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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MISTÉRIO DA COROA IMPERIAL / C.H.Cony & Anna Lee
O MISTÉRIO DA COROA IMPERIAL / C.H.Cony & Anna Lee

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Carol olhou em volta. Seu coração bateu mais forte:"Será que me dei mal outra vez?"

Quando decidiu descer a serra de Petrópolis a pé, com as amigas Duda e Paulinha, não podia imaginar que entraria numa nova embrulhada.

A sugestão do passeio fora de Regina, a amiga de Marta, sua mãe, que gostava de novidades, escrava de tudo o que en­trava em moda, era ecologista, esotérica (leitora voraz de Paulo Coelho), não comia carne vermelha, fazia aeróbica e, além de curtir florais de Bach e comida japonesa, aparecera com uma porção de tatuagens pelo corpo todo. Era simpá­tica, boa praça, todos a adoravam.

Regina garantiu que caminhar no meio da mata era exce­lente fonte de energia e uma ótima opção para aquele feriado longo e meio sacai da Semana Santa. E como era solidária, cheia de iniciativas, havia providenciado tudo. Desde o lanche que preparara na véspera até o guia do passeio, que ela apresentou como Pedro, dizendo que era um cara bacana, e seu conhecido recente.

No entanto, ela não aparecera.

Quem apareceu foi o guia. Ao chegar à casa do pai de Carol, em Correas, onde as três amigas esperavam pelo passeio, limi­tou-se a dizer que Regina tivera um mal-estar durante a noite e preferira ficar descansando na casa da prima, em Araras.

Carol estranhou. Por que Regina não telefonara? Não era do feitio dela mandar recados. E, sendo a responsável pelo passeio, melhor seria se cancelassem a descida pela mata e fossem visitar a amiga de sua mãe, que gostaria daquela pro­va de carinho.

O guia foi definitivamente contra:

- É apenas uma indisposição - disse Pedro. - Ela precisa apenas de descanso. Tem muita gente lá para cuidar dela.

Carol não ficou totalmente convencida, mas acabou ceden­do aos apelos das amigas, que, afinal, estavam a fim de um programa diferente.

Na primeira parte do passeio, Carol descobriu a razão do "mal-estar" de Regina: o terreno era íngreme, coberto de fo­lhas secas e limo. Tudo muito bonito, é certo, para três adoles­centes como elas, mas um convite permanente para um escorregão, uma pisada em falso.

"Vai ver que, depois de ter planejado a excursão, ela se lembrou de que a caminhada não era uma fonte assim tão boa de energia e inventou um mal-estar para cair fora", pensou Carol.

Preferiu não comentar nada. Até porque, passado o trecho inicial, o chão ficou menos úmido e escorregadio. Decidiu apro­veitar a caminhada.

Foi então que Pedro avisou que havia uma clareira a alguns metros de onde estavam, com uma cachoeira e uma vista maravilhosa do Rio, a distância. Sugeriu que fossem até lá.

Duda e Paulinha não resistiram ao convite, mas Carol pre­feriu sentar-se junto de uma árvore: queria descansar e ali espe­raria por elas. Uma desculpa para ficar sozinha. Gostava das amigas, mas a convivência em tempo integral, como no caso daquele feriadão, às vezes, a incomodava.

E estava realmente cansada, tanto que acabou cochilando. Quando acordou, deu-se conta de que começava a entardecer. Por entre a vegetação menos cerrada, viu pedaços do céu cujo azul rapidamente se manchava de vermelho. Não sabia se ficava feliz ou preocupada. O espetáculo era bonito, mas anuncia­va o fim do dia. Logo a noite cairia. Sentiu um calafrio ao imaginar-se ali, sozinha, na floresta, em plena noite.

"Onde se meteram eles?", a pergunta quase lhe saiu em voz alta.

O tempo passava, agora, mais depressa. Pedro não aparecia nem as meninas. Impossível que a tivessem esquecido. E quando a noite caísse?

Bem, ainda não era caso para desesperar. Certamente, dali a pouco as amigas apareceriam com o guia e, em meia hora, estariam na estrada, dentro do carro, voltando para a casa do pai em Correas.

Mesmo assim, achou que não era conveniente ficar para­da, esperando que o grupo aparecesse. Talvez tivessem se distraído e esquecido do local onde a haviam deixado. E tam­bém deveriam estar preocupados em achá-la.

Levantou-se e começou a chamar as garotas:

- Duda! Paulinha!

Gritou várias vezes na direção por onde as meninas e o guia haviam seguido.

Nenhuma resposta. Tornou a sentar desanimada, fazendo já um certo esforço para não cair em desespero.

Súbito, um ruído de passos amassando as folhas secas do chão fez com que suspirasse aliviada. Virou-se, esperando avistar as amigas.

Os passos não vinham de onde imaginava. Não teve tempo de ficar assustada. Sentiu que alguém a segurava pelo ombro.

- Ué! Você?! Onde estão as meninas?

- Fique quietinha, garota! - respondeu o guia, que era o mesmo Pedro, mas parecia outro homem. - Venha comigo!

Só então Carol estremeceu. Estava diante de um bandido, um tipo como os que já conhecera meses atrás, quando fora seqüestrada pelo Homem de Terno Branco.1

 

1 A história está contada em O Mistério das Aranhas Verdes, primeiro livro da série.

 

Quando o homem finalmente parou, Carol viu-se à mar­gem de um caminho de terra, estreito e deserto, a alguns me­tros de uma Van esverdeada e imunda, que, de marcha à ré, aproximou-se e parou diante dela.

O homem gordo que ia ao volante virou-se para abrir a porta de trás e nem olhou para ela. Empurrada com violência, Carol estatelou-se no banco traseiro. Só então percebeu que, a seu lado, encolhidas como animaizinhos indefesos e absoluta­mente aterrorizadas, ali estavam as duas amigas.

Paulinha ainda conseguia manter os olhos abertos, onde se refletia o espanto misturado com o pavor. Duda soluçava baixinho, o rosto enterrado no ombro de Paulinha, que teve ânimo para esboçar um sorriso ao avistar Carol, pensando que a amiga traria a salvação, o fim daquele pesadelo.

- Agora, depressa, temos de chegar antes de escurecer - ordenou uma voz no fundo do carro.

Carol voltou-se e viu um rapaz magro que parecia ser o chefe dos outros dois. Estranhamente, sentiu que já não tinha tanto medo como antes, quando era arrastada pelo meio do mato, presa à mão do guia. Mal se viu dentro da Van, ao lado de suas amigas, compreendeu que não se tratava de nenhum pesa­delo, tampouco de uma brincadeira de mau gosto.

Tinha certeza de que estava correndo perigo, e agora não interessava como e por que caíra naquela emboscada. O importante era não se desesperar, começar imediatamente a agir para arranjar um meio de salvar a própria pele e a das amigas.

"Não posso acreditar. Encrencas, novamente!", pensou Ca­rol, preocupada em não entrar em pânico. Não tinha procurado se meter em nenhuma aventura, como da vez anterior. Apenas aceitara a sugestão de Regina: descer a serra de Petrópolis por uma trilha antiga, ainda do tempo do Império, e em absoluta segurança, com um guia profissional que conhecia bem a região.

No entanto, ali estava ela, no meio do mato, nas mãos de um desconhecido, que, apesar de se dizer amigo de Regina, comportava-se como os bandidos que conhecera durante o episódio das Aranhas Verdes.

Sem lhe dar tempo para qualquer reação, o homem tomou seus pulsos e os juntou em uma só de suas mãos enormes, cu­jos dedos fecharam-se como algemas.

- Ei! O que que há? - berrou Carol, procurando se libertar. Sem responder, o homem começou a caminhar cada vez mais depressa. Carol foi arrastada montanha abaixo e estava a tal ponto assustada que nem sentia os galhos secos que lhe arranhavam as pernas e o rosto.

Não parava de reclamar e de se debater. Tudo aquilo era absurdo. Um passeio inocente como aquele não podia acabar num seqüestro, num ato de força.

- Onde estão minhas amigas? Para onde está me levando? - gritava ela, sem perder a esperança de que tudo aquilo não passasse de alguma brincadeira de mau gosto, que terminaria quando reencontrasse Duda, Paulinha e a Blazer azul, com a qual o guia fora buscá-las na casa do pai.

Quando o homem finalmente parou, Carol viu-se à mar­gem de um caminho de terra, estreito e deserto, a alguns me­tros de uma Van esverdeada e imunda, que, de marcha à ré, aproximou-se e parou diante dela.

O homem gordo que ia ao volante virou-se para abrir a porta de trás e nem olhou para ela. Empurrada com violência, Carol estatelou-se no banco traseiro. Só então percebeu que, a seu lado, encolhidas como animaizinhos indefesos e absoluta­mente aterrorizadas, ali estavam as duas amigas.

Paulinha ainda conseguia manter os olhos abertos, onde se refletia o espanto misturado com o pavor. Duda soluçava baixinho, o rosto enterrado no ombro de Paulinha, que teve ânimo para esboçar um sorriso ao avistar Carol, pensando que a amiga traria a salvação, o fim daquele pesadelo.

- Agora, depressa, temos de chegar antes de escurecer - ordenou uma voz no fundo do carro.

Carol voltou-se e viu um rapaz magro que parecia ser o chefe dos outros dois. Estranhamente, sentiu que já não tinha tanto medo como antes, quando era arrastada pelo meio do mato, presa à mão do guia. Mal se viu dentro da Van, ao lado de suas amigas, compreendeu que não se tratava de nenhum pesa­delo, tampouco de uma brincadeira de mau gosto.

Tinha certeza de que estava correndo perigo, e agora não interessava como e por que caíra naquela emboscada. O importante era não se desesperar, começar imediatamente a agir para arranjar um meio de salvar a própria pele e a das amigas.

Encarou Pedro, que viajava a seu lado, e firmou a voz:

- Então você é amigo da Regina! Um guia profissional. Pois isso não vai ficar assim! Vocês vão se dar mal comigo!

Os três homens se entreolharam, mas nada responderam. Encorajada pela atitude de Carol, Duda também arriscou um protesto. Inclinou-se para o falso guia e disse com a voz mais ameaçadora de que era capaz:

- O pai dela vai avisar a polícia e aí vocês vão ver! Pedro não gostou das palavras da garota, que até então pa­recia submissa. Respondeu friamente:

- Cala a boca! O chefe recomendou que tratássemos bem apenas essa aí. Você pode levar porrada se me fizer perder a paciência!

Carol não compreendeu por que o homem havia aponta­do para ela. Então o chefe dos bandidos a conhecia? Como? De onde? Deveria aproveitar o privilégio para defender a amiga, que voltara a tremer de medo?

A estradinha esburacada desembocou numa pista asfaltada que Carol tentou reconhecer. Mas o homem que viajava ao fun­do do carro ordenou:

- Encosta ali naquela curva. A partir daqui, as garotas não apreciarão mais a paisagem - disse ironicamente, retirando de uma sacola algumas tiras de pano grosso e escuro, com as quais mandou o falso guia cobrir os olhos das meninas.

Na prática, a medida não piorava a situação, mas, com exceção de Carol, as meninas perderam o pouco de resistência que lhes restava. Começaram a chorar baixinho, entregando os pontos.

Carol precisava fazer alguma coisa para impedir que as amigas caíssem em desespero:

- Calma, minha gente! Esses caras aí não são de nada! Já vi bandidos mais perigosos entrarem pelo cano!

Não era fácil tranqüilizar as duas amigas apavoradas que só conheciam situações assim nos filmes policiais da TV. Carol percebeu então que, por enquanto, nada poderia fazer por elas. Pior: nada podia fazer por si mesma.

Reclinando a cabeça para trás do banco, decidiu apro­veitar o silêncio que se fez no interior da Van. As amigas haviam parado de chorar. Os bandidos deviam estar distraí­dos, seguros de que nenhuma das três tentaria fugir com os olhos vendados.

Como pensar numa fuga?

Era cedo para isso. Primeiro, precisava rememorar seus últi­mos passos, relembrar como tudo aquilo começara. Com a experiência adquirida no caso das Aranhas Verdes, sabia que a pista verdadeira estava sempre ligada aos primeiros momen­tos do crime.

Sentiu um arrepio ao pensar na palavra crime.

 

Na segunda-feira daquela semana, como sempre acontecia às vésperas de feriados em que o pai insistia em levá-la para Correas, Carol teve uma discussão com ele.

Antes de ir para o trabalho, Jorge passara na casa da ex-mulher para combinar o programa. Por experiência, sabia que era mais difícil convencer Carol pelo telefone.

Ela disse ao pai que não queria ir, não gostava da nova namorada que ele arranjara, nem era por solidariedade à mãe, era birra mesmo. Tampouco apreciava os amigos que Jorge convidava para a casa. E, ainda por cima, nem o pai nem a mãe consentiam que ela levasse Fred, seu namorado, para passar dias sob o mesmo teto. Coisa de outros tempos, de repressão e preconceito.

Algumas vezes, a mãe até arranjava uma desculpa e a livra­va daqueles feriadões em Correas. Desta vez não teve jeito. Flavinho, o irmão mais novo, tinha arranjado uma viagem para Angra dos Reis com um amigo da escola.

Sobrou para ela.

Depois de muito reclamar, conseguiu a permissão do pai para levar duas amigas e não apenas uma, como de costume. Usava sempre a desculpa de que mais de uma garota em casa, além da filha, era bagunça na certa.

Carol acabou aceitando a idéia. Mesmo assim, passou o resto do dia emburrada. Só melhorou um pouco quando Regi­na apareceu na hora do jantar. Na quinta-feira, a amiga de sua mãe iria para Araras passar o feriadão na casa de uma prima, com um amigo recente, que parecia estar dando em cima dela, um rapaz muito instruído, que trabalhava numa agência de turismo, preferencialmente com estrangeiros.

- Vamos estar perto, vocês em Correas, eu em Araras, com Pedro... - explicou Regina. - Ele é guia profissional, tem um carro espaçoso, uma Blazer, com a qual atende os clientes. Conhece bem a região e, assim, vai poder mostrar coisas legais para a gente. Ele me falou numa trilha do tempo do Império, que era usada até por Dom Pedro II e pela corte. Vamos reservar um dia para esse passeio. Na ida, podemos parar em Petrópolis, visitar o museu e, no fim do dia, deixamos vocês na casa do seu pai, em Correas.

Carol aceitou. Uma trilha no meio da mata compensava a visita a um museu. Em companhia das amigas mais chegadas, o passeio tornaria o feriadão menos chato.

Só não imaginou o quanto.

 

Carol tinha motivos para estar de péssimo humor naquela segunda-feira. Não foi nada fácil sair da cama às 8 horas, enxotada pela mãe, avisando que o pai a esperava na sala.

Pretendia dormir pelo menos até as onze. Chegara tarde na noite anterior e, além do mais, queria convencer a mãe de deixá-la matar aula naquele e nos próximos dias. Afinal, na quinta-feira começaria o feriadão da Semana Santa e a maio­ria dos alunos já tinha viajado desde a sexta-feira anterior. Por que iria às aulas numa semana praticamente morta?

Marta adivinhou sua preguiça:

- Quem mandou ficar até tarde na rua ontem? - disse ela, aproveitando a ocasião para reclamar mais uma vez da filha, que chegara depois de uma da manhã. - Levante-se e vá falar com seu pai agora!

Carol fora ao cinema com Fred, deram uma volta pelo Baixo Gávea, encontraram conhecidos e quando perceberam já era quase madrugada. Com raras exceções, Carol preferia convi­ver com os amigos de Fred, na faixa dos 17,18 anos. Não tinha paciência para o papo de meninas com menos idade, com ida­de que, afinal, era a sua: 13 para 14 anos.

Sonolenta, diante do espelho, escovando os dentes, ainda teve esperança de convencer o pai a deixá-la ficar no Rio du­rante o feriadão.

Não conseguiu.

Carol fez o que pôde para atrasar-se naquela segunda-feira.

Inventou uma pesquisa de última hora, ficou horas na Internet, e demorou mais do que nunca no banho. Quando se sentou à mesa para almoçar, faltava menos de meia hora para o início das aulas.

A mãe decidiu levá-la de carro, coisa que há muito não fa­zia. Chegou ainda a tempo para a primeira aula do dia, mas o professor havia faltado. Ao ser avisada pelo porteiro, olhou para Marta com cara de "não te disse que não valia a pena" e atra­vessou o portão. Depois, pensou melhor. Pelo menos ficava li­vre da aula de Matemática.

Meio vazio, o colégio parecia um cemitério desativado. Os 50 minutos que a separavam da segunda aula prometiam ser arrastados.

Carol atravessou o pátio ensolarado e deserto. Era uma oportunidade para ficar sozinha por algum tempo. Depois que desvendara o mistério das Aranhas Verdes, esses momentos de solidão ficaram raros. Era popular no colégio, aparecera diversas vezes na TV, nos jornais, ganhara uma fama que às vezes a irritava. De Carol da 7a série, passara a ser chamada de "Carol 007".

- Matando aula?

Voltou-se com má vontade, mas sorriu ao reconhecer Duda. Duda.

A amiga inseparável até o começo do seu namoro com Fred. Também filha de pais separados, com a mesma idade, o mes­mo corpo desenvolvido, mas com uma carência quase doentia de afeto. Conheciam-se há anos. E juraram que seriam amigas toda a vida, acontecesse o que acontecesse. Mas quando aconteceu Fred na vida de Carol, a amiga se ressentiu, tornou-se possessiva. Embora normal o afastamento das amizades quando surge o primeiro namoro, no caso de Duda fora diferente. No início, a amiga fazia de tudo para não deixá-la sozinha com Fred. Aparecia nas festas, na praia, no cinema ou em qualquer outro lugar onde eles estivessem. Naturalmente, Duda via em Fred o rival que lhe roubara a melhor amiga. Carol procurou entendê-la. Com o tempo, tudo se acertaria.

Depois de alguns meses, Duda parou de persegui-los, mas não perdia uma oportunidade de criticar Fred. Carol levou a convivência com a amiga até onde pôde, até que percebeu que ela estava obcecada em separá-la do namorado.

Percebia que Duda se tornara dependente dela. Nada fa­zia sem antes consultá-la. Não era capaz de comprar um par de sapatos se ela não estivesse perto e aprovasse a escolha. E as roupas que pedia emprestado? Como gostava do que era dela! Até o perfume que usava era o mesmo da amiga: Carolina Herrera.

Então, Carol decidiu se afastar. Não atendia aos telefone­mas de Duda e sempre arranjava uma desculpa para não ficar perto dela durante o recreio.

No entanto respirou aliviada ao ver a amiga. Ela era uma das poucas pessoas que gostaria de encontrar naquele momento.

Matando aula, eu? Que nada! Antes fosse! O professor faltou. Estou com horário livre. E você?

Não pude entrar na sala, cheguei atrasada. Vamos tomar uma coca?

Carol aceitou o convite, certa de que assim poderia esque­cer os aborrecimentos da manhã e, quem sabe, reaproximar-se de Duda. Mal deram os primeiros passos, esbarraram com Paulinha, que pelo jeito trazia novidades:

- Oi, Carol! Estava mesmo te procurando! Já viu o cartaz no quadro de aviso do segundo andar?

