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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MISTÉRIO DE CALLANDER SQUARE / Anne Perry
O MISTÉRIO DE CALLANDER SQUARE / Anne Perry

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

O clima outonal apresentava-se suave e ligeiramente enevoado e as folhas caídas semeavam a relva de Callander Square de salpicos amarelos sob o sol do entardecer. No pequeno jardim, ao centro da praça, encontravam-se dois homens, munidos de pás, a olhar para um buraco pouco fundo, abaixo dos seus pés. O mais alto dos dois inclinou-se, revolvendo o solo húmido com as mãos. Com muita cautela, ergueu o objecto que procurava - um pequeno osso ensanguentado.

O companheiro soprou estrepitosamente.

- 'Tão, qu'é qu'achas qu'isso é? Muito grande p'ra ser d'um pássaro.

- Um animal doméstico - respondeu o primeiro. - Alguém enterrou um cão, ou outro bicho qualquer.

O homem mais baixo sacudiu a cabeça.

- N'a deviam de fazer isto. - Lançou um olhar de reprovação às fachadas georgianas que se erguiam com uma elegância severa por detrás das folhas dos vidoeiros e das limas. - Têm jardins para isso. Deviam de ter mais respeito.

- Devia de ser um cão pequeno - o homem mais alto revirava o osso na mão. - Se calhar, um gato.

- Um gato! Ora, ora! Os cavalheiros n'a têm gatos e as damas n'a se põem a cavar nos jardins. N'a haviam sequer de saber o qu'era uma pá nem qu'a tivessem em frente do nariz.

- Deve de ter sido um criado. Uma cozinheira, com certeza.

- Mesm'assim, n'a devia d'o ter feito - meneou a cabeça para enfatizar a sua opinião. - Gosto d'animais, gosto pois. Um bicho que serviu uma casa havia de ser enterrado como deve de ser: não onde as pessoas se ponham a desenterrá-lo outra vez, sem querer.

- Se calhar n'a sabiam qu'íamos cavar aqui. Há anos que não plantamos nada neste pedaço. E n'a estaríamos aqui, n'a fosse terem-nos dado este arbusto.

- Bem, o melhor é pô-lo noutro sítio: mais p'rà esquerda, talvez. Pr'a deixar o bichinho em paz. Não se deve incomodar os mortos, nem os animais. Alguém há d'o ter estimado. Limpava-lhe a cozinha dos ratos.

- N'a posso pô-lo à esquerda, meu parvo! Matávamos a for-sítia!

- 'Tá calado! 'Tão põe-no à direita.

- N'a posso. Olha qu'o rododendro cresce com'uma casa, oh se cresce. Tenho d'o pôr aqui.

- 'Tão põe o gato debaixo do rododendro, ou lá o que é. Desenterra-o bem qu'eu depois enterro-o.

- 'Tá bem. - O homem enterrou a pá onde julgava poder erguer o corpo de uma só vez e pressionou-a. A terra macia, uma mescla de barro e de folhas, soltou-se com facilidade, escorregando da pá. Os dois homens ficaram estarrecidos.

- Ó, Deus Todo-poderoso! - O outro deixou cair a pá. - Deus nos acuda!

- O que... que... foi?

- Não é um gato. Acho... acho qu... qu'é um bebé!

- Ai! Santa Mãe de Deus! E agora?

- É melhor chamar a Polícia.

- Pois.

O homem pousou a pá lentamente e com muito cuidado, como se, de alguma forma, isso ainda importasse.

- Vais tu? - O outro fitou-o.

- Não. Não, fic'aqui. Vai tu buscar um guarda. E despacha-te! Daqui a pouco está escuro.

- Pois! Pois! - O homem desatou a correr pela praça, sentindo um alívio desesperado por ter qualquer coisa que fazer e, sobretudo, por poder afastar-se do buraco e da miscelânea ensanguentada que a pá levantara da terra.

 

 

 

 

O guarda era jovem e ainda novo no ofício. As ilustres praças elegantes intimidavam-no, com as suas belas carruagens e os seus postilhões, aos pares e com uniformes a condizer e a multidão de criados. Ficava sem fala sempre que tinha de falar com eles - os mordomos majestosos, as cozinheiras irascíveis e as belas criadas de fora. Os engraxates, as ajudantes de cozinha e as criadas de dentro enquadravam-se bastante melhor na sua classe.

Ao ver o buraco no chão e a descoberta feita pelos jardineiros, o guarda apercebeu-se de que aquela era uma ocorrência totalmente para além das suas competências. Com um misto de horror e de alívio, pediu então aos jardineiros que permanecessem ali, sem mexer em nada, e correu tão depressa quanto lho permitiam as pernas até à esquadra para passar ao seu inspector aquela coisa toda.

O guarda irrompeu pelo gabinete do seu superior, esquecendo as boas maneiras devido à excitação.

- Mr. Pitt, Senhor, Mr. Pitt! Aconteceu uma coisa medonha, meu Inspector, uma coisa horrível!

Pitt estava à janela. O inspector era um homem alto, com um longo nariz encurvado e uma boca trocista. Apesar de ter uma aparência simples e incrivelmente desmazelada, o seu rosto reflectia inteligência e perspicácia. Ergueu as sobrancelhas perante a entrada precipitada do guarda e, quando falou, fez ecoar uma bela voz.

- Que género de coisa medonha, McBeath?

O guarda engasgou-se; a falta de fôlego não lhe permitia sequer articular uma frase coordenada.

- Um corpo... Senhor. Em Callander Square. Deplorável, Senhor... a sério. Acabaram de o encontrar... os jardineiros... desenterraram-no. No meio. Ao plantar uma árvore, ou outra coisa assim.

Pitt franziu o rosto, surpreendido.

- Callander Square? Tens a certeza? Não te tornaste a perder, pois não?

- Sim, Senhor. Não, senhor, mesmo no centro. Em Callander Square, Senhor. Tenho a certeza. É melhor vir ver.

- Enterrado? - Pitt franziu o sobrolho. - Que tipo de corpo?

- Um bebé, Senhor. - McBeath cerrou os olhos e pareceu, subitamente, bastante enfraquecido. - Um bebé muito pequeno, Senhor, julgo que como um recém-nascido. Faz-me lembrar a minha irmã mais nova, quando ela nasceu.

Pitt expirou muito lentamente, uma espécie de suspiro que lhe era peculiar.

- Sargento Batey! - Chamou em voz alta.

A porta abriu-se e um homem de uniforme espreitou.

- Sim, Inspector?

- Chame uma ambulância. O Doutor Stillwell e eu vamos a Callander Square.

- Alguém foi atacado, Senhor? - O rosto do sargento iluminou-se. - Assaltado?

- Não. Talvez se trate apenas de uma tragédia doméstica.

- Uma tragédia doméstica? - McBeath elevou a voz, em tom de ultraje. - É um homicídio!

Batey olhou-o com espanto.

- Talvez não - advertiu Pitt, calmamente. - Trata-se, provavelmente, de uma desgraçada de uma jovem criada que, depois de seduzida, manteve-se em silêncio, deu à luz sozinha e a criança morreu. É possível que a tenha enterrado sem dizer nada a ninguém, mantendo em segredo o seu desgosto, de modo a não ser posta na rua e a ficar sem emprego e sem referências para conseguir outro. Só Deus sabe quantas vezes isso acontece.

McBeath estava pálido e contrito.

- Crê que seja isso, Senhor?

- Não sei -, respondeu-lhe Pitt, avançando já em direcção à porta. - Mas não seria a primeira, nem a última vez. O melhor é irmos averiguar.

Pitt aproveitou a última meia hora de luz do dia para observar o pequeno corpo, inspeccionar o solo remexido à procura de vestígios que pudessem ajudar a identificá-lo e acabar por encontrar o segundo corpito, frio e deformado. Em seguida, enviou-os na ambulância com o médico e mandou McBeath, branco como a cal, para casa, deitar-se, colocando Batey e os seus homens de vigia nos jardins. Não lhe restava mais nada para fazer naquela noite senão esperar que o médico lhe fornecesse alguma informação: a idade dos bebés, há quanto tempo haviam morrido - tanto quanto se pudesse calcular - e, se possível, o que teria acontecido ao segundo corpo, enterrado mais fundo, para lhe provocar aquela deformação do crânio. Por agora, não podia ter muita esperança que lhe dissessem qual a causa da morte de ambas.

Já estava escuro quando Pitt chegou a casa envolto no nevoeiro húmido e penetrante. As luzes amarelas dos candeeiros a gás pareciam-lhe acolhedoras, prometendo-lhe calor não apenas para o corpo, mas também para o espírito e para os seus sentimentos expostos e vulneráveis.

O inspector entrou em casa com uma vincada sensação de prazer que os seus quase dois anos de casamento não tinham ainda esvanecido. Na Primavera de 1881 tinha sido chamado para resolver o caso horripilante do estrangulador de Cater Street, o assassino em massa de jovens, que as garroteava, abandonando os corpos, de cara inchada, pelas ruelas escuras. Fora naquelas circunstâncias medonhas que conhecera Charlotte Ellison. Claro que nessa altura ela tratara-o com a frieza digna que qualquer jovem bem-educada devia assumir ao dirigir-se a um agente da Polícia - situado mais abaixo na escala social do que um mordomo moderadamente bom. Charlotte, porém, era uma rapariga dotada de uma terrível honestidade, não apenas para com os outros, causando um verdadeiro caos na sociedade, mas também para com ela própria. Charlotte reconhecera o amor que sentia por ele e encontrara coragem para desafiar as convenções, aceitando casar-se com ele.

Eram surpreendentemente pobres quando comparados com o considerável conforto da casa do pai dela, mas com algum engenho e a sua habitual franqueza, Charlotte dispensara a maioria dos pequenos símbolos de estatuto sem os quais os seus amigos de outrora se considerariam miseráveis. Ocasionalmente, quando Pitt se sentia incomodado com o assunto, Charlotte gracejava, afirmando sentir um enorme prazer ao libertar-se de toda aquela presunção; e talvez fosse uma meia-verdade.

Agora que chegava a casa, era recebido por Charlotte, vinda da diminuta sala de visitas, com a sua escassa mas bem encerada mobília e um ramo de flores outonais numa jarra de vidro. O vestido cor de vinho que envergava era um dos que trouxera com ela e, muito embora já estivesse um pouco fora de moda, fazia-lhe resplandecer o rosto, ao mesmo tempo que a luz do candeeiro lhe realçava os tons acobreados do cabelo.

Ao vê-la, Pitt sentiu uma súbita onda de júbilo, quase de excitação, e puxou-a para si, abraçando-a e beijando-a.

Momentos depois, Charlotte recuou, encarando-o.

- O que se passa? - Indagou, elevando ligeiramente a voz, num tom ansioso.

No breve calor envolvente do reencontro, Pitt esquecera-se de Callander Square. Agora voltava-lhe à memória. Não lhe contaria nada; só Deus sabia como, depois de Cater Street, já não restavam muitos horrores com os quais Charlotte não pudesse lidar, mas não havia necessidade de a perturbar com aquilo. Charlotte rapidamente se compadeceria - os pequenos corpos, quer se tratasse de crime ou simplesmente de uma tragédia, atiçar-lhe-iam a imaginação quanto a todo o sofrimento, solidão e medo que a mãe sentira, independentemente dos terríveis e solitários pensamentos que a poderiam ter assolado.

- O que se passa? - Repetiu.

Pitt colocou-lhe um braço por cima dos ombros e virou-a para a sala de visitas; ou talvez sala de estar fosse um nome menos pretensioso para aquela divisão, numa casa tão pequena.

- Um caso - respondeu-lhe -, em Callander Square. O mais provável é que acabe por não ser nada de importante, mas vai ser aborrecido de apurar. O que vamos jantar? Estive a trabalhar no exterior e estou com fome.

Charlotte não tornou a pressioná-lo e Pitt passou um longo e aprazível serão diante da lareira, observando-lhe o rosto enquanto ela o inclinava, concentrada na sua costura - uma peça de roupa interior já gasta pelo uso. Com o passar dos anos, Charlotte ainda teria de remendar e aproveitar muita coisa, cozinhar muitas refeições sem carne e, quando viessem os filhos, aceitar muita roupa usada; naquele momento, porém, Charlotte parecia feliz na sua labuta. Pitt deu consigo a sorrir.

De manhã tudo mudara. Pitt saiu cedo, ainda a névoa de Outubro revestia as folhas húmidas e vento não havia. Dirigiu-se em primeiro lugar à esquadra para ver se o doutor Stillwell já tinha alguma coisa para lhe dizer.

A expressão austera de Stillwell parecia mais acentuada do que era habitual. Encarando Pitt com um ar azedo, o médico como que arrastava com ele a lembrança imediata da morte e da fragilidade humana.

Naquele momento Pitt sentiu o calor e o conforto com que acordara escaparem-se-lhe.

- Então? - Perguntou, circunspecto.

- O primeiro era bastante normal, tanto quanto sei - respondeu Stillwell suavemente. - O que não é muito. Diria que está morto há cerca de seis meses, pobrezinho. Não lhe posso afirmar se nasceu morto ou se morreu um ou dois dias depois de nascer. Não tem nada no estômago. - Suspirou. - Nem sequer lhe posso assegurar se morreu naturalmente ou se foi morto. A asfixia seria fácil, sem deixar marcas. Por falar nisso, era uma menina.

Pitt respirou fundo.

- E quanto ao outro, o que estava mais fundo?

- Está morto há muito mais tempo, há perto de dois anos, segundo pude inferir. Mais uma vez, não passa de uma suposição. E também não lhe posso dizer se nasceu morto ou se morreu dias depois de nascer. Contudo, era anormal, isso posso afirmar sem sombra de dúvida...

- Isso pude eu constatar. Qual pode ter sido a causa?

- Não sei. É congénito, não se trata de um acidente de parto.

- Isso implicaria um problema hereditário, da parte dos pais...?

- Não necessariamente. Não sabemos o que causa estas coisas. Qualquer pessoa pode ter uma criança destas, até nas melhores famílias. Estas simplesmente conseguem abafar o sucedido com mais frequência.

Pitt reflectiu por uns momentos. Será que poderia ser isso - uma questão de vergonha social?

- E relativamente ao de cima? - Ergueu o olhar para Stillwell. - Também era deformado, havia algo de errado com o seu cérebro?

Stillwell meneou a cabeça.

- Que eu pudesse ver, não, mas é evidente que se viesse a ser deficiente mental, não haveria forma de o saber naquela idade. Teria, no máximo, apenas uns dias de existência. Poderia até ter nascido morto - franziu o sobrolho. - Embora não me pareça. Não encontrei nada que pudesse constituir causa de morte. O coração, os pulmões e os intestinos pareceram-me bastante normais. Certamente que se encontram, até certo ponto, decompostos. Realmente, não sei, Pitt. Terá simplesmente de fazer as suas investigações e ver o que consegue apurar.

- Obrigado. - Não havia mais nada a dizer. Pitt juntou-se a Batey e, em silêncio, penetraram na manhã enevoada, percorrendo as ruas de três vias onde se sentia o odor a folhas apodrecidas e a pedra húmida.

Callander Square estava deserta. Os curiosos que uma tal descoberta poderia atrair em qualquer outro local sentiam-se acanhados em invadir a sua elegante calçada. As grandes casas não apresentavam outro sinal de vida para além do deslizar da vassoura nas escadas de serviço e o ressoar das botas de um mordomo. Era demasiado cedo para se verem moços de recados; as cozinheiras e as criadas de fora ainda estariam longe de acabar de servir o pequeno-almoço aos mais dorminhocos.

Pitt dirigiu-se à casa mais próxima, subiu as escadas e bateu discretamente à porta, recuando em seguida.

Largos minutos depois, veio-lhes abrir a porta um criado elegante e de farda escura. Mediu Pitt de alto abaixo com um olhar arrogante. Anos de formação haviam-lhe ensinado a avaliar um homem mesmo antes de este abrir a boca. Soube instantaneamente que, embora o inspector fosse superior a um vendedor, estava longe de ser de boas famílias, quanto mais de ser um cavalheiro.

- Sim, caro senhor? - Inquiriu, elevando ligeiramente o tom de voz.

- Inspector Pitt, da Polícia. - Pitt nivelou o olhar com o dele. - Gostaria de falar com a sua patroa.

O criado mostrou-se impassível.

- Não tenho qualquer conhecimento de termos sofrido algum roubo. Não terá, porventura, vindo à casa errada? Esta é a residência do General Balantyne e de Lady Augusta Balantyne.

- Sério? Não fazia a menor ideia. Contudo, é a localização da casa que me traz aqui. Dá-me licença que entre?

O criado hesitou. Pitt manteve-se firme.

- Vou saber se Lady Augusta o poderá receber - concedeu o criado com relutância. - É melhor entrar. Pode aguardar na salinha da manhã. Irei verificar se milady já terminou o pequeno-almoço.

Passou uma longa e irritante meia hora até que a porta da salinha se abrisse para deixar entrar Lady Augusta Balantyne. Era uma mulher bonita, de feições delicadas, com um vestido clássico e dispendioso. Lady Balantyne contemplou Pitt com curiosidade.

- O Max diz-me que deseja ver-me, Mr... eh...

- Pitt. Sim, minha senhora, se não se importar.

- A propósito de quê, queira dizer-me?

Pitt observou-a. Era uma mulher com quem não se poderia estar com rodeios. Foi direito ao assunto.

- Ontem à noite foram desenterrados dois corpos nos jardins, ao centro da praça...

Lady Augusta ergueu as sobrancelhas, incrédula.

- Em Callander Square? Ora, não seja ridículo! Corpos de quê, Mr... eh?

- Pitt - repetiu. - De bebés, minha senhora. Foram descobertos os corpos de dois recém-nascidos enterrados nos jardins. Um morreu há seis meses, o outro há cerca de dois anos.

- Credo! - Estava visivelmente perturbada. - É tão trágico. Suponho que uma criada... Tanto quanto sei, não se trata de ninguém da minha casa, mas certamente que o averiguarei, se assim desejar.

- Preferia ser eu a fazê-lo, minha senhora; com a sua licença. - Pitt tentou parecer afirmativo, como se estivesse a assegurar a concordância dela e não a pedir-lhe autorização. - Naturalmente que irei visitar todas as casas na praça...

- Certamente. A minha oferta não passa de um mero acto de cortesia. Caso descubra alguma coisa que envolva a minha casa, irá naturalmente informar-me. - Mais uma vez, tratava-se de uma afirmação e não de uma pergunta. A autoridade assentava-lhe bem, e não tinha necessidade de a demonstrar.

Pitt sorriu em sinal de anuência sem, no entanto, se comprometer verbalmente.

Lady Augusta agarrou na campainha e fê-la soar. Surgiu o mordomo.

- Hackett, Mr Pitt é da Polícia. Foram encontrados dois bebés nos jardins. Ele vai interrogar os criados em todas as casas. Importa-se de o conduzir a uma sala tranquila onde ele possa conversar com os membros da criadagem que desejar? E certifique-se de que todos se disponibilizem para isso.

- Sim, milady. - Hackett olhou Pitt com desagrado, mas cumpriu a ordem rigorosamente.

- Obrigado, Lady Augusta -, Pitt inclinou a cabeça e seguiu o mordomo até uma pequena sala nas traseiras que supôs serem os aposentos da governanta. Em seguida, foi-lhe fornecida uma lista completa das criadas, juntamente com informações essenciais acerca de cada uma. Dessa vez não fez mais do que conversar com elas. Todas demonstraram choque, consternação e piedade, e todas elas negaram igualmente ter qualquer conhecimento do assunto. Era exactamente o que o inspector esperara.

Pitt estava no átrio, à procura do mordomo ou de um dos criados para dizer que já havia terminado, quando deparou com outra mulher, vinda de uma das salas em seu redor. Não havia qualquer hipótese de se tratar de uma criada; muito mais sugestivos acerca da sua posição do que o seu vestido de seda ou o seu cabelo esplendidamente arranjado e penteado eram a subtil arrogância do seu modo de andar, o semi-sorriso que os lábios carnudos da sua pequena boca esboçavam, a segurança e a excitação contida nos seus olhos escuros e bem desenhados.

- Valha-me Deus! - exclamou, fingindo-se surpreendida. - Quem é o senhor? - Perscrutou-o, medindo-o com uma expressão trocista nos olhos azuis. - Não pode vir visitar uma das criadas, a esta hora! Veio ver o Pai? É um antigo ordenança, ou coisa do género?

Apenas Charlotte conseguira, alguma vez, abalar a compostura de Pitt e apenas porque ele a amava. Pitt enfrentou a rapariga com determinação.

- Não, minha senhora, sou da Polícia. Estive a conversar com alguns dos seus criados.

- Da Polícia! - Elevou o tom de voz, deliciada. - É perfeitamente chocante! Por que razão?

- Informações. - O inspector sorriu muito ligeiramente. - É sempre esse o motivo que leva a Polícia a falar com as pessoas.

- Desconfio que se está a rir de mim. - Os olhos dela brilhavam. - Mr... eh?

- Inspector Pitt.

- Inspector Pitt - repetiu ela. - Sou Christina Balantyne; porém, suponho que já o devia saber. Anda a indagar acerca de quê? Houve algum crime?

Pitt foi poupado de ter de compor uma resposta simultaneamente educada e reservada por ter surgido um homem, vindo da sala do pequeno-almoço, que Pitt presumiu ser o general Balantyne. Era alto, quase tanto como o próprio Pitt, mas mais bem constituído, com uma postura mais rígida. O seu rosto era suave, delgado e aquilino. Tinha uma cabeça imponente, mas demasiado arrogante para ser bem-parecida, com uns maxilares e dentes muito fortes.

- Christina! - Interpelou, severamente. A rapariga voltou-se.

- Sim, papá.

- A questão que o agente da Polícia tem a tratar com os criados não lhe deverá interessar. Não tem cartas para escrever, nem nada para coser? - Era uma pergunta académica. Uma ordem para se retirar. Christina aceitou-a, endireitando as costas e contraindo os lábios.

Pitt ocultou um sorriso e inclinou levemente a cabeça.

- Obrigado, senhor General - agradece-lhe, após Christina se ter retirado. - Não tinha a certeza de como deveria responder-lhe sem perturbá-la com factos desagradáveis. - Era pouco menos do que a verdade, mas o mais adequado.

O general resmungou.

- Já terminou?

- Sim, senhor General. Procurava justamente o mordomo para o informar.

- Descobriu alguma coisa? - O general encarou-o com um olhar astuto e inteligente.

- Ainda não, mas mal comecei. Quem é que vive aqui ao lado? - Pitt apontou para o lado sul da praça.

- O Reggie Southeron, aqui ao lado - respondeu o general. - Depois, o jovem Bolsover no extremo deste lado. O Garson Campbell do outro lado; a Laetitia Doran em frente ao Southeron; à nossa frente, na outra ponta, de momento não vive ninguém. Há dois anos que a casa está vazia. Sir Robert Carlton, no extremo da praça e um tipo idoso chamado Housmann que é um autêntico recluso. Não tem mulheres dentro de casa, odeia-as; só tem criados do sexo masculino.

- Obrigado, senhor General, foi muito amável. Tentarei, em seguida, falar com Mr Southeron.

Balantyne inspirou com um silvo agudo e depois deixou sair o ar. Pitt aguardou uns instantes, mas ele não se manifestou.

A casa dos Southeron era mais movimentada. Pitt conseguia ouvir o suave riso de crianças ainda antes de chegar à campainha. A porta assomou uma das criadas de fora mais bonitas que alguma vez vira.

- Sim, senhor? - A criada atendeu-o, com uma perfeita formalidade.

- Bom dia, sou o Inspector Pitt, da Polícia. Posso falar com Mr ou Mrs Southeron?

A criada recuou.

- Queira entrar, senhor, vou saber se o podem receber.

Pitt seguiu-a pelo átrio, esplendidamente mobilado, mas menos espartano do que o dos Balantyne. As tapeçarias tinham brinquedos pendurados, as cadeiras eram ricamente forradas e via-se, até, uma boneca displicentemente sentada numa pequena mesa de apoio. Pitt observou as costas firmes da criada e o ligeiro e adequado refego que fazia o adejar da sua saia ao caminhar. Sorriu para consigo, desejando, logo a seguir, com uma súbita sensação de pena, que não tivesse sido ela a enterrar lá fora, debaixo das árvores, o resultado da sua sedução e da sua breve entrega à paixão.

A criada conduziu-o à salinha da manhã, deixando-o lá. Pitt ouviu o som de passos apressados a descer as escadas - seria uma das empregadas de dentro ou uma das crianças da casa? O mais provável era que a diferença de idade entre umas e outras fosse muito pequena; algumas raparigas começavam a servir com pouco mais de onze ou doze anos.

A porta abriu-se repentinamente para deixar espreitar um pequeno rosto de olhos azuis. A postura da rapariguinha denunciou-a imediatamente como sendo uma das filhas daquela casa. Tinha o cabelo preso, a cair aos caracóis e uma pele impecavelmente limpa.

- Bom-dia - cumprimentou Pitt, solenemente.

- Bom-dia - respondeu ela, deixando a porta abrir-se um pouco mais e mantendo os olhos fixos no rosto de Pitt.

- Tem uma casa muito elegante - elogiou Pitt, com circunspecção, como se ela fosse adulta e a dona da casa. - É a patroa?

A rapariguinha riu-se à socapa, endireitando-se e compondo o rosto, assim que se lembrou da sua posição.

- Não, sou Chastity Southeron. Vivo aqui desde que a minha mamã e o meu papá morreram. O papá era irmão do tio Reggie. Quem é o senhor?

- Chamo-me Thomas Pitt e sou inspector da Polícia. A rapariguinha soltou um longo suspiro.

- Alguém roubou alguma coisa?

- Tanto quanto sei, não. Perdeu alguma coisa?

- Não. Mas pode interrogar-me - entrou para a salinha. - Talvez lhe possa dizer alguma coisa. - Era um convite.

Pitt sorriu.

- Estou certo de que me poderia dizer muitas coisas interessantes, mas ainda não sei que perguntas fazer.

- Ah. - Chastity estava prestes a sentar-se quando a porta se abriu e Reginald Southeron entrou. Era um homem encorpado, com um rosto carnudo e um ar folgado.

- Chastity? - Inquiriu, demonstrando uma exasperação bem-humorada. - A Jemima deve andar à sua procura. Devia estar a estudar as suas lições. Suba imediatamente.

- A Jemima é a minha preceptora - explicou Chastity a Pitt. - Tenho de fazer as minhas lições. Vai voltar?

- Chastity! - Repetiu Southeron.

A rapariguinha fez uma pequena vénia a Pitt e apressou-se a ir para o andar de cima.

A atitude de Southeron tornou-se ligeiramente mais rígida; o bom-humor, no entanto, não o abandonou.

- A Mary Ann diz que o senhor é da Polícia. - Parecia levemente desconfiado. - É verdade?

- Sim, meu caro senhor. - Não existindo, mais uma vez, motivo para rodeios, Pitt explicou o objectivo da sua visita da forma mais simples que soube.

- Ó céus! - Reggie Southeron sentou-se rapidamente e o seu rosto, bastante corado, empalideceu. - Que coisa... mais... - reconsiderou e começou novamente. - Que história mais chocante, - exclamou, recompondo-se. - E lastimável. Garanto-lhe que não sei nada que o possa ajudar.

- Naturalmente -, concordou Pitt com hipocrisia, observando a boca larga do outro, as suas queixadas sensuais e as mãos macias e bem arranjadas. Não restavam dúvidas de que ele nada sabia acerca dos corpos na praça, mas a possibilidade de não ter conhecimento da respectiva concepção dever-se-ia mais à sorte do que à sua vontade. - Contudo, gostaria que me desse autorização para conversar com os seus serviçais - pediu.

- Com os meus serviçais? - A compostura momentânea voltara a escapar-lhe.

- As intrigas da criadagem são muito valiosas - explicou Pitt, prazenteiramente. - Até as pessoas que não estão directamente envolvidas podem saber de alguma coisa, por uma conversa daqui, outra dali.

- Certamente. Sim, sim, suponho que assim seja. Bem, se necessita de o fazer. Todavia, ficar-lhe-ia grato se não os incomodasse para além do estritamente necessário. Hoje em dia é tão difícil encontrar bons serviçais. Estou certo de que compreende... não... não... claro que não... não o faria. - Reggie nem se dava conta do seu tom de condescendência. - Muito bem. Suponho que não o possa evitar. Farei com que o meu mordomo se encarregue disso.

- Reggie ergueu-se da cadeira e saiu sem dizer mais nada.

Pitt conversou com todo o pessoal, individualmente, informou o mordomo e deixou-os ir. Aquela tarefa ocupara-lhe uma boa parte da manhã e já era hora do almoço. À tarde, Pitt voltou à praça. Eram duas horas quando bateu à terceira porta que, segundo o general Balantyne, deveria ser a da casa do doutor e de Mrs Frederick Bolsover. Durante o almoço estivera outra vez com Stillwell e perguntara-lhe se conhecia Bolsover profissionalmente.

- Dificilmente se encaixa na minha categoria - Stillwell esboçara uma careta. - O mais certo é que ganhe mais num mês do que eu ganho num ano. Tem de ser, para estar a viver em Callander Square. É um médico da sociedade, que conforta bastantes senhoras hipocondríacas, sem nada de mais interessante para fazer senão dar atenção à sua saúde. É uma bela profissão, quando se tem a paciência e as boas-maneiras - coisa que, segundo me consta, não falta ao Bolsover. Tem também uma boa família, um bom início de carreira e todos os conhecimentos necessários.

- É bom médico? - Indagara Pitt.

- Não faço ideia. - Stillwell erguera as sobrancelhas. - Isso interessa?

- Nem um pouco, julgo eu.

Quem o atendeu à porta da casa dos Bolsover foi uma criada de fora, algo surpreendida. Embora pequena e roliça era, à sua maneira, quase tão atraente como a anterior. Obviamente que escolhiam as criadas de fora de acordo com a sua aparência. Esta olhava para Pitt com algum espanto. Não era o tipo de pessoa que entraria pela porta da frente e não estava na hora de receber as visitas; para além de Pitt aparecer cerca de uma hora e meia mais cedo, normalmente, eram as senhoras que cumpriam o ritual das tardes sociais.

- Sim, senhor? - Indagou, momentos depois.

- Boa-tarde. Posso falar com Mrs Bolsover, se ela estiver em casa? Chamo-me Pitt. Sou da Polícia.

- Da Polícia!

- Se me permite? - Pitt avançou de modo a entrar e ela recuou, com nervosismo.

- Mrs Bolsover está à espera de visitas - advertiu a criada rapidamente. - Não me parece...

- É importante - Insistiu Pitt. - Por favor, pergunte-lhe.

A rapariga hesitou. Pitt sabia que ela estava preocupada com a possibilidade de o inspector ainda lá estar quando chegassem as visitas, envergonhando, dessa forma, a sua patroa. Afinal as pessoas respeitáveis nem sequer recebiam polícias em casa, quanto mais pela porta da frente.

- Quanto mais cedo lho perguntar, mais depressa poderei fazer o que tenho a fazer - acrescentou Pitt, de modo persuasivo.

A rapariga percebeu o que ele queria dizer e apressou-se a cumprir a sua parte. Faria qualquer coisa para o afastar da entrada principal.

Sophie Bolsover era uma bonita mulher, pouco diferente da sua própria criada de fora, se esta tivesse feito uma dieta, estivesse vestida de seda e se tivesse penteado.

- Boa-tarde - cumprimentou rapidamente. - A Polly diz que o senhor é da Polícia.

- Sim, minha senhora. - Pitt respeitou o embaraço social que causava à senhora e explicou o motivo da sua visita tão rapidamente quanto pôde. Em seguida, pediu permissão para conversar com os criados, tal como fizera nas outras casas. Ela consentiu de forma apressada e ele foi praticamente arrastado para os aposentos da governanta, onde poderia conduzir os seus inquéritos em segurança e fora das vistas. Pitt começou pela criada de fora, Polly, permitindo-lhe assim libertar-se para as tarefas da tarde, logo que chegasse a primeira visita.

Pitt não obteve nada para além de nomes e caras que seriam armazenadas na sua mente e, depois, devidamente analisadas a fim de excluir as que não fossem necessárias. Talvez a pura tensão, a presença da Polícia dentro de casa, levasse alguém a assustar-se e, consequentemente, a fazer indiscrições e a cometer erros. Ou talvez nunca chegassem a descobrir que motivo sórdido, ou que tragédia privada de amor e desengano estaria por detrás daquelas mortes tão precoces.

Tal como o general Balantyne lhe dissera, os Campbell e as Doran, de momento não estavam nas suas residências. Pitt passou diante da casa vazia, verificou que o isolado Housmann apenas contratava, de facto, criados masculinos e já passava das quatro horas quando foi bater à última porta - a da casa de Sir Robert e de Lady Carlton.

Veio uma assustada criada de fora abrir-lhe a porta.

- Sim, caro senhor?

- Inspector Pitt, da Polícia. - Sabia que era inoportuno, uma vez que aquela era a pior altura para aparecer, era a hora em que se observava à letra a rígida etiqueta da hierarquia social. Era naquele momento do dia que se dava mais atenção às complexidades da posição, que se verificava quem é que aparecia ou se limitava a deixar um cartão de visita. Durante a tarde recebiam-se e retribuíam-se visitas e, de acordo com os preceitos, observava-se quem falava com quem e em que termos. Era imperdoável receber a Polícia numa tal ocasião. Pitt tentou tornar a sua presença o mais inofensiva possível. Não poderiam ter sido apanhados de surpresa. Os mexericos da criadagem já lhes teriam feito chegar aos ouvidos o seu propósito: quem é que tinha visto, o que se tinha perguntado, provavelmente até uma descrição rápida dele, juntamente com uma rígida avaliação a precisar o seu estatuto social.

A criada respirou fundo.

- É melhor entrar - recuou, vigiando-o com ansiedade e desaprovação, como se ele pudesse ser portador do crime, uma autêntica doença contagiosa. - Siga-me até às traseiras, onde procuraremos acomodá-lo. Evidentemente que a patroa não o pode ver agora. Tem visitas. Lady Townshend - acrescentou, com orgulho. Apesar de ignorar a importância de Lady Townshend, Pitt esforçou-se por parecer adequadamente impressionado. A criada reparou na expressão dele e apaziguou-se. - Vou chamar Mr Johnson - continuou. - É o mordomo.

- Obrigado. - Pitt sentou-se onde ela lhe indicou antes de sair rapidamente com um passo majestoso.

Em casa, Charlotte Pitt ocupara-se com os afazeres domésticos, que não lhe levavam mais de uma hora, para, depois, mandar imediatamente a sua única criada comprar um jornal diário para ver se descobria o que Pitt lhe estava a esconder. Antes de se casar, o pai de Charlotte proibia-a de ler tais coisas. A semelhança da maioria dos outros homens bem-nascidos, o pai dela considerava os jornais grosseiros e absolutamente inadequados para mulheres. Afinal, não traziam praticamente mais nada senão crime, escândalo e política, assuntos não só pouco desejáveis para o espírito feminino, como também, claro está, intelectualmente fora do seu alcance. Charlotte tivera de satisfazer o seu interesse subornando o mordomo ou obtendo a conivência do seu cunhado, Dominic Corde. Agora, sempre que se lembrava do amor que sentira por ele naquela época, quando Sarah ainda era viva, sorria. O sorriso desapareceu. A morte de Sarah ainda era uma dolorosa recordação e a paixão por Dominic já esfriara há muito tempo, dando lugar à amizade. Ficara chocada e espantada ao descobrir que estava apaixonada por aquele polícia desajeitado e impertinente que lhe revelara de forma tão perturbadora um mundo de que ela nunca antes tivera tido conhecimento - um mundo de crimes triviais e de uma pobreza extrema e tremenda. O seu inocente conforto tornara-se algo de ofensivo e as suas opiniões haviam mudado.

Claro que os pais tinham ficado abalados quando Charlotte os informara de que pretendia casar-se com um polícia, mas tinham acabado por aceitar a situação com a urbanidade que se lhes impunha. Afinal com a sua frontal sinceridade, Charlotte não era uma pessoa fácil de casar. Era suficientemente bem-parecida - na realidade, Pitt considerava-a bonita -, mas não dispunha de dinheiro suficiente para ultrapassar a sua obstinação e a sua língua indisciplinada - desvantagens consideráveis aos olhos de qualquer homem da sua própria condição. A sua avó já tinha perdido quaisquer esperanças e estava plenamente convencida de que o destino da pobre Charlotte era tornar-se uma solteirona. Havia, porém, a compensação do casamento de Emily com um Lorde! Com o estigma de um crime no seu lar, os Ellison haviam deixado de ser uma família desejável para se estabelecer uma aliança!

Pitt era bastante mais firme com Charlotte do que ela esperara. De facto, apesar de estar profunda e descaradamente apaixonado por ela, exercia uma autoridade tão insuportável como a de todos os outros homens que conhecia. Charlotte começara por ficar surpreendida e até por enfrentá-lo um pouco, mas no fundo, sentia-se bastante satisfeita. Mal se permitira admiti-lo, porém, receara que, devido à sua devoção por ela, bem como à sua anterior posição social, ele a tivesse deixado sobrepôr-se-lhe, moldando a sua vontade à dela. Charlotte sentira-se secretamente deliciada ao descobrir que ele não fazia quaisquer tenções disso. Evidentemente que Charlotte havia chorado e exibido tanto o seu mau feitio, como a sua ofensa na primeira discussão. Contudo, deitara-se com uma delirante alegria interior depois de ele a ter abordado delicadamente, tomando-a nos braços, sempre peremptório quanto a não lhe permitir agir como queria.

Pitt, no entanto, nunca se opusera a que Charlotte lesse os jornais e assim que a criada voltou com o exemplar daquele dia, ela percorreu-o, procurando com os dedos qualquer referência a um crime em Callander Square. Não encontrou nada à primeira vista e teve de procurar mais minuciosamente até descobrir um pequeno artigo, com menos de cinco centímetros, relatando apenas que haviam sido encontrados dois corpos de bebés nos jardins, suspeitando-se de uma tragédia doméstica entre as criadas.

Charlotte percebeu imediatamente a razão pela qual Pitt não lho quisera contar. Ela própria estava recentemente à espera do seu primeiro filho. Pensar numa jovem criada, sozinha e desesperada, receando perder o seu ganha-pão, abandonada por um amante - tudo aquilo era aterrador. Só de o imaginar Charlotte ficou gelada. Todavia, quando pousou o jornal, já estava decidida a não deixar de pensar nisso. Talvez pudesse ajudar a rapariga, caso esta fosse expulsa. Era uma possibilidade; não ela própria, claro, pois não podia oferecer posição alguma. Contudo, havia Emily! Emily era rica - tinha grandes suspeitas de que também se sentia um pouco aborrecida. Já haviam passado igualmente dois anos desde o seu casamento e, por aquela altura já deveria ter conhecido todos os amigos de alguma importância de George Ashworth; já fora vista bem vestida em todos os locais elegantes. Talvez isto lhe desse algum alento. Charlotte decidira ali mesmo. Naquela tarde, iria visitar Emily; cedo, de modo a não coincidir com as visitas socialmente mais importantes e antes que a própria Emily pudesse sair.

Eram exactamente duas horas quando Charlotte se apresentou à porta principal da casa londrina de Emily, em Tavistock Square.

A criada já a conhecia e fê-la entrar sem lhe pedir qualquer explicação. Charlotte foi conduzida à sala de visitas, onde o lume já estava aceso e, momentos depois entrou Emily. A irmã já estava pronta para as suas visitas da tarde. Estava magnífica, vestida de seda de um pálido verde maçã, adornada com laços de veludo cas-tanho-escuro. Aquele vestido deveria ter custado mais do que Charlotte gastava em roupa durante metade do ano. O rosto da irmã reflectia a sua satisfação. Emily beijou-a delicadamente, mas com um genuíno entusiasmo.

- Meu Deus, se vais começar a fazer visitas, Charlotte, terei de te ensinar a que horas deves começar! Não se pode chegar antes das três, que é muito, muito cedo. As senhoras de posição, claro está, ainda chegam mais tarde.

- Não vim fazer uma visita. - Apressou-se Charlotte a dizer. - Nem me passaria pela cabeça. Vim pedir a tua ajuda, se ma puderes dar; e, claro, se estiveres interessada.

Emily ergueu as sobrancelhas cor de mel, mantendo um brilho no olhar.

- Em quê? Por favor, nada de caridades!

Charlotte conhecia demasiado bem a irmã para ter vindo com tal missão.

- Claro que não - respondeu, bruscamente. - Um crime...

- Charlotte!

- Não para cometer, minha parvinha; para ajudar, quando for resolvido.

- Nem mesmo a recente sofisticação de Emily lhe conseguia ocultar a excitação.

- Não o podemos resolver? Não podemos ajudar? Se nós...

- Não é um crime agradável, Emily, não se trata de um roubo ou de uma coisa limpa - esclareceu Charlotte.

- Então, o que é? - Emily não parecia desconcertada. Charlotte já se esquecera da sua compostura, da facilidade com que se adaptava às coisas desagradáveis da vida. Na verdade, a partir do dia em que decidira que se iria casar com George Ashworth, Emily aceitara abertamente os seus defeitos, ciente de que talvez só conseguisse erradicar alguns, mas tomara a sua decisão e contentara-se com o que tinha. Nunca se queixara. Embora, na realidade, Char-lotte não soubesse se ela teria motivos para o fazer.

- Meu Deus, Charlotte - interveio Emily. - É assim tão medonho que nem o consegues proferir? Nunca antes te vi sem palavras.

- Não. Não, é simplesmente muito triste. Foram desenterrados dois corpos de bebés no jardim ao centro de Callander Square.

Surpreendentemente, Emily ficou abalada.

- Bebés?

- Sim.

- Mas quem poderia querer matar um bebé? É uma loucura.

- Uma jovem criada que não fosse casada, claro. Emily franziu o sobrolho.

- E tu queres descobrir quem foi? Porquê?

- Não quero descobrir quem foi - replicou Charlotte, impaciente. - Mas, caso tenham nascido mortos, o que me parece bastante possível, talvez tu possas encontrar-lhe outra posição, se ela for despedida...

Emily fitou Charlotte, deixando transparecer os pensamentos que a assaltavam.

Charlotte aguardou.

- Conheço uma pessoa que vive em Callander Square - anunciou, por fim. - Pelo menos, o George conhece. O Brandy Balantyne. O pai dele é general, ou algo parecido. Estou certa de que vivem em Callander Square. Ele tem uma irmã, a Christina. Vou ver se o George nos apresenta; podemos combiná-lo, basta pensar um pouco. Depois, irei visitá-la -, Emily começou a elevar o tom de voz com a excitação. As suas faces haviam corado levemente e a cabeça erguia-se de forma determinada. - Descobriremos toda a verdade. Posso apurar coisas muito fora do alcance da Polícia, uma vez que me movimento nos círculos adequados. Eles hão-de falar comigo. Tu podes falar com os criados. Ah, naturalmente que com os mais importantes - a cozinheira, a preceptora e outros do género. E evidente que não lhes dirás que és casada com um polícia. Começaremos imediatamente. Assim que o George voltar para casa, falarei com ele e trataremos de tudo!

- Emily...

- O que foi? Julguei que querias a minha ajuda. Não conseguiremos saber qual a melhor atitude a tomar se não descobrirmos a verdade. É sempre preferível saber a verdade, quer decidamos rejeitá-la, escondê-la ou, até, esquecê-la por completo. Contudo, se, para começar, não sabemos a verdade, podemos incorrer nos mais infelizes erros.

Charlotte observou os olhos brilhantes de Emily e todo o seu bom-senso lhe dizia para recusar imediatamente.

- Teremos de ser muito discretas. - O bom-senso sofreu uma rápida derrota.

- Claro! - Emily recompunha-se. - Minha querida Charlotte, nunca poderia ter sobrevivido na sociedade durante dois anos se não tivesse aprendido a dizer tudo menos o que realmente quero. Sou a discrição em pessoa. Começaremos de imediato. Vai para casa e descobre o que puderes. Não creio que possas ser discreta, pois nunca o conseguiste ser. Mas, pelo menos, não reveles os teus planos. Mr Pitt poderá não concordar com eles.

Era uma insinuação de importância. Contudo, Charlotte levantou-se fazendo absoluta tenção de obedecer, sentindo um pouco de medo no seu íntimo e um ligeiro estremecimento perante a excitação de Emily.

 

No dia seguinte, Pitt voltou a Callander Square para interrogar os criados das duas últimas casas, mas só ao princípio da tarde é que eles voltavam dos seus fins-de-semana prolongados no campo. Em consequência, eram quase três da tarde quando o mordomo dos Campbell o conduziu à saleta das traseiras, onde pôde ver, um a um, os restantes criados. Naturalmente que já contavam com as perguntas que o inspector lhes fez - as novidades deveriam ter estado virtualmente à sua porta, sob a forma da ajudante de cozinha, da criada das limpezas ou do engraxate, a rebentar pelas costuras com os acontecimentos, acrescidos da própria interpretação que faziam deles.

Pitt não apurou nada de novo e já estava prestes a sair quando conheceu a dona da casa. O Honorable Garson Campbell era um dos filhos mais novos de uma família abastada e de posição, tendo mantido um estilo de vida apropriado. Mariah Campbell era uma mulher de aspecto agradável, dos seus trinta e muitos anos, com um rosto largo e bem-humorado a enquadrar uns olhos cor de avelã. Tinha estado ocupada a desfazer as malas e a organizar a família que, segundo explicou rapidamente, se compunha de um filho, Albert, e duas filhas, Victoria e Mary. Mariah mostrou-se consideravelmente incomodada ao ouvir a finalidade das perguntas de Pitt, uma vez que, aparentemente, os rumores ainda não lhe tinham chegado aos ouvidos. Assim, pediu veementemente a Pitt que mantivesse a discrição suficiente para não permitir que as crianças tomassem conhecimento da situação.

- Asseguro-lhe, minha senhora, nem sequer me passaria pela cabeça falar em tal assunto com uma criança -, respondeu honestamente, muito embora se tivesse abstido de referir que se alguma criança lhe falasse nisso, ele não se faria rogado em ouvi-la. Pitt encontrara muitas vezes crianças menos afectadas pela morte do que os adultos. Por outro lado, raras eram as crianças que não fossem inveteradamente curiosas, espremendo até à última gota as informações dos criados ou, até, inventando e acrescentando mais alguma.

- Obrigada - agradeceu ela educadamente. - As crianças podem ficar... perturbadas -, Mariah olhava pela janela - e assustadas. Há tanta coisa feia. Pelo menos, e enquanto pudermos, devemos protegê-las disso.

Pitt tinha uma opinião completamente diferente. Acreditava que quanto mais tempo nos esquivássemos à verdade, menos capacidades teríamos para lidar com ela quando esta, por fim, quebrasse todas as barreiras, como numa barragem, arrastando com ela toda a cuidadosa estrutura da nossa vida. O inspector abriu a boca para argumentar, para dizer que um pouco de cada vez criava alguma tolerância ao sofrimento, um equilíbrio; mas lembrou-se do seu lugar. Os polícias não davam conselhos acerca da educação das crianças a senhoras que residiam em Callander Square. Na realidade, os polícias nem sequer filosofavam.

- Receio, minha senhora, que elas possam já ter ouvido alguma coisa da parte dos criados - advertiu, suavemente.

Mariah franziu o sobrolho.

- Vou preveni-los - respondeu. - Qualquer criado que mencione tal coisa será despedido.

Pitt teve um pensamento para a criada inconsciente que, num momento de descuido e de falatório, pudesse ceder à insistência de uma criança ou, até, à sua chantagem, perdendo dessa forma a casa e o emprego de uma só vez. Essas crianças é que a teriam feito enfrentar as desagradáveis realidades da vida.

- Naturalmente - concordou Pitt, tristemente. - Mas existem mais criados nesta praça, minha senhora; e outras crianças.

Em vez de demonstrar a ira que Pitt esperava, Mariah limitou-se a parecer subitamente cansada.

- Com certeza, Mr... Pitt, não foi o que disse? E as crianças contam histórias horripilantes umas às outras. No entanto, estou certa de que não vai assustar ninguém desnecessariamente. Tem filhos?

- Ainda não, minha senhora. A minha esposa está à espera do primeiro. - Contou, sentindo-se ridiculamente orgulhoso e esperando a sua aprovação.

- Espero que corra tudo bem com ela. - O seu rosto não demonstrava qualquer alegria. - Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?

Pitt não sabia o que dizer, sentia-se diminuído.

- Não, obrigado. Terei, certamente, de cá voltar. Poderemos demorar muito tempo a resolver isto, se alguma vez o conseguirmos. Mas, por hoje, é tudo.

- Boa-tarde, Mr Pitt. O Jenkins vai acompanhá-lo à porta.

- Boa-tarde, minha senhora. - Pitt curvou-se ligeiramente e juntou-se ao mordomo, saindo pela porta da frente para a praça inundada de folhas.

A casa das Doran era completamente diferente das outras casas da praça. Encontrava-se inacreditavelmente apinhada de fotografias, bordados, folhas secas comprimidas em caixilhos de vidro, plantas a crescer em vasos e, até, flores frescas, dispostas em jarras pintadas. Existiam também, pelo menos, três pássaros em gaiolas cheias de franjas e campainhas.

A porta foi aberta por uma criada de meia-idade. Esta era uma excepção à regra: dificilmente se poderia imaginar que pudesse ter sido contratada pela sua aparência; ao abrir a boca, no entanto, apresentava uns dentes perfeitos e a sua voz era rica e suave como creme.

- Estávamos à sua espera - anunciou calmamente, distorcendo levemente as vogais, à moda do sudoeste. - Miss Laetitia e Miss Georgiana estão a tomar chá. Com certeza que vai querer falar com elas em primeiro lugar, como seria conveniente. - A criada parecia não precisar de uma resposta, voltando-lhe as costas para que a seguisse até aos recônditos da casa, depois de ele próprio fechar a porta da rua.

Laetitia e Georgiana estavam, de facto, a tomar chá. Georgia-na estava fragilmente recostada numa chaise longue; era ossuda como um coelho enfezado e estava vestida em deliciosos tons de malva e cinzento. O tabuleiro do chá fora servido numa mesinha de pé-de-galo em madeira trabalhada à altura do seu cotovelo. Georgiana encarou Pitt sem desagrado.

- Então, é o polícia? Garanto-lhe que me parece uma criatura assaz singular. Faça o favor de não ser grosseiro comigo. Sou extremamente delicada. Sofro muito.

- Lamento ouvi-lo. - Pitt controlou a sua expressão com algum esforço. - Espero incomodá-la muito pouco.

-Já me incomodou, mas deverei suportar tudo isto com educação, em nome do dever. Sou Georgiana Duff. Esta -, apontou para uma versão mais jovem e bem vestida dela própria, sentado numa outra cadeira - é a minha irmã, Laetitia Doran. É sobre ela que recai o infortúnio, ou a insensatez, de possuir uma casa num local tão desastroso; assim, o melhor é dirigir-se a ela.

Pitt voltou-se para Laetitia.

- Efectivamente, Mrs Doran, volto a apresentar-lhe as minhas desculpas. Contudo, dada a trágica descoberta feita nos jardins, estou certo de que compreende a necessidade que temos de interrogar as criadas, especialmente as mais jovens, em todas as casas que dão para a praça.

Laetitia piscou os olhos.

- Com certeza - asseverou Georgiana. - Era apenas isso que nos vinha dizer?

- Vim pedir-lhe autorização para conversar com as suas criadas - respondeu Pitt. Georgiana riu-se, desdenhosamente.

- Fá-lo-ia de qualquer maneira!

- Preferia fazê-lo com a sua permissão, minha senhora.

- Não me chame minha senhora. Não gosto. E não fique para aí de pé, a fazer-me sombra. Provoca-me vertigens. Se não se senta, desmaio!

Pitt sentou-se, contendo um sorriso.

- Obrigado. Tenho a sua autorização para interrogar os criados? - Olhou para Laetitia.

- Sim, sim, suponho que sim - acedeu, com desconforto. - Por favor, esforce-se por não os assustar. Hoje era dia é tão difícil substituir um criado satisfatoriamente. E a pobre Georgiana precisa de ser adequadamente assistida.

Pitt pensou para consigo que a "pobre Georgiana" encarregar-se-ia, ela própria, de se certificar que, sucedesse o que sucedesse, seria adequadamente assistida.

- Naturalmente -, Pitt levantou-se e dirigiu-se à porta antes que Georgiana se pudesse sentir afectada com a sua presença. - Mandou despedir alguma criada nos últimos seis meses, ou houve jovens que abandonaram a casa?

- Nenhuma - apressou-se Laetitia a responder. - Há anos que estamos exactamente da mesma forma! Há anos e anos!

- Não tem filhos, minha senhora? Filhas que se tenham casado e levado com elas uma criada de quarto?

- Nenhuma!

- Obrigado. Não necessitarei de voltar a incomodá-la - saiu, fechando suavemente a porta. Apesar de ter permanecido duas horas em casa das Doran, também ali Pitt não descobriu nada.

Charlotte tinha toda a razão: Emily começava a sentir falta de alguma coisa na vida de elegância que levava, um certo sal, pelo qual desenvolvia um gosto crescente. Não restavam dúvidas de que apreciava a sua vida; era o modo ideal de existência para ela. Ainda ela e Charlotte viviam na casa de Cater Street, com a Mamã e o Papá, e ainda Sarah era viva, já Emily sabia perfeitamente o que queria. Decidira numa fase muito precoce do relacionamento que casaria com Lorde George Ashworth; e que bela combinação acabara por ser. Evidentemente que George tinha os seus defeitos, mas que homem os não tinha? A sua maior virtude era gostar dela, tratando-a constantemente com generosidade e respeito; sem dúvida que era bem parecido e, quando queria, perspicaz. Seria agradável se não jogasse tanto, pois era um extraordinário desperdício de dinheiro. Se namoriscava, porém, fazia-o com uma total discrição, raras vezes saindo sem convidar Emily para o acompanhar; e não a incomodava acerca das ocupações ou companhias femininas da sociedade que mantinha. Isso era um ponto consideravelmente positivo a seu favor. Emily conhecia um bom número de mulheres cujos maridos as abandonavam sistematicamente em casa para frequentarem locais assaz inapropriados para qualquer mulher minimamente decente, criticando-as pelas recepções que elas próprias davam, durante a tarde.

Era indiscutível, porém, que faltava qualquer coisa, um objectivo, no seu circuito actual. Desde que se tornara Lady Ashworth tinha conseguido já atingir um bom nível social, pelo menos, por ora. O revoltante segredo de Charlotte talvez acabasse por se revelar precisamente o tipo de diversão por que ansiava, com a vantagem adicional de poder prestar ajuda genuína a alguém, caso alguma vez encontrassem a desgraçada da rapariga!

Por outro lado, gostava muito da irmã. Certamente que Charlotte era socialmente impossível! Nunca a poderia apresentar nas tardes, nos jantares e nos bailes que ela própria frequentava; muito embora, nalgumas das ocasiões mais pomposas tivesse regularmente dado por si a pensar no que teria dito Charlotte, se lá estivesse. Esta questão também lhes daria oportunidade para fazerem algo juntas, o que, por si só, seria agradável.

Assim que George chegou, a tempo de se mudar para o jantar, Emily abandonou a sua dignidade e correu pelas escadas atrás dele. Ao chegar ao topo, George voltou-se, surpreendido.

- O que se passa?

- Quero conhecer a Christina Balantyne - respondeu imediatamente.

- Esta noite? - Mostrava-se incrédulo, com a boca elegante a desenhar um sorriso. - Asseguro-lhe que ela não é assim tão divertida!

- Não me quero divertir. Quero ser convidada para ir a casa dela ou, pelo menos, para poder visitá-la sem parecer tentar declaradamente conhecê-la.

- Para quê? - Ergueu as sobrancelhas, acima dos seus olhos negros. - É a Augusta que pretende conhecer? Imponente, a Augusta. O pai era duque e ela tem vivido toda a sua vida de acordo com esse estatuto; não que isso implique algum esforço, creio eu.

- Embora não fosse essa a razão, parecia uma excelente explicação a adoptar.

- Sim, gostaria. Por favor, George? - Sorriu-lhe abertamente.

- Vai ficar desapontada. Não vai gostar dela - olhou para baixo com uma leve careta.

- Não estou interessada em gostar dela, quero apenas poder visitá-la!

- Porquê?

- George, não o pressiono acerca dos seus amigos no Whites ou no Boodle's, ou onde quer que seja. Deixe-me entreter-me visitando quem me apetecer. - Sorriu-lhe com um misto de encanto, porque o amava realmente, e de honestidade, porque se havia fingimento entre eles, resumia-se a uma questão de respeito, sendo desprovido de qualquer falsidade.

- George deu-lhe uma leve palmada na face e beijou-a.

- Deverá ser bastante fácil procurar o Brandy Balantyne e ele é um tipo afável. Na verdade, é de longe o melhor da família. Aviso-a que vai ficar decepcionada com os outros!

- Talvez - esboçou um sorriso seráfico, extremamente satisfeita. - Porém, tenciono descobri-lo por mim própria.

Foram precisos três dias para que os planos de Emily frutificassem, permitindo-lhe vestir-se cuidadosamente em tons suaves de castanho bordado a dourado, para sair, as mãos envoltas num regalo de pele, com o objectivo de visitar Christina Balantyne. O seu traje parecia ser exactamente a mistura adequada de dignidade e segurança, acompanhada da afabilidade que uma senhora com um título poderia dispensar a alguém que se aproximava bastante do seu nível, sem, contudo, o atingir. Emily também se dera ao trabalho de verificar que Christina estaria em casa naquela tarde: e isso requerera alguma investigação delicada, através da sua criada de quarto que, por casualidade, tinha conseguido conhecer a criada de quarto de uma certa Susanna Barclay, que frequentava habitualmente Callander Square. De facto, Emily tinha mais pontos em comum com Mr Pitt do que ele alguma vez poderia imaginar.

Depois de instruir devidamente o cocheiro e o trintanário para a esperarem, Emily apresentou-se à porta da casa dos Balantyne faltava um quarto para as quatro. Tal como era costume à tarde, foi a criada de sala que veio à porta. Esboçando um sorriso encantador, Emily retirou o seu cartão da caixa de marfim e entregou-o com uma pequena mão elegantemente enluvada. Tinha orgulho nas suas mãos.

A criada recebeu-o, lendo-o disfarçadamente, e retribuiu-lhe o sorriso.

- Se Sua Senhoria fizer o favor de entrar, Lady Augusta e Miss Christina estão a receber na sala de visitas. - Era uma saudação invulgarmente loquaz, devendo-se simplesmente ao facto de Emily ser uma viscondessa. Nunca tendo visitado a casa antes, ao fazê-lo pessoalmente em vez de se limitar a deixar um cartão, concedia-lhes uma grande honra. Uma boa criada de sala era tão versada nas subtilezas das distinções sociais como a sua patroa.

- Em vez de bater à porta - o que teria sido considerado grosseiro - a criada abriu-a e anunciou Emily.

- Lady Ashworth.

Naturalmente que, embora estivesse a arder de curiosidade, Emily ocultou os seus sentimentos com uma dignidade magnífica, atravessando a sala de mão estendida, sem olhar para a direita nem para a esquerda. Ouviu-se um ligeiro murmúrio entre as senhoras presentes - um interesse natural, rapidamente abafado pelo protocolo. Não se podia demonstrar uma emoção tão pouco sofisticada.

Lady Augusta permaneceu sentada.

- Que encantadora - elogiou, levantando ligeiramente o tom de voz. - Queira sentar-se, Lady Ashworth. É muita bondade sua vir visitar-nos.

Emily sentou-se, ajeitando a saia quase imperceptivelmente, mas colocando-a exactamente de modo a favorecê-la.

- Estou certa de que partilhamos muitas amizades - declarou Emily, sem se comprometer. - Com certeza só por acaso não nos conhecemos antes.

- De facto - Augusta também não pretendia comprometer-se. Sei que já conhece a minha filha, Christina. - Tratava-se de uma afirmação. Emily olhou para o outro lado da sala, para o belo rosto de Christina com o seu queixo macio e lábios carnudos. Era um rosto invulgar. Mais do que beleza, espelhava individualidade e desafio - era um rosto que, sem dúvida, os homens haviam de considerar atraente. Prometia desejo e entrega. Os homens, porém, eram incrivelmente patetas no que dizia respeito às mulheres. Emily podia perceber logo à primeira vista a rigidez no equilíbrio entre o nariz bem desenhado e a curva dos lábios. Uma pessoa acostumada a receber, não a dar, pensou Emily. Fixou esta reflexão e voltou-se para a mulher seguinte, a quem Augusta já estava a apresentá-la.

- Lady Carlton - anunciava Augusta. - Sir Robert está no Governo, sabe, no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Emily sorriu-lhe. Esta mulher era completamente diferente, menos bonita, com uma boca larga, mas mais afável. Naquele momento tinha, porém, as mãos entrelaçadas no colo e apresentava umas linhas muito finas, vincadas em redor dos olhos e da boca. Era mais velha do que Christina - talvez até estivesse perto dos trinta e cinco anos - acusando um certo nervosismo e tensão, subjacentes à sua amabilidade. Emily trocou com ela inclinações de cabeça e um reconhecimento cortês. Depois de lhe terem sido apresentadas outras pessoas, deu-se início à conversa. Em primeiro lugar, acerca do tempo, que estava excepcionalmente brando para finais de Outubro, em segundo lugar abordou-se a moda, depois passou-se à área da intriga. Às quatro horas a criada de sala trouxe o chá e Lady Augusta serviu-o.

Emily conseguiu travar conversa com Christina e Euphemia Carlton. O assunto dos corpos na praça foi introduzido sem qualquer dificuldade.

- Assaz chocante - estremeceu Euphemia. - Pobres alminhas. - O rosto foi perpassado por um toque de desolação.

- Presumo que não deram por nada - respondeu Christina, com pragmatismo. - Segundo sei, eram recém-nascidos. Na verdade, poderão até ter nascido mortos.

- Não deixavam de ter almas - Euphemia fitou o infinito. Emily sentiu uma rápida picada de excitação e uma singular aflição. Era possível que fosse assim, tão depressa, tão facilmente? Era culpa o que lia no rosto de Euphemia Carlton? Precisava de descobrir mais acerca dela. Por que haveria ela de fazer uma coisa tão assustadora? De facto, por que o haveria de fazer qualquer mulher casada, rica e de posição? Logo que tivesse oportunidade de perguntar a Charlotte mais acerca dos bebés. Seriam pretos, ou teriam alguma estranha aparência que pudesse denunciar algum tipo de infidelidade?

- Suponho que não tenha conhecimento do nosso pequeno horror - Christina estava novamente a falar.

- Queira perdoar? - Emily apresentou-lhe um ar inocente.

- O nosso horror - repetiu Christina. - Os corpos enterrados na praça.

- Apenas dos pequenos fragmentos que referiram - mentiu Emily, sem uma ponta de remorso. - Por favor, se isso não a incomodar, dê-me algumas informações. - Evidentemente que não esperava de Christina mais nenhuma informação para além da que lhe fornecera Charlotte, até esperava menos; queria, no entanto, poder observar a reacção de Euphemia ao relato e, claro está, a de Christina, caso esta fosse digna de nota.

- Há pouco a dizer - começou instantaneamente Christina. - Os jardineiros estavam a cavar para plantarem uma árvore, ou algo do género, quando descobriram os corpos dos bebés. Naturalmente, chamaram de imediato a Polícia...

- Como sabe? - Inquiriu Emily.

- Minha cara, através dos criados, obviamente! Como é que as pessoas sabem de alguma coisa que se passe, com algum interesse! E depois apareceu por aí um polícia estranhíssimo! Realmente, nunca se viu uma criatura assim, todo ele eram braços e cabelo! Com certeza que barbeiro algum lá pôs a mão, quanto mais o pente ou a tesoura. Ou talvez as classes trabalhadoras não tenham barbeiros. E era perfeitamente enorme!

Emily sorriu para consigo com esta visão de Pitt, não totalmente imprecisa. Tê-lo-ia reconhecido através dela.

- Imaginem só a minha surpresa - prosseguiu Christina -, quando abriu a boca e falou educadamente comigo. Não fora eu tê-lo visto, tomá-lo-ia por um cavalheiro.

- Certamente que ele não a interrogou? - Emily parecia apropriadamente chocada, fazendo-o, sobretudo, de modo a exibir alguma emoção suficientemente forte para disfarçar o seu divertimento.

- Evidentemente que não! Apenas o encontrei casualmente no átrio. Tem andado a interrogar todas as criadas, por toda a praça.

Imagino que seja alguma infeliz rapariga que não se consegue controlar. - Baixou o olhar por momentos, como se se sentisse envergonhada. Então, ergueu a cabeça e tinha novamente um brilho no olhar. - Assaz excitante, ter detectives por aqui. Claro que a Mãe considera tudo muito macabro e crê que poderá fazer descer o nível do bairro. Parece-me, porém, que as pessoas vão compreender. Afinal de contas, todos têm criadas. Estes problemas acabam sempre por ocorrer. O nosso é apenas um pouco mais horrível e é tudo!

Euphemia empalidecera e era óbvio que não desejava continuar a abordar aquela questão. Emily foi em seu auxílio.

- Certamente que irão compreender - concordou. - Lady Carlton, Lady Augusta disse-me que o seu marido está no Governo. Imagino que tenha de ter muita cautela com os seus criados, admitindo apenas os mais discretos.

Euphemia sorriu.

- Sir Robert raramente traz para casa trabalho de natureza confidencial. Mas naturalmente que é importante manter serviçais discretos quanto às conversas ouvidas ao jantar e daí por diante.

- Que excitante! - Emily simulou um deleite de adolescente e deu seguimento ao assunto até acabar o chá, altura em que seria apropriado sair. Teria de fazer outras visitas ou poderia parecer demasiado interessada. Uma requintada mulher de sociedade jamais se deveria restringir apenas a uma visita. Deveria fazer, pelo menos, mais uma e deixar o seu cartão em duas outras residências.

Emily pediu licença, tentando pensar numa forma de poder assegurar o seu regresso a Callander Square, se possível, uma semana depois.

- Tão encantadora - murmurou a Lady Augusta. - O George falou-me tão bem de si, foi maravilhoso conhecê-la -, a lembrar-lhe que George era amigo de Brandy Balantyne e de que pertenciam ao mesmo círculo social.

- Muito amável da sua parte - respondeu Augusta, distraida-mente. - Vamos dar uma pequena festa nesta sexta-feira à tarde. Se não tiver já algum compromisso, talvez queira fazer-nos uma visita?

- Que agradável -, respondeu Emily, mostrando-se igualmente descontraída. - Parece-me que poderei vir.

Emily esgueirou-se, sentindo-se infinitamente satisfeita.

Na tarde seguinte, Emily vestiu um simples vestido verde, chamou um criado sem libré e foi direita a casa de Charlotte. Era mais fácil do que esperar que Charlotte viesse ter com ela. Em primeiro lugar porque a irmã não possuía carruagem e não dispunha de meios para alugar um fiacre. Por outro lado, era óbvio que Emily simplesmente não aguentava ficar à espera.

Entrou pela casa de Charlotte dentro, encontrando-a ocupada a remendar roupa interior.

- Que diabo estás tu a fazer? - Perguntou. - Pousa isso e ouve o que tenho para te contar!

Charlotte mantinha o pedaço de linho na mão.

- Julgava que as senhoras não apareciam antes das três! Ainda nem sequer são duas e um quarto - referiu com um sorriso.

Emily arrancou-lhe a peça de roupa da mão, atirando-a para cima do sofá.

- Trago notícias muito excitantes! - Anunciou empolgada-mente. - Fui a casa dos Balantyne e travei conhecimento com Chris-tina e Lady Augusta e, infinitamente mais interessante, com uma tal Lady Euphemia Carlton, que ficou particularmente desconcertada com a conversa sobre os bebés na praça! Acredito piamente que sabe alguma coisa acerca disso. Era capaz de jurar que está seriamente preocupada. Charlotte, crês que já resolvi o caso?

Charlotte encarou-a com um ar sério.

- Lady Carlton não é casada?

- Claro que é casada! - Respondeu Emily, impaciente. - Mas, porventura, poderá ter um amante. Talvez as crianças, os bebés, a pudessem ter denunciado! Eles tinham alguma aparência invulgar, como pele escura, cabelo ruivo, ou coisa parecida? - Emily inspirou e continuou, precipitando-se antes que Charlotte tivesse tempo para estudar a pergunta e responder-lhe. - O marido dela está no Governo. Talvez seja um amante estrangeiro, um grego, um indiano, ou assim. Quem sabe se não existem segredos implicados na questão? Charlotte, que te parece? Ela é bastante bem parecida, sabes? Não é bonita, mas é afável. Parece bem do género de se poder apaixonar e comportar de forma bastante irresponsável. Charlotte olhou para a irmã, com uma expressão pensativa.

