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O LOBO VIOLADOR / Erle Stanley Gardner
O LOBO VIOLADOR / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LOBO VIOLADOR

 

Nessa manhã, começara a chover, no momento em que Arlene Ferris estacionou o seu carro no parque privativo dos empregados da administração da Lamont Roling, Casting and Engineering Company".

A chuva era fria, batida a vento, e Arlene apressou-se a fechar os vidros do automóvel, pôs a gabardina sobre os ombros e correu para a entrada do edifício, onde se lia: "Só para Empregados".

Ao meio-dia ainda estava a chover, mas não precisou de sair do edifício, para o exterior; utilizou o túnel que permitia aos empregados da administração dirigirem-se, directamente, para o snack instalado no mesmo prédio.

Da parte da tarde, Arlene tinha entre mãos um trabalho urgente que devia ser expedido no correio da noite. Só lhe faltava cerca de meia hora para terminá-lo e nem sequer olhou para o relógio que já indicava a hora da saída dos empregados. Ficou no escritório, sozinha, a ultimar essa correspondência e, finalmente, levou-a ao escritório do gerente, George Albert, que se mostrou agradavelmente surpreendido e grato.

- Muito obrigado, Miss Ferris.

- Não tem de quê, Mr. Albert. Sabia que estas cartas deviam seguir, ainda hoje.

- Nem todos os empregados têm a sua consciência profissional. Certamente, apreciamos a sua lealdade e sacrifício, por trabalhar para além do seu horário.

- Um bom emprego merece-nos lealdade - respondeu Arlene, despedindo-se.

A chuva, agora, parecia gelada. A jovem correu para o carro, no parque quase deserto de viaturas. Tentou pôr o motor em marcha, mas, após repetidos esforços, não conseguiu arrancar.

Subitamente, uma voz grave e agradável perguntou:

- Problemas com o carro?

Arlene ergueu os olhos e viu um jovem atraente, de ombros largos, com uma gabardina, tipo trincheira, presa com um cinto em torno da cintura.

- Parece que este motor se recusa a trabalhar.

- É melhor deixar a bateria repousar por uns minutos, senão fica sem ela. Quer que eu dê uma vista de olhos?

- Agradeço-lhe.

A cabeça e os ombros do jovem desapareceram dentro do capot do motor e a voz grave indicou:

- Quando vir a minha mão no ar, ligue a ignição. Após várias tentativas, o jovem reapareceu, com um ar desiludido.

- Não tem corrente eléctrica - explicou. - Há qualquer coisa, entre a bateria e o motor... Deve tratar-se de uma avaria do distribuidor.

- Que quer dizer com isso?

- Que, sem a assistência de um mecânico, não poderá sair daqui... e a estas horas, não vai conseguir encontrar uma garagem aberta, por estas bandas... Mas tenho ali o meu carro. Quer que a deixe em algum lado?

- Bem... Não queria incomodá-lo, mas, se puder deixar-me na próxima paragem de autocarros, fico-lhe muito grata.

- Terei muito gosto em ser-lhe útil. O meu carro é aquele, ali à frente.

Quando Arlene olhou para o automóvel de luxo identificou o proprietário. Era Loring Lamont, filho do patrão-mor da Companhia, Jarvis Lamont. Sabia que ele tinha estado na América do Sul, a supervisar os negócios da Companhia nesses países. Uma colega já lhe tinha apontado o carro, como sendo o "espada do filho do patrão".

Com toda a cortesia, Loring abriu-lhe a porta do automóvel e, momentos depois, rodavam pela frente do cubículo do guarda do parque e saíam para a estrada.

O carro tinha aquecimento e todos os confortos da indústria automóvel mais sofisticada.

- Onde mora? - perguntou Loring.

- Basta que me deixe numa paragem de auto...

- Nem pense nisso - cortou ele. - Com um tempo destes, vai ficar encharcada, enquanto espera pela carreira. Não me custa coisa alguma levá-la a casa. A propósito, como se chama?

- Arlene Ferris... Mas posso apanhar um táxi.

- Eu sou Loring Lamont... Vou levá-la a casa, seja aonde for. Com um tempo destes, os táxis escasseiam por toda a cidade... Contudo, lembrei-me agora... tenho uns papéis importantes a entregar, na "casa das reuniões"... Fica perto. É aí que os administradores costumam juntar-se, fora do edifício da Companhia... Não demoro muito. Você pode ficar dentro do carro, enquanto vou entregar a papelada que o meu pai pediu... Depois, levo-a a casa. Valeu?

Arlene hesitou, mas ficou tentada a anuir, pelo calor do ambiente e pelo conforto dos estofos. Mesmo assim, recusou:

- Não. Deixe-me na próxima paragem dos autocarros.

- Porquê?... Não pode ficar dois minutos, no carro, a ouvir a rádio? Demoro menos do que isso. É só entrar e sair.

Arlene sabia da existência daquela "casa das reuniões", nos limites da cidade. Momentos depois, saíam da estrada principal e enveredavam por uma secundária de acesso a um desvio onde um letreiro indicava: "Passagem proibida".

Essa estrada de desvio estava bordejada por arvoredo, de ambos os lados, e as bermas encontravam-se limitadas por uma vedação de arame farpado. Pararam diante de um portão de ferro. Loring saiu do carro e foi abri-lo, após o que voltou à viatura e introduziu-a num parque arborizado ao fundo do qual se via uma casa branca, em estilo colonial.

Novamente Loring saiu do automóvel, levando uma pasta na mão, e correu para a entrada do edifício. Tocou à porta, mas ninguém atendeu. Então o jovem, tirando as chaves da algibeira, abriu-a e entrou.

Instantes depois, regressou ao carro, explicando:

- Ainda não chegaram. O meu pai tinha marcado uma conferência com dois administradores... e já deviam cá estar... Um momento, volto já. Vou telefonar...

Arlene viu acenderem-se luzes no piso inferior da enorme casa branca. Quando Loring tornou a acercar-se de Arlene, mostrava-se constrangido.

- Peço-lhe imensa desculpa, Miss Ferris! Surgiu uma contrariedade.

- Que se passa?

- Um dos administradores, que deveria encontrar-se aqui com o meu pai, só pode vir mais tarde... Mas o meu pai não deve tardar, já que o informei que estou cá, com os papéis... Não quer entrar um momento, Miss Ferris? A casa está aquecida e... se quiser, posso oferecer-lhe uma bebida.

- Não, Mr. Lamont. Prefiro esperar aqui.

- Porquê?... Não temos lobos lá dentro, nem sequer cães de guarda. Para deixá-la aqui, dentro do carro, terei de deixar o motor a trabalhar, caso contrário o aquecimento estoira-me com a bateria... E, se mantenho esta coisa a funcionar, você pode ficar intoxicada com o óxido de carbono... Venha daí. Tomamos uma bebida, enquanto esperamos pelo meu pai. Depois, prometo, levo-a a jantar a qualquer lado. Valeu?

Arlene acabou por ceder. Loring despiu a gabardina e dirigiu-se a um bar, instalado ao fundo do salão, onde começou a preparar dois cocktails. Nesse momento, o telefone tocou.

- Quem diabo será agora? - resmungou ele; seguidamente, protestou. - Francamente, isto é de mais! Já esperei o tempo que podia. É-me impossível ficar aqui, eternamente... Sim, pai... Tenho um encontro marcado... para jantar... Não, pai. Tenho aqui uma pessoa comigo...

Ainda disse, para o bocal, vários "está lá", até que desistiu, dando a entender que o velho Jarvis Lamont, senhor todo-poderoso, desligara o telefone.

Virando-se para Arlene, Loring desculpou-se:

- Lamento imenso o transtorno que estou a causar-lhe, Miss Ferris. O meu pai continua à espera do administrador retardatário que ficou de encontrar-se com ele nos escritórios da Companhia. Conta estar aqui, dentro de três quartos de hora... Acabe essa bebida enquanto vou ver se temos alguma coisa de trincável no frigorífico.

Arlene ouviu-o na cozinha, contígua ao salão, a abrir e a fechar portas de armários. Quando voltou para o pé dela, sondou:

- Que tal é você a fazer uns biscoitos, desses que imitam pão ou bolacha?

- Costumo sair-me bem.

- Então, seja boa menina e vamos a isso. Tenho aqui de tudo, menos pão: Leite em pó, ovos, comida enlatada, bacon e salsichas... até fruta em calda... Que me diz a "acamparmos", enquanto esperamos por suas excelências?

- Se tiver manteiga e farinha, cá me arranjo com o leite... Convinha um pouco de fermento em pó.

- Temos cá tudo isso. O pai, às vezes, também "acampa" aqui, durante as conferências, quando estas se prolongam e não querem interrompê-las, a meio, para se deslocarem a um restaurante. Café não falta... Quer que lhe arranje um avental?... A cozinha fica mesmo aqui ao lado... Se quiser lavar as mãos, a casa de banho é contígua.

Enquanto Arlene foi fazer os biscoitos, Loring ligou o reprodutor de cassettes e o salão encheu-se de música suave. Depois, foi buscar uma caçarola, untou-a com banha, cortou fatias estreitas de bacon e partiu quatro ovos. Não tardou em deitá-los sobre a banha que já cantava ao lume de um pequeno fogareiro de gás.

- Vai ser uma patuscada caseira - gritou para Arlene. - Esses biscoitos estão demorados?

- Mais dois minutos - programou ela.

- Bom... Vou reduzir a chama desta coisa, para não fritar demasiado os ovos.

Mal Arlene entrou com os biscoitos, o telefone tornou a tocar. Loring atendeu:

- Okay?... Sim, sou eu... Neste momento... Bem, está bem, okay. Não desligue. Vou atender noutro apararelho, okay.

Virando-se para Arlene, sugeriu:

- Comece a comer, Miss Ferris, que já venho ter consigo.

Ela transferiu os ovos com bacon para dois pratos que Loring já pusera na mesa, com os respectivos talheres e copos, e notou que, numa outra sala, o filho do patrão falava entrecortadamente, em voz baixa, inaudível para ela.

Quando Loring voltou, parecia perturbado.

- Alguma complicação? - indagou Arlene.

- Não... Um maçador que me transtorna os planos. Agora, não temos tempo a perder.

Avançou para ela, agarrou-a pela cintura, apertou-a contra o peito e beijou-a com violência.

Arlene, completamente aturdida, tentou repeli-lo, mas Loring empurrou-a para um largo divã da sala e lançou-se sobre ela, desvairadamente.

Algo mudara no seu rosto, de onde desaparecera toda a afabilidade anterior. Era a máscara de um fauno, de um sádico, o que Arlene via, procurando-lhe a boca, procurando penetrá-la com a língua.

A jovem torceu o rosto, quanto pôde, para o lado e tornou-se hirta, esforçando-se por libertar-se daquele amplexo inesperado.

- Deixe-se disso, boneca! - ofegou ele, manten-do-a debaixo do seu corpo e segurando-lhe os pulsos.- Não se arme em virgem. Você já fez isto muitas vezes e bem sabe que é bom. De resto, eu não sou um tipo repulsivo. Muitas das suas colegas têm-me aberto as pernas e ficaram a chorar por mais. Por exemplo, a secretária particular do meu pai, não pensa noutra coisa e tive de pô-la em cubos de gelo, para acalmar-se. Era uma simples dactilógrafa e fui eu quem a meti no gabinete da administração... Você, Arlene, nada tem a perder...

- Largue-me - gritou ela. - Eu não pretendo nada da sua Companhia e detesto essas suas tácticas... Deixe-me ir...

Mas já Loring lhe levantara a roupa do saia-e-casaco e, metendo-lhe a mão entre as pernas, procurava arrancar-lhe o nylon íntimo.

- Temos de despachar-nos, antes que alguém apareça por aí... Pare com isso, Arlene! - rugia Loring.- Não temos mais de meia hora. Para a próxima vez...

- Não haverá mais vez alguma - protestou ela, esforçando-se por apertar os joelhos. - Largue-me, seu bandalho!

Conseguiu torcer-se e furtar as ancas de sob as do adversário. Quando este procurou repor-se sobre ela.

Arlene ergueu um joelho e bateu-lhe no fulcro das virilhas.

Com um berro, Loring largou-a e deslizou para o chão. Quando se ergueu, empalidecera, sem conseguir falar. Tinha uma mão entre as pernas e fitava-a com uma expressão de ódio.

Quando, após inspirar fundo, se encontrou apto a articular algumas palavras, já Arlene se erguera do divã e correra para o outro lado da mesa, com a respiração ofegante.

- Não compreendo a tua atitude, rapariga - arfou ele. - Eu estou doido por ti. Não penses que esta minha atitude foi fruto do acaso. Fica sabendo que fui eu quem tirou o distribuidor ao teu carro. Olha... tenho-o aqui na algibeira... Extraiu a pequena peça mecânica e exibiu-a. - Planeei tudo para possuir-te Se estás no teu emprego, na Companhia, a mim mo deves... Como vês, isto já vem de muito longe.

Começou a andar em torno da mesa, tentando aproximar-se de Arlene, mas esta continuava a fugir-lhe, mantendo a distância entre ambos. Loring continuou:

- Enquanto estavas lá fora, entrei para telefonar a um amigo, pedindo-lhe que ligasse para mim, dentro de sete minutos. Dessa maneira, consegui convencer-te a entrar... Contudo, o outro telefonema obrigou-me a alterar todos os meus planos. Por isso, tive de apressar-me e não pude "levar-te", às boas. Sei que fui um pouco brusco; sei que, com algumas mulheres, esta táctica do "atracão" não "pega", mas não tinha tempo a perder.

- Agora já perdeu todo o tempo que tinha - retrucou Arlene, - e até quaisquer outras oportunidades. Agora, Mr. Lamont, leve-me a casa, com todo o juízo. Caso contrário, hei-de processá-lo por tentativa de violação.

Loring soltou uma gargalhada.

- Era o que faltava!... Não sabes o que estás a dizer, rapariga! Neste Estado da Califórnia, uma queixa por atentado ao pudor e coisas desse género, não são aceites, do pé para a mão. São necessárias provas...

- Tenho-as de sobra - enfureceu-se Arlene. - Você, seu animal, arranhou-me o interior das coxas, assim como as costas. Basta que as exiba à Polícia...

- Terias de exibir muito mais do que isso, minha filha - replicou Loring, dando uma corrida em redor da mesa. - Entretanto, eu processar-te-ia por falsas acusações, com o objectivo de uma choruda indemnização. Provaria que tiveste várias aventuras...

- Como? - indignou-se ela.

- Poria uma matilha de detectives a "espiolhar-te" o passado, para provarem que não és a donzela pudica, cujo falso papel te lembraste de representar comigo. Dinheiro não me falta, para mexer todos os cordelinhos necessários. A tua reputação ficaria numa rodilha de lama! Qualquer juiz perceberia que se tratou de uma armadilha para meteres o filho do teu patrão em apuros e sacar-lhe uma data de "massa"... Tenho as chaves do carro na algibeira. O tempo está a correr e eu não quero esbanjar nem mais um minuto que seja. Volta para o divã e põe-te a jeito, antes que eu me dane. Agora, tu mesma vais despir essa "parra" e oferecer-me toda a meiguice de que és capaz. Avia-te.

Nova corrida e, na fuga, Arlene tropeçou numa cadeira. Loring ganhou um sensível avanço e esteve quase a agarrá-la. Então, a jovem derrubou-lhe uma cadeira aos pés e tentou escapar-se para a porta. Não o conseguindo, rodeou o divã, conquistou alguma dianteira e foi refugiar-se na cozinha onde a perseguição, em volta da nova mesa, recomeçou.

Loring prosseguiu:

- Como vais explicar, minha estúpida, teres vindo para aqui, no meu carro, e teres feito biscoitos, disposta a comeres comigo? Ninguém acreditaria que te trouxe contra a tua vontade.

Num salto felino, Loring conseguiu aproximar-se dela e segurar-lhe o casaco. Arlene tentou libertar-se e foi novamente abraçada, desta vez, pelas costas. Não podia servir-se dos joelhos, tinha ambos os braços presos e, desesperada, sentiu-se arrastar, gradualmente, para o salão. Flectiu as pernas, tornando-se pesada, mas Loring levantou-a, indiferente às caneladas que ela, sem grande resultado, procurava dar-lhe, para trás, com os calcanhares.

- Calma, gatinha - murmurava ele, beijando-lhe o pescoço.

De novo no divã, Loring deitou-a de bruços e colocou-se-lhe em cima. Arlene abrandou os seus esforços, para retomar fôlego e recuperar energias. Fingiu ter desistido de repeli-lo e consentiu que ele a virasse de ventre para cima. Deixou-o mesmo afagar-lhe os seios, libidinosamente, e que a beijasse com sofreguidão. Abriu as pernas, tolerantemente e, quando Loring tornou a tentar tirar-lhe o nylon protector, Arlene, com ambos os pés, empurrou-o para trás, pelo peito.

Loring caiu pela segunda vez do divã, com o rosto convulsionado por uma ira imensa. Agora, parecia uma fera, mas, quando se levantou, já Arlene, de pé, erguera uma cadeira.

- Se torna a tocar-me... - avisou.

- Não penses que sais daqui a rir-te, meu estupor - rugiu ele.

Então, cega de fúria, num gesto de desesperado frenesim, Arlene atirou-lhe com a cadeira, cujas pernas lhe embateram, com toda a força, no baixo ventre.

Loring não esperara aquele golpe e tinha as mãos erguidas, para proteger a cabeça. Dobrou-se em dois e emitiu um ronco.

Numa corrida, Arlene pegou na gabardina e correu para a porta. Sabia que Loring tinha as chaves do carro na algibeira. Portanto, contornou a viatura e lançou-se em direcção ao portão que ficara aberto.

Loring já saía do pórtico, atrás dela.

- Se te apanho, minha cabra! - ouviu-o ainda ameaçar.

Sem dar-se ao trabalho de enfiar a gabardina, corria o mais que podia, pelo meio da estrada. Ouviu o ruído do motor do "espada" e, em breve, os faróis, lambendo a noite, a iluminaram

Arfando, saiu da estrada e continuou a fugir, agora pela berma de terra, para furtar-se à luz dos faróis.

Subitamente, o carro abrandou a marcha. Então compreendeu que Loring procurava seguir-lhe as pegadas na berma.

Percebendo que não conseguiria escapar-lhe, daquela maneira, decidiu esconder-se. Mas onde?

Parou, ajoelhou-se junto à vedação e rastejou por debaixo do arame farpado. Sabia que, se fugisse por entre as árvores, Loring não deixaria de segui-la. Acabaria por ser violada, no chão molhado... e talvez assassinada em seguida.

Aterrorizada, resolveu caminhar, na sombra, em sentido contrário, tencionando deitar-se no chão, quando o carro a ultrapassasse, para que Loring, não a vendo, prosseguisse em frente, à sua procura.

Mas depressa compreendeu o seu erro. Loring parara o carro, saíra dele e acendera uma lanterna portátil, com a qual examinava as pegadas deixadas na terra mole.

O facho luminoso continuava ao longo da berma. Arlene, acocorada atrás de uma árvore, viu Loring passar para além do ponto onde ela se achava, até se deter naquele em que, momentos antes, se arrastara sob o arame farpado.

Foi o grande erro do perseguidor. Num ápice, Arlene tornou a passar por debaixo da vedação e, já na estrada, correu para o "espada", cuja porta tinha ficado aberta, com a chave da ignição no painel.

Arlene sentou-se ao volante, fechou a porta e arrancou, com o acelerador a fundo. Ainda não tinha percorrido dez metros, quando viu um vulto diante dela, apontando-lhe a lanterna. Desviou-se para não atropelar o seu agressor e ia perdendo o domínio da direcção.

Após vários ziguezagues, pôde dominar o carro e adaptar-se ao acelerador, muito mais sensível do que o do seu automóvel. Quando atingiu a estrada principal, já guiava o "bólide", como um veterano.

Dirigiu-se directamente para o seu apartamento, arrumou o carro junto ao passeio e foi mudar de roupa, pois achava-se completamente ensopada e bastante enlameada. Então, com um sorriso sardónico, consultou a lista telefónica e procurou a morada de Loring Lamont na cidade.

Tornou a sair, retomou o volante do "espada" e rumou até ao apartamento do "filho do patrão". Ao ver uma boca de incêndio, estacionou a viatura mesmo rente àquela, para que a Polícia não perdoasse ao transgressor. Era a sua pequena vingança... enquanto não pensasse noutra, mais contundente.

Por fim, caminhou quatro quarteirões, entrou num café e, da cabina, telefonou a chamar um táxi. Pouco depois, regressava a casa.

 

No dia seguinte o dia ergueu-se brilhante de sol. Arlene Ferris chamara um mecânico, que lhe confirmou o que Loring confessara: faltava a parte superior do distribuidor. Após a necessária reparação, o carro ficou a trabalhar perfeitamente.

Então a jovem pensou que seria melhor não voltar ao emprego. Loring Lamont não seria homem para perdoar-lhe a resistência aos seus encantos. Decerto, não deixariam de despedi-la, mas havia de fazer qualquer coisa, em defesa dos seus interesses.

Durante parte da manhã hesitou no que iria fazer: deveria ou não processar o "filho do patrão", por atentado ao pudor e tentativa de violação? Finalmente, resolveu ir trabalhar. Receava que os detectives que Loring ameaçara contratar iriam desvendar todas as suas pequenas aventuras e interrogar os antigos namorados. Alguns deles tinham levado com "as patas" e deviam ter ficado ressentidos, sendo capazes de se vingarem, relatando, despeitadamente, alguns pormenores que qualquer juiz consideraria pouco edificantes, em matéria de pureza virginal. Os homens desprezados são capazes de cometerem indiscrições infames, porque o despeito fica a roê-los por dentro.

Levantou-se da secretária, entrou na sala das senhoras, onde havia um telefone, e ligou para o escritório do advogado Perry Mason. Foi atendida por uma secretária, que se apresentou como sendo Della Street.

- Daqui, Arlene Ferris. Estou a trabalhar na "Lamont Rolling, Casting and Engineering Company". Saio dos escritórios às cinco em ponto. Ser-me-ia possível falar com Mr. Perry Mason, acerca de um assunto pessoal e muito importante? Se for necessário, posso largar o trabalho, mais cedo.

- Um momento, Miss Ferris. Segundos depois, Della Street indagava:

- Ser-lhe-á possível estar cá às duas e meia?

- Certamente - concordou Arlene.

Estava já plenamente decidida a ir para diante com o caso. Loring Lamont não se ficaria a rir dela, depois do que lhe fizera, nem sequer impune, caso a despedissem da Companhia.

À uma e meia verificou uma grande excitação no gabinete do patrão-mor, Jarvis Lamont, que saiu de rom-pão, logo seguido pelo gerente, George Albert. Este passou por ela sem dirigir-lhe um olhar, como era habitual.

De Loring Lamont não havia o mínimo sinal.

Poucos minutos antes das duas, Arlene dirigiu-se ao gabinete do gerente e solicitou:

- Agradecia-lhe, Mr. Albert, que me autorizasse a sair mais cedo.

O homem pareceu-lhe preocupado ao observar:

- É um pedido muito irregular, Miss Ferris.

- Ontem... como noutros dias... tenho saído mais tarde do que o limite horário...

- Bem sei - cortou o gerente, nitidamente perturbado, - mas temos de evitar precedentes anti-regulamentares. Apreciamos devidamente a dedicação pelo serviço, mas não é norma da casa considerarmos prerrogativas a título de compensação.

- Compreendo, mas trata-se de um assunto de extrema importância...

- Muito bem, Miss Ferris. Espero que esteja de volta, dentro de uma hora.

- Uma hora e meia - contrapôs Arlene, firmemente.

A atitude da jovem deixou-o um pouco confuso.

- Muito bem - aquiesceu.

Ao sair, Arlene teve o pressentimento de que, no dia seguinte, já não pertenceria aos quadros da Companhia.

 

Quando Arlene Ferris acabou de relatar a sua história, Della Street, secretária confidencial de Perry Mason, levantou os olhos do bloco-notas onde estivera a estenografá-la. A sua expressão transmitia simpatia enquanto aguardava a decisão do advogado.

O rosto de Mason parecia esculpido em granito, mas o seu olhar examinava apreciativamente a beldade que tinha diante de si.

- Em síntese, Miss Ferris, que pretende que eu faça?

- Bem... eu... - balbuciou ela - desejo mostrar a esse patife libidinoso que as mulheres não são esfregões de cozinha e que uma moça que trabalha merece um pouco de consideração... tanto mais que o que ele quis fazer comigo, não se faz com um esfregão... seja do que for. O facto de eu trabalhar como dactilógrafa de uma companhia importante, não significa que tenha, obrigatoriamente, de deitar-me com o filho do patrão.

- Quer dar-lhe uma lição, não é isso?

- Não é bem isso... Não quero passar o resto da vida a pensar que uma mulher... Bem... tem razão: quero dar-lhe uma lição.

- Como? - sondou o advogado.

- Isso é o que pretendo que me diga, Mr. Mason.

- Pode processá-lo, por perdas e danos, ou pode apresentar queixa na esquadra da Polícia... mas não pode fazer ambas as coisas.

- Porquê?

- Por razões práticas. Logo que o processar por perdas e danos, a queixa de natureza criminal sai pela janela. Qualquer advogado de defesa que o seu agressor arranje, demonstrará imediatamente que a sua pretensão, Miss Ferris, é transformar a sua desagradável experiência numa fonte de lucro.

- Estou a ver. E se eu processar o malandro, sem me queixar dele à Polícia?

- Um júri decidirá de acordo com a sua pretensão, Miss Ferris. Se pretende dinheiro para compensar a sua moral injuriada...

- Não... não é isso o que pretendo... É difícil de explicar. Quero unicamente defender os meus direitos... os direitos daquilo que considero a imunidade do meu sexo, em relação a um violador. De resto, se esse patife me fizer perder o emprego...

- Evidentemente - interrompeu Mason, - considera-se no direito a uma indemnização. Mas não pode esquecer-se de uma coisa, Miss Ferris: esse Lamont arranjará detectives para atirar-lhe uma data de lama para cima e o advogado que o defender não deixará de gritar aos quatro ventos que foi "essa dactilógrafa ambiciosa quem o provocou, lascivamente..."

- Mas ele é que foi um lobo lascivo! - indignou-se Arlene.

- Sim, bem sei, mas é uma situação deveras difícil de provar, visto não ter havido testemunhas oculares.

- Como queria que as houvesse, Mr. Mason?- espantou-se a jovem, manifestando irritação.

- Lembro-me de um caso similar, aqui no Estado da Califórnia, do Povo versus Battilana. Este Battilana era uma espécie de Lamont, mas muito menos rico e influente. Não precisou de detectives para revirarem do avesso o passado da vítima de violação. O seu advogado bastou para baralhar toda a acusação, só porque a moça esteve na casa de banho do apartamento dele e deixou impressões digitais no espelho... Esse "menino" Loring Lamont não ficará por aí. Vai mandar vasculhar-lhe o passado, Miss Ferris, e provar que talvez você já não seja uma virgem inocente. A partir daí, todas as hipóteses de sedução da sua parte serão admissíveis...

Com um gesto de fúria, Arlene saltou da cadeira. Estava lívida.

- Calma, Miss Ferris - sossegou-a Mason. - Estava apenas a testar a sua reacção...

- Quer dizer que isso que me expôs não é a realidade?- interrompeu-o Arlene.

- É, sim, mas, se pretende ir para diante com o caso, é só dizê-lo.

- Está visto que quero ir para diante e até ao fim. Quando começo a lutar, nunca fico pelo caminho.

- Bravo, minha amiga - aplaudiu Mason e, viran-do-se para Della Street, acrescentou: - Ligue-me para Paul Drake... da "Agência de Detectives Drake" - especificou, em atenção à cliente - e peça-lhe para vir aqui, imediatamente. Vamos tratar de arranjar provas contra Loring Lamont, antes que ele comece a aperceber-se do que vai acontecer-lhe.

Tornou a encarar Arlene e indagou:

- Disse ter deixado o carro do seu conquistador, diante de uma boca de incêndio?

- Exactamente. Mesmo rente a ela. Queria que lhe "ferrassem" uma multa das rijas.

Mason sorriu e observou:

- Provavelmente isso vai concorrer a nosso favor. Lamont terá de inventar uma boa desculpa para uma tal transgressão e a história que narrar deverá ser deveras interessante.

Decerto não vai contar-lhes a verdade...

- Nem por sombras, mas é muito capaz de dizer que uma jovem o enfureceu a ponto de não reparar no que fazia, ao estacionar o carro. Depois, no tribunal, é natural que se veja na necessidade de modificar essa história improvisada. A mentira é sempre desfavorável a um acusado de agressão voluntária... Disse-me, Miss Ferris, que ele referiu ter conquistado uma sua colega da Companhia?

- Sim. Referiu-se à secretária do pai, Jarvis Lamont... e que ela tinha gostado.

- Sabe o nome dessa sua colega?

- Certamente. É Edith Bristol.

- Dá-se bem com ela?

- Nem bem nem mal. Vejo-a quase todos os dias e soltamos os "olás" do costume, sem mais aproximações.

- Pode descrevê-la?

- É uma moça muito atraente, elegante, bonita... Tem cerca de vinte e cinco, vinte e seis anos, embora goste de vestir-se como se não passasse dos dezoito... Creio que os meus colegas machos a consideram uma "brasa". Quando ela passa, dão-lhe, com os olhos, palmadas no rabo gingão. Mas tem qualquer coisa no olhar que a desfeia...

- Torce uma vista?

- Não uma, mas as duas. Põe os olhos para cima, como se estivesse a... bem... como se um homem a estivesse a... Compreendeu, não é verdade, Mr. Mason? Provavelmente, Edith pensa que aquilo lhe dá um ar muito sensual... e há, por lá, pares de calças que pensam o mesmo.

Paul Drake bateu à porta, as suas pancadinhas de código.

Enquanto Della foi abrir, Mason explicou:

- Mr. Paul Drake dirige a "Agência de Detectives Drake" e efectua todos os trabalhos de investigação de que preciso. Quando o vir, Miss Ferris, talvez não lhe pareça um detective, como os que vê na televisão, mas é extremamente competente, de uma eficiência a toda a prova.

Drake entrou no gabinete, pela porta particular do gabinete, de acesso directo ao corredor e, após as apresentações, Mason convidou:

- Senta-te, Paul. Sabes alguma coisa acerca da família Lamont, da "Rolling, Casting and Engineering Company" ?

- Que queres saber a seu respeito, Perry?- sondou Drake, semicerrando os olhos.

- Tens conhecimento de uma grande casa branca que possuem, para reuniões e conferências particulares, no limite da cidade?

- Sei onde fica. É uma propriedade privada, com estrada particular, toda aramada em volta. Possuem uma piscina...

- É quanto chega, por enquanto. Vamos a outro assunto. Loring Lamont, filho do conhecido "grande patrão" Jarvis, deixou, ontem à noite, o carro estacionado em frente de uma boca de incêndio. Estou muito interessado em saber quem é que o removeu de lá e a que horas. Quero que me descubras que raio de explicação deu à Polícia, quanto a essa infracção; se aceita a multa, sem discutir, ou se inventa qualquer outra justificação, como, por exemplo, terem-lhe roubado o "espada". Quero saber quais são os seus mais íntimos amigos e se falou a alguém acerca do que lhe sucedeu ontem à noite... e quero estar a par de tudo isso, antes que ele tome conhecimento de que andamos a efectuar esta investigação.

- Miss Ferris é tua cliente? - inquiriu Drake. Mason confirmou, com um aceno de cabeça.

- Bem, Perry, detesto ter de dizer-te isto, mas não vai ser fácil o que me pedes, pois não terei muito tempo para actuar, em virtude dos obstáculos com que depararei pela frente. Loring Lamont foi assassinado na noite passada.

Os olhos de Mason abriram-se de surpresa e o espanto, no rosto de Arlene, transformou-se num quase desmaio de apreensão.

- Continua - incitou Mason.

- Ainda não sei muita coisa acerca do caso. Ouvi a notícia na rádio, esta manhã. Loring Lamont, filho do rico industrial Jarvis Lamont, foi assassinado, na noite passada; encontraram o cadáver com uma faca de cozinha cravada nas costas.

- A Polícia referiu-se a alguma pessoa suspeita?

- Os tipos dos "Homicídios" andam à "cata" de uma jovem que, aparentemente, esteve com ele, ontem à noite.

- Okay, Paul. Põe-te a caminho. Mete mãos à obra.

- Talvez... - começou Drake. Mas Mason interrompeu-o:

- O tempo urge, Paul! Tenho de dar alguns conselhos à minha cliente... absolutamente confidenciais... Não quero envolver-te como testemunha. O caso de Miss Street - explicou a Arlene-é diferente, porque está protegida pelo mesmo privilégio do sigilo das comunicações entre o advogado e o seu cliente.

Drake levantou-se e, à porta, disse para Arlene:

- Não pode estar em melhores mãos.

E saiu, fechando a porta silenciosamente. Virando-se para a jovem, Mason inquiriu, de chofre: -Você matou-o?

- Não, Mr. Mason. Tudo se passou, tal como lhe contei.

- A que horas deixou essa "casa das reuniões"?

- Não sei... Deviam ser cerca das sete horas.

- E o seu saia-e-casaco ficou enlameado?

- Como é natural.

- E a sua blusa?

- Também.

- Meias?

- Certamente.

- Fugiu no carro dele e estacionou-o, rente a uma boca de incêndio?

- Sim, Mr. Mason, tal como já lhe descrevi.

- O espelho retrovisor é, num carro, o local mais propício, num carro, para conservar impressões digitais. Lembra-se de tê-lo ajustado à sua altura?

- Sim... para ver a estrada pelo vidro das traseiras.

- Usou luvas?

- Não.

- Bem, Miss Ferris, oiça cuidadosamente o que tenho a dizer-lhe. A fuga é considerada uma prova de culpabilidade. Não comunicar um crime é também um acto criminoso. Por outro lado, uma pessoa tem o direito de consultar um advogado e, se este dá ao seu cliente um conselho ilegal, incorre na pena de expulsão da Ordem dos Advogados, deixando de poder exercer a sua profissão. Está a compreender, Miss Ferris?

- Sim, Mr. Mason.

- Portanto, não posso aconselhá-la a que fuja. Por outro lado, não me convém que, por enquanto, conte a sua história à Polícia, por mais verdadeira que a sua versão possa ser. Tenho, entretanto, de descobrir algumas provas que corroborem o que me contou. Despiu, no seu apartamento, a roupa enlameada?

- Sim.

- Ainda lá está?

- Sim.

- Agora, Miss Ferris, pense atentamente. Alguma peça da sua roupa ficou manchada de sangue?

Após um instante de hesitação, Arlene virou-se de costas e levantou a saia, até às nádegas. Na da esquerda via-se um profundo arranhão, coberto por uma camada de mercurocromo.