Não.

Vamos até lá! - pediu a menina, puxando a outra pela mão.

- Calma! Que desespero é esse? - protestou Duda, que não pretendia renunciar à coca-cola. - Mais tarde a gente vê isso.

- Não! Agora fiquei curiosa! Vamos lá!

Duda concordou, e as duas seguiram Paulinha, escada acima, até o quadro de avisos.

Um cartaz com letras enormes avisava que no sábado ha­veria uma festa à fantasia em Petrópolis, por conta do Sábado de Aleluia. Os convites estavam sendo vendidos por João Victor, da 8a série.

Você vai para a casa de seu pai em Correas no feriado? Posso ir com você? - Paulinha emendou uma pergunta na ou­tra, sem dar tempo para a amiga responder.

Calma, Paulinha. Sei que você está a fim do João Victor, mas tenho dúvidas de que essa festa vai ser tão sensacional as­sim. Infelizmente, vou para Correas e você pode ir comigo tam­bém. Você não quer ir, Duda?

Querer até que quero, mas não tem aquela história de que só pode ir uma amiga por vez?

Tem, mas desta vez, depois de eu insistir muito, fui libe­rada para levar duas amigas...

As três acertaram os detalhes da viagem.

Ah! Esqueci de dizer. A Regina, amiga da minha mãe, sugeriu um programa para a gente. Ela vai com um conhecido que é guia de excursão e ofereceu carona. Prometeu um pas­seio por Petrópolis, antes de nos deixar em casa.

É mesmo! Então vamos conhecer os encantos da cidade imperial! - disse Paulinha, tentando imitar a entonação da professora de História.

E bota imperial nisso - acrescentou Carol. - O amigo da Regina também prometeu nos levar à antiga trilha que era usada pelo imperador para chegar a Petrópolis. A paisagem é demais!

- Então vamos comprar os convites da festa antes que aca­bem! - propôs Paulinha.

Duda nada dizia. Toparia tudo que Carol quisesse. As três foram em direção à sala de João Victor, no corredor onde ficavam as classes da 8a série.

Já com os convites nas mãos, Carol parecia desanimada.

O que foi? - perguntou Duda.

Não sei. Não é para esnobar a festa de vocês, nem a via­gem pela trilha do tempo do Império... essas coisas são boas, em outro tempo, eu até que ficaria fissurada... mas depois da­quela experiência que eu tive... aquele Homem do Terno Bran­co... fico arrepiada quando penso nele... e aqueles bandidos... aquelas aranhas verdes...

Duda se encrespou:

Lá vem você novamente com aquele caso! Muda o disco, vê se esquece... o que passou, passou.

Tem razão. Mas a verdade é que, depois daquela encrenca, acho todos os programas furados...

Sabe de uma coisa? - Duda parecia enfrentar a amiga, coisa rara de acontecer.

O quê? - perguntou Carol.

As vezes, acho que você ficou impressionada mais do que devia com esses bandidos... com esse Homem do Terno Branco...

Carol não respondeu. Ficou pensativa.

 

Quinta-feira, às 10 horas, quando Regina chegou à casa de sua amiga Marta, as meninas já a esperavam. Recusou o café que lhe ofereceram, não queria atrasar a viagem. Fez as apresentações.

Marta, este é Pedro, meu amigo. Ele é guia de excursão.

Prazer - respondeu a mãe de Carol.

E Regina continuou, dirigindo-se para o guia:

- E esta é Carol, a filha dela, a menina mais esperta da galáxia. Vamos deixá-la na casa do pai em Correas, junto com as amigas.

Depois de apresentar as colegas, Carol ouviu as recomen­dações de praxe: que obedecesse ao pai, fosse educada com os convidados dele, principalmente com a nova namorada que ele arranjara.

Regina era a mais animada:

- Pedro, contei para as meninas que você vai fazer um pas­seio por Petrópolis antes de levá-las para Correas...

- Vou mostrar coisas que nunca viram - prometeu o guia, abrindo a porta da Blazer.

Desde a carroceria resplandecente até o cromado dos fri­sos e os assentos estofados, tudo no carro cheirava a coisa nova.

- Pedro, você gosta da Britney Spears e do Backstreet Boys? Trouxe uns CDs para escutarmos durante a viagem - disse Paulinha, entregando-lhe uma pilha de discos.

Não era exatamente o tipo de música que Regina e Pedro gostavam, mas não estrilaram.

- Então vamos lá! A cidade imperial nos espera! - falou Paulinha naquele tom de professora de História. Pedro ligou o ar condicionado e botou um dos CDs para tocar.

Não demorou muito, a algazarra encheu a cabine refrige­rada do carro. Paulinha e Duda queriam falar ao mesmo tem­po. Carol era a única que não participava da agitação geral.

Desde o momento em que Regina a apresentou a Pedro, não conseguia desviar os olhos dele. No carro, observava-o pelo espelho retrovisor que refletia a metade de seu rosto.

Dava-lhe a impressão de conhecido. Por mais que tentas­se se convencer do contrário, um palpite tomava conta dela. Já vira alguém com aquela cara, mas não lembrava quando nem onde.

"Não!", dizia para si mesma. "É impossível! Os bandidos que conheci no caso das Aranhas Verdes devem estar presos. E Regina não seria amiga de um deles!"

Pensando bem, ela reconhecia que o guia era um cara legal, estava sendo gentil em levá-las para passear. Então, por que aquela sensação desagradável ao olhar para ele?

Duda não tirava os olhos dela. Estranhou o silêncio da amiga.

Ei! O que está acontecendo? Você não disse uma palavra desde que saímos de sua casa!

Nada - respondeu Carol, de forma tão dura que deixou a outra mais intrigada.

- Nada como? Você parece preocupada.

- Estou lembrando das férias que passava em Correas, com o pai, a mãe e o Flavinho. Pena que isso não possa acontecer de novo - mentiu Carol.

A música da cabine foi interrompida e o guia anunciou o início da serra. O verde das montanhas e o azul limpo do céu fizeram com que Carol esquecesse as lembranças que a perseguiam.

Na entrada de Petrópolis, pouco antes do hotel Quitandinha, Pedro sugeriu que fizessem um lanche na Casa do Alemão.

- Os croquetes de carne e os cachorros-quentes de lingüi­ça daqui são maravilhosos. Esse Alemão começou lá embaixo, na Baixada Fluminense, foi crescendo, crescendo, agora tem diversas casas em vários pontos da estrada. É agora uma atração turística à parte. Fazemos um pequeno lanche e depois vamos visitar o Museu Imperial.

A sugestão do lanche foi aceita, mas a visita ao museu nem tanto. As garotas argumentaram que estavam ali para se divertir e não para ter aulas de História. Durante o feriado queriam esquecer que existia escola.

- Garanto que vão curtir! Não deixa de ser um passeio cul­tural, vocês aprenderão muitas coisas. Mas por acaso tenho cara de professor?

Carol não prestava atenção às suas palavras. Observando-o de corpo inteiro, o boné escondendo-lhe os cabelos escuros e a atitude desembaraçada dissiparam-lhe as dúvidas. Existiam milhares de homens parecidos com aquele.

"Vejo bandidos espalhados por toda parte! Vou aca­bar ficando maluca!",pensou, procurando se integrar ao grupo.

- Boa idéia! Estou mesmo com fome, e adoro lingüiça frita! - disse Carol.

Duda notou a atitude da amiga. Desde o início da viagem estava tensa, só agora parecia relaxar e ser a Carol de sempre. E mais que depressa procurou sentar junto dela.

O garçom colocou sobre a mesa os refrigerantes e um pra­to enorme com uma dúzia de croquetes, enquanto mandava preparar os cachorros-quentes. Quando Carol estava dando o primeiro gole numa coca-cola, percebeu que alguém arrastava a cadeira de outra mesa e ficava a seu lado.

- Com licença - falou o guia, antes de sentar-se.

A princípio, ela não gostou da proximidade daquele ho­mem, que praticamente era um desconhecido. Mas não demo­rou muito para desfazer a cisma. Rolou um papo interessante, ele falou de sua experiência como guia. Contou uma porção de casos engraçados.

Até então, aquele feriado comprido ameaçava ser um porre. Mas Carol, admitindo que o guia era mesmo legal, comentou:

- É que estou cheia de conhecer Petrópolis! Correas então nem se fala! Sempre que pinta um feriadão, o pai dá um jeito de me arrastar para cá. Pelo menos desta vez me deixou trazer vocês duas.

E virando-se para o guia:

- E graças a você e à Regina, não precisamos vir no carro dele, junto com a namorada que arranjou e que vive me chalei­rando para que eu goste dela.

Regina interrompeu a ameaça de desabafo. Apesar de ser a melhor amiga de Marta, sempre que podia dava um jeito de ate­nuar a aversão que Carol sentia pelas candidatas a sua madrasta.

- Deixa aquela moça em paz! Pense no nosso passeio. Vai ser divertido caminhar pela antiga trilha que Dom Pedro II usava para chegar a Petrópolis.

E virando-se para o amigo:

- Pedro, conte tudo o que sabe sobre isso, a mata, a trilha antiga...

O guia riu da ansiedade que havia no rosto das três garotas.

- O imperador e a sua família saíam de São Cristóvão, onde moravam, iam de barca até o porto de Estrela, nas bases da serra... ali... subiam de carruagem, ou a cavalo, às vezes a pé... mais tarde veio o trem...

Por fim, sugeriu: na manhã seguinte, ele e Regina passa­riam bem cedo em Correas para buscá-las. Conseguiria um motorista da empresa de turismo em que trabalhava para di­rigir a Blazer. Saltariam num ponto em que ele indicaria e desceriam pela montanha, seguindo a velha trilha do tempo do Império, até um outro trecho da estrada, lá embaixo. En­tão o motorista os esperaria e voltariam pela estrada nova. Um passeio fabuloso, dentro da mata, com inúmeras fontes e pequeninas cascatas.

A sugestão era boa. E ficou melhor quando Regina prome­teu levar um lanche incrementado.

- Então, topam? - perguntou o guia, querendo decidir o assunto.

Claro! - respondeu Carol.

Claro! - acrescentou Duda, olhando firme para a amiga.

- Agora acabem logo com esses croquetes e com os cachorros-quentes, quero mostrar o Museu Imperial a vocês - disse Pedro, enquanto assinava o cheque para pagar a despesa.

Voltaram para o carro e tomaram o caminho para o cen­tro da cidade. Pedro encarnou o seu papel de guia.

O museu é um casarão antigo e solene, na época de Dom Pedro II serviu de residência de verão à família imperial...

Estamos carecas de saber isso - disse Paulinha. - Não vai agora dar uma de professor de História, estamos em ple­no feriadão da Semana Santa.

Carol a interrompeu:

- Você vai gostar. Tem um monte de coisa legal lá dentro. Tudo com um inestimável valor cultural...

Pedro preferiu fingir que não tinha entendido o tom debo­chado da garota. Os amplos portões na entrada do museu pro­metiam realmente uma visita interessante para todos.

Subiram as escadas de acesso. Quando chegaram ao topo, os porteiros, uniformizados, as obrigaram a parar no hall. Ajoelhados em cada lado da porta, colocaram nos pés de cada um as pantufas - enormes chinelões, macios e ridículos - que logo se transformaram na novidade inicial da visita.

O brilho do chão, que parecia um vasto espelho de madei­ra, tinha aquela explicação: os pés funcionavam como um escovão, dando mais lustro ao assoalho.

Passada a novidade das pantufas, Pedro conseguiu estabe­lecer um pouco de ordem no grupo e começou a visita. Ia pa­rando em cada sala, diante de cada móvel ou peça. Quinze minutos depois, Regina interveio:

- Pedro, por favor, isso aqui não é uma das visitas que você faz com seus clientes. Olha a cara de saco cheio das garotas.

Carol percebeu que o guia ficou sem graça com aquela advertência. Tentou amenizar a situação:

- Por que tantos leques? - perguntou ao guia, fingindo-se interessada. - Não havia ar-refrigerado nem ventilador naquele tempo?

Pedro riu:

Os leques eram também um requinte, um detalhe da ele­gância da época. Não servia apenas para abanar nos dias de calor. Era um status e também uma forma de comunicação. Com um simples fechar de leque, uma mulher podia fechar uma questão. Abrindo-o lentamente, podia sugerir um sim... compreende? O leque era uma espécie de código...

Uma senha, que nem no e-mail?

Mais ou menos - admitiu Regina. - Muitos casos rola­vam por causa do movimento de um leque...

Nenhuma delas estava interessada pelos leques nem pelas mensagens que pudessem dar. Também as muitas xícaras e pratos foram consideradas sacais. Carol, Duda e Paulinha come­çavam a ficar impacientes.

Nem tudo, porém, foi perdido na visita ao museu. Quando menos esperavam, ficaram deslumbradas: numa das últimas salas, a menor de todas, nenhum leque, nenhuma xícara. Ao fundo, havia uma vitrine iluminada por dentro. E nela, pousa­da num pedestal de madeira forrado de veludo, a Coroa Impe­rial reluzia em suas pedrarias.

Elas já conheciam coroas em peças infantis de teatro, em filmes, em desenhos de Walt Disney. Sabiam que eram jóias cenográficas, feitas de metal vagabundo e pedras coloridas. Nunca tinham visto nem imaginado coisa igual. Pois ali estava uma verdadeira: uma cascata de luz, jorrando um mar de cintilações irreais.

- Poxa! É muito bacana! - foi o comentário geral.

Até Carol, que já a tinha visto em outras visitas, não conse­guiu desviar os olhos daquela fonte de luz, fantástica como um pedaço de sonho.

O guia continuava dando explicações, agora em tom mais baixo, quase solene, como se a presença da jóia exigisse um respeito especial.

De repente, Carol não viu nem ouviu mais nada. Foi como se uma luz vermelha se acendesse dentro de sua cabeça: "Essa jóia deve valer uma fortuna! E como é que nunca tentaram roubá-la?"

Ia justamente perguntar isso ao guia, se já houvera alguma ameaça de roubo, quando desviou os olhos da Coroa Imperial para a cara de Pedro e voltou a ter a impressão inicial que ele lhe causara: ele parecia um dos bandidos que conhecera durante o caso das Aranhas Verdes. O jeito com que olhava para a jóia era estranho, parecia fascinado. Seria admiração ou cobiça?

Logo espantou aquele pensamento sinistro. Se o guia fos­se mesmo um bandido, ou tivesse qualquer veleidade nesse sentido, não teria aquela expressão deslumbrada diante da jóia que devia ser a mais valiosa do continente. Manteria neutralidade. Ela mesma, que nada tinha de criminosa, que jamais roubaria um alfinete, sentia que seus próprios olhos brilhavam, não exatamente de cobiça, mas de admiração.

Passado o primeiro instante, o guia limitou-se a repetir os dados históricos e técnicos, friamente, tal como o fizera com as xícaras e os leques.

Duda aproximou-se de Carol e comentou:

O que que há? Mais uma vez você parece estar longe... Carol desconversou:

Só estava pensando... em nada especial... Pedro continuava a dar detalhes:

Esta jóia foi montada em quase dois quilos de ouro maci­ço e possui 639 brilhantes, alguns de grande valor. Tem tam­bém 77 pérolas puríssimas...

É uma das jóias mais importantes do mundo - acrescen­tou Regina.

A visita terminava. Depois de ver a Coroa Imperial, só res­tava agora devolver as pantufas aos porteiros, que ali conti­nuavam, ajoelhados, um de cada lado das portas.

Quando Carol se aproximava do carro, percebeu que o guia caminhava ao seu lado.

Como é? Gostou do museu? - perguntou ele. A garota fingiu que não escutara a pergunta. Ele insistiu.

Como é? Gostou do museu?

Carol sentiu que precisava dizer alguma coisa. E falou sem pensar:

- Se eu fosse responsável pela coroa, mandaria fazer uma cópia igualzinha para mostrar aos visitantes. E guardava a ver­dadeira num cofre secreto... não mostrava a todo mundo...

Ela não reparou que o olhar do guia tornou-se repentinamente sombrio, como se alguma coisa o advertisse contra aquela garota.

 

O ronco ritmado do motor e o cansado silêncio no interior da Van ajudaram Carol a reconstituir, passo a passo, as aventuras daqueles últimos dias. Desde a manhã da véspera, quando Regina e o guia foram buscá-la com as amigas, ainda no Rio, até o momento em que o guia, transformado em bandido, tomou seus pulsos, a arrastou montanha abaixo e a levou para junto das amigas que, por sua vez, já estavam presas.

Por mais que passasse e repassasse o que ocorrera, procurando uma explicação para tudo aquilo, não conseguia encontrar um sentido para a situação de perigo que novamente vivia. A única luzinha que se acendia dentro de sua cabeça tinha a ver com a aventura que vivera contra a vontade no caso das Aranhas Verdes.

Fechava os olhos para obter melhor concentração, e logo lhe aparecia aquele homem misterioso, de terno branco e voz macia. Por mais que tentasse afastá-lo de seus pensamentos, a figura dele sempre saía das sombras e parecia estar diante dela, dizendo: "Viu? Não adianta lutar contra mim!"

Sabia que ele tinha motivos para vingar-se dela. No entan­to, não esquecia que, no momento mais perigoso de sua aven­tura, o Homem do Terno Branco recomendara aos bandidos que não fizessem mal a ela.

Como relacioná-lo, agora, com aquele novo caso? Ele po­deria ter mudado de idéia, decidindo vingar-se do golpe ante­rior. Mas por que envolveria também suas amigas? Duda e Paulinha não tinham culpa alguma. E como explicar a presen­ça de Regina, a amiga mais chegada de sua mãe, naquele plano sinistro? Teria treinado um bandido, tão cativante como ele próprio, para se fingir de guia turístico e conhecedor da histó­ria do Império?

E se fosse outra quadrilha, com propósitos mais complica­dos, o que desejaria fazer com ela? E novamente Regina apare­cia em seus pensamentos. Seria cúmplice daquele guia? Não, seria um absurdo!

Tudo não passava de suposições. De concreto, somente havia a realidade: estava mais uma vez nas mãos de bandidos cujas intenções não podia imaginar. Dinheiro não era o caso: nem ela nem as amigas tinham famílias ricas para justificar o seqüestro.

De repente, outra luzinha acendeu-se dentro de sua cabe­ça. Não adiantava perder tempo em procurar uma explicação. O importante era tentar fugir. Depois, saberia do resto, precisava concentrar todas as energias num plano que acabasse com aquele pesadelo. Mas como e por onde começar?

Até então, tudo permanecia tranqüilo dentro daquela Van. Apavoradas, Duda e Paulinha não tinham criado nenhum problema, até o choro delas era baixinho, controlado. Já era hora de criar algum embaraço para os bandidos. Haviam encontra­do moleza. Planejaram aquele passeio pela floresta e nenhum obstáculo surgira para dificultar o roteiro deles, fosse qual fosse o roteiro. Carol tateou a mão pela porta e encontrou a alavanca. O carro ia em velocidade, claro que ela não pensava em se atirar na estrada. Seria morte na certa. Sua intenção era pro­vocar uma reação dos bandidos.