- Terei de indagar, porém, duvido que o Thomas me diga...

- Oh, não sejas tão fraca! - Exclamou Emily, exasperada. - Não me digas que não o consegues persuadir! O homem está enfeitiçado por ti! Inventa uma razão qualquer! Preciso de saber, senão, por que o faria ela? Uma mulher não mata os próprios filhos, ou enterra os nado-mortos, sem ter uma razão fortíssima.

- Evidentemente que não - concordou Charlotte, racionalmente. - Mas o Thomas não acreditará que lho pergunto por mera curiosidade. Não é tão amável como o George, sabes? Nem tão inocente - acrescentou.

Nunca ocorrera a Emily que George Ashworth fosse inocente, mas, ao pensar nisso, apercebia-se daquilo a que Charlotte se referia. No entanto, talvez não se tratasse nem de falta de malícia nem de falta de interesse. Considerava que ele sabia exactamente o que Emily faria em qualquer situação e tinha uma confiança total no seu bom-senso. Pitt, por sua vez, sabia perfeitamente que não deveria confiar em algo tão errático como o bom-senso de Charlotte.

- Mesmo assim, tentarás? - Insistiu.

- Charlotte sorriu, mantendo os seus pensamentos para si.

- Claro. Sempre demonstrei interesse pelo trabalho dele. Tentarei ajudá-lo. - Alargou o sorriso. - Com o ponto de vista feminino, que ele, obviamente, não consegue dos seus polícias.

Emily deu um suspiro de alívio que deixou Charlotte a rir-se.

Quando Emily chegou a Callander Square na sexta-feira à tarde, Charlotte já lhe havia transmitido a decepcionante notícia de que o segundo bebé não apresentava nada digno de nota, mas que o primeiro, o que estava enterrado mais abaixo, tinha a cabeça deformada. Sentira-se, no entanto, de ânimo mais leve quando a irmã lhe indicou que, uma vez que os corpos haviam estado tanto tempo enterrados, era impossível determinar se, à nascença, qualquer uma das crianças tinha a pele ou o cabelo de uma cor invulgar. Emily não tomara em conta a decomposição e só de pensar nisso sentia-se inesperadamente incomodada. Era evidente que a carne não permaneceria. De facto, Charlotte realçara que, segundo Pitt, não fora a natureza barrenta do solo e os corpos não estariam tão bem conservados. A ideia em si era extremamente desagradável. Emily já havia conseguido afastar de si tais pensamentos quando se apresentou à porta dos Balantyne. Foi imediatamente acolhida e conduzida pelo átrio até ao salão de recepções, onde já se formara uma pequena multidão composta quer por homens, quer por mulheres. Ao centro havia um enorme e resplandecente piano de cauda, com as pernas convenientemente cobertas. Assim que entrou, Emily vislumbrou instantaneamente Christina, Euphe-mia Carlton, Lady Augusta e muitas outras pessoas que já conhecia do seu próprio círculo social. Reconheceu igualmente Brandy Balantyne, alto, esguio, moreno como a mãe e a irmã, mas com uma expressão mais descontraída e extrovertida. Ao ver Emily entrar, o rosto de Brandy iluminou-se num sorriso.

- Lady Ashworth, que adorável surpresa - avançou para a receber, apresentando-a. - Conhece o Alan Ross? Não? Que desgraça para o Alan.

- Mr Ross - Emily cumprimentou-o com graciosidade. Ross curvou-se de um modo um pouco formal. Estava na casa dos trinta e era de pequena estatura, mas tinha um rosto forte e delicado, de uma intensidade invulgar.

- Lady Ashworth, é uma grande honra -, não acrescentou mais nenhum elogio e Emily ficou bastante satisfeita. A adulação podia tornar-se aborrecida. Afinal de contas, não passava de uma mera fórmula na boca da maioria dos homens, tão automática como "bom-dia" ou "adeus".

Começaram a falar sobre um inofensivo assunto qualquer, sem que nenhum deles prestasse mais do que uma atenção superficial. Emily olhou de soslaio para Euphemia Carlton. A sua curiosidade aumentou ao dar-se conta de que esta parecia invulgarmente bem, não sendo, de facto, exagerado afirmar que resplandecia. Será que a culpa e a tensão que Emily identificara nela antes não tinham passado de uma indisposição? Emily pôs essa ideia de lado. Ainda era demasiado cedo para tirar essa conclusão.

Emily aceitou um suave refresco de uma criada com um avental engomado. À porta estava um criado - um homem bem parecido, com uns olhos semicerrados que, de certa maneira, lhe conferiam um ar de sensualidade. Emily tinha visto as mesmas feições em dândis e esbanjadores, ao abandonarem os clubes que George frequentava - os grandes vencedores e os grandes perdedores. Aquele homem teria sido um deles, se a vida tivesse sido mais generosa com ele. Agora, ali estava, junto à parede da casa de um general, vestido de libré, a servir as senhoras e os escassos cavalheiros que não tinham nada de mais importante para fazer naquela tarde. Emily viu Christina Balantyne passar por ele, a rir, tão inconsciente da sua humanidade como se se tratasse de uma peça de mobiliário ou de uma jarra de flores.

O entretenimento começou. Primeiro uma interpretação de uma valsa de Chopin, mais técnica do que lírica; em seguida, um contralto bastante oscilante cantou três baladas. Emily esforçou-se por manter uma expressão embevecida e atenta, enquanto deixava o seu espírito divagar.

Ainda não fora apresentada a Sophie Bolsover, mas já ouvira falar no seu nome numa conversa entre vizinhos, percebendo que ela também residia em Callander Square. Agora, Emily observava-a pelo canto do olho, por um lado porque lhe despertava o interesse, por outro porque era mais fácil manter uma expressão séria se não olhasse directamente para os olhos do diligente contralto. No decurso dos últimos dois anos, Emily já se acostumara ao tipo de pessoas como Sophie Bolsover; ainda muito jovem, razoavelmente bela por natureza para poder concentrar toda a sua arte nas suas boas qualidades, disfarçando as características mais fracas. Nascera numa boa família, com dinheiro suficiente para lhe garantir um casamento satisfatório. Nunca tivera motivos para recear a eventualidade de ficar solteira e dependente; não se vira obrigada a impor-se diante de muitas irmãs, numa casa governada por mulheres. Emily deduzia tudo isto através da segurança calma e assaz superficial que lhe lia no rosto.

Depois de concluídas e devidamente aplaudidas as canções, Emily decidiu procurar conhecê-la. Emily era encantadora, engenhosa e invencível em tais artes sociais. Passados cinco minutos, conversava com Sophie acerca de moda, conhecimentos mútuos e fazia especulações sobre quem poderia casar com quem. Emily conduziu a conversa até aos residentes da praça, começando com um elogio a Christina.

- Tão bonita - concordou Sophie com um sorriso.

Emily teria contestado a escolha das palavras. Christina era elegante, atraente - certamente que para os homens - não era, porém, bonita.

- É verdade - disse em tom de confidência. - Não tenho dúvidas de que terá muito por onde escolher.

- Houve uma altura em que estava certa de que poderia casar com Mr Ross -, Sophie inclinou a cabeça muito ligeiramente na direcção de Alan Ross, que falava animadamente com Euphemia Carlton. - Mas evidentemente que ele nunca conseguiu esquecer a pobre Helena - prosseguiu Sophie.

A atenção de Emily aguçou-se.

- Helena? - Inquiriu, fazendo uma brilhante tentativa para demonstrar uma certa indiferença. - Foi vítima de alguma desgraça?

- Nunca a mencionam - referiu Sophie de uma forma algo inconsequente.

O interesse de Emily avivou-se ainda mais.

- Minha cara, que fascinante! Quem é que nunca a menciona?

- Ora essa, a Laetitia Doran, claro. - Sophie arregalou os olhos. - A Helena era a única filha da Laetitia. Naturalmente que, nessa altura, a Georgiana não vivia com ela.

- Veio... depois? - Emily tentou encaixar as peças.

- Sim, para a consolar.

- Consolá-la de quê?

- De quê? Ora essa, quando a Helena fugiu. Com um amante... segundo dizem. Que acto tão irresponsável e tolo! E que grande vergonha para a mãe.

- Com quem fugiu ela? Porque não casou com ele? Meu Deus, era um criado, ou coisa parecida?

- Quem sabe? Ninguém chegou a vê-lo!

- Como? Não pode estar a falar a sério! - Emily estava incrédula. - Era assim tão mau que ela não ousou... valha-me Deus! Ele não era casado, pois não?

Sophie empalideceu.

- Ah, espero bem que não. É perfeitamente medonho! Não, não me parece. Era muito bonita, a Helena, sabe. Poderia ter escolhido por entre... bem, não sei quantos homens. O pobre Mr Ross ficou bastante abalado quando ela se foi embora.

- Ele soube o que se passara?

- Claro. Ela deixou-lhe uma carta a dizer que tinha fugido. E, claro que nos bastava ter bom senso para sabermos perfeitamente que ela tinha um admirador. As mulheres percebem esse tipo de coisas. Lembro-me que, na altura, considerei o seu acto bastante romântico. Nunca imaginei que pudesse acabar tão terrivelmente.

- Não percebo por que tem de ser tão mau -, respondeu Emily, fazendo uma leve careta - uma vez que ela fugiu para se casar com ele, algures. Ela podia amá-lo e a mãe, porventura, não o querer aceitar. Concordo que é um pouco disparatado; especialmente se ele não tivesse dinheiro; mas não totalmente fatal. Os amores românticos não são lá muito práticos, no que diz respeito à vida quotidiana, quando temos de pagar a cozinheira, a modista e por aí fora... Se, no entanto, tivermos bom senso, pode até revelar-se bastante suportável. Uma das minhas irmãs casou-se a um nível consideravelmente inferior ao seu e parece estar revoltantemente feliz com isso. Contudo, serei a primeira a reconhecer que ela é uma criatura invulgar.

- Ela é verdadeiramente feliz? - Sophie ergueu as sobrancelhas com surpresa e interesse.

- É, pois, - assegurou-lhe Emily. - Mas eu e a Sophie iríamos considerar uma tal situação bastante desagradável. Talvez a Helena fosse como ela, mas receasse as objecções da mãe, acabando por optar pela saída mais fácil.

O rosto de Sophie iluminou-se.

- Que ideia tão deliciosa! Talvez esteja na Itália, casada com um pescador, um gondoleiro, ou alguém do género.

- Vêem-se muitos gondoleiros em Callander Square? - Perguntou Emily, educadamente.

Sophie reprimiu um pequeno riso, olhando em seguida à sua volta, espantada com o seu deslize social - o riso espontâneo, e não a pergunta idiota.

- Como é deliciosamente refrescante, Lady Ashworth -, elogiou Sophie através dos dedos que lhe tapavam a boca. - Estou certa de que nunca conheci ninguém tão espirituoso.

Apesar de sentir uma resposta fulminante aflorar-lhe aos lábios, Emily limitou-se a sorrir.

- Pobre Mr Ross, - comentou, descomprometidamente. - Devia ser-lhe muito devotado. Já foi há muito tempo?

- Ah, já deve ter passado mais de um ano, talve2 até já perto de dois.

Emily sentiu o coração cair-lhe aos pés. Helena Doran parecera-lhe uma suspeita altamente provável. Com a resposta de Sophie tornava-se uma séria improbabilidade. Emily olhou instintivamente para Euphemia, do outro lado do salão. A acompanhá-la estava um homem que Emily nunca tinha visto antes - um homem de considerável distinção, talvez entre os cinquenta e cinco e os sessenta anos de idade.

- Quem é aquele cavalheiro tão elegante ao lado de Lady Carlton? - Indagou.

O olhar de Sophie seguiu o dela.

- Oh, é Sir Robert! Não sabia?

- Não - Emily meneou ligeiramente a cabeça. Ele devia ser, no mínimo, vinte anos mais velho do que a esposa - um facto deveras interessante. - Creio que ficaria um pouco abismada com um marido tão imponente - respondeu cuidadosamente. - Ele parece tão... importante. Ele está no Governo, não está?

- Sim, efectivamente. Sabe, julgo que também sentiria o mesmo. Como é perspicaz. Tem uma forma excelente de colocar em palavras exactamente o que me ia na cabeça.

Emily estava no caminho certo.

- Não creio que seja lá muito divertido - prosseguiu.

- Não, de facto, não me parece. - Sophie olhou-a de cima a baixo e aproximou-se. Emily sabia que vinha aí uma confidência, e sentia o sangue a ferver-lhe nas veias de excitação. Esboçou um sorriso encorajador.

- Ela sente-se muito... - Sophie hesitou, - atraída... pelo Brandy Balantyne. Tão encantador, o Brandy. Asseguro-lhe que se não fosse tão completamente devotada ao Freddy estaria, eu própria, bastante apaixonada por ele!

Emily respirou fundo, sentido o coração a bater-lhe na garganta.

- Quer dizer - indagou, espantada - que ela mantém um caso com o Brandy?

Sophie levou o dedo aos lábios, mas mantinha os olhos a dançar.

- E está de esperanças! - Acrescentou. - Perto do terceiro mês.

 

Três dias depois Emily teve oportunidade de visitar Charlotte e relatar-lhe os acontecimentos da festa de sexta-feira à tarde e as espantosas novidades. No fim-de-semana a visita estava fora de questão, não só porque George já tinha assumido diversos compromissos - um dia nas corridas, no sábado, seguido de um jantar com amigos e, no domingo, um casamento de sociedade a meio da tarde, acompanhado da inevitável celebração - mas também, evidentemente, porque Pitt estaria em casa. Depois de ter assumido o cargo de inspector, já não lhe era exigido trabalhar nesses dias, salvo se estivesse a seguir um caso muito urgente. As mortes de dois bebés, provavelmente ilegítimos e de uma criada, não se encaixariam nessa categoria.

Emily de forma alguma se sentia envergonhada pelo que estava a fazer, mas preferia que Pitt continuasse sem tomar conhecimento disso, pelo menos, por agora.

Contudo, na segunda-feira de manhã Emily já não se conseguia conter mais e deu o passo inédito de chamar a sua carruagem às dez horas para ser transportada a casa de Charlotte.

Charlotte ficou incrédula e, simultaneamente, divertida. Veio ela própria abrir a porta, trajando um simples vestido de lã e um avental.

- Emily! Por amor de Deus, que fazes tu aqui? - Não havia necessidade de lhe perguntar se tinha sucedido alguma calamidade, uma vez que via o rosto da irmã brilhar de excitação. Na verdade, Charlotte não se recordava de lhe ter visto uma expressão de alegria daquelas desde que Emily lhe comunicara que ia desposar George Ashworth: não que ele soubesse disso, na altura, evidentemente.

- Trago novidades absolutamente devastadoras! - Anunciou Emily, afastando Charlotte do caminho para poder entrar. - Mal vais acreditar quando tas contar.

Charlotte presumiu imediatamente a natureza das novidades que a irmã lhe trazia.

- O trabalho de investigação assenta-te melhor do que eu esperava - declarou, com os olhos arregalados. - Talvez devesses ter sido tu a casar-se com o Thomas e não eu!

Emily fitou-a com uma relutância fulminante, passando depois para o espanto. Passaram-se uns bons momentos até se aperceber de que Charlotte estava a troçar dela.

- Ora, Charlotte... sua... - Não se conseguia lembrar de palavra alguma que pudesse descrever os seus sentimentos e, ao mesmo tempo, adequar-se à língua da senhora que sentia ser.

Charlotte riu-se.

- Entra, conta-me o que descobriste, antes que rebentes! Emily tencionara ir dando as pistas, uma a uma, de forma a prolongar a história, mantendo a tensão, mas ela própria não conseguiu aguentar.

- A Euphemia Carlton tem um caso! - Informou orgulhosamente. Ficou a aguardar o espanto de Charlotte.

Charlotte compensou-a, arregalando os olhos e deixando o espanador escorregar-lhe da mão.

- Aqui tens! - Emily brilhava de satisfação. - O Pitt não descobriu isso, pois não? O caso é com o Brandy Balantyne e isso não é tudo! - Emily hesitou, para provocar suspense.

Charlotte sentou-se.

- Então? - Inquiriu. Emily sentou-se a seu lado.

- Está de esperanças! No terceiro mês!

Charlotte estava genuinamente impressionada e tinha certeza absoluta de que Pitt não tinha conhecimento daquilo, fosse relevante ou não.

- Como é que sabes? - Indagou. Parecia-lhe uma informação muito estranha para se conseguir através de um conhecimento tão recente.

- A Sophie Bolsover contou-me. É uma criatura tola e inofensiva e não parece fazer a mínima noção do que isso significa.

- Ou então, sabe que não tem qualquer significado -, Char-lotte não queria pôr fim à excitação de Emily, mas a verdade aflorava-lhe à boca assim que lhe atravessava o espírito e Charlotte ainda não tinha aprendido a controlar-se. Além disso, nesta fase era mais misericordioso não permitir que uma suposição crescesse sem ser primeiro analisada.

- Como pode ela saber tal coisa? - Quis saber Emily.

- Se a Euphemia mantém um caso com o Brandy Balantyne, a criança tem de ser dele! E há uma outra coisa que não te contei... Vi Sir Robert Carlton. É bastante velho. Muito imponente e distinto, mas com um ar assustadoramente sombrio. Tem o cabelo louro e os olhos bastante claros. O Brandy é muito moreno. Tem o cabelo preto e os olhos escuros, cor de avelã.

Charlotte continuava a mostrar-se pouco impressionada.

- A Euphemia é clara! - Explodiu Emily, exasperada. - Tem um cabelo muito bonito, louro avermelhado! Se a criança tiver cabelo preto, teremos um escândalo medonho! Não admira que ela esteja assustada. - Emily piscou os olhos. - Graças a Deus que o George é moreno e eu sou loura. Seja qual for a aparência dos meus filhos, não suscitarão qualquer tipo de comentário -, declarou de forma bastante informal, como se de uma ideia passageira se tratasse. Acima de tudo, Emily era prática.

Charlotte aceitou o raciocínio.

- Isso é, de facto, muito importante - reconheceu, com um tom sério. - Refiro-me à Euphemia e ao Brandy Balantyne, claro.

Emily resplandeceu de satisfação. Era mais pragmática e segura do que a irmã e, no entanto, Charlotte tinha qualquer coisa - talvez uma certeza interior quanto às suas próprias convicções -que tornava o seu elogio particularmente valioso para Emily.

- Vais contar a Mr Pitt? - Perguntou.

- Creio que devo! Existe algum motivo para não o fazer?

- Não, claro que não. Por que outra razão to havia de contar? Minha querida, sabes bem que nunca te confiaria um segredo!

Charlotte sentiu-se magoada e expressou-o no rosto.

- Não que tu o fosses contar - apressou-se Emily a acrescentar. - Mas tu nunca mentirias, pelo menos, com êxito. Irias trair o teu conhecimento através do teu próprio desconforto e, depois, terias de manter silêncio. Seria uma situação horrível e acabaria por ser muito mais importante do que o próprio segredo.

Charlotte fitou-a.

- Minto muito bem - continuou Emily. - Creio que isso é uma boa qualidade para um detective, especialmente quando não se é da Polícia, não podendo ser directo quanto ao nosso interesse. Assim que descobrir mais alguma coisa, dir-te-ei.

Charlotte deteve-se uns momentos a pensar e disse, cuidadosamente:

- Talvez seja melhor tentares descobrir há quanto tempo dura este caso. Mas, Emily, por favor, tem cuidado. Não te deixes entusiasmar com os teus êxitos. Se descobrirem o que andas a fazer, podes ficar muito mal vista. - Respirou fundo. - Mais do que mal vista. Tal como disseste, teríamos um escândalo medonho. Sir Robert está no Governo. Se a Euphemia foi capaz de enterrar os cadáveres dos seus próprios filhos sem os rituais cristãos ou, pior ainda, de matá-los ela própria para proteger a sua reputação, dificilmente te deixaria vires agora expô-la!

Emily não pensara ainda nos riscos pessoais que poderia estar a correr. Na verdade, nunca lhe passara pela cabeça que qualquer coisa a pudesse afectar. Agora, sentia-se subitamente gelada. A história tornara-se bruscamente realidade.

Charlotte observou Emily a empalidecer e a apertar involuntariamente os punhos. Sorriu e colocou os dedos por cima dos da irmã.

- Tem apenas cuidado - alertou-a. - Fazer uma investigação não significa apenas exercitar a inteligência, sabes. As pessoas são reais. O amor e o ódio são perigosos.

Quando Pitt voltou para casa, à noite, Charlotte foi ter com ele quase à porta. As novidades de Emily tinham andado a ferver dentro dela o dia todo e, ao som dos passos de Pitt na calçada, haviam entrado em verdadeira ebulição. Agarrou-o pela lapela e beijou-o rapidamente.

- A Emily veio cá esta manhã! - Contou-lhe assim que o largou. - Descobriu uma coisa tremenda. Entra que eu digo-te. - Era praticamente uma ordem e Charlotte libertou-se dele de modo a entrar na sala, colocando-se no meio, para lhe observar a expressão quando ela libertasse a torrente.

Pitt entrou, com o rosto ligeiramente franzido numa expressão apreensiva.

- A Emily descobriu que a Euphemia Carlton mantém um caso com o jovem Brandy Balantyne! - Expôs, de forma dramática.

- E que ela está à espera de bebé!

Se a intenção de Charlotte era chocar o marido, ficara totalmente satisfeita. Enquanto digeria a informação, Pitt manteve-se inexpressivo. Em seguida, o seu rosto ensombrou-se um pouco, numa expressão de dúvida.

- Tens a certeza de que ela não... - arqueou as sobrancelhas.

- Que ela não se está a deixar levar pela intriga, por um pouco de escândalo?

- É evidente que ela se está a deixar levar pela intriga! - Confirmou, exasperada. - Que outra forma temos nós para conseguir informação? Cabe-te a ti determinar a sua veracidade. Foi por isso que ela veio ter comigo, para eu te poder contar. Não deverá ser difícil... - deteve-se, ao ver que Pitt se estava a rir dela. - O que te está a divertir tanto? - Quis saber.

- Tu, minha querida. Onde é que a Emily conseguiu obter esta valiosa... intriga? - Pitt aproximou-se da lareira e sentou-se.

Charlotte seguiu-o e ajoelhou-se no chão à sua frente, atraindo a sua atenção.

- Da Sophie Bolsover, que parecia bastante inconsciente da importância dos factos. E isso não é tudo. Parece que Sir Robert é bastante mais velho do que a Euphemia, além de ser imponente e sombrio. E tem cabelo louro.

- Cabelo louro? - Repetiu Pitt, observando-a, mas agora com um olhar mais atento. O coração de Charlotte disparou com a excitação. Sabia que lhe tinha despertado o interesse.

- Sim!

- Deduzo que o Brandy Balantyne seja moreno?

- Muito. Estás a perceber?

- Claro que sim. A Euphemia tem um lindíssimo cabelo louro avermelhado e tez clara. Tu não o saberias, mas naturalmente que a Emily to terá contado!

Charlotte sorriu, terrivelmente satisfeita.

Pitt afagou-lhe suavemente a face com os dedos, agarrando-lhe numa madeixa solta do cabelo. A sua expressão apresentava-se invulgarmente severa.

- Charlotte, tens de prevenir a Emily para ter cuidado. As pessoas de sociedade preocupam-se muito com a sua reputação. Não podemos compreender sequer a importância que lhe dão. Podem levar muito a mal se a Emily se intrometer...

- Eu sei -, apressou-se a assegurar - já lho disse. Mas ela tentará descobrir há quanto tempo dura o caso, se já se tinha iniciado quando os bebés morreram.

- Não. Deixa que eu me encarregue disso. Deves ir vê-la amanhã. Tens de voltar a avisá-la. - Pitt deixou cair a mão no ombro de Charlotte, que se contraía com um breve arrepio de apreensão. - O mais provável é que a vejam como uma simples metediça - prosseguiu ele, - que não tem mais nada para fazer senão divertir-se com intrigas, mas se o Robert Carlton é um homem poderoso...

- Sir Robert? - Charlotte estava surpreendida e, por uns momentos, ficou sem conseguir compreender.

- Robert, claro, minha querida. Caso tenha sido enganado três vezes, não vai querer que toda a gente saiba! Ser vítima de um escândalo é uma coisa, ser ridicularizado é outra totalmente diferente. A Emily poderá confirmar-to!

- Nunca tinha pensado nisso. - Subitamente, Charlotte sentia-se triste. Podia imaginar a glória recente de Emily a desvanecer-se num só gesto. Como tinham sido idiotas, a brincar aos detectives. - Irei vê-la amanhã de manhã. Se não me quiser ouvir, contarei tudo ao George. Ele há-de convencê-la.

Pitt dirigiu-lhe um sorriso impenetrável.

- Mas a informação é útil? - Insistiu Charlotte, voltando atrás, ao seu triunfo.

- Ah, extremamente! - A sua apreciação era genuína. - É até possível que possa conduzir à solução. O problema agora é como descobrir há quanto tempo dura este caso e se ela já deu à luz outras crianças. - Pitt franziu o sobrolho, pensativo, acentuando a expressão sombria à medida que falava.

- Isso é fácil - Charlotte levantou-se, pois sentia os pés dormentes. - Fala com a criada de quarto de sua senhoria...

- As criadas de quarto são extremamente fiéis - respondeu Pitt, - e também precisam de manter o seu emprego! É pouco provável que ela me venha contar que a patroa mantém um caso ou que tenha tido duas crianças que, entretanto, desapareceram!

Charlotte apoiou-se na mesa, sacudindo o pé para activar a circulação.

- Claro que não! - Concordou com desdém. - Não de propósito! Descobre qual é a medida dos vestidos, se tem aumentado o tamanho ultimamente e se já o fez há dois anos atrás e há seis meses atrás. Vê se descobres se alargou as costuras dos corpetes. Se pudesse vê-los dizia-to logo!

Pitt sorriu generosamente.

- Isso não será trabalho de detective? - Perguntou Charlotte, calorosamente. - E tenta apurar se ela esteve de visita ao campo. - Franziu o sobrolho. - Embora, se os corpos foram enterrados em Callander Square, isso não seja provável. - O rosto iluminou-se-lhe novamente. - Tenta saber se ela não esteve doente, ou enjoada, ou se alguma vez desmaiou. Depois, há que saber se tem muito ou pouco apetite. Se comeu demais e ganhou peso, terás a resposta! Especialmente se ela tiver sentido apetência por certos alimentos que normalmente não come. Observa, tu próprio, a roupa e não perguntes à criada de quarto pelo apetite e os desmaios ou ela perceberá imediatamente o teu raciocínio. Pergunta à cozinheira acerca da comida e a uma criada de fora acerca da saúde dela.

Ele continuava a sorrir.

Charlotte olhou para ele e começou a duvidar de si própria. O conselho parecera-lhe excelente.

- Não é assim que se deve fazer? - Pestanejou.

- Muito profissional - concordou Pitt. - Leva-me a perguntar-me como é que, até agora, temos conseguido resolver crimes sem mulheres na corporação.

- Parece-me que te estás a rir de mim!

- Com toda a certeza. Mas continuo a considerar o conselho excelente e tenciono segui-lo.

- Ainda bem. - Charlotte descontraiu-se e dirigiu-lhe um sorriso deslumbrante. - Gostaria de poder pensar que estava a ajudar.

Pitt desatou a rir espontaneamente.

Na manhã seguinte, Charlotte fez o que lhe haviam pedido e foi ver Emily. Charlotte preveniu-a muito solenemente acerca da vingança que Emily poderia desencadear sobre ela e, até, sobre George, caso suscitasse intrigas, mesmo que inadvertidas, relativamente a Euphemia Carlton.

Emily ouviu a irmã com uma expressão calma e obediente, prometendo abandonar prontamente a questão e passar a limitar-se ao seu círculo social do costume. Charlotte agradeceu-lhe e saiu, não deixando de sentir, porém, que, de alguma forma, havia falhado. Para começar, tinha sido demasiado fácil. Não vira no olhar de Emily receio que justificasse uma capitulação tão repentina, mas não podia conseguir mais do que uma promessa. Embora fosse a primeira semana de Novembro, tendo começado naquele momento a chover, Charlotte foi para casa e submeteu a sala a uma boa limpeza primaveril.

Pitt regressou a Callander Square e faltava um quarto para as dez quando bateu à porta dos Carlton, pedindo para conversar novamente com os criados. Depois de o terem conduzido até aos aposentos da governanta, foram chamar a criada de fora.

- Entre. - Pitt sentou-se num dos cadeirões, de modo a não ficar acima da rapariga. - Sente-se. Espero que este assunto não a tenha perturbado muito.

A criada olhou para ele com algum espanto.

- Não, obrigada, senhor Inspector. - Então, pensou melhor.

- Bem, quero dizer, sim, é horrível, não é? Estou certa de que não sei quem possa ser!

- E a sua patroa? Presumo que isto também a possa ter incomodado?

- Não mais do que a pena que seria de esperar - respondeu.

- Muito bem, é como ela está. Nunca a vi com tão boa cara.

- Não tem problemas de apetite? É o que acontece a muitas pessoas, sabe? A senhoras com uma disposição delicada.

- Lady Carlton não é delicada, senhor Inspector, é forte que nem um cavalo, oh se é, perdoe-me a expressão. Não é cá de desmaios e de vapores... pelo menos...

Pitt ergueu as sobrancelhas, demonstrando um interesse solidário.

- Bem, é verdade que ela ficou um pouco enjoada duas vezes, mas parece-me que isso se deve à sua condição, se é que me percebe. Oh, valha-me Deus -, levou os dedos à boca e fitou-o com os olhos arregalados. - Conseguiu arrancar-me isso!

- Não, não - tranquilizou-a ele, delicadamente. - Aliás, o que me preocupa não é o passado, mas o futuro. - Ocultou o seu desagrado. Agora já não seria possível arrancar mais informações da rapariga sem que esta se apercebesse imediatamente do que ele pretendia. O melhor era falar já com as outras, antes que esta pudesse espalhar o alarme, ainda que inadvertidamente.

Pitt foi até lá acima para falar com a criada de quarto, contornando as objecções da encrespada governanta, uma vez que desejava observar, ele próprio, os vestidos da patroa; muito embora, para já, não fizesse qualquer ideia que desculpa poderia invocar para o seu interesse.

O inspector encontrou a criada de quarto a escovar um fato de montar e a passar uma esponja na saia, salpicada pela lama outonal. Ao vê-lo, a criada deixou cair a saia.

- Não se perturbe, minha senhora - tranquilizou-a, enquanto avançava para apanhar a saia, apalpando-a apreciativamente entre os dedos e demorando algum tempo a entregá-la à criada. - Um tecido excelente. - Revirou-a de modo a segurá-la pela cintura.

- E com um belo corte. - Apalpou rapidamente as costuras. Nada. Lançou o olhar à cintura, onde Charlotte lhe recomendara que observasse. Encontrou imediatamente um acrescento, um pedaço adicional de tecido. Entregou a saia à criada de modo informal, sorrindo-lhe. - Gosto de ver uma senhora bem vestida. Dá gosto a qualquer um.

- Ah, mas este é do ano passado - apressou-se a informar.

- Na verdade, é um vestido já bastante velho. Lady Euphemia tem muito melhor do que isto!

- Não me diga? Gostaria de ver melhor do que isto - deu um tom de educada descrença à sua voz. - É um tecido muito bom.

A criada dirigiu-se a um enorme guarda-vestidos, abrindo-o. As sedas púrpuras, rosa escuro e delicados tons verdes resplandeciam com a luz.

- Mas que bonito - elogiou com sinceridade. Avançou e tocou no tecido suave e reluzente com os dedos, esquecendo, por momentos, o seu objectivo. Havia um vestido âmbar, quase dourado onde a luz incidia e de um profundo castanho-avermelhado cor-de-fogo, na sombra. Devia ficar magnífico em Euphemia Carlton, mas ele imaginava-o em Charlotte. Pitt sentiu uma dor aguda, ao lembrar-se que não lhe poderia comprar tais coisas. Esqueceu-se da criada e de Callander Square, deixando o seu espírito vaguear livremente em busca de uma qualquer ideia, de uma outra ocupação que lhe pudesse render dinheiro para isso.

- Coisas encantadoras, não são? - A voz da mulher denotava igualmente um laivo de melancolia. Pitt foi sacudido para a realidade. Olhou para a figura encurvada da criada envergando o seu vestido escuro de lã e um avental branco.

- Sim - concordou. - Sim, bastante. - Procurou rapidamente pelas costuras da cintura, exactamente onde se poderia alargar a saia. - Presumo que precisem de muita atenção. - Ainda não encontrara nada. - Deve ter muita habilidade com a agulha.

A criada sorriu perante o elogio.

- São poucos os homens que pensam nisso. Sim, faço muitos trabalhos, mas ela fica bem bonita quando a mando daqui p'ra fora, não é para me gabar. Nunca a mandei daqui senão perfeita.

Pitt aproveitou a oportunidade e observou abertamente as impecáveis costuras. A cintura tinha, efectivamente, sido alargada, uns cinco centímetros ou mais.

- É uma verdadeira artista - elogiou, sendo sincero pelo menos, em parte no que dizia. O que deveria significar para uma mulher dedicar todo o seu trabalho e amor para tornar outra mulher bonita? Depois, ter de ficar em casa a ver a outra sair para festas e bailes, dançar toda a noite e ser admirada, enquanto ela permanecia lá em cima, à espera de voltar a receber a roupa, para a passar a ferro e coser até à próxima ocasião?

- Tem todo o direito de se sentir orgulhosa - afirmou. Largou a seda e fechou as portas do guarda-vestidos.

A criada corou de prazer.

- Obrigada, muito obrigada - gaguejou.

Pitt deveria perguntar-lhe qualquer coisa, de modo a que ela não ficasse a pensar, tornando-se desconfiada. O inspector revolveu o espírito à procura de uma pergunta.

- A sua patroa nunca dá a roupa velha às criadas, ou assim? -Já sabia a resposta. - Patroa alguma desejava ver uma criada sua envergando o estilo e a qualidade de indumentária que ela própria vestia, por mais velha que fosse a roupa ou por mais merecedora que fosse a rapariga.

- Oh, não, senhor Inspector! Lady Euphemia manda-os todos para o campo, para uma prima ou outra que, não sabendo o que é ou não elegante, fica muito satisfeita.

- Estou a perceber. Obrigado. - Sorriu-lhe de modo a tranquilizá-la e dirigiu-se para a cozinha.

Nem a cozinheira nem as criadas de dentro lhe forneceram nada de conclusivo, mas parecia-lhe que Euphemia se entregava a acessos repentinos de fome, ganhando, por vezes, peso, para depois voltar a fazer dieta. As criadas atribuíam este comportamento a um apetite saudável, a um gosto por coisas doces e, em seguida, a um assomo de vaidade, aliada aos ditames da moda. Nada poderia provar a verdade ou a mentira do que elas diziam. Pitt agradeceu-lhes e foi-se embora, preenchendo parte do seu tempo durante a tarde até poder visitar Sir Robert Carlton e a própria Lady Euphemia, numa altura em que esperava encontrá-los em casa.

Voltou um pouco depois das seis da tarde. Sabia que estava a ser inconveniente, mas não havia uma hora conveniente para o tipo de pergunta para que procurava uma resposta.

O criado recebeu-o friamente, conduzindo-o até à biblioteca. Passaram-se alguns minutos até que a porta se abrisse e entrasse Sir Robert Carlton, fechando-a atrás de si. Era um pouco mais alto do que a média, esguio e formal. O seu rosto era tal qual Charlotte lho descrevera, extremamente distinto, mas a brandura da sua expressão retirava-lhe arrogância.

- Constou-me que me deseja ver? - Perguntou calmamente. A sua voz era clara e precisa, denotando uma pequena nota de surpresa.

- Sim, senhor - respondeu Pitt. - Se não se incomodar. Peço desculpa por aparecer a esta hora, mas queria certificar-me de que o encontraria em casa. - Carlton aguardou educadamente e Pitt prosseguiu: - Receio ter razões para acreditar que a mãe dos bebés encontrados na praça possa ser uma pessoa da sua casa... - deteve-se, preparado para enfrentar o tom ultrajado e a veemente negativa. Em vez disso, pôde apenas reparar num súbito contrair de músculos nas faces de Carlton, como um sofrimento antecipado. Pitt perguntou-se rapidamente se ele já não sabia ou, pelo menos, se não suspeitava da esposa. Seria possível que depois de ter batalhado muito interiormente, tivesse já aceite aquela situação?

- Lamento - declarou Carlton, calmamente. - Pobre mulher. Pitt fitou-o.

Carlton voltou o rosto para encarar Pitt. Os seus olhos demonstravam ansiedade e compaixão. Tratava-se de algo que ele não compreendia, mas que se esforçava por imaginar e que lamentava profundamente. Pitt sentiu um surto de fúria contra Euphemia e contra o jovem Brandon Balantyne, que ainda não tinha conhecido. Carlton voltara a falar.

- Tem alguma ideia de quem seja, Mr Pitt? Ou o que lhe poderá vir a suceder?

- Isso depende bastante das circunstâncias, Sir Robert. Caso as crianças tenham nascido mortas, não haverá processo criminal. Contudo, ela perderá a sua reputação e, a não ser que tenha muita sorte, a sua posição, ficando sem referências para obter outra.

- E caso não tenham nascido mortos?

- Nesse caso haverá uma acusação de homicídio.

- Estou a perceber. Suponho que seja inevitável. E a desgraçada da mulher será enforcada.

Pitt apercebeu-se demasiado tarde de que não se devia ter comprometido; deveria ter deixado o caso pendente. Talvez com aquele único descuido tivesse perdido a ajuda de Carlton.

- Isso é apenas uma opinião - tentou recuar. - E evidente que poderão existir circunstâncias atenuantes... - Podia lembrar-se de muitas, para ele próprio, mas nenhuma que servisse para os juizes.

- Disse-me que era alguém aqui de casa - prosseguiu Carlton, como se Pitt não tivesse dito nada. - Presumo que ainda não tenha conhecimento de quem possa ser?

- Não, senhor. Pensei que talvez Lady Carlton conhecendo melhor os criados, pudesse dar-me alguma ajuda.

- Suponho que seja necessário implicá-la neste assunto?

- Temo que sim.

- Muito bem - Carlton alcançou o cordão da campainha e puxou-o. Quando o criado apareceu, deu-lhe instruções para pedir a Euphemia que se lhes juntasse. Aguardaram em silêncio até que esta aparecesse. Euphemia fechou a porta atrás de si e encarou-os. O seu rosto era suave e extremamente ingénuo, mesmo quando viu Pitt. Se sentia alguma culpa, então, só poderia ser ou uma dessas raras criaturas que não vêem, de facto, qualquer outra coisa para além dos seus interesses, ou uma actriz consumada.

- Minha cara, o Inspector Pitt crê que a mãe dessas infelizes crianças possa ser alguém cá de casa - informou Carlton delicadamente. - Lamento dizer-lhe que é necessário tentar prestar-lhe alguma assistência.

Euphemia empalideceu ligeiramente.

- Ah, meu Deus, lamento muito. É evidente que não fará qualquer diferença, mas detestaria pensar que pudesse ser alguém que conheço. Tem a certeza, Inspector? - Voltou-se para o encarar. Era uma mulher bastante atraente, possuindo uma afabilidade ainda mais notória do que a beleza.

- Não, minha senhora, mas tenho razões para acreditar que seja.

- E quais são? - Perguntou ela.

Pitt respirou fundo e foi direito ao assunto.

- Parece que alguém nesta casa mantém um caso, um caso amoroso. - Observou-lhe a expressão. Por momentos, Euphemia permaneceu perfeitamente serena e meramente interessada. Em seguida, notou-se uma ligeira contracção das suas mãos na seda cor de ameixa do vestido. O seu pescoço começou a ruborizar-se levemente. Pitt lançou um olhar rápido a Carlton. Este, porém, parecia alheio, distraído.

- Deveras? - Indagou ela, após uma leve hesitação. Pitt prosseguiu.

- Existe uma forte possibilidade que, em resultado dessa relação, ela possa estar à espera de bebé.

Euphemia corou dolorosamente e voltou as costas para evitar que a luz incidisse no seu rosto.

- Estou a perceber.

Carlton parecia continuar inconsciente de qualquer outra coisa para além da preocupação de uma patroa pelas suas criadas.

- Talvez seja melhor averiguar o assunto, minha cara. É isso que deseja, Inspector?

- Caso Lady Carlton julgue poder apurar alguma coisa. - Pitt olhou para ela, escolhendo deliberadamente as suas palavras, de forma a fazê-la perceber o que queria dizer, apesar da sua aparente informalidade.

Euphemia manteve o rosto afastado da luz.

- O que deseja saber, Mr Pitt?

- Há quanto tempo... a relação... existe - respondeu calmamente.

Euphemia respirou fundo.

- Poderá não ser -, Euphemia tentava empregar precisamente a expressão mais correcta, mas não conseguiu, - da natureza... ou... envolver as emoções que crê.

- As emoções não nos interessam, minha cara - interveio Carlton, devagar. - E a natureza não deverá ser aqui tida em consideração, uma vez que se encontraram duas crianças mortas aqui na praça.

Euphemia voltou-se para os fitar, horrorizada, com os olhos arregalados.

- Não podem supor... quero dizer... não podem precipitar-se a julgar que porque alguém está... tem uma ligação amorosa, seja responsável por aquelas... mortes! Poderão existir inúmeras pessoas aqui na praça que mantêm alguma relação ou outra... alguma...

- Existe uma enorme diferença entre um namorico e um caso que produz duas crianças, Euphemia. - Carlton continuava sem perder a sua cortesia, o seu ar judicioso, quase indiferente. - Não estamos aqui a falar de uma mera paixoneta.

- Claro que não! - Exclamou Euphemia bruscamente para, em seguida, ao ver a expressão pesada de Carlton suavizar-se, voltar a controlar-se com algum esforço. Pitt, a seu lado, observou-lhe os músculos do pescoço a contraírem-se e o tecido do vestido esticar à medida que ela sustinha a respiração. Pitt perguntava-se se Carlton estaria tão alheio ao tormento dela como aparentava. Pareciam um casal pouco adequado, para além da diferença de idades. Seria ela uma jovem entregue por pais ambiciosos ou na penúria a um casamento de conveniência - da conveniência deles? Ocorreu-lhe perguntar-se o que pensaria Charlotte e, até, o que poderia ter feito, caso fosse com ela. Decidiu-se a conhecer o jovem Brandon Balantyne assim que lhe fosse possível.

- Tentarei descobrir o que puder, Mr Pitt. - Euphemia encarou-o directamente, cruzando o olhar dele com o seu olhar gélido, em tons dourados de âmbar. - Contudo, se em minha casa alguém mantém uma ligação dessa natureza, não sei de nada.

- Obrigado, minha senhora - agradeceu suavemente. - Sabia o que ela estava a tentar dizer: que o compreendia e que negava a extensão do seu próprio envolvimento. Pitt, no entanto, não se podia dar ao luxo de acreditar nela, sem provas. Desculpou-se e saiu com o mesmo sentimento de tristeza que sentira inúmeras vezes antes de vislumbrar a verdade de uma tragédia que se transformara num crime.

Emily não tinha qualquer intenção de obedecer às instruções de Charlotte, salvo na medida em que iria usar de um pouco mais de cautela do que fizera até ao momento. Deixaria de interrogar directamente fosse quem fosse, embora, verdade seja dita, Sophie Bolsover praticamente não tivesse precisado de ser interrogada. Em vez disso, iria cultivar amizades. Com este fim em vista, tornou a visitar Callander Square, desta vez especificamente para ver Christina. Obtivera uma informação sobre uma modista que sabia ser do interesse de Christina e tomou a liberdade de a visitar de manhã - altura em que não corria o risco de coincidir com o ritual social das tardes.

A porta foi aberta por Max, o criado de fora. - Bom dia, Lady Ashworth - cumprimentou ele, demonstrando apenas uma ligeira surpresa. Os seus olhos escuros percorreram-lhe apreciativamente a indumentária, voltando a centrar-se no rosto. Emily retribuiu-lhe o olhar com frieza.

- Bom dia. Miss Balantyne está em casa?

- Sim, milady. Queira entrar, vou anunciá-la. - Recuou, abrindo mais a porta. Emily seguiu-o pelo átrio, até à salinha da manhã onde o lume já estava aceso.

- Posso trazer-lhe algo, minha senhora? - perguntou.

- Não, obrigada - respondeu Emily, evitando deliberadamente olhar para ele.

Max sorriu muito levemente, inclinou a cabeça e deixou-a sozinha.

Já estava à espera há dez minutos e começava a sentir-se um pouco impaciente quando, finalmente, entrou Christina. Emily voltou-se para cumprimentá-la e ficou surpreendida por vê-la numa postura bastante informal, quase desleixada. O cabelo não estava bem penteado, madeixas negras caíam-lhe assimétricas ao longo do pescoço e parecia notoriamente pálida.

- Minha querida, apanhei-a numa altura inconveniente? - Emily estava prestes a perguntar-lhe se se sentia bem, quando se apercebeu de que sugerir a uma pessoa que esta parecia doente não era muito lisonjeiro e não desejava comprometer tão depressa a amizade, de alguma forma ainda ténue, de Christina.

- Confesso - Christina colocou a mão nas costas da cadeira, segurando-a com firmeza, - que não me sinto na melhor das condições esta manhã. Muito invulgar, para mim.

- Por favor, sente-se. - Emily avançou na direcção dela, agarrando-lhe na mão. - Espero, muito sinceramente, que seja apenas uma indisposição passageira, porventura uma ligeira constipação? Afinal de contas, a mudança do tempo pode provocar tão facilmente esse tipo de coisas. - Duvidava das suas próprias palavras. Christina era uma rapariga extremamente saudável e não mostrava quaisquer sinais de constipação - a garganta enrouquecida, o nariz a pingar ou febre.

Christina deixou-se cair na cadeira. Parecia invulgarmente pálida e notavam-se leves gotas de suor na pele.

- Talvez uma tisana? - Sugeriu Emily. - Vou chamar o criado. Apesar de Christina ter protestado e sacudido a cabeça, Emily já tocara a campainha. Mantendo-se ao lado do cordão, quando Max apareceu falou com ele por cima da cabeça de Christina.

- Miss Balantyne não se está a sentir muito bem. Importa-se de pedir à cozinheira que lhe prepare uma tisana e lha mande?

O homem lançou o seu olhar pesado sobre Christina e Emily apanhou-o nesse momento. O criado afastou rapidamente o olhar e retirou-se para obedecer às suas ordens.

- Lamento tê-la encontrado neste estado -, declarou Emily com a melhor mistura de alegria e solidariedade que conseguia reunir. - Vim vê-la apenas para lhe dizer o nome da modista de que andava à procura. Consegui persuadi-la a aceitar-nos a ambas, embora ela esteja absolutamente ocupada. Tem um tal talento no corte que pode tornar graciosa até a mais feia das criaturas - sorriu ao rosto pálido de Christina. - E é meticulosa com os acabamentos, não deixa fios nem botões mal pregados. E é tão esperta a desenhar que consegue inclusivamente esconder uns centímetros a mais para que as nossas mães não notem quando ganhamos peso.

Christina corou súbita e intensamente.

- Mas que diabo está a sugerir? Não estou a ganhar peso. - Cruzou as mãos sobre a barriga.

A cabeça de Emily fervilhava de pensamentos.

- Tem sorte - comentou, com ligeireza. - Infelizmente, ganho sempre peso no Inverno. - Era uma total invenção. - Nunca falha - prosseguiu. - Deve ser de todos os pudins quentes e dessas coisas. E tenho uma horrível fraqueza por mousse de chocolate.

- Terá de me desculpar - Christina pôs-se de pé, ainda com as mãos cruzadas à sua frente. - Parece-me melhor ir lá para cima. Falar em comida enjoou-me bastante. Agradecia-lhe que não dissesse nada ao Max. Beba a tisana, se lhe apetecer.

- Oh minha cara! - Emily agarrou-a. - Lamento imenso. Deixe-me ajudá-la, não está em condições de ficar sozinha. Irei acompanhá-la, pelo menos, até aos seus aposentos, e a sua criada poderá servi-la. Quer que peça a alguém para chamar o médico?

- Não! - Christina parecia ameaçadora, ao lançar-lhe um olhar fulminante. - Estou perfeitamente bem. Não é nada importante. Talvez tenha comido alguma coisa que não me fez muito bem. Por favor, não mencione esta questão. Tomaria como um verdadeiro sinal da sua amizade se tratasse todo este incidente com total sigilo -, estendeu uma mãozinha fria e agarrou firmemente a de Emily.

- Claro - tranquilizou-a Emily. - Não irei mencionar nada. Ninguém deseja ver as suas indisposições a serem discutidas por aí. É um assunto bastante privado.

- Obrigada.

- Agora deve ir lá para cima. - Emily conduziu-a através do átrio e pela ampla escadaria até se encontrarem no patamar com a criada de quarto de Christina, que se encarregou dela.

Emily descera novamente e chegara ao átrio quando foi praticamente empurrada por um homem alto, de ombros largos e peito robusto que passou por ela a correr.

- Perkins! - Gritava ferozmente. - Perkins, com um raio! Emily manteve-se absolutamente imóvel.

O homem voltou-se e viu-a. Abriu a boca como se fosse gritar novamente, depois apercebeu-se de que não se tratava do errante Perkins. O rosto dele era notável, bastante ossudo. Agora estava ligeiramente ruborizado por se ter exposto daquela forma. Ergueu mais ainda as sobrancelhas.

- Bom-dia, minha senhora. Posso ajudá-la nalguma coisa? Procurava por alguém?

- General Balantyne? - Indagou Emily com uma compostura magnífica.

- Ao seu dispor. - Respondeu rigidamente, mantendo a fúria quase à superfície.

Emily sorriu com um encanto devastador.

- Emily Ashworth - estendeu a mão. - Vim ver Miss Balantyne, mas ela sente-se um pouco indisposta, esta manhã, por isso vou retirar-me. Perdeu um mordomo? Parece-me que o vi passar naquela direcção - apontou vagamente para trás de si. Era uma invenção, mas queria parecer prestável e, se possível, manter até uma ligeira conversa com ele.

- Não. Uma criada. O raio da mulher está sempre a mexer-me nos papéis. Na verdade, não me consigo lembrar se o nome dela é Perkins, mas é sempre assim que a Augusta chama as criadas de dentro, seja qual for o nome delas.

- Papéis? - O princípio de uma brilhante ideia começava a formar-se na cabeça de Emily. - Está empenhado a escrever alguma coisa?

- Uma história da família, minha senhora. Os Balantyne lutaram em todas as grandes batalhas da nação, desde há cerca de duzentos anos, ou perto disso.

Emily suspirou, tentando, com todo o seu talento artístico, mostrar-se interessada. Na realidade, os assuntos relativos à guerra aborreciam-na de morte. Mas tinha de fazer um qualquer comentário inteligente.

- Mas isso é muito importante - respondeu. - A história dos nossos guerreiros é a história da nossa raça. - Sentia-se orgulhosa, pois tratava-se de uma excelente observação.

Ele olhou para ela com os olhos contraídos.

- É a primeira mulher que conheci até agora a pensar assim.

- Foi a minha irmã - apressou-se a informar. - A minha irmã sempre se interessou por essas coisas. Aprendi com ela ver a sua enorme importância. As pessoas não se dão conta... mas estou a afastá-lo do seu trabalho. Uma vez que não posso ser-lhe útil, não quero pelo menos estorvá-lo. Devia ter alguém que o ajudasse, que lhe mantivesse os papéis em ordem, alguém que perceba desses assuntos, que lhe limpe e mantenha arrumado o escritório e que talvez possa tomar notas, não lhe parece? Ou talvez já tenha?

- Se tivesse, minha senhora, não estaria agora à procura de uma criada para saber o que me fez aos papéis!

- Crê que uma pessoa assim lhe possa ser útil? - Esforçou-se ao máximo para parecer bastante informal.

- Encontrar uma mulher com alguma noção da história militar seria, não só uma imensa sorte, minha senhora, como ainda altamente improvável.

- A minha irmã é assaz competente, senhor General - assegurou-lhe - e, tal como lhe disse, há muito que se interessa por assuntos de natureza militar. O meu pai, naturalmente, não aprovava essa tendência, por isso ela não tem podido satisfazê-la, tal como lhe está na natureza. Contudo, estou certa de que não haveria desaprovação alguma, caso ela passasse algum tempo a dar assistência a alguém como o senhor. - Evidentemente que Emily não tencionava contar-lhe que Charlotte era casada com um polícia. Balantyne fitou-a. Uma mulher mais fraca que Emily ter-se-ia sentido intimidada perante tal figura.

- Verdade? Bem, se o seu pai aprovar, devo dizer que talvez me possa ser muito útil. Peço-lhe que lhe exponha a questão e que verifique se a sua irmã está de acordo. Caso esteja, poderá vir ver-me e combinaremos tudo de forma satisfatória para ambos. Estou-lhe muito agradecido... Miss... - esquecera-se do nome dela.

- Ashworth - Emily tornou a sorrir. - Lady Ashworth.

- Lady Ashworth - curvou-se ligeiramente. - Tenha um bom-dia minha senhora.

Emily fez-lhe uma pequena vénia e apressou-se a sair, perfeitamente deliciada.

Emily subiu imediatamente para a carruagem e ordenou ao cocheiro que a levasse com rapidez a casa de Charlotte. Não lhe importava nem um pouco que altura da manhã era; tinha de contar os seus planos e instruir Charlotte quanto ao seu futuro papel neles.

Esquecera-se completamente do aviso que Charlotte lhe fizera, bem como da sua promessa.

- Esta manhã estive em Callander Square! - Declarou assim que Charlotte abriu a porta. Emily passou rapidamente pela irmã e entrou na sala, voltando-se para a encarar. - Descobri coisas absolutamente incríveis! Para começar, a Christina Balantyne está indisposta, com náuseas a esta hora da manhã! E quase me engolia quando lhe sugeri que poderia vir a ganhar peso. Pediu-me que não dissesse nada a ninguém! Implorou-me! O que pensas disso, Charlotte? Verdade, ou não, sejam quais forem os factos, percebo perfeitamente o que é que ela receia! Só pode ser uma coisa. E não me deixou chamar um médico.

Charlotte empalidecera. Mantendo-se ainda ao pé da porta, tinha os olhos arregalados.

- Emily, tu prometeste-me!

Emily não fazia ideia do que ela queria dizer.

- Prometeste-me! - Repetiu Charlotte, furiosa. - O que pensas tu que farão os Balantyne quando descobrirem que sabes uma coisa dessas? Daquilo que me contaste acerca de Lady Augusta, não me parece que ela se deixe ficar sentada, permitindo-te arruinar a reputação de Christina! Não tens bom-senso, de todo? Eu própria contarei tudo ao George e talvez ele seja capaz de te impedir de seres tão idiota!

Emily afastou-a para o lado.

- Ora, pelo amor de Deus, Charlotte. Achas que não me sei comportar a nível social? Subi bastante mais alto do que tu alguma vez conseguirás. Sobretudo, claro está, porque não te queres dar a esse trabalho. Mas como podes imaginar que, se não consegues manter-te calada, eu também não consigo, se assim o desejar? Se sei mentir de modo a esconder tudo de Mr Pitt, não acreditas que consigo fazê-lo relativamente a Augusta Balantyne? Não faço qualquer tenção de me arruinar a mim ou ao George.

- Agora, por favor, presta atenção ao que te tenho estado a contar acerca da Christina! Não faço ideia de quem possa ser o homem. Mas enquanto lá estava surgiu uma oportunidade e tive uma ideia perfeitamente brilhante. É claro que a aproveitei imediatamente. O general Balantyne está a escrever uma história militar da sua família, da qual parece sentir-se extraordinariamente orgulhoso. Necessita de alguma ajuda para se manter organizado, tomar notas e por aí fora. - Emily deteve-se por uns momentos para recuperar o fôlego, mantendo o olhar fixo em Charlotte. Pela primeira vez, chegava a considerar a possibilidade de Charlotte poder recusar.

- Então? - Perguntou Charlotte, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas. - Não percebo o que têm as memórias militares do general Balantyne a ver com os temores da Christina.

- Ora essa, são a solução perfeita! - Emily bateu com a mão na saia em sinal de frustração perante a obtusidade de Charlotte. - Ofereci-me para te mandar lá, para o ajudares com os papéis! És a pessoa ideal. Para cúmulo, gostas de assuntos militares - consegues lembrar-te de quem lutou contra quem, em que batalhas, enquanto a maioria de nós nem sequer se consegue recordar por que razão o fizeram, nem estamos preocupados. Tens de lá ir e... A expressão de Charlotte mudara para a incredulidade.

- Emily, só podes ter perdido o juízo! Não posso, de forma alguma, ir e... e trabalhar para o general Balantyne! Seria absurdo! - Contudo, à medida que ia falando, a sua voz abrandava, abandonando o tom ultrajado. Emily sabia que, apesar das suas palavras, Charlotte não rejeitara completamente a ideia. Na verdade, embora a achasse ridícula, já considerava uma leve possibilidade de aceitar a proposta.

- O Thomas nunca iria permitir - respondeu Charlotte, cautelosamente.

- Porque não?

- Seria... impróprio.

- Porquê? Não precisas de receber qualquer pagamento em troca, caso esteja abaixo da tua dignidade fazê-lo. Tudo quanto ele precisa saber é que estás a ajudar um amigo e, simultaneamente, a fazer aquilo que gostas. E quem sabe aquilo que poderás vir a descobrir? Estarás, literalmente, dentro daquela casa, dia após dia!

Charlotte abriu a boca para voltar a protestar, mas o seu olhar, de uma profunda luminosidade, perdia-se para além de Emily, na distância da sua imaginação. Emily sabia que tinha ganho e que não dispunha de tempo para se pôr a festejar a sua vitória.

- Amanhã venho ter contigo às nove e meia. Veste o teu melhor vestido escuro. Aquele cor de vinho, que é suficientemente novo e cujo tom te fica bem...

- Não vou lá para atrair a atenção dele, Emily! - Charlotte protestou pela última vez, de modo automático.

- Não sejas obtusa, Charlotte. Qualquer mulher só consegue ter êxito se conseguir atrair um homem! De qualquer forma, seja qual for o teu propósito, mal não te faz!

- Emily, és uma criatura perfeitamente sinuosa.

- Tu também, apenas tens medo de o admitir. - Emily levantou-se. - Tenho de me ir embora. Tenho outras visitas a fazer. Por favor, está pronta às nove e meia da manhã. Conta o que quiseres ao Pitt. - Piscou os olhos. -Já agora, naturalmente que não contei ao general Balantyne que tu estavas casada com um polícia e muito menos diria que se trata do agente destacado para a investigação do caso nos jardins. Disse-lhe que eras minha irmã, por isso é melhor voltares a ser Miss Ellison. - Emily saiu apressada, antes que Charlotte pudesse fazer qualquer protesto. Efectivamente, Charlotte estava demasiado entretida com a ideia para andar à procura de objecções e já maquinava a explicação mais prudente para dar a Pitt. Por outro lado, também pensava na melhor forma de satisfazer o general Balantyne, demonstrando-lhe a sua competência.

Na manhã seguinte, enquanto Charlotte, em frente do espelho, ajustava o vestido pela décima vez, assegurando-se de que tinha o cabelo arranjado e penteado da forma que mais a favorecia, Augusta Balantyne fitava o marido, do outro lado da mesa do pequeno-almoço.

- Se percebo correctamente, contratou uma jovem qualquer, de origens indeterminadas e meios restritos para vir a esta casa assisti-lo nessas memórias de família com que se está... - a sua voz tornou-se gélida, - a ocupar?

- Não, não me está a compreender, Augusta - respondeu, debruçado sobre a sua chávena. - Lady Ashworth, que me consta ser uma amiga sua, recomendou-me a irmã como sendo uma mulher inteligente e séria, disposta a ordenar os meus papéis e a tomar algumas notas que lhe poderei ditar. Não terá de a receber socialmente, embora não perceba por que razão deverá esta questão preocupá-la. Ela não poderá ser mais banal ou tola do que algumas das mulheres que costuma aqui ter.

- Às vezes, Brandon, parece-me que diz essas coisas apenas para me provocar. Uma pessoa não pode escolher com quem trava conhecimento baseando-se nas aparências ou, infelizmente, na inteligência.

- Julgo serem critérios tão satisfatórios quanto o berço ou o dinheiro - opinou.

- Não seja ingénuo - respondeu Augusta, bruscamente. - Sabe perfeitamente o que tem valor na sociedade e o que não tem. Espero que não pretenda sentar essa jovem à mesa connosco?

Balantyne ergueu as sobrancelhas, surpreendido.

- Não pensara sequer na questão das refeições dela. Mas já que o menciona, talvez a cozinheira lhe possa preparar qualquer coisa para ela comer na biblioteca, tal como faziam com as preceptoras.

- As preceptoras comiam na sala de estudo.

- A diferença é académica. - Balantyne levantou-se. - Peça ao Max que a conduza à biblioteca assim que ela chegar. Sabe, não gosto desse homem. Uns bons tempos no exército far-lhe-iam muito bem.

- É um excelente criado e "uns tempos no exército" estragá-lo-iam. Por favor não se intrometa na organização dos serviçais desta casa. Foi para isso que contratámos a Masters e, além disso, não percebe nada dessas questões.

Balantyne olhou-a com azedume e saiu porta fora, fechando-a bruscamente atrás de si.

Augusta certificou-se de que estaria no átrio às dez da manhã, assim que Charlotte chegasse. Viu Max a abrir a porta e observou com interesse, aliado a um estranho misto de superioridade e de aprovação relutante, enquanto Charlotte era recebida. Esperara um vestido deselegante e um rosto curvado e submisso. Em vez disso, tinha perante si um vestido de uma bela cor de vinho, um pouco fora de moda, mas ainda assim bonito, e um rosto que era tudo menos submisso. De facto, era um dos rostos mais sinceros e determinados que alguma vez vira, contendo, ao mesmo tempo, uma delicadeza surpreendente na boca e na suave curva das faces e do pescoço. Não era, definitivamente, uma mulher que desejasse ter sob o seu tecto, nem uma mulher de quem pudesse gostar, ou que pudesse compreender; tratava-se de uma mulher que não seria facilmente orientada pelas regras da sociedade que Augusta seguira toda a sua vida e cujas complexas batalhas lutara e ganhara.

Augusta avançou na sua direcção, comportando-se de uma forma bastante fria.

- Bom dia, Miss... eh? - Ergueu as sobrancelhas de modo inquisidor.

Charlotte retribuiu-lhe o olhar com rectidão.

- Miss Ellison, Lady Augusta - mentiu, sem pensar duas vezes.

- Com certeza. - Sentia o desagrado a crescer dentro de si. Esboçou um sorriso muito fugaz. - Creio que o meu marido está à sua espera. - Lançou um olhar a Max que se dirigiu obedientemente para a porta da biblioteca, abrindo-a. - Consta-me que veio prestar-lhe assistência administrativa. - Era melhor dar-lhe imediatamente a conhecer a sua posição naquela casa.

- Miss Ellison. - O olhar pesado de Max seguiu Charlotte à medida que ela entrava, demorando-se nos ombros e na cintura dela.

Após a porta se fechar atrás de si, Charlotte permaneceu imóvel, aguardando que o general erguesse o olhar. Já não tremia por dentro. A condescendência de Augusta transformara-lhe o receio em ira.

O general Balantyne estava sentado por detrás de uma enorme secretária. Charlotte reparou na sua cabeça bem-parecida e nos ossos delgados do rosto. Sentiu-se imediatamente interessada. Na sua imaginação podia ver a longa linha de batalha da história estender-se atrás dele: Crimeia, Waterloo, Corunna, Plassey, Mal-plaquet...

O general ergueu o olhar. Sem conseguir manter uma expressão educada, fitou-a. Charlotte retribuiu-lhe o olhar.

- Como está, Miss...

- Como está, general Balantyne. A minha irmã, Lady Ashworth, considerou que eu poderia ser-lhe útil. Espero que assim seja.

- Sim. - Levantou-se, piscando os olhos e mantendo o olhar nela, com o sobrolho ligeiramente carregado. - Informou-me que manifestava algum interesse por assuntos militares. Estou a ordenar um pouco a história da minha família, que serviu com distinção em todas as grandes batalhas desde os tempos do duque de Marlborough.

Charlotte sentiu-se dominada pelos mais variados pensamentos, em busca da resposta mais adequada.

- Deve sentir-se muito orgulhoso - respondeu sinceramente. - É muito bom que faça registos de forma precisa para que as pessoas saibam, especialmente no futuro, quando desaparecerem os homens que ainda se recordam das nossas grandiosas batalhas.

Apesar de se manter em silêncio, Balantyne endireitou os ombros enquanto a observava e podia vislumbrar-se um pequeno sorriso a formar-se-lhe nos cantos da boca.

No resto da casa o trabalho habitual prosseguia - as criadas de dentro, as criadas de fora e as criadas de quarto estavam todas freneticamente ocupadas. Augusta supervisionava tudo, uma vez que iria receber convidados de grande importância social para jantar e, também, porque não tinha mais nada que fazer. Às dez e meia não conseguia encontrar a criada auxiliar. A desgraçada da rapariga deixara uma distinta camada de pó nas molduras dos quadros no patamar da escada - o dedo de Augusta estava cinzento - e havia desaparecido.

Já há muito que Augusta descobrira o buraco favorito onde se metiam os criados preguiçosos - entre o quarto das arrumações e a despensa - que era para onde se dirigia agora com alguma determinação. Se a miúda estivesse na paródia com os criados ou os engraxates, dar-lhe ia uma descompostura de que dificilmente se esqueceria.

Deteve-se à porta do quarto de arrumações, consciente de que estava alguém no outro quartinho. Podia ouvir uma voz sussurrante, embora não conseguisse distinguir as palavras, nem sequer se eram proferidas por um homem ou por uma mulher. Depois o roçagar de... certamente que não seria seda... numa criada?

Abriu silenciosamente a porta e viu braços vestidos de negro a envolver um corpete de tafetá e acima do ombro esguio, o rosto sensual e de olhar arrastado de Max, com os lábios pousados no pescoço branco. Augusta conhecia aquele pescoço, bem como as madeixas elegantes de cabelo escuro. Era Christina.

Por favor, Deus do Céu, que nenhum deles a tivesse visto! Não poderia encarar ninguém naquele momento. Sentia o coração gelar-lhe no peito, batendo dolorosamente. Afastou-se da porta. A filha, a rir à socapa, nos braços de um criado! O horror paralisou-lhe o cérebro normalmente ágil. Passaram-se gélidos minutos de inércia até que Augusta pudesse sequer começar a pensar no que poderia fazer relativamente a uma situação tão monstruosa, como poderia anulá-la, apagando-a da sua existência. Iria requerer muito esforço e competência mas tinha de ser feito! De outra forma, Christina ficaria arruinada. Que homem de boas famílias e em perfeito juízo se casaria com ela depois disto, caso se viesse a saber?

 

Reggie Southeron estava sentado na biblioteca da sua casa a observar as árvores despidas de Callander Square. O céu cinzento de Novembro passava rapidamente acima das árvores e já se ouviam as primeiras gotas de chuva a bater contra o vidro. Tinha um balão de brandy pousado na pequena mesa a seu lado e a licoreira a repousar confortavelmente no rebordo da lareira. Em quaisquer outras circunstâncias ter-se-ia sentido inteiramente feliz, mas esta miserável história dos jardins causava-lhe uma incómoda ansiedade. Evidentemente que não fazia ideia de quem poderia ser o responsável - podiam ser tantas pessoas! Não havia muito mais entretenimento na vida de uma criada e toda a gente sabia que a maioria das raparigas, especialmente as que vinham do campo à procura de uma vida melhor, não era muito avessa a divertir-se um pouco - pelo menos com quem tivesse alguma espécie de estatuto. Contudo, era possível que alguém como um polícia, que, afinal de contas, não estava acima dos comerciantes ou dos próprios criados, tivesse uma opinião totalmente diversa. Alguns, os do campo, por exemplo, sabiam ser discretos. Mas em Londres o caso já era diferente, os agentes estavam habituados a lidar com todas as classes de criminosos, não tendo, muito provavelmente, qualquer noção de estatuto social ou requinte.

Era isto que preocupava Reggie. Como a maioria dos homens, na sua opinião, tirava proveito de prazeres esporádicos com a bonita criada de fora. Afinal de contas, que homem abastado, acordado de manhã por uma jovem, limpa e roliça camponesa a inclinar-se sobre ele, não se sentiria tentado? Caso elas estivessem dispostas a isso, como invariavelmente sucedia, porquê resistir? A sua esposa, Adelina, estava muito bem e tinha-lhe dado três filhos, muito embora o rapaz tivesse morrido. Contudo, não tinha tido qualquer prazer nisso. Recebia os seus avanços com resistência e cumpria o que lhe haviam ensinado ser o seu dever. As criadas de fora gostavam, riam-se e reagiam de uma forma que seria impensável numa mulher de posição.

