhante para sua mesa. Annora quase o fitou, revelando seu assombro, mas en­cheu a boca de mingau de aveia para conter o impulso.

Olhou para mestre Lavengeance e ficou tentada a alcançá-lo com seu dom para saber o que estava sentin­do. Ele não demonstrava no rosto bonito suas impressões sobre os planos do primo, e ela se sentia estranhamente compelida a saber o que ia por trás daquela máscara cal­ma e impassível. Assim que se permitiu alcançá-lo, soube que havia cometido um erro. A ira que sentira antes esta­va agora aguçada e fervente dentro dele. Surpreendeu-se por não ver nenhuma manifestação daquilo. Havia tam­bém desdém, que era dirigido a Donnell, sem, no entanto, se revelar na voz suave e educada.

De repente, mestre Lavengeance levou a mão à boca como se estivesse pensando e começou a falar depressa em francês. Annora quase engasgou com o mingau. Fitou o primo e, pelo leve franzir de testa que revelava confu­são, percebeu que ele não tinha ideia dos insultos que acabara de receber. Precisou de toda a força de vontade para não corar ante as rudes palavras pronunciadas na­quela voz profunda, calma e amável. Ele odiava Donnell com tanta intensidade que a fazia imaginar os motivos de sua permanência em Dunncraig. Como podia traba­lhar para alguém que detestava tanto?

— Maldição — resmungou Donnell, olhando zangado para Annora. — O que ele disse? Estou pedindo alguma coisa além de sua capacidade? Vamos, você o entendeu, não?

Ela tomou um gole do leite de cabra para afogar o ímpeto de reproduzir os insultos. Tinha certeza de que o carpinteiro seria punido com muito mais do que uma surra pelas palavras. Donnell podia não ter amado sua mãe, mas tinha certeza de que ele não gostaria de ouvir alguém dizer que a mulher tinha sido amante de bodes. Decidiu, então, que a melhor coisa a fazer seria dizer-lhe algo no que estivera pensando ao escutar todos os gran­des planos.

— Mestre Lavengeance está se perguntando se o dese­nho que você queria que fosse entalhado no espaldar das cadeiras não as tornaria desconfortáveis. —Identificou de relance um brilho divertido nos olhos de Rolf. — Seriam um pouco ásperas, talvez?

Donnell franziu o cenho, falhando ao tentar imaginar o que ele mesmo tinha solicitado.

— É, talvez... Bem, deixarei o desenho ao seu encargo, então — disse. — Espero que me mostre o que planeja antes, no entanto. O que mais? — perguntou a Annora.

— Sei que isso não foi tudo, pois havia muitas palavras.

— Ele disse que você tem que decidir se quer usar uma madeira pesada ou uma mais leve.

— Pesada. Quero cadeiras boas e firmes. — Como se percebesse que estava dependendo da ajuda dela para fa­zer-se compreender por um reles carpinteiro, fez uma car­ranca. — Por que você sabe essa língua, de qualquer for­ma? Para que uma moça precisa saber coisas como essas?

— Acho que não preciso realmente conhecer o idioma — disse, em uma tentativa de evitar que o aborrecimento do primo se intensificasse. — Mas quando era uma crian­ça e vivia com meu avô, tive um amigo chamado Mungo, cuja mãe era francesa. — A lembrança de lady Aimee fez com que se sentisse triste e confortada ao mesmo tempo, pois a mulher fora muito gentil com ela e isso era algo que experimentara pouco na infância. — Ela me ensinou.

— Ah, suspeito que queria alguém com quem falar, não? Mais fácil fofocar na própria língua.

— Sim, acho que sim.

Contente por ter reduzido o aborrecimento do primo, que voltou a atenção para o carpinteiro, voltou a comer. Também se afastou dos sentimentos de Rolf, pois, apesar de compreendê-los, eram muito desagradáveis para serem compartilhados. Já tinha problemas demais. Assim que fi­nalizou a refeição, pediu licença para se retirar, mas, ao se levantar, foi agarrada pelo braço. Enrijeceu-se, temerosa de estar prestes a pagar por conhecer algo que o primo ig­norava. Percebeu o corpo de Rolf se retesar e tentou trans­mitir pelo olhar a ideia de que seria inútil e até mesmo perigoso interferir no que Donnell pretendia fazer.

— Melhor não ir muito longe, prima — disse. — Posso precisar de você para ajudar-me a entender o homem de novo.

Apesar de identificar o rancor na voz, Annora sentiu os joelhos amolecerem de alívio.

— Como desejar, primo. Posso ir até Meggie agora?

— Sim, vá.

Ela fez uma reverência rápida para ambos e saiu de lá apressada, controlando-se para não correr. Incomodava-se com o fato de ele querer sua ajuda, pois o ressentimen­to que sentia por pedir cresceria a cada vez que o fizesse. Decidiu que seria prudente tentar falar a sós com o car­pinteiro. Fora divertido vê-lo insultar o primo daquela forma, mas sabia que podia pagar caro por qualquer dis­tração. Se Donnell algum dia descobrisse o que mestre Lavengeance dissera, ele provavelmente sofreria ainda mais. O último homem que o tinha insultado, morrera devagar e com muito sofrimento, pendurado em uma gaiola nas muralhas do castelo. Como o simples pensa­mento do charmoso carpinteiro encontrar o mesmo desti­no horrível, fez com que se sentisse aterrorizada e, muito temerosa por ele, sabia que o confrontaria na primeira oportunidade.

James observou-a sair do grande salão, apreciando o suave balançar dos seus quadris. Sentiu-se um pouco cul­pado a respeito do que havia dito, mesmo que aquilo o ti­vesse ajudado a aliviar a ira que o consumia. Esquecera-se, por um momento, que Annora entendia francês. Nunca deveria ter falado de maneira tão grosseira diante dela. Pior ainda, tinha a sensação de que lhe causara proble­mas. Teria que ser mais cuidadoso, pensou, voltando o olhar para Donnell, que o encarava. MacKay não parecia realmente bravo, mas mantinha nos olhos estreitos um aviso facilmente identificável.

— Ela não é para você, rapaz — disse, servindo a am­bos uma caneca de cerveja. — Melhor não olhar muito.

— E boa demais para mim?

— Sim, acho que sim, apesar de você ter um nome muito rebuscado para um homem comum. Mas ela per­tence a Egan. Ele não gostaria de ver esse olhar que lan­çou para o bonito traseiro quando ela deixou o aposento.

— Eles são noivos?

— Bem, logo serão se depender dele. Agora, vamos fa­lar um pouco mais sobre as cadeiras.

James quase revirou os olhos. Se não se agarrasse à esperança de que logo recuperaria seu lugar, ficaria pro­vavelmente ainda mais aborrecido com as exigências de MacKay à custa do povo de Dunncraig. Não podia fazer nada quanto à negligência com suas terras até que pro­vasse a inocência e voltasse a governar seus domínios. Talvez encontrasse algum conforto no fato de aumentar a beleza do castelo com seu trabalho enquanto tentava destruir MacKay. Sabia também que, assim que recupe­rasse as terras e o bom nome, sua família o ajudaria a tornar as terras produtivas como antes. Era a única coisa que o impedia de agir com muita rapidez.

Esfregando o pescoço dolorido, Annora olhou para o jardim. Se houvesse chuva e sol suficiente pelos próximos meses, Dunncraig contaria com todas as ervas necessá­rias para cozinhar e curar. Haveria também algumas flo­res. Satisfeita com o trabalho, elogiou Meggie por toda a ajuda e mandou-a para o quarto se limpar. Começou a co­letar as sacolas de sementes e as ferramentas que haviam utilizado para plantá-las. Assim que se levantou, alguém a agarrou, fazendo com que soltasse tudo, e arrastou-a em direção ao castelo. Aconteceu tão rápido que ela não teve tempo de dizer nada antes de se ver próxima à parede.

Por um momento, pensou que pudesse ser Rolf, apesar da rudeza do tratamento, mas logo percebeu o equívo­co. A sensação era errada, assim como o cheiro. Quando foi empurrada contra a parede, sabia que se tratava de Egan. O breve olhar que lançou para ele antes de ser beijada à força revelou que ele estava cansado de brincar de pretendente gentil.

Daquela vez, ele não pararia. Ela podia sentir a luxúria nele. Diferente do desejo que sentira em Rolf, o de Egan não despertava nada nela. A sensação da boca rude, a língua que invadia sua boca e a forma como se esfregava contra ela fez com que se sentisse nauseada e aterrorizada. Para piorar a situação, já era tarde e ela es­tava no pátio dos fundos do castelo. Não acreditava que alguém surgiria para perturbá-los, algo que no passado funcionara para afastá-lo. Por algum motivo, ele não queria que as pessoas pensassem que tinha que se impor, apesar da reputação de estuprador brutal de alguém que deixara muitas mulheres machucadas, sangrando e com medo de homens.

Annora tentou empurrá-lo, mas ele era forte e grande demais. Presa contra a parede, mal conseguia se mexer. Chutar foi inútil e ele prendia suas mãos contra as pe­dras com tanta força que o sangue escorria pelos pulsos. Havia um sentimento de fome cruel e brutal no homem, algo quase bestial e muito assustador.

Subitamente, viu-se livre dele. Enquanto permanecia ali ofegante, observou mestre Lavengeance deixá-lo in­consciente com um soco na mandíbula. Por um momento, ficou atordoada, tanto pela aparição abençoada de Rolf quanto pela ira poderosa que preenchia o ambiente. Viu-o agarrar Egan pela camisa e empurrá-lo na terra, levan­tando o punho para o próximo golpe.

— Não — falou, agarrando-lhe o braço.

— Não me diga que estava gostando — rosnou James, lutando contra a fúria que o assolara ao vê-la presa e indefesa nos braços daquele animal. Estava surpreso por ter-se mantido lúcido o suficiente para falar em francês.

— Homens conseguem ser tão idiotas — murmurou.

— Não, tolo. Um soco pode ser explicado como alguém que pensou ver uma mulher ser estuprada e prestou pou­ca atenção em quem era o casal. Mais do que isso parece uma surra bastante pessoal, não acha?

James logo percebeu que ela tinha razão e largou-o. Colocou as mãos nos quadris, voltou-se para o homem in­consciente e inspirou profundamente várias vezes para afastar a fúria. Quando olhou de novo para Annora, no entanto, a sensação quase retornou com força. Os lábios estavam feridos e inchados e ela revelava um novo medo nos olhos. Conhecia a reputação de Egan por brutalizar as mulheres e ela certamente tinha pensado que estiver a prestes a se tornar outra de suas vítimas.

— Está ferida? — perguntou em francês.

— Haverá alguns hematomas, nada mais. Obrigada — acrescentou em voz suave e trêmula.

Annora não compreendeu o súbito desejo de chorar. Tinha sido salva. Deveria estar se sentindo aliviada e feliz. Havia algo disso, claro, mas ainda estava com medo e queria se lançar ao chão e abandonar-se às lágrimas. Após alguns momentos, percebeu o que a afligia tanto. Egan havia finalmente ultrapassado o limite que sempre a mantivera a salvo de sua brutalidade e não a poupa­ria mais. Sabia que recuaria ante cada movimento que identificasse nas sombras e que estaria sempre alerta a qualquer sinal dele.

— Pode trancar a porta do quarto? — perguntou James.

— Sim. Normalmente eu tranco.

— Ótimo. Faça-o sempre.

Apesar de o francês ser um idioma suave, o coman­do soou duro e frio. Ainda havia muita raiva nele e não do tipo com o que estava acostumada. Essa era nova e se dirigia especificamente a Egan. Ele merecia, mas Annora temeu por Rolf. Egan era o homem de confiança de Donnel e, talvez, seu amigo e subordinado mais leal. Não era sábio tê-lo como inimigo.

— É melhor ter muito cuidado, mestre Lavengeance — disse, ao se aproximar e pegá-lo pelo braço para afastá-lo de onde o homem se esparramava com o rosto no chão.

— Por favor, me chame de Rolf. — James desejava po­der dizer-lhe seu nome verdadeiro, pronunciá-lo em uma voz suave, áspera e rouca de paixão.

Annora corou, mas assentiu.

— Bem... nesse caso, me chame de Annora. — Olhou para Egan, sem parar de empurrar Rolf em direção à porta do castelo. — Mas não na frente dele ou de Donnell, certo?

James hesitou, na retirada o suficiente para livrar-se de suas mãos, tomá-la pelo braço e começar a liderar a saída daquele lugar onde quase fora estuprada.

— Ele já me disse que você é boa demais para mim e que Egan a quer.

Ela tropeçou ante o choque provocado pelas palavras e encarou-o enquanto o seguia para dentro do castelo.

— Donnell disse isso? Nossa, eu não sou tão distinta.

Sou bastarda e minha mãe não era de nível tão alto mes­mo antes de cair em desgraça. Quanto a Egan me querer, bem, isso é ruim.

Apesar de querer dizer-lhe que estava sendo ingênua, James decidiu que não era um momento propício para tal discussão. Ela ainda tremia, apesar de a voz ter per­dido aquela oscilação que indicava a proximidade das lá­grimas. Ele sentia que, ou Annora desconhecia os planos de Egan para algo além de levá-la para a cama, ou estava tentando ignorar a feia verdade.

Quando chegaram do lado de fora do grande salão, James gentilmente a empurrou em direção às escadas.

— Vá. Vou contar a MacKay o que aconteceu.

— Você acha que é prudente fazer isso? — perguntou, parando no primeiro degrau para fitá-lo.

— É bom ser o primeiro a contar. Ele terá a história na cabeça quando Egan for exigir justiça ou revanche. Vá, dará tudo certo. Você tinha razão em não me deixar surrá-lo, apesar de ele merecer. Eu só o impedi de con­tinuar e nem mesmo MacKay pode questionar essa ati­tude. Você é a babá de Margaret, não uma empregada vagabunda como Mab.

Subindo as escadas, Annora não deixou de olhá-lo até que desaparecesse no grande salão. Queria ir atrás dele, ficar ao seu lado, e tentar impedir Donnell de ficar bravo, mas sabia que seria inútil. Nunca tinha sido muito boa em evitar que o primo se enfurecesse. E Rolf tinha razão. Ser o primeiro a contar a história era o melhor, pois colo­caria Egan na defensiva.

Entrando no quarto para se limpar e preparar-se para o jantar, pensou no que Donnell tinha dito a seu respeito. Era ridículo achar que ela estava fora do alcance de um homem como Rolf, especialmente porque o primo não a via como uma donzela bem-nascida. O que ele dissera sobre Egan a perturbava. Poderia ter sido apenas um ar­tifício para manter Rolf afastado dela. Afinal, ela era útil como a babá de Meggie.

Mas, se Egan a exigisse, ela ainda permaneceria em Dunncraig, pensou, e sentiu um arrepio percorrer seu corpo com tanta intensidade que estremeceu como se estivesse em contato com a neve. Quanto mais pensava naquilo, mais temia que ambos tivessem planos para sua vida sobre os quais ainda não havia sido informada.

A raiva subitamente se sobrepôs ao medo remanes­cente despertado pelo ataque que sofrerá. Não tinham o direito de decidir com quem se casaria ou quem a possui­ria. Donnell não era um parente próximo e, aos vinte e quatro anos, ela já tinha passado em muito da idade em que alguém precisasse ajeitar seu futuro.

Uma nova determinação deu-lhe forças. Descobriria o que planejavam. Para isso, precisaria se esgueirar mais e escutar coisas não destinadas a seus ouvidos, mas, pensou enquanto trocava o vestido, estava ficando boa naquilo. Quanto antes soubesse qual seria seu destino, melhor se protegeria. Como não havia muito tempo para frustrar as intenções dos dois, deveria agir com rapidez. Se Donnell pretendia oferecê-la a Egan, teria que refletir somente a respeito de uma pergunta: tornar-se propriedade de Egan era um preço alto demais para ficar com Meggie?

Deixando que Annie cuidasse do banho de Meggie, Annora foi se preparar para o jantar. Por motivos que nunca havia compreendido, Donnell nunca permitira que ficasse no mesmo quarto com a menina ou que dor­misse perto dela. Talvez não quisesse que as duas se afeiçoassem demais. Se essa tivesse sido a intenção, havia falhado completamente, pois, ao passarem todos os dias juntas, tinham se aproximado como mãe e filha. Ela só esperava que o fato passasse despercebido.

Afastando tais pensamentos, apressou-se, pois não queria chegar atrasada. Não tinha conseguido descobrir nada sobre os planos de Donnell para ela na noite ante­rior, mas não desistiria com facilidade. Ver Egan com o rosto machucado havia sido bom, mas não o suficiente. Apesar de preferir os olhares ameaçadores às tentativas de sedução, tinha perdido o apetite diante da expressão assustadora. Não permitiria que ele a intimidasse nova­mente durante o jantar.

Assim que começou a caminhar pelo longo e mal ilu­minado corredor, encontrou-se com uma criada chamada Mab. Sorriu com educação para a mulher que, com bas­tante frequência, dividia as camas de Donnell e Egan. Diziam as más línguas que ela já entretivera os dois ao mesmo tempo. Decidiu que esse era um assunto com o qual não queria se ocupar.

Percebeu, pela direção da empregada, que ela vinha exatamente de um dos dois aposentos. Logo se deu con­ta de que aquele caminho também levava ao quarto do carpinteiro. O simples pensamento de que Mab poderia estar farreando com mestre Lavengeance magoou-a e ir­ritou-a, e saber que aquilo não deveria afetá-la não aju­dava muito.

— Ah, a pequena babá — zombou Mab.

Annora abalou-se um pouco com a animosidade ex­pressa na voz dura.

— Posso fazer algo por você? — perguntou, satisfeita por soar calma e educada, não querendo alimentar a an­tipatia.

— Não, nada além de me dizer se aquele francês é mesmo bom entre os lençóis.

— Você não sabe disso? — Annora resolveu não des­perdiçar a cortesia com ela.

— Não disse que não sei. Só estava imaginando se você queria ter uma conversinha feminina sobre como o ho­mem é bom. Sei que consegue entender o que ele diz, até quando ele fica muito... enfático para falar nosso idioma.

Perguntou-se onde uma mulher como Mab aprendera a palavra enfático, mas logo se arrependeu do pensamen­to maldoso.

— Temo não poder responder à sua pergunta.

— Não? Quer que eu acredite que não está se engra­çando por aí com ele? Que não está tentando descobrir se ele é melhor que Egan na cama?

— Também não posso comentar o desempenho de Egan — ela respondeu, pedindo a Deus que nunca des­cobrisse.

— Ah, então é uma doce e inocente criatura? Bem, sei que pensa que sou uma prostituta e percebo como me olha de cima para baixo. Você é só uma bastarda que vive mu­dando de um lugar para o outro. O que a faz pensar que é tão superior a mim?

Eu me banho às vezes, pensou, perguntando-se logo em seguida o que a levava a imaginar coisas tão desa­gradáveis a respeito daquela mulher. Não era seu feitio. Normalmente não se deixaria afetar, apenas tentaria fi­nalizar a conversa e se afastar rápido.

Parecia ciúme. Com relutância, teve que admitir que o simples pensamento de os dois fazendo algo além de se cumprimentar a perturbava profundamente. Talvez nem mesmo um aperto de mãos a agradasse, pois ainda assim ele a estaria tocando. Tais sentimentos pareciam loucura. Claro, ela o achava muito atraente e a lembrança de seus beijos ainda a aquecia, o que ocorria com uma frequência exagerada. No entanto, aquilo não desculpava o fato de querer cometer algum tipo de violência contra Mab ou de se sentir tão possessiva em relação a ele. O que quer que acontecesse entre eles não teria futuro e poderia até mesmo colocá-los em perigo.

— Essa é uma conversa tola — disse de repente, afas­tando-a para o lado, de forma a prosseguir seu caminho. — Não faço nada em Dunncraig além de tomar conta de Meggie e você sabe muito bem disso.

O riso zombeteiro de Mab ecoou, fazendo a saída de Annora parecer um recuo. Resmungou uma imprecação para si mesma e recusou-se a morder a isca. Um suspi­ro de alívio escapou de seus lábios quando a escutou se afastar e controlou-se para não verificar em que direção seguia. Mab era umas daquelas mulheres que tinham que ter todos os homens ao alcance e Annora suspeitava de que não gostaria dela mesmo que nunca tivesse tocado mestre Lavengeance. Ninguém apreciava pessoas ávidas, pensou, sem se importar em parecer um pouco infantil.

Quando passou por uma pequena câmara próxima aos degraus que levavam a um dos quartos na torre, foi agarrada pelo braço e puxada para as sombras. Uma boca quente e suave logo abafou seu grito instintivo. Aterrorizou-se por um momento, acreditando que Egan a tinha encontrado de novo, mas logo reconheceu o gosto do homem que a beijava. Sabia que deveria lutar contra ele, assim como alarmar-se com o fato de tê-lo reconheci­do tão prontamente. Contudo, envolveu-o com os braços e entregou-se ao beijo.

Assim que ele abandonou sua boca, lutou para recu­perar o bom senso, para perdê-lo logo em seguida quan­do ele começou a beijá-la no pescoço, mantendo-a colada ao corpo forte enquanto a empurrava contra a parede. Ocorreu-lhe que talvez as pessoas não precisassem estar deitadas para fazer amor.

Quando Rolf mordiscou sua orelha, provocando-a com a língua, Annora estremeceu. Sentiu como se fogo cor­resse em suas veias. Um toque de medo se misturava à paixão que a dominava. Não podia confiar em algo tão forte e arrebatador.

James sentiu um sinal de tensão no corpo suave pelo qual ansiava e a beijou de novo, ávido para eliminar qual­quer traço de resistência que estivesse esboçando. Era lou­cura agarrá-la daquela forma, mas sua necessidade por ela era insana. Havia se livrado da punição por atingir Egan, mas tinha a sensação de que isso se devia ao fato de MacKay querer atingir o subordinado de alguma for­ma. Na verdade, não sabia e nem sequer se importava com os motivos. Só tinha certeza de que agora era ob­servado com mais atenção, especialmente por Egan, que sem dúvida procurava uma oportunidade de fazê-lo pa­gar caro por interromper a tentativa de estuprar Annora e por espancá-lo diante dela.

Não gostava de admitir, mas algo do ímpeto de segu­rá-la e beijá-la se devia ao fato de querer torná-la sua. Queria eliminar o gosto e a sensação de Egan dos lábios dela. Também queria se assegurar de que não restara qualquer medo de intimidade devido à violência que ti­nha sofrido.

Sem parar de beijá-la, tomou-lhe o seio na mão. Ela se enrijeceu por um instante e murmurou um protesto con­tra seus lábios, mas, para seu prazer, foi uma resistên­cia muito breve. A sensação de tocá-la daquela forma fez com que ansiasse por muito mais. Queria sentir a pele macia e saboreá-la imediatamente, mas esforçou-se para manter o controle.

Quando Rolf começou a espalhar beijos por seu pescoço, Annora tentou recompor. O que ele estava fazendo era tão gostoso que tornava difícil lembrar-se de que era errado. Uma donzela não deveria permitir que um homem a encurralasse em um corredor escuro e a tocasse com tanta intimidade. No caso deles, aquilo também representava perigo. Ainda não descobriria os planos de Donnell para seu futuro. Se Rolf fizesse algo para arruiná-los, pagaria com a própria vida, o que ela não poderia permitir. Para amenizar a paixão, começou a pensar em Mab e na possibilidade de que estivesse retornando do quarto dele. O efeito foi tão forte quanto um balde de água fria.

— Não — disse, empurrando seu peito. Perguntava-se por que sentia uma necessidade tão intensa de rasgar a camisa e tocar sua pele. — Não serei outra Mab para você.

James inclinou-se um pouco para trás e encarou-a.

— Mab?

Finalmente capaz de pensar com clareza, apesar da dor provocada pelo anseio de fazer amor com ela, James praguejou em voz baixa e desculpou-se em seguida ao vê-la corar. Mab tinha tentado de novo entrar em sua cama e Annora a encontrara. A mulher estava se tornando um incômodo. Ele também se perguntava se a persistência se devia ao fato de seus dois amantes quererem usá-la para mantê-lo ocupado. MacKay e Egan não eram tipos que entendiam como alguém poderia desejar somente uma pessoa.

— Não dormi com Mab. Não me importo com o que ela diz. Sim, ela parece ansiosa para entrar em minha cama, mas eu quero algo melhor, algo mais doce. Acho que seu primo ou aquele tolo do Egan a enviam para mim com a esperança de me manter ocupado.

Annora sabia que ele estava sendo sincero. A habili­dade de distinguir honestidade de mentira era uma das poucas coisas que apreciava a respeito de seu dom.

— Por que eles fariam isso?

— Para me manter longe de você.

Como ele tinha se afastado um pouco, Annora começou a alisar a saia em uma tentativa de se acalmar. Aquela conversa sobre desejá-la a envaidecia e a deixava intranquila ao mesmo tempo. Apesar de não sentir nenhuma má intenção no desejo dele por ela, sabia que vários ho­mens achavam que uma bastarda não merecia o respei­to e as cortesias destinadas a uma dama bem-nascida. Não havia necessidade de mencionar para tais pessoas que sua mãe era uma dama de nascimento e criação. O fato de que tivesse dado à luz uma bastarda a diminuía diante de muitos. Eles também pareciam pensar que a aparente imoralidade da mãe havia sido passada para a filha. Nenhuma dessas atitudes marcava o desejo de Rolf, mas ela tinha que afastá-lo, o que a entristecia.

— Seria melhor se você ficasse longe de mim — disse, esperando não revelar na voz ou nos olhos o arrependi­mento que sentia ao dispensá-lo.

James acariciou seu rosto com gentileza, contente ao ver que ela não se afastava. Sabia que muitos acredita­vam que o francês era o idioma perfeito para amantes, mas ele estava se cansando daquilo. Queria falar com Annora em sua própria língua, o que esperava poder fa­zer em breve.

— Não quer que eu fique perto de você? — perguntou. Annora suspirou.

— O que eu quero não é importante.

— Para mim é.

Ela sorriu com timidez.

— Ah, bem, isso é bom, mas não somos livres para fazermos o que quisermos.

— Não sou um MacKay.

— Mas, mas eu sou e você é um homem contratado por ele.

— Então, acha que é boa demais para beijar um car­pinteiro.

— Não seja tolo. O que penso é que gostaria que fi­zesse seu trabalho e saísse daqui com vida. Por algum motivo, Donnell não gosta que você me... persiga. E ele não gosta de ser ignorado. Homens morrem de maneira horrível por isso.

— Ah, você teme por minha segurança. — Beijou-a de novo. — Isso é bom.

Annora quase riu, mas a ameaça real que sofriam logo apagou o lampejo de bom humor.

— Tome cuidado, Rolf. Donnell às vezes é um tolo, mas também é um homem cruel. Agora, vou ao grande salão para jantar.

Ele não a impediu. No momento, só poderia roubar alguns beijos e carícias. Era estupidez continuar se ator­mentando por causa de algo que ainda não poderia ter. Tudo o que tinha conseguido fora uma dor que o pertur­baria a noite toda, e o banho frio que teria que tomar não seria muito útil.

Apesar de chegar tarde para a refeição, Annora perce­beu que mal foi olhada ao entrar no grande salão. Sentou-se e sorriu para o menino que correu para servir-lhe comi­da e cerveja. Egan fitou-a intensamente, mas logo voltou a discutir algo com Donnell.

Na maior parte das vezes, gostava de não ser notada pelos homens de Donnell. Sabia que fazia bem em perma­necer quase invisível, que era a melhor forma de evitar se tornar o alvo da ira do primo, mas no momento aquilo a incomodou, enraivecendo-a. Podia ser uma bastarda, mas era a pessoa que cuidava da filha do senhor. O fato tinha que ter alguma importância, mas, para a maioria deles, ela não passava de um fantasma. Talvez ela tives­se desejado que fosse assim, mas não era tão fácil.

Dizendo a si mesma que não fosse tola para ser con­trolada pelo orgulho, concentrou-se na refeição. Donnell e Egan falavam em voz baixa e às vezes a olhavam, mas tentou ignorá-los. Já era uma bênção que Egan não esti­vesse ao seu lado. Tinha que planejar como descobrir o que reservavam para ela. Se pudesse fazer isso sem ser muito óbvia, escutaria o que estavam sussurrando, mas a última coisa que queria era ser pega em um ato de espionagem.

Quando os dois, subitamente, saíram do aposento, pra­guejou em silêncio. Sabia que discutiriam o assunto, qual­quer que fosse, em algum lugar com mais liberdade, prova­velmente no escritório de Donnell. Se deixasse a comida e saísse, poderia parecer evidente que ela os estava seguindo e era um risco que não podia correr. Apesar da tensão pro­vocada pela necessidade de tentar descobrir, prosseguiu o jantar no ritmo normal. A comida parecia pedra em seu estômago quando decidiu que era seguro se retirar.

Chegando ao corredor, manteve-se atenta a qualquer um que pudesse ver para onde se dirigia e seguiu com muito cuidado até o escritório. Mestre Lavengeance po­dia conhecer o quarto secreto, mas ela também sabia de um bom lugar para se esconder e escutar tudo o que fos­se dito atrás da espessa porta. Apressando-se, entrou no minúsculo aposento ao lado do escritório.

No local, havia uma cama e um baú, apenas o sufi­ciente para Donnell ter um breve interlúdio com alguma empregada, pensou com uma careta, enquanto andava na ponta dos pés até a parede que separava os dois am­bientes. Donnell o construíra pouco depois de ter chegado a Dunncraig, pensando em contratar uma pessoa para manter os registros. No entanto, logo decidira que faria tudo sozinho e ela sabia que isso não se devia ao seu apreço pelo trabalho ou à sua extrema competência. Ele simplesmente não queria que ninguém visse seus livros.

Ele provavelmente não confiava na própria mãe, pen­sou, pressionando o ouvido contra um pequeno buraco na parede de madeira. A porta entre os aposentos era fina e funcionaria bem, mas, após uma vez em que qua­se fora entregue pelo ranger quando se inclinara, havia procurado a abertura para espionar. Nunca mais queria sofrer o medo que sentira na época. Durante dias estivera aterrorizada, achando que Donnell havia adivinhado que ela tentara escutar a conversa com o xerife e sema­nas tinham se passado antes de finalmente acreditar que tivera sorte por não ser descoberta.

Annora revirou os olhos de desgosto ao escutar um arroto alto. Tinha certeza de que era Donnell. O homem comera demais e com muita velocidade e não era sur­presa que o estômago protestasse. Havia vezes em que o observava comer e se perguntava como ele não explodia.

— Não sei por que tivemos que correr para cá — quei­xou-se Egan.

— Não queria que Annora escutasse nada — respon­deu Donnell.

— Ela precisa ser informada logo. Aquele maldito francês a está rodeando demais para o meu gosto. E ele recusa as empregadas.

— Talvez seja um monge disfarçado — comentou, rin­do da própria piada.

— Ria se quiser, mas começo a achar que há algo er­rado com ele.

— Por quê? Por que não corre atrás das criadas? Al­guns homens não fazem isso. Por mais que pareça esqui­sito, conheci alguns. Muito exigentes, creio.

— Bem, se ele pensa em escolher Annora, é melhor pensar bem. Ela é minha.

— Você me disse isso assim que ela chegou aqui. Detectou frieza na voz de Donnell, o que revelava que se sentia pressionado.

— Sei disso e gostaria que ela me escolhesse. Queria cortejá-la, mas ela torna isso praticamente impossível. Então, agora ela vai se casar comigo por bem ou por mal. Sei que consigo fazê-la mudar de ideia. A moça só precisa de um pouco de sexo para entender os benefícios de ter um homem em sua cama.

O estômago de Annora se contraiu. Ela não queria nem imaginá-lo subindo em sua cama, muito menos se deitando sobre ela. Não pretendia ser o alvo de seu de­sejo e seguramente não queria se tornar esposa e pro­priedade de uma pessoa tão brutal. Em alguns dos lares pelos quais havia passado vira que aquele tipo de vida destruía lentamente uma mulher.

— E o homem deve ser você, claro — disse Donnell.

— Acho que já fui muito paciente.

— Sim, concordo. Paciente demais até ser derrubado pelo carpinteiro.

A diversão na voz de Donnell era evidente. Annora estremeceu, sabendo como aquilo enfureceria Egan. Ter sido derrotado por alguém que considerava inferior a eleja o enraivecia, mas ser lembrado o tempo todo disso poderia se transformar em um ímpeto assassino direta­mente dirigido a Rolf. Lutou contra a urgência de correr e avisá-lo do perigo. Refreou-se, pois, embora parecesse egoísta, precisava permanecer e tentar descobrir que tipo de perigo ela corria primeiro. Assim que tivesse ou­vido tudo, no entanto, iria atrás de mestre Lavengeance. Ignorou a voz que insinuava que, além de tentar avisá-lo, gostaria de ser beijada de novo.

— Então, quando poderei me casar com ela? — per­guntou Egan.

— Em breve.

— Isso é o que você sempre diz. Sim, eu gostaria de esperar. Como eu disse, queria que ela estivesse dispos­ta. Agora, não me preocupo mais. Farei com que ela me queira.

— Como desejar. Seria muito mais pacífico se ela es­tivesse disposta, mas, como você diz, ela parece preferir permanecer solteira a escolhê-lo. Não faz diferença para mim, pois ela terá que ficar em Dunncraig depois que se casarem.

— Você espera que Annora continue sendo a babá da­quela criança mesmo depois de se casar comigo?

— Por que ela não poderia continuar cuidando de Margaret?

— Ela será minha esposa, não uma empregada. Pode não parecer adequado que trabalhe como babá.

Donnell emitiu um ruído muito rude.

— Ser a babá da filha de um proprietário não é uma po­sição inferior para mulher nenhuma e você sabe bem disso. Se pretende me privar de uma boa babá para Margaret, então talvez devêssemos repensar esse casamento.

— Não, não — Egan apressou-se em responder — Tem razão. Muitas damas viúvas ou solteironas exercem essa função. Não haverá problemas.

— Ótimo que você tenha bom senso.

— Podemos agora discutir quando será o casamento?

— Em breve.

— Em breve não é uma data, Donnell.

— Sei disso, mas há algumas coisas que preciso re­solver antes que se casem. Algumas semanas, não mais, mas não há muito sentido em planejar algo até que con­sigamos estabelecer a data. E quero que todos os passos sejam dados. Não quero que digam que fiz algo errado enquanto ela estava sob meus cuidados.

Isso foi tudo o que Annora suportou ouvir. Conseguiu manter-se equilibrada até se afastar com cuidado e em silêncio e chegar ao corredor. Começou, então, a mover-se com mais velocidade, preocupando-se pouco com os ruí­dos que fazia. Quando chegou ao topo das escadas, estava correndo. Só conseguia pensar que precisava da ajuda de alguém e essa pessoa tinha que ser Rolf.

Estava quase tomada pelo pânico quando chegou ao pequeno quarto. Sem pensar em bater, abriu a porta e entrou. Olhou ao redor procurando-o e quase parou de respirar ao vê-lo. Mestre Lavengeance estava nu. Ela lentamente o admirou, observando cada músculo daque­le corpo bonito. Já vira de relance alguns homens sem roupa, pois era difícil manter a privacidade em um cas­telo, mas nunca tinha visto alguém tão impressionante quanto ele. Rolf permaneceu imóvel, encarando-a, per­plexo. Annora aproveitou para continuar examinando as formas másculas do corpo alto e delgado.

Os ombros largos ainda brilhavam com a umidade do banho que ele tinha acabado de tomar. O peito era largo e musculoso e a barriga, delineada. Sentindo uma súbita onda de timidez, piscou para evitar deter-se na virilha e desviou o olhar para as pernas longas e bem desenhadas. Vê-lo a estava deixando com calor.

O choque e a excitação se transformaram subitamente em confusão. Annora levou algum tempo para perceber o que a estava intrigando. Mestre Lavengeance tinha per­nas longas e fortes cobertas de pelos ruivos. Ao perceber o sentido daquilo, seus olhos se arregalaram, ela se es­queceu da timidez e olhou diretamente para sua virilha. Apesar de impressionar-se com o que viu, ficou atordoa­da ao constatar que aqueles pelos também eram ruivos. Homens com cabelos castanho-escuros não deveriam ter pelos ruivos em lugar nenhum e ela tinha certeza daquilo. Mestre Lavengeance não era o homem que alegava ser.

— Quem é você? — Annora perguntou, sem se surpre­ender com a própria voz, débil e rouca de choque.

Decidiu, de repente, que não esperaria por uma res­posta. Ele tinha mentido para todos, mas o que magoava mais era que ele a enganara. Virou-se para sair, mas a porta foi trancada antes que pudesse alcançá-la. Encarou com os olhos arregalados aquele homem que não mais sentia conhecer e perguntou-se se estaria correndo al­gum perigo. Seu dom nunca havia falhado antes, mas, no momento, duvidava da exatidão das sensações. O homem nu que a segurava com certeza parecia perigoso.

Ao ver o medo nos olhos dela, James praguejou. A úl­tima coisa que queria era assustá-la, pois sentia que ela já sofrerá muito ao longo da vida. No entanto, não pode­ria deixá-la escapar. Agarrou-a pelo braço e levou-a até a cama. Mantendo o olhar fixo no dela o tempo todo, arran­cou as trancas que usava. Seu segredo fora revelado e ele ainda não sabia ao certo se poderia confiar nela. Apesar de querer escutar o coração, aquele era um assunto de vida ou morte, e ele tinha que ser cuidadoso. Não havia como evitar a verdade, mas precisava impedi-la de esca­par até ter certeza de que ela se tornara sua aliada.

— Sou sir James Drummond — disse. Não se surpre­endeu ao vê-la empalidecer um pouco, pois sabia que as histórias sobre ele tinham se tornado mais exageradas e assustadoras a cada ano que passara.

— O homem que matou a esposa? — sussurrou, inca­paz de parar de olhar a porta, a única rota de fuga.

— Não matei Mary — ele respondeu.

Inspirou e expirou profundamente em busca de cal­ma. Gritar sua inocência não era a melhor maneira de convencê-la, mas era difícil se controlar porque já estava esgotado de ser chamado de assassino. Escutar a acu­sação da boca de Annora o magoou muito, assim como a disposição que ela mostrava para fugir.

— Mas foi declarado um proscrito por causa disso — ela disse. — Deve ter havido alguma prova.

Annora percebeu que não conseguiria acreditar na­quilo. Apesar de James ter mentido e enganado a todos com seu disfarce, começou a sentir novamente que o co­nhecia e se tranquilizou. Era impossível até mesmo cogi­tar que ele pudesse ter matado a esposa. E uma acusação falsa, seguida pela perda de tudo o que possuía e amava certamente explicaria a ira mal controlada que sentira nele desde o começo.

— Donnell MacKay fez com que eu fosse considerado culpado — disse James. — Não sei como conseguiu, mas pretendo descobrir.

Ela sentou-se na cama e tentou pensar. Tantas ques­tões povoavam sua mente que não conseguia decidir qual fazer primeiro. Ainda a magoava que ele tivesse mentido, mas estava começando a compreender os motivos. Era um homem condenado, um fora da lei, o que significava que qualquer um tinha o direito de matá-lo. Era, de muitas maneiras, um homem morto, aguardando o golpe final.

— Quem mais sabe quem você é? — finalmente per­guntou.

— Marta. Ela me conhece há muitos anos para ser enganada por qualquer disfarce. Duvido que tenha se confundido por mais que cinco minutos.

James observou-a pensar no assunto. Não havia sinal do medo que ela demonstrara antes. Ela também não pa­recia mais chocada ou pronta para fugir. Compreendeu o olhar de mágoa que identificara por um breve instante. Tinha a sensação de que teria sentido o mesmo se ela o houvesse enganado de forma semelhante. Tal artifício poderia levá-la a crer que tudo o que ele havia dito ou feito também tinha sido uma mentira, e isso era a última coisa que desejava.

— E ela manteve seu segredo todo esse tempo? — Annora suspeitava que a cozinheira adoraria que Donnell e seus subordinados fossem banidos de Dunncraig.

— Sim. — Movendo-se com cuidado, sentou-se ao lado dela, contente ao perceber que ela não tentou se afastar. — Marta sabe que sou inocente.

— Bem, também sei que você é inocente, mas não te­nho certeza se deveria. — Enrijeceu o corpo brevemente quando ele a abraçou e puxou-a para mais perto. — Não acredito que você seria capaz de machucar Mary ou qual­quer mulher, então é muito difícil acreditar que a tenha matado. Ainda assim, não sei como Donnell pode ter pos­to a culpa em você e tomado o que era seu. — Olhou para ele. — Até mesmo Meggie?

— Sim, apesar de eu duvidar que ela se lembre de mim.

— Acho que, de certa forma, ela se lembra. A pobrezi­nha insiste em dizer que Donnell não é seu pai, que seu pai ria e a amava.

James assentiu.

— Eu a escutei dizer o mesmo.

— Você pretende levá-la para longe daqui?

— Não. Pretendo reclamá-la, assim como a Dunncraig. Fugi para permanecer vivo, mas não foi vida o que eu passei. Quando a primavera chegou este ano, e eu saí da caverna na qual havia passado o inverno, decidi que não fugiria mais.

Annora pensou naquele homem cheio de vida se escon­dendo em uma caverna como um animal e ficou tão tris­te que quase começou a chorar. Substituiu o sentimento pela fúria contra Donnell. Ele roubara a dignidade de James. Percebendo o que acabara de pensar, soube que acreditava nele. Sempre havia imaginado como o primo ganhara tanto e sempre suspeitara de alguma trapaça ou crime. O que não sabia era como qualquer crime pode­ria ser provado após três anos.

— Não será fácil provar sua inocência — disse, verba­lizando seus medos.

— Sei disso muito bem. Parte de mim acreditava que encontraria a verdade ao retornar para dentro do castelo. Bem, já estou aqui há algum tempo e não achei nada que possa levá-lo ao enforcamento. Ele é esperto o suficiente para ter deixado provas dos crimes à vista de qualquer um. Marta escutou alguns rumores e está tentando des­cobrir se há um fundo de verdade neles. Não me contará até que tenha certeza.

— Ela não faria isso, não até que soubesse o que é fato e o que é mentira. É uma mulher muito honesta. Eu não queria tocar na ferida, mas como exatamente Mary morreu? Tudo o que ouvi dizer é que ela foi queimada em um pequeno chalé no bosque.

James pensou naquele dia três anos atrás, e só sentiu uma pontada de pesar pela morte de uma mulher jovem e inocente. Sentia-se culpado, pois Mary deveria ter sido amada e seu falecimento deveria ter provocado nele mui­to mais dor. Parecia-lhe que a falta de amor por ela e a facilidade para superar o luto a diminuíam de alguma maneira. O que era pior é que ninguém, talvez com exce­ção de Meggie, sentia de forma diferente. A pobre, doce e tímida Mary não deixara uma marca em seu mundo. O único verdadeiro legado fora Margaret.

— Sim, foi isso o que aconteceu. — Meneou a cabeça. — Nem mesmo sabia o que ela estava fazendo lá. Mary nunca saía e aquele chalé está a uma boa distância daqui. Ela também não tinha necessidade alguma de ir até lá. MacKay convenceu muitas pessoas de que eu a traí e a matei, pondo fogo no lugar para ocultar o crime.

— Mas por que alguém acharia que você teria feito tal coisa?

— Mary e eu tínhamos brigado naquele dia, em voz alta e em público. Ela era uma moça tímida e quieta, mas não estava de muito bom humor naquelas últimas semanas. — Ele encolheu os ombros. — Pensei que talvez estivesse grávida de novo, pois se diz que isso provoca uma mudança na disposição da mulher. Não sabia por que ela estava tão atribulada e me pressionando tanto, mas não podia ficar com ela e acalmá-la, pois era época de colheita e havia muito trabalho a fazer.

