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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O OLHO DE GOLEM / Jonathan Stroud
O OLHO DE GOLEM / Jonathan Stroud

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O OLHO DE GOLEM

Primeira Parte

 

Praga, 1868

Ao entardecer, as fogueiras dos acampamentos dos inimigos foram surgindo, uma a uma, em profusão superior à de qualquer outras noites. As luzes cintilavam como jóias de fogo na tonalidade cinzenta das planícies, em tão grande número que mais parecia ter brotado da terra uma cidade encantada. Em contraste, dentro das nossas muralhas, as casas tinham as persianas fechadas, as luzes apagadas. Tivera lugar uma estranha inversão — a própria Praga estava escura e morta, enquanto os campos à sua volta brilhavam de vida.

Pouco depois, o vento começou a amainar. Soprara do oeste com intensidade durante horas, avisando dos movimentos do invasor — o ruído das máquinas de cerco, os gritos das tropas e dos animais, os suspiros dos espíritos cativos, os cheiros das fórmulas encantatórias. Agora, desaparecia com incrível rapidez, mergulhando o ar no silêncio.

Eu pairava alto por cima do mosteiro de Strahov, do lado de dentro das muralhas da magnífica cidade que construíra trezentos anos antes. As minhas asas duras deslocavam-se em movimentos fortes e lentos; os meus olhos perscrutavam os sete planos até o horizonte.1 Não propiciava visões felizes. O grosso do exército britânico estava escondido por trás de Ocultações, mas as suas ondas de poder já atingiam a base da Colina do Castelo. As auras de um imenso contingente de espíritos mal se viam no escuro; a cada minuto, mais tremores fugazes nos planos assinalavam a chegada de novos batalhões. Grupos de soldados humanos moviam-se premeditadamente pelo solo escuro. No meio deles encontrava-se um aglomerado de enormes tendas brancas arredondadas fazendo lembrar ovos de rocas*, à volta das quais Escudos e outras fórmulas se estendiam com a densidade de teias de aranha.2

 

1 Os Sete Planos: Os sete planos acessíveis sobrepõem-se uns aos outros, e cada um revela certos aspectos da realidade. O primeiro abrange as coisas materiais comuns (árvores, edifícios, seres humanos, animais, etc.) que são visíveis a todos; os outros seis contêm espíritos de várias espécies que se deslocam tranqüilamente nas suas atividades. Os seres superiores (como eu) podem usar a imaginação para observar todos os sete planos ao mesmo tempo, mas as criaturas mais inferiores têm de se contentar em ver menos.

 

* Ave gigantesca e fabulosa de certos contos orientais. (NT)

 

2 Sem dúvida, era aqui que os magos britânicos se escondiam, a uma distância segura da ação. Os meus amos checos eram iguaizinhos. Na guerra, os magos gostam sempre de reservar para si as tarefas mais perigosas, como guardar destemidamente enormes quantidades de comida e bebida alguns quilômetros atrás das linhas.

 

Os seres humanos são extraordinariamente básicos. Os magos usam lentes de contato para ver os planos dois a três, mas a maior parte das pessoas vê o primeiro plano, e isso as tornam ignorantes em relação a todos os tipos de atividades mágicas. Por exemplo, neste preciso MOMENTO, é provável que algo invisível com montes de tentáculos esteja pairando atrás de suas costas.

Ergui o olhar para o céu enegrecido. Era um aglomerado de nuvens negras em fúria, apresentando manchas amarelas ao poente. A uma altitude elevada e quase invisível na luz escassa, fiquei atento a seis pontos tênues que circulavam fora do alcance de uma Detonação. Avançavam sistematicamente para trás, inspecionando as muralhas uma última vez, verificando a força das nossas defesas.

A propósito... tinha de fazer o mesmo.

Na Porta de Strahov, o posto avançado mais remoto e vulnerável das muralhas, a torre fora levantada e fortalecida. As portas antigas tinham sido vedadas com feitiços triplos e uma imensidão de mecanismos de ativação, e as ameaçadoras ameias no alto da torre pululavam de sentinelas atentas.

Pelo menos era essa a idéia.

Voei para a torre, cabeça de falcão, asas hirtas, escondido atrás da minha camada de tufos. Aterrei descalço, sem fazer qualquer ruído, num cume proeminente de pedra. Esperei pelo desafio rápido e brusco, a exibição vigorosa de prontidão imediata.

Não aconteceu nada. Abandonei a minha Ocultação e esperei por alguma prova tardia e moderada de vigilância. Tossi sonoramente. O mesmo marasmo.

Um Escudo brilhante protegia parte das ameias, e por trás dele escondiam-se cinco sentinelas.3 O Escudo era bem acanhado, concebido para um soldado humano, ou três djinn, no máximo. Assim sendo, havia uma grande agitação.

 

3 Cada sentinela era um djinni menor, pouco melhor do que um foliot comum. Viviam-se tempos difíceis em Praga; os magos eram escravizados e o controle de qualidade deixava muito a desejar. Os aspectos escolhidos pelas minhas sentinelas eram prova disso. Em vez dos ares medonhos e belicosos, deparei-me com dois vampiros trêmulos, uma doninha, um lagarto esbugalhado e um sapo pequeno e bastante melancólico.

 

— Quer parar de empurrar?

— Au! Cuidado com as garras, seu idiota!

— Chega para lá. Olha, tenho o traseiro descoberto neste momento. Podem detectá-lo.

— Pelo menos assim a batalha já estava no papo.

— Controle essa asa! Quase me tirou um olho.

— Nesse caso, muda para algo menor. Sugiro uma lombriga.

— Se me der mais uma cotovelada...

— A culpa não é minha. Foi aquele Bartimaeus que nos colocou aqui. Ele é um arro...

Em suma, uma deplorável exibição de relaxo e incompetência, que me abstenho de reproduzir na íntegra. O guerreiro com cabeça de falcão encolheu as asas, avançou e despertou a atenção das sentinelas batendo rapidamente com as suas cabeças umas nas outras.4

 

4 Cinco cabeças batendo umas nas outras em sucessão rápida. Mais parecia um incomum brinquedo de execução.

 

— E que tipo de serviço de sentinela chamam a isto? — proferi bruscamente. Não estava com paciência para bobagens; seis meses de serviço contínuo tinham desgastado a minha essência. — Agachados atrás de um Escudo, fazendo essa algazarra... Ordenei-lhes que ficassem de vigia.

No meio dos patéticos balbucios, da agitação e do embaraço que se seguiram, o sapo levantou a mão.

— Por favor, Mr. Bartimaeus — disse ele —, de que serve vigiar? Os Ingleses estão por todo lado... céu e terra. E constou-nos que lá embaixo têm uma legião inteira de afrits. É verdade?

Apontei o bico para o horizonte, de olhos semicerrados.

— Provavelmente.

O sapo soltou um gemido.

— Mas nós não temos um único, não é? Desde que Phoebus o comprou. E constou-nos que têm marids lá embaixo, mais do que um. E o chefe trouxe o seu Bordão... verdadeiramente poderoso. Destruiu Paris e Colônia. Isso é verdade?

As penas da minha crista agitaram-se suavemente com a brisa.

— Provavelmente.

O sapo soltou um lamento.

— Oh, mas isso é simplesmente medonho, não é? Agora é que é, não temos qualquer esperança. Toda a tarde os chamados foram abundantes e rápidos, e isso só pode querer dizer uma coisa. Eles vão atacar esta noite. De manhã estaremos todos mortos.

Bem, ele não estava fazendo nenhum bem ao nosso moral, com aquele tipo de conversa.5 Apoiei uma mão no seu ombro verrugoso.

 

5 Ou seja: dizendo a verdade.

 

— Escute, filho... como se chama?

— Nubbin, senhor.

— Nubbin. Bem, não acredite em tudo o que ouve, Nubbin. O exército britânico é forte, claro. Na verdade, raramente vi mais fortes. Mas digamos que é. Digamos que tem marids, legiões inteiras de afrits, e borlas às pencas. Digamos que todos eles vão cair em cima de nós esta noite, mesmo aqui, na Porta de Strahov. Bem, eles que venham. Nós temos truques para nos livrarmos deles.

— Como por exemplo, senhor?

— Truques que enviarão aqueles afrits e marids pelos ares. Truques que aprendemos todos no calor de uma dúzia de batalhas. Truques que significam uma doce palavra: sobrevivência.

O sapo piscou-me os seus olhos bolbosos.

— É a minha primeira batalha, senhor.

Esbocei um gesto de impaciência.

— Se isso falhar, segundo os djinn do Imperador, os magos dele estão trabalhando em algo. Uma última linha de defesa. Algum esquema mirabolante, sem dúvida. — Bati-lhe no ombro de uma forma varonil. — Sente-se melhor agora, filho?

— Não, senhor. Sinto-me pior.

Não admira. Nunca tive muito jeito para dar ânimo.

— Pronto — resmunguei. — O meu conselho é abaixarem-se rapidamente e se possível fugirem. Com sorte, os vossos amos morrerão antes de vocês. Cá entre nós, é com o que estou contando.

Espero que este discurso encorajador lhes servisse de alguma coisa, pois foi naquele momento que se deu o ataque. Ao longe, houve uma repercussão em todos os sete planos. Todos a sentimos: não foi mais do que uma afirmação de autoridade. Virei-me para olhar para o escuro e, uma por uma, as cabeças das cinco sentinelas surgiram por cima das ameias.

Nas planícies, o enorme exército pusera-se em movimento.

À frente, pairando nas correntes ascendentes de um súbito vento feroz, vinham os djinn, trajados de vermelho e branco, transportando lanças esguias com pontas de prata. Suas asas zuniam, os seus gritos faziam estremecer a torre. Lá embaixo, a pé, uma multidão de espíritos: os borlas com os seus tridentes talhados em osso, saltando sobre as cabanas e casas do lado de fora das muralhas em busca de presa.6 Ao lado deles, sombras vagas passavam rapidamente — ghuls e espectros, fantasmas de frio e infortúnio, insubstanciais em todos os planos. E a seguir, com um enorme ranger e agitar das mandíbulas, mil diabretes e foliots saindo da terra como uma tempestade de poeira ou um monstruoso enxame de abelhas. Todos estes e muitos outros dirigiam-se apressados para a Porta de Strahov.

 

6 Não encontraram ninguém, como os seus lamentos de desilusão não tardaram a comprovar. Os subúrbios estavam desertos. Praticamente assim que o exército britânico atravessara o Canal; as autoridades checas tinham começado a preparar-se para o inevitável ataque a Praga. Como primeira precaução, a população da cidade fora trazida para dentro das muralhas — que, por sinal, eram as mais fortes da Europa na época, uma maravilha da engenharia mágica. Já vos disse que dei uma mãozinha na sua construção?

 

O sapo bateu-me no braço.

— Ainda bem que nos deu uma palavrinha, senhor — disse. — Estou tremendamente confiante agora, graças ao senhor.

Mal o ouvi. Olhava para longe, para lá da terrível hoste, para uma pequena elevação próximo das tendas brancas abobadadas. Encontrava-se nela um homem de pé, segurando um pau ou bordão. Estava muito distante para captar muitos pormenores, mas sentia sem dúvida o seu poder. A sua aura iluminava a colina à volta dele. Enquanto observava, vários raios caíram das nuvens agitadas, empalando-se na ponta do bordão estendido. A colina, as tendas, os soldados que aguardavam iluminaram-se por breves instantes, como se fosse dia. A luz apagou-se, a energia absorvida pelo bordão. Os trovões ribombaram sobre a cidade sitiada.

— Com que então é ele, não é? — murmurei. — O famoso Gladstone.

Os djinn aproximavam-se agora das muralhas, transpondo os baldios e os destroços dos edifícios recentemente desmantelados. Quando o fizeram, foi acionado um feitiço enterrado; jatos de fogo verde-azulado irromperam no ar, incinerando os que vinham na dianteira. Mas o fogo extinguiu-se, e os restantes passaram.

Este era o sinal para os defensores agirem: cem diabretes e foliots saíram das muralhas, soltando minúsculos gritos e enviando Detonações em direção à horda voadora. Os invasores pagaram na mesma moeda. Infernos e Fluxos encontraram-se e misturaram-se na semi-obscuridade, sombras a saltarem e rodopiarem nos clarões de luz. Ao longe, as fronteiras de Praga estavam em chamas; os primeiros borlas aglomeravam-se por baixo de nós, tentando destruir as fortes fórmulas Aprisionadoras que eu usara para firmar os alicerces das muralhas.

Estendi as minhas asas, pronto para entrar na refrega; ao meu lado, o sapo inchou a garganta e soltou um coaxo de desafio. No instante seguinte, partiu um raio de energia do bordão do mago lá ao longe na colina, descreveu um arco no céu e foi bater na torre da Porta de Strahov, bem por baixo das ameias. O nosso Escudo rompeu-se como um lenço de papel. Saltaram argamassa e pedra, o telhado da torre cedeu. Fui arremessado aos giros pelo ar...

...e quase caí por terra, colidindo pesadamente com uma carroça de fardos de feno que fora puxada para o lado de dentro antes de começar o cerco. Por cima de mim, a estrutura de madeira da torre ardia. Não consegui ver nenhuma das sentinelas. Diabretes e djinn andavam confusamente às voltas lá em cima no céu, trocando acessos de magia. Caíam corpos do céu, incendiando os telhados. De casas próximas, saíam mulheres e crianças a correr e a gritar. A Porta de Strahov era sacudida pelas pancadas dos tridentes dos borlas. Não agüentaria muito tempo.

Os defensores necessitavam da minha ajuda. Libertei-me do feno com a minha pressa habitual.

— Depois de tirar o último pedaço de palha da tua tanga, Bartimaeus — disse uma voz —, a tua presença é solicitada no castelo.

O guerreiro com cabeça de falcão ergueu o olhar.

— Oh... olá, Queezle.

Sentada no meio da rua, uma elegante leopardo-fêmea olhava para mim com olhos verde-lima. Enquanto eu observava, ela levantou-se negligentemente, deu alguns passos para o lado e voltou a sentar-se. Uma gota de piche em chamas bateu nas pedras onde momentos antes ela se encontrara, deixando uma cratera fumegante.

— Quanta confusão! — comentou.

— Sim. Estamos acabados por aqui. — Saltei da carroça.

— Parece que as fórmulas Aprisionadoras nas muralhas estão falhando — disse a leopardo, olhando para a porta que estremecia. — Vê-se mesmo que foi obra mal acabada. Gostaria de saber qual o djinni que a construiu.

— Não faço idéia — respondi. — Bom, assim sendo... O nosso amo chama?

A leopardo anuiu.