Naturalmente que ninguém se casava com as criadas de fora. Toda a gente sabia de tais arranjos, mas havia que se comportar com discrição. Ninguém queria ser alvo de intrigas, nem envergonhar a esposa. O que se presumia e o que realmente se sabia eram duas coisas inteiramente diferentes.

Todavia, como já se tinha apercebido, a Polícia poderia não compreender como se lidava com estas situações de modo a satisfazer todos os interessados. Seria muito difícil se esse tal Pitt descobrisse o presente gosto de Reggie pela criada de fora, Mary Ann. Poderia entender tudo mal. A rapariga era invulgarmente bonita, sem dúvida a mais bela de que Reggie se conseguia lembrar - e há três anos que servia em Callander Square.

Deus do Céu! Não seria possível que ela tivesse... mesmo...? Reggie começou a sentir suores frios, apesar do calor da lareira. Bebeu o brandy de um trago e serviu-se de outro. Por amor de Deus, acalma-te, homem! Lembra-te da cintura fina e do suculento traseiro. Ela não tinha esperado uma criança naquela casa! Com certeza que ele não seria tão distraído ao ponto de não o perceber? Era uma rapariga encorpada. Teria mudado de forma tão flagrantemente? Tinha de admitir que as suas atenções eram muito esporádicas. Por vezes, tinha-se ausentado semanas a fio - mas isto era ridículo! Alguém teria reparado! Estava a preocupar-se à toa.

Era apenas uma questão de se certificar que a Polícia não se precipitava a tirar conclusões tolas e inteiramente injustificadas. Até que ponto seria esse Pitt inteligente? Seria um homem do mundo? Alguns membros das classes trabalhadoras podiam ser horrivelmente tacanhos: penosamente grosseiros no seu discurso e maneiras à mesa, para não falar na indumentária, mas positivamente puritanos no que tocava às liberdades individuais. Poderia ser muito desagradável ter de lidar com eles. Pitt, o homem neste caso, não poderia ser um cavalheiro, ou teria compreendido. Na verdade, nem teria exigido uma explicação.

O melhor era prevenir tudo aquilo indo ver outras pessoas ali na praça que também pudessem ser afectadas, para chegar a um acordo. Entre eles deveriam ser capazes de manter esse tipo da Polícia fora do caminho, discretamente.

Depois de se convencer a fazer isto e de já se sentir considera-velmente melhor, bateram à porta. Ficou surpreendido. Os criados não costumavam bater. Se tivessem alguma coisa a fazer, limitavam-se a entrar e a fazê-la.

- Entre - respondeu, virando-se para a porta.

A porta abriu-se e Jemima, a preceptora, entrou.

Reggie endireitou-se na cadeira com um sorriso. Uma bonita rapariga, Jemima, embora um pouco para o magro. Apreciava uns peitos mais redondos e uns ombros mais cheios. Mas ela tinha um vincado encanto, um vigor na forma como levantava a cabeça e uns ossos delicados. Estivera muitas vezes prestes a envolvê-la com o braço, em resposta à feminilidade convidativa das suas costas esguias. Mas ela afastara-se sempre dele, ou aparecera sempre alguém.

Naquele momento encontrava-se ali, à sua frente, encarando-o de igual para igual.

- Sim, Jemima? - Indagou, alegremente.

- Mrs Southeron disse-me que deveria falar-lhe acerca da música de Miss Faith, senhor. Miss Faith deseja aprender a tocar violino em vez de piano...

- Ora, deixe-a, por quem é. A menina é competente com o violino, não é? - Por que raio o mandava Adelina tratar de assuntos tão triviais?

- Sim, Mr Southeron. Mas uma vez que Miss Chastity já toca violino, isso deixa-nos com dois violinos e um violoncelo. Há muito pouca música composta para esse género de trio.

- Ah, sim, estou a perceber. Bem, talvez a Chastity gostasse de aprender a tocar piano?

- Não, não gostaria - Jemima sorriu. Tinha um sorriso encantador que se estendia aos seus olhos. Teria dado uma boa criada de fora, se fosse um pouco mais robusta.

- Mande-a ter comigo, que eu faço-a mudar de ideias. - Reg-gie recostou-se mais ainda na cadeira e fez deslizar os pés na direcção da lareira.

- Com certeza, senhor - Jemima voltou-se e saiu. Tinha uma bela figura, de costas direitas e cabeça erguida. Era uma daquelas raparigas do campo com uma andar dançante. Levava-o a pensar em céus limpos e margens limpas e ventosas. Coisas que ele gostava de apreciar, confortavelmente sentado num cadeirão de Inverno, ou de contemplar num bom quadro. Era uma criatura aprazível, Jemima.

Passaram-se uns bons cinco minutos até Chastity chegar.

- Entre - Reggie sorriu e endireitou-se um pouco.

Ela obedeceu, com uma expressão solene e o cabelo apanhado atrás a tornar-lhe os olhos invulgarmente grandes.

- Sente-se - ofereceu Reggie, apontando para a cadeira em frente da sua.

Em vez de se empoleirar na ponta da cadeira, como as outras crianças, ela acomodou-se bem no canto, como um gato, com os pés entalados por baixo de si. Mesmo assim conseguia parecer empertigada.

- Gostaria de aprender a tocar piano, Chastity? - Perguntou.

- Não, muito obrigado, tio Reggie.

- Tocar piano é uma arte muito útil. Pode cantar ao mesmo tempo. Não pode cantar enquanto toca violino - sublinhou.

Ela levantou muito ligeiramente o queixo e retribuiu-lhe o olhar.

- De qualquer maneira, não tenho jeito para cantar - referiu, com grande sinceridade. - Fosse qual fosse o instrumento que tocasse. - Hesitou, olhando para ele pensativamente. - A Faith tem. Canta muito bem.

O argumento venceu-o e Reggie conseguia ver pela expressão nos olhos brilhantes e francos de Chastity que ela o sabia.

- Por que é que a Faith não toca violoncelo? - Insistiu, aproveitando-se da sua vantagem. - Nessa altura, a Patience podia aprender a tocar piano. Ela também sabe cantar.

Reggie encarou-a.

- E se eu a mandar tocar piano?

- Não o farei como deve ser - declarou, decididamente. - E então, ficaremos sem o trio, o que seria uma pena.

Reggie semicerrou os olhos e serviu-se de outro brandy, admirando a sua cor rica, semelhante a um topázio enegrecido pelo fumo da lareira.

- Isso seria uma pena - Chastity ainda estava a observá-lo com calculada ponderação. - Uma vez que a tia Adelina, às vezes, gosta que toquemos para os seus convidados, nas festas da tarde.

Reggie desistiu. Estava prestes a experimentar outra táctica, o suborno, quando o criado abriu a porta e anunciou o Inspector Pitt.

Reggie praguejou entre dentes. Ainda não tinha ponderado sobre a sua defesa. Chastity aninhou-se ainda mais na cadeira. Reggie olhou para ela.

- Pode retirar-se, Chastity. Discutiremos este assunto numa outra ocasião.

- Mas vem aí o polícia despenteado, tio Reggie, e eu gosto dele.

- Como? - Assustou-se.

- Gosto dele. Posso ficar para conversar com ele? Talvez lhe possa dizer alguma coisa!

- Não, não pode. Não existe absolutamente nada que a menina saiba que lhe possa ser útil. Agora vá lá para cima tomar o seu chá. Deve estar na hora. Está a escurecer.

Chastity desceu da cadeira com relutância e encaminhou-se sinuosamente para a porta que Pitt mantinha aberta para ela passar. Chastity deteve-se, esticando o pescoço para poder encará-lo.

- Boa tarde, Miss Southeron - cumprimentou ele solenemente.

Ela fez uma pequena vénia e começou a esboçar um sorriso relutante, erguendo o canto da boca.

- Boa tarde, senhor.

Uma vez que Chastity parecia disposta a permanecer ali, Reggie falou-lhe severamente. Com uma expressão de orgulho ferido, a rapariguinha afastou-se com uma pose digna, o que era um triunfo, uma vez que envergava uma saia curta e um bibe. Pitt cerrou a porta.

- Queira perdoar - desculpou-se Reggie, amavelmente. - Essa criança é um terror. Observou o rosto de Pitt, bem como a sua indumentária bastante simples e descuidada. Tomou imediatamente a decisão de assumir um ar de franqueza, tentando aliciar o homem a ser seu aliado ou, pelo menos, seu confidente. - As crianças equivocam-se tão facilmente - prosseguiu com um sorriso.

- Tal como acontece, na realidade, a muita gente. No entanto, presumo que como um homem experiente, o Inspector já tenha visto muito da vida, sabendo distinguir instantaneamente a verdade do erro. Posso oferecer-lhe um copo de brandy? - Que pena ter de desperdiçar o melhor brandy com um polícia que, muito provavelmente, não saberia diferenciá-lo da bebida que vendiam nas cervejarias. Contudo, a longo prazo, poderia representar um bom investimento.

Pitt hesitou, tomou uma decisão rápida e aceitou.

- Sente-se - ofereceu Reggie expansivamente. - Que assunto mais infeliz. Não o invejo. Deve ser terrivelmente difícil separar a verdade de todas as invenções.

Pitt sorriu lentamente enquanto aceitava o brandy.

- As criadas terão tendência a inventar umas tantas histórias - prosseguiu Reggie. - É natural. Lêem demasiados romances. Têm demasiada imaginação. Nunca se apercebem do mal que podem provocar.

Pitt ergueu as sobrancelhas inquisitoriamente e tomou um gole do brandy.

Reggie decidiu ir direito ao assunto enquanto o tipo parecia tão receptivo. O melhor era esclarecer tudo previamente sobre qualquer intriga que pudesse ouvir da criadagem, a quem Pitt não tardaria a interrogar.

- É fácil de perceber - continuou, numa tentativa de ser jocoso sem ser obviamente condescendente. - Suponho que as pobres criaturas não têm muito com que se entreter. Um homem inteligente aborrecer-se-ia de morte. Há a tendência para enfeitar um pouco a verdade, hein?

- Pode induzir em erro - acedeu Pitt, com os seus olhos claros a retribuírem o sorriso de Reggie.

Tipo simpático, pensava Reggie. Não deveria ser muito difícil orientá-lo no sentido de rejeitar quaisquer histórias desagradáveis que pudesse vir a escutar.

- Certíssimo - concordou. - Vejo que compreende. Julgo que já não deve ser novidade para si. Este tipo de coisas acontecem frequentemente, não?

Pitt deu um outro gole no seu brandy.

- Nada que se assemelhe a este caso. Não numa praça desta... qualidade.

- Pois não... pois não, suponho que não. Graças a Deus, hein, não lhe parece? No entanto, acho que não deve ser a primeira vez que teve de lidar com criadas que se meteram em sarilhos. - Riu-se.

Pitt olhou-o suavemente. Apesar de ter um rosto tão marcadamente expressivo, naquele momento não denunciava quase nada do que lhe ia pela cabeça.

- Todo o tipo de pessoas com problemas - concedeu.

- Ah, mas sabe muito bem a que género de problema me estou a referir. - Reggie perguntou-se por momentos se o homem não seria palerma. Talvez fosse melhor ser mais explícito. - Os bebés devem ser de alguma criada que se deixou engravidar e o tipo não quis casar com ela. Ou então nem ela sabia quem seria o pai, hein?

Pitt abriu um pouco mais os olhos.

- Tem algumas raparigas desse género na sua residência, senhor?

- Deus do Céu, não! - Reggie contraiu-se, indignado, para finalmente se aperceber, irritado, que acabara de fazer o contrário do que pretendia. - Quero dizer, que eu saiba, não, claro. Mas basta errar uma vez! Talvez uma rapariga que alimente ideias românticas, pense em melhorar a sua vida ou... ora, bem! - Interrompeu-se, sem ter bem a certeza do que poderia sugerir em seguida.

- Crê que uma rapariga assim possa... - Pitt escolheu a frase certa - .. .pôr em palavras os seus sonhos, causando, inadvertidamente, um equívoco?

- Certíssimo! - Reggie agarrou a oportunidade. Por fim, o tipo parecia ter percebido onde ele queria chegar. - Exactamente!

Está a entender precisamente o que quero dizer. Poderia ser embaraçoso, percebe?

- Muito embaraçoso - concordou Pitt. - E também muito difícil de provar o contrário - sorriu ingenuamente, fazendo Reggie sentir-se extremamente incomodado. Havia ali uma verdade terrível.

- Devem existir leis contra esse género de... irresponsabilidades! - Exclamou, com veemência. - Uma pessoa decente deverá ter a possibilidade de se proteger!

- Ah, mas existem - afirmou Pitt suavemente. - Difamação e tudo o mais. É julgado em tribunal.

- Tribunal! Não seja ridículo, homem! Quem é que alguma vez ouviu falar de um homem que tenha levado a criada a tribunal por ela o ter acusado de dormir com ela! Seria alvo de chacota perante a sociedade!

- Provavelmente porque, em muitos casos, se verifica ser verdade - Pitt observou o brandy cor de bronze no seu copo. - E ninguém iria acreditar na sua inocência. Nem, suponho eu, se haviam de preocupar muito com isso.

Reggie sentiu o suor brotar dos seus poros, enregelando-o.

- Deve existir alguma lei, um meio, alguma coisa para prevemir uma situação dessas! É monstruoso! Não se pode arruinar um homem dessa maneira! - Estalou os dedos furiosamente e a carne tenra recusou-se a fazer-se ouvir. - Raios! - Praguejou, frustrado.

- Estou plenamente de acordo - Pitt tragou o resto do seu brandy e pousou o copo. - Efectivamente, deve-se ter muito cuidado ao pôr em causa o bom-nome de outra pessoa. Os danos causados podem ser incalculáveis e pode mesmo haver lugar a uma indemnização, mas o mal já está feito.

Reggie retomou o controlo, pelo menos superficialmente.

- Certamente que despedirei sem referências ou atestado de bom comportamento qualquer criado que encontre a falar demais ou a espalhar intrigas maldosas - afirmou, decididamente.

- Sem atestado de bom comportamento - repetiu Pitt. O seu rosto exprimia uma amargura que Reggie não poderia compreender. Tipo estranho. Pouco fiável.

- Certamente - acedeu Reggie. - Homens ou mulheres que se comportem dessa forma são uma ameaça e inadequados para trabalhar numa boa casa. Contudo, suponho que saiba disso. Já terá deparado com casos de difamação, hein? Afinal de contas, sempre é um crime e o crime faz parte do seu dia-a-dia, não é assim?

Pitt não quis debater a questão. Em vez disso pediu autorização para tornar a falar com os criados e, assim que a obteve, retirou-se. Só à noite, muito depois de Pitt ter saído, é que ocorreu a Reggie perguntar-se por que razão, para começar, tinha Pitt vindo falar com ele. Possivelmente o patife teria apenas visto o brandy e a lareira acesa e apetecera-lhe passar uns momentos de descontracção. As classes trabalhadoras tinham muitas vezes este género de atitudes, era dar-lhes uma hipótese de ociosidade que a agarravam com ambas as mãos. Todavia, não os podíamos censurar completamente. As suas vidas já eram suficientemente cinzentas. No seu lugar, faria o mesmo.

Após o jantar aquela ideia parecia incomodá-lo mais ainda. Porque teria lá ido o desgraçado? Seria possível que já tivesse ouvido alguma coscuvilhice? Não podia deixar as coisas avançarem. Aquele género de acusações, no contexto errado, poderia fazê-lo parecer ridículo - uma figura anedótica. Era perfeitamente aceitável que uma pessoa desse umas voltas com a criada de fora, provavelmente metade de Londres o fazia, mas transformar isso num tema de conversa era totalmente diferente. A discrição e o bom gosto eram a base da conduta de qualquer cavalheiro. Existiam certos factos que todos conhecem mas de que ninguém fala. Um deles era o facto de uma pessoa poder satisfazer o seu apetite com as criadas. Era prática comum, fazendo parte do homem normal, supor que alguém o fazia não era comentado. Mas alguém que fosse conhecido por isso através de outras fontes que não as suas próprias insinuações, seria considerado obsceno e visto com desprezo. Pior do que isso, seria acusada de mau gosto.

O melhor era arrancar o mal pela raiz. Estava uma noite bastante agradável para finais de Novembro. Reggie decidiu ir até à esquina da praça, ver Freddie Bolsover. Um bom tipo, Freddie, um homem sensato. Contudo, supunha que todos os médicos o fossem.

Conheciam bem as realidades da vida, o apetite dos homens, sem grandes rodeios, não?

Reggie encontrou Freddie sentado na sala de visitas a ouvir Sophie tocar piano. Levantou-se rapidamente assim que viu Reggie entrar. Era um jovem alto e esguio, com um rosto bonito e as boas maneiras dos que têm berço. Freddie elogiou Sophie com delicadeza.

- Reggie, que agradável vê-lo. Espero que não tenha algum problema. Parece-me bastante bem.

- Ah, estou óptimo, óptimo. - Reggie agarrou-lhe na mão por uns momentos, largando-a em seguida. - Boa-noite, Sophie, minha cara - deu-lhe um beijo acima do braço, apertando-o um pouco. Uma bela peça, à sua maneira, bonito cabelo, melhor do que o de Adelina, embora com os ombros um tanto ossudos, sem peito suficiente para o gosto de Reggie. - E vocês, como estão? - Acrescentou, em seguida.

- Ah, muito bem - respondeu Sophie e Freddie acenou em concordância.

- Tenho um pequeno problema noutro campo, meu amigo. - Reggie lançou um ligeiro e rápido olhar a Sophie para indicar que se tratava de um assunto entre homens, de modo a que ela fosse educadamente convidada a sair.

Freddie fez-lhe a vontade e Sophie retirou-se para se ocupar de uma tarefa inventada à pressa.

Freddie tornou a sentar-se, esticando os pés na direcção da lareira. Era uma bela sala, e Reggie sabia casualmente, porque Adelina lho tinha contado, que todas a mobília e cortinados, para além de serem novos, eram dos mais elegantes. Aceitou o cálice de vinho do Porto que Freddie lhe ofereceu. Era excelente também, bastante velho.

- Então? - Inquiriu Freddie.

Reggie franziu o sobrolho, tentando organizar as ideias sem se denunciar muito. Freddie era um bom sujeito, mas não valia a pena contar-lhe para além do necessário.

- Esteve cá aquele tipo da Polícia a bisbilhotar outra vez? -Perguntou, erguendo o olhar.

Freddie levantou as sobrancelhas claras em sinal de surpresa.

- Não sei bem. Suponho que venha para falar com os criados, ou lá o que seja. Eu não o vi, mas também, de qualquer maneira, julgo que não teria nada para lhe contar. Não me mantenho a par dos romances da criadagem! - Sorriu.

- Claro que não - concordou Reggie. - Ninguém o faz. Mas já lhe ocorreu os danos que poderão causar com algumas intrigas contadas onde não devem? Conversei com esse sujeito da Polícia. É bastante polido, mas evidentemente não é nenhum cavalheiro. O mais certo é ter noções de classe trabalhadora. Não deve ter criados em casa, além de uma mulher para os serviços pesados... - Deteve-se, para se certificar de que Freddie o estava a seguir.

- Danos? - Freddie parecia confuso. - Refere-se à possibilidade de eles contarem qualquer coisa estúpida a esse sujeito, mentindo, ou algo assim?

- Isso -, acedeu Reggie - ou... Ah, vá lá, Freddie! A maioria de nós já beliscou alguns traseiros, uma vez ou outra, já beijou uma criada vistosa, divertiu-se um pouco, não?

Freddie tinha uma expressão de quem se recordava subitamente de algo.

- Ah, é óbvio. Está preocupado com a Dolly? Era esse o nome dela, não era?

Reggie sentiu-se vivamente incomodado. Tinha esperanças de que Freddie se tivesse esquecido disso. Dolly morrera e esse assunto já fazia parte do passado. Evidentemente que tinha sido muito triste. A pobre rapariga nunca deveria ter ido a uma parteira de vão de escada. Ele teria providenciado tudo. Ter-lhe-ia encontrado um local no campo onde ninguém a conhecesse - bem longe de Callander Square, naturalmente. Não era caso para ter entrado em pânico daquela maneira. Não se poderia dizer que a culpa fosse dele! Mesmo assim, bem gostaria que Freddie se tivesse esquecido de tudo. Tivera de o chamar, na altura. A rapariga morrera em casa de Reggie e não tinham tido tempo para chamar um médico de confiança. Freddie era o que estava mais próximo. Freddie passara uns momentos a sós com ela, antes de ela morrer. Reggie não fazia ideia do que ela lhe poderia ter cofidenciado. Com a ajuda de Deus, talvez ele não tivesse acreditado em nada.

- Sim - respondeu, voltando a lembrar-se. Freddie continuava à espera da sua resposta. - Sim, a Dolly. Esse incidente, no entanto, não poderá ter nada a ver com isto. Já lá vão anos, pobre moça. Morreu há quatro anos. Mas sabe como é a criadagem, gostam de romantizar. Se aquele tipo se puser a interrogá-los, alguma rapariga tola poderá ser indiscreta. Poderá até dizer que eu gostava dela. A Polícia poderia dar demasiada importância a uma acusação dessas.

- Ah, sim, certamente - concedeu Freddie. - Não podemos esperar que sujeitos como esse compreendam.

- Não seria bom para nenhum de nós - prosseguiu Reggie.

- Escândalo, e por aí fora. Dava mau nome à praça. Todos nós sofreríamos. Contagioso. A lama é difícil de limpar, sabe?

- Ah, bastante bem -, o rosto de Freddie ensombrou-se assim que se apercebeu do significado preciso das palavras de Reggie e dos inconvenientes para todos eles. - Sim.

Reggie perguntava-se se Freddie teria pensado no risco que corria a sua ascendente carreira profissional, tão dependente de uma reputação de integridade e discrição. Seria necessário explicitá-lo? Incitou-o delicadamente.

- O problema é que toda a gente que importa se conhece. Malditas mulheres, passam a tarde na conversa...

- Sim - o rosto aprazível de Freddie contraiu-se. - Sim. O melhor é evitar que isso venha a suceder. Têm de ter mais cuidado com a língua, ou ficam sem emprego! Talvez fosse boa ideia falar com o mordomo para que ele passe a estar sempre com qualquer criada que seja interrogada por esse sujeito, o Pitt.

Reggie sentiu uma onda de alívio.

- Mas que excelente ideia, Freddie, meu amigo. É a solução. Darei uma palavrinha ao Dobson para que nenhuma mulher seja...

- esboçou um pequeno sorriso, - importunada, não? Obrigado, o Freddie é um tipo muito decente.

- Não tem de quê. - Freddie sorriu-lhe, recostado na cadeira.

- Mais Porto?

Reggie acalmou-se e encheu o copo.

Na noite seguinte, Reggie considerou uma boa ideia consolidar ainda mais a sua posição tendo também discretamente dois dedos de conversa com Garson Campbell. Afinal de contas, Campbell era um homem do mundo: um homem de negócios que sabia lidar com as coisas. Estava uma noite desagradável. Nevava bastante e, das várias vezes que espreitara pela janela - para a tempestuosa escuridão, vendo as folhas molhadas e amassadas e a calçada a resplandecer com a luz dos candeeiros a gás - voltava-se para a sua lareira e pensava que poderia muito bem lá ir no dia seguinte. Era então que se lembrava que, no dia seguinte, poderia aparecer o maldito polícia, a bisbilhotar por entre a criadagem e sabe-se lá o que poderia ser dito - e nessa altura já seria demasiado tarde para se fazer fosse o que fosse.

Considerando, pela última vez, com relutância o conforto da sua cadeira, Reggie bebeu dois dedos de brandy, recebeu o casaco das mãos do criado e pôs-se a caminho. Apesar de ficar a menos de duzentos metros de distância, quando Reggie atingiu a porta dos Campbell já tremia por todos os lados, talvez mais devido à sua expectativa de frio do que à temperatura real.

O criado dos Campbell abriu a porta e Reggie entrou rapidamente, soltando o casaco dos ombros quase antes de o homem lho poder retirar.

- Mr Campbell está? - Perguntou Reggie.

- Vou saber, senhor. - Era uma resposta padronizada. Evidentemente que o homem sabia se Campbell estava ou não em casa, mas o que pretendia saber era se estaria disposto a recebê-lo.

Reggie foi conduzido à salinha da manhã onde ainda se distinguiam as brasas na lareira e ali ficou, de costas voltadas para o calor para aquecer as pernas, até que o criado voltou, informando-o de que Campbell o iria receber em breve.

Campbell recebeu-o na sala de visitas. Estava diante de uma lareira cujas labaredas se elevavam pela chaminé acima. Era um homem de peito robusto, com um nariz bastante comprido e, apesar de não ser feio, não era, certamente, bem-parecido. O seu encanto residia na sua postura digna e numa boa disposição que se reflectia tanto na sua aparência como na sua maneira de ser.

- Boa-noite, Reggie - cumprimentou cordialmente. - Deve tratar-se de um assunto urgente, para o afastar do calor da sua lareira numa noite como esta. O que foi, ficou sem vinho do Porto?

- Despediria um mordomo que permitisse tal coisa - respondeu Reggie, juntando-se a ele, defronte do lume. - Que noite horrível. Detesto o Inverno em Londres, mas no campo ainda é bastante pior. Os homens civilizados deveriam ir para França, ou algures. Mas os Franceses são uma cambada de bárbaros, não são? Não sabem comportar-se. Em Paris o tempo é igualmente mau e no Sul, não há nada para fazer!

- Já alguma vez pensou em hibernar? - Campbell ergueu as sobrancelhas sarcasticamente.

Reggie perguntava-se vagamente se estava a ser alvo de chacota; porém, isso não o preocupava. Campbell tinha o costume de escarnecer ligeiramente da maioria das coisas. Era a sua maneira de ser. Vá-se lá saber porquê? As pessoas cultivavam formas de estar por uma enorme variedade de razões e Reggie dificilmente se ofendia.

- Frequentemente - admitiu com um sorriso. - Infelizmente, por vezes, há coisas que precisam de ser cuidadosamente esmiuçadas, está a ver? Tal como este lamentável assunto dos corpos na praça. Uma grande embrulhada.

- É verdade - concordou Campbell. - Mas não creio que nos diga respeito. Não podemos fazer nada, a não ser passar a ter mais cautela com a criadagem. Dar algum tipo de amparo à rapariga, suponho eu, se se vier a saber que a criança nasceu morta. Encontrar-lhe um sítio no campo, onde ninguém possa saber de nada. É isso que pretende? Tenho muitos familiares com quem se pode contar.

- Não é bem isso - Reggie deu um passo para o lado, de modo a aproximar-se mais da lareira. Por que raio aquele tipo não lhe oferecia uma bebida? Lançou um olhar ao rosto sarcástico de Campbell e reparou que os seus olhos azuis estavam fixados nele. O maldito sabia que ele queria uma bebida e não lha oferecia de propósito. Que sentido de humor irritante, o do Honorable Garson Campbell.

- Ah não? - Campbell aguardava.

- Estou um pouco enervado com a Polícia -, Reggie evitou o olhar fixo dele, assumindo uma atitude de concentração, como se soubesse algo que Campbell desconhecia. - A meter o nariz na zona dos criados, sabe. Não sei até que ponto estes polícias são responsáveis. Um sujeito do tipo mais vulgar, da classe trabalhadora, naturalmente. Poderia dar azo a muita intriga tola, sem se dar conta do mal que poderia estar a fazer. O Freddie concorda comigo.

Campbell voltou a cabeça, de modo a olhar para ele mais de perto.

- O Freddie?

- Vi-o ontem - referiu Reggie, informalmente. - Mostrei-lhe o incómodo que poderia representar, para todos nós, ver a praça ganhar reputação de libertinagem, de criados imorais, de mau gosto em geral e por aí fora. Nada bom, sabe. Não quero ser alvo de muitas intrigas, ainda que não passem de suposições.

Campbell deixou descair os cantos da boca.

- Tem razão - concordou, com uma ligeira irritação. - Pode ser difícil. Mesmo que as pessoas não acreditem, hão-de passar a informação. Damos por nós a ser olhados de lado e ridicularizados nos clubes. - A sua expressão fechou-se ameaçadoramente. - Um raio de um incómodo! Uma qualquer rapariga idiota que... - a sua fúria desvaneceu-se subitamente. - O mundo é assim. Pobre rapariga. Mas, então, por que veio cá, senão para se compadecer?

Reggie respirou fundo.

- Não me serve de muito compadecer-me...

- Não serve mesmo de nada - concordou Campbell.

- É melhor prevenir que remediar.

Campbell começava agora a demonstrar interesse.

- O que está a querer sugerir, Reggie?

- Uma conversa discreta com o mordomo ou com a governanta para que falem com os outros criados. Temos de nos assegurar de que um ou outro esteja presente cada vez que este tipo da Polícia os venha interrogar. Têm de se certificar de que não dizem. .. tolice... alguma. É natural, não? Não permitir que forcem uma jovem criada. Temos de as proteger, hein?

Campbell esboçou um sorriso ríspido de divertimento.

- Ora, Reggie, nunca desconfiei que fosse pessoa para tais subtilezas ... ou tal bom-senso.

- Então, fará isso?

- Meu caro amigo, os meus criados já sabem que a conversa fiada lhes poderia custar o ganha-pão. Mas admito que seria uma medida adicional de protecção certificarmo-nos de que um mordomo ou uma governanta esteja presente caso este tal... Pitt... torne a aparecer. Pessoalmente, creio que, depois de umas boas tentativas, acabarão por desistir. Afinal de contas, quem é que está realmente interessado em saber que uma criada deu à luz dois na-do-mortos? Não me parece que valha a pena infernizar a vida das pessoas numa zona como esta. Acabará por se aperceber que, dessa forma, para além de não descobrir nada importante, ainda vai ofender muita gente que lhe poderá dificultar bastante a vida, caso lhe dê motivos para isso. Não se deixe perturbar, Reggie. Depois de andarem por aí às voltas para mostrar que estão a tentar fazer alguma coisa, deixam discretamente cair o assunto. Quer um cálice de vinho do Porto?

Reggie aproveitou uns momentos para assimilar a ideia, deixando o alívio instalar-se. Foi então que se apercebeu que, finalmente, Campbell lhe oferecera um cálice de vinho do Porto.

- Sim - aceitou, agradecido. - Obrigado, muito amável da sua parte.

- Não tem de quê - Campbell sorriu para consigo e dirigiu-se à mesa de apoio para ir buscar a licoreira.

Augusta já reparara na indisposição de Christina. A princípio não dera muita importância, apenas sentira pena dela. Era muito fácil comer ou beber alguma coisa que não nos caísse bem. Então, após a consternadora descoberta de Christina nos braços do miserável criado, Max, o incidente voltou-lhe ao espírito acompanhado de uma ansiedade acrescida. Quando a indisposição tornou a surgir, uma semana depois, e a criada de quarto de Christina veio informá-la de que ela iria passar a manhã na cama, Augusta sentiu-se consideravelmente mais alarmada.

Augusta não queria que o general Balantyne tomasse conhecimento de nada - o marido seria inútil na eventualidade de uma crise, a confirmar os seus piores receios e, caso nada disso sucedesse, não havia motivos para o alarmar. Estavam à mesa, a tomar o pequeno-almoço, quando Augusta foi informada da indisposição da filha e, após uns momentos de pânico silencioso, agradeceu à criada, pedindo-lhe que regressasse para junto de Christina para lhe dar assistência. Em seguida, Augusta pediu ao general que lhe passasse a compota de laranja, para barrar a sua torrada.

- Que pena - comentou o general em voz baixa, passando-lhe a taça. - Pobre rapariga. Espero que não seja nada de grave. Quer chamar o médico? Posso sempre pedir ao Freddie para passar por cá, caso ela não queira muita balbúrdia.

- Não há nada que ele possa fazer por um resfriado - respondeu suavemente. Deus do Céu, a última coisa que queria agora era um médico! - Por mais encantador que seja, não pode mudar o tempo. Anda por aí toda a espécie de pestilências no Outono. Vou mandar a cozinheira preparar-lhe um chá de ervas. Será mais do que suficiente. O mais certo é que leve apenas um ou dois dias a ficar boa.

Balantyne observou-a levemente surpreendido, mas em vez de argumentar com a esposa, preferiu continuar debruçado sobre os seus rins picantes, bacon, ovos e torradas.

Assim que terminou a refeição e de modo a não parecer apressada, o que poderia dar ao assunto uma importância excessiva, Augusta pediu licença para se levantar da mesa e dirigiu-se para o andar de cima. Caso não existisse motivo para alarme, melhor, mas, caso os seus piores temores se confirmassem - e lembrou-se, com um arrepio gelado a perfurar-lhe a carne, da familiaridade daquele toque no quarto de arrumações, da facilidade com que as mãos acariciavam o corpete de seda abaixo dos seios - e se de facto fosse verdade, então, Augusta deveria começar a pensar no que fazer. Se existisse qualquer esperança de salvar a situação, esta residiria numa acção imediata. Cada dia que passasse só viria dificultar a tarefa.

Na eventualidade de não ter êxito - uma mulher mais fraca teria mesmo sucumbido perante a ideia, mas até os seus inimigos, que eram muitos, nunca poderiam negar que Augusta tinha coragem - Christina teria pela frente uma considerável e infinita infelicidade. Ter uma criança ilegítima era um pecado que a sociedade em que Christina se movia, em que crescera e na qual se encontravam todas as suas amizades - na realidade, a sociedade que lhe permitiria ter o único estilo de vida para o qual fora preparada -jamais esqueceria por completo. Talvez fosse possível, com empenho e distribuindo dinheiro pelas mãos mais indicadas, inventar uma razão fictícia para a afastar de Londres durante o tempo necessário, deixando que a criança fosse educada na propriedade de campo e adoptada por uma qualquer criada dedicada. Seria preciso algum engenho, mas não era impossível. Certamente que já muitas o tinham feito! Christina não era a primeira, nem seria a última a meter-se nestes apuros.

Se ao menos fosse só isso!

Mas havia Max: um homem ambicioso e sem escrúpulos. Naturalmente que desconfiara no próprio dia em que o contratara de que estava determinado, acima de tudo, a subir na vida. Na altura, considerara que isso faria dele um excelente lacaio. Os homens ambiciosos costumavam ser bons empregados; teoria que ele confirmara com o seu desempenho. Fazia tudo na perfeição, sempre pontual e mais do que cortês; Augusta, de facto, chegara a receber elogios sobre as qualidades de Max. Contudo, agora, culpava-se por não se ter apercebido de que a ambição dele o conduziria a recorrer a quaisquer meios que se lhe proporcionassem para subir na vida, até deitar-se com a filha do patrão. Não se deixou iludir sequer por um momento quanto à possível existência de ( afecto - de ambos os lados. Por outro lado, deveria conhecer melhor a sua filha, de modo a ter-lhe reconhecido aquela fraqueza, protegendo-a. Para que serviam as mães?

Max forjara a sua arma. Caso escolhesse usá-la para semear a intriga, gradualmente, como veneno de acção prolongada, Christina ficaria arruinada. Nenhum homem da sua classe havia de querer desposá-la, independentemente da dimensão do seu dote. O mercado casadouro apresentava sempre algum excedente de jovens bonitas e Christina não possuía qualquer vantagem especial; pelo menos, nenhuma que pudesse contrabalançar uma reputação de rameira. Ser espirituosa era uma coisa, ser uma pega e ter um filho de um criado era outra, completamente diferente. O único mundo que conhecia ou com o qual poderia lidar tornar-se-ia tão fechado para ela como o Banco de Inglaterra.

Max teria de ser silenciado: nunca através de qualquer tipo de suborno. Bastava ceder-lhe uma vez que fosse, e seriam seus reféns para o resto das suas vidas. Teria de utilizar uma ameaça de igual magnitude. Não só para o bem de Christina, mas para o bem de toda a família, do general e do jovem Brandy, bem como dela própria. Caso Brandy se viesse a apaixonar ou, até, a apreciar alguma rapariga bem colocada, que pais acederiam em ceder a filha a uma família cujo sangue resultava em pessoas como Christina?

Augusta já estava no patamar com a mão erguida na direcção da porta do quarto de Christina quando ocorreu o pior. Quase desmaiou perante o puro horror que essa ideia lhe despertava. Max estava ao seu serviço há seis anos. Acreditava piamente que se uma coisa pavorosa como esta já tivesse sucedido ela tê-lo-ia sabido - e se não tivesse? Será que a Polícia acreditaria nela? Será que podiam mesmo dar-se a esse luxo? A não ser que estivesse redondamente enganada, aquele jovem Pitt denotava uma invulgar inteligência. Ele iria ao fundo da questão, interrogaria Christina e, talvez, até descobrisse que era Max, arrancando-lhe toda aquela verdade sórdida. Nessa altura, que diria ele dos corpos na praça? Em que é que ela própria acreditava?

Bateu levemente à porta e, antes que Christina pudesse responder, abriu-a.

Christina jazia na cama, pálida e definhada, com os traços acentuadamente vincados e o cabelo espalhado à sua volta, pela almofada.

Augusta sentiu por ela uma pena momentânea que se extinguiu rapidamente, permitindo-lhe fixar a sua atenção na dor bastante mais intensa que parecia ameaçá-la.

- Doente? - Perguntou, simplesmente. Christina acenou afirmativamente com a cabeça. Augusta entrou a fechou a porta. Não havia necessidade de estar com rodeios. Sentou-se aos pés da cama e encarou a filha.

- Foi do Max que apanhou essa doença? - Indagou, fitando Christina nos olhos.

Christina tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Estava habituada a fazer o que queria, a encantar ou a dominar toda a gente, mas desde a mais tenra idade que jamais conseguira vencer a mãe.

- Como... como assim, mamã? - Gaguejou.

- Não vale a pena fugir à questão, Christina. Se está à espera de bebé, teremos muito que fazer. Não desejo assustá-la desnecessariamente, mas não me parece que se tenha apercebido da seriedade do apuro em que se encontra, se isso se confirmar.

Christina abriu a boca, tornando a fechá-la. Augusta aguardava.

- Não sei - respondeu Christina em voz baixa. Faltava-lhe a voz e esforçava-se para não chorar. O que a impedia era apenas o orgulho e o facto de saber que a sua mãe nunca o teria feito.

Augusta fez a pergunta que temia, mas não se iria esquivar a nada. Precisava de saber.

- Esta é a primeira vez?

Christina fitou-a, com os olhos arregalados em sinal de incredulidade indignada, passando em seguida para o horror ao aperceber-se da intenção da mãe e do raciocínio por detrás da pergunta. Estava lívida como o lençol que a cobria.

- Oh, mãe! Não pode estar a pensar que eu seria capaz... oh, não!

- Ainda bem. Não me parecia que fosse. Mas o que interessa não é o que penso, e sim o que Polícia pensa, ou os motivos que possa vir a ter para levantar essa possibilidade...

- Mãe...!

- Eu trato de tudo. Não voltará a ver o Max. Até ter assegurado o silêncio dele, a menina vai ficar na cama. Tem uma constipação. Percebeu?

- Sim, Mamã. - Estava demasiado chocada e assustada para discutir. - Crê que... a Polícia... quero dizer...?

- Tenciono certificar-me de que não descobrem nada que os possa levar a pensar de uma maneira ou de outra. E, nesse sentido, a menina vai fazer exactamente aquilo que eu lhe disser.

Christina anuiu silenciosamente e Augusta contemplou-lhe o rosto empalidecido, recordando-se de como se tinha sentido nas primeiras semanas em que estivera à espera de bebé - à espera da própria Christina. Parecia já ter sido há tanto tempo. Brandy era um rapazinho ainda de saias: nessa altura o pai dele era mais jovem, com o rosto menos vincado, uns quilos a menos, mas igualmente elegante, de ombros largos e rijos. Como podia um homem mudar tão pouco? A sua voz, a sua maneira de ser e até os seus pensamentos pareciam inalterados.

- Vai passar - afirmou, delicadamente. - Não durará mais de umas semanas e depois vai sentir-se melhor. Vou mandar a cozinheira fazer-lhe um caldo de carne.

- Obrigada, Mamã. - Sussurrou Christina, fechando os olhos.

Augusta deu voltas à cabeça e puxou pela imaginação para encontrar uma forma de assegurar o silêncio de Max sem, ao mesmo tempo, lhe estar a oferecer uma potencial futura arma. Contudo, na manhã seguinte conseguira apenas eliminar todas as impossibilidades, restando-lhe pouco mais. Estava de mau humor para receber Pitt quando este chegou, às dez menos um quarto.

Ao perceber que Pitt fora recebido por Max, Augusta foi dominada por um momento de pânico. Mal se deu conta de que a ambição de Max nunca lhe permitiria desperdiçar o seu valioso segredo, confessando-o a Pitt, que não lhe daria nada em troca, em vez de o oferecer em primeiro lugar a Augusta, que lhe poderia pagar de variadas maneiras, começando por dinheiro e avançando para só Deus sabia que tipo de extremos de ganância.

Augusta encontrou Pitt na salinha da manhã a aquecer as mãos defronte do lume. Estava mais um dia agreste, com um duro vento de Leste arrastando lâminas de gelo do mar do Norte e, embora mal se atrevesse a censurar qualquer ser vivo que se tentasse aproveitar de um pouco de calor, a presença daquele polícia em frente da sua lareira ofendia-a. Sem se dar conta da entrada de Augusta, Pitt nem se moveu.

- Bom-dia, Mr Pitt - cumprimentou, friamente. - O que temos, desta vez?

Pitt assustou-se e demorou algum tempo a recompor-se antes de se voltar para a encarar.

- Bom-dia, minha senhora. Receio que ainda não tenhamos descoberto a verdade quanto aos corpos na praça...

- Crê verdadeiramente, Mr Pitt, que alguma vez a vai descobrir? - Ergueu as sobrancelhas, em sinal de dúvida.

- Talvez não, minha senhora. Mas tenho de continuar a tentar, antes de desistir.

- Certo. A mim parece-me um desperdício de dinheiro público.

- Talvez tivesse sido um desperdício de vida humana, que é infinitamente mais preciosa.

- E da qual parece não termos falta - retorquiu amargamente.

- Mas presumo que tenha de cumprir o seu dever, tal como referiu. Julga que posso fazer alguma coisa para o ajudar?

- Dê-me a sua autorização para tornar a falar com o seu pessoal, minha senhora e, porventura, com Miss Christina Balantyne. Ela pode ter reparado nalgum tipo de comportamento, nalgum pequeno sinal que a senhora poderá ter estado demasiado ocupada para notar.

Augusta sentiu o estômago contrair-se. Seria possível que ele já tivesse ouvido alguma coisa? Será que Max poderia ter sido tão... Não, com certeza que não! Acima de tudo, Max era ambicioso. Queria tirar proveito da sua vantagem e não esbanjá-la.

- Perdoe-me, certamente que poderá falar com os criados. No entanto, devo insistir quando lhe peço que não os perturbe desnecessariamente e, nesse sentido, mandarei uma pessoa responsável acompanhá-lo. Quanto à minha filha, lamento mas não se sente muito bem e tem de ficar na cama. Naturalmente que não pode ver ninguém.

- Oh Céus! - O rosto expressivo de Pitt vincou-se numa expressão consternada. Augusta não fazia ideia se era sentida ou não.

- Espero, realmente, que seja apenas uma indisposição passageira.

- Julgamos que sim - respondeu ela. - É a estação do ano, certamente. Tem tendência a afectar as pessoas. Agora diga-me, com qual dos criados deseja falar? Presumo que com as criadas?

- Se fizer favor.

Augusta agarrou na campainha.

- Mandarei o mordomo dar-lhe assistência.

- Preferia falar com elas a sós. A presença dele poderá inibi-las ou fazê-las sentirem-se menos livres para...

- Sem dúvida. Mas para protecção delas, o mordomo permanecerá consigo. Não tolero que intimidem, ainda que sem intenção, estas jovens sob a minha responsabilidade, levando-as a dizer coisas das quais se poderão vir a arrepender. Talvez não se aperceba de quão jovens e ignorantes algumas são; muito influenciáveis e volúveis.

- Lady Augusta...

- São estas as condições em que poderá falar com elas, Mr Pitt. Bastante razoáveis, diria.

Pitt não dispunha de mais argumentos para oferecer que não denunciassem o conhecimento prévio de uma determinada culpa e, agora, ela desafiava-o a fazê-lo. - Minha senhora -, aquiesceu com um leve sorriso, reconhecendo-lhe a superioridade táctica. Fosse ele um cavalheiro e, por momentos, ela até poderia ter gostado dele.

Augusta não nutria idênticos sentimentos por Charlotte Ellison quando ela chegou, pouco depois do meio-dia, para ajudar o general com os seus papéis. Miss Ellison era uma jovem de quem nunca poderia gostar - havia nela algo de perturbador, de imprevisível, algo que era perigoso. Ninguém se poderia precaver contra isso, pois não se encaixava em nenhuma regra. Por outro lado, parecia bastante inofensiva. Ia e vinha em silêncio e sem dúvida que era respeitadora e, pelo menos ao nível das aparências, suficientemente bem-educada. Por que razão, no entanto, havia uma jovem de querer ajudar um general de meia-idade a ordenar documentos sobre batalhas e regimentos, em vez de andar à procura de marido? Esta era uma pergunta à qual, assim que tivesse menos preocupações, Augusta iria procurar responder.

Assim sendo, Augusta limitou-se a interrogar Brandon à hora de almoço, sobre o tipo de pessoa que ela era e se estava satisfeito com o seu trabalho.

- Sim - respondeu, ligeiramente surpreendido. - Ela denota uma inteligência invulgar, para uma mulher.

- Quer dizer, um interesse invulgar pelas coisas que lhe interessam... para uma mulher - retorquiu Augusta com alguma aspereza.

- Não foi, mais ou menos isso, o que eu disse?

- Não, não é isso. A maioria das mulheres tem uma inteligência perfeitamente adequada para o que é importante, tal como a condução da nossa vida quotidiana. Contudo, não deseja dedicar-se à dissecação de batalhas que dizem respeito a povos diferentes, de outros países e de épocas distantes. Considero bastante excêntrico um tal interesse e muito pouco natural numa jovem com uma educação decente.

- Que disparate! - Censurou ele, bruscamente. - Qualquer pessoa com dois dedos de inteligência deve apreciar a grandiosa história da nossa nação. Somos a maior nação militar do mundo. Alargámos a nossa civilização a todas as terras e climas que Deus fez. Criámos um império e uma paz que são alvo da inveja e da bênção do mundo. Toda e qualquer mulher com sangue britânico se deve orgulhar disso.

- Orgulhar, com certeza - concordou, irritada, enquanto tentava alcançar a pasta de anchova, - mas não preocupada com os pormenores!

Brandon comeu o último pedaço de torrada e não se deu ao trabalho de responder.

Foi após essa conversa que Augusta virou o seu pensamento; para a questão do silêncio de Max; até que, por fim, se lembrou de uma solução satisfatória. Foi durante os momentos de tranquilidade que antecedem normalmente a hora do jantar que Augusta pôs o seu plano em prática. Dirigindo-se à saleta de visitas onde estava certa de que não seria perturbada, mandou chamar Max.

Augusta sentiu um desagrado imenso e quase sufocante assim que o viu entrar. Tinha um ar inteiramente sereno, como se estivesse à espera de discutir um assunto doméstico de pouca importância com ela. Augusta nunca antes reparara na insolência e na falsidade que o olhar do criado revelava. Tinha de se manter perfeitamente controlada.

- Boa-noite, Max - cumprimentou, com frieza.

- Boa-noite, milady.

- Não vale a pena estarmos com rodeios. Mandei-o chamar para discutir consigo um assunto que tenciono arrumar, se não de forma mutuamente vantajosa, pelo menos que não implique qualquer inconveniente para qualquer das partes. O seu desfecho só depende de si.

- Sim, milady? - A sua expressão não traía qualquer emoção.

- Foi suficientemente tolo para se envolver numa relação com a minha filha. Vai deixar imediatamente de lhe prestar qualquer tipo de atenção. Deixará esta casa para preencher um lugar que lhe arranjarei na Escócia e para o qual lhe proporcionarei as devidas referências...

- Não tenho desejo algum de trabalhar na Escócia, milady.

- Manteve-se peremptório diante dela, com um olhar que revelava um profundo divertimento.

- É provável que não. Mas isso não me diz respeito. Tenho familiares em Stirlingshire que me farão o favor de lhe dar guarida. A alternativa é a prisão, que creio ser ainda mais fria e inóspita do que a Escócia.

- A prisão, milady? - Ergueu as sobrancelhas, em sinal de surpresa. - Deitar-me com uma dama de sociedade, especialmente tendo em conta que ela o fez de livre e espontânea vontade - deixe-me que lhe diga - pode ser uma indiscrição e, até, uma ofensa social para alguns, mas não é um crime. E, mesmo que fosse, duvido que desejasse acusar-me de tal acto. - A sua boca parecia apresentar um claro toque de escárnio.

- Não, evidentemente que não. Mas roubar pratas ao seu patrão é um crime. - Augusta retribuiu-lhe o olhar igualmente firme.

O rosto de Max imobilizou-se por uns momentos, para depois começar a espelhar uma crescente compreensão.

- Não roubei quaisquer pratas, milady.

- Não. Mas se faltassem pratas e elas fossem encontradas entre os seus pertences, ser-lhe-ia invulgarmente difícil provar o contrário.

- Isso é chantagem.

- Que perspicaz, da sua parte. Estava certa de que não iria ter dificuldade em perceber.

- Caso me acusassem de tal acto, deveria, naturalmente e em minha própria defesa, delatar o motivo por detrás da sua acusação.

- Max observou-a cuidadosamente, à espera do mais leve sinal de fraqueza.

Augusta não cedeu.

- Possivelmente - acedeu, friamente. - Mas isso seria uma tolice, porque, nessa altura, também seria acusado de difamação. E em quem julga que eles irão acreditar - em Lady Augusta Balantyne, a lidar com um lacaio desonesto com ideias demasiado elevadas para o seu nível, ou no criado, rancoroso por ter sido descoberto? Vamos lá, Max, acima de tudo, você não é estúpido.

Max fitou-a, com uma expressão de ódio a apoderar-se do seu rosto sensual.

Augusta não baixou o olhar. Em vez disso, retribuiu-lhe o olhar com igual firmeza.

 

O general Balantyne estava muito satisfeito com a forma como as suas memórias estavam a decorrer. A história militar da sua família era realmente notável e, quanto mais ordenava os seus documentos, mais extraordinária lhe parecia ser. Continha uma herança de disciplina e de sacrifício da qual qualquer um ficaria orgulhoso. Bastante mais importante do que isso, porém, eram a premência e a excitação que a tarefa suscitava. Mais reais do que a monótona vida doméstica e as ficções polidas do seu quotidiano em Callander Square. Embora, lá fora, a chuva de princípios do Inverno ensopasse as pedras cinzentas da calçada, a imaginação de Balantyne só lhe permitia sentir a chuva de Quatre Brás e de Waterloo, quase setenta anos antes, onde o seu avô perdera um braço e uma perna lutando na lama dos campos belgas atrás do Iron Duke1; os Scarlet Coats2 e os Blues3, a carga dos Scots Grays4, o fim de um império e o princípio de uma nova era.

O calor da lareira queimava-lhe as pernas e ele sentia o sol abrasador da índia, pensava no Sultão Tippoo, no Black Hole de Calcutá5, onde perecera o seu bisavô. Ele próprio conhecera aquele calor. O ferimento de lança na sua coxa, consequência das Guerras Zulus, havia apenas três anos, ainda não se curara totalmente.

 

1 Duke of Iron significa Duque de Ferro, nome dado ao Duque de Wellington.

2 Scarlet Coats: Casacos Escarlates, alcunha dos soldados do Exército Britânico.

3 Blues: Azuis, designação dos Royal Horse Guards.

4 Grays: Cinzentos, nome dado aos soldados em geral.

5 Black Hole: Buraco Negro (de Calcutá), masmorra onde foram encerrados 146 prisioneiros ingleses em 1756, sobrevivendo apenas 23. (N. da T.)

 

Sempre que fazia frio doía-lhe, como para o relembrar. Talvez essa tivesse sido a sua última batalha, tal como o pesadelo da batalha de Crimeia fora a sua primeira. Nas profundezas mais recônditas da sua memória, ainda se sentia assustado com o terrível frio e a mortandade de Sebastopol, onde os mortos jaziam espalhados por todo o lado, com os corpos definhados pela cólera, despedaçados pelos tiros e gelados até à morte em posições grotescas - alguns aninhados como crianças adormecidas. Os cavalos! Só Deus sabe quantos cavalos tinham morrido, pobres animais. Que tolice, preocupar-se tanto com os cavalos.

Tinha apenas 18 anos quando estivera em Balaclava. Fora para lá enviado com uma mensagem do seu próprio comandante para Lord Cardigan, mesmo a tempo de assistir à indescritível carga. Lembrava-se do vento a fustigar-lhe o rosto, do cheiro a sangue e a pólvora, bem como da terra revolvida enquanto seiscentos e setenta e três homens e cavalos galopavam contra as armas entrincheiradas da posição russa. Deixara o seu cavalo ao lado dos homens idosos de rostos petrificados que, confusos naquele tumulto, irados, observavam, no vale abaixo deles, duzentos e cinquenta homens e seiscentos cavalos, obedecendo às suas ordens, a serem chacinados. O seu pai pertencera ao 11º Regimento de Hussardos e fora um dos que não haviam regressado.

O seu tio estivera no 93º Highlanders e defendera a "linha vermelha": quinhentos e cinquenta homens entre trinta mil russos e a própria Balaclava. À semelhança de muitos outros, morrera onde estava. Fora ele, Brandon, que se sentara no frio áspero de uma trincheira para escrever a sua mãe, comunicando-lhe que o marido e o irmão tinham morrido. Ainda conseguia sentir a angústia de tentar encontrar as palavras certas. Em seguida, fora lutar em Inkerman e na queda de Sebastopol. Nessa altura, parecera-lhe como se toda a maré da Ásia lhes estivesse a passar por cima com o peso de metade da terra por trás de si.

Certamente que as gerações vindouras haviam de ouvir nos seus corações os canhões dessas batalhas, e sentir o orgulho e a dor, os erros - e o alcance da história! Poderia ele ser tão incapaz, ao ponto de ter vivido tudo isso e não ser capaz de fazer passar o gosto na boca, o fluir do sangue e as lágrimas?

A jovem Miss Ellison parecia competente e suficientemente agradável. Embora, "agradável" talvez não fosse a palavra mais adequada. As suas atitudes e opiniões eram demasiado concretas para lhe agradarem totalmente. Contudo, era sem dúvida alguma uma rapariga inteligente. Miss Ellison dispensava-lhe o esforço de ter de repetir as suas instruções. Na realidade, era perspicaz ao ponto de, nalgumas ocasiões, entender o que Balantyne pretendia antes de este ter acabado a frase - situação que incomodava o general. Contudo, Miss Ellison fazia-o sem más intenções e não era pessoa para se dar ares de superioridade. Efectivamente, parecia até mais satisfeita em comer com os criados do que obrigar a cozinheira a ter de lhe preparar um tabuleiro separado.

Miss Ellison chegara mesmo, mais de uma vez, a fazer-lhe sugestões quanto à forma como poderia trabalhar - sugestões que Balantyne tinha alguma dificuldade em aceitar com graciosidade. Era porém forçado a admitir de que as ideias dela não só eram bastante boas como, frequentemente, nem ele se conseguia lembrar de algo melhor. Naquele momento, sentado na biblioteca, ponderava sobre o que poderia escrever em seguida e o que pensaria Miss Ellison acerca disso.

Não pôde deixar de se sentir irritado ao ser interrompido por Max que, da porta, lhe vinha comunicar a presença de Mr Southeron na salinha da manhã, desejando vê-lo e saber se estava em casa.

Balantyne hesitou. A última coisa que pretendia era que Reggie Southeron o viesse agora incomodar, mas tratava-se de um vizinho, e como tal tinha de ser tolerado. Não seguir essa regra provocaria reacções intermináveis, dando azo a todo o tipo de pequenos inconvenientes.

Max aguardava silenciosamente. A sua figura impecável e o seu sorriso calmo incomodavam-no tanto como a mensagem que trazia. Quem lhe dera que Augusta se visse livre dele e encontrasse outra pessoa para o substituir.

- Sim, claro - respondeu, arreliado. - E é melhor trazer qualquer coisa para beber. O Madeira, mas não o melhor.

- Certamente que não, senhor General. - Max retirou-se e, momentos depois, entrou Reggie, forte, afável e com a roupa já confortável mente vincada pelo uso - embora não a pudesse ter vestido há mais de duas horas.

- Bom-dia, Brandon - cumprimentou Reggie, alegremente, percorrendo a sala com o olhar em busca dos copos e da licoreira e reparando no lume da lareira aceso, bem como nos confortáveis e fundos cadeirões de cabedal.

- Bom-dia, Reggie - retribuiu Balantyne. - O que o traz cá num sábado de manhã?

- Na verdade, já há algum tempo que fazia tenções de vir conversar consigo. - Reggie sentou-se na cadeira mais próxima da lareira. - Ainda não tinha tido uma boa oportunidade. Parece que há sempre qualquer coisa para fazer, não é? Ultimamente esta praça mais parece um ninho de vespas.

Embora, até ao momento, Balantyne não lhe tivesse prestado muita atenção, começava agora a distinguir uma certa tensão na voz de Reggie. Isto significava que, apesar da bonomia do vizinho, havia qualquer coisa muito específica que lhe causava ansiedade, a ponto de ter de a partilhar com alguém. Max não tardaria a aparecer com a garrafa de Madeira e não fazia sentido abordar qualquer assunto mais sério até que ele se saísse.

- Deduzo que tenha andado ocupado. - Disse-lhe, para fazer conversa.

- Para dizer a verdade, nem por isso - respondeu Reggie. - Aqueles malditos tipos da Polícia é que têm andado a cirandar por aí. Esse Pitt, ou seja lá qual for o seu nome, enfia-se por aí, pela ala dos criados, a causar todo o tipo de inconvenientes. Raios, como odeio ter alterações em minha casa. Os criados andam todos num reboliço. Deus do Céu, homem, você deve saber como é difícil arranjar bons criados, ensiná-los a conhecer os nossos gostos e a satisfazer as nossas necessidades. Leva algum tempo. De repente, acontece um raio de uma tolice destas e antes de darmos por isso, já a criadagem está toda fora de ordem. Já é difícil manter, em qualquer altura, um bom pessoal. Começam a meter na cabeça ideias de subirem na vida. Querem ver se arranjam trabalho com um duque, um conde, ou assim. Alimentam logo ideias de viajar para o estrangeiro. Consideram que não estão bem colocadas se não puderem passar a época em Londres, o Verão no campo e o pico do Inverno no Sul de França! Essas malditas criaturas ofendem-se com as coisas mais estranhas e antes que possamos dar conta disso, já se puseram a andar! Na maioria das vezes, só Deus sabe porquê. Não têm qualquer lealdade. Mas não é preciso muito para perceber que se vão todos embora se este maldito tipo, o Pitt, se põe a interrogá-los acerca das suas vidas privadas e dos seus valores, interferindo nas suas vidas e fazendo todo o tipo de sugestões. - A voz dele desvaneceu-se com exasperação, à medida que Reggie antecipava um duro Inverno a treinar criados novos e insatisfatórios, de quartos frios, de refeições queimadas e de roupa engelhada. Balantyne não acreditava minimamente nessa eventualidade, embora admitisse que não dava especial valor aos seus confortos pessoais; valorizava, no entanto, a sua paz de espírito. Era realmente consternador pensar no conflito doméstico que uma tal crise poderia provocar. Não gostava muito de Reggie - não podiam ser mais diferentes um do outro -, mas lamentava os receios evidentes que ele demonstrava, muito embora pudessem ser infundados.

- Não se devia preocupar com isso - aconselhou, informalmente. Max surgiu com a licoreira e os copos, pousando-os, para em seguida se retirar, fechando silenciosamente a porta atrás de si. Reggie serviu-se mesmo antes de lhe oferecerem.

- Não faria o mesmo? - Indagou Reggie, com um misto de ansiedade e de ofensa.

- Seria pouco provável. - Balantyne declinou um pouco de Madeira. Para além de não gostar daquilo, ainda era muito cedo. - Nenhuma boa criada se vai despedir por lhe terem feito umas perguntas, a não ser que já tenha outro sítio para onde ir. E este tipo, o Pitt, é bastante educado. Em minha casa, ninguém se queixou dele.

- Por amor de Deus, homem! Saberia, se se tivessem queixado? - Por fim, Reggie perdia a paciência. - A Augusta gere a casa como se fosse um regimento. É a criatura mais eficiente que já vi. Não lhe diria nada nem que estivessem todas revoltadas! Havia de lidar com a questão e você continuaria a ter as refeições a horas.

Balantyne não gostara de o ouvir inferir que ele não passava de um apêndice inútil da sua própria casa, mas, tornando a lembrar-se de que o homem estava assustado - e embora o motivo lhe fosse indiferente - resolveu abrir uma excepção.

- Não me parece muito provável que alguém se vá agora despedir - declarou, calmamente. - Dessa forma, estaria não só a sugerir à Polícia algum tipo de culpa, como também tornariam as coisas piores do que continuando a trabalhar aqui normalmente.

Por mais estranho que parecesse, nem este argumento, com a sua impecável lógica, acalmava visivelmente Reggie. O vizinho continuava amarfanhado, afundado na poltrona a fixar, com uma careta, o seu copo.

- Mas o caso é sério - replicou sombriamente. - Nem sequer me parece que alguma vez cheguem a descobrir o autor. Perda de tempo. A única coisa que poderão fazer é suscitar muita especulação e intriga. - Ergueu o olhar. - Sabe que isso poderia ser muito mau para nós, Brandon. Não é bom ter a Polícia por aí à espreita. As pessoas vão pensar que se passou algo de errado.

Balantyne conseguia perceber onde ele queria chegar, mas não havia nada que pudessem fazer e inclinava-se mais a pensar que Reggie exagerava.

- Aposto consigo que o Carlton havia de concordar - apressou-se Reggie a declarar, elevando a voz. - "Acima de qualquer suspeita", sabe, "a mulher de César" e tudo isso. É preciso manter uma reputação imaculada.

O mais provável era que o que ele dizia fosse verdade. Balantyne franziu o sobrolho, olhando para Reggie com os olhos semi-cerrados. Reggie servira-se de outro copo e, a não ser que Balantyne estivesse enganado, já era o seu segundo ou terceiro copo do dia. O que temeria ele realmente?

- O que diz ele? - Insistiu Reggie.

- Ainda não falei com ele - respondeu Balantyne honestamente.

- Seria uma boa ideia se conversassem. - Reggie tentou sorrir, mas acabou por mostrar apenas os dentes, esboçando uma careta. - Eu próprio o faria, mas não o conheço tão bem como você. É um homem influente. Talvez possa incutir algum juízo na Polícia. Nunca irão descobrir quem foi a mulher, nem por sombras. O mais provável é que tenha sido uma criada que, entretanto, já se mudou daqui. Não havia de querer ficar por cá, não lhe parece?

- A Polícia já deve ter pensado nisso - replicou Balantyne.

- Não despedimos nem se foram embora criadas nos últimos dois anos. E você? - Subitamente, lembrava-se de algo que o fazia compreender tudo, perfeitamente. Agora parecia-lhe espantosamente óbvio. - Há quanto tempo morreu a Dolly? - Perguntou ousadamente.

O sangue escapou-se todo do rosto de Reggie, de tal modo que Balantyne chegou a pensar que ele poderia desmaiar. Tinha a pele acinzentada e viscosa.

- A criança que lhe causou a morte era sua, Reggie? - Indagou. Reggie abriu a boca, como um peixe fora de água, voltando a fechá-la em silêncio. Não conseguia encontrar uma mentira qualquer que lhe pudesse ser útil.

- Julguei que isso já tinha acontecido há mais de dois anos,

- prosseguiu Balantyne.

- E aconteceu! - Reggie encontrara finalmente a língua, mantendo os lábios contraídos. - E foi! Há quatro anos. Não pode ter nada a ver com isto! Mas sabe como são as pessoas, gostam de difamar os outros. Hão-de pensar que lá porque... - afundando-se na sua mentira, agarrou noutro copo de Madeira.

Não havia necessidade de pressioná-lo quanto ao presente; a verdade era demasiado evidente e a razão pela qual queria a Polícia fora da praça e longe das criadas mais desbocadas. Pobre coitado!

- Suponho que não tardarão a desistir por eles próprios -, disse Balantyne, irritado por sentir pena de Reggie. - Mas assim que tiver oportunidade, vou saber o que pensa o Carlton acerca disto. Não me parece que esse sujeito, o Pitt, queira passar mais tempo do que o necessário num beco sem saída. Não é bom para a carreira dele.

- Não. - Reggie estava visivelmente mais alegre. - Não me parece que tenhamos de lho explicar. - Balbuciava as palavras.

- Mas não deixe de falar com o Carlton. Deve conhecer umas quantas pessoas. Com uma palavrinha às pessoas indicadas, talvez possamos encerrar o caso antes do que o previsto. Poupava-nos bastantes intrigas malidecentes e algum dinheiro público. É tudo um desperdício de dinheiro. - Levantou-se, um pouco cambaleante. - Obrigado, meu velho. Calculava que compreenderia.

Christina não apareceu para o almoço e Brandy estava a passar uma semana no campo com amigos. Estava sozinho à mesa com Augusta.

- A Christina não está melhor? - Perguntou, com um pouco de ansiedade. - Por que razão não consultou um médico? Chame cá o Freddie para a ver, caso o Meredith não possa.

- Não é necessário - respondeu Augusta, servindo-se de salmão. - É só uma constipação. A cozinheira preparou-lhe um tabuleiro. Coma um pouco de salmão. É o que o Brandy pescou no fim-de-semana que passou em Cumberland. Muito bom, não lhe parece?

Serviu-se de uma posta e provou.

- Excelente. Tem a certeza de que não é nada pior? Há muito tempo que está de cama.

- A certeza absoluta. Não lhe faz mal nenhum passar uns tempos na cama. Andava a exagerar. Demasiadas festas. Por falar nisso, lembra-se que vamos jantar com os Campbell hoje à noite?

Balantyne já não se lembrava. Contudo, poderia ser pior. Gar-son Campbell era um tipo interessante, com um humor seco, embora um pouco cínico; e Mariah era uma mulher mais sensível do que o habitual. Raramente a ouvira fazer intrigas ou entregar-se a intermináveis flirts, como pareciam fazer tantas mulheres.

- Foi o Reggie Southeron, quem esteve cá esta manhã? - Indagou Augusta.

- Sim.

- Que queria ele, a um sábado de manhã?

- Nada de importante. Está um pouco enervado por a Polícia andar a perturbar-lhe as criadas com uma série de perguntas e de insinuações.

- A perturbar as criadas? - Perguntou, incrédula. Balantyne olhou para ela, por sobre o salmão.

- Sim. Porque não?

- Não seja ridículo, Brandon. Reggie nunca se importou com as criadas, fossem as dele ou as de outras pessoas. De qualquer forma, que pretendia ele que você fizesse?

Balantyne sorriu forçadamente.

- O que a leva a pensar que ele queria pedir-me para fazer alguma coisa?

- Não veio cá para beber o seu Madeira. Oferece-lhe sempre do pior e ele sabe. O que queria ele?

- Sugeriu que eu desse uma palavrinha ao Robert Carlton para ver se ele consegue persuadir a Polícia a deixar as coisas como estão. De qualquer maneira, o mais provável é que nunca cheguem a apurar a verdade. Tudo quanto farão será perder tempo e suscitar muita intriga. Ele pode ter razão.

- E tem mesmo. - Concordou, arreliada. - Mas duvido que seja essa a preocupação dele. E ficaria surpreendida se esse estranho jovem - Pitt, julgo ser esse o seu nome - desistisse antes de explorar ainda mais a questão. Mas se desejar, pode tentar, evidentemente. Não permita que o Reggie faça má figura. Isso poderá atingir-nos a todos. Já para não falar na vergonha que é para a Adelina, pobre criatura.

- Porque havia o Reggie de fazer má figura? - Não fazia tenção de lhe contar acerca de Dolly. Não era um assunto apropriado para uma mulher decente.

Augusta suspirou.

- Por vezes, não sei se você finge ser obtuso só para me irritar. Sabe tão bem quanto eu por que razão o Reggie não quer que a Polícia interrogue demasiado as suas criadas.

