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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MINISTÉRIO DO MEDO / Graham Greene
O MINISTÉRIO DO MEDO / Graham Greene

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MINISTÉRIO DO MEDO

 

Havia qualquer coisa num arraial que atraía Arthur Rowe de forma irresistível, tornando-o vítima indefesa do retumbar distante de uma banda e do embate de bolas de madeira em cocos. É claro que naquele ano não havia cocos, por causa da guerra: o facto podia determinar-se, em virtude das irregulares soluções de continuidade entre as casas de Bloomsbury - uma lareira plana a meio de uma parede, como as pintadas numa casa de bonecas baratas, e muitos espelhos e papéis de parede verdes - e, num recanto da tarde soalheira, do som de vidros varridos, como o ruído indolente no mar, numa praia cheia de conchas. À parte isto, o largo fazia o que podia, com as bandeiras das nações livres e uma decoração maciça evidentemente preservada por alguém desde o jubileu.

Arthur Rowe olhou com nostalgia por cima da vedação, pois continuava a haver vedações. O arraial atraía-o como a inocência: achava-se ligado indelevelmente à sua juventude, com jardins de vicariatos e raparigas de vestidos de Verão brancos e odor de guarnições herbáceas e segurança. Não sentia a menor inclinação para zombar daquelas maneiras ingenuamente elaboradas de arrecadar dinheiro para uma causa. Havia o inevitável clérigo a presidir a um assaz tímido jogo de azar, uma dama idosa com vestido de seda estampada até aos tornozelos e um ridículo chapéu de jardim, que fiscalizava oficialmente, embora com excitação, uma caça ao tesouro (uma pequena porção de terra como um parque de crianças encontrava-se marcada em talhões), e, à medida que anoitecesse - as actividades teriam de encerrar cedo por causa do block-out -, registar-se-ia algum trabalho enérgico com colheres de pedreiro. A um canto, debaixo de uma palmeira, situava-se a barraca da cartomante... a menos que fossem as instalações sanitárias. Parecia tudo perfeito ao sol de um entardecer de final de Verão. «A minha paz te concedo. Não como o mundo a conhece...» Os olhos de Arthur Rowe marejaram-se quando a pequena banda militar, que, apesar de tudo, tinham conseguido arranjar, voltou a atacar uma melodia bafienta da última guerra: «Suceda o que suceder, recordarei com frequência aquela encosta soalheira.»

Caminhando em torno da vedação, aproximou-se do seu destino: rolavam moedas por uma inclinação curva em direcção a um tabuleiro de damas - em quantidade não muito elevada. O arraial estava mal guarnecido: havia apenas três barracas, que as pessoas evitavam. Se queriam gastar dinheiro, preferiam arriscá-lo num dividendo - de moedas no tabuleiro de damas ou certificados de aforro na caça ao tesouro. Arthur Rowe movia-se com hesitação, como um intruso ou exilado que regressasse a casa após muitos anos de ausência e não estivesse bem seguro do acolhimento que receberia.

Era um homem alto, encurvado e magro, de cabelos pretos com vestígios grisalhos crescentes, rosto estreito e anguloso, nariz um pouco torcido e boca demasiado sensitiva. A roupa que trajava era de boa qualidade, mas dava a impressão de algo de pouco cuidado; na realidade, poderia tomar-se por solteirão se não exibisse um indefinível ar de casado.

- A entrada custa um xelim, mas não me parece justo - confidenciou a mulher de meia-idade junto da cancela. - Se esperar mais cinco minutos, poderá entrar por metade do preço. Considero leal prevenir sempre as pessoas que aparecem mais tarde.

- É muito atenciosa.

- Não convém que se julguem ludibriadas... mesmo que seja por uma boa causa.

- De qualquer modo, acho que não espero. Vou entrar já. Qual é a causa, exactamente?

-Bem-estar material para as mães livres... isto é, mães das nações livres.

Arthur Rowe penetrou com prazer na adolescência, na infância. Houvera sempre um arraial naquela época do ano, no jardim do vicariato, um pouco afastado de Trumpington Road, com a planície dos campos de Cambridgeshire para além do coreto improvisado, ao fundo dos quais se situavam os salgueiros debruçados sobre o sinuoso ribeiro e a mina de giz na encosta daquilo a que, naquele local, chamam colina. Ele visitava os arraiais todos os anos, com uma estranha sensação de excitação - como se tudo pudesse acontecer, como se o padrão de vida familiar pudesse ser alterado para sempre naquela tarde. A banda tocava sob o sol morno do entardecer, os metais vibravam com intensidade e os rostos das jovens desconhecidas confundiam-se com o de Mrs. Troup, que tinha a seu cargo o armazém de artigos gerais e o Correio, de Miss Savage, professora de catecismo, e das mulheres dos donos dos botequins e dos clérigos. Quando Arthur Rowe era criança, acompanhava a mãe em torno das barracas: das roupas para bebé, artigos de lã, olaria e, sempre a última e melhor, dos elefantes brancos. Tudo se passava como se fosse possível descobrir na barraca do elefante branco um anel mágico que satisfaria três aspirações ou o desejo do coração, mas o curioso era que à noite, quando regressava a casa, apenas com um exemplar em segunda mão de O Pequeno Duque, de Charlotte M. Yonge, ou um atlas antiquado que fazia propaganda do chá Mazawattee, não sentia o menor desapontamento, porque levava consigo o som dos metais da banda, a sensação de glória, de um futuro que seria mais corajoso que o actual. Na adolescência, a excitação tinha uma origem diferente: imaginava que poderia encontrar no vicariato uma rapariga que nunca vira, a audácia invadir-lhe-ia a língua e, ao fim da tarde, dançariam no relvado, entre o odor dos goivos. Mas, como esses sonhos nunca se haviam concretizado, a sensação de inocência perdurava...

E a de excitação. Ele não podia acreditar que, quando tivesse transposto a cancela e pisado o relvado sob os plátanos, não aconteceria nada, conquanto agora não procurasse uma rapariga ou um anel mágico, mas sim algo de muito menos provável: esquecer os eventos de vinte anos. O seu coração palpitava e a banda tocava, enquanto no interior do experiente cérebro a juventude persistia.

- Quer experimentar a sorte? - sugeriu o clérigo, numa voz que decerto era de barítono nas reuniões sociais.

- Se me fornecer alguns cobres.

- Treze por um xelim.

Arthur Rowe introduziu as moedas, uma após outra, na ranhura de acesso à pequena calha inclinada e viu-as oscilar no tabuleiro.

- Receio que não seja o seu dia da sorte - comentou o clérigo. - Porque não arrisca outro xelim? Mais um momento de emoção por uma boa causa.

- Acho que vou emocionar-me para outro lado.

Rowe recordava-se de que a mãe costumava dividir cuidadosamente a sua contribuição em partes iguais, embora deixasse os cocos e o jogo a cargo das crianças. Em algumas barracas era muito difícil encontrar coisa alguma, mesmo para dar aos criados...

Sob um pequeno toldo havia um bolo, numa espécie de pedestal, rodeado por um grupo de curiosos entusiásticos, enquanto uma dama explicava:

- Juntámos as nossas rações de manteiga... e Mr. Talham conseguiu arranjar as passas. - Virou-se para Arthur Rowe e perguntou: - Quer comprar um talão e tentar adivinhar o peso? Ele sopesou o bolo por um momento e declarou ao acaso:

- Um quilo seiscentos e cinquenta gramas.

- Um bom palpite, sem dúvida. Sua esposa deve ter-lhe dado lições.

- Não sou casado - replicou, afastando-se do grupo.

A guerra tornara a tarefa dos responsáveis das barracas extraordinariamente difícil. Edições da Penguin em segunda mão para as Forças Armadas enchiam a maior parte de uma delas, enquanto outra se via mais polvilhada do que cheia do vestuário usado mais estranho - rebotalhos de outra época -, longas combinações com bolsos, golas altas bordadas com suportes de osso, retiradas de gavetas eduardinas e postas finalmente de parte em atenção às mães livres, e espartilhos que rangiam. O vestuário para criança ocupava apenas uma pequena secção, agora, que a lã estava racionada e os artigos em segunda mão tinham enorme procura entre amigos. A terceira barraca era a tradicional - do elefante branco -, embora a magia negra a tenha descrito melhor desde que muitas famílias anglo-indianas cederam as suas colecções de elefantes de ébano. Também havia cinzeiros de bronze, caixas de fósforos artísticas que há muito não continham fósforos, livros demasiado envelhecidos para a barraca em que se encontravam, dois álbuns de postais, um conjunto completo de caixas de cigarros de Dickens, um escalfador de ovos eléctrico, uma longa boquilha cor-de-rosa, diversas caixas com incrustações para alfinetes de Benares, um postal assinado por Winston Churchill e uma bandeja cheia de moedas de cobre estrangeiras. Arthur Rowe inspeccionou os livros e, com um aperto de coração descobriu um decrépito exemplar de O Pequeno Duque, pelo qual pagou meio xelim, após o que prosseguiu o seu caminho. Afigurava-se-lhe que havia algo de ameaçador na própria perfeição do dia. Entre os plátanos que produziam sombra na área do tesouro, descortinou a parte destruída da secção. Dir-se-ia que a Providência o conduzira exactamente àquele ponto para lhe indicar a diferença entre então e agora. Aquela gente podia desempenhar um papel numa moralidade dispendiosa para seu benefício exclusivo.

Evidentemente que não podia deixar de tomar parte na caça ao tesouro, conquanto representasse uma triste desilusão conhecer a natureza do prémio, e, depois, não restava nada de importância além da cartomante - afinal, era uma barraca de cartomancia, e não as instalações sanitárias. Uma cortina de um tecido trazido por alguém de Argel oscilava à entrada, e uma dama pegou-lhe no braço e murmurou:

- Não perca a oportunidade. Tem de entrar. Mrs. Bellairs é maravilhosa. Ela disse a meu filho...  -E, capturando uma mulher de meia-idade que ia a passar, prosseguiu, quase ofegante: - Estava precisamente a falar a este cavalheiro de Mrs. Bellairs e meu filho.

- O mais novo?

- Sim. Jack.

A interrupção permitiu que Rowe se escapasse. O Sol acercava-se do ocaso, o largo começava a esvaziar-se, pelo que eram quase horas de desenterrar o tesouro e partir, antes da escuridão, black-out e sirene avisadora. Apesar de ter escutado muitas previsões, atrás de uma sebe no campo ou diante de cartas no salão de um transatlântico, a fascinação persistia, mesmo quando o futuro era previsto por uma amadora num arraial de jardim. Durante um breve lapso de tempo podia-se imaginar parcialmente uma viagem a outros continentes, uma morena misteriosa ou a carta com boas notícias. Uma ocasião, alguém recusara divulgar-lhe o futuro - é claro que não passava de um subterfúgio para o impressionar -, apesar de que esse silêncio se aproximara mais da verdade do que tudo o resto.

Rowe afastou a cortina e entrou.

Estava muito escuro no interior da barraca e ele quase não conseguia vislumbrar Mrs. Bellairs, um vulto volumoso envolto em algo que parecia vestes de viúva - ou talvez se tratasse de alguma espécie de trajo de camponesa. A voz grave e potente da cartomante colheu-o de surpresa: era convincente. Na realidade, esperara a inflexão trémula de uma dama cujo outro passatempo consistia nas aguarelas.

- Sente-se, por favor, e faça uma cruz na minha mão com prata.

- Está tão escuro...

No entanto, Rowe agora conseguia vê-la melhor: sempre era um trajo de camponesa, com um turbante enorme e um véu cuja extremidade se perdia atrás dos ombros. Ele introduziu a mão na algibeira, encontrou uma moeda de meia coroa e traçou uma cruz na palma da mulher.

- Dê-me a mão.

Estendeu-a e sentiu-a agarrada com firmeza, como se a cartomante tentasse adverti-lo de que não devia esperar comiseração. Uma minúscula lâmpada nocturna achava-se reflectida na faixa de Vénus, as pequenas cruzes que deviam ter significado filhos, a longuíssima linha da vida...

 

- Está actualizada - observou Rowe. - Refiro-me à lâmpada nocturna.

Sem prestar atenção ao comentário, a mulher disse:

- Primeiro o carácter e depois o passado. A lei não me permite revelar o futuro. Você é um homem de determinação e imaginação, muito sensível... à dor, mas às vezes pensa que não lhe tem sido proporcionada uma margem de manobra apropriada aos seus dons. Quer realizar coisas grandiosas, em vez de passar o dia a sonhar com elas. Não se preocupe. Pelo menos fez uma mulher feliz. - Ele tentou desprender a mão, todavia ela continuava a segurá-la com força, e só recorrendo a um gesto brusco o conseguiria. - Encontrou a verdadeira satisfação num casamento venturoso. Agora vou falar do seu passado.

- Deixe lá o passado - recomendou Rowe apressadamente. - Concentre-se antes no futuro.

Foi como se tivesse carregado num botão e parado uma máquina. O silêncio era estranho e inesperado. Ele não acalentara a esperança de a calar, conquanto temesse o que poderia dizer, pois mesmo as inexactidões sobre as coisas que morreram podem ser tão penosas como a verdade. Voltou a puxar a mão e desta vez recuperou-a, o que o fez sentir-se um pouco desconfortável, ali sentado, de novo na sua posse.

- As minhas instruções são estas - declarou Mrs. Bellairs. O que lhe interessa é o bolo. Portanto, deve indicar que pesa dois quilos duzentos e cinquenta gramas.

- É esse o peso exacto?

- Isso não tem importância.

Rowe reflectia com apreensão, ao mesmo tempo que fixava o olhar na mão esquerda da cartomante, na qual a luz incidia: uma palma quadrangular, pouco atraente, com dedos curtos e grossos cheios de anéis de prata e pedras variadas. Quem lhe transmitira instruções? Referir-se-ia aos espíritos da família? Nesse caso, por que o escolhera para ganhar o bolo? Ou tratar-se-ia apenas de um palpite da autoria dela? Talvez apoiasse um número elevado de pesos e esperasse receber pelo menos uma fatia de quem o obtivesse. Os bolos, sobretudo de qualidade, escasseavam nos tempos actuais.

- Pode retirar-se - indicou Mrs. Bellairs.

- Muito obrigado.

Ele decidiu que não perderia nada em tentar a sorte, pois a cartomante podia achar-se bem informada, pelo que tornou a visitar a barraca do bolo. Embora o jardim estivesse agora quase totalmente deserto, à excepção dos colaboradores no arraial, havia um pequeno grupo em torno do bolo, que, na verdade, se podia considerar um exemplar admirável. Rowe sempre manifestara inclinação especial para os bolos, em particular de fruta, com um vago sabor a brande Guinness.

- Não me considera glutão se efectuar nova tentativa?

- De modo nenhum.

- Nesse caso, acho que pesa dois quilos duzentos e cinquenta gramas.

Teve a consciência de um silêncio pesado à sua volta, como se toda a tarde aguardassem aquilo, mas não esperassem que acontecesse. Por fim, uma mulher corpulenta soltou uma gargalhada divertida e exclamou:

- Pode lá ser! Vê-se logo que é solteiro.

- Na verdade, o cavalheiro ganhou o bolo - anunciou a dama da barraca, com uma mirada de admoestação à outra. - Errou apenas em dez gramas. - E, exibindo um leve sorriso, acrescentou: - É como se tivesse acertado em cheio.

- Dois quilos duzentos e quarenta gramas - volveu a mulher corpulenta. - Tenha cuidado, porque deve pesar como chumbo.

- Pelo contrário, levou ovos verdadeiros.

Ante esta observação, sorriu ironicamente e afastou-se em direcção à barraca de vestuário.

Rowe apercebeu-se mais uma vez do silêncio inexplicável quando lhe entregavam o bolo. Aproximaram-se todos para assistir à singela cerimónia: três mulheres de meia-idade, o clérigo, que abandonara o tabuleiro de damas; e, erguendo os olhos, Rowe viu a cortina da cartomante desviar-se e Mrs. Bellairs contemplá-lo. Ele quase considerava o riso da mulher corpulenta como algo de normal e descontraído, em contraste com a intensidade das pessoas que o rodeavam, como se presenciassem o acto mais solene da tarde. Tudo se passava como se a experiência da infância renovada conhecesse uma variante estranha, separada da inocência. Nunca houvera nada como aquilo em Cambridgeshire.

Quase anoitecera, e os respohsáveis das barracas preparavam-se para as encerrar. A mulher corpulenta movia-se para a cancela, com um espartilho na mão (não era permitido envolver os artigos em papel), e Rowe murmurou algumas palavras de agradecimento. Sentia-se tão consciente de estar rodeado que se perguntava se alguém se desviaria para o deixar passar. Como não podia deixar de ser, foi o clérigo quem o fez, ao mesmo tempo que lhe pousava a mão no braço e exercia um pouco de pressão.

- É uma boa pessoa - murmurou. - Uma boa pessoa.

A caça ao tesouro era concluída apressadamente, mas desta vez não havia nada para Arthur Rowe, que se imobilizou com o bolo e O Pequeno Duque para observar.

- Não devíamos encerrar tão tarde - murmurou a dama, por debaixo do chapéu largo.

Mas, apesar de tarde, alguém julgara merecer a pena pagar para entrar. Um táxi acabava de parar diante da cancela e o homem que se apeou precipitou-se para a barraca da cigana como um pecador mortal receoso da morte imediata, empenhado em alcançar o confessionário antes que perdesse a derradeira oportunidade. Seria outra pessoa que depositava fé profunda na maravilhosa Mrs. Bellairs ou porventura o marido desta que a ia prosaicamente transferir dos rituais profanos para a atmosfera mais tranquila do lar?

A especulação interessava Arthur Rowe, o qual quase não se apercebeu de que o último caçador do tesouro se encaminhava para a saída e ele permanecia só sob os plátanos altaneiros com os responsáveis das barracas. Quando se deu conta, experimentou o embaraço do último cliente num restaurante que descobre subitamente ser alvo da impaciência dos empregados alinhados ao longo da parede.

No entanto, antes que conseguisse chegar à cancela, o clérigo interceptou-o com um sorriso.

- Vai já deixar-nos com o prémio?

- Acho que são horas.

- Não estaria disposto... é costume nos arraiais desta natureza... restituir o bolo... pela boa causa?

Qualquer coisa na sua atitude - um vago paternalismo, como se fosse um prefeito condescendente, disposto a ensinar os hábitos sagrados do clérigo a um novo aluno - melindrou Rowe, que replicou:

- Foram-se todos embora.

- Referia-me a leiloá-lo... entre nós. - O clérigo voltou a pousar-lhe a mão no braço e a exercer pressão. - Permita que me apresente. Chamo-me Sinclair, e dizem que tenho certa queda para... angariar fundos. - Soltou uma risada nervosa. - Vê aquela senhora acolá? É Mrs. Fraser... a Mrs. Fraser. Um pequeno leilão amigável como este concede-lhe a oportunidade de oferecer uma nota à causa... discretamente.

- Pois a mim parece um método muito indiscreto.

- São todas pessoas extremamente gentis. Gostava de lhas apresentar, Mr....

- Impedir alguém de levar o prémio não é a maneira mais aconselhável de orientar um arraial - retrucou Rowe, obstinado.

- Bom, quem vem a estes lugares não tem em mente obter lucros - volveu Mr. Sinclair, numa inflexão que permitia suspeitar da existência de um temperamento conflituoso por debaixo da delicadeza superficial.

- Não pretendo lucrar com coisa alguma. Tome lá uma libra, mas fico com o bolo. - Rowe fez uma pausa, enquanto o outro esboçava um gesto de desespero para os outros.

- Não quer antes O Pequeno Duque? Mrs. Fraser é capaz de dar também uma nota por ele tão discretamente.

- Não vejo necessidade de se exprimir nesse tom.

Não restavam dúvidas de que o sortilégio da tarde fora quebrado, e os acordes da banda perderam todas as associações suscitadas.

- Passe muito bem - despediu-se Rowe.

Todavia, ainda não se poderia retirar, pois uma espécie de delegação avançava em apoio de Mr. Sinclair, tendo à testa a dama incumbida da caça ao tesouro, que, com um sorriso cativante, anunciou:

- Receio ser portadora de más novas.

- Também quer o bolo? - redarguiu Rowe.

- Tem de o devolver - insistiu ela, com uma ponta de impetuosidade e o mesmo sorriso. - Houve engano, sabe. Acerca do peso. Não era... não é o que o senhor disse. - Baixou os olhos para uma tira de papel. - Aquela mulher tinha razão. O bolo pesa, na realidade, um quilo e setecentos gramas. E aquele cavalheiro - concluiu, apontando para a barraca - ganhou-o.

Era o homem que acabava de chegar no táxi e correra para a barraca de Mrs. Bellairs, o qual se conservava agora junto da do bolo, enquanto as damas pugnavam pela sua causa. Ter-lhe-ia a cartomante segredado um palpite mais próximo da verdade?

- É muito estranho - declarou Rowe. - Indicou o peso exacto?

A resposta da interlocutora foi precedida de breve hesitação, como se a tivessem arrastado ao banco das testemunhas sem qualquer preparação para semelhante pergunta.

- Bem, exacto não. Palpitou um quilo e novecentos gramas.

- Nesse caso, o bolo é meu, porque indiquei um quilo seiscentos e cinquenta gramas na primeira vez. Aqui têm uma libra para a causa. Boa tarde.

Desta vez apanhou-os desprevenidos e ficaram incapazes de pronunciar palavra, ao ponto de nem lhe agradecerem a nota de banco. No passeio, ele virou-se para trás, viu o grupo da barraca do bolo reunir-se aos outros e acenou-lhes com a mão. Um cartaz colado na vedação informava: «Confortos para o Fundo das Mães Livres. Vai realizar-se um arraial... com o patrocínio da realeza...»

Arthur Rowe vivia em Guilford Street. Nos primeiros tempos do blitz, uma bomba caíra no meio da rua e destruíra ambos os lados, todavia ele ficara. As casas desmoronavam-se de um dia para o outro, porém ele permanecia na sua. Havia tábuas em vez de vidros em todas as dependências e as portas não encaixavam devidamente, pelo que necessitavam de ser escoradas durante a noite. Dispunha de uma sala e um quarto no primeiro andar, cuja limpeza e arrumação se achava a cargo de Mrs. Purvis, que também permanecia... porque a casa lhe pertencia. Rowe alugara os aposentos mobilados e não se preocupara em introduzir qualquer alteração. Era como um homem acampado no deserto. Os poucos livros que havia provinham do alfarrabista ou da biblioteca pública, à excepção de A Velha Loja de Curiosidades e David Copperfield, que ele lia, como outras pessoas liam a Bíblia, repetidamente até poder citar numerosas passagens de cor, não porque lhe agradavam, mas em virtude de os ter lido em criança e não conterem recordações do estado adulto. Os quadros pertenciam a Mrs. Purvis - uma agitada aguarela da baía de Nápoles ao pôr do Sol, várias gravuras de aço e uma fotografia do extinto Mr. Purvis, com o antiquado uniforme da guerra de 1914. A hedionda poltrona, a mesa coberta com uma espessa toalha de algodão e o feto na janela pertenciam igualmente à dona da casa, enquanto a telefonia era alugada. Apenas o maço de cigarros em cima da prateleira da lareira era de Rowe, além da escova de dentes, os apetrechos de barbear (o sabão era de Mrs. Purvis) e, numa caixa de cartolina, os comprimidos para dormir. Na sala não se via sequer um frasco de tinta ou maço de papel para escrever: Rowe não escrevia cartas e pagava os impostos no Correio.

Poder-se-ia dizer que um bolo e um livro constituíam adesões apreciáveis aos seus bens.

Quando chegou a casa, chamou Mrs. Purvis e comunicou-lhe:

- Ganhei este magnífico bolo no arraial do largo. Há, por acaso, uma lata suficientemente grande?

- Tem um tamanho respeitável, para os tempos que correm - admitiu ela, com uma expressão voraz. Não era a guerra que lhe acentuava a vontade de comer, pois fora sempre assim, desde criança, como, certa ocasião, confidenciara a Rowe. Baixa, magra e mais ou menos andrajosa, tornara-se desmazelada desde a morte do marido. Quem a observasse verificaria que comia doces a todas as horas do dia. A escada exalava o cheiro característico de uma confeitaria, havia envoltórios pegajosos de caramelos esquecidos nos cantos, e, quando não se encontrava em casa, quem a procurasse descobri-la-ia na bicha de uma loja de venda de pastilhas de hortelã-pimenta. Não deve pesar menos de um quilo e meio.

- Um e setecentos gramas, exactamente.

- Tanto, também não.

- Pese-o.

Quando a mulher se afastou, ele sentou-se na poltrona e fechou os olhos. O arraial terminara: o vazio imenso da semana que se seguiria abria-se à sua frente. A sua actividade principal consistira no jornalismo, mas abandonara-a há dois anos. Existiam muitas outras a que se podia dedicar, pelo que não precisava de se preocupar.

A tropa não o aceitara e a sua breve experiência na Defesa Civil deixara-o mais só que nunca, pois tão-pouco tivera aceitação aí. Havia as fábricas de munições, mas sentia-se enraizado a Londres. Se todas as ruas associadas ao seu passado fossem destruídas, talvez se sentisse livre para partir e encontrar uma fábrica perto de Trumpington. Após um bombardeamento, costumava dar uma volta pela cidade, para anotar, com uma réstia de esperança, que o seu restaurante habitual ou determinada loja já não existiam. Equivalia a remover as grades de uma prisão, uma a uma.

Mrs. Purvis reapareceu com o bolo numa larga caixa de bolachas e fungou desdenhosamente ao comentar:

 

- Um quilo e setecentos gramas! Essas festas de caridade não merecem confiança. Não tem mais de um e meio.

- É estranho - murmurou Rowe, descerrando as pálpebras. - Muito estranho. - Reflectiu por um momento e pediu: - Dê-me uma fatia. - Ela apressou-se a obedecer e ele reconheceu que o bolo não era mau. - Pode guardá-lo aí. É daqueles que ficam melhores com o tempo.

- Vai ficar bafiento.

- Duvido, porque levou ovos verdadeiros. - Impressionado com a expressão de avidez de Mrs. Purvis, Rowe condescendeu: - Corte também um pedaço para si.

As pessoas conseguiam sempre obter coisas dele se as desejavam com veemência. O facto abalava-lhe a serenidade precária para se aperceber de que os outros sofriam. A partir daí fazia tudo por eles. Tudo.

Foi no dia seguinte que o desconhecido se mudou para o quarto das traseiras do terceiro andar de Mrs. Purvis. Rowe viu-o ao fim da tarde do segundo dia, na penumbra da escada, quando o homem conversava com a mulher num murmúrio vibrante, enquanto ela se encolhia contra a parede, com uma expressão apreensiva.

- Um dia verá - dizia o desconhecido.

Era moreno e baixo e algo contorcido pela paralisia infantil.

- Ah, Mr. Rowe! - exclamou Mrs. Purvis, visivelmente aliviada, ao vê-lo. - Este senhor queria ouvir o noticiário. Eu disse-lhe que talvez não se importasse...

- Claro que não - assentiu Rowe, abrindo a porta. - Entre. A sala, àquela hora do dia, encontrava-se quase às escuras, pois as tábuas da janela impediam a passagem do clarão do crepúsculo e o único globo de iluminação estava protegido com tiras de papel, para evitar que estilhaçasse. A baía de Nápoles quase se confundia com o papel da parede, e a luz ténue que se acendeu no quadrante da telefonia exerceu um efeito acolhedor, como uma lâmpada nocturna no quarto de uma criança de tenra idade.

- Boa noite, meninos, boa noite - proferiu uma voz com jovialidade pouco convincente.

O desconhecido instalou-se numa cadeira e começou a passar os dedos pelos cabelos, como se pretendesse sacudir a caspa. Pressentia-se que a sua posição natural era estar sentado. Tornava-se então poderoso, com os ombros largos em evidência e a estatura dissimulada.

- Chegámos mesmo a tempo - declarou, acendendo um cigarro sem oferecer a cigarreira, o que disseminou na atmosfera um odor activo a Caporal.

- Quer um biscoito? - perguntou Rowe, abrindo o armário.

À semelhança da maioria dos homens que vivem sós, acreditava que os seus hábitos eram os mesmos de toda a gente, pelo que nem lhe passava pela cabeça que alguém detestasse comer biscoitos às seis da tarde.

- Não quer antes que traga o bolo? - sugeriu Mrs. Purvis, que permanecia à entrada.

- Acho preferível acabar os biscoitos primeiro.

- Os bolos de agora não costumam valer nada - observou o desconhecido.

- Mas este levou ovos verdadeiros - volveu ela, em tom enfático. - Mr. Rowe ganhou-o num arraial de beneficência.

Naquele momento, o noticiário principiou e reduziu-a ao silêncio:

«[...] lido por Joseph MacLeod.»

O desconhecido reclinou-se na cadeira e prestou atenção. Havia algo de arrogante na sua atitude, como se escutasse factos cuja veracidade só ele se achava em condições de determinar.

- As notícias são um pouco mais animadoras hoje - comentou Rowe.

- É para nos levantar o moral - retrucou o outro.

- Não quer o bolo? - persistiu Mrs. Purvis.

- Talvez este senhor prefira um biscoito.

- Gosto muito de bolos, quando são bons - declarou o desconhecido, em tom incisivo, como se o seu gosto fosse a única coisa que interessava, esmagando o Caporal no chão.

- Nesse caso, vá buscá-lo, Mrs. Purvis. E chá.

O homem torceu o corpo deformado na cadeira para assistir à chegada do bolo e decerto apreciava particularmente aquele tipo de doces, pois parecia incapaz de desviar os olhos dele. Na verdade, dir-se-ia que continha o alento até que foi pousado na mesa sem qualquer contratempo, após o que se inclinou para a frente com impaciência.

- Uma faca, Mrs. Purvis.

- Valha-me Deus. - E ela julgou oportuno explicar: - A esta hora da noite esqueço-me sempre das coisas. Deve ser das sirenes.

- Deixe. Sirvo-me do canivete.

Rowe extraiu ternamente da algibeira o único tesouro que lhe restava, um canivete enorme, cujas numerosas aplicações não resistiu a enumerar ao desconhecido: saca-rolhas, tesoura, a lâmina que irrompia ou se recolhia quando premia um botão...

- Actualmente, só se vendem numa pequena loja perto de Haymarket.

No entanto, o outro não lhe prestava atenção, aguardando com ansiedade que o canivete iniciasse as suas funções no bolo. Ao longe, nos arrabaldes de Londres, as sirenes iniciavam os gemidos plangentes de todas as noites.

- Você e eu somos pessoas inteligentes - disse o homem subitamente. - Podemos falar sem reservas... de certas coisas.

Rowe não fazia a menor ideia do significado daquelas palavras. Algures, cerca de três quilómetros acima das suas cabeças, um bombardeiro inimigo surgiu do estuário. «Onde estão? Onde estão?», parecia pronunciar repetidamente o rugido irregular do motor. Mrs. Purvis retirara-se e soaram passos na escada, o que indicava que ela levava a sua roupa de cama para baixo. O bater da porta da rua, logo a seguir, revelou que se encaminhava para o seu abrigo favorito, ao fundo da rua.

- Não há necessidade de as pessoas como nós se zangarem... - tornou o desconhecido - com as coisas. - Colocou os ombros, deformados, sob a acção da luz, a fim de se aproximar de Rowe, ao mesmo tempo que fazia deslizar o corpo para a borda da cadeira. A estupidez desta guerra... - Abanou a cabeça. - Por que havemos, você e eu... pessoas inteligentes...? Fartam-se de falar de democracia, mas nós não tragamos essas tretas. Se é democracia que quer... não afirmo que queira, mas se quer... tem de a procurar na Alemanha. Que pretende? - perguntou de repente.

- Paz.

- Exactamente. Nós também.

- Creio que não me refiro ao seu género de paz.

No entanto, o desconhecido só prestava atenção a si próprio.

- Podemos dar-lhe a paz que pretende. Trabalhamos nesse sentido.

- A quem se refere?

- A mim e aos meus amigos.

- Objectores de consciência?

Os deformados ombros agitaram-se com impaciência.

- Não devemos preocupar-nos demasiado com a consciência.

- Que queria que fizéssemos? Deixá-los invadir a Polónia sem protestar?

- Você e eu somos homens que conhecemos o mundo. - Quando se inclinou para a frente, a cadeira deslizou uns centímetros com ele, pelo que se aproximou do interlocutor, como um objecto mecanizado. - Sabemos que a Polónia era um dos países mais corruptos da Europa.

- Quem somos nós para o determinar?

- Precisamente. - A cadeira emitiu um rangido. - Um governo como o que tínhamos... e temos...

- É como qualquer outro crime - observou Rowe pausadamente. - Envolve os inocentes. Não serve de desculpa o facto de a vítima principal ser... desonesta ou o juiz gostar da bebida...

Todavia, o desconhecido interrompeu-o em inflexão de confiança absoluta.

- Está redondamente enganado. O próprio homicídio pode justificar-se em determinadas circunstâncias. Todos conhecemos casos do género, não é assim?

- Homicídio... - ponderou Rowe, em tom pausado e pungente, reflectindo que nunca sentira a confiança daquele homem acerca de coisa nenhuma. - Costumava dizer-se: «Não faças o mal e espera o bem.»

- Ora, lérias! Isso faz parte da ética cristã. Você é inteligente. Responda-me ao seguinte: alguma vez obedeceu realmente a esse princípio?

- Bem... não.

- Claro que não. De resto, investigámos o seu passado. Mas, de qualquer modo, eu podia dizer que... é inteligente... - Dir-se-ia que a inteligência constituía a senha de acesso a uma pequena sociedade exclusivista - No instante em que o vi compreendi que não era... mais um cordeiro. - O desconhecido estremeceu com violência no momento em que uma peça antiaérea fez fogo num largo das proximidades e abalou o edifício, enquanto soava o ruído de outro avião procedente da costa. A artilharia continuou a disparar, porém o aparelho prosseguia no seu letal tenor: «Onde estão? Onde estão?», sobre as suas cabeças, e a casa voltava a estremecer. De súbito verificou-se uma espécie de gemido prolongado e crescente, como se visasse aquela construção isolada e insignificante; todavia, a bomba explodiu a uns quinhentos metros dali e quase se sentiu o chão ceder sob o impacte. - Como estava a dizer... - No entanto, perdera o à-vontade e confiança e convertera-se num deficiente empenhado em não se deixar aterrorizar pela perspectiva da morte. - Parece que vamos ter festa rija esta noite. Esperava que estivessem só a passar...

O rugido intensificou-se de novo e Rowe perguntou:

- Vai mais uma fatia de bolo? - No fundo, não podia deixar de se compadecer do homem. No seu próprio caso não era tanto a coragem como a solidão que o libertava do medo. - Talvez não seja um ataque... - esperou que o uivo se extinguisse e a bomba deflagrasse, agora mais perto, porventura ao fundo da rua, e apercebeu-se de que o Pequeno Duque caíra a seu lado - ... muito prolongado.

Aguardaram que tombasse uma série de bombas, cada vez mais próximas, mas não houve outras.

- Não, obrigado... que é como quem diz: sim, por favor.

O homem tinha uma maneira curiosa de esfarelar o bolo quando cortava a fatia, talvez por influência dos nervos. Rowe reflectiu que ser inválido em tempo de guerra era uma coisa horrível e sentiu uma compaixão perigosa gerar-se nas entranhas.

- Disse que investigaram o meu passado; mas quem são vocês? - Cortou igualmente um pedaço de bolo para si, ao mesmo tempo que se compenetrava dos olhos do desconhecido fixos nele, como um indivíduo faminto que observasse avidamente, através da janela de um restaurante, um comensal a contas com uma lauta refeição. Na rua soou a sirene de uma ambulância e o ronco do avião reapareceu. Os ruídos, incêndios e mortes de todas as noites haviam recomeçado e continuariam a sua rotina até às três ou quatro da madrugada, em virtude do horário de trabalho de um piloto de bombardeiro. Há pouco comecei a explicar-lhe as numerosas utilidades do meu canivete... - Durante a preocupação intensa de um ataque aéreo tornava-se difícil manter uma única linha de raciocínio.

O desconhecido interrompeu-o, pousando-lhe a mão no pulso: uma mão nervosa e ossuda, unida a um braço enorme.

- Houve engano, como sabe. O bolo não se lhe destinava.

- Não compreendo. Ganhei-o.

- Não devia ser você a ganhá-lo. Houve engano nos números.

- Agora é um pouco tarde para remediar o erro, não lhe parece? Já comemos quase metade.

Todavia, o inválido não prestou atenção a estas palavras e anunciou:

- Incumbiram-me de o recuperar. Pagaremos o que for razoável.

- Quem o incumbiu?

Mas Rowe sabia de quem se tratava. No fundo, a situação era cómica, e ele revia o grupo ineficiente que atravessava o relvado na sua direcção: a mulher idosa de chapéu ridículo, que decerto pintava aguarelas, a dama expansiva responsável pelo bolo e a admirável Mrs. Bellairs.

Por fim, com um sorriso, retirou a mão e inquiriu:

- Qual é a vossa intenção? - Não se recordava de um sorteio do género encarado com tanta gravidade. - Para que querem o bolo? - Notou que o outro o olhava com uma expressão sombria e tentou desanuviar o ambiente. - Deve tratar-se de uma questão de princípio. Não pense mais nisso e beba mais chá. Vou buscar o bule.

- Não se incomode. Quero discutir...

- Não há mais nada para discutir e não é incómodo nenhum.

- Nesse caso, não há nada a fazer? - insistiu o desconhecido, tentando retirar a caspa que se alojara nas unhas.

- Absolutamente nada.

- Sendo assim... - Apurou os ouvidos, no momento em que o avião seguinte se aproximava e tornou a agitar-se na cadeira com desconforto, enquanto a artilharia disparava, agora na parte oriental da cidade. - Talvez aceite um pouco mais de chá.

Quando Rowe reapareceu, o desconhecido servia-se de leite... e cortara mais uma fatia de bolo, parecendo curiosamente confortável, com a cadeira mais perto do aquecedor de gás. Gesticulou na direcção da outra cadeira, como se fosse ele o dono da casa, e dava a impressão de ter esquecido a troca de palavras de pouco antes.

- Durante a sua ausência estive a pensar que as únicas pessoas livres são os intelectuais como nós. Não estamos vinculados a convenções, emoções patrióticas, sentimentalismos... não temos aquilo a que eles chamam interesses na pátria. Não possuímos acções e é-nos indiferente que a empresa abra falência. Trata-se de uma imagem apropriada, não acha?

- Porque se exprime no plural?

- Não descortino indícios de que você tome parte activa. - Com um leve sorriso de cumplicidade, acrescentou: - E sabemos bem porquê, hem?

Rowe levou a chávena aos lábios e verificou que o chá estava demasiado quente para engolir. Um sabor singular assolava-o como uma coisa recordada, desagradável. Cortou um pedaço de bolo para o fazer desaparecer na boca e, erguendo os olhos, notou a expressão especulativa do inválido, na expectativa. Ingeriu novo sorvo e recordou-se. A vida atacava-o como um escorpião, pelas costas. A sua principal sensação era de assombro e irritação, por alguém lhe fazer aquilo a ele. De súbito largou a chávena e levantou-se. O outro retrocedeu, como um objecto sobre rodas, as largas costas e os fortes braços preparados... e, nesse instante, a bomba explodiu.

Desta vez não tinham ouvido o avião, e a destruição descera com lentidão, como se deslizasse por cordas de seda. As paredes desabaram repentinamente e eles nem se aperceberam do ruído.

O sopro de uma explosão é uma coisa curiosa: tanto pode exercer o efeito de um sonho embaraçoso como da vingança grave de um homem contra o seu semelhante, deixando-o desnudo na rua ou na cama ou sentado na sanita, exposto aos olhos da vizinhança. A cabeça de Rowe vibrava com intensidade. Afigurava-se-lhe que estivera a caminhar adormecido e agora encontrava-se deitado numa posição e lugar estranhos. Levantou-se e viu uma quantidade enorme de frigideiras e caçarolas espalhadas no chão, enquanto um objecto parecido com o motor retorcido de um carro velho não passava do que restava de um frigorífico. Ergueu os olhos e viu a Ursa Maior por detrás de uma poltrona suspensa, uns dez metros acima da sua cabeça. Baixando-os, descortinou a baía de Nápoles, intacta, a seus pés. Parecia-lhe encontrar-se numa terra estranha, sem mapas para se orientar, como se tentasse determinar a sua posição pelas estrelas.

Três foguetes luminosos principiaram a descer com lentidão, intensos, como ornamentos de uma árvore de Natal. A sombra de Rowe projectou-se na sua frente e ele sentiu-se exposto como um evadido da prisão sob a acção dos projectores. Uma das coisas menos agradáveis acerca de um bombardeamento aéreo é que se prolonga: o desastre pessoal de um indivíduo pode ocorrer cedo, mas isso não impede que ele prossiga. Os foguetes luminosos eram alvejados por metralhadoras, e dois quebraram-se e apagaram-se com sons semelhantes ao estalar de pratos, enquanto o terceiro pousava em Russell Square. Em seguida, a escuridão reapareceu, fria e confortável.

No entanto, ao clarão dos foguetes, Rowe vira diversas coisas. Descobrira onde estava: na cozinha da cave. A poltrona sobre a sua cabeça encontrava-se no seu quarto do primeiro andar, a parede da frente desaparecera, assim como o telhado, e o inválido jazia ao lado da cadeira, um dos braços suspenso no espaço, inerte. Largara precisamente aos pés dele um pedaço de bolo. Naquele momento, um membro da Defesa Civil perguntou:

- Está alguém ferido aí em baixo?

E Rowe, sentindo a irritação reaparecer, replicou:

- O caso não é para brincar.

- A quem o diz - volveu o outro, da rua, destroçada. Instantes depois, aproximou-se um colega que articulava como uma bruxa num pesadelo de criança:

- Onde está? Onde está? Onde está?

 

INVESTIGAÇÕES PARTICULARES

Persistiu uma cicatriz profunda, muito depois de a dor cessar.

O Pequeno Duque

A Orthotex - o departamento de investigações particulares há mais tempo estabelecido na metrópole - ainda conseguia sobreviver na área intacta de Chancery Lane, perto de um leiloeiro de livros, entre um botequim que, em tempo de paz, se tornara famoso pelos seus petiscos e uma livraria legal. Situava-se no quarto andar, mas não havia elevador. No primeiro funcionavam os serviços de um notário público, no segundo encontrava-se a redacção de uma publicação mensal denominada Fitness and Freedom e no terceiro existia um apartamento que, de momento, ninguém ocupava.

Arthur Rowe impeliu a porta com a indicação «Investigações», mas não viu ninguém. Havia parte de uma salsicha envolta em massa folhada num pires junto de uma lista telefónica aberta, mas podia achar-se lá há várias semanas. Conferia ao gabinete o aspecto de abandono súbito, como os palácios de reis no exílio, onde o guia mostra aos turistas as revistas ainda abertas na página que a realeza lia antes de se pôr em fuga, vários anos antes.

Rowe aguardou um momento e decidiu prosseguir a exploração das instalações, pelo que impeliu nova porta.

Um homem calvo começou a ocultar apressadamente uma garrafa num armário e ele proferiu:

- Desculpe, mas não vi ninguém para me atender. Procuro Mr. Rennit.

- Sou eu.

- Indicaram-me que o consultasse.

O calvo observava Rowe com desconfiança, enquanto conservava uma das mãos introduzida no armário.

- Pode saber-se quem?

- Já foi há anos.. Um homem chamado Keyser.

- Não me recordo dele.

- Eu quase também não me lembrava. Não éramos amigos. Conhecemo-nos no comboio. Explicou-me que tivera problemas com umas cartas...

- Devia ter marcado entrevista.

- Não sabia. Mas parece que não precisa de clientes. Portanto, apresento as minhas despedidas.

- Então, que é isso? Não merece a pena enxofrar-se. Sou um homem muito ocupado, pelo que não posso perder tempo com... Enfim, se for breve... - À semelhança de quem se ocupava de actividades inconfessáveis (livros pornográficos ou operações ilegais), Mr. Rennit tratava o potencial cliente com uma espécie de desdém arrogante, como se não fosse ele quem desejava vender os seus serviços, mas sim o outro que se achasse ansioso por comprá-los. Em seguida, sentou-se atrás da secretária e, após uma pausa, indicou: Puxe uma cadeira. - Procurou numa gaveta, apressou-se a fazer desaparecer algo em que pegara e terminou por descobrir um bloco de notas e lápis. - Ora bem, quando começou a aperceber-se de alguma coisa fora do normal? - Reclinou-se e explorou um dente com o bico do lápis, enquanto a respiração silvava levemente por entre os dentes irregulares. De um modo geral, tinha um aspecto abandonado, como a sala contígua: a gola do casaco necessitava de contactar urgentemente com o ferro e a camisa não constituía um modelo de asseio. - Nome? - continuou. - Endereço actual? - Pôs-se a fazer deslizar o lápis no papel, para anotar as informações. Quando ouviu mencionar o hotel, ergueu a cabeça e articulou com gravidade: Na sua situação, todos os cuidados são poucos.

- Talvez fosse melhor eu começar pelo princípio - aventurou Rowe.

- Meu caro senhor - redarguiu Mr. Rennit. - Posso garantír-lhe que conheço todos os princípios. Ando nisto há trinta anos. Trinta anos, hem! Cada cliente que me aparece julga-se um caso único. Ora, não é nada disso, mas sim mais uma repetição. De si, só preciso de respostas a algumas perguntas. Podemos ocupar-nos do resto sem a sua intervenção. Posto isto, quando se apercebeu de algum facto anormal, da frieza de sua mulher?

- Não sou casado - esclareceu Rowe.

O outro lançou-lhe uma mirada de reprovação que o fez sentir-se embaraçado.

- Quebra de promessa? Escreveu-lhe alguma carta?

- Também não se trata disso.

- Chantagem?

- Não.

- Então, por que me procurou? - quis saber M. Rennit, irritado. Acrescentou a habitual tirada de «sou um homem muito ocupado» e reconheceu intimamente que nunca ocupara o tempo de uma forma tão infrutuosa. Havia duas cestas em cima da secretária com as indicações «Entrada» e «Saída», porém esta última achava-se vazia e na outra via-se apenas um exemplar da revista Men Only. Rowe talvez se tivesse retirado se conhecesse algum outro endereço e não subsistisse a sensação de compaixão mais promíscua que a luxúria. Mr. Rennit estava furioso, porque não lhe fora concedido tempo para ensaiar a sua actuação, e não podia, obviamente, dar-se ao luxo de manifestar irritação. Na verdade, existia uma espécie de nobreza faminta na sua cólera.

- Um detective particular só se ocupa de divórcios e quebras de promessa de casamento?

- A minha profissão é respeitável e dispõe de uma tradição. Não sou o Sherlock Holmes. Por conseguinte, não espere ver um homem com o meu cargo rastejar pelo chão, de lupa em punho, à procura de manchas de sangue. - Com um assomo de dignidade melindrada, Mr. Rennit salientou: - Se está envolvido em apuros dessa natureza, aconselha-o a procurar a Polícia.

- Seja razoável - solicitou Rowe. - Sabe que precisa tanto de um cliente como eu dos seus préstimos. Posso pagar... pagar bem. Seja sensato e abra o armário, para tomarmos uma bebida. Estes bombardeamentos são um veneno para os nervos. Uma pessoa precisa de um estimulante.

A altivez rígida do detective esvaiu-se com lentidão, enquanto ele contemplava o interlocutor em silêncio. Por fim passou a mão pela calva e admitiu:

- Talvez tenha razão. Confesso que nunca objectei aos estimulantes como estimulantes.

- Hoje em dia, toda a gente precisa deles.

- Aquilo desta noite em Purley foi terrível. Não propriamente por causa das bombas, que não foram muitas, mas sim da expectativa. Não é que não tivéssemos a nossa quota-parte delas e de minas...

- A casa onde eu vivia foi atingida esta noite.

- Não me diga - proferiu Mr. Rennit, sem interesse, enquanto abria o armário e puxava da garrafa. - A semana passada... em Purley... - Parecia um financeiro empenhado em abordar as suas operações na Bolsa. - A menos de cem metros...

- Ambos precisamos de uma bebida.

- Reconheço que fui um pouco brusco. - Quebrado o gelo, tornou-se subitamente mais tratável. - A guerra prejudica muito as actividades como a minha. - As reconciliações... nunca pensei que a natureza humana se pudesse revelar tão inconstante. Depois, os registos ainda vieram complicar mais as coisas. As pessoas já não se atrevem a frequentar os hotéis como dantes. E não se consegue provar nada num automóvel.

- Sim, calculo que atravesse um momento difícil.

- Estou reduzido à posição de aguentar a ondulação, para que o barco não se afunde até voltarmos a ter paz. Nessa altura vai haver uma destas avalanchas de divórcios e quebras de promessa de casamento... - Mr. Rennit contemplou a situação com optimismo incerto, por cima da garrafa. - Não se importa de beber por uma chávena? Quando a paz chegar, uma firma estabelecida desde longa data como esta... bem relacionada... há-de ser uma mina de ouro. - Comprimiu os lábios num esgar penalizado. - Pelo menos tento convencer-me disso.

Enquanto o escutava, Rowe reflectia, como fazia com frequência, que, embora não se pudesse tomar a sério um mundo tão singular como este, acabava sempre por aceitá-lo com uma gravidade mortal. Os grandes nomes destacavam-se-lhe constantemente no espírito, como estátuas - justiça e retribuição -, embora, bem espremidos, se resumissem sempre a centenas e centenas de Mr. Rennit. Mas é claro que, para quem acreditava em Deus - e no Diabo -, a questão não apresentava um aspecto tão cómico. Com efeito, o Diabo - e Deus também - nunca descurava uma oportunidade de aproveitar as pessoas cómicas, fúteis, como as pequenas naturezas suburbanas, os inválidos e os pervertidos, para os seus fins. Quando era Deus que o fazia, falava-se de nobreza, e no caso do Diabo falava-se de maldade, mas o material não passava da mediocridade humana em ambos os casos.

- ... novas ordens. Mas será sempre o mesmo mundo, espero - prosseguia Mr. Rennit.

- Apesar disso, continuam a acontecer coisas estranhas. Foi por isso que vim.

- Sem dúvida. Vamos encher as chávenas e tratar imediatamente de negócios. Lamento não dispor de água gasosa. Explique-me o que lhe aconteceu... como se falasse com o seu melhor amigo.

- Alguém tentou matar-me. Não parece importante se nos lembrarmos de que morrem tantos de nós todas as noites, mas confesso que fiquei fulo.

- Disse que não era casado? - inquiriu Mr. Rennit, olhando Rowe por cima da chávena, com uma expressão impassível.

- Não há nenhuma mulher envolvida no assunto. Tudo começou com um bolo. - Rowe descreveu o arraial, a ansiedade dos responsáveis das barracas para recuperar o bolo, a visita do desconhecido... e, finalmente, a bomba. - Confesso que não voltava a pensar no assunto se não fosse o sabor do chá.

- Produto da imaginação, provavelmente.

- Mas reconheci o sabor. Era... hioscina - admitiu com relutância.

- O homem morreu?

- Conduziram-no ao hospital, mas quando telefonei, esta manhã, tinham ido buscá-lo. Sofrera apenas a concussão e os amigos queriam-no a seu lado.

- O pessoal do hospital deve ter ficado com o nome e endereço.

- Decerto, mas quando consultei o roteiro de Londres, verifiquei que o endereço não existia.

Calou-se e olhou o detective com uma réstia de esperança, todavia este limitou-se a proferir calmamente:

- Pode haver uma dezena de explicações, claro. - Enfiou os polegares nas cavas do colete e

considerou: - Por exemplo, talvez se tratasse de uma espécie qualquer de conto do vigário. Esses fulanos estão sempre a congeminar métodos novos. Podia propor-lhe a entrega do bolo... por uma quantia avultada, alegando que continha qualquer coisa de valor.

- Continha qualquer coisa de valor?

- Os planos de um tesouro espanhol no fundo do mar ao largo da costa da Irlanda. Um pretexto mais ou menos romântico. Ele pretenderia que lhe desse uma prova de confiança em troca. Uma prova substancial, como, digamos, vinte libras, enquanto se dirigia ao banco. E deixava o bolo nas suas mãos, claro.

- Parece-me uma hipótese...

- Havia de resultar. - Era extraordinária a forma como Mr. Rennit conseguia reduzir tudo ao nível dos lugares-comuns. Os próprios bombardeamentos aéreos eram coisas que só aconteciam em Purley. - Existe outra possibilidade se as suas suspeitas acerca do chá correspondem à verdade. Confesso que não acredito, note-se. Ele pode tê-lo abordado com a intenção de roubar. Talvez o seguisse desde o arraial. Distribuiu muito dinheiro em donativos?

- Bem, dei-lhes uma libra, quando exigiram a devolução do bolo.

- Quem oferece uma libra por um bolo é uma pessoa de posses - proclamou, com uma sensação de alívio. - Os gatunos não costumam fazer-se acompanhar de drogas, mas o nosso homem parece ser um nevrótico.

- E quanto ao bolo?

- Um mero pretexto. Ele não o procurou realmente para o reaver.

- Passemos à explicação seguinte. Disse que havia uma dezena.

- Prefiro sempre a explicação linear - declarou o detective, fazendo deslizar os dedos ao longo da garrafa de uísque. - Talvez tivesse de facto havido engano quanto ao bolo e o homem tencionasse recuperá-lo. Podia conter um prémio de qualquer espécie...

- A droga foi imaginação minha?

- É a explicação linear.

A serenidade do interlocutor surpreendia Rowe, que, com uma ponta de ressentimento, indagou:

- Em toda a sua longa carreira de detective, nunca se lhe deparou um personagem conhecido por assassino?