Quando colocou os dedos na maçaneta e começou a girá-la, sentiu que a mão de um homem caiu sobre a dela, apertando-a com força. Já que tinha começado, Carol decidiu prolongar a confusão mais um pouco: com a outra mão, tentou retirar a venda dos olhos.

Pronto. Instalava-se um tumulto dentro da Van.

- Quero sair daqui! Quero sair daqui! Me soltem! - berra­va ela, com todas as suas forças.

O escândalo teve efeito imediato: as outras meninas começaram também a gritar, todas ao mesmo tempo. Carol agitou-se tanto que obrigou o motorista a levar o carro para o acostamento e ali estacionar. Os três bandidos uniram-se contra ela. Seguraram-na fortemente e colocaram sobre seu rosto um pano que lhe cobria a boca e o nariz. Ela sentiu quando um deles começou a pingar um líquido frio e de cheiro bastante forte.

Era uma espécie de anestésico, com efeito parecido ao do éter, mas coisa moderna, que os entendidos chamam de Serovane.

O mesmo recurso que os bandidos haviam usado no caso das Aranhas Verdes. Numa associação de idéias e cheiros, o Homem do Terno Branco, seus olhos azuis cheios de mistério, os cabelos louros, quase brancos, o rosto rosado, a voz macia de amante, chamando-a de Carolina - não de Carol - tudo voltou-lhe aos sentidos, que começavam a ficar adormecidos.

O Homem do Terno Branco nunca a chamara de Carol, mas de Carolina, como sua mãe fazia quando a repreendia por alguma falta. E como Fred também a chamava, quando fica­vam sozinhos e podiam namorar fundo. Que a mãe e o namo­rado, em certas ocasiões, a chamassem de Carolina era natural, revelava intimidade, atingia-a lá dentro de si mesma. Mas por que um estranho que mal a conhecia, movido por uma inten­ção criminosa, a ponto de matá-la se o plano dele furasse, por que esse homem desconhecido a chamava pelo mesmo nome?

Não teve tempo de pensar em mais nada: sentiu a cabeça rodar, depois não sentiu os pés e as mãos. Seu corpo pareceu fugir dela mesma. A cabeça pesou fortemente sobre os ombros - e ela apagou.

Quando voltou a si, haviam-lhe retirado a venda. Encon­trou-se sozinha numa sala mal iluminada, com as paredes co­bertas até o teto por estantes repletas de livros. Todos os móveis eram escuros e sóbrios. Sentiu-se tão sufocada ali que fechou novamente os olhos, como se assim voltasse a perder a consciência e pudesse esquecer a situação em que se metera.

Não ouvia o menor ruído. As quatro paredes a esmagavam. Passou muito tempo até que a porta abrisse lentamente, como se alguém a observasse, esperando apenas que despertasse. O vulto de um homem alto e magro apareceu recortado na faixa de luz que penetrou no aposento.

Carol ergueu o corpo e, procurando não demonstrar medo, aguardou que ele se aproximasse. O vulto abaixou-se num canto e acendeu um abajur. O primeiro sentimento foi de decepção. Por um instante, quando tinha diante de si apenas um vulto, pensou ser o Homem do Terno Branco. Por mais que a situação fosse de perigo, sentia necessidade de revê-lo. Mistura de pavor e curiosidade, queria checar nova­mente aquela voz macia, aqueles gestos tranqüilos, o modo leal e quase afetuoso de dizer a coisa mais simples do mundo e que era ela: Carolina.

Mas não era quem pensava. Era apenas um bandido a mais. Pior: ela reconhecia nele um dos capangas do Homem do Terno Branco, o mesmo homem que, no momento em que a polícia invadia o esconderijo onde ela estava prisioneira, ia dando a ordem de matá-la.

- Precisamos conversar, mocinha! - começou ele, sentan­do-se a seu lado.

Um mistério a mais. O bandido a tratava como se a visse pela primeira vez, quando, na realidade, deveria ter contas a ajustar com ela. Por que aquele faz-de-conta? Carol decidiu topar o mesmo jogo, depois veria como as coisas ficariam.

- Se está querendo uma simples conversa, podemos ir para minha casa. Lá poderemos bater um papo legal. Mas com violência será difícil chegarmos a um acordo.

Para sua surpresa, Carol descobriu que mais uma vez não tinha medo. Nem do lugar, nem do bandido, nem do que a aguardava. Alguma coisa dentro dela dava-lhe a certeza de que, com jeito e coragem, poderia se livrar de ambos, do lugar e do bandido.

Em vez de se irritar, o homem sorriu:

É, o chefe tem razão... - comentou mansamente. - Você é muito esperta... Quantos anos tem?

Treze. Faço quatorze no mês que vem. O que mais quer saber? - continuou Carol, no mesmo tom firme.

Nada. Já sei muito a seu respeito - respondeu o bandido, desistindo de fingir que não a conhecia. - Não está curiosa? Não quer saber por que está aqui? Não vai me perguntar nada?

Onde estão as minhas amigas? - indagou, dando à per­gunta um tom despreocupado.

Vamos por partes. Estou aqui para explicar-lhe tudo ou quase tudo. Vou logo avisando que sua sorte e a de suas amigas dependem exclusivamente de você. Se for boazinha, aliás... se não for burra... vai ver que o melhor é obedecer às minhas ordens. Além do mais, a tarefa que temos não é das mais complicadas, pelo contrário, acho até que vai gostar dela.

Tarefa? O que quer dizer? - Carol espantou-se. Estaria sendo usada para uma ação criminosa?

Você não tem escolha. Terá de nos ajudar por bem ou por mal. Fica a seu critério.

Carol arriscou:

Vão me usar para exigir algum resgate em troca de mi­nha vida?

Cumpro ordens, garota, faço o que me mandam, recebo a minha parte e lhe aconselho a fazer o mesmo.

Qual é a minha parte?

Você vai saber daqui a pouco. Mas saiba desde já que o chefe não gosta de ser contrariado.

Quem é seu chefe, então? - perguntou ela, como se não suspeitasse de nada.

O homem não respondeu. Limitou-se a mastigar a ponta do cigarro que tinha apertado entre os dentes, deu uma longa tragada e logo inundou a sala, que não precisava de fumaça para ser sufocante.

Carol repetiu a pergunta outras vezes e só parou quando o bandido afirmou gravemente:

- Não vou falar o que não devo. Basta saber o seguinte: está entre gente que não pretende lhe fazer mal. Esqueça a existência de bandidos, de ladrões, pense somente na missão, naquilo que terá de fazer. E agora, escute! Não quero repetir tudo uma segunda vez.

Puxou do bolso uma caneta e uma folha de papel que colocou sobre os joelhos. Carol esticou o pescoço e o que viu desenhado no papel deixou-a curiosa:

O Museu Imperial?!

Isso mesmo! Você esteve lá ontem. Que coincidência, hein?

Carol não suportava a forma irônica com que ele se diver­tia à sua custa, mas achou prudente engolir os desaforos que gostaria de lhe dizer. O melhor seria que ele continuasse.

Nesse momento, o motor de um carro que se aproxima­va desviou a atenção de ambos. Devia ser a chegada de al­guém por quem o outro já esperava. O bandido não se levantou nem mesmo quando ouviu passos de pessoas que entravam na casa.

Boa noite! Atrasei-me? - cumprimentou um homem ain­da jovem, vestindo calça, camiseta e jaqueta pretas. Examinou Carol com um par de olhos amarelos e penetrantes como os de uma raposa.

Essa é a garota, Carlos - disse-lhe o bandido. - Não sei o que o chefe viu nela, mas já enganou muito malandro experimentado. Quando eu sair, não tire os olhos dela.

Pode deixar - respondeu o rapaz, compenetrado, enquan­to pendurava a jaqueta no encosto da cadeira.

De camiseta, parecia ainda mais jovem.

-          Espere-me lá fora! - ordenou o primeiro. - Preciso fa­lar com ela. Enquanto isso, providencie o nosso jantar. A garota deve estar com fome. O chefão mandou que a tratás­semos bem!

Enquanto Carlos se dirigia para a porta, Carol não perdeu a oportunidade de provocá-los:

Não, não precisa de jantar algum. Vocês tiraram meu apetite. O homem ignorou o comentário. Olhou-a seriamente e disse:

Teve um dia agitado, garota. Mas amanhã será pior, acredite. Carol sentiu uma pontada no estômago. O que estaria para

acontecer de tão importante no dia seguinte? Que tarefa seria aquela da qual falara o bandido? Suspeitava que, mesmo concordando em obedecer, iam mantê-la prisioneira para sempre. Ou pior: matá-la.

E Duda? E Paulinha? Para onde foram? O que fizeram com elas? - voltou a perguntar.

Não se preocupe com suas amigas, estão bem. Não tanto quanto você, mas estão bem. Agora vamos ao assunto: gostou da visita ao museu?

A pergunta foi tão inesperada que ela disse que sim, à falta de outra resposta. Dizer que não, pelo jeito, poderia piorar as coisas.

-          Ótimo! Pois terá de voltar lá amanhã. E com suas amigas! Um erro, só um erro seu, pode ser a morte de todas!

 

O bandido gastou tempo explicando o plano que a quadrilha havia elaborado. Era fantástico, irreal. Mas a presença de Carol ali naquela casa, depois de um novo seqüestro e novamente prisioneira do mesmo bando, mostrava que a coisa era séria: o jeito era controlar a situação, até descobrir uma brecha por onde pudesse escapar. Tinha de ser realista. No momento, era impossível fugir, nem adiantaria remar contra a maré.

Por fim, o bandido despediu-se. Teve a cortesia de desejar-lhe boa-noite, sem qualquer ironia. Um fator a mais de preocupação. Carol retribuiu a saudação, mas por dentro mandou-o ao inferno.

Se alguém podia se considerar "bem", estando nas mãos de bandidos, Carol reconhecia que estava recebendo um tratamento especial. A casa que servia de quartel-general à quadri­lha era confortável. Apesar dos móveis escuros e sóbrios, a sala era mais ou menos simpática, embora cheirasse a mofo. Evi­dente que era pouco usada, devia ficar vazia por muito tempo, sendo utilizada somente em determinadas ocasiões.

Aliás, examinando melhor a situação, Carol verificou que a sala permanecia fechada: as duas amplas janelas estavam trancadas por fortes grades. E a porta também. O banheiro tinha apenas um basculante lá em cima, protegido por uma grade e uma tela contra mosquitos. Não era apenas ela a prisioneira: o próprio ar era prisioneiro.

Feito o primeiro balanço, Carol procurou levantar suas possibilidades. Foi um exame desesperador. Àquela hora, o seu pai já deveria saber de seu desaparecimento. E, provavelmente, já teria avisado sua mãe, que, por sua vez, e como sempre, deveria estar preocupadíssima.

E Regina? O que teria acontecido a ela? Carol não podia aceitar a idéia de que a melhor amiga de sua mãe fizesse parte da quadrilha de bandidos. Seria o fim do mundo. No entan­to, foi por intermédio dela que o falso guia aproximara-se das garotas. Não, não era possível. Mas esta era a verdade: Regina servira de isca para pescar aqueles peixinhos que eram elas.

E agora? Como poderiam achá-la ali? A polícia não iria admitir mais um caso de seqüestro. Levantariam uma hipó­tese perfeitamente viável: o grupo se perdera na mata, era ter paciência, organizar patrulhas que vasculhassem a serra de Petrópolis e, mais cedo ou mais tarde, se tivessem sorte, elas seriam resgatadas vivas, bastava que as garotas resistissem dois ou três dias, duas ou três noites.

Carol podia reconstituir, frase por frase, o que a polícia e os jornais estariam dizendo do caso. E, o que era pior, seus pais acreditariam nessa versão.

A verdade, porém, é que seria impossível escapar daquela armadilha. Os bandidos já a conheciam e tomariam todas as medidas para impedir a fuga. No caso das Aranhas Verdes, eles facilitaram a segurança porque pensavam que estavam lidando com uma boboca, que dois ou três gritos assustariam. Já sabiam que não era bem assim.

Para agravar ainda mais a situação, havia a preocupação com as outras garotas. Onde e como estariam Duda e Pauli-nha? O bandido fora claro ao afirmar que o negócio do chefão era com ela. Como não puderam pegá-la sozinha, tiveram de ficar com aquele contrapeso. Devia ser isso. E Carol sentia certo alívio pensando nessa hipótese.

"Bem, enquanto o plano deles não é executado, tenho a certeza de que não me matarão. E as amigas? Os bandidos não correrão o risco de manter duas prisioneiras que não servem para nada. Mas não poderão soltá-las antes de executar o golpe planejado. E qualquer bobeada poderá ser fatal para elas."

Um ruído de louça, certamente vindo da cozinha, que não devia ser tão distante, trouxe-a à realidade: ela estava presa. E nem sabia por que nem para que. A casa devia ser grande, pois havia um certo conforto nas acomodações. Pelo silêncio em torno, um silêncio absoluto, a mansão provavelmente ficava no meio do mato. A única pista que lhe podia valer, naquela situação, era o carcereiro, mas dele só conseguira saber o nome: Carlos.

Bastava olhar para ele e percebia-se que era ambicioso, frio, mas esperto o suficiente para se mostrar requintado, procurando imitar o chefão de todos. Bem diferente dos outros ban­didos, que eram grossos, e faziam da própria grosseria uma regra de vida e ação.

Carlos falava manso, escolhia as palavras, media os gestos. Lembrava, como caricatura, o Homem do Terno Branco, mas não tinha o mesmo charme, o mesmo tom de voz. Nunca a chamaria de Carolina, mas de Carol, como todo mundo.

Esforçava-se para ser e agir como o patrão, mas não eram dele as decisões, a palavra final. O fato de estar ali, tomando conta dela, revelava que era homem de confiança do chefão. E, sendo mais jovem, ainda teria muito que aprender. Certa­mente estava sendo preparado para a sucessão. Ela sentira, no caso das Aranhas Verdes, que o seu grande inimigo não era um bandido comum, tinha uma obsessão por jóias, uma tara. Conseguindo o que desejava, parecia ser um homem como outro qualquer, que um dia abandonaria o crime.

Surpreendida com os seus pensamentos, Carol se recri­minou, achando-se boba. Um disparate imaginar a sucessão de uma quadrilha da qual fora vítima e agora era novamente prisioneira.

Voltou a si e ao ruído de louça, que foi seguido pelo baru­lho de passos no corredor. Provavelmente, passos de seu carce­reiro, que vinha ver se tudo estava nos conformes da prisão, se havia algum vestígio de tentativa de fuga por parte dela.

Antes que Carlos entrasse, ela própria procurou sinais de alguma rebeldia e teve um estremecimento: viu a jaqueta que, por um esquecimento, ele havia deixado nas costas de uma cadeira. Ali estava a constatação do que já suspeitava. Por mais esforçado e esperto que ele fosse, era um aprendiz.

"Isso facilitará as coisas", pensou Carol.

Correu até a cadeira e rapidamente conseguiu revistar tudo, tirando aquilo que lhe convinha: o chaveiro, com cinco ou seis chaves, papéis e cartões com simples anotações, recibos da caixa registradora de um supermercado e outros documentos do mesmo interesse. No último bolso, apanhou um talão azulado, que parecia uma passagem aérea. Havia pouca luz no ambiente e ela não conseguia examinar aquilo tudo.

Colocou o chaveiro no lugar que sempre julgava o mais seguro: em sua calcinha. O resto distribuiu pelo corpo, da melhor maneira possível. Enquanto o carcereiro girava a chave da porta, ainda teve tempo de apanhar um livro na estante e pular em cima de um sofá. Ali havia um pequeno foco de luz que dava para a leitura. Fez cara de séria e aguar­dou os acontecimentos.

- Ah! A garota gosta de ler? - disse o rapaz, logo que abriu a porta.

Carol sorriu amavelmente, disposta a iniciar a fuga por ali: procuraria obter de Carlos o maior número de informações sobre os motivos de seu seqüestro.

É o meu passatempo preferido... Ainda bem que aqui nesta casa tem livros...

Então aproveite - disse o rapaz, apanhando a jaqueta e jogando-a displicentemente sobre os ombros. - Na ficha que me deram, você aparecia como uma garota esperta e curiosa, de muita ação mas de nenhuma reflexão...

As aparências enganam - respondeu Carol. - Você não gosta de ler?

Não é exatamente isso. Nunca me sobra tempo... tenho lá em casa uns livros que foram do meu pai... nunca os li... não faz meu gênero...

Depois de admitir a existência de livros em sua casa, o ban­dido ficou meio encabulado. A revelação de um detalhe de sua vida particular poderia significar o início de uma aproximação que, recomendaram-lhe, não era conveniente entre um carce­reiro e sua prisioneira. Sobretudo aquela prisioneira.

Carol levantou-se e aproximou-se dele.

-          Quer que eu leia alguma coisa para você?

Olhou disfarçadamente para o livro que tinha em suas mãos. Eram poemas de Cecília Meireles e continuou:

-          Senta aí que eu leio um pouquinho. Você vai gostar... Pela primeira vez em suas relações com os bandidos Carol

apelava, propositadamente, para a sedução.

Com o Homem do Terno Branco fora diferente. Nada plane­io. De repente, percebera que despertara alguma coisa nele. Coisa que, até hoje, não descobrira o que era. Não sabia. Sabia apenas que não passara despercebida aos seus olhos azuis frios e misteriosos. Ele a olhara diferente, como nenhum outro homem antes, ela gostara disso. Talvez porque também provocava nela um stranhamento: repulsa e atração. Ela própria não se entendia.

Com Carlos acontecia o oposto. Assim como o Homem do terno Branco, voluntária ou involuntariamente, tentara seduzi- la, ela agora tomava a iniciativa. Já percebera que chamava a atenção dos homens e não custava testá-lo.

O efeito foi fulminante. A princípio, o rapaz até hesitou um pouco, achando que seria perder tempo ouvindo poesias que não lhe interessavam. A garota era sua prisioneira. Ele, seu carcereiro. De qualquer forma, era bem melhor que ela lesse poemas e não tentasse fugir, como da vez anterior, quando até fogo botara num sofá para obrigar os bandidos a abrirem a porta da sala onde estava presa.

Quando Carlos se sentou numa poltrona, aparentemente resignado a ouvir poemas, Carol temeu que ele sentisse falta do barulho das chaves no bolso da jaqueta. Bastaria estranhar a ausência daquele ruído habitual e tudo estaria perdido, antes mesmo de ela ter começado a pensar num plano de fuga.

Carol ficou aliviada quando Carlos, para mostrar que quem ditava as regras era ele, ordenou:

- Vamos! Leia logo que estou com pressa!

 

A garota limpou a garganta e, aproveitando a fraca luz do abajur, leu um, dois, três poemas, dos mais curtos, para não chatear o bandido. Sob o vestido, preso na ponta de sua calcinha, o chaveiro espetava-lhe a barriga. Sentiu os olhos arderem, deviam estar vermelhos pelo esforço da leitura, num ambiente tão fracamente iluminado. Mas uma agradá­vel surpresa a esperava: os olhos de Carlos também esta­vam vermelhos - e não por causa dos poemas. O sono batia forte no cansaço do rapaz, que volta e meia balançava a ca­beça, como se fosse desabar a qualquer instante. Os poemas ajudavam a embalá-lo. Ela sentiu que era hora de pedir alguma coisa para comer:

- A leitura me deu fome. Acho que agora vou aceitar um lanche.