- Não sei a que se refere. - Não desejava ter de lhe explicar algo que não só a chocaria, como também a perturbaria. Havia de considerar sórdido; e talvez o fosse, de facto. Não deixava, porém, de ser uma vulgar falha humana que as mulheres, sendo alvo dessa ofensa, tinham tendência por vezes a entender de forma diferente e sem a compreensão que qualquer homem sentiria.

Augusta riu-se desdenhosamente, afastando o prato vazio. Em seguida, trouxeram o pudim e serviram-no. Após ficarem novamente a sós, Augusta olhou friamente para o marido.

- Então, o melhor será talvez contar-lhe, antes que possa dizer inadvertidamente o que não deve, envergonhando-nos a todos. O Reggie dorme com todas as criadas de fora, por isso não admira que tenha receio que a Polícia o descubra e não se mantenha discreta. Poderão até pensar que ele tenha ido mais longe.

Balantyne estava perplexo. Augusta falava naquele assunto como se não fosse importante!

- Como raio descobriu? - Perguntou com voz rouca.

- Meu caro Brandon, toda a gente sabe. Evidentemente que ninguém fala nisso. Mas sabe-se.

- A Adelina?

- É claro que sabe. Julga que é parva?

- Não se... importa?

- Não faço ideia. Não lho vamos perguntar e naturalmente que não o menciona.

Balantyne continuava perplexo. Não lhe ocorria qualquer resposta adequada para a sua confusão. Sempre soubera que o espírito e as emoções femininas funcionavam de forma totalmente incompreensível para os homens, mas nunca antes este facto se lhe impusera daquela maneira.

O olhar de Augusta permanecia cravado nele.

- Gostava que existisse uma forma de esconder esta situação da Polícia, para bem da Adelina - prosseguiu ela, - mas, até à data, não me lembrei de nenhuma. É por isso que talvez seja boa ideia abordar esse assunto com o Robert Carlton para ver se ele consegue que parem a investigação. Por esta altura já não poderá servir de nada, mesmo na eventualidade improvável de descobrirem que pobre rapariga foi responsável por aquilo.

- Há a pequena questão da justiça - refutou com indignação, sentindo a sua perplexidade acentuar-se. Como raio poderia ela falar naquilo como se tudo fosse irrelevante? Como se não se tratasse de bebés humanos, mortos e possivelmente assassinados?

- Realmente, às vezes você consegue exasperar-me -, reclamou, enquanto lhe passava o molho de caramelo. - É o homem menos prático que já alguma vez conheci. Por que razão são os soldados um bando de sonhadores? Temos tendência a pensar que, uma vez que comandam exércitos, sejam pessoas, no mínimo, práticas, não lhe parece? - Suspirou. - Mas, também, supondo que a guerra seja a ocupação verdadeiramente mais idiota que pode existir, talvez esteja errada.

Balantyne fitou-a com espanto, como se estivesse perante uma criatura de outro planeta - como se ela tivesse mudado para uma forma desconhecida, ali mesmo, diante dos seus olhos.

- Naturalmente que não percebe nada da guerra. - Rejeitou o último assunto. - Mas mesmo que a justiça seja um conceito demasiado abstracto para si, seguramente que, enquanto mulher que já deu à luz, sentirá alguma compaixão?

Augusta pousou a colher e o garfo e inclinou-se ligeiramente para a frente.

- As crianças estão mortas. Quer tenham nascido mortas ou vindo a morrer depois, já não podemos fazer nada por elas. A mãe terá passado por tormentos que você nunca poderá imaginar, ou que talvez nem eu possa calcular. Seja que tipo de mulher for, deve ter pago os seus actos nesta vida com muito desgosto, e terá de responder a Deus na próxima. Que mais pretende dela? Garanto-lhe que o seu exemplo não servirá para impedir que o mesmo volte a suceder, pelo menos enquanto existirem neste mundo homens e mulheres.

- Sim, de facto, a sua noção de justiça é demasiado abstracta para mim. É uma palavra que lhe soa bem e lhe agrada; mas não tem ideia do que significa no dia a dia; já satisfez os seus ideais e outra pessoa qualquer terá de arcar com as consequências.

- É melhor enterrar este assunto. É uma pena que aqueles homens tenham tentado plantar aquela árvore. Se conseguir convencer o Robert Carlton a exercer um pouco da sua influência para que a Polícia nos deixe em paz, será a melhor acção que terá praticado nos últimos tempos.

- Agora, se pretende comer esse pudim, é melhor fazê-lo antes que arrefeça e lhe provoque uma indigestão. Vou lá acima ver como está a Christina. - Augusta pôs-se de pé e retirou-se, deixando o general, sem palavras, a segui-la com o olhar.

Balantyne passou a tarde a trabalhar com os seus documentos militares já que, pelo menos, eram algo de que podia estar certo. Com o tempo, talvez Augusta se explicasse, ou o assunto acabaria por se perder na memória e deixar de ser importante.

Ainda a noite mal começara, mas estava escuro e o frio já se começara a fazer sentir, quando Max veio anunciar Robert Carlton. Balantyne sempre gostara de Carlton pela discreta segurança e dignidade do seu porte, por ser o melhor tipo de homem inglês que seguira os militares a todos os cantos do império para governar e ensinar a civilização onde esta estava ausente. Eram dois parceiros na mesma causa e sentiam uma instintiva compreensão mútua, bem como um profundo sentido de dever e justiça.

Naquela noite sentia-se especialmente contente por vê-lo, uma vez que já estava farto de se ver rodeado de papéis. Era uma tarefa mais árdua sem a ajuda de Miss Ellison e, na verdade, também não lhe parecia tão compensadora. Levantou-se com um sorriso, estendendo a mão.

- Boa-noite, Robert, entre e venha aquecer-se. É o melhor lume da casa. Toma um xerez ou um uísque? Já deve estar na hora, - Olhou rapidamente para o relógio incrustado na carruagem de latão pousada em cima do rebordo da lareira. Como detestava o relógio de bronze dourado que estava na sala de visitas, rodeado de querubins rechonchudos - nem sequer dava horas certas!

- Não, obrigado, ainda não.

Balantyne olhou para ele, surpreendido, começando a reparar mais claramente no seu rosto. Tinha grandes olheiras e um ar triste e preocupado. Augusta teria sido mais subtil, mas Balantyne era incapaz de o ser.

- Por amor de Deus, homem, beba qualquer coisa, parece estar mesmo a precisar! O que se passa?

Carlton manteve-se em frente à lareira, sem saber por onde começar e Balantyne apercebia-se de que o havia envergonhado ao reparar num problema privado para o qual ele ainda não encontrara palavras. O general, por sua vez, também se sentia envergonhado com a sua própria falta de tacto. Porque não conseguia ser mais afável e mais intuitivo? Apesar de saber como reagir perante uma crise, faltavam-lhe frequentemente as palavras.

O silêncio pairava sobre eles, acentuando-se.

Foi Carlton que o quebrou.

- Peço desculpa. Sim, tomo um uísque. Hoje estou um pouco transtornado... - deteve-se, ainda sem encarar Balantyne mas mantendo o olhar no lume. - Estou a demorá-lo, talvez esteja na hora de se mudar para o jantar?

- Não, não. Tenho muito tempo. Vou a casa dos Campbell.

- Ah, sim, claro. Nós também. Tinha-me esquecido. Balantyne serviu dois uísques da licoreira em cima do aparador e ofereceu-lhe um. Não quereria Carlton discutir um problema qualquer? Não fora essa a razão da sua visita?

- Tem algum problema em particular? - Indagou.

- Tive aquele sujeito da Polícia, o Pitt, mais uma vez lá por casa.

Balantyne abriu a boca para perguntar se os criados estavam perturbados, quando se lembrou que uma desordem doméstica nunca poderia causar a aflição que testemunhava. Permaneceu em silêncio, aguardando que Carlton explicasse o que o perturbava àquele ponto.

Passaram-se alguns minutos até que Carlton conseguisse expressar-se, mas desta vez Balantyne esperou pacientemente.

- Creio que suspeitam da Euphemia - acabou Carlton por desabafar.

Balantyne ficou perplexo. Não lhe ocorria nada de coerente para dizer. Como poderiam eles desconfiar de Euphemia Carlton? Era absurdo. Carlton não devia ter compreendido bem. Especialmente porque, quanto mais pensava nisso, mais acreditava que pudesse ser um pedido de Reggie, do conhecimento do próprio, sendo essa a razão para tanta ansiedade.

Foi então que se lembrou subitamente de que Reggie lhe pedira para convencer Carlton a arquivar a investigação! Era absolutamente ridículo.

- Não podem. - Respondeu inexpressivamente. - Não faz qualquer sentido e muito embora o Pitt seja um tipo mais para o vulgar, não é nenhum parvo. Não o deixavam chegar a inspector se se pusesse a fazer acusações despropositadas como essa. Deve ter percebido alguma coisa mal. Para além do mais, nem a Euphemia lhes poderia dar razões para tal suspeita!

Carlton mantinha o olhar nas chamas da lareira, ocultando o rosto.

- Pode, sim, Brandon. Euphemia tem um amante.

Vindo de muitos outros homens aquela afirmação não teria muito significado, uma vez que não se tornasse pública, mas para Carlton era um sacrilégio, tanto contra o seu lar, como contra o que tinha de mais íntimo. Balantyne compreendia-o perfeitamente, embora ele próprio não se tivesse sentido intimamente ferido nem na sua integridade nem no seu orgulho. Se Augusta o tivesse traído, teria ficado sobretudo, muito surpreendido; e, sim, também furioso; mas não ferido, a não ser superficialmente.

- Lamento - limitou-se a declarar.

- Obrigado. - Carlton aceitou os sentimentos de Balantyne com a mesma cortesia com que poderia ter recebido um elogio ou um copo de vinho, mas o general conseguia ler-lhe o sofrimento no rosto. - Como deve entender - prosseguiu Carlton, - julgam que se pode ter desembaraçado das crianças no caso de... a situação se tornar óbvia.

- Sim, claro. Mas certamente que você teria percebido? Quero dizer... uma mulher com quem vive... a sua esposa! Se ela estivesse grávida...?

- Não tenho... grandes exigências... para com a Euphemia, - confessou Carlton, constrangido, com os ombros contraídos e ocultando o rosto. - Sou bastante mais velho do que ela... não... gosto de... - não encontrava palavras para concluir, mas a sua intenção era evidente.

Balantyne nunca fora tão delicado relativamente aos sentimentos alheios, muito menos os de Augusta e, subitamente, via-se como uma pessoa rude. Sentia vergonha por si próprio e inexplicavelmente ferido no que dizia respeito a Carlton. Como podia Euphemia, com um homem que era tão sensível e a amava tão profundamente, ter-se comportado daquela forma? Mas nem a sua fúria, nem a sua revolta poderiam valer a Carlton naquele momento.

- Lamento - tornou a enunciar. - Sabe quem é?

- Não, ainda é tudo muito... discreto. A Polícia revela o mínimo possível.

- Sabe se ela... gosta dele?

- Não, não sei.

- Não lho perguntou?

Carlton voltou-se e, por momentos, o sofrimento no seu rosto foi substituído por uma expressão de pura surpresa.

- Claro que não. Não poderia... falar-lhe... nisso. Seria... - ergueu as mãos em sinal de desespero.

- Não. - Balantyne não fazia ideia por que razão concordava. Concordava por Carlton, não por si - no seu lugar, teria feito um escândalo infernal - mas podia ver que aquele homem calmo, com quem pensara ter tanto em comum, era extremamente diferente. - Lamento imenso, Robert. Gostaria de poder dizer alguma coisa.

Pela primeira vez, Carlton esboçava um vago sorriso.

- Obrigado, Brandon. Não há, realmente, nada a dizer. Não sei por que razão o vim incomodar com isto, excepto porque senti necessidade de desabafar com alguém.

- Sim. - Subitamente, Balantyne voltou a sentir-se constrangido. - Sim, sim, claro. Eu... bem...

Carlton bebeu o resto do uísque e pousou o copo.

- O melhor é voltar para casa. Deve estar perto da hora do jantar. Tenho de mudar de roupa. Dê os meus cumprimentos à Augusta. Boa-noite e obrigado.

- Boa-noite... - suspirou de novo. Não tinha nada a dizer.

Pensou várias vezes em falar sobre o assunto com Augusta, mas qualquer coisa o impedia. Parecia-lhe um assunto privado, entre homens. O facto de outra mulher ter conhecimento só poderia intensificar a dor.

Ainda pensava nisso quando Miss Ellison chegou na segun-da-feira de manhã para continuar a ajudá-lo com os documentos. Balantyne ficou surpreendentemente satisfeito por vê-la, talvez porque não era da família e desconhecia totalmente Callander Square e as suas feridas. Para além disso, era uma pessoa alegre, sem ser minimamente coquette. À medida que envelhecia, considerava cada vez mais desagradáveis as mulheres coquettes.

- Bom-dia, Miss Ellison - sorriu sem reflectir. Era uma criatura atraente, não convencionalmente bonita mas com um atributo pessoal: um abundante cabelo cor de acaju, uma tez clara e um olhar inteligente. Para uma mulher, era extraordinário como quase não dizia disparates; era engraçado, pois deveria ser apenas quatro ou cinco anos mais velha do que Christina, que raramente abria a boca senão para discutir boatos, moda ou possíveis casamentos.

Balantyne apercebeu-se bruscamente de que Miss Ellison aguardava as suas instruções quanto ao que ele desejava que fizesse.

- Tenho aqui uma caixa cheia de cartas - acabou por dizer, - do meu avô. Importa-se de separar as que tratam de assuntos militares das que são puramente pessoais?

- Com certeza - agarrou na caixa. - Quer que as classifique?

- Que as classifique? - Ainda não estava concentrado.

- Sim. As da Guerra Peninsular, as escritas antes de Quatre Brás e depois de Waterloo e as do hospital militar e durante os cem dias? Não lhe parecem igualmente interessantes?

- Sim. Sim, por favor, isso seria excelente. - Observou-a a retirá-las e a sentar-se do outro lado da sala, ao pé da lareira e inclinando a cabeça sobre o papel velho, preenchido com uma jovem letra esbatida. Por momentos, via nela a sua avó, tal como ela devia ter estado a ler aquelas cartas, sentada numa Inglaterra em guerra com o Imperador - uma jovem esposa com filhos pequenos. Não fazia ideia da sua aparência. Teria ela a mesma longa curva do queixo, o mesmo pescoço esguio, tão feminino, e as pequenas madeixas de cabelo macio na nuca?

Sacudiu-se vigorosamente. Era ridículo estar a pensar naquilo. Miss Ellison não passava de uma jovem interessada em cartas antigas, com competência para as separar.

Charlotte, por sua vez, não se apercebia minimamente da presença do general. Esquecera-se dele assim que começara a ler a primeira frase escrita numa letra redonda e esbatida. A sua imaginação conduzira-a a terras que nunca vira e tentava sentir, com o jovem soldado, as emoções que ele descrevia: o seu terror no meio da imensidão de homens alinhados - que sabia ter de esconder -, a sua amizade pelo cirurgião e o seu espanto ao conhecer o Duque de Ferro em pessoa. Aquelas cartas continham humor e, por vezes, uma fatalidade inconsciente, para além de uma série de coisas que ele não mencionava sobre o frio e a fome, as pernas doridas, as feridas e o medo, a longa monotonia e a súbita balbúrdia da acção.

Desceu para o almoço imersa num sonho e a tarde passou rapidamente antes que desse pelas horas. Já escurecera quando chegou a casa e, menos de meia-hora depois, Emily bateu-lhe à porta, deixando os seus cavalos a bater os cascos com o frio lá fora e a acentuar o nevoeiro prematuro com as suas baforadas de ar quente.

- Então? - Inquiriu, assim que passou da porta. Charlotte ainda estava em Espanha e na Guerra Peninsular.

Fitou Emily sem esboçar qualquer expressão.

Emily fechou a porta atrás de si e respirou fundo.

- O que descobriste tu em casa dos Balantyne? - Perguntou, pacientemente. - Presumo que lá tenhas estado?

- Ah, sim, claro. - Charlotte apercebeu-se, com uma onda de culpa, que nada fizera para justificar a confiança que Emily depositara nela ao longo dos seis dias que já passara em Callander Square.

- Muitas vezes - acrescentou. -Já começo a conhecer bastante bem alguns dos criados.

- Deixa lá os criados! - Exclamou imediatamente Emily.

- Então e a Christina? Está à espera de bebé? E quer esteja, quer não, porque pensa ela que está? Quem é o pai? E porque não se casa ela com ele, em vez de permitir uma situação tão ridícula? Ele já é casado, ou está comprometido com outra pessoa? - Emily abriu muito os olhos. - Ah! Claro, ele não é adequado! É um caso de amor! - A sua expressão tornou a perder o entusiasmo. - Não, não é. Não com a Christina. - Suspirou. - Oh, Charlotte! Não descobriste mesmo nada? - Emily mostrou-se de tal modo desiludida que Charlotte sentiu uma pena genuína e, sobretudo, sentiu que a tinha desapontado.

- Amanhã tentarei a sério. Mas desde que lá cheguei que a Christina tem estado de cama. Dizem que tem uma constipação, mas não chamaram o médico...

- Quem diz isso? - Indagou Emily, com o interesse novamente desperto.

- As criadas, claro. Deus do Céu, Lady Augusta não fala comigo a não ser por boa educação e o general nunca fala em nada para além dos seus documentos. Mas os criados são muito faladores. Não diriam nada que fossem obrigados a reconhecer como cos-cuvilhice, mas se conseguirmos disfarçar bem as perguntas, dir-nos-ão tudo quanto sabem e muito do que apenas supõem.

- Então? - perguntou Emily, ansiosa. - O que supõem eles? Por amor de Deus, diz-me, antes que rebente!

- Acham que a Polícia nunca chegará a descobrir a verdade e não fará grandes esforços para o fazer; seja quem forem os culpados, sem dúvida que deve estar algum cavalheiro envolvido e por isso não o poderão processar! O que gostaria de pensar que não passa de disparates, mas temo que possam estar a falar com a amargura da experiência.

- Que cavalheiro? - Emily mal se conseguia conter e as suas palavras saíam, em tom sibilante, por entre os seus dentes cerrados.

- Existem tantas ideias quanto a isso como criados para as propor - respondeu Charlotte com franqueza. - Efectivamente, houve algumas discussões acesas. Uma das criadas tem a certeza que não poderá ter sido o jovem Brandon Balantyne, porque nunca se meteu com ela, muito embora a cozinheira me afirme que ele já tenha tido mais do que oportunidades para isso! Uma outra criada está perfeitamente convicta de que é ele, precisamente pela mesma razão! Ele também nunca se meteu com ela, o que sugere algum terrível segredo...

- Claro! A Euphemia Carlton! - Contudo, a resposta de Emily não denotava satisfação. - De alguma forma, tenho uma certa relutância em pensar que seja a Euphemia, talvez porque tenha gostado dela. Receio não ter jeito para investigar. Mas não tardarei a poder visitá-la novamente, sem parecer estar a forçar demasiado a nossa relação. - Tornou a suspirar. - Mas Charlotte, terás mesmo de fazer muito mais! Não estás a tentar! Como podes tu considerar uma guerra que já terminou em 1814 mais interessante do que um crime que se está a passar neste preciso momento?

- 1815 - corrigiu Charlotte, automaticamente, - e não temos a certeza se é um crime.

- Oh, não sejas tão meticulosa! O que nos importam as subtilezas? E certamente um tremendo escândalo! O que é mais do que poderás dizer acerca das tuas malditas guerras! Por favor, cai em ti e aplica-te como deve ser!

- E o que farei, prometo. Farei os possíveis para ver a Chris-tina pessoalmente e, se possível, tentarei, pelo menos, descobrir por que razão não se casa com o amante e quem é ele, se puder.

- Obrigada. - Emily assumiu um ar de condescendente generosidade, como de alguém que decide ignorar uma ofensa. - Poderás até ter oportunidade de conversar com outros criados da praça. Evidentemente que isso seria muito útil!

Charlotte estava prestes a pedir à irmã mais nova que não lhe desse ordens, quando resolveu ter em conta o interesse de Emily pelo assunto e a possibilidade de estar entediada com a falta de graça do seu círculo social. Assim, acedeu em fazer o que estava ao seu alcance para que nada ficasse por descobrir.

Quando, momentos depois, Pitt chegou, já Emily estava de saída com um copioso sorriso de espectativa espelhado no rosto.

- Ela parece um gato que acabou de ver o canário a sair da gaiola - comentou Pitt, assim que a porta se fechou atrás dela.

- Está muito bem disposta - respondeu Charlotte, sem se comprometer.

- Sem dúvida alguma - concordou ele. - Um gato de excelente saúde. Quem é o desafortunado canário, desta vez?

- Isso é injusto. - Charlotte sentia muita relutância em partilhar o que sabia com Pitt. Até à data, o marido sabia apenas que ela estava a ajudar o general Balantyne a tratar de uns documentos, cujo assunto já há muito lhe interessava - interesse que o pai nunca a deixara satisfazer. Pitt não fazia ideia que a esposa estava, ou planeava estar, envolvida no caso de Callander Square - e muito menos tinha conhecimento de que Emily ignorara a sua promessa de largar o assunto. - Estava apenas a contar-me uma pequena bisbilhotice - concluiu. Isto deveria contentá-lo, sem a obrigar a mentir-lhe.

- Acerca de quem? - Indagou Pitt.

- Perdão?

- Vá lá, Charlotte. - Pousou-lhe a mão no ombro e voltou-lhe o rosto para ele. O calor e a força dele ainda a arrepiavam. Charlotte ergueu o olhar de modo a encará-lo, por um lado, com franqueza, uma vez que o amava e desejava que ele soubesse e, por outro, para o distrair da sua pergunta.

Momentos depois, Pitt largou-a.

- Charlotte, o que faz a Emily em Callander Square? - Repetiu. - E mais importante ainda, o que fazes lá tu - para além de separares documentos para o general Balantyne?

Charlotte pensou em mentir, mas, como Emily dissera, mentir não era o seu forte. Em vez disso, fez uma retirada estratégica.

- A Emily não tem frequentado Callander Square ultimamente. Fazê-lo em demasia daria nas vistas, podendo deitar tudo a perder. Perguntou-me se sabia alguma coisa acerca da Christina Balantyne. Evidentemente que não. Está de cama com uma constipação e ainda não a conheci. A Emily persuadiu-me de que deveria tentar, pelo menos, descobrir quem é o amante dela e por que razão não casa com ele em vez de se meter na cama.

- Charlotte? - Franziu o sobrolho e o seu olhar espelhava um misto de divertimento e apreensão.

Charlotte sentiu-se totalmente inocente. -Sim?

- O que te faz pensar que a Christina tem um amante?

- Ah - apercebeu-se de que se tinha descaído. Pitt estava à espera e não valia a pena tentar esquivar-se sem lhe mentir, o que era incapaz de fazer. - Foi a Emily quem descobriu - confessou, - e me contou. A Christina tem medo de estar à espera de bebé. Isso naturalmente só poderá significar que ela tem um amante.

Pitt fitou-a e Charlotte não fazia ideia do que lhe passava pela cabeça. O inspector arregalou os olhos e ergueu mais ainda as sobrancelhas. Tinha os olhos mais claros e penetrantes que Charlotte alguma vez vira; era como se com eles conseguisse penetrar na sua cabeça. Em seguida, tão subitamente como antes, Pitt mudou de expressão.

- Que empreendedor, da parte da Emily! - A voz de Pitt denotava uma leve admiração e, segundo Charlotte, um pouco de divertimento também. - Isso explica por que razão Lady Augusta não me deixou vê-la - prosseguiu. - Essa é uma pergunta muito interessante. Por que não casar-se pura e simplesmente, ainda que um pouco à pressa? - O interesse desvaneceu-se-lhe da expressão.

- Charlotte, deves comunicar ao general Balantyne que já não lhe podes dar mais assistência.

Charlotte ficou horrorizada.

- Oh, não! Não posso fazer isso! Ainda nem sequer vou a meio...

- Charlotte, se eles têm alguma coisa a esconder...

- Não há perigo! - Apressou-se a advertir. - Não fiz quaisquer perguntas! Limito-me a ouvir os criados conversarem à hora das refeições. Não sou como a Emily, serei muito discreta...

Pitt desatou a rir.

- Minha querida, não és nada como a Emily, ela é um modelo de discrição ao teu lado. Tens de pedir desculpa, de dizer que não estás bem ou que a tua mãe está...

- Não! O que me podem eles fazer? Não tenho posição social a perder. Aliás, nem sequer me consideram uma pessoa! Não vão desconfiar de nada! Prometo que me vou limitar a ouvir. - Uma outra ideia cruzou-lhe repentinamente o espírito e Charlotte lançou o seu trunfo. - Se me for agora embora, eles vão querer saber porquê e podem dar-se ao trabalho de tentar descobrir quem sou! -Já sabia que lembrar-lhe o risco que podia representar para a carreira dele seria o último argumento capaz de o demover... - O melhor - prosseguiu -, é continuar normalmente, para que não se lembrem disso. - Sorriu com doçura, no último momento, já segura de si.

Pitt hesitou, pesando a sua decisão.

- Prometes-me que não fazes perguntas? - Acabou por exigir. Charlotte perguntava-se se conseguiria manter essa promessa e atirou-se de cabeça.

- Sim. Limitar-me-ei a ouvir. Dou-te a minha palavra. - Esticou-se e deu-lhe um beijo, mas Pitt ainda a observava cuidadosamente, assegurando-se de que ela pretendia, de facto, cumprir a sua promessa.

Era uma promessa que se revelava cada vez mais difícil de cumprir por parte de Charlotte, uma vez que, no dia seguinte, se deparou com inúmeras oportunidades para fazer perguntas, de forma discreta e sem parecer demonstrar uma simpatia fora do normal. Por outro lado, tinha igualmente de cumprir a promessa que fizera a Emily. A hipótese de fazer alguma coisa para corresponder à sua promessa surgiu à hora do almoço, quando a criada de quarto se mostrou bastante arreliada com a sobrecarga de trabalho que tinha e Charlotte se ofereceu para levar o tabuleiro de Christina, de modo a poupar, pelo menos, uma pequena tarefa à pobre mulher.

- Ah, não tem de fazer isso, menina -, mas o seu rosto iluminou-se com esperança.

- Não tem importância. - Charlotte precipitou-se para lhe tirar o tabuleiro das mãos. - Não é incómodo nenhum e o meu almoço ainda está muito quente.

- Ah, muito obrigada, menina. Não deixe que milady a apanhe!

- Não tenha medo - interveio alegremente o engraxate -, ela também está a almoçar. Não sai da mesa sem o general comer o pudim enquanto está quente. Dá-lhe indigestão, ai se dá, se o comer frio e, depois, fica com um feitio horrível.

Charlotte agradeceu-lhe e apressou-se pelas escadas acima antes que alguma coisa os pudesse dissuadir e teve de deter uma empregada de dentro nas escadas para lhe perguntar onde ficava o quarto de Christina.

Bateu à porta de Christina e, pouco tempo depois, já tinha entrado. Não era tão diferente do seu próprio antigo quarto em Cater Street - um pouco maior e, talvez, mais ricamente mobilado. Por momentos, veio-lhe à lembrança a sua meninice. Era uma doce recordação, mas estava contente por não passar disso. Agora tinha uma felicidade bastante diferente do que alguma vez sonhara, porém, era mais profunda e com dimensões que ela nunca adivinhara. Olhou para Christina sentada na cama com o cabelo negro a cair-lhe nos ombros e a carinha bonita a esboçar uma expressão de surpresa. Com que tipo de felicidade sonharia ela e ao lado de quem? Os sonhos de uma rapariguinha podiam ser tão inocentes e, também, tão ignorantes.

- Quem é você? - Perguntou Christina, com alguma petulância.

- Charlotte Ellison. - Lembrara-se mesmo a tempo do "Elli-son". - Estou a ajudar o general Balantyne com os seus papéis e, uma vez que a sua criada de quarto estava a tentar fazer três coisas ao mesmo tempo, resolvi trazer-lhe eu o almoço. Espero que esteja a sentir-se melhor. - Encarou Christina enquanto falava com ela, tentando fazer passar por simples cortesia a cuidadosa avaliação do seu olhar. Christina parecia, para todos os efeitos, estar de perfeita saúde. Não havia dúvida de que apresentava umas belas cores, que os seus olhos estavam límpidos e que não tinha nem o nariz nem as faces congestionadas, como seria de esperar de alguém com uma constipação.

- Sim, obrigada - respondeu friamente Christina, recompondo-se e lembrando-se da sua situação. - Hoje já me sinto melhor, mas, infelizmente, isto vai e vem.

- Lamento - Charlotte pousou suavemente o tabuleiro. - Receio que seja do tempo.

- Também me parece. Foi simpático da sua parte trazer-me o tabuleiro. Não preciso de mais nada, obrigada, pode retirar-se.

Charlotte sentiu as feições contraírem-se. Ser tratada com condescendência enfurecia-a mais do que qualquer outra coisa. Teve de fazer um esforço considerável para se controlar.

- Obrigada - disse secamente. - Espero que melhore depressa. É uma maçada ficar de cama, perde-se tanta coisa. É muito aborrecido ver como na sociedade uma pessoa pode ficar para trás tão depressa! - E, satisfeita com o seu remoque, Charlotte retirou-se rapidamente, fechando a porta com um estalido final.

Uma vez no andar de baixo, Charlotte começou a arrefecer, apercebendo-se de que Emily se teria controlado, dissimulando e mostrando-se encantadora, de modo a criar ali uma amizade. Em vez disso, Charlotte acabara definitivamente de ganhar uma inimiga. Contudo, tinha a certeza absoluta de que jamais gostaria de Christina e talvez tivesse conseguido, de imediato, o que, de outra forma acabaria por acontecer com o tempo.

A meio da tarde foi completamente diferente. Como a criada de fora se sentia indisposta, pediram a Charlotte o favor de ir fazer um recado a casa dos Southeron. Charlotte aceitou prontamente o pedido - outra excelente oportunidade - e mal se apresentou na cozinha dos Southeron, conheceu logo Jemima Waggoner, a perceptora. Gostou imediatamente dela, pressentindo nela uma franqueza igual à sua e talvez, até, sentimentos que o decoro, assim como a sua situação de dependente, a impediam de expressar. Tais coisas, imaginava-as nos seus grandes olhos cinzentos, bem como lhe notava um toque de humor na boca.

- Toma um chá, Miss Ellison? - Ofereceu Jemima. -Já está na hora e estávamos a preparar o nosso. Seria muito bem-vinda.

- Obrigada, aceito com prazer -, disse Charlotte imediatamente. O general teria de esperar. Sem dúvida que também interromperia o trabalho para tomar chá. Caso lhe oferecesse uma chávena quando regressasse, teria de aceitá-la, apesar de já poder estar virtualmente encharcada em chá. Contudo, era pouco provável, uma vez que raramente lhe ocorria esse tipo de pormenores; era obstinado e estava demasiado absorto na poeira das batalhas para pensar em chávenas de chá.

Pouco depois Charlotte estava a sós com Jemima, a beber chá e a comer sanduíches na salinha dela.

- Está mesmo a ajudar o general Balantyne com as suas histórias de guerra? - Perguntou Jemima. - Nunca sei se as coscuvi-lhices são verdadeiras ou falsas.

- Nunca ninguém sabe - concordou Charlotte rapidamente. - A não ser que tenhamos sido nós a lançá-las e, mesmo assim, passada uma semana, já nem as conseguimos reconhecer! Mas é perfeitamente verdade.

- Gosta de o fazer? - Indagou Jemima, como se esperasse uma resposta afirmativa.

- Ah, sim, gosto. É muito interessante, especialmente as cartas mais antigas. As cartas dos soldados são tão diferentes. Nem podemos imaginar! Mas as cartas de esposas e namoradas - mudámos tão pouco, continuamos a ter as mesmas preocupações, amores, doenças, filhos, um pequeno escândalo. - Esticava um pouco a verdade, mas pretendia voltar a falar de Callander Square e podia sentir que com Jemima não se podia coscuvilhar com muita facilidade.

- Suponho que os escândalos nunca mudem -, comentou Jemima pensativamente, baixando o olhar para o chá que lhe redemoinhava suavemente na chávena após tê-lo mexido. - É sempre especulação sobre as loucuras ou os deslizes de alguém.

Charlotte abriu a boca para abordar o assunto, para dizer qualquer coisa acerca de Callander Square, mas apercebeu-se de que não desejava fazê-lo. Jemima dera a sua opinião: tudo não passava de uma perpetuação dos pecados e infortúnios das outras pessoas, exagerados e condimentados.

Charlotte concordou e leu uma acentuada simpatia no olhar da outra, sentindo uma grande afabilidade para com ela. Charlotte deu por si a retribuir-lhe o sorriso.

- Quantas crianças ensina? - Limitou-se a perguntar.

- Na maior parte do tempo, apenas as três raparigas desta casa, mas vêm cá três vezes por semana a Victoria e a Mary Campbell. Conhece os Campbell? Vivem ali, na outra esquina da praça. -Fez uma pequena careta para expressar sarcasmo. - Não aprecio lá muito Mr Campbell. Embora, por vezes, possa ser muito espirituoso, há sempre nele uma espécie de angústia subjacente, como se fingisse apenas estar divertido, considerando que, ao fim e ao cabo, tudo não passa de mera futilidade. Parece-me bastante deprimente e um pouco assustador. - Olhou para Charlotte, procurando a sua compreensão.

- O cinismo também me assusta - concordou Charlotte. - Podemos lutar contra muitas coisas, mas não podemos impedir as pessoas de ter esperança. E quanto a Mrs Campbell, também é assim?

- Ah, não, é bastante diferente. É calma e competente. Na verdade, deve ser a melhor mãe para quem já trabalhei. Não estraga as crianças com mimos nem lhes é indiferente ou demasiado severa. Parece-me ser uma mulher muito forte. - Esta última opinião foi emitida após alguma reflexão.

Conversaram durante uns minutos acerca de outras pessoas da praça, um pouco dos Balantyne e depois, sobre o trabalho de Charlotte. Charlotte descobriu que Jemima estivera com Brandon Balantyne em duas ou três ocasiões. Certamente que Jemima nunca lho diria; porém, a julgar pela cor que assumia a sua tez pálida ao falar nele, Charlotte pôde deduzir que o considerava atraente. Não cabia às preceptoras emitir opiniões acerca dos filhos de generais e netos de duques.

Mal haviam acabado de tomar chá quando a porta se abriu repentinamente e surgiu a mais bonita criada de fora que Charlotte jamais vira, com o rosto aceso de raiva e o uniforme desalinhado.

- Um dia ainda lhe dou um bom par de estalos, acreditem que dou! - Exclamou furiosamente. -Juro que até me esqueço do meu lugar! - Foi então que se apercebeu que Charlotte não pertencia àquela casa. - Ah, desculpe, menina. Não reparei que estava aí. Peço desculpa.

- Não se preocupe - tranquilizou-a Charlotte. Esquecendo-se da promessa a Pitt, perguntou: - Alguém se tomou de liberdades consigo?

- Liberdades! Deixe que lhe diga.

- Mary Ann - Jemima quebrou o ligeiro constrangimento.

- Esta é Miss Ellison, que está a ajudar o General Balantyne, aqui do lado, a tratar dos seus papéis.

Mary Ann inclinou educadamente a cabeça; enquanto empregada, Charlotte não merecia uma vénia. - Suponho que já tenham tomado chá - constatou, olhando rapidamente para o bule. Espero que ainda tenham algum na cozinha. - Voltou a sair, puxando a saia atrás de si, ainda não satisfeita com o arranjo.

- Talvez fosse boa ideia dar-lhe realmente uma boa bofetada, - comentou Charlotte assim que a porta se fechou. - Uma pessoa tem de definir muito bem a sua posição.

- Dar-lhe uma bofetada? - Riu-se Jemima, encurvando os cantos da boca com um pequeno esgar. - Mr Southeron pode até ter muito bom feitio, mas não seria muito brando com uma criada que lhe levantasse a mão.

- Mr Southeron! - Charlotte tentou ocultar a sua surpresa e seu triunfo. Agora é que tinha novidades verdadeiramente pertinentes para transmitir a Emily e não tinha feito nenhuma pergunta - apenas uma, e fora acidental.

Podia perceber que Jemima se arrependera de falar com tanta liberdade.

- Não devia ter dito isto. - Estava um pouco envergonhada.

- Apenas deduzo, daquilo que ouvi. Não posso tirar conclusões precipitadas. E se a Mary Ann estiver a exagerar?

- É mais do que evidente que alguma coisa a pôs furiosa, -argumentou Charlotte com cautela. - Mas o melhor é não especularmos demasiado acerca do eventual motivo. Presumo que a Jemima nunca tenha sido...? - Deixou a pergunta pairar delicadamente.

Para sua surpresa, Jemima reprimiu uma gargalhada.

- Bem, uma ou duas vezes julguei que estivesse prestes a fazê-lo, mas desviei-me. De facto, pareceu-me ter ficado um pouco irritado. Contudo, basta permitir-lhes uma vez alguma familiaridade para não podermos voltar atrás, tendo baixado as defesas, por assim dizer. - Ergueu ligeiramente as sobrancelhas, para se assegurar de que Charlotte percebia do que ela estava a falar.

- Ah, sim - concordou Charlotte. E, embora pudesse apenas adivinhar, sentia uma grande simpatia por aquela rapariga forçada a trabalhar e a viver na casa de outras pessoas, sem poder correr o risco de as ofender.

Permaneceu mais algum tempo e, em seguida, pediu licença para se ir embora e foi ter com o general Balantyne, ficando surpreendida ao apanhá-lo a andar às voltas na biblioteca à sua espera. A princípio julgou que ele a fosse repreender pela sua ausência, mas o seu mau humor evaporou-se e ele pareceu satisfeito por retomar o trabalho com pouco mais do que uma pequena reclamação.

Nessa noite Pitt chegou mais tarde a casa e Charlotte não teve oportunidade de lhe contar o que descobrira. Na manhã seguinte também não conseguiu fazê-lo porque o marido saiu bem cedo. Charlotte chegou a Callander Square pronta para cumprir as suas obrigações. Mais uma vez, apresentou-se-lhe uma oportunidade para fazer um recado algures na praça e ela aproveitou-a prontamente. Assim, às duas menos um quarto já ela estava na sobrecarregada sala de visitas das Doran, com um ramo de flores secas na mão, encarando Miss Georgiana.

Georgiana estava completamente envolta em chiffon cinzento-escuro e flores artificiais. Estava sentada na chaise longue com um braço pousado nas costas desta. Era tão ossuda e pálida que, não fossem os olhos brilhantes, teria lembrado a Charlotte um cadáver artístico, entre a mortalha e as flores, porventura a Lady of Shallott (1), com mais vinte anos! A ideia deu-lhe vontade de rir e foi com grande esforço que conseguiu manter a compostura.

 

(1) Figura imortalizada pelo poeta Lord Alfred Tennyson que a descreve como uma mulher misteriosa que vive num castelo isolado e resolve ir de barco ao encontro de Sir Lancelote, morrendo pelo caminho. (N. da T.)

 

Sentia o riso a fervilhar dentro de si: o seu sentido do absurdo nunca fora de confiança.

Georgiana encarou-a, contraindo os olhos.

- Quem disse a menina que era?

- Charlotte Ellison, Mrs Duff. Lady Augusta pediu-me que lhe trouxesse estas flores. Dizem que são excelentes para a casa, pois libertam um perfume delicado - passou o ramo para a pequena mão em forma de garra, brilhando coberta de jóias.

- Que disparate - Georgiana aproximou-as do nariz. - Cheiram a pó. Mesmo assim, foi simpático da parte da Augusta tê-las enviado. Com certeza julga que serão indicadas para a Laetitia e creio que tem toda a razão.

Charlotte não pôde evitar lançar um olhar para as rosas de pelúcia e veludo que decoravam o sofá, as almofadas e a própria Georgiana.

Os pequenos olhos aguçados como um diamante de Georgiana apanharam-na.

- Bastante diferente - declarou simplesmente. - Adoro a beleza. Sou muito sensível. Sofro, sabe, e ajuda-me ter flores.

- Não tenho dúvidas de que assim seja. - Charlotte não se conseguia lembrar de alguma coisa mais sensata para responder a tal comentário. Permaneceu, constrangida, no centro da sala, sem saber se devia ficar ou pedir licença para se retirar.

Georgiana observava-a com curiosidade.

- Não parece uma criada. O que disse a menina que era?

- Estou a ajudar o general Balantyne a escrever as suas memórias.

- Que revoltante. O que tem uma jovem como a menina a ver com memórias de guerra? Suponho que seja uma questão de dinheiro?

- Considero-as muito interessantes - Charlotte não sentiu necessidade de estar com rodeios ou de esconder os seus sentimentos. - Creio que nos cabe a todos conhecer a história do nosso país e a natureza dos sacrifícios que por ele se fizeram.

Georgiana contraiu os olhos.

- Que criatura tão peculiar. Por favor retire-se ou sente-se. É alta e olhar para si provoca-me dores no pescoço. Sou muito delicada.

Charlotte sentiu-se tentada a ficar, mas estava consciente de que o general estaria à sua espera e do seu dever para com ele, quer por uma questão de honra, quer porque poderia perder a sua posição, juntamente com as oportunidades que esta lhe oferecia, caso abusasse demasiado da sua paciência.

- Obrigada, Mrs Duff - respondeu com modéstia -, mas tenho de voltar. Tive muito gosto em conhecê-la.

- Volte sempre. A menina é bastante interessante. - Geor-giana recostou-se para estudá-la com mais franqueza. - Não sei onde vai o mundo parar. Agradeça à Augusta. Não lhe diga que não gosto das flores ou que cheiram a mofo.

- Claro que não -, e Charlotte deixou-a ainda com os olhos postos na porta.

De volta à biblioteca, Balantyne esperava-a.

- A Georgiana reteve-a com conversa? - Perguntou, contemplando-a com um sorriso - o primeiro que se lembrava de lhe ver estampado no rosto. - Pobre velha. Não deve ser fácil viver com a Laetitia. Às vezes, creio que a fuga da Helena lhe deu um pouco a volta à cabeça.

- Helena? - Charlotte não identificava esse nome, embora lhe parecesse que Emily já o tinha referido.

- A filha da Laetitia - explicou Balantyne. - A desgraçada da rapariga fugiu com alguém há cerca de dois anos. Nunca se soube com quem. A pobre Laetitia ficou bastante perturbada. Desde então que não voltou a mencionar o nome da Helena, fingindo não ter filhos. Há anos que lhe morreu o marido, deixando-a sem mais ninguém. Foi por isso que a Georgiana veio viver com ela.

- Que história tão triste. - Charlotte podia ver a dimensão da perda e a sua imaginação tentou visualizar a solidão, o amor de Helena - ou a tentação - e o remorso, desde então. Perguntava-se se Helena teria um casamento feliz. - Ela nunca escreveu à mãe?

- Tanto quanto sei, não. Claro que a Laetitia também tinha uma grande admiração pelo Ross, o que tornou tudo ainda mais penoso.

- Quem é o Ross?

- O Alan Ross. Estava apaixonado pela Helena. Todos nós pensávamos que era apenas uma questão de tempo até se casarem.

É para vermos os disparates que andamos para aí a dizer! - Tornou a sentar-se atrás da secretária e Charlotte sentiu-se perturbada com o seu olhar. - Ele nunca se recompôs - acrescentou.

Não ocorreu a Charlotte qualquer expressão que não fosse desoladoramente vulgar.

- É tão raro conhecermos realmente os sentimentos das outras pessoas - afirmou, agarrando novamente nos documentos. - Tenho aqui os diários do seu tio. Deseja que lhe numere as páginas que se referem especificamente a questões militares?

- Como?

Charlotte repetiu a pergunta, segurando os livros para lhos mostrar.

- Ah, sim, por favor. É muito prestável... - hesitou, - Miss Ellison.

Charlotte esboçou um rápido sorriso e desviou o olhar.

- Com todo o gosto. Asseguro-lhe que considero este assunto muito interessante. - Abriu imediatamente o livro que tinha nas mãos e debruçou-se sobre ele para o ler. Assim que bateram as cinco horas, Charlotte fechou o livro e deu as boas-noites ao general. Max chamou-lhe um fiacre e Charlotte deu a morada de Emily ao cocheiro. Foi com as novidades a queimarem-lhe os lábios que se meteu na carruagem, que avançou ruidosamente no escuro.

 

O Natal aproximava-se a passos largos, faltando apenas duas semanas, e Augusta decidiu resolver, de uma vez por todas, a questão de Christina e Max. Não poderia esperar que Christina passasse a época natalícia de cama; mas, antes que saísse do quarto, Max teria de estar fora de casa. Havia conractado com os seus familiares em Stirlingshire, que lhe tinham arranjado uma posição para o criado. Max não tinha outra escolha senão aceitar o inevitável, demitindo-se com bons modos. Augusta já começara, muito discretamente, a procurar um substituto. Seria difícil encontrar um homem tão competente ou, até, tão bem-parecido como Max e fazendo um par adequado com Percy, o outro lacaio, pois os lacaios vinham aos pares; esse era, porém, um dilema secundário!

Para o informar da iminência da sua partida, Augusta mandou Max esperá-la na salinha da manhã. Ainda não comunicara nada ao general quanto a este assunto, mas teria tempo suficiente para o fazer assim que estivesse tudo resolvido. Para além disso, uma vez que o próprio general já andava há meses a pressioná-la para se desfazer de Max, ficaria, sem dúvida, perfeitamente satisfeito.

Max entrou e fechou silenciosamente a porta atrás de si.

- Sim, milady?

- Bom-dia, Max.

- Bom-dia, milady.

- Concluí as negociações para lhe arranjar uma nova posição em Stirlingshire. Deverá apresentar-se a Lord e Lady Forteslain. Ela é minha prima e verá que se trata de uma situação bastante adequada, muito embora eventualmente não lhe possa proporcionar as mesmas oportunidades para aperfeiçoar as suas capacidades como sucede em Londres. Contudo, terá de se conformar com esse inconveniente e tentar tirar o melhor proveito possível da situação.

- Tenho ponderado sobre esta questão, milady. - A sua boca esboçava um pequeno sorriso complacente. Augusta perguntava-se como poderia Christina alguma vez ter-se sentido atraída por ele. Como poderia ela desejar que ele a beijasse e lhe tocasse. Era uma ideia repelente.

- Não me diga? - Comentou friamente.

- Sim, milady. Não me parece que gostasse de ir para Stir-lingshire ou, sequer, para qualquer outro local na Escócia.

Augusta ergueu ligeiramente as sobrancelhas.

- É uma pena, mas não estou minimamente preocupada com aquilo que quer ou não quer. Terá de aprender a tirar o máximo de proveito da situação.

- Não me parece, milady. Prefiro permanecer em Londres. Na verdade, Callander Square é perfeito para mim.

- Acredito que sim, mas isso não é possível. Julguei que já tinha sido clara quanto a isso.

- Esclareceu, de facto, a sua posição, minha senhora. Mas, tal como referi, tenho reflectido sobre o assunto e ocorreu-me uma alternativa à qual dou a minha preferência.

- Não será aceitável para mim! - Tentou fazê-lo desviar o olhar, mas a insolência de Max não tinha limites.

- Lamento ter de ser tão pouco cortês, milady, mas isso não me diz respeito. Tal como me indicou tão vivamente, durante a nossa última conversa, há coisas que somos obrigados a aceitar, quer queiramos, quer não.

- Não há nada que seja forçada a aceitar de si, Max. Expus-lhe o que tenciono fazer caso não vá para a Escócia e com bons modos. Dou por concluída esta questão.

- Se me acusar de roubo, milady, irá arrepender-se. - Os olhos dele nem sequer vacilaram.

Augusta contraiu-se, sentindo a pele esticar em torno dos ossos do seu rosto.

- Está a ameaçar-me?

- Se quiser ver as coisas dessa forma, sim, milady, estou.

- É uma ameaça inútil. Não pode fazer absolutamente nada. Será em mim que irão acreditar, não em si.

Max fitou-a firmemente.

- Isso depende daquilo a que dá valor, Lady Augusta. Naturalmente que, caso eu admitisse ter dormido com a sua filha, sem dúvida que o tribunal acreditaria em si e não em mim, se a senhora jurasse que eu o dizia para me vingar. Seria uma mentira -, sorriu vagamente, com um toque de sarcasmo e de superioridade estampado no rosto pesado. - Mas não duvido de que o faria, mesmo sobre juramento.

Augusta corou, sentindo o calor no rosto, perante o desprezo de Max que não a considerava melhor do que ele - e ela permitira-lho prová-lo.

- Todavia - prosseguiu ele -, não afirmarei ter sido eu a dormir com ela. Tenho um amigo. Não é um criado. Receio que seja um tanto para o libertino - um jogador que já viveu melhores tempos, mas bem-parecido, de um modo vulgar, e a quem não faltam amigas. Na sua maioria, pegas, claro, mas que o consideram atraente. Infelizmente - o sorriso acentuou-se um pouco -, sofre de uma doença. - Ergueu as sobrancelhas, para se certificar de que Augusta o compreendia.

Augusta arrepiou-se, revoltada.

- Direi - continuou Max -, que foi ele quem seduziu Miss Christina. Ou, para ser mais correcto, ele é que o afirmaria. Não haveria ligação possível com o meu caso e seria invulgarmente difícil provar o contrário - e julgo, até, que nem valeria a pena. O mal já estaria feito. O boato correria os clubes masculinos e por aí fora. O caso andaria de boca em boca. Tudo muito discreto, nada dito abertamente e com possibilidade de ser negado. Caso me acuse de roubo, prometo-lhe que isso irá acontecer.

Augusta estava assustada, realmente assustada. Aquele homem tinha um certo poder e estava convicto da sua vitória. Esforçou-se por dizer alguma coisa. Acima de tudo, jamais desistiria.

- E por que razão haveria alguém de acreditar que esse seu amigo se teria, alguma vez, encontrado com a Christina - perguntou lentamente -, ou que ela alguma vez lhe dirigiria sequer a palavra, quanto mais tocar-lhe?

- Porque ele poderá descrever esta casa, ao pormenor, o quarto dela e até, as decorações da cama dela...

- Que você conhece! - Exclamou rapidamente. - Ele poderia facilmente ter obtido essa informação de alguma criada. Não tem muito que saber. - Sentiu um rápido sopro de esperança.

Os olhos dele moviam-se lentamente, húmidos, medindo-a.

- Tem um sinal debaixo do seio esquerdo - afirmou cruamente -, e uma cicatriz na nádega, também a esquerda, se bem me lembro. Poderá dizer igualmente que eu o sabia, mas duvido que uma criada o possa saber. Percebe onde quero chegar, milady?

Augusta precisou de reunir uma força de vontade de que não se lembrava de alguma vez ter precisado para não lhe gritar, dando largas ao seu mau feitio, à sua fúria e à sua frustração, berrando-lhe: "Saia daqui, desapareça da minha vista!" Respirou fundo e chamou a si toda uma vida de disciplina.

- Sim, compreendo bem onde quer chegar - respondeu calmamente, mantendo um tom de voz praticamente normal. - Pode retirar-se.

Max voltou as costas e hesitou ao chegar à porta.

- Informará os seus familiares em Stirlingshire de que não me irei apresentar, milady?

- É o que farei. Agora, retire-se.

O criado fez uma pequena vénia, sempre a sorrir.

- Obrigado, milady.

Assim que a porta se fechou, Augusta cedeu. Durante os cinco minutos que se seguiram, deixou a repulsa e a ira invadirem-na. Ser ultrapassada por um lacaio, um criado com valores da sarjeta! Nunca se esqueceria do seu olhar quente e familiar pousado nela. Só de pensar que Christina se tinha deitado voluntariamente com aquela... criatura! Que naquele preciso momento poderia estar à espera de um filho dele. Era inadmissível. Tinha de se recompor. Tinha de fazer qualquer coisa. Por agora, não podia pensar numa forma de se livrar de Max, mas, pelo menos deveria assegurar-se que nunca mais voltaria a pôr as mãos em Christina. Dali em diante o comportamento de Christina teria de ser imaculado. Max só usaria o seu trunfo se a isso o obrigassem, no caso de não ter mais nada a perder: porque só tinha aquela jogada. Ao arruiná-la, arruinar-se-ia igualmente a si próprio e, assim, se Christina o passasse a tratar com total desinteresse, Max nunca iria insistir com ela. Augusta tencionava assegurar-se de que ela faria isso mesmo!

Levantou-se e compôs-se. Não havia mais nenhum motivo para reter Christina na cama. Já estava perfeitamente recuperada. Mais valia levantar-se e retomar a sua vida normal. Na verdade, era bom que o fizesse, antes que se suscitasse demasiada especulação quanto ao problema que a mantinha afastada da sociedade. Se, desastrosamente, se viesse a confirmar a sua gravidez, Augusta trataria de lhe arranjar um casamento o mais célere possível e esperar que o bebé pudesse ser considerado prematuro. Felizmente que Christina era tão morena como Max, para o caso de a criança também o ser, pois não levantaria suspeitas. Na realidade e para todos os efeitos, o melhor seria casar Christina rapidamente. Era evidente que ela tinha uma fraqueza a que era preciso dar uma solução, e só existia uma forma satisfatória de o fazer. Enquanto atravessava o átrio e subia as escadas Augusta ia ocupando o seu espírito a analisar as possibilidades. Teria de ser alguém que pudesse ser persuadido a casar com muito pouca antecedência e sem causar muito espanto. Assim sendo, teria de ser alguém que ela já conhecesse, ,( para que se pudesse presumir um eventual processo prévio de corte. Era pouco provável que alguém com um encanto tão devastador que tornasse credível um romance-relâmpago, se pudesse casar com alguém que não a pessoa que ele próprio escolhesse; e pensar que um tal homem pudesse vir a cruzar o caminho de Christina nas semanas seguintes, apaixonando-se por ela, era ter demasiada esperança.

Augusta enumerou mentalmente todos os jovens com uma posição adequada, ocorrendo-lhe lamentavelmente muito poucos. Entre os candidatos, a maioria não devia nada aos Balantyne, nem precisava deles o suficiente para pensar num casamento sem inclinações românticas. A maior parte dos homens, embora preferissem pensar que sim, não escolhiam com quem casavam: as suas mulheres ou sogras é que os escolhiam. Neste caso, seria difícil conseguir esse efeito de auto-ilusão. Felizmente que Christina era suficientemente atraente: era bonita, espirituosa e tinha um excelente gosto para se vestir. Tinha um sentido de humor e uma jovialidade peculiarmente apelativos para muitos homens.

Ao atingir a porta do quarto de Christina, Augusta já reduzira a sua lista a três candidatos, o melhor dos quais era Alan Ross. Claro que toda a gente sabia que ele nunca tinha recuperado do seu fraco por Helena Doran, mas isso significava igualmente que não se ligara a mais ninguém, podendo mostrar-se disponível. Poderia recuar caso o pressionassem - era um homem determinado. Contudo, se abordado com delicadeza, se Christina fizesse um esforço para o atrair, para lhe agradar ou para o cortejar, ele bem poderia, nem que fosse com alguma insistência da parte do general, tornar-se receptivo. Certamente que valia a pena tentar. Havia outros que poderiam ser comprados com promoções militares, que seriam, naturalmente, providenciadas; mas não teriam tantas possibilidades de fazer Christina feliz.

Após bater à porta, Augusta entrou imediatamente. Ficou surpreendida ao deparar com Christina de pé e a vestir-se. Abriu a boca para lhe ralhar pela desobediência, mas tornou a fechá-la, pois estaria apenas a contrariar os seus próprios planos.

- Fico satisfeita por ver que já se sente melhor - limitou-se a dizer.

Christina virou-se com uma expressão de surpresa. Era, de facto, uma bela rapariga, com uma nuvem de cabelo escuro, tez pálida, grandes olhos azuis rasgados, nariz bem desenhado e queixo redondo. Para além disso, quando queria, podia ter maneiras encantadoras. Sim, não seria, definitivamente, uma tarefa difícil.

- Mamã!

- Vejo que decidiu levantar-se. Fico contente, penso que já estava na altura.

Antes que conseguisse dominar a sua expressão, Christina demonstrou uma grande surpresa pela reacção da mãe.

- Sim. Aquela Miss... seja lá qual for o nome dela, que o Papá empregou, fez-me perceber o que estou a perder. E as pessoas começarão a comentar se não aparecer brevemente. Não vale a pena dar-lhes motivos antes que seja mesmo necessário. De qualquer forma, até posso não estar grávida. Já me sinto de perfeita saúde.

Há dias que não me sinto minimamente enjoada ou fraca. - O seu tom de voz era ligeiramente desafiador.

- Não havia razão alguma para o contrário - acedeu Augusta. - A gravidez é um processo perfeitamente normal e não uma doença. Desde Eva que as mulheres engravidam.

- Posso não estar grávida - afirmou Christina, veementemente.

- É verdade, mas, por outro lado, pode estar. Ainda é cedo para se ter a certeza.

- Caso esteja - Christina ergueu mais ainda a cabeça de forma deliberada -, terei de ir consultar o Freddie Bolsover.

- Não fará tal coisa. O Doutor Meredith será perfeitamente adequado para lhe dar assistência, quando chegar a altura.

- Não tenciono ter o filho do Max, Mamã. Aproveitei o tempo que passei de cama para reflectir bastante sobre este assunto. Deverei consultar o Freddie, pois ouvi dizer que ele pode tratar das coisas...

Pela primeira vez desde que fora jovem que Augusta se sentiu realmente chocada, tanto pela filha, como pelo conhecimento que esta possuía de que Freddie Bolsover ou fazia ele próprio abortos ou, então, conhecia quem os fizesse.

- A menina não fará nada disso - repreendeu-a quase suavemente. - É um pecado que jamais lhe poderia perdoar. Trate de tirar essa ideia da cabeça imediatamente. Não desejo que qualquer dos meus netos traga nas veias o sangue desse inominável criado, mas já que a menina fez a sua cama, agora, todos temos de nos deitar nela...

- Mamã, eu recuso-me... não me parece que esteja a compreender! Não amo o Max, nunca o amei...

- Nem a mim me passou pela cabeça essa hipótese - respondeu Augusta, friamente. - Tenho igualmente a certeza de que ele também não a amava. Isso não nos interessa. A menina não vai cometer um crime contra o seu filho ainda por nascer, se é que, de facto, este existe. Vai casar com alguém que possa cuidar adequadamente de si e dar um nome ao seu filho...

- Recuso-me a isso! - Christina tinha as faces a arder. - Se julga que vou implorar a um qualquer idiota respeitável que se case comigo apenas para dar um pai ao meu filho, está completa-mente enganada, Mamã. Isso seria intolerável! Ele iria fazer-me pagar por isso o resto da minha vida! Chamar-me-ia uma... uma pega... e dificilmente teria alguma afeição pela criança, ou lhe daria um lar com alguma qualidade.

- Controle-se, Christina. Não tenciono que faça nada do género. Desposará um homem da sua posição e ele não fará qualquer ideia da sua condição. A menina dirá que a criança - se de facto existir alguma - é prematura. Sob nenhuma circunstância deverá consultar o Freddie Bolsover, ou seja quem for.

Christina tinha o rosto contorcido de desprezo e incredulidade.

- E quem tem em mente, Mamã? Porque havia alguém de se casar comigo a tempo de me ser de alguma utilidade? E o que poderá acontecer se ele não acreditar em bebés prematuros?

- Temos várias possibilidades. O Alan Ross afigura-se-se como a melhor de todas. E a menina deverá desposá-lo imediatamente a seguir ao Natal...

- Ele também não me ama!

- Fará com que venha a amá-la. Quando quer, pode ser bastante encantadora. Para o seu próprio bem, minha querida, é melhor optar por agradar ao Alan.

- E se não estiver grávida? - Christina ergueu arrogantemente o queixo, em ar de provocação.

- Quando tiver a certeza, já será tarde demais. De qualquer forma, creio que seria melhor para si casar-se. - Recuperou o fôlego e falou-lhe ao mesmo nível. - Christina, talvez não esteja a pesar bem a sua posição. Caso esteja grávida, sem um pai para a criança, verá que não encontrará lugar na sociedade. E não pense que poderá ultrapassar esta questão. Muitas outras pessoas já o tentaram fazer - pessoas de melhores famílias e mais abastadas que a sua - e fracassaram. Nenhum homem do seu nível a desposará, tornar-se-á alvo de anedotas e as mulheres decentes recusar-se-ão a dirigir-lhe a palavra. Todos os lugares que frequenta actualmente estarão fechados para si no futuro. Não gosto de ter de lho dizer, mas tem de compreender que é a pura verdade.

Christina fitou-a.

- Portanto, minha querida - prosseguiu Augusta, - usará os seus encantos com o Alan Ross de modo a que ele se case consigo, mostrando-se apaixonada por ele. É um bom homem que, caso o deixe, a tratará com delicadeza.

- E se ele não quiser casar comigo? - A voz de Christina revelava, pela primeira vez, um laivo de pânico e embora Augusta sentisse pena dela, não havia tempo a perder.

- Creio que vai querer. Mas se assim não for, então, deverei encontrar-lhe outra pessoa. Existem outras possibilidades. A menina tem um pai bastante influente...

- Não poderia suportar que ele tivesse conhecimento disto! Nem que desconfiasse sequer!

- O seu pai? - Augusta estava surpreendida.

- O Alan Ross! Ou... quem quer que...

- Evidentemente que não - asseverou Augusta. - Não faço tenções de lho dar a conhecer. Agora, veja se se recompõe e ponha-se bonita. Daremos uma série de festas e não tenho dúvida de que também será convidada para outras. Quanto mais depressa conseguirmos isto, melhor. Felizmente, já conhece o Alan Ross há bastante tempo, por isso, quando anunciar uma data para o casamento, não suscitará quaisquer comentários.

- Como persuadirá o Alan da urgência?

- Não se preocupe, encontrarei uma forma. Entretanto, é óbvio que deverá evitar qualquer contacto com o Max, para além do que manda a boa educação para com um criado. Caso ele tente ir para além disso, a menina chamará alguém, acusando-o de familiaridade, e ele será despedido.

- Gostava que, para todos os efeitos, o despedisse. Agora, só de pensar nele, sinto-me ofendida.

- Não duvido. É com alguma dificuldade que consigo perceber como é que pode sentir-se de outra forma. Contudo, infelizmente, não é tão fácil enterrar os nossos erros. O Max tomou providências para prevenir uma tal situação e ainda não me ocorreu forma alguma de as contornar; mas não tardarei a conseguir. Agora, pense no seu futuro e seja tanto quanto possível encantadora; no passado, suscitou a admiração de muitos homens com o seu comportamento. Não exagere. O Alan, como a maioria dos homens, desejará crer que foi ele quem a escolheu e a procurou. Permita-lhe continuar a pensar assim. E sempre que possível vista-se de cor-de-rosa. É uma cor que lhe fica bem e é muito apreciada pelos homens.

- Sim, Mamã.

- Óptimo. Agora, recomponha-se e vamos dirigir os nossos esforços para esse objectivo.

- Sim, Mamã.

Na manhã seguinte, Augusta atrasou-se para o pequeno-almoço, o que não era habitual da sua parte. Tinha dormido mal. Toda aquela questão com Max perturbara-a mais do que, na altura, julgara. Talvez o seu auto-controlo não fosse tão perfeito como imaginara. Às nove e meia, quando ainda estava à mesa a tomar o pequeno-almoço, Brandy voltou para tomar mais uma chávena de chá. Sentando-se em frente da mãe, observou-a atentamente.

- Parece um pouco abatida, esta manhã, Mãe. Na verdade, parece estar como eu depois de uma noitada no clube.

- Não seja impertinente - ralhou, mas sem severidade. Gostava muito do filho. Efectivamente, teria de ser franca e admitir que o preferia ao resto da família. Brandy tinha uma alegria mais espontânea do que a de Christina e era mais caloroso do que o pai. Era também uma das poucas pessoas que a faziam rir, mesmo quando não tinha vontade.

Naquele momento, Brandy contemplava-a pensativamente, com os olhos semicerrados.

- Espero que não tenha apanhado a constipação da Christina.

- Seria pouco provável - respondeu com um arrepio.

- Não me parece que a Mãe pudesse passar um dia de cama, - pegou numa torrada e começou a tomar um segundo pequeno-almoço. - Isso seria o mesmo que admitir alguma fraqueza. Mas poderia ser uma demonstração de bom-senso. Pense nisso, Mãe. - Sorriu-lhe. - Se quiser, jurarei a pés juntos que a Mãe foi às corridas ou às compras!

- Onde diabo iria eu às corridas, nesta altura do ano?

- Está bem, então direi que foi assistir a uma luta de galos!

- Esboçou um grande sorriso.

- Seria mais provável acreditarem numa coisa dessas se lhes deixasse um bilhete a dizer que tínhamos ido ambos - respondeu, não podendo reprimir um sorriso.

Brandy estremeceu.

- Que disparate. Não tenho estômago para desportos sangrentos.

- E julga que eu tenho?

- Sem dúvida. Teria pregado um valente susto ao Napoleão, se ele a conhecesse numa ocasião social.

Augusta respirou fundo.

- Bebeu o chá todo?

- Não me atreveria. A Mãe parece realmente um pouco em baixo. Tire um dia de descanso. Hoje está um tempo razoável, um pouco frio, mas seco. Eu levo-a a dar uma volta. Sairemos com os melhores cavalos!

Augusta sentia-se tentada. Não havia nada de que pudesse gostar mais do que ir passear para longe de Callander Square, na companhia de Brandy. Pensou na ideia, saboreando-a.

- Venha lá! - Instou o filho. - Ar fresco, cavalos velozes e o barulho das rodas em estrada nova. As últimas folhas de faia ainda enchem as árvores de vermelho.

Augusta contemplou-lhe o rosto suave e moreno, lembrando-se da criança que ele fora, tal como, vinte anos antes, vira nele o adulto em que se tornaria. Antes de poder aceitar a proposta, a porta abriu-se e Max entrou.

- O Inspector Pitt, da Polícia, voltou, milady. Deseja recebê-lo? O ar fresco, os cascos velozes e o riso desvaneceram-se.

- Suponho que não tenho outra alternativa - recuou a cadeira e levantou-se. - Se não o receber agora, virá mais tarde. Leve-o para a salinha da manhã, Max, recebê-lo-ei dentro de alguns minutos.

Brandy continuava a comer.

- Ainda é o assunto dos desgraçados dos bebés? Não sei por que razão insistem, nunca vão descobrir os pais - pobres criancinhas miseráveis. Suponho que tenham de tentar, mas deve ser um trabalho ingrato. Quer que o receba? O mais provável é querer apenas autorização para tornar a falar com os criados.

- Não, obrigada, mas aprecio a sua oferta, meu querido. Adorava ir dar uma volta consigo, mas não posso.

- Porque não? Não me parece que ele nos vá fugir com as pratas!

- Não o posso deixar - repetiu mecanicamente. Não queria ter de lhe dizer. - Conhece bem o Alan Ross, Brandy?

- Como? - A surpresa fê-lo deixar cair a mão com que segurava a torrada.

- Conhece bem o Alan Ross? É uma pergunta bastante simples.

- É um bom tipo. Suponho que o conheço bastante bem. Fechou-se um pouco depois da fuga da Helena, porém, já começou a recuperar. Porquê?

- Desejo casá-lo com a Christina.

Brandy desistiu de fingir que estava a comer, pousando a torrada.

- O seu pai ainda não sabe - prosseguiu. - Mas tenho excelentes razões para isso. Se puder fazer qualquer coisa nesse sentido, ficar-lhe-ei muito grata. Agora, parece-me melhor voltar a receber aquele polícia. - Augusta deixou o filho a segui-la com o olhar.

Pitt esperava-a diante do lume, com as primeiras chamas ainda a aquecer a grade fria. Augusta fechou a porta atrás de si, ficando com costas para ela. O inspector ergueu o olhar, com um sorriso. Não havia nada que desconcertasse aquele maldito homem? Talvez não tivesse qualquer sentido do que era oportuno e, por conseguinte, também não teria do que era inoportuno? Era enorme e desmazelado, envergando demasiadas camadas de roupa, e cumprimentava-a com uma descontracção que Augusta não tolerava a ninguém, nem aos seus amigos.

- Bom-dia, Lady Augusta - cumprimentou-a alegremente. - Gostaria de lhe fazer algumas perguntas.

- A mim? - Tencionara tratá-lo com extrema frieza, mas fora apanhada de surpresa. - Não sei nada, posso garantir-lhe!

Pitt afastou-se da lareira para lhe dar lugar e Augusta ficou irracionalmente irritada com o seu gesto, talvez porque preferia poder apontar-lhe alguma falta.

- Estou certo de que não tem consciência de saber alguma coisa - respondeu ele -, ou já me teria contado. Mas pode ter reparado nalguma coisa, sem se dar conta da sua importância.