- Aqui para nós, não - confessou o interpelado, franzindo o nariz por cima da chávena. - A vida não é como nos romances policiais, sabe. Os assassinos não cruzam o nosso caminho com facilidade. Pertencem a uma classe própria.

- É uma revelação interessante.

- São muito, mas mesmo muito, raros os que se podem considerar cavalheiros. Fora dos livros da especialidade. Não é exagerado dizer que fazem parte das ordens inferiores.

- É possível - concedeu Rowe. - Devo esclarecer que sou um assassino.

- Ah, ah - fez Mr. Rennit, sem saber que atitude assumir.

- É isso que me enfurece - volveu Rowe. - Que se intrometessem comigo. Não passam de amadores.

- E você é... profissional? - perguntou o detective, com um sorriso artificial

- Sou, se se pode classificar desse modo quem pensa nisso durante dois anos antes de passar à prática, sonha com o tenebroso acto quase todas as noites, até que vai buscar a droga à gaveta. Depois senta-se no banco dos réus e tenta imaginar o que o juiz pensa, observa as expressões dos jurados para procurar adivinhar-lhes as intenções. Havia uma mulher de pince-nez que não conseguia separar-se da sombrinha... A seguir, aguarda durante horas intermináveis até que eles reapareçam com o veredicto, enquanto o guarda prisional se esforça por encorajar o réu, embora este saiba que, se ainda restar uma ponta de justiça no mundo, a decisão só pode ser uma...

- Dá-me licença por um momento? Pareceu-me ouvir o meu assistente na outra sala.

Mr. Rennit levantou-se da secretária e desapareceu pela porta com notável rapidez, enquanto Rowe permanecia sentado, com as mãos entre os joelhos e reflectindo: «Coloca um relógio, Senhor, diante da minha boca e uma porta em torno dos meus lábios...» De súbito, ouviu o breve tilintar de uma campainha na outra sala e moveu-se na direcção do som. Mr. Rennit encontrava-se ao telefone e fitou-o com uma expressão apreensiva, após o que desviou os olhos para a salsicha envolta em massa folhada, como se fosse a única arma ao seu alcance.

- Vai ligar para a Polícia ou para um médico? - perguntou Rowe.

- Para o teatro - replicou o detective, em voz trémula. Acaba de me ocorrer que minha mulher...

- É casado, apesar de toda a sua experiência?

- Pois sou. - Uma profunda propensão para não falar contraiu as feições de Mr. Rennit no momento em que soou uma voz ténue na linha. - Duas plateias na primeira fila - indicou e pousou o auscultador apressadamente.

- Era do teatro?

- Sim, do teatro.

- E não perguntaram em que nome ficavam os bilhetes? Porque não se mostra razoável? No fundo, eu tinha de lhe dizer, pois precisa conhecer todos os factos, para os tomar em consideração, se trabalhar para mim.

- Em consideração?

- Podem revestir-se de importância. Foi uma coisa que descobri durante o julgamento: tudo se pode revestir de importância. O facto de ter almoçado só, no Restaurante Holborn, por exemplo. Quiseram saber por que me encontrava só. Quando respondi que às vezes gostava de me isolar, devia ter visto como inclinaram as cabeças para o júri. Revestia-se de importância. - Rowe notou que as mãos recomeçavam a tremer. - Como se pretendesse ficar só toda a vida.

- Fez uma pausa, enquanto o detective pigarreava para aclarar a garganta seca. - O próprio facto de minha mulher ter periquitos...

- Afinal, é casado?

- Foi minha mulher que assassinei. - Experimentava dificuldade em expor os pormenores pela sequência conveniente. As pessoas não deviam formular perguntas desnecessárias e ele, de qualquer modo, não pretendia tornar a assustar o homem. - Não se preocupe. A Polícia está ao corrente de tudo.

- Absolveram-no?

- Fui detido durante o desejo de Sua Majestade. Foi um desejo breve. No fundo, eu não estava louco. Eles precisavam simplesmente de encontrar um pretexto. - Com uma inflexão de amargura, prosseguiu: - Compadeceram-se de mim, e é por essa razão que continuo a viver. Os jornais chamaram-lhe morte misericordiosa. – Moveu a mão diante do rosto, como se uma teia de aranha o incomodasse. Misericordiosa para ela ou para mim, foi coisa que não explicaram. E eu próprio não sei responder.

- Não creio que possa... - começou Mr. Rennit, interrompendo-se para recobrar o alento e tendo o cuidado de manter uma cadeira entre ambos. - É um assunto fora da minha especialidade.

- O preço não é problema - advertiu Rowe. - Em última análise, a questão é sempre a mesma. - No instante em que pressentiu que a avidez despontava no pequeno gabinete, pairando sobre a salsicha parcialmente consumida e a lista telefónica aberta, compreendeu que marcara um ponto a seu favor. Na realidade, o detective não se podia permitir mostrar-se atencioso. - Um assassino é como um par do reino: paga mais em virtude do título. Por muito que tente viajar incógnito, a verdade acaba sempre por transpirar.

 

ASSALTO FRONTAL

Era duro não contar com um camarada e amigo fiel a seu lado.

O Pequeno Duque

Rowe seguiu directamente da Orthotex para as Mães Livres, depois de assinar um contrato com Mr. Rennit, segundo o qual lhe pagaria cinquenta libras por um período de duas semanas para promover investigações. O detective explicara que as despesas seriam elevadas - a agência só utilizava os homens mais experientes e o agente que ele pudera ver antes de sair possuía de facto experiência. (Mr. Rennit apresentou-o como sendo «A.2», mas não tardou a dirigir-se-lhe distraidamente por Jones.) Era de pequena estatura e, à primeira vista, insignificante, com nariz estreito e pontiagudo, chapéu castanho e com uma cinta manchada, fato cinzento, que podia ter outra cor anos antes, e lápis e caneta no bolso do peito do casaco. Mas quem o observava uma segunda vez, apercebia-se de experiência; descortinava-a nos olhos argutos, na boca de aspecto frágil, sempre na defensiva, e nas pequenas rugas de ansiedade na fronte - uma experiência de numerosos corredores de hotel, de criadas de quarto subornadas e gerentes furiosos, do insulto que não podia ser encarado de forma ofensiva, da ameaça que tinha de ser ignorada, da promessa jamais cumprida. O homicídio revestia-se de uma espécie de dignidade em comparação com aquela experiência surda em segunda mão de paixões secretas atemorizadas.

Desenvolveu-se imediatamente uma discussão em que Mr. Jones não participou, permanecendo junto da parede, com o velho chapéu na mão, enquanto observava e escutava, como se estivesse do lado de fora de uma porta de hotel. Mr. Rennit, que considerava, obviamente, a investigação um mero capricho de um desequilibrado, argumentava que Rowe não devia intervir nas diligências.

- Deixe tudo a meu cargo e de «A.2» - recomendou. - Se se trata de uma tentativa de conto do vigário...

Por outro lado, não acreditava que a vida do cliente tivesse sido ameaçada, apesar de que prometeu:

- Investigaremos os registos dos farmacêuticos, embora eu duvide de que encontremos alguma coisa...

- Fiquei fulo - insistia Rowe. - Ele disse que averiguara a minha vida e, mesmo assim, teve o descaramento... - Acudiu-lhe uma ideia e prosseguiu, excitado: - Era a mesma droga. As pessoas diriam que foi suicídio, que guardei alguma escondida.

- Se isso tem algum fundamento, o bolo foi entregue à pessoa errada - volveu Mr. Rennit. - Portanto, basta-nos encontrar a outra. No fundo, tudo se resume a uma questão de pesquisas persistentes. Começaremos por Mrs. Bellairs. Porque é que lhe revelou o peso do bolo? Porque o confundiu com a outra pessoa, na penumbra da barraca. Além disso, deve haver uma certa parecença... - Trocou um olhar de inteligência com Jones. - As coisas apresentarão um aspecto mais claro quando a interrogarmos. Jones encarrega-se disso, depois de a localizar, o que não será difícil.

- Era muito mais fácil eu perguntar por ela nas Mães Livres.

- Aconselho-o a deixar Jones preocupar-se com essa faceta do caso.

- São capazes de o julgar um espião das autoridades ou algo do género.

- Não é curial o próprio cliente encarregar-se das diligências.

- Se as minhas suspeitas não se confirmarem, não hesitarão em me indicar o endereço dela, de contrário tentarão matar-me, porque, embora o bolo desaparecesse, inteirei-me da sua existência e de que há pessoas interessadas nele. A missão de Jones consiste em não me perder de vista.

O visado passou o chapéu para a outra mão e tentou chamar a atenção de Mr. Rennit, até que este perguntou:

- Queria dizer alguma coisa, Jones?

- Não pode ser.

- Porquê?

- É contra a ética profissional.

- Concordo com ele - disse Rennit, virando-se de novo para o cliente.

Não obstante, apesar da discordância do agente, Rowe conseguiu fazer prevalecer a sua sugestão. Por fim abandonou a agência e avançou pela rua destroçada, entre as ruínas de Holborn. No estado de solidão em que se encontrava, confessar a sua identidade a alguém quase equivaleria a fazer um amigo. Eram extraordinários os ardis e imprevistos do destino, a forma como as conversas giravam em torno do mesmo tema, as longas memórias que algumas pessoas tinham acerca dos nomes. Agora, na estranha paisagem, em que as lojas de Londres se achavam reduzidas a montes de escombros como os de Pompeia após o cataclismo, ele movia-se no seu elemento. Fazia parte daquela destruição, tal como já não pertencia ao passado - os longos fins-de-semana no campo, os risos nas alamedas ao entardecer, as andorinhas equilibradas nos fios do telégrafo, a paz. A paz sofrera um fim abrupto num dia 31 de Agosto - o mundo aguardou mais um ano. Rowe caminhava como um fragmento de pedra entre outras pedras - encontrava-se protectoramente colorido e por vezes experimentava, acudindo à superfície do seu remorso, uma espécie de orgulho maligno, como o de um leopardo movendo-se em harmonia com todos os outros pontos da superfície do mundo, embora com maior poder. Não fora um assassino quando matara. Só depois começara a enveredar pela criminalidade como um hábito de pensamento. O facto de aqueles homens terem tentado matá-lo, a ele que conseguira, de uma assentada, destruir a beleza, bondade e paz, constituía uma forma de impertinência. Havia ocasiões em que lhe parecia que toda a criminalidade do mundo era a sua, e, de súbito, ante algo de trivial - uma carteira de mulher, um rosto num elevador que subia enquanto ele descia, uma fotografia no jornal -, todo o orgulho se esvaía. Apenas tinha consciência da estupidez do seu acto, queria isolar-se de tudo e todos e chorar, esquecer que fora feliz. Nessas ocasiões, uma voz segredava-lhe: «Dizes que a mataste por compaixão. Porque não te compadeces de ti?» Sim, porque não? Simplesmente, é mais fácil matar uma pessoa que se ama do que a si próprio.

As Mães Livres haviam ocupado uma sala vazia num vasto e moderno bloco branco perto do Strand. Era mais ou menos o mesmo que entrar num necrotério mecanizado, com um ascensor separado para cada câmara. Rowe subiu em silêncio até ao quinto piso. Em seguida, um longo corredor, uma porta de vidro fosco, e alguém de pince-nez encavalitado no nariz entrou na cabina, com uma pasta de cartolina que ostentava a indicação «Muito urgente», e a ascensão prosseguiu. No sétimo andar havia uma porta com os dizeres: «Confortos para as Mães das Nações Livres. Informações.»

Ele começava a convencer-se de que, afinal, Mr. Rennit tinha razão. A mulher da classe média e com aspecto de eficiência sentada diante de uma máquina de escrever tinha um ar indiscutível de incorruptibilidade e usava um pequeno emblema indicativo de que era membro honorário da organização.

- Que deseja? - inquiriu em tom incisivo, e toda a irritação e orgulho dele se dissiparam.

Tentou recordar-se do que o desconhecido dissera acerca de o bolo não se lhe destinar. Na realidade, não existia nada de sinistro na frase até ao ponto em que agora a conseguia evocar, e, quanto ao sabor, porventura não acordara com frequência, a meio da noite, com um gosto desagradável na língua?

- Que deseja? - repetiu a mulher.

- Vim para tentar obter o endereço de uma certa Mrs. Bellairs.

- Não trabalha aqui ninguém com esse nome.

- Está relacionada com o arraial.

- Ah, todos os participantes eram voluntários e não podemos divulgar endereços de pessoas nessas condições.

- Tudo indica que houve um engano - persistiu Rowe. Entregaram-me um bolo a que não tinha direito...

- Vou saber.

Com estas palavras, a mulher levantou-se e desapareceu por uma porta ao fundo da sala. Ele apenas dispôs de tempo para se perguntar se cometera uma imprudência e se não teria sido preferível que se fizesse acompanhar de «A.2». No entanto, a normalidade da situação regressou ao primeiro plano do seu espírito: ele era a única coisa anormal no meio de tudo.

A mulher reapareceu quase em seguida para o convidar a entrar. Quando passou diante da máquina de escrever, Rowe lançou uma olhadela rápida ao papel e leu: «Lady Cradbrooke agradece a Mrs. J. A. Smythe-Philipps a gentil oferta de chá e farinha [...]»

Nunca se acostumara a emoções ocasionais: só quando a pessoa amada está fora do alcance o amor se torna completo. A cor do cabelo e configuração do corpo - uma coisa muito pequena e incapaz de provocar dor - bastaram para o fazer hesitar à entrada da sala. Não havia outras semelhanças, mas, quando a rapariga falou - com um remoto sotaque estrangeiro -, sentiu o assombro que nos acode numa festa ao ouvirmos a mulher que amamos exprimir-se num tom estranho para com um desconhecido. Não se tratava de uma ocorrência invulgar, pois Rowe costumava seguir pessoas a lojas ou aguardar a uma esquina em virtude de uma pequena parecença, como se a mulher que amava se tivesse apenas perdido e pudesse ser descoberta no meio da multidão.

- Vem por causa de um bolo?

Ele observou-a atentamente e reflectiu que elas tinham muito pouco em comum em comparação com a enorme diferença: uma estava viva e a outra morta.

- Procurou-me um homem, ontem à noite... pertencente a esta organização, suponho. - Hesitava, porque se lhe afigurava tão absurdo supor aquela rapariga envolvida num crime como pensar em Alice... sem ser como vítima. - Ganhei um bolo no vosso arraial... mas parece ter havido engano.

- Não compreendo.

- Caiu uma bomba antes que eu pudesse descobrir o que ele pretendia de mim.

- Mas não podia ser ninguém daqui. Como era ele?

- Muito baixo e moreno, com ombros deformados... praticamente um inválido.

- Não há cá ninguém com esses sinais.

- Pensei que, se conseguisse contactar com Mrs. Bellairs... - O nome também parecia carecer de significado. - Refiro-me a uma das colaboradoras do arraial.

- Eram todos voluntários - explicou a rapariga. - Podemos averiguar o endereço através dos organizadores; mas é assim tão... importante?

Uma espécie de biombo alto dividia a sala em duas, e Rowe supunha que se encontravam sós; porém, naquele momento, surgiu um homem de aspecto impecável, que ela apresentou:

- Meu irmão, MT....

- Rowe.

- Alguém procurou Mr. Rowe por causa de um bolo. Confesso que ainda não compreendi bem. Parece que o ganhou no nosso arraial.

- Vejamos quem podia ser. - O jovem exprimia-se em inglês sem qualquer sotaque e apenas uma certa prudência e precisão na forma como falava o identificavam como estrangeiro. Dir-se-ia que descendia de uma família antiquada para a qual era importante a expressão clara através das palavras correctas. No entanto, o seu cuidado tinha um efeito atraente e não pedante. Conservava-se ao lado da irmã, com a mão pousada suave e afectuosamente no seu ombro, como se constituíssem um grupo de família vitoriana. Tratava-se de um seu compatriota, Mr. Rowe? Neste departamento somos quase todos estrangeiros. - Em tom confidencial acrescentou: - Se a saúde ou a nacionalidade nos impede de combater, precisamos de fazer alguma coisa. Minha irmã e eu somos... tecnicamente... austríacos.

- O homem que me procurou era inglês.

- Então devia ser um dos colaboradores voluntários. Temos muitos e desconheço os nomes de metade deles. Pretende devolver um prémio? Um bolo?

- Desejo elucidar-me a esse respeito - declarou Rowe prudentemente.

- No seu lugar, eu não me mostraria escrupuloso. Agarrava-me ao bolo «com unhas e dentes». - Quando o jovem recorria a um coloquialismo, quase se adivinhavam as comas colocadas com suavidade e tom de desculpa à sua volta.

- O pior é que já não existe. A minha casa foi bombardeada esta noite.

- Lastimo imenso. Refiro-me à casa, claro. Agora, o bolo decerto perdeu toda a importância.

Os dois irmãos eram cativantes, obviamente sinceros, mas acabavam de surpreender Rowe numa incoerência indiscutível.

- Acho que não se deve preocupar com isso - interpôs a rapariga.

Ele observou-os por um momento, hesitante. No entanto, reconhecia que era impossível viver sem confiança, pois isso equivalia a estar aprisionado na pior de todas as celas: em si próprio. Havia mais de um ano que se achava assim encarcerado - não houvera mudança de cela, pátio de exercício físico ou carcereiro, para quebrar a monotonia do isolamento. Surge o momento na existência de um homem em que a evasão deve ser tentada por todo o preço. Agora, Rowe diligenciava alcançar a liberdade. Os seus dois interlocutores haviam conhecido o terror, mas tinham emergido sem cicatrizes psicológicas visíveis.

- Para dizer a verdade, não era só o bolo que me preocupava.

Olharam-no com interesse franco e cordial. Sentia-se que, apesar das provações dos últimos anos, a flor da juventude ainda persistia neles - continuavam a esperar que a vida lhes oferecesse algo além de dor e tédio, desconfiança e ódio.

- Porque é que não se senta e nos explica...? - começou o jovem.

Eles recordavam a Rowe crianças que gostavam de ouvir contar histórias. Calculou que não deviam acumular mais de cinquenta anos de experiência entre ambos, o que o fez sentir-se incomensuravelmente mais velho.

- Fiquei com a impressão de que quem pretendia o bolo estava disposto a enveredar... enfim, pela violência.

Descreveu a visita e veemência do desconhecido, assim como o sabor estranho do chá. À medida que o escutava, os olhos do jovem deixavam transparecer um clarão crescente de interesse e excitação.

- É uma história fascinante - declarou por fim. - Faz alguma ideia de quem está por detrás disso... ou o quê? Qual a relação de Mrs. Bellairs com o assunto?

Rowe arrependia-se agora de ter procurado Mr. Rennit, pois eram aqueles os aliados de que necessitava, e não o insignificante Jones e o seu céptico patrão.

- Leu-me a sina no arraial e indicou o peso do bolo... que não era o exacto.

- Extraordinário - murmurou o jovem, com entusiasmo.

- Mas não faz sentido - acudiu a rapariga. E proferiu quase as mesmas palavras de Mr. Rennit: - Deve tratar-se de um mal-entendido.

- Mal-entendido - volveu o irmão, para recorrer de novo às comas verbais - «o tanas». - Virou-se para Rowe com uma expressão excitada. - Pode contar com esta sociedade para tudo o que necessitar, pelo menos ao nível da secretaria. O caso interessa-me profundamente - asseverou, estendendo a mão. - O meu nome... o nosso nome é Hilfe. Por onde começamos?

- Sua irmã não concorda - observou Rowe, vendo que a rapariga se conservava silenciosa.

- Há-de mudar de ideias. É o costume. Julga-me um romântico. Mostra-se reservada, porque já teve de me livrar de muitos apuros. - O jovem assumiu uma expressão grave. - Conseguiu fazer-me sair da Áustria. - No entanto, nada lhe podia refrear o entusiasmo por muito tempo. - Mas isso é outra história. Principiamos por Mrs. Bellairs? Faz alguma ideia de que se trata? Vou envolver a nossa circunspecta voluntária da sala ao lado na caçada. - Abriu a porta e chamou:- Cara Mrs. Dermody, acha que é capaz de descobrir o endereço de uma das nossas colaboradoras chamada Bellairs? - E explicou a Rowe: - A dificuldade consiste em que se pode tratar de uma amiga de uma amiga, e não de uma colaboradora habitual. Experimente em Canon Topling - indicou para Mrs. Dermody.

Quanto maior era o entusiasmo do interlocutor, mais fantástico parecia o incidente aos olhos de Rowe, que acabou por aventurar:

- É possível que sua irmã tenha razão.

- Sem dúvida que a possibilidade existe, mas, se se confirmasse, era uma maçada - retrucou Hilfe. - Até prova em contrário, prefiro pensar que estamos em presença de uma conspiração gigantesca.

Naquele momento, a cabeça de Mrs. Dermody assomou à porta, para informar:

- Canon Topling forneceu-me o endereço. É em Park Crescent, nº 5.

- Se ela é amiga de Canon Topling... - principiou Rowe, que se interrompeu ao ver que Miss Hilfe o fitava e inclinava a cabeça, como se dissesse: «Está no bom caminho.»

- «Agarremo-nos» ao desconhecido - sugeriu o irmão.

- Pode haver uma infinidade de motivos - observou a rapariga.

- Uma infinidade, espero que não - tornou ele, com um sorriso malicioso. Virando-se para Rowe, perguntou: - Não se lembra de mais nada que a possa convencer?

O seu entusiasmo era mais comunicativo que o cepticismo da irmã, e a situação convertia-se num jogo que uma pessoa não podia encarar a sério.

- Absolutamente nada - declarou Rowe.

Hilfe aproximou-se da janela, contemplou a rua por um momento e voltou-se para dentro.

- Importa-se de chegar aqui, Mr. Rowe? Vê aquele homem de chapéu castanho deformado? Chegou depois do senhor e parece esperar alguém ou alguma coisa... Olhe, lá está ele a mover-se em vaivém. Finge que acende um cigarro, operação a que não se acha habituado. E é o segundo jornal da tarde que compra. Tudo indica que alguém o segue, Mr. Rowe.

- Conheço-o. É um detective particular contratado para me proteger.

- Com a breca! - Até as exclamações do jovem Hilfe continham uma aura vitoriana. - Vejo que encara o assunto a sério. Agora, que somos aliados, espero que não «oculte nada na manga».

- Bem... - Rowe hesitou por um instante - há um pormenor que não mencionei.

- Deite-o cá para fora. - O rapaz voltou para dentro, tornou a pousar a mão no ombro da irmã e aguardou com aparente ansiedade. - É alguma coisa susceptível de eliminar Canon Topling?

- Penso que havia algo escondido no bolo.

- O quê?

- Não sei. Mas o homem esfarelava todos os pedaços que cortava, antes de os levar à boca.

- Podia ser um hábito - aventou Miss Hilfe.

- Hábito? - ecoou o irmão, quase indignado.

- Uma dessas velhas características inglesas que tu estudas tão meticulosamente - redarguiu ela, irritada.

Rowe tentou elucidá-la:

- Não é nada que se relacione comigo. O bolo não me interessava, mas tentaram (e disso não tenho dúvidas) matar-me. Reconheço que agora parece improvável, à luz do dia, mas, se vissem o inválido esfarelar os pedaços antes de os comer...

- E está na verdade convencido de que a amiga de Canon Topling...?

- Não lhe ligue - interpolou Hilfe. - Porque não há-de estar envolvida uma amiga de Canon Topling? As classes de criminosos deixaram de existir. Nós sabemo-lo bem. Havia muitas pessoas na Áustria que pareciam incapazes de... bem, de fazer aquilo a que assistimos. Indivíduos cultos, de trato agradável, que se tinham sentado a nosso lado num jantar oficial.

- Mr. Rennit, dono da Agência de Investigações Orthotex, confessou-me hoje que nunca conhecera um assassino - anunciou Rowe. - Afirmou que eram raros e não pertenciam aos melhores estratos da sociedade.

- Há-os às dezenas, hoje em dia - considerou Hilfe. - Conheço pelo menos seis. Um foi membro do Governo, outro especialista de doenças cardíacas, um terceiro gerente bancário, além de um angariador de seguros...

- Pára lá com isso, por favor - suplicou a irmã.

- A diferença consiste em que, actualmente, o homicídio compensa, e quando uma coisa compensa torna-se respeitável - insistiu o jovem. - A abortadeira rica converte-se numa ginecologista e o ladrão próspero em director de banco. O seu amigo tem ideias antiquadas. - E continuou a perorar com entusiasmo: - O assassino de outrora matava por medo, ódio... ou mesmo amor, e só muito raramente por lucro material. Ora, nenhuma destas razões se pode considerar respeitável na verdadeira acepção do termo. Mas matar para conquistar uma posição na sociedade é muito diferente, porque, uma vez obtida essa posição, ninguém tem o direito de criticar o meio empregado para a conquistar. Ninguém se negará a conhecê-lo se a posição for suficientemente elevada. Lembre-se de quantos dos nossos estadistas apertaram a mão a Hitler. No entanto, matar por medo ou amor é uma coisa que Canon Topling nunca faria. Se assassinasse a esposa, perderia a possibilidade de alcançar uma posição mais destacada. - E sorriu a Rowe com uma inocência cativante do que afirmava.

Quando emergiu daquilo a que não chamavam prisão e o desejo de Sua Majestade chegou, formal e rapidamente, ao seu termo, afigurou-se a Rowe que mergulhara num mundo muito diferente - um mundo secreto de nomes supostos, em que ninguém o conhecia, de rostos que o evitavam e de homens que abandonavam um bar discretamente no momento em que o viam entrar. Uma pessoa vivia onde lhe dirigiam menos perguntas, em aposentos mobilados. Era um mundo acerca do qual quem frequentava recepções em jardins, passava fins-de-semana no campo, jogava brídege em paradas modestas e dispunha de crédito numa mercearia de bom nível nada sabia. Não se tratava exactamente de um mundo de criminosos, embora ao longo dos seus tenebrosos corredores houvesse a possibilidade de descortinar um falsário de categoria pouco espectacular que nunca fora levado a juízo ou o corruptor de uma adolescente. A pessoa preferia as sessões matinais dos cinemas, com outros espectadores embuçados que necessitavam de passar o tempo de alguma maneira, e à noite ficava em casa a ler A Velha Loja de Curiosidades. Quando se apercebera pela primeira vez de que alguém pretendia assassiná-lo, Rowe experimentara uma espécie de indignação chocada. O acto do homicídio pertencia-lhe como uma característica pessoal, e não aos habitantes dos velhos locais pacíficos dos quais se exilara, como era indiscutivelmente o caso de Mrs. Bellairs, da dama de chapéu de abas largas e do clérigo chamado Sinclair. A única coisa de que um assassino se podia julgar protegido era o homicídio... perpetrado por uma daquelas pessoas.

Não obstante, ele sentia-se agora mais chocado ao ouvir dos lábios de um jovem de grande experiência que não existia uma divisória entre os mundos. O insecto sob a pedra tinha o direito de se considerar a coberto do esmagamento pelo pé superior.

- Não lhe preste atenção - advertiu Miss Hilfe, observando-o com uma expressão que parecia de simpatia, o que decerto não era possível.

- É claro que exagero - admitiu o jovem. - De qualquer modo, hoje em dia, uma pessoa deve estar preparada para os criminosos... existentes em toda a parte. Chamam-lhes possuidores de ideias. Até chegam a afirmar que o homicídio é a coisa mais misericordiosa do mundo.

Rowe olhou-o com curiosidade, mas não descortinou o menor significado pessoal nos olhos azuis, aguados e teóricos.

- Refere-se aos Prussianos?

- Sim, podem ser os Prussianos, se quiser. Ou os nazis, os fascistas, os vermelhos, os brancos...

O telefone da secretária da rapariga tocou e ela disse:

- É Lady Dunwoody.

O irmão apressou-se a pegar no auscultador e voltou-se ligeiramente para a janela.

- Estamos-lhe muito gratos pela oferta, Lady Dunwoody. Os artigos de lã nunca são de mais. Sim, pode enviá-los para aqui, a menos que prefira que os mandemos buscar. Encarrega disso o seu motorista? óptimo, obrigado. Tive muito gosto em ouvi-la.

Cortou a ligação e virou-se para Rowe, com um leve sorriso de embaraço:

- É uma maneira um tanto singular de um homem da minha idade participar na guerra, hem? Recolher artigos de lã das mãos de viúvas ricas caritativas. Em todo o caso, trata-se de uma ocupação útil, permitem-me que a exerça e sempre evito ser internado até ao termo das hostilidades. Apesar disso, uma história como a sua interessa-me, compreende? Parece conceder-me a oportunidade de tomar parte mais activa na vida quotidiana. - Sorriu à irmã e acrescentou com afecto: - É por tudo isto que ela me chama romântico.

Mas o curioso era que não lhe chamava coisa nenhuma. Tudo se passava como se não só o desaprovasse mas igualmente lhe voltasse as costas, recusando-se a colaborar no que quer que fosse... excepto os artigos de lã. Na opinião de Rowe, faltava-lhe o poder de insinuação e o à-vontade do irmão. A experiência que a ele proporcionara um divertido abandono niilista deixara-a imersa em cogitações num nível mais profundo e infeliz. Agora, ele já não se sentia tão seguro de que se achassem desprovidos de cicatrizes. O irmão tinha as ideias, mas ela sentia-as. Quando Rowe a contemplava, dir-se-ia que a sua própria infelicidade reconhecia uma amiga e, apesar de lhe enviar sinais, não obtinha resposta.

- Que fazemos a seguir? - perguntou Hilfe.

- Não se preocupe mais com o assunto - recomendou a rapariga a Rowe: afinal, a resposta, quando surgiu, era apenas para indicar que a comunicação terminara.

- Isso não - insistiu o rapaz. - Estamos em guerra.

- Quem lhe garante - tornou ela, ignorando-o - que, mesmo que haja alguma coisa por detrás disso, não se trata de... roubo, tráfico de drogas ou algo do género?

- Ninguém, e é-me indiferente - replicou Rowe. - Simplesmente, estou fulo com a situação.

- Em todo o caso, qual é a sua teoria? - quis saber Hilfe. -

Refiro-me ao bolo.

- Podia conter uma mensagem.

No entanto, os dois irmãos conservaram-se silenciosos por um momento, como se acabasse de surgir uma ideia que necessitava de ser absorvida.

- Vou consigo a casa de Mrs. Bellairs - decidiu finalmente Hilfe.

- Não podes abandonar isto, Willi - lembrou a rapariga. Eu acompanho Mr. Rowe. Tu tens uma entrevista.

- É com Trench. Podes despachá-lo tu, Anna. - Os olhos dele voltaram a brilhar. - Isto reveste-se de importância. Talvez haja complicações a nível internacional.

- Podíamos levar o detective de Mr. Rowe.

- Para que a dama ficasse «de pé atrás»? O homem nota-se à distância, como um nariz inflamado. Não, temos de nos desembaraçar dele com suavidade. Estou habituado a despistar espiões. É uma coisa que uma pessoa aprendeu desde 1933.

- Mas não sei o que tencionas dizer a Mr. Trench.

- Apenas ganhar tempo. Explica-lhe que arrumaremos o assunto no princípio do mês. Desculpe estarmos a tratar de negócios na sua presença, Mr. Rowe.

- Porque não deixas Mr. Rowe ir sozinho?

Este reflectiu que, no fundo, a rapariga talvez pensasse que as suas suspeitas continham algum fundamento e receasse pela segurança do irmão. Entretanto, ela prosseguia:

- Suponho que não pretendem ambos passar por patetas, Willi.

Todavia, Hilfe não lhe prestou atenção e voltou-se para Rowe:

- É só um momento, enquanto escrevo umas palavras destinadas a Trench. - E desapareceu atrás da divisória.

Quando abandonaram a sala juntos, utilizaram outra porta. Desembaraçaram-se de Jones com extrema facilidade, porque ele não tinha motivos para suspeitar de que o cliente desejava escapar-se à sua presença. Hilfe chamou um táxi e, enquanto rolavam ao longo da rua, Rowe verificou que o insignificante investigador particular continuava no seu posto, acendendo novo cigarro, ao mesmo tempo que conservava o olhar fixo obliquamente na ampla entrada do edifício, como o cachorro fiel disposto a aguardar o dono o tempo que fosse necessário.

- Preferia que o tivéssemos informado.

- É melhor assim - afirmou Hilfe. - Podemos vir buscá-lo mais tarde. De resto, não demoraremos muito.

E o homem de chapéu castanho desapareceu do campo visual dos dois ocupantes do táxi no momento em que este contornou a esquina e imergiu na confusão de autocarros e bicicletas.

 

UM SERÃO COM MRS. BELLAIRS

Haverá dragões do mal aqui e ali, tão venenosos como qualquer dos das minhas sagas.

O Pequeno Duque

A casa de Mrs. Bellairs podia considerar-se possuidora de personalidade: era antiga e não restaurada, atrás do pequeno relvado descuidado, entre as tabuletas com a indicação «ALUGA-SE», na encosta de Campden Hill. Uma estatueta de características indefinidas destacava-se de uma pequena sebe como um bloco de pedra-pomes, decrépita e cinzenta em virtude do abandono a que fora votada, e, quando uma pessoa tocava à campainha sob o pórtico vitoriano, parecia ouvir o som a mover-se em perseguição aos habitantes humanos das dependências das traseiras, como se o que restava de vida se tivesse esgotado ao longo dos corredores.

Os punhos e avental brancos como a neve da empregada que acudiu a abrir constituíram uma surpresa. Empenhava-se em manter as aparências, ao contrário da casa, embora parecesse tão idosa como esta, com o rosto coberto de pó-de-arroz, rugas e austeridade como o de uma freira.

- Mrs. Bellairs está? - perguntou Hilfe.

A mulher observou os dois homens com a expressão de argúcia que se aprende nos conventos, antes de replicar:

- Têm consulta marcada?

- Não. Pretendemos apenas falar com ela. Sou amigo de Canon Topling.

- É que se trata de um dos seus serões.

- Sim?

- E se não fazem parte do grupo...

Um homem idoso, com expressão de uma nobreza extraordinária e cabelos brancos abundantes, aproximou-se da entrada, e a empregada apressou-se a saudá-lo com deferência:

- Muito boa noite. Tenha a bondade de entrar.

Devia ser um componente do grupo, porque o introduziu numa sala à direita, e Rowe e Hilfe ouviram-na anunciar:

- O Dr. Forester. - E reapareceu para proteger a entrada.

- Se transmitir o meu nome a Mrs. Bellairs, talvez possamos incorporar-nos no grupo - sugeriu o jovem. - Chamo-me Hilfe... amigo de Canon Topling.

- Vou perguntar-lhe - replicou a mulher, com uma expressão de dúvida.

No entanto, o resultado da diligência revelou-se favorável e a própria dona da casa acudiu ao vestíbulo sem demora. Usava um vestido de seda preto e turbante e estendeu as duas mãos como se pretendesse dar-lhes as boas-vindas simultaneamente.

- Todos os amigos de Canon Topling... - articulou com fervor.

- Chamo-me Hilfe. Do Fundo das Mães Livres. Permita-me que lhe apresente Mr. Rowe.

Este observava-a com atenção, em busca de um indício de reconhecimento, mas não detectou nenhum. O largo rosto branco da cartomante parecia viver muitos mundos afastado deles.

- Podem participar no nosso grupo - proclamou em tom jovial. - Acolhemos sempre com satisfação as caras novas. Desde que não haja hostilidade preconcebida.

- Nenhuma, garanto-lhe - apressou-se Hilfe a afirmar.

Ela avançou à frente deles, como uma figura de proa, em direcção a uma saída em cuja decoração predominava o alaranjado, como se a operação tivesse sido efectuada nos anos 20, de uma vez para sempre. Globos azulados emitiam um clarão difuso, em conformidade com as regras do black-out, fazendo que o ambiente se assemelhasse ao de um café oriental. Havia indicações entre os tabuleiros e mesas dispersas de que fora Mrs. Bellairs quem abastecera o arraial com algumas das suas obras de Benares.

Achava-se presente meia dúzia de pessoas, uma das quais atraiu imediatamente a atenção de Rowe - um homem alto, de ombros largos e cabelos pretos -, que não compreendeu porquê, até que se apercebeu de que era a sua normalidade que se salientava. Entretanto, a dona da casa dizia:

- Mr. Cost, apresento-lhe...

Hilfe forneceu o nome de Rowe e as apresentações prosseguiram com formalidade irrepreensível. Uma pessoa não podia deixar de se perguntar o motivo da presença de Cost, em companhia do Dr. Forester, com os seus lábios frágeis e nobreza, Miss Pantil, uma morena de meia-idade com olhar voraz, Mr. Newey - «Mr. Frederick Newey», pois Mrs. Bellairs insistira no nome de baptismo -, que calçava sandálias sem peúgas e tinha cabelos grisalhos, Mr. Maude, um jovem míope, que se conservava tão perto quanto possível de Mr. Newey e lhe fornecia fatias de pão com manteiga devotamente, e Collier, o qual pertencia, sem margem para dúvidas, a uma classe diferente e se introduzira ali com certa perícia. Era tratado com condescendência, mas, ao mesmo tempo, admirado, por constituir um exemplar de uma vida mais desinibida, o que lhes suscitava o interesse. Fora empregado de hotel, vagabundo e fogueiro, além de que publicara um livro (como Mrs. Bellairs murmurou ao ouvido de Rowe) da poesia mais fascinante, dura, porém espiritual.

- Emprega termos que nunca tinham sido usados em poesia - acrescentou a meia voz.

Ao mesmo tempo, parecia existir certo antagonismo entre ele e Mr. Newey.

Os pormenores da situação apresentaram-se com maior clareza a Rowe enquanto tomavam chá da China muito fraco, servido pela austera empregada.

- E o senhor que faz, Mr. Rowe? - perguntou Mrs. Bellairs,

- Bem - replicou o interpelado, olhando-a por cima da chávena, enquanto tentava determinar o significado do grupo e, simultânea e infrutiferamente, imaginar a mulher num papel perigoso -, sento-me e penso

Parecia ser a resposta acertada, assim como verdadeira, e ele viu-se circundado pelo entusiasmo da dona da casa, como se se tratasse de um braço reconfortante.

- Vou considerá-lo o nosso filósofo. Já temos um poeta, um crítico...

- Que é Mr. Cost?

- A alta finança. Trabalha na City. Chamo-lhe o nosso homem misterioso. Às vezes chego a pensar que é uma influência hostil.

- E Miss Pantil?

- Possui poderes extraordinários para pintar o mundo íntimo. Vê-o como cores e círculos, disposições rítmicas e, por vezes, oblongas.

Era fantástico conceber que Mrs. Bellairs pudesse ter alguma coisa em comum com o crime e o mesmo se aplicava aos outros componentes do grupo. Na verdade, Rowe inventaria qualquer desculpa e retirar-se-ia se não fosse por causa de Hilfe. Aquelas pesssoas - independentemente do que o rapaz dissesse - não tinham lugar debaixo da pedra, a seu lado.

- Reúnem-se aqui todas as semanas? - perguntou, para não estar calado.

- Sempre à quarta-feira. É claro que dispomos de pouco tempo, em virtude dos bombardeamentos. A esposa de Mr. Newey gosta que ele regresse a Welwyn antes de soar o alarme. Talvez se devam a isso os maus resultados. Não devem ser forçados, sabe - esclareceu com um sorriso. - Não podemos prometer nada a um estranho.

Apesar destas palavras, Rowe continuava sem conseguir vislumbrar de que se tratava. Entretanto, Hilfe ausentara-se com Cost, e Mrs. Bellairs observou:

- Aqueles conspiradores... Mr. Cost está sempre a congeminar um teste.

- Os resultados às vezes são maus?

- Tão maus que me apetece chorar... se adivinhasse na altura. Mas há outras ocasiões... Nem faz uma ideia de como são bons. - Começou a soar uma campainha de telefone noutra sala e ela murmurou: - Quem será o maçador? Todos os meus amigos sabem que não devem ligar para cá às quartas-feiras.

No instante imediato, a empregada de semblante austero voltou a aparecer para anunciar com desagrado:

- Chamam Mr. Rowe ao telefone.

- Não compreendo - articulou ele. - Ninguém sabe.

- Importa-se de ser rápido? - solicitou Mrs. Bellairs.

Hilfe, que se encontrava no vestíbulo com Cost, inquiriu:

- É para si?

Parecia agitado, e Rowe deixou uma esteira de silêncio de reprovação atrás dele, enquanto os dois homens o acompanhavam com a vista. Assolava-o a sensação de que provocara uma cena na igreja e o conduziam à saída. À distância não ouvia coisa alguma além do tilintar de chávenas.

Admitiu a possibilidade de ser Mr. Rennit - embora não compreendesse como o localizara - ou Jones. Por fim inclinou-se sobre a secretária de Mrs. Bellairs, numa sala de dimensões reduzidas e mobiliário abundante, e proferiu para o bocal:

- Estou...

Afinal, não era Mr. Rennit, e a princípio não reconheceu a voz feminina.

- Mr. Rowe?

- O próprio.

- Está só?

- Sim.

A inflexão era rouca, como se a pessoa falasse através de um lenço. Ela não podia saber que não havia outra voz de mulher capaz de se confundir com a sua.

- Pode abandonar essa casa o mais depressa possível?

- É Miss Hilfe?

- Sou, sou - assentiu a voz, com impaciência.

- Quer falar com o seu irmão?

- Não lhe diga nada, por favor. E saia dessa casa. Saia imediatamente.

Ele sentiu-se divertido por um momento. A ideia de correr qualquer espécie de perigo em companhia de Mrs. Bellairs era absurda. Ao mesmo tempo apercebia-se da facilidade com que se convertera à maneira de raciocinar de Mr. Rennit. De repente ocorreu-lhe que Miss Hilfe partilhava do seu ponto de vista. Alguma coisa a convertera... no sentido contrário.

- E seu irmão? - perguntou após breve pausa.

- Se o senhor sair, ele acompanha-o.

A voz rouca e urgente afectava-lhe os nervos, e Rowe surpreendeu-se contornando a secretária, a fim de ficar voltado para a porta, mas tornou a mudar de posição em seguida, porque se achava de costas para a janela.

- Porque não lhe diz isto?

- Só serviria para que ainda ficasse com mais vontade de continuar aí.

Reconheceu que isso correspondia à verdade e perguntou-se se as paredes seriam muito espessas. A sala estava desconfortavelmente repleta de mobiliário: uma pessoa precisava de espaço para se mover - a voz revelava-se preocupantemente convincente -, para assumir uma posição vantajosa.

- Jones... o detective... continua aí fora?

Registou-se um longo silêncio, indicativo de que ela se aproximara da janela, e, quando a voz reapareceu, possuía uma intensidade nova, como se o lenço tivesse sido retirado do bocal.

- Não está lá ninguém.

- Tem a certeza?

- Absoluta.

Rowe sentiu-se abandonado e indignado. Quem autorizara Jones a abandonar o posto de observação? De repente ouviu passos no corredor e disse:

- Tenho de desligar.

- Eles tentarão atacá-lo na escuridão.

Naquele momento, a porta abriu-se e surgiu Hilfe.

- Venha. Estamos todos à sua espera. Quem era?

- Quando você escrevia a mensagem para Trench, deixei recado a Mrs. Dermody, para o caso de alguém querer contactar comigo com urgência.

- E alguém quis?

- Era Jones... o detective.

- Jones?

- Exacto.

- Tinha alguma coisa importante para lhe comunicar?

- Não era bem isso. Estava preocupado, porque julgava que me perdera. Mr. Rennit precisa de falar comigo.

- O fiel Rennit... Seguiremos directamente para lá... depois disto.

- Depois de quê?

- Uma coisa que não podemos perder por preço nenhum. - Os olhos do rapaz reprimiam excitação e malícia. - Começo a convencer-me de que nos enganámos - acrescentou em voz baixa. É muito divertido, mas nada... perigoso. - Pousou a mão no braço de Rowe, para lhe incutir confiança, e impeliu-o suavemente para a porta. - Procure manter uma expressão grave. Não convém rir. Afinal, ela é amiga de Canon Topling.

Quando regressaram à sala, verificaram que fora preparada para alguma coisa. Tinham formado um círculo com as cadeiras e todos apresentavam um ar de impaciência polidamente dissimulada.

- Sente-se ao lado de Mr. Cost, Mr. Rowe - indicou a dona da casa. - Depois podemos apagar a luz.

Nos pesadelos, uma pessoa sabe que o armário se abrirá e surgirá algo de horrível, embora desconheça a sua natureza.

- Sente-se, por favor, para podermos apagar a luz - insistiu Mrs. Bellairs.

- Lamento, mas tenho de me retirar.

- Não nos pode deixar numa altura destas - protestou. - Não acha, Mr. Hilfe?

Rowe voltou-se para o rapaz, porém os olhos azuis aguados fitaram-no sem compreender.

- Sem dúvida - aquiesceu. - Ficamos ambos. Aliás, foi para o que viemos.

A mulher acercou-se da porta para a fechar à chave, que fez desaparecer pelo decote do vestido, ao mesmo tempo que esclarecia:

- Fechamos sempre a porta para fazer a vontade a Mr. Cost. Num sonho, uma pessoa não se pode escapar: os pés pesam-lhe como chumbo e encontra-se impedida de sair de junto da porta ominosa, que se move de forma quase imperceptível. Na vida real é a mesma coisa: às vezes resulta mais difícil provocar uma cena do que morrer. Acudiu ao espírito de Rowe a recordação de alguém que também não desejava provocar uma cena, cedeu com amargura e bebeu o leite... Ele moveu-se através do círculo e sentou-se à esquerda de Cost, como um criminoso que ocupava o seu lugar numa fila de identificação. À sua esquerda encontrava-se Miss Pantil, e o Dr. Forester instalava-se a um dos lados de Mrs. Bellairs, e Hilfe no outro. Não dispôs de tempo para ver como os outros estavam distraídos, antes de a luz se apagar.

- Agora, vamos todos dar as mãos - instruiu Mrs. Bellairs.

Os espessos cortinados próprios para o black-out impediam a entrada do clarão exterior quase por completo. A mão de Cost estava quente e húmida e a de Miss Pantil igualmente quente, mas seca. Tratava-se da primeira séance em que ele participava, mas não eram os espíritos que receava. Lamentava que Hilfe não se encontrasse a seu lado e achava-se permanentemente consciente do espaço vazio e escuro da sala atrás das costas, onde tudo podia acontecer. Tentou soltar as mãos, mas estavam seguras com firmeza. Estabelecera-se silêncio absoluto. Formou-se uma gota de transpiração acima do seu olho direito e deslizou com lentidão, sem que a pudesse limpar. Ficou suspensa da pálpebra por um momento, o que o incomodou sobremaneira. Algures, noutra sala, soaram os acordes de uma grafonola.

A melodia parecia interminável - algo de suave e onomatopaico, da autoria de Mendelssohn, cheio de ondas que se desfaziam em cavernas com ecos prolongados. Verificou-se uma pausa, o diafragma foi colocado de novo no início do disco e a música recomeçou. As mesmas ondas voltaram a desfazer-se nas mesmas cavernas. Quase sem soluções de continuidade. Além dos acordes, Rowe deu-se conta de respirações ofegantes à sua volta - todos os tipos de ansiedades, - incertezas e excitações predominavam nos diversos pulmões. A respiração de Miss Pantil continha um singular silvo seco, a de Cost era pesada e regular, mas não tão intensa como outra que se arrastava na escuridão, de origem indefinida. Entretanto, ele apurava os ouvidos e aguardava. Conseguiria detectar um passo atrás de si e ter tempo para libertar as mãos? Já não acalentava a menor dúvida acerca da urgência do aviso: «Eles tentarão atacá-lo na escuridão.» O perigo espreitava-o: fora aquela incerteza que outra pessoa experimentara, enquanto assistia, de dia para dia, ao avolumar da sua compaixão perante a dimensão monstruosa da acção que se impusera executar.

- Sim - proferiu uma voz subitamente. - Sim, consigo ouvir.

A respiração de Miss Pantil silvou e as ondas de Mendelssohn gemeram e extinguiram-se. À distância, a buzina de um táxi soou num mundo vazio.

- Fale mais alto - tornou a voz.

Era a de Mrs. Bellairs, com uma diferença: uma Mrs. Bellairs drogada por uma ideia, um contacto imaginado para além do pequeno mundo limitado em que eles se encontravam sentados. Rowe não estava interessado em nada daquilo: era um movimento humano que esperava.

- Um de vocês é um inimigo. Não o deixa passar. Qualquer coisa - uma cadeira, uma mesa? - rangeu, e os dedos dele exerceram pressão nos de Miss Pantil instintivamente. Aquilo não era um espírito, mas um agente humano, que sacudia pandeiretas, dispersava flores ou imitava o toque de uma criança na face. Tratava-se do elemento perigoso, mas ele tinha as mãos imobilizadas.

- Há um inimigo aqui - prosseguiu a voz. - Alguém que não acredita, cujos motivos são malignos...

Rowe sentiu os dedos de Cost apertarem os seus e perguntou-se se Hilfe continuaria alheio ao que se passava: queria gritar para o prevenir, mas as convenções mantinham-no firme como a mão de Cost. Uma tábua tornou a ranger. «Para que será toda esta encenação, se estão todos envolvidos?», perguntou-se. Mas talvez não estivessem todos. Podia mesmo dar-se o caso de se achar rodeado de amigos... mas não sabia quais eram.

- Arthur.

Tentou desprender as mãos ao compreender que agora não era a voz de Mrs. Bellairs.

- Arthur.

Na verdade, aquela inflexão átona podia perfeitamente provir de uma sepultura.

- Arthur, porque mataste...?

A voz calou-se, na sequência de um gemido, e ele voltou a tentar libertar as mãos. Não era porque a tivesse reconhecido, pois não correspondia mais à de sua mulher do que a de qualquer outra que morresse dominada pelo desespero, dor e mágoa, mas porque a voz o reconhecera. Uma luz moveu-se perto do tecto, como se procurasse abrir caminho ao longo das paredes, e ele bradou:

- Não! Não!

- Arthur... - sussurrou a voz.

Rowe esqueceu-se de tudo e deixou de apurar os ouvidos para tentar detectar movimentos furtivos atrás dele, limitando-se a implorar:

- Parem com isso, por favor!

Sentiu Cost levantar-se a seu lado e retirar a mão, como se o contacto lhe repugnasse, imitado por Miss Pantil, enquanto Hilfe dizia:

- Isto não tem graça. Acendam a luz.

O clarão repentino ofuscou Rowe. Os outros continuavam sentados, de mãos unidas, e observavam-no com curiosidade, porque quebrara o círculo. Apenas Mrs. Bellairs parecia não ver nada, com a cabeça inclinada para o peito, pálpebras cerradas e respiração pesada.

- Bem - articulou Hilfe, tentando sorrir, sem êxito notável -, foi de facto impressionante.

No entanto, Mr. Newey indicou:

- Olhem para Cost.

Rowe obedeceu com os outros e verificou que o seu vizinho não manifestava interesse por nada, inclinado sobre a mesa, com o rosto em contacto com o tampo envernizado.

- Chamem um médico - disse Hilfe.

- Não é preciso - acudiu o Dr. Forester. - Estou eu aqui. - Desprendeu as mãos e os outros seguiram-lhe o exemplo. Após breve exame ao corpo imóvel, declarou: - Receio que já não necessite de cuidados médicos. Convém chamar mas é a Polícia.

Mrs. Bellairs parecia agora estremunhada e reclinava-se na cadeira, de olhar fixo na sua frente e língua um pouco proeminente.

- Deve ter sido o coração - aventou Mr. Newey. - Não resistiu à excitação.

- Lamento contradizê-lo, mas foi assassinado - anunciou o Dr. Forester.

O seu rosto, de expressão nobre, debruçava-se sobre o cadáver e retirou uma das mãos manchada de sangue, como um insecto de configuração graciosa que se alimentasse incongruentemente de corpos sem vida.

- Impossível - redarguiu Mr. Newey. - A porta estava fechada

à chave.

- Por muito que me custe dizê-lo, existe uma explicação muito simples - volveu o médico. - Foi morto por um de nós.

- Mas estávamos todos de mãos dadas - argumentou Hilfe.

De súbito, as atenções gerais concentraram-se em Rowe, e Miss Pantil acusou:

- Ele retirou a sua.

- Não torno a tocar no corpo até à chegada da Polícia - informou o Dr. Forester a meia voz. - Cost foi morto com uma espécie de canivete.

Rowe apressou-se a levar a mão a uma algibeira vazia e viu uma sala repleta de olhos a acompanharem-lhe o movimento.

- Temos de evitar que Mrs. Bellairs se envolva nisto - acrescentou o médico. - Todas as séances provocam certa tensão, mas esta... - Ele e Hilfe aproximaram-se de Mrs. Bellairs, que continuava praticamente alheia ao que a rodeava, e a mão delicada que estabelecera contacto com o sangue ainda morno de Cost retirou a chave da sala do decote. - Os outros é melhor deixarem-se estar. Vou telefonar à esquadra de Notting Hill e a seguir voltamos para aqui.

Depois de se retirarem, registou-se um silêncio prolongado. Agora, ninguém olhava para Rowe, mas Miss Pantil tratara de afastar a cadeira, pelo que ele permanecia sentado, só, junto do cadáver, como se fossem dois amigos que tivessem comparecido a uma festa. Por fim, Mr. Newey murmurou:

- Se não se despacham, perco o comboio.

Com visível ansiedade - as sirenes de alarme podiam soar a todo o momento - acariciou o pé envolto na sandália e Maude proferiu acaloradamente:

- Não percebo por que razão você tem de ficar. - E fixava o olhar em Rowe.