Já tinha pensado nisso. Vou ver se arranjo alguma coisa...

Posso ajudar? - perguntou Carol.

Estava ali a oportunidade que esperava para circular pela casa, numa espécie de reconhecimento do terreno.

Como?

Uma garota na cozinha é sempre melhor do que um rapaz...

Mas você não é uma garota qualquer. É minha prisioneira.

- Por mais esperta que eu seja, não tenho qualquer chance de fugir. Lá na cozinha ou aqui, tudo é a mesma coisa. Estou cercada. Além disso, não poderia fugir de noite. Ir para onde? Aqui pelo menos tenho um teto, um sofá...

- Você sabe se virar numa cozinha?

- Lógico. Desde que não seja para fazer uma feijoada ou um vatapá. Agora, um ovo frito, um misto-quente, isso eu sei fazer, só depende do que houver na geladeira ou na despensa...

O bandido pensou um pouco e concordou.

A luz forte da cozinha ofuscou-lhe a vista por alguns se­gundos. Aos poucos, Carol viu surgir à sua volta uma ampla copa, de azulejos amarelos que se confundiam com a fórmica também amarela de alguns móveis e de duas geladeiras abar­rotadas de alimentos. As prateleiras estavam cheias de lataria.

Carol não podia imaginar que o esconderijo dos bandidos estivesse tão bem abastecido.

O chefão trata vocês muito bem!

Ele é exigente, mas sabe retribuir nosso trabalho. Além disso, devemos estar preparados para qualquer emergência... já passei alguns meses aqui, escondido da polícia...

Carol procurou o que precisava. Numa das prateleiras encontrou uma caixa de chá de erva-doce. E numa das geladeiras havia maçãs. Sua avó dizia que a mistura era um bom tranqüilizante, provocava um sono desgraçado.

- Tive uma idéia! Que tal maçãs assadas?

O bandido franziu as sobrancelhas. Carol notou que ele estava constrangido e quis deixá-lo mais à vontade:

- É uma delícia! Minha avó me ensinou a colocar um pouco de canela... É irresistível, servida com chá de erva-doce. Quer experimentar?

Pouco depois, Carlos havia devorado quatro maçãs e tomado duas xícaras de chá de erva-doce, que ela preparou bem forte.

Apesar disso, o bandido não parecia mais sonolento do que já estava. Como Carol já desconfiava, o efeito da mistura de erva-doce e maçã era conversa de avó.

Voltaram para a sala.

- Agora vou ler Camões para você. Vamos botar uma mú­sica de fundo?

Desta vez, Carlos achou que era demais. Disse que estava trabalhando, que ela era prisioneira. Não estavam passando um fim-de-semana no campo.

Carol tinha um bom argumento:

- O chefão mandou que me tratassem bem. Se estou com vontade de ler alto, você deve me atender. Não vou fugir se ler um poema com música ao fundo. Nem ninguém vai ouvir nada.

O bandido entendeu que ela aceitava as regras do jogo:

Então, você vai obedecer às ordens do chefe? Está dis­posta a colaborar no plano dele?

Claro. Ele tem razão. Tenho jeito para essas coisas. Quem sabe não ganho um bom dinheiro com isso...

O rapaz balançou a cabeça e gaguejou.

- Acredita mesmo... quer dizer... você acha que ele vai permitir que...

- Que eu continue viva depois de executar o plano? - interrompeu Carol.

- Isso mesmo.

- Espero ganhar a confiança dele. Posso ser útil, desde que não me tratem mal.

Sentiu que era hora de cortar a conversa, antes de se comprometer ainda mais. Desanimou de pedir a música de fundo, não devia exagerar. Abriu o grosso volume e começou a ler pausadamente o primeiro canto de Os Lusíadas.

Havia muitos anos que ninguém pegava naquele livro, cheirando a mofo e cheio de poeira. Enquanto ia virando as páginas, ela observava que o rapaz ficava mais sonolento.

- Puxa, é maravilhoso! Sou capaz de ficar lendo Camões até amanhã! - dizia ela de vez em quando, o que impedia o rapaz de dar por encerrada a sessão literária.

À medida que a noite avançava, a temperatura caía, mes­mo no interior da casa fechada. Carol sabia que faltava pouco para que o bandido adormecesse no canto do sofá onde se instalara. Caso conseguisse fugir, ela teria então de enfrentar o frio lá fora. Com a simples camiseta que usava em cima da pele, sem nenhum outro agasalho, seria duro. Isso se as chaves, que dentro da calcinha a incomodavam, servissem para abrir qual­quer das portas da casa.

De repente, a cabeça do bandido tombou no encosto da poltrona, e ele adormeceu com a boca meio aberta, tão profundamente que parecia ter perdido os sentidos.

"Esse aí ainda tem muito a aprender", pensou, enquanto caminhava sem fazer ruído até a porta principal. Tentou abri-la. Nenhuma das chaves servia, algumas nem entravam na fechadura. O jeito era tentar a saída dos fundos. Com o cora­ção disparado, sentiu que a primeira chave que meteu na fechadura rodava duas vezes. Mas a porta não devia ser muito utilizada, estava emperrada, era difícil movê-la. Com um puxão mais violento, acabou cedendo. No entanto, com a força que foi obrigada a fazer, seu ombro esbarrou num pequeno armá­rio cheio de latas de conserva. Na casa silenciosa, o barulho foi o mesmo de um tiro de canhão.

- Garota maldita!

Ela ouviu a voz do bandido, que acabava de despertar.

Mesmo assim, ela teve tempo de mergulhar na escuridão lá fora, escuridão que não levava a lugar algum: estava numa área cercada por um muro alto, o suficiente para tornar a fuga impossível.

"E agora? Estou perdida!", pensou, sentindo o corpo todo tremer de frio.

A voz do bandido, vinda da cozinha, obrigou-a a procurar o primeiro esconderijo ao seu alcance. Saltou dentro de um tanque e se cobriu com um pano sujo que encontrou nele. Por um minuto pensou que morreria de frio. Prendeu o mais que pôde a respiração e esperou.

- Então, acha mesmo que vai escapar, bobinha? - ouviu o bandido gritar.

Naquele momento, Carol descobriu que não era apenas uma bobinha. Achava-se simplesmente ridícula, metida naquele tanque frio, coberta por um trapo imundo.

De repente, o ronco de um carro aproximou-se e cessou com um violento ranger de freios. Carol estremeceu de sus­to, mas o lamento desesperado do seu perseguidor revelava que havia alguém em pior situação do que ela. Teve a audá­cia de dizer:

- O chefão está chegando! Você vai pagar caro.

 

Ei! Depressa, entre aqui! - sussurrou a voz enérgica de uma mulher. Apesar do tom baixinho, era uma voz de quem sabia mandar.

Carol ouviu os passos do seu carcereiro, que sumia dentro da cozinha. Sem imaginar o que poderia estar acontecendo, pensou que estivesse delirando. Uma idéia terrível fez sua cabeça girar, como numa vertigem.

"Que mulher é essa? Será a confirmação de minhas suspei­tas? Regina faz mesmo parte do bando do Homem do Terno Branco? Ou será que ela descobriu o plano do falso guia e veio nos salvar?"

Logo em seguida, o pano imundo que a cobria foi retirado violentamente. E, encolhida no fundo do tanque, Carol ficou estática, incapaz de qualquer reação.

- Quietinha! Venha comigo! - ordenou a mulher.

Carol estava atônita. Preparara-se para tudo, menos para dar de cara com uma mulher que surgira do nada. Puxada para fora do tanque e jogada na escuridão fria da noite, foi empur­rada pela desconhecida por uma porta situada sobre peque­ninos degraus, nos quais nem havia reparado, apesar de ficarem em frente do tanque.

- Quem é você? O que quer? - perguntou a garota, quando se viu no meio de um quarto escuro.

Quando a luz de um abajur iluminou o local, Carol deu de cara com uma mulher alta, loira, de cabelos cacheados que passavam dos ombros. O rosto ainda jovem, a roupa justa, uma calça preta e uma camiseta branca que denunciava seios grandes, provavelmente siliconados, as unhas longas e vermelhas, da cor do batom que usava. O tipo escrachado de pistoleira, de mulher metida a fatal, deixou Carol ainda mais atônita. Mas aliviada.

Não. Não era Regina. A mulher à sua frente era o oposto da amiga esotérica de sua mãe. Regina era mignon, baixinha, quase gordinha, cabelos escuros e curtos, discreta.

Ao mesmo tempo que sentiu alívio por não reconhecer Regina naquela mulher, sentiu raiva também. Uma coisa era lidar com bandidos. Com uma bandida era diferente.

Que mulher era aquela? Não tinha dúvida de que ela fazia parte da quadrilha. Mas que relação teria com o Homem do Terno Branco? Seria a mulher dele? Impossível, ele não podia ser casado, não fazia o tipo do homem amarrado a alguma mulher. Então, era pior. Ela só podia ser amante dele. Dr. O que aquela maldita mulher estava fazendo ali? Carol não demorou a perceber que a raiva que sentia era recíproca. À sua pergunta irritada - "Quem é você"?

A mulher respondeu:

- Eu é que pergunto: quem é você? Quem pensa que é e o que fazia escondida naquele tanque?

Pelo modo de falar, a mulher deixara claro que aquele território era dela. Carol preferia a companhia tranqüila do seu carcereiro, que, metido a ser parecido com o chefão, tornara-se quase amigável. Estava agora nas garras daquela mulher desagradável, que - tinha de reconhecer - era bem mais eficiente o que os outros bandidos. Pelo menos provara que estava atenta tudo, pronta para corrigir qualquer vacilo da quadrilha.

- Ainda bem que as outras garotas não tentaram fugir! -continuou a mulher, apontando para a outra metade do quarto.

Carol não precisou voltar a cabeça para adivinhar o que ia naquela outra metade. Estiradas num beliche, no fundo quarto, estavam Duda e Paulinha.

- Vocês aqui! - disse Carol, com alegria. E tentou dirigir-se as amigas.

A mulher impediu que ela desse o primeiro passo. Mantenha-se longe delas! Será melhor para todas vocês! Duda! Paulinha! Estou aqui! Podem ficar tranqüilas – falou Carol, ao mesmo tempo que se deu conta de que as amigas apenas dois vultos brancos e imóveis.

Mais uma vez a mulher interveio:

Fui obrigada a amordaçá-las e prendê-las na cama. Se não agisse assim, seriam capazes de estragar tudo. Só sabiam chorar e espernear.

Você não pode fazer isso! Elas não têm nada a ver com essa história! Se o chefão quer se vingar de mim, que se vingue. Mas deixe-as fora disso! - protestou Carol, angustiada por não poder fazer nada pelas amigas.

Não posso arriscar. E se elas fugirem, assim como você tentou fugir? Se não fosse eu, aquele babaca do Carlos estaria perdido. O chefe chegou agora mesmo, e se você tivesse escapado - justamente você - não sei o que seria dele!

Um clarão estourou dentro dela. O Homem do Terno Branco estava ali! Finalmente, teria outra chance de ficar fren­te a frente com o seu arquiniimigo. A mulher dissera que ele havia chegado há pouco. Não tinha dúvida. Mais cedo ou mais tarde, ele a chamaria. Sentiu-se, então, confiante para desafiar aquela mulher.

- Pois eu vou contar ao chefão que consegui escapar na maior facilidade!

A mulher fez cara de desdém, que não desmanchou nem mesmo para tomar um café de uma garrafa térmica sobre a mesa.

- Não adianta, garota. Será a minha palavra contra a sua. Para todos os efeitos, eu trouxe você para cá a fim de evitar que uma dessas idiotas desse um chilique. Aliás, quase que isso aconteceu.

-          Como assim?

A mulher apontou para Duda:

- Aquela ali deu um ataque quando entrou aqui. Chamava por você o tempo todo, dizendo que só você poderia salvá-la. Finalmente adormeceu. Melhor para ela. Amanhã tem de estar em forma.

Carol sentiu um súbito desânimo, que aos poucos amor­teceu-lhe os membros e trouxe-lhe um cansaço que era qua­se sono. Deixou-se cair numa poltrona, fixou um ponto no teto com os olhos pesados, depois fechou as pálpebras e adormeceu.

O repouso não demorou muito. Às primeiras luzes da ma­nhã, foi despertada por uma violenta sacudidela da mulher.

- Estão chamando você lá dentro!

Carol esfregou os olhos e a primeira coisa que viu foi o ros­to abatido e apavorado de Duda, voltado em sua direção. For­çou um sorriso e com as mãos fez um gesto de que tudo sairia bem. Que confiasse nela.

- O chefão quer falar comigo? - perguntou à mulher.

Não. Claro que não. Você é mesmo pretensiosa. Acha que o chefão tem tempo a perder com você? Ele quase nunca vem aqui. Quem está chamando é o Carlos, que também man­da na gente.

Você disse que ele havia chegado! Além disso, o chefão recomendou aos bandidos que não me fizessem mal. Como agora diz que ele não tem tempo a perder comigo?

Não era apenas ela que sentia uma espécie de ciúme ao saber que a quadrilha contava com uma mulher - era duro de admitir - tão exuberante. Também a carcereira relutava em aceitar a atenção que o chefão dedicava a uma guria.

E as duas desconfiaram uma da outra, criando uma tensão inesperada na relação entre seqüestrada e seqüestradora. Levada pela mulher, Carol atravessou o quintal onde se escondera no tanque e penetrou na casa da frente, de onde, inutil­mente, conseguira fugir na véspera. Voltava agora à mesma prisão, com menos esperança de fugir outra vez.

Carlos, o aprendiz de chefe, recebeu-a com a cara mais amarrada do mundo. Mandou que ela se sentasse numa cadeira do outro lado da mesa e o esperasse acabar de tomar café.

Carol pensou em reatar a intimidade, pedindo para tam­bém tomar café, mas a cara do bandido ficara terrível e ela não teve coragem para isso. Ele estava tenso. Quando tentou acen­der o cigarro, depois do café, suas mãos tremiam.

"Deve ser por conta da bobeada de ontem", pensou Carol.

Carlos soltou uma baforada que azulou os ladrilhos ama­relos da copa e disse:

- Você é responsável pela sua própria sorte. E pela sorte de suas amigas. Não vou esconder a situação: os jornais estão fazendo um estardalhaço sobre o sumiço de vocês na serra de Petrópolis. A polícia já está metida no caso e os tiras desconfiam de que não foi um simples acidente, um grupo de adoles­centes que se perdeu na mata. Isso prejudica os nossos planos.

Queríamos fazer as coisas mais simples: vocês seriam dadas como perdidas na mata; enquanto isso, nós voltaríamos ao museu e agiríamos. Depois, vocês seriam resgatadas na floresta. Poderiam então contar o que bem entendessem. Estaríamos lon­ge e com a missão cumprida. Bem, apesar das dificuldades sur­gidas, não vamos interromper a operação. Mandei chamar você para avisar que estaremos no museu às dez horas em ponto.

Carol sentiu um frio na barriga. Pensava em Paulinha e, principalmente, em Duda. Era impossível que as duas se comportassem tranqüilamente e se submetessem aos planos dos bandidos. Qualquer fraqueza da parte delas poderia denunci­ar a quadrilha. Corriam um risco que não podiam avaliar: os bandidos não teriam complacência e elas seriam sacrificadas.

Posso pedir uma coisa? - disse Carol no tom mais sub­misso que conseguiu dar à sua voz.

O que vai querer? Ler poesias outra vez? Não vou cair nessa, garota!

Deixe-me conversar com as meninas. Dou-lhe a minha palavra que não vou traí-lo. Afinal estamos todos no mesmo barco. Ainda posso convencê-las a trabalhar de boa vontade. Elas estão muito assustadas! Seria horrível se estragassem tudo! Para ela e para nós!

Carlos ficou surpreso com aquele "nós", mas continuou aborrecido:

- Seria mais horrível para elas e para você do que para nós, isso eu garanto. - Contudo, e apesar de não ter motivos para

confiar em você, pode ir falar com suas amigas. Aliás, cuidar delas faz parte de sua tarefa. Já lhe falei isso. A sorte de suas colegas está nas suas mãos - disse ele, antes de se dirigir à mulher, que permanecia um pouco afastada.

- Vá cuidar das roupas delas e comece a preparar tudo. A menina volta sozinha para o quarto. Entregue a chave a ela!

A mulher obedeceu, mas antes reclamou:

-          É impressionante como essa garota consegue as coisas! Vocês dão muita confiança a ela, depois reclamam.

Carol caminhou para os fundos do quintal, dirigiu-se ao quarto onde estavam as amigas. Confiava apenas em sua intui­ção. Na verdade, não sabia como iniciar uma conversa tão difí­cil como aquela.

Alguém colocara sobre a mesa três copos de leite e três sanduíches de queijo. No entanto, esqueceram de desamarrar as garotas para que comessem. Naquele momento, a última coisa em que poderia pensar era comer, mas Duda e Paulinha deviam estar famintas.

Enquanto soltava as cordas que prendiam os pulsos delas à cabeceira do beliche, Carol aproveitou para contar-lhes tudo, desde o começo. Só então, ficou sabendo que ninguém ainda tinha se dado ao trabalho de explicar às garotas o que teriam de fazer.

- Aquela mulher com pinta de piranha vai providenciar roupas limpas para a gente e deveremos fingir que ela é uma professora que vai nos mostrar o Museu Imperial.

E aí os bandidos chegam, apontam revólveres para a gente e roubam tudo - interrompeu Duda, de um fôlego, sem deixar que Carol terminasse sua explicação.

Que tudo, garota? - perguntou Carol.

Duda olhou espantada para ela e depois para Paulinha. Pensou um pouco e respondeu:

Tudo, ué! Dinheiro... jóias... essas coisas que eles roubam...

Você está por fora. O negócio é o seguinte. A quadrilha está de olho naquela coroa de Dom Pedro, que vimos ontem no museu. E os bandidos precisam da gente para terem certeza de que ninguém vai impedi-los de fugir com ela. O museu é cheio de seguranças: não provocarão um tiroteio que pode sacrificar jovens como nós. Primeiro, os guardas de nada desconfiarão; depois, vamos servir de escudo, e eles poderão dar o fora... o plano é esse...

Duda abriu a boca para o que acabava de ouvir. Era fantás­tico demais para ser verdade.

Mas quem foi o desgraçado que meteu a gente nisso? -perguntou.

O chefão deles - respondeu Carol.

Mas que chefão é esse? Tem tanto chefe metido nesta his­tória - interveio Paulinha. - Todo mundo parece que é chefe.

Eu falo do chefe dos chefes, o chefão...

Você o conhece? - quis saber Paulinha.

Conheço. Conheci-o durante o caso das Aranhas Verdes. E um homem que está sempre vestido de branco...

A perplexidade estampada no rosto de Duda transformou-se em indignação:

- Eu te avisei, Carol! Eu te avisei para esquecer esse Homem do Terno Branco. Mas, não, você insistia em falar dele, em pen­sar nele. Viu no que deu? Está nas mãos dele de novo. Talvez fosse isso mesmo que queria, não é? Mas poderia pelo menos ter me deixado fora disso! Já esteve com ele?

