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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O NOSSO AGENTE EM HAVANA / Graham Greene
O NOSSO AGENTE EM HAVANA / Graham Greene

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

- Aquele negro que vai ali a descer a rua - disse Dr.Hasselbacher, instalado no Wonder Bar - faz-me pensar em si, Mister Wormold. - Era tipicamente do Dr.Hasselbacher usar ainda aquele tratamento “mister” depois de quinze anos de consistente amizade. A amizade era alguma coisa que progredia nele com lentidão e a segurança de um diagnóstico preciso. Talvez um dia, no leito de morte Wormold, quando lhe tomasse o pulso e colapso, o Dr.Hasselbacher passe a tratá-lo por Jim.

O negro era cego de um olho e tinha uma perna mais curta do que a outra; usava um velho chapéu de feltro e as costelas, viam-se-lhe, através da camisa rasgada como o cavername de um navio no estaleiro. Caminhava à beira do passeio, para além do peristilo de colunas amarelo e rosa, sob o sol ardente de Janeiro, e ia contando os passos à medida que avançava.

Ao passar em frente do Wonder bar, subindo para Virtudes, contou 1369.Tinha de mover-se devagar para ter tempo de pronunciar um numeral tão extenso: 1370. Era uma figura familiar nas proximidades da Praça Nacional, onde às vezes parava de contar apenas o tempo bastante para vender a qualquer turista uma colecção de postais pornográficos. Feito isto, voltava a afastar-se recomeçando a contagem. No fim do dia tal como qualquer energético passageiro de um transatlântico, era capaz de saber, com a diferença de uma jarda, a distância percorrida nas suas andanças.

- Joe - respondeu Wormold. - Não vejo qualquer semelhança. Excepto o facto de coxear, é verdade - mas instintivamente lançou uma olhadela ao espelho onde estavam gravadas as palavras “Cerveza Tropical”, como se realmente pudesse ter ficado assim alquebrado e torrado durante a sua curta viagem desde a loja, situada na parte velha da cidade.

Mas a face que o espelho lhe devolveu estava apenas um pouco descorada pela poeira das obras do porto; era, porém, sempre a mesma, ansiosa, crucificada, quarentona: muito mais jovem que a do Dr. Hasselbacher, e contudo um observador que analisasse talvez considerasse certa a sua próxima extinção. Já lá havia a sombra, já lá estavam todas as ansiedades que ultrapassam o poder dos tranquilizantes. O negro desapareceu manquejando na esquina do Passeio. A manhã estava cheia de engraxadores!

 

 

 

 

- Não me referia ao coxear. Não consegue descobrir a semelhança?

- Não.

- O sujeito tem um par de ideias na cabeça - explicou o Dr. Hasselbacher. - Fazer o seu trabalho e ter as contas certas. Além do facto de ser também um cidadão britânico.

- Ainda não consigo perceber ... - Wormold refrescou a boca no seu daiquiri matutino. - Sete minutos para chegar ao Wonder Bar; sete minutos para regressar à loja; seis minutos para conviver! - Olhou para o relógio. Lembrou-se de que o tinha um minuto atrasado.

- É um sujeito em quem se pode confiar, era tudo quanto eu queria dizer - explicou o Dr. Hasselbacher com um toque de impaciência na voz. - Como está a Milly?

- Esplêndida - respondeu Wormold. Era a sua resposta invariável mas sincera.

- Dezassete no dia dezassete, eh?

- Sim - Lançou uma olhadela furtiva por cima do ombro como se receasse estar a ser perseguido e tornou a consultar o relógio. - Irá ajudar a despejar uma garrafa connosco, não é verdade?

- Até hoje nunca faltei, Mister Wormold. Quem mais estará?

- Bem, julgo que só nós três. Cooper foi-se embora, o pobre Marlowe ainda está no hospital e a Milly não se liga bem com essa gente nova do consulado. Penso que estaremos em família, tranquilamente.

- Sinto-me honrado por ser considerado da família, Mister Wormold.

- Talvez uma mesa no Nacional, ou pensa que não seja muito ... bem, muito conveniente?

- Não estamos na Inglaterra nem na Alemanha. As raparigas crescem depressa nos trópicos.

Uma porta rangeu e abriu-se e depois ficou a bater regularmente, movida pela brisa ligeira do mar, como um velho relógio, clique-claque.

Wormold disse então:

- Tenho de ir andando.

- Os aspiradores podem muito bem passar sem si, Mister Wormold. - Era um dia de verdades desagradáveis. - Tal como os meus doentes - acrescentou bonacheiramente o Dr. Hasselbacher.

- As pessoas não podem impedir-se de adoecer, mas ninguém as obriga a comprar aspiradores de pó.

- Por isso você cobra-lhes mais caro do que eu.

- E fica apenas com vinte por cento para mim. Não pode economizar-se muito ganhando apenas vinte por cento.

- Não estamos em época de fazer economias, Mister Wormold.

- Eu preciso de fazê-las por causa da Milly. Se me sucedesse alguma coisa ...

- Visto que nenhum de nós espera actualmente muito da vida, para que serve preocuparmo-nos?

- Todas estas convulsões políticas produzem mau efeito nos negócios. Que interesse há em adquirir um aspirador se a corrente é constantemente cortada?

- Posso adiantar-lhe algum dinheiro, Mister Wormold.

- Não, não, não é isso. A minha preocupação não é imediata, nem mesmo para os tempos mais próximos; é apenas relativa ao futuro.

- Então não vale a pena considerá-la uma preocupação. Vivemos na idade atómica, Mister Wormold. Carrega-se num botão - pft! - onde estamos nós? Outro whisky, por favor.

- E há ainda outra coisa. Sabe o que a firma fez agora? Enviou-me um aspirador Pilha Atómica.

- Realmente? Ignorava que a ciência tivesse atingido tamanho requinte.

- Oh, claro que nada tem de atómica, a não ser o nome. No ano passado foi o Turbo-Jacto; este ano é o Atómico. Tanto um como outro funcionam ligados à tomada de corrente.

- Então porque se preocupa? - repetiu o Dr. Hasselbacher, debruçando-se sobre a bebida.

- Eles não compreendem que essa coisa pode ter grande sucesso nos Estados Unidos, mas não aqui, onde o clero está constantemente a pregar contra o mau uso da ciência. Eu acompanhei Milly à catedral, no domingo passado - nada me admirará que ela pense que, obrigando-me a ir à missa, acabará por converter-me. Pois bem, o padre Méndez esteve durante uma hora a descrever o efeito de uma bomba de hidrogénio. “Aqueles que acreditam no Céu sobre a Terra - disse ele - estão criando um inferno”, e foi muito convincente, fez com que as coisas aparentassem ser tal qual ele contava. Ora, depois disto, que estado de espírito foi o meu, na segunda-feira de manhã, quando tive de fazer na montra uma exposição dos aspiradores Pilha Atómica? Nada me admirava que um desses jovens me tivesse partido o vidro da montra. Acção Católica, Cristo-Rei, toda essa tropa. Não sei como hei-de resolver isto, Hasselbacher.

- Venda um aspirador ao padre Méndez para o palácio episcopal.

- Mas ele está satisfeito com o Turbo. É um bom aparelho. Claro que este novo modelo também é bom. Especialmente para a limpeza de estantes. Bem sabe que eu a ninguém sou capaz de vender uma máquina de qualidade inferior.

- Bem sei, Mister Wormold. Mas não lhe pode mudar o nome?

- Não mo consentiriam. Sentem-se muito orgulhosos dele. Pensam que nada melhor se inventou depois daquele slogan “Varre o que sacode, limpa o que varre”. Sabe, havia no Turbo uma peçazinha a que eles chamaram “filtro purificador do ar”. Ninguém reparou na coisa - era um aparelho inofensivo —, mas ontem entrou na loja uma mulher, olhou para o aspirador Pilha Atómica e perguntou-me se um filtro tão pequeno era capaz de absorver toda a radioactividade. “E filtra mesmo o estrôncio 90?”, perguntou ela.

- Posso fornecer-lhe um certificado - ofereceu o Dr. Hasselbacher.

- Nunca toma nada a sério?

- Tenho uma arma secreta, Mister Wormold. Interesso-me pela vida.

- Eu também, mas ...

- O senhor está interessado por uma pessoa, não pela vida, e as pessoas podem morrer ou deixar-nos ... Desculpe, não me estava a referir a sua mulher! Mas se estivermos interessados na vida nunca sofreremos decepções. A mim interessa-me o bolor do queijo. Não faz palavras cruzadas, Mister Wormold? Eu faço, e acho-as semelhantes às pessoas: têm um fim! Posso resolver qualquer problema de palavras cruzadas no espaço de uma hora, mas trabalho numa descoberta relativa ao bolor do queijo que nunca será concluída, embora de vez em quando sonhe que talvez um dia ... Hei-de mostrar-lhe o meu laboratório.

- Tenho de ir andando, Hasselbacher.

- Devia sonhar mais, Mister Wormold. No nosso século a realidade não é coisa que se enfrente.

 

Quando Wormold chegou à loja, em Lamparilla Street, Milly ainda não tinha regressado do colégio e, a despeito das duas pessoas que via para além da montra, o local pareceu-lhe vazio. Muito vazio! E assim estaria até Milly voltar. Ao entrar na loja teve a consciência de um vácuo que não era certamente produzido pelos seus aspiradores. Nenhum cliente podia preenchê-lo, e particularmente aquele que lá estava agora, demasiadamente janota para Havana, lendo um prospecto de um aspirador atómico e ignorando acintosamente o empregado. López era um homem impaciente que não gostava de ser perturbado na sua leitura da edição espanhola da Confidential. Fitava quase ameaçadoramente o estranho, não fazendo o menor esforço para conquistá-lo.

- Buenos dias - disse Wormold. Olhava para todos os desconhecidos que encontrava na loja com uma suspeita habitual. Dez anos atrás um homem tinha entrado no estabelecimento, fingindo-se cliente, e vendera-lhe uma pele de carneiro para brunir o carro. O outro tinha evidentemente cara de impostor, mas não seria possível encontrar alguém com menos aspecto de um cliente de aspiradores do que este homem. Alto e elegante no fato tropical cor de pedra, usava uma gravata de padrão exclusivo, carregava na sua pessoa a brisa das praias e o bom cheiro a cabedal de um clube caro: seria natural que as suas primeiras palavras fossem: “O embaixador recebe-o dentro de um minuto.” Não pertencia ao género dos que precisam de preocupar-se com os arranjos domésticos - um criado faria as limpezas para ele.

- Não percebo patavina de espanhol, desculpe - respondeu o desconhecido. O calão caiu como uma nódoa na elegância do homem, tal como uma mancha de ovo durante o pequeno-almoço. - É súbdito britânico, não é verdade?

- Sim.

- Quero dizer: realmente britânico! Passaporte britânico

- e tudo o mais?

- Sim. Porquê?

- Prefiro fazer transacções com firmas britânicas. A gente sabe com quem trata, se me percebe.

- Em que posso servi-lo?

- Bem, para começar, só queria lançar uma olhadela. - Falava como se estivesse num livreiro. - Não consegui fazer com que o empregado percebesse isto.

- Procura um aspirador eléctrico?

- Bem, não estou precisamente a procurar.

- Quero dizer, pensa comprar um?

- É isso, meu velho, você acertou em cheio. - Wormold teve a impressão de que o homem utilizava aquele tom por julgá-lo adequado à lojeca concedendo um colorido condescendente a Lamparilla Street, visto que o ar sem brisas se não casava certamente com a sua janotice. Nem todos podem imitar com sucesso S. Paulo, que conseguia ser tudo para todos os homens sem necessidade de mudar de fato.

Wormold recomendou de mau humor:

- O Pilha Atómica serve-lhe perfeitamente; não encontra melhor.

- Há um acolá, o Turbo-Jacto.

- Também é um aspirador muito bom. Tem um grande apartamento?

- Bem, não exactamente o que poderá chamar-se grande.

- Este aqui, repare, tem dois jogos de escovas: este é para encerar e este para puxar o lustro; ó, enganei-me, é ao contrário. O Turbo dispõe de ar reforçado.

- Que vem a ser isto?

- Bem, claro, é ... o que lá diz no prospecto, ar reforçado.

- Esta coisinha aqui, para que serve?

- Para limpar tapetes; de duas maneiras.

- Não me diga! Não é engraçado? Porquê de duas maneiras?

- Porque tanto funciona puxando como descarregando.

- Inventam cada coisa! - comentou o desconhecido.- Deve vender muito, não é verdade?

- Sou o único agente aqui na cidade.

- E todas as pessoas importantes, creio eu, têm de possuir um aspirador Pilha Atómica?

- Ou um Turbo-Jacto.

- Os departamentos do Governo também?

- Claro. Porquê?

- O que serve para uma repartição do Governo também serve para mim.

- Talvez prefira o nosso Mosquito?

- Que Mosquito?

- O nome completo do aparelho é Aspirador Mosquito de Ar Reforçado para Pequenos Apartamentos.

- Lá vem outra vez o ar reforçado.

- Não fui eu quem o inventou.

- Não se pique, meu velho.

- Pessoalmente acho odiosa a ideia de chamar Pilha Atómica a um aspirador de pó - confessou Wormold num súbito acesso de irritação. Sentia-se profundamente perturbado. Ocorrera-lhe que o visitante podia ser um inspector enviado dos escritórios centrais de Londres ou Nova Iorque. Nesse caso devia ouvir apenas a verdade.

- Compreendo. Não foi uma escolha feliz. Diga-me, dá assistência técnica a estas coisas?

- Por um trimestre. Durante o prazo de garantia a assistência é gratuita.

- É o senhor quem vai fazer as reparações?

- Mando López fazê-las.

- Esse tipo carrancudo?

- Não tenho queda para mecânico. Quando toco em qualquer desses aparelhos ele deixa logo de funcionar.

- Não guia?

- Sim, mas quando surge alguma avaria é minha filha quem a repara.

- Oh, sim, sua filha! Onde está ela?

- No colégio. Deixe-me mostrar-lhe agora esta combinação para apanhar pequenos detritos - mas, claro, quando tentou fazer a demonstração, a combinação não resultou. Carregou e aparafusou. - Peça defeituosa! - concluiu desesperadamente.

- Deixe-me experimentar - pediu o outro, e o aparelho começou a funcionar tão perfeitamente quanto podia desejar-se. - Que idade tem a sua filha?

- Dezasseis - respondeu ele furioso consigo próprio por ter respondido.

- Bem - fez o outro - Tenho de ir andando. Deu-me muito prazer este encontro.

- Não lhe interessava ver funcionar um aspirador? López poderá fazer-lhe uma demonstração.

- Neste momento não. Tornarei a encontrá-lo, aqui ou noutro lugar - disse o homem com uma vaga e insolente confiança, e voltou as costas antes mesmo de Wormold ter tempo de pensar em dar-lhe um cartão da firma. Na praça que fica no topo de Lamparina Street o desconhecido foi engolido pela multidão de corretores de bordéis e vendedores de lotaria que pululam no meio-dia de Havana.

López então afirmou:

- Ele não tinha intenção de comprar coisa alguma.

- Que queria ele então?

- Quem sabe? Esteve a olhar para mim, em frente da montra, durante muito tempo, antes de entrar na loja. Penso que talvez me tivesse pedido que lhe arranjasse uma rapariga se o senhor não tivesse chegado.

- Uma rapariga?

Recordou-se do dia dez anos atrás e depois, com certo mal-estar, de Milly, e desejou não ter respondido a tantas perguntas. Desejou também que, ao menos uma vez na vida, a combinação tivesse resultado.

 

Era capaz de distinguir a chegada de Milly, como a de um carro da polícia, desde uma grande distância. Assobios em lugar de sereia avisavam-no da sua aproximação. Ela costumava vir da paragem dos autocarros da Avenida da Bélgica, mas hoje os lobos pareciam operar na direcção de Compostela. Tinha de reconhecer relutantemente que os lobos não eram perigosos. Aquela espécie de saudação que tinha começado quando ela ia nos 13 anos era realmente um sinal de respeito, porque, mesmo pelo exigente padrão de Havana, Milly era uma beldade. Tinha o cabelo cor de mel claro, sobrancelhas escuras e o rabo de cavalo era entrançado pelo melhor cabeleireiro da cidade. Não concedia a menor atenção aos assobios, que produziam o único efeito de fazê-la caminhar com mais altivez - e observando o seu andar quase podia crer-se na levitação. Agora o silêncio teria para ela o sentido de um ultraje directo.

Ao contrário de Wormold, que em nada acreditava, Milly era católica; ele prometera antes de casar educar os filhos na fé da esposa. “Agora sua mulher - pensava ele - já não tinha provavelmente fé em coisa alguma, tendo-lhe deixado entre as mãos uma filha católica.” A religião de Milly aproximava-a de Cuba mais do que ele próprio nunca conseguira. Wormold pensava que nas famílias ricas ainda persistia o costume de fazer acompanhar as donzelas de uma duena - e às vezes parecia-lhe que Milly também trazia uma duena a seu lado, invisível para todos menos para ela. Na igreja, onde parecia mais adorável que em qualquer outro lugar, sob a sua mantilha bordada, a duena estava sempre a seu lado, para observar se a mantilha caía bem nas costas, para fazer cobrir o rosto nos momentos convenientes, para fiscalizar a correcta execução do sinal da cruz. Podiam os rapazinhos chupar impunemente rebuçados em torno dela ou caretear por detrás dos pilares, ela conservava a impassibilidade de uma freira, seguindo a missa num pequeno livro de cantos dourados, encadernado de marroquim da cor do seu cabelo (ela mesma a escolhera). A invisível dueiía providenciava também para que ela às sextas-feiras só comesse peixe, jejuasse e fosse à missa, não somente aos domingos, mas em todos os dias de festividades religiosas e ainda no dia do seu santo. Milly era o nome familiar: o de baptismo era Serafina - nome que em Cuba tinha um sentido duplo, mas que evocava em Wormold imagens de pistas de corridas.

Só muito tarde Wormold descobriu que a assistência da duena não era permanente. Milly era meticulosa no seu comportamento durante as refeições e nunca esquecia as orações da noite, mesmo em criança, e isso tinha ele boas razões para saber, pois ela fazia-o esperar à porta do quarto até terminá-las, como para acentuar bem a diferença entre eles, que resultava do facto de ele não ser católico. Havia sempre uma lamparina acesa em frente da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. Recordava-se de ouvi-la rezar aos 4 anos: “Salve, Rainha, Mãe de Deus.”

Contudo, um dia, ia Milly nos seus 13 anos, foi convocado para comparecer no convento das Claristas Americanas, no belo e claro subúrbio de Vedado. Foi aí que soube pela primeira vez que a duena abandonava Milly quando esta atravessava o portão de ferro do colégio. A queixa era muito séria: Milly lançara fogo a um rapazinho chamado Thomas Earl Parkman Júnior. Era verdade, admitia-o a reverenda madre, que o Earl, como na escola o tratavam, tinha puxado antes o cabelo de Milly, mas isto não justificava, no seu entender, a acção de Milly, que podia ter tido graves consequências se outra menina não tivesse empurrado o Earl para debaixo de uma torneira. A única desculpa de Milly era a de que Earl era protestante, e em face de um conflito religioso os católicos podiam sempre ser mais eficientes nos métodos já tradicionalmente utilizados para expurgar os heréticos.

- Mas como lançou ela fogo ao rapazinho?

- Ensopou-lhe de gasolina a fralda da camisa.

- Gasolina?

- Gasolina de isqueiro, e depois acendeu um fósforo. Desconfiamos de que ela fuma às escondidas.

- É uma história incrível.

- Nesse caso penso que conhece mal Milly. Devo confessar-lhe que a nossa paciência tem sido duramente posta à prova. Seis meses antes de incendiar o jovem Earl, Milly pôs em circulação na aula de desenho uma colecção de postais ilustrados com as mais notáveis pinturas dos grandes mestres.

- Não vejo que mal haja nisso.

- Aos doze anos, Mister Wormold, uma menina não deve limitar as suas preferências aos nus, por mais clássicos que sejam.

- Eram então todos nus?

- Todos, excepto a Maja Vestida, de Goya. Mas também lá havia a outra versão.

Wormold foi obrigado a suplicar a mercê da reverenda madre - ele era o pobre pai descrente de uma filha católica, o convento americano era o único colégio católico estrangeiro em Havana e ele não tinha meios para pagar a uma preceptora. Com certeza ela não quereria ver Milly na Hiran C. Truman School, não era verdade? Isso seria quebrar a promessa feita a sua mulher. Pensou intimamente que devia talvez casar novamente, mas as freiras não aprovariam tal conduta, e, de resto, continuava a amar a mãe de Milly.

Claro que interrogou Milly, e a explicação da filha teve a virtude da simplicidade:

- Porque deitaste fogo ao Earl?

—- Porque fui tentada pelo Diabo - respondeu ela.

- Milly, por favor, responde sensatamente.

- Houve santos que foram tentados pelo Diabo.

- Tu não és santa.

- Exactamente. Foi por não ser santa que sucumbi à tentação. - O assunto ficou arrumado - de qualquer forma ficaria arrumado nessa tarde, entre as quatro e as seis, no confessionário. A'duena tinha voltado e olharia por ela. “Se eu pudesse - pensou Wormold - saber o dia certo em que a duena resolve ter o seu dia de folga ...”

Havia ainda a questão de fumar às escondidas.

- Tens andado a fumar cigarros? - perguntou ele à filha.

- Não.

Alguma coisa no tom da resposta fê-lo fazer a pergunta de outro ângulo:

- Nunca fumaste na tua vida, Milly?

- Só charutos - respondeu ela.

Agora, que ouvia os assobios assinalando a sua aproximação, pôs-se a imaginar por que motivo Milly vinha a subir Lamparilla dos lados do porto, em vez de vir dos lados da Avenida da Bélgica. Mas, ao vê-la, viu também a explicação do facto. Atrás dela vinha um pequeno marçano, que carregava um embrulho tão grande que lhe ocultava o rosto. Wormold concluiu tristemente ter ela andado a fazer compras. Subiu ao apartamento onde residia, por cima da loja, e ouviu-a no quarto ao lado velando pela arrumação dos artigos. Houve um estrondo, um ruído áspero e um tinir de metal. “Ponha isso ali - disse ela.—Não, acolá.” Abriram-se e fecharam-se gavetas. Alguém começou a pregar pregos na parede. Um pedaço de estuque veio cair ao lado de Wormold dentro da saladeira; a mulher-a-dias tinha preparado um almoço frio. Millv entrou mesmo a tempo. Para o pai era sempre difícil ocultar a impressão que a beleza da filha lhe provocava, mas a duena olhou-o friamente como se ele fosse um namorado indesejável. Havia muito que a dama não tinha uma folga: Wormold quase lastimava a sua assiduidade, e havia momentos em que teria gostado de ver Earl novamente a arder. Milly rezou as graças, benzeu-se e ele sentou-se com a cabeça respeitosamente baixa esperando que a filha terminasse as orações, as quais foram demoradas, o que só podia significar que ela não tinha muito apetite ou então estava a ganhar tempo.

- Que tal passou o dia, papá? - perguntou ela delicadamente. Era a espécie de pergunta que uma esposa faz depois de muitos anos de vida conjugal.

- Menos mal, e tu? - Quando olhava para ela acobardava-se; detestava contrariá-la fosse no que fosse e tentava adiar tanto quanto possível a discussão do assunto das compras. Sabia que a pensão mensal que lhe tinha adiantado se esgotara havia duas semanas na compra de uns brincos e de uma estatueta de Santa Serafina.

- Tive hoje boas notas em Dogma e Moral.

- Bem, muito bem. Quais foram os temas?

- A minha melhor resposta foi no pecado venial.

- Vi o doutor Hasselbacher esta manhã - disse ele com aparente irrelevância.

Ela respondeu polidamente:

- Espero que esteja de boa saúde.

“A duena - pensou ele - estava excedendo os limites - as pessoas louvam os colégios católicos por ensinarem boas maneiras, mas as boas maneiras servem apenas para impressionar os estranhos.” Continuou a pensar tristemente: “Mas eu sou um estranho.” Sentia-se incapaz de acompanhá-la naquele seu mundo bizarro de círios e rendas, água benta e genuflexões. Às vezes sentia que não tinha filha.

- Ele vem cá fazer um brinde no dia dos teus anos. Pensei que devíamos ir depois a um clube nocturno.

Um clube nocturno! A duena devia estar distraída quando Milly exclamou:

- Oh Gloria Patri!

- Dantes dirias: Aleluia!

- Isso era na 4.a classe. Que clube nocturno?

- Pensei que no Nacional...

- Talvez fosse melhor no Teatro Xangai.

- Certamente que não. Até me custa pensar que já ouviste falar em semelhante local.

- Nos colégios aprendem-se muitas coisas. Wormold disse então:

- Ainda não falámos no teu presente. Um décimo sétimo aniversário não é um aniversário qualquer. Estive a pensar ...

- Verdadeiramente - disse Milly - nada me apetece.

Wormold lembrou-se apreensivamente do enorme embrulho. Se ela já tinha comprado tudo quanto lhe apetecia! ... Insistiu com ela:

- Com certeza haverá alguma coisa que ainda desejes.

- Nada. Realmente nada.

- Um novo fato de banho - sugeriu ele desesperadamente.

- Bem, há uma coisa ... mas pensei que podíamos considerá-la também como presente do Natal e do próximo aniversário, e também do aniversário a seguir ...

- Santo Deus, que é então?

- Não terás depois de te preocupar mais com presentes durante muito tempo.

- Não me digas que queres um Jaguar.

- Oh, não, é apenas um pequenino presente. Nada de carros. E vai durar anos. É mesmo uma coisa muito económica. Até economiza gasolina.

- Economiza gasolina?

- E hoje comprei todos os acessórios com o meu dinheiro.

- Tu não tinhas dinheiro. Tive de emprestar-te três pesos quando compraste a Santa Serafina.

- Mas tenho bastante crédito.

- Milly, quantas vezes tenho de dizer-te que não quero compras a crédito? Além disso é o meu crédito que usas, e esse, infelizmente, está cada vez mais em baixo.

- Pobre papá. Está quase arruinado?

- Oh!, espero que os negócios melhorem quando acabarem todos esses motins.

- Pensava que os motins em Cuba nunca acabavam. Se suceder o pior, posso trabalhar, não é verdade?

- Em quê?

- Posso ser uma governanta como Jane Eyre.

- Quem te daria emprego?

- O senhor Pérez.

- Milly, que asneiras são essas? Ele vive com a quarta mulher e tu, uma católica...

- Tenho uma vocação especial para os pecadores - explicou Milly.

- Milly, só dizes tolices. Além disso não estou arruinado. Ainda não. Pelo menos que eu saiba. Milly, que andaste tu a comprar?

- Vem ver.

Ele seguiu-a ao quarto de dormir. Sobre a cama assentava uma sela. Os arreios pendiam dos pregos que ela estivera pregando na parede (na operação arruinara os saltos dos seus melhores sapatos); as rédeas estavam enroladas nos braços do candeeiro; sobre a mesa do toucador via-se o chicote. Ele então perguntou, muito infeliz:

- Onde está o cavalo? - e quase esperou vê-lo surgir da casa de banho.

- Numa cavalariça perto do Country Club. Vê se adivinhas como ela se chama.

- Sei lá!

- Serafina. Não parece mesmo andar nisto tudo a mão de Deus?

- Mas, Milly, eu não tenho dinheiro ...

- Não é preciso pagar tudo a pronto. Ela é toda castanha.

- A cor faz alguma diferença?

- Ela tem um bom pedigree. Um dos seus antepassados foi oferecido a Santa Teresa por Fernando de Castela. Se não tivesse esfolado o pêlo da junta ao saltar uma barreira de arame, custaria o dobro. Nada tem de mal, apenas uma espécie de mancha, mas assim não podem apresentá-la nas exposições.

- Não me interessa que custe mais barato. Os negócios vão muito mal, Milly.

- Mas já te expliquei que não precisas de pagar tudo de uma só vez. Podes ir pagando durante alguns anos.

- E ainda estarei pagando essa coisa depois de morto.

- Serafina não é uma coisa, é uma égua, e além disso durará muito mais do que qualquer carro. Talvez dure mais ainda do que tu desejas.

- Mas, Milly, as idas e as voltas para a cavalariça, e a renda, só isso ...

- Discuti tudo isso com o capitão Segura. Ele faz-me um preço especial. Queria até oferecer-me o aluguer da cavalariça, mas não aceitei porque sabia que não gostas que eu aceite favores.

- Quem é o capitão Segura, Milly?

- O chefe da polícia em Vedado.

- De onde diabo o conheces?

- Oh, ele dá-me muitas vezes boleia quando venho para casa.

- A reverenda madre sabe disso?

Milly respondeu secamente:

- Uma pessoa pode ter a sua vida privada.

- Escuta, Milly, eu não posso comprar um cavalo e tu não podes comprar todas essas coisas. Tens de as devolver - acrescentou furioso. - E não quero que aceites boleias do capitão Segura.

- Não te preocupes. Ele nunca me toca - afirmou Milly. - Tudo quanto faz é cantar umas canções mexicanas, muito tristes, enquanto guia. A letra diz coisas acerca de flores e da morte. Há uma em que se fala de um touro.

- Basta, Milly. Vou contar à reverenda madre, tu terás de prometer ... - Viu naqueles olhos verde e âmbar, sombreados pelas escuras pestanas, aproximarem-se as lágrimas.

Wormold sentiu invadi-lo o pânico; assim o tinha fitado sua mulher numa cálida tarde de Outubro pondo um súbito fim a seis anos de vida conjugal. Perguntou:

- Estás apaixonada por esse capitão Segura?

Duas lágrimas perseguiram-se percorrendo com uma espécie de elegância a curva do rosto e brilharam por um momento, tocadas pela luz; tal como os arreios pendurados na parede, as lágrimas faziam parte do seu equipamento.

- Quero lá saber do capitão Segura - respondeu Milly. - Só me interessa Serafina. Mede quinze mãos e tem uma boca de veludo, é o que toda a gente diz.

- Minha querida, tu bem sabes que se eu pudesse ...

- Bem sabia que ias recusar-me isto - suspirou Milly. - Sabia-o do fundo do coração. Rezei duas novenas, mas nenhum resultado deram, e tive muita preocupação em não cometer pecados. Quando as rezei encontrava-me em estado de graça. Nunca mais acreditarei numa novena. Nunca. Nunca mais. - Na sua voz havia a prolongada ressonância dos poemas de Edgar Allan Poe. Ele em nada acreditava, mas não queria que um acto seu contribuísse para afrouxar a fé de Milly. Agora sentia o peso de uma tremenda responsabilidade; de um momento para o outro ela começaria a negar Deus. Antigas promessas acorreram do passado para enfraquecê-lo.

Começou então:

- Milly, tenho pena ...

- Rezei também duas missas particulares.

Descarregou então sobre os ombros do pai todo o desapontamento que lhe estava produzindo a velha mágica familiar. É muito fácil dizer que as crianças choram por tudo e por nada, mas quando se trata de um pai, este não pode aceitar friamente certos riscos como uma professora ou preceptora. Quem sabe se não existe na infância um momento em que o mundo muda para sempre, como naquele jogo de fazer uma careta quando o relógio dá horas?

- Milly, prometo, no próximo ano, se for possível... Escuta, Milly, podes ficar com a sela até lá e com tudo o resto.

- Para que serve uma sela sem cavalo? E eu disse ao capitão Segura ...

- O diabo que o carregue; que lhe disseste afinal?

- Disse-lhe que bastaria pedir-te para me ofereceres a Serafina. Contei que eras maravilhoso. Não lhe referi sequer as novenas.

- Quanto custa essa égua?

- Trezentos pesos.

- Oh, Milly, Milly. - Não havia remédio senão entregar-se. - Terás de pagar a renda da cavalariça com a tua pensão.

- Com certeza. - Beijou-o

- A começar no próximo mês. - Mas ambos sabiam que ela nunca pagaria do seu bolso.

- Afinal, tu ... vês, as novenas sempre deram resultado. Amanhã vou rezar pelos teus negócios. Qual será o melhor santo para os negócios?

- Sempre ouvi dizer que S. Judas é o patrono das causas perdidas - respondeu Wormold.

 

Durante o dia, Wormold costumava sonhar que uma bela manhã acordaria para descobrir que tinha acumulado economias, títulos ao portador e apólices de acções, e que de tudo isso corria uma torrente de sólidos rendimentos que o nivelariam com os moradores do rico subúrbio de Vedado; então retirar-se-ia com Milly para Inglaterra, onde não existiam capitães Seguras nem assobios. Mas o sonho desapareceu apenas entrou no banco americano em Obispo. Ao passar pelos grandes umbrais de pedra, decorados com trevos de quatro folhas, tornava-se novamente no pequeno comerciante que realmente era, cujos lucros nunca seriam suficientes para fugir com Milly para as regiões onde reinava a segurança.

Levantar dinheiro com um cheque num banco americano não é a simples operação que se processa num banco inglês. Os banqueiros americanos acreditam no contacto pessoal; o caixa dá a impressão de que se encontra ali por acaso e que está ultra-encantado por encontrar-vos. “Bem - parece exprimir o sujeito com o calor do seu brilhante sorriso - quem diria que o iria encontrar aqui, precisamente a si e justamente neste banco?” Depois de trocar impressões respeitantes à saúde do cliente e à saúde dele e após descobrirem ambos que os encantos do tempo que faz é um tema de interesse comum, o cliente, timidamente, a desculpar-se, apresenta o cheque (que maçada haver justamente a necessidade de trocar esse cheque, que nada vem a propósito!), mas o caixa mal tem tempo de lançar uma olhadela ao papelucho, porque nesse momento o telefone retine. “Não me diga que é você, Henry! - exclama o sujeito, numa surpresa, para o bocal do telefone, como se o tal Henry fosse também a última pessoa que ele esperava ouvir nesse dia. - Que há de novo?” As novidades são longas; o caixa sorrí-vos astutamente: negócios são negócios!

“A Edith estava muito bem a noite passada”, diz finalmente o caixa.

Wormold abanava-se com o cheque, impaciente.

“Foi uma bela noitada, isso é verdade. Eu? Oh, estou fino. Bem, em que posso servi-lo?”

“Porquê? Nada tem a agradecer ... Cento e cinquenta mil dólares por três anos ... Não, com certeza, não há qualquer dificuldade tratando-se de um negócio como o seu. Temos de aguardar o O. K. da sede, em Nova Iorque, mas é pura formalidade. Passe por cá e fale com o gerente. Amortizações mensais? Isso não é necessário com firmas americanas. Talvez se consiga a cinco por cento. Duzentos mil por quatro anos? Claro que sim Henry.”

O cheque de Wormold ia minguando, perdendo significado entre os seus dedos. “Trezentos e cinquenta dólares.” A letra parecia tão débil como os seus próprios recursos.

“Encontrar-nos-emos amanhã em casa de Mistress Slater? Espero que se jogue um robber. Não leve os ases escondidos nas mangas, Henry. Quanto tempo para o O. K.? Um par de dias se telegrafarmos. Amanhã, às onze? Você é quem manda, Henry. É só vir até cá. Eu falo com o gerente. Ele até fica em pulgas para vê-lo.”

- Desculpe tê-lo feito esperar, Mister Wormold. - Outra vez o sobrenome. “Talvez - pensou Wormold - a minha intimidade não interesse ou então é a diferença de nacionalidades que nos mantém afastados. “Trezentos e cinquenta dólares?” O caixa relanceou uma olhadela desembaraçada ao ficheiro antes de contar as notas. Mal começara, o telefone tocou outra vez.

“Não me diga que é o senhor, Mister Ashworth! Onde se tem metido? Foi a Miami? Sério?” Levou alguns minutos a conversar com Mister Ashworth. Ao dar as notas a Wormold, apresentou-lhe igualmente um pequeno talão.

- Desculpe Mister Wormold, mas o senhor pediu-me que o mantivesse ao corrente. - O talão revelava um saque a descoberto de cinquenta dólares.

- Não tem de quê. Sou eu quem lhe está grato - afirmou Wormold. - Mas não há motivos para alarme.

- Oh, o banco não está alarmado. Mister Wormold. Foi apenas porque o senhor nos pediu ...

Wormold pensou: “Se o saque a descoberto fosse de cinquenta mil dólares, o tipo passava a tratar-me por Jim.”

 

Por qualquer razão não lhe apeteceu encontrar-se nessa manhã com o Dr. Hasselbacher para o daiquiri matinal. Às vezes o Dr. Hasselbacher ia um pouco além da medida, e quando se sentia pouco disposto a suportá-lo preferia ir refrescar-se para o Sloppy Joe's. Os residentes em Havana não frequentavam o Sloppy Joe's porque era o ponto preferido pelos turistas; mas os turistas eram agora poucos, visto o regime do presidente se aproximar perigosamente do fim. Há muito que aconteciam às ocultas factos desagradáveis nos calabouços da Jefatura, coisas que não perturbavam os turistas hospedados no Nacional e no Seville-Biltmore, mas um turista havia sido morto recentemente por uma bala perdida quando se preparava para tirar o retrato de um pitoresco vadio que repousava debaixo de uma varanda do Palácio, e a morte tinha soado como o dobre das excursões organizadas pelas agências de turismo, “incluindo um passeio à praia do Varadero e a vida nocturna de Havana”. A Leica da vítima ficara em estilhaços e esse facto impressionara os companheiros do defunto, fazendo-lhes, mais do que a própria morte, avaliar o poder destruidor de uma bala. Wormold tinha-os ouvido comentar o facto no bar do Nacional: “Caçado mesmo através da máquina - disse um deles. - Quinhentos dólares que se foram à viola.”

- Morreu logo?

- Claro. E as lentes ... podiam apanhar-se pedacinhos numa área de cinquenta jardas. Veja. Levo este pedaço para a América para mostrar a Mister Humpelnicker.

Nessa manhã o comprido balcão do bar estava vazio, exceptuando o elegante desconhecido sentado numa extremidade e o gordo funcionário da polícia de turismo, que na outra extremidade ia chupando o seu cigarro. O inglês pasmava para a grande variedade de garrafas expostas no contador e só decorrido certo tempo descobriu Wormold.

- Bem, quase não o reconhecia - disse ele. - É Mister Wormold, não é verdade?

Wormold estranhou que o outro soubesse o seu nome, pois tinha-se esquecido de lhe entregar um cartão da firma.

- Dezoito marcas diferentes de whisky - observou o desconhecido -, incluindo o Black Label. E ainda não contei os bombons. É um panorama maravilhoso. Maravilhoso - repetiu ele baixando misteriosamente a voz. - Já tinha visto tantos whiskies diferentes?

- Já. Colecciono miniaturas e tenho em casa noventa e nove marcas diferentes.

- Curioso. E que bebe hoje? Um dimpled haig?

- Obrigado, mas já pedi um daiquiri.

- Não posso com essas bebidas. Amolecem-me.

- Já se decidiu a comprar algum aspirador? - perguntou Wormold para manter o diálogo.

- Aspirador?

- Sim, aspirador de pó. Esses aparelhos que eu vendo.

- Oh, um aspirador! Boa! Esqueça isso e beba um whisky.

- Nunca bebo whisky durante o dia.

- Vocês, os homens dos trópicos!

- Não vejo que relação ...

- O sol enfraquece o sangue, é o que quero dizer. Nasceu em Nice, não é verdade?

- Como sabe?

- Bem, estas coisas apanham-se aqui e além, falando com um e com outro. De facto tencionava ter uma conversa consigo.

- Bem, aqui estou.

- Preferia que fosse num lugar mais recatado. Aqui há sempre gente a entrar e a sair.

Nenhuma descrição do local podia ser menos adequada. Nem uma única pessoa se via passar lá fora em frente da porta da entrada, sob a luz abrasadora do Sol. O oficial da polícia de turismo, depois de pousar o cigarro num cinzeiro, tinha deslizado para um sono feliz; àquela hora não havia turistas para proteger ou vigiar. Wormold disse:

- Se é para tratar do negócio do aspirador, venha à minha loja.

- É preferível não ser lá. Não quero ser muito visto no local. Afinal de contas o bar não é tão mau como isso. Você encontra um compatriota, fala com ele, que há de mais natural?

- Não compreendo.

- Bem, sabe como isso acontece frequentemente.

- Não, não sei.

- Bem, acha que não é bastante natural?

Wormold desistiu. Pousou oitenta cêntimos sobre o balcão e declarou.

- Tenho de ir para a loja.

- Mas porquê?

- Não gosto de deixar López sozinho durante muito tempo.

- Ah, López. Preciso de falar consigo a respeito desse López. - Uma vez mais a explicação mais plausível para Wormold era a de que o desconhecido fosse um excêntrico inspector da sede, mas o sujeito estava por certo a atingir o limite da excentricidade quando acrescentou em voz baixa: - Vá andando para os urinóis que eu já lá vou ter consigo.

- Para os urinóis? Porque diabo hei-de ir à sua frente para os urinóis?

- Simplesmente porque eu não sei o caminho.

Num mundo de loucos o comportamento aparentemente mais simples é a obediência. Wormold conduziu o desconhecido para uma passagem nas traseiras do edifício, desceu um pequeno lanço de escadas e indicou a porta:

- É aí dentro.

- Entre você primeiro, meu velho.

- Mas eu não preciso.

- Não se faça difícil - disse o outro. Pousou a mão sobre o ombro de Wormold e fê-lo atravessar a porta. Lá dentro havia dois lavatórios, uma cadeira de costas desconjuntadas e as habituais retretes e mictórios. - Sente-se, meu velho - ordenou o desconhecido -, enquanto eu abro a torneira - mas quando a água começou a correr não fez qualquer gesto de lavar as mãos. - Parece mais natural - explicou ele (a palavra “natural” devia ser o seu adjectivo favorito) - no caso de alguém vir meter o nariz cá dentro. E, além disso, o correr da água prejudica os microfones.

- Os microfones?

- Tem toda a razão em fazer essa pergunta. Toda a razão.

É muito improvável a existência de microfones num lugar destes mas o que conta é obedecer aos regulamentos. Um dia compreenderá a vantagem de mecanizar certos gestos. É uma sorte não haver aqui em Havana o sistema das válvulas automáticas. Assim pode deixar-se a água correr à vontade.

- Fará o favor de me explicar ... ?

- Nunca se é demasiadamente cauteloso, mesmo nos urinóis se me lembrar do que sucedeu a um dos nossos na Dinamarca. Foi em 1940.

Da janela do seu quarto viu a esquadra alemã descer o Kattegat.

- O quê?

- O Kattegat. Claro que ele percebeu imediatamente que o balão tinha rebentado. Começou a queimar os papéis. Deitou as cinzas no lavatório e levantou a válvula. O pior foi que tinha nevado. Os canos estavam gelados. As cinzas não passaram e ficaram todas a boiar na banheira do andar de baixo. A casa pertencia a uma velha solteirona, chamada Bori-nin, ou qualquer coisa parecida. Ela preparava-se justamente para tomar banho. Foi uma situação muito embaraçosa para o nosso homem.

- Isso cheira-me a serviço secreto.

- E é serviço secreto, meu velho, ou pelo menos é assim que lhe chamam os romancistas. É por isso mesmo que quero falar-lhe a respeito desse López. É homem de confiança ou é melhor despedi-lo?

- Você pertence ao Serviço Secreto?

- Se você insistir em chamar-lhe assim ...

- Porque diabo havia de despedir López? Ele trabalha comigo há dez anos.

- Podíamos arranjar-lhe um rapaz que conhecesse tudo o que diz respeito a aspiradores. Bom, mas naturalmente isso fica ao seu critério.

- Mas eu não pertenço ao Serviço.

- Já lá vamos, meu velho. De qualquer forma riscamos o López das nossas preocupações; o sujeito parece insuspeito. Mas eu teria um pouco mais de cautela com o seu amigo Hasselbacher.

- Como sabe que eu sou amigo de Hasselbacher?

- Andei por aí a saber umas coisas. Nestas ocasiões é o que temos a fazer.

- Em que ocasiões?

- Onde nasceu Hasselbacher?

- Penso que em Berlim.

- Simpatias ocidentais ou orientais?

- Ele nunca fala de política.

- Não que isso importe muito. Pelo Ocidente ou pelo Oriente, eles, acima de tudo, jogam pela Alemanha. Recor-de-se do pacto de Ribbentrop. Não tornam a apanhar-nos desprevenidos.

- Hasselbacher não é político. É um velho médico e vive aqui há treze anos.

- De qualquer maneira você pode vir a ter uma surpresa ... Mas concordo consigo, seria salientar-se excessivamente romper com ele. Limite-se a ser cauteloso. Ele pode mesmo ser-nos útil se o manobrar como deve.

- Não tenho qualquer intenção de manobrá-lo.

- Verá que isso é necessário para o seu trabalho.

- Não quero qualquer trabalho. Porque se lembrou de mim?

- Inglês, patriota. Vivendo aqui há anos. Membro respeitável da Associação dos Comerciantes Europeus. Temos necessidade de um agente em Havana. Os submarinos necessitam de combustível. Os ditadores jogam de acordo. Os graúdos servem-se dos mais pequenos.

- Os submarinos atómicos não precisam de combustível.

- É verdade, meu velho, é verdade. Mas as guerras começam sempre um pouco atrasadas em relação à técnica. Temos de estar preparados também para as armas convencionais. Além disso há as informações sobre a economia: açúcar, café, tabaco.

- Você pode encontrar todas essas informações nas publicações oficiais.

- Não nos merecem crédito. Além disso temos as informações políticas. Com os seus aspiradores você pode entrar em todos os lugares.

- Espera que me vá pôr a analisar o lixo?

- Pode parecer-lhe um gracejo, meu velho, mas a fonte principal da espionagem francesa nos tempos de Dreyfus era a mulher que despejava os cestos de papéis da Embaixada alemã.

- Nem sei como você se chama.

- Hawthorne.

- Mas quem é você afinal?

- Bem, pode dizer que eu sou quem está a fechar a rede das Caraíbas. Cuidado! Aí vem alguém. Vou pôr-me a lavar as mãos. Você meta-se numa retrete. Não devemos ser encontrados juntos.

- Mas temos sido encontrados juntos.

- Encontro casual. Compatriotas. - Empurrou Wormold para dentro de uma retrete com a mesma decisão de há pouco, “é uma questão de regulamento”, e depois só se ouviu a água a correr. Wormold sentou-se. Nada mais podia fazer. Sentado, viam-se-lhe as pernas do lado de fora, pois a porta não chegava ao chão. Uma maçaneta girou. Passos atravessaram o pavimento de mosaico a caminho do urinol. A água continuava a correr. Wormold sentiu-se transtornado. Porque diabo não pusera um termo a tudo isto logo no começo? Não era de admirar que Mary o tivesse abandonado. Lembrou-se de uma das suas discussões. “Porque não fazes qualquer coisa, porque não tomas uma atitude, qualquer decisão? Tudo o que sabes fazer é ficar aí de pé...” “Pelo menos —pensou - agora estou sentado. Mas, de qualquer forma, que podia ter eu dito? Não me tinham dado tempo para falar.” Os minutos passaram. Que enormes bexigas têm os cubanos; e que limpas deviam estar a estas horas as mãos de Hawthorne! A água deixou de correr. Provavelmente estava agora a secar as mãos, mas Wormold lembrou-se de que não havia toalhas. Era outro problema para Hawthorne, que ele por certo resolveria. Devia existir no regulamento um princípio aplicável à situação. Por fim os pés encaminharam-se para a porta. A porta bateu.

- Posso sair? - perguntou Wormold. Era quase uma rendição. Estava, a partir desse momento, debaixo de ordens.

Ouviu as pontas dos dedos de Hawthorne tamborilando perto.

- Dê-me uns minutos para sair, meu velho. Sabe quem era? O polícia. Um pouco suspeito, hem?

- Talvez tenha reconhecido as minhas pernas por debaixo da porta. Acha que devemos trocar as calças?

- Seria pouco natural - respondeu Hawthorne-, mas você começa a entrar no espírito da coisa. Vou deixar a chave do meu quarto no lavatório. Quinto andar no Seville-Biltmore. Vá lá directamente às dez da noite. Assuntos a discutir: dinheiro, etc. Que mau cheiro! Não pergunte por mim na portaria.

- Mas você não precisa da chave?

- Tenho uma chave universal. Até logo.

Wormold levantou-se a tempo de ver a porta fechar-se atrás da elegante figura. A chave lá estava no lavatório - quarto 510.

 

Às nove e meia Wormold dirigiu-se ao quarto de Milly para lhe desejar as boas-noites. Aqui, onde dominava a duena, tudo estava em ordem - a vela tinha sido acesa diante da imagem de Santa Serafina, o missal cor de mel estava sobre a mesinha-de-cabeceira, das roupas usadas durante o dia não havia vestígios como se nunca tivessem realmente existido, e pairava no ar um desmaiado odor a água-de-colónia onde havia uma sugestão de incenso.

- Tens alguma coisa que te preocupe? - perguntou Milly. - Não me digas que é ainda por causa do capitão Segura.