Franziu a testa ao pensar em como Mary tinha estado diferente naquelas últimas semanas de vida. Lembrava-se de se sentir confuso e irritado e esse era um dos moti­vos para a sensação de culpa. Os últimos momentos jun­tos tinham sido repletos de palavras duras. No entanto, duvidava que teria se sentido melhor mesmo se naquele dia tivesse havido paz entre os dois ou algo que indicasse um casamento melhor e mais apaixonado.

— Isso ainda não é o suficiente para proclamá-lo um proscrito e dar suas terras para o homem que o acusou.

— Bem, como eu disse, MacKay logo espalhou a his­tória de que eu a tinha atraído até o chalé. Também se dizia que eu estava bravo por ela ter me dado uma filha e não se apressar para me dar o filho de que eu precisava. Dizia-se também que eu tinha outra mulher pronta para ser minha esposa, uma moça forte e boa para procriar. Meu erro foi ignorar tudo isso, tratar como um tipo de fofoca que ganhou vida por causa de uma morte inespe­rada. E devia ter tentado com algum empenho encontrar a fonte daquelas mentiras.

— Que era meu primo.

— Sim, tenho certeza de que era ele, mas não sabia que ele fazia essas acusações para aqueles que tinham poder para, de fato, me prejudicar. — James meneou a cabeça. — Não sei ao certo como ele fez, se só levou as pessoas a acreditarem em suas mentiras ou se usou al­gum segredo a respeito de alguém para obrigar a pessoa a ajudá-lo a me destruir. Foi como se, em um momento, eu estivesse sobre o túmulo de minha esposa, e no próximo, fosse declarado um fora da lei, obrigado a fugir para me manter vivo. Não houve tempo para descobrir a verdade, apesar de eu ter tentado. Assim como meus parentes fi­zeram, até que alguns quase morressem e que finalmen­te escutassem meus pedidos de se manterem afastados do problema.

— Você achou alguma coisa no escritório dele? — Annora perguntou, apoiando a cabeça em seu ombro. Apesar da história sombria que discutiam, desfrutou da sensação da pele quente em seu rosto e dos carinhos em seu braço.

— Achei o livro em que as mortes de meus homens es­tão registradas. Não foram mortes fáceis e muito poucos escaparam. MacKay não queria que nenhum homem leal a mim permanecesse em Dunncraig. Ele também tentou fazê-los revelar onde eu poderia ter me escondido. Pensei que voltando aqui disfarçado pudesse rastrear aqueles que espalharam mentiras a meu respeito, talvez até en­contrar o assassino de Mary.

— Então, você acha que ela foi realmente assassina­da, que não foi somente uma tragédia.

— Acho.

Annora endireitou o corpo e fez a pergunta que a per­turbara por tanto tempo.

— Tem certeza de que foi Mary quem morreu naquele incêndio?

James encarou-a um tempo antes de responder.

— Quem mais poderia ter sido?

— Não sei. É que escutei que não sobrou muito depois do fogo. Então, como alguém que olhasse o corpo poderia ter certeza de que se tratava de sua esposa?

— Ninguém pôde afirmar, mas a aliança de casamento estava em seu dedo e havia alguns fragmentos do vesti­do que ela havia usado naquele dia. Além disso, muitas pessoas disseram tê-la visto ir até lá.

As perguntas de Annora despertaram ideias bastante perturbadoras em James e ele se levantou para andar pelo quarto. Nunca quisera considerar a possibilidade de Mary não ter morrido no incêndio, pois isso talvez signifi­casse que ela houvesse ajudado MacKay a destruí-lo. Da última vez que esse pensamento lhe ocorrera, tinha se convencido a buscar a verdade até o fim, mas não havia prosseguido. Ainda não queria acreditar, mas sabia que seria um completo idiota se rejeitasse a possibilidade de que sua doce e tímida esposa não tivesse sido tudo o que parecera ser, de que tinha sido aliada de MacKay. Era hora de parar de se esconder do que poderia ser uma verdade muito feia.

— Uma ou duas vezes me ocorreu que talvez não ti­vesse sido ela e até mesmo achei que deveria examinar essa possibilidade. No entanto, não fiz isso, tolo que sou.

— Não se culpe por isso. Ninguém gostaria de pensar que sua esposa ou marido fosse capaz de traí-lo dessa forma.

— Talvez não, mas por causa disse eu ignorei alguns fatos que poderiam ter me levado à verdade, Não posso me dar ao luxo de me preocupar com o que posso desco­brir. Dunncraig e o bem-estar de seu povo dependem do fim do domínio de MacKay.

Annora assentiu, sentindo compaixão por ele, mas sa­bendo que ele não gostaria que demonstrasse.

— Meggie uma vez me disse que...

— Que ela viu MacKay beijar sua mãe?

— Sim. Ela também contou para você? — Lembrou-se do breve lampejo de culpa no olhar da menina no dia em que ela conversara com o carpinteiro. Talvez devesse ter discutido esse assunto com a menina um pouco mais.

— Sim, mas Meggie tinha somente dois anos quando a mãe morreu. Como poderia se lembrar de algo assim?

Após pensar por um momento, os olhos de Annora se arregalaram de surpresa.

— Talvez não tenha sido há tanto tempo.

— O que quer dizer?

— E se não foi Mary quem morreu naquele incêndio? Significaria que ela estava viva quando você foi acusado de assassinato e mesmo quando você perdeu tudo e teve de fugir.

— O que quer dizer que ela era aliada de seu primo. A fúria na voz dele fez com que estremecesse, mas não pretendia se deixar intimidar.

— Talvez, ou que estivesse sendo mantida prisioneira em algum lugar. Portanto, Meggie pode tê-los visto jun­tos depois, quando já tinha idade para se lembrar.

— Se ela estivesse viva, alguém em Dunncraig a teria visto? — James se esforçava para imaginar onde ela po­deria ter se escondido. — E Meggie não teria dito algo a respeito de ter visto a mãe.

Annora sorriu tristemente.

— Assim que Donnell chegou a Dunncraig, ela apren­deu que não devia falar muito, especialmente com ele. Aprendeu muito jovem a manter segredos. Triste lição para uma criança, mas fico feliz que tenha aprendido com tanta rapidez.

James moveu-se até a abertura na parede que era sua janela e, mesmo incapaz de ver algo, olhou para fora. Precisava pensar em tudo o que fora dito. O fato de Mary ter sido amante e aliada de MacKay certamente expli­caria a velocidade com que ele fora derrubado. Ela teria sido uma traidora bastante útil dentro do castelo. Odiava pensar que fora um tolo cego em relação à esposa, mas estava na hora de deixar o orgulho de lado e considerar essa possibilidade. No mínimo, se confortaria com o fato de nunca tê-la amado. Era triste, mas queria dizer que não tinha sido tão idiota.

Deveria haver alguém em Dunncraig que soubesse, se não a história inteira, ao menos que os dois tinham sido amantes. Era o tipo de coisa que raramente permanecia em absoluto segredo. MacKay devia ter matado quase todos os que conheciam a verdade, mas tinha de haver alguém, em algum lugar, que soubesse. Perguntou-se se isso era uma das coisas que Marta havia escutado e es­tava investigando.

Amaldiçoou em silêncio. Em vez de descobrir a ver­dade, estava agora envolvido em uma teia de traições e deslealdades cada vez mais emaranhada. Apesar de não ser ingênuo a ponto de acreditar que logo desvendaria o mistério e seria declarado inocente, não havia previsto que seria tão complicado. Pelo menos, estava começando a conquistar aliados. Com alguns olhos e ouvidos a mais, tinha chance de encontrar o que estava procurando.

Annora observou-o olhar através da minúscula janela, sabendo que ele não se incomodava por não conseguir ver nada. Toda sua atenção estava voltada para os próprios pensamentos. Estivera rezando para que ele não tivesse amado profundamente sua esposa, e não só por si mes­ma. Todos os seus instintos lhe diziam que Mary, uma mulher conhecida pela doçura e timidez, tinha sido parte do plano para destruir James. Seria uma poção amarga para um homem tão orgulhoso.

Apreciou as costas largas e musculosas e imaginou se deveria lembrá-lo de que estava praticamente nu. Com o egoísmo falando mais alto, decidiu que não. Era muito prazeroso apreciá-lo. Considerando todas as coisas som­brias e tristes sobre a qual pensavam e falavam, achava que poderia ser perdoada por roubar um pouco de prazer para si mesma.

Permitindo que o olhar se movesse pelo corpo harmo­nioso com uma liberdade impossível caso ele a estivesse encarando, Annora tentou pensar o que teriam que fazer para responder a algumas daquelas perguntas. Como ha­via também a preocupação de James Drummond ser um homem casado, caso Mary ainda estivesse viva, ela não de­via estar pensando em como adoraria beijar aquela pele.

Revirou os olhos. Qualquer mulher em sã consciência apreciaria aquela visão e se deixaria afetar por alguém como James. Contudo, se suas suspeitas se confirmassem, Mary fora imune a ele a ponto de traí-lo justamente com Donnell. Mesmo sendo algo tão difícil de acreditar, Annora já tinha visto, no decorrer do tempo, provas de como algu­mas mulheres podiam ser estúpidas em relação aos ho­mens. Tudo aquilo era uma possibilidade bastante real.

Por um instante, fechou os olhos, deixando a mente vagar e o corpo relaxar. Às vezes, quando fazia isso, tinha alguma inspiração. Parecia tolice, mas sempre funciona­va. Se a intuição viesse, era sempre verdadeira e todos os seus instintos gritavam que Mary traíra James. Pouco depois, soube que ela estava morta.

— Precisamos descobrir onde ela está escondida — disse James por fim, voltando-se para Annora.

— Acho que não — ela respondeu em voz baixa, pis­cando rapidamente enquanto retornava à razão.

James andou até a cama e franziu a testa.

— Por que não? Lembrou-se de alguma coisa impor­tante?

— Não lembrei. Senti.

— Sentiu?

— Sim. Às vezes consigo sentir as coisas. — Não gos­taria de revelar seus segredos, mas não havia outra ma­neira de explicar o que estava afirmando. — Sinto que Mary está realmente morta. Ela não faleceu no incêndio, mas está morta. — Para sua surpresa, ele não a ridicula­rizou nem se benzeu para proteger-se contra o mal, como alguns reagiam em relação ao seu tipo de dom.

— Você teve uma visão?

Annora ficou boquiaberta, impressionada com a per­gunta tranquila e a ausência de medo ou escárnio em seus olhos.

— Não exatamente uma visão — respondeu, compeli­da a revelar toda a verdade. — Algumas vezes, se esvazio minha mente de todos os pensamentos e relaxo, consigo sentir as coisas. Sinto que ela está morta. Ela sabia mui­to, não?

A expressão de James se endureceu ao responder.

— Sim, e pessoas que sabem demais a respeito de MacKay e seus crimes têm o hábito de morrer.

— Exatamente. Ele não podia deixá-la viver. Talvez ela o tenha pressionado em relação a alguma coisa. Meu primo reage com violência a essa situação.

— Soube disso. E, sim, se Mary fosse sua aliada no que foi feito contra mim, provavelmente esperava tornar-se esposa dele.

— Mas, como você não morreu, ela continuou casada.

Ele assentiu devagar, apreciando a maneira como se completavam ao aventar todas as hipóteses.

— E, então, ela começou a pressioná-lo para agir, para torná-la viúva para que pudessem se casar e para que ela fosse de novo a senhora de Dunncraig.

— No entanto, isso não seria possível, pois você tinha sido condenado por tê-la assassinado. E seu retorno, são e salvo, faria de Donnell um mentiroso. Tendo usado tais artifícios para arruinar um proprietário e tomar suas terras, o destino dele seria a forca. Não, Mary não podia permanecer viva. — Annora meneou a cabeça. — Não sei. Apesar de parecer lógico, é tão difícil acreditar que tenha havido um plano tão intrincado contra você.

— Tinha que ser complexo e muito bem elaborado. Nunca fiz nada para provocar um julgamento tão duro. Os pecados que cometi foram pequenos, do tipo que a maioria dos homens comete, e merecem apenas alguma penitência estabelecida por um padre. MacKay precisava ser muito esperto para me fazer ser declarado um proscrito, espe­cialmente porque minha família também detém algum poder. Foram pegos de surpresa, entretanto, e não conse­guiram impedir o banimento.

— Eles poderiam ter feito isso?

— Sim, acho que sim. Poderiam ter adiado a decisão fi­nal e ganhado tempo para que investigássemos. Suspeito que, como MacKay sabia disso, tenha se movido em se­gredo e com agilidade.

— Sim. Ele é muito bom em identificar quem tem po­der e como utilizá-lo.

James encarou-a, observando-a franzir a testa, pro­vavelmente ante a perfídia do primo. Seu corpo lhe dizia que já haviam falado bastante sobre seus problemas, res­pondendo a uma exigência que ele não conseguia ignorar. Agora, ela já sabia seu segredo, portanto não havia ne­nhum motivo para ser cauteloso ou se esconder, o que li­berou as frágeis restrições que impusera a seu desejo por ela. Talvez fosse a própria visão de Annora sentada na cama onde a imaginara com tanta frequência ou o som de sua voz ou seu aroma suave. Tudo o que sabia era que a desejava com ardor. E a queria imediatamente.

 

— Não quero falar mais nisso — disse James sen­tando-se a seu lado e puxando-a para os braços. Annora sabia, pelo olhar dele, que ele não queria fa­lar sobre mais nenhum assunto. Sentia o desejo ardente e selvagem que, com rapidez, liberava o seu próprio, fa­zendo-a sentir-se levemente febril. Era difícil pensar em todos os motivos para sair logo do quarto. Havia vários, mas cada beijo que ele depositava em seu rosto afastava um pouco mais seu bom senso.

— Se não sair para me trocar, não chegarei ao grande salão a tempo do jantar — disse, reconhecendo que era uma desculpa tola que não a afastaria de seus braços.

— Eles sentirão sua falta e enviarão alguém para pro­curá-la?

— Não. Nunca fizeram isso.

— Então, fique comigo.

— Não acho que seria prudente. — Considerando a ma­neira como seu coração batia com força ao simples toque daqueles dedos em seu rosto, ela tinha certeza de que não seria sensato.

— Ah, minha linda mocinha, a última coisa que des­perta em mim é vontade de ser prudente.

Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, estava deitada com James. Quando ele colocou o peso sobre ela, sentiu seu corpo todo lhe dar as boas-vindas com um abandono despudorado. Sua mente, no entanto, lutava para manter algum vestígio de bom senso. Se suas idéias sobre Mary e Donnell estivessem corretas, era um mo­mento muito perigoso para se entregarem à paixão. Se Egan descobrisse, James teria que fugir novamente ou seria morto.

Ela também era virgem e, apesar de não poder pen­sar em ninguém que quisesse mais como amante que sir James Drummond, as lembranças do rosto triste de sua mãe invadiram-lhe a mente. Annora sempre prometera que nunca percorreria o mesmo caminho destrutivo e que nunca amaldiçoaria os filhos com a vergonha de serem bastardos. A maneira como James a fazia sentir-se indi­cava que ela estava prestes a quebrar todos aqueles vo­tos, o que a aterrorizava.

Pressionou as mãos contra o peito dele, o que afetou de novo seriamente seu bom senso. A pele era suave e quen­te, e a sensação dos músculos a deixava tonta de paixão. Ansiava por tocá-lo todo, acariciá-lo da cabeça aos pés. Pegou-se percorrendo uma áspera cicatriz que atraves­sava o peito e terminava no ombro esquerdo e percebeu que estava perdendo a batalha. Nunca pensara que seria tão difícil fazer o que devia e não o que desejava.

— Rolf — começou, corando. — Não. É James, certo? Só agora sei seu verdadeiro nome.

Ele beijou-a na boca. Quase sentia as emoções confli­tantes pelo modo como seu corpo se enrijecia e relaxa­va. Era fácil lê-las também no rosto corado. Apesar de vê-la assumir uma expressão tranquila e muitas vezes inexpressiva diante de MacKay ou Egan, ela raramente o fazia com ele, o que o agradava muito. Ver a batalha que ela travava entre o que queria e o que era considera­do apropriado, fazia-o sentir-se um pouco culpado. Sabia que devia se afastar, que não devia pressioná-la para uma intimidade para a qual poderia não estar totalmen­te preparada, mas não era forte o bastante.

Fazia tanto tempo desde a última vez em que tinha apreciado o calor de uma mulher. Na verdade, ele não satisfizera essa necessidade com sua própria esposa, pois Mary sempre se afastara de qualquer intimidade e nunca havia se mostrado sedutora e apaixonada. Podia ter sido repulsa, pensou, logo afastando aquela ideia dolorosa e humilhante. Era só uma suspeita e não podia condená-la sem provas.

Pensar nela o deixou tenso por um instante, pois tal­vez ainda fosse casado. Apesar de pretender descobrir uma forma de pôr um fim àquele compromisso se ela ainda vivesse e o tivesse traído, isso levaria anos e exi­giria muito dinheiro. Meneou a cabeça, afastando o pen­samento. Mary estava morta. Talvez não tivesse morrido no incêndio, mas sabia que Annora tinha razão. Após ter sido criado pelos Murray, um clã repleto de pessoas com todos os tipos de dons, achava muito fácil acreditar nas sensações dela.

Assim como era fácil desejá-la tanto que o corpo todo se retesava, quente e dolorido. Sabia que não deveria mais justificar aquele anseio com o celibato prolongado. Era um sentimento tão profundo e arrebatador que havia prosseguido em abstinência, apesar das muitas ofertas das criadas de Dunncraig. Poderia ter se assegurado de fazer sexo com algumas delas no escuro, a fim de prote­ger seu disfarce. No entanto, simplesmente não quisera estar com ninguém além de Annora e, a não ser que ela o rejeitasse com veemência, pretendia possuí-la.

— Quis ouvir meu verdadeiro nome de seus lábios desde a primeira vez que a vi — disse suavemente, mordiscando o lóbulo de sua orelha.

— Não deveríamos fazer isso — ela sussurrou com voz trêmula. Os lábios e a língua em seu ouvido a faziam tremer e ela sentia estar perdendo o controle. — Eu não deveria fazer isso.

— Deveria sim. Sabe bem o que quer. Quando foi a última vez que agarrou o que quis ou teve uma oportuni­dade de fazê-lo?

— Não é prudente ou certo fazer o que se quer. Tudo tem consequências.

— Que consequências podem advir de compartilhar­mos uma paixão tão intensa?

— Eu sou uma consequência de tal descuido — disse baixinho.

— Ah, garota, você não é consequência. Você é um pre­sente, uma bênção. Presta muita atenção às palavras de gente tola. — Começou a abrir seu vestido, encorajado quando ela não tentou impedi-lo.

— Lembre-se que aqueles tolos só repetem os ensina­mentos da Igreja.

— A Igreja é governada por homens, moça. Sim, mui­tos têm uma vocação verdadeira e uma grande fé, mas outros são apenas enviados por suas famílias, não para servir a Deus, mas para sobreviver ou mesmo para bus­car poder.

— Heresia — disse ela e sorriu.

Annora percebeu que estava pronta para atirar a pre­caução para longe. Imaginou por um momento se a mãe tinha se sentido descuidada e louca para arriscar-se com um homem charmoso que fazia seu coração bater mais forte. Ao contrário dela, no entanto, Annora sabia que James nunca viraria as costas para um filho e aquilo era o suficiente.

— Você perdeu mesmo o olho? — perguntou, tocando o canto da venda que ele usava.

— Maldição, esqueci de tirar. — James arrancou-a e jogou-a para o lado. — Não perdi nem machuquei. Como sempre me disseram que o verde dos meus olhos era no­tável, não quis correr o risco de arruinar meu disfarce.

— São olhos muito bonitos. — Beijou o canto do olho que ele mantivera coberto por tanto tempo. — Quando vi você pela primeira vez, fiquei triste pela perda dele, pois seu par era tão lindo.

James corou. Havia muitos anos que não reagia dessa forma aos elogios de uma mulher e, apesar de parecer vaidoso admitir, recebera vários. Ainda assim, sabia que cada palavra dela era sincera e não fazia parte de um flerte vazio ou de um jeito de ganhar uma moeda extra. Saber que ela apreciava sua aparência o fazia sentir-se orgulhoso e satisfeito.

Ele a beijou antes de dizer alguma tolice. Sentia-se um garoto inexperiente de novo, ansioso e suado com a expectativa. Não tinha certeza do que banira a hesitação que ela revelara tão claramente havia alguns minutos, mas não questionaria a mudança. No mínimo, a faria voltar a pensar, o que era a última coisa que ele queria. Desejava que ela somente sentisse.

Fazendo o máximo para mantê-la tonta com os beijos, James começou a remover a roupa de Annora sem tanta pressa, para não assustá-la, refreando o ímpeto de arran­cá-las e jogá-las longe, como gostaria. Precisava sentir a pele, olhar para ela, tocá-la, saboreá-la.

Quando finalmente removeu a última peça, não pensa­va em mais nada a não ser em fitá-la. Observou cada cur­va do corpo esguio. Annora era uma mulher delgada, mas tinha seios lindos e volumosos, cintura pequena e quadris arredondados. Não pesava tanto, mas era tudo bem dis­tribuído. Ficou tão encantado com sua pele clara e macia que, por alguns momentos, só a encarou, tentando decidir por onde começar, até que percebeu que ela corava.

O rubor no rosto dela era tão intenso que James jura­va sentir o calor. Identificou também embaraço e timidez em sua expressão, e ficou tenso. Era muito parecido com o que vira na expressão de Mary com tanta frequência e significava que o calor que buscava seria negado. Com medo de estar perdendo Annora, que a paixão estivesse desvanecendo, ele a beijou com força e ardor, revelando algo do desespero que o atingia. Só começou a perder o medo quando a sentiu corresponder com paixão.

Annora jamais havia pensado que derreteria com o ca­lor que sentiu quando James observou seu corpo. Nunca estivera nua diante de um homem, nem de ninguém, e, quanto mais ele a encarava sem dizer nada, mais ela temia que ele estivesse desapontado. Quando ele final­mente a fitou nos olhos, esperava que ele dissesse algo. Ficou tensa, preparando-se para algum elogio falso que escondesse a decepção e evitasse magoá-la. Em vez disso, ele a beijou.

Mesmo que o desejo a tivesse tomado intensamente de novo, percebeu nos olhos dele uma breve sensação de de­sespero, até mesmo de medo. Mas, conforme prosseguia correspondendo ao beijo apaixonado com um ímpeto difícil de controlar, sentiu que aquele sentimento desaparecia, dando lugar somente ao desejo. Quando ele se deitou so­bre ela e os corpos se tocaram pela primeira vez, sentiu-se tão envolvida que não se importava mais com o que o esti­vera perturbando. Poderia perguntar mais tarde.

— Ah, minha Annora, quero ir devagar com você, sa­borear cada pedacinho doce do seu corpo, mas você está me enlouquecendo — murmurou.

Ele queria falar? pensou. Como alguém poderia falar em um momento como aquele? Sua mente e seu corpo es­tavam tão concentrados nas sensações provocadas pelos lábios dele, e na pele quente sob suas mãos, que duvi­dava conseguir pronunciar o próprio nome. Quando ele tocou com a língua seu mamilo, Annora descobriu que podia falar. Ofegou e o chamou pelo nome, sentindo o ca­lor se espalhar pelo corpo. Quando ele sugou-o, ela emi­tiu diversos ruídos e gemidos dos quais esperava não se lembrar mais tarde, pois suspeitava que tamanha perda de controle a embaraçaria.

Quando James desviou a atenção para o outro seio, já não se importava com os sons, desde que ele nunca parasse de lhe proporcionar aqueles prazeres. Só tinha consciência do corpo dele, do que a fazia sentir e daquela rigidez pressionada contra sua virilha. Por um momento, pensou que deveria ter medo, mas as sensações sobrepu­javam qualquer preocupação. Gemeu, chocada, quando ele escorregou a mão por seu ventre e tocou-a entre as pernas. Deleitou-se com as carícias dos longos dedos, re­laxando e abrindo-se para ele sem hesitação.

— Meu Deus, Annora, você está maravilhosamente quente e úmida — ele murmurou contra sua barriga, o cor­po todo tremendo com a necessidade de estar dentro dela.

— Úmido é bom? — ela perguntou em um sussurro trêmulo, pois em algum canto racional de sua mente pre­ocupava-se com a crescente umidade.

— É perfeito. É seu corpo me dando as boas-vindas, me convidando para dentro de você.

E era lá que ele tinha que estar. James lutou para se controlar, sabendo que ela era virgem e que deveria tomar cuidado para que a primeira vez não fosse tão do­lorida, nem a deixasse com medo. Contudo, ela era uma febre em seu sangue e o corpo todo sinalizava que estava pronta. Ser lento e gentil seria a coisa mais difícil que já fizera. Queria lançar-se com ímpeto contra ela até encon­trar o paraíso pelo qual ansiava.

Afastou-lhe as pernas com gentileza e posicionou-se sobre ela. Começou a penetrá-la lentamente, até sentir a barreira da virgindade. Inclinou-se para beijá-la.

— Pode doer um pouco, Annora — sussurrou de encon­tro a seus lábios. — Mas eu juro que a dor vai passar.

Annora sabia daquilo e envolveu-o com os braços.

— Faça, James. Acabe logo com a parte dolorida e en­tão poderemos voltar para a parte gostosa.

O fato de ela referir-se daquela forma ao que esta­vam compartilhando quase o derreteu. Começou a beijá-la, afastando um pouco o corpo, e investiu com firmeza. O corpo de Annora se enrijeceu e ela gritou junto à sua boca. Ele permaneceu imóvel, beijando-a e acariciando-a, para amenizar a dor que fora obrigado a lhe infligir e reavivar a paixão com que ela o estivera presenteando. Estava tão concentrado que levou um momento para per­ceber que ela tentava se mover.

Levantou a cabeça e fitou-a. Não havia sinal de dor ou desgosto em seu rosto. A onda de desejo coloria sua face e escurecia seus olhos azuis. Sabia que a tinha machucado, mas ela se recuperara mais rápido do que previra.

— A dor passou? — perguntou. Não se surpreendeu que a voz fosse pouco mais que um murmúrio, pois sentia que enlouqueceria se não se movesse logo dentro dela.

— Sim — Annora sussurrou, tentando encontrar uma po­sição para as pernas que aumentasse o prazer que sentia.

James encostou sua testa na dela.

— Coloque essas lindas pernas em volta de mim, querida.

Annora fez o que ele lhe disse e ofegou, pois aquilo o colocava com ainda mais profundidade dentro dela, pro­vocando um puro deleite.

— O que faço agora?

— Aproveite — disse ele. — Por favor, aproveite.

Ela começou a pensar que era estranho que James dissesse aquilo enquanto saía de dentro de seu corpo. Antes que pudesse protestar contra a retirada, ele arremeteu de novo e ela quase gritou de prazer. Era por isso que a mãe tinha arriscado tanto, pensou enquanto ele continuava se movimentando, provocando um calor tão intenso que ameaçava derretê-la. E a perda daquilo, percebeu subitamente, foi o motivo de a mãe sempre pa­recer tão triste. Foi seu último pensamento antes de se entregar somente às sensações.

James lutava contra o impulso de obter seu próprio prazer. Apesar de ansiar desesperadamente por aquilo e de saber que conseguiria satisfazê-la mesmo depois, con­trolou-se. Teve que cerrar os dentes e pensar em coisas tolas, mas queria que ambos alcançassem o ápice, juntos, ou o mais próximo possível. Assim que pensou estar per­dendo a batalha, sentiu que Annora o envolvia com mais força, escutou-a gritar seu nome e o corpo todo arquear e tremer. Permitiu-se, então, acompanhá-la na satisfação completa do desejo.

Ela largou-se de costas na cama. Começava a perce­ber que ainda estava nua e que não fazia nenhuma ten­tativa de se cobrir, quando ele saiu da cama e andou até a pia. Enquanto lutava para fazer os braços fracos tra­balharem e agarrarem os lençóis, ele retornou com um pano úmido. Distraiu-se tanto observando o corpo alto e magro, que não recuou quando ele a limpou, apesar da intimidade do ato.

Só começou a recobrar os sentidos quando ele deitou-se a seu lado e abraçou-a. Acabara de entregar a inocência para um homem que não pronunciara uma palavra de amor. Sabia que deveria correr para seu quarto e talvez para um padre a fim de confessar o pecado. Não tinha von­tade de fazer nada daquilo. Só queria ficar onde estava, em seus braços, acariciando-lhe o peito largo e bonito e apreciando a sensação de felicidade letárgica que a completava.

No entanto, pensamentos sobre o que aconteceria em seguida começaram a se intrometer naquele agradável momento. Sabia que não poderia ignorar tudo o que era errado a respeito de ter um amante, especialmente aquele amante. Mesmo se James derrotasse Donnell e recuperas­se tudo o que havia sido roubado, aquele podia ser somen­te um caso passageiro. Ele era um proprietário de terras e eles não amavam e nem se casavam com mulheres bas­tardas e pobres, por melhor que fosse a linhagem de um de seus pais. Eles encontravam esposas que trouxessem terras e dinheiro e que aumentassem seu poder. Sabendo que Donnell provavelmente gastara ou desperdiçara a maior parte das riquezas de Dunncraig e tinha feito pou­co para assegurar o cuidado com as terras, sentia que tais coisas seriam ainda mais importantes para James. Ela não possuía nada além das roupas que usava.

A tristeza ameaçava tomá-la, mas ela impediu que isso acontecesse. Havia sido uma escolha sua e levaria tudo o que fosse bom até que terminasse. Haveria muito tempo depois para se afundar em sofrimento e chorar no travesseiro.

Só tinha certeza de que amava esse homem e que era um amor impossível. Sentiu a dor com intensidade antes de afastá-la. Permaneceriam amantes por quanto tempo ele quisesse, e ela não transformaria seus sentimentos em um fardo para ele. Sabia que James era um homem bom e que não pretendia magoá-la. Também sabia que ele teria permitido que ela partisse e mantivesse a ino­cência se tivesse protestado. Ele não tinha culpa do fato de que o amava nem de que ficaria com o coração partido no futuro, exceto talvez por ser tão fácil de amar.

Quando ele pôs a mão sob seu queixo e levantou-lhe o rosto, conseguiu sorrir um pouco. Tinha muita experiên­cia em esconder as mágoas e tristezas. Recusou-se a per­mitir que o breve momento de felicidade fosse ofuscado.

— Está muito quieta, moça — James disse e beijou-a na boca.

— Ainda não recuperei as forças para conversar — respondeu.

Ele sorriu e acariciou-a nas costas. Não via arrependi­mento ou vergonha no rosto de Annora, mas aquele silên­cio o estava inquietando. Uma vez, tinha olhado para a esposa depois de terem feito amor e nunca repetira o erro. Havia tanta infelicidade, vergonha e embaraço na expres­são dela que se sentira humilhado. Na verdade, somente a esperança de poder ensinar a Mary os prazeres possíveis no casamento e o desejo por uma criança, tinham lhe dado forças para voltar para sua cama após aquilo.

Quando Annora permaneceu em silêncio durante tan­to tempo, começou a temer que ela havia sentido o mes­mo que Mary e precisara de toda a força de vontade para fitá-la. O alívio ao ver somente o rubor de uma mulher que acabara de ser amada, deixou seus joelhos fracos e ele ficou contente por não estar em pé.

Annora lembrou-se do que sentira em James e das palavras que murmurara quando começaram a fazer amor.

— James, por que você estava tão... desesperado no começo?

Ele levou um momento para entender ao que ela se referia.

— Você acha que eu estava desesperado?

Ela fez uma careta e rezou para não assustá-lo com o que estava prestes a dizer.

— Às vezes, eu consigo sentir o que outra pessoa está sentindo. Senti a raiva em você quando chegou aqui. Quando insultou Donnell e eu tive que inventar algo para dizer, senti a aversão que você tem por ele. Bem... depois que terminou de me olhar e começou a me beijar, senti o que só consigo chamar de desespero em você por um momento. E acho que um pouco de medo. Estava ima­ginando se fiz alguma coisa para você se sentir assim.

— Consegue mesmo saber o que os outros sentem?

Sentindo apenas um sutil interesse, ela assentiu.

— É um segredo. Muito poucas pessoas sabem que eu posso fazer isso e prefiro manter assim. Quando alguns descobriram, não foram gentis.

— Não tenha medo de me falar sobre seu dom, Annora. Fui criado pelos Murray e aquele clã tem muitas pesso­as com dons como o seu. Minha irmã Gillyanne tem um dom igual ao seu. E, sim, eu estava me sentindo desespe­rado e não somente porque a quis desde o começo. Acho que havia também um pouco de medo misturado. Sabe por quê? Minha esposa não gostava de fazer amor. Ela sempre demonstrava que isso a magoava, a humilhava e envergonhava. Nada que eu pudesse fazer conseguia mudar isso. Quando você ficou quieta tanto tempo e eu vi o embaraço em seu rosto, temi que tivesse falhado de novo, que de alguma forma eu tivesse destruído o desejo que sabia que você estava sentindo no começo. Eu não devia ter me casado com ela, talvez devesse ter adivinha­do que ela não gostaria de estar comigo... A única coisa boa foi ter tido Meggie.

— Verdade. — Annora não conseguia conceber uma mulher que não gostasse do que James a fizera sentir, mas não disse nada. Tais palavras poderiam revelar como ela se sentia em relação a ele. — É por isso que acha difícil acreditar que ela e Donnell eram amantes?

— Bem, tirando o fato de que nenhum homem gosta de pensar que sua mulher deseja outro, sim. Talvez todos os problemas decorressem de ela amar MacKay e não a mim. Mary pode ter sido forçada pelos parentes a se casar comi­go, pois, naquela época, ele não tinha nada a oferecer.

Annora se moveu para cima dele. Para quem fora sem­pre tão modesta, estava surpresa por gostar tanto de ficar nua ao lado dele. Também queria tirar aquele olhar mago­ado de seus olhos. Sabia, sem precisar perguntar, que ele tinha sido um marido bom e fiel e que não tinha culpa de Mary não ter encontrado prazer em seus braços.

— O fato de Mary poder ter amado Donnell deveria demonstrar-lhe que não deve se afetar com o que estava errado entre vocês. Ela não deu uma chance a você desde o começo. E, claro, ela obviamente tem um enorme mau gosto no que se refere a homens.

James sorriu.

— Isso realmente deve ser considerado.

— Eu, evidentemente, tenho muito bom gosto para homens.

— Homem. Só um.

— Sim — ela disse com voz suave. — Só um.

Annora também sabia que demonstrar como ele a fazia sentir-se ardente, era a melhor maneira de eliminar os úl­timos arrependimentos, incertezas e medos com que Mary o havia deixado. Sorriu e beijou-o. Não seria um grande sacrifício, pois ela era, de fato, uma mulher muito ávida.

James colocou a peça que acabara de lubrificar do lado de fora da oficina. Era um dos melhores trabalhos que havia feito e estava ansioso para vê-lo sobre a lareira do quarto do proprietário das terras, que logo seria ele novamente. No momento, no entanto, nem mesmo a ideia de MacKay dormir em sua cama estragava seu bom hu­mor. Sentia-se completamente saciado após uma noite de amor com Annora. Era a primeira vez que se sentia tão bem desde o casamento. Após enviar uma desculpa rápi­da e silenciosa para a falecida esposa, James tinha que admitir que não se lembrava de jamais ter se sentido tão bem. Annora satisfazia mais do que somente seu corpo.

— Você parece estar de muito bom humor — disse Marta, andando até ele.

Pelo brilho nos olhos da velha senhora soube que ela tinha conhecimento sobre ele ter passado a noite com Annora nos braços. Recusou-se a corar, pois isso indicaria uma culpa que ele não sentia. Annora MacKay pertencia a ele. Na noite anterior, ele simplesmente tinha torna­do esse fato tão claro para Annora quanto era para ele. Sabia que, se não estivesse preso ao disfarce, deixaria aquilo claro para cada homem em Dunncraig também.

— Bem, um pouco mais de lubrificação e este trabalho está completo — ele disse, apontando a cornija que havia terminado, incapaz de esconder totalmente o orgulho.

— Sim, é uma maravilha o que consegue fazer com a madeira, rapaz, mas não acho que é por isso que esteja sorrindo assim. Não, não quando não sorri há tantos anos exceto para nossa pequena Meggie. — Marta cruzou os braços sobre o peito e meneou a cabeça. — Eu sabia que ela seria boa para você.

James suspirou e revirou os olhos.

— Como você consegue saber de cada pequeno segre­do em Dunncraig?

— Gostaria mesmo de poder fazer isso. Se eu tivesse essa habilidade, você já estaria sentado no lugar que é seu por direito. Em vez disso, temos aquele porco vaidoso destruindo tudo o que toca enquanto tenta se cercar dos ornamentos de um rei.

— É, precisamos acabar com ele. — Pitou-a. — Está me dizendo com seu modo peculiar que não encontrou nada de verdadeiro por trás de todos aqueles rumores e sussurros que disse ter escutado? — A forma como ela pressionou os lábios e desviou o olhar lhe disse que ela tinha descoberto algo e que temia que ele não gostasse. — Por acaso descobriu que minha esposa não era a don­zela doce e tímida que eu pensava?

Quando Marta se virou para fitá-lo, ele se pegou sor­rindo, apesar da feia verdade que ela estava prestes a re­velar. Poucas pessoas conseguiam surpreendê-la. Talvez ter conversado sobre o assunto com Annora e já vislum­brar a possibilidade de Mary tê-lo traído tivesse lhe dado um forte escudo contra verdades tão duras e dolorosas.

— Você escutou algo? — perguntou ela.

— Não, mas Annora tem uma habilidade verdadeira para questionar algumas coisas e para ver o que eu não vi, mas deveria ter visto. A possibilidade de Mary ter aju­dado MacKay, talvez até de ter sido sua amante, já me foi apresentada e eu não pude ignorá-la ou negá-la. Annora também acredita que Mary esteja morta.

— Então, ela morreu naquele incêndio.

— Talvez sim, talvez não. Não se pode ter certeza, uma vez que o corpo encontrado estava irreconhecível? Annora duvida que o primo teria permitido que Mary vivesse muito mais tempo, pois ela era uma fraqueza, alguém que, simplesmente andando pela estrada da vila, poderia causar-lhe muitos problemas.

— É verdade. Bem, sim, temo que Mary tenha sido infiel a você. Aquele pequeno chalé onde ela supostamen­te morreu, era onde encontrava MacKay. Bem, de vez em quando. A empregada que os viu juntos, disse que se encontravam dentro do castelo. Mary ia até o quarto dele quando estava visitando, o que era bem frequente. A criada também disse que ouviu mais do que o suficien­te para saber que não era um encontro inocente entre primos. E, não, não direi quem é ela. Pelo menos, não enquanto MacKay governe. Foi necessária muita persu­asão e promessas de silêncio só para conseguir que me contasse isso.

— Ela disse exatamente quando os viu juntos?

— Cerca de um mês antes da morte de Mary ou de quando achamos que tenha morrido.

— Mas nunca desde o dia em que ela supostamente morreu?

— Ela não disse nada. Posso tentar conversar nova­mente com ela. Caso tenha visto algo, é o tipo de garo­ta que pensaria ter visto um fantasma e nunca diria a ninguém por medo de acharem que ela é uma bruxa ou alguma tolice do tipo. Por quê?

— Porque eu acho que Meggie pode ter visto Mary e MacKay juntos. Ela disse tanto para Annora quanto para mim, que ela não acha que ele seja seu pai, mesmo o tendo visto beijar sua mãe. Achei que ela era nova de­mais para ver e se lembrar de tal coisa se tivesse aconte­cido antes do incêndio no chalé. Mas depois? Sim, alguns meses mais de idade fariam diferença.

Marta meneou a cabeça.

— Se ela realmente tivesse visto a mãe depois do in­cêndio, não acha que teria falado a respeito?

— Annora diz que minha filha aprendeu muito rápido a manter segredos. — James suspirou. — E, depois de pensar na possibilidade de Mary ter sido aliada de MacKay, refleti muito sobre os anos em que fui casado com ela. Havia muita coisa errada e ela nunca foi uma mãe de verdade para Meggie. Por mais que eu tente, não me lembro de tê-la visto uma vez abraçando a filha com carinho. Eu devia ter prestado mais atenção antes de tê-la desposado, mas tinha assumido minha posição aqui e queria a esposa, as crianças e a família. Em vez disso, consegui uma mulher que pode bem ter sido pouco mais que uma prostituta enviada por MacKay, o amante, e três anos no inferno. A única bênção que tive com o casamen­to foi Meggie, minha linda e inteligente filha.

— Sim, a menina é muito esperta. Saber quando ficar quieta e guardar um segredo tão jovem? Muito inteligen­te. É triste que tenha aprendido tal coisa muito cedo, mas não é algo ruim de saber. — Olhando para longe, Marta disse em voz baixa. — Nunca gostei muito de Mary. Ela era fria.

— Era, sim. Eu confundi isso com timidez ou modéstia de donzela. E, se é verdade que só atuava como minha esposa em benefício de MacKay, ela não gostava muito. Pode ter querido bancar a prostituta para ele em minha cama, mas em seu coração ela nunca foi uma. — James sorriu. — Temo que ela pode ter sido bastante estúpida.

— Se ela confiou na víbora, então foi, sim. — Marta franziu a testa e esfregou o queixo. — Sim, foi muito tola, se pensou que, após você ser condenado pela morte dela, voltaria para cá como a esposa de MacKay. Você acha que era esse o plano dela?

— O plano dela, nunca o dele — disse James com fir­meza. — MacKay é muito sagaz para deixar uma prova de seus crimes andando por aí. Se ela fosse sua aliada, agora estaria morta.

— Tudo isso é muito triste. Você escolheu bem desta vez. Só tome muito cuidado, rapaz. Egan deseja Annora desde o começo. Se ele descobrir sobre vocês dois, será um homem morto e não acho que ela também estará em segurança.

James assentiu e observou Marta afastar-se. Não pre­cisava que ela o alertasse para saber que o que compar­tilhava com Annora não era somente precioso. Era peri­goso também. Egan já gostaria de matá-lo simplesmente por tê-lo derrubado. Se ele descobrisse que tinha dormi­do com Annora, lhe infligiria uma morte lenta e dolorosa. Marta também estava certa ao pensar que Annora corria o mesmo perigo. Egan ficaria enfurecido se soubesse que ela tinha um amante.

Ao retornar para a oficina em busca de um pedaço de madeira para usar nas cadeiras que MacKay havia solicitado, pensou sobre todas as boas razões que tinha para ficar longe de Annora MacKay. Sabia que devia prestar atenção nelas, mas sabia também que não o fa­ria. Ansiava demais pelo calor que encontrava nela para desistir. O que faria, porém, seria ter extrema cautela. Marta sabia sobre eles, mas ninguém mais podia sequer vislumbrar a verdade. Se ele suspeitasse que alguém tivesse descoberto, levaria Annora e Meggie para o lu­gar mais longe possível de Dunncraig, mesmo que aquilo significasse permanecer um proscrito e nunca mais recu­perar seu lugar.

Encontrou o pedaço de madeira que queria e decidiu que iria requerer a reunião com MacKay para resolver logo o assunto. Uma vez que já conhecia os hábitos do homem, sabia que em breve ele estaria no escritório. Pegando o pergaminho com o esboço que desenhara, foi ao encontro dele.

James estava perto do escritório quando o viu se aproximando com Egan. Os dois estavam tão envolvidos em uma discussão que não o tinham visto. Procurou um lugar para se esconder. Sabia que não era um bom mo­mento para um confronto com Egan. Pela segurança de Annora, queria evitar encontrá-lo o máximo possível.

