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O MARQUÊS DE VILLEMER / George Sand
O MARQUÊS DE VILLEMER / George Sand

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Carolina ia ao acaso, caminhando para a frente como uma alma sem corpo, tal era a sua sobre‑excitação. Estava já um pouco longe do carro quando ouviu o cavalo soprar com força baixando a cabeça. Julgou que ele expirava, e contemplando‑o com angústia, viu que farejava diante de si dum modo estranho. Foi uma revelação: correu e viu uma mão enluvada e como morta, que a respiração do cavalo, derretendo a neve nesse ponto, pusera a descoberto. O corpo, ali estendido, era o obstáculo que o animal não quisera pisar. Aos gritos de Carolina, Peyraque acudiu: e libertando o sr. de Villemer, colocou‑o no carro, onde a menina de Saint‑Geneix o amparou, procurando aquecê‑lo nos braços.

 

 

 

 

Carta a Camila Heudebert

«Minha querida irmã

«Calculo que estejas ansiosa por notícias minhas. Cheguei a Paris sem novidade. Dormi durante algumas horas e almocei uma chávena de café. Agora, já pronta, vou meter‑me num trem, dirigindo‑me a casa da sr.a de Arglade, afim de ela me apresentar à sr.a de Villemer. Descansa; escrever‑te‑ei esta noite para te contar o resultado da solene entrevista, mas quero mandar agora estas duas linhas para o correio para que fiques tranquila sobre a minha Viajem e a minha saúde.

«Tem coragem como eu, minha Camila, tudo há‑de correr bem; Deus não abandona os que nele confiam e fazem o possível por ajudar a sua doce providência. O que há de mais doloroso para mim na resolução que tomei, são as tuas lágrimas e as dos nossos queridos pequenos: custa‑me a conter as minhas quando penso nas vossas; mas isto era absolutamente necessário! Eu não podia ficar de braços cruzados, quando tu tens quatro filhos para educar. Visto que tenho coragem e saúde e nenhum outro laço me prende a este mundo mais do que o meu carinho por ti e por esses pobres anjos de Deus, era a mim que competia partir e ganhar a nossa vida. Consegui‑lo‑ei, podes ter a certeza. Ajuda‑me em lugar de me lastimares e de me enterneceres, eis tudo o que peço. E agora, minha querida irmã, abraço‑te com todo o meu coração, assim como aos nossos adorados filhos. Não os faças chorar falando‑lhes de mim: mas procura conseguir que eles me não esqueçam, o que seria para mim um profundo desgosto.

Carolina de Saint‑Geneix.

3 de Janeiro de 1845.»

 

Segunda carta ‑ À mesma

«Vitória! Grande Vitória, minha querida irmã! Chego agora de casa da nossa fidalga, e o sucesso foi absoluto. Vais ver. Como tenho ainda uma noite livre, a última provavelmente, vou aproveitá‑la para te contar a entrevista; parecer‑me‑á que converso ainda contigo ao canto do fogão, embalando com uma das mãos o Carlitos e amimando a Lili com a outra. Meus queridos amores, que fazem eles nesta ocasião? Não imaginam por certo que estou completamente só num triste quarto de hospedaria, porque, receando incomodar a sr.a de Arglade, alojei‑me num modesto hotel; mas estarei muito bem em casa da marquesa, e esta noite solitária ser‑me‑á boa para me recolher e pensar em Vós sem distracção. Fiz muito bem em não confiar demasiado na hospedagem que me era oferecida, porque a sra de Arglade está ausente, e tive de fazer corajosamente a minha própria apresentação à sra de Villemer. Recomendaste‑me que te fizesse o retrato dela: tem aproximadamente sessenta anos, mas é doente e poucas Vezes deixa a sua cadeira de braços; isto e o seu rosto sofredor fazem‑na parecer mais Velha quinze anos. Não deve ter sido nem bonita nem elegante; mas a sua fisionomia é expressiva e característica. É muito trigueira; os olhos magníficos, bastante duros, mas francos. Tem o nariz direito e muito caído sobre a boca, que é feia e se vê demasiado. Essa boca é desdenhosa habitualmente; todavia, todo o rosto se ilumina e humaniza quando sorri, e sorri facilmente. A minha última impressão veio confirmar a primeira. Creio que esta senhora é muito bondosa, mas por reflexão mais que por impulso, e mais corajosa que alegre. Tem espírito, é instruída ‑ Enfim não difere muito do retrato que a sr.a de Arglade nos tinha feito dela. Estava só quando me introduziram no seu quarto. Fez‑me sentar junto de si com bastante amabilidade, e eis o resumo da conversa:

‑ Foi‑me recomendada com muito empenho pela sr.a de Arglade, a quem muito estimo. Sei que pertence a uma excelente família, que é muito prendada, possui um nobre carácter e uma vida sem mancha. Tenho, pois, o maior desejo de que possamos entender‑nos e de que agrademos uma à outra. Para isso, duas coisas são precisas: uma, é que o ordenado que lhe ofereço a satisfaça, a outra, que a nossa maneira de ver não seja demasiado oposta, porque se o fosse daria origem a frequentes contrariedades. Tratemos da primeira questão. Ofereço‑lhe mil e duzentos francos por ano.

‑ Já mo participaram, minha senhora, e aceitei.

‑ A mim disseram‑me que talvez julgasse essa quantia insuficiente.

‑ É verdade que é pouco para as necessidades da minha situação; mas v. ex.a sabe quanto lhe convém dar e visto que aqui estou...

‑ Fale francamente; parece‑lhe que não é bastante?

‑ Não posso afirmá‑lo. É provavelmente mais do que os meus serviços Valem.

‑ Eu não digo semelhante coisa, e a menina di‑lo por modéstia; mas receia que não chegue para as suas despesas? Esteja sossegada, encarrego‑me de tudo; em minha casa só gastará com o vestuário, e não exijo luxo. Por acaso, gostará de enfeitar‑se?

‑ Sim, minha senhora, bastante; mas abster-me‑ei disso pois que V‑ ex.a o não exige. A sinceridade da minha resposta pareceu‑me que fez admirar a marquesa. Talvez não devesse falar tão espontaneamente como é meu costume fazê‑lo. Enfim ela sorriu e disse‑me: ‑ Então porque gosta de se enfeitar? É nova, linda e pobre; não tem necessidade nem direito de o fazer.

‑ Tenho tão pouco esse direito ‑ respondi eu ‑ que me visto simplesmente como V. ex.a vê.

‑ Muito bem, mas tem pesar de se não Vestir mais elegantemente?

‑ Não, minha senhora, não tenho pesar absolutamente nenhum, visto ser necessário assim. Falei sem reflectir quando disse que gostava de luxo, e dei‑lhe uma triste ideia do meu bom senso. Não Veja nisso senão um efeito da minha sinceridade.

Perguntou‑me, e eu respondi como se tivesse a honra de ser conhecida de V‑ ex.a; foi talvez uma inconveniência, peço‑lhe que me desculpe.

‑ Quer dizer‑replicou ela ‑ que se eu a conhecesse, saberia que aceita sem irritação e sem murmurar os inconvenientes da sua posição?

‑ Sim, minha senhora, é isso mesmo.

‑ Pois bem! A sua inconveniência, se é que o foi, está muito longe de me desagradar. Aprecio, mais que tudo, a sinceridade; aprecio‑a talvez mais do que o bom senso, e apelo para toda a sua franqueza. O que a levou a aceitar tão insignificantes honorários para vir fazer companhia a uma mulher velha, doente e talvez muito aborrecida?

‑ Em primeiro lugar, minha senhora, disseram‑me que tinha muito espírito e que era muito bondosa, e por conseguinte não receei aborrecer‑me junto de V. ex.a; depois, ainda mesmo que tivesse de sofrer muito, era meu dever tudo aceitar, de preferência a ficar inactiva. Meu pai não nos deixou fortuna, mas minha irmã tinha feito um bom casamento, e eu vivia com ela sem escrúpulos. O marido, cuja abastança provinha dum emprego, morreu há pouco tempo, após uma longa e dolorosa doença que lhe absorveu todas as economias. É pois naturalmente a mim que compete sustentar minha irmã e os seus quatro filhos.

‑ Com mil e duzentos francos? ‑ exclamou a marquesa ‑ Não, não pode ser. Ah! meu Deus! A sr.a de Arglade não me tinha dito isso. Receou, sem dúvida, a desconfiança que a desgraça inspira; mas pelo que me diz respeito, pensou bem erradamente; a sua dedicação interessa‑me, e se estivermos de acordo no resto, quero que sinta a minha estima. Confie em mim; farei o mais que puder.

‑ Ah! minha senhora, ‑ respondi ‑ ou tenha ou não a felicidade de lhe convir, deixe‑me agradecer‑lhe esse impulso do seu coração!

E beijei‑lhe a mão com vivacidade, do que ela não desgostou.

‑ Mas,‑continuou, após um curto silêncio em que parecia desconfiar da sua inspiração ‑ se a menina fosse frívola e um pouco leviana?

‑ Não sou nem uma nem outra coisa, acho eu.

‑ Assim o espero! Todavia a menina é muito bonita. Também mo não tinham dito. Acho‑a mesmo, à medida que a vou examinando, notavelmente formosa. Isso inquieta‑me um pouco, não lho oculto.

‑ Porquê, minha senhora?

‑ Porquê? Sim, tem razão. As feias julgam‑se belas, e ao desejo de agradar juntam o ridículo. É talvez melhor que possa agradar... contanto que não abuse. Vejamos, será tão boa rapariga e mulher tão sensata que queira contar‑me um pouco da sua existência passada? TeVe algum romance, não é verdade? Não podia deixar de ser assim. Apenas com vinte e dois ou vinte e três anos...

‑ Vinte e quatro. Tive apenas o romance que vou contar em duas palavras: Aos dezassete anos fui pedida em casamento por um homem que me agradava, e que se retirou quando soube que meu pai deixara mais dívidas do que capital.

Senti um grande pesar, mas esqueci‑o e jurei que não me casaria.

‑ Ah! mas isso é despeito e não esquecimento!

‑ Não minha senhora, é raciocínio. Não tendo nada, mas sentindo que era alguma coisa, não quis fazer um mau casamento, e longe de ficar despeitada, perdoei àquele que me abandonara: perdoei‑lhe sobretudo no dia em que, vendo minha irmã e os seus quatro filhos na miséria, compreendi a dor dum pai de família que se mata com trabalho sem poder deixar coisa alguma aos seus órfãos.

‑ E tornou a Ver esse ingrato?

‑ Nunca mais. Casou, e eu não pensei mais nele.

‑ E depois nunca se prendeu com outro?

‑ Não, minha senhora.

‑ Como fez para o conseguir?

‑ Não sei. Creio que não tenho tido tempo para pensar em mim. Quando se é muito pobre, e se quer lutar com a miséria, os dias estão tão cheios!

‑ No entanto, deve ter sido muito pretendida, linda como é?

‑ Não, minha senhora; ninguém me importunou. Eu não creio nas perseguições que não são animadas.

‑ Penso como a menina, e estou muito satisfeita com a sua maneira de responder. Por conseguinte não receia por si no futuro?

‑ E essa solidão sentimental não a tornará triste, aborrecida?

‑ De forma nenhuma o prevejo. Sou naturalmente alegre e conservei a coragem no meio das mais cruéis provações. Não tenho sonho algum de amor na imaginação, não sou romântica. Se vier a mudar, ficarei admirada. Eis, minha senhora, tudo o que lhe posso dizer a meu respeito. Quer receber‑me como eu me dou com confiança, pois que no fim de contas só posso dizer de mim aquilo que de mim conheço?

‑ Sim, tomo‑a pelo que é, por uma excelente rapariga muito franca e cheia de boa Vontade. Falta‑me saber se possui realmente as pequenas prendas que eu reclamo.

‑ Que é preciso fazer?

‑ Conversar primeiro, e sobre esse ponto estou satisfeita. E depois, é preciso ler e tocar um pouco de música.

‑ Experimente‑me imediatamente, e se o pouco que sei a contentar...

‑ Sim, sim ‑ disse ela, metendo‑me um livro na mão: ‑ leia! Sinto o maior desejo de ficar encantada consigo.

Ao fim de uma página, tirou‑me o livro, declarando‑se satisfeita. Restava a música. Havia um piano no quarto. Perguntou‑me se sabia ler música à primeira vista. Como é quase tudo o que sei, pude ainda satisfazê‑la nesse ponto. Finalmente disse‑me que, conhecendo a minha letra e a minha redacção, pelas cartas que a sr.a de Arglade lhe mostrava, contava que fosse excelente secretária e despediu‑me estendendo‑me a mão e dizendo‑me palavras muito afectuosas. Pedi‑lhe o dia de amanhã para procurar as poucas pessoas que conhecemos aqui, e ela deu as ordens necessárias para que eu ficasse instalada no sábado...

Minha querida irmã, acabam de me interromper. Que agradável surpresa! É um bilhete da sra de Villemer, um bilhete de três linhas, que transcrevo:

«Permita‑me, querida filha, que lhe envie uma pequena quantia, por conta do seu ordenado, para os filhos de sua irmã e um Vestidito para si. Visto que gosta de se Vestir bem, que remédio haverá senão sermos indulgentes com as fraquezas das pessoas que estimamos. Fica combinado que terá cento e cinquenta francos por mês, e que me encarrego do seu vestuário.» Como isto é bom e maternal, não achas? Vejo que estimarei esta senhora de todo o meu coração, e que a não tinha julgado bem à primeira vista. É mais espontânea do que pensava. A nota de quinhentos francos Vai dentro desta carta‑Depressa! Lenha na loja, saias de lã para a Lili, que precisa delas, e um frango de tempos a tempos nessa pobre mesa. Um pouco de Vinho para ti, o teu estômago está tão estragado, e bastaria bem pouca coisa para o curar! É preciso também mandar arranjar a chaminé do quarto, que fumega atrozmente; assim é insuportável; pode fatigar os olhos das crianças, e os da minha afilhada são tão lindos!

Quanto a mim, tenho vergonha do vestido que me é destinado, um vestido de seda cinzenta, magnífico.

Ah! como eu fui tola em dizer que gostava de me vestir bem! Um vestido de quarenta francos teria satisfeito a minha ambição, e eis‑me com um de duzentos sobre o corpo, enquanto a minha pobre irmã conserta os seus farrapos! Não sei onde me esconda; mas não penses que me sinto humilhada em receber um presente. Pagarei esses obséquios conscienciosamente, diz‑mo o coração. Vês, Camila, a mim tudo me corre bem, quando tento alguma coisa! Encontro logo à primeira uma senhora excelente, ganho mais do que julgava e sou acolhida e tratada como uma filha que se quer adoptar e amimar. E quando penso que me retinhas há seis meses impondo‑te um excesso de privações e arrancando os cabelos só com a ideia de que eu queria trabalhar para ti! Boa irmã, eras então uma detestável mãe? Então esses queridos tesouros, os teus filhos, não deviam estar antes de tudo, e fazer calar mesmo a nossa amizade? Ah! e contudo tive bem medo de nada conseguir, confesso‑te hoje, quando trouxe de casa o nosso último dinheiro para pagar a minha viagem, em risco de Voltar sem ter agradado a esta senhora! Deus protegeu‑me, Camila! Rezei‑lhe esta manhã com tanta fé!...

Pedi‑lhe tanto que me fizesse amável, conveniente e persuasiva... Agora vou deitar‑me, porque estou a cair de fadiga. Amo‑te, irmãzinha, mais que tudo no mundo, e muito mais que a mim própria. Não me lastimes, pois sou a rapariga mais feliz que hoje existe, e contudo não estou junto de ti, não Vejo dormir os nossos filhos. Vês bem que não há verdadeira felicidade no egoísmo, pois que, só como estou, separada de tudo o que amo, o coração me bate de alegria através das lágrimas, e que vou agradecer a Deus, de joelhos, antes de adormecer. Tua, Carolina.

 

Enquanto a menina de Saint‑Geneix escrevia à irmã, a marquesa de Villemer conversava com o mais novo dos filhos na sua salinha de Saint‑Germain. A casa era grande e de boa aparência; a marquesa, rica outrora, e actualmente com dificuldades, saberemos em breve porquê, ocupava havia pouco tempo o segundo andar, para tirar proveito do primeiro.

‑ Então, querida mamã, ‑ dizia o marquês à mãe ‑ está contente com a sua nova dama de companhia? Os criados disseram‑me que ela tinha chegado.

‑ Meu querido filho ‑ respondeu a marquesa ‑ só te direi uma coisa, enfeitiçou‑me.

‑ Realmente? conte‑me isso.

‑ Não sei na verdade se o deva fazer, tenho medo de te virar a cabeça desde já.

‑ Nada receie; ‑ respondeu tristemente o marquês, que a mãe tinha tentado fazer sorrir ‑ ainda que eu fosse assim fácil de me exaltar, sei muito bem o que devo à dignidade da sua casa e ao repouso da sua vida.

‑ Sim, sim, meu filho! Eu também sei que posso estar tranquila sobre uma questão de honra e de delicadeza quando é contigo que tenho de tratar; assim posso dizer‑te que a de Arglade me encontrou uma pérola, um diamante, e que, para principiar, essa fénix me obrigou a fazer loucuras!

A marquesa contou a sua conversa com Carolina e traçou assim o seu retrato: ‑ Não é nem alta nem baixa, é muito bem feita, tem pés pequenos, mãos de criança, abundantes cabelos dum loiro cendrado, uma tez de lírios e rosas, feições delicadas, dentes de pérolas, um nariz muito direito, belos e grandes olhos verde‑mar que nos olham de frente sem hesitação, sem falsa timidez, com uma candura e uma confiança que encantam e atraem; nada tem de provinciana, maneiras que são excelentes à força de o não serem; muito gosto e distinção na pobreza do seu Vestuário; enfim, tudo o que eu receava e no entanto nada do que eu temia, quer dizer, a beleza que me inspirava desconfiança e nenhuma das afectações ou das pretensões que justificasse essa desconfiança: além disso, uma Voz e uma pronúncia que fazem da sua leitura uma verdadeira harmonia, um real talento para a música, e além de tudo isto, todas as aparências, todos os sinais evidentes do espírito, da razão, da prudência e da bondade; de modo que, interessada e enternecida com a sua dedicação por uma família pobre, e pela qual bem vejo que se sacrifica, esqueci os meus projectos de economia e comprometi‑me a dar‑lhe os olhos da cara.

‑ Então ela regateou? ‑ perguntou o marquês.

‑ Pelo contrário, contentava‑se com o que eu tinha resolvido dar‑lhe.

‑ Nesse caso aprovo‑a, mamã, e sinto‑me bem feliz por que tenha enfim uma companhia digna de si. Conservou mais tempo do que devia essa Velha senhora que estava sempre a dormir, que era gulosa e a impacientava, e quando se trata de a substituir por um tesouro, faria mal em olhar ao que ele lhe custa.

‑ Sim ‑ replicou a marquesa ‑ teu irmão também me diz o mesmo. Nem ele nem tu quereis contar, meus queridos filhos, e eu receio muito ter ido demasiado longe nessa satisfação que a mim própria me dei.

‑ Essa satisfação era‑lhe necessária ‑ disse o marquês com vivacidade ‑ e tanto menos se deve censurar quanto cedeu principalmente à necessidade de praticar uma boa acção.

‑ Confesso‑o, mas fiz mal talvez ‑respondeu a marquesa preocupada ‑ nem sempre temos o direito de fazer bem!

‑ Ah! minha mãe! ‑ exclamou o filho com um misto de indignação e de pesar ‑ quando chegasse ao extremo de se recusar o prazer da esmola, o mal que eu fiz seria bem grande!

‑ O mal! Tu! Que mal? ‑ replicou a mãe, admirada e inquieta ‑ nunca procedeste mal, meu querido filho!

‑ Perdoe‑me, ‑ disse o marquês sempre comovido ‑, Procedi mal quando me comprometi, pelo respeito que lhe tenho, a pagar as dívidas de meu irmão!

‑ Cala‑te! ‑ exclamou a marquesa, empalidecendo ‑, Não falemos disso, não nos entenderíamos.

Estendeu as mãos ao marquês para atenuar a amargura involuntária desta resposta. O marquês beijou‑as e retirou‑se pouco depois.

No dia seguinte, Carolina de Saint‑Geneix saiu para levar ao correio a carta registada que enviava à irmã, e visitar algumas pessoas com quem, do fundo da sua província, tinha conservado relações. Eram antigos amigos da família a quem não encontrou e aos quais deixou o nome sem a morada, Visto que não tinha agora domicílio próprio. É certo que sentiu alguma tristeza ao Ver‑se assim perdida e como que prisioneira numa casa estranha; mas não fez demoradas reflexões sobre o seu destino. Além de se ter proibido uma vez por todas qualquer melancolia debilitante, não era de carácter tímido, e nenhuma provação, por muito dolorosa que fosse, a tinha indisposto com a vida. Havia na sua organização uma admirável vitalidade, uma actividade ardente e tanto mais notável que se aliava a uma grande tranquilidade de espírito e a uma singular ausência de preocupações pessoais. Este carácter bastante excepcional explicar‑se‑á e desenvolver‑se‑á no seguimento da nossa narração, tanto quanto nos for possível; mas é necessário que o leitor se recorde daquilo, que é conhecido de toda a gente, e Vem a ser que ninguém pode explicar completamente, nem descrever nitidamente o carácter de outra pessoa. Todo o indivíduo tem no fundo do seu ser um mistério de força ou de impotência que tanto menos pode revelar, quanto ele próprio o não compreende. A análise deve parecer satisfatória quando se aproxima da Verdade, mas por mais Verdadeira que seja, sempre deixará incompleta ou obscura alguma das faces do eterno problema da nossa intimidade.

 

Carolina estava, pois, triste e alegre ao mesmo tempo, percorrendo completamente só, ora a pé, ora em omnibus, esse grande Paris onde fora educada na abastança, e que tinha deixado, arruinada e com o futuro despedaçado, na época mais bela da vida! Contemos em poucas palavras, e para não voltarmos ao assunto, os acontecimentos graves mas pouco complicados, que ela tinha esboçado ante a marquesa de Villemer.

Carolina era filha dum fidalgo da baixa Bretanha que residia nos arredores de Blois e duma senhora de Grajac, originária de Velay. Carolina mal conhecera sua mãe. A sr.a de Saint‑Geneix morreu no terceiro ano de casada dando à luz Camila e fazendo prometer a Justina Lanion que passaria alguns anos junto das filhas.

Justina Lanion era uma robusta e honesta camponesa do Velay, casada com um tal Peyraque, e que consentiu em ficar oito anos em casa da sr.a de Saint‑Geneix.

Tinha criado Carolina, depois do que voltara para a sua família para em breve tornar a vir criar a segunda filha da sua querida senhora. Graças a ela, Carolina e Camila conheceram os cuidados e a ternura duma segunda mãe; mas Justina não podia esquecer o marido e os filhos. Regressou definitivamente à terra e o sr. de Saint‑Geneix levou as filhas para Paris, onde foram educadas num dos conventos então em voga.

Como não era bastante rico para viver em Paris, alugou um quarto onde vinha estar duas Vezes por ano, nas festas da Páscoa e nas férias que eram também as férias do digno homem. Fazia economias todo o ano para nada recusar às filhas nesses dias do regosijo familiar: tudo eram passeios, concertos, sessões nos museus, excursões aos castelos reais, jantares deliciosos, Verdadeiros divertimentos da vida mais paternal e mais simples, mas também mais imprudente que jamais houve. O bom homem idolatrava as filhas, lindas ambas como dois anjos e tão boas como lindas. A sua garridice era passeatas enfeitadas com gosto, mais frescas ainda que os seus vestidos e os seus laços acabados de chegar da loja de modas, mostrá‑las ao sol e às luzes desse brilhante Paris onde conhecia muito pouca gente, mas onde os olhares do mais insignificante transeunte lhe pareciam mais preciosos que a maior ovação na sua província. Fazer parisienses, verdadeiras parisienses dessas encantadoras criaturas, era o seu sonho.

Esta mania da vida de amador em Paris é uma fatalidade que sofriam, ainda há alguns anos, não só a maior parte dos provincianos abastados, mas raças inteiras. Todo o fidalgo estrangeiro, um pouco ilustrado, precipitava‑se nela como um estudante em férias, deixava‑a com pesar, e ocupava o resto do ano no seu pais a fazer as diligências necessárias para obter o passaporte que lhe permitiria voltar. Ainda hoje sem a severidade das leis que condenam os russos à Rússia e os polacos à Polónia, fortunas imensas viriam, à porfia, dissipar‑se nos prazeres de Paris.

As meninas de Saint‑Geneix aproveitaram de maneira muito diversa a sua elegante educação. Camila, a mais nova e mais linda das duas, o que é dizer muito, embriagou‑se com o que embriagava seu pai, com quem se parecia nas feições e no carácter. Gostava apaixonadamente do luxo e nunca previu que a sua vida pudesse mudar. Bondosa, meiga, mas medlocremente inteligente, só se tornou uma rapariga perfeita no porte, no modo de Vestir e nas maneiras. Voltando ao convento no fim das férias, passava três meses a definhar‑se de saudades, outros três a estudar um pouco para satisfazer a irmã, que a repreendia, e o resto do tempo a sonhar com o regresso do pai e dos divertimentos ‑ Carolina parecia‑se mais com a mãe, que fora uma senhora grave e enérgica. Contudo, era alegre e mesmo mais exuberante que a irmã no gozo da liberdade. Mostrava‑se mais activa em se aproveitar dos Vestuários, dos passeios e dos espectáculos, mas gozava de maneira diversa. Era infinitamente

mais inteligente que Camila, não duma inteligência criadora em matéria de arte, mas profundamente sensível às suas verdadeiras manifestações. Tinha nascido virtuose, isto é, própria para exprimir com brilho e delicadeza o pensamento dos outros. Recitava a poesia ou lia a música com uma inteligência surpreendente.

Falava pouco, sempre muito bem, com uma nitidez própria da exposição que fazia. Quando essa exposição lhe era dada pelo livro, pelo papel, música ou literatura, dava como que um brilho novo ao pensamento escrito. Parecia ser o instrumento necessário ao génio, génio ela própria nos limites da interpretação, se esse génio particular tivesse recebido o seu desenvolvimento.

Mas não o recebeu. Corolina tinha começado aos dez anos a sua educação que aos dezassete era interrompida. Eis o que acontecera. O sr. de Saint‑Geneix, que possuía apenas uns doze mil francos de rendimento e sonhava para as filhas um futuro digno dos seus encantos, deixara‑se envolver, com boa fé deplorável, em especulações que deviam quadruplicar os seus haveres e que os devoraram em poucas semanas.

Um dia, chegou ele a Paris, muito pálido e como fulminado; ia buscar as filhas. LeVou‑as para o seu pequeno solar sem lhes dar explicações, e queixando‑se somente de alguma febre. Definhou durante três meses, e morreu de pesar, confessando a sua ruína aos dois futuros genros, porque logo que as meninas de Saint‑Geneix apareceram em Blois, muitos pretendentes se apresentaram, dois dos quais tinham sido aceitos.

O noivo de Camila era funcionário, homem honesto e sinceramente enamorado; casou apesar de tudo. O de Carolina era proprietário. Reflectiu mais, invocou a Vontade dos pais e retirou‑se. Carolina era corajosa. Sua irmã, mais fraca, teria morrido de pesar; ainda bem que não tinha sido ela a abandonada. A fraqueza faz‑se respeitar mais Vezes que a energia. A energia moral é uma coisa que se não vê e se quebra em silêncio. Matar uma alma não deixa Vestígios. É por isso que os fortes são maltratados e os fracos flutuam sempre.

Felizmente para ela, Carolina não amava com paixão‑ Era meiga e, portanto, abrira a alma a um começo de confiança e de simpatia; mas a tristeza misteriosa e a doença crescente do pai tinham‑na de pressa preocupado muito para que se permitisse pensar demasiado na própria felicidade. O amor duma rapariga assim é uma flor que desabrocha ao sol da esperança; mas toda a esperança pessoal foi vedada a Carolina quando viu extinguir‑se rapidamente a vida do pai. Não viu no noivo mais que um amigo que chorava com ela. Teve por ele reconhecimento e estima; mas o pesar opôs‑se à embriaguez do entusiasmo. A paixão não teve tempo de desabrochar.

Sentira‑se pois ofendida e não aniquilada pelo abandono. Amava tanto o pai e chorava‑o tão sentidamente, que a perda do noivo parecia‑lhe um pesar secundário.

Não testemunhou despeito, mas foi sensível à injúria, e embora se tivesse vingado apenas pelo esquecimento, conservou contra os homens um certo ressentimento vago que a preservou de acreditar no amor e de dar ouvidos às lisonjas dirigidas à sua beleza, até à idade em que a encontramos agora, curada, valorosa e julgando‑se, de boa fé, ao abrigo de todas as seduções.

Não é necessário contar como se passaram os anos que acabamos de fazer transpor. Todos nós sabemos que a perda duma fortuna, pequena, ou grande, não é um facto visivelmente realizado de um dia para o outro. Tenta‑se obter novos prazos dos credores, julga‑se poder salvar alguns restos, passa‑se por uma série de incertezas e surpresas dolorosas, de esperanças desiludidas, até que Vendo‑se que todos os esforços são inúteis, se aceita bem ou mal a situação. Camila ficou muito abatida com este desastre, em que, até ao último momento, se recusou a acreditar; mas tinha feito um bom casamento, e não sofreu realmente a falta de meios. Carolina, mais previdente, foi menos sensível na aparência à absoluta penúria em que ficou. Seu cunhado não quis que se falasse em separação, e fez‑lhe generosamente partilhar a abastança da família; mas ela compreendeu que a sua vida estava perdida e a sua altivez aumentou. Conhecendo que a irmã não tinha bastante ordem nem actividade, Vendo além disso que ela sofria todos os anos os trabalhos e as preocupações da maternidade, fez‑se governanta, criada das crianças, numa palavra, a principal criada da casa, e nessas austeras funções da dedicação pôs tanta graça, bom senso e cordialidade, que todos foram felizes em torno dela, e prestou mais serviços do que recebeu. Depois, veio a doença do cunhado, a sua morte, algumas dívidas atrazadas que ele tinha ocultado, contando poder pagá‑las pouco a pouco, sem sacrifício, do seu ordenado; em suma, os embaraços, o receio e o terror de Camila e enfim o desânimo e a miséria da jovem viuva.

Já vimos que Carolina hesitou algum tempo entre o receio de a abandonar a si própria e o desejo de a salvar pelo seu trabalho. Apareceu então um homem rico, não muito novo e pouco agradável, que pensou nela como numa dona de casa modelo e lhe ofereceu fazê‑la sua esposa. Carolina sentiu Vagamente e depois claramente que Camila desejava vê‑la aceitar. Tomou então o partido de sacrificar‑se, mas doutra maneira. Dar a sua liberdade, a sua independência, o seu tempo e a sua Vida, não queria ela outra coisa; mas exigirem‑lhe a imolação da alma e da sua pessoa para obter um pouco mais de bem estar à família, era demasiado. Perdoou o egoísmo da irmã, e sem mostrar tê‑lo adivinhado, decidiu‑se pelo partido que lhe vimos tomar. Deixou Camila numa pequena e pobre casa de campo nos arredores de Blois, e partiu para Paris, onde lhe foi feito o bom acolhimento que já sabemos, pela sr.a de Villemer, de quem Vamos agora contar sucintamente a história.

Todas as famílias têm a sua ferida e todas as fortunas a sua brecha por onde se escoam o sangue do coração e a segurança da existência. A nobre família de Villemer tinha o seu verme roedor nas loucuras do filho primogénito da marquesa. A marquesa fora casada em primeiras núpcias com o duque de Aléria, um espanhol orgulhoso, de carácter terrível que a fizera infeliz, mas que, após cinco anos de borrasca, lhe deixou uma grande fortuna e um filho belo, inteligente e amável, destinado a tornar‑se profundamente céptico, soberanamente pródigo e deploràvelmente libertino.

Casada em segundas núpcias com o marquês de Villemer, mãe e viuva pela segunda Vez, a marquesa tinha encontrado em Urbano, seu filho mais novo, um amigo dedicado, generoso, de costumes tão austeros quanto os do irmão eram corrompidos, e bastante rico da herança de seu pai para não se afligir demasiado com a ruína da mãe, porque na época em que penetramos na existência destes três personagens, a marquesa quase nada possuía, graças à Vida que o jovem duque levara.

Nesta época, o duque tinha já trinta e seis anos feitos e o marquês perto de trinta e três. Vê‑se que a duquesa de Aléria não demorara muito tempo em tornar‑se marquesa de Villemer. Ninguém a censurara por isso. Ela tinha estremecido apaixonadamente o segundo marido. Dizia‑se mesmo que o amara, honestamente, antes de ser Viuva do primeiro. Era uma natureza generosa e sofrivelmente exaltada. Assim, a morte prematura deste segundo marido deixou‑a quase louca durante um ou dois anos.

Não queria ver ninguém e mesmo os filhos lhe eram como que estranhos. Isto levou as famílias dos maridos a pensarem em interditá‑la e em cuidarem da educação dos seus filhos; mas a esta ideia a marquesa voltou à razão. A natureza fez um grande esforço, a alma libertou‑se da sua perturbação, a maternidade despertou e a crise de paixão que a fez interessar novamente pelos filhos e acariciá‑los chorando, restituiu‑lhe os direitos da razão e o império da vontade. Ficou adoentada, fraca, envelhecida antes do tempo, um pouco extravagante em certas coisas, mas muito enérgica no seu procedimento, muito dedicada nas suas afeições e muito nobre nas suas relações com o mundo. Foi notada desde então pelo seu espírito, que estivera por muito tempo como que adormecido no pesar e no amor, e que se mostrou enfim com energia e rectidão.

Tudo o que precede estabelece suficientemente a sua posição. Deixaremos agora Carolina de Saint‑Geneix apreciar como entender a marquesa e os seus dois filhos.

 

Carta a Camila Heudebert

Paris, 15 de Março de 1845

«Sim, querida irmãzinha, estou muito bem instalada, como te disse nas minhas precedentes cartas. Tenho um lindo quarto,‑ um bom fogão, uma bela carruagem, criados e mesa bastante abastada. Só de mim depende julgar‑me rica e marquesa, pois que estando quase constantemente junto da velha senhora, estou necessariamente associada a todo o conforto da sua vida.

Mas tu censuras‑me o escrever‑te cartas muito pequenas. É que, agora, tenho tido pouco tempo de meu. Enfim, a marquesa, que queria, segundo creio, experimentar‑me um pouco, parece compreender que lhe sou muito sinceramente dedicada, e permite que me retire à meia‑noite. Poderei, pois, conversar contigo sem me deitar às quatro horas da manhã, porque a marquesa tem visitas até às duas, e conserVo‑me ainda junto de si uma hora para conversarmos a respeito das pessoas com quem acabávamos de estar, o que, confesso‑te e disse‑lho a ela própria, começava a parecer‑me muito fatigante.

Pensava que eu, como ela, me levantava tarde. Quando soube que às seis horas estava sempre acordada sem que me fosse possível tornar a adormecer, respeitou generosamente esta enfermidade de provinciana. Assim, de manhã ou à noite conversarei contigo, querida Camila.

Sim, estimo, estimo muito, esta boa senhora. Tem um grande encanto para mim, e a autoridade que exerce sobre o meu espírito, vem‑lhe sobretudo da franqueza e da limpidez do seu. Tem preconceitos certamente, e muitas ideias que não são nem nunca serão as minhas; mas não põe nisto hipocrisia alguma, e as suas antipatias nada têm de assustadoras, porque mesmo nas suas prevenções se sente uma perfeita lealdade.

E demais, há três semanas que vejo a alta sociedade, porque a marquesa, sem dar festas, recebe todas as noites grande número de visitas. Tenho notado uma grande nulidade nestes espíritos. Asseguro‑te que com melhores maneiras e um certo ar de superioridade, é‑se geralmente aqui tão afagado quanto possível. Não há opiniões sobre coisa alguma, são lástimas por tudo e não se encontra remédio para nada. Diz‑se mal de toda a gente e não se deixa por isso de estar de bem com todos. Já não há indignação, há apenas maledicência. Predizem‑se sem cessar as maiores catástrofes, mas Vive‑se como se se gozasse da mais completa segurança. Enfim é‑se vazio e ôco como a incerteza, como a importância, e entre estes espíritos perturbados e de convicções gastas, estimo esta Velha marquesa tão franca nas suas antipatias e tão nobremente inacessível às transacções. Parece‑me Ver uma pessoa de outro século, uma espécie de duque de Saint Simon feminino, conservando o respeito da nobreza como uma religião e nada compreendendo do poder do dinheiro contra o qual em torno dela se protesta dèbilmente ou hipocritamente.

Quanto a mim, tu bem sabes como desprezo o dinheiro! As nossas infelicidades não me mudaram, porque não chamo dinheiro a essa coisa sagrada, o salário que ganho altivamente e mesmo com um pouco de orgulho neste momento. Isto é o dever, a garantia da honra. O luxo mesmo quando é continuação ou recompensa de uma vida elevada, não me inspira esse desdém filosófico que encobre sempre alguma inveja: mas a opulência cobiçada, procurada, desejada e comprada a todo o preço por casamentos ambiciosos, por evoluções de consciência política, por intrigas de família em torno de heranças, eis o que toma, com razão, o vil nome de dinheiro, e sob este ponto de vista sou bem da opinião da marquesa, que não perdoa os casamentos desiguais feitos por interesse e todas as baixezas, quer privadas, quer públicas.

É por isso que ela vê, sem pesar e sem receio, cair dia a dia tudo o que possui num abismo. Já te falei disto. Disse‑te que o duque de Aléria, seu filho mais Velho, a arruinava, enquanto que o marquês, filho do segundo marido, a cercava de respeito e de cuidados, e lhe conservava ainda a existência num pé muito confortável.

É preciso que fale agora destes dois cavalheiros, de quem apenas te disse algumas palavras. Vi o marquês logo no primeiro dia em que aqui me instalei. Todas as manhãs, do meio‑dia à meia hora, e todas as noites, das onze à meia‑noite, vem estar com sua mãe. Além disso janta muitas Vezes com ela. Tenho pois tido tempo de o observar, e creio que o conheço muito bem.

É um homem novo que me parece não ter tido mocidade. Tem uma saúde delicada, e o seu espírito, muito cultivado e muito elevado, luta contra um pesar secreto ou contra uma tendência natural para a melancolia. É impossível possuir um exterior que menos impressione à primeira vista e que mais simpatia inspire à medida que a sua fisionomia se revela. Não é alto nem baixo, nem bonito nem feio. O seu vestuário nada tem de descuidado nem de afectado. Parece ter aversão instintiva a tudo que chame a atenção sobre a sua pessoa. Contudo, compreende‑se depressa que não é um homem vulgar. As poucas palavras que nos diz, têm um sentido profundo ou delicado e os seus olhos, quando perdem o embaraço duma certa timidez, são tão belos, tão bondosos, tão inteligentes, que creio nunca ter encontrado outros semelhantes.

O procedimento dele para com a mãe é admirável e revela‑o duma forma completa. Vi‑lhe dar alguns milhões, toda a sua fortuna pessoal, para pagar as loucuras do primogénito, sem mostrar a menor comoção, sem fazer uma observação, sem mostrar despeito nem pezar. Quanto mais ela tem

sido fraca para com esse filho ingrato e mau, tanto mais o marquês tem sido terno, dedicado e respeitoso. Vês que é impossível deixar de estimar este homem, e eu sinto por ele uma espécie de veneração.

Demais a sua convivência torna‑se muito agradável. Quase que não fala na sociedade; mas na intimidade, Vencida a primeira reserva, conversa com grande encanto. Não é só um homem instruído, é um poço de ciência. Creio que tem lido tudo, porque de qualquer assunto que se trate, é interessante e prova que estudou a fundo todas as coisas. A sua conversação é tão necessária à marquesa que, quando alguns afazeres impedem ou encurtam a Visita costumada, fica como que desorientada e inquieta durante o resto do dia.

A princípio, logo que o via entrar de manhã nos aposentos da marquesa, retirava‑me por discrição, tanto mais que, pela sua parte, este homem superior, excessivamente modesto por consequência, parecia intimidado com a minha presença. Era dar‑me muita honra, seguramente; mas ao fim de três ou quatro dias, tranquilizou‑se a ponto de me perguntar com bondade porque me fazia fugir. Não me julgaria autorizada por isso a estorvar as expansões do filho e da mãe; mas esta pediu‑me que ficasse, e insistiu mesmo dizendo‑me depois a razão com a franqueza habitual, e essa razão, um pouco singular, é a seguinte:

‑ Meu filho é dum carácter triste, não se parece comigo. Eu ou estou muito abatida ou muito animada, nunca pensativa, e o devaneio dos outros irrita‑me um pouco. No meu filho, inquieta‑me ou aflige‑me. Nunca me pude habituar à sua maneira de ver. Quando estamos sós, é‑me preciso fazer esforços contínuos para que não caia nas suas meditações. E se à noite estamos rodeados de quinze ou vinte pessoas, fica à vontade porque se conserva afastado. Para que eu possa gozar realmente do seu espírito, o que é a minha maior felicidade e o meu único prazer, nada é tão favorável como a presença dum terceiro, principalmente se esse terceiro é uma pessoa de mérito. O marquês dá‑se então ao trabalho de ser encantador, a princípio por delicadeza, e pouco a pouco por coquetismo, embora ele próprio não dê por isso. Enfim, é um homem que tem necessidade de ser arrancado às suas reflexões, e é tão bom para mim que não tenho nem direito, nem vontade de romper abertamente essa luta; enquanto que a presença duma pessoa que, mesmo sem dizer nada, se supõe que escuta, o obriga a expandir‑se um pouco, pois se receia parecer pedante falando demasiado, receia ainda mais parecer afectado quando se alheia a reflectir. Assim, minha querida, presta‑nos um grande serviço não nos deixando muito tempo sós. ‑ Todavia, minha senhora, ‑ respondi eu ‑ se precisarem de falar em coisas íntimas, como poderei adivinhá‑lo?

A este respeito prometeu‑me que, quando o caso se desse, me preveniria, perguntando‑me se o relógio se não atrasava.

 

Continuação da carta a madame Heudebert

«Tinha tanto sono ontem à noite que fui obrigada a interromper esta carta. São nove horas, não vejo a marquesa antes do meio‑dia, de modo que tenho tempo para completar o que te contei ontem, afim de ficares sabendo, exactamente, qual é a minha situação nesta casa.

Mas parece que já te falei bastante do marquês para que possas imaginá‑lo bem. Para responder a todas as tuas perguntas vou agora dizer‑te como se passam os meus dias.

A primeira quinzena foi um pouco rude, confesso‑te agora que obtive a modificação necessária. Sabes que não posso passar sem movimento e que Vida activa levava havia seis anos; mas aqui, ai de mim! não havia casa para arrumar e percorrer cem vezes ao dia de alto a baixo, não havia crianças para levar a passeio ou fazer brincar, nem sequer um cão com quem se corresse a pretexto de o divertir.

A marquesa tem horror aos animais; sai apenas uma ou duas vezes por semana para subir e descer de carruagem a avenida dos Campos Elísios. Chama a isto fazer exercício. Como, por causa dos seus sofrimentos, só pode subir as escadas nos braços dos criados, coisa que ela muito receia porque uma Vez a deixaram cair, não faz visitas. A sua vida passa‑se a recebê‑las. Toda a actividade, toda a seiva da existência se lhe concentra no cérebro e muito na palavra: fala notavelmente bem e sabe‑o; mas não tem nisso uma vaidade pueril, e pensa menos em fazer‑se ouvir que em expandir as ideias e os sentimentos que a agitam.

É, como vês, uma natureza enérgica e dum singular ardor de opiniões em todas as coisas, mesmo naquelas que me parecem muito indiferentes. Nunca deve ter sido feliz, é muito exigente, e viver com ela constantemente é uma fadiga, a despeito da grande atracção que exerce. As suas mãos estão sempre perfeitamente ociosas: tem contudo a vista penetrante e os dedos ainda ágeis porque toca muito bem piano; mas desdenha tudo o que a distrai da conversa e ainda me não pediu que tocasse nem que lesse. Diz que conserva as minhas prendas de reserva para o campo, onde tem menos visitas e para onde devemos ir dentro de dois meses. Aspiro ansiosamente pela aldeia, porque aqui a Vida física está demasiado suprimida. E depois esta boa marquesa tem o hábito de viver numa temperatura do Senegal; além disso encharca‑se com perfumes, e os seus aposentos estão cheios de flores que exalam os cheiros mais violentos; muito bonito à vista, mas muito mau para a respiração.

Para cúmulo de tudo isto, é preciso estar sem fazer nada. Tentei a princípio bordar junto dela; depressa vi, porém, que lhe fazia mal aos nervos. Perguntava‑me se eu tinha que ganhar a féria, se o que fazia era de muita pressa, ou muito útil, e obrigava‑me a interromper o trabalho mais de dez vezes sem outro motivo que não fosse o de me Ver abandonar uma obra que a irritava. Enfim, tive de renunciar, ela teria adoecido. Ficou‑me grata e para me tirar o direito de nova tentativa, disse‑me ingenuamente a sua maneira de pensar. Pretende que as mulheres que ocupam as mãos e os olhos nesses trabalhos de agulha gastam neles muito maior parte do seu espírito do que a si próprias confessam. É esta, segundo ela, uma forma de se embrutecerem para se subtraírem ao aborrecimento de Viver. Só admite esse trabalho nas infelizes e nas prisioneiras. E depois, dourou‑me a pílula acrescentando que o trabalho me dava o aspecto duma criada de quarto, e que queria que para as pessoas que a visitassem eu fosse a sua companheira e a sua amiga. Impele‑me pois para a conversação e interpela‑me para me obrigar a mostrar o meu espírito, o que eu me coíbo de fazer porque não me sinto com nenhum quando me escutam.

Faço pois tudo quanto posso para não estar inactiva, e lastimo muito que a minha velha amiga, pois que amiga quer ser, não consinta em receber de mim o mais pequeno serviço; mas longe disso, chama a criada de quarto para lhe levantar o lenço se eu não corro a apanhar‑lho, e ainda me censura o ser demasiado serviçal sem perceber que sofro por não ter serviços a prestar.

Perguntas‑me de certo porque é que a marquesa me tomou então ao serviço; vou dizer‑to: ela não recebe antes das quatro horas, e até então, isto é, logo que o marquês a deixa, ouve a leitura dos jornais e faz a sua correspondência; sou eu pois que leio e escrevo por ela. Porque é que não lê e não escreve, não sei, porque podia muito bem fazê‑lo. Parece‑me perceber que a solidão lhe é odiosa, e que lhe é impossível reagir por uma ocupação qualquer contra o horror que lhe inspira. Certamente há alguma coisa de extravagante no fundo do seu coração ou do seu cérebro. É talvez uma organização um pouco falseada pelo abuso das relações exteriores. É impossível que lhe não ensinassem a entreter‑se, e talvez não possa pensar quando está só.

O certo é que quando entro no seu quarto ao dar meio‑día, a encontro muito diferente do que a deixei na Véspera, no salão. Parece envelhecer dez anos durante a noite. Sei que as criadas se demoram muito a vesti‑la e que, durante todo esse tempo, lhas não dirige uma palavra porque desdenha as pessoas cuja linguagem é Vulgar. Aborrece‑se de tal maneira com a presença dessas pobres raparigas (talvez que também tenha insónias ou se enfastie duma forma desesperada) que está como que semi‑morta e duma palidez assustadora quando chego; mas ao cabo de dez minutos, não parece a mesma, anima‑se, excita‑se, e quando o marquês aparece, já tem rejuvenescido os dez anos que envelhecera durante a noite.

A correspondência de que te não devo falar, bem que nada tenha de secreto, não é de modo nenhum uma necessidade que tem de conversar com os seus amigos ausentes ‑ É, diz ela, uma forma de falar, de trocar ideias, que varia o único prazer que conhece, o de estar em comunicação contínua com o espírito de outrem.

Eu não procederia assim se tivesse horas Vagas. Só teria prazer em conversar com quem amasse, e certamente a marquesa não pode ter muita amizade às quarenta ou cinquenta pessoas a quem escreve e às duzentas ou trezentas que todas as semanas recebe.

Mas não se trata dos meus gostos, e não quero fazer a crítica da pessoa a quem sacrifiquei a minha liberdade. Seria cobardia, porque, enfim, se eu não estimasse e respeitasse essa pessoa, teria a faculdade de me apresentar noutra parte. Além disso, supondo mesmo que o meu respeito e a minha estima fossem um pouco diminuídos por alguns caprichos que tivesse de sofrer, como provavelmente os encontraria por toda a parte e ainda piores, não vejo a razão porque me serviria de lente para Ver aqueles que quero suportar alegre e filosoficamente. Portanto, querida irmã, se me acontecer censurar ou zombar de alguém ou de alguma coisa, toma isso como palavras que me escapem na conversa, e porque não quero estar a observar‑me quando falo contigo; mas fica certa que nada me incomoda nem me causa sofrimento verdadeiro. O fundo de tudo isto, é que há na alma da marquesa qualquer coisa de grande, ardente e sincero, por consequência, que me prende a ela fortemente e me faz aceitar sem repugnância alguma o cuidado de a distrair e de a entreter. Sei muito bem, diga ela o que disser, que sou bem menos do que uma aia: sou uma escrava; mas sou‑o por minha vontade, e por conseguinte sinto‑me livre, como o ar, na minha consciência. Que há de mais livre do que o espírito dum cativo ou dum proscrito pela sua fé?

Não tinha reflectido nestas coisas quando te deixei, minha irmã; julgava verdadeiramente que viria a sofrer muito. Pois bem! tenho reflectido agora, e salvo a falta de exercício, que é uma coisa física, nada sofri absolutamente. Mesmo esse pequeno incómodo é‑me poupado doravante, não te inquietes. Fui obrigada a confessá‑lo. Desde então deixam‑me deitar cedo, e posso andar de manhã no jardim do palácio, que não é grande, mas onde consigo passear muito, pensando em ti e nos nossos vastos campos, onde me parece estar ainda com os pequenos em volta de nós; é um bom sonho que me faz bem.

Mas vejo que ainda nada te disse do sr. duque; passo a esse capítulo.

Há apenas três dias que o vi. Confesso‑te que não estava muito impaciente.

Não podia furtar‑me a um sentimento de horror por este homem que arruinou a mãe, e que segundo se diz, possui todos os vícios. Pois bem, a minha surpresa foi grande, e embora a minha aversão persista, sou obrigada a confessar que a sua pessoa me não é antipática, como pensava. No meu terror, supunha que lhe veria chavelhos e garras. Eis todavia como eu abordei esse demónio sem o conhecer. É preciso que te diga que nada há mais irregular do que as relações que sustenta com a mãe. Há semanas, meses mesmo, em que a Vem visitar quase todos os dias; depois desaparece, não se ouve falar dele durante meses ou semanas e quando volta não se trocam mais explicações de parte a parte, do que se se tivessem visto na Véspera. Não sei ainda como a marquesa encara tudo isto. Tenho‑lhe ouvido falar algumas Vezes do filho mais Velho com tanta tranquilidade e deferência como se se tratasse do marquês, e tu bem comprendes que me não permito a menor pergunta sobre assunto tão melindroso. Tinha dito somente uma vez diante de mim, mas sem fazer reflexão alguma, o que acabo de repetir‑te sobre a irregularidade caprichosa das suas visitas. Esperava portanto vê‑lo cair das nuvens um dia ou outro, mas não pensava de modo algum nele, quando, entrando no salão depois do jantar para Ver, segundo o meu costume, se tudo estava arranjado à vontade da marquesa, vi, enterrado numa conVersadeira a um canto, uma personagem a quem não prestei atenção alguma.

Depois do jantar a marquesa volta para o quarto onde as criadas lhe põem um pouco de pó de arroz e de carmim, e conserva‑se aí um quarto de hora, enquanto eu passo revista aos candeeiros e às jardineiras do salão. Estava pois entregue a essa grave ocupação e aproveitava a ocasião para me mover, ia e vinha muito depressa, trauteando uma canção da nossa terra, quando me achei em face de dois grandes olhos azuis duma limpidez extraordinária. Cumprimento, pedindo perdão, retribuem‑me as minhas desculpas, e, encarregada de fazer as honras da casa, mas não sabendo que dizer a um rosto novo que tinha o ar de me perguntar quem eu era, tomei o partido de não dizer absolutamente nada.

A personagem tinha‑se levantado; encostara‑se ao fogão, seguia‑me com um olhar mais benévolo do que admirado. É um homem de alta estatura, de nobre presença, e o que é mais surpreendente, com um rosto encantador. É impossível ter‑se um aspecto mais bondoso, mais humano, mais cândido mesmo; o som da sua voz é velado e afectuoso, a pronúncia duma extrema distinção, assim como as maneiras. Direi mesmo que há nos menores movimentos desta cobra de cascavel qualquer coisa de suave, e que o seu sorriso parece o duma criança.

Compreendes isto? Por mim estava tão longe de desconfiar da Verdade, que voltei para junto do fogão, sentando‑me como que atraída por esse bom olhar e pronta a responder‑lhe da maneira mais afável, se ele quisesse dirigir‑me a palavra.

Parecia ter desejos de entrar em conversa, e fê‑lo muito francamente:

‑ A Ester está doente? ‑ perguntou‑me delicadamente.

‑ Essa senhora já não está aqui há dois meses ‑ respondi ‑, Não a conheci. Sou eu que a substituo.

‑ Oh! isso não!

‑ Perdão.

‑ Diga que lhe sucede! A primavera não substitui o inverno, fá‑lo esquecer.

‑ O inverno pode todavia ter alguma coisa de bom.

‑ Oh! Não conheceu Ester! Era áspera como o vento de dezembro, e quando se aproximava das pessoas sentiam‑se dores reumáticas.

E então, pôs‑se a fazer o retrato da pobre Ester duma forma jocosa, sem fel, mas tão cómica, que não pude conter uma gargalhada.

‑ Ora ainda bem! Ri‑se? Ouviremos pois rir aqui! Ria‑se muitas Vezes, sim?

‑ Com certeza, quando se oferecer ocasião.

‑ Ester nunca tinha ocasião para rir. Afinal ela tinha razão; se risse teria mostrado os dentes! Oh! meu Deus, não esconda os seus. Já os vi, e contudo não lhe disse nada. Não conheço coisa mais estúpida que os cumprimentos. Seria impertinência perguntar‑lhe o seu nome?... Mas não, não mo diga. Adivinhei o de Ester; tinha‑lhe dado o de Rebeca. Bem vê que pressentia a raça. Desejava adivinhar também o seu.

‑ Vejamos, adivinhe.

‑ Pois bem!... um nome muito francês: Luísa, Branca, Carlota?

‑ Adivinhou, chamo‑me Carolina!

‑ Vê!... E chega da província?

‑ Da aldeia.

‑ Ora essa! porque é então que não tem as mãos Vermelhas? Está satisfeita por estar em Paris?

‑ Não; absolutamente nada!

‑ Aposto que a sua família a obrigou?

‑ Não; ninguém me obrigou.

‑ Mas aborrece‑se aqui? Confesse que se aborrece!

‑ Não, nunca me aborreço.

‑ Não é franca!

‑ Juro‑lhe que sou.

‑ É então muito sensata?

‑ Gabo‑me disso.

‑ Positiva talvez?

‑ Não.

‑ Romanesca?

‑ Também não.

‑ O quê, então?

‑ Nada.

‑ Como, nada?

‑ Nada que mereça ser notado. Sei ler, escrever e contar. Arranho um pouco de piano. Sou muito obediente. Cumpro conscienciosamente o meu dever, e eis tudo o que importa que eu seja aqui.

‑ Pois bem! digo-lhe que não se conhece!

Quere saber? É uma pessoa de espírito e uma excelente alma.

‑ Julga isso?

‑ Tenho a certeza. Eu Vejo rapidamente e julgo bem‑ E a menina? Forma à primeira vista ideia das pessoas?

‑ Sim, um pouco.

‑ Muito bem! Que pensa então de mim, por exemplo?

‑ Naturalmente penso o mesmo que o senhor julga de mim.

‑ Por reconhecimento ou por delicadeza?

‑ Não. Por instinto.

‑ Pois bem! Agradeço‑lhe. Acredite que é uma coisa que me dá prazer: não o espírito, não! todo o mundo o tem, aprende‑se ; mas a bondade! Não me julga mau, não é Verdade? Vejamos... quer dar‑me um aperto de mão?

‑ Porquê?

‑ Dir‑lho‑ei daqui a pouco. Recusar‑me‑á um aperto de mão? Não há no mundo sentimento mais honesto do que aquele que me leva a pedir‑lho,

Havia alguma coisa de tão verdadeiro e de tão comovente no rosto e na expressão daquele homem, que apesar da estranheza do seu pedido e mais ainda do meu consentimento, pus a minha mão na sua com confiança. Ele apertou‑a levemente e apenas durante um segundo; mas vieram‑lhe lágrimas aos olhos e disse‑me com a voz um pouco abafada: ‑ Obrigado! tenha muito cuidado na minha pobre mãe!

Compreendendo enfim que falava com o duque de Aléria, e que acabava de apertar a mão desse libertino sem alma, desse filho sem religião, desse irmão sem coração, numa palavra, desse homem sem freio e sem consciência, senti que as pernas se me dobravam, e apoiei‑me na mesa tornando‑me tão pálida, que ele o notou e fez um movimento para me amparar, exclamando:

‑ Então! sente‑se mal?

Mas deteve‑se vendo o terror e o desgosto que me inspirava, ou talvez porque a sua mãe acabava de entrar. A marquesa notou a minha perturbação e olhou para o duque como para lhe perguntar a causa. Ele só respondeu beijando‑lhe a mão da maneira mais terna e mais respeitosa e perguntando‑lhe pela sua saúde. Eu saí imediatamente, tanto para me tranquilizar como para os deixar sós. Quando voltei ao salão, tinham chegado algumas pessoas e fui conversar com a sr.a D. que é muito afectuosa para mim e me parece uma excelente pessoa. Não pode todavia ver o duque, e foi ela que me disse dele todo o mal que sei. Um instinto de reacção contra a simpatia que me tinha inspirado foi decerto o que me levou a preferir a conversa desta senhora.

‑ Então? ‑ disse‑me ela, como se tivesse adivinhado o que em mim se passava, e olhando para o duque que conversava junto de sua mãe ‑, Viu‑o, enfim, o filho querido? Que me diz?

‑ É amável e simpático, e é isso o que aos meus olhos mais o condena.

‑ Não é Verdade? É realmente um belo rapaz e custa a crer que se tenha conservado tão bem e com tanto espírito com a vida que tem levado; mas fiem‑se nas aparências! É o ser mais corrompido que no mundo existe, e será muito capaz de fingir‑se santo para a comprometer.

‑ A mim? Oh! não. A minha posição preservar‑me‑á das suas atenções.

‑ De modo nenhum. Verá! Não lhe direi que o seu mérito prevalecerá sobre a sua posição, embora seja evidente para todos; mas para ele bastar‑lhe‑á que seja honesta para que deseje desviá‑la dos seus deveres.

‑ Não me assuste, minha senhora; não ficaria aqui uma hora se pensasse que me poderia ultrajar.

‑ Não, não é isso o que deve recear. É delicado quando está com pessoas de boa sociedade, e nunca terá que defender‑se de uma grosseria da sua parte. Pelo contrário, se não tiver cuidado, persuadi‑la‑á de que é um anjo arrependido, talvez mesmo um santo e... a menina será a sua vítima.