— É melhor nos apressar, senão ele nos pontilha. Vamos a pé. O céu está muito apinhado.

— Vá na frente.

Metamorfoseei-me, tornei-me uma pantera, negra como a noite. Corremos pelas ruas estreitas em direção à Praça Hradcany. As ruas que tomamos encontravam-se vazias; evitamos os lugares onde as pessoas em pânico se agitavam como gado. Havia cada vez mais edifícios agora em chamas, madeiramentos a oscilar, paredes laterais a desabar. Pequenos diabretes dançavam em volta dos telhados, agitando brasas nas mãos.

No castelo, havia criados imperiais na praça com lanternas tremulantes, reunindo móveis extraviados em carroças; ao lado deles, viam-se moços de estrebaria que se esforçavam para prender os cavalos aos postes. O céu por cima da cidade era salpicado por erupções de luz colorida; lá mais atrás, da direção de Strahov e do mosteiro, chegava o estampido monótono de explosões. Esgueiramo-nos pela entrada principal sem encontrar oposição.

— O Imperador vai sair, é? — perguntei, arquejante. Passavam por nós diabretes frenéticos, equilibrando trouxas de pano na cabeça.

— Ele está mais preocupado com as suas queridas aves — respondeu Queezle. — Quer que os nossos afrits as ponham a salvo. — Os olhos verdes brilharam na minha direção com pesarosa animação.

— Mas todos os afrits morreram.

— Precisamente. Bem, quase todos.

Tínhamos chegado à ala setentrional do castelo, onde os magos possuíam os seus aposentos. Eram bem visíveis os sinais de magia nas pedras. A leopardo e a pantera desceram apressados um longo lance de escadas, seguiram por uma varanda que dava para o Fosso do Veado, e atravessaram o arco que conduzia à Sala de Trabalho Inferior. Esta era uma amplo cômodo circular que ocupava quase todo o térreo da Torre Branca. Eu fora com freqüência chamado aqui ao longo dos séculos, mas, agora, a habitual parafernália mágica — os livros, os potes de incenso, os candelabros — tinha sido afastada para criar espaço para uma fila de dez cadeiras e mesas. Havia uma bola de cristal em cada mesa, brilhando com luz; em cada cadeira, um mago curvado espreitava a respectiva bola. Reinava o silêncio absoluto na sala.

O nosso amo estava de pé a uma janela, olhando por um telescópio para o céu escuro.7 Percebeu nossa presença, esboçou um gesto a impor silêncio, depois chamou-nos a uma sala lateral. O seu cabelo grisalho ficara branco do esforço das últimas semanas; o seu nariz adunco pendia magro e macilento, e os seus olhos estavam vermelhos como os de um diabrete.8 Coçou a parte de trás do pescoço.

 

7 O telescópio continha um diabrete cujo olhar permitia aos humanos verem de noite. Trata-se de instrumentos úteis, conquanto por vezes os diabretes caprichosos distorçam a visão, ou acrescentem elementos perversos por sua conta: raios de pó dourado, estranhas visões oníricas, ou figuras espectrais do passado do utilizador.

8 Comparar amos é quase o mesmo que comparar sinais no rosto: alguns são piores do que outros, mas nem os melhores conseguiriam estimular a sua fantasia. Este era o décimo segundo mago checo que eu servia. Não era excessivamente cruel, mas antes um pouco azedo, como se lhe corresse suco de limão nas veias. Tinha também lábios finos e era pedante, obcecado com o seu dever para com o Império.

 

— Não precisam de me dizer — disse ele. — Eu sei. Quanto tempo nos resta?

A pantera agitou a cauda.

— Eu diria que temos uma hora, não mais.

Queezle olhou na direção da sala principal, onde os magos silenciosos labutavam.

— Estou vendo que vai libertar os golems — disse ela.

O mago anuiu com secura.

— Eles causarão grandes estragos ao inimigo.

— Não será suficiente — aleguei. — Mesmo com dez. Viu o tamanho do exército lá fora?

— Como sempre, Bartimaeus, a tua opinião é precipitada e inesperada. Trata-se apenas de uma diversão. Tencionamos levar Sua Alteza pelas escadas do leste. Há um barco à espera no rio. Os golems cercarão o castelo e cobrirão a nossa retirada.

Queezle continuava a olhar para os magos; estavam curvados sobre as suas bolas de cristal, proferindo contínuas instruções silenciosas às suas criaturas. Imagens tênues em movimento nas bolas mostravam a cada um o que o seu golem via.

— Os Britânicos não se preocuparão com os monstros — afirmou Queezle. — Encontrarão estes operadores e os matarão.

O meu amo mostrou os dentes.

— Nessa altura, o Imperador terá partido. E isso, por sinal, é a minha nova ordem para vocês dois: proteger Sua Alteza durante a fuga. Entenderam?

Ergui uma pata. O mago soltou um suspiro sentido.

— Sim, Bartimaeus?

— Bem, senhor — disse eu —, se me fosse permitida uma sugestão. Praga está cercada. Se tentarmos fugir da cidade com o Imperador, morreremos todos de forma horrível. Por que não esquecemos então, o totó, e nos mandamos daqui antes? Há uma pequena adega de cerveja na Rua Karlova com um poço seco. Não é fundo. A entrada é um pouco acanhada, mas...

Ele carregou o cenho.

— Espera que eu me esconda ali?

— Bem, seria apertado, mas calculo que conseguimos enfiá-lo lá dentro. A sua pança poderia nos dar problemas, mas não é nada que um empurrão não resolva... Au!

— O meu pêlo crepitou; fiquei abruptamente no meio da frase. Como sempre, os Pontilhados Rubros faziam-me perder a corrente do pensamento.

— Ao contrário de ti — replicou o mago —, conheço o significado de lealdade! Não preciso ser obrigado a agir de forma honrosa para com o meu amo. Repito: Ambos irão proteger a vida dele com as suas. Entenderam?

Anuímos com relutância; enquanto tal, o solo estremeceu com uma explosão próxima.

— Então sigam-me — ordenou-nos ele. — Não há muito tempo.

Voltamos a subir as escadas e atravessamos os corredores ecoantes do castelo. Clarões brilhantes iluminavam as janelas; gritos medonhos ecoavam a toda volta. O meu amo corria com suas pernas finas, arfando a cada passo; Queezle e eu galopávamos a seu lado.

Acabamos por chegar ao terraço onde durante anos o Imperador mantivera o seu aviário. Era uma estrutura grande, delicadamente feita de bronze trabalhado, com cúpulas, minaretes, comedouros, e portas para o Imperador andar lá dentro. O interior estava cheio de árvores e arbustos envasados e uma extraordinária variedade de papagaios, cujos antepassados tinham sido trazidos para Praga de terras longínquas. O Imperador tinha se agarrado a estas aves; mais recentemente, à medida que o poder de Londres crescia e o Império lhe escapava das mãos, adquirira o hábito de se sentar durante longos períodos dentro do aviário, em comunhão com os seus amigos. Agora, com o céu noturno rasgado pelos confrontos mágicos, as aves estavam em pânico, esvoaçando em volta da gaiola numa agitação de penas, gritando a ponto de arrebentarem. O Imperador, um cavalheiro pequeno e balofo com calças de cetim e uma camisa branca amarrotada, encontrava-se em pouco melhor estado, protestando com os tratadores e ignorando os conselheiros que se aglomeravam à sua volta.

O Ministro-Adjunto, Meyrink, pálido e de olhos tristes, puxava-o pela manga.

— Alteza, por favor. Os Ingleses estão a avançar pela Colina do Castelo. Temos de vos pôr em segurança...

— Não posso deixar o meu aviário! Onde estão os meus magos? Chamem-nos aqui!

— Alteza, eles estão envolvidos na batalha...

— Os meus afrits, nesse caso? O meu fiel Phoebus...

— Alteza, conforme vos informei por diversas vezes...

O meu amo abriu caminho com os ombros.

— Alteza, apresento-vos Queezle e Bartimaeus, que nos ajudarão na nossa partida, depois salvarão também as vossas maravilhosas aves.

— Dois felinos, homem? Dois felinos? — A boca do Imperador ficou toda branca e franzida.9

 

9 Ela própria bastante felina, se é que me faço entender.

 

Queezle e eu reviramos os olhos. Ela transformou-se numa garota de rara beleza; eu assumi a forma de Ptolomeu.

— Agora, Alteza — disse o meu amo —, as escadas do leste...

Grandes abalos na cidade; metade dos subúrbios estava agora a arder. Um pequeno diabrete entrou a rolar pelo parapeito ao fundo do terraço, a cauda em chamas. Imobilizou-se junto a nós.

— Permissão para informar, senhor. Uma série de afrits selvagens está se dirigindo ao castelo. O ataque é encabeçado por Honorius e Patterknife, servos pessoais de Gladstone. São muito terríveis, senhor. As nossas tropas desmembraram-se diante deles. — Fez uma pausa, olhou para a sua cauda fumegante. — Permissão para procurar água, senhor?

— E os golems? — indagou Meyrink.

O diabrete estremeceu.

— S-s-sim, senhor. Eles acabaram de atacar o inimigo. Mantive-me bem longe da nuvem, claro, mas penso que os afrits ingleses terão recuado um pouco, em desordem. Agora, em relação à água...

O Imperador soltou um grito chilreante.

— Ótimo, ótimo! A vitória é nossa!

— A vantagem é apenas temporária — advertiu Meyrink. — Venha, Alteza, temos que partir.

Não obstante os seus protestos, o Imperador foi levado às pressas da gaiola em direção a uma porta de vime. Meyrink e o meu amo vinham à cabeça do grupo, o Imperador atrás, a sua estatura pequena escondida entre os cortesãos. Queezle e eu seguíamos na retaguarda.

Um clarão de luz. Entraram duas figuras negras galgando o parapeito atrás de nós. Agitavam-se capas esfarrapadas em volta delas, olhos amarelos ardendo nas profundezas dos seus capuzes. Deslocaram-se pelo terraço em grandes saltos flutuantes, muito raramente tocando no solo. No aviário, as aves mergulharam num silêncio súbito.

Olhei para Queezle.

— Teus ou meus?

A bela garota sorriu-me, mostrando dentes afiados.

— Meus. — Ficou para trás afim de receber os ghuls que avançavam. Corri atrás da comitiva do Imperador.

Para lá do portão, havia um caminho estreito que seguia pelo fosso do Norte, sob a muralha do castelo. Lá embaixo, a Cidade Velha estava em chamas; conseguia ver as tropas britânicas a correr pelas ruas, e a população de Praga a tombar diante delas. Parecia tudo distante; o único som que chegava até nós era um suspiro ao longe. Bandos de diabretes vogavam para aqui e para ali como aves.

O Imperador cessou os seus sonoros queixumes. O grupo atravessou silenciosamente a noite. Estávamos agora na Torre Negra, no alto das escadas do leste, e lá à frente o caminho encontrava-se livre.

Um bater de asas; Queezle pousou ao meu lado, muito pálida. Estava ferida no flanco.

— Problemas? — indaguei.

— Não com os ghuls. Um afrit. Mas apareceu um golem... destruiu-o. Estou ótima.

Continuamos a descer as escadas na vertente da colina. O clarão do castelo em chamas refletia-se nas águas do Vltava lá embaixo, conferindo-lhe uma beleza melancólica. Não encontramos ninguém, ninguém veio atrás de nós, e não tardou que o pior do conflito ficasse para trás.

Quando o rio ficou mais próximo, Queezle e eu trocamos olhares esperançosos. A cidade estava perdida, tal como o Império, mas a fuga iria permitir-nos uma pequena restituição do orgulho pessoal.

Apesar de abominarmos a servidão, abominávamos igualmente ser derrotados. Parecia que íamos conseguir escapar.

A emboscada deu-se quando estávamos quase no sopé da colina.

Com uma corrida e uma investida, seis djinn e um bando de diabretes saltaram para os degraus de baixo. O Imperador e os seus cortesãos gritaram e caíram para trás na maior confusão. Queezle e eu ficamos tensos, prontos para saltar.

Uma tosse ligeira atrás de nós. Como um só, viramo-nos.

Um homem jovem encontrava-se cinco degraus acima. Tinha caracóis louros cerrados, enormes olhos azuis e envergava sandálias e uma toga ao estilo dos finais do Império Romano. Revelava uma expressão bastante apatetada e tímida no rosto, como se não fizesse mal a uma mosca. No entanto, como pormenor extra que não pude deixar passar despercebido, trazia também uma monstruosa foice com uma lâmina de prata.

Inspecionei-o nos outros planos, na tênue esperança de que pudesse realmente ser um humano excêntrico a caminho de um baile de máscaras. Não tive essa sorte. Era um afrit algo poderoso. Engoli em seco. Isto não era nada bom.10

 

10 Vale a pena evitar o afrit mais insignificante, e este era efetivamente formidável. Nos planos superiores, as suas formas eram imensas e aterradoras, pelo que ao aparecer com semelhante aspecto fraco no primeiro plano só revelava o seu sentido de humor distorcido. No entanto, não posso dizer que me apetecesse rir.

 

— Com os cumprimentos de Mr. Gladstone para o Imperador — disse o jovem. — Ele solicita o prazer da sua companhia. O resto de vocês, ralé, pode desaparecer.

Parecia razoável. Olhei para o meu amo com ar suplicante, mas ele, furioso, fez-me sinal para que seguisse em frente. Suspirei e dei um passo relutante na direção do afrit.

O jovem manifestou sonoramente o seu desdém.

— Suma daqui, seu insignificante. Não tem chance.

O escárnio dele aguçou a minha fúria. Empertiguei-me.

— Cuidado — disse com frieza. — Subestima-me por tua conta e risco.

O afrit piscou os olhos com manifesta falta de preocupação.

— Sério? Tem um nome?

— Um nome? — insurgi-me. — Tenho muitos nomes! Sou Bartimaeus! Sou Sakhr al-Jinni! Sou N’gorso, o Poderoso e a Serpente de Plumas de Prata!

Fiz uma pausa teatral. O jovem não se mostrou impressionado.

— Ná. Nunca ouvi falar de você. Agora, se fizer o favor...

— Falei com Salomão...

— Oh, tenha dó! — O afrit esboçou um gesto de enfado. — Todos nós já não falamos? Sejamos sinceros, ele andou por todo o lado.

— Reconstruí as muralhas de Uruk, Karnak e Praga...

O jovem deu um sorriso afetado.

— O quê? Estas aqui? Aquelas que Gladstone derrubou em cinco minutos? Tem certeza de que não trabalhou também em Jericó?

— Sim, trabalhou — interveio Queezle. — Foi um dos seus primeiros trabalhos. Ele não gosta de fazer alarde, mas...