Percebendo uma pequena porta, esgueirou-se em si­lêncio para um quarto perto do escritório, que não existia quando ele governava Dunncraig. Só precisou dar uma olhada ao redor para adivinhar o propósito do aposento. Podia ser usado para um hóspede de classe baixa, mas tinha certeza de que fora criado para que MacKay tivesse um lugar confortável para fornicar com uma mulher entre o tempo que passava no escritório e os outros negó­cios que estivesse conduzindo.

Imaginava quanto tempo deveria ficar ali quando ou­viu vozes. Colocou a madeira e o desenho sobre a peque­na cama e se aproximou da parede de madeira que tinha sido construída para transformar um aposento em dois. Levou apenas um momento para perceber a fenda que permitia que se escutasse o que acontecia no escritório. Ao pressionar com cuidado o ouvido na parede, imaginou se MacKay tinha feito aquilo de propósito, para poder escutar o que era dito quando outras pessoas pensavam estar sozinhas ali.

— O casamento será em um mês — disse MacKay.

— Já contou para ela? — perguntou Egan.

— Não, ainda não, e prefiro que você também não conte.

— Por que não? Poderíamos passar o mês noivos. Isso me daria uma boa oportunidade de mostrar que ela pre­cisa de um homem na cama. Pode fazer com que concorde com mais facilidade. Talvez ela até engravide, o que en­cerraria qualquer discussão. Suspeito que ela não gosta­ria de ter um filho bastardo, como a mãe. Ela sabe como isso pode machucar uma moça.

— Egan, ou fazemos isso do meu jeito ou não fazemos. Annora não é na realidade a garota submissa que você parece pensar que ela seja. Se queremos evitar proble­mas, devemos lidar com muito cuidado com a situação. Você se casará com ela dentro de um mês. Fique satisfei­to. E, se precisar, se ocupe com uma das criadas. Não vai ganhar nada se impondo a Annora antes do casamento. Diferente de algumas outras moças, ela não vai aceitar com tranquilidade seu destino ou desistir de toda a resis­tência só porque você roubou sua inocência.

Eu tomei a inocência dela, James sentiu-se compelido a gritar, em algum gesto louco de posse e orgulho mas­culino. Ele se sentia furioso e aterrorizado por Annora. Levou um minuto para se acalmar e resistir à forte ânsia de entrar no escritório e dizer àqueles dois homens que discutiam tão friamente que ela não mais estava livre.

Annora lhe pertencia. Queria usar os punhos, também, para se assegurar de que ambos haviam compreendido.

Em vez disso, agarrou suas coisas e saiu do aposento. Precisava encontrar Annora e avisá-la. Precisava fazer muito mais do que isso. Não poderia protegê-la por com­pleto enquanto fingisse ser um carpinteiro em Dunncraig. Tinha que tirá-la dali, levá-la para longe, para um lugar em que Egan não a alcançasse. Com aquilo em mente, levou as coisas para a oficina e saiu em sua procura.

Quando chegou ao quarto dela sem ser visto, não a tendo encontrado em nenhum outro lugar, estava se sen­tindo levemente desvairado. Agora que Egan sabia que teria Annora, duvidava que prestaria atenção ao conse­lho de não usar a violência contra ela. Precisava mantê-la sob suas vistas, pois estava certo de que Egan agarra­ria qualquer oportunidade de levá-la para a cama.

Um cantarolar baixinho vinha do quarto de Annora e ele reconheceu sua voz. Olhando de novo ao redor para se assegurar de que ninguém o veria, bateu na porta. Ficou aliviado ao perceber que ela a tinha trancado conforme seu pedido, e sentiu o medo amenizar um pouco.

— Está sozinha? — perguntou assim que ela abriu o suficiente para vê-lo.

— Sim — Annora respondeu. — Mas...

Ele não deu tempo para que ela falasse mais nada. Empurrou-a para dentro, fechou e trancou a porta.

— Você tem que deixar Dunncraig agora — disse, pro­curando algo para embrulhar suas coisas, algo que ela pudesse carregar.

— Quer que eu vá embora? — ela perguntou baixinho, espantada por ver como o caso deles tinha terminado tão rápido e de maneira tão abrupta.

— Não quero que parta, mas deve fazê-lo e logo.

— Por quê?

James se aproximou e abraçou-a. Iria sentir sauda­des, não somente porque sua cama estaria fria e vazia. Annora tinha se tornado parte de sua vida, de sua espe­rança por um futuro em Dunncraig. Nenhum dos planos para provar que MacKay era culpado de assassinato e retomar Dunncraig tinha mudado, exceto que Annora ti­nha se tornado parte de tudo aquilo.

— Acabei de escutar MacKay dizer a Egan que ele pode se casar com você dentro de um mês.

— Tão cedo? — ela sussurrou, chocada com o pouco tempo de que disporia para decidir o que fazer e para onde ir.

Ele se inclinou um pouco e a fitou.

— Você sabia que isso iria acontecer?

— Eu também os escutei falar sobre o assunto, mas Donnell se recusou a estabelecer uma data. Ele parecia querer dizer que haveria algum tempo antes de decidir, mas obviamente mudou de ideia. Quando entrei daquele jeito no seu quarto ontem à noite, foi por que eu tinha acabado de escutá-los discutir o assunto. — Ela corou. — Eu me distraí.

— Você podia ter me dito quando não estava distraída. James não tinha certeza se estava bravo por ela não ter contado ou curioso sobre o motivo de ela não tê-lo feito.

— Não há nada que eu possa fazer a respeito, certo?

Não se desejamos provar sua inocência e recuperar Meggie e Dunncraig.

— E você acha que posso simplesmente ignorar o fato de que está sendo entregue a outro homem?

— Eu não pretendo ser entregue a outro homem. Só não posso partir ainda.

— Você pode e vai. Levarei você e Meggie para a França. Egan não conseguirá segui-la até lá. No mínimo, porque MaeKay não irá permitir.

— James, você não pode partir.

Annora suspirou e observou-o andar pelo quarto. Tocava seu coração que ele quisesse tanto protegê-la que estivesse disposto a deixar de lado tudo pelo que havia trabalhado. Porém, não podia permitir que fizesse aquilo. Dunncraig estava morrendo sob o domínio de Donnell. Muitas pessoas precisavam que James recuperasse sua casa, suas terras e seu bom nome. Algo que ele não pode­ria fazer se estivesse na França.

— Donnell está destruindo Dunncraig — ela disse, tentando imbuir as palavras de toda a urgência que po­dia. — Ele ataca seus vizinhos e está conquistando mui­tos inimigos, que vão retalhar as pessoas daqui porque as veem como o povo dele, como quem pode até tê-lo aju­dado nos saques. Da última vez, o filho mais velho do proprietário foi morto. E piora a cada dia. Não deixarei que troque todas essas vidas por minha segurança.

James virou-se para fitá-la, e quase sorriu. MacKay estava certo. Annora não era a moça doce e submissa que Egan acreditava que fosse. Havia aço naquela coluna delgada. O que o tocava era a preocupação que mostrava com o povo. Não levara muito tempo para ver que ela não se mantinha à distância por opção. Essa demonstração de preocupação só confirmava a opinião de que Annora se importava com seu povo mesmo sem estar autorizada a ser parte de suas vidas. Ela era o tipo de senhora de que Dunncraig precisava.

— Eu poderia mandá-la para minha família — ele disse.

Annora sentou-se na cama.

— Talvez. Preciso pensar.

Sentou-se ao lado dela e passou o braço por seu ombro.

— O que há para pensar? Não pode querer se casar com Egan.

— Na maior parte do tempo, não tolero nem estar no mesmo ambiente que ele. Ele é tão brutal e cruel quanto Donnell. Só não tem a mesma astúcia. São tipos de senti­mentos que me perturbam e me fazem mal. Mas eu não posso simplesmente desaparecer. Meggie precisa de mim aqui. De alguma forma, tenho que encontrar um jeito de me esquivar dele e continuar tomando conta de Meggie até que possamos livrar Dunncraig deles. Qualquer mulher que Donnell encontre para me substituir como a babá dela não será tão cuidadosa ao mantê-la fora do alcance dele ou distante da crueldade que é cometida aqui quase todo dia.

James ficou tão comovido com o cuidado e preocupa­ção em relação à sua filha que teve que beijá-la. Quando o beijo terminou, estavam espalhados em cima da cama e ele estava louco de desejo por ela. O coração se elevou quando começou a tirar o vestido de Annora e ela não fez nada para impedi-lo.

— Temos que ser muito cuidadosos — ela murmurou, observando-o se sentar para tirar a própria roupa. Ele era um homem realmente bonito, mesmo com todas as cicatrizes.

— Sei disso — ele disse, livrando-se da última peça e voltando-se para terminar de despi-la. — Fiquei bem atento quando corri até aqui para salvá-la como o cava­leiro galante que sou.

Apesar de estar sendo despida por um homem nu no meio do dia, Annora riu.

— Muito galante, mas não acho que é exatamente dessa maneira que um cavaleiro salva uma donzela.

— Você não escutou toda a verdade. É por isso que os cavaleiros galantes arriscam tudo para salvar donzelas. As recompensas são doces demais. — Suspirou com pra­zer assim que ela ficou nua, colocando-se sobre seu corpo, saboreando a sensação do toque entre as peles. — Não quero que parta, mas é melhor do que vê-la com Egan ou, pior, saber que ele pode pegá-la sozinha em algum lugar e estuprá-la e que eu não poderia impedi-lo.

Annora acariciou seu rosto.

— Eu me mantive longe dele por três anos. Posso fazer isso mais um pouco. Meu plano é partir somente quando não tiver mais opções. Meggie precisa de mim e, se eu precisar ir embora, ela ficará sozinha, não importa quantas babás Donnell coloque ao redor dela.

— Marta e eu poderíamos ajudar — começou, surpre­so quando ela o impediu de prosseguir com um beijo cur­to e intenso.

Annora sabia que não poderia guardar mais segredo sobre os planos de Donnell para a menina. James não es­tava Arme na decisão de ficar e lutar para recuperar seu direito. Seu medo por ela era comovente, mas ele precisa­va deixá-lo de lado, ver que havia muito mais a ser salvo. Só esperava que o que estava prestes a revelar não fosse mais um motivo para fugir para a França.

— Meggie tem que ser observada com muita aten­ção pelos próximos anos. Donnell está arranjando um casamento para ela com o filho mais novo de sir Ian Chisholm. — Ela passou os braços em volta dele e man-teve-o apertado quando o corpo inteiro ficou tenso como se ele estivesse a ponto de sair da cama e matar Donnell imediatamente.

— Não — foi tudo o que James conseguiu dizer, a garganta apertada de fúria. Ele ansiava para abater Donnell, mas, apesar da fúria, não lutou contra o abraço apertado de Annora.

— Não está completamente acertado, mas é outra ra­zão para ficarmos e conseguirmos fazer o que se dispôs desde o início. Donnell fez muita gente pensar que Meggie é filha dele e a perseguiria se a levássemos. Suspeito que Chisholm também o faria, pois ganhariam muito ao unir sua família à de Donnell. A segurança e a felicidade dela dependem de você derrotá-lo e recuperar tudo o que perdeu. Na verdade, essa é a solução para todos os seus problemas e os do povo daqui. Não pode deixar sua ira conduzi-lo, pois irá levá-lo ao caminho errado no final. A raiva sempre faz isso.

James descansou a testa contra a dela enquanto lutava para clarear a mente e o coração da fúria dentro de si, uma ira selvagem e um medo profundo pelo futuro da filha. Foi isso o que finalmente o ajudou a recuperar o controle. Annora tinha razão. A única forma de salvá-los era continuar tentando recuperar o que Donnell roubara dele. Que o seu plano o deixasse incapaz de proteger suas mulheres era um remédio amargo de engolir, mas ele o faria. E, no final, era a única forma de salvá-las.

Até que a ameaça a Annora fosse grande demais, pro­meteu em silêncio. Ele não permitiria que Egan a tomas­se, antes ou depois do casamento. Meggie estava segura até o dia do primeiro sangramento, para o que faltavam anos, mas Annora tinha somente um mês antes de ser ar­rastada para diante de um padre e amarrada para a vida toda a um homem que já deveria ter sido enforcado. Por enquanto, permitiria que as coisas continuassem assim, mas se Annora estivesse em perigo real, ele a levaria de lá mesmo que tivesse que amarrá-la e carregá-la em um saco. Não duvidava que Meggie seria sua aliada quando entendesse o que aconteceria caso Annora ficasse. Fitou seus lindos olhos e viu tanto medo quanto resolução neles. Ela discutiria com ele e tentaria fazê-lo mudar de idéia. Portanto, não planejava contar-lhe nada a respeito. A preocupação com a segurança dos outros acima da sua o comovia, mas não permitiria que fizesse grandes sacrifícios. Fugir para a França com elas aca­baria com seus planos para recuperar Dunncraíg, mas não para sempre. Assim que parassem de caçá-los, o que aconteceria em algum momento, e ele as tivesse levado para algum lugar seguro, voltaria e tentaria de novo. Esse plano estava funcionando e tinha certeza de que criaria outro que também funcionasse.

Pensou em distraí-la de todo o assunto dos planos de Egan e Donnell para ela e Meggie, e quase sorriu. Estavam nus e juntos na cama atrás de uma porta tran­cada. Planejaria a segurança delas mais tarde. No mo­mento, pretendia tomar sua mulher.

Reconhecendo o brilho em seus olhos, Annora estre­meceu.

— Terminamos de discutir o assunto? — perguntou, correndo as mãos por seu corpo, adorando senti-lo.

— Sim, chega de falar. Pretendo distrair-nos das pre­ocupações.

— Acho que eu aprovo a ideia.

— E mesmo?

— Ah, sim. Permita-me mostrar como eu aprovo.

E ela o fez, para delícia de James. Mais tarde, deitado ao lado dela, com os reflexos de todo o prazer que ela tinha lhe proporcionado ainda no corpo, sabia que fugiria de lá em um piscar de olhos se aquilo significasse mantê-la ao seu lado. O fato de planejar tentar novamente mais tarde redimir seu nome e livrar Dunncraig de Donnell MacKay tornava mais fácil pensar naquilo, mas ele sabia que fu­giria com Annora e Meggie e nunca olharia para trás, se fosse necessário, para mantê-las seguras. Só rezava para não ter que ser daquela forma, pois Annora merecia ser a senhora de Dunncraig e Dunncraig merecia tê-la.

Enquanto James se apressava pelo caminho que le­vava à vila, imaginava mais uma vez por que Edmund mandara chamá-lo. Havia muitas possibilidades e o mo­tivo podia ser qualquer um, desde uma mensagem de sua família até alguma informação importante. Ele ou Ida poderiam ter descoberto algo que finalmente poria fim àquele jogo todo, ocasionando seu retorno como o senhor de Dunncraig, um homem livre novamente. Era provável que fosse uma mensagem de sua família, pois havia en­viado notícias de seus planos. Insistira ainda para que eles se mantivessem afastados, o que não significava que tivessem dado ouvidos a seu pedido.

Com o canto do olho, viu alguém em meio às árvores. Por instantes, pensou que pudesse estar sendo seguido.

Desde que soubera que MacKay pretendia casar Annora com Egan, sentia-se observado por Egan o tempo todo.

Assim que parou e olhou para as árvores, percebeu que não tinha imaginado coisas. Havia alguém ali. Duas pes­soas, mais precisamente. Egan pressionava uma mulher contra uma árvore e acasalava com ela. Não havia outra palavra para descrever a cena. As calças dele estavam abaixadas em volta dos tornozelos, as saias da mulher se enrolavam ao redor da cintura e Egan arremetia com tan­ta força e rapidez que as costas dela se esfregavam contra a árvore a cada movimento. A rudeza do ato fez James imaginar que ela estava sendo obrigada, que pudesse ser outra vítima da luxúria dele. Aproximou-se mais um pas­so no momento em que a mulher virou a cabeça e olhou para ele. Ela o viu e sorriu de forma a mostrar que permi­tiria de boa vontade que fizesse o mesmo logo que Egan terminasse. Meneando a cabeça, James saiu dali antes que o homem levantasse o rosto dos seios voluptuosos e o visse. Teria que fazer uma boa limpeza no castelo assim que o retomasse, pois, aparentemente Donnell o havia enchido de prostitutas.

James chamou Edmund ao entrar em sua pequena oficina. O amigo veio correndo dos fundos, olhou em vol­ta para se assegurar de que ninguém o havia seguido e arrastou-o em direção ao lugar de que tinha saído. Tudo sem dizer uma palavra. A preocupação que James come­çava a sentir com a atitude do amigo desvaneceu assim que viu os dois homens sentados em volta de uma peque­na e rústica mesa no meio do aposento. A família tinha ignorado sua determinação de que permanecesse afasta­da e permitisse que decifrasse sozinho o mistério.

Tormand Murray podia não ser seu parente de sangue, mas James sabia que eram irmãos de todas as outras formas que importavam. Eric e Bethia Murray o tinham adotado quando ele ficara órfão, com um ano de idade, logo depois de terem lutado para derrotar o homem que o queria morto, a fim de reclamar Dunncraig. Não devia a eles somente a vida, mas a boa vida que tivera. Cada criança nascida depois de sua adoção fora apresentada a ele como irmão e ele tinha sido criado como um deles, nunca tendo sido tratado de outra forma. Se não tivesse herdado Dunncraig, uma fortaleza dos Drummond, teria trocado o nome para Murray, pois todo o clã sempre o ha­via tratado como um dos seus. E, no momento, se sentia como qualquer um ao ter seus desejos totalmente igno­rados pelo irmão mais novo. Queria derrubar Tormand com um soco.

— Vejo que ainda tem problemas para obedecer ao mais simples dos comandos — disse James.

Um largo sorriso foi a primeira resposta à provocação, mas Tormand logo ficou sério de novo.

— Este é sir Simon Innes — apresentou, acenando para o acompanhante, que logo se levantou e curvou-se. — É um homem do rei. De confiança.

— Você trouxe um homem do rei para cá? Esqueceu que eu sou um proscrito?

— Simon jurou... não se lembrar disso. E, se não con­seguirmos descobrir nada para ajudá-lo a provar sua ino­cência, ele também prometeu apagar da memória o fato de tê-lo visto.

James sabia que estava olhando para o irmão como se ele fosse um completo idiota.

— Esquecer isso tudo, é?

— Sim — respondeu Simon em uma voz surpreenden­temente profunda para alguém tão magro. — Esquecerei de tudo. Na verdade, eu nunca concordei com o decreto. Conheço sir Donnell MacKay, não muito bem, graças a Deus, mas o suficiente para duvidar de sua palavra a respeito de qualquer coisa. Infelizmente, quando o de­creto foi assinado, eu não estava na corte. Acho que isso, também, tenha sido planejado.

— Parece que o destino esteve contra mim o tempo todo.

— Talvez o destino pensasse que você precisava de alguma humildade, irmão.

James olhou zangado para Tormand.

— E talvez o destino o tenha enviado aqui para levar uma surra bem dada.

— Sentem-se — ordenou Edmund, servindo uma jar­ra de cerveja escura em quatro dos belos cálices entalha­dos por James.

— Faz um trabalho bonito — disse Tormand ao se sen­tar e estudar a peça diante de si. — Mamãe ficou encan­tada com o par que enviou a ela na última festa de São Miguel, apesar de preferir vê-lo pessoalmente. A situação toda tem sido difícil para ela.

Depois de dar um longo gole na cerveja forte para afo­gar a súbita e dolorosa saudade da família, James res­pondeu:

— Sei disso, mas a morte estava no meu rastro e não podia conduzi-la até lá.

— Ela sabe disso e sempre diz que prefere nunca mais vê-lo se isso significar que continua vivo. — Tormand sor­riu. — Claro, ela sempre diz para papai que não sabe por que ele não vem até Dunncraig e corta MacKay em pequenos e sangrentos pedaços.

James riu, pois podia imaginar com facilidade a mãe delicada dizendo aquilo e o pai concordando calmamente em obedecer na manhã seguinte, ambos sabendo que ele não o faria, não importando o quanto desejasse.

— Então, além de assumir esse disfarce tão intrigan­te, o que mais fez até agora? — perguntou Tormand. — A propósito, escureceu todos os pelos?

— Não tanto quanto gostaria de ter feito — respondeu James, ignorando a segunda pergunta. — Fico repetindo para mim mesmo que descobrir a verdade a respeito de um homem tão habilidoso em escondê-la é um trabalho lento e que não posso me apressar. Simon assentiu.

— A necessidade de ser cauteloso sempre faz com que uma tarefa demore mais para ser realizada.

Murmurando a concordância, James observou Simon Innes. Seus olhos cinza revelavam uma inteligência agu­çada, que parecia ser bem utilizada. Era jovem demais para ser um homem de confiança do rei. Apesar da se­veridade quase predatória em suas feições, James sentia que podia confiar nele. A única pergunta era por que tinha escolhido ajudá-lo, algo que poderia enfurecer o rei ao de­monstrar dúvida quanto à sua decisão. Ficou um pouco surpreso ao perceber que verbalizara a pergunta e ainda mais espantado quando Simon sorriu, uma expressão que o tornou anos mais jovem e suavizou consideravelmente seu rosto.

— O rei já sabe que não gostei da decisão e o porquê. Meus questionamentos causaram algumas dúvidas, mas o ato já estava realizado. Revogar o decreto de repente faria com que ele e aqueles que o aconselharam parecessem fra­cos e facilmente persuadíveis. Algo que não seria bom.

— Claro que não. — James tentou engolir o ressenti­mento que sentia por ter sido abandonado daquela forma apenas para que o rei parecesse forte e resoluto.

— No entanto, seus parentes não desistiram.

— Não, eles não fariam isso. Teimosos, todos eles.

Tormand bufou.

— Diferente de você, não é? Um rapaz doce e obediente.

James ignorou-o.

— Então, tudo foi deixado da mesma forma, apesar de não parecer justo. Como, então, vem até aqui agora para tentar descobrir a verdade?

— Eu só precisava de um convite — respondeu Simon, — O rei e seus conselheiros, contudo, precisavam de mais. O fato de MacKay estar atacando os clãs vizinhos na ver­dade ajudou-o, apesar de eu suspeitar que você terá que lutar para esfriar os ânimos e compensá-los durante al­gum tempo. MacKay transformou um canto pacífico de nossa terra em um campo de batalhas e isso está pertur­bando o rei e seus conselheiros. Eu não estou aqui, não vi você e, claro, nunca o ajudei, mas tudo isso foi aprovado por um leve meneio de cabeça e uma piscada do rei.

— Os homens da corte nunca fazem nada de maneira simples e direta, não?

— Eles não podem e, depois de um tempo, acho que a maioria deles na verdade gosta do jogo. Então, descobriu alguma coisa? Ou, melhor ainda, encontrou alguma pro­va de que MacKay é culpado pela morte de sua esposa?

James hesitou por um momento. O plano de MacKay de casar Annora com Egan significava que ele não tinha mais tempo. Fazer tudo sozinho era bom para seu orgulho, mas custaria caro para ela. Sua família confiava em Simon e todos os seus instintos concordavam com aquilo. Por um instante, desejou saber a opinião de Annora, mas decidiu confiar no julgamento da família e nos próprios instintos.

— Para começar, há uma chance muito grande de que minha esposa fosse não somente amante de MacKay, mas sua aliada. Uma das criadas a viu entrar nos aposentos ele durante uma de suas visitas a Dunncraig, e disse ue logo ficou claro não ser um encontro inocente de pri­mos. Não sei quem é a criada, pois falou com a cozinheira e a fez jurar não revelar sua identidade para ninguém. Há também uma grande chance de Mary não ter morrido naquela noite. — James ficou satisfeito com a expressão de choque no rosto de Edmund e Tormand. Simon só pa­recia intrigado.

— Você a enterrou, não foi? — perguntou Simon.

— Enterrei um corpo que não foi identificado. O anel que eu tinha dado a Mary e alguns pedaços queimados do vestido que ela estava usando da última vez que a vi foi tudo o que consegui reconhecer. Deduzi que era ela, mesmo não conseguindo entender o que fazia no chalé. Agora, bem, suspeito de que era um dos lugares em que ela encontrava o amante.

Sabendo que detinha a atenção dos três homens, James contou a eles tudo o que acontecera desde sua che­gada a Dunncraig. Falou também sobre tudo o que havia descoberto e sobre como tinha feito aquilo. Edmund in­terrompeu somente uma vez, praguejando ao saber dos planos de Donnell de casar Annora com Egan e a pequena Meggie com Halbert Chisholm. Quando terminou o rela­to, cruzou os braços sobre o peito e aguardou as opiniões sobre os bons resultados ou, a seu ver, a falta deles.

— Percebo que você acha ter feito pouco — disse Simon depois de pensar alguns minutos. — Mas agiu muito bem. Ter Marta e Annora MacKay como aliadas ajudou-o bastante. Muitos homens ignoram as mulheres como fontes de informação, ou prestam atenção somente às que acham que podem seduzir para saber de algo. Quanto a isso, não estou seguro de que se possa confiar em tais mulheres. Muitos homens bons foram derrubados por es­cutar o que uma amante disse, somente para descobrir depois que ela estava trabalhando para os inimigos. O homem pensava que era o sedutor quando, na realidade, ocorria o contrário.

— Annora não está fazendo isso — afirmou James com firmeza, percebendo o aviso misturado à acusação na voz de Simon, e tentando não se zangar.

— Ela é uma MacKay e está vivendo sob o teto dele.

— Ela o despreza e odeia o que ele está fazendo com Dunncraig. Ela sempre questionou seu domínio sobre a propriedade e sobre Meggie. Marta confia nela.

— Assim como eu e minha Ida — disse Edmund. — Sendo uma órfã bastarda, mas de boa linhagem, a moça não pode escolher para onde a mandam. No mínimo, fará tudo o que puder para ajudar lady Margaret a permane­cer segura e feliz.

Simon assentiu em silêncio.

— Esse motivo para o auxílio é um que posso aceitar.

— Não acha que ela pode me ajudar por acreditar que sou inocente? Ela era uma donzela, e não uma prostituta treinada para cegar um homem com suas habilidades na cama. — James esperava que Annora nunca descobrisse como tinha se referido a ela de forma tão grosseira.

— Ela permanece em Dunncraig mesmo que o primo pretenda casá-la com um porco bruto?

— Como Edmund disse, ela fica por causa de Meggie. Faltam muitos anos para que MacKay possa casar a menina com Chisholm, mas Annora não pretende permitir que isso aconteça. Ela fica aqui porque precisa de um bom plano, um que a mantenha ao mesmo tempo segura e próxima para ajudar a criança quando for necessário.

— Então, devemos confiar nela.

James não tinha certeza se acreditava naquela afir­mação de Simon, mas não falou mais nada a respeito de Annora.

— Está planejando ficar na vila?

— Sim — respondeu Tormand. — Ninguém aqui sabe quem ele é e farei o máximo para me manter fora de vis­ta, apesar de Donnell nunca ter me encontrado e de eu não me parecer muito com nossos parentes.

— Você tem olhos de cores diferentes, como mamãe.

— Não exatamente. As cores dos dois são muito mais parecidas que os dela.

James não achava que os olhos de Tormand, um verde-claro, e o outro, azul-claro, eram tão semelhantes, mas como não se sentia inclinado a discutir o assunto no mo­mento, somente assentiu. Conversaram um pouco mais so­bre o que Simon e Tormand poderiam fazer para ajudar a encontrar algumas evidências para completar todas aque­las suposições. Simon não disse muito, mas o que disse fez com que James se sentisse confiante de que o homem tinha experiência em investigar segredos. Era provavel­mente uma habilidade que o tinha ajudado a permanecer perto do rei sendo tão jovem.

Quando começou a sair de lá, James estava esperan­çoso de que suas provações logo terminariam. Não ficou surpreso quando Tormand o seguiu para fora da oficina e puxou-o com pressa para um beco escuro. O irmão podia ser hábil em disfarçar os sentimentos de pessoas estra­nhas, mas a família praticamente sentia o mesmo que ele. James percebera que ele estava incomodado pelo fato de Annora ser parente de Donnell. Não o culpava pela inquietude, mas esperava que Tormand não se agarrasse a isso com muita intensidade.

— Tem algo a me dizer? — perguntou.

— Sobre essa moça, Annora... — começou.

— Ela é a mulher para mim, Tormand. A companhei­ra perfeita, aquela que nos dizem que espera por nós.

O irmão praguejou.

— Tem certeza? Não pensou que Mary era a pessoa certa?

— Não, nunca, mas estava cansado de esperar. Eu gostava dela e a desejava e achei que seria uma boa es­posa e me daria os filhos que eu desejava. Deveria ter prestado atenção ao que dizem os Murray e aguardado um pouco mais. No entanto, é algo difícil de aceitar, pois acho que qualquer homem resista à idéia de estar amar­rado a qualquer mulher, não importa quanto prazer es­teja envolvido.

Tormand assentiu.

— E descobri-la deixou-o ainda mais ansioso para limpar seu nome e recuperar Dunncraig.

— Sim, apesar de eu nunca ter pensado que seria pos­sível desejar isso ainda mais do que antes. Ela faz com que eu pare de pensar tanto em me vingar de MacKay e mais em apenas tentar resgatar meu nome e recuperar minhas terras para que possa tê-la a meu lado. Penso mais em construir uma vida segura e boa para ela e Meggie.

— Então, vamos fazer com que consiga isso logo. Simon é o melhor, James. Poucos o superam na habilida­de de investigar a verdade e perante um homem inocen­te injustiçado ele é ainda mais tenaz. Tem um profundo senso de justiça. Terminaremos isso e veremos MacKay na ponta de uma corda, que é o lugar dele.

Quando James assentiu e começou o caminho de vol­ta, Tormand se encostou à parede da oficina de Edmund e o observou. Assustou-se um pouco ao ver Simon ao seu lado, pois não havia escutado qualquer aproximação.

— Acha que ele está certo ao confiar na mulher? — perguntou Simon.

— Além de James, Edmund e Ida também confiam nela — respondeu.

Simon assentiu, mas franziu o cenho.

— Fico relutante em confiar em uma mulher que te­nha compartilhado a cama dele. Um homem pode ser fa­cilmente enganado e ficar cego diante de doces palavras e muita paixão.

Tormand imaginou o que teria acontecido para que o companheiro ficasse tão relutante em relação à confiança em uma mulher, mas resolveu não perguntar.

— James acredita que Annora MacKay é sua compa­nheira, a mulher perfeita para ele. Aquela que vai com­pletar sua vida e acalmar sua alma. É melhor não ques­tionar a honra dela de novo, pois ele não vai tolerar isso.

— Sua companheira?

— Sim. — Tormand sorriu. — É difícil para um homem compreender e eu não digo que goste da ideia, mas muitos em nosso clã sentem que há uma pessoa certa para cada um de nós. Alguns até dizem que é possível saber com um olhar e algumas palavras. James pode não ser um Murray de sangue, apesar de ninguém da minha família ser de fato, mas nós parecemos compartilhar o instinto. — Encolheu os ombros. — Quando homens como James têm um casamento tão fracassado com uma mulher que todos diziam ser perfeita, deve-se perguntar se há algu­ma verdade na opinião de tantos outros. Mary não era a companheira certa.

— Annora MacKay é?

— James acredita que sim.

— Então vamos rezar para que ele tenha razão, pois ele logo falará para ela a nosso respeito.

Annora estava quase dormindo quando escutou a ba­tida rítmica e suave de James na porta. Saiu da cama e foi abri-la. No escuro, teve um pouco de dificuldade para destrancá-la, mas ele entrou rapidamente, fechou-a e trancou-a de novo. Ela decidiu ignorar a voz suave em sua mente dizendo que aquilo não estava certo. Não ha­via como negar, pois ia contra todos os ensinamentos e avisos dados a uma donzela quando se transformava em mulher, mas ela queria passar cada momento que pudes­se ao lado dele. Pagaria as penitências mais tarde.

— O quê? Sem velas acesas e vinho para receber seu homem? — ele provocou, pegando-a nos braços e carregando-a para a cama.

Sorriu enquanto ele a despia com rapidez e entrava na cama a seu lado. Pouco depois, a camisola se encon­trava no chão. James respeitava muito pouco seu recato. Somente o fato de ser tão bom sentir a pele dele contra a sua a impedia de reclamar da velocidade com que ele a deixava nua.

— Você parece animado — murmurou, contorcendo-se um pouco ao sentir o prazer crescente conforme ele aca­riciava suas pernas.

— Muito animado e ansioso para contar as novidades. Meu irmão e um homem do rei estão na vila.

Annora não achou uma boa novidade o fato de um ho­mem do rei saber onde James estava.

— Um homem do rei? Não é perigoso para você? Ele não pode ignorar o fato de que você é um fora da lei.

— Pode, sim. Ele nunca concordou com o decreto. Acre­dita que Donnell sabia de sua discordância e que tinha consciência de que ele poderia ter falado com o rei e com os conselheiros sobre o decreto. Porém, não se encontra­va na corte naquele dia.

— Ah, e você acha que meu primo fez com que as coi­sas acontecessem tão rapidamente por ter conhecimento desse fato?

— Acho que sim e sir Simon Innes, o homem do rei, também. Meu irmão Tormand e ele ficarão na vila e ten­tarão descobrir algumas coisas que possam nos ajudar a provar que MacKay é quem deveria estar fugindo e se escondendo.

Annora queria fazer várias perguntas a respeito da­queles novos aliados, mas ele começou a beijar seus seios, fazendo desvanecer toda sua capacidade de pensar com clareza. Quando tentou participar do ato de amor, James capturou seus pulsos e segurou seus braços. Ficou inde­fesa sob o corpo dele, sentindo-o cobrir os seios de bei­jos, atiçar os mamilos intumescidos com a língua e sugar cada um até quase fazê-la gritar de prazer.

Deixou uma trilha de beijos por seu corpo em dire­ção ao ventre, despertando nela uma ânsia desesperada, enlouquecendo-a. Sentiu-o tocar com a boca seu recanto mais íntimo, o lugar em que ardia de desejo por ele. Ficou tensa por um momento, assustada e perturbada com ta­manha intimidade, mas os carinhos excitantes da língua habilidosa a atordoavam. Cada carícia íntima aliviava a tensão nascida do embaraço e o recato foi logo esquecido, sendo substituído por uma necessidade cega. Estremecia e arqueava os quadris em direção aos lábios macios e quentes, sentindo o desejo tomá-la por inteiro.

Percebendo que se aproximava do momento de delírio supremo, gritou seu nome, querendo e precisando que ele estivesse em seu corpo para conduzi-la às delícias do pra­zer absoluto. James deitou-se sobre ela e cobriu sua boca enquanto a penetrava. Gritou quando ele se encaixou em seu corpo, preenchendo-a e se movimentando, provocando sensações deliciosas que embotavam seus sentidos, fazen­do-a concentrar-se apenas na busca da liberação. Cada arremetida intensificava seu prazer, até ser assolada pelas ondas ardentes do clímax. Vagamente consciente, sentiu-o atingir o próprio prazer e ouviu-o sussurrar seu nome.

James sorriu ao ver que ela mal se moveu quando a limpou dos vestígios da paixão. Estava ainda tão lânguida com o prazer saciado que beirava a inconsciência. Voltou para a cama e puxou-a contra o peito, as nádegas firmes e arredondadas se encaixando perfeitamente em sua virilha. Nunca teria acreditado que a doce e tranquila Annora que encontrara ao voltar a Dunncraig seria uma amante tão ardente. O fato de que fazer amor com ele quase a fizesse desmaiar, amenizava todas as feridas in­fligidas pela frieza de Mary.

— Acho melhor eu não ficar a noite toda.

— E, não seria prudente. — Annora não conseguia es­conder a tristeza. Amava ter o corpo grande e quente ao seu lado e a cama ficaria muito fria e vazia quando ele saísse.

— Sei que eu deveria me manter totalmente afastado, mas não consigo. Então, vou fazer o máximo que minha fraqueza permite para protegê-la.

— De Egan?

— Não acho que seu primo também ficaria muito sa­tisfeito, não?

Ela estremeceu ante o mero pensamento de Donnell descobrir que tinha um amante.

— Não. Ele acha que tem direito de dormir com qual­quer empregada que vê, mas ficaria enfurecido se achas­se que eu não sou mais uma donzela. Por tudo o que ob­servei, ele quer que todas as mulheres que deseja, sejam prostitutas, mas exige que suas parentes sejam puras como a neve. E vê o contrário como um insulto pessoal.

— Bem, muitos homens têm a mesma opinião, mas suspeito que a reação dele ao fato de você permitir que eu esteja em sua cama pode ser fatal.

Ela virou-se para encará-lo.

— É, mas eu acho que ele ansiaria vê-lo morto mais que a mim. Não tenho certeza se Egan sentiria a mesma coisa.

— Calma — disse, beijando-a. — O perigo sempre es­teve presente. Seremos muito cuidadosos. O fato de você ser vista como uma donzela doce e inocente vai nos pro­teger um pouco. Ninguém suspeitaria que você é uma mulher passional que enlouquece um homem no quarto.

— Acho que a loucura é compartilhada — ela disse calmamente. — Então, sobre o que você, seu irmão e esse Simon falaram?

— Sobre como eu posso recuperar meu nome, minhas terras e minha filha, e sobre como eles podem me ajudar. Acho que Simon talvez esteja se sentindo um pouco cul­pado por não ter estado lá e tentado deter o decreto. Meu irmão disse que ele tem um forte senso de justiça, que foi totalmente negligenciada nesse caso. Então, eu contei a eles sobre o que já sabemos e eles querem descobrir mais. Também falei sobre as possibilidades que discutimos, in­cluindo a traição de minha esposa.

— Sinto muito que tenha exposto essa mágoa para esses homens.

— Certo embaraço por ter sido visto como um tolo cego é um preço pequeno a ser pago se eles acharem as provas de que eu preciso para ser livre novamente.

— Se ajuda a amenizar seu constrangimento, muitos de nós fomos enganados por Mary. Eu não a conhecia bem, mas todos sempre falavam dela como uma pessoa tímida, doce e quieta. Uma dama perfeita que conhecia seu lugar e cumpria todos os deveres com habilidade e paciência. — Annora se lembrava de a terem citado como exemplo a ser seguido.

— Mesmo que eu acreditasse desejar isso em uma es­posa, quando você fala como ela era vista pelos outros, parece uma mulher muito aborrecida. — Ele sorriu. — Você é uma mulher excitante. E muito quente.

Quando ele começou a beijar seu pescoço, Annora aqueceu-se ainda mais.

— Pensei que tivesse dito que não poderia passar a noite.

— Não posso, mas a noite está apenas começando. Faltavam apenas algumas horas para o amanhecer, mas como as mãos habilidosas estavam fazendo seu sangue ferver, Annora decidiu que seria uma grande tola se discutisse com ele.

— Annora!

Annora surpreendeu-se quando a voz alta da criança ecoou no bosque. Olhou ao redor e percebeu que Meggie não estava mais a seu lado. Por um instante, ficou aterrorizada com a quantidade de coisas horríveis que po­deriam ter acontecido, mas ao levantar-se, percebeu que não havia sinal de medo ou dor na voz dela. —An-nor-a!

— Onde você está, Meggie? — gritou.

— Aqui!

Virando-se na direção do som, finalmente a viu e ficou aliviada que não estivesse tão longe. A criança estava ao lado de uma árvore enorme, que tinha quase tantos galhos mortos quanto vivos. Annora pensou que deveria avisar alguém, pois seria uma boa fonte para a lenha, tão necessária. Meneando a cabeça ante a súbita tendência de sua mente vagar nos últimos tempos, olhou zangada para Meggie.

— Margaret Anne Drummond, sabe muito bem que não deve andar por aí sozinha — ralhou, lutando para parecer o mais dura possível, mesmo que o alívio ao re­parar que ela estava bem, suavizasse sua voz.

— Encontrei uma coisa. Venha ver.

Enquanto se aproximava dela, planejava o sermão que faria. Na maior parte do tempo, Meggie era uma criança boa e obediente, que causava poucos problemas, mas ti­nha também uma grande curiosidade que às vezes a des­viava do caminho. Era fundamental agora que ela ficasse por perto. Donnell deixara claro que sabia poder usar a criança contra ela, o que significava que Egan também sabia disso. Os ataques aos vizinhos também indicavam que havia muitos homens zangados ao redor das terras de Dunncraig que gostariam de infligir dor a quem havia causado tanto mal.

— Veja, encontrei um livro na árvore — Meggie disse quando Annora a alcançou.

Annora olhou para o livro estendido e o sermão que havia preparado fugiu de sua mente. Reconheceu o que era. Era o tipo de livro que as damas gostavam de usar para registrar os pensamentos ou todas as coisas que ti­nham acontecido durante o dia. Poucas mulheres escre­viam bem, o que os tornava um luxo raro. Um luxo que uma mulher como Mary podia ter tido e apreciado. Não se surpreendeu ao perceber que as mãos tremiam leve­mente ao pegar o livro. Agradeceu a Deus que os guar­das, entediados de observá-las colher musgo, tivessem saído de vista, pois sentia que essa era uma descoberta que não podia chegar aos ouvidos de Donnell.

— Estava embrulhado nesse tecido e enfiado na árvore. Eu estava correndo e tropecei e caí perto do buraco da ár­vore e olhei dentro e estava lá. Você pode ler para mim?

Olhando para o couro que envolvia o livro, Annora não se espantou por estar em boas condições. Quem quer que o tivesse escondido, queria ter certeza de que sobreviveria. Isso talvez indicasse que continha alguma informação re­levante para alguém. Pelo que sabia, só havia acontecido uma coisa em Dunncraig a respeito do que valeria a pena escrever. Esconder o livro no qual a verdade tinha sido re­gistrada poderia ser o pior crime cometido contra James.

Abrindo-o com cuidado, leu as poucas palavras na pri­meira página e sentiu o coração parar por um instante para, em seguida, voltar a bater tão acelerado. O livro fora um presente da mãe de Mary, dado a ela no dia do casamento, ou, como a mãe havia escrito, o primeiro dia de sua vida como uma dama, uma esposa, e, se Deus qui­sesse, uma mãe.

— Acho que isso não será interessante para você, Meggie — respondeu, por fim, espantada com a tranquilidade transmitida por sua voz. Por dentro, tremia, esperançosa, com uma intensa necessidade de um lugar calmo para ler. — É o livro de uma dama na qual ela lista tudo o que faz todos os dias.

E, uma vez que a dama em questão era a mãe da me­nina, o que estava escrito no diário não era para seus ouvidos delicados.

— Ah... — Fez uma expressão de desagrado. — Por que uma dama se incomodaria em escrever isso? Todos sabem o que uma dama faz. — Pegou o tecido de couro e enfiou-o no pequeno saco que carregava. — Imagino que ela escreveu sobre coisas interessantes.

— Bem, se eu achar algo interessante, conto para você. E, Meggie, meu amor, é melhor não contarmos a ninguém sobre isso até que eu saiba de quem é e o que diz. Estava escondido na árvore por algum motivo e acho que tenho que descobrir o motivo antes que alguém saiba o que você encontrou.

Meggie franziu a testa e assentiu.

— Acha que pode haver segredos nele.

— Pode, sim, pois isso explicaria por que estava es­condido.

— Não direi nada. Posso ficar com o tecido se disser que o encontrei no bosque?

— Sim, e isso não é uma mentira. Encontramos no bosque. Só não diga a ninguém o que estava dentro. Vamos voltar.

Foi difícil manter a calma enquanto elas voltavam à tarefa tediosa de colher as plantas necessárias para curar. No entanto, uma vez que Donnell tinha começado a atacar os vizinhos, havia muitos ferimentos a serem tratados. O que Annora estava desesperada para fazer era ler o di­ário que tinha guardado na sacola. Não vira mais nada além da primeira página, mas jurava sentir Mary no livro.

Esperava que não fosse imaginação, que Mary tivesse de fato escrito bastante e que houvesse algumas respostas para as dúvidas dela e de James. Só esperava que as res­postas não o fizessem sofrer ainda mais.