Foi a vez de Carol estranhar a reação de Duda. Não sabia o que responder.

- Não, não estive com ele. É possível que ele esteja por per­to. Aquela vigarista me disse que ele havia chegado, depois desmentiu.

A verdade é que estava ansiosa para reencontrá-lo, mas ja­mais poderia admitir isso para as amigas. Já era difícil admitir para si mesma.

Ele planejou tudo e aqui todos o obedecem. Não temos saída. O melhor é também obedecermos e ver no que vai dar.

Não podemos fazer isso - disse Paulinha, com voz deci­dida, mas com o rosto pálido. - Ninguém vai deixar que a coroa seja roubada. Isso vai acabar em tiroteio e nós seremos as pri­meiras a morrer... E, se escaparmos com vida, nunca consegui­remos provar à polícia que nada tínhamos a ver com o roubo. Ficaremos como cúmplices do bando o resto da vida...

Nem seremos mais aceitas no colégio, ninguém mais vai querer se aproximar da gente, nossos amigos vão nos evitar -disse Duda, dando força à argumentação de Paulinha.

Carol bateu com o pé no chão, como se aquela conversa estivesse enchendo.

- Chega! Vocês só estão dizendo bobagens! Se não fize­rem o que eles mandarem, quem vai se dar mal sou eu. Me matam e depois atiram o meu corpo numa vala em São João de Meriti...

Fez uma pausa ao notar que falara em "corpo", o corpo dela, morta. E continuou:

- Não quero acabar assim. Acho melhor vocês me obede­cerem. Garanto que tudo sairá bem, é só ter um pouco de calma e usar a cabeça. Os bandidos têm um segredo para o sucesso: o sangue-frio. Pois nós também teremos sangue-frio. Isso vai confundi-los, eu garanto. Vestiremos as roupas que aquela piranha nos trouxer e a acompanharemos ao museu. Faremos a mesma coisa que fizemos ontem: olhamos os leques, as xícaras, os móveis, depois vamos para a sala da coroa e ficamos maravilhadas...

- E aí começam os tiros - comentou Paulinha.

Bem, isso não é mais com a gente. O máximo que pode­mos fazer é avisar alguém do que vai acontecer. Vamos pensar nisso enquanto é tempo.

Carol, você não percebeu que não podemos fazer nada -falou Paulinha com raiva. - Está pensando em colocar um anúncio no jornal? Talvez seja uma boa idéia: "AVISO: A CO­ROA DE SUA MAJESTADE O IMPERADOR DOM PEDRO SERÁ ROUBADA HOJE ÀS TANTAS HORAS NO MUSEU IMPERIAL DE PETRÓPOLIS. PEDEM-SE PROVIDÊNCIAS À POLÍCIA".

- Não é hora para gozação. A situação é séria. Temos de resolver o problema, mas por partes - disse Carol com voz enér­gica, percebendo que tinha de assumir uma liderança agres­siva. - Se fizermos tudo o que nos mandarem, ninguém vai nos matar lá dentro do museu. O segredo está aí: não se pode dar murro em ponta de faca. O importante é sair com vida daquele maldito museu. Depois... eles terão de esconder a coroa, dar uma solução para o nosso caso, enfim, terão muitos proble­mas para resolver, com a polícia atrás deles... é evidente que, numa hora de desespero, podem dar um fim na gente, mas surgirão acasos, oportunidades que não podemos prever, nem eles. É aí que necessitamos de sorte... sem sorte nem se atravessa uma rua, pode-se ficar embaixo de um carro...

Duda continuava furiosa com a amiga:

Perfeito! Você é mesmo um gênio! Não é por nada não, Carol, mas às vezes acho que você está do lado dos bandidos. Dos bandidos, não, do tal Homem do Terno Branco. Você precisa se ver no espelho quando fala dele. O que há? Vai recuperar um criminoso só porque ele parece bacana? Ou pretende entrar para a quadrilha?

Duda, é melhor parar por aí! Você parece estar sempre com ciúmes dos outros... primeiro, cismou com Fred... achava que ele era careta para mim... agora, vai sobrar também para o Homem do Terno Branco? Não vê que é um absurdo?!

Duda não respondeu. Baixou a cabeça e foi sentar-se no sofá num canto do quarto.

Carol percebeu que tinha sido dura com a amiga. Foi até ela, deu um beijo em sua testa e disse:

- Desculpe, Duda. Estamos nervosas... Sabe que gosto muito de você. Confie em mim. Prometo que vamos sair bem desta história.

Carol concluiu que as amigas não tinham condições de dar qualquer ajuda, pelo menos ali, na fase de planejamento. Afas­tou-se delas e começou a pensar. Tinha de encontrar um jeito de avisar alguém sobre o plano dos bandidos. Mas como?

Antes que surgisse qualquer idéia, a porta se abriu com violência e a carcereira apareceu.

 

Regina acordou assustada e olhou para o relógio na mesa-de-cabeceira.

- Sete horas! O quê? Essa droga deve estar parada desde a manhã! - as palavras saíram-lhe num grito, que ressoou no silêncio em que a casa estava mergulhada.

Olhou em volta. Ninguém. Olhou para si mesma. Estava de camisola! A cama desarrumada. Como fora parar ali e de camisola?! Fez um esforço de memória. Não tinha a mínima idéia do que se passara na noite anterior.

- Não, não bebi tanto assim a ponto de ficar bêbada! -disse para si mesma.

Forçou mais uma vez a memória e procurou recons­tituir o que fizera nas últimas horas, antes de cair no sono. Confusa, lembrou que estivera com Pedro, conhecido recente, que se dizia guia turístico profissional, um rapaz bem apessoado que inclusive insinuara um namoro - apesar de ser bem mais jovem.

Por sugestão dele, bolara um programa para aquele feri-adão de Semana Santa. Tinha curiosidade de conhecer a Carol, desde que contara a ele sobre o caso das Aranhas Verdes. Essa seria uma forma de passarem juntos aqueles dias. Em início de caso, a presença de uma pessoa neutra, de uma garota ainda por cima, daria seriedade ao programa.

Regina levara a idéia à casa de Marta, sua amiga e mãe de Carol. Soube então que a garota, após alguma relutância, e podendo levar mais duas amigas, topara passar o feriadão na casa do pai em Correas. Ficou tudo resolvido: Regina e o guia ficariam perto, em Araras, na casa de uma prima dela. No dia seguinte, se encontrariam para passear.

E o programa foi cumprido. Deixaram as garotas em Correas, marcando o passeio pela mata para o dia seguinte. Foram dormir em Araras. Na casa da prima, recém-divorciada, havia uma amiga dela. O grupo era pequeno, somente quatro pessoas, mas animado.

A TV estava ligada na sala, ninguém prestava atenção ao final da novela exibida naquele horário. Fizeram uma ceia na base de vinhos e queijos.

De repente, Pedro levantou-se e veio sentar-se a seu lado. Baixinho, chamou-a para dar uma volta, tomar alguma coisa num barzinho que ele conhecia.

Regina também queria ficar sozinha com ele, mas seria uma indelicadeza para com a prima, em cuja casa se hospe­dara. Pedro percebeu a dúvida dela, entre a vontade de sair e de ficar. Tomou a iniciativa:

- Regina e eu vamos dar uma volta. Preciso conversar com ela, acertar umas coisas... acho que vocês entendem, não é?

Era um tipo de pergunta que só admitia uma resposta na base do "claro que entendemos".

Regina se lembrou de um detalhe: ao entrar na Blazer azul e reluzente de Pedro, ele colocou um CD para tocar, Maxwell's Urban Hang Suite, dizendo que seria um som ótimo para a trilha musical de um namoro. E não demo­rou muito para, ainda na estrada, encostar o carro na fren­te de um bar cujas mesas de madeira tinham, cada uma delas, um vasinho que servia de castiçal para uma vela vermelha acesa.

Pedro escolheu a mesa no canto mais escuro, onde mal podiam ser observados e pouco viam o que acontecia em volta. Pediu ao garçom a carta de vinhos, puxou sua cadeira para perto de Regina e, num movimento quase que contínuo, deu-lhe um beijo. Surpresa, Regina nem sabia se tinha gostado ou não daquele primeiro beijo.

- Fiz um estrago em seu batom. Não quer ir ao toalete? Ao voltar à mesa, Regina encontrou o vinho já servido.

Era um tinto de 1985, e Pedro explicou que se tratava de uma boa safra do Tignanello, região da Toscana, na Itália, uma safra considerada extraordinária pelos entendidos.

Regina quase escutou, mais uma vez, as palavras ditas por ele, antes de lhe entregar a taça:

- Repare. Tem cor rubi brilhante, com reflexos alar jados, bouquet elegante e persistente, sabor seco e aveluda É um puro-sangue.

Seguiu-se uma escuridão total. Por mais que se esfo casse, ela não conseguia lembrar do que aconteceu depois primeiro gole.

Desistiu de forçar a memória e levantou-se da car Abriu a porta do quarto e chamou por Pedro. Nenhuma re posta. Gritou pela prima. Nada. Gritou pela amiga da prir Nada. Foi de cômodo em cômodo. Ninguém.

Na cozinha, preso na geladeira por um ímã, havia um bilhete:

 

Uns amigos passaram por aqui e nos convidaram pa almoçar em Itaipava. Depois iremos até a casa deles, em S cretário. Não te chamamos porque Pedro recomendou que deixássemos você dormindo. Parece que beberam vinho de mais. Se precisar de alguma coisa, estamos no celular. As cha­ves do meu carro estão sobre a cômoda, no meu quarto Se precisar, pode usá-lo.

Até a noite, Beijo.

 

A casa não tinha telefone. Regina correu até o quarto para pegar o celular. Não estava na bolsa, nem na mesa-de-cabeceira, nem no armário, nem nas gavetas. Correu até o quarto da prima, pegou as chaves do carro e só se deu conta de que estava de camisola, quando engrenou a marcha à ré para sair da garagem.

Entrou novamente em casa, enfiou o primeiro jeans, a camiseta que encontrou na sacola que trouxera e partiu em direção à casa do pai de Carol, em Correas.

O relógio do carro marcava 20h30, quando avistou a casa de Jorge. E não entendeu quando viu, estacionado na porta, o Gol prata de sua amiga, mãe de Carol. Como? Era impos­sível. Marta jamais iria à casa do ex-marido, ainda mais sabendo que ele estava de namorada nova.

Alguma coisa de grave acontecera. Sem sequer tocar a campainha, invadiu a sala. O tumulto de vozes transformou-se em silêncio. Encontrou uma reunião de pessoas que seria improvável, a menos que houvesse uma emergência. Lá estavam Jorge, a namorada dele, Marta e Fred, o namorado de Carol. Todos olharam com raiva para Regina, que ficou paralisada no meio da sala.

Marta rompeu o silêncio provocado pela chegada da amiga:

- Onde está minha filha? Onde estão as amigas dela? Regina não conseguiu responder.

Marta insistiu, desta vez mais agressiva.

- Onde está minha filha? O que fizeram com ela?

Atordoada pela revolta contra ela, Regina demorou para responder:

- Não sei. Pensei que estivessem aqui!

Não sabe? Como assim? Não sabe? Claro que não pen­sou que estivessem aqui, senão não teria entrado aqui com essa cara de desespero. Só te aviso uma coisa: vai ter de dar conta da minha filha - disse Marta, cada vez mais alterada.

Calma, gente, vamos conversar. Assim não vamos che­gar a nenhuma solução - interveio a namorada de Jorge.

Acho melhor você ficar fora disso - disse Marta para ela. - O assunto não lhe diz respeito. É coisa que só interes­sa a mim e ao Jorge, que somos os pais.

Diante de clima tão tenso, Fred achou melhor nem abrir a boca.

Jorge percebeu que precisava dominar a situação, dramá­tica em si mesma, e que por isso não comportava um bate-boca paralelo entre as duas mulheres, a ex-esposa e a atual namorada. O importante era encarar o problema com san­gue-frio: Carol e as amigas tinham desaparecido.

Antes da chegada de Regina, havia ainda a esperança de que as garotas, após o passeio pela mata, tivessem ido visi­tá-la. O guia da excursão havia dito que ela passara mal na véspera, seria natural que dessem um pulo até Araras, para verem a amiga. Mas agora, com ela ali, tão espantada quan­to eles, era evidente que alguma coisa acontecera com a fi­lha e as colegas.

Como pai de Carol e dono da casa, ele decidiu assumir o lugar que lhe competia.

- Marta! - falou energicamente. - Tenha calma! Assim você não vai resolver nada. Só vai piorar as coisas!

Depois, dirigindo-se a Regina:

- Aquele seu amigo, que é guia de turismo ou coisa que o valha, esteve aqui hoje bem cedo para o passeio que tinham combinado. Disse que você passara mal e ficara descansando em Araras. Garantiu que estariam de volta até duas horas da tarde e que eu não precisava me preocupar.

Jorge fez uma pausa e continuou:

- Como não apareceram até as quatro horas, então resolvi ligar para saber se tinha notícias. Como não tinha o número de seu celular, telefonei para Marta, mas não conse­gui falar com você: estava fora de área. Liguei novamente para Marta e pedi o telefone da sua prima em Araras. Ela não tinha. Você conhece sua amiga, ela ficou histérica. Menos de duas horas depois apareceu aqui com Fred. Queria que eu desse conta da filha dela - que também é minha filha. Está­vamos discutindo se devíamos chamar os bombeiros ou a polícia, os bombeiros são especializados em resgatar pessoas perdidas nas matas. Aí você chegou. E agora temos a certeza de que elas desapareceram.

Marta não gostou de ser chamada de histérica:

- Jorge, você não entende. Tive meus dois filhos seqües­trados há pouco tempo. Tenho motivos para ficar preocupada!

A namorada do pai de Carol ia dizer qualquer coisa, mas se mancou. Deu apenas uma olhada atravessada para Marta.

Entendo você - respondeu Jorge. - Só acho que nervo deste jeito não vai resolver nada. Vamos por partes para entendermos o que está acontecendo. Regina, você está melhor

Eu não estava doente. Tomei um vinho ontem à noite apaguei. Acordei há pouco, às sete da noite.

Como dormiu tanto tempo? - perguntou Jorge.

-          Não sei. Só sei que o vinho era de safra... e caí no sono Marta voltou a exaltar-se:

Você não tem jeito mesmo! É uma doida! Aliás, a doida sou eu, deixando minha filha com você!

Até parece que a Carol é uma garotinha inocente... defendeu-se Regina.

Jorge voltou a pedir calma.

-          Já pedi que parem de discutir. Assim não chegaremos nenhuma solução.

E voltando-se para Regina:

-          Tudo leva a uma suposição: o guia de turismo. De onde você o conhece?

Regina baixou a cabeça, como se afinal admitisse um culpa:

Conheci-o há um mês, mais ou menos, na academia onde faço aeróbica. Ele deu em cima de mim.

Não estou dizendo que ela é irresponsável? - Mart interveio.

Sem dar atenção ao comentário da ex-mulher, Jorge, pediu: - Continue, Regina.

- Saímos algumas vezes, sem compromisso, íamos ao Bar Lagoa comer salsichão e fritas, tomar um chopinho. Ele quis saber sobre minhas amigas. Falei sobre Marta. Ele perguntou se ela tinha filhos e acabei contando sobre a Carol e o episó­dio das Aranhas Verdes. Ficou impressionado. Perguntava por ela e me pediu que a apresentasse. Achei natural a curiosidade. Afinal, quem não se impressiona com ela? Até que veio o convite para passar o feriado da Semana Santa em Petrópolis. Sugeriu chamar Carol, era uma oportunidade para conhecê-la...

Subitamente, como se lembrasse de alguma coisa desa­gradável, Regina parou de falar. Voltou-se para a namo­rada de Jorge e pediu um trago do cigarro que ela acabara de acender. Deixara de fumar desde que aderira ao esote­rismo, mas estava nervosa demais. Deu uma longa traga­da e continuou.

- Preferi ficar hospedada na casa de minha prima em Ara­ras a ir para um hotel em Petrópolis. Afinal, eu ainda não assumira o namoro com Pedro. Ele não se opôs, mas quis ter certeza de que a Carol iria. Assim, na segunda-feira, à noite, fui a casa de Marta para convidar a garota. Quando cheguei lá, Carol estava emburrada com a história de ter de vir para Correas, foi então que ofereci a carona. Surgiu a idéia do pas­seio na mata, já que ele era guia... o resto vocês já sabem.

Marta explodiu:

- Ainda insiste em chamar aquele vigarista de "guia" cafajeste, isso sim.

Jorge mais uma vez ignorou a ex-mulher:

- Em vez de chamar os bombeiros, é melhor ligar para a polícia.

 

Quando a mulher que funcionava como carcereira entrou pela porta, foi um espanto: não fosse a expressão dura no olhar, ninguém diria ser a mesma que tomava conta das garotas naquela prisão. Estava totalmente mudada. Nada que lembrasse a pistoleira de antes.

A roupa, o jeito, a maquiagem, o cabelo, nada lembrava a mulher que acompanhara Carol à cozinha para uma con­versa com o aprendiz de chefe, e, contrariada, entregara-lhe a chave do quarto para que tivesse uma conversa a sós com as amigas.

Usava agora um jeans claro, nada justo, nada sensual, uma camisa branca amarrada por um nó na cintura e cujas mangas compridas estavam enroladas até o cotovelo. Calça­va tênis. O cabelo amarrado displicentemente num rabo-de-cavalo, um batom rosa que pouco chamava atenção, e, sobretudo, como detalhe dos detalhes, óculos de lentes fortís­simas, tipo fundo de garrafa.

No entanto, a arrogância continuava a mesma. Batendo as mãos, ela ordenou:

- Dentro de meia hora quero todas lá embaixo. E quieti­nhas, sem criar confusão!

Um rapazola, com pinta de entregador de pizza, entrou pelo quarto com um enorme embrulho amarelo. A mulher rasgou a embalagem e surgiram roupas compradas para as garotas. Calças de brim, azuis, pretas e brancas; camisetas de várias cores, modelos e tamanhos; pares de tênis e sandálias de números diversos; e uma única minissaia plissada, cor de vinho.

- Vistam-se! Vejam o que fica melhor em quem. Tem uns alfinetes aí nessa caixa que veio junto com o embrulho, para ajustar qualquer coisa... Ah! Já ia esquecendo. A minissaia é para você - disse a mulher apontando para Carol. - São ordens do chefão.

Carol foi para um canto e experimentou a saia plissada cor de vinho. Não chegava a ser feia, mas era fora de moda. Parecia com aqueles antigos uniformes de colégio de freira. No entanto, no corpo de Carol ganhou personalidade, cain-do-lhe bem. Dava a impressão de ter sido feita sob medida.

- O chefão tem mesmo olho clínico - comentou a viga­rista, ao ver a garota com a saia, que deixava à mostra uma boa parte das coxas.

Carol teve vontade de mandá-la para o inferno. Mas pre­feriu calar-se. Até porque, naquele instante, sentiu Duda se aproximar dela, com uma cara esquisita.

- Que que há? - sussurrou ela, para não ser ouvida pela mulher. - Algum problema?

Duda não disse nada. Limitou-se a colocar na mão de Carol duas tiras de papel. Eram recibos da padaria vizinha ao colégio, onde costumavam comprar coca-cola e sanduíches.

Não precisaram trocar palavras. Carol compreendeu a ajuda da outra. Naqueles dois papeizinhos poderia ser es­crita uma mensagem. Depois, era entregá-los a alguém, que não pertencesse à quadrilha, para que tomasse provi­dências.

Caneta não foi problema. Num canto do quarto, havia revistas de palavras cruzadas e lá estavam duas esferográfi­cas, uma azul, outra vermelha. Carol dirigiu-se ao canto mais afastado do quarto e, para ganhar tempo, tirou a saia, alegando que havia alguma coisa errada. Pregou uns alfine­tes aqui e ali, mas, sem que a mulher percebesse, deixava-os cair no chão. Tantas fez que a mulher afinal se distraiu com Paulinha, que realmente tinha problemas: como era magri­nha, todas as calças ficaram largas; dava folgadamente duas Paulinhas dentro delas. A mulher teve de ajudá-la, abaixan-do-se e colocando alfinetes na cintura e nas laterais, um a um, modelando o caimento da calça mais apropriada ao corpo dela.

Carol não perdeu tempo. Pegou uma esferográfica e escreveu no verso do talão da Padaria Beija-Flor:

HOJE ASSALTO À COROA IMPERIAL.

Acabou de escrever, e reparou que a carcereira continu­ava ajoelhada ao lado de Paulinha, metendo alfinetes na calça que ainda estava larga. Carol teve tempo de escrever outra mensagem no papelzinho que sobrara:

UMA QUADRILHA VAI ROUBAR A COROA HOJE.

Se perdesse um dos bilhetes, teria outro. Escondeu-os na cintura entre o tecido da saia e sua pele, escolheu uma cami­seta branca qualquer, sem mangas, que também lhe caiu bem e declarou-se pronta. Tão pronta que foi ajudar Duda a esco­lher uma camiseta, que combinasse com a calça branca de brim que já vestira.

Meia hora depois, as três garotas estavam concentradas lá embaixo, no pátio. A carcereira, agora, transformada em professora, examinou-as uma a uma, avaliando o conjunto.

- Perfeito! Estou vendo que vocês decidiram colaborar com a gente. Não podia ser melhor - comentou ela.

Dirigiram-se para a casa-grande, onde, na sala, se reuniam os bandidos que participariam da ação. Eram três homens, até então desconhecidos, e Carlos, que olhou com raiva para Carol. Ela fingiu que não percebia - era melhor não tê-lo como inimigo pessoal - e sorriu para ele. Não adiantou. Carlos amarrou a cara e com a cara amarrada ficou.

Um dos bandidos começou a detalhar o plano, pedindo atenção ao cumprimento de todos os pormenores, sem dei­xar de fazer ameaças no caso de alguma coisa falhar.

Carol sentiu falta do chefão. O Homem do Terno Branco não estava ali.

"Será que ele não vai aparecer? Por que então fez tanta questão de escolher uma minissaia para mim se nem sequer vai me ver vestida com ela? Bem, ele deve se reservar para os grandes momentos", pensou. "É um homem que gosta de trabalhar limpo, não iria se sujar num trabalho daqueles. Deixava isso para a ralé."

- Marcamos o assalto para hoje, que, além de ser sábado, é feriado... Estamos na Semana Santa, e provavelmente haverá muitos visitantes... Amanhã será Domingo de Páscoa, isso dificultará as buscas da polícia... Não se assustem, pro­curem ser naturais... nada de mal acontecerá, a menos que...

Olhou para cada menina, e mais demoradamente para Carol. Duda, que se distraíra com a história das roupas, caiu em si e ameaçou um choro. O homem deu um berro:

- Se chorar, não vai nem ao museu! Ficará aqui mesmo! Morta!

A brutalidade da ameaça tornou Duda e Paulinha lívidas. Baixaram a cabeça à espera das próximas ordens. Quando a mulher avisou que era hora de partir, ao cruzar a porta de saída Carol olhou para trás e encarou firmemente o bandido que ameaçara sua amiga.

Pouco depois, embarcavam na mesma Van esverdeada que as apanhara na floresta. Só que agora, em vez de imun­da, ela reluzia como a Blazer do bandido que se fez passar por guia de excursão.

À frente, ao lado do motorista, ia a carcereira. Antes de o carro sair, dois bandidos vieram com as vendas e taparam os olhos das garotas. Um deles lembrou:

- Quando chegarem perto da cidade, parem o carro e tirem as vendas das garotas...

As janelas da Van tinham pesadas cortinas, presas nos vidros das portas e da traseira. Impossível levantá-las.

Dentro do carro o silêncio era absoluto. Todas sabiam que nada podia ser feito. Meia hora depois - ou pouco mais - a Van parou. As garotas perceberam que o motorista abria a porta e vinha para a parte dos fundos do carro. Começou então a tirar as vendas das meninas. Depois, com leve toque num botão, as cortinas das janelas subiram.

Não foi difícil reconhecer que já estavam no centro de Petrópolis: a Van parara ao lado do canal por onde corre um rio. O motorista voltou ao seu lugar e o carro continuou o seu caminho.

- Qual é mesmo o nome desse rio? - perguntou Paulinha, querendo aliviar a tensão.

- Rio Piabanha - falou Carol.

Mas o assunto morreu ali. Todas sentiam um frio no es­tômago, uma imprecisa vontade de vomitar, e, até mesmo, uma certa sonolência.

A Van começou a parar em diversos sinais. Carol pensou num gesto suicida: "Quando o carro parar, abro a porta e me jogo no chão."

Foi então que algo espantoso aconteceu: a mulher adivi­nhou a intenção da menina. Tão logo o carro começou a di­minuir a marcha para parar no sinal seguinte, ela puxou um pequenino revólver e apontou em direção às garotas:

- Se alguma de vocês tentar fugir, será morta na hora! Carol não se deu por achada. Cutucou as amigas, dando razão à mulher:

- Vamos aproveitar o passeio. Seremos soltas depois e teremos muito o que contar. O importante é que tudo termi­ne bem para eles e para nós...

As duas colegas estranharam a atitude de Carol. Mais uma vez, ela parecia estar do lado dos bandidos. Seria ela também da quadrilha? Ou apenas tinha uma atração pelo perigo e, sobretudo - pensava Duda - atração doentia pelo Homem do Terno Branco?

Não houve tempo para que reclamassem de Carol. A Van parou em frente ao museu e a carcereira saltou, com pinta de professora que leva alunas a uma visita cultural.

Abriu as portas e bateu palmas:

- Vamos! Vamos que precisamos ver muita coisa! Carol saltou, fingindo-se empolgada. Precisava fazer com que as amigas se sentissem desinibidas. Sabia que tinha de Pensar e agir rápido, mas sem chamar atenção para o grupo.

Precisava que todas cooperassem. Do contrário, com as caras baixas e assustadas, poderiam despertar suspeitas dos guar­das e provocar a reação violenta dos bandidos, que já deviam estar espalhados pelo museu.

Aos poucos, Paulinha desencabulou e começou a rir, obrigando Duda a rir também, pois compreendia o olhar de Carol pedindo-lhe que relaxasse.

O grupo subiu os degraus que levavam às portas princi­pais. Carol olhou para dentro do museu e teve uma idéia repentina. Com cuidado, para não ser percebida, apanhou os dois bilhetinhos que deixara na cintura da saia, pelo lado de dentro. Descobrira um meio de enviar aquelas mensagens. Lá estavam os porteiros uniformizados, de joelhos, um de cada lado das portas, colocando pantufas nos visitantes.

Era a sua única oportunidade.

Agarrou Duda pelo braço e levou-a para um canto. Esta­vam rindo das pessoas que cambaleavam com as enormes pantufas - e isso relaxou a vigarista, mais preocupada com Paulinha, que voltou a ficar tensa e cabisbaixa. Temia que a garota tivesse um troço qualquer nos nervos e gritasse, ou saísse correndo pelos jardins do museu. Seria o fim da qua­drilha: mesmo que a matassem na fuga desesperada, o plano dos bandidos estaria furado.

Percebendo o perigo que corria, a mulher enlaçou Pauli­nha pela cintura, num gesto maternal. Se a garota desmaias­se, já estaria amparada e não causaria tanto escândalo. E correr, seria tudo o que Paulinha não poderia fazer: a mão da carcereira era forte, apertava-lhe a cintura como uma garra. Mas continuava gentil:

- Você vai gostar dos móveis antigos... - a mulher levan­tava a voz, para tranqüilizar os bandidos que rastreavam a entrada do grupo no museu e já deviam ter percebido que o pavor de Paulinha representava um perigo.

Carol e Duda entraram pela porta principal, enquanto a vigarista e Paulinha penetraram por uma das laterais. Um velhinho, ajoelhado, olhou para os pés de Carol e apanhou duas pantufas cinzentas. Colocou-as na posição para a menina calçá-las. Carol fingiu dificuldade:

- Não tem uma pantufa maior? Minha sandália não está entrando bem nessa aí...

Dizendo isso, abaixou-se para verificar a pantufa. O velho já ia procurar outro par quando viu cair em sua mão um pedacinho de papel.

-          Esta aqui está boa! - falou Carol, esticando-se em dire­ção à pilha de pantufas.

Por um segundo, seu rosto passou rente ao ouvido do porteiro, surpreendido com aquele papelzinho:

- Leve este papel aos guardas... depressa... é um assalto! - murmurou ela.

O velho parecia não ter entendido nada. Carol, afinal, apanhou o outro par de pantufas, experimentou-o e deu-se Por satisfeita.

No hall, Duda a esperava. E a carcereira acabava de atra­vessar a outra entrada, segurando Paulinha pela cintura.

Carol olhou para trás. Queria saber se o porteiro que re­cebera o bilhete levantara-se para tomar providências. Desesperada, percebeu que nada acontecera. O velho conti­nuava de joelhos, colocando pantufas em outros visitantes. Será que não entendera nada? Jogara fora o bilhete? Era o fim de todas as suas esperanças.

Sem largar a cintura de Paulinha, a carcereira falou com voz que não admitia réplica:

- Vamos começar pelo salão à esquerda... todas juntas, por favor...

Caminharam com naturalidade pelos corredores, fingin­do interesse em tudo aquilo que, na véspera, haviam visto na companhia de Regina e Pedro. Assim como fizera o falso guia turístico, vez ou outra a "professora" fazia um comentário óbvio sobre isso ou aquilo.

Carol olhava em volta, procurando algum indício dos bandidos. O museu estava relativamente cheio, mas ninguém ali parecia pertencer ao bando do Homem do Terno Branco.

Depois de quase meia hora, aproximaram-se da sala onde estava a Coroa Imperial. Carol teve vontade de se adiantar, para ver se haviam montado algum esquema de segurança. Talvez a sala estivesse cheia de guardas ou, quem sabe, a direção do museu, alertada pelo porteiro, tivesse fechado o local, alegando um motivo qualquer.

A carcereira notou que Carol se desgarrava e chamou-a com raiva:

- Fique perto da gente, podemos nos perder aqui dentro destas salas!

Desanimada, a menina constatou que nada acontecera. Um foco de luz dirigido para a vitrine de cristal iluminava fantasticamente a jóia mais preciosa da América do Sul!

A carcereira deu um jeito de juntar as meninas num só bloco. Colocou-as à sua frente, de modo que apertava com um braço a cintura de Carol, com o outro o ombro de Paulinha, e assim conseguia espremer as duas contra Duda. Se alguém reparasse detidamente, notaria que alguma coisa se passava com aquele grupo. Mas ninguém prestava atenção nelas, todos os olhos se voltavam para aquela cascata de luz que jorrava da Coroa Imperial.

Tão próximas umas das outras, elas podiam ouvir a bati­da do coração de cada uma: estavam aos saltos. Os visitantes que se postavam diante da coroa, após admirá-la um tempão, finalmente se mexeram e foram embora. Chegara a vez delas.

Entraram na sala pequena e solene onde a jóia resplan­decia como uma fonte que jorrava luz.

Gesticulando como uma professora que dá explica­ções, a carcereira falava baixinho ao ouvido das garotas, dando detalhes sobre o peso, tamanho, número de dia­mantes e de pérolas. Carol fingia prestar atenção ao que eia informava, mas seus olhos percorriam todos os cantos, procurando algum sinal de alerta contra o assalt iminente. Até que ela viu três homens entrarem ao mesm tempo e se aproximarem da vitrine onde repousava coroa. Seriam os bandidos? Eram.

De repente, eles tomaram posição nas portas que dava acesso à sala e exibiram pequenas metralhadoras. Dois gua das, um de cada lado da vitrine, fizeram um gesto, como fossem sacar suas armas.

Um dos bandidos gritou:

- Fiquem quietos! Se alguém se mexer, nós fuzilamos garotas!

Os guardas se imobilizaram. Olharam para as menina que agora não mais precisavam esconder o medo. Um dos bandidos apontava sua arma para Carol, prevendo que e seria a primeira a tentar uma reação.

Fingindo pavor, a carcereira-professora suplicava que não atirassem. Elas não fariam nada porque nada podiam faz realmente, nada tinham com a história. Não mereciam ser sacrificadas.

Dominados os dois guardas, um dos bandidos abriu camisa e tirou do peito um espécie de colete, que na verda era uma sacola. Dentro dela, havia um grosso martelo. De uma pancada violenta no cristal.

Não se ouviu o barulho do ferro contra a vitrine. Naque mesmo instante o sistema de alarme entrou em funcion mento. Em todas as salas soavam sirenes, e luzes vermelhas piscavam. De todos os cantos surgiam guardas e porteiros, prontos para o tiroteio, cujas primeiras vítimas seriam Carol e suas amigas.

 

Foi tudo muito rápido. Com duas ou três marretadas, a vitri­ne de cristal partiu-se em frangalhos e a Coroa Imperial de Sua Majestade, o Imperador Dom Pedro II, surgiu nua e crua ao alcance das mãos dos bandidos.

Um deles tirou de dentro da jaqueta uma sacola de feltro vermelho e nela colocou a jóia.

O barulho tornara-se terrível. Carol sentia que seus ouvi­dos iam estourar. Contudo, não ouvia tiros. Nem um só disparo fora feito até então. Os guardas se aproximavam, che­gavam a entrar na sala, mas, quando viam as garotas sob a mira dos bandidos, nada faziam.

Um deles, que parecia liderar o assalto, tirou do bolso uma espécie de walkie-talkie, que funcionava também como alto-falante:

- Atenção: ninguém se mexa! As garotas vão seguir com a gente. Se alguém tentar reagir ou nos seguir, elas serão mortas!

Carol, Duda e Paulinha, agarradas umas nas outras, es­tavam tão apavoradas que chegaram a esquecer a realidade: seguraram-se à carcereira, como se ela fosse uma professora de verdade e as pudesse proteger, e não um elemento da quadrilha.

Desceram as escadas, largando pelos degraus as pantufas que as atrapalhavam.

No pátio do museu, um Monza branco e, para variar, imundo, esperava por elas. Em meio à confusão, Carol se sur­preendeu com um pensamento que nada tinha a ver com a situação: "Não consigo entender por que o Homem do Terno Branco, tão poderoso, tão rico, tão sofisticado, só trabalha com carros imundos..."

Sentiu-se egoísta e má. No momento em que suas amigas e ela própria corriam risco de vida, ainda assim ela se preo­cupava com o Homem do Terno Branco, como se fosse um outro homem qualquer, e não o responsável pelo perigo que as ameaçava.

Tão logo entraram no Monza, o carro partiu. Carol olhou para trás. Percebeu que os bandidos pegavam a Van, inclusive o que carregava a sacola vermelha, inchada pela jóia mais valiosa da América do Sul.

O assalto tinha sido um sucesso.

Os dois carros corriam agora na Estrada União-Indús-tria, após inúmeras voltas pelo centro de Petrópolis, a fim de impedir uma possível perseguição. Por qualquer motivo ­provavelmente pela excitação do momento - ninguém se lembrara de vendar os olhos das meninas, e elas conseguiam saber para onde estavam sendo levadas.

"Não é que esses cretinos conseguiram roubar a Coroa Imperial!", pensou Carol. "O que aquele porteiro idiota terá feito do meu bilhete? Arrisquei minha vida para impedir o roubo e tudo deu em nada. No caso das Aranhas Verdes foi mais complicado, tive de usar um travesseiro, dependia exclusivamente da sorte. Desta vez as coisas não estão bem para o meu lado."

O carro corria a toda velocidade. Carol olhou para trás. Queria ver a Van, mas ela havia desaparecido. Isso significa­va que a Coroa Imperial não estava perto delas, se os guar­das e agora a polícia estavam tentando recuperá-la, o tiroteio seria em outras bandas. Já era alguma coisa. Com o sucesso do assalto, provavelmente os bandidos iriam arran­jar um jeito de soltá-las.

Não conseguiu deixar de pensar mais uma vez no Homem do Terno Branco: "É, parece que desta vez ele não vai aparecer... Para que então fez questão de escolher uma minissaia para mim se não ia me ver?"

Meia hora depois, ainda estavam na estrada - uma estra­da diferente, de terra batida, que corria paralela à via princi­pal. Carol teve a impressão de que voltavam para Petrópolis ou para o Rio. Depois de tantas curvas em trechos que ela não conhecia, perdera completamente o senso de orientação.

De repente, com uma freada brusca, o Monza parou. Es­tavam diante de uma casa ampla, cercada de varandinhas, quase oculta da estrada por uma elegante plantação de pinheiros, amendoeiras e eucaliptos.

- Vamos, vamos saltando! - mandou a carcereira, que guardara seus disfarces, seus óculos de lentes fortíssimas, recuperando seus ares de bandida.

Carol foi a última. Mas quando tentou pôr o pé fora do carro, recebeu um grito violento:

- Você não! Você fica!

A mulher sumiu com as duas garotas e Carol aguardou seu novo destino.

O motorista riu para ela e ligou novamente o Monza. Deu umas voltas pelo jardim, entrou numa alameda comprida, atra­vessou uma ponte, mais adiante passou por outra ponte. Carol teve a impressão de que voltara a cruzar o mesmo rio, em dire­ção contrária. O carro afinal parou nos fundos de uma outra casa.

Carol olhou bem e notou que talvez fosse a mesma resi­dência, vista de outro ângulo. Por que teriam feito aquilo? Deixaram Duda e Paulinha na parte da frente, depois a leva­ram para dar umas voltas compridas e inúteis, apenas para despistar. Sim, devia ser isso, ela entrava pela parte de serviço da casa cuja fachada já conhecia.

Um homem apareceu e sumiu com ela, levando-a para um quarto no fundo de um corredor. Ao entrar, Carol desco­briu que já estava se habituando a viver encrencada com bandidos. O novo quarto era simples, parecido com aquele em que estivera há tempos, quando precisara botar fogo num sofá de plástico para poder fugir.

Tinha cama, meio combalida, mas de roupa limpa; uma mesinha-de-cabeceira, com um abajur; uma poltrona num dos cantos. Havia ainda a porta que dava para um banheiro simplérrimo, mas rigorosamente limpo.

Cada um dos quartos em que estivera tinha característi­cas próprias, mas em uma coisa já tinha reparado: todos ti­nham o mesmo cheiro. Não conseguia decifrá-lo. Não era bom nem ruim. Era instigante. Isso. Instigante. Daqueles cheiros que entranham. Que ficava dentro dela. No escritório onde, pela primeira vez, encontrou o Homem do Terno Branco, também havia aquele cheiro.

"Será que existe mesmo este cheiro ou é apenas impres­são minha?"

Carol foi interrompida em seus pensamentos:

Tome isso! - ordenou o bandido que a acompanhara até o quarto. Entregou-lhe um comprimido branco e um copo de água não tão branca.

Isso é para me matar? - perguntou a menina, realmente assustada.

Não seria má idéia. Mas fique tranqüila, por enquanto é apenas para você descansar um pouco.

O homem poderia estar mentindo. Tudo era possível. Pensou em esconder o comprimido debaixo da língua, para depois jogá-lo fora, ou fazer um escândalo, qualquer coisa que a livrasse daquela situação. Mas estava realmente cansa­da. Percebeu que não adiantava lutar. Colocou o comprimi­do na boca, bebeu dois goles de água e sentou-se na cama.

O efeito do remédio foi fulminante. Quando tentou falar, sentiu a boca pastosa, a língua presa. Os olhos ficaram emba­çados. Inclinou a cabeça para buscar o travesseiro, mas não conseguiu dominar o corpo: tombou pesadamente. Apenas teve forças para murmurar, como se estivesse numa roda de amigos, contando um fato interessante:

- Roubaram a coroa...

Percebeu, ainda, que o homem tocava com a palma da mão o seu rosto, e depois abriu seus olhos, para ver a dilata­ção das pupilas.

Ela sentia tudo isso, mas nada podia fazer.

Estava correndo num areal enorme, cheio de dunas. Pa­recia Cabo Frio. Parecia o Saara. Nunca estivera no Saara... Mas já tinha visto fotos... filmes... O Sol estava enorme, pró­ximo demais da Terra. Apesar disso, não sentia calor. Pelo contrário, volta e meia um arrepio percorria-lhe o corpo todo. Depois, o Sol foi se tornando escuro, cada vez maior e mais escuro, até que tudo ficou preto à sua volta - e ela mergulhou no sono sem sonhos.

 

Quando despertou, Carol sentiu que o estômago doía, de tão vazio. Não tinha qualquer idéia de quanto dormira. Também de que adiantava pensar no tempo que havia passado?

O problema não era esse e sim saber quanto tempo teria ainda. Não conseguira evitar o roubo da Coroa Imperial, mas quem sabe poderia tentar convencer os bandidos a pouparem Duda e Paulinha. Afinal, haviam feito o papel delas e em nada mais poderiam ser úteis. Se a quadrilha tivesse de ajustar contas com alguém, esse alguém seria ela. E, no fundo, no fun­do, Carol, ainda tinha esperanças de bolar um plano para fu­gir daquela prisão, dependendo do tempo que os bandidos levassem para chegar a uma decisão sobre o que fazer com ela.

A solidão pesava. Sentia-se sozinha, e, pior, abandonada. O Homem do Terno Branco não desistira de ajustar as contas com ela. Chegara a pensar que, com o assalto bem-sucedido ao Museu Imperial, ele poderia perdoá-la. Até porque, em cer­to momento, sobretudo quando ganhara a minissaia plissa­da cor de vinho, julgava que ela teria alguma importância para ele.

O Homem do Terno Branco era implacável. Vivia e agia como qualquer outro bandido. Queria vingança. Ainda mais agora que conseguira se apoderar da Coroa Imperial. Àquela hora, com a obsessão doentia por jóias de grande valor, devia estar examinando o troféu conquistado, pedra por pedra, detalhe por detalhe, como um louco, um namo­rado, um amante.

Sem ter nada o que fazer, Carol concentrou-se em acom­panhar o vôo circular de um mosquito que zumbia à sua vol­ta. Do lado de fora, percebia o barulho de carros que chegavam e partiam, vozes abafadas que transmitiam ordens que ela não entendia. Volta e meia, uma risada mais forte -como se houvesse alegria generalizada, uma comemoração.

"Será que se esqueceram de mim?", pensou Carol, sen­tando-se na cama.

De repente, a porta se abriu. Mas não entrou ninguém. Carol suou frio, julgando que aqueles fossem os seus últimos momentos. A hora da verdade chegara. Não teria tempo para mais nada.

Pela porta aberta, as vozes soavam mais nitidamente, misturadas ao barulho de copos e garrafas. - Então, novamente aqui?

Carol sentiu um calafrio percorrer a espinha. O coração disparou. Dali a cem anos ainda seria capaz de reconhecer aquela voz, voz macia, meio abafada, como a de um amante.

Mesmo sem levantar a vista, sabia que a poucos metros dela estava o Homem do Terno Branco - seus terríveis olhos azuis, cheios de frieza e mistério, sua pele rosada, os cabelos quase brancos de tão louros, o terno todo branco.

Você? - exclamou ela, procurando firmar a voz.

Não sabia que eu viria?

Carol não respondeu. Como lhe dizer que jamais o esquecera desde que o vira pela primeira vez? Não. Definiti­vamente, não. Não podia abrir a guarda daquela forma. Afi­nal, o Homem do Terno Branco era um bandido! Dele dependia sua vida ou sua morte.

Pois eu não esqueci de você, Carolina - continuou ele, com sua voz macia-

E agora vai me matar, não é? Como faz com todo mundo. Como fez com as outras.

Se está se referindo a suas amigas, saiba que não matei ninguém. Elas farão uma pequena viagem, depois estarão livres e poderão voltar para casa. Simples precaução. Não seria legal se elas me denunciassem. Afinal, tratei-as da melhor maneira possível... dentro das circunstâncias...

- E eu? O que vai fazer comigo?

O Homem do Terno Branco começou a andar em volta do quarto, como se não tivesse pressa em responder. Examinou detidamente o local. A cama, a poltrona, abriu a porta do banheiro, não entrou, mas fez uma vistoria de longe, verificou a pequena janela trancada que dava para os fundos da casa.

Parecia não ter ouvido a pergunta.

Quando Carol desanimou de obter uma resposta, ele falou:

Até que você está bem instalada... não tem muito con­forto, mas também isso é um abrigo provisório... espero que não me queira mal por tratá-la assim. Da outra vez, instalei-a num apartamento melhor, com todo o conforto... mesmo assim você fugiu...

Não precisa lembrar... eu nunca me esqueço que minha vida ficou por um fio... tudo por causa de umas aranhas verdes...

E agora não vai se esquecer da Coroa Imperial... Parece um sonho: a maior jóia da América do Sul é minha!

Está satisfeito? Agora pode me dizer o que vai fazer comigo?

Mais uma vez o homem pareceu não ter ouvido a per­gunta. Não tinha pressa. Divagou um tempão sobre as péro­las, os diamantes da coroa. Só então, como se não desse importância ao assunto, dignou-se a responder:

- Carolina, há um probleminha que preciso resolver com você. Já lhe falei da alucinação que tenho por jóias. Mas, enten­da bem, não é simplesmente uma fascinação vulgar por jóias comuns, dessas que qualquer milionário pode comprar... Jóias que estão à venda não me interessam, mesmo que sejam exclusivas, mesmo que tenham algum valor histórico ou sentimental.

Só gosto de jóias especiais... como direi... que tenham algum defeito de fabricação, ou outra característica qualquer, que a tor­nem única e possa ser minha... compreende?

O Homem do Terno Branco parou de falar e a encarou como se a tivesse visto pela primeira vez.

- Por favor, me diga, o que vai fazer comigo? - Carol insistiu. Ele não ouviu o pedido. Continuou como se falasse para si mesmo:

- Você tem um defeito de fabricação... é isso aí... Carolina tem um defeito de fabricação... por isso ela me atrai... eu deveria dar um sumiço nela... é o que os meus homens dese­jam. Todos acham que eu devo eliminá-la, ela representa pe­rigo. Mas eu acredito que ela possa ser minha... uma jóia a mais na minha coleção de jóias com defeito de fabricação... Ninguém devia ser como todo mundo, somente as coisas especiais deviam valer a pena...

Carol sentiu falta de ar. Então o Homem do Terno Branco estava convidando-a para fazer parte da quadrilha? Um absurdo! Quem ele pensava que era? O que pensava dela? Inacreditável!

"Meu Deus! Só posso estar ficando maluca!"

Ele percebeu que Carol estava confusa.

Foi por isso que não quis roubar a Coroa Imperial sem ter você ao meu lado.

Eu não estava do seu lado. Fui seqüestrada e forçada a isso...

Forçada ou não, esteve ao meu lado. Espero que da próxima vez fique também do meu lado, mas por vontade própria... será bem recompensada....

Com o quê?

Com a vida, com jóias, com viagens pelo mundo, posso lhe dar tudo que quiser... - disse o Homem do Terno Branco - Gostou da saia que mandei para você? Desde que a vi pela primeira vez, imaginei-a assim, uma saia curta, plissada, cor de vinho... me faz lembrar... deixa pra lá... estou falando mais do que devo...

Carol achou mesmo melhor desviar a conversa.

E a coroa? Onde está ela?

Quer vê-la?

Eu também gosto de ver jóias... Lá no museu, com aquele vidro, só pude ver de longe... Gostaria de pegar nela...

O Homem do Terno Branco riu, satisfeito:

Está vendo como se parece um pouco comigo? Mas não posso mostrá-la. Primeiro, tenho de conversar com os meus homens e convencê-los a dar um sumiço em você que não seja aquele que eles querem exatamente...

O que é que eles querem?

Com tranqüilidade e sem tirar os olhos dela, ele res­pondeu:

Matá-la e jogar seu corpo num rio aqui perto... Carol engoliu em seco.

Você não vai deixar, vai?

O Homem do Terno Branco fez cara misteriosa:

-          Não sei, Carolina, não sei...

Adivinhara o efeito que causava em Carol ao chamá-la de Carolina.

- Veja, Carolina. Atraí você para Petrópolis. Fiz com que um dos meus homens se passasse por guia turístico e se aproximasse de uma amiga da sua mãe para chegar em você. Inventei a história da excursão, o rapto no meio da floresta... tudo isso para contar com você na hora do assalto. Não quero pensar na hipótese de não vê-la mais... mas sou obrigado a ser fiel ao meu bando, assim como ele é fiel a mim. E os meus homens não são como eu... são bandidos comuns, que qual­quer dinheirinho satisfaz... e eles temem porque já desco­briram que você vale mais do que todos eles...

Carol respirou, aliviada. Descobriu um caminho para tocar fundo no Homem do Terno Branco. Estava na cara que, além de tarado por jóias especiais, era extremamente vaidoso.

- Mas afinal de contas quem manda nos seus homens? Você ou eles? Vai deixar que me matem?

Ele ficou sério. Não se incomodou com a provocação. Parecia triste:

- Não sei. Honestamente, não sei. Não é assim tão sim­ples como imagina. Não posso contrariar o meu pessoal. Faz parte do meu jogo. Eles sabem muitas coisas a meu res­peito. E da outra vez você nos causou problemas. A polícia estourou um dos meus esconderijos. Perdi vários homens naquela história das Aranhas Verdes. Desta vez tive de fazer muitas manobras para conseguir chegar até você. Foi um trabalho elaborado, um grande investimento de tempo e dinheiro... De qualquer forma, tudo está bem se termina bem. E tudo terminou bem. - Para você. E para mim?

O Homem do Terno Branco olhou-a com espanto. E saiu do quarto sem responder.

 

Carol passou ali dois dias - seguramente os piores de sua vida. O Homem do Terno Branco não mais apareceu. Os bandidos limitavam-se a trazer as refeições, que eram sim­ples, para não dizer que eram insuportáveis. Pior que isso: ela sabia que aqueles homens queriam matá-la e que o chefe dos chefes - o chefão - talvez não conseguisse resistir às pressões que recebia.

Ou ela, ou eles.

Aproveitando um descuido qualquer do Homem do Ter­no Branco, poderiam colocar veneno na comida e liquidá-la.

Volta e meia, principalmente à noite, quando lhe traziam o jantar, ela perguntava pelo Homem do Terno Branco. Nem lhe davam resposta. Carol sabia que sua única esperança, paradoxalmente, estava nele. Mas ele sumira.

Na manhã do terceiro dia, ainda estava dormindo, quando foi acordada pelo barulho lá fora. Era um carro que chegava. Pensou: "Os automóveis são como as pessoas: são calmos, furiosos, alegres ou tristes de acordo com os seus donos. Pelo barulho que ouvira, o carro que acabara de chegar estava furioso".

Por mais que imaginasse uma nova encrenca, não podia suspeitar que a sua situação ficasse ainda pior.

Depois da freada violenta, ouviu passos também violen­tos pelo corredor. A porta se abriu e, diante dela, com uma sacola de feltro vermelho na mão, o Homem do Terno Branco parecia desvairado. Havia em seus olhos azuis um ponto luminoso - era apenas raiva:

- Então, queria ver a coroa, não é?

Carol sentou-se na cama, sem compreender a mudança no modo como ele sempre a tratava.

- Sim... eu pedi pra ver... por curiosidade... mas não é importante... não precisa mostrar...

O Homem do Terno Branco deu dois passos em sua dire­ção. Parecia outra pessoa, tão desarvorado que estava. Suas mãos tremiam. As narinas também. Por um momento, Carol pensou que seria espancada.

- Queria ver a coroa, não é? - repetiu ele, com uma voz que não era macia, muito menos de amante. - Pois pode ficar com ela inteirinha para você!

E jogou com raiva a sacola de feltro em cima da cama. Por um triz não acertou em Carol.

Ela não compreendia o que se passava. Pior do que a sa­cola jogada com tanta força havia a irritação do Homem do Terno Branco, que pela primeira vez parecia um bandido comum, sem nenhum controle.

- Sabe o que tem aí dentro? - continuou ele, aos berros. - Um pedaço de lata enfeitado com cacos de vidro! Essa é a maior jóia da América do Sul! A minha coroa!

O homem estava transtornado. Parecia ter uma raiva descomunal dela, mas tinha mais raiva dele mesmo.

Carol desamarrou a boca da sacola e dela retirou a Coroa Imperial de Sua Majestade, o Imperador Dom Pedro II. À primeira vista, parecia a mesma que vira no museu. Mas o peso... bem, era impossível que os bandidos não percebessem que aquilo era imitação, e das grosseiras.

A menina sentiu um frio na barriga. A jóia fora trocada. Por acaso ou por causa de seu bilhete? Não ousaria pergun­tar isso ao Homem do Terno Branco.

Aos poucos, ele voltou ao normal. Olhou mais uma vez a coroa, como se tivesse nojo de aproximar-se de um objeto tão vulgar.

- Parece uma coroa de miss - disse Carol, tentando alivi­ar a tensão.

- Pior - disse o homem. - Parece a coroa do rei Momo! Carol continuou. Enrolou os cabelos com a mão, fazendo um pequeno coque no alto da cabeça. E colocou a coroa.

- Pareço uma imperatriz? Ou uma miss?

O Homem do Terno Branco ficou sombrio outra vez. Encarou a menina:

- Vou saber quem foi o responsável por este erro! Um im­becil! Impossível que não sentisse a diferença de peso... só tenho idiotas comigo!

Ia saindo do quarto, mas antes se voltou para ela:

- Olhe, é por isso que preciso de gente como você... Para dar tiro e murro, qualquer débil mental serve.

Saiu. Mas, no meio do corredor, parou e voltou mais uma vez. Carol continuava com a coroa na cabeça.

Olhou-a com calma. E com mais calma do que ironia falou no seu tom de voz macio:

- Sinceramente, Carolina... você merecia uma coroa melhor...

Carol voltou a ficar sozinha, com a coroa de lata e cacos de vidro. Quando a porta se fechou, sentiu-se desesperada. No fundo, torcera para que a coroa de verdade tivesse sido roubada. Pelo menos, isso significaria uma solução para o seu caso: a vida ou a morte.

Agora, não. O Homem do Terno Branco estaria, naquele momento, armando uma nova estratégia para se apoderar da maior jóia da América do Sul, e, enquanto não chegasse a uma definição, ela permaneceria ali, isolada do mundo, cor­rendo o perigo de ser sacrificada a qualquer momento.

Pelo menos no caso das Aranhas Verdes, o esconderijo ficava num prédio cercado de outros prédios, uma rua movimentada embaixo... gente passando a toda hora. Teve oportunidade de pedir socorro. Ali não. A casa não tinha vizinhos. Poderia se esgoelar que ninguém a ouviria, a não ser os próprios carcereiros.

Pelas paredes, percebia os passos dos bandidos que pare­ciam viver um momento dramático. Na certa, o chefão que­ria saber quem era o culpado. E se desconfiassem de que ela havia mandado um bilhete pelo porteiro? Seria impossível, então, sair dali com vida. Mesmo que o Homem do Terno Branco tivesse planos mirabolantes a respeito dela, os outros não a perdoariam. Exigiriam sua cabeça. Com ou sem coroa, a sua cabeça, naquela hora, valia muito pouco.

Pelos passos, conhecia o velhinho que vinha trazer o jan­tar. Ele abriu a porta e colocou na mesinha-de-cabeceira um prato com um pedaço de galinha sem gosto, um pouco de farofa e arroz. Carol comeu com ansiedade, sem fome mesmo, só para ter alguma coisa para fazer. Depois deitou-se na cama e esperou que houvesse silêncio no resto da casa. Pouco a pou­co, as vozes foram rareando e ela conseguiu ouvir o barulho dos sapos que, lá fora, iniciavam o concerto de todas as noites.

"Bem, o jeito é dormir. Amanhã será outro dia."

Chutou com os pés a coroa que estava na cama. O monstrengo caiu no chão, com o barulho igual ao de uma lata de lixo que se fecha. Carol pensou em seus pais, nas amigas, no seu namorado Fred. "Será que ela podia chamar Fred de namorado? Gostava mesmo dele?"

"Que droga, tem um mosquito aqui!"

Ela se levantou. Já tinha se acostumado com o barulho dos sapos lá fora, mas um mosquito ali em volta de sua cama era irritante demais.

"Se é difícil conseguir dormir nesta espelunca... com esse mosquito então..."

Acendeu a luz. Os guardas perceberam que havia algum problema, e um deles veio perguntar se precisava de alguma coisa. Carol reclamou do mosquito. O bandido fez uma cara de desconfiança, mas pouco depois apareceu com um inseti­cida e espalhou o spray no quarto.

- Agora já pode dormir tranqüila - disse ele, antes de fechar a porta.

No escuro, outra vez, Carol virava e revirava na cama sem conseguir dormir. O zumbido continuava. Percebeu então que não era mosquito. Vinha de uma única direção.

"Será que estou ficando maluca?"

Ia acender a luz novamente, mas isso despertaria a aten­ção dos carcereiros. No escuro mesmo, procurou localizar o zumbido. A mão tateou perto da cama e esbarrou na coroa. O zumbido continuou, mas em tom diferente.

"Ué! O barulho vem daqui! A coroa imperial está zumbindo!"

Apanhou-a e aproximou-a do rosto. O zumbido tornava-se cada vez maior, como se fosse um rádio sintonizado num canal que saiu do ar.

O coração disparou de tal forma que pensou que ia vomi­tá-lo pela garganta.

"Caramba! Tem um troço aqui nessa droga!"

Tateou com a mão as pedras maiores e encontrou, na parte de cima, onde uma cruz arremata a jóia, o ponto me­tálico que alterava o zumbido toda vez que ela passava a mão perto dele.

"É um microfone!"

Ela podia entender de tudo no mundo, menos de uma coisa: eletrônica. Aquilo seria um receptor ou um transmis­sor? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Não adiantava per­der tempo procurando descobrir. Sabia que a coroa estava devidamente envenenada e bastava. E devia retornar às mãos dos bandidos.

Acendeu a luz e bateu na porta. O mesmo velhinho que trouxera o jantar apareceu.

- Que é que há, menina? Está passando mal?

- Não. É que não estou conseguindo dormir, e acho que é essa coroa que está me atrapalhando. Estou impressionada demais com ela. Não pode levá-la para fora?

- A coroa? Isso não é coroa nenhuma, é uma lata velha...

- Pois leve a lata velha embora... não posso dormir com ela aqui...

O velho não viu nada de mais em tirar a coroa dali. Todo mundo sabia que não valia nada.

Quando ele fechou novamente a porta, Carol sentiu que alguma coisa estava por acontecer. Desconfiava que o trans­missor, ou coisa que o valha, poderia estar dando infor­mações à polícia.

"Bem, se houver uma batida, se a casa for cercada, não vão repetir a bobagem da outra vez. O chefão manda alguém aqui para me liquidar. Ou para me levar com eles, no caso de conseguirem fugir."

Deitou-se na cama e desanimou de dormir. Era impossí­vel. A qualquer momento ouviria o barulho dos carros, dos tiros, dos passos apressados.

Só percebeu que a porta fora aberta quando um jorro de luz estourou em sua cara.

Dois homens apontavam os revólveres em sua direção.

- Vamos andando, depressa. O chefão quer falar com você - disse um deles.

Carol estranhou a intimação. Se o chefão vinha até o quarto, conversar com ela, por que aquilo agora? Para que armas voltadas contra seu peito? Alguma coisa mudara? Será que a polícia?...

A menina caminhou pelo corredor que levava à parte da frente. Entrou num ambiente mal iluminado. Era a sala de uma casa de campo, com lareira, decoração campestre, tapetes de corda, sofás de couro meio desbotado. O Homem do Terno Branco estava deitado num canto, fumando uma espécie de cigarrilha. Perto dele, um bule de café e restos de sanduíche.

- Pronto, aqui está a garota.

O chefão fez um gesto apático em direção aos bandidos, mandando-os embora.

Já jantou? - perguntou ele, no tom de voz macio.

Se aquilo que me mandaram pode ser chamado de jantar, já.

Na outra casa era melhor?

Era.

Eu também não estou satisfeito...

Me chamou para dizer isso?

Ele se levantou. O seu impecável terno branco não tinha uma ruga, um vinco. Parecia ter saído da lavanderia há pou­co. Nem mesmo deitado no sofá, conseguia amarrotá-lo.

"É um terno mágico!", pensou Carol.

Sentia-se mais tranqüila agora.

O Homem do Terno Branco readquirira o controle, o tom habitual. Ela não suportaria nova explosão daquele homem, de quem dependia para a vida e para a morte. Se tivesse de matá-la, que a matasse assim, delicadamente, sem levantar a voz, baixinho, macio, sem ódio no olhar, mas mistério.

O homem deu algumas voltas pela sala, examinou uma tapeçaria pendurada na parede.

- Tudo aqui é de péssimo gosto, não acha? Ou pensa que faz meu estilo? Sei do que gosto, e gosto do que é bom...

Aproximou-se de Carol. Parecia que ia beijá-la, tal a determina­ção com que caminhou para ela, olhando fixamente em sua boca. Carol quis desviar-se. Mas não conseguiu.

- Carolina, você sabe, gosto de você... gosto de sua esper­teza... de sua vitalidade... uma jovem com seiva forte que aquece o sangue cansado de um homem antigo como eu... seria tão bom se...

E mudando de tom:

- O problema é que você está sempre contra mim... - dis­se, cada vez mais próximo do rosto dela.

Carol não se afastou. Mas replicou:

- É você que está sempre contra mim... vivo a minha vida... fui passar o feriado em Correas, você manda me rap­tar... me obriga a assaltar o museu, a roubar a Coroa Imperial, a correr risco de vida... não sou eu que estou contra você... - disse, olhando firme o homem.

De repente, ele se virou. Foi até uma pequena estante que havia perto da lareira, apanhou um livro e, de dentro dele, tirou um pedacinho de papel.

- Conhece essa letra?

Apesar da luz fraca, Carol reconheceu o pequenino recibo da Padaria Beija-Flor no qual escrevera o bilhete para o porteiro do museu, avisando-lhe que ia haver um assalto.

Conheço.

É de algumas de suas amigas?

Para salvar a pele, seria fácil acusar as outras.

- É minha. Fui eu que escrevi o bilhete.

O Homem do Terno Branco olhou o pequenino pedaço de papel, como se o avaliasse de um outro ângulo:

- Por causa disso... deste maldito papel, eu perdi a oportu­nidade de ter em minhas mãos a maior jóia da América do Sul...

Ele voltou à estante e guardou o bilhete dentro do livro. Deitou-se no sofá. De repente, parecia cansado, muito cansado.

- Veja, Carolina, você é esperta, mas eu também não sou idiota. Isso não vai acontecer sempre... Você conseguiu avisar a direção do museu e por pouco, muito pouco mesmo, nós podíamos ter interceptado o seu bilhete. Temos gente em todos os cantos, pago a uma porção de gente, inclusive à polícia. Por isso o seu bilhetinho veio parar em minhas mãos. Havia dois porteiros ali: um deles era meu, estava na jogada, o outro não. Você, além de esperta, tem sorte. No crime, como na vida em geral, a sorte é tudo. Você foi atendida pelo portei­ro que não era meu. O camarada comunicou ao diretor do museu, que logo providenciou a substituição da coroa. Aquela vitrine tem um fundo falso: a coroa verdadeira desce, e sobe a falsa. Em menos de trinta segundos. Ninguém percebe a troca. O resto você sabe... Os homens que trabalham comigo são bons de tiro, mas não entendem nada de jóias... Pegaram a falsa e nem sequer desconfiaram do peso... Uns imbecis...

O Homem do Terno Branco parou de falar. Parecia exausto, sonolento, quem sabe deprimido. Colocou as mãos sobre os olhos, como se estivessem ardendo. Carol aprovei­tou a pausa para perguntar:

- Bem, o roubo da coroa não deu certo...O que vai fazer com as minhas amigas e comigo?

Ele não deu resposta. Só depois de algum tempo, ainda com as mãos tapando os olhos, começou a ditar a sentença:

- Suas amigas não correm perigo. Serão soltas ainda esta noite. Ficarão no centro de Petrópolis, com dinheiro para tomarem um táxi e voltarem para suas casas no Rio. Evidente que serão levadas até lá vendadas e amarradas, para não pensarem em fugir nem saberem a localização desta casa...

Calou-se. O silêncio ficou insuportável, Carol arriscou nova pergunta:

- Eu... e eu?

Ele tirou as mãos do rosto e olhou para Carol. Parecia sofrer.

- Olhe, Carolina, você é muito jovem para compreender... mas eu não posso fazer nada. Apesar de ser minha a última palavra, tenho compromissos com os meus homens. Por mim, eu soltaria você... tenho certeza de que um dia nos encontraríamos outra vez, em outras circunstâncias... Mas o problema é que o bando está irritado. Querem acabar logo com o que consideram uma ameaça...

- Querem... me matar?

O Homem do Terno Branco pareceu hesitar. Depois, con­firmou com a cabeça.

- Houve uma reunião há pouco... ficou decidido que vamos soltar as suas amigas, mas exigiram que você fosse morta...

Neste momento, um homem entrou intempestivamente na sala. Parecia transtornado:

- Chefe... recebemos o alarma da cancela... tem uma por­ção de carros da polícia vindo para cá... acho que estamos cercados!

O Homem do Terno Branco deu um pulo do sofá.

- Meu helicóptero está pronto? Depressa, apanhe a mi­nha pasta preta. Cada homem no seu lugar.

Carol não entendeu mais nada. Por toda parte surgiram bandidos apanhando papéis e armas. O tiroteio seria violento. Eles resistiriam até o fim.

Quando menos esperava, um dos bandidos agarrou-a e amarrou seus pulsos nas costas.

- Venha! Você vai servir de escudo para nós.

Carol foi arrastada por um corredor, no fim do qual encontrou Duda e Paulinha, apavoradas. Choravam e grita­vam, tudo ao mesmo tempo, sem se preocupar com mais nada. Quando viram Carol, agarraram-se nela. Perceberam então que a amiga estava amarrada. O horror foi maior ainda. Um bandido dava ordens:

- Andem, vocês ficarão na casa... uma em cada porta... assim a polícia não poderá atirar na gente...

O mesmo homem começou a amarrar os pulsos das meninas, tal como fizera com Carol. As duas choravam, sem lágrimas, apenas com a garganta e a expressão de ter­ror nos olhos.

O velhinho que servia comida para Carol apareceu e cochichou alguma coisa no ouvido do bandido. Este olhou com raiva para Carol e ordenou:

- Você aí! O chefe quer falar com você!

O velhinho levou Carol por uma porção de salas e quar­tos. Havia bandidos em posição de tiro, com os fuzis apoia­dos nos peitoris das janelas. Conduzida para os fundos, Carol distinguiu, numa espécie de pátio interno, a silhueta de um helicóptero, com as pás imóveis.

De repente, o velhinho tombou: alguém o havia atingido por trás, com um soco na nuca. No mesmo instante, Carol teve a certeza de que chegava ao fim: em sua carne, na altura dos pulsos, sentiu a lâmina de um punhal.

Alguém iria assassiná-la, ali no escuro. Fechou os olhos e esperou pela morte.

 

O punhal feria os pulsos de Carol, no entanto não era a carne que a lâmina cortava, mas as cordas que prendiam seus braços. Sem poder se virar, ela sabia que alguém a estava libertando. Quando o nó se rompeu e pôde libertar as duas mãos, virou-se para ver quem a salvara. Não teve tempo. Re­cebeu um forte empurrão e caiu numa pequena moita de tinhorões, no meio do pátio. Ao lado, o velhinho ainda gemia, atordoado pelo golpe que recebera na nuca.

Carol compreendeu que devia fugir. Estava nos fundos da casa, no meio da escuridão, e alguém a libertara misteriosa­mente. Mas como poderia abandonar Duda e Paulinha?

Nisso, viu dois vultos apressados que se dirigiam para o helicóptero. Reconheceu facilmente o Homem do Terno Branco. O outro era o piloto. Em menos de dois minutos, o aparelho se erguia do chão, como uma pesada libélula, incerta de seu destino.

Quando o aparelho atingiu certa altura, Carol ouviu tiros. Era a polícia que, de algum ponto, tentava impedir a fuga dos bandidos. Mas o helicóptero ganhou altura, firmou a marcha e logo sumiu na escuridão da noite. Mais uma vez o Homem do Terno Branco escapava.

Agora era a vez dela. Além de não ter um helicóptero, não tinha qualquer noção do lugar onde estava. Voltar para a casa que lhe servira de prisão seria maluquice. Duda, Paulinha e ela própria seriam mortas tão logo os bandidos as vissem. Longe do chefão, eles fariam o que tivessem vontade. A única alternativa era fugir. E foi o que fez.

Andou três metros, não mais. O velhinho se recuperara do soco e tentava alcançá-la.

- Ei, você aí! Não adianta fugir! O chefão quer falar com você.

Carol compreendeu que alguma coisa de muito estranho se passara. O Homem do Terno Branco mandara chamá-la... provavelmente iria executá-la. Mas no meio da escuridão alguém a libertara, cortando a corda que amarrava seus pulsos. Quem seria o seu salvador?

- O chefe de vocês já fugiu - disse Carol.

O velhinho olhou para o local onde há pouco estivera o helicóptero e disse, num acesso de raiva:

- Ele sempre foge! E agora nós é que enfrentamos a polícia! Estou muito velho para morrer.

Apesar da situação dramática, Carol achou graça naquele homem que se considerava velho demais para mor­rer. E teve uma idéia.

Olhe, eu não estou fugindo. Falei com o chefão e ele me mandou seguir por aqui. Posso levar o senhor. Mas só ensi­narei o caminho se me fizer um favor...

A polícia cercou tudo... você não escapará de jeito nenhum...

O chefão me ensinou um atalho - mentiu Carol. - Pos­so livrá-lo da polícia, afinal eu não pertenço à quadrilha.

O velho pensou um pouco. A única possibilidade de sal­var-se seria agarrar-se àquela esperança que a sua prisioneira lhe dava.

- Tá bem. O que devo fazer?

Vá lá dentro e diga aos bandidos que as meninas devem vir para cá. Ordens do chefão.

Mas o chefão não foi embora? Todos ouviram o baru­lho do helicóptero.

Vá lá e diga que as meninas devem vir para cá. Ordens que o chefe deixou com o senhor.

Apesar do risco, o velho resolveu obedecer. Era sua única chance. Enquanto isso, Carol escondeu-se num matagal que havia nos fundos do pátio. Dali, veria Duda e Paulinha chegarem.

Mal o velho desapareceu, o tiroteio aumentou. Qual­quer um poderia morrer ali, até mesmo ela, que já estava fora da casa.

Carol viveu os minutos mais longos de sua vida. O tempo passava arrastado, e nada de o velho aparecer com as meni­nas. Será que já haviam morrido, assassinadas pelos bandi­dos ou atingidas pela própria polícia? O plano da quadrilha era colocá-las nas portas e janelas para servirem de escudo. Com aquele tiroteio que nunca acabava, dificilmente elas estariam com vida.

De repente, mal acreditou no que viu: no pátio, como se tivessem caído do céu Duda e Paulinha, seguidas pelo velhinho. Na confusão do tiroteio, os bandidos não tiveram tem­po de checar se o chefão havia mesmo dado ordens a respeito das prisioneiras.

"O Homem do Terno Branco tem razão: são uns idiotas!"

- Psiu! Meninas! Estou aqui - falou baixinho Carol. Duda e Paulinha correram em sua direção - e o velho

também.

- Você prometeu me levar - disse o homem, que sabia agora estar perdido também perante os bandidos. Se esca­passem com vida daquele tiroteio, acertariam contas com ele.

- Vamos - ordenou Carol.

Surgia novo problema. Ela afirmara que conhecia um atalho, indicado pelo Homem do Terno Branco. O jeito era se embrenhar naquele mato, que terminava num muro mais ou menos alto.

- Se contornarmos o muro, pode ser que encontremos um portão - disse Paulinha, ingenuamente.

- Antes de chegarmos a qualquer portão seremos fuzila­das pelos bandidos ou pela polícia! - avisou Carol.

Por um momento, ela se sentiu um pouco como o Homem do Terno Branco, dando ordens para um bando de débeis mentais.

O jeito é pular o muro - continuou Carol.

Eu morro, mas sei que não consigo isso - choramingou Duda.

Carol continuou ordenando:

- Somos quatro, e temos de subir este muro de qualquer maneira. É o muro ou a morte.

Ela mesma comandou a operação. Ficou de joelhos e Paulinha subiu em seus ombros. Não demorou a atingir a beira do muro e de lá conseguiu pular.

Vê como foi fácil?

Mas eu serei a última. Quem fará escadinha para mim? - resmungou Duda.

Cale a boca! O último será o velho!

Ele foi realmente o último, abaixando-se para que Carol conseguisse atingir a beira. Lá em cima, ela não pulou imediatamente para o outro lado. Escorou-se e estendeu a mão para o velho, que custou um pouco, arfou como uma sanfona enferrujada, mas conseguiu chegar aonde queria.

- Bem, não podemos ficar aqui - disse Carol, - depois que todos se encontravam do outro lado do muro. - De uma hora para outra os bandidos darão por falta da gente e nos procuram. Ou a polícia varre tudo isso aqui com uma metra­lhadora. O perigo é o mesmo. Vamos embora.

- Para onde? - perguntou Paulinha.

- Para qualquer lugar. Depois do que passamos, qualquer lugar será melhor do que aqui.

Caminharam bastante. Os tiros pouco a pouco torna­ram-se espaçados e distantes. Caminhavam no meio de um mato rasteiro, num terreno plano. Tudo indicava que ali per­to passaria uma estrada.

Mas antes de chegarem à estrada, apareceu um enorme cachorro, que começou a latir à frente do grupo. Em seguida, dois policiais surgiram, um de cada lado, apontando suas armas.

- Ei! Vocês aí! Não se mexam!

Aconteceu então o que provavelmente jamais acontecera na história policial do mundo. Tão logo ordenaram que o grupo não se mexesse, as três meninas se atiraram contra eles, abraçando-os nervosamente.

O velhinho aproveitou o entusiasmo geral para tentar fu­gir. Contudo, o cachorro estava vigilante e, assim que ele deu o primeiro passo, colocou-se à sua frente, a boca aberta, os dentes à mostra.

Carol interveio. Indicou-o aos policiais:

- Esse velhinho nos ajudou... ele não é bandido, era ape­nas empregado...

- Veremos - disse um dos guardas.

Meia hora depois, estavam num camburão fechado,

 

seguindo em direção a Correas, onde o pai de Carol, já avi­sado pela polícia, esperava pela filha e pelas suas amigas.

A casa em Itaipava, que servira à quadrilha, já estava ocu­pada. Alguns bandidos conseguiram escapar, dois haviam sido presos. Ninguém morrera.

- As famílias estão aflitas. Há mais de uma semana que vocês estão desaparecidas - disse o policial que viajava com elas.

Duda quis saber como a polícia conseguira descobrir o esconderijo da quadrilha.

- A falsa coroa que eles roubaram tinha um transmissor embutido numa das pedras. Foi fácil rastrear os bandidos. Só não agimos antes porque nossa maior preocupação era impedir que os bandidos maltratassem vocês...

O policial fez uma pausa.

- Por falar nisso, quem mandou o bilhete avisando o museu de que ia haver assalto?

Encolhida num canto, aproveitando a escuridão do car­ro, Carol olhava o céu. No horizonte, já havia uns visgos ver­melhos anunciando o novo dia. Ela sentia-se cansada, suja, deprimida.

Sabia que mais uma vez seria considerada heroína, mas não estava contente. Compreendia tudo o que acabava de se passar com ela. Menos uma coisa: "Afinal, quem foi que cortou a corda dos meus pulsos e me salvou?"

Ela tinha resposta para todos os mistérios, mas aquele ponto permanecia obscuro.

No céu, as últimas estrelas da noite se apagavam. O hori­zonte era agora uma faixa de sangue. Carol fixou um ponto lá no alto e procurou ver se descobria um helicóptero voando como uma libélula solta na madrugada.

 

 

                                                                  C. H. Cony & Anna Lee

 

 

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