- Tu nunca caçoas de mim, pois não, Milly?

- Não. Porquê?

- Parece que toda a gente tem esse costume.

- A mãe também caçoava?

- Creio que sim. Nos primeiros tempos.

- E o Dr. Hasselbacher?

Recordou-se do negro que se arrastava coxeando. Respondeu:

- Talvez. Às vezes.

- É um sinal de afeição, não é?

- Nem sempre. Lembro-me de que no colégio... - calou-se.

—- Que te sucedeu no colégio?

- Oh, tanta coisa!

A infância contém o germe de toda a descrença. É-se cruelmente ridicularizado e depois ridiculariza-se cruelmente o semelhante. Esquecem-se as próprias dores infligindo ao próximo dores ainda maiores. Mas ele nunca se tinha desforrado, embora esse comportamento não fosse ditado por virtude própria. Talvez uma falha de carácter. Dizia-se que os colégios formavam os caracteres limando as arestas. As suas arestas tinham sido limadas, mas o resultado, considerava ele, não tinha sido formar-lhe um carácter - a operação tornara-o num ser amorfo, como qualquer peça de um museu de arte moderna.

- És feliz, Milly? - perguntou ele.

- Oh, sim.

- Mesmo no colégio?

- Sim. Porquê?

- Já ninguém te puxa o cabelo?

- Claro que não.

- E tu já a ninguém deitas fogo?

- Isso era quando eu tinha treze anos - fez ela com desdém. - Mas que te preocupa?

Estava sentada na cama, vestida com uma camisa de noite de nylon branco. Ele amava-a quando a duena estava presente e amava-a ainda mais quando a duena estava ausente: não podia desperdiçar o tempo não amando. Era como se os dois fizessem juntos uma viagem que ela devia terminar sozinha. Os últimos momentos de convívio aproximavam-se, tendo ela tudo a ganhar e ele tudo a perder. Nessa noite o tempo era real, mas não era real Hawthorne, misterioso e absurdo, nem as crueldades da polícia e dos governos, nem os cientistas que experimentavam a nova bomba H na ilha do Natal, nem tão-pouco as notas de Kruchtchev; estas coisas pareciam-lhe menos reais do que as ineficazes torturas do dormitório de um colégio. O rapazinho que vinha de noite com a toalha húmida, de que tão bem se recordava - onde estaria agora? O cruel passa como as cidades, os tronos e os poderes, deixando um rasto de ruínas. Não tem permanência. Mas o palhaço que ele tinha visto no circo, no ano anterior, com Milly - o palhaço era permanente, pois a sua actuação nunca se alterava. É esta a boa maneira de viver; o palhaço não é afectado pelos desvarios dos homens públicos nem pelas enormes descobertas dos grandes.

Wormold começou a fazer caretas em frente do espelho.

- Que estás a fazer, pai?

- Tentando obrigar-me a rir.

Milly soltou um risinho.

- Pensava que estivesses triste a sério.

- Era por isso que eu pretendia rir. Recordas-te daquele palhaço que vimos o ano passado, Milly?

- Aquele que se enganava nos degraus ao subir a escada e caía dentro de um balde de cal?

- Todas as noites, às dez, ele cai dentro do balde. Devíamos ser todos palhaços. Nada devíamos aprender com a experiência.

- A reverenda madre diz ...

- Não acredites. Deus não aprende com a experiência. Se assím não fosse, como poderia ele esperar ainda alguma coisa dos homens? São os cientistas, que juntam os dígitos e fazem a soma, quem causa toda a casta de trabalhos. Newton ao descobrir a gravidade aprendeu com a experiência e depois ...

- Pensava que tinha sido com uma maça.

- Dá no mesmo. Foi apenas uma questão de tempo até Lord Rutherford descobrir a divisão do átomo. Foi um produto da experiência. Hiroxima também foi resultado da experiência. Se todos os homens fossem palhaços, nada de mau resultaria além de alguns arranhões e de umas lambusadelas de cal. Nada aprendas com a experiência, Milly. Ela arruina a nossa paz e as nossas vidas.

- Que estás tu a fazer agora?

- Estou a tentar mover as orelhas. Dantes conseguia. Mas agora o truque já não dá resultado.

- Ainda te sentes infeliz por causa da mãe?

- Às vezes.

- Ainda lhe queres?

- Talvez. De vez em quando.

- Ela devia ser muito bonita quando era nova.

- Ainda não é velha. Tem trinta e seis anos.

- Eu acho que já é velha.

- Não te lembras dela?

- Muito mal. Ela partiu há muito tempo, não é verdade?

- Há bastante tempo, sim. Eu rezo todos os dias por ela.

- Que pedes nas tuas orações? Que ela regresse? Oh, não, isso não. Passamos perfeitamente sem ela. É para que ela volte a ser uma boa católica. sou um bom católico. "Oh, é diferente. Tu és irremediavelmente ignorante, espero que sim. Não estou a insultar-te, pai. É o que ensina a teologia. Por isso serás salvo, como os bons pagãos. Sócrates e Centewayo.

- Quem é Centewayo?

- Foi um rei dos Zulus.

- E por quem mais tens rezado?

- Bem, nos últimos tempos tenho rezado para ter um cavalo.

Ele beijou-a e despediu-se. Ela perguntou:

- Aonde vais?

- Tenho que tratar de certos assuntos respeitantes ao cavalo.

- Estou sempre a meter-te em trabalhos - suspirou ela Depois, satisfeita, puxando o lençol para cima do pescoço:

- É maravilhoso, não é, ter sempre alguma coisa por que rezar?

 

Em todas as esquinas havia homens que lhe gritavam: “Táxi?”, como se ele fosse um turista, e ao longo de todo o Paseo vinham automaticamente abordá-lo corretores de mulheres, embora sem qualquer esperança real de serem bem sucedidos. “Posso ajudá-lo, senhor?”; “Conheço todas as raparigas bonitas”; “Arranjo-lhe uma linda mulher”; “Postais ilustrados?”; “Quer ver um filme realista?” Eram apenas crianças quando ele chegara a Havana, tinham ganho uns cobres a lavar-lhe o carro, tinham crescido a seu lado, mas nunca se haviam habituado a ele. Para eles, Wormold nunca se tornara um residente; era um turista permanente, e por isso continuavam a assediá-lo - estavam certos de que mais cedo ou mais tarde, tal como os outros, quereria ir ver o Super-Homem exibir-se no bordel de San Francisco. Pelo menos, como o palhaço, tinham o conforto de não aprender com a experiência.

Na esquina de Virtudes ouviu o Dr. Hasselbacher, instalado no Wonder Bar, chamar por ele.

- Mister Wormold, aonde vai com tanta pressa?

- Tenho um encontro marcado.

—- Há sempre tempo para um whisky. - Era óbvio, pela maneira de pronunciar whisky, que o Dr. Hasselbacher já tivera tempo para tomar uma grande quantidade deles.

- Já vou atrasado.

O atraso é coisa que não existe nesta cidade, Mister Wormold. De resto tenho um presente para si.

Wormold voltou as costas ao Paseo e entrou no bar. O Seu pensamento fê-lo sorrir tristemente perante os seus próprios pensamentos.

“As suas simpatias vão Para o Ocidente ou para o Oriente?”

“Ocidente ou oriente de quê? Oh, que quer dizer essa coisa? Que a peste leve a ambos.” -Que presente tem para mim?

- Pedi a um dos meus doentes que mas trouxesse de Miami - disse Hasselbacher. Retirou do bolso duas garrafas de whisky em miniatura: uma era Lord Calvert e a outra Old Taylor.

- Já as tem?—perguntou com um toque de ansiedade na voz.

- Já tenho a Calvert, mas não o Taylor. Foi muita amabilidade sua lembrar-se da minha colecção, Hasselbacher. - Era sempre uma surpresa para Wormold descobrir que continuava a existir para os outros, mesmo quando não estava presente.

- Quantas tem agora?

- Um cento, contando os bourbons e o irlandês. Setenta e seis escoceses.

- Quando se decide a bebê-las?

- Talvez quando tiver duzentas.

- Sabe o que faria eu com elas se estivesse no seu lugar? - disse Hasselbacher. - Jogava-as às damas. De cada vez que comesse uma pedra, bebia uma.

- É uma boa ideia.

- E depois é uma forma natural de dar partido - continuou Hasselbacher. - Nisso está a grande beleza da coisa. O melhor jogador é o que tem de beber mais. Pense na subtileza da partida. Tome outro whisky.

- Creio que é o que vou fazer.

- Necessito da sua ajuda. Esta manhã fui picado por uma vespa.

- Você é o médico, não sou eu.

- Não se trata disso. Uma hora depois, quando ia atender uma chamada para os lados do aeroporto, atropelei uma galinha.

- Continuo sem perceber.

- Mister Wormold, Mister Wormold, o senhor anda nas nuvens. Regresse à terra; temos de descobrir imediatamente um bilhete de lotaria antes do sorteio. Vinte e sete é o número da vespa. Trinta e sete o número da galinha.

- Mas eu tenho um encontro marcado.

- Os encontros podem esperar. Beba o seu whisky. Temos de descobrir esse bilhete no mercado. - Wormold seguiu-o ao carro. Tal como Milly, o Dr. Hasselbacher tinha fé.

A sua vida era regulada pelos números da mesma forma que a de Milly era regulada pelos santos.

Em redor do mercado expunham-se os números bonitos em azul e vermelho. Os chamados “números feios” estavam arrumados debaixo dos balcões; eram deixados para a arraia miúda e para os vendedores ambulantes. Não tinham importância, não continham qualquer estampa significativa, nenhum número representativo de uma rola, de um gato, de uma vespa ou de uma galinha.

- Olhe. Ali está o 27 483 - indicou Wormold.

- A vespa sem a galinha não serve - declarou o Dr. Hasselbacher.

Arrumaram o carro e puseram-se a caminhar. Não havia em redor do mercado corretores de bordéis: a lotaria era um negócio honesto, ainda não corrompido pelos turistas. Uma vez por semana os números eram distribuídos por um departamento governamental, e os bilhetes eram atribuídos aos políticos em número variável consoante o apoio que concediam. O político pagava dezoito dólares por cada bilhete ao Governo e revendia-o aos grandes estabelecimentos de jogo por vinte e três dólares. Mesmo que lhe concedessem apenas vinte bilhetes, tirava semanalmente um lucro de sessenta dólares. Um número favorito contendo prognósticos favoráveis chegava a ser vendido ao público por trinta dólares. Claro que o vendedor das ruas não conseguia lucros semelhantes. Com números desprezados, que comprava por vinte e três dólares, tinha de ganhar a vida. Defendia-se dividindo o bilhete em cem fracções, que vendia a vinte e cinco cêntimos cada; ia pelos estacionamentos até encontrar um carro com o mesmo número do seu bilhete (nenhum automobilista resiste à coincidência); chegava a procurar na lista telefónica um número igual ao do bilhete e a arriscar uma moeda numa chamada: “Senora, tenho um bilhete de lotaria com o mesmo número do seu telefone.”

Wormold tornou a indicar:

- Olhe, aí tem um 37 com 72.

- Não é ainda o que pretendo - respondeu o Dr. Hasselbacher.

Pôs-se a folhear as pilhas de números que não eram considerados suficientemente bonitos para ser expostos. Quem sabe? O que é belo para um pode não o ser para os outros homens - talvez houvesse alguém para quem a vespa fosse um animal insignificante. Uma sereia da polícia uivou através da noite e um carro deu a volta aos três lados do mercado. Um homem sentado num poial de pedra exibindo, pendurado na camisa, um bilhete com um só algarismo, como um presidiário, resmungou: “O Abutre Vermelho!”

- Quem é o Abutre Vermelho?

- O capitão Segura - explicou o Dr. Hasselbacher. - Você até parece que vive fora deste mundo.

- Porque lhe chamam Abutre Vermelho?

- Porque é um especialista em tortura e mutilações.

- Tortura?

- Bem, nada há aqui que interesse - disse Hasselbacher. - É melhor irmos tentar a sorte em Obispo.

- Porque não espera para amanhã?

- É a véspera do sorteio! De resto, que espécie de sangue lhe corre nas veias, Mister Wormold? Quando o destino nos fornece um palpite destes - uma vespa e uma galinha -, temos de segui-lo sem perda de tempo. É necessário merecer a sorte que temos.

Saltaram para o carro e dirigiram-se para Obispo.

- Este capitão Segura - começou a dizer Wormold.

- Sim?

- Bem, já me esqueci do que ia perguntar.

Eram onze horas quando finalmente descobriram um bilhete que satisfazia as pretensões do Dr. Hasselbacher, mas, como a loja que o tinha exposto estava fechada até ao dia seguinte, nada mais havia a fazer senão ir tomar uma bebida.

- Onde é o seu encontro?

Wormold respondeu:

- No Seville-Biltmore.

- Todos os lugares são bons para beber - sentenciou o Dr. Hasselbacher.

- Não acha que o Wonder Bar ...?

- Não, não. Faz sempre bem mudar. Quando um homem se sente incapaz de mudar de bar, é porque está a ficar velho.

Abriram caminho na densa penumbra do bar do Seville-Biltmore. Tinham apenas uma vaga visão dos outros clientes, sentados, encolhidos no silêncio e na sombra como soldados pára-quedistas aguardando melancolicamente a ordem de saltar. Somente uma boa disposição a toda a prova como a do Dr. Hasselbacher podia resistir ao ambiente.

- Você ainda não ganhou - segredou-lhe Wormold, tentando fazer baixar o entusiasmo do outro, mas mesmo um suspiro provocava um reprovador voltar de cabeças no escuro.

- Esta noite ganhei - disse o Dr. Hasselbacher em voz firme e estentórea. - Amanhã talvez perca, mas nada poderá roubar-me a vitória desta noite. Cento e quarenta mil dólares, Mister Wormold. É pena ser demasiadamente velho para as mulheres, poderia fazer a felicidade de uma mulher oferecendo-lhe um colar de rubis. Assim fico desorientado. Em que hei-de gastar o meu dinheiro, Mister Wormold? Acha que devo fazer uma doação a um hospital?

- Desculpe - murmurou uma voz na sombra -, esse sujeito ganhou realmente cento e quarenta mil dólares?

- Sim, senhor, ganhei-os - disse o Dr. Hasselbacher com voz firme antes de Wormold ter tempo de responder. - Ganhei-os tão certo como você existir, meu quase invisível amigo. Se eu não acreditasse que você existe, você não existia, nem também existiam os meus dólares. Creio, logo você existe!

- Que quer dizer com isso de eu não existir?

- Você só existe nos meus pensamentos. Se eu sair deste quarto ...

- Você é pílulas.

—- Prove então que existe.

- Que quer dizer com isso de provar? Claro que existo. Tenho um bom negócio e uma grande propriedade, tenho mulher e dois garotos em Miami, cheguei aqui esta manhã pelo avião da Delta e estou a beber este whisky, não estou? - A voz continha uma sugestão de lágrimas.

- Pobre homem - disse o Dr. Hasselbacher -, merecia ter encontrado um criador com mais imaginação. Porque diabo nada lhe arranjou melhor do que Miami e uma grande propriedade? Qualquer coisa menos vulgar. Um nome daqueles que não se esquecem mais.

- Que há de mau com o meu nome?

Os pára-quedistas de ambos os lados do bar mostravam-se tensos e reprovadores; não se deve ter ataques de nervos antes do salto.

- Nada que eu possa remediar com um pouco de imaginação.

- Se perguntar a alguém em Miami quem é Harry Morgan ...

- De facto eu devia ter escolhido melhor. Mas já lhe digo o que vou fazer - declarou o Dr. Hasselbacher. - Vou sair do bar por um minuto e elimino-o. Quando voltar trago uma versão melhorada.

- Que quer dizer com isso de versão melhorada?

- Se este meu amigo, Mister Wormold, o tivesse inventado, você seria um homem muito mais feliz. Você teria sido educado em Oxford e chamar-se-ia Pennyfeather ou coisa parecida ...

- Que quer dizer com isso de Pennyfeather? Você está bêbado!

- Claro que estou bêbado. A bebida embota a imaginação. Por isso é que o fabriquei tão vulgar: Miami e uma propriedade, passageiro da Delta! Se fosse um Pennyfeather, teria vindo da Europa pela K. L. M. e estaria agora a beber um pink gin.

- Pois eu estou a beber whisky e gosto.

- Você pensa que está a beber whisky. Ou antes, para ser exacto, eu imaginei que você está a beber whisky. Mas vamos já mudar tudo isso - anunciou o Dr. Hasselbacher animadoramente. - Vou lá fora por um minuto conceber alguns aperfeiçoamentos.

- Você não pense que o deixo continuar a desfrutar-me - fez o homem revelando verdadeiro alarme.

O Dr. Hasselbacher acabou a bebida, colocou um dólar sobre o balcão e levantou-se com incerta dignidade.

- Há-de ficar-me grato por isto - afirmou ele. - Que quer ser? Confie em mim e em Mister Wormold, aqui presente. Pintor? Poeta? Ou prefere uma existência aventurosa, ser pistoleiro, agente do Serviço Secreto?

À porta fez uma reverência para a senhora inquieta:

- Peço que me desculpe a ideia da propriedade.

A voz no escuro disse nervosamente, procurando tranquilizar-se:

- O tipo ou está bêbado ou é pílulas - mas nenhum dos pára-quedistas lhe concedeu resposta.

Wormold disse:

- Bem, boas noites, Hasselbacher. Já estou atrasadíssimo.

- O menos que posso fazer, Mister Wormold, é acompanhá-lo e explicar que fui eu o causador do seu atraso. Tenho a certeza de que quando contar ao seu amigo a minha boa fortuna desta noite ele compreenderá.

- Não é necessário. Realmente não é necessário - dissera Wormold. Hawthorne, sabia-o, tiraria conclusões precipitadas. Um Hawthorne razoável, se tal coisa existia, já era bastante mau, mas um Hawthorne suspeitoso ... O seu espírito inquietou-se perante tal perspectiva.

Dirigiu-se ao elevador com o Dr. Hasselbacher na peugada. Este, ignorando a luz vermelha e o aviso “Cautela com o degrau”, tropeçou.

- Ai - queixou-se -, o meu tornozelo.

- Vá para casa, Hasselbacher - aconselhou Wormold, desesperado. Entrou para o elevador, mas o Dr. Hasselbacher, alargando o passo, entrou também dizendo:

- Não há mal que o dinheiro não cure. Há muito tempo que não passava uma noite tão divertida.

- Sexto andar - pediu Wormold. - Preciso de estar só, Hasselbacher.

- Porquê? Desculpe-me. Estou com soluços.

- É uma entrevista muito particular.

- Uma linda mulher, Mister Wormold? Conceder-lhe-ei parte dos meus ganhos para que possa cometer loucuras.

- Não se trata de mulheres. É assunto de negócios.

- Negócios particulares?

- Foi isso mesmo que eu disse.

- Que pode haver de particular num aspirador, Mister Wormold?

- Uma nova agência - disse Wormold, e o homem do ascensor anunciou:

- Sexto andar.

Wormold saiu adiante de Hasselbacher. Além disso tinha as ideias mais claras do que este. Os quartos ficavam dispostos, como as celas de uma penitenciária, nos lados de um terraço rectangular; no andar térreo duas cabeças calvas brilhavam como globos de iluminação. Foi coxeando na direcção do canto do terraço onde ficavam as escadas de acesso, e o Dr. Hasselbacher, coxeando também, lançou-se em sua perseguição. Mas Wormold tinha mais prática de coxear.

- Mister Wormold - chamava o Dr. Hasselbacher.- Mister Wormold, eu terei muito prazer em investir cem mil dólares ...

Wormold já estava no fundo das escadas enquanto o Dr. Hasselbacher ainda se encontrava em dificuldades no primeiro degrau; o 510 era ali perto. Abriu a porta. Uma pequena lâmpada de mesa revelou-lhe uma saleta de estar vazia. Fechou a porta suavemente. Hasselbacher ainda não tinha alcançado o patamar. Deixou-se ficar imóvel e ouviu os passos incertos e os soluços do Dr. Hasselbacher passarem em frente da porta e depois retrocederem. Wormold pensou: “Estou a sentir e a proceder como um espião. Isto é absurdo. Que explicação darei amanhã a Hasselbacher?”.

O quarto de dormir estava fechado e começou a dirigir-se para lá. Mas deteve-se. Deixai tranquilos os cães adormecidos! Se Hawthorne estava interessado nele, que fosse Hawthorne a descobri-lo por si próprio. Uma curiosidade acerca de Hawthorne induzia-o a fazer um exame minucioso ao quarto.

Na escrivaninha encontravam-se dois livros, exemplares idênticos dos Contos de Shakespeare, de Lamb. Num bloco, onde provavelmente Hawthorne anotara a agenda da entrevista, leu: “1. Salário; 2. Despesas; 3. Transmissão; 4. Charles Lamb; 5. Tinta.” Preparava-se para abrir o volume do Lamb quando uma voz disse:

- Mãos no ar. Arriba los manos,

- Las manos - corrigiu Wormold tranquilizando-se quando reconheceu Hawthorne.

- Oh, é você - fez Hawthorne.

- Venho um pouco atrasado. Desculpe. Estive com Hasselbacher.

Hawthorne vestia um pijama de seda lilás com o seu monograma. H.R.H., bordado no bolso. Isso conferia-lhe uma distinção principesca. Explicou:

-- Adormeci e depois ouviu-o andar por aqui. - Era como se tivesse sido surpreendido sem o calão; não tivera ainda tempo para vesti-lo juntamente com as roupas. Acrescentou: - Você mexeu no Lamb acusadoramente, como se fosse o tesouro da capela de um exército de salvação.

- Desculpe. Estava apenas a dar uma olhadela.

- Não tem importância. Isso revela que você possui a intuição profissional.

- Parece que tem particular interesse por este livro.

- Um dos exemplares é para si.

- Mas já o li - disse Wormold- há anos, e para lhe ser franco não gosto de Lamb.

- Não é para ler. Nunca ouviu falar de um livro de cifra?

- Para lhe ser franco, nunca.

- Num minuto lhe ensino como se maneja a coisa. Eu fico com um exemplar. Tudo quanto tem a fazer quando comunicar comigo é indicar a página e a linha onde começa a cifrar. Claro que a chave de uma máquina de cifra é mais difícil de descobrir, mas, tal como está, já é bastante para embaraçar um simples Hasselbacher.

- Gostaria que deixasse de pensar em Hasselbacher.

- Quando tiver o seu escritório convenientemente organizado e devidamente seguro - um cofre de segredo, rádio, pessoal treinado, todas as maquinetas -, nessa altura poderemos abandonar este método primitivo de cifra, mas, exceptuando um perito em criptografia, é mesmo assim muito difícil para qualquer descobrir a chave sem conhecer o nome e a edição do livro.

- Por que motivo escolheu Lamb?

- Foi o único livro de que pude encontrar dois exemplares, além da Cabana do Pai Tomás. Tinha pressa e precisava de arranjar alguma coisa na livraria antes de sair de Kingston. Oh, havia lá também uma coisa chamada A Lâmpada Acesa - Manual de Devoção Nocturna, mas pensei que poderia parecer estranho na sua estante, no caso de você não ser religioso.

- E de facto não sou.

- Trouxe-lhe também tinta. Tem alguma chaleira eléctrica?

- Sim. Porquê?

- Para abrir cartas. Desejamos que os nossos agentes estejam prevenidos para todas as eventualidades.

- Para que me trouxe a tinta? Tenho muita lá em casa.

- Tinta invisível, é claro. Para o caso de ter de utilizar-se da mala ordinária. A sua filha tem uma agulha de tricôt, não é verdade?

- Ela não faz tricot.

- Então terá de comprar uma agulha. É melhor de plástico. As de aço às vezes deixam marcas.

- Deixam marcas onde?

- Nos sobrescritos que você abrir.

- Para que diabo hei-de abrir sobrescritos com uma agulha?

- Pode tornar-se necessário abrir o correio do Dr. Hasselbacher. Claro que tem de arranjar um subagente nos correios.

- Recuso-me terminantemente ...

- Não crie dificuldades. Pedi para Londres informações dele. Depois de vir a resposta decidiremos este assunto da mala. Uma boa gorjeta - se lhe faltar a tinta use excrementos de pássaros, ou estou a andar demasiadamente depressa?

- Ainda nem lhe disse se aceitava ...

- Londres concorda com cento e cinquenta dólares mensais, mais outros cento e cinquenta para despesas, que terá de justificar, é claro. Pagamento aos subagentes, etc. Qualquer importância que exceda esta verba terá de ser autorizada especialmente.

- Você está a andar demasiadamente depressa.

- E não paga imposto de rendimento - acrescentou Hawthorne piscando astutamente o olho, gesto que não combinava com o monograma aristocrático.

- É preciso dar-me tempo ...

- O seu número de cifra é 59 200/5. - Acrescentou com orgulho.—Eu, claro, sou o 59 200. Você designará os seus subagentes por 59 200/5/1 e assim por diante. Apreendeu a coisa?

- Não vejo como lhe possa ser útil.

- Você é inglês, não é? - perguntou Hawthorne vivamente.

- Claro que sou inglês.

- E recusa-se a servir o seu país?

- Eu não disse isso. Mas os aspiradores levam-me muito tempo.

- São um excelente disfarce - afirmou Hawthorne. - Foi muito bem pensado. A sua profissão tem um ar natural.

- Bem, agora se não se importa - disse Hawthorne com firmeza -, voltamos de novo ao Lamb.

 

- Milly - reparou Wormold -, tu hoje não comeste cereais.

- Pus de parte os cereais.

- E deitaste apenas um torrão de açúcar no café. Não me digas que começaste a fazer dieta ...

- Não.

- Estás a fazer alguma penitência?

- Não.

- À hora do almoço vais sentir-te esfomeada.

- Já pensei nisso. Vou comer montes de batatas.

- Que se passa contigo, Milly?

- Vou fazer economias. Durante a noite pus-me a pensar na grande despesa que te causo. Era até como se uma voz me falasse e quase perguntei: “Quem está aí?” Mas receei ouvir dizer: “Sou o teu Senhor e o teu Deus.” Estou na idade, sabes.

- Idade de quê?

- De ouvir vozes. Sou mais velha do que Santa Teresa quando entrou no convento.

- Bem, não me vais contar que pensas ...

- Não, não penso nisso. Creio que o capitão Segura tem razão. Ele diz que eu não sou do género freira.

- Milly, sabes o que chamam ao capitão Segura?

- Sei. O Abutre Vermelho. Ele tortura os presos.

- Ele reconhece isso?

- Oh, ele comigo é muito bom, mas tem uma cigarreira feita de pele humana. Ele diz que é de carneira. Como se eu não soubesse reconhecer o que é carneira!

- Deves afastar-te dele, Milly.

- É o que penso fazer, mas tenho de conseguir primeiro a estrebaria para a Serafina. E, a propósito, isso recorda-me a voz.

- Que dizia a voz?

- Dizia ... claro que no meio da noite parecia mais apocalíptica: “Minha menina, mordeste mais do que podes mastigar. E o Country Club?”

- E o Country Club?

- É o único lugar onde tenho qualquer possibilidade de fazer equitação, e nós não somos sócios. De que serve um cavalo numa estrebaria? Claro que o capitão Segura é sócio, mas eu sei que tu não queres que eu aceite favores dele. Assim pensei que se pudesse ajudar a diminuir as despesas com a casa fazendo jejuns ...

- Para quê ...?

- Bem, talvez assim houvesse a possibilidade de nos tornarmos sócios. Peço-te que me inscrevas como Serafina. É um nome mais próprio que Milly.

Pareceu a Wormold que tudo quanto ela dizia era sensato; era Hawthorne quem pertencia ao mundo cruel e inexplicável das crianças.

 

INTERLÚDIO EM LONDRES

Na cave de um grande edifício de cimento armado situado perto de Maia Vale uma luz colocada por cima de uma porta mudou de vermelha para verde e Hawthorne entrou. Tinha deixado a sua elegância nas Caraíbas e vestia um fato de flanela cinzenta já bastante usado. Na pátria não necessitava de salvar as aparências: estava integrado no Janeiro pardacento de Londres.

O chefe sentava-se por detrás de uma secretária onde um descomunal pisa-papéis de mármore verde prensava uma única folha de papel. Havia ainda um copo de leite meio bebido, um frasco de pílulas cinzentas e uma caixa de papel crepe ao lado do telefone negro. (O vermelho era um dictafone privado.) O casaco negro, a gravata preta e o negro monóculo que lhe escondia o olho esquerdo davam-lhe a aparência de um cangalheiro, tal como a sala subterrânea lembrava um sepulcro, um jazigo, uma sepultura!

- Precisa de mim, Sir?

- Só para uma palavrinha, Hawthorne. Só para uma palavrinha. - Era como se um gato-pintado se pusesse a falar sombriamente no fim de um dia de trabalho. - Quando chegou, Hawthorne?

- Há uma semana, Sir. Regresso à Jamaica na sexta-feira.

- Tudo bem?

- Parece-me que temos agora completa a rede das Caraíbas, Sir.

- Martinica?

- Nenhumas dificuldades aí. Em Fort-de-France trabalhámos em colaboração com o Deuxième Bureau.

- Só até certo ponto.

- Oh, sim, claro, só até certo ponto. Haiti era um problema mais grave, mas 59 200/2 está a demonstrar qualidades. A princípio tive algumas dúvidas acerca do 59 200/5.

- Traço 5?

- O nosso agente em Havana, Sir. Não tinha muito por onde escolher e ele a princípio não parecia muito interessado em aceitar a missão. Um pouco teimoso.

- Esses indivíduos às vezes tornam-se nos melhores agentes.

- Sim, senhor. Também me preocupavam um pouco as suas relações. Há um alemão chamado Hasselbacher, mas ainda nada conseguimos encontrar a respeito dele. De qualquer forma parece que se vai desembaraçando. Recebemos um pedido para autorização de despesas extraordinárias quando me preparava para partir de Kingston.

- É sempre um bom sinal.

- Sim, senhor.

- Revela que a imaginação se pôs a trabalhar.

- Claro. Ele queria tornar-se membro do Country Club. É um covil de milionários, como pode calcular. A melhor fonte para colher informações de carácter político e económico. A jóia é caríssima, dez vezes mais cara do que a do White, mas eu consenti.

- Fez muito bem. Que tal os relatórios do homem?

- Bem, na verdade, ainda nenhum recebemos, mas, é claro, leva tempo a estabelecer contactos. Talvez eu lhe tenha dado uma ideia excessiva da necessidade de ser prudente.

- A prudência nunca é excessiva! De nada serve um fio eléctrico se os fusíveis se fundem.

- Dá-se o caso de o homem estar bem colocado. Bons contactos comerciais, alguns com funcionários do Governo e ministros.

- Ah!—exclamou o chefe.

Tirou o monóculo e pôs-se a poli-lo com uma folha de papel crepe. O olho agora a descoberto era de vidro, de um azul-porcelana que não enganava e que parecia tirado da órbita de uma daquelas bonecas que dizem mamã.

- Em que negoceia o nosso homem?

- Oh, importação. Máquinas, coisas desse género. É conveniente para a própria organização empregar agentes que sejam homens de posição social relevante. - Os detalhes mesquinhos do arquivo secreto respeitante à lojeca de Lamparilla Street nunca, em circunstâncias ordinárias, desceriam a esta sala.

- Por que motivo não era ele já sócio do Country Club?

- Bem, ele tem levado uma vida muito retirada nestes últimos anos! Complicações domésticas.

- Espero que ele não seja um femeeiro!

- Oh, nada disso. A esposa abandonou-o. Fugiu com um americano.

- Conto que ele não seja antiamericano. Havana não é local para desenvolver esses preconceitos. Temos de colaborar com os Americanos. Só até certo ponto, claro.

- Não, ele não é desse género. É um homem de espírito muito aberto, muito equilibrado. Aceitou bem o divórcio e tem a filha num colégio católico para respeitar os desejos da mulher. Informaram-me de que pelo Natal lhe envia um telegrama de saudações. Creio que os seus relatórios serão cem por cento dignos de confiança.

- Bastante tocante a atitude dele para com a filha, Haw-thorne. Bem, vamos dar-lhe uma oportunidade de demonstrar o que vale. Se ele for tudo isso que você diz, poderíamos pensar em aumentar o seu pessoal. Havana pode tornar-se numa posição-chave. Os comunistas aparecem sempre onde há perturbações. De que via se serve ele para comunicar?

- Preparei as coisas para ele enviar os relatórios para Kingston pela mala semanal, em duplicado. Fico com uma cópia e remeto a outra para Londres. Dei-lhe um livro de cifras para telegramas. Remete-os através do consulado.

- Lá não vão gostar disso.

- Eu assegurei-lhes que era um arranjo temporário.

- Inclino-me para a instalação de um posto emissor se ele provar ser competente. Acha que se poderá aumentar o quadro do seu pessoal de escritório?

- Oh, claro! Pelo menos... bem, compreende, Sir, não se trata de um grande escritório. Um pouco antiquado. Sabe como estes negociantes aventureiros fazem as coisas.

- Conheço perfeitamente a espécie, Hawthorne. Pequena secretária insignificante. Meia dúzia de homens numa sala feita para comportar dois. Máquinas de calcular de modelo antiquado. Uma dactilógrafa que trabalha há quarenta anos para a firma.

Hawthorne descontraiu-se. Afinal o chefe estava lançado. Mesmo que um dia lesse a ficha secreta de Wormold, as palavras nenhum significado teriam para ele. A pequena lojeca de aspiradores fora afogada pela enchente da imaginação literária do chefe. Para ele o agente 59 200/5 estava definitivamente identificado.

- Tudo isso faz parte da personalidade do homem - explicou o chefe a Hawthorne, como se ele, e não Hawthorne, tivesse cruzado os umbrais da pequena loja de Lamparilla Street. - Um homem que se habituou a economizar os dinheiros e a arriscar as libras, foi esta a razão por que ainda não era sócio do Country Club. O seu fracasso matrimonial em nada interferiu. Você é um romântico, Hawthorne. As mulheres passaram pela vida dele, mas nunca se interessou muito por elas; vivia para o trabalho. O segredo da utilização eficaz de um agente está em compreendê-lo. O nosso agente em Havana pertence - pode afirmá-lo - à era de KinHnír. Convivendo com reis - onde nos pode levar isso? -, mas conservando-se virtuoso e simples. Creio que alsjures na sua secretária suja de tinta se esconde o velho diário de cana de oleado onde ele lançou as suas primeiras contas: três dúzias de borrachas, seis caixas de aparos ...

- Não creio que ele seja tão antiquado que ainda use aparos, Sir.

O chefe suspirou e voltou a colocar o monóculo. O olho de vidro escondeu-se ao primeiro vislumbre de oposição.

- Os pormenores pouco importam, Hawthorne - disse o chefe com impaciência. - Mas se quer lidar com ele eficazmente, tem de descobrir o velho diário de capa de oleado. Falo metaforicamente, é claro.

- Compreendo, Sir.

- Essa ideia de que a sua misantropia é devida a ter perdido a esposa é uma apreciação incorrecta dos factos, Hawthorne. Um homem como ele reage de forma diferente. Não acusa o golpe, não traz o coração na boca. Se a sua apreciação fosse correcta, por que motivo não era ele sócio do Countrv Club antes de a esposa morrer?

- Ela não morreu, abandonou-o.

- Abandonou-o? Tem a certeza?

- Absoluta, Sir.

- Ah, vê-se bem que ela nunca encontrou o livrinho de capa de oleado. Encontre-o você, Hawthorne, e o homem é seu. De que estávamos a falar?

- Das dimensões do escritório. Não lhe será muito fácil meter lá dentro mais pessoal.

- Despachamos gradualmente os que lá estão. Reforme a dactilógrafa ...

- Para falar francamente ...

- Claro, isto são apenas hipóteses, Hawthorne. Pode ser que afinal de contas o homem não nos convenha. São gente teimosa, esses velhos reis da finança, mas às vezes conseguem ver para além da casa-forte o bastante para serem úteis a pessoas como nós. Avaliaremos pelos seus primeiros relatórios, mas convém ir planeando o próximo movimento. Fale com Miss Jenkinson e veja se ela dispõe de alguma funcionária que fale espanhol.

Hawthorne subiu no elevador, andar por andar, desde a cave: uma visão fulminante do Mundo! A Europa ocidental ficou para baixo; depois o Próximo Oriente; finalmente chegou à América Latina. Os ficheiros rodeavam Miss Jenkinson como pilares de um templo em torno de um oráculo a envelhecer. Somente ela entre todos os habitantes do edifício era designada pelo apelido familiar. Os outros eram todos, por inescrutáveis motivos de segurança, conhecidos pelos nomes próprios. Ditava a uma secretária quando Hawthorne entrou: “Memorando para A. O.: Angélica foi transferida para C. 5 com aumento de salário de oito libras por semana. É favor providenciar para que este aumento entre em vigor imediatamente. Para prevenir as suas objecções recordo que Angélica só agora se aproxima do nível económico de uma condutora de autocarros.”

- Sim?—perguntou Miss Jenkinson asperamente.- Sim?

- O chefe mandou-me vir ter consigo.

- Não tenho ninguém disponível.

- Não queremos ninguém neste momento. Estamos apenas a estudar as possibilidades.

- Ethel, querida, telefone para V. 2 e diga que não retenho o meu pessoal depois das sete horas da tarde, a menos que se verifique que um estado de emergência nacional. Se rebentar ou se estiver iminente uma guerra, peça-lhes então que informem a Repartição das Secretárias.

- Talvez necessitemos de uma secretária que fale espanhol para as Caraíbas.

- Não tenho nenhuma disponível - respondeu Miss Jenkinson mecanicamente.

- Havana, ponto turístico, clima agradável.

- Quantos agentes lá existem?

- Por enquanto temos lá apenas um homem.

- Pois isto aqui não é uma agência matrimonial - replicou Miss Jenkinson.

- O homem é de meia-idade e tem uma filha de dezasseis anos.

- Casado?

- Pode dizer-se que sim - respondeu Hawthorne vagamente.

- Estável?

- Estável!

- Sim, estável, digno de confiança, respeitador, emocionalmente tranquilo?

- Oh, sim, sim, pode estar certa disso. É um desses comerciantes do tipo antigo. - Desenvolveu o retrato que o chefe estivera a desenhar. - Montou os seus negócios a partir do zero. Desinteresse absoluto por mulheres. Pode dizer-se que ultrapassou a fase sexual.

- Nunca se ultrapassa a fase sexual - afirmou Miss Jenkinson. - Sou responsável pelas raparigas que mando para fora de Inglaterra.

- Pensava que não dispunha de ninguém agora.

- Bem - disse Miss Jenkinson. - Posso talvez, sob certas condições, ceder-vos Beatrice.

- Beatrice, Miss Jenkinson! —exclamou uma voz por detrás dos ficheiros.

- Foi o que eu disse, Ethel, e foi o que eu quis dizer.

- Mas, Miss Jenkinson ...

- Beatrice precisa de alguma experiência. É isso realmente tudo quanto lhe falta. O lugar convém-lhe, já não é muito nova. Adora crianças.

- O que é preciso - informou Hawthorne - é alguém que fale espanhol. Não é essencial adorar crianças.

- Beatrice é meia francesa. Fala até o francês melhor que o inglês.

- Mas eu disse espanhol.

- É tudo a mesma coisa; são línguas latinas!

- Talvez possa vê-la, trocar impressões com ela! Já completou o adestramento?

- É muito boa em cifra e terminou um curso de micro-fotografia em Ashley Park. É má estenógrafa, mas excelente dactilógrafa. Conhece também electrodinâmica.

- Que quer dizer isso?

- Quer dizer que uma caixa de fusíveis não tem segredos para ela.

- Nesse caso deve saber lidar com aspiradores eléctricos?

- Ela é secretária, não é mulher-a-dias.

A gaveta de um dos ficheiros fechou-se com estrondo.

- É pegar ou largar -, disse Miss Jenkinson.

Hawthorne teve a impressão de que no fundo a velha considerava Beatrice como uma “coisa”.

- É a única que me pode dispensar?

- A única.

Voltou a ouvir-se uma gaveta fechar-se com violência.

- Ethel - advertiu Miss Jenkinson -, a menos que aprenda a desabafar menos ruidosamente, mando-a voltar para D. 3.

Hawthorne afastou-se pensativamente; tinha a impressão de que Miss Jenkinson, com notável habilidade, lhe tinha oferecido como boa qualquer coisa em que ela própria não acreditava: coelho por lebre, em suma!

 

Wormold saiu do consulado trazendo um telegrama no bolso interior do casaco. Tinham-lho atirado rudemente, e quando pretendeu falar interromperam-no.

- De nada disso queremos saber. É um arranjo temporário. Quanto mais depressa terminar melhor será para nós.

- Mister Hawthorne disse ...

- Não conhecemos nenhum Hawthorne. É favor lembrar-se disso. Ninguém com esse nome está cá empregado. Bons dias.

Dirigiu-se para casa. A extensa cidade prolongava-se ao longo do Atlântico; as vagas vinham quebrar-se sobre a Avenida de Maceo orvalhando os pára-brisas dos automóveis. Os pilares cor-de-rosa, cinzentos e amarelos do que outrora fora o bairro aristocrático estavam roídos como rochas; um antigo brasão, manchado e disforme, ornamentava a entrada de um hotel manhoso e as janelas de um clube nocturno tinham sido pintadas a cores brilhantes e claras para protegê-las da humidade e do sal marinho. Para o ocidente os arranha-céus da cidade nova erguiam-se mais altos que faróis no céu claro de Fevereiro. Era uma cidade que se visita, não uma cidade em que se viva, mas era a cidade onde Wormold se apaixonara pela primeira vez e sentia-se ligado a ela como nos sentimos presos ao local onde sucedeu um desastre. O tempo torna poético um campo de batalha, e talvez Milly fosse como a flor nascida na antiga trincheira onde um ataque fora repelido com pesadas baixas muitos anos atrás. Mulheres cruzavam-se com ele nas ruas com a testa manchada de cinzas como se acabassem de sair debaixo da terra. Lembrou-se então de que era Quarta-Feira de Cinzas.

A despeito de ser feriado escolar, Milly não se encontrava em casa quando ele lá chegou - talvez estivesse ainda na missa ou então a fazer equitação no Country Club.

López fazia uma demonstração com o aspirador Turbo-Sucção à governanta de um padre que tinha rejeitado o Pilha Atómica. Os temores de Wormold relativamente ao novo modelo justificavam-se, pois não conseguira vender até então uma única unidade. Subiu ao andar superior e abriu o telegrama; estava endereçado a uma repartição do consulado inglês e os números que constituíam o texto tinham um aspecto rebarbativo, como o dos bilhetes da lotaria que ficam por vender em vésperas do sorteio. Começava por um 2674 e seguia-se-lhe um rosário de números de cinco algarismos: 42811, 79 145, 72 312, 59 200, 80 947, 62 533, 10 605 e assim por diante. Era o seu primeiro telegrama e reparou que fora enviado de Londres. Não tinha a certeza de ser capaz de decifrá-lo (a lição de cifra fora já há tanto tempo!), mas reconheceu um dos números, o 59 200, que aparecia no texto abrupta e admoestadoramente como se o próprio Hawthorne nesse momento surgisse, acusador, no cimo das escadas. Pegou tristemente nos Contos de Shakespeare, de Lamb - como detestara sempre Elia e o Ensaio sobre o porco Assado! O primeiro grupo de algarismos - recordava-se - indicava a página, a linha e a palavra em que principiava a cifra. “Dioní-sia, a malvada esposa de Cleonte —leu Wormold-, encontrou um fim adequado aos seus próprios merecimentos.” Começou a decifrar a partir de “merecimentos”. Com grande surpresa sua principiou a surgir realmente qualquer coisa. Era como se um papagaio começasse de repente a falar com sentido. “Nº 1, de 24 de Janeiro, remetido por 59 200, princípio da mensagem, parágrafo A.”

Depois de trabalhar durante três quartos de hora adicionando e subtraindo, tinha decifrado toda a mensagem, excepto o parágrafo final, onde qualquer coisa não estava certa, fosse por culpa dele, fosse por culpa do 59 200, ou então por culpa do próprio Charles Lamb. “Remetido por 59 200, princípio da mensagem, parágrafo A. Cerca um mês desde aprovação inscrição Country Club e nenhuma, repito, nenhuma informação foi ainda recebida concernente recrutamento subagentes stop Confiamos não repito nenhuns subagentes recrutará antes adequada investigação acerca mesmos stop Princípio parágrafo B relatório económico e político nos termos, do questionário em seu poder deve ser despachado imediatamente para 59 200 stop Princípio do parágrafo C Maldito aalão deve ser enviado Kingston tuberculose primária fim da mensagem.”

O último parágrafo produzia um efeito de terrível incoerência que alarmou Wormold. Pela primeira vez lhe ocorreu que aos olhos deles - quem quer que fosse - tinha recebido dinheiro em troca de nada. Esse pensamento perturbou-o. Até então quisera convencer-se de que tinha sido o donatário de uma oferta excêntrica que permitiria a Milly fazer equitação no Country Club e a ele próprio mandar vir de Inglaterra uns livros que há muito desejava. O resto do dinheiro estava agora depositado no banco; quase acreditava que um dia estaria em situação de devolver a Hawthorne tudo quanto recebera.

Pensou: “Tenho de fazer qualquer coisa, fornecer-lhes alguns nomes para investigarem, recrutar um agente, mantê-los satisfeitos.” Recordou-se de como Milly brincava às lojas e costumava entregar-lhe o dinheiro em troca de compras imaginárias. Qualquer pessoa podia entrar no jogo, mas mais cedo ou mais tarde Milly acabava sempre por reclamar a devolução do seu dinheiro.

Pôs-se a imaginar como se recrutaria um agente. Tornava-se difícil para ele recordar como Hawthorne o tinha recrutado a ele, excepto que tudo principiara num mictório, mas isso não era com certeza um aspecto essencial. Decidiu principiar com um caso razoavelmente simples.

- Chamou-me, senor Vormell? - por um motivo qualquer o nome de Wormold estava para além do poder da pronúncia de López, mas como parecia incapaz de se fixar num substituto satisfatório, era raro chamar Wormold duas vezes pelo mesmo nome.

- Preciso de lhe falar, López.

- Si, senor Vomell.

- Há muitos anos que você está ao meu serviço. Temos confiança um no outro.

López exprimiu a profundidade da sua confiança com um gesto dirigido ao coração.

- Gostaria de ganhar um pouco mais, não é verdade?

- Claro, naturalmente... Ia mesmo falar-lhe no assunto, senor Ommel. Espero um filho. Talvez vinte pesos?

- O aumento nada tem que ver com a firma. O negócio vai muito mau. Trata-se de um trabalho confidencial, Para mim, compreende?

- Ah, sim, senor. Serviços pessoais, percebo. Pode confiar em mim. Sou discreto. Nada direi à senorita.

- Suponho que você não compreendeu.

—- Quando um homem atinge uma certa idade - prosseguiu López - já não tem paciência para conquistar mulheres, não quer incómodos. Prefere dizer: “Esta noite sim, amanhã à noite não!” Quer dar as suas ordens a alguém de confiança ...

- Não é isso, não é nada disso. O que eu queria dizer ... bem, nada tem que ver com ...

- Não deve sentir-se embaraçado por falar comigo, senor Vormole. Há muitos anos que nos conhecemos.

- Está enganado - disse Wormold. - Não tenho intenção ...

- Compreendo que para um inglês na sua posição não convém os lugares como São Francisco. Nem mesmo o Mamba Club.

Wormold sabia que nada do que pudesse dizer seria capaz de quebrar a eloquência do seu empregado, agora embalado no grande assunto de Havana; as relações sexuais não eram apenas o principal comércio da cidade, nem a própria razão de ser da vida do homem: vendia-se ou comprava-se sexo - ser imaterial mas nunca ausente!

- Um jovem precisa de variedade - dizia López -, mas um homem de certa idade também dela necessita. Para o jovem é a curiosidade da ignorância, para o velho é o apetite que carece de ser excitado. Ninguém o pode servir melhor do que eu, senor Venell, pois estudei-o durante muito tempo. O senhor não é cubano: para si a forma do traseiro de uma rapariga tem menos importância que uma certa delicadeza de trato ...

- Você está a fazer uma confusão tremenda - disse Wormold.

- A senorita vai esta noite a um concerto.

- Como o sabe?

López ignorou a pergunta.

- Enquanto ela estiver ausente trago-lhe uma jovem para ver. Se não gostar dela, arranjo-lhe outra.

- Você não vai fazer nada disso. Não são serviços dessa espécie que eu pretendo, López. Eu quero... bem, eu quero que você conserve os olhos e os ouvidos bem abertos e me venha contar ...

- O que faz a senorita?

- Santo Deus, não!

- Contar então o quê, senor Vormold?