Este apercebeu-se pela primeira vez de que não pronunciara uma única palavra em sua defesa: o sentimento de culpa de outro crime imobilizara-lhe a boca. De qualquer modo, que poderia ele, um estranho, dizer a Miss Pantil, Mr. Newey e ao jovem Maude para os convencer de que, na verdade, fora um dos seus amigos que cometera um homicídio? Lançou uma olhadela fugaz a Cost, quase esperançado em que regressasse à vida para zombar de todos

- «foi apenas um dos meus testes» -, mas ninguém podia estar mais morto do que ele naquele momento. A ideia de que um dos presentes o matara afigurava-se-lhe mais fantástica do que a de que o tivesse feito ele próprio. No fundo, pertencia à região do homicídio - era oriundo desse país. «Como a Polícia saberá», reflectiu com amargura, «como a Polícia saberá...»

A porta abriu-se para dar passagem a Hilfe, que comunicou:

- O Dr. Forester ficou a cuidar de Mrs. Bellairs e eu telefonei à Polícia.

Entretanto, os seus olhos tentavam transmitir uma mensagem a Rowe, que este não conseguia interpretar. «Preciso de falar com ele a sós», pensou. «Não acredito que me julgue capaz...»

- Alguém vê inconveniente em que vá à casa de banho vomitar?

- Acho que ninguém deve sair daqui até à chegada da Polícia - disse Miss Pantil.

- Julgo que pode ir, acompanhado por alguém - declarou Hilfe. - Como mera formalidade, claro.

- Para quê tantos rodeios? - persistiu ela. - A quem pertence o canivete?

- Talvez Mr. Newey não se importe de acompanhar Mr. Rowe - alvitrou Hilfe.

- Não quero envolver-me no assunto - replicou o visado. - Não tenho nada a ver com o que aconteceu. Só me interessa apanhar o comboio.

- Nesse caso, vou eu, se confiam em mim.

A casa de banho situava-se no primeiro andar. No corredor, eles ouviram o ritmo tranquilizador e firme da voz do Dr. Forester no quarto de Mrs. Bellairs.

- Estou bem - murmurou Rowe. - Mas não fui eu que matei o homem.

- Decerto que não. - Havia algo de chocante na sensação de euforia que Hilfe transmitia num momento daqueles. - Foi um acto hediondo e porventura premeditado.

- Mas porquê? Quem o matou?

- Não sei, mas tenciono averiguá-lo. - Pousou a mão no ombro do companheiro com uma amabilidade particularmente reconfortante, impeliu-o para a casa de banho e fechou a porta atrás deles. - No entanto, tem de se safar daqui. Eles enforcam-no, se puderem. De qualquer modo, encerram-no na prisão durante semanas. É muito cómodo para eles.

- Que posso fazer? É o meu canivete.

- São uns demónios, de facto - proferiu Hilfe com o mesmo desprendimento que se acabasse de escutar uma tirada divertida de uma criança. - Temos de o tirar do meio desta embrulhada, até que Mr. Rennit e eu... A propósito, é melhor dizer-me quem lhe telefonou.

- Foi sua irmã.

- Minha irmã...? - Exibiu um sorriso malicioso. - Deve ter descoberto alguma coisa. Gostava de saber onde. Preveniu-o, não foi?

- Foi, mas pediu que não lhe dissesse nada.

- Isso não interessa. Eu não a como, que diabo! - E os olhos azuis aguados perderam-se subitamente em especulação.

- Para onde posso ir? - perguntou Rowe, tentando fazê-lo voltar à realidade.

- Passe à clandestinidade - sugeriu Hilfe, com naturalidade, sem parecer apressado. - É a moda da nossa década. Os comunistas fazem-no a todo o momento. Sabe como deve proceder?

- Nem por sombras. E não acho o caso divertido.

- Escute. O objectivo para o qual todos trabalhamos não é uma brincadeira, mas temos de conservar o sentido do humor se queremos manter a coragem. Eles não têm nenhum, sabe. Conceda-me apenas uma semana. Basta que permaneça fora da circulação durante esse lapso de tempo.

- A Polícia não tarda aí.

- A distância desta janela ao jardim é pequena. Quase anoiteceu e as sirenes de alarme vão soar dentro de dez minutos. Uma pessoa pode acertar o relógio por elas, graças a Deus.

- E você?

- Puxe a corrente do autoclismo quando abrir a janela, para que não o ouçam. Aguarde que o depósito se torne a encher, volte a puxá-la e aplique-me um soco «com gana». É o melhor álibi que me pode proporcionar. No fundo, sou um estrangeiro inimigo.

 

ENTRE O ADORMECER E O DESPERTAR

Eles chegaram a uma grande floresta que parecia não ter nenhuma passagem para a atravessar.

O Pequeno Duque

Há sonhos que pertencem ao inconsciente apenas parcialmente: são aqueles de que nos recordamos ao acordar de uma forma tão nítida que os prosseguimos deliberadamente, pelo que voltamos a adormecer, despertar e adormecer de novo, enquanto o sonho continua sem interrupção, com um fio de lógica que o sonho puro não possui.

Rowe estava exausto e assustado: atravessara quase metade de Londres, enquanto o bombardeamento nocturno se desenrolava. Era uma Londres vazia, apenas com explosões ocasionais de ruído e actividade. Uma loja de guarda-chuvas ardia na esquina de Oxlord Street, e em Wardour Street ele atravessou uma nuvem de fuligem: um homem de rosto enegrecido encostava-se a uma parede e ria, ao mesmo tempo que um agente da Defesa Civil o mandava calar, em vão. Mas nenhum daqueles pormenores se revestia de importância. Assemelhavam-se a algo escrito: não pertenciam à vida de Rowe, pelo que não lhes prestava atenção. Mas necessitava de encontrar uma cama e acabou por entrar numa estação do metropolitano.

Deitou-se num beliche de lona e sonhou que percorria uma longa e quente estrada perto de Trumpington, batendo com os pés no chão para sacudir o pó. A seguir tomava chá no relvado de casa, atrás da parede de tijolos vermelhos, e a mãe reclinava-se numa cadeira de jardim, entretida a comer uma sanduíche de pepino. Havia uma bola azul brilhante de croquet a seus pés e ela sorria e prestava-lhe a atenção parcial que os pais costumam conceder aos filhos. O sol brilhava em volta e o crepúsculo acercava-se com lentidão. Ele dizia: «Eu matei-a, mãe...» E ela replicava: «Não digas disparates, querido. Come uma sanduíche.»

«Mas eu matei-a, mãe», insistia ele. Afigurava-se-lhe particularmente imperioso convencê-la, pois, se tal acontecesse, ela poderia tomar providências, dizendo-lhe, por exemplo, que não tinha importância, mas primeiro precisava de a convencer. No entanto, a mãe voltou a cabeça e recomendou a alguém invisível, num tom algo vexado: «Tens de te lembrar de limpar o pó ao piano.»

«Mãe, escuta-me, por favor», mas ele compreendeu subitamente que era uma criança, pelo que se lhe tornara difícil fazê-la acreditar. Ainda não completara 8 anos - descortinava a janela do seu quarto no segundo andar, protegida por grades, onde a ama não tardaria a assomar para o chamar. «Matei minha mulher e a Polícia procura-me, mãe.» Todavia, ela sorriu, meneou a cabeça e replicou: «O meu menino é incapaz de matar alguém.»

O tempo urgia: do outro lado do longo e pacífico relvado, para além dos arcos do croquet e fora da sombra do altaneiro e sonolento pinheiro, provinha a voz da esposa do vigário, que se aproximava com um cabaz de maçãs. Antes que ela os alcançasse, ele precisava de convencer a mãe, mas só lhe acudiam palavras infantis: «Matei, pois.»

A mãe acomodou-se melhor na cadeira e afirmou: «O meu menino é incapaz de fazer mal a um escaravelho.» (Por razões inexplicáveis, trocava sempre a palavra «mosca» por «escaravelho».)

«Mas fiz, mas fiz», persistia ele. E ela acenou à esposa do vigário, ao mesmo tempo que dizia: «É um sonho, querido. Um mau sonho.»

Ele acordou na penumbra da estação do metropolitano e verificou que alguém atara um lenço de seda vermelha em volta do globo, para atenuar a intensidade da luz. Ao longo das paredes havia corpos deitados em duas filas, enquanto no exterior o bombardeamento se aproximava e em seguida se distanciava. Podia considerar-se uma noite tranquila: todos os bombardeamentos que se desenrolavam a mais de um quilómetro careciam de importância. Um velho roncava nas cercanias e ao fundo dois namorados deitavam-se num colchão, com as mãos e os joelhos em contacto.

«Isto também lhe pareceria um sonho», reflectiu Rowe. «Não acreditaria.» Ela morrera antes da Primeira Guerra Mundial, quando os aviões - caixas de madeira de configuração estranha - se limitavam a sobrevoar o canal. Experimentaria tanta dificuldade em imaginar a situação actual como o facto de o filho de tenra idade se converter num assassino. Deitado de costas, ele capturou o sonho e conservou-o - impeliu a esposa do vigário para a sombra do pinheiro -, a fim de argumentar com a mãe.

«Isto já não é a vida real: chá no jardim, vésperas, croquet, visitas de damas idosas, mexericos banais, o jardineiro preocupado com os cuidados a prestar às plantas. As pessoas escrevem sobre isso, como se ainda existisse: damas romancistas descrevem-no repetidamente nos livros do mês, mas já desapareceu tudo.»

A mãe voltou a sorrir-lhe, com uma leve expressão apreensiva, mas deixou-o continuar, o que o tornava na figura central do sonho. «Procuram-me por um crime que não cometi. Querem matar-me, porque sei de mais. Estou escondido num abrigo, e lá em cima os Alemães reduzem Londres a escombros à minha volta. Lembras-te da Igreja de St. Clement? Destruíram-na, assim como a de St. James, Piccadilly, o Burlington Arcade, o Hotel Garland, onde assistimos à pantomima, Maples e John Lewis. Parece um filme de terror, mas os filmes de terror assemelham-se à vida - mais do que tu, o relvado, as tuas sanduíches e o pinheiro. Costumavas troçar dos livros que Miss Savage lia - sobre espiões, crimes e violência -, mas isso é a vida real: foi ao que reduzimos o mundo desde que morreste. Sou o teu pequeno Arthur, incapaz de fazer mal a um escaravelho e, ao mesmo tempo, um assassino. O mundo foi transformado por William Le Queux.» (1) Ele não podia suportar os olhos aterrorizados que imaginara na parede de cimento e pousou a boca na armação de aço do beliche para beijar a face branca e fria. «Ainda bem que já não vives, mãe querida. Mas estarás porventura ao corrente disso?» Enchia-o de horror a ideia daquilo em que uma criança se tornava e do que os mortos deviam sentir ao assistir à transformação da inocência em culpa, impotentes para o evitar.

 

Nota 1: Autor de romances de acção e terror, populares nos anos 30 e 40.

 

«Mas é um manicómio!», exclamou a mãe.

«Aí é mais sossegado. Posso afirmá-lo, porque me meteram numa, por uma temporada. Foram todos muito atenciosos. Nomearam-me bibliotecário...» Ele tentou exprimir com clareza a diferença entre um manicómio e aquilo. «Eram todos muito... razoáveis.» Em tom incisivo, como se a odiasse em vez de a amar, acrescentou: «Vou emprestar-te a história da sociedade contemporânea. Tem centenas de volumes, mas a maior parte vende-se em edições baratas: Morte em Piccadilly, Os Diamantes do Embaixador, O Roubo dos Documentos Navais, Diplomacia, A Licença de Sete Dias, Os Quatro Homens Justos, etc.»

Ele elaborara o sonho para se adaptar às suas conveniências, mas este começava a recuperar terreno. Já não se encontrava no jardim, mas sim no campo das traseiras da casa onde pastava o jumento que costumava levar a roupa para lavar ao outro extremo da aldeia, às segundas-feiras. Ele brincava num palheiro com o filho do vigário, um rapaz desconhecido, de sotaque estrangeiro, e um cão chamado Spot. Este último apanhou um rato e largou-o, e o roedor tentou arrastar-se com a espinha fracturada, enquanto o cão saltitava à sua volta. De repente, Rowe não conseguiu continuar a suportar o espectáculo da agonia do rato, pegou num taco de críquete e bateu-lhe repetidamente na cabeça. Não se decidia a parar, com receio de que ainda vivesse, embora ouvisse a voz da ama: «Esteja quieto, Arthur. Como pode fazer uma coisa dessas?» E, entretanto, Hilfe observava-o com excitação. Quando, finalmente, parou de bater, não se atreveu a olhar para o rato e atravessou o campo a correr, para se esconder. Mas tinha sempre de abandonar o esconderijo, mais cedo ou mais tarde, até que tornou a ouvir a voz da ama: «Não digo nada à mãezmha, mas não torne a fazer isso. Ela acha-o incapaz de molestar uma mosca. Não percebo o que lhe deu.» Ninguém compreendeu que o que lhe dera fora simplesmente a emoção horrível e horrorosa da piedade.

Aquilo era em parte sonho e em parte recordações, mas o seguinte não passava de sonho inteiramente. Ele deitava-se de lado, respirando pesadamente, enquanto a artilharia troava a norte de Londres, e o seu espírito tornava a vaguear livremente naquele mundo estranho em que o passado e o futuro deixam vestígios iguais e a geografia pode ser de há vinte anos ou do próximo ano. Aguardava alguém junto de uma cancela numa vereda; por cima de uma sebe elevada filtrava-se o som de risos e o ruído abafado de bolas de ténis e, por entre a folhagem, ele conseguia divisar movimentos fugazes de trajos brancos. Entardecia e em breve seria demasiado escuro para jogar, pelo que sairia alguém, e ele aguardava dominado pelo amor. O coração palpitava com a excitação de um garoto, mas foi o desespero de um adulto que sentiu quando um desconhecido lhe tocou no ombro e ordenou: «Levem-no.» Não acordou; desta vez encontrava-se na rua principal de uma vila, no campo, onde, ocasionalmente, em criança, ficava com uma irmã mais velha da mãe. Permanecia diante do pátio da estalagem denominada King's Arms, donde avistava as janelas iluminadas do celeiro em que se dançava na noite de sábado. Tinha um par de sapatos de senhora debaixo do braço e esperava por uma rapariga muito mais velha, que não tardaria a surgir do toucador e a aceitar o seu braço para o acompanhar. Todas as horas imediatas estavam com ele na rua; a pequena sala estava superlotada com os pacíficos rostos familiares - o boticário e a mulher, as filhas do mestre-escola, o gerente do banco e o dentista, com o queixo azulado pela barba cerrada e ares experientes, as serpentinas azuis, verdes e vermelhas, a pequena orquestra local, a sensação de uma vida aprazível, sossegada e duradoura, apenas com o suave impulso de impaciência e paixão juvenis para a perturbar por momentos e torná-la duplamente querida para sempre. De repente, sem aviso prévio, o sonho descambou para pesadelo: alguém chorava, aterrorizado, na escuridão; não a rapariga que aguardava, que ele ainda não se atrevera a beijar e provavelmente nunca se aventuraria a fazê-lo, mas sim alguém que ele conhecia melhor que seus próprios pais, pertencente a um mundo totalmente diferente, ao mundo amargo de amor partilhado. Um polícia surgiu a seu lado e indicou em voz feminina: «É melhor juntar-se ao nosso pequeno grupo.» E impeliu-o em direcção a um mictório onde um rato sangrava mortalmente ferido. A música extinguira-se, as luzes tinham-se apagado e ele não conseguia recordar-se do motivo pelo qual se achava naquele recanto hediondo, onde até o chão gemia quando o pisava, como se houvesse aprendido a habilidade de sofrer. «Deixe-me ir sozinho, daqui em diante», solicitou. «Para onde queres ir, querido?», perguntou o polícia. «Para casa.» «A tua casa é aqui. Não existe nenhum outro lugar.» E, sempre que ele tentava mover os pés, o chão gemia em protesto: não podia deslocar-se um passo sem provocar dor.

Quando acordou, as sirenes anunciavam o termo do alarme. Duas ou três pessoas soergueram-se para escutar e voltaram a deitar-se. Ninguém se levantou para recolher a casa: a sua casa era agora ali. Estavam habituados a dormir no subsolo. O facto passara a fazer parte das suas vidas, como o cinema na noite de sábado ou o serviço religioso ao domingo. Aquele era o mundo que conheciam.

 

SEM CONTACTOS

Encontrarás todas as portas guardadas.

O Pequeno Duque

Rowe tomou o pequeno-almoço num bar da Clapham High Street. Tábuas haviam substituído as janelas, e o piso superior desaparecera, o que o fazia assemelhar-se a um barracão improvisado numa localidade arrasada por um terramoto, destinado aos serviços de assistência aos sobreviventes. Na verdade, o inimigo produzira estragos consideráveis naquela área. Londres deixara de ser uma grande cidade para se converter numa colecção de pequenas vilas. As pessoas dirigiam-se a Hampstead ou ao Bosque de St. John para passar um fim-de-semana tranquilo, e quem vivia em Holborn não dispunha de tempo, entre sinais de alarme, para visitar amigos domiciliados para além de Kensington. Por conseguinte, desenvolveram-se características especiais, e em Clapham, onde os bombardeamentos diurnos eram frequentes, pairava uma atmosfera de desolação inexistente em Westminster, zona em que os ataques nocturnos se revelavam mais intensos, mas os abrigos eram melhores. A empregada que serviu a torrada e café a Rowe apresentava-se enervada e pálida, como se estivesse em fuga há demasiado tempo, e dava a impressão de que apurava os ouvidos cada vez que alguma coisa rangia. A Estalagem Gray e Russell Square distinguiam-se por um espírito mais resistente, mas unicamente porque dispunham do período do dia para se recompor.

O bombardeamento nocturno, segundo os jornais, fora de escala reduzida. Tinham sido lançadas algumas bombas e registara-se um número apreciável de vítimas, algumas mortais. O comunicado da manhã lembrava o ritual de encerramento da missa da meia-noite. O sacrifício consumara-se e a imprensa pronunciava as palavras serenas e invariáveis de Ite, missa est. - Nem mesmo num canto de página interior havia a menor alusão de «Suposto homicídio numa séance», porque ninguém se preocupava com mortes isoladas. Rowe sentia-se razoavelmente indignado. Figurara nos cabeçalhos uma vez, mas o seu desastre, se agora acontecesse, não mereceria o mínimo espaço. Experimentava quase a sensação de abandono. Não havia quem se apoquentasse com um caso tão insignificante no meio de uma chacina quotidiana. Talvez alguns funcionários idosos da Polícia de Investigação Criminal, excessivamente entrados nos anos para se aperceberem de que o mundo os superara, ainda fossem autorizados, por superiores hierárquicos pacientes e benévolos, a exercer a sua actividade em pequenos gabinetes, com as trivialidades de um homicídio. Provavelmente enviavam minutas uns aos outros e podiam mesmo receber permissão para visitar o teatro do «crime»; todavia, Rowe não acreditava que os resultados das suas investigações merecessem leitura mais interessada que os gatafunhos dos clérigos excêntricos que ainda discutiam sobre a evolução em vicariatos da província. E imaginava um oficial da Polícia a dizer: «Deixamos o pobre diabo entreter-se com um crime banal de vez em quando. Nos seus tempos, os homicídios eram alvo de grande realce por parte do público, e, assim, ele pensa que continua a ser útil à corporação e à comunidade. Quanto aos resultados... bem, nem lhe passa pela cabeça que não dispomos de tempo para ler os seus relatórios.»

Enquanto sorvia o café e esquadrinhava o jornal em busca de um minúsculo parágrafo, Rowe sentia certa afinidade com os inspectores-detectives, os cinco grandes, Os Meus Casos Famosos. Era um assassino dos antigos, pertencia ao mundo deles... e quem matara Cost também. Assolava-o uma ponta de ressentimento contra Willi Hilfe, que encarava o homicídio como um acto burlesco. Mas a irmã não partilhava do seu ponto de vista. Prevenira-o do perigo e exprimira-se como se a morte fosse uma realidade importante. À semelhança de um animal solitário, Rowe farejava a simpatia de alguém da sua espécie.

A pálida empregada observava-o, talvez porque ele, que não tivera oportunidade de se barbear, exibia o aspecto daqueles que saíam sem pagar. Era surpreendente a metamorfose que uma única noite num abrigo público podia operar numa pessoa. Rowe notava o cheiro de desinfectante na roupa, como se tivesse pernoitado num albergue.

Por fim pagou a conta e perguntou à empregada se havia telefone público. Ela indicou um junto da caixa registadora e ele marcou o número de Rennit. Era arriscado, mas impunha-se que fizesse alguma coisa. Enquanto ouvia a campainha tocar na sala sem dúvida deserta àquela hora, perguntou-se se a salsicha envolta em massa folhada continuaria no pires. Nos tempos que corriam, resultava sempre discutível se um telefone tocaria, porque um prédio podia ter terminado a sua existência durante a noite. Ele sabia agora que parte do mundo continuava na mesma: a Orthotex permanecia de pé. Regressou à mesa e pediu outro café e papel para escrever, enquanto a empregada o olhava com desconfiança crescente. Mesmo num mundo em ruínas, as convenções persistiam: voltar a pedir algo depois de pagar era pouco ortodoxo, mas exigir papel para escrever constituía um hábito continental. Ela podia ceder-lhe uma folha do seu bloco e nada mais. As convenções encontravam-se muito mais enraizadas que a moralidade. Rowe descobrira que era mais fácil deixar-se assassinar do que perturbar uma reunião social. Começou a escrever cuidadosamente, em letra regular, tudo o que sucedera. Impunha-se que se fizesse alguma coisa, pois não estava disposto a conservar-se permanentemente escondido por um crime que não cometera, enquanto os verdadeiros responsáveis continuavam em liberdade. Omitiu o nome dos Hilfe, porquanto nunca se sabia que conclusões falsas a Polícia poderia traçar, e ele não desejava que os seus únicos aliados fossem parar à cadeia.

Quando terminou, releu tudo, sob as vistas da empregada, e reconheceu que a história assentava em bases muito frágeis - um bolo, um visitante desconhecido, um sabor que julgava recordar -, até que chegou ao corpo de Cost e a todos os elementos que apontavam para ele. Talvez fosse preferível não enviar a prosa à Scotland Yard, mas sim a um amigo... Não tinha, porém, nenhum, a menos que contasse com Willi Hilfe... ou Rennit. Levantou-se e principiou a encaminhar-se para a porta; todavia, a empregada interceptou-o.

- Não pagou o café.

- Desculpe. Esqueci-me.

Ela aceitou o dinheiro com uma expressão de triunfo, convencida de que as suas suspeitas não eram infundadas, e observou-o por entre as tábuas da janela, enquanto se afastava pela Clapham High Street.

Às nove horas em ponto voltou a marcar o número, das proximidades da estação de Stockwell, com o mesmo resultado. Quinze minutos mais tarde, quando repetiu a operação mais uma vez, Rennit já se achava no seu local de trabalho.

- Sim? - proferiu em tom incisivo e ansioso. - Quem fala?

- Rowe.

- Que fez a Jones? - foi a pergunta, em tom acusador.

- Deixei-o ontem à entrada...

- Não voltou a aparecer.

- Talvez esteja a seguir alguém.

- Devo-lhe o salário de uma semana e prometeu aparecer ao fim da tarde. A situação não é natural - asseverou o detective, em inflexão grave. - Não faltaria, sobretudo tendo dinheiro a receber.

- Aconteceram coisas piores do que essa.

- Jones é o meu braço direito. Que lhe fez? - Fui procurar Mrs. Bellairs...

- Isso não me interessa. Quero saber o que foi feito dele.

- E mataram um homem.

- Quê?!

- E a Polícia pensa que fui eu.

Soou um gemido através da linha. O homenzinho conhecia uma situação pouco comum na sua experiência, pois ao longo de toda a vida singrara em segurança por entre os seus pequenos adultérios e cartas comprometedoras, mas agora a maré arrastava-o para uma área onde nadavam peixes mais perigosos.

- Sempre pressenti que não devia aceitar a sua incumbência - acabou por murmurar.

- Tem de me aconselhar, Rennit. Vou ter consigo aí.

- Não. - Rowe notou a respiração ofegante do outro lado do fio. De súbito, a voz alterou-se imperceptivelmente: - Quando?

- Às dez horas. Escute... Ainda está aí? - Necessitava de explicar os factos a alguém. - Não cometi o crime, acredite. Não converti o homicídio num hábito.

A palavra «homicídio» provocava-lhe sempre um travo amargo na boca e nunca a empregava sem auto-acusação. A lei assumira uma posição misericordiosa, ao passo que ele se colocara na do juiz implacável. Se o tivessem enforcado, talvez encontrasse justificação para o seu acto no lapso de tempo entre o patíbulo e o fundo do alçapão, mas a justiça concedera-lhe a vida para analisar os seus motivos.

E analisava-os agora - um homem de barba por fazer e fato amarfanhado sentado no metropolitano entre Stockwell e Tottenham Court Road. (Tinha de dar uma volta, porque muitas estações haviam sido encerradas em virtude dos bombardeamentos.) Os sonhos da noite anterior tinham-lhe posto a mente a funcionar no sentido inverso. Recordou-se de si próprio vinte anos atrás e apaixonado; evocava o passado sem autocomiseração, como se observasse o desenvolvimento de um espécime biológico. Naquela época imaginava-se capaz de heroísmos extraordinários, susceptíveis de levar a rapariga amada a esquecer as mãos desajeitadas e a erupção facial da adolescência. Tudo parecia possível. Uma pessoa podia rir dos seus devaneios, mas, desde que possuísse capacidade para os acalentar, subsistia uma possibilidade de vir a criar algumas das qualidades com que sonhava. A situação assemelhava-se à disciplina religiosa: as palavras, por muito vaziamente que fossem repetidas, podiam, com o tempo, formar um hábito, uma espécie de sedimento imperceptível no fundo da mente... até que, um dia, a pessoa descobria, surpreendida, que actuava dominada pela convicção daquilo em que julgava que não acreditava. Rowe não voltara a ter devaneios desde a morte da esposa; ao longo do julgamento nem sequer admitira a hipótese de ser absolvido. Tudo se passava como se essa secção do cérebro tivesse sido neutralizada: deixara de ser capaz de sacrifício, coragem, virtude, porque já não sonhava com eles. Estava consciente da perda - o mundo perdera uma dimensão e tornara-se ténue como o papel. Desejava sonhar, mas a única coisa em que podia praticar agora era o desespero e o tipo de astúcia que o advertia de que se aproximasse de Rennit com prudência.

Quase defronte das instalações da Orthotex havia uma sala de leilões especializada em livros e, de junto das estantes cerca da entrada, era possível observar a porta do bloco de Rennit. O leilão semanal efectuar-se-ia no dia seguinte e os visitantes acudiam com catálogos, pelo que um rosto por escanhoar e um fato amarrotado não se podiam considerar propriamente deslocados. Um homem de bigode descuidado e casaco algo coçado, cujas algibeiras se achavam cheias de sanduíches, examinava atentamente um volume sobre jardinagem, um bispo - ou talvez fosse um deão - folheava um conjunto de romances de Waverley, uma longa barba branca roçava as páginas libidinosas de um Brantôme ilustrado. Nenhum dos presentes era estandardizado. Nos salões de chá e teatros, as pessoas encontram-se talhadas de forma apropriada ao ambiente, enquanto naquela sala de leilões a mercadoria era demasiado variada para atrair um único grupo de frequentadores. Havia pornografia - obras francesas do século XVIIII, com gravuras artísticas que exemplificavam cópulas de indivíduos elegantes reclinados em sofás de estilo Pompadour -, exemplares de romancistas vitorianos, memórias de personagens obscuros, as filosofias e teologias excêntricas do século XVII - Newton na posição geográfica do Inferno e Jeremias Whiteley no caminho da perfeição. Pairava um odor de livros negligenciados, de palha de caixotes de embalagem e de fatos sobre os quais chovera demasiadas vezes. Postado junto das estantes que continham os lotes de 1 a 35, Rowe podia ver quem entrasse ou saísse da porta que Rennit utilizava.

Precisamente ao nível dos seus olhos, encontrava-se um missal romano sem valor especial, incluído no lote nº 20 com vários livros religiosos. Um relógio enorme, que, em tempos, também fizera parte de um leilão, como se podia verificar pelo rótulo parcialmente arrancado junto do mostrador, indicava nove e quarenta e cinco, acima da secretária do leiloeiro. Rowe abriu o missal ao acaso, preocupado em concentrar três quartas partes da atenção na casa do outro lado da rua. O livro achava-se ornamentado com maiúsculas coloridas hediondas e, por estranho que parecesse, era a única obra que falava de guerra na sossegada sala. Onde quer que a abrisse, deparavam-se-lhe preces pela libertação, nações enfurecidas, injustiça, seres malignos, adversários que rugiam como leões... As palavras destacavam-se entre as margens, decoradas como canhões em canteiros floridos. «Oxalá o homem não prevaleça», leu, e a verdade do apelo vibrou-lhe nos ouvidos como música. Com efeito, em todo o mundo fora daquela sala, o homem prevalecera, ele próprio prevalecera. Não eram só os homens mal intencionados que faziam aquelas coisas. A coragem esmaga uma catedral, a resistência deixa uma cidade morrer de fome, a piedade mata... somos encurralados e traídos pelas nossas virtudes. Podia ter-se dado o caso de que quem matara Cost desse livre curso à sua bondade naquele momento e Rennit, porventura pela primeira vez na sua vida, se comportasse como um bom cidadão traindo o cliente. O agente da Polícia que se dissimulava atrás de um jornal à saída da sala de leilões era inconfundível.

Lia o Daily Mirror, e Rowe distinguia os caracteres por cima do ombro do homem, com a banda desenhada de Zec ocupando quase toda a página. Em dado momento, furtivamente, Rennit espreitou pela janela e voltou a desaparecer com prontidão. O relógio da sala de leilões assinalava cinco minutos para as dez. O dia, cinzento, cheio de destroços da noite anterior e cheiro de estuque molhado, arrastava-se com lentidão. A própria deserção de Rennit fazia que Rowe se sentisse um pouco mais abandonado.

Houvera uma época em que tivera amigos, não muitos, porque não era uma pessoa gregária, mas, precisamente por esse motivo, recorrera a eles com frequência. Na escola eram três, com os quais partilhava as esperanças, biscoitos e ambições desmedidas, mas agora não conseguia recordar os seus nomes ou rostos. Uma ocasião fora abordado em Piccadilly Circus por um homem de cabelos grisalhos, com uma flor na lapela, ar afectado e algo próspero, que exclamara: «Mas é o Boojie!». E conduzira-o ao bar do Hotel Piccadilly, enquanto Rowe se esforçava em vão por evocar alguém no seu passado que pudesse ser relacionado com aquele indivíduo, que a seguir lhe pediu emprestada uma nota de cinco libras, pretextou a necessidade de visitar os lavabos e não tornou a aparecer, deixando o pagamento da conta a cargo de Boojie.

Tivera amigos mais recentes, sem dúvida: talvez meia dúzia. Depois casara e haviam-se tornado mais amigos da mulher que dele próprio: Tom Curtis, Crooks, Perry e Vane... Evidentemente que tinham desaparecido da circulação após a sua detenção. Apenas o pateta Henry Wilcox continuava a procurá-lo, porque, segundo afirmava, «sei que estás inocente; és incapaz de fazer mal a uma mosca», empregando a frase ominosa que lhe tinham dirigido com demasiada frequência ao longo da vida. Recordava-se da expressão dele, quando replicara: «Mas não estou inocente. Eu matei-a.» Desde então não voltara a ver Wilcox ou a sua pequena e autoritária mulher, que praticava hóquei. (A prateleira da lareira da sua sala achava-se repleta de trofeus de prata comprovativos das suas proezas.)

O agente à paisana parecia impaciente. Era óbvio que lera todas as palavras do jornal, porque o mantinha aberto na mesma página. Entretanto, o relógio indicava dez e cinco. Rowe fechou o catálogo, depois de marcar alguns lotes ao acaso, e encaminhou-se para a rua. Acto contínuo, o agente à paisana abordou-o:

- Desculpe.

- Sim? - replicou, sentindo as palpitações acelerarem-se.

- Saí de casa sem fósforos.

- Pode ficar com a caixa.

- Nem pensar, nos tempos que correm.

O homem olhou por cima do ombro de Rowe, na direcção das ruínas da Caixa de Depósitos, cujos cofres se alinhavam, abertos, como sepulturas de cemitérios latinos, e em seguida acompanhou com a vista um indivíduo de meia-idade que passava diante da porta de Rennit.

- Está à espera de alguém? - perguntou Rowe.

- De um amigo - explicou o detective, com uma ponta de embaraço. - Já cá devia estar.

- Bem, bom dia.

- Bom dia, senhor.

O «senhor» constituiu um erro táctico, como o chapéu de feltro num ângulo demasiado oficial e o Daily Mirror aberto sempre na mesma página. §Rowe reflectiu que eles não se preocupavam em enviar os seus melhores homens num caso de mero homicídio, o que o levou de novo a contactar no ponto sensível da boca com a língua.

Que faria a seguir? Descobriu-se, não pela primeira vez, lamentando a ausência de Henry Wilcox. Havia homens que viviam voluntariamente em desertos, mas tinham o seu Deus para comungar. Durante cerca de dez anos, Rowe não sentira a necessidade de amigos - uma mulher podia incluir qualquer número deles. Perguntou-se onde Henry se encontraria em tempo de guerra. Perry decerto se alistara, assim como Curtis. Imaginou-o na pele de um agente da Defesa Civil, ridicularizado nos momentos tranquilos, agora um pouco apreensivo durante as longas vigílias, exposto nas ruas desertas, mas permanecendo no seu posto com um trajo que lhe assentava mal e um capacete uma medida acima da sua. «Com mil diabos!», reflectiu quando emergia da esquina destroçada de High Holborn. «Desenvolvi todos os esforços para participar. Não tenho culpa de não reunir as condições necessárias para o Exército, e também não me aceitaram na Defesa Civil, ao descobrirem que estive preso. Assim, baniram-me totalmente da sua guerra e procuram-me por um crime que não cometi. Que oportunidade me concederiam, com o meu cadastro?»

«Porque hei-de continuar a preocupar-me com o bolo? Não tem nada a ver comigo: é a guerra deles, e não a minha. Porque não me hei-de esconder até que tudo se resolva (no meio de uma guerra, um homicídio carece de importância especial)? Não tenho envolvimento algum com o conflito. Fui parar inadvertidamente às primeiras linhas, e nada mais. Sairei de Londres e eles que resolvam a situação como quiserem e puderem. Os imbecis que morram... O bolo talvez não contivesse nada de importância: apenas um brinde sem valor. É possível que aquele inválido não estivesse animado de más intenções e o sabor não passasse de um produto da minha imaginação. É muito natural que a cena não se desenrolasse como a recordo. Os bombardeamentos provocam efeitos terríveis na mente das pessoas, e a minha encontrava-se receptiva a um abalo mais forte...»

Como se pretendesse escapar-se a um maçador que não o largava, entrou subitamente numa cabina telefónica e marcou um número. Uma voz feminina grave advertiu-o com severidade, como se não lhe assistisse o direito de utilizar aquela linha:

- Fala das Mães Livres. Quem está ao telefone, por favor?

- Queira ligar a Miss Hilfe.

- Da parte de quem?

- Um amigo.

Registou-se um grunhido no outro extremo do fio e, quase imediatamente, ele ouviu a voz que, se fechasse os olhos, eliminasse a cabina e as ruínas de Holborn à sua volta, acreditaria que era a da sua mulher. No fundo, não existia qualquer semelhança, mas havia tanto tempo que não> falava com alguém do sexo feminino, à parte a dona da casa em que vivera ou uma rapariga atrás de um balcão, que o facto o obrigava sempre a retroceder no tempo.

- Quem fala, por favor?

- É Miss Hilfe?

- Sim. Quem é o senhor?

- Rowe - informou, numa inflexão involuntariamente ansiosa. Seguiu-se uma pausa tão prolongada que julgou que ela desligara. Está?

- Sim.

- Preciso falar consigo.

- Não devia ligar para aqui.

- Não tenho outra pessoa com quem falar... à parte o seu irmão. Ele está?

- Não.

- Já sabe o que aconteceu?

- Ele contou-me.

- Você esperava alguma coisa, hem?

- Mas não desse género. Pior. Eu não conhecia o homem.

- Suponho que lhes provoquei preocupações quando apareci, ontem.

- Nada preocupa o meu irmão.

- Telefonei a Rennit.

- Não o devia ter feito!

- Ainda não aprendi a técnica. Pode calcular o que aconteceu.

- Sim. A Polícia.

- Sabe o que o seu irmão quer que eu faça?

O diálogo assemelhava-se a uma carta que tinha de passar pela censura, e Rowe sentia o desejo imperioso de falar com alguém abertamente.

- Pode encontrar-se comigo algures... durante cinco minutos?

- Não posso sair daqui.

- Apenas por dois minutos.

- Não é possível.

- Por favor...

- Seria perigoso. O meu irmão enfurecia-se, se soubesse.

- Sinto-me muito só. Não compreendo o que se está a passar. Não tenho ninguém que me aconselhe. Há tantas perguntas...

- Lamento.

- Posso escrever-lhe... ou a ele?

- Envie o seu endereço... em meu nome. Não precisa de assinar o bilhete... ou assine com o nome que quiser.

Os refugiados tinham sempre estratagemas daqueles na ponta da língua - era um modo de vida familiar. Rowe especulou mentalmente sobre se obteria uma resposta não menos pronta se lhe pedisse dinheiro. Sentia-se como uma criança perdida que encontra uma mão de adulto disposta a conduzi-lo a casa. De repente ignorou o censor imaginário e proferiu:

- Não vem nada no jornal.

- Pois não.

- Escrevi uma carta à Polícia.

- Não o devia ter feito. Já a enviou?

- Não.

- Então espere. Talvez acabe por não haver necessidade. Limite-se a aguardar para ver o que acontece.

- Acha que é perigoso dirigir-me ao meu banco?

- É tão imprudente... Sem dúvida que não o deve fazer. Apanhavam-no, sem dificuldade.

- Nesse caso, como viverei?

- Não tem um amigo que lhe aceite um cheque?

Por razões que de momento não conseguia aprofundar, não queria que a rapariga se inteirasse de que não tinha nenhum e replicou:

- Tenho. Acho que tenho.

- Então recorra a ele - murmurou ela, em voz tão baixa que Rowe teve de apurar os ouvidos. - Seja prudente.

- Farei o possível.

Ela cortou a ligação e ele pousou igualmente o auscultador e abandonou a cabina. À sua frente, com os bolsos cheios, sem dúvida de sanduíches, avistou um dos frequentadores da sala de leilão de livros.

«Não tem um amigo?», perguntara ela. Os refugiados tinham sempre amigos: pessoas que faziam as cartas chegar clandestinamente aos destinatários, obtinham passaportes, subornavam entidades oficiais. No enorme território da clandestinidade, tão vasto como um continente, imperava a camaradagem. Na Inglaterra, a técnica ainda não fora assimilada. A quem podia ele pedir que lhe aceitasse um cheque? Não a um comerciante, decerto. Desde que começara a viver só, as suas relações com as lojas efectuavam-se apenas por intermédio da dona da casa onde vivia. Pensou nos seus antigos amigos, pela segunda vez naquele dia. Não ocorrera a Anna Hilfe que um refugiado pudesse não contar com um único amigo. Com efeito, um refugiado tinha sempre um partido... ou uma raça.

Lembrou-se de Perry e Vane, mas concluiu que se negariam a auxiliá-lo, admitindo que conseguiria localizá-los. Crooks, Boyle, Curtis... Este último era muito capaz de o acolher com hostilidade, pois norteava-se por princípios simples, maneiras primitivas e larga complacência. A simplicidade nos amigos sempre atraíra Rowe, por constituir um complemento das suas próprias qualidades. Restava Henry Wilcox. Subsistia uma pequena possibilidade por esse lado... se a esposa, praticante de hóquei, não interferisse. As mulheres de ambos não tinham absolutamente nada em comum. A saúde rude e a dor violenta eram demasiado opostas, mas uma espécie de instinto autoprotector levaria Mrs. Wilcox a odiá-lo. Pensaria sem dúvida que, quando um homem começava a matar a companheira, ninguém podia prever onde pararia.

Mas que pretexto deveria ele apresentar a Henry? Rowe tinha plena consciência do vulto na algibeira do casaco em que guardara a mensagem destinada à Polícia, mas não podia revelar a verdade a Henry, pois este, à semelhança das autoridades, não se convenceria de que estivera presente durante a perpetração de um homicídio como mero espectador. Convinha que aguardasse que os bancos encerrassem, o que acontecia cedo em tempo de guerra, e inventar um motivo urgente.

Mas qual? Ponderou o assunto durante o almoço, num restaurante de Oxford Street, sem conseguir vislumbrar uma ideia salvadora. Talvez fosse preferível deixar a questão ao sabor da inspiração do momento ou, melhor ainda, desistir e entregar-se. Só quando pagava a conta lhe acudiu a possibilidade de não conseguir encontrar Henry, o qual vivera em Battersea, bairro actualmente pouco saudável, do ponto de vista de bombardeamentos. Talvez até não fosse vivo, porquanto havia que recordar que já tinham morrido vinte mil pessoas. No entanto, quando consultou a lista, verificou que figurava nela.

Em todo o caso, isso não representava uma garantia sólida, uma vez que o blitz era mais recente que a edição que tinha na frente. Não obstante, marcou o número, só para se certificar, como se todos os seus contactos passassem a situar-se algures numa linha telefónica. Quase receava ouvir a campainha do outro lado e, quando soou, pousou apressadamente o auscultador, com uma sensação de amargura. Telefonara a Henry com frequência... antes de começarem a acontecer coisas. De qualquer modo, impunha-se que tomasse uma decisão: o apartamento continuava de pé, embora ele pudesse já não o habitar. Por outro lado, não podia brandir um cheque através dos fios - desta vez, o contacto devia ser físico. E não voltara a ver Henry desde a véspera do julgamento.

Quase preferia entregar-se à Polícia, de uma vez por todas. Em Piccadilly tomou o autocarro da carreira nº 19. Após as ruínas da Igreja de St. James, atravessava-se uma área tranquila naqueles primeiros tempos de guerra. Knightsbridge e Sloane Street não participavam nas hostilidades, ao contrário de Chelsea e sobretudo Battersea, que se achava na primeira linha - uma primeira linha singular, que se contorcia como a esteira de um furacão e deixava para trás zonas em paz. Battersea, Holborn, o East End... A primeira linha introduzia-se e afastava-se dali, e, apesar disso, para um observador ocasional Poplar High Street praticamente não contactara com o inimigo, além de que havia faixas de Battersea com um ou outro bar incólume, juntamente com uma leitaria e uma padaria, sem que se descortinassem ruínas.

Era o que acontecia na rua de Wilcox: os espaçosos apartamentos da classe média erguiam-se, rectangulares e lúgubres como hotéis de província, totalmente intactos, sobranceiros ao parque. Havia dísticos com a informação «ALUGA-SE» ao longo de toda a artéria, e Rowe quase esperava encontrar um junto do nº 63. Mas não havia nenhum. No átrio existia uma placa na qual os ocupantes podiam indicar se estavam ou não em casa, mas o facto de o espaço pertencente a Wilcox revelar a primeira alternativa não queria dizer nada, mesmo que ainda morasse lá, pois ele perfilhava a teoria de que a indicação do contrário representava um convite ao assalto. A prudência de Henry impunha sempre aos amigos o calcorrear de numerosos degraus para se certificarem, porque o prédio não tinha elevador.

A escada situava-se nas traseiras dos apartamentos, voltava para Chelsea, e, à medida que uma pessoa subia e o campo visual se alargava, a guerra voltava a apresentar-se como um facto irrefutável. A maioria das torres das igrejas parecia ter sido cortada por uma foice gigantesca e pairava uma aura de bairro de lata onde outrora o asseio e ambiente respeitável predominavam.

Rowe experimentou uma sensação penosa quando avistou o familiar nº 63. Costumava compadecer-se do amigo em virtude da sua vida austera, da carreira convencional, do facto de o seu trabalho - contabilista- parecer não oferecer a mínima evasão. As suas quatrocentas libras afiguravam-se-lhe o equivalente à opulência e sentia para com Henry a mesma comiseração de um homem abastado por um parente pobre. Na realidade, até lhe costumava oferecer coisas, e talvez residisse aí o motivo da animosidade de Mrs. Wilcox. Rowe exibiu um sorriso de afecto quando se lhe deparou a placa metálica, junto da porta, com a informação «Agente de A. R. P. (1)». Correspondia tudo ao que imaginara, mas o dedo hesitou antes de premir o botão da campainha.

Antes que tivesse tempo de tocar, a porta abriu-se e surgiu Henry. Um Henry singularmente diferente. Fora sempre um homenzinho apresentável, por influência da mulher, todavia agora usava calças de ganga cheias de manchas e exibia uma barba de dois dias.

 

Nota 1: Air raid precautions: precauções contra ataques aéreos.

 

Passou diante de Rowe como se não o tivesse visto e debruçou-se sobre o vão da escada, após o que anunciou:

- Não são eles.

Uma mulher de meia-idade e olhos congestionados, que parecia uma cozinheira, seguiu-o e replicou:

- Ainda não são horas, Henry.

Por um momento - tais eram as alterações que o amigo apresentava -, Rowe perguntou-se se a guerra teria exercido o mesmo efeito na esposa.

Por fim, Henry apercebeu-se dele e murmurou:

- Olá, Arthur. Folgo em ver-te.

Foi como se se tivessem encontrado na véspera. Em seguida tornou a imergir no vestíbulo mal iluminado e converteu-se num vulto abstracto junto de um relógio de parede.

- Pode entrar - disse a mulher. - Não creio que eles demorem muito.

Rowe seguiu-a e notou que ela deixava a porta aberta, como se esperasse mais alguém. Começava a habituar-se a que a vida o transportasse às alturas e o deixasse cair em lugares onde apenas ele não se sentia no seu elemento. Em cima da arca de carvalho - mandada fazer, conforme se recordava, por Mrs. Wilcox à Tudor Manufacturing Company - havia umas calças de ganga meticulosamente dobradas, sob um capacete de aço. O facto levou-o a pensar na prisão, onde tinha de deixar a roupa à entrada. Na penumbra, Henry repetiu:

- Folgo em ver-te, Arthur. - E afastou-se apressadamente.

- Todos os amigos de Henry são bem-vindos - declarou a mulher de meia-idade. - Sou Mrs. Wilcox. - E, parecendo adivinhar o assombro de Rowe, apesar da escuridão, esclareceu. - A mãe dele. Venha esperar cá para dentro. Creio que não demorarão muito, como disse. Está muito escuro aqui, mas é por causa do black-out. A maior parte dos vidros desapareceu.

Conduziu-o a uma dependência em que Rowe reconheceu a sala de jantar, onde se viam copos dispostos numa mesa, como se estivesse para haver uma festa, embora a altura do dia não parecesse a mais indicada... demasiado tarde ou cedo. Henry achava-se lá e dava a impressão de ter sido impelido para um canto ou que se refugiara aí. Na prateleira da lareira, atrás dele, viam-se quatro taças de prata com os nomes de equipas gravados em dupla entrada, por baixo de uma data: beber por elas seria o mesmo que fazê-lo por um livro de contas.

Indicando os copos, Rowe declarou que não era sua intenção incomodar, ao que Henry replicou pela terceira vez, como se se tratasse de uma frase que não exigisse a intervenção do cérebro:

- Folgo em ver-te...

Parecia ter-se-lhe varrido totalmente da memória a cena na prisão em que a sua amizade se desmoronara.

- É admirável como os velhos amigos de Henry cerram fileiras a seu lado - observou Mrs. Wilcox.

Nesse momento, Rowe, que estava na iminência de perguntar pela esposa do amigo, abarcou a situação. A morte era a responsável da presença dos copos, rosto por barbear, expectativa... e até por aquilo que mais o intrigara: a expressão juvenil no semblante de Henry. Costuma dizer-se que as mágoas envelhecem as pessoas, mas em muitos casos tornam um homem mais jovem - libertam-no de responsabilidades, que substituem pelo desprendimento da adolescência.

- Não sabia - murmurou. - De contrário, não teria aparecido.

- Veio em todos os jornais - redarguiu Mrs. Wilcox, com uma ponta de altivez.

Henry continuava no seu canto, comprimindo as mandíbulas, enquanto a mãe prosseguia:

- Orgulhamo-nos de Doris. Todo o grupo lhe vai prestar honras. Colocaremos o seu uniforme... o lavado... no caixão, e o padre dissertará sobre o tema «Maior amor não tem ’homem nenhum».

- Os meus sentidos pêsames, Henry.

- Ela estava louca! - vociferou ele, irritado. - Não tinha o direito... Eu preveni-a de que a parede não aguentava.

- Mas orgulhamo-nos dela, filho - acudiu Mrs. Wilcox. Orgulhamo-nos dela.

- Eu devia tê-la impedido - volveu Henry. - Provavelmente - acrescentou, com um misto de indignação e dor - julgou que ia conquistar mais um dos malditos trofeus.

- Ela representava a Inglaterra. - Mrs. Wilcox voltou-se para Rowe. - Eu queria colocar um stick de hóquei ao lado do uniforme, mas meu filho não concorda.

- Bem, vou retirar-me - anunciou Rowe. - Na verdade, não devia...

- Não, deixa-te estar - decidiu Henry. - Tu sabes como estas coisas são... - Interrompeu-se e fitou-o como se se compenetrasse totalmente da sua presença pela primeira vez. - Também matei minha mulher. Podia tê-la retido, atordoado com um murro...

- Não sabes o que dizes, filho - interpôs Mrs. Wilcox. - Que ficará a pensar este senhor?

- É Arthur Rowe, mãe.

- Ah... - Naquele momento soaram rodas e passos lentos na rua. - Como se atreve ele...?

- É o meu mais velho amigo - volveu Henry, enquanto alguém subia a escada. - Por que vieste, Arthur?

- Precisava que me aceitasses um cheque.

- Que desaforo...! - articulou ela, entre dentes.

- Garanto-te que não sabia que...

- Quanto, rapaz?

- Vinte libras?

- Só disponho de quinze, mas são tuas.

- Não confies nele - advertiu Mrs. Wilcox.

- Garanto-lhe que os meus cheques têm cobertura. Henry sabe-o perfeitamente.

- Porque não se dirige ao banco?

- Já fechou. Lamento o incómodo, mas preciso de dinheiro com urgência.

Havia uma secretária estilo Queen Anne a um canto, que decerto pertencera à mulher de Henry. Todo o mobiliário tinha um aspecto frágil, e caminhar no meio dele fazia lembrar o percurso numa sala entre garrafas e de olhos vendados. Era possível que em casa a jogadora de hóquei reagisse à dureza que imperava nos rectângulos. Quando se dirigia para a secretária, Henry tocou com o ombro numa das taças e fê-la rolar na carpete. De súbito, na porta aberta, apareceu um homem particularmente gordo, de calças de ganga, com um capacete de aço branco na mão, que recolheu a taça e informou em tom solene:

- O cortejo acaba de chegar, Mrs. Wilcox.

Henry vacilou junto da secretária, enquanto a mãe comunicava:

- Tenho o uniforme pronto, no vestíbulo.

- Não consegui arranjar a bandeira - acrescentou o recém-chegado. - Pelo menos das grandes. E as pequenas que costumam cravar nas ruínas não me pareceram apropriadas. - Esforçava-se penosamente por salientar a faceta menos pesada da morte. - Veio todo o grupo, excepto os que estão de serviço. E os outros enviaram representantes. Além disso, há uma equipa de salvamento, quatro peritos de explosivos... e a banda da Polícia.

- Acho maravilhoso - murmurou Mrs. Wilcox. - Se Doris pudesse ver tudo isto...

- Mas pode, minha senhora - asseverou o gordo. - Não tenho dúvidas a esse respeito.

- Depois - ela gesticulou na direcção dos copos -, espero que voltem para...

- Somos muitos. Talvez seja preferível limitarmo-nos aos chefes de secção. Os outros não estão a contar com coisa alguma.

- Vamos, Henry. Não devemos fazer esperar essas almas bondosas. Tens de levar o uniforme nos braços... É pena não estares com um aspecto um pouco menos desmazelado. Todas as atenções se vão concentrar em ti.

- Ainda não percebi por que não a sepultamos com discrição.

- Mas trata-se de uma heroína, filho.

- Não me admirava nada que lhe concedessem a Medalha George... a título póstumo - disse o gordo. - Seria a primeira no bairro e contribuiria para elevar o moral do grupo.

- Ela já não é apenas tua mulher, Henry. Pertence à Inglaterra.

Ele começou a mover-se para a porta, enquanto o outro continuava com a taça de prata na mão, sem saber onde colocá-la. Por fim pousou-a na secretária e seguiram todos para o vestíbulo, sem se preocuparem com Rowe.

- Esqueceste o capacete, filho.

Henry fora um homem muito meticuloso e agora perdera toda a meticulosidade - todas as coisas que o tornavam um homem especial tinham desaparecido. Dir-se-ia que o seu carácter consistira num fato impecável, colunas de números e uma esposa que praticava hóquei. Sem isso era irreconhecível, não fazia sentido.

- Vai tu - indicou à mãe. - Vai tu.

- Mas, Henry...

- É compreensível, minha senhora - interpôs o gordo. - São os sentimentos que contam. Sempre considerámos Mr. Wilcox um homem muito sensível, no grupo. Todos compreenderão - concluiu, referindo-se, supostamente, aos que pertenciam à Defesa Civil, sem esquecer os peritos de explosivos e a banda da Polícia.