- Fiz isto-elucidou, - quando passei por baixo do arame farpado, para correr para o carro, antes que aquele patife me agarrasse.

- E esse arranhão sangrou?

- Sim.

- Abundantemente?

- Bastante.

- Sabe se esse sangue lhe manchou a saia?

- Não sei. Não a vi pelo lado interior e, do lado exterior, não notei mancha alguma... mas as minhas calcinhas... bem, ficaram ensanguentadas.

- Onde pôs a sua roupa, depois de despi-la?

- No cesto da roupa suja, para mandá-la para a lavandaria.

- Não chegou a mandá-la para a lavandaria?

- Não, Mr. Mason. Ficou toda no cesto.

- Ainda bem que lá está. Vou dar uma ajuda à Polícia. Os homens dos "Homicídios" gostam de usar um certo número de truques e vou tentar servir-me de um para chamar-lhes a atenção para uns dados pormenores que, de outra maneira, poderiam passar-lhes despercebidos, anulando-se definitivamente com o escoar do tempo. Terei de meter-lhes um "chamariz", mesmo debaixo do nariz. Autoriza-me, Miss Ferris, a ir ao seu apartamento?... Dê-me a chave.

Arlene abriu a bolsa de mão e entregou-lhe a chave.

- Vai tirar de lá a minha roupa?

- Não, de maneira alguma! Isso seria escamotear provas. Agora, tenho de apressar-me, antes de você ser interrogada pela Polícia.

- Não estou a perceber bem...

- Esplêndido. É melhor que não compreenda o que vou fazer.

- E não quer que eu desapareça? Não quer que eu saia da cidade?

- Não. Deve comportar-se como qualquer outra moça, na sua situação. Contudo, vou contar à Polícia o que lhe sucedeu, mas omitindo certos pormenores. Não quero que você fuja, mas convém-me que esteja afastada da Polícia, por um breve período. Está disposta a colaborar comigo, na defesa dos seus interesses? Para começar, vá para o seu emprego e demita-se.

- Não vai ser agradável...

- Trate de consegui-lo, hoje mesmo. Tem alguma amiga, a viver nesta cidade?

- Não precisamente na cidade,

- Perto?

- Sim, em Santa Mónica.

- Como se chama ela?

- Madge Elwood.

- De que idade?

- Vinte e sete.

- Loira ou morena?

- Morena, como eu.

- Qual é o aspecto dessa sua amiga?

- É da minha altura. Tem uma figura maravilhosa e foi seleccionada, há dois anos, para a final, num concurso de beleza... Bem, não devia dizer isto, pois há quem me confunda com ela. Não serei tão espampanante como ela, mas não há dúvida de que somos bastante parecidas; temos o cabelo da mesma cor e penteamo-nos identicamente... A verdade é que eu copio-a um pouco... Já temos passado por irmãs... ou primas.

- Que faz ela, presentemente?

- É secretária.

- Tem um bom emprego?

- Sim. Tem um cargo de responsabilidade.

- Conheceu-a quando veio para cá, Miss Ferris?

- Já a conhecia antes disso. Somos amigas, há muito tempo. Foi através dela que arranjei o meu emprego na "Lamont Company". Madge tinha aí um bom contacto e bastou-lhe um telefonema para abrir-me as portas, passando à frente de várias outras pretendentes.

- Estou a ver. Trate de desempregar-se, o mais depressa possível. Em seguida, telefone a Madge Elwood e comunique-lhe que deixou a Companhia e que precisa de falar-lhe urgentemente. Vá ter com ela a Santa Mónica e deixe-se ficar por lá, pelo menos, esta noite.

- E que lhe digo?

- Que foi despedida por causa de Loring Lamont, que tentou forçá-la a manter relações sexuais com ele, pelo que você lhe deu com os pés. Não entre em pormenores. Desculpe-se com o seu nervosismo. Diga-lhe que não quer falar mais no assunto.

- Ela já sabe o que se passou com Loring Lamont -elucidou Arlene. - Como obtive o emprego, por intermédio de Madge, achei-me na obrigação de explicar-lhe o que se passou com o "filho do patrão". Ontem à noite, mal cheguei a casa, liguei para ela e perguntei-lhe por que motivo não me avisara que havia lobos femeeiros na Companhia.

- Que lhe respondeu ela?

- Evidentemente, ficou um tanto ou quanto confusa. Disse que, em todas as grandes empresas, há sempre "casanovas" dispostos a tentarem a sorte com as empregadas subalternas. Isso acontece constante-mente e os resultados dessas tentativas apenas dependem de nós... Confessou que também lhe acontecera ter passado por uma situação semelhante... mas não quis dizer-me com quem.

- Descreveu-lhe os pormenores do que se passou com Loring?

- Falei-lhe, por alto, na luta que travámos; que ele ficou furioso comigo e que acabei por fugir no seu próprio carro, tendo-o estacionado, depois disso, em frente da casa onde mora... e mesmo diante de uma boca de incêndio, para que a Polícia o multasse. Madge fartou-se de rir, mas desligou, porque tinha de fazer um telefonema urgente.

Mason ficou pensativo. Depois, indicou:

- Vá para casa da sua amiga Madge Elwood. Deixe o número do telefone dela a Miss Street. Quando Madge Elwood lhe falar do assassínio de Loring Lamont, peça-lhe para guardar segredo acerca de tudo quanto lhe contou.

- Não lhe digo que já sei do assassínio de Loring?

- Nem uma palavra a esse respeito, seja a quem for.

- E se Madge perguntar, directamente?

- Não o fará. Tem confiança nela?

- Absoluta. É uma amiga leal, maravilhosa.

- Ainda bem. Ponha-se a caminho.

- Mas... preciso da minha chave, para ir buscar algumas coisas.

- Você não torna a pôr os pés, tão cedo, no seu apartamento.

- Nem a roupa interior?

- Ande sem ela... ou peça algumas peças emprestadas à sua amiga. Em último caso, compre o que lhe faz mais falta.

- Faz sempre falta... Nunca se sabe...

 

Faltavam vinte minutos para as seis quando Drake bateu à porta particular do gabinete de Mason, com as pancadinhas convencionais.

Della Street abriu-lha e ele saudou:

- Olá, gentes! Sabes a última novidade, Perry, acerca da morte de Loring Lamont?

- Desfecha, Paul.

- Antes de desfiar o meu rosário, quero explicar, bem claramente, Perry, que nada sei do que tu sabes, nem quero saber... para evitar responsabilidades. Vou limitar-me a transmitir-te as informações que obtive.

- Dispara.

- Essa empresa "Lamont" executa vários trabalhos de engenharia para o Estado. Elabora e realiza projectos confidenciais, pelo que tem o edifício guardado por elementos de segurança especiais. Por exemplo, o próprio parque de estacionamento tem um cubículo, com um vigilante, para ver quem sai e quem entra. Quando um carro sai, olha sempre para o condutor e assenta o facto num livro de registos, anotando a hora.

"Lembra-se de que, ontem à noite, às seis e um quarto, Loring Lamont saiu do parque, com uma jovem. Forneceu à Polícia a sinalética da passageira. Conquanto não tivesse podido entrar em pormenores, os sinais descritos correspondem a uma beldade morena, de cabelos escuros, na casa dos vinte.

"A Polícia baseia-se na teoria de que Loring Lamont combinara um encontro com essa moça, numa casa que o velho Jarvis Lamont mantém na colina que limita a cidade, destinada a reuniões confidenciais com outros administradores. O filho teria levado para lá a "pêssega", tomaram umas bebidas e comeram ovos estrelados, com bacon. Depois do papo cheio, o casalinho discutiu azedamente e a beldade cravou-lhe uma faca de trinchar nas costas.

"Como é natural, a Polícia ainda não deixou esta história transpirar cá para fora e eu só a soube pelo informador que tenho lá dentro. O Departamento de Homicídios está ansioso por descobrir essa rapariga, a fim de sujeitá-la a um interrogatório, com todos os "condimentos".

"Por outro lado, corre o rumor de que esse Loring era useiro e vezeiro em atirar-se às empregadas da empresa e a quantas outras lhe passassem perto. Não conseguia reprimir os seus impulsos de levantar-lhes as saias e, segundo parece, nunca encontrou grande resistência ao seu método de "atracão". Há mulheres que apreciam essa maneira de um garanhão se manifestar. Bem, há gostos para tudo."

Mason sorriu e olhou para Della Street que abanou a cabeça, discordantemente. Drake prosseguiu:

- Não pretendo fazer sugestões. Contento-me com reproduzir textualmente as informações do meu elemento, infiltrado nos "Homicídios". A Polícia pensa que, como Loring Lamont foi visto sair, com a tal moça, do edifício da Companhia, ela seja uma das empregadas que aí tenha trabalhado até mais tarde do que o seu horário de saída, às cinco horas. Eram cinco e quarenta e cinco, quando o carro de Loring passou pelo cubículo do vigilante do parque.

"Se essa moça é a tua actual cliente, talvez não fosse disparate, Perry, começares a pensar num caso de legítima defesa..."

- Como queres, Paul, que eu invoque legítima defesa, se Loring foi assassinado pelas costas, com uma faca de trinchar?

- Bem... podia ter acontecido que o tipo se tivesse virado de costas, para escapar-lhe, quando o golpe já estava lançado, com a faca no ar...

- Obrigado pela sugestão. Põe os teus homens a trabalhar no caso. Onde fica essa tal propriedade da "casa das reuniões"?

Drake extraiu uma carta topográfica, numa escala que apresentava a zona muito ampliada. Confiou-a a Mason e avisou:

- A Polícia tem o local vigiado e o teu amigo tenente Tragg, dos Homicídios, está encarregado da investigação. Se te apanha por lá, a meteres o nariz, faz-te a vida negra. Jarvis Lamont tem andado a utilizar toda a sua influência...

- Okay, Tragg - cortou Mason. - Descobre tudo quanto puderes. Eu e Della vamos jantar, que já são horas. Vou ver se um bife com batatas fritas me ajuda a raciocinar.

Virando-se para Della, inquiriu:

- Tomou nota do número da amiga da nossa cliente, em Santa Mónica?

- Sim, Chefe.

- Faça o favor de ligar para lá.

- Pergunto por Arlene Ferris?

- Não, Della. Pergunte por Madge Elwood.

Segundos depois, o advogado empunhava o auscultador:

- Miss Elwood?... Daqui, Perry Mason. Já falou com a sua amiga Arlene Ferris?

- Oh, sim!... Estou entusiasmada, sabe? Sou uma das suas admiradoras, Mr. Mason. O senhor é "bestial"!

- Devo interpretar isso como um elogio ou um insulto?

- Oh, Mr. Mason! Certamente que não é um insulto!

- Arlene está aí?

- Sim. Quer falar com ela?

- Agora não. Gostaria que você, Miss Elwood, me fizesse um favor.

- Sim. Que favor?

- Antes de mais, diga-me se Arlene está a ouvi-la, neste momento.

- Não está a ouvir-me. Lembrou-se de tomar banho.

- Óptimo. Contudo, como pode sair da banheira, de um momento para o outro, limite-se a dar respostas impessoais. Não quero que ela saiba quem está a falar consigo. O que desejo que me faça, Miss Elwood, é no interesse da sua amiga, mas é possível que ela não aprove o que vou fazer. Está disposta a ajudar-me?

- Certamente.

- Tem carro?

- Sim.

- Sabe onde fica o apartamento de Arlene Ferris?

- Perfeitamente.

- Nesse caso, invente um pretexto qualquer... Diga-lhe que recebeu um convite de um amigo a marcar-lhe um encontro e que tem de sair. Peça a Arlene que se mantenha aí, em casa, até você regressar.

- Que mais?

- Quando chegar ao edifício de apartamentos de Arlene, pare à porta e acenda um cigarro. Isso permitir-me-á reconhecê-la. Depois, eu aproximo-me de si e faço-lhe um1 sinal. Seguirei em frente e, instantes depois, você irá meter-se no seu carro. Arranque, lentamente, dê uma volta ao quarteirão e regresse a Santa Monica. Compreendeu tudo quanto lhe pedi?

- Certamente. Daqui a quanto tempo nos encontramos à porta do apartamento de Arlene?

- Estarei lá, dentro de vinte e cinco minutos. Não se esqueça de que não deve olhar para o prédio de Arlene. Parou apenas para acender o cigarro.

- Pode estar descansado.

Mason, depois de desligar, pediu a Della Street:

- Fique de guardiã ao telefone, minha amiga. Vou levar a minha máquina fotográfica miniatura e o flash. Entretanto telefone para o nosso fotógrafo e diga-lhe para estar a postos, no estúdio, para um serviço urgente.

Mason arrumou o carro a dois quarteirões do prédio de apartamentos de Arlene Ferris e caminhou até lá, naturalmente. Parou a olhar para uma montra, num edifício fronteiro; entreteve-se a ver outra, até que avistou uma jovem, a pé, percorrer o passeio oposto. Ela parou o tempo suficiente para acender um cigarro e seguiu em frente, depois de ter visto o sinal de Mason.

Então este, atravessou a rua e dirigiu-se-lhe calmamente:

- É Miss Madge Elwood?... Sou Perry Mason.

- Bem sei. Reconheci-o logo.

- Mudei de ideias. Vamos subir - decidiu.

- Ao apartamento de Arlene?

- Sim, se quer, realmente, ajudá-la.

- Está visto que quero... Mas tem de dizer-me o que se passa. Quando vinha para aqui, abri o rádio do carro e ouvi o locutor do noticiário informar que Loring Lamont, filho do patrão de Arlene, foi assassinado, ontem à noite. Fiquei apoquentadíssima, pois Arlene contou-me que tinha lutado com Loring, quando ele quis... bem, aquilo que se calcula... Acha que há qualquer relação entre Arlene e o que sucedeu?

- Quer ou não ajudar a sua amiga, Madge?

- Quero, sim.

- Então, toca a subir comigo, ao apartamento de Arlene.

- Não respondeu à minha pergunta, Mr. Mason!

- Eis uma interessante observação da sua parte, Madge, e deveras pertinente. Realmente, não respondi. Vamos lá.

Entraram no prédio e subiram até ao quarto piso. Aí, entregando-lhe a chave da sua cliente, Mason indicou:

- Abra a porta do apartamento de Arlene, com toda a naturalidade, e entre à minha frente. Não sei se estará alguém lá dentro, à espera dela.

- Polícia?

- Hum, hum. Vá, avance e abra a porta, como se estivesse em sua casa.

Madge obedeceu, entrou no apartamento e acendeu a luz. Mason entrou quase colado a ela. Passou revista aos quartos e verificou que se achavam vazios. Então, inquiriu:

- É realmente amiga de Arlene?

- Certamente. Já nos conhecemos há sete anos e sempre nos dedicámos a maior amizade. Viemos juntas do Leste. É uma moça encantadora e farei tudo quanto for possível para ajudá-la.

- Ainda bem. É muito parecida com ela, não é verdade?

- Ah! Também o notou? Muita gente pensa que somos irmãs. Penteamo-nos da mesma maneira e, quando uma muda de penteado... ela imita-me. Às vezes, até trocamos de vestidos. Dessa maneira, nos nossos empregos, ficam com a impressão de que cada uma de nós têm o dobro do guarda-roupa que, na realidade, possui. Muitas raparigas fazem o mesmo, quando vivem juntas. Contudo, nós, morando separadas, utilizamos o mesmo expediente, pois temos, precisamente, a mesma estatura e, praticamente, as mesmas linhas de corpo.

Mason olhou para Madge, atentamente, medindo-a dos pés à cabeça, observando-lhe os seios, as ancas e as pernas.

- Francamente, Mr. Mason! - protestou Madge.- Não me diga que está a sentir tentações como as que Loring sentiu por Arlene.

- Agora não tenho tempo para dar-me a esse luxo - replicou Mason, secamente. - Estou a pensar numa coisa bem diferente e muito menos agradável. Onde é que Arlene guarda as roupas dela?

- No armário, no quarto de cama.

- Muito bem, Madge. Dispa-se...

- Que ideia é a sua?

- ... e vista qualquer coisa de Arlene - indicou Mason, rematando a frase.

- Ah! Pensei que também quisesse ver-me despida!

- Não é essa a minha intenção, num sentido concupiscente, mas é o que estou a pedir-lhe que faça, sem demora. Tire a saia e dê-ma. Preciso dela, enquanto você enfia um dos vestidos de Arlene.

Com os olhos abertos de espanto, Madge obedeceu. Mason nem sequer lhe olhou para as pernas e muito menos para as mãos com que, quase pudicamente, a jovem cobria as calcinhas de nylon.

Madge deu uma corrida para o quarto de Arlene, esquecendo-se de tapar, com as mãos, o verso do mesmo nylon.

Do quarto de cama, Madge perguntou:

- Para que precisa da minha saia?

- Você comprou-a em Santa Móniica?

- Sim.

- Tem uma marca da loja onde a comprou... Cá está... É uma casa de modas de Santa Mónica.

Aproximando-se da janela, Mason olhou para a rua e viu um carro da Polícia parar defronte do edifício de apartamentos.

- Não há tempo, Madge - gritou. - A Polícia acaba de chegar.

- Se é para ajudar Arlene, não quero deixar a obra em meio.

Apareceu na sala, em soutien e calcinhas, com uma blusa e um saia-e-casaco da amiga.

- Visto-me lá fora - decidiu a jovem, corajosamente. - A Polícia há-de subir no elevador. Poderei vestir-me no patamar das escadas.

- Grande ideia, Madge! - apoiou Mason. Apagaram a luz do apartamento e saíram para o corredor. Ninguém se achava aí, a essa hora. Dirigiram-se apressadamente para as escadas, quando o elevador já subia. Ouviram-no parar no quarto andar, mas já estavam entre esse patamar e o do terceiro piso. Do elevador, era impossível ver-se o que se passava nesse lanço de escadas que tinha um patamar intermédio, nas traseiras da caixa do ascensor.

Madge vestiu-se rapidamente. Então, com um canivete, Mason cortou um pedacinho da saia de Arlene que Madge já envergara.

- Que está a fazer? - admirou-se a jovem.

- A preparar uma isca - respondeu Mason. - Agora, vamos descer até ao primeiro andar e sentamo-nos no último degrau das escadas.

- Para quê?

- Para o caso de algum polícia se lembrar de vir por aqui, para impedir uma hipotética fuga da sua amiga.

Mal lá chegaram, sentaram-se e Mason tirou seis cigarros da cigarreira. Partiu-os ao meio, meteu as metades, sem ponta de cortiça, na algibeira do casaco e acendeu as que a tinham, uma atrás da outra. Após breves fumaças, atirava-as para o chão, esmagando-as com a sola do sapato.

- Que está a fazer? - espantou-se Madge.

- Um cenário. Se alguém se aproximar, vai encontrar-nos a falar em voz baixa. Eu vou dizer-lhe que o meu divórcio não será ultimado, antes de três meses, e você responder-me-á que, se eu não estou em condições de casar consigo, o melhor será acabarmos tudo, desde já. Estas pontas de cigarro, extintas, indicarão que a nossa conversa já dura há bastante tempo e que não se trata de um improviso de momento.

- Por que faz tudo isso?

- Porque estou convencido de que as provas que a Polícia possa reunir, neste caso, são susceptíveis de melhor servirem a injustiça do que a Justiça. Por outro lado, estou convencido de que os polícias vão arranjar testemunhas que façam as identificações que eles pretendem e não as que elas realmente viram.

- Mas, como advogado, não pode desmenti-las, no tribunal ?

- Nem sempre é fácil levá-las a voltar com a palavra atrás. A maioria das testemunhas é teimosa, no que respeita a salvaguardar o seu amor próprio.

- Nesse caso, que tenciona fazer?

- Usar as mesmas armas que a Polícia utiliza, nessas identificações.

- Quer dizer que tenciona "baralhar as cartas"?

- Não é isso que se faz, em todos os jogos, para que não haja possibilidade de batota?

Olhando em volta, Madge comentou:

- Realmente, parece que estivemos aqui, há um bom pedaço!

- Quando um homem casado não consegue divorciar-se rapidamente e a sua pretendida é impaciente, torna-se imperativo "conversá-la" bem. É o que estamos a fazer, não é verdade?

Madge riu-se baixinho e observou:

- Esqueceu-se de uma coisa, senhor Advogado.

- Que coisa? -O braço.

- Que braço?

- O que devia estar a envolver-me os ombros. Não seria mais natural apanharem-nos nessa atitude?

- Sim, mas parece que a Polícia negligenciou a possibilidade de Arlene ter-se escapado, a pé, por esta escada, em vez de descer pelo elevador. Vamos tentar sair, sem dar nas vistas, logo que a Polícia tenha ter-miinado a sua busca no apartamento de Arlene.

- E quando será isso?

- Não sei. Para já, só sei que preciso de tirar-lhe algumas fotografias.

Depois de Mason tê-la fotografado, voltaram a sentar-se e Madge sugeriu:

- Não acha melhor passar o seu braço pelos meus ombros... para não sermos surpreendidos numa posição de mútuo desinteresse? Se quiser, até arranjo umas lágrimas.

- Não são precisas.

Mas a jovem já puxara o braço de Mason para trás do seu pescoço; agarrou-lhe na mão e arrastou-lha para um dos seus seios.

- Não estamos, assim, muito melhor? Fale-me da sua vida profissional - propôs, encostando a cabeça ao peito de Mason. - Tenho acompanhado, pelos jornais, todas as suas aventuras detectivescas, a par dos estrondosos debates forenses... Não é verdade que algumas das suas clientes se apaixonam por si?

- Que eu saiba, nunca qualquer delas se apaixonou.

- E, além dessas aventuras detectivescas, não costuma ter outras... secretas e muito mais íntimas?... Ou estarei a ser indiscreta?

- Está sim, Madge, e o pior é que me impede de pensar.

- Em quê?

- No que terei de fazer, para provar a inocência da sua amiga e minha cliente.

Ouviram o ascensor subir e descer várias vezes, parando, algumas delas, no terceiro piso.

Mantiveram-se a conversar até que Mason se ergueu, ajudando Madge a levantar-se. Esta, endireitou a saia e sondou:

- E agora?

- Já passou meia hora. Você vai apanhar o elevador, no corredor, e descer ao átrio, como sendo uma hóspeda do prédio. Não corra. Saia calmamente do edifício. Se vir um carro da Polícia, parado à porta, siga para diante, sem ligar-lhe a menor importância. Nesse caso, não volte para trás. Contudo, se não vir carro algum, simule ter-se esquecido de qualquer coisa, regresse a este prédio, suba ao segundo andar e desça as escadas, para vir avisar-me.

- Se o carro da Polícia estiver lá, vou-me embora?

- Exactamente.

- Para onde?

- Para Santa Mónica.

- Quando posso tornar a vê-lo?

- Talvez amanhã, se conseguir arranjar uma folga no seu emprego. Em caso afirmativo, espere em casa que eu lhe telefone.

- Nesse caso, até amanhã. Cá vou eu. Afastou-se, dengosamente, e sorriu para Mason, por cima do ombro, para ver se ele estava a apreciar o que ela desejava que ele apreciasse.

Não voltou. Ao cabo de vinte minutos, Mason resolveu arriscar-se a sair. O carro da Polícia já não estava à porta. Dirigiu-se ao lugar onde tinha estacionado o seu automóvel e, pouco depois, rodava para o edifício do seu escritório.

 

Quando Mason entrou no seu gabinete, pela porta de acesso directo ao corredor, notou que Della Street tinha ligado a máquina eléctrica de fazer café.

- Cheira bem - apreciou Mason. - Vamos deliciar-nos com uma boa chávena?

- Estive a fazer café, em sua intenção, Chefe.

- Como sabia que eu estava a chegar?

- Bem, não sabia, mas esperava que não tivesse motivos especiais para demorar-se muito, com Madge Elwood, no quarto de Arlene Ferris. Se não viesse a tempo, tomaria o café, sozinha... à sua saúde. A incursão correu bem?

- Sim e não. A Polícia anda na pista da nossa cliente e ia-me surpreendendo lá dentro. Tive de aguardar, nas escadas, que os "chuis" abandonassem aquelas paragens. Por isso... e só por esse motivo... me demorei mais do que contava. Miss Elwood partiu vinte minutos antes de mim, depois de uma espera forçada, sentados no último degrau de um lanço de escadas.

- Bastante incómodo, não foi, Chefe?... Que é isso? Mason tirara o pedacinho de tecido cortado à saia de Arlene que Madge tinha vestido.

- Recuso-me a responder, para não me incriminar. Apetece-lhe ir comer qualquer coisa?

- Estou morta de fome.

- Muito bem. Vamos lançar-nos, durante cerca de uma hora, numa expedição activa e, depois, iremos jantar.

- Não podemos começar pelo fim desse programa? Mason abanou a cabeça.

- É urgente, Della. Teve notícias de Paul?

- Nenhumas.

- Faça o favor de ligar para ele. Se não houver novidades, diga-lhe que lhe telefonarei mais tarde.

Depois de Della ter transmitido o recado a Drake, Mason inquiriu:

- Tem outro par de sapatos, cá no escritório?

- Sim, porquê?

- Porque terá de patinhar na lama.

- Bem, tenho dois pares aqui: um de saltos rasos e outro de saltos altos. Qual prefere?

- O de saltos altos.

- Parece muito misterioso, Chefe!

- E sou-o.

- Que vamos fazer?

- Vamos rasar a periferia da ilegalidade. É um crime suprimir provas e é um crime "plantar" provas falsas. Contudo, não o é, se forem provas fictícias, sem intenção de defraudar a Lei, mas, sim, de abrir-lhe os olhos.

- Posso perguntar-lhe, Chefe, que provas fictícias vamos "plantar"?

- Perguntar, pode... - respondeu Mason, com um ar inocente. - Contudo, só lhe respondo que a nossa missão é investigar um local e tirar algumas fotografias. Se deixarmos algumas pegadas, algum rasto subsequente, isso será um facto ocasional. Não teremos culpa de que a Polícia interprete mal os vestígios que inadvertidamente deixarmos atrás de nós.

- Pois não, evidentemente.

- Para ser mais explícito, pretendo chamar a atenção da Polícia para certos rastos, legítimos, que, de outra maneira, poderiam passar-lhe desapercebidos. Tem aí a carta topográfica que Paul nos confiou?

- Sim, Chefe.

- Traga-a consigo, minha amiga, e partamos. Depois de Della ter calçado os sapatos de salto alto, apagaram a luz e saíram. Já no carro, Mason indicou:

- Vamos direitos às colinas do limite da cidade. Quero descobrir a estrada de desvio que conduz à "casa das reuniões" de Jarvis Lamont, onde Loring tentou violar a nossa cliente.

- Mas, Chefe, a Polícia ainda lá deve estar!

- Bem sei, mas não vamos examinar o local onde o cadáver foi encontrado. Basta-me rondar pelas proximidades.

Quando entraram na estrada de desvio, Mason apagou os faróis e os farolins do carro e rodou, lentamente, com o motor ronronando em surdina. Seguiram entre as vedações de arame farpado, até que o advogado decidiu:

- Paramos aqui e saímos.

Pouco depois, examinando a berma da estrada, descobriu pegadas de sapatos femininos, com saltos altos, num piso de lama já bastante seca.

- Agora, minha amiga, vou pedir-lhe que faça um pouco de ginástica acrobática. É capaz, neste sítio, de passar por baixo desse arame farpado? Eu ajudo-a.

- Não é preciso-respondeu Della, ajoelhando-se e estirando-se na berma, de maneira a passar para o lado oposto da vedação. - Então, que tal?... E agora?

- Fez um trabalho perfeito, Della! Sabe que tem umas belas pernas?

- Já mo têm dito... e o Chefe, apesar de sempre distraído com os seus empolgantes casos, também mo tem repetido, frequentes vezes. Qual é a sua ideia, ao mandar-me executar esta acrobacia? Ver-me as pernas?

- Pretendo verificar o que teria acontecido a uma jovem que se achasse nos mesmos apuros em que você está, com esse exercício de preparação militar.

A nossa cliente teve muita sorte em não ter ficado enganchada no arame. Cuidado, Della, ao sair daí. Foi nessa acção que Arlene se feriu no fundo das costas. Deixe-me ajudá-la, Della.

Deu-lhe as mãos e auxiliou-a a voltar para a berma da estrada. Depois, ajoelhou-se junto da vedação, tirou da algibeira o pedacinho de pano que cortara da saia de Arlene e cravou-o numa das farpas do arame.

- Por que faz isso, Chefe? Não está a "plantar" uma prova falsa? A Polícia vai atirar-se furiosa, contra si, quando descobrir o que esteve a fazer.

- Nada fiz de mal. Os investigadores vão passar por aqui e olhar para a vedação, indiferentemente. Contudo, se virem este pedaço de tecido... que não escar para aos olhos de lince de Tragg... acabam por examinar melhor as pegadas que Arlene deixou no terreno, desde a casa de Lamont, até aqui, e hão-de detectar as que ela deixou, mais abaixo, desde a berma, até ao carro de Loring em que fugiu. Sem este pedaço de tecido, a servir de isca, nunca se dariam ao trabalho de examinar o solo, tão longe da cena do crime.

- E, quando descobrirem esse rasto, que irão deduzir?

- Isso--disse Mason, encolhendo os ombros, - só

Deus o sabe. Pelo que me toca, não estive a "plantar" prova alguma. Limitei-me a efectuar um teste, para tirar as minhas próprias conclusões e verificar a veracidade da versão da minha cliente.

- Bem, já fez o seu teste... E, agora, se a Polícia nos apanha com "a boca na botija"?

- Pelas suas palavras, minha amiga, deduzo que é a fome que a faz falar. Vamos lá comer qualquer coisa.

- Aí estão umas palavras que caem, como um "maná", nos ouvidos de uma mulher esfomeada.

Momentos depois, voltaram para o carro. Mason, acendendo os faróis, rumou para o centro da cidade.

Pararam no estúdio do fotógrafo que, habitualmente, executava trabalhos de laboratório para Mason e este pediiu-lhe que revelasse e fizesse ampliações das mini-fotografias que tirara a Madge, com a saia e o casaco de Arlene.

- Tenho imensa urgência nesse trabalho - indicou.

- Vou jantar com Miss Street, mas não demorarei mais de três quartos de hora.

Quando acabaram de jantar, num restaurante próximo, Mason telefonou para a "Agência de Detectives Drake".

- Novidades, Paul?

- Poucas. A Polícia tem andado à procura de provas na casa onde o cadáver de Loring foi encontrado. Entretanto, obteve o testemunho de um guarda do parque de estacionamento da "Lamont Company" que afirma ter visto Loring sair de lá, às seis menos um quarto, acompanhado de uma beldade. Passaram, de carro, pelo cubículo desse vigilante, que se encontra à saída do referido parque.

- Mais tarde, Paul, quero falar contigo a esse respeito.

- Que vais fazer agora, Perry?

- A digestão, pois acabei de jantar. Entretanto, levarei Della a casa e, em seguida, levar-te-ei, aí, umas fotografias.

- Só estiveste a jantar... até agora?

- Como te dei a entender, estive também a tirar fotografias.

- Não sei porquê, Perry, mas "cheira-me" a que tu e Della andaram a fazer uma falcatrua qualquer. Olha que neste caso, com toda a influência de Jarvis Lamont por detrás, a Polícia anda em polvorosa...

- E faz bem. Até já.

Mason levou Della Street a casa e, depois, passou pelo estúdio do fotógrafo onde recolheu um sobrescrito com as ampliações de Madge Elwood. Então, rumou directamente para o escritório de Drake, que ficava no mesmo edifício e piso onde o advogado também tinha o seu.

- Que andas aí a congeminar, Perry? - sondou Drake.

- Estou a copiar, por cima, com papel vegetal, o procedimento da Polícia.

- Que queres dizer com isso?

- Qual é a prova de identificação pessoal considerada infalível, embora seja a mais perigosa, exactamente porque é frequentemente falível?

- O testemunho ocular. Há quem tenha memória visual para fixar rostos e há quem a não tenha.

- Perfeitamente, Paul. E qual é o procedimento da Polícia para avivar a memória das testemunhas que não fixaram bem um rosto?

- Mostram-lhes esse rosto, previamente, ou exibem-lhes fotografias que o representem, para que, no tribunal, possam reconhecê-lo.

- Exactamente. Contudo, por vezes, as fotografias ficam tão mal tiradas que se torna impossível identificar o modelo vivo... como, por exemplo, as das cartas de condução. Além disso, algumas testemunhas não tiveram tempo suficiente para fixar uma fisionomia, ou viram-na com uma luz demasiado fraca. Dias depois, torna-se impossível efectuar-se qualquer identificação. Não será assim? É então que a Polícia usa o processo de "espevitar" a memória da testemunha.

- Que tencionas fazer, Perry?

- Jogar com as cartas do mesmo baralho. Se são as que a Polícia utiliza, não podem estar viciadas.

- E como vais jogá-las?

- Disseste que a Polícia encontrou um guarda do parque de estacionamento da "Lamont Company" que viu Loring Lamont sair de lá, no seu carro, às cinco e quarenta e cinco, e que notou que uma beldade ia a seu lado. A Polícia pensa que o vigilante poderá identificar essa beldade. Pois, muito bem, eu também quero fazer esse teste, mas não me convém ir lá pessoalmente. Portanto, contrato um detective para que o faça por mim. Dessa maneira, vou entregar-te uma fotografia e pedir-te que procures esse guarda e o interrogues acerca do que viu. Mostras-lhe o retrato de uma beldade e perguntas-lhe se foi essa a que ele viu, ao lado do filho do patrão.

- Isso é baralhar as provas, Perry!

- Qual baralhar? É um teste simples, copiado pelo método da Polícia. Não vais insinuar que a Polícia baralha provas, pois não?

- Okay, Perry. Já percebi... e só espero que o guarda não tenha um agente da Polícia, à paisana, a vigiar o que faz e quem o entrevista.

- Se não consegues distinguir um "chui", quando está à paisana, Paul, o melhor que tens a fazer é arrumares a licença de detective e passares a tomar conta de crianças.

- Okay. Perry, isso pode ficar para amanhã?

- Está visto, já que o guarda de dia não é o mesmo que o da noite... mas começa o mais cedo possível.

 

Eram cerca das oito e meia da manhã quando Mason entrou no gabinete e foi encontrar Della Street e Paul Drake a lerem os jornais.

- Como te saíste nessa tua missão de identificação fotográfica, Paul? - perguntou Mason.

- Não resultou. O guarda só trabalha da parte da tarde e dorme durante a manhã. Há quatro turnos de serviço e o dele vai das doze às dezoito horas.

- Não o procuraste em casa?

- Está visto que fui lá, mas a Polícia fora buscá-lo às sete e meia. Arrancou-o da cama e levou-o, não se sabe para onde.

Mason franziu as sobrancelhas.