— Não posso deixá-lo ver isto — disse Annora para o gato que ronronava em seu colo.

Olhou para o diário nas mãos e se perguntou o que de­veria fazer. Havia ali apenas pistas dos planos de Donnell, pois Mary obviamente não estava interessada em saber como conseguiria o que desejava. Porém, deixava bem cla­ro, repetidas vezes, que tinha se casado com James so­mente porque Donnell queria. Era difícil para Annora vê-lo como um amante capaz de envolver alguém tão completamente, a ponto de levar a pessoa a fazer o que Mary fizera por ele, pois via com clareza o bruto vaidoso que era. A mulher também havia deixado evidente, de forma odiosa por diversas vezes, seu desagrado em com­partilhar a cama de James. Não queria que ele lesse pa­lavras tão cruéis.

— Ah, Mungo, não sei o que fazer. Sim, isso confirma que Donnell e Mary eram amantes mesmo antes de ela se casar com James. É óbvio que ele não percebeu a falta de inocência da noiva, mas talvez ela tenha feito algum tru­que. Ainda assim, o diário não diz muito sobre o plano para se livrar de James. Uma pista, nada mais. E os relatos ter­minam meses antes do incêndio. Acho que talvez haja ou­tro desses pequenos livros escondidos em algum lugar.

Mungo esfregou a cabeça em sua mão, em um pedido silencioso por um carinho nas orelhas.

— Acho que devo esconder esse e começar a procurar o outro. Tem que haver mais um. Por tudo o que acabei de ler, Mary realmente gostava de escrever sobre seus sentimentos, reais ou imaginários. Ela preencheu todo o espaço nessas páginas.

E muito daquilo eram apenas os lamentos de uma criança mimada que não conseguia tudo o que desejava, pensou Annora. A maioria das mulheres se casava com homens escolhidos pela família. Mary, pelo menos, conse­guira um marido jovem e charmoso. Ainda mais notável, tivera um marido que havia acreditado nos votos e os tinha honrado, mantendo-se fiel a ela apesar do desgosto frequentemente expresso em relação ao ato de amor com ele. Alguém deveria tê-la chacoalhado e enfiado algum bom senso naquela cabeça, concluiu. Em vez disso, tinha acreditado que Donnell era seu amor verdadeiro, o me­lhor dos homens. O erro de julgamento possivelmente a levara à morte.

Colocando gentilmente o gato sobre a cama, decidiu começar a procurar o diário. Tinha certeza de que havia outro, assim como sabia que estava escondido em algum lugar ao qual Mary ia sempre. Achava que Mary tinha ido bastante ao bosque, com frequência suficiente para ter en­contrado aquele bom esconderijo. Se também costumava ir bastante ao chalé, poderia haver algo escondido lá. O fato de o chalé ter se incendiado não significava, necessariamente, que um diário escondido houvesse tido o mesmo destino.

Suspirou ao sair do quarto, e ficou contente ao ver que os guardas não estavam lá, mas preocupada a res­peito de quanto tempo levaria para encontrar o diário e quantas vezes conseguiria ficar livre para procurar. Por um momento, sua segurança falhou, mas seus instintos diziam que havia outro, e que guardava verdades que po­deriam ser usadas para libertar James. Ela aprendera, havia muito tempo, a confiar nos instintos.

Subitamente, soube para quem perguntar a respeito dos lugares prediletos de Mary e se apressou em chegar à cozinha. Quase praguejou alto quando virou em um canto no fim dos degraus e se deparou com Egan. Moveu-se com rapidez para se afastar da parede, pois não queria ser pressionada por ele nunca mais. Estava em um lugar público e a chance de alguém aparecer era bastante alta. Esperava que isso fosse suficiente para fazê-lo hesitar a forçá-la a algo.

— Onde estão seus guardas? — ele quis saber.

— Só estou indo até a cozinha — respondeu com cal­ma. — Por que precisaria de guardas lá? — Temeu que eles fossem punidos por permitir que ela andasse livre e que aquilo os tornasse mais vigilantes justo quando pre­cisava que eles relaxassem.

Observou os olhos de Egan se estreitarem enquanto ele se esforçava para responder o verdadeiro motivo de ela ser constantemente vigiada. Annora sabia que o obje­tivo era evitar que ela ouvisse qualquer coisa que pudes­se fazê-la questionar o direito de Donnell de ser o senhor de Dunncraig. Homens com segredos sempre achavam necessário observar aqueles ao redor em busca de algum sinal de que tais segredos estivessem sendo revelados. Sabia também que não queriam que ela soubesse dis­so. Apesar de ofendida por acharem que ela era tão tola para adivinhar o porquê de ser vigiada com tanto cui­dado, também ficava contente. Quanto menos achassem que ela sabia, menos perigo estava correndo.

— Você precisa ser protegida dos outros homens — Egan disse. — Pode haver alguns que não saibam que você é minha.

— Não sou sua.

— É, sim. Até Donnell diz...

— Egan, posso falar com você um instante? — Donnell disse em uma voz fria e dura, aproximando-se deles. Olhou para Annora como se a estivesse culpando pela língua solta de Egan. — Você não tinha algo para fazer?

Annora assentiu e quase correu para a cozinha. Pelo que James dissera, Egan não deveria contar-lhe sobre o casamento e Donnell parecera se sentir prestes a ser de­sobedecido. Egan não sofreria muito pela desobediência, pois eles eram companheiros desde a infância e conhe­ciam os segredos um do outro. No entanto, os próximos minutos seriam muito desagradáveis para ele. Annora teria que se satisfazer com isso.

Levou algum tempo até convencer Marta a ir para al­gum lugar onde pudessem conversar a sós. Vencida pela curiosidade, Marta finalmente levou-a para um pequeno aposento nos fundos da cozinha onde eram guardados os alimentos mais caros, coisas como condimentos e vinho.

— Sobre o que quer falar? — perguntou, acendendo algumas velas e fechando a porta. — Estava indo para a cama... — Acenou para os fundos do aposento.

Annora arregalou os olhos ao ver a pequena cama.

— Você dorme aqui?

Ela encolheu os ombros estreitos.

— É mais fácil do que andar de volta para a vila, ten­tar dormir na casa lotada de meu filho e depois andar todo o caminho de volta antes de o sol nascer. O cheiro também é melhor. Então, o que precisava me contar que ninguém mais pode ouvir?

— Preciso fazer algumas perguntas a respeito de Mary.

— Por quê?

— Acho que ela tem um papel muito grande nas tra­mas e conspirações que puseram o traseiro de meu primo na cadeira do senhor de terras.

— E por que você acha isso?

Annora sentia que a mulher lutava para manter a boca fechada e ser cuidadosa antes de falar. Marta sa­bia algo sobre Mary e acreditava que não devia contar a ninguém, exceto talvez a James. Teria que compartilhar informações com ela antes de conquistar sua confiança para fazê-la revelar o que sabia.

— Meggie encontrou um pequeno livro escondido no buraco de uma velha árvore — disse, por fim.

— Que tipo de livro?

— Um daqueles pequenos em que as damas gostam de escrever sobre suas vidas, suas provações e alegrias.

— Um desperdício de pergaminho, acho — resmungou Marta. — Se uma mulher tem segredos, parece-me que a maneira mais certa de se assegurar de que todos saibam é escrevê-los em um pequeno livro. Você leu, então?

— Sim, e pertencia a Mary. — Ela assentiu quando os olhos da mulher se arregalaram mais de expectativa do que de surpresa. — Mary e Donnell eram amantes. Isso foi deixado bem claro no diário.

— Sim, eram amantes e provavelmente antes de ela se casar.

— Muito antes.

Marta meneou a cabeça e praguejou.

— Mulher tola. Sim, e completamente sem juízo por escrever todos os pecados.

— Nisso concordamos. Como soube que eles eram amantes?

— Uma das empregadas a viu entrar nos aposentos dele e escutou o suficiente para perceber isso.

— Meu Deus! Você acha que ela contou a mais alguém o que viu? — perguntou, imaginando se poderiam levá-la até o irmão de James e o homem do rei.

— Não. Tive que extrair dela palavra por palavra e só depois de jurar silêncio. Então, queria que eu confirmas­se o que leu no livrinho?

— Não. Preciso que me diga se Mary tinha algum lu­gar de que gostava, lugares aonde ia para ficar sozinha.

— Quer dizer como o aposento do senhor?

— Bem, sim, apesar de eu rezar para que o que eu procuro não esteja escondido lá, pois isso tornará minha busca quase impossível. Donnell mantém o quarto muito bem vigiado.

— É assim que age um homem que tem muitos segre­dos, especialmente do tipo que pode levá-lo à forca.

— Verdade. Acredito que ele tenha muitos segredos.

— Quer saber se Mary tinha lugares secretos para cometer adultérios sem ser pega?

— Não. Acho que ela pode ter escondido um segundo diário. Aquele que Meggie encontrou só vai até alguns meses antes de ser morta.

Marta ficou tensa e observou Annora com atenção an­tes de dizer:

— Sim, há alguns lugares aos quais ela ia. Agora que sei um pouco mais a respeito dela, suspeito que eram luga­res onde podia encontrar seu amante sem temer ser pega.

Quando a mulher se calou e ficou olhando para o pró­prio pé, Annora perguntou suavemente:

— Consegue pensar em algum?

— Sim. Estava só tentando pensar naqueles que po­deriam dar-lhe uma chance de enterrar ou esconder algo. Perto do riacho. Mary normalmente se esgueirava para ir até lá. Não se consegue ver o lugar daqui por causa das árvores enormes. Eu a vi escapar várias vezes naquela direção e, agora que penso nisso, era justamente quando aquele bastardo estava visitando o castelo.

Annora pensou por um momento, tentando imaginar os vários locais perto do riacho onde alguém poderia se esconder ou, ao menos, ficar fora da vista de qualquer um em Dunncraig. Havia muitos nos quais podia pensar, apesar de raramente se aproximar da água. Tinha medo de rios e lagos desde que a mãe se afogara. Ainda assim, para encontrar provas que pudessem ajudar James a recuperar suas terras, ela procuraria no riacho por quilô­metros ao longo de cada margem, se necessário.

— Então, eu devo ir e descobrir o lugar secreto de Mary o mais rápido possível — murmurou.

— Acha mesmo que a tola escreveu outro diário?

— Acho, porque é evidente que gostava de escrever. Como ela permaneceu viva por diversos meses depois que terminou o outro, não acredito que tenha parado de escrever. Se estiver escondido em algum lugar perto do riacho, vou encontrá-lo. Pode muito bem conter o que é necessário para fazer Donnell pagar por seus crimes e devolver a James o que lhe é de direito.

— Você não pretende entregar o diário a ele, não é?

A mulher tinha uma percepção irritante, pensou Annora, e suspirou.

— Não. Não há nada lá que possa salvá-lo, mas há muitas coisas que o magoarão. Mary pode ter parecido doce e tímida para muitos, mas o que escreveu revela uma dose muito grande de crueldade. Presumo que te­nha contado a James o que a criada disse?

Ela assentiu.

— Sim, apesar de não querer, pois ele foi um bom ma­rido para a moça, muito melhor do que ela merecia, mes­mo que não o tivesse traído.

— Nisso concordamos. Ele já sabe que ela quebrou os votos com Donnell e tem certeza de que a mulher aju­dou a pendurar uma corda em seu pescoço ao fazer todos acreditarem que ele a matou. Não acho que precisa saber que o considerasse tão pouco, tanto como homem quanto como amante.

— Não, o rapaz não merece isso. Mas tem certeza ab­soluta de que nada naquele livrinho pode ajudá-lo?

— Tenho. Se nada mais for encontrado, então o darei a ele para que tente usá-lo para revogar o decreto.

— Justo. Se precisar de ajuda para escapar e olhar ao redor do riacho, é só pedir. Vou fazer o possível.

— Obrigada. Agora, é melhor eu tentar chegar ao meu quarto antes que Egan venha me cercar de novo.

Assim que Marta deixou-a sair do quartinho, Annora correu para a segurança do próprio aposento, atenta a qualquer sinal de Egan a cada passo. Ao alcançar a tran­ca de sua porta, mudou de ideia. Ele poderia muito bem tentar vir a seu quarto e não tinha certeza se a tranca o impediria. Ele, afinal, devia estar bravo por ter sido repreendido por Donnell e seria típico dele culpá-la por aquilo. Olhando com cuidado ao redor, apressou-se em direção ao quarto de James. Lá, certamente, estaria se­gura. Tornara-se amante dele havia pouco tempo, mas já sentia sua falta quando não estava em sua cama.

Mal bateu na porta, James a abriu e a puxou para dentro. Esperou que ele a trancasse e se virasse para ela. Por um instante, temeu ter ultrapassado os limites, mas a expressão em seu rosto afastou a preocupação. O sor­riso de orelha a orelha revelava que ela era bem-vinda. Suspeitou que a pontada de inquietude que detectava nele se devia ao fato de ela ter se arriscado demais para ir até lá.

— Isso não foi muito prudente, mas estou muito con­tente por vê-la aqui.

— Fiquei um pouco preocupada de ter passado dos limites — começou, ainda um pouco insegura.

— Não, meu amor, isso nunca. Se a ameaça de sermos descobertos não espreitasse em todos os cantos, não ha­veria nenhum segredo em relação ao que compartilha­mos. — Puxou-a para os braços e beijou-a. — Eu faria um estardalhaço e cada homem em um raio de muitos quilômetros saberia que você é minha.

— E cada mulher saberia que você é meu? — ela não resistiu à pergunta.

— Nenhuma mulher até a amaldiçoada cidade de Londres duvidaria disso. — Inclinou-se um pouco para trás e fitou-a. — Mas tenho a sensação de que foi mais do que meu charme que a trouxe aqui esta noite.

— Precisava me sentir segura.

James sentiu a raiva se agitar dentro dele por alguns instantes quando as palavras o tocaram profundamente. A ira nascia do fato de que Annora tinha sentido medo e suspeitava que Egan estivesse atrás dela. Ansiava por matá-lo ou ao menos surrá-lo, mas a justiça teria que esperar, pois havia muito em risco para ceder ao ímpeto. Que Annora pensasse que ele oferecia segurança, apesar de estar tão imobilizado quanto ela pela necessidade de esperar com paciência, o tocava de formas que ele não conseguia explicar.

— Então fique, e vamos fingir um pouco que tudo está bem em nosso mundo.

— Logo estará, James — Annora disse, enquanto ele a conduzia para perto da cama e começava a desatar seu vestido.

— De seus belos lábios para os ouvidos de Deus.

 

Não foi fácil despistar os guardas, que tinham se tomado muito mais diligentes em vigiá-la, mas Annora finalmente conseguiu. Dois longos dias tinham se passado antes que pudesse ganhar tempo e seguran­ça suficientes para ir ao riacho, e pretendia procurar em todos os esconderijos possíveis ao longo da margem. Não era possível saber quando teria outra oportunidade, e a última coisa de que precisava era de dois brutamontes observando sua busca. Os guardas reportariam tais ati­vidades a Donnell assim que retornassem a Dunncraig. Estremeceu só de pensar nos problemas que teria.

Olhando mais uma vez ao redor para se assegurar de que não estava sendo vigiada, agarrou a lapela do velho casaco com capuz que Marta havia lhe emprestado e se apressou na direção do riacho. Quando, por fim, o alcan­çou, encarou a água. Corria ruidosamente sobre o leito fluvial e parecia fria, mas não era tão profunda a ponto de representar uma ameaça real. Sentiu que seria possível não ficar tão assustada a ponto de deixar de fazer o que deveria ser feito. Chegou até a imaginar se conseguiria se livrar de vez daquele medo, mas afastou o pensamento, pois não era a hora de se preocupar com as tristes lem­branças da infância.

Quando chegou a um matagal repleto de sombras, soube que tinha chegado ao lugar especial de Mary. Encontrava-se a alguns metros de distância de onde o caminho estreito que vinha do castelo desembocava no riacho. Sentiu a excitação da iminente descoberta tomar seu corpo. Sabia que era tolice permitir que as esperan­ças aumentassem tanto, mas o instinto lhe dizia que es­tava a um passo ou dois da verdade sobre o que tinha acontecido com Mary. Chegou até mesmo a se pergun­tar se teria outro dom, que a levasse a encontrar coisas. Apesar de sempre ter sido boa naquilo, nunca fora tão importante achar algo.

O mato sombreado era um lugar bonito, cercado de ár­vores altas e antigas, e nem mesmo uma pessoa na torre mais alta do castelo conseguiria vê-la. Era, de fato, um lugar perfeito para encontrar um amante, pensou, espe­cialmente se todos acreditassem que a pessoa estivesse morta. Se Mary estivesse vestida de maneira apropria­da, qualquer um que a tivesse visto teria assumido que ela era somente uma criada que fora até a margem do rio para encontrar seu amante. Poucas pessoas temeriam estar vendo um fantasma.

Verificou com cuidado cada árvore, tentando encontrar uma abertura no tronco similar àquela onde Meggie tinha achado o primeiro diário. Para sua completa decepção, não havia nenhum, mas tranquilizou-se, dizendo a si mesma que não devia esperar que fosse tão fácil. Começou, en­tão, a examinar as raízes das árvores, na esperança de encontrar alguma elevação estranha ou um buraco ao re­dor delas, onde seria possível esconder um livro pequeno. No entanto, isso também foi infrutífero.

Já estava prestes a desistir quando pousou o olhar em duas grandes pedras perto da margem. Elas forma­vam um tipo de banco, no qual alguém poderia se sentar para observar o riacho correr. Pensou que Mary tivera bastante trabalho para fazer aquilo, ou pedido a alguém que o fizesse, a fim de se assegurar que suas saias não se molhassem ou se sujassem ao se sentar ali. De repente, o corpo inteiro de Annora se enrijeceu com a certeza da descoberta. Sentiu-se um pouco como um cão ao farejar a presa, e se ajoelhou ao lado das pedras para estudá-las com mais atenção.

Surpreendendo-se com a própria força, empurrou uma delas, mas só encontrou sujeira e muitos insetos. Recolocou-a depressa no lugar e se deslocou até a outra. Assim que conseguiu levantá-la do chão ficou tão surpre­sa com o que viu que a derrubou. Lutou para levantá-la de novo e conseguir deslocá-la um pouco para o lado. Vislumbrou ali, parcialmente enterrado na sujeira, um tecido de couro igual ao que embrulhava o outro diário.

Depois de retirá-lo cuidadosamente do solo, colocou a pedra de volta no lugar. Com a maior delicadeza possível, temendo que esse não tivesse sido tão protegido da umi­dade e da devastação provocada pelo tempo e pelo cli­ma, abriu o tecido. Quando viu que o livrinho estava bem embrulhado e em condições quase tão boas quanto o ou­tro, fez uma prece, agradecendo. Antes de folheá-lo, la­vou as mãos na água gelada do riacho e secou-as comple­tamente nas saias. Sentou-se nas pedras que o tinham abrigado por tanto tempo e se pôs a ler.

Ao terminar, colocou-o no colo e enxugou as lágrimas do rosto enquanto se perguntava por que chorava. Em meio a todas as queixas e divagações tinha uma história de traição. Mary havia traído James e Donnell a traíra. Annora supunha que era o suficiente para fazer qual­quer um chorar.

— Mulher tola e estúpida — sussurrou. — Você desis­tiu de tudo o que era bom por um homem que nunca a amou e foi recompensada com um túmulo anônimo e não consagrado.

Uma brisa fria soprou ao seu redor, fazendo-a estre­mecer. Todos sempre diziam que não se devia falar mal dos mortos. Por um momento, temeu que o espírito de Mary estivesse tentando alcançá-la, mas então olhou para o céu. Nuvens grandes e escuras rapidamente toma­vam conta do azul e prometiam uma tempestade violen­ta. Levantou-se, enfiou o livrinho em um bolso escondido nas saias e começou a caminhar de volta para o caste­lo. Para ter uma boa desculpa caso alguém a pegasse do lado de fora sozinha, parou para colher algumas plantas que poderiam ser úteis. Era tão fácil encontrá-las por ali. Deveria superar o medo de água e ir até lá com mais re­gularidade para descobrir a quantidade de plantas curativas que havia ao redor.

A cada passo que dava em direção ao castelo, mais se preocupava com o que diria a James. Não esconderia esse diário dele como tinha feito com o outro. Nele, estava a completa e feia verdade sobre todas as fraudes e deslealdades de Donnell, assim como a prova de que James não tinha matado a esposa. Mary vivera por quase um ano após a condenação do marido por seu assassinato Uma vez que ele tinha estado se escondendo e fugindo durante esse período, poderia ser difícil provar que não estava perto de Dunncraig na época das últimas anotações no diário. Nelas, Mary descrevia o medo de ser morta pelo homem que tinha amado durante tantos anos. Pelo que James dissera sobre a conversa com o irmão e o homem do rei, no entanto, suspeitava que aquilo não causaria mais problemas para ele. Aqueles no poder, que poriam um fim ao exílio de James, já tinham começado a duvidar das palavras de Donnell. Mary tivera um grande medo de apontar um dedo acusativo na direção do amante, mas Annora tinha certeza de que havia mais do que o suficiente no diário para incriminá-lo.

Estava tão envolvida em seus pensamentos que quase esbarrou em Donnell ao entrar no castelo. Não conseguiu esconder totalmente um rubor de culpa no rosto e espe­rava que o primo achasse que fora provocado pelo vento frio. Ela não só tinha se esgueirado para fora, burlando de novo os guardas, como em seu bolso estava um diário que poderia levar Donnell à forca. Não era fácil encarar um homem quando se estava trabalhando com empenho para vê-lo enforcado, pensou, mesmo que ele merecesse a punição.

— Onde estava? — ele exigiu e fez uma careta de desgosto ao olhar o casaco que usava. — E por que está usando esses trapos?

— Estava no bosque — ela respondeu, ignorando a crítica aos seus trajes.

— Sem os guardas. De novo.

A suspeita que percebia em sua voz e se refletia na expressão dos olhos deixou-a desconfortável, mas forçou-se a agir e falar como se estivesse calma, como um lago em um dia sem vento.

— Não posso sempre me lembrar de dizer aos seus homens aonde vou.

— Bem, sugiro com ênfase que tente. Agora, venha comigo até o escritório. Precisamos conversar.

Palavras agourentas, pensou ao segui-lo. A cada mo­vimento, o livrinho no bolso batia contra sua coxa, lembrando-a de que tinha um poderoso segredo para guar­dar. O medo crescia dentro de si, pois sabia que, se o livro fosse encontrado em seu bolso, sua vida correria risco imediato. James também perderia uma das primeiras fontes boas da verdade que estava procurando.

Uma vez no escritório, ficou em pé diante da grande mesa enquanto Donnell se sentava atrás dela. Colocou as mãos grandes sobre o tampo e a encarou em silêncio. Ele fazia isso sempre, e Annora tinha certeza de que preten­dia deixá-la nervosa ou com medo. Estava funcionando, apesar de não tão bem quanto em seus primeiros meses em Dunncraig. Ela encontrou seu olhar firme com uma calma aparente.

— Você tem agora vinte e quatro anos, não? — ele per­guntou, por fim.

— Fiz há dois meses.

— Já passou do tempo de se casar, não acha?

— Não tenho nada a oferecer para um marido. Nem terras, nem dote e nem mesmo um enxoval.

Donnell encolheu os ombros.

— Alguns homens não se importam com isso.

Alguns homens sendo Egan, ela pensou. Um nó gela­do se formou em seu estômago e pela primeira vez desde que o tinha encontrado se esqueceu do livro no bolso e de todo o perigo que corria.

— Ainda tenho que encontrar alguém — murmurou, sabendo bem que, apesar de Egan não esperar terras ou dinheiro, não estava se casando porque a amava. Ele es­perava algum ganho ao tomá-la como esposa. Só não sa­bia ainda o que seria.

— Bem, eu encontrei alguém e acho que sabe bem dis­so. Egan pediu-a em casamento e eu disse sim.

— Ele nunca me pediu e eu não teria aceitado se ele tivesse pedido. — Apesar dos esforços para falar com cal­ma e suavidade, Annora sabia que revelava algo na voz, pois Donnell começou a parecer bravo.

— Você aceitará, prima.

— Por quê? Por que tenho que me casar com aque­le homem? — Sabia, pelo rubor que tomava o rosto de Donnell, que estava sendo impertinente.

— Talvez eu esteja cansado de cuidar de você, assim como muitos de nossos parentes. Egan quer me livrar desse fardo e eu pretendo permitir que o faça. Você pensa mesmo que se sairia melhor do que isso? Você se esquece de quem é? Permita-me lembrá-la. Você é só uma bastar­da pobre e sem terras.

Annora sabia que ele estava sendo cruel de propósito, tentando dominar sua resistência com palavras duras, mas saber disso não diminuía muito a mágoa.

— Como quiser, primo — disse, sabendo que nada que dissesse ou fizesse mudaria a decisão. — Se me der licen­ça agora, tenho muito trabalho a fazer.

Ela não esperou a permissão para se retirar, virou-se e caminhou em direção à porta.

— Não ouse me desobedecer, Annora ou se arrepende­rá amargamente. E tente descer para o salão com mais frequência para fazer as refeições. Fará bem ao povo de Dunncraig ver você e Egan juntos algumas vezes antes do casamento.

Ela não olhou para ele, e somente assentiu enquanto se apressava para sair do aposento. Parecia, sem dúvi­da, um recuo, mas não se importava. Não sabia o que Donnell poderia fazer com ela que a afetasse mais do que casar com Egan. Quanto a compartilhar refeições com aquele homem, atuando como o casal sorridente em be­nefício do orgulho dele, o primo esperaria muito tempo para aquilo acontecer. Evitar o tormento valeria o risco de uma surra.

Após devolver o casaco para Marta e se assegurar de que Meggie estava segura e feliz com Annie no quarto, Annora se dirigiu a seus aposentos. Precisava se lavar e trocar de vestido antes de confrontar James com sua des­coberta. Não era uma tarefa que estivesse ansiosa para desempenhar. A última coisa que queria era magoá-lo, mas sabia como ele ficaria ferido ao ler o livrinho cheio de co­mentários maldosos, ainda que aquilo pudesse libertá-lo.

Quando estava prestes a sair do quarto, parou e olhou para o baú ao lado da cama onde tinha escondido o primeiro diário. Perguntou-se se também deveria le­var aquele. Escondê-lo de James era como mentir para ele, o que não gostava de fazer. Pouco depois, no entanto, meneou a cabeça e saiu. Toda a prova necessária esta­va no segundo diário. Ele revelava como Mary e Donnell tinham sido amantes durante anos e como haviam pre­tendido fazer o mundo pensar que James tinha matado a esposa. Comparado com o primeiro, a única coisa que faltava eram as muitas páginas de queixas sobre como Mary tivera que suportar James como marido, seu des­gosto ao compartilhar a cama com ele e o desejo de que Donnell se apressasse para libertá-la do matrimônio. Na realidade, ele encontraria mais do que dor suficiente nas palavras do segundo diário, incluindo as que revelavam a decepção com a maternidade.

Estava quase na hora de descer ao grande salão, e ainda não havia encontrado James. Começou a temer que pudesse ser vista e obrigada a compartilhar uma refeição com Egan caso não saísse logo de vista. Quando voltou ao aposento dele pela segunda vez e ouviu a resposta à batida na porta, quase praguejou. Eles obviamente tinham passado um pelo outro, diversas vezes enquanto o procurava. O fato de ele a cumprimentar nu, com um grande sorriso no rosto, não contribuiu para amenizar seu estado de espírito.

— E se não fosse eu? — ela perguntou, rindo baixinho quando ele a puxou para dentro e trancou a porta com rapidez.

— Ah, eu sabia que era você. — Tomou-a nos braços e carregou-a para a cama.

Annora ofegou, surpresa, quando ele se deitou com ela e começou a tirar suas roupas.

— James! Vim aqui para falar com você — protestou, a voz instável por causa do riso.

— Podemos conversar depois.

Ela abriu a boca para protestar de novo, mas decidiu fechá-la. O que ela tinha que contar e mostrar para ele o magoaria, ainda que afetasse mais seu orgulho. Annora podia não ter certeza de quais eram os verdadeiros sen­timentos dele por ela, mas sabia que a desejava e que ela despertava uma paixão tão forte que ele perdia a coerên­cia para falar. Fazer amor antes de dar as notícias ruins não o faria aceitá-las com um sorriso, mas amenizaria o impacto. O ato de amor ainda estaria fresco em sua men­te quando lesse todas as palavras cruéis de Mary.

— Sim, podemos conversar depois.

Annora deitou-o de costas, se posicionou sobre ele e fi­tou-o. Pretendia fazer amor com James de forma a fazê-lo sentir-se o homem mais charmoso e atraente que já exis­tira. Deixando todo o recato de lado, ela o beijou com in­tensidade. Ouviu-o murmurar palavras de encorajamento contra seus lábios, mas não precisava de estímulo. Estava em uma missão. Quando o corpo de James estivesse sacia­do com o prazer que ela lhe proporcionaria, seu orgulho estaria reforçado o suficiente para aguentar os golpes representados pelas palavras venenosas do diário.

Quando parou de beijá-lo, James fez um movimento para recuperar o controle, mas ela resistiu. Como havia esperado, aquilo despertou nele uma curiosidade sobre o que ela estava planejando e ele permaneceu sob seu corpo sem resistir. Uma onda de excitação cada vez maior toma­va conta dela conforme prosseguia. Beijou-o, detendo-se nos ombros, nos mamilos, no abdômen rijo e liso. O sabor delicioso, o ronronar sob suas carícias, o contorcer do corpo grande com a força do desejo crescente a estimularam, fazendo-a sentir-se incrivelmente ousada e atrevida.

O gemido que ele emitiu quando ela evitou a ereção e começou a beijar as pernas longas e fortes fez com que sorrisse. Era um som ao mesmo tempo de frustração e prazer. Sabia, instintivamente, que fazê-lo esperar in­tensificaria o prazer. Um ruído suave de prazer surpreso escapou de seus lábios quando ela beijou-o nos pés, mordiscando e sugando os dedos antes de retomar o caminho pela outra perna.

Quando chegou à virilha, sentiu o corpo de James se enrijecer com a expectativa e, desta vez, ela não o pro­vocou. Correu lentamente a língua pela extensão de seu membro, fazendo-o arquear os quadris e estremecer. Annora não precisava de seu dom para saber que estava lhe dando um prazer tão grande que era quase doloroso e dedicou toda a atenção a tentar enlouquecê-lo de desejo.

James enlaçou os dedos nos cabelos espessos e macios e segurou-a perto de si enquanto ela fazia mágica com a língua. Gemendo com a urgência de ser tomado por inteiro em sua boca, quase gritou de prazer quando a sentiu len­tamente tomar seu membro na cavidade quente e úmida.

Pelo tempo que conseguiu, James se deleitou com a dádiva da paixão, o corpo se contraindo de forma qua­se dolorosa conforme lutava contra a necessidade da li­beração. Por fim, sabendo que estava prestes a perder o controle, puxou-a para cima de seu corpo. Quando ela se posicionou sobre ele, viu o lindo rosto ruborizado e os olhos azuis escurecidos de desejo. Quase foi à loucura ao saber que ela tinha se excitado daquela forma ao amá-lo com a boca.

Assim que ela deslizou sobre ele, envolvendo-o com seu calor, James agarrou-a pelos quadris arredondados e macios e ajudou-a a encontrar o ritmo. Ansiava pelos movimentos intensos com desespero, sentindo-se perder o controle, entregue às sensações intensas que ela provo­cava. Atingiu o clímax mais rápido do que gostaria, com uma força que nunca experimentara antes, mas sentiu que ela logo o acompanhava, contraindo o corpo ao seu redor, parecendo beber com vontade a semente que ele depositava em seu ventre. A possibilidade de que aquela semente frutificasse somente aumentou seu prazer, ape­sar de saber que era um desejo inconsequente. Mal teve forças para pegá-la nos braços quando ela se prostrou sobre seu peito.

Durante um longo tempo, permaneceu deitado de cos­tas, sob o corpo de Annora, afagando-a de leve, sem forças para se mover. Ela também não tivera energia para se deitar a seu lado e se enroscar nele como sempre fazia.

Nenhuma outra mulher tinha feito amor com ele da­quele jeito. Uma vez, havia pagado a uma mulher para acariciá-lo com a boca, algo que muitas se recusavam a fazer ou acreditavam ser um pecado mais grave do que outros jogos que praticavam na cama. De repente, ficou feliz por nunca ter amado uma mulher com a boca como fizera com Annora, pois agora eles compartilhavam algo que nunca tinham feito com outra pessoa. Pela primeira vez, gostou do fato de sua experiência comas mulheres não ter sido tão extensa como a de alguns de seus irmãos ou primos.

Sentindo uma leve tensão no corpo de Annora, per­guntou:

— Está pronta para conversar agora?

Ela fez uma careta e se sentou devagar. Ficou espan­tada por estar somente um pouco embaraçada em rela­ção ao que acabara de fazer, mas se preocuparia com isso depois. Apesar de que a última coisa que desejava fosse estragar aquele momento lindo com o diário de Mary, es­tava na hora de ele ver o que havia encontrado.

James deve ter sentido sua inquietação, pois se sentou e franziu a testa conforme ela se afastava. Envolvendo-se com o lençol de linho, Annora saiu da cama para en­contrar o vestido. Pegou-o e agitou-o, pensando em como James era cruel com suas roupas. Tirou, então, o diário do bolso e entregou-o para ele.

— O que é isso? — perguntou, com uma sensação inquietante ao pegá-lo nas mãos. Não tinha nenhum dos dons dos Murray, mas seus instintos eram muito bons, e todos eles diziam que não gostaria do que estava prestes a encontrar.

— Um diário escrito por Mary. Começa alguns me­ses antes que você fosse proscrito e tivesse que fugir — Annora respondeu, sem se surpreender ao vê-lo empalidecer um pouco, mesmo que um brilho de expectativa tomasse seus olhos.

— Você o leu?

— Sim, e é triste dizer que pode ajudá-lo. Que o ajude é bom, mas é triste que sua própria esposa tenha partici­pado do que aconteceu com você. — Ela respirou profun­damente e começou a se vestir. — Não será uma leitura agradável, independente de como possa ajudá-lo.

James levou só alguns minutos para entender o que ela queria dizer. Tudo o que pensava era em como podia ter sido tão cego a ponto de não enxergar como a própria esposa o desprezava. Os comentários cruéis a respeito de sua masculinidade e de seu valor como amante o atingi­ram. No entanto, com as sensações de prazer após ter feito amor com Annora ainda tão vividas, as palavras perderam um pouco a força. Quando terminou a leitura, contudo, es­tava furioso, não só com Mary e Donnell. Estava com raiva de si mesmo por ter sido um idiota. Olhou para ela, que já estava totalmente vestida e sentada nos pés da cama, fitando-o com cuidado.

— Como eu não pude ver que Mary era uma... — Ele hesitou, as lições de cortesia da juventude dificultando que se expressasse como queria.

— Prostituta? — ela completou, corando de leve. Era um xingamento e era rude, mas não conseguia pensar em uma palavra melhor ao ver a dor e a confusão nos lindos olhos de James.

— Sim, uma traidora. — Ele olhou para o livrinho e encontrou os olhos preocupados de Annora novamente. — Uma prostituta traidora e chorosa. Como não pude ver?

— Porque ela não queria que você visse. James, muito poucos dos próprios parentes dela conheciam essa Mary do diário. Ela era sempre doce, tímida e muito zelosa. Pode não ter sido a mulher mais esperta do mundo, mas tinha uma astúcia que permitia que fosse o que deveria ser e ganhasse as recompensas pelo bom comportamento. Pelas costas de todos aqueles que a ensinaram a ser uma dama perfeita, provavelmente ria de nossa estupidez. O que pretende fazer com isso?

James saiu da cama e começou a se vestir, a raiva cres­cendo conforme ele colocava as roupas. Sabia o que tinha que fazer com o livro, apesar de não querer. Tormand e Simon precisavam vê-lo, no mínimo por causa de alguns nomes mencionados, de pessoas que poderiam encontrar. Pessoas que seriam testemunhas dos crimes que Donnell cometera.

Sentiu um toque leve no braço e olhou para Annora.

— Preciso ir até a vila e falar com Tormand e Simon — disse.

— É tarde.

— Eles precisam ver o livro o mais rápido possível, Annora, mesmo que me humilhe deixá-los ler as coisas que minha própria esposa disse a meu respeito.

Annora assentiu. Podia sentir a raiva de James. Ele, sem dúvida, se achava um tolo e estava sendo obrigado a revelar isso para os outros. Também se perguntava se ele tinha amado a esposa e se essa prova de traição e desafeição o feriam muito mais profundamente do que queria demonstrar.

— Tome cuidado — murmurou quando ele se dirigiu à porta agindo quase como se tivesse se esquecido de sua presença.

James parou, virou-se e deu-lhe um beijo intenso an­tes de começar a sair de novo.

— Seja cuidadosa ao sair daqui. Parece que minha pe­quena esposa fez algo bom, que foi escrever muito mais do que deveria. Logo podemos estar livres de Donnell.

Annora suspirou ao ver a porta se fechar atrás dele. Ela se livraria do primo, mas imaginava se James um dia se livraria do fantasma da mulher. Ele podia ou não tê-la amado, mas a tinha respeitado como esposa e mãe de sua filha. Também confiara nela. James estava enraive­cido com a traição de Mary e com a própria incapacidade de perceber o que ela era de verdade. Aquilo decerto se transformaria em amargura. E com a amargura, vinha uma falta de confiança em si mesmo e nos outros.

Conforme se esgueirava do quarto dele, pensava que, ao levar para James a prova de que ele precisava, pudesse ter perdido o que acontecera de bom entre eles. Isso era algo que teria deliciado Mary, concluiu ao entrar no próprio quarto. Decidiu deixar de lado as preocupações com o que aconteceria e deitou-se, ansiando por dormir um pouco.

— Bem, isso é interessante.

James olhou para Simon. Ele havia deixado uma cama quente e uma igualmente calorosa Annora para levar até eles o relato de Mary. Rastejar por passagens e túneis para sair de Dunncraig sem ser visto, também não fora muito agradável, pois tinha aversão a lugares pequenos e escuros. Arrastar Simon e Tormand para longe de suas mulheres, e para fora de suas camas quentes na hospe­daria e levá-los para a oficina de Edmund, tinha propor­cionado a James alguns momentos prazerosos. Ainda assim, esperar enquanto Simon lia com atenção o diário, com Tormand acompanhando as palavras por sobre os ombros dele, havia roubado quase toda a leve diversão. Achava que o que estava escrito ali merecia algo além de um simples "isso é interessante".

— É uma confissão, não? — perguntou James. — Deixa claro que ela era aliada de MacKay, que estava viva quando fui acusado de assassinato e que ele a ma­tou, quando ela se transformou em uma ameaça.

— Ah, bem, deixa claro que ela era amante de Donnell e que estava conspirando com ele para se livrar de você, de forma que ele pudesse reclamar Dunncraig como com­pensação pelo assassinato dela. Admito que exigir essa reparação tenha sido astuto. E concordo que é uma forte evidência de que sua pequena esposa estivesse viva meses depois de você ter sido proscrito por tê-la matado. Mas...

— Eu odeio essa palavra — resmungou James.

— Mas — Simon continuou —, não há nenhuma prova de que Donnell a tenha matado. Muitas razões para que o tenha feito, sim. No mínimo, para calá-la. Porém, ainda assim, não é uma prova. Mary estava, com certeza, cada vez mais temerosa de ser morta por ele. No entanto, de­pois que se lê esse livrinho, percebe-se que Mary MacKay Drummond era uma mulher que achava que tudo deve­ria estar sempre bem, que ela merecia conseguir o que desejava, simplesmente porque vivia e respirava e, se as coisas não dessem certo, nunca era por sua culpa. Depois de ler tudo isso, acho que sua falecida esposa era uma mulher terrivelmente mimada. As suspeitas que relata a respeito de Donnell querê-la morta podem não ter tanto peso apenas por terem partido dela.

James praguejou e passou a mão pelos cabelos. Ainda estava abatido com o que ela escrevera. Por um instante, pensara em jogar no fogo o amaldiçoado livrinho repleto de queixas e divagações. Não queria que ninguém mais tivesse lido aquilo. Encolheu-se ao se lembrar de como Mary havia desfavoravelmente comparado seu tamanho e masculinidade ao do querido Donnell. O fato de ela ter sentido que o amante vencera a disputa realmente afe­tava seu orgulho.

— Você acha isso divertido? — perguntou-lhe o irmão. Arrancado de suas divagações, James fitou-o, vendo que ele o encarava como se tivesse perdido o juízo. Olhou para o livro que Simon ainda segurava e voltou a atenção para a reação decepcionante do homem do rei.

— Não, estava apenas pensando no dia em que verei Donnell ser enforcado — respondeu. — Então, Simon, você estava dizendo que o livrinho é inútil e que eu per­miti que lesse como minha esposa se importava comigo para nada? Resisti a atirá-lo no fogo e vê-lo se transfor­mar em cinzas por nada?

Não se surpreendeu ao escutar a amargura na própria voz, pois, apesar de as palavras de Mary não poderem mais magoá-lo, a traição tinha sido completamente injusta e imerecida. Mesmo que ele não a tivesse amado, tentara ser um bom marido e, ao contrário dela, permanecera fiel aos votos. E isso era muito mais do que outros homens ofe­reciam às esposas. Duvidava, sinceramente, que Donnell tivesse sido fiel a ela.

— Não diria que é inútil — disse Simon. — São so­mente as palavras dela e você tem de admitir que, uma vez que se lê o que está escrito aqui, a confiança na ve­racidade do relato e até mesmo no julgamento dela fica abalada.

— É, sei disso. — James coçou o queixo. — O que me assusta, de fato, é que eu nunca tenha me dado conta de como ela sempre foi uma mulher tola. Nunca havia pen­sado com atenção no meu casamento e em minha esposa. — Decidindo que era inútil esconder qualquer coisa de Simon, uma vez que ele já tinha conhecimento de tudo, prosseguiu: — O que sempre achei que tivesse sido recato e timidez, talvez um pouco exagerados mesmo para uma dama protegida, era na verdade desgosto. Ela também me faz parecer um homem que a agredia o tempo todo. Isso não poderá levar alguém a pensar que Donnell tinha razão? Sim, sei que não me acusa diretamente, mas a implicação de que eu era um homem bruto permeia todas as queixas. Por outro lado, ela diz que Donnell também era agressivo e que conspirava contra mim. — Arrastou as palavras, tendo dificuldade para controlar a amargu­ra. — Não posso acreditar que vocês não viram isso aí.

— Vejo isso e você vê isso porque já sabemos que é ver­dade.

James praguejou.

— Então foi uma perda de tempo trazer isso para vocês.

— Não, em absoluto. Será bastante útil na alegação de sua inocência, na disputa para limpar seu nome, re­cuperar suas terras e condenar MacKay. Mas acho que é somente uma parte, e não o todo. Tormand e eu vamos atrás de algumas pessoas que Mary menciona para ten­tarmos conseguir reunir testemunhas vivas e sensíveis. Alguém que seja capaz de ficar diante do homem que pode libertá-lo e repetir apenas poucas das acusações de Mary terá muito mais peso que os seus escritos.

Assentindo, consciente de não estar escondendo mui­to bem seu desapontamento, James terminou a cerveja, pegou o diário e se levantou.

— Sabem onde me encontrar se precisarem dizer algo. Annora e eu continuaremos tentando cavar algo mais útil em Dunncraig.

Os três partiram e Tormand e Simon se esgueiraram nas sombras para retornar à hospedaria. Quando chega­ram à porta, Tormand perguntou:

— O diário é mesmo inútil?

— Só porque eu disse que não é suficiente, não signi­fica que seja inútil — disse Simon. — Qualquer homem que o leia pode questionar as acusações. Para dizer a verdade, alguns poderiam achar que foi um bom motivo para James tê-la matado.