Impeliu Mrs. Wilcox para a porta com a mão pousada suavemente no ombro e pegou no uniforme. Sugestões do passado penetraram no anonimato das calças de ganga - o passado pacífico de um funcionário público ou porventura de um porteiro de hotel que abandonava o seu posto, solícito, munido de um guarda-chuva. A guerra assemelhava-se a um sonho desagradável em que pessoas familiares surgem sob disfarces terríveis e inconcebíveis. Incluindo Harry...

Rowe efectuou um movimento indeterminado para os acompanhar, na vaga esperança de recordar o cheque a Henry. Na verdade, constituía a única possibilidade de obter algum dinheiro, pois não havia mais ninguém a quem pudesse recorrer.

- Vamos assistir à partida e voltamos para dentro - explicou Henry. - Compreendes, sem dúvida: falta-me a coragem para ver depositá-la...

Saíram juntos para a rua do lado do parque. O cortejo já se pusera em marcha e deslocava-se como um pequeno fio de água escura em direcção ao rio. O capacete de aço em cima da urna conservava-se enegrecido, pelo que não reflectia o sol de Inverno, e a equipa de salvamento não acertava o passo pelo dos componentes do grupo da Defesa Civil. Era uma espécie de paródia de um funeral de Estado... mas tratava-se, na realidade, de um funeral de Estado. As folhas castanhas do parque eram arrastadas pelo vento na rua, e os clientes que saíam do Duque de Rockingham, à hora do encerramento, descobriam-se.

- Recomendei-lhe que não fizesse aquilo... - começou Henry, enquanto o vento impelia o som dos passos para o seu lado.

Dava a impressão de que tinham entregado a defunta ao povo, ao qual até então nunca pertencera.

- Com licença... - murmurou de repente e moveu-se em direcção à urna.

Não se munira do capacete, o que permitia observar que os cabelos principiavam a ficar grisalhos, e acabou por correr, com receio de ficar para trás. Reunia-se à esposa e ao seu grupo. Arthur Rowe voltava a encontrar-se só. Moveu os dedos na algibeira em que tinha o dinheiro e verificou que não lhe restava muito.

 

UMA CARGA DE LIVROS

Apanhados de surpresa, a nossa resistência valeu de pouco.

O Pequeno Duque

Mesmo que uma pessoa encare as vantagens do suicídio ao longo de dois anos, leva tempo a tomar a decisão final - passar da teoria à prática. Rowe não podia simplesmente lançar-se ao rio naquele momento, além de que decerto o pescariam. Apesar disso, enquanto via o cortejo distanciar-se, não vislumbrava outra solução. Era procurado pela Polícia por homicídio e tinha trinta e cinco xelins na algibeira. Por outro lado, achava-se impossibilitado de visitar o banco e restava-lhe apenas Henry como amigo. Podia, sem dúvida, aguardar que este regressasse a casa, mas o egoísmo frio de semelhante hipótese repugnava-lhe. Uma folha castanha pousou-lhe no casaco, o que, em conformidade com uma velha história, significava dinheiro, embora não determinasse a data.

Afastou-se ao longo do Embankment, na direcção da Ponte de Chelsea, onde observou que as gaivotas pisavam delicadamente o lodo, em virtude da baixa-mar. Notava-se a ausência de carrinhos de bebés e cães: o único canídeo visível parecia pertencer à categoria dos vadios e mostrava-se desconfiado. Um balão de barragem elevava-se atrás das árvores do parque: o seu largo nariz irrompia da escassa folhagem invernal e oscilava ao vento.

Não se tratava unicamente de não dispor de dinheiro, pois também já não tinha aquilo a que se chamava lar - algures para se ocultar das pessoas que o pudessem reconhecer. Sentia a falta de Mrs. Purvis com o seu chá. Rowe costumava contar os dias por ela: pontuados pela sua pancada na porta da sala, deslizavam suavemente para o termo - aniquilação, perdão, castigo ou paz. Faltavam-lhe igualmente David Copperfield e A Velha Loja de Curiosidades. Jánão podia orientar o seu sentimento de piedade em direcção ao sofrimento fictício da pequena Nell - porque vagueava e via demasiados objectos -, porquanto um número excessivo de ratos tivera de ser eliminado. E ele figurava nesse número.

Debruçando-se sobre o Embankment, na atitude clássica dos suicidas potenciais, principiou a entrar nos pormenores. Desejava não dar nas vistas, na medida do possível. Agora que a cólera se extinguira, lamentava não haver tomado aquela chávena de chá - não queria chocar uma pessoa inocente com o espectáculo de uma morte hedionda. E havia muito poucos suicidas que não fossem hediondos. O homicídio era infinitamente mais gracioso, porque o objectivo do assassino não consistia em chocar: desenvolvia esforços porfiados para que a morte parecesse serena, pacífica, feliz. Na verdade, Rowe considerava que tudo seria muito mais fácil se dispusesse de um pouco de dinheiro.

É claro que podia dirigir-se ao banco e permitir que a Polícia o detivesse. Parecia provável que desta vez o enforcariam, mas a perspectiva de pender da forca por um crime que não cometera continha ainda impacte suficiente para o irritar. Se se matasse, seria por um delito que, na realidade, praticara. Assolava-o uma ideia primitiva de justiça. Desejava conformar-se: sempre pretendera conformar-se.

O mundo convencional encara um assassino como algo de quase monstruoso, mas para si próprio não passa de uma pessoa vulgar que toma chá ou café ao pequeno-almoço, que aprecia um bom livro e talvez prefira as biografias às obras de ficção, uma pessoa que se deita sempre à mesma hora, que procura desenvolver bons hábitos físicos, embora talvez sofra de prisão de ventre, que prefere cães ou gatos e defende determinados ideais políticos.

Só se o assassino for uma boa pessoa é que pode ser encarado como monstruoso.

Arthur Rowe era monstruoso. A primeira parte da sua infância desenrolara-se antes da Primeira Guerra Mundial, e as impressões dessa fase da vida são indeléveis. Fora educado na crença de que era errado provocar dor, conquanto adoecesse com frequência e sofresse verdadeiras torturas às mãos de um dentista ineficiente conhecido por Griggs. Aprendeu o significado da dor antes dos 7anos e não permitia que um simples rato a suportasse. Na infância vivemos sob o clarão da imortalidade - o céu está tão perto e é tão real como a praia. Por detrás dos pormenores complicados do mundo encontram-se as simplicidades: Deus é bondoso, o homem (ou mulher) adulto conhece as respostas a todas as perguntas, a verdade existe e a justiça pode considerar-se tão exacta e impecável como o relógio mais afinado. Os nossos heróis são simples: destemidos, falam sempre verdade, são bons espadachins e, em última análise, nunca experimentam o travo amargo da derrota. É por isso que nenhum dos livros posteriores nos satisfaz tanto como aqueles que nos leram na infância, pois esses prometiam um mundo de grande simplicidade, cujas regras conhecíamos, enquanto os outros se revelam complicados e contraditórios em relação à experiência. São constituídos pelas nossas próprias recordações decepcionantes - do juiz implacável no tribunal da Polícia, da declaração de impostos forjada, de pecados nos cantos e da voz cavernosa do homem que desprezávamos falando-nos de coragem e pureza. O Pequeno Duque está morto, traído e esquecido; não podemos reconhecer o vilão, suspeitamos do herói e o mundo torna-se um lugar pequeno e superlotado. As duas grandes afirmações populares da fé são «como o mundo é pequeno!» e «eu próprio sou um estranho aqui».

Mas Rowe era um assassino - tal como outros homens são poetas. As estátuas continuavam de pé. Ele estava disposto a fazer o necessário para salvar os inocentes ou castigar os culpados. Acreditava, contra toda a experiência da vida, que a justiça existia algures^ e a justiça condenava-o. Analisava os seus motivos minuciosamente e traçava sempre conclusões contra si próprio. Tentava convencer-se, enquanto permanecia debruçado sobre a muralha, como acontecera centenas de vezes no passado, de que fora ele que não conseguira suportar a dor da esposa, e não ela. É certo que um vez, nos primeiros tempos da doença, cedera ao desespero e manifestara a vontade de morrer e não esperar pelo fim natural, mas isso não passava de uma fase de histeria. Mais tarde fora a resistência e paciência dela que Rowe considerara mais insuportáveis. Ele tentava escapar à sua própria dor, e não à dela, até que a vira pressentir, ou semipressentir, o que lhe oferecia, mas receava perguntar se era o que pensava. Como poderia continuar a viver com um homem se lhe perguntasse se misturara veneno na bebida que tomava antes de adormecer? Resultava muito mais fácil, se o amava e estava cansada de sofrer, ingerir o leite quente e deixar-se vencer pelo sono. Todavia, ele nunca saberia se o medo fora mais intenso que a dor, assim como jamais conseguiria determinar se não preferiria qualquer espécie de vida à morte. Rowe pegara no taco, matara o rato e poupara-se à agonia de assistir ao tormento crescente... Formulara a si as mesmas perguntas e as mesmas respostas todos os dias, desde o momento em que ela aceitara o copo de leite e dissera: «Que sabor tão esquisito!» e se reclinara, tentando sorrir. Ele gostaria de ter ficado a seu lado até que adormecesse, mas isso seria fora do habitual, e impunha-se que evitasse tudo o que se desviasse da rotina, pelo que tivera de a deixar morrer só. E ela também gostaria de lhe pedir que ficasse - Rowe estava persuadido disso -, mas seria igualmente fora do habitual. De resto, dentro de uma hora, ele reunir-se-lhe-ia na cama. As convenções dominavam-nos no momento da morte. Ele conservava presentes no espírito as perguntas da Polícia: «Porque é que ficou?» E era muito possível que ela também fizesse deliberadamente o seu jogo contra as autoridades. Havia muitas coisas que ele nunca saberia. Mas, quando a Polícia iniciou o interrogatório, não dispôs de coragem nem energia para mentir. É possível que, se mentisse um pouco, acabassem por enforcá-lo... Era altura de pôr termo ao julgamento.

- Eles não podem destruir o Tamisa de Whistler - disse uma voz.

- Desculpe, não ouvi... - começou Rowe.

- Está-se seguro lá em baixo. Subterrâneos à prova de bombas. Tinha a vaga ideia de que já vira aquela cara algures: o bigode grisalho, bolsos protuberantes, de um dos quais o homem extraiu naquele momento um pedaço de pão, para o lançar ao lodo. As gaivotas levantaram voo antes que alcançasse o rio: uma adiantou-se às outras, apanhou-o e afastou-se, sobrevoando as barcaças e a fábrica de papel, um fragmento branco que se deslocava, como impelido pelo vento, em direcção às chaminés enegrecidas de Lots Road.

- Venham, meninos - disse o homem, cuja mão se converteu subitamente num campo de aterragem de pássaros. - Eles conhecem o tio - acrescentou satisfeito. - Conhecem o tio.

Colocou um pedaço de pão entre os lábios e as aves esvoaçaram em torno da boca, para o debicar com prudência, como se beijassem o homem.

- Deve ser difícil alimentar todos os seus sobrinhos em tempo de guerra - observou Rowe.

- Se é... - admitiu o outro, abrindo a boca, o que lhe expôs os dentes, em condição lastimosa, como destroços de um incêndio. Em seguida depositou algumas migalhas no seu velho chapéu castanho, onde os pássaros pousaram com prontidão. - Rigorosamente ilegal - murmurou. - Se Lorde Woolton soubesse... - E colocou o pé sobre uma pesada mala e uma ave empoleirou-se no joelho.

- Já o vi algures - disse Rowe.

- É possível.

- Duas vezes, hoje.

- Aproximem-se, meninos.

- Na sala de leilões de Chancery Lane.

- O mundo é pequeno - reconheceu o homem, com uma expressão de candura nos olhos, benevolentes.

- Costuma comprar livros? - perguntou Rowe, pensando na indumentária quase andrajosa do interlocutor.

- Comprar e vender. - O outro parecia suficientemente perceptivo para lhe adivinhar o pensamento. - É o meu fato de trabalho. Os livros estão sempre cheios de pó.

- Negoceia em edições antigas?

- A jardinagem é a minha especialidade. Do século XVIII. Fullove, Fulham Road, Battersea.

- Tem muitos clientes?

- Mais do que possa supor. - Abriu os braços subitamente e enxotou as aves, como se fossem crianças com as quais já brincara o suficiente. - Mas não abundam, nos tempos actuais. Ainda não compreendi pelo que pretendem lutar. - Indicou a mala com um movimento suave do pé. - Tenho aqui uma carga de livros, obtidos da casa de um lorde. Salvados. O estado de alguns quase dá vontade de chorar, mas outros... Não posso dizer que não fosse um bom negócio. Não me importava de lhos mostrar, mas receio os excrementos dos pássaros. A primeira pechincha que me apareceu em muitos meses. Outrora conservava-os com carinho. Aguardava que os americanos aparecessem, no Verão. Agora acolho de bom grado todas as oportunidades de obter lucro. Se não entregar estes a um cliente do Regal Court até às cinco, já não os vendo. Ele quer levá-los para o campo antes do bombardeamento. Não tenho relógio. Pode dizer-me as horas?

- Quatro.

- Tenho de ir - decidiu Mr. Fullove. - Em todo o caso, os livros pesam e estou arrasado. Foi um dia muito longo. Desculpe se me sento por uns momentos. - Instalou-se em cima da mala e puxou de um maço amarfanhado de Tenners. - Fuma? Também parece um pouco em baixo, se não leva a mal que lhe diga.

- Não, estou bem. - Rowe reconhecia que os olhos, exaustos e benevolentes, lhe despertavam certa curiosidade. - Porque não toma um táxi?

- É que trabalho com uma margem de lucro muito apertada. Se me meto num táxi, lá se vai um dólar. E depois, quando ele levar os livros para o campo, talvez rejeite um.

- São de jardinagem?

- Exacto. É uma arte em vias de extinção. Não se trata apenas das flores em si. - Com uma expressão de desdém, Fullove acrescentou: - Hoje em dia, a jardinagem só representa flores, para a maioria das pessoas.

- Parece que não gosta muito delas.

- Não é bem assim. São indispensáveis para muitas coisas.

- Pois eu não sei praticamente nada sobre jardinagem - confessou Rowe. - Excepto que envolve flores.

- Arranjavam uns truques extraordinários. - Os benevolentes olhos exibiram uma ponta de entusiasmo. - A maquinaria.

- Maquinaria?

- Tinham estátuas que ejectavam água às pessoas que passavam. E as grutas... as coisas de que se lembraram para as grutas. Num jardim digno desse nome ninguém se sentia seguro em parte nenhuma.

- Sempre pensei que uma pessoa estava em segurança num jardim.

- Isso sim! - O vendedor de livros expeliu o hálito dos dentes cariados na direcção de Rowe, que se viu impedido de se desviar, pela sensação de compaixão. - Além disso -, havia os túmulos.

- Também ejectavam água?

- Não. Proporcionavam o toque de solenidade, o memento mori.

- Pensamentos tenebrosos numa atmosfera obscura?

- É a sua maneira de encarar as coisas, hem? - Mas não subsistiam dúvidas de que o homem experimentava uma réstia de satisfação. Em seguida, tentando limpar as marcas produzidas pelos pássaros na manga do casaco, perguntou: - Não sabe reconhecer o sublime... ou o ridículo?

- Talvez saiba, mas prefiro a simples natureza humana.

- Compreendo ao que se refere - declarou com uma leve risada. - Garanto-lhe que havia espaço para a natureza humana, nas grutas. Em nenhuma faltava um sofá confortável. Nunca esqueciam o sofá confortável. - E registou-se nova baforada proveniente dos dentes cariados.

- Não acha que deve pôr-se a caminho? - sugeriu Rowe. Não perca uma venda por minha causa.

Reagiu imediatamente à leve brusquidão em que se exprimira, para apenas vislumbrar os olhos condescendentes e fatigados e reflectir: «O pobre diabo teve um dia extenuante e, no fundo, simpatizou comigo.» Esta última parte impressionava-o, sobretudo porque o surpreendia.

- Sou da mesma opinião. - O vendedor de livros levantou-se e voltou a sacudir o casaco. - Nunca perco uma oportunidade de conversar, e, nos tempos que correm, não são muitas. Uma pessoa passa a vida numa roda-viva, quando não tem de correr para os abrigos.

- Dorme num abrigo?

- Aqui para nós - murmurou, como se confessasse uma idiossincrasia -, não suporto as bombas. No entanto, num abrigo não se dorme como convém. - O peso da mala fazia-o parecer mais velho, devido ao esforço desenvolvido. - Algumas pessoas não têm consideração nenhuma. Os roncos e conversas em voz alta ao longo da noite...

- Porque veio pelo parque? Não é o caminho mais curto.

- Queria descansar um pouco... e as árvores e os pássaros eram convidativos.

- Deixe-me levar-lhe a mala. Não há autocarros deste lado do rio.

- Não quero que se incomode. Nem pensar nisso. - Apesar dos protestos, não se registou a menor resistência física, e a mala mudou de mão. - Não há nada tão pesado como os livros... a não ser porventura os tijolos.

Emergiram do parque e Rowe transferiu a mala para a outra mão, ao mesmo tempo que observava:

- Está-se a fazer tarde para o seu encontro de negócios.

- A culpa é da minha língua - admitiu o homem, apreensivo. Desconfio que vou ter de sacrificar o dinheiro do transporte.

- Também me parece.

- Se pudesse dar-lhe boleia, ficava mais descansado com a minha consciência. Vai para o mesmo lado?

- Qualquer um serve.

Encontraram um táxi livre na primeira esquina e o vendedor de livros reclinou-se com ar descontraído.

- Sempre fui da opinião de que, se uma pessoa se decide a pagar uma coisa, deve desfrutá-la o melhor possível.

Todavia, no interior do veículo, com as janelas fechadas, não era fácil desfrutar coisa alguma, em virtude do odor activo resultante da deterioração dentária, e Rowe decidiu dizer algo, com receio de deixar transparecer a mínima repulsa.

- Também se dedica à jardinagem?

- Apenas muito por alto. - O homem espreitava constantemente através do vidro da janela, e acudiu ao espírito de Rowe que a satisfação simplória soava um pouco a falso. - Não sei se se importará de me fazer mais um favor. Aquela escada do Regal Court... enfim, é uma ameaça para um homem da minha idade. Compro e vendo livros, mas para eles não passo de um comerciante. Se quisesse levar a mala... Não precisa de se demorar lá. Basta perguntar por Mr. Travers, no nº 6. Ele espera a encomenda, e só tem de lha entregar. - Lançou um breve olhar de través ao companheiro, numa tentativa para detectar um esboço de recusa. - Depois, em virtude da sua extrema amabilidade, dou-lhe boleia até onde desejar ir.

- Pode ser muito longe.

- Correrei o risco. Perdido por cem, perdido por mil.

- Era capaz de pegar na sua oferta e efectuar um percurso interminável.

- É-me indiferente. Eu vendia-lhe um livro e ficávamos quites. Talvez fosse pelo ar servil do homem ou apenas pelo cheiro detestável, mas Rowe sentia-se relutante em comprazê-lo.

- Porque não pede ao porteiro que se encarregue disso?

- Não confio nele.

- Podia assistir à entrega.

- Não, por causa da escadaria, no final de um longo dia de trabalho. - O vendedor de livros moveu-se para procurar uma posição mais confortável. - Na verdade, eu nem devia andar por aí com a mala. - E pousou a mão no lado esquerdo do peito, gesto para o qual não havia resposta.

«Bem, já agora posso praticar uma boa acção antes de desaparecer totalmente da circulação», reflectiu Rowe. No entanto, a ideia continuava a não lhe agradar. Embora o homem parecesse cansado e pouco saudável, ao ponto de desencorajar qualquer suspeita de simulação, a insistência em convencê-lo a aceitar o pedido intrigava-o. «Porque hei-de estar aqui sentado num táxi com um desconhecido e prometer-lhe arrastar uma mala cheia de livros até ao quarto de outro indivíduo que também não conheço?» Sentia-se dirigido, controlado, moldado por um agente indefinido e possuidor de imaginação surrealista.

Apearam-se do táxi à entrada do Regal Court - duas figuras singulares, de roupa amarrotada e barba por fazer. Rowe não concordara com coisa alguma, mas sabia que não lhe restava qualquer alternativa, pois não dispunha de força de vontade suficiente para se afastar e deixar o homenzinho a contas com a pesada mala. Quando se encontrou diante do olhar desconfiado do porteiro do hotel, este inquiriu:

- Tem quarto reservado... senhor?

- Não venho para ficar. Trago esta mala para Mr. Travers.

- Pergunte na recepção, por favor - indicou o porteiro e apressou-se a atender as pessoas que acabavam de se apear de um táxi e que apresentavam aspecto mais prometedor.

O vendedor de livros não mentira: a longa e larga escadaria era difícil de transpor. Dir-se-ia que fora concebida para ser descida com lentidão por mulheres trajadas a rigor. O arquitecto revelara-se demasiado romântico - não previra nos seus cálculos um homem com barba de dois dias arrastando uma carga de livros.

Rowe contou cinquenta degraus, após os quais o recepcionista, atrás do balcão, o olhou com curiosidade e tratou de anunciar:

- Não há aposentos vagos.

- Trago uns livros para Mr. Travers, do quarto nº 6.

- Ah, sim. Ele esperava-o. Saiu, mas transmitiu instruções - era óbvio que as instruções não lhe mereciam a aprovação para que o deixássemos entrar.

- Não quero esperar. Pretendo apenas entregar os livros.

- Mr. Travers quer que espere.

- Estou-me nas tintas para o que Mr. Travers quer.

- Rapaz - determinou o recepcionista a um paquete -, acompanha este homem ao nº 6. Mr. Travers autorizou que o deixássemos entrar.

Aparentemente, possuía um repertório de frases muito reduzido, que nunca renovava, e Rowe perguntou-se se lhe teriam bastado para as normais vicissitudes da vida, casar e ter filhos. Seguiu o paquete ao longo de corredores intermináveis com iluminação indirecta e, em dado momento, quando surgiam de uma curva, uma mulher de pantufas e roupão cor-de-rosa soltou um grito abafado. O corredor assemelhava-se ao de um monstruoso navio da Cunard, e Rowe quase esperava ver surgir pessoal de bordo devidamente uniformizado, mas em seu lugar apareceu um homem de chapéu de coco que, após avançar uma dezena de metros, enveredou por um desvio em direcção a outro ponto das entranhas do prédio.

- Costumam desenrolar um novelo de cordel para darem com o caminho de regresso? - perguntou, oscilando sob o peso da mala, de que o paquete não tentara sequer aliviá-lo, e sentindo a estranha leveza de cabeça que, segundo dizem, acode aos moribundos.

Mas as costas, as calças azuis apertadas e o casaco curto da farda prosseguiam em frente, imperturbáveis. Afigurava-se a Rowe que uma pessoa se podia perder aqui para toda a vida. Somente o recepcionista teria uma vaga ideia do desaparecido, e era duvidoso que se aventurasse naquela imensa floresta. A água brotaria com regularidade das torneiras e, ao anoitecer, uma pessoa podia emergir, para recolher alimentos enlatados. Acudia-lhe uma sensação quase esquecida de aventura, enquanto observava os números decrescentes das portas: 49, 48, 47. Em dado momento enfiaram por um atalho que os conduziu, através da área dos 60, à dos 30.

Uma porta no corredor achava-se entreaberta e filtravam-se sons estranhos pelo pequeno espaço, como se alguém assobiasse e suspirasse alternadamente, mas nada do que acontecia parecia invulgar ao paquete, o qual avançava imperturbável: era um filho daquele prédio. Pessoas de todas as espécies surgiam para pernoitar, com ou sem bagagem, e para voltar a desaparecer. Alguns, poucos felizmente, que morriam ali, eram retirados discretamente pelo monta-cargas. Os casos de divórcio floresciam em determinadas épocas do ano: os implicados distribuíam gorjetas substanciais, superadas pelas dos detectives, porque as destes últimos eram incluídas na folha de despesas. Assim, o paquete encarava tudo com naturalidade, por uma questão de hábito.

- Depois indica-me o caminho para sair? - inquiriu Rowe.

Em cada esquina havia setas por cima das palavras ABRIGO CONTRA ATAQUES AÉREOS, e a sua aparição frequente infundia a impressão de que uma pessoa caminhava em círculos.

- Mr. Travers deixou instruções para que aguardasse.

- Mas eu não recebo ordens dele.

Era um edifício moderno, com um silêncio admirável e preocupante. Em vez de campainhas, luzes acendiam-se e apagavam-se, o que fazia parecer que eram transmitidas notícias importantes e inadiáveis a cada momento. Aquele silêncio - agora que o suspiro e o silvo haviam ficado para trás - lembrava o de um transatlântico à deriva. As máquinas tinham parado e, na quietude sinistra, as pessoas apuravam os ouvidos numa tentativa para detectar o som das ondas a embater no costado.

- Cá está o nº 6 - anunciou o paquete.

- Deve levar muito tempo a chegar ao nº 100.

- É no terceiro andar. Mas Mr. Travers deixou instruções...

- Deixe lá. Faça de conta que eu não disse nada.

Sem o número cromado seria difícil distinguir a diferença entre a porta e a parede, como se os ocupantes do hotel tivessem sido emparedados. O paquete introduziu uma chave mestra na fechadura e impeliu a parede e Rowe disse:

- Vou deixar a mala aqui...

No entanto, a porta fechou-se atrás dele antes que pudesse completar a frase. Mr. Travers, que aparentemente era um homem muito respeitado, transmitira instruções concretas, e, se ele não as cumprisse, teria de encontrar a saída sem ajuda. Havia algo de grotesco no absurdo episódio. Rowe já tomara uma decisão acerca de quase tudo. A justiça, tal como as circunstâncias do caso, exigia que pusesse termo à vida (só faltava optar por um método), e agora podia saborear a singularidade da existência. Arrependimento, cólera, ódio demasiadas emoções tinham obscurecido por muito tempo a configuração insensata da vida. Por fim abriu a porta da sala e soltou uma exclamação.

- Isto ultrapassa todas as expectativas!

Na sua frente encontrava-se Anna Hilfe.

- Também veio à procura de Mr. Travers? - acrescentou. Interessa-se por jardinagem?

- Vim para falar consigo - respondeu ela, em tom sereno. Era, na verdade, a sua primeira oportunidade de a observar devidamente. Baixa e magra, parecia muito jovem para todas as coisas que devia ter visto, e agora, fora do enquadramento do escritório, já não apresentava um aspecto de eficiência - como se a eficiência fosse um jogo imitativo a que só se podia entregar com objectos próprios de adultos: uma secretária, um telefone, um fato preto. Sem eles, unicamente conseguia infundir a sensação de decorativa e frágil; porém, ele sabia que a vida não a conseguira quebrar. Apenas lograva provocar-lhe algumas rugas em torno dos olhos, tão límpidos como os de uma criança.

- Também gosta das partes mecânicas da jardinagem? - volveu Rowe. - Estátuas que ejectam água...

Sentia o coração palpitar ao vê-la, como se fosse um adolescente no primeiro encontro com uma rapariga à entrada de um cinema... ou no pátio de uma estalagem de província onde se realizava um baile. Ela usava calças azuis, para o alarme da noite, e uma camisola de malha cor de vinho. Ao mesmo tempo, ele reflectia com melancolia que tinha as coxas mais atraentes que jamais contemplara.

- Não compreendo - murmurou a rapariga.

- Como soube que eu vinha trazer uma carga de livros a Mr. Travers... quem quer que ele seja? Eu ignorava a sua existência até há dez minutos.

- Desconheço que pretexto inventaram para si, mas retire-se. Por favor.

Parecia uma daquelas crianças que apetece atormentar... de uma maneira agradável; e no escritório aparentara mais dez anos.

- Tratam bem as pessoas aqui. Concedem-lhes um apartamento inteiro para pernoitar. Podem sentar-se a ler um livro e preparar o jantar. - Rowe aproximou-se do reposteiro castanho que dividia a sala ao meio e afastou-o, para revelar uma cama de casal, um telefone em cima da mesa-de-cabeceira e uma estante. - Que haverá aqui? - continuou, abrindo outra porta. - Eu não dizia? Uma cozinha, com fogão e tudo. - Retrocedeu para a sala e declarou: Uma pessoa podia viver aqui e esquecer-se de que não estava em casa. - E já não o assolava qualquer desprendimento, sensação que o visitara por escassos minutos.

- Não reparou em nada? - perguntou ela.

- Em que sentido?

- Não é muito observador, para um jornalista.

- Sabe que eu era jornalista?

- Meu irmão inteirou-se de tudo.

- Tudo?

- Sim. Não reparou em nada?

- Não.

- Mr. Travers nem um sabonete usado deixou ficar. Veja na casa de banho. Continua no envoltório.

Rowe dirigiu-se à porta de entrada, aplicou o fecho de segurança e virou-se de novo para a rapariga.

- Seja ele quem for, não poderá entrar sem que acabemos de conversar. Miss Hilfe, pode explicar-me pausadamente (creio que sou um pouco estúpido), primeiro, como soube que eu vinha e, depois, porque é que compareceu também?

- Só responderei à segunda pergunta. Pedi-lhe que se retirasse sem demora. Não acertei da última vez, quando telefonei?

- Sem dúvida. Mas porque é que se preocupa comigo? Disse que sabia tudo a meu respeito.

- Não existe mal nenhum na sua pessoa.

- Uma vez que sabe tudo, não se preocuparia...

- Gosto que se faça justiça - afirmou ela, como se confessasse uma excentricidade.

- É uma coisa excelente, se se consegue obter.

- Mas eles não.

- Refere-se a Mrs. Bellairs e Canon Topling?

A situação apresentava-se muito complicada e ele sentia que não lhe restava entusiasmo para lutar. Com um suspiro, afundou-se numa poltrona - no substituto do lar concediam uma poltrona e um sofá.

- Canon Topling é um homem bondoso - afirmou a rapariga, que, de súbito, exibiu um sorriso. - Estamos a dizer coisas disparatadas.

- Há-de avisar seu irmão de que não se apoquente mais comigo. Desisto. Que assassinem quem quiserem. Não quero mais nada de comum com o assunto. Vou partir.

- Para onde?

- Não se preocupe, que não me encontrarão. Conheço um lugar... Mas duvido de que me persigam. Creio que a única coisa que receavam era que eu os descobrisse. Agora duvido de que venha a saber de que se tratava. O bolo... e Mrs. Bellairs. A impagável Mrs. Bellairs.

- Eles são maus - articulou ela, como se esta frase simples os descrevesse plenamente. - Alegra-me que parta. O assunto não lhe diz respeito. - E, ante a perplexidade dele, acrescentou: - Não quero que o façam sofrer mais.

- Mas está ao corrente de tudo a meu respeito. Investigou o meu passado a fundo. - Rowe empregou igualmente o termo infantil: - Também sou mau.

- Vi muitas pessoas más na terra donde venho, e o senhor não se adapta a nenhuma. Faltam-lhe as marcas características. Preocupa-se demasiado com o que já passou. Diz-se que a justiça inglesa é boa. Pois bem, não o enforcaram. Foi uma morte misericordiosa, como os jornais lhe chamaram.

- Leu-os todos?

- Todos. Até vi as fotografias que tiraram. O senhor ergueu o seu jornal para ocultar o rosto...

Ele escutava com uma espécie de assombro entorpecido. Ninguém lhe falara jamais abertamente sobre o caso. Resultava penoso, mas tratava-se do tipo de sensação dolorosa que surge quando se aplica iodo a uma ferida e se pode suportar.

- Na terra donde venho, assisti a muitas mortes, mas nenhuma misericordiosa - prosseguiu ela. - Não pense tanto nisso. Conceda-se uma oportunidade de regressar à vida.

- Creio que temos de decidir a atitude a tomar quanto a Mr. Travers.

- Basta que se retire.

- E você que fará?

- A mesma coisa. Também não quero problemas.

- Se eles são seus inimigos e a fizeram sofrer, ficarei para conversar com Travers.

- Não são meus. Não nasci neste país.

- Quem são eles? Confesso que estou a zero. Trata-se de compatriotas seus ou meus?

- São os mesmos em toda a parte. - Estendeu a mão e pousou-a levemente no braço dele, como se quisesse inteirar-se do que sentia. Julga-se mau, mas apenas porque não pôde suportar a dor. No entanto, eles podem suportar a dos outros interminavelmente. São pessoas que não se preocupam com coisa alguma.

Rowe poderia continuar a escutá-la durante horas e afigurava-se-lhe lamentável que tivesse de pôr termo à vida, mas não lhe restava qualquer alternativa. A menos que deixasse o trabalho a cargo do carrasco.

- Se aguardar a chegada de Travers, é natural que ele me entregue à Polícia.

- Não sei o que eles decidirão fazer.

- E aquele fulano de maneiras suaves, dos livros, também está envolvido. São muitos.

- Muitíssimos. Cada dia mais.

- Mas porque é que supunham que eu ficaria depois de entregar os livros? - Ele pegou no pulso da rapariga, um pulso minúsculo e ossudo, e perguntou com uma ponta de amargura: - Não estará também envolvida?

- Não - replicou ela sem se mover, como se se limitasse a asseverar um facto.

Rowe tinha a vaga impressão de que ela não costumava mentir. Poderiam flagelá-la centenas de vícios, mas não o mais comum de todos.

- Calculava isso menos. Nesse caso, quer dizer que quiseram atrair aqui ambos.

- Oh! - exclamou ela, como se acabasse de ser agredida.

- Eles previram que perderíamos tempo com explicações. Querem apanhar-nos, mas a Polícia não se interessa por si. Vai acompanhar-me imediatamente.

- Está bem.

- Se não for demasiado tarde. Eles parecem exímios em sincronizar as coisas. - Rowe soltou o fecho de segurança da porta, que entreabriu com prudência, para voltar a fechá-la quase em seguida. Há pouco pensei que seria facílimo uma pessoa perder-se nos longos corredores deste hotel.

- E daí?

- Não nos perderemos. Está alguém no fundo deste, à nossa espera. Não lhe vi a cara, porque se encontra de costas para aqui.

- Eles pensam em tudo.

Sentiu a boa disposição reaparecer parcialmente. Julgara que morreria naquele dia, mas equivocara-se. Continuaria a viver, porque podia voltar a ser útil a alguém. Já não se lhe afigurava que arrastava um corpo inútil e em envelhecimento rápido.

- Não estou a ver como esperam matar-nos à fome. E não podem entrar. A menos que seja pela janela.

- Por aí também não - esclareceu a rapariga. - Espreitei e vi que ficava a quatro metros do chão, numa parede sem outras aberturas.

- Nesse caso, a única coisa que resta é sentarmo-nos e aguardar. Podemos ligar ao restaurante e encomendar uma refeição. Com vários pratos e um vinho de qualidade. Que ponham na conta de Travers. Principiaremos por um xerez muito seco.

- Desde que nos certifiquemos de que será servida pelo empregado conveniente.

- Pensa em tudo - reconheceu ele, com um sorriso. - É do treino continental. Que recomenda?

- Ligue ao recepcionista... conhecemo-lo de vista. Apresente uma reclamação qualquer e insista em que venha. Depois sairemos com ele.

- É o mais aconselhável, de facto.

Desviou o reposteiro e ela seguiu-o.

- Que vai dizer?

- Não sei. Improvisarei. - Rowe levantou o auscultador e aguardou por um longo momento. - Desconfio que não funciona - E continuou à espera durante dois minutos, sem que se registasse o mínimo som na linha.

- Estamos cercados. Que tencionarão fazer?

Não se aperceberam de que estavam de mãos dadas, como se os envolvesse subitamente a escuridão e não quisessem perder-se um do outro.

- Não estamos muito preparados em questão de armamento. Vocês já não usam alfinetes de chapéu e creio que a Polícia me confiscou o único canivete que tinha. - Regressaram à sala e ele sugeriu: - Ao menos aqueçamo-nos. Liguemos o calorífero. Faz muito frio e os lobos espreitam-nos.

A rapariga soltou a mão, agachou-se junto da lareira e anunciou:

- Não funciona.

- Esqueceu-se de introduzir uma moeda de meio xelim.

- Introduzi um xelim.

Fazia de facto frio e começava a escurecer, o que provocou o mesmo pensamento em ambos. Rowe estendeu a mão para o interruptor da luz, porém o candeeiro permaneceu apagado.

- Vai estar muito escuro e muito frio - comentou, comprimindo os lábios. - Mr. Travers não se preocupou com o nosso conforto.

- Tenho medo - proferiu a rapariga, levando a mão à boca. Lamento, mas tenho mesmo medo. Não gosto da escuridão.

- Eles não podem fazer nada. A porta está fechada por dentro. De resto, não acredito que tentem arrombá-la, pois encontramo-nos num hotel civilizado.

- Tem a certeza de que não há nenhuma porta de comunicação com outro apartamento? Na cozinha..

Ele tratou imediatamente de se certificar e anunciou:

- Tem razão. É a entrada de serviço. São apartamentos com todas as comodidades.

- Mais vale que coloque o fecho de segurança quanto antes.

Preparou-se para obedecer, mas soltou um suspiro de frustração, ao mesmo tempo que meneava a cabeça.

- Está partido. - Apressou-se a pegar de novo na mão dela. Não importa. Deixamo-nos arrastar pela imaginação. Não nos encontramos em Viena, mas sim em Londres. O hotel está cheio de gente... do nosso lado. - E repetiu: - Do nosso lado. Basta gritar, para que acudam.

O mundo deslizava rapidamente para a noite e, à semelhança de um navio torpedeado, em breve mergulharia nas trevas. Aliás, eles já começavam a falar mais alto, porque não conseguiam ver os rostos com nitidez.

- O alarme vai soar dentro de meia hora - lembrou ela. Nessa altura, irão todos para a cave e só ficaremos cá fora nós... e eles.

- Será a nossa oportunidade. Poderemos misturar-nos com os outros.

- Estamos no final do corredor. Talvez não haja muita gente para nos misturarmos. Quem nos garante que se encontra mais alguém deste lado? Eles devem ter pensado nisso e reservaram todos os quartos.

- Tentaremos, de qualquer modo - decidiu Rowe. - Se tivéssemos alguma arma... um pau, uma pedra... - Fez uma pausa e soltou a mão da rapariga. - Se isto não são livros, talvez sejam tijolos.

Por um momento olharam a mala com expressões de dúvida. A eficiência é paralisante. Se eles pensavam em tudo, teriam descurado aquele pormenor?

- Acho melhor não lhe tocar - disse ela.

Experimentavam uma inércia muito semelhante à da ave perante a serpente - esta também conhece todos os truques.

- Alguma vez hão-de cometer um erro - murmurou ele, numa inflexão de esperança.

A escuridão dividia-os. Ao longe, troaram peças de artilharia.

- Eles hão-de aguardar que soe o alarme... até que todos estejam lá em baixo e não possam ouvir nada.

- Que foi aquilo? - proferiu ele subitamente, começando a enervar-se.

- O quê?

- Parece que alguém moveu o puxador da porta.

- Estão a aproximar-se.

- Não nos podemos considerar vencidos de antemão. Ajude-me com o sofá.

Impeliram-no até junto da porta da cozinha, quando praticamente já não enxergavam nada.

- Ainda bem que o fogão é eléctrico.

- Não creio que seja. Porquê?

- Impedimo-los de entrar, mas podem ligar o gás.

- Você também se devia dedicar à actividade deles. As coisas que lhe ocorrem! Mais vale que levemos o sofá para a cozinha.

- No entanto, imobilizaram-se quase imediatamente. - É demasiado tarde. Está lá alguém. Ouviu? - A única coisa que notaram foi o estalido do fechar de uma porta. - Que acontece a seguir?

- Acudiram ao espírito de Rowe recordações de O Pequeno Duque. - Nos velhos tempos intimavam sempre os ocupantes do castelo a render-se.

- Fale mais baixo - sussurrou ela. - Eles estão à escuta.

- Começo a cansar-me deste jogo do gato e do rato. Nem sequer sabemos se ele está aí. Pretendem assustar-nos com o ranger de portas na escuridão. - Dominado por uma ponta de histeria, Rowe bradou: - Entrem, entrem! Não merece a pena bater. - Fez uma pausa, mas ninguém respondeu. - Escolheram o homem errado. Julgam que podem obter tudo pelo medo. Mas você investigou o meu passado. Sou um assassino, hem? Sabe-o perfeitamente. Não tenho medo de matar. Dê-me uma arma qualquer. Um tijolo serve. - E baixou os olhos para a mala.

- Tem razão - concordou a rapariga. - Precisamos de fazer alguma coisa, ainda que seja errada. Não lhes podemos conceder a iniciativa em tudo. Abra-a.

Ele apertou-lhe a mão levemente com nervosismo e soltou-a. Em seguida, enquanto as sirenes iniciavam os seus uivos nocturnos, levantou a tampa da mala...

 

O HOMEM FELIZ

CONVERSAS NA ARCÁDIA

Os guardas dele faziam constar que o castelo não continha semelhante hóspede.

O Pequeno Duque

O sol entrou no quarto como a claridade que penetra na água verde-clara. Isso devia-se ao facto de a árvore junto da janela começar a emitir rebentos. A luz incidiu nas paredes brancas, imaculadas, do aposento, sobre a cama, com a sua colcha amarela, abarcando a poltrona, o sofá e a estante, cheia de literatura avançada. Havia alguns narcisos num vaso que fora comprado na Suécia e os únicos sons provinham de uma fonte algures no frio do exterior e da voz suave do jovem de expressão grave e óculos sem aros.

- O essencial é não nos preocuparmos. Já suportou a sua parte da guerra de momento, Mr. Digby, pelo que pode repousar com a consciência tranquila.

Mostrava-se sempre incisivo no tema da consciência. A dele, como explicara algumas semanas antes, estava perfeitamente tranquila. Mesmo que as suas ideias não o impelissem para o pacifismo, a deficiente visão impedi-lo-ia de uma intervenção valiosa: os deploráveis objectos espreitavam fracamente e com confiança através das espessas lentes convexas como vidro de garrafa e imploravam a todo o momento uma conversa séria.

- Não pensem que não gosto de estar aqui. É um local excelente para descansar. Só que às vezes tento pensar... quem sou.

- Sabemos isso, Mr. Digby. O seu bilhete de identidade...

- Sim, sei que o meu nome é Richard Digby. Mas quem é Richard Digby? Que espécie de vida pensam que eu levava? Acham que alguma vez disporei de meios para lhes pagar... tudo isto?

- Não se apoquente com esse aspecto da questão, Mr. Digby. O médico considera-se compensado dos seus esforços com o interesse que o seu caso lhe merece. É um espécime muito valioso no seu microscópio.

- Mas ele torna a vida na lâmina muito luxuosa, não lhe parece?

- É um homem maravilhoso - assentiu o jovem. - Foi ele que planeou este local, sabe. Sim, é um homem extraordinário. Não há melhor clínica de tratamento da nevrose da guerra em todo o país. Digam o que disserem - acrescentou com uma expressão sombria.

- Suponho que têm casos piores que o meu... violentos.

- Sim, apareceram alguns. Foi por isso que o médico montou a enfermaria especial para eles. Uma ala separada com pessoal independente deste. Não admite sequer que os pacientes desta ala sejam perturbados mentalmente... É essencial que também disponhamos de calma.

- De facto, vocês são todos muito calmos.

- No momento oportuno, julgo que ele lhe ministrará um curso de psicanálise, embora seja preferível que a memória reapareça espontaneamente... com suavidade e naturalidade. A situação assemelha-se a uma película numa tina de hipossulfito - explicou, recorrendo obviamente a um exemplo de outrem. - A revelação surge a pouco e pouco.

- Se o hipossulfito for bom, não, Johns - replicou Digby.

Reclinava-se na poltrona com um sorriso indolente, magro, barbudo, de meia-idade. A cicatriz de irritação na fronte parecia deslocada... como vestígios de um duelo num professor de esgrima.

- Alto aí! - Era uma das expressões favoritas de Johns. É entendido em fotografia?

- Pensa que posso ter sido fotógrafo profissional? - Digby abanou a cabeça. - Não sinto vibrar nenhuma campainha, embora a barba esteja a condizer. Não, lembrei-me de uma câmara escura no andar do quarto das crianças, em minha casa. Também servia para guardar a roupa das camas, e, se uma pessoa se esquecia de fechar a porta à chave, a empregada entrava para ir buscar lençóis ou fronhas e lá se estragava o negativo. Recordo-me das coisas com clareza até cerca dos 18 anos.

- Pode falar dessa época tanto quanto quiser. Talvez descubra um indício elucidativo do resto, e não existe qualquer resistência visível, da parte do censor freudiano.

- Esta manhã, na cama, perguntava-me qual das pessoas em que me queria tornar - escolhi de facto. Lembro-me que era muito bom em livros sobre exploradores africanos (Stanley, Baker, Livingstone, Burton), mas hoje deparam-se poucas oportunidades para explorações do género.

Reflectia sem impaciência. Tudo se passava como se a sua felicidade fosse extraída de um fundo de cansaço infinito. Não queria puxar demasiado por si. Sentia-se confortável exactamente como estava. Talvez fosse por isso que a memória tardava tanto em se desanuviar. No entanto, como, no fundo, necessitava de fazer um esforço, sugeriu:

- Podíamos consultar as listas do departamento colonial. É possível que me tivesse dedicado a essa actividade. Não deixa de ser curioso que, embora averiguassem o meu nome, não encontrassem ninguém que me conhecesse. Devem ter-se efectuado investigações a meu respeito. Se fora casado, por exemplo. Essa parte preocupa-me um pouco. Imagine que minha mulher tenta localizar-me... - E ponderava que, se essa faceta da situação pudesse ser esclarecida, considerar-se-ia plenamente satisfeito.

- Por acaso... - começou Johns.

- Não me diga que descobriram uma esposa?

- Não foi bem isso, mas creio que o médico tem uma coisa para lhe comunicar.

- Bem, não é a hora da audiência?

Cada paciente permanecia com o médico no seu gabinete durante um quarto de hora por dia, à excepção dos que eram tratados por psicanálise, que tinham direito a sessenta minutos. Era mais ou menos o mesmo que visitar um director condescendente fora das horas de aula a fim de trocarem impressões sobre problemas pessoais. O paciente atravessava a sala comum, onde os internados podiam ler jornais, jogar xadrez ou damas ou dedicar-se ao convívio, de resultados imprevisíveis, com pessoas afectadas pela nevrose da guerra.

De um modo geral, Digby evitava frequentá-la, por se lhe afigurar desconcertante observar, numa dependência que poderia ser um átrio de hotel de luxo, um homem que chorava em silêncio num canto. Sentia-se tão completamente normal - à parte a solução de continuidade de não sabia quantos anos e uma felicidade inexplicável, como se o houvessem libertado subitamente de uma responsabilidade opressiva - que ficava pouco à vontade na companhia de homens que exibiam, sem excepções, algum sinal óbvio de uma provação: o movimento insistente de uma pálpebra, a agudeza invulgar da voz ou uma melancolia adaptada ao seu ser tão total e inevitavelmente como uma nova pele.

Johns caminhava à sua frente, executando com tacto irrepreensível uma missão que combinava os cargos de assistente, secretário e enfermeiro. Não possuía qualificações oficiais, conquanto o médico o deixasse por vezes actuar livremente nos casos de psiques mais simples. Nutria um enorme fundo de adoração de herói pelo seu superior, e Digby supunha que algum incidente no passado - podia ter sido o suicídio de um paciente, embora Johns se mostrasse reticente a esse respeito - o impossibilitava de se arvorar para consigo próprio em paladino dos grandes incompreendidos.

- As invejas que grassam entre os médicos... - costumava dizer. - Nem faz uma ideia. A malícia. As mentiras.

E mostrava-se extremamente caloroso quando falava daquilo a que chamava martírio do médico. Houvera um inquérito - os métodos deste achavam-se muito avançados para a sua época - e propostas para lhe cancelar a autorização para exercer clínica.

- Crucificaram-no - revelou, uma ocasião, com um gesto ilustrativo que o fez derrubar o vaso dos narcisos.

No entanto, do mal adviera algo de bom (e podia concluir-se que o bom incluía Johns): desgostoso com o mundo do West End, o médico retirara-se para o campo e abrira um estabelecimento particular, onde não admitia um paciente que não assinasse um pedido de internamento. Até os casos mais violentos haviam revelado sensatez suficiente para se entregar voluntariamente aos seus cuidados.

- E eu? - perguntou Digby.

- Você é o seu caso especial - explicou Johns misteriosamente. - Um dia, ele elucida-o. Tropeçou, por assim dizer, na salvação, naquela noite. De qualquer modo, assinou a petição.

O facto de não recordar um único pormenor da sua entrada na clínica nunca perdia a sensação de estranheza que lho infundia. Limitara-se a despertar no quarto tranquilo, ao som da fonte e com um leve sabor de drogas na boca. Era Inverno na altura. As árvores pareciam negras e bátegas de chuva repentinas alternavam a paz. Uma ocasião, ao longe, através dos campos, registou-se o ruído ténue de um navio que assinalava a partida. Ele permanecia deitado ao longo de horas e sonhava de um modo confuso. Dir-se-ia que então poderia recordar-se de algo, mas faltava-lhe o vigor para captar os indícios, divisar as imagens repentinas, sem vitalidade suficiente para estabelecer as relações. Tomava os medicamentos sem protestar e mergulhava em sono profundo, alterado apenas ocasionalmente por pesadelos estranhos em que participava uma mulher.

Passou muito tempo primeiro que lhe falassem da guerra, o que envolvera uma quantidade substancial de explicação histórica. Em dado momento, apercebeu-se de que aquilo que se lhe afigurava estranho não o era para os outros. Por exemplo, o facto de Paris se encontrar em poder dos Alemães parecia-lhe muito natural, pois recordava-se de que issso estivera prestes a suceder no período da sua vida de que tinha plena consciência; porém, a revelação de que a Inglaterra se achava em guerra com a Itália abalava-o como uma catástrofe inexplicável da Natureza.

A Itália era o país que duas suas tias solteiras visitavam todos os anos para pintar. Também se lembrava dos primitivos na Galeria Nacional e de Caporetto e Garibaldi, que dera o nome a uma marca de biscoitos. Depois, Johns elucidou-o pacientemente acerca de Mussolini.

O médico sentava-se atrás de um jarrão de flores da secretária de mogno, simples, porém irrepreensível, e acenou a Digby como se fosse um aluno favorito. O rosto, idoso, sob os cabelos brancos como a neve, possuía traços aquilinos, nobres e um pouco histriónicos, como o retrato de um vitoriano. Johns deslizou para a saída, dando a impressão de recuar na curta distância que o separava da porta, e tropeçou na extremidade da carpete.

- Então, como se sente? - perguntou o médico. - Parece mais seguro de si, hoje

- Sim? - estranhou Digby. - Mas quem pode afirmar se isso corresponde à realidade? Eu não, e o senhor tão-pouco, Dr. Forester. Talvez pareça menos seguro de mim.

- Tenho uma notícia importante para lhe comunicar. Descobri alguém que o poderá afirmar. Uma pessoa que o conheceu nos velhos tempos.

- Quem? - inquiriu, sentindo as palpitações do coração acelerarem-se.

- Não lho vou dizer. Quero que se inteire de tudo espontaneamente.

- Talvez seja tolice confessá-lo, mas sinto-me um pouco aturdido

- É natural - admitiu o Dr. Forester. - Ainda não está muito forte. - Abriu um armário e extraiu um cálice e uma garrafa de xerez. - Isto vai reanimá-lo.

- Tio Pepe - murmurou Digby, depois de o esvaziar.

- Vê? As coisas começam a aparecer. Vai outro?

- Não. É uma blasfémia tomar esta bebida como medicamento.

A notícia constituiu um abalo. Ele não tinha a certeza de se sentir contente. Não podia determinar que responsabilidade lhe tombaria nos ombros quando recuperasse a memória. De um modo geral, os pesos da vida são revelados às pessoas gradual e suavemente. Os deveres acumulam-se com tanta lentidão que a sua presença quase passa despercebida. Até um matrimónio feliz é uma coisa de crescimento lento: o amor contribui para tornar imperceptível o aprisionamento do homem; mas de um momento para o outro, em obediência a uma ordem, seria possível amar uma desconhecida que surgisse ostentando vinte anos de exigências emocionais? Agora, sem recordações mais próximas que as da adolescência, Digby encontrava-se inteiramente livre. Não era que receasse enfrentar-se, pois sabia no que consistia e estava convencido de que se achava ao corrente do tipo de homem em que se devia ter tornado o jovem de que se lembrava. Temia menos o insucesso do que as tarefas enormes que o êxito o levaria a executar.

- Aguardei até agora - esclareceu o Dr. Forester. - Queria certificar-me de que possuía forças suficientes.

- Compreendo.

- Estou certo de que não nos desapontará.

Era, mais do que nunca, o director do colégio e Digby o aluno que fora escolhido para bolseiro da universidade. Levava consigo o prestígio do estabelecimento onde estudara, assim como o seu próprio futuro, para apresentar no exame. Jotms aguardaria o seu regresso com ansiedade - o professor responsável pela sua formação. Evidentemente que se mostrariam muito compreensivos se não fosse admitido. Poderiam mesmo atribuir as culpas ao examinador...

- Vou deixá-los sós - acrescentou o Dr. Forester.

- Ele está aqui?

- Ela está aqui.

Foi com profundo alívio que viu entrar uma pessoa desconhecida. Receara que toda uma geração da sua vida transpusesse a porta, mas tratava-se apenas de uma rapariga magra e atraente, de cabelos ruivos, baixa - talvez demasiado para ser recordada. Instintivamente, Digby convenceu-se de que não se tratava de ninguém que devesse temer.

Levantou-se, mas reconheceu em seguida que as boas maneiras pareciam deslocadas, pois não sabia se devia apertar a mão à rapariga... ou beijá-la. Por fim, não fez uma coisa nem outra. Olharam-se em silêncio por um momento, enquanto o coração dele palpitava com intensidade.