- Fiz o melhor que pude - continuou Drake. - Pelo sim, pelo não, postei um dos meus homens a vigiar-lhe a casa. Quando o sujeito aparecer mostramos-lhe as fotografias e interrogamo-lo a preceito... Já leste os jornais desta manhã, Perry? Falam de ti e relatam ter a Polícia descoberto uma nova prova do caso Loring Lamont.

- Ainda não os li. Qual é a prova?

Drake instalou-se à sua maneira, no maple superes-tofado, geralmente destinado aos clientes. O detective sentava-se atravessado de lado, com as curvas dos joelhos sobre um dos braços do móvel e as costas apoiadas no outro.

- A descoberta dessa prova deve-se a um trabaininho apurado do tenente Tragg...

- Que prova?-cortou Mason, impaciente.

- A parte superior de um distribuidor de corrente, de um motor de automóvel. Estava na algibeira do casaco do cadáver.

- Isso não é um trabalho apurado!

- Só isso, não; mas tu cortaste a meio a minha explicação. Tragg descobriu que, ontem, uma secretária da "Lamont Company"... Arlene Ferris... estás a ouvir, Perry?... telefonou para uma estação de serviços mecânicos e o empregado que lhe enviaram da oficina verificou que alguém retirara aquela parte do distribuidor, do automóvel da dita Arlene. Voltou à estação para buscar um novo distribuidor e consertou o motor que já funciona.

"Tragg verificou, por sua vez, que a parte do distribuidor, que se encontrou na algibeira de Loring, ajustava-se perfeitamente ao que foi removido do carro de Arlene."

- Que mais? - incitou Mason. - Como se faz referência ao meu nome?

- De uma maneira deveras peculiar. Ontem à tarde, Arlene Ferris pediu dispensa do trabalho na "Lamont". O gerente observou-lhe a irregularidade desse seu pedido, em face dos regulamentos internos, mas ela insistiu e esteve ausente do serviço, durante mais de uma hora.

"Naturalmente, a Polícia ficou interessada em saber aonde ela fora, com tanta urgência. Tendo interrogado o guarda do parque de estacionamento, foi informada de que este não se movera do mesmo lugar, desde a tarde do dia anterior.

"O passo imediato da Polícia foi verificar as deslocações de táxi, junto das diversas companhias, e descobriu que um motorista conduziu Arlene, pouco depois das seis, ao consultório de um advogado... Não interrompas, Perry. Já vais ver como.

"Depois de ter saído do carro, o motorista reparou em que a sua cliente tinha deixado, no interior do táxi, um pedaço de papel dobrado. Pensando que se tratasse de um documento importante, desdobrou-o; era uma folha de um bloco-notas da "Lamont" que tinha escritos, à pressa, o teu nome e morada. Por acaso, meteu o papel na algibeira da gabardina de trabalho... e nunca mais pensou nele. Só quando a Polícia o interrogou, lembrou-se desse pormenor e entregou... ora, a quem havia de ser?... ao tenente Tragg a referida folha de bloco-notas. Aí tens toda a história, acerca da presença do teu nome no elenco da peça."

- Portanto, Paul, a Polícia arranjou um mandado de busca e foi revistar o apartamento de Arlene?

- Que outra coisa esperavas que Tragg fizesse? Que te telefonasse para pedir autorização?

- Que mais?

- A Polícia não conseguiu encontrar Arlene, mas descobriu uma saia da moça a que faltava um pedaço de tecido, de forma triangular, irregular. Pouco depois da meia-noite, Tragg lembrou-se de examinar o arame farpado que limita as bermas da estrada de desvio, de acesso à "casa das reuniões" de Jarvis Lamont... e companhia. Então, como que por milagre, desencantou o pedaço de tecido que faltava à saia, numa farpa daquele arame da vedação.

- E depois?

- Depois, Tragg examinou a berma desse lado da estrada e detectou uma série de pegadas de uma mulher de saltos altos, estacando a dada altura, rastejando sob o arame farpado, para o lado do bosque, perdendo o farrapo de tecido, tornando a rastejar para a estrada e correndo em sentido contrário, na berma, até que a abandonou, certamente para correr pelo pavimento central que não registou pegadas.

- E depois? - repetiu Mason, monocordicamente.

- Numa nova busca, no apartamento de Arlene, desta vez ao cesto da roupa suja, Tragg deparou com um saia-e-casaco enlameado, uma blusa e meias, no mesmo estado deplorável... Como vês, Perry, tratou-se de um "trabalhinho apurado". Desta maneira a Polícia concluiu que fora Miss Arlene Ferris quem andara a transitar, à chuva, por baixo daquela vedação de arame farpado.

- Isso é crime?

- Assassínio é crime - replicou Drake, secamente.

- E a Polícia tirou outras conclusões?

- Indubitavelmente, mas, por deferência para com Jarvis Lamont que é um sujeito importante, rico, influente, com amigos poderosos na política do Estado, a história ainda não transpirou para os jornais. Os polícias estão interessadíssimos em saber por que motivo Arlene não regressou ao seu apartamento e puseram um homem, de guarda ao edifício, para a caçarem, mal lhe ponham a vista em cima... E ainda há mais...

- Quê?

- A Polícia descobriu uma testemunha ocular que viu uma jovem estacionar o carro de Loring Lamont, rente a uma boca de incêndio. Ora, a descrição sina-lética dessa jovem coincide com a de Arlene Ferris.

- Quem é essa testemunha?

- Um homem chamado Jerome Henley que vive no mesmo prédio de apartamentos onde Loring Lamont residia. É um tipo, todo senhor do seu nariz, dono de uma loja de instrumentos de música, discos, cassettes, gira-discos, aparelhos de rádio e de televisão, todo o género de aparelhagem sonora, et cetera. Como vês, Perry, o cerco está a fechar-se, como uma tenaz, em torno dessa Arlene. E ainda há mais novidades...

- Desfecha. Sabes a que horas o vizinho de Loring Lamont viu a jovem sair do carro?

- Bem, o sujeito não está certo da hora. Por acaso, o seu relógio de pulso encontra-se em reparação num relojoeiro. Calcula que o carro estacionou junto à boca de incêndio, entre as dez e as dez e meia. Tencionava deitar-se, depois do jantar, e assomou à janela, para ver se a chuva abrandara. Estava cheio de sono, apesar de ter tomado uma chávena de café. Depois de ter assistido à cena do automóvel, que lhe pareceu inusitada, meteu-se na cama, pois não lhe interessa a vida particular dos vizinhos e das suas amigas de ocasião, sóbrias ou bêbedas, que não respeitam as leis de estacionamento.

- Onde se situa a loja desse vendedor de pífaros?

- No 1311 da Broadside Avenue.

- Muito bem, Paul. Certifica-te de que não és seguido. Vai falar com esse Henley e mostra-lhe a fotografia que te dei. Pergunta-lhe se foi essa a moça que ele viu sair do carro de Loring Lamont.

Com relutância, Drake emergiu do maple e resmungou:

- Como queiras, Perry, mas, se me cassarem a licença e me enfiarem na "gaiola", terás de tirar-me de lá... e de arranjar-me outra licença, pois não sei fazer outra coisa a não ser trabalhos de detective para um advogado que passa a vida a brincar... não com o fogo, mas com um vulcão.

Saiu e Mason leu os jornais e deu seguimento à correspondência que tinha sobre a secretária.

Vinte minutos mais tarde, o telefone tocou e a voz de Drake soou excitada:

- A tua ideia é capaz de resultar. Ao princípio esse Henley mostrou-se um pouco hesitante, mas, tornando a olhar para a fotografia, declarou que se tratava efectivamente da jovem que vira sair do carro de Loring, depois de estacioná-lo junto à boca de incêndio, mesmo defronte do prédio que ambos habitam... ou melhor, onde Loring, quando vivo, também morava.

- Bravo, Paul!

- E ainda há mais. O tenente Tragg postou dois "chuis", num carro sem distintivo da Polícia, a vigiarem o teu. Decerto vão seguir-te, mal arranques, para verem se os guias até onde a tua cliente está escondida.

- Tens a certeza?

- Absoluta. Devem estar em contacto com Tragg, por rádio.

- Okay, Paul. Provavelmente, também puseram o meu telefone debaixo de escuta.

Desligou e virou-se para Della Street.

- Por favor, Della, vá a uma cabina ligar para Madge Elwood, em Santa Mónica. Eu recomendei-lhe que arranjasse um dia de folga e que estivesse a postos, para receber uma chamada minha. Diga-lhe para vir aqui buscar-me. Estarei lá em baixo, no parque de estacionamento, não muito longe do meu carro.

"Outra coisa, Della. Não utilize os telefones do escritório, para tratar de assuntos relativos a este caso. Diga a Madge Elwood que se arranje de maneira a estar no parque, precisamente, às cinco e quarenta e cinco. Deve arrumar o carro dela, onde puder, no parque, e procure não dar nas vistas, quando o empregado lhe entregar o talão de estacionamento.

"Explique-lhe que, entretanto, eu entrarei no meu carro, deixando a porta aberta. Madge deve passar por entre os outros automóveis estacionados e entrar no meu, sem hesitação."

- E depois?

- Depois, tudo depende do que o tenente Tragg decidir. Ou nos cai em cima, antes de tentar averiguar para onde tencionávamos ir, ou prefere dar-me mais corda para eu enforcar-me, seguindo-me para onde quer que eu vá.

- Ao certo, Chefe, para onde vai?

- Às compras - respondeu Mason, sorrindo. - Sincronize o seu relógio com o meu e com o de Madge. Este plano tem de ser executado com a precisão de segundos.

- Dou-lhe algum recado a respeito do que Arlene Ferris deverá fazer?

- Diga-lhe para convencer Arlene a manter-se queda e muda... o que não será por muito tempo.

- Portanto, às seis menos um quarto, em ponto, no parque de estacionamento fronteiro a este edifício?

- Exactamente.

Acertaram os relógios, após o que Della Street observou:

- Com o trânsito, Madge pode atrasar-se alguns segundos...

- Que tente o impossível para estar a essa hora exacta. É realmente importante que o consiga.

Com um sinal de aquiescência, Della Street saiu do gabinete.

 

Às dez e trinta e nove, em ponto, Mason saiu do escritório e desceu no elevador até ao parque de estacionamento. Entrou no carro, pôs o motor a trabalhar e tornou a sair, colocando-se a alguns metros, entre outros automóveis ali arrumados. Passavam exactamente dez segundos das dez e quarenta e cinco, quando Madge Elwood veio estacionar o seu carro, não muito afastado do lugar onde viu o advogado. Este voltou para o automóvel e abriu a porta. Logo ela se lhe acercou e entrou.

Quando penetraram no tráfego, Mason inquiriu:

- Teve algumas dificuldades?

- Nenhumas... a não ser sentir-me nervosa, com receio de não chegar à hora combinada.

- Foi seguida?

- Não dei por isso. Por que iriam seguir-me?

- Não leu o jornal?

- Não tive ocasião de comprá-lo, pois, mal saí de casa, enfiei logo, directamente, no carro.

- Melhor assim.

Mason conduziu o automóvel de maneira a passar o sinal verde do semáforo, quando caía o amarelo. Depois, deu uma volta a uma pequena rotunda e rumou em sentido inverso.

- Está com receio de ser seguido? - sondou Madge. - Por que não dá uma volta em 8?

- Quero evitar que me sigam, mas não desejo que se apercebam de que tenho essa intenção.

Pouco depois, parava perto do bloco de edifícios 1200 e programou:

- Vamos fazer o resto do caminho a pé... Você, Madge, gosta de música? Não estará interessada numa aparelhagem qualquer de alta-fidelidade?

- Tenho um aparelho estereofónico de reprodução de cassettes, mas, por agora, não estou interessada em qualquer outra aparelhagem.

- Vai fingir que se interessa por isso-recomendou o advogado.

Instantes depois, entravam numa loja de instrumentos musicais e Mason disse, tranquilamente:

- Gostava de ver uma aparelhagem de alta-fidelidade.

- Temos várias marcas...

- Esta loja pertence a Mr. Henley, não é verdade?

- cortou Mason.

- Sim. Está no gabinete, ali atrás.

- Gostaria de falar com ele.

- Mas eu sou o encarregado de vendas.

- Não duvido, mas gostaria de perguntar a Mr. Henley se não conhece Mr. Jim Billings. Foi ele quem me aconselhou esta casa.

Quando o dono da loja se acercou de Mason e de Madge Elwood, o advogado perguntou:

- Vendeu um excelente equipamento de alta-fidelidade ao meu amigo Jim... Billings, não é verdade?

- Um momento - disse uma voz atrás de Mason.

- Também estou interessado nessa conversa.

Mason virou-se e deu de caras com o tenente Tragg.

- Que faz por aqui, Tenente? - indagou o advogado, mostrando-se admirado.

- Andava pelas redondezas. Por acaso, até estive a falar, esta manhã, com Mr. Jerome Henley. Como o mundo é pequeno, não é verdade, Mason?

Voltando-se para o dono da loja, inquiriu:

- Conhece este homem, Henley? Este abanou a cabeça.

- Muito bem-elucidou Tragg.- Para sua informação, está perante o famoso advogado Perry Mason que se especializou em ludibriar as testemunhas de um processo, quando acusadas de homicídio... Quanto a esta jovem, ainda não sei quem ela é. Porventura conhece-a, Mr. Henley?

- Não tenho esse gosto.

- Pois é muito possível que o senhor receba uma contrafé para comparecer no tribunal, a fim de identificar esta donzela que Mr. Mason teve o cuidado de trazer aqui. Pode jurar que a viu sair do carro de Loring Lamont, na noite em que o assassinaram?

Henley mostrou-se confuso e Mason interveio:

- Não permita, Mr. Henley, que o tenente Tragg o confunda, impedindo que identifique esta senhora. Ela é...

- Está visto que é - interrompeu Henley. - Tenho a certeza de que é a jovem que vi estacionar o carro, junto da boca de incêndio e que, depois, saiu e atravessou a rua.

- Está absolutamente certo disso, Mr. Henley? - insistiu Tragg.

- Sem a menor dúvida. Nunca me esqueço de um belo corpo e de uma linda cara. De resto, via-a distintamente.

Virando-se para Mason, o tenente dos "Homicídios" sorriu sarcasticamente e proferiu:

- Escusa de fazer as apresentações, Mason. Já sei que estou perante Miss Arlene Ferris.

- Está enganado, Tenente. Se me permite, Miss Madge Elwood, apresento-lhe o Tenente Tragg do "Departamento de Homicídios". É secretária de uma empresa de Santa Mónica onde também vive. Trouxe-a aqui para ver um equipamento...

- Deixe-se de tretas, Mason!

Voltando-se para Henley, tornou a perguntar:

- Tem a certeza de que se trata da mesma jovem que viu sair do carro de Loring Lamont?

- Absoluta!

- Olhe bem para ela. Não poderia ter sido uma outra jovem, muito parecida?

- Bem... Àquela hora da noite... Mas iria jurar que foi esta jovem que vi sair do carro... Sim. Tenho a certeza de que é a mesma. Havia luz suficiente.

- Nesse caso - decidiu Tragg, dirigindo-se a Mason, - dispenso a sua companhia, meu caro advogado. Miss Elwood vai comigo, dar uma pequena volta.

- Tem algum mandado de captura? - inquiriu Mason.

- Nem preciso. Pretendo apenas verificar a sua identidade. Pode não ser Miss Elwood, como você disse... tanto mais que acabou de ser identificada, positivamente, como sendo Miss Ferris.

- Cuidado, Tragg - advertiu Mason. - Você está laborando num tremendo erro. Ninguém a identificou como sendo Miss Ferris, a não ser na sua conturbada imaginação. Apenas identificaram Miss Elwood, como tendo saído do carro de Loring Lamont.

- Cantigas, Mason. Mesmo sendo Madge Elwood, como você insiste, levo-a comigo, só para ver em que param as modas.

Fingindo-se contrariado, Mason deixou cair os braços, num gesto de desalento, e Tragg saiu com a jovem, metendo-a, em seguida, num carro da Polícia, sem distintivo.

Mason correu para a viatura e gritou a Tragg:

- Não tem o direito de fazer isso, Tenente!

Este virou-se para trás e falou para um homem que se achava sentado a um canto do banco traseiro.

- Sim, ou não?

- Sim! - respondeu o homem. - Parece-me ser a mesma.

- Pode ir-se embora...

- É tudo. Adeus Mr. Mason.

O homem saiu do carro e começou a andar ao longo do passeio.

Quando Tragg se afastou com Madge, o advogado apressou o passo e alcançou o sujeito que estivera no carro da Polícia.

- Preciso de falar consigo - disse, ao alcançá-lo.

- Comigo?

- Exactamente.

- Acerca de quê?... Já disse ao tenente tudo quanto tinha a dizer.

- Que lhe disse?

- Que um homem me mostrou uma fotografia e perguntou se, por ela, eu poderia identificar a garota que vi sair do parque de estacionamento da "Lamont Company", no carro do filho do patrão.

- Que lhe respondeu?

- Disse a esse homem que, efectivamente, me parecia ser ela. E agora, quando o tenente me pediu que o confirmasse, não tive outro remédio senão responder-lhe a verdade. Aquela jovem que ele meteu, a seu lado, no banco da frente, parece-se extraordinária" mente com a moça que eu vi, de relance, quando o automóvel de Mr. Loring Lamont passou por mim. Evidentemente, não posso jurá-lo, mas estou convencido de que se trata da mesma "lasca".

- Obrigado, Mr... Como disse que se chamava?

- Não disse... mas sou Tom Grimes.

- Obrigado, Mr. Grimes. Não tornarei a maçá-lo... na rua.

 

Quando Mason entrou no seu gabinete, encontrou Paul Drake à sua espera, no grande maple dos clientes.

- A Polícia caçou Arlene Ferris - anunciou este ao ver o advogado.

- Onde a descobriram?

- Em Santa Mónica, no apartamento de uma amiga.

- Como conseguiram dar com ela?

- Investigaram a identidade de todas as empregadas que a conheciam na "Lamont" e uma delas falou dessa que mora em Santa Mónica.

Virando-se para Della Street, Mason indicou:

- Por favor, Della, ligue-me para Hamilton Burger. Quando entrou em ligação com o procurador do

Distrito, Mason declarou:

- Burger?... Acabo de ser informado de que a Polícia prendeu a minha cliente Arlene Ferris. Se você pretende interrogá-la, quero estar presente a esse interrogatório, de acordo com a Lei.

- Está enganado, Mason. Quem está a interrogá-la, neste momento, é a Polícia.

- A que pretexto?

- Consideram-na suspeita de ter assassinado Loring Lamont.

- Nesse caso, terei de apresentar um habeas corpus. Ou prendem a minha cliente, sob essa acusação, ou terão de pô-la, já, em liberdade; não podem interrogá-la, sem ser na minha presença e sem um mandado de captura. Tem de haver um fundamento...

- Muito bem, Mason - interrompeu Burger. - Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: quando a sua cliente soube que Loring Lamont foi assassinado, por que motivo não veio comunicar à Polícia, imediatamente, que estivera com ele na noite do crime?

- E quando soube ela que Loring foi assassinado?

- Não me responda a uma pergunta, com outra pergunta. Para ser-lhe franco, Mason, estou convencido de que foi ela a autora do crime. Quer mais?

- Hei-de querer muito mais, porque essa acusação não tem o menor fundamento.

- Isso é o que veremos. Okay, fabrique lá o seu habeas corpus, mas uma coisa é certa: quando aparecer por cá, com ele, já a Polícia a virou do avesso com uma data de perguntas que a obrigarão a comprometer-se. Boa tarde, Mason.

Depois de pousar o auscultador, o advogado perguntou a Drake:

- Sabes mais alguma coisa, Paul?

- Soube que Loring Lamont levou Arlene para a "casa das reuniões". Ela fez biscoitos, do género de pão, e ele preparou ovos com bacon. Pelo menos, foi isso que a Polícia deduziu das impressões digitais detectadas na cozinha e no bar da sala. Depois, ambos comeram até que se zangaram. Nessa altura, Arlene teria ido buscar uma faca de trinchar e matou-o pelas costas.

- A Polícia tem a certeza de que ambos comeram os ovos com bacon?

- Está convencida disso.

Mason franziu o sobrolho.

- Sabes, Paul, se a "casa das reuniões" tem algum guarda?

- Sim... e também uma empregada de limpeza que mora a cinco quilómetros do local.

- Como se chama essa mulher?

- Sadie Richmond.

- Que mais informações obtiveste?

- A propriedade está completamente cercada por uma vedação encimada por arame farpado que impede a entrada, seja a quem for, a menos que utilize o portão. Contudo, este está sempre fechado, com o pretexto de que existe uma piscina muito funda e pretende-se evitar que alguém caia lá dentro e se afogue.

- Portanto, só é possível entrar-se na propriedade, passando por esse portão, não é assim?

- Exactamente.

- Isso significa que não existe qualquer entrada pelas traseiras?

- Nenhuma.

- Que mais sabes acerca dessa Sadie Richmond?

- Vai à "casa das reuniões", todos os dias, entre as dez horas da manhã e o meio-dia, para limpar o local e lavar a loiça que alguém, ocasionalmente, tenha utilizado.

- E o tal guarda?

- Bem, não é um guarda propriamente dito, pois nunca lá está à noite. Durante o dia, mantém a piscina limpa e trata do jardim. A piscina tem um termostato, para, no tempo frio, manter a água a uma temperatura agradável.

- Há quanto tempo prenderam Miss Ferris?

- Levaram-na há cerca de uma hora.

- Muito bem, Paul. Vamos dar uma vista de olhos pela cena do crime.

- Não conseguiremos entrar lá dentro, Perry.

- Queres apostar?

- É uma loucura, Perry. Vamos arranjar um sarilho com a Polícia.

- Os investigadores ainda não saíram de lá?

- Sim e autorizaram os repórteres a tirar fotografias, mas deixaram tudo fechado.

- Essa Sadie Richmond pode abrir-nos as portas. Sabes onde mora?

Drake fez um sinal afirmativo.

- Della - chamou Mason. - Gostava que viesse connosco. Uns olhos femininos podem ver coisas que escapam aos de um homem.

- De que estás à procura? - sondou Drake.

- Não sei. Se o soubesse, não precisava de lá ir.

Percorreram a estrada do desvio, entre as vedações de arame farpado e, passada a "casa das reuniões", avançaram mais uma légua, até encontrarem um caminho de terra batida, para o lado esquerdo.

Viram um bangalô e Mason parou o carro.

- Só Sadie Richmond tem as chaves da casa?

- O homem que lá trabalha de dia, também as tem.

- Como se chama?

- Otto Keswick.

- Onde vive?

- A um quilómetro daqui, noutro caminho idêntico a este que acabámos de percorrer.

Apearam-se e dirigiram-se ao bangalô. Depois de Mason tocar à campainha, uma mulher veio abrir-lhes a porta. Devia ter cerca de trinta anos, era forte, sem ser gorda, e movia-se com agilidade. Não era extremamente bonita, mas tinha um corpo bem formado, com o género de carne forte e rija que agrada a muitos homens.

Mason apresentou-se e explicou:

- Estou interessado no caso Lamont.

- Quem não está? - replicou ela, com um sorriso dúbio.

- Foi hoje limpar a "casa das reuniões"?

- A Polícia não quer que, por enquanto, eu limpe seja o que for. Levaram de lá algumas coisas e ficaram de telefonar a informar-me de quando poderei fazer a limpeza... Por acaso, autorizaram-me a fazê-lo, há coisa de meia hora.

- Portanto, ainda não teve tempo de lá ir, pois não?

- Não... e não vejo qual é a pressa. Vou ter imenso trabalho, depois da busca que por lá fizeram.

- Podemos ajudá-la?

Sadie abanou a cabeça, sorrindo desdenhosamente. Mason abriu a carteira e tirou uma nota de vinte dólares. A mulher olhou para ela e o seu rosto pareceu petrificar-se, mas não proferiu palavra.

Mason juntou, à primeira, uma outra nota de vinte dólares; depois, uma terceira. Então dobrou-as ao meio e tornou a dobrá-las novamente, ficando com um pequeno volume compacto entre os dedos.

- Não tocaremos em nada-propôs Mason. Sadie abanou a cabeça, relutantemente.

- Escute - insistiu Mason. - Estou a representar uma jovem que foi injustamente acusada de assassínio. A Polícia já terminou a investigação no local do crime. Já não há provas que os investigadores não tenham levado ou detectado. Eu apenas pretendo familiarizar-me com o ambiente onde o crime foi cometido, a fim de poder defender a minha cliente, com eficiência.

"Não sei muito acerca da vida pessoal desse Loring Lamont, mas a verdade é que a minha cliente foi por ele atacada, numa tentativa de violação. Agora, arrisca-se a ser condenada por homicídio e a ir para a câmara de gás, embora seja uma vítima e não uma assassina.

"Desejo ver o local do crime e poderia obter uma ordem do tribunal nesse sentido, mas perderia tempo... e a senhora não ganharia nada com isso."

- E o senhor, Mr. Mason - retorquiu Sadie, - também pouco ganharia, depois de eu ter arrumado toda a casa, como deve ser.

Mason juntou ao pequeno maço outra nota de vinte e entregou-lhe os oitenta dólares.

- Não há lei alguma que possa prejudicar-me? - sondou a mulher.

- Não. Como lhe disse, poderei obter uma autorização oficial, mas isso far-me-ia perder dois ou três dias. De resto, a senhora pode vir comigo e assistir a tudo quanto eu fizer.

- E o senhor, Mr. Mason, não precisa de dizer a ninguém que o deixei lá entrar, pois não?

- Não tenho necessidade disso. Porquê?

- Porque Jarvis Lamont pôr-me-ia na rua e não me agradaria perder o emprego, tanto mais que vivo aqui perto... e longe da cidade...

- Sou a discrição em pessoa - assegurou Mason.

- Muito bem-acabou Sadie por anuir. - Eu vou no meu carro e o senhor vai no seu, com os seus amigos. Sigo à frente e abro o portão; depois, esqueço-me de fechá-lo, já que ninguém passa por esta estrada de desvio que é particular. Como recebi ordem para começar a limpeza, vou meter mãos à obra. Os senhores passaram por aqui, aproveitaram o facto de o portão estar aberto e entraram. Foram-me surpreender a limpar a casa... Isto para o caso de alguém aparecer e começar a fazer perguntas.

- De acordo, Miss Richmond. Vai lavar a loiça suja?

- A Polícia levou-a.

- Bem, isso simplifica-lhe o trabalho.

- Hurn, hum! Espero que a devolvam já limpa. Vou à frente e os senhores seguem-me pouco depois.

Sadie conduzia um velho modelo pelo caminho de terra batida. Ao entrar na estrada de acesso à casa, carregou no acelerador, de tal maneira que Mason teve alguma dificuldade em manter a mesma velocidade pelas curvas constantes.

- Aquela mulher - comentou Drake-guia como um diabo com fogo na cauda! Conhece a estrada como a palma da mão.

Mason não respondeu. Abrandou um pouco, pois vira Sadie entrar na propriedade e deixar o portão simplesmente encostado.

Drake mostrava-se apreensivo.

- Cuidado com essa mulher - aconselhou. - É capaz de chegar para ti, Perry. Eu não me atreveria a jogar poker com ela.

- Sim. É muito capaz de ter um saco cheio de cartas sobressalentes.

Sadie esperava-os à entrada da casa. O trio seguiu-a e Della já segurava no seu bloco-notas e num lápis.

- Costumam ter por cá muita comida? - indagou o advogado.

- O bastante para refeições frugais. Guardam as coisas no frigorífico.

- Mr. Lamont é bom cozinheiro?

- Qual deles?... Bem, um já o não é... Nenhum deles aprendeu a cozinhar como deve ser, a não ser ovos com bacon ou com salsichas de lata. O que todos por aqui sabem é sujar as caçarolas e os pratos... e cá está a Sadie para os trabalhos imundos.

- Há algum quarto de cama, na casa?

- Há um, sem colchão na cama. As "porcarias" com mulheres não passavam do divã da sala e, depois, também não se davam ao cuidado de limpar os vestígios.

- Está ali um armário - apontou Mason.- Contém roupa?

- Não. Apenas mantas, para o Inverno... a dois. Mason deslocou-se em direcção a uma escrivaninha.

- Quem usa isto? - indagou.

- É aí que guardo as contas: facturas e recibos. Mr. Loring Lamont também a utilizava, para passar cheques.

- Tem lá dentro livros de cheques?

- Tem um.

- Seu?

- Oh, não! Não uso cheques.

- Posso vê-lo?

- Sim... se tornar a deixá-lo onde o achou. Mason abriu a escrivaninha e pegou num livro de cheques.

- É do "Califórnia Second Bank" - observou. - Desta caderneta só foram utilizados cinco cheques, como se vê pelos talões.

Folheando-a, continuou o exame.

- Um foi passado, há uma semana, a uma oficina mecânica de automóveis, no valor de setenta e oito dólares e cinquenta cêntimos. Outro, à "Endicott Arms Holding Corporation", no valor de seiscentos e vinte e cinco dólares. Este, de quinhentos dólares, foi passado a um tal Orval Kingman. Está datado... está datado do dia do assassinato... Outro, da mesma data e no mesmo valor, sem nome. O talão unicamente apresenta as letras OK. É o último do livro de cheques... Vê-se aqui um quociente no total de dois mil setecentos dólares e trinta cêntimos.

- Onde é que viu isso? - perguntou Sadie.

- Aqui, Miss Richmond, neste maço de papéis, presos com uma mola metálica.

- Ah! Isso são contas por pagar. Quando as pago, escrevo OK e junto-as em bloco. Todos os meses faço um balanço, para ver quanto se gasta ao fim do ano.

- Também foi a senhora, Miss Richmond, quem escreveu aquelas letras OK no livro de cheques de Loring Lamont?

- Oh, não! Essa letra é dele e não minha. O senhor pediu-me para ver o local e já o viu. Não tem de mexer nessas contas.

- Muito bem... mas ainda não vi bem o local. Olhou em redor e observou, brandamente:

- Segundo ouvi dizer, Loring Lamont foi assassinado, pelas costas, com uma faca de trinchar carne. De onde veio ela? Da cozinha?

- Decerto que não a tinha no divã. As dengosas que ele trazia para aqui, já não precisavam de ser abertas... e muito menos com uma faca. Naturalmente que a cozinha era o sítio onde a faca deveria ter ficado, se não a tivessem tirado de lá... para trinchar carne... E agora, acabou a bisbilhotice. O senhor já viu o que tinha a ver e eu tenho de começar a trabalhar.

Sadie avançou para a porta e abriu-a, para dar saída aos visitantes. Quando ela estava de costas, Mason, sub-repticiamente, meteu o livro de cheques na algibeira. Sadie já se encaminhava para o portão.

Junto ao carro, Mason comentou:

- Esta Sadie Richmond é, realmente, uma mulher bastante estranha. As suas maneiras para connosco modificaram-se repentinamente... para pior.

- Está desejosa de ver-nos pelas costas - concordou Drake.

- Sim, sobretudo depois de eu ter manuseado o livro de cheques. Foi isso que a perturbou.

- Obviamente - concluiu Della, - receou que o Chefe fosse utilizá-lo como prova em tribunal, podendo, desse modo, comprometê-la. Se o fizesse, iriam perguntar-lhe como conseguira obtê-lo.

De súbito, Mason perguntou:

- Onde está a minha máquina fotográfica?

- Se se refere à mini 35 mm, tem-na no porta-luvas do carro.

Entraram no automóvel e Mason indagou:

- O estojo com a lente para microfotografias também aí está?

- Sim, Chefe.

- Por favor, Della, adapte a lente à máquina, rapidamente. Quero fotografar estes cheques.

Expô-los à luz do Sol e disparou a objectiva cinco vezes. Em seguida, pôs o motor a trabalhar.

À saída da propriedade, Sadie mantinha o portão aberto e gritou:

- Que diabo estão aí a fazer? Despachem-se! Não posso ficar aqui, o dia inteiro, à espera que se decidam a sair. Tenho mais que fazer.

Ao passar por ela, Mason abrandou o andamento e parou.

- Trouxe-lhe isto, Miss Richmond- indicou, estendendo-lhe o livro de cheques, - porque acho conveniente que o entregue à Polícia. Creio que pode constituir uma prova.

- Prova de quê?

- Ainda não sei.

- Nem eu-retrucou ela, arrancando-lhe o livro da mão. - Agora, por favor, "desamparem-me a loja".

Tirando o chapéu, numa saudação cortês, Mason despediu-se:

- Até à vista, Miss Richmond... e muito obrigado por tudo.

- Não tem de quê - respondeu ela, secamente. Mason arrancou e, ao entrar na estrada, ouviu o portão fechar-se, pesadamente.

- Agora, Paul - programou o advogado, - terás de descobrir quem é este Orval Kingman que consta do livro de cheques de Loring.

- Esse pormenor parece-te importante?

- Talvez o seja e até muito. O cheque foi assinado no dia da morte e, por baixo do outro cheque da mesma data, está inscrito um OK. Sadie disse que este OK não fora escrito por ela, mas sim por Loring. Portanto, tanto um como o outro documento podem tornar-se provas de qualquer coisa que ainda me resta descobrir... se realmente o forem.

- Não estou a ver como-resmungou Drake, duvidoso- Provavelmente Loring tinha-o ali, na escrivaninha, e ia cassando esses cheques, de acordo com as suas necessidades...

- Não, Paul. Ele trazia este livro de cheques na algibeira. Referem-se a sete dias, incluindo um pagamento a uma oficina de reparação de viaturas. Aparentemente, o outro, passado à "Endicott Arms Holding Corporation", representa o pagamento da renda do seu apartamento. Por conseguinte, Loring não ia deixar este livro de cheques numa casa aonde só se deslocava esporadicamente. Forçosamente, transportava-o consigo, para onde quer que fosse. A lógica assim o indica, "meu caro Watson"!

- E se Sadie nos mentiu e o livro de cheques não é de Loring?

- Nesse caso, pertence a alguém que também vive num dos apartamentos da "Endicott Arms".

- De qualquer modo - observou Della Street,- pode ser uma pista.

- De quê? - resmungou Drake, céptico.

- Isso - replicou Mason, sorrindo - já é um assunto da minha lavra. A ti, o que te interessa, Paul, é começares a trabalhar. Trata de descobrir quem é esse Orval Kingman. Agora, vou falar com a minha cliente e ver se ela é capaz de prestar-me alguma informação que possa ter alguma utilidade.

 

Mason sentou-se na sala de visitas, reservada aos advogados, para conferenciarem com as suas clientes, detidas para prestação de declarações à Polícia, e olhou para Arlene Ferris, pensativamente.

- E agora, contou-me tudo quanto se passou! Não se esqueceu de qualquer pormenor?

- Não, Mr. Mason. Disse-lhe a inteira verdade.

- Eles têm estado a acumular provas contra si e mostram-se muito confiantes. Espero que não tenham qualquer prova que eu desconheça.