- Duvido, mas suponho que tem de...

- Obrigado. Estamos a ter muita dificuldade em encontrar a mulher em questão...

- Isso não me surpreende!

- Não - o seu rosto expressivo revelava sarcasmo -, nem a mim. Talvez possamos ter mais êxito abordando o assunto de outro ângulo... encontrando o homem.

A ideia passou como um relâmpago no espírito de Augusta. Talvez fosse a sua oportunidade de se livrar de Max...

Augusta ergueu o olhar para deparar com os brilhantes olhos cinzentos do inspector. Estava consciente, acima de tudo, da inteligência dele. Era um sentimento desagradável e completamente novo. Não conseguia dominá-lo.

- Lembrou-se de alguma coisa? - Os cantos da sua boca desenhavam um pequeno sorriso.

- Não - negou imediatamente. Em seguida, decidiu ser mais moderada, caso mais tarde lhe ocorresse alguma ideia acerca de Max. - Não me parece.

- Mas é uma mulher perspicaz...

Por momentos, Augusta receou que ele a fosse lisonjear.

- ... e tem uma filha jovem e atraente. - O seu rosto não ocultava qualquer intenção, o que, em si, era invulgar. A sociedade regia-se por enganos mutuamente aceites. - Deve ter formado opiniões sobre os hábitos e inclinações dos homens no seu círculo, - prosseguiu, - para determinar aqueles que seriam adequados para a sua filha e os que não o são. Acima de tudo, os que têm uma conduta que não pode aceitar.

Era uma observação razoável, a que Augusta nada tinha a opor. O argumento de Pitt era incontornável.

- Evidentemente - concordou ela. - Mas hesitaria em contar à Polícia aquilo que pessoalmente me desagrada ou me provoca apreensão em alguém, como se se tratasse de suspeitas. Não tendo eventualmente fundamento, estaria, sem querer, a cometer uma injustiça. - Soergueu ligeiramente as sobrancelhas, retribuindo-lhe a pergunta e devolvendo-lhe o ónus da questão.

O sorriso de Pitt intensificou-se. Augusta preferia que ele não a observasse tão abertamente. Seria muito mais fácil para ela compreender se Christina se tivesse antes apaixonado por aquele homem. Contudo, o mais provável era que ela o tivesse posto a andar! Recompôs-se. Era ridículo pensar nisso - e ofensivo.

- Seguirei o seu conselho, minha senhora - declarou. - Um bom conselho, quanto ao meu possível ponto de partida. Concorda que, até à data, tenho sido extremamente discreto?

- Não creio que saiba alguma coisa acerca da qual possa ser indiscreto - replicou, enfrentando-o com um toque de frieza.

O sorriso de Pitt alargou-se.

- O que vem confirmar perfeitamente o meu raciocínio.

- Pelo contrário - afirmou Augusta bruscamente. - Passa-lhe ao lado.

Pitt recuou graciosamente, tornando a irritá-la.

- Penso que tem razão. Mesmo assim, quanto mais cedo conseguir dar por terminada a minha investigação, mais cedo se poderá resolver o caso, ou arquivá-lo como sendo insolúvel.

- Percebo onde quer chegar, Mr Pitt. O que deseja que lhe diga?

Antes que Pitt lhe pudesse responder, a porta abriu-se e Brandy entrou. O inspector ainda não o conhecia e Augusta podia observar um laivo de interesse espelhar-se-lhe no rosto.

- O meu filho, Brandon Balantyne - apresentou rapidamente. Brandy parecia igualmente curioso, a julgar pela sua expressão.

- Com que certeza que não suspeita da Mãe? - Indagou, com petulância. - Ou pretende consultá-la acerca de coscuvilhices?

- Crê que seja boa ideia?

- Ah, excelente. Ela finge estar acima disso, mas, na verdade, sabe tudo o que se passa.

- Brandon, esta não é a melhor ocasião para graças - ralhou. - Morreram duas crianças e alguém é responsável.

O bom-humor do filho extinguiu-se instantaneamente. Olhou para Pitt com o ar de quem pede desculpa.

- As coscuvilhices são muito úteis - Pitt levantou a mão para dar a entender que não levara a mal. - Ficaria surpreendido se soubesse a frequência com que a solução de um crime reside numa pequena coisa que, desde o início, era do conhecimento de toda a gente no bairro. As pessoas simplesmente não se referem a esse pormenor porque acreditam que, sendo do conhecimento geral, nós já sabemos.

Brandy descontraiu-se. Fez um pequeno comentário em resposta e, antes que Pitt pudesse retomar a conversa anterior, Chris-tina entrou.

Augusta ficou arreliada. Sabia que a filha estava ali por ser curiosa e por recear estar a perder qualquer acontecimento importante. Ficar de cama fizera-a sentir como se toda a sociedade lhe estivesse a passar ao lado. Agora, meticulosamente vestida, com os olhos brilhantes e cor nas faces, parecia estar à espera de um pretendente! Sorria a Pitt - como se estivesse a praticar a sua técnica! Francamente, a rapariga não teria juízo?

- Bom-dia, Inspector... Pitt? - Hesitou, fingindo não ter a certeza do seu nome. Em seguida, avançou, quase como se fosse estender-lhe a mão. Foi então que, ao lembrar-se da sua posição perante um polícia - comparável a um comerciante ou a um artesão - a deixou cair. Era um gesto mesquinho e um pouco arrogante que, se não fosse o sorriso, seria simplesmente grosseiro.

- Bom-dia, Miss Balantyne. - Pitt curvou-se muito ligeiramente. - Apraz-me vê-la tão obviamente restabelecida. Parece estar de perfeita saúde.

- Obrigada.

- Talvez também me possa ajudar. Deve conhecer homens com uma reputação menos correcta. Imagino que saiba muito bem em quem deve, ou não, confiar. Todas as jovens falam nisso, umas com as outras, para se protegerem mutuamente. - Voltou-se, inesperadamente, para Brandy. - Ou o senhor, Mr Balantyne. Algum dos seus amigos se envolveu com uma rapariga inapropriada para casar?

- Valha-me Deus, creio que dezenas deles - Brandy fora apanhado de surpresa e foi franco. - Mas, normalmente, as pessoas têm juízo suficiente para não o fazer dentro de casa!

Pitt não podia deixar de sorrir.

- É verdade - concordou. - E quanto aos seus criados? Aquele vosso lacaio parece-me ser um tipo vigoroso. - Girou até poder perscrutar Christina.

Ao mesmo tempo que Augusta sentia o sangue fugir-lhe do rosto, Christina sentia o seu a aquecer-lhe as faces. O golpe viera de repente e não tinha defesas preparadas. Augusta abriu a boca para interferir, mas mordeu a língua assim que reparou no olhar rápido e expectante que Pitt lhe lançara. O próprio acto de falar iria denunciá-la, demonstrando ansiedade em vez da indiferença apropriada.

- Não passa de um lacaio - declarou Christina friamente. A sua voz, porém, denotava uma pequena falha, como se não lhe passasse da garganta. - Nunca pensei na sua vida privada. Talvez o Inspector não possa compreender, uma vez que não tem criados internos, mas as pessoas do nosso nível não discutem absolutamente nada com a criadagem. Eles estão aqui para trabalhar, para fazer funcionar a casa e é apenas sobre isso que lhes falamos e, mesmo assim, fazemo-lo, normalmente, através do mordomo. É para isso que servem os mordomos. O melhor que tem a fazer é conversar com as próprias criadas. Esse tipo de rapariga que procura está mais na linha dele, não lhe parece?

- Ah, mas sem dúvida alguma. - A arrogância dela não parecia afectar minimamente Pitt. O inspector mantinha uma expressão perfeitamente tranquila e um tom de voz afável. - Mas talvez não correspondam ao gosto dele.

- Não faço ideia do que ele poderá, ou não, gostar! - Respondeu Christina, rispidamente. - Não me parece que esse possa ser um assunto que me interesse.

Pitt resmungou, remoendo aparentemente a questão na sua cabeça. Mantinha, porém, o olhar fixo nela, fazendo-a desviar os olhos.

- Há quanto tempo está ele em Callander Square? - Perguntou.

- Há cerca de seis anos. - Foi Brandy quem respondeu, inocentemente. Augusta ponderou sobre a ideia de o mandar sair, encontrando uma qualquer desculpa para se livrar dele. No entanto, ao ver o rosto perspicaz e vigilante de Pitt, percebeu que, ao fazê-lo, só estaria a provocar uma má impressão e a reforçar qualquer suspeita que ele pudesse ter em mente.

- É um bom criado? - Inquiriu Pitt.

- Excelente - respondeu Brandy. - Não gosto do tipo, mas não lhe posso apontar qualquer defeito. Acredite que, se pudesse, já o tinha posto na rua!

- Não o podiam despedir na mesma? - Pitt assumiu uma atitude de ignorância.

- Suponho que sim - Brandy permanecia informal. - Na verdade, não me incomoda assim tanto. E parece agradar ao resto das pessoas.

- O pessoal feminino nunca se queixou de nada?

- Não, absolutamente de nada.

- As criadas são condescendentes? Ou ele procura os seus prazeres noutro lado?

- Mr Pitt! - Interveio Augusta, finalmente. - Não permito fornicação em minha casa, seja codescendente ou não! Sejam quais forem os eventuais apetites dos meus criados, garanto-lhe que os satisfazem algures!

Pitt, porém, observava Christina. Deus misericordioso! Certamente que não poderia saber de nada? Não havia maneira... ou havia?

- Se crê que o Max possa ser responsável, Inspector - prosseguiu Augusta, com tanta compostura quanto lhe foi possível reunir e sem olhar para Christina, - sugiro-lhe que procure a dita mulher fora desta casa. Não poderia, porventura, retomar os seus interrogatórios noutras residências aqui da praça?

- É muito mais fácil começar por perguntar ao Max - sugeriu Brandy. - É pouco provável que a pobre rapariga confesse seja o que for e muito menos agora. Pressione um pouco o Max, encoste-o à parede. Descubra quem são as suas amadas...

Augusta ofegou, mas foi Christina quem quebrou o silêncio.

- Não! - Exclamou, engolindo em seco. - Isso seria uma parvoíce - continuou, tropeçando nas palavras. - E injusto! Não tem motivos para supor que isto tenha alguma coisa a ver com o Max. Não lhe permito que nos perturbe os criados. Oh, Mãe, por favor!

- Parece-me, de facto, injustificado - Augusta escolheu as palavras com muita cautela. - Tem algum fundamento para as suas suspeitas, Inspector? Porque, caso não tenha, terei de lhe recusar autorização para importunar o meu pessoal. Volte com provas e certamente lhe darei toda a assistência requerida.

Christina inspirou fundo e expirou.

A porta abriu-se e entrou o general, que se deteve, surpreendido.

- Bom-dia, meu general - cumprimentou Pitt, educadamente.

- O que faz aqui outra vez? - Perguntou Balantyne. - Descobriu alguma coisa?

- Está à procura do homem - respondeu-lhe Brandy. -Julga que possa ser o Max e quer falar com ele.

- Boa ideia - afirmou Balantyne, decididamente. - Esclareça tudo, seja de que maneira for. - Inclinou-se para a frente e, antes que Augusta o pudesse deter, puxou o cordão da campainha. Momentos depois, surgiu Max. Devia estar no átrio.

O olhar de Pitt cruzou-se com o dele, observando o seu rosto escuro e sensual e a roupa impecável.

- Sim, senhor general? - Inquiriu Max.

- Tem algum interesse romântico, uma mulher? - Perguntou Balantyne, abruptamente, com o tacto de uma carga de cavalaria. Augusta encolheu-se.

A expressão de Max mal se alterou.

- Queira perdoar, senhor general?

- Não estou a ser suficientemente claro, homem? Tem alguma relação romântica? Tem algumas amigas, ou o que lhes quiser chamar?

- Não faço tenções de casar, senhor general.

- Não foi isso que lhe perguntei, caramba! Não se arme em parvo comigo.

- Receio que a minha relação mais recente tenha terminado ainda há pouco. - Max sorria sob as suas pálpebras pesadas, olhando quase imperceptivelmente para Christina.

- Quem era ela?

- Com todo o respeito, senhor general, isso não terá qualquer interesse para a Polícia. Trata-se de uma mulher respeitável, de muito boas famílias. - O seu tom de voz fazia transparecer o seu próprio divertimento reprimido.

Augusta podia apenas ficar a assistir ao desastre. Talvez Max protegesse os seus próprios interesses, protegendo, consequente-mente, os de Christina. Era a sua única esperança.

Pitt limitou-se a aguardar, observando a acção a desenrolar-se à sua frente.

- De boas famílias? - Indagou o general, incrédulo.

- Sim, senhor general.

- Quem?

- Preferia protegê-la, senhor general. Não há necessidade de citar o nome dela perante a Polícia. Lady Augusta sabe quem é, se desejar perguntar-lhe... - Deixou a frase suspensa.

Christina estava de tal forma lívida que a cor que aplicara no rosto sobressaía como a pintura de um palhaço.

- É tudo, senhor general? - Inquiriu Max. Balantyne fitava Augusta.

Augusta recompôs-se.

- Sim, obrigada, Max. Se precisarmos de mais alguma coisa, chamá-lo-emos.

- Obrigado, milady. - Max curvou-se muito ligeiramente e saiu, fechando silenciosamente a porta atrás de si.

- Então? - Exigiu saber Balantyne.

- Ele tem toda a razão, - apressou-se Augusta a responder-lhe. - Não tem qualquer interesse para a Polícia.

Pitt interveio em voz baixa, com muita educação.

- Porque não começou por mo referir, minha senhora? Augusta sentiu-se enregelar.

- Como diz? - Perguntou, tentando criar algum espaço para lhe responder.

- Por que razão não me mencionou esse facto assim que surgiu a questão, Lady Augusta?

- Eu... Tinha-me esquecido. Não é muito importante.

- Quem é essa mulher... de boas famílias, Lady Augusta?

- Não me sinto no direito, nem tenho o desejo de revelar o seu nome.

- Ah, vá lá, Augusta - instou Balantyne, exasperado. - Se ela não estiver envolvida nisto, o Pitt não lhe vai fazer nada. Será discreto, não será? Para além disso, a noção que o Max possa ter de "boas famílias" deverá ser completamente distinta da nossa.

- Prefiro não a denunciar. - Não podia mentir, culpando uma mulher totalmente inocente. Seria imoral da sua parte, mesmo que fosse possível.

Pitt voltou-se para encarar Christina, paralisada no seu lugar.

- Miss Balantyne? - Perguntou lentamente. - Talvez mo queira dizer?

Christina não tinha palavras.

- Christina? - Pela primeira vez, o tom de voz do general denotava alguma dúvida.

- Não importa - disse Pitt, calmamente. - Vou prosseguir com as minhas investigações noutro lado durante algum tempo, e talvez volte aqui mais tarde.

- Sim, com certeza - concordou Augusta. Podia sentir a tensão desvanecer-se-lhe na voz e, por mais que tentasse, não era capaz de controlar o seu alívio. Entendera a intenção de Pitt - sabia da relação entre Christina e Max e tentaria utilizar outros meios para descobrir se era ou não ela a mãe das crianças. Augusta, porém, estava certa de que não era a filha. Teria percebido. Christina não tinha nem a ousadia, nem o talento para lhe conseguir esconder tal coisa. Agora que tinha tempo para reflectir sobre o assunto, dava-se conta de que a filha nem sequer tivera oportunidade para o fazer.

Augusta enfrentou Pitt com confiança.

- Isso seria, de longe, o melhor a fazer.

Pitt contemplou-a, com o seu olhar curioso e penetrante a irradiar compreensão. Estabelecera-se uma cumplicidade entre os dois. Augusta não estava a iludi-lo - estava a reconhecer a verdade, e sabia-o.

- Um conselho excelente - curvou-se levemente. - Tenham um bom-dia, Lady Augusta, Miss Balantyne, senhor general, Mr Balantyne.

Após Pitt ter saído, Balantyne voltou-se para Augusta, com o rosto franzido.

- O que se passou aqui, Augusta? O que pretende o homem?

- Não faço ideia - mentiu.

- Não seja ridícula! Vocês os dois bem se entenderam, até eu percebi. O que se passa? O que tem o Max a ver com isto? Exijo saber.

Augusta ponderou por uns momentos. Esquecera-se da força que o marido possuía, sempre que se interessava por alguma coisa. Recordava-se de quanto o amara, havia vinte anos. Concentrava nele tudo o que era masculino, honesto e poderoso; e um tanto místico, já que era desconhecido. Os anos tinham trazido a familiaridade e o conhecimento de que a força dele era irregular em comparação com a sua, que era mais profunda e mais determinada, enfrentando as contrariedades, dia após dia - uma força capaz de resistir a guerras, não apenas a batalhas.

- Christina, pode retirar-se - ordenou calmamente. - Não precisa de se preocupar com Mr Pitt, pelo menos, por enquanto. Centre-se no problema presente e prepare-se para o jantar de hoje à noite. Brandy, também se pode retirar.

- Preferia ficar, Mãe.

- Não duvido, mas, mesmo assim, vai retirar-se.

- Mãe...

- Brandon - interveio Balantyne, severamente. Christina e Brandy saíram em silêncio.

- Então? - Perguntou Balantyne.

Augusta encarou-o, incrédula. Ele não fazia ideia.

- A rapariga em questão era a Christina - anunciou, com ousadia. - Mantinha um caso com o Max. Julguei que se tinha apercebido disso, pois sem dúvida que não escapou a Mr Pitt.

Balantyne fitou-a.

- Só pode estar enganada!

- Não se faça de inocente! Julga que alguma vez me equivocaria acerca de uma coisa dessas? - Augusta deixou, por fim, cair a compostura. Só podia deixar-se levar pelo mau feitio ou chorar. - Não fique tão alarmado. Estou a tratar do assunto. - Não havia necessidade de lhe contar fosse o que fosse sobre a possível gravidez. - Tenciono casá-la, o mais depressa possível, de preferência com o Alan Ross...

- Ele quer casar com ela?

- Ainda não, mas havemos de o levar a isso. Cabe-nos a nós...

- A nós?

- Evidentemente que nos cabe a "nós" ajudá-la. A rapariga não pode fazer tudo sozinha. Informá-lo-ei da altura mais conveniente para o abordar. Talvez no Natal.

- Não será um pouco precipitado? - Observou-a com os olhos contraídos.

- Sim. Poderá, no entanto, ser o mais aconselhável. A expressão de Balantyne contraiu-se.

- Estou a perceber. E posso saber por que razão o Max ainda permanece connosco? Certamente que ela não estará a pensar casar com ele?

- É evidente que não! Não se interessa por ele, a não ser... de qualquer forma, já acabou. Livrar-me-ei dele assim que me ocorrer uma maneira adequada. De momento, o mais importante é garantir o silêncio dele. A melhor maneira de o fazer é continuarmos a suportar a sua presença, pelo menos por enquanto.

- Quer dizer, até a Christina se casar.

- Mais ou menos.

- Augusta?

Pela primeira vez, Augusta encarou-o.

- Não - limitou-se a responder, satisfazendo a dúvida dele. - Não há dúvida que cometi um grave erro em relação ao Max. Posso não ter feito um bom julgamento da minha filha, por não a conhecer como devia, mas não tem nada a ver com as crianças no jardim. Já devia saber isso. - Curiosamente, Augusta sentia-se envergonhada ao cruzar o olhar com o do marido naquelas circunstâncias. Era seu dever conhecer a filha e ter assegurado que uma tal coisa nunca pudesse acontecer.

Balantyne manteve-se em silêncio.

- Lamento muito - sentiu-se obrigada a dizer. Balantyne pousou-lhe a mão no braço e deu-lhe umas palmadinhas, retirando-a em seguida, como se não tivesse a certeza por que razão o fizera.

- Então e a Polícia? - Perguntou.

- Creio que eu e o Pitt nos entendemos muito bem - respondeu ela. - É um homem muito inteligente. Sabe que tenho a certeza que não foi a Christina. Isso será o suficiente para ele, pelo menos por uns bons tempos. Embora ele possa acreditar que o Max possa ter... outras... - Augusta estremeceu. - De qualquer forma, Mr Pitt não constitui um problema, para já. De momento, temos de nos centrar na Christina e no Alan Ross.

- Não sei como pode ser... tão... - Olhou para ela com incompreensão e uma expressão onde havia alguma censura.

Surpreendentemente, isso magoou-a.

- O que queria que fizesse? - Perguntou rispidamente. - Que me pusesse a chorar? Ou que desmaiasse? De que serviria isso? Este problema tem de ser resolvido imediatamente. Mais tarde teremos tempo suficiente para dar vazão aos nossos sentimentos, assim que ela estiver casada e em segurança.

- E se o Ross não quiser casar com ela?

- Teremos de o levar a isso. Ou então teremos de encontrar outra pessoa. Pode começar a pensar noutros, para o caso de isso vir a suceder.

- Não tem sentimentos? A sua filha dormiu com um criado, na nossa própria casa...

- Mas que diferença faz onde isso aconteceu! É evidente que tenho sentimentos - contudo não tenciono ceder-lhes, deixando um erro transformar-se numa catástrofe! Agora, o melhor que tem a fazer é voltar para os seus papéis. Aquela maldita Miss qualquer coisa deve estar a chegar. Se deseja ser útil, comece já a pensar em quem mais poderia ser adequado para a Christina, para o caso de o Ross se revelar impossível. Vou estabelecer um calendário social para a Christina. - Antes que Balantyne pudesse argumentar, Augusta saiu. Havia muito que fazer.

Ao chegar, Charlotte fora directamente conduzida à biblioteca, começando imediatamente a trabalhar nas cartas que estivera a separar no dia anterior. Nem sequer reparou que o general só apareceu meia-hora depois.

- Bom-dia, Miss Ellison.

- Bom-dia, general Balantyne -, ao erguer educadamente o olhar para o cumprimentar, Charlotte reparou que o general estava um pouco contraído, como se estivesse mais consciente de si, e mostrava um certo constrangimento. Charlotte revolveu a cabeça à procura de um motivo para tal comportamento, sem conseguir descobrir nenhum.

- Peço desculpa por tê-la feito esperar - desculpou-se rapidamente. - Espero que não tenha ficado... preocupada...?

Charlotte sorriu, esperando pô-lo à vontade.

- Não, de maneira nenhuma, obrigada. Presumi que tivesse de dar atenção a outro assunto e continuei a ler as cartas.

- A Polícia - informou o general, sentando-se.

Charlotte sentia-se uma hipócrita, consciente de que só poderia ter sido Pitt e de que Balantyne não fazia ideia de que ela era casada com ele. Ela estava ali, precisamente para observar tudo aquilo que eles jamais contariam de livre vontade à Polícia e agora sentia-se apreensiva. Gostava de Balantyne e optaria por manter a sua admiração.

- Suponho que tenham de prosseguir com a investigação - comentou, em voz baixa. - Não se pode ignorar um caso como este.

- Era melhor se pudéssemos - respondeu, olhando em frente. - Muito sofrimento para toda a gente. Mas certamente que tem toda a razão, a verdade deve ser descoberta, independentemente das consequências. O problema... é que acaba por se descobrir muito mais. Contudo - endireitou os ombros -, temos de trabalhar. Gostaria que me fizesse o favor de ordenar, tanto quanto possível, estas cartas cronologicamente. Receio que nem todas estejam datadas. Talvez com o seu conhecimento de história...? - Balantyne deixou a frase no ar, pois não desejava ser depreciativo quanto aos conhecimentos dela.

- Ah, existe um livro excelente naquela prateleira acerca das campanhas de Marlborough - respondeu Charlotte. - Pedi-lho emprestado há dois dias e o general teve a delicadeza de mo ceder.

- Ah... - parecia perplexo e, foi nesse momento que Charlotte se apercebeu que, de facto, alguma coisa o havia transtornado mais profundamente do que ela julgara a princípio. - Ah - repetiu, tolamente. - Tinha-me esquecido. Claro, já deve saber...

Charlotte sorriu-lhe.

- Se tem outros assuntos a tratar, posso muito bem trabalhar sozinha - propôs. - Não precisa de supervisionar o meu trabalho, se não lhe for conveniente.

- É muito simpática, mas não tenho mais nada com que... pelo menos por enquanto. Obrigado. - Foi com um ligeiro rubor nas faces que se debruçou sobre os seus papéis.

Balantyne voltou a abordá-la uma ou duas vezes, mas para fazer comentários inconsequentes, que ela deixou passar sem fazer perguntas, uma vez que o via preocupado. Teria acabado por descobrir alguma coisa acerca de Christina? Que ela receava poder estar grávida? Ou alguma coisa mais profunda e pior? A compaixão impediu-a de tentar fosse o que fosse para o descobrir. Gostaria de ter dito ou feito alguma coisa para o consolar. O seu instinto mandava-a tocar-lhe para lhe reduzir a rigidez do corpo, fazendo-o descontrair. Ele teria mais força se cedesse a si próprio por uns momentos. Contudo, esse acto seria, evidentemente, impróprio. O efeito não seria o de uma pessoa a confortar outra, mas criaria embaraço, mal-entendidos ou mesmo receio. Entre eles existiam anos de convenções empedernidas. Em vez de fazer o que o seu instinto lhe ditava, Charlotte preferiu fingir não ter reparado em nada fora do vulgar. Podia, pelo menos, conceder-lhe privacidade - o que, sendo a sua segunda escolha, não deixava de ser melhor do que nada e, sem dúvida, aquilo que ele julgava desejar.

Pouco passava do meio-dia quando Max entrou para anunciar a presença de Garson Campbell na salinha da manhã, desejando ver o General Balantyne e saber se o podia conduzir à biblioteca.

- Como?

Max repetiu o pedido. Ao observá-lo com mais atenção, Charlotte considerou-o um dos homens mais desagradáveis que alguma vez vira. A sua boca retorcia-se e apresentava uma humidade que lhe repugnava. Era como se ele estivesse permanentemente a lamber os lábios, muito embora, para dizer a verdade, Charlotte nunca o tivesse apanhado a fazê-lo.

- Ah, sim - aquiesceu Balantyne. - Mande-o entrar. Não vou sair daqui, senão ele vai pensar que tenho o dia todo para desperdiçar.

Garson Campbell entrou momentos depois. Sendo a primeira vez que o via, Charlotte manteve-se perfeitamente quieta ao canto da sala, escondendo o rosto por detrás do livro sobre Marlborough, na esperança de que ninguém fosse reparar nela. Espreitou cautelosamente por cima do livro para o observar.

Campbell tinha um ar esperto: um nariz comprido, uma boca sarcástica e olhos perspicazes. Ao entrar, bateu ligeiramente com os pés no chão, talvez para afastar o frio.

- Bom-dia, Balantyne. - Parecia não ter reparado em Char-lotte e ela manteve-se imóvel, confiante de que o general também se tinha esquecido da sua presença.

- Bom-dia, Campbell.

- Ainda a ressuscitar vitórias passadas? Bem, suponho que sejam melhores do que a apatia actual, desde que não as vejamos como sucedâneos.

- Pouco podemos aprender com a história se escolhermos esquecê-la - respondeu Balantyne, um pouco na defensiva.

- Meu caro Balantyne - Campbell sentou-se, - no dia em que a humanidade aprender a tirar proveito das lições que a história lhe oferece, começarei a preparar-me para o Segundo Advento. Contudo, é um exercício inofensivo e sempre se podem ler bons livros. Muito menos perigoso do que a política. Se ao menos alguns dos seus colegas militares ocupassem o seu tempo de forma tão inócua. Por que razão presumem os homens que lá por terem comprado uma comissão no exército, e terem tido a sorte de não serem mortos, também podem ter um lugar em Westminster e sobreviver às guerras infinitamente mais subtis da política?

- Não faço ideia - respondeu Balantyne abruptamente. - Devo ser a pessoa menos indicada para poder responder a essa pergunta.

- Por amor de Deus, era só uma observação, não estava à espera que me fosse responder! Não espero obter respostas de ninguém. O máximo que posso esperar é que, aqui e ali, consiga encontrar alguém que, ao menos, tenha capacidade de reconhecer a questão! Voltou a ter cá a maldita Polícia?

Balantyne contraiu-se.

- Sim. Porquê?

- Já estava na altura de desistirem. Para todos os efeitos, isto não passa de um exercício académico, que se prende com a manutenção da imagem da Polícia. Já deviam ter ficado satisfeitos. Não vão descobrir quem foi o autor e, se tivessem juízo, nunca teriam sequer presumido que o poderiam conseguir.

- Têm de tentar. É um crime muito grave.

- Uma qualquer infeliz rapariga deu à luz um nado-morto ou matou o bebé após o seu nascimento. Por amor de Deus, Balantyne, há pessoas a morrer por todo o lado. Faz ideia de quantas crianças indigentes morrem, por ano, em Londres? Estas duas nem sequer devem ter sentido nada. E que tipo de vida teriam tido? Não se ponha com disparates sentimentalistas. Como raio fazia no campo de batalha? Tinha medo de mandar avançar a carga, não fosse alguém magoar-se?

- Não me parece que possa estabelecer uma comparação entre lutar numa guerra para defender os seus ideais ou o seu país, com o homicídio de bebés! - Balantyne mal conseguia conter o seu temperamento. Charlotte podia ver-lhe o leve brilho através da pele contraída das faces. Balantyne tinha um rosto mais forte que o de Campbell - mais delgado e definido - mas os seus lábios, quando cerrados, formavam uma linha mais suave, a sugerir alguma vulnerabilidade. Ela própria gostaria de ter enfrentado Campbell, atacando o inteligente cinismo dele com a sua própria personalidade de aço. Não o receava, porque lá no fundo sabia que a ausência de optimismo - esse nó de esperança irrazoável, mais do espírito do que do cérebro - era um defeito fatal: a própria semente da morte.

Campbell suspirou, com uma paciência evidente.

- Ninguém pode desfazer o que está feito, Balantyne. Por amor de Deus, salvemos o que resta. Já dei uma palavrinha aqui e ali para levar a Polícia a retirar-se, reconhecendo o esforço feito e dando por terminada a investigação. Você tem amigos e o Carlton também. Vejam o que podem fazer. Estou certo de que o Carlton o fará. O pobre diabo já descobriu um ninho de vespas dentro da própria casa. Embora deva dizer que, se ficou surpreendido, foi o único. Uma jovem fogosa como a Euphemia casada com um velho pássaro seco e enfadonho como ele; não sei do que é que ele estava à espera! Contudo, é uma pena que tenha de se tornar público. Não seria necessário, se a Polícia não tivesse vindo meter o nariz onde não era chamada.

Balantyne empalidecera.

- Não tem de se tornar público, a não ser que o queiramos. O que julgo que você, sendo um cavalheiro, não quererá! - Estava meio soerguido da cadeira, como se estivesse prestes a ameaçá-lo fisicamente.

Campbell mostrava-se mais divertido do que assustado.

- Claro que não. Todos nós temos os nossos esqueletos no armário. Ainda não conheci homem algum que não tivesse algo de que se envergonhar e certamente muito mais coisas a desejar manter escondidas. Por favor, sente-se, Balantyne. Está a fazer uma figura ridícula. Só achei que devia falar-lhe disto. - Pela primeira vez, lançou um olhar para Charlotte, fazendo-a baixar imediatamente os olhos, mas não sem antes reparar no sarcasmo e na avaliação dele. Qual imaginaria ele ser a razão da sua presença ali? Sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto assim que o pensamento mais óbvio lhe ocorreu. Tinha esperança de que o general fosse demasiado inocente e rígido para ter pensado o mesmo.

Contudo, quando Campbell se foi embora, o general voltou-se para ela, também ele ruborizado.

- Charlotte... eu... eu... peço desculpa pelo Campbell. Só posso presumir que ele não se tenha dado conta da sua presença. Eu... eu garanto-lhe que...

Charlotte esqueceu-se do seu próprio embaraço perante o dele.

- Claro que não se deu conta - sorriu ela. - Na verdade, nem sequer pensei nisso e percebi que não houve mais nada para além da troca de algumas palavras desagradáveis. Por favor, não pense mais nisso.

Balantyne observou-a atentamente por uns momentos para, em seguida, se descontrair visivelmente.

- Obrigado, hum, obrigado.

Passara mais uma semana antes que Augusta pudesse, finalmente, descobrir uma solução satisfatória para o problema de como se livrar de Max. Precisara de ajuda e tivera de inventar uma explicação convincente antes de abordar os seus familiares distantes para lhes pedir uma troca de favores. Agora que já tinha tudo combinado só lhe restava informar Max.

Era a semana anterior ao Natal. Sentia-se claramente melhor do que naquela terrível manhã em que Pitt os fora visitar. Christina tinha-se comportado de forma excelente e Alan Ross parecia estar praticamente conformado com o seu destino. Efectivamente, ainda naquela tarde o vira levar Christina a passear na sua carruagem. Ela própria estava na rua quando haviam partido. Brandy estava também no passeio a conversar com aquela preceptora bonitinha dos Southeron. Uma criatura atraente, se bem que um pouco magra, com uma singular graciosidade e um sorriso verdadeiramente encantador: a pessoa indicada para se encarregar de crianças.

Augusta estava sozinha em casa. Brandy saíra para ir ao seu clube e o general também; e aquela jovem Ellison fora mais cedo para casa. Augusta tocou a sineta para chamar Max.

Passados uns minutos, o criado apareceu.

- Sim, milady? - Parecia arrogante, como sempre.

- Tomei providências para que ocupe outro posto, Max...

- Milady... - Fitou-a, inexpressivo.

- Em Londres - prosseguiu -, em casa de Lord Veitch. Dei-lhe referências excelentes para que seja seu lacaio e criado particular quando se desloca ao estrangeiro, o que faz com muita frequência. Está em Londres a passar a época natalícia e para ir à caça, naturalmente. Viaja muitas vezes para Paris e para Viena. Deverá acompanhá-lo nessas viagens e ele aumentar-lhe-á o seu salário acima daquilo que lhe pagamos. É uma melhoria, não concorda?

- Sem dúvida, milady - curvou-se, com um sorriso prolongado. - Fico-lhe muito grato. Quando poderei partir?

- Imediatamente. Amanhã de manhã. Lorde Veitch irá passar o Natal ao campo e o Ano Novo a Paris.

- Obrigado, milady - depois de se curvar de novo, ainda sorridente, Max retirou-se.

Naquela noite, sentada no seu toucador, com o cabelo solto pelos ombros, após ter sido escovado pela criada, que já se retirara, Augusta contou o sucedido a Balantyne.

O general, por sua vez, já em roupão, fitou-a.

- Deixou aquele malandro partir daqui para ocupar uma posição melhor? E o Bertie Veitch? O que fez ele para o merecer?

- Deve-me um favor - respondeu ela.

- Augusta!

- Mas eu preveni-o - declarou, impacientemente. - E pagarei a diferença do seu salário.

- Durante quanto tempo? Eu oponho-me a que recompense aquele... porco... pelos seus vis...

- Não se aproveitará por muito tempo, Brandon. O Bertie levá-lo-á para fora do país, para Paris e depois para Viena. Quando estiver em Viena, encontrará alguma coisa contra ele para o poder despedir por desonestidade. Não me parece que a prisão de Viena possa agradar muito ao Max.

Balantyne fitou-a, pálido e estarrecido.

- Como é que foi capaz? Isso é desonesto!

- Não é nada que ele não mereça - respondeu, sentindo-se gelada ao cruzar o olhar com o dele, desviando em seguida o seu. - Que queria que fizesse? Que o deixasse permanecer aqui, a chantagear-nos? Nesta casa, com a Christina e o Alan Ross?

- Claro que não! Mas não isto!

- Então o quê? Lembrou-se de alguma coisa?

Balantyne manteve-se silencioso, altivo e direito, a fitá-la simplesmente.

Com o cabelo a cair-lhe à volta dos ombros, Augusta levantou-se e dirigiu-se para a sua cama, sentindo-se espantosamente vulnerável, como uma noiva recém-casada a partilhar o quarto com um estranho.

 

O Natal passou, com todas as implicações da tradição, as decorações, os bailes, a comida abundante e o vinho pesado, os namoricos, os presentes, os sinos e as canções e, até, uma vez por outra, as orações.

Durante a semana natalícia, Charlotte não foi a Callander Square, dedicando-se antes ao seu próprio lar. No Natal anterior, ainda casada de fresco, não conseguira sentir o bem-estar e o conforto descontraído de uma amizade e pertença completas, sem ansiedade e sem a necessidade premente de agradar. Este ano, pendurara luzes e grinaldas coloridas por toda a sala, comprara uma pequena árvore de Natal, que decorara, e ocupara-se a fazer caramelos e bombons de chocolate, massapão e rebuçados de menta para dar aos cantadores das janeiras e a embrulhar pequenas prendas para a sua família.

No dia dois de Janeiro, a questão de Callander Square voltou a intrometer-se na sua vida. Assim que viu Pitt partir para a esquadra, de manhã, Charlotte concluiu rapidamente as suas tarefas domésticas para, em seguida, poder retomar as suas idas à residência dos Balantyne, onde passaria a tentar descobrir mais acerca do resto dos residentes da praça, começando pelos Southeron. Afinal, caso se verificasse realmente que Reggie Southeron importunava as criadas de fora, talvez nem todas elas se lhe mostrassem tão esquivas como Mary Ann parecia ser. De facto, não se podia afirmar com absoluta certeza que a própria Mary Ann não estivesse apenas a falar da boca para fora, protestando a sua indignação por uma questão de forma, para salvaguardar a reputação. Seria uma boa ideia averiguar há quanto tempo Mary Ann estava em Callander Square e, também, tentar apurar alguns dados acerca da sua antecessora.

Foi neste sentido que Charlotte deu continuidade à sua natural afeição por Jemima Waggoner, aceitando o seu convite para almoçar no dia seguinte. Deste modo, ao meio-dia Charlotte pediu licença ao general na biblioteca e precipitou-se, debaixo de chuva, até à entrada de serviço dos Southeron. Quem lhe abriu a porta foi a auxiliar de cozinha, que a conduziu à sala de estudo no andar de cima onde, naquele dia, Jemima deveria tomar a sua refeição sozinha, uma vez que Faith, Patience e Chastity tinham ido almoçar a casa dos Campbell para festejar o aniversário de Victoria Campbell.

Jemima levantou-se de um salto com um grande sorriso a iluminar-lhe o rosto.

- Ah, Charlotte, faça favor de entrar. Fico tão satisfeita por ter podido aceitar o convite. O general Balantyne não ficou aborrecido?

- Não, claro que não, desde que volte às duas horas em ponto. Afinal de contas, também ele terá de almoçar e, para ser franca, uma vez que já pusemos quase todos os papéis em ordem, não me parece que ele esteja muito certo quanto ao que fazer em seguida.

- É uma pessoa um pouco intimidante, não é? - Era mais uma opinião do que uma pergunta. A medida que falava, Jemima ia compondo uma pequena mesa, cobrindo-a com a toalha e dispondo em cima os talheres, e ainda mal acabara, quando uma criada surgiu com o tabuleiro que a cozinheira lhes preparara. Era uma refeição surpreendentemente elaborada para um almoço e, ao vê-la, Charlotte não pôde deixar de pensar que era, provavelmente, um reflexo do amor de Reggie Southeron pela comida e pelo conforto.

Charlotte demonstrou a sua admiração pela ementa e as duas acabaram por conversar sobre comida e a organização geral da residência dos Southeron. Depois de terminarem o segundo prato e de lhes trazerem o pudim, Jemima voltou ao assunto do general.

- O seu trabalho é confidencial? - Perguntou.

- Ah, não me parece - respondeu Charlotte. - Na verdade, creio que quanto mais pessoas souberem e se vierem a interessar, mais prazer ele terá. Tem muito orgulho na sua família, sabe?

E confesso que também eu teria, se a minha família se tivesse distinguido tanto. Desde o duque de Marlborough que quase todas as batalhas puderam contar com a presença de um Balantyne.

Jemima sorriu, olhando para o infinito com os olhos húmidos.

- É uma pesada herança. Deve ser bastante difícil para um homem nascido numa dessas famílias, manter esse nível. Pergunto-me se o jovem Mr Balantyne também não lutará em batalhas, chegando também a general?

- Bem, agora não há lá muitas batalhas - respondeu Char-lotte, mantendo, porém, os seus pensamentos alheios a questões militares e centrados em relações amorosas. A expressão de Jemirna preocupava-a. Não demonstrava, como ela, um interesse impessoal, uma excitação perante o poder, a coragem e o sofrimento de todos os homens que haviam lutado e morrido nas guerras. Charlotte receava que aquele olhar de Jemima se prendesse mais com Brandy Balantyne, com o seu sorriso, os seus ombros elegantes e a sua cabeça morena.

Jemima ainda não escolhera as palavras para lhe responder e parecia um tanto ou quanto confusa.

- Espero bem que não - afirmou, contemplando a colher que tinha na mão. - É horrível pensar em todos os jovens que vão para o estrangeiro lutar em batalhas que nos dizem tão pouco respeito, sendo mutilados ou mortos.

- Pergunto-me até que ponto não nos dizem respeito - comentou Charlotte, pensativa. - Vivemos como vivemos, com riqueza e em segurança, com comércio marítimo por todo o mundo, com mercados para os nossos produtos e coisas exóticas para comprar no país, apenas porque temos um império que cobre quase todos os cantos do mundo. E muitas pessoas entendem ser nosso dever - prosseguiu, encarando agora Jemima, - espalhar a civilização e a boa governação a todas as raças que as desconhecem.

- Suponho que sim - concordou Jemima, com relutância. - Mas parece-me terrível o preço a pagar. Há tantos que não voltam para casa. Pense em todas as esposas, e nas famílias.

- Tudo tem um preço - replicou Charlotte, pensando nas poucas coisas realmente valiosas que conhecia: a compaixão, a gratidão e a compreensão. - Infelizmente, tendemos a não considerar verdadeiramente importante aquilo que não pagamos. - Sorriu para suavizar um pouco as suas palavras. Jemima franziu o sobrolho.

- Não lhe parece que, por vezes, valorizamos uma coisa apenas pelo seu preço? - Comentou. - Que talvez tenha sido demasiado elevado? E agarramo-nos a isso, continuando a pagar?

Charlotte reflectiu sobre isso por uns momentos. Ela vinculara-se a uma coisa, comprometendo-se sem outra razão que não fosse o que já tinha sacrificado por ela. Contudo, estaria Jemima a referir-se ao preço da posse, da guerra, ou ao receio que tinha que Brandy Balantyne pudesse ir para longe, combater algures e ser morto? Recordou-se de outros pequenos fragmentos de conversa que havia tido com ela, suaves e frequentes menções aos Balantyne.

- Sim - acedeu, voltando ao assunto. - Ah, sim. Os homens tendem a fazer isso com a guerra e com a política, tal como talvez o façam as mulheres em relação aos casamentos.

Jemima descontraiu-se, com um pequeno suspiro melancólico.

- Bem, quanto às mulheres, que mais lhes resta? Não podemos abrir mão de um casamento, mesmo que não estejamos emo-cionalmente envolvidas. Não nos resta mais nada senão trabalhar para isso. Não temos meios para nos libertarmos. Se formos para o casamento com dinheiro, depois do acto consumado, passa todo para as mãos do marido. Caso abandonemos o lar, partimos de mãos a abanar. E ninguém na sociedade nos ajudará, uma vez que o divórcio não é aceitável. A minha irmã mais velha... isso ainda é um assunto muito penoso e creio que não desejará ouvi-lo. Conte-me mais acerca do trabalho que está a fazer. Disse-me que o general Balantyne viu com os seus próprios olhos a carga da Brigada Ligeira! Rezo para que uma tal perda, horrível e inútil, de vidas humanas jamais se venha a repetir. Como podem as mulheres alguma vez perdoar todas aquelas mortes e perdas, tudo tão desnecessário. Bastaria um pouco de bom senso para...

- O bom senso é um bem raro - interrompeu Charlotte. - Houve tantas coisas de que me apercebi depois e que não permitira que ninguém me apontasse na altura. - Perguntava-se se não devia dizer qualquer coisa quanto a Brandy Balantyne. Era a sua relação com Euphemia Carlton que a preocupava, evidentemente. O facto de poder ser amante dela fazia dele um homem sem princípios, não podendo oferecer outra coisa a Jemima senão sofrimento. Bastava a uma pessoa ter-se apaixonado uma vez, e ter sofrido em segredo sem ser correspondida, para o poder identificar claramente nos outros.

Agora sentia a dor de Jemima.

Não, o melhor era não dizer nada. Não suportaria que outra pessoa viesse a saber o que ela sentira no passado. Actualmente, não tinha dúvidas quanto ao seu amor por Pitt e o que ficara para trás já não importava. Contudo, para Jemima, era uma situação presente e ela não tinha nenhum Pitt.

Assim, Charlotte resolveu falar de outras coisas, como, por exemplo, de como ensinar história a crianças, e ouviu contar episódios que se haviam passado na sala de estudo, alguns que até a haviam feito rir. Em seguida, despediu-se e voltou para a biblioteca, determinada a encontrar alguma forma de lidar, ela própria, com aquele assunto.

Passou todo o serão preocupada, até que Pitt lhe perguntou o que a absorvia tanto e, claro, ela não foi capaz de responder, pois considerava tratar-se de uma confidência feminina, que ele não poderia compreender. Charlotte optou por lhe dizer que estava a pensar no romance de uma amiga e ele pareceu suficientemente satisfeito para não continuar a pressioná-la. Efectivamente, não era mentira nenhuma.

Charlotte passou a maior parte da noite em claro, lutando com a sua consciência para decidir se havia de interferir, ou largar o assunto com receio de causar embaraço. Acabou por se levantar, ainda incerta quanto ao seu procedimento, mas decidida a abordar Brandy Balantyne de uma forma que teria irritado Pitt, caso ele soubesse, e horrorizado os seus pais. Apenas Emily aprovaria, mas até ela havia de considerar o seu acto como socialmente insensato.

A oportunidade de Charlotte surgiu à tarde. Brandy entrou na biblioteca para escapar ao frio cortante e ao dia húmido e aquecer-se diante da lareira, que tinha o melhor lume em toda a casa. O general tinha saído para tratar de um assunto.

Brandy entrou alegremente, esfregando as mãos e tremendo. Era, de facto, uma pessoa bastante encantadora; teria preferido gostar dele. Tinha de se lembrar a todo o instante que ele não ligava aos sentimentos e era indiferente ao sofrimento, senão teria começado a gostar dele, ao contrário do que pretendia.

- Olá, ainda a trabalhar? - Esboçou um sorriso totalmente desprovido de condescendência. - É verdade que gosta mesmo dessas coisas?

- Sim, é extremamente interessante. - Por momentos, Charlotte distraiu-se, estando prestes a responder-lhe com entusiasmo sobre os actos das pessoas que as cartas evocavam: a ternura, a vulnerabilidade, dos medos e dos desgostos súbitos, quando se lenbrou que tinha decidido falar-lhe acerca de Jemima.

- Mr Balantyne - interpelou com firmeza. Brandy pareceu um pouco surpreendido.

- Sim?

Charlotte levantou-se.

- Há um assunto um tanto pessoal que gostaria de discutir consigo. Importa-se que feche a porta?

- Comigo? - Não parecia embaraçado, como Charlotte receara, temendo que ele se recusasse a ouvi-la.

Charlotte empurrou a porta e ouviu-a fechar-se. Voltou-se para o encarar. Tinha de se apressar, uma vez que o general poderia voltar a qualquer momento. Era um assunto que não podia ficar pendente.

- Desenvolvi uma considerável estima por Miss Waggoner -começou, tentando ocultar o seu nervosismo e ouvindo a sua voz a tornar-se áspera. - É devido à amizade que lhe tenho que não desejo vê-la sofrer...

- Evidentemente que não - concordou ele. - O que a leva a pensar que ela possa estar a correr esse risco? Na minha opinião, ela parece sempre invulgarmente bem...

- Sempre? - Perguntou Charlotte, rapidamente.

- Bem, sempre que a vejo. - Franziu o sobrolho. - O que receia, Miss Ellison?

Não valia a pena estar com rodeios e Charlotte não tinha jeito para isso. Como desejava que Emily ali estivesse para ser mais delicada e subtil. Respirou fundo.

- Receio-o a si, Mr Balantyne.

A expressão dele evidenciou o seu espanto. Seria fácil acreditar que não fazia ideia do que ela estava a falar.

- A mim? - Perguntou, incrédulo.

Charlotte inspirou e expirou lentamente para se recompor.

- Estou a par da sua relação com Lady Carlton. Se o puder evitar, não deixarei que faça o mesmo com Miss Waggoner. E não me venha dizer que não vê os criados dessa maneira. Um homem capaz de manter um caso com a mulher do vizinho, não tem escrúpulos relativamente a uma preceptora. - Não o conseguia encarar e sentia-se estranhamente vazia por ter dito tudo o que pensava.

- Por amor de Deus não... quero dizer... por favor... - A sua voz demonstrava uma tal convicção que Charlotte deu por si a erguer o olhar para o cruzar com o dele. A sua preocupação parecia quase genuína. - Olhe - levantou as mãos, desesperado, deixando-as cair sem conseguir encontrar uma explicação, - não está a perceber!

Charlotte esforçou-se por se manter distante. Desejava tanto poder ceder e gostar dele.

- Há mais alguma coisa a perceber, a não ser que a considerou atraente, tirando proveito da sua situação? - Indagou, friamente.

- Sim, há tudo e mais alguma coisa a compreender!

- Isso não me diz respeito, mas não posso compreender aquilo que desconheço.

- E, caso não venha a saber o que se passa, suponho que vai acreditar no pior, espalhando-o por aí. - O seu tom de voz e o seu rosto denotavam agora um crescente desespero.

- É claro que não vou espalhar nada por aí - respondeu, arreliada. Era uma sugestão horrível. - Mas gostaria de me assegurar de que não vai magoar a Jemima.

- Porque havia eu de o fazer? Porquê a Jemima? - Perguntou.

- Não se faça de inocente! Porque ela se sente atraída por si e não sabe que o senhor é... - Não lhe ocorria qualquer palavra para o que queria dizer.

- Muito bem - virou-lhe as costas. - Embora duvide que acredite em mim.

Charlotte aguardou, contemplando a sua cabeça morena contra a luz de Inverno proveniente da janela.

- O Robert Carlton é um tipo simpático, mas muito distante, desligado...

- Isso não é desculpa...

- Não me interrompa - insistiu. - Acima de tudo, a Euphe-mia quer ter um filho. Tem trinta e seis anos. Essa possibilidade não é eterna. E se o Robert insiste em tratá-la com todo o respeito e uma consideração excessiva - seja por se sentir envergonhado com a emoção, seja por acreditar, erradamente, que é o que ela quer - ela nunca poderá engravidar. A Euphemia receia que ele não se interesse pelo amor físico, repelindo-a caso ela demonstre vontade e, por isso, não ousa dizer-lho.

- Sempre fomos amigos. Gosto dela. É uma mulher generosa, com espírito e bondosa. Sentia-a cada vez mais aflita com qualquer coisa. Um dia, acabou por mo contar. Fizemos um trato de conveniência, apenas até ela conceber uma criança. Agora, pode acreditar nisto ou não, fica ao seu critério. Mas é a verdade. E, pense o que pensar de mim, para o bem da Euphemia - ou para o bem do Robert Carlton - não espalhe a palavra. - Pela primeira vez, Brandy virou-se e retribuiu-lhe o olhar, com uma expressão perfeitamente séria. - Faz-me esse favor?

Era ridículo e, no entanto, acreditava nele. Sem reflectir sobre a questão, reconheceu:

- Acredito em si. Mas... não fale ou aja sem pensar, relativamente a Miss Waggoner. Pode ser um grande sofrimento apaixo-narmo-nos por alguém que sabemos não nos poder corresponder.

Brandy observou-a atentamente, com os olhos cor de avelã demonstrando uma súbita simpatia por ela.

- Ah, agora não - apressou-se a esclarecer. - Mas foi o que me aconteceu no passado. Ele era casado com a minha irmã. Passou-me e comecei a vê-lo de outra forma. Mas na altura, sofri.

Brandy descontraiu-se.

- Por favor, não fale na Euphemia - tornou a pedir. Charlotte pensou em Pitt e nos bebés no jardim.

- Prometo não falar, excepto quando for do interesse dela - declarou solenemente.

Brandy não ficou satisfeito ao sentir o carácter evasivo das palavras dela.

- Como assim?

- Não podia fazer mais nada senão ser franca.

- Estava a pensar na Polícia. Sabem que a Euphemia está à espera de bebé e que a criança é sua. Também podem suspeitar dela quanto às crianças enterradas no jardim, sabe?

O rosto de Brandy ficou tão lívido de horror que seria impossível imaginar que ele pudesse ter pensado anteriormente numa tal eventualidade.

- Contar-lhes a verdade - continuou Charlotte, suavemente, - poderia ser muito bom para a Euphemia, não lhe parece?

- Não iriam acreditar - ainda tinha a boca contraída, com o choque.

- Olhe que até poderiam.

- Como... como é que descobriram acerca... acerca da criança. .. de mim... de tudo isto?

- São muito espertos, sabe, e é o género de coisas de que andariam à procura.

- Suponho que sim. A Mãe disse-me que considerava aquele tipo, o Pitt, esperto e ela, normalmente, tem razão. E não há muitas pessoas cuja inteligência ela admire.

Charlotte não desejava contar-lhe acerca da sua própria relação com Pitt e perguntava-se se a chama de orgulho que a aquecia naquele momento era tão óbvia, a ponto de ele a poder vislumbrar nela.

- É tudo o que queria dizer - respondeu, cautelosamente.

- Agora, julgo mais aconselhável concluir esta discussão antes de o general chegar, não lhe parece?

- Ah... sim, sim, seria sensato. Não vai...?

- Não, claro que não! A minha única preocupação é com a Jemima.

A boca dele abriu-se-se num ligeiro sorriso.

- Sabe, gosto da Jemima. Nalgumas coisas, parece-se um pouco consigo. Noutros aspectos, creio que Miss Ellison é parecida com a minha mãe...

Charlotte ficou paralisada só de o imaginar, embora não tivesse dúvidas de que ele o dissera como um elogio. O sorriso de Brandy alargou-se.

- Não fique tão chocada. A Mãe tem mais coragem do que qualquer outra pessoa que conheça. Era capaz de dar cabo de todos os generais nos clubes do Pai! E também era bastante bonita. O seu único problema era nunca conseguir namoriscar. Não sabia como. Não tinha a arte do engano.

Charlotte corou. Tinha, de facto, avançado sobre ele e, sem dúvida que não demonstrara qualquer artifício. Talvez fosse mais parecida com Lady Augusta do que gostaria de admitir. Olhou para Brandy para lhe dizer algo que a pudesse desculpar, fazendo-a parecer mais branda, quando entrou o general. Ao ver Brandy, o rosto de Balantyne reflectiu a sua surpresa.

- É o melhor lume da casa - apressou-se Brandy a declarar. - É o que o pai está sempre a dizer.

- Isso não significa que pretendesse vê-lo aqui, toda a tarde, a distrair Miss Ellison, impedindo-a de trabalhar.

- Que pena. Não me ocorre nada de mais agradável para fazer numa horrível tarde de Inverno. Não reparou nas sarjetas, simplesmente inundadas de água?

- Então vá mudar de botas. Tenho de prosseguir com o meu trabalho. Estaria melhor se tivesse alguma coisa com que se ocupar.

- Ainda não posso escrever as minhas memórias, não tenho nada de que me possa lembrar.

Balantyne olhou-o com uma ligeira desconfiança, como se pensasse estar a ser vagamente gozado, mas o rosto de Brandy espelhava inocência. Brandy dirigiu-se à porta.

- Boa tarde, Miss Ellison, obrigada por me ter permitido aquecer diante do seu lume, - e saiu.

- Ele estava a incomodá-la? - Perguntou Balantyne, com alguma rispidez.

- Absolutamente nada, - respondeu Charlotte. - Não esteve aqui muito tempo. Creio que já separei essas cartas de Marlbo-rough. Não lhes quer dar uma vista de olhos?

Desde a última vez que visitara Charlotte para tratar daquela questão, Emily já se deslocara várias vezes a Callander Square, tendo conseguido desenvolver uma boa amizade com Christina. Assim, não ficou surpreendida quando Christina lhe confessou, no final da segunda semana de Janeiro, que em breve se casaria com Alan Ross.

A confidência em si não surpreendera Emily. Desde que se começara a dar com Christina que a via empenhar-se diligentemente para atingir esse fim. Contudo, em quaisquer outras circunstâncias, a escolha do noivo tê-la-ia surpreendido consideravelmente. Alan Ross e Christina Balantyne pareciam-lhe um par contra-na-tura. Daquilo que pudera constatar acerca de Ross, ele era um homem sério e bastante reflexivo, dir-se-ia mesmo um homem com grande profundidade de sentimentos, enquanto Christina, quando queria, era alegre, deliciosamente sofisticada e essencialmente superficial. Contudo, Ross era de boas famílias, tinha as posses adequadas e, sobretudo, parecia disposto a casar com tão pouca antecedência.

- Vamos casar no fim do mês - anunciou Christina, encarando Emily na salinha da manhã, onde estavam sentadas diante do lume.

- Os meus parabéns - respondeu Emily, reflectindo sobre a possibilidade de Christina já poder saber se estava ou não grávida. Nesse momento, Emily teve o cuidado de não olhar para a cintura reveladora de Christina, no entanto, já o fizera previamente, ao fingir estar a admirar o vestido da amiga. Não viu quaisquer sinais disso. Contudo, ainda era cedo. Efectivamente, Charlotte já passara os quatro meses de gravidez e ainda parecia bastante normal. Claro que Charlotte era mais alta do que Christina e isso teria de ser levado em conta.

- Obrigada - respondeu Christina, com entusiasmo. - Gostaria que estivesse presente, se puder?

- Com certeza. Será maravilhoso. Que igreja escolheu?

- A de St. Clement. Já está tudo tratado.

- Suponho que tenha uma boa modista? É tão enervante quando nos falham à última hora. Posso indicar-lhe alguns nomes, se ainda não estiver servida.

- Ah, já estou, obrigada. Miss Harrison é de confiança.

- Ainda bem. - Emily podia sentir uma certa contenção, algo sob a superfície que Christina desejava desabafar com alguém sem poder, no entanto, decidir-se. - Fará uma bela noiva - prosseguiu Emily. - Mr Ross tem muita sorte.

- Espero que sim.

Emily fingiu ficar moderadamente surpreendida.

- Tem dúvidas? Julgo que será para ele uma excelente esposa, se assim o desejar.

A expressão de Christina endureceu.

- Não estou certa de o desejar. Não sei se tenho vontade de prescindir da minha liberdade.

- Valha-me Deus, não há necessidade de prescindir da sua liberdade, ou seja do que for - excepto de dinheiro, claro está -mas até isso pode ser convenientemente gerido, com um pouco de antecipação.

Christina ergueu o olhar, fitando-a.

- Como assim? Vou casar com um homem por quem não estou apaixonada. Que maior sacrifício da liberdade existirá para além deste?

- Já era altura de lhe incutirem um pouco de bom senso.

- Minha cara, são muito poucas as mulheres que se casam com os homens por quem estão apaixonadas - afirmou Emily com veemência. - E mesmo as que o fazem, frequentemente se dão conta de que cometeram um erro. O tipo de homem por quem normalmente nos apaixonamos é divertido, espirituoso e bem-parecido. No entanto, o mais certo é que não disponha de posses para nos sustentar, sendo muito pouco fiável e acabando quase sempre por transferir os seus afectos para outra mulher. Para casar, precisamos de um homem com bom carácter e sentido para os negócios ou um rendimento confortável. Deve manter-se moderadamente sóbrio, evitar jogar em excesso e, para além de boas-maneiras, deve ter também uma aparência aceitável.

- Isso soa a alguém desesperadamente aborrecido - comentou Christina com azedume. - Não me parece que o George Ashworth fosse alguma vez assim!

- É possível que não, mas eu esforcei-me muito para além daquilo que a Christina estaria disposta a fazer. Não possuía as suas vantagens e tive de criar as minhas. Mr Ross, porém, aparenta falar bem e ser educado; segundo consta, tem posses; e não há dúvida que tem uma aparência bem agradável. Isso é bastante razoável e tudo quanto pode esperar.

- Talvez, mas não é tudo quanto desejo!

- Bem, desde que seja discreta, pode sempre vir a apaixonar-se depois. Contudo, de momento, o melhor conselho que lhe posso dar é que tente tirar o máximo proveito desta situação. A Chris-tina dificilmente será o tipo de mulher que se contentasse em fugir com um romântico qualquer sem um tostão, e quanto mais depressa aceitar esse facto, mais cedo poderá começar a aproveitar o que tem. E não se iluda, minha cara, pois vai ter de se esforçar.

- Esforçar? Não estou a perceber. Já me esforcei o suficiente. Vamo-nos casar antes do fim do mês. Com certeza que ele não me deixaria numa altura destas. Isso tornaria a sua posição insustentável.

Emily suspirou. Nunca pensara que uma rapariga pudesse ser educada com tanta ignorância. Em que teria pensado Lady Augusta? Ou talvez os Balantyne tivessem dinheiro e influência social suficientes - e Christina, beleza quanto bastasse - para descurarem esse aspecto. Ou talvez fosse possível que Lady Augusta lhe tivesse dado todos aqueles conselhos, sendo Christina simplesmente demasiado arrogante para acreditar neles.

- Christina - aconselhou, lentamente, - se deseja ser feliz, tem de perceber que a sua felicidade depende da que proporcionar ao seu marido, bem como da boa vontade que ele tiver em permitir que a Christina conduza a sua vida como bem entende. Tem de o ensinar a desejar aquilo que a Christina deseja e, se possível, até a convencê-lo de que a ideia foi dele. Se ele acreditar que foi ele quem sugeriu qualquer coisa, nunca lha recusará, mesmo que venha a mudar de ideias. Tem de aprender a ser sempre educada com ele, ou quase sempre; a nunca discutir com ele, e a nunca lhe desobedecer publicamente, mas, caso tenha de o fazer em privado, fazê-lo com um sorriso ou recorrendo às lágrimas. Não perca tempo a tentar ser razoável, os homens não estão a contar com isso e ficam desconcertados. Preste sempre atenção à sua aparência; não seja extravagante, ultrapassando os seus limites; e certifique-se de que os seus criados lhe mantêm a casa impecável. Não permita confusões domésticas - os homens não gostam de ver a ordem das coisas perturbada, acima de tudo, por querelas no seu lar.

- E se tiver algum admirador, pelo amor de Deus, seja discreta. Sempre, e por mais que isso lhe custe, seja discreta. Nenhum caso amoroso vale o sacrifício do seu casamento. E, para ser franca, minha cara, não a vejo apaixonar-se o suficiente para perder a cabeça. Quando muito o coração, ou os seus desejos, se não se conseguir conter. O melhor, no entanto, seria conter-se. Nunca se esqueça, porém, do que um escândalo pode fazer a uma mulher. O seu marido poderá tolerar tudo e mais alguma coisa, se o tratar bem, mas nunca um escândalo.

Emily olhou para o rosto bonitinho mas um pouco amuado de Christina.

- E só mais uma coisa - concluiu. - Caso ele venha a mostrar um interesse indevido por alguma mulher, finja que não percebe. Faça ele o que fizer, não lhe faça cenas. Os homens detestam cenas. O ciúme é o pior dos comportamentos. Nunca perca a cabeça e tenha cuidado com a frequência com que chora. Pode tornar-se bastante aborrecido e, quando mais precisar, já não terá qualquer efeito. Fico surpreendida por a sua mãe não lhe ter dado estes conselhos.

Christina fitou-a.

- Claro que mos deu. Há anos que o faz. Não lhes presto atenção. As nossas mães estão sempre a dar-nos bons conselhos.

Emily aguardou, retribuindo-lhe o olhar com firmeza. Chegara a altura de enfrentar a realidade. Por fim, Christina baixou o olhar.

- Não creio que deseje casar - proferiu calmamente. - Dá muito trabalho.

- Tem outra alternativa? - Emily foi brutal.

Os olhos de Christina estreitaram e o seu rosto contraiu-se.

- Como? - Perguntou, rispidamente. Emily fingiu-se inocente.

- Tem de se decidir - respondeu simplesmente, - e, faça o que fizer, decidir bem. Nenhuma de nós se pode dar ao luxo de fazer outra coisa. Na sociedade, toda a gente sabe o que os outros andam a fazer; é falado e nunca totalmente esquecido. Teria de viver com isso para o resto da sua vida, por isso, pense antes de fazer seja o que for. É tudo quanto lhe queria dizer.

Christina respirou fundo e expirou lentamente.

- Mas que criatura revoltantemente prática que a Emily é. Não me parece que haja em si uma gota de romantismo.

- Talvez não - concordou Emily. - Mas não confunda romance com amor. Sei amar. - Levantou-se. - Receio que o seu romance não passe de um capricho e os caprichos são uma forma de egoísmo que tem um preço a pagar.

- Não preterdo pagar se não for obrigada. Mas lembrar-me -ei do que me disse, quer escolha seguir os seus conselhos, quer não. Mesmo assim, poderá vir ao meu casamento, se quiser.

- Obrigada - respondeu Emily secamente. - Terei todo o gosto.

Emily decidira que, relativamente aos corpos enterrados na praça, Christina já não tinha qualquer interesse. Em primeiro lugar, não teria coragem ou determinação para praticar semelhante acto. Sem dúvida que Lady Augusta teria, mas, a não ser que Emily estivesse muito enganada a seu respeito, teria igualmente bom senso suficiente para não permitir que tal coisa sucedesse.

Assim sendo, estava na altura de virar a sua atenção para outras casas. Charlotte contara-lhe que era improvável ser Euphemia Carlton, embora não lhe quisesse explicar por que razão Pitt estava aparentemente satisfeito com essa hipótese. Apesar de o inspector ser uma criatura deveras peculiar, Emily nutria por ele um grande respeito - um respeito puramente profissional, é claro, uma vez que, socialmente, Pitt era impossível. Contudo, se ele estava satisfeito quanto a Euphemia, então, Emily também estava.

Emily tinha de ir mais além, investigando as outras casas assim que lhe fosse dada uma oportunidade. De acordo com o que Charlotte apurara, Reggie Southeron parecia o mais promissor, mas talvez fosse igualmente produtivo cultivar a amizade de Sophie Bolsover, descobrindo mais alguma coisa acerca de Helena Doran. Ela desaparecera cerca de dois anos antes, pela altura da morte da primeira criança. Seria possível existira ali alguma ligação? Porque nunca tinha ela escrito? Quem teria sido o amante que ninguém chegara a ver? Talvez ele também tivesse amado outras - obtendo resultados diferentes? O tempo que a primeira criança estivera enterrada - seria mesmo seis meses, ou mais? Tempo suficiente para ter sido concebida antes de Helena e o seu desconhecido amante terem partido? Não poderia ser essa a razão pela qual a criança fora morta - o resultado de um caso amoroso que acabara em abandono e em ódio? Era certamente um mistério que valia a pena resolver!

Tendo isto em mente, Emily planeava visitar Charlotte dois dias depois, sendo forçada a dedicar-se ao governo do seu lar na manhã seguinte, para resolver uma pequena questão relacionada com os criados e a permanecer em casa durante toda a tarde para receber visitas. Havia que cumprir certas obrigações sociais.

Contudo, na segunda manhã, Emily estava livre para poder entregar-se ao que realmente lhe interessava.

- Quem diabo vai você visitar a uma horas destas? - Inquiriu George, ainda sentado à mesa a tomar um pequeno-almoço tardio e a passar os olhos pelas colunas sociais do jornal. Estava muito elegante, no o seu roupão de seda. Emily tornou a pensar no quanto era afortunada por ter tido a possibilidade de se casar com um homem que lhe poderia oferecer todas as vantagens financeiras e sociais que ela desejava e a quem podia amar verdadeiramente. Claro que ele possuía muitas características nas quais, depois de concluída a fascinante questão de Callander Square, Emily esperava aplicar-se. Por outro lado, um casamento sem nada para aperfeiçoar tornar-se-ia intoleravelmente aborrecido; pelo menos, aos olhos de qualquer mulher.

- A Charlotte - respondeu. - Não importa a que horas a visito.

- Ultimamente tem demonstrado um invulgar afecto pela Charlotte - comentou franzindo ligeiramente o rosto. - O que anda a tramar, Emily?

- A tramar? - Arregalou os olhos.

- Sim, a "tramar", minha cara. Para andar tão contente consigo própria só pode estar a tramar qualquer coisa. Quero saber do que se trata.

Emily já previra aquela situação, tendo uma resposta preparada de antemão. - Estou a apresentar a Charlotte a alguns dos meus conhecimentos, num segmento da sociedade que lhe poderá agradar. -Respondeu tranquilamente. Não deixava de ser verdade, embora as razões fossem outras. Charlotte não se interessava por Callander Square, a não ser por motivos da investigação. Para todos os efeitos e com toda a honestidade, Emily partilhava dessa falta de interesse.