- Mudou muito - proferiu ela finalmente.

- Estão sempre a dizer-me que tenho o aspecto normal.

- Tem o cabelo mais grisalho. E a cicatriz. Apesar disso, parece mais jovem... mais feliz.

- Levo uma vida muito agradável, aqui.

- Têm-no tratado bem? - perguntou com ansiedade.

- Muito bem mesmo.

Ele sentia-se como se tivesse levado uma desconhecida a um restaurante e não conseguisse encontrar o tema apropriado para uma conversa informal.

- Desculpe, mas não sei o seu nome.

- Não se recorda mesmo nada de mim?

- Não.

Tivera sonhos ocasionais acerca de uma mulher, mas não era aquela. Não conseguia evocar qualquer pormenor, à parte o rosto, que exibia uma expressão de mágoa. No fundo, congratulava-se por não ser aquela.

- Não - repetiu. - Lamento. Gostava de me recordar.

- Não lamente - retrucou ela, com singular ferocidade. - Não volte a lamentar nada.

- Referia-me apenas... ao meu cérebro pateta.

- Chamo-me Anna... - fez uma pausa, observando-o atentamente, antes de acrescentar: - Hilfe.

- Parece um nome estrangeiro.

- Sou austríaca.

- Tudo isto é tão novo para mim... Estamos em guerra com a Alemanha. A Áustria não...?

- Sou refugiada.

- Ah, sim - murmurou ele. - Li qualquer coisa a esse respeito.

- Nem da guerra se lembra?

- Tenho muitíssimo que aprender.

- Sim, muitíssimo. Mas eles terão mesmo de lhe ensinar? Parece muito feliz assim.

- Ninguém se sente feliz se não sabe nada. - Digby hesitou e articulou a meia voz. - Desculpe, mas há tantas perguntas... Éramos apenas amigos?

- Apenas amigos. Porquê?

- É muito bonita. Pensei que talvez...

- Salvou-me a vida.

- Como?

- Quando a bomba explodiu... pouco antes de explodir... deitou-me ao chão e colocou-se em cima de mim. Não fui atingida.

- Ainda bem... - Soltou uma risada nervosa.- Quero dizer que deve haver muitas coisas desagradáveis para aprender. Ainda bem que existe uma agradável.

- Parece tudo tão estranho. Tudo aquilo tão horrível desde

1933... Você inteirou-se através da leitura, e nada mais. Para si não passa de história. Está fresco, e não cansado como todos nós.

- 1933 - repetiu ele. - 1933. Se fosse 1066, podia enumerar muitos factos históricos então ocorridos, com todos os reis da Inglaterra... bem, todos talvez não.

- Foi o ano da subida ao poder de Hitler.

- Tem razão. Estou a recordar-me. Li muito sobre isso, mas não consegui fixar as datas.

- E o ódio suponho que também não.

- Não tenho o menor direito de falar dessas coisas, porque não as vivi. Ensinaram-me na escola que William Rufus foi um rei cruel, de cabelos ruivos, mas isso não bastava para que o odiasse. As pessoas como você têm o direito de odiar. Eu não. Não fui atingido.

- O seu rosto...

- Refere-se à cicatriz? Pode dever-se a qualquer facto banal... um acidente de automóvel. E, de resto, não era a mim que queriam matar.

- Não?

- Não sou importante.

Digby admitia para consigo que se exprimia de uma forma mais ou menos incoerente, quase ao acaso. Supusera algo, quando, na realidade, não havia nada que pudesse supor com segurança.

- Não sou importante - reiterou. - Decerto que não, de contrário o meu caso figurava nos jornais.

- Deixam-lhe ler jornais?

- Sem dúvida. Isto não é uma prisão. Não sou importante - insistiu.

- Pelo menos, não é famoso - replicou a rapariga evasivamente. - Calculo que o médico não a autoriza a revelar-me nada. Quer que as coisas me acudam à memória com lentidão, segundo afirma. No entanto, gostava que infringisse a recomendação num ponto. O único que me preocupa. Sou casado?

- Não, não é - murmurou ela pausadamente, como se pretendesse dar uma resposta rigorosa, sem deixar transparecer mais do que o necessário.

- Apoquentava-me seriamente a possibilidade de ter de reatar uma velha relação de alto significado para alguém e nenhum para mim. Uma coisa de que me falassem, como de Hitler. Evidentemente que uma relação nova é diferente - acrescentou ele, com uma ponta de acanhamento, em discordância com os cabelos grisalhos. - Você pertence a essa categoria.

- E agora não resta nada que o preocupe?

- Nada. Ou, antes, uma coisa: que saia por aquela porta e não volte a aparecer. - Estava constantemente a avançar para em seguida retroceder, como um garoto que não tivesse aprendido a técnica. É que perdi de repente todos os amigos, excepto você.

- Tinha muitos? - perguntou ela, em tom levemente amargurado.

- Suponho que, na minha idade, haveria um número apreciável. - Digby mostrou-se subitamente jovial. - Ou teria sido um monstro inabordável?

- Hei-de voltar, garanto-lhe - prometeu ela, sem se deixar contagiar pela boa disposição. - Eles querem que volte. Desejam ser informados logo que recuperar a memória.

- É natural. E você representa o único indício do passado que me podem fornecer. Terei de continuar aqui até recordar tudo?

- Decerto não se sentiria bem lá fora sem memória.

- Não vejo porquê. Há muito trabalho para mim. Se a tropa não me aceitar, restam as fábricas de munições.

- Anseia por voltar a imiscuir-se em tudo?

- Isto aqui é admirável e pacífico, mas não passa de uma estância de férias. Uma pessoa tem de se mostrar útil. Sem dúvida que tudo seria muito mais fácil se soubesse o que fui, o que poderia fazer melhor. Não acredito que passasse a vida na ociosidade. Não havia dinheiro suficiente para isso na família. - Ele observava o rosto da rapariga com atenção, enquanto se entregava a conjecturas. - Não existem muitas profissões. O Exército, a Marinha, a Igreja... Não vestia a indumentária apropriada a nenhuma dessas... se porventura era a minha. - O espaço para a incerteza era vasto. Direito? Seria isso, Anna? Não creio. Não consigo ver-me de sotaina e peruca a contribuir para a condenação à forca de um pobre diabo.

- Eu também não.

- Não faz sentido. No fundo, é da criança que se desenvolve o homem. Nunca quis ser advogado. A actividade de explorador atraía-me, mas acho pouco provável que a exercesse. Nem mesmo com esta barba. Garantem-me que é inerente a ela. Confesso que não sei. Já me esquecia: tive sonhos enormes relacionados com a descoberta de tribos desconhecidas na África Central. Medicina? Não, nunca gostei de receitar coisas. Aliás, é uma profissão em que se contacta muito com a dor. Sempre a odiei. - Sentia-se assolado por leve aturdimento. - Só de ouvir falar nela ficava doente. Recordo-me de um episódio... relacionado com um rato.

- Não se esforce - recomendou ela. - Faz-lhe mal. Não há pressa.

- De qualquer modo, isso não vinha muito a propósito. Era criança, na altura. Onde teria ido parar? Medicina... comércio... Não me agradaria descobrir de repente que era gerente de um supermercado. Também não faria sentido. Nunca senti inclinação especial para ser rico. Penso que, vendo bem as coisas, desejava levar... uma boa vida.

Qualquer esforço prolongado provocava-lhe dor de cabeça, mas havia factos que necessitava de recordar. Podia deixar as velhas amizades e inimizades imersas no esquecimento, mas, se queria aproveitar com eficiência a vida que lhe restava, tinha de saber de que era capaz. Baixou os olhos para as mãos e flectiu os dedos: não lhe pareciam úteis.

- As pessoas nem sempre se tornam no que pretendiam - aventurou Anna.

- Claro que não. Os rapazes querem sempre ser heróis. Exploradores famosos. Grandes escritores... Mas costuma haver uma ténue ligação decepcionante. Quem aspira à riqueza vai trabalhar para um banco. O explorador prefere... sei lá... ser um chefe de posto colonial mal remunerado e que passa a vida a preencher minutas ao sol escaldante. O escritor ingressa num jornal de província... Desculpe, mas não estou tão forte como supunha. Sinto-me meio tonto. Vou ter de suspender... o trabalho... por hoje.

- Tratam-no bem aqui? - voltou ela a perguntar.

- Sou um paciente valioso. Um caso interessante.

- E o Dr. Forester... gosta dele?

- Enche uma pessoa de assombro.

- Mudou tanto... - E emitiu uma observação que ele não entendeu: - É assim que devia ter sido.

Despediram-se com um aperto de mão, como estranhos, e Digby inquiriu:

- Tenciona aparecer com frequência?

- É a minha obrigação, Arthur.

Só depois de ela se retirar ele descobriu que pronunciara um nome novo.

De manhã, um homem de branco levava-lhe o pequeno-almoço à cama: café, torradas e um ovo escalfado. O lar era quase auto-suficiente, com aves de capoeira, porcos e alguns largos hectares de caça, embora o médico não praticasse esse desporto, por não o aprovar, ainda que não se mostrasse doutrinário sobre o assunto, segundo informação de Johns. No entanto, os pacientes necessitavam de comer carne, pelo que havia sempre quem fosse caçar, conquanto o Dr. Forester jamais participasse.

- É a ideia de a considerar um desporto que mais o revolta - explicou Johns. - Penso que ele preferiria o sistema das armadilhas.

No tabuleiro do pequeno-almoço encontrava-se sempre o jornal da manhã. Digby vira-se privado de semelhantes privilégios por algumas semanas, até que fora gradual e cautelosamente informado da existência do estado de guerra. Agora podia permanecer reclinado na cama até tarde, apoiado a três confortáveis almofadas, para lançar uma olhadela ao noticiário: «Vítimas de bombardeamentos esta semana são inferiores a 255», levar a Chávena aos lábios, quebrar a casca do ovo e regressar ao periódico: «A batalha do Atlântico.» Os ovos achavam-se sempre escalfados no ponto ideal: a clara semi-solidificada e a gema líquida e espessa. Novo relance sobre o jornal: «O Almirantado lamenta ter de anunciar [...], afundado com toda a tripulação.» Havia sempre manteiga em quantidade suficiente para aplicar alguma ao ovo, porque o lar também dispunha de vacas. Naquela manhã, quando se entretinha a ler, surgiu Johns para conversar, e Digby, erguendo os olhos do jornal, perguntou:

- Que é uma quinta-coluna?

Não havia nada que agradasse mais a Johns do que fornecer uma informação, pelo que perorou por alguns minutos, aludindo a Napoleão.

- Por outras palavras, pessoas a soldo do inimigo? - inquiriu Digby. - Não é nada de novo.

- Há uma diferença. Na última guerra, à excepção de irlandeses como Casement, o pagamento efectuava-se sempre em dinheiro e só determinada classe se sentia atraída. Nesta guerra existem ideologias de todas as espécies. Quem considera que o ouro é um vil metal sente-se naturalmente inclinado para o sistema económico alemão. E aqueles que se fartam de falar contra o nacionalismo vêem todas as velhas fronteiras nacionais eliminadas do mapa. A Pan-Europa. Talvez não seja bem no sentido que tinham em mente. Napoleão também atraía os idealistas. - Os óculos de Johns brilhavam ao sol matinal com o prazer da instrução. - Pensando bem, ele foi vencido pelos homens pequenos, os materialistas. Comerciantes e camponeses. Pessoas que não viam um palmo adiante do balcão ou do campo cultivado. E não queriam assistir à introdução de alterações nos seus hábitos. Por conseguinte, Napoleão recolheu a Santa Helena.

- Você também não parece um compatriota muito convicto.

- Mas sou - asseverou com uma expressão grave. - Incluo-me entre esses homens pequenos. Meu pai é químico e detesta todos aqueles medicamentos alemães que inundavam o mercado. Sou como ele. Prefiro continuar apegado à Burroughs e à Wellcome em vez de a todas as Bayers... - Fez uma breve pausa. - De qualquer modo, a outra representa um estado de espírito. Os materialistas somos nós. A eliminação de todas as velhas fronteiras, as novas ideias económicas... a vastidão do sonho. É de facto atraente para homens que não estão apegados... a uma aldeia ou vila especial que não querem ver eliminada. Pessoas com infâncias infelizes, progressistas que aprendem o esperanto, vegetarianos que não gostam de ver derramamento de sangue.

- Mas Hitler parece que o derrama em quantidades industriais.

- Sim, mas os idealistas não encaram o sangue como o senhor ou eu. Não são materialistas. Para eles, não passa tudo de material estatístico.

- E o Dr. Forester? - perguntou Digby. - Dá a impressão de que se adapta ao quadro geral.

- É rijo como um sino - replicou Johns, com entusiasmo. - Escreveu um panfleto endereçado ao Ministério da Informação, intitulado «A Psicanálise do Nazismo». Mas houve uma época em que... se murmurava. É claro que não se podem evitar as caças às bruxas em tempo de guerra, e havia rivais que se incorporavam na alcateia. O Dr. Forester é... (como direi?) muito vivo em face de tudo. Gosta de saber. Tomemos, por exemplo, o espiritismo. Interessa-lhe profundamente, como investigador.

- Estava a ler as perguntas formuladas no Parlamento. Sugerem que existe outro tipo de quinta-coluna. Pessoas que são submetidas a chantagem.

- Os Alemães são maravilhosamente eficientes. Fizeram isso no seu próprio país. Compilaram listas dos supostos dirigentes, indivíduos da alta sociedade, diplomatas, políticos, chefes sindicais e sacerdotes... e apresentaram-lhes o ultimato: esqueciam e perdoavam o passado ou deviam preparar-se para enfrentar o promotor público. Não me admirava que tivessem feito o mesmo aqui. Formavam uma espécie de Ministério do Medo... com os subsecretários mais eficientes. Não se trata apenas de uma questão de adquirir ascendente sobre determinadas pessoas, mas sim da atmosfera geral que difundem, pelo que não se pode confiar em ninguém.

- Ao que parece, este M. P. (1) convenceu-se de que planos importantes foram roubados do Ministério da Segurança Interna, depois de transferidos de outro departamento oficial para consulta por vinte e quatro horas. Segundo ele, o desaparecimento verificou-se na manhã seguinte.

 

Nota 1: Membro do Parlamento. (N. do T.)

 

- Deve haver uma explicação lógica - aventou Johns.

- Pois há. O ministro garante que Sua Excelência foi mal informada. Os planos não eram necessários para a conferência daquela manhã, e na da tarde foram devidamente apresentados, discutidos e devolvidos à procedência.

- Esses M. P. gostam de ventilar as histórias mais bizarras.

- Acha possível que eu fosse detective antes de me acontecer isto? Adaptar-se-ia à ambição de ser explorador, não concorda? É que a informação parece-me cheia de pontos frágeis.

- Quanto a mim, é bem clara.

- O deputado que formulou a pergunta deve ter sido alertado por alguém ao corrente dos planos. Um dos presentes à conferência... ou envolvido no envio ou recepção dos documentos. Mais ninguém podia estar inteirado. A sua existência foi admitida pelo ministro.

- Sim, isso é verdade.

- Afigura-se-me estranho que alguém em semelhante posição divulgasse uma atoarda. E já reparou que, da maneira subtil própria dos políticos, ele não nega que os planos desapareceram? Limita-se a afirmar que não eram necessários e, quando o foram, apareceram.

- Quer dizer que houve tempo para os fotografar? - articulou Johns, excitado. - Importa-se que fume? Deixe-me desembaraçá-lo do tabuleiro - sugeriu, vertendo um pouco de café na colcha. - Sabia que houve uma insinuação do género, há cerca de três meses? Foi pouco depois da sua chegada. Mais tarde tratarei de indagar a data exacta, pois o Dr. Forester costuma arquivar o Times. Desapareceram uns documentos durante algumas horas e as entidades tentaram abafar o assunto, alegando que se tratava de um caso de falta de cuidado e nunca tinham saído do ministério. Um M. P. levantou a lebre, aludindo a fotografias, e caíram-lhe em cima com o peso de um martelo-pilão, acusando-o de tentar abalar a confiança do público. Os documentos jamais haviam abandonado a posse... não me recordo de momento de quem. Alguém cuja palavra não merecia contestação, sob pena de o contestatário passar um mau bocado. A partir de então, não se voltou a falar no assunto.

- Seria curioso que o facto se tivesse repetido.

- Ninguém do exterior saberia - asseverou, cada vez mais entusiasmado. - E os outros guardariam silêncio.

- Talvez a tentativa anterior se malograsse, as fotografias não ficassem nítidas, ou algo do género, por incúria de algum dos intervenientes. E evidentemente que não podiam recorrer ao mesmo homem segunda vez. Tinham de aguardar até dispor de outro sob a sua alçada. Classificado e arquivado no Ministério do Medo. - Digby raciocinou em voz alta: - Calculo que as únicas pessoas que não podiam subornar por meio de chantagem eram os santos... e os párias, sem nada a perder.

- Você não era detective, mas sim escritor de romances policiais!

- Sinto-me cansado. O cérebro começa a latejar e fiquei de repente tão extenuado que me apetece dormir. - Digby fechou os olhos e voltou a abri-los. - O mais indicado seria investigar o primeiro caso... o erro cometido, para determinar a sua natureza. - E adormeceu quase imediatamente.

Fazia uma tarde estupenda e ele resolveu dar um passeio solitário pelo jardim. Haviam transcorrido vários dias desde a visita de Anna Hilfe, e Digby sentia-se impaciente e melancólico, como um adolescente apaixonado. Ansiava por uma oportunidade para demonstrar que não era um inválido e que a sua mente podia funcionar tão bem como a de qualquer outro homem. Não experimentava a menor satisfação em brilhar perante Johns... Sonhava ardentemente entre os canteiros floridos.

O jardim era de um género que devia pertencer à infância, e só pertencia a homens-crianças. As macieiras eram antigas e davam a impressão de se desenvolver sem assistência: as ramagens estendiam-se inesperadamente para cima no meio de um roseiral, invadiam um campo de ténis e projectavam sombra na janela de um pequeno mictório exterior, utilizado pelo jardineiro - um velho que podia ser sempre localizado de longe pelo som de uma segadeira ou pelo rolar de um carro de mão. Um muro elevado de tijolos vermelhos dividia o jardim da horta e pomar; porém, as flores e os frutos não podiam ser aprisionados por um obstáculo daquela natureza. Com efeito, muitas flores irrompiam entre alcachofras e erguiam-se como chamas sob as árvores. Para além do pomar, o jardim extinguia-se gradualmente em direcção a cercados, um ribeiro e um vasto lago com uma ilha do tamanho de um bilhar.

Foi junto do lago que Digby encontrou o major Stone. Primeiro ouviu-o: uma sucessão de grunhidos irritados, como os produzidos por um cão a sonhar. Aproximou-se por um caminho estreito e inclinado até à orla da água enegrecida e o outro voltou a cabeça, fixou-o com os olhos azul-claros, militares, e declarou:

- O trabalho tem de se executar. - Havia lama por todo o seu fato de tweed e nas mãos. Entretivera-se a atirar pedras grandes ao lago e agora arrastava uma tábua que devia ter encontrado num alpendre próximo. - É uma autêntica traição manter um lugar destes desocupado - acrescentou com gravidade. - Daqui domina-se toda a casa... - Fez deslizar a tábua para a frente, até que uma das extremidades pousou numa pedra. - É preciso é ter calma - murmurou, continuando a impeli-la em direcção à pedra imediata. Dê-me uma ajuda. Vá empurrando, enquanto me coloco do outro lado.

- Não me diga que tenciona meter-se na água!

- É pouco profunda. - O major Stone pôs a intenção em prática, e o lodo cobriu-lhe os sapatos e dobras das calças. - Pode começar. Mas com jeito, hem! - A tábua foi impelida com demasiada força e resvalou das pedras. - Maldição! - Agachou-se para a restituir à posição primitiva, indiferente ao facto de se salpicar de lodo até à cintura, e regressou à margem. - Desculpe - proferiu, ofegante. - Tenho uma falta de paciência dos diabos. Você não possui experiência destas coisas. Obrigado pela colaboração.

- Lamento não lhe ter sido útil.

- Se dispusesse de meia dúzia de sapadores, veria... - Contemplou a pequena ilha com uma expressão de nostalgia. - Não adianta aspirar ao impossível. Temos de nos contentar com o que possuímos. Safávamo-nos satisfatoriamente se não houvesse tanta traição. - Examinou Digby com intensidade, como se lhe medisse as possibilidades. - Tenho-o visto por aí com frequência, mas é a primeira vez que nos falamos. Gostava de o observar, se não leva a mal que lho diga. Suponho que sofre de alguma coisa, como todos nós. Vou deixar isto em breve, graças a Deus. Tornarei a poder ser útil. Qual é o seu mal?

- Perda da memória.

- Já esteve ali? - inquiriu, indicando a ilha com um movimento de cabeça.

- Não. Foi uma bomba. Em Londres.

- É uma guerra terrível. Civis com nevroses, como se combatessem nas trincheiras. - Tornava-se difícil determinar se desaprovava os civis ou as nevroses. Os cabelos, crespos, eram grisalhos sobre as orelhas e os olhos, azuis, espreitavam sob as espessas sobrancelhas. Era um homem que sempre mantivera a condição física apurada, preparado para entrar em acção a todo o momento. No entanto, agora, que o físico se achava depauperado e permanecia inactivo, assolava-o profunda confusão. - Houve traição algures, de contrário isto nunca aconteceria. - E, voltando as costas bruscamente à ilha e aos destroços enlameados da ponte que pretendera improvisar, afastou-se em direcção à casa.

Digby reatou o passeio e, no campo de ténis, deparou-se-lhe uma partida quase furiosa. Os dois homens saltavam, transpiravam e praguejavam, e a imensa concentração era a única característica que parecia normal em Fishguard e Still, mas, quando terminassem de jogar, tornar-se-iam truculentos e um pouco histéricos. Atingiriam o mesmo clímace se jogassem xadrez...

O jardim das rosas achava-se protegido por duas paredes: a da horta e a que cortava a comunicação - à parte uma pequena porta com aquilo a que o Dr. Forester e Johns chamavam eufemisticamente «enfermaria». Ninguém se atrevia a falar desta última, que relacionavam com um conteúdo sinistro - uma sala de paredes almofadadas e camisas-de-forças. Do jardim apenas se descortinava a parte superior das janelas gradeadas. Nenhum internado no sanatório ignorava a proximidade a que vivia daquela ala silenciosa. Um acesso de histeria durante um jogo, um sentimento de traição, no caso de Davis lágrimas que brotavam com prontidão excessiva - eles sabiam que essas coisas significavam doença tanto como a violência. Haviam assinado o sacrifício da sua liberdade em favor do Dr. Forester, na esperança de escapar a um destino pior, mas, se o pior acontecesse, o edifício apropriado encontrava-se bem perto - a «enfermaria» -, sem necessidade de viajarem para um manicómio desconhecido. Somente Digby se sentia totalmente liberto da sua sombra: a enfermaria não se achava ali para um homem feliz. Atrás dele, as vozes ergueram-se em inflexões agudas, no campo de ténis: «Garanto-lhe que estava dentro», dizia Fisihguard. «Estava fora! Acusa-me de fazer batota?», dizia Still. Pareciam tão irreconciliáveis que tudo indicava que teriam uma troca de socos como corolário inevitável, mas nunca chegavam a vias de facto. Talvez por receio da enfermaria. As vozes desapareceram subitamente do ar, como uma melopeia desagradável reduzida ao silêncio. Quando anoitecesse, Still e Fishguard encontrar-se-iam na sala, sentados diante do tabuleiro de xadrez.

Até que ponto diferiria a enfermaria da fantasia de mentes perturbadas? Era uma pergunta que Digby se formulava com frequência. Não subsistiam dúvidas de que existia: a ala de betão, janelas gradeadas e parede elevada bastavam para as dissipar. Existia mesmo pessoal segregado, com o qual os outros pacientes decerto tinham convivido no serão social mensal, a que ele não assistira. (O médico estava convencido de que aquelas sessões, em que participavam estranhos - o clérigo local, um punhado de damas de meia-idade e um arquitecto aposentado -, contribuíam para que os cérebros afectados por nevroses da guerra se readaptassem à sociedade e às convenções do bom comportamento.) Por vezes, acudia ao pensamento de Digby que a ala se revestia de tanta realidade como a concepção do Inferno apresentada por teólogos condescendentes: um lugar sem habitantes que existia apenas como uma advertência.

De repente, o major Stone voltou a aparecer, caminhando apressadamente, e, ao ver Digby, alterou o rumo e acercou-se dele, o que permitiu observar que tinha a fronte perlada de transpiração.

- Não me viu, hem? Não me viu. - E reatou a marcha, parecendo dirigir-se de novo para o lago.

Digby seguiu o seu caminho pausadamente. Considerava que chegara o momento de partir. Encontrava-se deslocado naquele meio, era um ser normal. Acudiu-lhe um leve desconforto ao recordar que o major Stone também se julgava curado.

Quando se aproximava da casa, viu Johns sair, agitado e apreensivo.

- Encontrou o major Stone?

Digby hesitou apenas por um segundo.

- Não.

- O Dr. Forester quer examiná-lo. Teve uma recaída. A camaradagem entre internados atenuou-se.

- De facto, vi-o há um bocado...

- O Dr. Forester está muito ansioso. O major pode magoar-se... ou a alguém.

Os óculos sem aros pareciam irradiar uma advertência: «Quer responsabilizar-se por isso?»

- Procure nas imediações do lago - sugeriu Digby, pouco à vontade.

- Obrigado - agradeceu o outro.

E distanciou-se, chamando: Poole! Poole!

- Vou já - respondeu uma voz à distância.

Uma sensação de apreensão desceu como uma pesada cortina sobre a mente de Digby, como se alguém acabasse de lhe sussurrar ao ouvido algo semelhante a «tem cautela». Havia um homem à porta da enfermaria com a mesma bata branca que Johns usava em serviço, embora menos asseada. Era de pequena estatura, com ombros largos e deformados e expressão arrogante.

- No lago - informou Johns.

O homem pestanejou, mas não efectuou o mínimo movimento, fitando Digby com curiosidade impertinente. Era óbvio que saíra da enfermaria e estava deslocado no jardim. Tinha a bata e dedos manchados de algo semelhante a tintura de iodo.

- Temos de nos apressar - insistiu Johns. - O doutor está ansioso...

- Não nos conhecemos de algum lado? - Poole observava Digby com uma espécie de prazer. - Tenho a certeza disso.

- Deve estar enganado.

- Bem, ficámos então a conhecer-nos. - Esboçou um sorriso e acrescentou com visível alívio: - Sou o guarda. - E, ao mesmo tempo, estendeu o simiesco braço na direcção da enfermaria.

- Nunca o vi mais gordo - afirmou Digby -, nem me interessa conhecê-lo.

Ainda teve tempo de divisar a expressão de assombro de Johns, antes de voltar as costas, e ouviu os passos dos dois homens a caminho do lago.

Era verdade: não conhecia o homem, porém toda a obscuridade do seu passado parecera estremecer - alguma coisa poderia emergir a todo o momento de trás da cortina. Sentira-se atemorizado e mostrara-se, portanto, veemente, mas estava persuadido de que seria inscrita uma nota desfavorável no seu boletim de progressos, o que o deixava apreensivo. Porque havia de recear recordar fosse o que fosse? «No fundo, não sou um criminoso», murmurou para consigo.

À entrada foi interceptado por um empregado.

- Tem visitas, Mr. Digby.

- Onde? - perguntou, sentindo as palpitações acelerarem-se.

- No átrio.

Ela folheava um exemplar do Tatler e ele viu-se de súbito sem saber o que lhe dizer. Parecia igual a como julgava recordá-la de um passado muito remoto: pequena, tensa, na defensiva, apesar de que fazia parte de todo um mundo de experiência do qual ele estava inocente.

- É muito amável... - começou ele e calou-se com brusquidão.

Receava que, se enveredasse pelos temas banais de uma conversa entre estranhos, ficassem condenados eternamente a essa relação obscura. O estado do tempo pairaria pesadamente nas suas línguas e encontrar-se-iam de vez em quando para trocar impressões sobre o teatro. Quando se cruzassem na rua, ele tiraria o chapéu, e algo que se achasse debilmente vivo tornar-se-ia, segura e irremediavelmente, morto.

- Ansiava por este momento desde a sua primeira visita - volveu ele. - Os dias têm sido muito longos, sem nada com que os preencher, além de pensar e especular. É uma vida tão estranha...

- Estranha e horrível - murmurou Anna.

- Horrível, não sei... - No entanto, ele recordou-se subitamente de Poole. - Como conversávamos antes de eu perder a memória? Suponho que não nos mantínhamos rígidos, diante um do outro, você com um jornal na mão e eu... Não éramos bons amigos?

- Decerto que sim.

- Temos de reconduzir as nossas relações ao nível antigo. Assim não está bem. Sente-se aqui e fecharemos os olhos, fingindo que voltámos ao passado, antes de a bomba explodir. Que me dizia então? - Fitou-a com admiração. - Não deve chorar.

- Disse que fechássemos os olhos.

- Já os fechei. - O átrio iluminado artificialmente, onde ele se sentia um estranho, as revistas reluzentes e os cinzeiros de vidro deixaram de ser visíveis, substituídos pela escuridão. - Acha isto estranho? - perguntou, pousando a mão na da rapariga.

- Não - foi a resposta, após um silêncio prolongado.

- Eu amava-a, não é verdade? - Vendo que se conservava silenciosa, Digby prosseguiu: - Devo tê-la amado, porque, quando apareceu no outro dia, notei uma sensação de alívio, de paz, como se esperasse alguém diferente. Como podia deixar de a amar?

- Parece pouco provável.

- Porquê?

- Havia apenas dias que nos conhecíamos.

- Era pouco tempo, claro, para gostar de mim.

Registou-se nova pausa, não menos longa que a anterior, e a rapariga limitou-se a articular a meia voz:

- Mas gostava.

- Por que razão? Sou muito mais velho e não possuo atractivos físicos especiais. Que género de pessoa era eu?

Ela replicou com prontidão, como se se tratasse de uma pergunta simples. Fazia parte da lição que aprendera e que recapitulara várias vezes no espírito.

- Tinha um profundo sentimento de compaixão. Não gostava de ver os outros sofrer.

- Acha isso invulgar? - volveu ele, empenhado em obter informação mais ampla, pois nada sabia sobre a maneira como as pessoas viviam e pensavam no exterior.

- Era invulgar na terra donde eu vim. Meu irmão... - E Anna interrompeu-se com brusquidão.

- Sem dúvida - proferiu ele, pegando na recordação antes que tornasse a dissipar-se. - Você tinha um irmão, que também era meu amigo.

- Paremos com este jogo. Por favor.

Descerraram as pálpebras simultaneamente e pestanejaram por uns instantes.

- Quero sair daqui - anunciou Digby. - Não, deixe-se estar. Por favor.

- Porquê?

- Aqui encontra-se em segurança.

- De outras bombas? - perguntou com um sorriso.

- De muitas coisas. Não se sente bem?

- Até certo ponto.

- Lá - Anna parecia indicar todo o mundo exterior, para além da parede do jardim - não era feliz. - E acrescentou pausadamente: - Eu faria tudo para o manter feliz. É assim que deve estar. É como me agrada vê-lo.

- Não lhe agradava lá fora?

Ele tentava surpreendê-la, jocosamente, numa contradição, todavia ela esquivava-se.

- Não se pode ver uma pessoa infeliz ao longo de todo o dia sem se sofrer um pouco.

- Oxalá conseguisse recordar o passado.

- Porque se preocupa com isso?

- É claro que temos de nos lembrar do que aconteceu - declarou simplesmente, consciente de que se tratava de uma das poucas coisas de que tinha a certeza.

Entretanto, ela observava-o com intensidade, como se procurasse determinar um rumo a seguir.

- Nem que fosse apenas para me recordar de si, da forma como conversava consigo...

- Não, por favor... - E Anna acrescentou, quase com rispidez, como uma declaração de guerra: - Coração querido.

- Era assim que falávamos - redarguiu ele, com uma expressão de triunfo.

- Meu querido... - Ela anuiu com um movimento de cabeça, sem desviar os olhos dele. - Uma ocasião disse que faria coisas impossíveis por mim.

- Disse?

- De momento, só lhe peço que faça uma possível. Deixe-se estar sossegado. Continue aqui mais umas semanas, até que a memória reapareça...

- Se você me visitar com frequência.

- Prometo.

Ele pousou os lábios nos dela, num acto revestido de toda a incerteza de um beijo de adolescente.

- Minha querida, minha querida... - murmurou. - Porque afirmaste que éramos só amigos?

- Não queria vincular-te a nada.

- Vinculaste-me agora.

- E alegro-me por isso - sussurrou Anna, como que surpreendida.

Digby sentiu o perfume dela acompanhá-lo enquanto subia ao quarto. Poderia entrar numa perfumaria para escolher o rouge que usava e determinar a contextura da sua cútis na escuridão. A experiência era tão nova para ele como o amor de adolescente: tinha a inocência cega e apaixonada de um rapaz - à semelhança de um rapaz, era arrastado implacavelmente para o sofrimento, perda e desespero inevitáveis, e chamava àquilo felicidade.

Na manhã seguinte, o jornal achava-se ausente do tabuleiro. Mencionou o facto à mulher que lhe levou o pequeno-almoço, mas ela só pôde informá-lo de que supunha que não o tinham entregado. Tornou a assolá-lo o vago temor que sentira na tarde anterior, quando vira Poole sair da enfermaria, e aguardou com impaciência que Johns aparecesse para a conversa matinal e para fumarem um cigarro juntos. No entanto, não apareceu. Digby conservou-se na cama, entregue a reflexões, durante cerca de meia hora e acabou por tocar à campainha. Eram horas de lhe levarem a roupa, mas a empregada, quando se apresentou, anunciou que não recebera ordens nesse sentido.

- Mas não precisa de ordens - alegou ele. - É uma coisa que faz todos os dias.

- Tenho de receber ordens - persistiu ela.

- Diga a Mr. Johns que preciso de lhe falar.

- Muito bem.

Mas Johns continuou a brilhar pela ausência. Dir-se-ia que tinham colocado um cordon sanitaire em torno do quarto.

Decidiu aguardar por mais meia hora, sem que a situação se alterasse. Por fim levantou-se e dirigiu-se à estante, onde não se lhe deparou nada que prometesse distracção - apenas as doses de ferro de velhos eruditos: Aquilo em Que Creio, de Tolstoi, A Psicanálise da Vida Quotidiana, de Freud, uma biografia de Rudolph Steiner... Acabou por escolher a obra do escritor russo e, ao abri-la, descobriu pequenas depressões nas margens das folhas donde haviam sido apagadas marcas de lápis. Admitindo que era sempre interessante saber o que outro ser humano considerara notável, leu:

Ao recordar todo o mal que fiz, sofri e vi, resultante da inimizade das nações, afigura-se-me óbvio que a causa de tudo reside na fraude grosseira denominada patriotismo e amor à pátria [...].

Havia uma espécie de nobreza no cáustico dogma, tal como existia algo de ignóbil na tentativa para eliminar as marcas de lápis. Tratava-se de uma opinião merecedora de ser sustentada abertamente. E continuou a ler:

Cristo mostrou-me que a quinta condição que me priva do bem-estar é a separação que estabelecemos da nossa nação em relação às outras. Não posso deixar de acreditar nisto e, por conseguinte, se, num momento de esquecimento, surgirem no meu íntimo sentimentos de inimizade para com alguém de outra nação [...]

Mas não era essa a questão no entender de Digby, pois não nutria qualquer inimizade contra o indivíduo situado no outro lado da fronteira: se queria voltar a participar, devia deixar-se nortear pelo amor, e não pelo ódio. «À semelhança de Johns, sou um dos homens pequenos, sem interesse por ideologias, apegado a uma paisagem monótona de Cambridgeshire, uma mina de giz, uma fiada de salgueiros ao longo dos campos incaracterísticos, uma vila de mercado...», e as suas reflexões embateram na cortina, «onde costumava dançar aos sábados.» Os seus pensamentos retrocederam para um rosto, com uma sensação de alívio: aí podia repousar. Ponderou que Tolstoi devia ter vivido num país pequeno, e não na Rússia, que era mais um continente do que uma nação. E porque escrevia como se o pior que podíamos fazer ao nosso semelhante era matá-lo? Todos temos de morrer e receamos a morte, mas, quando matamos um homem, salvamo-lo do seu temor, o qual, de contrário, aumentaria de ano para ano... Uma pessoa não matava necessariamente porque odiava: podia fazê-lo por amar... Neste ponto das cogitações, reaparecia a sensação de aturdimento, como se o tivessem atingido no coração.

Reclinou-se na almofada, e o velho de barba longa pareceu sussurrar-lhe: «Não posso reconhecer nenhum Estado ou nação... Não posso participar... Não posso participar...» Acudiu-lhe uma espécie de devaneio em que figurava um homem - porventura um amigo, pois não conseguia ver-lhe o rosto - que não conseguira participar: uma dor íntima isolara-o e ocultara-o como uma barba. De que se trataria? Não se recordava. A guerra, com tudo o que acontecera à sua volta, parecera pertencer a outras pessoas. Digby achava-se convencido de que o velho barbudo laborava em erro. Estava demasiado preocupado em salvar a alma. Não seria melhor participar nos crimes dos entes amados, odiar como eles, se necessário, e, se isso constituísse o fim de tudo, sofrer a condenação, do que ser salvo só?

No entanto, poder-se-ia argumentar que semelhante raciocínio desculpava o inimigo. E porque não? Desculpava todo aquele que amava o suficiente para matar ou ser morto. Porque não se havia de desculpar o inimigo? Isso não implicava que se devia permanecer numa superioridade solitária, recusar matar e oferecer a outra face. «Se um homem te ofende...» Era essa a questão: não matar no seu próprio interesse. Mas no interesse de uma pessoa amada; e, em companhia da pessoa amada, estava certo desafiar a condenação.

Os seus pensamentos concentram-se em Anna Hilfe. Quando se recordava dela, a respiração acelerava-se de uma forma absurda. Tudo se passava como se voltasse a aguardar, há anos, à entrada - não era do King's Arms? -, e a rapariga que amava viesse a descer a rua, enquanto a noite estava cheia de dor, beleza e desespero, por saber que se era demasiado jovem para que resultasse algo de estável daquilo...

Não podia continuar a preocupar-se com Tolstoi. Considerava insuportável ser tratado como um inválido. Que mulher, fora de um romance vitoriano, se interessaria por um inútil? Tolstoi podia pregar a não-resistência, pois tivera a sua hora heróica e violenta em Sebastopol. Digby tornou a levantar-se da cama e contemplou no longo espelho estreito o seu magro corpo, cabelos grisalhos e barba...

A porta abriu-se para dar passagem ao Dr. Forester. Atrás dele, de olhos baixos, comprometido como alguém surpreendido em falta, surgiu Johns.

- Assim não pode ser, Digby - proferiu o primeiro, abanando a cabeça. - Não pode ser. Estou desapontado consigo.

- Quero a minha roupa - retorquiu Digby, continuando a ver-se no espelho. - E uma lâmina.

- Uma lâmina para quê?

- Para me barbear. Estou certo de que esta barba não pertence...

- Isso só prova que ainda não está a recuperar a memória.

- E não me trouxeram o jornal esta manhã - acrescentou em voz débil.

- Dei ordem nesse sentido - declarou o Dr. Forester. - Johns tem procedido de forma desaconselhável. As longas conversas sobre a guerra... Excitou-se em excesso. Poole informou-me da sua excitação de ontem.

- Não quero que me tratem como um inválido ou uma criança - asseverou Digby, com o olhar fixo no seu corpo, que envelhecia, envolto no pijama listrado.

- Ao que parece, meteu-se-lhe na cabeça que tinha talento para investigar e que foi porventura detective na sua vida anterior.

- Isso veio meramente à baila na conversa.

- Posso garantir-lhe que era uma coisa muito diferente - afirmou Forester. - Muito diferente.

- O quê?

- Talvez se torne necessário dizer-lhe um dia - advertiu, como se pronunciasse uma ameaça. - Evitará erros imprudentes.

- Vou deixar isto - anunciou Digby, enquanto Johns continuava com os olhos fixos no chão.

O semblante nobre e calmo do Dr. Forester contraiu-se de súbito em linhas de desagrado.

- De caminho paga a conta, suponho?

- Espero que sim.

- Procure ser razoável - volveu. -As feições recompuseram-se, mas exibiam um ar menos convincente. - Está doente. Muito doente mesmo. Vinte anos da sua vida foram-lhe varridos da memória. Não é próprio de uma pessoa saudável. Além disso, ontem e há momentos, revelou uma excitação que sempre receei e procurei evitar. - Pousou a mão na manga do pijama com suavidade e acrescentou: - Não quero ver-me obrigado a limitar-lhe os movimentos, considerá-lo mentalmente instável...

- Tenho um cérebro tão lúcido como o seu. Deve sabê-lo perfeitamente.

- O major Stone também pensava assim, mas tive de o transferir para a enfermaria. Sofria de uma obsessão que o podia conduzir à violência a todo o momento.

- Mas eu...

- Os seus sintomas são mais ou menos os mesmos. Esta excitação... - O médico retirou a mão da manga e transferiu-a para o ombro: uma mão quente, leve e húmida. - Não se preocupe. Não permitiremos que as coisas cheguem a esse ponto, mas para já tem de se conservar muito sossegado... com muita comida e sono... alguns brometos suaves... sem visitas, nem sequer a do seu amigo Johns, para evitar a repetição dessas excitantes conversas intelectuais.

- E Miss Hilfe?

- Cometi um erro nesse aspecto. Ainda não está suficientemente forte. Pedi-lhe que não voltasse a visitá-lo.

 

A ENFERMARIA

Porque me evitas? Que fiz para que me temas? Deste ouvidos à maledicência, meu filho.

O Pequeno Duque

Quando uma pessoa apaga uma marca de lápis, deve certificar-se de que a linha fica totalmente eliminada. Na verdade, para guardar um segredo, todas as cautelas são poucas. Se o Dr. Forester não suprimisse tão ineficientemente as marcas das margens de Aquilo em Que Creio, de Tolstoi, Mr. Rennit talvez nunca se inteirasse do que sucedera a Jones, Johns permaneceria um adorador de heróis e é possível que o major Stone mergulhasse em maiores profundezas da loucura, entre as higiénicas paredes almofadadas do seu quarto na enfermaria. E Digby? Esse poderia ter continuado a ser Digby.

Com efeito, foram as marcas de lápis apagadas que mantiveram este último acordado e pensativo no final de um dia de solidão e tédio. Não era possível respeitar um homem que não se atrevia a manifestar as suas opiniões abertamente, e, quando o respeito pelo Dr. Forester se extinguiu, muitas outras coisas desapareceram com ele. O rosto idoso e nobre tornou-se menos convincente e até as suas qualificações foram alvo de dúvidas. Que direito tinha de proibir a leitura do jornal e, sobretudo, de impedir as visitas de Anna Hilfe?

Digby continuava a sentir-se como um colegial, mas agora sabia que o seu director tinha segredos de que se envergonhava: deixara de ser austero e auto-suficiente. Por conseguinte, o aluno planeou a rebelião. Cerca das nove e meia da noite ouviu o som de um carro e, espreitando por entre as cortinas, viu o médico afastar-se, com Poole ao volante.

Até ao momento em que avistou o homem de ombros deformados, Digby projectara apenas uma rebelião modesta: uma visita secreta ao quarto de Johns, pois achava-se convencido de que conseguiria persuadi-lo a falar. Agora estava disposto a ir mais longe: visitaria a enfermaria e trocaria impressões com Stone. Os pacientes necessitavam de se unir contra a tirania, e acudiu-lhe à mente a velha recordação de uma delegação que uma vez chefiara perante o director do colégio, porque a sua turma, ao contrário de todos os precedentes - por se tratar de uma turma clássica -, fora intimada por um novo professor a aprender trigonometria. O pormenor estranho acerca de uma evocação daquela natureza residia em que tanto parecia antiga como recente, pois poucas coisas tinham acontecido desde então que ele conseguisse recordar. Perdera toda a sua experiência da maturidade.

Um leve som de alegria excitada dominava-lhe o alento quando abriu a porta do quarto e espreitou cautelosamente para o corredor. Receava represálias indefinidas, razão pela qual considerava que a sua acção era heróica e própria de alguém apaixonado. Pairava-lhe uma sensualidade inocente no pensamento: assemelhava-se ao rapaz que se ufana de haver desafiado uma severa punição perante uma moça, sentado ao sol no campo de críquete, bebendo ginger-beer, sonhador e enamorado...

Havia recolher obrigatório para os pacientes, em conformidade com o seu grau de saúde, mas todos deviam estar deitados e a dormir às nove e meia. No entanto, era impossível forçar a aparição do sono. Quando passou junto da porta de Davis, detectou o estranho gemido irreprimível do choro de um homem... Mais adiante, a de Johns encontrava-se aberta e a luz acesa. Digby apressou-se a descalçar os chinelos e deslizou rapidamente em frente, mas o quarto achava-se vazio. Sociável incurável como era, devia estar a conversar com a governanta. Em cima da secretária, via-se um monte de jornais, que decerto juntara para Digby antes de o Dr. Forester determinar a proibição. Sentiu-se tentado a entrar e lê-los, porém a pequena tentação não se adaptava ao espírito da alta aventura. Naquela noite, faria algo a que nenhum paciente jamais se atrevera: entrar na enfermaria. Nessa conformidade, avançou cuidadosa e silenciosamente - as palavras «batedor» e «índio» acudiram-lhe ao pensamento - em direcção à escada.

No átrio, a luz estava apagada, mas as cortinas, afastadas, permitiam a entrada do luar, juntamente com o som da fonte e a sombra das folhas prateadas. Os Tatlers tinham sido arrumados nas mesas, os cinzeiros levados e as almofadas devidamente colocadas nos sofás, o que conferia ao conjunto o aspecto de uma sala de exposição. A porta imediata deu-lhe acesso ao corredor em que se situava o gabinete do Dr. Forester. À medida que ia fechando as portas em silêncio atrás dele, afigurava-se-lhe que cortava a sua própria retirada. A caixa torácica parecia vibrar com o palpitar acelerado do coração. Em frente encontrava-se a porta verde que nunca abrira, do outro lado da qual se localizava a enfermaria. Regressara à infância: ausentava-se do dormitório, aventurando-se mais do que, na realidade, pretendia, para provar a si próprio que era corajoso. Acalentava a esperança de a porta estar fechada à chave pelo outro lado, em face do que apenas lhe restaria retroceder para a cama, com a honra satisfeita...

A porta cedeu sem dificuldade e constituía apenas a protecção de outra, a fim de atenuar o som e o médico poder permanecer tranquilo no seu gabinete. Mas essa também não se achava fechada à chave e ele transpô-la com lentidão.

Em seguida imobilizou-se, como que petrificado, e apurou os ouvidos. Algures soava o tiquetaque rítmico de um relógio e uma torneira gotejava. Outrora deviam ter funcionado ali as instalações do pessoal: o solo era de pedra e os seus pés levantaram uma pequena nuvem de pó. Tudo transpirava a abandono: quando alcançou a escada, viu que os degraus não eram polidos desde longa data e a passadeira carecia de substituição urgente. Constituía um contraste singular com o imaculado lar do outro lado da porta. Tudo à sua volta encolhia os ombros e dizia: «Não somos importantes. Ninguém nos vê. A nossa única obrigação é estarmos calados e não incomodar o doutor.» E que poderia haver de mais silencioso que o pó? Se não fosse o tiquetaque do relógio, Digby duvidaria de que vivia alguém naquela ala da casa - o relógio e o odor desagradável de fumo, de tabaco Caporal, que lhe incrementou as palpitações.

Poole devia viver onde o relógio se encontrava. Sempre que pensava nele, apercebia-se de algo de pungente, de algo aprisionado num recanto do cérebro e que tentava acudir à superfície. O facto assustava-o, assim como as aves quando esvoaçavam em salas fechadas. Havia apenas uma maneira de fugir: o temor da dor de outra criatura, que persistia até que a ave ficava aturdida e silenciosa ou morta. Por exemplo relegou o major Stone para segundo plano e encaminhou-se para o quarto de Poole.

Situava-se ao fundo do corredor, onde a torneira gotejava, um aposento espaçoso e desconfortável, com chão de pedra, dividido ao meio por um reposteiro - provavelmente outrora fora uma cozinha. O ocupante incutira-lhe uma masculinidade agressiva e esquálida, como se tivesse de demonstrar alguma coisa: havia pontas de cigarro no solo e nada era utilizado para o fim a que se destinava. Um relógio e um bule castanho barato serviam de cerra-livros em cima de uma cómoda para conter uma colecção modesta: Heróis e o Culto do Herói, de Carlyle, biografias de Napoleão e Cromwell e várias edições de bolso relacionadas com juventude, trabalho, Europa e Deus. As janelas estavam todas fechadas, e, quando Digby desviou o reposteiro coberto de pó, verificou que a cama não fora feita devidamente, a menos que Poole se tivesse deitado sobre a colcha e depois não se preocupasse em ajeitá-la. A torneira gotejava para um lavatório, e um saco com artigos de higiene pessoal pendia de um dos postes da cama. Uma lata que contivera pasta de lagosta servia agora para juntar lâminas usadas. O ambiente era tão desconfortável como um acampamento e dir-se-ia que o ocupante o utilizava apenas como local de passagem e não queria perder tempo com o seu aspecto. Uma mala aberta cheia de roupa interior suja dava a impressão de que o homem não se dera ao trabalho de desfazer a bagagem.

Era como a parte inferior de uma pedra: uma pessoa levantava o lar irrepreensível e deparava-se-lhe aquilo.

O cheiro de Caporal pairava em toda a parte e na cama viam-se migalhas de pão, como se Poole costumasse comer deitado. Digby contemplou-as por um longo momento: assolava-o uma sensação de tristeza, apreensão e perigos vários que não conseguia determinar, como se alguma coisa lhe desiludisse a expectativa - como se a partida de críquete constituísse um desaire, ninguém tivesse comparecido para o feriado de meio do semestre e ele aguardasse interminavelmente à entrada de King's Arms uma rapariga que nunca apareceria. Não dispunha de nada com que pudesse comparar aquilo que o rodeava. O lar era algo de artificial, oculto num jardim. Seria possível que a vida vulgar fosse assim? Recordou-se de um jardim e de um chá ao entardecer, uma sala com aguarelas e mesas pequenas, um piano que ninguém tocava e o cheiro de água-de-colónia. Mas seria isso a verdadeira vida adulta em que uma pessoa desembocava? Porventura ele também pertencera a esse mundo? Sentia-se amargurado por uma noção de familiaridade. Não fora com isto que sonhara na escola, há alguns anos, mas recordava-se de que os anos transcorridos desde então não eram poucos, mas sim muitos.

Por fim, a sensação de perigo fê-lo pensar de novo no infortunado Stone. Talvez não dispusesse de muito tempo até ao regresso de Poole e do médico e, conquanto não acreditasse que tinham qualquer poder sobre ele, temia sanções cuja natureza não podia conceber. Assim, enveredou pela escada em direcção ao primeiro andar. Agora não se registava o menor som. O tiquetaque do relógio não chegava até tão longe. Num compartimento que devia ter sido a copa do mordomo encontravam-se sinetas suspensas de arames oxidados, com os dizeres «escritório», «sala», «.º quarto de hóspedes», «2.9 quarto de hóspedes», «sala das crianças»...

As janelas gradeadas que ele vira do jardim situavam-se no segundo piso, pelo que tratou de subir mais um lanço de degraus, embora com certa relutância. Cada passo que dava contribuía para aumentar as dificuldades da retirada, mas impusera a si próprio o desafio de se avistar com Stone, ainda que apenas lhe pudesse dirigir uma sílaba. Em seguida atravessou um corredor, ao mesmo tempo que chamava a meia voz:

- Stone! Stone!

Não obtinha resposta, e o velho oleado que servia de passadeira estalava sob os seus pés e por vezes o avanço era dificultado por um ou outro buraco. Voltou a experimentar uma familiaridade, como se os passos cautelosos e o corredor solitário pertencessem mais a este mundo que o quarto desarrumado na outra ala. Tornou a chamar o major, até que uma voz se fez ouvir:

- É você, Barnes?

- Fale mais baixo - recomendou, acercando-se da porta e agachando-se, a fim de colocar os lábios junto da fechadura. - É Digby.

- Claro. - Stone emitiu um suspiro. - Barnes morreu. Eu estava a gritar...

- Sente-se bem?

- Passei uns momentos horríveis - proferiu em tom tão baixo que se tornava quase inaudível. - Horríveis. Não era verdade que não quisesse comer...

- Aproxime-se mais da porta, para o poder ouvir melhor.

- Meteram-me numa camisa-de-forças. Disseram que eu era violento, mas é falso. Trata-se de traição... - Devia ter-se acercado, porque a voz passou a ouvir-se melhor. - Concordo que fui um pouco brusco consigo, mas este lugar enerva uma pessoa. Garanto-lhe que não estou louco. Não é justo que me façam isto.

- De que o acusam?

- Procurava um quarto donde pudesse alvejar aquela ilha. Eles começaram a escavar há meses. Vi-os uma tarde, depois de escurecer. Não podia deixar as coisas ficar assim. O Huno não permite que a relva lhe cresça debaixo dos pés. Portanto, entrei nesta ala, dirigi-me ao quarto de Poole...

- Continue.

- Não os queria sobressaltar. Só pretendia explicar a minha intenção.

- Sobressaltar?

- O médico estava lá com Poole. Faziam qualquer coisa na escuridão...