— Olha, Queezle...

O afrit empunhou a foice.

— Última oportunidade, djinni — disse. — Chispa daqui. Desta vez não vai conseguir vencer.

Encolhi os ombros com uma certa resignação.

— Veremos.

E assim, lamento dizer, fizemos. Muito rapidamente, também. As minhas primeiras quatro Detonações foram desviadas pela foice a rodopiar. A quinta, em que caprichara realmente, ricocheteou direto para mim, atirando-me com ímpeto para o caminho e colina abaixo numa dispersão de essência. Tentei levantar-me, mas deixei-me cair, em sofrimento. O meu ferimento era muito grande; não ia conseguir me recuperar a tempo.

No caminho, os diabretes atacavam os cortesãos. Vi Queezle e um djinni corpulento passarem a rodopiar, as mãos nas gargantas um do outro.

Com insultuosa descontração, o afrit desceu a vertente até mim. Piscou o olho e ergueu a foice de prata.

E naquele momento, o meu amo agiu.

Diga-se de passagem que ele não tinha sido particularmente bom — gostava muito dos Pontilhados, para começar — mas do meu ponto de vista o seu último ato foi a melhor coisa que jamais fez.

Os diabretes rodeavam-no por completo, saltando por cima da cabeça dele, passando entre as suas pernas, tentando chegar ao Imperador. Ele soltou um grito de fúria e retirou de um bolso do casaco um pau de Detonação, um dos novos, feito pelos alquimistas da Rua do Ouro em resposta à ameaça britânica. Eram artigos de má qualidade, produzidos em massa, com tendência a explodirem muito depressa ou, na maioria das vezes, não explodirem de todo. Seja como for, era preferível, ao usá-los, atirá-los rapidamente na direção genérica do inimigo. Mas o meu amo era um mago típico.

Não estava acostumado ao combate pessoal. Sim, proferiu a Palavra de Comando, mas depois começou a hesitar, segurando o pau acima da cabeça e fazendo fintas aos diabretes, como se não soubesse qual escolher.

Hesitou uma fração de segundo a mais.

A explosão destruiu metade das escadas. Diabretes, Imperador e cortesãos foram arremessados pelo ar como sementes de dentes-de-leão. O meu próprio amo desapareceu completamente, como se nunca tivesse existido.

E com a sua morte, os elos que me prendiam desfizeram-se por completo.

O afrit fez descer a lâmina da foice, exatamente onde estivera a minha cabeça. Aquela cravou-se inutilmente no solo.

Assim, após várias centenas de anos, e uma dúzia de amos, nada mais me prendia a Praga. Mas enquanto a minha essência grata se espalhava em todas as direções, e eu olhava para a cidade em chamas e as tropas em marcha, as crianças lamurientas e os diabretes aos gritos, as convulsões da morte de um império e o batismo sangrento do seguinte, devo dizer que não me sentia particularmente vitorioso.

Tinha a sensação de que tudo iria se complicar bem mais.

 

Londres: uma capital grande e próspera com dois mil anos que, nas mãos dos magos, aspirava a ser o centro do mundo. Pelo menos conseguira-o no tamanho. Tornara-se imensa e desgraciosa, mercê dos opulentos festins do império.

A cidade estendia-se por vários quilômetros de cada lado do Tamisa, uma crosta de habitações envoltas em fumaça, salpicada de palácios, torres, igrejas e bazares. Em todos os tempos e em todos os lugares, fervilhava de atividade. As ruas estavam bloqueadas, cheias de turistas, operários e tráfego humano, enquanto o ar zumbia de forma invisível à passagem de diabretes encarregados dos recados dos seus amos.

Nos cais apinhados que se estendiam até às águas cinzentas do Tamisa, batalhões de soldados e burocratas esperavam para partir em viagens pelo globo. Nas sombras dos seus couraçados, navios coloridos de todos os tamanhos e feitios venciam a afluência do rio. Carracas* atarefadas da Europa; dhows** árabes de velas pontiagudas, carregados de especiarias; pequenos juncos da China; elegantes veleiros de mastros finos da América — todos estavam cercados e bloqueados pelos minúsculos barcos fluviais dos marinheiros do Tamisa, que competiam sonoramente pelo costume de conduzi-los à doca.

 

* Veleiros de grande porte, usados nos séculos XV-XVI, e que chegaram a atingir as 2000t. Os Portugueses, que muito utilizaram as carracas, designavam-nas por galeões ou naus. (NT)

** Navios de um mastro usados nas costas da Arábia. (NT)

 

Dois corações alimentavam a metrópole. A leste ficava o distrito da City, onde comerciantes de terras distantes se reuniam para trocar os seus produtos; a oeste, acompanhando uma curva pronunciada do rio, ficava a área política de Westminster, onde os magos trabalhavam incessantemente para alargar e proteger os seus territórios no estrangeiro.

O rapaz fora ao centro de Londres tratar de negócios; regressava agora a Westminster a pé. Caminhava a um ritmo descontraído, pois, apesar de ser ainda de manhãzinha, já estava quente, e sentia as gotas de suor por baixo do colarinho. Uma brisa ligeira agitava as extremidades do seu casaco preto comprido e sacudia-as atrás de si ao prosseguir. Estava consciente do efeito, que lhe agradava. Sombriamente impressionante, sem dúvida; sentia as cabeças virarem-se ao passar. Nos dias realmente ventosos, com o casaco a esvoaçar na horizontal, tinha a sensação de que não parecia tão elegante.

Virou em Regent Street e seguiu por entre os edifícios da Regência* caiados de branco até Haymarket, onde os varredores de rua andavam ocupados com as vassouras e as escovas no exterior das fachadas dos teatros e jovens vendedores de fruta começavam já a exibir as suas mercadorias. Uma mulher amparava um tabuleiro empilhado até em cima com magníficas laranjas coloniais maduras, que escasseavam em Londres desde que tinham começado as guerras no Sul da Europa. O rapaz acercou-se; quando passou, arremessou habilidosamente uma moeda para a pequena taça que pendia do pescoço dela e, com um prolongamento do mesmo movimento, tirou uma laranja do alto do tabuleiro. Ignorando os agradecimentos dela, seguiu o seu caminho. Não abrandou o passo. O seu casaco seguia impressionantemente atrás dele.

 

* Período na história de Inglaterra (1810-1820) em que Jorge, Príncipe de Gales, foi regente, porque se considerava que o rei seu pai, Jorge III, estava louco. (NT)

 

Em Trafalgar Square, fora recentemente erguida uma série de postes altos, cada um apresentando riscas de uma dúzia de cores em espiral; grupos de trabalhadores estavam naquele momento a içar cordas entre eles. Cada corda estava bastante carregada de alegres bandeiras vermelhas, brancas e azuis. O rapaz parou para descascar a laranja e apreciar o trabalho.

Passou um operário, suando sob o peso de uma quantidade de panos de bandeira.

O rapaz interpelou-o.

— Você aí! Qual é a finalidade de tudo isto?

O homem olhou de lado, reparou no casaco preto comprido do rapaz e esboçou de imediato uma continência desajeitada. Metade dos panos escorregou-lhe das mãos para a calçada.

— É para amanhã, senhor — disse ele. — O Dia do Fundador. Feriado nacional, senhor.

— Ah, sim. Claro. O aniversário de Gladstone. Tinha me esquecido. — O rapaz atirou uma espiral de casca de laranja para a sarjeta e afastou-se, deixando o operário a apanhar os panos e a praguejar entre dentes.

E seguiu então até Whitehall, uma zona de edifícios cinzentos imponentes, impregnados do odor do poder há muito instituído. Aqui, só a arquitetura era suficiente para levar à submissão qualquer observador fortuito: grandes colunas de mármore; portas de bronze imensas; centenas de janelas com luzes acesas a todas as horas; estátuas de granito de Gladstone e outros notáveis, os seus rostos carrancudos e sulcados prometendo os rigores da justiça a todos os inimigos do Estado. Mas o rapaz seguiu com passos ligeiros o seu caminho, descascando a laranja com a despreocupação de alguém nascido para aquilo. Baixou a cabeça a um policial, mostrou o seu passe-livre a um guarda e transpôs um portão lateral para o pátio do Ministério da Administração Interna, passou por baixo da sombra de uma extensa avelaneira. Só então parou, engoliu o resto da sua laranja, limpou as mãos no lenço e compôs o colarinho, os punhos e a gravata. Alisou o cabelo uma última vez. Ótimo. Agora estava pronto. Era hora de ir trabalhar.

Tinham decorrido mais de dois anos desde a altura da rebelião de Simon Lovelace e a súbita entrada de Nathaniel para a elite. Estava agora com catorze anos, tinha uma cabeça de altura a mais do que quando devolvera o Amuleto de Samarcanda aos cuidados protetores de um Governo grato; mais encorpado também, mas ainda de estrutura franzina, com o cabelo escuro a pender longo e desgrenhado em volta do rosto, segundo a moda da época. O seu rosto era magro e pálido devido a longas horas de estudo, mas os seus olhos brilhavam intensos e vivos; todos os seus movimentos se caracterizavam por uma energia mal contida.

Sendo um profundo observador, Nathaniel não tardara a aperceber-se de que entre os funcionários magos, o aspecto era um fator importante na manutenção do estatuto. O ar desleixado não era visto com bons olhos; na verdade, era uma marca indiscutível de talento medíocre. Não queria dar esta impressão. Com o estipêndio que recebia do seu serviço, comprara um terno preto de calças justas e um casaco italiano comprido, considerando ambos perigosamente na moda. Calçava sapatos elegantes, ligeiramente pontiagudos, e tinha uma série de lenços vistosos que lhe proporcionavam uma explosão de cor no peito. Com esta roupa cuidadosamente vestida, percorria os claustros de Whitehall em passo célere e decidido, reminiscência de alguma ave pernalta, carregando molhos de papéis nos braços.

Mantinha o seu nome próprio bem escondido. Era conhecido entre os seus colegas e sócios pelo seu nome de adulto, John Mandrake.

Dois outros magos haviam usado este nome, nenhum grandemente famoso. O primeiro, um alquimista no tempo da Rainha Isabel, transformara chumbo em ouro numa famosa experiência diante da corte. Descobrira-se depois que conseguira-o revestindo grãos de ouro com uma fina película de chumbo, que desaparecia depois de ligeiramente aquecida. O seu engenho fora aplaudido, mas nem por isso deixara de ser decapitado. O segundo John Mandrake era um filho de um marceneiro que passara a vida a pesquisar as muitas variantes de bichinhos demoníacos. Reunira uma lista de 1703 subtipos cada vez mais irrelevantes, antes de um deles, um Pequeno Moscardo Verde Pregueado, picá-lo numa zona desprotegida; inchara até ficar do tamanho de um canapé e acabara morto.

As carreiras inglórias dos seus antecessores não preocupavam Nathaniel. Na verdade, proporcionavam-lhe uma tranqüila satisfação. Tencionava tornar o nome famoso por mérito próprio.

A mestra de Nathaniel era Ms. Jessica Whitwell, uma maga de idade indefinida, com cabelo branco cortado curto e um corpo que era esbelto, com tendência para o esquelético. Era considerada um dos magos mais poderosos no Governo, e a sua influência era extensa. Reconhecera o talento do seu aprendiz e propusera-se desenvolvê-lo plenamente.

Vivendo num apartamento espaçoso na mansão urbana da sua mestra junto à margem do rio, Nathaniel levava uma existência regrada e bem orientada. A casa era moderna e estava parcamente mobilada, com carpetes cinzento-lince e paredes branco puro. A mobília era feita de vidro e metal prateado, e de madeira clara das florestas nórdicas. Todo o local tinha um aspecto fresco, prático, quase anti-séptico, que Nathaniel acabou por admirar muito: denotava controle, clareza e eficiência, todos os sinais do mago contemporâneo.

O estilo de Ms. Whitwell era mesmo extensivo à sua biblioteca. Na maioria das casas dos magos, as bibliotecas eram lugares escuros e soturnos — os seus livros encadernados em peles de animais exóticos, com pentagramas bordados ou runas contendo maldições nas lombadas. Mas este aspecto, sabia agora Nathaniel, era muito século passado. Ms. Whitwell pedira a Jaroslav’s, os editores e encadernadores, que lhe arranjassem encadernações de couro branco para todos os seus tomos, que eram classificados e timbrados com números identificativos em tinta preta.

No centro desta sala de paredes alvas com livros brancos muito arrumados havia uma mesa retangular de vidro, e aqui Nathaniel se sentava dois dias por semana, a trabalhar nos mistérios supremos.

Nos primeiros meses ao serviço de Ms. Whitwell, enveredara por um período de estudo intensivo e, para surpresa e aprovação dela, dominara sucessivos graus de invocação em tempo recorde. Progredira do nível mais baixo de demônio (bichinhos, moulers e diabretes-trasgos), para o médio (toda a classe dos foliots), e para o avançado (djinni de várias castas) numa questão de dias.

Depois de vê-lo colocar um djinni forte na linha com uma improvisação que lhe administrara uma palmada no traseiro azul, a mestra exprimira a sua admiração.

— É um verdadeiro talento, John — disse ela —, um talento. Manifestou coragem e boa memória em Heddleham Hall ao pôr o demônio a correr, mas mal tinha me apercebido de como era versado nos chamados genéricos. Trabalhe com afinco e irá longe.

Nathaniel agradeceu-lhe recatadamente. Não lhe disse que a maior parte daquilo não constituía novidade para ele, que já invocara um djinni de categoria média aos doze anos. Manteve absoluto segredo em relação à sua associação a Bartimaeus.

Ms. Whitwell recompensara a sua precocidade com novos segredos e instrução, que era exatamente o que Nathaniel há muito almejava. Sob a orientação dela, aprendeu as artes de obrigar demônios a tarefas múltiplas ou semipermanentes, sem recorrer a instrumentos incômodos como o Pentagrama de Adelbrand. Descobriu como proteger-se de espiões inimigos tecendo teias sensoras à sua volta; como repelir ataques-surpresa invocando Fluxos rápidos que envolviam a magia agressora e a afastavam. Num muito curto período de tempo, Nathaniel absorvera tantos conhecimentos novos quanto muitos dos seus colegas magos cinco ou seis anos mais velhos. Estava agora pronto para o seu primeiro trabalho.

Tinha-se por hábito permitir que todos os magos promissores assumissem funções modestas nos departamentos ministeriais, como forma de instruí-los no uso prático do poder. A idade em que tal se verificava dependia do talento do aprendiz e da influência do seu mestre. No caso de Nathaniel, havia também um outro fator, pois era voz corrente nos bares e cafés de Whitehall que o próprio Primeiro-Ministro acompanhava a sua carreira com avidez e benevolência. O que contribuiu para que, desde o começo, ele fosse alvo de muita atenção.