George lançou-lhe um esgar, por cima do jornal.

- Surpreende-me. Julgava que a Charlotte não se importava de todo com a sociedade. Eu diria que seria melhor não a forçar a fazer aquilo que ela não deseja fazer, apenas porque a apraz a si. Mas duvido que consiga. Se bem me lembro da Charlotte, não me parece que ela faça alguma coisa que não queira fazer. - Pousou o jornal. - Mas, caso ela, eventualmente, queira virar-se para a sociedade, porque não a convida para vir cá? Daremos uma festa para a apresentar adequadamente. É uma pessoa suficientemente bonita, talvez pouco tradicional, mas muito bonita.

- Não seja ridículo - apressou-se Emily a censurar. - Não tem nada a ver com a aparência, é a língua dela que me preocupa. Não podemos levar a Charlotte a lado nenhum, porque ela diz tudo o que lhe vem à cabeça. Se alguém lhe pergunta a opinião acerca seja do que for, em vez de pensar na resposta mais apropriada, dirá o que realmente pensa. Não lhe daria um mês para que, mesmo sem querer, caísse em desgraça socialmente, para não falar no que nos poderia suceder a nós. E claro que o Pitt não é um cavalheiro. Para começar, é demasiado inteligente.

- Não vejo por que razão um cavalheiro não possa ser inteligente, Emily. - Replicou, um pouco arreliado.

- Ah, claro que não, meu caro - respondeu com um sorriso. - Mas deve ter suficiente bom gosto para não o mostrar. Sabe disso. As outras pessoas sentem-se mal perante uma situação dessas, e é algo que implica algum esforço. Nunca devemos demonstrar esforço. É como o entusiasmo. Já reparou como as senhoras nunca se mostram entusiasmadas em público? Faz com que pareçamos tão ingénuas. Por outro lado, também não vejo nada que, publicamente, nos possa entusiasmar. Virá jantar?

- Combinámos ir jantar com a Hetty Appleby - informou ele, perscrutando-a com o olhar. - Presumo que se tenha esquecido?

- Completamente - confessou. - Agora, vou-me embora, pois tenho muito que falar com a Charlotte.

- De qualquer forma, pode sempre convidá-la para cá vir jantar - sugeriu, já ela estava a sair. - Gosto bastante da Charlotte. Pode não ser boa para a sociedade, mas acho que é suficientemente boa para mim!

Como seria de esperar, Emily encontrou a irmã em casa àquela hora do dia e Charlotte mostrou-se bastante satisfeita perante a ideia de se poder esquivar ao trabalho doméstico, muito embora fosse a primeira a admitir que a sua casa estava um caos desde que começara a dar assistência ao general Balantyne.

- Podemos eliminar a Christina - anunciou Emily, imediatamente, enquanto entrava e descalçava as luvas. - Estudei-a muito cuidadosamente e não me parece que ela tivesse coragem para isso.

Charlotte fez um esforço para esconder o seu sorriso, fracassando.

- Fico muito contente.

- Porquê? Não me venhas dizer que gostas dela?

- Ah não, não gosto! Mas gosto do general. E também me parece que gosto do Brandy.

- A sério? - Emily estava surpreendida. - Porque gostas do Brandy? Contei-te acerca da Euphemia Carlton!

- Sei que contaste. Onde pretendes investigar a seguir? Julgo que devíamos tentar o Reggie Southeron. Não há dúvida de que presta uma considerável atenção às suas criadas de fora. E não me parece que seja um hábito recentemente adquirido...

- Certamente que não. Mas, da mesma maneira, há que ter em conta o mistério da Helena Doran.

- Porquê, por amor de Deus? Já desapareceu há dois anos.

- Sei muito bem disso - respondeu Emily, impaciente. - Então e o amante dela? Seria ela a única? Por que razão não lhe fazia a corte abertamente, sendo ele um homem honrado? Porque é que ninguém sabe a identidade dele?

Charlotte compreendeu imediatamente.

- Queres dizer que ele pode ter seduzido outras e os bebés poderiam ser delas? O Thomas disse-me que as datas das mortes eram apenas uma estimativa. - Franziu um pouco o nariz. - Depende da natureza do solo, da humidade e por aí fora. Parece-me terrível pensar em seres humanos desta maneira: mas suponho que todos nós tenhamos, um dia, de ser enterrados. De qualquer forma, não passamos de barro, depois de a alma partir. É uma loucura o amor que temos pelo nosso corpo. Posso sondar um pouco a Jemima sobre isso.

Emily conhecia suficientemente bem a irmã para se aperceber sem esforço que aquela última frase se referia ao desaparecimento de Helena Doran.

- Como é que ela é, essa Jemima? - Perguntou.

- Muito fiável. - Charlotte via-a como uma testemunha, adivinhando acertadamente que Emily não estaria interessada nas suas qualidades de afabilidade e de humor.

- Suponho que não poderia ser ela. - Emily olhou para a irmã um pouco de esguelha.

- Não - respondeu Charlotte com veemência. - Pelo menos, diria que não, se é que podemos julgar as pessoas pelo seu carácter.

Emily ponderou por uns momentos.

- Não é - decidiu. - Mesmo assim, vamos começar por nos concentrar na Helena Doran. Não há dúvida que ali há mistério. Pergunta à Jemima e, por amor de Deus, tenta ser um pouco mais discreta do que o costume. Vou falar novamente com a Sophie Bolsover. Ela está sempre disposta a coscuvilhar. Tenho de pensar no que lhe poderei contar em troca.

Depois de ter passado mais algum tempo a discutir a questão e aproveitando o verdadeiro prazer que era estar com a irmã, Emily voltou para casa e preparou-se para lançar a sua próxima ofensiva. Em primeiro lugar, visitaria Sophie assim que a pudesse encontrar razoavelmente só. Em seguida, tentaria estabelecer algum tipo de contacto com a última mulher da praça cuja residência acreditava ser um possível esconderijo de segredos, Mariah Campbell.

Emily ficou bastante contrariada por não encontrar Sophie em casa e foi com um considerável mau-humor que deixou o seu cartão de visita, reunindo todas as suas capacidades no sentido de se lembrar de algum pretexto para visitar Mariah Campbell, ou seja, de uma desculpa adequada para visitar uma pessoa que não a convidara e que mal conhecia. Seria fácil deixar uma mensagem aos criados, mas para isso teria de perguntar acerca de qualquer coisa. O quê?

Já estava à porta. Não deixaria de parecer estranho permanecer numa carruagem estacionada e, assim, Emily tinha de se apear e confiar nas suas capacidades para se lembrar de alguma coisa, caso Mariah Campbell a pudesse receber.

Emily falou com a criada de fora e foi educadamente recebida. Sim, Mrs Campbell estava em casa e, sim, Mrs Campbell teria todo o gosto em recebê-la. Emily foi conduzida à pequena sala de estar da família, onde Mariah estava sentada com as suas filhas. Aparentemente, ainda não tinham recomeçado as lições após a celebração do Natal. Ambas as crianças se levantaram, fazendo-lhe uma vénia assim que Emily foi anunciada e retirando-se obedientemente.

Mariah Campbell era uma mulher com uma aparência agradável; não era bonita, mas possuía uma distinção que duraria para além da mera beleza. Estava convenientemente vestida, mas sem ceder aos requintes da moda.

- É tão simpático da sua parte visitar-nos - disse, levantando-se igualmente para cumprimentá-la, uma vez que Emily tinha um título e Mariah não. Mariah não mostrou falsa afabilidade. Mal se conheciam e tanto uma como outra estavam cientes disso. - Gostava de lhe oferecer qualquer coisa para beber. Talvez um chá?

- Gostaria muito - aceitou Emily. Não podia confessar a verdadeira razão que a levava lá - a curiosidade. Tinha de se lembrar rapidamente de outra. - Foi Lady Anstruther quem me disse -esperava sinceramente que não existisse tal pessoa, - que tinha passado uma temporada na Escócia, com os Tait, - outra invenção. - O meu marido está com muita vontade de lá ir também - fomos convidados, sabe. Ouvi dizer que a casa deles é bastante impossível! Fria como um túmulo e com criados que nunca encontramos quando precisamos deles e que nem sequer falam inglês. Estava com esperança que me pudesse dizer se é verdade ou não. A querida Marjorie tem tendência a exagerar, a colorir as histórias que conta para lhes dar mais vida!

Mariah parecia totalmente baralhada. O mais certo era que ainda fizesse menos ideia do que Emily queria acerca daquele assunto.

- Receio não poder informá-la - admitiu. - Lady Anstruther... não foi o que disse?... Deve ter-me confundido com outra pessoa. Campbell é, de facto, um nome escocês, mas também devo dizer que é muito comum. E eu própria nunca estive na Escócia. Peço desculpa, mas não posso dar-lhe qualquer orientação.

- Ah, não faz mal - Emily sacudiu a mão para encerrar o assunto, antes que se pudesse afundar totalmente e talvez contradizer-se, esquecida do que começara por dizer. - Acho que talvez consiga persuadir o George a não irmos de todo. De qualquer forma, não gosta assim tanto de caça. - Nem sequer fazia ideia se estavam ou não em época de caça. Mas, com sorte, talvez nem Mariah o soubesse.

- E, claro - prosseguiu Emily com um repentino rasgo de inspiração, - tenho de cá estar para o casamento!

Mariah piscou os olhos.

- Casamento?

- Da Christina Balantyne com Mr Ross! - anunciou Emily com entusiasmo. - Fico tão contente que o pobre Mr Ross se tenha recuperado inteiramente da súbita partida da Helena. Deve ter sido um grande choque para ele, pobre homem.

- Creio que foi um choque para todos nós - respondeu Mariah. - Pelo menos, foi uma surpresa. Eu não fazia de todo ideia.

- Não sabia, pelo menos, que ela tinha outro admirador? - Emily ergueu as sobrancelhas perante o mistério.

- Para lhe dizer a verdade, estava demasiado ocupada com a minha família para me ter dado muito com Miss Doran; ou, por assim dizer, com a maioria das famílias aqui da praça, excepto com a Adelina Southeron, evidentemente, por causa das filhas.

Isso pareceu encerrar o assunto. Mas Emily ainda não estava preparada para desistir.

- Estou certa que, se estiver disposta a isso, Christina poderá consolá-lo.

- Consolá-lo? - O tom de voz de Mariah demonstrava a sua compreensão, e a sua pena, por um sentimento tão brando.

Emily, porém, estava convicta do que dizia.

- Creio que sim. Julgo que isso é tudo quanto uma pessoa pode fazer pela outra. Considero que só nós é que podemos alcançar a nossa própria felicidade. Não lhe parece?

Mariah observou-a cautelosamente, mas antes que pudesse articular uma resposta, a porta abriu-se e Garson Campbell entrou. Emily apenas o vira uma vez e não gostara muito dele.

Aparentemente, Campbell lembrava-se dela.

- Boa-tarde, Lady Ashworth - cumprimentou-a. Não dirigiu a palavra a Mariah.

- Boa-tarde, Mr Campbell. - Emily esperava sinceramente que Mariah não lhe reproduzisse a ficção que ela inventara para justificar a sua visita. - Como está?

- Bastante bem - respondeu. - É muita gentileza sua vir visitar-nos.

- íamos tomar chá - informou Mariah, calmamente. - Quer juntar-se a nós?

- Não me parece - revirou os cantos da boca ligeiramente para baixo. - Duvido que pudesse contribuir para a vossa coscuvilhice. Prefiro algo um pouco mais próximo da política.

- Tal como? - Perguntou Emily, de imediato, antes de pensar que não seria do seu interesse irritá-lo.

- Perdão?

- Prefere algo um pouco mais próximo do quê, Mr Campbell?

- Estou a compreender onde pretende chegar, Lady Ashworth. Não faço ideia do que estavam a conversar. Deduzia, baseando-me meramente na experiência passada. Nunca conheci nenhuma mulher de bom-carácter com algum sentido político. Apenas as pegas parecem ter esse tipo de perspicácia.

- Não me diga? - Emily ergueu as sobrancelhas ao máximo, carregando a sua voz de humor. - Nunca discuti questões políticas com uma pega. Mas, de facto, posso dizer que conheço vagamente o primeiro-ministro.

- Peço desculpa, Lady Ashworth - desculpou-se com um sorriso seco. - Estavam a discutir política quando as interrompi?

- Claro que não. Estávamos a falar de Mr Ross e em quem poderia ter sido o admirador misterioso da Helena Doran. - Estudou-lhe o rosto. Os homens, por vezes, faziam confidências uns aos outros. Era possível que ele soubesse. A pele dele escureceu, ao contrair-se por momentos em redor das têmporas. Emily sentiu-se deliciada com a sua vitória. Ele sabia alguma coisa!

- É muito simpático da sua parte oferecer-me chá - Emily levantou-se, - mas receio ter aparecido sem ser convidada e não queria incomodar. Tive muito gosto em conhecê-la um pouco mais, Mrs Campbell. Espero que nos voltemos a encontrar. - Naquele momento, desejava sair daquela sala e afastar-se de Garson Campbell antes que ele pudesse adivinhar as suas intenções. Era um homem com quem não desejava defrontar-se.

Mariah não pareceu surpreendida.

- Terei muito gosto - respondeu, ao mesmo tempo que puxava o cordão da campainha. - Foi muito amável em ter vindo visitar-me. Lamento não a ter podido aconselhar quanto à Escócia.

- Ah, por favor, não se preocupe. - Emily já se encaminhava para a porta, podendo ouvir a criada já no átrio. - De qualquer forma, não me parece que vamos, especialmente se este tempo horrível continuar.

- Vai continuar, Lady Ashworth - afirmou Campbell do centro da sala. - É sempre assim, desde Janeiro até Março, invariavelmente. Nunca dei conta que fosse diferente. E a única diferença é que na Escócia está bem pior.

- Então, definitivamente não irei - replicou Emily, quase indo de encontro à criada. - Obrigada pelo seu conselho. - Deixou-o a sorrir com algum desprezo pela sua insensatez e escapou para a rua. Apesar do frio e de lhe parecer que faltava uma mola na suspensão da carruagem, foi com alívio que partiu. Pelo menos, era poupada à necessidade de desenvolver uma conversa cada vez mais impossível. Que homem tão desagradável! Se havia alguma coisa mais irritante do que as pessoas estúpidas, eram aquelas que julgavam saber tudo - e que não gostavam de nada.

Quando voltou a visitar Sophie Bolsover, encontrou-a acompanhada de Euphemia e de Adelina Southeron, não podendo, por conseguinte, perguntar nada sobre Helena Doran, nem esperar obter respostas com alguma importância. Passaram-se vários dias repletos de tédio e de desesperada impaciência até poder visitá-la de novo.

Desta vez, teve mais sorte, embora não se pudesse dizer que a sorte tivesse muito a ver com isso. Tinha feito um pouco de reconhecimento prévio, descobrindo que Sophie estava satisfatoriamente sozinha.

- Ah, Sophie, que prazer encontrá-la desocupada - tratou de declarar imediatamente, sem fingimento. - Tenho umas novidades tão maravilhosas para lhe contar. Teria ficado tão decepcionada se tivesse de me limitar a falar de trivialidades.

O rosto de Sophie iluminou-se instantaneamente. Nada lhe dava mais prazer do que a coscuvilhice, e ainda mais quando esta vinha de uma senhora com um título.

- Entre - convidou. - Ponha-se à vontade, cara Emily, e conte-me tudo. E acerca de Lady Tidmarsh? Tenho andado simplesmente morta por saber se realmente ficou em casa daqueles horríveis Jones! Mal posso esperar.

Era precisamente isto que Emily estava à espera de ouvir, pois tinha conseguido a muito custo a informação.

- Claro! - respondeu, triunfante. - Mas tem de me prometer que não o repete a ninguém! - Aquele era um ingrediente irresistível. Sophie tentou ocultar a sua ansiedade, com os olhos a brilhar de excitação, e quase atirou Emily para o sofá ao lado do lume, aninhando-se imediatamente como um gatinho.

- Conte-me! - Implorou. - Conte-me tudo!

Emily fez-lhe a vontade, embelezando a história com um ou outro pormenor que pudesse estar próximo da verdade, para lhe dar mais cor. Quando terminou, Sophie estava extasiada. Ficara com histórias que podia voltar a contar às pessoas a quem quisesse impressionar, uma a uma, sempre com promessas de sigilo; e evidentemente que poderia recusar contá-las a quem pretendesse irritar, fazendo muitas alusões quanto ao interesse e exclusividade da informação, que não poderia, de modo algum, divulgar. Por outro lado, seria apenas humano sugerir que ainda sabia mais, mas que teria de manter segredo absoluto. Estava fora de si de contente. Chegara a altura perfeita para a interrogar sobre Helena Doran. Sophie dir-lhe-ia tudo quanto sabia ou, até, que deduzia. Emily não tentou disfarçar o seu interesse.

- Ah, - suspirou Sophie, radiante, - com certeza. - Em seguida, franziu o sobrolho. - Mas isso agora já é velho! A sério que está interessada?

- Estou, pois - garantiu-lhe Emily. - Parece-me fascinante. Quem poderia ter sido ele?

Sophie contraiu o rosto, concentrada.

- A Helena era muito bonita, sabe, quase uma verdadeira beleza, pode-se dizer. Um cabelo com a cor do sol de Inverno ou, pelo menos, era o que costumava dizer Mr Ross. Ficou bastante perturbado, sabe?

- Espero sinceramente que venha a ser feliz com a Christina. Ela é completamente diferente, seria impossível ser mais. De aparência, naturalmente, bem como de feitio.

- Como era a Helena? - Perguntou Emily, inocentemente.

- Ah, - Sophie pôs-se a pensar mais uma vez. - Calma, não excessivamente elegante. Claro que não precisava de ser, era suficientemente bonita para se poder vestir com simplicidade. E não precisava de ser espirituosa. Tocava muito bem piano e também costumava cantar. As vezes também gostava de saber cantar. A Emily sabe?

- Nem por isso. Ela era reservada?

- Calma, sim. Quando me ponho a pensar nisso, ela não tinha muitas amigas chegadas. Gostava da Euphemia Carlton.

- Que tipo de homens admirava ela?

Sophie contorceu o rosto, esforçando-se por se recordar.

- Homens importantes, não só a nível material, mas também homens que tivessem tido êxito em qualquer coisa, que estivessem bem estabelecidos na vida. Na verdade, julgo que homens mais velhos. Talvez fosse porque passou anos sem um pai, pobre criança. Certamente que admirava o general Balantyne, se bem me lembro.

Um homem tão bem-parecido, não lhe parece? Com um tal ar de autoridade e uma tal dignidade. Se não amasse o Freddie, gostaria bastante dele!

- Foi por essa razão que ela não desposou Mr Ross. Porque não tinha substância suficiente para ela, por ser demasiado jovem? - Indagou Emily.

- Sabe, embora não me tenha ocorrido, pode bem ser esse o motivo. Ela admirava a segurança num homem. Embora não gostasse mesmo nada do pobre Reggie Southeron. Mas ele também é tão irresponsável! Não tem o tipo de... o que os Romanos costumavam chamar de gravitas, de acordo com o Freddie. Tão masculino, gravitas, não concorda? Verdadeiramente, bastante excitante!

- Então jamais teria fugido com um romântico sem um tostão? Ou com alguém de uma classe social inadequada? - Perguntou Emily. O mistério estava realmente, a aprofundar-se! Era fascinante e cada vez mais incompreensível.

Os olhos de Sophie arregalaram-se de surpresa.

- Não! Não o faria, agora que penso nisso. Oh minha querida, supõe que ele já fosse casado com outra pessoa e que simplesmente tivessem fugido? Ah, que horror!

- Onde crê que se possam ter conhecido? - Prosseguiu Emily.

- Se se tivessem encontrado em festas ou coisa do género, as pessoas saberiam quem ele era... mas ninguém sabe!

- Ah, deve ter sido nalgum lugar secreto - concordou Sophie.

- Nem a Laetitia sabe quem ele era. Pelo menos afirma que não e porque havia ela de mentir? A não ser, está claro, que fosse alguém simplesmente horrível! Mas não estou a ver a Helena apaixonar-se por alguém horrível. Era demasiado orgulhosa para isso, e exigente.

- Era exigente?

- Ah, muitíssimo! Não, eles só se podem ter encontrado secretamente nalgum local.

- Bem, devia ser perto daqui, não lhe parece? - Pensou Emily em voz alta. - Senão ela teria de ir de carruagem e nessa altura, pelo menos o cocheiro ficaria a saber. E nunca devemos confiar nos cocheiros, a não ser que lhes paguemos, e mesmo assim, há sempre alguém que lhes pode pagar mais. Não, é um bom conselho dizer que nunca se deve confiar nos criados, especialmente se forem homens, pois tendem a aliar-se uns com os outros.

- Então, onde? - Perguntou Sophie. - Ah! Mas é óbvio! Já sei. Pelo menos sei precisamente o que devo fazer!

- O quê? O quê? - A compostura de Emily desapareceu completamente.

- Ora, a casa vazia, é claro! Aquela casa no lado oposto da praça que está vazia há anos! Pertence a uma velhota que nem a quer vender, nem a quer habitar. Creio que prefere a França, ou algum sítio igualmente estranho. Agora, está bastante abandonada, mas dantes era muito bonita, e tem um anexo nas traseiras. Tem de ser ali! Não lhe parece que fui muito esperta em pensar nisso?

Emily pensou para consigo que Sophie era bastante tola para não se ter lembrado imediatamente disso, mas naturalmente que seria desagradável e pouco diplomático dizê-lo.

- Ah, mas com certeza! - Concordou com entusiasmo. - E não tenho qualquer dúvida que tem toda a razão. E, acho que ainda um dia vamos conseguir descobrir quem ele era.

- Talvez se formos lá ver? - Sugeriu Sophie. - Podemos até encontrar pequenas coisas que eles possam ter deixado para trás! O que lhe parece?

Emily já tinha resolvido fazer isso assim que se mencionou a casa. Não desejava levar Sophie consigo, mas parecia não ter outra escolha.

- Que ideia excelente - concedeu. - Assim que o tempo melhorar. Pensarão que somos muito extravagantes e atrairemos atenções desnecessárias se lá formos com esta chuva. Amanhã, se o tempo estiver mais seco, virei ter consigo para irmos juntas. -Fitou Sophie com um olhar firme para lhe dar a entender que, caso ela fosse antes, Emily nunca mais lhe contaria nada. Deduziu, a partir da expressão de Sophie, que esta compreendera perfeitamente a mensagem.

Emily pôs-se de pé.

- Minha cara, há meses que não fazia uma visita tão excitante. Ficarei ansiosamente à espera do nosso próximo encontro. - Dirigiu-se à porta e Sophie acompanhou-a, esquecendo-se de chamar a criada de fora, tão concentrada estava no dia seguinte.

Ao chegar à porta, Emily voltou-se.

- Ah, não se vai importar se trouxer a minha irmã, Charlotte, pois não? É uma pessoa muito inteligente e poderá ajudar-nos.

A expressão de Sophie abateu-se por uns momentos, para se tornar a animar com a referência à ajuda.

- Não, claro que não - garantiu. - Sendo sua irmã, com certeza deverá ser encantadora.

Emily teria discutido acerca disso. Charlotte só era encantadora quando queria e duvidava que Sophie fizesse sobressair o que nela havia de melhor, mas isso, agora, não tinha muito interesse. Esboçou um sorriso devastador a Sophie e despediu-se, com o coração a cantar, triunfante.

As suas orações foram atendidas e, no dia seguinte, o tempo estava frio e seco. Emily foi buscar prontamente Charlotte a casa dela antes mesmo que a irmã pudesse acabar de almoçar, prosseguindo a passo rápido para Callander Square. Foi no caminho que aproveitou para explicar a sua missão, bem como a necessidade de tanta pressa. Emily não confiava inteiramente em Sophie, não fosse esta esgueirar-se até à dita casa sozinha, descobrindo, dessa forma, o que quer que lá estivesse, antes que ela e a irmã chegassem. Não teria ido de manhã, porque o tempo ainda estava bastante húmido e gélido, mas, à tarde, bem poderia lá ir sem Emily, confiante de não vir a ser apanhada em flagrante.

Chegaram a Callander Square e apearam-se da carruagem, pedindo ao cocheiro e ao trintanário que ficassem ali à espera. Em seguida, anunciaram-se a Sophie, que as esperava já pronta, de botas calçadas e com o criado a segurar-lhe no casaco. Passados cinco minutos, estavam diante da entrada para o jardim da casa desabitada. Foi preciso o peso das três para abrir o portão, uma vez que estava fechado há muito tempo.

Hesitaram antes de entrar.

O jardim lá dentro estava imóvel e frio, com as árvores envoltas em gelo, as pedras do caminho cheias de musgo e de limos. A relva estava coberta de folhas mortas e pelos canteiros só se via folhagem podre. Se existisse ali alguma coisa com vida, estava a dormir profundamente para só despertar na Primavera.

- Nenhum jardim devia ser assim - declarou Charlotte calmamente. - Alguém, a dada altura, terá tratado cuidadosamente dele e andaram por aqui pessoas a conversar e a passear umas com as outras.

- A Helena Doran e mais alguém. - Respondeu Emily, prática. - Vamos entrar.

Sem produzir qualquer som ao calcarem as folhas mortas, avançaram relutantemente e Charlotte fechou o portão atrás delas para ocultar a sua presença. Seguiram o caminho com alguma dificuldade, receando escorregar nas pedras viscosas. O caminho dava a volta à casa e desaparecia no relvado, nas traseiras. O relvado estava ensopado e igualmente coberto de folhas. Ao centro, ficava um pavilhão de madeira com o telhado de colmo a desabar. Como seria de esperar, o colmo fora debicado e levado pelos pássaros ao longo dos anos.

- Ali está - anunciou Emily, triunfante. - Aquele é o ponto de encontro de quaisquer amantes. - Precipitou-se ruidosamente pela relva molhada em direcção ao pavilhão, prendendo a saia nos ramos e nas folhas. Charlotte apanhou-a, mas Sophie continuou a saltar cuidadosamente de pedra em pedra pelo que restava do caminho.

Charlotte e Emily dobraram a esquina do anexo e espreitaram lá para dentro. Estava muito delapidado, com o tecto a ceder e os fundamentos a apodrecerem e a cair por todo o lado.

- Oh Céus! - disse Emily, decepcionada. - Pergunto-me se isto tudo poderia ter acontecido em apenas dois anos.

- Não nos interessa - declarou Charlotte atrás dela. - Não te esqueças que estamos em Janeiro. No Verão, isto seria muito diferente. As árvores teriam folhas e poderíamos ver flores e pássaros por aqui. Isto seria mais uma espécie de jardim secreto. Não se haviam de importar se estivesse um pouco abandonado.

- Um pouco!

- Para ser mais exacta - Charlotte olhou em redor, - vês aqui alguma coisa que te leve a pensar que isto possa ter sido usado? Ela pode ter deixado cair um lenço, ou qualquer coisa, ou ter rasgado um pedaço do vestido. O que não faltam aqui são galhos aguçados.

Começaram as duas a procurar e Sophie juntou-se a elas. Após vários minutos, ficaram convencidas que não havia ali nada para ser descoberto e Charlotte, seguida de Emily, saiu pela outra porta para as traseiras do jardim. Sophie ficou para trás, ainda não satisfeita com o resultado da sua busca.

Depois de passar os arbustos Charlotte deteve-se subitamente, fazendo Emily chocar contra ela.

- O que se passa contigo? - Perguntou, zangada, para, em seguida, espreitar por cima do ombro da irmã sentindo o calor fugir-lhe do corpo.

Estavam ao lado de um pequeno relvado debaixo de uma grande árvore. De um dos ramos pendia um baloiço e nele, com os dedos esqueléticos ainda presos às cordas, estavam os ossos envoltos em farrapos do que antes fora uma mulher. Os restos do seu vestido escorregavam pelo assento do baloiço, enegrecidos pelas chuvas e pelo sol. Moscas e pequenos animais tinham-lhe devorado a carne e não restava mais nada senão alguma pele ressequida e cabelo amarelo-claro, bem como as unhas das mãos. Grotescamente, os atilhos de osso de baleia do espartilho ainda se mantinham intactos, caídos sobre onde antes seria a barriga e, sobre eles, libertos do útero, estavam os pequenos e frágeis ossinhos de uma criança por nascer.

- Helena - sussurrou Charlotte. - Pobre Helena.

 

Reggie Southeron chegou a casa depois de uma tarde de jogatina para encontrar Adelina pálida e lavada em lágrimas. Era irritante. Ele próprio estava extremamente bem disposto, tendo arrecadado uma bela soma de dinheiro, partilhado um brandy excelente, óptimos charutos e anedotas ainda melhores. Fazia questão absoluta de manter o mesmo optimismo durante toda a noite, e dar com Adelina naquele estado era manifestamente deprimente. Tentou afastar-lhe a tristeza, brincando com ela. Afinal de contas, as mulheres choravam com tanta facilidade, o mais provável é que não tivesse um motivo muito importante.

- Não se sente bem? - Perguntou, alegremente. - Não se preocupe, há-de passar. Beba meio copo de brandy, dá-lhe logo mais energia. Eu faço-lhe companhia.

Para sua surpresa, Adelina aceitou e, minutos depois, estavam ambos na sala de visitas, com as cortinas fechadas para os abrigar da noite, a partilhar o calor de um bom lume. Subitamente, Adelina recomeçou a chorar, pressionando um lenço contra os olhos.

- Por amor de Deus, minha cara - exclamou, um pouco bruscamente. - Recomponha-se! Não consegue nada a choramingar.

Adelina lançou-lhe um olhar triste, limpando os olhos com mais força.

- Posso apenas deduzir que ainda não sabe - respondeu, indignada.

- Não sei - concordou. - E se isso a põe tão infeliz como parece estar, não creio que deseje saber. Lamento se algum tipo de calamidade sucedeu a alguém, porém, uma vez que não posso ajudar, prefiro permanecer alheio aos pormenores sórdidos.

- Tem o dever de saber! - Retorquiu, acusadoramente. Apesar dos protestos de Reggie, Adelina não o deixou detê-la.

- Encontraram a Helena Doran!

- E essa a razão das suas lágrimas? Ela fugiu. Se agora não gosta das circunstâncias em que se encontra, é uma pena, mas dificilmente será responsabilidade nossa!

- Está morta! - Adelina deixou cair a palavra como uma praga. - Há dois anos que está morta, ali sentada no baloiço do jardim da casa vazia, sozinha, como se ainda estivesse viva. É evidente que deve ter sido assassinada!

Reggie não queria acreditar. Era horrível, uma perturbação grosseira e feia no meio de tudo o que era seguro e confortável - de tudo aquilo de que ele gostava.

- Porquê, evidente? - Exigiu saber. - Pode ter morrido com um ataque cardíaco, com uma trombose, ou algo do género.

- Estava de esperanças!

- Quer dizer que lhe fizeram uma autópsia? - Perguntou com alguma surpresa e nojo. - Já?

- Não passava de um esqueleto - recomeçou a chorar. - Havia ossadas. A Nellie contou-me.

- Quem é a Nelíie? - Não lhe ocorria ninguém.

- A auxiliar de cozinha. Nem sequer se consegue lembrar do nome das suas próprias criadas?

Reggie estava verdadeiramente surpreendido.

- Por que diabo deveria eu sabê-los? Não me parece que a tenha, alguma vez, visto. Lamento quanto à Helena, mas realmente, minha cara, é um assunto bastante lamentável. Falemos de outra coisa. Estou certo de que se sentirá melhor. - Foi tomado por uma súbita inspiração. - E não queremos afligir as crianças. Conseguirão perceber se nos virem perturbados. Não me parece que este seja o tipo de assunto mais apropriado para elas. - Na verdade, tratava-se de uma esperança ridícula. Pelo menos Chastity havia de descobrir tudo, até ao mais ínfimo pormenor - se é que não sabia já: mas a Reggie parecia ser a atitude mais solidária e sensata.

Apesar de o contemplar com desconfiança, Adelina preferiu não discutir.

Reggie acomodou-se para passar um agradável serão diante do lume, preparando-se para um bom jantar, regado com um pouco de vinho do Porto; e talvez com mais um gole de brandy. Uma vez que tanto Helena como os seus problemas já não tinham volta a dar, ninguém ganharia nada em debater-se com assuntos tão desagradáveis, relacionados com cadáveres em jardins húmidos, assassínios e coisas parecidas.

Todavia, a sua paz foi interrompida por volta das nove horas quando o mordomo lhe trouxe uma nova garrafa de vinho do Porto, aproveitando para anunciar a presença do doutor Bolsover.

Reggie endireitou-se na cadeira e abriu os olhos.

- Está bem, o melhor é mandá-lo entrar - declarou, com relutância. Não estava com muita disposição para conversas, mas Freddie era um tipo simpático, de boas maneiras, que apreciava conversas civilizadas e um bom vinho do Porto. - Traga outro cálice, está bem?

- Já trouxe, senhor. Vou pedir ao doutor Bolsover para entrar. Mrs Southeron ainda está lá em cima.

- Ah, ainda bem. Sim, obrigado. É tudo. - Voltou a reclinar-se. Graças a Deus não tinha necessidade de se endireitar e ser formal com Freddie.

Freddie entrou momentos depois, elegantemente vestido com uma casaca cor de vinho que lhe favorecia a tez clara das faces.

- Boa-noite, Freddie - cumprimentou Reggie com indolência. - Sirva-se de um cálice de Porto. Está uma noite horrível, não está? No entanto, temos aqui um belo lume. Sente-se.

Freddie fez o que lhe foi dito e, com um cálice de vinho do Porto na mão, acomodou-se na cadeira em frente de Reggie. Tomou uns goles lentos, saboreando a bebida na boca.

- Um assunto horrível, o da pobre Helena Doran, não é? -Começou, lançando um olhar a Reggie.

Reggie ficou irritado. Não desejava falar sobre isso.

- Horrível - concordou, sucintamente. - Contudo, é um assunto encerrado.

- Ah, dificilmente - discordou Freddie, com um sorriso.

- Ela está morta. - Reggie afundou-se mais ainda na cadeira.

- O assunto não poderia estar mais encerrado.

- É o fim da Helena, pobre rapariga. - Concordou Freddie. Ergueu o copo contra a luz para apreciar a cor intensa da bebida.

- Mas é só o princípio de muitas outras coisas.

- Tais como?

- Bem, para começar, como é que ela morreu? - Os olhos azuis-claros de Freddie fixaram-se em Reggie. - E quem a matou? Sabe perfeitamente que a Polícia vai querer esclarecer essas coisas.

- Pode ter morrido de causas perfeitamente naturais. - Reggie considerava toda aquela questão assaz desagradável. Gostaria que Freddie se deixasse disso. - De qualquer forma, não nos diz respeito.

- Ter a Polícia espalhada por aqui diz-nos respeito, e muito.

- Freddie continuava a observá-lo, com um vago sorriso nos lábios. Um tipo encantador, Freddie, mas com menos sensibilidade do que Reggie estaria à espera. Um assunto terrível para se trazer à baila na casa de alguém, a beber um vinho do Porto.

- A mim não. - Reggie esticou as pernas. O lume estava mesmo excelente, aquecendo-o dos pés à cabeça.

- Ah, vão andar atrás de todos nós, a fazer perguntas outra vez. É o mais certo.

- Não sei de nada. Não posso ajudar. Não faço ideia de quem era o amante dela. Não me interesso por esse tipo de coisas. Assunto para mulheres, coscuvilhices. Ele que pergunte às mulheres, se é que é bom naquilo que faz.

- O Pitt?

- Se for esse o nome dele.

- Não tenho dúvidas de que o fará. Mas também virá falar connosco. - Freddie afundou ainda mais no cadeirão de cabedal.

- Não tenho nada para lhe dizer - Reggie acabou o seu cálice de vinho do Porto e serviu-se de um pouco mais. A sala parecia irradiar um vermelho mais intenso e um calor cada vez mais forte.

- Absolutamente nada.

Fez-se silêncio por uns momentos.

- Suponho que não foi você? - Perguntou Freddie, subitamente.

- Eu? - Reggie já se afastara da questão e a sua mente já divagava para outros temas mais agradáveis, como mulheres bonitas - mais precisamente, Jemima. Uma criatura encantadora, tão feminina. - De que está a falar?

- Do amante da Helena, está claro. - Freddie ainda sorria ligeiramente. - Não era você, pois não, meu caro?

- Deus do Céu! - Reggie soergueu-se uns bons dez centímetros da cadeira. - Claro que não!

- Pensei apenas que pudesse ter sido. Afinal de contas, você tem uma queda para esse tipo de coisas.

- Uma queda! Que raio quer dizer com isso? - Reggie sentia-se ofendido. Era um comentário muito grosseiro.

- Queda para mulheres jovens - Freddie não parecia minimamente intimidado. - A Mary Ann, a Dolly e sabe Deus quem mais?

- A Mary Ann é uma criada de fora! - Defendeu-se Reggie, indignado. - Toda a gente tem um fraquinho por criadas de quarto, uma ou outra vez, com franqueza! E a Dolly já foi há muito tempo. Preferia não falar nisso. Julgava que já lho tinha dito.

- Ah, estou certo que não tem vontade tocar nesse assunto, -concordou Freddie. - Especialmente agora.

- O que é que quer dizer com especialmente agora? - Reggie não estava a gostar do rumo da conversa. - Porquê agora?

- Bem, aparentemente, a Helena também estava grávida -, Freddie encarava-o directamente, sempre com um sorriso nos lábios. - E depois, temos os bebés enterrados. Se soubessem acerca da Mary Ann e da pobre Dolly, poderiam tirar a péssima conclusão de que estava tudo ligado. Não lhe parece?

Subitamente, o calor do lume queimava as pernas de Reggie, mas deixava-o subitamente frio por dentro. Aquela ideia era cons-ternadora e aterrorizante! Tinha a boca seca. Fitou Freddie, tentando fingir que não estava a perceber - a fingir para si próprio.

- Creio que entende. - O sorriso de Freddie estava-lhe fixo na cara, parecia suspenso no ar diante de Reggie, como se não houvesse mais nada na sala. - Percebe o que lhe quero dizer? - Insistiu Freddie.

- Sim. - Reggie ouvia a sua própria voz soar ao longe. Aliviou a garganta e a voz voltou, mais aguda do que pretendia. - Mas não o farão, quero dizer, não há motivos para que venham a saber. Você é a única pessoa que sabe disso, acerca da Dolly, quero dizer.

- Certo. - Freddie alcançou o vinho do Porto e serviu-se de um pouco mais, sem nunca desviar o seu olhar de Reggie, contemplando-o por cima do copo. - Então tudo depende bastante de mim, não é verdade?

- Ora, por amor de Deus, não lhes vai dizer nada! Ou vai?

- Ah, não. - Freddie tomou delicadamente um gole do seu vinho. - Não, não me parece que alguma vez o fizesse. - Tornou a beber um gole. - Desde que me lembre do que disse e não me contradiga.

- Não se vai contradizer!

- Espero bem que não. Mas é bastante importante, sabe. Dava-me jeito um pequeno lembrete.

- O que... O que quer dizer com isso, Freddie?

- Um lembrete - repetiu Freddie, com descontracção, - alguma coisa que me avive a memória, que esteja lá sempre e que seja suficientemente grande para ser importante.

Reggie fitou-o, estarrecido. Começava a dar-se conta do que se estava a passar e não lhe parecia nada bem.

- Em que é que estava a pensar, Freddie? - Indagou lentamente. Gostaria de o ter agredido, espancado, ali sentado diante do lume. Sabia, porém, que não podia dar-se ao luxo de o fazer. A Polícia estava demasiado ocupada à procura do que pudesse ser diferente, naquele momento. É evidente que, depois de tudo aquilo estar concluído e quando a vida voltasse a decorrer como antes, teria muitas oportunidades para tratar da saúde a Freddie. Aquele tipo era um facínora.

Contudo, entretanto...

- O que pretende, Freddie? - Tornou a perguntar. Freddie mantinha o sorriso. Tomara-o por um tipo tão encantador! Tinha um sorriso tão franco, que lhe favorecia tanto os traços!

- Tenho uma conta exorbitante a pagar no alfaiate - Freddie parecia completamente à vontade. -Já tenho essa dívida há muito tempo. Dê-me uma mãozinha, meu caro. É um favor que me faz.

Sentir-me realmente dono da minha roupa, em vez daquele maldito alfaiate... ficar-lhe-ia imensamente agradecido.

- Acho bem que fique, caramba!

- Fico, isso lhe garanto. Hei-de lembrar-me de si sempre que me estiver a vestir.

- Quanto quer?

- Aí umas cem libras devem chegar.

- Cem libras! - Reggie estava desfeito. Nem num ano gastava uma soma daquelas em roupa e nunca daria sequer metade para o vestuário de Adelina. Diabos o levassem, ele pagava às criadas apenas vinte libras por ano. - Como, em nome de Deus, se permite...?

- Sabe, é que gosto de me vestir bem. - Freddie levantou-se. Era alto, magro e elegante. De facto, vestia-se bem, muito melhor do que Reggie. Obviamente que tinha corpo para isso, mas mesmo assim! - Obrigado, meu velho - agradeceu alegremente. - Não me vou esquecer.

- Valha-o Deus, é melhor que não se esqueça! - Reggie podia sentir a ira e o pânico a crescerem dentro de si. Caso Freddie, efectivamente, se esquecesse ou voltasse atrás com a sua palavra...

- Não se preocupe - respondeu Freddie, descontraidamente. - Quando quero, tenho uma memória excelente. Sabe como é, sou médico. Os médicos nunca repetem aquilo que ouvem da boca dos seus pacientes. A Polícia não nos pode obrigar. É perfeitamente seguro. - Encaminhou-se graciosamente para a porta. - Levo as cem libras agora. Sabe que o alfaiate é um tipo impaciente. Não aceita mais encomendas até eu abrir os cordões à bolsa. Maldito sovina.

- Agora não as tenho - respondeu Reggie friamente. - Enviarei o lacaio ao banco logo de manhã. Amanhã já lhas dou.

- Sim, não se esqueça, Reggie. Ter boa memória poderá ser vital. Estou certo que compreende.

Reggie compreendia perfeitamente. Mandaria um criado ao banco, à hora de abertura. Maldito Freddie. E o pior de tudo era ter de continuar a ser simpático para aquele ordinário - não tinha outro remédio. Se cortasse relações com ele as pessoas haviam de reparar e Reggie tinha de manter a boa vontade de Freddie a todo o custo, pelo menos até que a Polícia desistisse e abandonasse a praça.

Depois de Freddie ter saído, Reggie tornou a sentar-se Ainda bem que Adelina não tinha voltado para a sala. Queria ficar só. Sofrera um choque considerável e quanto mais pensava nisso, pior lhe parecia. Quem havia de dizer que Freddie se portaria daquela forma? Que um sujeito pudesse ter falta de liquidez, toda a gente percebia. Mas recorrer a... bem... aquilo não era mais nem menos que chantagem.

Era evidente que tudo acabaria quando, das duas uma: ou a Polícia encontrasse a desgraçada da rapariga - o que era improvável - ou desistisse, o que, pelo andar da carruagem, parecia ser o mais plausível. Foi então que lhe ocorreu outra ideia extremamente desagradável. Que faria a Polícia se não fosse capaz de resolver um caso? Desistiria? Ou afastar-se-ia, mantendo-se sempre alerta. Destacando alguém para continuar a vigiá-los? Era uma possibilidade assustadora! E se nunca desistisse, persistindo, como se de uma chaga aberta se tratasse, abrindo-a sempre que ameaçasse cicatrizar? Isso seria muito mau - um rumor feio e permanente, nunca esclarecido nem desmentido.

Deus misericordioso! Então o que poderia ele fazer quanto a Freddie? O homem, caso fosse suficientemente ordinário, poderia ganhar o hábito de voltar lá vezes sem conta! Cem libras daqui, um favor social dali, ou uma dica financeira por debaixo da mesa, uma oferta disto ou daquilo... Deus do Céu, poderia nunca ter fim! Era monstruoso!

O melhor para Reggie seria aquele maldito Pitt descobrir os responsáveis, esclarecendo todo aquele desgraçado assunto. Nessa altura, Freddie poderia dizer o que lhe apetecesse. Certamente que, por uns tempos, daria cabo da reputação de Reggie e Adelina ficaria bastante consternada. Contudo, de qualquer forma, a relação deles já nem era assim tão próxima: não tinha muito a perder, em comparação com a possibilidade de ter Freddie a sugar-lhe o tutano! O facto em si, de ele, enquanto médico e amigo, ter atraiçoado a sua confiança, prejudicaria muito mais Freddie. Depois disso, quem mais iria confiar no tipo? Não, contar as coisas, sob pressão, à Polícia, era uma coisa e poderia ter desculpa, mas espalhar tudo por aí, como mera coscuvilhice, era imperdoável e Freddie certamente que o sabia.

Não, definitivamente, se Pitt descobrisse os responsáveis, Reggie estaria safo. Acomodou-se mais fundo na cadeira e tornou a esticar as pernas. Era realmente um excelente lume. Tocou a campainha para chamar o criado, deu-lhe instruções quanto à ida ao banco e pediu-lhe mais vinho do Porto. Nunca imaginaria que ambos conseguissem ter bebido uma garrafa inteira, mas ali a tinha, estava vazia; por isso só podiam tê-la acabado. Todavia, uma experiência deplorável como aquela exigia um pouco de estímulo. Era bastante natural.

Tratava-se de tentar ver o que podia fazer para ajudar aquele tipo da Polícia a resolver a questão, para que toda a gente soubesse quem era culpado e, consequentemente, quem não era: e a Polícia afastar-se-ia para voltar a lidar com o tipo de crimes para os quais estava realmente capacitada.

Reggie adormeceu, ainda a pensar no que poderia fazer para ajudar Pitt.

Tal como era seu costume, depois de acordar na manhã seguinte, Reggie levantou-se, foi vestido pelo seu criado de quarto e tomou um bom pequeno-almoço de papas de aveia, bacon, ovos, rins picantes, salsichas, cogumelos e várias torradas com manteiga e compota, acompanhados de um bule de chá acabado de fazer. Deveria sentir-se bastante melhor depois de uma tal refeição: mas não era isso que lhe acontecia. Com a luz matinal, cinzenta e sem graça, quanto mais pensava na probabilidade de a Polícia vir a descobrir a rapariga responsável, menos considerava possível que obtivesse algum êxito. Aquele tipo, Pitt, era decerto suficientemente esperto - lá inquisidor, era ele; mas onde encontraria provas? Afinal de contas, tudo acontecera havia meses, até anos! Poderia ter sido qualquer pessoa! Uma infeliz rapariga dos bairros circundantes! Não tinha de ser precisamente de Callander Square! Será que aqueles parvos tinham pensado nessa hipótese?

"Não sejas burro! Acalma-te, Reggie. Claro que pensaram. Foi provavelmente isso que passaram o tempo a fazer, quando não andavam por aqui. E eles passaram muito pouco tempo por estas bandas, tendo em conta que deviam trabalhar de manhã à noite, cinco ou seis dias por semana. Sim, obviamente que andaram a indagar por todo o lado." Recomeçou a sentir-se melhor e passou uma manhã bastante agradável a andar pela City, às voltas no banco comercial de que era um dos directores. Almoçou demoradamente no clube e às quatro e meia, quando começava a ficar escuro e a cair um chuvisco, já estava em casa. Na rua, a névoa obscurecia parcialmente os candeeiros a gás e o vento crescente fazia ramalhar as árvores. Estava uma noite horrível. Ainda bem que tinha um bom lume e uma boa mesa à sua espera.

Reggie cumprimentou as crianças com suficiente gentileza, bem como Adelina, e estava a descontrair após o jantar, quando alguém bateu à porta.

- Entre - ordenou, com alguma surpresa.

Chastity entrou, com um ar muito grave e toda bem posta.

- O que se passa, menina? - Estava ligeiramente irritado. Não lhe apetecia conversar.

- Tio Reggie, Miss Waggoner disse-me que lhe devo pedir autorização para aprender matemática. Por favor, posso?

- Não. Mas para que é que havia de precisar da matemática?

- Gostaria de aprender pelo gosto de saber - respondeu ela com gravidade. - O tio disse-me que isso era bom.

- A matemática não lhe serviria para nada - replicou decididamente.

- A pintura também não, mas o tio mandou-me aprender.

- A pintura é uma arte, o que é muito diferente. As mulheres devem ter a mestria de uma arte ou outra para que tenham com que se ocupar quando crescerem. De outra forma, como vai a menina empregar o seu tempo? - Era uma lógica irrepreensível. Ela não teria resposta possível. Reggie encarou-a com satisfação.

- Casarei com um polícia - respondeu de imediato. - E serei pobre, por isso vou ter de cuidar da minha própria casa. Nessa altura a matemática poderá fazer-me falta. Poderia subtrair coisas.

- Não seja ridícula! - Ralhou. Aquela criança, realmente, estava a ficar impossível. - Por que havia a menina de se casar com um polícia?

- Porque gosto deles. Gosto de Mr Pitt. Gostaria de me casar com ele, mas ele já é casado. Ele veio cá outra vez, hoje. Esteve a conversar com a Mary Ann. Não acredito que venha a descobrir quem é que matou aqueles bebés, sabe? É ele próprio quem o diz. Continuará a ser um mistério para todo o sempre. Havemos sempre de nos perguntar quem teria sido e pensaremos coisas horríveis uns dos outros e nunca ninguém saberá. Quando for muito velha, quando tiver aí uns cinquenta anos, contarei tudo aos meus netos, dizendo-lhes que a praça está assombrada por bebés a chorar, que foram mortos em tempos passados; que é agora; mas nessa altura já serão tempos passados e nunca ninguém saberá quem os matou. E faremos jogos para tentar adivinhar quem poderia ter sido e...

- Acabe imediatamente com isso! - Ordenou Reggie, furiosamente. Já não se lembrava quando fora a última vez que perdera a cabeça, mas aquilo era monstruoso. A criança só estava a dizer disparates - disparates absurdos, ridículos e assustadores. Estava a imaginar uma chantagem sem fim, que o sugaria até ficar vazio, perseguido pelo medo para o resto da vida! - Acabe com isso! - Gritou. - Isso não é verdade! Eles vão descobrir os responsáveis. A Polícia é muito esperta. O mais certo é que descubram e, provavelmente, fá-lo-ão muito em breve. - Ainda sentia o coração aos saltos, mas agora já estava mais controlado.

Chastity olhou para ele, surpreendida, porém sem perder a compostura.

- Acha que sim, tio Reggie? Eu não. Creio que vai ser um terrível mistério para todo o sempre e toda a gente vai passar o tempo a sussurrar acerca dele. Posso aprender matemática, por favor?

- Não!

- Mas eu quero.

- Pois bem, não pode!

- Por que não? - Perguntou, tentando perceber.

- Porque não. Agora vá para a cama. Já deve estar na hora.

- Não, só daqui a uma hora.

- Faça o que lhe dizem, menina. Vá para a cama. - Sabia que estava a ser completamente arbitrário, mas, também, uma pessoa não era obrigada a explicar nada às crianças, nem sequer a ter uma explicação. Podia fazer o que lhe apetecesse. Fazia bem às crianças aprenderem a obedecer.

Embora Chastity se tivesse retirado, como lhe fora ordenado, o seu olhar reflectia uma desilusão acrescida de um toque de ódio. Aquela impertinência incomodava-o.

Reggie ficou sentado na cadeira oposta à dela a revolver na sua cabeça um crescendo de pensamentos cada vez mais desagradáveis. E se Chastity tivesse razão e eles nunca descobrissem os responsáveis? Continuariam a falar nisso - afinal de contas, porque haviam alguma vez de parar? A coscuvilhice era o sangue vital do círculo social das mulheres. O que não era real ou sabido tinha de ser inventado! Era apavorante, mas verdadeiro. Certamente que haviam de surgir outras questões, outros escândalos, sem a menor dúvida. Porém, o mais pequeno despertar de qualquer suspeita faria ressuscitar este caso em toda a sua obscena especulação.

Freddie - Freddie saberia disso, aproveitando-se sempre. Deus Misericordioso, poderia passar o resto da vida a pagar-lhe, a ser sugado de toda a sua substância por uma sanguessuga - por um vampiro! Era terrível!

Deu por si de pé, sem se aperceber de se ter levantado. Tinha de fazer alguma coisa, disso não tinha dúvidas. Mas o quê? Tinha o cérebro feito em água, sem conseguir raciocinar. Não era capaz de agir sozinho, isso era certo. Não tinha ideias. Quem poderia ajudá-lo? Não podia permitir que Adelina soubesse de alguma coisa, pois havia de dar com a língua nos dentes. De qualquer forma, era uma das pessoas a quem a situação não podia ser revelada. Nunca compreenderia acerca de Mary Ann, quanto mais de Dolly. Tornar-lhe-ia a vida intolerável. Reggie valorizava o conforto e, acima de tudo, a descontracção e a harmonia do seu lar. Tinha de manter a todo o custo a fealdade e o trabalho árduo do mundo exterior fora das suas portas. Para além disso, e por razões puramente práticas, tinha de proteger a sua posição no banco, pois era uma situação muito lucrativa e agradável. Tinha influência.

Contudo, nada disso servia de nada naquele momento e podia ver tudo a escorregar-lhe por entre os dedos, ficando nu, exposto ao frio das duras realidades da vida - sem comida suculenta, sem grandes lumes, cadeiras fundas, tardes de Verão a comer morangos, criados para tudo e quantas festas quisesse. Nu, como um grande animal branco desprovido de pêlo ou da casca, prestes a secar na primeira tempestade de Inverno.

Tinha de encontrar ajuda. Quem era a pessoa mais prática que conhecia - a mais inteligente? A resposta não tardou a vir-lhe ao espírito, sem qualquer hesitação - era Garson Campbell.

Não havia tempo a perder. De qualquer maneira, nunca poderia descansar antes de tentar fazer alguma coisa, pois tinha a cabeça num turbilhão. Puxou o cordão da campainha para que o criado lhe trouxesse o casaco. Estava uma noite tenebrosa e detestava molhar-se, mas o desconforto interior era infinitamente pior e cada vez mais acentuado por cada novo pensamento que lhe vinha à cabeça.

Encontrou Campbell em casa e disposto a recebê-lo, embora, tendo em conta a urgência com que se fez anunciar, tivesse ficado muito surpreendido se isso não acontecesse.

- Pois bem, Reggie, qual é o pânico? - Perguntou Campbell com um sorriso ligeiramente cáustico. - O William ficou com a impressão de que estava um pouco transtornado.

- Meu Deus, Campbell, descobri uma coisa terrível! - Reggie deixou-se cair numa das cadeiras, olhando Campbell de baixo para cima, com o coração aos saltos. - Simplesmente assustadora!

Campbell mostrou-se impassível.

- Ah. Suponho que precisa de um cálice de Porto para o ajudar a recuperar. - Era uma observação e não uma pergunta.

Reggie endireitou-se na cadeira.

- Não estou a brincar, Campbell, isto é sério, caramba!

De pé ao lado do aparador, Campbell voltou-se para o encarar, talvez intrigado pelo seu tom de voz.

Reggie podia sentir o pânico a crescer dentro de si. E se Campbell não o ajudasse?

- Estou a ser vítima de chantagem! - Desabafou. - Por dinheiro! Pelo menos, por agora, é só dinheiro. Só Deus sabe o que mais pode vir a ser! Campbell, a minha vida pode ser totalmente arruinada! Ele pode levar-me tudo, como um vampiro agarrado ao meu pescoço, a sugar-me a vida! É obsceno! É assustador!

Por fim, Campbell estava impressionado. A sua expressão alterara-se e o seu olhar reflectia agora preocupação e atenção.

- Vítima de chantagem? - Repetiu, ainda a segurar na licoreira com o vinho do Porto, mas abstraído, sem se dar conta do que tinha nas mãos.

- Sim! - O tom de voz de Reggie elevava-se cada vez mais. - Cem libras!

Campbell recuperara o autocontrole A sua boca revirou-se para baixo, nos cantos.

- Isso é muito dinheiro.

- Pode ter a certeza que é, caramba. Campbell, o que é que ii vou fazer? Temos de acabar com este tipo de coisas antes que percamos o controlo.

Campbell ergueu ligeiramente as sobrancelhas.

- Porquê "nós", Reggie? Concordo plenamente que a chantagem é uma coisa péssima, mas por que haveria eu de me envolver nisso?

- Porque é o Freddie, seu idiota! - Reggie tornou a perder a cabeça. Estava terrivelmente assustado. Ameaçavam-lhes todo aquele estilo de vida e ali estava Campbell, com uma garrafa de vinho do Porto na mão e o escárnio estampado no rosto como se se tratasse de um incómodo menor.

- O Freddie? - A voz de Campbell soava rígida, com um tom completamente diferente. O seu rosto contraíra-se, bem como o seu corpo. - O Freddie Bolsover?

- Sim! O maldito Freddie Bolsover. Veio a minha casa e foi impávido e sereno que entrou na minha biblioteca, se sentou na minha cadeira, a beber o meu vinho do Porto, e me pediu cem libras para manter silêncio acerca do meu fraco pela criada de fora!

- E pagou-lhe? - Campbell ergueu as sobrancelhas e o seu olhar encheu-se de uma incredulidade cínica, acompanhada de algo mais parecido com divertimento. Só Deus sabia o que tinha aquilo de divertido!

- É claro que lhe paguei! - Exclamou Reggie, furioso. - O que julga que a Polícia pensaria se descobrisse que gosto de dar umas voltas com as criadas, tendo os desgraçados daqueles corpos ali na praça? Podem até julgar que eu tinha alguma coisa a ver com a Helena Doran e, que Deus me ajude, nunca toquei na rapariga! Diverti-me inofensivamente com umas poucas criadas, mas nunca fiz nada de verdadeiramente errado! Claro que não posso esperar que aqueles tratantes saibam disso! Eles próprios são da classe trabalhadora!

Campbell observou-o por cima do seu comprido nariz.

- Sim, está em maus lençóis, não está? - Acabou de servir o vinho do Porto e, em seguida, ofereceu um cálice a Reggie. - Embora não me pareça que alguém o possa ligar ao caso da Helena, - hesitou, - pois não?

- Não!

- Então não percebo por que está tão excitado. O que pode o Freddie dizer? Que acha que você andou metido com a criada? Isso não me parece muito preocupante. E, de qualquer forma, como raio havia ele de saber? Dá ouvidos às coscuvilhices dos criados? Você foi parvo em pagar-lhe.

Reggie espremeu-se todo na cadeira. Era Dolly, e a sua morte depois daquele desgraçado aborto, que o assustava - Mary Ann não era para ali chamada, como Campbell dissera. Agora observava-o, ali no meio da sala, com os ombros largos, a barriga proeminente e uma leve expressão de escárnio estampada no rosto. Campbell era esperto, Reggie sabia-o - como sempre soubera. Era uma daquelas coisas óbvias e inevitáveis. Contudo, será que devia confiar nele? Precisava da ajuda de alguém. Era preciso fazer parar Freddie, ou ele roubar-lhe-ia tudo o que lhe dava valor à vida! A alimentar-se dele, como um animal repugnante, a roubar-lhe o conforto, e ele ainda podia acabar um pobre desgraçado, cheio de medo, a beber gasosa e a comer pão e carne picada. Preferia morrer!

Não sabia por onde começar.

Campbell aguardava, fitando-o com um olhar divertido.

- É bastante mais do que isso - começou Reggie. - Poderão pensar...

Campbell torceu os cantos da boca.

- .. .Quero dizer - Reggie voltou a tentar, - outras criadas poderiam... - Maldito homem. Porque não havia de perceber?

- ... Poderiam pensar que teve alguma coisa a ver com a morte da Dolly? - Campbell rematou-lhe a frase.

Reggie sentiu-se enregelar, como se o criado de quarto se tivesse enganado e lhe tivesse enchido a banheira de água fria.

Campbell continuava a olhar para ele, com um divertimento cínico.

- Sim, isso poderia ser embaraçoso - constatou, pensativamente. - O Freddie foi o médico que chamaram para a ver, não foi? Sim, o mais provável é que pudesse contar à Polícia exactamente o que sucedeu. E suponho que se possa sentir dispensado do seu dever de manter sigilo - tossiu, - dadas as circunstâncias. Talvez tenha feito bem em pagar-lhe, afinal de contas.

- Raios o partam! - Reggie ergueu-se da cadeira e pôs-se de pé para encarar Campbell. - Isso não é ajuda! O que posso eu fazer?

Campbell esticou o lábio inferior.

- Controle-se, para começar. Concordo plenamente, meu caro. É mau, muito mau mesmo. Não fazia ideia que o Freddie fosse assim.

- É um verdadeiro intruso - comentou Reggie, com azedume. - Um desclassificado.

- Sem dúvida, mas isso significa apenas que tem coragem e espírito para fazer o que muitos fariam, caso ousassem e se tivessem lembrado disso. Não seja tão hipócrita, Reggie. Não me parece que seja a melhor altura para se fazer de santo. Além de ser ridículo, não serve de nada.

- Servir? - Reggie ficou estupefacto. Freddie era um autêntico ordinário e ali estava Campbell a falar daquilo como se fosse uma ocorrência corriqueira - um problema de logística e não um ultraje.

- Sim, claro, "servir" - respondeu Campbell, irritado. - Quer, com certeza, impedir que isto continue indefinidamente, não? Julguei que fosse essa a razão da sua visita?

- Sim, claro que é! Mas não ficou chocado? Quero dizer... o Freddie!

- Há muitos anos que deixei de me chocar -, respondeu Campbell, erguendo o cálice Porto à frente da luz e examinando-lhe a cor. - Ocasionalmente, surpreendo-me. Normalmente de forma agradável, quando estava à espera do pior e não aconteceu, quando a minha sorte durou mais do que o previsto. Mas a maioria das pessoas honestas só o são por falta de coragem e de imaginação. O homem é, na sua essência, um animal egoísta. Um dia ponha-se a observar as crianças e depressa irá perceber. Somos todos iguais, com uma mão estendida a ver o que podemos agarrar e um olhar por cima do ombro, para ver quem está à espreita, para termos a certeza que não vamos ter de pagar por isso. O Freddie é simplesmente melhor do que julguei.

- Deixe-se lá de filosofias! O que vamos nós fazer quanto a isto? - Insistiu Reggie. - Não o podemos deixar impune!

- Não há nada a fazer - respondeu Campbell. - Quando a Polícia descobrir quem são os responsáveis, o que admito ser improvável, ou desistir, o que me parece ser o mais certo, daqui a poucas semanas tudo acabará. Afinal de contas, não podem perder muito mais tempo com os erros de uma criada qualquer! Não é que alguém se preocupe, ou que descobrir qualquer coisa faça muita diferença para que o mesmo não volte a suceder, vezes sem conta, no futuro. Limite-se a manter a cabeça no lugar. Vou dar uma palavrinha ao Freddie, para o prevenir das várias coisas desagradáveis que poderão acontecer à sua carreira, caso ele faça disto um hábito.

Pela primeira vez, Reggie sentiu uma leve esperança: uma esperança sã e racional. Se Campbell falasse com Freddie, este talvez compreendesse que não poderia continuar a pedir dinheiro, ou a sua posição tornar-se-ia impossível. Freddie não tinha medo de Reggie, mas o mais certo seria levar Campbell a sério.

- Obrigado - agradeceu sinceramente. - Isso bastará. Vai fazer muita diferença. Ele perceberá que só funciona uma vez. Sim, excelente. Mais uma vez, obrigado.

Apesar de a sua expressão ser de incredulidade misturada com divertimento, Campbell não disse nada. Reggie retirou-se com uma passada firme. Já conseguia ver uma luz à sua frente, e sentir novamente conforto.

Era evidente que o general Balantyne também tinha ouvido falar na aterradora descoberta no jardim abandonado e ficara profundamente chocado. Não conhecera muito bem Helena, mas esta fora outrora uma pessoa encantadora, cheia de vida, delicada – uma mulher com um futuro repleto de promessas. Dar com ela em tal... só a ideia era demasiado horrível de conceber. Alguém a tinha molestado e violado e, talvez, até, morto. Ninguém sabia muito ainda e, até à data, a Polícia ainda não tinha aparecido. Esperava-se que viesse naquele dia.

Entretanto, trabalharia nos seus documentos. Miss Ellison - se bem que agora já pensasse nela como Charlotte - já acabara o seu trabalho e, para dizer a verdade, sentia falta dela. A biblioteca parecia vazia sem a sua presença, e Balantyne não conseguia concentrar-se tão bem, era como se estivesse à espera de alguma coisa.

Ainda não tinha posto os seus pensamentos em ordem para começar a trabalhar quando chegou a Polícia. Era o mesmo tipo, Pitt. Balantyne recebeu-o na biblioteca.

- Bom dia, Inspector. - Não havia necessidade de lhe perguntar por que razão viera.

- Bom dia, senhor General. - Pitt entrou, com um ar formal.

- Receio não lhe poder contar nada que valha a pena - apressou-se Balantyne a dizer. - Não conhecia Miss Doran, para além das visitas ocasionais que fazia à minha mulher e à minha filha. Presumo que queira falar com elas. Agradecia que se abstivesse de lhes contar os factos mais perturbadores. A minha filha está prestes a casar, depois de amanhã, para ser preciso. Não lhe quero estragar a... - deteve-se. Soava insensível, ofensivamente corriqueiro, quando uma outra rapariga jazia, só, apenas uma ossada coberta de farrapos, numa qualquer morgue da Polícia, obscenamente devorada por pequenos animais e vermes! Aquilo enojava-o vagamente.

Pitt pareceu ler os pensamentos confusos e os sentimentos no rosto de Balantyne.

- Claro - respondeu, sem demonstrar solidariedade na sua voz; ou, pelo menos, era o que Balantyne sentia. Porque havia ele de ser solidário? Christina estava viva e de boa saúde, a caminho do casamento, de uma vida de segurança e conforto, repleta de privilégios sociais. Para ser franco, a filha podia até sentir-se chocada e revoltada com a morte de Helena, bem como com as suas circunstâncias, mas Balantyne ficaria surpreendido se Christina pensasse nesse assunto por muito mais tempo e ainda mais, se a visse chorar lágrimas de compaixão.

- Estou interessado na vida de Helena - prosseguiu Pitt. - É aí que reside a causa da morte, não no que aconteceu posteriormente ao corpo. Sabia que ela estava à espera de bebé?

Balantyne sentiu uma pena acrescida pela dupla perda.

- Sim, já ouvi dizer. Infelizmente, poucas são as coisas que não correm de porta em porta, numa praça como estas.

- Sabe quem era o amante dela? - Indagou Pitt, ousadamente. Balantyne sentiu repugnância, piscando os olhos perante a vulgaridade da pergunta. Helena fora uma mulher de qualidade, uma... reparou no olhar de Pitt e percebeu que se estava a tentar agarrar a um sonho irreal, que já não era viável. Todavia, pensar assim... de uma mulher! Maldito Pitt com as suas verdades sujas.

- Sabe? - Repetiu Pitt, embora fosse uma pergunta desnecessária. A evidente repulsa de Balantyne já lhe tinha dado a resposta.

- Não, é evidente que não! - Balantyne virou a cara para o lado.

- É natural que se sinta perturbado - declarou Pitt, suavemente. - Tinha grande estima por ela?

Balantyne não sabia que resposta dar e hesitou, constrangido. Considerara sempre a beleza clara de Helena especialmente pura e delicada; talvez a tivesse idealizado um pouco.

Pitt estava novamente a falar-lhe por cima do ombro.

- Creio que ela também nutria uma considerável admiração por si.

Balantyne endireitou-se, surpreendido. Pitt sorriu muito ligeiramente.

- Sabe que as mulheres confidenciam umas com as outras. E há bastante tempo que ando nesta praça a fazer perguntas sobre mulheres.

- Ah. - Balantyne tornou a desviar o olhar.

- Conhecia-a bem, General Balantyne? - Embora a voz de Pitt fosse serena, suscitava no espírito de Balantyne um novo e terrível pensamento. Virou-se, sentindo o sangue a aquecer-lhe as faces. Fitou Pitt, tentando ver se haveria suspeita no olhar dele. Viu apenas um interesse inteligente, expectante, a perscrutá-lo.

- Nem por isso - respondeu, atrapalhado. -Já lhe disse... eu... eu conhecia-a socialmente, enquanto vizinha. Mais nada.

Pitt manteve silêncio.

- Nada mais - repetiu Balantyne. Ia a dizer outra coisa para clarificar as coisas de modo que Pitt compreendesse, porém, vacilou e calou-se.

- Estou a ver. - A expressão de Pitt apenas revelava que o tinha ouvido. Fez mais algumas perguntas e, em seguida, pediu autorização para falar com as senhoras.