Wormold principiou:

- Bem, factos como ... - mas não tinha a menor ideia dos factos que López poderia relatar. Lembrava-se de alguns quesitos do longo questionário e nenhum deles lhe pareceu apropriado: “Possível infiltração comunista nas forças armadas. Personalidades importantes da produção do café e tabaco no ano passado.” Claro que havia os cestos de papéis nas casas onde López ia reparar os aspiradores, mas certamente o próprio Hawthorne fazia espírito quando falou no caso Dreyfus - se é que esses homens fazem alguma vez espírito.

- Como quê, senor?

Wormold suspirou:

- Depois lhe digo. Agora é melhor voltar para a loja.

 

Era a hora do daiquiri, e no Wonder Bar o Dr. Hasselbacher ia alegremente no seu segundo whisky.

- Sempre preocupado, Mister Wormold? - perguntou ele.

- Sim, sempre preocupado.

- Ainda o aspirador atómico?

- Não, não é o aspirador. - Despejou o daiquiri e pediu outro.

- Está a beber muito depressa hoje.

- Hasselbacher, já alguma vez sentiu falta de dinheiro? Mas, mesmo que tenha sentido, você não tem uma filha.

- Dentro de poucos anos você não terá igualmente a filha.

- Creio bem. - O conforto era tão frio como o daiquiri. - Quando chegar esse momento, Hasselbacher, desejo estar com ela bem longe daqui. Não quero ver Milly nas garras de qualquer capitão Segura.

- Isso posso eu compreender.

- No outro dia ofereceram-me dinheiro.

- Sim?

- Para obter informações.

—-Que espécie de informações?

- Informações secretas.

O Dr. Hasselbacher suspirou e disse:

- É um homem de sorte, Mister Wormold. Essa espécie de informações é sempre fácil de dar.

- Fácil?

- Se é secreta, só você o sabe. Tudo quanto precisa é de um pouco de imaginação, Mister Wormold.

- Eles querem que eu recrute agentes. Como se faz isso, Hasselbacher?

- Pode inventá-los também, Mister Wormold.

- Parece que você tem experiência.

- A medicina é a minha experiência, Mister Wormold. Já leu os anúncios de remédios secretos? Um tónico capilar revelado pelo chefe moribundo de uma tribo indiana. Num remédio secreto não temos que imprimir a fórmula. E nas coisas secretas existe algo que faz as pessoas crerem ... talvez uma sobrevivência da velha magia. Já leu Sir James Frazer?

- Já ouviu falar num livro de cifra?

- Não me revele demasiadas coisas, Mister Wormold. O secreto não me interessa - eu não tenho filhas. Por favor, não me invente como seu agente.

- Não, não posso fazer isso. Essa gente não aprecia a nossa amizade. Querem que me afaste de si. Estão a investigar a seu respeito. Sabe como é que eles investigam a vida de uma pessoa?

- Não, não sei. Tenha cautela, Mister Wormold. Receba o dinheiro que eles lhe pagam, mas nada lhes dê em troca. Você é vulnerável aos Seguras. Limite-se a mentir e conserve-se livre. Eles não merecem outra coisa.

- Que quer dizer com “eles”?

- Reinos, repúblicas, poderes. - Esvaziou o copo. - Tenho de ir dar uma vista de olhos à minha cultura, Mister Wormold.

- Ainda nada sucedeu?

- Felizmente não. Enquanto nada acontecer, tudo é possível. É pena, por exemplo, que a lotaria ande à roda. Perco cento e quarenta mil dólares por semana, e sou homem pobre.

- Não se esqueça dos anos de Milly.

- Talvez as conclusões do inquérito à minha pessoa sejam desfavoráveis e já não deseje então a minha companhia. Mas não se esqueça: enquanto se limitar a mentir nenhum mal faz.

- Eu recebo o dinheiro deles.

- O dinheiro deles! Eles não têm outro dinheiro senão o que tiram a homens como você e como eu!

Empurrou o guarda-vento e partiu. O Dr. Hasselbacher nunca falava em termos de moral; isso estava fora dos domínios de um doutor.

 

Wormold descobriu uma lista de sócios do Country Club no quarto de Milly. Sabia onde procurá-la, entre o último volume do Horsewoman's Year Book e uma novela chamada Égua Branca, por Miss Pony Tragers. Tinha-se inscrito no Country Club para recrutar agentes úteis, e aqui estavam todos eles em coluna dupla, espalhados por vinte páginas. O seu olhar descobriu um nome anglo-saxão: Víncent C. Park-man; era provavelmente o pai de Earl. Este facto parecia a Wormold tornar perfeitamente natural e justo recrutá-lo.

Quando se sentou para cifrar a mensagem, tinha escolhido dois outros nomes: um tal engenheiro Cifuentes e um professor Sánchez. O professor, fosse porque fosse, parecia um candidato razoável para informador de assuntos económicos, o engenheiro podia prover informações técnicas e Mr. Park-man tinha a seu cargo a política. Com os Contos de Shakespeare abertos diante dele (tinha escolhido para chave a passagem “possa aquilo que se segue ser feliz”), cifrou: “Nº 1, de 25 de Janeiro, principia parágrafo A. Recrutei meu empregado atribuindo-lhe o símbolo 59 200 /5/1 stop Proponho pagamento quinze pesos mensais stop Principia parágrafo B favor investigar os seguintes ...”

Toda esta divisão em parágrafos parecia a Wormold um extravagante desperdício de tempo e dinheiro, mas Hawthorne afirmara-lhe que isso fazia parte dos regulamentos. Tal como Milly, que insistia, quando brincava às lojas, em embrulhar todos os artigos que vendia, mesmo que se tratasse de um simples berlinde! “Principia parágrafo C. O relatório económico pedido segue brevemente pelo correio.”

Nada mais havia a fazer senão esperar as respostas e preparar o relatório económico. Este preocupava-o. Tinha mandado comprar por López todas as publicações oficiais que versassem matéria relativa às indústrias de açúcar e café - fora a primeira missão de López, e agora passava horas lendo os jornais locais a fim de assinalar qualquer passagem que pudesse ser atribuída ao professor ou ao engenheiro; não era natural que em Kingston ou Londres alguém se dedicasse a examinar os jornais de Havana. Wormold descobriu mesmo um mundo diferente nessas páginas; talvez que o quadro que até então formara do mundo dependesse excessivamente do New York Times e do Herald Tribune. Na esquina do Won-der Bar uma rapariga morreu esfaqueada: “Uma mártir do amor.” Havana estava cheia de mártires das mais diversas espécies. Um homem perdeu numa só noite uma fortuna jogando no Tropicana; subiu ao palco, beijou a cantora negra e depois atirou-se com o carro para a baía e afogou-se. Outro homem conseguiu laboriosamente enforcar-se nos suspensórios. Havia também milagres: uma virgem chorou lágrimas salgadas e uma vela acesa diante de Nossa Senhora de Guadalupe ardeu inexplicavelmente durante uma semana inteira, de sexta-feira a sexta-feira. De todo este quadro de violência, paixão e amor as vítimas do capitão Segura eram as únicas excluídas: sofriam e morriam sem a publicidade dos jornais.

O relatório económico era uma tarefa aborrecida, pois Wormold nunca aprendera a utilizar a máquina de escrever com mais de dois dedos nem sabia usar o tabulador. Era necessário alterar as estatísticas oficiais, não fosse alguém comparar os relatórios do Governo e os do agente, e algumas vezes esquecia-se das alterações que fazia. Somar e subtrair não eram o seu forte. Uma vírgula decimal colocada fora do alinhamento teve de ser caçada por doze colunas. Era quase como guiar um carro em miniatura numa pista caça-moedas.

Decorrida uma semana começou a preocupar-se com a falta de notícias. Teria Hawthorne farejado o logro? Mas sentiu-se temporariamente encorajado por uma convocação para aparecer no consolado, onde o desagradável funcionário lhe entregou um sobrescrito lacrado endereçado, por qualquer motivo que não conseguia alcançar, a “Mr. Luke Penny”. Dentro do sobrescrito havia outro para “Henry Leadbetter. Serviços Civis de Pesquisas”; o terceiro sobrescrito, dirigido a 59 200/5, continha três meses de vencimentos e despesas em dinheiro cubano. Encaminhou-se para o banco em Obispo.

- Conta da firma, Mister Wormold?

- Não. Conta pessoal. - Mas enquanto o caixa contava o dinheiro, ele sentia-se tão culpado como se tivesse cometido “um desfalque.

 

Dez dias passaram sem que lhe chegasse qualquer notícia. Nem sequer podia remeter o relatório sobre assuntos económicos enquanto o agente imaginário que o fornecia não fosse objecto de um inquérito e admitido. Chegou a época de fazer a sua visita anual às agências fora de Havana, em Matanzas, Cienfuegos, Santa Clara e Santiago. Estava habituado a fazer a viagem por estrada, no seu velho Hillman. Antes de partir enviou um telegrama a Hawthorne: “Sob pretexto inspeccionar subagências de aspiradores proponho investigar possibilidades recrutamento agentes porto de Matanzas, centro industrial de Santa Clara, quartéis da armada em Cienfuegos e centro dissidente de Santiago, calculando despesas viagem cinquenta dólares por dia.” Beijou Milly, fê-la prometer que não aceitaria boleias do capitão Segura enquanto ele estivesse ausente e partiu ruidosamente para uma bebida de despedida no Wonder Bar com o Dr. Hasselbacher.

 

Uma vez por ano, e sempre durante a sua pequena viagem, Wormold escrevia a sua irmã mais nova, que habitava em Northampton. (Talvez porque escrevendo a Mary minorava as saudades que sentia de Milly.) Invariavelmente incluía também para o sobrinho os mais recentes selos de correio de Cuba. O rapazito tinha começado a coleccionar selos quando ia nos 6 anos, e de algum modo, com o galopar do tempo, Wormold nunca compreendeu que o sobrinho era actualmente um homem e que provavelmente há muito tinha desistido da sua colecção. De qualquer maneira, era demasiadamente crescido para a espécie de nota que Wolmore escreveu no papel onde embrulhou os selos, nota que seria excessivamente juvenil mesmo para Milly!

“Caro Mark - escreveu Wormold -, aqui vão alguns selos para a tua colecção. Actualmente já deve ser mesmo uma grande colecção. Receio que estes tenham pouco interesse. Gostaria que houvesse em Cuba pássaros, bichos ou borboletas tão bonitos como aqueles da Guatemala que me mostraste há tempos. - Teu afectuoso tio. - P. S. Estou sentado a olhar para o mar e faz muito calor.”

A sua irmã escreveu mais explicitamente: “Estou sentado em frente da baía de Cienfuegos e a temperatura está acima dos noventa, embora já se tenha posto o Sol há mais de uma hora. No cinema vai um filme de Marilyn Monroe e na baía está um navio com um nome bastante singular, Juan Belmonte. (Lembras-te daquele Inverno em Madrid quando fomos aos touros?) O primeiro-maquinista —penso que o sujeito é o primeiro-maquinista - está sentado numa mesa vizinha bebendo brandy espanhol. Não tem outro remédio senão ir ao cinema. Este porto deve ser um dos mais sossegados do -Mundo. Só uma rua amarela e rosa, algumas tabernas, a grande chaminé de uma refinação de açúcar e, ao fundo de um caminho inundado de folhas de tabaco, balouça o Juan Belmonte. De qualquer modo gostaria de poder partir nele com a Milly, mas não sei quando será possível. Os aspiradores têm pouca venda - a energia eléctrica é uma utilidade incerta nestes dias perturbados. A noite passada, em Matan-zas, faltou a luz por três vezes - da primeira encontrava-me eu no banho. Bem, isto são tolices sem importância.

Não penses que me sinto infeliz. Há muito que dizer a favor deste lugar. Algumas vezes tenho até receio de regressar a Inglaterra, entrar nos seus armazéns e cafés, e sinto que seria um estranho mesmo no White Horse. O primeiro-maquinista tem agora com ele uma rapariga - espero que em Matanzas tenha outra: está a deitar-lhe brandy pelas goelas abaixo como quem dá remédio a um gato. A luminosidade aqui é maravilhosa no momento em que o Sol entra no ocaso: uma grande pérola de ouro onde as gaivotas parecem manchas negras sobre a esfera entumecida. A grande estátua no Paseo que à luz do dia lembra a rainha Vitória não passa agora de um montão de ectoplasma. Os engraxadores arrumaram as caixas debaixo das cadeiras sob o peristilo: agora estou sentado com os pés apoiados em dois cavalos-marinhos de bronze que ornamentam a balaustrada do bar e que bem podiam ter sido trazidos para cá por algum fenício. Porque me sinto tão nostálgico? Talvez porque tenho agora umas economias e porque em breve terei de me decidir a partir para sempre. Po-nho-me a pensar se Milly se adaptará a um curso de escrituração comercial numa rua cinzenta de Londres.

Como passa a tia Alice e a sua famosa cera nos ouvidos? E o tio Eduardo? Ou já morreu? Cheguei à altura da vida em que nem se dá pela morte dos parentes.”

Pagou a conta e perguntou o nome do primeiro-maquinista - lembrou-se de que devia fixar alguns nomes para no regresso poder justificar as suas despesas.

 

Em Santa Clara o seu velho Hillman foi-se abaixo como uma mula cansada. Havia qualquer avaria séria e somente Milly seria capaz de diagnosticá-la. O mecânico declarou-lhe que as reparações levariam alguns dias e Wormold decidiu ir para Santiago utilizando o autocarro. De qualquer modo, talvez fosse mais prudente e rápido este meio de tansporte, pois na província do Oriente, onde os rebeldes dominavam as montanhas e as tropas do Governo as estradas e as cidades, os obstáculos são frequentes e os autocarros estavam menos sujeitos a ser retidos do que os carros particulares.

Chegou a Santiago ao anoitecer, nessas horas vazias e perigosas de um recolher tacitamente respeitado. Todas as lojas das arcadas da Catedral estavam encerradas. Um par solitário passou a correr em frente do hotel; a noite estava quente e húmida e as copas das árvores flutuavam pesadamente na luz pálida dos candeeiros mortiços. Na recepção do hotel olharam-no com desconfiança, como se suspeitassem estar na presença de qualquer espião. Sentiu-se um impostor, visto que este hotel era o pouso habitual dos verdadeiros espiões, da polícia política e dos agentes revolucionários. Na obscuridade do bar um bêbedo falava incessantemente como se estivesse repetindo no estilo de Gertrude Stein: “Cuba é Cuba, é Cuba.”

Wormold jantou uma omeleta ressequida e queimada como um velho manuscrito e bebeu vinho azedo. Enquanto comia escreveu num postal algumas linhas para o Dr. Hasselbacher. Sempre que saía de Havana enviava a Milly, ao Dr. Hasselbacher, e às vezes mesmo a López, postais com péssimas fotografias de péssimos hotéis com uma cruz numa das janelas, no género da que nas histórias policiais assinala o local onde o crime foi praticado. “O carro avariou-se. Tudo muito tranquilo, i Espero estar de regresso na terça-feira.” Um postal ilustrado é um sintoma de solidão.

Às nove horas Wormold saiu para procurar o seu representante. Esquecera-se de que as ruas de Santiago se encontravam desertas depois do escurecer. Os guarda-sóis estavam fechados por detrás das grades de ferro e, como uma cidade ocupada, as casas voltavam as costas aos transeuntes. À porta de um cinema havia uma luz frouxa, mas ninguém lá entrava; o dono era obrigado por lei a conservá-lo aberto, mas à noite era frequentado somente por algum polícia ou soldado de folga. Wormold viu uma patrulha militar afastar-se por uma viela transversal.

Sentou-se com o seu representante num cubículo quente. Uma porta abria-se para o pátio, onde se via uma palmeira e a abertura de uma cisterna com ornamentos de ferro forjado, mas o ar lá fora estava tão quente como dentro de casa. Sentaram-se defronte um do outro, em cadeiras de balanço, balouçando em sentidos opostos para provocar pequenas correntes de ar.

O negócio ia mal, ninguém adquiria aparelhos eléctricos em Santiago; de que servia comprá-los? Como para ilustrar a óbvia resposta, a luz foi-se abaixo e continuaram a balouçar-se no escuro, mas, perdendo o ritmo, acabaram por chocar com as cabeças.

- Desculpe.

- Perdão.

Alguém arrastou uma cadeira no pátio.

- Sua esposa? - perguntou Wormold.

- Não. Ninguém. Estamos absolutamente sós.

Wormold balouçou para diante, balouçou para trás, balouçou outra vez para diante, escutando os movimentos furtivos no pátio.

Claro. Era assim Santiago. Em cada casa se escondia um foragido. Era melhor nada ouvir, e quanto a nada ver não era problema, mesmo quando a luz voltava de má vontade, escorrendo, amarela e débil, do filamento da lâmpada.

No seu regresso para o hotel foi detido por dois polícias. Queriam saber o que andava ele a fazer por fora a hora tão tardia.

- Mas são apenas dez horas - disse ele.

- Que anda então fazendo nesta rua às dez horas da noite?

- Há hora de recolher?

Bruscamente, inesperadamente, um dos polícias esbofe-teou-o. Sentiu mais surpresa do que cólera. Pertencia às classes respeitadoras da lei e o polícia é o seu protector natural. Levou a mão ao rosto e principiou a dizer: “Que pensa você ... ?” O outro guarda atirou-o com um pontapé a cambalear rua abaixo. O chapéu caiu na vasa de uma sarjeta. Pediu: “Dê-me o meu chapéu”, e sentiu-se novamente empurrado. Começou a dizer alguma coisa a respeito do cônsul inglês e então pegaram-no, e depois de o levarem aos tombos rua abaixo atiraram-no para dentro de uma esquadra, onde foi cair em cima de uma secretária onde um homem dormia com a cabeça apoiada nos braços. O homem acordou e insultou Wormold - e de todas as coisas que lhe chamou a mais delicada foi “cevado”.

Wormold declarou:—Sou súbdito britânico, chamo-me Wormold e vivo em Havana, Lamparilla, 37. Tenho quarenta e cinco anos, sou divorciado e quero telefonar ao meu cônsul.

O homem que o insultara e que usava no braço divisas de sargento intimou-o a apresentar o passaporte.

- Não posso. Tenho-o no hotel, na minha pasta. Um dos seus captores disse com satisfação:

- Encontrámo-lo na rua sem documentos.

- Esvaziem-lhe os bolsos - ordenou o sargento. Tiraram-lhe o postal para o Dr. Hasselbacher, que se esquecera de deitar no marco, e uma miniatura de uma garrafa de Old Grand-dad Whisky, que comprara no bar do hotel. O sargento analisou o postal e a garrafa.

Perguntou:

- Porque traz consigo esta garrafa? Que contém ela?

- Que pensa você que ela contenha?

- Os rebeldes fazem granadas com garrafas.

- Mas não com garrafas deste tamanho.

O sargento retirou a rolha, cheirou e despejou uma porção de whisky na palma da mão.

- Parece whisky - concluiu, e voltou as suas atenções para o bilhete-postal. Perguntou: - Porque fez uma cruz neste postal?

- É a janela do meu quarto.

- E porque queria marcar a janela do seu quarto?

- E porque não havia de querer? É uma dessas coisas sem significado que fazem as pessoas em viagem.

- Marcou encontro com alguém que devia entrar pela janela?

.- Claro que não.

- Quem é esse doutor Hasselbacher?

- Um velho amigo.

- Vem ter consigo a Santiago?

- Não.

.- Então por que motivo lhe quer mostrar a janela do quarto?

Wormold começou a perceber o que os criminosos conhecem perfeitamente, ou seja a impossibilidade de explicar qualquer coisa a homens que dispõem da força.

Respondeu petulantemente:

- O doutor Hasselbacher é uma mulher.

- Uma doutora! - exclamou o sargento, enojado.

- Doutora em Filosofia. Uma linda mulher. - Desenhou duas curvas descritivas no ar.

- E vem ter consigo a Santiago?

- Não, não. Mas você conhece as mulheres, sargento. Querem saber onde um homem dorme.

- Você é o seu amante? - A atmosfera tinha melhorado. - Mas isso não explica que andasse a vaguear pelas ruas durante a noite.

- Não há qualquer lei..

- Não há lei, mas as pessoas prudentes ficam em casa. Só os provocadores é que saem.

- Não podia dormir a pensar em Ema.

- Quem é Ema?

- A doutora Hasselbacher.

O sargento disse lentamente:

- Há aqui trapalhada. Cheira-me! Você não me está a dizer a verdade. Se está apaixonado por Ema, que anda a fazer em Santiago?

- O marido é desconfiado.

- Ela é casada? No es muy agradable. Você é católico?

- Não.

O sargento pegou no postal e voltou a estudá-lo.

- Este sinal aqui no quarto não me parece muito católico também. Como vai ela explicá-lo ao marido?

Wormold pensava com rapidez.

- O marido é cego.

- Isso é muito feio. Muito feio.

- Bato-lhe mais?—perguntou um dos polícias.

- Não há pressa. Quero interrogá-lo primeiro. Há quanto tempo conhece Ema Hasselbacher?

- Há uma semana.

- Uma semana? Tudo quanto você diz é muito feio. Você é um protestante e um adúltero. Como conheceu esta mulher?

- Foi-me apresentada pelo capitão Segura.

O sargento ficou com o postal suspenso no ar. Wormold ouviu um dos polícias por detrás dele engolir em seco. Houve um longo silêncio.

- Pelo capitão Segura?

- Sim.

- Conhece o capitão Segura?

- É amigo de minha filha.

- Ah, então você tem uma filha? É casado? - Ia começar a dizer outra vez: “Isso é muito f...” quando um dos polícias o interrompeu:

- Ele conhece o capitão Segura!

- Quem me garante a verdade do que você diz?

- Telefone ao capitão Segura e pergunte-lhe.

- Leva muitas horas para obter uma chamada para Havana.

- Durante a noite não se pode sair de Santiago. Espero por si no hotel.

- Ou num calabouço, aqui, na esquadra.

- Não creio que o capitão Segura gostasse disso.

O sargento reflectiu por muito tempo, analisando o conteúdo da carteira enquanto pensava. Depois ordenou a um dos homens que acompanhasse Wormold ao hotel e que aí examinasse o passaporte (o sargento estava obviamente preparando uma retirada estratégica). Os dois saíram e puseram-se a caminhar lado a lado, conservando um silêncio embaraçado, e foi só depois de o deixarem que Wormold se lembrou de que o postal para o Dr. Hasselbacher tinha ficado sobre a mesa do sargento. Mas não lhe parecia que o caso tivesse grande importância; podia escrever outro na manhã seguinte. Quanto tempo leva a compreender na vida de uma pessoa as complicadas estruturas em que o menor elemento se pode integrar - mesmo um simples bilhete-postal - e a imprudência de abandonar uma coisa por se considerar sem importância? Três dias mais tarde Wormold tomou o autocarro de regresso a Santa Clara; o Hillman estava reparado; a estrada para Havana não lhe oferecia problemas.

 

Havia um grande número de telegramas esperando por ele quando chegou a Havana, no fim da tarde. Havia também um bilhete de Milly. “Que tens andado a fazer? Aquele que tu sabes (ele não sabia!) mostra-se muito insistente, mas nada de mau, percebes? O Dr. Hasselbacher quer falar urgentemente contigo. Beijos. - P. S. Estou a fazer equitação no Country Club. Um fotógrafo da imprensa fez uma foto de Serafina. Não é famoso? Vá, diz agora que não valeu a pena!”

O Dr. Hasselbacher podia esperar. Dois telegramas traziam a marca de urgente.

“Nº 2, de 5 de Março, começa parágrafo A. Personalidade de Hasselbacher ambígua stop Use maior prudência contactos e reduza-os mínimo indispensável termina a mensagem.”

Vincent C. Parkman era rejeitado como agente. “Não repito não procurar contacto stop Provavelmente já agente de espionagem americana.”

O telegrama seguinte - nº 1, de 4 de Março - dizia secamente: “Por favor no futuro siga instruções recebidas limitando cada telegrama a um só assunto.”

O nº 1, de 5 de Março, era mais animador. “Nenhuma objecção professor Sánchez e engenheiro Cifuentes stop Pode recrutá-los stop Presumivelmente homens da sua posição quererão apenas receber pagamento despesas extraordinárias.”

O último telegrama era quase um anticlímax. “Registado o recrutamento de 59 200/5/1—era López - mas é favor não propor honorários abaixo da tabela dos europeus e portanto atribuirá agente vinte e cinco pesos repito vinte e cinco pesos mensais termina a mensagem.”

López bateu à porta:

- É o doutor Hasselbacher ao telefone.

- Diz-lhe que estou ocupado. Telefono-lhe depois.

- Ele pediu para o senhor não se demorar. Parece doente.

Wormold desceu dirigindo-se ao telefone. Antes mesmo de falar ouviu na outra extremidade do fio uma voz nervosa e velha. Nunca lhe tinha ocorrido até então que o Dr. Hassel-bacher fosse um velho.

- Por favor, Mister Wormold ...

- Sim. Que se passa?

- Por favor, venha ter comigo. Sucedeu-me uma coisa.

- Onde está você?

- No meu apartamento.

- Que lhe sucedeu, Hasselbacher?

- Não lhe posso dizer pelo telefone.

- Está doente... Ferido?

- Se fosse apenas isso - suspirou Hasselbacher. - Venha, por favor. - Durante todos os anos de conhecimento mútuo, Wormold nunca estivera em casa de Hasselbacher. Encontravam-se no Wonder Bar e também num restaurante nos aniversários de Milly, e uma vez o Dr. Hasselbacher ti-nha-o visitado em Lamparilla quando ele sofrera um acesso de febre. Uma vez também chorara na presença de Hasselbacher sentado num banco do Paseo quando lhe contou que a mãe de Milly tinha partido no avião da manhã para Miami, mas a amizade dos dois assentava solidamente na distância - são sempre as amizades muito íntimas que estão sujeitas mais facilmente a quebrar. Portanto, teve de perguntar a Hasselbacher onde é que ele morava.

- Não sabe? - fez o outro surpreendido.

- Não.

- Por favor, venha depressa - pediu Hasselbacher. - Não quero estar só.

Mas ir depressa era impossível àquela hora da tarde. Em Obispo o trânsito era intenso e decorreu meia hora antes de Wormold chegar ao edifício, igual a todos os outros, onde vivia Hasselbacher - doze andares de pedra lívida. Teria sido moderno vinte anos antes, mas a mais recente arquitectura metálica americana ultrapassara-o em altura e brilho. Pertencia à época das cadeiras tubulares, e foi justamente uma cadeira tubular a primeira coisa que Wormold viu quando Hasselbacher lhe abriu a porta. A cadeira e uma antiga gravura de um castelo sobre o Reno.

O Dr. Hasselbacher, tal como a sua voz, tinha envelhecido subitamente. Não era uma questão de cor. A sua pele anguínea e enrugada era tão imutável como a de uma tamisa e nada podia tornar mais brancos os seus cabelos, onde usara a neve do tempo. A sua expressão é que se alterara; toda uma filosofia de vida fora violentada. O Dr. Hasselba-jier deixara de ser um optimista. Agradeceu humildemente:

- Foi muito amável da sua parte ter vindo cá, Mister Wormold.

Wormold recordou-se do dia em que o velho o arrancara do Paseo e o alagara de bebida no Wonder Bar, falando constantemente, cauterizando a dor com álcool, risadas e um irresistível optimismo. Perguntou-lhe:

- Que sucedeu, Hasselbacher?

- Entre - disse Hasselbacher.

A sala estava numa confusão; era como se uma criança irrequieta se tivesse lançado por entre as cadeiras tubulares, abrindo isto, desarrumando aquilo, destruindo ou poupando indiscriminadamente em obediência a algum impulso irracional. A fotografia de um grupo de jovens erguendo canecas de cerveja tinha sido arrancada da moldura e rasgada; uma reprodução colorida do Laughing Cavalier pendia ainda da parede sobre o sofá esventrado. O conteúdo de um armário - cartas e facturas antigas - estava espalhado pelo soalho e uma madeixa de cabelo louro atada com uma fita preta jazia entre os destroços como um peixe fora de água.

- Porquê? - perguntou Wormold.

- Isto não tem muita importância - disse Hasselbacher-, mas venha cá.

Um pequeno quarto que servia de laboratório estava agora convertido num caos. Um bico de gás ardia ainda entre as ruínas. O Dr. Hasselbacher fechou-o. Levantou um tubo de ensaio; o conteúdo estava espalhado por cima da pia. Então disse:

- Não pode compreender. Eu estava tentando fazer uma cultura de - não importa de quê! Estou certo de que não chegaria a qualquer resultado. Era apenas um sonho.

Deixou-se cair pesadamente sobre uma alta cadeira tubular extensível, que sob o peso se encolheu bruscamente lançando-o ao chão. Há sempre uma casca de banana na cena da tragédia. Hasselbacher levantou-se e sacudiu as calças.

- Que sucedeu, afinal?

- Chamaram-me pelo telefone para ir ver um doente. Desconfiei, mas não podia recusar-me. Quando regressei encontrei “isto”.

- Quem foi?

—- Sei lá! Há uma semana houve alguém que me chamou ao telefone. Um desconhecido. Queria que o ajudasse. Não era um assunto profissional. Recusei. Perguntou-me então se as minhas simpatias eram pelo Oriente ou pelo Ocidente. Tentei gracejar. Respondi que as minhas simpatias estavam no meio.

O Dr. Hasselbacher acrescentou acusadoramente:

- Há poucas semanas você fez-me a mesma pergunta.

- Estava a brincar, Hasselbacher.

- Bem sei. Desculpe. O pior que sucede nestes casos é que passamos a ter suspeitas. - Pôs-se a olhar para a pia. - Um sonho infantil. Não tenho ilusões. Fleming descobriu a penicilina por um acaso provocado. Mas o acaso tem de ser provocado. Claro que a um velho médico de segunda categoria nunca sucedem acasos desses, mas ninguém tem nada com o facto - não é verdade? - de eu querer sonhar.

- Não compreendo. Que está por detrás disto? Política? De que nacionalidade era o homem?

- Falava inglês como eu, com um ligeiro sotaque. Hoje toda a gente fala com sotaque.

- Telefonou à polícia?

- Tanto quanto sei - afirmou o Dr. Hasselbacher -, “foi” a polícia.

- Levaram alguma coisa?

- Sim. Papéis.

- Importantes?

- Nunca os devia ter conservado. Têm mais de trinta anos. Quando somos jovens, tomamos partido. Ninguém possui um passado transparente, Mister Wormold. Mas sempre pensei que o passado era o passado. Fui demasiadamente optimista. Você e eu não somos como esta gente cá da terra - não temos um confessionário onde enterrar os pecados do passado.

- Mas deve ter alguma ideia ... Que farão eles agora?

- Talvez me coloquem no índex - disse o Dr. Hasselbacher. - Têm de se fazer importantes. Possivelmente na minha ficha dão-me a categoria de cientista atómico.

- Não pode recomeçar as suas experiências?

- Sim. Creio que sim. Mas, bem vê, nunca acreditei nelas e agora todo o meu trabalho foi pela pia abaixo. - Pôs a água a correr para limpar a pia. - Recomeçar serviria apenas para me lembrar toda esta porcaria. Era um sonho e isto é a realidade. - Algo que parecia um fragmento de um fungo prendeu-se no ralo. Hasselbacher empurrou-o com o dedo. - Obrigado por ter vindo, Mister Wormold. É um bom amigo.

- Pouco posso fazer.

- Ajudou-me a desabafar. Agora sinto-me melhor. Só tenho receio por causa dos papéis. Talvez os tivessem levado por engano. Talvez estejam ainda no meio de toda esta barafunda.

- Eu procuro-os consigo.

- Não, Mister Wormold. Não quero que veja uma coisa de que me envergonho.

Tomaram uma bebida nas ruínas da sala e depois Wormold partiu. O Dr. Hasselbacher ficou de joelhos debaixo do Laughing Cavalier, procurando entre os destroços debaixo do sofá. Fechado no seu carro, Wormold sentiu a culpa rondando-o como uma mosca na cela de um prisioneiro. Talvez em breve se habituasse à sua companhia e ela lhe viesse comer à mão. Pessoas iguais a ele tinham feito o mesmo, homens que consentem em ser recrutados dentro de uma retrete, que abrem portas de quartos com chaves alheias e recebem instruções sobre tinta invisível e utilizações inéditas dos Contos de Shakespeare, de Lamb. Mas num gracejo há sempre duas faces, e uma delas é a da vítima.

Os sinos tocavam em Santo Cristo e as pombas ergueram-se do telhado na tarde dourada e puseram-se a dar voltas sobre as lojas de lotaria de O'Reilley Street e sobre as casas bancárias de Obispo; rapazinhos e rapariguinhas, quase tão indistinguíveis no sexo como as próprias aves, desembocaram do Colégio dos Santos Inocentes, vestindo uniformes pretos e brancos e carregando pequenas mochilas negras. A idade separava-os do mundo adulto do 59 200 e a sua credulidade era de um tipo diferente. Wormold pensou, enternecido, que Milly não devia tardar a chegar a casa. Sentia-se feliz por ela ainda ser capaz de crer em histórias da carochinha: uma virgem deu a luz um menino, retratos que choram e dizem no escuro palavras de amor. Hawthorne e os seus semelhantes eram igualmente pesadelos, histórias grotescas da ficção científica.

De que servia meia impostura? Deixá-los pelo menos merecer qualquer coisa que os fizesse felizes em troca do dinheiro que pagavam, alguma coisa mais excitante que um simples relatório económico. Rascunhou rapidamente: “Nº 1, de 8 de Março, começa parágrafo A. Na minha recente viagem a Santiago ouvi relatos de várias fontes concernentes grandes instalações militares em construção nas montanhas da província do Oriente stop Estas construções são demasiadamente importantes para serem atribuídas aos rebeldes stop Correm boatos de grandes derrubamentos de árvores sob pretexto de incêndios nas florestas stop Camponeses de diversas aldeias recrutados para carregamentos de pedra começa parágrafo B no bar do hotel de Santiago encontrei piloto Aerovias Cubanas embriagado stop Contou ter observado durante voo Havana-San-tiago grandes plataformas de cimento grandes de mais para qualquer edifício normal parágrafo C 59 200/5/3 que me acompanhou a Santiago empreendeu arriscada missão vizinhanças quartel-general de Bayamo fazendo esboços aparelhos que estão sendo transportados para floresta. Esboços seguem por mala ordinária parágrafo D consintam-me que pague agente referido um bónus em vista grande risco da sua missão e que suspenda temporariamente trabalho relatórios económicos devido inquietante e vital natureza destes relatórios da província do Oriente parágrafo E investiguem Raul Domínguez piloto cubano que proponho recrutar como 59 200/5/4.”

Wormold pôs-se a cifrar jovialmente. Pensou: “Nunca julguei ser capaz de fazer isto!” Atravessou-o uma rajada de orgulho. “O 59 200/1/5 sabe do seu ofício!” O seu bom humor beneficiou até o próprio Charles Lamb. Escolheu para chave a página 217, linha 12.a: “Mas eu levantarei o pano e mostrarei o quadro. Não está bem feito?”

Wormold chamou López, que estava na loja. Entregou-lhe vinte e cinco pesos. Explicou: “Este é o seu salário do primeiro mês, pago adiantadamente.” Conhecia López demasiadamente bem para esperar qualquer reconhecimento pelos cinco pesos extra, mas mesmo assim ficou um pouco desorientado quando López disse:

- Preciso de trinta pesos para poder viver.

- Que quer dizer com isso de poder viver? A agência paga-lhe para isso.

- É que vou ter muito mais trabalho - explicou López.

- Mais trabalho? Que trabalho?

- Serviços pessoais.

- Que serviços pessoais?

- Por certo que vou ter muito trabalho; de outro modo não me iria pagar assim vinte e cinco pesos. - Wormold nunca levava a melhor contra López num debate sobre finanças.

- Traga-me da loja um aspirador atómico - disse ele.

- Só lá temos um.

- É esse mesmo que eu quero.

López suspirou.

- É um serviço pessoal?

- Sim.

Quando se encontrou só, Wormold desmontou o aspirador separando as diversas peças. Feito isto sentou-se à secretária e começou a fazer uma série de apurados desenhos. Quando se inclinou para trás contemplando os seus esboços, o pulverizador destacado da manga do aspirador, a agulha, a cabeça do pulverizador e o tubo telescópico, interrogou-se: “Não estarei a levar isto demasiado longe?” Notou que se esquecera de indicar a escala. Traçou uma linha e numerou-a: uma polegada representava três pés. Depois, para melhor comparação, desenhou um homem com duas polegadas de altura ao lado da cabeça do pulverizador. Vestiu o boneco com um impecável fato preto, chapéu de coco e guarda-chuva.

Quando Milly regressou nessa noite, encontrou-o atarefado redigindo o relatório com um grande mapa de Cuba desdobrado em frente.

- Que estás a fazer, pai?

- Estou a dar o primeiro passo numa nova carreira.

Ela espreitou por cima do ombro do pai.

- Vais tornar-te escritor?

- Sim, escritor de ficção.

- Isso dá muito dinheiro?

- Dá um rendimento moderado se eu me aplicar ao trabalho e escrever com regularidade. Tenciono compor um ensaio deste género todas as noites de sábado.

- Vais tornar-te famoso?

- Duvido. Ao contrário do que sucede com muitos escritores, os meus louros irão todos para os meus fantasmas.

- Fantasmas?

- É assim que chamo àqueles que escrevem a maior parte da obra enquanto o autor a assina e recebe os lucros. No meu caso eu a escrever e os meus fantasmas a ganhar fama.

- Mas tu recebes o dinheiro?

- Claro.

- Então posso comprar umas esporas?

- Podes.

- Estás a sentir-te bem, pai?

- Melhor do que nunca. Que grande alívio deves ter sentido quando lançaste fogo ao Thomas Earl Parkman Júnior.

- Porque vens tu outra vez com isso? Foi há tantos anos!

- Porque te admiro por o teres feito. Eras capaz de repetir?

- Claro que não. Sou já demasiadamente crescida. Além disso não há rapazes nas classes superiores. Outra coisa, pai. Posso comprar um cantil?

- O que quiseres. Mas, espera, um cantil para levar o quê?

- Limonada.

- Bem, sê boa menina e traz-me uma nova folha de papel. O engenheiro Cifuentes é um homem muito verboso.

 

INTERLÚDIO EM LONDRES

- Fez boa viagem? - perguntou o chefe.

- Um pouco de borrasca sobre os Açores - respondeu Hawthorne. Desta vez não tivera tempo para mudar o fato tropical cinza-pálido; a convocação urgente fora encontrá-lo em Kingston e no aeroporto de Londres havia um carro à sua espera. Sentou-se tão próximo quanto possível do radiador, mas de vez em quando atravessava-o um arrepio.

- Que estranha flor que traz!

Hawthorne esquecera-se completamente da flor. Levou a mão à lapela.

- Parece que em tempo foi uma orquídea - aventou o chefe com repugnância.

- A Pan American ofereceu-nos rlores ontem ao jantar - explicou Hawthorne. Arrancou o frágil destroço da malva e colocou-o no cinzeiro.

- Ao jantar? Que estranho! - observou o chefe. - Em que poderia isso contribuir para valorizar a refeição? Pessoalmente detesto orquídeas. Coisas decadentes! Havia um sujeito qualquer que usava orquídeas verdes e ...

- Pu-la na lapela para desembaraçar a travessa. Havia pouco espaço, com todos aqueles bolos quentes e champanhe e a salada doce e a sopa de tomate e a galinha Maryland e o sorvete ...

- Que mixórdia. Devia ter vindo pela B. O. A. C.

- Não me deu tempo para reservar um lugar, Sir.

- Bem, o assunto é urgente. O nosso agente em Havana tem descoberto ultimamente coisas muito interessantes.

- Ele é um homem competente - declarou Hawthorne.

- Não o contesto. Oxalá tivéssemos muitos como ele. Só o que me admira é que os Americanos nada tivessem farejado até agora.

- Consultou-os, Sir?

- Claro que não. Tenho pouca confiança na discrição deles.

- Talvez eles também tenham pouca confiança na nossa.

- Esses desenhos... examinou-os?

- Não sou especialista em desenho, Sir. Limitei-me a enviá-los para cá.

- Bem, nesse caso examine-os agora com atenção.

O chefe espalhou os desenhos por cima da secretária. Hawthorne afastou-se relutantemente do radiador e foi imediatamente sacudido por um arrepio.

- Tem alguma coisa?

- Em Kingston fazia ontem noventa e dois graus.

- O seu sangue está a dessorar. Uma boa rajada de frio faz-lhe bem. Que pensa dos desenhos?

Hawthorne contemplou os desenhos. Lembravam-lhe qualquer coisa. Sentiu-se, sem saber porquê, tocado por um estranho mal-estar.

- Recorda-se dos relatórios a que vinham apensos os desenhos?- perguntou o chefe. - Foram redigidos por traço três. Quem é ele?

- Creio que é o engenheiro Cifuentes, Sir.

- Pois bem: com toda a sua preparação técnica deixou-se enganar! Estas máquinas foram transportadas em camiões do quartel-general de Bayamo para a orla da floresta. Depois foram carregadas por mulas. Direcção geral, essas inexplicáveis plataformas de cimento.

- E que diz a isso o Ministério do Ar, Sir?

- Estão preocupados, muito preocupados. E também muito interessados, é claro.

- E o pessoal das pesquisas atómicas?

- Ainda não lhe mostrámos os esboços. Sabe como essa gente é. Põe-se logo a criticar pormenores, a dizer que a coisa é impossível, que o tubo é desproporcionado ou que aponta para onde não deve. Não pode esperar-se de um agente que trabalha de memória uma perfeição minuciosa. Quero fotografias, Hawthorne.

- É pedir muito, Sir.

- Temos de consegui-las. A todo o custo. Sabe o que me disse Savage? Posso ajudá-lo. Até me causou um horrível pesadelo. Disse-me que um dos desenhos lhe lembrou um gigantesco aspirador de pó.

- Um aspirador de pó! - Hawthorne debruçou-se novamente sobre os desenhos e o frio voltou a apoderar-se dele.

- Provoca-lhe arrepios, não é verdade?

- Mas é impossível, Sir! - Sentia como se estivesse a defender a sua própria carreira. - Não pode ser um aspirador, Sir, Não, um aspirador, isso, não!

.- Demoníaco, não é? - disse o chefe. - A engenhosidade, a simplicidade, a diabólica imaginação da coisa. - Retirou o monóculo negro e o seu olho de boneca tocado pela luz devolveu um feixe luminoso que se pôs a dançar na parede por cima do radiador. - Veja isto aqui, tem a altura de seis homens. Parece um pulverizador gigantesco. E este aqui, o que lhe lembra?

Hawthorne disse lastimosamente:

- Uma cabeça de sucção dupla.

- Que vem a ser isso?

- É uma peça que há em alguns aspiradores.

- Outra vez os aspiradores! Hawthorne, penso que estamos na presença de alguma coisa capaz de reduzir a bomba à categoria de arma convencional.

- Será isso desejável, Sir?

- Claro que sim. Ninguém receia armas convencionais.

- E que pensa disto tudo, Sir?

- Não sou um cientista - disse o chefe. - Mas repare neste grande depósito. Deve ser quase tão alto como as árvores da floresta. Uma enorme bocarra aberta no topo e esta conduta, apenas indicada. Tanto quanto sabemos, pode prolongar-se por milhas, desde as montanhas até ao mar, talvez. Como sabe, os Russos trabalham em certa ideia, qualquer coisa relativa à energia solar, à evaporação do mar. Não percebo o que tudo isto significa, mas posso garantir que esta coisa é grande. Diga ao nosso homem que temos necessidade de fotografias.

- Não imagino como será possível a alguém aproximar-se o suficiente ...

- Ele que frete um avião e que voe sobre a zona das construções. Claro que não ele, pessoalmente. Mas envie traço três ou traço dois. Quem é o traço dois?

- O professor Shánchez, Sir. Mas deitam-no abaixo com certeza! A área está a ser constantemente patrulhada por aviões militares.

- Ah! A área está a ser patrulhada!

- É por causa dos rebeldes.

- Isso é o que eles dizem. Sabe você, Hawthorne, eu tenho um palpite.

- Qual, Sir?

- O de que os rebeldes não existem. São pura invenção. Isso permite ao Governo ter toda a área submetida a uma vigilância fechada.

- Oxalá tenha razão, Sir!

- Seria melhor para todos nós - disse o chefe satisfeitíssimo- que eu me tivesse enganado. Receio tudo isto, Hawthorne, receio essa coisa. - Tornou a encaixar o monóculo e o reflexo desapareceu da parede. - Hawthorne, da última vez que cá esteve falou a Miss Jenkinson numa secretária para 59 200/5?

- Sim, senhor. Ela nenhuma candidata especial tinha para o lugar, mas sugeriu que uma tal Beatrice podia servir.

- Beatrice? Como odeio todos esses nomes cristãos! Ao menos recebeu treinamento adequado?

- Sim.

- Chegou a ocasião de dar uma ajuda ao nosso homem em Havana. A coisa está a tornar-se demasiadamente grande para um agente improvisado e sem assistência. É melhor mandar com ela um radioperador.

- Não seria mais prudente eu ir antes lá encontrar-me com ele? Podia deitar uma vista de olhos e falar com o homem.

- Má prudência, Hawthorne. Não podemos arriscar-nos a perdê-lo. Pela rádio ele pode comunicar directamente com Londres. Não gosto de que ele se sirva do consulado nem também eles gostam de ser intermediários nestes assuntos.

- E quanto aos relatórios, Sir?

- O homem terá de organizar qualquer sistema de correio para Kingston. Talvez por intermédio de um dos seus caixeiros-viajantes! Mande-lhe instruções pela secretária. Já a viu?

- Não, Sir.

- Vá vê-la imediatamente. Verifique se ela é o género que convém. Capaz de tomar a seu cargo o lado técnico da coisa. Deve informá-la sobre o tipo de negócio do nosso homem em Havana ... A velha secretária terá de ser despedida. Fale com a A. O. para que lhe seja atribuída uma pensão razoável até ela ter direito à reforma.

- Sim, senhor - disse Hawthorne. - Posso dar outra vista de olhos a esses desenhos?

- Esse parece interessá-lo. Que lhe parece?

- Parece - disse Hawthorne miseravelmente - um limpa-tapetes de acção dupla.

Quando já ia a retirar-se, o chefe tornou a falar:

- Sabe, Hawthorne, devemos-lhe isto a si em grande parte. Uma vez disseram-me que você não sabia ajuizar o valor dos homens, mas agora reconsidero a opinião que então formei. Belo trabalho, Hawthorne!

- Obrigado, Sir. - Tinha a mão sobre o puxador da porta.

- Hawthorne.

- Sir?

- Encontrou o livro de capa de oleado?

- Não, Sir.

- Talvez Beatrice tenha melhor sorte.

 

Foi uma noite que não seria fácil para Wormold esquecer. Escolhera o décimo sétimo aniversário de Milly para levá-la ao Tropicana. A despeito das salas de jogo que os frequentadores tinham de atravessar ao dirigirem-se para a sala de dança, o local era mais inocente que o Nacional. O estrado para dançar e o palco eram ao ar livre. As coristas exibiam-se a uma altura de seis pés entre as grandes palmeiras, enquanto os projectores, vermelho e lilás, varriam o estrado. Um homem com um fato de um azul brilhante cantava qualquer coisa americana sobre Paris. Depois o piano desapareceu, como engolido, e as dançarinas pousaram como pássaros desajeitados descendo dos ramos.

- É como na floresta de Arden - observou Milly extasiada. A duena não estava presente: tinha-se retirado depois da primeira taça de champanhe.

- Não me parece que houvesse palmeiras na floresta de Arden. Nem bailarinas.

- És tão literal, papá!

- Gosta de Shakespeare? - perguntou o Dr. Hasselba-cher.

- Oh, não! Há nele excessiva poesia. Conheço o género: entra um mensageiro: “Meu senhor, o duque avança pela direita”; “Pensando em combatê-lo, noss'alma se deleita.”

- Isso é de Shakespeare?

- Não é, mas parece.

- Estás a dizer tolices, Milly.

- De qualquer maneira a floresta de Arden é de Shakespeare, penso eu - disse o Dr. Hasselbacher.

- Sim, mas eu li-a nos Contos de Shakespeare, de Lamb. Ele corta todos esses mensageiros, os duques e a poesia.

- Dão Lamb no colégio?

- Não, li num exemplar que encontrei no quarto do pai.

- Foi assim que leu Shakespeare, Mister Wormold? - perguntou o Dr. Hasselbacher manifestando surpresa.

- Oh, não, não. Claro que não. A verdade é que o comprei para a Milly.

- Então porque te zangaste comigo há dias, quando tirei o livro para ler?

- Não estava zangado por esse motivo. Do que não gosto é que vás mexer em coisas ... que não te dizem respeito.

- Falas como se eu fosse uma espia - fez Milly.

- Querida Milly, por favor não nos zanguemos no dia dos teus anos. Até te esqueces de fazer as honras ao doutor Hasselbacher.

- Porque está tão calado, doutor Hasselbacher? - perguntou Milly servindo-se pela segunda vez de champanhe.