A sua mestra advertira-o deste fato.

— Guarde os segredos para si — dissera —, especialmente o teu nome próprio, se o souber. Mantenha a boca fechada como uma ostra. Caso contrário, te arrancarão tudo.

— Quem? — perguntara-lhe.

— Os inimigos que ainda não fez. Eles gostam de planejar antecipadamente.

O nome próprio de um mago era certamente uma fonte de fraqueza se descoberto por outro, e Nathaniel guardava ciosamente o seu. A princípio, porém, fora considerado uma presa fácil. Magas belas abordavam-no em festas, envolvendo-o em elogios antes de investigarem bem os seus antecedentes. Nathaniel repelia com relativa facilidade estes engodos toscos, mas seguiam-se métodos mais perigosos. Uma vez, um diabrete visitou-o enquanto dormia, sussurrando-lhe palavras suaves ao ouvido e perguntando-lhe o nome. Possivelmente, só o toque sonoro do Big Ben do outro lado do rio impedira uma revelação incauta. Quando as horas soaram, Nathaniel mexeu-se, acordou e viu o diabrete acocorado na coluna da cama; num instante, invocou um dócil foliot, que agarrou o diabrete e o comprimiu numa pedra.

Na sua nova condição, o diabrete não conseguiria revelar nada ao mago que o enviara na sua missão. Depois deste episódio, Nathaniel serviu-se do foliot para guardar conscienciosamente o seu quarto todas as noites.

Em breve se tornou claro que a identidade de John Mandrake não ia ser comprometida facilmente, e não se verificaram novas tentativas. Pouco depois, quando ainda mal atingira os catorze anos, deu-se a esperada nomeação e o jovem mago entrou para o Ministério da Administração Interna.

 

No seu gabinete, Nathaniel foi recebido com um olhar carrancudo do secretário e uma pilha de novos papéis no seu cesto de entradas.

O secretário, um homem jovem, elegante e de cabelo ruivo bem penteado com brilhantina, estacou no ato de abandonar a sala.

— Está atrasado, Mandrake — observou ele, fazendo subir os óculos com um gesto rápido e nervoso. — Qual é a desculpa desta vez? Também tem responsabilidades, sabe, tal como nós, o pessoal de tempo integral. — Ficou à porta e franziu furiosamente o pequeno nariz.

O mago deixou-se cair na sua cadeira. Sentiu-se tentado a pôr os pés em cima da mesa, mas desistiu por ser muito ostentatório. Limitou-se a um sorriso indolente.

— Estive no local de uma ocorrência com Mr. Tallow — respondeu. — Trabalhei ali desde as seis. Pergunte-lhe se quiser, quando ele entrar; pode ser que lhe conte alguns pormenores... quer dizer, se não for muito secreto. E o que você andou fazendo, Jenkins? Montanhas de fotocópias, espero.

O secretário soltou um ruído estridente entre dentes e empurrou os óculos nariz acima.

— Continue assim, Mandrake — disse ele. — Continue exatamente assim. Pode ser o menino bonito do Primeiro-Ministro neste momento, mas quanto tempo é que isso vai durar, se não produzir? Outra ocorrência? A segunda esta semana? Não tarda voltará a lavar xícaras, e depois... veremos. — Com algo entre um passo rápido e um safanão, foi-se embora.

O rapaz esboçou uma careta à porta que se fechava e durante alguns segundos ficou sentado a olhar para nada. Esfregou os olhos, enfastiado, e viu as horas. Só nove e quarenta e cinco. Fora já um longo dia.

Uma pilha de papéis em equilíbrio instável na escrivaninha aguardava a sua atenção. Respirou fundo, ajustou os punhos e se dedicou ao processo no alto.

Por razões só suas, há muito que Nathaniel se interessara pela Administração Interna, um subnúcleo do extenso aparelho de Segurança chefiado por Jessica Whitwell. A Administração Interna conduzia investigações sobre vários tipos de atividade criminosa, nomeadamente sublevação estrangeira e terrorismo nacional contra o Estado. Quando entrara para o ministério, Nathaniel limitara-se a exercer atividades humildes como arquivar, fotocopiar e fazer chá. Mas não as desempenhou por muito tempo.

A sua rápida promoção não foi (como segredavam os seus inimigos) apenas fruto do nepotismo puro. Era verdade que se beneficiara da indulgência do Primeiro-Ministro e do longo alcance da sua mestra, Ms. Whitwell, a quem nenhum dos outros magos na Administração Interna queria desagradar. No entanto, isto não lhe teria servido de nada se tivesse se revelado incompetente ou apenas mediano na sua arte. Mas Nathaniel era dotado e, mais do que isso, trabalhava arduamente. Teve uma ascensão rápida. Numa questão de meses, fora passando por uma série de funções administrativas monótonas, até — sem ter completado ainda quinze anos — se tornar adjunto do próprio Ministro da Administração Interna, Mr. Julius Tallow.

Um homem baixo e corpulento, de constituição e temperamento instáveis, Mr. Tallow era brusco e abrasivo nas melhores ocasiões, e com tendência para acessos súbitos de raiva incandescente, que faziam os seus lacaios correrem a esconder-se. Além do mau gênio, caracterizava-se também por uma incomum compleição amarelada, com a intensidade dos narcisos ao meio-dia. A sua equipe desconhecia o que lhe causara esta doença; alguns diziam que era hereditária, que ele nascera de uma união entre mago e súcubo. Outros rejeitavam esta idéia por razões de ordem biológica, e desconfiavam de que ele fora vítima de magia maligna. Nathaniel subscrevia a segunda hipótese. Qualquer que fosse a causa, Mr. Tallow escondia o seu problema o melhor que podia. Os seus colarinhos eram altos, o cabelo pendia comprido. Usava chapéus de aba larga em todas as ocasiões e mantinha o ouvido atento a frivolidades sobre o assunto no seio do seu pessoal.

Trabalhavam dezoito pessoas no gabinete com Nathaniel e Mr. Tallow; iam desde dois comuns, que executavam tarefas administrativas que não incidiam sobre assuntos de magia, a Mr. Ffoukes, um mago do quarto nível. Nathaniel adotara uma política de branda cortesia para com todos, abrindo uma única exceção com Clive Jenkins, o secretário. A má vontade de Jenkins em relação à sua pouca idade e ao cargo que ocupava tinham ficado bem patentes desde o início; por sua vez, Nathaniel tratava-o com animada desfaçatez. Era perfeitamente seguro fazê-lo. Jenkins não possuía nem conhecimentos influentes nem capacidade.

Mr. Tallow não tardou a perceber a dimensão dos talentos do seu adjunto, e confiou-lhe uma tarefa importante e difícil: descobrir o grupo obscuro conhecido como a Resistência.

Os motivos destes fanáticos eram transparentes, conquanto bizarros. Opunham-se à liderança benevolente dos magos, e ansiavam por voltar à anarquia do Governo dos Comuns. Ao longo dos anos, as suas atividades tinham-se tornado cada vez mais incômodas. Roubavam artefatos mágicos de todos os tipos de magos descuidados ou azarados, e usavam-nos mais tarde em ataques fortuitos a pessoas e propriedade do governo. Vários edifícios tinham ficado seriamente danificados, e morrera uma quantidade de pessoas. No ataque mais audacioso de todos, a Resistência chegara a tentar assassinar o Primeiro-Ministro. A reação do Governo fora draconiana: muitos comuns haviam sido detidos sob suspeita, alguns até executados e outros deportados para as colônias, escoltados por guardas prisionais. No entanto, apesar destas medidas sensatas de desencorajamento, os incidentes continuaram, e Mr. Tallow começava a sentir a contrariedade dos seus superiores.

Nathaniel aceitara o seu desafio com enorme ansiedade. Anos antes, cruzara-se com a Resistência de uma forma que lhe dera a sensação de compreender algo da sua natureza. Numa noite escura, encontrara três crianças comuns a efetuar a venda de objetos mágicos no mercado negro. Fora uma experiência que desagradara a Nathaniel. Os três tinham-lhe roubado de imediato a sua rica bola de cristal, depois quase o haviam matado. Agora estava decidido a vingar-se.

Mas a tarefa não se revelara fácil.

Nada sabia a respeito dos três comuns, além dos seus nomes: Fred, Stanley e Kitty. Fred e Stanley eram jornaleiros, e a primeira ação de Nathaniel fora enviar minúsculas esferas de busca atrás de todos os vendedores de jornais da cidade. Mas esta vigilância não apresentara novas pistas: evidentemente, a dupla mudara de profissão.

A seguir, Nathaniel encorajara o seu chefe a enviar alguns agentes adultos cuidadosamente selecionados para trabalharem sob disfarce em Londres. Durante vários meses, infiltraram-se no submundo da capital. Assim que foram aceitos pelos outros comuns, receberam instruções para oferecer «artefatos roubados» a quem parecesse interessado neles. Nathaniel esperava que este ardil pudesse encorajar os agentes da Resistência a revelar-se.

Fora tudo em vão. A maior parte dos espiões não conseguira despertar qualquer interesse nas suas bugigangas mágicas, e o único homem que tivera êxito desaparecera sem apresentar o seu relatório. Para frustração de Nathaniel, o seu corpo fora mais tarde encontrado a boiar no Tamisa.

A mais recente estratégia de Nathaniel, em que depositara inicialmente elevadas esperanças, fora ordenar a dois foliots que adotassem o aspecto de vagabundos órfãos, e mandá-los vagar pela cidade durante o dia. Nathaniel estava fortemente desconfiado de que a Resistência era constituída na sua maioria por quadrilhas de crianças de rua, e calculava que, mais cedo ou mais tarde, pudessem tentar recrutar os recém-chegados. Mas até o momento a isca não fora mordida.

Naquela manhã, o gabinete estava quente e modorrento. As moscas zumbiam junto às vidraças. Nathaniel chegou a despir o casaco e arregaçar as compridas mangas. Reprimindo os bocejos, examinou uma quantidade de papelada, a maior parte da qual referente ao mais recente ultraje da Resistência: um ataque a uma loja numa rua secundária de Whitehall. Ao raiar daquele dia, um engenho explosivo, provavelmente uma pequena esfera, fora arremessado por uma clarabóia, ferindo gravemente o proprietário. A loja fornecia tabaco e incenso aos magos; supostamente por esse motivo fora escolhida como alvo.

Não houvera testemunhas, e não haviam esferas de vigilância na zona. Nathaniel praguejou baixinho. Era inútil. Não tinha quaisquer pistas. Pôs de lado os papéis e pegou outro relatório. Tinham voltado a pintar em toda a cidade frases grosseiras em paredes isoladas, atacando o Primeiro-Ministro. Suspirou e assinou um papel ordenando uma operação de limpeza imediata, sabendo perfeitamente que os graffitis reapareceriam mais depressa do que os caiadores conseguiriam cobri-los.

Chegou finalmente a hora do almoço, e Nathaniel foi a uma festa no jardim da Embaixada Bizantina, realizada para assinalar o próximo Dia do Fundador. Circulou por entre os convidados, sentindo-se desinteressado e deslocado. O problema da Resistência não lhe saía da cabeça.

Ao servir-se de ponche forte de frutas de uma terrina de prata a um canto do jardim, reparou numa mulher jovem, de pé, ali perto. Depois de olhá-la cautelosamente por um momento, Nathaniel fez o que esperava ser um gesto elegante.

— Soube que obteve êxito recentemente, Ms. Farrar. Queira aceitar as minhas felicitações.

Jane Farrar murmurou um agradecimento.

— Tratou-se apenas de um pequeno ninho de espiões checos. Estamos convencidos de que entraram num barco de pesca vindos dos Países Baixos. Eram amadores desajeitados, facilmente detectados. Alguns comuns leais deram o alarme.

Nathaniel sorriu.

— É muito modesta. Constou-me que os espiões puseram a polícia em animada perseguição por metade da Inglaterra, matando vários magos nesse meio tempo.

— Houve alguns pequenos incidentes.

— É uma vitória notável, mesmo assim. — Nathaniel bebeu um pequeno gole de ponche, satisfeito com a inesperada natureza do seu elogio. O mestre de Ms. Farrar era o Chefe de Polícia, Mr. Henry Duvall, um grande rival de Jessica Whitwell. Em reuniões sociais como esta, ela e Nathaniel procediam amiúde a conversa felina, tecendo ambos elogios ronronados, com as garras encolhidas, testando a coragem um do outro.

— Então e você, John Mandrake? — indagou Jane Farrar toda melosa. — É verdade que lhe foi atribuída a responsabilidade de desmascarar esta irritante Resistência? Isso também não é de pequena monta!

— Estou apenas reunindo informações: temos uma rede de informantes em campo. Nada muito entusiasmante.

Jane Farrar pegou numa concha de prata e mexeu o ponche delicadamente.

— Talvez não, mas é inaudito para alguém tão inexperiente como você. Muito bem. Quer outra taça?

— Obrigado, não. — Contrafeito, Nathaniel sentiu a cor afluir-lhe às faces. Era verdade, claro: era jovem, era inexperiente; todos queriam ver se falhava. Reprimiu um forte desejo de carregar o cenho.

— Acredito que veremos a Resistência derrotada dentro de seis meses — redarguiu com voz empastada.

Jane Farrar serviu ponche numa taça e arqueou as sobrancelhas na direção dele com uma expressão que poderia ter sido de divertimento.

— Você me impressiona — disse. — Há três anos que os perseguem, sem conseguirem penetrar em território inimigo. E você irá derrotá-los dentro de seis meses! Mas, sabe, acredito que seja capaz de fazê-lo, John. Você já é um homenzinho.

Outro rubor! Nathaniel procurou controlar as suas emoções. Jane Farrar era três ou quatro anos mais velha do que ele, e da mesma altura, talvez um pouco mais, com cabelo castanho-claro comprido que lhe vinha até os ombros. Os seus olhos eram de um verde desconcertante, movidos por uma inteligência perversa. Não pôde deixar de se sentir palerma e deselegante ao lado dela, apesar do esplendor farfalhudo do seu lenço vermelho no bolso do casaco. Percebeu que tentava justificar a sua afirmação, quando devia ter ficado calado.

— Sabemos que o grupo é constituído essencialmente por jovens — disse. — Esse fato foi repetidamente observado pelas vítimas, e os poucos indivíduos que conseguimos matar nunca eram mais velhos do que nós. — Colocara uma ligeira tônica na última palavra. — Por conseguinte, a solução é clara. Enviamos agentes para se juntarem à organização. Assim que tiverem conquistado a confiança dos traidores, e obtido acesso ao seu líder... bem, o assunto ficará rapidamente resolvido.