— É difícil acreditar que qualquer mulher tenha pen­sado coisas tão desagradáveis a respeito dele.

— Não o vi lendo. Como sabe o que estava escrito?

— Sou muito bom para ler sobre o ombro das pessoas. Como você não estava tentando escondê-lo, foi o que fiz.

— E o que achou de tudo?

— Além do desejo de que a vagabunda estivesse viva para que alguém a estrangulasse, creio que continha o suficiente para levantar muitas dúvidas a respeito das acusações de MacKay contra James.

Simon assentiu enquanto entravam na hospedaria e subiam as escadas, sempre olhando ao redor para se as­segurar de que ninguém estivesse perto o suficiente para escutá-los.

— Sim, e agora faremos o máximo para responder a algumas dessas perguntas. Há pessoas aqui que sabem o suficiente para conduzir-nos à verdade. MacKay não é benquisto e os últimos ataques na região o tornaram muito impopular. Não precisaremos de muito para pôr um fim ao reinado dele por aqui.

— Bem, então, é melhor descansarmos um pouco e co­meçarmos a procurar as pessoas mencionadas por Mary.

Simon praguejou.

— Eu devia ter ficado com o diário para ter certeza dos nomes exatos das pessoas.

— Não se preocupe. Eu me lembro de todos.

Simon encarou-o.

— Mesmo?

— Sim. Quando leio algo, as malditas palavras ficam marcadas em meu cérebro, queira eu ou não.

— Já pensou em se tornar um homem da corte, para ajudar o rei a manter a ordem?

— Por quê? Por causa da minha boa memória? — Riu e meneou a cabeça. — Não acho que eu seja muito ha­bilidoso com todos esses segredos e joguinhos. A corte é como um grande jogo de xadrez e eu nunca fui muito bom nisso. — Abriu a porta do quarto, viu a mulher que tinha deixado para trás sentada na cama, sorrindo para ele, e disse: — Acho que ficarei com os jogos que conheço e que não vão provocar minha morte.

— Ir para cama com mulheres já levou mais homens à morte que uma praga — resmungou Simon enquanto Tormand fechava a porta. — Bem, vamos ver como se sente em algum outro momento — concluiu, dirigindo-se até seu quarto, apenas para perceber que a mulher que estivera com ele antes da interrupção de James tinha caído no sono.

James ficou muito desapontado ao não encontrar Annora em seu quarto, esperando por ele. Considerou, por instantes, a possibilidade de ir até o quarto dela, mas decidiu que seria melhor deixá-la dormir. O desejo e a necessidade de estarem próximos os colocava em perigo. Deixando o diário na cama, tirou as roupas e foi se lavar.

Rastejar para fora de Dunncraig por corredores que ha­via muito tempo não eram usadas o tinha deixado sujo, e voltar da mesma forma, piorara sua situação. Teria apre­ciado muito tomar um banho longo e quente, mas sabia que esse era um luxo que teria que esquecer no momento. Simples carpinteiros não tinham direito a banhos quentes em seus aposentos por capricho. A maioria dos homens com tais habilidades não tinha normalmente nem um quarto individual. Usar a água iria da tigela e um jarro à imposição na pequena mesa teria que ser suficiente. Estava secando os braços quando a porta se abriu, dei­xando-o tenso. Distraído, com a mente voltada para o que poderia procurar para acrescentar ao diário da falecida esposa e derrubar MacKay, tinha se esquecido de tran­car a porta. Sabia que não era Annora, pois não escutou nenhum comentário sobre a tranca. Não se surpreendeu ao ver Mab parada ali, fitando-o, mas aborreceu-se em demasia com a própria estupidez.

Enquanto ela ficou parada e boquiaberta, não perdeu tempo tentando pensar em alguma desculpa que justi­ficasse o fato de ter cabelos castanhos da cintura para cima e vermelhos da cintura para baixo. Andou na direção dela, envolvendo-a com os braços para afastá-la da porta. Sentiu-a resistir e se debater. Mab provou ser uma luta­dora feroz e, de alguma forma, desonesta, mas conseguiu colocá-la na cama e amarrá-la sem muitos hematomas.

Quando percebeu que ela começaria a gritar, cobriu sua boca com a mão e, fechando o outro punho, colocou-o ameaçadoramente diante dela. Não soube dizer, por seu olhar, se acreditava ou não que ele bateria em seu rosto. Havia raiva e medo em sua expressão. Era óbvio que ela estava acostumada ao tratamento rude por parte dos homens e, por um momento fugaz, compadeceu-se, afastando logo em seguida o sentimento. Ela, sem dúvida, usaria o que acaba­ra de descobrir para melhorar sua posição em Dunncraig, sem pensar por um instante nas consequências.

— Por que está aqui? — ele exigiu. — Egan a en­viou? — Ergueu a mão somente o suficiente para que ela respondesse, estando pronto para abafar qualquer tenta­tiva que ela fizesse de gritar.

— Só vim ver se estava disposto a se divertir um pou­co na cama — ela respondeu. — Pensei que talvez depois de algumas noites frias dormindo sozinho tivesse muda­do de ideia.

Ela mentia mal, pensou, um pouco surpreso. A maioria das mulheres em sua posição na vida aprendia a mentir muito bem.

— Egan mandou-a aqui, não foi? Recusei suas ofer­tas muitas vezes para que decidisse tentar de novo. Até mesmo você tem algum orgulho. Por que ele a enviou até aqui? Qual é o interesse dele em que me mantenha ocu­pado? — James tinha a péssima sensação de que Egan começara a suspeitar de que Annora estivesse interes­sada em alguém que não ele. Em relação a um homem como Egan, esse tipo de suspeita poderia ser fatal.

— É mesmo. Por que alguém como ele se importaria com o que você está fazendo à noite?

— É melhor responder minhas perguntas, Mab. Não sou conhecido por minha paciência ou gentileza. Não gos­to de bater em uma mulher ou de feri-la, mas não pense que isso significa que não o farei. Farei e vai machucar. Agora, me diga por que está aqui.

— Ele me baterá se eu fizer isso, talvez até me mate.

— E você acha que não farei a mesma coisa se não disser o que quero saber?

James observou-a considerar o assunto por instantes. Um nó de pânico começava a se formar em seu estôma­go. Seus instintos diziam que aquela visita fora de hora tinha a ver com Annora e temia que sua amante, sua companheira, estivesse correndo um perigo real. Precisou usar todo seu controle para não extrair à força a verdade de Mab, pois tinha a nítida sensação, cada vez mais forte, que seu tempo para salvar Annora e tirá-los com segu­rança de Dunncraig estava acabando. O fato de Mab ter descoberto seu disfarce e arruinado seu plano de desco­brir algo que enforcasse Donnel não o perturbava tanto. O fato de Egan estar por trás daquela visita, sim.

— Egan acha que você está tentando cortejar aquela estúpida babá e quer que se ocupe com outra mulher. Tem certeza de que eu tenho o toque ideal para mantê-lo ocupado.

Mab obviamente pensava que era uma amante muito habilidosa, e até poderia ser, mas James não se sentira tentado uma única vez.

— Ele está planejando ir atrás dela hoje?

— Bem, acho que sim. E que mal há nisso? Ele vai se casar com ela — resmungou, a amargura evidente em sua voz.

Ignorando as tentativas dela de virar o rosto, James colocou o pedaço de pano em sua boca. Vestiu-se rapida­mente e separou alguns pertences. Independente do que acontecesse naquela noite, tinha que sair de lá o mais rá­pido possível. A primeira pessoa que desamarrasse Mab escutaria tudo sobre o homem meio castanho e meio rai­vo. Era um segredo bom demais para que uma mulher como ela mantivesse por muito tempo. Assim que come­çasse a contar o que tinha visto, James sabia que seria caçado de novo. Antes de a caçada começar, no entanto, tinha que ter certeza de que Annora e Meggie fossem postas em segurança.

Annora se esticou e esfregou as costas. Havia passa­do muito tempo inclinada na cadeira tentando costurar sob a luz fraca, esperando saber algo de James. Tinha, por fim, decidido que era tolice perder tanto tempo de sono, pois ele certamente encontraria uma forma de fa­lar com ela na manhã seguinte. Ao menos, era isso o que esperava. Ela ainda tinha medo de que ler as palavras venenosas do diário pudesse afetar o que eles comparti­lhavam. Não mantinha ilusões de que o relacionamento entre eles duraria para sempre, mas odiaria pensar que terminaria tão rápido por causa das palavras cruéis de uma esposa infiel.

Começando a tirar a camisola, preocupou-se de algo ter acontecido a ele. Egan sempre o fitava com raiva. Havia a chance de ele agarrar a oportunidade de feri-lo caso o visse do lado de fora no escuro. Parou de se despir e decidiu que não haveria mal algum em verificar se ele tinha retornado em segurança da conversa com Simon e Tormand.

Ignorou com facilidade a voz em sua cabeça que in­sistia em dizer que aquela não era uma boa ideia. Atou o vestido de novo somente o suficiente para evitar que caísse e destrancou a porta. Assim que a abriu, desejou com todas as forças que tivesse escutado o aviso. Egan estava lá, sorrindo.

Tentou fechá-la, mas ele foi mais rápido. Empurrou-a de volta para o quarto, entrou e bateu a porta. Por um instante, ela esperou que o ruído alto chamasse a atenção de alguém, mas a esperança logo desvaneceu diante de um golpe de realidade. Mesmo se alguém viesse checar o que estava acontecendo, não podia esperar ser resgata­da. Ninguém em Dunncraig se colocaria contra Egan.

— Deve sair agora — disse, recuando conforme ele avançava em sua direção. — Isso não está certo. Sou uma donzela bem-criada e nenhum homem deve estar em meus aposentos a essa hora na noite. Muito menos sozinho comigo.

— Sou seu noivo. Tenho direito de estar aqui — ele respondeu.

— Ainda não somos casados, e eu não tenho certeza se seremos. Não quero me casar com você. — Ela gritou de dor quando foi estapeada com força e caiu na cama.

— Nós nos casaremos, vadia, e estou aqui hoje à noite para me assegurar de que você concordará com isso sem discutir.

— Batendo em mim?

— Não, mostrando a você como é ter um homem em sua cama. Já manteve sua virgindade por tempo demais.

Ela quase contou que tinha abandonado a castidade algumas noites atrás e que aproveitara cada minuto. Contudo, o bom senso prevaleceu. Tinha a sensação de que Egan a espancaria como nunca se soubesse que não era mais virgem. Ele a queria pura e pagaria muito caro se ele descobrisse que deixara de ser. Além disso, pala­vras tão inconsequentes colocariam James em perigo.

Tudo com o que devia se preocupar agora era fugir, mas ele se colocava entre ela e a porta.

Antes que pudesse oferecer mais argumentos contra aquele plano de estuprá-la, ele agarrou-a e jogou-a na cama. Annora gritou de surpresa e medo quando ele se atirou sobre ela e começou a rasgar suas roupas. A cada vez que tentava pará-lo ou mesmo se agarrar às roupas que ele removia com brutalidade de seu corpo, Egan a estapeava. Duvidou que conseguisse chegar ao final daqui­lo, consciente, caso continuasse lutando. Era difícil parar, pois estava mais aterrorizada com o estupro que ele pla­nejava do que com a dor que ele infligia com os tapas.

Com as orelhas ainda reverberando o último golpe na cabeça, Annora não teve certeza do que escutou. Achou que a porta do quarto havia sido aberta com violência e batido na parede, mas tinha certeza de que ninguém em Dunncraig tentaria impedi-lo. Em seguida, Egan foi puxado de cima dela como se não pesasse nada. Ela viu o corpo do homem voar pelo quarto e bater contra a pare­de, antes de olhar para quem realizara tamanho feito.

— James? — ela balbuciou, lutando para superar a dor provocada por Egan e permanecer consciente. — Está mesmo aqui?

— Sim, moça. Ele conseguiu? — Observava Egan, que lutava para se levantar, com atenção enquanto tocou o rosto ferido.

— Não, mas acho que eu estava perdendo a batalha.

Tentou sorrir com confiança, mas o movimento da boca provocou uma dor que a fez estremecer.

— Bem, é melhor você se afastar, pois eu não tenho a intenção de perder essa briga e não quero que se ma­chuque enquanto ensino algumas boas maneiras a esse bastardo.

Annora queria dizer-lhe que não fizesse nada que pro­vocasse sua expulsão de Dunncraig. Ao olhar de relance para Egan, que agora encarava James, ela estremeceu. Os dois se encararam antes de James praguejar e cuspir no chão.

— Drummond — disse Egan, pronunciando o nome como se fosse uma maldição. — Não acredito que Donnell não tenha percebido. Esperto da sua parte se disfarçar assim. Tende a fazer com que as pessoas evitem olhá-lo direto nos olhos. Isso e pintar o cabelo como uma mulher provavelmente o ajudaram a se manter livre e vivo du­rante todos esses anos. Bem, desta vez não vai escapar. Não, desta vez vamos nos assegurar de que morra.

— Venha tentar, então. — James fechou a porta. — Não acho que seremos interrompidos agora.

Annora odiava brigas, mas desta vez só queria que ter­minasse porque temia por James. Havia uma parte rai­vosa dela que queria ver Egan ensanguentado pelo que tinha feito com ela e com muitas outras mulheres.

Esforçando-se para ficar fora do caminho deles, pro­curou algumas roupas, pois o vestido rasgado revelava quase todo seu corpo. Foi necessária alguma habilidade, mas finalmente conseguiu chegar ao canto do aposen­to com roupas novas e inteiras nas mãos. Mantendo-se atenta aos dois para saber quando ajudar e quando correr, livrou-se dos farrapos e vestiu-se.

Estava amarrando o vestido quando James golpeou o rosto já bem machucado de Egan, derrubando-o. Bastou um olhar para saber que ele não se levantaria logo. Havia uma chance de que, quando as feridas curassem, ele não fosse mais nem remotamente charmoso. E isso, ela sabia, o enlouqueceria de fúria, uma vez que ele sempre tinha se considerado um homem atraente. A última coisa de preci­savam era dar-lhe ainda mais razões para odiar James.

Andou até ele quando o viu se inclinar para agarrar Egan pela camisa, temerosa de que a raiva o levasse a bater nele mesmo inconsciente. Não se preocupava com Egan, mas tinha preocupação de que James se arrepen­desse do ato quando a fúria amainasse. Aos seus olhos, essa seria uma mácula da qual nunca se livraria.

— Precisa fugir daqui, James. Ele sabe quem você é agora.

— Mab também — ele disse, levantando Egan e colo­cando-o na cama de Annora. Olhou ao redor, procurando algo com que amarrá-lo.

— Mab? — Apenas o som do nome da mulher era sufi­ciente para despertar um gosto amargo de ciúme. —Você viu Mab esta noite?

— Sim. Egan enviou-a a meu quarto para me manter ocupado. Ainda não acredito ter sido tão estúpido a pon­to de não trancar minha porta. Eu a amarrei também. Precisei persuadi-la, mas fiz com que acreditasse que eu era uma ameaça tão grande para a vida dela quanto Egan e ela finalmente me disse o que ele tinha planejado.

Arrancou as cordas da pesada cortina e começou a amarrá-lo.

— Ela me viu sem roupa, moça, então sabe que não sou o que digo ser. Eu sabia que, se ela pudesse sair livremen­te e falar com um deles, logo adivinhariam minha identi­dade. E agora esse bastardo sabe, de qualquer forma.

— Então, tem que partir. — Annora magoava-se até de pronunciar as palavras.

— Nós temos que partir. Você, eu e a pequena Meggie. Posso ter que desistir da oportunidade de recuperar Dunncraig por um período, mas não vou desistir de você e de minha filha. Junte algumas roupas, vamos pegá-la e sair desse lugar.

— Mas com certeza seria melhor se ficássemos aqui.

— Ele sabe que você conhece meu segredo, não vê? Ele a ouviu me chamar pelo nome.

Annora praguejou. James tinha razão. Assim como o dele, seu jogo tinha acabado. Mesmo se sobrevivesse à punição por não ter contado a Donnell quem era mes­tre Lavengeance, nunca seria deixada sozinha para ir a lugar algum nem poderia falar com alguém. O guarda designado para vigiá-la seria um que nunca piscasse durante o dever. Começou a colocar algumas roupas em uma sacola.

— Para onde iremos? — perguntou, enquanto James pegou a sacola, agarrou-a pelo braço e começou a apres­sá-la para fora do quarto.

— Ainda não sei. — Ele fechou a porta e dirigiu-se rapidamente para o quarto de Meggie. — Por enquanto, é importante sairmos daqui antes que Mab ou Egan sejam descobertos. Ou até nós mesmos.

Annora sentiu um frio no estômago. Vivera com medo desde que cruzara os portões de Dunncraig. Estupro e espancamentos eram coisas que tinha temido. Também nunca considerara fugir no meio da noite até Donnell con­tar-lhe que se casaria com Egan. E, no entanto, estava ali, prestes a sequestrar Meggie de seu lar e correr em direção à escuridão da noite com um homem que fora equivocadamente proclamado um assassino e um fora da lei.

A vida com certeza guardava muitas surpresas, pen­sou, sentindo-se um pouco confusa. Não podia evitar pensar no que aquilo significava para ela e James. Ele não mencionara amor ou casamento, mas estava claro que pretendia mantê-la com ele, pelo menos durante um tempo. Se ele fosse um proscrito ou um carpintei­ro, podia pensar que teriam chance de viver juntos, mas James Drummond era um senhor de terras. Estremeceu, afastando tais preocupações. O que tivesse de ser, seria. Viveria cada dia e esperaria que encontrasse alguma fe­licidade ao final do que prometia ser uma aventura.

Annie levantou-se quando James e Annora entraram no quarto de Meggie.

— Milady? Há algo errado? — perguntou com voz sonolenta, esfregando os olhos.

— Annie — Annora começou enquanto James andava pelo quarto pegando algumas coisas para Meggie —, es­tamos levando Meggie para longe daqui.

Por um instante, Annie a encarou como se não com­preendesse o significado das palavras e, então, franziu a testa.

— Por quê?

— Porque ela não está mais segura aqui. Escutou que MacKay quer casá-la com Halbert Chisholm?

A imprecação que escapou dos lábios da garota chocou Annora. Ficou ainda mais surpresa quando ela encon­trou uma sacola, tirou as coisas da mão de James e come­çou a embalá-las. James moveu-se até a cama e começou a acordar Meggie com gentileza.

— Presumo que você não aprove o casamento — Annora murmurou para Annie.

— Não. O homem é um porco — disse, encarando-a por instantes. — Assim como o homem com quem ele quer que milady se case. Acho que o animal visitou-a hoje à noite pensando em dar início ao casamento um pouco mais cedo.

Annora tocou o próprio rosto e estremeceu.

— Sim, ele fez isso. Achou que era hora de me ensinar como seria bom ter um homem em minha cama.

— Pode ser, mas não aquele bastardo.

Annie parecia um pouco mais velha e sábia do que o adequado para sua idade, o que entristeceu Annora.

— Ele a machucou, Annie?

— Ele tentou, porém Marta o impediu. Egan não ousa fazer nada contra ela, pois MacKay adora sua comida. Ela me trouxe para trabalhar com Meggie para que ele não venha atrás de mim. Além de não me ver muito, MacKay não gostaria que ele machucasse alguém que cuida da menina. — Olhou na direção da cama enquanto colocava uma boneca de madeira na sacola de Meggie. Annora não a tinha visto antes, mas tinha certeza de que James a havia feito. — Ela gosta do seu homem.

— Bem, ele não é bem meu homem — murmurou, e Annie sorriu.

— Vamos viajar, Annora? — Meggie perguntou sonolenta enquanto James a vestia.

— Sim, amor, vamos — respondeu, aproximando-se dela.

Meggie fitou-a por um momento.

— Quem bateu em você? MacKay ou Egan?

— Egan. — Annora não viu motivos para mentir para a criança, pois sabia da brutalidade dos dois. — Mestre Lavengeance o deteve.

— Estamos partindo porque mestre Lavengeance o matou?

— Não, mas ele bateu bastante em Egan, e isso pode provocar sua morte. Também nos coloca em perigo, por­que somos amigas dele.

— E porque sir MacKay quer que eu me case com aquele fedorento do Halbert Chisholm?

Annora não disfarçou totalmente a surpresa.

— Como sabe disso?

— Eu escuto. As pessoas falam. Acharam que eram grandes novidades.

— Vamos — disse James, pegando-a no colo. — Pre­cisamos partir.

— Annie, encontre um lugar para se esconder assim que descobrirem que Meggie desapareceu.

— Assim que eu escutar Egan urrar, vou começar a gritar que a garota desapareceu. Haverá muita confusão e eu posso escapar. Acho que eles se ocuparão em tentar caçá-los e nem se lembrarão de mim.

— Um bom plano, moça — disse James. — Mas não faça mais do que isso, pois pode atrair a atenção deles para você. Se achar que está em risco em algum momen­to, procure dois homens que estão na hospedaria. Seus nomes são sir Simon Innes e sir Tormand Murray. Eles a protegerão de qualquer punição.

Annie assentiu e beijou o rosto de Meggie.

— Tomem cuidado, todos vocês.

Carregando a própria sacola e a de Meggie, Annora seguiu James para fora do quarto. A forma como ele avançava pelas sombrias passagens de Dunncraig, reve­lava que conhecia muito bem o castelo. Ela sempre tinha acreditado que ele era sir James Drummond, mas admi­tia que ter essa prova era reconfortante.

Hesitou quando ele os conduziu para um corredor muito escuro e estreito. Não seria fácil deixar de lado o medo profundo que sentia de locais como aquele. Podia parecer tolice, mas nunca conseguira se livrar de todas as cicatrizes do passado. Considerou até mesmo deixá-lo partir com a criança se pudesse não ter que enfrentar aquele caminho. Envergonhava-se com tamanha covar­dia, o que não aliviava muito o medo.

— Não há outro caminho? — perguntou, em um sus­surro.

James colocou a filha no chão e acendeu uma pequena tocha antes de pegar a mão de Meggie.

— Isso ajuda?

— Um pouco — respondeu, endireitando a coluna. — Essas passagens vão nos tirar daqui sem sermos vistos?

— Sim. Temo que não haja outra opção se quisermos sair em segurança. Não será tão ruim porque você não está sozinha.

Meggie pegou-a pela mão.

— Estarei com você, Annora.

Sentiu lágrimas nos olhos. Meggie era uma criança com um coração muito grande e era difícil não se emocio­nar com a gentileza dela.

— Obrigada, querida. É melhor irmos. Acho que deve­mos nos afastar o máximo possível esta noite.

— É esse o meu plano — disse ele, começando a con­duzi-las.

Quando finalmente chegaram ao lado de fora, Annora quase caiu de joelhos. Tinha se apegado à sua sanidade por um fio enquanto se esgueiravam por tantos corredo­res estreitos. Haviam saído de lá sem serem vistos, mas se tivessem que retornar, ela pretendia usar os portões. Não queria enfrentar aquele caminho de novo.

Apressaram-se até o bosque e começaram a andar. Em certo ponto, James pegou Meggie no colo. Annora queria poder carregá-la também. Estava cansada e com o corpo dolorido devido à luta com Egan. Sabia que seus passos cada vez mais instáveis os estavam retardando, mas não tinha condições de avançar mais rápido. Quando entra­ram em uma pequena clareira em que havia um chalé simples sem porta, quase desmaiou de alívio. Esperava que ele pretendesse parar e descansar, pois não conse­guia dar mais nenhum passo.

— Não avançamos muito — viu-se obrigada a dizer, sabendo que colocar uma grande distância entre eles e o castelo era fundamental.

— O suficiente por enquanto e esse chalé está bem per­to da fronteira entre Dunncraig e as terras de MacLaren — disse James, dirigindo-se para o abrigo. — O filho pri­mogênito de MacLaren foi morto no último ataque de MacKay.

— Isso não tornaria esse lugar muito inseguro? — ela quis saber, enquanto ajeitavam com pressa um cobertor no chão sujo para que James acomodasse Meggie.

— Um pouco, porém estaremos seguros para algumas horas de descanso e, então, deveremos partir.

— E seu irmão e Simon? Eles não saberão o que aconteceu com você.

— Compreenderão que fugi. Pretendo informá-los do que aconteceu assim que esteja seguro o suficiente para tentar e que encontre um homem confiável para levar meu recado. No entanto, assim que souberem o que aconteceu em Dunncraig, saberão que fui eu.

— Estarão seguros na vila? Não temos muitos estra­nhos por aqui e eles podem ser facilmente identificados.

— Nem mesmo MacKay se arriscaria a matar um ho­mem do rei. Simon disse que o encontrou algumas vezes e eu suspeito que MacKay se lembrará de cada uma de­las. Não, eles estarão seguros enquanto ficarem de olhos abertos.

Annora sentou-se no cobertor que ele colocou perto de Meggie.

— Não fui muito boa nisso — disse baixinho.

— Moça — James sentou-se ao seu lado, envolveu-a com os braços e beijou com gentileza o rosto ferido —, você foi muito bem para uma mulher que estava lutando com um guerreiro grande e bruto há algumas horas.

Ela sorriu, grata pelas palavras bondosas mesmo que não acreditasse nelas.

— O que faremos, James? — perguntou em voz baixa e instável, percebendo com mais clareza o que tinham feito.

— Fugir e nos esconder até que eu as coloque em um lugar seguro. Ninguém se importará se MacKay e Egan me caçarem até o fim do mundo e me matarem. Até que eu me livre de ter o nome manchado, qualquer um pode me matar e muitos ajudariam MacKay em sua busca. Você e Meggie não carregam esse fardo. Sim, MacKay re­clama Meggie como sua, mas ela nasceu de minha esposa e, portanto, a alegação dele não tem força. Só permitiram isso porque achavam que eu estava morto. Você é apenas prima dele e, apesar de os parentes serem considerados os governantes das mulheres sob seus cuidados, ninguém o ajudará a persegui-la também. Na verdade, quem você é será sua maior proteção agora.

— Quer dizer, uma bastarda pobre e sem terras que os próprios parentes não querem?

— Triste dizer, mas é isso. Descanse, Annora — ele disse, empurrando-a de leve sobre o cobertor.

Ela olhou para o céu estrelado através dos grandes buracos no teto de sapé. James cobriu-a e aconchegou-se ela, que ficou quieta, deixando o calor do corpo dele amenizar suas dores e o frio da noite. Aquele era o lugar em que ela queria estar, mas não conseguia parar de pensar em todas as dificuldades que estavam enfrentando.

— Sou tão covarde — sussurrou, pressionando o corpo contra o dele.

— Não, não é covarde. Você não hesitou em vir comigo. Não há covardia em enxergar todos os problemas que enfrentamos. Você acha que não me preocupo a respei­to de como podemos escapar de MacKay e dos homens que ele vai enviar atrás de nós? Não estou sozinho agora. Será muito difícil fugir e encontrar um refúgio com uma mulher e uma criança junto. Só não houve tempo para pensar em um bom plano.

— Sei disso e eu tinha acabado de pensar em algu­mas coisas no caso de ter que fugir de um casamento com Egan.

— Levarei você até meus parentes. Estará segura lá. Você e Meggie.

— Eu não levarei problemas para sua família?

— Talvez, mas nada com o que não consigam lidar. Já tiveram que enfrentar muitos perigos ao longo dos anos, de moças sequestradas a filhos acusados de quase qual­quer crime no qual possa pensar. Mas eles podem cuidar de Meggie sem muito problema. Afinal, são vistos como parentes de sangue dela pela lei e pela Igreja. MacKay não poderá pegá-la de volta.

James beijou sua nuca e abraçou-a, tentando aquecê-la. Ainda ansiava em matar Egan e o sentimento crescia cada vez que via os ferimentos no rosto de Annora. Após a dor que a família enfrentara quando sua irmã Sorcha fora violentada e espancada, James sabia que sua ira era facilmente provocada e alimentada para além da razão pelo estupro de uma mulher. Qualquer homem que fizes­se ou tentasse fazer uma coisa dessas merecia ser morto, mas ele tinha sido obrigado a permitir que Egan vivesse. Uma pessoa não podia matar um homem inconsciente. Certamente teria tido muito mais dificuldades para lim­par seu nome se tivesse feito aquilo.

Quando sentiu o corpo de Annora relaxar em seus braços, sorriu e beijou-a na cabeça. Queria ter caminha­do mais, mas ela cambaleava quando haviam chegado ao chalé. Considerando quantos quilômetros teriam que per­correr antes que ele as entregasse aos cuidados da família, sabia que tinham que ter parado para um descanso.

Ele olhou para a filha adormecida e sorriu. Ela não tinha discutido ou se lamentado. Suspeitava que a me­nina iria a qualquer lugar para ficar com Annora. Após ler o diário de Mary e saber que as alegações de MacKay em relação a Meggie podiam ter um fundo de verdade, ele esperava se sentir diferente em relação a ela, o que não tinha acontecido. Talvez nunca tivesse certeza da pa­ternidade, mas ela era sua pequena e doce Meggie e de ninguém mais.

Aquela era sua família, seu futuro. Apesar de saber que corriam perigo, não pôde deixar de sentir alguma paz. Lutaria por elas sem descanso. Donnell MacKay roubara três anos de sua vida, seu bom nome, suas terras, além de ter controlado sua esposa, mas não permitiria que ti­rasse aquilo dele. A mulher calorosa que abraçava e a criança doce que murmurava durante o sono, eram suas e pretendia mantê-las consigo. Sabia que, se fosse priva­do de uma vida ao lado delas, todas as perdas anteriores pareceriam pequenas e sem importância.

James olhou para Annora e Meggie, a criança aninha­da nos braços da mulher. Em algum momento enquanto dormiam, a criança tinha despertado e ido até Annora em busca de calor e conforto. Sabia que tinham que fugir de lá o mais rápido possível, mas sentiu uma pontada de culpa por ter arrastado Meggie para fora de casa no meio da noite.

O que precisava fazer era elaborar um plano definiti­vo para os próximos passos. Não podia esperar que uma pequena criança e uma mulher frágil, vivessem a mesma vida que ele levara nos últimos três anos. Nem elas pode­riam ficar tão perto de lá e tentar encontrar a prova neces­sária para remover a ameaça de MacKay de suas vidas. O homem reviraria o lugar atrás deles e deslocaria todos os seus subordinados para a mesma tarefa. Tinha que levar suas mulheres para longe dali, e já não sentia mais que a França seria uma boa opção, ainda que tornasse possível que vivessem juntos. Restava conduzi-las até seus paren­tes e pedir sua ajuda para mantê-las em segurança.

Suas mulheres, ele pensou e sorriu, pegando um odre de vinho e se dirigindo ao riacho para enchê-lo de água. Realmente gostava do som daquelas palavras. Logo, todos saberiam que elas pertenciam a ele e que cuidaria delas. Sentia que estava bem próximo de derrotar o inimigo.

A necessidade de fugir e de se esconder era um breve passo no caminho do êxito na longa batalha para recu­perar o que tinha perdido. Sabia que precisava acreditar naquilo ou a luta já estaria perdida.

Assim que terminou de encher o odre, ouviu o estalido de um galho e virou-se rapidamente. Antes mesmo de completar o movimento estava com a adaga na mão. Praguejou, mais aliviado do que com raiva. Uma Annora de olhos arregalados estava a alguns passos dele, vestida somente de camisola. Olhando-o com prudência, foi até a beirada do riacho para lavar o rosto e as mãos.

— Você me alarmou, moça, e como temos inimigos em todo o lugar, agi assim, mas não pretendi assustá-la — ele disse, guardando a arma.

— Sinto muito. Levarei um tempo até compreender que estamos fugindo e nos escondendo de um homem pe­rigoso e agir de acordo. — Enxugou o rosto e as mãos na barra da camisola. — Não achei que minha aproximação tinha sido tão silenciosa. Para dizer a verdade, fiz bas­tante barulho, pois estava mais dormindo que acordada.

— Bem, eu estava perdido em pensamentos, o que não é algo bom no momento. Talvez o tempo passado em Dunncraig tenha amenizado as habilidades que desen­volvi enquanto fugia. E Meggie?

— Está dormindo e, considerando que é muito cedo, acho que não acordará logo. Ela teve uma noite compli­cada. — Sorriu. — E a pequena Meggie gosta de dormir e tem um sono muito profundo. Fiquei surpresa quando você conseguiu despertá-la tão rápido. Se acordar antes que eu volte, vai me esperar ou me chamar.

— Bom. Não gostaria que ela acordasse sozinha e fi­casse com medo.

— É difícil de acreditar que as coisas tenham chegado a tal ponto. Estávamos tão próximos de descobrir a ver­dade. E tudo isso por causa de uma criada vadia que não soube lidar com uma recusa sua. Espero que ela ainda esteja presa à cama.

James sorriu e a tomou nos braços. Estava tão linda, brava por ele, apesar da violência que sofrerá na noite anterior. Ele tinha medo de se resignar a uma vida de fuga. O ultraje de Annora o lembrou de que aquilo era in­justo e de que ele merecia uma vida melhor. Era suficien­te para impedir que se transformasse de um homem que fora declarado um proscrito em um fora da lei de fato. O limite era tênue e ele estivera bem próximo de cruzá-lo antes de chegar a Dunncraig.

— Para dizer a verdade, estou feliz que Mab tenha ten­tado me seduzir de novo. — Beijou a boca contraída, feliz com a demonstração de ciúme. — Foi o que me enviou ao seu quarto e me permitiu salvá-la de Egan. — Beijou de leve o rosto machucado e desejou espancar o homem novamente. — Está doendo? — perguntou, tocando com gentileza os ferimentos.

— Não. A única coisa que me dói é o fato de você ter que fugir de novo e desta vez comigo e Meggie. Talvez ela e eu devêssemos voltar ou mesmo permanecer aqui.

— Não é uma boa ideia, amor. Quase não consegui salvá-la de Egan desta vez. Não posso e não vou deixá-la ao alcance dele.

— Mas seu irmão... — ela começou.

— Ele logo saberá o que aconteceu comigo. Marta foi instruída a avisá-lo se eu tivesse qualquer problema. Ter que fugir de lá no meio da noite com certeza é um pro­blema. Assim que descobrirem que sumimos, ela irá até a vila contar a Simon e a Tormand tudo o que sabe, in­cluindo tudo o que viu e escutou.

Annora assentiu e percebeu que James a estava condu­zindo para um círculo de árvores pequeno e protegido.

— O que está fazendo, James? — perguntou, apesar de o brilho nos olhos dele revelar suas intenções.

— Estava pensando em como será difícil que fiquemos sozinhos, uma vez que Meggie está conosco. E, então, per­cebi que estamos bem sozinhos no momento.

— Meggie... — ela começou a protestar enquanto ele a empurrava contra uma árvore.

— Disse que ela dormiria um pouco mais e gritaria por você se acordasse com medo.

— Bem, sim, eu disse isso.

James beijou-a e a maneira como a língua dele a pro­vocava, acariciando o interior de sua boca, abafou qual­quer tentativa de protesto.

Ela o envolveu com os braços e correspondeu ao bei­jo, desejando-o tão intensamente quanto ele a deseja­va. Sabia que deveria negar-se com veemência e voltar para o chalé para ficar com Meggie, pois era dia claro e eles estavam do lado de fora, coisas com que achava que uma verdadeira dama não deveria concordar. Ele colo­cou suas pernas ao redor da cintura e se esfregou contra ela, fazendo-a suspeitar que não fariam amor devagar e com delicadeza. Já vira um homem possuir uma mulher daquela maneira uma ou duas vezes e havia pensado que parecia rude e grosseiro. Contudo, não se sentia assim. Talvez apenas porque fosse James e ela gostasse de tudo o que ele fazia para proporcionar-lhes prazer.

— Doce e adorável Annora, quero possuí-la aqui e ago­ra — ele murmurou. — Diga sim.

Ela sentia o sangue quente ao sentir sua ereção, ao ser beijada e acariciada, e ficou curiosa a respeito de como seria amá-lo daquela maneira.

— Sim — concordou.

— Ah, você é uma moça encantadora e muito disposta.

— Tento ser.

Ele riu e penetrou-a, fazendo-a agarrar-se ao corpo firme durante o movimento impetuoso e selvagem. Não houve ternura, nem beijos carinhosos e provocantes so­bre a pele quente, nem palavras doces. Foi rápido, furioso e extremamente excitante. O clímax que a atingiu fez com que gritasse o nome dele, pensando em como era li­bertador escutar o eco de seu grito no ar. Pouco depois, ele se uniu a ela no momento sublime.

Quando recuperou o fôlego, James colocou-a de pé. Sorriu quando ela se apoiou nele, passando os braços por sua cintura. Annora não somente era ardente como era também ousada. Queria desesperadamente resolver o problema com MacKay para aproveitar ao lado dela toda a felicidade que ela lhe proporcionava em mais do que alguns breves momentos roubados. Ansiava também pela liberdade de fazer amor com ela quando quisesse e da forma que quisesse. Ter uma parceira intrépida dava ideias a um homem, pensou. Afastou-se antes de demonstrar a ela que as imagens criadas em sua mente começavam a provocar de novo seu corpo, que não se can­sava de querê-la.

Contudo, manteve as mãos em seus ombros, sem que­rer dar a impressão de que, saciado, não precisava mais dela. Fazer amor de forma apressada e impetuosa podia ser excitante, mas não permitia todas as carícias e pa­lavras doces que mostravam a uma mulher que ela era importante. Distanciar-se apressadamente dela seria o mesmo que sair da cama, vestir-se e ir embora após o ato de amor. A última coisa que queria era que ela se sentis­se usada ou, pior, que questionasse o próprio comporta­mento e lutasse para sufocar a natureza ardente.

— Você é uma doçura bem-vinda no meio de toda a amargura que minha vida tem sido há tanto tempo — declarou, beijando-a na testa quando ela pressionou o rosto corado contra seu peito.

— Sou uma devassa terrível — ela sussurrou, aterro­rizada ao perceber que não estava envergonhada.

— Não, moça, não é não. Se fosse, não teria sido uma virgem intocada na idade avançada de vinte e quatro anos. — Teve que se controlar para não rir quando ela levantou a cabeça para encará-lo.

— Idade avançada? — perguntou, surpresa ao repa­rar que a voz soava como o ruído que Mungo fazia quan­do encontrava outro gato desconhecido andando em seu território.

— Não quis dizer que você é velha, apenas que a maio­ria das mulheres tem um ou dois homens antes de atin­gir essa idade. — Afastou-se para pegar o odre de vinho, pois tinha a nítida impressão de que ela queria chutá-lo.

— Claro que sim. A maioria das moças de minha ida­de já está casada há algum tempo.

— Annora, você acredita mesmo que elas esperaram com paciência pela bênção do padre? — Meneou a cabeça. — Não. Se um gosta do outro, assim que um casal fica noivo tenta chegar a uma cama o mais rápido possível. E as moças mais pobres podem ter muitos amantes antes de encontrar um marido. Somente as muito jovens, as muito religiosas e as muito ricas se apegam à virgindade.

— Não sou nada disso.

— Não, você é uma dama e, apesar de não ser rica, sempre viveu entre eles. Sempre entre as paredes do cas­telo e, de alguma forma, ligada aos que governam. Os pobres trabalham do amanhecer ao anoitecer a semana inteira e anseiam por um momento de êxtase. Onde acha que todos aqueles jovens famintos obtêm experiência?

Annora não tinha intenção de responder àquela per­gunta. Seguramente não queria ouvir o tolo contar uma ou duas histórias sobre seu passado romântico, sem dú­vida vasto. O leve sorriso malicioso no rosto charmoso indicava que ele sabia daquilo também. Não era tão in­gênua a ponto de achar que todas as mulheres que nun­ca tinham tido um amante eram santas ou que todas as que tinham tido eram pecadoras destinadas a queimar pela eternidade no inferno. Por outro lado, mulheres que permitiam que os amantes as possuíssem contra uma ár­vore à luz do dia perto de um rio deviam estar oscilando precariamente à beira do inferno.

Apesar de todas as boas intenções, ela tinha acabado de abrir a boca para dizer isso quando escutou Meggie cha­mar por ela. Responder era um disfarce perfeito para o re­cuo que estava planejando, e correu na direção do chalé.

— Tenho que dar uma olhada ao redor — James dis­se para a figura que sumia rapidamente de sua vista. — Não se afaste do chalé.

Sabia que era tolice ficar gritando no bosque quando deveriam estar tentando se esgueirar em silêncio para longe do inimigo, mas era tarde demais para consertar o erro. Teria que falar com as duas a respeito da necessi­dade do silêncio quando retornasse. Repreendeu-se com severidade por causa do perigo de se distrair com a pró­pria luxúria. Quando fazia amor com Annora, tinha ape­nas consciência dela e de como o fazia se sentir. MacKay poderia ter se aproximado o suficiente para espetá-lo na árvore enquanto se amavam e ele não acreditava que te­ria escutado.

Apesar de não saber o que o conduzia para onde estava se dirigindo, decidiu seguir os instintos. Alguém já devia ter encontrado Egan ou Mab, o que o impedia de gastar muito tempo com um pressentimento, mas não havia peri­go algum em ceder a isso por um momento ou dois. Muitos de seus primos insistiriam que fizesse aquilo, pensou com um sorriso ao se aproximar do abrigo das árvores e co­meçar a andar na direção de Dunncraig. Como não eram seus parentes de sangue, era impossível ter a mesma ha­bilidade que muitos deles tinham. Admitia, contudo, ter instintos muito bons que haviam se aprimorado durante os anos de exílio. No momento, eles o impeliam a exami­nar o lugar.

Estava prestes a se virar de costas e voltar ao chalé, contrariado por ter perdido tempo procurando por nada, quando escutou vozes. Esgueirando-se mais adiante nas sombras das árvores, moveu-se em direção a elas até ver cinco homens dando água para os cavalos. Deitou-se no chão para analisá-los. Estava um pouco longe para ver o emblema em suas roupas, mas suspeitava que perten­ciam ao clã dos MacLaren, aquele que MacKay tinha atacado. Alarmou-se ao perceber que o grupo de reconheci­mento estava perambulando pelas terras de Dunncraig.

— Acho que precisamos descobrir o que está enfure­cendo aquele bastardo — disse um homem enorme e peludo, cujo cabelo e barba escuros cobriam quase seu rosto inteiro. — Pode ser útil.

— Concordo, mas com tantos de seus homens caval­gando por aí em todas as direções, é muito perigoso — observou um outro. — Viu como estão agarrando cada homem, mulher e criança que encontram e exigindo res­postas, Ellar. Não temos como nos esconder entre os pas­tores ou alguém do tipo desta vez.

Ellar coçou a longa e espessa barba.

— Bem, Robbie, pelo pouco que ouvi enquanto batiam naquele pobre homem que apenas se aliviava do lado de fora da choupana, eles estão procurando por alguém cha­mado Annora.

— Acho que é a babá da filha do bastardo.

— A menininha de cachos loiros?

— Acho que é isso, apesar de eu sempre ter achado que ela era filha de Drummond.

— Meu primo Will diz que ela é. Ele não acredita no que MacKay diz — acrescentou um homem baixo de cabe­los castanhos ao lado de Ellar. — E acho que nosso senhor cometeu um erro ao não conhecer tudo sobre aquele cre­tino do MacKay. Por isso, não estava preparado para um ataque de Dunncraig, que levou à morte do pobre David.

— Acho que tem razão, Ian, mas não vou dizer isso a ele — manifestou-se Ellar. — Você vai?

— Não — grunhiu lan. — Então, o que faremos agora se não pudermos continuar reunindo informações?

— Conseguimos algumas. Sabemos que a criança, a babá e um carpinteiro fugiram do castelo e que MacKay está disposto a espancar até a morte todos que encontre para tentar descobrir onde os três estão.

— E que ele e quase todos os homens estão cavalgan­do por aí, tendo deixado o castelo praticamente desprote­gido — observou Robbie.