- Um destes dias há-de emprestar-me o Lamb, Milly. Para mim também Shakespeare é difícil.

Um homem muito pequeno num uniforme muito esticado acenou na direcção da mesa.

- Não está aborrecido, pois não, doutor Hasselbacher?

- Porque havia de estar aborrecido no dia do seu aniversário? Só se for por pensar nos próprios anos.

- Acha que dezassete anos é muito tempo?

- Para mim os últimos dezassete anos foram excessivamente breves.

O homem do uniforme esticado aproximou-se da mesa e cumprimentou. Tinha o rosto coberto de acne e corroído como os pilares dos edifícios marginais. Puxou uma cadeira quase tão alta como ele próprio.

- Papá, o capitão Segura.

- Posso sentar-me? - introduziu-se entre o Dr. Hasselbacher e Milly sem esperar pela resposta de Wormold.

- É para mim um grande prazer conhecer o pai de Milly - disse. Havia nas suas maneiras uma insolência leviana que não ofenderia se ficasse por ali.

- Apresente-me o seu amigo, Milly.

- O Dr. Hasselbacher.

O capitão Segura ignorou o Dr. Hasselbacher e encheu a taça de Milly. Chamou o criado:

- Traz-me outra garrafa.

- íamos já sair, capitão Segura - disse Wormold.

- Tolice. O senhor é meu convidado. Além disso ainda pouco passa da meia-noite.

A manga de Wormold prendeu-se numa taça, que caiu e se quebrou como a própria festa.

- Criado, outra taça. - Segura começou a assobiar baixinho A Rosa Que Eu Coibi no jardim debruçado para Milly e de costas para o Dr. Hasselbacher.

Milly observou:

- Tem estado a comportar-se muito mal.

- Mal! Estou a comportar-me mal consigo?

- Com todos nós. Faço hoje dezassete anos. Esta festa é minha e de meu pai. Ninguém o convidou.

- Faz hoje dezassete anos? Mas então têm de ser meus convidados. Vou chamar algumas dançarinas para a nossa mesa.

- Não queremos dançarinas - disse Milly.

- Caí em desgraça?

- Sim.

- Ah! - fez ele prazenteiramente. - Foi por hoje não ter ido buscá-la à escola? Mas, Milly, às vezes tenho de pôr os assuntos profissionais adiante. Criado: diz à orquestra para tocar o Happy Birthday to You.

- Não faça isso - interrompeu Milly. - Como pode ser tão ... tão vulgar?

- Eu? Vulgar? - O capitão Segura riu deliciado. - Ela é muito espirituosa. É por isso que nos entendemos tão bem.

- A Milly disse-me que o senhor usa uma cigarreira de pele humana.

- Ela costuma falar-me nisso muitas vezes, mas eu respondo-lhe que a pele dela daria uma linda ...

O Dr. Hasselbacher levantou-se abruptamente dizendo:

- Vou dar uma vista de olhos à roleta.

- Ele não simpatiza comigo? - perguntou o capitão Segura. - É talvez um velho admirador, não é, Milly? Um admirador muito velho, ah, ah!

- É um velho amigo - atalhou Wormold.

- Mas ambos sabemos, Mister Wormold, que entre homem e mulher não existe tal espécie de amizade.

- Milly não é ainda uma mulher.

- Fala como pai, Mister Wormold. Nenhum pai conhece a sua própria filha.

Wormold olhou para a garrafa de champanhe e para a cabeça do capitão Segura. Sentia a tentação desesperada de lhe quebrar o crânio. Numa mesa vizinha, uma jovem que Wormold não vira até então fez gravemente com a cabeça um gesto de incitamento. “Devia ser - pensou ele - tão esperta como bonita para ler os seus pensamentos com tanta exactidão.” Sentiu inveja dos seus companheiros de mesa, dois pilotos da K. L. M. e uma hospedeira.

- Venha dançar, Milly - disse o capitão Segura -, para mostrar que me perdoou.

- Não quero dançar.

- Juro que amanhã estarei à sua espera à porta do convento.

Wormold fez um breve gesto como se dissesse: “Não tenho coragem. Ajude-me.” A rapariga, muito séria, observava-o; Wormold teve a noção de que ela estava considerando a situação no seu conjunto e que qualquer conclusão a que chegasse seria definitiva e imediatamente executada. Com o sifão ela lançou um jacto de soda no seu copo de whisky.

- Venha, Milly. Não deve estragar a minha festa.

- A festa não é sua. É do pai.

- Você é teimosa, mas devia compreender que às vezes tenho de pôr o dever adiante da minha querida Milly.

A rapariga colocada atrás do capitão Segura alterou o ângulo do sifão.

“Não - disseram os olhos de Wormold, instintivamente.- Não.” O bico do sifão estava directamente apontado para o pescoço do capitão Segura. O dedo da rapariga estava pronto. Wormold sentiu-se ferido por ver uma tão linda rapariga olhá-lo com tanto desprezo. Os seus olhos pediram: “Sim, por favor, sim”, e ela carregou no sifão. O jorro de soda atingiu a nuca do capitão Segura e ensopou-lhe o colarinho. A voz do Dr. Hasselbacher gritou lá de longe: “Bravo.” O capitão Segura praguejou: “Cofio.”

- Desculpe - disse a rapariga. - Era para o meu whisky.

- O seu whisky?

- Sim: um dimpled haig - explicou ela. Milly soltou uma gargalhadinha.

O capitão Segura cumprimentou rigidamente. Julgar pelo seu tamanho o perigo que ele representava seria o mesmo que avaliar a força de uma bebida pelas dimensões do cálice.

O Dr. Hasselbacher aproximou-se:

- O seu sifão esgotou-se, minha senhora; permita-me que lhe vá buscar outro.

Os holandeses segredavam, embaraçados.

- Calculo que mais nenhum me quererão confiar - disse a rapariga.

O capitão Segura sorriu. Era um sorriso que parecia vir de onde não devia, como o esguicho do dentífrico quando o tubo se abre ao fundo.

- É a primeira vez que me atingem pelas costas. Sinto-me feliz por ter sido uma mulher - disse. Conseguira recompor-se admiravelmente; a água escorria-lhe ainda do cabelo e o colarinho perdera o aprumo engomado. Acrescentou: - Noutra ocasião dar-lhe-ei a desforra, mas já estou atrasado. Poderei vê-la outra vez?

- Fico em Havana - disse ela.

- Turismo?

- Não. Trabalho.

- Se tiver alguma dificuldade com o seu passaporte - disse ele ambiguamente -, deve vir procurar-me. Boas noites, Milly. Boas noites, Mister Wormold. Direi ao criado que são meus convidados. Peçam o que desejarem.

- Ele conseguiu fazer uma bela saída - observou a rapariga.

- Foi também um belo banho.

- Dar-lhe com a garrafa de champanhe na cabeça talvez fosse um pouco excessivo. Quem é ele?

- Há quem lhe chame o Abutre Vermelho.

- Tortura os presos - acrescentou Milly.

- Parece que consegui conquistar-lhe a amizade.

- No seu caso eu não teria tanta certeza - disse o Dr. Hasselbacher.

Juntaram as mesas. Os dois pilotos cumprimentaram-se e apresentaram-se declarando nomes impronunciáveis. O Dr. Hasselbacher observou horrorizado:

- Estão a beber coca-cola!

Um dos holandeses explicou:

- É do regulamento. Levantamos voo para Montreal às três e trinta.

Wormold disse:

- Se é o capitão Segura quem paga, mandemos vir mais champanhe. E coca-cola.

- Creio que já não consigo beber mais coca-cola. E você, Hans?

- Por mim tomava um bolds - disse o mais jovem dos Pilotos.

- Ao chegar a Amesterdão nada bebe - lembrou-lhe a hospedeira com firmeza.

O jovem piloto segredou a Wormold:

- Quero casar com ela.

- Com quem?

- Com Miss Pfunk - foi o nome que ele disse, ou outro parecido.

- E ela quer?

- Não.

O mais velho dos holandeses afirmou:

- Tenho mulher e três filhos. - Desapertou o bolso exterior do dólman: - Tenho aqui as fotografias deles.

Estendeu a Wormold um postal colorido mostrando uma rapariga com uma apertada blusa de lã amarela e calções curtos. A blusa tinha a marca do Mamba Club e no fundo do postal Wormold leu: “Garantimos versões variadas. Cinquenta lindas raparigas. Não se sentirá só.”

- Creio que se enganou na fotografia - disse Wormold.

A rapariga, que tinha cabelo castanho e, tanto quanto as confusas luzes do Tropicana permitiam afirmar, olhos cor de avelã, disse:

- Vamos dançar.

- Danço mal.

- Isso não tem importância, não é verdade?

Ele levou-a para o meio da turba.

- Percebo o que quer dizer com dançar mal. Isto é uma rumba. Aquela rapariga da mesa é sua filha? - perguntou.

- Sim.

- É muito bonita.

- Chegou agora?

- Sim. A tripulação resolveu fazer uma festa e por isso vim com eles. Ninguém conheço aqui. - A cabeça dela tocou-lhe o queixo e ele aspirou o perfume dos cabelos; quando se moviam acariciavam-lhe a boca. Sentiu-se vagamente infeliz por ela usar aliança. - Chamo-me Severn. Beatrice Severn - apresentou-se a rapariga.

- E eu chamo-me Wormold.

- Nesse caso sou a sua secretária - disse ela.

- Que quer dizer com isso? Não tenho secretária.

- Oh, isso é que tem. “Eles” não lhe anunciaram a minha vinda?

- Não. - Nem sequer achou necessário perguntar quem eram “eles”.

- Mas fui eu própria quem enviou o telegrama.

- Recebi um telegrama na semana passada, mas era totalmente indecifrável.

- Qual é a sua edição dos Contos, de Lamb?

- Everyman.

- Diabo. Deram-me outra edição. Então o telegrama deve ter saído uma salada. De qualquer maneira estou contente por tê-lo encontrado.

- E eu também. Claro, um pouco desorientado. Onde se instalou?

- Esta noite no Inglaterra, mas amanhã mudo-me.

- Para onde?

- Para o seu escritório. Posso dormir em qualquer lado. Não me importo se tiver de ajeitar-me num dos gabinetes de trabalho.

- Não há qualquer gabinete. É um escritório muito pequeno.

- Bem, de qualquer modo há o quarto da secretária.

- Mas eu nunca tive secretária, Mistress Severn.

- Chame-me Beatrice. É considerado mais seguro.

- Seguro?

- Bem, se não há um quarto da secretária, a coisa com-plica-se um pouco. Sentemo-nos.

Um homem com um dinner-jacket vestido, como qualquer funcionário administrativo inglês à hora do jantar, cantava entre as árvores:

Homens ajuizados,

velhos amigos rodeiam-te

Dizem que a terra é redonda

e isso ofende a minha loucura.

Uma laranja tem caroços, dizem eles,

e a maçã tem casca

Eu afirmo que a noite é dia

e não tenho machado para afiar.

Por favor não creiam ...

Sentaram-se numa mesa vaga atrás da sala da roleta. Chegava até eles o som das pequenas esferas saltitando. O olhar dela estava novamente sério - um pouco consciente dessa seriedade, como uma rapariga se sente consciente do primeiro vestido de cerimónia que usa. - Se soubesse que era a sua secretária, nunca teria feito o que fiz a esse polícia, pelo menos sem sua ordem.

- Não se preocupe.

- Mandaram-me cá para lhe facilitar a vida. Começo por criar-lhe dificuldades.

- O capitão Segura não tem qualquer importância.

- Sabem? Eu recebi um treino completo. Fui aprovada em cifras e microfotografia. Posso encarregar-me do contacto com os seus agentes.

- Oh!

- O senhor tem estado a fazer um belo trabalho e eles não querem que corra o risco de ser abatido. Se eu for abatida, já não tem tanta importância.

- Eu não gostaria mesmo nada que você fosse abatida .

- Mas se o telegrama vinha mutilado, não sabe ainda do operador de rádio - lembrou ela.

- Não, não sei.

- Está igualmente no Inglaterra. Enjoado. Temos de arrumá-lo também.

- Se ele enjoa de avião talvez ...

- Pode nomeá-lo ajudante de guarda-livros. Ele sabe escrituração.

- Mas de ninguém preciso. Nem sequer tenho guarda-livros.

- Não se preocupe. Amanhã arranjo tudo. É para isso que cá estou.

- Há em si qualquer coisa - disse Wormold - que me lembra minha filha. Costuma rezar novenas?

- Que é isso?

- Ah, não sabe? Graças a Deus!

O homem do dinner-jacket acabava a canção:

E digo que Maio é no Inverno e não tenho machado para afiar.

As luzes mudaram de azul para rosa e as dançarinas voltaram para o seu ninho entre as palmeiras. Os dados chocaram-se sobre as mesas e Milly e o Dr. Hasselbacher dirigiram-se alegremente para o estrado da dança. Era como se os fragmentos em que o capitão Segura tinha quebrado a festa de aniversário se tivessem colado de novo.

 

Na manhã seguinte Wormold levantou-se cedo. Tinha uma ligeira dor de cabeça causada pelo campanhe e a irrealidade da noite passada no Tropicana prolongava-se pelo dia adiante. Beatrice dissera-lhe que ele estava a fazer um bom trabalho - ela era o porta-voz de Hawthorne e “dessa gente”. Sentiu-se desanimado pensando que Beatrice, tal como Hawthorne, pertencia ao mundo fictício dos seus agentes. Os seus agentes ... Sentou-se em frente do ficheiro. Tinha de fazer com que as suas fichas parecessem tão plausíveis quanto possível antes de ela chegar. Vistos agora, alguns dos seus agentes pareciam-lhe no limite do improvável. O professor Sánchez e o engenheiro Cifuentes estavam demasiadamente comprometidos, não podia libertar-se deles; tinham sacado aproximadamente duzentos pesos para despesas. López era também irremovível. O piloto bêbedo da aviação comercial cubana tinha recebido o lindo bónus de quinhentos pesos pela história das construções nas montanhas, mas talvez pudesse ser dispensado por causa do vício da embriaguez. Havia o primeiro-maquinista do ]uan Belmonte, que ele vira no bar de Cienfuegos. Parecia uma personagem verosímil e além disso só ganhava setenta e cinco pesos mensalmente. Mas havia outras personagens que ele

temia não serem capazes de resistir a uma análise cuidadosa. Rodríguez, por exemplo, cuja ficha o apontava como um rei da vida nocturna, e Teresa, uma dançarina do Teatro Xangai que ele alistara por ser simultaneamente amante do ministro da Defesa e do director dos Correios e Telégrafos (ambos totalmente inventados por Wormold, não sendo portanto de admirar que em Londres não encontrassem qualquer rasto deles). Decidiu suprimir Rodríguez, pois quem quer que viesse a conhecer bem Havana mais cedo ou mais tarde havia de perguntar por ele. Mas não tinha coragem de eliminar Teresa. Era a sua única espia, a sua Mata Hari. Não era provável que Beatrice fosse ao Xangai, onde se projectavam todas as noites três filmes pornográficos nos intervalos entre as exibições das bailarinas nuas.

Milly veio sentar-se a seu lado:

- Que são todas estas fichas?—perguntou ela.

- Clientes.

- Quem era a rapariga da noite passada?

- Vai ser minha secretária.

- Estás a tornar-te importante.

- Gostas dela?

- Não sei. Nem me deste ocasião de lhe falar.

- Passaste a noite a dançar e a namorar.

- Isso é falso! Eu não estava a namorar.

- Ela quer casar contigo?

- Suponho que não.

- E tu queres casar com ela?

- Milly, tem juízo. Vi-a pela primeira vez a noite passada.

- A Marie, uma rapariga francesa do convento, diz que todo o verdadeiro amor é um coup de foudre.

- É sobre essas coisas que vocês conversam lá no convento?

- Naturalmente. É isso o futuro, não é verdade? Não temos um passado de que falar, como a irmã Agnes.

- Quem é a irmã Agnes?

- Já te contei. Ela é má, mas muito linda. A Marie diz que ela teve um coup de foudre infeliz quando era nova.

- Foi ela quem contou isso à tua amiga?

- Não, claro que não. Mas a Marie sabe. Ela também já teve dois coups de foudre infelizes. Surgem de repente, num céu sem nuvens.

- Já sou bastante velho para correr perigo.

- Oh, não. Havia um velho - tinha quase cinquenta anos - que sentiu um coup de foudre pela mãe de Marie. Era casado, como tu!

- Bem, como a minha secretária é também casada, tudo se arranja.

- É casada ou é uma bonita viuvinha?

- Não sei. Não lhe perguntei. Acha-la bonita?

- Sim. De certo modo. López subiu as escadas:

- Está lá em baixo uma senhora. Diz que tem uma entrevista marcada consigo.

- Diz-lhe que suba.

- Eu fico aqui - avisou Milly.

- Beatrice, esta é a Milly.

Wormold reparou que os olhos e os cabelos conservavam a cor da noite anterior; afinal não fora sugestionado pelo champanhe e pelas palmeiras. Pensou: “Ela é bem real!”

- Bons dias. Espero que tenha passado a noite bem - disse a duena pela boca de Milly.

- Tive sonhos horrorosos. - Olhou para Wormold, depois para o ficheiro e para Milly.

- Diverti-me bastante a noite passada - acrescentou.

- Foi maravilhoso o que fez com o sifão de soda miss... - afirmou Milly generosamente.

- Mistress Severn. Mas, por favor, chame-me Beatrice.

- Oh, é casada? - perguntou Milly curiosamente.

- Fui casada.

- Seu marido morreu?

- Não, que eu saiba. Dissolveu-se!

- Oh!

- Isso sucede com pessoas do tipo dele.

- Qual era o tipo dele?

- Milly, já basta. Nada tens que perguntar a Mistress Severn ... a Beatrice ...

- Na minha idade - disse Milly - temos de nos aproveitar da experiência dos outros.

- Tem razão. Creio que o tipo do meu marido é o que pode chamar-se intelectual e sensitivo. Quando o conheci pareceu-me muito belo; tinha um rosto que lembrava um passarinho a espreitar para fora do ninho, desses que se vêem nos filmes sobre a natureza, com uma poupa de penas em torno do pomo-de-adão, um enorme pomo-de-adão, diga-se de passagem. O pior foi que aos quarenta anos continuava a parecer-se com um passarinho. As garotas adoravam-no. Costumava frequentar as conferências da U.N.E.S.C.O. em Veneza, Viena e noutros lugares assim. Tem cofre, Mister Wormold?

- Não.

- Que sucedeu? - perguntou Milly.

- Oh, passei a vê-lo à transparência. Mas literalmente, não em sentido figurado. Ele era muito magro e côncavo e tornou-se como que transparente. Quando olhava para ele conseguia ver por entre as suas costelas todos os delegados sentados e o orador erguer-se e começar: “A liberdade é indispensável à criação literária.” Era um perigo à hora do pequeno-almoço.

- E não sabe se ele ainda está vivo?

- Estava vivo o ano passado, porque vi nos jornais que ele tinha lido em Taormina um trabalho denominado “O intelectual e a bomba de hidrogénio”.

- Precisa de arranjar um cofre de segredo, Mister Wor-mold.

- Por que motivo?

- Porque não deve deixar essas coisas por aí. Além disso, é o que se espera de um velho rei da finança como o senhor.

- Quem lhe disse que eu era um velho rei da finança?

- É a impressão que têm em Londres. Vou sair e arranjar-lhe um cofre num instante.

- Bem, vou-me embora - disse Milly. - Vais ter juízo, não é verdade, papá? Sabes o que eu quero dizer.

O dia foi extenuante. Primeiro Beatrice saiu e adquiriu um enorme cofre de segredo, que teve de ser transportado por um camião e carregado por seis homens. Quebraram o corrimão e derrubaram um quadro quando o levaram escada acima. Fora juntou-se uma multidão, incluindo vários gazeteiros do colégio vizinho, duas lindas negras e um polícia. Quando Wormold se lastimou pela atenção que aquilo estava a levantar sobre a sua pessoa, Beatrice retorquiu que nada melhor para chamar a atenção do que tentar esconder-se.

- Por exemplo, a história do sifão - disse ela. - Toda a gente se recordará de mim como a mulher que deu um banho ao polícia. Ninguém mais perguntará quem eu sou. A resposta é só uma.

Estavam ainda a lutar com o cofre quando um táxi parou em frente da porta, um jovem saltou e retirou do porta-bagagens a maior mala que Wormold jamais vira.

- Este é o Rudy - apresentou Beatrice.

- Quem é o Rudy?

- O seu ajudante de guarda-livros. Falei-lhe nele a noite passada.

- Santo Deus! - disse Wormold. - Bem me parecia que me tinha esquecido de alguma coisa.

- Entre Rudy e descanse.

- De nada serve mandá-lo entrar - disse Wormold. - Entrar para onde? Não tenho cá lugar para ele.

- Pode dormir no escritório - resolveu Beatrice.

- Não há espaço para uma cama, além do cofre e da minha escrivaninha.

- Arranjo-lhe uma escrivaninha mais pequena. Como vai esse enjoo, Rudy? Este é Mister Wormold, o chefe.

Rudy era muito jovem, muito pálido e tinha as pontas dos dedos amareladas pela nicotina ou por qualquer ácido. Respondeu:

- Durante a noite vomitei ainda duas vezes. Quebrou-se um tubo de Roentgen.

- Não se preocupe com isso agora. Estamos apenas a arrumar as coisas. Trate de ir comprar uma cama de lona.

- Pronto - respondeu Rudy, e desapareceu.

Uma das negras aproximou-se de Beatrice e declarou:

- Sou britânica.

- Eu também - disse Beatrice. - Prazer em conhecê-la.

- Você é a sinhá que botou água no capitão Segura?

- Bem, mais ou menos. Foi só um borrifo.

A negra voltou-se para a multidão e explicou em espanhol. Algumas pessoas deram palmas. O polícia afastou-se, embaraçado. A negra então declarou:

- Você ser muito bonita, sinhá.

- Você também é muito bonita - respondeu Beatrice. - Dê-me uma ajuda para levar esta mala. - Lançaram-se as duas à mala de Rudy, aos empurrões.

- Com licença - disse um homem abrindo caminho com os cotovelos por entre a multidão. - Com licença.

- Que deseja? - perguntou Beatrice. - Não vê que estamos ocupadas? Porque não marca uma entrevista?

- Mas eu apenas quero comprar um aspirador.

- Ah, um aspirador! Então é melhor entrar. Consegue saltar por cima da mala?

Wormold chamou López:

- Atenda-o e tente vender-lhe um atómico. Ainda não conseguimos despachar nenhum.

- Vai viver aqui? - perguntou a negra.

- Vou trabalhar aqui. Muito obrigada pela sua ajuda.

- Nós, os Britânicos, dever ser uns pelos outros - disse a negra.

Os carregadores que tinham transportado o cofre para a sobreloja desceram as escadas cuspindo nas mãos e esfregando-as nas blusas de ganga para patentear quão árduo fora o trabalho. Wormold gratificou-os. Subiu por sua vez as escadas e, de sobrolho carregado, lançou a vista pelo escritório. O pior de tudo é que ainda lá havia espaço para armar uma cama de campanha, o que lhe tirava todas as esperanças de poder escusar-se. Observou:

- Não há lugar para Rudy arrumar as suas roupas.

- Rudy está habituado a dormir vestido. Além disso há a sua escrivaninha. Pode passar o que tem nas gavetas para dentro do cofre e assim já o Rudy tem onde guardar as coisas.

- Mas eu não sei manejar um cofre de segredo.

- É o que há de mais simples. Escolhe três grupos de números fáceis de conservar na memória. Qual é o número da sua porta?

- Não sei.

- Bem, e o número do seu telefone? Não, não é seguro! É a primeira coisa que ocorre a um assaltante. Em que ano nasceu?

- 1914.

- E o dia?

- 6 de Dezembro.

- Bem, então seja 19-6-14.

- Não consigo fixar.

- Oh, sim, consegue. Não pode esquecer a data do seu nascimento. Agora repare. Roda a manivela quatro vezes em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, depois pára no 19, três vezes no sentido dos ponteiros do relógio, depois pára no 6, contra o relógio duas vezes e depois pára no 14, dá uma volta completa e está fechado. Faz a mesma coisa ao contrário: 19-6-14 e, pronto, está aberto! - Dentro do cofre estava um rato morto, e Beatrice observou:—O cofre está sujo, devia ter pedido um desconto na loja.

Começou a abrir a mala de Rudy retirando peças de um posto de rádio, baterias, equipamento fotográfico, tubos misteriosos embrulhados nas peúgas de Rudy.

Wormold perguntou:

- Como diabo conseguiram passar isso tudo pela alfândega?

- Não passou. 59 200/4/5 trouxe-nos tudo isto de Kingston.

- Quem é ele?

—:Um contrabandista crioulo. Faz contrabando de cocaína, opio, marijuana. Claro que tem entendimentos com os guardas da alfândega. Desta vez pensaram que ele transportava o carregamento habitual.

- Seriam necessárias muitas drogas para carregar uma mala tão grande.

- Sim. Por isso mesmo nos custou mais caro o suborno dos guardas.

Arrumou tudo rápida e eficientemente depois de transferir para o cofre o conteúdo das gavetas.

- Os colarinhos de Rudy vão ficar um pouco amarrotados, mas isso é o que menos importa - observou.

- Eu por mim não me importo.

- Que é isto? - perguntou ela pegando nas fichas que ele estivera a examinar.

- São fichas dos meus agentes.

- Não me diga que as costuma deixar espalhadas por cima da secretária.

- Oh, à noite fecho tudo numa gaveta.

- Não faz grande ideia do que significam precauções, pois não? - Olhou para uma das fichas: - Quem é Teresa?

- Uma dançarina nua.

- Completamente nua?

- Sim.

- Deve ser muito interessante para si. Londres quer que eu contacte com os seus agentes. Há-de apresentar-me Teresa numa ocasião em que ela esteja vestida.

Wormold observou:

- Não me parece que ela queira trabalhar para outra mulher. Você sabe como este género de raparigas é susceptível.

- Eu não sei. Você é que sabe. Ah, o engenheiro Cifuen-tes. Londres tem muito boa impressão dele. Não me diga que ele também tem escrúpulos em trabalhar para uma mulher.

- Ele não fala inglês.

- Mas talvez eu possa aprender o espanhol. Seria um bom pretexto para um contacto ele dar-me lições de espanhol. É tão simpático como essa Teresa?

- A mulher dele é uma fera de ciúme.

- Oh, creio que conseguirei domá-la.

- Isso é absurdo, atendendo à idade dele.

- Quantos anos tem?

- Sessenta e cinco. Além disso nenhuma mulher se interessa por ele, além da própria, por causa da sua enorme pança. Mas posso perguntar-lhe se está disposto a dar-lhe lições.

- Não há pressa. Deixemos isso por agora. Posso começar pelo professor Sánchez. Habituei-me com meu marido a lidar com intelectuais.

- Mas ele também não fala inglês.

- Talvez fale francês. Minha mãe era francesa. Eu sou bilingue.

- Tratarei de saber se ele fala francês.

- Outra coisa. Não deve ter todos estes nomes escritos aqui nas fichas. Suponha que o capitão Segura passa aqui uma busca ... Seria horrível que a pele da pança do engenheiro Cifuentes fosse servir de matéria-prima para outra cigarreira. Basta escrever o número de ordem de cada um deles e escrever os pormenores suficientes para identificá-los depressa: 59 200/5/3 - pançudo e esposa ciumenta. Eu mesma preencherei as novas fichas e queimarei as antigas. Diabo! Onde estão as folhas de celulóide?

- Folhas de celulóide?

- Para fazerem os papéis arder mais depressa numa emergência. Oh, espero que Rudy as tenha guardado junto das camisas.

- Que carga de bricabraque trazem vocês!

- Agora temos de preparar a câmara-escura.

- Não tenho quarto interior.

- Hoje ninguém tem quartos interiores. Vim prevenida. Cortinas opacas e uma lâmpada vermelha. E, é claro, trouxe também um microscópio.

- Para que serve o microscópio?

- Microfotografia. Percebe, para quando há alguma coisa muito urgente que não pode ser transmitida por telegrama. Um plano, desenhos, coisas assim ... Londres, nesse caso, não deseja que se perca tempo enviando pela mala de Kingston. Pode mandar-se uma microfotografia numa simples carta. Cola-se a chapa no lugar de um ponto final e eles mergulham a folha na água até que o ponto se despega. Creio que você de vez em quando escreve cartas para Inglaterra, cartas comerciais ... ?

- As minhas cartas comerciais são enviadas para Nova Iorque.

- E aos amigos, aos parentes?

- Perdi o contacto com eles há mais de dez anos. Só escrevo a minha irmã. Claro que no Natal mando postais de boas-festas.

- Nem sempre será possível esperar pelo Natal.

- Às vezes mando selos a um sobrinho meu.

- Isso é excelente. Pode colocar-se uma microfotografia nas costas de um dos selos.

Rudy veio escada acima carregado com a sua cama de campanha, e o quadro na parede tornou a ser derrubado. Bea-trice e Wormold passaram ao aposento contíguo para dar espaço ao recém-chegado e sentaram-se na cama de Wormold. Do escritório vieram sons de pancadas e choques e houve qualquer coisa que se quebrou.

- Rudy não é muito hábil em trabalhos manuais - observou Beatrice. Relanceou o olhar pelo quarto.

- Nem uma fotografia! Não tem vida privada?

- Creio que não. Excepto no que diz respeito a Milly. E ao Dr. Hasselbacher.

- Londres não gosta do Dr. Hasselbacher.

- Londes que vá para o inferno - disse Wormold. Sentiu um súbito impulso de lhe descrever a ruína do apartamento do Dr. Hasselbacher e a destruição das suas fúteis experiências. Começou: - São pessoas como essa sua gente de Londres ... Desculpe. Você faz também parte dessa gente.

- E você também.

- Sim, claro. Eu também.

Rudy, do outro quarto, informou:

- Já armei a cama.

- Desejava que você não estivesse metida nisto - disse Wormold.

- É um modo de vida.

- Mas não é real. Toda esta espionice! Espiar o quê? Agentes secretos descobrindo factos que já todos sabem ...

- Ou inventando-os - atalhou ela. Wormold calou-se bruscamente, mas Beatrice continou sem mudar o tom de voz: - Há muitos outros empregos que não são reais. Desenhar novos modelos de saboneteiras de plástico, escrever slogans publicitários, ser deputado, fazer conferências na U. N. E. S. C. O. Mas o dinheiro é real. O que sucede fora do trabalho é real. A sua filha é real, a festa do aniversário foi real.

- Que faz você fora do trabalho?

- Agora nada de importância, mas quando o amava..• íamos aos cinemas, tomávamos café nos bares Expresso e sentávamo-nos no parque nas tardes de Verão.

- E que faziam?

- São precisos dois para que a realidade se conserve. estava constantemente a representar. Considerava-se um amante extraordinário. Às vezes chegava a desejar que ele ficasse impotente por uns tempos só para fazê-lo perder a presunção e a confiança. Não pode amar-se e ter confiança. Se amamos alguém, tememos perdê-lo, não é assim? - Fez uma pausa: - Oh, porque diabo lhe estou a contar tudo isto? Vamos é trabalhar. - Espreitou pela porta. - Rudy está deitado. Suponho que continua enjoado. Acha natural uma pessoa ficar enjoada durante tanto tempo? Não tem um quarto onde não haja uma cama? As camas fazem sempre as pessoas falar. - Abriu a porta. - Mesa posta para o almoço. Carnes frias e salada. Dois lugares. Quem fez isto? Uma fada?

- Uma mulher que vem por duas horas todas as manhãs.

- E o outro quarto?

- É o de Milly. Mas também lá existe uma cama.

 

A situação era sob todos os aspectos embaraçosa. Wor-mold tinha-se habituado a sacar verbas para despesas eventuais com o engenheiro Cifuentes e o professor, além dos salários mensais para si próprio, para o primeiro-maquinista do Juan Belmonte e para Teresa, a dançarina nua. O piloto bêbedo era pago em whisky. Wormold depositava o dinheiro na sua conta bancária, destinando-o a constituir mais tarde um dote para Milly. Naturalmente, para justificar estes pagamentos, era obrigado a redigir semanalmente uma série de relatórios. Com o auxílio de um grande mapa, do número semanal do Time, que concedia a Cuba um espaço generoso na secção destinada aos problemas do hemisfério ocidental, de diversas publicações económicas oficiais, e, acima de tudo, com a ajuda da imaginação, conseguia fabricar um relatório semanal, e até à chegada de Beatrice reservara as tardes de sábado para essa tarefa. O professor era autoridade económica, o engenheiro Cifuentes estava relacionado com as misteriosas construções nas montanhas do Oriente (as suas informações eram algumas vezes confirmadas, outras desmentidas pelo piloto da Cubana - uma contradição tem um certo sabor de autenticidade!). O primeiro-maquinista fornecia descrições dos movimentos proletários em Santiago, Matanzas e Cienfue-gos e relatava a crescente inquietação que se verificava entre as forças da marinha. Quanto à dançarina nua, fornecia pormenores picantes das vidas privadas e das aberrações sexuais do ministro da Defesa e do director dos Correios e Telégrafos. Os seus relatos eram excessivamente semelhantes aos artigos da Confidential sobre os astros de cinema, pois a imaginação de Wormold não era muito rica nesse capítulo.

Agora, com a vinda de Beatrice, Wormold tinha, além dos seus trabalhinhos das tardes de sábado, outros motivos de preocupação. Havia não só a aprendizagem de microfotografia, cujos conhecimentos básicos Beatrice insistia em ministrar-lhe, mas também os telegramas que era necessário inventar para conservar Rudy ocupado, e quantos mais telegramas expedia mais telegramas recebia. Londres importunava-o constantemente para obter fotografias das instalações no Oriente, e Beatrice estava cada vez mais impaciente por entrar em contacto com os seus agentes. “Era contra todas as regras - dizia-lhe ela - o chefe de um posto encontrar-se com os seus informadores.” De uma vez ele levou-a a jantar ao Country Club, e a má sorte quis que um empregado chamasse em voz bastante audível o engenheiro Cifuentes. Um sujeito alto, magro, narigudo e vesgo levantou-se de uma mesa vizinha.

- É este o engenheiro Cifuentes? - perguntou Beatrice.

- Sim.

- Mas tinha-me dito que era um homem de sessenta e cinco anos.

- Está muito bem conservado para a idade.

- E disse-me que ele tinha uma grande pança.

- Pança, não, penca. Você compreendeu mal.

Após este encontro ela passou a interessar-se pela personagem mais romântica da imaginação de Wormold - o piloto da Cubana. Trabalhava com entusiasmo para completar a sua ficha e exigia os pormenores mais íntimos da sua existência. Raul Dominguez possuía uma estranha personalidade. Perdera a mulher numa chacina durante a guerra civil espanhola e ficara desiludido com ambas as facções, mas em particular com os seus amigos comunistas. Quanto mais Beatrice perguntava a Wormold coisas de Raul, mais nítidas e curiosas se tornavam as singularidades do seu carácter e mais ansiosa ela ficava por entrar em contacto com ele. Às vezes Wormold sentia ciúmes de Raul e tentava denegri-lo. “O sujeito emborca uma garrafa de whisky todos os dias”, censurava ele.

- É a sua maneira de fugir à solidão e às recordações - justificava Beatrice. - Nunca desejou evadir-se?

- Creio que todos nós tentamos, uma vez por outra.

- Eu conheço bem essa espécie de solidão - disse ela com simpatia. - Ele bebe durante o dia?

- Não. O seu pior momento é às duas da madrugada. Quando acorda, as recordações assaltam-no e então bebe para esquecer. - O próprio Wormold se surpreendia da facilidade com que podia responder a qualquer pergunta sobre as suas personagens; estas pareciam viver no fundo da consciência. Bastava acender uma luz e lá estavam elas empenhadas nalguma acção característica. Pouco depois da chegada de Beatrice, Raul fez anos e ela sugeriu que lhe oferecessem uma caixa de garrafas de champanhe. - Nem lhes tocava - respondeu Wormold sem mesmo saber porquê. - Sofre de acidez. Quando bebe champanhe fica coberto de urticária. Em compensação, o professor não gosta de outra coisa.

- É um gosto caro.

- Horrível - disse Wormold sem sequer pensar na resposta. - Ele prefere o champanhe espanhol. - Às vezes sen-tia-se aterrorizado pela maneira como toda esta gente ia crescendo na sombra sem a sua colaboração. Que estaria fazendo Teresa neste momento? A sua descrição impudica da espécie de vida que fazia com os dois amantes chocava-o algumas vezes. Mas o problema imediato era Raul. Havia momentos em que Wormold pensava que teria sido mais fácil recrutar verdadeiros agentes.

Onde Wormold pensava melhor era no banho. Uma manhã, quando se concentrava, ouviu ruídos frementes de indignação, um punho martelando na porta, alguém descendo pesadamente as escadas, mas tinha-se apoderado dele a inspiração criadora e para além das nuvens de vapor que o cercavam o mundo não existia. Raul tinha sido demitido da Cubana por embriaguez. Estava desesperado, sem emprego; houve uma desagradável entrevista com o capitão Segura, que ameaçou...

- Sente-se bem? —perguntou Beatrice do lado de fora. - Está moribundo? Deito a porta abaixo?

Wormold enrolou uma toalha em torno da cintura e passou para o quarto de dormir, que servia agora de escritório.

- Milly saiu furiosa por não ter podido tomar banho - informou Beatrice.

- Este momento é daqueles que podem mudar o curso da História - disse Wormold. - Onde está Rudy?

- Bem sabe que o autorizou a ir passar fora o fim-de-se-mana.

- Não faz mal. Temos de enviar um telegrama pelo consulado. Dê-me o dicionário criptográfico.

- Está no cofre. Qual é a combinação? A data do seu nascimento, não é verdade?

- Mudei isso.

- Não, não. A combinação, é claro. - Acrescentou sentenciosamente:—Quanto menos pessoas conhecerem o segredo melhor para nós. Eu e Rudy é o suficiente. O que interessa, você sabe, é obedecer aos regulamentos. - Dirigiu-se ao quarto de Rudy e começou a rodar a manivela, quatro voltas para a esquerda, três voltas completas para a direita. A toalha começou a escorregar-lhe da cintura. - Além disso qualquer pessoa pode descobrir a data do meu nascimento no meu cartão de identidade. É extremamente arriscado. É a espécie de combinação que se tenta imediatamente.

- Adiante - incitou Beatrice. - Dê outra volta.

- Esta nova combinação é absolutamente segura. Ninguém consegue descobri-la.

- Porque espera?

- Parece que me enganei. Tenho de recomeçar.

- Não há dúvida de que a combinação parece segura.

- Por favor, não olhe. Enerva-me. - Beatrice afastou-se e voltou o rosto para a parede.

- Bem, quando eu puder olhar avise.

- É muito estranho. Deve haver qualquer coisa quebrada. Chame Rudy ao telefone.

- Impossível. Não faço ideia onde ele se encontra. Disse que ia para a praia do Varadero.

- Diabo.

- Talvez se me disser qual o critério de que se serviu para escolher o número, se é que se serviu de algum ...

- Era o número do telefone da minha tia-avó.

- Onde vive ela?

- Woodstock Road, 95, Oxford.

- Porque lhe veio à ideia a sua tia-avó?

- Bem, podia igualmente lembrar-me do meu tio-avô.

- Suponho que podemos pedir a informação para os serviços em Oxford.

- Não creio que isso resolva o problema.

- Como se chama ela?

- Esqueci-me.

- Não há dúvida de que a combinação é extraordinariamente segura.

- Nós conhecíamo-la pela tia Kate. De resto, ela já morreu há quinze anos e com certeza mudaram o número do telefone.

- Cada vez compreendo menos porque se foi lembrar desse número.

- Não lhe acontece haver certos números que se fixam na sua memória para sempre sem qualquer razão aparente?

- Bem, este não se fixou muito bem na sua.

- Tenho-o debaixo da língua. É assim qualquer coisa como 77 539.

- Já é pouca sorte haver cinco números em Oxford.

- Podíamos tentar todas as combinações de 77 539.

- Sabe quantas são? Calculo que pelo menos 600. Espero que o telegrama não seja urgente.

- Tenho a certeza de tudo menos de 7.

- Óptimo. Mas que 7? Creio que só temos de trabalhar agora com 6000 arranjos. Não sou formada em Matemática.

- Rudy deve tê-lo escrito por aí.

- Provavelmente em papel impermeável para poder levá-lo para o banho. Somos uma equipa eficiente, não há dúvida.

- Talvez - alvitrou Wormold - seja melhor usar o antigo código.

- Não é muito seguro. Contudo ... - Acabaram finalmente por encontrar o Charles Lamb debaixo da cama de Milly; uma página dobrada revelava que ela ia a meio de Os Dois Cavalheiros de Verona.

Wormold continuou:

- Escreva este telegrama. Tantos de Março de tantos.

- Nem sequer sabe a data?

- De 59 200/5 começa parágrafo A 59 200/5/4 expulso por embriaguez em serviço receia deportação para Espanha, onde a sua vida corre perigo stop

- Pobre Raul.

- Começa parágrafo B 59 200/5/4 ...

- Não poderei escrever simplesmente “ele”?

- Está bem. Ele. Ele está disposto nestas circunstâncias, e mediante razoável gratificação que lhe assegure refúgio na Jamaica, a pilotar avião particular voando sobre construções secretas para obter fotografia stop Começa parágrafo C. Terá de voar de Santiago para Kingston caso 59 200 possa providenciar aterragem neste último local stop

- Bem, estamos finalmente a fazer qualquer coisa, não é verdade? - disse Beatrice.

- Começa parágrafo D. Favor autorizar quinhentos dólares para alugar avião para 59 200/5/4 stop Mais duzentos dólares talvez necessários para subornar pessoal aeroporto de Havana stop Começa parágrafo E. Gratificação para 59 200/5/4 deve ser generosa atendendo considerável risco ser interceptado por aviões de patrulha sobre montanhas do Oriente stop Sugiro mil dólares stop

- Que linda soma de dinheiro - observou Beatrice.

- Terminou a mensagem. Comece a cifrar. De que está à espera?

- Estou a tentar descobrir uma frase adequada. Não gosto muito dos Contos, de Lamb.

- Mil e setecentos dólares - disse Wormold pensativamente.

- Devia ter pedido dois mil. O A. O. gosta de números redondos.

- Não quero que me julguem perdulário - disse Wormold. - Mil e setecentos dólares chegariam para pagar a Milly um ano de colégio na Suíça.

- Você parece muito satisfeito - observou Beatrice. - Não lhe ocorre que pode estar a mandar um homem ao encontro da morte?

Wormold pensou: “É isso mesmo o que estou a fazer.”

- Avise o consulado de que este telegrama deve ter prioridade absoluta - retorquiu.

- É um grande telegrama - observou Beatrice. - Parece-lhe que esta passagem serve? “Apresentou Polidoro e Cadwal ao rei dizendo-lhe que eles eram os filhos que perdera, Guidério e Arvirago.” Há ocasiões em que Shakespeare me parece um pouco obtuso.

 

Decorrida uma semana, Wormold levou Beatrice a cear a um restaurante, nas vizinhanças do porto, especializado em pratos de peixe. A autorização chegara, embora com um corte de duzentos dólares para que o A. O. pudesse, afinal de contas, ter o seu número redondo. Wormold pensava em Raul dirigindo-se de carro ao aeroporto para começar o seu arriscado voo. A história ainda não havia terminado. Tal como na vida real, os acidentes podem acontecer às personagens da imaginação. Talvez Raul fosse detido antes de embarcar, talvez um carro da polícia o detivesse no caminho. Podia desaparecer assim nos antros de tortura do capitão Segura. Nenhuma notícia viria nos jornais. Wormold avisaria Londres de que ele próprio seria descoberto se Raul fosse forçado a falar. O posto de rádio seria desmantelado depois de enviar a última mensagem e as folhas de celulóide estariam a postos para a incineração final... Ou talvez Raul levantasse voo sem incidente e nunca se chegasse a saber o que lhe tinha sucedido por cima das montanhas do Oriente. Uma coisa apenas seria certa em toda a história: Raul nunca chegaria à Jamaica e portanto não haveria quaisquer fotografias.

- Em que está a pensar? - perguntou Beatrice. Ele nem sequer tocara na sua lagosta recheada.

- Pensava em Raul. - O vento soprava do Atlântico. O Castelo do Moro firmava-se no meio da baía como um transatlântico colhido de través pela nortada.

- Ansioso?

- Claro que estou ansioso. Se Raul tivesse partido à meia-noite, reabastecer-se-ia de gasolina de madrugada em Santiago, onde teria facilidades no aeroporto, pois todos os que vivem na província do Oriente são rebeldes até ao fundo da alma. Logo que houvesse claridade bastante para tirar as fotografias e antes que as patrulhas aéreas entrassem em acção, começaria o voo de reconhecimento por sobre as montanhas e a floresta.

- Ele bebeu?

- Prometeu-me que não bebia. Mas sabe-se lá!

- Pobre Raul.

- Nunca levou uma vida divertida, não é verdade? Devíamos tê-lo apresentado a Teresa.

Ele olhou-a desconfiado, mas ela parecia profundamente atarefada com a lagosta.

- Era pouco seguro, não acha?

- Que o Diabo leve a segurança - protestou ela.

Depois da ceia regressaram a pé ao longo do passeio oposto ao mar na Avenida de Maceo. Havia pouca gente na noite húmida e o tráfego era escasso. As vagas do Atlântico vinham desfazer-se no quebra-mar. A espuma varria a estrada, atravessava as quatro pistas de tráfego e ia lançar cordas de água sobre os pilares corroídos por debaixo dos quais eles iam caminhando. As nuvens vinham de Oriente, numa desfilada, e sentia-se uma parte da lenta erosão de Havana. Quinze anos é muito tempo.

- Uma dessas luzes lá no céu pode ser ele. Como deve sentir-se só!—disse Wormold.

- Você exprime-se como um novelista - observou ela. Ele deteve-se debaixo de um dos pilares e perscrutou-lhe o rosto com ansiedade e suspeita

- Que quer dizer?

- Oh, nada de especial. Algumas vezes penso que você trata os seus agentes como se fossem apenas personagens de um livro. É um homem de carne e osso que está lá em cima num avião, não é verdade?

- Isso não é propriamente fazer-me um elogio.

- Oh, esqueça o que eu disse. Fale-me de alguém que de facto lhe interesse. A sua mulher. Fale-me dela.

- Era bonita.

- Custou-lhe perdê-la?

- Claro. Quando penso nela ...

- A mim não me custou perder o Peter.

- Peter?

- O meu marido. O homem da U.N.E.S.C.O.

- Então é feliz. É livre.

Olhou para o relógio e depois para o céu.

- Ele deve estar a estas horas sobre Matanzas. A menos que tenha tido alguma complicação.

- Foi você quem lhe fixou o itinerário?

- Oh, não! É ele quem decide o caminho que deve seguir.

- E é ele também quem decide o seu próprio fim?

Algo na voz dela - um traço de amizade - surpreendeu-o outra vez. Seria possível que ela já tivesse suspeitas? Agora caminhavam muito depressa. Passaram pelo Cármen Bar e pelo Chá-Chá-Chá - letreiros brilhantes pintados nas velhas dobradiças da fachada oitocentista! Lindos rostos espreitavam de dentro de quartos sórdidos, olhos castanhos, cabelos negros, descendentes mestiças de espanhol e índia. Viver em Havana é viver numa fábrica que transforma a beleza humana num mealheiro. Mas ele não queria beleza. Estacou debaixo de um candeeiro e olhou de frente os olhos dela. Queria a verdade.

- Para onde vai?

- Não sabe? Está tudo planeado, como o voo de Raul?

- Nada está planeado; estamos a passear, não é tudo?

- Não prefere ir sentar-se junto do rádio? Rudy está de serviço.

- Não teremos notícias antes da madrugada.

- Então não planeou ainda a última mensagem, a queda em Santiago?

Wormold sentia os lábios ressequidos pelo sal e pelo receio. Parecia-lhe que ela tinha descoberto tudo. Iria ela denunciá-lo a Hawthorne? Que fariam “eles”? Não podiam puni-lo legalmente, mas podiam impedi-lo de regressar a Inglaterra. Pensou: “Ela regressa no próximo avião, a vida volta a ser como dantes, e, claro, é melhor assim.” A sua vida pertencia a Milly. Disse então: - Não percebo o que quer dizer. - Uma grande vaga desfez-se sobre o quebra-mar da avenida e caiu como uma árvore de Natal coberta de neve artificial. Depois desapareceu e outra árvore ergueu-se mais abaixo, para os lados do Nacional. Continuou:—Tem estado estranha toda a noite. - Não havia interesse em adiar; se o jogo estava perto do fim, era melhor acabá-lo já. Insistiu: —Que tem na cabeça?

- Quer dizer que ele não vai cair no aeroporto ou pelo caminho?

- Como hei-de saber?