Novamente o sorriso divertido.

— Tem certeza de que será tão simples?

Nathaniel encolheu os ombros.

— Eu mesmo quase consegui ter acesso ao líder, há alguns anos. É possível.

— Verdade? — Os olhos dela arregalaram-se, mostrando genuíno interesse. — Conte-me mais.

Mas Nathaniel conseguira recompor-se. Seguro, secreto, sólido. Quanto menos informações divulgasse, melhor. Relanceou os gramados.

— Estou vendo que Ms. Whitwell chegou sem acompanhante — disse — Como seu leal aprendiz, deveria tornar-me útil. Dá-me licença, Ms. Farrar?

Nathaniel saiu cedo da festa e regressou ao seu gabinete em estado de fúria. Retirou-se de imediato para uma câmara privada de chamado e proferiu bruscamente a fórmula mágica. Os dois foliots, ainda disfarçados de órfãos, apareceram. Pareciam desconsolados e nervosos.

— Então? — perguntou de rompante.

— É inútil, amo — disse o órfão louro. — Os meninos de rua simplesmente nos ignoram.

— Se tivermos sorte — concordou o órfão despenteado. — Os que não tendem a nos atirar coisas.

— O que? — Nathaniel sentiu-se ultrajado.

— Oh, latas, garrafas, pequenas pedras e coisas.

— Não me refiro a isso! Será que já não há uma pontinha de humanidade nos comuns? Aquelas crianças deviam ser deportadas e acorrentadas! O que se passa com elas? Vocês são uns doces, são ambos magros, têm ambos um ar relativamente patético... certamente os acolheriam no seu seio.

Os dois órfãos abanaram as suas lindas cabecinhas.

— Ná. Eles tratam-nos com repulsa. É quase como se conseguissem ver-nos como realmente somos.

— Impossível. Eles não têm lentes, ou têm? Vocês devem estar fazendo asneira. Têm certeza de que não abriram o jogo de alguma maneira? Não flutuam nem fazem aparecer cornos ou qualquer outra coisa estúpida quando os vêem, ou fazem?

— Não, senhor, claro que não.

— Não, senhor. Apesar que uma vez Clovis realmente se esqueceu de retirar a cauda.

— Seu patife! Senhor... isso é mentira.

Nathaniel bateu na cabeça, enfastiado.

— Não quero saber! Não quero saber! Mas levarão ambos com o Pontilhado se não tiverem êxito em breve. Experimentem idades diferentes, experimentem ir separadamente; experimentem atribuir-se pequenas deformidades para despertar a compaixão deles... mas nada de doenças infecciosas, conforme já disse. Por agora, estão dispensados. Desapareçam da minha vista.

De novo à escrivaninha, Nathaniel voltou aos papéis com ar carrancudo. Era evidente que os foliots não iam conseguir. Pertenciam a uma categoria demoníaca inferior... talvez fosse esse o problema — não eram suficientemente inteligentes para representarem de forma cabal um personagem humano. Certamente a noção de que as crianças conseguiam ver através do disfarce deles era absurda; rejeitou-a de imediato.

Mas se falhassem, o que aconteceria? Todas as semanas aconteciam novos crimes da Resistência. As casas dos magos eram assaltadas, os carros roubados, as lojas e os escritórios atacados. O padrão era bastante óbvio: crimes oportunistas, levados a cabo por pequenas unidades de ação rápida, que de certa forma conseguiam evitar as patrulhas de esferas de vigilância e outros demônios. Tudo muito bem. Mas continuava a não se descobrir nada.

Nathaniel sabia que a paciência de Mr. Tallow estava se esgotando. Pequenos comentários provocatórios, como os de Clive Jenkins e Jane Farrar, sugeriam que outras pessoas também tinham conhecimento disto. Bateu com o lápis no bloco de notas, os seus pensamentos vagueando até os três membros da Resistência que vira. Fred e Stanley... a lembrança deles fê-lo ranger os dentes e bater o lápis com mais força. Haveria de apanhá-los um dia, iam ver se não. E existia também a garota. Kitty. De cabelo escuro, violenta, um rosto vislumbrado nas sombras. A líder do trio. Estariam ainda em Londres? Ou teriam fugido para algum lugar distante, espreitando para lá das malhas da lei? Só precisava de uma pista, uma única pista, por menor que fosse. Depois atacaria, mais depressa do que o pensamento.

Mas não tinha nada de nada a que se agarrar.

— Quem são vocês? — disse de si para si. — Onde se escondem?

O lápis partiu-se na sua mão.

 

A noite era propícia ao encantamento. Uma enorme lua cheia, resplandecente com os realces de damasco e trigo, e rodeada de uma auréola pulsante, reinava soberana no céu do deserto. Alguns farrapos de nuvens passavam diante do seu rosto majestoso, deixando os céus despidos, cintilando negro-azulados, qual barriga de alguma baleia cósmica. Ao longe, o luar banhava as dunas; lá embaixo, no vale secreto, a névoa áurea atravessava os contornos dos penhascos para inundar o leito de arenito.

Mas o uadi* era cavado e estreito e, de um lado, um afloramento de rocha cobria uma área de escuridão cerrada. Fora acesa uma pequena fogueira neste lugar abrigado. As chamas eram vermelhas e parcas; lançavam pouca luz. Erguia-se da fogueira um rastro fraco de fumaça que se estendia pelo frio ar noturno.

 

* Leito rochoso de curso de água no Oriente Médio e Norte da África, que sempre se encontra seco exceto após forte chuva. (NT)

 

Na extremidade do foco de luar, uma figura encontrava-se sentada de pernas cruzadas, diante da fogueira. Um homem, musculoso e calvo, com pele oleosa reluzente. Uma argola de ouro grossa pendia-lhe da orelha; o seu rosto não tinha expressão, apresentava-se impassível. Mexeu-se: tirou de uma bolsa presa à cintura uma garrafa fechada com uma rolha de metal. Com uma série de movimentos lânguidos que não obstante sugeriam a força feroz e ágil de um leão do deserto, desrolhou a garrafa e bebeu. Atirando-a para o lado, fitou as chamas.

Após alguns momentos, disseminou-se um estranho odor pelo vale, acompanhado de música de citara distante. A cabeça do homem inclinou-se, pendeu. Agora, dos olhos só se viam as córneas; deixou-se dormir ali sentado. A música aumentou de volume; parecia vir das entranhas da terra.

Alguém avançou da escuridão, passou pela fogueira, passou pelo homem adormecido, em direção ao solo iluminado no centro do vale. A música aumentou de volume; o próprio luar pareceu animar-se em homenagem à beleza dela. Uma escrava: jovem, delicada, muito pobre para permitir-se vestuário adequado. O seu cabelo pendia em compridos caracóis escuros que se agitavam a cada passo leve. O rosto era pálido e liso como porcelana, os olhos grandes e cheios de lágrimas.

A princípio com hesitação, depois com um súbito libertar de emoção, dançou. O seu corpo descia, subia e rodava, as suas vestes leves tentando em vão acompanhá-la. Os braços esguios teciam seduções no ar, enquanto da boca brotava um estranho canto, carregado de solidão e desejo.

A garota terminou a dança. Atirou a cabeça para trás em orgulhoso desespero e olhou para a escuridão, na direção da Lua. A música foi diminuindo de volume. Silêncio.

Depois, uma voz distante, como se trazida no vento:

— Amaryllis...

A garota sobressaltou-se; olhou para um lado e para o outro. Nada a não ser as rochas, e o céu, e a Lua cor de âmbar. Soltou um belo suspiro.

— Minha Amaryllis...

Ela respondeu em voz rouca e trêmula:

— Sir Bertilak? É o senhor?

— Sou eu.

— Onde está? Por que me atormenta tanto?

— Escondo-me atrás da Lua, minha Amaryllis. Temo que a tua beleza queime a minha essência. Cubra o teu rosto com essa gaze que neste momento assenta inutilmente sobre o teu seio, para que eu possa arriscar e aproximar-me de ti.

— Ó Bertilak! De bom grado! — A garota obedeceu. Chegaram da escuridão vários murmúrios de aprovação. Alguém tossiu.

— Querida Amaryllis! Afaste-se! Vou descer à Terra!

Soltando uma pequena arfada, a garota comprimiu-se contra os contornos de uma rocha próxima. Levantou a cabeça em orgulhosa expectativa. Ouviu-se o ribombar de um trovão, destinado a incomodar o sono dos mortos. Boquiaberta, a garota ergueu o olhar. A um ritmo imponente, desceu do céu uma figura. Trazia um colete prateado sobre o torso nu, uma comprida capa flutuante, pantalonas de balão e um par de elegantes babuchas. Tinha uma impressionante cimitarra embainhada no cinto cravejado de jóias. Foi descendo, a cabeça para trás, os olhos negros brilhando, o queixo orgulhosamente projetado por baixo do nariz aquilino. Saía-lhe um par de cornos curvos, branco-amarelados, das extremidades da testa.

Desceu suavemente próximo ao local onde a garota estava colada à rocha e, com um floreado natural, esboçou um sorriso cintilante. Ouviram-se e toda a volta tênues suspiros femininos.

— Então, Amaryllis... ficou muda? Esqueceu tão depressa o rosto do teu amado gênio?

— Não, Bertilak! Tivessem passado setenta anos, em vez de sete, e não teria esquecido um único cabelo untuoso na tua cabeça. Mas a minha língua vacila e o meu coração bate de medo do mago acordar e apanhar-nos! Depois ele acorrentará de novo as minhas esbeltas pernas brancas e encarcerar-te-á na sua garrafa!

Ante isto, o gênio soltou uma gargalhada trovejante.

— O mago dorme. A minha magia é e sempre será superior à dele. Mas a noite definha, e ao raiar do dia tenho de partir com os meus irmãos, os afrits, ao sabor das correntes do ar. Vem aos meus braços, minha querida. Nestas breves horas, enquanto ainda conservo a forma humana, deixe que a Lua seja testemunha do nosso amor, que desafiará o ódio dos nossos povos até o fim do mundo.

— Ó Bertilak!

— Ó Amaryllis, meu Cisne da Arábia!

O gênio avançou e envolveu a escrava num abraço musculoso. Neste ponto, a dor no traseiro de Kitty era demasiada para suportá-la. Agitou-se na cadeira.

Gênio e garota iniciaram então uma complicada dança, envolvendo muito movimento de roupas e extensão de membros. Ouviram-se aplausos na platéia. A orquestra começou a tocar com renovado prazer. Kitty bocejou como um gato, deixou-se escorregar e esfregou os olhos com a palma de uma mão. Procurou o saco de papel, retirou os últimos amendoins salgados que restavam e, levando-os em concha à boca, mastigou-os pouco entusiasticamente.

A expectativa que antecedia sempre um trabalho afetava-a, cravando-se como um punhal no seu flanco. Era normal — já o esperava. Mas, sobrepondo-se a isto, encontrava-se o tédio de estar sentada a assistir à peça infindável. Sem dúvida, como dissera Anne, proporcionar-lhe-ia um álibi perfeito — mas Kitty teria preferido aliviar a tensão nas ruas, mantendo-se em movimento, esquivando-se às patrulhas, em vez de estar sentada a apanhar uma tremenda seca.

No palco, Amaryllis, a missionária de Chiswick feita escrava, cantava agora uma canção em que (mais uma vez) exprimia a sua paixão constante pelo amante gênio nos seus braços. Fazia-o com tamanha intensidade nas notas altas que o cabelo de Bertilak se agitou e os seus brincos rodaram. Kitty estremeceu e olhou para as silhuetas encobertas na frente até chegar aos contornos de Fred e Stanley. Pareciam ambos bastante atentos, o olhar dirigido para o palco. Kitty franziu os lábios. Supostamente, estariam a admirar Amaryllis.

Desde que se mantivessem alerta.

O olhar de Kitty vagou até o poço de negrura a seu lado. O saco de couro estava junto aos seus pés. A visão fez com que o estômago se contraísse; fechou os olhos, levando instintivamente a mão ao casaco para apalpar a dureza tranqüilizante do punhal. Relaxe... vai correr tudo bem.

O intervalo nunca mais chegaria? Levantou a cabeça e observou os limites sombrios do auditório, onde, de cada lado do palco, se situavam os camarotes dos magos, cheios de ornamentações douradas e pesadas cortinas vermelhas para proteger os ocupantes dos olhares dos comuns. Mas todos os magos na cidade haviam visto esta peça há anos, muito antes de ser extensiva às massas sedentas de sensação. Hoje, as cortinas estavam recolhidas, os camarotes vazios.

Kitty olhou para o pulso, mas estava muito escuro para ver as horas. Não faltariam, sem dúvida, separações desesperadas, arrebatamentos cruéis e alegres reencontros antes do intervalo. E a platéia adoraria cada minuto. Como carneiros, aglomeravam-se aqui noite após noite, ano após ano. Certamente Londres inteira já vira Cisnes da Arábia, muitas pessoas mais de uma vez. Mas os ônibus continuavam a afluir das províncias, trazendo novos espectadores para se embasbacarem com todo aquele horrível fascínio.

— Querida! Silêncio! — Kitty acenou em aprovação. Boa, Bertilak. A interrompê-la no meio da ária.

— O que é? O que você sente e eu não?

— Calada! Não fale. Corremos perigo... — Bertilak voltou o seu nobre perfil. Olhou para cima, olhou para baixo. Parecia farejar o ar. Estava tudo silencioso. A fogueira apagara-se por completo; o mago cochilava; a Lua escondera-se por trás de uma nuvem e cintilavam estrelas frias no céu. Não vinha nem um som do público. Para sua enorme contrariedade, Kitty percebeu que sustinha a respiração. De repente, com uma sonora imprecação e o ruído desagradável do ferro, o gênio puxou da sua cimitarra e atraiu ao peito a garota trêmula.

— Amaryllis! Vêm aí! Vejo-os com os meus poderes.

— O quê, Bertilak? O que vê?

— Sete diabretes selvagens, minha querida, enviados pela rainha dos afrits para me capturar! Nosso amor desagrada-lhe: Nos prenderão aos dois e nos arrastarão nus até diante do trono dela para o horrível prazer que lhe iremos dar. Tem que fugir! Não... não temos tempo para palavras ternas, apesar dos teus olhos cristalinos me implorarem! Vá!

Com muitos gestos trágicos, a garota soltou-se dos braços dele e deslocou-se para a esquerda do palco. O gênio atirou para o lado a sua capa e o colete, preparando-se para o combate de tronco nu.