A voz interrompeu-se. Era horrível ouvir um homem de meia-idade soluçar invisivelmente atrás de uma porta fechada à chave.

- E as escavações? - insistiu Digby. - Deve ter sonhado...

- Aquele tubo... Foi horroroso, meu amigo. Eu não falava a sério, quando disse que não queria comer. Tinha apenas medo do veneno.

- Veneno?

- Traição. Escute, Barnes...

- Não sou Barnes.

- Claro. - Verificou-se novo suspiro. - Desculpe. Isto arrasa-me. Estou mesmo afectado. Talvez eles tenham razão.

- Quem é Barnes?

- Um bom homem. Apanharam-no na praia. Não adianta, Digby. Estou louco. Cada dia que passa, sinto o meu estado agravar-se.

Algures à distância, através de uma janela aberta no piso inferior, registou-se o som de um carro, e Digby explicou:

- Não posso continuar aqui, Stone. Escute: você não está louco. Meteram-se-lhe ideias na cabeça, e nada mais. Não o deviam ter encerrado. Hei-de libertá-lo, de uma maneira ou de outra. Não desanime.

- É um camarada fixe, Digby.

- Também me ameaçaram com o encerramento aqui.

- Mas você não é louco. Afinal, talvez eu não esteja afectado como dizem. Se o querem isolar, deve tratar-se de traição.

- Aguente firme.

- Hei-de aguentar, meu amigo. Era a incerteza que me matava. Cheguei a pensar que eles tinham razão.

O som do carro começou a atenuar-se ao longe.

- Não tem ninguém de família?

- Não. Minha mulher abandonou-me. E fez ela muito bem. Havia demasiada traição.

- Hei-de tirá-lo daqui. Ainda não sei como, mas tenciono fazê-lo.

- Aquela ilha, Digby... tem de a vigiar. Não posso fazer nada e, de qualquer modo, sou um insignificante, não conto. Mas se dispusesse de cinquenta dos meus antigos homens...

- Não perderei a ilha de vista - prometeu Digby.

- Julgava que os Hunos se tinham apoderado dela. Esses não deixam a relva crescer debaixo dos pés. Em todo o caso, às vezes sinto-me confuso.

- Tenho de o deixar. Coragem.

- É coisa que não me falta. Estive em lugares piores. No entanto, preferia que você não tivesse de ir embora.

- Mas voltarei.

Não fazia, porém, a menor ideia de como o conseguiria. Acudia-lhe uma profunda sensação de piedade e sentia-se capaz de recorrer ao homicídio para libertar a pobre criatura atormentada. Recordava o momento em que o vira entrar no lago lodoso... os olhos azuis cristalinos, o bigode militar e as linhas de preocupação e responsabilidade que lhe sulcavam as faces. Era uma coisa que se aprendia naquele lugar: um homem conservava o seu carácter mesmo quando estava louco. Nenhuma loucura conseguiria eliminar a noção militar do dever para com os outros.

A missão de reconhecimento de Digby revelara-se mais fácil do que previra: o médico devia efectuar uma digressão prolongada. Alcançou a porta verde sem qualquer contratempo e, quando ouviu o som abafado que produzia ao fechar-se atrás dele, afigurou-se-lhe que era a paciência fatigada de Stone que lhe pedia que voltasse. Atravessou o átrio rapidamente e em seguida, com maior precaução, subiu a escada, até que avistou de novo o quarto de Johns, o qual continuava ausente. O ponteiro do relógio da secretária apenas avançara doze minutos e havia vários documentos sob o clarão do candeeiro. Digby tinha a sensação de que explorara um país estranho e regressava a casa para verificar que não passara tudo de um sonho - nem uma única folha do bloco-calendário fora virada durante a sua ausência.

Não tinha medo de Johns, pelo que entrou e pegou num dos jornais. Ele dispusera-os por ordem e marcara as passagens. Devia assolá-lo a paixão da investigação detectivesca. Digby leu que o Ministério da Segurança Interna replicara a uma pergunta sobre um documento desaparecido, alguns meses antes, mais ou menos nos mesmos termos que no caso anterior. Nunca desaparecera. Quando muito, registara-se uma pequena indiscrição, mas jamais saíra da posse de..., seguindo-se o nome respeitável que Johns esquecera. Em face de semelhante afirmação, como poderia alguém continuar a sugerir que o documento fora fotografado? Equivalia a acusar o titular do nome respeitável não de indiscrição, mas sim de traição. Talvez tivesse constituído uma imprudência não o guardar no cofre do gabinete durante a noite, contudo o nome respeitável assegurara ao ministro que nem por um segundo estivera fora do seu poder. Dormira virtualmente com o documento debaixo do travesseiro... O Times deixava transparecer que resultaria interessante investigar como principiara a calúnia. Porventura o inimigo tentava minar a confiança do povo britânico nos dirigentes hereditários, através de uma campanha de murmúrios? Três ou quatro edições mais tarde estabelecera-se silêncio absoluto em torno do assunto.

Existia uma fascinação algo assustadora naqueles jornais de meses atrás. Digby tivera de reaprender a maioria dos nomes dos estadistas, mas quase não conseguia voltar uma página sem se lhe deparar um homem importante no qual nunca ouvira falar, embora aqui e ali surgisse um que reconhecia, por constituir uma figura de relevo vinte anos antes. Sentia-se como um Rip van Winkle no regresso de um sono de vinte e cinco anos: as pessoas de quem ouvira falar não se relacionavam melhor do que ele próprio com a sua juventude. Indivíduos de promessas brilhantes haviam aparecido na Câmara de Comércio, e, evidentemente, num caso notável, um homem que fora considerado demasiado brilhante e arrojado para merecer confiança num departamento importante era o chefe do seu país. Uma das últimas recordações de Digby consistia em o ouvir murmurar por antigos funcionários na galeria de um tribunal, porque pronunciara uma palavra abrupta desagradável acerca de uma velha campanha. Agora ensinara o país a respeitar as suas verdades desagradáveis.

Virou uma página e leu, sob uma fotografia: «Arthur Rowe, que a Polícia anseia por interrogar sobre [...].» Os crimes não lhe interessavam. A foto apresentava um homem magro, de fato amarfanhado e rosto rapado. Todas as efígies de criminosos eram parecidas, facto que talvez se devesse aos pontos, à técnica pontilhista das fotografias dos jornais. Havia tanta coisa do passado que necessitava de absorver que não se podia preocupar com criminosos comuns, pelo menos do tipo doméstico.

Ouviu ranger uma tábua do sobrado e voltou-se. Johns pestanejava, junto da porta aberta.

- Boa noite, Johns. - Que faz aqui?

- Leio o jornal.

- Não ouviu o doutor dizer...?

- Isto não é uma prisão... excepto para o pobre Stone. Trata-se de uma bela clínica e eu sou um paciente particular, cuja única doença consiste na perda de memória em resultado de uma bomba. - Digby notou que o outro o escutava com intensidade. - Não é isso?

- Parece que sim.

- Portanto, temos de manter o sentido das proporções e, se não me apetece dormir, não existe razão alguma para que não venha ao seu quarto, a fim de conversar consigo e ler...

- Posta nesses termos, a questão reveste-se de simplicidade - admitiu Johns.

- Mas o doutor fá-lo encarar a situação de uma maneira diferente, hem?

- De qualquer modo, o paciente deve seguir o tratamento.

- Ou mudar de médico. Foi o que decidi fazer.

- Pretende sair daqui? - E a pergunta achava-se envolta numa inflexão de temor.

- Exacto.

- Não cometa nenhuma imprudência, por favor. O doutor é um homem notável, mas sofreu muito, o que o pode ter tornado um pouco... excêntrico. Aliás, você só tem a lucrar em continuar connosco.

- Vou-me embora, Johns.

- Fique só mais um mês. Tem recuperado tão bem. Pelo menos até que apareceu aquela rapariga. Apenas mais um mês. Falarei com o médico nesse sentido. Estou certo de que lhe entregará os documentos. Talvez até a autorize a visitá-lo. Mas deixe ser eu a tratar disso, pois conheço a melhor maneira de o abordar. É uma pessoa muito sensível e melindra-se com facilidade.

- Diga-me uma coisa - articulou Digby, com suavidade. - Porque receia que eu parta?

Os óculos sem aros reflectiram o clarão do candeeiro na parede oposta e o interpelado replicou apressadamente:

- Não receio coisa nenhuma. Admito simplesmente a possibilidade de... de ele não o deixar partir.

Estabeleceu-se breve silêncio, durante o qual soou o murmúrio distante do motor de um carro.

- Que se passa com o doutor? - Johns abanou a cabeça e o reflexo oscilou na parede em sincronia. - Deve haver alguma coisa insistiu Digby - Stone viu o que não devia e encarceraram-no.

- No seu próprio interesse - salientou Johns, em tom implorativo. - O Dr. Forester sabe o que faz. É um grande homem.

- No seu próprio interesse, o tanas! Estive na enfermaria e falei com o major.

- Esteve lá?

- Você não... nunca?

- É proibido.

- Cumpre sempre à risca as ordens dele?

- É um médico excepcional. Você não compreende. O cérebro reveste-se de uma delicadeza incrível. A mínima coisa que interfira no equilíbrio basta para destruir o trabalho de muitos anos. Tem de confiar nele, Digby.

- Não me merece a mínima confiança.

 

- Não diga isso. Se soubesse a perícia que possui, os cuidados infinitos que usa... Pretende fornecer-lhe protecção até que reúna forças suficientes...

- Stone viu algo de comprometedor e foi isolado.

- Não é verdade! - Johns estendeu a mão, trémula, e pousou-a nos jornais, como um político em busca de um apoio para criar confiança. - Se você soubesse... Fizeram-no sofrer muito com invejas e incompreensões, mas é bondoso e altruísta.

- Fale nisso a Stone.

- Se você soubesse...

- Acho que ele precisa de saber - disse uma voz suave mas irritada.

Era o Dr. Forester, e a sensação de sanções possíveis, ainda que inconcebíveis, voltou a acelerar as palpitações de Digby.

- Não o autorizei... - começou Johns, embaraçado.

- Sei que é um colaborador leal. Não se preocupe. Gosto da lealdade. - O recém-chegado principiou a descalçar as luvas que usara no carro e agitou os dedos longos e delicados. - Não me esqueço de que permaneceu a meu lado após o suicídio de Conway. Nunca volto as costas a um amigo. Falou nisso a Digby?

- Nunca! - protestou Johns.

- Mas ele precisa de saber. É importante. Conway também sofria de perda de memória. A vida tornara-se-lhe insuportável... e a perda da memória constituía a sua evasão. Tentei fortalecê-lo, endurecer-lhe a resistência, para que, quando regressasse à normalidade, estivesse em condições de enfrentar a sua muito difícil situação. O tempo que consumi, que desperdicei com ele... Johns pode confirmar que fui muito paciente, apesar da sua insuportável impertinência. No entanto, sou um ser humano, Digby, e um dia descontrolei-me. Na verdade, por vezes deixo-me dominar pelo desespero, embora raramente. Revelei-lhe tudo e ele pôs termo à vida naquela noite. A mente ainda não dispusera de tempo para cicatrizar, passe a expressão. Seguiram-se complicações, mas Johns manteve-se sempre a meu lado. Ele sabe que para se ser um bom psicólogo há que partilhar da debilidade mental do paciente em certos casos: uma pessoa não pode manter-se mentalmente sã a título permanente. É isso que suscita a compaixão... e a outra coisa.

Forester exprimia-se com suavidade e calma, como se pronunciasse uma prelecção sobre um tema abstracto, mas os dedos longos e delicados de cirurgião tinham pousado num dos jornais e rasgavam-no em longas tiras.

- Mas o meu caso é diferente - argumentou Digby. - Foi uma bomba que me destruiu a memória, e não problemas de qualquer natureza.

- Está mesmo convencido disso? E também pensa que a loucura de Stone se deve a disparos de armas de fogo? Não é assim que a mente funciona. Somos nós que produzimos a nossa própria loucura. A vida dele desmoronou-se... vergonhosamente, e agora atribui tudo à traição. Mas não foi em virtude da traição de mais ninguém que o seu amigo Barnes...

- Aposto que também tem uma revelação para mim escondida na manga. - Digby lembrou-se das marcas de lápis no livro de Tolstoi apagadas por um homem sem coragem para ventilar as suas opiniões, e o facto amargurou-o. - Que fazia com Poole no escuro quando Stone os surpreendeu? - Exprimia-se apenas numa atitude de desafio impertinente, convencido de que a cena existira apenas na imaginação do major, como o inimigo que procedia a escavações na ilha, pelo que não contava com a expressão estupefacta de Forester. - Escavavam...?

O rosto idoso e nobre observava-o, de boca entreaberta, enquanto um fio de saliva deslizava pelo queixo.

- Vá-se deitar, por favor, Digby - recomendou Johns. - De manhã voltaremos a conversar.

- Estou disposto a ir para a cama.

Digby sentia-se subitamente grotesco, de roupão aberto e chinelos, mas também apreensivo, como se voltasse as costas a um homem que empunhava uma arma.

- Um momento - proferiu Forester. - Ainda não lhe revelei o que pretendia. Quando se inteirar, poderá escolher entre o método de Conway e o de Stone. Há muito espaço vago na enfermaria.

- Quem lá devia estar era o senhor.

- É um louco. Um louco apaixonado. Posso afirmá-lo, porque vigio os meus pacientes. De que lhe serve estar enamorado? Nem sequer sabe o seu nome verdadeiro. - Forester arrancou um pedaço de um dos jornais e estendeu-o a Digby. - Veja isto. É você. Um assassino. Vá para o quarto e medite no assunto.

Era a fotografia que ele não se preocupara em examinar, e reflectiu que a situação se tornava cada vez mais absurda.

- Não sou eu - retorquiu após uma pausa.

- Se não se convence, faça a comparação ao espelho. Depois comece a recordar-se. Tem muito de que se recordar.

- Doutor, acho que não é o meio mais... - protestou Johns.

- Foi ele que insistiu - cortou Forester. - Como Conway.

Mas Digby não ouviu mais do que Johns tinha para dizer.

Correu para o seu quarto e, a meio caminho, tropeçou no cordão solto do roupão e caiu. Quase sem se aperceber do choque, levantou-se um pouco aturdido e prosseguiu em frente, apenas interessado em se encontrar diante do espelho.

O homem magro e barbudo devolveu-lhe a mirada no quarto familiar, onde pairava o odor de flores colhidas recentemente. Era ali que fora feliz. Como podia acreditar no que o médico acabava de afirmar? Devia tratar-se de um equívoco. Não fazia sentido... A princípio quase não conseguiu ver a fotografia: o coração palpitava aceleradamente e tinha a cabeça confusa. «Não sou eu», pensou, no momento em que o outro rosto, magro e rapado, de olhos amargurados e fato amarfanhado, se tornou nítido. Os pormenores não se adaptavam à realidade. As recordações que conservava de há vinte anos e o Arthur Rowe que a Polícia procurava para interrogar sobre um homicídio não tinham nada em comum. Em duas décadas, ele não se podia ter modificado de semelhante maneira. «Digam o que disserem, este homem aqui de pé sou eu. Não mudei pelo facto de ter perdido a memória.» Aquela fotografia e Anna Hilfe nada tinham a ver uma com a outra, protestava ele, e, de súbito, lembrou-se do que o intrigara e quase esquecera: a voz dela a dizer: «É a minha obrigação, Arthur.» Levou a mão ao queixo e tentou cobrir a barba: o nariz longo e algo torcido revelava a sua verdade, assim como os olhos, agora suficientemente amargurados. Apoiou as mãos na cómoda e cogitou: «Sim, sou Arthur Rowe.» E começou a murmurar para consigo: «Mas não sou Conway. Não me matarei.»

Era Arthur Rowe, com uma diferença. Encontrava-se no ponto imediato à sua juventude. Recomeçara daí. «De um momento para o outro, tudo reaparecerá, mas não sou Conway... nem serei Stone. Evadi-me durante o tempo suficiente, o meu cérebro resistirá ao choque», reflectiu. Não era só medo que sentia, mas também a coragem indomável e o cavalheirismo da adolescência. Já não era demasiado velho e escravizado pelos hábitos para começar de novo. Fechou os olhos e pensou em Poole, e uma singular miscelânea de impressões acudiu à porta do seu inconsciente para que a deixassem sair: um livro intitulado O Pequeno Duque, a palavra Nápoles - ver Nápoles e morrer - e de novo Poole, afundado numa cadeira, numa sala mal iluminada, comendo bolo, o Dr. Forester agachado junto de algo escuro e sangrento... As recordações adensavam-se: um rosto de mulher surgiu por um momento com profunda amargura e tornou a afundar-se como alguém que se afogasse, até desaparecer. A cabeça de Digby era um pandemónio de outras evocações que se esforçavam por emergir como um bebé do ventre materno. Conservou as mãos pousadas na cómoda e disse para consigo repetidamente: «Tenho de me pôr de pé, tenho de me pôr de pé...» Como se existisse alguma virtude curativa no simples facto de se conservar apoiado nos pés, enquanto o cérebro oscilava sob o horror do’ regresso à vida.

 

PEDAÇOS E FRAGMENTOS

A MORTE ROMANA

Um assunto que dificilmente podia ser agradável.

O Pequeno Duque

Rowe seguiu o homem de uniforme azul ao longo da escada de pedra e do corredor, ladeado por numerosas portas. Algumas estavam abertas e ele podia observar que conduziam a pequenas salas, todas da mesma forma e tamanho, como confessionários. Uma mesa e três cadeiras - em nenhuma havia nada mais, e as cadeiras eram duras e de espaldar direito. O homem abriu uma porta - embora não parecesse existir motivo algum para que não abrisse qualquer das outras - e indicou:

- Aguarde aqui, por favor.

Era de manhã cedo e a cercadura de aço da janela enquadrava um céu cinzento e frio. As últimas estrelas acabavam de desaparecer. Rowe sentou-se com as mãos entre os joelhos, numa atitude de paciência fatigada. Não era uma pessoa importante, não se tornara num explorador. Era apenas um criminoso. O efeito de alcançar aquele local deixara-o exausto. Não conseguia sequer recordar com clareza o que fizera - apenas o longo percurso a pé através do campo sombrio, em direcção à estação, tremendo quando as vacas mugiam atrás das sebes ou um mocho piava e percorrendo a plataforma em vaivém até à chegada do comboio, o cheiro da vegetação e vapor. O revisor pedira-lhe o bilhete, mas ele não tinha nenhum nem dinheiro para o pagar. Sabia, ou julgava saber, o seu nome, mas não dispunha de qualquer endereço para dar. O homem mostrara-se muito paciente e atencioso, talvez porque parecia doente. Perguntara se não tinha amigos a quem recorrer e ele replicara que não...

- Quero falar com a Polícia - limitou-se a dizer.

E o revisor apressou-se a esclarecer:

- Para isso não precisa de se deslocar a Londres. Verificou-se um momento de incerteza pungente quando ele pensou que o conduziriam à procedência como uma criança recalcitrante.

- Não é um paciente do Dr. Forester? - inquiriu o homem. Se descer na próxima estação, eles telefonam para que enviem um carro. Não tarda mais de trinta minutos.

- Não quero.

- Suponho que se perdeu, mas não tem de se preocupar, com um cavalheiro como o Dr. Forester.

Ele reuniu toda a energia possível e afirmou:

- Vou à Scotland Yard. Eles procuram-me. Se me impedir, a responsabilidade será sua.

Na paragem seguinte - que não passava de um apeadeiro com meia dúzia de metros de plataforma e um barracão de madeira entre vastas terras cultivadas - avistou Johns. Decerto haviam entrado no seu quarto e, ao encontrá-lo vazio, fora lançado o alarme. Johns viu-o imediatamente e aproximou-se com naturalidade da porta da carruagem, enquanto o revisor se conservava um pouco atrás, de olhar atento.

- Olá, amigo - saudou Johns. - Pode descer. Trouxe o carro e encontramo-nos em casa dentro de poucos minutos.

- Não vou.

- O doutor está muito preocupado. Teve um dia extenuante e perdeu a paciência. Daí a forma um pouco agreste com que se lhe dirigiu.

- Não vou.

O revisor aproximou-se um pouco, para indicar que estava disposto a intervir se o recurso à força se tornasse indispensável.

- Não fui dado como louco - persistiu Rowe, enfurecido. - Não podem arrancar-me do comboio.

O revisor acercou-se um pouco mais e segredou a Johns:

- O cavalheiro não tem bilhete.

- Não faz mal - redarguiu o outro surpreendentemente. Inclinou-se para a frente e murmurou: - Boa sorte, amigo.

O comboio partiu e envolveu numa nuvem de vapor a carruagem, o barracão e o vulto que não se atrevia a acenar.

Agora, todas as preocupações tinham terminado. Restava apenas o julgamento por homicídio.

Rowe continuava sentado pacientemente, enquanto o céu cor de aço empalidecia e alguns táxis buzinavam. Em dado momento, um homem gordo abriu a porta, espreitou e perguntou: «Onde está Beale?» E retirou-se sem aguardar resposta. O som lúgubre do apito de um navio desprendeu-se do rio e pairou na atmosfera durante uns segundos. Alguém atravessou o corredor assobiando e, a certa altura, registou-se o tilintar de chávenas e o odor de chá.

O homem gordo reapareceu - tinha rosto circular e um pequeno bigode louro e segurava numa das mãos o impresso que Rowe preenchera à entrada.

- Com que então é Mr. Rowe, não é? - articulou com gravidade. - Congratulamo-nos por finalmente se ter decidido a procurar-nos. - Tocou uma campainha e surgiu um guarda uniformizado. - Se Beavis está de serviço, pede-lhe que chegue aqui.

Sentou-se, cruzou as pernas, adiposas, e examinou as unhas, bem cuidadas. Olhou-as de todos os ângulos e pareceu preocupado com a cutícula do polegar esquerdo. Conservava-se silencioso e era óbvio que não pronunciaria palavra sem a presença de uma testemunha. Por fim entrou um indivíduo munido de um bloco de notas e lápis, que se instalou na terceira cadeira. Tinha orelhas enormes que pareciam irromper do crânio impelidas por uma força oculta e exibia um ar algo comprometido, como um touro que começasse a compreender que se achava deslocado numa loja de artigos de faiança. Quando aproximou o lápis do bloco de notas, quase se esperaria que um ou outro sofresse nas suas possantes mãos, e pressentia-se que ele estava ciente do facto e temia que se concretizasse.

- Ora bem. - O homem desinteressou-se finalmente das unhas. - Apresentou-se voluntariamente para prestar declarações, Mr. Rowe?

- Vi uma fotografia no jornal...

- Há meses que solicitávamos a sua vinda.

- Inteirei-me pela primeira vez ontem à noite.

- Parece ter vivido noutro mundo.

- Estive internado numa clínica. Portanto...

Cada vez que Rowe falava, o lápis rangia no papel, convertendo as suas frases soltas numa narrativa consecutiva.

- Que clínica?

- É dirigida por um certo Dr. Forester. - Indicou o nome da estação de caminho-de-ferro, porque não conhecia outro, e explicou: - Segundo parece, houve um ataque aéreo. - Pousou os dedos na cicatriz da fronte. - Perdi a memória. Descobri-me na clínica sem me lembrar de nada... à parte fragmentos da juventude. Disseram que me chamava Richard Digby. A princípio nem sequer me reconheci na fotografia, devido à barba.

- Mas agora recuperou a memória, espero - proferiu o homem, com uma ponta, muito remota, de sarcasmo.

- Lembrou-me de algumas coisas, embora poucas.

- Um tipo de memória muito conveniente.

- Esforço-me por revelar tudo o que sei - afirmou Rowe, com um assomo de indignação. - Segundo a lei inglesa, uma pessoa não está inocente até que se prove a sua culpabilidade? Proponho-me dizer tudo o que consigo recordar acerca do homicídio, mas não sou um assassino.

O homem gordo começou a sorrir e consagrou mais alguns segundos às imaculadas unhas.

- Isso é muito interessante, Mr. Rowe. Referiu-se a um homicídio sem que eu falasse no assunto, e nenhum jornal o ventilou... por enquanto.

- Não compreendo.

- Gostamos de fazer jogo limpo. Lê as declarações dele, Beavis.

Este obedeceu, ao mesmo tempo que corava com nervosismo, como se fosse um colegial chamado pelo professor para ler uma passagem do «Deuteronómio».

- «Eu, Arthur Rowe, prestei estas declarações voluntariamente. Ontem à noite, quando vi uma fotografia minha no jornal, soube pela primeira vez que a Polícia desejava interrogar-me. Tenho estado internado numa clínica, dirigida por um certo Dr. Forester, nos últimos quatro meses, devido a perda de memória em resultado de um ataque aéreo. Ainda não a recuperei totalmente, mas desejo revelar tudo o que sei relacionado com o assassínio de...»

- Foi isto que disse? - interpôs o detective.

- Acho que sim.

- Mais tarde pedir-lhe-ei que assine. Agora indique o nome da vítima de homicídio.

- Não me recordo.

- Muito bem. Quem lhe disse que pretendíamos interrogá-lo acerca de um homicídio?

- O Dr. Forester.

A prontidão da resposta pareceu apanhá-lo desprevenido, e o próprio Beavis hesitou antes de o lápis voltar a mover-se sobre o papel.

- Foi o Dr. Forester que lhe disse?

- Exacto.

- E como soube ele?

- Deve ter lido nos jornais.

- Evitámos que a imprensa divulgasse essa faceta do assunto.

Rowe pousou a cabeça na mão, extenuado, notando que o cérebro tornava a sentir a pressão das associações.

- Talvez... - A recordação horrível agitou-se, cristalizou e dissolveu-se. - Não sei.

- Limite-se a dizer, por qualquer sequência cronológica, o que recorda - indicou o detective, cujo tom parecia um pouco mais cordial.

- De facto, terá de ser por qualquer sequência. Em primeiro lugar temos Poole, guarda da enfermaria do Dr. Forester, onde dão entrada os casos violentos, embora eu duvide de que sejam sempre dessa natureza. Sei que o conheci anteriormente... antes de perder a memória. Consigo evocar uma saleta obscura com um quadro da baía de Nápoles. Parece que eu vivia lá... não sei porquê, pois não é o género de lugar que escolheria. A maior parte daquilo de que voltei a lembrar-me são sensações, emoções, e não factos concretos.

- Não se preocupe com isso.

- É mais ou menos como se evoca um sonho, depois de a maior parte dele se ter dissipado. Recordo-me de profunda amargura... e medo... e, sim, uma sensação de perigo, um sabor desagradável.

- De quê?

- Estávamos a tomar chá. Ele queria que lhe entregasse qualquer coisa.

- O quê?

- Não me lembro. O que me ocorre é absurdo. Um bolo.

- Um bolo?

- Confeccionado com ovos verdadeiros. Depois aconteceu uma coisa.

Rowe sentia-se extremamente fatigado. O Sol começava a despontar. Em todos os pontos da cidade, as pessoas dirigiam-se para os locais de trabalho. Ele julgava-se um homem em pecado mortal que vê outros receberem o sacramento: abandonado. Se ao menos soubesse a natureza do seu trabalho.

- Quer uma chávena de chá?

- Agradecia. Estou cansado.

- Trate disso, Beavis. De caminho traga biscoitos... ou bolo. - O detective não fez mais perguntas até o outro reaparecer, mas de súbito, quando Rowe estendia a mão para pegar numa fatia de bolo, observou: - Este não levou ovos verdadeiros. O seu devia ser de confecção caseira. Não o podia ter comprado.

Sem ponderar a resposta, Rowe declarou:

- De facto não o comprei. Ganhei-o num... - Interrompeu-se com brusquidão. - É absurdo. Não pensava... - O chá fazia-o sentir-se mais forte. - Vocês não tratam mal os assassinos.

- Continue a esforçar-se por recordar.

- Lembro-me de várias pessoas sentadas em volta de uma mesa numa sala e de as luzes se apagarem. Eu receava que alguém se aproximasse de mim pelas costas e me anavalhasse ou estrangulasse. E de uma voz. Isso é pior que tudo o resto: uma dor intensa, mas não me recordo de uma única palavra. De repente, as luzes voltaram a acender-se, apareceu um homem morto, e calculo que é do que me acusam.

- Julga-se capaz de o reconhecer?

- Penso que sim.

- O ficheiro, Beavis.

A temperatura começava a subir no pequeno compartimento. O detective tinha a fronte alagada e o bigode húmido.

- Pode despir o casaco, se quiser.

E deu o exemplo, para ficar em mangas de uma camisa irrepreensível, como de um manequim.

Beavis não tardou a regressar com uma volumosa pasta de cartolina coberta de pó, que pousou na mesa, e o detective indicou:

- Examine estas fotografias e diga-me se reconhece o homem assassinado em alguma.

As fotografias dos arquivos policiais assemelham-se às dos passaportes: a inteligência que lança um véu sobre o rosto comum nunca é reproduzida pela objectiva. Ninguém pode negar os contornos do semblante, a configuração do nariz e da boca, apesar do que protestamos: «Não sou eu...»

O virar das páginas tornou-se automático. Rowe não podia acreditar que a sua vida fora lançada entre pessoas daquelas. Apenas numa ocasião hesitou por um momento: algo na sua memória se agitou à vista de uma das várias fotografias soltas de um homem de cabelos ralos penteados para trás, um lápis no bolso do peito do casaco e olhar furtivo, que parecia empenhado em evitar a luz intensa do fotógrafo.

- Conhece-o?

- Não. Como queria que conhecesse? A menos que seja um empregado de balcão. Pareceu-me, por um momento... Mas não, não o conheço.

Continuou a consultar as fotografias e, em dado momento, erguendo os olhos, afigurou-se-lhe que o detective perdera o interesse. Faltavam poucas páginas para chegar ao fim e, de súbito, surgiu o rosto - a fronte larga e anónima, o fato preto -, e com ele toda uma multidão de outros, que irrompiam das portas do inconsciente para se acomodarem na memória.

- É este - informou e reclinou-se na cadeira, aturdido, como se o mundo rodopiasse à sua volta.

- Absurdo - resmungou o detective. - Por um momento cheguei a pensar... não merece a pena perdermos mais tempo.

- Mataram-no com o meu canivete.

- Deixe-se de comédias. Esse homem não foi assassinado. Está tão vivo como qualquer de nós.

- Vivo?

- Sem dúvida. Não percebo porque é que o escolheu.

- Nesse caso... - Rowe sentiu a fadiga dissipar-se e notou que fazia um dia estupendo. - Nesse caso, não sou um assassino. Ficou ferido com gravidade?

- Insiste mesmo em...? - O detective arqueou as sobrancelhas, com uma expressão de incredulidade, enquanto Beavis renunciava à tentativa de escrever. - Não faço a menor ideia do que pretende dizer. Onde aconteceu isso? Quando? Que foi que julgou ter visto?

Enquanto Rowe continuava com o olhar fixo na fotografia, as recordações acudiam-lhe aos pedaços:

- A maravilhosa Mrs.... Mrs. Bellairs. Foi em casa dela. Uma séance. - De repente viu uma mão delicada manchada de sangue. Mas... o Dr. Forester também estava presente. Comunicou-nos que o homem morrera e chamaram a Polícia.

- O mesmo Dr. Forester?

- Exacto.

- E deixaram-no partir?

- Não. Escapei-me.

- Com a ajuda de alguém?

- Sim.

- Quem?

O passado continuava a aflorar, como se agora, que não havia nada a recear, as portas se tivessem escancarado. Fora o irmão de Anna que o ajudara a fugir. Reviu o jovem rosto dominado pelo entusiasmo e sentiu o impacte dos nós dos dedos no queixo quando o socara a seu pedido, para uma encenação mais convincente da fuga. Por conseguinte, agora não o trairia.

- Não me recordo.

- Isto não é para nós, Beavis - decidiu o detective, com um suspiro de resignação. - Temos de o levar ao 59. - Utilizou o telefone para entrar em contacto com um colega chamado Prentice. Vamos confiá-lo aos vossos experientes cuidados, embora vocês raramente nos enviem alguém.

Em seguida escoltaram Rowe através do amplo pátio. Os transportes públicos vibraram no Embankment e os excrementos dos pombos conferiam um aspecto campestre aos sacos de areia amontoados em volta. Ele não se preocupava com o facto de se postar um de cada lado, pois continuava a ser um homem livre, não cometera crime algum e a memória regressava com cada passo que dava.

- Era o bolo que ele queria - declarou subitamente e soltou uma gargalhada.

- Guarde o seu bolo para Prentice - recomendou o detective, com uma expressão amargurada. - Ele é o surrealista cá da casa.

Chegaram a uma sala quase idêntica noutro bloco, onde se achava sentado um homem de fato de tweed, de longo e retorcido bigode eduardino.

- Este é Mr. Rowe, cuja presença convocámos através dos jornais - informou o detective, pousando a pasta de cartolina na mesa. - Pelo menos ele assim afirma. Não possui documentos de identidade e diz que esteve internado numa clínica, com falta de memória. Nós somos os felizardos que contribuímos para que a recuperasse. E que memória... Quando me aposentar, sou muito capaz de abrir uma clínica da especialidade. Talvez te interesse saber que assistiu ao assassínio de Cost.

- De facto, é uma revelação interessante - admitiu Prentice, com a deferência própria da meia-idade. - O meu Mr. Cost?

- Exacto. E um certo Dr. Forester confirmou o óbito. - O meu Dr. Forester?

- Assim parece. Este cavalheiro foi paciente dele.

- Puxe uma cadeira, Mr. Rowe... e tu também, Graves.

- Obrigado, mas quem aprecia o mundo da fantasia és tu, e não eu. Deixo-te ficar Beavis para o caso de quereres registar alguma coisa. - Graves deteve-se junto da porta antes de sair. - Desejo-te pesadelos felizes.

- É um bom rapaz - confidenciou Prentice quando o outro se retirou. Em seguida inclinou-se para a frente, como se tencionasse oferecer uma garrafa portátil da algibeira posterior das calças, e o odor de tweeds recém-saídos do alfaiate pairou na atmosfera por um momento. - Parece-lhe que era uma boa clínica?

- Desde que uma pessoa não discutisse com o médico.

- Ah, exactamente... Que sucedia então?

- Essa pessoa podia ir malhar com os ossos na enfermaria destinada aos casos violentos.

- Admirável - murmurou, cofiando o bigode. - Não tem reclamações a apresentar?

- Trataram-me muito bem.

- Infelizmente, permita-me que acrescente. Se alguém se queixasse (são todos pacientes voluntários), obtínhamos um pretexto para visitar o local, oportunidade pela qual anseio desde longa data.

- Quando uma pessoa vai parar à enfermaria, é demasiado tarde. Se não enlouqueceu, não tarda a lá chegar. - A excitação quase levara Rowe a esquecer-se de Stone, e experimentou uma sensação de culpa ao recordar a voz ansiosa do outro lado da porta. - Têm lá encerrado um homem, agora. Não se trata de alguém violento.

- Teve alguma divergência de pontos de vista com o nosso Dr. Forester?

- Disse que o vira e a Poole, o guarda da enfermaria, em actividades obscuras no quarto deste. Explicou-lhes que procurava uma janela da qual pudesse alvejar... Na verdade, é um pouco louco, mas calmo, sem impulsos violentos.

- Continue.

- Afirmava que os Alemães tinham ocupado uma pequena ilha num lago e os vira escavar.

- Mencionou isso ao médico?

- Sim. Não o podem tirar de lá? - implorou. - Colocaram-lhe uma camisa-de-forças, apesar de ser um homem inofensivo.

- Bem, temos de proceder com cautela - advertiu Preníice, voltando a cofiar o bigode. - Primeiro precisamos de estudar o assunto a fundo.

- Ainda acaba por endoidecer realmente.

- Pobre homem - articulou em tom pouco convincente. E quanto a Poole?

- Procurou-me uma vez... não sei há quanto tempo... para que lhe entregasse um bolo que eu ganhara. Nessa altura houve um ataque aéreo. Tenho a vaga ideia de que tentou matar-me, porque recusei. Fora confeccionado com ovos verdadeiros. Acha que também estou louco? - inquiriu Rowe, com ansiedade.

- Eu não diria uma coisa dessas - redarguiu o outro pensativamente. - A vida contém exemplos muito curiosos. Muito curiosos mesmo. Basta folhear a história. Sabia que bichos-da-seda foram levados clandestinamente da China numa bengala oca? E não há possibilidade de enumerar todos os esconderijos utilizados no contrabando de diamantes. Neste momento procuro... com a maior ansiedade, diga-se de passagem... uma coisa que pode não ser maior que um diamante. Um bolo... muito bem, porque não? Mas ele não o matou.

- Há tantas soluções de continuidade na minha memória...

- Quando o procurou esse Poole?

- Não me recordo. Há anos e anos da minha vida de que ainda não me consigo lembrar.

- Esquecemos com muita facilidade aquilo que nos provoca dor.

- Quase lamento não ser um criminoso, para que vocês possuíssem o meu cadastro e pudessem elucidar-me.

- A sessão está a decorrer maravilhosamente - asseverou Prentice, com suavidade. - Voltemos ao assassínio de... Cost. É claro que o podiam ter forjado para o internar na clínica e evitar que nos procurasse. Mas que aconteceu a seguir? Que sabia... ou sabíamos nós? - Pousou as mãos abertas na mesa e acrescentou: - É um problema curiosíssimo. Quase se pode expor em termos algébricos. Repita-me o que revelou a Graves.

Rowe voltou a descrever aquilo de que se recordava: a sala cheia de gente, a extinção das luzes, o som de uma voz e o medo...

- Acho que Graves não apreciou tudo isso devidamente - observou Prentice no final, dando uma palmada no ossudo joelho e agitando-se levemente na cadeira. - Coitado, os crimes passionais dos quartos de hotel constituem a sua especialidade espiritual. Neste departamento, os nossos interesses têm de ser um pouco mais bizarros. Por conseguinte, ele não confia em nós. Nada, mesmo. - Começou a folhear a pasta de cartolina com indiferença, como se olhasse um álbum de família que conhecia de cor. - É estudante da natureza humana?

- Confesso que não sei o que sou.

- Esta cara, por exemplo... - Tratava-se da fotografia perante a qual Rowe hesitara, reacção que se verificou de novo. - Que profissão lhe parece que ele tinha?

O lápis introduzido na algibeira do peito do casaco amarrotado, a expressão de quem espera constantemente uma admoestação, as pequenas rugas de inteligência em redor dos olhos... De súbito, as dúvidas dissiparam-se:

- Detective particular.

- Acertou logo à primeira. E este homenzinho anónimo tinha um nome não menos anónimo...

- Jones, suponho - volveu com um sorriso.

- Embora lhe custe a crer, o senhor e ele (continuemos a chamar-lhe Jones) têm um factor comum. Ambos desapareceram. No entanto, o senhor regressou à circulação. Como se chama a agência para a qual ele trabalhava, Beavis?

- Não me lembro. Mas posso indagar.

- Não merece a pena. A única de que me recordo é a Clifford, mas...

- Quem sabe se seria a Orthotex? - acudiu Rowe. - Tive um amigo...

- As coisas continuam a afluir, não é? De facto, o homem chamava-se Jones e trabalhava para a Orthotex. Que o levou a ir lá? Podemos dizer-lhe, mesmo que não se recorde. Pensava que alguém tentara assassiná-lo... por causa de um bolo. Ganhara-o irregularmente num arraial, porque uma certa Mrs. Bellairs lhe indicara o peso. Depois dirigiu-se ao domicílio dela, em face das indicações fornecidas pelos escritórios do Fundo das Mães das Nações Livres, e Jones seguiu-o, para lhe vigiar os movimentos. No entanto, tudo indica que o despistou, Mr. Rowe, porque ele não voltou a aparecer, e no dia seguinte, quando o senhor telefonou a Mr. Rennit, comunicou-lhe que o procuravam por homicídio.

Rowe conservava a mão sobre os olhos - tentando recordar ou não recordar? -, enquanto a voz prosseguia em tom cadenciado:

- Não obstante, não fora cometido qualquer assassínio em Londres nas últimas vinte e quatro horas, do nosso conhecimento, a menos que a vítima fosse o pobre Jones. Era óbvio que o senhor sabia alguma coisa, provavelmente tudo, pelo que o procurámos através dos jornais, sem resultado. Até hoje, que se nos apresentou com barba longa, alegando que perdera a memória, embora lembrando-se pelo menos de que fora acusado de homicídio. Simplesmente, indicou como vítima um homem que sabemos estar vivo. Que pensa de tudo isto?

- Aguardo que me coloquem as algemas - proferiu, comprimindo os lábios num sorriso amargurado.

- Não pode levar a mal a reacção do nosso comum amigo Graves.

- A vida é mesmo assim?

Prentice inclinou-se para a frente com ar interessado, como se estivesse sempre disposto a abandonar o particular em favor do argumento geral.

- É. Por conseguinte, creio podermos afirmar que o nosso caso se integra bem nela.

- Não corresponde à minha ideia. Sou um aprendiz, sabe. Encontro-me no princípio e tento enveredar pelo bom caminho. Julgava que a vida era mais simples e... grandiosa. Deve ser assim que um rapaz a encara. Cresci no meio de histórias do capitão Scott, quando escrevia as suas últimas cartas para casa, Oates aventurando-se no meio da tormenta, e já não me ocorre quem, que perdia as mãos de tanto manipular rádio nas suas experiências, além de Damião entre os leprosos. - As recordações acumuladas ao longo da vida reapareciam na pequena sala abafada da vasta e cinzenta Scotland Yard. Na verdade, falar representava um alívio. - Havia uma obra intitulada O Livro das Boas Acções, escrita por uma mulher chamada Yonge... O Pequeno Duque... Quem fosse arrancado repentinamente desse mundo para o actual ficaria desorientado. Jones e o bolo, a enfermaria, o pobre Stone... toda essa conversa acerca de um homem chamado Hitler... os vossos ficheiros de rostos hediondos, a crueldade e a carência de sentido de tudo... É como se uma pessoa partisse de viagem pelo mar com o mapa errado. Estou disposto a tudo o que pretender, mas tenha presente no espírito que não conheço o caminho. Todos os outros mudaram gradualmente e aprenderam. Esta história de guerra e ódio... até isso se me apresenta estranho.

Não me encontro preparado para o enfrentar. No fundo, creio que o mais prático seria enforcar-me.

- Sim, senhor, trata-se de um caso extremamente curioso - admitiu Prentice. - Compreendo que tudo lhe pareça estranho - acrescentou com súbita cordialidade. - Já se habituou à ideia, claro.

- O que me preocupa é que me habituei a tudo isso antes de perder a memória. Quando percorri Londres hoje, fiquei surpreendido com tantas ruínas. Nada parecerá tão singular como esse aspecto da questão. Só Deus sabe que espécie de ruína eu próprio sou. Talvez seja de facto um assassino.

- Já não pensamos que matou Jones - declarou, voltando a abrir a pasta de cartolina. Parecia um homem que contemplara uma parede, vira algo de desagradável e se afastava dela rapidamente. A questão consiste em determinar o que lhe provocou a perda da memória. Que sabe a esse respeito?

- Apenas o que me revelaram.

- E que lhe revelaram?

- Que se deveu a uma bomba. A cicatriz também resultou dela.

- Estava só?

- Não - declarou Rowe, antes que se pudesse conter.

- Então, com quem?

- Uma rapariga. - Era demasiado tarde para arrepiar caminho. Tinha de a envolver no assunto e, de resto, se não cometera qualquer homicídio, o facto de o irmão dela o haver ajudado a fugir carecia de importância. - Anna Hilfe. - Os dois nomes rolaram-lhe da língua com um sabor adocicado.

- Porque estava com ela?

- Penso que éramos amantes.

- Pensa?

- Não me recordo.

- Que diz ela a esse respeito?

- Que lhe salvei a vida.

- As Mães Livres - murmurou Prentice, com uma expressão pensativa. - Explicou-lhe como foi parar à clínica do Dr. Forester?

- Proibiram-na. Eles queriam que a memória reaparecesse lenta e naturalmente, sem hipnotismo nem psicanálise.

Exibiu um sorriso condescendente e fez deslizar o corpo para a extremidade da cadeira, como se pretendesse saborear uns momentos de bem merecido repouso no meio de um dia de trabalho.

- Pois é, não convinha que as recordações acudissem às catadupas. Em todo o caso, restava sempre a enfermaria, se a situação atingisse um clima embaraçoso.

- Se me explicasse o verdadeiro significado de tudo isto...

Tornou a cofiar o bigode, com o ar fainéant de Arthur Balfour, de que parecia, aliás, estar consciente. Estilizara-se, por considerar que a vida resultava mais fácil dessa maneira. Escolhera um molde físico, tal como um escritor opta por uma forma técnica.

- Alguma vez frequentou o Regal Court?

- É algum hotel?

- Pelo menos lembra-se disso.

- Era uma dedução fácil.

Prentice fechou os olhos. Talvez se tratasse de uma atitude afectada, mas quem podia viver sem afectação?

- Porque mencionou o Regal Court? - quis saber Rowe.

- Foi um tiro no escuro, por assim dizer. Dispomos de muito pouco tempo.

- Para quê?

- Para encontrar uma agulha num palheiro.

Um observador não se arriscaria a afirmar que Prentice era capaz de se dedicar a exercícios violentos; uma caçada fatigante, por exemplo, achar-se-ia fora das suas possibilidades. Não obstante, nas horas que se seguiram, revelou-se particularmente activo, e a caçada era de facto extenuante...

Lançou a enigmática frase na atmosfera e abandonou a sala quase antes de os ecos se extinguirem, movendo as longas pernas com rapidez. Rowe ficou só com Beavis, enquanto o dia se arrastava com lentidão. A promessa inicial do Sol não foi cumprida e tombava um chuvisco glacial nas vidraças da janela. Passado algum tempo, levaram-lhe carnes frias e chá num tabuleiro.

Beavis não se mostrava inclinado para conversar, como se as palavras dele pudessem mais tarde ser utilizadas contra si próprio, e Rowe apenas uma vez tentou quebrar o silêncio.

- Quem me dera saber o significado de tudo isto.

A boca de dentes longos do outro abriu-se e fechou-se, como a de um coelho, para pronunciar a fórmula clássica «segredos oficiais», e ele fixou os olhos na parede à sua frente.

De súbito, Prentice reapareceu em largas passadas, seguido de um homem de preto, que segurava um chapéu de coco na sua frente com ambas as mãos, como se fosse uma bacia cheia de água, levemente ofegante por se ver obrigado a acompanhar o andamento acelerado do detective.

- É ele, o patife! - articulou, detendo-se diante de Rowe. - Não tenho a menor dúvida. Reconheço-o, apesar da barba. É um disfarce.

- Excelente - comentou Prentice, com uma risada seca. - As pedras do puzzle estão a ajustar-se nos seus lugares.

- Queria deixar a mala e pôr-se ao fresco - prosseguiu o homem de chapéu de coco. - Mas eu recebera instruções bem claras e indiquei-lhe que devia esperar por Mr. Travers. Qualquer coisa deve ter corrido mal. A explosão não atingiu Mr. Travers, mas ia matando a pobre rapariga... e, quando a confusão terminou, batera asas.

- Não me recordo dele - disse Rowe.

- Estou disposto a jurar que é ele, em qualquer tribunal - volveu o outro, gesticulando arrebatadamente com o chapéu.

Beavis contemplava a cena de boca entreaberta, enquanto Prentice tornava a rir.

- Não há tempo para discussões. Esmurrem-se mais tarde. Para já, preciso dos dois.

- Se me elucidassem um pouco... - suplicou Rowe, amargurado pelo facto de, após a recuperação quase espectacular da memória, ou de grande parte dela, ter de enfrentar a acusação de homicídio e bombista, o que só servia para aprofundar a perturbação que o assolava.

- Explicarei tudo no táxi - prometeu Prentice, encaminhando-se de novo para a porta.

- Não o acusam formalmente? - estranhou o homem do chapéu de coco, seguindo-o Ofegante.

- Depois, depois - replicou o detective, sem se virar para trás. E em tom lúgubre: - A quem?

Atravessaram o pátio e imergiram na larga Northumberland Avenue, enquanto, a espaços, polícias uniformizados faziam a saudação militar. Subiram para um táxi, que rolou ao longo da fachada destroçada da Strand, os olhos vazios do edifício de uma companhia de seguros, janelas cobertas por tábuas e confeitarias com as montras praticamente desprovidas de artigos para venda.

- Apenas desejo que procedam com naturalidade - explicou Prentice. - Vamos a um alfaiate da City, onde me tirarão as medidas para um fato. Eu entro primeiro, a seguir você, Rowe, e depois você, Davis. - E tocou no chapéu de coco, que oscilava em cima dos joelhos do desconhecido, com a ponta do dedo.

- Mas para que é tudo isto? - quis saber Davis, que se desviara instintivamente de Rowe, enquanto Prentice, sentado no banco dobrável em frente, encolhia as longas pernas.

- Não se preocupem. Conservem os olhos abertos e vejam se reconhecem alguém na alfaiataria. - O detective assumiu uma expressão grave, enquanto o táxi efectuava um desvio para evitar a cratera de uma bomba. - O local está cercado. Portanto, não há motivo para apreensões.

- Não estou apreensivo - retorquiu Rowe. - Só queria saber... - E não concluiu a frase, com os olhos fixos na devastação que imperava nas artérias londrinas.

- O assunto é preocupante. Desconheço até que ponto, mas pode dizer-se que todos dependemos dele. - Prentice estremeceu involuntariamente, cofiou o bigode e continuou: - Como sabem, há sempre pontos fracos que têm de ser cobertos. Se os Alemães, após a retirada de Dunquerque, estivessem ao corrente da nossa fraqueza... Continua a haver alguns que, se eles conhecessem os factos exactos... - Surgiram as ruínas em torno da Igreja de St. Paul e os hectares destruídos de Paternoster Row. - Isto não seria nada em comparação com o que nos aconteceria. Nada. - Mais pausadamente, acrescentou: - Talvez eu errasse ao dizer que não havia perigo. Se seguimos a pista correcta, tem de haver algum. No entanto, merece a pena, para salvar milhares de vidas.

- Conte comigo, se vir que posso ser útil - declarou Rowe. - Tudo isto é muito estranho para mim. Nunca supus que a guerra fosse assim.

Enquanto continuava a contemplar os escombros, reflectia que Jerusalém devia apresentar um aspecto aproximado àquele no espírito de Cristo, quando chorava...

- Não tenho medo - proclamou o homem de chapéu de coco, na defensiva.

- Procuramos um pequeno rolo de películas, provavelmente de dimensões muito inferiores às de um carro de linhas - prosseguiu Prentice. - Mais pequeno que os que se usam nas máquinas Leica. Decerto leram as perguntas formuladas no Parlamento acerca de determinados documentos que desapareceram durante uma hora. O facto foi mais ou menos abafado. Na verdade, não convém destruir a confiança num nome importante e, sobretudo, que o público e a imprensa estabeleçam a confusão e dificultem as investigações. Falo-lhes no assunto apenas porque... bem, podemos mandar interná-los até ao termo das hostilidades, se houver alguma inconfidência. Aconteceu duas vezes: na primeira, o rolo estava escondido num bolo que alguém devia ir buscar a um arraial. Mas você ganhou-o, Rowe, pois a senha, por assim dizer, foi transmitida à pessoa errada.

- Por Mrs. Bellairs?

- Está sob vigilância neste momento. - E as explicações continuaram com gestos vagos das mãos delgadas e aparentemente inúteis: - Essa tentativa falhou. A bomba que atingiu a sua casa e destruiu o bolo talvez lhe salvasse a vida. Mas eles não gostaram da maneira como você resolveu investigar. Procuraram obrigá-lo a desaparecer da circulação, dominado pelo medo, embora, por razões de momento desconhecidas, isso não lhes bastasse. Tencionavam fazê-lo ir pelos ares com a bomba, mas, quando descobriram que perdera a memória, tranquilizaram-se. Era preferível a matá-lo, porque o seu desaparecimento implicava a confissão da colocação da bomba no hotel e a eliminação de Jones.

- E a rapariga?

- Ponhamos os mistérios de parte, até melhor oportunidade. Talvez desejassem fazê-la desaparecer, porque o irmão colaborou consigo. Os tipos não são imunes à vingança. Mas de momento não dispomos de tempo para esse género de especulações. - Entretanto encontravam-se em Mansion House. - O que sabemos é o seguinte: tinham de aguardar até que surgisse outro ensejo favorável. Outro nome importante e outro imbecil. Possuía um factor comum com o primeiro: frequentava o mesmo alfaiate. - O táxi encostou ao passeio e Prentice anunciou: - Faremos o resto do percurso a pé.

Um homem postado no passeio oposto começou a subir a rua quando eles se apearam.

- Trouxe um revólver? - perguntou Davis, com uma ponta de nervosismo.

- Para quê? Não sei utilizar armas de fogo. Se houver problemas dessa natureza, atirem-se ao chão.

- Não tem o direito de me arrastar para uma aventura destas.

- Tenho todo o direito - redarguiu Prentice, em tom incisivo. - Ninguém é dono da sua vida nos dias que correm. Todos nos devemos sacrificar pela pátria. - Achavam-se reunidos no passeio. Mensageiros de bancos com caixas presas aos pulsos, estenógrafas e amanuenses moviam-se apressadamente no regresso tardio do almoço. Naquele local não se descortinavam ruínas, o que infundia a ilusão de se estar em tempo de paz. - Se essas fotografias abandonarem o país, haverá um estendal de suicídios. Pelo menos foi o que aconteceu na França.

- Como sabem que isso não sucedeu já? - argumentou Rowe.