- Você comportou-se a noite inteira como se soubesse. Não fala dele como quem fala de uma pessoa viva. Tem estado a escrever a sua elegia como um mau novelista preparando um efeito.

O vento fustigava-os. Continuou:

- Nunca se cansa de ver os outros correrem riscos? Para quê? Para se enquadrarem numa história de jornal infantil.

- Você também entra na historieta!

- Mas não acredito nela, como Hawthorne. - Acrescentou com paixão: - Se fosse homem, preferia ser escroque a ser néscio ou atrasado mental. Não ganhava o suficiente com os seus aspiradores para se manter fora de tudo isto?

- Não. Tenho de pensar em Milly.

- Suponha que Hawthorne o não tinha encontrado.

Ele gracejou miseravelmente.

- Talvez me casasse outra vez, por dinheiro.

- Casaria outra vez? - Ela parecia decidida a manter-se num plano sério.

- Bem - respondeu ele. - Não sei. Milly não o consideraria um verdadeiro casamento e não podem ofender-se os princípios dos nossos próprios filhos. Vamos até casa ouvir rádio?

- Mas não espera qualquer mensagem, não é verdade? Disse há pouco que não.

Ele respondeu evasivamente:

- Nada espero nas próximas três horas. Mas ele deve telegrafar antes de aterrar. - O mais fantástico é que ele começava a sentir a tensão da expectativa. Quase desejava que uma verdadeira mensagem chegasse desse céu tempestuoso.

- Promete-me que nada está a preparar? - disse Beatrice.

Wormold evitou responder-lhe voltando-se para o Palácio da Presidência, com as suas janelas às escuras, onde o presidente não dormia desde o último atentado contra a sua vida, e aí, descendo a calçada, com os ombros encolhidos para abrigar o rosto do açoite da espuma, vinha o Dr. Hasselbacher. Ia provavelmente do Wonder Bar a caminho de casa.

- Doutor Hasselbacher - chamou Wormold.

O velho levantou os olhos. Por um momento Wormold pensou que o médico ia voltar as costas sem uma palavra.

- Que sucedeu, Hasselbacher?

- Oh, é você, Mister Wormold. Estava justamente a pensar em si. Falei no Diabo - disse ele tentando gracejar, mas Wormold era capaz de jurar que o Diabo lhe tinha metido medo.

- Lembra-se de Mistress Severn, a minha secretária?

- Ah, a festa de aniversário, sim, e o sifão. Que faz a pé tão tarde?

- Saímos para cear ... demos um passeio ... e você?

- A mesma coisa.

Do vasto céu encapelado chegou espasmodicamente o som de um motor, aumentou, afastou-se e fundiu-se no rugido do vento e do mar. O Dr. Hasselbacher observou:

- O avião de Santiago chega muito atrasado. O tempo deve estar mau lá para Oriente.

- Espera alguém? - perguntou Wormold.

- Não. Não. Não espero. Venham tomar uma bebida ao meu apartamento.

Os sinais de violência tinham desaparecido. Os quadros tinham voltado aos seus lugares, as cadeiras tubulares estavam arrumadas em volta da sala como tímidos visitantes. O apartamento fora reconstruído como um cadáver estropiado para o funeral. O Dr. Hasselbacher serviu whisky.

- É óptimo, Mister Wormold, ter uma secretária - disse ele. - Ainda há pouco tempo andava preocupado, bem me lembro. Os negócios iam mal. Aquele novo aspirador ...

- Os negócios têm altos e baixos.

Reparou pela primeira vez na fotografia do jovem Dr. Hasselbacher em uniforme de oficial da I Guerra Mundial; era talvez um dos retratos que os assaltantes tinham retirado da parede.

- Não sabia que tinha estado no exército, Hasselbacher.

- Ainda era estagiário quando a guerra começou, Mister Wormold. Foi uma coisa que me impressionou bastante - tratar homens para que eles pudessem ir morrer mais cedo. Quando se trata uma pessoa, deve ser para ela viver mais tempo.

- Há quanto tempo saiu da Alemanha, doutor Hasselbacher? - perguntou Beatrice.

- Em 1934. Portanto, posso responder não culpado aquilo em que pensa, minha senhora.

- Não era isso o que eu queria dizer.

- Então peço-lhe perdão. Pergunte a Mister Wormold. Houve um tempo em que eu não era tão desconfiado. Vamos ouvir um pouco de música?

Colocou um disco do Tristão. Wormold pensava na mulher. Ela era agora ainda menos real que o próprio Raul. Ignorava tudo do amor e da morte, só lhe interessavam o mundo do Woman's Home Journal, o mundo dos anéis de noivado com diamantes e o sono das sestas prolongadas. Contemplando Beatrice Severn, ela parecia-lhe pertencer a esse mundo patético dos filtros encantados da jornada sem esperança desde a Irlanda, da submissão na floresta. O Dr. Eíassel-bacher ergueu-se abruptamente e desligou o fio eléctrico.

- Desculpem-me. Estou à espera de uma chamada. A música faz demasiado ruído.

- Um doente?

- Não é exactamente um doente. - Serviu mais whisky.

- Recomeçou as suas experiências, Hasselbacher?

- Não. - Pôs-se a olhar desesperadamente em redor.- Desculpem. Não há mais soda.

- Gosto de whisky puro - disse Beatrice. Aproximou-se da estante. - Lê alguma coisa fora da sua especialidade, doutor Hasselbacher?

- Muito pouco. Heine, Goethe. Alemães apenas. Lê alemão, Mistress Severn?

- Não. Mas tem aqui livros ingleses.

- Um doente ofereceu-mos para pagamento de uma conta. Ainda não os li. Aqui tem o seu whisky, Mistress Severn.

Ela afastou-se dos livros e pegou no copo.

- É esta a sua casa, doutor Hasselbacher? - Examinava agora a litografia vitoriana colorida pendurada ao lado do retrato do jovem capitão Hasselbacher.

- Nasci aí. Sim. É uma cidade muito pequena, velhas muralhas, um castelo em ruínas...

- Estive lá antes da guerra. Fui com meu pai. É perto de Leipzig, não é? - perguntou Beatrice.

- Sim, Mistress Severn - disse o Dr. Hasselbacher observando-a penetrantemente. - É perto de Leipzig.

- Espero que os Russos a não modifiquem.

O telefone começou a tocar no vestíbulo. Ele hesitou um instante.

- Desculpe, Mistress Severn - disse.

Quando saiu da sala fechou a porta.

- Leste ou Oeste - observou Beatrice -, mas a Alemanha acima de tudo.

- Suponho que quer mandar dizer isto para Londres. Mas conheço-o há quinze anos e ele vive aqui há mais de vinte. É um bom velho, o melhor amigo... - A porta abriu-se e o Dr. Hasselbacher entrou.

- Desculpem. Não me sinto bem. Virão outro dia ouvir música, sim? - disse.

Deixou-se cair pesadamente na cadeira, pegou no whisky, tornou a pousar o copo. Havia gotas de suor na testa, mas isso podia ser porque a noite estava quente e húmida.

- Más notícias? - perguntou Wormold.

- Sim.

- Posso ajudá-lo?

- Você!—fez o Dr. Hasselbacher. - Não. Você não pode ajudar-me nem Mistress Severn.

- Um doente? - o Dr. Hasselbacher abanou a cabeça. Enxugou a testa com o lenço e suspirou:

- Quem é que não está actualmente doente?

- É melhor retirarmo-nos.

- Sim, é melhor. É o que eu disse. Devíamos tratar das pessoas somente para que elas vivessem mais tempo.

- Não compreendo.

- Deixem-me em paz, sim? - rogou o Dr. Hasselbacher.- Desculpem. Todos pensam que a morte não deve impressionar os médicos. Mas eu sou um mau médico.

- Quem morreu?

- Houve um desastre- explicou o Dr. Hasselbacher. - Apenas um desastre. Claro que foi um desastre. Um carro voltou-se na estrada, perto do aeroporto. Um jovem ... - Acrescentou furiosamente: - Há sempre acidentes, não é verdade? Em todos os lugares acontecem coisas destas. E desta vez foi com certeza um acidente. Ele era muito amigo da bebida.

Beatrice então perguntou:

- O nome dele não era, por acaso, Raul?

- Sim - respondeu o Dr. Hasselbacher. - Chamava-se Raul.

 

Wormold abriu a porta. À luz do lampião da rua viam-se vagamente arrumadas nas prateleiras em redor da loja, como urnas num jazigo, as caixas dos aspiradores. Entraram e ele dirigiu-se para a escada. Beatrice segredou:—Espere. Parece-me ouvir ... - Eram as primeiras palavras pronunciadas desde que tinham saído de casa do Dr. Hasselbacher.

- Que se passa?

Ela apoderou-se do primeiro objecto metálico que encontrou sobre o balcão; segurou-o como se fosse um bastão e confessou:

- Tenho medo.

“E eu ainda mais - pensou ele. - Podem materializar-se os seres imaginários? Que espécie de existência é a deles? Teria Shakespeare sabido da morte de Duncan nalguma taberna ou escutado o bater de dedos na porta do seu quarto quando acabou de escrever Macbeth?” Parou no meio da loja e trauteou para ganhar coragem:

Dizem que a Terra é redonda, ofendem a minha loucura.

- Caluda - disse Beatrice. - Há alguém lá em cima.

Wormold pensou que as pessoas vivas que faziam ranger tábuas não o assustavam; só temia verdadeiramente as suas personagens imaginárias. Galgou as escadas e foi bruscamente detido por uma sombra. Sentiu-se tentado a desafiar imediatamente todas as suas criações e a destruí-las: Teresa, o primeiro-maquinista, o professor, o engenheiro.

- Como chegas tarde - disse a voz de Milly.

Era apenas ela que estava ali na passagem do quarto para a casa de banho.

- Fomos passear.

- Trouxeste-a contigo? - perguntou Milly.

- Porquê?

Beatrice escalava a escada com o improvisado bastão cautelosamente em guarda.

- Rudy está acordado?

- Não me parece.

Beatrice observou:

- Se tivesse havido alguma mensagem, ele teria ficado à nossa espera.

Wormold pensou que, se as suas personagens estavam suficientemente vivas para morrer, eram decerto bastante reais para enviar mensagens. Abriu a porta do escritório. Rudy moveu-se.

- Alguma mensagem, Rudy?

- Não, senhor.

- Perderam o melhor da noite - exclamou Milly.

- Que sucedeu?

- A polícia andou a fazer rusgas por toda a cidade. Deviam ter ouvido as sereias. Pensei que fosse uma revolução e por isso telefonei ao capitão Segura.

- Sim?

- Alguém tentou assassinar uma pessoa que saía do Ministério do Interior. Devem tê-la confundido com o ministro. Dispararam de dentro de um carro e fugiram.

- Quem era?

- Ainda não o apanharam.

- Quero dizer, a vítima.

- Ninguém de importância. Mas parecia-se com o ministro. Onde cearam?

- No Vitória.

- Comeram lagosta recheada?

- Sim.

- Estou tão contente por não te pareceres com o ministro, papá! O capitão Segura disse-me que o doutor Cifuen-tes ficou tão assustado que se urinou nas calças e depois foi embebedar-se para o Country Club.

- O doutor Cifuentes?

- Tu conheces, o engenheiro.

- Dispararam contra ele?

- Foi por engano.

- Sentemo-nos - disse Beatrice exprimindo a necessidade que ambos sentiam de um ponto de apoio.

- Na sala de jantar ... - alvitrou ele.

- Não quero uma cadeira. Quero qualquer coisa menos dura. É possível que venha a chorar.

- Bem, se não se importa de ir para o meu quarto - disse ele olhando de soslaio Milly.

- Conhece o doutor Cifuentes? - perguntou Milly com simpatia.

- Não. Apenas de vista.

- Escuta, Milly - interrompeu Wormold. - É favor ires deitar-te. Eu e Beatrice temos de trabalhar.

- Trabalhar?

- Sim, trabalhar.

- É tardíssimo para trabalhar.

- Pagam-me horas extraordinárias - explicou Beatrice.

- Está a iniciar-se no negócio dos aspiradores? - perguntou Milly. - Isso que tem na mão é um pulverizador.

- Ah, sim? Peguei-o para o caso de ter que bater com ele na cabeça de alguém.

- Não serve para esse efeito - explicou Milly. - Tem um tubo telescópico.

—- E que tem isso?

- Pode abrir-se quando menos convém.

- Milly, por favor ... - disse Wormold. - São quase duas horas.

- Não te preocupes. Já vou. E tenciono rezar pelo doutor Cifuentes. Não é graça levar um tiro. A bala atravessou toda uma parede de tijolo. Penso no que seria se atingisse o doutor Cifuentes.

- Reze também por um homem chamado Raul - pediu Beatrice. - A esse apanharam-no.

Wormold deixou-se cair pesadamente na cama e fechou os olhos.

- Nada percebo - disse ele. - Nada. É uma coincidência. Tem de ser.

- Estão a tornar-se perigosos, sejam quem forem.

- Mas porquê?

- A espionagem é uma profissão perigosa.

- Mas Cifuentes não era realmente ... Quero dizer, não tinha importância.

- Essas construções na província do Oriente são importantes. Os seus agentes parece que adquiriram o hábito de se fazer abater. Como os terão descoberto? Creio que é necessário avisar o professor Sánchez e a rapariga.

- Que rapariga?

- A dançarina nua.

- Mas como? - Não podia explicar-lhe que não tinha agentes, que nunca se encontrara com Cifuentes ou com o professor Sánchez, que Teresa e Raul nem mesmo existiam' Raul fora chamado à vida apenas para morrer.

- Que hei-de fazer agora, Beatrice?

- Penso que os seus agentes se devem ocultar por um tempo. Aqui não, é claro. Falta espaço e é pouco seguro. Não poderia esse seu primeiro-maquinista ocultá-los a bordo?

- Vai agora no mar de viagem para Cienfuegos.

- Ou, o que é mais provável, já o mataram - disse ela pensativamente. - Não imagino como conseguimos chegar a casa.

- Que quer dizer com isso?

- Podiam ter-nos morto durante o caminho, ou talvez nos utilizem como isca. Claro que quando a isca não tem utilidade deita-se fora.

- Que mulher macabra você me saiu.

- Oh, nós estamos a viver de novo no mundo das histórias dos jornais infantis. Deve considerar-se feliz.

- Porquê?

- Podíamos estar a viver no mundo do Sunday Mirror. O mundo é moldado actualmente pelas revistas populares. O meu marido pertence ao Encounter. O problema está em saber-se a que revista eles pertencem.

- Eles?

- Admitamos que pertencem também a um jornal infantil. Serão russos, alemães, americanos, ou o quê? Muito provavelmente cubanos. Essas plataformas de betão devem ser obra do Governo, não é verdade? Pobre Raul. Espero que tenha morrido sem sofrimento.

Wormold sentiu-se tentado a contar-lhe tudo, mas o que era “tudo”? Nem ele já sabia. Raul tinha sido morto. Hassel-bacher dissera-o.

- Vamos primeiro ao Teatro Xangai - disse ela. - Ainda está a funcionar?

- A segunda sessão ainda não acabou.

- Se a polícia não chegar antes de nós. Claro que não utilizaram a polícia contra Cifuentes. Era provavelmente demasiado importante. É necessário evitar o escândalo quando se pretende matar alguém.

- Ainda não tinha considerado as coisas nesse aspecto.

Beatrice apagou a luz do candeeiro e foi até à janela.

- Não há uma porta para as traseiras?

- Não.

- Temos de mandar abrir uma - afirmou ela ligeiramente como se também percebesse de arquitectura. - Conhece um negro que arrasta a perna?

- É o Joe.

- Vai a passar na rua.

- Ele vende postais pornográficos. Naturalmente recolhe a casa.

- Claro que não pode segui-lo assim, com aquele defeito. Mas eles podem tê-lo utilizado como indicador. De qualquer forma temos de arriscar-nos. É óbvio que decidam fazer a limpeza esta noite. As senhoras primeiro. O professor pode esperar.

- Mas eu nunca me encontrei com Teresa no teatro. Ela até é capaz de usar outro nome, um nome artístico.

- De qualquer forma é capaz de reconhecê-la, mesmo nua, não é verdade? Embora eu tenha a impressão de que as mulheres nuas são como as japonesas: parecem-se todas.

- Você não precisa de lá ir.

- Devo ir. Se um de nós for detido, o outro pode continuar para diante.

- Referia-me ao Xangai. Ir lá não é exactamente o mesmo que ler uma história num jornal infantil.

- O casamento também não é - disse ela -, nem mesmo na U. N. E. S. C. O.

 

O Xangai ficava numa rua estreita que partia de Zanja, rodeada de profundas barreiras. Um cartaz anunciava Posiciones e os bilhetes eram por qualquer razão vendidos no passeio exterior, talvez por falta de espaço para uma bilheteira, pois no foyer estava instalada uma livraria de obras pornográficas para utilização daqueles que queriam ocupar agradavelmente os intervalos. Os negros corretores de mulheres observaram o casal com curiosidade. Não estavam habituados a encontrar europeus no local.

- Como me sinto longe da pátria - observou Beatrice.

Os lugares custavam um peso e vinte e cinco e havia poucos vagos no grande salão. O arrumador ofereceu a Wor-mold uma selecção de postais pornográficos por um peso. Quando Wormold recusou, o homem tirou do bolso outra colecção.

- Compre-os se lhe apetecer - disse Beatrice. - Se é para eu não ver, esteja sossegado que eu olho para o palco.

- A diferença entre o palco e os postais não é grande - respondeu Wormold. - O arrumador perguntou se a senhora queria fumar um cigarro de marijuana.

- Neine, danke - fez Beatrice numa confusão de idiomas.

Em cada um dos lados do palco havia anúncios de clubes das redondezas onde podiam encontrar-se lindas raparigas. Um aviso em espanhol e em mau inglês proibia os espectadores de molestar as dançarinas.

- Qual delas é Teresa? - perguntou Beatrice.

- Creio que a gorda, de máscara - disse Wormold ao acaso.

Ela ia mesmo a sair com um balancear das suas enormes nádegas nuas e a audiência batia palmas e assobiava. As luzes apagaram-se e um écran desceu. Principiou um filme perfeitamente decente no início. Mostrava um ciclista, um cenário de bosque, um pneu furado, um encontro casual, um cavalheiro erguendo um chapéu de palha; havia abundância de riscos na película e de fumarada na sala.

Beatrice conservava-se calada. Criava-se uma singular intimidade entre eles pelo facto de assistirem juntos àquela exibição de amor. Análogos movimentos do corpo tinham em tempos significado para cada um deles mais do que tudo quanto o mundo lhes pudesse oferecer. O acto de cio e o acto de amor são o mesmo, não se pode falsificar como se falsifica um sentimento.

As luzes acenderam-se. Ficaram ambos calados.

- Tenho os lábios secos - disse por fim Wormold.

- Fiquei sem saliva. Podemos ir agora aos bastidores falar com Teresa.

- Há ainda outros filmes depois deste e mais dançarinas.

- Não aguento outro filme - confessou Beatrice.

- Não nos deixam entrar nos bastidores antes de terminar o espectáculo.

- Vamos para a rua esperar. Pelo menos ficamos a saber se fomos seguidos.

Abandonaram a sala quando o segundo filme começou. Foram os únicos a levantar-se, portanto se alguém andasse a vigiá-los devia ter ficado à espera na rua, nenhum candidato evidente havia entre os chauffeurs e os alcoviteiros. Um homem dormia encostado a um candeeiro com um bilhete de lotaria enrolado atravessado em volta do pescoço. Wormold recordou a noite com o Dr. Hasselbacher. Fora nessa noite que aprendera uma utilidade, inédita para ele, dos Contos de Shakespeare, de Lamb. O pobre Hasselbacher apanhara uma bebedeira. Wormold recordava-se de como o encontrara afundado numa poltrona do hall quando desceu do quarto de Hawthorne. Perguntou então a Beatrice: é fácil decifrar uma mensagem quando se conhece o livro-chave?

- Para um perito não é impossível - respondeu ela. - É uma questão de paciência. - Aproximou-se do vendedor de lotaria e levantou o bilhete. O homem não acordou. - E difícil ler o número de lado - declarou Beatrice.

Ele tinha trazido o livro debaixo do braço, no bolso ou na pasta? Pousara o livro enquanto ajudava o Dr. Hasselbacher a levantar-se? De nada conseguia recordar-se e estas suspeitas eram injustas.

- Estava a pensar numa coincidência curiosa - disse Bea-trice. - O doutor Hasselbacher leu os Contos, de Lamb, na nossa edição. - Era como se o treino que ela tinha recebido incluísse telepatia!

- Viu-o em casa dele?

- Sim.

- Mas se a coisa tivesse significado - protestou ele - o exemplar não estaria à vista.

- Talvez ele quisesse preveni-lo. Recorda-se, foi ele quem nos levou lá. Falou-nos de Raul.

- Ele não podia prever que nos ia encontrar.

- Tem a certeza?

Wormold queria protestar, dizer-lhe que nada daquilo fazia sentido, que Raul não existia, que Teresa também não existia, e que o melhor que ela tinha a fazer era arrumar as malas e partir e tudo se resumiria numa história sem pés nem cabeça.

- Estão a sair - observou Beatrice.

Entraram por uma porta lateral que dava para um grande vestiário. A passagem era iluminada por uma lâmpada nua que ardia há muitos dias e muitas noites. O acesso estava quase bloqueado por caixas de lixo, e um negro com uma vassoura ia varrendo pedacinhos de algodão manchados de pó-de-arroz, carmim e outras coisas ambíguas; o lugar cheirava a rebuçados de frutas. Talvez no final de contas tivesse sorte e nenhuma Teresa houvesse lá, mas recriminava-o por ter escolhido o nome de uma santa tão popular. Empurrou uma porta e encontrou-se num inferno medieval cheio de fumo e de mulheres nuas.

Voltou-se para Beatrice e alvitrou:

- Não acha melhor ir para casa?

- É você quem precisa de protecção aqui - disse ela.

Ninguém reparou neles. A máscara da mulher gorda pendia-lhe de uma das orelhas enquanto bebia um copo de vinho com uma das pernas apoiada numa cadeira. Uma rapariga muito magra com costelas que lembravam teclas de piano calçava as meias. Seios balouçando, nádegas caídas, cigarros meio consumidos pousados em pires; havia uma atmosfera densa de papel queimado. Um homem sobre uma escada de mão consertava qualquer coisa com uma chave de parafusos.

- Onde está ela? - perguntou Beatrice.

- Não a vejo. É capaz de estar doente ou na companhia do amante.

O ar quente e denso fustigava-os. Moléculas de pó vinham assentar no solo como a cinza de um braseiro.

- Experimente chamar por ela.

Wormold gritou timidamente:

- Teresa. - Ninguém lhe ligou. Tentou outra vez e o homem da chave de parafusos olhou para ele.

- Pasa algo? - perguntou.

Wormold explicou em espanhol que estava à procura de uma rapariga chamada Teresa. O homem sugeriu que Maria serviria muito bem. Apontou com a chave para a mulher gorda.

- Que diz ele?

- Parece que não conhece Teresa.

O sujeito entretanto sentara-se no topo da escada e começou a fazer um discurso. Afirmou que Maria era a melhor mulher que havia em Havana. Pesava nua cem quilos.

- É evidente que Teresa não está cá - explicou Wormold, aliviado.

- Teresa! Teresa! Que quer de Teresa?

- Sim. Que quer de mim? - perguntou a magricela aproximando-se com uma das meias na mão. Os seus pequeninos seios não eram maiores que duas peras.

- Quem é você?

- Soy Tereza.

Beatrice perguntou:

- Esta é que é Teresa? Mas você disse que ela era gorda como a outra, a da máscara.

- Não, não - disse Wormold. - Esta não é a Teresa. É a irmã. Soy significa irmã. - Acrescentou: - Vou mandar transmitir-lhe uma mensagem. - Pegou no braço da rapariga e afastou-se um pouco. Tentou explicar-lhe em espanhol que devia precaver-se.

- Quem é você? Não compreendo.

- Houve um engano. É uma história muito longa. Há pessoas que lhe querem fazer mal. Por favor, fique em casa por uns dias. Não venha ao teatro.

- Preciso de vir. É aqui que encontro os meus clientes.

Wormold puxou de um punhado de notas. Perguntou:

- Tem parentes?

- Tenho minha mãe.

- Vá para junto dela.

- Mas ela vive em Cienfuegos.

- Tem aqui dinheiro suficiente para ir para Cienfuegos. -- Agora todos o ouviam.

O homem da escada de mão tinha-se aproximado. Wormold viu Beatrice fora do círculo, tentando aproximar-se para ouvir as suas palavras.

O homem da chave de parafusos meteu-se de permeio.

- Esta rapariga pertence a Pedro. Não pode levá-la assim. Tem que falar primeiro com Pedro.

- Não quero ir para Cienfuegos - disse a rapariga.

- Lá estará em segurança.

Ela apelou para o homem:

- Ele está a meter-me medo. Não consigo perceber o que ele quer. - Mostrou os pesos. - Isto é muito dinheiro.- Dirigiu-se a Wormold: - Eu sou uma rapariga honesta.

- Não e por haver muito trigo que a colheita é má - sentenciou a mulher gorda solenemente.

- Onde está o teu Pedro? - perguntou o homem.

- Está doente. Porque me deu este homem tanto dinheiro? Eu sou uma rapariga honesta. Toda a gente sabe que o meu preço são quinze pesos. Não sou aldrabona.

- Os cães magros apanham pulgas - disse a mulher gorda. Parecia conhecer um provérbio adequado a cada circunstância.

- Que sucede? - perguntou Beatrice.

Alguém soprou: “Pst, pst”. Era o negro que estivera a varrer a passagem. Lançou um aviso: “Polícia!”

- Oh, diabo!—exclamou Wormold. - Temos o caldo entornado. Tenho de levá-la imediatamente daqui para fora. - Ninguém parecia excessivamente perturbado. A gorda escorripichou o vinho e vestiu um par de calças. Teresa enfiou a outra meia.

- Não se preocupe comigo - disse Beatrice. - Você tem de tirá-la daqui.

- Que quer a polícia? - perguntou Wormold ao homem da escada.

- Uma rapariga - respondeu o outro laconicamente.

- Quero sair com esta rapariga - disse Wormold. - Não existe qualquer outra saída?

- Com a polícia há sempre outra saída.

- Onde?

- Tem cinquenta pesos?

- Sim.

- Dê-os a Miguel. Hi, Miguel - chamou ele o negro.- Diz aos tipos para adormecerem durante três minutos. E, agora, quem quer safar-se?

- Prefiro ir parar à esquadra - declarou a gorda. - Mas primeiro preciso de vestir-me decentemente. - Apertou o soutien.

- Venha comigo - disse Wormold a Teresa.

- Para quê?

- Mas não compreende? Eles procuram-na.

- Não creio - disse o homem. - Ela é magra de mais. É melhor que você se apresse. Cinquenta pesos não dão para muito.

- Vá, vista o meu casaco - disse Beatrice.

Pôs o abafo sobre os ombros da rapariga, que até então se limitara a calçar as meias. A rapariga protestou:

- Mas eu quero ficar.

O homem deu-lhe uma palmada nas nádegas e empurrou-a:

- Aceitaste o dinheiro dele; agora vai. - Levou-os para uma pequena e fétida retrete e fê-los passar depois por uma janela.

Encontraram-se então na rua. Um polícia de guarda à saída do teatro olhou ostensivamente para outro lado. Um alcoviteiro apontou para o automóvel de Wormold. A rapariga repetiu:

- Quero ficar -, mas Beatrice empurrou-a para o assento traseiro e foi sentar-se a seu lado. - Eu grito - ameaçou a rapariga e debruçou-se para fora da janela do carro.

- Não seja idiota - disse Beatrice, puxando-a para dentro. Wormold pôs o carro em andamento.

A rapariga gritou, mas hesitantemente. O polícia voltou as costas e pôs-se a olhar para o outro lado. Os cinquenta pesos estavam a produzir efeitos concretos. Voltaram à direita e dirigiram-se para o lado do mar. Nenhum carro os seguia. A coisa afinal fora fácil. A rapariga, agora já sem qualquer alternativa, ajustou modestamente o casaco e reclinou-se confortavelmente para trás. Observou:

- Hay mucha corriente.

- Que diz ela?

- Está a queixar-se do vento - traduziu Wormold.

- Ela não parece muito grata pelo que fazemos. Onde está a irmã?

- Com o director dos Correios e Telégrafos, em Cienfu gos. Claro que a posso levar lá. Chegaremos de madrugada Mas há a Milly.

- Há mais do que a Milly. Esqueceu-se do professor Sánchez.

- O professor Sánchez pode esperar.

- Eles estão a agir depressa.

- Não sei onde ele mora.

- Eu sei. Vi numa lista do Country Club antes de sairmos

- Você vai com esta rapariga para casa e espera lá por mim.

Desembocaram na avenida marginal.

- Volte à esquerda aqui - disse Beatrice.

- Vou levá-la a casa.

- É melhor ficarmos juntos.

- Milly...

- Não quer comprometê-la nisto, ou quer?

Relutantemente Wormold voltou à esquerda.

- Para onde?

- Vedado - informou Beatrice.

 

Os arranha-céus da cidade nova projectavam-se diante deles como estalactites de açúcar batidas pelo luar. Via-se um grande H contra o céu claro, como o monograma no bolso de Hawthorne, mas aqui também nenhum símbolo aristocrático havia - era apenas um anúncio de Mister Hilton.

O vento sacudia o carro, e a espuma, voando através da avenida, vinha fustigar as vidraças do automóvel. A noite quente sabia a sal. Wormold afastou o carro do lado do mar. A rapariga observou:

- Hace demasiado calor.

- Que está ela a dizer agora?

- Diz que está muito calor.

- Ela é uma criatura difícil - suspirou Beatrice. - É melhor abrir outra vez a vidraça.

- E se ela grita?

- Apanha um par de bofetadas.

Encontravam-se no quarteirão novo de Vedado, povoado de vivendas brancas e creme, propriedade de gente rica. Um homem era tanto mais rico quanto menos andares tinha a sua casa. Apenas raros podiam dar-se ao luxo de construir uma vivenda num local destinado a um arranha-céus. Quando Beatrice baixou o vidro, respiraram o perfume das flores. Pararam junto de um portão rasgado no meio de um alto muro branco.

- Vejo luzes no pátio - disse ela. - Parece que corre tudo bem. Tomarei conta deste precioso pedaço de carne enquanto você lá vai.

- O sujeito parece-me excessivamente rico para professor.

- Mas nem por isso deixa de nos debitar as despesas, segundo as suas contas.

- Dê-me uns minutos. Não vá embora - rogou W mold.

- Supõe-me do género de fugir? É melhor apressar-se. Até agora eles só conseguiram marcar um ponto contra nós.

Experimentou o portão gradeado. Não estava fechado à chave. A posição era absurda. Como iria explicar a sua presença? “O senhor é meu agente, embora não saiba. Encon-tra-se em perigo. É melhor esconder-se.” Nem sequer sabia de que era professor o professor Sánchez.

Um pequeno carreiro entre duas palmeiras conduzia a uma portinhola gradeada, e para além via-se um pequeno pátio iluminado. Uma grafonola tocava suavemente e duas figuras moviam-se em silêncio, face contra face. Quando Wormold atravessou a passagem, uma campainha de alarme escondida algures começou a tocar. O par estacou, separou-se, e um homem dirigiu-se para ele.

- Quem está aí?

- Professor Sánchez?

- Sim.

Convergiram ambos para a área iluminada. O professor vestia um dinner-jacket branco, tinha o cabelo da mesma cor, havia um restolho de barba branca no queixo e trazia um revólver que apontava para Wormold. Este notou que a mulher que se encontrava por detrás do professor era muito jovem e muito bela. Foi ela quem parou e fechou a grafonola.

- Desculpe-me vir procurá-lo a esta hora - disse Wormold. Não tinha a menor ideia do que lhe havia de dizer e sentia-se incomodado pela presença do revólver. Os professores não deviam usar armas.

- Julgo não me recordar de si. - O professor falava em tom amável e mantinha o revólver apontado para o estômago de Wormold.

- Não há qualquer razão para que se recorde. A não ser que possua um aspirador de pó.

- Aspirador de pó? Creio que tenho. Mas porquê? Minha mulher é quem sabe.

A jovem atravessou o pátio e veio juntar-se ao grupo. Vinha descalça. Os sapatos tinham ficado abandonados ao lado da grafonola.

- Que quer ele? - perguntou num tom desagradável.

- Desculpe incomodá-la, senora Sánchez.

- Diz-lhe que não sou a senora Sánchez - procurou a jovem corrigir.

- Ele diz que é qualquer coisa a respeito de aspiradores - explicou o professor. - Achas que antes de se ter retirado Maria tenha...?

- E que vem ele cá fazer a esta hora tão pouco própria?

- Desculpe-me - disse o professor embaraçado -, mas é uma hora um pouco estranha. - O revólver deixou de apontar para Wormold. - Em regra não se esperam visitas ...

- Mas parece que as esperava, pois estava preparado para recebê-las.

- Oh, isto... é necessário tomar certas precauções. Bem vê, sou proprietário de alguns belíssimos Renoirs.

- Ele não veio roubar quadros. Foi Maria quem o mandou. Você é um espião, não é verdade? - perguntou curiosamente a jovem.

- Bem, de certa maneira.

A jovem começou a lastimar-se, dando palmadas nas coxas. Os braceletes chocavam-se e saltavam.

- Não, querida, não. Estou certo de que há qualquer explicação.

- Ela inveja a nossa felicidade - dizia a jovem. - Primeiro mandou o cardeal, agora manda este homem ... Você é algum padre? - perguntou ela.

- Claro que não é padre, minha querida. Repara como vem vestido.

- Tu podes ser um professor comparativamente educado - repontou ela -, mas qualquer pessoa te consegue enganar. Você é padre? - repetiu ela.

- Não.

- Que faz você?

- Para dizer a verdade, vendo aspiradores de pó.

- Mas disse que era um espião.

- Bem ... sim. Creio que num certo sentido ...

- Que veio cá fazer?

- Avisar o professor ...

A jovem soltou uma espécie de gemido:

- Vês? - disse ela para o professor. - Ele está a ameaçar-nos. Primeiro o cardeal e agora ...

- O cardeal fazia o seu dever. Afinal de contas é primo de Maria.

- Tens medo dele. Queres é deixar-me.

- Minha querida, bem sabes que não é assim. - Voltou-se para Wormold:

- Onde se encontra Maria neste momento?

- Não sei

- Onde a viu pela última vez?

- Mas eu nunca vi Maria.

- Não acha que está a cair em contradições?

- Ele é um rafeiro mentiroso - volveu a jovem.

- Pode ser que não. Talvez seja empregado de alguma agência. Acho melhor sentarmo-nos e ouvir calmamente o que ele tem para dizer. Perder a cabeça é sempre um erro. Ele está a cumprir o seu dever ... o que não pode afirmar-se a nosso respeito. - O professor encaminhou-se para o pátio. Tinha guardado o revólver no bolso.

A jovem esperou que Wormold seguisse Sánchez, e só então cerrou a fila como um cão de guarda. Wormold quase esperou que ela lhe mordesse uma canela. Ia pensando: “A menos que diga depressa o que tenho para dizer, não chegarei a ter uma oportunidade de falar.”

- Sente-se - ordenou o professor.

O que seria a educação “comparativa”?

- Quer uma bebida?

- É favor não se incomodar.

- Não bebe quando está a cumprir os seus deveres?

- Deveres! - objectou a jovem. - Tu estás a tratá-lo como se ele fosse um ser humano. Que deveres conhece ele além dos que tem para com os seus desprezíveis patrões?

- Venho aqui avisá-lo de que a polícia...

- Oh, deixe-se disso, o adultério não é crime - cortou o professor. - Creio que raramente foi considerado como tal, excepto nas colónias americanas, no século XVII. E claro que na lei mosaica ...

- O adultério nada tem a ver com isto - interrompeu a jovem -, ela não se importa que durmas comigo, o que não quer é que vivamos juntos.

- É difícil distinguir as duas situações, a menos que esteja a pensar no Novo Testamento - observou o professor. - Adultério no coração!

- Quem não tem coração és tu enquanto não correres com este homem. Sentámo-nos aqui a conversar como se fôssemos casados há muitos anos. Se tudo quanto te apetece é passar aqui a noite a conversar, porque não ficaste com Maria?

- Minha querida, a ideia de dançar antes de irmos para a cama foi tua.

- Chamas dançar ao que fazes?

- Já te prometi ir tomar lições.

- Pois sim: o que queres é um pretexto para te encontrares com outras.

Wormold via o assunto descarrilar novamente. Anunciou num desespero:

- Alvejaram a tiro o engenheiro Cifuentes. O senhor corre o mesmo perigo.

- Se eu pretendesse raparigas tinha na Universidade muito por onde escolher. Vêm muitas às minhas aulas. Tu bem o sabes, visto que também foste minha aluna.

- Agora lanças-me isso em cara?

- Estamos a fugir do assunto, minha querida. O que interessa é saber o que Maria tenciona fazer.

- O que ela devia ter feito há dois anos era deixar de comer farináceos - interrompeu a rapariga grosseiramente -, conhecendo-te como te conhecia. Só te preocupas com o corpo. Devias ter vergonha, com a tua idade.

- Se não queres que te ame ...

- Amar, amar... - A rapariga pôs-se a cruzar o pátio. Fazia gestos no ar como se estivesse a esquartejar o amor.

Wormold continuou então:

- Não é de Maria que vem o perigo.

- Seu rafeiro mentiroso - gritou ela. - Você disse que nunca a tinha visto.

- E é verdade.

- Então porque lhe chama Maria? - gritou ela, e começou a executar triunfantes passos de dança com um par imaginário.

- Você disse qualquer coisa a respeito de Cifuentes?

- Alvejaram-no a tiro esta noite.

- Quem?

- Não sei ao certo, mas tudo faz parte da mesma teia. É bastante difícil de explicar, mas pode correr grande perigo, professor Sánchez. É tudo equívoco, é claro. A polícia esteve também no Teatro Xangai.

- E que tenho eu a ver com o Teatro Xangai?

- Sim, que tens tu a ver com o Teatro Xangai? - gritou a rapariga melodramaticamente. - Os homens - declarou ela -, os homens! Pobre Maria. Para matar as rivais teria que cometer uma chacina.

- Nunca tive qualquer espécie de relações com alguém no Teatro Xangai.

- Maria está mais bem informada. Talvez sejas sonâmbulo.

- Ouviste-o dizer que era um equívoco. Além do mais alvejaram Cifuentes. Não podemos acusar Maria desse facto.

- Cifuentes? Disse Cifuentes? Oh, seu espanhol idiota! Só porque ele me falou uma vez no Clube enquanto foste tomar um duche, contrataste pistoleiros para o matarem?

- Por favor, querida, tem calma. Eu só soube disso agora, quando este cavalheiro ...

- Este tipo não é um cavalheiro. É um rafeiro mentiroso. - A conversação tinha dado novamente uma volta completa.

- Se é mentiroso não devemos dar atenção ao que ele diz. Provavelmente também pretende desacreditar Maria.

- Ah, agora vais defendê-la.

Wormold disse num desespero, e para terminar:

- Isso nada tem a ver com Maria ... com a senora Sán-chez, quero dizer.

- Que tem a senora Sánchez a ver com o assunto? - perguntou o professor.

- Julgava que o senhor pensava que Maria...

- Jovem, não queira convencer-me de que Maria pretende fazer qualquer coisa contra minha mulher e contra esta... minha amiga!? É excessivamente absurdo.

Até então o equívoco parecera a Wormold bastante simples. Mas agora era como se tivesse puxado um simples fiapo de algodão e todo um vestido se começasse a desfiar. Que era afinal uma comparativa educação?

- Pensei que lhe fazia um favor vindo avisá-lo, mas parece que para si a morte é ainda a melhor solução - observou.

- Você é um jovem muito enigmático.

- Não sou jovem. O senhor, professor, é que é um jovem, segundo posso observar.

No seu desespero falou alto: “Se ao menos Beatrice estivesse aqui.”

- Asseguro-te absolutamente, querida, que ninguém conheço chamado Beatrice. Ninguém - disse o professor precipitadamente.

A rapariga desfechou uma gargalhada tigrina.

- Você parece ter vindo cá com o propósito deliberado de causar complicações.

Foi a sua primeira queixa e parecia muito suave atendendo às circunstâncias.

- Não compreendo o que pretende com isso - disse ele, e dirigiu-se para casa fechando a porta.

- É um monstro - assegurou a rapariga. - Um monstro. Um tarado sexual. Um sátiro.

- Não me perceberam...

- Conhece o ditado: quem tudo quer tudo perde. Neste caso é falso. - Ela parecia ter esquecido a sua hostilidade contra Wormold. - Maria, eu, Beatrice... sem falar na mulher dele, pobrezita. Nada tenho contra a mulher dele. Tem uma pistola consigo?

- Claro que não. Vim cá para salvá-lo - disse Wormold.

- Que lhe dêem um tiro - tornou a jovem - no ventre, e bastante abaixo... - E ela entrou também em casa, com um ar de determinação.

Para Wormold nada mais havia a fazer senão retirar-se. O alarme invisível tornou a funcionar quando ele regressou ao portão, mas ninguém apareceu na pequena vivenda branca. “Fiz o que podia - pensou Wormold. - O professor parecia estar prevenido contra qualquer perigo e talvez a chegada da polícia fosse para ele um alívio. Seria mais fácil de lidar do que a sua jovem amiguinha.”

 

Regressando no meio do perfume das flores de aroma nocturno só sentia um desejo: contar tudo a Beatrice: “Não sou agente secreto, sou um mentiroso, nenhuma dessas pessoas está ao meu serviço, e nada consigo perceber do que sucede. Sinto-me perdido. Aterrado.” Certamente ela dominaria a situação de uma maneira ou de outra; afinal de contas era um profissional, mas sabia que não seria capaz de confessar a Beatrice. Isso seria renunciar à segurança de Milly. Era preferível ter a sorte de Raul. Dariam pensões aos órfãos neste serviço? Mas quem era Raul?

Antes de alcançar o segundo portão, Beatrice gritou-lhe:

- Jim. Cuidado. Fuja.

Mesmo neste momento dramático lembrou-se: “O meu nome é Wormold. Mister Wormold, senor Vomel, ninguém me chama Jim.” E então pôs-se a correr, saltando, para a voz e saiu para a rua para enfrentar um carro radiopatrulha e três oficiais da polícia, e ainda outro revólver apontado ao estômago. Beatrice estava no passeio com a rapariga a seu lado, tentando em vão cobrir-se com o casaco, que insistia em abrir-se na frente.

- Que se passa?

- Não consigo compreender uma palavra do que eles dizem.

Um dos oficiais ordenou-lhe que entrasse no carro da polícia.

- E o meu carro?

- Será levado para a esquadra. - Antes de ele obedecer, apalparam-no à procura de armas.

- Beatrice - disse Wormold -, não sei o que isto significa, mas é provavelmente o fim de uma carreira brilhante.

O oficial tornou a falar:

- Querem que você venha também.

- Diga-lhes que vou juntamente com a rapariga. Eles não me inspiram confiança.

Os dois carros foram conduzidos silenciosamente por entre as vivendas dos milionários, para não incomodar alguém, como se estivessem numa rua de hospital; os ricos precisam de dormir. Não tiveram de ir longe: um pátio, um portão que se fechou por detrás deles e depois o cheiro de uma esquadra de polícia com o seu característico odor amoniacal de jardim zoológico. Nas paredes, caiadas de branco, havia fotografias <de malfeitores procurados pelas autoridades, com ar falsificado de velhos fidalgos barbudos. No extremo da sala o capitão Segura jogava as damas.

- Comi - disse ele recolhendo duas pedras. Depois ergueu os olhos para os recém-chegados. - Mister Wormold - disse ele, surpreendido, e ergueu-se da cadeira como uma pequenina cobra verde quando viu Beatrice. Atrás dela estava Teresa; o casaco abrira-se de novo, talvez intencionalmente.

- Em nome de Deus, quem... ? - principiou, e reparando no polícia com quem estivera a jogar: - Anda!

- Que significa isto, capitão Segura?

- É o senhor quem mo pergunta, Mister Wormold?

- Sim.

- Gostava que me explicasse. Não esperava vê-lo a si, o pai de Milly, Mister Wormold; recebemos uma queixa, pelo telefone, do professor Sánchez, contra um homem que entrou em sua casa e se pôs a proferir vagas ameaças. Ele receou que fosse por causa dos quadros; ele tem quadros muito valiosos. Mandei logo um carro radiopatrulha e afinal foi o senhor a quem apanharam, com esta senhora (já a encontrei antes em qualquer lado!) é com uma pega nua. - E, como o sargento da polícia de Santiago, acrescentou: - Isso não é muito bonito, Mister Wormold.

- Estivemos no Xangai.

- Isso também não é muito bonito.

- Já estou cansado de ouvir a polícia dizer-me que aquilo que faço não é bonito.

- Porque foi a casa do professor Sánchez?

- Foi tudo um equívoco.

- Porque traz uma pega nua no seu carro?

- Dei-lhe uma boleia.

- Ela não tem o direito de andar nua pelas ruas. - Um oficial da polícia debruçou-se sobre a secretária e segredou qualquer coisa. - Ah!—disse o capitão Segura. - Começo a perceber! Houve uma rusga da polícia esta noite no Xangai. Suponho que a rapariga se tenha esquecido dos seus documentos e recorresse a si para evitar uma noite no calabouço

- Não foi assim.

- Era conveniente que fosse, Mister Wormold. - Dirigiu-se à rapariga: - Os teus papéis. Não os tens, não é?

- Si, yo tengo - respondeu, escandalizada.

Inclinou-se para a frente e pôs-se a retirar pedaços de papel amarrotado de dentro das meias. O capitão Segura examinou-os. Suspirou profundamente:

- Mister Wormold, ela tem a documentação em ordem Porque a trouxe no seu carro? Porque assaltou a casa do professor Sánchez para lhe falar na esposa e ameaçá-lo? Que há entre o senhor e a mulher do professor? - Ordenou bruscamente à rapariga:—Andando —Ela hesitou e começou a tirar o casaco.

- É melhor ficar com ele - aconselhou Beatrice.

O capitão Segura sentou-se, desgostoso, em frente do tabuleiro das damas.

- Mister Wormold, para seu bem, aconselho-o: não se meta com a mulher do professor Sánchez. Não é mulher com quem se brinque.

- Não estou metido...

- Joga as damas, Mister Wormold?

- Sim, mas receio não ser grande jogador.

- Sempre deve jogar melhor que estes cevados aqui da esquadra. Uma vez por outra precisamos de jogar os dois. Nas damas deve fazer movimentos cautelosos, tal como com a mulher do professor Sánchez. - Moveu ao acaso uma pedra no tabuleiro e disse: - Esteve esta noite com o doutor Hassel-bacher?

- Sim.

- Acha que foi um passo sensato, Mister Wormold?

Não levantava os olhos, movimentando as pedras aqui e além, jogando contra si próprio.

- Sensato?

- O doutor Hasselbacher anda metido com gente muito esquisita.

- Nada sei a esse respeito.

- Porque lhe mandou um postal de Santiago assinalando a posição da janela do seu quarto?

- Você tem uma boa colecção de conhecimentos irrelevantes, capitão Segura.

- A seu respeito, Mister Wormold, a seu respeito. Interesso-me por si. Não o quero ver metido em complicações. Que lhe queria dizer o doutor Hasselbacher esta noite? O telefone dele, compreende, está sob vigilância.

- O que ele queria era tocar-nos um disco do Tristão.

- E talvez falar sobre isto? - O capitão Segura voltou sobre a mesa uma fotografia: um flash com as características faces esbranquiçadas rodeando um montão de destroços de metal do que outrora tinha sido um automóvel. - E disto? - A face de um jovem que a luz crua de magnésio deixa impassível, uma cigarreira esmagada como a sua própria vida: o pé de um homem tocando-lhe num dos ombros. - Conhece-o?

- Não.

O capitão Segura movimentou uma alavanca e uma voz falando em inglês saiu de uma caixa colocada sobre a mesa:

“Alô, alô, aqui fala Hasselbacher.”

“Sim. Amigos.”

“Quem são?”

“Deve conhecê-los. Mister Wormold está cá.”

“Diga-lhe que Raul morreu.”

“Morreu? Mas você tinha-me prometido...”

“Nem sempre se pode limitar um acidente, H-Hasselbacher.” A voz revelava uma ligeira hesitação ao aspirar os hh.

“Tinha-me dado a sua palavra...”

“O automóvel deu muitas voltas sobre si mesmo.”

“Disse-me que pretendia preveni-lo.”

“E o que sucedeu continua sendo uma prevenção. Vá dizer-lhe que Raul morreu.”

O assobio da fita magnética pôs termo ao diálogo gravado; uma porta fechou-se algures.

- Pretende ainda negar que conhece Raul? - perguntou Segura.