Depois de Pitt sair, Balantyne ficou parado onde estava, sentindo-se tolo e consideravelmente abalado. Ainda há três, ou até há dois meses, estivera inconscientemente seguro de tantas coisas que agora se espalhavam à sua volta, desfeitas em farrapos feios e estranhos. Muitas dessas coisas tinham a ver com mulheres. Todas as certezas que tinham dado tanta segurança à sua vida, não a nível material, mas emocional, residiam naquilo em que acreditava acerca das mulheres. Agora, Christina tinha-se envolvido com aquele horrível criado e ia casar-se com Alan Ross. Graças a Deus que pelo menos isso tinha chegado a uma conclusão tolerável. Embora a contribuição de Augusta ainda fosse algo que não podia aceitar. Euphemia Carlton estava grávida de um homem que não era o marido, coisa que ele considerava inexplicável. Tinha traído, de modo imperdoável, um bom homem, que a amava. Para colmatar, a pobre Helena Doran fora enganada, usada e, até, assassinada. Ou não? Talvez nunca chegassem a descobrir a verdade. Pensar nisso tudo fazia-o sofrer.

Contudo, de certa forma, o mais perturbador, aquilo que menos queria ver em si próprio era o afecto que sentia por Charlotte Ellison; o prazer que a sua companhia lhe dava, a precisão com que podia recordar a curva exacta do pescoço, a cor intensa do cabelo, a maneira como olhava para ele e a profundidade com que sentia tudo o que fazia e dizia.

Era ridículo. Não ia sentir perturbação, nem esperança ou embaraço, e muito menos falta, de uma jovem: de alguém que olhava para ele apenas como seu patrão! Ou talvez um pouco mais? Acreditava que ela pudesse sentir algum respeito por ele, mas ousaria ele imaginar afecto? Não, claro que não. Tinha de afastar aquela ideia. Estava a fazer figura de parvo.

Agarrou num jornal e começou a lê-lo furiosamente, embora fossem ainda precisos cinco minutos para que as palavras começassem a fazer sentido, levando-o até uma vida afastada do tumulto que lhe ia no espírito.

Mesmo à hora do jantar, a conversa passou-lhe ao lado. Pagaria o casamento, naturalmente, mas entregava todas as providências - tanto sociais, como práticas - a Augusta. Faria o que lhe dissessem, sendo adequadamente encantador, mas os preparativos ficavam fora do seu alcance.

Nem sequer ouviu a discussão bastante desagradável entre Christina e Brandy sobre a preceptora da casa ao lado. Tudo quanto lhe chegou à mente foi que Christina estava a rebaixá-la de alguma forma e que Brandy a defendia com um vigor que lhe havia de requerer uma explicação numa outra altura. Efectivamente, incomodava-o no fundo da sua consciência que Brandy talvez estivesse a desenvolver o que parecia ser uma tendência de família para casos com a criadagem. Claro que para um homem era bastante diferente, mas Brandy mostraria consideravelmente mais sensatez se o fizesse menos perto de casa.

Depois do jantar, Balantyne chamou Brandy à biblioteca. O mordomo trouxe-lhe o vinho do Porto e retirou-se, fechando a porta atrás de si.

- Um cálice de Porto? - Ofereceu Balantyne.

- Não, obrigado, é um pouco pesado - Brandy sacudiu a cabeça.

- Percebo os seus gostos - começou Balantyne. - É bastante natural...

- Só não gosto muito de vinho do Porto - respondeu Brandy, descontraído.

- Não estou a falar do vinho do Porto! - Estaria ele a fazer-se desentendido? - Refiro-me à Miss seja-qual-for-o-seu-nome, à preceptora ali do lado. É uma coisinha encantadora...

- Ela não é uma coisinha! - Objectou Brandy com um súbito ataque de ira. - É uma mulher, tal como a Christina, ou a sua Miss Ellison, ou seja quem for!

- Dificilmente se assemelhará à Christina - comentou Balantyne, friamente.

- Não, tem toda a razão - concordou Brandy. - Ela não dorme com os criados!

Balantyne ergueu a mão para lhe dar uma bofetada, sentindo o ultraje sacudir-lhe o corpo. Foi então que viu o rosto sereno de Brandy, firme e inabalável. Deixou cair a mão. Aquele insulto tinha a sua verdade e não queria discutir com o filho. Eram extremamente diferentes e, no entanto, tinha uma profunda afeição por Brandy.

- Isso foi desnecessariamente desagradável - deixou cair a voz. - Devo dizer que o menino também se deitou onde não devia, uma vez por outra.

Para sua surpresa, Brandy corou intensamente.

- Peço desculpa, meu Pai - declarou, suavemente. - Foi horrível da minha parte ter dito o que disse. Acontece que tenho uma grande estima pela Jemima; não do género que supõe. Tal como a que desconfio que o Pai nutre por Miss Ellison. E não insultaria qualquer das duas com avanços dessa natureza. - Sorriu com um pouco de tristeza. - Creio, porém, que se tentássemos, nos fariam ouvidos moucos. Estou plenamente convencido que Miss Ellison seria bem capaz disso!

Balantyne reconheceu-o de má vontade, desesperadamente envergonhado com a perspicácia de Brandy. Apesar de ter a cabeça às voltas, forçou-se a retribuir-lhe um sorriso.

- É verdade - concordou calmamente. - Talvez devêssemos mudar de assunto.

Ainda mal tinham começado a falar de outra coisa menos traiçoeira quando o criado veio anunciar Sir Robert Carlton e Brandy, com o seu tacto habitual, pediu licença para se retirar.

Carlton também recusou um cálice de Porto, permanecendo, um tanto constrangido, no meio da biblioteca. O seu rosto denunciava os traços vincados de um desgaste emocional.

- Coisa medonha, aquilo da pobre miúda das Doran - declarou, estremecendo. - Pobre criatura, pobre mulher. É horrível pensar que ela esteve sempre ali e nós sem fazermos a mais pequena ideia, a tratarmos das nossas vidas.

Balantyne não pensara no caso sob aquele prisma, e isso revoltava-o: a distracção deles, a proximidade entre a vida e a morte.

Passavam ali tão perto e tão alheios à condição extrema de outra pessoa. Deus misericordioso, será que era assim que passavam uns pelos outros, dia após dia? Cruzou instintivamente o olhar com o de Carlton. Havia qualquer coisa inteiramente nova que ele não conseguia compreender.

- Quanto à Euphemia... - continuou Carlton, hesitante. Balantyne tentou mostrar no seu rosto alguma da bondade que gostaria de sentir e que realmente sentia. Não disse nada, achando melhor limitar-se a esperar.

- Eu... - Carlton tentava encontrar palavras. - Não percebi. Devo ter-lhe parecido... muito frio... a ela. Queria um filho. Não... não sabia disso. Gostaria... gostaria que se tivesse sentido à vontade para mo dizer. Deve ter sido por minha culpa que não o conseguiu fazer. Fui muito... punha-a num pedestal... não me apercebi o quanto é... desolador o respeito. Queria um filho... nada mais.

- Estou a perceber. - Balantyne não percebia absolutamente nada, mas sentia a necessidade de Carlton, a sua tentativa desesperada para acreditar que aquilo era compreensível e que ele próprio compreendia. - Sim, estou a perceber - repetiu.

- É-me - Carlton engoliu em seco. - É-me difícil aceitar, mas penso que, com o tempo, lá chegarei. Deverei considerar a criança como se fosse minha. Balantyne... você fá-lo-ia? - Corou intensamente. Não conseguia continuar.

- Evidentemente, - respondeu Balantyne. - Fazer outra coisa seria monstruoso e completamente errado!

- Obrigado - Carlton tinha os punhos cerrados e apresentava um tique nervoso numa das têmporas. - Eu... Eu amo-a muito, sabe?

- É uma excelente mulher - declarou Balantyne, generosamente e com sinceridade. - E ainda o vai amar mais pela sua compreensão.

Carlton ergueu rapidamente o olhar.

- Acha que sim? - A sua voz denotava um laivo de esperança que era doloroso de ouvir.

- Estou certo que sim - afirmou Balantyne, com veemência. - Agora, tem a certeza de que não quer um cálice de Porto? Olhe que é muito bom. Foi o Reggie Southeron que o recomendou e pode não saber mais nada, mas não há dúvida que sabe como agradar ao seu palato!

Carlton respirou fundo, expirando lentamente.

- Obrigado, talvez beba.

 

Reggie Southeron só voltou a receber a visita de Pitt na tarde seguinte. Estava a acabar de se acomodar na sua profunda cadeira para se recompor dos inconvenientes de sair de casa: a carruagem com as molas duras, os solavancos e, depois, a chuva a escorrer-lhe pelo pescoço abaixo, quando anunciaram Pitt. Pensou seriamente na possibilidade de recusar recebê-lo; mas talvez fosse insensato. Talvez o fizesse esgaravatar ainda mais em assuntos que seria preferível deixar ficar como estavam. É claro que, se não o recebesse, perdia a oportunidade de expor a sua versão e de se defender antes de ser atacado. Maldito Freddie Bolsover!

- Mande-o entrar - ordenou, um pouco irritado. - E é melhor guardar o xerez de boa qualidade e trazer daquela outra coisa. - Era uma tolice insultá-lo, não lhe oferecendo nada para beber, mas não havia necessidade de desperdiçar o que era bom.

Pitt surgiu, desmazelado como de costume, com o casaco aberto e os ombros molhados. Tinha uma expressão cordial, bem-humorada, mas o seu olhar parecia mais agudo do que nunca.

- Boa-tarde - cumprimentou, descontraído. Era estranho que um tipo daqueles tivesse uma voz tão bonita, com uma dicção tão boa. Não ficaria admirado que fosse por alimentar ideias acima da sua condição - para imitar a classe superior.

- Boa-tarde - respondeu Reggie. - Presumo que esteja cá por causa da Helena Doran, pobre criatura? Não lhe posso dizer nada. Não sei de nada.

- Não, claro que não - concordou Pitt, educadamente. - Estou certo de que se soubesse de alguma coisa, já nos teria contado muito antes de o virmos procurar. No entanto -, sorriu subitamente com o que, noutra ocasião, poderia ter sido charme - fosse ele do mesmo nível social, está claro! - No entanto, talvez possa preencher algumas lacunas.

- Bebe um xerez? - Ofereceu Reggie, agarrando na licoreira. , - Não, obrigado. - Pitt recusou com um leve movimento da ' mão.

Reggie serviu-se com uma considerável irritação. Mandara vir da cozinha aquela porcaria e, agora, o raio do tipo não queria. Era forçado a ficar ali a beber, ele próprio, daquilo.

- Já lhe disse - respondeu com petulância. - Não sei nada acerca da Helena Doran.

- Talvez não sobre a sua morte. Mas deve saber qualquer coisa sobre a vida dela - continuou Pitt, descontraidamente.

- Talvez até mais do que julga. Gostaria de saber as suas opiniões. É um homem do mundo, deve fazer juízos sobre as pessoas, enquanto banqueiro.

Reggie não devia ter ficado surpreendido. Era evidente que o tipo se devia ter informado sobre o que ele fazia. Era verdade, fazia bons juízos, de um modo geral. Contudo, enganara-se a respeito de Freddie!

- Conto-lhe tudo o que puder, naturalmente - abrandou um pouco. - Uma coisa chocante. Era muito nova, sabe?

- E, segundo me consta, bonita. - Pitt ergueu as sobrancelhas, em sinal de interrogação.

- Muito, um pouco para o pálido. Muito clara para o meu gosto, com um ar muito frágil, mas muito agradável para quem gosta desse tipo. Quanto a mim, prefiro uma coisa mais robusta.

- Não lhe devia sequer passar pela cabeça que Reggie pudesse ser o tal. Era boa ideia começar por esclarecer isso.

- Também não gosto de loiras - acedeu Pitt. - Não das mais claras. Parecem-me sempre muito frias.

Talvez o tipo não fosse assim tão mau. De qualquer forma, era humano.

- Pois é - concedeu Reggie. - Uma rapariga simpática, sempre bem-educada e, tanto quanto sei, bem-comportada. Uma pena. Uma grande pena.

Os olhos brilhantes de Pitt ainda permaneciam pousados nele.

- Sabe quem é que, de facto, gostava dela? Alguém devia gostar dela.

- Ah, mas é claro - concordou Reggie. Era uma boa oportunidade, aquela. - O Alan Ross estava bastante apaixonado por ela, na altura. Mas suponho que já saiba?

- O Alan Ross?

- Sim. O tipo que acabou de se casar com a Christina Balantyne esta manhã.

- Ah, sim, claro. Sim, constou-me que gostava da Helena Doran.

- Muito mais do que gostar dela, era doido por ela. Ficou horrivelmente transtornado quando ela fugiu... ou suponho que devo dizer, quando foi assassinada. - Ergueu o olhar para encarar Pitt. - Presumo que tenha sido assassinada?

- Ah, sim. Receio que não restem dúvidas.

- Como podem saber? Julguei que o corpo estava... bem...

- De facto, estava. Mas restavam alguns farrapos da roupa e, claro está, os ossos. A carne foi consumida, mas os ossos ficaram lá todos. Tinha o pescoço partido. Devem ter sido mãos muito fortes para o terem feito com uma tal limpeza.

Reggie estremeceu de repulsa.

- Sim, é terrível, não é? - Reconheceu Pitt, embora Reggie lhe detectasse na voz um tom que não conseguia identificar. Que tipo tão peculiar. Contudo, não havia dúvida de que seguia com o seu propósito; e com cuidado, também poderia seguir o de Reggie.

- Muito destroçado, era como ele estava - prosseguiu Reggie. - O pobre sujeito andou uns tempos bastante desestabilizado. Não que pretenda sugerir... claro...!

- Mas é uma possibilidade - Pitt rematou-lhe a frase. Reggie fez um ar relutante.

- Tenho de admitir que sim - constatou, lentamente.

- Ele chegou a dizer-lhe alguma coisa acerca de outro homem, de um amante?

Reggie fez uma careta, esforçando-se por se lembrar de qualquer coisa.

- Não me recordo. Mas meu caro amigo, não pode estar à espera que lhe repita uma frase casual, mesmo que me conseguisse lembrar, que pudesse levar um sujeito para a forca! - Protestou.

- Não se enforca ninguém por uma frase casual -, respondeu Pitt, suavemente, outra vez a sorrir. - E, afinal de contas, tem um dever moral.

- Ah, é verdade - concordou Reggie. Aquilo estava a resultar muito bem: infelizmente para Alan Ross, mas, por outro lado, ele poderia até ter morto Helena num ataque de ciúmes. Afinal de contas, era a explicação mais plausível!

Pitt aguardava.

- Bem... - hesitou Reggie, não por estar relutante, mas porque ainda não lhe tinha ocorrido nada adequado para dizer. - É evidente que não posso recordar as palavras -, levantou um pouco a voz no final, como se perguntasse a Pitt se realmente queria que prosseguisse. Depois, apressou-se, não fosse este, por acaso, decidir detê-lo. - Só o sentido geral. Estava muito apaixonado por ela. Todos nós pensávamos que, efectivamente, não tardariam a casar. É evidente que nenhum de nós fazia ideia da existência de outro amante. Suponho que o Ross tenha descoberto. Não tenho ideia como. Nunca nos disse nada. Mas, por outro lado, não o faria, pois não? Faria uma figura bastante ridícula, não? Uma mulher que amamos a ir para a cama com outro tipo.

- Sim - concordou Pitt, solenemente. - Muito doloroso. Pode levar um homem a reagir impulsivamente.

- Pois é - apressou-se Reggie a constatar. - Pois é.

- Claro que - referiu Pitt após uns momentos de reflexão, - por outro lado, também pode ter sido o amante.

- O amante? - Reggie foi apanhado de surpresa. - Porquê, Deus do Céu? Dá a impressão que ele tinha tudo a seu favor, não? - Tentou sorrir, mas sentia as faces demasiado rígidas. - Tanto quanto me parece, não tinha motivos para lhe fazer mal.

- Ela estava à espera de bebé - lembrou-lhe Pitt. - O filho era do amante.

- E depois? - Um pensamento obscuro perpassou o espírito de Reggie, dando início a um receio muito desagradável.

- Teria casado com ela, se fosse livre para isso, não lhe parece? - Pitt fitava-o com os seus olhos brilhantes arregalados.

Reggie tinha a cabeça num rodopio. Aquilo era uma estupidez. Nunca tinha sequer tocado na rapariga. Não havia qualquer necessidade de se sentir enervado. Contudo, havia sempre Freddie com a sua maldita língua. Se a Polícia alguma vez descobrisse que Reggie gostava de umas brincadeiras, poderia não entender a diferença!

- Ele não era, porventura, adequado, como marido, quero eu dizer - encarou Pitt directamente. - Podia ser um comerciante, ou coisa parecida. Não podia casar-se com um comerciante, pois não? - Não podia perder tempo a pensar na sensibilidade de Pitt. O tipo teria de compreender que existiam distinções sociais. De qualquer forma, ele já devia estar ciente disso. Era o mais certo.

Todavia, em vez de se ofender, Pitt limitou-se a ponderar cuidadosamente a questão.

- Então ela gostava de comerciantes? - Inquiriu.

- Valha-me Deus! - Reggie debateu-se, desvairado. O que poderia ele dizer? Caso dissesse que sim, outras pessoas acabariam por denunciar a mentira. Naturalmente que Pitt iria falar com toda a gente na praça. Helena jamais olhara para um comerciante em toda a sua vida! Na verdade, era até demasiado requintada. O único homem, para além de Ross, por quem Reggie a vira alguma vez demonstrar admiração era o velho Balantyne, da porta ao lado. Com certeza que gostava da sua pompa e circunstância militares.

- Não - respondeu, o mais calmamente possível, - de modo algum. - Sim, aquela era a resposta indicada. - Com efeito, que me lembre, nunca a vi demonstrar interesse por ninguém -, pesou cautelosamente as suas palavras, à excepção do velho Balantyne, ali do lado. É um sujeito bem parecido, aquele general. Era natural que uma jovem ficasse impressionada. - Era deixá-lo seguir a partir dali. Não tinha necessidade de mencionar o facto de o general ser casado. O próprio Pitt tinha feito a observação de se ser ou não livre para casar, portanto era seguro deixá-lo deduzir o resto sozinho.

- Estou a ver. - Pitt olhou para os pés e ergueu novamente a cabeça, com um olhar interrogativo. - E por si, não tinha admiração?

- Por mim? - Reggie parecia chocado. - Credo, não. Como sabe, sou banqueiro. Isso não é, nem de perto, uma profissão tão excitante como a de militar. Não tem o mesmo fascínio, não é? - Forçou um sorriso com um toque de repulsa. - Não tem nada de apelativo para uma jovem romântica.

- Crê que o general Balantyne pudesse ter sido o amante desconhecido?

- Ah, não foi isso que eu disse!

- Evidentemente que não. Nunca o diria, por razões de lealdade e sei lá que mais - Pitt sacudiu a cabeça. - Admirável.

Por que raio estaria aquele tipo a sorrir para si mesmo?

- E deduzo que o tipo de beleza dela não o atraísse especialmente a si?

- Como?

- Quero dizer, que nunca poderia ter sentido ciúmes nem nada desse género.

- Meu Deus, não! Perdão, quero dizer... obviamente que não. Demasiado pálida e descolorida para mim. Prefiro algo um pouco mais... sou casado... - Agora é que tinha sido demasiado pomposo. Deixou passar.

- Tem ali uma criada de fora invulgarmente bonita - comentou Pitt, em tom de conversa. - Não pude deixar de reparar. Há muito tempo que não via uma rapariga tão engraçada.

Reggie sentiu as faces corarem. Maldita impertinência, a daquele tipo. Teria ele alguma coisa em mente? Observou-o atentamente, mas sem conseguir encontrar-lhe nada no olhar para além de uma apreciação inocente.

- Sim - acabou por concordar momentaneamente. - Como sabe, esse é o critério de escolha. É o principal, para uma criada de fora.

- Ai é? - Pitt fingiu mostrar interesse. - Houve alguém que me disse que o senhor arrastava a asa a uma criada de fora.

Reggie ficou paralisado. Certamente que Freddie não poderia...? Evitou o olhar de Pitt.

- Não me diga que foi o Freddie Bolsover?

- O Dr. Bolsover? - Pitt parecia não estar a compreendê-lo.

- Sim. Foi o Dr. Bolsover que fez o comentário acerca de mim... e... bem, das criadas? - Reggie pigarreou. - Olhe que não deve prestar muita atenção ao que ele diz. É jovem. Tem um sentido de humor pouco fiável.

Pitt franziu as sobrancelhas.

- Não creio que o esteja a compreender, senhor.

- Conta umas anedotas esquisitas - explicou Reggie. - Conta coisas que lhe parecem cómicas, mas não se apercebe que quem não o conheça bem pode levá-las a sério.

- Que tipo de coisas? Quero dizer, qual poderia ser a sua verdadeira intenção e o que considera ser uma anedota?

- Ah. - Reggie pensava rapidamente, não entres em pânico. Mantém a calma. - Aspectos clínicos, claro, perfeitamente sérios. Mas poderia, por exemplo, contar alguma anedota acerca de mim e das criadas.

- Quer dizer que ele poderia talvez afirmar que o senhor mantinha um caso com uma criada de fora, ou algo do género? - Indagou Pitt.

Ao sentir o sangue a queimar-lhe as faces, Reggie voltou a cara.

- Esse tipo de coisas -, tentou que resposta soasse informal e quase se engasgou.

- Tem a certeza que não quer um xerez? Creio que vou tomar outro. - Passou das palavras aos actos.

- Que sentido de humor tão perigoso - constatou Pitt. - Não, muito obrigado - lançou um olhar ao xerez. - Se fosse a si, tinha uma conversa com ele acerca disso. Pode ser embaraçoso para si, neste momento.

- Ah, é o que farei - concordou Reggie, imediatamente. - Sim, tenho de fazer isso. É um bom conselho.

- Surpreende-me que ainda não o tenha feito - prosseguiu Pitt. - Suponho que não o tenha feito.

- O quê? - Reggie quase largou a licoreira.

- Ainda não falou com ele? - Pitt ergueu as sobrancelhas.

- Ele... ele disse que sim? - Reggie deu-se imediatamente conta da estupidez da pergunta. - Quero dizer... bem...

- E sempre falou?

- Bem... - Que raio devia ele responder? Maldito homem, mas o que é que ele sabia? Se pelo menos pudesse calcular o que é que ele já sabia, então poderia dar-lhe as respostas adequadas! Andar assim, às apalpadelas no escuro, era assustador.

Pitt fez uma pequena careta - aquele tipo tinha um rosto extraordinário - e pôs-se a olhar para a ponta das unhas.

- É bastante normal, ter alguma admiração por uma criada de fora engraçada - continuou Pitt, pensativamente. - Acontece a muitos homens. Nem sequer é digno de nota. Mas, neste momento, seria um pouco infeliz. - Ergueu a cabeça, fixando o olhar resplandecente e penetrante em Reggie. - O Dr. Bolsover não o ' tem incomodado, pois não?

Reggie ficou impávido. Parecia-lhe que o seu cérebro se tinha '; derretido e tornado a congelar. Que deveria ele dizer? Será que :, podia confiar em Freddie? Esta era a sua oportunidade para se livrar de tudo aquilo! Ou não? Só um momento! E se Pitt fosse ter com Freddie para o acusar? Nessa altura, Freddie contar-lhe-ia acerca de Dolly e isso era bastante diferente! Ou será que eles já sabiam que ele tinha ido ao banco levantar cem libras? Teria ele falado com o criado? Era isso? Cautela, Reggie, pensa bem antes de responderes. Quase caías numa armadilha.

- Deus do Céu, não! - Forçou um sorriso a mostrar repulsa. - É um sujeito decente, o Freddie. Por vezes, pode ser um tanto ou quanto metido a engraçado, mas é tudo. Não teria más intenções.

- Folgo em ouvir isso. - O olhar de Pitt não se desviou do rosto de Reggie. - Julguei que poderia ter tido algum problema.

- Eh... problema? O que o levou a pensar isso? - Tinha de descobrir o que ele realmente sabia.

- Sabe, converso com os criados -, explicou Pitt, tranquilamente, - no decurso das investigações.

Reggie observou fixamente o rosto de Pitt.

Ele sabia! Sabia acerca do criado e do banco! Se mentisse acerca do uso que tinha dado às cem libras, o raio do homem iria investigar e descobrir a verdade! Era demasiado fácil. Tinha de inventar outra coisa qualquer.

- Bem -, começou, constrangido, dando voltas à cabeça. Quem podia culpar, sem ser Freddie? Quem não o poderia desmentir? Quem seria mais adequado? - Bem... para dizer a verdade, tive um pequeno problema... não com o Freddie, está claro, o Freddie é um cavalheiro. A preceptora... - sim, é isso, - a preceptora ficou um pouco excitada... uma mulher solteira, sem admiradores, sem outra hipótese senão ter este emprego a olhar por crianças o dia todo. Meteu umas ideias na cabeça e começou a fazer pressão. Em qualquer outra altura tê-la-ia posto imediatamente a andar, mas neste momento, tal como disse, seria um pouco embaraçoso. Paguei-lhe. Sei que não devia, mas tenho de manter a paz, não é? O Inspector é um homem casado. Creio que compreende. Mais vale pagar à rapariga do que deixá-la semear a intriga por aí. Ela não voltará a fazê-lo. De qualquer forma, depois de terem resolvido isto tudo, já nem terá necessidade, pois não?

- Ah, não, - Pitt enrugou um pouco o rosto. - Deduzo que não queira apresentar queixa?

- Valha-me Deus, não! É por isso que lhe pago, para manter tudo em sigilo. Negará tudo, se a abordar: tal como eu! Afinal de contas, não tenho outro remédio. Casado, e tudo o mais. Também não me posso esquecer das crianças. Tenho três filhas. Como me parece que já sabe, não? Na verdade, são só duas, a Chastity é filha do meu irmão. O pobre tipo foi morto. Naturalmente que a acolhi.

- Sim, é uma criança encantadora.

- Sim, sim. Bem, está compreender, não está? Tenho de manter a tranquilidade. Seria muito mau se viesse a lume. As meninas gostam muito da preceptora. E ela também é muito boa no que faz - apressou-se a acrescentar. - Muito boa.

- Claro. Bem, muito obrigado, foi muito prestável.

- Ainda bem. Ainda bem. Não tardam a esclarecer tudo, espero?

- Também espero que sim. Boa-noite, senhor, e obrigado.

- Boa noite. Sim, sim, boa-noite.

Charlotte ficou extremamente irritada quando, no dia seguinte, ouviu o sucedido. Virou-se de onde estava, junto ao aparador, para encarar Pitt, sentado na sua cadeira.

- Queres dizer que aquele patife dissimulado afirmou que a Jemima estava a fazer chantagem com ele e tu ficaste ali parado a ouvir, permitindo-o? - Exigiu saber. - Isso é uma patifaria!

- Dificilmente o podia contrariar - observou Pitt, lucidamente. - Parece-me improvável, mas de forma alguma impossível.

- É evidente que é impossível! - Retorquiu Charlotte. - A Jemima nem sonharia em fazer chantagem com ninguém.

- Isso é o teu coração a falar - Pitt sorriu-lhe com um misto de afecto e ironia.

Charlotte estava irredutível. Estava convencida que tinha razão, só lhe faltava pensar numa justificação.

- Então, está bem! - Retribuiu-lhe o olhar com determinação.

- Agora é a minha razão a falar. Crês realmente que vale a pena gastar dinheiro para tentar manter em segredo o facto de ele dormir com a criada? De qualquer maneira, já toda a gente sabe. E a Mary Ann não está lá assim há tanto tempo - soltou uma nota de verdadeiro triunfo na voz. - Pelo menos. Não há tempo suficiente para poder ter sido a mãe do primeiro bebé! Antes dela esteve lá outra por pouco tempo. Essa, casou-se e partiu. Depois veio mais uma que morreu. - Encarou Pitt com a excitação a crescer dentro de si. - Toda a gente sabe que ele se porta mal, creio que a até a mulher sabe, embora, naturalmente, finja nada saber...

Pitt franziu o sobrolho.

- Porquê? Por que diabo fingiria ela não saber? A mim parece-me que deveria ficar furiosa e acabar imediatamente com aquilo.

Charlotte suspirou pacientemente. Francamente, por vezes os homens podiam ser tão pouco sofisticados!

- Atrevo-me a dizer que ela não quer ser o alvo permanente das atenções do marido - explicou, - e fica satisfeita por ele se interessar por alguém que não ela. Mas, caso fosse forçada a reconhecê-lo, quero dizer, caso fosse obrigada a mostrar que o sabia, então teria de reclamar, de se mostrar ofendida, ultrajada e por aí fora. Era o que a sociedade exigiria. Por outro lado, seria ridicularizada, vista como uma mulher enganada - o que seria uma posição bastante humilhante.

- Mas ela é, de facto, uma mulher enganada - observou Pitt.

- Com a excepção, é claro, de não acreditar na mentira, mas a ofensa é a mesma.

- Não é, não. - Charlotte olhou-o de esguelha por uns minutos. Estaria ele a fingir-se ingénuo, ou na verdade não sabia mesmo? Por vezes, era espantoso como podia troçar dela.

Pitt aguardou, com um ar inocente.

- Não é uma ofensa - prosseguiu, passados uns momentos, - se ela prefere que ele o faça; pelo menos, não é uma ofensa contra ela. A ofensa seria ridicularizá-la em público. Toda a gente sabe o que ele faz e toda a gente sabe que ela não se importa. Mas, se ela fosse forçada a reconhecer os actos do marido, então só teria dois caminhos: ou fazia uma cena - o que a faria parecer absolutamente ridícula - ou condenava abertamente a situação - o que seria imoral.

- Mas isso é de um cinismo total - constatou Pitt. - Onde aprendeste isso tudo?

O rosto de Charlotte entristeceu.

- Sim, eu sei. A mim parece-me bastante revoltante, mas é o que acontece. Aprendi muito com a Emily. Olha que ela é muito observadora. E é claro que também conhece muitas pessoas desse género de... sociedade, quero eu dizer. Eu nunca faria isso. O mais provável é que virasse tudo de pernas para o ar.

Pitt esboçou um largo sorriso.

- Não tenho dúvidas de que o farias, minha querida. Charlotte olhou rapidamente para ele.

O inspector ergueu as mãos num gesto defensivo.

- Não te preocupes, não temos dinheiro para pagar uma criada de fora e juro que jamais tocarei em Mrs Wickes.

Tendo em conta que Mrs Wickes era bastante corpulenta e tinha bigode, Charlotte não sentiu que fosse uma grande concessão da parte dele.

- Então, e quanto à Jemima? - Perguntou.

- Ele não quer apresentar queixa - respondeu Pitt.

- É óbvio que não quer! Ela não é culpada!

- Concordo contigo - declarou, pensativo. - O que me leva a perguntar por que razão me contou ele aquilo. É uma invenção inútil e perigosa, não te parece?

- Não me importa! A Jemima nunca faria chantagem com ele.

- Então resta a questão bastante importante de tentar saber quem o fez.

Charlotte recuperou o fôlego.

- Ah!

- Pois é - levantou-se com um só movimento.

- Não a vais acusar? - Agarrou-lhe no braço.

- Não. Mas terei de o participar.

- Tens mesmo?

- Claro que tenho.

- Mas isso iria prejudicá-la! O mais provável é que não consiga provar nada a favor dela. Se calhar nunca o conseguirá!

Pitt pousou a mão em cima da mão dela, deixando-a lá ficar uns momentos antes de a retirar suavemente. {

- Eu sei disso, minha querida. Terei muito gosto se puder provar que ele é um mentiroso.

- Ah. - Sabia que não valia a pena discutir. Para fazer qualquer coisa o mais rapidamente possível, teria de ser ela a agir.

Assim que Pitt saiu de casa, Charlotte abandonou as suas tarefas domésticas, deixou um recado na porta para Mrs Wickes e partiu imediatamente para Callander Square. A única desculpa de que dispunha era visitar o general Balantyne, maquinando rapidamente mais algum trabalho a completar - alguma coisa que se tivesse esquecido de lhe dizer anteriormente.

Quando chegou à porta e foi recebida pelo criado, Charlotte ainda não tinha optado por nenhuma explicação satisfatória, mas, por sorte, ele também não lhe perguntou ao que vinha, limitando-se a conduzi-la à biblioteca. O general estava sentado à secretária, aparentemente sem trabalhar, uma vez que não se via qualquer caneta por ali. Estava simplesmente a olhar para um mar de papéis. Foi com alguma satisfação que ergueu o olhar para a receber.

- Charlotte, minha cara, mas que bom vê-la!

Charlotte não contara com tanta afabilidade. Mas que homem tão imprevisível. Talvez ainda estivesse alegre pelo casamento de Christina?

- Bom-dia, general Balantyne - respondeu ela com uma mistura bem doseada de formalismo e de sentimento.

- Faça favor de entrar. - Já estava de pé, a contornar a secretária na direcção dela. - Sente-se ao pé da lareira. Está um dia extremamente desagradável, mas suponho que é o que se pode esperar de Janeiro.

Charlotte teve a tendência imediata para declinar o convite, mas lembrou-se de que ainda não pensara numa razão para ali estar e assim ganharia algum tempo.

- Muito obrigada, sim, está muito frio. Julgo ser o vento o que nos faz sentir tanto o frio.

Balantyne ainda se limitava a olhá-la, o que a fazia sentir-se bastante desconfortável.

- Seria de pensar que todos estes edifícios formassem uma espécie de escudo - prosseguiu ela, para preencher o silêncio. - Mas parecem apenas canalizar o vento, tornando-o mais intenso.

- Tem de me permitir oferecer-lhe a minha carruagem para a levar a casa - ofereceu. - E agora talvez queira uma bebida quente? Que tal uma chávena de chá?

- Ah, não, não, muito obrigada - respondeu apressada. - Não quero incomodar. Só cá vim... - depressa, por que diabos havia ela de lá ter ido? - ... porque... me lembrei-me de repente que tinha... deixado algumas cartas bastante importantes fora da sequência correcta. Pelo menos, parece-me que sim. - Será que aquilo parecia plausível?

- Foi muito responsável da sua parte - observou, agradecido.

- Não encontrei nada fora da ordem.

- Deixa-me verificar? - Levantou-se e observou a secretária. Perante aquele cenário, a própria noção de ordem tornara-se ridícula. Virou-se para ele, desamparada.

- Eu baralhei bastante as coisas - anunciou o que já era óbvio.

- Ficar-lhe-ia, de facto, muito grato se me voltasse a dar a sua assistência.

Havia qualquer coisa na expressão dele que a incomodava, uma delicadeza no seu olhar e o próprio modo directo como a encarava. Deus do Céu! Certamente que não teria interpretado mal a razão que ela lhe dera para se apresentar ali outra vez? Era, com efeito, uma desculpa bastante frágil - mas não por esse motivo! Queria apanhar Jemima. Se aparecesse em casa dos Southeron sem um motivo aparente, levantaria suspeitas e talvez levasse mesmo Reggie Southeron a descobrir ou desconfiar das suas verdadeiras intenções. Quem tem culpas no cartório - e tinha a certeza de que ele era culpado - tem tendência para ser extremamente desconfiado.

O pensamento galga os limites da lógica para ver acusações mesmo onde não as há, quanto mais numa situação em que o objectivo era exactamente acusar outra pessoa.

Balantyne aguardava, sempre de olhos postos nela.

- Ah - voltou a lembrar-se da urgência em dar-lhe uma resposta. - Bem... - Olhou para a pilha de papéis em cima da secretária -, teria todo o gosto em ordenar esses papéis, mas receio que não me possa comprometer para além disso. - Sorriu, tentando suavizar a sua resposta. - Uma vez que não disponho de criadas, tenho muita necessidade de completar algumas tarefas domésticas. Estão, realmente, a tornar-se urgentes.

- Ah - a expressão dele alterou-se. - Peço desculpa por ter sido tão irreflectido. Eu... é evidente. Não desejo afastá-la do...

- gaguejou um pouco, apressando-se a recompor-se. - Sim, estou a perceber. Mas se me pudesse fazer isso hoje, ficar-lhe-ia muito grato... - Hesitou, e ela tinha quase a certeza que ele ponderava a hipótese de lhe propor um pagamento e sobre a melhor forma de o fazer com tacto. Charlotte sabia que ele estava embaraçado e sentiu pena dele. Sorriu-lhe simpaticamente.

- Para ser franca, odeio as lides domésticas e, por um dia, posso bem desculpar-me perante a minha consciência. Creio que é algo de anti-feminino da minha parte, mas considero a Guerra da Crimeia infinitamente mais interessante do que a despensa. -dirigiu-se à secretária, tirando as luvas e mantendo as costas voltadas para o general, para não lhe dar qualquer oportunidade de cruzar o olhar com o dela. No entanto, sentia-o atrás de si.

À hora do almoço não conseguiu arranjar uma desculpa para sair e, portanto, a sua oportunidade de se esgueirar para a porta ao lado teve de ficar para mais tarde. Contudo, sem ser vista por ninguém, para além da auxiliar de cozinha e da ajudante da cozinheira, Charlotte conseguiu estar na sala de estudo ainda antes do início da lição da tarde.

Jemima estava à janela, a olhar lá para baixo, a contemplar a praça em frente. Voltou-se assim que Charlotte entrou.

- Charlotte, que bom vê-la. - O seu rosto estava iluminado de prazer e, até, de excitação; e o olhar parecia ausente e brilhante.

- Está novamente a trabalhar para o general Balantyne?

- Só hoje - respondeu Charlotte sobriamente. - Vim cá sobretudo porque desejava vê-la, sem chamar muito as atenções sobre mim. - Não valia a pena ser evasiva. Tinha de lhe contar a verdade acerca de Reggie e antes que a crianças aparecessem.

Jemima parecia não sentir nem o perigo nem a urgência.

- Estou certa de que Mr Southeron não se havia de importar.

- Não estava a olhar para Charlotte, mas um pouco para além dela.

- Teria gostado que cá tivesse almoçado. Amanhã tem de vir.

Não teria ela estado a ouvi-la? Charlotte dissera-lhe que só trabalharia um dia.

Jemima, porém, já se tornara a voltar para a janela.

Charlotte atravessou a sala para ir ao encontro da amiga. Olhou lá para baixo. Não havia ali nada para além da praça silenciosa, despida, encharcada e sem cor, toda ela em tonalidades de cinzento e de preto, onde até o verde da relva parecia ter sido roubado. O vento uivava em tons agudos através das ruelas, arrastando consigo as derradeiras folhas mortas dos arbustos. Não havia ali nada digno de atrair a atenção de uma jovem. Alguém devia ter acabado de passar por ali. Charlotte não ouvira o movimento de nenhuma carruagem - e os cascos dos cavalos produziam um som bastante distinto, juntamente com o aparato das rodas, ao bater nas pedras. Alguém passara por ali a pé. Com aquele tempo? Ah, não. Brandy Balantyne, é que não.

- Jemima!

Jemima voltou-se, com o olhar ainda brilhante e feliz. Subitamente, baixou o rosto, notando-se uma cor a aflorar-lhe as faces.

- O Brandy Balantyne? - Perguntou Charlotte.

- Não gosta dele, Charlotte? Fiquei um pouco em dúvida, devido a uma coisa que me disse da última vez.

Charlotte gostara muito dele, mas não se atrevia a confessá-lo, como também não queria mentir, magoando a amiga sem necessidade.

- Estive muito poucas vezes com ele e sempre por pouco tempo. Se bem se recorda, eu não era, propriamente, uma visita social lá em casa, apenas uma pessoa contratada para ajudar. - Estava a ser cruel e tinha consciência disso, porém não poderia permitir que os sonhos de Jemima passassem das marcas. Quanto mais vívido é o sonho, mais custa a acordar.

Jemima ficou subitamente triste.

- Sim - respondeu suavemente. - Sim, sei disso. E sei o que me está a tentar dizer. É evidente que tem muita razão.

Charlotte desejava preveni-la acerca de Reggie Southeron, mas isso significava aflorar a questão de um patrão dormir com criadas e, naquele preciso momento, não deixaria de parecer muito rude, para não dizer, eventualmente injusto. Não era comparável e não queria que Jemima pensasse por um só momento que Charlotte pensava que fosse. Teria de deixar esse assunto para depois, para uma altura menos propícia a mal-entendidos. Nem todas as explicações do mundo evitariam que Jemima pensasse que estava a estabelecer um paralelo, caso Charlotte metesse no mesmo saco Reggie, as criadas de fora, a chantagem e Brandy Balantyne.

- Tenho de regressar - limitou-se a dizer. - Queria apenas voltar a vê-la e... pedir-lhe que tenha cuidado consigo. Por vezes, em investigações como esta, quando as pessoas estão assustadas, culpabilizam as outras. Já sei o que aconteceu à pobre Miss Doran. Tenha muito cuidado com o que diz!

Apesar de parecer um pouco baralhada, Jemima concordou sem problemas e cinco minutos depois, já Charlotte estava na rua gelada, a precipitar-se em direcção à biblioteca e aos papéis do general. Sentia-se insatisfeita consigo própria e, agora, duplamente receosa por Jemima.

Após o casamento, Christina não esteve fora mais de uma semana, possivelmente devido às tragédias que haviam sucedido na praça. A ocasião fora considerada pouco adequada para umas férias; por outro lado, provavelmente ninguém tinha coragem para isso: muito menos Alan Ross. Nem Christina, a dias do casamento, perante a descoberta do corpo de Helena, fora capaz de exigir ao marido um estado de espírito compatívem com uma lua de mel. Emily, depois de a visitar num prazo considerado decente, pensou para consigo que Christina só tinha de se considerar feliz por não terem adiado o casamento. Isso poderia ter sido, realmente, desastroso. Nas circunstâncias em que Christina poderia estar, até mesmo duas semanas a poderiam denunciar como mentirosa. Os nascimentos prematuros tinham os seus limites para serem minimamente credíveis!

Visitou Christina sem qualquer objectivo em mente, excepto a vontade de descobrir mais acerca de Helena Doran. Elas tinham sido praticamente da mesma idade e o mais certo seria terem muitos pontos em comum, como por exemplo, frequentarem as mesmas festas e conhecerem as mesmas pessoas. Duvidava que tivessem sido amigas naquela altura e Christina poderia sentir-se um pouco amarga por ter acabado de se casar com um homem que toda a gente sabia ter amado Helena, pelo menos, no passado. Contudo ela devia saber qualquer coisa; e a verdade podia muitas vezes ser dita tanto através de má-língua como de palavras amáveis, especialmente no que tocava aos mortos. Era engraçado ver como a morte parecia ocultar todos os factos relevantes sob uma cobertura açucarada de decência. Isso devia dificultar imensamente o trabalho de investigação.

A casa de Alan Ross situava-se numa rua elegante, a menos de um quilómetro de Callander Square. Não se podia dizer que apresentasse a mesma opulência, ou a mesma elegante graciosidade, mas era mesmo assim uma residência excelente. Após ter batido à porta, Emily foi recebida por uma aprumada criada de fora.

Christina parecia bastante contente por vê-la, embora Emily a achasse um pouco pálida. A lua de mel era, muitas vezes, um choque para uma mulher, mas alguém que se deitara tão alegremente com um criado já não poderia ter muitas surpresas!

- Boa-tarde, Emily - cumprimentou Christina, com alguma formalidade. - É muito gentil em vir visitar-me.

Mentalmente, Emily fez figas para poder mentir.

- Queria desejar-lhe as boas-vindas a casa e ver como estava - declarou, imprimindo um toque de preocupação à voz. - Afinal de contas, parece-me que a sorte não esteve do seu lado. Foi uma altura péssima para se encontrar aquela pobre rapariga. Não poderia ter sido pior!

Christina lançou-lhe um olhar gélido.

Então, foi lamentável que tivesse escolhido aquela altura para a ir procurar!

- Minha cara - Emily esforçou-se por se mostrar contrita, -como poderia eu imaginar que a iria encontrar? Como toda a gente, julgava que ela tinha fugido com o amante e estava muito bem casada, algures - ou, pelo menos, casada. Para dizer a verdade, não me parecia que fosse um bom casamento. Esses ímpetos românticos raramente resultam em casamentos felizes.

- Já mo disse. Mas por que diabos foi àquele jardim abandonado?

- Suponho que por mera curiosidade - respondeu Emily, displicentemente, virando-se para admirar a sala, que, de facto, era bonita. - Era um local romântico...

- Um jardim abandonado, no meio do Inverno! - Exclamou Christina, revestindo a sua voz de uma incredulidade cortante.

- Nem sempre é o meio do Inverno, acontece ser agora - disse Emily, sensatamente. - E, há dois anos, o jardim devia estar muito menos degradado.

- Não percebo onde quer chegar - Christina mostrava-se decididamente fria.

- Ora, quando a Helena se encontrava lá com o amante, é evidente! - Emily voltou atrás. - Como era ela? Deve tê-la conhecido. Era muito bonita, ou muito fascinante?

- Não especialmente - Christina mostrou algum desdém. - Era razoavelmente bonita, um tanto para o anémico. E decerto que não era espirituosa. Na verdade, apesar de a considerar simpática, parecia-me bastante enfadonha.

- Ah, não me diga - Emily permitiu-se demonstrar uma expressão desiludida, embora com algum esforço. Na verdade, estava deliciada, pois estes eram os sentimentos genuínos de Christina, revelando tanto acerca dela própria, como de Helena Doran. - Que pena - prosseguiu. - Ela dificilmente parece de ser o tipo de mulher que atrai um amante romântico, a menos que fosse muito inexperiente. A não ser, evidentemente, que ela tivesse uma profundidade oculta.

- Se tinha, então estava muito bem escondida - retorquiu Christina imediatamente. - Nunca conheci alguém que a tivesse descoberto!

Emily tinha poucos pruridos em ser cruel.

- Nem mesmo Mr Ross? - Perguntou.

Para sua surpresa, Christina corou intensamente.

- O Alan ficou bastante desiludido com ela. Já não a admira.

- Desiludido? - Insistiu Emily.

- Ora, ela acabou por se revelar menos inocente do que pretendia ser - disse Christina, abespinhada. - Encontrava-se com o amante num jardim abandonado, deitando-se obviamente com ele, ou não teria ficado grávida! Seguramente que isso basta para desiludir qualquer pessoa!

- Então, talvez lhe fique bem a si ser extraordinariamente discreta - observou Emily. Não gostava de hipocrisia moral e não tinha particular afecto por Christina.

A cor nas faces de Christina intensificou-se e lançou a Emily um olhar próximo do ódio. Seria concebível que, nesta peculiar situação, ela tivesse desenvolvido algum tipo de afeição por Alan Ross? Parecia ser a explicação mais evidente. Tinha a segurança do casamento, ganhando assim a respeitabilidade de que necessitava no caso de estar realmente grávida, embora isso começasse a parecer cada vez menos provável. Ao contrário de Charlotte, ainda usava vestidos com a cintura bem marcada, e a sua silhueta não acusava nada. Sim, talvez tivesse realmente começado a admirar o marido. Era cínico da sua parte, mas na opinião de Emily, a não ser que Christina mudasse muito, quanto mais Mr Ross a conhecesse, menos iria retribuir-lhe esse sentimento. Contudo, isso era algo que Emily não poderia fazer por ela e nem sequer tinha vontade de tentar.

Demorou-se um pouco mais, continuando a falar sobre Helena, mas sem nada apurar para além da forte antipatia que Christina demonstrava por ela. Todavia, Emily não sabia se essa antipatia era anterior à afeição de Christina por Mr Ross. Meia hora depois, Emily despediu-se e saiu, com o espírito a revolver novas e interessantes ideias.

Foi na manhã após Emily lhe ter contado aquele episódio e, mais importante ainda, as conclusões que tirara dele, que Charlotte decidiu voltar a falar com Jemima. Desta vez, independentemente do sofrimento temporário que lhe causaria, Charlotte teria de a prevenir, sendo mais específica quanto ao perigo que a ameaçava. Por outro lado, também queria ver se descobria alguma coisa acerca de Reggie Southeron que lhe pudesse revelar quem estava, realmente, a fazer chantagem com ele se, de facto, alguém estivesse. Fossem quais fossem os factos, para segurança de Jemima, Charlotte teria de descobrir o motivo subjacente à acusação.

Para ver Jemima a sós, Charlotte teria de encontrar-se com ela antes do início das lições da manhã, que deveriam começar às nove. Assim, ainda não eram oito e um quarto e mal despontara o dia naquela manhã cinzenta e gélida quando Charlotte se apeou da carruagem. O cocheiro enganara-se, detendo-se do lado errado da praça e recusando-se a contorná-la, devido ao perigo que representavam para os joelhos do cavalo as pedras viscosas onde se haviam avolumado folhas apodrecidas com o vento nocturno.

Charlotte não discutiu. Não queria que o animal caísse e se ferisse - não pela despesa que seria para o cocheiro, mas pelo próprio cavalo.

Desta forma, não teve outro remédio senão ir a pé. Para não correr o mesmo risco que o cavalo, resolveu ir pelo jardim, onde não havia pedras que a pudessem fazer escorregar e onde a geada enrijecera o chão, impedindo-a de se atolar na lama. À noite, não teria enveredado por ali sozinha, uma vez que ainda carregava consigo a lembrança de Cater Street que, provavelmente, duraria para o resto da sua vida; mas sem dúvida que só um atacante desesperado poderia ali ficar especado, naquela manhã gélida e cinzenta, entre os ramos negros e esguios e a vegetação caduca.

Charlotte avançava bruscamente porque sentia o frio atravessar-lhe a carne e o vento gelado a aferroar-lhe a pele desprotegida. Observava cautelosamente onde colocava os pés, de modo a não dar nenhum passo em falso, tropeçando nalgum ramo caído ou escorregando num pedaço de gelo derretido. Foi por essa razão que só viu o monte escuro quando estava quase em cima dele. Não estava bem no caminho, mas muito perto, à beira dele, como se lá tivesse sido posto após ter sido removido do meio da passagem. Certamente que nenhum ramo teria aquela espessura? Um sentimento de catástrofe, um pressentimento assaltou-a antes mesmo de lá chegar e Charlotte deteve-se.

Eram roupas molhadas e, por entre as raízes dos malmequeres do ano anterior, estava a cabeça, com o cabelo agora escurecido pela humidade mas que devia ter sido loiro; a pele era branca, de uma palidez que só o frio da morte confere.

Charlotte inclinou-se para a frente sem lhe tocar. Estava meio de lado, com um braço encolhido por debaixo do corpo, como se tentasse alcançar com a mão a faca que tinha enterrada até ao cabo no peito. Só se lembrava de o ter visto uma vez, mas sabia sem sombra de dúvidas que se tratava de Freddie Bolsover.

Ergueu-se lentamente e voltou para trás contra o vento para procurar um polícia.

 

uma vez que tudo o que se passava em Callander Square era considerado parte do seu caso, Pitt foi imediatamente chamado. Ainda não eram nove e meia e já se estava a ajoelhar diante do corpo, na terra coberta de gelo. Um guarda solitário estava de vigia. Nada fora mexido. Depois de alguns protestos, Charlotte foi mandada para casa, embora Pitt tivesse noção de que o que provavelmente a levara a ceder fora o frio, e não a obediência.

Pitt estava acompanhado por um médico legista. Depois de o ter observado atentamente e fixado a imagem na sua mente, Pitt virou o corpo de Freddie com a ajuda do médico para examinarem a ferida. A faca estava enterrada, bem fundo, até ao cabo trabalhado, que não apresentava quaisquer marcas de uma mão.

Pitt foi removendo a roupa, aos poucos.

- Um só golpe - constatou. - Muito limpo.

- Pode ser sorte - advertiu o médico por cima do ombro de Pitt. - Não tem de ser perícia.

- E força? - Perguntou o inspector.

- Força? - O médico ponderou por uns momentos. Baixou-se e movimentou a faca para verificar. - Não há ossos^ cortados - observou. - Limpinho, por entre as costelas. Nada, a não ser cartilagem e um pouco de músculo - direito ao coração. Um adulto normal poderia fazer isto com bastante competência. É uma ferida demasiado alta para uma pessoa de pequena estatura. O golpe parece ser no sentido descendente, o que faz do assassino alguém com, pelo menos, entre um metro e setenta e um metro e oitenta de altura - provavelmente, até mais alto.

Pitt agarrou numa das mãos de Freddie.

- Sem luvas - indicou, franzindo um pouco o sobrolho. - Deve ter saído à pressa e o mais certo é que não previsse demorar muito tempo. Creio que vinha encontrar-se com alguém conhecido.

- Olhou para as unhas e os nós dos dedos. - Impecáveis. Não pode ter lutado muito.

- Foi apanhado de surpresa - respondeu o médico. - Só se apercebeu por uns segundos do que lhe sucedia antes de ter ficado inconsciente.

- De surpresa... - declarou Pitt, lentamente. - De frente. Isso significa que conhecia o assassino, a surpresa foi vê-lo atacar. O doutor Bolsover considerava-o seguro, um amigo.

- Ou conhecido - acrescentou o médico.

- Será que alguém sai para se encontrar com um mero conhecido, no meio da praça, durante a noite?

- Eu não disse que ele foi morto durante a noite - o médico sacudiu a cabeça. - Não é possível dizer. Com este tempo, o corpo não tardaria a congelar. Torna difícil calcular a hora da morte.

- Não me parece que corressem o risco de assassinar alguém no meio da praça, em plena luz do dia - referiu Pitt, calmamente.

- É demasiado arriscado. Os criados passam muito tempo à janela, havia muitas probabilidades de o verem a andar pelo meio dos jardins. Depois do anoitecer, enrolado num cachecol, com as gola viradas para cima - o que seria razoável com este tempo - assim que sai debaixo da luz dos candeeiros a gás, uma pessoa passa a ser invisível. Pode ter subido os degraus até à porta da frente, ou ter saído para apanhar um fiacre - qualquer coisa.

- Pois é - concordou o médico um pouco a contra-gosto. - Então, pode deduzir-se que se tenham encontrado depois do anoitecer. Um pouco estranho, não lhe parece? Ir ter com alguém, com um escuro de breu, num ermo gelado como este? Pode-se cair e partir o pescoço, para já não falar em ser apunhalado. Mal se vê um palmo à nossa frente.

- Levanta muitas interrogações, não é? - Pitt voltou a olhar para o corpo.

O médico resmungou.

Só podia querer falar de alguma coisa muito urgente e claramente privada.

- Ou tencionar cometer um homicídio - contrapôs Pitt, lentamente.

O médico manteve-se em silêncio.

Pitt pôs-se de pé, inteiriçado pelo frio cortante.

- Ocorreu-me agora que tenho bastantes perguntas a fazer a Mr Reggie Southeron. Veja se levam o Bolsover para a morgue, está bem? É melhor fazer uma autópsia rigorosa, apesar de a causa da morte ser tão óbvia. Não me parece que surja mais alguma coisa, mas é sempre possível.

O médico olhou-o com azedume e encaminhou-se pesadamente em direcção ao agente, batendo com as mãos uma na outra para activar a circulação.

Desta vez, Pitt não queria avisar Reggie com antecedência. Foi directamente à porta da frente e quando apareceu o criado, anunciou que pretendia ver Mr Southeron com a maior brevidade possível. Imaginou que numa manhã tão desagradável como aquela, Reggie não se teria levantado antes das nove, e antes das dez ainda não teria, evidentemente, tomado o pequeno-almoço nem estaria pronto para se dirigir à City.

Tinha razão. Reggie ainda estava à mesa e prestes a repreender o criado pela inconveniente interrupção, dizendo-lhe de um modo bastante rude que a Polícia podia esperar, quando lançou o olhar para trás das costas da silhueta sóbria do homem e deparou com a enorme figura de Pitt que o seguira, precisamente para evitar ser rejeitado daquela forma.

- Francamente! - Reggie lançou-lhe um esgar. - Bem sei que o seu trabalho é muito difícil, mas uma situação ligeiramente desagradável na praça não o isenta da necessidade de seguir os ditames normais das boas maneiras. Recebê-lo-ei depois de ter terminado o meu pequeno-almoço! Até lá, se desejar, pode aguardar na salinha da manhã.

Pitt olhou para o criado e observou, com satisfação, que o medo que sentia pela Polícia era superior ao que nutria pelo patrão. Desapareceu como água a escorrer pela pia, saindo com uma espécie de movimento circular e desaparecendo pelo corredor.

- O assunto é demasiado urgente para admitir qualquer adiamento - asseverou Pitt, firmemente. - O doutor Bolsover foi assassinado.

Reggie fitou-o, inexpressivo.

- Como disse?

- O doutor Bolsover foi assassinado - repetiu Pitt. - Encontraram o corpo dele esta manhã, pouco passava das oito.

- Valha-me Deus! - Reggie deixou tombar o garfo cheio de comida, que caiu ruidosamente em cima da faca e escorregou para o chão, levando consigo o bacon e a salsicha. - Valha-me Deus! - Tornou a exclamar. - Que coisa tão assustadora!

- Sim - concordou Pitt, observando-o atentamente. Teria ele realmente a presença de espírito para fingir tão bem? Parecia estupidificado com o choque. - O homicídio é sempre assustador, - prosseguiu. - De uma maneira ou de outra. Claro que muitas pessoas que são assassinadas fazem por isso.

- Mas que diabo está a querer dizer? - O rosto pesado de Reggie tornou-se escarlate. - Chamo a isso um raio de uma impertinência! Um maldito de um mau gosto! O pobre velho Freddie jaz morto algures e o inspector está para aí a dizer que ele estava a pedi-las!

- Não - corrigiu Pitt, cuidadosamente. - Foi o senhor que tirou essa conclusão precipitada. O que disse é que algumas pessoas assassinadas fizeram por isso. Chantagistas e por aí fora -, inclinou-se um pouco para a frente, a observar escrupulosamente o rosto de Reggie. Encontrou o que procurava: a variação das cores e os espasmos nervosos.

- Chantagistas? - Repetiu Reggie, rouco, com os olhos vítreos como os de uma boneca.

- Sim. - Pitt puxou de uma cadeira e sentou-se. - Os chantagistas são frequentemente assassinados. A vítima só vê essa saída. Os chantagistas não parecem aperceber-se do momento em que atingem o ponto crítico. Pressionam demasiado. - Abriu bem as mãos para demonstrar uma explosão - uma erupção.

Reggie engoliu convulsivamente, com os olhos postos em Pitt, como se estivesse hipnotizado. Parecia incapaz de proferir uma palavra.

Pitt arriscou.

- Foi isso que aconteceu ao Dr. Bolsover, não foi? -AoDr... Bolsover...?

- Sim. Ele estava a fazer chantagem consigo, não estava?

- Não... não! Já lhe disse! Era a Jemima, a preceptora. Já lhe tinha dito.

- É verdade! Disse-me que a preceptora estava a fazer chantagem consigo acerca de uma relação passageira que o senhor mantinha com a sua criada de fora. Não acharia que valesse a pena pagar por isso, uma vez que eu sabia, os criados sabiam e ficaria muito surpreendido se os vizinhos não tivessem adivinhado. Imagino que a sua esposa também saiba, mesmo que prefira fingir o contrário.

- Que raio quer dizer com isso? - Reggie tentou mostrar-se ofendido.

- Não mais do lhe estou a dizer, senhor. Que tenho dificuldade em acreditar que se submetesse a uma chantagem sobre um facto que é do conhecimento geral, mesmo que ninguém fale nisso, e que é um tanto sórdido, mas de modo algum um delito pouco frequente, e que dificilmente constitui um crime.

- Já... já lhe disse... é evidente que não é um crime! Mas neste momento poderia ser mal interpretado! As pessoas poderiam julgar...

- Quer dizer que a Polícia poderia julgar... ? - Pitt ergueu as sobrancelhas com um ar trocista.

O rosto de Reggie foi perpassado por uma onda de cor assim que se apercebeu do quanto era ridícula a sua mentira. Pitt quase lhe conseguia ver o cérebro às voltas. Será que o devia apanhar naquele momento - em pânico - ou esperar até que a língua o denunciasse mais ainda?

- Eh... - Reggie tentou protelar até conseguir inventar alguma coisa, - .. .bem... sim, de facto, parece...

- Um pouco improvável. - Pitt rematou por ele. - E se me contasse a verdade?

- A... verdade!

- Sim, senhor. Por que estava realmente o Dr. Bolsover a fazer chantagem consigo?

- Eu... - Reggie parecia paralisado.

- Se para o descobrir tiver de perguntar a outros, será muito mais desagradável para si - advertiu Pitt. - Se me contar, desde que não envolva nenhum crime, serei tão discreto quanto possível. O tempo é importante. Temos um assassino, algures, nesta praça e pode ainda não ter acabado!

- Oh, meu Deus!

- Por que razão estava o Dr. Bolsover a fazer chantagem consigo, Mr Southeron?

Reggie engasgou-se e engoliu.

- Foi outro caso meu. - Tinha os olhos ardentes e pouco à vontade dirigidos para trás do ombro de Pitt. - A mulher era casada. O marido era um tipo importante. Poderia prejudicar-me muito, se viesse a descobrir. Percebe?

Pitt contemplou-o demoradamente. Estava a mentir.

- Como é que a preceptora veio a ter conhecimento disso? -Perguntou.

- Como? - Reggie levantou subitamente a cabeça. - Ah. Bem...

- Disse-me que também estava a fazer chantagem consigo -lembrou-lhe Pitt. - Gostaria de corrigir isso agora?

Subitamente, os olhos de Reggie aclararam-se.

- Não! Não, mas ela estava. Uma mulher muito gananciosa. Deve ter sido por isso que o Freddie foi morto! E isso, tudo se encaixa, não percebe? - Endireitou-se na cadeira. - Devem ter discutido acerca do dinheiro! Ela queria mais do que o quinhão dela, ele recusou e ela matou-o. Faz sentido! Tudo se encaixa!

- Como é que a preceptora tomou conhecimento deste seu caso? Trouxe a mulher para aqui?

- Deus meu, claro que não! Por quem me toma, c'os diabos?

- Então, como é que ela descobriu?

- Não sei! O Freddie deve ter-lhe dito alguma coisa!

- Porque havia ele de fazer isso? Para quê dividir o seu espólio desnecessariamente? Parece-me muito improvável.

- Como raio quer que saiba? - Perguntou Reggie, furioso. - Talvez mantivesse um caso amoroso com ela e contou-lhe num momento de gabarolice, ou algo do género! Agora nunca saberemos. O sacana está morto.

- Mas a preceptora não.

- Bem, não pode estar à espera que ela lhe conte a verdade! -A voz de Reggie denotava uma elevação crescente que soava invulgarmente a pânico.

Pitt voltou a arriscar.

- Na minha opinião, senhor, é mais plausível que essa mulher com quem teve um caso não fosse a mulher de um qualquer homem poderoso, mas outra criada.

Os olhos de Reggie relampejaram.

- É tal qual acabou de dizer, Inspector. Não valia a pena pagar pelo silêncio sobre uma coisa tão corriqueira como essa!

- Não, se apenas se resumisse a isso. - Concordou Pitt com um pequeno sorriso e o olhar firmemente posto no rosto de Reggie. - E se, no entanto, fosse mais do que isso - se houvesse uma criança pelo meio, digamos?

Reggie ficou branco como a cal. Por momentos, ocorreu a Pitt que ele talvez pudesse ter um ataque.

- Uma das suas criadas de fora morreu, não foi? - Indagou Pitt, lentamente, pesando cada uma das palavras.

Reggie tentou recuperar o fôlego.

- Não a assassinou, pois não, Mr Southeron? - Perguntou Pitt.

- Meu Deus! Oh, meu Deus! Não, não a matei. Ela morreu. O Freddie estava com ela. Chamámo-lo. Tivemos de o fazer. Foi assim que ficou a saber.

- De que morreu ela?

- Não... Não sei!

- Terei de perguntar às criadas? - Inquiriu Pitt, delicadamente.

- Não! - Fez-se um momento de silêncio. - Não - respondeu Reggie mais calmamente. - Ela fez um aborto. Correu mal. Foi por isso que morreu. Não sabia nada disso. Não a poderia ter salvo! Tem de acreditar em mim.

- Mas o filho era seu?

- Como quer que saiba?

Pitt permitiu-se finalmente a demonstrar algum nojo.

- Quer dizer que a partilhava com outra pessoa? Porventura com o criado, ou com o engraxate? - Interpelou severamente.

- Como se atreve! Ponha-se no seu lugar!

- O seu lugar, de momento, Mr Southeron - retorquiu Pitt instantaneamente, - é extremamente desagradável! Uma criada de fora, com um filho seu na barriga, morre em sua casa devido a um aborto mal feito. O seu médico faz chantagem consigo por causa disso. Agora, o seu médico é assassinado em frente da sua casa. O que lhe ocorre como sendo a conclusão óbvia a retirar daí?

- Já... já lhe disse. - Reggie engasgou-se à procura das palavras, - a preceptora! Ela estava metida nisto com ele! Ele devia andar a dormir com ela e contou-lhe! Foi ela quem me veio pedir dinheiro! Deve ter discutido com ele - um caso de desentendimento entre ladrões! Essa é a resposta mais óbvia! Em quem é que vai acreditar? Em mim, que não fiz nada de mal, ou numa empregada que mente e faz chantagem, acabando por matar o amante e cúmplice? Pergunto-lhe eu?

Pitt suspirou e levantou-se.

- Não vou acreditar em ninguém, Mr Southeron, até ter mais provas. Mas lembrar-me-ei do que me disse - de cada palavrinha. Obrigada pelo seu tempo. Bom-dia, senhor.

Assim que o inspector saiu, Reggie deixou-se cair. Era espantoso! Só Deus sabia onde aquilo iria acabar. Escândalo! Ruína! Reggie sentia-o. A sala girava à sua volta e emsombrava-se em imagens de penúria - vagas, porque nunca chegara a conhecê-la - mas nem por isso menos assustadoras.

Reggie ainda estava sentado à mesa, abatido, quando Adelina entrou.

- Parece-me doente - constatou. - Comeu de mais?

A fria despreocupação da mulher era o golpe de misericórdia num homem ferido e em sofrimento.

- Sim, estou doente! - Respondeu, irritado. - A Polícia esteve aqui mesmo agora. O Freddie Bolsover foi assassinado. - Observou a expressão dela, satisfeito por vê-la manifestar choque.

- Assassinado! - Sentou-se abruptamente. - Que horror! Por que razão? Foi assaltado?

- Não faço ideia! - Replicou imediatamente. - Foi simplesmente assassinado!

- Pobre Sophie - o olhar de Adelina percorreu a mesa e fixou-se na distância, para além de Reggie. - Vai ficar desfeita!

- Esqueça a Sophie! E nós? Ele foi assassinado, Adelina, não está a perceber? Isso significa que alguém o assassinou. Que alguém surgiu, ali, no escuro e espetou-lhe uma faca, ou bateu-lhe na cabeça, ou seja o que for.

- Muito desagradável - concordou ela. - As pessoas podem ser muito más.

- É tudo quanto tem para dizer? - A voz dele começava a elevar-se para um grito descontrolado. - Raios partam, mulher, aquele patife da Polícia só faltou acusar-me daquilo!

Adelina não parecia impressionada e muito menos assustada.

- Porque fariam eles isso? Não pode ter razão alguma para matar o Freddie. Ele era um amigo.

- Era um chantagista!

- O Freddie! Que disparate. Com quem havia ele de fazer chantagem?

- Ele é médico, minha estúpida! Poderia fazer chantagem com qualquer um dos seus pacientes!

Mesmo assim, Adelina não parecia emocionada.

- Os médicos não podem contar factos confidenciais acerca dos seus pacientes. Se o fizessem, não teriam mais pacientes. O Freddie nunca faria isso. Seria uma parvoíce. E não me chame estúpida, Reggie. É muito grosseiro e não há necessidade disso. Lamento que o Freddie tenha morrido, mas ficarmos histéricos não vai ajudar.

- Não a percebo! - Reggie estava zangado, assustado e, agora, extremamente baralhado. - Andava a chorar por todos os cantos pela Helena e aqui tem o Freddie morto e parece nem sequer estar preocupada!

- Isto é diferente. A Helena estava à espera de bebé. - A voz dela cedeu perante aquela memória. - A criança morreu mesmo antes de nascer. Se fosse uma mulher, havia de compreender. Eu olho para as minhas próprias filhas e é evidente que choro. Os filhos são tudo quanto uma mulher realmente tem. - Olhou-o com uma súbita severidade. - Nós trazêmo-los na barriga e damos à luz e pômo-los no mundo. Amamo-los, ouvimo-los, damos-lhes conselhos e certificamo-nos de que se casam bem. Tudo quanto você faz é pagar as contas e gabar-se quando eles fazem alguma coisa como deve ser. Lamento que o Freddie tenha morrido, mas não posso, na verdade, chorar por ele. Evidentemente que terei pena, pela Sophie, uma vez que ela não tem filhos. E como sabe que o Freddie era um chantagista?