Ouviu-se uma dissonância dramática do lugar da orquestra. Sete diabretes aterradores saltaram de trás das rochas. Cada um era representado por um anão com uma tanga de couro, pintado com uma camada de tinta verde fluorescente. Soltando gritos horríveis e fazendo esgares, puxaram punhais pequenos e finos e atacaram o gênio. Seguiu-se uma batalha, acompanhada de um frenesi de violinos aos guinchos.

Diabretes perversos... Um mago malvado... Não escapou a Kitty que este Cisnes da Arábia era um trabalho sutil. Propaganda ideal, admitindo delicadamente as ansiedades populares em vez de negá-las redondamente. «Mostram-nos um pouco daquilo que receamos», pensou, «para depois o desmistificarem. Acrescentam música, cenas de luta, amor azarado com fartura. Primeiro deixam que os demônios nos assustem, depois assistimos à sua morte. Nós é que controlamos. No fim do espetáculo, tudo acabará bem. O feiticeiro malvado será destruído pelos magos bons. Os afrits malvados serão vencidos também. Quanto a Bertilak, o gênio robusto, sem dúvida será um homem, um principelho oriental transformado em monstro devido a algum encantamento cruel. E ele e Amaryllis viverão felizes para sempre, sob o olhar atento de magos benevolentes...»

Kitty sentiu uma súbita sensação de náusea. Desta vez não era a tensão do trabalho; vinha mais lá do fundo, do reservatório de fúria que borbulhava constantemente no interior. Provinha do conhecimento de que tudo o que faziam era completamente arriscado e inútil. Nada mudaria nunca. A reação do público confirmava-o. Olhem!

— Amaryllis foi apanhada: um diabrete carrega-a debaixo do braço, a espernear e a chorar. Ouçam o público arfar! Mas vejam! — Bertilak, o gênio heróico arremessou um diabrete por cima do ombro para a fogueira fumegante! Agora persegue o captor e — um, dois — corta-o às postas com a sua cimitarra. Hurra! Não ouvem o público aos vivas?

Não importava o que faziam no fim; não importava o que roubavam, os ataques ousados que cometiam. Não fazia qualquer diferença. No dia seguinte as filas voltariam a formar-se nas ruas à porta do Metropolitan, as esferas continuariam a vigiar lá do alto; os magos estariam ainda por todo o lado, desfrutando do aparato do seu poder.

Sempre fora assim. Nada que ela houvesse feito tivera alguma importância, desde o começo.

 

Os sons do palco diminuíram; no seu lugar ouviu um canto de ave, o ruído do trânsito ao longe. Mentalmente, a escuridão do teatro foi substituída pela lembrança de luz.

Três anos antes. O parque. A bola. As gargalhadas deles. A catástrofe a caminho, como relâmpagos num céu azul.

Jakob a sorrir enquanto corria para ela; o peso da pá de críquete, seca e grosseira na sua mão.

A pancada! A vitória que foi! Dançando de satisfação.

O embate ao longe.

Como correram, os corações a bater apressados. E, depois, a criatura na ponte...

Esfregou os olhos com os dedos. Mas esse dia terrível — fora verdadeiramente o começo? Durante os primeiros treze anos da sua vida, Kitty não se apercebera da natureza exata do domínio dos magos. Ou talvez não estivesse conscientemente alerta, pois, recuando no tempo, percebeu que as dúvidas e as intuições tinham conseguido penetrar na sua mente.

Há muito que os magos estavam no zênite do seu poder e ninguém conseguia se lembrar de uma época em que não tivesse sido assim. Na sua maior parte, mantinham-se afastados da experiência do comum, permanecendo no centro da cidade e nos subúrbios, onde amplas avenidas arborizadas passavam por entre mansões dissimuladas. O que ficava no meio era deixado aos demais — as ruas apinhadas com pequenas lojas, os baldios, as fábricas e oficinas. Os magos deslizavam esporadicamente nos seus carros pretos enormes, mas, de outro modo, a sua presença sentia-se sobretudo nas esferas de vigilância a pairar arbitrariamente por cima das ruas.

— As esferas mantêm-nos seguros — dissera o pai de Kitty uma vez, depois de um enorme globo vermelho tê-la acompanhado silenciosamente da escola até em casa,. — Não tenha medo delas. Se for uma boa menina, não te farão mal. Só os homens maus, ladrões e espiões, é que devem ter medo. — Mas Kitty tinha ficado assustada; de lá para cá, esferas brilhantes da cor do chumbo perseguiam-na com freqüência nos sonhos.

Os seus pais não tinham esses receios. Nenhum deles era demasiadamente imaginativo, mas estavam bem conscientes da grandiosidade de Londres e do pequeno lugar que nela ocupavam. Tomavam como certa a superioridade dos magos e aceitavam plenamente a natureza inalterável do seu domínio. Na verdade, achavam-no reconfortante.

— Daria a própria vida pelo Primeiro-Ministro — costumava dizer o pai. — É um grande homem.

— Mantém os Checos no seu lugar — afirmava a mãe. — Sem ele, teríamos os hussardos a marchar sobre Clapham High Road, e não ia querer isso, querida, não é?

Kitty achava que não.

Tinham vivido, os três, numa casa geminada no subúrbio de Balham, na zona sul de Londres. Era uma casa pequena, com uma sala e uma cozinha embaixo e um banheiro minúsculo banheiro nos fundos. Lá em cima havia um pequeno patamar e dois quartos — o dos pais de Kitty e o seu. Havia um espelho comprido e estreito no patamar, diante do qual, nas manhãs dos dias úteis, toda a família se postava, um de cada vez, escovando o cabelo e compondo as roupas. O pai em particular, remexia incessantemente na gravata. Kitty nunca conseguira compreender por que motivo ele estava sempre a fazer e a desmanchar o nó, a enrolar a tira de tecido para dentro, para cima, em volta e para fora, dado que as variações entre cada tentativa eram praticamente microscópicas.

— O aspecto é muito importante, Kitty — dizia ele, inspecionando o enésimo nó de cenho franzido. — No meu trabalho, só há uma hipótese de impressionar.

O pai de Kitty era um homem alto e magro, inflexível no aspecto e sem papas na língua. Era gerente de departamento num grande armazém no centro de Londres e orgulhava-se muito desta responsabilidade. Supervisionava a seção de Couros: um salão amplo, de teto baixo, parcamente iluminado por luzes cor- de-laranja e cheio de malas e pastas caras feitas de pele de animal curtida. Os objetos de couro eram artigos de luxo, o que queria dizer que a esmagadora maioria dos clientes era constituída por magos.

Kitty visitara a loja uma ou duas vezes, e o cheiro sombriamente intenso do couro tratado deixava-a sempre com a cabeça girando.

— Não atravesse o caminho dos magos — dizia o pai. — Eles são pessoas muito importantes, e não gostam que lhes façam frente, nem mesmo garotinhas bonitas como você.

— Como distingo um mago? — perguntara Kitty. Na altura tinha sete anos, e não sabia bem.

— Estão sempre bem vestidos, os seus rostos são austeros e sábios e por vezes trazem elegantes bengalas. Usam perfumes caros, mas às vezes é possível captar ainda indícios da sua magia: estranhos incensos, substâncias químicas incomuns... Mas se sentir, o mais provável é estar muito próxima! Afaste-se do caminho deles.

Kitty prometera fielmente. Corria para cantos distantes sempre que entravam clientes no salão dos Couros e observava-os de olhos arregalados e curiosos. Os conselhos do pai não ajudaram muito. Todos os que visitavam o armazém pareciam bem vestidos, muitos traziam bengalas, enquanto que o cheiro do couro encobria quaisquer odores incomuns. Mas não tardou a começar a detectar os magos por outros indícios: uma certa dureza nos olhos dos visitantes, o seu ar de domínio tranqüilo; acima de tudo, um súbito formalismo nos modos do pai. Parecia sempre embaraçado quando falava com eles, o seu terno enrugado da ansiedade, a gravata torta com o nervosismo. Fazia pequenas cortesias e vênias de assentimento enquanto falavam. Tratava-se de sinais muito sutis, mas eram o bastante para Kitty, e desconcertavam-na e incomodavam-na mesmo, apesar de mal saber o motivo.

A mãe de Kitty trabalhava como recepcionista na Palmer’s Quill Bureau, uma firma antiga escondida entre os muitos encadernadores e fabricantes de pergaminho da zona sul de Londres. A firma fornecia penas especiais para os magos usarem nos seus feitiços. As penas sujavam, era difícil e lento escrever com elas, e cada vez menos magos se davam ao incômodo de usá-las. O pessoal da Palmer’s preferia as esferográficas.

O emprego permitia à mãe de Kitty ver fugazmente os próprios magos, dado que de vez em quando um deles visitava o escritório para inspecionar uma nova encomenda de canetas. Achava entusiasmante a proximidade deles.

— Ela tinha um ar tão encantador — dizia. — As suas roupas eram de um tafetá vermelho-ouro muito fino... Tenho certeza de que vieram da própria Bizâncio! E ela era também muito arrogante! Quando estalava os dedos, todos saltavam como grilos para acatar a sua ordem.

— Parece-me muito indelicada — comentou Kitty.

— Você ainda é muito novinha, querida — disse a mãe. — Não, ela era uma grande mulher.

Um dia, quando Kitty tinha dez anos, chegara da escola e encontrara a mãe sentada na cozinha a chorar.

— Mãe! O que foi?

— Não é nada. Bem, o que estou a dizer? Estou um bocadinho magoada. Kitty, fui... fui dispensada. Ai filha, o que vamos dizer ao teu pai?

Kitty obrigou a mãe a sentar-se, fez-lhe chá e trouxe-lhe uma bolacha. Depois de muitas fungadas, goles e suspiros, a verdade acabou por sair. O velho Mr. Palmer aposentara-se. A sua firma fora adquirida por um trio de magos, que detestava os comuns no seu quadro de pessoal; tinham trazido novos funcionários e despedido metade dos antigos empregados, incluindo a mãe de Kitty.

— Mas eles não podem fazer isso — protestara Kitty.

— Claro que podem. Estão no seu direito. Eles protegem o país, fazem de nós a maior nação do mundo; têm muitos privilégios. — A mãe limpou os olhos e bebeu outro gole de chá. — Mas, mesmo assim, sempre custa um pouco, depois de tantos anos...

Custando ou não, fora o último dia que a mãe de Kitty trabalhara na Palmer’s. Passadas algumas semanas, a sua amiga Mrs. Hyrnek, que também fora despedida, arranjara-lhe um trabalho como empregada de limpeza numa tipografia, e a vida retomara o seu ritmo estruturado.

Mas Kitty não esqueceu.

Os pais de Kitty eram leitores ávidos do jornal The Times, que trazia notícias diárias sobre as últimas vitórias do exército. Durante anos, ao que parecia, as guerras tinham corrido bem; os territórios do Império expandiam-se ininterruptamente, e a riqueza do mundo refluía para a capital. Mas este êxito tinha um preço, e o jornal advertia constantemente todos os leitores para que estivessem atentos a espiões e sabotadores de estados inimigos, que podiam estar a viver num bairro normal, ao mesmo tempo que preparavam silenciosamente conspirações maldosas que desestabilizariam a nação.

— Mantenha esses olhos bem abertos, Kitty — aconselhara a mãe. — Ninguém repara numa menina como você. Nunca se sabe, pode ver alguma coisa.

— Em especial por estas bandas — acrescentara o pai com azedume. — Em Balham.

A zona onde Kitty morava era famosa pela sua comunidade checa, que há muito se estabelecera. Havia na rua vários pequenos cafés que serviam borsch*, caracterizados pelas suas cortinas de rede grossa e vasos de flores coloridas nos parapeitos. Velhos senhores de tez trigueira com bigodes brancos pendentes jogavam xadrez e boliche nas ruas em frente dos bares, e muitas das empresas locais pertenciam aos netos de émigrés** que tinham vindo para a Inglaterra já no tempo de Gladstone.

 

*Sopa russa ou polaca feita com beterraba e couve e servida quente ou fria, com natas. (NT)

** Em francês no original: emigrados. (NT)

 

Apesar de ser uma zona próspera (continha várias empresas tipográficas importantes, incluindo a famosa Hyrnek and Sons), a sua forte identidade européia era constantemente objeto de atenção da Polícia Noturna. À medida que foi crescendo, Kitty acostumou-se a testemunhar batidas policiais diurnas, com patrulhas de oficiais de uniforme cinzento a arrombar portas e atirar os pertences para a rua. Por vezes, homens jovens eram levados em caminhonetes; noutras ocasiões, as famílias não eram molestadas, ficando a reunir os destroços dos seus lares. Kitty sempre achara estas cenas perturbadoras, não obstante as garantias do pai.

— A polícia tem de continuar presente — insistiu. — Manter os agitadores na ordem. Acredite em mim, Kitty, eles não agiriam se não tivessem sido informados de algo.

— Mas, papai, aqueles eram amigos de Mr. Hyrnek.

Um resmungo.

— Nesse caso, ele devia escolher os amigos com mais cuidado, não acha?

O pai de Kitty era, na verdade, sempre cortês com Mr. Hyrnek, cuja esposa, afinal, arranjara um novo emprego à mãe de Kitty. Os Hyrnek eram uma proeminente família local cujo negócio era patrocinado por muitos magos. A tipografia deles ocupava um espaço enorme junto da casa de Kitty. Não obstante, os Hyrnek não pareciam particularmente abastados: viviam numa casa grande e comprida, bastante dilapidada, construída um pouco recuada da rua, atrás de um denso jardim de relva longa e loureiros. Com o tempo, Kitty acabou por conhecê-la bem, graças à sua amizade com Jakob, o mais novo dos filhos Hyrnek.

Kitty era alta para a idade e crescia cada vez mais, esbelta por baixo da blusa de malha grande e calças de pernas largas, mais forte do que aparentava, também. Mais de um garoto lamentara um comentário espirituoso à sua beleza; Kitty não desperdiçava palavras quando um soco podia resolver a situação. O seu cabelo era castanho-escuro, quase preto, e liso, exceto nas pontas, onde tinha tendência para encaracolar de forma indisciplinada. Usava-o mais curto do que as outras garotas, pelo meio do pescoço.

Kitty tinha olhos escuros e sobrancelhas pretas grossas. O rosto refletia abertamente as suas opiniões, e como para Kitty as opiniões eram abundantes e rápidas, as sobrancelhas e a boca estavam em constante movimento.

— O teu rosto nunca é o mesmo duas vezes — dissera Jakob. — Estou te fazendo um elogio! — apressara-se a acrescentar, quando Kitty lhe dirigira um olhar carrancudo.