- Não sei que provas têm contra mim. Não fui eu quem matou Loring. Por vezes, penso que gostaria de tê-lo feito e, se aquela faca me tivesse passado pelas mãos, na altura em que me atacou, não sei se não seria agora uma assassina. Mas a verdade é que não o fui.

- Nunca faça essas considerações à Polícia. Servem-se de tudo para encherem os ouvidos do procurador do Distrito e este, depois, vai fazer o despejo final, no tribunal. Que foi que contou, durante o interrogatório que lhe fizeram?

- Interrogaram-me, por três vezes, com inspectores e taquígrafos diferentes. O tenente Tragg assistiu a todos eles. Contei-lhes o mesmo que já lhe contara a si, Mr. Mason.

- Tudo?

- Tudo.

- Muito bem, Arlene. Dentro de poucos dias, será efectuada uma audiência preliminar. Durante esta audiência procurarão apenas concluir que existem provas suficientes para a considerarem suspeita de homicídio em primeiro grau. Se reunirem essas provas e as julgarem suficientemente convincentes, você será ulteriormente julgada numa audiência perante o Grande Júri.

"Nessa audiência preliminar eu tenho o direito de contra-interrogar as testemunhas apresentadas pela Acusação e também de apresentar testemunhas de defesa que, por sua vez, serão contra-interrogadas pela Acusação. Simplesmente, a Defesa não tem a apoiá-la, como a Acusação, toda a máquina policial e toda a organização e poderes jurídicos da Procuradoria do Distrito. Compreende. Por isso, no interesse do meu cliente, tenho de fazer algumas investigações pessoais. Ontem fiquei a saber uma coisa que aconteceu. Depois de tê-la perseguido, Arlene, Loring Lamont voltou para casa e deve ter comido os ovos com bacon, quase imediatamente."

- Por que diz "quase imediatamente"?

- Porque ninguém iria comer ovos com bacon, frios. Nada têm de apetecíveis.

- Eu já tinha posto os ovos nos pratos. Portanto não deveriam estar muito apetecíveis, quando Loring pôde regressar à casa. Decerto teve de atirar aqueles para o lixo e fazer outros.

- Mas- observou Mason, franzindo o cenho - nesse caso, por que diabo tornou a sujar dois pratos?

- Talvez só tivesse sujo um, limitando-se a despejar o outro no lixo.

- Sim, é admissível, mas também é possível que ele tenha recebido alguém com quem comesse ovos com bacon, feitos de fresco.

- Certamente que recebeu mais alguém, depois de mim, visto que não fui eu quem o matou.

- Logicamente, assim deve ser, Arlene. Viu algum carro, na estrada do desvio, cruzar-se com o seu, quando regressou à cidade?

- Não. Não encontrei carro algum.

- Nesse caso, ou o assassino de Loring veio do sentido oposto da estrada, por conseguinte do lado das quintas, onde há bangalôs dispersos, ou o crime foi cometido bastante mais tarde. Por outro lado, a história que ele lhe contou de que tinha pouco tempo para fazer amor consigo, visto estar à espera de uma pessoa, pode não ter sido verdadeira, em relação a esse "tempo". Ele mencionou algum nome, quando telefonou?

- Não. Mas lembro-me de uma coisa que me causou estranheza. Várias vezes disse: "sim, okay, está bem okay", o que não é usual; de uma das vezes, até empregou a expressão: "Perfeitamente, okay; até depois, okay."

- Quer dizer que empregava o termo okay escusadamente e a despropósito?

- Exactamente.

- Essa sua informação, Arlene, é preciosa, pois abre-me novas perspectivas que vêm ao encontro de uma hipótese que eu já tinha formulado. Provavelmente, Loring dizia O. K., como diminutivo de um nome de alguém cujas iniciais sejam essas (1).

- Sim. Pode ser esse o caso.

- Perfeitamente. Agora, Arlene, não fale a ninguém nesta nossa conversa acerca desse okay que Loring proferiu tantas vezes ao telefone. Fica só para nós. Não responda sequer a mais qualquer outra pergunta. Diga que já foi interrogada três vezes e que não está disposta a nova tortura mental. Pode acrescentar que foi o seu advogado quem a aconselhou a não tornar a abrir a boca.

Mason pôs-se de pé e animou-a:

- Coragem, Arlene. Agora, deixe de apoquentar-se. Fá-lo-ei por si, pois tenho de descobrir a maneira de livrá-la deste imbróglio. Provavelmente, não voltarei a vê-la, antes da audiência no tribunal. Até lá, queixo levantado e lábios firmes.

 

(1) O vocábulo okay é genuinamente norte-americano e originário de um episódio anedótico atribuído a um chefe de estivadores, recém-imigrado em Nova Iorque e de origem alemã, que escrevia, nos fardos conferidos, as letras O.K., julgando que "all correct" (tudo em ordem) se escrevia Oll korrect. Nos EUA, é também corrente usarem-se as iniciais dos nomes, como diminutivos.- (N. do T).

 

Ao voltar para o escritório Mason perguntou a Della Street:

- Novidades?

- Nenhuma, por enquanto. E o Chefe, trouxe algumas?

- "Montes" delas. Por favor, Della, ligue para Paul...

Mas nesse preciso momento, Drake batia à porta, com as suas pancadinhas de código.

- Olá, gentes!-saudou o detective ao entrar.- Pedi ao porteiro que me telefonasse lá de baixo, mal tu entrasses. Tenho vários homens a trabalharem no teu caso, mas ainda não recebi qualquer informação positiva. E tu, Perry, que descobriste?

- Que aquele cheque que tem um OK inscrito pode vir a tornar-se uma prova importante. Esse OK deve representar as iniciais da pessoa a quem o cheque deveria ser pago. Já averiguaste a identidade desse tal Orval Kingman? Estaria relacionado com Loring Lamont?

- Orval Kingman é um corretor de apostas nas corridas de cavalos.

- "Ranhoso"?

- Pelo contrário. É um tipo que, com um pouco mais de balanço, poderia ter dado em chefe de gang. Mas, quanto a crimes, é um moderado. Nunca mandou matar, intencionalmente. Só se empenha em espancar os calo-teiros e, para isso, tem uma matilha de antigos pugilistas profissionais. É um sujeito com protectores influentes e com freguesia na "alta". Evidentemente, tomou sempre as suas precauções, de maneira que nunca se provou coisa alguma contra ele. É natural que Loring fizesse as suas apostas por intermédio de Orval... mas não acredito que alguma vez o menino da "Lamont Company" tivesse falta de dinheiro e lhe pregasse um calote.

- Realmente, Paul, é pouco provável... mas não impossível. Nada sabemos da conta corrente de Loring.

Della Street interveio, para anunciar:

- Tenho aqui, no meu bloco-notas, um outro OK: Otto Keswick, o jardineiro da "casa das reuniões".

- Obrigado, Della... Investigaste esse ângulo, Paul?

- Não estive em contacto directo com ele, mas obtive uma informação: é um cadastrado e está na situação de "liberdade condicional".

- Co'os diabos, Paul! Sob que acusação esteve preso?

- Chantagem.

Virando-se para Della Street, Mason pediu: "

- Trate de mandar revelar essas fotografias dos cheques, o mais depressa possível. Parece que a pista se duplicou e...

- Já me tinha dado a esse cuidado, Chefe. Não só mandei revelar e ampliar as microfotografias, mas também contactei com um perito em caligrafia que está a estudar a letra de Loring. Contudo, só arranjámos uma carta dele, muito breve, em que não aparece qualquer O ou K maiúsculos.

- Muito bem, Della... Tu, Paul, procura descobrir, no banco, quem levantou o cheque que Loring passou ao "nosso" OK.

- Provavelmente, ninguém, visto que os bancos não pagam cheques em data ulterior ao falecimento de quem os assinou.

- Pois não... mas, se o cheque foi descontado na manhã seguinte, após a morte de Loring, o banco não poderia saber que o seu depositante já não pertencia ao mundo dos vivos. Não te esqueças de que o cadáver só foi descoberto nessa mesma tarde. Dá uma saltada ao banco e vê se obténs a informação de quem levantou esses quinhentos dólares.

- Vou já a caminho - aprontou-se Drake, encaminhando-se para a porta.

- Um momento, Paul. Entretanto, antes de obteres essa informação, é natural que eu já esteja a interrogar as testemunhas citadas pela Acusação. Espero conseguir descobrir qual é o trunfo que Hamilton Burger tem escondido na manga.

- Achas que o procurador do Distrito tem uma carta das "gordas"?

- Tenho esse pressentimento; um mau presságio para a minha cliente. Só que não posso adivinhar qual seja.

- Na minha opinião, Perry, deverias basear-te na tentativa de violação, por parte de Loring, e na legítima defesa de Arlene.

- Com esta história de uma facada pelas costas, a alegação de legítima defesa não "pega".

- Ora, ora, tu és suficientemente hábil para ensinares a Arlene uma boa fábula...

- De maneira alguma, Paul. Tenho de basear a Defesa em factos verdadeiros. Se me afasto da verdade, não só me arrisco a perder a causa, mas também perco o respeito que tenho por mim próprio.

- Joga com o pormenor do distribuidor que Loring "fanou" ao carro de Arlene. Isso prova premeditação da parte de Loring.

- Sim, mas, em contrapartida, há um outro pormenor que me apoquenta, Arlene declarou à Polícia que nem ela nem Loring tocaram nos ovos com bacon... e, contudo, alguém os comeu e em dois pratos.

- Bem, isso prova que ainda há, nesta cidade, alguém que não se alimenta, como eu, exclusivamente de sanduíches, sentado à secretária.

 

Donald Enders Carson, jovem adjunto da Procuradoria do Distrito, esperto e temperamentalmente agressivo, proferiu:

- Se o Tribunal me permite, anuncio a audiência preliminar do Povo do Estado da Califórnia versus Arlene Ferris. O representante do Povo está pronto. A ré, representada por Perry Mason, encontra-se presente nesta sala e estamos na hora previamente estabelecida para o início dos debates.

- A Defesa está pronta - disse Mason.

Então, o juiz Carleton Bayton, virando-se para o adjunto do procurador do Distrito, convidou:

- Queira a Acusação chamar a sua primeira testemunha.

- Chamo o Dr. Harmon C. Draper, médico legista e cirurgião encarregado das autópsias legais - disse Carson.

Draper avançou, prestou juramento, identificou-se e enunciou as suas habilitações profissionais. Depois, explicou que, tendo examinado o cadáver de Loring Lamont, verificara que a morte se devera a um golpe profundo nas costas, produzido por uma lâmina de faca de trinchar carne. Como o cadáver lhe fora apresentado muito tempo depois de ter sido golpeado no coração, era-lhe impossível determinar, com precisão, a hora do óbito de Loring Lamont. Contudo, como este ingerira uma refeição de ovos com bacon, tornava-se possível determinar o momento da morte, em relação a essa refeição que teria ocorrido cerca de vinte minutos antes.

- Pode contra-interrogar- concedeu Carson, com um gesto seco para Mason.

- Este perguntou:

- Não recebeu, Doutor, qualquer informação, quanto ao momento em que essa refeição de ovos com bacon foi ingerida pela vítima?

- Não.

- A morte foi instantânea?

- Virtualmente instantânea.

- Apesar de a arma estar cravada nas costas, teria sido possível que alguém a tivesse utilizado, achando-se de frente para a vítima?

- Não creio que tal fosse possível, mesmo que os contendores estivessem abraçados. Dada a maneira como o golpe foi vibrado, teria sido necessário que o agressor tivesse um braço... e o esquerdo... com mais de um metro de comprimento, o que se torna absolutamente improvável. Tendo sido o ataque desferido pelas costas, qualquer pessoa, mesmo com um braço curto... o direito, neste caso... teria conseguido desferir tal golpe.

- Obrigado, Doutor. É tudo-disse Mason, dispensando a testemunha.

Carson, então, chamou duas testemunhas, a primeira das quais foi um inspector que apresentou cartas topográficas da zona onde se situava a "casa das reuniões" e uma planta arquitectónica dessa casa; e a segunda, um fotógrafo da Polícia que exibiu várias fotografias do interior da mesma casa, particularmente da sala onde o cadáver de Lamont fora encontrado e a posição em que este se achava, no momento da chegada da Polícia.

Após o interrogatório destas duas testemunhas que Mason se absteve de contra-interrogar, o adjunto do procurador do Distrito chamou:

- George Albert.

Depois de este cumprir as formalidades usuais, Car-son perguntou:

- Em que se ocupa, Mr. Albert?

- Desempenho, há vários anos, as funções de gerente executivo dos escritórios da firma "Lamont Rol-ling, Easting and Engineering Company".

- Que idade tem?

- Trinta e dois anos.

- Conheceu Mr. Loring Lamont, enquanto vivo?

- Sim.

- Foi convocado para identificar o corpo, após a sua morte?

- Sim. Pediram-me para identificá-lo, porque o pai do defunto, Mr. Jarvis...

- Não interessa. Quem lhe pediu para fazer essa identificação?

- A Polícia, na presença do adjunto da Procuradoria do Distrito.

- Em que data?

- Na tarde do dia seis deste mês. -Conhece a ré deste caso?

- Sim.

- Há quanto tempo?

- Desde que entrou para o serviço da Companhia.

- Pode precisar há quanto tempo?

- Sim. Há pouco mais de dois meses.

- Que aconteceu no dia 5 do corrente mês, em relação à ré, no seu trabalho na Companhia?

- Trabalhou até mais tarde do que o seu horário regulamentar.

- Qual é o limite desse período de trabalho?

- Cinco horas da tarde.

- A que horas saiu a ré, dos escritórios?

- Às cinco e meia. Ficou a terminar uma correspondência urgente...

- Não interessa... Pode contra-interrogar, Mr. Mason.

Depois de avaliar a testemunha, pensativamente, Mason perguntou:

- Conhecia Miss Ferris, antes de ela começar a trabalhar, há pouco mais de dois meses, na Companhia?

- Não. Só a conheci, depois de ter sido admitida como secretária.

- Há, na Companhia, um serviço de pessoal que trata da admissão dos novos funcionários?

- Sim.

- O senhor, Mr. Albert, encarrega-se dessas funções contratuais?

- Nada tenho a ver com esse serviço. O assunto nem sequer me passa pelas mãos.

- Mas tem autoridade para demitir um funcionário, não é verdade?

- Sim, quando surgem motivos para tal.

- Sabe se a acusada, quando começou a trabalhar no seu serviço, directamente para si, teve acesso à Companhia pelas vias habituais de contrato de pessoal?

- Não. Miss Ferris entrou para o quadro do pessoal e para o meu serviço, como estenodactilógrafa, por indicação particular e pessoal de Mr. Loring Lamont.

Mason endireitou-se na cadeira, escondendo a sua surpresa, e inquiriu:

- Tem a certeza disso, Mr. Albert?

- Absoluta. Miss Ferris passou à frente de uma longa fila de pretendentes que já tinham sido sujeitas a testes para admissão e aguardavam vaga nos serviços.

- Quando é que Miss Ferris deixou de trabalhar para a Companhia?

- Despedi-a no dia seis, porque...

- Não interessa o motivo - cortou Mason. Só estou interessado na data em que a acusada deixou o serviço da Companhia.

- Chame a sua nova testemunha - indicou o juiz Bayton a Carson.

Momentos depois, Jerome Henley sentava-se no banco das testemunhas e respondia à primeira pergunta do adjunto do procurador do Distrito:

- Nessa noite do dia cinco, encontrava-me no meu apartamento.

- Qual a localização do seu apartamento?

- No nº 9612 da Endicott Way.

- É um edifício de apartamentos?

- Sim.

- O senhor, Mr. Henley, é casado ou solteiro?

- Sou solteiro.

- Vive sozinho nesse seu apartamento?

- Sim.

- Conhecia Mr. Loring Lamont?

- Sim. Encontrámonos várias vezes, à entrada e saída do prédio. Foi, por duas vezes, à minha loja para adquirir discos e cassettes.

- Conhecia o carro de Mr. Loring?

- Perfeitamente. Via-o todos os dias... quase sempre estacionado defronte do prédio. Os nossos apartamentos situam-se no mesmo primeiro piso do edifício.

- Agora, Mr. Henley, chamo a sua atenção para uma ocorrência da noite do dia cinco do corrente mês. Viu o carro de Mr. Lamont, defronte do seu apartamento?

- Sim.

- Viu alguém sair desse automóvel?

- Sim.

- É capaz de identificar essa pessoa?

- Sim. É a ré do presente caso, Miss Arlene Ferris.

- Que mais notou, em relação à ré e ao carro de Mr. Lamont?

- Vi a ré estacioná-lo junto de uma boca de incêndio e sair do automóvel determinadamente, e isso causou-me natural estranheza, visto haver, ali perto, outros espaços para arrumar viaturas, sem ser naquela posição de contravenção legal, tão evidente. Fiquei com a convicção de que ela agira daquela maneira, propositadamente.

- Tem a certeza, Mr. Henley, de que se tratava do carro de Mr. Loring Lamont?

- Absoluta.

- E tem a certeza de que a pessoa que viu arrumar esse automóvel, diante da boca de incêndio, era a ré, Arlene Ferris?

- Absoluta.

- É tudo. A Defesa pode contra-interrogar. Calmamente, Perry Mason indagou:

- Reconheceu o carro?

- Sim.

- E reconheceu a acusada?

- Sim.

- Lembra-se da ocasião em que eu entrei no seu estabelecimento de aparelhagem de som e de instrumentos musicais, no dia 7 do corrente?

- Sim, Mr. Mason.

- Eu ia acompanhado de uma jovem, não é verdade?

- Sim - confirmou Henley.

- E o tenente Tragg, do Departamento de Homicídios, entrou logo a seguir, não é verdade?

- Sim.

- E não é verdade que, nessa mesma ocasião, o senhor, Mr. Henley, na presença do tenente Tragg, identificou, positivamente, sem sombra de dúvida, a jovem que me acompanhava, como sendo aquela que, na noite do dia cinco, vira sair do automóvel de Loring Lamont, estacionado por ela junto de uma boca de incêndio, defronte do apartamento onde habita?

- Sim. Nessa altura, identifiquei-a como sendo a moça que eu vira, dois dias antes, mas estava enganado.

- Quer dizer que, depois de todo esse tempo, conseguiu refrescar a sua memória e concluir que estava enganado?

- Concluí, muito simplesmente, que fora ludibriado.

- Ludibriado, por quem?

- Por um detective que me mostrara a fotografia da jovem que, depois, me apareceu na sua companhia, Mr. Mason. Dessa maneira, fiquei sugestionado e reconheci essa jovem como sendo a que vira sair do carro de Lamont, quando, na verdade, só a vira na fotografia que o detective me apresentara.

- Mas, Mr. Henley, quando esse tal detective lhe apresentou a fotografia, o senhor não declarou que era a da moça que vira sair do carro de Mr. Lamont?

- Bem... Sim... Nessa altura, pareceu-me ser a mesma.

- Isso significa que, dessas duas vezes, o senhor, Mr. Henley, identificou Miss Madge Elwood como sendo a jovem em questão. E fê-lo positivamente, sem a menor dúvida. Como explica, agora, a sua mudança de opinião?

- Fui ludibriado. A Polícia elucidou-me acerca da maneira de enganar-se uma testemunha, mostrando-se-Lhe uma fotografia e, depois, o modelo dessa fotografia, de modo a confundir a memória...

- Foi a Polícia que lhe explicou isso tudo?

- Sim. Depois mostraram-me a verdadeira jovem que arrumara o carro e só então compreendi ter sido efectivamente "enrolado". A jovem que eu vira fora a ré, Arlene Ferris, e não Miss Elwood. Não gosto de ser tomado por parvo, Mr. Mason. É o que mais detesto, nesta vida.

- Muito bem, Mr. Henley. E não lhe passou pela cabeça de que a Polícia podia estar a usar esse mesmo processo de ludíbrio consigo, mostrando-lhe a ré, depois de o senhor ter visto Miss Elwood, e sugerindo-lhe que Miss Arlene Ferris seria a pessoa que vira sair do carro?

- A Polícia não tem necessidade de ludibriar seja quem for.

- Muito bem. A que horas viu a tal jovem sair do carro da vítima?

- Não tenho a certeza. Só sei que isso se passou antes da meia-noite.

- Muito antes da meia-noite?

- Não posso precisar.

- Meia hora antes?

- Talvez.

- Por que pensa que tenha sido antes da meia-noite?

- Porque o local onde fui tomar uma chávena de café fecha à meia-noite. O meu relógio estava a consertar. Fui para casa, ouvi as notícias na rádio e, antes de ir para a cama, ainda li algumas páginas de um romance. Depois, fui à janela e... bem, não posso precisar que horas eram. Foi então que vi a jovem arrumar o carro, rente à boca de incêndio.

- Terá visto esse facto, dez minutos antes da meia-noite?

- Não sei... Talvez.

- E tem a certeza de que não passava já da meia-noite?

- Não... Ainda não devia ser tão tarde.

- Mas não pode precisar, não é verdade?

- Bem, como já disse, não tinha o relógio comigo... mas a Polícia explicou-me que não poderia ter sido senão um bom pedaço antes da meia-noite.

- Ah! Na Polícia explicaram-lhe isso, hem?

- Sim e convenci-me de que deviam ter razão. Detesto ser enganado...

- Compreendo perfeitamente. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe, Mr. Henley. Obrigado.

Carson chamou a nova testemunha convocada pela Acusação:

- Thomas G rimes.

Depois das formalidades regulamentares, Grimes declarou ser um dos vigilantes do parque de estacionamento da "Lamont Company". Estava de serviço na tarde do dia cinco e vira Mr. Loring Lamont sair do parque de estacionamento, tendo a seu lado uma jovem.

- Que horas eram, quando viu sair o automóvel de Mr. Lamont?

- Cerca de cinco horas e quarenta e cinco.

- Pode identificar a jovem que seguia ao lado de Mr. Lamont?

- Sim. Está ali sentada, ao lado do advogado da Defesa. É a ré, Arlene Ferris.

- Pode contra-interrogar - concedeu Carson.

- Tem a certeza de que essa jovem era Miss Ferris? - inquiriu Mason.

- Sim.

- Mas, antes desta audiiência, não a identificou como sendo outra pessoa?

- Não, de maneira alguma. Recusei-me a fazer tal identificação. Apenas declarei não ter a certeza de que fosse a pessoa que me mostravam numa fotografia.

- Não disse o mesmo ao tenente Tragg do Departamento de Homicídios?

- Bem, a verdade é que, quando ele me interrogou, respondi-lhe a mesma coisa. Não tinha bem a certeza...

- Se não tinha a certeza, nessa altura, como é que passou a tê-la?

- Quando a Polícia me mostrou a ré, Arlene Ferris. Depois de olhar bem para ela, consegui reconhecê-la. De resto, ela trabalha na Companhia.

- Mas, quando Miss Ferris passou pelo local onde vigia a saída das viaturas, não a reconheceu?

- Bem, nessa altura, não. Contudo, depois de a Polícia...

- Em que data a Polícia lhe mostrou a ré, Arlene Ferris? - cortou Mason.

- Três dias depois.

- Quer dizer que, três dias depois de ter visto uma jovem passar, diante do seu posto de trabalho, ficou com a memória mais clara do que no dia seguinte?

- Sim... isto é, compreendi que tinha sido enganado por um detective que me mostrara uma fotografia.

- Mas, quando isso sucedeu, o senhor não tinha a certeza de quem fosse essa jovem, pois não?

- Não, mas passei a tê-la, quando me explicaram que se tratava da ré, Arlene Ferris e, então, a minha memória foi avivada e compreendi ter sido ela quem eu vira e não a da fotografia que me tinha sido mostrada pelo detective.

- Nesse caso, quer dizer que, no dia sete do corrente, não podia identificar a jovem. Contudo, agora, já pode fazê-lo?

- Sim.

Sorrindo, Mason dispensou a testemunha com um gesto.

- Nada mais.

- A próxima testemunha da Acusação - anunciou Carson- é Otto Keswick.

Na casa dos quarenta, Keswick era um homem de ombros largos, todo ele maciço, de olhos vivos, sempre alerta. Declarou que vivia num bangalô alugado, a cerca de seis quilómetros da casa onde Mr. Loring fora assassinado. Tinha por funções guardar o jardim, durante o dia, tratar das plantas e limpar a piscina, verificando o funcionamento das bombas de água e do termostato. Por vezes, chegava a trabalhar dez horas por dia; de outras vezes, trabalhava apenas duas horas, dependendo do que havia a fazer por lá. Quando o trabalho era pouco, fechava os portões e ia-se embora,

Em relação ao dia seis, testemunhou ter ido para a "casa das reuniões", pouco depois das treze horas. Abrira o portão, com a sua chave, e começara a podar algumas árvores, quando-, a certa altura, olhando para a casa, apercebera-se de que a porta de entrada estava aberta o que era absolutamente fora do normal. Decidiu ver o que se teria passado, entrou na casa e encontrou Mr. Loring Lamont jazendo no chão. Percebendo que o filho do patrão estava morto, não quis telefonar imediatamente à Polícia para não tocar no auscultador. Também não tocara em objecto algum e, depois de fechar a casa e o portão da propriedade, dirigira-se a casa de Miss Sadie Richmond para informá-la do que se passara. Fora Sadie quem avisara as autoridades.

- Pode contra-interrogar -indicou Carson.

Mason encarou Otto Keswick e indagou:

- Há quanto tempo trabalha na "casa das reuniões"?

- Há coisa de dois anos.

- Conhece as pessoas que frequentavam essa casa?

- Só as que lá iam durante o dia.

- Mr. Jarvis Lamont?

- Certamente. É o patrão e foi ele quem me contratou, por eu viver ali perto e, nessa altura, estar desempregado.

- Como conseguiu esse emprego?

- Esperei-o ao portão e ofereci os meus préstimos. Mr. Jarvis contratou-me.

- E conhecia Mr. Loring?

- Certamente.

- Mais alguém?

- Conhecia, de vista, outros administradores da Companhia, mas, de nome, só conhecia o gerente dos escritórios, Mr. Albert.

- Como costumava Mr. Loring tratá-lo, a si, Mr. Keswick?

- Por Otto.

- Nunca o tratou pelas iniciais OK?

Por um instante, quase imperceptível, a testemunha hesitou. Depois, respondeu:

- A mim, nunca me tratou por OK. Sempre me chamou Otto.

- Onde se achava, Mr. Keswick, na noite de cinco do corrente?

- Em minha casa.

- Vive alguém consigo?

- Não vive comigo. Eu é que vivo com ela. É a dona do bangalô que me alugou aí um quarto.

- Como se chama a dona do bangalô em que vive?

- Mrs. Sparks. É uma viúva de sessenta e cinco anos. Autoriza-me a fazer uso de toda a casa e a utilizar a televisão.

- Que fez, nessa noite, Mr. Keswick?

- Estive a ver televisão, na companhia de Mrs. Sparks.

- Durante quanto tempo?

- Desde as sete até às dez e meia da noite.

O programa da televisão que estávamos a ver terminou às sete e meia. Então, desligámos o aparelho e cada qual foi para o seu quarto.

- Tem a certeza de que foi deitar-se, nessa noite, às sete e meia, Mr. Keswick?

Após nova hesitação momentânea, Otto respondeu, secamente:

- Sim.

- A que horas se levantou, na manhã seguinte?

- Por volta das sete e meia, como de costume.

- Mas só foi à propriedade de Mr. Lamont, à uma hora da tarde?

- Sim. Estive a fazer uns trabalhos em redor do bangalô de Mrs. Sparks, visto que eu não pago renda pelo meu quarto. Trabalho para ela, reparando a casa e cuidando do terreno circundante, de horta e jardim.

- Quer dizer que não lhe paga renda alguma?

- Exactamente. Trabalho para Mrs. Sparks umas tantas horas por semana, de maneira a compensar, com os meus serviços, o dinheiro do quarto.

- Mas recebe um salário fixo, por trabalhar na "casa das reuniões", não é verdade?

- Eu não trabalho na "casa das reuniões". Praticamente, nunca lá entro, a menos que me chamem. Só trabalho na propriedade exterior.

- Quem verifica o seu horário de trabalho?

- Ninguém.

- O quê? Acreditam na sua palavra, quanto às horas de trabalho que efectua?

- Não é bem assim. Eu indico a Sadie... a Miss Richmond... as horas que trabalhei na propriedade e ela marca um OK no papel que lhe apresento. Arquiva-o e, mensalmente, paga-me o meu salário. Este é fixo, porque eu trabalho as horas necessárias para merecê-lo.

- Tem a certeza de que o portão da propriedade se encontrava fechado, quando lá chegou, à uma hora da tarde do dia seis?

- Absoluta. Estava, como de costume, fechado à chave.

- Mas viu a porta da casa aberta?

- Sim. Estava meia aberta.

- Tem a certeza de que não tocou em objecto algum, depois de ter encontrado o cadáver de Mr. Loring Lamont?

- Absoluta. Fui imediatamente avisar Miss Rich-mond, para que avisasse a Polícia, pelo seu telefone.

- Costuma ler romances policiais?

- Às vezes... pelo menos o suficiente para saber que, em caso de crime, ninguém deve tocar nas premissas, antes da chegada da Polícia... E também vejo televisão - respondeu Otto, esboçando um sorriso.

- Obrigado, Mr. Keswick. É tudo - concluiu Mason.

- A minha próxima testemunha - anunciou Carson - é Peter Lyoos. Este interrogatório será breve, senhor Doutor Juiz, visto estar a aproximar-se a hora do intervalo da sessão.

- Espero que seja breve-respondeu o juiz Bayton que estivera a consultar o relógio, dando assim motivo à explicação do adjunto do procurador do Distrito.- Esta é uma simples audiência preliminar e gostaria que terminasse nesta mesma sessão da manhã. Talvez a Defesa dispensasse a audição da testemunha... Que me diz, Mr. Mason?

- Depende daquilo que a Acusação espera provar com o depoimento verbal de Mr. Lyons.

- Mr. Lyons - elucidou Carson - é um agente da Polícia que esteve de serviço de patrulha, até à meia-noite, do dia cinco. Vem testemunhar ter encontrado, às vinte e uma horas, o automóvel de Loring Lamont estacionado junto a uma boca de -incêndio, pelo que o autuou, inserindo o talão da multa, entre um dos limpa-pára-brisas. A localização daquela viatura corresponde, exactamente, ao sítio já indicado pela testemunha anterior, Mr. Henley.

- Só o autuou, uma vez, às nove horas, até à meia-noite?

- É o que Mr. Lyons declara.

- Depois disso, que aconteceu ao automóvel?

- Passaram por ele outros carros-patrulha cujos agentes colocaram novo talão de multa. Às três horas da manhã, a viatura foi rebocada para o parque da Polícia.

- Isso significa que a Acusação interrogou esses agentes da Polícia?

- Evidentemente - declarou Carson, secamente.

- Nesse caso - replicou Mason, - a Defesa deseja que o agente Lyons seja ouvido, a fim de, ulteriormente, ser contra-interrogado. E, visto que a Acusação interrogou os outros agentes dos carros-patrulha, a Defesa deseja igualmente contra-interrogá-los.

- Esses interrogatórios concluem o caso? - sondou o juiz Bayton, dirigindo-se a Carson.

Este, com uma careta, respondeu:

- Receio que não, senhor Doutor Juiz. Infelizmente, é intenção da Acusação chamar uma outra testemunha.

- Que testemunha?

- O tenente Tragg do Departamento de Homicídios.

- Não pode expor ao tribunal uma síntese desse interrogatório, com vista a dispensarmos a testemunha?

- Se o Tribunal me permite--esclareceu Carson,

- os factos que a Acusação deseja expor são muito significativos... e não é minha intenção pôr a Defesa de sobreaviso...

- Esta é, repito - interrompeu o juiz Bayton, - uma audiência preliminar. Não está presente qualquer júri. A Acusação não pode explicar o que pretende provar com o depoimento do tenente Tragg?

- Esta testemunha focará não só algumas provas circunstanciais, mas também referirá a conversa que teve com a ré. Por esse motivo, pretendo que seja a própria testemunha a revelar essas provas circunstanciais.

Contrariado, o juiz Bayton determinou:

- Sendo assim, dada a óbvia relutância, por parte da Acusação, em abreviar o caso, far-se-á um intervalo e o Tribunal tornará a reunir-se às duas horas da tarde. A ré continuará sob custódia da Polícia.

Arlene Ferris olhou apreensivamente para Perry Mason e sondou, quando o juiz se retirou para o seu gabinete:

- Que tal está a correr o caso?

- Melhor do que eu esperava - animou Mason.- As testemunhas mostraram-se tão confusas, quanto à identificação da jovem que estacionou o carro, rente à boca de incêndio, que, num tribunal superior, perante o Grande Júri, poderei provar que testemunharam duas coisas diferentes.

Assustada, Arlene murmurou:

- Santo Deus! Isso quer dizer que o senhor espera que o meu caso venha ainda a ser julgado num tribunal superior?

- Receio que sim.

- Mas isso é, para mim, um verdadeiro pesadelo. Terei de continuar presa até lá!

- Não se apoquente, Arlene. Quando estivermos perante o Grande Júri, prometo-lhe que o julgamento será breve.

- Como conseguirá isso?

- Se você fizer, precisamente, o que eu lhe disser.

- Farei tudo o que achar melhor, Mr. Mason - prometeu ela.

- Muito bem, Arlene. Queixo para cima.

- Não receia, Mr. Mason, que Jarvis Lamont me acuse de estar a mentir e de que sou uma aventureira? Não começará ele a "espiolhar" o meu passado...

- É um risco que corremos, mas não fique alarmada com isso. Ainda não sucedeu, pois não? Coragem e... até já.

Separando-se de Arlene Ferris, Masom foi encontrar-se, fora da sala de audiência, com Paul Drake e Della Street que estava a tagarelar com Madge Elwood.

- Há esperanças de salvar Arlene? - perguntou Madge.

- Algumas. Esse Jerome Henley meteu, de tal maneira, os pés por entre as mãos, quanto à identificação da jovem que saiu do carro de Loring, que me dá grandes hipóteses de anular-lhe o testemunho, baseado na contradição.

- E se ele nega ter feito uma anterior identificação?

- Não pode, visto que o escrivão registou todo o contra"interrogatório e as respostas que ele deu às minhas perguntas. Agora, vamos almoçar. Quer vir daí connosco?

- Não-recusou Madge. - Não posso, pois tenho um encontro marcado com uma pessoa amiga.

- Então, voltaremos a encontrar-nos, aqui, às duas em ponto. Não falte, Madge.

- Pode estar certo, Mr. Mason, que não faltarei por nada deste mundo. Quero ver Arlene livre disto tudo.

Virando-se para Drake, Mason comentou:

- Há qualquer coisa estranha acerca do estacionamento do carro, defronte da casa de Loring e de Henley.

- Que queres dizer com isso, Perry?