  1. disse estas últimas palavras com um tom de compaixão que me ofendeu. Ia responder; mas recordei‑me de que tinha ouvido dizer a uma outra senhora, que a filha da senhora de D... fora muito comprometida pelo duque. A pobre senhora deve sofrer horrivelmente quando o vê, e compreendo como uma pessoa tão indulgente para todos fale dele com tanta amargura; mas não sei explicar a razão porque, sentindo ela pelo duque uma tal repugnância, me fala dele com uma espécie de insistência todas as vezes que pode tomar‑me de parte.

Dir‑se‑ia que me julga destinada a cair nos laços deste LoVelace, e prossegue uma vingança disputando‑lhe a minha pobre alma.

Alguns instantes de reflexão fizeram‑me julgar o seu terror um pouco risível, e, não querendo irritar‑me nem despertar o sentimento dos seus pesares, tenho evitado desde então falar‑lhe do seu inimigo. Demais o duque não me dirigiu outra vez a palavra nessa noite, e depois disso não tornou a aparecer; mas tu podes estar tão tranquila como eu a tal respeito. Não tenho receio algum das pessoas que não estimo...

 

Por essa época, Carolina recebeu uma carta que a comoveu vivamente, e que transcrevemos, limitando‑nos a corrigi‑la dos erros de ortografia e de pontuação que a tornariam difícil de ler.

 

«Minha querida Carolina ‑ permita à sua pobre ama que a trate sempre assim ‑ soube pela sua irmã, que me deu o prazer de me escrever, que a menina tinha deixado a sua casa para ser dama de companhia em Paris,

Não posso dizer‑lhe o pesar que me causou saber que uma pessoa como a menina, que eu Vi nascer na felicidade, seja obrigada a submeter‑se aos outros, e quando me lembro de que faz isso pelo seu bom coração e para fazer bem a Camila e aos seus filhos, as lágrimas saltam‑me dos olhos. Minha querida menina: só lhe digo uma coisa, é que, graças à generosidade de seus pais, não sou das mais desgraçadas. Meu marido tem um bom modo de vida e faz algum negócio, o que nos permitiu comprar uma casa e um bocado de terra. Meu filho é militar, e sua irmã de leite fez um bom casamento. Assim, pois, se forem necessárias umas centenas de francos, nós ficaríamos muito contentes por lhas emprestar durante todo o tempo que precisar, e sem juros. Se aceitar, dará honra e prazer a pessoas que sempre a estimaram muito, visto que embora a conheça só por o que eu lhe tenho dito, meu marido a estima e me diz muitas Vezes: «A menina devia vir para nossa casa, estaria connosco todo o tempo que quisesse, e já que gosta de andar e é forte, mostrar‑lhe‑íamos as nossas montanhas. Se quisesse podia ensinar crianças na nossa aldeia, o que não lhe daria muito dinheiro; mas quase que não teria despesas a fazer, e viria a ser o mesmo que estar em Paris, onde a vida é tão cara». Digo‑lhe isto muito sinceramente, como Peyraque o diz, e se o coração lho pedir, nós teremos um pequeno quarto muito limpo para oferecer‑lhe e uma terra um pouco selvagem para lhe mostrar, e que não lhe faria medo, a si que já tão pequena queria trepar a tudo, que até o seu pobre papá lhe chamava «o seu cabritinho».

Lembre‑se, pois, se não está bem aí, minha querida Carolina do meu coração, que há, num canto da terra, que a menina não conhece, gente que a tem pela melhor alma deste mundo, e que rezam por si todas as noites e todas as manhãs, pedindo a Deus que a menina a venha Visitar.

Justina Lanion Peyraque.

(Em Lantriac, pelo Puy, Alto Loire).

 

Carolina respondeu logo:

«Minha boa Justina, minha querida amiga, chorei a ler a tua carta; mas foram lágrimas de alegria e de reconhecimento. Sinto‑me bem feliz por conservar a tua amizade tão grande como no dia em que nos separámos, há já catorze anos! A recordação desse dia é uma das mais dolorosas da minha Vida. Já não conhecia outra mãe senão tu, e perder‑te, era ficar sem mãe pela segunda Vez. Minha boa ama! querias‑me tanto que quase tinhas esquecido por minha causa o teu marido e os teus filhos! Mas eles chamaVam‑te, e eu vi pela vossa correspondência que te davam a felicidade. Eram eles que pagavam a minha dívida, porque me tinhas feito muito feliz, e muitas Vezes pensava que se há em mim alguma coisa de bom e de sensato, é porque fui amada e tratada com inteligência e com bondade pela primeira pessoa que conheci! E queres agora oferecer‑me as tuas economias, querida e boa alma! Esse pensamento é bom e maternal como tu, e da parte do teu marido, que me não conhece, é belo e grande.

Agradeço‑vos de todo o coração, meus bons amigos, mas não preciso de coisa alguma. Nada me falta aqui, e estou tão bem quanto é possível longe da minha querida família. Mas, não importa. Não quero perder a esperança de vos fazer uma Visita. O que tu me dizes do quarto bem limpo e do lindo país selvagem dá‑me um desejo louco de conhecer a tua aldeia e o teu pequeno estabelecimento. Não sei quando terei na minha vida quinze dias de liberdade, mas fica certa que, se alguma vez os tiver, serão para a minha querida ama, que abraço de todo o coração».

 

Enquanto Carolina se entregava a este quente agradecimento, o duque Caitano de Aléria, magnificamente vestido de turco, Vestuário de manhã, conversa com seu irmão o marquês, cuja visita matinal recebia nos esplêndidos aposentos que habitava na rua da Paz.

Falava‑se de negócios, e entre os dois irmãos levantara‑se uma questão bastante violenta.

‑ Não meu amigo, ‑ dizia o duque num tom firme ‑, desta Vez terei energia: recuso a sua assinatura; não quero que pague as minhas dívidas!

‑ Pagá‑las‑ei. ‑ respondeu o marquês num tom igualmente resoluto ‑, É preciso, devo fazê‑lo. Hesitei, não lho oculto, antes de saber a quanto montavam, e a sua altivez não deve sofrer com os escrúpulos que lhe confesso. Receava comprometer‑me a mais do que poderia fazer; mas sei agora que me ficará o suficiente para assegurar o bem estar da nossa mãe.

Desde que o soube decidi que salvaria a honra da nossa família, e o senhor não pode opôr‑se.

‑ Mas oponho‑me; não deve fazer esse sacrifício: nós não usamos o mesmo nome.

‑ Somos filhos da mesma mãe, e não quero que ela morra de vergonha e pesar vendo‑o insolvente.

‑ Também eu não quero essa Vergonha. Casar‑me‑ei.

‑ Por dinheiro? Aos olhos de nossa mãe e aos meus assim como aos seus, meu irmão, isso seria pior, bem o sabe!

‑ Pois bem! aceitarei um emprego.

‑ Pior, ainda pior!

‑ Não; nada há pior para mim do que o pesar de o arruinar.

‑ Não ficarei arruinado.

‑ Enfim, não poderei saber a quanto montam as minhas dívidas?

‑ É inútil; basta que me dê a sua palavra de que não tem algumas que sejam ignoradas do notário encarregado da liquidação. Só lhe peço que passe os olhos por alguns desses papeis, para Verificar, se for possível, a sua exactidão. Já verificou. Basta, o resto não lhe diz respeito.

O duque amarrotou os papeis raivosamente, e pôs‑se a caminhar pelo quarto, sem poder encontrar uma única palavra que pintasse a angústia do seu espírito. Acendeu um cigarro que não fumou e atirou‑se para uma cadeira, tornando‑se muito pálido. O marquês compreendeu o quanto sofria o seu orgulho, e talvez também a sua consciência.

‑ Tranquilize‑se. ‑ disse‑lhe ‑ Compreendo o seu pesar; mas julgo‑o salutar e confio no futuro. Esqueça o serviço que eu presto mais a minha mãe do que ao senhor, mas não esqueça que o que me resta só a ela pertence doravante. Lembre‑se que podemos ter a felicidade de a conservar por muito tempo, e que é preciso que ela não sofra. Adeus, Ver‑nos‑emos daqui a uma hora para regularmos os últimos pormenores.

‑ Sim, sim, deixe‑me só ‑ respondeu o duque ‑, bem Vê que nesta ocasião me é impossível dizer‑lhe uma palavra.

Logo que o marquês saiu, o duque chamou, deu ordem de que não recebia e recomeçou a passear no quarto com uma agitação desesperada. Sofria nessa hora a inevitável e suprema crise do seu destino. Em nenhum outro dos seus infortúnios se tinha visto tão culpado, nem sentido tão impressionado.

Até então, com efeito, gastara a sua fortuna com a amargura e indiferença que dá o sentimento de só a si próprio se prejudicar. Digamos tudo o que, até então, podia desculpar o duque. Fora extraordinariamente amimado. Havia por ele, no coração materno, uma preferência bem acentuada. A natureza também tinha sido parcial. Mais alto, mais belo, mais robusto, mais distinto, mais activo na aparência que o irmão, mais expansivo, mais meigo, desde a infância parecera a todos mais bem dotado e mais gracioso. Por muito tempo débil e taciturno, o marquês só mostrara paixão pelo estudo e, o que teria sido uma grande qualidade num plebeu, foi considerado como uma singularidade num fidalgo. Essa aptidão foi pois mais combatida do que animada, e por isso precisamente se tornou paixão: e paixão absorvente e desde então sem expansão, e o que desenvolveu na alma do mancebo uma viva sensibilidade interior e um entusiasmo tanto mais ardente quanto era concentrado. O marquês era infinitamente mais sensível que seu irmão e passava por um homem frio, enquanto que o duque essencialmente mais afável e comunicativo, passou por muito tempo por uma alma ardente, sem amar exclusivamente ninguém.

Esse ardor de temperamento que iludiu, tinha‑o herdado o duque do pai, e, nos primeiros anos, a vivacidade das suas maneiras tinha inquietado a marquesa. Dissemos já que depois da morte do segundo marido ela ficara muito exaltada, e que, durante quase um ano, tinha receado a presença dos filhos. Quando essa doença moral cedeu o lugar aos sentimentos da natureza, o seu primeiro movimento foi de apertar contra o coração o filho do esposo amado. A criança, admirada e como que assustada com a impetuosidade dessas carícias de que já tinha perdido a recordação, chorou sem saber porquê. Era talvez a vaga censura do instinto ferido pelo abandono. O duque, mais Velho três anos, mas mais fácil em distrair‑se, nada notava. Correspondeu com beijos ao beijo de sua mãe, e a pobre senhora imaginou que ele havia herdado o seu coração, enquanto que o marquês só se parecia, na sua opinião, com o avô paterno, um velho sábio sofrivelmente maníaco. O duque foi preferido secretamente ; não mais estimado, porque a marquesa tinha um grande fundo de justiça religiosa, mas mais acariciado, porque, pensava ela, só ele compreendia o valor duma carícia.

Urbano sentiu a preferência, e sofreu com ela; mas nunca se permitiu uma queixa e conhecendo talvez já seu irmão, não quiz lutar com ele nesse frívolo terreno.

Com o tempo, a marquesa reconheceu bem que se tinha enganado, e que se deviam julgar os sentimentos por acções e não por palavras; mas o hábito de amimar o filho pródigo estava tornando, e a esse hábito juntou‑se em breve o duma terna compaixão pelos desregramentos que parecia deverem levá‑lo à ruína. Esses desvarios não tinham, no entretanto, origem numa alma perversa. Vaidade a princípio, embriaguez depois, enfim, falta de energia e tirania do vício, eis em três palavras a história desse homem encantador, sem delicadeza, bom sem grandeza de alma, céptico sem ateísmo.

Na idade em que o pintamos, fizera‑se nele um grande Vácuo no lugar da consciência, e todavia era mais uma consciência adormecida que morta. Tinha ainda bons impulsos, combates, mais raros e mais curtos que na mocidade, mas talvez mais enérgicos, e o que nele se dava agora era tão cruel, que por Vezes leVou a mão a uma das suas armas de luxo, como se fosse perseguido pelo espectro do suicídio, mas pensou em sua mãe, repeliu e guardou as armas, e apertou a cabeça entre as mãos, receando enlouquecer.

Nunca dera Valor ao dinheiro. A marquesa, com as suas teorias de nobre desinteresse, tinha‑o ajudado a deslizar para o declive do sofisma. Compreendia contudo que, arruinando a mãe, tinha excedido o seu direito. Mas continuou a aturdir‑se e a prometer a si próprio deter‑se ante a fortuna do irmão, e depois dispendera uma parte importante dessa fortuna; mas a verdade é que o não tinha feito conscientemente; porque o marquês, por delicadeza, não contara com ele em certas particularidades, e sem a necessidade de fazer apelo à sua honra para salvar o que lhe restava, nunca lhe teria dito coisa alguma. O duque não se sentiu pois culpado de egoísmo premeditado, e fora sincero quando censurava Urbano por o não ter avisado mais cedo. Via enfim o abismo aberto pela sua desordem e pela sua inconsciência; sentia‑se mortalmente humilhado por ter prejudicado de tal maneira o futuro do irmão, e não ter meio algum de reparar essas faltas sem atentar contra a austeridade de certos princípios que sua mãe e a sua educação lhe impunham.

A falta era menos grave que a de ter despojado sua mãe; mas não compreendia assim o duque. Tinha sempre considerado como seu o que era da marquesa, enquanto que com o irmão recordava‑lhe o orgulho a noção da propriedade. E depois, será preciso dizê‑lo? Se não havia aversão declarada entre dois irmãos tão diferentes, havia pelo menos ausência de confiança e de simpatia. A vida dum era um eterno protesto contra a do outro. Urbano tinha feito grandes esforços para que a voz da natureza fosse nele a da amizade. Caitano não fizera esforço algum; fincando‑se na ausência de rancor que o caracterizava, pensava que lhe era permitido zombar da austeridade do marquês. Estavam, pois, a maior parte do tempo, num pé de censura delicadamente reprimida de parte dum, e de certa zombaria suavemente revoltada da parte do outro.

‑ Então? ‑ exclamou o duque, vendo entrar o marquês ‑ É pois um facto consumado? Vejo no seu rosto que acabava de assinar!

‑ Sim, meu irmão, ‑ respondeu Urbano ‑ tudo se arranjou; restam‑lhe doze mil libras de renda que não permiti que entrassem na liquidação.

‑ Restam‑me?... ‑ replicou Caitano, olhando‑o de frente ‑, Não! engana‑me, não me resta coisa alguma; é o senhor que, depois de me ter libertado, me dá uma pensão!

‑ Pois bem! sim, ‑ respondeu o marquês ‑ porque afinal era preciso que soubesse um dia ou outro que não pode alienar o capital.

O duque, que não tinha tomado partido algum, fez estalar as mãos, apertando‑as uma de encontro à outra, e recaiu no seu mutismo.

O marquês fez um esforço para Vencer a reserva habitual, sentou‑se perto de Caitano, e, tomando entre as suas essas mãos crispadas que não pareciam dispostas a estenderem‑se para ele. ‑ Meu amigo, disse, tem para comigo demasiada altivez ‑, Não faria por mim o que eu faço por si?

O duque sentiu o seu orgulho fundir‑se; e os olhos encheram‑se‑lhe de lágrimas. - Não! ‑ disse ele, apertando com energia as mãos do irmão ‑ Não saberia, não teria podido fazê‑lo, pois que o meu destino é ser prejudicial e jamais terei a felicidade de salvar alguém!

‑ Concorda, pelo menos, que é uma felicidade. ‑ replicou Urbano ‑ Considero‑me pois como seu devedor, restitua‑me a sua amizade, que parece querer fugir‑me.

‑ Urbano! ‑ exclamou o duque ‑ tu falas da minha amizade... Seria esta a ocasião de te agradecer com os maiores protestos, mas não o faço! Não descerei até à hipocrisia. Sabes, meu irmão, que nunca tive por ti verdadeira estima?

‑ Bem sei, e explico isso pela diferença dos nossos gostos e da nossa índole; mas não chegaria a ocasião de remediarmos esse mal?

‑ Ah! a ocasião é terrível! é a ocasião do teu triunfo e da minha humilhação. Dize‑me que, se não tivéssemos a nossa mãe, me terias deixado sucumbir! Sim, é o que deverás dizer‑me, e eu poderei perdoar‑te o que fazes.

‑ Não to disse já?

‑ Repete‑mo ainda!... Hesitas?... Então é uma questão de honra?...

‑ Sim, é isso, uma questão de honra.

‑ E não exiges que eu sinta por ti mais amizade hoje que nos outros dias?

‑ Eu sei ‑ replicou tristemente o marquês ‑, que não nasci para ser amado!

O duque sentiu-se completamente vencido; lançou‑se nos braços do irmão, exclamando: ‑ Perdôa‑me! Vales mais que eu, estimo‑te, admiro‑te, Venero‑te quase, sei, sinto que és o meu melhor amigo. Meu Deus! Que poderei fazer por ti! Amas uma mulher? É preciso matar o marido? Queres que Vá procurar à China algum manuscrito precioso, em algum pagode, correndo o risco da canga e de outras amabilidades?

‑ Só pensas em pagar, Caitano! Se me tivesses alguma amizade, estaríamos quites.

‑ Pois bem! dou‑te toda a minha amizade ‑ respondeu o duque com força, abraçando‑o ‑, e vês, choro como uma criança. Vejamos, estima‑me também um pouco. Corrigir‑me‑ei, sou ainda novo, que diabo! Aos trinta e seis anos, não se está gasto, está‑se apenas um pouco usado. Mudarei de vida... tanto mais que assim é preciso! Sim! Tanto melhor! Restabelecerei a saúde, recomeçarei. Irei passar o Verão, com minha mãe e contigo, no campo; contar‑vos‑ei histórias, ainda vos farei rir. Vamos! ajuda‑me a fazer projectos, ampara‑me,. consola‑me, porque no fim de contas, sinto‑me bem desgraçado?

O marquês já tinha notado, sem o dar a perceber, o desaparecimento das armas que estavam sobre a mesa uma hora antes. Além disso lera no rosto de seu irmão a horrível crise porque acabava de passar. Sabia que a sua coragem moral não ia além de certas provas. - Veste‑te ‑ disse‑lhe ‑, e vem almoçar comigo. Conversaremos, faremos castelos no ar.

Quem sabe se te não provarei que em certas circunstâncias se começa a ser rico quando se empobrece!

 

O Bosque de Bolonha era, naquela época um sítio encantador e poético. Dirigiram‑se para lá.

O marquês passava ostensivamente por comer em sua casa. Mas, na realidade, não comia, na acepção gastronómica da palavra. Fazia‑se servir alguns alimentos muito simples que engulia à pressa, sem desviar os olhos do livro pousado a seu lado ‑ Esse hábito de frugalidade ia conciliar‑se muito a propósito com a lei duma estrita economia, porque, para que a mesa de sua mãe continuasse a ser servida com um certo esmero, era preciso que na sua não houvesse doravante nada supérfluo.

Não só porque desejava ocultar essa situação ao duque, mas também porque receava entristecê‑lo com a austeridade habitual do seu viver, leVou‑o para um pavilhão do Bosque e encomendou uma refeição confortável, dizendo para si que compraria menos alguns livros e frequentaria em caso de necessidade as bibliotecas públicas, como qualquer pobre erudito. O marquês não se sentia de modo algum entristecido nem asssustado com esses pequenos sacrifícios em perspectiva. Não pensava mesmo na delicadeza da sua saúde, que reclamava um pouco de bem estar na vida sedentária. Sentia‑se feliz por ter quebrado a frieza e poder esperar a confiança e a afeição de Caitano. Este, que se conservava ainda pálido, nervosamente preocupado, tranquilizava‑se pouco a pouco ao influxo do ar primaveril que entrava pela janela aberta. A refeição restabeleceu‑lhe o equilíbrio das faculdades, porque era uma natureza robusta, incapaz de privações, e sua mãe, que tinha umas certas pretensões de estar ligada à ex‑família reinante, dizia com alguma Vaidade, que o duque possuía o belo apetite dos Bourbons.

Durante uma hora, o duque foi encantador para com o irmão, isto é, foi para com ele pela primeira Vez na sua Vida, tão amável e tão confiante como o era para toda a gente. Estes dois homens tinham‑se talvez adivinhado por Vezes mas sem jamais se terem bem compreendido e com certeza nunca se havia interrogado abertamente. O marquês tinha posto nisso discrição, o duque indiferença. Naquele momento o duque sentiu Verdadeiramente a necessidade de conhecer o homem que acabava de lhe salvar a honra e lhe assegurava o futuro. Interrogou‑o pois com essa confiança que nunca existira entre eles.

‑ Explica‑me a tua felicidade, disse‑lhe, porque tu és feliz; pelo menos nunca soube que te lastimasses.

O marquês deu‑lhe uma resposta que o admirou muito. ‑ Só posso explicar‑te a minha coragem, pela minha dedicação por nossa mãe e pelo amor do estudo, porque felicidade nunca a tive, nem jamais a terei. Não era talvez isto que deveria dizer‑te para te levar à Vida tranquila e retirada; mas acusar‑me‑ia como dum crime, de não ser sincero para contigo, e demais não farei pedantismo com a Virtude, embora me tenhas acusado um pouco dessa falta.

‑ É Verdade, fazia muito mal, bem o Vejo! Mas como e porque és tu infeliz, meu pobre irmão? Podes dizer‑mo?

‑ Não o deveria fazer, mas quero confiar‑te esse segredo. Eu amei!

‑ Tu? Amaste uma mulher? E quem?

‑ Foi já há muito, e amei apaixonadamente.

‑ E já a não amas?

‑ Morreu.

‑ Era uma mulher casada?

‑ Precisamente, e o marido ainda Vive. Permite que não te diga o seu nome.

‑ Seria perfeitamente inútil; mas... consolar‑te‑ás, não é Verdade?

‑ Não sei. Até hoje ainda o não consegui.

‑ Há já muito tempo que ela morreu?

‑ Três anos.

‑ Ela amaVa‑te então muito?

‑ Não!

‑ Como, não?

‑ Amava‑me tanto quanto pode amar uma mulher que não quer abandonar seu marido.

‑ Ora! isso não é uma razão! Pelo contrário, os obstáculos estimulam a paixão.

‑ E também a gastam! Estava cansada de enganar e por consequência de sofrer.

Só o receio de me desesperar a impedia de terminar as suas relações comigo. A mim faltou‑me a coragem, e ela morreu sem o ter conseguido... e por minha culpa.

‑ Não! não! Que imaginas tu para te atormentar?

‑ Não imagino nada, e o meu pesar é sem remédio como a minha falta é sem desculpa. Escuta. Num desses acessos de paixão em que desejaríamos, a despeito de Deus e dos homens, apropriar‑mo‑nos para sempre do objecto amado, fi‑la mãe. Ela deu‑me um filho que salvei e escondi e que existe; mas não querendo fazer nascer suspeitas, reapareceu na sociedade no dia seguinte ao do parto. Estava bela e animada; falava e andava apesar da febre: vinte e quatro horas depois estava morta! Ninguém soube nunca coisa alguma. Passava por ser a pessoa mais severa...

‑ Já sei quem é! Madame G.

‑ Sim! Só tu no mundo possuis este segredo.

‑ Oh! tranquiliza‑te! Nossa mãe mesma não desconfia?...

‑ Não tem a mais leve desconfiança.

O duque conservou‑se silencioso um instante. Depois disse, suspirando: ‑ Pobre irmão ! essa criança que existe e que tu estremeces provavelmente...

‑ Decerto! Também a arruinei!

‑ Que importa? que tenha com que aprender a trabalhar, a ser homem, é tudo o que para ele desejo.

Nunca poderei reconhecê‑lo ostensivamente, e durante alguns anos não o quero ter junto de mim. É muito débil, mandei‑o criar na aldeia, em casa duns camponezes. É preciso que adquira a força física que sempre me faltou, e que determinou talvez a minha falta de força moral. Depois, na última hora, o sr. de G..., por uma palavra imprudente do médico, teVe uma suspeita da verdade. Não deve por muito tempo ser Vista junto de mim uma criança cuja idade coincidiria com o funesto acontecimento. Tu vês, Caitano, que não sou, nem posso ser feliz.

‑ Foi então essa paixão que te impediu de casar?

‑ Nunca me teria casado, jurei‑o.

‑ Pois bem! agora é preciso pensar nisso.

‑ E és tu que me pregas o casamento!

‑ Certamente, porque não? O casamento não é, como pensas, objecto do meu desprezo. Alardeei essa antipatia para me dispensar do trabalho de procurar mulher na idade em que teria podido escolher. Quando fiquei arruinado isso tornou‑se mais hipotético. Minha mãe nunca me teria permitido aceitar a fortuna sem nobreza, e possuindo apenas o meu título, não podia pretender mais que a fortuna. Bem sabes que por muito mau que eu seja, jamais quis ofender as opiniões de nossa mãe. Vi pois diminuir rapidamente as minhas Vantagens, e presentemente faria muito má opinião duma rapariga ou duma viúva, por menos nobre que fosse, que me quisesse por marido. Persuadir‑me‑ia que, para aceitar um valdevinos da minha espécie, ela teria algum motivo profundamente tenebroso.

Mas tu, Urbano, a tua situação é outra. Tornei a tua posição medíocre, pobre talvez! Isso nada tira porém ao teu mérito pessoal; pelo contrário, deve engrandecer‑te aos olhos de quem quer que conheça a causa da tua mediocridade. Nada pois é mais provável do que haver uma rapariga nobre e rica que, conhecendo‑te, sinta por ti estima e afeição. Parece‑me mesmo que te basta querer e mostrar‑te.

‑ Não; só sei mostrar‑me desvantajosamente. A sociedade paralisa‑me e a minha fama de sábio prejudica‑me mais do que me serve. A sociedade não compreende que um homem nascido para viver nela a não prefira a tudo. Demais, vês tu, é‑me impossível amar, tenho o coração demasiado triste.

‑ Porque choras por tanto tempo uma mulher que não soube ser feliz com a tua afeição?

‑ É que a amava muito ! Nela, era talvez o meu amor que eu amava. Não sou dessas naturezas vivazes que reflorescem com a nova estação. Tudo se aprofunda em mim duma forma assustadora.

‑ Lês demasiado, reflectes muito.

‑ Talvez! Vem para o campo, irmão, como me prometes, auxiliar‑me‑ás, consolar‑me‑ás, queres? Necessito verdadeiramente dum amigo e não tenho nenhum. A minha vida absorveu‑se numa paixão muda. A tua afeição rejuvenescer‑me á.

O duque ficou Vivamente comovido com a simples e meiga confiança de seu irmão. Tinha esperado lições, conselhos, consolações que lhe haveriam deixado a parte do fraco em presença do forte; e pelo contrário era a ele que Urbano pedia força e compaixão. Que fôssse da parte do marquês necessidade real ou suprema delicadeza, o duque era demasiado inteligente para não se sentir impressionado com essa troca de papeis. Testemunhou‑lhe pois uma Viva afeição, aliada a terna solicitude, e depois de terem conversado toda a tarde passeando no bosque, os dois irmãos tomaram uma carruagem para irem jantar a casa de sua mãe.

Havia alguns dias que a marquesa se sentia bastante perturbada. Receava a resistência de Urbano quando soubesse a quanto montavam as dívidas do duque. Embora fosse grande a sua estima por ele, não previa até onde chegava o seu desinteresse. Não tendo recebido a visita do marquês nessa manhã, estava seriamente inquieta, quando, na ocasião de ir para a mesa, viu chegar os dois filhos. Notou‑lhes nos rostos um certo reflexo de calmo enternecimento que a princípio lhe fez adivinhar o que se tinha passado; depois, como estivesse ainda uma visita que se demorara a sair, e ela não pudesse interrogá‑los, pensou com terror que se enganara e que nem um nem outro conheciam a situação.

Mas quando já estavam à mesa, notou que se tratavam por tu. Compreendeu tudo, e como a presença de Carolina e dos criados a impedia de exprimir a sua emoção, afectou animação para esconder a alegria, enquanto que grandes lágrimas de enternecimento corriam sobre o sorriso das suas faces enrugadas. Carolina Viu essas lágrimas ao mesmo

tempo que o marquês, e o seu olhar inquieto dirigiu‑se ingenuamente ao dele, como para lhe perguntar se a marquesa ocultava uma satisfação ou um sofrimento. O marquês respondeu‑lhe da mesma forma para tranquilizar a sua solicitude, e o duque, que surpreendeu esse mudo e rápido diálogo, sorriu com benévola malícia. Nem Carolina nem o marquês deram atenção a esse sorriso. Havia demasiada boa fé na simpatia que sentiam um pelo outro ‑ Carolina conservara a sua aversão e antipatia pelo duque. Continuava a querer‑lhe mal por ser tão amável e saber mostrar‑se tão bom. Pensava, é certo, que madame D... tinha exagerado um pouco a sua perversidade; mas, sentindo a seu pesar um Vago receio, evitava fitá‑lo, e colocada em frente dele esforçava‑se por esquecer a sua fisionomia. À sobremesa, depois que os criados saíram, a conversa tornou‑se um pouco mais íntima. Carolina perguntou timidamente à marquesa se lhe não parecia que o relógio estivesse atrazado.

‑ Não, não, ainda não, querida filha ! ‑ respondeu a Velha senhora com bondade.

Carolina compreendeu que devia ficar até se levantarem da mesa.

‑ Assim, meus bons amigos, ‑ disse a marquesa dirigindo‑se aos filhos ‑ Almoçastes juntos no Bosque?

‑ Como Orestes e Pilades ‑ respondeu o duque ‑ e não imagina, querida mamã, como ali estava agradável e lindo. E depois fiz uma descoberta deliciosa: é que tenho um irmão encantador!

Oh! a palavra parece frívola quando se trata dele; pois bem! eu não o compreendo assim! A graça do espírito é por vezes a do coração, e meu irmão tem as duas. A marquesa sorriu ainda, mas tornou‑se pensativa e uma nuvem passou‑lhe pelo rosto. ‑Caitano deveria ter sofrido ao aceitar o sacrifício do irmão, pensou ela; toma bem alegremente o seu partido, não tem de certo altivez! Meu Deus, estará perdido?!

Urbano viu essa nuvem e apressou‑se a dissipá‑la.

‑ Não responderei ‑ disse com serena alegria dirigindo‑se a sua mãe ‑, meu irmão é ainda mais encantador do que eu, isso está demasiadamente averiguado; mas direi que também fiz uma descoberta: é que no seu espírito há um grande fundo de seriedade e um respeito inalterável por tudo o que é Verdadeiro. Sim ‑ acrescentou, respondendo instintivamente ao olhar profundamente admirado de Carolina ‑ há nele uma Verdadeira candura que ninguém supõe, e que eu não tinha ainda apreciado bem.

‑ Maus filhos ‑ disse a marquesa ‑ fazeis‑me um grande bem em me falar assim um do outro; acariciais o meu orgulho no seu ponto mais sensível, e sinto‑me muito inclinada a acreditar que tendes ambos razão.

‑ No que me diz respeito ‑ replicou o duque ‑ pensa assim porque é a melhor das mães e a cegueira maternal a ilude. Eu não Valho coisa alguma, e o triste sorriso da menina de Saint‑Geneix diz bem quanto minha mãe e meu irmão estão enganados.

‑ Sorri? ‑ exclamou Carolina estupefacta ‑ tenho o ar triste? Teria jurado que não perdi de Vista esta garrafa, e que meditei profundamente sobre a qualidade do Vidro da Boémia.

‑ Não espere fazer‑nos acreditar. ‑ replicou Caitano ‑ que os seus pensamentos estão sempre absorvidos pelos cuidados do governo da casa. Creio que eles se elevam muito acima da região das garrafas, e que julga de muito alto os homens e as coisas.

‑ Não me permito julgar ninguém, sr. duque.

‑ Tanto pior para aqueles que não são dignos do seu julgamento! Só poderiam ganhar em conhecê‑lo, por mais severo que fosse. Eu, por exemplo, gosto de ser julgado pelas mulheres; prefiro uma franca condenação da sua boca ao silêncio do desdém ou da desconfiança. Considero as mulheres como os únicos seres capazes de apreciarem realmente os nossos defeitos e as nossas qualidades.

‑ Mas, senhora marquesa ‑ disse Carolina dirigindo‑se com aflição cómica à sr.a de Villemer ‑ diga ao sr. duque que não tenho a honra de o conhecer, e que não estou aqui para continuar no meu cérebro os retratos de La Bruyère!

‑ Querida filha ‑ respondeu a marquesa ‑ a menina está aqui para ser uma espécie de filha adoptiva, a quem tudo é permitido. Não se constranja pois para responder ao sr. meu filho, e não se inquiete com as suas impertinências amigáveis. Ele sabe tão bem como eu quem a menina é, e nunca se afastará do respeito que lhe é devido.

‑ Desta vez, mãe, aceito o cumprimento. ‑ respondeu o duque com acento de inteira franqueza ‑ Tenho o mais profundo respeito por todas as mulheres puras, generosas e delicadas, por consequência pela menina de Saint‑Geneix em particular.

Carolina não corou nem balbuciou um agradecimento de preceptora afectadamente virtuosa. Olhou para o duque fixamente, viu que ele não zombava, e respondeu‑lhe com benevolência:

‑ Porque é, pois, sr. duque, que tendo tão generosa opinião de mim, supõe que me permito tê‑la má a seu respeito?

‑ Ah! tenho as minhas razões ‑ respondeu o duque ‑ di‑las‑ei quando me conhecer melhor.

‑ Então, porque as não dizes imediatamente? ‑ perguntou a marquesa ‑ Seria muito melhor.

‑ Seja! ‑ replicou o duque ‑ É uma anedota, Eu conto. Antes de ontem, encontrei‑me só no salão esperando‑a, querida mamã. Devaneava num canto, e, achando‑me muito bem sentado numa das suas conVersadeiras ‑ tinha montado de manhã um cavalo furioso, e estava excessivamente fatigado ‑ pensava no destino das cadeiras estofadas em geral, absolutamente como a menina de Saint Geneix pensava ainda agora no das garrafas da Boémia, e dizia para mim: «Como estes canapés e estas cadeiras ficariam admiradas se se encontrassem numa cavalariça ou num estábulo! E como as belas damas de vestidos de cetim que Vão chegar daqui a pouco ficariam perturbadas se, em lugar destas boas cadeiras, só encontrassem aqui palha».

‑ Mas o teu sonho não tinha senso comum ‑ disse, rindo, a marquesa.

‑ É verdade ‑ replicou o duque ‑ eram pensamentos dum homem um pouco embriagado.

‑ Que dizes, meu filho?

‑ Nada que seja inconveniente, querida mamã! Chegara a casa esfomeado, sequioso, fatigadíssimo e já embriagado pelo ar livre. Sabe muito bem que a água me faz mal. Não podia deixar de saciar a sede, e bebendo, tinha‑me embriagado, eis tudo. Sabe também que isso me dura quando muito um quarto de hora, e que sei conservar‑me tranquilo o tempo necessário. Eis porque, em lugar de lhe vir beijar a mão durante a sobremesa, me introduzi no salão para aí esperar o regresso da razão.

‑ Vamos, vamos ‑ disse a marquesa ‑ passa sobre essa perturbação do teu espírito, e vamos ao facto.

‑ Mas já aí chegamos ‑ replicou o duque ‑, vai ver. Como ele reatasse o fio do discurso engolindo a saliva com algum esforço, Carolina compreendeu que o duque estava precisamente na situação de espírito que descrevia, e que os Vinhos generosos de sua mãe ajudavam talvez a sua expansão. Todavia venceu de pressa a desordem das ideias, e continuou com uma graça perfeita.

‑ Devaneava, convenho, mas não estava de modo algum embrutecido. Pelo contrário, tive visões poéticas. Da palha espalhada pela minha imaginação no soalho, vi elevarem‑se mil figuras extravagantes. Só havia mulheres; umas enfeitadas como para um baile da antiga corte, outras como para uma kermesse flamenga. Essas esplêndidas mulheraças divertiam‑se o mais possível, saltavam e tornavam a cair com tal peso que faziam vibrar as arandelas dos candelabros, algumas rolavam‑se na palha e levantavam‑se com espigas vazias nos cabelos de ouro avermelhado. Em frente delas, as princesas de leque tentavam uma dança decente sem o conseguirem. As palhas introduziam‑se‑lhes nos folhos, o calor da atmosfera fazia cair o arrebique, os pés escorregavam‑lhes sobre os ombros e acusavam a magreza dos contornos; uma angústia mortal se lhes pintava nos olhos expressivos. Evidentemente temiam a aparição do sol para os seus encantos de contrabando, e viam com furor a realidade da vida prestes a triunfar em frente delas.

‑ Ora essa, meu filho ‑ disse a marquesa ‑ onde queres chegar e que significa tudo isto? Empreendeste, por acaso, o panegírico da Virago?

‑ Não empreendi absolutamente nada. ‑ respondeu o duque ‑ Conto, não invento. Estava sob o império da visão, e não sei a que reflexões ela me teria levado, quando ouvi uma voz de mulher que cantava perto de mim...

Caitano cantou muito agradavelmente a canção rústica cuja música tinha fielmente retido, e Carolina pôs‑se a rir lembrando‑se de que cantava esse estribilho da sua terra antes de ter visto o duque no salão.

O duque continuou:

‑ Despertei então, e o meu sonho dissipou‑se

completamente. Já não havia palha no soalho; as cadeiras rechonchudas de pernas de madeira já não eram raparigas da lavoura calçadas de tamancos; os candelabros esguios colocados sobre os vasos bojudos não eram mulheres magras com anquinhas. Estava só no aposento iluminado e tinha toda a minha razão; mas ouvia cantar uma música campestre duma forma tão rústica, tão verdadeira, tão encantadora, com uma tal frescura de timbre, de que o meu lhe não deu com certeza ideia alguma, que exclamei: «Olha! uma camponesa! uma camponesa no salão de minha mãe!» Conservei‑me imóvel, sem respirar, e a camponesa apareceu‑me. Passou duas Vezes por diante de mim, sem me Ver, andando de pressa e quase roçando por mim o seu vestido de seda cinzenta.

‑ Ora essa! ‑ disse a marquesa ‑ então era Carolina?

‑ Era uma desconhecida ‑ replicou o duque ‑ uma singular camponesa, deve convir, porque estava vestida como uma pessoa modesta e da melhor sociedade. Não tinha enfeite algum nos cabelos de âmbar, e não mostrava os braços nem os ombros; mas eu Via‑lhe o pescoço de neve, a mão pequenina e o pé também, porque não tinha tamancos.

Carolina, um pouco aborrecida com a descrição da sua pessoa feita pela boca do LoVelace olhou para o marquês como para protestar. Ficou surpreendida ao notar‑lhe uma certa ansiedade no rosto e ao ver que evitava o seu olhar com uma ligeira contracção de sobrancelhas.

O duque, a quem nada escapava, continuou:

‑ Essa adorável aparição impressionou‑me tanto mais quando resumia aos meus olhos os dois tipos da minha visão desvanecida, isto é, conservava duma e doutra tudo o que lhes dava merecimento: a nobreza das linhas e a frescura das cores, a delicadeza das feições e o brilho da saúde. Eram uma rainha e uma pastora na mesma pessoa.

‑ Eis aí um retrato que não está exagerado ‑ disse a marquesa ‑ mas a que falta talvez leveza de mão. Ora diz, meu filho, não estarias um pouco... excitado?

‑ Disse‑me que falasse ‑ replicou o duque. - Se for demasiado longe... ordene‑me que me cale.

‑ Não! ‑ disse vivamente Carolina, que via uma espécie de frieza dolorosa no rosto do marquês, e não queria que ficasse misteriosa a sua primeira entrevista com o duque. ‑ Não reconheço o original do retrato, e espero que o sr. duque o faça falar um pouco.

‑ Tenho boa memória e não inventarei coisa alguma ‑ replicou ele. - Levado por uma simpatia súbita, irresistível, dirigi a palavra a essa camponesa. A sua voz, o seu olhar, as suas respostas claras e francas, o seu ar de bondade e de Verdadeira inocência, cativaram‑me de tal maneira que lhe exprimi a minha estima e o meu respeito ao cabo de cinco minutos, como se a tivesse conhecido toda a minha Vida, e senti‑me cioso da sua estima, como se fosse minha própria irmã.

E agora, não é esta a Verdade,, menina de Saint‑Geneix?

‑ Nada sei dos seus sentimentos íntimos; mas pareceu‑me tão afável que me não acudiu à ideia qualquer suspeita e fiquei muito reconhecida pela sua benevolência. Vejo agora que me iludi, e que havia alguma ironia em tudo isso.

‑ E em que a vê, se faz favor?

‑ Nos exagerados elogios tendentes a excitar a minha vaidade. Mas defendo‑me, sr. duque, e talvez fosse mais generoso da sua parte não começar o ataque a uma pessoa inofensiva e de tão modesta condição como eu.

‑ Vamos! ‑ disse o duque voltando‑se para seu irmão que parecia reflectir em coisas muito diversas, mas que, no entanto, ouvia tudo, como que a seu pesar; ‑ ela persiste! desconfia de mim e considera o meu respeito como uma injúria! Olha lá! Tu disseste‑lhe mal de mim?

‑ Não tenho esse hábito ‑ respondeu o marquês com a serenidade própria da verdade.

‑ Muito bem! ‑ replicou o duque ‑ Eu sei quem me perdeu no espírito da menina de Saint‑Geneix. Foi uma velha dama cujos cabelos grisalhos tomam a côr do azul de ardósia, e que tem as mãos tão magras que todas as manhãs é preciso procurar os seus anéis no lixo. Falou de mim há dias, com a menina de Saint‑Geneix, e quando procurei o bom olhar que me havia rejuvenescido o coração, já o não encontrei e não o encontro hoje. Vês, irmão, não há meio. Então! porque não dizes alguma coisa?

Tinhas começado a fazer o meu elogio, e a menina de Saint‑Geneix parece ter confiança em ti! Se recomeçasses?

‑ Meus filhos, ‑ disse a marquesa ‑ continuareis a discussão em outro dia; preciso de me vestir, e desejo falar‑vos antes que venham distrair‑nos. O relógio talvez esteja atrazado alguns minutos.

‑ Creio mesmo que está muito atrazado ‑ disse Carolina levantando‑se. E deixando o duque e o marquês ampararem sua mãe até aos seus aposentos, passou rapidamente ao salão. Esperava encontrar já aí algumas visitas porque o jantar tinha‑se prolongado um pouco mais que de costume; mas não havia ainda alguém, e em lugar de o percorrer cantando, sentou‑se pensativa junto do fogão.

 

Carolina sofria. Tinha procurado aturdir‑se sobre essa espécie de domesticidade heroicamente aceite. Era menos própria que ninguém para esse papel em que se deve abdicar da Vontade.

Sentia‑se ofendida com a obstinada ou afectada atenção que lhe concedia o duque de Aléria, e Via‑se constrangida a conter a sua impaciência e o seu desdém. ‑ Não seria na pobre casa da minha irmã, pensava ela, que me Veria condenada a sofrer os cumprimentos deste valdevinos. Fá‑lo‑ia cessar com uma palavra. Chamar‑me‑ia afectada. Pouco me importaria. Seria expulso e tudo estava terminado. Aqui devo ser alegre e atenciosa como uma pessoa da sociedade, tomar tudo pelo seu lado alegre, e nada achar de ofensivo na galantaria de um homem perdido. É preciso que adivinhe a ciência das mulheres habituadas a esses artifícios; se for brusca como a franqueza me leva a ser, o duque ficará despeitado, caluniar‑me‑á para se vingar e talvez para me fazer expulsar. Expulsar! Sim, na minha posição, pode ser‑se surpreendido por uma intriga e Ver‑se despedido sem mais atenções que as que se têm por um criado. Eis os perigos dos ultrajes a que estou exposta. Fiz mal em vir para aqui. A sr.a de Arglade não me tinha falado deste duque, e eu julguei possível uma coisa que o não é. Carolina não era um espírito fraco. Logo que o pensamento de se ir embora lhe acudiu, tratou imediatamente de procurar o meio de sustentar a irmã e os sobrinhos. Tinha recebido algum dinheiro adiantado da marquesa, seria preciso encontrar noutra parte a quantia necessária para o restituir, se o procedimento do duque lhe não permitisse ficar junto dela o tempo que representava a pequena soma enviada a Camila. Lembrou‑se então das centenas de francos oferecidos pela sua ama, cuja carta, recebida nessa manhã, conservava ainda no bolso. Releu a simples e maternal carta, e pensando quanto a esmola do pobre pode representar de benefícios de ordem moral, sentiu‑se de novo vivamente comovida e chorou. O marquês entrava e surpreendeu‑a a enxugar os olhos.

Dobrou a carta e meteu‑a no bolso sem afectação e sem se apressar a esconder a comoção sob um ar alegre. Todavia notou uma sombra de ironia no rosto ordinariamente tão benévolo do sr. de Villemer. Fitou‑o para lhe perguntar de quem tinha vontade de zombar, e ele ficou um pouco embaraçado, procurando as palavras e acabando por lhe dizer muito simplesmente: ‑ Chorava?

‑ Sim, respondeu ela, mas não era de pesar.

‑ Recebeu uma notícia agradável?

‑ Não, uma prova de amizade.

‑ Deve recebê‑las muitas vezes!

‑ Há testemunhos mais ou menos sinceros.

‑ Tem hoje um ar de quem duvida; não é sempre assim desconfiada!

‑Não, nem sempre," não sou naturalmente desconfiada. E o sr. marquês?

Urbano ficava sempre amedrontado quando o interpelavam directamente. Era‑lhe preciso fazer um esforço para interrogar os outros, e quando o interrogavam, experimentava uma espécie de perturbação.

‑ Eu... ‑ respondeu, depois de ter hesitado um momento ‑ não sei. Ser‑me‑ia bem difícil dizer o que sou... neste momento, sobretudo!

‑ Sim, parece‑me preocupado; ‑ replicou Carolina ‑ não faça esforço para me falar, senhor marquês.

‑ Perdoe‑me! quero... desejava conversar consigo; mas o que tenho para dizer é tão delicado que não sei como proceder.

‑ Ah! realmente? inquietou‑me um pouco...

E todavia parece‑me que seria bom para mim saber o que o sr. marquês pensa neste momento.

‑ Pois bem! sim, tem razão. Depressa então, porque pode vir alguém dum instante para o outro. Não tenho necessidade de dizer muito, espero que me compreenderá. Estimo meu irmão; desde hoje principalmente, estimo‑o muito. Estou certo da sua sinceridade: mas ele tem uma imaginação muito viva. Não o notou há pouco?... Enfim... se ele insistir demasiadamente em lhe fazer abandonar prevenções... que não tem talvez, e que, em todo o caso, ele só merece até um certo ponto, eu pedir‑lhe‑ia que falasse nisso a minha mãe, mas só a minha mãe. Não me julgue extravagante e indiscreto por ousar permitir‑me dar‑lhe este conselho; tenho uma tal necessidade de Ver a minha mãe feliz, e Vejo tão claramente quanto a sua companhia para isso contribui, a convivência com uma pessoa de mérito e inteligente é‑lhe tão precisa, ser‑lhe ia tão difícil talvez substituí‑la, que eu desejaria, sabendo que seria feliz junto dela, poder persuadir‑me de que jamais a abandonará. Eis o único motivo da minha preocupação.

‑ Agradeço‑lhe essa explicação, sr. marquês ‑ respondeu Carolina ‑ e contava bem que, um dia ou outro, a sua lealdade se dignaria dar‑ma.

‑ A minha lealdade?... Mas toda a explicação consiste nisto: que meu irmão é alegre, amável, e que se a sua alegria se lhe tornasse penosa, minha mãe, que é hábil em o conter e exerce sobre ele um ascendente que eu não tenho, saberia, por um lado, tranquilizá‑la, e por outro conter a vivacidade das palavras de meu irmão nos seus justos limites.

‑ Sim, sim, nós compreendemo-nos ‑ replicou Carolina ‑ mas não estamos bem de acordo sobre o meio de remediar a amável... jovialidade do sr. duque. O sr. marquês crê que sua mãe saberia preservar‑me dela: mas eu penso que ninguém pode nem deve queixar‑se dum filho adorado junto duma terna mãe. Nunca se tem razão perante certos juízes. Pensava precisamente nessa situação, e previa com pesar que poderia chegar a ocasião em que me visse forçada...

‑ A deixar‑nos... a deixar minha mãe? ‑ disse o marquês com uma vivacidade que logo reprimiu. ‑ Eis precisamente o que eu temia! Se essa ideia lhe acudiu já, muito me penaliza; mas não a creio fundada. Tenha cuidado em não ser injusta! Meu irmão estava hoje muito comovido. Uma circunstância particular, um negócio de família... todo de sentimento, tinha‑o exaltado um pouco esta manhã. De tarde era feliz, bom e expansivo por consequência. Quando o conhecer melhor...

Ouviu‑se tocar uma campainha. O marquês estremeceu. Chegavam as visitas. Era preciso interromper a conversa, e não dizer tudo quanto desejava. Apressou‑se pois a acrescentar:

‑ Enfim, em nome do céu, em nome de minha mãe, não se apresse a tomar um partido que seria tão doloroso e tão triste para ela. Se eu ousasse, se tivesse esse direito, suplicar‑lhe‑ia que nada decidisse sem me consultar...

‑ O respeito que lhe é devido pelo seu carácter, ‑ respondeu Carolina, dá‑lhe também o direito de me aconselhar, e não hesito em prometer o que o sr. marquês quis ter a bondade de me pedir.

O marquês não pôde agradecer. Entravam algumas pessoas no salão; mas o seu olhar foi duma eloquência extraordinária, e Carolina encontrou nele outra vez a confiança e a afeição que tinham parecido Velar‑se no princípio da conversa. Os do marquês possuíam essa beleza sobrenatural que só uma alma ardente, aliada a uma grande pureza de pensamentos, pode dar. Eram eles a única efusão que a sua timidez não conseguia paralizar. Carolina havia‑os compreendido, e nada a perturbava, nada a inquietava nesses olhos límpidos, que interrogava muitas vezes como um critério para nortear o seu procedimento.

Carolina tinha realmente veneração por este homem cujo carácter toda a gente apreciava, mas de que ninguém penetrava a inteligência nem adivinhava a delicadeza. Contudo, apesar da satisfação que sentia pela conversa que tivera com o marquês, procurava consigo própria esclarecê‑la, resumindo‑a. Pensava rapidamente, e, enquanto percorria o salão para fazer as honras da casa no limite de graça e de reserva que lhe era imposta e que tinha imediatamente compreendido, perguntava a si própria por que razão o marquês parecera flutuar entre duas ou três ideias sucessivas enquanto lhe falava. A princípio dir‑se‑ia disposto a censurar‑lhe a sua confiança nas lisonjas do duque, depois prevenira‑a amigavelmente contra a duração desses ataques, e enfim, quando ela falou do desgosto que com isso sentia, foi que se apressou a tranquilizá‑la. Nunca o vira irresoluto, e se a sua linguagem era muitas Vezes tímida, a sua convicção jamais o era.

‑ DeVe, pensava, ter‑me julgado imprudente e sabe talvez que o irmão está disposto a abusar dessa imprudência, e por outro lado devo ser já realmente mais necessária a sua mãe do que suponho. Em todo o caso, há qualquer coisa que não compreendo e que ele me explicará mais tarde, estou certa disso. Seja o que for, sou livre. Quinhentos francos não me prenderão um dia, uma hora, a uma posição humilhante. Ainda não mandarei resposta à Justina.

Vê‑se quanto a honesta e recta consciência da menina de Saint‑Geneix estava longe de procurar nas reticências do marquês um sentimento deslocado ou um instinto. Nesse momento, o marquês estava descontente com seu irmão e escutava‑o com bastante impaciência. O duque, voltando ao salão com sua mãe, viera sentar‑se perto dele, por detrás do piano, lugar isolado e protegido de que o marquês gostava, e falava‑lhe baixinho com vivacidade.

‑ Então! ‑ dizia ‑ estiveste só com ela há pouco; falaste‑lhe de mim?...

‑ Mas ‑ respondeu o sr. de Villemer ‑ que singular insistência!...

‑ Nada singular ‑ replicou o duque, como se continuasse uma confidência já feita. - Estou impressionado, comovido, enamorado, apaixonado, se queres!

Sim, apaixonado por ela, palavra de honra! Não é um gracejo! Irás tu censurar‑me, quando pela primeira Vez na minha vida te tomo por meu confidente? Não combinámos isso esta manhã? Não jurámos nós que não teríamos segredos e que seríamos o melhor amigo um do outro? Perguntei‑te se não sentias alguma afeição pela menina de Saint‑Geneix, respondeste‑me muito seriamente: não! Achas pois, extraordinário que eu te peça que lhe digas bem de mim?

‑ Meu caro, ‑ respondeu o marquês ‑ fiz precisamente o contrário do que me pedes. Disse‑lhe que te não tomasse demasiado a sério.

‑ Ah! traidor! ‑ exclamou o duque com uma alegria cuja franqueza era como que uma reparação das antigas prevenções contra o irmão, ‑ eis como tu serves os amigos! Fiem‑se neste Pilades! Logo à primeira dá parte de fraco. Sopra sobre os meus sonhos e lança ao Vento as minhas esperanças! Mas que queres tu que seja feito de mim se me abandonas dessa maneira?

‑ Para esse género de serviços não tenho geito bem vês!

‑ É isso, à primeira dificuldade renuncias. Pois bem! eu teimo. Expulsei do meu coração tudo o que não sejas tu, e só tu me ouvirás falar das minhas novas paixões.

‑ Pelo que respeita a esta, pelo menos, dás‑me a tua palavra?

‑ Ah! receias muito que eu a comprometa?

‑ Causar‑me‑ias um sério pesar.

‑ Ora adeus! Vejamos! Porquê?

‑ Porque é altiva, susceptível talvez, e deixaria nossa mãe, que é louca por ela, não o notaste?

‑ Sim, foi o que me transtornou a cabeça ‑ Deve ser uma rapariga dum elevado espírito e dum grande coração! Minha mãe tem um tacto tão perfeito ! Esta noite, ralhando‑me um pouco por aquilo que ela toma por impertinências, disse‑me: «Portaste‑te inconvenientemente com Carolina. É uma pessoa a quem te não permito que penses »: Diabo! pode‑se sonhar um pouco, não faz mal a ninguém! Mas olha como ela é linda! Como tem vida no meio de todas essas mulheres pintadas! Podem ver‑se os contornos do seu rosto em pleno dia, não se lhe Vê essa linda mate que empasta a pele e faz assemelhar as outras a figuras de gesso. Na Verdade é demasiado bela para dama de companhia. Minha mãe não poderá conservá‑la junto de si por muito tempo. Incendiará todos os corações, e se se conservar honesta hão‑de querer desposá‑la.

‑ Portanto ‑ replicou o marquês ‑ não pode pensar nela.

‑ Porque não? ‑ disse o duque. ‑ Não sou eu hoje um pobre diabo sem fortuna? Não é ela de boa família? Não é a sua reputação sem mancha? Bem desejaria eu saber o que minha mãe teria a dizer! ela que já lhe chama filha, e que quer que a respeitem como se fosse nossa irmã!

‑ Leva muito longe o seu entusiasmo... ou o gracejo ‑ disse o marquês, aturdido com o que ouvia.

‑ Bom ‑pensou o duque ‑ não me trata por tu! E continuou a sustentar com uma seriedade admirável que era muito capaz de casar com a menina de Saint‑Geneix, se não tivesse outro meio de a obter. ‑ Antes queria raptá‑la, entraria mais nos seus hábitos; mas não tenho maneira de raptar, e presentemente, nem a minha lavadeira se fiaria em mim. Além disso é tempo de acabar com o passado. Disse‑to já, e é coisa feita, pois que to disse. A partir de hoje, transformação em toda a linha. Vais ver um homem novo, um homem que eu não conheço e que Vai admirar‑me bastante; mas sinto já, que esse homem é capaz de tudo, mesmo de crer, de amar e de casar. E com isto, boa noite, irmão, eis a minha última palavra; se não repetires isto à menina de Saint‑Geneix, é porque nada queres fazer para ajudar a minha conversão.

O duque afastou‑se deixando seu irmão estupefacto, e hesitando entre a necessidade de o julgar sincero na sua paixão súbita e a indignação por uma Velhacaria de que não queria tornar‑se cúmplice.

‑ Mas não, dizia para consigo ao voltar a essa casa; tudo aquilo é alegria, loucura, leviandade... ou é ainda o vinho! Contudo esta manhã, no bosque, interrogou‑me a respeito de Carolina com uma insistência extraordinária, e quase no meio das minhas confidências sobre o passado, confidências que ele recebeu com verdadeira comoção, com lágrimas nos olhos. Que homem é, pois, meu irmão? Não há ainda doze horas, pensava em matar‑se. Odiava‑me e detestava‑se a si próprio.

Depois acreditei que lhe tinha subjugado o coração. Soluçou nos meus braços. Durante todo o dia foi encantador de efusão, de confiança, de ternura e de bondade, e à noite, já não o compreendo! Estará a sua razão alterada por essa Vida sem freio que tem levado, ou zombaria de mim toda a manhã? Serei eu iludido pela sua necessidade de amar? Terei de arrepender‑me amargamente, ou assumiria o encargo de tratar um cérebro doente?

No seu terror, o marquês aceitou esta última suposição como a menos assustadora; mas uma outra angústia se juntava â esta. Sentia‑se ofendido e irritado num sentimento que não confessava a si próprio e a que nem um nome queria dar. Quis trabalhar e trabalhou mal. Deitou‑se e dormiu pior ainda.

Quanto ao duque, esfregava ingenuamente as mãos.

‑ Consegui, dizia radiante. Encontrei o reactivo contra o seu desespero. Pobre irmão! Exaltei‑lhe a imaginação, despertei‑lhe os desejos, excitei‑lhe os ciúmes. Está apaixonado ! Curar‑se‑á e viverá! Para uma paixão o melhor remédio é outra paixão! Minha mãe com certeza não teria esta ideia; se daí resultar algum escândalo em casa, ela me perdoará quando souber que meu irmão teria sucumbido ao seu pesar e aos seus escrúpulos.

O duque não se enganava talvez, e um homem mais sensato seria menos engenhoso. Ter‑se‑ia esforçado por prender o marquês à vida pelo amor

das letras, pelo amor filial, pela razão e pela moral, tudo coisas excelentes mas que, já havia muito, o doente chamava em vão em seu socorro. Somente o duque que imaginava ter salvo tudo, não previa que, com uma natureza concentrada como a de seu irmão, o remédio podia em breve tornar‑se pior que o mal. O duque, que conhecia por si próprio a fraqueza humana, acreditava na fraqueza relativa das mulheres, e não admitia excepções. Na sua opinião, Carolina lucraria pouco, julgava‑a já muito disposta amar o marquês. Não pensava mesmo que fosse precisa a esperança do casamento para a Vencer. ‑ É uma boa rapariga, pensava, nada ambiciosa e muito desinteressada. Julguei‑a à primeira vista, e minha mãe afirma que me não engano. Cederá por necessidade de amar e por atracção também, porque meu irmão tem grandes seduções para uma mulher inteligente. Se lhe resistir por algum tempo tanto melhor, mais o prenderá. Minha mãe não verá coisa alguma, e se vir, servirá para a excitar e para a distrair. Será boa, pregara a virtude e cederá no enternecimento. Essas pequenas emoções domésticas salvá‑la‑ão do aborrecimento que é o seu maior flagelo.