— Tem certeza de que devemos dizer isso ao senhor? — perguntou lan. — Ele está quase louco de tristeza com a morte de David, que era seu filho predileto. Ele vai nos convocar às armas para cavalgar até Dunncraig sem he­sitação.

Ellar assentiu.

— Sei disso e é uma maneira rápida de enviar-nos para a morte, mas temos que contar. A forma com que esses tolos estão conduzindo a busca não permanecerá em segredo por muito tempo.

James sentiu o impulso de chamá-los quando os viu montar e se afastar. Poderiam ser convencidos a se unir em sua luta contra MacKay, mas havia também uma grande chance de o verem como uma fonte de recompensa e a Annora e Meggie como armas para usar contra o ini­migo. Pelo que se lembrava, o senhor dos MacLaren nunca tinha sido muito inteligente e agora estava pertur­bado pelo sofrimento. Apesar de ser tentador conquistar alguns aliados, sabia que não poderia arriscar a seguran­ça das duas com algo que não sentia ser seguro.

Assim que os homens de MacLaren sumiram de vis­ta, começou a voltar para o chalé o mais rapidamente possível. Sentia uma urgência crescente conforme corria. Apesar de ter conseguido algumas informações úteis, co­meçou a temer que seus instintos o tivessem enganado ao deixá-las sozinhas no momento em que era mais im­portante que permanecessem unidos e fugissem.

Annora terminou de empacotar os poucos pertences que tinham levado e sentou-se em uma pedra para ob­servar Meggie pular pela clareira na qual ficava o cha­lé. Perguntou-se o que teria acontecido com as pessoas que moravam ali. Pouco depois, concluiu que era melhor não pensar naquilo. Donnell tinha afastado, enforcado e aprisionado muitos em Dunncraig, apenas por achar que eram leais demais a James. Após uma breve prece por quem quer que tivesse vivido ali, voltou os pensamentos para o que viria a seguir.

Era provavelmente uma boa ideia que James as levas­se para sua família em vez de fugir para a França, mas o pensamento de encontrar todos os seus parentes a deixava nervosa. Ele tinha dito que muitos possuíam dons simila­res ao dela. Aquilo significava que seria quase impossível manter um segredo e ela tinha um bem grande que não queria revelar. Achava que a família dele iria querer que a mulher que ele tomara como amante fosse a mesma que cuidasse de sua filha.

— Annora, está escutando alguma coisa? — pergun­tou Meggie, correndo para o lado dela. — Estou ouvindo algo. Acho que alguém está vindo.

Pouco depois, ela também escutou. Da direção do riacho, ouvia alguém ou algo contra as árvores e a vegetação ras­teira, sem cuidado com uma aproximação silenciosa. Sabia que aquele som só podia significar que ela e Meggie esta­vam bem no meio de um perigo que se aproximava. Se fos­se somente um cavaleiro, podia ser alguém passando por ali a caminho de algum lugar, um viajante ou uma pessoa de Dunncraig. No entanto, havia mais do que um cavaleiro, o que podia significar tanto um ataque a Dunncraig quan­to que Donnell e seus homens estavam prestes a encontrar quem procuravam. Saqueadores a veriam como um prê­mio maravilhoso e Donnell as veria como quem precisasse aprender quem governava suas vidas. Nenhuma das cir­cunstâncias era favorável para elas.

Agarrou seus pertences e pegou a mão de Meggie. Mal tinha dado alguns passos na única direção que não pare­cia oferecer perigo quando a pequena clareira encheu-se de homens. Donnell e mais que uma dúzia de cavaleiros entraram pelos dois lados, parando os cavalos brusca­mente ao vê-las. Pouco depois, James surgiu por entre as árvores, parando para encará-los.

Por um instante, Annora só observou a confrontação silenciosa, o coração acelerado de medo por James. Queria gritar para que corresse, mas, assim que abriu a boca, foi silenciada por um breve e duro olhar dele. Começou a afastar-se de todos aqueles homens que olhavam para James com fúria e ódio. Ela o via retribuir o olhar e sabia que, a qualquer momento, a tensão silenciosa explodiria, não queria que Meggie fosse pega no meio de uma batalha, mesmo que fosse breve. James era apenas uma pessoa contra uma dúzia de homens armados e ela sabia que não tinham chance de escapar. Tudo o que podia fazer era rezar pela vida dele.

 

— Veio aqui para morrer, então, MacKay? — James perguntou, desembainhando a espada. Annora piscou. Ele era louco? Pensou, então, em como ele devia se sentir. Não só tinha sido obrigado a aban­donar a busca pela verdade e fugir de Dunncraig, como tinha perdido qualquer oportunidade de recuperar seu nome ao ser descoberto por Donnell. Morreria com o mundo acreditando que ele matara a esposa.

— Você é um tolo, Drummond — Donnell devolveu. — Pensou que podia me derrotar ao seduzir minha prima?

— Eu não a seduzi. Trouxe-a junto porque ela cuida da criança. Peguei a menina para trazê-lo até mim. — Olhou para todos os homens que o cercavam. — Devia ter adivi­nhado que seria covarde demais para vir sozinho. Não é homem suficiente para me enfrentar? Prefere lutar contra pobres homens acorrentados?

— Algo ruim vai acontecer, Annora? — sussurrou Meggie.

— Temo que sim, amor — murmurou uma resposta enquanto continuava tentando se afastar da clareira.

— Quero ir para casa.

— Fique quietinha, querida. É melhor não atrairmos à atenção sobre nós.

Parecia que o destino não estava disposto a colaborar com ela, pensou, ao ser agarrada pelas costas. Não precisou olhar para saber que era Egan quem a segurava, pois havia reconhecido o cheiro desagradável. Meggie gritou e começou a chutá-lo, mas os esforços dela foram inter­rompidos ao ser atingida por um tapa tão forte que a derrubou. Desesperada para alcançá-la e se certificar de que não estava ferida, Annora começou a se debater nos braços dele, chutando e praguejando.

James olhou sua filha no chão e sentiu-se aliviado quando a viu se sentar, as lágrimas misturadas à terra deixando uma trilha em seu rosto. Vislumbrou Annora, que lutava para se livrar e ir até a criança, antes de se virar de novo para Donnell MacKay.

Como as coisas tinham dado tão errado? James se perguntou. Estremeceu, sentindo-se estranhamente en­torpecido, exceto pela necessidade pulsante de matar aquele homem. O destino estava sendo muito cruel e o fracasso deixava um gosto amargo em sua boca. A úni­ca fagulha de esperança decorria do fato que, em breve, Tormand e Simon saberiam do ocorrido e fariam o máxi­mo possível para livrar Annora e Meggie daquele bastar­do. Não se permitiria pensar em nada além da segurança delas, pois suas perdas eram tão grandes que temia en­louquecer, caso se permitisse pensar nelas.

— Acho que é hora de você se render, lobo — disse MacKay.

— Por quê? Para que possa me matar lentamente, como fez com meus homens?

James não via razão para negar sua identidade.

— Sim — respondeu Donnell, com um sorriso.

Em seguida, quase todos os homens correram para cima de James. Annora gritou, certa de que o veria mas­sacrado diante de seus olhos. Ele conseguiu se manter firme durante um tempo, revelando uma habilidade im­pressionante com a espada. Muitos dos atacantes che­garam a recuar, apesar das ordens de Donnell para que continuassem a lutar. Então, um homem traiçoeiro se aproximou pelas costas de James, enquanto ele estava ocupado demais enfrentando outros três diante dele. Foi atingido na cabeça com o punho da espada e a força do golpe foi tão grande que ecoou na clareira.

Ao vê-lo cair, um gemido desesperado escapou dos lá­bios de Annora. Donnell apeou e andou até James, chutando-o com força. Ela arfou, atraindo a atenção do pri­mo e se enrijeceu ao vê-lo se aproximar e examiná-la dos pés à cabeça.

— Então, prima, sentiu necessidade de me trair com esse fora da lei? — perguntou em uma voz tão fria e cal­ma que provocou arrepios em sua espinha.

Decidindo permanecer fiel à história de James, de que era somente uma mulher arrastada para tomar conta de uma criança, meneou a cabeça.

— Tive que ficar com Meggie.

Ele a fitou por tanto tempo que ela temeu que a verda­de estivesse, de alguma forma, marcada em seu rosto.

— Acho que há mais — ele murmurou. — Muito mais, mas esse não é o lugar para descobrir a verdade. — Olhou para Egan. — Coloque-a e aquela criança chorona em um cavalo e vamos levar a cabeça desse lobo para o calabouço.

Annora viu, com o canto dos olhos, James ser levantado e lançado sobre um cavalo. Tentava se convencer de que ainda havia esperança, de que ele estar vivo era tudo o que importava, o que não aliviou seu medo. Egan montou-a num cavalo e praticamente jogou Meggie em seus braços.

Ficou aliviada ao ver que ele não montou atrás dela. Após subir em seu próprio cavalo, ele agarrou suas réde­as e a conduziu de volta para Dunncraig. Annora tentava acalmar a menina e, ao mesmo tempo, esforçava-se para não pensar no que enfrentaria ao chegar. Donnell não acre­ditara que ela era apenas uma vítima inocente. De alguma forma, teria que convencê-lo, pois corria o risco de ser tran­cafiada e, portanto, de ser impedida de ajudar James.

Tentando ser discreta, olhou para onde o corpo inerte do amado chacoalhava no lombo de um cavalo. O sangue, que escorria da ferida, manchava o rosto. Apesar de não achar que fosse um bom sinal, lembrou-se de que os feri­mentos costumavam sangrar muito, o que amenizou um pouco seu medo.

Precisava de um plano. Se tivesse a sorte de não ser surrada com tanta brutalidade a ponto de não conseguir se mexer, ou de não ser trancada para ser enviada para a forca como traidora, precisaria de um plano para libertá-lo. Era difícil pensar com clareza quando estava prestes a enfrentar sozinha uma punição que não tinha ideia de qual seria, ao mesmo tempo em que temia pela vida de seu amado, mas se esforçou para afastar aquelas preocupações. Teria uma chance muito pequena de ajudá-lo e em pouco tempo. Não deixaria com que a fraqueza despertada por seus sentimentos a fizesse perder a oportunidade.

Quando finalmente viu-se diante de Donnell no es­critório, estava exausta. Egan não saíra de perto dela enquanto cuidava de Meggie, que ainda chorava. Seu silêncio e a forma como a encarava começavam a enlou­quecê-la. Era como se estivesse tentando ver algum sinal de que tivesse sido tocada por outro homem. O fato de ter tomado James como amante tornava difícil que agisse como uma virgem inocente e confusa. Não se sentia cul­pada por amá-lo, mas achava que talvez algo que disses­se ou fizesse pudesse entregá-la.

— Quer que eu acredite que partiu com Drummond porque ele tinha pegado a criança? — perguntou Donnell, esticando-se na cadeira atrás da mesa de trabalho, os olhos fixos nela.

— Você a pôs sob meus cuidados. Senti que era meu dever ficar com ela e tentar protegê-la.

— Ah, e o fato de Drummond ter ido até seu quarto e espancado Egan não ocorreu porque são amantes?

— Posso ter nascido bastarda, primo, mas aprendi com os erros de minha mãe — disse, com frieza. — Egan estava tentando me estuprar. Foi ao meu quarto sem ter sido con­vidado. Eu não o atraí até lá para que mestre Lavengeance o encontrasse, se é isso o que está insinuando.

— Aquele homem não é mestre Lavengeance. Ele é sir James Drummon, o homem que matou nossa prima Mary.

— Tem certeza disso? —Annora fingiu incredulidade. Donnell endireitou-se na cadeira e a fitou.

— Claro que sim. Não estranhou que ele tenha dois olhos bons e ainda assim use um tapa-olho?

Annora tinha se esquecido de que ele havia descarta­do o tapa-olho durante a fuga à noite.

— Bem, um pouco, mas há muitas razões para se usar tal coisa. Um ferimento, uma fraqueza no olho, uma infecção...

— Sim, sim — ele a interrompeu. — Bem, serei gen­til e fingirei que estou acreditando em suas explicações e desculpas para estar com meu maior inimigo. James Drummond quer me ver morto, prima. Ele se disfarçou para entrar em Dunncraig e conquistar minha confiança a fim de me matar. O fato de você ter ficado amiga dele não me impede de achar que seja confiável.

— Ele era um carpinteiro, primo. Sempre achei que fosse.

— Você acha que um carpinteiro faria isso comigo? — sibilou Egan, agarrando-a pelo braço e virando-a de frente para ele.

O rosto de Egan estava horrível, pensou. Não tinha tido a oportunidade de observá-lo bem. Os olhos estavam tão escuros e inchados que não sabia como ele enxergara o suficiente para cavalgar.

— Você estava tentando me estuprar e me batendo. — Ela tocou de leve o próprio rosto, ainda ferido. — Tudo o que vi quando ele entrou foi alguém que me salvaria. Admito que suspeitei e fiquei desapontada quando o ho­mem que eu considerava meu salvador me arrastou com ele e pegou Meggie. Mas, como disse, senti que era meu dever ficar com ela.

— Como vocês saíram do castelo sem serem vistos? — exigiu Donnell.

Essa seria uma resposta difícil, pensou Annora, con­tente por ter considerado todas as possíveis respostas e desculpas. Não era uma mentirosa muito boa, mas, como já tinha planejado o que diria, começou a falar, esforçan­do-se para parecer convincente.

Enquanto contava uma história elaborada sobre se esgueirar nas sombras com um homem armado e uma crian­ça sonolenta, observou Donnell com atenção. Ele franziu o cenho, mas não conseguiu saber se ele estava refletindo ou se não acreditava. Tampouco foi tomada por alguma sen­sação que indicasse o que ele estava sentindo ou pensan­do. Como ele tinha muitas evidências de que seus homens nem sempre a vigiavam bem, não se envergonhou de dizer que a guarda desatenta foi o motivo de elas terem sido levadas com tanta facilidade para fora do castelo.

— Ele é mais esperto do que pensei — murmurou Donnell.

— Acredita nisso tudo? — perguntou Egan.

— Na maior parte. Só me pergunto se minha querida prima é a vítima inocente que alega ser.

Ela sentiu uma gota de suor escorrer por suas costas, mas manteve a expressão de inocente tranquilidade.

— Nunca vi nada demais nele, primo. Você confiou nele e achei que também poderia. E, como ele me salvou duas vezes das tentativas de Egan de roubar minha vir­tude, como poderia achar que não era um bom homem, alguém em que eu pudesse confiar?

— Você é minha e tenho o direito de tomá-la em qual­quer lugar e da forma que eu queira — disse Egan, atin­gindo-a com as costas da mão.

O impacto da queda foi tão grande que Annora ficou tonta por um instante. Percebeu que Donnell não dissera ou fizera nada para impedi-lo, e a aprovação silenciosa a inquietou. Aquilo significava que, apesar de não ter de­tectado as mentiras, suspeitava que ela não tinha sido sincera.

Egan levantou-a e chacoalhou-a.

— Olhe para a boca dela — gritou. — É evidente que foi beijada.

— Parece mesmo, prima — comentou Donnell. — Tem certeza de que não permitiu que aquele bastardo a sedu­zisse?

— Acha que sou uma prostituta? — perguntou, ul­trajada ante a mera sugestão de que tivesse tomado um amante. — Não acha que sei dizer quando estou sendo seduzida? Não sou minha mãe.

— Mas tem o sangue dela.

— Carrego também o de meu avô e ele não era um tolo.

— Ah, verdade. Ainda assim acho que não acredito completamente na sua história.

— Não posso mudá-la, pois é verdadeira.

— É o que você diz. Porém, acho que permitirei que Egan acalme um pouco a fúria que o está deixando tão tenso e que tente convencê-la de que pode ter algo mais a contar.

Antes que percebesse o que estava acontecendo, Annora foi atingida por um soco no rosto. Permaneceu em pé apenas devido ao forte aperto em seu braço. Ao vê-lo sorrir, soube que enfrentaria um interrogatório longo e doloroso. Rezou para ter forças para se manter firme e fiel à história que tinha contado.

Pareceram horas de violência e dor, os golpes inter­calados com as mesmas questões repetidas vezes, até Donnell dizer:

— Chega, Egan. Se ela não estiver dizendo a verdade vai morrer antes de mudar a história.

Annora permaneceu no lugar em que tinha caído com o último golpe de Egan. Não havia uma parte de seu cor­po que não gritasse de dor. Virou a cabeça sobre o chão gelado apenas o suficiente para olhar para os dois ho­mens que a observavam, e se perguntou como podiam es­tar livres e vivos enquanto uma pessoa boa como James estava acorrentado no calabouço esperando o que, com certeza, seria uma morte lenta e dolorosa.

Estava começando a pensar que poderia ao menos tentar se sentar quando um homem entrou correndo no escritório gritando:

— Estamos sendo atacados pelos MacLaren.

— Ainda nem escureceu — resmungou Donnell. — O que os tolos pensam que estão fazendo?

— Vingando a morte do primogênito? — perguntou Annora, apoiando-se nas mãos e joelhos.

Um chute forte a lançou ao chão novamente.

— Foi uma morte provocada durante um ataque. Acontece o tempo todo. E somente um idiota ataca um castelo protegido durante o dia.

— Talvez alguém o tenha informado de que não esta­mos tão protegidos no momento — disse Egan, levantando-a com violência e quase a atirando em uma cadeira.

Lutando para permanecer consciente, escutou o pri­mo interrogar o homem que trouxera a notícia. Pelo que estava sendo dito, deduziu que o clã vizinho quase tinha conseguido tomar o castelo. Somente o retorno súbito dos homens de Donnell havia salvado Dunncraig. Eles ti­nham enfrentado e expulsado os MacLaren. Enraivecido, o primo socou o mensageiro com força, quebrando seu nariz. Com o canto dos olhos que inchavam depressa, ela viu o rapaz sair de lá enquanto Donnell começava a elaborar planos com Egan, planos que incluíam caçar os inimigos e massacrá-los.

Quando eles caminharam em direção à porta, Annora pensou ter sido completamente esquecida até que Donnell se virasse para ela, olhando-a com uma expressão contorcida de desgosto. Se tinha chegado a incomodar o primo, sua aparência devia mesmo estar péssima, pensou.

— Não tente sair daqui — ele disse. — Ainda não ter­minamos de interrogá-la.

Ela fitou a porta durante um longo tempo após ter se fechado atrás dos dois. Sentou-se na cadeira e tentou lutar contra a dor, perguntando-se o que poderia fazer a seguir.

A porta se abriu devagar, fazendo-a franzir a tes­ta. Não podia ser nenhum dos homens, pois eles não ti­nham razão para entrar sorrateiramente. A pessoa que se esgueirou para dentro era familiar, mas sua visão estava tão turvada pela dor que não a reconheceu até que esti­vesse a apenas alguns passos. Marta estava a seu lado antes que identificasse a tigela com a água e um saco cheio de suprimentos para ajudá-la a curar todas as feri­das que faziam o corpo todo latejar.

— Acha que quebraram algum osso, criança? — ela perguntou com gentileza.

— Não, mas acho que não há um pontinho em meu corpo que não esteja ferido — respondeu, achando que a própria voz soava esquisita por causa do inchaço nos lábios. — O que está acontecendo?

— Meggie está no quarto e Annie conseguiu fazê-la dormir — disse, começando a limpar o rosto de Annora. — Temo que o verdadeiro senhor esteja acorrentado na masmorra, onde muitos outros homens bons morreram quando aquele bastardo do seu primo tomou Dunncraig. E MacKay e seu bando estão cavalgando pelos campos tentando matar os MacLaren.

Aquela era uma boa oportunidade para fazer algo, mas todos os pensamentos e a força de Annora pareciam ser consumidos na luta para permanecer consciente. Marta passou unguento nos ferimentos e embrulhou as costelas, que estavam muito machucadas. O simples fato de ter o vestido abaixado e levantado tinha sido pura tortura.

— Devo encontrar Tormand Murray e Simon Innes — disse, esforçando-se para se sentar.

— Moça, foi tão espancada que duvido que consiga se aliviar sem ajuda.

— Tenho que ir até a vila. A luta se estendeu para além dali?

— Sim — respondeu, ajudando-a a se levantar e a recuperar o equilíbrio. — Os tolos os estão caçando na direção das terras dos MacLaren.

— Rezo para que os MacLaren ganhem a corrida para que eu tenha a oportunidade que estava esperando.

— Oportunidade de fazer o quê? Matar-se ao tentar agir quando deveria estar deitada?

— Devo encontrar os dois. Posso trazê-los para dentro do castelo sem serem vistos.

— Ah, claro. James a conduziu para fora pelas passa­gens secretas, não?

— Sim, e pretendo trazer ajuda pelo mesmo caminho. Vai tomar conta de Meggie por mim?

— Claro. Vou me assegurar de que ela não seja pega em qualquer luta que aconteça.

— Obrigada. Acho que ela já viu o suficiente. Conforme Marta a acompanhava até a porta, Annora tentou afastar toda a dor e se estabilizar. Não faria bem algum se caísse de cara no chão antes de chegar à vila. Dava cada passo com muito cuidado e, quando chegou à porta que dava para o lado de fora, sentiu que podia caminhar sem auxílio.

— Talvez eu devesse ajudá-la a chegar à vila — dis­se Marta, olhando ao redor para o pátio quase deserto. — Não acho que MacKay tenha percebido que deixou o lugar tão vazio.

— Isso é bom. Ele estava furioso, o que o deixou estú­pido. James está sendo vigiado, não?

— Sim, por seis sujeitos corpulentos que não permi­tiram que eu me aproximasse do rapaz, mesmo dizendo que só fui me assegurar de que ele não morresse do feri­mento na cabeça. Eu disse que MacKay ficaria muito in­feliz se ele morresse, pois então não poderia torturá-lo.

— E isso não funcionou?

— Não, eles disseram que já sabiam que ele não mor­reria e mandaram que eu voltasse com meu traseiro ma­gro para a cozinha, que é meu lugar. Vou tentar de novo mais tarde e talvez funcione.

Aqueles homens teriam sorte se não fossem envene­nados na próxima refeição, pensou Annora.

— Cuide de Meggie. Ela estará assustada e Donnell pode até tentar feri-la se perceber que está prestes a per­der tudo.

— Juro, moça, que a criança ficará segura. Preocupe-se com você.

Annora quase assentiu, mas temeu que o movimento da cabeça dolorida pudesse fazer com que a inconsciência que a rondava a tomasse. Em vez disso, concentrou-se em pôr um pé diante do outro. Conseguiu se equilibrar conforme se movia, mas o caminhar era lento. Achou que parecia uma velha encurvada, mas a última de suas pre­ocupações era com a aparência. Quando chegou perto da vila, sentiu que alguém a tomava pelo braço e olhou para a pessoa que caminhava a seu lado.

— Ida, não é seguro ser vista ao meu lado no momento.

— Não é seguro viver em Dunncraig no momento — ela disse. — Não sei onde pensa que vai, mas não suportei vê-la se arrastando por aí, parecendo estar a ponto de cair de cara no chão. Onde está indo?

— Para a hospedaria. Encontrar o irmão de James e sir Simon.

— Bem, está com sorte, pois eles acabaram de voltar ara seus quartos. Escutaram o que aconteceu e acho que estão tentando fazer planos. Não sei o que pensam que podem fazer. Mesmo agora, com a maioria dos homens cavalgando pelos campos e clamando pelo sangue os MacLaren, não seria fácil libertar o senhor daquelas correntes.

— Não. Marta me disse que há seis homens bem gran­es vigiando-o e não temos como saber quando os outros vão voltar. Temos que ter um plano mais inteligente do que correr até lá e tentar libertar James. Espero que Simon e Tormand sejam espertos.

— Ah, sim, moça. São muito espertos. Eles não estão aqui há dias sob o nariz de MacKay sem que ele sequer suspeite?

Aquelas palavras lhe deram esperanças ao olhar para as escadas da hospedaria e sentir o corpo inteiro protes­tar de dor ante o mero pensamento de subir. Ida passou um braço ao redor de sua cintura e a ajudou. Sentia que, a cada passo, as costelas machucadas fizessem o corpo todo latejar. Sabia que nunca teria subido sem o auxí­lio de Ida, e suspeitava que a pobre mulher a estivesse quase carregando quando chegaram ao alto. Bateram na porta, que foi aberta por um homem alto.

— Qual é o problema, Ida? — perguntou, antes de pra­guejar e envolver os ombros de Annora com braços fortes.

— Quem é ela e por que a trouxe aqui?

— Ela é Annora MacKay, sir Innes — respondeu. Outro homem alto surgiu ao lado dele.

— Tormand Murray? — Annora quis saber.

— Sim. Meu Deus, o que aconteceu com você?

— Fui interrogada sobre a tentativa de seu irmão de fugir de Dunncraig.

— Por que se arrastou até aqui? Deveria estar na cama.

— Mais tarde. O homem do rei está pronto para aju­dar James de outra forma além de reunir informações?

— Sim — disse o próprio Simon.

— Bom, pois posso colocá-los dentro do castelo para que o resgatem antes que Donnell o faça em pedaços. — Sentiu os joelhos fraquejarem. — Apesar de eu achar que isso vai ter que esperar um pouco.

A última coisa que escutou antes de desmaiar foi uma voz profunda dizendo:

— Pegue-a. Ela não precisa de mais ferimentos.

Ao despertar, a primeira coisa de que Annora teve consciência foi da dor. Sentiu, então, um tecido úmido sobre o rosto dolorido, o que provocava algum alívio. Conseguiu abrir um pouco os olhos, o que a surpreendeu, ao se lembrar do motivo de todo o sofrimento. Um rosto charmoso, com olhos de cores diferentes, mas muito bonitos, surgiu em seu estreito campo de visão.

— Tormand Murray? — perguntou, lembrando-se do que James tinha dito a respeito dos olhos do irmão. Não poderia haver outra pessoa na hospedaria da vila com um olho verde e outro azul.

— Sim, e você é a Annora de James.

— Ah, isso soa bem... — Corou ao vê-lo sorrir, dando-se conta de como aquilo soara tolo. — Por quanto tempo fiquei inconsciente? — quis saber.

— Por cinco horas.

— Não! — gritou, aterrorizada ao pensar que poderiam ter perdido a oportunidade de salvar James. — Por que não me acordaram?

— Tentamos algumas vezes, mas decidimos que poderíamos nos preparar enquanto você descansava um pouquinho. — Ele passou um braço em volta dela, ajudando-a a se sentar. — Estamos prontos agora para que nos leve até o lugar em que James está preso. Na verdade, sem esse pequeno descanso, não acho que conseguiria fazer isso.

— Estou assombrado de que tenha chegado até a vila — disse o homem do outro lado da cama, chamando sua atenção. — Simon, senhorita — disse, fazendo uma reve­rência. — Ao seu serviço.

— Somente vocês dois? — perguntou, enquanto Ida afastava Tormand do caminho para ajudá-la a beber um pouco de hidromel.

— Não. Enquanto dormia, reunimos alguns homens — replicou Simon. — Não foi difícil encontrar alguns dispostos a livrar Dunncraig de seu primo. Foi ele quem bateu desse jeito em você?

Sir Innes estava evidentemente incomodado por ver uma mulher espancada daquela forma, o que era Um bom sinal. Apesar de James ter dito que poderiam confiar nele, estava precavida em relação a qualquer um no momento. Infelizmente, James não podia esperar até que decidisse em quem confiar.

— Não. Egan, seu braço direito, fez as honras — res­pondeu. — Estava ansioso por isso, pois James o espancou antes de fugirmos. Donnell matou algum dos MacLaren? Era o que pretendia fazer quando saiu.

Tormand meneou a cabeça.

— Não, eles escaparam, mas poucos retornaram para lá. Simon achou que poderiam ser uma boa fonte de ho­mens treinados em luta. Precisaremos de pessoas assim para retomar Dunncraig.

— Claro que sim, e os MacLaren devem estar ansiosos para ajudar. Donnell fez um bom trabalho ao se livrar de todos os que eram leais a James. Quando querem que os conduza para dentro do castelo?

— Dentro de uma hora.

Annora afundou-se nos travesseiros.

— Então, deem-me um tecido molhado de novo para eu colocar sobre os olhos. Vai me ajudar a enxergar me­lhor o caminho quando chegar a hora de partirmos.

— Acha que uma hora será suficiente? — perguntou Tormand enquanto a atendia.

— Sim. Só não esperem que eu faça nada além de de­sabar em um canto qualquer assim que eu entrar.

— Vou cuidar eu mesmo para que fique em um lugar seguro.

Ela colocou o tecido sobre os olhos, quase suspirando de prazer diante da sensação, antes de ouvir a porta ser fechada.

— Ida?

— Estou aqui. Descanse, moça. Vai precisar de toda a força que tiver para enfrentar as próximas horas.

— Vamos vencer desta vez, não?

— Ah, sim, não duvido disso por nenhum instante.

— Ela não tinha condições nem de se levantar. Ainda não acredito que tenha caminhado até aqui para nos en­contrar — disse Tormand, assim que entraram no quarto de Simon.

O homem do rei serviu uma caneca de cerveja para cada um.

— Ela não aparenta ter tanta força, e foi necessária muita para que fizesse o que fez. E as costelas estão ata­das, o que significa que estão seriamente feridas. Posso dizer que é uma agonia respirar com tais ferimentos.

— Então, não acredita mais que não possamos confiar nela.

— Não, mas não porque ela tenha vindo até aqui toda machucada. Isso mostra que ela é uma boa mulher. Contudo, o que me convenceu foi o olhar em seu rosto quando você a chamou de a "Annora de James". Apesar de todo o inchaço e dos hematomas, percebi que ela ficou encantada. — Tormand riu ao vê-lo tentar imitar a voz dela. — Tinha aquele tom doce de uma mulher que acre­dita estar apaixonada.

Tormand meneou a cabeça.

— Você é um cínico, Simon. Um homem duro. Talvez algum dia me diga o que o tornou tão amargo em relação a coisas como amor e casamento, fazendo-o desconfiar tanto das mulheres.

— Talvez. No momento, isso não importa. Acredito que ela sinta que está apaixonada, o que a impeliu a fazer algo realmente extraordinário. Eu apenas gostaria que você conhecesse as passagens secretas do castelo para que a pobrezinha pudesse ficar na cama e receber os cui­dados necessários.

— Bem, James pretendia me explicar, e até mesmo desenhar um mapa, mas então tudo deu errado e ele teve que fugir.

— É bom que a moça as conheça, ou seu irmão não te­ria chance de sobreviver, e nós dois sabemos que MacKay não o presenteará com uma morte rápida e limpa.

Tormand deu um grande gole na cerveja e examinou o cálice de madeira em suas mãos.

— Esse é um dos trabalhos de James. O estalajadeiro deve tê-los comprados para seus melhores aposen­tos. — Suspirou e olhou para Simon. — Sei bem quem é MacKay e do que ele é capaz. Sei que assim que ele atravessar os portões de Dunncraig, meu irmão sofrerá muito. James vai aguentar. Ele esperará que eu chegue para auxiliá-lo, mas nunca me culpará se eu falhar e não conseguir salvá-lo. Não é necessário dizer que eu quero poupá-lo da dor e salvar sua vida, mas no momento não é isso o que mais consome minha mente. Quero alcançá-lo antes que MacKay o torture muito, antes que ele destrua as mãos de James.

— Suas mãos? — Simon olhava para o cálice idêntico ao outro que segurava. — Ele faz um trabalho lindo.

— Não é trabalho para James. Sim, ele pode ganhar dinheiro com tal habilidade, mas faz isso porque preci­sa. Sempre fez. Ele consegue ficar diante de um pedaço de madeira, olhar para ela por um tempo e, de repente, começar a trabalhar. Algumas vezes, visualiza uma ima­gem, outras vezes esboça algo em um pergaminho para mostrar para alguém o que ele vê, ou apenas para ter certeza de que o que ele vê ficará bom. Sempre fica.

— Temo que nunca tenha compreendido tais coisas, o tecelão ou o ourives, ainda que haja muitos ao redor. E seu irmão é um senhor de terras.

— Não importa. Se ele fosse rei, ainda o veríamos en­talhando algo na madeira. De verdade, ele precisa fazer isso. Se MacKay destruir essa habilidade, machucando suas mãos, ele irá matar algo em meu irmão, algo que não tenho certeza que nem mesmo Annora possa conser­tar. Acho que é assim que acontece com muitas pessoas que tem tais dons.

— Então, devemos libertá-lo de MacKay antes que isso aconteça. Se serve de conforto, apesar de toda a astúcia e brutalidade, não acho que MacKay seja tão esperto. Não acho que ele saiba qual é o ponto fraco de James.

— Rezo para que tenha razão, pois, se souber da im­portância do trabalho de James, as mãos dele serão o pri­meiro alvo.

James despertou com água fria atingindo com força seu rosto. Sentia que a cabeça iria rachar ao meio. O cor­po parecia ter sido lançado de um penhasco e se chocado contra as pedras diversas vezes. MacKay sentira-se ofen­dido com o ataque dos MacLaren a Dunncraig e quisera que pagassem com sangue pelo insulto. Contudo, retor­nara da perseguição furioso por não ter conseguido ma­tar nenhum deles e tinha usado seu corpo para amenizar a ira. Um soco forte no rosto o tinha enviado para uma escuridão muito bem-vinda. Aparentemente, o intervalo tinha acabado.

Olhou na direção da água e teve que piscar diversas vezes para conseguir enxergar. Não viu nada até olhar para baixo e identificar Marta, segurando um balde de água, uma caneca e um saco.

— Bom, está acordado agora — ela disse, colocando o balde no chão e abrindo o saco.

— E você acha que eu devia me sentir bem por isso? — Se MacKay voltasse logo, com certeza iria preferir es­tar inconsciente.

— Sim e não. — Olhou ao redor antes de começar a lavar seu corpo. — Ele vai voltar logo e pretende fazê-lo implorar misericórdia.

— Ele estará enterrado e terá apodrecido antes que isso aconteça.

— Eu não teria tanta certeza. Ele já subjugou muitos homens corajosos.

— Meus homens, você quer dizer. Bons homens que não romperiam o juramento feito a mim, ainda que isso tivesse poupado suas vidas.

— Sim, as semanas seguintes à sua partida foram mui­to tristes. Mas, em breve, tudo ficará bem novamente.

James encarou a mulher que estava nas pontas dos pés lavando seus braços.

— Teve uma visão? Viu-me fora daqui, e não somente um cadáver esperando o enterro?

Marta fez um ruído impaciente ante o cinismo em sua voz.

— Sabe muito bem que eu não tenho habilidade ou dom ou como quiser chamar. O que tenho é um par de boas orelhas e, no momento, um pouco mais de conheci­mento que você.

— E um pouco difícil se informar enquanto se está pendurado em uma parede sendo socado com brutalida­de. — James quase sorriu antes as imprecações criativas que ouviu. — O que sabe? — perguntou em voz baixa. — Sabe como estão Meggie e Annora?

— Suas moças estão bem. Meggie está um pouco as­sustada e Annora um pouco machucada.

— Somente um pouco?

— Bem, quando MacKay saiu para perseguir os MacLaren, ela foi até a vila encontrar seu irmão e o ami­go. Então, não estava tão mal, certo?

James não ficou muito convencido, mas resolveu que não era hora de discutir. Ela tinha dito que as duas esta­vam vivas, e aceitaria aquilo no momento.

— O que sabe além disso?

— Sei bastante — ela disse, em voz suave. — Os guar­das que estavam aqui acabaram de sair para buscar comida e trocar de roupa. MacKay pensa que eu estou na cozinha. Acho que ele não entendeu que eu não esta­va pedindo para ver você, eu estava dizendo que viria.

Então, eu desci, disse àqueles brutamontes idiotas que o vigiavam que cuidaria de suas feridas, e eles acharam que não haveria problemas.

— E eles não discutiram? Não acho que o cretino man­de alguém aqui em baixo com frequência para cuidar dos prisioneiros.

Marta suspirou.

— Ele já fez isso. Queria manter seus homens vivos o máximo possível. Ainda sonho com algumas coisas da­queles tempos.

— Sinto muito que tenha tido que passar por isso. Eu não devia ter partido.

— Livre-se da culpa, rapaz. Teve que fugir para salvar a própria vida. Além disso, ninguém achava que MacKay iria ameaçar seus homens, como ele fez. A maioria espe­rava que ele obtivesse um juramento ou que os mandasse partir daqui. Alguns, que tinham escutado histórias mui­to sombrias sobre ele, foram embora logo depois de você. Outros juraram fidelidade e ficaram, apesar de nunca te­rem se misturado, de fato, com os homens que chegaram com MacKay. O único pensamento deles foi, e ainda é, so­breviver e ficar perto de seus entes queridos.

— Eu não tinha percebido que alguns de meus ho­mens ainda estavam aqui. Pensei que estivessem todos mortos ou que tivessem partido. Quantos?

— Cinco, eu acho. Eles tinham amantes ou família aqui e não quiseram ir embora. Edmund não conhece todos tão bem para saber. Mas eles estão prontos agora — ela sussurrou.

— Prontos para quê? — Sentiu-se melhor após ter sido lavado e ter as feridas cobertas com unguentos, mas a cabeça ainda latejava com tanta força que tinha dificul­dade para acompanhar o que ela dizia.

— Para o resgate, rapaz. Desta vez, o bastardo não vai vencer.

Antes que pudesse perguntar o que ela queria dizer, Marta já estava na porta da prisão. Logo depois, os guar­das retornaram e a expulsaram. James ficou tenso ao aguardar a chegada de MacKay. Daquela vez, o homem aproveitaria.

Sentiu um tremor percorrê-lo, mas escondeu-os dos guardas pressionando-se com força contra a parede de pedras atrás de si. Qualquer pessoa em sã consciência se preocuparia com o que estava prestes a acontecer, mas ele se recusava a demonstrar medo. Ainda tinha seu or­gulho, e, se fosse morrer, queria que fosse com coragem e dignidade.

Pensando em Annora, sentiu o coração partido. Finalmente, tinha encontrado a mulher perfeita, sua verdadeira companheira, e não poderia ter o futuro de­sejado ao lado dela. Não haveria crianças de cabelos negros e olhos azuis. Sua pequena Meggie se tornaria mulher acreditando que MacKay fosse seu pai, e havia uma grande chance de Annora ser obrigada a se casar com Egan ou fugir para a casa de algum parente, alguém que não se importava com ela. Sabia que o irmão faria o máximo para protegê-las, mas não seria fácil. Suas duas mulheres estavam sendo mantidas ali e, após a tentativa de fuga, a vigilância seria reforçada.

Ansiava em vê-las mais uma vez, mas sabia que seria impossível. Seria também perigoso para Annora. Se ela tivesse conseguido convencer o primo de que fora a ví­tima inocente de um homem louco, teria chance de sair viva daquilo tudo.

Por um instante, temeu que ela tivesse sido incapaz de mentir tão bem. Era uma mulher muito honesta.

— Bem, vamos dar uma olhada no grande senhor Drummond pendurado aí, como carne fresca. — James escutou uma voz feminina, que conhecia bem.

Olhando para Mab, quase ofegou. A mulher estava péssima, com o rosto seriamente ferido e o cabelo cortado em comprimentos diferentes. Mab tinha pagado muito caro por não tê-lo mantido no quarto.

— E por que permitiram que você descesse? — per­guntou de forma tão zombeteira e rude que provocou ri­sos nos guardas. Ela corou, enfurecida. — Não há nada do que me distrair aqui, moça. Pode ir.

— Não vai escapar desse lugar, cabeça de lobo. Ao me­nos, não com vida.

James encolheu o ombro e se esforçou para esconder a dor provocada pelo movimento.

— E bem óbvio que não tem intenção de me ajudar nem de demonstrar um pouco de compaixão. Então, como já perguntei cada vez que tentou rastejar para a minha cama, por que está aqui?

— Talvez eu só queira ver MacKay ensinar um pouco de humildade a você antes que o enforque.

— E talvez você precise ter o resto do cabelo cortado — disse uma voz profunda, fazendo-a empalidecer e sair de lá apressada.

James olhou para Egan e soube que fora ele a tentar destruir o que Mab considerava ser a sua beleza. Tinha ido ele também quem continuara mandando a tola mulher até seu quarto. Era próprio do homem fazer com que qualquer um perto dele sofresse por sua humilhação. — Ah, outro visitante — disse James. — Sou um sujei­to popular, não? A que eu devo a honra?

— Tenho só algumas perguntas a fazer antes que Donnell comece a extrair gritos de você — disse Egan.

— Que perguntas?

— Você tocou Annora MacKay?

James encarou-o, sentindo um alívio tão grande que precisou de um momento para se recobrar. O homem aca­bara de revelar que não havia feito nada com Annora que o levasse a descobrir a perda da virgindade.

— Como eu disse para MacKay, precisava que ela cui­dasse da criança.

— Espera que eu acredite que passou uma noite ao lado dela sem tocá-la?

— Algumas pessoas não acham que atirar uma moça no chão a contragosto e possuí-la seja gratificante. Então, respondendo à sua pergunta, não, eu não tomei Annora MacKay.

— Egan, estava procurando por você — disse MacKay, aproximando-se da cela.

— Tive que perguntar ao homem se ele tinha tocado Annora.

MacKay praguejou e o empurrou, tirando-o do caminho, antes de andar até onde estava James, pendurado na parede.

— Então, e se ela não for mais virgem? — Encarava James, mas se dirigia a Egan.

— A virgindade dela era minha. Ele repete que não a tocou, mas acho que está mentindo.

— Está, Drummond? — perguntou, em um tom de voz suave e quase gentil, que provocou arrepios na espinha de James. — Acho que Egan pode ter razão. Acho que está mentindo para mim. Acho que ela também está mentin­do. Vou extrair a verdade dela em breve. Apenas precisa se recuperar um pouco, uma vez que Egan a questionou com vigor. — Pegou o chicote na parede. — Acredito que devo interrogá-lo com calma. Acho que, dentre as men­tiras de Annora, está a forma como saíram daqui sem serem vistos.

— Você tem guardas muito ruins — disse James, forçando-se a não olhar para o chicote e antecipar a dor que o homem estava prestes a infligir em seu corpo.

— Sim, mas não tão ruins. Poucos deixariam de ver um homem, uma mulher e uma criança saírem de Dunncraig. Não, acho que esse castelo tem alguns segre­dos que preciso descobrir, e farei com que os conte todos para mim.

— Faça o seu pior — desafiou James com voz fria, o medo transformando-se em ódio profundo.

— É o que pretendo fazer — disse MacKay, levantan­do o chicote.

Annora começava a sentir que todos estavam espe­rando que ela caísse de cara no chão. Sabia que isso esta­va prestes a acontecer, mas aquela aflição ao redor de se tornava muito mais difícil prosseguir. A preocupação, alia­da ao respeito profundo dos homens que se esgueiravam nas sombras do bosque, fazia com que ela tivesse vonta­de de se sentar e permitir que todos eles a afagassem. O único que tinha uma necessidade feroz de continuar era Tormand, e tentava permanecer aberta somente para os sentimentos dele. Era o suficiente para que continuasse avançando em direção à porta bem escondida que levava às passagens secretas de Dunncraig.

— A que distância estamos? — sussurrou Tormand. — A alguns metros. — Sente-se — ele disse, fazendo-a descansar um pouco, com as costas apoiadas no tronco de uma grande árvore. — Isso não é muito prudente. Posso não conseguir me mexer de novo. — Quando Simon se agachou diante dela e estendeu um odre de vinho, sorriu agradecida e aceitou um gole.

— Tudo o que precisa fazer é permanecer consciente — pediu Tormand. — Eu a carregarei, se necessário, e você pode apontar o caminho. Acho que talvez eu faça isso, de qualquer forma.

— A oferta é gentil, mas não acho que vá amenizar muito a dor que estou sentindo.