Wormold relanceou uma olhadela para Beatrice. Ela respondeu com um ligeiro movimento negativo de cabeça. Wormold declarou:

- Dou-lhe a minha palavra de honra, Segura, de que até esta noite nem mesmo suspeitava da sua existência.

Segura movimentou uma pedra no tabuleiro.

- A sua palavra de honra?

- A minha palavra de honra.

- Você é o pai de Milly. Tenho de aceitar a sua palavra. Mas afaste-se de mulheres nuas e da mulher do professor. Boas noites, Mister Wormold.

- Boas noites.

Estavam já na porta quando Segura tornou a falar:

- E o nosso jogo de damas, Mister Wormold. Não nos havemos de esquecer dele.

O velho Hillman esperava e Wormold disse:

- Vou deixá-la com a Milly.

- Não vai para casa?

- Já é demasiadamente tarde para me deitar.

- Aonde vai? Posso acompanhá-lo?

- Quero que você fique junto de Milly em caso de acidente. Viu aquela fotografia?

- Não.

Não tornaram a falar até Lamparilla. Então Beatrice observou:

- Preferia que não tivesse dado a sua palavra de honra. Não era necessário ir tão longe.

- Não?

- Oh, dar o que foi uma atitude puramente profissional, bem compreendi. Desculpe. A minha observação foi idiota. Mas você é mais profissional do que nunca imaginei que fosse.

Abriu-lhe a porta da loja e viu-a afastar-se por entre os aspiradores como alguém que regressa de um funeral.

 

À porta do prédio de apartamentos onde vivia o Dr. Has-selbacher tocou a campainha de um outro andar, o segundo, onde havia luz acesa. Houve um grunhido característico e a porta da rua abriu-se. Meteu-se no elevador e carregou no botão para o andar do Dr. Hasselbacher. Este, aparentemente, também não dormira. Pela greta da porta fugia um risco de luz. Estaria só ou em conferência com a voz misteriosa?

Começava a conhecer as precauções e os riscos do seu mister irreal. Havia no patamar uma janela esguia que abria, sem qualquer propósito, para uma varanda demasiadamente estreita para ser utilizada. Da varanda era-lhe possível ver a luz numa janela do apartamento do médico e entre as duas varandas mediava apenas um passo. Deu esse passo sem olhar para o solo abaixo dos seus pés. As cortinas mal corridas permitiam devassar o aposento.

O Dr. Hasselbacher estava sentado voltado para a janela, com um velho capacete militar na cabeça, couraça, botas, luvas brancas, todas as peças, enfim, de um antigo uniforme de ulano. Tinha os olhos fechados e parecia adormecido. Usava também uma espada e tinha todo o aspecto de um extra dormitando num estúdio de cinema. Wormold bateu na janela. O Dr. Hasselbacher abriu os olhos e ficou a contemplá-lo, esgazeado.

- Hasselbacher.

O médico teve então um curto gesto que podia traduzir temor. Tentou lançar o capacete contra o visitante, mas a correia do queixo impediu-o.

- Sou eu, Wormold.

O médico aproximou-se relutantemente da janela. Os calções estavam-lhe excessivamente justos. Tinham sido talhados para um homem mais jovem.

- Que faz aí fora, Mister Wormold?

- Que faz aí dentro, Hasselbacher?

O médico abriu a janela e deixou entrar Wormold. Encontrava-se no quarto de Hasselbacher. Havia um grande guar-da-fato aberto com dois fatos brancos suspensos dos cabides como os últimos dentes numa velha boca. Hasselbacher começou a descalçar as luvas.

- Esteve nalgum baile de máscaras, Hasselbacher?

- Não pode compreender - disse o Dr. Hasselbacher numa voz envergonhada.

Tirou o uniforme, peça por peça: primeiro as luvas, depois o capacete e a couraça, na qual Wormold e os móveis do quarto se reflectiam distorcidos como figuras numa sala de espelhos mágicos.

- Porque voltou cá? Porque não tocou a campainha?

- Quero saber quem é Raul.

- Você já o conhece.

- Não faço a menor ideia de quem seja.

O Dr. Hasselbacher sentou-se para tirar as botas.

- Aprecia a leitura de Charles Lamb, doutor Hasselbacher?

- Milly emprestou-mo. Não se lembra de ela me falar no livro...? - Sentado, parecia uma criatura desamparada dentro dos calções, que faziam foles. Wormold viu que toda uma costura tinha sido descosida para permitir ao Hasselbacher contemporâneo caber dentro deles. “Sim, lembrava-se agora, fora durante a festa no Tropicana.”

- Suponho - disse Hasselbacher- que este uniforme requer uma explicação.

- Há coisas mais importantes a explicar.

- Eu fui oficial dos ulanos. Oh, há quarenta e cinco anos já!

- Recordo-me de ter visto uma fotografia sua no outro quarto, mas não estava uniformizado assim. Tinha um aspecto menos... aparatoso.

- Isso foi depois de começar a guerra. Veja na minha mesinha-de-cabeceira - 1913, as manobras de Junho, quando Kaiser veio passar revista ao regimento. - Na velha fotografia castanha, com a marca do fotógrafo num dos cantos, viam-se longas colunas de cavalaria, espadas desembainhadas e uma minúscula figura imperial de braços mirrados montando um cavalo branco. - Era tudo tão pacífico nesse tempo—" disse o Dr. Hasselbacher.

- Pacífico?

- Até rebentar a guerra.

- Mas eu pensava que você já era médico nessa altura.

- Enganei-o a esse respeito. Formei-me mais tarde. Quando a guerra acabou. Depois de matar um homem. Matar um homem é muito fácil - explicou o Dr. Hasselbacher. - Não é necessária qualquer habilidade especial. Pode ter-se a certeza de ter feito um trabalho perfeito, pode jul-gar-se a morte, mas salvar-se um homem... isso leva seis anos de aprendizagem e no fim nunca temos a absoluta certeza de termos sido nós a salvá-lo. Os microrganismos são mortos por outros microrganismos. As pessoas sobrevivem apenas. Não conheço um único doente a quem eu tenha absoluta certeza de ter salvo a vida, mas conheço perfeitamente o homem que matei. Era um russo e muito magro. Raspei um osso quando lhe enterrei a baioneta entre as costelas. Deu-me arrepios. Em volta só havia pântanos e chamavam ao lugar Tannenberg. Odeio a guerra, Mister Wormold.

- Então porque se veste de militar?

- Eu não estava vestido assim quando matei o homem. Este uniforme é pacífico. Gosto dele. - Afagou a couraça, colocada ao seu lado sobre a cama. - Depois caiu sobre nós a lama dos pântanos. Nunca sentiu o desejo, Mister Wormold, de voltar para trás, para os tempos da paz? - perguntou. - Oh, bem, esquecia-me de que ainda é novo, que não conheceu tais tempos. Foi a última paz que conhecemos. Os calções já não me servem.

- Que o levou a vestir-se assim esta noite, Hasselbacher?

- A morte de um homem.

- Raul?

- Sim.

- Conheceu-o?

- Sim.

- Diga-me quem era.

- Não desejo falar.

- Era melhor que o fizesse.

- Somos ambos responsáveis pela sua morte, eu e você - disse Hasselbacher. - Ignoro como se meteu nestas coisas, mas se eu me recusasse a ajudá-los fariam com que eu fosse deportado. Que posso eu fazer fora de Cuba, desta idade? Já lhe contei que perdi certos documentos.

- Que documentos?

- Não interessa. Não temos todos qualquer segredo no passado? Agora sei porque me assaltaram a casa. Por ser amigo. Por favor, vá-se embora, Mister Wormold. Quem sab o que eles exigiriam de mim se soubessem que recebi a sua visita?

- Quem são eles?

- Você sabe-o ainda melhor do que eu, Mister Wormold. Eles não costumam apresentar cartões. - Qualquer coisa se moveu rapidamente no quarto vizinho.

- Um ratinho apenas Mister Wormold. Deixei-lhe esta noite um pedacinho de queijo.

- Então a Milly emprestou-lhe os Contos de Lamb?

- Estou satisfeito por você ter mudado a sua cifra - disse o Dr. Hasselbacher. - Talvez assim me deixem tranquilo. Já não lhes posso ser útil. Uma pessoa começa a resolver palavras cruzadas, enigmas matemáticos e, de repente, sem dar por isso, arranja um emprego... Hoje em dia temos de ser prudentes mesmo com as nossas distracções.

- Mas Raul nem sequer existia. Aconselhou-me a mentir e eu menti. Os meus agentes são puras invenções.

- E Cifuentes? Quer convencer-me de que ele também não existe?

- É diferente. Mas Raul, esse, inventei-o.

- Então inventou-o bem de mais, Mister Wormold. Há agora a respeito dele um cadastro completo.

- Mas ele não era mais real do que uma personagem de romance.

- Quem lhe diz que as personagens de romance não são reais algumas vezes? Ignoro os processos utilizados pelos romancistas. O senhor é o primeiro que conheço.

- Não há qualquer piloto bêbedo na Cubana.

- Oh, concordo que deve ter inventado esse pormenor. Não sei porquê.

- Se decifrou os meus telegramas, deve ter verificado que não havia neles uma só palavra verdadeira. Você conhece a cidade. Um piloto despedido por embriaguez, um amigo com um avião, tudo isso eram invenções.

- Não conheço os seus intuitos, Mister Wormold. Talvez pretendesse disfarçar a identidade do seu agente para o caso de descobrirmos a sua cifra. Talvez se os seus amigos soubessem que ele era rico e dono de um avião não lhe tivessem pago tanto dinheiro. Quanto desse dinheiro foi para o seu bolso, Mister Wormold?

- Nada consigo perceber do que está a dizer.

- Você lê os jornais, Mister Wormold. Sabia que lhe tinham apreendido o brevet há um mês por ter descido embriagado num parque infantil.

- Não leio os jornais da terra.

- Nunca? Claro que ele negou estar ao seu serviço. Ofereceram-lhe dinheiro para ele trabalhar com eles. Queriam também obter fotografias dessas plataformas que o senhor descobriu nas montanhas do Oriente.

- Não há quaisquer plataformas.

- Não espere que eu o acredite demasiadamente, Mister Wormold. Num dos seus telegramas referiu-se aos planos que mandou para Londres. Eles precisavam também de fotografias.

- Devo saber quem são eles.

- Cui bono?

- E que pretendem fazer-me?

- Ao princípio prometeram-me não lhe fazer mal. Você servia-os sem querer. Sabiam de si desde o princípio, mas não o tomavam a sério. Suspeitavam mesmo que os seus relatórios eram forjados. Mas depois mudou de cifra e o seu pessoal aumentou. O Serviço Secreto Britânico não se deixaria enganar até esse ponto, não acha? - Uma espécie de lealdade para com Hawthorne manteve Wormold calado. - Mister Wormold, porque se meteu nisto?

- Bem sabe o motivo. Precisava de dinheiro. - Achou-se a dizer a verdade como se fora um tranquilizante.

- Eu ter-lhe-ia emprestado o dinheiro. Oferecia-lho até.

- Precisava de mais do que aquilo que você me podia emprestar.

- Para Milly?

- Sim.

- Tome conta dela, Mister Wormold. Encontra-se numa profissão em que é perigoso amar alguém ou alguma coisa. E onde nos ferem. Lembra-se da cultura que eu estava a estudar?

- Sim.

- Talvez não me tivessem persuadido tão facilmente se primeiro não tivessem destruído a minha razão de viver.

- Pensa que na verdade... ?

- Só lhe peço que seja cauteloso.

- Posso utilizar-me do seu telefone?

- Sim.

Wormold ligou para casa. Teria ele notado aquele pequeno estalido que denunciava o posto de escuta? Beatrice respondeu. Ele perguntou:

- Está tudo bem?

- Sim.

- Aguarde o meu regresso. A Milly está bem?

- Está a dormir.

- Já lá vou ter.

O Dr. Hasselbacher observou:

- Não devia ter denunciado amor na sua voz. Quem sabe os que nos escutam? - Aproximou-se da porta com dificuldade por causa dos calções apertados. - Boas noites, Mister Wormold. Aqui tem o seu Lamb.

- Não preciso mais dele.

- Milly pode querê-lo. Se não se importa, não fale a ninguém deste... deste uniforme! Sei que sou absurdo, mas amava esse tempo. Uma vez o Kaiser falou-me.

- Que lhe disse ele?

- Disse: “Lembro-me muito bem de si. O senhor é o capitão Miiller.”

 

INTERLÚDIO EM LONDRES

Quando o chefe tinha convidados, jantava em casa e cozinhava ele próprio, visto nenhum restaurante ser capaz de satisfazer o seu apetite meticuloso e romântico. Contava-se dele a anedota de que, estando doente, se recusava a anular um convite a um amigo íntimo, dirigindo ele próprio do leito e pelo telefone a confecção do jantar. Com um relógio colocado sobre a mesa-de-cabeceira ia dando oportunamente instruções ao cozinheiro: “Alô, alô, Brewer, alô, deve retirar agora essa galinha do forno e untá-la novamente.”

Contava-se também que uma vez, tendo-se atrasado no escritório, tentara daí dar ordens à cozinha. O jantar ficou estragado, pois, levado pela força do hábito, utilizou o dicta-fone privado, e aos ouvidos do cozinheiro chegaram apenas estranhos ruídos que lembravam o japonês falado rapidamente.

O jantar que ofereceu ao subsecretário foi simples e excelente: um assado com um ligeiro sabor a alho. Havia no aparador queijo de Wensleydaíe e a tranquilidade de Albany rodeava-os pesadamente como neve a cair. Depois dos seus trabalhos culinários, o próprio chefe exalava um perfume subtil de molho picante.

- É na verdade excelente. Excelente.

- É uma velha receita de Norfolk. Chamam-lhe “Granny Brown's Ipswich Roast”.

- E a carne... derrete-se na boca...

- Consegui ensinar o Brewer a fazer compras, mas nunca conseguirei fazer dele um cozinheiro. Necessita de uma fiscalização permanente.

Comeram em silêncio por um momento, reverentemente; o matraquear de uns saltos de mulher no Rope Walk foi o único som discordante.

- Belo vinho - observou por fim o subsecretário.

- A colheita de 55 foi boa. Talvez um pouco novo ainda?

- Nem por isso.

Na altura do queijo o chefe voltou a falar:

- Que pensa o F. O. da nota russa?

- Ficámos um pouco desorientados com a referência às bases das Caraíbas. - Sentiu-se um estalar de biscoitos - Não devem querer referir-se à das Baamas. Não valem mais do que aquilo que os ianques nos estão a pagar por elas, uns velhos contratorpedeiros quase fora de uso! Contudo, sempre supusemos que essas construções em Cuba tinham uma origem comunista. Não pensa que afinal possam ser americanas?

- Nesse caso não estaríamos já ao corrente?

- Talvez não. Desde o caso Fuchs. Eles acusam-nos de também não lhes confiarmos muitos segredos. Que diz o nosso agente em Havana?

- Vou pedir-lhe informações categóricas. Que tal o Wens-leydale?

- Muito bem.

- É favor servir-se de Porto.

- É Cockburn 35, não é?

- 27.

- Pensa que eles tenham a intenção de provocar uma guerra? - perguntou o chefe.

- Que sei eu?

- Eles têm desenvolvido ultimamente grande actividade em Cuba, aparentemente com a ajuda da polícia. O nosso agente em Havana tem passado maus momentos. O melhor agente dele, como sabe, morreu, de acidente, é claro, quando se dirigia para o aeroporto a fim de tirar fotografias aéreas das construções —uma grande perda para nós. Mas eu dava muito mais do que a vida de um homem por essas fotografias. Na verdade, pagámos mil e quinhentos dólares para consegui-las. Dispararam contra outro dos nossos agentes e ele acobardou-se. Um terceiro desapareceu. Há também uma mulher que foi interrogada pela polícia apesar de ser a amante do director dos Correios e Telégrafos. Deixaram somente o nosso homem, talvez apenas para observá-lo. De qualquer forma ele é uma ave sabida.

- Bem, ele deve ter sido um pouco desleixado para perder todos esses agentes!

- No princípio há sempre que prever baixas. Apanharam-lhe a cifra. Detestei sempre esses livros de cifra. Existe lá um alemão que parece ser o principal agente deles e é um perito em criptografia. Hawthorne avisou o nosso agente, mas sabe-se que esses velhos comerciantes são obstinadamente leais. Talvez estas perdas valessem a pena, pois abriram-lhe os olhos. Charuto?

- Obrigado. Estamos em condições de recomeçar se também o abaterem a ele?

- Ele tem um trunfo. No próprio campo do inimigo. Recrutou um agente duplo na própria polícia.

- Os agentes duplos não são um pouco... traiçoeiros? Nunca se sabe se nos estão a vender a carne ou o osso.

- Creio que o nosso homem seria capaz de “comê-lo” - disse o chefe. - Digo “comê-lo” porque são ambos grandes jogadores de damas. De facto, os seus contactos operam-se sob o pretexto de jogar damas.

- Não exagero se lhe disser que estamos preocupadíssimos com essas construções. Se ao menos o homem tivesse conseguido tirar as fotografias antes de ser morto, nada estaria perdido. O P. M. insiste em informar os americanos e pedir-lhes que nos auxiliem.

- Não deve deixar. Não pode confiar-se nas informações deles.

 

- Comi - disse o capitão Segura.

Tinham-se encontrado no Havana Club. No Havana Club, que no fim de contas não era um clube, mas sim um bar concorrente de Bacardi; como neste último, todas as bebidas à base de rum eram gratuitas, o que permitia a Wormold aumentar as suas economias, pois continuava naturalmente a debitar as bebidas nas suas despesas; explicar para Londres que havia um local onde se bebia de graça seria complicado, se não totalmente inadmissível. O bar ficava situado no primeiro andar de um edifício do século XVII e as janelas abriam para a catedral, onde em tempos repousou o corpo de Cristóvão Colombo. Uma grande estátua de pedra de Colombo erguia-se ao lado da catedral e parecia, devido à acção dos insectos, ter sido formada debaixo de água durante longos séculos, como um recife de coral.

- Sabe - dizia o capitão Segura -, houve um tempo em que pensava que o senhor não gostava de mim.

- Pode jogar-se as damas com uma pessoa sem ser por gostar dela; pode haver outros motivos.

- Sim, também eu - concordou o capitão Segura. - Olhe, fiz dama.

- E eu como três pedras.

- Pensa que me surpreendeu, mas terá ocasião de ver que a sua jogada me favorece. Agora apanho a sua única dama. Que foi fazer a Santiago, Santa Clara e Cienfuegos há duas semanas?

- Vou sempre nesta época visitar os meus representantes.

- Bem, essa era a sua razão aparente. Hospedou-se no novo hotel de Cienfuegos. Jantou só num restaurante à beira-mar. Foi ao cinema e depois recolheu ao hotel. Na manhã seguinte...

- Acredita realmente que eu seja um agente secreto?

- Começo a ter dúvidas. Penso que os nossos amigos se enganaram.

- Quem são os nossos amigos?

- Digamos os amigos do Dr. Hasselbacher.

- Quem são eles?

- O meu dever é descobrir o que se passa em Havana - disse o capitão Segura -, e não posso tomar partido nem fornecer informações. - Continuava a fazer avançar a sua dama pelo tabuleiro.

- Existe em Cuba alguma coisa capaz de interessar um serviço secreto?

- É verdade que somos apenas um pequeno país, mas ficamos muito perto da costa americana e apontamos para a vossa base da Jamaica. Quando um país se encontra cercado, como a Rússia, tenta sempre abrir brecha de dentro para fora.

- E de que utilidade seria eu ou o Dr. Hasselbacher nessa estratégia global? Um vendedor de aspiradores. Um médico aposentado.

- Há peças sem importância em todos os jogos - disse o capitão Segura. - Como esta aqui. Eu retiro-lha e o senhor não se importa. O Dr. Hasselbacher, é claro, é um especialista em palavras cruzadas.

- Que têm a ver as palavras cruzadas com o nosso assunto?

- Um homem desses faz-se um bom criptógrafo. Uma vez mostraram-me, ou, melhor, proporcionaram-me a descoberta de um telegrama seu, acompanhado da interpretação dada pelo doutor Hasselbacher. Talvez esperassem que eu os expulsasse de Cuba. - Riu. - Expulsar o pai de Milly! Mal avisados andavam.

- Sobre que era o telegrama?

- O senhor informava ter recrutado o engenheiro Cifuen-tes. Claro que era um absurdo. Conheço bem o engenheiro. Talvez o tenham alvejado para tornar o telegrama mais convincente. Talvez tenham inventado o telegrama para se verem livres de si. Ou talvez sejam mais crédulos que eu.

- Que história extraordinária. - Moveu uma pedra. - Como tem tanta certeza de que ele não é meu agente?

- Pela sua maneira de jogar as damas e porque interroguei Cifuentes a esse respeito.

- Torturou-o?

O capitão Segura deu uma gargalhada.

- Não. Ele não pertence à classe torturável.

- Não sabia que também existiam diferenças de classes para a tortura.

- Meu caro Mister Wormold, certamente não ignora que há pessoas que esperam ser torturadas e outras para quem só pensar nessa possibilidade é uma afronta. Não se explica a tortura senão por uma espécie de mútuo acordo.

- Há tortura e tortura. Quando destroçaram o laboratório do doutor Hasselbacher estavam torturando...

- Nunca se pode responder pelo trabalho de amadores. A polícia não esteve metida nisso. O doutor Hasselbacher não pertence à classe torturável.

- Quem pertence?

- Os pobres do meu país e dos outros países latino-americanos. Os pobres da Europa central e do Oriente. Nos vossos países prósperos não há pobres e portanto não há gente torturável. Em Cuba a polícia pode maltratar livremente os emigrantes da América Latina e dos Estados Unidos, mas nunca os visitantes da sua terra ou da Escandinávia. É uma coisa que ambas as partes compreendem instintivamente. Os católicos são mais torturáveis do que os protestantes, da mesma forma que são menos honestos. Vê? Eu tive razão em fazer aquela dama, pois agora como-lhe a última pedra.

- Você ganha sempre, não é verdade? É uma teoria interessante a sua.

- Uma das razões por que o Ocidente odeia os grandes estados comunistas é o facto de estes não reconhecerem diferenças de classes. Às vezes torturam a quem não devem. O mesmo fez Hitler e indignou o mundo. Ninguém se preocupa com o que se passa nas nossas prisões, ou nas prisões de Madrid ou Caracas, mas Hitler era excessivamente promíscuo. Era se como no nosso país um chauffeur dormisse com a mulher de um nobre.

- Isso no nosso país já não causa impressão.

- É um grande perigo para todos quando as coisas que causam impressão mudam.

Tomaram outro daiquiri, tão gelado que tinha de ser sorvido lentamente para evitar uma nevralgia.

- E como passa Milly? - perguntou o capitão Segura.

- Bem.

- Gosto muito dela. Foi educada com todo o cuidado.

- Tenho prazer em ouvi-lo dizer isso.

- Essa é outra das razões por que eu não desejo vê-lo metido em complicações que tivessem como consequência a sua expulsão, Mister Wormold. Havana ficaria diminuída com a ausência de sua filha.

- Não creio que me acredite, mas garanto-lhe que Cifuen-tes não é meu agente.

- Acredito. Penso que talvez alguém o tivesse querido utilizar como cortina ou como um desses patos de cartão que se deitam nos lagos e que servem para atrair os verdadeiros patos bravos. - Acabou de beber o daiquiri.

- Claro que isso serve também os meus planos. Eu também gosto de ver a chegada dos patos bravos, da Rússia, da América, da Inglaterra, e mesmo, de vez em quando, da Alemanha. Eles desprezam o pobre caçador mestiço, mas um dia, quando todos tiverem pousado, que bela caçada eu farei!

- Que mundo complicado! Afinal é mais fácil vender aspiradores de pó.

- O negócio progride, espero?

- Oh, sim, sim.

- Interessa-me saber que admitiu novo pessoal. Aquela bonita secretária do sifão e do casaco que não se fecha. E o jovem.

- Preciso de alguém para superintender nas contas. López é pouco seguro.

- Ah, López. Outro dos seus agentes. - O capitão Segura riu-se. - Ou pelo menos foi o que me disseram.

- Sim. Ele fornece-me informações secretas sobre a polícia.

- Tenha cautela, Mister Wormold. Ele é um dos torturáveis. - Riram ambos bebendo daiquiri. É fácil rir pensando em torturas num dia soalheiro. - Tenho de retirar-me, Mister Wormold.

- Creio que tem os calabouços cheios com os meus espiões.

- Podem sempre conseguir-se algumas vagas executando meia dúzia deles.

- Um dia destes hei-de batê-lo às damas.

- Duvido de que o faça, Mister Wormold.

Da janela ficou a ver o capitão Segura passar pela estátua de Colombo a caminho da esquadra. O Havana Club e o capitão Segura pareciam ter tomado o lugar do Wonder Bar e do Dr. Hasselbacher - era como mudar de vida e uma necessidade de se adaptar às novas circunstâncias. Não valia a pena voltar para trás. O Dr. Hasselbacher tinha sido humilhado na sua presença e a amizade não resiste à humilhação. Não tornara a encontrar Hasselbacher. No clube sentia-se, tal como no Wonder Bar, um cidadão de Havana; o elegante criado que lhe servia as bebidas não fazia qualquer diligência por lhe vender uma das garrafas de diversas marcas de rum expostas sobre a mesa. Um homem de barba cinzenta lia, como sempre a esta hora, o seu jornal da manhã; como de costume também um carteiro interrompia a sua distribuição para uma bebida gratuita; todos eles eram cidadãos. Quatro turistas saíram do bar carregando sacos de papel contendo garrafas de rum; iam contentes e faladores, arvorando a ilusão de terem bebido de graça. Pensou: “Eles são estrangeiros e, é claro, intorturáveis.” Wormold bebeu o último daiquiri muito depressa e saiu do Havana Club com dores nos olhos. Os turistas debruça-vam-se sobre a cisterna do século XVII; tinham arremessado lá para dentro moedas que chegavam para pagar duas vezes as bebidas fornecidas pelo clube: com esse gesto asseguravam um feliz regresso. Uma voz de mulher chamou-o e ele descobriu Beatrice entre os pilares da colunata no meio das cabaças, matracas e bonecas negras da loja de curiosidades.

- Que faz aqui?

Ela explicou:

- Sinto-me sempre inquieta quando você vem encontrar-se com Segura. Desta vez quis assegurar-me...

- Assegurar-se de quê? - Começaria ela finalmente a suspeitar de que ele não tinha agentes? Talvez tivesse recebido instruções para vigiá-lo, de Londres, ou do 59 200, em King-ston. Começaram a dirigir-se para casa.

- De que a polícia lhe ande a preparar uma armadilha. Um agente duplo é duplamente traiçoeiro.

- Você preocupa-se demasiadamente.

- E você tem tão pouca experiência! Lembre-se do que sucedeu com Raul e Cifuentes.

- Cifuentes foi interrogado pela polícia - acrescentou com alívio. - Está queimado e portanto já não nos pode servir.

- Mas então, nesse caso, você também está queimado.

- Ele não falou. Foi o capitão Segura quem dirigiu o interrogatório e o capitão Segura é um dos nossos. Creio que é altura de lhe oferecer um bónus. Ele prometeu-me uma lista completa dos agentes russos e americanos que operam em Havana. “Patos bravos” é como lhes chama.

- Isso seria um grande golpe. E as construções?

- Temos de abandonar esse assunto por ora. Não posso convencê-lo a agir contra o seu próprio país.

Passando pela catedral deu a esmola habitual ao mendigo cego que se sentava nos degraus do adro. Beatrice comentou:

- Quase vale a pena ser cego com um sol destes. - O instinto criador apoderou-se de Wormold quando disse: - Sabe? Ele não é cego. Vê tudo muito bem.

- Então deve ser um bom actor. Observei-o durante todo o tempo que você esteve com Segura.

- E ele esteve a observá-la a si. De facto, é um dos meus melhores informadores. Coloco-o sempre aqui quando tenho um encontro com Segura. Precaução elementar. Não sou tão descuidado como você pensa.

- Mas nunca informou os serviços da existência deste agente.

- Não havia motivo. Jamais poderiam descobrir a pista de um mendigo cego e, além disso, não o utilizo para informações. De qualquer maneira, se eu tivesse sido preso, você seria informada dentro de dez minutos. Que faria você nesse caso?

- Queimava os papéis e levava Milly para a Embaixada.

- E Rudy?

- Transmitia uma mensagem de avião para Londres e desaparecíamos.

- Como é que uma pessoa desaparece? - Mas não esperou a resposta. Disse lentamente, à medida que a história ia crescendo: - O nome do mendigo é Miguel. Ele faz-me este serviço graciosamente. Uma vez salvei-lhe a vida.

- Como?

- Oh, nada de importância. Um acidente num barco. Aconteceu que eu sei nadar e ele não.

- Deram-lhe alguma medalha? - Ele olhou-a rapidamente, mas na face dela havia apenas o interesse da curiosidade.

- Não. Não foi um feito glorioso. E até me multaram por ter abordado a terra numa zona proibida.

- Que história romântica! E agora ele é capaz de dar a vida por si.

- Oh, não creio que chegue a tanto.

- Diga-me: tem algum velho livrinho de contas de capa de oleado guardado nalguma gaveta de sua casa?

- Não creio. Porquê?

- Com o assento das primeiras despesas com aparos e borrachas?

- Porque havia de comprar aparos?

- Estava apenas a divagar e mais nada.

- Hoje ninguém usa aparos.

- Esqueça o que perguntei. Foi uma coisa que Henry me contou. Um equívoco compreensível.

- Quem é Henry? - perguntou ele.

- 59 200 - respondeu Beatrice.

Wormold sentiu um ciúme estranho, pois, a despeito de todas as regras de segurança, só uma vez ela o tratara por Jim.

A casa estava, como de costume, vazia quando chegaram; ele tinha a consciência de já não notar a falta de Milly, e sentiu a triste satisfação do homem que descobre que afinal existe uma espécie de amor que não mais o pode ferir.

- Rudy saiu - disse Beatrice. - Deve ter ido comprar rebuçados. Devora-os. Deve consumir uma quantidade enorme de energia, visto que não engorda, mas não vejo onde.

- Temos de trabalhar. Há um telegrama para Londres. Segura deu-me algumas informações valiosas acerca de infiltrações comunistas na polícia. Você dificilmente acreditaria...

- Já me sinto capaz de acreditar em tudo. Veja isto. Descobri afinal uma coisa fascinante no dicionário criptográfico. Sabia que há um grupo para eunucos? Parece-lhe que alguma vez terá lugar num telegrama?

- Penso que para os agentes de Istambul pode ser útil.

- Gostava de poder utilizar o grupo. Acha que poderemos?

- Tenciona voltar a casar-se?

- As suas associações de ideias são excessivamente óbvias - observou Beatrice. - Acredita que Rudy tem uma vida sexual às ocultas? Ele não despende toda aquela energia no serviço.

- Qual é a regra para uma vida sexual secreta? Teria de pedir autorização a Londres antes de principiar?

- Bem, é sempre conveniente colher informações antes de ir demasiadamente longe. Londres prefere que os problemas do sexo sejam resolvidos em família.

 

- Devo estar a tornar-me importante - disse Wormold. - Fui convidado para fazer um discurso.

- Onde? - perguntou Milly elevando delicadamente os olhos do Horsewoman's Year Book.

Era a hora do entardecer, depois de terminado o dia de trabalho, quando a última luz dourada se espalha sobre os telhados e toca os cabelos cor de mel e o whisky dentro dos copos.

- No almoço anual da Associação dos Negociantes Europeus, o doutor Braun, o presidente, pediu-me para falar, na minha qualidade de sócio mais antigo. O cônsul-geral da América é convidado de honra - acrescentou ele orgulhosamente.

Parecia-lhe ter sido ontem que chegara a Havana e encontrara na companhia da família, no Floridita Bar, a rapariga que fora a mãe de Milly; e agora era já o mais antigo dos negociantes europeus em Havana. Muitos tinham-se aposentado; alguns tinham regressado à pátria para combater na última guerra - ingleses, alemães, franceses -, mas ele fora rejeitado devido ao defeito na perna. Nenhum dos outros regressara a Cuba.

- De que vais falar?

Ele respondeu tristemente:

- Não vou falar. Nada tenho para dizer.

- Aposto que és capaz de falar melhor que ninguém.

- Oh, não. Posso ser o sócio mais antigo, Milly, mas também o menos importante. Os exploradores de rum e os homens do tabaco, esses são realmente importantes.

- Mas tu és tu.

- Lamento não teres escolhido um outro pai mais esperto.

- O capitão Segura diz que és muito bom nas damas.

- Mas não tanto como ele.

- Aceita, por favor, pai - pediu ela. - Teria muito orgulho de ti.

- Vou fazer uma triste figura.

- Não fazes. Peço-te por mim.

- Por ti eu era capaz de ir britar pedra. Está bem. Aceit.

Rudy bateu à porta. Era a hora da última recepção - em Londres seria então meia-noite.

- Há um radiograma urgente de Kingston - disse ele - Chamo Beatrice?

- Não, eu posso arranjar-me sozinho. Ela vai ao cinema

- Os negócios parecem caminhar bem - observou Milly

- Sim.

- Mas não tens vendido mais aspiradores.

- É uma transacção a longo prazo - disse Wormold. Dirigiu-se ao seu quarto e decifrou o telegrama. Era de Hawthorne. Wormold devia ir a Kingston pelo primeiro avião a fim de apresentar um relatório das suas actividades. Pensou: “Descobriram por fim!”

 

O encontro foi no Myrtle Bank Hotel. Wormold não ia à Jamaica há muitos anos e estava surpreendido com a porcaria e o calor. Que contribuía para a sujidade nas possessões britânicas? Os Espanhóis, os Franceses e os Portugueses construíam cidades onde se fixavam, mas os Ingleses limitavam-se a deixar as suas cidades nascer. A rua mais pobre de Havana tinha dignidade quando comparada com as ruelas de Kingston - barracas com paredes revestidas de velhas latas de petróleo, telhados cobertos com peças retiradas de algum cemitério de automóveis.

Hawthorne, sentado num cadeirão da varanda do hotel, sorvia um ponche gelado através de uma palhinha. O seu fato estava tão imaculado como da primeira vez que Wormold o encontrara; o único sinal do grande calor que fazia era um pouco de poeira por debaixo do ouvido esquerdo.

- Abanque - disse. Até o mesmo calão vinha completar o quadro do primeiro encontro.

- Obrigado.

- Boa viagem?

- Sim, muito obrigado.

- Espero que se sinta feliz por estar na pátria.

- Na pátria?

- Aqui, é o que quero dizer, longe dos mestiços. Em território britânico. - Wormold lembrou-se das barracas em frente do porto e de um velho abandonado dormitando numa mancha de sombra e da criança em farrapos brincando com um pedaço de madeira.

- Havana não é assim tão má - respondeu.

- Tome um ponche. Aqui é bem feito.

- Obrigado.

- Pedi-lhe para vir cá porque há uma suspeita de sarilho - começou Hawthorne.

- Sim? - Supôs que a verdade começava a vir à tona.

Poderiam prendê-lo agora, que se encontrava em território britânico? Sob que acusação? Extorsão de dinheiro com falsos pretextos ou qualquer obscura acusação prevista no Regulamento dos Serviços Secretos?

- A respeito daquelas construções.

Queria explicar que Beatrice estava inocente; o seu único cúmplice era a credulidade dos outros.

- Que há a respeito delas? - perguntou ele.

- Desejava que tivesse conseguido fotografá-las.

- Tentei. Sabe o que sucedeu.

- Sim. Os desenhos são pouco esclarecedores.

- Não foram feitos por perito.

- Não me compreenda mal, meu velho. Você fez maravilhas, mas, sabe, houve um momento em que cheguei a ter uma leve suspeita.

- De quê?

- Bem, alguns desses desenhos lembravam-me... para ser franco, lembravam-me certas partes de um aspirador.

- Também reparei nisso.

- E depois, compreende, recordei-me de todas essas peças lá da sua loja.

- E pensou que eu estava a desfrutar o Serviço Secreto?

- Claro, isso agora parece-me fantástico. De qualquer forma, foi para mim um alívio quando descobri que os outros faziam preparativos para assassiná-lo.

- Assassinar-me?

- Bem vê, isso prova que os desenhos são genuínos.

- Que outros?

- Os do outro lado. Claro que felizmente guardei para mim essas suspeitas absurdas.

- E como tencionam assassinar-me?

- Oh, já lá vamos... envenenando-o. Mas o que quero dizer é que a obtenção de fotografias seria a melhor confirmação para as suas informações. Preferíamos aguardar, mas agora pusemos os desenhos a circular por todas as nossas secções. Enviámo-los também para os Serviços de Pesquisas Atómicas. Nada ajudaram. Dizem que não há ali qualquer relação com a cisão nuclear. O pior é que descansámos sobre a informação dos atómicos e esquecemo-nos de que pode haver outras formas científicas de fazer a guerra igualmente perigosas.

- Como vão eles envenenar-me?

- Primeiro o princípio, meu velho. Não devemos esquecer-nos dos aspectos económicos da guerra. Cuba não tem meios para fabricar bombas H, mas pode ter descoberto qualquer substituto eficaz e barato. Essa é a palavra que importa - “barato”!

- É favor, caso não lhe faça diferença, dizer-me como é que vão assassinar-me. Compreende, esse assunto interessa-me pessoalmente.

- Claro que lhe vou dizer. Só pretendia dar-lhe uma ideia do conjunto da situação e comunicar-lhe a nossa satisfação por ver confirmadas as suas informações, claro. Vão tentar envenená-lo numa espécie de almoço de negócios.

- No banquete da Associação dos Negociantes Europeus?

- Creio que é esse o nome.

- Como sabe?

- Conseguimos infiltrar-nos aqui na organização deles. Ficaria surpreendido se soubesse o que conhecemos do que se passa nos seus domínios. Posso dizer-lhe, por exemplo, que a morte de traço quatro foi um acidente. Só pretendiam atemorizá-lo como atemorizaram traço três dando-lhe um tiro e falhando o alvo de propósito. Você é o primeiro a quem eles decidiram efectivamente matar.

- Isso conforta-me.

- Em certa medida, sabe, é um elogio. Você agora é perigoso. - Hawthorne emitiu um longo ruído de sucção chupando o líquido que restava entre as pedras de gelo, os gomos de laranja, pedaços de ananás e a cereja ao de cima.

- Suponho - disse Wormold - que é melhor não ir. - Sentiu um surpreendente desapontamento. - Será a primeira vez que falto em dez anos. Tinham-me convidado para falar. A firma conta sempre com a minha presença. É como levar o pendão.

- Mas certamente você tem de ir.

- E ser envenenado?

- Não necessita de comer coisa alguma.

- Já alguma vez foi a um almoço desse género sem nada comer? Além disso há o problema das bebidas.

- Não é fácil envenenar uma garrafa de vinho. Você pode fingir-se um alcoólico daquela espécie que se alimenta apenas de bebida.

- Obrigado. Isso seria estupendo para os meus negócios.

- As pessoas sentem um fraco pelos alcoólicos - disse Hawthorne. - Além disso, se você não for, levanta suspeitas. Põe em risco a minha fonte. Temos de proteger as nossas fontes.

- Isso é do regulamento, suponho eu?

- Exactamente, meu velho. Outro ponto: conhecemos a conspiração, mas não conhecemos os conspiradores. Se os descobrimos, insistiremos para que os prendam. Desfaremos a organização.

- Sim, eles não são assassinos profissionais capazes de cometer um crime perfeito? Quer dizer, a autópsia fornecerá uma indicação que lhe permita persuadir o capitão Segura a agir.

- Está com medo? Isto é uma profissão perigosa. Não devia tê-la seguido sem estar preparado...

- Você é como uma mãe espartana, Hawthorne. Regressa vitorioso ou fica debaixo da mesa.

- Aí está uma boa ideia. Você pode deixar-se escorregar para debaixo da mesa. Os assassinos julgarão que você morreu e os outros pensarão que você está bêbedo.

- Mas aquilo não é um encontro dos Quatro Grandes em Moscovo. Os comerciantes europeus não caem para debaixo da mesa.

- Nunca?

- Nunca. Você julga que me estou a preocupar excessivamente?

- O que penso é que ainda não há qualquer necessidade de estar a preocupar-se. De resto, ninguém lhe deita a comida no prato. Você serve-se da travessa comum.

- Claro. Excepto um prato de caranguejo de morro que constitui uma espécie de aperitivo obrigatório no Nacional e que é preparado com antecedência.

- Não coma. Há muitas pessoas que não podem comê-lo. Quando o servirem, nunca tire a porção mais próxima na travessa. É como se um dos assassinos lhe estivesse a querer forçar uma carta. Tudo quanto tem a fazer é rejeitá-la.

- Mas o assassino habitualmente força a carta de qualquer maneira.

- Sempre lhe direi que... Mas você não disse que o almoço era no Nacional?

- Sim.

- Então pode utilizar-se de traço sete.

- Quem é traço sete?

- Já nem consegue lembrar-se dos seus agentes? É o chefe de mesa do Nacional. Ele pode fiscalizar a comida que lhe servem. É tempo de ele fazer alguma coisa em troca do dinheiro que recebe. Não me recordo de você nos enviar um único relatório dele.

- Não me pode dar qualquer ideia de quem é o homem que irá ao almoço? Quero dizer, o homem que planeia... - a palavra “matar” fê-lo hesitar - ...fazer essa coisa.

- Nem a menor ideia, meu velho. Tenha cuidado com todos. Tome outro ponche.

 

O avião de regresso a Cuba trazia poucos passageiros; uma espanhola com um montão de filhos - alguns deles começaram a chorar enjoados tão depressa o avião levantou voo; uma negra com um galo vivo embrulhado na mantilha; um cubano exportador de charutos que Wormold conhecia de vista e um inglês enroupado num casaco de lã fina que se ocupou a fumar cachimbo até a hospedeira lhe dizer que era proibido. Apagou o cachimbo e pôs-se a chupá-lo ostensivamente durante o resto da viagem, suando desalmadamente devido ao casaco impróprio para o clima. Mostrava a expressão mal-humorada de um homem que tem sempre razão.

Quando serviram o almoço, recuou várias filas e veio sentar-se ao lado de Wormold. Explicou:

- Não posso suportar os berros daqueles rebentos. Importa-se que me sente aqui? - Olhou para os papéis sobre os joelhos de Wormold. - Trabalha com a Phastkleaners?

- Sim.

- Somos colegas. Eu trabalho com a Nucleaners. Chamo-me Cárter.

- Oh!

- Esta é a minha segunda viagem a Cuba, lugar alegre, contaram-me - disse ele despejando o conteúdo do cachimbo e pondo-o de lado para almoçar.

- Bem, será alegre para quem aprecia a roleta e os bordéis.

Cárter afagava a bolsa de tabaco como se fosse a cabeça de um cão.

- “O meu fiel nunca me deixa”.

- Bem, eu não queria dizer... embora não seja um puritano. Suponho que será interessante. Em Roma sê romano. - Mudou então de assunto. - Vende muitas das suas máquinas?

- Podia ser pior.

- Temos um novo modelo que vai arrasar o mercado. - Deu uma grande dentada numa fatia de bolo cor de malva e cortou um pedaço de galinha.

- Realmente?

- Tem um motor que o desloca, como essas máquinas de aparar relva. Não mais esforços para a mulher. Nem mais tubos para soalhos.

- Barulhento?

- Tem silenciador especial. Menos barulhento que o seu modelo. Chamamos-lhe a “Esposa Silenciosa”. - Depois de um sorvo de sopa de tartaruga, lançou-se à salada de frutas, esmagando entre os dentes os gominhos de laranja azeda. Continuou:- Esperamos abrir em breve uma agência em Cuba. Conhece o doutor Braun?

- Sim, conheço-o, da Associação dos Negociantes Europeus. É o nosso presidente. Importa da Suíça instrumentos de precisão.

- É esse mesmo. Deu-nos excelente assistência. Na verdade, vou à vossa festa por convite dele. Costuma ser um bom almoço?

- Bem, é o género de almoço que servem nos hotéis.

- Melhor do que este, de qualquer maneira - disse ele cuspindo uma película de laranja. Tinha-se esquecido da maionese de espargos e agora pusera-se a comê-los. Finalmente vasculhou a carteira. - Aqui tem o meu cartão. - No cartão lia-se “William Cárter (Nottwich)” e no canto “Nucleaners, Ltd.”. Acrescentou: - Fico no Seville-Biltmore durante uma semana.

- Julgo não ter qualquer cartão comigo. Chamo-me Wormold.

- Conheceu um sujeito chamado Davis?

- Não me recordo de ninguém com esse nome.

- Estudámos juntos no colégio. Ele empregou-se no Grip-fix e veio parar a estes lados. É curioso, mas encontram-se alunos de Nottwich por toda a parte. Não estudou lá, por acaso?

- Não.

- Reading?

- Não frequentei a Universidade.

- Olhe que não parece - disse-lhe Cárter bondosamente. - Por mim teria preferido ir para Oxford, mas, sabe, eles estão pouco actualizados em tecnologia. Dão uma boa preparação para professores, e é tudo. - Começou a chupar o cachimbo como um bebé mamando na chupeta, até que um jacto de nicotina espirrou manchando-lhe os dentes. Subitamente tornou a falar, como se os resíduos da nicotina lhe tivessem depositado na língua um travo amargo. - Relíquias desactualizadas - disse ele - vivendo no passado. Aboli-as.

- Aboliu o quê?

- Oxford e Cambridge. - Pegou no último pedaço de comida que restava na bandeja, um pãozinho, e fragmentou-o como o tempo e as raízes fragmentam os alicerces de pedra.

Wormold perdeu-o de vista na alfândega. Tinha, ao que parece, dificuldade para passar o seu modelo de aspirador e Wormold não se sentia obrigado a auxiliar um concorrente. Beatrice esperava-o com o Hillman. Havia muitos anos que uma mulher não o vinha esperar.

- Tudo bem? - perguntou ela.

- Sim, sim. Parecem satisfeitos comigo. - Observou as mãos que ela assentava no volante: não calçavam luvas nessa tarde muito quente; eram umas mãos bonitas e competentes. Observou:

- Não traz a aliança?

- Pensava que ninguém repararia - respondeu Beatrice. - Afinal a Milly reparou. Vocês são uma família observadora.

- Perdeu a aliança?

- Tirei-a ontem para lavar as mãos e esqueci-me de tornar a pô-la. Não vale a pena, não é verdade, usar um anel que se esquece?

Foi então que ele lhe falou no almoço.

- Você não vai? - perguntou ela.

- Hawthorne insiste que eu vá. Para proteger a sua fonte.

- Que a sua fonte vá para o diabo.

- Há outra razão para ir. Uma coisa que o doutor Hassel-bacher me disse. Eles costumam atingir aqueles a quem amamos. Se eu não for, eles tentarão qualquer outra coisa. Outra coisa ainda pior. E então não teremos meio de saber onde vão ferir. Da próxima vez pode ser que não seja a mim - não creio que goste de mim próprio o bastante para satisfazê-los --, pode ser Milly a vítima, ou você. - Não compreendeu todo o alcance do que acabava de dizer até ao momento em que ela seguiu de carro depois de o deixar à porta de casa.

 

- Então ficas só com o café? Nenhuma torrada comeste - observou Milly.

- Não tenho apetite.

- Pois é! Logo vais comer demais nesse almoço e bem sabes que o caranguejo de morro te faz mal ao estômago.

- Prometo-te ser muito cuidadoso.

- Seria mais sensato teres comido bem agora. Precisavas de uma boa dose de cereais para enxugar todas essas bebidas que vais ingerir.

Via-se bem que a duena estava presente.

- Desculpa, Milly, mas não posso. Estou preocupado. Por favor, não me maces. Hoje pelo menos.

- Preparaste o teu discurso?

- Fiz o que podia, mas não sou orador, Milly. Não compreendo porque me convidaram. - Mas sentia-se desagradavelmente consciente de que talvez conhecesse o motivo. Alguém que deve ter influenciado o Dr. Braun, alguém que deve ser identificado por qualquer preço. Pensou: “Eu sou o preço!”

- Espero que faças sensação.

- Estou justamente a tentar não fazer sensação neste almoço. - Milly foi para o colégio e ele sentou-se à mesa. A fábrica dos cereais predilectos de Milly tinha mandado gravar na caixa a última aventura do anãozinho Doodoo. Nalguns quadros descrevia-se a aventura do anãozinho Doodoo, que, encontrando um rato, grande como um são-bernardo, consegue afugentá-lo fingindo-se gato e fazendo miau. Era uma história muito simples. Dificilmente se podia considerá-la um apólogo.

O fabricante oferecia também uma espingarda de ar comprimido em troca de doze tampas. Como a embalagem estivesse já quase vazia, Wormold começou a recortar a tampa, seguindo cuidadosamente com o canivete a linha tracejada. Estava a terminar a sua tarefa quando Beatrice entrou.

- Que está a fazer? - perguntou.