O duque entregava‑se com a mais perfeita candura a estes cálculos, cuja base era imoral. Enternecia‑se com essa espécie de puerilidade que caracteriza por Vezes a corrupção. Sorria mentalmente Vendo a bela Vítima já Imolada em imaginação aos seus projectos, e se alguém o tivesse interrogado, teria respondido que estava em via de arranjar um romance à Florian, para começar a vida de sentimento e de inocência que contava abraçar.

Ficou até ao fim da reunião, e achou meio de se encontrar com Carolina num canto e de lhe falar. ‑ Minha mãe ralhou‑me, disse‑lhe. Parece que procedi mal para consigo. Mas creia que o fiz inconscientemente, pois que tinha justamente o desejo de lhe provar o meu respeito. Enfim, minha mãe obrigou‑me a dar‑lhe a minha palavra de honra de que não pensaria em lhe fazer a corte, e eu dei‑a sem hesitar. Fica tranquila agora?

‑ Tanto mais que nunca pensei em estar inquieta.

‑ Ainda bem! Já que minha mãe me obriga, a grosseria de dizer a uma mulher o que nunca se lhe diz, mesmo quando se pensa, sejamos amigos como duas boas pessoas que somos, e sejamos francos para começar. Prometa‑me que não tornará a dizer mal de mim a meu irmão.

‑ Não tornará?... Quando lhe disse eu mal do sr. duque?

‑ Não se lhe queixou das minhas impertinências... esta noite?

‑ Disse‑lhe que receava as suas zombarias e que, se elas continuassem, me iria embora, nada mais.

‑ Bem, ‑ pensou o duque ‑ entendem‑se já melhor do que eu esperava... Se pensasse que abandonava minha mãe por minha causa ‑ replicou ele ‑ seria eu que me afastaria dela.

‑ Isso não tem senso comum! Um filho ceder o lugar a uma estranha !

‑ E todavia estou resolvido a fazê‑lo, se lhe desagrado e se a assusto; mas fique, e ordene‑me o que quiser. Quer que não torne a fitá‑la, que não lhe dirija a palavra, nem mesmo a cumprimente?

‑ Não exijo afectação alguma num sentido nem no outro. O sr. duque tem demasiado espírito e uso do mundo para não haver compreendido que não estou bastante habituada aos artifícios da palavra para sustentar um assalto contra o senhor.

‑ É demasiado modesta; mas visto que não quer que as fórmulas da admiração se juntem às do respeito, e que a atenção, que tão difícil lhe é não despertar, a assusta e a contrista, tranquilize‑se, sei o que devo fazer: nunca mais terá que se queixar de mim. Juro‑lho por tudo o que um homem pode ter de mais sagrado, por minha mãe!

Depois de ter assim reparado a sua falta e tranquilizado Carolina, cuja partida lhe faria abortar os planos, o duque falou‑lhe de Urbano com Verdadeiro entusiasmo. E era tão sincero sobre este ponto, que a menina de Saint‑Geneix abjurou às suas prevenções. Sentiu‑se novamente tranquila e apressou‑se a mandar dizer a Camila que tudo corria bem, que o duque Valia muito mais que a sua reputação, e que, em todo o caso, se tinha comprometido pela sua honra a deixá‑la sossegada.

Durante o mês que se seguiu a este dia, Carolina Viu poucas vezes o sr. de Villemer, o qual teve de tratar da liquidação das dívidas de seu irmão, e depois se ausentou. Disse à mãe que ia à Normandia ver um certo castelo cujo plano lhe era necessário para a sua obra, e tomou um caminho completamente oposto. Só ao duque confiou que ia Ver o filho sob o mais rigoroso incógnito.

Por seu lado, o duque esteve muito ocupado com a sua mudança de posição pecuniária. Vendeu os cavalos e a mobília, despediu os criados, e veio, a pedido de sua mãe, instalar‑se provisoriamente, per economia, numa sobre‑loja do palácio, que ia ser Venvido também, mas com a reserva de que o marquês ficaria sendo durante dez anos o principal locatário, e que nada seria mudado na habitação de sua mãe.

Quanto a Urbano, subiu três andares e amontuou os seus livros num alojamento mais que modesto, protestando que nunca estivera melhor, e que tinha uma Vista magnífica sobre os Campos Elísios. Durante a sua ausência, fizeram‑se os preparativos de partida para o campo, e a menina de Saint-Geneix escrevia à mãe: «Conto os dias que nos separam dessa bem‑aventurada aldeia, onde vou enfim poder andar à minha vontade e respirar ar puro. Estou farta das flores que vejo murchar sobre o fogão: aspiro por aquelas que desabrocham em pleno campo.»

 

Carta do marquês de Villemer ao duque de Aléria

«Polignac, 1 de maio de 45, pelo Puy (Alto Loire).

«Toma sentido na direcção que te envio e que mais ninguém no mundo conhece. Se eu morrer longe de ti, deverás antes de mais nada, mandar aqui alguém Vigiar que a criança não seja descurada pelas pessoas a quem a confiei. Essas pessoas não me conhecem; não sabem o meu nome nem onde habito; ignoram até que essa criança me pertence. Todas estas precauções são necessárias porque, como te disse, o sr. de G... conservou suspeitas que poderiam ter como consequência duvidar até da legitimidade, bem real todavia, de sua filha.

Esse receio torturava a desgraçada mãe a quem jurei que ocultaria a existência de Didier enquanto a sorte de Laura não estivesse assegurada. Notei mais duma vez a curiosidade inquieta com que os meus passos eram observados.

Não será, pois, demasiado mistério.

Eis a razão por que coloquei meu filho tão longe de mim e numa província onde, não tendo relações algumas, me arrisco menos que em qualquer outra parte a ser atraído por encontros fortuitos. As pessoas a quem me refiro oferecem‑me todas as garantias possíveis de honestidade, bondade e discrição, pois que se abstêm de me interrogar e observar. A ama é sobrinha daquele velho criado que nos morreu o ano passado. Foi ele que ma indicou; mas não sabe quem sou eu. Conhece‑me pelo nome de Bernyer. É uma mulher nova, sadia e meiga, uma simples camponesa, mas abastada. Teria receado, se a fizesse mais rica, não poder destruir hábitos de economia do campo, que são, como tenho observado, ainda mais inveterados que em outras partes, e desejava que sendo criada nas verdadeiras condições do desenvolvimento rústico, a pobre criança não tivesse de sofrer com o excesso dessas condições, excesso que teria precisamente por resultado o estiolamento. Os meus hospedeiros, porque é de casa deles que te escrevo, são rendeiros e guardas do recinto onde, sobre a plataforma dum rochedo, se eleva uma das mais severas fortalezas da idade média, o berço dessa família cujos últimos representantes desempenharam um tão desgraçado papel nas recentes Vicissitudes da nossa monarquia. Não menos deplorável foi o papel que os seus antepassados desempenharam nesta província e não menos importante também na época em que o feudalismo tornava bem insignificante o papel dos reis.

Não são sem interesse para o trabalho histórico de que me ocupo as tradições recolhidas aqui e o estudo da fisionomia do solar e da região; não menti, pois, absolutamente a minha mãe, dizendo‑lhe que ia Viajar para minha instrução.

Há, com efeito, muito que aprender no coração desta bela França, que não é moda visitar‑se, e que, por consequência, oculta ainda os seus santuários de poesia e as suas minas de ciência em recantos inabordáveis. Isto aqui é uma região sem caminhos e sem guias, sem nenhuma facilidade de locomoção,, e onde precisamos de conquistar as nossas descobertas à custa de perigos ou fadigas.

As pessoas que aqui vivem não a conhecem melhor que os estranjeiros. A vida puramente agrícola limita a horizontes muito curtos as noções de cada localidade; é pois impossível obterem‑se informações no caminho, a menos que se conheça o nome e a posição relativa de todas as pequenas povoações; sem um mapa minucioso que me é preciso consultar a cada passo, embora venha aqui pela terceira Vez em dois anos, desde que Didier nasceu, só poderia dirigir‑me em linha recta, o que é perfeitamente impraticável num solo cortado por profundos barrancos, atravessado em todos os sentidos por altas muralhas de lava e sulcado por numerosas torrentes.

Mas não preciso ir longe para apreciar o carácter estranho e surpreendente da região.

Nada, meu amigo, te poderia dar ideia da beleza pitoresca desta bacia de Puy, e não conheço sítio mais difícil de descrever. Não é a Suíssa, é menos terrível; não é a Itália, é mais belo; é a França central com todos os seus Vesúvios extintos e revestidos duma esplêndida vegetação; não é todavia nem AuVergne nem o Limousin que tu conheces.

O horizonte é grandioso. São primeiro os Cèvenes. Nuns longes brumosos, distingue‑se o Mezeno com os seus longos declives e bruscos recortes, por trás dos quais se ergue o Gerbier de Joncs, cone vulcânico que recorda o Soracta, mas que, partindo duma base mais imponente, faz maior efeito. Outras montanhas de Variado aspecto, umas imitando nas suas formas hemisféricas os cumes arredondados dos Vosges, outras assentes em muralhas direitas, aqui e ali vigorosamente cortadas, circunscrevem um espaço tão vasto como o da campina de Roma, mas profundamente excavado, como se todos os vulcões que revolveram esta região houvessem tido uma cratera comum de dimensões fabulosas.

Abaixo desta magnífica cintura, os pormenores do quadro desenham‑se por Vezes com prodigiosa nitidez. Distingue‑se um segundo, um terceiro e por Vezes um quarto círculo de montanhas igualmente Variadas, que descem formando degraus para o nível central dos três rios que sulcam o que se pode chamar a planície; mas esta planície é duma aparência apenas relativa: não há um pouco de solo que não tenha sido levantado, revolvido ou ofendido.

Vou falar‑te do meu filho. Adoro esta criança, e Vejo que cedo ou tarde ela será o meu único pensamento. Não é só o dever que me chama para junto dele, são as minhas entranhas que gritam quando estou algum tempo sem o Ver. Ele está bem aqui, nada lhe falta, fortifica‑se, é amado‑ Os seus pais adoptivos são excelentes pessoas, e vejo que os seus corações estão de acordo com os seus interesses nos cuidados que lhe dispensam. Habitam a parte dum solar que se consertou de pé e que foi convenientemente restaurada. O pequeno, criado nestas ruínas, no cimo do grande rochedo, sob um céu brilhante, com ar puro e tonificante, é tratado por pessoas limpas e cuidadosas. A mulher viveu em Paris, tem uma ideia justa da dose de delicadeza que se deve aplicar no regime duma criança mais fraquita, mas tão bem constituída como os seus filhos: poderia, pois, não me inquietar e esperar a idade em que será preciso tratar e formar alguma coisa mais que o corpo. Pois bem! inquieta‑me, apesar de tudo, quando estou longe dele. A sua existência aparece‑me então muitas vezes como uma ansiedade e uma perturbação profunda na minha vida: mas quando o vejo, o terror desaparece e toda a amargura se suaviza. Que queres mais que diga? Adoro‑o! Sinto que me pertence e que lhe pertenço igualmente. Sinto que tem muito mais de. mim que da sua pobre mãe; à medida que as afeições e os instintos se lhe acentuam, procuro em vão alguma coisa que ma recorde, e que parece nunca deverei encontrar. Contra a lei mais Vulgar que quer que os rapazes tenham mais feições das mães do que as raparigas, é com o pai que este se parecerá se continuar a desenvolver‑se no sentido que até hoje se pode apreciar. Tem já a minha indolência e a minha timidez feroz da infância, em que nossa mãe tanta vez me fala, e as súbitas ternuras, que faziam, diz ela, que me perdoasse e adorasse apesar de tudo. Apercebeu‑se este ano da minha presença. Teve medo a princípio, e agora sorri‑me e esforça‑se por me falar. O seu sorriso e tagarelice enternecem‑me e quando me procura a mão para andar, não sei que reconhecimento para com ele me arranca lágrimas que oculto sem esforço.

Mas basta, não quero parecer‑te eu próprio demasiado criança; digo‑te isto para que te não admires quando me recusar a ouvir fazer projectos a meu respeito. Vamos, meu amigo, não se me deve falar de amor nem de casamento. Não tenho na alma bastante felicidade para dar a um ser novo na minha existência. Essa existência bastará apenas para os meus deveres, vejo‑o bem pela ternura que sinto por Didier, por minha mãe e por ti. Com a sede de estudo que tantas vezes me apaixona, que tempo teria eu para consagrar a uma senhora ávida de felicidade e de alegria? Não, não pensemos em semelhante coisa, e se a lembrança dessa espécie de isolamento é ainda por vezes assustadora na minha idade, ajuda‑me tu a atingir o momento em que seja normal. É questão de alguns anos. A tua

afeição far‑mos‑á parecer menos longos, bem o sabes. Conserva‑ma, indulgente para com os meus defeitos e generosa para com a minha confiança.

  1. S. ‑ Presumo que nossa mãe partiu para Séval com a menina de Saint‑Geneix e que tu as terás acompanhado. Se nossa mãe se inquietar a meu respeito, diz‑lhe que recebeste notícias minhas e que continuo na Normandia».

 

No mesmo dia em que o marquês escrevia ao duque, escreveu Carolina a sua irmã esboçando‑lhe a seu modo a região onde se encontrava.

 

« Séval, por Chambon

Enfim, minha irmã, eis‑nos aqui num paraíso terrestre! A habitação é Velha e pequena mas muito confortável e bastante pitoresca. O parque é bastante extenso, não está bem tratado e não é à inglesa, Deus louvado! Mas tem belas árvores muito antigas cobertas de hera, e grandes ervas. A região é adorável. Estamos no Auvergne a despeito das novas delimitações, mas muito perto do antigo limite da Marche, a uma légua duma pequena cidade que se chama Chambon e que atravessamos para chegar ao solar.

Eu que conhecia apenas as nossas grandes planícies e os nossos grandes rios, sinto‑me inclinada a só ver aqui elevações e abismos; mas a marquesa que esteve nos Alpes e Pirenéus, zomba de mim, e pretende que tudo é pequeno como um centro de mesa. Portanto, modero o meu entusiasmo na descrição que te faço, para que não erres no teu juízo; porém a marquesa que não se sente loucamente apaixonada pela natureza, não conseguirá impedir‑me de me extasiar com o que Vejo.

É uma região de ervas e de folhas, uma contínua abóbada de Verdura. O rio que desce da encosta chama‑se Voaéze; depois, misturado em Chambon com o Tarde, torna‑se Char, para o fim do primeiro vale, ser o Cher que todo mundo conhece.

O salão da marquesa recorda, pela disposição e mobília, o de Paris; mas é maior, mais sonoro e pode lá respirar‑se. Enfim estou bem, estou contente, sinto‑me reviver. Acordo ao romper do dia, e até à hora a que a marquesa se levanta, que, graças a Deus, não é mais matinal aqui que em Paris, Vou dispor de mim o mais agradavelmente possível. Oh! como Vou andar, escrever‑te, e pensar em ti em liberdade! Ai! se tivesse aqui ao menos um dos nossos pequenos, a Lili ou o Carlitos, como o faria passear, como lhe ensinaria a conhecer todas as coisas do campo. Por mais que queira afeiçoar‑me a todos os belos pequerruchos que encontro, essa afeição não dura. Ao cabo dum instante comparo‑os com os teus e sinto que eles nunca terão rivais sérios no meu coração... E enquanto me alegro por estar no campo, penso também que estou muito mais longe de vós do que até aqui! E quando vos tornarei a ver?

Ai! como os rochedos são duros! Mas de nada serve lutar contra todos os que obstruem a Vida da pobre gente como nós. É' preciso cumprir o dever e afeiçoar‑me à marquesa. Estimá‑la não é difícil. Todos os dias me trata melhor; quase uma terna mãe na Verdade, e tem complacências que me fazem esquecer a minha posição real. Pensávamos que encontraríamos aqui o marquês, onde tinha marcado ponto de reunião a sua mãe. Mas não pode tardar. Quanto ao duque, virá, creio eu, para a próxima semana. Esperaremos que será tão bom para mim na aldeia como era ultimamente em Paris, e que me não obrigará a mostrar espírito...

A marquesa distrai‑me com as suas opiniões. Dizia‑me há pouco:

‑ Minha querida filha, para gostar da vida do campo, é preciso que se ame estupidamente a terra ou desarrazoadamente a natureza. Não há meio termo entre o embrutecimento e a extravagância. Ora, bem sabe que tenho o espírito um pouco excitado e mesmo exaltado, e mais a propósito das coisas da sociedade que daquilo que é regido pelas leis da natureza, sempre imutáveis. Essas leis são obras de Deus, portanto são belas e boas. O homem nada lhes pode mudar. Por mais que as verifique, observe, admire ou mesmo descreva eloquentemente, nada lhes junta. Quando alguém se extasia ante uma macieira em flor, não acho que cometa um erro; pelo contrário, penso que tem muita razão, mas que não vale a pena elogiar essa macieira que não compreende, que não floresce para o prazer de ninguém, e que florescerá da mesma maneira se nada lhe disserem.

Vês por aqui que a marquesa nada tem de artista, e que possui raciocínios para justificar a incompreensão do que não sente; mas não é ela nisto como toda a gente, e não procedemos nós da mesma forma a propósito de qualquer faculdade que nos falte?

Dispensa a propósito de tudo, uma crítica motivada, completamente pronta, umas vezes alegre e benévola, outras triste e acerba. Tem falado demasiado na sua vida para ser feliz. Pensar a dois, a três, ou a trinta continuamente, e sem jamais nos recolhermos, é, creio eu, uma grande fadiga. Não nos interrogamos, afirmamos sempre, sem o que, terminava a discussão, e a conversa esmorecia.

Obrigada a este exercício, sucumbiria à dúvida e ao aborrecimento pelos meus semelhantes, se não tivesse a manhã para me restabelecer dessa fadiga. Embora a senhora de Villemer, pelo seu espírito e bondade, dê todo o encanto possível a tão estéril emprego do tempo, estou ansiosa que chegue o marquês, para tomar também a sua parte neste divertimento oratório...

 

O marquês chegou com efeito ao cabo de oito dias, mas sombrio e preocupado, e Carolina achou‑o excessivamente frio com ela. Engolfou‑se nos seus estudos favoritos, e não aparecia antes da hora do jantar.

Esta maneira de proceder foi tanto mais sensível à menina de Saint‑Geneix quanto o marquês parecia esforçar‑se, mais que em Paris, por sustentar a discussão com sua mãe, com grande satisfação desta, que só receava no mundo a preocupação e o silêncio: de modo que não se julgando necessária para animar a conversa, e parecendo‑lhe notar que incomodava mais o marquês do que o auxiliava, Carolina foi menos assídua em aproveitar‑se da sua presença e retirava‑se à noite mais cedo.

Quando, ao fim de uma semana, o duque chegou e ficou surpreendido com este estado de coisas. Muito comovido com a carta que o marquês lhe escrevera de Polignac, mas adivinhando que havia no seu espírito mais luta que determinação assente, retardou propositadamente a partida, para que o isolamento do campo tivesse tempo de actuar sobre os dois corações que julgara impressionar com as suas palavras, e que esperava encontrar de acordo. Não previu que Carolina não era garrida nem exaltada; nem o terror, a resistência, o combate enfim, que se dava na alma do marquês. ‑ Que há então? ‑ perguntava a si próprio, vendo que até a disposição para a amizade parecia ter desaparecido. Foi a moral que extinguiu tão rapidamente o incêndio? Terá meu irmão feito alguma tentativa inútil? O seu acréscimo de tristeza é receio ou despeito? Esta rapariga será afectada? Não! Ambiciosa? Também não! O marquês não soube talvez explicar‑se. Guardou todo o espírito para os livros quando seria necessário polo ao serviço da sua paixão nascente.

Não se apressou contudo a penetrar a Verdade. Sentia‑se muito irresoluto. Conseguira saber o estado dos negócios do marquês. Este possuía apenas trinta mil francos de renda, dos quais, doze mil eram entregues a seu irmão a título de pensão. O resto era consagrado quase inteiramente às despesas da marquesa, e ele vivia na propriedade que lhe pertencia, sem dispender mais do que se fosse um hóspede discreto do solar.

O duque estava desolado com semelhante situação, que era obra sua, e com que o marquês parecia não se preocupar. Suportara a perda da fortuna com a maior tranquilidade. Mostrara‑se verdadeiro fidalgo, e se tinha perdido muitos companheiros de prazer, reconhecera alguns amigos fieis. Engrandecera‑se na opinião do mundo, e perdoavam‑lhe o ter lançado a perturbação e o escândalo em algumas famílias, Vendo que expiava a sua vida ardente e sem freio, com coragem e altivez. Compreendeu com espírito o papel que lhe convinha doravante, mas sentia um arrependimento que o perturbava, e agitava‑se em torno desse arrependimento com menos perspicácia e resolução que se se tratasse de si próprio. Naturalmente bom na sua falta de senso, procurava o que poderia fazer para a felicidade do irmão. Tão de pressa se persuadia que era preciso introduzir o amor naquela vida de recolhimento e mediocridade, como pensava em o impelir para a ambição, combatendo‑lhe as repugnâncias e procurando novamente sugerir‑lhe a ideia dum grande casamento.

Este último partido era também o sonho da marquesa. Tinha‑o sempre acariciado e entregaVa‑se a ele mais que nunca, julgando que o entusiasmo materno pela generosidade do marquês seria partilhado por alguma herdeira ideal. Contou ao duque que entrara em combinações com a sua amiga duquesa de Dunièrs, para tratar o casamento do marquês com uma Xaintrailles, órfã muito rica e bela, que se aborrecia no convento e todavia se mostrava exigente sobre o mérito e qualidade do futuro noivo. Segundo todos os esclarecimentos, o negócio era possível, mas era preciso que Urbano se prestasse, e ele não se prestava, dizendo que nunca casaria se a ocasião se não oferecesse sozinha e que era o homem mais incapaz do mundo para se apresentar a uma mulher desconhecida com intenção de lhe agradar.

‑ Procura, pois, meu filho, ‑ disse a marquesa ao duque no dia seguinte ao da sua chegada ‑ vencer essa selvajaria. Eu perco o meu latim!

O duque tentou a empresa, e achou seu irmão indeciso, hesitante, não se opondo, mas recusando‑se a tratar de coisa alguma, e dizendo que se devia esperar um acaso que lhe permitisse encontrar‑se com essa menina, que se lhe agradasse, procuraria saber mais tarde se ela também não sentia repugnância por ele. Nada se podia fazer na ocasião, por se estar no campo. Não havia pressa, o marquês não se sentia mais infeliz que de costume, e tinha muito que fazer. A marquesa impacientaVa‑se com estas delongas, e continuava a escrever, servindo‑se do duque como secretário neste negócio, que não era da competência de Carolina.

O duque, vendo claramente que, durante seis longos meses, o casamento não poderia avançar um passo, voltou à ideia de distrair provisoriamente o marquês com um romance de aldeia. A heroína estava à mão, e era encantadora. Sofria talvez um pouco com a frieza muito Visível do sr. de Villemer. O duque procurou descobrir a causa dessa frieza. Não o conseguiu porque o marquês se mostrou impenetrável. As perguntas de seu irmão pareceram surpreendê‑lo.

O facto é que nunca a ideia de fazer a corte à menina de Saint‑Geneix lhe tinha ocorrido. Teria considerado isso como um caso de consciência dos mais graves, e não transigia com a sua consciência. Experimentou sensivelmente o encanto penetrante e real de Carolina, e entregara‑se‑lhe sem pensamento reservado, depois de irmão, procurando excitar-lhe o ciúme, fizera‑lhe descobrir uma inclinação demasiado pronunciada nessa simpatia sem nome. Sofrera horrivelmente durante alguns dias. Perguntou a si próprio se era livre, e Viu‑se entre a mãe que desejava vê‑lo fazer um grande casamento e um filho a quem devia os restos da sua fortuna. Previa, além disso, uma resistência invencível nos escrúpulos de altivez da menina de Saint‑Geneix. Já conhecia bastante o seu carácter para ter a certeza de que nunca consentiria em colocar‑se entre a mãe e o filho. Igualmente resolvido a não fazer a loucura de se tornar inutilmente importuno, e a não cometer a cobardia de surpreender a boa fé duma bela alma, trabalhou para se Vencer e parecia tê‑lo miraculosamente conseguido. Desempenhou o seu papel de maneira que o duque se iludiu. Tanta coragem e delicadeza excediam talvez a noção que ele tinha dum deVer neste género. ‑ Enganei‑me, pensou, meu irmão está absorvido pela ciência da história. É do seu liVro que se lhe deve falar.

Desde então, o duque perguntou a si próprio em que ia entreter a imaginação durante seis meses de Vida inactiva. Caçar, ler romances, conversar com sua mãe, compor algumas romanzas, não era suficiente para um espírito tão fantasista, e naturalmente pensou em Carolina como na única pessoa que podia trazer um pouco de poesia à sua imaginação. Estava decidido a passar metade do ano em Séval, e era essa uma nobre resolução para um homem que só gostava do campo com uma existência luxuosa. Queria, vivendo o mais modestamente possível em casa do marquês durante seis meses, recusar todos os anos seis mil francos da sua pensão, e se o sr. de Villemer não aceitasse o sacrifício, empregaria essa quantia em reparações e melhoramentos no solar paterno, mas era preciso um namorico para recompensar tanta virtude, e só até aí chegava a do bom duque.

‑ Que hei‑de fazer, ‑ dizia para consigo ‑ agora que lhes dei a ele e a minha mãe, a palavra de honra de não me ocupar dela? Só há um meio, mais simples talvez que todos os meios ordinários e já repisados: é de a tratar com os maiores desvelos, mas com aparência de absoluto desinteresse, respeito sem galantaria, amizade muito simples e franca, e que lhe inspire confiança. Como além de tudo me não é proibido ter espírito e graça e ser tão perfeitamente amável e delicado como o seria mostrando as minhas pretensões, é muito provável que consiga comovê‑la, e que, de seu motu‑próprio, me dispense pouco a pouco do meu juramento. Uma mulher admira‑se sempre se, ao cabo de dois ou três meses de intimidade afectuosa, lhe não dizem uma palavra de amor. E demais, também há‑de aborrecer‑se, pois que os olhos do meu irmão já lhe não falam... Veremos. Será novo e muito interessante conquistar um coração que está precavido, sem o dar a perceber, e assistir ao desarmamento duma Virtude sem parecer tê‑lo provocado. Já vi este manejo com as levianas e afectadas, mas tenho curiosidade em saber como procederá a menina de Saint‑Geneix, que não é uma nem outra coisa.

Assim ocupado com uma puerilidade de amor próprio, já não se aborrecia. Nunca tinha sido um devasso brutal, e os seus excessos conservaram sempre um cunho de elegância. Tanto tinha usado e abusado da vida que estava bastante gasto para poder conter‑se sem grande esforço. Agradava‑lhe reconstituir a saúde e a mocidade, e mesmo por momentos imaginava encontrar novamente a simplicidade do coração, de que as suas maneiras e linguagem tinham conservado a aparência.

Como sentia a Imaginação ocupada com um romance perverso,, concluía que podia ainda ser romanesco.

Procedeu tão habilmente, que a menina de Saint‑Geneix teve a modéstia de se iludir completamente com essa fingida lealdade. Vendo que nunca procurava estar só com ela, não o evitou. E enquanto, sem a perder de Vista, preparava, da maneira mais natural e menos prevista, a ocasião de a encontrar nos seus passeios, aproveitava esses encontros para mostrar que não desejava prolongá‑los, e para se afastar com ar discreto e uma sombra de pesar que conciliava a delicadeza amável com a indiferença provocante.

Desenvolveu toda esta ciência sem que Carolina de nada suspeitasse. A sua franqueza não lhe permitia adivinhar um tal plano. Ao cabo de oito dias, estava tão à vontade com ele como que nunca tivesse tido a menor desconfiança, e escrevia a Madame Heudebert:

«Acho que o duque está bem mudado desde o acontecimento de família que o obrigou a reflectir, ou então nunca mereceu as acusações da sr.a D. É talvez esta a verdade, porque não posso acreditar que um homem de maneiras e sentimentos tão delicados, procurasse perder uma mulher pelo único prazer de ter mais uma Vítima a mostrar. Pretendia ela que o duque procedia assim com todas as suas amantes, por libertinagem e vaidade. Libertinagem não sei muito bem o que seja dum homem de tão elevada posição. Tenho vivido com pessoas sensatas, e só Vi a devassidão entre os pobres operários que perdem a razão no Vinho e batem nas mulheres em acessos de delírio mortal. Não o vejo ocupado com mulheres e nunca o ouço falar de nenhuma em particular. Pelo contrário, elogia a virtude, declara crer nelas. Parece não ter que censurar‑me de perfídia alguma, porque estabelece uma diferença bem acentuada entre as que consentem e as que não consentem em perder‑se. Não sei se ele quer iludir, mas parece ter amado com respeito e sinceridade. Nem a mãe nem o irmão mostram acreditá‑lo, e a mim agrada‑me crer que é uma natureza sincera, mas inconstante, e que é preciso ser‑se bem crédula ou bem frívola para esperar prendê‑lo. Que tenha sido gastador e jogador, que se tenha esquecido dos deveres de família, embriagado de luxo e de puerilidades indignas dum homem sério, não o duvido, e é nisso que eu vejo a sua fraqueza de discernimento e a sua vaidade, mas são defeitos e infelicidades da educação e de uma vida demasiado privilegiada desde o início. Estas pessoas não conhecem o dever pela necessidade, e ensinaram‑lhes tudo o que há de mais contrário à economia e à previsão. Nosso pobre pai não se arruinou também, e quem ousará dizer que foi por sua culpa? Quanto à fatuidade, bem a tenho procurado no duque, não lhe encontro o menor vestígio. Aqui, é tão simples como um bom fidalgote da província. Costuma usar uma camisa de trinta francos, e conquista todos os corações com a sua bonomia e simplicidade. Nunca alude aos triunfos passados, e jamais se Vangloria dos seus merecimentos, que são reais, porque tem um espírito encantador, è ainda belo, canta muito bem e compõe mesmo um pouco: isto não é muito útil, mas tem uma certa elegância. Conversa maravilhosamente, sem muito fundo, porque só leu ou reteve coisas frívolas: mas confessa‑o muito simplesmente, e não o enfastiam as coisas sérias, porque interroga seu irmão a propósito de tudo e ouve‑o com inteligência e respeito.

«Quanto a este é sempre o mesmo espelho sem mancha, o exemplo de todas as Virtudes e de todas as bondades, e a modéstia em pessoa. Está muito ocupado com um grande trabalho histórico de que o duque diz maravilhas, o que não me admira‑A natureza seria bem ilógica, se lhe tivesse recusado a faculdade de exprimir as elevadas ideias e os verdadeiros sentimentos com que lhe dotou a alma. Há nele como que um recolhimento religioso da sua obra que o torna mais reservado para comigo e expansivo com a mãe e com o irmão, do que precedentemente. Regosijo‑me por eles e quanto a mim, não me ofende, é bem natural que não espere de mim conselhos sobre tão graves assuntos, e que se sinta inclinado a interrogar pessoas mais experimentadas e mais versadas na ciência dos factos humanos. Em Paris, testemunhou‑me muito interesse, principalmente no dia em que seu irmão se permitiu zombar de mim, mas por não ter continuado a mostrar‑me esse interesse particular, não concluo que ele tenha deixado de existir e que não desperte em ocasião oportuna. Ocasião desse género não se apresentará, pois que o duque está tão perfeitamente corrigido, mas não deixo de me sentir reconhecida por poder contar com tão preciosa protecção.»

 

Vê‑se que, se Carolina se sentia ferida intimamente pela mudança de maneiras do sr. de Villemer, era inconscientemente e sem querer insistir no sentimento duma dor Vaga. O amor próprio da mulher não entrava em jogo. Tinha a consciência de não ter desmerecido da sua estima, e como não esperava nem desejava mais, atribuía tudo a uma preocupação respeitável.

Todavia, por mais que procurasse lutar, compreendeu que se aborrecia. Absteve‑se de o mandar dizer a sua irmã, que não saberia dar‑lhe coragem, e lhe escreveria cartas afectuosas, mas cheias de condolência e de queixumes sobre o seu sacrifício. Carolina poupava essa alma meiga e tímida que se habituara a amar maternalmente, e que se esforçava por amparar, mostrando‑se sempre igualmente forte e tranquila como era na acepção geral do seu carácter, mas tinha horas de profundo tédio em que o horror do isolamento lhe apertava o coração. Embora estivesse mais cativa e mais sujeita durante uma parte do dia do que quando Vivia com a família, tinha as manhãs e as últimas horas da noite para saborear a austeridade da solidão e interrogar o seu destino, liberdade perigosa que lhe não era permitida quando tinha o encargo de quatro crianças e uma casa a dirigir. Refugiava‑se na poesia das contemplações e sentia nela uma doçura encantadora, por vezes também uma amargura sem causa e sem fim que lhe tornava a natureza inimiga, o andar fatigante e o sono incómodo.

Lutava corajosamente, mas esses acessos de melancolia não escapavam ao olhar atento do duque de Aléria. Notava, em certos dias, uma sombra azulada que parecia cavar‑lhe os olhos e uma certa resistência nos músculos do sorriso. Pensou que a hora se aproximava, e insistiu no sistema que tinha adoptado. Foi mais atencioso e mais amável, e quando a viu reconhecida apressou‑se a lembrar‑lhe delicadamente que o amor não entrava para nada nesse procedimento‑ Foi ainda em pura perda. Cárolina era demasiado simples para compreender a habilidade. Quando o duque a rodeava de atenções delicadas e encantadoras, acreditava na sua amizade, e quando ele se esforçava por a irritar com restrições, divertia‑se tanto mais quanto atribuía tudo a amizade. O amor próprio não permitiu ao duque Ver claro na segunda fase da sua empresa. Tinha conquistado a confiança, mas, na realidade, Cárolina podia abrir os olhos sem sentir mais que um profundo espanto e uma desdenhosa piedade. O duque esperava todas as manhãs ver nascer o despeito ou a impaciência. Mas só notava alguma tristeza, cuja causa se atribuía e que o regosijava docemente, mas que o não satisfazia. - JulgaVa‑a mais viva ‑ pensava ‑ há no seu pesar alguma inércia e mais suavidade que ardor.

Pouco a pouco essa suavidade encantou‑o. Nada tinha visto que se assemelhasse à suposta resignação.

Notava uma modéstia, um desalento em agradar, uma terna submissão que o comoveram. - E boa, sobretudo ‑ disse ainda ‑ boa como um anjo. Ser‑se‑ia bem feliz com esta mulher, seria tão reconhecida e tão meiga! Na Verdade, não sabe o que é fazer sofrer, guarda tudo para si.

À força de espreitar a sua presa, o duque sentiu‑se fascinado e comovido. Foi obrigado a reconhecer que se perturbava junto dela e que a sua própria crueldade o incomodava. Ao cabo dum mês, começou a perder a paciência e a pensar que seria preciso apressar o desenlace, mas subitamente encontrava uma grande dificuldade nesse projecto. Carolina era ainda demasiado virtuosa para lhe permitir faltar à sua palavra, e precipitando os acontecimentos podia perder tudo.

Um dia, entrando nos aposentos de sua mãe:

‑ Venho ‑ disse ele ‑ de me divertir muito. Montei um potro da lavoura que se parece com um javali e que trota como ele. É Vivo, forte de pernas e muito manso. A menina de Saint‑Geneix poderia montá‑lo, se por acaso gosta de equitação.

‑ Gosto muito ‑ respondeu ela ‑ meu pai queria que nós montássemos, e eu não fazia sacrifício em o satisfazer.

‑ É então uma excelente amazona, aposto?

‑ Não, tenho sangue frio e a mão suave como todas as mulheres.

‑ Como todas as mulheres que montam bem, porque em geral as mulheres são nervosas e querem governar os homens e os cavalos da mesma maneira, mas não é esse o seu carácter!

‑ Quanto a pessoas, não sei. Nunca tentei governar ninguém.

‑ Oh! tentá‑lo‑á qualquer dia.

‑ Não é provável.

‑ Não, ‑ disse a marquesa ‑ não é provável. Não quer casar‑se, e na sua posição pensa muito bem.

‑ Oh! certamente, ‑ replicou o duque ‑ o casamento sem fortuna deve ser um inferno!

Fitou Carolina para ver se estaria comovida com semelhante declaração. Ela porém conserVaVa‑se impassível, tinha renunciado ao casamento sinceramente e para sempre.

U duque, querendo averiguar se ela se couraçava contra a ideia de uma falta sem remédio, ajuntou, para nada comprometer demasiado gravemente:

‑ Sim, deve ser um inferno, a não ser que uma grande paixão dê o heroísmo de tudo suportar.

Carolina ficou da mesma maneira tranquila e como que estranha à questão.

‑ Oh! meu filho, ‑ disse a marquesa ‑ que tolices estás aí a dizer? Tens dias em que falas como uma criança!

‑ Mas bem sabe que sou muito criança ‑ disse o duque ‑ espero sê‑lo ainda por muito tempo.

‑ É sê‑lo demasiado pôr uma probabilidade de Ventura na miséria. ‑ disse a marquesa, que tinha necessidade de discutir ‑, É impossível, a miséria despedaça tudo, mesmo o amor.

‑ É essa a sua opinião, menina de Saint Geneix? ‑ perguntou o duque.

‑ Oh! não tenho opinião a tal respeito. ‑ respondeu ela ‑ Nada sei da vida, além de um certo limite, mas sinto‑me mais inclinada à opinião da senhora marquesa que à do senhor duque. Conheci a miséria, e se sofri foi por a ver pesar sobre aqueles que amava. Não se deve, pois, complicar a vida quando ela é já tão difícil. É procurar o desespero.

‑ Meu Deus! tudo é relativo. ‑ disse o duque

‑ O que é miséria para uns, é opulência para os outros. Não se julgaria muito rica com doze mil libras de renda?

‑ Oh! de certo ‑ respondeu Carolina sem se lembrar, e talvez mesmo sem saber que era essa justamente a importância da pensão do seu interlocutor.

‑ Então ‑ replicou o duque, que queria com uma palavra dar uma esperança a fim de poder retirá‑la com outra, a eterna história de agitar esse coração plácido ou tímido ‑ se alguém lhe oferecesse uma modesta fortuna como essa, com um amor Verdadeiro?

‑ Não poderia aceitar: ‑ respondeu Carolina ‑ tenho quatro filhos para sustentar e educar, e nenhum marido aceitaria semelhante passado!

‑ É encantadora! ‑ exclamou a marquesa, ‑ fala do seu passado como uma Viúva!

‑ Ah! não falei da Viúva, a minha pobre irmã! Comigo e com uma Velha criada que nos é muito dedicada, e que partilhará o nosso último bocado de pão, somos sete, nem mais nem menos. Imagine daqui o rapaz casadoiro com as suas doze mil libras de renda! Decididamente creio que faria um mau negócio!

Carolina falava sempre da sua situação com uma alegria de afectação que mostrava quanto era sincera.

‑ É verdade! de facto tem razão, ‑ disse o duque ‑ Vencerá melhor as dificuldades da vida só com essa bela coragem e intrepidez. Creio que somos nós dois os únicos filósofos Verdadeiros que existem. Não me preocupa a pobreza quando apenas somos responsáveis do nosso próprio consentimento, e deVo dizer que nunca fui tão feliz como desde que sou pobre.

‑ Tanto melhor, meu filho ‑ disse a marquesa com uma sombra imperceptível de censura que o duque compreendeu imediatamente, porque se apressou a acrescentar:

‑ Serei completamente feliz no dia em que meu irmão fizer o casamento de que se trata, e ele casar‑se‑á, não é verdade, querida mamã?

Carolina fez um movimento como para ver o relógio.

‑ Não, não! está bem. ‑ disse a marquesa ‑ Não há segredos para si doravante, querida filha, e deve saber que recebi hoje boas notícias relativamente a um grande projecto que tenho para meu filho. Se me não servi da sua bela mão para tratar dele, foi por razões muito diversas da desconfiança. Tome, leia esta carta que meu filho mais velho ainda não conhece.

Carolina desejaria abster‑se de penetrar tão Intimamente nos segredos da família e nos do marquês particularmente. Hesitou: ‑ O senhor marquês não está aqui, ‑ disse ela ‑ ignoro se terá a mesma confiança com que querem honrar‑me...

‑ Sim, certamente. ‑ respondeu a marquesa ‑ Se duvidasse não lhe pediria para ler. Vamos, leia!

Carolina leu o que se segue:

«Sim, querida amiga, é preciso que consigamos o que pretendemos, e conseguir‑se‑á. É verdade que a fortuna da menina de X... se eleva a quatro milhões pelo menos, mas ela sabe‑o e não é por isso mais altiva. Pelo contrário, após uma nova tentativa da minha parte, disse‑me ainda esta manhã: «Tem razão, querida madrinha, tenho o direito e o poder de enriquecer um homem de verdadeiro merecimento. Tudo o que me diz do filho da sua amiga me dá uma grande ideia dele. Deixe‑me acabar o luto no convento, e consinto em que prepare o nosso encontro em sua casa no próximo outono.

«Fica entendido que não nomeei pessoa alguma, mas a sua história e dos seus filhos é‑lhe bastante conhecida para que a minha querida Diana tenha adivinhado. Não julguei dever abster‑me de, na ocasião propícia, fazer valer o belo procedimento do marquês. O duque tem‑no proclamado em toda a parte com uma sensibilidade que lhe faz honra. Não prolongue pois demasiado a sua estada em Séval. É preciso que Diana não conviva muito, antes da entrevista. A sociedade tira sempre mesmo às almas mais cândidas, essa primeira frescura de criança e de generosidade que admiro e conservo o melhor que me é possível na minha nobre afilhada. Continuará a minha obra quando ela for sua filha, minha querida amiga! É o meu desejo mais ardente ver o seu querido filho recuperar o lugar que lhe é devido na sociedade. É nobre da sua parte tê‑lo perdido sem se comover e o que uma pessoa da nossa estirpe pode fazer de mais belo, é restituir‑lho. Tenho empenho em conseguir o nosso intento, ponho nele todo o coração, toda a religião e toda a dedicação que sinto, minha amiga.

Duquesa de Dunières.»

 

Se o duque tivesse olhado para Carolina depois da leitura desta carta, em que a sua voz não enfraquecera, não teria surpreendido nela o menor esforço, o menor sentimento pessoal que não estivesse em harmonia com a satisfação que ele próprio experimentava, mas não pensou de modo algum em observar. Em presença dum acontecimento de família tão importante, a pobre Carolina não era na sua Vida mais que um pensamento acidental bem secundário, ter se‑ia censurado de se recordar que ela existia quando via no futuro do seu irmão uma providência reparadora do mal que havia causado. ‑ Sim! ‑ exclamou, beijando com alegria as mãos de sua mãe, sim, minha mãe será novamente feliz e eu deixarei de corar. Meu irmão será o homem, o chefe da família!

O mundo inteiro conhecerá o seu extraordinário merecimento, porque sem a fortuna, aos olhos da maior parte, o talento e a virtude não são suficientes. Terá, pois, tudo por ele o meu querido irmão! glória, honras, crédito, poder, e a despeito dos meninos bonitos da corte, e sem se curvar uma linha diante das supostas necessidades da política! Minha mãe, mostrou esta carta a Urbano?

‑ Mostrei.

‑ E está satisfeito? Caminhando as coisas de tão boa feição, essa menina prevenida em seu favor, aceitando de antemão, e só desejando vê‑lo...

‑ Sim, meu amigo, prometeu deixar‑se apresentar.

‑ Vitória! ‑ exclamou o duque ‑ Alegremo‑nos, façamos loucuras! Tenho desejo de saltar ao tecto, tenho desejos de abraçar... seja quem for! Dá‑me licença que Vá abraçar meu irmão?

‑ Sim, mas não o felicites demasiado, assusta‑se com tudo que é novo, sabes?

‑ Oh! esteja tranquila, conheço‑o bem, agora.

E o duque, ainda muito ágil apesar duma ligeira obesidade e algumas avarias nas articulações, saiu saltando como um jovem estudante.

 

Encontrou o marquês mergulhado no trabalho.

‑ Incomodo‑te? Tanto pior! ‑ exclamou. ‑ É preciso que te aperte nos meus braços, a mãe acaba de ler‑me a carta da duquesa de Dunières.

‑ Mas. meu amigo, não é ainda facto consumado, esse casamento ‑ respondeu o marquês recebendo o abraço fraterno.

‑ Sê‑lo‑á, se tu quiseres, e não podes deixar de querer.

‑ De pouco servirá, talvez, desejá‑lo, será preciso ser encantador para sustentar a brilhante reputação que me arranjou, muito à sua custa na minha opinião, essa velha duquesa.

‑ A duquesa fez bem, não disse até bastante, tenho vontade de ir procurá‑la para que saiba tudo. Julga que não é encantador? Vejam como ele se conhece!

‑ Conheço‑me muito bem ‑ replicou o sr. de Villemer ‑ não me iludo.

‑Mas, que diabo! tomas‑te por um urso? E todavia seduziste G... a pessoa mais reservada deste mundo.

‑ Ah! peço‑te, não me fales dela, recordas‑me tudo o que sofri antes de poder inspirar‑lhe confiança ‑ tudo o que sofri depois para não perder a cada instante essa confiança... Vês tu ‑ acrescentou o marquês, exaltando‑se um pouco ‑, as pessoas apaixonadas não têm espírito! Não saber isto, tu que inspiras admiração à primeira vista, e que não procuras um amor exclusivo para toda a Vida. Só sei dizer a uma mulher: amo, e se ela não compreende que a minha alma inteira está nessa palavra... não poderei juntar‑lhe outra.

‑ Pois bem! Amarás Diana de Xaintrailles, e ela compreenderá a tua palavra suprema!

‑ E se eu a não amar?

‑ Mas, meu caro, ela é encantadora! Conheci‑a pequena, é um Verdadeiro querubim!

‑ Todos dizem que é sedutora, mas se me não agradar? Não digas que não é necessário adorarmos a mulher que é nossa esposa, que basta estimá‑la e saber que é agradável. Não quero discutir contigo a tal respeito, é inútil. Vejamos apenas a questão de saber agradar. Se não amo, não saberei fazer‑me amar e então não casarei.

‑ Dir‑se‑á na verdade que o desejas! ‑ exclamou o duque com verdadeiro pesar ‑ Ah! pobre mãe que se sente tão feliz com essa esperança! E eu que me julgava absolvido pelo destino! Urbano, estaremos todos amaldiçoados?

‑ Não! ‑ respondeu o marquês, comovido, ‑ não desesperemos. Trabalho para modificar o meu intratável carácter. E dou‑te a minha palavra de honra que trabalho com todas as minhas forças, quero pôr um fim a esta existência agitada e estéril! Dá‑me o Verão para triunfar das minhas recordações, dúvidas, apreensões, juro‑te! quero fazer‑vos felizes, e Deus Virá talvez, em meu socorro!

‑ Obrigado, irmão, és o melhor dos homens! ‑ respondeu o duque abraçando‑o outra vez. E como o marquês estava impressionado, levou‑o a passear para o distrair do trabalho e para o conservar nas suas boas disposições.

Fez então o que Urbano fizera para lhe inspirar confiança no dia da sua primeira efusão. Mostrou‑se fraco e com o coração magoado para lhe reavivar a força e a Vontade.

Falou‑lhe exaltadamente nos seus remorsos e na necessidade que tinha dum apoio moral.

‑ Dois desgraçados nada podem um pelo outro ‑ disse‑lhe ‑ a tua melancolia tem em mim a sua repercussão fatal, faz‑me sucumbir. No dia em que te Vir feliz, a energia verdadeira e a alegria de viver voltar‑me‑ão.

Urbano, comovido, renovou a promessa que tinha feito, e como lhe era muito doloroso esforçou‑se por se distrair procurando fazer voltar a alegria à tagarelice do seu irmão, não levou muito tempo, e o duque não se fez rogar para voltar às suas grandes preocupações favoritas.

‑ Vamos! ‑ disse‑lhe, Vendo‑o sorrir ‑ dar‑me‑ás felicidade em tudo! Recordo‑me agora de que há alguns dias me sentia vivamente contrariado, o que me tornava aborrecido, desastrado, não via claro no meu espírito. Estava medonhamente estúpido. Tenho a certeza de que vou agora recuperar todas as minhas faculdades.

‑ Ainda alguma história de mulher? ‑ perguntou o marquês dominando uma Vaga e súbita inquietação.

‑ E que queres tu que seja? Preocupo‑me mais talvez do que deveria com essa Saint‑Geneix.

‑ Mas não podes fazê‑lo. ‑ replicou vivamente o marquês ‑ Não o juraste a nossa mãe?... Ela disse‑mo... Enganá‑la‑ias tu?...

‑ Não, de modo nenhum: mas desejaria ser forçado a enganá‑la!...

‑ Forçado? Não te compreendo.

‑ Meu Deus! Vou dizer‑te em que ponto estou.

E o duque contou a seu irmão como lhe tinha mentido a princípio dizendo‑se apaixonado por Carolina, na louvável intensão de o fazer apaixonar‑se por ela. Vendo que nada conseguia, concebera o plano de se fazer amar sem amar ele próprio, e como enfim se tinha enamorado seriamente sem certeza de ser correspondido. Acrescentou, porém, que contava com a vitória se tivesse a coragem de não se declarar, e narrou tudo isto em termos tão delicados ou tão ambíguos que não permitiam ao marquês repreendê‑lo sem se tornar ridículo. Depois, quando este, recuperando a presença de espírito, tentou falar‑lhe do repouso de sua mãe, da dignidade da sua casa, não ousando, na perturbação em que estava, dizer o que quer que fosse a respeito de Carolina, o duque, receando subitamente que o irmão julgasse do seu dever adverti‑lo, jurou que nada faria para seduzir, mas que se ela espontaneamente se lhe viesse lançar nos braços, sem condições nem cálculo, era capaz de a desposar. Seria sincero desta vez? Sim, como o era sempre que o desejo lhe fazia parecer possível tudo o que a paixão lhe fazia depois sofismar.

Como falava com uma certa convicção, o marquês não ousou pronunciar‑se contra essa recidiva inesperada do seu estranho projecto. Sabia que a marquesa não contava que pudesse fazer um bom casamento aquele de seus filhos que já não oferecia garantias de carácter, o duque provava‑lhe com raciocínios cerrados que era o senhor do seu futuro e que lhe era permitido ter ambição.

‑ Vês ‑ disse ele, terminando ‑ que se trata de coisas muito sérias. Quis ainda uma Vez armar um laço, confesso, reserVando‑me o direito de o não aproveitar, o que seria uma brincadeira sem consequências. Deixei‑me prender nas minhas próprias redes, e sofro muito, não te peço que me ajudes, mas proibo‑te em nome da amizade, que exerças a tua influência sobre quem quer que seja em torno de nós, porque se assustares a menina de Saint‑Geneix, far‑me‑ás talvez exasperar, e não respondo por nada, ou se consegues fazer‑me renunciar a ela será ela talvez que, desesperada, fará alguma loucura que a prejudicará no espírito de nossa mãe. Visto que as coisas chegaram a tal ponto que só podem resolver‑se pelo imprevisto, não te envolvas em nada, e fica certo que procederei, em qualquer hipótese, de forma a tranquilizar a tua delicadeza e a não perturbar nem a vida de nossa mãe nem as conveniências da hospitalidade que tu me concedes.

 

Durante esta conversa tão penosa para o marquês, a sr.a de Villemer fazia a Carolina confidências que, sem a perturbarem muito, não a alegravam todavia. Toda entregue ao seu projecto, deixava perceber à confidente um fundo de ambição de família que esta não suspeitava. O que ela tinha amado e admirado na marquesa, era o desinteresse fidalgos, a resignação na perda da opulência e no facto consumado, que tanto a tinham impressionado, mas foi‑lhe preciso reconhecer que toda essa filosofia magnânima era um belo fato trajado com elegância. A marquesa não era hipócrita pensando assim, uma pessoa tão comunicativa não tinha premeditação, cedia à impressão do momento e não se julgava ilógica dizendo que preferia morrer de fome a ver um dos filhos praticar uma indignidade para se enriquecer, mas que morrer de fome era demasiado duro, que o seu estado presente era uma vida de privações, a do marquês um purgatório e, enfim que se não pode ser feliz quando, embora com minha honra e o orgulho duma consciência sem mancha, se não tem pelo menos, duzentas mil libras de renda.

Carolina julgou que poderia fazer algumas objecções gerais que a marquesa combateu vivamente. ‑ Não devem ‑ disse ela ‑ os filhos das famílias de alta linhagem ter a primazia sobre todas as outras classes da sociedade? É uma religião que devia ter a menina, que é duma família nobre. Deveria compreender que as pessoas de elevada jerarquia têm necessidades legítimas, obrigatórias talvez, de grande liberdade, e que, quanto mais elevada é a posição dessas pessoas, mais lhes é necessária uma fortuna ao nível do lugar que naturalmente ocupam. Declaro‑lhe que sofro amargamente quando vejo o marquês fazer pessoalmente as contas com os seus rendeiros, preocupar‑se com certos desperdícios inevitáveis e descer até, em caso de necessidade, às minúcias da cozinha. Para quem conhece a nossa miséria, é admirável o cuidado que ele tem para que nada me falte, mas para aqueles que não fazem dela uma ideia justa, passamos certamente por avarentos, e colocamo‑nos ao nível da pequena burguesia!

‑ Visto que a sr.a marquesa sofre muito ‑ disse Carolina ‑ com o que eu considero uma vida abastada, muito digna, muito honrosa mesmo, Deus permita que esse casamento se realize, porque lhe seria preciso fazer nova provisão de coragem em caso de obstáculo. Todavia se me fosse permitido ter uma opinião...

‑ Devemos sempre ter opiniões. Fale, minha querida filha.

‑ Pois bem! diria que o mais prudente e mais seguro seria aceitar o presente como mais suportável, sem por esse motivo renunciar ao casamento em questão.

‑ E que importam as decepções, minha pobre filha? Receia‑as por mim? Não matam, e as esperanças fazem viver. Mas porque duvida que as minhas se realizem?

‑ Oh! não duvido, ‑ respondeu Carolina ‑ porque duvidaria, se a menina de Xaintrailes é tão perfeita como dizem?

‑ É perfeita, bem o vê, porque se declara pelo mérito, contemplando‑se com a rialeza própria.

‑ Não me parece que seja muito difícil! ‑ pensou Carolina. Mas nada mais quiz dizer e a marquesa continuou:

‑ De mais a mais uma Xaintrailes! Compreende, minha querida, o prestígio dum tal nome? Não vê que uma pessoa de sangue tão ilustre, quando é grande, deve sê‑lo em toda a extensão da palavra? Vamos, parece ter notado que não está bem convencida da superioridade que nos vem da raça. Tem talvez filosofado um pouco a este respeito! Desconfie desses preconceitos novos e das pretensões dos senhores fidalgos de fresca data.

Carolina sentiu-se melindrosa com a admiração que a marquesa professava pelo patriciado. Achou meio de mudar de conversa, mas durante o jantar esteve preocupada com a ideia de que a sua Velha amiga, e sua terna mãe adoptiva, a fazia descer sem cerimónia para as raças secundárias. Julgava poder falar assim diante duma filha de fidalgo, adepta, por espírito de classe, da doutrina dos bons princípios, mas Carolina pensava com razão que a sua nobreza era insignificante, contestável talvez. Os seus antepassados, antigos almotaceis de província, tinham ‑sido enobrecidos por Luís XVI, seu pai usava sem grande Vaidade o título de cavaleiro. Via pois claramente que o desdém da marquesa pelas classes inferiores era uma questão de pequenas diferenças, e que uma rapariga pobre e de pequena nobreza era, para ela, duas vezes inferior a todos os respeitos.

Esta descoberta não despertava grande susceptibilidade no espírito da menina de Saint‑Geneix, mas a sua equidade natural revoltava‑se contra semelhante injustiça, tão solenemente imposta como um dever à sua convicção.

‑ Então, a minha vida de miséria, dedicação, coragem e contentamento apesar de tudo, a minha renúncia voluntária a todas as alegrias da vida nada são perante o heroísmo de uma Xaintrailles que admite a ideia de se contentar com duzentas mil libras de renda para casar com um homem perfeito? É por ela ser uma Xaintrailles que a sua escolha se torna sublime, e porque eu não sou mais que uma Saint‑Geneix, que a minha imolação é uma coisa Vulgar e obrigatória?

Carolina repeliu esses pensamentos dum justo orgulho ofendido, mas na sua expressiva fisionomia ficou um ligeiro sulco. A beleza fresca e real nada pode ocultar. O duque apoderou‑se desse indício e julgou‑se a causa dum pesar secreto. E o erro aumentou quando viu que, a despeito dos esforços que fazia para se sustentar no diapasão da animação ordinária, a menina de Saint‑Geneix estava cada vez mais preocupada. A verdadeira causa era esta: Carolina havia, absolutamente, como de costume, dirigido a palavra ao marquês por questões de serviço, e ele, ordinariamente tão delicado, obrigara‑a a repetir. Pensou que estivesse preocupado, mas duas ou três Vezes encontrou o seu olhar frio, altivo, quase desdenhoso. Gelada de surpresa e de terror sentiu‑se completamente abatida e foi obrigada a atribuir o seu estado moral a uma enxaqueca.

O duque teve uma vaga suspeita da verdade com respeito a seu irmão, mas essa suspeita dissipou‑se quando viu que o marquês recuperava a alegria. Não adivinhou as alternativas de abatimento e de reacção por que passava essa alma perturbada, e julgando poder ocupar‑se impunemente de Carolina:

‑ Sofre, ‑ disse‑lhe ‑ vejo que sofre. Mamã, tenha cuidado, há algum tempo que a menina de Saint‑Geneix está muitas Vezes pálida.

‑ Julgas isso? ‑ respondeu a marquesa, olhando para Carolina com interesse. ‑ Está indisposta querida filha? Não mo oculte!

‑ Sinto‑me perfeitamente bem ‑ respondeu Carolina. ‑ O meu incómodo de hoje é causado por um pouco de sol, mas não é nada.

‑ Sim! com certeza, é alguma coisa ‑ replicou a marquesa, examinando‑a ‑ e o duque tem razão. Está muito mudada. Deve ir tomar um pouco de ar imediatamente, ou retirar‑se para o seu quarto talvez. Está aqui muito calor. Espero um grande número de vizinhos esta tarde. Não tenho necessidade de si, dou‑lhe feriado.

‑ Sabe o que lhe faria bem? ‑ disse o duque à pobre Carolina, vivamente contrariada com a atenção de que era objecto ‑, Deveria montar a cavalo. Esse pequeno quadrúpede de que lhe falei há pouco é muito manso e tem boas pernas. Quer experimentá‑lo?

‑ Só? ‑ disse a marquesa ‑ Um cavalo que não está ensinado?

‑ Estou certo que a menina de Saint‑Geneix se divertirá ‑ disse o duque. ‑ Sei que é corajosa, que nada lhe mete medo. Além disso Vigiá‑la‑ei, e respondo por ela.

Insistiu de tal maneira que a marquesa perguntou a Carolina se realmente esse passeio a cavalo seria de seu gosto.

‑ Sim ‑ respondeu ela, levada pela necessidade de sacudir a opressão que a pungia. ‑ Sou bastante criança para que isso me divirta, mas será melhor noutra ocasião. Não desejava dar‑me em espectáculo às pessoas que a senhora marquesa espera, tanto mais que a minha estreia será provavelmente muito desastrada.

‑ Pois bem! Irá para o parque ‑ disse a marquesa: ‑ tem árvores suficientes para esconder esse primeiro ensaio, mas quero que alguém a acompanhe a cavalo: o Velho André por exemplo. É bom cavaleiro e tem um cavalo manso pelo qual poderá trocar o seu, se for muito fogoso.