- Como?

- Disse que o Freddie era um chantagista. Como é que sabe?

- Ah - procurou desesperadamente uma resposta, - contaram-me. Foi uma confidência, sabe, não lhe posso dizer mais nada.

- Não seja idiota, Reggie. As pessoas não lhe contam esse tipo de coisas. Ele devia andar a fazer chantagem consigo. Andava ou não?

- Claro que não! Não havia nada com que me pudesse chantagear!

- Então por que razão pensa a Polícia que o matou? Não faz sentido.

- Não sei! - Berrou. - Não perguntei, caramba!

- Julguei que pudesse ter a ver com a Dolly.

Reggie ficou paralisado. Ela parecia uma desconhecida sentada no topo da mesa, monstruosa e estranha - indestrutível. Dizia algo de espantoso e, no entanto, o seu rosto não expressava senão uma vaga curiosidade.

- A... a Dolly? - Gaguejou.

- Poderia ter-lhe perdoado por ter dormido com ela, contanto que fosse discreto - continuou, encarando-o directamente. Parecia ser a primeira vez que realmente olhava para ele. - Mas não por lhe ter morto o filho, Reggie. Isso nunca.

- Não matei a criança! - Estava a ficar histérico. Sabia-o, mas não era capaz de se conter. - Foi um aborto. Correu mal! Não fui eu!

- Não minta, Reggie. Claro que foi você. Permitiu que ela fosse fazer um aborto aí pelas ruas, em vez de a mandar para o campo, onde poderia dar à luz. Poderia ter lá ficado, ou você ter arranjado quem adoptasse a criança. Mas não o fez. Não lho perdoarei, Reggie. Nunca. - Tornou a levantar-se e voltou-lhe as costas. - Espero que não tenha tido nada a ver com a morte do Freddie. Teria sido muito estúpido da sua parte.

- Estúpido! É tudo quanto tem para me dizer? Estúpido! Imagina realmente que poderia ter alguma coisa a ver com a morte do Freddie?

- Não. Julgo que seria pouco provável que fizesse uma coisa tão definitiva. Mas alegra-me ouvi-lo dizer que não. Espero que esteja a dizer a verdade.

- Duvida de mim?

- Não me parece que esteja muito preocupada, a não ser pelo escândalo. Se conseguir manter a Polícia fora disto, é tudo quanto lhe peço.

Reggie olhou para ela, desesperado. Subitamente, estava gelado, como se lhe tivessem arrancado uma pele gasta, deixando-o despido. Viu-a retirar-se e sentiu-se como uma criança abandonada no escuro.

Depois de ter dito à Polícia que Jemima era a pessoa que andara a fazer chantagem com ele e, portanto, sem poder voltar atrás com a sua palavra, a solução mais óbvia e ideal parecia ser culpá-la também da morte de Freddie. Agora tinha de ser coerente. Tinha de agir como se acreditasse piamente nisso. Era inconcebível que um homem, sabendo de tal coisa, pudesse manter em sua casa, a tutorar as suas filhas, uma chantagista e assassina. A única via possível era despedi-la imediatamente.

Era uma infelicidade, claro está. Naquelas circunstâncias, ninguém mais a receberia, mas o que é que ele podia fazer? Que pena não ter aproveitado a oportunidade uns minutos antes para contar a Adelina - mas naquele momento, pensar em Adelina era muito desagradável e o melhor era afastá-la do pensamento. Tinha de encontrar Jemima para lhe dizer que tinha de se ir embora. Não precisava de lhe explicar precisamente porquê, o que seria embaraçoso - poderia muito bem evitar isso dizendo que não desejava acusá-la antes da Polícia, correndo o risco de deitar a perder a justiça da sua causa. Sim, isso parecia excelente. Sentiu mesmo uma onda de rectidão que o fez levantar-se da mesa para executar imediatamente o seu plano.

Charlotte soube o que se passava ao meio-dia quando Jemima lhe apareceu à porta, lívida e acompanhada do seu baú - já o cocheiro dobrava a esquina da rua. Devia ter permanecido nos degraus durante alguns momentos, com receio de bater à porta.

Foi a própria Charlotte quem acorreu à porta, uma vez que não havia mais ninguém para o fazer. Seria pouco recomendável mandar Mrs Wickes abrir a porta, com as mãos molhadas, o avental sujo e o cabelo espetado como um espanador.

- Jemima! - Charlotte reparou no baú. - Mas o que é que aconteceu? Entre, parece gelada e esfomeada. Ajuda-me a levantar o baú? Não o podemos deixar aí, ou alguém poderá roubá-lo.

Jemima dobrou-se obedientemente e uns minutos depois já estavam ambas dentro de casa. Charlotte aproveitou para observá-la mais atentamente.

- O que foi? - Perguntou suavemente. - Mr Southeron acusou-a de fazer chantagem com ele?

Jemima ergueu o olhar, com uma expressão de choque e, ao mesmo tempo, com uma espécie de alívio por não ter de ser ela a dar aquela notícia.

- Já sabia?

Charlotte sentia agora vergonha por não a ter prevenido antecipadamente, embora talvez não tivesse servido de muito. Devia ter arquitectado uma forma de Pitt não permitir que Reggie espalhasse as suas mentiras.

- Sim. Era o que tentava dizer-lhe quando a fui ver no outro dia. - Estendeu as mãos e agarrou as de Jemima. - Lamento muito. Quando vi o que sentia pelo Brandy Balantyne, percebi que não podia misturar o Reggie e as criadas dele na mesma conversa, pois temia que a Jemima pensasse que eu a considerava do mesmo género.

Embora Jemima parecesse baralhada, o seu olhar não era acusador.

- Como é que descobriu? - Repetiu. - Será que toda a gente sabe, menos eu? - Engoliu em seco. - Porquê, Charlotte? Por que havia ele de dizer tal coisa? É certo que dorme com a Mary Ann, mas toda a gente sabe! Nunca abordei essa questão e muito menos com ele... e pedir dinheiro! Porque havia ele de afirmar que o fiz?

- Porque alguém andava a fazer chantagem com ele e ele não queria contar a verdade - respondeu Charlotte. - Era fácil culpabilizá-la a si, porque tem menos possibilidades de se defender.

- Mas por que razão haveria alguém de fazer chantagem com ele sobre isso? É bastante ordinário, lá isso é verdade, e abusa quer da Mary Ann quer da esposa. Mas não é um crime. Nem sequer seria grande escândalo. De qualquer forma, nada que valesse a pena pagar para abafar.

- Não sei - confessou Charlotte. - Mas venha sentar-se. Deixe-me fazer-lhe qualquer coisa para beber que a aqueça. Parece-me que ainda tenho um pouco de cacau. Temos de pensar no que vamos fazer a seguir. - Charlotte pôs-se rapidamente a trabalhar. De qualquer das maneiras já estavam na cozinha, uma vez que era a divisão mais quente da casa. Charlotte só tinha dinheiro para manter o lume aceso na sala à noite. Mrs Wickes tinha acabado de lavar o chão e fora lá para cima varrer, deixando-as sozinhas.

- Pode dormir no quarto do bebé - prosseguiu Charlotte, mexendo o cacau com uma colher de pau para desfazer os grumos. - A cama é um tanto pequena, mas por uns tempos, serve. Receio ser tudo de quanto dispomos...

- Não posso cá ficar - apressou-se Jemima a contrapor. - Ah, Charlotte, fico-lhe muito agradecida, mas a Polícia não tardará a andar à minha procura. Como sabe, a chantagem é um crime. Não posso impor-lhe uma situação...

- Ah! - Charlotte voltou-se, surpreendida, esquecendo-se de que Jemima sabia muito pouco sobre ela. - Não se preocupe com isso. O meu marido é da Polícia. Com efeito, é o polícia encarregue deste caso. Ele sabe que a Jemima não fez chantagem com ninguém. Pelo menos - corrigiu, - não acredita que o tenha feito. Não se preocupe, ele vai descobrir a verdade. E o Dr. Bolsover foi assassinado. Sabia? Encontrei o corpo dele esta manhã. Ia ter consigo para a pôr de sobreaviso relativamente a Mr Southeron quando quase tropecei nele. Talvez fosse ele o verdadeiro chantagista.

- A Charlotte... a Polícia... ? - Jemima estava extremamente confusa. - Mas a Charlotte não é casada. Não é a irmã de Lady Ashworth? Pelo menos foi isso que disse o general Balantyne. Foi ele quem me deu a sua morada, esta manhã. Tive de lhe mentir. Disse-lhe que lhe queria escrever uma carta. - Fez uma expressão de dor e baixou o olhar por uns momentos. - Antes que Mr Southeron pudesse contar a toda a gente sobre mim e não encontrasse ninguém que me abrisse a porta. Não sabia a quem mais recorrer...

- Os olhos encheram-se de lágrimas e Jemima deixou cair a cabeça para esconder a sua aflição.

Charlotte pousou o cacau e foi ter com ela, envolvendo-a com os braços. Durante uns minutos, Jemima chorou silenciosamente. Em seguida recompôs-se, assoou-se com força, pediu licença para ir lavar a cara e voltou ao andar de baixo para beber o cacau, já quente, acompanhado de biscoitos. Assim que acabou, encarou Charlotte e declarou-se pronta para a batalha.

Charlotte retribuiu-lhe o sorriso.

- O Thomas vai descobrir a verdade - afirmou com veemência, embora soubesse que poderia não ser assim tão fácil. Por vezes os crimes permaneciam insolúveis. - E, se possível, dar-lhe-emos uma ajuda - continuou, - para que se resolva tudo mais depressa. Parece-me que tenho de escrever uma carta à Emily, para lhe transmitir estes últimos acontecimentos. Talvez nos possa ajudar.

- É maravilhosa, Charlotte! -Jemima esboçou um débil sorriso. - Está assim tão acostumada a assassínios, que eles já deixaram de a assustar?

-Ah, não! - O caso de Cater Street voltou-lhe ao espírito, com todo o seu terror e sofrimento. Sentiu as lágrimas a quererem romper, lembrando-se de Sarah. - Ah, não - respondeu calmamente.

- Assustam-me muito, não apenas o assassínio, mas também todas as coisas obscuras que suscita, mesmo nas pessoas que só longinquamente estão envolvidas no primeiro crime. Parece tão frequente um crime dar azo a outro. As pessoas fazem coisas tão estranhas para encobrir a culpa. Podemos tornar-nos tão cruéis e egoístas, quando temos medo. O assassínio e a investigação revelam-nos tanto acerca uns dos outros, coisas que preferíamos não saber. Acredite que me assusta. Mas creio que prefiro que continue a assustar-me. O contrário significaria que se tornara banal para mim. Contudo, está na minha natureza lutar e ainda descobriremos a verdade, independentemente de quem possa estar envolvido!

Quando Pitt chegou a casa, já tarde, ficou apenas um pouco surpreendido por deparar com Jemima sentada ao lado de Charlotte, diante do lume. A princípio estava embaraçada e nervosa, mas Pitt esforçou-se por pô-la à vontade, embora estivesse extremamente cansado e, quando Jemima se retirou, parecia em condições de ser capaz de dormir.

Depois de Jemima se ter retirado, Pitt contou a Charlotte que Reggie acusara igualmente a preceptora do homicídio de Freddie, sentindo-se aliviado por ela não ter explodido de raiva, nem se ter desfeito em lágrimas - embora nunca tivesse considerado provável esta última hipótese.

De manhã, Pitt encaminhou-se novamente para Callander Square, fazendo parte do percurso a pé, para ter mais tempo para reflectir.

Não duvidava nem por um momento que Freddie Bolsover fora assassinado por ser um chantagista. Inclinava-se a pensar que não tinha sido Reggie Southeron, quanto mais não fosse por lhe faltar a ousadia e porque parecera totalmente chocado ao receber a notícia da descoberta do corpo. Certamente que se soubesse alguma coisa teria preparado uma história mais plausível.

Contudo, se não fora Reggie, então, quem eram os outros suspeitos? Sem dúvida que em Callander Square não faltariam segredos cuja manutenção era valiosa!

Começaria por Balantyne.

Pitt encontrou o general em casa e disponível para o receber. Foi conduzido à salinha da manhã onde, momentos depois, entrou o general, ainda de semblante carregado pela notícia do assassínio de Freddie ocorrido na véspera.

- Bom-dia, Inspector. Descobriu algo mais acerca do pobre Freddie?

- Sim, bastante, senhor General. Receio que nada de muito agradável.

- Estou certo que não. Que desgraça, pobre tipo. Ontem disse-me que ele foi apunhalado. Houve mais alguma coisa?

- Talvez não me tenha explicado muito bem. Queria dizer que o que descobri dizia respeito ao próprio Dr. Bolsover e não ao homicídio; embora acredite ter sido a causa deste.

- Ah sim? - Balantyne franziu ligeiramente as sobrancelhas. - O que quer dizer? Certamente que não terá nada a ver com os bebés na praça? Sempre julguei que o Freddie era um tipo bastante sóbrio, que não era dado a parvoíces com outras mulheres.

- Não tem directamente a ver com os bebés, mas talvez haja uma ligação indirecta. Ele era um chantagista.

Balantyne fitou-o, perplexo.

- Um chantagista? - Repetiu, estupefacto. - O que o leva a pensar numa coisa... tão... vil?

- Uma das suas vítimas.

- Deve estar a mentir! Um tipo cujos actos fossem dignos de chantagem pode muito bem ser também um mentiroso. Na verdade, só pode! Ou outras pessoas teriam conhecimento dos seus crimes.

- Não tem de ser um crime, senhor General - advertiu Pitt, delicadamente. - Pode ser qualquer coisa que simplesmente preferisse manter em segredo - uma indiscrição ou um infortúnio. Talvez algo como uma filha que tenha mantido um caso amoroso com um criado, tendo engravidado antes de se casar ou... - deteve-se. Não havia necessidade de continuar, Balantyne tinha as faces escarlates. Pitt aguardou.

- Havia de ver o tipo no Inferno antes de lhe pagar - respondeu Balantyne calmamente. - Acredite-me!

- Deveras? - Indagou Pitt, com um tom de voz brando, sem desafio, mas a perscrutá-lo como quem não quer a coisa. - A sua única filha, mesmo antes do casamento dela com um bom partido? Tem a certeza? Não havia, porventura, de considerar que valia a pena fazer uma pequena despesa para a proteger?

Balantyne fitou-o, com um olhar pensativo. Pitt manteve-se em silêncio.

- Não sei - respondeu, por fim, Balantyne. - Talvez tenha razão. Mas não foi isso que sucedeu. O Freddie nem sequer se aproximou de mim. - Dirigiu o olhar para a carpete. - Pobre Sophie. Suponho que não fazia ideia. Muitas vezes me perguntei como é que o Freddie conseguia viver tão à grande. Tinha alguma ideia do número dos seus doentes. Nunca me ocorreu, em momento algum... que coisa horrível. Supõe que ele sabia de quem eram os bebés?

- Talvez - respondeu Pitt. - Mas prefiro ficar na dúvida. Se ele fosse pressionar o responsável por esse crime, julgo que já teria sido morto há muito tempo. Claro que podia saber alguma coisa sem se dar conta da sua importância. Não sei, e é por isso que tenho de interrogar todas as pessoas que ele pudesse ter pressionado.

- Naturalmente. É evidente que sim. Bem, não fazia ideia. Não gostaria muito de o fazer, mas se precisar da minha ajuda, tê-la-á.

- Obrigado. Dá-me licença que fale com Lady Augusta e, depois, com o jovem Mr Balantyne?

Mais uma vez, Balantyne corou desconfortavelmente.

- Garanto-lhe que Lady Augusta não lhe poderá dizer nada, certamente que nunca fez nada na sua vida que possibilitasse uma chantagem! E não é o tipo de mulher que se deixa intimidar.

Pitt concordou com aquela última observação, mas, se tivesse feito alguma coisa, então, o mais provável era que fosse do general que a quisesse manter secreta. Pitt absteve-se de manifestar esta sua opinião, que apenas traria embaraço, sem qualquer resultado prático.

- Mesmo assim, talvez ela possa ajudar-me. Estou certo de que não é uma mulher dada a coscuvilhices, mas estamos a lidar com um assassínio. Preciso de toda a ajuda que conseguir obter.

- Sim... sim, suponho que sim. Muito bem. - Talvez também se desse conta de que o pedido era apenas uma formalidade. Pitt não aceitava recusas. Vinha investido de poderes oficiais.

Augusta recebeu-o na sala de visitas, ainda fria, com um lume recém-aceso.

- Bom-dia, minha senhora - cumprimentou Pitt, formalmente, assim que o criado fechou a porta atrás de si.

- Bom-dia - respondeu Augusta. Era uma mulher vistosa e parecia, pelo menos, um pouco mais descontraída do que da última vez que a vira. - Em que posso ser-lhe útil, Inspector? Não faço ideia de quem possa ter morto o Freddie Bolsover ou por que razão.

- A razão não é difícil - replicou Pitt, encarando-a directamente. - Ele era um chantagista.

- Não me diga? - Ergueu ligeiramente as sobrancelhas. - Mas que desagradável. Não fazia ideia. Suponho que tenha a certeza.

- Absolutamente. - Aguardou, pensando no que havia de dizer a seguir.

- Então, o mais certo é que o assassino seja a sua vítima? Não precisa que seja eu a dizer-lho!

Pitt sorriu muito vagamente.

- Isso seria presumir que ele tinha apenas uma vítima, minha senhora. Porque havia eu de partir desse princípio?

Augusta olhou para ele, elevando muito ligeiramente os cantos da boca.

- Pois é. Eu própria deveria ter percebido isso. Quando mo refere, torna-se bastante óbvio. O que imagina que lhe possa dizer? Asseguro-lhe que o Freddie Bolsover não estava a fazer chantagem comigo.

- Nem acerca da infeliz questão de Miss Christina com o criado?

Augusta mal vacilou.

- Não me passaria pela cabeça que fosse um assunto para a Polícia tratar.

- De todo. Foi uma descoberta acidental. Mas não respondeu à minha pergunta. Mr Bolsover não a abordou relativamente a esse assunto?

- Com certeza que não -, sorriu muito levemente e olhou-o sem desagrado. - Nunca lhe teria pago. Teria encontrado uma outra forma de lidar com ele. Tal como fiz com o Max, que realmente tentou. Demasiada cabeça e imaginação, Inspector, para recorrer à violência.

Pitt sorriu abertamente.

- Acredito que sim, minha senhora. Espero que não deixe de me comunicar imediatamente, caso venha a lembrar-se de alguma coisa que me possa ser útil, por mais insignificante que seja. Por amor de Deus, não tente tratar deste assunto sozinha. Ele já matou uma vez ou até mais.

- Dou-lhe a minha palavra - respondeu, convincentemente. Mais tarde, Pitt encontrou-se com Brandy naquela sala.

- O que aconteceu agora? - Quis saber Brandy. - Não me diga que morreu mais alguém!

- Não, e quero certificar-me de que isso não volta a acontecer. Tenho de descobrir quem é que matou o Dr. Bolsover, antes que o assassino se volte a sentir ameaçado.

- Ameaçado? - Brandy parecia preocupado.

- O Dr. Bolsover era um chantagista, Mr Balantyne. Essa é com certeza a razão pela qual foi morto.

- Sabe a quem é ele andava a chantagear?

- Pelo menos Mr Southeron.

- Ainda bem... certamente que o Reggie não o matou?

- Parece-lhe improvável?

- Bem... sim... parece-me. De alguma forma Reggie não aparenta. .. para ser franco, não creio que tivesse coragem para isso! - Brandy sorriu em tom de desculpa.

- Nem eu - concordou Pitt. - Ele disse que foi a Jemima Waggoner quem matou o Dr. Bolsover...

- Como? - A cor fugiu-lhe das faces. - A Jemima? Isso é uma estupidez! Por que raio havia a Jemima de matar quem quer que fosse?

- Porque era parceira dele na chantagem, tornou-se gananciosa quanto ao espólio e discutiram...

- É um mentiroso! - Desta vez não havia equívoco. Brandy estava furioso. - Aí tem a resposta! O Reggie matou-o e está a mentir para se proteger. Aí tem a prova! Se disse que a Jemima fez chantagem com ele, então, é um mentiroso! - O rosto dele mostrava determinação e fúria.

- Uma pessoa pode mentir para encobrir muitas coisas, Mr Balantyne - disse Pitt, calmamente. - Não necessariamente um homicídio. Mr Southeron entra em pânico com muita facilidade.

- É um mentiroso! - Brandy elevava o tom de voz. - Não pode acreditar que ela... que a Jemima... - deteve-se subitamente, esforçando-se por se controlar. Engoliu em seco e recomeçou. - Peço desculpa. Estou plenamente convencido. Tenho a certeza de que a Jemima está inocente e arranjarei maneira de o provar.

- Ficarei grato por toda a ajuda que me puder facultar - Pitt sorriu. - O Dr. Bolsover não o abordou?

- Não. Por que razão o faria?

- Dinheiro, favores, qualquer coisa?

- É evidente que não!

- Julguei que pudesse estar disposto a pagar, por exemplo, para proteger Lady Carlton.

Brandy corou intensamente.

- Como descobriu isso? Pitt foi evasivo.

- Abordou ou não?

- Não. Tenho a certeza que não fazia ideia. Não era coisa que pudesse ser do conhecimento dele. Quero dizer, enquanto médico, ele poderia vir a saber que ela estava de esperanças e tudo o mais, mas nada acerca de mim. Tudo isso, porém, deixa de ter importância perante a tarefa de inocentar a Jemima, Inspector - hesitou, - por favor, vá ao fundo da questão.

Pitt esboçou um pequeno sorriso.

- Gosta dela, não gosta?

- Eu... - Brandy parecia perdido. Ergueu o olhar. - Sim... bem... julgo que sim.

 

Pitt também visitou Robert Carlton, mais para o informar que Freddie fora um chantagista do que com alguma esperança de que ele pudesse admitir ter sido uma das vítimas. Fez perguntas muito discretas, quase irrelevantes, dando mais valor à cooperação de Carlton do que a um possível envolvimento que este pudesse relutantemente divulgar.

Não lhe ocorria qualquer razão pela qual as Doran pudessem ter atraído a atenção de Freddie Bolsover. Como toda aquela história de Helena se tornara alvo de especulação pública antes da morte de Freddie, Pitt preferiu deixá-las entregues à sua dor.

Por fim, Pitt visitou os Campbell. Também não via razão pela qual pudessem ter sido pressionados, mas era sempre possível descobrir alguma indiscrição ainda desconhecida, que certamente não lhe iriam contar. Todavia, das conversas mais cautelosas podiam surgir muitas pequenas pistas. Frequentemente, a própria cautela era indicadora da existência de algo a ocultar.

Em primeiro lugar, viu Mariah, já que Campbell estava ocupado com a correspondência no escritório. Mariah estava muito calma, não manifestando mais do que uma profunda solidariedade para com Sophie. Pitt não conseguiu obter nada dela, para além da crescente impressão de que ela era uma mulher forte que já tinha ultrapassado muitas dificuldades - até desgostos -, estando disposta a ajudar Sophie a aguentar o choque que a devastava naquele momento, bem como a vergonha que não tardaria a surgir.

Pitt teve de esperar um quarto de hora até que Garson Campbell o mandasse chamar ao seu escritório. Quando lá chegou, Campbell estava de pé, em frente do lume, com os pés bem afastados, a balançar ligeiramente para trás e para a frente. Parecia zangado.

- Muito bem, Pitt, o que se passa? - Perguntou, abruptamente.

Pitt decidiu imediatamente que não valia a pena tentar ser subtil. Estava diante de um homem esperto e agressivo, que não só perceberia, como evitaria, qualquer armadilha verbal que lhe tentasse armar.

- Sabia que o Dr. Bolsover era um chantagista? - Indagou. Campbell ponderou por momentos.

- Sim - respondeu lentamente. Pitt ficou na expectativa.

- E como é que soube, senhor?

Os olhos frios e cinzentos de Campbell encararam-no com um divertimento amargo.

- Não por fazer chantagem comigo, Inspector. Uma das vítimas dele veio pedir o meu conselho. Naturalmente que não lhe posso revelar quem é.

Pitt sabia que não fazia qualquer sentido pressioná-lo. Talvez pudesse coagir algumas pessoas, assustá-las ou até induzi-las pela força da sua personalidade - mas não Garson Campbell.

- Pode dizer-me que conselho deu a essa pessoa? - Limitou-se a inquirir.

- Sim - Campbell sorriu ligeiramente. - Aconselhei-a, por ora, a pagar. Era uma indiscrição e não um crime. O perigo de se tornar pública e de provocar verdadeiro dano não tardaria a passar. Também prometi conversar com o Freddie e adverti-lo de que um tal truque poderia não funcionar duas vezes.

- E chegou a fazê-lo?

- Sim.

- E qual foi a reacção do Dr. Bolsover?

- Diria que não muito fiável, Inspector. Um homem capaz de fazer chantagem não hesitaria em mentir.

- A chantagem é um crime furtivo e sorrateiro, Mr Campbell. Um chantagista depende do sigilo e é normalmente um cobarde.

Pode muito bem ter ficado assustado por um homem mais poderoso - coisa que Mr Southeron não é, mas o senhor sim. Campbell ergueu as sobrancelhas, divertido.

- Então, sabia disso?

- Evidentemente - Pitt permitiu-se um pouco de arrogância.

- E não prendeu o pobre Reggie? É um asno desprezível. Entra em pânico com muita facilidade.

- Já dei por isso - concedeu Pitt. - Mas também me parece ser um tanto cobarde. E, de maneira nenhuma, a única pessoa em Callander Square passível de atrair a atenção de um chantagista.

O rosto de Campbell contraiu-se por uns momentos como se tivesse sido atravessado por um espasmo de dor.

- No seu lugar, teria muito cuidado com o que diz, Pitt. Pode arranjar muitos problemas para si ao fazer falsas acusações acerca das pessoas nesta praça. Todos nós temos as nossas fraquezas, algumas sem dúvida desagradáveis, de acordo com os seus padrões, mas não gostamos que andem para aí de boca em boca. Todos os homens fazem o que querem, desde que arrisquem. Temos a sorte de poder arriscar mais do que a maioria. Ganhámos ou herdámos essa posição. Por quem é, descubra quem matou os bebés, se assim tiver de ser. E veja quem é que apunhalou o Freddie Bolsover: mas pense na Sophie e não se ponha a sacudir muita poeira só para ver o que está por baixo. Prometo-lhe que não vai progredir na sua carreira. É muito mais provável que acabe a fazer a ronda nas docas.

Pitt observou o rosto dele por uns instantes. Não duvidava, nem por um momento, que ele queria dizer exactamente o que acabara de dizer e que era mais do que um aviso.

- O Freddie Bolsover era um chantagista, senhor - respondeu ao mesmo nível, - e a chantagem alimenta-se de escândalos. Dificilmente posso ter esperança de descobrir quem o matou sem descobrir também o motivo.

- Se ele era um chantagista, merecia morrer. Talvez fosse melhor, pela felicidade de quem ainda permanece na praça, que ficasse por aí. Não tenho nenhum escândalo para esconder, como imagino que já saiba, mas há uma boa quantidade de homens poderosos que têm. Para segurança deles e para minha conveniência, aconselhava-o a não remexer demasiado na lama. Já há muito tempo que temos a Polícia em Callander Square. Isso é mau para nós. É altura de chegarem a uma conclusão qualquer ou de desistirem e deixarem-nos em paz. Já vos ocorreu alguma vez que a vossa bisbilhotice persistente poderá ter desencadeado estas tragédias - que longe de fazerem bem, estão a piorar uma situação que para começar já era bastante má?

- Já aconteceu anteriormente depararmos com um assassino que cometeu um segundo crime para encobrir o primeiro. Isso não pode ser uma boa razão para o deixar impune.

- Oh, por amor de Deus, homem, não seja tão zeloso, caramba! O que é que tem? Uma criada que se deixa engravidar e mata os bebés - ou enterra-os nado-mortos -, uma vadia cujo amante se cansou dela, e um chantagista! Agora já não há esperança alguma de encontrar a rapariga e quem raio se importa, de qualquer das formas? Por esta altura já o amante da Helena deve estar noutro país e, uma vez que aparentemente ninguém chegou a vê-lo, tem tantas hipóteses de o enforcar como de enrolar um nó cego à volta da lua. Quanto ao Freddie, mereceu amplamente o seu destino. A chantagem é um crime, até de acordo com os seus padrões. E quem é que pode afirmar que foi alguém de Callander Square? Ele tinha doentes por todo o lado. Tente alguns. Pode ser qualquer um deles. Mas não me venha culpar se eles o puserem na rua!

Pitt saiu de casa dos Campbell mais deprimido do que alguma vez se sentira desde que o caso começara. Muito daquilo que Campbell lhe havia dito era verdade. Com efeito, a sua presença poderia ter desencadeado, tanto o crime de Freddie, como a sua morte. Por outro lado, não parecia estar mais perto de uma solução para qualquer uma das mortes do que no primeiro dia.

Por isso, quando dois dias depois foi chamado à presença dos seus superiores e censurado pela condução do caso, se não fosse a determinação ardente de Charlotte Pitt teria cedido à pressão deles e admitido uma derrota completa, excepto na morte de Freddie Bolsover.

- Sabemos que fez o melhor que pôde - declarou Sir George Smithers, irritado. - Mas não chegou a lado nenhum, pois não? Não está mais perto de uma conclusão do que alguma vez tenhamos estado! Já era um tiro no escuro, para começar.

- E precisamos de si para coisas mais importantes - acrescentou o coronel Anstruther, com um pouco mais de simpatia. - Não podemos desperdiçar um bom homem num caso sem solução.

- E quanto ao Dr. Bolsover? - Perguntou Pitt entredentes. - Também o vamos classificar como "insolúvel"? Não lhes parece ser cedo demais para isso? As pessoas poderiam pensar que nem sequer tentámos! - Estava demasiado irritado para evitar ofendê-los com o seu tom de voz.

- Não há necessidade de ser sarcástico, Pitt - respondeu Smithers, friamente. - E evidente que temos de envidar alguns esforços no que diz respeito ao Bolsover, embora pareça que o patife não teve mais do que merecia. Conheço o Reggie Southeron pessoalmente - um tipo inofensivo. Gosta dos seus prazeres, mas não tem mau fundo.

Pitt praguejou mentalmente.

- Alguém enterrou uma faca no Bolsover - disse.

- Deus do Céu, homem, não imagina que tenha sido o Reggie, pois não?

- Não, Sir George, não imagino. E é por isso mesmo que preciso de saber a quem mais estava o Bolsover a chantagear.

- Creio que essa é uma via de inquérito perigosa - Smithers meneou a cabeça em desaprovação. - Que causa muitos... eh... embaraços. O melhor é deixar como está e concentrar-se nos factos. Ver se o médico lhe diz qualquer coisa acerca do corpo, pôr-se ao corrente da situação, encontrar testemunhas e esse tipo de coisas. Chegar à verdade por esse caminho.

- Não me parece viável, Sir George - respondeu Pitt, cruzando o olhar com o dele.

Smithers corou de raiva perante a insolência, não tanto das palavras, como do olhar.

- Então, terá de admitir a derrota, não é? Mas tente. Tem de parecer que estamos a fazer o nosso melhor.

- Mesmo que assim não seja? - Pitt deixou-se levar pela ira.

- Cautela, Pitt - admoestou Anstruther calmamente. - Está a velejar demasiado perto do vento. Há muita gente importante em Callander Square. Já aguentaram o que tinham a aguentar da Polícia a bisbilhotar as suas vidas privadas.

- Deduzo que tenham reclamado? - Perguntou Pitt.

- Sim.

- Quem?

- Vários. Naturalmente que não lhe posso dizer precisamente quem, pois poderia virá-lo contra eles, muito injustamente. Agora seja um bom rapaz e vá verificar novamente os factos. Nunca se sabe, se perguntar a todos os criados, talvez encontre alguém que tenha visto alguma coisa, ou que, pelo menos, saiba quem estava em casa e quem não estava; álibis e tudo o mais.

Pitt concordou, porque não podia fazer mais nada. Sentia-se zangado e perto da derrota. Não fosse a certeza de que Charlotte o havia de confortar, fortalecê-lo e lutar até à última por ele, e Pitt poderia muito bem ter pensado em obedecer àquela ordem quer no espírito, quer na letra.

Balantyne não sabia nada acerca da pressão que fora exercida sobre Pitt, pois era o único homem daquela praça que não tinha contribuído para a instigar. Quando Reggie veio vê-lo, cheio de bom-humor por ter escapado a um enorme sarilho, o general não fazia ideia do que estava por detrás de tanta excitação.

- Que coisa tão boa, caramba, não? - Reggie tragou um cálice de xerez de que ele próprio se servira. - Em breve poderemos voltar à nossa vida normal. E já não era sem tempo. Com toda aquela maldita história a atazanar-nos.

- Dificilmente o faremos - asseverou Balantyne, um pouco rígido. Considerava a jovialidade de Reggie de muito mau gosto. - Ainda resta a questão dos quatro assassínios, para além de tudo o resto.

- Quatro assassínios? - Reggie empalideceu notoriamente, não por ficar transtornado com os assassínios, mas com "tudo o resto", nomeadamente a mudança de Adelina. O conforto emocional do seu lar desvanecera-se. Vivia com uma desconhecida - uma mulher de quem ele nada sabia, mas que já o conhecia dolorosamente bem há muito tempo. Era uma sensação, de facto, muito desagradável.

- Já se tinha esquecido? - Perguntou Balantyne friamente.

- Não, não. Apenas não pensava nos bebés como vítimas de assassínio. O mais provável é que tenham nascido mortos, não?

E quem sabe o que aconteceu à Helena? Agora é difícil de dizer, pobre criatura. Pode ter caído e batido nalguma coisa por acidente. E francamente, meu amigo, sabe bem que o Freddie não valia nada. O patife era um chantagista. Não, a melhor coisa agora, se a Polícia vier fazer perguntas, é ver se os criados viram alguma coisa; no caso de não saberem de nada, eles que se ponham a andar atrás de carteiristas, ou seja do que for. De qualquer forma, que desapareçam daqui.

- Não me parece que façam isso. Um assassínio é muito mais importante do que roubar carteiras - constatou Balantyne, arreliado.

- Pois é, mas eu vou deixar de os ajudar. - Reggie agarrou na licoreira e serviu-se de mais um cálice de xerez. - Se o tipo voltar a aparecer por lá, recuso-me a recebê-lo. Ele que fale com os criados, se quiser. Não quero que pense que não estou a colaborar, mas não torno a tratar com ele pessoalmente. Já lhe disse tudo quanto sabia, e acabou-se. - Engoliu o resto do xerez e expirou com um suspiro. - Acabou!

Balantyne fitou-o, perplexo.

- Não julga, certamente, que foi um dos criados que matou o Freddie? - Indagou com uma incredulidade áspera.

- Meu caro amigo, já não estou minimamente interessado. Quanto mais depressa a Polícia desistir e se puser a andar, melhor.

- Eles não vão desistir, vão permanecer aqui até descobrirem os responsáveis.!

- O raio é que vão! Andei a falar com algumas pessoas, no clube e por aí. Aquele Pitt volta para as ruas se não parar de meter o bedelho. Só anda para aí a remexer na lama, à procura de escândalos. Dá-lhe prazer desacreditar quem está acima dele e mais nada. Estes sujeitinhos da classe trabalhadora são todos iguais, basta dar-lhes um pouco de poder e julgam-se logo importantes. Vá, não se preocupe, meu amigo, não tarda, ele desaparece daqui. Vai meter o nariz por aí, fazer de conta que está a tentar e, depois de um período razoável de tempo, põe-se a mexer, para voltar a procurar ladrões.

Balantyne estava furioso, sentindo uma fúria ardente a crescer no seu interior. Reggie troçava dos princípios que o general venerara a vida inteira: a honra, a dignidade, a justiça pelos vivos e pelos mortos - a ordem civilizada pela qual lutara e em nome da qual tantos dos seus pares haviam sacrificado a vida na Crimeia, na índia, em África e sabia Deus onde mais.

- Fora da minha casa, Reggie - ordenou Balantyne, enfrentando-o. - E faça o favor de nunca mais voltar. Já não é bem-vindo. E em relação à Polícia, moverei montanhas e falarei com quem estiver no poder, para que façam todas as perguntas e investiguem todas as pistas que levem à verdade acerca de tudo o que aconteceu em Callander Square e não me importo com quem raio possa ser prejudicado. Está a perceber?

Reggie fitava-o, piscando os olhos e com o copo de xerez na mão.

- Es... está bêbado! - Gaguejou, embora soubesse que não era verdade. - Está louco! Faz ideia do mal que isso poderia fazer? - A voz dele sumiu-se com um guincho.

- Por favor, saia, Reggie. Seria ridículo se tivesse de o mandar pôr fora.

O rosto de Reggie corou até ficar roxo. Atirou o copo para dentro da lareira, estilhaçando-o em mil pedaços. Depois deu meia volta e saiu vigorosamente, batendo a porta com uma tal violência atrás de si que fez tremer as molduras na parede e cair um pequeno objecto decorativo.

Balantyne permaneceu sozinho por alguns minutos, reflectindo sobre o que acabara de fazer. Por fim, tocou a campainha e, quando apareceu o mordomo, pediu que o criado lhe trouxesse o casaco, pois ia visitar Sir Robert Carlton.

Carlton estava em casa e Balantyne encontrou-o na sala de visitas diante do lume, frente a Euphemia. Nunca a vira tão feliz. Parecia radiante, como se estivesse sob a luz do sol. Balantyne desejava lá ter ido por uma outra razão, mas sentia a fúria ainda a arder dentro de si.

- Boa-noite, Carlton. Boa-noite Euphemia. Parece-me invulgarmente bem.

- Boa-noite, Brandon. - A sua voz tinha um toque de interrogação.

- Perdoe-me Euphemia, mas preciso de falar urgentemente com o Robert. Importa-se de nos deixar a sós?

Euphemia levantou-se, um pouco baralhada e retirou-se com solicitude.

Carlton enrugou o rosto, denotando irritação.

- O que se passa, Balantyne? É melhor que seja importante, ou terei dificuldade em desculpar os seus modos. Não foi muito cortês com a minha esposa.

Balantyne não estava com paciência para trivialidades.

- Utilizou a sua influência para impedir a Polícia de investigar mais a fundo os assassínios nesta praça? - Exigiu saber.

Carlton encarou-o directamente, com uma expressão desprovida de culpa ou de reserva.

- Sim, utilizei. Creio que já causaram suficientes danos e continuar a bisbilhotar as nossas vidas privadas, vasculhando as nossas tragédias e erros, não vai trazer benefícios a ninguém. Tiveram mais do que oportunidade para descobrir quem deu à luz aquelas infelizes crianças e o que lhes sucedeu. Depois de tanto tempo, não resta mais nenhuma hipótese de saberem quem era o amante da Helena Doran ou de darem com ele, se soubessem. Quanto ao Freddie Bolsover, pode ou não ter sido um chantagista, mas por, outro lado, pode perfeitamente ter sido morto por um assaltante qualquer. Para a Sophie seria melhor acreditarmos nisso e deixarmos as coisas por aqui...

- Que absurdo! - Gritou Balantyne. - Sabe muito bem que foi alguém desta praça que o matou. O Freddie deve ter ido longe demais com a chantagem e desta vez não apanhou um qualquer asno lascivo que brincava com a criada, mas um assassino.

O rosto de Carlton endureceu.

- Acredita realmente nisso?

- Sim e seja franco, você também acredita. Sei que receia pela Euphemia. Também eu. No entanto, tenho muito mais medo do que me tornarei se tentar abafar esta questão...

- O Freddie era um chantagista - insistiu Carlton, menos seguro de si. - Deixemos o desgraçado descansar em paz, quanto mais não seja, para o bem da Sophie.

- Não se iluda, Robert. Independentemente do que Freddie foi, o seu assassínio não pode ser ignorado, ou esquecido por ser feio e pelos inconvenientes que a sua investigação nos pode trazer. Mas afinal, em que raio acredita? Só lhe interessa o seu conforto?

Carlton levantou bruscamente a cabeça, com o olhar incandescente. Porém, não tinha defesa. Abriu a boca para se pronunciar, mas as palavras escapavam-se-lhe. Balantyne nem pestanejou e, por fim, foi Carlton quem baixou os olhos.

- Amanhã falo com o ministro da Administração Interna, - respondeu calmamente.

- Óptimo.

- Não sei se adiantará. O Campbell e o Reggie estão a pressionar muito para que o caso seja encerrado. O Reggie teme por ele, é claro. Quanto ao Campbell, julgo que tem pena da Sophie. É muito assustador para ela, pobre rapariga. A Mariah tem cuidado dela; é uma mulher muito capaz, a Mariah; parece saber sempre o que fazer em tempo de crise. Contudo, nada pode proteger a Sophie da desgraça, se isto vier a lume.

- Fico satisfeito por ver que ainda há alguém com cabeça no lugar -, Balantyne não podia resistir a uma última frase cruelmente honesta, uma vez que ainda estava encolerizado. - Lamento pela Sophie, mas a verdade não pode ser alterada. Apresente as minhas desculpas à Euphemia - pediu, virando-se e saindo. Assim que falasse com Brandy e Augusta e lhes desse conta dos seus sentimentos, ficaria mais calmo. Nessa altura poderia voltar, talvez no dia seguinte, para fazer as pazes com Carlton. No futuro, se fosse preciso, ajudaria Sophie.

Ao chegar a casa, ficou surpreendido quando o criado lhe anunciou a presença de Miss Ellison, que o tinha vindo visitar. Balantyne ficou arreliado e desconcertado. Estava longe de se sentir no seu melhor e não desejava que ela o visse naquele estado. O criado olhava para ele à espera e Balantyne não conseguia pensar numa desculpa.

Charlotte esperava-o no escritório. Quando Balantyne entrou, ela voltou-se e foi nessa altura que o general se deu conta do quanto ela lhe agradava, de como os seus traços eram límpidos e suaves, demonstrando paixão sem perfídia. Charlotte não tinha uma ponta de sofisticação, o que para ele era, ao mesmo tempo, tranquilizador e excitante.

- Charlotte, minha cara -, avançou na sua direcção, estendendo as mãos para agarrar nas dela, mas Charlotte encolheu-se. - O que se passa? - Ela mudara e ele temia essa mudança; não queria ver nada de diferente nela.

- General Balantyne - anunciou, num tom formal. Tinha as faces coradas e parecia embaraçada, mas sem nunca desviar o olhar. Charlotte respirou fundo. - Receio ter-lhe mentido. A Emily Ashworth é minha irmã, mas não sou solteira, tal como lhe fiz crer. Ellison era o meu nome de solteira, chamo-me Charlotte Pitt...

A princípio aquele nome não lhe disse nada, não lhe permitindo descortinar qualquer motivo de embaraço. Teria ela pensado que não a contrataria se soubesse que ela era casada?

- O meu marido é o Inspector Pitt - informou, simplesmente. - Vim para cá porque queria descobrir acerca dos bebés e, se tivessem nascido mortos, para dar algum apoio à mãe. Agora, quero ajudar a Jemima. Mr Southeron acusou-a de chantagem e de ter morto o Dr. Bolsover numa disputa acerca do dinheiro. Se o Thomas for afastado do caso e ninguém chegar a descobrir quem matou o Dr. Bolsover, ela passará o resto da vida com esse peso nos ombros.

- É casada com o Pitt - franziu o sobrolho, - o polícia?

- Sim. Lamento tê-lo enganado. Na altura nunca imaginei que isso pudesse ter importância. Por favor, pense o que quiser de mim, mas não os deixe impedir o Thomas de apurar a verdade, pelo menos quanto ao Dr. Bolsover. É errado acusar alguém e deixar as coisas por provar. Se a Jemima estivesse ao mesmo nível socialmente, ele nunca teria ousado. Só o fez por saber que ela não se poderia defender.

Balantyne sentiu uma ilusão escapar-lhe, dando lugar a um novo sentimento. O sonho fora frágil e tolo; nem a si mesmo o confessara. Agora, o que o substituía era uma dor quente e suave, daquelas que se tornam familiares e fazem parte do crescimento de alguém.

Suspirou muito devagar.

- Já fui ver Sir Robert Carlton. Era com ele que estava quando chegou. Amanhã deverá falar com o ministro da Administração Interna.

O sorriso começou-lhe nos olhos, percorrendo-lhe a boca até parecer envolvê-la por inteiro, modificando-lhe a postura, muito direita, mas cheia de graciosidade e suavidade.

- Fico contente - declarou calmamente. - Peço desculpa por não ter percebido imediatamente que o faria. - Puxou o casaco mais para si e retirou-se, passando ao lado do general.

Balantyne deixou-a partir, pois estava demasiado empolgado para não o fazer. O elogio e a confiança que ela demonstrava brilhavam nele com mais intensidade do que qualquer doce momento da sua juventude.

Deixou-se ficar bastante tempo sozinho, no escritório, antes de finalmente mandar chamar Brandy.

Quando Brandy entrou, já estava preparado para o enfrentar.

- Esta noite fui ver o Robert Carlton - encetou o discurso.

- Persuadi-o a conversar com o ministro da Administração Interna para permitir que a Polícia continue a investigar os assassínios na praça, por quanto tempo for preciso, ou seja à custa de que sofrimento for, até descobrirem a verdade. Uma vez que o Freddie Bolsover era um chantagista, é muito provável que esse seja o motivo da sua morte. A Polícia terá, naturalmente, de seguir esse... não, não me interrompa, Brandon. Estou a dizer-lhe isto porque sem dúvida voltarão a esta casa. Já têm conhecimento da loucura da Christina com o Max. Se há alguma coisa que tenha feito e que o possa tornar vulnerável à pressão, aconselho-o a contar-ma agora e, depois, à Polícia. Se não tiver nada a ver com o Freddie, creio que tratarão do assunto com toda a discrição.

- Já sabem - respondeu Brandy, sobriamente. - Parece que são extremamente competentes em tudo, excepto no que diz respeito a estes assassínios! Mas obrigado pelo aviso. - Desviou o olhar.

- Fico satisfeito por ter feito isso. O Reggie acusou a Jemima de ter feito chantagem com ele e, depois, de ter morto o Freddie por causa do dinheiro. Espero que vá para o Inferno por causa disso.

- Como é que sabe? - Perguntou Balantyne.

Brandy encarou-o.

- Foi o Inspector Pitt que me contou. Lamento quanto a isso, Pai. - Ao sentir o embaraço de Balantyne, Brandy continuou de forma informal. - Quer falar com a Mãe? O melhor é preveni-la também, pois ela parece ter tendência a fazer justiça com as próprias mãos!

Balantyne contraiu-se perante a recordação de Max. Não tinha vontade de ver Augusta naquela noite. Tinha muitas coisas para lhe dizer, mas ainda não era a altura. Talvez quando se compreendesse melhor a si próprio.

- Não, obrigado - respondeu. - Pode contar-lhe, se não se importar. Não me parece muito necessário preveni-la, mas seria de bom tom.

Brandy hesitou por uns momentos e sorriu.

- Está certo - virou-se e dirigiu-se para a porta. - Obrigado por não explodir em relação à Jemima. Tenciono casar-me com ela, se ela me aceitar. Creio que a Mãe não vai gostar, mas com o tempo acostuma-se, se o Pai o fizer.

- Eu não disse...! - Contudo, Brandy já saíra e Balantyne não podia fazer mais nada senão fitar a porta atrás dele. Talvez não fosse uma ideia assim tão má; ela não era, propriamente, uma criada; com efeito não era tão diferente assim de Charlotte - mas esse era outro sonho sobre o qual preferia não se debruçar naquela noite.

Foi depois do almoço, no dia seguinte, que encontrou Alan Ross, no seu clube. Como seria natural, sendo Alan seu amigo e genro, Balantyne foi ter com ele para lhe falar.

- Boa tarde, Alan, como está? A Christina, está boa?

- Boa tarde, senhor General. Sim, de boa saúde, obrigado. E o General?

- Excelente. - Que conversa tão pomposa. Porque não conseguia ele transmitir os seus sentimentos? Não teria aprendido a fazer isso, pelo menos, com Charlotte? - Não, não é verdade. Já ouviu dizer o que aconteceu ao Freddie Bolsover?

Ross franziu o sobrolho.

- Sim. Ouvi falar em chantagem. É verdade?

- Sim, receio bem que sim. Tem-se feito um esforço concertado pela praça para impedir que a Polícia investigue mais a fundo, presumo eu que por temerem que surjam escândalos, embora, evidentemente, não seja esse o motivo invocado. Suponho que toda a gente tem qualquer coisa que prefere manter em segredo. Alguma coisa sórdida, tola, ou simplesmente muito íntima.

Ross baixou a cabeça, parecendo concordar. Em seguida, ergueu o olhar como se estivesse a pensar em dizer alguma coisa. Balantyne aguardou, mas, aparentemente, as palavras fugiram-lhe. Passaram algum tempo a falar sobre trivialidades e, depois, Balantyne voltou a referir Callander Square, pois sentia que Ross ainda lhe queria dizer qualquer coisa.

Mais uma vez, Ross hesitou.

- Sabe alguma coisa que eu não saiba? - Indagou Balantyne tanquilamente, procurando o olhar de Ross.

- Não. - Ross sacudiu a cabeça, com um pequeno sorriso sarcástico ao canto da boca. - É uma coisa que ambos sabemos, mas imagino que não se dê conta.

Balantyne estava confuso, mas ainda não sentia apreensão.

- Então, se já sei, porque é que tem tanta dificuldade em encontrar palavras para o dizer? - Inquiriu. - E porquê a necessidade de falar nisso?

Pela primeira vez, Ross cruzou realmente o olhar com o dele, sem demonstrar falsidade ou dissimulação.

- Porque, de outra forma, poderá fazer o possível por escondê-lo de mim.

Balantyne fitou-o, perplexo.

- A Christina - respondeu Ross. - Tenho perfeita consciência da ligação dela com o Max e da razão por detrás da perseguição um pouco repentina que me fez. Não, não precisa de ficar assim. Já na altura sabia. Não me importo. Amava a Helena e jamais voltarei a amar outra pessoa. Tenho muita consideração por si, e pode até ficar surpreendido, mas sinto o mesmo por Lady Augusta. Estava disposto a ajudar a Christina. Nunca a amarei, mas serei um bom marido; e tenciono certificar-me de que também ela será uma boa esposa: tanto quanto permitem os nossos sentimentos, ou a falta deles. Há sempre maneira de termos um comportamento digno, com ou sem amor. - Baixou momentaneamente o olhar e voltou a erguê-lo. - O que estou a tentar dizer é que não há motivo para recearem que eu venha a ouvir falar do caso e passe a tratar a Christina de forma diferente. - O sorriso tornou-lhe o rosto mais afável. - Por outro lado, gosto muito do Brandy. Embora ele tenha andado a evitar-me desde o meu noivado. Julgo que talvez sinta a consciência pesada. Não tem feitio para fingir e lida mal com isso.

Balantyne devia ter-se defendido contra a sugestão implícita da sua própria falsidade, mas era verdade e não tinha defesa; e, para além disso, não via censura na expressão de Ross. Sentia subitamente que Ross era melhor homem do que Christina merecia

- um homem por quem ele próprio sentia afeição e respeito.

- Obrigado - respondeu calorosamente. - Bem me podia ter deixado cozer em fogo lento ou até denunciar-me, e teria toda a razão. É muita bondade sua não o ter feito. Espero que, com o tempo, nos perdoe, não apenas por bondade, mas também por compreensão, embora não tenha o direito de lho pedir.

- Eu podia muito bem ter feito o mesmo - desculpou Ross.

- Ainda poderei vir a fazê-lo, se tiver filhos. Acompanha-me num copo de clarete?

- Obrigado - Balantyne aceitou com verdadeiro prazer e alguma descontracção interior. - Sim, claro que o acompanho.

Quando Pitt foi chamado à presença do coronel Anstruther, ficou surpreendido e aliviado quando este lhe comunicou que o Ministério da Defesa tinha alterado as directivas: Pitt devia dar continuidade a todos os inquéritos relacionados com os casos de Callander Square. Pitt ficou surpreendido porque não estava à espera de uma mudança de ideias. Desconhecia que Charlotte conversara com o general Balantyne, mas, mesmo que o soubesse, nunca teria esperado tal resultado. Por outro lado, sentia-se aliviado porque estava determinado a prosseguir com as investigações, até à última pista, independentemente do que lhe pudessem dizer. Evidentemente que, nessas circunstâncias, teria de proceder de forma subtil, no seu tempo livre, o que teria sido muito incómodo. Não queria arriscar-se a sofrer uma severa despromoção por desobediência e preferia de longe passar o seu tempo livre em casa, ao lado de Charlotte, sobretudo agora que faltavam apenas quatro meses para o nascimento do primeiro filho de ambos.

Assim, foi quase com excitação que correu pelas escadas abaixo e chamou um fiacre para o levar, com urgência, a Callander Square.

Foi sentado no fiacre, aos solavancos sobre o pavimento acidentado, que se pôs mais uma vez a repassar na sua mente tudo quanto sabia.

Não tinha quaisquer dúvidas que Freddie Bolsover fora morto em consequência da sua chantagem. Se tinha, ou não, utilizado a informação que lhe causara a morte, o mero conhecimento fora-lhe fatal, pois o perigo de a utilizar era demasiado grande para alguém. Fora um assassínio ousado e urgente. O assassino considerara-se em perigo iminente. O que poderia Freddie saber? De algum caso de adultério, ou de alguma criança ilegítima? Não lhe parecia. Com todos os outros escândalos em Callander Square, esses motivos não seriam suficientemente graves para alguém arriscar um assassínio. Saberia ele quem era a mãe, ou melhor ainda, o pai dos bebés enterrados nos jardins? Naturalmente que não o soubera logo, senão, das duas uma: ou teria utilizado a informação antes, ou teria sido morto mais cedo...

A não ser que só agora tivesse descoberto!

Havia ainda a possibilidade de o assassino ter acabado de descobrir o que Freddie sabia. Nesse caso, Freddie poderia nem sequer ter tencionado utilizar a informação, por saber que era demasiado perigoso, ou, então, nem sequer se apercebera do seu significado. Sim, fazia sentido. O assassino matara-o antes que ele compreendesse a importância daquilo que sabia!

Já chegara a Callander Square e estava encolhido no casaco, com a gola puxada para cima, a observar o fiacre a desaparecer pela névoa dentro quando lhe ocorreu a última possibilidade: fora o conhecimento de que Freddie fizera chantagem com Reggie Southe-ron que despertara o assassino para o perigo que ele próprio corria! Essa era a hipótese mais promissora, pois dava-lhe um ponto de partida bem definido.

Pitt atravessou a praça, através dos jardins enlameados, passando pelo local onde haviam sido encontrados os bebés e onde Freddie jazera. Os seus pés pisaram novamente a estrada, cruzaram a calçada e subiram os degraus até à residência de Reggie Southeron.

Como o dia estava frio e desagradável, Reggie não se dera ao trabalho de ir ao banco, mas enviara uma mensagem anunciando que se recusava a receber novamente a Polícia ou a permitir que mais alguém na sua casa o fizesse.

Pitt respondeu ao criado que tinha autorização do Ministério da Defesa e, se Mr Southeron o obrigasse a voltar lá com um mandado, ele fá-lo-ia. Contudo, visto que mais ninguém na praça se comportara daquela forma - o que até ao momento era verdade, pois ainda não visitara mais ninguém - a situação talvez fosse mais embaraçosa para Mr Southeron do que para ele!

Dez minutos depois, Reggie apareceu, corado e extremamente irritado.

- Quem diabos pensa que é, para me falar do ministro da Administração Interna? - Exigiu saber, fechando violentamente a porta atrás de si.

- Bom-dia, senhor - respondeu Pitt, educadamente. - Gostaria apenas de saber o seguinte: a quem mais contou as tentativas de chantagem do Dr. Bolsover em relação a si?

- A mais ninguém. Não me parece o tipo de coisa que nos pomos a contar aos amigos! - Retorquiu Reggie, severamente.

- Que pergunta tão idiota!

- Que estranho, veja lá que Mr Campbell me contou que o senhor não só lhe mencionou a questão, como também lhe pediu alguns conselhos. - Pitt ergueu as sobrancelhas.

- Maldito estúpido! - Praguejou Reggie. - Bem, devo confessar que sim. Devo tê-lo feito, se ele o afirma.

- E a quem mais? Olhe que é muito importante, senhor.

- Porquê? Por que raio é importante agora?

- Parece-me que se está a esquecer que existe um assassino em Callander Square. Já matou pelo menos uma vez, ou mais. Pode voltar a matar, caso se sinta ameaçado. Isso não o assusta? Pode ser o próximo amigo que cumprimentar antes de chegar à sua porta - a próxima figura encoberta que, depois de lhe dizer boa-noite, lhe espeta uma faca. O Dr. Bolsover foi apunhalado pela frente, por alguém que conhecia e em quem confiava, a menos de vinte metros da sua própria residência. Isso não o perturba? Eu ficaria perturbado.

- Está bem! - Reggie elevou rispidamente a voz. - Está bem! Só falei com o Campbell. O Carlton é preconceituoso como o raio e o Balantyne não é melhor, não há homens na casa das Doran e o Housman - o velho rezingão do outro lado - nunca fala com ninguém. O Campbell é um tipo bastante útil, nem demasiado presunçoso nem cobardolas para ter medo de fazer qualquer coisa. Contei-lhe tudo. E olhe que ele acabou com aquilo!

- Pois acabou - Pitt investiu as suas palavras de mais significado do que estava ao alcance da compreensão de Reggie. - Obrigado, senhor. Ajudou-me bastante!

- Raios me partam se consigo perceber como!

- Se o caso evoluir como eu espero, acabará por saber. De contrário, nem sequer interessa - respondeu Pitt. - Obrigado, senhor. Tenha um bom-dia.

- Bom-dia - respondeu Reggie, com uma careta. - Grande asno - murmurou para consigo. - O criado acompanha-o à porta.

Pitt ainda não sabia do que estava à procura, mas finalmente considerava que já sabia onde devia procurar.

Bateu à porta dos Campbell e pediu para falar com Mr Campbell. Foi acolhido e conduzido à salinha da manhã onde encontrou Mariah, que escrevia uma carta.

- Bom-dia, minha senhora - cumprimentou, escondendo a surpresa.

- Bom-dia, Mr Pitt. O meu marido está ocupado neste momento, mas não tardará a recebê-lo, se não se importar de aguardar.

- Absolutamente nada, obrigado.

- Posso oferecer-lhe qualquer coisa para beber?

- Não, muito obrigado. Por favor, não se incomode comigo.

- Veio ver o meu marido a propósito do assassínio do Dr. Bolsover?

- Em parte.

Mariah estava muito pálida. Não estaria a sentir-se bem naquela manhã, ou seria já o esforço de confortar Sophie que começava a abatê-la?

- Por que razão havia o meu marido de saber alguma coisa? - Indagou.

Não tinha nada a ganhar evitando a verdade. Ela poderia até ajudá-lo, inadvertidamente. Era possível que tivesse sabido de alguma coisa através de Sophie, sem se dar conta do seu significado.

- Foi a única pessoa a quem Mr Southeron contou a chantagem que o doutor Bolsover lhe fazia - respondeu.

- O Reggie contou ao Garson? - Perguntou lentamente. Estava muito branca. Pitt receava que ela pudesse desfalecer. Estaria verdadeiramente doente ou saberia alguma coisa acerca do seu marido que ele, até ao momento, nem sonhara?

Obteve a resposta imediatamente.

Helena!

Um homem mais velho, com êxito, seguro de si, digno, poderoso e sem liberdade para casar com ela - seria ele o amante? A sua mente percorria toda uma nova gama de possibilidades. Mas porquê assassiná-la? Estaria ela prestes a traí-lo - a acusá-lo abertamente de ser o pai da criança que trazia no ventre? Teria entrado em pânico, matando-a naquele jardim deserto?

Mariah observava-o. Tinha uma expressão imperturbável, um olhar límpido. Parecia uma mulher enfrentando a execução. Mas uma mulher sem medo da morte.

- Sim - respondeu Pitt à pergunta que parecia ter sido feita horas antes.

- Estou a ver - levantou-se e alisou a saia. - Obrigada por mo ter dito, Mr Pitt. Tenho afazeres lá em cima. Dá-me licença? O meu marido não tardará a recebê-lo. - Sem esperar pela resposta, retirou lentamente, com as costas muito direitas e a cabeça erguida.

Passaram mais dez minutos até aparecer Garson Campbell. Pitt supunha-o apenas numa outra sala da casa, mas viu-o a bater com os pés ao entrar, como se viesse do frio. Contudo, não o viu a esfregar as mãos.

- Então, o que se passa, Pitt? - Indagou, medindo-o com desagrado. - Não sei mais acerca do Freddie Bolsover do que sabia antes. - Pôs-se diante do lume, com os pés bem afastados, a balançar-se ligeiramente para trás e para a frente.

Alguma coisa estremeceu na mente de Pitt - lembrava-se de um homem que vira, há muito tempo e num lugar completamente diferente: um homem que entrava a bater os pés, mesmo no Verão; um homem doente. A imagem dos corpinhos no jardim voltou, nomeadamente, a imagem da cabeça inchada do que estava enterrado mais fundo. Recordou-se do bebé de Helena.

A resposta surgiu-lhe instantaneamente na cabeça, tão clara e simples como um desenho de criança.

- O doutor Bolsover sabia que o senhor sofria de sífilis, não sabia? - Limitou-se a perguntar. - Quando o Reggie Southeron lhe contou que o Freddie tinha feito chantagem com ele, o senhor apercebeu-se que era apenas uma questão de tempo até que o Freddie compreendesse o valor do que sabia e tentasse também fazer chantagem consigo. O senhor matou-o antes que ele pudesse fazer isso. Tal como matou a Helena, antes que o bebé dela pudesse nascer deformado, como os que foram encontrados na praça. Ou então, ela descobrira a sua doença e o senhor não acreditava que ela pudesse manter sigilo. Não que agora nos interesse qual das hipóteses é a verdadeira.

Por uns momentos o olhar de Campbell vacilou, indeciso. Assim que se deu conta da certeza firme de Pitt, torceu o rosto numa expressão de ira.

- Seu estafermo hipócrita sorridente - insultou com uma voz calma e amarga. - Desde os trinta anos que esta doença me tem corroído o corpo e atrofiado a mente. Há quinze anos que trago comigo o princípio da morte. E não há um fim rápido. Vou apodrecer, lentamente, por dentro. A dor vai agravar-se, cada vez mais, até me deixar paralisado, como um vegetal imundo transportado numa cadeira de rodas, alvo dos comentários e do riso de toda a gente! E aí está você, a pregar-me um sermão, como se fosse diferente de mim!

"Sim, tem razão! Está satisfeito? Até a minha própria mulher me olha como se eu fosse um leproso. Há mais de um ano que não me toca. A Helena era uma pega. Quando descobriu acerca da doença ficou histérica e matei-a.

"O Freddie era um pequeno chantagista ignóbil. É evidente que o matei. Era só uma questão de tempo até me abordar. - Campbell tinha as mãos atrás das costas e antes que Pitt se apercebesse do que ele estava a fazer, deu meia volta e atacou-o com a faca de cortar papel que estava em cima da secretária onde Mariah estivera a escrever. A lâmina subiu, desenhando um arco, e falhou o peito de Pitt apenas porque este já se atirara para a frente. Escorregando na ponta da carpete, Pitt caiu pesadamente, arrastando Campbell consigo e abatendo-se contra a lareira.

Pitt pôs-se de pé a custo, já preparado para se voltar a defender, quando reparou que Campbell permanecia imóvel. A princípio, o inspector desconfiou que se tratava de uma artimanha, até que viu a cabeça de Campbell encostada ao guarda-fogo com um pouco de sangue à volta.

Correu para a porta e gritou pelo criado, com um tom de voz agudo e estupidamente histérico.

- Saia e vá procurar um agente da Polícia - ordenou assim que o homem apareceu. - E um médico, rápido!

O homem fitou-o, boquiaberto, sem se mexer.

- Despache-se! - Berrou-lhe Pitt.

O homem precipitou-se porta fora sem sequer se preocupar em vestir um casaco.

Pitt voltou para a salinha da manhã e arrancou o cordão da campainha da parede. Sabia que iria causar uma terrível balbúrdia lá em baixo, mas não estava preocupado. Com o cordão amarrou os pulsos de Campbell bem apertados e deixou-o deitado de costas, aparentemente ainda inconsciente, mas com uma respiração pesada.

Pensou em procurar Mariah, porém, decidiu que seria preferível remover primeiro Campbell, especialmente no caso de ele vir a fazer uma cena. Já ficaria suficientemente perturbada sem ter de assistir à detenção do marido.

Pitt sentou-se - fora do alcance das pernas de Campbell para o caso de ele recuperar e querer atacá-lo - e aguardou.

Passaram uns bons dez minutos até que o agente chegasse, sem fôlego, molhado da chuva fininha e corado. Começou por olhar para Pitt e, em seguida, para Campbell, ainda no chão, mas já a recuperar os sentidos.

- O médico vem a caminho, Inspector - comunicou, com algum espanto. - O que aconteceu?

- Mr Campbell está preso - respondeu Pitt. Olhou para o criado que ainda permanecia atrás do agente, à porta. - Chame um fiacre e diga ao criado de quarto para fazer uma mala com algumas coisas de Mr Campbell. Quando chegar o médico traga-o cá. - Voltou-se para o agente. - Mr Campbell é acusado de homicídio, e é perigoso. Se tiver algemas, não se esqueça de lhas colocar antes de tirar o cordão! Depois de ser visto pelo médico, ponha-o no fiacre e leve-o para a esquadra. - Levou a mão ao bolso e tirou a sua identificação, mostrando-lha. - Irei lá ter assim que falar com Mrs Campbell. Está a perceber?

O agente endireitou-se, mostrando-se atento.

- Com certeza, Inspector! Este é que está por detrás daquelas horríveis mortes dos bebés, Inspector?

- Não sei. Não me parece, mas matou o Dr. Bolsover e Miss Doran. Tenha cautela com ele.

- Sim, Inspector, pode ficar descansado. - Lançou o olhar a Campbell, com um misto de perplexidade e nojo.

Pitt dirigiu-se à porta, atravessou o átrio e já estava a meio das escadas quando chegou o médico. Esperou no patamar durante mais cinco minutos até os ver passar a todos - Campbell ainda atordoado e a cambalear, apoiado no polícia e no cocheiro. Foi então que continuou a subir, para procurar Mariah.

O segundo andar estava arrumado e silencioso. Nem sinal de criadas. Deviam estar todas na cozinha, ou entregues a alguma tarefa no exterior.

- Mrs Campbell? - Chamou em voz alta. Não obteve resposta.

Tornou a chamar, elevando o tom de voz.

Continuou sem resposta.

Pitt bateu à primeira porta e tentou abri-la. Não estava ninguém naquele quarto. Prosseguiu até chegar ao que parecia ser o quarto de vestir de uma mulher. Mariah Campbell estava sentada numa poltrona, de costas para ele. A princípio Pitt julgara-a adormecida, até que se aproximou e lhe viu o rosto. Estava lívida, com os lábios cinzentos e grandes olheiras negras.

Pousada na cómoda estava uma pequena garrafa com um rótulo de láudano e um outro frasco de vidro igualmente vazio. Ao lado estava um pedaço de papel. Era uma carta dirigida a Pitt.

Inspector Pitt,

Imagino que por esta altura já saiba a verdade. Os pecados dos pais recaem sobre os filhos, mas também eram meus e não os podia deixar viver, apodrecidos por aquela doença, imunda como ele. Mais valia morrerem ainda inocentes sem saberem de nada e sem conhecerem a dor.

Por favor peça à Adelina Southeron para cuidar dos meus filhos que ainda vivem. É uma boa mulher e terá pena delas.

Que Deus tenha misericórdia de mim e me dê paz.

Mariah Livingstone Campbell

Pitt contemplou Mariah, sentindo por ela uma enorme pena e ao mesmo tempo gratidão por não ter de a encarar, por ela o ter poupado à triste obrigação de dar início ao longo caminho da justiça pública contra ela.

Uma vez que amava Charlotte tão profundamente, Pitt sentia alguma doçura para com todas as mulheres; e sentia-se extremamente satisfeito por não ver a sua vida perturbada e consumida por uma tragédia semelhante. Pensou no rosto de Charlotte, cheio de esperança pelo seu novo filho, e rezou para que viesse saudável, porventura uma menina - uma criatura tão teimosa, compassiva e determinada como a própria Charlotte.

Ao imaginá-lo, Pitt sorriu e, ainda diante da mulher morta, sentiu vontade de chorar. Acima de tudo, queria desesperadamente voltar para casa. 

 

                                                                                Anne Perry 

 

 

 

                                         

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