- Estava a pensar que temos necessidade de uma espingarda de ar comprimido. Só nos faltam onze tampinhas.

- Não consegui dormir a noite passada.

- Abusou do café?

- Não. Foi essa coisa que me disse que o doutor Hasselbacher lhe contou. A respeito de Milly: por favor, não vá ao almoço.

- É o menos que posso fazer.

- Você já fez bastante. Estão contentes consigo em Londres. Isso vê-se pela maneira como lhe telegrafam. Diga o que disser Henry, tenho a certeza de que Londres não deseja que você corra um risco desnecessário.

- Mas o que ele disse é verdade: se eu não comparecer, eles tentarão qualquer coisa.

- Não se preocupe com Milly. Eu tomarei conta dela.

- E quem toma conta de si?

- Isso é comigo; faz parte dos ossos do ofício. Você não tem necessidade de se sentir responsável por mim.

- Já alguma vez se viu metida num sarilho destes?

- Não, mas também nunca tive um chefe assim. Você parece excitá-los. Bem vê, este ofício geralmente é como qualquer emprego de escritório, trabalho de secretaria, ficheiros, telegramas idiotas; ninguém é morto. E eu não quero que o matem. Você é real. Não vem nos jornais infantis. Pelo amor de Deus, deixe essa caixa e escute-me.

- Estava a ler a história do anãozinho Doodoo.

- Então fique em casa esta manhã. Eu vou num instante comprar-lhe todas as histórias de quadradinhos que encontrar.

- Tudo quanto Hawthorne disse era sensato. Só preciso de ter muito cuidado. É importante descobrir “quem” são eles. Assim terei merecido o que ganhei.

- Você já o mereceu. Não há motivo para ir a esse maldito almoço.

- Sim, há um motivo: o amor-próprio.

- A quem está a tentar impressionar?

- A si.

 

Fez a sua passagem no vestíbulo do Hotel Nacional por entre as montras onde se expunha calçado italiano, cinzeiros dinamarqueses, vidros suecos e lãs inglesas cor de malva. A sala de jantar reservada onde se reuniam habitualmente os negociantes europeus ficava justamente para além do vestíbulo, onde o Dr. Hasselbacher se encontrava sentado numa posição destacada. Wormold aproximou-se dele lentamente; era a primeira vez que o encontrava depois da noite em que o vira num uniforme de ulano falando do passado. Membros da Associação, encaminhando-se para a sala de jantar, detinham-se para falar com o Dr. Hasselbacher, que não lhes concedia a mínima atenção.

Wormold sentou-se perto do médico. O Dr. Hasselbacher aconselhou-o:

- Não vá lá para dentro, Mister Wormold. - Falava sem baixar a voz e as suas palavras vibravam na galeria atraindo atenções.

- Como está você Hasselbacher?

- Disse-lhe para não ir ao almoço.

- Ouvi-o perfeitamente da primeira vez.

- Vão matá-lo, Mister Wormold.

- Como sabe isso, Hasselbacher?

- Eles intentam envenená-lo.

Alguns convidados detiveram-se no seu caminho para a sala de jantar, abriram os olhos de surpresa e sorriram. Um deles, um americano, observou:

- A comida é assim tão má? - toda a gente desatou a rir.

- Não fique aqui, Hasselbacher. Dá muito nas vistas - disse Wormold.

- Você sempre vai?

- Claro, eu sou um dos oradores.

- Não se esqueça da Milly.

- Não se preocupe. Tenciono sair vivo daquela sala, Hasselbacher. Por favor, vá para casa.

- Pois sim, mas tinha de avisá-lo - disse o Dr. Hassel-bacher. - Esperarei pelo telefone.

- Adeus, Jim.

- Adeus doutor. - O facto de o outro lhe ter chamado Jim apanhou-o desprevenido. Recordou-se do seu velho gracejo: “O doutor Hasselbacher só o trataria pelo seu nome quando, à cabeceira da cama, o considerasse perdido.” Sentiu-se subitamente aterrado, só e muito longe de casa.

- Wormold! - Uma voz pouco familiar pronunciou o seu nome. Era Cárter, mas nesse momento essa voz representava a Inglaterra, o snobismo inglês, a vulgaridade inglesa, toda a afabilidade e toda a segurança que a palavra “Inglaterra” possuía.

- Cárter! - exclamou ele como se este fosse (e nesse momento era) o único homem que ele desejasse encontrar em Havana.

- Sinto-me feliz por vê-lo aqui - disse Cárter. - Não conheço um único destes tipos. Nem sequer o meu... nem sequer o doutor Braun. - No bolso do seu casaco salientava-se o volume ocupado pelo seu cachimbo e pela bolsa do tabaco; afagou-o como para se tranquilizar, como se ele próprio se sentisse longe de casa.

- Cárter, apresento-lhe o doutor Hasselbacher, um velho amigo meu.

- Bons dias, doutor. - Voltou-se para Wormold. - Andei à sua procura a noite passada. Sozinho não sou capaz de dar com os tais lugares de que me falou.

Dirigiram-se para a sala do banquete. Era certamente irracional a confiança que lhe despertava um compatriota, mas a verdade é que, ao lado de Cárter, Wormold se sentia em segurança.

 

Na sala de jantar havia duas grandes bandeiras dos Estados Unidos, em honra do cônsul-geral, e pequenas bandeirinhas de papel indicavam o lugar onde cada convidado deveria sentar-se. Como no restaurante de um aeroporto, uma bandeira suíça no topo da mesa indicava a cadeira do Dr. Braun, o presidente; havia até a bandeira do Mónaco para o cônsul mone-gasco, um dos maiores exportadores de charutos de Havana. O seu lugar era ao lado do cônsul dos Estados Unidos, em virtude da aliança real entre as duas grandes nações. Circulavam cocktails e quando Wormold e Cárter penetraram na sala um criado aproximou-se deles.

Foi imaginação de Wormold ou de facto o criado apresentou a bandeja de tal modo que o último daiquiri de uma das filas ficasse convictamente ao seu alcance?

- Não, obrigado.

Cárter estendeu a mão, mas o criado afastou-se na direcção da porta sem lhe dar tempo a servir-se.

- Talvez prefira um dry martini, Sir? - disse uma voz. Voltou-se. Era o chefe de mesa.

- Não, não, muito obrigado.

- Um whisky? Um sherry? Um old-fashioned? Qualquer outra coisa?

- Não bebo, obrigado - disse Wormold, e o chefe abandonou-o para ir atender outro convidado. Era o seu agente traço sete; estranho se por uma coincidência irónica fosse ele justamente o seu assassino potencial. Wormold voltou-se à procura de Cárter, mas este afastava-se em perseguição do Dr. Braun.

- É melhor beber tanto quanto puder - disse uma voz acentuadamente escocesa. - Chamo-me Mac Dougall. Parece que ficamos juntos à mesa.

- Creio que não o conheço.

- Sou o substituto de Mac Intyre. Conheceu certamente Mac Intyre!

- Sim, claro. - O Dr. Braun, que se tinha desembaraçado do insignificante Cárter apresentando-o a outro suíço, que negociava em relógios, ia conduzindo o cônsul-geral através da sala, apresentando-o aos sócios mais importantes. Os alemães formavam um rebanho à parte, agrupados junto da parede ocidental: exibiam a superioridade das suas firmas como cicatrizes de gloriosos duelos; a honra nacional, que tinha sobrevivido às vergonhas dos campos de concentração, assentava agora na qualidade dos seus produtos. Wormold cogitava se algum deles teria revelado ao Dr. Hasselbacher o segredo do que se preparava. Revelado? Não, necessariamente! Talvez tivessem exercido pressão sobre o médico para fornecer o veneno. Pelo menos, se assim fosse, ele teria escolhido, em nome da antiga amizade, um veneno indolor, se é que há algum.

- Como lhe ia dizendo - insistia Mac Dougall com a energia teimosa de um escocês -, é melhor beber o que puder agora. E tudo quanto há em matéria de líquidos.

- Espero que sirvam vinho.

- Olhe para a mesa. - Havia pequenas garrafas de leite em frente de cada talher. - Não leu o convite? Um almoço americano em honra dos nossos grandes aliados.

- Almoço americano?

- Não me diga que não sabe o que isso significa. Põem-lhe à frente do nariz um prato com carne, peru estufado, molho de uva brava, salsichas, cenouras e batatas fritas. Não suporto batatas fritas, mas tenho de resignar-me.

- Não podemos escolher?

- Você come o que lhe puserem à frente. É a democracia americana, meu velho.

O Dr. Braun convidou os presentes a ocuparem os seus lugares. Wormold tinha esperança de que se sentassem agrupados por nacionalidades e que Cárter seria o outro dos seus vizinhos, mas foi um escandinavo quem veio postar-se à sua esquerda mirando com sombrio desagrado a garrafa de leite. Wormold pensou: “Alguém preparou bem as coisas. Nada é seguro, nem sequer o leite.” Já os criados serviam o caranguejo de morro. Foi então que verificou, aliviado, que Cárter estava sentado à sua frente. Na sua vulgaridade tinha algo de tranquilizante. Podia recorrer-se a ele como a um polícia inglês, pois conheciam-se os seus pensamentos.

- Não - disse ele para o criado -, não como caranguejo.

- Faz bem em não comer - disse Mac Dougall. - Também não quero. Não se combina com o whisky. Se beber um pouco de água e meter o copo debaixo da mesa tenho aqui uma garrafinha que chega para os dois.

Instintivamente, Wormold estendeu a mão para o copo, mas nesse momento a dúvida assaltou-o. Quem era Mac Dougall? Nunca o tinha visto, e só por ele soubera que Mac Intyre tinha regressado a Inglaterra. Não estaria a água envenenada, ou o próprio whisky?

- Por que razão se foi embora Mac Intyre? - perguntou segurando o copo.

- Foi uma dessas histórias - disse Mac Dougall -, sabe a que me refiro. - Pôs de parte a água. - Não quer provar o whisky? É do melhor.

- É cedo de mais para mim. Agradeço-lhe de qualquer modo.

- Faz bem em não confiar nessa água - disse Mac Dougall ambiguamente. - Vou beber o whisky puro. Podemos tomá-lo mesmo pela garrafa, por mim não me faz diferença.

- Não, obrigado. Nunca bebo tão cedo.

- Foram os Ingleses que inventaram um horário para beber. Nós, os Escoceses, não ligamos a isso. Qualquer dia vocês inventam também horas para morrer.

Cárter disse do outro lado da mesa:

- Eu por mim tomo um pouco - e Wormold viu com alívio Mac Dougall servi-lo de whisky; era um suspeito que se eliminava, porque certamente ninguém estaria interessado em envenenar Cárter. “Não obstante - pensou ele - há qualquer coisa de errado no escocesismo de Mac Dougall. É tão falso como o de Ossian.”

- Svenson - apresentou-se o sombrio escandinavo por detrás da pequenina bandeira sueca; pelo menos Wormold pensou que fosse sueca; era incapaz de distinguir as cores das bandeiras dos países escandinavos.

- Wormold - disse ele.

- Que asneira é esta de nos servirem leite?

- Creio - disse Wormold - que o doutor Braun está a ser excessivamente literal.

- Ou a fazer-se engraçado - alvitrou Cárter.

- Não me parece que o doutor Braun seja um humorista.

- Em que negoceia, Mister Wormold? - perguntou o sueco. - Conheço-o de vista, mas não me parece que nos tenham já apresentado.

- Vendo aspiradores. E o senhor?

- Vidros. Como sabe, o vidro sueco é o melhor do mundo. Este pão é muito bom. Não come pão? - Devia ter estudado a sua conversação antecipadamente num desses livros idiotas por onde se aprende uma espécie de inglês.

- Pus o pão de parte há algum tempo. Engorda, sabe!

- Parece-me que era então melhor dizer que tinha posto de parte a gordura. - Mr. Svenson soltou uma sinistra gargalhada que simbolizava bem a alegria de uma noite de quatro meses na sua terra natal. - Desculpe-me.

No topo da mesa tinha começado o serviço, mas Mac Dougall fizera um prognóstico errado. Em lugar do peru, serviram galinha Maryland. Mas acertara nas batatas, nas cenouras e nas salsichas. O Dr. Braun estava um pouco atrasado; continuava a debicar o seu caranguejo de morro. O cônsul-geral dos Estados Unidos devia ter contribuído para o atraso devido à veemência da sua conversação e à fixidez das suas lentes convexas. Dois criados aproximaram-se da mesa, um retirando os restos do caranguejo, o outro servindo o prato principal. Somente o cônsul-geral tinha aberto a sua garrafa de leite. A palavra “dulles” veio abrindo caminho, estupidamente, até Wormold'. O criado aproximou-se com dois pratos; colocou um em frente do escandinavo e outro em frente de Wormold. O pensamento de que tudo o que lhe tinham dito sobre a ameaça podia ser uma peça que lhe estavam a pregar atravessou-lhe a mente. Talvez Hawthorne fosse afinal um humorista e o Dr. Hasselbacher... Recordou-se de Milly lhe perguntar se o Dr. Hasselbacher não costumava desfrutá-la. Às vezes parece mais fácil correr o risco de morrer do que cair no ridículo. Sentiu a necessidade de confiar os seus problemas a Cárter e de ouvir na sua resposta falar o senso-comum; então, olhando para o prato, notou algo de estranho. Não lhe tinham servido cenouras.

- Você não gosta de cenouras - disse com precipitação. - Fique com o meu prato —e passou-o rapidamente a Mac Dougall.

- Do que não gosto é das batatas fritas - disse Mac Dougall, e passou o prato ao cônsul do Luxemburgo. Este, empenhado em profunda conversação com um alemão, passou o prato com um gesto instintivo de delicadeza, ao seu vizinho. A delicadeza infectou todos os que ainda não tinham sido servidos, e assim o prato foi viajando até ao Dr. Braun. O chefe de mesa viu o que se passava e começou a perseguir o prato, mas este conservava o avanço. Um criado regressando da copa com outros pratos foi interceptado por Wormold, que se apoderou de um deles. O criado hesitou, embaraçado. Wormold pôs-se a comer com apetite.

- As cenouras estão excelentes - observou ele.

O chefe de mesa aproximou-se do Dr. Braun:

- Desculpe-me, doutor Braun - disse ele -, não lhe serviram cenouras.

- Não gosto de cenouras - respondeu o Dr. Braun cortando uma fatia de galinha.

- Oh, lastimo muito - disse o chefe, e retirou o prato do Dr. Braun. - Houve um engano na copa. - Prato na mão, solenemente, atravessou a sala na direcção da porta de serviço. Mac Dougall pôs a garrafa à boca e tomou uma golada de whisky.

- Agora posso tomar um pouco - disse Wormold. - Para festejar.

- Bravo, homem. Puro ou com água?

- Posso servir-me da sua água? A minha parece-me pouco limpa.

- Faça o favor. - Wormold bebeu dois terços da água do copo e estendeu-o para que Mac Dougall lhe servisse whisky. Mac Dougall deitou no copo uma porção generosa. - Beba à vontade, amigo. Isto é só para nós os três - disse ele, e Wormold julgou-se de novo em terreno de confiança.

Sentiu uma espécie de ternura para com aquele vizinho de quem desconfiara. Propôs:

- Devemos voltar a encontrar-nos.

- Uma ocasião destas seria inútil se não servisse para aproximar as pessoas.

- Se não fosse este almoço, eu não o teria encontrado nem a si nem a Cárter.

Os três serviram-se de novo do whisky.

- Gostava que conhecessem a minha filha - disse Wormold, a quem o whisky começou a tornar menos reservado.

- Como vão os seus negócios?

- Menos mal. Estamos aumentando o pessoal.

O Dr. Braun bateu na mesa e pediu silêncio.

- Certamente - disse Cárter na sua voz profunda de Nottwich, tão calorosa como o próprio whisky - terão de servir bebidas para os brindes.

- Meu rapaz - disse Mac Dougall-, haverá discursos, mas não se farão brindes. Temos de ouvir esses bastardos mesmo a seco.

- Eu sou um dos bastardos - advertiu Wormold.

- Você vai discursar?

- Na qualidade de membro mais antigo.

- Apraz-me saber que sobreviveu a tantos almoços - disse Mac Dougall.

O cônsul-geral da América foi o primeiro dos oradores. Falou dos laços espirituais que unem as democracias - e parecia incluir Cuba entre elas. O negócio era um factor importante, visto que sem negócios não há laços espirituais, ou talvez fosse o contrário. Falava na ajuda do seu país aos países pobres, permitindo-lhes adquirir na América mais produtos, apertando assim os tais laços espirituais... Um cão começou a uivar tristemente lá fora e o chefe de mesa fez sinal para fecharem a porta de serviço. Fora para ele, cônsul-geral, um grande prazer aquele convite que lhe proporcionara proveitosos contactos com os maiores representantes da finança europeia, permitindo estreitar ainda mais os laços espirituais... Wormold tomou mais dois whiskies.

- Agora - disse o Dr. Braun - vou conceder a palavra ao mais antigo membro da nossa Associação. Não me refiro certamente à sua idade, mas aos anos decorridos ao serviço da causa dos negócios da Europa nesta bela cidade, onde, senhor ministro - fez uma reverência para outro dos seus vizinhos, um mulato zanaga-, temos o privilégio de viver. Refiro-me, todos o sabem, a Mister Wormold - deu uma olhadela furtiva aos seus apontamentos -, Mister James Wormold, representante em Havana da firma Phastkleaners.

Mac Dougall observou:

- Acabou-se o whisky justamente na altura em que você precisava de um pouco.

Cárter acrescentou:

- Também vinha preparado, mas bebi a maior parte no avião. No frasco resta, quando muito, um copo.

- É o nosso amigo quem deve tomá-lo - concedeu Mac Dougall. - Tem mais necessidade que nós.

O Dr. Braun prosseguia:

- Podemos apresentar Mister Wormold como símbolo de tudo quanto o trabalho representa: modéstia, prudência, perseverança e eficácia.

“Os nossos inimigos descrevem o homem de negócios como um fanfarrão imoral que tudo quanto pretende é vender um produto inútil, desnecessário ou mesmo prejudicial. Este retrato é falso...”

Wormold disse:

- Muito amável, Cárter. Uma bebida de facto ajuda.

- Não está habituado a discursar?

- O discurso não é tudo. - Debruçou-se por cima da mesa para aquele rosto vulgar onde sentia que assentava a incredulidade, a tranquilidade e o humor simples que a experiência confere; junto de Cárter sentia-se a salvo. Começou:

- Você não vai acreditar numa palavra do que eu lhe vou dizer - mas justamente não desejava que Cárter acreditasse. O que queria era que Cárter o convencesse a não acreditar. Qualquer coisa roçou-lhe uma perna. Wormold olhou para baixo e viu erguido para ele o focinho de um basset, com as grandes orelhas pendentes, a reclamar um petisco —o cão devia ter-se introduzido pela porta de serviço aproveitando-se da distracção dos criados e agora vinha ocultar-se debaixo da mesa.

Cárter estendeu um pequeno frasco a Wormold.

- Não chega para os dois. Tome-o você todo.

- Você é muito amável, Cárter. - Desrolhou o gargalo e deitou a bebida no copo.

- É Johnnie Walker do bom. Do bom.

O Dr. Braun continuava:

- Se algum dos presentes pode testemunhar os longos anos de serviço ao público prestados por um comerciante, estou certo de que Mister Wormold, a quem dou a palavra, e...

Cárter piscou o olho e ergueu um copo imaginário.

- Depressa, h-homem. Vá, beba isso, h-homem. Wormold baixou o copo.

- Que disse você Cárter?

- Disse-lhe que bebesse depressa.

- Oh, não, você não disse isso, Cárter. - Como lhe passara até então despercebida aquela dificuldade em aspirar o h? Teria Cárter consciência do facto evitando as palavras iniciadas por h, excepto quando o medo ou a esperança o assaltavam?

- Que se passa, Wormold?

Wormold baixou a mão para afagar a cabeça do cão e, como por acaso, deixou o whisky entornar-se no soalho.

- Pretende ainda não conhecer o doutor?

- Que doutor?

- Esse a quem você chama doutor Hasselbacher.

- Mister Wormold - chamou o Dr. Braun do topo da mesa.

Ergueu-se sobre as pernas bambas. O cão, à falta de melhor, lambia o whisky derramado.

Wormold começou:

“Sejam quais forem as suas razões, agradeço a oportunidade que me concedeu de falar neste almoço.” Houve uma delicada risadinha da assistência que o surpreendeu - não pretendia gracejar. Continuou: “É a primeira vez que faço um discurso e creio que esteve para ser a última.” Olhou para Cárter, que franziu o rosto. Sentia-se envergonhado do solecismo que provocara o fracasso dos seus planos, como alguém se pode sentir envergonhado de se embebedar publicamente. Talvez estivesse embriagado. Wormold prosseguiu: “Não sei se conto algum amigo entre os presentes, mas conto por certo alguns inimigos.” Alguém disse: “Horrível”, e várias pessoas riram. Se continuasse assim acabaria por ganhar a reputação de orador brilhante. Continuou: “Ouvimos falar muito na guerra fria, mas qualquer comerciante pode assegurar-vos que a guerra entre dois concorrentes pode ser, pelo contrário, bastante quente. Tomemos, por exemplo, estas duas firmas: a Phastkleaners e a Nucleaners. As máquinas que eles fabricam não são muito diferentes, não há entre elas maior diferença do que entre dois seres humanos, entre um russo, ou alemão, e um inglês. Não haveria concorrência nem haveria guerra se não fossem a ambição e os interesses de um pequeno grupo de homens de cada uma das firmas; é esse pequeno grupo de homens quem inventa e dita a concorrência, que lança Mister Cárter e eu próprio um contra o outro.”

Agora ninguém ria. O Dr. Braun segredou qualquer coisa ao ouvido do cônsul. Wormold ergueu o frasco de whisky de Cárter.

“Creio que Mister Cárter ignora até o nome do homem que o mandou cá para me envenenar em nome da sua firma.” Aqui e além soltaram-se gargalhadas até aí oprimidas. Mac Dougall observou: “É pena ter-se acabado o veneno”, e subitamente o cão começou a gemer. Saiu de baixo da mesa e começou a caminhar para a porta de serviço. “Max - exclamou o chefe de mesa - Max.” Houve um curto silêncio quebrado por risos contrafeitos. O cão cambaleava, uivava e tentava morder o próprio peito. O chefe de mesa pegou nele e quis levantá-lo, mas o animal uivou dolorosamente e fugiu-lhe dos braços. “O cão bebeu uma boa dose”, disse Mac Dougall pouco à vontade.

- Peço-lhe que me desculpe, doutor Braun - disse Wormold-, mas a representação acabou.

- Levantou-se e foi atrás do chefe de mesa alcançando-o na copa.

- Espere.

- Que quer?

- Quero saber onde está o meu prato.

- Que quer dizer, Sir, o seu prato?

- Você estava muito ansioso porque o meu prato não fosse servido a mais alguém.

- Não percebo.

- Não sabia que estava envenenado?

- Quer dizer que a comida não estava boa, Sir?

- Quero dizer que estava envenenada e que você teve o cuidado de impedir que o doutor Braun comesse aquilo que me estava destinado.

- Continuo a não compreendê-lo, Sir. Tenho que fazer. É favor dar-me licença. - O som de um uivo atravessou a cozinha e veio encher a copa, um uivo de morte, a que se seguiu um grito de horror. O chefe de mesa gritou: “Max!”, e correu, como se fosse afinal humano, na direcção da cozinha. A porta ficou escancarada. “Max!”

O cão ergueu melancolicamente a cabeça lá do seu refúgio debaixo de uma mesa e começou a arrastar-se dolorosamente para o chefe de mesa. Um homem com um barrete de cozinheiro começou a desculpar-se. “Ele nada comeu aqui. O prato foi deitado fora.” O cão sucumbiu aos pés do dono e ali ficou como uma coisa de refugo.

O criado caiu de joelhos diante do cão. “Max, mein kind, mein kind”, disse. O corpo negro era como um prolongamento da casaca do dono; não eram da mesma carne, mas eram talvez do mesmo pano. O pessoal da cozinha rodeava-os em silêncio.

O animal teve uma ligeira contorção e uma grande língua rosada saiu e ficou inerte a manchar o mosaico da cozinha. O chefe de mesa colocou a mão sobre o cadáver e ergueu para Wormold uns olhos que o acusavam de estar ali vivo enquanto o cão jazia morto em seu lugar. Wormold sentiu-se quase tentado a pedir desculpa, mas voltou as costas e retirou-se. Junto da porta olhou para trás: o homem de negro continuava ajoelhado junto do cão, o cozinheiro-chefe, paralisado, esperava, e o restante pessoal rodeava o grupo como carpideiras em torno de um cadáver. “A minha morte - pensou Wormold - teria causado menos perturbação.”

- Regressei - disse ele para Beatrice. - Como vê, não fiquei debaixo da mesa. Regressei vitorioso. Afinal foi o cão que morreu

 

Disse o capitão Segura:

- Ainda bem que se encontra só. Está só, não é verdade?

- Completamente.

- Creio que não se importará. Postei dois homens à sua porta para evitar que o molestem.

- Estou preso?

- Claro que não.

- Milly e Beatrice foram ao cinema. Ficarão surpreendidas se as não deixarem entrar.

- Não lhe tomarei muito tempo. Há duas coisas de que lhe quero falar. Uma é importante. A outra é apenas de rotina. Posso começar pela primeira?

- Faça o favor.

- Desejo, Mister Wormold, pedir-lhe a mão de sua filha.

- E para me pedir isso é preciso guardar a casa com dois polícias?

- É conveniente evitar que nos incomodem.

- Já falou a Milly?

- Não me passaria pela cabeça falar-lhe antes de trocar impressões consigo.

- Creio que mesmo aqui a lei exige o meu consentimento.

- Não é uma questão de lei, mas de pura cortesia. Posso fumar?

- Porque não? Essa cigarreira é que é a tal de pele humana?

O capitão Segura riu-se.

- Ah, Milly, Milly, muito gosta ela de entrar com as pessoas! - Acrescentou ambiguamente. - Acredita realmente nessa história, Mister Wormold? - Possivelmente evitava as mentiras directas; devia ser um bom católico!

- Ela é ainda muito nova para casar, capitão Segura.

- Não neste país.

- Estou certo de que ela não tem desejo de se prender tão cedo.

- Podia usar a sua influência, Mister Wormold.

- Chamam-lhe o Abutre Vermelho, não é verdade?

- Isso em Cuba é uma espécie de elogio.

- Não acha que a sua vida é pouco segura? Consta que tem muitos inimigos.

- Economizei o suficiente para deixar a minha viúva numa situação desafogada. Nesse aspecto estou mais seguro que o senhor, Mister Wormold. Este estabelecimento não lhe pode dar grandes lucros e neste momento está sujeito a ser encerrado.

- Encerrado?

- Estou certo de que não procura trabalhos, mas ultimamente têm sucedido muitas coisas relacionadas consigo. Se tivesse de sair do país não seria melhor para si que sua filha cá ficasse em segurança?

- Que trabalhos, capitão Segura?

- Um carro espatifou-se, não interessa porquê. O pobre engenheiro Cifuentes, um amigo do ministro do Interior, foi alvejado a tiro. O professor Sánchez queixou-se de que o senhor foi a casa dele ameaçá-lo. E diz-se ainda que envenenou um cão.

- Que eu envenenei um cão?

- Claro que isso parece absurdo. Mas o chefe de mesa do Nacional diz que o senhor lhe matou o cão com whisky envenenado. Por que motivo havia de dar whisky a um cão? Não consigo perceber, nem ele também, mas pensa que talvez fosse por o cão ser alemão. Nada diz, Mister Wormold?

- Faltam-me as palavras.

- O pobre homem estava desolado. Se não fosse por vê-lo tão triste, tinha-o atirado para a rua para ensiná-lo a não dizer asneiras. Acusou-o de ter entrado na cozinha para gozar os efeitos da sua malvadez. Não parece uma coisa sua, Mister Wormold. Sempre o considerei um homem bondoso. Diga-me que não é verdade...

- O cão foi envenenado. O whisky que ele ingeriu estava no meu copo, mas destinava-se a matar-me a mim e não ao cão.

- Porque haviam de querer envenená-lo?

- Sei lá!

- Duas histórias estranhas... que se anulam... Provavelmente o whisky não estava envenenado e o cão morreu porque tinha de morrer. Talvez fosse muito velho. Mas deve admitir, Mister Wormold, que têm acontecido muitas coisas anormais relacionadas consigo. Talvez o senhor seja como essas inocentes crianças acerca das quais li que no seu país desencadeiam a actividade em bruxas.

- Talvez seja. Sabe por acaso o nome das bruxas?

- De quase todas. Creio mesmo que chegou a altura de exorcizá-las. Estou a redigir um relatório para o presidente.

- O meu nome é incluído no relatório?

- Não, necessariamente. Devo dizer-lhe, Mister Wormold, que economizei bastante dinheiro para assegurar o futuro de Milly no caso de me suceder algum percalço. É o bastante para nós nos fixarmos em Miami, se houver uma revolução.

- Não é necessário contar-me isso tudo. Não lhe estou a perguntar em que estado se encontram as suas finanças.

- É habitual, Mister Wormold. Quanto à minha saúde, é excelente. Posso mostrar-lhe atestados médicos. Nem há qualquer dificuldade em matéria de filhos. Isso de resto já foi amplamente demonstrado.

- Bem vejo.

- Nada há que possa temer para o futuro de sua filha. Os meus filhos ilegítimos têm a sua situação regularizada. Não tenho grandes encargos. Sei que os protestantes são muito exigentes nestes assuntos.

- Eu não sou exactamente um protestante.

- E felizmente a sua filha é católica. Será um casamento muito conveniente, Mister Wormold.

- Milly tem apenas dezassete anos.

- É a melhor idade para ter filhos, Mister Wormold. Dá-me licença que eu lhe fale?

- Julga necessário o meu consentimento?

- É mais conveniente.

- E se eu disser não...

- Claro que tentaria convencê-lo.

- Você disse uma vez que eu não pertencia à classe tor-turável.

O capitão Segura colocou a mão afectuosamente sobre o ombro de Wormold.

- O senhor tem, como Milly, muita queda para a ironia. Mas, falando a sério, há sempre a sua permissão de residência a considerar.

- Parece muito determinado. Bem, fale-lhe. Tem muitas oportunidades de encontrá-la na rua. Mas Milly é sensata. Não creio que você tenha a mínima oportunidade.

- Nesse caso pedirei que use a sua influência.

- Como é vitoriano, capitão Segura! Actualmente um pai não tem influência. Disse-me que havia qualquer coisa de importante...

O capitão Segura, ofendido, interrompeu:

- O assunto importante era este. O outro é apenas uma questão de rotina. Pode vir comigo ao Wonder Bar?

- Para quê?

- Um assunto de polícia. Nada com que se preocupar. Estou apenas a pedir-lhe um favor, e é tudo, Mister Wormold.

Partiram no carro do capitão Segura, um modelo sport de cor vermelha, com um polícia em motocicleta a precedê-los e outros a segui-los. Todos os engraxadores do Paseo pareciam reunidos em Virtudes. Havia polícias de ambos os lados do guarda-vento do Wonder Bar e o sol caía pesadamente sobre a rua.

Os motociclistas da polícia saltaram das máquinas e começaram a dispersar os engraxadores. Alguns guardas acorreram do bar e formaram uma escolta para o capitão Segura. Wormold seguiu-o. Como sempre sucedia a esta hora, as gelosias por cima do peristilo rangiam sacudidas pela brisa do mar. O barman estava do lado de fora do bar. Parecia doente e atemorizado. Algumas garrafas partidas vertiam ainda gotas espaçadas, pois tinham despejado há algum tempo a maior parte do seu conteúdo. Havia qualquer coisa no soalho oculta pelos polícias presentes, mas viam-se as botas, umas botas muito consertadas de um velho pouco abonado. - É apenas uma identificação formal - disse o capitão Segura. Wormold já não precisava de olhar o rosto para saber, mas os polícias afastaram-se para que ele pudesse ver bem o Dr. Hasselbacher.

- É o doutor Hasselbacher - disse ele. - Você conhece-o tão bem como eu.

- Há certas formalidades a observar nestes casos - disse Segura. - Uma identificação independente.

- Quem o matou?

- Quem sabe? - Segura suspirou. - É melhor tomar um copo de whisky. Barman!

- Não. Dê-me um daiquiri. Era o que eu tomava quando me encontrava aqui com ele.

- Alguém veio até cá. Falhou dois tiros. Claro que diremos ser obra dos rebeldes. É útil para impressionar a opinião pública estrangeira. Talvez fossem mesmo os rebeldes. A face, sem expressão, olhava para o tecto. É impossível descrever tal impassividade em termos de paz ou angústia. Era como se nunca alguma coisa lhe tivesse acontecido: uma face não nascida.

- Quando o sepultarem metam o capacete na urna.

- O capacete?

- Encontrarão um antigo uniforme no seu apartamento. Era um velhote sentimental. - Era estranho que o Dr. Hasselbacher tivesse sobrevivido a duas guerras para morrer, nesta espécie de paz, do mesmo género de morte que o podia ter abatido no Somme.

- Sabe muito bem que os rebeldes nada têm com isto —- disse Wormold.

- É conveniente que tenham.

- As bruxas outra vez.

- Está a culpar-se sem razão.

- Ele avisou-me para não ir ao almoço. Cárter ouviu-o, todos o ouviram, e por isso eles mataram-no.

- Quem são eles?

- Você tem a lista.

- Não há lá nenhum Cárter.

- Pergunte ao criado, ao do cão: pode torturá-lo a ele. Eu não me queixarei se o fizer.

- É um alemão com importantes relações políticas. Porque quereria ele envenená-lo?

- Porque me julgam perigoso. Eu! Quão pouco eles sabem! Dê-me outro daiquiri. Tomava sempre dois antes de voltar para a loja. Mostra-me a sua lista, Segura?

- Ao meu sogro não recusaria um tal serviço.

Podem imprimir-se estatísticas e contar a população em centos de milhares, mas para cada homem uma cidade tem apenas algumas ruas, algumas casas, algumas pessoas. Suprimam-se essas poucas pessoas e a cidade não existe mais, é apenas uma dor na memória, como a dor de uma perna amputada que já não está onde dói. “Era tempo - pensou Wormold - de fazer as malas e abandonar as ruínas de Havana.”

- Bem vê —disse o capitão Segura -, isto ainda serve para me dar mais razão. Podia ter sido o senhor. Milly deve estar protegida contra acidentes desta natureza.

- Sim - disse Wormold. - Olharei por isso.

 

Os polícias tinham-se retirado da loja quando ele regressou. López saíra sem deixar qualquer indicação. Ouvia Rudy mexendo nos seus complicados tubos e o crepitar ocasional dos sons telegráficos errava pelo apartamento. Sentou-se na cama. Três mortes: um desconhecido chamado Raul, um cão basset chamado Max e um velho médico chamado Hasselba-cher. E ele era o responsável - ele e Cárter. Cárter não planeara a morte de Raul nem a do cão, mas a do Dr. Hasselba-cher fora friamente premeditada. Fora uma represália: uma morte por uma vida, o contrário da lei mosaica. Ouvia Milly e Beatrice falando no quarto vizinho. Embora a porta estivesse entreaberta, mal escutava o que elas diziam. Encontrava-se nas fronteiras da violência, terra desconhecida onde até então nunca tinha penetrado. Tinha na mão o passaporte. “Profissão: espião. Sinais característicos: inimizade. Finalidade da visita: matar.” Não era necessário visto. Os papéis estavam em ordem.

E do lado de cá da fronteira ouviu as vozes falarem uma linguagem familiar.

- Não, não lhe aconselho o vermelho-escuro. Não é para a sua idade - dizia Beatrice.

Milly observou:

- Deviam ensinar-nos a pintar o rosto no último ano do curso. Até estou a ouvir a irmã Agnes aconselhando: “Uma gota de Nuit d'Amour atrás das orelhas.”

- Tente este vermelho-vivo. Não, não pinte fora dos lábios. Deixe-me mostrar-lhe como é.

Wormold ia pensando: “Não disponho de arsénico nem de cianeto. Além disso não terei qualquer oportunidade de beber com ele. Impossível meter-lhe à força o veneno pelas goelas abaixo. E os punhais envenenados só existem nos dramas elizabethianos.”

- Pronto. Vê o que eu lhe dizia?

- E o carmim?

- Você não precisa de carmim.

—- Que perfume usa você, Beatrice?

- Sous le Vent.

“Mataram Hasselbacher a tiro - pensava Wormold -, mas eu não tenho pistola. Uma pistola devia fazer parte do equipamento de um espião, como as folhas de celulóide, o microscópio e a chaleira eléctrica.” Nem sequer manejara uma arma em toda a sua vida, mas essa dificuldade não era insuperável. Só necessitava de disparar contra Cárter à queima-roupa.

- Vamos fazer compras juntas. Julgo que deve gostar de Indiscret. É de Lanvin.

- Isso não parece muito apaixonante - observou Milly.

- Você é jovem. Não precisa de pôr a paixão atrás das orelhas.

- Deve fazer-se qualquer coisa para encorajar os homens - disse Milly.

- Olhe para eles.

- Assim?

Wormold ouviu Beatrice rir. Olhou para a porta numa surpresa. Tinha ido em pensamento tão longe para além da fronteira que se esquecera de que ainda estava com elas do lado de cá.

- Não é necessário encorajá-los tanto - dizia Beatrice.

- Pareço muito lânguida, não é?

- Eu diria antes que você está a lançar fogo.

- Sente a falta do casamento? - perguntou Milly.

- No que se refere a Peter, a minha resposta é não!

- Se ele morresse, casava-se outra vez?

- Não tenciono esperar tanto. Ele tem apenas quarenta anos.

- Oh, bem vejo. Vocês podem casar-se outra vez, se é que chamam a isso casamento.

- Eu chamo.

- Mas é terrível, não é? Eu quando casar é para sempre.

- Quando nos casamos, é sempre para sempre.

- Preferia tornar-me amante de um homem a casar-me duas vezes.

- Não creio que seu pai aprecie muito esse ponto de vista.

- Não vejo a razão. Se ele se casasse outra vez, era como tomar uma amante, não é verdade? Ele queria ficar com a mãe para sempre. Bem sei. Ele disse-mo. Era um verdadeiro casamento. Nem mesmo um pagão pode fugir a isto.

- Eu pensava o mesmo quando casei com Peter. Milly, Milly, não consinta que elas a tornem intolerante.

- Elas?!

- As freiras.

- Oh! Elas não me falam nestes termos.

Havia sempre, é claro, a hipótese de utilizar uma faca. Mas para isso tinha de estar muito perto de Cárter, demasiadamente perto para ser possível.

- Gosta de meu pai? - perguntou Milly.

“Um dia talvez possa pôr em ordem os meus pensamentos a esse respeito. Mas agora tenho um problema mais importante: tenho de descobrir como se mata um homem. Haverá manuais com instruções para este efeito? Deve haver tratados sobre luta sem armas”, pensou ele. Contemplou com pouca fé as próprias mãos.

- Porque perguntou isso? - continuava Beatrice.

- Pela maneira como olhou para ele certo dia.

- Quando?

- Quando ele voltou do tal almoço. Ou era apenas satisfação por ele ter feito um discurso?

- Sim, era.

- Não acredito - disse Milly. - Estou convencida de que você o ama.

Wormold dizia para si: “Pelo menos, se o matar, mato-o por um bom motivo. Para mostrar que não se pode assassinar impunemente. Eu nunca matarei alguém em nome do meu país. Nem mesmo em nome do capitalismo ou do comunismo ou da democracia ou do interesse do Estado - o interesse de quem? Mataria Cárter porque ele matou Hasselbacher. Uma vingança privada era uma razão mais decente para assassinar do que o patriotismo ou a preferência que se dá a um sistema económico qualquer. Se eu amo ou se eu odeio, quero amar ou odiar como indivíduo. Não serei o 59 200/5 de qualquer guerra colectiva.”

- Se o amo que mal há nisso?

- Ele é casado.

- Milly, querida Milly. Tenha cuidado com as fórmulas, Se existe algum deus, ele não é um deus de fórmulas.

- Ama-o?

- Nunca disse isso.

“Uma pistola é o único processo; mas onde consegui-la?” Alguém atravessou os umbrais; ele nem sequer levantou os olhos. Os tubos de Rudy produziram um guincho agudo no quarto do lado.

- Não te ouvimos chegar - disse Milly.

- Preciso que me faças um favor, Milly - redarguiu Wormold em resposta.

- Estiveste a escutar? Ouviu Beatrice perguntar:

- Que tem? Que sucedeu?

- Um acidente, uma espécie de acidente.

- Quem?

- O Doutor Hasselbacher.

- Grave?

- Sim.

- Estás a preparar a notícia final, não é verdade? - perguntou Milly.

- Sim.

- Pobre Doutor Hasselbacher.

- Sim.

- Pedirei ao capelão que lhe reze pela alma.

“Não havia - descobriu ele - qualquer motivo para rodear a notícia de precauções no que respeitava a Milly. Todas as mortes eram para ela um sucesso feliz. A vingança é desnecessária quando se acredita no Céu. Mas ele não acreditava. O perdão dos cristãos não é uma virtude; é excessivamente espontâneo!”

- O capitão Segura esteve cá. Quer casar contigo - disse por fim.

- Esse velho! Nunca mais entro no carro dele.

- Agradeço-te que amanhã o faças uma vez mais. Diz-lhe que preciso de lhe falar.

- Para quê?

- Para jogarmos as damas. Às dez horas. Tu e Beatrice não devem estar em casa.

- Achas que ele me vai maçar?

- Não. Diz-lhe que venha falar comigo. E que traga a lista. Ele compreenderá.

- E depois?

- Depois iremos para Inglaterra.

- É isto, é o fim do negócio - disse a Beatrice quando ficou só com ela.

- Que quer dizer?

- Talvez consigamos partir em glória: com a lista dos agentes secretos que operam em Havana.

- Incluindo nós?

- Oh, não. Nós nunca operámos.

- Não compreendo.

- Eu nunca tive agentes, Beatrice. Nem um. Mataram Hasselbacher em vão. Não existem construções nas montanhas do Oriente.

Um aspecto típico dela era nunca mostrar incredulidade. O que acabava de escutar era uma informação como outra qualquer, destinada a ser arquivada. “Qualquer juízo de valor - pensou ele - seria emitido pelos seus superiores.”

- Claro, é seu dever informar Londres imediatamente, mas gostaria que esperasse até amanhã - sugeriu. - Talvez se possa acrescentar então uma informação genuína.

- Se você estiver ainda vivo, é o que quer dizer.

- Claro que estarei vivo.

- Está a planear qualquer coisa.

- Segura tem a lista dos agentes.

- Não é isso que você está a planear. Mas se o matarem - disse ela num tom que parecia de ódio - de mortuis...

- Se alguma coisa me sucedesse, não queria que você tivesse a noção do que eu sou e do que eu fiz através dos meus arquivos. Preferi contar-lhe.

- Mas Raul... existiu um Raul

- Pobre diabo. Deve ter dado voltas à cabeça para tentar compreender o que lhe estava a suceder. Ia, como era seu hábito, dar uma passeata. Talvez estivesse bêbado como era um hábito também seu. Espero que sim.

- Mas ele existiu.

- Inventei o nome. Talvez tivesse lido o seu nome algumas vezes e me ocorresse inconscientemente mais tarde. Sei lá!

- E os desenhos?

- Desenhei-os das peças do aspirador atómico. Mas o gracejo terminou. É favor escrever as minhas declarações para eu assinar. Ainda bem que não maltrataram a pobre Teresa.

Ela desatou a rir. Meteu a cabeça entre as mãos e riu perdidamente. Declarou, entre espasmos de riso:

- Oh, gosto tanto de si!

- Tudo o que fiz lhe deve parecer idiota.

- Londres é que me parece idiota. E Henry Hawthorne! Pensa você que eu teria deixado o Peter se ele tivesse alguma vez, uma só que fosse, desfrutado a U. N. E. S. C. O.? Mas a U. N. E. S. C. O. era sagrada. As conferências culturais eram sagradas. Ele nunca ria... Empreste-me o seu lenço.

- Você está a chorar.

- Estou a rir. Esses desenhos...

- Um deles era um limpa-tapetes de acção dupla. Nunca pensei que os peritos não descobrissem.

- Não foram observados por peritos. Você parece esquecer que isto é um serviço secreto. Temos de proteger as nossas fontes. Não permitimos que documentos desta natureza sejam vistos por estranhos. Querido...

- Você disse querido...

- É uma força de expressão. Lembra-se do Tropicana e daquele homem que estava a cantar? Eu não sabia que você era o meu chefe e que eu era a sua secretária; você era apenas um homem simpático com uma filha amorosa e percebi que você queria fazer qualquer coisa louca com a garrafa do champanhe e eu estava farta de gente sensata...

- Mas eu não sou do tipo desmiolado.

Dizem que a Terra é redonda

Ofendem a minha loucura

- Eu não seria vendedor de aspiradores se fosse do género desmiolado.

Digo que a noite é dia

E não tenho machado para afiar.

- Quer convencer-me de que é tão pouco leal como eu?

- Você é leal.

- Para quem?

- Para a Milly. Estou-me nas tintas para os homens que são leais para quem lhes paga, que são leais às organizações... Nem sequer penso que o meu país tenha um significado assim tão importante. No nosso sangue há muitas pátrias, mas uma só pessoa. Estaria o mundo como está se em vez de sermos leais a pátrias fôssemos leais ao amor?

- Suponho que podem tirar-me o passaporte - disse ele então.

- Deixá-los tirar.

- De qualquer forma - concluiu ele -, perdemos ambos o emprego.

 

- Entre, capitão Segura.

O capitão Segura faiscava. Os couros do seu uniforme brilhavam, os botões resplandeciam e o cabelo vinha empastado de fixador. Parecia uma arma em dia de revista.

- Fiquei tão contente quando Milly me transmitiu o seu recado - começou.

- Temos muito que conversar. Jogamos uma partida de damas? Esta noite vou batê-lo.

- Duvido, Mister Wormold. Ainda não sou obrigado a mostrar-lhe um respeito filial.

Wormold abriu o tabuleiro. A seguir arrumou vinte e quatro garrafas miniatura de whisky: doze bourbons e doze escoceses, frente a frente.

- Que é isto, Mister Wormold?

- Uma ideia do doutor Hasselbacher. Pensei pô-la em execução em sua memória. Quando se come uma pedra temos de bebê-la.

- Uma ideia diabólica, Mister Wormold. Como eu jogo melhor, bebo mais.

- E assim em breve passo-lhe adiante no jogo, e também nos whiskies.

- É preferível jogar com as pedras habituais.

- Tem receio de ser batido, Segura? Talvez seja fraco bebedor.

- Sou tão bom bebedor como qualquer outro homem, mas às vezes quando bebo irrito-me. Não desejo irritar-me com o meu futuro sogro.

- Milly não quer casar-se consigo.

- É isso que vamos discutir.

- Você joga com os bourbons. O bourbon é mais forte que o escocês. Sempre é um partido que lhe dou.

- Não é necessário. Jogo com o escocês.

Segura voltou o tabuleiro e sentou-se.

- Desaperte o cinturão, Segura. Fica mais à vontade.

Segura pousou o cinturão e o coldre no chão.

- Vou lutar contra si desarmado - disse ele jovialmente.

- Traz o seu revólver sempre carregado?

- Claro. Os meus inimigos não são da espécie de me deixar tempo para carregá-lo.

- Descobriu o assassino de Hasselbacher?

- Não. Quem matou o seu amigo não pertence à categoria dos criminosos vulgares.

- Cárter?

- Depois do que você me disse, eu, naturalmente, investiguei. Encontrava-se na ocasião do crime na companhia do doutor Braun. E não pode duvidar-se da palavra do presidente da Associação dos Negociantes Europeus.

- Por conseguinte, o doutor Braun faz parte da sua lista?

- Naturalmente. E agora joguemos.

No jogo das damas existe uma linha imaginária, como qualquer jogador sabe, que atravessa o tabuleiro diagonalmente, de canto a canto. É a linha de defesa. Quem domina essa linha toma a iniciativa; atravessada a linha, o ataque principia. Com um à-vontade insolente, Segura cruzou a linha e moveu uma garrafa para o centro do tabuleiro. Era Wormold quem hesitava e pensava.

- Onde está Milly?

- Saiu.

- E a sua encantadora secretária?

- Com a Milly.

- Você já se encontra em dificuldades - disse o capitão Segura. Atingiu a base da defesa de Wormold e capturou uma garrafa de Old Taylor.

- A primeira - disse ele, e emborcou o conteúdo da garrafinha. Wormold iniciou um feliz movimento de pinça e perdeu - uma de Old Forester. Algumas gotas de suor brotaram na testa de Segura e ele pigarreou depois de beber. - Jogou mal, Mister Wormold. - Apontou para o tabuleiro: - Devia ter comido essa pedra.

- Você pode comer a minha - disse Wormold. Segura hesitou pela primeira vez.