‑ Sim, sim ‑ disse o duque. ‑ André montará a velha Branca. Eu vigiarei a partida, e tudo correrá bem.

‑ Mas um selim de mulher? ‑ disse o marquês, indiferente na aparência a esse projecto hípico.

‑ Há um, vi‑o na cocheira ‑ respondeu vivamente o duque ‑ vou mandar imediatamente arranjar todas essas coisas.

‑ E vestido de amazona? ‑ perguntou a marquesa.

‑ Qualquer saia comprida servirá ‑ disse Carolina, impelida subitamente a arrostar com o ar malévolo do marquês e a subtrair‑se à sua presença.‑ A marquesa autorizou‑a a fazer os preparativos necessários, e apoiada em seu filho mais novo, foi receber as visitas‑que chegavam.

Quando a menina de Saint‑Geneix desceu a escada de caracol da torre contígua ao seu quarto, achou o cavalo já selado, seguro pelo duque em pessoa, diante da pequena porta em ogiva que dava para o pátio. Já ali se encontrava também André, montado numa velha égua de magreza proverbial e miseravelmente equipada, porque a cavalariça estava em completa desordem. A situação não permitia mais do que o necessário, e mesmo o necessário não houvera ainda tempo de se organizar. O marquês, mais embaraçado pela falta de dinheiro do que queria confessar, deixava acreditar na sua imprevidência, e o duque adivinhando a verdade, declara que, pela sua parte, preferia caçar a pé para combater a obesidade.

Arrear o Jacquet (era o nome do potro da lavoura elevado, havia horas, à dignidade de cavalo de sela) não era negócio de pouca monta, e André desorientado com esta fantasia, não teria conseguido encontrar o selim de senhora nem pô‑lo em estado de servir. Fora o duque que tudo preparara por suas próprias mãos, num quarto de hora, com uma presteza e habilidade extraordinárias. Carolina encontrou‑o banhado em suor, e ficou muito confusa vendo‑o segurar‑lhe o pé para a ajudar a montar, arranjar a barbela e apertar a cilha como um jockey de profissão, rindo da discordância de todas essas coisas, mas resignando‑se alegremente e vigiando tudo com mil atenções duma prudência fraternal.

Quando a menina de Saint‑Geneix, depois de lhe ter cordealmente agradecido, lançou o cavalo a trote, suplicando‑lhe que se não inquietasse com ela, o duque mandou embora o criado, e saltando agilmente sobre a égua, chegou‑lhe as esporas, e seguiu resolutamente Carolina sob as árvores do parque.

‑ Como? É o sr. duque? ‑ perguntou ela, fazendo parar o cavalo depois da primeira corrida ‑ o sr. duque montado nesse animal e dando‑se ao incómodo de me acompanhar! Não, não é possível, não o consentirei, voltemos.

‑ Ora essa! ‑ respondeu ele ‑ Tem medo de estar só comigo? Não nos temos encontrado nestas áleas a toda a hora, e importunei‑a porventura alguma vez com a minha eloquência?

‑ Não, de certo! ‑ disse Carolina com inteira confiança ‑ Não tenho dessas ideias, bem sabe, mas é um suplício para o sr. duque, montar esse animal.

‑ Está bem no seu?

‑ Perfeitamente.

‑ Então, tudo vai pelo melhor. Agrada‑me muito cavalgar a Branca. Vejamos! não faço tão boa figura como se montasse um cavalo de raça? Abaixo os preconceitos e divirtamo‑nos a correr!

‑ Mas se a égua não aguentar a corrida?

‑ Ora! Aguentará. E se me quebrar as costelas, considerar‑me‑ei muito feliz por ser ao seu serviço.

O duque disse esta lisonja com um tom tão alegre que não podia assustar Carolina.

Iniciaram o galope e deram a volta ao parque com muita intrepidez. Jacquet era excelente e não tinha caprichos, demais a menina de Saint‑Geneix conhecia muito bem a equitação, e o duque notou que era tão graciosa como hábil e conservava toda a serenidade. Improvisara uma saia comprida desfazendo uma bainha, Vestira um casaco de pano branco, e o pequeno chapéu de palha que pusera sobre os loiros cabelos, desenrolados pela corrida, ficava‑lhe maravilhosamente. Estava tão linda, animada pelo prazer de galopar, que o duque, seguindo com o olhar a elegância do seu busto e o brilhante sorriso da sua cândida boca, sentia deslumbramentos.

- Leve o diabo a palavra de honra que me deixei arrancar sem desconfiança! ‑ pensou ‑ Quem me diria a dificuldade que eu havia de ter em a sustentar?

Mas era preciso que fosse Carolina a primeira a render‑se, e foi em vão que o duque lhe fez dar, a passo, uma outra Volta ao parque, para deixar respirar os cavalos, conversou com uma tranquilidade de espírito que não admitia ideia alguma de sofrimento exaltado.

‑ Ah! ele é isso? ‑ pensou na ocasião em que recomeçavam a galopar ‑, Tu julgas que Vou deslocar as articulações nesta besta do Apocalipse para conversar nem mais nem menos que sob o olhar materno? Para cá não pega! Vou contristar a tua tranquila gratidão com uma retirada que te fará reflectir.

‑ Minha querida amiga, ‑ disse a Carolina, permitia‑se algumas Vezes este tratamento num tom de simplicidade amável ‑ está bem segura do Jacquet, não é Verdade?

‑ Perfeitamente segura.

‑ Obedece bem ao freio? Não tem caprichos?

‑ Nenhum, absolutamente.

‑ Muito bem! Então, se me dá licença, deixo‑a, e mando‑lhe o André em meu lugar.

‑ Sim, sim! ‑ respondeu Carolina ‑ e mesmo não mande ninguém. Darei ainda uma volta e entrego depois o cavalo ao André. Acredite! Terei muito prazer em dar uma corrida sozinha, e custa‑me vê‑lo sacudindo dessa forma.

‑ Oh! não é isso. ‑ respondeu o duque, resolvido a forçar a situação ‑ Não tenho ainda idade para recear a má andadura dum cavalo, mas lembrei‑me que a Arglade chega hoje.

‑ Hoje, não! Amanhã.

‑ Parece‑me que se engana ‑ disse o duque com Intenção.

‑ Ah! talvez o sr. duque esteja melhor informado que eu.

‑ Talvez, querida amiga! A sr.a de Arglade...

Enfim, basta...

‑ Ah! realmente? ‑ respondeu Carolina, rindo ‑ Não sabia. Vá depressa então, eu fujo, e agradeço‑lhe muito reconhecidamente a sua complacência para comigo.

Ia dar de rédea ao cavalo, mas o duque reteve-a.

‑ Não é delicado o que faço, não é assim?

‑ É mais que delicado, é muito amável.

‑ Ah! Estava aborrecida da minha companhia?

‑ Não é isso que quero dizer. Penso que a sua indelicadeza é uma prova de confiança que muito lhe agradeço.

‑ Acha bonita, a sr.a de Arglade?

‑ Muito bonita.

‑ Que idade tem ela ao certo?

‑ É pouco mais Velha que eu. Estivemos juntas no colégio.

‑ Bem sei. Eram muito amigas?

‑ Não muito: mas depois testemunhou-me muito interesse nas minhas infelicidades.

‑ Sim, foi ela que a fez vir para nossa casa. Porque se detestavam no colégio?

‑ Não nos detestávamos, não éramos muito amigas, eis tudo.

‑ E agora?

‑ Agora é bondosa para comigo e eu sou lhe afeiçoada por consequência.

‑ Então afeiçoa‑se a todas as pessoas que a tratam com bondade?

‑ E não é natural?

‑ Nesse caso também posso contar com a sua afeição, porque me parece que não tenho sido mau para si?

‑ Certamente, o sr. duque é muito bom, e eu estimo‑o sinceramente.

‑ Com que simplicidade diz estas coisas!... Ora Vamos a saber, não tenciona prejudicar‑me no conceito da sua amiguinha de Arglade?

‑ Prejudicá‑lo! Não conheço o vocabulário que o sr. duque costuma empregar.

‑ Sim, é Verdade, perdão. É que... sabe... ela é desconfiada, poderá muito bem interrogá‑la. Não deixará de lhe dizer que nunca lhe fiz a corte, não é assim?

‑ Oh! quanto a isso esteja certo que lhe direi a verdade ‑ respondeu Carolina, partindo.

E o duque ouviu‑a rir enquanto galopava.

‑ Então ‑ pensou ele, - menti, e em pura perda. Fiz uma boa tolice!... Ela não ama ninguém... ou tem em qualquer parte um namoradozinho de reserva para quando puder arranjar mil escudos para montar casa. Pobre rapariga! se os tivesse dava‑lhos de boa vontade!.. Mas fui muito ridículo. E ela notou‑o de certo. Talvez se vá rir de mim com o seu apaixonado escrevendo‑lhe às escondidas, porque escreve muito. Se eu tivesse a certeza!... Mas dei a minha palavra de honra.

O duque afastou‑se tentando zombar de si próprio, mas preocupado e quase triste.

Quando deixava a sombra das árvores, viu um homem que se ocultava com precaução, mas, como anoitecera, só pôde notar que ele procurava penetrar furtivamente no mais denso do arvoredo.‑Olha! - Olha! ‑ pensou, - é talvez o apaixonado em questão que vem fazer uma visita misteriosa! Mas, à fé de quem sou! Hei‑de desenganar‑me. Vou saber o que é!... Apeou‑se, deu uma chicotada na Branca, que se não fez rogar para tomar o caminho da cavalariça, e deslizando cautelosamente por sob as árvores, tomou o caminho que Carolina seguira. Encontrar o homem na mata, não era muito possível, e arriscava‑se a despertar‑lhe a atenção. Caminhar sem ruído na sombra, ao longo duma álea, e Ver o que se passasse no encontro dessas duas pessoas, era muito mais seguro.

Carolina já não pensava nele. Depois de se ter afastado suficientemente para não ouvir confidências pouco convenientes e que a tinham surpreendido da parte dum homem tão bem educado, metera o cavalo a passo, receando os ramos que não podia ver na obscuridade, e sentindo‑se mais inclinada a devanear do que a correr. Pesava‑lhe no espírito uma grande ansiedade. A atitude do marquês para com ela era inexplicável, quase ofensiva. Procurava a causa desse procedimento no mais recôndito da sua consciência, e nada encontrando que o explicasse, censurava‑se por se sentir tão preocupada. Talvez fosse sujeito a caprichos como as pessoas absorvidas por trabalhos importantes, e mesmo se lhe tivesse tornado antipática, não ia ele casar‑se, e a alegria da marquesa não seria bastante completa para que a pobre dama de companhia pudesse sem ingratidão retirar‑se? Pensava no futuro lembrando‑se de falar a Arglade que a ajudaria talvez a encontrar uma nova colocação, quando sentiu o cavalo parar bruscamente e viu junto de si um homem cuja presença a assustou.

‑ É o André? ‑ perguntou, sentindo que o cavalo cedia a mão conhecida. E como não ouvisse resposta e não distinguisse particularidade alguma: ‑ É o sr. duque? ‑ perguntou, com inquietação. - Porque me faz parar?

Ninguém respondeu, o homem havia desaparecido e o cavalo estava livre. Teve medo, um medo vago mas real, não ousou voltar‑se, e metendo Jacquet a galope dirigiu‑se para casa sem ver ninguém.

O duque estava a dez passos quando se deu este singular encontro. Nada viu, mas ouviu a voz assustada da menina de Saint‑Geneix na ocasião em que o cavalo parava subitamente. Adiantou o passo e achando‑se face a face com o desconhecido agarrou‑o pelos ombros, dizendo‑lhe: ‑ Quem é o senhor? O desconhecido debateu‑se Vigorosamente para se subtrair ao exame, mas o duque era duma força hércúlea, e arrastou o seu adversário para o meio da álea fora da sombra das árvores. Com Indizível surpresa reconheceu seu irmão.

‑ Meu Deus! Urbano! ‑ esclamou ele ‑ não te fiz mal? Parece‑me que não... Mas porque me não respondias?

‑ Não sei. ‑ disse o sr. de Villemer, muito comovido. ‑ Não reconheci a tua voz!... Falaste‑me! Por quem me tomavas então?

‑ Ah! palavra de honra, por um ladrão, muito simplesmente! Não assustaste a menina de Saint‑Geneix ainda agora?

‑ Assustei talvez o cavalo involuntariamente. Onde está ela?

‑ Fugiu, teve medo, não a ouves galopar em direcção a casa?

‑ Porque teve ela medo de mim? ‑ replicou o marquês, com singular amargura ‑ Não queria ofendê‑la...

E cansado de fingir acrescentou: ‑ Queria falar‑lhe unicamente.

‑ De quê? De mim?

‑ Sim, talvez. Desejaria saber se ela te amava.

‑ E porque lhe não falaste?

‑ Não sei: não pude dizer‑lhe uma palavra.

‑ Sofres?

‑ Sim, estou doente, muito doente hoje.

‑ Voltemos para casa, irmão ‑ disse o duque. ‑ Sinto que tens febre, e está a cair o orvalho.

‑ Não importa ‑ disse o marquês, sentando‑se num tronco de árvore. ‑ Queria morrer!

‑ Urbano! ‑ exclamou o duque, ferido por um súbito pensamento ‑ tu amas a menina de Saint‑Geneix...

‑ Eu amá‑la? Não é ela... não deve ser a tua mulher?

‑ Nunca, pois que tu a amas! Para mim era apenas um capricho, um passatempo, mas, tão Verdade como eu ser filho do meu pai, ela não tem por mim a menor Inclinação, nem sequer compreendeu as minhas subtilezas, é tão livre, tão altiva como no dia em que entrou para nossa casa.

‑ Porque a deixaste só no bosque depois de a teres para lá levado?

‑ Ah! tens ainda suspeitas depois do juramento que te fiz! É o amor que te enlouquece!

‑ Faltaste à tua palavra a propósito dela. Para ti, quando se trata de galantaria, os juramentos não têm Valor, bem sei... Se não fosse assim, poderíeis convencer tantas mulheres, Vós outros homens felizes?

Não sabeis Vós faltar a todos os compromissos? E é leal essa tática absurda, hábil, talvez, ‑ que sei eu de toda essa comédia? ‑ para a conquistares pela fascinação, pelo despeito, por todos os pontos fracos ou maus da natureza na mulher? Há porventura alguma coisa que tu respeites? Não é a virtude, na tua maneira de Ver, uma enfermidade de que é preciso curar uma pobre simplória sem amparo e sem experiência? Não consideras tu o abismo em que querias Vê‑la lançar‑se voluntariamente, como o estado racional, fatal ou feliz da rapariga sem dote e sem antepassados? Vejamos, não zombaste de mim ainda esta manhã, querendo conVencer‑me que casarias com ela? E Vens agora dizer-me: «És tu que a amas! Para mim era uma fantasia, um passatempo, um capricho». Ah! é horrível a tua vaidade de libertino! Corrompe tudo quanto se lhe aproxima! O seu olhar mancha uma mulher, e para mim é já demasiado que ela tenha sofrido o ultrage dos seus pensamentos. Já não a amo!

Tendo assim falado ao irmão, pela primeira vez na sua vida, o marquês levantou‑se e afastou‑se dele rapidamente, com uma espécie de ódio sombrio e de maldição sem remédio.

O duque, fora de si, ergueu‑se também para lhe pedir explicações. Deu mesmo alguns passos para o seguir, mas parou bruscamente, e retrocedendo deixou‑se cair no lugar que seu irmão tinha deixado. Debatia-se em tremendo combate, irritado, furioso, sentia que a pessoa do marquês lhe era sagrada, não compreendia bem os seus próprios erros, mas sentia‑se esmagado, a seu pesar, pela linguagem da Verdade. Torcia as mãos convulsivamente e grandes lágrimas de raiva e de dor lhe corriam pelas faces.

André Veio procurá‑lo da parte de sua mãe. As Visitas haviam‑se retirado, mas chegara a sr.a de Arglade. Admiravam‑se de o não Verem. A marquesa, sabendo que ele havia montado a Branca, receava que o desgraçado animal tivesse ficado esmagado sob o seu peso.

O duque seguiu maquinalmente o criado e ao entrar em casa:

‑ Onde está o sr. marquês? ‑ perguntou.

‑ Nos seus aposentos, senhor duque. Vi‑o entrar.

‑ E a menina de Saint‑Geneix?

‑ Recolheu‑se também ao seu quarto, mas a sr.a marquesa mandou‑lhe participar a chegada da sr.a de Arglade, e sem dúvida vai descer.

‑ Está bem. Diga ao sr. marquês que desejo falar‑lhe. Dentro de dez minutos subirei aos seus aposentos.

 

A sr.a de Arglade era casada com um alto funcionário superior da província. Fora no Sul que conseguira fazer‑se apresentar em casa da sr.a de Villemer, quando a marquesa residia, durante o Verão, numa importante propriedade, Vendida depois para pagar as dívidas de seu filho mais velho.

A sr.a de Arglade era ambiciosa, dessa ambição mesquinha e perseverante de que algumas esposas de funcionários são espécimens bastante notáveis. Elevar‑se para brilhar e brilhar para se elevar, era o pensamento, o sonho, a única faculdade e o único princípio desta senhora. Rica e sem nobreza, levara o seu dote a um fidalgo arruinado para servir de caução a um cargo nas finanças e restaurar o brilho da sua casa, tendo compreendido muito bem que em tais condições de existência, o melhor meio de adquirir grande fortuna, era começar por ter uma razoável e dispendê‑la com largueza. Gorda, activa, bonita, esperta e astuta, considerava uma certa dose de garridice como um dever da sua posição, e vangloriava‑se intimamente de possuir essa ciência que consiste em prometer com os olhos mas nunca com a pena ou com os lábios, em despertar entusiasmos e nunca afeições, enfim, em conquistar as posições por surpresa, não mostrando ligar‑lhes a menor importância, e nunca descendo a solicitar. Para se achar bem apoiada, quando a ocasião o exigisse, por amigos úteis, introduzia‑se em toda a parte, visitava e recebia toda a gente em grande escolha, por bondade ou leviandade bem representada, enfim, penetrava habilmente nas casas mais severas, e sabia tornar‑se necessária em pouco tempo.

Foi assim que ela se insinuou quase na intimidade da sr.a de Villemer, a despeito das prevenções da nobre dama contra a sua origem e posição e contra as funções do marido, mas Leonia de Arglade alardeava uma falta absoluta de opiniões políticas e astutamente ia pedindo perdão a todos da sua nulidade e incapacidade a esse respeito, o que era o melhor meio de não melindrar ninguém e de fazer perdoar o zelo do marido pela causa que servia. Era alegre, leviana, fingindo‑se estúpida por vezes e rindo de si própria às gargalhadas, mas sorrindo interiormente da simplicidade dos outros, e conseguindo passar pela criança mais ingénua e mais desinteressada do mundo, quando todas as suas acções eram cruelmente e todas as negligências premeditadas.

Esta criança tinha vinte e oito anos mas não parecia ter mais de vinte e dois ou vinte e três, embora estivesse um pouco fatigada pelos bailes, soubera conservar tanta desenvoltura e simplicidade que não se percebia muito que engordava. Mostrava quando ria pequeninos dentes muito brilhantes, falava ciciando, e parecia louca por enfeites e divertimentos. Enfim, a ninguém inspirava desconfiança, e talvez que não fosse para temer, visto que o seu principal interesse era mostrar se boa e inofensiva.

Julgando conhecer muito bem as mulheres, o duque iludia‑se completamente a respeito de Leonia, considerava‑a estouvada e tinha o costume de lhe falar assim: ‑ É isso! Veio visitar minha mãe hoje, segunda‑feira, terça ou domingo, sétimo, sexto ou quinto dia do mês de novembro, setembro ou dezembro, com o seu vestido azul, cinzento ou cor de rosa, e vai dar‑nos a honra de cear, jantar ou almoçar conosco, com eles ou com os outros.

O duque não se enamorara. Ela divertia‑o e o seu procedimento todo cheio de amabilidades e zombarias era apenas uma tentativa sem importância que Arglade parecia não perceber, e de que sabia muito bem defender‑se.

Quando chegou junto dela, o duque estava ainda muito preocupado, e a alteração da sua fisionomia impressionou a marquesa: ‑ Meu Deus! ‑ exclamou ‑ houve algum acidente?

‑ Nenhum, querida mamã. Tranquilize‑se, tudo correu muito bem, apanhei frio, mais nada.

Tinha frio com efeito, embora sentisse na fronte o suor da cólera e do pesar. Aproximou‑se do fogo que ardia à noite, em qualquer estação, no salão da marquesa, mas ao cabo dum momento, o hábito de se dominar, que é toda a ciência da sociedade, o fogo de artifício das palavras e o riso de Leonia dissiparam a amargura de que se sentia possuído.

A menina de Saint‑Geneix Veio abraçar a sua antiga companheira de colégio.

‑ Ah! mas a menina também está pálida. ‑ disse a marquesa a Carolina.

‑ Ocultam‑me alguma coisa! Houve um acidente, ia jurá‑lo, com esses malditos animais!

‑ Não, minha senhora, ‑ respondeu Carolina

‑ não houve acidente algum, juro‑lho, e para a tranquilizar, vou dizer‑lhe o que aconteceu: tive medo.

‑ Realmente! E de quê? ‑ disse o duque ‑ Suponho que não seria do seu cavalo?

‑ Talvez fosse do sr. duque! Vejamos. Foi o senhor que, para se divertir, fez parar o cavalo quando eu ia só, pela álea verde?

‑ Pois bem! sim, fui eu. ‑ respondeu o duque ‑ Quis Ver se era tão corajosa como parecia.

‑ E eu não o fui absolutamente nada! Fugi vergonhosamente.

‑ Mas não gritou, e não perdeu a cabeça, já é alguma coisa.

Contaram a Arglade a brincadeira da equitação. Ela pareceu, como de costume, prestar pouca atenção ao que lhe diziam, mas não perdeu uma palavra, e pensou imediatamente que o duque seduzira ou queria seduzir Carolina, e que essa combinação poderia, um dia ou outro, servir lhe de alguma coisa. O duque deixou as senhoras conversando e subiu aos aposentos de seu irmão.

A razão porque Carolina e Leonia não tinham sido muito amigas no colégio, fora a diferença de idade. Quatro anos estabelecem uma distância sensível na adolescência. Carolina não quisera dizer o verdadeiro motivo ao duque, receando que parecesse querer tornar mais velha a sua companheira, e além disso porque sabia que a maior parte das mulheres bonitas não gostam que se lhes recorde muito fielmente a idade. Deve mesmo notar‑se que durante todo o tempo que se demorou em SéVal, a sr.a de Arglade se fez passar pela mais nova das duas e que Carolina aceitou como boa rapariga esse erro de memória e não o desmentiu.

Carolina conhecia pois muito pouco a sua protectora, não a tornara a encontrar desde que, pertencendo ainda à classe das pequenas, vira sair do colégio a menina Leonia Leconte, que, radiante por casar com um fidalgo, não tivera saudades de ninguém, mas que, astuta já e calculista, fizera as mais afectuosas despedidas a toda a gente. Nessa época, Carolina e Camila de Saint‑Geneix, meninas nobres e com fortuna, podiam servir para em qualquer dia se reatarem relações. EscreVeu‑lhes pois muito sentidamente quando soube da morte do pai. Na resposta, Carolina não lhe ocultou que ficava não só órfã, mas arruinada... A sr.a de Arglade não cometeu o erro de abandonar a sua amiga na desgraça. Outras companheiras de colégio com quem convivia mais, disseram‑lhe que as Saint‑Geneix eram encantadoras e que certamente, com a sua educação e beleza, Carolina faria, apesar de tudo, um bom casamento. Palavras de jovens senhoras sem experiência! Leonia pensou bem que se enganavam, mas podia tentar a experiência de casar Carolina, e achar‑se por essa circunstância envolvida em negociações de confiança e em conferências íntimas com diversas famílias. Só pensou desde então procurar saber particularidades, estender por toda a parte as suas relações, e obter confidências parecendo fazê‑las. Quis leVar Carolina para sua casa na província, oferecendo‑lhe, delicada e graciosamente, um abrigo e uma família. Carolina, muito comovida com tanta bondade, respondeu que não abandonava a irmã e não queria casar‑se, mas que, se a sua situação se tornasse demasiado penosa, recorreria ao generoso coração de Leonia para que lhe procurasse uma modesta colocação. Desde então Leonia, sempre pronta em promessas e elogios, reconhecendo que Carolina não compreendia a vida de expedientes, deixou de se ocupar dela até ao dia em que algumas antigas amigas, que talvez a lastimassem mais sinceramente, lhe fizeram saber que ela procurava um lugar de professora em alguma casa respeitável, ou de leitora junto de alguma Velha senhora inteligente. Leonia gostava de proteger, tinha sempre alguma coisa que pedir para alguém, era uma ocasião para se mostrar e agradar. Achava‑se então em Paris, apressou‑se mais que as outras, e indagando sempre, encontrou a marquesa de Villemer, que despedira precisamente a sua leitora, mas que procurava uma velha por causa do sr. duque, que gostava demasiado das novas. A sr.a de Arglade fez‑lhe notar os inconvenientes da idade que haviam tornado Ester rabujenta. Diminuiu muito também à mocidade e beleza de Carolina. Era uma rapariga duns trinta anos, que fora bonita, mas que, tendo sofrido, devia estar avelhentada. Depois, escreveu a Carolina informando‑a a respeito da marquesa, pedindo‑lhe que se apresentasse o mais depressa possível, e oferecendo‑lhe partilhar os aposentos onde costumava hospedar‑se em Paris.

Já vimos que Carolina a não encontrou, se apresentou pessoalmente à marquesa, que ficou surpreendida e encantada com a sua beleza e sinceridade e conseguiu mais pelo ascendente e encanto pessoal do que Leonia esperava.

Vendo Leonia gorda, taful e astuta, mas conservando as suas maneiras de criança e mesmo exagerando o cicio infantil, Carolina ficou admirada e pensou imediatamente que tudo aquilo era afectado, tomou porém rapidamente o seu partido com benevolência e partilhou o erro de todos. A sr.a de Arglade foi encantadora para ela, tanto mais que tinha já interrogado a marquesa a seu respeito, e sabia que estava bem segura nas boas graças da Velha senhora. Esta declara‑lhe que Carolina era perfeita sob todos os pontos de Vista, alegre e sensata, franca e meiga, duma inteligência excepcional e do mais nobre carácter. Agradecera calorosamente à sr.a de Arglade o ter‑lhe encontrado essa pérola do Oriente, e Leonia dissera consigo, «Ainda bem! vejo que Carolina me poderá ser útil, que já o é. Não se deve desdenhar nem desprezar ninguém». E encheu‑a de carícias e de lisonjas que pareciam tão ingénuas como efusões de colegial.

Antes de subir ao quarto de seu irmão, o duque tinha resolvido provocar uma reconciliação. Passeou durante cinco minutos no pátio. Sentia ainda ímpetos de cólera, e receava não ser senhor de si se o marquês renovasse a reprimenda. Decidiu‑se enfim, subiu e atravessou um comprido vestíbulo, ouvindo o sangue bater tão fortemente nas fontes que lhe abafava o ruído dos passos. Urbano estava só ao fundo da biblioteca, grande divisão de estilo ogiVal e abóbadas elegantes, que um pequeno candeeiro iluminava fracamente. Não lia, mas, sentindo chegar o duque, colocara um livro diante de si, não querendo dar a conhecer que não estava em estado de trabalhar.

O duque parou para não o examinar antes de lhe dirigir a palavra. Vendo‑o tão pálido e com os olhos tão cavados pela dor sentiu‑se profundamente comovido. Ia estender‑lhe a mão, quando ele se levantou e lhe disse num tom grave: ‑ Meu irmão: ofendi‑o há pouco. Fui injusto provavelmente e em todo o caso não tinha o direito de o repreender, pois que eu só amei uma mulher na minha Vida, me tornei culpado da sua perda e da sua morte. Reconheço pois o absurdo, a dureza, e a Vaidade das minhas palavras, e peço‑lhe sinceramente perdão.

‑ Ainda bem! Agradeço‑te de toda a minha alma, - respondeu Caitano, apertando‑lhe as duas mãos, - prestas‑me um grande serviço, porque estava resolvido a pedir‑te desculpa. Se sei de quê, o diabo me leve! Mas lembrei‑me que lutando contigo te excitei os nervos. Magoei‑te talvez, tenho a mão pesada... Porque me não falaste?... E depois... e depois... Ah! fiz‑te sofrer muito, e talvez durante muito tempo sem o saber, mas não podia adivinhar... Deveria contudo tê‑lo feito, e disso te peço sinceramente perdão, meu pobre irmão... Ah! porque não tiveste confiança em mim depois do que tínhamos jurado?

‑ Ter confiança em ti! ‑ replicou o marquês ‑ Então não vês que é essa a minha maior necessidade, o meu mais ardente desejo e que a minha cólera era apenas pesar?... Chorava essa confiança, chorava com lágrimas de sangue! Restitui‑ma, não posso viver sem ela.

‑ Que devo fazer? Vejamos, diz!... Estou pronto para a prova do ferro e do fogo. Só te peço que me dispenses da prova da água. Sabes que não simpatiso nada com a água...

‑ Ah! brincas sempre, bem vês!

‑ Brinco, brinco... porque é a minha maneira de estar contente, e visto que me conservas a tua amizade, o resto nada vale. E demais o que há de tão grave?... Amas essa encantadora rapariga? Fazes muito bem. Queres que não lhe fale, que não olhe para ela? Está dito e jurado, e se te não basta, parto amanhã ou imediatamente, se queres, montado na Branca. Não Vejo coisa melhor que te possa fazer!

‑ Não, não, não partas, não me abandones!... Não vês, Caitano, que morro?

‑ Ah! meu Deus! que dizes? ‑ exclamou o duque, levantando o quebra‑luz do candeeiro e examinando o rosto do irmão. Depois pegou‑lhe vivamente nas mãos e não achando o pulso tão rapidamente como desejava, apalpou‑lhe o peito, e sentiu as palpitações desordenadas e irregulares do coração do doente.

Essa afecção ameaçara gravemente a vida do marquês durante a infância. Desaparecera, depois, deixando uma compleição delicada, grandes incómodos nervosos, reações de força um pouco bruscas, mas em suma uma existência tão segura como muitas outras mais enérgicas na aparência, e realmente menos bem equilibradas, menos sustentadas por uma vontade sã e uma coragem firme.

Desta Vez, todavia, o mal antigo reaparecera, e mesmo com bastante Violência para justificar o terror de Caitano e produzir por momentos em seu irmão a prostracção e as sensações da agonia.

‑ Nem uma palavra a nossa mãe! ‑ disse o marquês leVantando‑se e indo abrir a janela ‑ Não é hoje que devo morrer, tenho ainda forças e não me deixo sucumbir. Onde vais?

‑ Ora essa! Montar a cavalo, e procurar um médico...

‑ Onde? Quem? Não há aqui quem conheça bastante o meu organismo para se não arriscar a matar‑me se empreender o meu tratamento em nome da sua lógica. Não tentes, se eu piorar, abandonar‑me a esses Esculápios da aldeia, e lembra‑te que uma sangria me levaria como o vento arrebata uma folha no outono. Fui bastante medicado, há dez anos, para que saiba hoje o que me é preciso. Olha, não duvides. ‑ acrescentou, mostrando ao duque uma gaveta da secretária em que havia pós doseados -, Possuo calmantes e excitantes de que sei Variar o uso, conheço perfeitamente o meu mal e o tratamento a fazer‑lhe. Fica certo que se puder restabelecer‑me, me restabelecerei, e que farei para Isso tudo o que pode fazer um homem que conhece a extensão dos seus deveres. Tranquiliza‑se. Se te falei no perigo de que estaVa ameaçado foi para que me perdoasses bem do intimo do teu coração uma exaltação que era sobretudo febril. Guarda segredo: não devemos assustar inutilmente nossa pobre mãe.

Se chegar a ocasião em que ela deva ser prevenida... senti‑lo‑ei e participar‑to‑ei. Mas agora tranquiliza‑te!

‑ Tranquilidade! mas és tu que dela necessitas, ‑ replicou o duque ‑ e eis‑te justamente apaixonado dessa maneira! Foi ela que, atacando esse pobre coração no moral, o despertou ao mesmo tempo fisicamente. É de amor, de felicidade, que tu precisas! Pois bem! nada está perdido... Queres que essa rapariga te ame? Amar‑te‑á. Que digo eu? Ama‑te, amou‑te sempre... desde que te conheceu. Agora recordo‑me... compreendo.

É a ti...

‑ Cala‑te, cala‑te! ‑ disse o marquês, caindo quase desfalecido na cadeira ‑ Não posso ouvir‑te...

abafo.

Mas após um instante de silêncio, durante o qual o duque o observava com inquietação, mostrou sentir‑se melhor, e disse, com um sorriso que restituiu à sua imóvel fisionomia todo o encanto da mocidade:

‑ É todavia verdade o que dizes! É talvez o amor e nada mais! Embalaste‑me com uma ilusão e eu entreguei‑me a ela como uma criança. Apalpa‑me agora o coração, está sossegado. O sonho passou por ele como uma suave brisa.

‑ Visto que te sentes melhor, ‑ disse o duque, depois de se ter assegurado de que estava realmente mais tranquilo ‑ devias fazer o possível por dormir. Fazes Vigílias espantosas. De manhã, o teu candeeiro está ainda aceso.

‑ E contudo,há muitas noites que não trabalho!

‑ Pois bem! Se é insónia, não levarás só, eu to prometo! Vejamos, vais deitar‑te, estender‑te sobre a cama.

‑ É impossível.

‑ Ah! sim, falta‑te o ar. Então sentas‑te e dormitarás. Ficarei junto de ti. Falar‑te‑ei dela até que já me não ouças.

O duque levou seu irmão até ao quarto, instalou‑o numa cadeira muito cómoda, amimou‑o como mãe ao filho querido, sentou‑se junto dele, apertando‑lhe uma das mãos nas suas. Toda a bondade da sua natureza reaparecia, e Urbano disse para lhe agradecer:

‑ O meu procedimento desta noite foi odioso! Dize‑me ainda outra vez que me perdoas.

‑ Faço mais: adoro‑te ‑respondeu Caitano ‑ e não sou eu só. Também ela pensa em ti neste momento.

‑ Meu Deus! Tu mentes, acalentas‑me com uma canção celeste, mas mentes. Ela não ama ninguém nem amará nunca!

‑ Queres que Vá procurá‑la e dizer‑lhe que estás seriamente doente? Aposto em como dentro de cinco minutos aqui estará.

‑ É possível! ‑ respondeu o marquês, docemente‑ É muito bondosa, muito delicada, mas eu sofreria mais reconhecendo que sentia compaixão... e nada mais!

‑ Ora! tu não entendes nada dessas coisas. A compaixão é o princípio do amor. Tudo deVe ter uma origem que não é ainda o meio nem o fim.

Se quiseres deixar‑te guiar por mim, prometo‑te que em oito dias...

‑ Ah! que mal me fazes! Se fosse tão fácil, como julgas, conquistar o seu amor, não o desejaria tão ardentemente!

‑E então desvanecer‑se‑ia a ilusão. Voltar‑te‑ia a tranquilidade. Já era alguma coisa.

‑ Seria a minha morte, Caitano! ‑replicou o marquês, animando‑se e encontrando novamente forças na voz ‑ Ah! que felicidade não me compreenderes! Mas há um abismo a separar‑nos. Tem cuidado, meu pobre amigo, com uma imprudência, com uma leviandade ou um erro da tua dedicação, podes matar‑me tão rapidamente como se te servisses duma pistola para me fazer saltar os miolos.

O duque sentia‑se embaraçado. Parecia‑lhe muito simples a situação desses dois seres mais ou menos inclinados um para o outro e separados unicamente por escrúpulos que tinham pouca importância aos seus olhos, mas, no seu modo de ver, o marquês complicava essa situação com delicadezas extravagantes. Se a menina de Saint‑Geneix se abandonasse sem paixão, sentiria a sua extinguir‑se, e, a perda dessa paixão que o matava, fulminá‑lo‑ia mais rapidamente. Era um beco sem saída que desesperava o duque, e onde todavia lhe era preciso seguir e respeitar a vontade do marquês. Continuando a conversar e tateando‑lhe com precaução todas as fibras da alma, reconheceu que a única alegria que seria possível dar‑lhe, era ajudá‑lo a adivinhar a afeição de Carolina e fazer‑lhe esperar o seu regresso paciente e delicado. Enquanto deixava errar a imaginação no delicioso jardim das primeiras emoções românticas e puras, o marquês embalava‑se em ideias suaves e deliciosas. Mas se lhe faziam entrever a hora em que lhe seria preciso tomar um partido e arriscar uma confissão, sentia como que o sombrio pressentimento de algum desastre enevitável, e, desgraçadamente para ele não se enganava. Carolina devia recusar e fugir ou, se aceitasse a sua mão, porque a honra do marquês não admitia a ideia de a seduzir, sucumbiria talvez a Velha mãe à perda das suas ilusões.

O duque mergulhara nas suas reflexões, porque Urbano começava a dormitar depois de lhe ter feito prometer que iria também descansar logo que o visse completamente adormecido. Caitano irritava‑se por não encontrar o meio de lhe ser Verdadeiramente útil. Desejaria prevenir Carolina, apelar para a sua bondade e para a sua estima, pedir‑lhe que dirigisse suavemente o moral do doente, poupando‑o ao receio do futuro, embalando‑o com esperanças Vagas e poéticos devaneios, mas seria lançar a pobre rapariga num declive perigoso, e ela não era tão criança que não compreendesse que arriscava a reputação e talvez o repouso.

O destino que tem muita influência nos dramas deste género, porque a sua acção encontra sempre almas predispostas a submeterem‑se‑lhe, fez o que o duque não ousou fazer.

 

Não pode o duque acarretar com a grande responsabilidade do absoluto segredo.

Confiava no médico, quem quer que fosse, dizendo sempre que não acreditava na medicina, e resolveu ir a Chambon para se entender com um rapaz que lhe parecera sabedor e prudente, quando um dia o consultara sobre uma leve indisposição. Explicar‑lhe‑ia, sob segredo, a situação do marquês, convidá‑lo‑ia a vir ao castelo no dia seguinte a pretexto de vender o pequeno campo encravado nas propriedades de Séval, e proceder‑se‑ia de maneira que o médico visse o doente, embora só lhe observasse a fisionomia e o aspecto, sem dar o seu parecer oficial, submeter‑se‑ia depois esse parecer ao sr. de Villemer, e talvez que ele consentisse em o seguir.

Enfim o duque, a quem a tranquilidade e o silêncio incomodavam, sentiu a necessidade de se agitar para iludir a inquietação. Calculou que em meia hora estaria em Chambon e que uma hora lhe era o suficiente para acordar o médico, falar com ele e Voltar. Podia e devia estar de volta antes que o irmão, que parecia agora tranquilo e adormecido, tivesse despertado do primeiro sono.

Deixou pois o quarto sem ruído, e saindo pelo jardim para não ser pressentido, desceu rapidamente até ao rio que atravessou numa passadeira de moínho para tomar um caminho que o levava directamente à cidade. Se fosse a cavalo e pela estrada, faria ruído e pouco tempo ganhava. O marquês não dormia tão profundamente que o não sentisse sair, mas como ignorava o seu projecto e não queria impedi‑lo de descansar, fingiu que não percebera. Era então um pouco mais de meia‑noite. A sr.a de Arglade seguira Carolina ao seu quarto para tagarelar ainda, depois de se ter despedido da marquesa.

‑ Então, queridinha ‑dizia‑lhe ela ‑está realmente tão satisfeita nesta casa, como diz? Seja franca comigo, diga se há alguém que a desgoste aqui. Ah! meu Deus! há sempre, e em toda a parte, qualquer pequena coisa que destoa!... Aproveite a ocasião... Exerço algum ascendente sobre a marquesa, sem o procurar é claro, mas ela gosta das pessoas alegres, e eu que tenho bom coração e nunca peço coisa alguma para mim, posso com todo o direito servir os meus amigos.

‑ É muito bondosa, minha amiga, ‑ respondeu Carolina‑mas todos me estimam e se alguma coisa me desgostasse, di‑lo‑ia muito simplesmente.

‑ Ainda bem, obrigada. ‑disse Leonia, tomando a promessa como feita a ela ‑ E o duque? O belo duque? Não a importunou?

‑ Muito pouco, e isso já acabou.

‑ Bem, muito estimo que assim seja. Sabe que depois de lhe ter escrito convidando‑a a vir para aqui, fiquei com remorsos? Não lhe falei do grande conquistador!

‑ Com efeito, parece que receou tocar nesse assunto.

‑ Recear, não, esqueci‑me completamente da sua existência, sou tão irreflectida! Depois pensei: «Meu Deus, oxalá que ele não incomode a Carolina com as suas assiduidades!» porque as tem para todas!

‑ Para mim não, Deus louvado.

‑ Então tudo Vai bem. ‑ respondeu Leonia, que não acreditou uma só palavra de quanto Carolina lhe dissera. Falou de modas, e de repente: ‑ Ah! meu Deus! ‑ disse ela ‑ que sono tenho! É a fadiga da Viagem! Até amanhã, querida Carolina. Costuma madrugar.

‑ Costumo sim, e a minha amiga?

‑ Eu, ai! não muito, mas logo que abrir os olhos... depois das dez, não é assim? Virei procurá‑la ao seu quarto.

E retirou‑se, resolvida a leVantar‑se muito cedo e errar como que ao acaso por toda a parte para surpreender as particularidades da intimidade familiar. Carolina acompanhou‑a aos aposentos que lhe eram destinados e Voltou para o seu pequeno quarto, que ficava bastante afastado do do marquês, mas cujas janelas voltadas para o pátio se achavam quase em frente das suas.

Pôs em ordem alguns livros, porque estudava muito e gostava de se instruir, e ouvindo dar uma hora da manhã fechava a persiana antes de se deitar, quando notou uma pancada seca na Vidraça que lhe ficava em frente, e olhando na direcção do ruído, viu cair em pedaços um vidro da janela iluminada do marquês.

Admirada com este acidente e com o silêncio que se lhe seguiu, Carolina pôs‑se a escutar. Tudo estava tranquilo, ninguém ouvira. Pouco a pouco percebeu porém uns sons confusos, a princípio gemidos débeis, depois gritos abafados e uma espécie de extertor.

‑ Estão a assassinar o marquês! foi o seu primeiro pensamento, porque os murmúrios sinistros partiam evidentemente do quarto que ele ocupava. Que devia fazer? Chamar, procurar, prevenir o duque, que habitava ainda mais longe?... Levaria muito tempo, e sob a ameaça de semelhante aviso, não era permitida a indecisão. Carolina mediu com a Vista a distância: eram vinte passos de relva a percorrer. Se alguns malfeitores se tivessem introduzido nos aposentos do sr. de Villemer, seria pela escada da torre do Grifo, que ficava em frente da torre da Raposa. Esses dois Vãos de escada tinham o nome dos emblemas grosseiramente esculpidos nas almofadas das portas. A escada da Raposa daVa serventia do lado dos aposentos de Carolina. Ninguém podia chegar mais depressa, e só pela sua presença podia fazer fugir os malfeitores. Na torrinha do Grifo havia de mais a mais uma pequena sineta. Pensou tudo isto enquanto atravessava, correndo, o espaço que a separava da porta que encontrou aberta. O duque saíra por lá, e como contava voltar por o mesmo caminho, não a fechara para não fazer ruído e porque não receava os ladrões, raça desconhecida no país.

Todavia Carolina, a quem esta circunstância mais confirmou na sua ideia, subiu a correr a escada de pedra em espiral.

Chegando à porta do quarto do marquês, parou hesitante. Tudo estava silencioso. Bateu, mas não obteve resposta. Não havia certamente assassinos em torno dela, mas então que queriam dizer esses gritos que ouvira? Um acidente qualquer, mas grave seguramente e que reclamava socorro imediato. Empurrou a porta, e encontrou o sr. de Villemer estendido no chão junto da janela, que não tivera a força de abrir, e de que tinha quebrado o vidro para respirar, sentindo‑se como fulminado por uma repentina sufocação.

O marquês não estava desmaiado. Tivera agonias mortais, mas agora voltavam‑lhe a respiração e a vida. Como tinha o rosto Voltado para a janela, não Viu entrar Carolina, mas ouviu‑a, e pensando que era o duque: ‑ Não tenhas medo, ‑ disse com voz fraca ‑ isto passa. Ajuda‑me a levantar, não tenho ainda forças.

Carolina correu para ele e levantou‑o com a energia duma vontade sobre‑excitada. Foi só depois de estar sentado que o marquês a reconheceu ou julgou reconhecer porque tinha a vista ainda velada, e os membros haviam contraído uma semi‑rigidez que lhos tornava insensíveis ao contacto dos braços e dos vestidos de Carolina.

‑ Meu Deus!... será um sonho?‑ perguntou fitando‑a com uma espécie de desvario ‑ Carolina! é a senhora?

‑ Sim, sou eu, ‑ respondeu ela ‑ ouvi‑o gemer... Que aconteceu, meu Deus! Que devo fazer?

Chamar seu irmão, não é Verdade? Mas tenho receio de o deixar só. Que sente? Que tem?

‑ Meu irmão! ‑ replicou o marquês, reanimando‑se até recuperar a memória ‑ Ah! foi ele que a trouxe aqui! Onde está?

‑ Não sei.

‑ Não o Viu?

‑ Não! Vou mandá‑lo chamar.

‑ Ah! Não me abandone!

‑ Não! não, mas como hei‑de socorrê‑lo?...

‑ Não é preciso nada! eu sei o que isto é. Não tenha receio, já estou tranquilo. E... a menina está aqui! e não sabia de nada?

‑ Nada absolutamente! Há alguns dias que me parecia desfigurado... Pensei que estivesse doente, mas não ousava inquietar‑me...

‑ E há pouco... chamei?... Quem? que disse eu?

‑ Nada! O sr. marquês quebrou um Vidro, quando caiu talvez! Não se feriu?

E, aproximando a luz, examinou as mãos do marquês. A direita tinha um golpe bastante profundo. Carolina lavou o sangue e tirando cuidadosamente todos os fragmentos de vidro, curou o ferimento. Urbano fitava‑a com a admiração enternecida dum homem que, levantado do campo de batalha, se sente em mãos amigas. Repetia dèbilmente:

‑ Meu irmão não lhe disse nada, não?

Ela não compreendia a insistência dessa pergunta que lhe parecia ter a fixidez duma ideia doentia, e para o distrair contou‑lhe, continuando a fazer o curativo, como o julgara lutando com assassinos.

- Era absurdo ‑ disse, esforçando‑se por o fazer rir, ‑ mas que queres? de tal forma se apoderou de mim esta ideia, que corri como louca, sem prevenir ninguém.

‑ E se realmente assim fosse, vinha procurar o perigo?

‑ Não pensei em mim, só me lembrei do sr. marquês e da sua mãe. E então tê lo‑ia ajudado a defender‑se, não sei como, nem com quê, mas teria encontrado alguma coisa... Vamos, está feito o curativo, e isto não é nada, mas o resto, que foi? Não quer dizer‑mo? Contudo é preciso que os seus amigos possam tratá‑lo, seu irmão?

‑ Sim, sim, o duque sabe, mas minha mãe ignora.

‑ Compreendo, o sr. marquês não quer... nada lhe direi, mas permita‑me que lhe preste os meus cuidados e que procure com o sr. duque o tratamento que devemos fazer‑lhe. Não serei importuna. Sei como se deve proceder para com os que sofrem. Fui enfermeira do meu pobre pai e do marido de minha irmã... Vejamos... não lhe parece que foi bom eu Vir aqui sem saber para quê, sem reflectir? Bem sei que se teria levantado um pouco mais tarde, sem ajuda de ninguém, mas é tão triste sofrer só. Sorri? Parece‑me que o sr. marquês está um pouco melhor. Oh! como me sinto feliz por o ver melhorar!

‑ Estou no paraíso! ‑ respondeu o marquês, e como não fazia ideia alguma das horas que eram: ‑ Demore‑se ainda um pouco! ‑ disse‑lhe ‑ Não é tarde.

Meu irmão que me tem feito companhia esta noite, Vai voltar.

Carolina não fez objecção alguma, nem sequer se lembrou do que o duque poderia pensar encontrando‑a ali, nem do que diriam os criados se a vissem voltar para o seu quarto. Em presença dum amigo em perigo não admitia o ultrage duma suspeita. Ficou.

O marquês queria ainda falar‑lhe, mas não tinha forças.

‑ Não fale. ‑ disse‑lhe ela ‑ Faça diligência por dormir, prometo‑lhe que não sairei daqui.

‑ Como? Quer que durma? Mas não posso... Quando adormeço falta‑me o ar.

‑ E no entanto está exausto de fadiga, fecham‑se‑lhe os olhos. Então! obedeça à natureza. Se tiver outra crise, ajudá‑lo‑ei a suportá‑la.

A confiança e a bondade de Carolina tiveram sobre o doente um efeito mágico. Adormeceu, e dormiu tranquilamente todo o resto da noite. Carolina sentara‑se junto duma mesa, e sabia agora qual era a doença do marquês e que cuidados se lhe deviam prestar, porque encontrou, sobre essa mesa, uma consulta com a explicação do tratamento simples e racional, assinada por um dos primeiros médicos de França. O marquês, para tranquilizar seu irmão sobre a maneira de se tratar, mostrara‑lhe esse documento que tinha a autoridade dum grande nome, e que ficara ali sobre o olhar de Carolina, que o estudava com toda a atenção. Reconheceu que o marquês tivera, depois que ela o conhecia, um regime completamente oposto ao que lhe era indicado: não fazia exercício, comia mal e dormia pouco. Não sabia se esta recaída seria mortal, mas se o não fosse prometia a si própria que para o futuro Vigiaria péla sua saúde, embora ele lhe mostrasse esse aspecto severo e sombrio que atribuía agora a um mal estar físico.

O duque voltou antes de nascer o sol. Não encontrara o médico, era‑lhe preciso ir procurá‑lo a Evreux, mas primeiro, quis ver o irmão. A aurora desenhava já no horizonte uma linha branca quando ele se dirigia cautelosamente ao quarto do marquês. Este, que dormia então Verdadeiramente, não o ouviu subir, e Carolina pôde ir esperá‑lo à escada para que não soltasse alguma exclamação de surpresa encontrando‑a ali. O duque ficou com efeito muito surpreendido quando a viu a caminho para ele com o dedo nos lábios. Não compreendeu o que se tinha passado. Julgou que o marquês lhe escondera a verdade e que ela soubera do seu amor e do seu pesar, e viera consolá‑lo.

‑ Ah! minha querida amiga! ‑ disse ele, pegando‑lhe nas mãos que levou aos lábios com Verdadeira afeição ‑ Esteja sossegada, ele disse‑me tudo. Veio, salvá‑lo‑á!

‑ Mas ‑ disse ela um pouco admirada ‑ se sabia que ele estava tão mal, como pôde deixá‑lo só esta noite? E se contava comigo, porque me não preveniu?

‑ Que se passou então? ‑ perguntou o duque, Vendo que se não compreendiam.

Carolina contou‑lhe em poucas palavras os acontecimentos, e como o duque, preocupado com o que ouvia, a acompanhava através do pátio, até à escada da Raposa, a sr.a de Arglade, que estava já levantada, Viu‑os por detrás da vidraça, passarem conversando em voz baixa, com um ar de intimidade misteriosa. Pararam diante da porta, e o duque contou ainda à menina de Saint‑Geneix a tentativa que fizera para trazer o médico. Carolina dissuadiu‑o dessa ideia. Entendia que a consulta que lera bastaria, e que seria imprudência seguir uma nova orientação quando a primeira dera tão bom resultado. O duque prometeu‑lhe conformar‑se com a sua opinião e ter confiança. A sr.a de Arglade viu‑o apertar a mão de Carolina e, voltando sobre os seus passos, subir a escada do Grifo.

‑ Muito bem! Sei o bastante ‑ pensou Leonia ‑ não preciso de ir passear ao orvalho, de que não gosto nada, e posso dormir até tarde. Esta Carolina!‑pensava antes de adormecer ‑ bem me pareceu que ela mentia! Como se fosse possível que o duque não exercesse a sua fascinação! Mas apanhei o segredo, e se algum dia necessitar dela será preciso que esteja pelo que eu quiser.

Carolina deitou‑se rapidamente para descansar e poder retomar o serviço do seu doente. Às oito estava a pé, e da janela viu o duque que, por detrás da vidraça do quarto do marquês, lhe fazia sinal de que ia pelos aposentos interiores juntar‑se‑lhe na biblioteca. Para aí se dirigiu também e soube por Caitano que o sr. de Villemer estava muito bem.

Acordara havia pouco, e tinha dito: ‑Meu Deus, que milagre! É o meu primeiro sono, depois duma semana de suplício, e não sinto nada, respiro, parece‑me que estou curado. É a ela que o devo!

‑ E é verdade, minha querida amiga, ‑ acrescentou o duque ‑ foi a menina que o salvou e que no‑lo conservará se quiser ter compaixão de nós!

O duque resolvera não dizer coisa alguma, tinha‑o jurado ao irmão, mas julgando‑se muito discreto, deixava involuntariamente escapar a verdade. Essa verdade atravessou o espírito de Carolina como um relâmpago.

‑ Que diz, sr. duque? ‑ exclamou ela ‑ Quem sou eu? e que papel represento aqui para ter essa influência?

O duque assustou‑se com o olhar espantado de Carolina.

‑ Vejamos, que tem? ‑ disse, retomando a máscara do seu tranquilo sorriso ‑ Que ideia se lhe meteu na cabeça? Não vê que adoro meu irmão, que receio perdê‑lo, e que, em razão dos cuidados que lhe prestou esta noite, lhe falo como se fora minha irmã? Estou muito preocupado, perco a cabeça! Urbano mata‑se com trabalho. Não tenho ascendente bastante sobre ele, e não posso prevenir nossa mãe da recrudescência dos seus antigos sofrimentos, porque, fraca como é, seria causar‑lhe uma comoção perigosa. Depois, desejaria estar constantemente junto dele... velar de noite... Sucumbiria em pouco tempo...

É preciso portanto que sejamos nós que salvemos meu irmão, sem que o pareça e sem envolver os criados nas nossas confidências. Essa gente fala demasiado. Vamos! apelo para o seu coração e para a sua coragem! Querendo, pode ajudar‑me a cuidar dele secretamente, a velar, alternadamente comigo, algumas noites em caso de necessidade, enfim a não o deixar só nem uma hora, para lhe não consentir que se ocupe dos malditos alfarrábios? Estou persuadido de que se conseguirmos que tenha um absoluto repouso de espírito, que faça algum exercício e se alimente e durma regularmente, nada mais será preciso. Mas para isto é necessária a autoridade tirânica, sim, tirânica, duma pessoa que se não sinta embaraçada em o contrariar, dum coração dedicado... sem susceptibilidades, nem desconfianças mal entendidas, que suporte os seus caprichos, se os tiver, ou os impulsos de reconhecimento exaltado que não possa conter, uma amiga sincera, numa palavra, que tenha delicadeza, inteligência e caridade bastante para lhe fazer aceitar e talvez adorar a sua tirania. Pois bem! Aqui, só Carolina pode ser essa pessoa. Meu irmão tem por si grande estima, profundo respeito e, creio mesmo, que uma sincera amizade. Tente velar por ele oito dias, quinze, um mês talvez, porque se hoje puder levantar‑se, esta noite estará aqui folheando os livros e tomando notas, se dormir ainda outra noite, julgar‑se‑á curado, e na noite seguinte não se deitará. Comigo há‑de aborrecer‑se, cansar‑se de me ver sempre junto dele e a sua impaciência neutralizará o efeito dos meus cuidados.

Consigo... uma mulher, uma enfermeira Voluntária, generosa, enérgica e meiga, paciente e tenás como só as mulheres sabem sê‑lo, submeter‑se‑á sem despeito, e mais tarde, quando as crises tiverem desaparecido, abençoá‑la‑á por o ter contrariado.

Esta insidiosa exposição dissipou inteiramente a Vaga e rápida suspeita de Carolina.

‑ Sim, sim ‑ respondeu ela com firmeza ‑ serei essa enfermeira de que fala. Conte comigo. Agradeço‑lhe que me tenha escolhido, e creia que me não deve reconhecimento algum. Não me custa nem me fatiga o serviço que me pede, porque estou habituada a tratar doentes. Seu irmão é para mim como para o senhor, tão respeitável e tão superior a tudo o que conhecemos, que considero uma felicidade e uma honra servi‑lo. Vejamos, é necessário que combinemos a maneira de dividirmos essa boa tarefa sem despertarmos suspeitas nas pessoas que nos cercam. Em primeiro lugar é preciso que o sr. duque passe a noite junto dele.

‑ Não consentirá.

‑ Pois bem! Desta sala devemos ouvi‑lo respirar. Neste divã pode‑se dormir perfeitamente, embrulhado numa coberta. Passaremos aqui as noites alternadamente.

‑ Muito bem!

‑ O sr. duque fá‑lo‑á levantar cedo, para que se habitue a dormir de noite, e leVa‑o a almoçar conosco.

‑ Se conseguir que ele o prometa!...

‑ Tentarei. É absolutamente necessário que coma mais do que uma Vez em vinte e quatro horas. Fá‑lo‑emos dar um passeio, ou, pelo menos, sentar se conosco ao ar livre até ao meio‑dia. A essa hora irão, como de costume, Visitar sua mãe, eu trabalho depois com ela até às cinco horas, vou então vestír‑me...

‑ Para o que lhe não é precisa uma hora. Terá ainda tempo para ir estar com ele um instante na biblioteca. Eu irei também.

‑ Seja! Jantaremos juntos, retê‑lo‑emos no salão até às dez horas, e depois o sr. duque acompanhá-lo‑á.

‑ Tudo está perfeitamente combinado, mas quando minha mãe tem visitas, deixa‑nos livres, e bem poderia, nessas ocasiões, Vir conversar conosco uma hora ou duas.

‑ Conversar não ‑ respondeu Carolina ‑ Virei fazer‑lhe um bocado de leitura, porque bem deve compreender que ele não passará todo esse tempo sem se interessar por alguma coisa, e lerei de maneira a dispô‑lo para dormir. Está resolvido. Somente, hoje, Vamos ser estorvados pela sr.a de Arglade.

‑ Hoje encarrego‑me eu de tudo, e a sr.a de Arglade parte amanhã ao romper do dia, por conseguinte meu irmão está salvo, e a menina de Saint‑Geneix é um anjo!

 

O marquês, informado desta combinação, submeteu‑se a ela com reconhecimento. Achava‑se extremamente fraco e como que convalescente duma crise aguda que, se o não prostrara, o abatera moralmente quase tanto como uma grave doença. Já não podia combater o amor porque lhe faltavam as forças para a luta, e não sentindo nesse estado de fraqueza as tempestades e os perigos da paixão, entregava‑se à doçura de ser objecto duma terna solicitude. O duque não lhe permitia interrogar o futuro.

‑ Não podes tomar nenhuma determinação no estado em que estás. ‑ dizia‑lhe ‑ Não tens õ teu livre arbítrio, sem saúde não há discernimento. Deixa‑nos curar‑te, e verás como depois te Volta a energia necessária para resistires ou à tua inclinação, ou aos escrúpulos que ela te cause. Até então não Vejo o que te possa pesar na consciência, pois que a menina de Saint‑Geneix de nada desconfia, e não fez mais do que faria uma irmã no seu lugar.