— Tem certeza de que não pode apenas explicar o ca­minho ou desenhar um mapa no chão?

— Gostaria muito de poder, Tormand, mas só fiz esse percurso uma vez. Sei como chegar até a entrada, mes­mo esse não sendo o mesmo caminho que fiz com James quando fugimos, porque andei por esses bosques durante anos e conheço cada árvore e arbusto por aqui. No entanto, preciso ver a passagem para indicar em que direção de­vem ir.

— E conseguirá mesmo se lembrar do caminho assim que entrar?

— Sim. Não vou cansá-los com histórias da minha in­fância, mas aprendi rapidamente a sempre descobrir como voltar. Sou capaz de percorrer um trajeto somente uma vez e retornar pelo mesmo caminho, mesmo depois de muito tempo. Contudo, para dar indicações ou desenhar um mapa, preciso passar pelo lugar muito mais vezes.

— Uma habilidade intrigante — murmurou Simon.

— Acho que sim. — Ela olhou para os MacLaren que se ajoelhavam nas sombras a alguns metros e perguntou: — Vocês têm certeza que é prudente mostrar a eles a en­trada e as passagens secretas do castelo? Eles têm uma disputa com Dunncraig, não?

— Têm uma disputa com seu primo — respondeu Simon. — Se, quando tudo terminar, James se preocupar com isso, pode facilmente bloquear a entrada.

— É verdade. — Endireitou o corpo e respirou fundo. Sabia que teria que lidar com muita dor quando se levan­tasse. — E melhor prosseguirmos.

Eles a ajudaram a se erguer, de forma a amenizar o sofrimento. Ainda assim, precisou respirar lentamente por alguns momentos, a fim de recuperar o equilíbrio e conseguir se mover. Tormand se pôs a seu lado, passando os braços fortes ao redor de sua cintura para estabilizá-la. Assim, ela os conduziu pelos bosques até alcançarem a abertura que dava acesso às passagens subterrâneas do castelo. Apesar de a porta estar bem escondida em meio às raízes grossas de uma velha árvore, conseguiu levá-los até lá sem problemas.

Tormand foi o primeiro a entrar no túnel e, em segui­da, Simon gentilmente a ajudou a se abaixar. Foi doloro­so, mas ela conseguia disfarçar. Para ter forças, pensava no conforto de uma cama macia, uma poção para aliviar a dor e alguns momentos sozinha para chorar toda a má­goa que mantivera escondida por tanto tempo.

Apoiou-se na parede de pedras do túnel, enquanto Tormand acendia uma tocha, e piscou quando a luz re­pentina feriu seus olhos. Enquanto Edmund auxiliava os outros a entrarem, começou a conduzi-los com segurança ao longo do túnel, ignorando diversos desvios até que, ao tomar um deles, fosse interpelada por Simon.

— Para onde leva esse caminho? — ele perguntou.

— Para os calabouços — respondeu, lembrando-se bem de quando James parará e o mostrara para ela.

— E o último pelo qual passamos?

— Para a cozinha. Têm que seguir em frente, pres­tando atenção em um conjunto de degraus grandes e ir­regulares. Ao subir, encontrarão uma porta que leva à despensa, que está sempre destrancada.

— Espere aqui.

Ela se encostou ao corpo forte de Tormand e murmurou:

— Aonde ele pensa que eu vou? — Sorriu de leve quando escutou o riso dele, tão suave que mais parecia um mero sussurro. — O que acha que está fazendo?

— Mandando alguns dos homens para dentro do cas­telo pela cozinha.

— Espero que os avise para tomarem cuidado com Marta.

— Ela está esperando que algo aconteça. Portanto, não acredito que vá machucá-los. Qual é a distância da­qui aos calabouços?

— James disse que é um caminho reto, que pode ser percorrido em cerca de dez minutos, se for necessário ter cuidado para passar despercebido, ou muito menos tem­po se não houver problemas em ser escutado ou visto. Apenas me interessei em saber a direção e o destino, e não a distância. Eu me concentro apenas em saber como voltar ao lugar de onde parti.

— Porque foi deixada em lugares? Abandonada?

— Alguns de meus parentes me levavam aos lugares sem se assegurar de que houvesse familiares em casa ou que pudessem me receber. Minha tia Agnes fez isso três vezes antes que um primo me aceitasse.

Annora sentiu-o apertar de leve seu ombro, em um gesto silencioso de compaixão. Surpreendeu-se ao não achar aquilo humilhante. A sensação de ultraje que ema­nava dele e o conforto que oferecia transformavam a compaixão em algo aceitável. Não era piedade, algo que teria repelido.

Assim que Simon voltou, eles prosseguiram, e logo o som de vozes os alertou de que se aproximavam de seu destino. Quando Tormand apagou a tocha, Annora espe­rou ser tomada pelo medo do escuro, mas o sentimento rapidamente desvaneceu. Estava ocupada demais com a própria dor e com a segurança de James para se preocu­par com a escuridão. Nada era mais assustador do que a impossibilidade de ajudá-lo a se livrar da crueldade do primo. Ao começar a escorregar pela parede, Tormand vol­tou para o lado dela e a segurou de encontro ao corpo.

— Firme, moça — sussurrou em seu ouvido. — Achei um lugar seguro para descansar enquanto resgatamos James — disse, começando a conduzi-la para um ponto mais à frente no corredor.

Ela percebia a excitação crescente dele, e pensou em como homens eram criaturas estranhas. Não entendia como podiam achar estimulante aquele tipo de ataque. Teve certeza de que, caso a batalha não fosse satisfato­riamente sangrenta, eles ficariam desapontados.

Tormand a acomodou em um vão no corredor. Ela viu um brilho tênue de luz penetrar a escuridão e ouviu vo­zes nítidas, percebendo que estavam a apenas alguns metros da prisão. O súbito estalar de um chicote quase a fez ofegar, mas, como Tormand tinha antecipado sua reação, cobrira suavemente a boca ferida.

— Calma, moça. Demonstrou grande coragem até o momento — sussurrou, removendo a mão. — Não vacile agora.

— Ele está machucando James — ela murmurou, te­merosa de começar a chorar.

— Não fará isso por muito mais tempo.

Ainda que ele continuasse sussurrando, Annora sentiu a determinação dura e fria na voz atraente, assim como a fúria selvagem que fervilhava dentro dele. Tamanha ira normalmente a deixaria inquieta, mas daquela vez foi reconfortante. Tormand Murray faria Donnell pagar caro por cada pontada de dor que tinha infligido a James.

Ela meneou a cabeça, tranquilizando-o antes que ele re­tomasse o caminho, e sentou-se com as costas pressiona­das contra a pedra, esperando que o frio que penetrava em seu corpo a mantivesse alerta. Escutou os homens passarem por ela. O modo silencioso como se moviam e a rígida determinação que sentiu neles atenuou o medo por James. O reinado cruel do primo em Dunncraig esta­va prestes a chegar a um fim sangrento.

James contraía os dentes com tanta força que temeu que virassem pó, caso não fosse resgatado logo daquela tortura. Não podia fazer nada para evitar o suor, mas esperava que MacKay atribuísse aquilo a qualquer ou­tra razão, que não o medo. Desejava não temer, mas era difícil conter a sensação sabendo que o homem estava disposto a infligir-lhe o máximo de dor possível.

— É um homem teimoso, James Drummond — disse MacKay com tranquilidade.

A calma era uma das coisas que o tornava mais intimidador do que era de fato. James duvidava que ele per­maneceria ali, todo calmo, suave e cheio de sorrisos frios, se enfrentasse alguém livre das correntes.

— E você é um porco covarde que se empertiga diante de um homem acorrentado agindo com valentia e autori­dade. Solte-me para lutar de maneira justa e vamos ver até onde vai sua coragem. — Não se surpreendeu ao ser açoitado de novo por causa daquelas palavras.

— Você não governa mais esse lugar, Drummond sibilou, revelando a raiva e a inveja escondidas sob a crueldade fria. — Eu governo agora.

— Seu domínio aqui é baseado em mentiras e traições. Por quanto tempo irá durar?

— Pelo tempo que eu quiser. Os únicos que poderiam reclamar esse lugar estão mortos, como sua pequena esposa, Mary, ou fugiram.

— Suponho que tenha tido grande prazer em me trair com minha esposa.

— Mary foi minha antes.

— Então, por que não ficou com ela?

— Porque, como ela tinha um grande dote, seus pais acharam que ela podia fazer um casamento melhor. Mas eu queria aquilo. Eu tinha conquistado aquilo.

— Como?

MacKay estava ereto, em uma postura que projetava seu peito até que ele parecesse um pavão. James decidiu que queria escutá-lo dizer a verdade sobre os crimes. Se fosse morrer, queria ir com todas as respostas e com to­das as suposições confirmadas ou substituídas pela feia verdade.

— Fazendo a estúpida se apaixonar por mim. — Meneou a cabeça como se, mais uma vez, se surpreen­desse com o fato de ter sido tão fácil conquistar o afeto de Mary. — Sabe por que ela o odiava? Por que ela fazia qualquer coisa por mim e o traía uma vez após a outra?

— Bem, admito que estou curioso sobre o motivo de ela preferir um porco bruto como você a um senhor de terras rico, nem tão feio, nem tão velho. — Cerrou os dentes de novo quando MacKay o acertou perto da viri­lha com o chicote.

— Tolo. Nunca conheceu de verdade a mulher com quem se casou. Ela não era a donzela tímida e doce que deixava todos crerem que fosse, inclusive os próprios pais. Ela era uma prostituta. Aposto que pensou que ela era virgem, mas foi apenas um truque que aprendeu com uma mulher na taverna enquanto estava em uma peregrinação com a mãe.

James queria mesmo saber como tinha sido engana­do. O fato de ele nunca ter dormido com uma virgem pro­vavelmente ajudara Mary em seu engodo.

— E ainda assim quis assassinar a mulher com quem se importou por tanto tempo.

— Quem disse que eu me importava com a vadia? Ela era uma amante que apreciava o lado bruto da paixão. Quando foi escolhida para ser sua noiva, eu vi a chance de ganhar alguma coisa. No entanto, você não me ofereceu nenhuma posição nem me ajudou a encontrar algo digno do meu valor. — O tom de ultraje na voz de MacKay re­velou que o insulto ainda o atormentava. — Então, decidi que ficaria no seu lugar. Tive a ideia com um homem que havia ganhado tudo de outro provando que ele matara alguém de sua família. Ele exigiu tudo como uma repa­ração pela perda. Foi quando percebi que Mary podia ser útil. Apressei-a a se casar com você e jurei que ela seria uma viúva muito em breve.

— E teve tempo para executar seu plano. Uma sombra se moveu no canto mais distante do calabouço, perto de onde os guardas bebiam enquanto escutavam o senhor confessar seus crimes. James imagi­nava por que os homens não saíam dali e como pareciam não entender que era mortalmente perigoso escutar aque­les segredos, quando viu outro movimento leve nas som­bras. Sentiu o coração acelerado, com a esperança de que aquilo não fosse algum truque da luz ou uma visão falsa provocada pela dor, e manteve os olhos fixos em MacKay. Se havia algo acontecendo ali, não queria alertá-lo.

— Um bom plano precisa de tempo para ser perfeito — respondeu, pretensioso. — Precisava reunir aliados, homens no poder que pudessem tomar as providências para meu ressarcimento quando você fosse condenado por ter assassinado sua esposa, que era parente minha. Então, Mary deu à luz Margaret, o que eu vi como uma oportunidade ainda maior. Como já tinha testemunhas de que éramos amantes, podia alegar que a criança era minha de sangue, se não pela lei. Isso ajudaria e seria um ótimo motivo para você tê-la matado.

— Mas ela não foi assassinada, foi? Não foi o sangue de Mary que encontramos no chalé incendiado.

— Não, foi uma criada de outro vilarejo. Nós éramos amantes e Mary descobriu. Ela se uniu às nossas brin­cadeiras por um tempo, mas acabou tendo ciúmes e ma­tou a mulher. Como eu tinha tudo de que precisava para condená-lo, decidi que deixaria o mundo pensar que se tratava de Mary e pus meu plano em ação.

Encostando o queixo no peito por um instante, James espiou os guardas e quase praguejou alto, surpreso. Eles haviam sumido. Como tinha certeza de que ninguém, além dele e de Annora, conheciam os segredos do castelo, sabia que não tinham se esgueirado por uma das passa­gens. Quando estava prestes a voltar-se para que MacKay continuasse as confissões, foi atingido pelo chicote na bar­riga e ofegou. O choque impossibilitou que escondesse to­dos os sinais de dor.

— Cansado de escutar meus triunfos? — zombou MacKay.

— Talvez não devesse contar tanto — Egan interferiu.

— Por que não? Para quem ele vai contar? Estará ali­mentando os vermes muito em breve e mortos não con­tam histórias, não é mesmo?

Egan fez uma careta.

— Sempre achei que quanto menos pessoas conheçam os segredos, melhor.

— Quanto menos pessoas vivas, Egan. Esse tolo é um homem morto. Só não teve o bom senso de parar de res­pirar.

— Onde Mary se escondeu, então? — perguntou James assim que se sentiu capaz de falar em voz calma, sem revelar a dor que sentia.

— Aqui e ali. Fiz com que se mudasse de um lugar para o outro para que ninguém a descobrisse. Mas ela não obedecia. Continuava aparecendo e começou a exigir que eu me casasse com ela. A idiota não entendia que nunca poderia retornar a Dunncraig. Ela tinha enfiado na cabeça que, assim que eu assumisse o lugar, ela po­deria ser a senhora de novo, ser minha esposa. Tentei fazê-la sair da região durante meses até que ela me disse que estava grávida. Bem, você não precisa saber como eu tinha certeza de que o filho não era meu, mas não era.

Ficou, então, bem óbvio para mim que ela estava toman­do amantes e correndo o risco de ser reconhecida. Se ela fosse pega, eu sabia que não me protegeria. Foi quando a matei, quase um ano depois que você tinha fugido, acu­sado de assassinato.

— Onde ela está enterrada?

— Por que se importa com isso?

— Não tenho certeza se me importo, mas ela era mãe de Meggie e merece a consideração de um enterro apro­priado. Estou surpreso de que você não tenha garantido isso, para poder visitá-la de vez em quando.

— Por que eu faria isso?

— Porque, se ela não tivesse sido uma mulher tola e cega, você nunca teria colocado seu traseiro gordo no salão do meu castelo.

— Você não sabe mesmo ficar quieto, não? — MacKay o atingiu com o chicote no quadril

James ignorou a dor aguda e o sangue quente que es­correu por sua coxa, mantendo o olhar fixo nele.

— Onde ela está enterrada?

— Por que se importa? — exigiu de novo.

— Algum dia, Meggie pode perguntar e eu gostaria de mostrar para ela onde a mãe de sangue está enterrada.

— Mostrar a Margaret? Tem certeza de que não está louco? Como vai poder mostrar alguma coisa para a criança se vai estar morto? Eu devia enterrá-lo perto dela e deixá-lo ouvir seus lamentos até o inferno. Você é um homem morto, idiota. Um homem morto.

Um breve vislumbre de Tormand mostrou-lhe que o sumiço dos guardas era apenas o começo. Imaginou se Annora teria levado alguém até os calabouços para res­gatá-lo. Sabendo que o ataque começaria a qualquer mo­mento, olhou para MacKay e sorriu.

— Não. Na verdade, acho que o homem morto é você.

O ataque começou com tanta rapidez que Annora quase o perdeu. Estava sentada no mesmo lugar em que Tormand a havia colocado, atordoada por todas as con­fissões de Donnell. Conforme a verdade fluía do homem, interrompida apenas quando ele achava que devia hu­milhar James um pouco mais, golpeando-o, ela tentou encontrar Simon nas sombras. Assim que o viu ajoelhado contra a parede oposta do corredor, mais perto de James do que ela, ele virou rapidamente a cabeça e piscou para ela como se tivesse sentido seu olhar. Aliviada que o ho­mem do rei estivesse escutando cada palavra, tinha vol­tado a escutar o primo cavando a própria sepultura.

Mesmo sentindo uma ânsia feroz pelas respostas, de re­pente achou difícil permanecer acordada. Seu corpo exigia que descansasse para começar a se recuperar. Despertou de um dos breves cochilos a tempo de ver Edmund carre­gando o corpo de um dos guardas. Bem desperta de novo, olhou para onde os guardas estiveram sentados e perce­beu que aquele tinha sido o último a ser arrastado.

Observou os homens se aproximarem de Donnell e Egan. Seu primo estava tão ocupado mostrando a James como o tinha enganado que não notou que seis de seus guardas tinham sido mortos e que um grupo de homens armados estava avançando devagar em direção a ele.

Ainda assim, se perguntou como ele tinha conseguido elaborar e realizar todo aquele plano.

Ao escutar uma nota estranha na voz de James, esti­cou-se um pouco para ver melhor e teve que se esforçar para conter um grito de ultraje. Ele estava acorrentado à parede quase nu. O corpo lindo e forte estava coberto de ferimentos provocados pelo chicote de Donnell.

De repente, Egan olhou em sua direção. Tinha certeza de que não podia ser vista, mas alguns dos homens que rastejavam em direção a Donnell já não estavam escondi­dos nas sombras. Quando Egan desembainhou a espada, os homens de Tormand se levantaram com um grito de batalha. O barulho preencheu o corredor em que estava e ela colocou as mãos sobre os ouvidos para tentar abafá-lo. Conforme os gritos e a correria continuavam, manteve os olhos fixos em James, rezando para que nada aconte­cesse com ele quando estava tão perto de ser libertado.

James viu o choque no rosto de Donnell quando Tormand, Simon e meia dúzia de homens armados correram no calabouço um segundo depois do grito alarmado de Egan. O homem, sem dúvida, pensava em tudo o que tinha confes­sado em sua orgia de regozijo, tripudiando e se gabando a respeito de seus feitos. Ficou tenso, imaginando como se defenderia ao perceber que Donnell desembainhava a espada e olhava para ele. No entanto, tudo o que fez foi empurrar Egan na direção dos homens e correr pelos de­graus que levavam ao castelo.

Egan praguejou e, sem esperar para se defender ou se render, seguiu seu covarde senhor pelas escadas.

— Pelo amor de Deus, me liberte dessas correntes — gritou James quando achou que todos estavam pres­tes a perseguir os dois, deixando-o pendurado ali.

— Sim, sim — disse Tormand. — Estou apenas ten­tando encontrar as chaves.

— Aqui — disse Edmund, saindo das sombras do cor­redor e entregando as chaves para Tormand. — Estavam com o último guarda. Você cuida dele, então?

— Sim. Subam e vejam se os outros precisam de ajuda. — Enquanto os homens obedeciam, Tormand se apressou para chegar até James e começou a libertá-lo das correntes.

— Trouxe um exército com você? — perguntou James. Ao colocar os pés no chão, percebeu que aquelas horas que ficara pendurado nas correntes, o tinham deixado um pouco instável e praguejou.

— Um pequeno exército — ele respondeu, apoiando o irmão, que tentava recuperar a capacidade de se mover com o mínimo de graça.

— Onde o conseguiu?

— Alguns aldeões com habilidades com a espada. Cerca de meia dúzia de seus antigos guardas que nunca deixaram de ser leais. Ah, e alguns MacLaren.

— MacLaren? Estamos em uma disputa com eles. O úl­timo ataque de Donnell custou a vida do filho do senhor.

— Simon os convenceu de que você e a maioria do povo de Dunncraig não eram responsáveis por isso e que, se eles quisessem pegar o verdadeiro responsável, deve­riam se aliar a você. Jurar um tipo de fidelidade a você diante de Simon é quase a mesma coisa que jurar diante do rei. Eles querem Donnell.

— Assim como eu. Escutou tudo o que ele disse? — Sentindo-se mais estável, James alcançou suas roupas e começou a se vestir, ansioso para se unir à batalha que se desenrolava no castelo.

— Sim, e Simon também estava ouvindo com muita atenção. Acho que ele gostaria que Donnell fosse captu­rado e não morto, pois quer os nomes daqueles no poder que o ajudaram a condenar um homem inocente.

Embainhando a espada, James disse:

— Eu o quero vivo para que outros possam escutar suas confissões. Agora, como encontrou o caminho até aqui? Não dei a você as indicações ou um mapa antes de fugir e ninguém mais o conhece.

— Isso não é bem verdade — disse Tormand. — Sua moça conhece.

— Annora? Mas ela só veio pela passagem uma vez.

— Parece que é o suficiente para ela se lembrar.

— Onde ela está agora? Acho que Egan a espancou e queria me certificar de que está bem.

— Bem, ela está aqui. — Encolheu os ombros ante o olhar do irmão. — Ela não sabia indicar como chegar nem desenhar um mapa, pois só se lembra do caminho se puder vê-lo.

— Isso não faz sentido.

Escutando essas palavras, Annora suspirou e, apoian­do as mãos na parede, tentou se levantar.

— Já escutei isso várias vezes essa noite — disse.

— Annora?

James correu até ela e, então, hesitou. Mesmo no can­to escuro em que ela se encontrava, não parecia bem.

Tomando-a com gentileza pelo braço, conduziu-a até um ponto mais iluminado do calabouço. Ao vê-la com clareza, uma fiaria dura e fria começou a tomá-lo.

— Seu rostinho lindo — murmurou, tocando com deli­cadeza um dos hematomas em sua face. — Egan fez isso, não?

— Sim. Eu não dei a eles as respostas que queriam. — Ela tocou-lhe o rosto igualmente ferido. — Você mes­mo não está muito melhor.

— Vou sarar.

— Eu também.

— Tem certeza de que está bem?

Ela sorriu e assentiu.

— Vá, James — disse. — Vá e salve Dunncraig.

— Se precisar de ajuda... — ele começou.

— Não, cheguei até aqui sem sua ajuda. — Ele não precisava saber que ela tivera muita ajuda no caminho. — Sei que você quer e precisa participar dessa bata­lha. Então, vá e lute. Mas tente não matar Donnell, pois Simon acredita que ele será mais útil vivo, ao menos por um tempo.

— Tentarei, mas posso matar Egan?

Havia uma expressão tão infantil em seu rosto, ape­sar do horrível pedido que estava fazendo, que Annora teve que sorrir.

— Sim. Acho que ninguém o quer ou precisa dele vivo. Ele beijou com rapidez e gentileza a boca machucada antes de subir as escadas. Annora virou-se para Tormand, que a observava com atenção. Tentou endireitar um pouco mais o corpo, mas o sorriso torto dele indicou que estava fa­lhando em sua tentativa de demonstrar que estava bem.

— Ele precisa estar nessa batalha — ela disse.

— Sim, precisa. E você precisa estar na cama.

— Posso chegar lá. James precisa que você lhe dê co­bertura.

Tormand pegou-a pelo braço e começou a ajudá-la a subir as escadas.

— Edmund e Simon farão isso até que eu me una a eles. Ela teve que subir apenas um degrau para perceber que precisava mesmo de auxílio. Apoiava-se nele cada vez mais conforme avançavam. Quando passaram pela porta no topo das escadas, ela tremia tanto que estava pratica­mente sendo carregada. Chegando ao salão, viram que o confronto havia começado entre Simon, Donnell, James e Egan. Tormand acomodou-a em um banco antes de se unir aos demais.

Sentiu um movimento a seu lado e, virando-se, viu Marta. Meggie estava escondida atrás dela e espiava por entre suas saias, parecendo aterrorizada com seus ferimentos. Forçou-se a sorrir para acalmar a menina, mas um grunhido de Marta revelou que sua atuação não estava sen­do muito convincente.

— Devo ajudá-la a ir para a cama, moça? — perguntou.

— Daqui a pouco — respondeu, sabendo que teria que ser carregada, mas não querendo admitir aquilo diante da menina. — Acho que preciso ver isto.

Marta olhou para seu rosto machucado por um ins­tante antes de assentir.

— Sim, acho que precisa.

— Você trouxe os MacLaren para dentro de Dunncraig — gritou Donnell, acusando-o.

— Eles não são meus inimigos. E com você que querem lutar e acho que merecem a oportunidade de vingar a morte do primogênito. — James olhou para Egan e vi­sualizou o rosto ferido de Annora.

— Quanto a você, pre­tendo cortar um pedaço de seu corpo para cada contusão que infligiu a Annora.

— Então, eu estava certo — afirmou Egan, encarando-o enquanto Donnell recuava. — Você fez dela sua prosti­tuta.

Apesar de saber que era um erro permitir que a fú­ria interferisse na batalha, escutou-se rosnar e atacá-lo. Foram necessários apenas alguns golpes de espada para recuperar a calma imperativa em um confronto. Assim que recuperou o controle das emoções, conseguiu acuá-lo em um canto com frieza e precisão.

O estilo da luta de Egan era tempestuoso e consistia basicamente em tentar arrancar a cabeça do oponente. James sabia que tinha habilidade para derrotá-lo e co­meçou a usá-la. Dentro de minutos, Egan estava suando e sangrando de uma dúzia de pequenos ferimentos, mas tinha conseguido evitar um golpe mortal.

— Vai se render? — perguntou, sentindo-se obrigado pela honra a fazer a oferta.

— Para quê? Ser enforcado ao lado do tolo que confes­sou tudo diante de um homem do rei?

— Pode obter alguma indulgência se revelar todos os crimes dos quais ele é culpado.

— Acho que não — disse, avançando.

O ataque repentino pegou James de surpresa, causando-lhe um corte profundo na parte lateral do corpo e um ferimento menor na perna. No entanto, Egan não soube se aproveitar da situação. Assim que recuperou o equi­líbrio, James contra-atacou e o restante da batalha foi rápido. Dentro de instantes, o homem oscilava tanto que James mal teve que pensar no golpe final que finalmente o derrubou. Assim que o viu caído no chão, com o sangue jorrando de um corte na garganta, voltou sua atenção para Donnell.

— Você se rende? — perguntou.

Para sua surpresa, Donnell assim o fez, lançando a es­pada aos pés de Simon, e permitindo que suas mãos fos­sem amarradas. James cambaleou, tomado pela fraqueza, provocada tanto pela perda de sangue quanto pelo tempo que tinha passado pendurado nas correntes. Sentiu-se ser amparado pelo irmão, que o ajudou a permanecer em pé e encarar Donnell pela última vez. Antes que se retirasse para cuidar dos ferimentos, precisava assegurar-se de que tudo tinha terminado, de que logo seria um homem livre e de que teria suas terras de volta.

— Você escutou tudo, Simon? — quis saber.

— Ah, sim, mais do que o suficiente. A confissão, o di­ário e as testemunhas que temos limparão o seu nome — replicou Simon.

— Que diário? — exigiu Donnell.

— Mary escreveu um diário no qual ela conta muita coisa a respeito de seus crimes — informou James.

O olhar no rosto do homem revelou que ele estava reconsiderando a rendição. Era evidente que tinha pensado em usar os amigos ou chantagear homens importantes para sair da confusão em que estava metido. Não funcio­naria daquela vez. Na verdade, James não se surpreen­deria se alguns daqueles que haviam sido chantageados para ajudá-lo antes estivessem ansiosos para vê-lo en­forcado por seus crimes. MacKay foi conduzido para fora dali por Simon e Edmund.

James andou até o banco em que Annora estava sen­tada e esperou que Marta fosse buscar o material ne­cessário para cuidar de seu ferimento. Quando Meggie se aproximou, cautelosa, conseguiu sorrir, o que não pa­receu diminuir a preocupação nos olhos castanhos da criança. Havia também curiosidade neles, e sentiu que seria pressionado com várias perguntas difíceis.

— Quem é você? — ela perguntou. — Não é o carpin­teiro, é?

— Não, garota, sou sir James Drummond, o senhor de Dunncraig.

— Esse era o nome do meu pai. Ele era o homem que se casou com a minha mãe quando ela me teve e isso faz dele meu pai.

— Sim, isso faz dele seu pai. — Não via motivos para evitar a conversa ou distrair seus pensamentos. Suspeitava que ela não fosse o tipo de criança que se deixava desviar de um assunto em que estivesse interessada ou que se in­timidava ao tentar obter respostas às suas perguntas.

Annora observou as diferentes expressões no rosto da criança e se sentiu um pouco inquieta ao detectar um lam­pejo de raiva em seus olhos. Desde o momento em que a menina tinha confessado não acreditar que Donnell fosse seu pai, mencionara o senhor anterior algumas vezes.

— Se você é sir James Drummond, então é meu pai.

— Sou.

— Por que foi embora? — a menina exigiu.

— Porque MacKay fez com que todos acreditassem que eu tinha matado sua mãe. Fui declarado um fora da lei. Você não ouviu a história?

— Sim, escutei algumas coisas. Você não matou mi­nha mãe?

— Não. MacKay matou.

— Bem, isso não me surpreende. Ele estava sempre matando pessoas.

— E então, o que você acha, minha Meggie? — per­guntou James. — Está pronta para me aceitar como seu pai ou vamos ter que discutir isso um pouco mais?

Ela mordeu o lábio enquanto o encarava.

— Você não partiu porque fui má?

— Não! Parti porque foi a única alternativa para eu permanecer vivo e tentar limpar meu nome, recuperar minha filha e minhas terras — disse. — Eu nunca teria partido e abandonado você só porque foi desobediente.

Olhou para as feridas dele e sorriu.

— Bem, então é melhor deixarmos Marta consertá-lo porque não posso ter meu pai sangrando por aí.

James abraçou-a com força por um momento, e bei­jou sua testa. Sentiu lágrimas nos olhos, mas piscou, afastando-as, sabendo que Meggie poderia facilmente interpretá-las da maneira equivocada. Quando ela come­çou a se mexer entre seus braços, ele a soltou, sabendo que levaria tempo para que a aceitação se transformasse no amor de uma criança por seu pai.

— Acho que Annora também precisa de cuidados, Marta. — Meggie sentou-se ao lado dela e começou a acariciar seus cabelos com gentileza. — Não se preocupe. Vamos fazer com que melhore.

— Isso seria bom — disse, antes de lentamente co­meçar a escorregar no banco, incapaz de impedir que a escuridão que a rondava havia tanto tempo a tomasse, por fim.

James gritou e se projetou na direção dela, mas, para sua surpresa, Tormand pegou-a nos braços e levou-a para o quarto. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, tam­bém foi conduzido aos seus aposentos. Foram necessárias várias horas para que seus ferimentos fossem limpos e costurados, e que alguns dos problemas mais imediatos de Dunncraig fossem resolvidos, antes que pudesse vol­tar toda sua atenção para Annora.

— Você a viu? — perguntou ao irmão, assim que ele entrou.

— Sim, ela está dormindo. Nenhum dos ferimentos é sério, são apenas dolorosos.

— Não sei como permitiu que ela viesse junto com você para cá tendo sido tão gravemente espancada.

Tormand sentou-se na cama e começou a relatar tudo o que tinha acontecido desde que James fora capturado.

— Então, irmão, como pode ver, quando a moça decide que tem que fazer algo, não há como impedi-la.

Comovido com tudo o que ela tinha feito para ajudá-lo, James ficou em silêncio por um momento. Arriscar-se e se esforçar tanto, apesar de toda a dor, tinha que significar que Annora se importava com ele. Aquilo iluminou seu co­ração de uma forma prazerosa, apesar de um pouco emba­raçosa também. Queria vê-la logo, mas sabia que primeiro deveria estar curado. Deitado na cama, tomou uma deci­são. Nunca permitiria que ela o abandonasse. Só esperava que conseguisse fazê-la concordar com o plano.

Contudo, precisou apenas de dois dias para perceber que teria que lutar para obter o que desejava. Annora ha­via ido vê-lo apenas poucas vezes quando tinha enfrenta­do uma febre, e ele sentira algo diferente nela. Tentou se convencer a não tirar conclusões daquele comportamen­to formal, pois ela ainda estava rígida como resultado do espancamento e precisava de algum tempo para aceitar as mudanças na condição dele. Aquilo, no entanto, não acalmou seu medo crescente. Annora estava se afastando dele devagar, mas com firmeza.

 

— Ela está pensando em ir embora, não?

Ao vê-lo apenas encolher os ombros, James lançou um olhar zangado ao irmão. Havia um brilho familiar nos olhos dele. Percebeu que estava antecipando alguma diversão ao observá-lo se atrapalhar para tentar segurar a mulher que desejava. Não havia nada que os homens Murray apreciassem mais do que ver um dos seus lutar para perseguir sua mulher.

Assim que se sentisse confiante de ter recuperado as forças, socaria Tormand e o derrubaria no chão, para en­siná-lo a respeitar os mais velhos.

— Onde ela está? — indagou, lutando para usar uma voz de comando que até mesmo o irmão se sentisse incli­nado a obedecer.

— Com Meggie nos jardins — Tormand respondeu, sorrindo ao ver que James se levantava com cuidado, agarrando-se a uma coluna para evitar a queda. — Precisa de ajuda? — perguntou, sabendo que a oferta se­ria recusada.

— Não. Eu estou bem — devolveu, lutando contra a urgência de cair de joelhos.

— Claro que está — disse em tom de deboche. — Não acho que esteja em condições de caçá-la. Você só cairia de cara no chão quando a alcançasse e essa não é a imagem que um homem deseja apresentar à sua amante.

— Bem, eu não posso ficar deitado aqui e permitir que ela fuja.

— Ela não fugirá enquanto estiver fraco e se recupe­rando.

— Não estou fraco — James rosnou, apesar de saber que estava. — Estou de cama por tempo demais e isso deixa uma pessoa instável.

— Claro que sim.

— Passará em instantes.

— Claro que sim.

— Cale a boca. Espere, não obedeça a essa ordem até me dizer por que acha que ela não fugirá até que eu pa­reça forte e saudável de novo.

— Como eu disse, porque você ainda está se recupe­rando de um ferimento.

James encontrou uma semente de esperança naque­las palavras, mas era muito pequena. Annora podia per­manecer em Dunncraig porque precisava ver que ele estava totalmente recuperado antes de ir embora, podia até mesmo pensar em cuidar de seu pobre corpo espan­cado de vez em quando, apesar de ele tê-la visto muito pouco desde que constataram que ele sobreviveria. Ela também podia sentir que era sua responsabilidade continuar cuidando de Meggie até que ele encontrasse outra babá. Uma vez que MacKay a tinha usado com frequência como a senhora do castelo, ordenando que cui­dasse dos convidados, ela poderia simplesmente estar prosseguindo com essa tarefa. Tinha de encontrar uma maneira de mantê-la ali até que se curasse o suficiente para agarrá-la se tentasse fugir.

Sentindo-se um pouco mais estável, deu alguns passos cautelosos, estremecendo de dor. Os pontos haviam sido removidos, mas a ferida ainda doía quando ele se movia com muita rapidez. Considerando tudo o que pretendia fazer assim que pusesse as mãos em Annora, sabia que precisava de mais alguns dias para melhorar. Um homem precisava ter toda sua força e ser capaz de se mexer com alguma graça quando amasse sua mulher até a letargia. Olhou para Tormand, que sorria, ao sentar-se de novo na cama, se esforçando para não demonstrar como se sentia fraco. Percebeu, pelo brilho de preocupação e compaixão nos olhos do irmão, que não estava disfarçando muito bem.

— Mantenha-a em Dunncraig — disse ao irmão.

— Mesmo que ela deseje partir? — Tormand perguntou, servindo a James uma caneca de cerveja preta e forte.

— Sim, mesmo assim. Tranque-a no maldito calabouço, se for necessário. — Tomou um grande gole, aprecian­do a forma como a bebida começava a aliviar sua dor e a tensão provocada pela preocupação com Annora.

Tormand riu suavemente.

— Não creio que seus galanteios serão bem-sucedidos se você a prender.

— Não serão bem-sucedidos se eu tiver que caçá-la. Não sei por que penso assim, mas acredito realmente que ela pode ser muito boa ao se esconder.

— É possível. Suspeito que a pobre moça já teve mui­tos problemas na vida que a ensinaram os truques para isso. Sim, especialmente aquele com que parece sumir nas redondezas.

James assentiu.

— Temo que sim. Ela se preocupa muito a respeito de ser uma filha bastarda e deixa as atitudes de pessoas cruéis a magoarem e fazê-la se desmerecer. Sim, e muitos dos seus malditos parentes fizeram mais do que falar rispidamente com ela. MacKay a espancava às vezes, e pelo menos uma vez foi tão cruel que aquele bastardo do Egan teve que interferir para impedi-lo de continuar. Uma ou­tra pessoa da família a trancava em lugares pequenos e escuros durante horas para puni-la quando criança. — Lembrou-se subitamente do grande medo do escuro que Annora tinha. — Se tiver que trancá-la no calabouço, mantenha as tochas acesas e deixe Meggie visitá-la quando quiser. E coloque o gato dela, Mungo, junto.

Cruzando os braços sobre o peito, Tormand disse:

— Prefiro mentir para um padre a trancafiá-la no calabouço.

— Você já mentiu para um padre — James disse, dis­traído, enquanto tentava pensar em outra maneira de mantê-la ali se ela tentasse partir antes de ele ser capaz de convencê-la a ficar. — Primo Matthew, acho.

— Ele não é um padre, é um monge. E eu menti para ele antes que se unisse à ordem. E foi uma mentira com o propósito de poupar seus sentimentos. Ele não sabia que a moça por quem tinha sentimentos tão fortes estava tentando dormir com todos os Murray nas proximidades de sua choupana.

— Apenas mantenha Annora aqui. Observe-a com atenção. Saberá identificar quando ela estiver pensando em fugir. A moça tem pouca habilidade de esconder seus sentimentos quando está cercada de pessoas que não são um perigo para ela, pessoas em quem pode confiar. Ela sabe que pode confiar em você agora.

— Pessoas de confiança como as que pensam em trancá-la no calabouço? — Tormand ignorou o olhar do irmão. — Por que você não a chama aqui agora e conversa com ela?

— A tola pensa que não é boa o bastante para mim. Portanto, pode precisar ser persuadida para acreditar que eu não me importo com o nascimento bastardo ou com a falta de dote.

— Ah, compreendo. Bem, não se esforce demais ou vai acabar preso de novo a essa cama. Não quero ficar vi­giando a moça muito tempo. As pessoas podem começar a achar que estou invadindo seu território.

James ainda estava meneando a cabeça ante o co­mentário quando Tormand saiu. Recostou-se na cama, estremecendo com a dor que ainda sentia. Apesar de es­tar cansado da fraqueza e de ter que ficar deitado, sabia que o descanso era necessário. Assim que fechou os olhos, a porta se abriu. Sentiu uma breve e aguda pontada de desapontamento quando viu que era Meggie, e não Annora, mas rapidamente sorriu para ela. O sorriso se alargou quando ela o retribuiu e subiu na cama, sentan­do-se ao seu lado.

— Como está se sentindo hoje, papai?

Escutá-la se dirigir a ele daquela maneira era uma das coisas mais doces que já tinha escutado, pensou. Às vezes, ele ainda se surpreendia com a facilidade com que ela o tinha aceitado.

— Estou melhorando — respondeu. — A ferida está mais fechada agora e apenas preciso recuperar a força que perdi enquanto fiquei deitado nessa cama.

— E então vai poder caçar Annora?

Ele riu.

— Sim, exatamente. Não podemos permitir que ela vá embora daqui, não é mesmo?

— Não, não podemos, e ela está pensando nisso. Ela fica me lançando aquele olhar diferente.

— Que tipo de olhar?

— Aquele em que ela olha para você e sorri, mas que não há um sorriso em seus olhos. Ela olha para você como se estivesse construindo uma lembrança, como se estivesse se despedindo.

Ele já vira aquele olhar, que o tinha feito sofrer. A princípio, ele não havia falado de futuro porque não ti­nha certeza se haveria algum. E, então, tivera que ficar quieto, pois não tinham tido privacidade, o que suspeita­va que ela planejara cuidadosamente. No momento, como estava sendo evitado, não encontrava uma oportunidade de falar com ela.

— Eu já vi esse olhar — disse em voz baixa. Meggie assentiu.

— Você precisa melhorar e ficar mais forte logo e aí pode ir atrás dela e dizer que tem que ficar conosco por­que precisamos dela.

— Pretendo fazer isso, mocinha.

— Posso ajudar. Sou muito boa em dar nós.

James reprimiu uma risada.

— Vou manter isso em mente, mas espero convencê-la a ficar sem ter que amarrá-la. Annora MacKay é nossa, minha Meggie, e pretendo fazê-la compreender isso. Aqui é seu lar, somos sua família e ela vai ficar.

— Já está pronto para perseguir sua mulher? — per­guntou Tormand ao entrar no aposento do irmão três dias depois.

James olhou-se mais uma vez no espelho caro e ele­gante que MacKay comprara para o aposento. O homem tinha gastado muito do dinheiro de Dunncraig em tais lu­xos desnecessários, mas, naquele exato momento, James ficou feliz por poder contar com aquilo. Também estava contente por ver de novo seu cabelo vermelho. Colori-lo de castanho e mantê-lo daquela cor tinha sido uma tarefa de­sagradável. Exceto pela cicatriz e algumas outras marcas no rosto, estava muito semelhante a quem era antes de todos os problemas começarem. Mesmo nu, não pareceria tão diferente, apesar da feia cicatriz vermelha. Esperava apenas parecer um homem que Annora quisesse amar e com quem desejasse se casar. Sabia que ela o queria em sua cama, mas ansiava por mais do que paixão.

— Estou pronto — respondeu. — Assim que a ferida fechou, minha recuperação foi misericordiosamente rápi­da. Ela está dando trabalho, não?

— Às vezes, acho que ela sabe que eu a estou obser­vando, mesmo desconhecendo o motivo. Juro que, assim que ela me vê, começa a fazer as coisas mais aborrecidas nas quais consegue pensar, apenas para saber quanto tempo eu aguento olhá-la. Nunca percebi quantas coisas tediosas uma mulher tem que fazer durante o dia.

— Acho que ela fazia o mesmo quando os guardas de MacKay a vigiavam. Eles logo se aborreciam e começa­vam a vagar, o que provocava problemas com Egan.

— Bem, mesmo sendo tedioso, hoje Marta foi atrás de mim. Agarrou-me pela orelha e me avisou para ficar lon­ge da sua mulher. Minhas costas ainda doem, pois ela me forçou a ficar inclinado por tempo demais. Tive que pro­meter me comportar e dizer muitas palavras doces para ela acreditar que eu só estava garantindo que Annora não fugisse antes de você ter a oportunidade de encurra­lá-la e enfiar algum juízo naquela cabeça.

Rindo, James meneou a cabeça.

— Acho que Marta acreditou logo em você, mas não demonstrou por algum tempo. Aquela mulher agarra qualquer chance de nos colocar, pobres homens, em nos­so devido lugar.

— Então, ela deve ter se divertido muito hoje — Tormand resmungou, esfregando a orelha da qual ela tinha abusado. —Vim dizer que sua moça acabou de vol­tar ao quarto para se preparar para a refeição da noite.

— Que maravilha! Muito conveniente. É o lugar per­feito para abordá-la.

— Também achei. Quer que eu me assegure de que Meggie não tente aparecer para ver se você já a conven­ceu a ficar? Ela também a tem observado de perto, e tem uma habilidade misteriosa de espionar. Melhor prestar atenção nisso.

James fez uma careta e assentiu.

— Sim, é melhor vigiar Meggie agora. Eu certamente não quero tentar explicar meus métodos de persuasão para uma menina de cinco anos.

Tormand riu, mas logo se tornou sério de novo, ao pa­rar na porta antes de se retirar.

— Sei que você deve ter tido uma ou outra dúvida a respeito da paternidade dela... — começou. — Uma vez que Mary foi amante de MacKay por tanto tempo, mes­mo quando estavam casados...

— Meggie é minha. Pela lei, pelo nome e pelo fato de eu estar lá para segurá-la em seus primeiros minutos de vida. Não me importo de quem foi a semente que a gerou.