- Na realidade, não sabemos. Apenas acalentamos essa esperança. Estejam atentos quando eu entrar. Concedam-me cinco minutos com o nosso homem no gabinete de provas e depois você, Rowe, vá perguntar por mim. Quero que ele esteja onde o possa observar... em todos os espelhos. A seguir, você, Davis, conta até cem e entra também. A sua presença será excessiva, para se tratar de uma coincidência. O seu papel é o da gota de água que faz transbordar o copo.

Os dois homens viram o companheiro afastar-se em passos rítmicos, que acentuavam as linhas elegantes do vestuário. Tinha todo o aspecto de quem não prescindia de um alfaiate na City - alguém de confiança, não demasiado dispendioso que pudesse recomendar ao filho. Por fim, depois de percorrer cerca de cinquenta metros, transpôs uma porta. No mesmo instante, um homem postado na esquina imediata acendeu um cigarro. Um automóvel imobilizou-se um pouco adiante e apeou-se uma mulher para fazer compras, deixando um homem sentado ao volante.

- É altura de eu entrar em cena - murmurou Rowe.

Sentia as pulsações acelerarem-se de entusiasmo, como se mergulhasse numa aventura sem amarguras precedentes, com a frescura de um rapaz. Lançou um olhar de desconfiança a Davis, que contraía o rosto num trejeito de nervosismo, e recordou-lhe:

- Conte até cem e siga. Até cem, ouviu?

- Toda esta encenação... - O homem de chapéu de coco emitiu um suspiro de desespero. - Sou uma pessoa simples.

- Foi o que ele ordenou.

- E quem se julga, para me dar ordens?

Rowe reconheceu que não podia perder tempo com discussões, pois tinha de avançar.

A guerra afectara fortemente a indústria de alfaiataria. Havia duas ou três peças de fazenda de qualidade inferior em cima do balcão e as prateleiras estavam quase vazias.

- Em que lhe posso ser útil? - perguntou um homem de guarda-pó, com uma expressão de ansiedade.

- Procuro um amigo - informou Rowe, volvendo o olhar para a estreita passagem entre os pequenos cubículos com espelhos. Creio que está a ser atendido neste momento.

- Queira sentar-se. - O homem voltou-se para dentro. Mr. Ford!

De um dos cubículos, com uma fita métrica suspensa do pescoço e uma pequena almofada de alfinetes presa na lapela, surgiu Cost, que Rowe vira pela última vez, sem vida, tombado sobre a mesa, quando as luzes se tinham tornado a acender. À semelhança de uma pedra de um puzzle que se ajusta no seu lugar e incute sentido a um bloco até então confuso, aquele homem ocupou a sua devida posição na memória de Rowe, com o indivíduo de Welwyn, o poeta proletário e o irmão de Anna. Como lhe chamara Mrs. Bellairs? Ele recordava-se com clareza da frase: «O nosso homem misterioso.»

Rowe levantou-se, como se se tratasse de alguém de grande importância que devia ser saudado com particular deferência, mas parecia não se registar o menor clarão de reconhecimento nos olhos firmes e respeitáveis.

- Chamou, Mr. Bridges?

Eram as primeiras palavras que jamais lhe ouvira pronunciar, pois anteriormente a sua única função relacionara-se com a morte.

- Este cavalheiro vem para se encontrar com o outro cavalheiro. Os olhos focaram-se noutro alvo e imobilizaram-se, sem que emitissem qualquer indício de reconhecimento, embora talvez, com um pouco de boa vontade, se pudesse dizer que se fixavam com um pouco mais de atenção do que a necessária.

- Quase terminei de tirar as medidas ao cavalheiro. Se não se importa de aguardar dois minutos...

«Dois minutos», reflectiu Rowe, «e entrará a gota que fará transbordar o copo.»

Mr. Ford - se porventura era esse o seu nome verdadeiro encaminhou-se lentamente para o balcão. Pressentia-se que tudo o que fazia era ponderado com meticulosidade: os fatos que confeccionava deviam ser impecáveis. Não havia espaço naquela precisão para a excentricidade, para o acto irreflectido, mau grado o que residia uma singularidade extraordinária sob a sua pele. Acudiu ao pensamento de Rowe a imagem do Dr. Forester mergulhando os dedos num líquido que parecia sangue.

Mr. Ford pegou no auscultador do telefone existente a um canto do balcão e discou um número. O marcador achava-se virado para Rowe, que prestava a maior atenção cada vez que o dedo se introduzia num dos círculos. B-A-T. Estava convencido de que eram essas as letras, mas escapou-se-lhe um algarismo, subitamente hesitante ao aperceber-se da mirada do homem. Sentia-se inseguro de si próprio e ansiava por que Prentice aparecesse.

- Está? - proferiu Ford para o bocal. - Fala de Pauling and Crosthwaite.

Ao longo da largura da montra, em direcção à porta, deslizou o vulto relutante do homem de chapéu de coco, e Rowe flectiu os dedos involuntariamente. Mr. Bridges entretinha-se a arrumar as escassas peças de fazenda, de costas para a entrada. As suas flácidas mãos constituíam quase uma crítica pungente no ambiente do «Alfaiate e Lanifícios».

- O fato foi enviado esta manhã - proferia Ford ao telefone. - A tempo de chegar aí antes da sua partida, espero. - Esboçou um sorriso de satisfação profissional. - Muito obrigado. Também fiquei muito satisfeito com a última prova. - Desviou os olhos para a porta que Davis acabava de transpor, com uma expressão angustiada. - Sim, senhor. Verá que, depois de o vestir uma vez, os ombros assentarão devidamente.

O plano de Prentice abortara, pois a presença de espírito do homem não fora afectada.

- Mr. Travers! - exclamou Davis, estupefacto.

Ford cobriu o bocal com a mão, num gesto revestido da máxima naturalidade, e articulou:

- Perdão?

- É Mr. Travers. - De súbito, ao enfrentar os olhos calmos e límpidos, o recém-chegado aventurou: - Não é?

- Não, senhor.

- Pensei...

- Importa-se de atender este cavalheiro, Mr. Bridges?

- Com todo o gosto, Mr. Ford.

A mão afastou-se do bocal e Ford continuou a falar em tom firme e autoritário.

- Não, senhor. Acabo de verificar que não poderemos repetir a calça. Não se trata de uma questão de cupões de racionamento. É-nos totalmente impossível obter mais fazenda dessa nos fabricantes. - Os olhos tornaram a fixar-se nos de Rowe e vaguearam, como a mão de um cego, delicadamente ao longo do rosto. - Confesso que não vislumbro a menor esperança. - Pousou o auscultador e moveu-se um pouco ao longo do balcão, para pegar numa tesoura. - Vou voltar lá para dentro, Mr. Bridges.

- Perfeitamente, Mr. Ford.

Sem mais uma palavra, passou diante de Rowe, conservando o olhar fixo na sua frente, e enveredou pela passagem em passos lentos, profissionais, pesados como pedra. Rowe decidiu para consigo que tinha de fazer alguma coisa, para que o plano não redundasse num fiasco.

- Cost - chamou a meia voz. - Cost.

Só então a serenidade e a deliberação do homem que empunhava a tesoura lhe pareceram estranhas e bradou «Prentice!» em tom de advertência, quando viu o suposto Ford entrar num dos cubículos.

Mas não foi desse que Prentice emergiu. Irrompeu, apreensivo, em mangas de camisa, do lado oposto da passagem.

- Que foi? - perguntou, olhando em volta.

No entanto, Rowe já se encontrava junto da outra porta, empenhado em entrar. Por cima do ombro, viu o semblante chocado de Bridges e o olhar arregalado de Davis.

- Dê-me o seu chapéu - pediu a este último. - Depressa.

E utilizou-o para partir o vidro da porta. Através dos estilhaços, avistou Cost-Travers-Ford sentado na poltrona destinada aos clientes, diante do espelho triplo, inclinado para a frente, a garganta trespassada, com a tesoura apertada com firmeza, voltada para cima, entre os joelhos. Fora uma morte romana.

«Desta vez é que o matei», reflectiu Rowe e voltou a ouvir a voz calma, respeitosa, porém autoritária, ao telefone: «Confesso que não vislumbro a menor esperança.»

 

LIMPEZA GERAL

É melhor renderem-se.

O Pequeno Duque

Mrs. Bellairs não revelou tanta dignidade.

Eles haviam seguido directamente para Campden Hill, deixando para trás Davis com o chapéu de coco deformado. Prentice mostrava-se preocupado e deprimido e observou:

- Assim não serve. Precisamos deles vivos e em condições de falar.

- Devia ser um homem muito corajoso - disse Rowe. - Não sei porque é que isto é tão surpreendente. Uma pessoa não associa estas coisas com alfaiates... excepto aquele da história que matou um gigante. Talvez se possa afirmar que este estava do lado dos gigantes. Porque seria?

- A piedade é uma coisa terrível - retorquiu Prentice, enquanto o carro seguia ao longo do parque, sob o chuvisco impelido pelo vento. - Fala-se da paixão do amor, mas a piedade é a pior de todas: não nos desembaraçamos dela como do sexo.

- No fundo, estamos em guerra - volveu Rowe, com uma espécie de alívio.

O velho truísmo falso, à semelhança de uma peça de pirite nas mãos de uma criança, abriu-se e revelou-lhe o núcleo brilhante. Achava-se envolvido...

- Você não a sente, hem? - Prentice olhou-o com curiosidade. - Os adolescentes não sentem piedade. É uma paixão adulta.

- Provavelmente levava uma vida calma e monótona, pelo que agora tudo me excita. Depois de descobrir que não sou um assassino, posso saborear...

Rowe interrompeu-se ao evocar a casa vagamente recordada como o cenário de um sonho: o pequeno jardim com uma estatueta cinzenta decrépita e a cancela de ferro que rangia. Todas as persianas se encontravam baixadas, como se tivesse morrido alguém, e a porta permanecia aberta.

- Prendemo-la simultaneamente - informou Prentice. Pairava um silêncio irreal, e o homem de preto que se achava no vestíbulo podia perfeitamente ser um agente funerário. Em seguida abriu uma porta interior e eles entraram. Não era o aposento que Rowe recordava vagamente, mas sim uma pequena sala de jantar cheia de mobiliário, com cadeiras hediondas, uma mesa demasiado grande e uma secretária. Mrs. Bellairs sentava-se numa poltrona à cabeceira da mesa, de rosto pálido e hermético e turbante negro.

- Recusa-se a falar - esclareceu o homem de preto.

- Ora bem, minha senhora... - começou Prentice, com uma ponta de jovialidade forçada. Fez uma pausa, mas ela continuou silenciosa. - Trouxe-lhe uma visita. - E desviou-se para que visse Rowe.

Representa uma experiência perturbadora uma pessoa descobrir-se alvo de terror e não admira que a novidade intoxique alguns homens. Para Rowe foi horrível, como se acabasse de se reconhecer capaz de uma atrocidade. Mrs. Bellairs começou a emitir sons inarticulados, sentada grotescamente à cabeceira da mesa: dir-se-ia que se lhe cravara uma espinha na garganta durante um jantar de cerimónia. Decerto se contivera graças a um esforço prodigioso, e o choque perturbara-lhe os músculos da garganta.

Prentice foi o único que se manteve à altura da situação. Contornou a mesa e deu uma palmada amigável nas costas da mulher, ao mesmo tempo que dizia:

- Reanime-se, que isso passa.

- Nunca tinha visto este homem - asseverou ela. - Nunca.

- Mas leu-lhe a sina. Não se recorda?

Os congestionados olhos foram assolados por um clarão de esperança desesperada.

- Se tudo isto é por causa da leitura de uma sina... Faço-o apenas em festas de caridade.

- Compreendemos isso perfeitamente.

- E nunca predigo o futuro.

- Se conseguíssemos adivinhar o futuro...

- Somente o carácter.

- E o peso de bolos - lembrou Prentice, e toda a esperança se dissipou subitamente. Era demasiado tarde para guardar silêncio. Além das suas pequenas séances - acrescentou, com um sorriso, como se partilhassem um facto divertido.

- No interesse da ciência - declarou Mrs. Bellairs.

- O seu grupo continua a reunir-se?

- Às quartas-feiras.

- Com muitas ausências?

- São todos amigos pessoais - articulou vagamente e agora, que as perguntas pareciam ter regressado a um terreno mais seguro, sentia-se um pouco mais confiante.

- Mr. Cost, por exemplo, é natural que não volte a aparecer.

- Creio que me estou a recordar deste cavalheiro - admitiu prudentemente. - A barba confundiu-me por um momento. - Foi uma brincadeira de mau gosto de Mr. Cost. Eu não sabia de nada. Encontrava-me muito longe.

- Longe?

- Onde estão os bem-aventurados.

- Ah, sim, claro. Pois ele não voltará a brincar dessa maneira.

- Em todo o caso, suponho que não houve qualquer má intenção. Talvez lhe desagradasse a presença de dois estranhos... Somos um grupo pequeno e muito compacto. De resto, Mr. Cost nunca foi um verdadeiro crente.

- Esperemos que agora seja. - Prentice não parecia de momento preocupado com aquilo a que chamava paixão terrível da piedade. - Deve tentar entrar em contacto com ele, Mrs. Bellairs, e perguntar-lhe porque é que se degolou, esta manhã.

O pesado silêncio que se seguiu foi quebrado pela campainha do telefone, que continuou a tocar em cima da secretária, e havia demasiadas pessoas na pequena sala para o alcançarem com prontidão. Uma vaga recordação surgiu por um instante fugaz, indicando que aquilo já acontecera no passado.

- Atenda, minha senhora - indicou Prentice.

- Degolou-se... - balbuciou ela, de olhos arregalados.

- Não lhe restava qualquer alternativa. Excepto a de continuar a viver para ser enforcado, claro. - A campainha retinia com insistência, como se alguém à distância tivesse a mente concentrada naquela sala. - Atenda, minha senhora - repetiu Prentice.

Mrs. Bellairs não era constituída pela mesma fibra do alfaiate. Assim, levantou-se obedientemente, vacilou um pouco, ficou presa por um momento entre a mesa e a parede, e o turbante deslizou para um dos olhos quando levantou o auscultador.

- Estou... Quem fala?

Os três homens conservavam-se imóveis, quase sem respirar. De repente, a mulher pareceu recompor-se, como se se apercebesse do seu poder: a única pessoa presente que podia falar.

- É o Dr. Forester. Que lhe digo?

Transmitiu a informação e a pergunta por cima do ombro, com a boca próxima do auscultador, ao mesmo tempo que exibia uma expressão maliciosa, inteligente, com a sua estupidez cristalizada como uma peça de camuflagem que não lhe apetecia aperfeiçoar. Por fim, Prentice arrancou-lhe o aparelho da mão e cortou a ligação, advertindo:

- Não vai lucrar nada com isto.

- Limitei-me a perguntar...

- Manda vir um carro rápido da Yard. Só Deus sabe onde esses polícias locais se meteram. Já cá deviam estar há muito tempo. - Voltou-se para outro agente. - Conserva os olhos bem abertos, para que a dama não se degole. Precisamos que mantenha a garganta intacta e afinada.

Principiou a revistar a casa, passando de uma dependência para outra com a sanha destruidora de um furacão.

- Estou preocupado com o seu amigo... Como se chama ele? Stone -confidenciou a Rowe. - O raio da cadela... - A expressão quase soava falso nos lábios encimados pelo bigode eduardino.

No quarto de Mrs. Bellairs não deixou um boião de creme intacto, e havia-os em quantidades invulgares, chegando ao ponto de rasgar as fronhas das almofadas com uma expressão quase sádica. Em cima da mesa-de-cabeceira encontrava-se um livro intitulado Amor no Oriente, e ele arrancou a capa e atirou ao chão o candeeiro. Somente a buzina de um carro pôs termo à destruição.

- Preciso que venha comigo, para as identificações.

Com estas palavras, desceu a escada em largas passadas que abarcavam três degraus. Mrs. Bellairs entregava-se agora a uma crise de lágrimas na sala e um dos detectives preparara-lhe chá.

- Não percas tempo com isso - determinou Prentice, como se estivesse disposto a dar um exemplo de austeridade a subordinados pouco eficientes. - Se ela se recusar a falar, arrasem tudo. Não deixem um centímetro quadrado por inspeccionar.

Parecia dominado por uma paixão de ódio e porventura desespero. Num movimento brusco, pegou na chávena que Mrs. Bellairs se preparava para levar aos lábios e esvaziou-a na carpete.

- Não tem o direito... - começou ela, com um gemido de indignação.

- Isto é o seu melhor serviço de chá? - inquiriu ele, com brusquidão.

- Largue a chávena!

No entanto, esmagou-a contra a parede, enquanto explicava ao subordinado:

- A pega é oca, e não conhecemos as dimensões do rolo. Portanto, passem a casa a pente fino.

- Há-de sofrer as consequências deste abuso de autoridade - ameaçou Mrs. Bellairs.

- Engana-se. Quem sofrerá é a senhora. Fornecer informações ao inimigo constitui um crime punível com a forca.

- Nesta guerra não se enforcam mulheres.

- Enforcamos mais pessoas do que os jornais revelam - afirmou Prentice, encaminhando-se para a saída.

Foi um trajecto longo e lúgubre. Tudo indicava que uma sensação de desaire e apreensão se apossara de Prentice, o qual se sentava ao canto do assento do carro, imerso em cogitações. Começou a escurecer antes de abandonarem a pouco asseada periferia de Londres e anoitecera por completo no momento em que alcançaram a primeira vedação. Quem olhasse para trás veria apenas um céu iluminado - faixas e círculos brilhantes de luz como praças de cidades, como se o mundo habitado se concentrasse numa área restrita.

Foi um trajecto longo e lúgubre, mas Rowe continha com dificuldade, em atenção ao companheiro, a sensação de euforia que o dominava: achava-se alegremente embriagado com o perigo e a acção. Aquilo assemelhava-se mais à vida que imaginara há anos. Participava numa grande luta e, quando tornasse a ver Anna, poderia vangloriar-se de ter desempenhado um papel activo contra os inimigos. Não se preocupava muito com Stone, pois nenhum dos livros que lera em criança tinha um desenlace infeliz. E nenhum se apresentava perturbado por uma sensação de piedade para com a facção derrotada. As ruínas de que emergiam constituíam apenas um pano de fundo heróico da sua aventura pessoal; não possuíam mais realidade do que as fotografias de um álbum de propaganda: os restos de uma armação de cama de ferro no terceiro andar de um apartamento destruído significavam unicamente «eles não passarão», e não «jamais voltaremos a dormir neste quarto ou nesta casa». Ele não compreendia o sofrimento, porque se esquecera de que alguma vez sofrera.

- No fundo, não pode ter acontecido nada lá - observou. -

A Polícia local...

- A Inglaterra é um país belo - proferiu Prentice, com uma expressão de amargura. - As igrejas normandas, as velhas sepulturas, a verdura da aldeia e o botequim, a casa do polícia com o seu talhão de jardim. Todos os anos conquista um prémio com as couves que cultiva...

- Mas a Polícia do condado...

- O chefe esteve nas fileiras do exército indiano, há vinte e sete anos. É um fulano fixe, com predilecção especial pelo vinho do Porto. Fala em excesso dos seus regimentos, mas pode-se contar com ele para uma subscrição por uma boa causa. O superintendente também era uma excelente pessoa, embora tratasse de obter a transferência para o condado, porque o aposentariam da Polícia Metropolitana sem qualquer vencimento, passados poucos anos. Como se tratava de uma pessoa honesta, não queria viver à custa de subornos de corretores de apostas durante a velhice. Infelizmente, num condado pequeno não surgem muitas oportunidades de um funcionário aperfeiçoar a argúcia. Detenção de bêbedos nos fins-de-semana e pequenos roubos são praticamente as únicas infracções à lei que se lhe deparam. Os magistrados felicitam o condado pela sua folha praticamente limpa.

- Conhece os homens?

- Não conheço estes, mas quem conhece a Inglaterra pode prever tudo. E de repente, nesta paz (há paz mesmo em tempo de guerra), surge o criminoso astuto, cruel, totalmente desprovido de escrúpulos, ambicioso, culto. Não é de modo algum um criminoso, no sentido em que o condado conhece o crime. Não rouba, nem se embebeda.. e se comete um homicídio, como não houve um caso do género há cinquenta anos, as autoridades não o reconhecem.

- Que espera encontrar? - perguntou Rowe.

- Quase tudo, excepto o que procuramos. Um pequeno rolo de películas.

- Entretanto, eles podem ter tirado numerosas cópias.

- Pois podem, mas não dispõem de muitas maneiras para as fazer sair do país. Basta descobrir o homem encarregado de as transportar e o organizador. Os restantes não interessam.

- Pensa que o Dr. Forester...?

- O Dr. Forester é uma vítima... perigosa, sem dúvida, mas não o vitimador, se me permite a expressão. Pertence ao número dos utilizados, dos submetidos a chantagem. É claro que isto não significa que não possa ser o correio. Se é, estamos com sorte. Não pode fugir... a menos que a Polícia do condado... - E Prentice interrompeu-se, com uma expressão apreensiva.

-Pode confiar o rolo a alguém.

- Não é tão fácil como supõe. Não há muita gente dessa à solta. Lembre-se de que, para abandonar o país neste momento, é necessário apresentar uma razão de peso. Se esta Polícia...

- É assim tão desesperadamente importante?

- Cometemos muitos erros desde que a guerra principiou, e eles muito poucos - articulou o detective, numa inflexão compungida. Talvez este seja o nosso último. Confiar um segredo a um homem como Dunwoody...

- Dunwoody?

- Não devia ter deixado escapar o nome, mas uma pessoa acaba por se impacientar. Ouviu falar nele? Abafaram o assunto, porque é filho de um ancião respeitável.

- Não, nunca ouvi... Pelo menos julgo que não.

Um mocho piou algures no campo em redor, enquanto os «mínimos» do carro projectavam o débil clarão até à periferia da vedação que ladeava a estrada, sem conseguirem penetrar no vasto manto da noite: era como a periferia colorida ao longo dos espaços inexplorados de um mapa. Algures, entre as tribos desconhecidas, uma mulher dava à luz, ratos moviam-se no meio de sacos de géneros, um velho expirava, duas pessoas viam-se pela primeira vez à luz de uma lanterna. Tudo naquela escuridão se revestia de uma importância tão profunda que a diligência a que eles se entregavam não o podia igualar - a violenta perseguição superficial, aquela aventura num carro que avançava à velocidade de cem quilómetros horários ao longo da orla das profundas experiências comuns naturais dos homens. Rowe ansiava por regressar a esse mundo: ao mundo de lares, crianças, amor tranquilo e temores e ansiedades não especificados, vulgares, que o vizinho compartilhava. Transportava o pensamento de Anna como uma carta oculta que prometia precisamente isso: o anseio assemelhava-se aos primeiros sinais de maturidade, quando a experiência rara deixa subitamente de ser desejável.

- Em breve saberemos o pior - resmungou Prentice. - Se não o encontramos aqui... - E encolheu os ombros, numa atitude quase de resignação.

Alguém, a certa distância em frente, agitava uma lanterna com insistência, e ele semicerrou as pálpebras para tentar enxergar de quem se tratava.

- Que ideia é aquela? Parece que querem propagandear a nossa vinda. Não acreditam que um forasteiro consiga encontrar o caminho no seu território sem uma bússola.

O carro abrandou a marcha junto de um muro elevado e deteve-se diante de um largo portão heráldico. O cenário era estranho a Rowe, pois contemplava de fora algo que só vira do interior. A copa de um cedro que apontava ao céu não era a mesma que projectava sombra lá dentro.

- Identifique-se, por favor - solicitou o polícia que se acercou.

Prentice exibiu a insígnia oficial e perguntou:

- Tudo em ordem?

- Receio que não. Encontrará o superintendente nas instalações.

Apearam-se e, como um pequeno grupo de conspiradores, transpuseram o portão. Não infundiam a sensação de autoridade, fatigados após o longo percurso. Assemelhavam-se a turistas extenuados após numerosas visitas, acompanhados pelo mordomo, para admirarem os pontos de interesse de um palácio. Entretanto, o polícia repetia, a intervalos: «Por aqui.» E apontava a lanterna, embora houvesse apenas um caminho.

Rowe reflectia que o regresso naquelas circunstâncias continha algo de insólito. A vasta casa achava-se imersa em silêncio e a fonte também não produzia o menor ruído. Decerto alguém fechara a torneira que regulava o fluxo da água. Havia luz em janelas de apenas duas dependências. Era o lugar onde ele permanecera feliz durante meses, mergulhado numa paz extraordinária. Aquele cenário fora-lhe enxertado na infância pela singular intervenção de uma bomba. Metade da sua vida recordada situava-se ali. Agora, que voltava como inimigo, acudia-lhe uma sensação de vergonha.

- Se não se importa, preferia não ver o Dr. Forester.

- Não tem de se preocupar - observou o polícia. - Está devidamente neutralizado.

- De quem é aquele carro? - perguntou Prentice.

Havia um Ford V8 no caminho de acesso à casa, mas não era a esse que se referia. O alvo das suas atenções consistia num modelo antigo e maltratado, com o pára-brisas rachado, daqueles que se encontram, com centenas de outros, em lugares isolados, vendidos por cinco libras ao primeiro interessado que consiga pô-los em movimento.

- Do reverendo.

- Organizaram uma festa?

- Não é nada disso, senhor - esclareceu o polícia. - Como um deles ainda vive, considerámos justo informar o vigário.

- Parece que aconteceram coisas - murmurou Prentice, com ar sombrio.

Chovera, e o polícia procurava orientá-los com a lanterna por entre as poças de água, em direcção à entrada.

No átrio, onde os jornais e revistas costumavam amontoar-se nas mesinhas, onde Davis chorava a um canto e os dois internados nervosos costumavam discutir diante do tabuleiro de xadrez, Johns sentava-se numa poltrona, com a cabeça entre as mãos. Ao ouvir passos, endireitou-se e balbuciou:

- Era um grande homem... um grande homem...

- Era?

- Eu matei-o.

Fora uma chacina à escala isabelina. Rowe era o único que não deixava transparecer perturbação... até que avistou Stone. Os corpos jaziam onde tinham sido encontrados: o do major, envolto na camisa-de-forças, com a esponja de anestésico no chão, a seu lado, contorcido numa tentativa infrutífera para utilizar as mãos.

- Não tinha a menor hipótese - disse Rowe, entre dentes. Fora aquela passagem que ele percorrera, excitado como um colegial que infringia o regulamento da escola. Na mesma passagem, espreitando pela porta aberta, cresceu - aprendeu que a aventura nem sempre obedecia ao padrão literário, não havia sempre desenlaces felizes, e experimentou a impressão penosa da piedade, que lhe indicou que tinha de se fazer alguma coisa, pois não podia deixar a situação inalterada, com os inocentes esforçando-se por respirar e morrendo ingloriamente.

- Gostava... - acrescentou. - Ah, como eu gostava... - E sentiu a crueldade mover-se ao lado da piedade, sua velha e experiente companheira.

- Devemos congratular-nos por não ter sofrido - articulou uma voz desconhecida, e a estúpida frase complacente e incorrecta afectou os nervos dos outros.

- Quem diabo é você? - inquiriu Prentice. - E apressou-se a continuar, em tom de desculpa. - Calculo que seja o vigário.

- Exacto. Chamo-me Sinclair.

- Não tem nada que fazer aqui.

- Tinha, sim. O Dr. Forester ainda vivia quando me chamaram. Era um dos meus paroquianos. - E o vigário salientou, em tom de censura: - Como deve saber, nós podemos frequentar os campos de batalha.

- Sim, tem razão. É o seu carro que está lá fora?

- É.

- Então agradecia que regressasse ao vicariato e permanecesse lá até terminarmos isto.

- Perfeitamente. Não quero estorvar as investigações. Entretanto, Rowe observava-o com curiosidade: o vulto quase cilíndrico trajado de negro, o colarinho reluzente sob a luz eléctrica, o rosto de expressão intelectual. De súbito, com uma mirada intensa, Sinclair perguntou-lhe:

- Não nos conhecemos?

- Não.

- Talvez fosse um dos pacientes da clínica.

- Fui, de facto.

- Então deve ser isso - proferiu com entusiasmo nervoso. Tinha a certeza de que já o vira algures. Provavelmente numa das reuniões sociais promovidas pelo Dr. Forester. Boa noite.

Rowe voltou-se para contemplar de novo o homem que não sofrera. Recordou-se de o ver introduzir os pés no lodo da lagoa, desesperadamente ansioso, e depois fugir como uma criança assustada em direcção à horta. Acreditara sempre na existência de traição, o que indicava que, afinal, não era tão louco como o supunham.

Tivera de passar por cima do corpo do Dr. Forester, que jazia ao fundo da escada. Um obstáculo inesperado derrubara o médico: não o amor à pátria, mas sim ao próximo, um amor que entrara surpreendentemente em actividade no coração do respeitável venerador de heróis Johns. Forester mostrara-se demasiado seguro da fidelidade dele. Não se apercebera de que, no fundo, o respeito é menos fidedigno que o medo. Uma pessoa pode dispor-se mais facilmente a matar quem respeita do que a denunciá-lo à Polícia. Quando Johns fechou os olhos e puxou o gatilho do revólver que fora confiscado a Davis e que permanecera fechado numa gaveta durante meses, não destruía o homem que respeitava: salvava-o do tormento interminável de um julgamento, das perguntas acutilantes do promotor público, das ignorâncias insondáveis do juiz e da indignidade de depender da opinião quase indiferente de doze homens escolhidos ao caso. Se o amor ao próximo se negava a permitir que fosse cúmplice na eliminação de Stone, o amor também determinara a forma da recusa.

Forester revelara-se preocupado desde a fuga de Rowe. Manifestara uma relutância inexplicável em chamar a Polícia e parecera apreensivo quanto ao destino de Stone. Registaram-se trocas de impressões com Poole, das quais Johns foi excluído, e à tarde houve uma chamada telefónica para Londres... Johns levou uma carta ao correio e apercebeu-se da presença do vigilante do lado de fora do portão. Na aldeia, avistou um carro da Polícia, da vila mais próxima, e começou a cismar...

Cruzou-se com Poole no regresso, e todas as desconfianças e ressentimentos dos últimos dias lhe reapareceram no espírito. Sentado no átrio, dominado por uma paixão de remorso, não sabia explicar como todas essas indicações cristalizaram na convicção de que o médico planeava a morte de Stone. Lembrou-se de conversas teóricas que sustentara com Forester sobre o tópico da eutanásia, durante as quais este se mostrara impávido perante as histórias que circulavam, segundo as quais os nazis eliminavam os velhos e pessoas que padeciam de doenças incuráveis. Em dada altura afirmara:

- É o que qualquer Estado terá de enfrentar, mais cedo ou mais tarde. Para que uns possam ser mantidos vivos em instituições dirigidas e subsidiadas por esse Estado, há que reconhecer-lhe o direito de economizar, quando necessário.

E Johns surpreendera um colóquio entre ele e Poole, prontamente interrompido quando se inteiraram da sua presença, o que o tornara mais intranquilo, como se a casa estivesse infectada pelo futuro: o medo já se achava presente nos corredores. À hora do chá, Forester emitiu qualquer comentário acerca do «pobre Stone».

- Pobre, porquê? - quis saber Johns em tom incisivo e acusador.

- Tem dores atrozes. Um tumor... A morte é a maior bênção que podemos desejar para ele.

 

Johns percorreu o jardim interminavelmente ao anoitecer. Ao luar, o mostrador do relógio assemelhava-se ao vulto amortalhado de alguém morto à entrada do roseiral. De repente ouviu Stone gritar. As suas declarações tornaram-se ainda mais confusas. Aparentemente, dirigiu-se ao quarto e pegou no revólver. Era próprio dele não conseguir localizar a chave e acabar por encontrá-la na algibeira. Tornou a ouvir Stone gritar, precipitou-se para a outra ala, desceu a escada e deparou-se-lhe o Dr. Forester.

 

- Que pretende daqui, Johns?

 

E este, que ainda acreditava na pureza mal orientada do fanatismo do médico, só viu uma solução: abatê-lo. Poole, de ombros deformados e expressão maligna, principiou a retroceder do topo da escada, e ele atingiu-o igualmente, dominado pela fúria, por supor que era demasiado tarde.

 

Depois apareceu a Polícia. Johns tratou de a receber, pois parecia que todo o pessoal fora autorizado a dispor da noite como melhor lhe aprouvesse, e o pequeno facto banal que lera em numerosos romances policiais permitiu-lhe vislumbrar a esquálida verdade. O Dr. Forester ainda vivia, e a Polícia local julgou conveniente mandar chamar o pároco...

E a isto se resumia a sua história. Era extraordinária a devastação que se podia operar numa noite num local que outrora parecera uma espécie de paraíso terrestre. Um bombardeamento intenso não eliminaria a paz tão totalmente como aqueles três homens.

 

Inciaram-se então as pesquisas, e a casa foi vasculhada de um extremo ao outro, com a participação de agentes chamados mais tarde. Acendiam-se e apagavam-se luzes incessantemente, ao longo da noite e das primeiras horas da madrugada, nas dependências dos pisos superiores.

- Se ao menos conseguíssemos descobrir uma impressão digital... - suspirava Prentice.

Mas não havia absolutamente nada de interesse. Em dado momento da prolongada vigília, Rowe encontrou-se de novo no quarto que Digby ocupara e lembrou-se dele, agora como um desconhecido - um desconhecido apático, complacente, mais ou menos parasita, cuja felicidade repousara numa ignorância excessiva. A felicidade devia ser qualificada sempre por um conhecimento do infortúnio. Numa estante avistou a obra de Tolstoi com as marcas de lápis apagadas. O conhecimento era o factor fundamental; não o conhecimento abstracto, em que o Dr. Forester fora tão rico, as teorias que lhe infundiam a aparência de nobreza, de virtude transcendente, mas sim o conhecimento humano e trivial, pormenorizado e apaixonante. Abriu o livro mais uma vez e leu: «Aquilo que me parecia bom e majestoso - o amor à pátria e ao próximo - tornou-se-me repulsivo e desprezível. O que me parecia mau e vergonhoso - rejeição da pátria e cosmopolitanismo - apresentava-se-me agora, pelo contrário, belo e nobre.» O idealismo terminara com uma bala no estômago, ao fundo da escada; o idealista fora surpreendido em traição e homicídio. Rowe estava convencido de que não tinham necessitado de o submeter a chantagem persistente. Bastara apelar para as suas virtudes, amor-próprio intelectual, amor abstracto pela humanidade. Não é possível amar a humanidade. Apenas as pessoas.

- Nada - anunciou Prentice, atravessando o quarto em passos pesados e afastando um pouco a cortina da janela. Só se achava visível uma estrela; as outras tinham desaparecido, no céu, que começava a empalidecer. - Tanto tempo perdido...

- Três mortos e um na cadeia.

- Podem encontrar uma dezena que os substitua. Quero apanhar as películas, o cérebro da operação. Foram utilizados produtos químicos fotográficos na bacia do lavatório de Poole. Deve ter sido aí que procederam à revelação. Não acredito que tirassem mais de uma cópia de cada vez. Interessava-lhes confiar no menor número possível de pessoas, e, como possuem o negativo... - Com uma expressão de amargura, acrescentou: - Poole era um fotógrafo exímio. Especializara-se na história da vida das abelhas, uns estudos maravilhosos. Li alguns. Preciso que me acompanhe à ilha, Rowe. Receio que encontremos lá alguma coisa desagradável para você identificar.

Imobilizaram-se onde Stone estivera. Três pequenas luzes vermelhas em frente davam a impressão da iluminação de um porto pouco antes da alvorada, como as lâmpadas da vanguarda de navios que se reuniam para formar um comboio. Prentice mergulhou os pés na água do lago e Rowe imitou-o. As luzes vermelhas eram lanternas, daquelas que se colocam nas estradas vedadas ao trânsito. Três polícias escavavam no centro da ilha, onde dificilmente restava espaço para mais dois.

- Foi isto que Stone viu - disse Rowe. - Homens a escavar.

- Exacto.

- Que esperam...?

Interrompeu-se e verificou que havia certa tensão nos movimentos dos escavadores. Introduziam as pás cuidadosamente, como se receassem quebrar um objecto frágil, e pareciam revolver a terra com relutância. A cena na escuridão recordou-lhe algo: algo distante e sombrio. De súbito lembrou-se de uma gravura vitoriana que a mãe lhe arrancara das mãos e que representava homens embuçados que escavavam à noite num cemitério, com o luar reflectido numa pá.

- Há alguém que você esqueceu... e ainda não apareceu - murmurou Prentice.

Enquanto cada pá mergulhava no solo, Rowe aguardava com apreensão, dominado pelo medo da repulsa.

- Como sabem onde devem cavar?

- Eles deixaram marcas. Eram amadores nesta matéria. Deve ter sido por isso que se assustaram com o que Stone viu. - Uma pá produziu um som desagradável na terra mole e Prentice recomendou: - Cuidado. - O homem fez uma pausa para limpar a transpiração do rosto, embora estivesse uma noite fria, após o que extraiu a ferramenta com lentidão e examinou a lâmina. - Começa de novo deste lado. Mas com suavidade e sem ir muito fundo.

Os outros suspenderam o trabalho e observaram o colega, conquanto fosse óbvio que não estavam interessados em ver.

- Está aqui - anunciou o homem que escavava.

Deixou a pá embebida na terra e começou a retirar esta com as mãos, com cautela, como se plantasse sementes.

- É apenas uma caixa - esclareceu com alívio.

Afastou a pá e, com um esforço vigoroso, levantou a caixa do esconderijo. Era daquelas que se utilizam para guardar géneros, e a tampa encontrava-se pregada com pouca firmeza. Ele abriu-a com a extremidade da lâmina da pá e um colega aproximou-se com uma lanterna. Em seguida, um a um, foram extraídos diversos objectos de aspecto tenebroso, com as relíquias que um comandante de companhia envia aos familiares de um dos seus homens tombado em combate. Existia, porém, uma diferença: não havia cartas nem fotografias.

- Nada que eles pudessem queimar - observou Prentice. Eram objectos do género dos que um incêndio vulgar rejeitaria: um aro metálico de uma caneta e outro que provavelmente servira para conter um lápis. - Não é fácil queimar coisas numa casa electrificada.

Um relógio de bolso. O detective levantou a tampa e leu: «F. G. J., de N. L. J., nas nossas bodas de prata, 3/8/15.» Por baixo fora acrescentado: «Ao meu querido filho, em memória de seu pai,

1919.»

 

- Um relógio de qualidade - murmurou.

Seguiram-se duas braçadeiras metálicas e depois as fivelas de um par de ligas de homem, além de toda uma colecção de botões - de madrepérola de um colete, castanhos de um fato, de suspensórios, de calças... -, tornando-se difícil acreditar que uma única muda de roupa de homem exigisse tantos para manter as peças de vestuário nos devidos lugares. Botões de colete. De punho. Em seguida, as partes metálicas de uns suspensórios. A pobre criatura humana é assim reunida respeitavelmente como uma boneca: se se separam as peças, fica-se com uma caixa de artigos de mercearia cheia de fivelas, suportes e botões.

No fundo, havia um par de botas de modelo antiquado, cujas solas, cardadas, apresentavam substancial desgaste de tanto calcorrear ruas e de permanecer paradas em esquinas.

- Gostava de saber o que fizeram ao resto dele - articulou Prentice.

- Quem era?

- Jones.

 

NÚMEROS ERRADOS

Era uma estrada muito escorregadia, assustadora, traiçoeira.

O Pequeno Duque

Rowe continuava a crescer; cada hora que passava aproximava-o mais da sua idade real. Reapareciam pequenas áreas de memória e ouvia Rennit dizer que concordava com Jones, tornando a ver um pires com uma salsicha envolta em massa folhada, ao lado de um telefone. A piedade agitava-se, mas a imaturidade lutava com ardor. O sentimento da aventura lutava com o senso comum, como se se achasse do lado da felicidade e o senso comum aliado a possíveis infortúnios, desapontamentos, revelações indesejáveis...

Era a imaturidade que o obrigava a guardar o segredo do’ número de telefone que quase reconstituíra por completo na alfaiataria de Cost. Sabia que a zona era BAT e os três primeiros algarismos 271. Só lhe escapara o último. A informação podia ser destituída de valor... ou inestimável. De qualquer modo, ele conservava-a para si. Prentice tivera a sua oportunidade e não a aproveitara. Agora era a sua vez. Queria poder vangloriar-se a Anna: «Fui eu que consegui.»

Cerca das quatro e meia da madrugada reuniu-se-lhes um jovem chamado Brothers, o qual, com o seu guarda-chuva, bigode e chapéu preto, decerto escolhera Prentice como modelo. Talvez dentro de vinte anos o retrato tivesse sido adequadamente copiado, porque de momento carecia da patina da idade - as rugas de amargura, desapontamento e resignação. Prentice com um gesto de cansaço, confiou-lhe os ossos da investigação recolhidos e ofereceu a Rowe lugar no carro que regressava a Londres. Por fim afundou-se no assento e grunhiu: «Fomos vencidos», enquanto avançavam pela estrada sulcada de poças de água banhadas pelo luar.

- Que tenciona fazer?

- Dormir. - É possível que, ao seu gosto sensível, a frase soasse demasiado egoísta, pois, sem abrir os olhos, acrescentou: Uma pessoa deve evitar a auto-importância. Para o historiador que escrever o declínio e queda do Império Britânico, dentro de quinhentos anos, este pequeno episódio nunca existiu. Haverá muitas outras causas. Você, eu e o pobre Jones nem sequer figuraremos numa nota de rodapé. Girará tudo à volta da economia, da política e de batalhas.

- Que lhe parece que fizeram a Jones?

- Duvido que venhamos a inteirar-nos. Em tempo de guerra há muitos corpos não identificáveis. Muitos corpos à espera do blitz oportuno - concluiu em voz sonolenta.

De repente, surpreendente e algo chocantemente, começou a roncar.

Regressaram a Londres com os primeiros operários. Ao longo das artérias industriais, homens e mulheres emergiam do metropolitano, enquanto indivíduos elegantes, de meia-idade, munidos de attaché-cases e de guarda-chuvas enrolados, abandonavam abrigos públicos. Em Gower Street varriam fragmentos de vidro, e um edifício fumegava aos primeiros clarões do dia, como uma vela que um madrugador retardatário se tivesse esquecido de apagar por completo. Era estranho pensar que a batalha habitual se desenrolara enquanto eles permaneciam na ilha do lago e só lhes chegava aos ouvidos o ruído das pás. Uma tabuleta obrigou-os a alterar o rumo, e uma corda atravessada na rua já exibia algumas advertências manuscritas: «Banco Barclay. É favor perguntar em [...]», «Leitaria Cornwallis. Novo endereço [...]», «Bar do Marquês [...]». Numa longa e tranquila extensão de pavimento, um polícia e um membro da Defesa Civil moviam-se em diálogo de propriedade ocioso, como couteiros nas suas terras. Um pouco adiante havia um aviso elucidativo: «Bomba que não explodiu.» Era o mesmo caminho que tinham seguido na véspera, mas achava-se agora elaborada e trivialmente modificado. Rowe reflectiu que se verificara actividade considerável em tão poucas horas - a colocação de avisos, a alteração do tráfego, o aspecto ligeiramente diferente de Londres. Reparou nas expressões animadas das pessoas, como se fosse o princípio de feriado nacional, e atribuiu o fenómeno ao facto de descobrirem que continuavam vivas.

Prentice murmurou algo ininteligível e acordou. Em seguida indicou ao motorista o endereço de um pequeno hotel perto de Hyde Park Corner - «se ainda lá estiver» - e insistiu delicadamente em escolher com o gerente o quarto de Rowe. Só depois de o ver despedir-se do carro é que este último compreendeu a finalidade da amabilidade. Ficava alojado onde a Polícia o podia localizar com facilidade; deixara-o no cacifo conveniente, para o retirar de lá quando se tornasse necessário. Se tentasse abandoná-lo, Prentice seria informado imediatamente. Aliás, o detective insistira em lhe emprestar dinheiro, cinco libras, quantia que não lhe permitia conceber largos voos.

Rowe tomou um pequeno-almoço leve. Aparentemente, a conduta do gás fora atingida, pelo que não fornecia a pressão suficiente. Não passava de um cheiro, segundo informação da empregada, insuficiente para ferver água ou fazer torradas. No entanto, havia leite, para substituir o chá, tosta, pão e compota - uma refeição substancial, atendendo às circunstâncias -, após o que ele deu uma volta pelo parque sob o sol matinal e verificou, voltando-se para trás diversas vezes, que não o seguiam. Começou a assobiar a única melodia que conhecia, assolado por uma espécie de excitação e bem-estar serenos, porque não era um assassino. Os anos esquecidos quase não o preocupavam mais do que nas primeiras semanas na clínica do Dr. Forester. Como era agradável voltar a desempenhar um papel de adulto na vida, reflectia enquanto enveredava por Bayswater em busca de uma cabina telefónica.

No hotel munira-se de várias moedas e agora dominava-o certa euforia ao introduzir as duas primeiras na caixa e principiar a marcar o número. Uma voz anunciou: «Companhia de Fermento Higiénico, às suas ordens», e ele desligou. Só então começou a aperceber-se das dificuldades que o aguardavam: não podia esperar reconhecer o cliente de Cost por meio de um sexto sentido. Tornou a accionar o marcador, e uma voz idosa articulou:

- Estou...

- Quem fala, por favor?

- Quem procura? - volveu a voz, com obstinação, e era tão idosa que perdera as características sexuais, o que tornava impossível determinar se pertencia a um homem ou a uma mulher.

- Fala da Companhia dos Telefones. - A inspiração acudiu a Rowe no momento de perplexidade, como se o cérebro a conservasse preparada para a primeira emergência. - Contactamos com todos os assinantes, depois do bombardeamento desta noite.

- Para quê?

- O sistema automático foi afectado. Uma bomba atingiu a central do bairro. É de casa de Mr. Isaacs, de Wales Road?

- Não. De Wilson.

- Está a ver? O número que marquei devia corresponder a Mr. Isaacs.

Voltou, a desligar, tão elucidado como ao princípio. Vendo bem as coisas, uma companhia de fermento poderia albergar o cliente de Cost. Podia mesmo dar-se o caso de a conversa deles ser genuína.

Mas não, era impossível, sobretudo se se recordasse das palavras pungentes: «Confesso que não vislumbro a menor esperança.» Indicara com clareza que para ele a batalha terminara.

Continuou a introduzir moedas, embora o bom senso lhe indicasse que era inútil, e a única solução consistia em divulgar o seu segredo a Prentice. Apesar disso, custava-lhe a crer que não pressentiria um indício revelador através do fio, a impressão vocal de uma vontade e violência suficientes para provocar tantas mortes: o pobre Stone asfixiado na enfermaria, Forester e Poole abatidos na escada, Cost degolado com a tesoura, Jones... A causa era decerto demasiado vasita para surgir através de uma linha telefónica sob a forma de uma voz vulgar que anunciasse: «Fala do Banco Westminster.»

Lembrou-se de súbito de que Cost não perguntara por ninguém em especial. Limitara-se a marcar um número e principiara a falar logo que tinham atendido. Isso significava que não ligara a uma firma, onde necessitaria de mandar chamar a pessoa que lhe interessava.

- Está...?

Uma voz arrancou-lhe qualquer pergunta possível da boca.

- Ah, Ernest... sabia que havias de telefonar. És uma jóia. Calculo que David te disse que Minny morreu. Foi esta noite, durante o bombardeamento. Uma coisa horrível... Ouvimo-la chamar lá de fora, mas não podíamos fazer nada, claro. Estávamos impossibilitados de abandonar o abrigo. De repente caiu uma mina... não podia ser outra coisa. Três casas foram pelos ares e no seu lugar ficou uma cratera enorme. Esta manhã não havia vestígios da Minny. David ainda acalenta uma esperança, mas compreendi logo que existia algo de elegíaco no seu miar...

Era uma história fascinante, mas Rowe tinha uma missão a cumprir, pelo que desligou.

A temperatura na cabina começava a aumentar desagradavelmente. Ele já gastara moedas no valor de um xelim e estava convencido de que nos últimos quatro números uma voz pronunciaria as palavras pelas quais ansiava. «Esquadra da Polícia de Mafeking Road.» De novo o auscultador pousado no descanso. Faltavam três números. Praticamente contra todas as probabilidades, esperava que um deles... Limpou a transpiração da fronte, que voltou imediatamente a ficar alagada. Acudiu-lhe uma apreensão repentina. A secura da garganta e o palpitar acelerado do coração advertiam-no de que aquela voz se poderia revestir de uma dimensão excessiva. Já tinham ocorrido cinco mortes... Experimentou profundo alívio, quando ouviu anunciar: «Companhia do Gás e Carvão.» Ainda estava a tempo de abandonar a cabina e confiar a tarefa a Prentice. No fundo, quem lhe garantia que a voz que procurava não era a da telefonista da Companhia de Fermento Higiénico... ou mesmo do amigo de Ernest? Mas, se recorresse a Prentice, teria dificuldade em explicar o seu silêncio durante todas aquelas inestimáveis horas. Não era um garoto irresponsável, mas sim um homem de meia-idade. Iniciara uma diligência que tinha de terminar. Não obstante, continuava a hesitar, enquanto a transpiração lhe inundava as pálpebras. Faltavam dois números - uma probabilidade de 50%. Experimentaria um e, se não lhe dissesse nada, afastar-se-ia e lavaria as mãos de tudo aquilo. Subsistia a possibilidade de os olhos e o poder de observação o terem iludido na alfaiataria de Cost. O dedo recomeçou a efectuar os movimentos familiares com relutância: BAT 271... Que algarismo marcaria a seguir? Por fim passou a mão pelo rosto, para limpar a transpiração, e completou o número.

 

O HOMEM COMPLETO

O TERMO DA VIAGEM

Devo fazê-lo e só

O Pequeno Duque

A campainha tocava sem que ninguém atendesse. Rowe imaginou os aposentos desertos em torno do pequeno aparelho, porventura de uma rapariga que trabalhava na City ou de um comerciante que de momento se encontrava na sua loja, ou ainda de um homem que saía de casa cedo para ler na Biblioteca Pública - aposentos inocentes. De qualquer modo, o som sem resposta aliviava-o. Fizera o que pudera Que continuasse a tocar.

Ou tratar-se-ia de aposentos culpados? Do domicílio de um homem que, em poucas horas, eliminara várias existências humanas. Como seria uma residência culpada? Uma casa, à semelhança de um cão, assimila algumas das características do dono. Acha-se preparada para determinados fins: conforto, beleza e conveniências. Aquela que procurava decerto se encontrava prevista para o anonimato. Não revelaria o menor segredo se a Polícia a visitasse. Não haveria obras de Tolstoi com marcas de lápis apagadas imperfeitamente, nem indícios de natureza pessoal. Conteria os artigos próprios do gosto comum: uma telefonia, alguns romances policiais, uma reprodução do girassol de Van Gogh. Rowe imaginava os pormenores com desprendimento enquanto a campainha tocava. Não existiria nada de significativo nos móveis - nenhuma carta de amor dissimulada por baixo de lenços, ou nenhum livro de cheques. A roupa interior estaria marcada? Não haveria presentes de ninguém - uma casa solitária, cujo conteúdo fora totalmente adquirido em lojas vulgares.

De súbito, uma voz conhecida, um pouco ofegante, proferiu:

- Estou... Quem fala?

Apressou-se a pousar o auscultador, lamentando que ela não estivesse longe do telefone quando ligara. Se não levasse a sua fantasia até tão longe, nunca se teria inteirado de que era o número de Anna Hilfe.

Saiu da cabina quase sem se aperceber do que fazia, consciente de que se lhe apresentavam três alternativas - a sensata e honesta consistia em informar a Polícia. A segunda resumia-se a guardar silêncio. Quanto à terceira, residia em se certificar pessoalmente. Não lhe restava a menor dúvida de que se tratava do número que procurava e que Cost marcara. Recordava-se de que ela sempre soubera o seu nome verdadeiro e - observação curiosa - declarara que era sua «obrigação» visitá-lo na clínica. Não obstante, estava persuadido de que existia uma explicação que a Polícia devia ignorar. Regressou ao hotel e subiu ao quarto munido da lista telefónica, que pediu na recepção. Aguardava-o uma tarefa fastidiosa e, na verdade, escoaram-se algumas horas antes que conseguisse localizar o número. Entretanto, sentia a vista cansada e quase lhe escapou: Mansões do Príncipe Consorte, nº 16, Battersea, nome que não lhe dizia nada, à parte o pormenor de que uma consciência culpada alugaria um apartamento mobilado. Por último reclinou-se na cama e fechou os olhos.

Passava das cinco horas da tarde quando se decidiu a actuar, e a partir de então fê-lo automaticamente. Não pensaria mais, pois nada lucraria com isso antes de a ouvir falar. Um autocarro da carreira nº 19 conduziu-o ao topo de Oakley Street e outro da nº 49 à Ponte Alberto, que atravessou sem raciocinar. Era o período da baixa-mar e o lodo acumulava-se sob os armazéns. Alguém dava de comer às gaivotas no Embankment, cena que o perturbou levemente e o obrigou a estugar o passo, ainda sem raciocinar. Os pálidos raios solares incidiam com uma tonalidade rosada nos hediondos tijolos e um cão solitário inspeccionava os recantos, em busca de comida.

- Arthur! - Um homem de boina, sobre os cabelos grisalhos desgrenhados, e de calça de ganga de membro da Defesa Civil encontrava-se à entrada de um bloco de apartamento. - Não és o Arthur? - acrescentou, hesitante

Desde o regresso de Rowe a Londres, muitas recordações haviam reaparecido - esta igreja, aquela loja, a forma como Piccadilly desembocava em Knightsbridge - e quase não se dava conta à medida que ocupavam os seus lugares como parte do conhecimento de toda uma vida. Mas havia outras que tinham de desenvolver esforços para ser admitidas - algures no seu espírito enfrentavam um inimigo empenhado em mantê-las afastadas, o que por vezes conseguia. Os cafés, esquinas e lojas revelavam-lhe um rosto familiar repentino, e ele desviava os olhos e afastava-se, como se constituíssem cenas de um acidente de estrada. O homem que acabava de se lhe dirigir pertencia a esta categoria, mas uma pessoa não se pode afastar de um ser humano como de uma loja.