Estas palavras acalmaram todas as agitações do doente. LeVantou‑se alguns instantes para ir Ver sua mãe, a quem fez acreditar que uma indisposição insignificante era a causa da alteração que se lhe notava na fisionomia. Pediu autorização para descansar algum tempo, e pôde durante vinte e quatro horas, isto é, até à partida da sr.a de Arglade, entregar‑se a um repouso absoluto.

Entre o duque e Carolina houve, nesse dia, um ar de inteligência e uma troca de olhares que tinham por objecto o estado do marquês, mas que acabaram de iludir Leonia. Partiu muito segura da descoberta que fizera mas sem dizer à marquesa coisa alguma que lhe pudesse fazer supor qualquer indiscrição da sua parte.

Ao cabo de oito dias o sr. de Villemer estava restabelecido. Todos os sintomas de aneurisma tinham desaparecido, e submetido a um regime racional, retomavam mesmo um certo brilho de saúde e uma tranquilidade de espírito que há muito lhe haviam fugido. Ninguém, havia dez anos, se ocupara dele com a assiduidade, a dedicação, a Igualdade de carácter, e o inegualável encanto de que sabia rodeá‑lo a menina de Saint‑Geneix, poder‑se‑ia mesmo dizer que nunca encontrara cuidados tão inteligentes e carinhosos, porque sua mãe, além de não ter forças e actividade física, mostrara‑se demasiado ardente e inquieta nos que lhe prodigalizara quando a sua vida estivera já ameaçada. A marquesa tivera a suspeita duma recaída vendo o filho mais Vezes junto dela e por consequência menos constante no trabalho, mas quando essa suspeita lhe acudiu, já a crise tinha passado: o bom acordo de tranquilidade combinado entre o duque e Carolina, a ignorância absoluta dos criados, pouco numerosos e por isso mesmo muito ocupados, a serenidade do marquês, tudo contribuiu para a tranquilizar, e ao fim de quinze dias, notou até que seu filho retomava um ar de mocidade e de bem estar de que só tinha a regosijar‑se.

Ocultara‑se cuidadosamente à sr.a de Arglade o estado do marquês.

O duque não renunciava, por forma alguma, ao grande casamento projectado. Julgava Leonia indiscreta, estouvada, e não queria que se soubesse que a saúde de seu irmão podia, num dado momento, inspirar sérios receios. Prevenira habilmente Carolina a este respeito. Fazia com ela, no interesse de seu irmão, tal como o entendia, o duplo jogo de a predispor, tanto quanto possível e pouco a pouco, para uma dedicação sem limites, e lembrando‑lhe para esse fim que o futuro da família dependia inteiramente do célebre casamento. Carolina não esquecia, e confiando na lealdade dos dois irmãos, na noção do dever e no interesse do seu coração, caminhava resolutamente para um abismo onde podia precipitar para sempre o seu destino. E era assim que o duque, bom de natureza e animado das melhores intenções para com o irmão, trabalhava a sangue frio na perda duma pobre rapariga, digna pelo seu mérito pessoal das maiores felicidades e considerações.

Felizmente para a menina de Saint‑Geneix, se a consciência do marquês dormitava, não adormecera completamente. Além disso, na sua paixão havia uma tão grande parte de entusiasmo e de verdadeira afeição, que ela parecia ter‑se extinguido, ou, pelo menos, ter sido acorrentada pela Vontade. Exigiu que o duque se conservasse quase constantemente junto deles, e pouco faltou para que, na sua sinceridade, não dispensasse Carolina de toda a Vigilância, dando‑lhe a sua palavra de que não retomaria o trabalho sem que ela o permitisse. Chegou mesmo uma ocasião em que lhe deu para a resolver a não ficar de noite na biblioteca: mais duma vez aí a encontrara, guarda suave e alegremente feroz dos livros e dos papeis interditos. Mas o duque contrariou o efeito dessa imprudência do irmão, dizendo em particular a Carolina que se não devia ter confiança numa palavra dada sinceramente, sem dúvida, mas que não estava no poder de Urbano sustentar.

‑ Não sabe a que ponto ele é distraído ‑ disse‑lhe ‑ quando uma ideia o preocupa, domina‑o completamente e faz‑lhe esquecer todas as promessas.

Carolina não afrouxou, portanto, a Vigilância. A biblioteca ficava muito mais próxima dos aposentos do marquês que dos seus, mas bastante no centro da habitação para que se não tornasse notada pelos criados a assiduidade da leitura nesse lugar consagrado ao estudo. Viam‑na muitas Vezes aí, só ou acompanhada pelo marquês, ou pelo duque, a maior parte das vezes com um e outro, embora o duque encontrasse numerosos pretextos para a deixar a sós com o irmão, mas nessas ocasiões as portas estavam sempre abertas. Carolina tinha muitas vezes na mão um livro que lia realmente com interesse, e enfim, mais que tudo, a verdade da situação, Verdade que tem mais força que as maiores astúcias, destruía todos os pretextos, todas as veleidades, mesmo a malignidade dos comentários.

Carolina considerava‑se feliz, e mais tarde recordava‑se dessa época como da mais doce fase da sua vida. Sofrera com a tristeza de Urbano, e encontrava‑o mais benévolo, mais confiante do que ousara esperar. Depois que se dissiparam todas as inquietações relativas à sua saúde, estabeleceu‑se entre eles uma intimidade que, para Carolina, era isenta de nuvens. O marquês sentia um prazer extraordinário em a ouvir ler, e dentro em pouco consentiu mesmo que o ajudasse no seu trabalho. Foi ela então que consultou documentos e tomou notas, que redigia no sentido que ele desejava e que ela parecia ter maravilhosamente adivinhado. Enfim, tornou‑lhe o estudo tão agradável, aliviando‑lho da parte árida e enfadonha, que Urbano pôde continuar a escrever sem fadiga e sem sofrimento.

Bem mais do que sua mãe precisava o marquês dum secretário, mas nunca pudera consentir esse intermediário nos seus estudos. Notou, porém, que Carolina não só o não desviava para ideias estranhas às suas, mas até o impedia de se fatigar com preocupações inúteis. Tinha uma notável clareza de julgamento junto a uma faculdade rara nas mulheres, a ordem na ligação das ideias. Podia concentrar‑se por muito tempo sem fadiga e sem desfalecimento.

O marquês fez uma descoberta que devia conquistá‑la para sempre. E era, que se encontrava em face duma inteligência superior, não criadora, mas investigadora ao mais alto ponto, precisamente a organização que lhe era necessária para equilibrar e impulsionar a sua própria inteligência.

Digamo‑lo desde já: o sr. de Villemer era um homem de indiscutível talento, mas que não encontrara e esperava ainda a sua crise de desenvolvimento. Daí resultavam o sofrimento e a lentidão no trabalho. Pensava e escrevia rapidamente, mas a sua consciência de filósofo e moralista criava à Vivacidade do historiador entusiasta obstáculos sempre novos. Tinha escrúpulos, como certos devotos sinceros, mas doentes, que imaginam constantemente não terem dito toda a verdade ao confessor. Queria também confessar à humanidade a verdade social, e não admitia suficientemente que, numa grande parte, essa ciência da verdade e mesmo do real é relativa ao tempo em que se vive. Não tomava uma decisão. Queria exumar o sentido dos factos sepultados nos arcanos do passado, e admirava‑se quando, tendo a grande custo conseguido obter alguns indícios, os reconhecia muitas Vezes contraditórios. Assustava‑se então, desconfiava da própria lucidez e equidade, suspendia o trabalho, e durante semanas e meses deixava‑se devorar por incertezas e dúvidas terríveis.

Carolina, sem conhecer o livro, que ainda não estava terminado, e que ele escondia com uma timidez doentia, adivinhou em breve a causa dessas angústias, conservando e ouvindo as suas reflexões quando lhe fazia alguma leitura. Apresentou‑lhe pois algumas ideias duma simplicidade extrema e duma rectidão de coração que pareceram sem réplica. Preocupava‑se pouco com uma pequena mancha numa grande existência, ou com um lampejo de razão numa época de delírio.

Pensava que se devia ver o passado como se examina a pintura, à distância necessária ao olhar de cada um para abraçar o conjunto, e conseguir fazer, como os mestres o desejaram ao compor os seus quadros, o sacrifício dos pormenores sem importância, que destroem por vezes na realidade a harmonia e mesmo a lógica da natureza. Fez notar que a cada passo se observam na paisagem efeitos inverosímeis de sombra e luz, e que o vulgo costuma dizer: «Como poderia um pintor reproduzir isto?» Ao que o pintor respondia: «Não o reproduzindo».

Arriscou várias reflexões com grande reserva, sob a forma de perguntas, sem opinião antecipada, e como pronta para as suprimir se não fossem apreciadas, mas o sr. de Villemer sentiu‑se impressionado porque compreendeu que ela enunciava uma certeza, uma fé interior, e que, se consentia em calar‑se, a sua convicção continuava todavia inabalável.

Ele próprio lhe submeteu numerosos factos que o tinham embaraçado. Carolina julgou‑os com uma palavra, como o elevado bom senso dum espirito novo e dum coração puro, e o marquês exclamou, fitando o duque: ‑ Compreende a verdade porque a tem em si, o que é a primeira condição para ver claro. Nunca uma consciência perturbada ou um espírito pervertido entenderão a história.

‑ É por essa razão ‑ disse ela ‑ que se não deve fazer a história só com memórias, porque, quase todas, são obras parciais ou representam paixões de ocasião.

É moda hoje exumar com grande cuidado e trazer a lume insignificantes factos pouco conhecidos e que não merecem sê‑lo.

‑ Sim, tem razão ‑ respondeu o marquês ‑ se o historiador, em lugar de se conservar forte na crença e no culto das grandes coisas, se deixa desviar ou distrair pelas pequenas, a verdade perde todo o sentido.

Se reproduzimos estas conversas, talvez um pouco impróprias do espírito dum romance, é porque as julgamos necessárias para tornar compreensíveis a gravidade e a calma aparente das relações que se estabeleceram entre o ilustre erudito e a humilde leitora, no solar de Séval, a despeito do cuidado que o duque empregava em os deixar entregues às tentações da mocidade e do amor. O marquês reconheceu que pretencia a Carolina, não só pelo entusiasmo, pelo sonho, pela necessidade de idealizar a graça e a beleza, mas também pela razão, pelo raciocínio e pela certeza de ter encontrado o ideal. Desde então Carolina estava salva, impôs o respeito devido ao seu real valor, e o marquês não mais receou deixar‑se surpreender pela febre do egoísmo.

O duque admirou‑se muito, a princípio, do resultado inesperado dessa intimidade. Seu irmão estava curado, era feliz, e parecia ter vencido o amor só pela força do amor, mas era inteligente e compreendeu. Também ele se sentia possuído duma grande deferência por Carolina. Tomou interesse pela leitura, e pouco a pouco, não só não se deixou adormecer às primeiras páginas, como quis ler por sua vez e comunicar as impressões recebidas. Não tinha convicção alguma, mas deixava‑se comover e arrebatar como artista pelas dos outros. Lera poucas coisas sérias na sua vida, mas retivera admiravelmente tudo o que eram datas e nomes próprios. Tinha pois na memória uma espécie de rede de grandes malhas em que vinham prender‑se os fios soltos dos estudos de seu irmão. Isto é, nada lhe era estranho a não ser no sentido lógico e profundo das coisas da história. Não era isento de preconceitos mas a forma exercia sobre ele uma influência que os fazia emudecer, e perante uma página eloquente, quer fosse de Bossuet ou de Rousseau, experimentava o mesmo entusiasmo.

Fora portanto com grande prazer que se vira iniciado nas ocupações do marquês e na convivência da menina de Saint‑Geneix, mas o que no seu procedimento houve de Verdadeiramente louvável foi que, a partir do momento em que conheceu os sentimentos do irmão, deixou de Ver nela uma mulher. Sentira‑se todavia comovido a seu lado durante alguns dias, e a verdade surpreendera‑o numa hora de despeito e de febre. Mas expulsou imediatamente todos os maus pensamentos, e, impressionado por ver que o marquês, após um acesso de terrível ciúme, lhe restituíra a confiança, conheceu, pela primeira Vez na sua vida, a amizade honesta e sincera por uma mulher bonita.

No mês de Julho, Carolina escrevia a sua irmã:

 

«Tranquiliza‑te, há já muito tempo que não preciso de velar pelo doente, porque ele nunca se sentiu tão bem disposto, mas conservei o hábito de me levantar ao romper do dia, e todas as manhãs posso consagrar algumas horas ao trabalho que me permitiu partilhar. Também ele agora dorme bem, porque se retira às dez horas, e aqui consentem‑me que faça outro tanto. Tenho mesmo muitas vezes preciosos intervalos de liberdade durante o dia. A proximidade dos banhos de Evaux e da estrada de Vichy traz‑nos visitas às horas em que a marquesa tinha por costume, em Paris, não receber, e dizendo sempre que essas visitas a incomodam e fatigam, acolhe‑as com a maior satisfação. A grande correspondência sofre por tal motivo, mas já tinha diminuído muito desde o projecto de casamento do marquês. Esse projecto absorve por tal forma a sr.a de Villemer, que não pode deixar de participá‑lo ou de insinuar qualquer coisa a seu respeito a todos os seus velhos amigos, depois do que, faz reflexões, reconhece que é imprudência falar tanto, que se não deve contar com a discrição de tantas pessoas, e lançamos ao fogo as cartas que acaba de me ditar. Resulta daí que me diz muitas vezes: ‑ Ora adeus! Não escrevamos. Prefiro não dizer coisa nenhuma, a deixar de falar no que me interessa.

«Quando tem visitas, faz‑me sinal de que posso ir reunir‑me ao marquês, porque sabe que tomo notas para ele. Passada a doença não julguei dever fazer mistério duma coisa tão simples, e ela mostra‑se reconhecida por eu poupar ao filho essa parte fatigante do seu trabalho.

A marquesa bem desejaria saber de que trata essa obra tão bem escondida, mas não há perigo de que eu desvende seja o que for, porque nada conheço. Sei que nesta ocasião estamos na história de França e mais particularmente na época de Richelieu, mas o que não tenho necessidade de dizer é que pressinto um grande desacordo de opiniões entre o filho e a mãe sobre muitas coisas graves.

«Não me lastimes por ter assumido uma dupla tarefa, e ter, como dizes, tomado dois patrões em lugar dum. Com a marquesa a tarefa é sagrada e desempenho‑a com afeição, com o filho, é suave e cumpro‑a com essa espécie de Veneração grave de que muitas vezes te falo. Sinto uma grande satisfação em acreditar que contribui para o seu restabelecimento, que soube tratá‑lo sem o impacientar, e despertar‑lhe suavemente o desejo de Viver, por ter saúde. Não podes fazer ideia de quanto tem sido bom para mim, como se deixou repreender pela senhora tua irmã, como se mostrou grato ao meu interesse, e se submeteu a todas as minhas ordens. E a tal ponto que à mesa consulta‑me com os olhos sobre o que deVe comer, e quando passeamos não tem mais vontade que uma criança com respeito ao trajecto que o duque e eu lhe queremos fazer percorrer. É uma bela alma, e todos os dias lhe descubro novas qualidades. JulgaVa‑o caprichoso e muito obstinado. Pobre criatura! Era a recaída que o ameaçava. É, pelo contrário, duma bondade e igualdade de carácter de que nada pode dar ideia, e o encanto da sua conversação só pode comparar‑se à beleza das águas que correm no nosso vale, sempre límpidas, abundantes, arrastadas por um movimento igual e forte, nunca irritadas nem caprichosas. E, se continuasse a comparação, poderia dizer que o seu espírito tem igualmente margens floridas, oásis de verdura onde podemos descansar e sonhar deliciosamente, porque é muito poeta, e surpreende‑me a maneira como sobmeteu os arrebatamentos da imaginação à rigidez da história.

«Já vês querida irmãzinha que sou mais para felicitar do que para lastimar, por ter dois patrões em Vez de um só.»

 

Certa manhã, o marquês, que escrevia na grande mesa da biblioteca, enquanto Carolina folheava papeis na outra extremidade, pousou a pena e disse‑lhe com certa comoção:

‑ Menina de Saint‑Geneix, recordo‑me de que por algumas vezes me tem testemunhado o desejo de conhecer este trabalho, e eu julgava que jamais teria a coragem de lho mostrar, mas agora, sim, agora compreendo que me sentirei feliz em o fazer. Este livro é bem mais obra sua do que minha, porque de si me veio a fé e o respeito pelo impulso que mo ditou. Depois que me restituiu a confiança em mim próprio, tenho avançado mais num mês do que antes o fizera em dez anos. Dever‑lhe‑ia também o terminar uma obra que recomeçaria certamente até à minha última hora. E essa hora suprema aproximaVa‑se. Reconhecia que ela se adiantava e apressava‑me febrilmente, presa do desespero de ver chegar o fim da minha vida. Ordenou‑me que Vivesse, e vivi, que me tranquilizasse, e estou tranquilo, que acreditasse em Deus e em mim próprio, e acreditei. Portanto, Visto que me incutiu a fé no pensamento, é preciso que me dê também a fé no talento, porque, embora a forma me não preocupe excessivamente, julgo‑a necessária para dar mais peso e sedução à verdade. Aí tem, minha amiga, leia!

‑ Sim, ‑ respondeu Carolina ‑ veja que não hesito, não recuso, embora o meu procedimento não seja modesto nem prudente. Sim! não me sinto embaraçada. Tão segura estou do seu talento, que não receio ser sincera, e tal é a minha convicção na conformidade das nossas opiniões, que espero compreender mesmo o que, noutras circunstâncias, estaria fora do meu alcance.

Mas, na ocasião em que pegava no manuscrito, Carolina hesitou perante uma confidência demasiado particular, e perguntou se o duque não compartilharia também dessa satisfação.

‑ Não, ‑ respondeu o marquês ‑ meu irmão não Virá hoje. Escolhi o dia em que ele foi caçar. Não quero que conheça a minha obra antes que esteja terminada, não a compreenderia porque a isso se opõem os seus preconceitos de origem. Crê que tem algumas ideias avançadas, como lhes chama, e sabe que eu vou ainda mais longe, mas não suspeita quanto me afastei do caminho em que a educação me havia colocado.

A minha revolta contra o passado causar‑lhe‑ia um terror que poderia perturbar‑me antes de terminar o meu trabalho. E talvez... também a vá inquietar um pouco.

‑ Não tenho uma opinião formada, ‑ respondeu Carolina ‑ e é muito provável que partilhe as suas quando as conhecer. Vou pois ler alto, tanto para o sr. marquês como para mim. Ouvir‑se‑á falar, o que será, segundo creio, uma boa maneira de reler o seu livro.

Carolina leu nessa manhã metade dum Volume, e continuou durante o resto do dia e no dia seguinte. Em três dias fêz ouvir ao marquês o resumo dos estudos de alguns anos. Embora a letra fosse um pouco difícil, lia tão bem como se o livro estivesse impresso, e como o fazia com uma clareza, uma inteligência e uma simplicidade admiráveis, animando‑se e comoVendo‑se mesmo quando a narração se elevava ao lirismo nas epopeias da história, o autor sentiu‑se repentinamente iluminado com brilhante luz da certeza formada por todos os raios esparsos de que as suas meditações haviam sido penetradas.

Depois de ter exposto as premissas e os motivos do seu estudo em algumas páginas de ardente e severa apreciação, passava aos factos e classificaVa‑os historicamente com eloquente clareza. As narrações, cheias de colorido, tinham o interesse do romance mesmo quando, revolvendo os obscuros arquivos das famílias, revelava o horror dos tempos feudais, os sofrimentos e o aviltamento da plebe.

Entusiasta e não se defendendo de o ser, sentia profundamente os atentados contra a justiça, contra o pudor, contra o amor, e a sua alma, apaixonada pela Verdade, pelo justo e pelo belo, revelava‑se inteira em muitas páginas de arrebatadora eloquência. Por mais duma vez foi obrigada a pousar o livro para enxugar as lágrimas.

Carolina não fez objecções. Não é ao simples narrador que compete decidir se ela deveria ou não fazê‑las, mas deve dizer-se que as não encontrou, de tal maneira se deixara possuir de admiração pelo talento e de estima pelo homem, O marquês de Villemer tornou‑se a seus olhos um personagem tão completamente superior a tudo o que até então conhecera, que concebeu desde logo o pensamento de se lhe dedicar sem reserva para sempre.

O marquês não soubera ainda revelar toda a sedução da sua inteligência e da sua pessoa, tinha‑se sentido perturbado, constrangido, doente. Carolina não viu repentinamente a transformação que nele se fêz duma forma insensível, quando se tornou eloquente, jovem e atraente, recuperando dia a dia, hora a hora, a saúde, a confiança em si próprio, a certeza da sua força e o encanto que dá a felicidade às nobres fisionomias por muito tempo Veladas pela dúvida.

Quando enfim notou essas sedutoras metamorfoses, já lhes sentira o efeito, e estava‑se no outono. Faziam‑se preparativos para o regresso a Paris, é, sob o império duma ideia fixa, a sr.a de Villemer dizia todos os dias à sua jovem confidente:

‑ Dentro de três semanas, de quinze dias, de oito dias, reallzar‑se‑á a famosa entrevista de meu filho com a menina de Xaintrailles.

Carolina sentiu então no mais profundo da alma, um tal dilaceramento, uma consternação tão grande, um terror tão intenso que foram como que a revelação imperiosa do género de afeição que a si própria ainda não confessara. Aceitara a ideia Vaga embora longínqua desse casamento e nunca pensara se ele a faria sofrer. Considerava‑o um facto inevitável como envelhecer é morrer, mas a Velhice e a morte só se aceitam realmente na hora em que chegam, e Carolina sentiu‑se desfalecer e sucumbir à ideia dessa separação próxima e absoluta.

Acabara por acreditar, como a marquesa, que era um assunto resolvido. Nunca ousara interrogar o marquês a tal respeito, demais o duque proibira‑lho em nome da amizade que dedicava à família. Na sua opinião, o marquês só se decidiria se o não importunassem e bem sabia ele que a menor inquietação da parte de Carolina transtornaria todos os pensamentos do irmão.

O duque depois de ter sinceramente admirado a pureza das suas relações, começava a impressionar‑se. ‑ Torna‑se uma inquietação tão grave ‑ pensava ele ‑ que já se lhe não podem prever as consequências. Bem melhor fora para meu irmão ter podido Vencer este amor. Não seria hoje um obstáculo ao seu futuro. Poder‑se‑á crer que a virtude tenha morto a paixão? Não, não! A Virtude, neste caso, é a paixão que duplicou de Violência.

Não se enganava. O marquês não se entristecia de forma alguma com a perspectiva dum casamento que estava, doravante, resolvido a não contrair. Afligia‑se apenas com a alteração que a residência em Paris ia momentaneamente operar nas suas relações com a menina de Saint‑Geneix, na livre fraternidade que gozavam, nos estudos em comum, nessa confiança de todos os instantes que ali não encontravam. Falava‑lhe dessa mudança com uma grande tristeza. E ela, que sentia a mesma saudade, atribuía o seu pesar à paixão que tinha pelo campo e à alteração duma vida tão nobre e tão doce.

Experimentou, no entanto, uma agradável surpresa ao chegar a Paris. Encontrou sua irmã com os filhos, e soube que Camila se aproximava dela. Ia habitar em Étampes uma pequena casa, linda, alegre, com excelentes ares e um grande jardim. Estaria apenas a uma hora de Paris, pelo caminho de ferro. Lili entrava para um colégio, em Paris, onde lhe obtivera um lugar gratuito. Carolina poderia vê‑la todas as semanas. Enfim, haviam‑lhe prometido um outro lugar também gratuito, num liceu, para o Carlitos, quando tivesse a idade competente.

‑ Causas‑me uma grande alegria e uma grande surpresa! ‑ exclamou Carolina apertando sua irmã nos braços ‑ mas quem fez todos esses milagres?

‑ Tu! ‑ respondeu Camila ‑ Só tu, e sempre tu!

‑ Não, não! Esperava, é certo, obter esses lugares, isto é, conseguir que Leonia, que é tão obsequiadora, os obtivesse um dia ou outro, mas não contava com um resultado tão pronto.

‑ Não, não! ‑ replicou a sr.a Heudebert: ‑ Esta felicidade não nos vem de Leonia, vem‑nos daqui.

‑ É impossível! Nunca disse à marquesa uma palavra a tal respeito. Sei que está indisposta com as pessoas que ocupam o poder, e não ousaria...

‑ Alguém ousou falar aos ministros, e esse alguém... não quer ser nomeado, procedeu escondendo‑se de ti, e contudo traí‑lo‑ei, porque me é impossível ter segredos para ti: esse alguém, é o marquês de Villemer.

‑ Ah!... Tu escreveste‑lhe, a pedir?...

‑ Não! Foi ele que me escreveu, para se informar da minha situação, com uma bondade, uma delicadeza... Ah! Carolina, tens muita razão em estimar esse nobre carácter!... Mas, olha, trouxe as suas cartas. Quero que as leias.

Carolina leu‑as, e viu que, desde o dia em que se consagrava a Velar pelo sr. de Villemer, este se tinha ocupado da sua família com ardente e constante solicitude. PreVendo‑lhe os mais secretos desejos, preocupara‑se com a educação das crianças. Fizera, por meio de cartas, todas as diligências, segura e rapidamente, sem mesmo se ter oferecido para o fazer, e limitando‑se a pedir a Camila os esclarecimentos necessários sobre os serviços prestados pelo marido na administração. Participara‑lhe depois o resultado, recusando todos os agradecimentos e dizendo que a dívida de reconhecimento contraída para com a menina de Saint‑Geneix estava longe de ser paga.

Estas boas notícias recebera‑as Camila durante a viagem, a pequenas jornadas de posta, que Carolina fazia com a marquesa, porque a velha senhora tinha horror às diligências e aos caminhos de ferro.

Quanto à habitação de Étampes, era ainda uma ideia e um oferecimento do marquês. Possuía ali, dizia ele, uma pequena propriedade de nenhum rendimento, que herdara dum velho parente, e pedia à sr.a Heudebert que lhe prestasse o serviço de a habitar. Ela aceitara dizendo que se encarregava das reparações, mas encontrara a casa em muito bom estado, mobilada e até abastecida de lenha, vinho e legumes para mais dum ano.

Quando perguntou à pessoa encarregada pelo marquês, desses assuntos e o preço do aluguer, responderam‑lhe que tinham ordem de não receber dinheiro, que era uma insignificância e que o marquês nunca pensara em alugar a estranhos a casa do seu velho primo.

Carolina ficou vivamente comovida com estas delicadas lembranças do seu amigo, e julgou‑se feliz por ver a sorte da família melhorada, mas sentiu também uma grande dor no coração. Pareceu‑lhe que era um adeus daquele cuja existência ia separar‑se da sua para sempre, e como que uma conta de reconhecimento que ele pagava. Venceu contudo essa dor, e empregou as manhãs, durante alguns dias em passear com sua irmã e as crianças, a comprar o enxoval da pequena colegial e enfim, a fazê-la instalar no colégio.

A marquesa quis ver a sr.a Heudebert e a linda Isabel, que ia perder no colégio o seu meigo diminutivo de Lili. Foi muito amável para a irmã de Carolina e não deixou partir a criança sem um lindo presente, deu a Carolina dois dias de liberdade para que pudesse ocupar‑se da família, despedir‑se dela e acompanhá‑la ao caminho de ferro, e quis ir ao colégio para recomendar pessoalmente Isabel como sua protegida.

Camila falou também com o marquês e o duque em casa de sua mãe, mas só apresentou Lilly ao seu benfeitor, porque não podia ainda haver grande confiança no comportamento das outras crianças, o sr. de Villemer porém quis vê‑los a todos, e foi visitar a sr.a Heudebert ao hotel em que se hospedara. Carolina, a quem encontrou rodeada pelas crianças que a adoravam, notou que ele estava, não pensativo, mas como que absorto na contemplação dos cuidados e das carícias que ela lhes prodigalizava. Fitava as crianças com uma atenção enternecida e falava a todos como um homem em quem o sentimento paternal está muito desenvolvido. Ignorando que ele era pai, Carolina imaginava, suspirando, que pensava nas futuras alegrias da família.

Quando, no dia seguinte viu sua irmã subir para o comboio que devia conduzi‑la a Étampes, sentiu‑se horrivelmente só, e, pela primeira Vez, o casamento do marquês se lhe apresentou ao pensamento como um desastre irreparável na sua vida. Saiu rapidamente da estação para esconder as lágrimas, mas no átrio encontrou‑se em frente do sr. de Villemer.

‑ Então! ‑ disse, oferecendo‑lhe o braço – Está a chorar? Já o esperava, e quis estar aqui, onde não faltam pretextos que se apresentem, para a poder consolar um pouco desse pesar tão natural e também para lhe recordar que lhe restam amigos sinceros.

‑ Pois quê! Veio aqui por minha causa? ‑ respondeu Carolina, enxugando as lágrimas. ‑ Ah! como estou envergonhada deste momento de fraqueza. É ingratidão para com o sr. marquês que tornou a minha família feliz, que a fez aproximar‑se de mim, e a quem eu deveria abençoar radiante de alegria em lugar de sentir essa pequena dor duma separação que não pode ser muito demorada. Minha irmã poderá voltar muitas vezes para ver sua filha, que pela minha parte, poderei Visitar mais Vezes ainda. Não estou triste, sinto‑me pelo contrário muito feliz, e é ao sr. marquês que o devo!

‑ Porque continua então a chorar? ‑ disse o marquês, conduzindo-a até à carruagem que trouxera para ela ‑ Vejamos, sente‑se um pouco nervosa, não é verdade? Mas inquieta‑me. Voltemos para a estação como se procurássemos alguém. Não quero deixá‑la assim. É a primeira vez que a vejo chorar e as suas lágrimas fazem‑me um grande mal. Ouça, estamos a dois passos do Jardim das Plantas, às oito horas da manhã não nos arriscamos a encontrar pessoas conhecidas. Demais a mais, com essa capa e esse Véu não se pode saber quem é. Está um dia lindo, quer Vir ver o vale suíço? Procuremos imaginar que nos encontramos ainda no campo, e quando a deixar estarei convencido... pelo menos assim o espero, de que se não sentirá doente.

Havia uma tão admirável solicitude nas palavras do marquês, que Carolina não pensou em recusar o oferecimento. - Quem sabe ‑ pensava ela ‑ se não desejará dizer‑me um adeus fraternal na ocasião em que Vai entrar numa nova existência? De facto, esse adeus é‑nos permitido e até talvez devido. Nunca me falou do seu casamento, seria estranho que o não fizesse e que eu não estivesse preparada e disposta a ouvi‑lo.

 

O marquês fez um sinal à carruagem para seguir, e conduziu Carolina a pé, falando‑lhe meigamente da irmã e das crianças, mas nem durante o curto trajecto, nem nas áleas ensombradas do Vale suíço do Jardim das Plantas, lhe falou de si. Foi só quando voltavam que, parando com ela sob os ramos pendentes do cedro de Jassieu, lhe disse com o tom mais desprendido, e sorrindo:

‑ Sabe que é hoje que a minha apresentação oficial à menina de Xaintrailes deve realizar‑se?

Pareceu ao marquês que sentia estremecer o braço de Carolina apoiado no seu, mas ela respondeu com sinceridade e resolutamente:

‑ Não, não sabia que era hoje.

‑ Se lhe falo nisto ‑ replicou ele ‑ é porque sei que minha mãe e meu irmão a informaram desse belo projecto. Nunca lhe disse coisa alguma, porque não valia a pena!

- Julga então que não me interesso pela sua felicidade?

‑ A minha felicidade! Porventura estará ela nas mãos duma desconhecida? E pode falar assim a minha amiga que me conhece?

‑ Então... direi, a felicidade de sua mãe, pois que ela depende desse casamento.

‑ Oh! Essa questão é diferente ‑ replicou Vivamente o sr. de Villemer. ‑ Quer que descansemos neste banco, e, visto que estamos aqui sós, permite‑me que lhe fale um pouco da minha situação?

Sentaram‑se.

‑ Não terá frio? ‑ perguntou o marquês, aconchegando as pregas da capa de Carolina em torno dela.

‑ Não! E o sr. marquês?

‑ Oh! eu, graças a si, tenho agora uma saúde robusta, e é essa a razão porque se pensa seriamente em fazer de mim um pai de família. É uma felicidade de que não tenho tão grande necessidade como se julga. Há na vida tantas crianças de quem a gente pode gostar... embora mais não seja, da maneira como a minha amiga adora os filhos de sua irmã! Mas deixemos isso, e suponhamos que sonhei com uma numerosa descendência! Bem sabe que a não desejo, sob o ponto de vista do orgulho do nome, porque conhece as minhas ideias sobre natureza, ideias que não são precisamente as das pessoas com quem convivo. Mas, infelizmente para elas não posso mudar, não depende de mim.

‑ Eu sei ‑ respondeu a menina de Saint‑Geneix, - mas o sr. marquês tem uma alma demasiado perfeita para não desejar conhecer as mais ardentes,' as mais santas afeições da vida.

‑ Suponha o que quiser a esse respeito ‑ replicou o marquês ‑ e reconheço então que a escolha da mãe dos meus filhos é a mais importante questão da minha vida. Pois bem! essa escolha sagrada, pensa que alguém a possa fazer em meu lugar? Porventura se pode admitir que mesmo a minha excelente mãe desperte uma bela manhã, dizendo: «Existe neste mundo uma menina, cujo nome ilustre, cuja fortuna é considerável, e que deve ser mulher do meu filho, porque os meus amigos e eu entendemos que é um negócio Vantajoso e conveniente. Meu filho não a conhece, que importa? Ela não lhe agradará talvez, e ele talvez lhe desagrade também: que importa ainda? Esse casamento dará prazer ao meu filho mais Velho, à minha amiga duquesa e a todas as minhas visitas. É preciso que meu filho seja doido para não sacrificar a sua repugnância a esta fantasia. E se a menina de Xaintrailles se lembrar de o não achar perfeito, não mais será digna do nome que usa!...» Bem vê, minha amiga, como tudo isto é insensato, e muito me surpreende se por um instante o pode tomar a sério.

Carolina debatia‑se em vão contra a indizível alegria que esta declaração lhe causava, mas bem depressa se recordou de tudo o que o duque lhe havia dito e do que o dever lhe ordenava que dissesse.

‑ Também o sr. marquês me surpreendeu profundamente ‑ replicou ela. ‑ Não é verdade que empenhou a sua palavra, para com sua mãe e seu irmão, de como se encontraria com a menina de Xaintrailles na época fixada?

‑ Tanto assim é que se realizará hoje a entrevista, é um encontro preparado de maneira a parecer um simples acaso, e que a nada me compromete.

‑ Ora aí está um subterfúgio que não admito numa consciência como a do marquês de Villemer! Deu a sua palavra de que faria todo o possível para reconhecer o merecimento dessa menina e para lhe fazer apreciar o seu, deVe cumprir.

‑ Ah! mas é o meu maior desejo fazer todo o possível para o conseguir! ‑ respondeu o marquês, rindo. E de tal modo essa alegria o embelezava que Carolina se sentiu deslumbrada com o olhar que nela se fitava.

‑ Zombou então de sua mãe? ‑ replicou, armando‑se de toda a sua coragem ‑ Eis uma coisa de que nunca o julgaria capaz!

‑ Não, não, não sou! ‑ respondeu o sr. de Villemer retomando a seriedade ‑ Quando me arrancaram essa promessa não ria, juro‑lhe! Era profundamente desgraçado e estava gravemente doente, sentia‑me morrer e julgava a minha alma já morta. Cedi a ternas e cruéis obcessões, na esperança de que me deixariam acabar em paz, mas restabeleci‑me, minha amiga, fiz um novo contacto com a vida, sinto‑me ainda cheio de mocidade e com um longo futuro.

O amor fermenta na minha alma como a seiva nessa grande árvore, sim o amor, isto é, a fé, força, o sentimento do meu ser imortal de que dev contas a Deus e não aos preconceitos humanos. Quero ser feliz, quero viver, e quero uma esposa mas com a condição de a amar com todas as forças da minha alma!... Não me diga ‑ continuou, sem dar tempo a Carolina de lhe responder ‑ que tenho deveres em contradição com este. Não sou um homem fraco e irresoluto. Não me curvo ante as palavras consagradas pelo uso, e não pretendo tornar‑me escravo e vítima das quimeras da ambi ção. Minha mãe aspira a recuperar a opulência. Engana‑se a si própria. A verdadeira felicidade é ter sabido renunciar a ela para salvar seu filho mais Velho. É mais rica, depois que regularizei a sua existência a troco de quase tudo o que me resta do que foi durante dez anos no terror constante de uma situação duvidosa, e que ela julgava ser pior. Diga‑me, pois, se não fiz por ela tudo o que podia fazer! Tenho opiniões ardentes, fruto dos estudos e das reflexões de toda a minha vida. Impus‑lhe silêncio. Sofri horríveis pesares que ela nunca sus peitou. Fui verdadeiramente torturado pelo meu coração, e poupei‑lhe a dor de ver o meu suplício. Sofri mesmo por ela, e nunca me lastimei. Não conheci eu, desde a infância, que preferência irresistíVel ela tinha por meu irmão, e não sei, ainda mais, que a julga devida ao filho mais Velho e de mais elevado título? Venci o despeito dessa Injus tiça, e no dia em que meu irmão me permitiu enfim dedicar‑lhe a minha amizade, adorei‑o apaixonadamente, mas, até então, que secretas afrontas e amargas zombarias não devorei eu da sua parte e da de minha mãe, ligada com ele contra a gravidade do meu pensamento e da minha existência! Não lhes quis mal, compreendia os seus erros e preconceitos, mas sem o saberem faziam‑me sofrer muito!...

No meio de tantos desgostos, só uma coisa podia tentar um solitário como eu: a glória das letras. Sentia um certo ardor, um entusiasmo pelo belo, que podia agrupar em torno de mim numerosas simpatias. Compreendi que essa glória ofenderia minha mãe nas suas crenças, e resolvi guardar o mais rigoroso anonimato, não deixar sequer supor a paternidade da minha obra. Só a si, só à minha amiga, fiz a confidência dum segredo que jamais deverá ser traído, e não quero acrescentar, enquanto minha mãe Viver, porque tenho horror a essas restrições mentais, a esses projectos parricidas que parecem chamar a morte sobre aqueles que devemos estremecer mais que a nós mesmos. Disse a mais, para que nunca pudesse ter a noção duma situação em que um prazer pessoal poderia diminuir a dor que eu sentisse pela perda de minha mãe.

‑ Pois bem! aprovo‑o tanto quanto o admiro ‑ replicou a menina de Saint‑Geneix ‑ mas parece‑me que tudo pode e deve arranjar‑se, relativamente ao seu casamento, segundo os desejos de todos. Visto que a menina de Xaintrailles é, como dizem, digna sob todos os pontos de vista, do sr. marquês, porque diz, no momento de se assegurar da Verdade, que esse casamento não é possível nem provável? Eis o que não compreendo e para o que duvido que possa ter motivos sérios e respeitáveis que me permitam aceitá‑los.

Carolina falava com uma decisão que mudou subitamente as disposições do marquês. Esteve a ponto de lhe abrir o coração, sentia‑se levado por um lampejo de esperança, ela porém roubara‑lha e deixava‑o triste e abatido.

‑ Então! Bem vê ‑ replicou ela ‑ não encontra resposta a dar‑me!

‑ Tem razão, ‑ disse ele ‑ não me cabe o direito de lhe dizer que a menina de Xaintrailles me será seguramente indiferente. Sei‑o, mas ninguém pode julgar das razões secretas que me dão essa certeza. Não falemos mais dela. O que eu desejava, minha amiga, era convencê‑la bem da minha liberdade de espírito e do direito da minha consciência a este respeito. Não quero que possa acudir‑lha o pensamento de que o marquês de Villemer deve casar‑se por dinheiro. Oh! não, nunca o acredite. Descer a tal ponto na sua estima seria um castigo que não mereci por falta alguma, nem por nenhum erro para consigo ou para com os meus. Desejo também que me não censure, se me Vir forçado a contrariar abertamente os desejos de minha mãe quanto ao meu casamento. Julguei dever dizer‑lhe tudo o que me justifica duma suposta excentricidade. Quer agora absolver‑me de antemão se eu for obrigado, cedo ou tarde, a declarar‑lhe a ela e a meu irmão que posso dar‑lhe o meu sangue, a minha vida, os meus últimos recursos, a minha honra mesmo, mas não a minha liberdade moral e a sinceridade da minha alma? Oh, não! Isso nunca, pertence‑me, é o único bem que para mim reservo, porque me vem de Deus, e os homens não têm sobre ele direito algum.

Falando assim, o marquês pousara a mão sobre o coração e comprimia‑o com força. O seu rosto ao mesmo tempo atraente e enérgico, exprimia uma fé entusiasta. Carolina, desvairada, teve medo de ter compreendido, e medo também de se enganar, mas que importa o que na sua alma se passava a despeito de si própria?! Era preciso não deixar supor ao marquês que compreendia os sentimentos que por ela nutria. Tinha coragem e possuía uma invencível altivez. Respondeu que lhe não competia pronunciar‑se sobre o futuro, mas que, pela sua parte, tivera uma tal afeição a seu pai, que lhe teria sacrificado mesmo o coração, se lhe fosse possível, por uma renúncia sem reserva, prolongar‑lhe a vida.

‑ Tenha cuidado ‑ disse ela, com ardor ‑ seja o que for que decida hoje ou mais tarde, pense sempre nisto: que quando as pessoas que amamos já não existem tudo o que poderíamos ter feito para lhes tornar a Vida feliz e longa se nos apresenta com terrível eloquência. As mais insignificantes negligências tomam então proporções enormes e não deve haver um momento de felicidade e de repouso Para aquele que, mesmo usando de todos os seus direitos à liberdade, tem a recordação duma dor real infligida à pessoa que perdeu.

O marquês apertou em silêncio e convulsivamente a mão de Carolina. Fizera‑a sofrer porque tocara no alvo.

Ela levantou‑se e tomou o braço que o sr. de Villemer lhe oferecia para a acompanhar até à carruagem.

‑ Tranquilize‑se, ‑ disse‑lhe na ocasião em que se separavam ‑ nunca magoarei abertamente o coração de minha mãe. Reze por mim para que eu tenha, um determinado dia, a eloquência necessária para a convencer! E se o não conseguir... então, que lhe importa? Tanto pior para mim!

Deu a direcção ao cocheiro e desapareceu.

 

Carolina não podia duvidar mais: o marquês estava apaixonado por ela! Para não faltar ao seu dever só tinha um caminho a seguir: fingir que não percebia, evitando que ele tornasse a falar‑lhe em tal. Prometeu a si própria desanimá‑lo por tal forma que lhe tiraria toda a esperança, e jamais encontrar‑se só com ele tempo bastante para que lhe fosse possível perder a natural timidez sob a impressão duma comoção crescente. Depois de assim ter traçado a sua linha de conduta, esforçou‑se por se conservar tranquila, mas necessário lhe foi ceder à natureza e sentir o coração despedaçar‑se‑lhe em soluços. Abandonou‑se a essa dor pensando que, visto ser preciso que assim fosse,

mais valia suportar um momento de fraqueza, que lutar demasiado contra si própria. Bem sabia que, na luta aberta, os instintos de personalidade despertam a despeito da nossa vontade e nos fazem procurar uma saída, um compromisso com a austeridade do dever ou do destino. Proibiu‑se de sonhar e de reflectir, mais valia isolar‑se e chorar.

Só tornou a ver o sr. de Villemer cerca da meia‑noite, na ocasião em que se retiravam as visitas habituais da casa, chegava em companhia do duque, ambos com fato de cerimónia. Vinham de casa da duquesa de Dunières.

Carolina quis retirar‑se também. A marquesa reteve‑a, dizendo:

‑ Oh! tanto pior, minha querida, deitar‑se‑á esta noite um pouco mais tarde. Vale bem a pena: vamos saber o que se passou.

A explicação não se fez esperar. O duque tinha um ar indeciso e como que atordoado: mas o marquês mostrava uma fisionomia aberta e calma.

‑ Minha mãe, ‑ disse ele ‑ vi a menina de Xaintrailles. É bonita, amável e sedutora, não sei que sentimentos poderá inspirar a um homem que tenha a felicidade de lhe agradar, mas eu não tive essa felicidade. Não me fitou duas Vezes, de tal modo a primeira lhe foi suficiente para assentar no seu juízo a meu respeito.

E como a marquesa consternada se conservasse silenciosa, o marquês tomou‑lhe as mãos, que beijou, acrescentando:

‑ Mas não deve, de forma alguma, entristecer.

Pelo contrário, eu venho cheio de sonhos, de projectos e de esperanças. Há no ar... Oh! senti imediatamente, um casamento bem diverso e que lhe causará muito maior alegria!

Carolina sentia‑se renascer e morrer e ria da palavra que ouvia, mas sentia também o olhar do duque fito nela, e dizia para si que talvez o marquês' a examinasse disfarçadamente entre cada uma das suas frases.

Mostrou‑se, pois, tranquila. Via‑se bem que tinha chorado, a partida de sua irmã podia justificar essas lágrimas, que ela própria confessara e de que o marquês fora testemunha.

‑ Vamos, meu filho, ‑ disse a marquesa ‑ não me faças sofrer, e se falas seriamente...

‑ Não, não, ‑ disse o duque, requebrando‑se com graça ‑ não é sério.

‑ É sim senhor! Com certeza ‑ exclamou Urbano, que estava extraordinariamente alegre ‑ isto anuncia‑se como a coisa mais verosímil e mais graciosa do mundo!

‑ Pelo menos é bastante singular... bastante picante! ‑ replicou o duque.

‑ Vejamos então! acabem com os seus enigmas! ‑ exclamou a marquesa.

‑ Pois bem! Conta ‑ disse, o duque ao irmão, sorrindo.

‑ Não desejo outra coisa, ‑ respondeu o marquês ‑ é uma completa narração, e deve proceder‑se com ordem, imagine, querida mamã, que chegámos a casa da duquesa irresistível como nos está Vendo... não, ainda mais, porque havia nas nossas fisionomias esse ar de conquista que tão bem fica a meu irmão, e que eu ensaiava pela primeira Vez, mas que, como vai ver, de nada me serviu.

‑ Isto é ‑ replicou o duque ‑ tu tinhas um ar prodigiosamente distraído, e, para começar, examinavas com toda a atenção um retrato de Ana da Áustria recentemente colocado no salão da duquesa, em lugar de olhares para a menina de Xaintrailles.

‑ Ah! ‑ disse a marquesa, suspirando ‑ era então muito belo esse retrato?

‑ Muito. ‑ respondeu Urbano ‑ Vai dizer‑me, por certo, que não era aquele o momento de o notar, mas verá como foi uma felicidade que assim acontecesse! A menina Diana estava sentada ao canto do fogão com a menina de Dunières e duas ou três outras meninas de elevada gerarquia mais ou menos inglesa. Enquanto o meu olhar, distraído se fitava no rosto rechonchudo da falecida rainha, meu irmão, julgando que eu o seguia, vai direito, na qualidade de primogénito, saudar primeiro a duquesa, depois sua filha e colectivamente o juvenil grupo, reconhecendo imediatamente, com um olhar de águia, a bela Diana, que não tornara a ver desde os cinco anos. Tendo passeado o seu belo sorriso por esse canto privilegiado e atravessado os outros grupos com a elegância, ao mesmo tempo modesta e triunfante, que só a ele pertence, Volta para junto de mim, que começava a evolução dirigindo‑me para a duquesa, e diz‑me com um tom encolerizado, se bem que em Voz baixa: «Então! que fazes aí?» Precipito‑me, saúdo por minha vez a duquesa, e procuro ver a minha noiva, Voltava‑me precisamente as costas. Mau presságio! Volto para junto do fogão afim de me poder mostrar com toda a superioridade. A duquesa dirige‑me a palavra na caridosa intenção de me fazer brilhar. Meu Deus, eu estava pronto a falar como um livro, mas seria tempo perdido: a menina de Xaintrailles nem sequer me olhava e ainda menos me ouvia, cochichava com as suas jovens companheiras. Enfim, volta‑se e deita‑me um olhar muito surpreendido e ainda mais frio. Apresentam‑me a sua vizinha, a menina de Dunières, uma jovem corcunda muito espirituosa, segundo me pareceu, e que muito visivelmente a acotovelava, mas em vão, e eis‑me forçado a voltar para a tribuna, isto é, para o fogão, sem ter provocado o menor rubor. Não perco a cabeça e continuando a conversação com o duque, pronunciava algumas frases muito judiciosas sobre a sessão da câmara, quando ouço a música encantadora de gargalhadas mal sufocadas partindo do canto das meninas. Provavelmente julgavam‑me estúpido. Não me perturbo, continuo, e depois de ter convenientemente mostrado a felicidade da minha eloquência, inquiro do retrato histórico, com grande aprazimento do duque de Dunières, cujo único pensamento era fazer apreciar a sua aquisição. Enquanto ele me conduz junto do quadro, para que eu admire a beleza do trabalho, meu irmão toma o meu lugar, e quando me volto, encontro‑o instalado entre a duquesa e a filha, a dois passos da menina Diana, e completamente associado ao grupo e à conversa das raparigas.

‑ É Verdade, meu filho? ‑ disse a marquesa ao duque com certa inquietação.

‑ Sim, minha mãe, é Verdade. ‑ replicou o duque com simplicidade ‑ Começava o cerco da praça, tomava posição. Contava que Urbano iria manobrar de forma a vir juntar‑se‑me, o traidor porém deixa‑me só, exposto ao fogo, e palavra de honra, tirei‑me de dificuldades conforme pude. Que se passou durante esse tempo? Ele o dirá.

‑ Ah! já sei, ‑ disse a marquesa, tristemente ‑ pensou em outra coisa!

‑ Perdão, mamã, ‑ respondeu o marquês ‑ não tive intenção nem tempo de o fazer, porque a duquesa, deixando Caitano entregue às meninas, chamou‑me de parte, e rindo a seu pesar, disse‑me as memoráveis palavras que lhe repito textualmente: «Meu querido marquês, passa‑se aqui esta noite alguma coisa que muito se assemelha a uma cena de comédia. Imagine que a pessoa... a quem é inútil nomear, o toma por seu irmão e por consequência obstina‑se em tomar seu irmão pelo marquês. Em vão se lhe tem dito que se engana. Pretende que a mistificamos, mas que a não iludimos, e... deverei dizer‑lhe tudo?»

‑ Sim, decerto, sr.a duquesa, é muito amiga de minha mãe para me deixar seguir caminho errado!

‑ Sim, sim, justamente. Não o devo deixar seguir caminho errado, seria um grande pesar para mim, e é preciso que saiba imediatamente em que ponto as coisas estão, julgam o duque encantador, e o marquês...

‑ E a mim absurdo? Vamos! Seja boa até ao fim.

‑ Não, de si não se fala, nem sequer o Vêem, se vêem, só ouvem o duque! Se não soubesse a que ponto estremece seu irmão, não lhe diria isto. Tranquilizei tão calorosamente a duquesa, manifestei‑lhe tanta alegria com a ideia de que meu irmão podia ser‑me preferido, que ela continuou:

‑ Então! meu Deus! Eis‑nos em pleno romance! Acredita que quando se souber que é o duque quem agrada, não haverá protestos?

‑ Quem protestará? A sr.a duquesa?

‑ Eu talvez, mas ela com certeza! Vejamos, é preciso que tudo isto se esclareça. Venha comigo Ver o que se passa, não podemos separar‑nos neste quiproquó.

‑ Não, não ‑ respondi à duquesa ‑ é necessário que me ouça primeiro. Tenho a advogar uma causa que me é mil vezes mais cara que a minha. A sr.a duquesa disse uma palavra que me assusta, que me impressiona e que lhe peço que retire. Parece‑me inclinada a pronunciar‑se contra meu irmão no caso em que a sua gentil afilhada lhe perdoe não ser eu. Como estou certo agora de que ela lhe perdoará sem custo, se é que já o não fez, quero conhecer as suas prevenções contra ele para as combater. Meu irmão é, pelos avós paternos, de sangue muito mais ilustre que o meu, tem todas as qualidades dum verdadeiro fidalgo e todas as seduções dum homem encantador, eu nem mesmo sou um homem de sociedade, e para tudo lhe confessar, inclino‑me um pouco para o liberalismo.

A duquesa fez um movimento de terror, mas pôs‑se a rir, pensando que eu gracejava...

‑ Vendo que gracejavas, meu filho! ‑ disse a marquesa com um tom de censura.

‑ Bom ou mau, ‑ continuou o marquês ‑ o gracejo não fez o seu efeito. A duquesa deixou‑me encarecer o merecimento de meu irmão, concordou comigo que um fidalgo que nunca praticou uma acção desonrosa tem o direito de se arruinar, que uma vida de prazer foi sempre bem vista na alta sociedade quando se sabe deter a tempo, aceita nobremente a indigência e se mostra superior a si próprio... Enfim, invoquei a amizade da duquesa por minha mãe, o desejo que ela tinha da sua aliança para a afilhada, e soube felizmente ser bastante persuasivo para que me prometesse não influir na escolha da menina de Xaintrailles.

‑ Ah! meu filho! que fizeste? ‑ exclamou a marquesa toda trémula. ‑ Reconheço bem o teu coração, mas é um sonho! Uma rapariga educada num convento deve ter medo dum belo conquistador como este sacripanta! Nunca ousará confiar nele.

‑ Espere ainda, mamã! ‑ replicou o marquês ‑ não acabei a minha narração: quando voltámos para junto das meninas, Diana chamava a meu irmão sr. duque com todas as letras.

Conversava e ria com ele e foi‑me permitido ajudá‑lo a brilhar, do que, de resto, ele não tinha grande necessidade. Ela própria o fazia brilhar, e compreendia que também não desgostava, dando‑lhe a réplica, de mostrar que tem muito espírito e que o entusiasmo lhe Vai às mil maravilhas.

‑ A verdade é ‑ disse o duque levado por um movimento de fatuidade irresistível ‑ que é encantadora, essa pequena Diana que eu vi brincar com as bonecas! Recordei‑lhe o facto, não querendo iludi‑la sobre a minha idade...

‑ Ao que ‑ replicou o marquês, acrescentei que mentias, que era eu quem tinha visto a boneca, e que nesse tempo ainda tu jogavas o arco, mas a menina Diana não quis acreditar‑me. «Não, não, sr. marquês ‑ disse rindo ‑ o senhor seu irmão tem trinta e seis anos, sei‑o muito bem!...» E isto com um tom... e um ar...

‑ Capaz de me enlouquecer! concordo, ‑ disse o duque levantando‑se e fazendo saltar até ao tecto as' lunetas de sua mãe, que tornou a apanhar muito destramente, - mas vejamos, tudo isto é uma loucura! A Diana é uma ingénua e adorável coquetezinha, uma verdadeira colegial, um pouco embriagada com a sua próxima apresentação na sociedade, e preparando‑se na intimidade da família, para fazer andar à roda muitas cabeças, enquanto espera que chegue a Vez à sua, mas é ainda muito cedo!... Amanhã de manhã, quando tiver reflectido... E depois, dir‑lhe‑ão tanto mal de mim!

‑ Amanhã à noite Vê‑la‑ás outra vez ‑ disse o marquês ‑ e saberás muito bem combater as más influências, se as há, em torno dela, o que não creio Não se faça mais interessante do que é, senhor meu irmão! Demais a mais a duquesa é por ti agora, e não te deixou partir sem te dizer: Até breve! Recebemos todas as noites, só aparecemos em festas depois do Advento, o que significa em bom francês: «Temos ainda todo um mês antes que a minha filha e a minha afilhada sejam apresentadas na sociedade. Não recebemos rapazes, compete‑lhe pois ser o mais jovem, isto é, o mais apressado e o feliz.

‑ Meu Deus, meu Deus! ‑ disse a marquesa ‑ isto é um sonho, meu pobre filho! E eu que não pensava em ti! Imaginava que tendo iludido tantas mulheres não conseguirias encontrar uma tão ingénua... tão generosa... tão sensata afinal, porque tu estás corrigido, e eu iria jurar que farás a duquesa de Aléria perfeitamente feliz...

‑ Por isso, minha mãe, respondo eu! ‑ exclamou o duque ‑ O que me tornou mau, foi a dúvida, a experiência, foram as levianas e as ambiciosas, mas uma rapariga encantadora, uma criança de dezasseis anos que não confiasse em mim, arruinado como estou... mas, tornar‑me‑ia criança também! Ah! a minha mãe seria muito feliz também, não é Verdade? E tu, Urbano, que tanto receavas ser obrigado a casar?

‑ Então ele fez voto de celibato? ‑ disse a marquesa, fitando o marquês com ternura.

‑ Não! ‑ respondeu Urbano com vivacidade, mas bem vê que não é tarde, pois que o meu irmão mais velho faz tão belas conquistas! Ainda que me conceda alguns meses de reflexão...

‑ De facto, de facto, nada apressa realmente, ‑ replicou a marquesa, ‑ e visto que temos tão boa sorte, confio no futuro... e em ti, meu querido filho.

Estava louca de alegria e de esperança. Abraçou os filhos. Depois abraçou também Carolina, dizendo‑lhe: ‑ E tu, boa e linda lourinha, alegra‑te também.

Carolina sentia uma alegria que não queria confessar a si própria. Vencida pela fadiga dum dia de emoções, adormeceu deliciosamente, dizendo consigo que a crise estava adiada, e que durante algum tempo ainda não veria o obstáculo, sem remédio e sem recurso, do casamento, erguer‑se entre ela e o sr. de Villemer.

 

A marquesa quase não dormiu. Morria de impaciência por ver chegar o dia seguinte. A insónia entristeceu‑a. Via tudo negro e esperava uma decepção. Mas na correspondência que Carolina lhe trouxe havia uma carta que a transportou de alegria. «Minha amiga, ‑ dizia a sr.a de Dunières, ‑ temos uma mutação à vista, como na Ópera. É de seu filho mais Velho que devemos ocupar‑nos. Acabo de conversar com Diana. Não lhe denegri o procedimento do duque, não, a minha religião

obrigava‑me a não lhe ocultar a Verdade. Respondeu‑me que eu lhe contara tudo isso falando‑lhe do marquês, que não podia dizer‑lhe coisa alguma em que não tivesse já reflectido, e que, de tanto reflectir, viera a interessar‑se igualmente pelos dois irmãos, cuja amizade tão nobre era que, mesmo pensando na situação do duque, achava mais merecimento em saber suportar o fardo do reconhecimento que em prestar o serviço exigido pelo dever. E ajuntou que, visto que a aconselhava a fazer a felicidade dum homem superior, se sentia inclinada para aquele que mais grato lhe seria. Enfim, os irresistíveis encantos do celerado do seu filho, fizeram o resto. Demais não deixo iludir‑me com respeito a Diana. Ela julga que o título de duquesa irá melhor ao seu porte de rainha. Depois gostará de frequentar a sociedade, e como alguém lhe dissera que os gostos do marquês são opostos, notava‑lhe há algum tempo uma inquietação de que não compreendia a causa. Confessou‑me tudo. Disse‑me que, como irmão, o marquês era o que se podia desejar de melhor, mas que, como marido, o duque lhe mostra a Vida mais risonha. Enfim, minha querida, parece‑me tão decidida que nada mais tenho a fazer do que prestar todo o meu apoio neste caso imprevisto como no outro.

«Levar‑lhe‑ei minha filha amanhã de manhã, e como Diana irá conosco, Vê‑la‑á sem mostrar estar ao facto de coisa alguma, mas estou bem certa que acabará de a seduzir».