Durante vários anos, tinham-se sentado um ao lado do outro nas mesmas salas de aula, aprendendo o que podiam da miscelânea de disciplinas ministradas às crianças comuns. Os ofícios eram encorajados, visto que o seu futuro estava nas fábricas e oficinas da cidade; aprendiam cerâmica, xilografia, metalurgia e matemática simples. Ensinava-se também desenho industrial, costura e culinária, e para aqueles como Kitty, que gostavam de palavras, havia também oferta de leitura e escrita, na condição de que esta técnica pudesse um dia ser devidamente aplicada, talvez numa carreira administrativa.

História, outra disciplina importante: diariamente, eram instruídos sobre o glorioso desenvolvimento do Estado Britânico. Kitty gostava destas aulas, que relatavam muitas histórias de magia e terras distantes, mas não podia deixar de sentir certas limitações no que estavam a aprender. Levantava a mão com freqüência.

— Sim, Kitty, o que é desta vez? — Os tons dos professores denotavam com freqüência um ligeiro enfado, que se esforçavam por disfarçar o melhor que podiam.

— Por favor, senhor, fale-nos mais do governo que Mr. Gladstone derrubou. Disse que já havia um parlamento. Agora temos um parlamento. Nesse caso, porque é que o antigo era tão mau?

— Bem, Kitty, se tivesse prestando atenção, teria me ouvido dizer que o Antigo Parlamento não era mau, mas antes fraco. Era dirigido por gente comum, como você e eu, que não possuía quaisquer poderes mágicos. Imagine só! Claro, isso significava que estavam constantemente sendo hostilizados por outros países mais fortes, e não havia nada que pudessem fazer para impedi-lo. Agora, qual era a nação estrangeira mais perigosa naquela época... deixem-me ver... Jakob?

— Não sei, senhor.

— Fale com clareza, rapaz, não balbucie! Então, surpreende-me com essa resposta, logo você, Jakob. Era o Sacro Império Romano, claro. Os teus antepassados! O Imperador checo governava a maior parte da Europa do seu castelo em Praga; era tão gordo que se sentava num trono com rodas de aço e ouro e era puxado pelos corredores por um único boi branco-amarelado. Quando queria sair do castelo, tinham de descê-lo por uma roldana reforçada. Mantinha um aviário de periquitos e matava um de cor diferente todas as noites para o jantar. Sim, bem podem sentir repulsa, crianças. Era esse o tipo de homem que governava a Europa naquela época, e o nosso Antigo Parlamento nada podia fazer contra ele. Governava uma terrível assembléia de magos, que eram maus e corruptos e cujo líder, Hans Meyrink, se diz ter sido um vampiro. Os soldados deles enfureceram-se... Sim, Kitty, o que é agora?

— Bem, senhor, se o Antigo Parlamento era tão incompetente, como foi que o Imperador gordo nunca invadiu a Grã-Bretanha, porque ele não o fez, não é, senhor? E por que... ?

— Só posso responder a uma pergunta de cada vez, Kitty; não sou mago! A Grã-Bretanha teve sorte, é tudo. Praga sempre foi lenta a agir; o Imperador passava grande parte do tempo a beber cerveja e a participar em deboches terríveis. Mas ele acabaria por virar o seu olhar malévolo para Londres, acredite em mim. Felizmente para nós, havia alguns magos em Londres naquela época, com quem os pobres ministros sem poder vinham por vezes aconselhar-se. E um deles foi Mr. Gladstone. Ele viu os perigos da nossa situação e decidiu agir preventivamente. Lembram-se do que ele fez, crianças? Sim, Sylvester?

— Convenceu os ministros a entregarem-lhe o controle, senhor. Foi visitá-los uma noite e conversou tão habilmente que o elegeram Primeiro-Ministro logo ali.

— Sim, senhor, lindo menino, Sylvester, vai receber uma estrela. Sim, foi a Noite do Conselho Longo. Após um prolongado debate do Parlamento, a eloqüência de Gladstone venceu e os ministros resignaram unanimemente a seu favor. Ele organizou um ataque defensivo a Praga no ano seguinte, e derrubou o Imperador. Sim, Abigail?

— Ele libertou os periquitos, senhor?

— Estou certo de que sim. Gladstone era um homem muito bom. Era sensato e moderado em todos os seus gostos e usava a mesma camisa engomada todos os dias, exceto aos domingos, quando a mãe a lavava. Depois disso, o poder de Londres cresceu, enquanto o de Praga diminuiu. E como Jakob poderia perceber, se não estivesse tão desinteressado ali na sua carteira, foi nessa altura que muitos cidadãos checos, como a família dele, emigraram para a Grã-Bretanha. Muitos dos melhores magos de Praga vieram também, e ajudaram-nos a criar o Estado moderno. Agora talvez...

— Mas eu julguei que tinha dito que os magos checos eram todos maus e corruptos, senhor.

— Bem, espero que todos os maus fossem mortos, não acha, Kitty? Os outros andavam apenas desencaminhados e perceberam seu erro. E eis o sino! Hora do almoço! E não, Kitty, não vou responder a mais perguntas por agora. Levantem-se todos, arrumem as cadeiras, e por favor, saiam em silêncio!

Após estas discussões na escola, Jakob ficava com freqüência taciturno, mas o seu mau humor raramente durava muito tempo. Era uma alma animada e enérgica; franzino e de cabelo escuro, com um rosto expressivo e descarado. Gostava de jogos, e desde tenra idade que passava muitas horas com Kitty, a brincar na relva comprida do jardim dos pais. Jogavam bola, praticavam tiro com arco e flecha, improvisavam críquete e, de um modo geral, mantinham-se longe da família grande e ruidosa dele.

Nominalmente, Mr. Hyrnek era o chefe da família, mas na prática ele, como todos os demais, era dominado pela mulher, Mrs. Hyrnek. Uma trouxa azafamada de energia maternal, toda ela ombros largos e peito volumoso, deslocava-se pela casa como um galeão empurrado por ventos irregulares, soltando constantemente gargalhadas, ou proferindo imprecações checas atrás dos quatro filhos desobedientes. Os irmãos mais velhos de Jakob, Karel, Robert e Alfred, haviam herdado o físico imponente da mãe, e o seu tamanho, a sua força e as suas vozes graves e ressoantes remetiam sempre Kitty ao silêncio quando se aproximavam. Mr. Hyrnek era como Jakob, pequeno e franzino, mas com uma pele irregular que fazia lembrar a Kitty uma maçã murcha. Fumava um cachimbo curvo de sorveira-brava que deixava faixas de fumaça doce a pairar pela casa e pelo jardim.

Jakob tinha muito orgulho no pai.

— Ele é brilhante — disse a Kitty, enquanto descansavam à sombra de uma árvore após um jogo de bola contra a parede lateral da casa. — Mais ninguém consegue fazer o que ele faz com o pergaminho e o couro. Tem que ver os panfletos de fórmulas encantatórias em miniatura em que tem trabalhado ultimamente... são gravados com filigrana de ouro ao velho estilo de Praga, mas reduzido à mais ínfima escala! Ele introduz pequenos contornos de animais e flores, em perfeito pormenor, depois embute pedaços minúsculos de marfim e pedras preciosas lá dentro. Só papai consegue fazer coisas assim.

— Devem custar uma fortuna, quando os termina. — comentou Kitty.

Jakob jogou fora um rebento de erva que estava a mastigar.

— Só pode estar brincando, claro — retorquiu sem rodeios. — Os magos não lhe pagam o que deviam. Nunca o fazem. Ele mal consegue manter a fábrica funcionando. Olhe para tudo aquilo... — Indicou a parte principal da casa, com as telhas tortas, as persianas estragadas e cheias de sujeira, a tinta a sair da porta da varanda. — Acha que estaríamos vivendo num lugar assim? Pára com isso!

— É muito maior do que a minha casa — observou Kitty.

— A Hyrnek é a segunda maior tipografia de Londres — disse Jakob. — Só a Jaroslav’s é maior. E eles apenas trabalham a matéria, encadernações comuns de couro, almanaques anuais e índices, nada de especial. Nós é que fazemos o trabalho delicado, a verdadeira arte. Por isso tantos magos nos procuram quando querem os seus melhores livros encadernados e personalizados; eles adoram o toque único e luxuoso. A semana passada, papai terminou uma capa; tinha um pentagrama feito com minúsculos brilhantes. Absurdo, mas é isso mesmo; era o que a mulher queria.

— Porque é que os magos não pagam convenientemente a seu pai? Talvez ficassem preocupados se ele deixasse de fazer tudo tão bem, e antes de péssima qualidade.

— O meu pai é muito orgulhoso para tal. Mas a verdadeira questão é que o têm à sua mercê. Ele é obrigado a proceder corretamente, senão fecham-nos, dão o negócio a outra pessoa. Somos checos, não se esqueça; pessoas suspeitas. Não confiam em nós, muito embora os Hyrnek estejam em Londres há cento e cinqüenta anos.

— O quê? — Kitty sentiu-se ultrajada. — Isso é absurdo! É claro que confiam em vocês... Caso contrário tinham-nos expulsado do país.

— Eles toleram-nos porque precisam da nossa qualidade. Mas com todos os problemas no Continente, vigiam-nos constantemente, para o caso de estarmos de conluio com espiões. Existe uma esfera de busca permanente funcionando na fábrica de papai, por exemplo; e Karel e Robert estão sempre sendo seguidos. Tivemos quatro batidas policiais nos últimos dois anos. Da última vez, viraram a casa do avesso. A vovó estava tomando banho; despejaram-na na rua dentro da velha banheira e tudo.

— Que horror. — Kitty atirou a bola de críquete alto, para o ar, e apanhou-a com a palma da mão aberta.

— Bem, os magos são assim mesmo. Detestamo-os, mas o que podemos fazer? O que se passa? Está torcendo o lábio. Isso quer dizer que algo te preocupa.

Kitty apressou-se a destorcer o lábio.

— Estava só pensando: detesta os magos, mas toda a tua família os fornece... o teu pai, os teus irmãos trabalham na oficina dele. Tudo o que fazem vai para eles, de uma maneira ou de outra. E, no entanto, eles os tratam tão mal. Não parece justo. Porque é que a tua família não faz outra coisa?

Jakob sorriu pesarosamente.

— Papai tem um provérbio: «O lugar mais seguro é nadar bem atrás do tubarão.» Nós fazemos coisas belas para os magos e isso os agrada. Quer dizer que nos deixam em paz... mais ou menos. Se não o fizéssemos, o que aconteceria? Cairíam em cima de nós, pode crer. Está de cenho carregado outra vez.

Kitty não sabia se concordava.

— Mas se vocês não gostam dos magos, não deviam cooperar com eles — insistiu. — Moralmente, está errado.

— O quê? — Jakob deu-lhe um pontapé na perna com genuína irritação. — Os teus pais cooperam com eles. Toda mundo faz isso. Não há alternativa, ou há? Se não o fizer, a polícia... ou algo pior... faz uma visita durante a noite e te manda embora. Não há alternativa à cooperação... ou há? Há?

— Acho que não.

— Não, não há. A menos que queira acabar morta.

 

A tragédia dera-se quando Kitty tinha treze anos.

Estavam no pico do Verão. Não havia escola. O sol incidia nos terraços; as aves trinavam, a luz entrava pela casa. O pai cantarolava diante do espelho, enquanto compunha a gravata. A mãe deixara-lhe pão de passas com cobertura de açúcar para o café-da-manhã, à espera na geladeira.

Jakob viera visitar Kitty cedo. Quando abriu a porta, ele estava com a pá na mão.

— Críquete — disse. — Está um tempo perfeito. Podemos ir até o parque fino. Estarão todos trabalhando, por isso não haverá ninguém para nos expulsar.

— Está bem — disse Kitty. — Mas quem bate sou eu. Deixe-me só calçar.

O parque estendia-se para oeste de Balham, longe das fábricas e lojas. Começara como uma zona agreste de baldio, coberta de tijolos, cardos e velhos bocados de arame farpado enferrujado. Jakob e Kitty, e muitas outras crianças, brincavam ali regularmente. Mas se seguisse pelo terreno para oeste, e transpusesse uma velha ponte metálica por cima de uma linha férrea, o parque ia-se tornando cada vez mais agradável, com amplas faias, caminhos sombrios e lagos onde nadavam patos selvagens, tudo numa grande extensão de relva verde e macia. Do outro lado havia uma rua larga, onde uma fila de casas enormes, escondidas por muros altos, assinalava a presença de magos.

Os comuns eram desencorajados de entrar no lado agradável do parque; nos recreios, contavam-se histórias de crianças que tinham ido lá quando desafiadas, e nunca mais haviam voltado. Kitty não acreditava propriamente nessas histórias, e ela e Jakob tinham atravessado uma ou duas vezes a ponte metálica e arriscado ir até aos lagos. Numa dessas ocasiões, um cavalheiro bem vestido com uma barba preta comprida gritara-lhes do outro lado da água, ao que Jakob respondera com um gesto eloqüente. O cavalheiro não parecera reagir pessoalmente, mas o seu companheiro, em quem não haviam inicialmente reparado — uma pessoa muito pequena e indistinta — começara a correr em volta da margem do lago em direção a eles a uma velocidade surpreendente. Kitty e Jakob mal tiveram tempo de fugir.

Mas, normalmente, quando olhavam para lá da linha férrea, o lado proibido do parque estava vazio. Era uma pena não o aproveitarem, especialmente num dia tão agradável em que todos os magos estariam trabalhando. Kitty e Jakob dirigiram-se para lá a bom ritmo.

Os calcanhares deles ressoavam na superfície alcatroada da ponte metálica.

— Ninguém por aqui — afirmou Jakob. — Eu te disse.

— Estará alguém ali? — Kitty escudou os olhos e espreitou na direção de um círculo de faias, parcialmente obscurecidas pelo sol intenso. — Junto àquela árvore? Não consigo ver.

— Onde? Não... São apenas sombras. Se está com medo, vamos por aquele muro. Nos encobrirá das casas do outro lado da rua.

Atravessou o caminho e chegou à espessa relva verde, equilibrando habilidosamente a bola na superfície plana da pá enquanto prosseguia. Kitty seguiu-o com mais cautela. Um muro alto de tijolo separava o outro lado do parque; para lá ficava a avenida larga, cravejada de mansões de magos. Era verdade que o centro da relva estava desconfortavelmente exposto, observável das janelas escuras dos andares de cima das casas; era igualmente verdade que, se se colassem ao muro, este evitaria que fossem vistos. Mas isso significava atravessar toda a largura do parque, afastando-se da ponte metálica, o que Kitty achava imprudente. Mas estava um lindo dia e não havia ninguém nas imediações... resolveu correr atrás de Jakob, sentindo a brisa bater-lhe nas pernas, apreciando a imensidão de céu azul.