- O agente Lyons passou o talão da autuação, às nove da noite. Ora, Henley testemunhou que viu Arlene arrumá-lo, naquele local, pouco antes da meia-noite. Isto não faz sentido, a menos que o carro tenha ali sido arrumado, duas vezes. Usualmente, a ronda da Polícia passa por um mesmo local, de hora a hora... e só foram passadas mais duas ou três multas, depois da uma da manhã, até o automóvel ser rebocado, às três. Por conseguinte, pergunta-se: que aconteceu ao carro, entre as nove e a meia-noite? Por que motivo o agente de patrulha, Lyons, não tornou a autuá-lo, às dez e às onze, e não mandou que o rebocassem para o parque da Polícia, antes da meia-noite?

Encolhendo os ombros, Drake observou: -Essas coisas, por vezes, acontecem.

- Pois eu pretendo esclarecer o motivo, neste caso, em especial. Creio que Carson não se apercebeu dessa irregularidade. Põe o teu informador, da Polícia, a verificar o pormenor que pode vir a tornar-se importante.

- Okay, Perry... Por que diabo não trouxeste "à baila" o facto de Otto Keswick ser um cadastrado? Podias tê-lo forçado a admiti-lo, no banco das testemunhas, tanto mais que se trata de um chantagista. Perguntaste-lhe se lia romances policiais, mas não aludiste a experiência criminal.

- Certamente que podia tê-lo feito, mas isso em nada contribuiria a favor de Arlene Ferris. Não devemos servir-nos do passado criminal de um homem, a menos que tenhamos algum objectivo concreto. De resto, por enquanto, não me convém alarmar muito esse Otto. Posso ter de contra-interrogá-lo novamente e não quero que deponha como testemunha hostil.

"Contudo, Paul, não deixes de confirmar o seu álibi. Pergunta a Mrs. Sparks se, efectivamente, ele esteve a ver televisão, com ela, até às sete e meia da noite de cinco do corrente e se, na verdade, ele se foi deitar a essa mesma hora... ou se poderia ter voltado a sair.

Manda um dos teus homens fazer essa sondagem e pede-lhe que te faça um relatório por telefone. Gostaria de ter essa informação, quanto antes."

- Okay - resmungou Drake.- Tu e Della vão almoçar, enquanto eu fico a morder o bocal de um telefone. Que raio de ofício me lembrei de escolher!

Quando Drake se dirigiu para a cabina do átrio do tribunal, um homem baixo e pesado, de cerca de quarenta e cinco anos, acercou-se de Mason e postou-se em sua frente, examinando-o atentamente com olhos verdes e frios.

- É Perry Mason? - inquiriu.

O advogado confirmou, com um aceno de cabeça. As mãos do homem permaneceram metidas nas algibeiras do casaco.

- Sou Orval Kingman - apresentou-se.

- Ah, sim? E depois? - replicou Mason.

- No meu negócio, um homem tem sempre um olho a vigiar quem o segue. Se alguém começa a meter o nariz nos meus assuntos, quero logo saber por que se interessa por eles.

Mason examinou o homem que se mantinha diante dele, beligerantemente, com as mãos nas algibeiras.

- E depois? - inquiriu.

- Descobri que os detectives que andavam a farejar o que não lhes dizia respeito, trabalhavam para uma agência de detectives, dirigida por um tal Drake, e que este Drake estava a trabalhar para o advogado Perry Mason, encarregado da defesa de uma tipa qualquer, acusada de ter "esfriado" Loring Lamont.

- E depois?

- Vim aqui dizer-lhe para parar com a "graça".

- Quando me encarrego de um caso, ninguém vem dizer-me o que faça ou deixe de fazer. Você é um contratador de apostas em corridas de cavalos e sei que Loring Lamont apostava por seu intermédio. Além disso, no dia em que Loring foi assassinado, passou-lhe, a si, um cheque no valor de quinhentos dólares que você foi levantar ao banco.

- Muito bem, mas isso não justifica que um advogado se lembre de armar-me em bode espiatório, para tentar salvar um cliente.

- Não estou a armá-lo em bode espiatório, mas, quando encontro factos que possam beneficiar um cliente, não deixo de expô-los em tribunal.

- Isso pode ser pouco saudável para si, advogado.

- Sei vigiar a minha saúde - retorquiu Mason, duramente. - Para já, diga-me o que fez na noite de cinco do corrente?

- Foi para dizer-lho que vim aqui.

- Podia ter começado por isso, em vez de preocupar-se com a minha saúde.

Kingman encolheu os ombros, esticou o grosso pescoço e respondeu:

- Estive numa "jogatana" de poker.

- Desde quando, até quando?

- Desde as sete até à meia-noite.

- Isso pode ser averiguado?

- Pois pode-resmungou Kingman, -mas as pessoas que estiveram a jogar poker comigo não querem ver os seus nomes misturados com este sarilho.

- Recebeu um cheque de Loring Lamont, no dia cinco?

- Sim, mas na manhã do dia cinco.

- A que horas?

- Por volta das dez da manhã.

- Para cobrar uma dívida de jogo?

- De apostas.

- Dava-lhe crédito até quinhentos dólares? - soldou Mason.

- Sim.

- Dar-lhe-ia crédito acima dessa quantia?

- Não faço isso a ninguém, nem que se tratasse do Presidente dos Estados Unidos. Quinhentos dólares é o meu limite.

- E Loring fez a aposta, na manhã do dia cinco.

- Exactamente, sobre a corrida da tarde desse mesmo dia.

- Perdeu ou ganhou?

- Isso faz alguma diferença?

- Acho que sim. Ele pode ter ganho e você, além dos quinhentos dólares, embolsou o prémio. Isso favorece-o no presente caso.

- Não estou a perceber. Por que motivo isso me favorece?

- Porque, se tivesse perdido e devendo ir, como foi, a um jogo de poker, poderia ter necessitado de mais dinheiro. Sendo assim, poderia ter telefonado, à noite, a Loring, a pedir-lhe outros quinhentos dólares, para a "jogatina", avisando-o de que passaria lá por casa, para recolhê-los... em notas.

- É uma linda história, essa que está a inventar. E que mais?

- Você foi à "casa das reuniões", Kingman?

- Acha-me com necessidade de fazer toda essa viagem, só por quinhentos dólares?

- Podia ter tido precisão de dinheiro contado e não em cheque. Para o poker os cheques são, por vezes, "indigestos".

- Deixe-se de tretas, advogado. Aonde quer chegar?

- Que você, Kingman, tendo ido à "casa das reuniões" sacar essa "massa", poderia ter discutido com Loring e ultimado a discussão com uma facada nas costas.

- Pensa, porventura, que eu iria falar com ele, levando uma faca de trinchar no bolso das calças?

- A faca estava na gaveta da cozinha.

- Essa ideia não tem pés nem cabeça. Não se esqueça, advogado, de que Loring Lamont era meu cliente. Pagava sempre bem. Era uma das minhas "galinhas de ovos de ouro" e em nenhum negócio se destrói a capoeira. Loring não queria que o papá Jarvis soubesse que ele tinha o vício das apostas grossas e eu sou um tipo que sabe manter a boca fechada. Ele confiava em mim e eu sabia que podia confiar nele, pois nunca lhe faltava dinheiro.

- E não teriam discutido, por causa de uma mulher?

- Tenha juizo, advogado! - exclamou Kingman com um esgar que, só por eufemismo, se diria um sorriso. - No meu negócio, há mulheres aos "montes", algumas com tanto dinheiro como Loring e outras que estão sempre dispostas a pagar as dívidas com aquilo que o Diabo lhes deu... e sem trabalharem. Mulheres não me faltam.

- Podia tratar-se de uma mulher, especial para si.

- Para mim, não há qualquer fêmea especial e, negócio é negócio. A sua teoria, advogado, baseia-se na hipótese de eu ter ido à "casa das reuniões" buscar quinhentos dólares, porque tencionava ir jogar poker. Então, Loring ter-me-ia dito:

"-Okay, Orvai. Tive um encontro com um "borrachinho" que me deu com as "patas" e se pôs a "cavar", íamos comer uns ovos com presunto... ou com bacon, ou lá o que era... que já devem estar frios, mas é uma pena estragar-se um petisco tão bom! Sente-se aqui comigo e vamos comê-los. Então eu, depois de já ter jantado, sentei-me e comi-os, apesar de estar cheio de pressa para ir jogar poker, com a "malta" que já se encontrava à minha espera. É uma boa teoria, não haja dúvida! Se isso é uma amostra do seu intelecto, advogado, parece que o que consta a seu respeito não passa de um boato publicitário!

- Como soube tudo isso, a respeito dos ovos com bacon?

- No meu negócio, temos amigos na Polícia.

- Pois bem, Kingman. Mesmo não tendo comido os ovos, pode ter discutido com Loring e pode tê-lo esfaqueado.

- Sejamos lógicos, advogado. Eu recebi ou não o cheque?... Se o recebi, por que iria pedir-lhe outros quinhentos dólares, em vez de pagar-lhe o prémio que ele ganhou? Por que raio me lembraria de questionar com ele?

- É isso que estou a investigar.

- Pode investigar à sua vontade. Para seu conhecimento, recebi o cheque dos quinhentos dólares às dez da manhã e fui levantá-lo antes das duas da tarde. Por outro lado, quando me apetece jogar poker, não preciso de pedir dinheiro, seja a quem for. Tenho sempre notas de cem e até de quinhentos, de reserva. Faz parte da profissão.

- Muito bem, Kingman. Indique-me os nomes dessa gente que esteve a jogar consigo.

- Já lhe disse, advogado, que os meus parceiros não querem ver-se envolvidos numa investigação.

- É muito provável que o não queiram, mas tenho motivos para acreditar que Loring Lamont falou consigo ao telefone, na noite de cinco do corrente, antes de ser assassinado. Alguma vez Loring o tratou pelas suas iniciais?

- Nunca me tratou pelo apelido e simplesmente por Orval.

- Nunca o tratou por OK?

Kingman abriu muito os olhos cinzentos, fixos em Mason, e respondeu:

- Nunca ninguém me tratou por "okay".

- Muito bem. Dê-me uma lista com os nomes dos seus parceiros de poker.

Kingman abanou a cabeça e replicou:

- Já lhe disse que não direi quaisquer nomes.

Mason tirara um papel da algibeira e pegara na lapiseira, como se estivesse pronto a tomar nota.

- Escusa de insistir - resmungou o contratador de apostas. - Daqui não leva nada.

Mason escreveu qualquer coisa e estendeu o papel a Kingmam.

- Aqui tem uma contrafé para comparecer na audiência deste tribunal, às duas horas em ponto. Virá depor como testemunha da Defesa.

Kingman corou, furioso.

- Vim aqui falar consigo, para levar as coisas a bem.

- E eu tenho estado a falar consigo, para levar as coisas a bem - redarguiu Mason. - Ou me indica os nomes dos parceiros com quem jogou poker, a fim de que eu possa verificar o seu álibi, ou sento-o no banco das testemunhas, sujeitando-o a um interrogatório em que terá de badalar muito mais do que isso. É só escolher o que mais lhe convém.

Como resposta, Kingman tirou um bloco-notas do bolso, e, agora pálido de raiva, começou a escrever. Depois, rasgou a folha, entregou-a a Mason e precisou:

- Estão aqui cinco nomes. Esses tipos não vão gostar do que estou a fazer. Portanto, quando os interrogar, seria melhor dizer-lhes que se trata de uma investigação meramente particular e confidencial, acerca do período em que estive a jogar com eles, na noite do dia cinco... Marquei dois nomes, com uma cruz, e preferiria que começasse por eles. São jogadores profissionais e já estão familiarizados com essa história de confirmação da álibis. Não quero dizer que estejam dispostos a mentir, mas não ficam tão chocados com a ideia, como os outros três que são homens de negócios... e maus jogadores de poker.

- Perderam, nessa noite?

- Sim... A sorte não quis nada com eles.

- E estes dois, cujos nomes marcou com uma cruz, ganharam?

- Por acaso, ganharam, como eu ganhei.

- Por acaso?

- Bem... nós somos profissionais e eles são "papalvos", convencidos de que podem levar-nos com os seus bluffs ingénuos. Ninguém os obriga a virem tentar "sacar-nos" umas "massas". Se o feitiço se vira contra o feiticeiro, isso é lá com eles.

- Jogo limpo?

- Sim, jogo limpo. Nunca usámos de truques nem cartas marcadas, mas, mesmo que o jogo tivesse sido viciado, isso não me tornaria assassino de Loring Lamont.

- Okay - contemporizou Mason.- Não quero abusar dos poderes que a Lei me confere. Se você esteve mesmo nesse jogo de poker, nada terá a recear. Só pretendo confirmar o seu álibi. Já pusemos as nossas cartas na mesa.

- Isso serve-me, Mr. Mason.

- E, num gesto brusco, Kingman tirou a mão direita da algibeira e estendeu-a a Mason.

Este apertou-lha e Kingman acrescentou:

- Disseram-me que o senhor era fixe, quando se lidava consigo, com lealdade. Só quis ter a certeza de que era esse o caso.

- Esteve com Loring, no dia cinco, ou contactou com um emissário?

- Ele próprio me entregou o cheque, por volta das dez horas da manhã, mais minuto, menos minuto. O cavalo em que apostou ganhou... não o "bolo", mas um segundo prémio. Se Loring estivesse vivo, tê-lo-ia recebido. Como morreu, fico eu com ele. Se perdesse, tendo apostado a crédito, teria sido eu o prejudicado. Tudo isto faz parte do jogo. Sou um contratador de apostas. Neste momento, embolsei mil e quinhentos dólares, mas ninguém pode prová-lo e, eu seja cão, se alguma vez pensar em ir entregá-los a Jarvis Lamont... tanto mais que o filho não queria que o pai soubesse... e devemos sempre respeitar a vontade dos mortos.

Kingman riu friamente, inclinou-se numa curta vénia, voltou as costas e retirou-se pesadamente.

Mason consultou Della Street com os olhos; depois sondou:

- Qual é a sua intuição feminina, Della?

- As últimas palavras desse sujeito levaram-me a acreditar que falou verdade.

- Tive essa mesma impressão. Vou dizer a Drake que investigue o álibi, junto dos parceiros de jogo, mas com diplomacia e sem fazer "ondas". Não há dúvida de que aquele sinal de OK, no talão do cheque que fotografámos, começa a revestir-se de grande importância.

- Esse OK - observou Della Street - pode ser um sinal de código e não as iniciais de um nome.

- Se for um código, teremos de decifrá-lo. Vamos, Della. Já pouco tempo nos resta para almoçar.

 

Cinco minutos antes das duas horas da tarde, quando Perry Mason e Della Street entravam no tribunal, Paul Drake emergiu de uma cabina telefónica e acercou-se de ambos, anunciando:

- Essa história das multas está confirmada. Às vinte e uma horas do dia 5, o agente Lyons pôs um talão de autuação, no pára-brisas do carro de Loring, e saiu de serviço à meia-noite menos dez. Depois dessa hora, a patrulha que o rendeu colocou mais dois talões de multa. Às três da manhã um reboque da Polícia foi retirar o carro e levou-o para o parque das viaturas, "caçadas" em contravenção.

- E entre as nove e a meia-noite, Lyons não colocou mais talões de multa?

- Parece que não, embora não faça muito sentido, pois a sua passagem de ronda por ali é de hora a hora.

- Bem, terei de contra-interrogar Lyons a esse respeito.

Foi esta pretensão que Mason expôs ao juiz Bayton, quando se reabriu a audiência.

- Considera muito importante o depoimento dessa testemunha, Mr. Mason? - perguntou o juiz.

- Sim, senhor Doutor Juiz.

- Se o Tribunal me permite - interveio Carson,- a Acusação não contava com a presença do agente Lyons, nesta audiência preliminar. Terá de ser procurado e não sabemos quando poderá comparecer. De resto, a Acusação não tem interesse em sujeitá-lo a um interrogatório, por tratar-se de um testemunho dispensável, já que se cinge a uma autuação.

- A Defesa - replicou Mason: - considera fundamental o contra-interrogatório do agente Lyons, para determinação da cronologia dos factos.

- Muito bem - decidiu o juiz Bayton.- O senhor Adjunto do Procurador do Distrito diligenciará no sentido de que essa testemunha compareça no Tribunal, o mais rapidamente possível. Entretanto, poderá chamar o tenente Tragg do Departamento de Homicídios, como já fora estipulado pela Acusação.

O tenente Tragg sentou-se no banco das testemunhas, após ter sido ajuramentado, e olhou para Carson, aguardando as perguntas do adjunto.

Este indagou:

- Deslocou-se a um local denominado Chatsworth, no limite desta cidade, onde se situa uma casa, destinada a reuniões dos administradores da "Lamont Rolling, Casting and Engineering Company", na tarde do dia seis do corrente?

- Sim, sir.

- E encontrou o cadáver de Loring Lamont, dentro dessa casa?

- Não, sir. O corpo da vítima já tinha sido removido pelo pessoal da Polícia, quando lá cheguei.

- Muito bem, Tenente. Vamos abreviar este interrogatório, abstendo-nos de mencionar todos os pormenores do exame das premissas. Diga-me, Tenente, se esteve presente na morgue, quando se procedeu à revista dos bolsos da vítima, Loring Lamont?

- Sim, estive presente.

- Encontrou algum objecto particular, fora do vulgar?

- Encontrei parte de um distribuidor eléctrico de motor de automóvel.

- Tem esse mecanismo em seu poder?

- Sim, sir.

- Queira ter a bondade, Tenente, de exibi-lo e entregá-lo ao Tribunal, a fim de ser apenso ao processo, como prova número 7.

Tragg extraiu um sobrescrito da algibeira, abriu-o, expôs a parte do distribuidor que pertencera ao carro de Arlene Ferris e entregou-a ao escrivão.

- Sabe dizer-me, Tenente, se um automóvel pode andar sem esse mecanismo?

- Não poderá andar, visto que o distribuidor faz parte do sistema de ignição, entre a bateria e o motor.

- E foi encontrado na algibeira do morto?

- Foi, sim.

- Teve ocasião de examinar o carro da ré deste caso, Arlene Ferris?

- Sim, sir.

- Obteve provas de que esse distribuidor pertencera ao carro da ré?

- Sim, sir.

- Sabe se, na noite do dia cinco do corrente, o automóvel da ré estava em condições de circular? Efectuou alguma investigação, nesse sentido?

- Sim, sir.

- Que averiguou?

- Que o carro da ré esteve no parque de estacionamento da "Lamont Company", desde a tarde do dia cinco até à manhã do dia seis, altura em que um mecânico veio reparar a avaria, instalando a parte do distribuidor que faltava.

Muito bem. Chamo agora a sua atenção, Tenente, para o interrogatório efectuado pela Polícia, no dia sete do corrente, após a detenção da ré, Arlene Ferris. O senhor esteve presente a esse interrogatório, só ou acompanhado?

- Efectuei pessoalmente o interrogatório, sendo coadjuvado por outro oficial da Polícia, sargento Raph Grave, e por uma estenodactilógrafa da Corporação.

- A ré foi, porventura, submetida a qualquer coerção física ou moral, ou foi-lhe feita qualquer promessa de benevolência policial, caso prestasse declarações, clara e abertamente?

- Não, sir. Não lhe foi feita qualquer promessa nem foi objecto de qualquer intimidação. Apenas a avisei dos seus direitos constitucionais.

- Interrogou-a acerca dos factos ocorridos na tarde e na noite do dia cinco do corrente? Pode fazer uma síntese do registo das declarações da ré?

- Posso, sim. Arlene Ferris declarou ter tentado, após sair da companhia onde trabalha, pôr o seu carro em andamento, sem o conseguir. Loring Lamont ofereceu-lhe uma boleia, mas, em vez de conduzi-la a casa, imediatamente, levou-a para a "casa das reuniões" dos administradores da companhia. Essa casa é propriedade de Mr. Jarvis Lamont, pai da vítima. Esta também a utilizava frequentemente. A ré cozinhou biscoitos do género pão e Loring Lamont confeccionou ovos com bacon. Em seguida, a ré teria sido alvo das investidas amorosas do seu hospedeiro e, após uma breve luta com este, para não ser violada, abandonou, a pé, a referida casa. Contudo, Loring Lamont perseguiu-a na estrada, com o seu automóvel. A ré, para esconder-se, rastejou por debaixo da vedação de arame farpado que separa a berma da estrada do terreno arborizado. Loring Lamont parou o carro e começou a seguir-lhe as pegadas. A ré, então, retrocedeu pelo terreno arborizado e conseguiu apoderar-se do automóvel de Loring Lamont. Então, regressou à cidade e foi estacionar o carro junto de uma boca de incêndio, defronte do prédio onde Loring Lamont tinha o seu apartamento. Foi este o relato feito pela ré, devidamente registado em processo.

- Muito bem, Tenente. A ré mencionou a hora a que isso sucedeu?

- Refere-se, sir, ao abandono do automóvel da vítima, junto da boca de incêndio?

- Sim.

- A ré indicou serem cerca das oito e um quarto, oito e meia da noite.

- Estacionou o carro, deliberadamente, rente à boca de incêndio?

- Sim.

- Deixou as chaves do automóvel no painel da ignição?

- Sim.

- Muito bem. Chamo agora a sua atenção, Tenente, para a refeição de ovos com bacon. A ré iniciou a altercação com a vítima, antes ou depois de terem comido essa refeição?

- A ré declarou ter a discussão começado antes dessa refeição e afirmou não ter chegado a comer coisa alguma.

- Contudo, quando examinou as premissas no local do crime, que verificou?

- Que os ovos com bacon tinham sido servidos em dois pratos, com os respectivos talheres, e que dessa refeição só restavam resíduos em ambos os pratos e nos referidos talheres.

- Portanto, as declarações da ré não foram corroboradas pela investigação policial?

- Não, sir. As declarações da ré estão em contradição com os factos detectados.

- Quanto ao carro de Loring Lamont, houve o cuidado de ser examinado pela Polícia? Foram relevadas impressões digitais?

- Sim, sir. Foram detectadas impressões digitais da ré no espelho retrovisor desse carro, particularmente uma muito nítida, no reverso do mesmo espelho; também noutros locais da viatura, embora o facto de esta ter sido removida para o parque da Polícia prejudicasse a detecção de mais impressões digitais, no volante e no fecho interior da porta.

- Procedeu a outras investigações, na estrada onde a vítima teria perseguido a ré?

- Sim, sir. Seguimos as pegadas, tanto da ré como as da vítima, entre outras, ulteriores, impressas quando o piso já não estava tão molhado.

- Que mais encontrou, Tenente?

- Uma pretensa prova, "plantada" pela ré, ou por alguém em seu favor, com o objectivo de corroborar as declarações prestadas à Polícia.

O juiz Bayton olhou para Perry Mason, depois para Cairson e novamente para a testemunha. Depois sondou:

- A Defesa não deseja apresentar objecção, por tratar-se de uma conclusão da testemunha?

Mason, tranquilamente, elucidou:

- Certamente que a Defesa poderia objectar contra essa conclusão da testemunha, mas prefere ter ocasião de explicitar esse ponto, quando do contra-interrogatório.

- Contudo - estranhou o juiz, -a testemunha não pode saber se a ré, ou alguém, "plantou" a tal prova,

- Se o Tribunal me permite - interveio Carson, com um sorriso cínico, - a testemunha sabe Que se trata de uma pseudoprova "plantada". Por esse motivo, a Acusação aguarda, com particular interesse, o contra-interrogatório da Defesa.

- De qualquer modo - observou o juiz, --a situação é invulgar. Segundo as normas, a Defesa devia objectar a uma conclusão da testemunha cujo depoimento tem de cingir-se ao conhecimento dos factos.

- A Defesa - respondeu Mason, -tem motivos para confiar numa conclusão provinda de um perito altamente experiente na detecção de premissas. Por conseguinte, abstém-se da objecção.

- Queira prosseguir, Mr. Carson - determinou o juiz Bayton, de sobrancelhas franzidas.

O adjunto do procurador do Distrito, sorrindo, pediu a Tragg:

- Diga-nos o que descobriu, Tenente.

- Na manhã do dia sete, antes de termos interrogado a ré, verificámos que tinha sido cortado de uma das suas saias, um pedacinho de tecido e que esse corte fora executado por uma lâmina, provavelmente de canivete. Mais tarde, viemos a encontrar esse fragmento de tecido cravado numa farpa do arame da vedação que ladeia a estrada do desvio, de acesso a "casa das reuniões". Alguém fora "plantar" aí essa prova fictícia.

"Detectámos, então, no mesmo local, vestígios da presença de sapatos de mulher, com saltos altos, e o rasto deixado por essa mesma mulher ao ter rastejado sob o arame farpado da vedação, em ambos- os sentidos."

- E tem a certeza, Tenente, de que esse rasto não foi deixado pela ré?

- Absoluta. As pegadas da ré deveriam estar muito mais nítidas, na berma da estrada, por datarem da noite de cinco do corrente, quando a terra se achava mole, em virtude da chuva que, nesse dia, caíra quase incessantemente. Ora estes novos vestígios e rastos foram deixados, depois de a terra já ter endurecido sensivelmente.

- E descobriu de onde fora cortado aquele pedaço de fazenda a que, há pouco, se referiu?

- Sim, sir. Fora cortado de uma saia da ré que, tentadoramente, alguém colocara, bem à vista, no apartamento da ré, para que, aí, não tivéssemos dificuldade em descobri-lo.

- Tem essa saia em seu poder, Tenente?

- Sim, sir.

- Pode exibi-la?

Tragg abriu um embrulho e apresentou a saia que Madge Elwood usara, depois de ter estado, com Perry Mason, no apartamento de Arlene Ferris.

- Tem o pedaço de tecido consigo, Tenente? - perguntou Carson.

- Sim, sir.

- Tenha a bondade de exibi-lo.

Tragg abriu um sobrescrito e extraiu o pedacinho de fazenda que Mason cortara àquela saia.

- Este pedaço de tecido, de forma triangular, adapta-se à saia da ré? - indagou Carson, aparentemente muito satisfeito.

- Adapta-se perfeitamente.

De cenho cerrado, o juiz Bayton inclinou-se para a frente, para melhor ver as provas e, em seguida, fitou Perry Mason, com uma expressão censuradora.

- Por favor, Tenente - pediu Carson, tentando esconder o seu regozijo, -queira permitir que o Tribunal examine essas provas.

Tragg estendeu a saia e o fragmento de tecido ao juiz.

Entretanto, o adjunto do procurador do Distrito solicitava que os dois artigos têxteis fossem apensos ao processo, como provas 8 e 9.

- A Defesa deseja examinar estas provas? - perguntou Bayton.

- Certamente - respondeu Mason. - E desejo também contra-interrogar a testemunha.

Sorrindo perguntou:

- Sugeriu, há pouco, Tenente, que estas provas foram colocadas, "tentadoramente", para confirmar as declarações da ré?

- Não pode haver outra explicação - replicou Tragg.

- Testemunhou que a saia, de que se extraiu o pedaço de tecido, pertence à ré?

- Bem... Foi encontrada no seu apartamento e tem as suas medidas.

- Mas investigou onde a ré teria comprado essa saia?

- Não.

- Porquê?

- Porque não achei necessária essa perda de tempo.

- Essa saia tinha alguma marca de lavandaria?

- Sim. Tinha um número de código geralmente usado pelas lavandarias.

- E não se deu ao trabalho de procurar essa lavandaria?

- Não. Ainda não.

- Nesse caso, como se permitiu afirmar que a saia pertence à ré?

- Já expliquei que tirei essa conclusão do facto de ter as medidas da ré e de achar-se no seu apartamento.

- Desta vez, sem prova concludente, trata-se de uma conclusão imaterial. Diga-me, Tenente, o pedaço de tecido atraiu a sua atenção, quando o viu cravado numa farpa do arame da vedação?

- Sim, evidentemente.

- E o facto de ter visto esse pedaço de fazenda levou-o a examinar cuidadosamente o terreno?

- Certamente. Chamou-me a atenção para as restantes pegadas, impressas na berma, na noite de cinco do corrente.

- Por essa razão, chegou à conclusão de que se tratava de uma falsa prova, destinada a corroborar as declarações da ré?

- Essa pergunta requer uma opinião. Portanto, passo a emiti-la. Acredito que a ré matou Loring Lamont; depois disso inventou a história de que fora perseguida na estrada e pensou em "plantar" vestígios dessa perseguição para comprovar as suas declarações à Polícia.

- Mas isto é uma conclusão da testemunha - observou o juiz Bayton.

- O Tenente Tragg é um perito policial - sublinhou Carson.

- E a Defesa não apresenta qualquer objecção? - admirou-se o juiz.

- A Defesa pergunta à testemunha se apenas examinou as pegadas, no local onde encontrou o pedaço de fazenda.

- Obviamente, não ia examinar toda a estrada. A minha atenção foi despertada pela pseudoprova, intencionalmente ali "plantada". Bastou-me verificar a dureza do solo e a natureza dessas pegadas, para concluir que tinham sido impressas em data posterior à da chuvada de cinco do corrente.

- Mas não examinou outro local da berma da mesma estrada, perto daquele onde encontrou o pedaço de tecido?

- Não, naturalmente. Não era necessário.

- Quer dizer que a Polícia não procurou verificar a veracidade das declarações da ré?

- Não. Bastou verificar as provas falsas ali "plantadas" para confirmar essas declarações. Se alguém as "plantou" com essa finalidade, foi, logicamente, por não haver outras. Se houvesse provas reais, ninguém se incomodaria a fabricar provas fictícias.

- E a Polícia não considerou a hipótese de as provas fictícias terem sido "plantadas" propositadamente para chamar a atenção para outras provas reais que, de outra maneira, teriam passado despercebidas à investigação?

- Não. A Polícia não considerou essa hipótese, destituída de senso comum. Se houvesse provas reais, não teria sido necessário "plantar" falsas.

- A Defesa, se o Tribunal o permite, requer uma mais cuidada investigação, por parte da Polícia, no sentido de se detectarem outras pegadas, mais nítidas, na berma da mesma estrada onde foram detectadas as fictícias. Como não tem chovido e se trata de uma estrada particular onde apenas passam automóveis, se existirem pegadas, impressas na noite chuvosa de cinco do corrente, poderão ser ainda facilmente relevadas.

- O Tribunal assim o determina - decidiu o juiz, olhando para Tragg.- A Polícia deverá efectuar essa investigação.

Tragg, após um quase imperceptível encolher de ombros, fez um aceno de assentimento, acatando a ordem do Tribunal.

- Encontrou provas físicas que contrariem as declarações da ré? - perguntou Carson.

- Sim, numerosas - respondeu Tragg.

- Queira mencioná-las, Tenente.

- Para começar, os saltos dos sapatos da ré não tinham sinais de lama; também o seu vestido não apresentava o menor vestígio de ter andado a rastejar, por debaixo de uma vedação de arame farpado, não lhe faltava qualquer pedaço de tecido, nem sequer apresentava o mínimo rasgão. Quanto à refeição de ovos com bacon, que a ré declarou não ter ingerido, foi efectivamente comida, por duas pessoas, em pratos separados.

Triunfalmente, Carson virou-se para Mason e concedeu :

- A Defesa pode contra-interrogar.

- Antes de interrogar a testemunha - declarou Mason, - a Defesa deseja sublinhar que não se provou que o vestido e os sapatos, encontrados no apartamento da ré, lhe pertençam; as medidas e o facto de esses objectos terem sido encontrados no apartamento da ré não constituem prova alguma.

Virando-se para Tragg, prosseguiu:

- A Polícia não encontrou sapatos e umas calças de Loring Lamont sujos de lama?

- Sim - respondeu Tragg, - mas a Polícia considerou esses artigos de vestuário como sendo outras provas fictícias, "plantadas" para confundir as investigações... tal como o tinham sido as pegadas e o pedaço de tecido.

- É sempre perigoso, Tenente - advertiu Mason,- fazerem-se conclusões não baseadas em provas. Sugiro que a Polícia verifique, no seu laboratório, se essas manchas de lama não teriam resultado de um percurso da vítima, em perseguição da ré, pela berma da estrada. Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha.

- A Acusação deseja reinterrogar o Tenente Tragg?

- Sim, senhor Doutor Juiz, em virtude do desenvolvimento do debate sobre este ponto que considero essencial.

Voltando-se para Tragg, Carson inquiriu:

- Identificou os sapatos que a vítima usava, quando foi encontrada morta na "casa das reuniões"?

- Sim, sir.

- Pode apresentar esses artigos de vestuário no Tribunal?

- Certamente, mas não se encontram aqui. Serão necessários dez minutos...

- Muito bem - interrompeu o juiz. - Determino um intervalo de dez minutos.

Depois de o juiz ter-se retirado para o seu gabinete, Mason avisou Arlene Ferris:

- Se me mentiu, não sei como poderei defendê-la eficientemente.

- Juro-lhe, Mr. Mason, que apenas lhe relatei toda a verdade. Não teria Loring mudado de fato, depois de eu ter fugido no seu carro?

- E onde teria ele ido buscar outro fato?

- Talvez o assassino lho tivesse levado.

- Certamente! - retorquiu Mason, com um sorriso sarcástico. - Tente impingir essa teoria a um júri. O assassino previu, por artes mágicas, que você ia lutar violentamente com Loring; adivinhou que você conseguiria roubar-lhe o carro; foi à "casa das reuniões" com outros sapatos, outras meias e outro fato; esperou que Loring voltasse à casa e, então, apunhalou-o pelas costas. Depois, abriu-lhe a boca e despejou-lhe para o estômago um prato de ovos com bacon; despiu-o e tornou a vesti-lo. Experimente contar essa história a um júri e verá o lindo enterro que leva!

Arlene Ferris estava prestes a chorar.

- Mas... Mr. Mason... foi, decerto, o que aconteceu.

Mason abanou a cabeça e rodou-a para o lado.

Nesse momento, Tragg regressava à sala de audiências com um embrulho debaixo do braço.

Quando o juiz reapareceu, tomando o seu lugar, a audiência prosseguiu, lendo Carson chamado o tenente do Departamento de Homicídios.

- Trouxe os artigos de vestuário que a vítima usava, quando o seu cadáver foi descoberto?

- Sim, sir.

- Queira, por favor, exibir os sapatos.

Depois de Tragg tê-los extraído do embrulho, Car-son perguntou:

- Tem a certeza, Tenente, de que se trata precisamente dos mesmos sapatos?

- Sim, sir. A Polícia limitou-se a fazer-lhes, nas solas, uma marca a giz para identificação.

Carson levantou-se, pegou nos sapatos que Tragg lhe estendia e foi entregá-los a Mason. Este devolveu-os, com uma fisionomia inexpressiva.

- Proponho que estes sapatos sejam apensos ao processo - disse o adjunto do procurador do Distrito.

- Um momento - interveio Mason. - Se o Tribunal me permite, desejo contra-interrogar a testemunha acerca desse ponto.

- Pode contra-interrogar- disse Bayton, - mas o

Tribunal agradece-lhe que seja breve, visto tratar-se de uma prova indiscutível.