 

Enquanto a marquesa e o duque se entregavam à felicidade, Carolina achava‑se um pouco mais só, porque o filho e a mãe tinham durante o dia longas conversas em que ela era naturalmente de mais, e durante as quais tocava música ou escrevia a sua correspondência no salão, sempre deserto até às cinco horas. Ali ninguém a incomodava e estava pronta ao primeiro chamamento da marquesa.

Um dia o marquês entrou trazendo um livro, e, sentando‑se com modo estranhamente resoluto e tranquilo à mesma mesa em que ela escrevia, pediu‑lhe permissão para trabalhar nesta sala onde se respirava melhor que no seu pequeno quarto.

‑ Com a condição ‑ disse ‑ de que a não farei fugir, porque compreendo muito bem que há alguns dias me evita. Não negue! ‑ ajuntou, Vendo que ia responder. ‑ Tem para isso razões que respeito, mas que não são fundadas. Falando‑lhe de mim como ousei fazê‑lo no Jardim das Plantas, assustei a delicadeza da sua consciência. Julgou talvez que eu ia tomá‑la por confidente de algum projecto pessoal de natureza a perturbar a paz da minha família, e não queria ser cúmplice, mesmo passiva, da minha revolta.

‑ Precisamente, ‑ respondeu Carolina ‑ e, sr. marquês, adivinhou muito bem o que em mim se passava.

‑ Considere pois o que eu lhe disse como não dito. ‑ replicou Urbano, com uma firmeza tranquila que impunha o respeito da sua palavra ‑ não lhe direi que esqueça, mas peço‑lhe que de forma alguma se preocupe e não receie que eu ponha em luta a sua dedicação por minha mãe com a generosa amizade que se dignou conceder‑me.

Carolina foi obrigada a curvar‑se ante o ascendente da franqueza. Não compreendeu tudo o que se passava no espírito do marquês, toda a restrição que havia nas suas palavras. Julgou que se enganara ou que se assustara demasiado com uma Veleidade de que ele já triunfara. Aceitou intimamente a promessa do seu amigo como reparação formal dum instante de perturbação, e desde então encontrou novamente todo o encanto, toda a segurança da amizade.

Viram‑na pois todos os dias, e mesmo algumas Vezes durante longas horas, no salão, quase sob o olhar da marquesa, que se regosijava de Ver Carolina continuar a ajudar o marquês nos seus trabalhos. Na realidade só o ajudava de memória: ele fizera provisão de documentos no campo, e escrevia o terceiro e último volume com uma rapidez e facilidade admiráveis. A presença de Carolina incutia‑lhe coragem e inspiração. Junto dela, não sentia dúvidas nem desalentos. Tornara‑se‑lhe tão necessária que lhe confessou não poder interessar‑se por coisa alguma quando estava só. Era feliz quando, durante o trabalho, lhe ouvia a voz. Longe de o estorvar, essa voz amada sustentava‑lhe a harmonia do pensamento e a elevação do estilo. Para a ouvir, pedia‑lhe que lesse, que falasse, sem receio de lhe causar a menor perturbação. Pelo contrário, tudo o que lhe fazia gozar a sua presença lhe exaltava a alma, porque era ele, não uma outra pessoa que se agitava ao seu lado, mas o seu próprio espírito que sentia viver perto de si.

O casamento do duque de Aléria caminhava com admirável rapidez. A bela Diana estava seriamente enamorada, nada queria ouvir contra Caitano. A duquesa de Dunières, que também fizera um casamento de inclinação com um antigo estróina, agora perfeitamente regenerado e que a tornava muito feliz, tomou o partido da afilhada, e tão bem advogou a sua causa que tutores e conselho de família foram obrigados a ceder ante a vontade da opulenta herdeira.

Esta declarou ao noivo, antes mesmo que ele lhe exprimisse o seu desejo a tal respeito, que contava pagar as suas dívidas ao marquês, e o marquês viu‑se forçado a aceitar a promessa duma restituição de que a leal e altiva donzela fazia uma condição ao casamento. Tudo o que o marquês obteve foi que lhe não seria restituída a parte da herança materna a que renunciara quando a sr.a de Villemer teVe de pagar pela primeira vez as dívidas do filho mais velho. Na opinião do marquês, sua mãe enquanto Viva tinha o direito de dispor da fortuna que lhe pertencia, e considerava‑se como inteiramente indemnizado, pois que, devendo ela habitar doravante o palácio de Xaintrailles e as casas de campo de sua nora, explêndidas e mais próximo de Paris que o pobre solar de SéVal, não viveria mais à sua custa. Nestas questões de família, todos se conduziram com a mais exquisita delicadeza e a mais louvável generosidade. Carolina julgou dever fazê‑lo notar ao marquês para o levar a insistir, no seu livro, sobre as reservas equitativas a favor das famílias em que o Verdadeiro sentimento da nobreza servia ainda de base a reais Virtudes.

Com efeito, todos fizeram o seu dever, a menina de Xaintrailles não queria um contrato de casamento que, colocando a sua fortuna ao abrigo das delapidações do marido, contivesse cláusulas ofensivas para a altivez deste, e o duque, pelo contrário, exigiu que o regime dotal atasse, as asas à sua magnífica imprevidência. Foi pois escrito e rubricado no acto que essa disposição era introduzida a pedido e por expressa Vontade do futuro cônjuge.

Reguladas assim todas as coisas, achava‑se a marquesa associada a uma opulenta existência, e embora ela declarasse contentar‑se com uma simples palavra e entregar‑se à discrição de seus filhos, foi‑lhe assegurada, pelo mesmo contrato em que a noiva tão bem soubera fazer as coisas, uma óptima pensão, o marquês por seu lado, reentrava na posse dum capital que representava uma grande abastança. Inútil é dizer que recuperou essa fortuna com a mesma tranquilidade com que a alienara.

Enquanto se trabalhava no enxoval da noiva, o duque andava muito ocupado com as prendas que devia oferecer‑lhe, e para as quais seu irmão o obrigara a aceitar o dinheiro necessário como presente de noivado. Que trabalho para o duque, escolher diamantes, rendas e enfeites! que entendia mais dessas coisas que a mulher mais Versada na alta ciência do vestuário! Não tinha tempo de comer.

Passava os dias a fazer a sua corte, a conversar com os joalheiros, os fabricantes e as bordadeiras e a contar a sua mãe, que também perdia a cabeça, os mil incidentes e até as verdadeiras surpresas das suas maravilhosas aquisições. No meio de todas estas ocupações, em que Carolina e Urbano tomavam a parte mais insignificante, insinuou‑se, como a seu pesar, a sr.a de Arglade.

Um grande acontecimento transtornara a existência e os projectos de Leonia. No princípio do inverno, seu marido, mais velho que ela vinte anos e que sofria havia muito tempo, sucumbira a uma doença crónica, deixando‑lhe negócios bastante complicados, de que soube sair duma maneira triunfante, graças a uma operação de bolsa, porque jogava desde muito a ocultas do sr. de Arglade, e tirara enfim um bom número da grande lotaria. Achava‑se pois viúva, jovem e encantadora ainda, e mais rica do que nunca fora, o que não impediu de Verter tantas e tão copiosas lágrimas, que se dizia dela com admiração: «Esta pobre mulher era muito afeiçoada ao dever, apesar do seu ar frívolo! Com certeza o sr. de Arglade não era um marido para fazer andar a cabeça à roda, mas ela tem tão bom coração que está inconsolável!» E lastimavam‑na, esforçavam‑se por a distrair, a marquesa, seriamente enternecida, exigia que fosse passar com ela todas as suas tardes solitárias. Nada podia ser mais conveniente, não era aparecer na sociedade, pois que a marquesa não recebia antes das quatro ou cinco horas, nem era mesmo sair, Visto que podia ir de carruagem e como que incógnita. Leonia deixava‑se consolar e divertir, examinando os preparativos do casamento, e por vezes o duque conseguia fazê‑la rir às gargalhadas, depois do que, passando duma crise de nervos a outra, escondia o rosto no lenço das lágrimas, dizendo: ‑ Ah! como é cruel fazerem‑me rir! Faz‑me tão mal.

Através do seu desespero, Leonia apoderou‑se da confiança da marquesa até suplantar insensivelmente Carolina, que o não notava e que estava a cem léguas de lhe pressentir os projectos. Ora eis qual era o projecto capital de Leonia.

Vendo definhar‑se o enfadonho marido e enquanto arredondava o seu bolsinho particular, a sr.a de Arglade perguntava a si própria que espécie de sucessor poderia dar‑lhe, e, como não sabia ainda do casamento já resolvido com a menina de Xaintrailles, lançava as suas vistas sobre o duque de Aléria. JulgaVa‑o imatrimoniàvel, em boas condições de fortuna juntas a nobreza e mocidade, e dizia consigo, não sem lógica e plausibilidade, que a Viúva dum bom fidalgo, rica e sem filhos, era o melhor partido a que podia aspirar um libertino sem eira nem beira. Leonia não duvidava pois do êxito e, continuando a ocupar‑se com muita habilidade da colocação dos seus capitais, dizia para si com suprema tranquilidade: ‑ Agora, acabou, tenho bastante dinheiro, não jogarei mais. A minha ambição, satisfeita por este lado, deve mudar de objecto. É preciso apagar a mancha original de burguesia que me prejudica ainda na sociedade, é‑me necessário um título! O de duquesa Vale bem a pena que se pense nele.

E pensou por muito tempo, mas o sr. de Arglade morreu demasiado tarde. Passados apenas os primeiros dias de luto, quando fazia a sua visita à marquesa, soube que não devia pensar mais nele.

Leonia dirigiu então as suas baterias para o marquês de Villemer. Era menos brilhante e mais difícil, mas ainda satisfatório como título, e não era impossível, na sua opinião. A marquesa preocupaVa‑se extremamente com um celibato cuja perspectiva parecia novamente seduzir a indiferença de seu filho. Abriu pois o coração à sr.a de Arglade.

‑ Este, ‑ dizia ela ‑ faz‑me um medo atroz com o seu ar tranquilo. Receio que tenha não sei que ideias contra o casamento, talvez contra as mulheres em geral! É mais que tímido, é selvagem, e todavia é encantador quando se familiariza! Ser‑lhe‑ia necessário encontrar uma mulher que fosse a primeira a amá‑lo e que tivesse a coragem de se fazer amar.

Leonia aproVeitaVa‑se destas revelações.

‑ Ah! meu Deus! ‑ respondia estouvadamente ‑ deveria encontrar uma mulher de mais elevada condição que a minha, e que não fosse viúva do melhor dos homens, mas que tivesse a minha idade, a minha fortuna e o meu carácter.

‑ O seu carácter é demasiado espontâneo para um homem tão reservado, minha querida!

‑ É por isso que uma pessoa com o meu génio o salvaria. Bem sabe que os extremos!... Se eu pudesse amar alguém, o que agora, ai! é impossível, amaria precisamente um homem grave e frio. Ah! meu Deus! não era esse o carácter do meu pobre marido? Pois bem! a sua gravidade temperava a minha Vivacidade, e a minha alegria iluminava a sua melancolia. Quantas vezes mo disse! Nunca tinha amado antes de me conhecer, e também ele, precisamente, tinha horror ao casamento. Teve mesmo receio da minha leviandade, quando me viu pela primeira Vez, depois repentinamente notou que eu lhe era necessária à vida, porque essa aparente leviandade, que, bem o sabe, me não impede de ter coração, era para ele como um clarão, um bálsamo. São ainda palavras suas, pobre amigo! Ah! não falemos de casamentos. Faz‑me lembrar demasiado que estou só para sempre!

Leonia encontrou meio de Voltar muitas Vezes ao assunto, e sob formas tão diversas, tanto a propósito, com uma aparência de imprevisto, com tanto interesse sob a forma de desprendimento, que a ideia penetrou no espírito da marquesa sem que ela bem a compreendesse, e quando a sr.a de Arglade a viu disposta a não a rejeitar absolutamente, em tempo e lugar competente, começou o ataque directo ao sr. de Villemer com a mesma astúcia, os mesmos estou'Vamentos encantadores, as mesmas reticências de desespero conjugal, as mesmas insinuações, e tudo isto à queima‑roupa e sob o olhar de Carolina, com quem por forma alguma se inquietava.

Mas a tagarelice da sr.a de Arglade era antipática ao marquês, e se nunca lho dera a conhecer, fora porque nunca lhe interessara ocupar‑se dela. EstaVa longe de ser o selvagem inexperiente que se supunha, tinha mesmo um tacto muito delicado para com as mulheres: assim, logo aos primeiros assaltos de Leonia, compreendeu as suas intenções, adivinhou‑lhe os manejos, e fez‑lho tão bem entender, que ela se sentiu ferida no mais íntimo da alma. Desde então abriu os olhos e surpreendeu, por mil delicados indícios, o imenso amor que a menina de Saint‑Geneix inspirava ao marquês. Teve, com essa descoberta, uma grande satisfação, pensou Vingar‑se, e esperou a ocasião.

O casamento do duque estava fixado para os primeiros dias de Janeiro, levantaram‑se porém tais protestos, em alguns rígidos salões do bairro de Saint Germain, contra a facilidade com que a duquesa de Dunières acolhera o pedido de casamento desse grande malfeitor, que ela resolveu, para se furtar à censura de precipitação, retardar três meses a felicidade dos noivos, e apresentar a sua afilhada na sociedade. Essa demora não assustou o duque, mas contrariou vivamente a marquesa que estava impaciente por presidir, por conta própria, a Verdadeiras grandes reuniões, com uma nora encantadora que traria rostos juvenis para junto dela. A sr.a de Arglade, pretextando negócios, foi menos assídua, e Carolina retomou as suas funções.

Esta sentia‑se muito menos impaciente que a marquesa por habitar o palácio de Xaintrailes e mudar de hábitos. O marquês não estava decidido a aceitar aposentos em casa de seu irmão, e não explicava os seus projectos pessoais. Carolina assustava‑se com isto, e contudo via, nesse pouco ardor em se encontrar sob o mesmo tecto que ela, a prova da tranquila afeição que dele exigia, mas chegava a essa fase de afecto em que a lógica se acha muitas vezes em falta. Gozava em silêncio dos últimos dias bonitos, e quando a primavera chegou, lastimou o inverno, pela primeira vez na sua vida.

A menina de Xaintrailles dedicara uma grande amizade à menina de Saint‑Geneix, e sentia, pelo contrário, uma pronunciada aversão pela sr.a de Arglade, que encontrava de longe a longe, de manhã, em casa da sua futura sogra, onde ia, não oficialmente, mas nas horas em que podia ser recebida com intimidade, na companhia da senhora e da menina de Dunières. Leonia não mostrou ter notado a altivez da bela Diana. Pensava que a felicidade da menina de Xaintrailles estava nas suas mãos e que podia Vingar‑se dela ao mesmo tempo que de Carolina.

Não foi convidada para as festas do casamento, Visto o luto lhe não permitir aparecer. Todavia em atenção pela marquesa, para quem se mostrava perfeita, Diana disse‑lhe simplesmente algumas palavras de pesar pelo motivo que a impedia de comparecer. E nada mais. Carolina, pelo contrário, foi escolhida para acompanhar a noiva, e recebeu numerosos presentes da futura duquesa de Aléria.

Enfim, o grande dia chegou, e pela primeira vez depois de muitos anos de tristeza e de miséria, a menina de Saint‑Geneix, vestida com delicado gosto, e mesmo com certa riqueza, com os presentes da noiva, apareceu em todo o brilho da sua beleza e da sua graça. E tal foi a sensação que produziu, que todos perguntavam de onde saíra essa encantadora desconhecida. Diana respondia: ‑É uma amiga minha, uma senhora de extraordinário merecimento que está confiada a minha sogra, e que me sinto muito feliz por conservar junto de mim.

O marquês dançou com a noiva e com a menina de Dunières, para poder dançar com a menina de Saint‑Geneix. Carolina ficou tão surpreendida que não pôde impedir‑se de lhe dizer em voz baixa, sorrindo: ‑ Como? Depois de termos assistido juntos ao estabelecimento do regimen alodial e à libertação das comunas, vamos dançar uma contradança?

‑ Sim, sim ‑ respondeu ele com vivacidade ‑ o que Valerá muito mais porque sentirei a sua mão na minha.

Era a primeira Vez que o marquês mostrava abertamente a Carolina uma emoção em que os sentidos podiam ter alguma parte. E ela sentiu com efeito que a mão lhe tremia e o seu olhar devorava. Teve medo, mas pensou que, uma vez já ele parecera apaixonado por ela, e que soubera triunfar desse mau pensamento. Com um homem tão casto e duma tão elevada moralidade deveria recear um instante de abandono? Não sentia ela também, embora com o desejo de a vencer, essa vaga embriaguez do amor?

Não podia deixar de se reconhecer extraordinariamente linda, todos os olhares lho diziam, eclipsava a própria noiva com os seus dezassete anos, os seus diamantes, e o seu belo sorriso de triunfo apaixonado. As velhas damas diziam à duquesa: «Essa órfã pobre que aí tem é demasiado linda, é inquietante!» Os próprios filhos da duquesa, mancebos de porte distinto e de grande futuro, fitavam a menina de Saint‑Geneix de maneira a justificar as apreensões das experientes matronas. O duque, comovido por Ver que a sua jovem esposa não pensara em mostrar a menor suspeita de ciúme, reconhecido também pela atitude delicadamente circunspecta de Carolina para com ele, testemunhava‑lhe particulares atenções. A marquesa afectava, para lhe não prejudicar este belo dia, tratá‑lo mais maternalmente que nunca, e fazer desaparecer toda a aparência de servidão. Enfim, estava num desses momentos da Vida em que, a despeito dos caprichos da fortuna, o império natural que exercem a inteligência, a honra e a beleza parece remoçar os seus direitos e reconquistar na sociedade o lugar que lhe é devido.

Mas se Carolina lia o seu triunfo em todas as fisionomias, era principalmente no olhar do sr. de Villemer que dele se podia assegurar. Notava também a que ponto aquele homem misterioso se transformara desde o dia em que lhe aparecera tímido, absorto em si próprio e como que desejoso de se ocultar. Mostrava agora tanta elegância de maneiras como seu irmão, com mais graça Verdadeira e distinção real, porque no duque se notava, a despeito da sua grande ciência do porte, essa atitude um pouco teatral que caracteriza a raça espanhola.

 

Pela meia‑noite, tendo os noivos desaparecido discretamente, a marquesa fez sinal a seu filho de que estava fatigada e desejava retirar‑se também.

‑ Dá‑me o teu braço, meu querido filho, - disse‑lhe quando ele chegou junto dela, - não interrompamos Carolina, que dança e que deixo sobre a protecção da sr.a de D...

E como o marquês a amparava do Vestíbulo que conduzia aos seus aposentos - houvera a atenção de lhe poupar o incómodo das escadas ‑ acrescentou: - Querido filho, não serás doravante obrigado a transportar nos braços o triste fardo da tua mãe! Muitas Vezes o fizeste, e quanta confiança eu tinha em ti!... mas sofria com a fadiga que te causava.

‑ E eu terei pena de não ter essa fadiga ‑ disse Urbano.

‑ Como está esplêndido este baile, ‑ continuou a marquesa, depois de ter chegado aos seus aposentos,

‑ e Carolina é a rainha dele! Estou admirada com a beleza e a graça desta pequena!

‑ Minha mãe, ‑ disse o marquês ‑ está realmente muito fatigada? E se lhe pedisse para conversarmos um quarto de hora?...

‑ Conversemos, conversemos, meu filho! ‑ exclamou a marquesa, ‑ só estava fatigada por não poder conversar com aqueles que estimo. E depois, receava tornar‑me ridícula falando demasiadamente da minha felicidade. Falemos, falemos de teu irmão... e de ti também! Meu Deus! não me darás tu um segundo dia como este?

‑ Minha querida mãe, ‑ disse o marquês, ajoelhando‑se diante de sua mãe e tomando‑lhe as duas mãos ‑ só de si depende que também eu tenha em breve o meu dia de suprema alegria.

‑ Ah! que dizes tu? Deveras? Fala então depressa!...

‑ Sim, falarei! É esta a ocasião que eu esperava. Reservava‑me para a hora abençoada, que desejava com todas as forças da minha alma, para essa hora em que meu irmão, reconciliado com Deus, com a verdade e consigo próprio, apertaria nos seus braços purificados uma companheira digna de ser sua filha. E então, eu dir‑lhe‑ia: Minha mãe! também eu posso apresentar‑lhe uma outra filha mais graciosa e não menos pura que a primeira. Amo apaixonadamente há um ano, há mais dum ano, a mais perfeita das criaturas. Ela adivinhou‑o talvez, mas não o sabe, consagro‑lhe tanto respeito e estima que julgo impossível, sem o seu consentimento, obter o dela. Demais ela assim mo fez severamente compreender um dia, a única Vez em que o segredo me ia a escapar sem eu querer. Desde então, há quatro meses, impus‑me novamente o mais rigoroso silêncio. Não queria expô‑la, minha mãe, a incertezas que, graças a Deus, já não existem. A sua sorte, a de meu irmão e a minha estão doravante asseguradas.

Pois que a minha fortuna é agora razoável, tenho o direito de não querer aumentá‑la e de casar segundo os desejos do meu coração. Contudo tenho um sacrifício a pedir‑lhe, e o seu amor materno por certo mo não recusará, por que dele depende a felicidade de toda a minha vida. A mulher que amo pertence a uma digna família, e assim devia ser, pois que a admitiu na sua intimidade, mas não descende duma dessas antigas fidalguias pelas quais minha mãe sente uma parcialidade que entendo não dever combater. Disse que tinha um sacrifício a pedir‑lhe, consentirá em fazer‑mo?! Amar‑me‑á até esse ponto? Sim, minha mãe, sim, o seu coração, que eu sinto palpitar, vai ceder sem pesar e com a sua imensa bondade maternal, à súplica dum filho que a adora.

‑ Ah! meu Deus! é de Carolina que me falas! ‑ exclamou a marquesa, toda trémula ‑ Esperar, espera meu filho! o golpe é rude, e eu não o esperava!

‑ Oh! não diga isso: ‑ replicou o marquês, com exaltação ‑ se o golpe é rude, não quero que o sofra! Renunciarei a tudo, nunca me casarei...

‑ Não te casares!... Ah! meu Deus! mas seria então pior! Vejamos, Vejamos! Deixa‑me reflectir? Talvez não seja tão difícil de aceitar como parece! Não é a nobreza... Seu pai era cavaleiro: é pouco..., mas, enfim, se fosse só isso! Mas essa miséria em que ela caiu... Dir‑me‑ás que sem ti também eu a sentiria, mas eu teria morrido, enquanto

que ela teve a coragem de trabalhar para Viver, e de aceitar uma espécie de domesticidade...

‑ Santo Deus! ‑ exclamou o marquês ‑ considerará como mancha o que é todo o merecimento da sua vida?

‑ Não, eu não! ‑ replicou vivamente a marquesa ‑ pelo contrário! mas o mundo é tão...

‑ Tão injusto e tão cego!...

‑ É verdade, e faço mal em me preocupar com ele. Vamos! Já que estamos em maré de casamentos de amor, não tenho mais objecções a fazer! Carolina tem Vinte e cinco anos...

‑ E eu mais de trinta e quatro!

‑ Não é isso. Ela é muito nova, se o seu coração for tão puro e tão jovem como o teu, mas ela amou!

‑ Não. Conheço toda a sua vida, que a irmã me contou, esteve para casar, nunca amou realmente.

‑ Mas entre esse casamento desfeito e o dia em que Veio para nossa casa, passaram‑se anos...

‑ Informei‑me. Conheço a sua Vida dia a dia e quase hora a hora. Se lhe digo, minha mãe, que a menina de Saint Geneix é digna de si e de mim, é porque o sei. Não estou cego por uma paixão louca. Não, foi um amor sério, fundado na reflexão, na comparação com as outras mulheres, na certeza, que me deu força para me calar, para esperar e desejar convencê‑la com conhecimento de causa.

O marquês falou ainda por muito tempo com sua mãe, e triunfou. Empregou toda a eloquência da paixão e toda a ternura filial de que tantas provas tinha dado. A mãe comoveu‑se e cedeu.

‑ Então?... ‑ exclamou o marquês ‑ permite‑me que a chame aqui em seu nome? Quer que, pela primeira Vez, diante de si, aos seus pés, lhe diga que a amo? Veja, não ouso ainda dizer‑lho a sós. Um olhar frio, uma palavra de desconfiança despedaçar‑me iam o coração. Aqui, na sua presença, falarei, saberei convencê‑la!

‑ Meu filho, ‑ disse a marquesa ‑ tens a minha palavra! E vês, ‑ disse, apertando‑o nos seus débeis braços ‑ que se não é com bem espontânea alegria que ta dei, é pelo menos com uma ternura sem limites e sem pensamento reservado. Só peço, só exijo uma coisa: é que reflictas, durante vinte e quatro horas, na tua situação. Ela é nova para ti, pois que tens agora o meu consentimento, do que, há apenas uma hora, duvidavas ainda. Até então julgavas‑te separado da menina de Saint‑Geneix por obstáculos que talvez não contasses vencer tão facilmente e que davam certamente uma energia fictícia ao teu desejo. Não agites a cabeça. Que sabes tu de ti próprio? Demais o que te peço é bem pouco. Vinte e quatro horas sem lhe falar, sem a Ver, eis tudo. Também eu tenho necessidade de aceitar perante Deus o partido que acabo de tomar, para que a minha fisionomia, a minha perturbação ou as minhas lágrimas, não deixem adivinhar a Carolina que me custou um pouco...

‑ Oh! sim, tem razão. ‑ exclamou o marquês ‑ Se ela o adivinhasse não me permitiria que lhe falasse... Até amanhã, pois, minha boa mãe! Vinte e quatro horas, disse? Tanto tempo!... E depois... é uma hora da manhã. Recolher‑se‑á tarde ainda na próxima noite?

‑ Com certeza, pois que temos concerto amanhã nos aposentos da jovem duquesa. É preciso, portanto, que durmamos esta noite. Voltas para o baile?

‑ Ah! Consinta‑mo, ela ainda lá está!... e estava tão linda com o seu vestido branco e as suas pérolas! Eu nem ousava fitá‑la... Agora é que vou Vê‑la!

‑ Pois bem! faz‑me também o sacrifício de lhe não falares nem a veres até amanhã à noite. Jura‑me, Visto que não poderás dormir, que, durante estas horas de solidão, pensarás nela, em mim e em ti próprio. Só voltarás aqui antes da hora do jantar. Assim é preciso, jura‑mo!

O marquês jurou e sustentou a sua palavra, mas a solidão, a noite, o pesar de não ver Carolina e de a deixar exposta aos olhares e às homenagens de estranhos, só conseguiram aumentar‑lhe a impaciência e avivar‑lhe o ardor da paixão. Demais as precauções de sua mãe, embora fossem prudentes, eram pueris para com um homem que reflectia e desejava há tanto tempo.

Carolina admirou‑se de que o marquês não voltasse, e foi uma das primeiras a retirar‑se, querendo persuadir‑se que se não enganara supondo que ele triunfaria rapidamente de si próprio.

Vê‑se como estava longe de pressentir a Verdade.

A sr.a de Arglade tinha espiões no baile, e, entre outros, um que se preparava para a desposar, um Secretário de embaixada, que, logo na manhã seguinte, lhe foi participar o grande êxito da dama de companhia. O ar exaltado do marquês não escapara à penetração da maleVolência, e o aprendiz de diplomata previra até que uma conversa interessante se ia travar entre o marquês e sua mãe na ocasião em que saíram juntos.

Leonia aparentou ouvir essa notícia com indi ferença, mas pensou que chegara a ocasião de proceder, e ao meio‑dia estava nos aposentos da marquesa, onde se apresentava ao mesmo tempo que Carolina.

‑ Um instante, minha querida amiga, deixe‑me passar primeiro, é uma coisa urgente, um serviço a prestar a uma pobre gente que não quer ser conhecida.

Apenas ficou só com a marquesa, desculpou‑se por lhe Vir falar dos pobres em dias de tanto júbilo.

‑ São, pelo contrário, estes os dias dos pobres ‑ respondeu a marquesa, - fale. Uma das minhas maiores alegrias será poder doravante dar mais esmolas.

Leonia levava o pretexto preparado. Depois que fez o seu pedido e obteve a assinatura da marquesa para uma lista de subscrição, fingiu querer retirar‑se imediatamente para que ela lhe pedisse que se demorasse.

Inútil será repetir os hábeis rodeios com que a sua perversidade soube levar a conversa ao ponto que desejava. Essas infâmias do coração, infelizmente demasiado vulgares, estão na memória de todos aqueles que lhes hajam sentido os cruéis efeitos, e bem raros são os que têm sido poupados pela calúnia.

Falou‑se naturalmente da felicidade de Caitano e das perfeições da jovem duquesa. ‑ O que mais admiro é que ela se não mostre ciumenta de ninguém, nem mesmo de... Ah! perdão, ia escapar‑me o nome!

Voltou por três Vezes ao assunto, recusando sempre dizer o nome que começava a inquietar a marquesa, mas que enfim lhe escapou. Esse nome era o de Carolina.

Apressou‑se porém a emendar, dizendo que se tinha equivocado, mas o golpe fora certeiro e a marquesa foi obrigada a arrancar‑lha o juramento de que vira com os seus próprios olhos, em Séval, o duque acompanhar Carolina ao romper do dia, e conversar com ela, segurando‑lhe as mãos nas suas durante três bons minutos, ao fundo da escada da Raposa.

E sobre isto fez prometer à marquesa, em cuja palavra confiava, que a não trairia e lhe não grangearia inimigos, a ela que nunca os tivera, dizendo‑lhe que estava desesperada com a insistência que lhe arrancara essa revelação, que melhor teria feito em desobedecer, que no fundo tinha amizade a Carolina, mas que pensando bem, visto que fora ela quem afiançara o seu comportamento, lhe cabia talvez o dever de confessar que se havia enganado.

‑ Ora! ora! ‑ disse a marquesa, perfeitamente senhora de si, ‑ nada disto é de gravidade! Ela poderá ter sido mesmo muito sensata, e haver cedido ao irresistível duque! Ele é tão hábil!... Não receie, eu nada sei, e procederei em tempo e lugar próprio, se assim for necessário, da maneira mais conveniente.

Carolina encontrou a marquesa duma palidez que a inquietou, e quando lhe perguntou a causa recebeu uma resposta seca.

‑ É a fadiga destes dias de festa ‑ disse ela, ‑ não será nada. Faça‑me o obséquio de me ler as cartas.

Carolina lia, mas a sr.a de Villemer não a escutava. Pensava no que iria fazer. Continha uma profunda indignação contra a rapariga e um violento pesar pela dor que teria de causar ao marquês e a esses sofrimentos da mãe misturava‑se todavia a involuntária satisfação da fidalga, liberta duma palavra que dera com sacrifício, e em que, havia doze horas, pensava com terror.

Quando assentou numa resolução, interrompeu bruscamente a leitora, dizendo‑lhe num tom glacial: ‑ à menina de Saint‑Geneix, desejo falar‑lhe seriamente. Um dos meus filhos, julgo inútil dizer qual, parece ter experimentado ultimamente pela menina sentimentos que por certo não animou.

Carolina tornou‑se mais pálida que a marquesa, mas forte da sua consciência, respondeu sem hesitação:

‑ Ignoro o que quer dizer, minha senhora. Nenhum dos seus filhos me manifestou sentimento algum de que me possa seriamente assustar.

A marquesa, tomando esta resposta como uma impudente mentira, lançou à pobre rapariga um olhar de despreso e conservou‑se por instantes silenciosa. Depois replicou:

‑ Não lhe falo do duque, é perfeitamente inútil defender‑se sobre esse ponto.

‑ Não me queixo nem dele nem de seu irmão ‑ respondeu Carolina.

‑ Creio bem! ‑ disse a marquesa com um sorriso esmagador, - mas deveria queixar‑me eu se a menina tivesse a pretensão...

Carolina interrompeu a marquesa com uma violência que lhe não foi possível dominar.

‑ Nunca tive pretensão alguma ‑ exclamou ‑ e ninguém no mundo tem o direito de me falar como se eu fosse culpada! Perdão, minha senhora ‑ acrescentou vendo a marquesa assustada com a sua exaltação ‑ interrompi‑a, respondi‑lhe Inconvenientemente! Perdoe‑me. Estimo‑a, sou lhe dedicada até ao ponto de lhe dar o meu sangue, e foi por essa razão que uma suspeita da sr.a marquesa me enlouqueceu... Mas devo conter‑me e conter‑me‑ei!... Acho que há um mal entendido entre nós. Digne‑se explicar‑me... ou interrogar‑me, responderei com toda a tranquilidade que me seja possível.

‑ Minha querida Carolina ‑ disse a marquesa com doçura ‑ não a interrogo, advirto‑a. Não é minha intenção considerá‑la culpada, nem magoá‑la com perguntas inúteis. Era senhora do seu coração...

‑ Não, minha senhora, não era.

‑ Muito bem! contrariou‑o então a seu pesar ‑ disse a marquesa, em cuja expressão de novo se notava um irónico desdém.

‑ Não! mil vezes não! ‑ replicou Carolina com energia ‑ não era isso que eu queria dizer. Sabendo que me era proibido dispor dele por Vários motivos, qual deles o mais grave, a ninguém o entreguei.

A marquesa fitou Carolina com espanto.

‑ Como ela sabe mentir! pensou. Depois disse para si que, no que respeitava ao duque, a pobre rapariga não era obrigada a confessar‑se, que a inclinação que por ele sentira devia ser considerada como se não existisse, visto que, no fim de contas, ela lhe não criara embaraços, nem lhe reclamara direito algum que lhe prejudicasse o casamento.

Essa ideia, que ainda lhe não ocorrera, mudou subitamente as disposições da marquesa, e como Visse que o seu silêncio desesperava Carolina, cujos olhos se enchiam de lágrimas ardentes, sentiu reviVer a sua antiga amizade por ela e até mesmo um novo género de estima.

‑ Minha querida ‑ disse, estendendo‑lhe as mãos ‑ perdoe‑me! Melindrei‑a, não me expliquei bem. Admitamos mesmo que fui um pouco injusta. No fundo, conheço‑a melhor do que pensa, e aprecio o seu procedimento. É desinteressada, prudente, generosa e sensata. Se lhe aconteceu... impressionar‑se de mais com certas assiduidades do que para sua felicidade se deveria desejar, não é todavia menos certo que esteve sempre pronta a sacrificar‑se e que ainda hoje o estaria, não é Verdade?

Carolina não compreendia, nem podia compreender, que houvesse em tudo isto uma alusão ao casamento de Caitano. Julgou que só se tratava do irmão, e como jamais experimentara um instante de fraqueza, entendeu que a marquesa não tinha o direito de revolver os dolorosos segredos da sua alma.

‑ Nunca tive coisa alguma a sacrificar ‑ respondeu ela com altivez‑ ‑ Se a sr.a marquesa tem alguma coisa a ordenar‑me, diga‑o, minha senhora, e não pense que há merecimento da minha parte em lhe obedecer.

‑ Quer dizer... e diz, minha querida, que partilhou a afeição que o marquês sente por si?

‑ Nunca a conheci.

‑ Nem a adivinhou?

‑ Não, minha senhora, e não creio nela. Quem pode fazer‑lhe acreditar o contrário? Não ele, seguramente!

‑ Pois bem! perdoe, foi ele. Veja a confiança que em si tenho! Digo‑lhe a Verdade, entrego‑me sem reserva à sua grande alma. Meu filho ama‑a e julga poder ser amado pela menina!

‑ O sr. marquês enganou‑se estranhamente ‑ respondeu Carolina, ferida por uma confissão que, assim apresentada, era quase uma ofensa.

‑ Ah! diz a verdade, bem vejo ‑ exclamou a marquesa, iludida pela altivez da menina de Saint‑Geneix, e, desejando apoderar‑se dela pelo amor próprio, beijou‑a na fronte. ‑ Obrigada, minha querida filha, - disse‑lhe, - restitui‑me a vida! É muito franca e muito nobre para me punir das minhas suspeitas brincando com o meu repouso. Pois bem, permita‑me que diga a meu filho Urbano que sonhou, e que esse casamento é impossível, não pela minha vontade, mas pela sua.

Estas palavras imprudentes esclareceram Carolina. Compreendeu a admirável delicadeza que levara o marquês a dirigir‑se à mãe antes de lhe declarar o seu amor, mas não abusou dessa descoberta porque compreendeu quanto a marquesa repelia a ideia daquele casamento. Atribuiu esse rigor à ambição que lhe conhecia e que já há muito tempo previra. Estava bem longe de supor que, depois de ter cedido sem demasiada resistência, a marquesa só retirava a palavra que dera porque acreditava que ela cometera uma falta.

‑ A sr.a marquesa, - respondeu ela com certa severidade ‑ nunca deve errar aos olhos de seu filho, bem o compreendo, e, quanto a mim, declinando a honra que ele desejava fazer‑me, não tenho a temer censura alguma da sua parte. Dirlhe‑á, de resto, o que entender mais conveniente, não estarei presente para o desmentir.

‑ Pois quê! quer deixar‑me? ‑ exclamou a sr.a de Villemer assustada com um resultado que não previra tão súbito, se bem que secretamente o desejasse. - Não, não! é impossível! seria perder tudo... Meu filho ama‑a com uma impetuosidade... de que não receio as consequências para o futuro, se me ajudar a combatê‑las, mas cuja vivacidade temo no primeiro momento. Ah!... segui‑la‑á talvez... ele é tão eloquente!... triunfará da sua resistência, fá‑la‑á voltar, e serei obrigada a dizer‑lhe... o que jamais desejaria que ele soubesse!

‑ Não quer dizer‑lhe ‑ não! ‑ replicou Carolina, sempre iludida e não sentindo de forma alguma a ameaça da suposta falta suspensa sobre a cabeça ‑ sou eu que devo dizer‑lho? Pois bem! escrever‑lhe‑ei, e a minha carta ser‑lhe‑á entregue pela sr.a marquesa.

‑ Mas o seu pesar... a sua cólera talvez... não reflectiu nisso?

‑ Deixe‑me partir, minha senhora ‑ respondeu vivamente Carolina, a quem o pensamento desse pesar comovia até ao mais profundo da alma ‑ não vim aqui para sofrer a este ponto. Fizeram‑me entrar para sua casa sem sequer me dizerem que tinha filhos. Deixe‑me sair dela de cabeça levantada. Não tornarei a Ver o sr. marquês de Villemer, eis tudo o que posso prometer‑lhe. Se ele me seguir...

‑ Não o duvide! Meu Deus, fale mais baixo! Se alguém a ouvisse!... E se ele a seguir, que fará?

‑ Não me exporei a ser seguida. Queira permitir‑me que tome as precauções que a minha prudência me ditar. Dentro duma hora Voltarei para me despedir da sr.a marquesa.

 

A marquesa viu Carolina erguer‑se e retirar‑se com tanta energia que nem tentou retê‑la. Sentia que a tinha defendido e estava desgostosa por lhe mostrar que sabia tudo, quando afinal não adivinhara o principal: o grande amor de Carolina.

Pelo contrário, queria persuadir‑se de que continuaVa a amar o duque, que se sacrificara à felicidade dele, ou que, talvez, como rapariga positiva, aceitava as suas condições e contava com uma recrudescência de amizade depois da lua de mel. «Em tal caso," pensou a marquesa, "seria perigoso que ela ficasse aqui. Poderia acarretar desgraça um dia ou outro ao meu juvenil par, mas é demasiado cedo para a deixar afastar‑se tão bruscamente: o marquês ficaria como louco! Ela vai tranquilizar‑se, fazer os seus planos, e quando Vier submetê‑los à minha aprovação, convencê‑la‑ei a que confie nos meus".

Durante uma hora, a marquesa fez pois os seus projectos. Tornaria a Ver seu filho à noite, como estava combinado, e dir‑lhe‑ia que tinha sondado as disposições de Carolina, e que a achava fria para com ele. Evitaria durante alguns dias a explicação decisiva.

Ganharia tempo, levaria Carolina a desanimá‑lo ela própria, mas com doçura e prudência. Enfim, julgava dominar o destino quando Viu que as horas se passavam e Carolina não chegaVa. Mandou perguntar por ela. Disseram‑lhe que saíra de carruagem com uma pequena mala e deixara a Carta seguinte:

 

«Senhora marquesa:

«Recebi a triste notícia de que um dos filhos de minha irmã está gravemente doente. Perdoe‑me não lhe ter pedido licença para correr a casa dela mas a sr.a marquesa tinha visitas. Demais, sei como é boa, e que me concederia Vinte e quatro horas. Estarei de volta amanhã à noite. Receba a expressão do meu mais terno e mais profundo respeito.

Carolina »

 

‑ Muito bem! às mil maravilhas! ‑ disse a marquesa consigo, após um instante de surpresa e de receio. ‑ Está de acordo com as minhas ideias, faz‑me ganhar a primeira noite, a mais difícil, seguramente. Prometendo Voltar amanhã à noite, evita que meu filho corra a Étampes. Amanhã provavelmente encontrará um novo pretexto para não Voltar... Mas prefiro ignorar o que ela conta fazer. Não temerei que o marquês me arranque a verdade.

A noite chegou todavia e demasiado depressa para o que ela desejava.

Todos os seus receios aumentaram vendo aproximar‑se a hora de jantar. Se Carolina fugia realmente de Étampes, seria preciso ganhar tempo. Decidiu‑se então a mentir. Não falou ao filho antes de irem para a mesa, arranjando‑se de maneira a estar sempre rodeada de gente: era um grande jantar oficial. Mas não podendo suportar o seu olhar ancioso, disse à jovem duquesa, antes de se sentar e de modo a ser ouvida pelo marquês: ‑ A menina de Saint‑Geneix não vem jantar. Tem no colégio uma sobrinha doente, e pediu‑me licença para a ir ver.

Imediatamente depois do jantar, o marquês, que estava num suplício, tentou falar a sua mãe. Ela evitou‑o ainda, mas vendo que se dispunha a sair,' fez‑lhe sinal que se aproximasse, e disse‑lhe ao ouvido: ‑ Carolina foi a Étampes e não ao colégio.

‑ Meu Deus! porque disse então o contrário há pouco?

‑ Enganei‑me. Tinha lido mal o bilhete que me entregaram esta tarde. Não é da pequena que se trata, é duma das outras crianças, mas volta amanhã de manhã. Vejamos! nada há de alarmante. Tem cuidado, meu filho, o teu rosto transtornado surpreende toda a gente. Há maldade em toda a parte: se alguém viesse a supor e a dizer que tens ciúmes da felicidade de teu irmão? Sabe‑se que a noiva a princípio te era destinada...

‑ Oh! minha mãe, trata‑se lá disso! Esconde‑me alguma coisa! É Carolina que está doente. Ela

está aqui, tenho a certeza! Consinta que me informe da sua parte...

‑ Queres então comprometêla? Não será esse o meio de a dispor a teu favor!

‑ Está então muito mal disposta? Minha mãe falou‑lhe?

‑ Não! não a Vi, partiu esta manhã...

‑ Mas disse‑me que o bilhete era desta tarde.

‑ Recebi‑o... há pouco, não sei quando, mas essas perguntas são pouco amáveis, meu filho! Por favor tranquiliza‑te, estão a olhar para nós.

A pobre mãe não sabia mentir. O receio e o pesar do filho trespassavam‑lhe a alma. Lutou uma hora contra essa evidência. Todas as Vezes que ele se aproximava duma porta, seguia‑o com os olhos, receando vê‑lo partir, mas seus olhares cruzavam‑se, e o marquês ficava retido pela expressão ansiosa de sua mãe. Não pôde, porém, dominar‑se por mais tempo. Sentia‑se exausta pela fadiga e pelas emoções das últimas Vinte e quatro horas, pelo movimento das festas que quisera animar com o seu espírito e a sua alegria, e principalmente pelo esforço que fazia depois do jantar para parecer tranquila. Fez‑se pois conduzir aos seus aposentos e desmaiou nos braços do marquês, que a acompanhara.

Urbano prodigalizou‑lhe os mais ternos cuidados, censurando‑se por a ter agitado assim, e jurando‑lhe que estava sossegado e que a não interrogaria sem que estivesse completamente restabelecida. Velou junto dela toda a noite. No dia seguinte, vendo‑a perfeitamente bem disposta, arriscou algumas tímidas perguntas. A marquesa mostrou‑lhe o bilhete de Carolina, e ele esperou resignadanente até à tarde. Chegou então outro bilhete datado de Étampes. A criança estava melhor, mas ainda tão doente que a sr.a Heudebert desejava que Carolina se demorasse mais Vinte e quatro horas.

O marquês prometeu esperar mais essas Vinte e quatro horas, mas, chegado o dia seguinte, enganou sua mãe, e fingindo acompanhar o irmão e a cunhada ao bosque, partiu para Étampes.

Aí soube que Carolina estivera lá com efeito, mas que voltara imediatamente para Paris. Deviam ter‑se cruzado. Quis parecer ao marquês que à sua chegada, que realmente era prevista, tinham escondido uma das crianças e feito calar as outras. Pediu notícias do pequeno doente e desejou vê‑lo. Camila respondeu que dormia e que receava despertá‑lo. O sr. de Villemer não ousou insistir e voltou para Paris, duvidando seriamente da sinceridade da sr.a Heudebert e não sabendo como explicar o seu ar embaraçado e como que desvairado por vezes.

Correu a casa de sua mãe. Carolina não tornara a aparecer, estava talvez no colégio. Foi esperá‑la à saída, e ao cabo duma hora decidiu‑se a mandá‑la chamar da parte da sr.a de Villemer. Responderam‑lhe que a não tinham Visto havia cinco dias. Voltou novamente ao palácio de Xaintrailles e esperou até à noite, sua mãe mostrava‑se ainda adoentada, conteve‑se. Enfim, no dia imediato, exausto de forças, suplicou‑lhe, soluçando, que lhe restituísse Carolina, que julgava escondida no convento por sua ordem.

A sr.a de Villemer, que não sabia realmente mais nada, começava a partilhar a inquietação de seu filho. Todavia Carolina levava apenas uma pequena saca de viagem com roupa, devia ter pouco dinheiro porque o enviava todo à família à medida que o ia recebendo, deixara as jóias e os livros, não podia estar longe.

Enquanto o marquês Voltava ainda ao colégio com uma carta de sua mãe, que, de boa fé e Vencida pelo seu pesar, procurava fazer‑lhe encontrar Carolina, esta envolta numa capa e com o rosto coberto com um espesso véu, descia duma diligência que vinha de Brioude, e levando ela própria a sua pequena mala, dirigia‑se, só, ao longo da pitoresca avenida da cidade do Puy em Velay, para a estação duma outra carruagem pública que partia a essa hora para Issingeaux.

Ninguém lhe viu o rosto nem se preocupou com ela, que, pela sua parte, não fazia pergunta alguma e parecia conhecer perfeitamente as localidades e os hábitos do país.

Contudo era a primeira Vez que ali Vinha, mas resoluta, activa e prudente, comprara, ao sair de Paris, um Guia, com o plano da capital e dos arredores, que estudara cuidadosamente durante o caminho. Subiu pois para a traquitana de Issingeaux, dizendo ao condutor que ficava em BriVes, isto é, a uma légua do Puy. Aí apeou‑se na ponte do Loire, e desapareceu sem perguntar o caminho a ninguém. Sabia que tinha a seguir o Loire ao ponto em que ele se encontra com o Gâgne, depois dirigir‑se para a Roche Rouge, seguindo a torrente que lhe passa na base e subindo‑lhe o curso até à primeira povoação. Não podia enganar‑se. Tinha aproximadamente três léguas a andar a pé, numa terra deserta, e era meia‑noite, mas o caminho desenrolava‑se suavemente, e a lua aparecia clara em belo semi‑círculo, entre as grossas nuvens brancas, que uma fresca brisa de maio impelia para o horizonte.

Onde ia pois deste modo a menina de Saint‑Geneix, em plena noite e em plena montanha, numa região perdida? Não se recordam de que ela tinha por aqueles sítios, na aldeia de Lantriac amigos dedicados e o mais seguro dos refúgios? A sua boa ama, a sr.a Peyraque, outrora Justina Lanion escrevera‑lhe uma segunda carta, havia seis semanas, e Carolina, lembrando‑se que nunca tivera ocasião de falar ao marquês, nem a pessoa alguma de sua família dessas cartas, dessa gente e desses lugares, tivera a inspiração de ir passear lá um mês ou dois, com a certeza de fazer perder inteiramente os seus Vestígios. Dali as precauções que tomou para não ser Vista durante o caminho, e para não despertar a curiosidade fazendo perguntas.

Fora a Étampes abraçar sua irmã, e depois de lhe ter confiado tudo, excepto o secreto sentimento que a agitava, deixara‑lhe uma carta que ao cabo de oito dias, devia ser mandada à sr.a de Villemer.

Nessa carta anunciava a sua partida para o estrangeiro, onde pretendia ter encontrado uma colocação e suplicava que não tivessem inquietação a seu respeito.

Embaraçada com a saca de Viagem, pensava em a deixar na primeira casa que se lhe deparasse quando avistou um comboio de carros que vinha atrás dela. Esperou. Uma família de boieiros jovens e Velhos, acompanhados duma mulher que levava uma criança adormecida debaixo da capa, transportava grandes árvores esquadriadas, destinadas a servirem para construções, por meio dum par de pequenas rodas maciças ligadas com cordas a cada extremidade de trave. Havia seis dessas traves, arrastadas cada uma por uma junta de bois, com um condutor ao lado. Era uma caravana que ocupava um grande espaço no caminho.

‑ A Providência ‑ pensou Carolina ‑ ajuda aqueles que nela confiam. Tenho equipagens à escolha se me sentir cansada.

Dirigiu‑se ao primeiro boieiro, mas o homem sacudiu a cabeça: só entendia o dialecto da região. O segundo parou, fê‑la repetir, encolheu os ombros e continuou a andar, não compreendia melhor. Um terceiro fez‑lhe sinal que se dirigisse à mulher que ia sentada numa das árvores, com os pés sustentados por uma corda. Carolina perguntou‑lhe, continuando a andar, se iam para o lado de Lausonne. Não queria dizer o nome de Lantriac, situado mais Perto na mesma estrada.

A mulher respondeu em francês, com um acento pronunciadamente áspero, que iam a Lausonne, e que era longe, sim!

‑ Dá‑me licença que prenda a minha mala a uma dessas árvores?

A mulher sacudiu a cabeça.

‑ Recusa? ‑ replicou Carolina. ‑ Não lhe peço por favor: pagarei!

A mesma resposta: a montanhesa só compreendera das palavras de Carolina o nome de Lausonne.

Carolina não sabia algaravia ceVenol, que não fizera parte da educação que a sua ama lhe dera. Todavia a música da acentuação ficara‑lhe na memória, e teVe a boa ideia de a imitar, o que fez com tal resultado que os ouvidos da camponesa se abriram imediatamente. Compreendia o francês escondido desta forma, e falava‑o mesmo muito bem.

‑ Sente‑se lá atrás, na árvore que me segue, ‑ disse ela, - e entregue a sua mala ao meu marido. Vamos! não é preciso dar nada por isso, minha filha.

Carolina agradeceu e tomou lugar. O camponês fez‑lhe um estribo semelhante ao que sustentava os pés de sua mulher, e o comboio rústico continuou a Viagem, que essa instalação quase não interrompera. O marido, que caminhava junto dela não tentou conversar. O ceVenol é grave, e se é curioso não se rebaixa a ponto de o mostrar. Contenta‑se em escutar os comentários das mulheres que são ousadamente perguntadoras, mas as árvores eram compridas, e Carolina achava‑se muito longe daquela em que ia a montanhesa para estar exposta às perguntas dela.

As rodas esboroavam a terra humedecida pelas chuvas, na extremidade do declive, mas os pequenos bois não se desviavam uma linha, o boieiro cantava, conservando‑se a distância quando não tinha lugar suficiente ao lado da árvore, e a mãe balançava o corpo parecendo indicar que lutava dificilmente com o sono.

‑ Meu Deus! ‑ disse Carolina ao marido, ‑ não receia pela sua mulher e pelo filho? Ele compreendeu o gesto, se não as palavras, gritou à mulher que não deixasse cair a criança, e continuou a cantar uma canção dolente semelhante a um cântico de igreja.

Carolina habituou‑se depressa à vertigem, não quis ceder à tentação de voltar as costas ao precipício como o camponês lhe indicava por sinais. A região era tão bela e surpreendente, a claridade lunar fazia‑a parecer tão estranha, que nada queria perder daquele espectáculo novo para ela. Nas curvas da rampa, quando os bois haviam feito passar as rodas da frente e a árvore arrastava as detrás de maneira que parecia ameaçar fazer-lhes transpor o Vácuo, a Viajante espantada inteiriçava‑se involuntariamente no seu estribo de corda. O boieiro falava então num tom doce e tranquilo aos animais, e essa voz, que parecia cadenciar‑lhes o passo, dócil à menor sinuosidade do terreno, tranquilizava Carolina como a dum espírito misterioso que dispusesse do seu destino.

‑ E porque terei eu medo? ‑ pensou ‑ Como poderei ter apego a uma vida horrível doravante, a uma série de dias cuja perspectiva é mais assustadora que a morte? Se caísse no abismo despedaçar‑me‑ia instantaneamente. E ainda mesmo que sofresse uma ou duas horas antes de expiar, que seria isso em comparação dos anos de amargura, de solidão e talvez de desespero que me esperam?

Vê‑se que Carolina reconhecia enfim o seu amor e o seu desgosto. Não lhes media ainda todo o alcance, pensando nesse apego instintivo pela Vida que a fizera estremecer alguns instantes antes, e naturalmente animosa, queria persuadir‑se de que fora um pressentimento, uma celeste promessa de próxima cura. ‑ Quem sabe? Esquecerei talvez mais cedo do que me parece. Porventura tenho eu o direito de desejar morrer? Tenho mesmo de ceder às lágrimas e deixar‑me sucumbir? Deixarei minha irmã e seus filhos sujeitos a viverem da compaixão daqueles que me obrigaram a fugir? Não me será preciso trabalhar em breve e para isso não necessito esquecer tudo o que não seja o trabalho?

E depois inquietava‑se com a sua própria coragem. Contando ‑ pensava ainda ‑ que não seja uma cilada da esperança! Lembraram‑lhe palavras do sr. de Villemer, frases do seu livro que revelavam uma vontade, uma penetração, uma perseverança extraordinária. Poderia um tal homem renunciar a uma resolução tomada, deixar‑se iludir por astúcias de guerra e não ter o sentido divinatório do amor elevado ao mais alto grau?

‑ Por mais que eu faça, encontrar‑me‑á se quiser encontrar‑me! Em vão me escondi a cento e cinquenta léguas dele, e me parece impossível que me suponha aqui, terá essa segunda Vista, se me ama com todas as forças que possui. Será portanto inútil fugir e esconder‑me, se é só essa toda a minha força de defesa. É preciso que o meu coração esteja armado contra ele, é preciso que a qualquer hora, e não importa em que ocasião, esteja pronta para o encontrar e dizer‑lhe: Sofra em Vão, morra se assim é preciso, não o amo!

Pensando assim, Carolina foi tomada do desejo súbito de se inclinar para diante, de abandonar o estribo e deixar‑se cair no abismo. Enfim a fadiga Venceu‑lhe as agitações, o caminho continuava a subir, mas menos rapidamente e afastando‑se bastante do corte da ravina, cessando assim todo o perigo. A lentidão da marcha, o balanço monótono da trave e o rangido regular dos jugos contra o timão adormentaram‑lhe o espírito. Via passar lentamente as rochas fantasticamente iluminadas e os cimos das árvores, cuja tenra folhagem se assemelhava a nuvens transparentes. O frio tornava‑se bastante intenso à medida que ia subindo e a sensação do ar Vivo era entorpecedora. A torrente desaparecia na profundidade, mas a sua Voz forte e possante enchia a noite de harmonias selvagens. Carolina sentiu que as pálpebras se lhe tornavam pesadas, e como julgava não estar longe de Lantriac e não queria deixar‑se leVar até Lausonne, saltou em terra e caminhou para despertar.

Sabia que Lantriac ficava numa sinuosidade da montanha, e que estaria perto quando tivesse perdido de Vista a torrente do Gâgne. Com efeito, depois de meia hora de marcha, viu as casas desenharem‑se acima dos rochedos, pegou novamente na sua saca, fez aceitar, não sem custo, algum dinheiro ao camponês, evitou as perguntas da mulher, e ficou para trás afim de lhes deixar atravessar a aldeia, e esperar que se extinguissem os ladridos dos cães, e se tranquilizasse o sono dos habitantes, que desejjava encontrar adormecidos quando chegasse.

Mas nada perturba o sono dos habitantes duma aldeia do Vellay, nada desperta os cães. O comboio de traves passou, os boieiros cantavam sempre, e as rodas saltavam pesadamente nos blocos de laVa que, a pretexto de calçarem as ruas dessas inóspitas povoações, constituem um sistema de defesa muito mais impraticável que os caminhos perigosos pelos quais a elas se chega.

Carolina, notando o profundo silêncio que sucedia ao ruído dos carros, penetrou resolutamente no beco estreito e quase a pique que passava por ser a continuação da estrada. Aí terminavam as suas noções sobre a localidade. Justina não lhe designara a situação da casa em que Vivia. A Viajante, que desejava passar despercebida e entender‑se com a família para não ser conhecida, resolveu não bater em parte alguma, não despertar ninguém, e esperar o dia, que não podia tardar a romper. Pousou a saca junto de si num banco de madeira e sentando‑se sob o alpendre da primeira

casa que encontrou, contemplou o quadro extravagante e pitoresco que formavam os telhados desigual e duramente recortados nas nuvens do céu. A lua passava na estreita zona que deixavam a descoberto os alpendres aproximados. Uma pequena bacia de fonte recebia em cheio a sua luz e o brilhante quarto de círculo dum delgado filete de água de rocha. O aspecto tranquilo e o ruído discreto e contínuo dessa água prateada adormeceram rapidamente a viajante exausta de fadiga.

‑ Que mudança em três dias! ‑ pensava ela, dispondo a mala de forma a poder apoiar a cabeça desfalecida. Era todavia na última quinta‑feira que a menina de Saint‑Geneix, de vestido de tule, com o pescoço e os braços carregados de pérolas e os cabelos ornados de camélias, dançava com o marquês de Villemer, à claridade de mil Velas, num dos mais ricos salões de Paris. Que diria hoje o sr. de Villemer se Visse essa suposta rainha de baile, envolta em burel, deitada à porta dum estábulo, com os pés quase na água corrente e as mãos inteiriçadas pelo frio? ‑ Felizmente o luar está lindo e são duas horas. E então, tenho uma hora ainda para passar aqui, e visto que o sono chega apesar de tudo, bem‑vindo seja ele!

 

Ao romper da manhã, foi Carolina acordada pelas galinhas que cacarejavam, esgaravatando a terra. Ergueu‑se e preparou‑se para procurar o rosto conhecido da ama.

Mas ficou embaraçada. Reconhecê‑la‑ia? Havia já tantos anos que a não Via! Lembrava‑se mais da Voz do que das feições. Subiu e desceu novamente até à última casa no lado oposto do rochedo e aí viu escrito na porta: Peyraque Lanion. Uma ferradura pregada sobre o escrito indicava a profissão de ferrador.