- Não. Prefiro que você coma a minha peça. - Era um whisky pouco comum chamado Cairngorm e deixou um sabor cru na língua de Wormold.

Jogaram durante algum tempo com exagerado cuidado, procurando não comer qualquer peça ao adversário.

- Cárter ainda continua hospedado no Seville-Biltmore? - perguntou Wormold.

- Sim.

- Mantêm-no sob observação?

- Não. Que adiantava?

Wormold mantinha-se agarrado à borda do tabuleiro com o que restava do seu movimento envolvente, mas perdera o ponto de apoio. Fez um lance falso, o qual permitiu a Segura avançar até o quadrado 22, sem que houvesse maneira de salvar a sua pedra no quadrado 25, nem de evitar que Segura alcançasse a fileira de trás e fizesse dama.

— Descuidado — comentou Segura.

— Posso fazer uma troca.

— Mas eu fiz dama.

Segura bebeu um Four Roses e Wormold, na outra extremidade do tabuleiro, tomou um Dimpled Haig.

— A noite está quente — disse Segura, enquanto completava sua dama com um pedaço de papel.

— Se eu ganhar, terei de beber duas garrafas... Tenho outras de reserva no armário.

- Você pensou em tudo... - comentou Segura. - Fê-lo com más intenções?

Jogava, agora, com grande cautela. Tornava-se difícil tentá-lo, fazendo que capturasse qualquer pedra, e Wormold começou a compreender a falha fundamental de seu plano: a de que é possível, a um bom jogador, derrotar o adversário sem ganhar as suas pedras. Ganhou uma pedra de Segura e viu-se numa armadilha. Ficou sem poder fazer qualquer lance.

Segura enxugou o suor da testa:

— Como vê, você não pode ganhar.

— Deve dar-me uma oportunidade de desforra.

— Este Bourbon é forte. Oitenta e cinco graus.

— Trocaremos os tipos.

Desta vez, Wormold ficou com o "preto", correspondente aos uísques. Substituíra os três uísques, bem como os três Bourbons. Começou o primeiro lance com uma garrafinha de Old Fourteenth, numa partida que seria provavelmente demorada, pois sabia, agora, que a sua única esperança seria fazer com que Segura deixasse de lado a prudência e se lançasse ao ataque. Procurou de novo ser "soprado", mas ele não aceitou o lance. Era como se o capitão houvesse reconhecido que seu verdadeiro adversário não era Wormold, mas sua própria capacidade de resistência. Moveu até uma pedra sem nenhuma vantagem tática e obrigou Wormold a apanhá-la — um Hiram Walker. Wormold percebeu que sua própria cabeça corria perigo: a mistura de uísque e Bourbon era fatal.

— Dê-me um cigarro — pediu.

Segura inclinou-se para a frente a fim de acendê-lo, e Wor­mold notou o esforço que ele teve de fazer para manter firme o isqueiro. Este não acendia, e Segura lançou uma imprecação com desnecessária violência. "Mais dois drinques e tenho-o em minhas mãos", pensou Wormold.

Mas era tão difícil perder uma pedra, para um adversário que não a desejava, como ganhar uma. Contra sua própria vontade, a batalha pendia para o seu lado. Bebeu um Harpers e féz uma dama.

— O jogo é meu, Segura! — exclamou, com falsa jovialidade. — Quer desistir?

O seu adversário lançou um olhar ameaçador ao tabuleiro. Era evidente que debatia-se entre o desejo de ganhar e o de não perder o controle; mas a sua cabeça estava anuviada não só pela raiva como pelo uísque.

— Esta é uma maneira porca de se jogar damas! — exclamou.

Agora que Wormold tinha uma dama, já não podia jogar tendo em vista uma vitória incruenta, pois a dama tinha liberdade de movimentos. A entrega de um Kentucky Tavern constituiu um sacrifício verdadeiro, e arrancou-lhe uma imprecação contra as pedras:

— Estas malditas coisas são todas diferentes! Garrafinhas de vidro! Quem já ouviu falar em pedras de vidro como estas, num jogo de damas?

Wormold sentia a cabeça toldada pelo Bourbon, mas o momento da vitória — e da derrota — havia chegado.

— Você moveu a minha pedra — disse Segura.

— Não, não movi. Isto é um Red Label. Meu.

— De que modo, com os diabos, poderei saber a diferença entre um uísque e um Bourbon? São todos garrafas, não são?

- Você está zangado porque está a perder.

- Eu nunca perco.

Então Wormold fez um movimento estudado e expôs a sua dama. Por um momento pensou que Segura não tinha notado e depois pensou que, deliberadamente, para evitar beber, Segura estava desprezando a sua última oportunidade. Mas a tentação de comer a dama era grande e tinha ao seu alcance uma vitória estrondosa. A sua peça faria dama e seguir-se-ia uma chacina. Contudo hesitou. O calor do whisky e a noite quente derretiam-lhe o rosto como se fosse um boneco de cera; via com dificuldade.

- Porque fez isso? - lamentou-se.

- O quê?

- Deixou perder a dama e perdeu o jogo.

- Diabo, não reparei. Devo estar bêbedo.

- Você, bêbedo?

- Um pouco.

- Também eu. Você sabe que eu estou bêbedo. Você procura embebedar-me. Porquê.

- Não seja idiota, Segura. Porque havia de querer embebedá-lo? Pára-se o jogo.

- Para o Diabo com isso de parar o jogo. Eu sei porque você me quer embebedar. Espera mostrar-me essa lista... quero dizer: espera que eu lha mostre.

- Que lista?

- Apanhei-os a todos vocês na rede. Onde está Milly? ,

- Já lhe disse. Saiu.

- Esta noite vou falar com o chefe da polícia. Temos a rede bem apertada.

- Também meteu o Cárter?

- Quem é Cárter? - Apontou o dedo para Wormold: - Você também lá estava, mas eu sei que você não é agente. É um intrujão.

- Você deve dormir um pouco, Segura. Considera-se esta partida empatada.

- Não há empate. Veja. Como-lhe a dama. - Abriu a garrafinha de Red Label e emborcou-a.

- Duas garrafas para uma dama - disse Wormold estendendo-lhe um Dunsdale Cream.

Segura sentou-se com o queixo a balançar e disse:

- Admita que o bati.

- Não admito, não senhor. Tenho a cabeça mais forte e, veja, estou a comê-lo. Você não viu esta. - Um Canadian Rye tinha ficado metido entre dois bourbons, e Wormold bebeu-o. Pensou: “Não posso beber mais. Se ele não aproveita agora, estou liquidado. Não serei capaz de disparar. Ele disse, ou não disse, que o revólver estava carregado?”

- Não importa - fez Segura num murmúrio. - Você está liquidado. - Moveu lentamente a mão por sobre o tabuleiro como quem transporta uma colher cheia de xarope. - Vê? -- Comeu uma pedra, duas pedras, três...

- Beba-os, Segura. - Um George IV. um Queen Anne e um Highland Queen. O jogo terminava numa girândola real. - Pode continuar, Segura. Ou quer que o coma outra vez? Beba Vat 69. Outro. Beba-o, Segura. Grant's Standfast. Olá. Argyl. Beba-os, Segura. Agora rendo-me. - Mas era Segura quem se tinha rendido. Wormold desapertou-lhe o colarinho para lhe facilitar a respiração e ajeitou-lhe a cabeça no espaldar da cadeira, mas quando se dirigiu para a porta as suas pernas iam pouco firmes. Levava no bolso o revólver de Segura.

 

No Seville-Biltmore dirigiu-se ao telefone e ligou para Cárter. Tinha de admitir que os nervos de Cárter eram firmes, mais firmes que os seus. A sua missão em Cuba falhara e contudo ficara na cidade, como pistoleiro ou como isca.

- Boas noites, Cárter - cumprimentou.

- Boas noites, Wormold. - A voz do outro tinha um leve toque de amor-próprio ofendido

- Quero pedir-lhe desculpa, Cárter. Aquele caso do whisky. Eu estava toldado. Também agora estou um pouco. Não estou habituado a pedir desculpas.

- Está bem, Wormold. Agora vou deitar-me.

- Trocei da sua gaguez. Um compinxa não faz uma coisa dessas. - Achou-se a usar o calão de Hawthorne. A falsidade era uma doença profissional.

- Não percebo que diabo quer você dizer.

- Descobri onde estava a maroteira. Nada consigo. Aquele danado daquele criado envenenou o cão. Era muito velho, claro, mas dar-lhe restos envenenados não é uma maneira decente de mandar um bicho para os anjinhos.

- Foi então isso que sucedeu? Agradeço-lhe ter-me contado, mas já é tarde. Vou para a cama, Wormold.

- O melhor amigo do homem.

- Que é isso? Não ouço bem o que diz.

- César, o amigo do rei, é aquele de pêlos encrespados que morreu na Jutlândia. Visto pela última vez na ponte, ao lado do dono.

- Você está bêbedo, Wormold.

Era tão fácil imitar a embriaguez depois de... quantos escoceses e quantos bombons? Pode confiar-se num ébrio - in vino veritas. Também pode manobrar-se com facilidade um ébrio. Cárter seria idiota se não aproveitasse.

- E se fôssemos aos tais sítios? - propôs Wormold.

- Que sítios?

- Aqueles que você queria ver em Havana.

- Faz-se tarde.

- Esta é a melhor hora. - A hesitação de Cárter percorreu o fio. Aconselhou-o: - Traga uma arma. - Sentia uma estranha relutância em matar um assassino desarmado, se é que Cárter alguma vez andava desarmado.

- Uma arma? Porquê?

- Nos sítios onde vamos podem tentar roubá-lo... Você não traz arma?

- Não costumo andar armado.

- Nem eu - e Wormold supôs ouvir o som metálico de uma culatra puxada bruscamente. “Ouros cortam mouros”, pensou ele, e sorriu. Mas um sorriso é tão perigoso no acto de ódio como no acto de amor. Teve de lembrar-se da expressão de Hasselbacher estendido no fundo do bar. Não tinham dado qualquer probabilidade ao pobre velho e ele estava a conceder demasiadas a Cárter. Começou a lastimar ter bebido tanto.

- Espere-me no bar.

- Não se demore.

- Tenho de me vestir.

Wormold estava satisfeito com a escuridão do bar. “Cárter - pensou - deve estar a telefonar aos seus amigos e talvez marcando um encontro, mas pelo menos ali não podiam surpreendê-lo.” Havia uma entrada directamente da rua e outra do hotel, e no fundo uma espécie de varanda com uma balaustrada que lhe concedia um apoio para o revólver, se fosse necessário. Quando entrou não foi capaz de ver imediatamente se no bar havia um ou dois clientes, porquanto o par se aninhara, muito apertado, no fundo de um sofá.

Sentou-se na varanda e pediu um whisky, mas não lhe tocou, ficando a observar as duas portas. Um homem entrou; não lhe conseguiu ver o rosto; foi pela mão que palpava a bolsa do cachimbo que identificou Cárter.

- Cárter.

Cárter aproximou-se.

- Vamos andando - disse Wormold.

- Beba o seu whisky primeiro que eu tomo um também para lhe fazer companhia.

- Já bebi de mais, Cárter. Preciso de ar puro. Bebemos depois em qualquer dessas casas.

Cárter sentou-se.

- Diga-me onde vamos.

- A qualquer das muitas casas de pegas que por aí há. São todas iguais. Uma dúzia de raparigas à escolha. Fazem primeiro uma exibição para você escolher. Vamos embora. Depois da meia-noite fica tudo cheio.

- Vou tomar primeiro qualquer coisa - disse Cárter ansiosamente. - Não sou capaz de ir a um sítio desses absolutamente sóbrio.

- Não está à espera de alguém, Cárter?

- Não, porquê?

—- Pensei... pela maneira como você olhava para a porta...

- Já lhe disse que não conheço ninguém nesta cidade.

- Excepto o doutor Braun.

- Oh, sim, claro, o doutor Braun. Mas não é a espécie de companheiro para ir a uma dessas casas, não acha?

- Vamos então.

Cárter ergueu-se relutantemente. Era evidente que procurava uma desculpa para não ir.

- Quero deixar uma mensagem na portaria. Estou à espera de um telefonema - observou.

- Do doutor Braun?

- Sim. - Hesitou. - Parece mal sair antes de ele telefonar. Não pode esperar cinco minutos, Wormold?

- Diga ao porteiro que está de regresso à uma, a menos que tenha decidido dormir com uma dessas raparigas.

- Seria melhor esperar.

- Nesse caso vou só. Vá para o Diabo, Cárter; pensei que queria conhecer a cidade. - Afastou-se caminhando depressa. O seu carro estava arrumado no outro lado da rua. Nunca olhou para trás, mas ouviu as passadas que o seguiam. Cárter desejava também perdê-lo quanto ele próprio desejava perder Cárter.

- Você é muito impetuoso, Wormold.

- Desculpe. Quando bebo torno-me irritável.

- Espero que esteja suficientemente sóbrio para guiar.

- É melhor guiar você. - E pensou: “Isso conservar-lhe-á as mãos ocupadas.”

- Primeiro à direita, depois à esquerda, Cárter.

Desembocaram na estrada marginal; um navio de recreio de casco branco ia saindo a barra, algum transatlântico que se dirigia para Kingston ou Port-au-Prince. Distinguiam-se os casais debruçados sobre a amurada, no romantismo da noite de luar e uma orquestra tocava uma estiolada música de sucesso: I could have danced ali night.

- Isto faz-me sentir saudades da terra - disse Cárter.

- De Nottwich?

- Sim.

- Mas não há mar em Nottwich.

- Quando eu era pequeno, as lanchas de recreio que desciam o rio pareciam-me tão grandes como aquele barco.

"Um assassino não devia ter o direito de sentir saudade. Um assassino devia ser uma máquina... E eu tornei-me numa máquina", pensou Wormold, enquanto a sua mão apalpava, no bolso, o lenço que teria de usar para não deixar impressões digitais, quando chegasse o momento. Mas como escolher o momento exato? Em que travessa... ou em que porta? E se o outro atirasse primeiro. . . ?

- Os seus amigos são russos, Cárter? Alemães? Americanos?

- Que amigos? - perguntou simplesmente. - Não tenho amigos.

- Nenhuns?

- Nenhuns.

- Outra vez para a esquerda, Cárter, depois para a direita.

Avançavam agora devagar numa rua estreita, povoada de nigthclubs; o som das orquestras vinha do subsolo como o fantasma do pai de Hamlet ou essa música debaixo das lajes das pedras de Alexandria quando o deus Hércules abandonou António.

Dois porteiros avançaram em competição para eles.

- Pare. Preciso de tomar qualquer coisa antes de ir para diante - proferiu Wormold.

- Estas casas aqui são casas de pegas?

- Não. Iremos lá mais tarde.

“Se ao menos Cárter tivesse levado a mão à pistola, teria sido tão fácil disparar...”

- Conhece este lugar? - perguntou Cárter.

- Não. Mas conheço a canção. - Era estranho que estivessem a tocar: Ofendem a Minha Loucura.

Havia, fora, fotografias coloridas de jovens nuas e, no night club Esperanto, um letreiro de gás néon anunciava: "Striptease". Degraus pintados com listras, como pijamas baratos, conduziram os dois a um porão nublado pela fumaça dos havanas. Pareceu-lhes um lugar tão adequado como qualquer outro para uma execução. Mas ele queria antes uma bebida.

— Você segue à frente, Carter.

Carter abriu a boca e ficou num embaraço para aspirar um h. Wormold nunca o tinha ouvido gaguejar tanto.

- H... H... H... Hoje...

- Que tem hoje?

- Nada.

Sentaram-se, assistiram ao stripe-tease e tomaram brandy com soda. Uma rapariga ia de mesa em mesa despindo-se aos poucos. Começou pelas luvas. Um espectador pegou nelas resignado. A seguir ela apresentou as costas a Cárter para que ele lhe desapertasse o espartilho de rendas. Cárter manobrou em vão os atilhos enquanto a rapariga ria e se contorcia contra os seus dedos. Ele, atrapalhado, gemeu:

- Desculpe, não consigo achar... - Em redor os homens sombrios observavam Cárter. Nenhum sorria.

- Você não adquiriu muita prática lá em Nottwich. Deve-me fazer isso.

- Não me mace.

Finalmente desapertou o espartilho e a rapariga, despenteando-lhe o cabelo ralo e manchado, passou adiante. Cárter puxou de um pente do bolso.

- Não gosto deste lugar - disse ele.

- Você é tímido com as mulheres, Cárter. - “Como pode matar-se um homem tão ridículo?”

- Não gosto que me gozem - disse Cárter.

Subiram as escadas. O bolso de Cárter fazia uma protuberância volumosa sobre a anca. Claro que também podia ser o cachimbo. Sentou-se ao volante e grunhiu:

- Isto vê-se em qualquer cidade. Pegas a despirem-se.

- Você não colaborou muito com ela.

- Pensei que tivesse um fecho éclair.

- Eu estava a precisar de uma bebida.

- Para mais o brandy era imundo. Nada me admira que estivesse falsificado.

- O seu whisky no outro dia estava mais do que falsificado, Cárter. - Tentava agora enfurecê-lo e esquecer a figura que ele fizera com o espartilho.

- Que disse você?

- Pare aqui.

- Porquê?

- Não quer ir a um bordel? Aqui é um bordel.

- Mas não se vê ninguém.

- São todos assim. Fecham as portas e as janelas. Saia e toque a campainha.

- Que dizia você a respeito do whisky?

- Não interessa. Saia e toque a campainha.

O lugar era tão bom como qualquer cave (paredes nuas têm sido frequentemente utilizadas para estes fins): uma fachada cinzenta e uma rua onde ninguém vinha com fins que nada tinham de comum com o amor. Cárter retirou lentamente as pernas debaixo do volante e Wormold observava-lhe atentamente as mãos, essas mãos inábeis. “É um duelo leal - disse para si próprio -, ele está mais habituado do que eu a matar, as probabilidades são iguais; nem sequer tenho a certeza de que o meu revólver esteja carregado. Hassel-bacher não teve qualquer oportunidade.”

Já com a mão na porta, Cárter parou e propôs:

- Talvez fosse melhor vir noutra noite qualquer. Sabe, h... h... h... h...

- Tem medo, Cárter?

- Nunca entrei num bordel. Para lhe falar com franqueza, Wormold, não sinto muito a falta das mulheres.

- Deve levar uma vida solitária.

- Posso passar sem elas - confessou ele num desafio. - Há coisas mais importantes para um homem do que andar atrás...

- Então porque quis vir aqui?

De novo surpreendeu Wormold com a verdade.

- Eu tento desejá-las, mas quando chega a ocasião... - Hesitou à beira da confissão e finalmente mergulhou.- Não vale a pena tentar, Wormold. Nada consigo.

- Saia do carro.

“Tenho de acabar com isto - pensou Wormold - antes que ele me revele outras coisas.” Cada segundo tornava-o mais humano, uma criatura a quem se pode lastimar ou reconfortar, mas a quem não se mata. Quem sabe que razões ocultas há atrás de um acto violento? Ergueu o revólver de Segura.

- O quê?

- Saia.

Cárter, parado junto da porta do bordel, lançou-lhe um olhar de sombria recriminação onde não havia medo. Ele temia as mulheres, não temia a violência.

- Está em erro. Foi o Braun quem me deu o whisky. Eu não sou importante.

- Não me interessa o whisky. Você matou Hasselbacher, não é assim?

De novo surpreendeu Wormold com a verdade. Havia nesse homem uma espécie de honestidade.

- Cumpri ordens, Wormold. Eu h... h... h... —Manobrara de forma a encostar o cotovelo à campainha, e agora nas profundezas da casa soava o seu timbre de alarme.

- Nada há de pessoal, Wormold. Você tornou-se excessivamente perigoso, é tudo. Nós somos simples soldados, você e eu.

- Perigoso? Vocês devem ser idiotas. Eu não tenho agentes, Cárter.

- Oh, sim, tem. Essas construções nas montanhas. Possuímos cópias dos seus desenhos.

- As peças de um aspirador! —Quem teria fornecido os desenhos: López, o mensageiro de Hawthorne ou o homem do consulado?

A mão de Cárter encaminhou-se para o bolso e Wormold disparou. Cárter soltou um grito agudo.

- Quase me atingiu - disse, e retirou do bolso a mão que ainda empunhava o cachimbo despedaçado. - O meu Dunhill! Você quebrou o meu Dunhill - lamentou-se.

- Sorte de principiante - disse Wormold. Tinha-se forçado a matar, mas era impossível voltar a disparar. A porta começou a abrir-se atrás de Cárter. Chegou o som de uma música distante. - Elas aí tratam de si. Talvez agora precise de uma mulher, Cárter.

- Você... seu palhaço!

Como Cárter tinha razão! Pousou o revólver e escorregou para o assento em frente do volante. E de repente sentiu-se feliz. Estivera quase a matar um homem. Provara conclusivamente a si mesmo que não era juiz; não tinha vocação para a violência. Mas nesse momento Cárter fez fogo.

 

- Estava justamente a inclinar-me para pôr o motor de arranque em funcionamento. Penso que foi isso que me salvou. Claro que ele tinha o direito de ripostar. Foi um verdadeiro duelo, e eu acertei ao terceiro tiro - era o que contava a Beatrice.

- Que sucedeu depois?

- Só tive tempo de fugir de lá antes de me sentir doente.

- Doente?

- Bem, penso que se tivesse estado na guerra ter-me-ia parecido muito menos grave matar um homem. Pobre Cárter!

- Porque há-de você lastimá-lo?

- Era um homem. Aprendi muito a respeito dele. Não sabia desapertar o espartilho de uma rapariga. Gostava do seu cachimbo e quando era menino as lanchas de recreio no rio lá da terra eram para ele tão grandiosas e excitantes como transatlânticos. Talvez fosse um romântico. Um romântico é habitualmente tímido quando a realidade não corresponde às suas esperanças. Todos eles esperam demasiadamente.

- E depois?

- Limpei as impressões digitais do revólver e trouxe-o de volta. Claro que Segura vai descobrir que se dispararam três tiros. Mas não creio que ele reclame a devolução das balas. Seria um pouco difícil de explicar. Ele dormia ainda quando eu voltei. Nem quero pensar na cara que ele deve estar a fazer agora. A minha já é bastante má. Mas tentei seguir as suas instruções para a fotografia.

- Que fotografia?

- Ele trazia consigo uma lista dos agentes para apresentar ao chefe da polícia. Fotografei-a e coloquei-a de novo no bolso dele. Pelo menos antes de me demitir posso fornecer uma informação verdadeira.

- Devia ter esperado por mim.

- Não era possível. Ele podia acordar de um momento para o outro. Mas esse negócio da micro é complicado.

- Porque fez uma microfotografia?

- Porque em nenhum correio se pode confiar para King-ston. A gente de Cárter possui cópias dos desenhos. Isso significa que existe por aí um agente duplo. Talvez o vosso contrabandista de drogas. Por isso fiz uma microfotografia como você me ensinou e colei-a nas costas de um selo e mandei pelo correio uma fornada de quinhentos selos das possessões britânicas, como tínhamos combinado para uma emergência.

- Temos de telegrafar-lhes indicando em que selo colou a micro.

- Em que selo?

- Não espera que eles se ponham a procurar um pontinho negro em quinhentos selos!

- Não tinha pensado nisso. Sou muito desajeitado...

- Deve ter uma ideia do selo em que...

- Não reparei. Penso que era um Jorge V e que era vermelho ou verde.

- Isso já é um indício. Lembra-se de alguns dos nomes da lista?

- Não. Não tive tempo de lê-los convenientemente. Reconheço que neste jogo sou muito idiota.

- Não. Os idiotas são eles.

- Estou a tratar de fazer ideia de quem será a primeira pessoa que nos virá procurar. O doutor Braun, Segura...

Mas nenhum deles foi.

 

O petulante amanuense do consulado apareceu na loja às cinco da tarde do dia seguinte. Postou-se rigidamente no meio dos aspiradores como um turista puritano num museu de objectos fálicos. Informou Wormold de o que o embaixador o pretendia ver.

- Poderá ser amanhã de manhã? - Estava trabalhando no seu último relatório, a morte de Cárter e a sua demissão.

- Não, não pode. Ele telefonou de casa. Quer vê-lo imediatamente.

- Não sou um funcionário - disse Wormold.

- Ah, não é?

Wormold meteu-se no carro e dirigiu-se a Vedado, à zona das pequenas casas brancas e das buganvílias dos ricos. Parecia ter decorrido uma infinidade de tempo desde a sua visita ao professor Sánchez. Passou pela casa deste. Que complicações se processariam agora atrás das suas paredes?

Teve a sensação de que em casa do embaixador toda a gente espreitava a sua chegada e que os espectadores tinham sido cuidadosamente afastados do vestíbulo e das escadas. No primeiro andar uma mulher voltou as costas e fechou-se num quarto; pensou que devia ser a embaixatriz. Duas crianças espreitaram por entre os balaústres do segundo andar e fugiram com um bater de calcanhares sobre a passadeira. O mordomo conduziu-o a uma sala solitária e fechou a porta furtivamente atrás dele. Para além das altas janelas viu um comprido campo relvado e esguias árvores subtropicais. Até aí alguém se afastava rapidamente.

O quarto era, como a maior parte das salas de uma embaixada, uma mistura de móveis permanentes e de pequenos objectos pessoais adquiridos em postos anteriores. Wormold pensou poder afirmar que um fora adquirido em Teerão (um cachimbo de formato bizarro, de louça), em Atenas (um ou dois ícones), e ficou por um momento desorientado com uma máscara africana - talvez Monróvia?

O embaixador entrou. Era um homem alto, frio, e na sua pessoa havia qualquer coisa que Hawthorne gostaria de ser.

- Sente-se, Wormold. Um cigarro? - disse.

- Não, muito obrigado, Sir.

- Essa cadeira aí é mais cómoda. E agora não vale a pena estar com rodeios. Você está metido em trabalhos.

- Sim.

- Claro, eu ignoro, ignoro em absoluto, o que você faz aqui em Havana.

- Vendo aspiradores, Sir.

O embaixador considerou-o como se tivesse escutado um gracejo de mau gosto.

- Aspiradores? Não me referia a isso. - Afastou os olhos de Wormold e percorreu com a vista o cachimbo persa, o ícone grego e a máscara liberiana. Eram como uma biografia, onde só figurassem os dias gloriosos, que um homem escrevesse para ganhar confiança. - Ontem de manhã o capitão Segura procurou-me. Não faço a menor ideia onde a polícia foi colher esta informação (o assunto não me diz respeito), mas ele informou-me que você tem remetido para Inglaterra relatórios falsos. De facto, garantiu que você tem recebido dinheiro em troca deles e afirmado possuir certas fontes de informação simplesmente inexistentes. Pensei ser meu dever informar imediatamente o Foreign Office. Calculo que deve receber instruções para ir a Londres fazer um depoimento, a quem não sei, pois são assuntos com os quais nada tenho a ver. - Wormold descobriu as cabecinhas infantis espreitando por detrás de uma das árvores. Olhou para elas e elas olharam simpaticamente para ele.

- Sim, senhor - respondeu.

- Fiquei com a impressão de que o capitão Segura considera que você tem causado por cá muitas perturbações. Penso que se recusar partir poderá achar-se em sérios embaraços com as autoridades e em circunstâncias tais que eu de nada lhe poderei valer. Absolutamente de nada. O capitão Segura acusa-o até da falsificação de uma espécie de documento que diz, ele, você pretende ter encontrado na posse dele. Isto é tudo desagradável para mim, Wormold. Nem imagina quanto! As fontes normais de informação no estrangeiro são as embaixadas. Temos para isso os nossos adidos. A chamada “informação secreta” é uma dor de cabeça para os embaixadores.

- Sim, senhor.

- Não sei se ouviu falar - os jornais não publicaram qualquer notícia - de um inglês que foi morto a tiro na noite de anteontem. O capitão Segura insinuou que você o conhecia.

- Encontrei-o uma vez num almoço, Sir.

- É melhor regressar a Inglaterra, Wormold, no primeiro avião onde conseguir lugar - para mim, quanto mais depressa melhor - e pôr-se em contacto com os seus superiores, sejam eles quem forem.

- Sim, senhor.

 

O avião da K. L. M. devia levantar voo às três e trinta da manhã para Amesterdão, via Montreal. Wormold não tinha o menor desejo de viajar via Kingston, onde Hawthorne devia ter instruções para o esperar. O posto fora encerrado com um telegrama final e Rudy tinha sido despachado para a Jamaica com a sua mala. As cifras tinham sido queimadas com o auxílio das folhas de celulóide. Beatrice devia acompanhar Rudy. López ficava encarregado de cuidar da agência. Wormold arrumou os pertences que desejava conservar numa caixa que despachou por via marítima. A égua foi vendida... ao capitão Segura.

Beatrice ajudou-o a fazer as malas. O último objecto arrumado na caixa foi a imagem de Santa Serafina.

- Milly deve sentir-se muito infeliz - disse Beatrice.

- Está admiravelmente resignada. Diz, como Sir Hum-phrey Gilbert, que Deus está tão perto dela em Londres como em Cuba.

- Não foi bem isso o que Gilbert disse.

Havia ainda um montão de papéis não secretos para queimar.

- Que quantidade de fotografias “dela” que você guardou - observou Beatrice.

- Dantes tinha a impressão que rasgar uma fotografia era como matar alguém. Agora sei, é claro, que é muito diferente.

- Que é este estojo vermelho?

- Ela ofereceu-me uma vez uns botões de punho. Rou-baram-mos, mas eu conservei a caixa. Nem sei porquê. De certa maneira estou satisfeito por me desembaraçar de tudo isto.

- O fim de uma vida.

- De duas vidas.

- E isto que é?

- Um velho programa.

- Não é assim tão velho. É do Tropicana. Posso ficar com ele?

- Você é demasiadamente jovem para guardar recordações - disse Wormold. - Tomam muito espaço. Cedo acabará por descobrir que não lhe fica lugar para viver no meio das suas arcas de lembranças.

- Apesar de tudo fico com ele. Foi uma noite maravilhosa.

Milly e Wormold foram despedir-se dela ao aeroporto. Rudy desapareceu discretamente seguindo o carregador com a sua enorme mala. Era uma tarde quente e as pessoas tomavam daiquiris no bar. Depois da proposta de casamento do capitão Segura, a duena tinha desaparecido, mas em seguida ao desaparecimento da criança, que ele tanto desejava tornar a encontrar, a criança que tinha lançado fogo a Thomas Earl Parkman Júnior não voltara. Era como se as duas personalidades de Milly tivessem crescido simultaneamente. Ela disse, com um tacto de adulto:

- Vou procurar umas revistas para Beatrice - e afastou-se.

- Desculpe - disse Wormold. - Quando lá chegar, dir-lhes-ei que você ignorava tudo. Para onde a mandarão agora?

- Talvez para Basra, no golfo Pérsico.

- Porque há-de ser no golfo Pérsico?

- É a ideia que eles têm do Purgatório. Regeneração pelo suor e pelas lágrimas. A Phastkleaners tem alguma agência em Basra?

- Receio que a Phastkleaners não esteja mais interessada na minha pessoa.

- Que tenciona fazer?

- Tenho bastante, graças ao pobre Raul, para mandar Milly para a Suíça durante um ano. Depois disso não sei.

- Você podia abrir uma loja de artigos carnavalescos, sabe, desses que pregam partidas à gente. Como são maçadoras as despedidas! Por favor, não espere mais.

- Tornarei a vê-la?

- Vou envidar esforços para não ir para Basra. Tentarei ficar na repartição das dactilógrafas com Angela, Ethel e Miss Jenkinson. Quando estiver com sorte sairei às seis e poderemos encontrar-nos num snack-bar e ir depois ao cinema. É uma vida tão maçadora como a U. N. E. S. C. O. ou uma conferência de escritores modernos. Aqui, consigo, foi divertido.

- Sim?

- Bem, agora vá.

Foi encontrar Milly em frente da montra dos livros e revistas.

- Vamos embora - disse ele.

- Mas tenho estas revistas para Beatrice.

- Ela não se importa.

- Nem me despedi.

- É tarde de mais, ela já passou a emigração. Vê-la-ás em Londres, talvez!

 

Era como se todo o tempo que lhes restava devessem consumi-lo em aeroportos. Eram três horas da madrugada e o avião da K. L. M. ia levantar voo. O céu estava rosado, reflectindo os anúncios de néon e as balizas de aterragem, e era o capitão Segura quem assistia à partida. Tentava dar à presença oficial um aspecto tão particular quanto possível, mas era ainda um pouco como uma deportação. Segura disse recriminadora-mente:

- Obrigou-me a fazer isto.

- Os seus métodos são mais suaves do que os de Cárter ou do doutor Braun. Que resolveu a respeito do doutor Braun?

- Ele tem necessidade de regressar à Suíça para tratar de assuntos relacionados com os seus instrumentos de precisão.

- Com passagem para Moscovo?

- Não. Talvez para Bona. Ou Washington. Ou mesmo Bucareste. Não sei. Mas sejam eles quem forem, estão satisfeitíssimos com os seus desenhos.

- Desenhos?

- Das construções do Oriente. Além disso, o doutor Braun tem a seu crédito ter-se livrado de um agente perigosíssimo.

- Eu?

- Sim. Cuba ficará um pouco mais tranquila sem os dois, mas vou sentir a falta de Milly.

- Milly nunca casaria consigo, Segura. Ela não gosta de cigarreiras feitas de pele humana.

- Sabe a quem pertencia a pele?

- Não.

- A um oficial da polícia que torturou meu pai até à morte. Compreende, meu pai era pobre. Pertencia à classe torturável.

Milly aproximou-se carregada de revistas: o Time, a Life, o Paris-Match e o Quick. Eram quase três e quinze e havia uma faixa cinzenta no céu para além da mancha rosada da falsa aurora. Os pilotos dirigiam-se para o avião, seguidos da hospedeira. Eram os três que tinham ido com Beatrice ao Tropicana havia poucas semanas. Um alto-falante anunciou em inglês e espanhol o começo do voo 396, para Montreal e Amesterdão.

- Tenho um presente para cada um - disse Segura. Entregou-lhes dois embrulhinhos. Abriram-nos quando o avião fazia um largo círculo por cima de Havana: a cadeia de luzes ao longo da avenida marginal desapareceu e o mar caiu como uma cortina sobre o passado. No embrulho de Wormold havia uma garrafinha de Grant's Standfast e uma bala que tinha sido disparada por um revólver da polícia. Milly encontrou no seu uma ferradura de prata com as suas iniciais.

- Que quer dizer a bala?

- Oh, um gracejo de gosto duvidoso. Afinal de contas ele não era mau sujeito - disse Wormold.

- Mas não servia para marido - replicou Milly.

 

EPÍLOGO EM LONDRES

Tinham-no olhado com curiosidade quando declinou o seu nome e depois meteram-no num elevador que o levou, para surpresa dele, para baixo e não para cima. Agora esperava, sentado, num comprido corredor subterrâneo olhando uma luz vermelha na parede sobranceira a uma porta; tinham-lhe dito que devia entrar quando a luz mudasse para verde. Havia gente que entrava e saía dessa porta; alguns transportavam papéis, outros pastas e um vestia uniforme de coronel. Ninguém olhava para ele; compreendeu que os embaraçava. Ignoravam-no como se ignora um aleijado. Mas não devia ser o defeito da sua perna o que provocava essa atitude.

Hawthorne saiu do elevador. Parecia que tinha dormido vestido; talvez tivesse passado a noite no avião de Jamaica. Teria também ignorado Wormold se este o não tivesse chamado.

- Olá, Hawthorne.

- Oh, é você, Wormold?

- Beatrice chegou bem?

- Sim, naturalmente.

- Onde está ela, Hawthorne?

- Não faço a menor ideia.

- Que sucede aqui? Parece um conselho de guerra.

- É um conselho de guerra - disse friamente, e entrou pela porta da luz vermelha. O relógio marcava onze e vinte e cinco. Tinham-no convocado para as onze.

Pensavam se lhe podiam fazer outra coisa além de despedi-lo, o que certamente já tinham feito. Era isso provavelmente o que eles estavam decidindo lá dentro. Dificilmente podiam encontrar no Regulamento dos Serviços Secretos um artigo incriminador. Ele tinha inventado e não traído quaisquer segredos. Presumivelmente tornariam difícil para ele conseguir um emprego no estrangeiro, e empregos na Inglaterra eram difíceis de encontrar para um homem da sua idade, mas de qualquer maneira não tinha a menor intenção de devolver-lhes o dinheiro. Pertencia a Milly; sentia-se com direito a ele como se o tivesse ganho servindo de alvo à pistola e ao veneno de Cárter.

Às onze e trinta e cinco o coronel saiu; dirigiu-se para o elevador, vermelho e irritado. A seguir saiu um homem com casaco de lã vestido. Tinha olhos azuis profundos e não era necessário o uniforme para se reconhecer nele um oficial de marinha. Olhou distraidamente para Wormold, mas desviou imediatamente a vista como homem de integridade. - Espere por mim, coronel - berrou, e pôs-se a andar apressado para alcançar o outro num ligeiro gingar como se estivesse numa coberta em dia de temporal. Hawthorne saiu a seguir, em conversa com um homem muito novo, e de repente Wormold ficou sem fôlego porque a luz tinha mudado para verde e Beatrice estava diante dele.

- É a sua vez de entrar - disse ela.

- Qual é o veredicto?

- Não lhe posso falar agora. Onde está hospedado?

Ele disse-lhe.

- Vou procurá-lo às seis. Se puder.

- Vão fuzilar-me ao amanhecer?

- Não se preocupe. Vá lá. Ele não gosta de esperar.

- E a você, que lhe sucedeu?

- Jacarta - replicou.

- Que é isso?

- O fim do mundo - voltou Beatrice. - Mais longe que Basra. Entre agora.

Um homem de monóculo preto sentado atrás de uma secretária.

- Sente-se, Wormold.

- Prefiro ficar de pé.

- Oh, isso é uma citação, não é?

- Citação?

- Tenho a certeza, lembro-me de ter ouvido isso em qualquer peça, num teatro de amadores. Há muitos anos, é claro.

Wormold sentou-se.

- Não é justo mandá-la para Jacarta.

- Mandar quem para Jacarta?

- Beatrice.

- Quem é ela? Oh, essa sua secretária. Como odeio esses nomes de baptismo. Terá de entender-se com Miss Jenkinson. É ela quem dirige as dactilógrafas. Nada tenho com essa secção, graças a Deus.

- Ela não tem qualquer responsabilidade no que sucedeu.

- Que sucedeu? Escute, Wormold. Decidimos encerrar o seu posto, e surge o problema: que havemos de fazer de si? - Era o momento crítico. A julgar pela expressão do coronel, que tinha sido um dos juízes, nada devia esperar de agradável. O chefe retirou o monóculo e Wormold foi surpreendido pelo olho azul de boneca. - Pensámos que, dadas as circunstâncias, o melhor para si seria ficar em Inglaterra, no nosso quadro de monitores. Lições, percebe? Como dirigir um posto no estrangeiro, etc. Temas desse género. - Parecia estar a engolir qualquer coisa de desagradável. Prosseguiu: - Claro, sempre que um homem se retira de um posto no estrangeiro pro-pomo-lo para uma condecoração. Penso que no seu caso - não esteve lá muito tempo - dificilmente poderemos sugerir melhor que a Ordem do Império Britânico.

 

Cumprimentaram-se formalmente na sala de cadeiras verdes de um hotel barato de Gower Street.

- Não creio ser possível oferecer-lhe uma bebida - disse ele. - O hotel é puritano.

- Então porque se hospedou cá?

- Os meus pais costumavam hospedar-se cá quando eu era pequeno. Nessa altura nem notei o puritanismo. Beatrice, que sucedeu? Eles são doidos?

- Bem, na verdade eles estão quase doidos connosco. Pensam que eu suspeitava e me calei. O chefe convocou uma autêntica assembleia. Lá estavam as suas ligações com o Ministério da Guerra, com o Almirantado e com o Ministério do Ar. Os seus relatórios estavam lá e analisaram-nos um por um. Infiltrações comunistas no Governo, claro que ninguém se incomodou a informar o Foreign Office da falsidade da informação. Lá estavam os relatórios económicos. Concordaram que não eram também fidedignos, mas não tinham importância. Somente aos importadores e exportadores é que poderiam interessar, mas ninguém lhes iria contar que as informações recebidas eram falsas. Ninguém se incomodou muito até que apareceu aquele relatório em que você fala de deserção na armada e de bases de reabastecimento de submarinos.

“Há nisso alguma verdade?”, perguntou o comandante. “Repare na fonte da informação. Nem sequer existe”, repliquei eu.

“Vamos passar por idiotas - tornou o comandante. - Lá na marinha vão achar isto ainda melhor que uma anedota do Vunch.”

- Mas isso nada foi, comparado com o que eles sentiram quando se abordou o tema das construções do Oriente.

- Eles tinham engolido de facto esses desenhos?

- Foi então que se voltaram contra o pobre Henry.

- Gostava que deixassem de chamar-lhe Henry.

- Acusaram-no de o ter apresentado como um rei da finança, ocultando que você era um agente de aspiradores. O chefe não se associou a essa acusação. Parecia embaraçado por qualquer motivo, e Henry, quero dizer, Hawthorne, apresentou a sua ficha com todos os pormenores. Claro que essa ficha nunca tinha saído dos arquivos de Miss Jenkinson. Replicaram que ele devia ter reconhecido tratar-se de peças de um aspirador quando viu os desenhos. Ele respondeu que tinha de facto reconhecido, mas que não havia qualquer razão para que o princípio de um aspirador não fosse aplicado a uma arma. Depois disso eles uivaram pedindo o seu sangue, todos excepto o chefe. Houve momentos em que pensei que ele estava a saborear o lado burlesco da história. Acabou afinal por dizer: “O que temos a fazer é simples: notificar o Almirantado, o Ministério da Guerra e o Ministério do Ar de que todos os relatórios oriundos de Havana nos últimos seis meses são totalmente falsos.”

- Mas, Beatrice, eles ofereceram-me um emprego.

- Isso explica-se facilmente. O comandante foi o primeiro a render-se. Talvez no mar se aprenda a ter vistas largas. Disse que tal nota iria arruinar o crédito dos serviços junto do Almirantado. De futuro só confiariam no Serviço Secreto Naval. O coronel também se associou: “Se eu contar o que se passou no Ministério da Guerra, o melhor é fazer já as malas.” Era um beco sem saída, até que o chefe sugeriu que talvez o plano mais simples fosse fazer circular um último relatório informando que as construções se haviam revelado um fracasso e tinham sido demolidas. Restava agora tratar de si. O chefe considerou que era melhor aproveitar a sua experiência nos serviços que deixá-lo ir contar a história na imprensa. Tem-se notado recentemente demasiada tendência para o género literário entre antigos agentes dos Serviços Secretos. Alguém mencionou o Regulamento dos Serviços Secretos, mas a chefe retorquiu que não abrangia o seu caso. Devia ver a cara que eles fizeram quando viram escapar-lhes o bode expiatório. Claro, voltaram-se contra mim, mas eu não estava para ser interrogada por aquela quadrilha. Então disparatei.

- Que diabo lhes disse?

- Declarei-lhes que mesmo que tivesse descoberto o que se passava me teria calado. Disse-lhes mais, que você estava a trabalhar por algo mais importante do que uma simples noção de guerra colectiva que pode nunca vir a eclodir. Esse idiota mascarado de coronel disse qualquer coisa no género: “A sua pátria.” Eu respondi-lhe: “Que quer dizer isso de pátria? Uma bandeira inventada há alguns centos de anos? A assembleia dos bispos discorrendo sobre o divórcio e a Câmara dos Comuns bocejando da direita para a esquerda? Ou quer dizer a T. U. C, os caminhos de ferro e a Cop-op? Se você pensar, acaba por descobrir que para si a pátria é o seu regimento, mas eu e ele não temos regimento.” Tentaram fazer-me calar, mas eu continuei: “Oh, tinha-me esquecido. Há qualquer coisa ainda mais importante do que a pátria, não é assim? A Liga das Nações, o Pacto do Atlântico, a N. A. T. O. e a S. E. A. T. O. Mas para a maior parte de nós essas letras nada significam de diferente de outras letras como U. S. A. e U. R. S. S. E ninguém acredita em vocês quando afirmam que querem paz, justiça e liberdade. Que liberdade? O que vocês querem são galões.” Acrescentei que simpatizava com os oficiais franceses que em 1940 tinham ficado na França para olhar pelas suas famílias; pelo menos não colocavam as suas carreiras à frente da mulher e dos filhos. Um país é mais uma família do que um sistema político.

- Meu Deus, você disse isso tudo?

- Sim. Foi um grande discurso.

- Você acredita em tudo quanto disse?

- Não em tudo. Em nada nos deixam actualmente ter fé, nem nas nossas dúvidas. Em nada maior sou capaz de acreditar do que um lar nem mais abstracto do que um ser humano.

- Qualquer ser humano?

Ela afastou-se depressa por entre as numerosas cadeiras verdes, para evitar a resposta, e ele compreendeu que ela estava prestes a chorar. Dez anos atrás tê-la-ia seguido, mas a meia-idade é o período da prudência. Viu-a afastar-se e pensou: “Darling é uma força de expressão, há catorze anos de diferença de idade, e Milly... nada se deve fazer que ofenda os nossos filhos ou as suas crenças.” Ela já ia na porta quando ele a alcançou.

- Estive a ver no mapa onde é Jacarta. Você não pode ir para lá. É um lugar horrível.

- Não tenho por onde escolher. Tentei ficar no arquivo.

- Gosta de arquivo?

- Poderíamos encontrar-nos uma vez por outra e ir ao cinema.

- Uma vida maçadora. Foi você quem o disse.

- Não. Você seria parte dela.

- Beatrice. Eu sou catorze anos mais velho do que você.

- Que importa? Eu sei o que o preocupa: não é a idade, é Milly.

- Ela terá de aprender que o pai também é um ser humano.

- Não será fácil explicar-lho.

- O que não vai ser fácil é aturar-me daqui a alguns anos.

- Querido, não te preocupes mais com isso. Eu nunca te deixarei - foi a sua resposta.

Quando eles se beijavam, Milly entrou carregando um grande cesto de costura de uma senhora de idade. Parecia particularmente virtuosa; tinha provavelmente dado início a uma semana de boas acções. A velha foi a primeira a descobrir o pai e segurou Milly pelo braço.

- Vamos embora, minha filha - disse ela. - Fazerem isto em público!

- Não tem mal - disse Milly -, é apenas meu pai.

O som da sua voz separou-os.

A velha perguntou:

- E ela é a tua mãe?

- Não. É a secretária dele.

- Dê-me o meu cesto - disse a velhota indignada.

- Bem - disse Beatrice. - Aqui estamos.

- Desculpa, Milly - disse Wormold.

- Oh - fez Milly. - Já era altura de ela aprender alguns dos segredos da vida.

- Não estava a pensar na velha. Sei que isto não te parecerá um verdadeiro casamento...

- Fico contente que se casem. Em Havana pensei que fossem amantes. Claro que vem a dar no mesmo, pois vocês são já ambos casados, mas ao menos salvam as aparências. Pai, sabes onde fica Tattersalls? '

- Em Knightsbridge, parece-me, mas deve estar fechada.

- Só queria saber onde ficava para ir deitar uma olhadela.

- E não te importas, Milly?

- Oh, os pagãos podem fazer quase tudo e vocês são pagãos. Felizes de vós. Estarei de volta à hora do jantar.

- Vês - disse Beatrice -, afinal correu tudo bem.

- Sim, levei-a bem, não achas? Às vezes tenho muito tacto e sou capaz de fazer coisas bem feitas. A propósito, o relatório acerca dos agentes inimigos deve ter-lhes agradado.

- Não. Tu vês, querido, nos laboratórios gastaram hora e meia à procura do teu ponto no meio daqueles selos. Creio que o encontraram no quatrocentos e oitenta e dois, mas quando o ampliaram nada continha. De duas uma: ou deste demasiada exposição ao filme ou usaste o microscópio ao contrário.

- E conferem-me, apesar disso tudo, a Ordem do Império Britânico?

- Sim.

- E um emprego?

- Duvido de que o conserves por muito tempo.

- Não me importo. Beatrice, quando começaste a imaginar que estavas...?

Ela pôs-lhe a mão no ombro e obrigou-o a dar uns passos de dança, no meio das cadeiras. E então começou a cantarolar, um pouco arquejante, como se tivesse vindo de longe a correr:

Homens ajuizados, velhos amigos

rodeiam-te.

Dizem que a Terra é redonda

E isso ofende a minha loucura...

Uma laranja tem caroços, dizem eles

E a maçã tem casca...

- De que vamos viver? —perguntou Wormold.

- Havemos de arranjar para nós dois.

- Somos três - disse Wormold, e então ele compreendeu o principal problema que o futuro lhe apresentava e que era o de ele não ser completamente louco.

 

 

                                                                  Graham Greene

 

 

 

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