— Isso é bom, porque aparentemente foi sua. Apesar das palavras de negação e da certeza de que amaria Meggie a despeito de qualquer coisa, James sen­tiu o coração saltar com uma alegre esperança.

— Você afirma isso com alguma certeza.

— Bem, eu não estava seguro antes, apesar daquele cabelo tão claro, que tem alguns reflexos vermelhos sob o brilho do sol, e daqueles olhos tão expressivos, e de que ela se parece muito com você na forma como sorri e no formato do queixo. Mas a prova real é que MacKay apa­rentemente era incapaz de gerar uma criança.

— Como pode ter certeza?

— Suspeito que ninguém possa ter certeza absoluta a menos que o homem tenha perdido completamente a masculinidade, talvez pelo agitar da espada de um mari­do raivoso, mas ele nunca teve um filho.

James franziu o cenho.

— Acho que ouvi boatos dizendo o contrário.

— É provável que tenham partido dele ou de Egan. Não, MacKay tem se deitado com mulheres desde que era um garoto de doze anos e nunca gerou um filho. Uma febre muito alta e algumas lesões quando estava virando homem parecem ter matado sua semente. Aquelas poucas crianças que ele tentou reclamar como prova de sua masculinidade foram geradas por Egan.

— Isso seguramente explica sua determinação em de­clarar que Meggie é sua. Sim, e um herdeiro poderia bem dar ao rei e a seus conselheiros uma forma de se asse­gurar de que todas as pessoas envolvidas nessa confusão ganhassem algo no fim, além de permitir que pensassem que não fizeram nada errado nem enfureceram ninguém.

— Foi provavelmente esse conhecimento que manteve Egan a salvo da fúria de MacKay e que até deu a ele al­gum poder sobre o outro, apesar de eu não compreender por que MacKay não o matou como fez com tantos que descobriram seus segredos. Um homem como ele acharia sua incapacidade de gerar uma criança algo muito humilhante. Como você descobriu isso?

— Uma mulher na vila, que era amante dele, contou-me, antes de ser expulsa pela raiva e desprezo das pessoas. MacKay disse a ela uma noite que estavam dormindo juntos havia tanto tempo que as pessoas se perguntavam como ela não tinha engravidado. Ele não queria que nin­guém duvidasse daquilo. Então, obrigou-a a se deitar com Egan em segredo por um mês até gerar um filho, fazen­do todos pensarem que era dele. Também deixou claro que ela deveria confirmar aquilo, sem nunca mencionar Egan, ou teria uma morte muito sofrida.

— Ela levou a criança junto?

— Não, a pequena está na vila vivendo com uma boa família que perdeu os filhos, e a quis. Foi melhor para todos, uma vez que essa mulher nunca deixaria de ser uma prostituta, apesar de dizer que prefere ser a amante de um homem rico e que pretende encontrá-lo antes de perder sua beleza.

James meneou a cabeça.

— MacKay tinha mesmo muitos segredos.

— Sim, e se assegurou de que a maioria deles fosse para o túmulo com as pessoas que os conheciam. Devia haver uma ligação entre ele e Egan ou aquele homem provavelmente teria morrido cedo.

— Suspeito que saberemos mais a respeito dessas coi­sas conforme os anos passem. Ele está morto agora a as línguas se soltarão. Tudo isso só pode me ajudar. Posso ser amplamente declarado um inocente a sentença de proscrito pode ser revogada, mas quanto mais sujo MacKay seja, mais clara é minha inocência. — Empurrou Tormand para fora do quarto e começou a caminhar em direção aos aposentos de Annora. — Agora, é hora de conversar com minha dama.

— Espero brindar o futuro casamento no jantar. James esperava que o irmão pudesse fazer exatamente aquilo, mas estava se sentindo inseguro e nervoso. Sabia que Annora não dividiria a cama de qualquer homem que a beijasse e a tocasse da forma que ela gostava. Sabia que ela compartilhava a paixão violenta e a necessidade dele por ela. Porém, não tinha certeza de quanto aquilo atingia seu coração, e se aqueles anseios haviam nascido do tipo de sentimentos sobre os quais se podia construir um casa­mento. O que queria era que ela o amasse. Da próxima vez que levasse uma esposa para a cama queria saber que ela era sua de corpo, coração, mente e alma.

Annora suspirou, sentando-se na cama. Sabia que deveria estar partindo de Dunncraig, mas continuava achando pequenos motivos para ficar um pouco mais. Na verdade, não tinha sobrado nenhum. James estava curado, Dunncraig estava indo bem, as sombras com as quais Donnell preenchera o castelo tinham quase todas dispersado, e Meggie estava felicíssima por ter James como pai. Não havia mais necessidade da presença dela, e a única coisa que estava fazendo era prolongar o sofri­mento de abandoná-los.

Ela, provavelmente, teria que deixar até mesmo Mungo, pensou, sentindo lágrimas nos olhos ao acariciar o gato, pois seus parentes achariam tolice que ela tivesse um animal de estimação.

— Sou uma mulher tão tola — murmurou. Mungo miou suavemente e se roçou em sua mão.

Percebendo que tinha parado de acariciá-lo, começou a afagar suas orelhas.

— Eu amo James, Mungo. Eu o amo com todo meu coração. Ele é tão necessário para mim quanto o ar que respiro. Mas tenho que deixá-lo. Ele é o senhor de terras de uma família distinta que o acolheu em sua casa e em seus corações, e conta com os aliados conquistados por meio dessa família. Muitos dos aliados têm poder e influ­ência na corte também. Uma bastarda pobre e sem ter­ras não é o tipo de esposa de que um senhor como James Drummond precisa.

O gato rolou de costas em um pedido silencioso para um carinho na barriga.

— Sei que você não está interessando nas provações e tribulações de simples seres humanos, Mungo, mas po­dia pelo menos simular alguma compaixão. — Cocou a barriga dele. — Só tenho que decidir para onde ir e a que parentes infligir minha presença. Queria ir para algum lugar não muito distante daqui porque gostaria de saber como Meggie se desenvolve.

Pensando nela, Annora sorriu. A criança tinha aceitado James como pai sem questionar, evidentemente deleitada com ele. Havia uma relação entre eles visível desde o co­meço, quando todos tinham pensado que ele era um sim­ples carpinteiro chamado Rolf Larousse Lavengeance.

Fez uma careta ao pensar no nome. As palavras sig­nificavam lobo, vermelho e vingança. Ela deveria ter se atentado àquilo. James não tinha sido muito sutil na es­colha. Se Donnell tivesse parado de gastar dinheiro e se deitar com mulheres para entender algumas coisas, tam­bém teria percebido.

— Ele se arriscou muito ao usar aquele nome tolo — murmurou. — Podia muito bem ter havido alguém aqui que conhecesse francês e que fosse um aliado próximo de Donnell ou ele mesmo poderia ter refletido um pouco e deduzido tudo. É também estranho que eu tenha co­meçado a sonhar com um lobo vermelho de olhos verdes quando James começou a fugir. Acho que é obra do desti­no o fato de eu estar aqui e de tê-lo encontrado. Foi isso que meus sonhos tentaram me dizer, foi para isso que me impulsionavam. Só gostaria que tivessem me mostrado como ajudar a ele e a Meggie sem perder meu coração.

Enxugou uma lágrima do rosto e engoliu as outras.

— Sei que o bem foi feito e tudo isso, mas gostaria que o destino pudesse ter escolhido outra pessoa para partici­par. O destino é uma amante cruel ao me enviar a algum lugar para ajudar, da forma pequena que posso, e então me fazer amar aqueles que eu ajudei somente para me arrancar deles de novo.

Mungo de repente se sentou, pulou da cama e se diri­giu até a porta. Ficou ali parado, mas não miou como cos­tumava fazer ao indicar que queria sair. Ela iria sentir falta dele, pensou ao se levantar e andar até a porta. Ele tinha sido uma companhia próxima em Dunncraig, uma vez que o primo não permitira que fizesse amigos.

— E agora que tenho a chance de pertencer a algum lugar, de fazer amigos, tenho que partir — murmurou, abrindo a porta.

— E por que você acha que tem que partir?

Por um instante, Annora considerou a possibilidade de bater a porta na cara de James. Devia ter revelado o que pretendia em sua expressão, pois, de maneira gentil, mas firme, ele a empurrou e, após deixar Mungo sair, trancou a porta, permanecendo dentro de seu quarto, exatamente onde ela não o queria. Era perigoso para seu coração e sua paz de espírito ficar sozinha com o homem, especialmente em um quarto.

Ainda mais quando ele estava parecendo tão charmoso, pensou, incapaz de resistir à tentação de observá-lo com atenção. Disse a si mesma que estava apenas se assegu­rando de que ele estivesse saudável para ficar ali em pé, franzindo a testa para ela, somente para rir ante a grande mentira. Com o cabelo vermelho e as roupas boas, tinha a aparência do proprietário e senhor que realmente era, um homem pronto para assumir o controle de suas terras e construir um poder próprio através de aliados e amigos.

E um bom casamento, pensou. Afastou-se dele. De repente, achava doloroso demais vê-lo, pois somente a tornava mais consciente do quanto estavam separados. Tinha começado a tentar colocar alguma distância entre eles, na esperança de que isso amenizasse seu sofrimen­to ao partir, mas, ao fitá-lo, percebeu que aquele era um plano bem estúpido. Ele era uma parte dela e o fato de não vê-lo não modificava aquilo.

Quando sentiu as mãos dele em seus ombros, ficou tensa. Rezou para que ele não tentasse fazer amor com ela. Experimentar tudo pelo que ansiava, sabendo que não poderia reclamá-lo como seu, seria mais doloroso do que se atrevia a pensar.

— Annora, qual é o problema?

James virou seu corpo e abraçou-a, acariciando-lhe as costas com as mãos. Ela permaneceu rígida, fazendo-o temer que já o tivesse eliminado de seu coração, ainda que não tivesse certeza dos motivos que a teriam levado a isso.

— Fico feliz de ver que está totalmente curado — dis­se, resistindo ao desejo de se aconchegar a ele e inalar seu perfume.

— Não tenho certeza disso, a julgar por sua postu­ra. Parece um atiçador de ferro em meus braços. Mas, se está dizendo, devo acreditar, não?

Annora tentou desesperadamente se proteger, mas encontrou-se aberta aos sentimentos dele, apesar de to­dos os esforços. Ele estava confuso, inquieto e nervoso. Seus olhos se arregalaram um pouco quando sentiu algo mais. Ele tinha medo e havia um começo de dor contra a qual lutava. Um lampejo de esperança ganhou vida em seu coração e tentou não ser seduzida por aquilo. Ainda assim, os sentimentos que emanavam dele apontavam para algo mais além de desejo e respeito.

— Sim — sussurrou, relaxando um pouco. — Acredite. James se inclinou um pouco para trás e tomou-lhe o rosto nas mãos, virando-o até que pudesse encará-la. O fato de ela ter escorregado os braços em volta de sua cin­tura e de não ter se afastado fez com que se sentisse um pouco menos inquieto. Porém, toda a tristeza e confusão que identificava naqueles lindos olhos, deixou claro que teria que enfrentar uma verdadeira batalha. Uma vez que não tinha ideia do que provocava tais sentimentos, não estava seguro de conseguir fazer ou dizer as coisas certas, as coisas que poderiam transformar o olhar con­fuso e triste em uma expressão de amor e felicidade.

— Está planejando nos abandonar, não é, Annora?

Ela corou, sentindo-se estranhamente culpada.

— Sim. Está curado agora e recuperou tudo o que ti­nha perdido. E hora de começar a viver sua vida como um proprietário e senhor de novo.

— E você não quer participar disso?

— Não posso mais permanecer aqui como a babá de Meggie. As coisas mudarão. Você terá que trabalhar duro para refazer alianças com seus vizinhos e sei que precisa se estabelecer um pouco na corte para que seja reconhe­cido e receba a confiança dos homens no poder. E...

Ele a beijou, imprimindo naquele contato toda a neces­sidade que tinha dela. Por um breve momento, sentiu-a re­sistir, mas, por fim, conseguiu despertar a paixão que tan­to o encantava, percebendo que ela se suavizava em seus braços e correspondia. Apesar de não ter o dom de intuir os sentimentos dos outros, podia quase saborear o desespero e a tristeza nos lábios dela. Começou a ter a sensação de que Annora estava fazendo o que acreditava ser melhor para todos, e não o que realmente desejava fazer.

— Não — ela gritou de repente, desvencilhando-se de seu abraço. — Não podemos mais fazer isso. Você é o se­nhor de novo. Você não me disse que os Murray o ensina­ram a não ter criadas como concubinas?

— Annora, você não é minha concubina! — ele excla­mou, dividido entre o choque e a raiva. — Quando eu lhe dei a impressão de que era apenas isso?

— Bem, o que mais poderia ser? Não sou sua amante?

— Minha amante e meu amor.

— Não, James, não posso ser seu amor — ela sussurrou, querendo desesperadamente acreditar nas palavras dele, ainda que soubesse que, se ele se apegasse à verdade, não poderia haver futuro para eles.

— Por quê? — James temia que estivesse errado, que a paixão por ele fosse simplesmente aquilo, paixão, e que não atingisse seu coração. — Está me dizendo que você não queria nada de mim, além de alguma diversão entre os lençóis?

Annora corou, tanto de raiva quanto de embaraço ante as palavras rudes. Estava prestes a responder com rancor, mas hesitou. Os sentimentos que fluíam dele eram fortes e a faziam se perguntar se estava errada. Havia mágoa e medo dentro de James e ela não tinha dúvidas de que era o motivo daquelas emoções. Havia também algo mais, algo forte e quente que ela não ousava nomear.

Por um instante, considerou fazer ou dizer algo que o fizesse partir para que, então, pudesse fugir de lá. A covardia sugerida por aquele pensamento foi suficiente para assustá-la. Endireitou a coluna, decidindo que es­tava cansada de ser covarde. Poderia haver muita dor diante dela se forçasse a conversa a prosseguir, mas ela o faria. Quando e se partisse de Dunncraig não queria levar consigo muitas perguntas não respondidas.

— Se eu fosse esse tipo de mulher, não teria me deita­do com você virgem.

— Annora... — Ele abrandou o tom de voz, lutando para acalmar o medo crescente dentro de si, um medo que o levava a proferir palavras zangadas. — Eu nunca pensei dessa forma em relação a você. — Colocou cuida­dosamente as mãos em seus ombros de novo. — Se eu fosse assim, teria rejeitado Mab? Seria tão mais fácil para mim deixá-la fazer como queria, se tudo o que eu buscasse fosse um acasalamento suado.

Aquilo era verdade, pensou, e fez uma careta.

— Não foi tão difícil me seduzir, James, apesar de me envergonhar admitir.

— Considerando como eu a desejava com rapidez e selvageria, pareceu tempo demais para mim. Eu queria apenas você, mesmo sabendo que não era um bom mo­mento para cortejá-la.

— Cortejar? — ela sussurrou, o coração acelerado com uma nova esperança.

— Sim, moça. Sei que, por causa das circunstâncias, não parecia que eu estivesse fazendo isso, mas eu esta­va — Abraçou-a, suspirando de alívio quando não sentiu a tensão em seu corpo. — Annora, eu preciso de você. Preciso que fique aqui comigo. Preciso que mantenha a escuridão afastada da minha alma.

Ele a beijou, fazendo-a derreter em seus braços. Apesar de não ter falado em casamento ou no futuro, ela não se importava. Aquelas palavras tinham banido qual­quer resistência que pudesse esboçar. Sabia que ele não dissera exatamente que a amava, mas não entendia o que mais aquilo podia significar.

— Minha Annora — disse em voz rouca ao beijar seu pescoço.

— Sim, sinto o mesmo. É como uma febre.

Ele não disse mais nada ao livrá-los depressa das rou­pas. Annora ficou surpresa ao conseguir rir quando ele a lançou na cama e deitou-se sobre ela. A necessidade que sentia era tão intensa e violenta que a risada não parecia caber naquele momento. Ainda assim, a alegria ao estar de volta em seus braços foi tão grande que rir pareceu-lhe uma reação adequada. Quando ele começou a fazer um amor selvagem com ela, não pensou em mais nada e abandonou-se à paixão que compartilhavam.

Ao ser finalmente penetrada, gemeu ante a intensida­de do prazer que sentia.

— Eu pertenço a esse lugar — disse ele, inclinando-se para beijá-la ao mesmo tempo em que se movia para den­tro e para fora de seu corpo. — E disso que eu preciso.

— Eu também, James. Temo que sempre precisarei.

— Nunca tema isso, meu amor.

Agarrou-se a ele enquanto se amavam com uma fero­cidade pela qual ambos pareciam ansiar. Envolveu-o com pernas e braços e manteve-o o mais perto possível enquan­to ele a conduzia ao auge da paixão com uma rapidez im­pressionante. O clímax foi tão feroz e lindo que ela gritou o nome dele. Gritou também o quanto o amava. O lampejo de preocupação diante da confissão não durou muito, pois foi assolada pela alegria e pela satisfação que somente ele podia proporcionar.

James os limpou dos vestígios do ato de amor antes de entrar, com cuidado, de novo na cama. Annora estava muito calada, e a única coisa que impedia seus temores de retornarem com força total era a lembrança das pa­lavras que ela gritara durante o ato de amor. Tinha dito que o amava. O que quer que a perturbasse e a fizesse pensar em abandonar Dunncraig, poderia ser superado.

— O que a perturba? — perguntou, tomando-a nos braços.

— Ah, James, você é um senhor de novo.

— É isso que a incomoda? Não gosta do fato de que eu possa provê-la?

— Não é isso. Sou bastarda... — começou, mas ele a calou com um beijo intenso.

— Não me importo com seu nascimento. Não me im­porto se tem terras ou dinheiro ou uma tia velha que fale com os pássaros. — Sorriu de leve ao vê-la rir. — Você é minha, Annora.

— Donnell esgotou Dunncraig, James. Há tanto a ser consertado e substituído. Você precisa de uma esposa rica, com terras e relações importantes.

Ele a puxou até deitá-la sob seu corpo e tomou-lhe o rosto entre as mãos.

— Eu preciso de você e você de mim. Vai negar ter dito que me ama?

— Não posso, não é mesmo? Gritei para quem quisesse escutar. Mas tenho certeza de que vai conseguir encontrar outras mulheres que o amarão como eu. — Annora não acreditava já ter dito na vida algo mais difícil, pois a últi­ma coisa na qual queria pensar durante seu futuro solitá­rio era em James sendo amado e amando outra mulher.

— Fico feliz que você quase tenha engasgado com es­sas palavras. Não está prestando atenção no que estou dizendo, mulher? Eu preciso de você. E minha outra me­tade. — Quase sorriu quando ela começou a arregalar os olhos, e percebeu que precisava ser mais exato ao decla­rar seus sentimentos. — Eu amo você, Annora. Eu amo você como nunca amei mais ninguém e nunca amarei de novo. Entende agora? É minha companheira, minha alma gêmea.

Temerosa de irromper em lágrimas antes de esclare­cer tudo, perguntou em uma voz tão suave e instável que era quase um sussurro:

— Está dizendo que quer se casar comigo? — Corou, com um pouco de medo de que tivesse interpretado mal as palavras dele e se humilhado.

— Sim, moça, estou dizendo isso, da minha forma rude. Admito que, logo que percebi que você era minha outra metade, presumi que nos casaríamos assim que todo o problema com MacKay tivesse sido resolvido. Desculpe-me a arrogância. Então, Annora MacKay, vai se casar comigo?

— Ah, James, tem mesmo certeza? Podia encontrar uma esposa muito melhor do que eu.

— Não poderia, não. Já tentei me casar com o tipo de mulher que todos achavam ser perfeita para um homem em minha posição, não é mesmo? E veja o que aconteceu.

— Você achou que Mary era sua companheira?

— Nunca. Eu apenas estava cansado de procurar minha companheira e eu queria a família, as crianças e tudo isso. Também nunca gostei das coisas que um ho­mem faz para satisfazer suas necessidades masculinas. Queria uma mulher amorosa em minha cama, uma que eu não precisasse me preocupar em engravidar ou pagar de manhã. Queria alguém que me desse esse algo espe­cial que transforma copular em fazer amor.

— E conseguiu Mary — disse, sentindo-se triste por ele um instante.

— Sim, e muitos problemas, mas não posso me arre­pender. No final, foi isso o que a trouxe para os meus braços. Agora, diga-me, moça, pretende ficar aqui? Vai se casar comigo e ter meus filhos?

— Ah, sim. Não posso fazer outra coisa porque amo você e pensar em deixá-lo estava me matando devagar. Só espero que sua família não ache sua escolha muito pobre.

— Eles a amarão porque você me ama.

— Espero que seja simples assim.

Foi simples assim, pensou Annora, poucas horas mais tarde quando recebeu as boas-vindas à família de um sor­ridente Tormand e de alguns dos primos de James. Tudo com o que pareciam se preocupar era que James estava obviamente feliz, sorrindo como um tolo, na verdade. Com timidez, ela confessava amá-lo sempre que alguém per­guntava. Havia somente um pequeno empecilho, perce­beu, ao procurar ao redor por Meggie.

— Ela está perto da janela, parecendo um pouco con­trariada — disse James.

— Você já contou a ela que não somente pediu que Annora permanecesse em Dunncraig, mas que a pediu em casamento? — perguntou Tormand, acenando para a sobrinha, que retribuiu com um gesto desanimado.

— Não, e suponho que tenha sido um erro.

— Acho que é melhor falar com ela agora e desculpar-se com sinceridade antes que o anúncio oficial seja feito.

Ela provavelmente já escutou alguma coisa e é por isso que está desse jeito.

Annora assentiu e pegou James pela mão.

— Acho que Tormand tem razão. Não contamos a ela nossos planos, e nem mesmo a informamos sobre o pedi­do de casamento antes de anunciarmos para os outros. Ela pode estar magoada.

O cumprimento zangado que receberam ao chegarem perto dela revelou que a criança estava mesmo magoada por não ter sido informada dos planos deles, ao menos antes que todos no salão estivessem celebrando a novidade.

— Sinto muito por não ter dito a você, Meggie. Acho que estava tão excitada e, bem, um pouco atordoada que não pensei em nada além de James e de me casar com ele.

Meggie fitou-a e encarou James, um momento antes de revirar os olhos.

— Quer dizer que ficou toda boba por causa de um homem bonito.

— Foi isso mesmo. Sim, fiquei toda boba por causa do charme de seu pai.

— Sim, acho que ele é mesmo charmoso — disse Meggie com cuidado, o olhar fixo em James. — Mas você não era casado com minha mãe?

— Sim — respondeu ele, ajoelhando-se para olhá-la nos olhos. — Como eu acho que você já sabe, eu fui fal­samente acusado do assassinato dela, e então declarado um fora da lei. Tive que fugir para salvar minha vida. Durante três anos, tentei encontrar uma maneira de lim­par a mancha em meu bom nome, descobrir o verdadeiro culpado e recuperar tudo o que um dia tinha sido meu.

— Dunncraig?

— Sim, Margaret Anne. Dunncraig e você. Nunca pen­se de outra forma. Eu nunca esqueci minha pequena mo­cinha e sempre pretendi voltar para você. É por isso que assim que pude vim para cá. Foi minha boa sorte que me fez encontrar Annora aqui. Você permitirá que eu me case com ela?

Annora emocionou-se com a compreensão que ele demonstrou em relação aos medos da menina. Meggie tinha que ter certeza a respeito de seu lugar. Ao pedir permissão a ela para que seu recém-descoberto pai desposasse a babá que tinha cuidado dela durante três anos, ele a tornava parte integrante da decisão. Rezou para que a garota aprovasse a união. Qualquer outra resposta provocaria muitos problemas, pois tinha certeza de que James não desistiria. Ele apenas ficaria mais determina­do em fazer a filha mudar de ideia. O que ele não sabia era que a pequena equivalia a ele em teimosia.

— E seremos uma família? — quis saber Meggie.

— Sim, seremos uma família — disse James, olhando ra­pidamente para Tormand. — Uma família muito grande.

— Gostaria que fôssemos uma família de novo.

— Então, aprova meu plano para me casar com Annora?

Meggie sorriu e abraçou-o.

— Isso com certeza vai fazer com que ela permaneça aqui, não?

— Com certeza. — James se levantou e começou a di­zer: — E assim que Annora e eu nos casarmos ela deve ser chamada...

Annora pôs a mão sobre a boca dele e sorriu para Meggie.

— Como quer que Meggie queira me chamar. Eu deixo essa decisão para você, Meggie, meu amor.

— Obrigada. Vou pensar muito nisso. — Meggie não esperou para falar com James de novo, e se apressou a ir encontrar o tio.

— Por que me impediu de dizer que ela deve chamá-la de mamãe quando nos casarmos? — perguntou James. — Você será a mãe dela e assim deve ser chamada.

— Somente aos olhos da lei. Meggie sabe que sua mãe era Mary e, sim, ela foi uma péssima mãe, mas isso não importa. Não quero que ela seja obrigada a me chamar de mãe. Quero que escolha o que deve fazer.

James suspirou e envolveu seu ombro com o braço.

— Como quiser. Podemos fazer o anúncio? Todos já sabem que vamos nos casar o mais rápido possível, mas estão esperando que isso seja devidamente comunicado.

— Um anúncio apropriado, e depois muita cerveja — murmurou Annora conforme caminhavam até a mesa.

— É a tradição.

Fez-se silêncio no salão quando James bateu o cálice na mesa diversas vezes. Annora ficou ao seu lado, segu­rando sua mão, enquanto ele dizia para todas as pessoas reunidas ali que tinha pedido Annora MacKay em casa­mento e que ela tinha aceitado. Assim que os gritos e brindes diminuíram, ele também comunicou que o casa­mento aconteceria logo e que haveria uma grande festa.

— Nossa, eu não esperava que a notícia fosse recebida com tanto entusiasmo - disse Annora ao se sentar ao lado do noivo.

— Eles a amam, moça, assim como eu. — Beijou-a ra­pidamente. — Eles sabem que você pertence a este lugar e estão satisfeitos que o senhor de Dunncraig tenha tido' o bom senso de ver isso também.

Annora corou e olhou ao redor para as pessoas reuni­das no grande salão. Ela tinha refletido sobre o assunto Acreditara que, por causa da maneira como Donnell a ti­nha mantido separada de todos, as pessoas de Dunncraig não a conheciam ou se importavam com ela. A maioria dos brindes provavelmente se devia ao fato de James estar são e salvo, e a Dunncraig estar de novo sob seu domínio, mas sabia que muitas das pessoas estavam genuinamente felizes por ela também. Com lágrimas nos olhos, olhou para James quando ele beijou seu rosto.

— Está em casa agora — ele disse suavemente. — Nunca se esqueça disso.

E aquilo, ela percebeu, era a fonte da alegria que esta­va sentindo. Finalmente, tinha encontrado seu lar.

 

Um ano depois

Ela não terminou ainda? James olhou para a fi­lha e, apesar do medo crescente por Annora e pela criança que ela lutava para trazer ao mundo, quase sorriu. Meggie tinha as mãos nos quadris e estava olhan­do feio para ele em meio a um emaranhado de cachos dourados. Ela parecia pensar que Annora iria se recolher ao quarto com algumas mulheres e pouco depois chamá-los para conhecer o novo irmão ou irmã. Sua filha não compreendia os muitos perigos de um parto e ele não ti­nha a menor intenção de esclarecê-la ainda. Rezava para que Annora não o fizesse também, que ela emergisse daquela provação sã e salva, com uma criança linda e sau­dável nos braços.

Pensou no dia em que Meggie tinha nascido e não se lembrou de ter sentido tanto medo pela esposa ou pela criança que ela carregava. Mary tinha dado à luz de for­ma ruidosa, declarando repetidas vezes para que todos es­cutassem que ele era um homem cruel por fazê-la sofrer tantas dores e tormentos. James supôs que o ruído e as queixas reverberando pelas paredes de Dunncraig tinham sido tão fortes que fora difícil preocupar-se com a saúde dela. Os medos que havia começado a sentir tinham sido rapidamente suplantados pelos berros de Mary.

Annora, por outro lado, permanecia quieta demais, o que ele considerava assustador. Começava a se mover em direção à porta do grande salão para que pudesse correr para cima e exigir vê-la quando alguém o agarrou pelo braço e o deteve. Olhou para Tormand apenas para vê-lo sorrindo, uma expressão divertida nos olhos. Era uma expressão que James queria ver socada em meio à lama.

— O que você quer? — perguntou ao irmão. — E tire esse maldito sorriso da cara.

— Só queria detê-lo antes que você subisse aquelas es­cadas, irrompesse no quarto e assustasse a pobre Annora — disse Tormand. — Você tinha esse olhar.

— De que olhar está falando?

— O olhar de um homem enlouquecido, que pensa que a esposa está sendo torturada e que deve alcançá-la para assegurar que todos os perigos do parto fiquem afastados. Isso não funciona, irmão. Nunca funcionou nem funcio­nará. Somente piora o medo que a pobre moça já sente.

A voz de Tormand tinha se suavizado, e James olhou rapidamente para Meggie, percebendo que ela o observa­va com atenção.

— É, tem razão — concordou. Dirigiu-se a uma das grandes janelas em uma das paredes do grande salão e olhou na direção dos portões. — Já ouvimos as mulheres de nossa família dizendo a mesma coisa vezes suficientes para que eu recordasse do conselho agora.

— É verdade que MacKay queria pintar essas janelas como as de uma igreja? — perguntou Tormand. — Quem o tolo pensava que era?

— Um senhor que se tornaria um rei se fosse esperto o suficiente. — Pensou nos grandes painéis pintados que tinham chegado a Dunncraig poucos meses após a morte de MacKay. — O idiota gastou muitos anos na França vendo todos os excessos da nobreza e queria recriar algo similar aqui. Era um homem muito vaidoso.

Olhando para a expressão inocente demais do irmão, James praguejou em silêncio. Era fácil adivinhar o jogo que ele fazia, aquele no qual alguém distrai o pobre e pre­ocupado marido de onde está sua esposa e do que está acontecendo com ela. O que o aborrecia de verdade era que tinha funcionado por um tempo. Pior ainda, suspeita­va que, se Tormand fizesse a mesma coisa de novo, funcio­naria mais uma vez. Admitiu com relutância que estava ansioso para ser distraído, mas isso não queria dizer que gostava de ser manipulado.

— Acho que, assim que MacKay colocou o traseiro na cadeira do senhor dessas terras, sua mente começou a apodrecer — disse James. — Sim, ele queria as janelas pintadas. Entregaram-nas há algum tempo, mas, como estavam todas pagas, não tive como devolvê-las. Não pude pôr essas coisas amaldiçoadas em minhas janelas, pois bloqueariam toda a visão do pátio. Também tirariam a luz do sol deste aposento. Mas o motivo maior de eu não as usar se refere ao que está desenhado nos painéis.

— Ah, todas mulheres nuas, não? Cenas de exuberan­te devassidão.

— Bem, sim, mas o que as torna tão medonhas é que o homem no centro de toda a exibição de lascívia é MacKay, com Egan sentado à sua direita. Ambos nus. Ambos sendo bem servidos por mulheres voluptuosas. E, se posso dizer, ambos com dotes comparáveis a algum touro mítico.

Tormand riu com tanto gosto que teve de se apoiar na parede para evitar cair.

— Está brincando.

— Triste dizer, não estou.

— Se é isso que eles têm na França, talvez eu tenha sido desleixado por não visitar nossos parentes lá.

— Duvido que tenham tais bobagens na França.

— Deve me dizer onde colocou os painéis. Preciso dar uma olhada em tais maravilhas.

— Annora os viu e riu tanto que temi que ela desse à luz.

— Eles são tão divertidos!

— É um bom trabalho, com cores bonitas e tudo, mas é a maneira como MacKay e Egan são retratados que transforma o que seria uma bonita pintura em pouco mais do que alguma brincadeira grande e cara. Chamei algumas pessoas no verão para olhá-los e verem se havia uma forma, bem, de consertá-los, deixá-los um pouco mais limpos, por assim dizer. Diversos pedaços são muito bons, apesar de toda a luxúria. Acho que, por fazerem parte de uma grande cena, o rei e o bobo da corte com seus dotes não constam dessas imagens.

— Acho que devo dar uma olhada neles. Posso até mesmo comprar alguns de você se são tão bons assim.

— Você quer pôr janelas na sua casa que retratem uma libertinagem exacerbada?

— Não há nada que obrigue que as pinturas sejam parte de uma janela. Apenas precisam da incidência da luz para que as cores se destaquem, não? Então, isso pode ser arranjado de outra forma e, assim, os painéis aben­çoados sem os personagens divinos de MacKay ou Egan poderiam ser tratados como, bem, somente uma pintura feita no vidro.

James pensou naquilo por um instante e assentiu devagar. Conseguia lembrar de uma ou duas das peças que eram bonitas, nas quais a lascívia era apenas uma pequena parte do que o intrigava a respeito delas. Com certeza, não contaria a Tormand que, assim que tinham parado de rir, ele e Annora haviam estudado alguns dos painéis e ficado excitados. Tinham trancado a porta da despensa e feito amor no chão.

Havia até um painel em particular que não se impor­taria de manter da forma que estava, pois a mulher re­tratada com mais clareza se parecia muito com Annora, para sua surpresa e horror. Suspeitava que, apesar da crueldade em relação a ela, MacKay reconhecera sua beleza. Apenas agradecia a Deus que o homem nunca houvesse permitido que aquilo tivesse despertado sua luxúria a ponto de tê-la tomado. Ele, obviamente, tive­ra alguns pensamentos libidinosos a respeito de Annora, como revelava aquela mulher tentadora retratada no painel. O fato de que um homem que se parecia muito com ele quando disfarçado de Rolf estivesse em outra das pinturas era algo em que não perderia tempo pensando. Annora achara aquele fato verdadeiramente intrigante, logo que havia superado os ciúmes ao vê-lo retratado ao lado de outras mulheres.

James também não tinha intenção de compartilhar com ninguém alguns dos cadernos com lindos desenhos mostrando os diversos jeitos de fazer amor ou a tapeçaria pendurada no aposento principal que também revelava cenas de libertinagem.

— MacKay não gostava das cenas religiosas usuais ou das alegorias morais ou mesmo das caçadas retratadas na mais bela arte. — Sorriu de leve. — Para dizer a verdade, não tinha percebido que questões, digamos assim, mais terrenas estivessem retratadas nos vidros e nos tecidos.

— Se aquele que faz o trabalho é talentoso o suficiente, pode fazer uma pintura do que quer que se deseje — dis­se Tormand. — MacKay parecia querer espalhadas por aqui obras que fizessem as pessoas desviarem o olhar. Já vi muita arte que mostra as coisas mais terrenas tam­bém, apesar de aparentar que ele estivesse pretendendo fazer do castelo de Dunncraig algum bastião de trabalhos libidinosos. — Agarrou de repente o braço de James. — Marta chegou.

Uma vez que ela era uma das mulheres cuidando do nascimento de seu filho, James ficou tenso e percebeu que o irmão tinha agarrado seu braço para estabilizá-lo. Talvez até mesmo para impedi-lo de fazer algo tolo. James ficou com as mãos apertadas com força atrás das costas e esforçou-se para aparentar calma. Olhou para baixo ao sentir um peso de encontro às suas pernas e viu Meggie apoiada nele. A filha obviamente não ignorava totalmente o fato de que havia um perigo sempre presente que ronda­va o parto. Soltou as mãos e passou os braços ao redor do corpo pequeno e magro o melhor que pôde.

— Bem, rapaz — disse Marta, parando diante dele, evidentemente saboreando o fato de que todos reunidos no grande salão tinham feito silêncio ante sua entrada e esperavam que ela se pronunciasse —, você tem con­sigo uma boa procriadora. Nem mesmo as dores foram tão ruins, as mais intensas tendo vindo somente mais ou menos na última hora.

Apesar de sentir os joelhos enfraquecidos, seu alívio foi tão grande que James conseguiu parecer calmo ao perguntar:

— Annora e a criança estão bem, então?

— Sim, estão. Você tem um filho lindo e grande — anunciou Marta e sorriu quando todos se manifestaram. — E, sim, sua mulher está bem, está apenas cansada de um dia difícil de trabalho.

Ela mal tinha terminado de falar quando James co­meçou a correr em direção às escadas que conduziam aos aposentos. Levou um momento para perceber que havia um peso em sua perna esquerda tornando seus movimentos estranhos. A risada que ecoava no grande salão era barulhenta demais para se dever apenas à re­ação de um novo pai ansioso correndo para ver a esposa e o filho. James parou e olhou para baixo, para os olhos castanhos e risonhos de Meggie. Ela estava pendurada nele com braços e pernas, segurando-se firme conforme ele corria. Rindo, pegou-a e lançou-a sobre o ombro antes de começar a correr de novo. Tormand estava logo atrás, pois ele tinha sido o escolhido para olhar o novo herdeiro de Dunncraig e avisar todos no grande salão e os vários primos que aguardavam.

Os olhos de Annora se arregalaram de surpresa quan­do James entrou no quarto, com um Tormand sorridente logo atrás e uma risonha Meggie sobre seu ombro largo. Assim que a surpresa passou, no entanto, sorriu para eles quando se reuniram ao redor da cama onde estava com o filho nos braços. Tinha ficado aterrorizada ao dar à luz, lembrando-se de muitos partos que tinham termi­nado com a morte das mulheres, mas até que não havia sido tão difícil.

Apesar de saber que tivera muita sorte, também sabia que devia agradecer à família adotiva de James por muita daquela tranquilidade. Sabendo que talvez não conseguis­sem estar presentes no parto, a pequena e doce mãe dele, Bethía, e muitos de seus primos os haviam visitado mui­tos meses atrás. As instruções que tinham dado a Marta, a Annora e a muitas outras mulheres tinham sido valo­rosas. Annora sabia, em seu coração, que muitos bebês e mães em Dunncraig seriam salvos no futuro por causa do conhecimento compartilhado por aquelas mulheres.

— Por que ele não é todo vermelho e enrugado como a irmãzinha de Morag, mamãe?

Escutar a palavra mamãe nos lábios de Meggie quase fez com que Annora começasse a chorar. Tinha esperado quase um ano para escutar aquilo, aguardando para saber com certeza que a menina a tinha aceitado como sua mãe. Ao olhar para James e ver o brilho nos olhos dele, soube que ele também havia escutado a manifestação da aceita­ção final e completa, e que estava quase tão emocionado quanto ela. Havia um brilho de incerteza nos grandes olhos de Meggie, e Annora soube que devia esconder as lágrimas e guardá-las para mais tarde. Sorriu para a criança.

— Ele é um rapaz grande, meu amor. Acho que isso faz diferença. A irmã de Morag era uma menina mui­to pequena. — Uma que seguramente teria morrido se as mulheres Murray não tivessem chegado naquele mo­mento exato e rapidamente oferecido suas habilidades para ajudar a mãe de Morag a manter a garota viva.

— Qual é o nome do meu irmão? Mungo? — pergun­tou, espiando sob as fraldas do bebê.

— Não, não vamos nomear nosso filho do mesmo jeito que um gato — disse James, quase batendo em Tormand quando ele riu.

— Não é o nome de um gato — protestou Annora. — Era o nome de um amigo meu de infância.

— Então, não deveria tê-lo dado a um gato. Eu ofereço a você as opções de Niocal e Quinton.

Ele estava sendo um pouco arrogante a respeito do nome do filho, mas Annora já decidira não discutir com ele a respeito daquilo.

— Quinton, então. Quinton Murray Drummond.

— Ah, esse é mesmo um nome bom e vai agradar aos mais velhos — disse Tormand, agarrando Meggie pela mão. — Vamos, minha pequena beleza, e ajude-me a le­var as notícias para os primos.

Meggie se livrou dele e correu até Annora para dar-lhe um abraço e um beijo, que ela amorosamente retribuiu. Pouco depois, estava sozinha com James. Observou-o en­quanto ele se sentava na cama a seu lado e se derreteu com o beijo carinhoso, apesar de estar dolorida do parto. Ele, então, estendeu as mãos querendo segurar o filho e ela não hesitou em colocar a criança em seus braços.

Esperou com paciência que ele o desenrolasse, pois ela tinha feito o mesmo depois que o tinha pegado no colo. Junto com o marido, contou cada dedinho da mão e do pé mais uma vez. Quando ele o envolveu nos tecidos e olhou para ela, sabia que seus olhos estavam tão molhados com lágrimas quanto os dele. Ele piscou para afastá-las, an­tes de abraçá-la e segurá-la bem próxima, com o pequeno Quinton ainda aconchegado na curva do outro braço.

— Você me fez orgulhoso, minha Annora — disse bai­xinho e beijou-a na testa.

Ela descansou a cabeça em seu ombro, o olhar fixo no filho.

— Quinton é um milagre que tem a participação de nós dois.

— Mas você fez a maior parte do trabalho.

— Bem, não vou discutir isso.

— E está sentindo muita dor?

— Não. Só estou dolorida e muito cansada.

— Comecei a temer que algo estivesse errado, pois não a escutei fazer nenhum barulho.

— Ah, eu fiz muito barulho, mas não o tipo de grito que chega até onde o pai está esperando. — Esticou-se sobre o peito de James para acariciar o rostinho delicado do filho. — Ele valeu a pena cada dor, cada grunhido, cada gemido e todos os ataques ao meu recato.

— Ah, sim, e ele valeu a pena cada cabelo branco que ganhei nas últimas muitas horas em que me senti com­pletamente impotente. — Sorriu ao vê-la rir, e então to­cou com suavidade os cabelinhos do filho. — Ele tem seu cabelo grosso. Olhos azuis?

— Por enquanto, mas espero que sejam verdes. Meggie me chamou de mamãe. — Suspirou, sentindo-se sufoca­da com as lágrimas por um instante.

— Finalmente, mas você tinha razão. Era melhor per­mitir que ela decidisse e escolhesse o momento. Apenas senti que você sempre tinha sido mais uma mãe para ela do que Mary jamais fora ou nunca teria sido, e queria que você tivesse a honra do nome de imediato.

— Significa mais quando vem do coração, e não só por uma determinação do amado pai.

— Sim, também senti isso quando a escutei dizer. Eu apenas sempre quero o que quero imediatamente, e então tenho que me controlar. Agora, tenho você para fazer isso.

— Sim, mas eu entendo desejar algo de imediato. Eu queria você imediatamente. Assim que soube que estava carregando seu filho, eu o quis em meus braços imediata­mente. É uma tentação forte querer o que se quer na hora.

— Bem, eu não vou ficar tentado de novo. Tenho tudo o que eu desejo no momento.

Ela o fitou e gemeu de prazer quando ele a beijou.

— Eu também. Tenho meu lobo grande e vermelho de olhos verdes.

Ele corou um pouco, como da outra vez em que ela tinha lhe contando sobre seu sonho.

— Amo você, minha Annora.

— E eu amo você. Amei-o quando o vi pela primeira vez. Amei quando me salvou de Egan, e especialmente quando estava disposto a desistir de tudo e me levar para a França, apenas para me defender dele. E a cada dia o amo ainda mais. Você me deu tudo o que eu sempre desejei.

— Eu dei?

— Sim. Você me deu uma família. Uma grande, ba­rulhenta, amorosa e risonha família. Você, eu, Meggie e agora Quinton, e qualquer outra criança com que formos abençoados, são o coração dessa família, mas o restan­te deles, parentes de sangue ou não, são pura alegria. Obrigada, marido.

— Ah. Eu sou quem deveria ser mais grato. Você devol­veu meu coração e afastou a escuridão de minha alma.

Annora se aninhou em seu peito, emocionada com aquelas palavras e com o profundo e resoluto amor que sentia emanar dele. Um amor que combinava perfeita­mente com o que guardava em seu coração.

— Somos os companheiros perfeitos, meu lobo.

— Somos, sim, moça. Certamente somos.

 

 

                                                                                                    Hannah Howell

 

 

 

              Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades