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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MELHOR É CASAR / Max Du Veuzit
O MELHOR É CASAR / Max Du Veuzit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MELHOR É CASAR

 

Quando o doutor Perret tomou conta de sua sobrinha Jacqueline, foi com o caridoso intuito de a salvar da total incapacidade física, restituindo a à vida e à saúde.

O brutal acidente de automóvel que a deixara órfã, matando lhe os pais, provocou na infeliz menina tremendo choque cerebral que ameaçava inutilizá la para sempre.

O médico levou a para o seu modesto lar, a «Casa Velha», como lhe chamavam, gesto que muito desagradou a Gemma, sua governanta, que via assim a sua pacata vida transformada numa canseira de todas as horas.

Mas como ficar indiferente perante a desventura daquela infeliz, tão meiga e graciosa?... Acalmado o primeiro movimento de mau humor, Gemma, corajosamente, tomou a sua parte na tarefa, encarregando se dos cuidados materiais, enquanto o doutor Perret assumia as funções de pai e de médico.

Após tenaz e prolongada luta, com muita dedicação e afectuosos cuidados, o estado de Jacqueline apresentou ligeiras melhoras, fazendo renascer a esperança naqueles que a tratavam, tanto mais que, de princípio, depois de tão grande e profundo golpe, a mudança de meio e de hábitos tinha sido, para a doentinha, mais prejudicial do que benéfica, tanto moral como fisicamente.

Ao vê la tão fraca, tão abatida pelo sofrimento, o coração de Gemina abriu se de par em par, adoptando a sobrinha do médico, não só por compaixão, mas também por um sentimento maternal de que nunca se julgaria capaz. E assim, insensivelmente, de enfermeira passou a segunda mãe.

Por seu lado, o doutor Perret pôs toda a sua ciência ao serviço da doente. De princípio, não via possibilidade de a salvar. Depois, o instinto da conservação e a mocidade de Jacqueline auxiliaram no a vencer o perigo. Gradualmente, a morte afastou se da cabeceira daquela a quem já considerava como presa certa, mas deixou a em tal estado de fraqueza que era de recear manter se toda a vida uma doente.

Apertada em ligaduras, como uma múmia, mas acarinhada, rodeada de mil cuidados, a sobrinha do doutor, no entanto, conseguiu vencer.

Todavia, a convalescença foi prolongada.

O desastre ocorrera em meados de Outubro; só pelo Natal a doente pôde considerar se livre de perigo; nos três meses seguintes recomeçou, lentamente, a viver e, pela Páscoa, acompanhando o despertar da Natureza, renasceu, e o médico, se ainda não podia garantir a cura absoluta, pelo menos, alimentava essa esperança.

A ressurreição do corpo e do espírito foi gradual e simultânea. Cada dia trazia pequeninas melhoras e não tardou que a enferma pudesse abandonar o leito e, auxiliada pelo tio e por Gemma, trémula e vacilante, ensaiou os primeiros passos.

Quando o sol brilhou e o canto das aves povoou os campos, os olhos de Jacqueline brilharam também, não de febre, mas de curiosidade e interesse pela vida. A voz surda tomou inflexões mais vibrantes e uma sombra de cor rosou lhe as faces pálidas.

Em quinta feira de Ascenção, o doutor Perret, ao regressar a casa, depois das habituais visitas aos seus doentes, ouviu uma voz fresca, cantarolando, uma voz que, por certo, não saía dos lábios de uma doente.

Encantado, parou à porta, e como visse Gemma que, debruçada na janela, também parecia escutar com o mais vivo contentamento, esfregou as mãos e, radiante, exclamou:

Ganhámos a batalha.

Gemma voltou se para o médico e com o olhar brilhante de íntima comoção, exclamou:

Sim, a nossa menina está salva!... Deus seja louvado!

E a sua fisionomia transfigurada exprimia o mais fervoroso reconhecimento dirigido ao Senhor que preside aos nossos destinos.

Daí em diante, no jardim que rodeava a casa do doutor Perret, via se muitas vezes uma graciosa rapariga, correndo e saltando, cabelos ao vento, ou brincando com o cãozito que acompanhava as correrias. Outras vezes viam na passeando pelas ruas ladeadas de buxo bem aparado, outras ainda sentada debaixo de uma árvore, lendo ou bordando. Mas, de uma forma ou de outra, a visão era sempre encantadora. Uma rapariguinha, um cão e um delicioso jardim! Que belo assunto para um pintor, amante da Natureza e de cenas campestres!

Os habitantes da terra conheciam a história da sobrinha do doutor e lamentavam a sua infelicidade.

Quando ia às compras, Gemma nunca se recusava a responder a quem se interessava pela doente. Desta forma, todos acompanharam com simpatia a ressurreição da órfã e faziam sinceros votos pelo seu restabelecimento. Foi uma espécie de adopção colectiva e Jacqueline tornou se um pouco filha deles.

Quando se lhe referiam, diziam com satisfação:

A nossa Jacqueline é muito bonita e elegante!

Exactamente como se ela tivesse nascido e crescido na vila.

Quando Jacqueline passou a acompanhar Gemma, saudavam na com afecto e o sorriso que recebiam como agradecimento era considerado como homenagem pessoal, conciliando todas as simpatias. É assim que nas terras pequenas da província se estabelecem laços de afeição entre pessoas que, no entanto, quase não se conhecem.

Ao domingo, quando ia à missa, os grupos apinhados à porta da igreja afastavam se para lhe dar passagem; nas suas costas faziam se lisonjeiros comentários e não se regateavam elogios, tanto ao doutor Perret, como a Gemma, como à própria convalescente.

Nos meios menos populosos da província, onde se vive mais em contacto, facilmente se estabelece uma corrente de simpatia, principalmente quando a desventura atinge alguém. Todos o lamentam, todos fazem o possível por minorar lhe o sofrimento.

Por isso, Jacqueline era considerada por aquela boa gente um pouco como filha da terra e a «Casa Velha» tornou se alvo do maior interesse, assunto de todas as conversas.

Ainda bem que se salvou, a pobrezita!

O nosso doutor é um sábio!

E Gemma uma pessoa muito dedicada!

Uma excelente mulher, não há dúvida!

São verdadeiros pais para a pobre menina!

Ela é tão meiga, tão bonita!... Como seria possível não lhe querer!

Evidentemente!

Um passarito caído do ninho, mas que será a alegria do doutor, na velhice.

Os mais perspicazes mostravam se preocupados.

Mesmo assim, tomar conta de uma pessoa que não tem um cêntimo de seu!

Isso é verdade!... O doutor é muito bom, mas não é rico.

E já não é novo.

Quase todos concordaram com a sensata observação.

O encargo é grande, é.

E se o doutor Perret morresse, quem tomaria conta da sobrinha?

Gemma, naturalmente.

Gemma... Gemma!... Talvez suponham que tem grandes economias, não?

Sim, o ordenado de uma criada não deve dar para isso.

Não há dúvida... mas o doutor está rijo, ainda pode durar muito.

Queira Deus!... É tão bondoso... e a sobrinha tão simpática!

O problema que suscitava os comentários da gente da terra não deixava também de preocupar o médico e algumas vezes   não muitas   perguntava a si próprio se teria feito bem em pensar mais nos pobres do que em si. Até ali, aquela pergunta nunca lhe acudira ao pensamento, mas agora existia a sobrinha e os interesses de Jacqueline tornavam se lhe mais caros do que propriamente os seus. Mas como era muito bondoso e compassivo, aquele movimento de inocente egoísmo pouco durava.

«Até hoje, tenho me dedicado aos infelizes. A minha sobrinha também é uma infeliz. Portanto, compete me preparar lhe o futuro, sem prejudicar os outros que precisam de mim».

Assim raciocinava aquele coração generoso que nunca soubera contar... Equilibrar a receita com a despesa fora coisa que nunca conseguira... Mas, estimulado pela preocupação de preparar o futuro da sobrinha, passaria a ser mais cuidadoso.

Chegou o Verão e as árvores do pomar carregaram se de frutos que Jacqueline apanhava e comia com prazer. Quando lhe enterrava os dentes, pensava: «Que delícia!... Não há fruta, por muito cara que seja, com o sabor daquela que se colhe na árvore...»

A sobrinha do médico, porém, atingira uma idade que, além do alimento do corpo, exige o alimento do espírito. Recorreu então á biblioteca do tio, escolhendo obras dos melhores autores, principalmente de carácter científico, assunto que muito a interessava. Certo dia, folheava um livro de medicina quando o doutor Perret a surpreendeu.

Os meus cumprimentos!   gracejou o médico, intimamente satisfeito ao verificar o carácter da obra escolhida pela sobrinha   A medicina interessa te?

Não sei, tio... confesso que... procuro alguns conselhos, receitas caseiras.

Valha nos Deus!... Lá porque te sentes indisposta ou fraca, não vás agora imaginar que sofres de todas as doenças mencionadas nesse livro!

Que ideia, tio!... Não pense uma coisa dessas!... Sei muito bem que os ignorantes, como eu, quando consultam um livro de medicina, supõem ter os sintomas de todas as doenças nele mencionadas. Não, não éisso... não soube explicar me... Estou procurando ideias... sugestões.

A conversa travava se no jardim. O médico sentou se lhe ao lado, no banco rústico, e observou:

Vamos lá a ouvir essas explicações. Dize me o que pretendes. Não achas que estarei mais habilitado a responder às tuas perguntas do que esse alfarrábio?

Vou dizer lhe o que penso, mas não me interrompa... deixe me falar até ao fim.

Podes começar. Sou todo ouvidos.

Tenho reflectido muito nestes últimos tempos. Vejo o tio sair todos os dias, com sol ou com chuva, com frio ou calor, sempre pronto a acudir a todas as misérias... a todos os sofrimentos... e não calcula como o admiro! Como a vida toma o seu verdadeiro significado, quando a dirigimos para um alvo tão altruísta!... E a sua bondade, salvando me com o auxílio de Gemma, é a natural consequência de uma existência de dedicação pela profissão que escolheu.

Não empregues palavras pomposas demais para tão pequena coisa   protestou o médico , É certo eu adorar a minha profissão... sentir me intimamente satisfeito quando posso tratar de um desgraçado e salvá lo, se a Providência mo permite... Gosto de animar, amparar os meus doentes, mas nunca esqueço a frase de Ambrósio Pare, a propósito de um doente a quem acabava de arrancar a uma morte certa: «Eu tratei o, mas Deus salvou o»... É assim que todos os médicos deviam falar, reduzindo o seu papel às proporções que, de facto, lhe competem.

Estou de acordo, tio... Mas o tio não se contenta em tratar os seus doentes dos males do corpo... auxilia os moralmente, ampara os, conforta os para que eles sofram resignados os seus males... E isso não é bem medicina... é mais, é sacerdócio!... Se soubesse como eu gostava de poder imitá lo!

E o olhar de Jacqueline perdeu se ao longe, no espaço, como se entrevisse, no futuro, uma bela missão a cumprir.

Calaram se ambos. Jacqueline não sabia como continuar. Quanto ao médico, não conseguindo dominar a comoção, limitou se a pegar lhe nas mãos e a apertá las entre as suas.

Minha querida Jacqueline   disse por fim   será uma vocação que desperta em ti?

Talvez, meu tio.

Nesse caso, não a desperdicemos.

Conto que o tio encaminhe os meus primeiros passos nesse sentido.

Bem sabes que o meu maior desejo é auxiliar te. Se julgas ter disposições...

Ainda não posso garantir. Sei apenas que gostaria de me dedicar aos enfermos, como o tio, suavisar lhes o sofrimento, ampará los para que voltassem à vida, restituir lhes aquilo que o tio fez por mim.

Não exageremos, minha filha. Não deves restituição alguma, seja a quem for... É esse o único pensamento que te inspira?

Não. Tenho a impressão de que estou a perder tempo, actualmente. Sou uma inútil.

Por enquanto, estás na convalescença de perigosa doença, recuperas as forças... e esse período de repouso tornava se absolutamente necessário para regressares à normalidade. Agora estás completamente curada, posso afirmá lo.

Estou. Sinto me forte e se não fosse a recordação dos meus pobres pais, poderia considerar me totalmente feliz... feliz como eu nunca poderia supor vir a ser, há dois meses!

Comovido, o médico enlaçou lhe os ombros.

As tuas palavras dão me uma grande alegria, minha querida Jacqueline. Presentemente, considero te como filha   afirmou o médico   Tomei o lugar do meu infeliz irmão e velarei por ti como ele o faria... Podes contar comigo como contarias com o teu pai... Farei tudo quanto estiver ao meu alcance para que continues a ser feliz... agora... e de futuro!

É justamente no futuro que penso, tio!... Sei que a sua amizade e ternura nunca me faltarão, mas não quero ser imprevidente. Ainda não sou formada, mas já alcancei o bacharelato; julgo que isso pode servir me de base. Não quero ficar de braços cruzados, quando tantos trabalham e há tanto que fazer. Isso seria impossível!... Eis porque pensei formar me em medicina.

Estou de acordo, filha. É uma carreira bela, se conseguires realizar o teu desejo.

O bom do médico estava radiante. Apertando a sobrinha contra si, beijou a com ternura e, afectuosamente, concluiu:

Voltaremos a falar no assunto, sim, minha filha?... Por agora, preciso reflectir. Mas acredita que me deste uma grande satisfação, Jacqueline.

 

As cerejas pendiam das cerejeiras, as rosas e os lilazes floriam no jardim. Escoando se por entre o arvoredo, o sol punha pequeninas manchas doiradas no saibro das ruas.

Conforme o seu hábito, Jacqueline foi sentar se debaixo do chorão, próximo da entrada, no banco rústico que tinha como pano de fundo enorme maciço de rododendros, e abriu o livro que levava na mão. Interessada na obra, absorveu se na leitura. O conjunto era encantador e, inconscientemente, Jacqueline, com a sua beleza, completava o quadro que tentaria qualquer pintor.

Justamente naquele momento passava pela estrada um rapaz, transportando os clássicos apetrechos de pintor.

Estava imenso calor e o muro do jardim projectava delgada faixa de sombra na estrada alcatroada, amolecida pela ardência do sol. Instintivamente, o rapaz encostou se ao muro, parando um instante para enxugar o suor que lhe corria pela testa. Foi como se tivesse encontrado um oásis depois da caminhada pela estrada descoberta e soalheira.

Enquanto descansava, lançou em volta um olhar de admiração. O ponto de vista, de facto, era admirável. Contudo, a planície ligeiramente ondulada alastrando em primeiro plano, não o tentou. Já não aconteceu o mesmo com as colinas, destacando se ao fundo, sob o céu muito azul, numa mancha ligeiramente arroxeada. Que instinto o levou a olhar para o outro lado, para o jardim encantado?... Viu os maciços de verdura, as rosas desabrochando por todos os lados e, sentada num banco, uma linda rapariga, vestida de branco, com um livro na mão. Ao fundo, meio encoberta com o arvoredo, a vivenda graciosa e clara... Era um cantinho do Paraíso que o Destino lhe oferecia.

O pintor ficou extasiado, apreciando em todo o seu valor aquele maravilhoso quadro, tão rico de cores como se uma fada se tivesse divertido em escolhê las, agrupando as nos mais perfeitos contrastes... tão belo como um campo de tulipas, na Holanda, um desses campos que os olhos nunca se cansam de admirar.

Durante algum tempo ainda, o rapaz continuou a contemplar o esplêndido conjunto que um feliz acaso lhe pusera diante dos olhos, naquela linda manhã.

Depois, bruscamente, decidiu se. Atravessou a estrada e, sem perder tempo, escolheu a sombra de um plátano e armou o cavalete, o banco e o chapéu de sol.

Pouco depois, escolhendo um carvão, começou a esboçar o encantador recanto que desejava fixar na tela.

Absorvida na leitura, Jacqueline não viu nem deu por coisa alguma como, de resto, não via nem ouvia os automóveis e outros veículos de toda a espécie que passavam na estrada, fazendo infernal barulho.

Toda a sua atenção estava presa ao livro, e foi assim que René Briel, filho de um arquitecto, passando as férias com os pais, pôde pintar, com todo o vagar, a gentil rapariga e a sua florida moldura.

Devemos, porém, contar com as partidas que o acaso se compraz em nos pregar. Coincidência estranha!... Ao fechar o livro, Jacqueline olhou precisamente para o lado oposto da estrada e viu logo o rapaz que, tendo concluído a sua obra, com a tela na mão, comparava a pintura com o original.

Espantada, não compreendeu logo do que se tratava. Mas quando, por fim, o percebeu   e não levou muito tempo   porque a instalação do cavalete, banco e chapéu de sol não davam margem a dúvidas, corou de surpreza e indignação.

«Que atrevimento!»   pensou.

Os olhares de ambos encontraram se e René sorriu.

«Presunção e vaidade não devem faltar lhe»   pensou ainda a sobrinha do médico.

O pintor atravessou a estrada e, aproximando se do portão atravez do qual pudera entrever o lindo jardim, disse com cortezia:

Peço lhe perdão por ter tomado a liberdade de reproduzir este gracioso recanto, mademoiselle. Mas esse chorão, a casa ao fundo, os canteiros floridos, o lagozinho tão límpido e tão calmo, formavam uma moldura tão apropriada à sua beleza, que não pude resistir ao desejo de a fixar na tela. Espero que não se considere ofendida... Quer ver?

Jacqueline estava indignada com a audácia do desconhecido. A forma desenvolta como se apossara   passe o termo   dela e da casa para modelo, sem ter pensado em lhe pedir consentimento e, ainda por cima, o modo como falava, revoltaram na.

Muito corada, protestou:

Não, não quero. Se deseja elogios ao quadro e ao seu talento, procure outra pessoa!... Já basta que o tenha pintado sem me pedir autorização!

Perante esta explosão de cólera, que estava bem longe de esperar, René sentiu o desejo de responder no mesmo tom. No entanto, ainda conseguiu dominar se.

Lamento a minha falta, mademoiselle. Reconheço que devia ter pedido, antecipadamente, o seu consentimento, mas fiquei tão encantado com este gracioso conjunto que esqueci as conveniências!... Peço lhe mil desculpas! Todavia, permita me que lhe diga, ao perguntar lhe se desejava ver a pintura não foi intuito meu solicitar indulgência ou elogios, como parece supor. Quis apenas mostrar lhe quanto valia o seu jardim como motivo para um quadro. Mais uma vez lhe peço desculpa. Não quero importuná la por mais tempo... Os meus cumprimentos, mademoiselle!

Em passo rápido, atravessou a estrada e começou a desmontar os apetrechos, disposto a retirar se.

Jacqueline, de testa franzida, seguia lhe todos os gestos. Quando o viu pronto a partir, decidiu se e chamou o:

Que vai o senhor fazer desse quadro?   perguntou inquieta.

Irónico e trocista, o pintor respondeu, como se se tratasse de coisa decidida e sem remissão:

Sabê lo á em breve, pelos jornais! Depois desta declaração peremptória, que

lhe acudira aos lábios sem ele saber porquê, nem como, o pintor cumprimentou ainda:

Até um dia, mademoiselle! E afastou se em passo ligeiro.

A saudação de despedida ficou sem resposta, porque Jacqueline, mesmo se desejasse dar lha, estava tão sufocada que não poderia falar.

Quando conseguiu recuperar a calma, murmurou assombrada:

«Pelos jornais!... Mas porquê... e em que espécie de jornais?»

Entretanto, René, desolado com a reacção provocada, pelo caminho não podia deixar de ir comentando:

« Que presumida!»

Ao atingir a povoação, teve sede e entrou no Café do Comércio, na praça, para tomar uma cerveja.

Quando a dona da casa lhe serviu a bebida, o pintor mostrou lhe a sua obra.

Que lindo jardim, não acha?... Verdura e flores por todos os lados. A quem pertence esta moradia isolada, à beira da estrada, já fora da vila?

A mulher sorriu. Não lhe custou muito reconhecer a casa.

Isso é a casa do doutor, a «Casa Velha», como lhe chamam... O doutor Perret habita aí com a sobrinha... mademoiselle Jacqueline, uma rapariga muito bonita e graciosa, e com a governanta, a boa Gemma.

E como o freguez a escutasse com atenção, a dona do Café não fez cerimónia e começou a contar lhe, com todos os pormenores, o desastre que tornara Jacqueline órfã, a forma como o médico a recolhera e tratara. E, como era de prever, não regateou elogios a qualquer dos três.

René ficou muito admirado com as informações, principalmente com as relativas a Jacqueline, dada a forma pouco amável como fora tratado. Mas como a mulherzinha falava com evidente sinceridade, sugeriu:

Não lhe parece que... como resultado do desastre... a sobrinha do doutor ficasse com o cérebro um pouco desarranjado?... Não será ela uma anormal?...

Esta suposição, porém, levantou tão indignados protestos, que o rapaz não se atreveu a insistir.

Pagou a conta e saiu do Café, sorrindo com ar trocista dos modos ofendidos da criatura.

Para regressar a casa, na povoação vizinha, tinha ainda longo caminho a percorrer. Não lhe faltou, portanto, tempo para reflectir nas informações acabadas de colher.

« Esta gente parece beber ares e ventos por aquela presumida. Não é difícil alcançar popularidade numa terra como esta!... Mas sempre gostava de a ver em Paris!... Com aquele génio, não encontraria ninguém que a estimasse.

No fundo, o artista não conseguia conformar se com o rude acolhimento feito às suas delicadas desculpas.

E tanto que, pela décima vez, repetiu, como se isso pudesse aliviá lo:

« Que tal está a presumida!...»

 

Em princípios de Agosto, reuniu se na «Casa Velha» uma espécie de conselho de família.

O médico exigiu que a governanta, a quem ele considerava como segunda mãe de Jacqueline visto que, se não lhe dera a vida, com os seus cuidados e carinhos lha restituíra   desse a sua opinião no importante assunto a resolver.

Reuniram se os três na saleta, todos com um ar circunspecto, adequado às circunstâncias.

Verifico que o teu interesse por tudo quanto diz respeito à medicina, persiste, não é verdade, minha filha?   começou o médico.

É, sim, meu tio. Tem razão.

E a medicina é profissão própria para uma mulher?   atalhou Gemma   Não seria preferível pensarmos num bom casamento?... O casamento parece me mais indicado para a menina Jacqueline do que trabalhar seja em que for.

A tua opinião não é para despresar, Gemma. Mas...

Uma palavra, tio... Perdoem me, se os interrompo. A Gemma falou de profissão e eu não encaro a medicina dessa forma!... Para mim é qualquer coisa de muito diferente.

Eu sei   concordou o médico   e sou inteiramente da tua opinião... Mas eu continuo... Parece me que, na época em que vivemos, uma rapariga sensata não deve ficar em casa de braços cruzados, aguardando marido que lhe assegure o futuro... Arrisca se, se não o encontrar, a ficar solteira, sem recursos para viver.

Tem razão!   aprovou a governanta   Pela forma como está a vida, nem uma grande fortuna chegaria.

Temos, portanto, de encarar a pior das hipóteses. Jacqueline tem de adquirir meios de ganhar a vida, por muito que nos custe essa ideia. Parece me indispensável. E se ela se sente inclinada para a medicina, devemos orientá la nesse sentido e não contrariá la.

Nesse caso, terá de nos deixar, para tirar o seu curso!

Infelizmente, assim é.

O que será de nós então, senhor doutor?... Principalmente, de mim. É horrível!... Ficaremos outra vez sozinhos!

Comovido, a despeito da sua vontade, o médico protestou fingindo se zangado:

Trata se de nós ou da Jacqueline?... Do desgosto que possamos sofrer ou dos seus interesses?... Quando o futuro da minha sobrinha está em jogo, não devemos pensar em qualquer de nós dois, não achas, Gemma?...

As lágrimas corriam pelas faces da governanta.

Custava lhe pensar que teria de se separar de Jacqueline, mas reconheceu a necessidade e submeteu se.

Tem razão, senhor doutor. Perdoe me, mademoiselle Jacqueline. Nós não contamos, nem os nossos sentimentos podem pesar na balança.

Supões que não me custa deixar vos, minha querida Gemma?   perguntou Jacqueline, passando lhe o braço em volta dos ombros   Seria uma ingrata se esquecesse tanta dedicação e ternura... Mas como posso eu estudar se ficar aqui?... Que fazer?...

Aquilo que o senhor doutor indicou respondeu a boa criatura, com ar desolado   É ele quem tem razão, como sempre. Deve ir para Paris!... Não podemos estar com pieguices, quando se trata do seu futuro...

E a conversa prolongou se, tomaram se resoluções e discutiram se pormenores.

Em fins de Outubro, preenchidas todas as formalidades, Jacqueline partiu para a capital. Os dois habitantes da «Casa Velha», depois da àvesita ter levantado vôo, sentiram se muito sós. Na sua vida pacata e monótona entrara um raio de sol. Passado o período da doença e das inquietações por causa do estado de Jacqueline, tinham conhecido a alegria dos seus vinte anos, o calor da sua exuberância e afeição. E agora, sem a sua presença que parecia iluminar toda a casa e aquecer lhes o coração, era como se o crepúsculo os afogasse em sombras constantes e pesadas.

Tinham tentado retomar a vida calma doutros tempos, mas não conseguiam regressar aos antigos hábitos, não encontravam a tranquilidade dos dias passados.

« Julgámo la curada pensava Gemma com inquietação   e, evidentemente, o corpo recuperou a saúde. Mas não será para recear que o espírito adoeça?... Como poderá defender se de tantos perigos que a espreitam numa cidade como Paris?»

E todas as noites resava fervorosamente para que Deus afastasse de Jacqueline as tentações que, na província, tomam proporções espantosas.

Mais sensato, o médico seguia a sobrinha em pensamento.

Tinha confiança no carácter de Jacqueline, amadurecido pelos sofrimentos físicos e morais, suportados nos longos meses do Inverno anterior. Contava que a recordação dos pais, desaparecidos em tão trágicas circunstâncias, a amparasse nas horas de fraqueza e desânimo a que ninguém consegue eximir se. Instalada num desses lares, acolhedores e honestos, criados de propósito para estudantes, sabia que não lhe faltaria o amparo moral e material. Além disso, entregara lhe pequena quantia para que Jacqueline pudesse pagar as distracções tão apreciadas pela mocidade. Tudo isto lhe permitiu sossegar Gemma, acalmar lhe as inquietações que, inutilmente, a minavam.

Por seu lado, em Paris, Jacqueline propunha se, corajosamente, trabalhar a valer para realizar os seus projectos de futuro. Consciente dos sacrifícios que o tio fazia por ela, tomara esta resolução mesmo antes de abandonar a «Casa Velha».

No lar onde se instalou, encontrou muitas raparigas da sua idade. Entre elas escolheu, para se ligar mais intimamente, aquelas a quem o trabalho não assustava, mas que, ao mesmo tempo, sabiam manter a despreocupação e alegria próprias da sua idade, numa concepção sensata da vida. Boa observadora, não lhe custou muito apreciar a índole das companheiras e conhecer aquelas para quem o estudo não tinha sido mais do que um pretexto para se divertirem à vontade, longe da casa paterna.

Quando escrevia ao doutor Perret ou a Gemma, descrevia lhes a sua vida e falava lhes dos estudantes com quem acompanhava mais frequentemente. Desta forma, o médico já lhes conhecia perfeitamente os nomes e até o carácter, e sabia que os amigos da sobrinha, rapazes ou raparigas, eram todos sossegados e trabalhadores como ela.

Certo dia, numa dessas cartas apareceu um nome novo: Gaêtan. Tratava se de um aristocrata, rico, gastando sem contar o dinheiro que a família lhe dava.

Jacqueline contava ao tio que o rapaz, certa vez, lhe tinha oferecido flores, outra vez, bombons, um chá e um lugar para ver uma peça de teatro, etc...

Falava com tanto entusiasmo, que o tio ficou preocupado e, numa das suas cartas, fez lhe notar:

 

«Minha querida Jacqueline, tenho medo que esse rapaz, tão amável, te desvie um pouco dos teus estudos».

 

Jacqueline tranquilizou o logo, respondendo: «Não se aflija, tio. Gaêtan é uma espécie de criança grande a quem tudo serve de divertimento, mas que, ao mesmo tempo, não deixa de estudar. O que mais aprecio nele é o interesse que manifesta por tudo quanto se relaciona com a Arte, a arte com maiúscula, como eu a concebo. Aprecia os nossos clássicos, os móveis de estilo e os grandes mestres da pintura. Combinámos ir visitar a exposição no Salão de Outono e estou certa de que, com ele, a visita será interessante porque saberá mostrar nos o que tem real valor e apontar nos o ridículo de certos quadros da escola moderna...»

Na extensa carta, Jacqueline soube provar ao tio que não perdia tempo e que, mesmo ao domingo, sabia empregá lo, procurando a beleza e admirando o que merecia ser admirado, censurando a adulteração de ideais tão vulgar, por toda a parte, neste demolidor após guerra.

E o doutor Perret ficou mais sossegado. Compreendeu que a sobrinha não se deixaria desviar dos seus estudos, da sua vida regrada de rapariga sensata e boa estudante e que, ao domingo, era de toda a conveniência que visitasse museus e exposições... mesmo com um companheiro tão exuberante e simpático como devia ser Gaêtan.

Qual de vocês já visitou o Salão de Outono?   inquiriu Gaêtan, quando, com os camaradas, aguardava no corredor a hora de entrar na aula.

Muitos deles responderam afirmativamente, manifestaram as suas predilecções e deram opiniões decisivas.

Um dos rapazes, adepto da pintura moderna nas suas mais disparatadas manifestações, elogiou, entusiasticamente, os seus artistas preferidos, talvez com o pensamento de ridicularizar os camaradas que não partilhassem os seus gostos.

Nesse caso, não se encontra outro género no Salão, senão impressionismo e realismo?   observou Gaêtan com desdenhoso trejeito.

Pelo contrário, encontrarás de tudo, desde o cubismo ao género clássico... Há para todos os gostos, podes acreditar.

Mas nada de valor, provavelmente.

Enganas te... Vi coisas boas, principalmente a tela de um amador... escola antiga, mas verdadeiramente notável.

Notável, porque é, de facto, bom ou apenas porque destoa dos outros?

Porque é bom, é essa a opinião geral. Os tons são bem escolhidos, delicados... Vale a pena ver se.

É de um amador, disseste tu?

Sim, do filho de um arquitecto, segundo ouvi dizer. Tem por título: «Botão de rosa, em V...» É do género que preferes, Gaêtan. Por mim, acho o de um preciosismo exagerado.

Ao ouvir o nome do quadro: «.Botão de rosa, em V...», instintivamente, Jacqueline sobressaltou se e empalideceu, assaltada por súbita recordação.

Se a inicial V significasse Vernonville, o nome da vila onde habitava o tio e onde ela passara alguns meses?... Nesse caso, o Botão de Rosa seria ela, no jardim da «Casa Velha».

Seria possível que o atrevido, depois de a ter tomado como modelo sem lhe pedir autorização, levasse a sua audácia a ponto de expor a indiscreta tela?

Persuadida de que, de facto, se tratava do famoso quadro, não demonstrou o menor empenho em visitar o Salão de Outono, mas, no seu íntimo, a revolta crescia.

O tal pintor cometera verdadeiro abuso de confiança! Era inacreditável como se tinha atrevido a expor o quadro, sem lhe pedir autorização.

« Compreendo agora o significado das suas palavras, quando me afirmou que em breve os jornais falariam no quadro!...»

Era abominável ter de suportar uma coisa daquelas e não poder protestar!

Se o tio soubesse, por certo ficaria contrariado!

E essa ideia mais a afligiu.

Mas os aborrecimentos não ficaram por ali. Gaêtan foi ver o quadro e ficou perturbado. A semelhança entre a rapariga de branco, sentada no jardim, e a sua camarada preferida, Jacqueline Perret, era flagrante.

Todavia, como ignorava que, de facto, o modelo tivesse sido Jacqueline, quando se referiu ao caso, fê lo sem a mais pequena malícia.

Sabe, Jacqueline   disse lhe certa tarde , fui visitar o Salão de Outono e vi um quadro... um quadro, de facto, notável, em minha opinião. Debaixo de um chorão, num jardim florido, uma rapariga, sentada num banco rústico, parece totalmente presa às páginas do livro que tem na mão. E quem a conhece, Jacqueline, quem já a viu na aula, seguindo as explicações do professor, atenta, no desejo de não perder a mais pequena palavra, fica convencido   embora lhe pareça estranho   que se trata de si... É um pensamento disparatado, bem sei, porque a Jacqueline não poderia ter servido de modelo sem saber... Vá ver o quadro, Jacqueline. Garanto lhe que vale a pena!

Muito longe da verdade, Gaêtan falara sem ideia preconcebida e, tendo dado o último conselho, afastou se e foi conversar com outros camaradas. Mas Jacqueline ficou preocupada. Não tardaria que todos a reconhecessem.

Aflita, saiu para ocultar a sua perturbação e com os olhos marejados de lágrimas.

Uma coisa sem importância, um pequeno quadro exposto num recanto de uma sala, tomava para a pobre rapariga espantosas proporções.

Com que direito fez ele uma coisa destas!   pensava , Maldito pintor!... Que vergonha!

Não pensava que ter o retrato no Salão de Outono não podia considerar se como uma vergonha, pelo contrário!

Dias depois, Gaêtan mostrou aos companheiros, entre os quais se encontrava Jacqueline, o jornal que mencionava os prémios atribuídos aos expositores... O Botão de Rosa tinha sido premiado com uma medalha.

Viva o quadro à moda antiga!   gritou o incorrigível adepto da escola moderna.

Viva o melhor quadro exposto!   redarguiu Gaêtan   E viva a linda rapariga que lhe serviu de modelo!

Mais uma vez, Jacqueline ficou transtornada. Recusara visitar o Salão, a fim de não ver o abominável quadro, mas este parecia querer persegui la, fosse onde fosse que se isolasse.

« Que hei de fazer, meu Deus?» pensava aflita.

Desejaria estar bem longe de todos os seus camaradas, para evitar que a comparassem com a retratada. Mas isso não tardou a acontecer.

Gaêtan, que a observava e notou a sua perturbação, não teve mais dúvidas.

« É ela... e não o ignora... É ela, com certeza. Porque não o revelou francamente?...»

Que mistério envolveria tudo aquilo?

Como homem delicado e correcto calou se, mas ficou mal disposto, talvez até despeitado, com uma pontinha de vago ciúme.

«Caixinha de segredos!»   pensou, referindo se à condiscípula a quem, até ali, considerara como um carácter franco e sincero , Estas raparigas!   concluiu com amargura , Parecem uns lagos tranquilos, mas quem pode gabar se de saber o que a água cristalina oculta lá no fundo?»

 

A alegria de René Briel é fácil de calcular.

Estava radiante com o inesperado triunfo. Sincero, de si para si, concordava que o ponto escolhido era maravilhoso e que, com semelhante modelo, o seu único mérito consistira em ter sabido reproduzir o que via.

« E aquela presumida é bonita a valer!»   pensava   Pena é que tenha tão mau génio!»

Se o acolhimento de Jacqueline tivesse sido outro, seria natural que a tivesse convidado a ver o quadro... visitariam juntos o Salão. Outra qualquer não teria ficado orgulhosa por ter inspirado tão linda tela e, como complemento, por ter contribuido para o êxito do seu autor?

« Não vale a pena pensar mais nisso   concluiu , é uma toleirona, uma pateta!»

E, tentando esquecer o desagradável incidente, preparou se para ir passar as férias do Natal com os pais.

« Vão acolher me com manifestações e passarei a ser uma pessoa célebre, lá na terra... Sentir se ão orgulhosos com o meu triunfo!»

E esta pequena satisfação de amor próprio muito contribuiu para apressar a partida.

Por seu lado, Jacqueline saiu de Paris para ir passar com o tio e com Gemma o período festivo. Nem um nem outro admitiriam a sua ausência nesses dias consagrados.

E o Destino quis reunir os dois jovens, levando os a escolher o mesmo comboio... o comboio mais próximo do fim do período escolar... o mais indicado para eles.

O acaso, por vezes irónico, não os conduziu para o mesmo compartimento. Viajaram separados, mas nem por isso deixaram de se encontrar... O encontro estava escrito no livro do Destino e não podiam fugir lhe.

René Briel foi almoçar à carruagem restaurante, na primeira série.

Encantado com a diversão que interrompia a monotonia da viagem, deixou se ficar à mesa, sentado diante de um cálice de conhaque, seguindo com o olhar, atravez da vidraça, o desfilar da paisagem.

Mas quando os que pertenciam à segunda série, entre os quais se via Jacqueline, começaram a entrar, não teve mais remédio senão levantar se para lhes ceder o lugar.

Ao reconhecê la, teve um sobressalto de surpreza, mas dominando se, avançou para ela e cumprimentou a.

Os olhares de ambos encontraram se.

Que agradável surpreza, mademoiselle!... Que feliz acaso encontrá la aqui!... Vamos ambos passar o Natal com a família, não é verdade?

Perante a audácia daquele rapaz que ainda por cima se atrevia a falar lhe, Jacqueline tomou uma atitude rígida, hostil.

Não sei se o senhor considera feliz o acaso que nos fez encontrar. Por mim, não é assim que o classifico, posso garantir lhe.

Tanta reserva e altivez irritaram René.

Não desejo demorar o seu almoço, mademoiselle, mas parece me que uma explicação entre nós, se torna necessária. Quando poderei encontrá la?...

A sobrinha do doutor Perret ficou sufocada. Agora pedia lhe explicações!...

Não tenho o menor empenho em lhe falar outra vez   declarou, perdendo um pouco a cabeça, perante a calma do seu interlocutor   Peço lhe que me deixe em paz.

E, erguendo a cabeça com altivez, afastou se e foi sentar se à mesa, ficando de costas voltadas para René.

« É enérgica, a rapariguinha!... pensou o pintor   Não fala ao primeiro que lhe aparece!»

Um pouco desorientado com a inesperada recepção, não se decidia a sair.

« É rancorosa, a tal sobrinha do doutor Perret... Que diabo lhe fiz eu para me tratar assim?...»

Despeitado, considerava Jacqueline pelo pior prisma e pensava:

« Admito que uma rapariga bem educada mostre certa reserva... mas a este ponto, é demais!»

Furioso, acabou por se declarar vencido.

« Não quero provocar uma discussão em público, é claro, mas hei de encontrá la... nem que tenha de percorrer, uma a uma, todas as carruagens. Quero que me explique a sua atitude!... Ignora, por certo, que o meu quadro foi premiado. Se o soubesse, não me tratava assim. Vendo bem, é a ela que devo a medalha... ao seu lindo semblante... tão puro, tão harmonioso... tão meigo!... Mas como é mentirosa essa aparência de meiguice!... Tenho ouvido dizer que todas as mulheres bonitas são dotadas de mau génio e esta parece confirmar o dito!... Não vou agora recuar nem tremer diante dela. Quero que se explique... Dir lhe ei que, graças a ela, alcancei um prémio e, com certeza, essa notícia lhe lisonjeará a vaidade!... E depois, se não se mostrar mais amável, é porque, decididamente, tem um carácter azedo e embirrento!...»

Os mais contraditórios sentimentos agitavam o coração daquele rapaz de vinte e seis anos. Por um lado, estava radiante por ter encontrado Jacqueline, por outro sentia se furioso com o desdém demonstrado por ela. Depois de a ter comparado a um botão de rosa desabrochado num jardim, era justo que o tratasse daquela maneira?...

« Deve ser uma menina amimada e talvez muito rica... habituada a ver todos curvados diante dela... uma dessas meninas a quem tudo é permitido... e com razão, porque é muito bonita!... Como é bonita, a marota! Que tom de pele, que lindos olhos... que boca!... Um sorriso daqueles belos lábios deve ser encantador!»

Por instantes, a sua fisionomia ensombrada iluminou se com a esperança de que, um dia, Jacqueline se humanizasse e lhe sorrisse.

« Sim... muito feliz deve ser o homem que consiga fazer sorrir aqueles lábios vermelhos, suavizar lhe o olhar arrogante... O homem... O homem...»

Ora vamos, que ideias eram aquelas... que disparates estava a pensar?

« Trata de descer das nuvens, meu amigo!   intimou, falando consigo próprio.

Voltando às primeiras disposições, decidiu:

« Hei de encontrá la no comboio e obrigá la a uma explicação».

O momento oportuno chegou.

Os passageiros abandonaram a carruagem restaurante e regressaram aos seus compartimentos.

Mas, por mais que procurasse, René não conseguiu descobrir Jacqueline.

« Escondeu se   pensou   Doutra forma, tê la ia encontrado. Espreitei por todos os lados, percorri todo o comboio...»

Fosse como fosse, só quando chegaram ao seu destino voltou a vê la. Nessa altura, porém, já se encontrava junto do tio que tinha ido esperá la à estação. Depois de abraçar e beijar a sobrinha, o médico tomou lhe o braço e levou a para o carro, de modelo antiquado, que utilizava para as suas visitas.

O pintor conservou se a certa distância, pensando com despeito:

« Agora, não posso falar lhe. Deve estar satisfeita por ter conseguido fugir à explicação que lhe exigi.»

Teve até a impressão de que Jacqueline, antes de subir para o carro, voltava ligeiramente a cabeça. Pôde notar, nos lábios femininos, leve sorriso cuja significação logo compreendeu.

« E ainda por cima faz troça de mim, a serigaita!»

Estava furioso porque lhe fugia o ensejo de liquidar o assunto. Mas, enquanto o carro do médico se afastava, pensou, como consolação:

« Não suponhas que me foges... a conversa foi adiada, eis tudo. Se o acaso não me favorecer, eu saberei encontrar te. Terás de explicar te e de ouvir quatro verdades amargas que tenho para te dizer, minha menina... A tal sobrinha do doutor Perret não perde pela demora!»

Podia considerar se formidável   palavra muito empregada pela mocidade dos nossos dias   a animosidade que os dois adversários, podemos chamar lhes assim, sentiam um pelo outro. Um olhar ou uma palavra de qualquer deles bastava para irritar aquele a quem era dirigida.

Mais um jogo do acaso, que parece comprazer se em afastar aqueles que um dia terão de unir se!

 

Gaêtan de Trémousiers pertencia a uma família de sangue nobre, originária da Bretanha. Escolhera a medicina como podia escolher outra qualquer carreira, para ter uma profissão e também porque, durante os estudos, teria de viver em Paris. A família estipulara lhe considerável mesada que ele dispendia à larga, principalmente naqueles últimos tempos.

Alto, distinto, elegante, olhos azuis, Gaêtan podia considerar se um belo rapaz, muito apreciado pelas mulheres.

Poucas das suas camaradas conseguiam eximir se à sua sedução e todas elas o acolhiam com vincada preferência.

Por seu lado, ele, entre todas, escolhera Jacqueline, não perdendo ensejo de a acompanhar.

Mas toda a sua solicitude e amabilidade se tornavam inúteis. A sobrinha do médico formava uma concepção muito especial da profissão a que se dedicara e da sua vocação.

« Primeiro do que tudo o trabalho... O flirty como as minhas companheiras o entendem, fica para mais tarde... se tiver tempo para isso».

E se, por vezes, não recusaVa acompanhar as condiscípulas, em grupo, evitava, cuidadosamente, os passeios a dois. Procedia assim com juízo e sensatez, evitando complicações na sua vida de estudante.

Gaêtan, cujos escrúpulos não iam por aí além, não podia compreender, é claro, a atitude reservada de Jacqueline.

Sentia se desapontado porque a sobrinha do médico atraía o e ocupava lhe o pensamento mais do que seria para desejar, tolhendo lhe um pouco a liberdade de espírito. E como estava habituado a que todos ou quase todos os seus desejos se realizassem, não desesperava de conseguir, mais dia menos dia, prender o coração de Jacqueline.

Tratava se não de um sentimento profundo, mas de uma paixoneta que não lhe obscurecia o raciocínio, nem impedia que pensasse nas possibilidades de futuro.

Foi assim que, certo dia, se lembrou de obter o concurso de sua tia, madame de Préval, concurso que lhe seria muito útil se, mais tarde, pensasse em casar com Jacqueline.

« É bem educada, honesta, pode entrar em qualquer família sem a envergonhar...».

O nosso apaixonado começava a compreender que nunca conseguiria obter a sua amada, senão casando com ela.

E, como pensava ir passar o Natal à Normandia, em casa de madame de Préval, pensou em levar lhe uma lembrança... qualquer coisa de valor que demonstrasse a sua tia quanto a estimava.

« Ficará sensibilizada e não deixará de me recompensar generosamente»   pensou, conhecendo bem o feitio da sua parente.

Quanto ao presente, já o tinha escolhido!... Era, nem mais nem menos, o quadro que retratava a linda Jacqueline e que Gaêtan se apressara a comprar.

« A tia conhecerá aquela a quem amo, será conquistada pelo seu sorriso e acabará por aprovar a minha escolha...».

Os apaixonados descobrem sempre estas artimanhas pueris, mas extremamente comoventes.

Gaêtan ia mais longe ainda e encontrava outra desculpa para a dispendiosa aquisição.

« O quadro foi premiado com uma medalha, todos os jornais lhe reconheceram o mérito. Portanto, pode considerar se uma boa colocação de capital».

Foi assim que, no princípio das férias, se apresentou no castelo de Préval, levando o quadro, artisticamente emoldurado.

Trago lhe uma lembrança, que deve agradar lhe, tia. Na sua galeria de pintura sente se a falta de telas mais luminosas do que os seus «Enevoados».

Era assim que Gaêtan, com certa irreverência, classificava os quadros de meios tons, preferidos pela tia.

O quadro de René, colocado de forma a receber luz adequada, agradou imenso a madame de Préval.

É muito bonito, de facto   declarou, encantada   Tem qualquer coisa de clássico, a despeito da silhueta bem moderna da rapariga... Moderna sem excesso, devo dizê lo!... O pintor soube estudar todos os pormenores e conseguiu um conjunto gracioso e bem equilibrado.

Fique sabendo, tia, que o talento do autor foi recompensado com uma medalha.

Mereceu a, foi justo... Mas tu estragas me com mimos, filho!... Fizeste uma loucura para me ser agradável!... Não calculas como te agradeço!... E queres saber?... Gostaria que encontrasses o modelo deste quadro... Parece me que, não falando na sua posição social que desconheço, é claro, esta rapariga tem linha e distinção.

Pois fique sabendo, tia, que conheço, se não o original, pelo menos a sua sósia. A semelhança é tanta que, muitas vezes, tenho perguntado a mim próprio se não teria sido ela esse modelo.

A tia ficou alerta. O valor do quadro despertava lhe desconfianças. Nunca o sobrinho lhe dera presente tão valioso.

Assestando o lorgnon, examinou o com curiosidade.

E essa menina é do nosso meio?   perguntou por fim.

Gaêtan atrapalhou se.

Creio que não   respondeu hesitante   No entanto, também tem distinção... como a figura do quadro... Não sei a que família pertence... pode acreditar, tia!

Sendo assim, tome cuidado, senhor meu sobrinho!... Não esqueça que é um Trémousiers e que, na nossa família, não se admitem casamentos desiguais, seja a que pretexto for.

Que preconceitos tão fora de moda, tia!

Serão fora de moda, antiquados, chama lhes como quiseres... mas é essa a minha maneira de pensar e não a modifico. Ficas avisado desde já.

A velha fidalga, ao proferir estas palavras, aprumara se e fixava o sobrinho com tanta severidade, que este se sentiu pequeno diante dela.

Mas, pondo o assunto de lado, volto a afirmar te que fiquei encantada com a tua lembrança... É uma linda tela que não destoa na minha colecção... a rapariga de branco é graciosa, bonita, prende nos o olhar.

« Não desespero por enquanto   pensou Gaêtan , Jacqueline é demasiado bonita para que a tia não se deixe seduzir e acabe por ceder».

 

Como foi animado o serão no dia da chegada de Jacqueline à «Casa Velha»! Depois do jantar, para o qual Gemma preparou todos os petiscos preferidos pela recemchegada, o doutor Perret e a sobrinha tagarelaram como duas crianças. Tinham tanto que dizer que se esqueciam das horas; e a governanta, ao mesmo tempo que ia levantando a mesa, tomava parte na conversa.

Ao escutar a sobrinha, o médico não podia deixar de recordar o seu tempo de estudante e as dificuldades que defrontara. Como a vida moderna se tornava mais fácil, mais agradável para quem se dedicava ao estudo!

O trabalho era mais suave devido ao conforto indispensável, à segurança, à ausência de grandes preocupações com a vida material.

E o doutor Perret pensava no aposento exíguo que habitara, num sótão, durante toda a sua vida escolar, sem luz, sem o mínimo de conforto, tiritando de frio, no Inverno, sufocando de calor, no Verão.

E felicitou se porque, a meio século de distância, aquela por quem lhe competia velar e a quem tanto queria, não tinha outra coisa em que pensar, além dos seus estudos...

Contudo, havia mais alguma coisa que o inquietava.

Parece te que os camaradas trabalham com gosto... com tenacidade ou, estudam por estudar, sem método, sem entusiasmo?...

Não posso garantir lhe que todos, sem excepção, se dediquem com ardor e façam do estudo a sua constante preocupação. Todavia, afirmo lhe que são raros os preguiçosos, os indolentes... Mesmo nos que aparentam certa indiferença, adivinha se o desejo oculto de alcançar bom resultado.

E esse tal rapaz de quem me falaste tanta vez... esse Gaêtan?

O Gaêtan?... Estuda com gosto, posso garantir lhe. Não digo que seja dos mais trabalhadores, mas não falta a uma aula.

Mas diverte se...

Sim, é alegre... cheio de animação!... Tem bom génio... Gosto imenso quando ele faz parte do grupo, em qualquer passeio.

Gostas imenso... dizes tu?...

Gosto. Quase sempre nos leva aos museus e exposições de pintura... Explica nos tudo, não vê as coisas por alto, sabe observar...

Acautela te, pequena!

Acautelar me?... Porquê e de quem?... Não do Gaêtan, com certeza!... Acho o simpático, bom camarada e nada mais... Tenho muito trabalho para poder perder tempo a dar ouvidos às suas tolices... Pode estar descansado, tio. A sua Jacqueline é sensata.

Ás vezes, sem querer, deixamo nos prender...

Não com as palavras ocas do inflamável Gaêtan, pode acreditar, tio. As raparigas modernas sabem o que querem e são suficientemente espertas para não se prenderem nas redes estendidas por um rapaz como ele. Quando tenta ir um pouco mais longe do que é permitido, rimos lhe na cara e metemo lo na ordem.

Gosto de te ouvir falar assim, pequena   afirmou o tio, já sossegado   Quando não estás junto de mim, preocupo me com muita coisa... Como se fosses uma espécie de «Chapelinho Encarnado», que os lobos ferozes tentam devorar.

Pois faz mal em se afligir sem razão. Actualmente, os chapelinhos encarnados já não ignoram que os lobos ferozes são dotados de aguçados dentes e grandes olhos... Para mais, custa muito alcançar um diploma e não é passando o tempo com namoricos e inutilidades que se conseguirá chegar ao fim. Todos os anos temos exame e ninguém quer fazer má figura... E isso basta para nos estimular, pode crer...

Estou convencido, minha filha.

A conversa prolongar se ia ainda por muito tempo se a cuidadosa Gemma não lembrasse ao doutor Perret que, depois de um dia de viagem, a sobrinha precisava descansar.

Tens razão!... Conversaremos amanhã e nos dias que se seguem. As férias ainda agora começaram!

Mas o bom do doutor não conseguiu evitar que uma vaga de tristeza lhe anuviasse o semblante. Na sua idade, quinze dias ou três semanas fogem como o vento, para mais, se forem dias de alegria e de satisfação.

«Até aos quarenta   disse certo escritor inglês   os anos têm doze meses, depois dos quarenta têm seis meses... e depois dos sessenta, seis semanas».

E o doutor Perret já tinha ultrapassado os sessenta.

O pintor arquitecto René Briel também estava em férias. E como os pais viviam em Valmoncourt, pequena povoação a três quilómetros de Vernonville, encontrava se, relativamente, perto de Jacqueline.

Não é difícil adivinhar o acolhimento feito ao pintor, cujo triunfo lizonjeava os seus conterrâneos.

Nem todos sabiam o que era o Salão de Outono, nem o valor de uma primeira medalha; mas todos pressentiam que a recompensa significava qualquer coisa de invulgar e honrosa.

É uma espécie de concurso agrícola   comentavam   Talvez não haja senão uma medalha e é muito importante que a tivessem dado a um rapaz de Valmoncourt... Há concursos agrícolas em muitas terras, mas Salão de Outono, em Paris, há um só para todos os pintores da França...

E, segundo este raciocínio, os habitantes de Valmoncourt sentiam se orgulhosos com o seu pintor e com a sua obra.

«É um verdadeiro artista!»   afirmávamos jornais da terra.

Naquele recanto da província não consideravam as artes como uma abominação. Apreciavam os artistas, sabiam que todos eles são mais ou menos estróinas, amigos de divertir se, mas fechavam os olhos, classificando essas tendências como pecadilhos da mocidade.

São tantos os pintores que percorrem a França, trabalhando dias inteiros sem descansar!

Os seus modos simples conquistam simpatias, principalmente desde que renunciaram às excentricidades do trajo e às atitudes extravagantes. Entre eles encontram se, muitas vezes, casais pacíficos e unidos.

Desta forma, todas as prevenções contra os artistas cairam pela base e por toda a parte recebem bom acolhimento.

Em consequência, René foi muito cumprimentado, convidado pelas pessoas mais importantes da sua terra e teve um começo de férias muito agradável.

Mas a sua fama estendeu se até às povoações visinhas e certo dia, Gemma, quando foi às compras, ouviu falar do célebre pintor René Briel.

Que pintou ele? perguntou ingenuamente a boa mulher.

Pintou um quadro, uma vista dos nossos sítios, segundo ouvi dizer, e premiaram no com uma medalha.

Bravo!... Uma medalha não é qualquer coisa!... E que vista escolheu esse tal pintor?

Pois não sabe, senhora Gemma... Foi o seu jardim... o seu jardim e mademoiselle Jacqueline sentada debaixo do chorão!...

Isso não é possível!... O rapaz não ia pintar o retrato de mademoiselle Jacqueline!

A excelente criatura ficou tão perturbada que, com a veemência do protesto, largou uma das argolas do saco das compras e estas espalharam se pelo chão.

De regresso a casa, apressou se a contar à sua menina a novidade do dia... Escutando a narração de Gemma, Jacqueline mudou de cor e não soube o que responder. A história do quadro até ali vinha persegui la!

Um quadro!   disse por fim   Mas que tem isso de extraordinário?...

Ganhou uma medalha!... E, segundo afirmam, representa o nosso jardim.

E isso que tem, minha boa Gemma?

A pobre governanta não cabia em si de espanto, ao verificar que a sua menina dava tão pouca atenção a uma coisa que, de certo modo, lhes dizia respeito.

Não tem importância!... Para que um pintor tenha escolhido o nosso jardim, a nossa casa, as flores e as árvores, é porque tudo isso lhe agradou. E soube tão bem reproduzi los que mereceu um prémio... Em Paris, é coisa rara, não acha?

Jacqueline bem desejaria sair dali. A sua animosidade contra o maldito pintor, origem de tão grandes aborrecimentos, crescia de minuto a minuto. Para evitar manifestá la, mudou de conversa. Era melhor que, ainda por cima, se estragasse o jantar, por causa daquela estupidez!

Deixemos isso!   intimou , Se quiseres, vou pôr a mesa.

O oferecimento foi feito com amabilidade,, mas por forma que não admitia recusa.

A governanta estava cada vez mais admirada. Decididamente, o quadro premiado não interessava Jacqueline. E ela tinha suposto causar lhe prazer com a novidade!

« Ainda se fosse outro jardim!   pensava   Mas trata se do nosso, do jardim da «Casa Velha»!... E ainda por cima com o retrato dela!»

E enquanto Jacqueline andava da sala de jantar para a cozinha, transportando cuidadosamente os pratos, copos e talheres, Gemma observava a à sucapa.

Como não se sabia observada, talvez Jacqueline deixasse adivinhar o seu descontentamento e preocupação. O caso é que Gemma abanou a cabeça com ar pensativo e murmurou:

Que é isto?... A nossa menina esconde nos alguma coisa!... A merceeira falou me do retrato dela... e disse me que o tal Briel tinha pintado o quadro este Verão. Jacqueline não se mostrou admirada quando lhe dei a notícia, portanto, já sabia... e nunca nos falou no assunto... Temos segredinhos?... Não, não acredito. A nossa Jacqueline é tão sincera, tão franca... Mas por outro lado... Que significará tudo isto?

E como a boa governanta não confiava nos rapazes, já tinha assunto para preocupações.

Durante algum tempo, as suas noites tranquilas iriam ser perturbadas por assustadoras perspectivas.

 

A família de René Briel também falava muito no quadro, principalmente o pai.

O arquitecto, todo orgulhoso, felicitou o filho:

Bravo, meu rapaz!... O teu triunfo envaidece me!... Uma medalha logo na primeira vez que expões!... É maravilhoso!

Tive muita sorte, pai!   reconheceu, modestamente, o pintor   O assunto prestava se... Um jardim florido... uma casita branca com varandas onde espreitavam gerâneos... E, mais ainda, o gracioso vulto valorisando extraordinariamente o conjunto.

Talvez a sobrinha do médico?

Exactamente. Uma presumida, arrogante e orgulhosa!... Mas tão bonita! Uma verdadeira Tanagra!

O pai ficou admirado. Não era assim que lhe tinham descrito Jacqueline. Desejando informações mais precisas, insistiu:

Que dizes tu!... Bonita, é... todos o afirmam... Mas presumida, arrogante e orgulhosa, como dizes, não creio. É a primeira pessoa que a classifica assim. Toda a gente da terra a considera afável, tendo sempre um sorriso e uma palavra amável para todos... Visita os pobres e ensina catecismo, quando está em Vernonville... Está a tirar um curso difícil, em Paris... Em resumo, aqui, é muito estimada e considerada.

René encolheu os ombros, não confiando muito na opinião dos seus conterrâneos:

Pessoas que não conhecem o mundo... Estimam na e consideram na?... É possível, não duvido... Terei então de admitir que reservou todo o seu mau génio para mim.

Incomoda me saber isso!... Gosto de estar em boas relações com o Perret, que é uma pessoa simpática e correcta... Finalmente, o que se passou entre ti e a sobrinha do médico?...

Não tem importância!... Um mal entendido, talvez...

Porquê?...

Porque, ao pintar o meu quadro, lhe pintei o retrato... sem lhe pedir autorização... Estava entretida a ler e não deu por isso... quanto a mim, não supus que se zangasse!... Quando quis explicar me, pedir lhe desculpa e mostrar lhe o gracioso conjunto que formava o seu jardim, a pretensiosa sobrinha do médico mandou me passear, é o termo...

Se não foste desagradável com ela, não acho o caso dos mais graves.

Não proferi uma palavra mais alta... não discutimos, tanto mais que não me deu tempo a falar nem quis ouvir me. Limitei me a cumprimentá la com delicadeza e voltei lhe as costas.

Fizeste bem.

Questão de simpatia. A minha cara não lhe agradou, eis tudo.

E tu pagas lhe na mesma moeda comentou, rindo, o pai.

Engana se!   protestou o pintor É muito bonita para que um rapaz da minha idade antipatize com ela... Posso até dizer que me sinto muito grato por ela ser tão bonita... Estou convencido de que, sem ela, sem o botão de rosa valorizando as outras flores, o meu quadro não teria obtido tão grande êxito. Lamento a sua atitude que não me permite apresentar lhe as minhas desculpas, mas tenciono ir falar com o doutor Perret.

Acho que fazes muito bem. Não vai, com certeza, mostrar se ofendido porque o seu jardim e a sobrinha tivessem contribuído para obteres uma medalha, no Salão. Pelo contrário, acho que é muito lisonjeiro. Além disso, nas terras pequenas, devemos evitar sempre que se prolonguem ou agravem os desentendimentos.

É essa, também, a minha opinião, pai. Amanhã irei procurar o doutor Perret, a fim de esclarecer este assunto.

Será muito conveniente que lhe mostres o quadro, para ele poder verificar que a tua indiscrição não prejudicou o seu jardim, nem tornou mais feia a sua gentil sobrinha. Esse quadro será o teu melhor advogado, acredita.

A sua ideia é esplêndida. Gostaria imenso de poder mostrar lhes o meu Botão de rosa, mas já não o tenho. Vendi o.

Vendeste o!

É verdade. Ofereceram me cem mil francos por ele e eu pensei que não devia despresar semelhante quantia... Paga me um ano de estudos, sem que o pai tenha de me dar a habitual mesada. E talvez não gaste tudo. Creio que ainda deve sobejar alguma coisa.

Pensaste bem, mas confesso que gostaria mais de possuir esse quadro... Um primeiro prémio!... Nunca calculei que obtivesses tão grande êxito. Julgo que fiz mal em te impor a arquitectura como carreira. Tens apreciáveis tendências para a pintura, tendências que eu devia ter descoberto e auxiliado a desenvolver.

Não deve arrepender se, pai. Estudei arquitectura, porque isso lhe agradava... e também por me parecer que a construção assegura largo futuro aos arquitectos... É preciso construir muitas casas higiénicas, cómodas e agradáveis à vista.

Foi a minha ideia quando te indiquei essa profissão. Mas, presentemente, já não estou certo de ter procedido como devia. Talvez tu tenhas a vocação de um verdadeiro artista.

Perante a expressão consternada do arquitecto, o rapaz sorriu e, aproximando se do pai, poisou lhe as mãos nos ombros.

Tranquilize se. Não perdi tempo e uma coisa não prejudicou a outra. Ao mesmo tempo que frequentava as aulas de arquitectura, inscrevi me num curso de pintura... Sou aluno de Grandcamp, actualmente um dos pintores de maior fama. Passo no seu estúdio todo o tempo que tenho livre e que, antigamente empregava em coisas pouco úteis. Quase todos os alunos de Grandcamp têm provado ser bons artistas e eu não me considero um dos seus piores alunos. Provavelmente, foi devido aos conselhos do ilustre mestre que eu consegui obter tão grande êxito com o meu Botão de Rosa.

Acho que fizeste muito bem, meu filho.

A sua aprovação causa me grande alegria,, pai. Seguindo os seus conselhos, serei arquitecto, o que me permitirá viver e, mais tarde, construir o meu lar... Mas a pintura será a poesia da minha vida. Consagrar lhe ei todas as horas de ócio e talvez venha a adquirir nome, nessa arte que me apaixona... Mas, graças a si,, terei uma profissão que me porá ao abrigo de dificuldades.

A tua maneira de pensar agrada me, filho. René começou a rir e explicou:

Não tenho o menor empenho em comer o pão que o diabo amassou, como todos aqueles que se dedicam, exclusivamente, à arte, os verdadeiros artistas. Antigamente, quando se era artista não se pensava noutra coisa, vivia se do ar... Hoje, antes de mais nada, pensa se em ganhar o pão de cada dia... «ter a comidinha certa», como é uso dizer se... Eu pertenço a uma geração que pretende alcançar um nível de vida elevado, com um mínimo de comodidades e segurança material. Creio que não é pedir demais à vida. Não acha o meu programa prático e razoável?...

Esta conversa, em que pai e filho falaram de homem para homem, sem severidade de um lado, nem acanhamento do outro, deixou René bem disposto, cheio de coragem e confiança na vida.

No dia seguinte, dispôs se a ir falar com o doutor Perret. Talvez a «Casa Velha» se mostrasse mais acolhedora, para ele.

O tempo estava agradável e o passeio não lhe soube mal. Ao atravessar a povoação, passou diante do Café onde, pela primeira vez, tinha ouvido falar de Jacqueline, e pareceu lhe que tinha sede. Questão de pressentimento ou alguma coisa o atraiu. Decidiu entrar.

« Vou conversar um bocadinho com a dona da casa»   pensou.

A mulherzinha reconheceu o logo e acolheu o quase com entusiasmo.

Ao servir lhe o café pouco quente, sem açúcar e com água, conforme o pedido de René,, cumprimentou o com um sorriso e afirmou:

Que prazer em vê lo, senhor Briel!... Quando o senhor entrou aqui pela primeira vez,, este Verão, estava longe de pensar que em breve se tornaria célebre, graças à nossa terra!... Nessa idade, tão novo ainda, é caso para o felicitar.

René sorriu, já saturado da admiração um pouco interesseira dos comerciantes da terra.

Vou deitar no seu café uma gota de leite e não água, como pediu... ficará mais saboroso

acrescentou com amabilidade a boa mulher

E trago lhe também um brioche, quer?

O inesperado acolhimento surpreendeu agradavelmente o pintor. Todavia, notou que a dona do Café, ao mesmo tempo que exibia o seu sorriso profissional, parecia preocupada e ansiosa. Depois de o ter servido, aproximou se da porta e, levantando a ponta da cortina, espreitou para fora, como se aguardasse alguém.

Ele aí vem!  murmurou   Até que enfim!

René ouviu, mas não deu importância à exclamação, como importância não deu ao suspiro de alívio que fugiu dos lábios da mulher. Indiferente, chamou a, pagou a conta, agradecendo porque ela não quis aceitar lhe o dinheiro do brioche.

Entregue aos seus pensamentos que convergiam todos sobre Jacqueline, o pintor dirigiu se para a porta, mas teve de se afastar para o lado para deixar entrar um freguez. Levando a mão ao chapéu, saiu por fim.

Quem é este rapaz?   perguntou o recém chegado que não era freguez, mas sim o doutor Perret e que ficara agradavelmente impressionado com o gesto cortez do pintor.

A dona do Café estranhou a ignorância do médico.

Então não conhece?... É uma pessoa célebre, cá da terra... um pintor de fama, muito conhecido. Chama se René Briel e é filho do arquitecto!

Não conhecia   declarou o médico com ar indiferente.

O espanto da mulherzinha aumentou.

Pois o doutor não sabe? Teve um quadro premiado no Salão, em Paris, quadro que representa o jardim da «Casa Velha»... Todos os jornais falaram no assunto.

O doutor Perret soltou uma exclamação cujo sentido seria difícil de adivinhar, pois poderia significar muita coisa. Depois, voltando ao campo profissional, pediu:

Vamos lá ver o doente, sim?

Assim chamada à ordem, a dona do Café conduziu o médico ao primeiro andar, onde o filho estava de cama, tremendo com febre, talvez atacado por grave doença.

Entretanto, René continuava o seu caminho em direcção à «Casa Velha», como impelido por uma força oculta. Não conhecendo o doutor Perret e ignorando que a dona do Café tinha um filho doente, não podia supor que cruzara com a pessoa a quem desejava falar.

Chegou por fim ao sítio que o tinha inspirado, no último Verão. Tudo lhe pareceu muito diferente.

A casa tinha uma aparência triste e as janelas fechadas produziam desagradável impressão de abandono. No jardim, as árvores mostravam os troncos descarnados, os maciços de verdura tinham secado, açoitados pelas primeiras rajadas de Inverno.

De princípio, René pensou que Jacqueline não estivesse em casa. No entanto, a delgada coluna de fumo que subia da chaminé demonstrou lhe que estava lá alguém.

Gostaria de entrar, para saber alguma coisa, mas a que pretexto? Não se torna fácil entrar assim em casa de pessoas a quem não se conhece. O pai tinha razão. Se tivesse podido trazer o quadro, não precisava de pretexto e tudo se simplificaria.

Mal sabia ele que, por detrás da cortina, numa janela do primeiro andar, alguém o espreitava, primeiro desagradávelmente surpreendida, depois com certo prazer.

Como podia o pintor adivinhar o exame de que era objecto?

Andando para cá e para lá, na estrada, tentava avivar nas suas recordações, uma imagem que lá ficara gravada. E o quadro banhado pelo sol, cheio de cor e de luz, que soubera copiar para a tela, substituiu o conjunto tristonho criado por aquele dia nevoento de Inverno.

E profundamente absorto, alheado nos seus pensamentos, não deu pela chegada do doutor Perret que regressava das suas visitas.

O médico reconheceu o logo e, apressando o passo, perguntou lhe sem mais preâmbulos:

A «Casa Velha» agrada lhe muito, meu caro senhor?   E, sorrindo, acrescentou com amabilidade   Se lhe agrada, dê me o prazer de entrar.

Surpreendido, René hesitou:

Receio incomodar. É o doutor Perret com quem tenho a honra de falar, não é verdade? acrescentou com certa timidez.

O próprio. Antes de mais nada, desejo felicitá lo pelo seu triunfo, de que todos falam.

O pintor esboçou um sorriso de modéstia, mas, no íntimo, ficou contente ao verificar que o médico estava ao facto do assunto e já o conhecia.

E, sem vaidade, respondeu ao cumprimento:

Tive sorte, e se triunfei foi em grande parte devido à beleza do seu jardim.

O doutor Perret sorriu.

A modéstia fica bem a quem é novo e a atitude do pintor tornou se lhe simpática. Com simplicidade, insistiu:

Vamos, não se faça rogado. Entre, meu amigo, e enquanto nos aquecemos, conversaremos para travar mais amplo conhecimento.

E foi assim que, depois de uma volta pelo jardim, os dois homens se instalaram na sala, saboreando um cálice de vinho branco, servido por Gemma.

Não queria ser indiscreto, senhor Briel, mas gostaria de saber porque, entre tantos pontos admiráveis, escolheu o nosso jardim para ser imortalizado pelo seu pincel?

Não escolhi, foi obra do acaso. Passei por aqui e fiquei maravilhado com o conjunto harmonioso formado pela sua casa, sobressaindo por entre a verdura. Parei, seduzido pela graciosa paisagem, armei o cavalete e comecei a trabalhar... A sua pergunta não foi indiscreta, doutor. Indiscreto fui eu, dispondo assim de uma paisagem que foi obra sua, que o senhor criou para seu prazer e não para o de um desconhecido que passou aqui por acaso...

Que ideia!... A obra da Natureza pertence a todos...

Não se tratava só da paisagem.

No jardim estava uma menina cuja beleza e atitude eram dignas do pincel de um mestre. Esqueci me de lhe pedir autorização para a incluir no meu quadro... Ou, para ser franco, não quis incomodá la e tive medo que se recusasse e fugisse. Perdoi me... a inspiração impele nos, irresistivelmente, a reproduzir aquilo que nos encanta a vista... Foi essa a minha única desculpa...

Refere se a minha sobrinha, por certo... Não me parece que o facto do senhor ter reproduzido o jardim que ela adora, a ofendesse.

O doutor talvez não me compreendesse... Não reproduzi unicamente o jardim, mas também a encantadora figurinha que o animava e que, sentada num banco, parecia completamente absorvida pelas páginas do livro que tinha na mão.

E depois?...

Depois... quando deu pela minha presença, ficou furiosa. Quis mostrar lhe o meu trabalho, mas recusou se a vê lo, classificando o meu gesto como inqualificável incorrecção. Fiquei desolado, acredite, doutor. Juro lhe que não foi minha intenção ser indiscreto. Procedi irreflectidamente, tentado pela beleza do conjunto, sem pensar que sua sobrinha poderia ofender se.

O caso é mais sério do que eu supunha!   comentou o médico

Em todo o caso, não vejo nada de ofensivo no desejo de reproduzir uma paisagem que lhe agradou.

Mademoiselle Jacqueline pensa por forma diferente, tanto que se ofendeu e muito. Reflectindo melhor, dei lhe razão e reconheci que tinha sido indelicado... E, visto que estou aqui, se não vê inconveniente, gostaria de lhe apresentar todas as desculpas a que tem direito.

O médico não respondeu logo. Notou que o pintor acabava de tratar a sobrinha pelo nome próprio, o que era estranho. Conhecer se iam mais do que diziam?

Por outro lado, ele exagerava as suas culpas, arranjando assim pretexto para falar com Jacqueline...

« Deseja vê la outra vez pensou o médico com indulgência A Jacqueline é muito bonita e ele está na idade dos entusiasmos!»

Achou graça ao caso. Lembrou se de que, naquela idade, nunca ficava indiferente diante de uma carinha bonita. Todavia, ele, médico, embora desculpasse a atitude do pintor, como tio, não podia prestar se a auxiliá lo.

Em resumo   disse muito sério   se bem compreendo, minha sobrinha não pôde admitir que lhe pintassem o retrato, sem sua prévia autorização. E o meu amigo, em vez de protestar, submete se, admite esse ponto de vista?... Que formalistas são os dois! concluiu com um sorriso.

O pintor corou.

Que quer?... É preciso que o seja agora, visto mademoiselle Jacqueline me ter feito sentir que não o tinha sido bastante, no Verão passado.

Evidentemente... evidentemente!   aprovou o médico   O caso é delicado!

Tanto mais que meu pai, quase seu vizinho, tem a honra de o conhecer um pouco, doutor, e ficaria desolado se deste incidente resultasse um mal entendido... Entre pessoas de educação, habitando na mesma terra, não devem existir ressentimentos...

René Briel teve excelente ideia, ao citar o nome do pai. O médico não poderia deixar de concordar e de responder no mesmo tom:

Com efeito, encontrei várias vezes seu pai, nas festas da Prefeitura. Considero o um verdadeiro artista. As suas últimas realizações embelezaram muito a nossa terra.

Agradeço lhe a excelente opinião que forma dele e não deixarei de repetir lhe as suas amáveis palavras   balbuciou René   Não deixarei também de lhe descrever a benevolência e indulgência do acolhimento que recebi de uma pessoa que não me conhecia e podia, pelo contrário, formar mau conceito de mim.

Não havia razão para isso   afirmou o médico   O senhor foi absolutamente correcto e minha sobrinha, com certeza, se iludiu sobre as suas intenções.

Talvez tomasse a sua atitude por curiosidade e aborreceu se. Vou tentar reconciliá los e não creio que seja impossível.

Entreabriu a porta da sala, chamou Gemma e pediu lhe:

Diz a minha sobrinha que faça o favor de descer à sala. Preciso falar lhe.

A incumbência foi cumprida no mesmo instante.

Jacqueline não contava com o encontro. Vira o tio passear no jardim com o pintor e depois entrar em casa com ele. Escutara o murmúrio da conversa sem perceber o que diziam, mas não se preocupou por ver os dois homens em amável convívio. Mas quando recebeu o recado do médico, compreendeu que ia ser apresentada a René, obrigada a falar lhe e isso revoltou a. O maldito pintor teria a pretenção de se impor?... Por outro lado, não podia cometer a indelicadeza de se recusar a descer à sala.

Maquinalmente, começou a passear de um lado para o outro, no quarto, como se tentasse encontrar meio de se eximir à apresentação. Mas, como era natural, não lhe ocorreu qualquer possibilidade de fugir à entrevista.

O tio mandava a chamar e ela não tinha outro remédio senão aceder.

Parando diante do espelho do guarda vestidos, compôs a madeixa de cabelo que lhe caía para a testa, passou uma vista de olhos pelo vestido e, soltando um suspiro, decidiu se a sair do quarto.

« Que maçador, o tal pintor!... Mas já vai saber quanto lhe custa...»

Não se sentia com disposição para amabilidades. O rapaz era petulante, a sua teimosia em lhe falar e travar conhecimento irritava lhe os nervos. E, ainda por cima, conseguira que o tio fosse seu aliado!

Em consequência, entrou na sala com olhar duro e um sorriso frio.

Quando a viu, René mudou de cor. Perturbou se como se tivesse diante de si uma aparição. Quase sem saber o que fazia, levantou se e inclinou se respeitosamente.

Curioso, o médico observava todas as fases do encontro. Não lhe causou espanto a comoção do artista. Já contava com ela e o que adivinhava fê lo sorrir. Dirigindo se à sobrinha, disse lhe:

Não sei se será preciso apresentar te este senhor?... Creio que já se encontraram, este Verão.

Jacqueline não contava que o tio estivesse ao facto do incidente e, durante breves instantes, ficou atrapalhada.

Tomando a palavra, René dissipou lhe o constrangimento.

Sinto me envergonhado, mademoiselle. Sei que a ofendi, o Verão passado, quando lhe pintei o retrato, sentada no seu jardim. Não calcula como lamento tê la magoado. Procedi sem reflectir, seduzido pela beleza do quadro. Quem é um pouco artista, não consegue resistir à atracção do belo...

Gaguejava, um pouco desorientado com o olhar duro de Jacqueline. O médico foi em seu auxílio.

Devemos reconhecer que a sua opinião foi confirmada, visto o seu quadro ter conseguido um verdadeiro triunfo   comentou com indulgente sorriso.

Teve, de facto. Mas afirmo lhe que teria preferido mil vezes o prévio consentimento de mademoiselle... A sua opinião seria muito mais valiosa do que a do júri e... devo dizê lo?... Seria meu desejo poder oferecer lhe o quadro se...

Jacqueline observava o com atenção. Nas palavras de René, na sua maneira de se exprimir havia tanta sinceridade e franqueza, que a sobrinha do médico começou a arrepender se. A submissão do rapaz encantava a, mas como confessá lo se, desde o primeiro instante, tomara tão intransigente atitude?... Seria exigir muito do seu orgulho!

Que ideia!   protestou com ligeira ironia   Não aprecio a minha própria companhia, garanto lhe!... O seu gesto desagradou me, acheio o odioso, confesso. Mas o senhor reconhece as suas culpas e eu não quero ser mais papista do que o Papa. Consideremos o incidente como encerrado e não se fala mais no caso...

Muito bem!   aprovou o médico   E agora, troquem um aperto de mão para assinar a paz. Entre dois filhos de terras vizinhas não podem existir mal entendidos.

René estendeu a mão e apertou a que Jacqueline lhe estendia, sorrindo, mas mantendo certa reserva...

Esclarecida a situação, a conversa prosseguiu, versando o mesmo assunto. O doutor Perret, simulando grande descontentamento, protestou:

Seja como for, a «Casa Velha» e minha sobrinha, adquiriram merecida celebridade e, no entanto, eu desconheço o quadro. Não poderia vê lo?

O comentário fez sorrir os dois jovens, mas o rosto do pintor ensombrou se.

O seu desejo é justíssimo, doutor, mas não posso satisfazê lo!... O meu quadro foi vendido...

Chegou a vez de Jacqueline protestar:

Vendido!... É lamentável!... O tio nunca chegará a admirar essa maravilha. Conforme se!

René, confuso, curvou a cabeça. Só agora reconhecia o seu erro... Como gostaria de agradar a Jacqueline, que passara a sorrir lhe com tanta amabilidade!

E, no estado de espírito em que se encontrava, ter lhe ia prometido a lua, se ela lha pedisse.

Vou ver se consigo recuperá lo   afirmou com convicção   Tenho a certeza de que não será difícil.

E, magnânimo, acrescentou:

E, se mo permite, oferecer lho ei, doutor, como prova do meu arrependimento pelos aborrecimentos que lhes causei... Aprova a minha resolução, Mademoiselle?

Sempre gostaria de ver se ela se opunha!   comentou o tio, com simulada indignação.

E o tom deste protesto foi tão cómico que todos três desataram a rir.

Recuperando a seriedade, o médico declarou:

Deixemo nos de brincadeiras. Agradeço lhe imenso a ideia, mas não aceito... Desejo apenas ver o quadro, admirá lo, mas não quero desapossá lo da sua obra. Isso por forma alguma!

Assim se desvaneceu a animosidade que separava os dois jovens. Despediram se como bons amigos e, dessa vez, René pôde exprimir o desejo de novo encontro, sem que Jacqueline protestasse ou se mostrasse desagradada.

Depois da partida do pintor, o doutor Perret fez as suas apreciações.

É simpático e bem educado, este rapaz!... De um convívio muito agradável.

Sim, é correcto e deve estar habituado a frequentar a sociedade. Pertence a boa família, pessoas com quem podemos dar nos.

Um conhecimento que não é para despresar. Para a tua idade, não está muito indicado a convivência com pessoas já entradas nos anos e, cá pela terra, não se encontram muitos rapazes novos. Alegra me saber que este pintor passará a visitar nos.

Jacqueline ainda quis protestar, mas o tio atalhou:

Não... não protestes!... Sei muito bem o que digo. A companhia de pessoas de idade para raparigas novas é como a companhia de doentes para quem sofre dos nervos... Não insistas, minha filha, só desejo o teu bem.

E Jacqueline calou se, não insistiu... mas, em compensação, ficou pensativa.

 

Quando terminaram as férias, René fez todo o possível para encontrar o comprador do quadro.

Sabia apenas que tinha sido um estudante rico, mas ignorava qual o género de estudos que o desconhecido seguia.

Como Gaêtan não julgara necessário dar pormenores sobre a sua pessoa, para o pintor, a resolução do problema tornava se tão difícil como procurar agulha em palheiro.

Interrogando os camaradas, obteve as informações mais contraditórias. Uns diziam lhe que o rapaz era loiro, outros que tinha o cabelo escuro. Havia ainda quem afirmasse que o quadro tinha sido comprado por uma mulher.

Teria sido mais sensato desistir, mas o amor próprio de René estava em jogo... e parecia lhe ver dois lindos olhos escuros zombar das suas dificuldades!... Que não faria ele para alcançar os seus fins!

Por último, decidiu se a pôr um anúncio nos jornais, concebido nos seguintes termos:

 

«Gratifica se a quem indicar a pessoa ou pessoas actualmente de posse do quadro «Botão de Rosa», adquirido no último Salão de Outono.»

 

E, cheio de paciência, aguardou o resultado.

O quadro tinha sido notado e admirado por muitos visitantes de Madame de Préval. Nada mais natural, portanto, que um deles, tendo lido o jornal, falasse no caso. A tia de Gaêtan ficou intrigada.

Que significava aquilo?

Certo dia, René Briel recebeu uma carta que, indicando o número do anúncio, perguntava quais as razões do pedido.

A categoria da correspondente incitou René à franqueza. Não hesitou em contar a história do quadro, solicitando uma entrevista que lhe foi concedida.

Sem sair dos mais estritos limites da delicadeza, pode dizer se que o pintor travou verdadeira batalha para reaver o quadro e chegou a propor comprá lo. Infelizmente, a possuidora não quis separar se da oferta do sobrinho. Depois de muitas instâncias, madame de Préval consentiu em revelar lhe o nome e a direcção do verdadeiro comprador, isto é, de Gaêtan. O artista escreveu lhe imediatamente, pedindo lhe uma entrevista.

Quando se encontraram, René Briel empregou todos os argumentos para convencer o estudante a ceder lhe o quadro, mas este recusou.

O senhor desfez se da tela, ofereceu a a sua tia, portanto, não fazia muito empenho em a possuir. Talvez, mais facilmente, possa convencê la a ceder ma. Não quer prestar me o seu auxílio?

Lamento, mas não estou disposto a isso... A personagem que figura no seu quadro, tem extraordinária semelhança com uma das minhas condiscípulas, na Faculdade de Medicina. Devo dizer lhe que simpatizo muito com ela, estou mesmo um tanto apaixonado. Eis porque, pessoalmente, dou especial apreço ao seu trabalho e o comprei para o colocar numa moldura digna dele e em casa de uma pessoa a quem visito frequentes vezes...

Não lhe oculto que o fiz com a esperança de que a minha respeitável tia, pouco a pouco, se deixe seduzir pela imagem daquela a quem amo e acabe por consentir que a despose...

René sentiu um aperto de coração quando Gaêtan lhe deu estas razões contra as quais não podia lutar. Ficou desesperado e, ao mesmo tempo, desapontado. De momento, não compreendeu ser a mordedura do ciúme que tanto o fazia sofrer. Mas, se não fosse tão bem educado, teria manifestado a sua aversão em termos bastante ásperos, ditados pelo que ele classificava de simples contrariedade.

Gaêtan, por seu lado, não lhe deu tempo a discussões. Caprichoso, acima de tudo, bastou que alguém se mostrasse empenhado em possuir o quadro, para não se separar dele.

Fiquemos por aqui, senhor Briel   disse com certa frieza   O senhor pôs o quadro à venda, portanto, também não lhe deu importância. Eu estava no meu direito de o comprar. Agora é meu... ou por outra, de minha tia, e declaro lhe que não tenciono desfazer me dele. Creio que entre nós está tudo dito, não é verdade?...

Depois desta categórica declaração, René não teve outro remédio senão despedir se e partiu sem a mais pequena esperança de reaver o seu trabalho.

Reflectindo na situação, não pôde deixar de confessar que tinha procedido como um estouvado. O que pensaria Jacqueline quando soubesse o resultado das suas tentativas?

Como tinha sido cego!... Não tinha compreendido, desde o primeiro instante, que o êxito da sua obra fora proporcionado pelo sentimento profundo provocado pela beleza de Jacqueline?... Tinha se apaixonado, ao primeiro olhar, por aquela a quem chamava a desconhecida do jardim florido. Fora o espírito, mais do que a sua habilidade que, preso a tanta sedução, soubera transmiti la à tela.

Desde que ouvira a declaração de Gaêtan, tudo se tornara claro. Estava apaixonado pela sobrinha do médico.

 

As aulas recomeçaram.

Gaêtan sabia agora qual a verdadeira origem do quadro. Tinha sido, de facto, a sua camarada, o modelo do pintor... e essa certeza fazia o sofrer. Também tinha ciúmes!

Resolveu falar a Jacqueline, a fim de ter com ela uma explicação sincera.

Mas, caso estranho, a estudante evitava o como se suspeitasse ser ele o único obstáculo ao empenho do pintor, com quem mantivera agradável convivência, durante as férias.

Aproveitando os dias bonitos, tinham jogado o ténis, passeado pelo campo, pescado no rio e, embora entre eles existisse ainda leve cerimónia, estavam ligados pelas recordações de tão agradáveis horas, das diversões partilhadas com o doutor Perret.

Perante a atitude reservada de Jacqueline, Gaêtan ficou inquieto.

Que teria contra ele?... Não se mostrava sempre correcto, atencioso com todas as suas companheiras de estudo?... Não era de boa família e rico?... Mais do que boa família, pertencia à nobreza. Considerava se atraente e, para prova de que não se enganava, bastava ver a forma como quase todas as raparigas o procuravam, quando entrava numa sala... O seu prestígio era real e não filho de um sentimento de vaidade, e todas estas vantagens motivo de orgulho para a sua fatuidade.

Não, Jacqueline não podia resistir por muito tempo à sua corte. Aguardou mais alguns dias e, certa tarde, esperou a quando saía do serviço de consultas. Logo que a viu, aproximou se e, depois da habitual troca de comentários sobre o tempo, abordou o assunto:

Jacqueline, gostaria de lhe falar a propósito de um quadro para o qual serviu de modelo... deve saber ao que me refiro. É um trabalho de valor, que mereceu um prémio, e que eu considerei digno para oferecer a uma pessoa da minha família...

Às primeiras palavras, a estudante não pôde deixar de pensar com irritação:

« Outra vez!... Já é maçada!... A maldita tela que desconheço irá perseguir me toda a vida?...»

E, em voz alta, replicou:

Não vejo motivo para falarmos desse quadro. Que tivesse sido eu ou não o modelo, isso que lhe importa?...

E, contra sua vontade, crescia lhe no peito uma onda de cólera contra o pobre René.

Falo lhe no assunto   replicou Gaêtan, com toda a calma   porque recebi a visita do seu autor.

A visita do...

De quem o pintou, exactamente. Desejava reaver a tela.

E depois?

Recusei, evidentemente. Jacqueline franziu a testa.

Evidentemente porquê, Gaêtan?   perguntou com certo nervosismo.

A palavra irritava lhe os nervos.

Não vejo que a recusa fosse consequência inevitável do pedido. Não tem nada de extraordinário, creio eu.

Para mim, tem. Pois ainda não compreendeu que...

A declaração   sincera, sem a menor dúvida   estava prestes a sair dos lábios do rapaz quando a sobrinha de Perret atalhou com decisão:

- Não prossiga, Gaêtan... Não passo de uma provinciana, órfã de pais, vítimas de um desastre que, por pouco também não me causou a morte... Fui recolhida por duas pessoas de idade que me adoram, meu tio, médico numa pequena vila e a sua governanta, e ambos substituíram, tanto quanto se pode substituir, aqueles que a fatalidade me roubou. Conheci quanto vale a dedicação que não hesita em chegar ao sacrifício... compreendi a beleza de certas tarefas e por isso escolhi a carreira que me proponho seguir, isto é, a medicina. Quero dedicar a minha vida a suavizar o mal dos meus semelhantes. É esse o meu alvo, o único e, por agora, coisa alguma poderá desviar me do caminho já encetado. Esta minha resolução é irrevogável, entende?... Portanto, julgo desnecessário que continue. Fiquemos por aqui, sejamos bons camaradas como temos sido até hoje e que entre nós reine a confiança e a amizade. Não será isto preferível?...

Gaêtan ficou interdito. A amizade pode considerar se um sentimento belo, evidentemente, mas aos vinte e quatro anos torna se difícil não lhe ultrapassar os limites, quando se tem por camarada uma rapariga nova e bonita.

Vencido, mas não convencido, aprovou:

- Tem razão, Jacqueline. O seu alvo é magnífico e há de alcançá lo. Destaca se em todas as aulas, vencendo muitos dos nossos camaradas do meu sexo. Só me resta submeter me e admirá la. Consinta, porém, que lhe faça uma pergunta. Porque motivo, a Jacqueline, tão reservada e tão sensata, consentiu em servir de modelo a um pintor qualquer?

Esta pergunta que, mais uma vez, a obrigava a falar do quadro, aumentou o mau humor da estudante.

Que ideia faz de mim?... Não lhe ocorreu a possibilidade de que um pateta aproveitasse o momento em que estava distraída com a leitura de um livro de medicina, e não desse por ele, para pintar o meu retrato?

Se foi assim e se, na verdade, esse atrevido...

Decididamente, está pouco feliz, Gaêtan, e enerva me com os seus arrebatamentos e suposições... René Briel pintou me o retrato sem me pedir autorização, mas creio que, se a tivesse pedido, eu não lha recusaria, porque o considero como excelente camarada a quem estimo deveras. E se, de facto, eu tivesse acedido a servir lhe de modelo, pode acreditar que não viria pedir lhe opiniões, Gaêtan.

Não se irrite, Jacqueline!... Eu não quis, de forma alguma...

E se me apetecesse irritar?   atalhou ela bastante exaltada , Fique sabendo, de uma vez para sempre, que já não estamos na época em que os príncipes casavam com as pastoras. Seria preciso que a pastora fosse muito tola para admitir semelhante possibilidade. Portanto, não conte comigo para o acompanhar nesse campo de fantasia e deixe de me importunar, peço lhe.

Gaêtan fez um gesto de desânimo. Como insistir na tentativa de aproximação?... Sem lhe dar tempo a declarar se, Jacqueline mandava o, positivamente, passear.

« Por agora, nada a fazer   pensou, desanimado , Mais tarde, quando tiver acabado o curso, talvez... é caso para se pensar!... Para que protestou?... Eu não tento desviá la da sua vocação... visto ter falado em vocação! Gosto dela e estou disposto a todos os sacrifícios para a alcançar. Até o do casamento, se tanto for preciso.»

Ora vamos   disse lhe Jacqueline com afabilidade   Não quer continuar a ser um camarada leal e sincero como tem sido até aqui?... Considere que a amizade é o sentimento mais reconfortante e nobre.

Gaêtan abanou a cabeça como se tentasse expulsar pensamentos importunos.

Tinha sonhado outra coisa!   murmurou , Voltaremos a falar no assunto... mais tarde!

Mas como a visse franzir a testa, acrescentou prudentemente:

Não seja rancorosa... continuemos a ser bons amigos. Não foi isso que me propôs?

Exactamente. Seremos, no futuro, o que temos sido até hoje. E acabará por confessar que não há nada melhor do que a confiança e a amizade sincera, verá.

Gaêtan pensou que, sobre o assunto, ainda havia muito que dizer, mas teve a sensatez de não insistir. De momento, Jacqueline recusava se ao namoro... mas mais tarde...

Assim, separaram se sem animosidade, trocando um aperto de mão, como é uso entre estudantes, quando entre eles existe apenas simples camaradagem.

 

Decorreram alguns meses.

Chegaram as férias da Páscoa. A grande colmeia ia fechar as suas portas e os estudantes dispersar se iam pelos quatro cantos da França, pelo menos aqueles que dispunham de meios para fazer a viagem de ida e volta, visto que as passagens em caminho de ferro, actualmente, são bastante dispendiosas.

Para os que ficavam, existiam bem organizados acampamentos de férias. Algumas das condiscípulas pediram a Jacqueline para ficar. Mas como poderia ela aceder, se o tio e Gemma a aguardavam com ansiedade?

Como insistissem, consentiu em passar dois dias no acampamento escolhido pelos estudantes que, por coincidência, distava apenas sessenta quilómetros da sua terra. Dessa forma, decorridos os dois dias, facilmente alcançaria Vernonville. Não lhe seria difícil arranjar uma passagem num automóvel que, em duas horas, a transportaria à «Casa Velha».

Mas ignorava que o acampamento ficava, também, muito próximo do castelo de madame de Préval e que fora o próprio Gaêtan quem sugerira o local onde os campistas iriam estabelecer se.

O apaixonado repelido arquitectara um plano para conseguir que a tia conhecesse a sua amada... Não era esse o melhor meio de vencer a oposição da velha fidalga?...

Não estava muito certo de triunfar, mas sempre seria bom tentar.

Começou por ir passar as férias da Páscoa ao castelo. Conseguiu que a tia cedesse um dos seus prados, não muito longe de Préval, para os campistas se estabelecerem. Devemos dizer que já estava ao facto da presença de Jacqueline. O primeiro dia que passou em Préval, ao almoço, depois de ter trocado com a tia alguns comentários sobre René Briel, o rapaz iniciou o ataque:

A tia sabe?... Os meus camaradas já chegaram.

Deves ir visitá los...

Vou, com certeza. Mas desejava pedir lhe uma coisa...

Pede... Que pretendes... mais alguma tolice dessa cabeça estouvada?...

Engana se, minha tia. Gostava que os recebesse aqui, uma tarde.

Enganei me, o pedido não é tolo. Está concedido.

Obrigado!... Mas...

Que mais temos?

Gostaria que a tia me acompanhasse na visita... Eles ficariam sensibilizados se...

Eu os convidasse pessoalmente?... Pois seja, acompanhar te ei.

Como é boa!... Mil vezes obrigado.

Eis a razão porque, certa tarde, animado grupo de rapazes e raparigas foi recebido no castelo e eis como Jacqueline se viu obrigada a acompanhar os condiscípulos a casa da tia de Gaêtan de Trémousíers.

Pode calcular se como foram recebidos!... A castelã acolheu os com fidalga cortezia. Foi lhes servida lauta merenda depois da qual se seguiu a obrigatória visita à biblioteca recheada com preciosas colecções.

As telas que guarneciam a galeria foram muito admiradas. Uma delas   o Botão de Rosa   provocou merecidos louvores.

Jacqueline quase não podia acreditar no que via.

Ele ali estava, o tão falado quadro, cuja recordação a atormentara tanto. Não podia negar que era lindo e merecia todos os elogios que lhe faziam. Que pena o tio não poder vê lo!

Irresistivelmente atraída, por mais de uma vez parou diante dele, a fim de o admirar à vontade. Como René soubera reproduzir a sua querida casa, valorizando lhe todas as belezas!... E como ela própria se considerava graciosa, no meio de tantas rosas!... Involuntariamente e em pensamento, dirigiu um agradecimento àquele que soubera criar para ela tão linda moldura.

« Que pena não termos sabido que o vendia!... O tio tinha o comprado, com certeza!».

Arrependeu se por ter recusado ver o trabalho do pintor, no dia em que René tinha tentado mostrar lho e depois, por não ter querido visitar o Salão de Outono.

Se o retrato tinha ido parar a mão de estranhos, a culpa fora dela e de mais ninguém... Que tola intransigência a sua ao regeitar todas as probabilidades de conhecer aquilo que, presentemente, se via obrigada a admitir: o seu retrato transformado numa verdadeira obra de arte.

Não foi a única a admirá lo. Conquanto Gaêtan tivesse a delicadeza de não chamar para ele as atenções dos companheiros, não conseguiu evitar que um dos visitantes o descobrisse e exclamasse:

Reparem!... É a Jacqueline ou uma sósia!

Os olhares convergiram para o quadro, admirando o, comparando o com o original, e todos eles acabaram por decidir:

É a Jacqueline, não restam dúvidas! Corajosamente, embora um pouco corada, a

sobrinha do médico confessou:

Não se enganam. Sou eu, de facto, no jardim da minha casa!

Foste a inspiradora de uma verdadeira obra prima. Os nossos cumprimentos, Jacqueline!

A tia de Gaêtan concordou sem hesitar. Olhando para a estudante que, modesta, se afastara um pouco, afirmou:

Não posso deixar de felicitá la, mademoiselle. Esta pintura é diferente do género excessivamente moderno, um pouco disparatado, que actualmente está em moda. É uma obra que se mantém na tradição.

Muito obrigada, minha senhora!   agradeceu Jacqueline um tanto atrapalhada com tantas felicitações que, de certo modo, ligavam o seu nome ao de René, quando não contribuíra fosse no que fosse para o êxito do quadro, nem merecia tantos elogios.

Quanto a Gaêtan, exultava!... A tia reparara em Jacqueline, mostrava se agradada dos seus modos reservados e isso bastava para que o rapaz visse o futuro cor de rosa.

De momento, não tentava profundar isto e supunha ter ganho a partida.

Mas depois dos estudantes terem abandonado o castelo, encontrou se sozinho com madame de Préval e, durante o jantar, voltou a agradecer lhe a magnífica recepção que tinha feito aos seus camaradas. Todos eles tinham saído encantados com a amabilidade da castelã. Depois, como seria natural, falaram do quadro e do modelo.

A tua camarada é, na verdade, muito simpática reconheceu a fidalga , Deve ser honesta, estudiosa e reservada.

Não se engana. É uma rapariga deliciosa... com verdadeira vocação para a medicina, segundo afirma. E tão sensata, que não acredita ser possível na nossa época os príncipes casarem com pastoras.

E tem muita razão   aprovou a tia com autoridade   Os casamentos desiguais nunca provaram bem.

Gaêtan ficou desolado, mas não se atreveu a discordar.

Diz bem, minha tia murmurou com ar triste e sem convicção.

De soslaio, a tia observava o. De cabeça baixa, Gaêtan comia, muito calado, como se toda a sua alegria se tivesse evaporado de repente.

Pela atitude do sobrinho, a castelã alguma coisa adivinhou do que se passava no coração do pobre apaixonado. Muito sensata e muito afectuosa para não tentar dissipar o constrangimento que surgira entre os dois, provocado, involuntariamente, pela estudante de quem o sobrinho pouco lhe falara e que o acaso   ou a habilidade de Gaêtan   tinha conduzido a sua casa.

Quer dizer, contra sua vontade, a desconhecida, antes de entrar pessoalmente no castelo, já lá se encontrava em efígie... Que género de relações existiriam entre ela e Gaêtan?... Simples camaradagem ou namoro?

Conta me alguma coisa dessa menina, Gaêtan. O rapaz que lhe pintou o retrato é seu irmão ou talvez seu noivo?

Nem uma coisa nem outra.

E, radiante por poder falar de Jacqueline, contou à tia a história do quadro com todos os pormenores.

Nesse caso, ela serviu de modelo sem saber? admirou se a respeitável senhora.

Nem ela, nem tão pouco a família. A Jacqueline viu hoje essa pintura pela primeira vez. Até pediu para eu a fotografar, a fim de o tio poder conhecê la.

Porque não tenta ela adquirir o quadro?

Porque não o viu ou talvez os seus meios de fortuna não lhe permitam pagar uma obra que mereceu um primeiro prémio, no Salão.

 

Mas tu compraste a!

Evidentemente!... Desejava trazer lhe uma lembrança de certo valor e, ao mesmo tempo, que a tia apreciasse. De resto, a tia indemnizou me largamente da despesa.

A castelã soltou ligeira gargalhada.

Calculo que já contasses com isso, porque as tuas economias não deviam chegar para pagar aquela tela?

O pintor não foi muito exigente. Creio que é pobre e precisava de dinheiro para pagar algumas dívidas e fazer uma viagem... Mais tarde propôs se comprar me o quadro.

E tu recusaste... porquê?

Não queria pedir lhe a si que me restituísse um objecto que lhe tinha oferecido.

Que razão deu ele para a sua proposta? Atrapalhado, recordando se da forma um

pouco brusca como recebera René, Gaêtan explicou:

A que há pouco lhe disse. Declarou me que tendo tido necessidade de dinheiro, se resolvera a vender o seu trabalho. O pai é arquitecto e o rapaz deve acabar este ano o curso, o que lhe permitirá continuar a carreira do pai. Mas adora a pintura e, ao mesmo tempo que estuda arquitectura, toma lições com um pintor dos mais conhecidos, não como modo de vida, mas para satisfazer as suas tendências artísticas. Durante as férias, entrega se à sua paixão favorita, tanto mais que um negociante de quadros lhe compra todos os trabalhos que lhe apresenta. A história de sempre. As obras dos mais célebres pintores, antes dos seus autores adquirirem fama e glória, foram vendidas por quantias irrisórias.

Abusaram da sua inexperiência, da sua irreflexão e também da sua pobreza. Quer dizer, exploram nos vergonhosamente.

Após breves instantes de silêncio, madame de Préval perguntou:

E não te disse para que desejava reaver o quadro?

Gaêtan hesitou mais uma vez. A consciência acusava o de ter sido rancoroso e egoísta com o pobre René de Briel. Por fim, confessou:

Desejava oferecê lo ao tio de Jacqueline. Considerava como falta de correcção ter pintado o retrato da sobrinha sem lhe pedir consentimento e, com a oferta, pensava reparar, em parte, a sua falta.

Mais uma vez, a velha fidalga observou o sobrinho com atenção e uma série de reflexões lhe acudiu ao pensamento.

A ideia desse rapaz era simpática   comentou por fim   Lamento que tenhas recusado a sua proposta.

Quer dizer que não se importava de ceder o quadro?   protestou Gaêtan.

A tia confirmou com a cabeça e declarou:

Acertaste, filho... Principalmente, se tivesse sabido, como tu, que era o retrato de uma das tuas colegas.

Mais uma razão para o guardar.

Enganas te   protestou a tia   Reflecte, Gaêtan... Supõe, por momentos, que esse pintor se tinha permitido pintar o retrato da tua irmã ou da tua noiva... Gostarias de saber que a imagem de uma pessoa querida se encontrava em casa de estranhos, longe de ti, exposta a todos os olhares?

Confesso que não encarei essa hipótese.

Não devemos ver só um palmo diante do nariz. Por vezes, convém alcançar mais longe.

E como Gaêtan curvasse a cabeça com ar contrito, a tia começou a rir e continuou:

Agora só me resta saber quem é o tio de mademoiselle Jacqueline...

É médico numa pequena vila, não muito longe daqui. Creio que é excelente homem.

Quase todos os médicos das terras pequenas, pela força das circunstâncias, são excelentes criaturas. Constantemente em contacto com a miséria, a sua missão é ingrata e difícil... São obrigados a sair a qualquer hora, com bom ou mau tempo, mal pagos e ainda por cima, muitas vezes acusados de explorar os doentes... Desta forma, a profissão de um médico da província transforma se num verdadeiro sacerdócio.

Com um sorriso tocado de desdém, Gaêtan comentou:

A Jacqueline deseja imitar o tio, considerando a medicina como a mais bela das profissões, aquela em que poderá ser útil ao seu semelhante, dedicando lhe todos os minutos da sua vida. Por várias vezes tentei, mas sempre em vão, combater as suas ideias. Nunca consente em sacrificar me algumas horas de estudo e trabalho, para me acompanhar a qualquer diversão... Não creio que possa haver mal em suavizar os nossos esforços com alguns momentos de distracção.

Contanto que não se prolonguem demais esses momentos, como costumas fazer!   comentou a tia com alegre sorriso.

Gaêtan teve um gesto despeitado e protestou com vivacidade:

Parece me que ainda não perdi um ano, nem fiquei reprovado. Enquanto tal não acontecer, não tem razão para censurar me, tia. E, mesmo assim, não sei. Os melhores estudantes podem ficar reprovados. Nos exames temos de contar com o factor sorte.

E, justamente, a sorte tem sido muito generosa contigo. Não creio que seja motivo para te envaideceres.

Gracejava, mas verificando que o sobrinho não aceitava bem as suas inofensivas ironias, continuou com indulgente sorriso:

Vamos, não te zangues. Reconheço que não és mau rapaz. Não tinhas necessidade de tirar um curso, porque tens fortuna... ao contrário do que acontece com a tua camarada Jacqueline que, provavelmente, é pobre. O teu futuro está em Paris, num belo consultório. A tua colega não pode pensar numa instalação dispendiosa, na capital, e tem a sensatez de limitar as suas ambições. Instalar se á numa terra da província, como o tio, onde tenho a certeza, será excelente médica, dedicada e cuidadosa com os seus doentes.

Num tom que tentava ser indiferente, Gaêtan observou:

Pode ser que case com um médico... de Paris.

De todo o coração lho desejo. Mas, sendo pobre, quem casaria com ela?

Um rapaz rico... por exemplo, como eu   arriscou Gaêtan, observando as reacções da tia.

Madame de Préval protestou imediatamente:

Como tu?... Não penses nisso!

Porque não?

Desejo que cases com uma menina do nosso meio.

A Jacqueline é digna de entrar em qualquer família, seja ela de que meio for.

Não digo que não. Mas se ela fosse tua mulher, terias de te contentar em exercer a tua profissão longe de Paris, e eu tenho aspirações mais altas a teu respeito...

Quero envaidecer me com os triunfos profissionais do meu sobrinho. Esforça te para não me infligires uma decepção. Mademoiselle Jacqueline é encantadora, não o nego, mas não deves pensar nela para tua... Terás de escolher para tua futura esposa, uma menina que, pela sua fortuna, posição social e relações, te proporcione uma clientela rica, tornando o teu nome conhecido... Todavia, julgo que ainda é cedo para discutirmos o assunto. Falemos noutra coisa.

E Gaêtan, embora desapontado e horrivelmente contristado, não teve a coragem precisa para contrariar a tia e impor lhe a ideia de ter, mais tarde, como sobrinha, a rapariga de origem plebeia que o seu coração escolhera.

Era mais cómodo pensar que o tempo resolveria tudo e seria prematuro bater se contra moinhos de vento.

Não pensou que o Destino podia ser caprichoso e, se ele, Gaêtan, confiava no tempo para resolver os seus problemas, madame de Préval, posta de sobreaviso e receando a derrocada dos seus projectos, ia imediatamente proceder de forma a defender os interesses do sobrinho, conforme o seu critério.

Como foi isto, tio?... Como veio este quadro parar aqui?   exclamava Jacqueline, uma tarde, ao regressar a casa.

Sim, porque não havia possibilidade de engano. A tela emoldurada que tinha diante dos olhos era a que vira pendurada na galeria do castelo de Préval.

Não se torna difícil adivinhar respondeu o médico   Vê o nome do remetente. «René Briel, arquitecto». O nosso amigo recuperou o quadro e apressou se a enviar mo, conforme tinha prometido.

A explicação era fácil, de facto, aparentemente muito clara, mas Jacqueline ficou pensativa. As deduções do tio não concordavam com as suas. Não acreditava que Gaêtan tivesse acedido, com tanta facilidade, às solicitações de René, nem tão pouco lhe ocorreria ter sido a tia do seu camarada a autora da devolução.

« Não, meu tio engana se. Não foi o René. No entanto...»

Seria possível que, em tão pequeno espaço de tempo, o pintor tivesse conseguido descobrir o comprador do quadro, o tivesse resgatado e enviado ao médico!

Estava se em sábado de Aleluia e na segunda feira depois dos Ramos ainda a tela se encontrava em Préval.

« Estamos na era das velocidades, não há dúvida!»   murmurou.

Não sabia o que pensar, mas qualquer coisa lhe dizia que a solução do problema não podia ser tão fácil como parecia.

No entanto, não podia negar a evidência e factos eram factos: o quadro estava ali, em casa do tio.

Evidência... e se o remetente não fosse o que estava indicado... se tivesse sido a tia de Gaêtan ou mesmo o rapaz?

Impunha se esclarecer o caso.

No dia seguinte, dando qualquer pretexto, Jacqueline saltou para a bicicleta e dirigiu se à povoação vizinha, onde habitavam os Briel.

Considerava o seu procedimento um tanto audacioso, nunca se julgara capaz de semelhante decisão, mas, para agradecer a oferta não se impunha saber quem a fazia?

Eis porque, pouco depois, batia à porta da casa do arquitecto. A criada que veio recebê la conduziu a para a sala.

Jacqueline declarou lhe que desejava falar com René, pois não ignorava que o arquitecto viera passar as férias da Páscoa com os pais. Estes estavam preocupados, pois viam o filho bastante tristonho. Às suas perguntas, o rapaz respondera com vagas desculpas, o que mais os afligiu. Sabe se lá o que pensa um rapaz de vinte e quatro anos!

Depois de ter mandado entrar Jacqueline, a criada dirigiu se à sala de fumo onde os dois homens se encontravam fumando e conversando para passar o tempo. Ao lançar a vista para o cartão de visita, René pôs se de pé num salto e saiu a correr, deixando o pai de boca aberta.

Que bicho lhe mordeu?   murmurou o excelente homem , Se a casa ameaçasse ruína, não se mostraria mais apressado.

Ao entrar na sala de visitas, René soltou alegre exclamação:

Mademoiselle Jacqueline aqui! Não pode calcular o prazer que me dá com a sua visita!

Havia tanta sinceridade nesta expansão que Jacqueline não pôde deixar de sorrir.

Venho pedir lhe um esclarecimento, senhor Briel. Trata se, mais uma vez, do seu quadro, e peço lhe que me responda com toda a franqueza.

- Pode estar descansada... Mas assusta me!... Fale, pelo amor de Deus!

Eis do que se trata...

E, simplesmente, sem lhe ocultar as suas dúvidas, Jacqueline contou lhe o que se passava.

Foi o senhor Briel quem enviou a tela a meu tio?... É a si que devemos agradecê la?... Peço lhe para me elucidar.

À medida que falava, pôde notar o crescente espanto do rapaz. Tornava se evidente que desconhecia a expedição do quadro.

Não fui eu disse René quando Jacqueline se calou   Garanto lhe que estou completamente alheio ao assunto. Como afirmei, era meu desejo reaver o meu trabalho para o oferecer a seu tio, mas todas as minhas tentativas para o conseguir falharam. Verifico agora que alguém o fez por mim. Mas quem e porquê?... Com que intenção?

Não quis ocultar coisa alguma e descreveu à sobrinha de Perret todos os passos que tinha dado para encontrar o quadro, a visita a madame de Préval e a recusa de Gaêtan.

Ao escutá lo, Jacqueline pensava que as suas suspeitas deviam ser fundadas. A remessa do quadro fora obra de Gaêtan. Mas como conseguira o rapaz que a tia lho cedesse?... Que consentisse em se separar de uma obra de arte que lhe valorisava a sua colecção? Quais os argumentos empregados?

E esta última interrogação preocupava a tanto que, involuntariamente, franziu a testa.

« Não teria ele ficado convencido de que a minha recusa era definitiva?   pensou   Não teria eu conseguido fazer me compreender?... Desolar me ia saber que ainda alimentava a mais pequena esperança!...»

Como, porém, não podia revelar a René as suas preocupações, respondeu ao olhar interrogador do arquitecto, dizendo:

O meu tio não conhece Gaêtan de Trémousiers... e contraria me muitíssimo que ele tivesse tomado a liberdade de nos mandar o quadro, servindo se do nome do senhor Briel... Acho muito estranho este procedimento!

Sim, na verdade, é um tanto abusivo. Tem a certeza de que não foi a tia?

Já me ocorreu essa ideia... É uma senhora muito amável e simpática. Mas confesso lhe que não encontro razão, nem posso descobrir o motivo de tão valioso presente.

De facto, é singular. Mas não será mais estranho ainda atribuí lo a Gaêtan?... Volto a afirmar lhe que o seu camarada recusou energicamente todas as minhas propostas a fim de readquirir o meu quadro.

Teria então sido outra pessoa?

Estou convencido de que a iniciativa partiu da tia   E, de súbito, ocorreu lhe uma ideia , Mademoiselle Jacqueline, conheço na perfeição a letra de madame de Préval e a do sobrinho. Pode mostrar me o papel onde traçaram a direcção?

Não o trago comigo.

Permite me que vá amanhã a sua casa?... Tencionava regressar esta noite a Paris, mas transfiro a partida.

Vai transtornar os seus projectos por minha causa?

Não transtorno, mas, mesmo que transtornasse, teria com isso imenso prazer.

E, em voz trémula, profundamente comovido, acrescentou:

Se soubesse como desejo fazer lhe esquecer a minha audácia e alcançar o meu perdão...

Levemente perturbada com o olhar ardente que acompanhava esta afirmação, a sobrinha do médico protestou:

Há quanto tempo eu lhe perdoei!... Não voltemos a falar no caso, peço lhe.

Permite me então que vá amanhã a sua casa?

Está combinado. Espero o de manhã, para não atrasar muito a sua viagem.

Quando René voltou à sala de fumo onde o pai dormitava, sentia se meio atordoado e, a tal ponto que, esbarrando com a mesa rolante, a fez cair e o lindo serviço de fumo, em porcelana, foi despedaçar se no chão.

Despertando em sobressalto, o pai pôs se de pé e exclamou:

Que é isto?... Agora deu te para quebrares tudo?... Ainda ontem te considerávamos adoentado e agora vejo te excessivamente animado!

Como resposta, René executou alguns passos de dança em volta do pai que mal podia acreditar no que via. Por último, o rapaz enlaçou lhe os ombros e apertou o contra si.

Meu querido paizinho!... Se soubesse quanto gosto de si!... A vida é bela, não acha?

Sim?   replicou o pai com um sorriso trocista   É tão bela como isso?

Maravilhosa, pai!... Sabe, ela acaba de sair daqui.

Ela quem?... A vida?

A vida!... Que ideia!... Ela, mademoiselle Perret... a sobrinha do doutor Perret!

Começo a compreender. E que veio aqui fazer, pode saber se?

Devo ir amanhã a sua casa para ver se conheço certa caligrafia... Oiça, pai, é preciso que me acompanhe e conquiste as boas graças do doutor Perret... Diga lhe que tem um filho estupendo... estudioso, que sabe triunfar na vida e mais triunfará no futuro, se... Enfim, um filho que é o seu orgulho e lhe proporciona todas as alegrias possíveis.

Mesmo a de quebrar o meu rico serviço de fumador?

Que importância tem isso?... Um serviço de fumador é um objecto inútil, sem vida... e eu, em compensação, quero apresentar lhe uma pessoa bem viva, deliciosa, encantadora!

Estás doido ou apaixonado, com certeza...

As duas coisas, pai.

Muito bem. Com efeito, um apaixonado nunca pode encontrar se em seu juízo perfeito... A tua mãe vai ficar satisfeita com a tua mudança. Creio que não te recusarás a ficar aqui mais alguns dias, até terminarem as férias.

Será a maneira de lhe conquistares as simpatias para Mademoiselle Perret.

Tenho a certeza de que vai adorar a Jacqueline... e o pai também!

Com certeza... Em família, a loucura é sempre contagiosa!

Adoro o, paizinho!

Há muito que o sabia! Mas se queres que te elogie quando visitarmos o doutor Perret, trata de apanhar todos os cacos do meu serviço... Foi uma oferta de tua mãe e se ela souber que o partiste... ela que tanto gosta de conservar essas recordações... não ficará muito certa do juízo do filho!

E, enquanto René, de gatas no chão, apanhava todos os fragmentos de loiça, o arquitecto, filosoficamente, enchia o cachimbo.

Não te esqueças, rapaz!... A tua mãe não deve saber por enquanto, que lhe partiste essa obra de arte. Mais tarde, quando ela der pela falta, poderemos, sem mentir, responder lhe com a frase clássica: «Há quanto tempo isso se partiu...» Porque, quando se dá pela falta de uma coisa, foi sempre há muito tempo que se quebrou!

E riam como dois garotos de escola quando acabam de pregar uma partida à professora.

Vê se tens pena do teu pai, rapaz!... Não andes tão depressa!... Já não consigo acompanhar te!   implorava o arquitecto quando, no dia seguinte de manhã, se dirigiam a casa do médico.

Perdoi me, pai!   pediu René O meu desejo de chegar é tão grande, que nem dava por isso.

Ao mesmo tempo abrandava o passo a fim do pai poder acompanhá lo.

Dava lhe a impressão de ter asas nos pés. Seria apenas a pressa de verificar de quem era a letra e esclarecer aquela situação cheia de enigmas?...

Não demoraram muito em chegar ao seu destino e foram introduzidos na mesma sala onde René fora recebido da primeira vez.

Jacqueline ficou surpreendida com a presença do pai Briel. Por seu lado, o arquitecto examinava a às furtadelas, não podendo deixar de reconhecer que de Jacqueline emanava uma corrente de simpatia. Pareceu lhe meiga e inteligente.

Como arquitecto, portanto, como artista, verificou como era bonita e graciosa, e reconheceu que o filho não podia ter ficado indiferente a tanta sedução. Ao mesmo tempo, o seu coração de pai regosijou se com a escolha de René.

Achou o doutor Perret muito simpático e não ignorando quanto era estimado e apreciado por todos e como a sobrinha lhe pareceu também boa rapariga, agradou lhe a ideia de René entrar numa família tão respeitável. Entre eles a conversa travou se em termos amistosos e despidos de cerimónia. Os dois homens simpatizaram um com o outro, mal se viram e, intimamente, ficaram contentes por se terem conhecido.

Finalmente, abordaram o assunto mais importante. Quem teria enviado o quadro?

O exame da caligrafia não deu o resultado esperado.

Devemos pensar que nem sempre a direcção é traçada por quem remete a encomenda.

O pai Briel concordou. Ele quase sempre encarregava o seu empregado de sobrescritar as encomendas.

Ficaram perplexos.

Ser me á permitido ver esse famoso quadro?   pediu, por fim, o arquitecto.

Quando se encontrou diante da tela à qual se limitara a lançar uma olhadela, na tarde em que René, tendo terminado a pintura, a levara para casa, o bom homem ficou comovido e não conseguiu evitar um movimento de orgulho. A sua vaidade de pai estava satisfeita e tê lo ia demonstrado, deixando transparecer a sua admiração, se o filho não o chamasse à realidade.

Então o que diz, meu pai?

Digo que está bem, que... espera, deixa me vê lo outra vez.

E não conseguiu dizer mais nada, tão impressionado se sentia com o talento do filho.

Jacqueline estava sobre brasas. O mistério que envolvia a remessa ainda estava por desvendar.

Chegámos então à conclusão de que terceira pessoa foi encarregada de nos enviar o quadro, não é assim?... Alguém lhe deu as indicações precisas e esse alguém foi a dona desta obra, quero dizer, o verdadeiro remetente deve ter sido a tia de Gaêtan... No entanto, essa senhora não sabia o meu nome nem a minha morada. Teve de perguntar fosse a quem fosse...

E não podia perguntar senão ao sobrinho, torna se evidente   sugeriu René que, no mesmo instante, sentiu a mordedura do ciúme.

É possível   concordou docemente Jacqueline , Gaêtan de Trémousiers auxiliou a tia e sugeriu a ideia de nos enviar o quadro em seu nome, senhor Briel, visto conhecer o seu empenho em o readquirir.

De si para si, classificava a atitude de Gaêtan como digna dos maiores elogios, muito leal e correcta. E todo o seu rancor, nascido ao conhecer a recusa do rapaz às propostas de René, se dissipou.

Seja como for   objectou o arquitecto a oferta é valiosa e agrada me que se tenham lembrado do nome do meu filho para a fazer,. tanto mais que René irá procurar o seu camarada para o indemnizar.

Isso não!   protestou o médico Já tinha afirmado o meu desejo de comprar o quadro. Não quero que seu filho fique prejudicado. Vai dizer me quanto recebeu por ele, não é verdade, senhor René?

Adivinha se o constrangimento dos dois Briel.

Com calma, o artista protestou:

Perdão. O doutor recorda se, sem dúvida, de me ouvir dizer que já tinha tentado reaver a minha obra... Responderam me com uma recusa categórica... Creio também ter dito que era minha intenção oferecer lhe o quadro, como resgate da minha leviandade e incorrecção... Suponhamos que o comprador ma cedeu e não pensemos mais no caso.

Plenamente de acordo, René   aprovou o arquitecto, radiante com a solução apresentada pelo filho   Concluindo...

Eu concluo, meu pai, se me permite. Fiz este retrato, entusiasmado com a beleza do conjunto. Mademoiselle Jacqueline ficou mal disposta comigo...

Não... não.

Ficou, sim, não negue... Lembrei me então de apresentar o quadro para apreciação dos especialistas, visto não conseguir obter a sua opinião. Estarei enganado?...

Não está, mas...

Depois vendi o quadro, sem medir as consequências.

Não concorda que tinha direito a zangar me?

Não lhe contesto esse direito!... Reconheço até que foi muito boa, esquecendo tão depressa os seus agravos...

René estava disposto a reconhecer muito mais, seduzido pelos lindos olhos de Jacqueline.

E é de supor que o nosso apaixonado não soubesse ocultar os seus sentimentos, porque, de súbito, as faces da sobrinha do médico se tingiram de vivo rubor, enquanto os dois pais seguiam a discussão com indulgente sorriso.

Prosseguindo...   continuou René   Mais tarde tentei readquirir o quadro, tencionando oferecê lo a seu tio, como reparação pelas minhas culpas.

A reparação é desproporcionada   protestou Jacqueline.

E eu não a aceito   afirmou o médico.

Porque não? balbuciou o pintor   Dar me ia tanta alegria... sentir me ia tão orgulhoso se a aceitasse...

A discussão poderia prolongar se por muito tempo se Briel, homem de resoluções rápidas, não pusesse ponto no assunto.

Isso fica para discutir mais tarde. Por agora, não seria aconselhável procedermos a pequena cerimónia, isto é, celebrarmos com um banquete o regresso do quadro ao lugar que lhe compete? Estou certo de que minha mulher caprichará em nos apresentar um jantar de primeira ordem. Poderíamos assim travar mais amplo conhecimento, enquanto sua sobrinha e meu filho, que já se conhecem, ficariam radiantes por, mais uma vez, poderem conversar. Que diz, meu caro doutor?

Está combinado   aprovou prazenteiro o médico   Organizaremos isso para os últimos dias de férias. Entretanto, rogo lhe que transmita a sua esposa o meu desejo de ir apresentar lhe as minhas homenagens.

Minha mulher ficará encantada com a sua visita, doutor, posso afirmar lho.

Pela primeira vez, Jacqueline fixou demoradamente o pintor e no seu olhar meigo já não havia a mais pequena sombra de ressentimento. Começava a compreender o motivo oculto da visita dos Briel, sentido que o tio aprovava e ela própria acolhia com agrado.

Nessa altura, encontrou a chave do enigma. Madame de Préval fora a remetente do quadro. Querendo afastá la do caminho do sobrinho, considerou que seria imprudente consentir que o inflamável Gaêtan tivesse continuamente diante dos olhos a imagem da gentil rapariga e resolveu desfazer se dela. Ao mesmo tempo, dava a entender a Jacqueline que seria inútil e perigoso corresponder às solicitações do seu insinuante camarada.

Estas conclusões tranquilizaram a sobrinha de Perret e foi da melhor vontade e sem pensamentos reservados, que aprovou todas as combinações feitas pelo tio e pelo arquitecto.

Fora a primeira a pensar que entre ela e Gaêtan não poderia existir mais do que simples camaradagem e, por conseguinte, as precauções que a aristocrática senhora julgara dever tomar contra a rapariga, pobre e plebeia, que o sobrinho pretendia amar, deixavam na indiferente.

Chegando a este ponto das suas reflexões, reconheceu que René Briel tinha sobre Gaêtan a vantagem de poder escolher para sua esposa uma menina sem dote. Era dos que trabalhavam para fundar o seu lar e continuaria a trabalhar para proporcionar à mulher e aos filhos uma vida de conforto e sem dificuldades.

Seria o companheiro ideal, o apoio seguro a quem poderia confiar a sua vida sem o mais pequeno receio pelo futuro.

E foi como se uma onda de calor a envolvesse, a embalasse suavemente e, ao mesmo tempo, a estonteasse um pouco.

Impelida pelo desejo de trocar algumas palavras com o pintor, propôs lhe espontaneamente:

Não gostaria de dar uma volta pelo jardim que tão magistralmente o inspirou?

Gostaria imenso   afirmou René   O seu jardim rodeia a casa e eu conheço apenas o que se pode ver da estrada.

Terei imenso prazer em lho mostrar.

Os dois saíram, deixando o médico sozinho com o arquitecto.

Um lindo par, não há dúvida!   comentou o pai de René, seguindo os com a vista.

Sim, o seu filho parece me bom rapaz e a Jacqueline será excelente dona de casa   confirmou o médico.

O meu rapaz está apaixonado por ela   confessou o arquitecto.

Quanto a mim, julgo que o mau humor de minha sobrinha desproporcionado a tão pequena culpa, era a instintiva defesa da mulher perante aquele que adivinha ser o seu futuro senhor. Minha mãe afirmava que, se uma rapariga, ao ver pela primeira vez um rapaz, afirmava a sua antipatia por ele, quase sempre acabava por o aceitar para marido.

Talvez não se enganasse!... É a instintiva defesa do pudor feminino, como o doutor acabou de dizer.

Enquanto os dois homens trocavam estas reflexões, Jacqueline e René percorriam as ruas do florido jardim.

Se olharmos apenas à superfície, podemos dizer que o seu jardim não é dos maiores. Mas está tão bem concebido, com as suas ruas sinuosas e maciços de arbustos, que nos dá a impressão de um verdadeiro parque.

Meu tio tem afirmado muitas vezes que o «Le Nòtre» moderno, que desenhou o traçado deste jardim, soube dispor tão bem os maciços, canteiros e arbustos que, em quatro mil metros quadrados, conseguiu meter mais de um quilómetro de pequenas alamedas.

E tem razão. Ao percorrê lo, as perspectivas sucedem se, o cenário muda, sem que se passe duas vezes pelo mesmo ponto. Na verdade, pode classificar se de verdadeiro milagre de habilidade.

Jacqueline continuou a indicar lhe os pontos de vista mais interessantes sem parecer notar que o olhar brilhante do rapaz a contemplava em vez de admirar as paisagens.

Repare agora. Ao sairmos deste cantinho agreste, atravessamos a ponte rústica que domina o pequeno regato e encontramo nos debaixo do arvoredo que, no âmbito de vinte metros, nos rodeia e nos dá a impressão de extensa floresta, longe de tudo e de todos.

Com olhar vago, René aprovou:

Que fantasias podemos sonhar num cantinho como este...

aventuras fantásticas, maravilhosas!...

Risonho e, intimamente comovido acrescentou:

Neste cenário campestre e solitário nunca se supôs uma espécie de «Capuchinho Encarnado» que um lobo feroz poderia atacar?

Jacqueline sorriu e prestou se à brincadeira.

É verdade, sou o «Capuchinho Encarnado» e estou toda a tremer, cheia de medo.

E eu sou o lobo esfomeado que pretende devorá la.

Engrossando a voz, ameaçou a:

Acautele se, menina imprudente!... Os meus dentes são aguçados e o meu apetite tremendo!

Não tenho medo de si!   protestou ela, cheia de coragem.

Faz mal. Estou ansioso por lhe morder   afirmou René, envolvendo a num olhar apaixonado.

Saberei defender me   afirmou Jacqueline com ar travesso   Olhe, veja se consegue apanhar me.

E, soltando uma gargalhada, fugiu a correr.

René perseguiu a e, durante alguns momentos, debaixo do arvoredo ecoaram risos e alegres exclamações... Mas o lobo tinha boas pernas e o «Capuchinho Encarnado» já não tinha forças para correr.

René não tardou a alcançá la e quando a apanhou, prendeu a nos braços e apertou a contra si.

Finalmente!   exclamou, insistindo na brincadeira   Vou poder saciar a fome.

Começo a ter medo!   afirmou Jacqueline, fingindo se assustada.

Efectivamente, tremia e fizera se muito corada, porque os lábios do pintor estavam tão próximos das suas faces que, por momentos, supôs que a beijasse.

Mas o rapaz era correcto. Se não receasse que o seu gesto fosse mal acolhido, evidentemente não teria hesitado. Mas o rancor de Jacqueline tinha se dissipado havia pouco tempo e receou reavivá lo. Contentou se, portanto, em a manter apertada nos braços, envolvendo a num olhar ardente, impregnado de ternura.

Jacqueline!   murmurou em voz trémula e comovida.

O olhar que trocaram valia por uma promessa. Perturbada, a sobrinha do médico correspondeu ao apelo, murmurando com timidez:

René!

E num gesto de delicioso abandono, encostou lhe a cabeça ao ombro.

Conservaram se assim durante breves minutos. Depois separaram se e continuaram a andar. René tomara lhe o braço e apertava lhe a mão. Caminharam durante algum tempo sem proferir palavra, muito comovidos ambos para poderem exprimir o que lhes ia no coração.

Quando já estavam perto de casa, Jacqueline quebrou o silêncio e perguntou:

Acaba o seu curso este ano? :

Acabo, sim, daqui a poucos meses.

E depois que tenciona fazer?

Venho para casa do meu pai, a fim de o auxiliar nos seus trabalhos. Há muito que fazer por esta região, muito que reconstruir.

Não deseja estabelecer se na cidade?

Não, salvo se minha mulher tiver empenho nisso.

Projecta casar em breve?

Logo que seja autorizado a pedir a mão da pessoa a quem amo.

Ao mesmo tempo apertava lhe a mão, num gesto significativo.

Por mim não gostaria de abandonar meu tio   declarou Jacqueline, fingindo que não compreendia   Está a envelhecer e sentir se ia muito só, se eu o deixasse.

Sem hesitar, René aceitou a hipótese e afirmou:

Não vejo necessidade de o deixar. Há mais de trezentas casas a reedificar nesta região... creio... que, para princípio de vida, não é mau, se não houver ambições de luxo.

Mas dessa forma eu não poderia continuar a estudar.

Tem muito empenho em tirar o seu curso?... Trata se de uma vocação irresistível?

Não. Todavia, julgo que uma mulher deve possuir os conhecimentos necessários para ganhar a sua vida, encarando a possibilidade de ter de manter se, a si e aos seus.

Acho que pensa muito bem   aprovou René.

Já vai longe o tempo em que as raparigas encaravam o casamento como a única probabilidade de futuro. Actualmente, devemos estar em condições de poder ganhar a vida, se o Destino o exigir.

Concordo. Mas, em minha opinião, compete ao homem velar pelo bem estar dos seus.

Evidentemente. Mas devemos admitir a hipótese de uma doença, do desemprego ou de uma guerra...

Ou até da morte. Reconheço que tem razão. Um dos meus amigos, advogado com largo futuro diante de si, morreu de repente, deixando a mulher e dois filhos em péssimas circunstâncias. Num caso destes, concordo que a mulher deve estar apta a poder ganhar para se manter a si e aos filhos. Mas...

Calou se um instante e depois perguntou com inquietação:

O curso de medicina é demorado. Tenciona conclui lo?

Se puder... Faltam me cinco anos.

Tanto tempo!   protestou René.

Não se sente com coragem para esperar?   indagou Jacqueline com um sorriso trocista.

Creio que será melhor instalar me à porta da Faculdade... Cinco anos! Será possível, Jacqueline, que esteja disposta a fazer me esperar tanto tempo?

É possível, sim. Desejava acabar o curso.

Não seria mais razoável desempenhar o cargo de secretária ou dactilógrafa do marido?

Nunca fui razoável teimou a sobrinha do médico, abanando a cabeça.

Pobre de mim!... Terei então de ser razoável pelos dois?...

Isso não, René. Sempre sonhei com um marido que me fizesse todas as vontades.

É essa a minha ideia.

Nesse caso, está disposto a esperar cinco anos?

Se for preciso, que remédio! Sinto me com disposições para mártir! Mas, nesse caso, terei de arranjar colocação em Tombuctú, para que o tempo passe mais depressa. Não deve ser difícil construir choças de palha. Com muita prática e muita paciência, acabarei por alcançar boa clientela entre os negros.

Em Tombuctú!   repetiu Jacqueline com espanto.

Parece me bem escolhido... salvo se no Polo Norte precisarem de um arquitecto diplomado.

Acha muito necessário afastar se para tão longe?

Indispensável!... Se ficasse perto de si, sem esperança de poder casar em breve, creio que endoideceria... Conheço me e sei que não posso esperar tanto tempo. Daria em doido, garanto lhe.

Um marido doido não deve ser muito divertido afirmou Jacqueline com toda a seriedade.

Será medonho!   garantiu René   Já estudou o bastante para conhecer o perigo e os inconvenientes de viver junto de um louco.

Tanto mais que a loucura não é considerada motivo para divórcio.

Verifico que pensa em tudo, até no divórcio.

Infelizmente!

Creia que me sinto desolado por sua causa. Pobre menina!

Portanto, acho preferível que escolha Tombuctú   decidiu ela com tranquilidade.

Ou o Polo Norte... ou Nova Zelândia.

Sim... qualquer desses pontos.

O mais longe possível.

A não ser que queira contrariar me a vocação.

Seria crueldade. A desistência teria de partir de si.

Resta saber se o casamento merece tão grande sacrifício.

Quando era rapazito, encarei essa questão.

E depois?

Depois, como tinha tremendo apetite, considerava o casamento como uma catástrofe, pois teria de partilhar o meu bife com minha mulher.

Acho que tinha razão, embora, neste caso, eu beneficiasse da metade do bife. Aprovo aqueles que preferem o celibato. É espantoso como uma coisa tão simples como o casamento, pode trazer tantas complicações!

Gracejando assim um com o outro, chegaram a casa.

O doutor Perret e Briel, à porta, viam nos aproximar.

Parecem zangados!   exclamou, alegremente, o primeiro.

Já!   respondeu o outro, rindo também.

Devo dizer lhes   declarou Jacqueline, que ouvira os comentários   que desisto de convencer o René a ficar em França.

O quê!... Para onde quer ele ir?

O mais longe possível.

Porquê?...

Perguntem lhe. Deu me os pretextos mais disparatados. Não quer partilhar comigo o seu bife, não se sente com coragem para esperar que eu termine o curso, precisa de uma secretária... sei lá que mais!

René sorria, mas, no fundo, as brincadeiras de Jacqueline entristeciam no. Declarara lhe, quase abertamente, quanto gostava dela, mas, dando lhe a entender que lhe correspondia, a sobrinha do médico fugia a uma atitude franca, respondendo lhe com gracejos.

Uma sensação opressiva pesava lhe no peito.

Mademoiselle Jacqueline está a brincar   comentou com amargura   A verdade é que, na minha idade, torna se fácil arquitectar sonhos e ilusões... E depois, se esses sonhos mentem... deseja se fugir, como se o afastamento fosse o melhor remédio.

E sonha se ir viver entre os zulús   concluiu Jacqueline com travesso sorriso.

É um sítio como qualquer outro aprovou o arquitecto, adivinhando o estado de espírito do filho.

Notou os modos zombeteiros de Jacqueline e pressentiu que o filho sofria por causa disso.

A sua sobrinha gosta muito de brincar!   comentou, voltando se para o doutor Perret.

O gracejo é um meio de suavizar as dores que, involuntariamente, infligimos.

Brinca se para não nos zangarmos ou fazermos os outros sofrer.

René curvou a cabeça.

A explicação dada pelo médico confirmava as suas suspeitas. Jacqueline não correspondia aos seus sentimentos, mas, reconhecendo quanto eram sinceros, recorria a subterfúgios para lho dar a entender sem o magoar.

Por seu lado, Jacqueline, ao ouvir as reflexões do tio, ergueu a cabeça. Ao mesmo tempo, reparou na expressão desolada do pintor que estava aniquilado com o resultado da visita ao jardim, no qual pusera todas as suas esperanças.

Que pretende dizer com isso, tio?   inquiriu, um tanto preocupada   Não procuramos arreliar senão pessoas a quem estimamos e que sabemos prontas a acolherem com indulgência os nossos gracejos... Quanto aos outros, julgo que não vale a pena darmo nos ao trabalho de os importunar.

É possível que tenhas razão!   concordou o médico, que aprovava todas as teorias da sobrinha   A geração moderna é muito complicada para que nós, os velhos, possamos compreendê la.

Protesto!

Não protestes. És muito manhosa, como todas as tuas irmãs em sexo. De todo o coração, lamento os rapazes que tentem profundar os vossos pensamentos.

Um rubor de indignação tingiu as faces de Jacqueline.

O tio é injusto!   protestou   Ou então está disposto a implicar comigo. E eu que supunha ser a mais perfeita e a mais adorada das sobrinhas que a luz do Sol ilumina!... É triste perder assim, de repente, todas as ilusões!

Nada de confusões!   atalhou o médico   Continuas a ser a mais encantadora e a mais querida das sobrinhas e, pessoalmente, não tenho motivos para me queixar. Mas lamento os rapazes que se prendam contigo e que tu não hesitarás em mandar passear, calculo.

Não podemos ser indulgentes para todos   respondeu Jacqueline com a maior calma.

Esta reflexão pôs ponto na brincadeira, porque Briel julgou chegado o momento de se despedir.

Meu caro doutor, são horas de regressarmos a casa. Tive o maior prazer em o conhecer e retiro me com a esperança de nos reunirmos em breve, em minha casa, conforme ficou combinado.

Não faltaremos, garanto lhe. Dirigiram se ao portão, os dois homens à

frente conversando e, um pouco mais atrás, René, esmagado pela inesperada decepção.

Jacqueline ficou desapontada com a precipitada resolução de partida e com a despedida pouco calorosa. Pressentiu que as duas famílias iam separar se debaixo de má impressão e lamentou os seus intempestivos gracejos.

« As melhores brincadeiras são as que menos duram» pensou, um pouco arrependida e procurando descobrir o meio de reparar a tolice.

Voltou se para René que caminhava a seu lado, profundamente ferido no seu orgulho, de olhar duro, mas esforçando se por fazer boa figura até ao fim. E o seu génio travesso foi mais forte do que ela. Continuando a querer arreliá lo, pediu lhe em voz baixa:

Não deixe de me pôr ao corrente dos seus projectos, René... principalmente, se for para Tombuctú... Será muito possível que me resolva a acompanhá lo. René ficou assombrado.

O que diz! Estaria disposta a...

Sorridente e um pouco envergonhada, a sobrinha do médico relanceou lhe um olhar suplicante e inquiriu:

Ainda está muito zangado comigo?...

Nunca estive zangado   declarou o pintor, subjugado por tanta sedução.

Nesse caso, porque não aceita a minha proposta?... Ter me ia enganado?

Está aceite de antemão!... Mas a que proposta se refere?

Não lhe disse há pouco que desejava ir viver consigo entre os zulús?

Comigo?   repetiu René, não podendo acreditar o que ouvia   E a sua vocação?

As vocações, na minha idade, não podem tomar se a sério, muito mais quando se trata de acompanhar um camarada aos confins do Mundo.

Querida Jacqueline!   balbuciou o rapaz.

De resto, a minha vocação não será contrariada. Enquanto o René se ocupar em lhes construir as choças, eu tratarei dos selvagens... dar lhes ei injecções, aspirina...

Será maravilhoso!

E os feiticeiros não me perseguirão por lhes usurpar as funções?

Creio que não, mas...

Dissipada toda a sua tristeza, René respondeu lhe no mesmo tom de gracejo:

... Julgo que seria mais prudente ficar em

França.

Estou de acordo! Mas só se o René, querendo evitar os perigos que eu pudesse correr em África, ficasse também.

Se eu quisesse evitar lhe os perigos e ficasse também!   repetiu René   Eu?...

Sim, não quer?... Ficaremos os dois em França   insistiu Jacqueline com certa audácia.

René empalideceu e mal pôde balbuciar lhe o nome:

Jacqueline!... Minha Jacqueline!

As perspectivas que as palavras da rapariga lhe rasgavam diante dos olhos eram, na verdade, maravilhosas.

Não lhe dava ela a entender que o acompanharia se ele partisse, que ficaria em França se ele ficasse?...

Como a confirmar, a mãozita delicada de Jacqueline aninhou se na mão do artista como a pedir lhe protecção. E ele apertou a, levou a aos lábios, cobriu de beijos os deditos esguios e o pulso rosado, sulcado pela rede azulada das veias, sem que Jacqueline protestasse. Pelo contrário, sorria lhe meigamente.

Fora uma reviravolta inacreditável, milagrosa!... Sem terem trocado uma palavra mais, os dois enamorados puseram se de acordo. Quando chegasse o Verão já se encontrariam unidos para as boas e más horas.

Debruçada na janela da cozinha, Gemma, bastante interessada, seguira toda a cena; abanou a cabeça e comentou:

« Temos casamento!... Que lindo par, não há dúvida!... Mas será bom não cantarmos vitória, por enquanto... Temos de contar com a vocação de Jacqueline».

A verdadeira vocação de uma mulher, porém, não é aquela que a arrasta para fora de casa, longe do seu lar... Quando pode, toda a mulher deve seguir o destino imposto pela Natureza. Ser esposa e mãe. O melhor futuro, para uma mulher, é casar.

E Gemma, radiante, já via a «sua menina» com o trajo imaculado das noivas e pensava como devia ficar linda!

 

               UM DESAFIO A SANTA CATARINA

 

Para celebrar os seus vinte anos, Ginette reuniu algumas das suas amigas e camaradas.

Terminado o lanche   onde, como peça principal, figurava o tradicional bolo com vinte velas   todos eles deram largas à sua exuberância e alegria, rindo e cantando.

Depois seguiu se um período mais calmo antes de começarem a dançar. A animação provocada pela copiosa colação diminuiu um pouco e passaram a conversar.

Começaram por uma troca de reflexões sobre assuntos sem importância e em seguida abordaram problemas mais sérios. E como não falar de casamento ao comentar as mudanças ocorridas na vida das amigas?

Foi então que, depois de ter escutado em silêncio as mais diversas opiniões das suas convidadas, Ginette declarou com firmeza:

Quanto a mim, garanto lhes que não pentearei Santa Catarina,(1)

 

*(1).   Em França, quando uma rapariga atinge os vinte cinco anos sem casar, diz se que «penteou Santa Catarina», e celebra se o acontecimento com uma festa, durante a qual se coloca na cabeça da festejada simbólico barrete.

 

Que pretendes dizer com isso?   admirou se uma das raparigas mais velhas.

Nada mais do que digo: afirmo lhes que não pentearei Santa Catarina.

Espantados e irónicos todos a fixaram.

Aí está uma certeza que nós gostaríamos de possuir   comentou Micaela, exprimindo em palavras o pensamento de todas as raparigas presentes.

Ginette tinha a frescura própria dos vinte anos, mas a sua beleza ainda não atingira a plenitude. Os olhos aveludados, os cabelos cor de azeviche constituíam maravilhosas promessas, mas as feições de contornos mal definidos tinham ainda qualquer coisa de infantil que não correspondia a tanta segurança, tanto mais que, como situação material, embora as perspectivas de futuro não fossem desagradáveis, visto os pais viverem com certo desafogo, não existia aquela estabilidade, apanágio das gerações passadas e que ninguém, actualmente, pode garantir.

Não era, portanto, uma fortuna sólida, nem considerável dote que podiam atrair para ela as atenções dos rapazes, ambicionando construir o seu lar.

Como queres tu adivinhar e garantir o que acontecerá num período de cinco anos, Ginette?   perguntou um dos rapazes presentes   Nenhum de nós deve mostrar se tão seguro de uma coisa em que a nossa vontade tão pouco influe.

O futuro é para todos, rapazes ou raparigas, terrivelmente inquietante e ninguém pode garantir, com essa certeza, o que será o dia de amanhã.

Ginette, porém, abanou a cabeça e repetiu com obstinação:

Não sei o que o futuro me reserva. Mas tenho a certeza, volto a repetir, de que não pentearei Santa Catarina!

Esta declaração foi acolhida por um coro de exclamações:

Caixinha de segredos!... Quem é ele, quem é? perguntaram alguns, supondo a existência de um pretendente.

Ginette não calculara provocar uma reação daquele género e a sua atitude foi de evidente espanto.

Quem é ele?   repetiu após ligeira hesitação   Ainda não sei e julgo que, de momento, o caso não tem importância. Tenho tempo para escolher... Limito me a afirmar que não pentearei Santa Catarina, eis tudo... Não procurem nas minhas palavras um sentido oculto que não existe.

As amigas encolheram os ombros. A ávida curiosidade com que aguardavam uma revelação esmoreceu. Que resposta dar a tão infantil obstinação?

Ligeiro constrangimento pesou na sala. Todos se calaram, entregues a reflexões, mais ou menos graves, pensamentos impossíveis de exxprimir em palavras. O silêncio prolongar se ia ainda por muito tempo, se Ginette não propusesse:

Deixemos as coisas sérias... vamos dançar.

Todos aprovaram. Arredaram os móveis, a festejada preparou o pick up e o baile começou com o maior entusiasmo.

 

Passaram alguns meses. Ginette tirava o curso de Assistente Social.

Nas aulas convivera com muitos rapazes com quem   porque ainda não conhecia outros   não lhe desagradaria casar, mesmo antes de concluir o curso. Muitos deles tinham tido a coragem de casar antes de terminarem os estudos e no seu lar já havia bebés rosados, risos infantis. Teria sido a recordação de tantos dos seus condiscípulos já casados que, involuntariamente, lhe inspirara a frase proferida com tanta firmeza no dia em que atingira os vinte anos?...

Fosse pelo que fosse, o caso é que, nos meses seguintes, tanto como nos que tinham passado, a atitude de Ginette não se prestou a alimentar a curiosidade das amigas e camaradas, curiosidade que se estendera mesmo àqueles que não tinham assistido à festa.

Na vida de Ginette não se notava qualquer alteração. Continuava a estudar com afinco, partilhando as suas horas de ócio entre as amigas e a família. E nesta rotina ninguém poderia descobrir o mais pequeno motivo para supor a existência de um segredo ou mistério.

E o facto era tão evidente que, certo dia, Micaela, resumindo a impressão de todos comentou:

Esteve a brincar connosco, eis tudo!

Com certeza. Quis intrigar nos.

E se, durante muito tempo, a recordação da alegre reunião perdurou nos seus espíritos, a frase imprudente esqueceu.

Depois sucederam se outros aniversários, outras festas, outros ensejos de passarem juntos horas agradáveis, e a vida seguiu o seu curso.

Chegou a Primavera. No campo de ténis disputavam se alegres partidas.

Rapazes e raparigas encontravam se com prazer e, entre eles, Ginette, apreciadora desse desporto que exercita os músculos, dando lhes flexibilidade e elegância, desenvolvendo o golpe de vista e a prontidão nos reflexos.

Mas, nem mesmo nesses encontros, a sua atitude marcava qualquer preferência por um dos seus parceiros.

Desportiva, leal no jogo, jogava pelo prazer de respirar o ar puro, de saltar e, principalmente, de vencer, o que quase sempre sucedia, pois era muito hábil e ágil.

Se fosse vaidosa, poderia até considerar se a campeã, mas, justamente, a vaidade era defeito que não tinha.

Em compensação, não era indulgente com os erros alheios e quando alguns dos seus parceiros se mostrava desajeitado, não lhe poupava ironias. Poderia dizê lo Raimundo Balard que, a maior parte das vezes, deixava a bola bater na rede ou a falhava.

Que desastrado é, Raimundo!... Onde tem os olhos?

Com efeito, dir se ia que o rapaz olhava para outro lado e pensava em coisa diferente quando o jogo exigia toda a sua atenção.

Desta forma, tornou se alvo dos gracejos de todos os camaradas. Propositadamente, multiplicavam os golpes, tentando irritá lo, mas nunca o conseguiam. Raimundo não se zangava e, pelo contrário, ria dos motejos que o esmagavam.

Mademoiselle Ginette, deve me uma desforra   chegou mesmo a dizer, certo dia em que acabava de sofrer tremenda derrota.

Para quê, se estou certa de ganhar outra vez?... Não me interessa.

Tem razão. É muito forte para que eu consiga batê la.

Está dito, terá a desforra   acedeu Ginette, no desejo de o contradizer.

Como parceiro de jogo, Raimundo não podia considerar se agradável.

Fisicamente, era um rapaz perfeito. Para mais, muito amável, sério e sempre delicado. Em resumo, o modelo do estudante assíduo e trabalhador.

Ginette passou a embirrar com ele e a tal ponto que abandonou o ténis para não se encontrarem. Durante algum tempo ninguém a viu no campo de jogo, até que Micaela a censurou pela deserção. E os seus comentários   porque Micaela fora uma das que não conseguira esquecer a afirmativa: «garanto lhes que não pentearei Santa Catarina»   levaram Ginette a modificar a sua atitude.

Seja... Voltarei a jogar. Mas, pelo amor de Deus, afastem o desastrado do Raimundo. Irrita me os nervos!

Micaela soltou uma gargalhada.

O Raimundo!... Ninguém mais o viu!... Devo dizer te que o vosso simultâneo desaparecimento nos deu que pensar.

Deu lhes que pensar... porquê?

Porquê?... Vocês jogavam sempre um com o outro... De repente, desaparecem os dois como se estivessem combinados...

Acabou se... não precisas dizer mais nada, já compreendi. Vocês é que não perceberam quanto ele me enervava.

Foi então essa a razão?

Pois claro! Qual havia de ser?... Mas descansem, no sábado voltarei a jogar.

Reconheceu que, se queria evitar os comentários irónicos das amigas, não devia fugir lhes.

 

Ginette atingiu os vinte e dois anos e a sua vida continuou a ser a mesma. Trabalhava, jogava o ténis, divertia se. Mas estava mais bonita, com as feições mais harmoniosas, contornos mais firmes. Não era só beleza, era mais do que isso. Tinha personalidade, sedução.

Seria para estranhar que os rapazes a notassem e a distinguissem com atenções?

Os pais ouviam, por vezes, agradáveis insinuações: «Em determinada família havia um rapaz que...»

Outras vezes pediam para que Ginette visitasse fulano ou sicrano, em casa de quem se reuniam rapazes e raparigas... Seria interessante se o conhecimento se estabelecesse... eles tinham um filho, o senhor X... podia lá encontrar o elegante Y, o simpático Z... ou qualquer dos seus amigos. Todos estavam ansiosos por conhecer Ginette.

 

E seria conveniente, para o futuro.

Então, os pais decidiram ter uma conversa com a filha.

Ginette talvez tomasse a vida demasiado a sério para a idade ou, para melhor dizer, dava a impressão de existirem nela duas personalidades distintas. Por vezes indolente, outras agarrada ao trabalho, uns dias expansiva e alegre, outros retraída e calada, todavia essas duas faces opostas do seu carácter harmonizavam se, completavam se, dando lhe uma personalidade um pouco complexa, mas simpática. Contudo, como as suas funções de Assistente Social a obrigavam a manter contacto com as maiores misérias materiais e morais, pode calcular se como os períodos de despreocupação eram muito mais raros do que os de ponderação e seriedade.

Os pais escolheram, justamente, um dos dias em que Ginette regressou a casa com a fisionomia um tanto ensombrada, para terem com ela a conversa que planeavam.

O jantar decorreu quase em silêncio, sem essa troca de reflexões e comentários amenos que tanto repousam o espírito depois de um dia de trabalho árduo e aborrecido. Finda a refeição, os três deixaram se ficar sentados à mesa e então o pai tomou a iniciativa e começou:

Minha querida Ginette, já pensaste que estás na idade de escolher marido, de construíres o teu ninho?... Há muito quem pense em ti e devo dizer te que já recebemos diversas propostas, nesse sentido.

Sinto me muito bem junto de vós   declarou, com firmeza, Ginette, pouco satisfeita com o preâmbulo.

Pensar em casamento?... Era cedo, ainda... Para mais, nem um só dos rapazes que conhecia lhe agradava, a nenhum deles se sentia disposta a sacrificar a sua liberdade.

Mas como visse o pai franzir a testa, emendou a resposta demasiado categórica e acrescentou:

Tenciono casar, evidentemente, cumprir a minha missão de mulher... quando...

Quando encontrares um rapaz que reuna as qualidades necessárias para ser um bom marido atalhou a mãe, pouco satisfeita com a hesitação de Ginette   Mas quando ele aparecer decide te e não feches os olhos voluntariamente. Entre os pretendentes que nos indicaram, há bons rapazes, dignos, trabalhadores. Será possível que nenhum deles te agrade?

Escute, minha mãe   replicou Ginette   Se eu desejasse deixá los ou se considerasse o casamento como a forma mais indicada e urgente para assegurar o futuro, não hesitaria em aceitar um desses pretendentes. Felizmente, não é esse o meu caso. Ganho a minha vida e sinto me feliz junto dos meus pais. Portanto, não quero casar me por enquanto.

Tem graça!   comentou o pai com ironia   Chegou me aos ouvidos que certa menina, que muito bem conheço, afirmou diante de todas as suas amigas, reunidas para festejarem os seus vinte anos, que «não pentearia Santa Catarina...» Essa afirmação não estará em contradição com a tua atitude, Ginette?...

Recordando a sua vaidosa declaração, Ginette corou e fez um gesto de mau humor. Parecia lhe que os pais não tinham o direito de penetrar assim no seu mundo íntimo, nos seus sentimentos. Franziu a testa, contraiu ligeiramente os maxilares e, depois de reflectir durante breves instantes, respondeu:

A rapariga a quem o pai alude, tinha vinte anos, como há pouco disse. Hoje, apesar de mais velha, volta a afirmar: «Não pentearei Santa Catarina». Mas daí a aceitar o primeiro que me pretenda, vai grande diferença, parece me!... Por enquanto, ainda não fixei a minha escolha.

Desanimados, os pais encolheram os ombros.

Não estarás a esconder nos qualquer coisa, Ginette?   indagou a mãe com brandura.

Não, minha mãe, juro te que não escondo coisa alguma.

E esta afirmação foi tão sincera, tão espontânea, que não deu margem a dúvidas.

Nesse caso   comentou o pai, com absoluta lógica   acontecer te á aquilo que afirmaste desejar evitar...

E pentearás Santa Catarina   concluiu a mãe.

Exactamente   corroborou o pai.

« Que pressa!   pensou Ginette   Ainda faltam três anos.»

E teve a impressão de que entre ela e os pais se cavara profundo abismo. Eles não a compreendiam, nem tentavam compreendê la. Foi como se um manto de tristeza a envolvesse, mas não encontrando argumentos de peso para opor às suas injunções, calou se e o mal entendido persistiu.

Soltou fundo suspiro, ergueu os braços, deixando os recair num gesto de cansaço, dando lhes assim a entender que não tinha mais nada a dizer lhes. A conversa ficou por ali. Levantaram se da mesa e cada um regressou às suas ocupações.

Ginette ficou satisfeita por os pais não insistirem, mas estes, desiludidos e tristes, pensavam:

« Se não se resolve a escolher marido, acabará por ficar solteira e é pena, porque tem qualidades para ser uma boa esposa e excelente mãe.»

Por seu lado, Ginette pensava e com idêntica convicção:

« Para que hei de apressar me e prender me tão cedo?...

Tenho tempo. Desde que não pentei Santa Catarina...»

E, de momento, resolveu não pensar mais no caso.

Logo que se tenha de lutar com dificuldades e que se encare a vida com sensatez, somos forçados a reconhecer que nem tudo são rosas neste Mundo de misérias.

E Ginette presenceava tantas que não podia deixar de se impressionar. Por vezes, o seu encantador semblante, ensombrava se de tristeza.

Um engenheiro da fábrica onde a Assistente Social exercia as suas funções, notou o e, certo dia, perguntou lhe:

Está preocupada, mademoiselle?... Nada de grave, suponho?

Esta observação, feita num tom ligeiramente protector, irritou os nervos de Ginette.

Para que se metia ele com a sua vida?... Por acaso lhe pedira auxílio ou protecção?

Fixou o seu interlocutor que, iludido com a expressão do olhar feminino e com o brilho das pupilas que pareciam despedir chamas, se supôs bem acolhido.

Familiar, sentou se no ponto da secretária de Ginette que, surpreendida com a sem cerimónia   muito vulgar em escritórios   recuou a cadeira, afastando se para o extremo oposto àquele em que o rapaz se instalara.

Instintivamente, pressentia um adversário naquele engenheiro novo a quem falava todos os dias, mas que tão pouco conhecia.

Há dias que a observo, mademoiselle Ginette   continuou o rapaz   Hoje parece me mais preocupada do que nunca e isso desagrada me. Não se trata de simples curiosidade, garanto lhe, mas de simpatia e também de uma exigência de serviço.

Confesso que não compreendo   redarguiu Ginette   Curiosidade, ainda seria admissível, embora pouco própria!... Por simpatia, acho a demasiado espontânea e prematura entre duas pessoas que pouco se conhecem. Mas por exigência de serviço!... Não vejo porquê! Tudo isto foi dito num tom irónico que surpreendeu o engenheiro.

Vejo que sabe ripostar, mademoiselle!

Adoro o ténis... estou habituada a devolver as bolas.

Sim?... Nesse caso, dar me á o prazer de jogar comigo?

Porque não?

Então poderemos marcar encontro no campo de jogos da fábrica... Amanhã temos o dia livre... A que hora lhe convém?

Às três da tarde.

O engenheiro saltou da secretária e, despedindo se, agradeceu:

Mil vezes obrigado... até amanhã, mademoiselle.

Ginette correspondeu lhe com ligeira inclinação de cabeça.

 

No dia seguinte, à hora combinada, encontraram se no campo de ténis.

Depois de sucessivas partidas, nenhum dos jogadores tinha alcançado a vitória.

Cortês, o engenheiro propôs um intervalo para descansarem.

Está fatigado?   inquiriu Ginette com ligeira ironia Se está, descansemos. Por mim, posso continuar.

Como resposta, o engenheiro limitou se a retomar o seu posto e preparou se para apanhar a bola que ela lhe enviou num golpe firme.

Quando deram as seis horas, continuavam empatados. Como ela parecesse contar as badaladas, o engenheiro suspendeu o jogo.

Reconheço que é uma adversária de respeito, mademoiselle. Gostaria de continuar a partida, mas não quero tomar lhe mais tempo do que as circunstâncias lho permitem. Por hoje, consideremos o match nulo. Mas não acha que não devemos ficar assim?

- Tive o maior prazer em jogar consigo   declarou, francamente, Ginette   Quando quiser disputaremos novo match.

Sou eu que fico à sua disposição. Escolha o dia que mais lhe convier. Avise me na véspera.

Combinado. Avisá lo ei, descanse. Trocaram um aperto de mão e separaram se como bons amigos.

Assim se iniciou uma camaradagem que poderia transformar se, mais tarde, num sentimento mais terno.

Infelizmente, a vida traz nos as mais fantásticas surpresas. Quantas vezes vemos o alvo bem próximo, supomo nos prestes a alcançá lo e o nosso barco singra rio abaixo, rente à margem, sem conseguir abordá la.

Nas partidas seguintes   porque jogaram muitas   nenhum deles se podia considerar melhor jogador do que o adversário e a vitória ora cabia a um ora a outro.

Com a convivência, estabeleceu se entre os dois mais confiança e não raras vezes interrompiam o jogo para conversar. Mas, fosse qual fosse o assunto, a igualdade mantinha se. Em questões literárias ou artísticas, os conhecimentos equilibravam se, embora os gostos diferissem frequentemente. Irritavam se mutuamente com estas discussões e, intimamente, consideravam se adversários.

E um dia aconteceu o inevitável. Ginette começou a jogar com a simplicidade e destreza habituais. O engenheiro, pelo contrário, jogava com o imperioso desejo de vencer.

Tinha como adversária uma rapariga, isto é, um ente frágil, mais fraco do que ele e, instintivamente, sentia se impelido a dominá la com a sua ciência e superioridade. Em resumo, queria impor se, por uma questão de prestígio masculino.

Porém, as circunstâncias não o favoreceram. O seu jogo rápido foi prejudicado por um falso movimento do pulso, o que lhe provocou uma dor aguda, paralizando o, a despeito do violento esforço para não o deixar adivinhar. Teria perdido se Ginette, por seu lado e sem saber porquê, não se encontrasse num estado de inexplicável inferioridade.

Desta forma, quando nos encontros anteriores ambos tinham estado em condições de fornecer o esforço máximo, naquele dia, tanto um como outro se encontravam enfraquecidos.

« Vou ganhar   pensou Ginette   Mas dir se ia que ele me deixa ganhar de propósito Não é uma atitude desportiva!»

« Estou a perder   pensava, por sua vez, o engenheiro   A dor do pulso não me deixa jogar bem e ela aproveita se da minha inferioridade.»

De facto, foi vencido e bem vencido!... No entanto, por uma questão de amor próprio, não quis revelar à vencedora as causas da sua derrota.

Hoje, portou se muito abaixo dos seus merecimentos, meu caro senhor. Costuma jogar muito melhor.

Talvez!... Mas a mademoiselle também não foi tão brilhante como de ordinário!

A amargura submergiu lhes os corações, afogou os numa vaga lodosa. A antipatia desportiva nasceu e desenvolveu se rapidamente.

Quer dizer, o senhor não consentiu que eu perdesse, não é verdade?... Foi muito amável, mas isso não é verdadeiro desporto e não lhe agradeço.

Está a zombar de mim, mademoiselle!... É certo que eu poderia ter ganho... cometeu tantos erros...

Não lhe admito críticas... Quanto a erros, não lhe reconheço o direito de mos censurar porque também os cometeu... aparte o seu propósito bem evidente de perder, é claro.

Nesse caso, reconhece a minha superioridade? perguntou o engenheiro com orgulhosa inflexão.

Superioridade?... Mas que ideia!... Se o senhor tivesse jogado normalmente, talvez conseguisse igualar me... É a única vantagem que lhe reconheço, fique sabendo.

A discussão azedava se. Já não seria fácil conciliar os dois contendores, profundamente feridos no seu orgulho. O engenheiro despediu se:

Fico lhe muito grato por ter consentido em jogar comigo, mademoiselle. Boa tarde!

E, sem mais palavra, voltou lhe as costas e afastou se.

Se já se viu um grosseirão assim!   murmurou Ginette, profundamente humilhada.

E já o engenheiro ia longe quando se lembrou de corresponder à saudação de despedida:

Boa tarde!

 

De tempos a tempos, Ginette encontrava se com as amigas.

Quando não estavam juntas, as outras recordavam a pretensiosa frase: «não pentearei Santa Catarina», mas em presença de Ginette nunca lhe faziam alusão...

E recordaria Ginette essa criancice?... Quem poderia garanti lo?...

No entanto, ficara mal disposta com o engenheiro e as suas relações, que tinham tomado um carácter mais familiar, durante os encontros desportivos, voltaram a ser cerimoniosas, impessoais. Os dois camaradas passaram a olhar se apenas como dois colaboradores que, ocasionalmente, trabalhavam juntos.

Mais um ano correra sem que se confirmasse aquela espécie de compromisso matrimonial que Ginette tomara no dia do seu aniversário.

Muitas vezes, o pai e a mãe conversavam a esse respeito e acabavam por concordar que a filha não tinha qualquer inclinação.

O que mais os desgostava era a insistência e o espanto dos amigos e conhecidos.

Então não pensam em casar a Ginette?... É uma linda rapariga, está na idade própria de arranjar marido e de o fazer feliz.

Os pais concordavam, mas não sabiam como impor se à filha... Tinham certa relutância em voltar a falar lhe no assunto, porque, vendo bem, era ela a primeira a sofrer com a situação.

Mais do que nunca lamentaram ser ela filha única, sem irmãos ou irmãs que dessem mais luz e movimento à sua vida. Tinham concentrado todo o seu amor em Ginette, educá la e instrui la fora a sua preocupação exclusiva. O seu intuito fora criar lhe sólida situação que lhe proporcionasse maiores vantagens, aos olhos dos possíveis candidatos à sua mão. Afinal, se do ponto de vista material, a posição de Ginette era excelente, o verdadeiro alvo não tinha sido alcançado.

Por outro lado, Ginette declarava bem alto que não tencionava ficar solteira e esse propósito devia facilitar a tarefa daqueles que pretendiam encaminhá la para o fim prescrito pela moral. Todavia, o tempo passava sem qualquer modificação que os animasse. A inquietação dos pobres pais aumentava.

Certo dia, uma prima afastada, que tinham perdido um pouco de vista durante o período da Guerra e de privações, de passagem pela capital, apareceu lhes em casa e pediu lhes hospitalidade. Foi acolhida com a afabilidade imposta pelas tradições hospitaleiras àqueles que ainda as respeitam, embora tivessem de ficar todos apertados e mal acomodados.

Pois quê?   admirou se a viajante   A Ginette ainda não casou?... Os meus cinco filhos já estão todos casados e eu já sou avó muitas vezes. Deves ir passar as férias connosco, Ginette... Verás como arranjas noivo...

Numa prolongada troca de correspondência, quando a prima regressou a casa, fizeram se várias combinações a que Ginette ficou completamente alheia, projectos de casamento arquitectados sem a consultarem. Foi uma espécie de conspiração cujo resultado se tornava muito duvidoso para aqueles que a planearam.

Torna se sempre muito difícil talhar o destino alheio, muito mais quando se trata de uma rapariga impetuosa, como era Ginette.

Apesar de ter afirmado que não pentearia Santa Catarina, não parecia fácil encontrar quem lhe agradasse. Era muito simples, não utilizava qualquer manobra para atrair pretendentes e apanhar um noivo na rede.

Que género de marido ambicionava, eis o que devia saber se, antes de mais nada... Que espécie de homem teria a sua preferência?... Muito leal, muito sincera, dedicada, no entanto não se prestava a namoros, não havia rapaz com quem simpatizasse para marido.

Espírito de independência, talvez?... Seria o pior de tudo... O futuro o diria.

 

Num belo dia de Verão, um desses dias esplêndidos em que o céu, muito azul, parece uma cúpula de safira, coroando os bosques e os campos doirados pelo sol, Ginette saltou do comboio na pequena estação provinciana, onde era aguardada por um grupo de rapazes e raparigas que sem a conhecerem, logo a acolheram com alegres exclamações.

De facto, não foi difícil calcular quem fosse a juvenil priminha de quem a sua parente falara com entusiasmo, porque dos três passageiros que saltaram do comboio, dois eram homens. Portanto, não havia possibilidade de erro.

O acolhimento foi caloroso. Num instante, Ginette viu se sem bagagens, rodeada, abraçada. Surpreendida com tanta exuberância, corou e não sabia o que dizer, nem valeria a pena preocupar se com isso, visto não lhe darem tempo para falar. As exclamações sucediam se como o esfusiar de fogo de artifício e os «minha linda» «queridinha» e outras palavras carinhosas, proferidas no dialecto da região, ouviam se seguidamente.

Ginette foi conduzida para casa da prima que, à porta, espreitava a sua chegada.

Bem vinda sejas, minha querida!   disse lhe a sua parente, abrindo lhe os braços e beijando a nas duas faces como manda a tradição   Estás em tua casa. Senta te e descansa. Deves vir muito fatigada com a viagem e com o calor.

E não tardou que aparecessem os refrescos, doces, bolos caseiros e fruta do pomar.

Ginette não sentiu a mudança de meio. Tudo lhe agradou, o seu coração reconhecido acolhia com agrado todos os carinhos de que a rodeavam.

De facto, todos procuravam agradar lhe e tornar lhe as férias o mais aprasíveis possível. Festa sobre festa, jantar sobre jantar, e quem já conhece a vida no campo, não ignora o que isso representa.

Desta forma, foi conhecendo todos os parentes e amigos da casa. Velhos e novos rivalizavam em amabilidade, alegria e boa disposição. E, como é de calcular, a prima aproveitou a ocasião para elogiar aqueles a quem considerava mais susceptíveis de agradar á Ginette.

Ao mesmo tempo, descrevia lhe a vida naquele meio como a mais atraente e tranquila. Tinha se lhe metido em cabeça casar a sua linda priminha e procurava realizar a sua ideia fosse como fosse.

Se Ginette se prestasse a isso, se encarasse o casamento como muitas o encaram, o resultado teria correspondido aos esforços da excelente criatura.

Mas não foi assim.

As perguntas discretas, as alusões à excelência da vida conjugal, as tentativas que alguns dos rapazes mais importantes da terra e dos arredores faziam para lhe agradar, só tiveram como consequência cansar aquela a quem eram dirigidas.

O empenho em lhe orientarem a vida não recebia a merecida recompensa. Ginette evitava perguntas, fazia se surda às alusões. No entanto, aceitava com afabilidade as atenções que lhe dispensavam.

Assim decorreram quinze dias sem que a prima visse despontar uma esperança de realização para os seus desejos. Habituada a resoluções rápidas, decidiu interrogar Ginette.

Começou por se inteirar das impressões dos rapazes a respeito da prima. Todos afirmaram que «.mademoiselle Ginette era encantadora». Alguns chegaram mesmo a dar a entender que não lhe desagradava, abrindo assim perspectivas a interpretações mais favoráveis.

Mas, no fundo, nenhum deles encarava a possibilidade de casar com ela. Era bonita, muito agradável como camarada, mas não era dali, do seu meio.

E que esposa poderia ser para eles «uma estrangeira», por muito boa vontade que tivesse?...

Mesmo assim, a prima, sem querer profundar mais o assunto, fez uma escolha entre os possíveis candidatos e dispôs se a estimular Ginette para um ou para outro, conforme as simpatias por ela manifestadas. Esta maneira de arranjar casamentos em famílias, é frequente ainda, embora um pouco antiquada para a época em que vivemos, e só revela louváveis intenções.

Então, Ginette, estás contente com as tuas férias?

Estou encantada, prima!... Não sei como agradecer lhe ter me proporcionado estes dias tão agradáveis, dos mais felizes que até hoje tenho passado!

Ao mesmo tempo, inclinou se para a prima e beijou a efusivamente.

Agradecer, porquê?... Também me sinto feliz por estares aqui. Todos nós gostamos de ti... E conheço alguns que te olham de uma maneira...

Ginette fitou a com espanto.

Não faças essa cara, minha pequena. Se quisesses arranjar noivo, acredita que só terias dificuldade na escolha. O Luís ou o simpático Paulo ou ainda o Fernando, o filho do moageiro é um rapaz que tem instrução e fez os seus estudos na cidade...

Ginette deixava a falar sem protestar, mas sem que também na sua fisionomia transparecesse qualquer sinal de aprovação.

Mas para que estou eu a falar te em rapazes daqui!   continuou a prima   Possivelmente, a tua escolha já está feita... Preferes um Parisiense, não é verdade?...

Garanto lhe que se engana, prima...

Então toma cuidado, Ginette!... Julgo que não desejas pentear Santa Catarina?...

O comentário fez recordar a Ginette certa frase imprudente. Corou e quanto mais desejava disfarçar, mais corada ficava. A prima reparou lhe nas faces afogueadas e atribuiu o facto ao calor.

Estou a importunar te com perguntas, minha filha, quando, com este calor, seria melhor que fôssemos passear. Vamos até à vinha. Os cachos começam a dourar. Por certo encontraremos alguns bagos maduros com que poderemos refrescar nos.

E com esta proposta pôs ponto no interrogatório.

Foi nesse instante que o Destino pareceu manifestar se, oferecendo a Ginette ensejo para fixar a sua escolha.

Fernando, o filho do moageiro, apareceu à porta e perguntou alegremente:

Está por aí alguém que não se importe de me acompanhar à cidade?

Está aqui a Ginette. Talvez ela goste do passeio   propôs a prima.

Que vamos nós fazer à cidade?   perguntou a Parisiense.

Duas pequenas compras para meu pai... Depois iremos ao cinema ou jogar o ténis... tomaremos chá e regressaremos à hora do jantar. Agrada lhe o programa?

Agrada, mas escolho o ténis. Não jogo desde que cheguei.

E sente lhe falta, não é assim?...

O termo é um pouco exagerado. No meio de tantas distracções, passo bem sem jogar.

Ao mesmo tempo relanceava um olhar reconhecido à velha prima que a compreendeu e agradeceu:

Obrigada, Ginette. No entanto, acho que não deves perder a oportunidade de praticares o teu desporto favorito. Aproveita, aproveita!

Não tenho raqueta!

Isso não tem importância. No campo emprestar lhe ão uma.

Ginette cedeu e saiu com o rapaz. A dona da casa acompanhou os com a vista e murmurou satisfeita:

Talvez a Providência queira auxiliar os meus intentos!... Ficaria tão contente!... Deus o queira!

Fernando não era um jogador da força da sua adversária. Mas, se muitas vezes falhava a bola, sabia atirá la com graça e leveza.

As minhas felicitações, mademoiselle Ginette!   cumprimentou ao terminar a partida   É exímia, e eu apresento lhe as minhas desculpas...

Desculpas, porquê?

Por me ter atrevido a jogar consigo. Como reparação pela minha falta de jeito, ofereço lhe uma chávena de chá. Aceita?

O convite foi feito com tanta delicadeza que Ginette não pôde deixar de o aceitar.

Pouco depois estavam ambos instalados no terraço de uma casa de chá que, além de confortável e aprazível, os serviu lindamente. Conversaram:

Tenho imensa pena de não ter feito os meus estudos em Paris!  confessou o rapaz, soltando um suspiro de tristeza.

Não sei porquê. Eu não me importaria de estudar aqui. A cidade agrada me.

Obrigado pela homenagem à minha terra natal. Quis corresponder ao meu elogio a Paris, não é assim?

Engana se. Não se trata de simples amabilidade. Sinto me bem nesta região onde se vive intensamente, até nos mais simples acontecimentos de todos os dias...

Temos a impressão de que as flores, aqui, são mais belas, desabrocham mais cedo.

Fernando contemplou a durante alguns instantes.

Para que uma flor, ao desabrochar, seja bela   respondeu por fim   impõe se que já em botão, a beleza exista...

Ginette pressentiu que a conversa ia tomar um rumo que não lhe agradava, e propôs:

Não acha que devíamos regressar?... É já tão tarde...

Fernando ficou um pouco desapontado, mas ocultando o seu descontentamento, respondeu com amabilidade:

O seu motorista está à sua disposição, mademoiselle.

Tomaram o caminho de casa. Mas, ao volante, o rapaz não se resignou e tentou prosseguir a conversa. Não voltou às suas comparações, falando de rosas em botão, porque receava o desagrado da companheira. Quis, no entanto, dizer alguma coisa que pudesse impressioná la. Falou então da família, da sua vida, e fê lo com uma inflexão de ternura que sensibilizou Ginette. Pelo espelho, Fernando viu que ela o escutava com atenção e pareceu lhe que o olhava com prazer. Mais afoito e com uma pontinha de vaidade, falou nas suas possibilidades de futuro, no auxílio que os pais poderiam prestar lhe, e até fez um pouco de estendal da sua riqueza.

Os ombros de Ginette curvaram se e a cabeça pendeu lhe, melancolicamente. Uma atitude desastrada inutilizava a realização possível de um sonho que despontava.

Para Ginette, a questão de dinheiro não devia entrar em linha de conta em assuntos de coração.

E por isso, durante todo o período de férias que ainda passou em casa da sua parente, evitou por todos os modos encontrar se com Fernando que, por seu lado, procurava todos os pretextos para lhe falar. Por fim, o rapaz serviu se da velha prima como intermediária.

Que te parece o filho do moageiro, Ginette?... Não gostarias dele como marido?   perguntou certo dia.

É simpático... mas muito rico!... E como já não estamos na época em que os reis casavam com pastoras, julgo que ele deve querer noiva com dote convidativo.

Depois desta resposta, absorveu se na leitura do jornal como se nada mais a interessasse, dando assim a entender que não desejava prosseguir a conversa.

A prima compreendeu e todas as suas esperanças se desvaneceram. Despeitada, murmurou entre dentes:

Para que me meto eu onde não sou chamada?... Ela já tem idade para saber o que quer e o que mais lhe convém!...

E os últimos dias de férias decorreram num ambiente de frieza muito diferente do que acolhera Ginette, de princípio.

Terminadas as férias, Ginette regressou a Paris e retomou as suas ocupações.

Os pais ficaram desolados. Todas as esperanças que tinham fundado na indulgente intervenção da prima, estavam perdidas. Gostariam de ver a filha arrumada. Tinham casado novos e, em sua opinião, quanto mais cedo se fundasse o lar, melhor. Inquietos e preocupados, viam o tempo correr sem Ginette encontrar noivo.

E se recorrêssemos a uma agência matrimonial?   lembrou a mãe   Os nossos amigos Harbager casaram assim a filha mais velha, apesar de...

Ser um pouco amarrecada...

Um pouco!... És muito indulgente!... Corcunda, podes dizer. É verdade que um dote convidativo e risonhas perspectivas para futuro, podem suprir a beleza.

A nossa filha é bonita e nós somos pessoas dignas de consideração.

Bem sei, mas...

Não achas que é bastante?

Sim, é importante, muito até... A Ginette não tem defeitos físicos, os seus dotes morais e intelectuais não são para despresar. Será boa esposa e boa mãe.

Não duvido. Educámo la em bons princípios.

Para mais, tem um curso, uma situação que, nesta época de perturbações em que vivemos, vale tanto como o dote.

Evidentemente.

Nesse caso, porque não havemos de tentar?

Seja. Não me oponho. E tentaram.

Não falaremos nas visitas, entrevistas e quantias dadas adiantadamente como comissão.

Um dia, a agência publicou um anúncio, dizendo que uma tal «J. F. menina educada, afectuosa e honesta, desejava conhecer rapaz de 25 a 30 anos, para fins matrimoniais.»

Trocaram se cartas, apareceram vários pretendentes: Um viúvo com três filhos, um sujeito que ultrapassava em muito a idade desejada e, por fim, um rapaz que se dizia engenheiro. A escolha dos pais recaiu no último. Por intermédio da agência, o pai de Ginette entrou em comunicação com o pretendente escolhido.

Na sala mobilada com correcção e até com certo luxo, a dona da agência fez as apresentações e depois deixou os dois homens sozinhos.

Simpatizaram logo um com o outro.

Vendo um homem novo, agradável, de modos delicados, falando com correcção, o pai de Ginette pensou que devia apresentá lo à filha.

Mas, nessa altura, começaram as dificuldades. Tendo procedido sem pedir a opinião da interessada, os pais compreenderam que se impunha proceder com todas as cautelas. Expuseram a situação ao pretendente, usando da maior franqueza e este não teve dúvidas em ser apresentado como um conhecimento do pai, um cliente que este convidara para almoçar.

Certa tarde, ao regressar a casa, Ginette encontrou se em presença do senhor Emílio, cliente do pai.

A impressão recíproca foi boa... mesmo excelente!... Conversa interessante, olhar franco, modos simples. Nesse primeiro dia, bem entendido, nem pelo mais simples olhar ou palavra, Emílio deu a entender o motivo que o levava ali. Mas, o convite para voltar, que lhe foi feito na altura da despedida, foi confirmado por Ginette e aceite pelo rapaz com bastante entusiasmo.

A segunda visita confirmou a boa impressão recebida na primeira.

Emílio dispensou toda a sua atenção a Ginette. Dirigia se lhe directamente, tomava a como testemunha, pedindo lhe opiniões, no intuito de a conhecer melhor. Também gostava imenso de ténis e ficaria encantado se Ginette quisesse dar lhe a honra de jogar com ele, de vez em quando.

Combinaram encontrar se, o que deixou os pais radiantes.

Depois de Emílio ter saído, a mãe de Ginette comentou:

Parece bom rapaz!

Também tenho essa impressão   concordou o marido.

Que faz ele?   indagou Ginette.

O pai hesitou. As informações recebidas sobre o pretendente tinham sido muito vagas, de carácter geral e, como é uso nas agências daquele género, os pormenores e dados mais precisos só seriam fornecidos quando se confirmasse a possibilidade de entendimento.

É engenheiro... industrial. Ginette não insistiu.

A partida de ténis estava combinada para a semana seguinte. Intrigada, tomando, involuntariamente, o caminho que os pais desejavam, Ginette gostaria de saber mais alguma coisa sobre a vida do rapaz.

E, como acontece muitas vezes, o acaso auxiliou a. Certa tarde, ao passar por uma rua solitária, viu Emílio à porta de uma oficina. Ele reconheceu a, foi ao seu encontro, cumprimentou a e foi acolhido por um sorriso que o inundou de felicidade.

Como vê, acabo de chegar à oficina onde trabalham os meus empregados.

Nas pupilas de Ginette transpareceu ligeira curiosidade que não escapou ao industrial. Amavelmente, ofereceu:

Quer visitá la?... Será uma distracção. Era esse o maior desejo de Ginette. Marcando ligeira hesitação, para guardar as conveniências, declarou:

Estou com pressa... mas se não demorar muito... aceito o seu oferecimento.

Emílio afastou se para o lado para a deixar passar e entrou atrás dela.

Dir se ia que estavam rodeadas por eflúvios favoráveis ao bom entendimento dos seus espíritos.

Aqui é o gabinete do director, o meu   explicou Emílio, abrindo uma porta   Vê lo á melhor daqui a pouco.

Depois levou a à oficina propriamente dita.

Era vasta, guarnecida com compridas mesas, separadas por armários com prateleiras, transbordando de papeis e cartolinas de todas as cores e qualidades. Artigos diversos amontoavam se em cima das mesas, diante das quais trabalhavam as operárias, sentadas em compridos bancos.

Notando o espanto da visitante, Emílio explicou:

Conhece, por certo, os acessórios dos cotillons, artigos de carnaval, distribuídos em festas públicas e particulares. Pois é aqui que se fabricam.

A visita continuou, entremeada de explicações, comentários e observações. Por fim, chegaram diante de uma porta que ele abriu. Antes de entrarem, explicou:

Vai agora ver os preparativos para uma festa anual. Há mais de um mês que trabalhamos para oferecer alguma coisa de novo às interessadas, uma coisa que representa muito na vida de uma rapariga... que elas receiam, mas que mademoiselle Ginette não usará, tenho a certeza.

A que coisa se refere?

Emílio sorriu e convidando a a entrar, declarou:

Certifique se pelos seus olhos.

Em prateleiras ou já em caixas, Ginette viu uma quantidade de vistosos barretes destinados às raparigas que, naquele ano, penteassem Santa Catarina, por já terem completado vinte e cinco anos e estarem ainda solteiras... o mesmo que, em breve, lhe sucederia se não se resolvesse a desviar se do caminho aberto diante dela e que, inexoravelmente, a conduzia ao temido barrete.

Sentiu se humilhada. Pareceu lhe que Emílio a tinha levado àquela sala com intenção reservada.

Corou, despeitada e furiosa, pensando que, mais tarde, ele poderia gabar se de lhe ter evitado o odioso barrete. Então, no mesmo instante, começou a embirrar com o rapaz.

Não, nunca casaria com um fabricante de barretes de Santa Catarina. Não poderia suportar os gracejos do marido a respeito das que ficavam solteiras, muitas delas talvez suas amigas. Aquela sala, todos aqueles barretes, como que a sufocavam.

Pensou naquelas que, apesar do seu desejo de casarem e serem mães, estavam condenadas ao celibato. Como poderia ela servir se do dinheiro ganho à custa de tanta lágrima, da oculta amargura de tantos corações?... Nunca casaria com Emílio!

Mais uma esperança que morria! Os pais de Ginette ficaram desesperados. Em vão tinham tentado obter uma explicação. A filha recusava se a receber Emílio, fugia lhe quando o avistava ao longe, escondia se e ele nunca mais conseguiu falar lhe.

Era inacreditável!

«Que feitio!»   pensavam os pobres pais, fazendo toda a espécie de suposições, sem nunca descobrirem a verdadeira causa do afastamento.

No entanto, não duvidavam da filha. Não, na sua vida não havia segredos, qualquer coisa de oculto, de menos confessável. A suspeita de uma aventura irregular era desmentida pela sua vida simples, pela sua atitude.

Os pobres pais já não sabiam a que santo recorrer, e a mãe, com toda a convicção, falava em começar uma novena.

Mais algumas semanas passaram.

No ténis, Micaela e as amigas comentavam:

A Ginette desapareceu...

É verdade!... Ninguém a vê.

Talvez esteja para casar.

Já não é sem tempo!... Lembram se da festa, no dia em que fez vinte anos?...

Festa em que ela afirmou que não pentearia Santa Catarina...

Isso mesmo, como se estivesse certa de casar daí a pouco.

Pois se não quer pentear Santa Catarina, tem de andar ligeira. Poucos meses faltam.

Que troça faremos dela, quando lá chegar!

Reparem!... Não é ela que vem ali?

É, sim, e vem acompanhada.

Com um desconhecido...

Nesse caso, adeus Santa Catarina...

Não sejas apressada!... Ainda é cedo para suposições.

Pois claro. Podemos ser acompanhadas por um rapaz sem que, forçosamente, pensemos em casar com ele.

Enquanto trocavam estas reflexões, o casal aproximava se. Seguiram se as indispensáveis apresentações com cerimoniosos: «Mademoiselle, muito prazer»... «Igualmente», etc...

O recém chegado foi acolhido com alegria, mas essa alegria não foi menor ao acolherem Ginette, depois de tão longa ausência...

Quem seria aquele Fernando que, segundo parecia, se encontrava em Paris havia alguns meses?... E porque não lhes tinha sido apresentado mais cedo, visto Ginette parecer conhecê lo tão bem?

Como o conhecia ela?... Que laço existiria entre eles?

A resposta a todas estas interrogações era fácil.

Tendo conseguido que os pais o mandassem para Paris a fim de concluir os estudos, Fernando, antes de partir, foi a casa da sua conterrânea para saber a morada da gentil rapariga a quem não conseguira esquecer. Logo que chegou, foi visitá la, sendo acolhido com verdadeira alegria pelos pais de Ginette.

Os dois camaradas de férias voltaram a encontrar se, um com íntimo contentamento, outro com indiferença, mascarada com forçada delicadeza.

Contando reatar os elos de uma cadeia quebrada havia dois anos, Fernando não deixou de aludir às qualidades de tenista evidenciadas por Ginette, e ressuscitar pequenas e agradáveis recordações que a sua terra natal deixara no espírito da rapariga.

Naquele dia, mais uma vez as amigas de Ginette se mostraram implacáveis. Vendo a com Fernando, uma delas interpelou a:

Então que me dizes a respeito de Santa Catarina?... Mudaste de opinião? Toma cuidado, olha que estás muito perto!... Se perdes tempo, já sabes o que te espera!... Salvo se...   acrescentou, num murmúrio, aproximando a boca da orelha de Ginette.

Esta compreendeu a alusão e encolheu os ombros.

Sempre és muito maçadora!   replicou.

Esta conversa não foi escutada pelas outras que tagarelavam e riam, mas deixou Ginette profundamente humilhada.

A amiga tinha razão. Pouco faltava para completar vinte e cinco anos... e este pensamento pesou lhe no peito como um manto de chumbo.

Apesar disso, nem nesse dia, nem nos seguintes, Fernando conseguiu os seus fins. Ginette tratava o com delicadeza e mais nada.

Micaela, que os acompanhava muitas vezes, não conseguiu ficar indiferente a este começo de romance.

Bastava um sorriso ou uma palavra mais amável de Ginette, para ela inquirir com curiosidade:

Então, agora é certo?... Chegou a altura de encomendar os confeitos, não é verdade?... É para breve, creio eu.

Enervada, Ginette encolhia os ombros.

Crês o quê?... Estou farta de te dizer que o rapaz não me interessa.

És muito exigente!

Não podes compreender me... acho o demasiado rico, para mim.

Com efeito, é difícil de compreender. Demasiado rico!

É natural que não compreendas. Tu também és rica. Trabalhas por distracção e não por necessidade... O futuro não te causa apreenções. Por mim, vivo do meu emprego e por isso nunca me sujeitaria a viver sobre a tutela de um homem que, talvez um dia, se envaidecesse com a sua riqueza e quisesse tomar comigo ares protectores. Nunca, ouviste bem?...

E, para confirmar a declaração, acrescentou:

Não sei se o Fernando te agrada. Se assim é, tenta a sorte. Podes fazê lo, porque és tão rica como ele.

Falas sinceramente, Ginette?... Ou estarás despeitada?...

Sou sincera, Micaela. Se o Fernando te agrada, repito, vê se consegues que ele te ame.

Micaela saltou lhe ao pescoço e, doida de alegria, agradeceu:

Obrigada, Ginette!... De todo o coração to agradeço!

Foi assim que, perante a indiferença de Ginette, Fernando, no desejo de lhe despertar ciúmes, se voltou para Micaela. Brincando com o fogo, queimou se sem dar por isso, e quando quis recuar, era tarde: estava noivo de Micaela. E como reconhecesse que ela o amava deveras, não teve coragem para a desiludir.

Entre Ginette e os pais pesava surdo constrangimento.

Que pensar de uma rapariga que, afirmando o seu desejo de casar, regeitava todos os pretendentes?... Não se poderia tomar essa atitude por anormalidade ou desarranjo cerebral?... Seria aversão instintiva pelo casamento?... Não estaria indicado fazê la observar por um psiquiatra?

Por seu lado, Ginette começava a analizar o seu próprio caso.

No fundo, sentir se ia disposta a cumprir a sua missão de mulher?... Agradar lhe ia ser esposa e mãe?... Como resposta a estas reflexões, no mais íntimo do seu ser erguia se o protesto:

« Sim, deves e desejas casar!»

Nesse caso, porque inutilizara todas as tentativas dos pais para lhe orientarem a vida?

Seria uma questão de capricho?

E começou a recordar todos aqueles que a tinham pretendido.

O engenheiro da fábrica... Procurara dominá la com a sua superioridade, tinha a certeza... Mas seria isso razão para o repelir?

Fernando... não desgostara dele, porém, seria sensato unir se a quem, mais tarde, a poderia acusar de ter casado por dinheiro e não por amor? No entanto, esse escrúpulo teria sido motivo suficiente para o recusar?

O industrial... quanto a esse ainda não conseguia dominar a sua revolta. Casar com um fabricante de barretes de Santa Catarina, isso nunca!

Por momentos, tentou recordar Emílio e encarar a possibilidade de viver junto dele. A imagem que lhe surgia diante dos olhos, porém, apresentava se com o lindo barrete de Santa Catarina, enfeitado com vistosas fitas!

Ginette sorriu e nem sequer se deu ao trabalho de perguntar se teria sido razão suficiente para o afastar do seu caminho.

As reflexões seguintes, porém, já não foram tão divertidas.

Pela primeira vez, na sua vida, interrogava se:

«No fim de contas, qual o género de homem que ambiciono como marido?... Sim, aquele a quem não desdenharia ter como companheiro?».

A resposta era difícil de encontrar. Torna se perigoso profundar demasiado os nossos pensamentos, descer ao mais íntimo do nosso eu. Descobrem se coisas... horizontes ignorados... pensamentos vagos. É mais cómodo não o tentar, continuarmos a viver como cegos, supondo nos iguais aos nossos semelhantes que, no fundo, talvez sejam, também, muito diferentes do que parecem.

Contudo, apesar deste raciocínio, Ginette continuou a analizar se.

«Vejamos, qual é o meu ideal?... Um homem saudável, forte, honesto e leal, trabalhador... Será exigir muito?...» Não, não era.

E que feições, que personalidade poderia emprestar a esse marido possível?...

Por mais que pensasse, não conseguiu cristalizar os seus desejos, nem as qualidades que sonhava para o futuro companheiro, em qualquer dos rapazes conhecidos... Porquê? Sim, porquê?...

E não se tornou difícil encontrar a solução. Porque nunca prestara atenção aos seus habituais camaradas... provavelmente, porque, desejando casar, não os considerara como maridos possíveis. Tinha fixado uma data   e essa data aproximava se, visto faltarem pouco menos de seis meses para o fatídico 25 de Novembro   eis tudo!

E, subitamente, sentiu se moralmente cansada, profundo desanimo a tomou.

Durante algum tempo não conseguiu coragem para se mexer e deixou se ficar quieta, absorvida em profundas reflexões. Depois reagiu, arranjou se e saiu para se distrair e afastar os pensamentos destrutivos que a dominavam.

Andou ao acaso, quase sem ver o que a rodeava, mas, ao passar diante de uma igreja, sobressaltou se e pensou:

« Quem sabe se, com a minha pretensiosa afirmação, ofendi a santa?»

A hipótese era desagradável... então, numa resolução súbita, subiu a escadaria, entrou no templo e foi ajoelhar diante da imagem de Santa Catarina, padroeira das celibatárias.

« Gloriosa Santa Catarina   suplicou com fervor   perdoai me se vos ofendi... Se o fiz, foi involuntariamente, por falta de reflexão. Perdoai me, eu vos imploro humildemente... Tende piedade de mim!... Não o fiz por vaidade, nem por malícia... Vós sabeis que não minto, minha Santa Catarina!... Perdoai me!» Rezou durante mais algum tempo e, por fim, levantou se. Teve a impressão de que o pesadelo se desvanecera, sentia se mais animada, mais calma.

 

Quinta feira da Ascenção, não tendo passeio algum projectado com as amigas, resolveu dar uma volta sozinha.

Como estava livre e não tinha que fazer, aproveitaria a circunstância para respirar um pouco de ar puro e gozar o bom tempo. Subiu para o autocarro que a conduziria ao campo, doirado pelo sol, decidindo de si para si que não voltaria senão ao anoitecer.

Deu grande passeio pela margem verdejante do canal, sombreada pelos choupos. Como tudo aquilo era lindo! Que sossego profundo!... Como as árvores elegantes e esguias se reflectiam nas águas tranquilas e límpidas! O silêncio que a envolvia restituiu lhe a paz de espírito, foi como bálsamo suave que apaziguou e desvaneceu toda a sua inquietação.

Embora estivesse só, o passeio foi delicioso.

A alameda terminava numa ponte. Para lá dessa ponte, o caminho continuava, atravessando perpendicularmente a estrada principal que estava em reparação. Naquela altura, procediam ao alcatroamento e Ginette, foi obrigada a seguir o estreito carreiro que, como fita branca debruando veludo negro, se desdobrava rente ao valado.

Caminhava com a máxima cautela, para ver onde punha os pés, vigiando, ao mesmo tempo, com atenção, a passagem dos automóveis que, com a prudência imposta pelas circunstâncias, rodavam em cima da massa mole e fumegante.

De súbito, qualquer coisa se passou.

Um carro derrapou, quase derrubando a e, com o susto, Ginette esteve prestes a desmaiar. Teria caído em cima do alcatrão, se um braço vigoroso não a agarrasse e a puxasse para o carro. Ginette encontrou se sentada ao lado do condutor, mal podendo acreditar ainda que estivesse salva.

Ao mesmo tempo, uma voz conhecida exclamava:

Mademoiselle Ginette!... Quase a ia matando!

Reconhecendo o, ela exclamou também:

- Será possível que seja o Raimundo!

Não se engana... o Raimundo que, por pouco, a ia atropelando!   confirmou o automobilista que ainda não conseguira dominar a sua emoção.

Instalada no confortável assento, junto do rapaz, Ginette examinou o com espanto:

Atropelar me, como?... Eu seguia com tanto cuidado!

Todavia, posso afirmar lhe que a culpa foi sua.

Minha!... Não sei como!

Garanto lhe. A culpa foi toda sua.

Essa agora!

Vou explicar lhe. Eu guiava com o máximo cuidado, receando uma derrapagem, devido ao alcatrão. Avistei a, mas não fiz caso, certo de que não haveria novidade. Mas quando a reconheci, não sei o que se passou em mim. Fiquei transtornado e, inconscientemente, carreguei no acelerador... Como resultado, deu se a derrapagem que procurara evitar. Podíamos ter morrido os dois... Que estupidez a minha!

Felizmente, estamos vivos!

A Providência salvou nos... Deus seja louvado!... Ainda tremo quando penso no que poderia ter acontecido...

Calou se um instante e observou:

Não podemos estar parados aqui... é perigoso. Os cantoneiros aproximam se para me avisarem. Se me permite, vou seguir até sair do alcatrão...

Manobrou o carro de forma a ficar em boa posição e avançou com toda a precaução.

Feliz com o encontro, Ginette seguia lhe todos os movimentos.

Sem que ela desse por isso, intensa alegria lhe inundava o peito.

Observando Raimundo, pensava que o rapaz não tinha mudado, mas, ao mesmo tempo, achava o mais viril, mais resoluto.

Que veio fazer para estes lados?   perguntou, de repente, o condutor.

Arrancada subitamente aos seus pensamentos, Ginette estremeceu. Sorrindo, respondeu lhe com amabilidade:

Vim dar um passeio, para respirar ar puro... E você?...

Eu estou na minha terra, por assim dizer. Acabei o meu curso o ano passado e agora sou director daquela fábrica que vê além. E, visto estarmos a dois passos da minha casa, não quer entrar?... Tomaremos um aperitivo e recordaremos o tempo em que... eu era o mais indigno dos seus adversários, quando jogávamos o ténis.

Ginette aceitou e não tardou que entrassem na povoação, alegre, rodeada por basto arvoredo, cujo aspecto, misto de industrial e rural, agradava à vista. O carro parou na praça onde, horas antes, Ginette descera do autocarro.

Entraram na fábrica onde Raimundo exercia a sua actividade.

Dentro dos muros da propriedade, mas afastado do edifício principal, erguia se vasto pavilhão.

Eis a minha casa   explicou o engenheiro   É espaçosa, dispõe de numerosos aposentos, mas só dois, além do meu quarto, estão mobilados. Pouco a pouco irei pensando nos outros, mas um homem sozinho não se entende muito bem com esses assuntos.

Não vive com seus pais?

Não, vivo com uma criada velha, que cozinha e trata do resto... Mas o trabalho não a mata, creio eu.

Instalou Ginette em cómoda poltrona, no seu gabinete de trabalho, e depois foi buscar uma garrafa ao armário.

Felizmente, posso oferecer lhe um cálice de Porto.

Depois da Guerra, dificilmente se consegue alcançá lo, mas meu pai dispõe de algumas garrafas de tão precioso vinho e ofereceu me duas... Não calcula como estou contente por nos termos encontrado, mademoiselle Ginette... À sua saúde!... Faço votos para que venha mais vezes passear para estes lados... vou guardar esta garrafa só para nós dois... bebê la emos quando vier visitar me... Promete me que volta, sim?... Agora é fácil, já conhece o caminho... Não posso dizer lhe o que senti quando a reconheci na estrada!

Ginette sorria e escutava com indulgência as manifestações de alegria que o rapaz não conseguia moderar.

Eu também fiquei contente   acabou ela por confessar   E, no entanto, a nossa situação, no meio de todo aquele alcatrão, negro e gorduroso, onde eu ia escorregando, não podia considerar se das mais agradáveis. Posso gabar me de ter tido muita sorte.

Agradeça também aos seus pézinhos que souberam inteligentemente afastar se.

A ideia dos pés de Ginette terem inteligência própria, fê los rir como dois garotos felizes. E Raimundo viu a tão bem disposta que se atreveu a propor:

Se almoçasse comigo?... Seja boazinha, Ginette, não recuse!

O pedido foi feito com tanta humildade e gentileza que seria difícil responder lhe negativamente. E Ginette aceitou sem primeiro se fazer rogada, faltando assim às exigências do bom tom e das conveniências.

Durante o almoço, Ginette não se cançava de observar Raimundo. Já não era o rapaz tímido, hesitante, desajeitado, que tanto lhe irritava os nervos. A vida tinha o amadurecido. Concluído o curso, encontrara logo colocação naquela fábrica e, rapidamente, ascendera ao posto que ocupava nessa altura. Desta forma, conquanto não fosse rico, brilhante futuro se abria diante dele.

A refeição decorreu no meio da maior alegria. Tudo lhes servia de pretexto para comentários espirituosos e para gargalhadas. Conversavam como velhos amigos, amigos com muitos anos de convivência.

E o acordo era tão perfeito que deslisaram para as confidências.

Já no fim do almoço, Raimundo confessou com uma pontinha de tristeza:

Toda a medalha tem o seu reverso... A minha vida não é tão feliz como parece...

Tem preocupações?   inquiriu Ginette com interesse.

Não é bem isso. Em certos momentos da vida, sentimo nos muito sós. Gostaria de ter junto de mim alguém que me compreendesse... para quem eu trabalhasse, que servisse de estímulo aos meus esforços. Em resumo, gostava de constituir família... mulher e filhos, eis o que é preciso para trabalharmos com gosto, para nos incitar a subir. A vida assim, como eu a vivo, não tem sentido. Julgo que é tempo de mudar de rumo.

Ginette deixava o falar, escutava o com atenção e, talvez pela primeira vez, o seu coração palpitava.

Preciso casar... constituir lar, ter junto de mim uma companheira querida e filhos!

E não casa porquê?

Ninguém mo impede, eu sei... Para casar, porém, impõe se que sejamos dois a querer... não desejo desposar a primeira que me apareça... O ideal seria casar com aquela a quem amo... que ela gostassse de mim também e consentisse em ser minha mulher... que secundasse os meus esforços... me animasse, enfim, que fosse a companheira, na verdadeira acepção da palavra...

Calou se um instante, pálido, trémulo, profundamente comovido.

Ginette ruborisara se. A sensação que a esmagava era tão profunda que lhe roubava as forças para falar. Ficara inerte, sem reflexos. Tudo aquilo lhe parecia um sonho.

Com apaixonado ardor, Raimundo continuou:

Gostaria, Ginette, que a pessoa que noutros tempos tanto me perturbava, cuja presença bastava para me tornar desastrado, acanhado e tímido, cuja beleza e carácter eu admirava... consentisse em... mas... minha Ginette adorada, diga me que consente...

A emoção não o deixou continuar, mas Ginette adivinhou o resto.

Estava sentada diante dele, com as mãos poisadas em cima da mesa, os dedos agitados por leve tremor. Respeitosamente, Raimundo apertou esses deditos esguios que pareciam oferecer se e que não se esquivaram à terna pressão.

Ginette sentia se tão feliz que chegava a ter medo. Por fim, conseguiu balbuciar:

Um amor tão repentino deixa me surpreendida...

Não foi repentino, juro lhe... Nunca deixei de pensar em si, lamentava a minha falta de coragem, o meu desastramento, e receava que outros tivessem sido mais ousados do que eu... Tínhamos camaradas tão brilhantes!

Nunca lhes prestei atenção   afirmou, com sinceridade, Ginette.

E o mais curioso era que, com a mesma sinceridade, poderia garantir que Raimundo nunca lhe tinha desagradado... Teria, de facto, deixado de frequentar o ténis porque ele lhe irritava os nervos... Seria, de facto, para não o encontrar?... Como tudo isso ia longe!

Estranhos mistérios do coração que hoje adora o que ontem aborreceu!

Antigamente, quando uma rapariga desdenhava de um rapaz, as mães abanavam a cabeça e comentavam:

«Quem desdenha quer casar!... Ainda acaba por casar com ele, verão!»

E, quase sempre, saía certo. As filhas acabavam por casar com aquele a quem tinham repelido... como se o Destino se divertisse a brincar com os corações... ou como se por instinto feminino, numa intuição inexplicável, pressentisse o senhor que a dominaria e tentasse fugir ao jugo.

Fosse pelo que fosse, o caso é que a mão de Ginette repousava entre as de Raimundo.

O nosso encontro de hoje estava escrito, querida Ginette... A Providência guiou a até aqui!... A nossa hora estava apontada no livro do Destino. Chegou hoje... Não me desiluda, Ginette!

Ela não lhe respondeu, mas o olhar brilhante e a expressão radiosa foram mais eloquentes do que as palavras.

Raimundo adivinhou lhe os sentimentos e o seu coração palpitou de ternura.

Julgo que o assunto não deve ser tratado só entre nós, não concorda?   observou Ginette.

Obrigado pelo que a sua resposta me dá a perceber!   agradeceu Raimundo em tom vitorioso   Vou escrever, imediatamente, a seus pais, pedindo lhes para me receberem... para lhes pedir a sua mão, procedendo como todo o rapaz correcto deve proceder... mas gostaria de ouvir dos seus lábios a confirmação da minha ventura.

Ginette sorriu e, pondo de parte todos os sentimentos de orgulho, confessou:

Chegou o dia da desforra, Raimundo. Em tempos, quando jogávamos o ténis, era sempre vencido. Hoje é o vencedor... Serei para si a esposa dedicada que ambiciona... Viveremos unidos para as boas e más horas, percorreremos juntos os caminhos da vida e coisa alguma poderá separar nos...

 

Na véspera do dia de Santa Catarina, Ginette casou com Raimundo, o que levou Micaela   que estava noiva de Fernando   a comentar:

Santa Catarina foi muito indulgente com a Ginette. Ela desafiou a e a Santa, em vez de se vingar, colocando lhe na cabeça o temido barrete, presenteou a com uma aliança de casamento. Foi generosa!

 

               FOLHAS AO VENTO

 

Não, obrigada... não quero dançar mais, esta noite... Sinto me fatigada!

E Luísa Génesse, a filha do opulento banqueiro, de cujas sumptuosas recepções todo o Paris falava, respondia assim a Valentim Morange, que solicitava a honra de uma valsa. Profunda ruga se lhe cavava entre as sobrancelhas finas e bem desenhadas.

O rapaz, longe de contar com a recusa e para mais dada em termos tão frios, olhou a com espanto e, profundamente ferido, depois de ligeira hesitação, afastou se vagarosamente e confundiu se com a multidão dos convidados, senhoras com riquíssimos vestidos e homens de casaca.

Pobre rapaz! Dir se ia que a minha recusa o magoou   pensou Luísa, seguindo o com a vista.

Estremeceu, recordando a expressão triste dos belos olhos escuros.

E o vulto elegante do amigo de infância   porque Valentim Morange brincara com ela no tempo em que usava saias curtas e ele calções tufados   o seu rosto pálido, a expressão dos olhos negros, o sorriso dos lábios vermelhos sob o bigode fino, tudo isso se lhe desenhou na mente e continuou a persegui la por muito tempo, mesmo depois de Valentim se ter perdido no turbilhão dos pares que valsavam com entusiasmo. O remorso pungia a como fino estilete.

Num esforço, tentou esquecer o rapaz e, abanando a cabeça, fazendo cintilar docemente as pérolas que, entrelaçadas com uma fita de veludo preto, lhe adornavam os cabelos loiros, murmurou com amargura:

O Valentim deve ser como os outros!... É pobre, mas ambicioso e cobiça a minha fortuna... Se eu, de repente, ficasse pobre, muito pobre, tenho a certeza de que todos os meus pretendentes, todos sem excepção, me voltariam as costas!... Nenhum deles gosta de mim com sinceridade.

Luísa Génesse ambicionava ser amada pela nobreza do seu coração dedicado e terno, pelo seu carácter recto e altivo, pelo tesoiro de afecto, oculto no mais íntimo do seu ser, e não pretendida pelo dote soberbo que levaria quando casasse.

Como mais de um rapaz insistisse para dançar e ela reconhecesse quase todos os seus pretendentes, levantou se e saiu da sala para lhes fugir.

Estava muito enervada naquela noite para escutar com calma as suas declarações apaixonadas e interesseiras.

Desejou o silêncio e o isolamento, para poder reflectir à vontade.

Atravessando os salões, que resplandeciam com a luz de centenas de lâmpadas, dispostas nos enormes lustres, alcançou a estufa e deixou se cair numa poltrona, atrás de uma cortina verdejante formada pelas plantas de enormes folhas, que a esconderam completamente, colocando a ao abrigo de olhares indiscretos.

Como se está bem aqui!   murmurou a milionária Longe de todos aqueles ambiciosos que dir se ia desejarem magnetizar me para alcançarem os seus fins!

E, sentindo se infinitamente calma naquele ambiente de silêncio, longe do tumultuar dos salões, cerrou os olhos, encostou a cabeça ao espaldar da poltrona e abandonou se a profundo devaneio.

Decorrido tempo despertou ouvindo um murmúrio de vozes, a dois passos dela.

Pareceu lhe reconhecer a voz de Valentim Morange e, desejando certificar se, afastou cautelosamente as folhas da palmeira que tinha na frente e espreitou.

Era Valentim, de facto.

Conversava com o conde de Palaroi, um rapaz alto, moreno, conversador brilhante, fértil em paradoxos, um dos raros que não cortejava Luísa e a quem, por isso mesmo, ela estimava.

Os dois rapazes trocavam as suas impressões escarranchados nas cadeiras.

Estavam bem longe de pensar que, atrás da cortina de verdura, ouvidos indiscretos escutavam tudo quanto diziam, e por isso falavam à vontade.

Mademoiselle Génesse não quis dançar contigo?   inquiria o conde.

Não, não quis   confirmou Valentim com tristeza.

E mesmo assim, continuas a alimentar a esperança de ser amado por essa estouvada?

Luísa não é estouvada   protestou, com indignação, o amigo   Conheço a melhor do que ninguém. Pelo contrário, é retraída e meiga, e tenho a certeza de que, em vez de procurar adulações, as aborrece... Mas como evitá las, se é tão linda! Não é para admirar que lho digam e ela sinta certo prazer em saber que é bonita.

Soltou fundo suspiro, e, depois de curto silêncio, prosseguiu, com profundo desânimo:

Quanto a ser amado por ela, confesso que foi uma loucura da minha parte alimentar semelhante ambição ... Sou pobre e ela é imensamente rica...

Como pode um humilde engenheiro erguer os olhos para a filha de riquíssimo banqueiro?... Chega a ser atrevimento!

Atrevimento ou não, alimentaste esse sonho...

Loucura, repito. Supus que o amor atraísse amor e, para mais, brincámos juntos, em pequenos, não somos dois estranhos. Se eu fosse rico e ela pobre, não seria o dinheiro que me impediria de a adorar... portanto, estupidamente, supus que fosse possível o contrário. Chega a dar vontade de rir!

E soltou uma risadinha seca, irónica, que não condizia com o brilho húmido das pupilas escuras.

Como tu gostas dela, meu pobre Valentim!   comentou o conde, pegando lhe nas mãos, num impulso de compassiva amizade.

Sim, adoro a, a ponto de ter a certeza de morrer se, ficando aqui, ela casasse com outro. Por isso vou me embora.

Ao escutar esta afirmativa, Luísa, que no seu esconderijo não tinha perdido uma palavra, sentiu o coração oprimido. Quando Valentim afirmou que ia partir, empalideceu e os lábios tremeram lhe de comoção. Desejando escutar o resto, dominou se:

Vais te embora!   exclamou o conde   Que mais loucuras temos agora?...

Não é loucura. Um industrial americano ofereceu me a direcção de uma das suas fábricas, em Chicago...

Para mim, representa isso a fortuna, mas, no entanto, hesitei e não aceitei logo. Não conseguia admitir a ideia de me afastar de Luísa. E depois, sonhei coisas impossíveis. Pensei que esta noite tudo se resolveria. Não sabia o que iria dizer lhe, mas isso não importava. Felizmente, ela chamou me à ordem e eu pude medir, a tempo, a distância que nos separa... Sem o saber, poupou me a humilhação de me ver repelido e o sofrimento que disso resultaria.

E agora, que tencionas fazer?...

Amanhã vou procurar o Americano, digo lhe que aceito a proposta e, daqui a oito dias estarei longe.

Calaram se um instante. O conde olhava com tristeza para o rosto pálido de Valentim.

Gostaria de encontrar argumentos que pudessem convencer te a ficar, meu pobre Valentim. Por outro lado, não me sinto com coragem para isso. Há mais de um ano que vejo crescer a tua paixão por mademoiselle Génesse e reconheço que, ficando, não conseguirás apagá la do coração. A viagem, novos horizontes, a vida activa que serás obrigado a levar, serão o melhor remédio para o teu desgosto. Vai, acho que fazes bem. Entretanto, vamos até ao bufete tomar uma taça de champanhe para te acalmar os nervos. Verás como ficas melhor.

Levantaram se e sairam da estufa.

Mal os dois rapazes se afastaram, Luísa saiu do seu esconderijo e, em passo apressado, febril, dirigiu se ao bufete e foi ter com eles.

Parecia outra, a linda filha do banqueiro. As pupilas brilhantes, as faces rosadas, o sorriso radioso davam lhe um aspecto completamente diferente à fisionomia, habitualmente séria e calma.

Sem rodeios, dirigiu se a Valentim e declarou:

Reservei lhe o cotillon, senhor Morange. O rapaz ficou tão surpreendido com a declaração que não encontrou palavras para lhe responder.

Não recusa, com certeza   continuou Luísa tanto mais que desejo pedir lhe um conselho.

Estou às suas ordens, mademoiselle   respondeu Valentim, conseguindo recuperar a calma.

Então, até já.

E com enigmático sorriso, o que aumentou a perturbação do engenheiro, afastou se e confundiu se com um grupo de raparigas que, no extremo oposto da sala, ria e conversava.

É muito caprichosa, esta rapariga!   comentou o conde de Palaroi   Começa por correr contigo e agora eleva te à categoria de favorito!

Sabe se lá o que pensa uma mulher!

- murmurou Valentim, com ar pensativo   Seja como for, não quero ser joguete nas mãos dela   assegurou ainda, com olhar duro   Juro te que...

Mau, mau!... Nada de resoluções prematuras!   aconselhou o amigo, soltando alegre gargalhada.

E, atalhando os protestos do engenheiro, bateu lhe amigavelmente no ombro e intimou:

Vai ter com ela. Os pares já tomaram os seus lugares para o cotillon e mademoiselle Génesse impacienta se, a ajuizar pelo olhar inquieto que te dirige.

Sais já?

Não. O epílogo do romance interessa me. Vou para a sala de bilhar. Quando terminar o baile vai ter comigo para me contares o que se passou.

Talvez me considerasse um pouco ousada, há pouco   dizia Luísa, quando o ritmo doce de uma valsa a arrastava nos braços de Valentim   mas não tenho irmãos e o meu pai vive tão ocupado e absorvido pelo seu trabalho, que me vejo obrigada a resolver tudo sozinha.

Fiquei apenas admirado com o favor que me dispensou, depois de se ter recusado a dançar comigo...

Não falemos mais nisso. Tenho estado muito preocupada, esta noite, e decidi pô lo ao facto das minhas preocupações. Estou certa de que não me recusará um conselho, o senhor que me conheceu quando eu era ainda uma garota impertinente, sujeitando o aos mais disparatados caprichos...

Caprichos, aos quais eu nem sempre me submetia replicou Valentim com alegre sorriso.

Tem razão. Por isso pensei pedir lhe um conselho, como já disse, um conselho sincero e desinteressado.,.

Fale...

Eis do que se trata. Mais de uma dezena de rapazes me declararam o seu amor e me pediram em casamento. Como é de calcular, recusei... porque amo outro... alguém que ainda não se declarou, que nunca me confessará o seu amor, nem falará a meu pai com receio de ser recusado. Que devo fazer?

Eu..., eu não sei o que dizer lhe...   balbuciou Valentim, empalidecendo.

O que faria se estivesse no meu lugar?   insistiu Luísa, como se não notasse a perturbação do rapaz.

Eu não sou mulher e portanto...

Justamente por isso   atalhou Luísa, soltando uma gargalhada   Pode calcular quais as reacções daquele a quem amo, se eu me decidir a falar lhe primeiro.

«Como ela o ama!»   pensou, desolado, Valentim.

E, em voz alta, protestou quase com rudeza:   Como posso eu saber? Não o conheço... Pode ser que não goste do seu procedimento... mas pode ser também que fique contente e se sinta feliz. Para dar a minha opinião, preciso saber de quem se trata.

Diz bem, mas como não estou decidida a revelar lhe o nome, temos de arranjar outro meio. Procedamos por tentativas... suponhamos que seja o senhor, por exemplo... Que diria?

Eu!   protestou Valentim com ardor Afianço lhe que ficaria louco de contentamento com semelhante declaração!

Falara com entusiasmo. Notando o, corou, mordeu os beiços e tentou dominar se.

Ama me então?   perguntou Luísa, erguendo para ele o olhar impregnado de ternura.

O engenheiro tentou emendar o erro, procurando explicação para as suas palavras, mas, docemente, Luísa atalhou:

Para que se cança e tenta convencer me de que não me ama, quando seria tão simples dizer me: «Luísa, gosto muito de si. Quer ser minha mulher?»

Será possível?... Não me repele?   exclamou Valentim, trémulo de ansiedade e de paixão

Não brinque com o meu amor, Luísa!... Seria uma crueldade!

A filha do banqueiro deixou que o olhar das pupilas ardentes se confundisse com o seu e murmurou baixinho:

Se o Valentim mo pedisse, eu responderia: «Sim, Valentim, serei sua mulher porque também o amo!»

 

                             O VITELINHO

 

Onde vais, Anita, tão janota, tão elegante que nem falas a ninguém?

Desculpe, mademoiselle. Vou para o pasto com as vacas e tão distraída ia que não a via.

A professora examinou com surpresa a rapariguita a quem ensinara a ler e que, elegantemente vestida, seguia os animais a certa distância e com andar afectado.

Anita era uma pastora moderna. Ia com os animais para o pasto preparada como uma Parisiense para um passeio ao campo: vestido branco com ramagens vermelhas, numa das mãos o saco com fecho de galalite onde levava um livro e a merenda e na outra um banco portátil.

As faces levemente rosadas e os cabelos negros, cuidadosamente cortados em franja sobre a testa, tudo realçava a frescura do rosto encantador, mais bonito ainda com as sombras projectadas pela sombrinha garrida que, cuidadosamente, Anita abrira.

A excelente senhora, embora habituada à garridice das raparigas da terra, não podia deixar de se espantar com o trajo demasiado elegante, pouco em harmonia com a modéstia da tarefa.

Meu pai podia muito bem pagar a uma pastora   explicou Anita com uma pontinha de vaidade   mas é desconfiado e só fica descansado quando eu tomo conta do gado. E a mim não me custa fazer lhe a vontade, não acha?

Fazes muito bem, minha filha, visto o trabalho não te aborrecer...

Pelo contrário, distrai me. Além disso, trago um livro. Sempre gostei muito de ler, não se lembra?

Lembro sim. Tanto melhor. Um bom livro é sempre um excelente companheiro. Adeus Anita, felicidades.

Adeus, mademoiselle. Obrigada.

A elegante pastora seguiu até ao prado, atrás de cinco vacas e quatro vitelos.

De um lado e outro, a estrada era ladeada por sebes verdejantes, interrompidas, de espaço a espaço, pelos portões de madeira que davam acesso às propriedades.   Bom dia, Anita!

A gentil rapariga ainda não tinha reparado no rapaz que, empoleirado num dos portões, a saudava alegremente. Quando o reconheceu, em vez de corresponder à saudação, voltou a cabeça.

Entretanto, Rogério saltara para o chão com ligeireza, justamente na altura em que a pastora passava, de olhos baixos para não o ver. Não repetiu a saudação para não ficar outra vez sem resposta; quando a rapariga já ia longe, chamou o cão e afastou se, murmurando.

Pouca sorte, Lobo!... Anita, mais uma vez, não quis saber de nós.

Anita continuou o caminho, de cabeça levantada, mas um pouco comovida. Sob o tecido florido do vestido, o coração palpitava lhe com força.

Rogério era um rapaz perfeito, alto, forte, olhos claros e sorriso levemente trocista. Fazia andar à roda a cabeça das raparigas da terra, embora não lhes prestasse atenção. Uma única o interessava, precisamente aquela que mal olhava para ele e nunca lhe respondia quando a cumprimentava... Anita, a mais perfeita das raparigas do lugar para quem Rogério era como se não existisse.

Com efeito, para os pais de Anita tanto como para ela, Rogério, o sedutor Rogério, era «o filho dos Rivaud», isto é, o filho do Inimigo.

A questão entre os Rivaud e os Naudin durava havia muitos anos... eram uma espécie de Capuletos e Montecchios, alimentando durante anos a discórdia e ódios que não é raro nascerem entre vizinhos.

O mal nascera, justamente, por serem vizinhos...

Viviam como amigos e davam se muito bem.

Em pequenos, Anita e Rogério brincavam juntos e muitas vezes a avó Naudin ou a mãe Rivaud tinham cortado do mesmo pão as fatias para a merenda das duas crianças. Eram amigos, sim, mas também eram vizinhos e existia estreito pedacito de terra, separando as duas propriedades.

É sabido que, desde tempos remotos, a fixação de fronteiras deu origem a guerras e a discórdias.

Pois os dois proprietários, das questões passaram aos processos, às intervenções judiciais que pouco adiantaram e só serviram para lhes levar dinheiro e acumular rancores, porque nenhum deles ficou satisfeito com o resultado.

Qualquer deles se confinou num silêncio hostil a ponto da gente da terra perceber e dizer: «Os Rivaud e os Naudin não se falam»... Isto dava bem a medida da inimizade irrevogável que, de futuro, os separaria.

Os pequenos receberam ordem dos pais para não brincarem um com o outro e, mais tarde, para não se falarem.

Mais dócil, Anita obedecera. Rogério, porém,

mais velho e mais independente, não partilhou os agravos da família, tanto mais que Anita, conforme ia crescendo tornava se cada vez mais bonita e o rapaz, para quem a amiga de infância tinha agora o atractivo de um fruto proibido, se apaixonara loucamente por ela.

Despresando a cólera do pai e os sermões da mãe, quando encontrava a sua gentil vizinha nunca deixava de lhe dar os bons dias e de lhe dirigir um sorriso, tudo isto mascarado com um pouco de ironia, é claro, pois também tinha o seu orgulho... Mas enfim, era uma tentativa, de reconciliação, qualquer coisa que merecia,, como resposta, uma palavra, um olhar, um breve sorriso ou mesmo uma réplica desagradável!... Mas, para o rapaz, mesmo uma injúria, seria preferível à glacial indiferença de Anita.

O mais desagradável para o nosso apaixonado era o facto de a encontrar sempre na estrada ou no largo da igreja, isto é, num sítio muito concorrido, onde Anita nunca se atreveria a falar lhe ou sequer a olhar para ele. Como seria possível a filha dos Naudin conversar com o filho dos Rivaud!... O que diriam! O facto seria considerado como uma traição e provocaria tremendo escândalo.

Tolices, meu velho Lobo   comentava o rapaz, falando com o cão   Prendemo nos com o «parece mal... o que dirão...» e depois acontece isto. Se eu pudesse falar lhe num sítio isolado... Mostra se rancorosa mas, no fundo, não me quer mal, estou certo. Temos de arranjar isso, Lobo!... Entre nós dois, a tarefa não deve ser difícil, não achas?...

O cão olhava para o dono e agitava alegremente a cauda em pluma como se compreendesse e confirmasse.

À tarde, Anita regressou a casa. O dia decorrera como todos os outros, ou talvez as horas tivessem passado mais depressa, graças ao livro... ou ao encontro!

Arquitectara fantasias, mas como essas fantasias eram irrealisáveis, tentou esquecê las, absorvendo se na leitura.

O entrecho do romance era palpitante, prendendo a atenção da leitora.

Quando a sombra dos choupos alastrou pela relva e as vacas mugiram com sede, a pastora entendeu que eram horas de recolher.

Mas não podia abandonar a leitura no ponto mais palpitante! Então, recordando se da avó lhe ter contado que, muitas vezes, ao regressar a casa, continuava a fazer a meia pelo caminho, Anita foi andando e lendo.

A Ruça ia adiante e as outras seguiam na docilmente. Os animais conheciam bem o caminho para casa e a gentil pastora não precisava enxotá los.

Quando entraram no pátio, dirigiram se todos ao largo tanque de pedra que o pai de Anita acabava de encher de água fresca.

E como as vacas se atropelassem em volta do tanque, a pastora não deu por nada. Quando, depois de beber, entraram no curral, então sim, viu que a Malhada não tinha o vitelo junto de si.

Diabo de estouvada!   resmungou Naudin.

Procuraram o fugitivo por todos os cantos: no pátio, na adega e até no galinheiro. Não foi possível encontrá lo.

O tio Naudin começou a praguejar.

Um vitelo não é brincadeira!... Vale muito dinheiro!... E não se perde como um lenço que nos cai da algibeira...

Que pouca sorte!   lamentava a mãe.

Vou procurá lo à estrada. Não se aflijam, hei de encontrá lo   tranquilizou Anita, saindo a correr, para não ouvir as lamentações dos pais.

O vitelo, porém, não estava na estrada, nem tão pouco vagueava perdido pelas ruas da povoação, quando Anita as atravessou.

Saiu para o campo e andou por um lado e por outro. O sol declinava. Voltou à esquerda, depois à direita, percorreu atalhos, mas tudo em vão... Quanto ao vitelo, nem sombra.

Anoitecera por completo. A rapariga tremia de frio e de medo. Não estava habituada a andar sozinha àquela hora.

A lua pálida e fria, brilhava no horizonte.

De cabeça baixa, Anita regressava a casa quando, ao seguir pela estrada, ouviu débil mugido, para lá da sebe... Parou... Os arbustos agitaram se.

Malhadinho!... Malhadinho!... Vem cá!   gritou.

Assustou se quando uma voz jovial, que procurava tomar severas inflexões, repreendeu:

Não sabe guardar melhor o seu gado, mademoiselle Naudin?

A interpelada deu alguns passos, na disposição de fugir.

Felizmente, a voz tornou se mais branda quando declarou, em tom surdo:

O seu Malhado está aqui. Venha buscá lo. A pastora empurrou o portão e avançou pelo

campo, a fim de recuperar o vitelo.

Encostado à sebe, viu logo o vulto bem conhecido de Rogério, segurando o vitelo... o vulto apenas, porque o rosto estava oculto na sombra. O coração de Anita palpitava com força.

Anita!

Como aquela voz sabia ser meiga!... Nunca a ouvira de tão perto!... Uma voz grave e doce!...

Enervada com o mau bocado por que passara, sozinha nos campos, procurando o vitelo sem o encontrar   e talvez por mais alguma coisa que não sabia definir   Anita começou a chorar.

Rogério alcançara os seus fins. Aproximou se dela e, com boas palavras, soube consolá la.

 

E tão bem se entenderam, que a lua já ia alta quando se separaram, à entrada da povoação onde já todos dormiam.

Anita entrou em casa sem o vitelo. Assim o tinham combinado os dois namorados.

Na sala grande, os pais velavam, aguardando a sua chegada.

Radiante, sentindo se incapaz de representar a comédia da tristeza, subiu a escada devagarinho, entrou no quarto e deitou se. Se teve lindos sonhos, torna se fácil adivinhar. Contudo, não conseguiu adormecer logo.

Pouco depois, ouviu bater à porta.

Pelo martelar dos tamancos no lagedo da cozinha, adivinhou que o pai ia abrir.

Peço lhe desculpa por vir incomodá lo a esta hora, senhor Naudin... mas encontrei este vitelo dentro da minha propriedade. Não será seu?

Era a voz de Rogério, falando com a maior ingenuidade.

É meu, é... É o Malhado   confirmou o pai de Anita num tom, misto de aspereza e amabilidade.

Então aqui o tem. Boa noite.

Seguiu se breve silêncio. Naudin hesitava, com certeza.

Não te vais embora sem beber um copo   decidiu por fim   Entra.

Obrigado, senhor Naudin, não me apetece. Mas podia dar me uma grande alegria. Não quer apertar me a mão?

Porque não?... Nunca me fizeste mal... Não tenho nada contra ti, meu rapaz.

Outro silêncio e pouco depois Anita ouvia a porta bater.

Rogério era bom advogado e depressa convenceu o pai e a mãe.

A sua insistência teve como resultado, os pais Rivaud, todos endomingados, no dia seguinte, encontrarem se, sentados à mesa dos Naudin, diante dos copos cheios com o vinho guardado para as ocasiões solenes.

A paz estava feita e como é uso em tratados entre famílias reinantes, ficou combinado que a herdeira dos Naudin casaria com Rogério. Desta forma, a questão de fronteiras estava arrumada, visto as duas propriedades ficarem reunidas daí em diante.

Acima de tudo   comentou com ternura a mãe de Anita   fazemos a felicidade dos pequenos.

Os «pequenos», deixando os velhotes a conversar diante dos copos cheios, foram passear para o cerrado. O Malhado, instrumento inconsciente da ventura dos dois, pulava à vontade.

Fiz te correr atrás do vitelo, não fiz, Nita?

Que dizes?... Foste tu que...

Eu e o meu Lobo!... Eu não podia aparecer, mas o Lobo trabalhou por mim. Espantou o vitelo que ficara um bocadinho para trás, enquanto tu, muito entretida com o livro, não davas por coisa alguma. Tinha de arranjar uma isca para te atrair, não é verdade?... Queria falar te. Não estás zangada comigo, pois não?...

Anita sorriu e, como resposta, ofereceu lhe os lábios.

Rogério então, afagando o pescoço do vitelo, afirmou:

Sempre tiveste uma sorte, meu maroto!... Nunca o mandaremos para o matadouro, pois não, Anita?...

 

                       SEPARAÇÃO

 

Recomeçam as censuras!   comentou Alberto de Luinor, passeando de cá para lá no aposento   Isto assim não pode continuar. Chega a ser insuportável!

A mulher atirou com o bordado e pôs se de pé.

E quem tem culpa do desacordo?   perguntou, vibrante de cólera   Eu não, com certeza.

Sou eu, talvez...

Durante alguns momentos, os dois esposos entreolharam se como dois inimigos.

Nunca concordas com o que faço... achas tudo mal feito   prosseguiu madame de Luinor, batendo com o pé.

E tu dás às minhas palavras uma interpretação que não está nas minhas intenções...

Ora vamos!... Pelo contrário, nas nossas relações dou prova de uma paciência e de uma generosidade que a mim mesmo me causa espanto. Regressas a casa altas horas da noite, trazes amigos para jantar sem me avisar, obrigas me a comer o que detesto e desdenhas de tudo quanto aprecio... E eu nunca me lamento. Suporto o fumo dos teus charutos, os teus jornais atirados ao acaso, os teus cães que dormem em cima dos meus vestidos...

Se não os deixasses por cima das cadeiras, em vez de os pendurar no guarda vestidos, isso não aconteceria   comentou o marido.

Quem fala!... O teu criado de quarto tem tanto trabalho a arrumar aquilo que deixas desarrumado, que tenciona despedir se.

Se não me engano, tu também não consegues conservar uma criada...

És insuportável!   protestou a mulher, começando a chorar   Nunca me dás razão. Não suportas a mais pequena contradição e, se protesto, mandas me calar ou respondes com comentários irónicos e humilhantes. Tudo te desagrada em mim: os meus vestidos, os chapéus, as minhas amigas e o meu piano... até o som da minha voz que não podes ouvir sem franzir a testa...

Porque tens o costume deplorável de falar quando estou a ler.

Se, para falar, esperasse a altura em que pudesses dar-me atenção, teria tempo de fazer uma viagem ao Japão, no intervalo de duas conversas!

Pelo muito que temos a dizer, é o bastante... As nossas discussões duram horas e não conseguimos trocar dez palavras sem estarmos em desacordo.

Há quantos anos isto dura!... Estou farta!

E eu fartíssimo!

Muito bem. Portanto, ao ponto a que chegámos, julgo melhor separarmo nos... Não podemos continuar a viver assim...

Viva o divórcio!

A exclamação fora tão espontânea que a mulher ficou um pouco espantada.

O divórcio?... Julgo que uma separação amigável, sem escândalo, é suficiente...

Sou adepto dos meios radicais!

Como queiras...

Desapontado, ao ver a mulher concordar no mesmo instante, Alberto comentou com ironia:

Neste ponto, pelo menos, estamos completamente de acordo!

Quando se trata de recuperar a minha liberdade, estou sempre de acordo... Se soubesses como aspiro a viver tranquila!

Não tanto como eu!... Está combinado, separemo nos!

E quanto mais cedo, melhor... Parto amanhã de manhã.

Amanhã à noite já poderei gosar as delícias de um lar sossegado... tão calmo, que julgarei ter recuado cinco anos, ao tempo em que ainda não te conhecia.

Que monstro!... Chega a ser indelicadeza!

Entre nós, as cerimónias são escusadas. Com gestos vagarosos e um tanto afectados,

pegou num charuto, cortou lhe a ponta e, depois de o acender, perguntou, seguindo com olhar distraído as aspirais azuladas que subiam para o tecto:

Para onde vais, quando saires de casa?

Para Viroflay... Para a nossa casa de campo, onde permitirás que permaneça até escolher residência definitiva.

Excelente ideia!... Podes lá estar o tempo que entenderes... e não tenhas medo, não irei ter contigo.

Conto com isso.

E aprumada, digna e altiva, madame de Luinor passou diante do marido e foi fechar se no quarto, onde se atirou para cima da cama, chorando copiosamente.

 

No dia seguinte partiu, como tinha decidido.

O desacordo que, havia muito tempo, nascera entre ela e o marido, exigia aquela separação.

Não vamos afirmar que a frieza glacial das últimas palavras trocadas, não fosse um pouco exagerada, nem que, apesar da serenidade aparente, os seus pobres corações não sangrassem. Pode até afirmar se que, no fundo, qualquer deles se sentia muito desgraçado com a separação.

Fosse como fosse, decorridos quinze dias, madame de Luinor ainda se encontrava em Viroflay e o marido não tentara qualquer aproximação.

Mas, à distância, os agravos mútuos perderam um pouco da sua acuidade.

Ela começou a compreender que nem sempre tinha razão e que, com um pouco de boa vontade e condescendência, teria podido ser mais feliz com o marido. Era um homem delicado, até no meio das mais acesas discussões. Nunca lhe fora infiel, nem a tratara mal. Exaltava se com facilidade, mas ela, por seu lado, era muito nervosa. Simples incompatibilidade de génios, fácil de remediar, se ambos o desejassem.

Nesse caso...

Não ia ao extremo de se arrepender pelo irreflectido impulso que a levara a sair de casa, mas começou a recear que a situação se tornasse irremediável. Todas as manhãs espreitava a passagem do correio, temendo que lhe trouxesse a intimação para os preliminares do divórcio.

Por outro lado, a permanência no campo aborrecia a. Nos primeiros dias, entusiasmara se com a mudança. Ia para onde queria, comia quando lhe apetecia, vestia se a seu belo prazer sem recear críticas. Que delícia! Mas não tardou que começasse a aborrecer se e a sentir a nostalgia dos seus hábitos anteriores.

Pesava lhe o silêncio que reinava debaixo dos castanheiros de troncos aprumados e teve de confessar não ser fácil adaptar se ao isolamento e à solidão que rodeava a casa de Viroflay.

Era este o seu estado de espírito quando, certo dia   e já tinham passado vinte depois de ter saído de Paris   recebeu uma carta do marido.

Era concebida nestes termos:

 

                       «Minha senhora

«Escrevo lhe esta carta embora isso seja doloroso para o meu amor próprio   para lhe pedir que regresse a Paris.

«O meu amigo Armando Versón, não podendo suportar o desgosto provocado pela morte da mulher, ocorrida há poucas semanas, acaba de suicidar se. Antes de morrer, escreveu me, pedindo me que olhasse pela filhinha, nomeando me seu tutor. Conhecíamo nos há mais de quinze anos e, portanto, não me senti com coragem para recusar a herança que me legou.

«A pequenina Margarida está em minha casa desde ontem, mas, infelizmente, desconheço os cuidados que se devem ter com crianças desta idade. Sentada num canto, chora, chama pelo pai e recusa todos os alimentos que a criada lhe apresenta. Confesso que estou terrivelmente atrapalhado.

«Estará disposta a esquecer, durante alguns dias, os agravos que supõe ter de mim e a voltar para me auxiliar a consolar esta pobre criancinha?

«Conheço o seu coração e, se não mudou nestes poucos dias, estou certo de que não me responderá com uma recusa, o que desde já lhe agradeço.

«Logo que eu tenha tomado as disposições necessárias a respeito de Margarida   porque, vivendo só, não posso conservá la comigo   poderá regressar a Viroflay.

«Pode estar certa de que saberei respeitar os deveres impostos pela sua presença em minha casa e reconhecer tudo quanto há de delicado na nossa situação.

     «Seu muito dedicado, Alberto de Luinor.

 

Quando acabou de ler a carta, alegre sorriso iluminava as feições de Madame de Luinor.

Precisa de mim!   murmurou   Parto ainda hoje!

Mandou um telegrama ao marido e pôs se a caminho.

Coitadinha, como está pálida!   comentou madame de Luinor, debruçando se sobre a caminha onde dormia Margarida.

É fraquita, mas o ar de campo vai fortalecê la   respondeu o marido, que estava junto dela.

O ar de campo?... Então sempre está decidido a confiá la a pessoas que mal conhece?

As informações são excelentes.

Como podem estimar a criança?... Não passam de mercenários.

Que hei de fazer?... É muito pequena para a meter num internato e não posso conservá la comigo, porque não tenho quem olhe por ela.

Porque não consente que a leve para Viroflay?

Porque foi a mim e não a si que o pai a confiou   declarou Alberto, depois de leve hesitação.

Isso que tem?... Terei para ela os carinhos e a dedicação de uma mãe.

Não duvido, mas...

Mas o quê?...

Não quero.

Ela mordeu os beiços, humilhada com a recusa.

O marido foi sentar se numa poltrona, junto do fogão e, cruzando os braços, ficou pensativo.

Pesado silêncio reinou entre os dois esposos.

A vida sempre nos traz surprezas bem estranhas   acabou ele por comentar como se falasse consigo próprio.

Muitos espinhos e poucas rosas   observou, por sua vez, a esposa   Vejam lá o teu amigo Armando Vernon.

Uma vítima do amor conjugal que deveria ter tido...

Adorava sua mulher   atalhou ela com convicção.

Julgo que levou a paixão longe demais   replicou de Luinor   Tinha uma filha e era seu dever não a esquecer.

Um pouco nervosa, a esposa insinuou:

Tu não serias capaz de fazer uma coisa dessas!

Nunca! protestou, energicamente, de Luinor   Considero o suicídio como uma cobardia!

Para alguém se matar por amor, é preciso que ame até à loucura. E tu sempre foste um homem metódico, sensato.

Demasiado, a teu gosto, visto não ter conseguido conservar a tua afeição que, no entanto, considerava indispensável.

Não falemos de mim!   balbuciou ela, corando muito   Tenho muitos defeitos. Fui educada sem mãe e ninguém me ensinou que o papel de uma esposa é feito de sacrifício e abnegação.

Falava com doçura, sem ironia, nem amargura. Surpreendido, Alberto observou a e não querendo ficar atrás em matéria de condescendência, acusou se para a desculpar:

É preciso que o marido mereça e reconheça essa abnegação, caso que não se deu comigo...

Enganas te. Com uma esposa que te compreendesse melhor, terias sido feliz.

E tu não o serás menos com alguém que aprecie como deve a tua ternura e dedicação.

Juro te que não tornarei a casar!... Enganei me uma vez, não desejo tentar nova experiência.

A voz tremia lhe e, para ocultar as lágrimas, curvou a cabeça.

Comovidos com as reflexões trocadas, ficaram calados, sentados diante um do outro, sem se atreverem a erguer os olhos. As palavras de paz e de perdão subiam lhes aos lábios, mas não as proferiam com receio de que não fossem mutuamente bem acolhidas ou recebessem uma ironia como resposta.

Por fim, a mão de Alberto de Luinor procurou a de sua mulher e apertou a levemente. Como ela não lha retirasse, tomou coragem e, num tom infinitamente meigo e persuasivo,

disse:

Fomos ambos culpados... Se tu quisesses, nem tudo estava acabado entre nós...

Não voltarei para Viroflay   afirmou a esposa, erguendo para ele as pupilas radiosas, impregnadas de amor e indulgência.

Pelo contrário, voltarás para lá com Margarida, porque a criança precisa de ar do campo... mas eu acompanhá las ei.

 

                 QUANDO ELAS QUEREM...

 

Portanto, não tenciona contestar a validade do testamento?   inquiriu o notário, observando com atenção o seu cliente.

Por forma alguma   afirmou Marcelo de Valnas   O meu tio tinha o direito de dispor da sua fortuna como lhe apetecesse... Deixou todos os seus bens a mademoiselle Cernier, minha prima. Que outra coisa poderei fazer senão acatar respeitosamente as suas últimas vontades?

Concordo, mas a sua prima encarregou me... A propósito, o meu amigo conhece a?

Nunca a vi... Dizia, porém, que mademoiselle Cernier...

Me encarregou de lhe fazer uma proposta.

A mim?... Que espécie de proposta?

Sua prima deseja reparar o prejuízo que o senhor sofreu por causa dela e pediu me para lhe dizer o seguinte: «A herança do tio é considerável e chega bem para dois.

Proponho lhe que seja dividida entre nós».

Ela pretende oferecer me...

Metade da herança de seu tio   concluiu o notário com modos triunfantes   Que diz?

Marcelo de Valnas ficou pensativo e calado. Depois, como se falasse consigo próprio, murmurou:

Tem sentimentos elevados.

Ainda bem que o reconhece. Aceita? Marcelo abanou a cabeça e declarou categoricamente:

Não.

O quê!   exclamou, com espanto, o notário.

Digo que recuso a generosa oferta da minha prima.

Porquê?... A sua situação financeira não

é tão desafogada que...

Com um gesto peremptório, Marcelo deteve

o protesto.

Não insista. Eu disse que não!   declarou em voz glacial   Mademoiselle Cernier tem escrúpulos em ficar com o total da herança. Pois eu também os tenho. Um homem de sentimentos não aceita dinheiro de uma mulher. A minha dignidade e o meu orgulho não o permitem.

O semblante do notário reflectiu a mais profunda surpreza.

Que insensatez!   protestou   Chega a ser inacreditável...

Nunca vi herdeiros tão estranhos!... Escrúpulos invulgares, intempestiva dignidade, eis o que ambos opõem quando se trata de receber tão considerável herança.

O rapaz limitou se a sorrir orgulhosamente e não lhe respondeu. Levantou se para sair, quando o notário, como consequência de reflexões de momento, lhe pediu mais uns minutos de atenção.

Escute, meu amigo. Ocorreu me agora uma ideia, sugerida talvez pela dedicação que me prende à sua família. Encontrei o meio de conciliar as coisas. A sua prima é nova, bonita, instruída, tem um coração bem formado como provou com a sua proposta. Pois bem. Procure conhecê la, ame a e veja se consegue que ela goste de si. Depois casam. Um homem pode, sem corar, aceitar o dote da mulher a quem dá o seu nome.

Marcelo de Valnas ergueu se de chofre, como impelido por uma mola.

Basta!   pediu friamente   O gracejo parece me de mau gosto. Se recuso a esmola de metade da herança oferecida por mademoiselle Cernier, não tenciono vender o meu nome, apoderando me assim da totalidade.

Tremia de indignação a custo refreada.

Apre!... Que génio!... É pior do que pólvora!... A minha proposta nada tinha de humilhante para si, meu amigo.

Não seria a primeira vez que um aristocrata pobre casava com mulher rica... Quando o amor figura no contrato, a dignidade dos signatários fica salvaguardada.

Não insista... A sua teoria é contrária a todos os meus princípios.

Talvez mude...

Nunca!

Reflicta... Julgo que vale a pena, que demónio!

É inútil... Adeus.

E, muito aprumado, Marcelo Valnas despediu se, atravessou o cartório e saiu, seguido pelo olhar irónico do notário que sorria com malícia.

 

Então é verdade, quer casar comigo, senhor Marcelo?

Adoro a, Camila   afirmou Marcelo de Valnas, sentado diante dela, um de cada lado da mesa.

Neste momento é sincero... Mas, mais tarde, quem sabe se não virá a arrepender se por me ter dado o seu nome...

Essa dúvida constante!... Se não a tomasse por criancice, considerá la ia uma injúria.

Tentava sorrir, embora ficasse impressionado com a seriedade da rapariga, que prosseguiu com firmeza:

Não é criancice, nem desejo ofendê lo. Não tenho família e, portanto, sou obrigada a falar lhe como falariam meus pais, se fossem vivos... Tenho reflectido muito, desde que ontem me pediu para ser sua mulher... Reflecti e tenho escrúpulos... O nosso casamento é impossível.

Impossível!... Não pensa o que diz, com certeza!... Que espécie de escrúpulos são esses?

Tenho a impressão de que não seremos felizes... Para existir felicidade é preciso que a situação dos esposos se equilibre a todos os respeitos.

E entre nós não existe equilíbrio?

Não. A nossa situação difere muito, infelizmente.

Em quê?... Um modesto guarda livros e uma professora de piano... Creio que a diferença não é grande.

Não tente enganar me... Estou bem informada. O Marcelo tem economias. Eu só possuo o meu piano, o meu ganha pão... Será sensato casarmos nestas condições?... Se, mais tarde, viesse a duvidar da sinceridade dos meus sentimentos e pensasse que eu tinha casado por interesse, seria horrível!

Nunca me virá ao pensamento tão mesquinhas suspeitas, juro lhe!   protestou, com veemência, Marcelo Valnas.

E porque não?   retorquiu com suavidade Camila   Não seria a primeira vez que semelhante ideia lhe acudiria ao espírito.

A mim?

Não se lembra?... Há dois meses, quando mal nos conhecíamos, na altura em que me mudei para aqui e começámos a falar um com o outro, certa noite, referiu se a uma visita ao seu notário... Tratava-se de uma herança, creio eu...

Marcelo sorriu e, estendendo o braço por cima da mesa, pegou na mão de Camila e apertou a com ternura.

Recordo me muito bem. Já gostava de si e a Camila aconselhou me a casar com a minha prima, sua mazinha!

E o Marcelo opôs me argumentos idênticos aos que eu lhe oponho agora.

Não é a mesma coisa. Eu não conhecia minha prima, não gostava dela.

Camila abanou a cabeça.

Não foi essa a razão, segundo me disse. Recordo me muito bem das suas palavras: «Não conheço mademoiselle Cernier, não a amo, mas, embora a amasse, nunca casaria com ela, porque não queria que ela atribuisse ao meu amor um móbil interesseiro. Seria descer na minha própria estima se desse ocasião a semelhante suspeita». Nega o que disse?

Por forma alguma. É essa a minha maneira de pensar.

Mas a Camila não pode nem deve atribuir me tais pensamentos.

Porque não?... protestou, com altivez, a rapariga   A minha dignidade merece lhe menos consideração do que a sua própria?

Não discutamos, Camila. Adoro a... não me regeite!

A súplica foi proferida com indiscutível sinceridade, num arrebatamento de paixão. Comovida, Camila hesitou. Mas, conseguindo dominar se, insistiu:

Afirma o seu amor e, no entanto, se eu fosse a sua prima, não hesitaria em sacrificar me ao seu orgulho. Não tenho razão?... Estarei enganada?... Responda com franqueza, lealmente.

Marcelo hesitou. No seu íntimo travava se violento combate. Por fim, em voz surda, a custo, como se confessasse um acto vergonhoso, declarou:

Não!... Mesmo que fosse a minha prima, amo a demasiado para a sacrificar!

Nesse caso, estaria disposto a casar comigo, a despeito da minha fortuna?   insistiu a professora de piano, com um brilho triunfante nas pupilas radiosas.

Juro lhe!

Camila fitou o demoradamente, como se saboreasse a vitória. De súbito, num gesto de adorável confiança, estendeu lhe as duas mãos:

Pois bem!... Beije a sua noiva que é também a sua prima e perdoi me esta inocente comédia... Era preciso que se apaixonasse pela modesta professora de piano, visto repelir a parenta rica.

Marcelo examinava a com espanto.

Será possível!... A Camila é...

Sua prima, Fernanda Cernier que, adoptando um nome falso, conseguiu desvanecer lhe os escrúpulos, senhor orgulhoso...

Pela fisionomia de Marcelo perpassou ligeira expressão de revolta, mas os lábios que lhe sorriam estavam muito próximo dos seus para que pudesse resistir à atracção.

O notário tinha razão!   comentou, sorrindo Quando o amor entra no contrato, o orgulho dos signatários está salvaguardado.

 

                       O CORAÇÃO DA MULHER

 

Pensativa, madame Le Hutin observava a filha, uma rapariga nova, elegante e distinta, olhos pretos, habitualmente brilhantes e vivos, mas que, naquele momento, tristes e melancólicos, dir se ia contemplarem dolorosa visão, vagamente desenhada no seu espírito.

Madalena!   chamou a mãe a meia voz, receando arrancá la bruscamente às suas reflexões.

A filha voltou se, deixando ver o rosto de feições delicadas.

Que deseja, minha mãe?

Estás tão triste, filha!... Para que te prendes a recordações do passado, se estás decidida a recomeçar a tua vida... sim, porque continuas a pensar no divórcio, não é verdade?

Mais do que nunca!   protestou Madalena, com uma cintilação de cólera nas negras pupilas.

A mãe abanou a cabeça. Não acreditava que existissem motivos graves para a questão entre os dois esposos. No entanto, esta eternizava se.

Minha pobre filha!... Vejo que detestas o teu marido!

Depois do que me fez, não tenho razão para isso?

Tens, sim   concordou a mãe com indulgente sorriso   Contudo, parece me que um grande amor como o vosso, não pode morrer assim.

Pois está morto e bem morto, asseguro lhe.

É possível que não arda ainda uma centelha, por pequenina que seja?

Não, apagou se por completo.

Madame Le Hutin conservou se calada durante algum tempo. Depois, resoluta, a despeito da aparente cólera da filha, insistiu no assunto:

Tenho a certeza de que o Ricardo está arrependido e ainda te ama. O seu único desejo é que voltes para junto dele.

Madalena ergueu a cabeça e protestou indignada:

É inútil falar me nele, mãe. De futuro, considero o como um estranho.

Depois de viverem três anos unidos e felizes...

Felizes...

Felizes, sim... O Ricardo nunca te foi infiel nem te bateu...

Era o que faltava!   comentou a filha, indignada com semelhante hipótese.

Como se não tivesse ouvido o comentário, a mãe continuou:

Foi preciso que a maluca da Branca te despertasse ciúmes, contando uma história disparatada...

Disparatada, não. Muito admissível, é preferível dizer.

E tu, sem tentares adquirir a certeza da sua veracidade, tomaste a como verdadeira. Daí a discussão com o teu marido, algumas palavras desagradáveis, lágrimas, em resumo, uma cena conjugal que te levou a sair da tua casa e a vires refugiar te junto de mim. Já pensaste que estás aqui há oito dias?...

Oito dias de sossego!

Não contente com isso, exiges o divórcio!... Apesar de todas as suas tentativas, o pobre Ricardo não conseguiu obter o seu perdão.

Pobre rapaz!

Não tente comover me!   protestou Madalena com um risinho irónico   A reconciliação entre mim e meu marido é impossível, querida

mãe!

Não vejo motivo para tanta severidade!

E a incompatibilidade de génios?

Tolices!... Palavras que se proferem sob o impulso da cólera, mas das quais nos arrependemos logo... Quando se ama sinceramente, perdoa se e esquecem se os agravos...

Depois de uma zanga, os beijos são mais ternos, mais doces...

Não sou dessa opinião... Em amor, as reconciliações são como manjares requentados... Acabam por nos tirar o apetite. Não falemos no assunto, peço lhe, mãe.

Levantando se, Madalena aproximou se da mãe e, passando lhe os braços em volta do pescoço, beijou a carinhosamente.

Voltaremos a viver as duas como dantes!... Verá como vamos ser felizes!

Madame Le Hutin limitou se a sorrir. Pensava no plano que lhe ocorrera de manhã e que estava decidida a pôr imediatamente em execução.

Escuta, Madalena   disse, após prolongado silêncio   Devo dizer te o que se passa. Hesitava por supor que ainda te interessavas pelo teu marido. Mas, visto ter me enganado, vou contar te a verdade.

O que há?... perguntou Madalena um pouco sobressaltada   Aconteceu alguma coisa?... O Ricardo está doente?... Engana me?

Perante tão evidente inquietação, tão pouco em harmonia com a indiferença manifestada momentos antes, a mãe sorriu.

Não é nada disso   afirmou em tom despreocupado, como se não notasse a aflição reflectida nas pupilas da filha.

O Ricardo não está doente e não creio que procure distracções fora do lar conjugal... chegam lhe os aborrecimentos que já tem.

Aborrecimentos?...

Questões de dinheiro. Madalena soltou uma gargalhada.

Antes isso!... Já sei. Tem de me devolver o dote, transacções...

O teu dote está fora da questão. Trata se da fortuna pessoal de Sardois. Mas, não sei se devo... Talvez exagerassem quando me disseram... E, se é verdade, tanto pior para Ricardo!... Fosse mais cauteloso.

As hesitações de madame Le Hutin enervavam Madalena.

Não esteja com rodeios, mãe. Ricardo está aflito, porquê?... Que pretende dizer me?... O que aconteceu à fortuna do Ricardo?...

A fortuna do Ricardo já não existe... O teu marido está arruinado.

Arruinado!... Isso é impossível!

Não sabias que jogava na Bolsa?

Sabia, mas nunca se arriscava...

Quem pode garantir uma coisa dessas?

O Ricardo era prudente... e não empregava grandes quantias...

De princípio, talvez!... Depois, pouco a pouco, tornou se mais arrojado. Jogou em grande escala, perdeu e ficou arruinado, eis tudo.

Arruinado!   repetiu Madalena que mal podia acreditar no que ouvia   Mas não há esperança de salvação?...

Não sei. Creio que com duzentos mil francos ainda conseguiria salvar se.

Mas ele tem essa quantia!

Essa agora!... Como?

Não disse, há pouco, que o meu dote estava fora do assunto?

Disse, mas que tem isso?... Vocês vão separar se e o Ricardo não pode tocar nesse dinheiro, mesmo num caso de vida ou de morte, como este.

Porque não, se eu o autorizo a fazê lo?...

O teu marido é muito orgulhoso para aceitar, se lho ofereceres. Quando viviam juntos, era diferente. Tinham interesses comuns Com a perspectiva do divórcio, tudo mudou.

Quero lá saber do divórcio!

Mas...

Os olhos da mãe brilhavam de contentamento. A conversa tomava o rumo previsto.

Será possível que soubesse o Ricardo arruinado, aflito e não mo dissesse!

Que poderias fazer, se to tivesse dito mais cedo?...

Iria para junto dele, animá lo, confortá lo. Visto que sofre, o meu lugar é a seu lado.

É essa a minha opinião. Mas tu afirmavas que não o amavas.

Competia à mãe aconselhar me, indicar me o caminho.

No meio de uma questão, diz se muita coisa que se não sente   replicou Madalena, começando a chorar.

A mãe beijou a com ternura.

Tens razão. A culpa foi minha. Mas ainda estás muito a tempo de reparar o erro. Põe o chapéu e vai ter com o teu marido.

Imediatamente!... E se o meu dote não chegar para o salvar, a mãe auxilia nos, não é verdade?

Com certeza.

Madalena saiu da sala a correr. A mãe estava radiante. A sua experiência não a enganara.

Para que o amor renasça no coração de uma mulher, basta apenas despertar lhe um pouco de compaixão.

E, como conclusão, madame Le Hutin soltou uma gargalhada, pensando no espanto de Ricardo quando a mulher lhe falasse na perda da sua fortuna.

 

                 DINHEIRO BEM COLOCADO

 

Estava se em Setembro.

Anoitecia. As sombras cobriam os campos e o céu, carregado de nuvens, mais sombrio tornava o crepúsculo.

Um homem ainda novo percorria a estrada que liga Guingamp a Tréguier.

Parecia cansado e, de espaço a espaço, parava, hesitando no caminho a seguir, como se tivesse medo de se perder.

Olhava em volta com ansiedade, na esperança de encontrar uma casa onde pudesse descansar e comer alguma coisa a fim de readquirir forças para o resto da jornada.

Mas, por mais que procurasse, não via sombra de habitação.

Quando chegou ao extremo de uma ravina profunda e escalvada, soltou uma exclamação de alegria.

À direita, avistou um casebre, com o telhado meio arruinado, paredes fendidas, abrigado por três ou quatro frondosos castanheiros.

Sentada à porta da miserável choupana estava uma velhota, cujo aspecto era mais miserável ainda.

Quando o viajante parou diante dela, levantou se e abrigou os olhos com a mão, para o

ver melhor.

Por forma alguma impressionado com o exame, o homem pediu:

Pode dar me uma gota de cidra e uma fatia de pão, boa mulher?... Venho de longe e a sua casa é a primeira que encontro, depois de duas horas de caminho.

Sem dizer palavra, a velhota entrou em casa, fazendo lhe sinal para a seguir.

O forasteiro entrou atrás dela. Bastou lhe um olhar de relance para verificar que o interior da choça correspondia ao aspecto do exterior.

Uma enxerga, ao canto, servia de cama. Uma mesa com um dos pés partidos substituído por um tronco de árvore, amarrado com cordéis, estava encostada por baixo da janela, sem vidros. Junto da lareira apagada, um banco. Noutro canto, uma espécie de armário e alguns farrapos pendurados em pregos, eis o mobiliário do miserável aposento onde o viajante e a velha acabavam de entrar.

Puxando o banco para junto da mesa, a pobre velhinha foi buscar pão já muito duro e, pondo o diante do homem, explicou:

Aqui tem o pão. Para beber, tem de contentar se com água pura. Há muito tempo que não provo uma gota de cidra... Não tenho dinheiro e já não estou em idade de o ganhar.

Não se aflija. Beberei água.

Pegou no pão, mas quando ia parti lo, arrependeu se.

Vou talvez comer a sua ceia, tiazinha?

A velhota abanou a cabeça grisalha, coberta com um lenço remendado.

Estou habituada às privações... Não posso dar lhe outra coisa. Não recuse o pão da hospitalidade... quem sabe se amanhã ainda poderei oferecê lo e não terei de ir, também, implorar a caridade alheia?

O homem, que ia levar o pão à boca, suspendeu o gesto e interrogou com espanto:

Então este casebre não é seu?...

Moro aqui há mais de cinquenta anos, mas não passo de inquilina. Com muito custo, tenho conseguido pagar a renda: quatrocentos francos pela casa e pelo pequeno retalho de terra que vê além, a meia encosta... Mas o proprietário morreu há dezoito meses. Ficou o filho, que não é bom. Estou velha e já não posso trabalhar... Pela Páscoa não consegui arranjar dinheiro para pagar o aluguer e o novo proprietário zangou se... O pai teria sido mais indulgente e talvez com a nova colheita eu pudesse saldar a dívida. O filho, porém, foi implacável. Exigiu que lhe desse algum dinheiro por conta e como não lho pude dar, tirou me a terra e alugou a a outros... roubou me o pão.

E a casa?

Consentiu em ma deixar até ao São Miguel... se até lá não lhe pagar o ano atrasado, põe me na rua.

Até ao São Miguel?... Mas é já amanhã!

Por isso mesmo lhe disse que talvez amanhã não tivesse casa nem pão para lhe oferecer.

Não tem filhos, parentes ou amigos que se interessem por si?

Os meus filhos morreram. Quanto aos parentes, também são muito pobres. Se o senhor fosse destes sítios, saberia como é grande a miséria nestas paragens. Há casas onde os pais têm de sustentar dez a doze filhos. Como quer o senhor que se preocupem comigo, que sou sozinha e não tenho ninguém a meu cargo?

O homem parecia reflectir.

Quem é o senhorio?

Yves Le BraYc.

O moageiro que vive em Guingamp?...

Esse mesmo.

Mas esse homem é riquíssimo!... Não lhe fazem falta os seus quatrocentos francos...

Quanto mais têm mais querem!   comentou a velhota com profunda amargura.

E, vibrante de cólera, não conseguindo dominar o seu rancor, continuou:

Ainda ontem falei com esse vampiro. Disse me que viria aqui terça feira, às cinco horaS, isto é, amanhã, buscar o dinheiro. Se eu não lho der, pôr me á na rua e levará as chaves da casa consigo... Amanhã... amanhã!... Como posso eu arranjar quatrocentos francos se ele me tirou a terra!

Erguia os braços, como se quisesse tomar o céu como testemunha de tanta crueldade. Entretanto, anoitecera por completo.

Resta me pequeno coto de vela. Se o senhor tem fósforos...   ofereceu a mulher que, em toda a evidência, não tinha muito empenho em acender a luz, porque considerava isso como despesa inútil.

O forasteiro, porém, apressou se a riscar o fósforo e, embora contrariada, a velhota estendeu lhe a vela espetada num bocado de madeira, à laia de palmatória.

O homem acabara a frugal refeição, isto é, comeu o pão seco e bebeu água fresca que a dona da casa lhe trouxe num púcaro de barro.

Ao poisar o púcaro, perguntou em tom indiferente, como se não desse importância à pergunta:

Qual o caminho tomado pelo seu senhorio quando vem aqui?

Vem sempre pelo atalho que atravessa a charneca e passa atrás daquelas árvores... tanto à ida como à volta, nunca escolhe outro, por ser mais perto e poder assim visitar os outros inquilinos.

Deve vir amanhã à tarde, não é assim?

Às cinco... Foi a hora que marcou e tenho a certeza de que não falta, infelizmente para mim   concluiu soltando fundo suspiro.

O homem levantou se, consultou o relógio e, em seguida, tirando da algibeira uma bolsa de cabedal, deu a à mulherzinha.

Tome, guarde isto. Tem aqui mais de mil francos. Pague ao senhorio e com o resto ainda pode viver algum tempo...

Louvado seja Deus!   exclamou a pobre mulher que mal podia acreditar em tão grande felicidade   Tanto dinheiro para mim!... Como é bom, meu filho, como lhe agradeço!

Estendeu lhe as mãos trémulas e encarquilhadas e concluiu:

Deus o guarde e o acompanhe sempre... Enquanto viver, nunca deixarei de rezar por si.

Enigmático sorriso entreabriu os lábios do viajante.

Sim, peça a Deus que me proteja e que dê bom resultado o meu projecto para amanhã.

Com os olhos cheios de lágrimas, a velhinha prometeu, multiplicando os agradecimentos e protestos de gratidão.

O viajante interrompeu a com um gesto vago e, perscrutando o caminho que as sombras da noite envolviam, despediu se.

Adeus, boa mulher... Pague a Yves Le Brayc e, sobretudo, não se esqueça de exigir recibo, ouviu?

Não esquecerei, pode ir descansado... Deus o proteja, meu generoso amigo!...

No limiar da porta, a velhota seguiu com a vista o vulto do caridoso viajante até se sumir na escuridão. Depois foi sentar se junto da mesa, com o coração inundado por intensa alegria e profundo reconhecimento. .

 

No dia seguinte, mal as cinco horas acabavam de soar no relógio de Ploufic, a povoação mais próxima do humilde casebre, o rico moageiro bateu à porta da sua miserável inquilina.

Então!   disse em tom rude, logo que a velhota apareceu   É hoje que me paga as rendas em atraso?

E como não obtivesse logo resposta, porque a velhota queria verificar até que ponto ia a sua crueldade, e como nem por sombras contasse receber o dinheiro, o avarento senhorio começou a desfiar um rosário de injúrias, amaldiçoando a por lhe ficar com um ano de renda. .

Ao escutar tanta insolência, a pobre não conseguiu dominar se. Atirando para cima da mesa com as notas que conservava escondidas na mão, apostrofou o:

Quando se viu um homem tratar assim uma pobre velha!... Aqui tem o seu dinheiro, seu avarento... e trate de me dar o recibo... E depois, rua! Paguei a renda, estou na minha casa!... Queria pôr me fora, mas sou eu quem lhe ordena que saia e imediatamente!

E, como se a cólera lhe tivesse insuflado novas energias, empurrou o moageiro e fechou lhe a porta na cara.

Assombrado por lhe terem pago, mal podendo acreditar na rapidez dos acontecimentos, o moageiro, maquinalmente, meteu pelo atalho por onde tinha vindo.

O estreito caminho serpenteava pela charneca semeada de juncos e giestas. Aqui e ali, erguia se uma árvore raquítica e ressequida.

O sol declinava, as sombras alastravam pelo chão. Àquela hora do crepúsculo, as flores tinham perdido as cores brilhantes e todos os objectos se esfumavam num tom acinzentado e uniforme.

O silêncio era profundo. Atemorizado, assustado com a solidão dos campos, o moageiro apressou o passo.

Ao aproximar se do bosque, saltou lhe à frente um homem que, apontando lhe uma pistola, o intimou a entregar lhe todo o seu dinheiro.

Era alto e forte e tinha o rosto coberto com uma máscara preta, o que mais contribuiu para aterrorizar o avarento moageiro, que era baixo, de constituição débil e não primava pela coragem.

Trémulo, batendo os dentes, reconhecendo ser inútil qualquer resistência em face de tão forte adversário e não contando com socorro em ponto tão deserto, tomou a sensata resolução de obedecer à ordem dada em termos categóricos.

Entregou a bolsa ao ladrão que a abriu e despejou com ar desdenhoso, pois não continha mais do que algumas moedas de cobre.

Intrujão!... Pretendes enganar me?... Se não despejas imediatamente as algibeiras que devem estar cheias de dinheiro, crivo te de balas!   gritou o assaltante, em tom ameaçador.

Perdão!   balbuciou o moageiro que obedeceu no mesmo instante.

Depois de atirar aos pés do ladrão tudo quanto levava nas algibeiras, trémulo, aguardou a sua sorte.

O homem mascarado apanhou as notas de todos os tamanhos que o outro espalhara pelo chão, levantou se e guardou a pistola.

Estás livre, Yves Le Brayc... mas escuta o que vou dizer te. Toma conta com a língua e não fales no que se passou aqui esta noite, porque poderia custar te muito caro... E, de futuro, sê mais caridoso com os teus desgraçados inquilinos a quem oprimes sem dó nem piedade.

O moageiro não esperou pelo fim do discurso e fugiu a sete pés, correndo para a povoação, onde chegou meio morto de terror.

E o susto foi tão grande que esteve mais de um mês de cama.

Quanto ao ladrão, ficou parado no mesmo sítio e, mal a sua vítima se afastou, soltou uma gargalhada e tirou a máscara.

Se a velhota, que na véspera acolhera o viajante com tanta bondade, o pudesse ver, logo reconheceria no adversário do senhorio aquele que tão generoso fora com ela.

Contudo, manda a verdade que se diga, o homem não perdeu, porque o dinheiro extorquido ao moageiro era o dobro ou o triplo do que dera à velhota.

 

                         QUE GENEROSIDADE!

 

Generoso, o Groscaux!... Deixem me rir!   exclamou Guy Haume, soltando sonora gargalhada.

Todos olhámos para ele com espanto.

A ideia de pôr em dúvida a proverbial generosidade de Groscaux, nunca ocorrera a qualquer de nós... O ilustre pintor não contribuía para todas as obras de caridade?... O seu nome não figurava em todas as subscrições? Só um humorista e um céptico como Guy Haume poderia atacar assim a reputação do velho artista.

Em face do nosso silêncio e atitude de reprovação, Guy continuou a rir.

Não acreditam quando lhes afirmo que Groscaux é um egoísta, um poço de vaidade, insensível à miséria alheia?

E o donativo que fez ao Instituto, no mês passado?

Questão de publicidade, apenas. Está velho, os seus quadros ressentem se disso...

Quis que se falasse no seu nome para poder vender melhor e mais caro as telas firmadas com a sua assinatura.

E o asilo que fundou para os pintores pobres e sem família?   observei eu.

O nosso amigo encolheu os ombros.

Já lhes disse que Groscaux é um poço de vaidade. O asilo tem o seu nome. Uma maneira, como qualquer outra, de passar à posteridade... Quando se tem essa ambição, é justo que se pague.

Como continuássemos calados, mostrando nos incrédulos, Guy Haume continuou:

Não me acreditam. Pois vou contar lhes uma história que lhes dará a conhecer o verdadeiro carácter daquele a quem classificam de grande filantropo.

Vendo nos atentos, começou:

Todos vocês conhecem o Luciano Lauger, que foi um dos mais assíduos discípulos de Groscaux. O Mestre demonstrava lhe grande afeição, tratava o com intimidade, convidava o para jantar uma vez por semana e não dava uma festa sem que o rapaz assistisse... A certa altura, o Luciano pensou em casar. Infelizmente, a rapariga por quem se apaixonou, uma modesta operária, não agradou à família do rapaz. Como ele teimasse, cortaram lhe a mesada. Lauger persistiu na ideia de casar com a sua eleita, mas a sua situação de artista pouco conhecido, podia considerar se precária. Como sustentar a família, dispondo apenas de pincéis e tintas?... O pobre Luciano não sabia como resolver a situação, quando alguém o aconselhou a falar a Groscaux. O velho pintor era rico, muito rico mesmo... e dizia se que tinha bom coração. Como há pouco vocês disseram, contribuíra para todas as subscrições, fazia donativos... Com certeza não se recusaria a fazer por um amigo aquilo que fazia por desconhecidos. Animado, cheio de esperança, Lauger resolveu ir falar com o seu velho mestre.

Logo que encetou o assunto, Groscaux começou por lhe dirigir as mais calorosas felicitações: «Faço lhe os meus cumprimentos, Lauger... Aprovo incondicionalmente a sua resolução. O casamento é um alvo, na vida, e vai dar nova fase ao seu talento... Não há nada como constituirmos família!»

Muito comovido, Lauger agradeceu... falou lhe da noiva com ternura e, timidamente, contou lhe que a família não aprovava o casamento...

« Que maldade!... Por uma simples questão de orgulho, separar dois corações que se amam!... Preconceitos burgueses, tolices que já não são desta época!»

Conseguindo, por fim, calar a indignação, pareceu reflectir e, de súbito, com alegre expressão, declarou:

« Visto que decidiu casar, meu amigo, vou dar lhe um presente!... Espere um instantinho!»

Saiu da sala, deixando Lauger palpitante de esperança.

Com os olhos húmidos de lágrimas   porque os apaixonados facilmente se comovem   pensava, enternecido, que o velho pintor tinha adivinhado a sua aflição e desejava ajudá lo, facilitando lhe a realização do seu sonho.

Groscaux voltou à sala pouco depois, trazendo na mão um embrulhinho branco.

Entregou o a Lauger e, radiante, fazendo lhe notar bem a importância do presente, aguardando as palavras de agradecimento que a sua generosidade merecia, declarou com importância:

« Aqui tem, meu amigo!... É a gravata branca que eu usava no dia em que recebi a minha primeira medalha!»

Guy Haume calou se, gosando a nossa surpresa. Depois, com um sorriso irónico e desdenhoso, concluiu:

São todos assim!... Caridosos em público, mesquinhos e avarentos na intimidade, mas sempre vaidosos... Não venham falar me na generosidade dos grandes homens!

 

                                                                                Max Du Veuzit  

 

                      

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