- Da última vez não usavas barba. És o Arthur, hem?

- Sim. Arthur Rowe.

O homem parecia intrigado e melindrado enquanto volvia:

- Foste muito atencioso em me visitar naquela ocasião.

- Não me lembro.

- No dia do funeral. - A expressão de mágoa sobrepôs-se às outras.

- Desculpa. Sofri um acidente e perdi a memória. Só agora a começo a recuperar, aos poucos. Quem és?

- Henry... Henry Wilcox.

- E eu vim... para me incorporar num funeral?

- Sim, de minha mulher. Suponho que leste as circunstâncias no jornal. Concederam-lhe uma medalha a título póstumo. Mais tarde fiquei preocupado, porque me pediras que te aceitasse um cheque e na altura esqueci-me. Sabes como são as coisas nos funerais. Uma pessoa sente-se confusa.

- Porque é que te incomodei?

- O motivo devia ser importante. Quando voltei a recordar-me, calculei que tornarias a aparecer, mas nunca mais te vi.

- Foi aqui? - perguntou Rowe, erguendo a cabeça para observar o prédio.

- Foi.

Volveu o olhar para o portão do parque, do outro lado da rua: um homem dava de comer às gaivotas, um operário movia-se apressadamente com uma mala.

- Houve cortejo? - inquiriu, sentindo o chão oscilar um pouco debaixo dos pés.

- Compareceu todo o grupo, além da Polícia e da brigada de salvamento.

- Sim. Eu estava impossibilitado de me dirigir ao banco para levantar dinheiro. Procuravam-me por homicídio. Mas precisava de arranjar fundos para partir. Portanto, procurei-te. Não sabia do funeral. Só pensava no homicídio.

- Preocupas-te de mais - observou Henry. - O que está feito, feito está. - E dirigiu o olhar para o percurso que o cortejo seguira.

- Mas eu estava inocente. Agora, não me resta a menor dúvida. Não sou um assassino.

- Claro que não és. Nenhum dos teus amigos... amigos verdadeiros... pensaria o contrário.

- Houve muitos comentários?

- Bem, naturalmente...

- Não sabia.

Rowe orientou os pensamentos num rumo diferente: ao longo da muralha do Embankment, a sensação de amargura e o homem que dava de comer às aves, a mala... Perdeu o fio das cogitações, até que se recordou do rosto do paquete do hotel, que o conduzia por corredores intermináveis, após o que se abriu uma porta para revelar Anna. Partilharam o perigo - era a esta ideia que tinha de se apegar. Havia sempre uma explicação para tudo. Lembrou-se de que ela se referira a que lhe salvara a vida, na sequência da deflagração da bomba.

- Bem, até à próxima. Tenho de ir andando.

- Não adianta chorar a morte de uma pessoa toda a vida - sentenciou Henry. - É uma atitude mórbida.

- Pois é. Adeus.

- Adeus.

O apartamento situava-se no terceiro andar, e Rowe desejava que a escada nunca terminasse. Depois, quando tocou à campainha, acalentou a esperança de que não estivesse ninguém. Havia uma garrafa de leite vazia junto da porta do obscuro patamar, com um pedaço de papel enfiado no gargalo. Ele puxou-o e leu: «Para amanhã, meio litro, por favor.» No instante imediato, quando ainda conservava o bilhete na mão, a porta abriu-se e Anna articulou com desalento:

- És tu...

- Sim, eu.

- Sempre que a campainha tocava, receava ver-te, ao abrir.

- Porque pensaste que te encontraria?

- Por intermédio da Poilícia. O escritório está sob vigilância. Entra.

Rowe obedeceu e reconheceu que as circunstâncias em que voltava a vê-la não correspondiam às que chegara a imaginar, sob o impulso da estranha aventura. Havia um pesado constrangimento entre ambos. Quando a porta se fechou, não se sentiram sós. Dir-se-ia que todas as pessoas do conhecimento comum se achavam com eles e se exprimiam em voz baixa, o que acentuava o factor de embaraço que pairava.

- Descobri o teu endereço depois de ver os dedos de Cost marcarem o número. Telefonou-te pouco antes de se suicidar.

- É tudo tão horrível... Nunca supus que estivesses lá.

- «Não vislumbro a menor esperança» Foi isto que ele disse. Mantinham-se num pequeno vestíbulo de decoração pouco atraente, como se não merecesse a pena irem mais para diante. Era mais uma separação que um reencontro - uma separação demasiado penosa para se revestir do mínimo atractivo. Ela usava as mesmas calças azuis do hotel e ele quase se esquecera de como era baixa. Com o lenço de seda em torno do pescoço apresentava um aspecto algo enternecedor. Em volta, havia cinzeiros de bronze, diversas bugigangas, uma velha arca e um relógio de cuco suíço.

- Aquilo de ontem à noite não foi agradável - murmurou Rowe. - Também estive lá. Sabias que o Dr. Forester morreu... assim como Poole?

- Não.

- Não tens pena de que os teus amigos fossem chacinados?

- Pelo contrário. Alegro-me. - Foi nesse momento que ele começou a acalentar esperança. - Tens tudo baralhado na tua cabeça, na tua pobre cabeça - observou ela, com suavidade. - Não sabes quais são os teus amigos e os inimigos. É assim que eles actuam sempre.

- Suponho que me vigiavam na clínica de Forester, para se aperceberem de quando a memória começava a reaparecer, não é? Depois seria internado na enfermaria, como o pobre Stone.

- Tens razão e enganas-te simultaneamente - volveu ela em tom de cansaço. - Agora duvido de que consigamos esclarecer tudo por completo. É verdade que eu te vigiava por conta deles, pois não desejava que recuperasses a memória. Não queria que te magoassem. Já te lembras de tudo? - perguntou com súbita ansiedade.

- Lembro-me de muito e também aprendi muito. O suficiente para saber que não sou um assassino.

- Graças a Deus.

- Mas sabias que não era?

- Decerto. Gosto de te ver contente - acrescentou pausadamente. - É como deves estar.

- Amo-te - proferiu Rowe, com a maior ternura possível. Sabe-lo perfeitamente. Quero acreditar que és minha amiga. Onde estão as fotografias?

Uma ave pintada irrompeu do relógio e assinalou meia hora. Ele teve tempo para pensar, entre as duas tonalidades do cuco, que não tardaria a surgir mais uma noite. Também conteria horror como a precedente?

- Tem-nas ele - informou Anna, com simplicidade.

- Ele?

- Meu irmão. - Reparando no bilhete destinado ao leiteiro e que Rowe conservava na mão, prosseguiu com um sorriso: - Gostas muito de investigar, hem? A primeira vez que te vi, apareceste no escritório por causa de um bolo. Mostravas-te tão determinado em aprofundar o assunto... Pois bem, agora chegaste ao fundo.

- Recordo-me disso. Ele parecia muito empenhado em me auxiliar. Conduziu-me àquela casa...

A rapariga tirou-lhe virtualmente as palavras da boca:

- Encenou um assassínio para ti e ajudou-te a fugir. No entanto, mais tarde considerou conveniente eliminar-te. A culpa foi minha. Disseste-me que escreveras uma carta à Polícia e comuniquei-lho.

- Porquê?

- Não queria que se envolvesse em apuros só para te assustar. Nunca pensei que levasse as coisas tão longe.

- Mas estavas naquele quarto quando cheguei com a mala - salientou Rowe, que continuava a não abarcar toda a extensão dos factos. - Ias morrendo.

- Exacto. É que ele não se esquecera do meu telefonema para casa de Mrs. Bellairs. Foste tu que lhe disseste. Eu já não estava do seu lado... pelo menos contra ti. Ordenou-me que te procurasse e te convencesse a não enviar a carta. Depois sentou-se calmamente noutro quarto do hotel e aguardou.

- Mas continuas viva - observou em tom acusador.

- Sim, graças a ti. Volto mesmo a estar em liberdade condicional, mas ele não matará a irmã, a menos que seja indispensável. Chama a isso noção da família. Eu representava um perigo, apenas por tua causa. Não me encontro no meu país. Porque havia de me interessar que recuperasses a memória? Sentias-te feliz sem ela. Estava-me nas tintas para a Inglaterra. Desejo a tua felicidade, e nada mais. O pior é que não lhe escapa um pormenor.

- Não faz sentido - persistiu ele. - Porque é que continuo vivo?

- Meu irmão é económico. Como todos eles, de resto. Nunca os compreenderás se não assimilares isso. - Como se repetisse uma fórmula taxativa, a rapariga advertiu: - O máximo de terror durante um mínimo de tempo, dirigido contra o menor número possível de alvos.

Rowe sentia-se apavorado, sem saber o que fazer. Aprendia a lição ministrada à maioria das pessoas quando são muito jovens: as coisas nunca se desenrolam exactamente como desejamos. Aquilo não era uma aventura excitante, ele não desempenhava o papel de herói e subsistia a possibilidade de não se tratar de uma tragédia. De súbito recordou-se do bilhete endereçado ao leiteiro e perguntou:

- Ele vai partir?

- Vai.

- Com as fotografias, claro.

- Exacto.

- Temos de o impedir. - E o recurso ao plural continha uma significação que não deixava margem para dúvidas.

- De acordo.

- Onde está neste momento?

- Aqui.

- Aqui? - E experimentou uma sensação estranha, como se tivesse exercido pressão extraordinária numa porta e descobrisse que sempre estivera entreaberta.

- Está a dormir. - Anna inclinou a cabeça para o interior do apartamento. - Teve um dia muito cansativo com Lady Dunwoody, por causa de artigos de lã.

- Mas deve ter-nos ouvido.

- Não creio. Em geral dorme como um cepo, o que também é económico. Um sono profundo e pouco prolongado...

- Como o odeias,.. - observou Rowe, surpreendido.

- Comprometeu tudo. Tanta subtileza e inteligência, e, no fundo, só existe esse medo. É a única coisa que ele produz.

- Onde se encontra?

- Naquela porta fica a sala e a seguir o seu quarto.

- Posso telefonar?

- Não é seguro. O telefone está na sala e ele deixou a porta do quarto entreaberta.

- Qual é o seu destino?

- Obteve autorização para se deslocar à Irlanda... em serviço das Mães Livres. Não lha concederam com facilidade, mas os teus amigos intervieram com a sua influência. Lady Dunwoody foi a principal impulsionadora, sobretudo porque meu irmão se mostrou muito grato com os artigos de lã oferecidos. Segue de comboio esta noite.

Que tencionas fazer?

- Não sei. - Ele olhou em volta e reparou num pesado castiçal de bronze em cima da arca. - Ele tentou matar-me - explicou a meia voz, pegando-lhe e sopesando-o.

- Está a dormir. Seria homicídio

- Não tomarei a iniciativa.

- Costumava ser carinhoso comigo, quando esfolava os joelhos... - Ela meneou a cabeça, com uma expressão amargurada. As crianças estão sempre a esfolar os joelhos... A vida é horrível, hedionda. - Vendo-o pousar o castiçal, indicou: - Não, leva-o. Não quero que sejas molestado. Ele é apenas meu irmão - acrescentou com uma ponta de amargura. - Leva-o. Por favor.

Como Rowe não se movesse para obedecer, Anna levantou-o da arca e, por um momento, fez pensar em Lady Macbeth interpretada por uma garota vulnerável. Apetecia protegê-la do conhecimento de que aquelas coisas eram, na realidade, verdadeiras.

Em seguida indicou o caminho, movendo-se à frente com o castiçal levantado acima da cabeça, como se se tratasse de um ensaio, pois na noite de estreia a vela estaria acesa. Tudo no apartamento era repelente, excepto ela própria, o que incutia a Rowe a convicção de que não passavam ambos de estranhos naquele ambiente. O pesado mobiliário devia ter sido instalado por uma empresa e adquirido por um comprador oficial a preços de revenda, ou porventura encomendado pelo telefone - suite nº 56-A do catálogo de Outono. Somente um ramo de flores, alguns livros, um jornal e uma peúga de homem com buracos permitiam supor que viviam pessoas no apartamento. Foi a peúga que o levou a deter-se, pois parecia falar de longos serões mútuos, de duas pessoas que se conheciam desde longa data, e pensou pela primeira vez: «É o irmão dela que vai morrer.» Os espiões, à semelhança dos assassinos, eram enforcados, e neste caso não havia distinção. Ele dormia ali dentro e o patíbulo era erguido no exterior.

Atravessaram furtivamente a anónima sala, em direcção à porta entreaberta, que ela impeliu suave e silenciosamente, para que o companheiro pudesse ver. Era o gesto imemorial de uma mulher que mostra a um convidado, após o jantar, o filho adormecido.

Hilfe estava deitado de costas em cima da colcha, sem casaco, com a gola da camisa desabotoada. Achava-se profunda e completamente em paz e tão indefeso que parecia inocente. Os cabelos louros cobriam parcialmente a fronte e tinha um aspecto muito jovem. Ao vê-lo em semelhante posição, ficava-se com a impressão de que não pertencia ao mesmo mundo de Cost, degolado diante do espelho do gabinete de provas, ou de Jones, imobilizado numa camisa-de-forças. Um observador menos informado pensaria que não passava tudo de mera propaganda. O rosto, aos olhos de Rowe, parecia muito bonito, ainda mais que o da irmã, que podia ser alterado pela dor ou piedade. Naquele momento podia compreender um pouco da força, atractivo e graciosidade do niilismo - de não se preocupar com coisa alguma, não obedecer a quaisquer regras e não sentir o menor afecto. Assim, a vida tornava-se simples... Estivera a ler antes de adormecer, pois havia um livro em cima da cama e uma das mãos conservava as páginas abertas. Era como o túmulo de um jovem estudante. Curvando-se, Rowe viu o epitáfio em verso escolhido para ele:

Denn Orpheus ist's. Seine Metamorphose in dem und dem. Wir sollen uns nicht mühn um andre Namen. Ein für alle Male ist's Orpheus, wenn es singt...

Os polegares ocultavam o resto.

Dir-se-ia que ele era a única violência no mundo e que, quando dormia, havia paz em toda a parte.

De súbito, Hilfe acordou. As pessoas denunciam-se quando acordam. Umas vezes fazem-no com um grito resultante de um sonho hediondo, outras vezes voltam-se de um lado para o outro, sacodem a cabeça e afundam-na na almofada, como se receassem abandonar o sono. Ele, porém, despertou simplesmente. As pálpebras franziram-se por um momento - como as de uma criança quando a ama afasta as cortinas e a claridade inunda o quarto -, para a seguir se abrirem e encarar os dois intrusos com domínio absoluto da situação. Os seus olhos, azul-claros, abarcaram tudo com prontidão e compreenderam que não havia nada a explicar. Sorriu e Rowe surpreendeu-se a imitá-lo. Era o género de truque a que um garoto recorre subitamente, para capitular e admitir tudo, pelo que o delito parece insignificante e o rebuliço provocado absurdo. Há momentos de rendição em que se torna muito mais simples amar um inimigo do que recordar...

- As fotografias... - começou Rowe.

- As fotografias. - Desta vez, o sorriso era mais aberto. - Sim. Tenho-as. - Devia estar compenetrado de que tudo terminara, incluindo a vida, mas conservava perfeito à-vontade e até recorria a alguns circunlóquios. - Reconheça que «o levei à certa» e agora «estou feito». - Desviou os olhos para o castiçal que a irmã segurava com firmeza. - Rendo-me - acrescentou, divertido, como se se tratasse de um jogo.

- Onde estão?

- Vamos estabelecer um acordo. Façamos uma troca. - E era como se sugerisse a permuta de selos estrangeiros por caramelos de fruta.

- Não preciso trocar nada - replicou Rowe. - Você está liquidado.

- Minha irmã ama-o muito, não é? - Hilfe parecia empenhado em não encarar a situação a sério. - Suponho que não é capaz de liquidar o futuro cunhado.

- Você não hesitou em tentar matá-la.

- Bem, isso foi uma necessidade trágica. - Exibiu um sorriso de candura que fez o episódio da bomba oculta na mala parecer tão insignificante como um pouco de cera aplicado numa escada. Dir-se-ia que os acusava de falta de sentido do humor, pois só um sensaborão tomaria a sério uma ocorrência tão banal. - Sejamos pessoas civilizadas sensatas e cheguemos a um acordo. Pousa o castiçal, Anna, porque não te posso fazer mal daqui, mesmo que quisesse. - E não efectuou a menor tentativa para se levantar, como perfeitamente consciente de que podia manifestar a supremacia deitado na cama.

- Não existe base alguma para um acordo - declarou Rowe. - Quero as fotografias, e a Polícia está empenhada em lhe lançar a luva. Você não propôs condições a Stone... ou a Jones.

- Nada sei acerca disso. Não me podem responsabilizar por tudo o que os meus homens fazem. A sua atitude não é razoável, Rowe. Costuma ler poesia? Há aqui um poema que me parece apropriado à nossa situação. - Hilfe soergueu-se, levantou o livro e apressou-se a largá-lo de novo. - Nem um movimento - ordenou, empunhando uma pistola. - Como vê, ainda há matéria para negociar.

- Perguntava a mim mesmo onde a escondera você.

- Agora podemos chegar a um acordo razoável, porque estamos ambos entre a espada e a parede.

- Continuo sem vislumbrar o que tem para oferecer. Decerto não supõe que nos pode abater e alcançar a Irlanda sem novidade. Estas paredes são tão espessas como papel de música e você é conhecido como ocupante do apartamento. A Polícia estaria à sua espera no aeroporto.

- Mas, já que vou morrer, posso organizar... uma carnificina.

- Não seria económico.

Ponderou a objecção meio a sério e redarguiu com um sorriso:

- Pois não, mas não concorda que seria espectacular?

- É-me indiferente a maneira como me oponho aos seus objectivos. Ser morto pode resultar muito útil.

- Quer dizer que está a recuperar a memória?

- Não compreendo o que isso tem a ver com o assunto.

- Muito. O seu passado é, na verdade, sensacional. Analisei-o cuidadosamente, assim como Anna. Explicava tanta coisa que a princípio não compreendi quando me inteirei do que você era, por intermédio de Poole. O género de quarto em que vivia, as actividades a que se dedicava. Pertencia à categoria daqueles homens que eu julgava poder enfrentar vitoriosamente, até que perdeu a memória. As coisas desenrolaram-se de um modo um pouco diferente do previsto. Encheu-se de ilusões de grandeza, heroísmo, abnegação, patriotismo... - Hilfe fez uma pausa e exibiu novo sorriso. - Eis a proposta que lhe quero apresentar: a minha segurança em troca do seu passado. Dir-lhe-ei o que era. Sem falsidades. Fornecer-lhe-ei todas as referências, embora não me pareçam necessárias, porque o cérebro há-de indicar-lhe que não estou a inventar.

- Ele mente, Arthur - interpôs Anna. - Não lhe dês ouvidos.

- Ela não quer ouvir, hem? Isso não lhe aguça a curiosidade? Ela pretende que você seja como é, e não como foi.

- Só me interessam as fotografias - declarou Rowe.

- Pode ler informações a seu respeito nos jornais. Garanto-lhe que foi muito famoso. Ela receia que se sinta demasiado importante para lhe prestar atenção quando se inteirar.

- Se me entregar as fotografias...

- E lhe revelar o seu passado?

Hilfe parecia sentir parte da excitação de Rowe e mudou levemente de posição, o que o levou a desviar os olhos por um momento. O osso do carpo estalou no instante em que Anna o atingiu com o castiçal, e a arma soltou-se dos dedos.

- Não há necessidade de negociar com ele - disse ela, apressando-se a recolhê-la.

Entretanto, ele gemia e contorcia-se de dor, lívido como os lençóis em que se deitava, e a cor das faces da irmã não diferia muito. Por um momento, Rowe supôs que Anna ajoelharia, pousaria a cabeça dele no seu ombro e lhe restituiria a pistola.

- Anna... - balbuciou Hilfe.

- Willi - sussurrou ela, oscilando um pouco.

- Dê-me a arma - pediu Rowe.

A rapariga olhou-o como se fosse um desconhecido que não tinha lugar ali, enquanto os ouvidos se concentravam nos sons pungentes provenientes da cama. Por fim, Rowe estendeu a mão e ela retrocedeu, pelo que ficou ao lado do irmão.

- Espera - indicou. - Espera lá fora.

- Não te deixes convencer pelo seu palavreado. Lembra-te de que tentou matar-te.

No entanto, ao ver o quadro familiar na sua frente, Rowe compreendeu que as palavras soavam a falso. Dir-se-ia que possuíam uma afinidade tão intensa que qualquer deles tinha o direito de matar o outro. Tratava-se apenas de uma forma de suicídio.

- Não continues a falar, por favor - suplicou Anna. - Não adianta nada.

- Promete apenas que não o deixarás escapar.

- Prometo. - E, quando Rowe saiu, fechou a porta à chave atrás dele.

Durante um lapso de tempo prolongado, ele não conseguiu ouvir nada, excepto, a certa altura, o fechar de um armário e o tilintar de porcelana. Imaginou que ela procedia ao tratamento do pulso do irmão, o qual decerto não se achava em condições de tentar a fuga. Rowe compreendia que, se quisesse, podia telefonar a Prentice, para que a Polícia cercasse o edifício - já não ansiava pela glória: o sentimento da aventura esvaíra-se e ficara apenas a sensação da dor humana. No entanto, reconhecia-se vinculado à promessa da rapariga. Impunha-se que confiasse nela se queria que a vida continuasse.

Escoara-se um quarto de hora e a sala encontrava-se mergulhada na penumbra. Tinha soado vozes no quarto contíguo, o que o fazia sentir-se apreensivo. Conseguiria Hilfe convencê-la? Apercebeu-se de um ciúme penoso, por haver sido afastado como um estranho. Aproximou-se da janela e desviou um pouco a cortina de black-out para observar o parque. Subsistia ainda muita coisa que necessitava de recordar, e o pensamento acudiu-lhe como uma ameaça no tom dúbio de Hilfe.

A porta abriu-se e, quando largou a cortina, Rowe verificou que quase escurecera por completo. Anna avançou para ele em passos quase rígidos e anunciou:

- Pronto. Aqui tens o que pretendias.

O seu rosto quase se podia considerar hediondo, em virtude da tentativa para conter as lágrimas. Era uma fealdade que o unia a ela mais do que qualquer espécie de beleza. «Não é sermos felizes juntos que nos induz a amar», reflectiu, como se acabasse de fazer uma descoberta assombrosa, «mas sim sermos infelizes juntos.»

- Já não as queres, agora, que as obtive?

- Onde está ele? - perguntou Rowe, aceitando o pequeno rolo sem a menor sensação de triunfo.

- Não te interessa. A sua influência terminou.

- Deixaste-o partir? Tinhas prometido.

- Sim, tinha prometido.

Ela fez um pequeno movimento com os dedos e cruzou dois, e ele supôs por um momento que tencionava utilizar aquela desculpa infantil para infringir acordos.

- Porquê? - insistiu.

- Bem, tive de negociar.

- Mas ele não dispunha de qualquer moeda de troca - alegou, começando a desembrulhar o rolo cautelosamente, pois não queria expor à luz, ainda que ténue, mais do que um minúsculo fragmento. Em seguida mostrou-lho na palma da mão. - Não sei o que prometeu entregar-te, mas não é isto que nos interessa.

- Ele jurou que era o que pretendias. Como sabes que não é?

- Ignoro quantas cópias tiraram. Esta pode ser a única ou talvez haja uma dezena. No entanto, sei que existe apenas um negativo.

- E não é este? - perguntou Anna, com uma expressão de amargura.

- Não.

- Não sei o que o teu irmão possuía para negociar, mas não cumpriu a sua parte do combinado - asseverou Rowe.

- Desisto. Tudo o que faço sai torto. Procede como desejares.

- Tens de me dizer onde ele se encontra.

- Sempre supus poder ficar com ambos. Não me preocupava com o que acontecia ao mundo. Não podia ser pior do que sempre foi, e, apesar disso, o Globo, o brutal Globo, sobrevive. Mas as pessoas, tu, ele... - Anna sentou-se na cadeira mais próxima, um móvel alto que não permitia que os pés lhe chegassem ao chão, e murmurou: - Paddington, às sete e vinte. Garantiu que nunca mais voltaria. Pensei que estarias então em segurança.

- Não te preocupes. Sei cuidar de mim. - Todavia, ao fitá-la nos olhos, ele ficou com a impressão de que, na realidade, não compreendera. - Onde o terá escondido? De qualquer modo, hão-de revistá-lo no porto.

- Não sei, pois não levou nada.

- Uma bengala?

- Não, nada. Limitou-se a vestir o casaco. Nem sequer pôs o chapéu. Deve tê-lo na algibeira.

- Preciso de ir à estação.

- Porque não deixas a Polícia encarregar-se do resto?

- Quando conseguisse contactar com o detective apropriado para lhe explicar tudo, o comboio teria partido. Se não o vir na estação, telefonarei à Scotland Yard. - Rowe foi percorrido por uma dúvida. - Se ele te revelou isso, é claro que não utilizará essa via.

- Não mo revelou. Não acreditei no que me disse. Era esse o plano original. Representa a sua única esperança de sair daqui. Vendo que ele hesitava, ela sugeriu: - Porque não deixas a Polícia ir esperar o comboio à chegada? Porque pretendes encarregar-te de tudo?

- Ele podia escapar-se pelo caminho.

- Não deves ir assim. Lembra-te de que está armado, pois deixei-o levar a pistola.

De súbito, Rowe soltou uma gargalhada:

- Safa, que conseguiste embrulhar tudo!

- Quis conceder-lhe uma oportunidade.

- Não se pode fazer grande coisa com uma pistola no meio da Inglaterra, além de matar meia dúzia de inocentes. - Anna parecia tão pequena e acabrunhada que ele não logrou conservar a mínima irritação. - Não acreditas?

- Só contém uma bala, que ele não desperdiçará.

- Aguarda aqui.

- Está bem.

- Espero não demorar muito. - Verificando que ela não respondia, tentou outra frase: - A vida começará então de novo. - Viu-a sorrir sem convicção, como se fosse ele que carecia de ser confortado e tranquilizado. - Teu irmão não me matará.

- Não é disso que tenho medo.

- Então de quê?

A rapariga olhou-o com uma espécie de ternura de meia-idade, como se se tivessem apaixonado numa fase avançada da vida.

- De que fale.

- Por muito que o faça, não me convencerá a mudar de atitude - retrucou ele, encaminhando-se para a porta, mas, enquanto descia a escada, reflectia que continuava sem a compreender.

Os projectores exploravam o espaço, faixas de luz que flutuavam como nuvens ao longo da superfície do céu e o tornavam muito pequeno, ao infundirem a sensação de que era possível esquadrinhá-lo daquela maneira. Desprendia-se o cheiro activo de cozinhados das casas pelas quais ele passava, cujos ocupantes jantavam mais cedo, a fim de não se atrasarem na chegada ao abrigo. Um membro da Defesa Civil acendia uma lanterna à prova de vento à entrada de um deles, no entanto o fósforo extinguiu-se antes que o conseguisse. Não estava habituado àquela operação e parecia um pouco enervado, após demasiadas vigílias solitárias nas ruas desertas. Apetecia-lhe conversar com alguém e chegou mesmo a emitir um comentário banal, todavia Rowe seguiu o seu caminho. Não se podia deter, porque tinha pressa.

No outro lado da ponte havia um parque de táxis em que se via apenas um veículo.

- Onde quer ir? - perguntou o motorista, erguendo os olhos para o céu, em que se descortinava um balão de barragem. - Bem, vou arriscar-me. A situação não será pior lá do que aqui.

- Talvez não haja bombardeamento esta noite.

- Isso também eu queria! - E ligou o motor.

Cruzaram Sloane Square e Knightsbridge, deixaram o parque para trás e prosseguiram ao longo de Bayswater Road. Algumas pessoas estugavam o passo para recolher a casa e os autocarros rolavam rapidamente. Acercava-se o início do paraíso infernal. Diversos transeuntes chamaram o táxi do passeio e, quando a luz vermelha de um semáforo o Obrigou a parar, um homem de meia-idade e chapéu de coco chegou a abrir a porta e a fazer menção de entrar, mas deteve-se com prontidão.

- Queira desculpar. Julgava que estava livre. Vai para os lados de Paddington?

- Suba.

- Quero ver se ainda apanho o comboio das sete e vinte - proferiu o desconhecido, ofegante. - Não contava com uma oportunidade destas.

- Também sigo nele - disse Rowe.

- Falta pouco para mais um ataque.

- Pois é.

- Lançaram minas na sua zona ontem à noite? - volveu o homem, depois de percorrerem algumas centenas de metros na escuridão, cada vez mais densa.

- Creio que não.

- Três, perto da minha. São quase horas de acenderem o vermelho.

- Parece que sim.

- O amarelo está aceso há um quarto de hora - salientou, consultando o relógio, como se cronometrasse a passagem de um comboio expresso pelas estações. - Ah... aquilo parece que foi um tiro de peça. No estuário, salvo erro.

- Não ouvi nada.

- Dou-lhes mais dez minutos, quando muito - insistiu, conservando o relógio na mão, enquanto o táxi enveredava por Praed Street.

Entraram no caminho de acesso coberto e detiveram-se. Através da estação, quase às escuras, em virtude do black-out, as pessoas moviam-se apressadamente para se afastar da noite letal e subiam para as carruagens dos comboios suburbanos, segurando pequenas attaché-cases, enquanto os ferroviários postados na plataforma as observavam com ares superiores. Assolava-os o orgulho de constituírem um objectivo legítimo: o orgulho das pessoas que ficavam.

A longa composição encontrava-se na linha nº 1, junto das tabacarias encerradas, com cortinas baixadas na maioria dos compartimentos. Tratava-se de uma cena nova para Rowe e, não obstante, antiga. Bastava contemplá-la uma vez, como uma rua bombardeada, para que ocupasse o seu lugar imperceptivelmente entre as recordações. Aquilo já era a vida como a conhecera.

Era impossível ver quem se encontrava no comboio da plataforma, pois todos os compartimentos conservavam os seus segredos hermeticamente fechados. Mesmo que as cortinas não se achassem baixadas, os globos do tecto emitiam um clarão demasiado ténue para revelar quem se encontrava neles. Rowe estava convencido de que Hilfe viajaria em primeira classe. Como refugiado, vivia com dinheiro emprestado e, como amigo e confidente de Lady Dunwoody, decerto gostaria de se rodear do maior conforto.

Começou a percorrer os compartimentos de primeira classe pelo corredor. Não se apresentavam muito cheios, porque só as pessoas mais arrojadas permaneciam em Londres até tão tarde. Introduzia a cabeça em cada porta e enfrentava imediatamente olhares apreensivos de fantasmas azulados, devido à cor de que os globos estavam pintados.

Era uma composição extensa e os empregados ferroviários já tinham começado a fechar as portas exteriores antes de Rowe alcançar a última carruagem de primeira classe. Estava tão habituado ao insucesso que ficou surpreendido quando avistou Hilfe.

Não se encontrava só. Havia uma mulher idosa sentada na sua frente, que se servia dos braços dele para suporte de uma meada de lã que desenrolava com lentidão. Ele achava-se algemado de uma maneira que decerto nunca lhe ocorrera. A mão direita destacava-se, rígida, com o pulso envolto numa ligadura e, aparentemente, pequenas talas. Era uma cena insólita e, ao mesmo tempo, triste. Rowe distinguiu a protuberância na algibeira que continha a pistola, e o olhar que Hilfe lhe dirigiu não deixava transparecer desafio ou agressividade - simplesmente humilhação. Sempre tivera artes de conquistar as boas graças das damas idosas.

- Não podemos conversar aqui - observou Rowe.

- Ela não nos pode ouvir - replicou Hilfe. - É surda como uma porta.

- Boa noite - proferiu ela. - Ouvi dizer que já acenderam o amarelo.

- É verdade.

- Horrível - murmurou e recomeçou a enrolar a lã.

- Quero o negativo - anunciou Rowe.

- Anna devia tê-lo retido mais tempo. Recomendei-lhe que me desse avanço suficiente. - Com uma expressão conpungida, Hilfe acrescentou: - No fundo, teria sido melhor para ambos.

- Você ludibriou-a demasiadas vezes - volveu Rowe, que se sentou ao lado dele, enquanto a mulher continuava a enrolar a lã, imperturbável.

- Que tenciona fazer?

- Aguardar que o comboio se ponha em marcha para puxar o sinal de alarme.

De súbito, muito perto, a artilharia troou - uma, duas, três vezes - e ela ergueu os olhos, como se tivesse ouvido um ruído muito ténue penetrar no seu silêncio. Rowe introduziu a mão na algibeira de Hilfe e transferiu a pistola para a sua.

- Se querem fumar, não se preocupem comigo - indicou a mulher.

- Acho que devíamos conversar - observou Hilfe.

- Não há mais nada a dizer.

- Suponho que não lhe interessa entregar-me às autoridades sem recuperar as fotografias.

- As fotografias em si não interessam... - começou Rowe, mas inte>rrompeu-se.

Na realidade, interessavam. Quem lhe garantia que ele não as confiara já a um cúmplice? E, mesmo que fossem encontradas por um estranho, não estariam em segurança.

- Muito bem, conversaremos - acabou por aquiescer. Naquele momento, a sirene ecoou com intensidade na estação de Paddington. Ao longe, desta vez, soaram estampidos abafados, enquanto a mulher continuava a enrolar a lã, sem pestanejar. Ele lembrou-se repentinamente de que Anna manifestara receio de que o irmão falasse e apercebeu-se do súbito sorriso de Hilfe, enquanto fixava o olhar na meada, como se a vida ainda tivesse o poder de lhe proporcionar alegria selvagem íntima.

- Continuo disposto a efectuar uma troca.

- Você não tem nada para trocar - advertiu Rowe.

- Nem você. Desconhece o paradeiro das fotografias.

- Gostava de saber a que horas soarão as sirenes - articulou a mulher, enquanto Hilfe movia os pulsos para permitir que enrolasse a lã.

- Se me restituir a pistola, entrego-lhas.

- Se está em condições de mas entregar, deve tê-las consigo. Portanto, não existe razão alguma para negociar.

- Se é essa a sua ideia de vingança, não o posso impedir. Julguei apenas que não quisesse envolver Anna no assunto. Não esqueça que ela me deixou fugir.

- Estamos quase a chegar ao fim da meada - declarou a mulher.

- Talvez não a enforquem - prosseguiu Hilfe. - Tudo dependerá do que eu disser, claro. É capaz de se safar com o internamento num campo até ao final da guerra... para depois ser deportada, se vocês ganharem. Do meu ponto de vista, não passa de uma traidora - concluiu secamente.

- Dê-me as fotografias e em seguida conversaremos.

Rowe reconheceu intimamente que a palavra «conversaremos» implicava quase a capitulação e começou a imaginar o estendal de fantasias que teria de dizer a Prentice se queria salvar Anna.

A carruagem sofreu uma leve sacudidela, a mulher disse: «Até que enfim vamos partir» e inclinou-se para a frente, com a intenção de libertar as mãos de Hilfe, que comentou com uma expressão indefinível:

- Parece que se estão a divertir à grande, lá fora.

Dir-se-ia um homem atacado de uma enfermidade mortal e que se despedia dos desportos dos seus conterrâneos. Não conseguira bater o recorde da destruição. Apenas haviam morrido cinco pessoas, o que não constituía uma proeza sensacional em comparação com o que se passava à sua volta todas as noites. Sentado sob o globo azul, encontrava-se a longa distância dali - onde quer que houvesse homens que matavam, o seu espírito instalava-se em obscura afinidade.

- Entregue-mas - insistiu Rowe.

Surpreendeu-se com uma jovialidade súbita, como se Hilfe não tivesse perdido todas as esperanças - de quê? De fuga? De ulterior destruição? Pousou a mão no joelho de Rowe, num gesto de intimidade, e esclareceu:

- Farei mais do que prometi. Gostava de recuperar a memória?

- Só me interessam as fotografias.

- Aqui não. Suponho que não quer que me dispa diante de uma senhora? - Pôs-se de pé e propôs: - É preferível abandonarmos o comboio.

- Vai-se embora? - perguntou a mulher.

- O meu amigo e eu resolvemos passar a noite na cidade, para assistir ao espectáculo.

- É curioso - proferiu a senhora vagamente. - O pessoal dos comboios informa-nos sempre erradamente.

- Foi muito atenciosa - disse Hilfe, inclinando-se. - A sua amabilidade desarmou-me.

- Não se preocupe comigo. Cá me arranjarei.

Dir-se-ia que ele assumira o comando da sua própria derrota, e dirigiu-se para a plataforma com determinação, seguido’ de Rowe, como um criado. A confusão provocada pelos passageiros retardatários terminara, pelo que não dispunha de qualquer possibilidade de a aproveitar para se escapar. Através do tecto sem vidro, há muito destruído pelos bombardeamentos, eles descortinavam as pequenas estrelas vermelhas, triviais, do fogo de barragem, que se acendiam e se apagavam como fósforos. Soou um apito e o comboio principiou a mover-se com lentidão, como que sub-repticiamente. Apenas se achavam na plataforma os dois e alguns ferroviários a assistir à partida. O bar estava encerrado e um soldado embriagado vomitava livremente a um canto.

Hilfe avançou pelos degraus de acesso às instalações sanitárias, onde não se via vivalma, pois até o empregado recolhera ao abrigo. Os dois homens encontravam-se sós, com o cheiro de desinfectante, mictórios e lavatórios cinzentos e advertências sobre doenças venéreas. A aventura que Rowe chegara a imaginar em termos heróicos alcançava o termo nos lavabos.

- Que está a fazer? - perguntou, vendo Hilfe deter-se diante de um espelho e ajeitar o cabelo.

- Despeço-me.

Despiu o casaco, como se tencionasse lavar-se, e atirou-o ao companheiro, que viu, no rótulo de seda do forro, o nome do alfaiate:

Pauling and Crostwaite.

- Encontrará as fotografias no ombro - indicou Hilfe. - Precisa de um canivete?

- Não creio. - Rowe rasgou a costura, extraiu um rolo de películas de entre o chumaço, retirou o papel que o envolvia e examinou uma ponta do negativo. - Sim. É este.

- Posso reaver a pistola?

- Não prometi nada.

- Mas entrega-ma, sem dúvida.

- Não.

- Foi um truque sujo - observou Hilfe, subitamente assustado e admirado.

- Os seus são muito mais deploráveis.

- Seja sensato. Está convencido de que pretendo fugir, mas o comboio já partiu. Julga que me safava se o matasse na estação de Paddington? Duvido de que conseguisse percorrer uma centena de metros.

- Então para que quer a arma?

- Pretendo afastar-me mais do que isso - articulou em voz baixa. - Não quero ser espancado. - E inclinou-se um pouco para a frente e o espelho atrás dele revelou uma madeixa de cabelos que não alisara.

- Não costumamos espancar os prisioneiros.

- Acredita nisso? Julgam-se diferentes de nós?

- Sem dúvida.

- Pois eu não confio na diferença. Sei o que fazemos aos espiões. Julgariam que podiam obrigar-me a falar... e haviam de o conseguir. Negociemos - propôs, regressando à ideia inicial, com uma expressão que tornava difícil crer que fosse responsável por tantas mortes. - Restituir-lhe-ei a memória - salientou com ansiedade. - Não há mais ninguém que o possa fazer.

- Anna.

- Nunca se atreverá. Repare que me deixou fugir para que não lhe revelasse o seu passado. Quer que se mantenha como é agora.

- É assim tão mau?

Rowe sentia medo e uma curiosidade irresistível. Digby segredava-lhe ao ouvido que surgira o momento de poder voltar a ser um homem completo, enquanto a voz de Anna o advertia dos perigos envolvidos. Sabia que chegara o instante culminante de uma vida. Ofereciam-lhe os numerosos anos esquecidos, o fruto da experiência de duas décadas. O peito tinha de afastar as costelas, a fim de obter espaço para tudo aquilo. Olhou à sua frente e leu: «Tratamento individual entre as horas de [•••]» Na longínqua periferia do consciente, o fogo de barragem continuava a troar.

- Mau? - exclamou Hilfe, com um esgar divertido. - É tremendamente importante.

- Não lhe posso entregar a pistola - declarou Rowe, meneando a cabeça tristemente.

De repente, o outro começou a rir: uma hilariedade nimbada de histeria e ódio.

- Estava a proporcionar-lhe uma oportunidade. Se ma devolvesse, talvez me compadecesse de si. Ficar-lhe-ia grato. Podia mesmo ter metido uma bala na cabeça. Agora - inclinou a cabeça várias vezes diante do espelho- agora, vou elucidá-lo de borla.

- Não me interessa - replicou Rowe e voltou-lhe as costas. Um homem de pequena estatura e chapéu castanho cheio de manchas surgiu à entrada e encaminhou-se para um dos mictórios. O chapéu quase alcançava as orelhas e dava a impressão de que não lhe pertencia.

- Uma noite dos diabos - resmungou.

Era pálido e exibia uma expressão de repulsa. No momento em que Rowe alcançava os primeiros degraus da saída, uma bomba tombou pesadamente, impelindo o ar à sua frente como uma locomotiva. O recém-chegado apressou-se a puxar o fecho da braguilha e agachou-se. Hilfe sentou-se na borda da bacia do lavatório e exibiu um sorriso de nostalgia, como se ouvisse a voz de um amigo que se afastava para sempre. Rowe conservavam imóvel no primeiro degrau, na expectativa, enquanto o expresso prosseguia a sua marcha irresistível e o homem se agachava ainda mais, junto do mictório. O som começou a diminuir de intensidade e, em seguida, o chão oscilou levemente sob os seus pés em resultado da explosão. Voltou a estabelecer-se silêncio, alterado apenas pela queda de caliça nos degraus. Quase imediatamente, uma segunda bomba iniciou a trajectória destruidora. Os três homens aguardaram em atitudes fotográficas fixas: sentado, agachado ou de pé. O novo projéctil não poderia deflagrar mais perto sem os destruir. Por fim, também passou, diminuiu de intensidade e explodiu um pouco mais longe.

- Oxalá parassem com isso - grunhiu o homem de chapéu castanho.

Começou a jorrar água e desinfectante nos mictórios, enquanto pairava uma nuvem de pó sobre os degraus e um cheiro metálico quente se sobrepunha ao de amoníaco.

- Aonde vai? - perguntou Hilfe, vendo Rowe principiar a subir a escada. - À Polícia? - gritou, levantando-se do lavatório em que se sentara. - Não pode ir ainda... pelo menos sem se elucidar acerca da sua mulher.

- Minha mulher? - Rowe voltou a descer, reconhecendo que não se podia esquivar ao inevitável. Os anos perdidos aguardavam-no naquelas instalações sanitárias. - Sou casado?

- Foi casado. Não começa a recordar-se? Envenenou-a. À sua Alice.

- Que noite infernal... - resmungou o homem de chapéu castanho, que só tinha ouvidos para o bombardeamento.

- Foi julgado por homicídio e enviado para um hospital de alienados. Encontrará tudo descrito nos jornais. Posso indicar-lhe as datas...

O homem de chapéu castanho virou-se repentinamente para eles e, estendendo as mãos para os lados, balbuciou num tom embargado pelas lágrimas:

- Conseguirei chegar a Wimbledon?

Um clarão branco surgiu no exterior, por entre o pó, e, através do tecto sem vidros da estação, o fulgor dos projectores penetrou admiravelmente.

Não era a primeira experiência de bombardeamentos que Rowe conhecia. Ouviu Mrs. Purvis descer a escada com a roupa da cama, a baía de Nápoles encontrava-se dependurada na parede e o volume de A Velha Loja de Curiosidades na estante. Guilford Street estendia-lhe os braços decrépitos para o acolher e ele voltava a encontrar-se em casa. «Que destruirá esta bomba?», reflectia. «Com um pouco de sorte, a florista perto de Marble Arch talvez desapareça, ou o bar em Adelaide Crescent, ou a esquina de Quebec Street, onde eu costumava esperar durante muitas horas, muitíssimas horas» Na verdade, ainda restava muita coisa para destruir antes que surgisse a paz.

- Agora vá procurar Anna - articulou uma voz, pondo termo às cogitações.

Regressou à realidade e vislumbrou um homem que exibia uma expressão divertida, junto dos lavatórios.

- Ela está esperançada em que nunca se recorde disso.

Rowe lembrou-se de um rato morto e de um polícia e, olhando em volta, observou a horrível expressão de piedade desenhada em todos os rostos do superlotado tribunal. A cabeça do juiz achava-se inclinada para a frente, mas ele conseguia ler piedade nos ossudos dedos que se moviam em torno de uma Eversharp. Rowe desejava pedir-lhes que não se compadecessem dele, porque a compaixão era cruel, destruía. O amor não era sólido e estável quando a compaixão espreitava.

- Anna... - recomeçou a voz, enquanto outra, na periferia do seu consciente, choramingava:

- E não quis eu apanhar o comboio das seis e um quarto... O horrível processo de ligação fora desencadeado. A sua igreja ensinara-lhe outrora o valor da penitência, todavia esta constituía um valor apenas para si próprio. Afigurava-se-lhe não existir sacrifício algum susceptível de atenuar o efeito da morte. Os mortos achavam-se fora do alcance dos culpados. Ele não estava interessado em salvar a alma.

- Que tenciona fazer? - inquiriu uma voz.

O seu cérebro oscilava na longa viagem, como se ele avançasse por um longo corredor em direcção a um homem chamado Digby muito parecido com ele e, não obstante, integrado em recordações muito diferentes. Distinguia-lhe a voz, que dizia: «Fecha os olhos...» Havia salas cheias de flores, o som de água corrente, e Anna sentava-se a seu lado, preocupada, atenta, em defesa da sua ignorância.

- Claro que tens um irmão - proferia a voz dele. - Recordo-me.

- Está a acalmar - dizia outra voz. - Não acham que o pior já passou?

- Que tenciona fazer?

Era como uma daquelas imagens ilusórias de uma revista infantil: uma pessoa fixa-a com insistência e acaba por ver outra coisa muito diferente da inicial - um vaso de flores transforma-se nos contornos de vários rostos. Depois, os dois assuntos parecem suceder-se com intermitências irregulares. De súbito, com a maior clareza, Rowe viu Hilfe deitado em cima da colcha da cama, profundamente adormecido - o revestimento gracioso de um homem, privado de toda a violência. Era o irmão de Anna.

Por fim aproximou-se dos lavatórios e, num tom que o homem de chapéu castanho não podia ouvir, assentiu:

- Está bem. Pode ficar com ela. - E passou a pistola rapidamente para a mão de Hilfe.

- Acho que me vou arriscar - decidiu a voz atrás dele. - Que lhes parece?

- Arrisque-se, arrisque-se - replicou Rowe, com brusquidão.

- Então, boa noite.

Soaram passos na escada e voltou a estabelecer-se silêncio.

- É claro que eu agora podia matá-lo - advertiu Hilfe. - Mas para quê? No fundo, fazia-lhe um favor e ficava à mercê dos seus verdugos. Mas, como o odeio...

- Sim?

Rowe não pensava no outro, pois os seus pensamentos oscilavam entre duas pessoas que estimava e lhe mereciam compaixão, e afigurava-se-lhe que destruíra ambas.

- Corria tudo sobre rodas, até que você apareceu - volveu Hilfe. - Porque se lembrou de mandar ler a sina? Não tinha futuro nenhum.

- Pois não.

Agora, Rowe evocava o arraial com nitidez. Recordava-se de contornar a vedação e ouvir a música, enquanto lhe acudiam rememorações de um período da vida marcado pela inocência... Mrs. Bellairs achava-se sentada a uma mesa, numa barraca, atrás de uma cortina...

- E foi logo acertar com as palavras apropriadas. «Deixe lá o passado. Concentre-se antes no futuro.»

E Sinclair também se encontrava lá. Lembrou-se, com uma sensação de responsabilidade, do velho carro à entrada da clínica, no qual o clérigo se afastara por indicação de Prentice. Provavelmente, também possuía uma cópia das fotografias. Impunha-se, pois, que procurasse o telefone mais próximo para prevenir o detective.

- Depois, para cúmulo, a atitude de Anna. Por que raio se apaixonaria por si...?

- Onde vai? - perguntou em tom incisivo.

- Não me pode conceder cinco minutos?

- Não. Não é possível.

Rowe reflectiu que o processo fora completado; era aquilo por que Digby ansiara - um homem completo. O seu cérebro continha agora aquilo que sempre conhecera.

Willi Hilfe emitiu um som estranho, como um vómito, e moveu-se apressadamente em direcção a um dos cubículos, com a mão ligada estendida para a frente. O chão, de pedra, estava escorregadio e ele resvalou, mas recuperou o equilíbrio com prontidão. Fez menção de impelir uma das portas, que não cedeu, por se achar fechada à chave, como era hábito. Em seguida pareceu não saber o que fazer: dir-se-ia que necessitava imperiosamente de se refugiar do outro lado daquela porta, mergulhar num buraco que servisse de esconderijo. Por fim voltou-se para trás e suplicou:

- Dê-me uma moeda, por favor.

Como se aguardassem aquela deixa, as sirenes principiaram a soar para anunciar o termo do bombardeamento. Os gemidos, que agora pareciam de alívio, provinham de todas as direcções, como se o solo das instalações sanitárias uivasse sob os pés dos dois homens. O odor de amoníaco acudiu às narinas de Rowe como algo evocado de um sonho. O rosto contraído de Hilfe implorava-lhe piedade.

Piedade mais uma vez. Começou a estender a mão para lhe entregar a moeda e, de repente, atirou-lha, após o que principiou a subir a escada.

Ouviu a detonação antes de chegar ao último degrau, mas não retrocedeu. Preferia que fossem outros a encontrar o corpo.

Uma pessoa pode regressar a casa após um ano de ausência e a porta fecha-se imediatamente, como se nunca tivesse estado fora. Ou pode voltar transcorridas escassas horas e encontrar tudo tão modificado que a faz sentir-se um estranho.

Aquilo, sabia-o agora sem margem para dúvidas, não era a sua casa. Esta situava-se em Guilford Street. Rowe acalentara a esperança de que haveria paz onde quer que Anna estivesse. No entanto, ao subir a escada pela segunda vez, compreendeu que não tornaria a haver paz enquanto vivessem.

O percurso da estação de Paddmgton para Battersea proporciona tempo suficiente para reflexão. Ele sabia o que tinha a fazer muito antes de começar a subir a escada. Acudiu-lhe ao espírito uma frase de Johns acerca do Ministério do Medo e admitiu que passara a fazer parte do seu quadro permanente. Mas não se tratava do pequeno ministério a que se referira, com objectivos limitados, como ganhar uma guerra ou mudar uma constituição. Era um ministério tão vasto como a vida, ao qual todos os que amavam pertenciam. Quem amava tinha medo. Digby descurara esse pormenor, cheio de esperança entre as flores e os exemplares do Tatler.

A porta encontrava-se aberta como ele a deixara e ocorreu-lhe, como uma remota esperança, que ela se tivesse aventurado a sair durante o bombardeamento e estivesse perdido para sempre. Quem amava uma mulher não podia esperar que ela unisse o seu destino ao de um assassino para toda a vida.

No entanto, achava-se em casa - não onde Rowe a deixara, mas sim no quarto em que tinham encontrado Hilfe adormecido. Estava deitada na cama, de bruços, com os punhos cerrados.

- Anna...

Ela voltou a cabeça na almofada, o que revelou que chorara, e o rosto apresentava um ar de desespero, como o de uma criança. Rowe sentiu um amor enorme por ela, uma ternura infinita, a necessidade de a proteger por qualquer preço. Ela quisera-o inocente e feliz... amara Digby... Portanto, ele tinha de lhe dar o que ela desejava.

- Teu irmão morreu - informou num murmúrio. - Suicidou-se.

A expressão dela, porém, não se alterou, como se o que acabava de ouvir carecesse de significado - toda a violência, impiedade e juventude se haviam extinguido sem que ela julgasse o facto merecedor da mínima atenção. Ao invés, perguntou com ansiedade:

- Que te disse?

- Expirou antes de me poder aproximar. Assim que me viu, compreendeu que estava tudo terminado.

A ansiedade dissipou-se, subsistindo apenas o ar tenso que ele notara antes - de alguém permanentemente vigilante para o proteger. Rowe sentou-se na borda da cama e pousou-lhe a mão no ombro.

- Minha querida... Nem imaginas como te amo...

Comprometia ambos numa vida inteira de mentiras, mas só ele se achava consciente disso.

- Eu também te amo... Eu também...

Conservaram-se imóveis por longos minutos, sem proferir uma palavra. Encontravam-se no limiar da sua provação, à semelhança de dois exploradores que avistavam finalmente, do topo da montanha, a vasta planície perigosa. Necessitariam de caminhar com prudência ao longo da vida, só falando depois de pensar duas vezes. Teriam de se vigiar como inimigos, por se amarem tanto. Jamais saberiam o que representava não recearem ser surpreendidos em falso. Acudiu ao pensamento de Rowe que, no fundo, talvez uma pessoa se pudesse reconciliar com os mortos, se sofresse o suficiente pelos vivos.

Aventurou uma frase:

- Sinto-me tão feliz, minha querida.

E escutou com ternura infinita a resposta pronta e cautelosa dela:

- Eu também.

Afigurou-se-lhe que, em última análise, era possível exagerar o valor da felicidade...

 

                                                                                            Graham Greene  

 

                      

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