- Mason limitou-se a sorrir e indagou:

- Tem alguma prova, Tenente, de que esses sapatos são, precisamente, os que Loring Lamont usava, no momento em que foi assassinado?

- Apenas sei que são os sapatos que ele usava, quando vi o cadáver, pela primeira vez.

- Fez algum esforço para procurar outros sapatos e calças, na casa onde encontrou a vítima?

- Certamente que revistei a casa de ponta a ponta - replicou Tragg com um tom de voz que exprimia certa indignação. - Loring Lamont não tinha qualquer outro fato ou calçado na "casa das reuniões". Só havia equipamento de desporto incluindo fatos de banho, chinelas e sapatos de ténis.

- Essa casa estava provida de bebidas e de alimentos?

- Sim. Tinha todo o género de bebidas e de alimentos enlatados ou congelados. Só não encontrei pão. Em contrapartida, deparei com uma caçarola onde foram cozinhados biscoitos do tipo pão e uma frigideira com resíduos de ovos com bacon. A caçarola, pelos seus resíduos, indicava terem sido feitos doze biscoitos, cujas marcas estavam bem distintas. Contudo, só se achavam seis desses biscoitos no cesto para pão. Além disso, encontraram-se dois pratos e os respectivos talheres sujos de ovos com bacon que tinham sido comidos. Também encontrámos chávenas e pires.

- Quantos pires e chávenas? - perguntou Mason.

- Duas chávenas e dois pires, cada qual do seu lado da mesa. As chávenas tinham resíduos de café. Encontrámos uma máquina de fazer café e, na cozinha, os utensílios que tinham servido a confeccionar a refeição já mencionada.

- Por agora - declarou Mason, - não tenho mais perguntas a fazer à testemunha.

Carson perguntou a Tragg:

- Diga-me, Tenente, o que sabe acerca das calças. Pode apresentá-las ao Tribunal?

Tragg tirou, do embrulho, um par de calças.

- São as que a vítima usava quando foi encontrada pela Polícia?

- Sim, sir.

- Chamo a sua atenção para as manchas que se vêem na parte posterior das calças. Pode identificá-las?

- Sim, sir. São manchas de sangue.

- Essas manchas já se achavam nas calças, quando a vítima foi encontrada?

- Sim, sir.

- Peço ao Tribunal que estas calças sejam apensas ao processo.

- Não há objecção - disse Mason, desinteressadamente.

- A Defesa não deseja ver esta prova? - perguntou o juiz Bayton.

- A Defesa - respondeu Mason - dispensa o exame da prova, mas pretende contra-interrogar a testemunha.

- Faça o favor, Mr. Mason - concedeu o juiz.

- Disse, há pouco, Tenente, que examinou a "casa das reuniões", de "ponta a ponta"?

- Sim. Nada deixei por revistar, à procura de provas materiais.

- Viu uma escrivaninha?

- Certamente que vi uma escrivaninha.

- Examinou os papéis que ela continha?

- Vi que tinha várias facturas e recibos e um livro de cheques do "Califórnia Second National".

- Com alguns talões cortados pelo picotado?

- Sim, sir.

- Sabe a quem pertence esse livro de cheques?

- Verificámos que a caligrafia inscrita em alguns desses talões era de Loring Lamont... e que os respectivos cheques, enviados ao banco, tinham a assinatura do mesmo Loring Lamont.

- Todos os cheques foram recebidos?

- Bem... Faltou um.

- Que cheque não foi levantado?

- Um cheque no valor de quinhentos dólares, segundo o respectivo talão, não foi apresentado no banco para o devido pagamento.

- Em nome de quem fora passado esse cheque?

- De ninguém.

- Que quer dizer com isso?

Tragg encolheu os ombros e elucidou:

- Um dos talões tinha registado a passagem de um cheque de quinhentos dólares e apresentava a indicação de OK, para indicar que fora enviado ao destinatário. Contudo, o banco não recebeu esse cheque para pagamento.

- É uma conclusão sua, Tenente, o que refere acerca dessa marca OK?

- Bem, se deseja apenas factos, encontrei um talão que unicamente menciona a importância de quinhentos dólares e a marca OK.

- Sabe se essa marca OK foi redigida pelo punho de Loring Lamont?

- Não, sir.

- Não sabe? Mas sabe que o cheque arrancado desse talão foi passado no dia da morte de Loring Lamont, não é verdade?

- Não, sir. O talão não tinha data alguma.

- Contudo - acentuou Mason, - o talão imediatamente anterior tinha a data de cinco do corrente, ou seja a data do crime. Portanto, o cheque imediato, não podia ter uma data anterior, nem posterior à morte de Loring Lamont.

- Objecção - interpôs Carson. - A pergunta é argumentativa e exige uma conclusão da testemunha.

- Efectivamente - interveio o juiz Bayton, - a pergunta é argumentativa, mas creio que absolutamente lógica. O Tribunal gostaria de ouvir a opinião da testemunha a esse respeito.

- Na minha opinião - respondeu Tragg, -Loring Lamont começou por passar um cheque a Orval Kingman, no valor de quinhentos dólares, mas verificou que saltara uma página do livro, ou que se enganara a preenchê-la. Portanto, teria inutilizado esse cheque e teria registado, no respectivo talão, as letras OK, para recordar-se desse lapso e que tudo estava correcto.

- Não lhe parece muito estranho que uma pessoa possa passar duas páginas de um livro de cheques e preencha esse segundo cheque, sem reparar no primeiro que está logo a seguir ao grupo de talões, cortados pelo picotado?

- Sim, é estranho, mas não impraticável. Não posso adivinhar o que se tenha passado. Apenas preciso um facto.

- E não apresenta esse livro de cheques como prova a ser apensa ao processo?

- Prova de quê?

- Das actividades da vítima, no último dia da sua vida.

- Não, sir. Limitei-me a fazer uma lista dos talões do livro de cheques.

- Onde se encontra, presentemente, esse livro de cheques?

- Que eu saiba, permanece na mesma escrivaninha. Foram essas as instruções que dei a Miss Sadie Rich-mond, quando me telefonou a informar que o senhor, Mr. Mason, lhe aconselhara a referir à Polícia ser esse livro de cheques uma possível prova.

- Um momento - interveio o juiz. - Este interrogatório já está a ir longe de mais. De uma opinião da testemunha, passou-se a declarações por "ouvir dizer". A Defesa tem alguma razão especial para focar este assunto?

- Tudo indica que Loring Lamont levava esse livro de cheques consigo, quando entrou na "casa das reuniões". Na opinião da Defesa, Loring Lamont passou o último cheque a alguém cujas iniciais são OK. Como estava com pressa, utilizou essas iniciais em vez do nome completo.

- Muito bem, Mr. Mason-disse o juiz, - mas que pretende provar com isso?

- Pretendo provar que mais alguém, nessa mesma noite, esteve com a vítima na "casa das reuniões".

- Compreendo. Sendo assim, o livro de cheques pode ser apenso ao processo, a pedido da Defesa. Tem mais perguntas a fazer à testemunha, Mr. Mason?

- Não, senhor Doutor Juiz. É tudo.

- Nesse caso - propôs Carson, - como a Acusação não tem mais testemunhas a chamar, podemos iniciar as alegações.

- Objecção - interpôs Mason. - A Defesa não chegou a ouvir o depoimento verbal do agente Lyons, como foi previsto durante a audiência da manhã.

Carson começou a conferenciar com um oficial da Polícia que tinha atrás de si e esclareceu:

- Se o Tribunal me permite... ocorre uma situação embaraçosa. Parece que hoje é o dia de folga do agente Lyons. Não sabemos onde poderá ser encontrado, neste momento. A Acusação lamenta imenso este imprevisto e espera que a Defesa dispense o depoimento da testemunha em causa.

- A Defesa - insistiu Mason - tem o privilégio de ouvir o agente Lyons, em contra-interrogatório, tanto mais que o interrogatório directo foi efectuado pela Acusação, fora deste Tribunal, limitando-se a transmitir uma síntese das declarações da testemunha.

O juiz Bayton anuiu, cerrando o cenho.

- Certamente que a Defesa tem o direito de contra-interrogar essa testemunha, após o interrogatório directo da Acusação. Contudo, dado o adiantado da hora, o Tribunal sugere que Mr. Mason dispense a presença do agente Lyons, a menos que o seu testemunho se torne essencial para a Defesa e, sendo assim, o Tribunal desejaria ouvir, sucintamente, o que Mr. Mason pretende provar com esse mesmo testemunho.

- A Defesa não deseja expor a sua táctica perante a Acusação. Portanto, se o Tribunal me permite, insisto em contra-interrogar o agente Lyons.

- Nesse caso - retorquiu o juiz Bayton, mal humorado,- esta audiência terá de ser adiada para amanhã, às dez da manhã. O senhor Adjunto do Procurador do Distrito fará as diligências necessárias para que o agente Lyons esteja presente, a fim de testemunhar em interrogatório directo e em contra-interrogatório. Apesar de todos os inconvenientes deste adiamento, o Tribunal reconhece os direitos invocados pela Defesa.

Depois de a audiência ter sido adiada e de o juiz ter saído da sala, Mason virou-se para Arlene Ferris e inquiriu, em voz baixa:

- Tem alguma coisa a dizer-me, acerca das acusações que ouviu?

Com os olhos quase marejados de lágrimas, a jovem mordeu os lábios e abanou a cabeça, numa negativa muda.

- Muito bem, Arlene. Ver-nos-emos amanhã de manhã.

 

Sentado no seu gabinete, Perry Mason tamborilava com as pontas dos dedos no tampo da secretária. Num cinzeiro, à sua mão direita, um cigarro ia-se consumindo lentamente.

Defronte dele, Della Street, conhecendo os hábitos temperamentais do advogado, matinha-se imóvel, com o bloco-notas e o lápis prontos a serem utilizados. Não queria interferir com a concentração de Mason e aguardava o momento em que ele começasse a ditar as respostas à correspondência que se avolumara nos últimos dois dias.

- Hoje não tenho paciência para cartas, Della. Vamos começar por supor que Arlene Ferris nos mentiu, visto que todas as provas físicas contradizem a história que nos contou Por que terá mentido? Porque é culpada? Se o é, teria inventado uma mentira que se adaptasse aos factos, tanto mais que me parece uma garota inteligente. Por que motivo arquitectou uma versão dos acontecimentos, que não se enquadra com a investigação policial?

"A não ser que esteja a proteger alguém e, se é esse o caso, quem diabo é esse alguém?"

Mason ergueu-se da secretária, pegou no cigarro, já meio consumido, e começou a andar de um lado para o outro do gabinete. Subitamente parou e observou, fitando Della Street:

- Suponhamos que Arlene não mentiu. Mas, se falou verdade, por que raio os factos não se encaixam na história que nos relatou? A única solução admissível é estar essa história incompleta, por falta de provas cronologicamente intermediárias... Escute Della: temos que pôr um cartaz, na parede, mesmo em minha frente, com o dístico: "Tente confiar nos seus clientes".

- Pensa que Arlene lhe contou a verdade? - sondou Della Street.

- Sim, agora estou convencido disso e devo ter caído num erro em que advogado algum deveria sequer tropeçar.

- Que erro?

- Deixei-me impressionar pelo raciocínio da Acusação, só porque parti do princípio de que os factos apresentados são integralmente reais. Não há dúvida de que a chave deste caso reside na acção desse agente Peter Lyons. Por isso a Acusação mostrou-se tão relutante quanto a ele prestar testemunho. Tentaram evitar que eu o contra-interrogasse. Mas porquê, Santo Deus? Que pode ele saber que venha a perturbar a teoria da Procuradoria do Distrito e da Polícia?

- Carson descreveu-o como sendo uma testemunha sem importância - lembrou Della Street.

- Exactamente. Isso significa que a Acusação deve estar a par de qualquer facto que pode contribuir para fortalecer a posição da Defesa.

- Mas Carson já resumiu as declarações que Lyons poderia prestar.

- Aí está. Resumiu-as. Certamente que o busílis é a cronologia da aplicação das multas ao carro de Loring Lamont. Eu já aflorara a discrepância de não ter havido autuações, entre as nove horas e a meia-noite do dia cinco. Só removeram o automóvel, às três da manhã, com mais duas multas, da uma e das duas horas da manhã. Ora, as multas deveriam corresponder a todas as rondas do carro-patrulha. Por que motivo Lyons não pôs talões de autuação, às dez e às onze da noite?

"Por outro lado, Arlene estacionou o carro diante da boca de incêndio, logo que veio da "casa das reuniões", ou seja, antes das nove. Em contrapartida, Henley testemunhou tê-la visto sair do automóvel de Loring, quase à meia-noite."

- Tê-lo-á alguém levado, durante esse período intermédio?- sugeriu Della Street.

- É precisamente isso que necessitamos descobrir.

- Por que motivo o teriam levado?

- Vamos investigar por onde deveríamos ter começado. Por Edith Bristol, secretária particular de Jarvis Lamont, e por George Albert, gerente dos escritórios da Companhia.

- Mas como chegou a essa conclusão, Chefe? - admirou-se Della Street.

- Lembre-se do que Arlene Ferris nos disse. Muita gente estava na bicha para obter um emprego de dactilógrafa ou de secretária, na Companhia. Arlene disse a Madge Elwood que gostaria de empregar-se e esta falou em alguém que a meteu, imediatamente, ao serviço de George Albert.

"Lembre-se também, Della, ter Albert declarado que, logo a seguir a Arlene ter sido empregada na Companhia, Loring Lamont partiu para a América do Sul, em serviço. Repare que, mesmo não havendo vagas, Arlene foi ocupar um posto nos escritórios... sem concurso, assim, do pé para a mão.

- Não estou a acompanhar o seu raciocínio, Chefe!

- Pois afirmo-lhe que tive sempre a prova diante de mim e não soube interpretá-la devidamente. Venha daí, Della,

- Para onde? Que vai procurar, agora?

- A verdade.

Minutos depois, estacionavam no parque da "Lamont Compeny".

Mason declarou à recepcionista que desejava falar com Miss Edith Bristol, secretária particular de Jarvis Lamont, e com o gerente dos escritórios, Mr. George Albert.

Após ter ligado o telefone interno, para Edith, a recepcionista informou que Miss Bristol não poderia atender Mr. Mason.

- Muito bem. Diga a Miss Bristol que, nesse caso, mandar-lhe-ei uma contrafé para comparecer no Tribunal.

Instantes depois a recepcionista comunicava:

- Miss Bristol vai recebê-lo, imediatamente, Mr. Mason.

Ao serem recebidos na sala da secretária de Jarvis Lamont, esta inquiriu:

- Que pretende de mim, Mr. Mason?

- Dificilmente acreditaria que uma moça tão jovem estivesse, aqui, a desempenhar tão importantes funções.

- Por favor, Mr. Mason, diga-me o que deseja de mim.

- Quero saber por que motivo Arlene Ferris, tendo pedido a Madge Elwood que lhe arranjasse um emprego, esta conseguiu que lhe dessem uma colocação imediata na Companhia, sem passar pelo serviço de pessoal. Penso que Loring Lamont foi quem interveio em seu favor. Porquê?

- Não sei dizer-lho, Mr. Mason. Apenas sei que Miss Elwood trabalhou nesta casa, cerca de dois anos, mas não tive contactos pessoais com ela. O melhor é perguntar tudo isso a Mr. Albert.

Pegou no auscultador e ligou para o gerente.

- Mr. Albert? Está aqui Mr. Perry Mason, acompanhado pela sua secretária, Miss Della Street. Mr. Mason deseja saber como é que Arlene Ferris obteve o seu emprego nesta Companhia, sem ser através dos canais do serviço de pessoal. Também pretende saber como Miss Madge Elwood conseguiu que esse emprego fosse atribuído à amiga, tão rapidamente, passando à frente de todas as restantes concorrentes. Importa-se, Mr. Albert, de vir ao meu escritório para falar com Mr. Mason? Eu não sei que responder-lhe.

Enquanto esperavam pelo gerente, Perry Mason sondou:

- Mr. Loring Lamont não vivia com o pai?

- Não. Tinha um apartamento na cidade.

- Sabe onde?

- No nº 9612 da Endicott Way.

- Tem alguma criada ou criado?

- Não... que eu saiba.

- Desempenhava um cargo activo, nesta Companhia?

- Sim. Era vice-presidente.

- Viajava muito?

- Frequentemente, pois estava incumbido dos contactos no estrangeiro.

- Ele e o pai davam-se bem? Gostavam muito, um do outro?

- Sim... e não creio que Mr. Jarvis Lamont aprove este interrogatório.

Neste momento, George Albert entrou na sala. Mason apresentou Della Street a Albert e explicou:

- Procuro obter algumas informações acerca de Miss Ferris e da maneira como ela conseguiu o emprego nesta Companhia.

- Creio que não posso dizer-lhe mais, Mr. Mason, do que aquilo que já declarei no banco das testemunhas.

- Creio que pode, Mr. Albert. Certamente, não devia ser muito habitual o facto de Mr. Loring se empenhar em dar empregos, saltando por cima das normas da Companhia e desprezando os concursos do serviço de pessoal. Não é verdade que o cargo desempenhado por Miss Ferris é de considerável responsabilidade?

- Bem... É, sim... Ou melhor, era, pois já cá não trabalha.

- Não foi Miss Madge Elwood quem lhe obteve esse emprego, intervindo junto de Loring Lamont?

- É possível que assim tenha sido, mas não posso afirmá-lo.

- Em todo o caso, como gerente dos escritórios da Companhia, devia estar a par desse facto, não é verdade, Mr. Albert? E, apesar de Miss Ferris estar sob a protecção do vice-presidente da Companhia, filho do patrão-mor, o senhor, Mr. Albert, não hesitou em despedi-la.

- Nada tenho a ver com os contratos do pessoal, mas foram-me dados poderes para o despedimento de qualquer empregado.

- Quando soube, pela primeira vez, que Miss Arlene Ferris vinha trabalhar para a Companhia?

- Recebi um telefonema de Mr. Loring Lamont, informando-me de que Miss Ferris deveria vir ocupar um lugar de secretária, nestes escritórios, e com o mais alto salário que atribuímos a essas funções.

- Mais alguém entrou para esta Companhia, nessas condições?

- Para responder-lhe, Mr. Mason, teria de consultar os ficheiros.

- Serei forçado a convocá-lo, oficialmente, como testemunha, para obter essa informação? Parece-me que algo de irregular está a ocorrer, em relação a este assunto.

- Não percebo ao que se refere, Mr. Mason.

- Que tanto o senhor como Miss Bristol estão a cobrir-se um ao outro, evitando explicar a situação. Quando Miss Bristol lhe pediu que viesse aqui, teve o cuidado de dizer-lhe que eu estava acompanhado da minha secretária, Miss Street, e mencionou, especificamente, o objectivo da minha entrevista. Isso deu-lhe algum tempo para pensar, Mr. Albert, e ainda gastou mais algum, antes de cá chegar, apesar de só nos separarem duas portas. Não há dúvida de que esteve a estudar a maneira de furtar-se a prestar-me informações. Quem mais entrou para secretária desta Companhia, pela mesma via irregular de Miss Ferris?

- Bem... Só tenho conhecimento de uma outra empregada... que já cá não trabalha.

- Quem era ela?

- Miss Madge Elwood.

- George!- exclamou Edith Bristol, num tom censurador.

- Que queres que faça? Não tenho outro remédio! Caso contrário, terei de declará-lo no banco das testemunhas.

- Estou a ver - observou Mason - que é Miss Bristol quem, até agora, tem procurado manter oculta essa informação.

- E eu estou a ver, Mr. Mason, que esta nossa entrevista terminou - retorquiu a secretária particular de Jarvis Lamont. - Não temos mais informações a prestar-lhe... Nem aqui, nem no tribunal.

- A escolha é sua, Miss Bristol - replicou Mason, tirando da algibeira duas contrafés, já preenchidas, com os nomes de George Albert e de Edith Bristol. - Vê-los-ei amanhã, às dez horas, na audiência do Povo versus Arlene Ferris. Então, veremos se já estarão dispostos a prestar as devidas informações. Muito boa tarde.

À saída da "Lamont Company", Mason apontou para uma cabina telefónica e disse:

- Vamos ver se Paul Drake já tem notícias para mim, acerca do jardineiro.

Instantes depois, o detective anunciava:

- Falei com Mrs. Sparks, em casa de quem Otto Keswick tem um quarto alugado. Otto, na realidade, não paga renda, em dinheiro, mas sim por meio de trabalhos prestados. Quanto a ter estado com ela a ver televisão, até às sete e meia, também é verdade, mas não depois dessa hora. Mrs. Sparks sentiu uma forte dor de cabeça e foi deitar-se. Portanto, não sabe o que Otto possa ter feito. Não o ouviu ir para a cama, nem continuou a ouvir o som da televisão. É admissível a hipótese de que ele tenha saído, depois das sete e meia e, sendo assim, não tem álibi, desde essa hora até às dez e meia. E não te esqueças, Perry, que ele também vive nas proximidades da "casa das reuniões".

"Agora, outro assunto, que de resto está directamente relacionado com este. Pensando na proximidade da casa de Miss Sadie Riohmond e na de Mrs. Sparks, em relação à das "reuniões", lembrei-me de "bater" as redondezas para ver se haveria mais vizinhos. Descobri um outro bangalô, pertencente a um tipo que é dono da propriedade adjacente às traseiras da de Lamont. O homem é guarda-livros e os Lamont nunca lhe "passaram cartão", pois consideram-no de uma classe social inferior à deles. Por outras palavras, mostraram-se sempre sobranceiros para com o homem e este passou a detestá-los. Além disso, o guarda-livros abriu um caminho, entre valas, na linha limítrofe das duas propriedades. Com as chuvas, o caminho encheu-se de água, uma das valas cedeu ao peso desta e inundou, em torrente, a propriedade dos Lamont. O homem teve de gastar uma data de dinheiro a reparar os estragos e, agora, sempre que chove, dá-se ao trabalho de vigiar o caminho onde abriu drenos para evitar a repetição do acidente. Está sempre a impedir que aqueles se entupam e impeçam o escoamento das águas.

"Na noite de cinco do corrente, depois de jantar, começou a preocupar-se com a chuva excessiva e resolveu ir dar uma vista de olhos aos drenos. Ao chegar à "fronteira" das propriedades olhou para a de Lamont e notou que o portão desta se encontrava aberto. Como isso fosse anormal, prestou mais atenção e viu o carro de Otto Kreswick entrar lentamente na propriedade, com as luzes apagadas. Ouviu vozes de um homem e de uma mulher. Tem a certeza de que a masculina era a de Otto, mas não pode jurar que a feminina fosse a de Miss Sadie Richmond."

- Como se chama esse vizinho?

- George Banning.

- Isso é imensamente importante, Paul. Preciso de interrogá-lo. Entrega-lhe uma contrafé, como testemunha convocada pela Defesa. Quero-o no tribunal, amanhã, às dez da manhã.

- Bem, Perry, como já esperava isso mesmo, adiantei-me e meti-lhe uma contrafé nas mãos. Em vez de protestar, até se mostrou satisfeito, pois pensa que, dessa maneira, poderá "chatear" o velho Lamont.

- Bravo, Paul. Ele viu se a "casa das reuniões" estava iluminada?

- Também lhe perguntei isso. Banning afirma que a casa já tinha as luzes acesas, quando Otto chegou com o carro... e acesas ficaram, quando Banning se retirou para o seu bangalô. Como, nessa altura, não podia adivinhar que ocorrera um crime, foi deitar-se sem ligar importância de maior ao caso.

- Que horas eram?

- Não pode precisar a hora, mas calcula que isso se tenha passado entre as sete e meia e as oito menos um quarto.

- Perfeito, Paul! Isso indica que Otto Keswick mentiu. Aquele último cheque, no valor de quinhentos dólares e marcado com o O.K., deve ter sido entregue a Otto Keswick e creio que não foi levantá-lo ao banco, justamente porque já sabia que Loring Lamont estava morto. Dessa maneira, não lho teriam pago, por estar invalidado. Não pensou que o banco ainda não estava ao corrente da morte de Loring... e, mesmo que o pensasse, não se atreveu a ir sacar a "massa". Orval Kingman não hesitou em levantar os seus quinhentos dólares, mas Otto preferiu perder os seus.

- Mas por que razão, Perry, Loring Lamont tinha tanta urgência em passar esse cheque?

- Porque Otto tinha imensa pressa.

- Continuo a "farejar" por aí?

- O mais que possas. Eu disse a Madge Elwood para estar, esta tarde, no tribunal, mas não a vi por lá. Vou dar um salto a Santa Monica, para ver se a encontro no apartamento, mas gostava que também tentasses descobri-la.

- Se a descobrir, que faço?

- Manda um dos teus homens segui-la, para onde quer que vá.

- Podes estar descansado, Perry. Se dermos com ela não a largaremos de vista.

 

Mason e Della Street rodaram, em silêncio, até aos "Kelsington Apartments".

Como Madge Elwood não atendesse aos repetidos toques de campainha, Mason dirigiu-se à gerente do edifício. Era uma mulher de meia idade, de aspecto decente.

- Preciso de entrar em contacto com Miss Elwood. É um assunto de extrema importância - explicou Mason.

- Não creio que se encontre no prédio. Vi-a sair, ao princípio da tarde, carregada com duas malas. Deu-me a impressão de que iria para algum lugar onde tencionasse demorar-se alguns dias. Já se informou no local onde ela trabalha?

- Sei que é secretária numa empresa qualquer, mas não sei qual seja. Pode informar-me a esse respeito?

- Francamente, também não o sei. De qualquer modo, a esta hora, todos os escritórios já estão fechados. Lamento, mas não posso ser-lhe útil.

- Não seria possível vir comigo, com uma chave-mestra, de maneira a permitir-me dar uma vista de olhos ao apartamento de Miss Elwood?

A gerente do edifício abanou a cabeça.

- Lamento - repetiu, - mas nunca intervenho nos assuntos dos hóspedes. Pagam a renda, vão e vêm e não me interesso pelo que façam ou deixem de fazer. Nem sequer é meu costume dar tantas informações como as que agora lhe prestei, Mr. Mason, mas conheço-o das fotografias dos jornais e até sei que está interessado num caso em que, de qualquer modo, Miss Elwood também se encontra envolvida. Por isso lhe disse que ela tinha saído, carregada com duas malas. Eram tão pesadas que não pôde transportá-las ao mesmo tempo, entre o elevador e a porta. Teve de fazer duas viagens, levando-as, uma a uma. Partiu daqui, num táxi, e o motorista ajudou-a a levar as malas para o carro.

- Obrigado - agradeceu Mason, afavelmente. - Pode fazer-me um favor?

- Se estiver ao meu alcance...

- Penso que esteja. Miss Elwood costuma pagar a renda, em dinheiro contado, ou por cheque?

- Por meio de cheque.

- Lembra-se do nome do banco?

- É o que fica mesmo à esquina deste quarteirão. Mantém-se aberto até às sete e meia da tarde, excepto aos sábados. Ao sair do prédio, vire à direita, Mr. Mason... Gostei de conhecê-lo, pessoalmente.

Depois de despedir-se, Mason saiu com Della, dos "Kelsington Apartments", e dirigiu-se ao banco. Aí chegado, apresentou-se no balcão da recepção.

- Sou Perry Mason, advogado. Preciso de falar com o gerente acerca de um assunto de máxima importância.

Momentos depois, o gerente acercava-se do balcão, sorridente.

- Em que posso ser-lhe útil, Mr. Mason?

- O que vou solicitar-lhe talvez seja um tanto ou quanto irregular, mas posso assegurar-lhe que é extremamente importante.

À palavra "irregular" o sorriso do gerente esmoreceu, mas Mason continuou, no mesmo tom confiante:

- Gostava de fazer-lhe uma pergunta acerca do depósito bancário de Miss Madge Elwood.

- Lamento, Mr. Mason. Sei, perfeitamente, quem o senhor é e gostaria imenso de poder ser-lhe agradável, mas não me é permitido, pelo regulamento do banco, prestar informações dessa natureza.

- Compreendo a sua posição, mas, se insisto, é porque creio que Miss Elwood, esta tarde, levantou um cheque que pode ser falso.

- Oh! Esse caso é diferente... Quer acompanhar-me ao meu gabinete?

Depois de instalados e de Mason ter apresentado Della Street, o gerente declarou:

- Tratando-se de falsificação de um cheque, o assunto ultrapassa as normas por que nos regulamos habitualmente.

- Tentei contactar com Miss Elwood, antes de vir aqui, mas não a encontrei no seu apartamento. A minha intenção era evitar que ela descontasse o cheque, antes de eu ter oportunidade de avisá-la da situação. Seria possível verificar o cheque que Miss Elwood apresentou ao banco?

O gerente mostrava-se preocupado, pegou no telefone interno e comunicou com o serviço de caixa. Momentos depois informava:

- Efectivamente, o levantamento excedeu consideravelmente o que é habitual. Vou verificar o facto, na sua origem. Um momento, Mr. Mason.

O gerente pediu, então, à telefonista que o pusesse em comunicação com o escritório de Mr. Jarvis Lamont.

Depois de alguns segundos ao telefone, toda a preocupação abandonara a sua fisionomia. Antes de desligar, sorria, tranquilizado.

- Certamente, Miss Bristol. Desculpe tê-la incomodado. Isto aqui é uma sucursal de bairro e o montante do cheque era, realmente, muito mais elevado do que as quantias que Miss Elwood costuma levantar... Muito obrigado, Miss Bristol. Uma vez mais, desculpe-me, junto de Mr. Lamont, por tê-lo incomodado. Certamente...

Edith Bristol desligara e o gerente indagou:

- Pode dizer-me, Mr. Mason, por que motivo pensou que se tratasse de uma falsificação?

- Certamente, foi um mal-entendido. Deram-me essa informação telefónica e tentei comunicá-la a Miss Elwood. Ainda bem que se tratou de um rebate falso. Já deve ter experiência de casos semelhantes, não é verdade?

- Sim, efectivamente. Mas está tudo em ordem. Falei pessoalmente com a secretária de Mr. Jarvis Lamont que me assegurou que o cheque fora assinado pelo patrão e... evidentemente... tinha cobertura.

O sorriso do gerente alastrara-se-lhe pelo rosto. Ao apertarem as mãos, por despedida, Mason mostrou-se aliviado.

- Muito obrigado. Lamento tê-lo perturbado nos seus afazeres... e, nas presentes circunstâncias, seria melhor que não mencionasse este assunto a ninguém.

- Certamente. Estes assuntos são sempre confidenciais. Muito boa tarde, Mr. Mason.

O gerente escoltou o advogado e Della Street até à porta.

Já na rua, Mason e Della trocaram olhares significativos.

- As peças do puzzle começam a encaixar-se - comentou ele, dirigindo-se para o local onde tinha estacionado o carro.

- De uma maneira desagradável - considerou Della. -Isto explica que essa Edith Bristol nos mentiu. Já sabia que Jarvis Lamont dera aquele cheque a Madge Elwood... Mas, para quê?

- Porque o velho quer mantê-la fora da cidade. Pagou-lhe para que pudesse pôr-se "em milhas", com todo o conforto. Só nos resta descobrir com que intenção quis que Madge desaparecesse da circulação. Todas as probabilidades indicam que Jarvis está intensamente interessado em que ela não venha a sentar-no no banco das testemunhas.

- E isso aonde nos leva?

- Ao princípio: a Loring Lamont.

- Não estou a perceber - confessou Della.

- Admitamos que Arlene nos contou a verdade. Que teria sucedido, depois de ela ter fugido da "casa das reuniões"? Que fez Loring Lamont, após regressar à casa?

- Bem, Chefe... Se Arlene não mentiu. Loring é capaz de ter comido os ovos com bacon.

- Os dois pratos? - acentuou Mason.

- Pode ter despejado um, no caixote do lixo.

- E teria tornado a trazer, para a sala. o prato sujo, em vez de deixá-lo na cozinha, junto do lavatório, como seria mais natural e prático?... E por que motivo comeria os ovos, já frios, que são desagradáveis? Não deveria ter grande disposição para isso, embora a tivesse para algumas outras coisas.

- Diga lá, Chefe.

- Estava precisado de uma bebida, depois de ter andado à chuva e ao frio, com os nervos "de ponta". Precisava também de uma muda de roupa: decerto, de uma outra companhia feminina e, evidentemente, de regressar à cidade, ao seu apartamento.

- Certamente. Precisava que alguém lhe fosse levar a roupa seca e limpa. Mas quem?

- Se pensar um pouco, Della, concluirá que essa pessoa foi Madge Elwood. A prova de que ela o conhecia bem é-nos dada pela facilidade com que conseguiu que Loring empregasse Arlene. Madge foi buscar a roupa ao apartamento de Loring, viu o carro, meteu-se nele e levou-lha. Depois, regressou à cidade e foi estacionar o carro, exactamente onde o encontrara.

- Nesse caso, Chefe, Jerome Henley não se enganou na primeira identificação que fez. Foi, realmente, Madge Elwood quem ele viu sair do carro, por volta das dez da noite.

- Exactamente. Loring pegou no telefone e ligou para Madge. Queixou-se-lhe de que Arlene se mostrara demasiadamente pudica; descreveu-lhe a cena da luta e da fuga da amiga; provavelmente até a acusou:

"-Que raio de ideia, Madge, foi a tua, de teres-me arranjado uma tipa que tem os joelhos colados, um ao outro? Ainda por cima, roubou-me o carro! Vai ao meu apartamento, traze-me uma muda de roupa e uns sapatos e trata de vires aqui, num ápice."

- Sim, deve ter sido isso... mas há uma coisa que não encaixa. Como pôde Madge saber onde Arlene tinha deixado o carro? Bem sei que podia tê-lo visto defronte do apartamento de Loring, mas por que teria tornado a arrumá-lo, na mesma posição, rente à boca de incêndio? Com isso só arranjaria mais multas a Loring.

- Não se esqueça, Della, de que Arlene, mal chegou a casa, telefonou a Madge a contar-lhe como Loring se tinha atirado a ela, como um "lobo lascivo", segundo a sua própria expressão. Relatou-lhe a fuga e também a sua pequena vingança de estacionar o carro, em contravenção, junto à boca de incêndio.

- Sim, isso é lógico, mas não se verifica uma discrepância, quanto ao elemento tempo?

Após raciocinar um momento, Mason concluiu:

- Evidentemente, Loring Lamont deve ter telefonado a Madge, antes de Arlene narrar à amiga as suas atribulações. Madge já devia estar a preparar-se para sair, quando Arlene ligou para ela.

- Certo! Mas isso pressupõe a existência de relações íntimas entre Loring e Madge Elwood.

- Está visto que já tinham mantido relações íntimas. Fora ele quem arranjara o emprego a Madge, antes de esta lhe pedir que empregasse Arlene.

- Isso explica uma data de coisas...

- Entre as quais, toda a ânsia de Carson, no sentido de eu não interrogar o agente Lyons. Este não deixaria de testemunhar que, depois de ter multado o carro de Loring, às nove horas, nunca mais o vira naquele local, até deixar o serviço de patrulha, à meia-noite. Portanto, o adjunto do procurador do Distrito fez todos os esforços por mantê-lo afastado do julgamento.

- Nesse caso, voltando a Madge, ela foi à "casa das reuniões" e... Santo Deus! - alarmou-se Della.

- Madge entregou a roupa e os sapatos secos a Loring, sentou-se com ele à mesa, para comerem uma nova dose, quentinha, de ovos com bacon; depois questionaram e, a dado momento, ela cravou-lhe a faca de trinchar nas costas. Em seguida, viu-se com um cadáver nos braços e teve de "safar-se" da melhor maneira. Sabia que Arlene também lutara com Loring, tanto pelo relato deste como por aquele que Arlene lhe fizera. Ciente de todos os pormenores, foi estacionar o carro, precisamente no mesmo local onde a amiga lhe dissera tê-lo arrumado. Depois, bastou-lhe fingir-se inocente e desejar, com toda a alma, "ajudar" Arlene.

- Deve ter-se fartado de rir de si, Chefe! - comentou Della, maldosamente.

- Tem razão para ser sarcástica, minha amiga. Nesta vida, um homem está sempre a aprender... como as mulheres sabem ser nocivas!

- Algumas - corrigiu Della, sorrindo. - Portanto, Jerome Henley viu Madge sair do carro, mas, no tribunal, alterou toda a sua anterior identificação.

- Exactamente. Viu Madge, não às dez, mas um pouco mais tarde. E Arlene estacionara o carro, ainda antes das nove. E, agora, surge-nos uma outra explicação. A Polícia não encontrou a roupa e os sapatos de Loring, molhados e enlameados, na "casa das reuniões". Por conseguinte, Madge levou-os com ela, no carro. Depois, transferiu tudo para o seu próprio automóvel e regressou a Santa Monica. Onde pensa que possam estar a roupa e os sapatos?

- Provavelmente, ainda se acham no carro de Madge. Dessa maneira, a Polícia não os encontraria, nemno apartamento de Loring, nem no dela, caso procedesse a uma busca em regra.

- Sim, Della. Madge deve ter levado o carro para a garagem dos "Kelsington Apartments", em Santa Monica. Se as roupas não estiverem no carro, é natural que estejam escondidas, algures, nessa garagem... e, se o automóvel não estiver lá dentro, é provável que a garagem não esteja fechada à chave.

- Está a pensar em ir lá, dar uma olhadela, Chefe?

- Hum, hum!- confirmou Mason, com um aceno de cabeça.

- Já agora, Chefe, por que motivo Jarvis Lamont entrou na história, com aquele cheque para Madge?

- Ele deve ter uma ideia bastante aproximada acerca de tudo quanto aconteceu. Não quer que Arlene, estando inocentada e livre, possa contar a sua história, de maneira que a acreditem e, portanto, procura, por todos os meios, evitar que Madge possa corroborar a versão da amiga. Prefere que Arlene seja o bode expiatório. Por isso deu umas "massas" a Madge e mandou-a afastar-se da circulação, até que o caso esteja encerrado com a condenação da nossa cliente.

- Nesse caso, apesar de ter uma ideia do que se passou, Jarvis Lamont não pensa que Madge lhe tenha assassinado o filho, não será assim?

- Estou convencido de que nunca admitiu essa hipótese.

- E quanto a Otto Keswick e Sadie Richmond?

- Aí, Della, deparo com uma situação deveras interessante. Devemos considerar o telefonema que Loring recebeu, antes de os petiscos estarem prontos para se sentarem à mesa. Foi esse telefonema que o fez alterar o plano das operações.

"Provavelmente, esse telefonema partiu de Otto Keswick e este sujeito deve estar, de qualquer forma, associado a Sadie Richmond. Dada a natureza do comportamento de Loring, no aspecto libidinoso, não é de admirar que desse aso a qualquer tipo de chantagem. Ora, Otto Keswick é um cadastrado, em resultado da sua especialidade nesse ramo de extorsão.

"é admissível que Otto tenha telefonado a Loring, a comunicar-lhe:

"-Escute, Loring: Sadie e eu estamos necessitados de umas "massas". Precisamos de quinhentos dólares, esta mesma noite, e vamos aí buscá-los, dentro de meia hora, ou três quartos de hora."

- Mas Loring podia ter-lhe respondido que não convinha que ele aparecesse, antes de uma ou duas horas.

- Poder, podia, mas não tinha a certeza de que Otto aceitasse esse protelamento horário. O que não há dúvida é que Loring alterou o seu programa de música de fundo e sedução amorosa, segundo os parâmetros clássicos. Decidiu apressar a cópula, como um animal no período do cio, de maneira a já ter "coberto" Arlene, antes da chegada de Otto, sozinho ou acompanhado Por Sadie.

- Parece lógico - reconheceu Della, com um tom de excitação na voz.

- Por conseguinte - continuou Mason,-já descobrimos três pessoas que sabiam estar Loring ainda vivo, depois da fuga de Arlene: Madge Elwood, Otto Keswick e Sadie Richmond.

- Mas nenhum deles quererá implicar-se no caso, testemunhando esse facto no tribunal... Oh, Chefe, não teria Otto discutido com Loring e...

Mason abanou a cabeça, discordantemente.

- Primeiro, um chantagista não costuma matar a sua vítima, já que esta constitui um fundo de rendimentos. Depois, não se esqueça das roupas e sapatos secos. Ele só arranjou essa muda de roupa, depois de Madge Elwood ter ido à "casa das reuniões", no carro do próprio Loring.

- Sendo assim, Chefe, amanhã poderá inocentar Arlene Ferris! - exclamou Della, jubilosamente.

- Sim, desde que obtenha qualquer daqueles testemunhos. Contudo, não deixarão de mentir, a menos que possamos apresentar provas concludentes, esmagadoras.

- Portanto, vamos começar por fazer uma busca à garagem de Madge Elwood?

- Hum, hum!- confirmou Mason, pensativo.

- E isso não será ilegal?

- Depende. Se a porta da garagem não estiver fechada à chave, poderemos entrar e dar uma vista de olhos. Ficaremos numa situação de intrusão em propriedade alheia, mas não de assalto por arrombamento.

- Mas a intrusão em propriedade alheia também é crime, Chefe!

- Depende - repetiu Mason.- Podemos declarar não termos sido movidos por uma intenção de felonia, mas apenas pela necessidade de obtermos provas em prol da Justiça.

- Não seria melhor telefonarmos ao tenente Tragg a informá-lo dos nossos intentos e a pedir-lhe a cooperação da Polícia?

- Tragg não deixaria de rir-se sarcasticamente, acusando-nos de estarmos a tentar preparar-lhe uma nova armadilha. Bem sabe como ele é, Della!

- Okay, Chefe! Vou nessa sua jogada.

- Escusa de arriscar-se a vir comigo. Você pode ficar, tranquilamente, sentada no carro, à espera que eu saia da garagem.

- Nem pense nisso, Chefe! - indignou-se Della Street.- Que espécie de mulher julga que sou? Se vai correr um risco, quero estar a seu lado. De resto, posso servir-lhe de testemunha, relatando a intenção do seu acto... no caso de sermos apanhados "com a boca na botija".

- Ganhou, Della. Vamos a isto.

Chegados ao edifício de apartamentos de Santa Mónica, o advogado estacionou o carro defronte das várias garagens pertencentes ao prédio. Apontando-as, observou a Della Street:

- Como vê, estão numeradas e cada uma delas tem um letreirozinho com o nome da respectiva inquilina.

Depois de terem encontrado o de Madge Elwood, Mason experimentou o fecho da porta que estava aberta e, antes de entrar, decidiu:

- Vamos meter o nosso carro cá dentro, para que não levante suspeitas, estacionado onde está.

Depois de terem introduzido o carro na garagem, fecharam a porta e acenderam a luz. Encontraram um velho tubo de escape, duas baterias inutilizadas, vários pneus, nas "lonas", e uma arca. Tentando abri-la, Mason resmungou:

- Está fechada à chave!

Calou-se abruptamente, no mesmo instante em que Della murmurava:

- Ouviu, Chefe?

Mason levou o indicador aos lábios, impondo silêncio.

Um carro parara junto à garagem. Imóveis, Mason e Della viram a porta abrir-se, de rompão, e surgir George Albert, logo seguido do tenente Tragg.

- Parabéns, Albert - aplaudiu Tragg. - Você acertou em cheio!

O gerente da "Lamont Company" rugiu, indignadamente:

- Não lhe disse, Tenente? Apanhámo-los em flagrante... a "plantar" provas falsas. Quero que os prenda, imediatamente.

- Sob que acusação? - perguntou Mason.

- De ter vindo, aqui, introduzir artigos que lhe foram dados por Arlene Ferris, com o fim de inocentá-la e atribuir a culpabilidade a Miss Elwood. Começaram por apresentar aquela prova falsa do pedaço de tecido, andaram a imprimir pegadas na berma da estrada e, agora, vieram aqui para...

Albert calou-se e Mason incitou-o:

- Viemos aqui, para quê?

- Bem... Não sei, mas não tenho dúvidas de que "plantaram" uma prova qualquer, para incriminarem Miss Elwood.

- Não plantámos prova alguma. Limitámo-nos a investigar este local, em busca de provas reais. Posso falar consigo, em particular. Tenente?

Tragg abanou a cabeça e respondeu:

- A única pessoa com quem você vai falar, Mason, é com o procurador do Distrito, quando chegar a devida altura.

- Como quiser, Tenente, mas não se esqueça- advertiu Mason-de que esta garagem pode conter uma prova essencial para a descoberta da verdade. Se essa prova se "evaporar", a responsabilidade será inteiramente sua. Se eu fosse a si, procurava-a, antes de pensar noutra coisa.

- Se encontrar alguma prova, Tenente - interveio Albert, -foi esse advogado quem veio cá "plantá-la".

- Apesar desse seu argumento, Albert – resolveu Tragg, -vou passar uma busca, para livrar-me de responsabilidades. Vá para o seu carro e espere por mim. Virando-se para Mason, acrescentou:

- E vocês dois ponham-se, igualmente, a andar. Quero operar sozinho, sem bisbilhoteiros a meterem-se-me por entre as pernas. Na realidade, não tenho motivos legais para dar-vos ordem de prisão, de maneira que só me resta comunicar ao procurador do Distrito o que aqui descobrir... se é que venha a descobrir alguma coisa com interesse... certamente, mais lenha para vocês se queimarem.

Depois de Mason e Della Street terem abandonado o local, o advogado considerou:

- Para nosso azar, tudo se virou contra nós. -Que quer dizer com isso, Chefe?

- Se Tragg descobrir a roupa e os sapatos de Loring, ainda húmidos da chuva e com vestígios de lama, acusar-nos-á de termos "plantado" essa prova. Por outro lado, se não encontrar prova alguma, o procurador do Distrito encarregar-se-á do caso...

- Acha que o próprio Hamilton Burger virá substituir Carson?

- É o mais natural que suceda. Quando Burger fareja uma possibilidade de vencer uma causa contra mim, atira-se logo para a vanguarda da matilha.

- Mas nunca conseguiu vencê-lo, Chefe!

- Não, até hoje, mas, desta vez, embora a nossa teoria seja a mais lógica, todas as provas, materiais e circunstanciais, estão a favor da Acusação e, como sabe, num julgamento, só as provas contam.

- Aconteça o que acontecer, Chefe, estou do seu lado e poderei testemunhar acerca dos seus actos.

- Pois, pois, Della! Está do meu lado, numa linda "alhada". Só me resta a consolação de que a sua presença, Della, perfuma a situação... eliminando o cheiro a alho. Enquanto há vida há esperança!

 

Precisamente trinta segundos antes das dez da manhã, Hamilton Burger, procurador do Distrito, entrou na sala de audiências e foi sentar-se ao lado do seu adjunto, Donald Carson.

Poucos instantes depois, o juiz Carleton Bayton instalou-se na tribuna e, vendo Burger, perguntou:

- Deseja alguma coisa, senhor Procurador do Distrito?

- Não, senhor Doutor Juiz. Estou meramente representando a Acusação no caso do Povo versus Arlene Ferris.

- Não compreendo, Mr. Burger. Esta audiência é simplesmente preliminar e só nos restam alguns minutos para o interrogatório de uma testemunha.

- Apesar disso vim representar a Acusação. Surgiram certos factos, bastante insólitos, no presente caso e decidi encarregar-me pessoalmente da supervisão do inquérito.

Surpreendido, o juiz coçou a cabeça e determinou:

- Muito bem... está aberta a audiência. Queira a Acusação chamar o agente Lyons, para interrogatório directo, a fim de que a Defesa possa ouvi-lo em contra-interrogatório.

Depois de um breve diálogo, em surdina, com Carson, Hamilton Burger chamou Lyons ao banco das testemunhas, mas foi Donald Carson quem procedeu ao interrogatório, muito sumariado, cingido ao que, na sessão da manhã anterior, o próprio adjunto já relatara.

Quando terminou, Mason levantou-se e aproximou-se da testemunha:

- A que horas, Mr. Lyons, autuou o carro de Loring Lamont?

- Cerca das nove horas, de acordo com o meu relatório escrito do serviço de patrulha.

- Onde estava ele estacionado?

- Mesmo rente à boca de incêndio, defronte da casa de apartamentos, nº 9612 da Endicott.

- A que horas entra de serviço?

- Às cinco da tarde.

- Seguia num carro-patrulha?

- Sim, sir.

- Costuma dar atenção aos carros que se encontram mal estacionados?

- Sim, quando a contravenção é muito notória. Nessas circunstâncias, coloco um talão de multa, geralmente sob um dos limpa-pára-brisas. Como, no meu giro de ronda, costumo passar pelo mesmo sítio, de hora a hora, torno a multar a viatura em transgressão, de acordo com o regulamento, ou seja, também de hora a hora. Ao cabo de três multas, correspondentes a três horas, comunico, por rádio, com a Central da Polícia, para que um carro-reboque venha remover a viatura, como está superiormente determinado.

- Portanto, devo concluir que o local da Endicott Way está inscrito na zona de circuito que o senhor, Mr. Lyons, começa a patrulhar, às cinco horas?

- Sim, sir. Patrulho todo o Distrito, num percurso previamente delineado, e preciso de uma hora para percorrê-lo.

- Durante esse seu percurso, a que horas viu o carro de Loring Lamont estacionado, em contravenção?

- Por volta das nove horas, mais minuto, menos minuto.

- Depois disso, continuou a sua ronda?

- Sim, sir.

- Até que horas?

- Até à meia-noite.

- E entre as nove horas e a meia-noite, tornou a passar defronte do nº 9612 da Endicott Way?

- Sim, sir.

- Tornou a multar o carro de Loring Lamont?

O agente Lyons hesitou e olhou para a mesa da Acusação.

Hamilton Burger simulava total desinteresse, mas Carson mostrava-se nervoso.

- Sim ou não? - insistiu Mason.

- Bem. Não tornei a multá-lo. Tive de autuar um novo automóvel que se achava estacionado no mesmo local, não em frente da boca de incêndio, mas ao lado de outro; estava afastado do passeio, numa segunda linha e, portanto, em contravenção.

- Mas, Mr. Lyons, por que motivo não voltou a multar o carro de Loring Lamont?

- Bem... Creio que não o vi estacionado no mesmo local.

- Quer dizer que o viu arrumado noutro local?

- Não, sir.

- Não pode ser mais explícito, Mr. Lyons? Não o viu, por ter-se distraído, fixando a sua atenção no novo automóvel que foi autuar? Costuma distrair-se?

- Não, sir. Olhei para a boca de incêndio, mas já não vi o carro que eu multara, uma hora antes. Só vi o outro automóvel...

- Quer dizer que o de Loring Lamont já fora removido pela Polícia?

- Não, sir. Eu ainda não comunicara essa transgressão à Central, visto não se terem passado as três horas regulamentares. Só o multara uma vez e não três.

- Nesse caso, se o carro de Loring Lamont foi removido do local, alguém o fez, sem ser a Polícia, não é verdade?

- Não sei, sir.

- E, à meia-noite, que aconteceu, Mr. Lyons?

- Fui rendido por outro carro-patrulha que tomou conta das ocorrências.

- Nessa altura, o automóvel de Loring Lamont encontrava-se novamente estacionado, junto à boca de incêndio?

- Bem... sim, sir.

- Obrigado, Mr. Lyons. Nada mais. Carson apressou-se a declarar:

- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha. Virando-se para ele, o juiz Bayton indagou:

- Estão terminados os debates, no caso do Povo da Califórnia versus Arleme Ferris?

Foi Hamilton Burger quem respondeu:

- Não, senhor Doutor Juiz. Surgiu uma ocorrência em que está implicado um membro do foro e que tive de investigar pormenorizadamente. Porque se trata de uma ocorrência excepcionalmente grave, quanto à conduta de um advogado, estou a preparar um processo que deverá ser apresentado à Ordem dos Advogados e a um tribunal superior, de acordo com a secção 686, alínea 12 do Código Penal.

- Tem provas dessa conduta irregular, Mr. Burger?

- Sim, senhor Doutor Juiz.

- E esse facto está relacionado com o presente processo?

- Sim, senhor Doutor Juiz. Pode até vir a interromper o prosseguimento desta audiência preliminar.

Olhando para Mason, desconfiadamente, o juiz Bay-ton sondou:

- Pode apresentar essas provas que diz possuir, Mr. Burger?

- Sim, senhor Doutor Juiz. Para tal, chamo o Tenente Tragg do Departamento de Homicídios, ao banco das testemunhas.

- O Tenente Tragg já foi ajuramentado na sessão anterior - mencionou Bayton.- Queira dar início ao interrogatório, senhor Procurador do Distrito.

- Ontem à tarde, Tenente, teve ocasião de deslocar-se ao apartamento de Miss Madge Elwood, sito na Kelsington, em Santa Mónica?

- Sim, sir.

- Já tinha estado, anteriormente, nesse edifício dos "Kelsington Apartments"?

- Sim, sir.

- Porquê?

- Porque, ao identificar a saia que apresentava o corte de um pedaço do tecido, dirigi-me a uma loja de Santa Mónica onde aquela saia fora comprada. Pude assim identificar a compradora, Miss Madge Elwood, que vive naquele edifício da Kelsington. Acidentalmente, encontrei a ré, Arlene Ferris, a viver... de visita temporária, segundo as suas próprias declarações... nesse apartamento da amiga Miss Elwood.

- Por conseguinte, Tenente, já conhecia esse edifício dos "Kelsington Apartments". Voltou lá, ontem, à tarde?

- Sim, sir.

- Ia sozinho?

- Não, sir.

- Quem estava consigo?

- Mr. George Albert, que me sugerira...

- Não interessa o que Mr. Albert sugeriu... Quero que, unicamente, me aponte factos e não informações por "ouvir dizer". Mr. Albert já prestara declarações no presente processo?

- Sim, sir. Foi testemunha na sessão anterior a esta audiência.

- Mr. George Albert?

- Sim, sir. Mr. Albert sugerira... Isto é, dirigi-me à garagem que está alugada, juntamente com o apartamento, a Miss Madge Elwood.

- Essa garagem estava fechada à chave?

- Não, sir. Abri a porta que se achava apenas fechada pelo trinco e entrei, com Mr. Albert.

- Que viu, Tenente, dentro da garagem de Miss Elwood?

- Um automóvel que está registado em nome de Mr. Perry Mason. Encontrei também Mr. Mason e a sua secretária particular, Miss Della Street.

- Perguntou-lhe o que estava ele a fazer naquele local?

- Mr. Albert acusou-o de estar a "plantar" provas e Mr. Mason respondeu que...

- Objecção - interpôs Mason. - É testemunho "por ouvir dizer". Uma conversa mantida com alguém, sem ser na presença da ré, é incompetente, irrelevante e imaterial.

O juiz Bayton, franzindo o sobrolho, resmungou:

- Objecção mantida. Contrariado, Carson perguntou:

- Que mais fez, Tenente?

- Desembaracei-me da presença de Mr. Mason e de Miss Street e comecei a revistar a garagem.

- Com que fim?

- Com o objectivo de procurar qualquer prova material que ali tivesse sido "plantada" por alguém.

- E que encontrou, Tenente Tragg?

- Um par de sapatos enlameados, um fato muito húmido, cujas calças também apresentavam, em baixo, vestígios de lama.

- Investigou a origem desses artigos de vestuário?

- Sim, sir.

- Que mais fez, ulteriormente, Tenente?

- Investiguei a origem dos sapatos e do fato. Verifiquei que provinham de duas lojas de Los Angeles.

- Sabe a quem pertenciam esses artigos de vestuário?

- Sim, sir. Ao falecido Loring Lamont.

- Objecção - interpôs Mason. - Trata-se, evidentemente, de uma declaração "por ouvir dizer".

O juiz interveio:

- É com efeito uma declaração "por ouvir dizer". Contudo, no presente caso, já que estamos numa mera audiência preliminar, não vamos agora prolongá-la, ainda mais do que já foi, com novos testemunhos dos donos das lojas de vestuário e calçado. Se a Defesa se abstiver de objectar sobre este ponto, a audiência não sofrerá mais prolongamentos.

Com um sinal de assentimento, Mason olhou, do juiz para Tragg.

Carson inquiriu:

- Portanto, Tenente, tanto o vendedor dos sapatos como o alfaiate da loja de vestuário identificaram esses artigos como tendo sido adquiridos por Mr. Loring Lamont?

- Sim, sir.

- Muito bem, Tenente. Onde encontrou esses artigos?

- Dentro de uma arca que estava na garagem de Miss Madge Elwood.

- Na mesma garagem onde foi surpreender Mr. Mason e Miss Street?

- Sim, sir.

- A Defesa pode contra-interrogar - concedeu Carson.

- Declarou, há pouco, Tenente - começou Mason, - que a sua busca à garagem de Miss Elwood teve por objectivo procurar qualquer prova que ali tivesse sido "plantada" por alguém?

- Precisamente.

- E esse alguém referia-se à ré, Arlene Ferris?

- Sim, embora, presentemente, se encontre sob a custódia da Polícia. Contudo, podia tê-lo feito, antes de ser presa. Também podia ter sido "plantada" pelo seu advogado.

- E não admitiu a hipótese, Tenente, de que essa prova tivesse sido guardada, na tal arca, pela própria dona da mesma?

- Não pensei nessa hipótese.

- A quem pertence a arca?

- A Miss Elwood.

- E não pensou que Miss Elwood tivesse arrumado... ou escondido... essa prova na arca? Não é uma hipótese tão admissível como qualquer outra?

- Bem... Sim, é admissível, mas improvável.

- A arca estava fechada à chave?

- Sim.

- Como conseguiu abri-la, Tenente?

- Com uma gazua da Polícia e na presença de uma testemunha, também da Polícia.

- Se a arca estava fechada à chave e pertencia a Miss Elwood, continua a considerar improvável que se tratasse de um acto da própria dona?

- Objecção - interpôs Carson. - A pergunta exige uma opinião da testemunha e não uma exposição de facto.

- Objecção aceite - disse o juiz Bayton, conquanto fitando Mason com interesse. - Trata-se, efectivamente, de uma suposição, tão válida como a primeira, feita pela testemunha. Portanto, não se sabe quem colocou o fato e os sapatos de Mr. Loring Lamont, nessa arca.

- Exactamente, senhor Doutor Juiz - corroborou Mason. - Continuamos a ignorar se essa prova foi "plantada" ou intencionalmente escondida. Contudo, para ter sido "plantada" ou escondida, seria necessário que alguém possuísse a chave da arca. Nestas circunstâncias evidencia-se ser mais provável que esse alguém tenha sido a própria dona da arca e não a ré, que apenas se encontrava de visita ao apartamento de Miss Elwood. Não tenho mais perguntas a fazer ao Tenente Tragg.

- A Acusação deveria chamar a depor a dona da arca - alvitrou o juiz.

- Se o Tribunal me permite - disse Carson,- desejo declarar que a Acusação tem desenvolvido todos os esforços para interrogar Miss Madge Elwood, mas, até agora, não foi possível descobrir o seu paradeiro, Entretanto desejaria ouvir uma nova testemunha, Bertha Anderson.

Mason reconheceu-a imediatamente. Depois das formalidades habituais, Carson inquiriu:

- Em que se ocupa, Miss Anderson?

- Sou gerente dos "Kelsington Apartments", em Santa Monica, e também trabalho no balcão da recepção, como recepcionista.

- Conhece Madge Elwood?

- Sim.

- Ela vive nesses apartamentos?

- É inquilina de um dos apartamentos.

- Conhece Mr. Perry Mason?

- Sim. Já nos encontramos, pessoalmente.

- Quando se verificou esse encontro?

- Ontem.

- E Mr. Mason pediu-lhe uma chave-mestra, para penetrar no apartamento de Madge Elwood?

- Objecção - interpôs Mason, - visto a pergunta ser sugestiva, além de incompetente, irrelevante e imaterial, por referir-se a uma conversa não presenciada pela ré. A Acusação pretende, unicamente, fazer uma insinuação, no sentido de prejudicar a defesa da ré.

- Objecção aceite - decidiu o juiz. Carson prosseguiu:

- Viu Madge Elwood, no dia seis do corrente?

- Sim. Vi-a várias vezes.

- Ao princípio da tarde?

- Sim.

- Vinha acompanhada? Em caso afirmativo, quem a acompanhava?

- Miss Arlene Ferris. Miss Madge Elwood disse-me que aquela sua amiga iria passar a noite com ela e, talvez, mais um dia ou dois.

- Essa conversa ocorreu na presença da ré?

- Sim.

- Muito bem. Reparou no vestido que Madge Elwood usava, nessa altura?

- Sim.

- A saia era a mesma que constitui, neste momento, a prova B-8 que foi apensa ao processo e agora exibo, na minha mão?

- Sim.

- Quando tornou a ver Madge Elwood?

- Quando saiu do edifício, algum tempo depois.

- Viu-a, de novo, quando regressou ao apartamento?

- Sim.

- Que horas eram, nessa altura?

- Não tenho a certeza. Cerca de umas três horas, depois de ter saído.

- E Madge Elwood trazia a mesma saia?

- Não. Por acaso esse facto chamou-me a atenção, visto eu ter um vestido com uma saia parecida com aquela com que a vira sair.

- A Defesa pode contra-interrogar. Virando-se para a testemunha, Mason indagou:

- Costuma ver as pessoas que entram e saem no edifício de apartamentos, Miss Anderson?

- Com grande frequência. O meu apartamento situa-se por detrás do balcão da recepção e tem uma janela interior que dá para este, de maneira que, através dela, posso vigiar o átrio e ver quem entra e quem sai.

- Viu Miss Elwood, no dia cinco do corrente?

- No dia cinco?... Sim, vi-a regressar do trabalho, ao fim da tarde.

- Quando a viu, pela última vez, nesse dia cinco?

- Objecção-interveio Carson, com base em que a Acusação não interrogou a testemunha, com referência ao dia cinco.

- Tenho o direito de testar a memória da testemunha- redarguiu Mason. - Mencionei o dia cinco, não por ser o do crime, mas por ser o da véspera daquele que foi referido pela Acusação. Trata-se, meramente, de verificar se Miss Anderson se lembra, unicamente, do que sucedeu no dia seis, ou se a sua memória é mais lata.

- Objecção recusada - resolveu o juiz, sorrindo. -

Queira a testemunha responder à pergunta.

- Sim. Vi Miss Elwood, por volta das nove horas, tinha eu acabado de tomar um café.

- Saía ou entrava no edifício?

- Saía.

- Lembra-se se a viu regressar, nessa mesma noite?

- Não. Não voltou, enquanto eu estive atenta ao átrio.

- Até que horas manteve a sua vigilância, Miss Anderson?

- Como sempre, até às onze horas.

- Por acaso não notou que saia Miss Madge Elwood trazia vestida, nessa noite? Sabe se era a mesma com que a viu sair, no dia seis?

- Não era a mesma. Tenho a certeza, visto eu também possuir uma saia que é, praticamente, do mesmo padrão.

- Miss Madge Elwood deixou o seu apartamento, durante o dia de ontem?

- Sim.

- Levava com ela duas malas muito pesadas?

- Sim.

- Miss Elwood disse-lhe por quanto tempo tencionava estar ausente?

- Não.

- Isso não é uma atitude bastante fora de comum, por parte dos seus inquilinos?

- Bem... Nunca aconteceu. É absolutamente impróprio...

- Depois de Miss Elwood ter deixado o apartamento, a senhora, Miss Anderson, entrou nele, com a sua chave-mestra?

- Objecção-gritou Carson.- A testemunha foi convocada pela Acusação e a pergunta é imprópria de um contra-interrogatório. Procura insinuar desonestidade.

- De maneira alguma - redarguiu Mason.- Apenas procurei averiguar a competência de uma pessoa responsável pelo edifício. Quando um inquilino se ausenta, sem explicação alguma, convém verificar se deixou o gás e a electricidade desligados, sobretudo se possui equipamentos electrodomésticos susceptíveis de causarem um incêndio.

- Objecção recusada. Queira a testemunha responder à pergunta - decidiu Bayton.

- Entrou no apartamento de Miss Elwood? - repetiu Mason.

- Sim, como seria natural, num caso daqueles... Mas não foi por esse motivo.

Bertha Anderson hesitou e olhou para o adjunto do procurador do Distrito. Mason continuou:

- Quando entrou no apartamento, estava acompanhada?

- Sim-respondeu a gerente, um tanto ou quanto constrangida.

- Quem a acompanhava?

- O tenente Tragg, do Departamento de Homicídios.

- Objecção - tornou a gritar Carson. - A Acusação não fez qualquer pergunta a esse respeito, no interrogatório directo.

- O Tribunal está inclinado a aceitar a objecção.

A Defesa já efectuou testes suficientes para averiguar a memória e a credibilidade da testemunha - considerou o juiz.

- É tudo-disse Mason, secamente. - Obrigado, Miss Anderson - acrescentou, sorrindo, como para manifestar que a sua secura não lhe era dirigida.

- Se o Tribunal me permite - disse Carson,- a Acusação pretende apresentar o fato e os sapatos que foram encontrados na arca de Miss Elwood. A ré fez várias declarações à Polícia, expondo uma versão de que teria sido atacada pela vítima, Loring Lamont e, ulteriormente, perseguida por ele, na estrada.

"Mr. Mason forneceu a Miss Elwood uma saia que, deliberadamente, tinha sido enlameada, sob o arame farpado da berma da estrada de acesso à "casa das reuniões" e, também deliberadamente, cortou um pedaço dessa saia, com o fim de "plantá-lo" naquele arame farpado, cerca de vinte e quatro horas depois do crime.

"O objectivo do Advogado seria, como é lógico, confirmar à versão fictícia que a ré expusera à Polícia. Agora, a Acusação está em posição de demonstrar que Mr. Mason, tendo em sua posse um fato e uns sapatos de Loring Lamont, foi "plantar" esses artigos de vestuário na arca de Miss Elwood."

- Como pode relacionar esse acto com Mr. Mason? - inquiriu o juiz Bayton, de cenho cerrado.

- Bem... ele e a secretária foram surpreendidos em flagrante delito.

- Não! - contrariou o juiz. - Isso não foi provado. Pelo contrário, a testemunha... tenente Tragg... declarou que se desembaraçou deles para poder abrir a arca, sem que estivessem presentes. Nada viu que lhe permitisse acusá-los de fraude. Portanto, não foi testemunhado "flagrante delito".

- Mas esses artigos foram, indubitavelmente, "plantados" naquela arca - insistiu Carson.

A expressão de Bayton endureceu.

- Como? Foi testemunhado que a arca se encontrava fechada à chave. Pretende, porventura, a Acusação insinuar que o tenente Tragg "plantou" esses artigos?

O adjunto do procurador do Distrito corou e abanou a cabeça apressadamente.

- Não... de maneira alguma. O tenente Tragg não tinha o menor interesse em "plantar" essa prova. Em contrapartida, Perry Mason tinha toda a conveniência de que ela fosse encontrada, tal como foi, naquele local.

- Pelo que sabemos - replicou o juiz, - tanto a Polícia como George Albert teriam o mesmo interesse, conquanto com um objectivo contrário ao de Mr. Mason. A Acusação está apenas a expor uma suposição, não baseada na mínima prova... O Tribunal nem sequer considerou prova absoluta o testemunho de Jerome Henley que, após ter identificado Madge Elwood como sendo a jovem que vira sair do automóvel de Loring Lamont, se contradisse, afirmando, a posteriori, ter visto a ré, Arlene Ferris. O Tribunal também se apercebeu de que essa testemunha só alterou as suas prévias declarações, após ter sido influenciada pela Polícia, no sentido de corrigir a identificação anterior. Por esse motivo, chamo novamente Jerome Henley, não para ser ouvido pela Defesa, mas para ser interrrogado pelo Tribunal.

- Mr. Henley não se encontra presente - informou Carson. - Mandá-lo comparecer novamente seria causar um ainda maior prolongamento desta audiência, meramente preliminar.

- Conquanto meramente preliminar - retorquiu Bayton, - o dever do Tribunal é procurar fazer justiça. Que a Acusação mande, quanto antes, comparecer essa testemunha e a audiência ficará interrompida até à sua chegada.

- Talvez - propôs Mason, - enquanto aguardamos a chegada de Jerome Henley, eu possa esclarecer esse assunto, se me for permitido contra-interrogar novamente o tenente Tragg.

- Objecção - rugiu Hamilton Burger, pondo-se de pé.

Mas o juiz Bayton, com um gesto enérgico, mandou-o sentar-se, e ordenou:

- Que o tenente Tragg regresse ao banco das testemunhas.

- Ora diga-me, Tenente- começou Mason, - se os pratos sujos, encontrados na "casa das reuniões", foram levados para o laboratório da Polícia.

- Foram, sim, a fim de serem analisados.

- Encontraram-se, neles, algumas impressões digitais da acusada?

- Sim.

- Onde se encontraram essas impressões digitais?

- Na caçarola onde ela confeccionou os biscoitos.

- Refiro-me aos pratos sujos - precisou Mason.

- Bem... encoutrou-se uma impressão digital.

- Só uma?

- Bem... só se encontrou uma.

- E... nas chávenas de café?

- Aí, não foram detectadas impressões digitais da ré.

- E não é verdade, Tenente Tragg, que se encontraram outras impressões digitais... ou seja, de outra pessoa?

Após uma hesitação, Tragg confirmou:

- Sim.

- A Polícia já identificou essas impressões suplementares?

- Ainda não.

- Por que não mencionou, Tenente, a existência de outras impressões digitais, quando do primeiro contra-interrogatório?

- Porque não me foi feita essa pergunta específica.

- Não teria sido, Tenente, porque o procurador do Distrito o instruiu no sentido de não mencionar a existência de outras impressões que não fossem as da ré?

- Apenas fui instruído no sentido de não prestar informações voluntárias, sobre matéria que me não fosse perguntada.

- Portanto, Tenente, não sabe se essas impressões são de Madge Elwood?

- Não sei de quem sejam. Unicamente sei que não correspondem às de Sadie Richmond. Fizemos o teste comparativo que se impunha.

- Muito bem, Tenente. Agora, um outro assunto. A ré, Miss Arlene Ferris, declarou que, enquanto Loring Lamont a deixara no carro, após terem chegado à "casa das reuniões", ele fez uma chamada telefónica, pedindo ao seu interlocutor que ligasse para ele, alguns minutos depois. Porventura a Polícia procurou averiguar a existência dessa chamada?

- Sim. Verificámos todas as chamadas, feitas do local.

- Ah! - proferiu Mason, simulando espanto. - Mas, Tenente, também não mencionou essa diligência, quando do seu contra-interrogatório!

- Não fui perguntado a esse respeito - defendeu-se Tragg.

- E averiguou com quem comunicou Loring Lamont?

- Sim. Telefonou para os escritórios da "Lamont Company".

- Comunicou com alguém, em especial?

- Não nos foi possível averiguar esse pormenor.

- Muito bem, Tenente. Agora, diga-me: depois de Loring Lamont ter verificado precisar de outro fato e outros sapatos, a quem telefonou?

- Um momento! Um momento! - interveio Carson, exasperado. - Não respondia a essa pergunta, Tenente. É argumentatíiva, insinua factos não provados e, portanto, trata-se de contra-interrogatório impróprio.

- Objecção mantida - considerou o juiz.

- Muito bem - assentiu Mason. - Sabe, Tenente, se Loring Lamont fez outros telefonemas, além do já mencionado?

- Nenhum - respondeu Tragg, com convicção.

- O quê? - exclamou Mason, surpreendido.

- Não houve outras chamadas, feitas da "casa das reuniões" para a cidade, além da já referida, para os escritórios da "Lamont Company".

- A que horas se verificou essa chamada?

- Às seis horas e vinte e dois minutos.

- Ou seja, à hora indicada pela ré, nas suas declarações à Polícia?

- Sim... aproximadamente.

Mason fechou os olhos, concentrando os pensamentos.

- Mais alguma pergunta? - sondou Bayton.

- Não, senhor Doutor Juiz. É tudo.

- Nesse caso, vamos fazer um intervalo de dez minutos. Entretanto comparecerá a testemunha Jerome Henley - programou o juiz.

Quando saiu da sala de audiências, Mason virou-se para Paul Drake e Della Street, que se tinham aproximado dele.

- Temos dez minutos para resolver este caso - sublinhou o advogado. - Raciocinemos sobre o que deve ter acontecido. Loring Lamont conseguiu arranjar uma muda de fato e de sapatos. Como diabo a obteve, sem ter telefonado?

"Pelas declarações das testemunhas, fiquei convencido de que, efectivamente, a história de Arlene é verdadeira. Sabemos que foi, realmente, perseguida pela estrada, passou por debaixo do arame farpado, fugiu no carro de Loring e foi estacioná-lo junto da boca de incêndio. Os vestígios de lama nas calças e sapatos de Loring comprovam a versão da nossa cliente. E não há dúvida de que alguém, depois de Arlene ter fugido, esteve na "casa das reuniões". Inclino-me para que esse alguém tenha sido Madge Elwood; mas como diabo soube que Loring precisava de uma muda de roupa, se ele não lhe telefonou? E como pôde entrar no apartamento de Loring, para ir buscar aqueles artigos de vestuário?

"Só há uma hipótese admissível: Madge Elwood telefonou a Loring."

- Mas - objectou Drake - com que finalidade? Para que decidiria telefonar-lhe, àquela hora?

- Só pode haver uma explicação: Madge era íntima amiga de Loring. Sabia o que acontecera a Arlene, visto ter falado com ela ao telefone. Portanto, ligou para a "casa das reuniões". Os minutos estão a escoar-se e, neste momento, o factor tempo é vital para a defesa da minha cliente. Preciso de dados, com a maior urgência. Tens de conseguir resolver um problema difícil, Paul. Liga para a Companhia dos Telefones e alega que se trata de uma questão da maior importância. Utiliza a tua influência pessoal, junto do teu informador ou de alguém que já te tenha dado um "lamiré" noutros casos, e descobre se, na noite de cinco do corrente, Madge não terá telefonado para Loring.

Drake fez uma careta, dubitativa.

- Vou tentar, mas não creio que tenhamos muita sorte.

- Se não encontrares nenhum dos teus amigos, pede para falares com o director de serviço. Explica-lhe a situação de Arlene... que está inocente. É realmente um caso de "vida ou de morte".

"Tentemos reconstituir as acções. Arlene deixou a "casa das reuniões", por volta das sete horas; dirigiu-se ao seu apartamento, mudou de roupa e, voltando ao carro de Loring, foi estacioná-lo junto à boca de incêndio. Depois, telefonou a Madge Elwood... talvez por volta das oito e meia. Já agora, Paul, procura descobrir o que puderes acerca dessa chamada que foi feita para a "Lamont Company", às seis e vinte e dois minutos."

- Vou tentar - prometeu Drake,- mas não me dás muito tempo!

- Porque não o tenho para dar-te.

Durante algum tempo, Mason andou, de um lado para outro, na sala de audiências vazia, com a cabeça inclinada, em meditação. Subitamente, virou-se para Della e pediu-lhe:

- Vá ter com Drake, que está a telefonar. Alheámo-nos de um ponto fundamental deste caso.

- Qual, Chefe?

- O número de matrícula do carro que estacionou ao lado dos que estavam arrumados junto ao passeio... Esse que o agente Lyons também multou. Paul tem de descobrir a identidade do dono dessa viatura.

Della apressou-se a desempenhar a missão. Passaram cinco minutos e Jerome Henley entrou na sala de audiências, com um ar exasperado. Estava ofegante e percebia-se que viera apressadamente.

Logo a seguir a sala encheu-se de assistentes; instantes depois, o juiz Bayton e os dois representantes da Acusação vieram ocupar os seus lugares.

Carson chamou Henley ao banco das testemunhas e Della veio sentar-se, junto de Mason.

- Acertou em cheio, Chefe! - exclamou, cheia de júbilo. - Madge telefonou para a "casa das reuniões". Esta foi a chamada para fora da cidade. Contudo, fez outros dois telefonemas urbanos e Drake está tentando localizá-los. Também está, neste momento, a tratar do número de matrícula do automóvel que estacionou ao lado dos outros, por não arranjar lugar junto do passeio.

Mason recostou-se na cadeira, tendo readquirido o seu sorriso confiante. Depois, olhou para Arlene Ferris e fez-lhe um aceno de cabeça, tranquilizador.

O juiz Bayton, virando-se para Jerome Henley, explicou:

- O Tribunal deseja fazer-lhe algumas perguntas, Mr. Henley. Quando Mr. Perry Mason foi ao seu estabelecimento, acompanhado por uma jovem... que sabemos tratar-se de Madge Elwood... o senhor, Mr. Henley, reconheceu-a como sendo a que vira sair do carro da vítima, Loring Lamont?

- Sim, mas tinha sido previamente enganado...

- Um momento! - cortou o juiz. - Esqueça-se desse argumento de que "fora ludibriado", como se fartou de declarar. O senhor pensou... ou fizeram com que pensasse... que Mr. Mason o enganara. Mas isso, agora, está fora de causa. A minha pergunta é: quando viu Madge Elwood, na sua loja, estava convencido de que fora ela a jovem que, na noite de cinco do corrente, saíra do carro de Loring Lamont?

- Bem... Identifiquei-a, porque tinha sido enganado. ..

- Nessa altura, a sua identificação foi, ou não, absolutamente positiva?

- Bem... nessa altura foi positiva, mas, depois, explicaram-me que...

- Não interessa o que lhe explicaram. Quero apenas saber qual a sua impressão, nessa altura.

- Efectivamente, nessa altura, estava convencido de que Miss Elwood era a jovem que eu vira sair do carro do meu vizinho Lamont.

- Portanto, o senhor, Mr. Henley, identificou Madge Elwood, por duas vezes; a primeira, pela fotografia que lhe foi mostrada por um detective, e a segunda, pessoalmente, quando Mr. Mason lhe apresentou a jovem.

- Sim, mas, da segunda vez, identifiquei-a porque já vira a fotografia. Fico indignado, sempre que alguém tenta fazer de mim um idiota...

- Por que motivo, depois disso, identificou a ré, Arlene Ferris?

- Porque a Polícia me mostrou uma fotografia da ré e, em seguida, mostrou-ma em carne e osso.

- E só então se convenceu de que teria podido tratar-se de Arlene Ferris, em vez de Madge Elwood?

- Evidentemente. A Polícia não iria tentar enganar-me, como um advogado...

- Isso é, apenas, uma suposição sua, Mr. Henley. Para todos os efeitos, o Tribunal inclina-se a considerar válida a primeira identificação; a segunda deve ter resultado de sujestão a posteriori... até prova em contrário.

Ora, essa prova ainda não foi feita pela Acusação... Deseja contra-interrogar a testemunha, Mr. Mason?

- Não, senhor Doutor Juiz, mas a Defesa pretende re-contra-interrogar o tenente Tragg.

Virando-se para este, Mason acrescentou:

- Escusa de deslocar-se ao banco das testemunhas. Pode responder do local onde está... Entre outras coisas que teve o cuidado de não mencionar, quando foi interrogado, Tenente, omitiu qualquer informação acerca do estado de alcoolemia da vítima, Loring Lamont?

- Não fui eu quem lhe fez a análise ao sangue para avaliação da quantidade de álcool, ingerido antes da morte. Isso foi operado pelo médico legista, dr. Draper.

- Mas o senhor conhecia o resultado dessa análise. Qual foi ele?

- A percentagem de álcool era de grau nove.

- O grau nove já corresponde a um considerável grau de intoxicação alcoólica, não é verdade?

Secamente, Tragg respondeu:

- Sim.

- Consideravelmente superior à que se obtém pela ingestão de um ou dois, ou mesmo três cocktails, não é verdade?

- Sim.

- Provavelmente, seis ou sete?... Não estou a pedir-lhe uma suposição, ou mesmo uma conclusão; estou a pedir-lhe que testemunhe aquilo que sabe, como oficial da Polícia.

- Bem... digamos cinco, seis ou mais.

- E não é verdade que recebeu instruções do procurador do Distrito para não mencionar esse facto?

Carson, que estivera a conferenciar, em surdina, com Hamilton Burger, interveio, nervosamente:

- Senhor Doutor Juiz! A Acusação limitou-se a recomendar ao Tenente Tragg que não prolongasse escusadamente os interrogatórios, com menções que em nada contribuíssem para o esclarecimento da causa em debate. Uma audiência preliminar deve ser breve, tanto mais que se destina a...

- O Tribunal sabe qual a finalidade de uma audiência preliminar, Mr. Carson... e agradece-lhe que não interrompa o interrogatório, tornando-o, constantemente, menos breve - retorquiu o juiz Bayton, fulminante, com um olhar censurador, bastante agressivo. - A testemunha responda à pergunta.

Contrariado, por ver-se numa posição antagónica à do procurador do Distrito, Tragg respondeu:

- Sim, senhor Doutor Juiz.

- Foi a Defesa quem lhe fez a pergunta - corrigiu Bayton.

- Sim, Mr. Mason - murmurou Tragg. - Fui aconselhado a não demorar os interrogatórios, com pormenores desnecessários.

Foi a vez de o juiz tornar a intervir:

- Mas esse pormenor do grau de alcoolemia é fundamentalmente necessário, visto que altera, materialmente, a complexão do caso. Tudo indica que a versão da ré, até agora, tem sido verdadeira. Loring Lamont esteve a beber depois da saída da ré.

- Se o Tribunal me permite - replicou Burger, - a ré pode ter mentido, quanto ao número de cocktails ingeridos, enquanto esteve na "casa das reuniões", precisamente para estabelecer a confusão.

"A Acusação mantém a tese de que a ré não se mostrou adversa às familiaridades de natureza amorosa da vítima e, voluntariamente, entregou-se, com esta, a libações alcoólicas. A ré planeou esse encontro, para "deixar-se" seduzir."

- Como explica, Mr. Burger, que a vítima tivesse, na algibeira do seu fato, a tampa do distribuidor do automóvel da ré? - inquiriu Bayton.

- Foi ela que aí a colocou, depois da morte de Loring Lamont. A própria ré avariara o carro, para induzir a vítima a dar-lhe uma boleia.

- Nesse caso, por que motivo, em vez de deixar-se seduzir, fugiu pela estrada e rastejou sob o arame farpado?

- A Acusação não sabe se ela o fez, senhor Doutor Juiz! Essa é a versão inventada pela ré e manipulada, com provas "plantadas", pela Defesa.

- Não, Mr. Burger!-retrucou o juiz. - As calças e os sapatos da vítima provam que a fuga e a perseguição, à chuva e na lama, foram reais e não inventadas. Além disso, Mr. Burger, não foi provado que a Defesa tenha "plantado" prova alguma. Se tal tivesse acontecido, o Tribunal já teria tomado medidas adequadas. Presume-se que a Defesa tenha procurado activar a investigação policial, quanto a pormenores materiais que, de outro modo, teriam sido negligenciados.

Nesse momento, apressadamente, Paul Drake entrou na sala de audiências e entregou um papel a Perry Mason. Ao mesmo tempo, comunicou-lhe:

- Aqui tens, Perry. Madge Elwood telefonou para a "casa das reuniões"; depois, fez mais duas chamadas; uma, para o número de George Albert e outra, para o apartamento de Edith Bristol. Quanto a Loring, ligou para o PBX da Companhia e pediu à telefonista que lhe telefonasse para a "casa das reuniões", dentro de sete minutos. Quando ela o fez, Loring atendeu, mas desligou imediatamente, sem nada lhe transmitir.

O juiz Bayton perguntou:

- Há mais alguma testemunha a ser ouvida?

- Não, senhor Doutor Juiz - respondeu Burger.

- A Defesa tem alguma testemunha a contra-ínter-rogar, ou a inquirir em interrogatório directo?

- Não, senhor Doutor Juiz, mas deseja apresentar uma teoria, corroborada por uma prova.

Depois de segredar algumas palavras a Della Street, Paul Drake saiu da sala de audiências.

- Qual a teoria e a prova? - perguntou Bayton.

- Presumindo que a versão da ré é verdadeira, Loring Lamont ficou na "casa das reuniões", com a roupa molhada e os sapatos enlameados e sem automóvel, no qual pudesse regressar ao seu apartamento. Portanto, teve de fazer o que qualquer outra pessoa faria, no seu lugar: arranjar uma muda de roupa e calçado enxuto... e um meio de sair dali.

- Mas ficou provado - interrompeu Burger, -que não fez qualquer chamada para a cidade.

- Sim-respondeu Mason, -mas a Polícia não se deu ao trabalho de verificar se teria sido feita qualquer chamada... da cidade para a "casa das reuniões".

- Tem essa prova? - interessou-se o juiz?

- Os registos da Companhia dos Telefones indicam que Madge Elwood ligou para Loring Lamont, ou seja, para a "casa das reuniões", nessa mesma noite de cinco do corrente. Depois disso, a mesma Madge Elwood fez outros dois telefonemas: um para George Albert e outro para Edith Bristol, secretária particular de Mr. Jarvis Lamont.

Drake tornou a irromper na sala de audiências e Mason pediu:

- A Defesa solicita a indulgência do Tribunal para uma breve interrupção...

Após uns instantes de leitura do papel que Drake lhe estendera, Mason prosseguiu:

- Também os registos constantes do relatório do agente Peter Lyons incluem o número de matrícula de um carro que estava estacionado, não junto ao passeio, já ocupado por outras viaturas, mas ao lado de uma destas, numa segunda fila, em contravenção. Este automóvel pertence a Edith Bristol.

- A Defesa tem a certeza de que essas informações são verdadeiras? - perguntou Bayton.

- Sim, senhor Doutor Juiz. Acabam de ser-me fornecidas por Mr. Paul Drake, director da "Agência de Detectives Drake", que procedeu às necessárias averiguações, junto da Companhia dos Telefones e dos registos da Polícia, resultantes dos relatórios dos seus agentes da radiopatrulha. Podem ser verificados pelo Tribunal.

- Muito bem, Mr. Mason - acordou o juiz Bayton. - Queira a Defesa proceder à exposição das suas alegações.

- O que sucedeu, nessa noite de cinco do corrente, reveste-se de uma lógica extremamente simples. Depois de o carro de Loring Lamont ter sido levado pela acusada, o seu perseguidor teve de regressar à "casa das reuniões". Furioso, deitou os ovos com bacon no caixote do lixo e, provavelmente, não tomou o café que tinha sido feito. Serviu-se vários cocktails, pensando em como poderia sair da situação em que se encontrava. Não sabia para onde a acusada levara o carro, nem sabia se ela iria participar às autoridades o ataque de que fora vítima.

"Entretanto, a acusada, tendo chegado à cidade, foi estacionar o carro de Loring Lamont, defronte do apartamento que ele possuía na Endicott Way e, em contravenção, rente a uma boca de incêndio. Telefonou à sua amiga Madge Elwood e relatou-lhe o que sucedera na "casa das reuniões" e o que fizera ao carro de Loring Lamont, depois de ter conseguido escapar às investidas e perseguição daquele violador potencial.

"Obviamente, Madge Elwood telefonou a Loring Lamont, pois conhecia-o intimamente. Disse-lhe estar a par de tudo quanto acontecera e ofereceu-se para ajudá-lo. Naturalmente Lamont pediu-lhe que lhe trouxesse o carro e que, antes disso, arranjasse alguém que passasse pelo seu apartamento, para levar-lhe uma muda de roupa e calçado.

"Portanto, Madge Elwood telefonou a alguém que pudesse entrar no apartamento de Lamont, para ir buscar a muda de roupa e calçado... e também telefonou a outra pessoa que se dispusesse a acompanhá-la à "casa das reuniões", pois não estava disposta a arriscar-se a sofrer... dado o estado de espírito de Lamont... o mesmo tratamento que ele já dera à acusada.

"A pessoa que foi buscar a muda de artigos de vestuário estacionou o seu automóvel, não rente ao passeio, por não ter aí lugar, mas ao lado de outro que já estava devidamente arrumado. Enquanto se dirigiu ao apartamento de Lamont, o agente Lyons multou-me o carro, por estacionamento indevido. Ora, esta viatura está em nome de Edíth Bristol.

"Entretanto, a outra pessoa a quem Madge Elwood telefonara, para proteger-se, foi George Albert que a escoltou até à "casa das reuniões"."

Nesse instante, Edith Bristol, levantando-se de entre a assistência, avançou para perto da secretária do juiz e perguntou:

- Posso prestar declarações ao Tribunal? Hamilton Burger protestou:

- Essa testemunha não foi convocada! A Acusação...

- Por favor - cortou o juiz, peremptoriamente, - queira sentar-se, senhor Procurador do Distrito. - Que declarações deseja prestar ao Tribunal, minha jovem?

- Sou Edith Bristol, secretária particular de Mr. Jar-vis Lamont, pai da vítima. Estou farta de toda esta intriga... Mais tarde ou mais cedo, ver-me-ia obrigada a confessar. Portanto, prefiro fazê-lo já. Fui eu que matei Loring Lamont.

- Aproxime-se mais, minha jovem-convidou o juiz. - Desde já a advirto de que tudo quanto disser poderá ser usado contra si, em julgamento. O Tribunal aconselha-a a nomear um advogado, antes de prestar quaisquer declarações.

Edith abanou a cabeça.

- Não preciso de advogado, neste momento. Quero confessar tudo.

- Muito bem-, Miss Bristol - disse Bayton, -conte-nos o que sucedeu.

- Loring - começou Edith, com um ar cansado, sem manifestar grande emoção-era um homem insinuante e até fascinante. Fez-me a corte e arranjou-me o lugar de secretária particular do pai, na "Lamont Company". Evidentemente, antes disso, já mantínhamos relações íntimas e convenci-me de que as suas promessas de casar comigo eram sinceras.

"Entretanto, descobri que ele tinha uma outra amiga muitíssimo íntima, a trabalhar na mesma Companhia; uma jovem, de cérebro desempoeirado e muito atraente, Madge Elwood.

"Fui ter com ela e pus as cartas na mesa; queria saber se os dois ainda se encontravam, ou se esse romance já terminara. Para meu espanto, Madge não estava apaixonada por Loring; confirmou manter relações com ele, de quando em quando, mas que já rareavam. Afiançou-me não ter ciúmes do que eu e Loring pudéssemos fazer e que já começara a andar com outro elemento da Companhia: o gerente George Albert. Por isso, decidira abandonar o seu emprego na "Lamont Company" e ir trabalhar para outro lado, onde Loring não pudesse importuná-la.

"Aconselhou-me a não pensar em casar com Loring, visto ele só desejar aventuras sexuais emocionantes, mas temporárias. Confesso que, nessa altura, não a acreditei, julgando-a apenas invejosa do meu futuro. Contudo, pouco a pouco, verifiquei que Loring encontrava-se com outras mulheres. Fui forçada a fechar os olhos, para não o perder definitivamente. Ele assegurava-me que, com as outras, tinha unicamente encontros esporádicos e que, depressa, "corria" com elas. Se eu quisesse manter-me a seu lado, teria de ser tolerante e aceitar-lhe esses caprichos momentâneos, de ocasião.

"Na noite de cinco do corrente, Madge Elwood telefonou-me. Pareceu-me deveras divertida e relatou que Loring levara Arlene Ferris para a "casa das reuniões", mas que ela se tinha recusado a deixar-se violar, acabando por bater-lhe e fugir-lhe com o carro.

"Loring ficara só, com a roupa molhada, pois perseguira Arlene na estrada, e encontrava-se sem meio de regressar à cidade. Por outro lado, estava com medo que o caso fosse divulgado e chegasse aos ouvidos do pai, porque Mr. Jarvis Lamont já várias vezes repreendera o filho pela sua conduta imoral, chegando a proibi-lo de utilizar a "casa das reuniões" para as suas fantasias eróticas.

"Como eu tinha uma chave do apartamento de Loring, Madge pediu-me que fosse lá arranjar-lhe uma muda de fato e calçado. De facto, eu era a única pessoa que tinha uma chave do apartamento e que, portanto, poderia ajudá-lo na situação em que se achava.

"Fui à Endicott Way e, como não tivesse onde arrumar o meu carro, junto do passeio, estacionei-o, ao lado de outro; subi ao apartamento de Loring, procurei roupa e sapatos e, ao voltar para o automóvel, verifiquei que tinha sido multada.

"Fui para a "casa das reuniões" o mais depressa que pude e encontrei Loring medonhamente embriagado. Enquanto ele mudava de roupa, fiz-lhe café, para tentar melhorar o seu estado, e cozinhei uns ovos com bacon, visto que ele nada tinha comido. Vi alguns biscoitos e aqueci-os. Então, consegui convencê-lo a jantar comigo, de improviso.

"Mas Loring começou a tornar-se ordinário. Acusou-me de eu ter-me colado a ele, como uma lapa, apenas com o intuito de tornar-me Mrs. "Lamont Company"; de que eu só estava interessada no dinheiro e que, em contrapartida, nem sequer lhe despertava um grande interesse sexual.

"Depois, Loring disse ter descoberto uma outra rapariga que lhe acicatava os instintos, pelo que ele desejava, nessa mesma noite, ir "ajustar contas com ela". Por esse motivo, precisava do carro que essa garota lhe tinha levado, quando fugira. Acrescentou que preferia as mulheres que se mostravam difíceis no primeiro encontro e estar farto daquelas que, como eu, se lhe tinham rendido, fingindo desejá-lo.

"Como é natural, fiquei ofendida com aquela deturpação da verdade e com o seu cinismo. Discutimos e, a certa altura, esbofeteei-o. Então, Loring saltou sobre mim, bateu-me e tentou possuir-me. Libertei-me dele e corri para a cozinha. Contudo, quando estava a tentar sair pela porta que dá para as traseiras, conseguiu agarrar-me e dobrou-me para trás, de encontro à mesa. Gritei de dor e, aproveitando o momento em que ele tentava rasgar-me as... bem... servir-se de mim, consegui soltar-me e agarrei numa faca que estava ali, à minha mão esquerda.

"Loring correu para mim, tropeçou e veio embater com a cabeça de encontro ao meu estômago. Agarrou-me pela cintura e... só sei que perdi a cabeça e desferi-lhe um golpe nas costas.

"Fiquei aterrorizada, ao notar com que facilidade a faca se lhe entrara na carne... mas não sabia que o tinha morto. Pensava que apenas o tivesse ferido e só desejei sair dali para fora, antes que ele voltasse a perseguir-me. Corri para o meu carro e fugi."

A sala de audiências ficou imersa num silêncio total.

Perry Mason, num tom de consideração pelas declarações da testemunha, perguntou, brandamente:

- Porventura, Miss Bristol, Loring Lamont fez qualquer referência a um cheque de quinhentos dólares?

A jovem acenou com a cabeça e apressou-se a confirmar:

- Sim. Esse cheque fora a causa de Loring ter-se manifestado tão impaciente e impetuoso com Arlene Ferris. A sua intenção era começar por fazer a corte a Arlene e seduzi-la, gradualmente, mas foi forçado a agir depressa. Uma parelha de chantagistas, Otto Kes-wick e Sadie Richrnond, andava a extorquir-lhe dinheiro, para não divulgarem certas acções de Loring que ele, sobretudo, desejava ocultar ao pai. Naquela noite, OK telefonou-lhe...

- OK?- interrompeu Mason. - A quem se refere? A Otto Keswick. Era assim que ele o tratava, quando não queria que alguém soubesse com quem estava a falar ao telefone.

- Obrigado, Miss Bristol. Estava a dizer que Otto Keswick lhe telefonara...

- Sim. Otto exigiu-lhe quinhentos dólares e avisou-o de que viria buscá-los, dentro de meia hora.

- Obrigado, Miss Bristol- repetiu Mason. Então, virando-se para o fundo da sala, sondou:

- Agora, Mr. George Albert, não deseja prestar também algumas declarações?

Albert levantou-se e, do seu próprio lugar, respondeu com dignidade:

- Não posso prestar declarações, em Tribunal, visto que, ontem à noite, casei, em Las Vegas, com Miss Madge Elwood... agora, Mrs. Albert. De acordo com a Lei, um marido não pode testemunhar contra a mulher, nem ela contra o marido.

Sentou-se, com a mesma dignidade tranquila. O juiz Bayton olhou para o procurador do Distrito, depois para Carson e, por fim, para Mason.

- A Defesa tem mais alguma prova a apresentar ou testemunha a ser ouvida? - perguntou.

- Não, senhor Doutor Juiz.

- Muito bem. O caso contra Arlene Ferris é anulado. O Tribunal ordena que Edith Bristol permaneça sob custódia da Polícia, até o seu julgamento.

Após uns instantes, Bayton acrescentou:

- É com relutância que o Tribunal toma esta decisão, pois verifica que Miss Bristol relatou a sua história com grande sinceridade. Decerto, impressionará favoravelmente o Tribunal que a julgar e o júri não deixará de considerar que se tratou de um homicídio em legítima defesa. A audiência está encerrada.

 

Perry Mason, Della Street, Paul Drake e Arlene Ferris encontravam-se sentados no gabinete particular do advogado.

Quase histérica de alegria, Arlene Ferris, tinha os olhos vermelhos de chorar.

Batendo com os dedos sobre a pasta de cabedal que tinha pousado sobre a secretária e onde se encontravam os documentos relativos ao processo, Mason comentou, sorrindo:

- Mais um caso arrumado.

- Para si - observou Arlene, - não é mais do que uma outra causa que conseguiu ganhar. Mas, para mim, foi toda a minha vida futura.

- Também para ele - interveio Della. - Tem feito do estabelecimento da Justiça toda a sua vida.

Paul Drake agitou-se, impaciente, no grande maple onde se instalara, atravessado, como de costume, e perguntou:

- Vá lá, Perry. Desembucha. Explica-nos como descobriste o que aconteceu.

- Foi simples. Loring Lamont era um "lobo lascivo", como o descreveu Arlene. Decidiu conquistá-la, "às boas", se pudesse. Se ela resistisse, empregaria o método violento... que também agrada a algumas mulheres, como ele próprio declarou. Aparentemente, já tinha experiência desse género de conquistas e conhecia a Lei da Califórnia que estabelece, para um caso de queixa contra um violador sexual, uma investigação do passado moral da queixosa, dissecando actos sexuais por ela anteriormente praticados com outros homens.

"Certamente que, para um indivíduo sem escrúpulos e com muito dinheiro, não seria difícil mobilizar um batalhão de detectives para obter provas das relações íntimas amorosas dessa mulher.

"Contudo, Otto Keswick, tendo presenciado a entrada e saída de Loring na "casa das reuniões", acompanhado de várias conquistas, aliou-se a Sadie Richmond e obteve provas do comportamento erótico do conquistador. Com a experiência de chantagista profissional, pela qual já fora condenado, começou a extorquir dinheiro a Loring, ameaçando-o de transmitir ao pai a sua conduta imoral. Naquela noite, exigiu que o pagamento de quinhentos dólares lhe fosse feito, dentro de meia hora.

"Loring, ansioso por possuir Arlene, resolveu apressar as operações amorosas e, perante a resistência da presa, decidiu usar da violência. Já sabemos o que sucedeu.

"Depois de Arlene ter fugido, telefonou a Madge Elwood e esta ligou para Loring. Prontificou-se a ajudá-lo e ofereceu-se para levar-lhe o carro, visto que Arlene indicara onde o deixara estacionado. Também se dispôs a arranjar-lhe uma muda de roupa e calçado. Contudo, não tinha a chave do apartamento da Endi-cott Way.

"Portanto, telefonou a Edith Bristol, que possuía uma chave desse apartamento, e encarregou-a de levar a muda a Loring, o que Edith fez, no seu próprio carro.

"Porém, Madge não estava disposta a ir, sozinha, à "casa das reuniões". Conhecia Loring de "ginjeira" e não queria arrostar com as suas prováveis investidas luxuriosas. Havia muito que tinha deixado de ser sua amante e considerava-se já noiva de George Albert, com quem mantinha relações íntimas.

"Por conseguinte, telefonou a Albert, pedindo-lhe que a acompanhasse à "casa das reuniões". Deliberadamente, Madge deixou que Edith Bristol chegasse lá primeiro."

- Por que motivo Edith Bristol não seguiu no carro de Loring, já que a chave da ignição se achava no painel dos instrumentos?

- Evidentemente, preferiu ir no dela. Se levasse o de Loring, teria de esperar que ele a reconduzisse à cidade... e não queria que ele a obrigasse a passar o resto da noite, no divã da "casa das reuniões".

"Madge foi até lá com George, tencionando ambos regressar no carro de Edith Bristol. Contudo, quando lá chegaram, já não a encontraram... e Loring estava morto."

- E quanto à muda de roupa e calçado? - perguntou Drake.

- Quando encontraram o cadáver de Loring, compreenderam o que se teria passado com Edith e decidiram nada contar a esse respeito. Perceberam que a Polícia ficaria sem provas concludentes do crime, se lhe mudassem a roupa e escondendo a que ele usara. Dessa maneira, Madge tentava deixar Arlene livre de suspeitas e, ao mesmo tempo, protegia-se de uma publicidade desagradável, caso a envolvessem pela sua amizade com Arlene.

"Assim, voltou com George para a cidade. Guardou a roupa de Loring na arca da garagem, depois de ter estacionado o carro dele no mesmo local onde Arlene o deixara... junto da boca de incêndio."

- Mas isso não é um crime? - observou Drake.

Não só não participaram um homicídio à Polícia, mas também "baralharam" todas as provas.

- Efectivamente, esse comportamento é considerado crime. Resta saber se o procurador do Distrito conseguirá prová-lo - respondeu Mason, com um sorriso sardónico. - Madge convenceu Albert a casar com ela, a toda a pressa, exactamente para impossibilitar quaisquer interrogatórios. Foi quem mais aproveitou com a morte de Loring.

"Burger pode conseguir provar que Madge telefonou a Edith Bristol, mas não obterá qualquer prova concludente de que ela tenha ido à "casa das reuniões". Depois da lavagem ao cérebro que a Polícia fez a Jerome Henley, não se conseguirá provar que foi Madge a jovem que ele viu sair do carro de Loring. Henley começou por declarar que vira Madge; depois, jurou em tribunal ter sido "ludibriado" por mim e que se tratava de Arlene; finalmente, ao ser interrogado pelo juiz Bayton, admitiu poder ter sido Madge quem ele vira... Porém, qualquer advogado se serviria desses testemunhos contraditórios para desfazer uma acusação válida contra a recém-casada Mrs. Albert."

Foi a vez de Della manifestar a sua curiosidade:

- Por que motivo, Chefe, estavam Otto e Sadie tão ansiosos por receberem um cheque, nessa mesma noite?

- Apenas posso conjecturar que tencionavam fazer alguma aposta, antes da meia-noite... Ou então Otto tinha combinado uma "jogatina" de poker, por volta das nove. Inclino-me mais para a primeira hipótese. Contudo, a pessoa a quem entregaram o cheque soube que Loring fora assassinado na véspera; compreendeu que o cheque já não seria pago pelo banco e não se atreveu a tentar sacá-lo, para não ter de dar explicações, quanto à sua origem.

- E que se passou com o cheque que Jarvis Lamont entregou a Madge? - indagou Della Street.

- Jarvis entregou-lho, por intermédio de Edith, para que Madge pudesse casar com George Albert e, dessa maneira, ambos se furtassem a interrogatórios, no Tribunal. Não sendo interrogados, menos se propagaria a constante conduta imoral do filho. Aparentemente, Jarvis Lamont estava disposto a sacrificar Arlene.

- Compreendo, Chefe, mas como diabo Jarvis Lamont estava a par de tudo quanto se passou?

Mason sorriu e admitiu:

- Temos de concluir que Madge Elwood é uma garota tão astuta como atraente. Não só sabe servir-se das belas curvas com que Deus a prendou, mas também das suas circunvoluções cerebrais.

Paul Drake soltou uma gargalhadinha maldosa.

- Isso, Perry, faz-me pensar em que raio estiveram vocês dois a falar, quando ela se despiu, no apartamento, para enfiar a saia de Arlene. Não me digas que te atirou para o corredor!

- Não, Paul, mas estivemos a falar de livros clássicos. É muito instrutivo.

- Para a próxima vez - sugeriu Drake, -será melhor que te concentres, exclusivamente, no trabalho cerebral e me utilizes, como é norma, para o trabalho de pernas.

- Mas, Paul - corrigiu Mason, -todo o trabalho que tive com Madge foi, estritamente, cerebral.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner  

 

                      

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