Justina fora a primeira a levantar‑se, segundo o costume, enquanto as cortinas de chita do leito ainda fechadas abrigavam o sono do sr. Peyraque. A divisão principal desse rés‑do‑chão anunciava o conforto duma casa abastada, e o indício desse bem‑estar consistia particularmente na guarnição do tecto feita em grades de ripas e em que se ostentavam monumentais provisões de legumes e de diversos géneros agrícolas, mas a mais escrupulosa limpeza, excepção para os hábitos do país, excluía tudo o que pudesse impressionar desagradaVelmente o olfacto ou a Vista.

Justina acendia o lume e preparava‑se para fazer a sopa que seu marido devia encontrar fumegante ao despertar, quando viu entrar a menina de Saint‑Geneix com o capuz caído sobre os olhos e conduzindo a sua pequena mala. Lançou um olhar distraído à estranjeira, perguntando:

‑ Que vende?

Carolina, que ouviu ressonar Peyraque por detrás da cortina, pôs um dedo nos lábios e lançou o capuz para os ombros. Justina ficou imóvel por um instante, contendo um grito de alegria, e abriu os seus fortes braços com transporte.

Acabava de reconhecer a sua menina: ‑ Venha! Venha! ‑ disse ela, conduzindo‑a para uma pequena e íngreme escada que havia ao fundo da sala ‑ O seu quarto está pronto! Há um ano que a espera! ‑ E gritou ao marido: ‑ Levanta‑te, Peyraque, depressa, e fecha a porta. Há novidades, oh! mas boas!

O quarto caiado e rústicamente mobilado, era como o rés‑do‑chão, duma irrepreensível limpeza. A vista era magnífica, e algumas árvores de fruto subiam até ao nível da janela. ‑ É um paraíso! ‑ disse Carolina à boa mulher. ‑ Só falta um pouco de lume, que tu vais acender. Tenho frio e fome, mas sinto‑me feliz por te ver e por estar em tua casa. Preciso falar‑te em primeiro lugar. Não quero que ninguém aqui saiba quem sou. Tenho para isso boas razões que saberás e por certo aprovarás. Comecemos por fazer as nossas combinações: Viveste em Brioude?

‑ Sim, estive lá como criada antes do meu casamento.

‑ Brioude é longe daqui? Há alguém de lá em Lantriac?

‑ Ninguém, nunca aqui Vêm estranjeiros. É uma' estrada para carros de bois apenas.

‑ Bem vi. Então far‑me‑ás passar por uma pessoa que conheceste em Brioude.

‑ Muito bem, a filha da minha antiga ama!

‑ Não, não sou uma senhora.

‑ Oh! não era uma senhora, era uma modesta comerciante.

‑ Perfeitamente, mas é‑me necessária uma posição.

‑ Ora! é fácil. Vendedora de miudezas, como

era aquela de quem lhe falo.

‑ Mas será preciso Vender alguma coisa?

‑ Encarrego‑me disso. Demais farei constar que já terminou a sua viagem e que a conservo em minha casa por amizade, porque fica, não é verdade?

‑ Um mês, pelo menos.

‑ É preciso que fique sempre. Encontrar‑lhe‑emos uma ocupação, Verá! Ah! e como se chama?

‑ Charlette. Chamavas‑me assim quando eu era pequena. Não te custará. Passarei por ser Viúva, e tratar‑me‑ás por tu.

‑ Como antigamente. Bem, está combinado,! mas que vestuário arranjarás, minha Charlette?

‑ O que tenho. Bem vês que não é luxuoso.

‑ Sim, não é muito enfeitado, e pode passar, mas esses lindos cabelos loiros chamarão a atenção, e um chapéu à moda da cidade causará espanto.

‑ Assim o pensei, e por isso comprei em Brioude o toucado à moda da terra. Tenho‑o ali no meu saco de viagem e vou arranjar‑me imediatamente, para o caso duma surpresa.

‑ E eu Vou já fazer o teu almoço. Comerás com o Peyraque?

‑ E contigo, assim o espero‑ Amanhã ajudar‑te‑ei a tratar da casa e da cozinha.

‑ Oh! fingirás! Não tenho desejo nenhum de que estragues essas pequeninas mãos com que tanto cuidado tive. Vamos. Vou ver se o Peyraque já está levantado e preVeni‑lo do que se combinou, e depois tu nos dirás a razão deste mistério.

Assim falando, Justina acendera o lume já preparado no fogão. Encheu os jarros do quarto com uma bela água fresca que, ressumando do rochedo, entrava por um pequeno cano de barro no lavatório do quarto, e mais abaixo na pia da cozinha. Era uma invenção de Peyraque, que se gabava de ter boas Ideias.

Meia hora depois, Carolina, cujo simples Vestuário não indicava que pertencesse a uma classe social mais elevada, enrolava os belos cabelos sob o pequeno chapéu do Brioude, menos acanhado e de mais linda forma que a espécie de tampa de panela, também de feltro preto, com uma fita de veludo em Volta da copa, que usam as mulheres do Velay. Mas, apesar de tudo, era ainda encantadora, embora a fadiga lhe extinguisse um pouco o brilho dos grandes olhos verde‑mar, outrora tão gabados pela marquesa.

A sopa de arroz e batatas foi servida rapidamente numa pequena divisão onde Peyraque, nas suas horas vagas, trabalhava um pouco em marcenaria. O bom homem não achava a recepção conveniente e queria varrer as aparas da madeira.

‑ Pelo contrário, ‑ disse‑lhe sua mulher, estendendo as fitas e a serradura sobre o ladrilho ‑ não percebes nada! Ela achará que é um bonito tapete. Oh! tu não a conheces! É um anjo de Deus!

Carolina travou conhecimento com Peyraque, abraçando‑o. Era um homem duns sessenta anos, ainda muito robusto, magro, de estatura mediana e feio como a maior parte dos montanheses da região, mas o rosto austero e mesmo duro tinha um cunho de probidade que se velava à primeira vista. O seu raro sorriso era extraordinariamente bom. Sentia‑se nele um fundo de afeição e de sinceridade que, por se não prodigalizar em demonstrações, não oferecia menos garantias.

Justina tinha também as feições duras e a palavra brusca. Era um másculo e generoso carácter. Ardente católica, respeitava o silêncio do marido, protestante de raça, convertido na aparência, mas talvez livre‑pensador. Carolina sabia esses pormenores e via com enternecimento o respeito delicado que essa mulher exaltada sabia pôr no seu amor pelo marido. Devemos recordar que a menina de Saint‑Geneix, filha dum homem muito fraco e irmã duma mulher sem energia, devia a coragem de que era dotada, em primeiro lugar, ao sangue de sua mãe, que era de origem ceVenol, e depois às primeiras noções da Vida que Justina lhe havia dado. E ela sentiu‑o muito claramente vendo‑se ali sentada entre esses Velhos esposos cuja precisão de linguagem e de ideias lhe não causava receio nem espanto. Parecia‑lhe que o leite da montanhesa lhe penetrara até aos ossos, e se encontrava com criaturas já conhecidas nalguma existência anterior.

‑ Meus amigos, ‑ disse‑lhes, quando Justina lhe trouxe o creme da sobremesa, enquanto Peyraque

regava a sua sopa com uma tijela de Vinho quente, seguida em breve por outra de café sem leite ‑ prometi contar‑vos a minha história, e ei‑la em duas palavras: um dos filhos da minha Velha senhora lembrou‑se de querer casar comigo.

‑ Ah! bravo! assim devia ser! ‑ disse Justina.

‑ Tens razão, porque os nossos caracteres e as nossas ideias se assemelhavam. Toda a gente devia ter previsto o que sucedeu, e eu primeiro que ninguém.

‑ E a mãe também! ‑ disse Peyraque.

‑ Pois bem! Ninguém o suspeitou, e a mãe ficou muito surpreendida e irritada quando o filho lhe disse que gostava de mim.

‑ E a menina? ‑ disse Justina.

‑ Eu? Ele nunca me havia falado em coisa alguma, e como eu sabia que não era bastante nobre nem bastante rica para ele, nunca lhe teria permitido que pusesse a ideia em mim.

‑ Isso é muito bem pensado! ‑ replicou Peyraque.

‑ E é Verdade! ‑ ajuntou Justina.

‑ Compreendi pois que não podia ficar nem mais um dia naquela casa, e às primeiras palavras severas da mãe, parti sem tornar a ver o filho, mas o filho teria corrido para junto de mim, se me conservasse em casa de minha irmã. A marquesa queria que eu me demorasse algum tempo para me explicar com ele, para lhe dizer que o não amava...

‑ Era talvez o que deveria ter feito! ‑ disse Peyraque.

Carolina sentiu‑se impressionada com a austera lógica do camponês.

‑ Sim, sem dúvida, ‑ pensou ‑ era até esse ponto que seria preciso levar a minha coragem.

E como ela se conservasse silenciosa, a ama, esclarecida pela penetração do sentimento, disse bruscamente ao marido:

‑ Espera, homem! Como Vais depressa! Sabes porventura se a pobre pequena o não ama?

‑ Ah! isso é diferente ‑ replicou Peyraque, inclinando a cabeça, sério e pensativo, que um sentimento de delicada piedade enobrecia.

Carolina sentiu‑se comovida até ao fundo da alma pela rectidão dessa ingénua amizade que com uma palavra tocava o ponto vulnerável da sua dor. O que não tivera força nem confiança para dizer a sua irmã, experimentava a necessidade de o não ocultar a esses corações profundamente Verdadeiros que liam no seu.

‑ Pois bem! meus amigos tendes razão, ‑ disse ela, tomando‑lhes as mãos ‑ talvez eu não tivesse a força de mentir, porque, a meu pesar... amo‑o!

Mas apenas pronunciou estas palavras, sentiu‑se tomada de terror e olhou em torno de si, como se Urbano tivesse podido ouvi‑la, depois desfez‑se em lágrimas à ideia de que ele nunca a ouviria.

‑ Coragem, minha filha, Deus a ajudará! ‑ disse Peyraque, levantando‑se.

‑ E nós te ajudaremos também! ‑ disse Justina abraçando‑a ‑ Esconder‑te‑emos, amar‑te‑emos e rezaremos por ti!

E conduziu‑a ao quarto, despiu‑a e fê‑la deitar, com maternais cuidados, para que estivesse bem quente e o sol não caísse demasiado sobre o leito. Depois desceu para contar às vizinhas a chegada duma Charlette de Brioude, responder a todas as perguntas, preveni‑las um pouco da sua brancura e beleza para que as não surpreendesse demasiado. Teve o cuidado de lhes dizer também que a linguagem de Brioude se não assemelhava em nada à da montanha, e que a Charlette não poderia conversar.

‑ Ah! pobre rapariga! ‑ responderam elas ‑ Como se vai aborrecer!

Oito dias mais tarde, depois de ter, em tempo competente, dado parte da chegada a sua irmã, Carolina enviou‑lhe mais pormenores sobre o seu novo género de Vida. Não se deve esquecer que, ocultando‑lhe o Verdadeiro pesar que sentia, ela se esforçava por a tranquilizar a seu respeito e por se aturdir afectando um sossego de espírito que estava longe de ser tão completo e tão real:

«... Não podes fazer ideia dos cuidados que têm por mim estes Peyraque! Justina é sempre a inteligente mulher de coração de anjo que tu conheces e que nosso pai não queria Ver afastar‑se de nós. Assim não te digo pouco afirmando‑te que o marido vale tanto como ela. É mesmo mais inteligente, conquanto seja mais lento em compreender, mas o que uma Vez compreendeu fica como gravado num mármore, sem mancha e sem defeito. Juro te que me não aborreço um instante com eles. Poderia estar muito mais só, porque o meu pequeno quarto é completamente Independente, e posso devanear à minha vontade, sem que ninguém me interrompa, mas não experimento muitas vezes esse desejo, sinto‑me bem com esta digna gente, sinto‑me estimada.

«Demais, eles têm uma grande Vivacidade de espírito, como a maior parte das pessoas daqui. Indagam das coisas do exterior, e surpreende‑nos encontrar, numa espécie de beco de montanhas tão selvagens, camponeses que têm tantas noções estranhas às suas necessidades e aos seus hábitos. As crianças e os visinhos dão‑me também a impressão de serem inteligentes, activos e honestos, e Peyraque diz‑me que é assim nas aldeias, ainda nas mais afastadas do que esta de toda a civilização.

«Passeio muito, a prudência não exige que Viva encarcerada, como tu receavas. Pelo contrário, como não tenho aqui nada que ler, sinto uma grande necessidade de andar e a minha locomoção surpreende menos a gente de Lantriac do que o faria um retiro misterioso. Não corro o risco de ter encontros. Sabes que os Vestidos que trazia não podiam, de forma alguma, chamar a atenção. Além disso tenho um chapéu de feltro preto maior que os que aqui se usam, e que me abriga muito bem o rosto. Em caso de necessidade, posso mesmo ocultá‑lo completamente com o capuz escuro que daí trouxe, e que os caprichos da estação me permitem usar quando passeio. Não sou perfeitamente semelhante às mulheres daqui mas nada na minha pessoa causa sensação nos lugares por onde passo.

«E, além de tudo o mais, tenho, para os meus passeios, um pretexto que tudo concilia. Justina faz um pequeno comércio de miudezas e confia‑me uma caixa cujo conteúdo ofereço, enquanto Peyraque, que é Veterinário, se ocupa em examinar os animais doentes. Isto permite‑me entrar nas casas e estudar os usos e costumes do país. Quase nada Vendo, porque as mulheres estão tão absorvidas pelo seu ofício de rendeiras que não consertam as roupas dos maridos, e dos filhos, nem as suas próprias. Reina aqui o triunfo do farrapo usado com ostentação. A devoção é tão exaltada que exclui todo o bem estar material e até mesmo toda a limpeza, como uma superfluidade profana. Predominam a avareza e a garridice, se Justina me desse jóias para vender, conseguiria rapidamente uma clientela muito mais numerosa do que para a roupa ou sapatos.

«Executam todas essas maravilhosas guipures pretas e brancas que, em nossa casa, Viste fazer a Justina. Surpreende Ver‑se aqui, na montanha, obras de fadas sairem das mãos destas pobres criaturas, e o pouco que ganham escandaliza o Viajante. Dariam com alegria por Vinte soldos o que em Paris nos Vendem por vinte francos, se lhes fosse permitido tratar com o consumidor, mas isso é‑lhes estritamente proibido. Com o pretexto de que lhes fornece a seda, a linha e os modelos, o comerciante monopoliza e taxa‑lhes o trabalho.

«Em geral as mulheres são boas e hospitaleiras. As crianças interessam‑me, e quando encontro alguma doente, julgo‑me feliz por poder indicar os cuidados elementares que lhe devem ser prestados. Há uma grande ignorância ou uma grande incúria a este respeito. A maternidade é aqui mais apaixonada que terna. Parecem dizer‑nos que as crianças são feitas unicamente para aprenderem a sofrer.

«O ofício de Peyraque, que o obriga a deslocar‑se continuamente, leva‑nos a lugares impossíveis da montanha, e faz‑me Ver as mais belas paisagens do mundo, porque este país é para mim como um sonho... E não é a minha vida também um estranho sonho?

«A nossa maneira de correr aventuras é das mais elementares. Peyraque tem uma pequena carroça a que ele chama pomposamente uma caleça ‑ porque tem uma cabeça de tela que pretende abrigar‑nos. Atrela‑se a esse veículo ora um pequeno mas intrépido macho, ora um cavalito vivo e manso que, como o seu dono, tem apenas a pele e os ossos, mas que, como ele também, se não enfada seja com o que for. Assim, enquanto o filho primogénito de Justina, que chegou do regimento, onde ferrava os cavalos de artilharia, continua o ofício na casa paterna, o pai e eu corremos por montes e Vales, qualquer que seja o tempo. Justina pretende que estes passeios me fazem tão bem que devo ficar com ela sempre, e jura que encontrará meio de me fazer ganhar a nossa Vida sem me humilhar a servir as senhoras fidalgas!

«Ai! não me considerava de Forma alguma humilhada enquanto me senti querida, e depois, afeiçoara‑me tão sinceramente! Acreditarás que me sinto, não só triste por não ser abençoada todas as manhãs por essa pobre marquesa, mas mesmo inquieta, assustada por causa dela, como se adivinhasse que não poderá viver sem mim? Ah! Deus permita que ele me esqueça bem depressa, que me tenha já substituído por uma pessoa menos funesta que eu para o seu repouso! Mas cuidarão dela, moralmente falando, como eu o fazia? Saberão adivinhar‑lhe as fantasias de espírito, afastar‑lhe o aborrecimento das horas ociosas, falar‑lhe dos filhos como ela gostava de ouvir falar? Quando aqui cheguei, respirei este bom ar a plenos pulmões, contemplei esta severa e grandiosa natureza que tanto desejava conhecer, e disse: - Eis-me livre! Irei para onde quiser, falarei só quando me aprouver, não escreverei mais de dez Vezes por dia a mesma carta a dez pessoas diferentes, não viverei numa estufa, não serei obrigada a respirar os acres perfumes das flores destiladas por processos químicos, ou das plantas meio apodrecidas nos vasos... Beberei no ar o espinheiro e o serpão em estado natural... Sim, dizia tudo isto e não podia sentir alegria! Via a minha pobre amiga triste e só, e chorando talvez por me ter feito chorar!

«Mas ela assim o quis, e era preciso, segundo parece! Não tenho o direito de a censurar por um momento de injustiça e despeito. A mãe só pensava no filho e um tal filho bem merece que sua mãe tudo lhe sacrifique. Talvez que ela me julgue dura e Ingrata por não ter seguido os seus planos, e pergunto muitas Vezes a mim mesma se não deveria tê‑los seguido, mas penso sempre que não teria alcançado o fim desejado. O marquês de V... não é desses homens de quem podemos desembaraçarmo‑nos sem alguma palavra banal de aspereza ou desdém. E demais não há esse direito com aquele que, longe de se declarar, nos cerca de tanto respeito e tão delicada estima. Em vão procuro qual a linguagem, terna ou reservada, que teria podido empregar para lhe dizer a que ponto me são igualmente sagradas a sua felicidade e a de sua mãe, não me senti com tanta habilidade. Ou a Verdadeira amizade que lhe dedico o teria iludido sobre os meus sentimentos e lhe teria feito supor que me sacrificava ao dever, ou a minha firmeza o teria ofendido como uma ostentação de virtude cujo socorro nunca me deu causa a invocar contra ele... Não, não! não poderia, não deveria ser!

«Julguei compreender uma insinuação da marquesa para que lhe dissesse que tinha um compromisso, um outro amor. Meu Deus, que ela invente agora tudo o que quiser! Que sacrifique a minha vida e a minha honra, se é preciso! Deixei o campo livre, mas eu não teria sabido improvisar um romance. E ele, teria acreditado?

«Camila, tu Vê‑lo‑ás, já o viste sem dúvida depois da primeira entrevista em que, segundo me confessaste, tanto te custou a representar o teu papel. Dizes tu que te causou uma grande tristeza: estava como que desvairado... Já deve agora achar‑se mais tranquilo: tem tanta força moral, e deve tão bem compreender que jamais poderei tornar a Vê‑lo! Todavia tem cuidado. Ele é muito perspicaz. Dize‑lhe que sou um espírito frio... Não, isso não, não o acreditaria... Fala lhe da minha altivez, que é invencível. Oh! sim, sou altiva, sinto‑o! E se o não fosse seria digna da sua afeição?

«Quiseram talvez que me tornasse com efeito indigna do seu respeito, não a mãe: oh! ela não, nunca! É muito leal, muito religiosa e muito casta, mas o duque! Lembram‑me hoje muitas coisas que não havia compreendido, e que se me apresentam sob uma nova luz. O duque é excelente, adora o irmão: e creio que sua mulher, que é um anjo, lhe vai purificar a Vida e os pensamentos, mas em Séval, quando me dizia que salvasse seu irmão a todo o custo... Hoje, quando me recordo das suas palavras, sobe‑me o rubor às faces!

«Ah! que me deixem desaparecer, que me deixem esquecer tudo! Julguei‑me bem tranquila, bem digna e bem feliz durante um ano! Num dia, numa hora, tudo derrubam com uma palavra. A sr.a de Villemer envenenou todas as recordações que eu desejaria conservar puras, e que já não ouso interrogar. Na verdade, Camila, tinhas razão quando me dizias que não devíamos ser demasiado sinceros, e que eu me aventurava muito em representar o D. Quichote na vida! Esta lição serVir‑me‑á, e defender‑me‑ei da amizade como do amor. Pergunto a mim mesma porque não romperei, desde já, todos os laços que me prendem a este mundo cheio de perigos e decepções, porque não aceitarei a miséria ainda mais corajosamente do que tenho feito. Ser‑me‑ia fácil criar recursos nesta província ainda muito atrazada em civilização. Não poderia ser mestra de crianças como Justina imaginava o ano passado: o clero tudo invadiu, e as boas religiosas não me permitiriam ensinar, mesmo em Lantriac, mas encontraria lições numa cidade, ou poderia ser guarda‑livros em qualquer casa comercial.

«Primeiro que tudo, quero estar certa de ser esquecida além, mas quando esse esquecimento se tiver consumado, será preciso que pense nos nossos filhos e são eles a minha constante preocupação. Tranquiliza‑te, porém. Eu encontrarei, saberei triunfar do mau destino. Bem sabes que não descanço, e que não posso deixar‑me sucumbir, Tens com que Viver durante dois meses, e eu aqui de nada careço. Não te atormentes, confiemos sempre em Deus, como tu deves confiar na tua irmã que te adora».

 

Carolina não se enganava quanto ás investigações do sr. de Villemer. Voltara várias Vezes a Étampes e tendo a delicadeza de nada perguntar, limitaVa‑se a estudar e observar Camila. Adivinhou que ela conhecia o refúgio da irmã visto que a sua desaparição a não preocupava.

Camila conservava em seu poder a carta em que Carolina dizia ter encontrado uma colocação fora de França, e não a mostrava. Via tanta angústia e sofrimento nas feições já profundamente alteradas do marquês que não ousava dar esse último golpe ao benfeitor e ao protector dos seus filhos. Depois a sr.a Heudebert, não partilhava todos os escrúpulos nem compreendia toda a altivez de Carolina. Não ousara censurá‑la, mas não teria considerado como um grande crime afrontar um pouco o descontentamento da marquesa, e tornar‑se sua nora apesar de tudo. «Visto que os oferecimentos do marquês eram tão sinceros, pensava ela, visto que a mãe o adora a ponto de não ousar contrariá‑lo abertamente, e que enfim ele é maior e senhor da sua fortuna, não Vejo por que razão Carolina não empregaria, junto da Velha senhora, o seu valimento, o seu espírito de persuasão e a evidência do próprio merecimento para lhe fazer docemente aceitar a conveniência desse casamento... Vamos! A minha pobre Carolina, com toda a sua coragem e toda a sua dedicação, é demasiado romântica, e vai matar se com trabalho para nos fazer viver enquanto que, com alguma paciência e habilidade, poderia ser e fazer‑nos a todos felizes».

É esta uma teoria do bom senso que o leitor poderá confrontar com a de Peyraque e de Justina. O leitor tem a liberdade de conceder a preferência àquele dos dois raciocínios que julgar melhor, mas o narrador é forçado a ter uma opinião, e confessa alguma parcialidade por Carolina.

O marquês compreendeu que a sr.a Heudebert fazia alusões tímidas a essa situação, e viu que ela sabia tudo. Foi um pouco mais expansivo do que tinha sido, e Camila, animada, perguntou‑lhe bastante desastradamente se, no caso em que a marquesa fosse enexcrável, ele estava bem decidido a oferecer casamento a Carolina. E parecia prestes a trair o segredo da irmã se o marquês empenhasse a sua palavra.

O marquês respondeu sem hesitar: ‑ Se tivessse a certeza de ser amado, se a felicidade da menina de Saint‑Geneix dependesse da minha coragem, saberia Vencer a todo o preço as ideias de minha mãe, mas não me dá esperança!... Dê‑ma, e Verá!...

‑ Eu! ‑ disse Camila, interdita e confusa. Hesitava em responder ‑ Julgava, é certo, ter adivinhado o segredo de Carolina, mas esta defendera‑se sempre altivamente, não com mentiras, mas não deixando interrogar, e a sr.a Heudebert não se sentia com coragem de a ferir profundamente na sua dignidade, tomando a responsabilidade de a comprometer. ‑ Não sei mais que o sr. marquês, ‑ replicou ela ‑ Carolina é uma alma tão corajosa, que nem sempre a compreendo.

- E essa alma é tão corajosa, com efeito, - disse o marquês, - que nunca aceitaria o meu nome sem a Verdadeira benção de minha mãe. Eis o que sei melhor que ninguém. Não me diga pois coisa alguma: é a mim que me pertence proceder. Só uma coisa lhe peço, é que me permita velar pela sua existência e pela dos seus filhos até nova ordem, e mesmo, sim, ousarei dizer‑lho! tenho um receio atroz de que a menina de Saint‑Geneix se encontre sem recursos, exposta a privações que me fazem tremer. Tire‑me esse receio... Permita‑me que lhe deixe uma quantia que me restituirá, se não for precisa, mas que lhe fará chegar às mãos em caso de necessidade, como indo da sua parte.

‑ Oh! é impossível, ‑ respondeu Camila ‑ ela adivinharia, e jamais me perdoaria ter aceitado!

‑ Vejo que a receia muito.

‑ Receio‑a como se receia tudo o que se respeita.

‑ É então como eu! ‑ respondeu o marquês, despedindo‑se ‑ Temo‑a a ponto de não ousar procurá‑la, e todavia será preciso encontrá‑la ou morrer!

O marquês teve, pouco tempo depois, com sua mãe, uma explicação bastante Violenta. Bem que a visse adoentada, triste e deplorando Carolina muito mais do que queria confessar, e embora tivesse prometido a si próprio esperar melhor ocasião para se esclarecer, a explicação chegou, contra sua vontade e contra vontade da marquesa, pela fatalidade das circunstâncias. A situação era demasiado tensa e não podia prolongar‑se. A sr.a de Villemer confessou que concebera súbitas prevenções contra o carácter da menina de Saint‑Geneix, e que chegada a ocasião de cumprir a sua palavra, lhe fizera sentir que sofria com isso amargamente. Pouco a pouco, sob as perguntas insistentes do marquês, a conversa animou‑se e a sr.a de Villemer, exasperada, deixou escapar a condenação de Carolina.

A desventurada cometera uma falta perdoável aos olhos da marquesa enquanto se considerava só como sua amiga e protectora, mas o pensamento de a fazer sua filha, tornava‑se‑lhe impossível.

Perante o resultado da calúnia, o marquês não enfraqueceu um instante. ‑ É uma mentira infame, ‑ exclamou ele, fora de si ‑ uma cobarde mentira, e pôde acreditá‑lo! Foram então bem hábeis e bem audaciosos! Minha mãe, vai dizer‑me tudo, porque eu não estou disposto a deixar‑me enganar!

‑ Não, meu filho, nada mais direi, ‑ respondeu a sr.a de Villemer, com firmeza ‑ e uma só palavra que ajunte àquelas que acabas de me dizer, considerá‑la‑ei como uma falta de afeição e de respeito.

A marquesa conservou‑se pois impenetrável, dera a sua palavra a Leonia de que a não trairia, e demais por nada no mundo teria querido semear a discórdia entre os seus dois filhos. O duque dissera‑lhe tantas Vezes diante de Urbano que nunca havia procurado nem obtido um único olhar amoroso de Carolina! Isto era, na opinião da marquesa, uma mentira que o marquês nunca perdoaria. Sabia agora que ele tomara o duque por confidente, que este sofria com o seu pesar e fizera com que a duquesa mandasse procurar Carolina em todos os conventos de Paris. «Ele não fala, ‑ pensava a marquesa ‑ não desvia sua mulher e seu irmão dessa extravagância, quando deveria pelo menos confessar o passado ao marquês para o curar! Será pois demasiado tarde para arriscar semelhantes confidências, e eu não posso fazê‑lo sem expor os meus dois filhos a odiarem‑se, depois de tanto se terem estimado».

 

Carolina escrevia entretanto a sua irmã: «Estás, então, muito assustada por me saberes numa terra tão acidentada e perguntas‑me que encanto há aqui que compense o risco de morrer a cada passo. Em primeiro lugar não há realmente perigo algum para mim sob a guarda do meu bom Peyraque. Os caminhos, que seriam verdadeiramente horríveis e creio até que impossíveis para carruagens como as que nós conhecemos, têm justamente a largura necessária para os pequenos carros do país. Demais, Peyraque é muito prudente. Quando o olhar lhe não mostra bem justamente o espaço de que precisa, tem, para se assegurar, um processo que muito me fez rir a primeira Vez que o vi empregar. Confia‑me as rédeas, apeia‑se, pega no chicote, em cujo cabo está marcada a largura exacta do carro com um corte, e, caminhando alguns passos para diante, vai medir a passagem entre o rochedo e o precipício, algumas Vezes mesmo entre o precipício da direita e o da esquerda. Se o caminho tem um centímetro mais do que nos é necessário, Volta triunfante e passamos a toda a brida. Se não temos esse centímetro, faz‑me descer, e passa a carruagem, segurando o animal pela rédea. Quando encontramos dois pequenos muros orlando um caminho de piões, colocamos uma roda em cada muro e o cavalo no caminho. Asseguro‑te que a gente se habitua tão bem a todos esses perigos, que já nem neles pensamos.

Os cavalos de aqui não têm medo nem caprichos, conhecem os perigos tão bem como nós e não acontecem mais acidentes aqui do que na planície. Exagerei‑te sem dúvida o perigo desses passeios, nas minhas primeiras cartas, era vaidade, ou um resto de medo de que estou bem curada, agora que o reconheço Infundado.

«Passeando um dia destes por aqui, tomei amizade a um rapazito que brincava nos joelhos duma bela aldeã, forte e risonhosa. Essa criança só a posso comparar ao Carlitos, pela simpatia que me inspira. Não se parece com ele, mas tem como ele meiguices e carícias tímidas que de boa vontade nos fariam sua escrava. Como eu o fizesse admirar a Peyraque, notando que estava muito limpo, que a mãe não fazia renda e parecia únicamente ocupada com ele, como se compreendesse que tinha ali um tesouro, Peyraque respondeu: ‑ Diz a verdade sem o pensar. Essa criança é um tesouro para a Roqueberta. Se lhe perguntar a quem pertence, responder‑lhe‑á que é filho duma irmã que tem em Clermont, mas não é verdade: o pequeno foi‑lhe confiado por um sujeito que ninguém conhece, que lhe paga para cuidar dele como se fosse filho dum príncipe, Assim bem Vê que essa mulher está bem Vestida e não trabalha. Ela já vivia bem. O marido é guarda do castelo de Polignac, de que se Vêem além a grande torre e todas as ruínas num rochedo ainda maior e mais alto que o de Espaly. É lá que ela mora, e se a encontra aqui, é que aproveita o bom tempo para passear.

A Verdadeira mãe da criança deve ter morrido, porque nunca se ouviu falar dela, mas o pai vem Vê‑lo, dar dinheiro, e recomendar que nada lhe falte.

‑ Como Vês, querida irmã, há aqui um romance. E é talvez o que me atrai, pois que, na tua opinião, eu sou tão romanesca! O certo é que este rapazito tem alguma coisa que se me apodera da imaginação. Não é forte, e dizem que apenas respirava quando para aqui o trouxeram, mas agora está muito vigoroso, e o ar da montanha faz‑lhe tanto bem que o pai, tendo Vindo aqui o ano passado, aproximadamente por esta época, para o levar, decidiu‑se a deixá‑lo ainda mais um ano para acabar de o fortificar. Tem um rosto de anjo sonhador, este pequeno ser, olhos duma expressão que não é vulgar nesta idade, e maneiras duma graça inaudita.

«Peyraque vendo‑me tão entusiasmada, coçou a cabeça, pensativo e continuou: ‑ Ora bem! diga‑me uma coisa, visto que gosta de crianças, porque é que, em lugar de fazer um modo de vida de ler alto, o que muito a deve fatigar, não procura um pequeno pensionista como este, e que educaria em casa de sua irmã com as outras crianças? Poderia viver com sua família e conservar os seus hábitos.

«‑ Esqueces, meu bom Peyraque, que deve passar muito tempo antes que eu possa mostrar‑me em casa de minha irmã.

«‑ Pois bem! Sua irmã Viria viver para aqui, ou então, durante um ano ou dois, a menina ficaria em nossa casa, minha mulher ajudá‑la‑ia a cuidar da criança, e só lhe deixaria o trabalho de o vigiar e de o instruir...

Olhe! tenho uma ideia a respeito deste, pois que a Vejo louca por ele. O pai vai chegar qualquer dia. Se eu lhe falasse da menina?

«‑ Tu conhece‑lo, então ?

«‑ SerVi‑lhe de condutor uma Vez para passear pela montanha no meu carro. Parece‑me um homem de bem, mas demasiado novo para se encarregar de educar uma criança de três anos. Ser‑lhe‑ia preciso confiá‑lo a uma mulher e é‑lhe impossível deixá‑lo por muito tempo com os Roquebert, que não podem ensinar‑lhe o que um pequeno cavalheiro como ele deve saber. A menina é que estava indicada para isso, nunca o pai encontraria uma tão boa mãe para o pequeno. Esperemos, esperemos! Eu vigiarei Polignac, e quando o pai chegar saberei muito bem falar‑lhe como é necessário.

«Deixo o bom Peyraque assim como Justina, alimentarem esse projecto, mas não creio nele, Visto que o misterioso personagem que aqui é esperado, fará a meu respeito perguntas a que eu não quero que se responda, enquanto não estiver bem segura de que ele não conhece, de perto nem de longe, nenhuma das pessoas a quem desejo ocultar o meu refúgio. E como assegurar‑me disso? A ideia de Peyraque é contudo uma boa ideia. Educar uma criança, em nossa casa durante alguns anos, agradar‑me‑ia infinitamente mais que entrar novamente para uma casa estranha. Melhor seria uma rapariga que um rapaz, porque ma deixariam por mais tempo: mas a escolha era certamente difícil, porque esses filhos do amor, ocultos pelos pais, não são fáceis de descobrir. E depois seria preciso que tivessem em mim uma absoluta confiança, que me conhecessem bem. A sr.a de Arglade, que conhece todos os segredos do mundo, arranjar‑me‑ia Isto, todavia não tenho Vontade de me dirigir a ela, sem o querer, causar‑me‑ia infelicidade outra vez.»

Alguns dias mais tarde, Carolina escrevia novamente a sua irmã:

 

«Polignac, 15 de Maio.

«Estou há cinco dias numa das mais imponentes ruínas do feudalismo, no cume dum desses grandes blocos de lava negra de que te falei a propósito do Puy e de Espaly. Vais julgar que mudei de posição e que o meu sonho se realizou. Não, estou, é certo, junto do pequeno Didier, mas fui eu que me encarreguei de Velar por ele, e a minha solicitude é completamente desinteressada, porque o pai, ou protector, não tornou a aparecer. Eis o que aconteceu:

«Desejava ver ainda outra vez a criança, desejava também informar‑me do que lhe diz respeito e enfim tinha vontade de Ver de perto esse solar de Polignac, que de longe se apresenta como uma cidade de gigantes sobre um rochedo infernal. É a mais forte cidadela da idade‑média que existe na região, era o ninho dessa terrível raça de abutres sob cujas devastações tremiam o Veley, o Porez e o Auvergne. Os antigos senhores de Polignac deixaram por toda a parte, nestas províncias, recordações e tradições dignas das lendas do papão e de Barba‑Azul. Esses tiranos feudais roubavam os viandantes, saqueavam as igrejas, massacravam os monges, raptavam as mulheres, incendiavam as povoações, e Isto de pais a filhos durante séculos. O marquês de Vilemer escreveu a este respeito um dos mais notáveis capítulos do seu livro, concluindo que os descendentes desta família, bem inocentes seguramente dos crimes dos seus antepassados, pareciam ter, pelo seu mau destino, expiado os triunfos da barbária.

«A cidadela era inexpugnável. O rochedo é cortado a pique por todos os lados. A povoação agrupa‑se em baixo na colina que sustenta o bloco de lava. Fica bastante longe de Lantriac. As ravinas, impossíveis de transpor, tornam aqui as distâncias consideráveis. Todavia, como partimos cedo, chegámos terça‑feira passada por Volta do meio‑dia e o nosso caValito conduziu‑nos até ao postigo. Peyraque deixou‑me para se ocupar do animal e para Ver outros, porque tem uma grande fama de bom veterinário, e onde quer que aparece, a freguesia acode sempre.

«Encontrei uma rapariga de dez anos que me abriu a porta, mas quando pedi para ver a Roqueberta, respondeu‑me chorando, que a mãe estava a morrer. Corri à parte do solar ainda de pé e bem reparada que ela habita, e encontrei‑a atacada duma febre cerebral. O pequeno Didier, brincava no quarto com um outro filho da pobre mulher, este, muito alegre, nada compreendia, embora seja mais velho, enquanto que Didier, entre sorridente e choroso, olhava para o leito com ar admirado e com tanta inquietação quanta pode mostrar uma criança de três anos. Quando me Viu, correu para mim, e em lugar de se fazer rogado para me beijar, como da primeira vez, agarrou‑se ao meu Vestido, puxando‑me com as pequeninas mãos e dizendo-me: mamã! com uma voz tão queixosa e tão doce que me senti profundamente enternecida. PreVenia‑me seguramente do estado incompreensível de sua mãe adoptiva. Aproximei‑me do leito. A Roqueberta não podia falar e não conhecia ninguém. Seu marido chegou ao cabo dum instante, e ficou inquieto porque ela estava assim havia apenas algumas horas. Disse‑lhe que era tempo de mandar chamar um médico e uma mulher para cuidar dela, o que ele fez imediatamente, e como não estava muito certa de que se não tratasse duma febre tifóide, levei as crianças para fora do quarto, avisando o marido do perigo que havia em as deixar ali.

«Quando o médico chegou, passadas duas horas, aprovou o que eu fizera, dizendo que a doença não estava bem determinada e que era preciso instalar as crianças numa outra casa, o que me encarreguei de fazer com a ajuda de Peyraque, porque o marido perdia completamente a cabeça e só pensava em mandar acender velas na igreja da aldeia e em resmungar em latim orações que não compreendia, mas que lhe pareciam mais eficazes que as receitas do médico.

«Quando ele se tranquilizou um pouco, eram já quatro horas, e Peyraque e eu precisávamos de partir para não passarmos de noite no barranco do Gâgne. Não há luar nesta ocasião, e estava iminente uma grande tempestade. Mas o pobre Roquebert começou a lamentar‑se, dizendo que estava perdido se não houvesse alguém que tomasse conta das crianças, e principalmente do menino, designando assim Didier, a galinha dos ovos de ouro do casal. Este precisava de cuidados particulares, não era forte como os da terra, e depois era curioso, queria andar por toda a parte, e estas ruínas são um labirinto de precipícios onde se não pode perder de Vista um só instante um pequeno sujeito de humor tão aventureiro. Não ousava confiá‑lo a ninguém. O dinheiro que esta criança lhe rende criara‑lhe invejosos, tinha inimigos, que sei eu. Enfim, Peyraque disse‑me em voz baixa: ‑ Olhe o seu bom coração e a minha boa ideia estão de acordo. Fique, Vejo que pode alojar‑se bem aqui. Voltarei amanhã para ver como vão as coisas, para a levar, se já não precisarem da menina.

«Confesso que desejava esta decisão, parecia‑me que tinha tanto o dever como a necessidade de Velar por esta criança. Peyraque voltou no dia seguinte, e como eu Visse que a Roqueberta, bem que fora de perigo, não poderia leVantar‑se ainda durante muitos dias, consenti em ficar, e disse a Peyraque que só Viesse buscar‑me para o fim da semana.

«Estou muito bem aqui, num vasto aposento que é, creio eu, uma antiga sala de guardas, dividida em vários compartimentos para uso dos rendeiros. Os leitos, muito rústicos, são limpos, e eu própria trato do arranjo da casa. Tenho três crianças junto de mim a toda a hora. A pequena faz‑nos a cozinha, dirigida por mim, vigio o tratamento da mãe, e lavo e visto Didier. O vestuário dele é igual ao dos outros, uma blusa azul, mais cuidada, principalmente depois que eu olho por isso, e afeiçoo‑me a ele duma maneira que me assusto pelo que me vai custar depois a separação. Tu conheces a minha paixão pelas crianças, isto é, por certas crianças, esta é uma das mais perfeitas. O Carlitos teria ciúmes dele como um tigre. É que, vês tu, este Didier é certamente filho duma mulher ou de um homem de mérito. É de pura e elevada raça. moralmente falando, o rosto duma brancura um pouco mate, as faces rosadas como as rosas dos silvados. Tem olhos castanhos admiráveis de forma e de expressão, e uma floresta de cabelos negros um pouco anelados, finos como seda. As mãozitas são verdadeira obra prima, e ele nunca as suja. Não mexe na terra, não toca em coisa alguma, a sua vida passa‑se a olhar. Estou certa de que tem pensamentos superiores à sua idade, que não sabe exprimir, ou antes uma série de sonhos encantadores e divinos que não podem traduzir‑se em linguagem humana, porque fala, muito correntemente para a sua idade, em francês e na algaravia daqui. Aprendeu o acento dos pais, mas torna‑o muito doce com a sua pronúncia infantil.

Tem as melhores razões do mundo para fazer o que quer, e o que ele quer é estar fora de casa, trepar às ruínas ou introduzir‑se nas fendas, uma Vez aí, senta‑se e contempla as florinhas e principalmente os insectos, sem lhes tocar, mas seguindo‑lhes todos os movimentos, parecendo interessar‑se pelas maravilhas da vida, enquanto as outras crianças só pensam em esmagar e destruir.

«Tentei dar‑lhe as primeiras noções de leitura, persuadida (talvez contra a opinião do pai) que, quanto mais cedo se principiar, mais se poupa às crianças o grande esforço de atenção, tão penoso quando a força e a actividade estão mais desenvolvidas. Sondei‑lhe a inteligência e a curiosidade, são extraordinárias, e, com o nosso maravilhoso método, que tão bom resultado deu com os teus filhos, estou certa de que lhe ensinaria a ler num mês.

«E depois esta criança é toda alma, e a sua vontade funde‑se numa afeição sem limites. A nossa desenvolve‑se na Verdade rapidamente, e pergunto a mim própria o que Vai ser de nós quando nos separarmos.

«Demais, embora a minha Justina e o meu Peyraque me façam falta, sinto‑me bem nestas grandiosas ruínas, de onde a Vista abrange um dos mais belos lugares da terra, e onde mergulha nos abismos, acima de qualquer habitação. O ar é tão puro que as pedras brancas misturadas aos fragmentos de lava são brancas como ao saírem da pedreira.

E depois o interior deste imenso solar está cheio de coisas muito curiosas.

«Sabes o que faço aqui? Não leio, não tenho mais do que os oito ou dez volumes dispersos e a velha Bíblia protestante de Peyraque. Já não procuro instruir‑me e quase nem nisso penso. Conserto a roupa do meu Didier, seguindo‑o passo a passo, devaneio, sinto‑me triste sem revolta e sem me admirar demasiado duma situação a que devo resignar‑me,‑ e estou bem de saúde, que é o mais importante.

«O bom Peyraque acaba de chegar e traz‑me a tua carta. Ah! minha irmã, não fraquejes, ou desesperar‑me ás! Dizes que ele está pálido e doente, que te fez tanta pena que estiveste a ponto de me trair, Camila, se não tens força para ver sofrer um homem corajoso e se não compreendes que só a minha coragem pode sustentar a sua, partirei, irei para mais longe, e tu não saberás de mim. Considera‑te avisada de que no dia em que eu vir aqui, na areia da minha ilha, Vestígios de pé estranho, desaparecerei de tal forma que...»

Carolina não acabou de escrever a frase, Peyraque, que lhe havia entregado a carta da sr.a HEudebert, voltou dizendo: ‑ Chegou o senhor.

‑ Quem? quem? ‑ exclamou Carolina leVantando‑se toda perturbada ‑ que senhor?

‑ O pai da criança desconhecida, o sr. Bernyer, se chama ele.

‑ Sabes então o seu nome? Ninguém aqui o sabia ou não queria dizê‑lo.

‑ Palavra de honra, não sou curioso, mas ele deixou a mala sobre um banco à porta da Roqueberta, e eu deitei‑lhe os olhos e li.

‑ Bernyer! Não conheço, e poderia certamente Vê‑lo sem inconveniente.

‑ Com certeza, é preciso vê‑lo, falar‑lhe do pequeno... a ocasião é boa.

Roquebert entrou e deitou por terra os projectos de Peyraque. O sr. Bernyer pedia o filho, mas, segundo o seu costume, entrara para um quarto que lhe era reservado, e não queria Ver, neste momento, pessoa alguma estranha à família.

‑ É o mesmo, ‑ juntou Roquebert ‑ dir‑lhe‑ei o cuidado que a menina teve com a minha mulher e com o pequeno, e certamente ele dar‑me‑á alguma coisa para a recompensar. Além de que, eu o farei do meu bolso, esteja sossegada.

Tomou a criança nos braços e saiu fechando a porta atrás de si, como se quisesse impedir que algum olhar curioso o seguisse na passagem que conduzia ao aposento do desconhecido.

‑ Então, partamos! ‑ disse Carolina, cujos olhos se encheram de lágrimas à ideia de que jamais, provavelmente, Veria Didier.

‑ Isso não ‑ replicou Peyraque ‑ demoremo‑nos um pouco para Ver o que esse senhor pensará quando souber que a menina passou aqui cinco dias a cuidar‑lhe do filho.

‑ Ah! não compreendes, meu amigo, que Roquebert se absterá de lho dizer? Não ousará confessar que, durante a doença da mulher, só encontrou uma estranha para lhe confiar seu filho. E demais não quer ele conservá‑lo ainda por mais um ano, o que será muito possível? Permitir‑nos‑á ele que insinuemos ao pai que em nossa casa será não só mais bem tratado, mas também educado como está em idade de o ser? Não, não. A própria Roqueberta, a despeito dos cuidados que por ele tive, dirá que ninguém me conhece, que não sou talvez mais que uma aventureira, e mendigando reconhecimento e confiança, teremos o ar de intrigar para recebermos algumas moedas que nos oferecem já.

‑ Mas quando recusarmos, Ver‑se‑á bem quem nós somos! Eu sou conhecido, e todos sabem que Samuel Peyraque nunca mentiu nem estendeu a mão a pessoa alguma.

‑ Esse estranjeiro não sabe coisa alguma e só se informará com os Roquebert, Visto que só a eles conhece. Partamos pois depressa, meu querido amigo, não quero demorar‑me aqui nem mais um Instante.

‑ Como quiser. ‑ disse Peyraque ‑ Não desengatei, e faremos descansar o cavalo no Puy, mas ainda assim, se quisesse seguir o meu conselho, ficaríamos uma ou duas horas. Entretanto encontrar‑se‑iam, a criança procurá-la‑ia, perguntaria pela menina... afeiçoou‑se‑lhe já tanto! Olhe! Se esse senhor a visse, por um minuto só que fosse, estou certo que diria: - eis aqui uma pessoa que não é como todas as outras, é preciso que lhe fale, E quando lhe tiver falado...

Conversando assim, Peyraque seguia Carolina, que, bem decidida a partir, juntara os objectos de seu uso e se dirigia para a porta. Passando diante do banco onde a mala do desconhecido estava ainda ao lado do seu capote de viagem, leu o nome que Peyraque lha havia fielmente repetido, mas ao mesmo tempo fez um gesto de surpresa e afastou‑se rapidamente, presa de extraordinária emoção.

‑ Então que há? ‑ disse o honrado homem, tomando as rédeas.

‑ Nada! Uma alucinação! ‑ respondeu Carolina quando saíram das muralhas ‑ Imaginei reconhecer a letra da pessoa que escreveu na mala esse nome de Bernyer,

‑ Ora essa! Está escrito como se fosse impresso.

- É Verdade! Estou louca! É o mesmo, vamos

embora, meu bom Peyraque!

Carolina conservou‑se pensativa durante o caminho. Atribuía a singular emoção que lhe causara a Vista dessa letra disfarçada à que experimentara lendo a carta de sua irmã, mas assaltava‑a uma nova preocupação. O sr. de Villemer nunca lhe dissera que tinha Visto com os seus olhos o solar de Polignac, mas tinha feito dele no seu livro uma bela e fiel descrição, tomara-o como um dos tipos feudais da idade média, e Carolina sabia que ele Viajara muitas Vezes pela província para se compenetrar por si próprio da impressão dos lugares históricos.

Interrogava todos os recantos da sua memória, procurando aí encontrar o que lá não podia existir, isto é, a recordação de que o marquês lhe tivesse dito alguma Vez que havia estado ali.

‑ Não! ‑ respondia ‑ se ele mo tivesse dito, ter‑me‑iam impressionado os nomes de Lantriac e do Puy, que me recordariam Justina. E procurava então lembrar‑se ainda se, a propósito do Polignac, não teria falado de Lantriac e de Justina, mas, certa de que o não fizera, tranquilizou‑se.

Continuava todavia comovida e pensativa. Porque se havia afeiçoado a essa criança desconhecida? Que tinha ela de tão particular nos olhos, na atitude e no sorriso? Não se parecia com o marquês? Nessa ideia que subitamente lhe acudira de educar uma criança e de desejar esta, não haveria um vago instinto mais poderoso que o acaso e que as instigações de Peyraque?

A esta perturbação juntava‑se, a despeito de Carolina, o secreto tormento dum vago ciúme. Ele tinha então um filho, um filho do amor?‑pensava ela. Teria amado apaixonadamente uma mulher antes de a conhecer, porque as aventuras frívolas eram incompatíveis com o seu carácter exclusivo, e haveria um mistério importante na sua Vida? A mãe ainda vivia talvez. Porque supor que tivesse morrido?

Avançando no delírio das suposições, recordava as palavras do marquês sob o cedro do Jardim das Plantas, e essa luta que ele deixara pressentir entre o deVer filial e um outro dever, um outro amor de que afinal não era Carolina talvez o objecto!

Quem sabe se a velha marquesa se não enganara também, se o marquês tinha nomeado a sua mãe a mulher que desejava desposar, se enfim a sr.a de Villemer e a própria Carolina não passariam junto da verdade sem a atingirem?

Excitando‑se a seu pesar, Carolina procurava em vão reconciliar‑se com o destino. Amava, e para ela a mais violenta emoção era antes o temor que a esperança de não ser amada.

‑ Que tem? ‑ disse‑lhe Peyraque, que aprendera a ler‑lhe na fisionomia.

Respondeu‑lhe enchendo‑o de perguntas sobre esse sr. Bernyer que ele Vira uma vez. Peyraque era perspicaz, e tinha boa memória, mas habitualmente pensativo e recolhido, só concedia atenção às pessoas que o interessavam particularmente. Fez pois do suposto Bernyer um retrato tão incompleto e tão Vago, que Carolina não ficou mais adiantada. Dormiu mal nessa noite, mais próximo da manhã tranquilizou‑se, e despertou dizendo consigo que as suas agitações do dia precedente não tinham senso comum.

Peyraque, que tinha muito que fazer, não esperara que ela acordasse. Voltou já de noite. Trazia um ar triunfante.

‑ O nosso negócio Vai bem. ‑ disse ‑ O sr. Bernyer Vem aqui menina, e pode estar sossegada: é um inglês, um marinheiro. Não conhece gente dessa, não é Verdade?

‑ Não, não. ‑ disse Carolina ‑ Viste‑o então?

‑ Não, tinha saído, mas vi a Roqueberta que está melhor e que começa a recuperar a razão. Contou‑me que o pequeno tinha chorado muito ontem à noite, e mesmo que ao adormecer pedia a sua Charlette. O pai quis saber quem era. Parece que Roqueberta não tinha muito desejo de falar da menina, mas a mulher, que é boa cristã, e a pequena, que se lhe afeiçoou também muito, disseram que era um anjo do céu, e ele respondeu que queria agradecer‑lhe e recompensá‑la. Perguntou onde morava, nunca Veio a nossa casa, mas recordou‑se de mim, e disse que viria Ver‑nos o mais cedo possível. Prometeu‑o ao pequeno, e até que o levaria, para o fazer adormecer sossegado.

‑ Em tudo isso ‑ respondeu Carolina ‑ só Vejo uma coisa, é que esse estranjeiro Vai oferecer‑nos dinheiro.

‑ E então? Deixe‑o lá, tanto melhor, será ocasião de mostrar que não é quem ele pensa. Ver‑se‑ão, conversarão... reconhecerá que é uma menina muito mais instruída do que se julga, e eu contar lhe‑ei a sua história, porque essa história lhe faz honra!

‑ Não, não! ‑ respondeu vivamente Carolina ‑ Como! irei confiar o meu segredo a um desconhecido, depois de tantas precauções para disfarçar o meu nome e a minha posição!

‑ Mas visto que tu o não conheces! ‑ disse Justina... - Se chegarem a acordo a respeito da criança, dir‑se‑lhe‑á tudo.

Possuindo nós o seu segredo, podemos bem confiar‑lhe o nosso. Não terá interesse em o trair...

‑ justina! ‑ exclamou a menina de Saint‑Geneix, que estava junto da janela que dava para a rua ‑ espera, meu Deus! cala‑te! Ei‑lo sem dúvida, esse sr. Bernyer Vem para aqui, e é... Sim, bem o sabia, é ele! é o sr. de Villemer!... Oh! meus amigos escondei‑me! Dizei‑lhe que parti, que não devo voltar! Se ele me Vê, se me fala!... Não compreendeis que estou perdida?

 

Justina seguiu Carolina, que fugia para o seu quarto, e fez sinal a Peyraque para receber o marquês e para conservar o sangue frio.

A Peyraque não faltava ele. Recebeu o sr. de Villemer com tranquilidade dum homem que tem a mais austera noção do dever. Já se não tratava de o pôr em relações com a suposta Charlette, era necessário afastá‑lo sem que concebesse suspeitas, ou, se as tivesse, destruir‑lhas. Viu, logo às primeiras palavras, que o sr. de Villemer de nada desconfiava. Querendo retirar-se dentro em poucos dias com o filho, que contava colocar mais perto de si, aproveitara a bela manhã para Vir a pé desempenhar‑se duma dívida de coração para com uma generosa desconhecida. Não pensava que a distância fosse tão grande, e chegava um pouco tarde. Confessava estar um tanto fatigado, e o rosto revelava com efeito uma dolorosa lassidão.

Peyraque apressou‑se em oferecer‑lhe de beber e de comer, pois que a hospitalidade devia estar em primeiro lugar. Chamou Justina, que tivera tempo de se tranquilizar, e serviram o sr. de Villemer que, pensando que isso lhes daria prazer, aceitou de bom agrado. Soube com pesar que a Charlette partira, mas nenhuma razão tinha para fazer perguntas a seu respeito. Pensava deixar‑lhe um presente, que a Justina aconselhava em voz baixa que se aceitasse, para que nada o surpreendesse. Carolina encontraria meio de lho reenviar. Peyraque não compreendia essa necessidade, o seu orgulho revoltava‑se com a ideia de parecer aceitar o dinheiro por conta própria.

Carolina ouvia, do seu pequeno quarto, esse combate de delicadeza. A voz do marquês produzia‑lhe calafrios. Não ousava mover‑se. Parecia‑lhe que o sr. de Villemer lhe reconheceria os passos através do soalho. Quanto a ele, esperando ter encontrado sob uma outra forma o meio de pagar a sua dívida, tentava e fingia comer um pouco, depois do que, perguntou se poderia arranjar um cavalo de aluguer para se retirar. A noite estava escura e a chuva começava a cair. Peyraque encarregou‑se de o conduzir e saiu para preparar o carro, mas antes subiu de mansinho ao quarto de Carolina.

‑ Aquele pobre homem faz‑me pena, ‑ disse em voz baixa.‑Está bem doente, afianço‑lhe! Vê‑se‑lhe o suor na fronte, e todavia aproxima‑se do lume como uma pessoa que tem febre.

Não pôde engulir dois bocados, e quando respira, dir‑se‑á que se lhe despedaça o coração, porque põe a mão sobre ele, sorrindo corajosamente, mas levando‑a depois à fronte, como quando se sofre muito:

‑ Meu Deus! ‑ disse Carolina assustada ‑ quando ele está doente, é sempre tão gravemente í Não deve partir esta noite. O teu carro é tão mau, e com estes caminhos!‑.. Depois o frio, a chuva, com febre! Não, não, é preciso que ele fique aqui... Mas onde? Preferirá passar a noite ao relento a passá‑la na hospedaria, que é tão pouco limpa! Só há um meio! Insiste para que fique em tua casa. Dá‑lhe o meu quarto. Eu Vou juntar as minhas coisas, o que não leva muito tempo, e irei para casa da tua nora.

‑ Em casa da minha nora ou na aldeia é muito perto, se ele se achasse um pouco mais doente durante a noite, viria tratá‑lo, mesmo mau grado seu...

‑ É Verdade! Que fazer?

‑ Quer que lhe diga? A menina tem coragem e saúde, vou levá‑la a Laussonne, onde passará a noite em casa de minha cunhada, que é tão limpa como aqui, e irei buscá‑la amanhã depois que ele partir.

‑ Sim, tens razão ‑ disse Carolina, arranjando à pressa a sua saca de viagem. - Faz com que ele consinta em ficar, e ao passar, diz a teu filho que atrele Mignon.

Mignon não! andou todo o dia. Levaremos a mula.

Peyraque, depois de dar as suas ordens, voltou a dizer ao marquês que o tempo estava de chuva para toda a noite, o que era Verdade, e fazendo sinal com o olhar a Justina, insistiu tão cordialmente para que ficasse, que o sr. de Villemer aceitou.

‑ Têm razão, meus amigos, ‑ disse-lhe com um doloroso sorriso ‑ estou um pouco doente, e sou daqueles que não têm o direito de desejar morrer.

‑ Ninguém tem esse direito ‑ respondeu Peyraque, ‑ mas o senhor não está doente a ponto de morrer em nossa casa, respondo por isso! Minha mulher tratá‑lo‑á bem. O quarto lá de cima é muito limpo e muito quente, e se não se sentir bem, bastará que bata uma pequena pancada: ouvi‑lo‑emos.

Justina subiu para preparar o quarto e abraçar a sua pobre Carolina, que estava Verdadeiramente desvairada.

‑ Pois quê! ‑ disse ela, falando muito baixo ‑ sei que ele está doente e Vou deixá‑lo assim! Não, estava louca, fico!

‑ Ah! eis o que Peyraque jamais consentirá ‑ respondeu Justina. ‑ Peyraque é severo, mas que queres tu? Tem talvez razão. Se vos enterneceis, não podeis separar‑vos. E então... Eu sei que não fareis certamente nada mau, mas a mãe... E depois o que se dirá!

Carolina não escutava. Peyraque subiu, tomou‑a pela mão com autoridade e fê‑la descer. Entregara o seu pobre coração à direcção do protestante das CeVennas, não havia meio de o retirar.

Levou‑a para junto do carro, onde lançou a saca de viagem. Mas nesse momento, Carolina que havia realmente perdido a cabeça, fugiu‑lhe, precipitou‑se para a porta posterior da casa, e viu o sr. de Villemer, que tinha as costas voltadas. Não foi porém mais longe, voltou lhe a razão. Demais a sua atitude tranquilizou‑a um pouco. Não tinha o aspecto de prostração que lhe vira na Véspera da crise. Estava sentado diante do lume e lia na Bíblia de Peyraque. O pequeno candieiro de ferro pendurado no pano da chaminé iluminava‑lhe os cabelos negros, ondulados como os do filho, e o canto da fonte, sempre puro e firme. O sr. de Villemer sofria muito, sem dúvida, mas queria viver: não perdera a esperança.

‑ Aqvi estou ‑ disse Carolina, voltando para junto de Peyraque. ‑ Não me persentiu, e eu vi‑o! Estou mais tranquila. Partamos, mas tu vais jurar‑me pela tua honra ‑ ajuntou ela aproximando‑se do estribo do carro ‑ que se ele tiver esta noite uma sofocação, irás buscar‑me, ainda que tenhas de rebentar o cavalo! Assim é preciso! Só eu sei tratar este doente... E Vós vê‑lo‑eis morrer em vossa casa, e ficareis com esse remorso para toda a vida!

Peyraque prometeu, e partiram. O tempo estava terríVel e os caminhos medonhos, mas Peyraque conhecia‑lhes todos os buracos e todas as pedras. Demais a distância era curta. Instalou Carolina em casa da sua parenta e estava de volta às 11 horas.

O marquês, que se sentira melhor, deitara‑se depois de ter conversado com Justina, tão afectuosamente, que ela estava encantada. ‑ Sabes tu, Peyraque, este homem ‑ dizia ela ‑ é um coração como o de... E compreendo bem...

‑ Cala te! ‑ disse Peyraque, que conhecia a pequena espessura do soalho, ‑ visto que ele dorme, dormamos também.

A noite passou‑se serenamente em Lantriac. O marquês repousou realmente e acordou às duas horas, sem febre. Sentia‑se penetrado duma agradável tranquilidade que há muito tempo não conhecia, e que atribuiu a algum doce sonho já desfeito mas cuja impressão devia ter conservado. Não querendo despertar os donos da casa, conservou‑se imóvel, olhando para as quatro paredes do quarto que a lâmpada iluminava em cheio, e resumindo a sua situação melhor que nunca o fizera depois do desaparecimento de Carolina. Agitara no cérebro mil partidos extremos, depois pensara que se devia ao filho, e a presença desta criança restituira‑lhe a vontade de combater o mal físico que recomeçava a ameaçá‑lo. Havia vinte e quatro horas que estabelecera um plano definitivo. Queria levar Didier para casa da sr.a Heudebert, deixar a esta uma carta para Carolina, e abandonar a França por algum tempo, afim de que, tranquilizada pela sua ausência, a menina de Saint‑Geneix voltasse para junto de sua irmã em Étampes. Durante algumas semanas de calma, a marquesa informar‑se‑ia talvez, ou talvez deixasse adivinhar o seu segredo ao duque, que havia jurado arrancar‑lho por surpresa. Se o duque nada conseguisse, Urbano não abandonava a partida.

Voltaria sem ruído a Mauveroche, onde a sr.a de Villemer devia passar o Verão em casa da sua nora, e só participaria a sua Volta a Carolina quando, depois de a ter justificado junto de sua mãe, houvesse novamente afastado todos os obstáculos.

O importante e mais urgente era pois fazer sair a menina de Saint‑Geneix do seu misterioso refúgio. O marquês continuava a supor que ela se encontrava em Paris em algum convento. Via‑se obrigado a passar ainda alguns dias em Polignac para se assegurar do restabelecimento de Roqueberta antes de lhe causar o desgosto de lhe tirar seu filho, e essa demora agitava‑o mais que todo o resto. Para iludir a impaciência, pensou em escrever à sr.a Heudebert, e principalmente a Carolina, afim de que estivessem preparadas para se reunirem imediatamente depois da sua partida para o estranjeiro. Era talvez ganhar alguns dias. Mandaria a carta durante o dia ao passar no Puy para Voltar a Polignac. O que lhe sugeriu essa ideia de escrever de Lantriac, foi principalmente a vista da pequena secretária onde Carolina havia deixado penas, tinta, algumas folhas de papel dispersas. Esses objectos, em que o olhar se fixava maquinalmente, pareciam convidá‑lo a seguir a sua Inspiração. Levantou‑se sem ruído, pousou o candieiro sobre a mesa e escreveu a Carolina:

«Minha amiga, minha irmã, não abandone um desgraçado que, há uns anos, em si fundou a esperança da sua vida. Carolina não se iluda com as minhas intenções. Quero pedir‑lhe um serviço que não pode recusar‑me. Eu parto.

«Tenho um filho que é órfão de mãe. Amo‑o apaixonadamente, confio‑lho. Volte!... Vou para Inglaterra. Não me tornará a ver se não tem confiança em mim... mas isso não é possível! Quando fui indigno da sua estima? Carolina...»

O marquês deteve‑se bruscamente. Um objecto de pouca importância ferira‑lhe o olhar. O papel Vulgar e as penas de ferro, não ofereciam nenhuma particularidade: mas sobre a mesa, entre a sua mão e o tinteiro, encontrava‑se uma conta preta e esse objecto insignificante continha em si um mundo de recordações. Era uma conta de azeviche lapidada e furada dum modo desusado. Fazia parte dum bracelete sem valor que Carolina usava em Séval, e que o marquês conhecia bem, por ela costumava tirá‑lo para escrever, e ele próprio tinha o hábito de brincar com ele enquanto conversava. Tocara‑lhe inúmeras Vezes, lembrava‑se que um dia em que ela dissera: ‑ Não o quebre, é tudo quando me resta das jóias de minha mãe! E ele o contemplara com respeito e retivera-o nas mãos com amor. Na ocasião de deixar o pequeno quarto de Lantriac, Carolina, na precipitação, tinha quebrado esse bracelete, reunira rapidamente todas as contas, uma porém havia ficado.

Essa pérola preta transtornou todas as ideias do marquês: Mas que sonho era o seu? Esses azeviches lapidados podiam ser uma indústria do país. Todavia, conservou‑se imóvel e mergulhado em novas reflexões.

Respirou e interrogou o vago perfume do quarto. Examinou tudo sem se mover. Nada havia nas paredes, nada sobre a mesa nem sobre o fogão. Enfim, distinguiu na cinza alguns pedaços de papel não inteiramente queimados. Curvou‑se, procurou minuciosamente e encontrou um fragmento de direcção onde só restavam duas sílabas: uma escrita à mão, era a última da palavra Lantriac, a outra am, fazia parte do carimbo do correio. O carimbo, era o de Étampes, a letra era a da sr.a Heudebert. Não era possível a dúvida: a Charlette e Carolina eram a mesma pessoa, e talvez não tivesse partido, talvez estivesse ainda ali.

Desde então o marquês desenvolveu a atenção, a astúcia, a serenidade e a finura de percepção dum selvagem. Descobriu o cano da pequena fonte que comunicava com o lavatório de baixo. O cano estava fechado, mas havia mais duma fenda no gesso que o envolvia. Aplicou nele o ouvido, e percebeu a respiração igual e lenta de Peyraque, que dormia ainda.

Nenhuma palavra, por mais baixo que fosse pronunciada, poderia escapar‑lhe. Alguns momentos depois ouviu Justina, que se levantava, articular distintamente estas palavras:

‑ Vamos, levanta‑te Peyraque, demais só irei buscá‑la quando ele tiver partido!

Justina parou e continuou:

‑ Não se move, mas disse que se levantaria ao romper do dia. O dia não vem longe, e ele deve ir embora sem tomar nada, assim o disse.

‑ Não importa, ‑ replicou Peyraque, que se levantava e que se ouvia ainda melhor, embora falasse muito baixo ‑ não quero que ele parta a pé, é muito longe! O teu filho selará o meu cavalo, e quando o Vir a caminho, partirei para Laussonne.

O sr. de Villemer tomara a sua resolução. Fez ruído para anunciar que se levantava, e desceu depois de ter deixado a bolsa na gaveta da secretária. Mostrou‑se muito apressado em voltar a Polignac, e, afirmando que se sentia cheio de força, recusou obstinadamente o cavalo. Seria um embaraço para a guerra de observação que queria fazer. Apertou afectuosamente as mãos dos seus hospedeiros, e partiu, mas, apenas fora da povoação, mudou de direcção, informou‑se com um transeunte e penetrou num atalho que levava a Laussonne.

Pensava chegar antes de Peyraque, esperá‑lo sem se mostrar, e Vê‑lo reconduzir Carolina. Quando a soubesse de volta a Lantriac, decidiria. Até então, compreendendo que ela lhe fugia, não queria expôr‑se a perder‑lhe novamente os Vestígios. Mas Peyraque era muito diligente, Mignon andava depressa, a despeito dos caminhos sempre mais difíceis que sobem sem cessar para Laussonne, transpondo algumas Vertentes de montanhas. O atalho cortava muito pouco as Voltas desse caminho, e o marquês foi distanciado pela rústica equipagem. Viu‑a passar e reconheceu Peyraque, que, por seu lado, julgou distinguir na bruma matinal um homem vestido duma maneira diversa dos camponeses, e que se dissimulava rapidamente por detrás dum muro de pedra solta.

Peyraque era desconfiado. ‑ Talvez que ‑ pensou ele ‑ tenha zombado de nós, ou surpreendido alguma coisa. Pois bem! se é assim, se não está mais doente que isso, vou fazê‑lo arrepender‑se de seguir a pé um cavalo de montanha.

Apressou Mignon e chegou perto de Laussonne aos primeiros raios do sol. Carolina mortalmente inquieta, após uma insónia horrível, vinha ao seu encontro.

‑ Tudo corre bem ‑ disse ‑ Enganei‑me ontem, parece que não está doente, porque dormiu bem e quis partir a pé.

‑ Sempre partiu? ‑ respondeu Carolina, subindo para junto de Peyraque ‑ Não suspeitou de nada? E nunca mais o verei? Vamos, tanto melhor! ‑ E desatou a soluçar debaixo do capuz, que em vão puxava para o rosto. Peyraque compreendeu que o coração se lhe despedaçava.

‑ Então é agora a menina que vai ficar doente? ‑ disse com um tom severamente paternal ‑ Vejamos! seja razoável, ou o seu Peyraque não a acreditará quando lhe disser que é cristã!

‑ Meu Deus! Contanto que não chore diante dele!... Não podes perdoar‑me um instante de fraqueza? Mas que fazes? Porque continuamos a caminhar para Laussonne?

Peyraque julgara distinguir novamente o marquês, que continuava a avançar. ‑ Há‑de desculpar‑me. ‑ disse ‑ mas tenho um assunto a tratar na povoação. É muito perto.

E entrou na aldeia convencido que o marquês se conservaria em observação a distância. Foi trocar algumas palavras na extremidade da rua com um dos habitantes. Os pretextos não podiam faltar‑lhe. Depois voltando para junto de Carolina: ‑ Vejamos, minha filha, ‑ disse‑lhe ‑ a menina está muito preocupada. Quero distrai‑la, sabe que o passeio lhe faz sempre bem. Quer dar um... mas um lindo passeio!

‑ Se tens negócios a tratar em alguma parte, não quero incomodar‑te. Irei para onde fores.

‑ Precisava de ir até à base do Mezenc, à povoação dos Estables. É um belo lugar, e a menina desejava tanto ver a maior das CeVennas!

‑ Dizias que era difícil antes do fim do próximo mês?

‑ Ora! o tempo está um pouco nublado e os caminhos estão talvez alguma coisa deteriorados. Não tenho ido para ali desde o ano passado, mas diz‑se que os têm consertado, e demais bem sabe que comigo não há perigo.

‑ Asseguro‑te que não estou em disposição de me preocupar com o perigo. Partamos.

Peyraque animou o cavalo, que transpôs Laussonne e desceu corajosamente a colina pedregosa para a subir imediatamente mais rápido na outra Vertente. Quando atingiram o cimo, Peyraque voltou‑se, já não Viu ninguém nos atalhos que lhe ficavam para trás, e examinou o caminho que tinha diante de si e que tomava mau aspecto.

‑ Vai Ver o deserto, ‑ disse ‑ não a entristecerá?

‑ Não, não, ‑ respondeu ela ‑ quando estamos desesperados, nada nos entristece.

Peyraque avançou, não sem advertir por várias vezes a sua companheira de que o sol se não mostrava muito decidido a brilhar, que tinham quatro léguas a andar, e que talvez o Menzec estivesse toldado. Tudo isto era completamente indiferente a Carolina, que não adivinhava as hesitações e os remorsos do seu velho amigo.

Atravessaram a montanha coberta de pinheiros e cortada por vasta carreira, resultado dum antigo corte, que abria como que uma álea gigantesca em que o caminho parecia de longe uma estrada onde poderiam passar cem carros de frente, mas, quando o carro nela se embrenhou, foi um trabalho terrível para transpor essa terra solta e cortada em numerosos pontos por profundos sulcos de rodas.

Tinham andado apenas duas léguas ao cabo de duas horas, e achavam‑se em plena charneca num interminável planalto, a quinhentos metros de elevação. Salvo os acidentes do caminho, nada se distinguia em torno. O sol havia desaparecido, o nevoeiro envolvia tudo como um sudário, e nada poderia dar ideia do sentimento de morna desolação que se tinha apoderado do espírito de Carolina. O bróprio Peyraque estava desmoralizado e conserVava‑se silencioso. O caminho trilhado que tinha sido forçado a deixar não reaparecia, e havia um quarto de hora que caminhava sobre uma relva esponjosa pisada pelo gado na pastagem, mas que não apresentava vestígio algum de rodas. O cavalo parou, banhado em suor.

Peyraque desceu, e entrou na turfa até ao meio da perna, procurando orientar‑se. Era completamente impossível. As montanhas e as ravinas não eram mais que uma vasta planície de vapor branco.

‑ Perdemos a estrada? ‑ disse Carolina com indiferença.

Neste momento, o Vento fez uma abertura no nevoeiro, e viram‑se ao longe fantásticos horizontes iluminados pelo sol, a nuvem fechou‑se porém tão rapidamente que Peyraque nada pudera reconhecer nesse ponto Isolado da cintura longínqua das montanhas. Entretanto ouviram‑se latidos e depois vozes, mas só se distinguiam os cães quando se achavam a dois passos. Precediam uma caravana de homens e muares que conduziam legumes e odres. Eram montanheses que tinham ido trocar à planície o queijo e a manteiga das suas vacas por frutas e legumes. Informaram‑se. Disseram a Peyraque que fizera mal em querer ir de carro aos Estables, que não era possível chegar até lá, e que devia retroceder. Peyraque pôs nisso amor próprio, perguntou se ainda estava muito longe da povoação. Ensinaram‑lhe onde ficava a estrada dizendo‑lhe que tinha para hora e meia, e como os animais que iam carregados, estavam suados e eles próprios tinham pressa, os montanheses não ofereceram nenhum socorro e afastaram‑se, zombando um pouco da carroça.

Carolina Vio‑os desaparecer rapidamente como sombras no nevoeiro. Era absolutamente necessário deixar respirar o cavalo, que um novo esforço para retomar o caminho escarpado, deixara exausto.

‑ O que me consola ‑ disse Peyraque muito comovido ‑é que a menina de nada se queixa E contudo faz muito frio e estou certo que a humidade lhe trespassou a capa.

Carolina só respondeu com um estremecimento.

Uma nova sombra acabava de passar na orla do caminho, era o sr. de Villemer. Não parecia ter notado o carro, conquanto o tivesse visto muito bem, mas não queria mostrar reconhecer as pessoas que ele conduzia. Avançava com uma energia extraordinária afectando ar indiferente.

‑ É ele! Vi‑o! ‑ disse Carolina a Peyraque ‑ Segue o mesmo caminho que nós!

‑ Pois bem! deixemo‑lo passar, e Voltemos!

‑ Não! Não posso mais, que quero! Vai morrer depois de semelhante corrida! Não chegará aos Estables. Sigamo‑lo.

Havia tanta autoridade no terror de Carolina, que Peyraque obedeceu. Alcançaram o sr. de Villemer, que se afastou para os deixar, mas não levantou a cabeça nem parou. Não queria ser importuno nem rebelde, mas queria saber, queria seguir até à morte.

Infelizmente as forças faltaVam‑lhe. A dificuldade dessa marcha sempre ascensional desde Lantriac, e principalmente as duas léguas num caso de pedras e de relvas, haviam‑lhe provocado uma abundante transpiração que sentia gerar‑se ao sopro da áspera brisa que Voltara subitamente a leste. A respiração faltava‑lhe e foi obrigado a parar.

Carolina voltou a cabeça para ele, prestes a gritar‑lhe...

Peyraque apertou‑lhe o braço: ‑ Coragem, minha filha! ‑ murmurou com acento profundamente religioso ‑ Deus assim o quer!

Ela sentiu‑se esmagada pela robusta fé do camponês.

‑ Que quer que lhe aconteça? ‑ continuou ele avançando sempre. ‑ Teve forças para chegar até aqui, tê‑las‑á ainda para Vencer o resto do caminho. Um homem não morre por uma excursão a pé! Descansará nos Estables. E se cair doente... eu estarei lá!

‑ Mas ele segue‑me! Bem vês que será preciso que eu lhe fale aqui ou noutra parte!

‑ Porque a seguirá? Nem sequer desconfia que a menina está aqui. Há tantos Viajantes que visitam o Mezenc!

‑ Com o tempo que faz?

‑ O sol nasceu radioso, e nós também íamos Ver o Mezenc!

O marquês notara a hesitação de Carolina e depois a sua resignação.

Essa emoção dera‑lhe o último golpe. Apenas a viu afastar‑se, sentiu que não iria mais longe. Deixou‑se cair sobre uma pedra, com os olhos fixos nesse ponto negro que se afastava lentamente, porque o Vento leVantara‑se repentinamente e impelia violentamente os Vapores que começavam a ser substituídos por ligeiros turbilhões de neve e de granizo. ‑ Quer então que eu nada saiba dela? ‑ pensou, sentindo‑se desfalecer ‑ Foge da esperança, perdeu a fé! É que nunca me teve amor! E deitou se para morrer.

 

‑ Avancemos, avancemos! ‑ dizia Peyraque ao cabo de meia hora, Vendo a neve aumentar. ‑ Eis alguma coisa pior que o nevoeiro! Quando isto começa a cair, o caminho sobe‑nos rapidamente mais alto que a cabeça.

Estas palavras imprudentes puseram Carolina em revolta aberta: queria precipitar‑se para fora do carro, resolvida a retroceder e a andar até encontrar o sr. de Villemer.

Peyraque reteve‑a, mas foi obrigado a ceder e a recomeçar, apesar do perigo sempre crescente e da dificuldade duma marcha sempre mais demorada, a meia légua que acabavam de transpor com tanta dificuldade depois que tinham perdido de vista o marquês. Procuraram‑no em vão com o olhar. Numa hora, a neve havia feito desaparecer o solo e as suas asperezas. Era‑lhes impossível saber se tinham ultrapassado o lugar que queriam explorar. Carolina gemia sem a si própria se ouvir, repetindo maquinalmente: «Meu Deus! meu Deus!»

Peyraque não tentava já tranquilizá‑la e só a animava dizendo‑lhe que olhasse bem.

Repentinamente o cavalo parou. ‑ Deve ter sido aqui que achámos a estrada ‑ disse Peyraque. ‑ Mignon reconhece‑o.

‑ Então Viemos demasiado longe! ‑ respondeu Carolina.

‑ Mas não encontrámos ninguém! ‑ replicou Peyraque ‑ Esse senhor, vendo chegar a tormenta, voltou certamente para Laussonne, e nós, que estamos mais perto dos Estables, arriscamo‑nos a ficar aqui, se a neve não cessa.

‑ Vai‑te, Vai‑te, Peyraque! ‑ exclamou Carolina saltando para a neve ‑ Eu ficarei aqui até que o encontre.

Peyraque não respondeu. Apeou‑se e pôs‑se a procurar, mas sem nenhuma esperança. Havia já alguns pés de neVe, e o vento que a amontoava numa cavidade, podia esconder um cadáver.

Carolina ia ao acaso, caminhando para a frente como uma alma sem corpo, tal era a sua sobre‑excitação. Estava já um pouco longe do carro quando ouviu o cavalo soprar com força baixando a cabeça. Julgou que ele expirava, e contemplando‑o com angústia, viu que farejava diante de si dum modo estranho. Foi uma revelação: correu e viu uma mão enluvada e como morta, que a respiração do cavalo, derretendo a neve nesse ponto, pusera a descoberto. O corpo, ali estendido, era o obstáculo que o animal não quisera pisar. Aos gritos de Carolina, Peyraque acudiu: e libertando o sr. de Villemer, colocou‑o no carro, onde a menina de Saint‑Geneix o amparou, procurando aquecê‑lo nos braços.

Peyraque tomou as rédeas e caminhou novamente na direcção do Mezenc. Bem via que não havia um instante a perder, mas ia sem saber onde pousava os pés, e dentro em pouco desaparecia num barranco que não pudera evitar. O cavalo parou por si próprio, Peyraque levantou‑se e, querendo fazê‑lo recuar, viu que as rodas estavam presas num obstáculo invisível. Demais o cavalo estava exausto, em vão lhe fez sentir o chicote pela primeira vez da sua vida e lhe puxou pelo freio até lhe fazer sangrar a boca. O pobre animal olhou‑o com um olhar quase humano, como para lhe dizer: «fiz mais do que podia, e nada posso para vos salvar».

‑ Será então preciso morrer aqui! ‑ disse desalentado Peyraque, que via cair a neve em turbilhões inexoráveis. O planalto transformara‑se numa estepe da Sibéria, ao fundo da qual só o Mezenc mostrava a sua cabeça lívida através das rajadas. Nem uma árvore, nem um telhado, nem sequer um rochedo para se abrigarem. Peyraque sabia que nada havia a fazer.

‑ Esperemos! ‑ disse.

Contudo pensou imediatamente em ganhar um quarto de hora, embora ele fosse o último da sua Vida. Tomou uma tábua da carroça e lutou contra os montões de neve que, Impelidos pelo vento, ameaçavam sepultar o cavalo e o carro. Durante dez minutos trabalhou como um atleta nesse desaferro, dizendo para consigo que era talvez inútil, mas que se defenderia e defenderia Carolina até ao último alento.

Ao cabo desses dez minutos agradeceu a Deus, a neve diminuía, e o Vento começava a cair, o nevoeiro, bem menos perigoso, esforçava-se por reaparecer. Afrouxou o trabalho sem o abandonar. Enfim, viu como que uma linha alvacenta desenhar‑se nas profundidades do céu, era uma promessa de bom tempo.

Até então não dissera uma palavra, não proferira uma blasfémia. Se Carolina devesse morrer ali, não o teria suspeitado até ao último momento. Todavia olhou para Carolina e viu‑a tão pálida e com o olhar tão desvairado que se assustou.

‑ Então, então! ‑ disse ele ‑ o que há? O perigo passou! Não será nada!

‑ Oh! nada! ‑ respondeu ela com um amargo sorriso ‑ mostrando‑lhe Urbano deitado no banco do carro, com o rosto azulado pelo frio e os olhos abertos e embaciados como os dum cadáver.

Peyraque olhou em volta de si. Nenhum socorro humano havia a esperar. Saltou para o carro, apertou fortemente nos braços o sr. de Villemer, friccionando‑o com vigor, poisando‑o com as suas mãos de ferro, procurando comunicar‑lhe o calor do seu velho sangue, reanimado pelo trabalho e pela vontade, mas foi em vão. Ao efeito do frio juntava‑se o duma crise nervosa própria da organização do marquês.

‑ Contudo ele não está morto! ‑ dizia Peyraque ‑, sinto, tenho a certeza! Ah! se eu tivesse com que fazer lume! Mas não posso fazê‑lo com pedras!

‑ Se queimássemos a carroça? ‑ exclamou Carolina ‑, Depois, depois Deus nos enviará socorro. Não vês que a primeira coisa a fazer, é impedir que a morte nos surpreenda aqui?

Peyraque Viu Carolina tão pálida e com os olhos tão pisados, que julgou que ela se sentia também morrer. Não hesitou mais e resolveu arriscar tudo. Desengatou o cavalo, que, imediatamente, como os cavalos cossacos, se rolou na neve para descansar. Tirou a capota do carro, e, colocando‑a no chão, levou para debaixo dela o sr. de Villemer, sempre inerte e gelado, depois tirando da caixa alguns punhados de feno, papeis velhos e restos de linhagem, colocou tudo sob o carro e chegou‑lhe fogo com a acendalha (o velho fuzil), e quebrando com a ferramenta de ferrador as tábuas do seu pobre veículo, conseguiu fazer chama e carvões em poucos instantes. Demolia e quebrava à medida que ia queimando. A neve já não caía, e o sr. de Villemer, colocado num semi‑círculo de fragmentos inflamados, começava a examinar com espanto a estranha cena que tomava por um sonho.

‑ Está salvo! salvo! ouves, ouves, Peyraque? ‑ exclamou Carolina, que o sentia fazer um esforço para se levantar ‑ Que Deus te recompense! SalVaste-o!

O marquês ouviu a voz de Carolina junto de si, mas continuando a julgar‑se alucinado, não procurava vê‑la.

Só compreendeu o que se passava sentindo nas mãos os lábios desvairados de Carolina. Pensou então que ia morrer, pois que ela lhe não fugia, e, com voz fraca, tentando sorrir, disse‑lhe adeus.

‑ Não, não, adeus não! ‑ respondeu ela cobrindo‑lhe a fronte de beijos ‑ é preciso Viver, assim o quero, meu amor!

Um fraco rubor cobriu o rosto do marquês, que não conseguiu articular uma só palavra que pudesse exprimir a sua alegria, receava sonhar ainda. Reanimava‑se Visivelmente. O calor concentrara‑se sob a capota do carro que lhe servia de abrigo. Estava ali tão bem quanto possível, estendido sobre as capas de Carolina e Peyraque.

‑ Mas será preciso sair daqui ‑ pensou este, e o seu olhar inquieto interrogava o horizonte desanuviado. O frio era vivo, o fogo extinguia‑se à falta de alimento, e o doente não poderia andar até aos Estables. E Carolina, teria forças para tanto? Pô los a ambos sobre o cavalo, era o único recurso, mas o animal extenuado suportaria tal esforço? Embora, era preciso tentar e dar‑lhe primeiro aveia. Peyraque procurou‑a e não a encontrou: a chama consumira o pequeno saco com a caixa.

Uma exclamação de Carolina restituiu‑lhe a esperança. Mostrou‑lhe numa elevação do terreno que os abrigava um ligeiro Vapor. Peyraque correu ali, e viu abaixo de si um carro de bois que se aproximava penosamente e cujo boeiro fumava para se aquecer.

‑ Bem vês! ‑ disse‑lhe Carolina quando o carro chegou junto deles ‑ Deus socorreu‑nos. O sr. de Villemer estava ainda tão fraco que foi preciso transportá‑lo para o carro, felizmente carregado de palha, em que Peyraque o enterrou, por assim dizer. Carolina subiu para junto dele. Peyraque montou no cavalo, abandonando os restos da sua pobre carroça, e numa hora alcançaram, enfim, a povoação dos Estables.

Peyraque passou desdenhosamente por diante da estalagem duma certa gigante, de pernas nuas e colar de ouro, verdadeira mandriona duma extravagância repugnante. Sabia que o marquês não encontraria ali zelo algum. Fê‑lo descer em casa dum camponês que conhecia, onde logo se afadigaram em torno do doente, enchendo‑o de perguntas e de oferecimentos que ele não ouvia. Peyraque fez com autoridade sair os Inúteis, deu ordens e procedeu ele próprio. Em poucos instantes o fogo chamejou, e o vinho a ferver espumou na caldeira. O sr. de Villemer, estendido sobre uma espessa camada de palha e de relva seca, via Carolina de joelhos, junto de si, ocupada em impedir que o fogo se lhe comunicasse ao fato e contemplando‑o com ternura de mãe. Inquietava‑se com a terrível beberagem que Peyraque preparava com grande quantidade de especiarias, mas o marquês tinha confiança no montanhês. Fez sinal que queria obedecer‑lhe, e Carolina aproximou‑lhe, tremendo, a taça aos lábios. Dentro em pouco o sr. de Villemer pôde falar, agradecer aos seus novos hospedeiros, e dizer a Peyraque, apertando‑lhe as mãos, que queria ficar só com ele e Carolina.

Não foi coisa fácil obter da família que abandonasse o seu teto por algumas horas. Os abrigos são raros sob este céu inclemente, e os rebanhos, único recurso do ceVenol, estão alojados de maneira a não deixar lugar aos habitantes. Estes, em particular, têm uma reputação de dureza e de inospitalidade que remonta ao assassínio do geómetra enviado por Cassini para medir o Mezenc, e que foi tomado por feiticeiro. Mudaram muito e mostraram‑se hoje mais afáveis, mas os seus hábitos são duma miséria profunda, e não obstante, são muito comerciantes, bons criadores de magnífico gado, e tão bem fornecidos quanto possível de géneros de permuta. Somente, a aspereza do clima e o isolamento da região penetraram‑lhe no espírito, assim como no sangue.

O compartimento que compunha, com o estábulo, todo o interior da casa, abandonada enfim a Peyraque e aos seus amigos, era muito pequeno, e pouco mais rico que a gruta céltica da velha de Espaly. O fumo engolfava‑se parte na chaminé, parte num grande buraco aberto na parede. Dois leitos em forma de caixa recebiam de noite, coisa incompreensível, uma família de seis pessoas. O chão era formado pela rocha bruta, mas ao lado, as vacas, as cabras, os carneiros e as galinhas tinham todas as comodidades.

Peyraque estendeu por toda a parte palha fresca, forneceu se de lenha, esquadrinhou a arca onde encontrou pão, e obrigou Carolina a comer e a descansar. O marquês suplicava‑lhe com o olhar que pensasse em si própria, porque ela não ousava afastar‑se um passo, e conservava‑lhe sempre as mãos nas suas. Ele queria falar, podia‑o fazer agora, e não ousava dizer uma palavra. Receava que ela se afastasse quando Visse que se sentia amado. E depois, Peyraque embaraçaVa‑o cruelmente. Não compreendia o papel daquela rústica Providência que, Velando por Carolina, fora tão obstinada e tão cruel para ele, e que lhe mostrava agora a dedicação e uma solicitude sem limites. Enfim, Peyraque saiu. Não podia esquecer o pobre cavalo, seu fiel companheiro que se censurava de ter maltratado, e que, quando chegou, se Viu obrigado a confiar ao cuidado de estranhos.

‑ Carolina, ‑ disse o marquês depois de se ter sentado num escabelo, apoiando‑se ainda no braço da sua amiga, ‑ tinha muitas coisas a dizer‑lhe, mas não estou na posse de toda a minha razão... não, realmente, não estou, e tenho medo de lhe falar em delírio. Perdoe‑me, sinto‑me feliz... de a ver, de a sentir junto de mim ao sair ainda uma vez dos braços da morte! Mas não posso causar‑lhe mais inquietações! Meu Deus! Que fardo tenho sido na sua vida! Não será assim doravante, o que sucedeu foi apenas um acidente... uma loucura, uma imprudência da minha parte, mas podia eu resignar‑me a perdê‑la ainda outra vez? Não sabe, nunca saberá... não viu, não compreendeu o que era para mim, e talvez jamais o queira compreender!

Amanhã, fugir‑me‑á novamente talvez! E porquê, meu Deus? Leia ‑ ajuntou ele, procurando em si e entregando‑lhe a folha amarrotada da carta começada em Lantriac nessa manhã ‑, está talvez ilegível, a chuva, a neve...

‑ Não ‑ disse Carolina inclinando‑se para a chama ‑, leio... leio bem... e compreendo!... Sabia, tinha adivinhado e aceito... Era o desejo do meu coração, sonho da minha vida! E não lhe dei eu o meu coração e a minha vida?

‑ Ai! não, ainda não, mas se quiser confiar em mim...

‑ Não se fatigue a falar, a querer convencer‑me, ‑ disse Carolina com soberana animação ‑ Creio em si, mas não no meu destino. Pois bem! aceito‑o tal como mo fizer. Bom ou mau, ser‑me‑á querido, pois que nenhum outro posso aceitar. Escute, escute‑me, não tenho talvez mais que um instante para lhe falar. Não sei que provações a sua consciência e a minha terão de sofrer, conheço que sua mãe é inexorável, senti o gelo do seu desprezo, e nada teremos a esperar de Deus se lhe despedaçarmos o coração. Será preciso pois que nos submetamos e para sempre! Já uma vez lho ouvi dizer, estabelecer um projecto de felicidade sobre a perda de nossa mãe, é colocar um sonho de ventura no mais criminoso dos pensamentos, e essa felicidade seria cem Vezes maldita, nós mesmos a amaldiçoaríamos!

‑ Porque me recorda tudo isso? ‑ disse o marquês dolorosamente ‑ não o sei eu? Mas julga impossível que minha mãe reconsidere, e nesse pensamento Vejo eu que não quer permitir‑me que o tente, e que só a compaixão...

‑ Não Vê, ‑ exclamou Carolina pondo‑lhe a mão sobre a boca ‑ nada compreende se não vê, se não compreende que o amo!

‑ Uh! meu Deus! ‑ disse o marquês deixando‑se cair de joelhos, - repita ainda! Tenho medo de sonhar! É a primeira vez que mo diz, julgava adivinhar, e não ouso acreditá‑lo... Diga, diga, e morra eu depois!

‑ Sim, amo‑o mais que a própria vida ‑ respondeu ela, apertando contra o coração essa nobre fronte, sede de uma alma tão grande e tão verdadeira ‑ amo‑o mais que a minha dignidade e a minha honra! Neguei‑o por muito tempo a mim própria, neguei‑o a Deus nas minhas orações e mentia a Deus e a mim mesma! Compreendi enfim, e fugi por cobardia, por fraqueza! Sentia‑me perdida, e sei que o estou! Pois bem! que importa afinal? Não se trata de mim! Enquanto pude ter a esperança de me fazer esquecer, lutei, mas vejo, compreendo que me ama demasiado e que morrerá se eu o abandonar. Julguei‑o morto, há algumas horas, e vi então claro na minha existência: era eu que o matava! Podia fazê‑lo viver, ao mais nobre, ao melhor dos seres, e sacrificava‑o ao Vão respeito de mim própria! E que sou eu, para o deixar morrer, quando tudo o que não é a sua afeição nada é para mim? Não, não, combati bastante, fui bastante orgulhosa, bastante cruel, e fi‑lo sofrer demasiado!

Amo‑o, compreende? Não quero ser sua esposa, porque seria mergulhá‑lo em cruéis remorsos, em irremediáveis dores, mas serei sua amiga, sua serva, a mãe do seu filho, a sua companheira ignorada e fiel. Passarei por sua amante, pela Verdadeira mãe de Didier, talvez! Pois bem! Consinto, aceito o desprezo que tanto temi, e parece‑me que o cálice assim esgotado me dará uma nova vida!

‑ Ó nobre coração, alma mil Vezes santa! ‑ exclamou o marquês ‑ Também eu aceito o teu divino sacrifício! Não me desprezes por assim proceder, sou digno dele e depressa o farei cessar. Sim, sim, farei milagres! Minha mãe cederá sem pesar. Sinto no coração o ardor da fé e tesouros de persuação! Mas embora nada conseguisse, vês tu, embora o mundo se erguesse para te amaldiçoar, a ti, minha irmã e minha filha, minha santa companheira, minha amiga adorada, tu serias a meus olhos, ainda mais nobre e sentir‑me‑ia ainda mais orgulhoso por te haver escolhido. Ah! o que é o mundo, o que é a opinião para um homem que perscrutou a vida dos homens do passado e do presente, os mistérios do seu egoísmo e o nada da sua má fé! Esse homem bem sabe que em todos os tempos, por uma pobre verdade que flutua, mil verdades são estranguladas e marcadas com o selo da infâmia! Sabe que os melhores e mais generosos têm sido obrigados a seguir os passos de Cristo na senda de espinhos onde afluem as injúrias e os ultrajes. Pois bem! Por ela caminharemos, se assim for preciso, e o amor nos tornará insensíveis aos cobardes insultos. Oh! afirmo‑te, juro‑te, a despeito de todas as ameaças do destino que os homens quiserem preparar‑nos: serás amada, portanto serás feliz! Tu bem me conheces, cruel que fechavas os olhos fugindo! Bem sabias que toda a minha vida e toda a minha alma são amor e nada mais! Sabias que, se algumas Vezes procurei a verdade com ardor, era por amor por ela, e não pela Vanglória de a proclamar pessoalmente! Não sou um sábio, não sou um autor! Sou um desconhecido que passa Voluntariamente junto do ruído e do fumo, combatendo afastado e na sombra, não por falta de coragem, mas para me não arriscar a ferir minha mãe ou meu irmão na refrega. Aceitei esse papel apagado sem experimentar o menor sofrimento de amor próprio. Sentia que na minha alma não havia necessidade de incenso, mas o amor. Que me importam as ambições dos meus semelhantes, as suas desmedidas vaidades, a sua sede de predomínio, as suas necessidades de luxo, o seu contínuo desejo de se mostrarem? Não podia divertir‑se com esses brinquedos! Não era mais que uma pobre e simples criatura, enamorada de ideal, uma criatura ingénua, se assim o quiserem, procurando o amor e sentindo‑o viver em si, por muito tempo, antes de ter encontrado aquela que devia desenvolver nele todo o seu poder. Calava‑me sabendo que seria encarnecido, o que me era Indiferente quanto à minha pessoa, mas que me teria feito sofrer como um ultrage à minha religião íntima e sagrada!...

Uma Vez, uma única Vez na minha Vida... quero contar‑lhe, Carolina, amei...

‑ Não conte! ‑ exclamou ela, ‑ nada quero saber.

‑ DeVe, pelo contrário, saber tudo. Ela era boa e meiga, e as minhas recordações podem sem esforço respeitá‑la no túmulo, mas não podia amar‑me. Era culpa do seu destino e não sua. Não tenho censuras a fazer‑lhe, só minha foi a culpa e muito me censurei e puni por ter cedido a uma paixão que não era permitida. Só me reconciliei com a vida quando, em si, minha amiga, a vi florescer na sua mais bela e mais pura expressão. Compreendi então porque nasci no pranto, porque estava destinado a amar, e condenado a amar demasiado cedo, e mal, e no pecado, desejando ardentemente o sonho e o alvo da minha vida! E agora sinto‑me para sempre reabilitado e salvo. Sinto que o meu ser vai recuperar o seu equilíbrio, a minha mocidade as suas esperanças, e o meu coração o seu alimento natural. Tenha confiança em mim, anjo que o céu me enviou! Bem sabe que ele nos criou um para o outro. DeVe ter sentido mil vezes, mau grado seu, que só tínhamos um espírito e um pensamento, que amávamos as mesmas ideias, as mesmas artes, os mesmos nomes, os mesmos seres e as mesmas coisas. Ah! recorde‑se, Carolina, recorde‑se de Séval, das nossas horas de sol no Vale, das nossas horas de deliciosa frescura sob o tecto dessa biblioteca onde a minha amiga festejava com tão lindas flores a misteriosa e profunda união das nossas almas!

E não era um casamento indissolúvel o que as nossas mãos consagravam todas as manhãs estreitando‑se castamente? Não nos entregava o nosso primeiro olhar, todos os dias e para sempre, um ao outro?... E tudo isto seria perdido, evolado para sempre ? Pôde pensar por um instante que essa vida acabaria, que esse homem, doravante sem luz e sem ar, poderia existir, consentiria voltar ao nada! Não, não, não, não o acreditou! Esse homem tê‑la‑ia seguido até ao fim do mundo, teria caminhado sobre o gelo, sobre o fogo, sobre a água para se lhe reunir!... E quando hoje me deixava morto sob a neve, não sentia que a minha alma, que o meu espectro desesperado, a seguia ainda através das rajadas do vento ?

‑ Escuta, escuta‑o! ‑ disse Carolina a Peyraque, que voltara e que contemplava estupefacto o marquês exaltado e como que transfigurado pela paixão ‑ Escuta o que ele me diz e não te admires se o amo mais que a mim própria! Não te assustes, não te aflijas, não te afastes, lastimando‑nos! Fica junto de nós, e vê que somos felizes! A presença dum velho santo como tu não nos constrange. Compreender‑nos‑ás tu talvez, que, além dum certo dever que eu compreendia ontem e não admito hoje, nada queres ouvir, mas, mau grado teu hás‑de abençoar‑me e estimar‑me ainda porque sentirás a autoridade e o direito deste homem, que é mais que todos os outros homens, e a quem Deus só pode ter concedido palavras de verdade. Sim, amo‑o... amo te, a ti que hoje estive a ponto de perder, e não mais te abandonarei, seguir te‑ei por toda a parte, o teu filho será meu filho, como a tua pátria será, é a minha pátria, como a tua fé é a minha fé. Não quero outra honra neste mundo, nem outra Virtude perante Deus que amar‑te e consolar‑te.

O sr. de Villemer estava de pé e radiante duma pura alegria que deslumbrava e não assustava Carolina. Nessa hora de entusiasmo, não havia lugar, não havia pensamento para a perturbação dos sentidos. Apertava‑a contra o coração com essa santidade do sentimento paterno que nele havia, e que suscitava um instinto de forte protecção, direito duma grande inteligência sobre um grande coração, e duma alma superior sobre uma alma elevada pelo amor ao seu nível.

Não pensavam nem um nem outro se a paixão os levaria um dia para além dessa sublime efusão. Deve dizer‑se em seu louvor que experimentavam a infinita ternura da amizade, entusiasta, é verdade, mas ingénua e profunda, e que o alvo do seu futuro, se definia e resumia nesta simples frase: não se abandonarem!

 

Eram quatro horas quando o tempo permitiu que Peyraque fizesse os preparativos de regresso. Alugou um bom carro guarnecido de palha e cobertores e lá partiram.

Nesse mesmo dia, a linda duqueza de Aléria, vestida de seda e com os braços carregados de pulseiras, entrava nos aposentos de sua sogra, na propriedade de Mauveroche, no Limousin, deixando seu marido e a sr.a de Arglade conversarem com aparência de grande amizade no magnífico salão.

Diana tinha um ar alegre e triunfante que impressionou a marquesa.

‑ Então, minha linda! ‑ exclamou ela ‑ Que há? Voltou o meu outro filho?

‑ Voltará em breve! ‑ respondeu a duquesa ‑ Prometeram‑lho, e bem sabe que não temos inquietações a seu respeito. O duque sabe onde ele está, e afiança‑nos que o Veremos no fim da semana. Assim sinto‑me extraordinariamente alegre... e mesmo extraordinariamente feliz... Esta querida senhora é encantadora! É ela a causa da minha felicidade!

‑ Oh!... está zombando, minha feiticeira! Sei que não pode suportá‑la. Porque a trouxe para aqui? Não lho pedi. Ninguém pode distrair‑me, ninguém, a não ser a minha querida filha!

‑ E tomo esse cargo mais que nunca, ‑ replicou Diana com um sorriso encantador ‑ e justamente esta de Arglade que eu adoro vai fornecer‑me armas para combater o seu feio pesar. Ouça, minha boa mãe, possuímos enfim o medonho segrede! E não foi sem custo. Há três dias que manobramos em torno dela, o duque e eu, que a confundimos com a nossa confiança, com a nossa simplicidade e com as mais ternas gentilezas. Enfim, a boa criatura, que não conseguimos iludir e a quem as nossas zombarias irritaram, acaba de me dar a entender que o grande crime de Carolina teve por cúmplice... Oh! bem sabe quem, ela disse‑lho! Fingi que não compreendera, mas senti uma pequena dor no coração... Não! uma grande dor, devo falar a verdade! Corri porém a procurar o meu querido marido, e lancei‑lhe em pleno rosto: ‑ É Verdade, mau homem, que foi amante da menina de Saint‑Geneix? O duque pulou como um gato... não! como um leopardo a quem houvessem pisado uma pata. ‑ Ah! bem o sabia eu ‑ disse ele, rugindo ‑ é a boa Leonia quem pretende semelhante coisa! ‑E então como ele falasse em a matar, tive de dizer‑lhe que não acreditara uma palavra do que ela me havia contado, o que não era bem a verdade, o que eu queria era não acreditar. E ele, que não é tolo, o senhor seu filho, notou‑o, e pôs‑se de joelhos aos meus pés, e jurou, oh! jurou‑me por tudo aquilo em que eu creio e por tudo o que amo, pelo Verdadeiro Deus em primeiro lugar, e depois por si, minha boa mãe, que era uma infame calúnia, do que eu agora estou tão certa como de ter Vindo ao mundo expressamente para amar o sr. duque.

A duquesa tinha uma linguagem infantil, tão ingénua quanto a da sr.a Arglade era afectada, e juntava‑lhe um acento de franqueza e de resolução que a tornavam adorável. A marquesa não teve tempo de se admirar do que ouvia, o duque entrava tão triunfante como sua esposa.

‑ Deus seja louvado! ‑ exclamou ele ‑ Não tornará a Ver aqui essa Víbora! Já pediu a sua carruagem, e vai partir, furiosa, mas esmagada, por isso respondo eu, e privada de todo o seu Veneno!

Minha mãe, minha pobre mãe! como foi enganada, e como deve ter sofrido! E nada queria dizer, nem mesmo a mim, que com uma palavra... Mas enfim confessei‑a, a essa odiosa mulher que teria trazido desespero ao meu lar, se Diana não fosse um anjo do céu contra o qual o inferno nenhum poder tem. Olhe, mamã! zangue‑se um pouco conosco, far‑lhe‑á bem. A sr.a de Arglade viu, não é Verdade? Viu com os seus olhos a menina de Saint‑Geneix, apoiada no meu braço, atravessar ao nascer do dia o pátio de SéVal? Viu que eu lhe falava afectuosamente e lhe apertava as mãos? Pois bem! Viu mal, porque lhas beijei uma após outra, e o que ela não ouviu, vou eu dizer‑lho, porque me recordo como se fosse ontem, estava bastante comovido para o não esquecer. Disse‑lhe: ‑ Meu irmão ia morrer e salvou‑o! Compadeça‑se dele, continue ainda a Velar por ele, ajude‑me a ocultar o seu estado a minha mãe, e graças a si, ele não morrerá. Eis o que eu disse, juro perante Deus, e o que se passou..

O duque contou tudo, e mesmo, tomando as coisas de mais longe, confessou os seus maus pensamentos, os seus vãos galanteios junto de Carolina, que nem sequer os notara. Contou o acesso de ciúme do marquês contra ele, a sua desavença duma hora, o seu abraço apaixonado, as confidências dum, os juramentos do outro, a descoberta que nessa ocasião fizera do estado alarmante de seu irmão, a imprudência que cometera de o deixar, julgando‑o tranquilo e adormecido, o vidro quebrado, os gritos que Carolina ouvira, e Carolina correndo em socorro do doente, reanimando‑o, ficando junto dele, e consagrando‑se desde então a tratá‑lo, a distraí‑lo, e a ajudá‑lo no seu trabalho.

‑ E tudo isto ‑ ajuntou o duque ‑ com uma dedicação, uma candura e um desinteresse que lhe declaro nunca ter visto igual! Esta Carolina, creia, é uma mulher de raro merecimento, e por mais que tenha procurado uma pessoa cuja idade, carácter, gostos e modéstia convenham melhor a meu irmão, não consegui encontrá‑la. Sabe quanto desejei que ele fizesse um casamento mais brilhante. Pois bem! agora que ele está ao abrigo da necessidade, graças a este anjo, que nos restituiu a todos a liberdade e a dignidade, agora que vi a exaltação e a persistência da paixão de meu irmão por uma pessoa que é primeiro que tudo sua amiga dedicada e necessária, depois enfim que Diana, compreendendo tudo melhor que eu, me exorta a acreditar que os casamentos de amor são os melhores, só tenho, minha querida mãe, uma coisa a dizer‑lhe: é que é preciso encontrar Carolina e abençoá‑la com alegria, como a melhor amiga que jamais teve antes de minha mulher e a melhor filha que possa desejar depois dela.

‑ Ah! meus filhos, ‑ exclamou a marquesa ‑ restituis‑me a felicidade! Não vivia desde essa calúnia. A dor de Urbano, a ausência dessa criança que me era tão querida... o receio de indispor dois irmãos perfeitos um para o outro confessando o que julgava ser a verdade, e que com tanto prazer sei agora que era falso... Ah! é preciso correr, chamar o teu irmão, procurar Carolina... Mas onde, meu Deus?‑. Vós sabeis onde está vosso irmão, mas ele, sabe onde ela se esconde?

‑ Não, quando partiu ignorava‑o, ‑ respondeu a duquesa ‑ mas a sr.a Heudebert sabe‑o.

‑ EscreVa-lhe, querida mamã, diga‑lhe a verdade, e ela a dirá também.

‑ Sim, sim, vou escrever, ‑ disse a marquesa ‑ mas como fazer saber bem depressa ao meu pobre Urbano?

‑ Encarrego‑me eu disso. ‑ disse o duque ‑ Iria pessoalmente: se a duquesa pudesse acompanhar‑me, porque deixá‑la por três dias... palavra de honra, é muito cedo!

‑ Oh! ‑ exclamou a duquesa ‑ conta então que, passada a lua de mel, correrá assim sem mim, com o coração leve e o pé também? Ah! como se engana, homem encantador, e como eu saberei meter na ordem a sua inconstância!

‑ E como fará, vejamos? ‑ disse o duque, contemplando‑a com embriaguez.

‑ Adorando-o sempre mais! E nós veremos se o sr. duque se enfastiará!

Enquanto o duque beijava os cabelos de ouro de sua mulher, a marquesa escrevia a Camila com uma vivacidade maravilhosa. - Vede, meus filhos, ‑ disse ela ‑ está bem assim? A duquesa leu:

«Minha querida sr.a Heudebert, restitua‑nos Carolina, e que eu possa apertá‑la consigo nos meus braços. Ela foi horrivelmente caluniada, sei tudo. Choro por ter acreditado na queda desse anjo. Que ela me perdoe! Que volte, que seja minha filha para sempre, que me não deixe mais! Somos dois a não poder Viver sem ela!»

‑ Maravilhosamente! Aqui está o coração da nossa querida mãe ‑ disse a duquesa.

Enviada a carta, disse‑lhes ela: ‑ Porque não ireis vós ambos buscar o marquês? Ele está muito longe?

‑ Doze horas de posta quando muito ‑ respondeu o duque.

‑ E não posso saber onde é?

‑ Não devo dizê‑lo, mas agora estou persuadido de que não terá mais segredos para minha mãe. A felicidade faz‑nos expansivos.

‑ Meu filho ‑ replicou a marquesa ‑ assustas‑me muito. Teu irmão está talvez aqui doente e ocultas‑mo, como em Séval. Está mais doente ainda, pois que me fizeram acreditar na sua ausência, talvez ele se não possa levantar!

‑ Não, não! ‑ exclamou Diana, rindo ‑ não está aqui. Não está doente. Ausentou‑se, viaja, está triste, talvez, mas vai ser feliz, e não partiu sem a esperança de a comover.

O duque jurou que sua mulher dizia a verdade.

- Pois bem, meus filhos ‑ replicou a marquesa, inquieta ‑ desejaria que estivésseis junto dele. Que quereis que vos diga? Nunca ele esteve doente que eu não o tenha, senão adivinhado, pelo menos sentido por uma agitação particular. Experimentei‑o em Séval precisamente na época em que ele esteve tão mal sem eu o saber. Vejo que o que me haveis contado coincide com uma medonha noite que passei! Pois bem! hoje, esta manhã, estava aqui completamente só e sonhava acordada! Vi o marquês pálido, envolto em qualquer coisa branca, uma mortalha talvez, e ouvi a sua voz que dizia: minha mãe!

‑ Meu Deus! Com que quimeras se atormenta! ‑ disse o duque.

‑ Não me atormento voluntariamente e deixo‑me tranquilizar pelo meu instinto, porque vou dizer‑Vos tudo. Há uma hora que sei que meu filho está bem, mas correu hoje um perigo, sofreu... ou um acidente... Recordai‑vos do dia e da hora!

‑ Vejamos, parte. ‑ disse a duquesa a seu marido. ‑ Não creio uma palavra de tudo isto, mas é preciso tranquilizar tua mãe.

‑ E a minha filha irá com ele. ‑ disse a marquesa ‑, Não quero que as minhas sombrias ideias, que afinal são talvez doentias e nada mais, lhe causem o primeiro pesar do seu casamento.

‑ Mas deixá‑la só com esses pensamentos!...

‑ Não os terei logo que Vos veja partir para junto dele!

A marquesa insistiu. A duquesa mandou preparar uma pequena mala, e duas horas depois, corria em carruagem de posta com seu marido pela estrada do Puy, por Tulle e Aurillac.

A duquesa conhecia o segredo de seu cunhado, ignorava o nome da mãe, mas sabia da existência da criança. O marquês permitira ao duque que não tivesse segredos para sua esposa.

Às seis horas da manhã chegavam a Polignac. O primeiro rosto que feriu o olhar de Diana foi o de Didier. Sentiu se tomada, como o havia sido Carolina, duma súbita ternura por esse ser encantador que cativava todos os corações. Enquanto ela o beijava e contemplava, informava‑se o duque do suposto sr. Bernyer.

‑ Minha amiga, ‑ disse ele a sua esposa, voltando para junto dela ‑ minha mãe tinha razão, aconteceu um acidente a meu irmão. Saiu ontem de manhã para dar um passeio de algumas horas na montanha, e ainda não regressou. Aqui estão inquietos a seu respeito.

‑ Sabem para onde ele foi?

‑ Sim, é para além do Puy. A carruagem de posta vai leVar‑nos até ali, onde a minha querida Diana ficará. Eu tomarei um cavalo e um guia, porque não há caminho possível para carro.

‑ Tomaremos dois cavalos ‑ disse a duquesa. - Não me sinto fatigada, partamos.

Uma hora depois a corajosa Diana, mais leve que uma ave, subia a galope a encosta do Gâgne, rindo das inquietações de seu marido.

Ás nove horas da manhã, atravessavam rapidamente Landriac com grande surpresa dos habitantes, e apeavam‑se à porta de Peyraque Lanion, com grande inveja do hospedeiro da povoação. A família estava à mesa na pequena oficina. Haviam regressado na véspera um pouco tarde, mas sem acidente. O marquês fatigado, mas não doente, aceitara a hospitalidade do filho de Peyraque, que habitava a casa contígua. Carolina dormira deliciosamente no seu pequeno quarto. Ajudava agora Justina a servir os homens da casa, isto é, o marquês e os dois Peyraques.

Com o rosto radiante duma felicidade que mais bela a tornava, ia e vinha, ora servindo, ora sentando se em frente do sr. de Villemer, que consentia em receber esses serviços e a contemplava com embriaguez, como para lhe dizer: ‑ Permito‑lho, mas como lhe restituirei os seus cuidados!

Que exclamações de alegria e de surpresa encheram a casa de Peyraque à aparição dos Viajantes! Os dois Irmãos conservaram‑se por muito tempo abraçados. Diana beijou Carolina, chamando‑lhe sua irmã.

Durante uma hora todos falaram, interrompendo‑se constantemente, sem se compreenderem, sem saberem se sonhavam ou não. O duque morria de fome e achou deliciosos os acepipes de Justina, que fez um novo e copioso almoço, ajudada por Carolina, que ria e chorava ao mesmo tempo. Diana, embriagada com a aventura, queria, com grande terror de seu marido, encarregar‑se dos temperos. Enfim, recomeçaram‑se tranquilamente as narrações e as explicações de parte a parte. O marquês enviara um próprio ao Puy com uma carta para sua mãe cuja inquietação e estranho pressentimento lhe haviam contado imediatamente.

Não choraram ao despedir‑se dos Peyraques, levavam a promessa de que iriam assistir à boda.

No dia seguinte regressavam a Mauveroche com Didier, que o marquês colocou nos joelhos de sua mãe. Esta, já prevenida pela carta de seu filho, cobriu de carícias a criança, e, entregando-a a Carolina: ‑ Minha filha, ‑ disse‑lhe ‑aceita então o cuidado de nos tornar felizes a todos? Seja mil vezes abençoada, e se quer conservar‑me a vida por mais algum tempo, não me abandone mais. Fiz‑lhe muito mal, meu pobre anjo, mas Deus não permitiu que fosse por muito tempo, porque eu teria morrido primeiro!

O marquês e sua esposa passam o resto do verão em Mauveroche e alguns dias do outono em Séval. Era‑lhe caro este lugar e apesar da alegria de se reunirem à família em Paris, não foi sem esforço que se arrancaram a um refúgio consagrado pelas recordações.

O casamento do marquês a ninguém surpreendeu: uns aprovaram‑no, outros predisseram desdenhosamente que ele se arrependeria dessa excentricidade, que seria desprezado por todas as pessoas de bom senso, que era uma existência ignorada, abortada. A marquesa sofreu talvez alguma coisa com esses ditos. A sr.a de Arglade perseguia Diana, Carolina e seus maridos com o seu ódio, mas tudo terminou com a revolução de fevereiro, e pensou‑se em coisa muito diversa I A marquesa teve um grande receio e julgou dever refugiar‑se em Séval, onde encontrou a felicidade, apesar de tudo. O marquês, na ocasião em que ia fazer publicar o seu livro anónimo, adiou essa publicação para tempos mais tranquilos. Não quis ferir os vencidos. Feliz com o amor e a família, não se apressou em procurar a glória.

A velha marquesa já hoje não existe. Débil de corpo e demasiado activa de espírito, tinha os seus dias contados. Expirou rodeada de seus filhos e netos, abençoando‑os a todos, sem julgar que os deixava, sentindo‑se fraca, mas conservando no espírito vigor e bondade até à hora extrema, e fazendo projectos como a maior parte dos moribundos, para o próximo ano!

O duque engordou bastante na prosperidade, mas é sempre amável, simpático e bastante ágil. Vive cem grande luxo, mas sem prodigalidade e confiando‑se em tudo a sua esposa, que o dirige e o conserva submisso com extraordinária prudência e admirável delicadeza. Não iríamos jurar que nunca pensasse em a trair, mas ela soube frustrar lhe as fantasias sem que ele notasse, e o seu triunfo, que dura ainda, prova uma vez mais que há algumas vezes arte e força bastante ao cérebro duma rapariga de desasseis anos para levar a bom caminho o destino dum professor de perversidade. O duque, admiravelmente bom e bastante fraco, encontra maior encanto do que se poderia pensar em não urdir científicas intrigas contra o belo sexo e em adormecer, sem remorsos, sobre o travesseiro do bem‑estar.

O marquês e a nova marquesa de Villemer passam actualmente oito meses do ano em Séval, sempre ocupados, não pode dizer‑se um do outro pois que se Identificaram a ponto de pensarem juntos e de se responderem antes de se haverem interrogado, mas da educação dos filhos, todos notáveis pela inteligência e o encanto... O sr. de Q... morreu. A sr.a de D... foi esquecida. Didier foi reconhecido pelo marquês como seu filho. Carolina não se recorda de que não é sua mãe.

A sr.a Heudebert fixou residência em Séval. Todos os seus filhos são educados pelos cuidados do marquês e de Carolina. Os filhos do duque, mais amimados, são menos inteligentes e menos saudáveis, mas são encantadores e graciosos.

O duque é excelente pai e admira‑se, sem razão, de ter já filhos tão crescidos.

Os Peyraques foram cumulados de obséquios. Voltaram a visitá‑los o ano passado, e desta vez foi transposto, por um belo sol nascente, o cume prateado do Mezenc. Visitaram também a pequena cabana onde, a despeito da generosidade do marquês, nada está mudado, mas o pai comprou terras, e julga‑se rico. Carolina sentiu‑se feliz por poder sentar-se junto do miserável lar onde viu a seus pés, pela primeira vez o homem com quem teria partilhado sem receio uma cabana nas CeVennas e o esquecimento do mundo inteiro.

 

 

                                                                 George Sand

 

 

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