Jakob estacou a alguns metros do muro ao lado de um encanamento público prateado. Atirou a bola ao ar e arremessou-a a uma altura enorme com uma pancada.

— Aqui dá perfeitamente — anunciou, enquanto esperava que a bola regressasse. — Isto são os paus. Eu é que bato.

— Você prometeu!

— De quem é a pá? De quem é a bola?

Não obstante os protestos de Kitty, prevaleceu a lei natural, e Jakob posicionou-se em frente do encanamento. Kitty afastou-se um pouco, esfregando a bola no calção como faziam os lançadores. Virou-se e olhou na direção de Jakob com olhos semicerrados, avaliando. Ele bateu com a pá na relva, sorriu tolamente e agitou o traseiro de forma insultuosa.

Kitty iniciou a corrida. Primeiro lentamente, depois ganhando ímpeto, a bola fechada na mão. Jakob bateu no solo.

Kitty ergueu o braço e preparou-se; lançou a bola a uma velocidade demoníaca. Ela bateu no alcatroado do caminho, e elevou-se na direção do encanamento.

Jakob girou a pá. O contato foi perfeito. A bola desapareceu por cima da cabeça de Kitty, subindo cada vez mais no ar, até se tornar apenas uma pinta no céu... e por fim desceu à terra caindo no meio do parque.

Jakob executou uma dança de vitória. Kitty jogou-lhe um olhar carrancudo. Com um suspiro profundo e sentido, empreendeu a longa caminhada para recuperar a bola.

Dez minutos depois, Kitty lançara cinco bolas e efetuara cinco excursões até o outro lado do parque. O sol queimava. Sentia-se quente, suada e irada. Regressando finalmente com passos arrastados, arremessou intencionalmente a bola para a relva e depois deixou-se cair também.

— Um pouco estafada? — perguntou Jakob atenciosamente. — Quase apanhou a última.

Um resmungo sarcástico foi a única resposta. Ofereceu-lhe a pá.

— É a sua vez.

— Daqui a pouco. — Durante algum tempo ficaram sentados em silêncio, observando as folhas agitando-se nas árvores, escutando o som de um ou outro carro vindo do lado de lá do muro. Um grande bando de corvos atravessou ruidosamente o parque e instalou-se num castanheiro distante.

— Ainda bem que a minha avó não está aqui — comentou Jakob. — Ela não ia gostar nada disto.

— Do quê?

— Daqueles corvos.

— Por que não? — Kitty sempre tivera um certo receio da avó de Jakob, uma criatura minúscula e mirrada com olhos pretos miudinhos num rosto completamente enrugado. Nunca abandonava a sua cadeira no local quente da cozinha, e cheirava fortemente a pimentão-doce e couve em conserva de vinagre. Jakob garantia que ela tinha cento e dois anos.

Deu um piparote num escaravelho que estava numa haste de relva.

— Ela diria que eram espíritos. Servos dos magos. É uma das suas formas preferidas, segundo ela. Foram coisas que a mãe dela, que veio de Praga, lhe ensinou. Detesta que as janelas fiquem abertas de noite, por mais calor que faça. — Pôs uma voz trêmula de pessoa idosa. — «Feche-a, rapaz! Não deixe entrar os demônios.» Está sempre dizendo esse tipo de coisa.

Kitty franziu o cenho.

— Nesse caso, você não acredita em demônios?

— É claro que acredito! Como é que acha que os magos obtêm o seu poder? Vem tudo nos livros de fórmulas que eles mandam encadernar ou imprimir. É disso que trata a magia. Os magos vendem as suas almas e os demônios ajudam-nos em troca... se disserem bem as fórmulas. Caso contrário, os demônios matam-nos. Ser mago? Eu é que não, apesar de toda sua riqueza.

Durante alguns minutos, Kitty permaneceu deitada de costas, olhando para as nuvens. Ocorreu-lhe um pensamento.

— Bem, vamos ver se consegui entender... — começou. — Se o teu pai, e já antes o pai dele, sempre trabalharam em livros de fórmulas para os magos, devem ter lido uma quantidade de fórmulas, certo? Portanto, isso quer dizer...

— Estou vendo aonde pretende chegar. Sim, devem ter visto muita coisa... pelo menos o suficiente para saberem que não devem se meter nisso. Mas muita coisa está escrita em línguas estranhas, e precisa de mais do que apenas palavras; acho que é preciso desenhar coisas, e poções e aprender todo o tipo de extras horríveis, se quere dominar os demônios. Não é algo em que uma pessoa decente queira participar; o meu pai limita-se a fazer os livros. — Suspirou. — Olhe, as pessoas sempre presumiram que a minha família está metida nisso tudo. Depois dos magos terem saído do poder em Praga, um dos tios do meu avô foi perseguido por uma multidão e atirado de uma janela alta. Caiu em cima de um telhado e morreu. O avô veio para a Inglaterra pouco depois e recomeçou o negócio. Era mais seguro para ele aqui. De qualquer forma... — Sentou-se, espreguiçou-se. — Duvido muito de que aqueles corvos sejam demônios. O que fariam, pousados numa árvore? Vamos lá — atirou-lhe a pá —, é a sua vez, e aposto que te elimino à primeira bola.

Para enorme frustração de Kitty, foi exatamente o que aconteceu. E na vez seguinte e na outra. O parque ecoava com o «bong» metálico da bola de críquete no encanamento. Os gritos de Jakob ressoavam altos e baixos. Por fim, Kitty arremessou a pá.

— Isto não é justo! — exclamou. — Viciou a bola, ou quê?

— Chama-se pura técnica. É a minha vez.

— Só mais uma.

— Está bem. — Jakob atirou a bola num lance ostensivamente delicado por baixo do braço. Kitty agitou a pá com desespero selvático e, para sua enorme surpresa, estabeleceu contato tão firmemente que o seu braço vibrou até o cotovelo.

— Boa! Um lance penoso! Apanhe esta se puder! — Começou uma dança de vitória, esperando ver Jakob correr pelo gramado... mas ele ficara imóvel, numa postura indecisa e a olhar para o céu em algum lugar atrás da cabeça dela.

Kitty virou-se e olhou também. A bola, que imaginara a elevar-se alto por cima do seu ombro, caía do céu, descendo mais e mais, por trás do muro, fora do parque, na direção da rua.

Depois seguiu-se um estrondo terrível de vidro partido, um chiar de pneus, uma sonora pancada metálica.

Silêncio. Um leve som sibilante vindo de trás do muro, como de vapor a sair de uma máquina avariada.

Kitty olhou para Jakob, que por sua vez olhou para ela.

Depois fugiram.

Atravessaram a relva vigorosamente, dirigindo-se para a ponte distante. Corriam lado a lado, cabisbaixos, os punhos agitando-se, sem olhar para trás. Kitty segurava ainda a pá. Pesava demais; arfando, arremessou-a. Ante isto, Jakob soltou um grito de aflição e parou bruscamente.

— Idiota! Meu nome está lá. — Voltou atrás correndo; Kitty abrandou, virou-se para vê-lo apanhar o pá; nesse intervalo, avistou, a meia distância, um portão aberto no muro que dava para a estrada. Apareceu uma figura de preto a coxear; postou-se no meio do espaço, a olhar para o parque.

Jakob apanhara a pá e vinha aí de novo.

— Apresse-se! — disse arquejante, quando ele surgiu a seu lado. — Alguém está... — Desistiu; não tinha fôlego para falar mais.

— Estamos quase. — Jakob seguiu na frente pela beira do lago, onde bandos de aves selvagens grasnaram e voaram sobre a água com medo; passaram por baixo das sombras das faias e subiram uma ligeira elevação direto à ponte metálica. — Estaremos a salvo... assim que atravessarmos... escondidos nas crateras... já não falta muito...

Kitty sentia uma forte vontade de olhar para trás; via mentalmente a figura de preto a correr atrás deles pela relva. A imagem causou-lhe um arrepio na espinha. Mas iam depressa demais para ela apanhá-los; não haveria problema, iam conseguir fugir.

Jakob correu para a ponte, Kitty atrás dele. Os seus pés ressoavam como martelos de perfuração, provocando um ruído cavernoso e um murmúrio de metal a vibrar. Até o alto, descendo do outro lado...

Algo apareceu não se sabe de onde, no extremo da ponte.

Jakob e Kitty soltaram um grito. A sua corrida em frente cessou bruscamente; imobilizaram-se, chocando um com o outro no esforço supremo e instintivo de evitarem colidir com a coisa.

Era da altura de um homem, e na verdade comportava-se como se assim fosse, mantendo-se ereto sobre duas pernas compridas, de braços estendidos e dedos curvos. Mas não era um homem; quando muito, parecia mais uma espécie de macaco horrivelmente distorcido, desproporcionado e muito esticado. O seu pêlo era verde-claro no corpo, exceto em volta da cabeça e do focinho, onde era verde-escuro, quase preto. Os olhos malévolos eram amarelos. Inclinou a cabeça e sorriu-lhes, flexionando as mãos afuniladas. Uma cauda esguia e estriada agitava-se atrás dele como um chicote, zurzindo o ar.

Por um breve instante, nem Jakob nem Kitty conseguiram falar ou mexer-se. Depois:

— Para trás, para trás, para trás! — Era Kitty; Jakob estava atônito, pregado ao chão. Ela agarrou-o pelo colarinho da camisa e puxou-o, virando-se nesse instante.

De mãos nos bolsos, a gravata muito composta por dentro de um colete de fustão de algodão, um cavalheiro de terno preto bloqueava a outra saída da ponte. Não estava nem um bocadinho sem fôlego.

A mão de Kitty permanecia agarrada ao colarinho de Jakob. Não queria largá-lo. Olhou para um lado, ele para o outro. Sentiu a mão dele estender-se, procurar o tecido da T-shirt dela, agarrá-lo com força. Não se ouvia nenhum som exceto a respiração aterrorizada deles e o silvo da cauda do monstro ao cortar o ar. Um corvo passou por cima deles, grasnando sonoramente. Kitty ouviu o sangue a latejar-lhe nos ouvidos.

O cavalheiro não parecia ter pressa de falar. Era relativamente baixo, mas entroncado e de constituição forte. O seu rosto redondo tinha, no meio, um nariz aquilino comprido demais e, mesmo naqueles momentos de abjeto terror, fez lembrar a Kitty um relógio de sol. O rosto parecia não ter expressão.

Jakob tremia a seu lado. Kitty sabia que ele não conseguiria falar.

— Por favor, senhor — começou ela com voz fraca. — O-o que quer?

Seguiu-se uma longa pausa; parecia que o cavalheiro tinha relutância em dirigir-se a eles. Quando o fez, foi com uma doçura aterradora.

— Há alguns anos — disse —, comprei o meu Rolls-Royce num leilão. Necessitava de grandes reparações mas, mesmo assim, custou-me uma quantia considerável. Desde então, tenho gasto muito mais nele, a colocar uma carroceria, pneus, motor novos, e acima de tudo, um pára-brisas original de cristal colorido, para transformar a minha viatura no mais requintado exemplar de Londres. Para mim, é um passatempo, uma pequena distração do meu trabalho. Só ontem, depois de muitos meses à procura, localizei uma original placa de matrícula em porcelana e afixei-a na capota. Finalmente o meu veículo estava completo. Hoje levei-o para dar uma volta. E o que acontece? Sou atacado, não se sabe de onde, por dois fedelhos comuns. Partiu-me o pára-brisas, fez-me perder o controle; colidi com um poste, destruindo a carroceria, os pneus, o motor, e partindo a placa de matrícula em mil pedaços. Fiquei com o carro destruído. Nunca mais poderá andar... — Parou para respirar; passou uma língua rosada pelos lábios. — O que quero? Bem, primeiro tenho curiosidade em saber o que tem a dizer.

Kitty olhou de um lado para o outro, à procura de inspiração.

— Hã... «Desculpe» seria um bom começo?

— «Desculpe»?

— Sim, senhor. Foi um acidente, sabe, e nós não queríamos...

— Depois do que fizeram? Depois dos danos que causaram? Seus pequenos comuns malvados...

Brotaram lágrimas nos olhos de Kitty.

— Isso não é verdade! — contrapôs ela, desesperada. — Nós não quisemos atingir o seu carro. Estávamos apenas brincando! Não conseguíamos sequer ver a rua!

— Brincando? Neste parque privado?

— Não é privado. Bem, se é, não deveria ser! — Ao contrário do que queria, Kitty percebeu que quase gritava. — Ninguém mais o aproveita, não é? Não estávamos fazendo nada de mal. Por que não haveríamos de vir aqui?

— Kitty — Jakob falou com voz áspera. — Cale-se.

— Nemaides — o cavalheiro dirigiu-se ao macacóide do outro lado da ponte —, avance um passo ou dois, está bem? Tenho um assunto que gostaria que se encarregasse.

Kitty ouviu as pancadas suaves de garras no metal; sentiu Jakob encolheu-se a seu lado.

— Senhor — disse ela, baixinho —, lamentamos aquilo do seu carro. De verdade.

— Nesse caso, por que — argumentou o mago — fugiram e não ficaram para assumir a responsabilidade?

Um som pequeno, muito pequeno:

— Por favor, senhor... estávamos assustados.

— Muito sensato. Nemaides... Estava pensando no Cilindro Negro, o que acha?

Kitty ouviu o estalar de articulações gigantes e uma voz grave, ponderada.

— A que velocidade? Eles têm um tamanho abaixo da média.

— Acho que bastante forte, não te parece? Era um carro bastante caro. Encarregue-se disso. — O mago pareceu achar que a sua participação no assunto terminara; virou-se, de mãos ainda nos bolsos, e começou a coxear em direção ao portão distante.

Talvez, se corressem... Kitty puxou pelo colarinho de Jakob:

— Vem!

O rosto dele apresentava a palidez da morte; ela mal conseguia entender as palavras.

— É inútil. Não podemos. — Soltara-se dela agora; as suas mãos pendiam inertes aos lados.

Um toc-toc-toc de garras de metal.

— Olhe para mim, filha.

Por um momento, Kitty pensou abandonar Jakob e correr, sozinha, pela ponte e embrenhar-se no parque. Depois abominou a idéia, e censurou-se por ter pensado nisso, e virou-se deliberadamente para enfrentar a coisa.

— Assim está melhor. O contato frontal direto é preferível para o Cilindro. — O focinho de macaco não parecia particularmente cheio de malícia; quando muito, a sua expressão era ligeiramente enfadada.

Dominando o medo, Kitty ergueu uma pequena mão suplicante.

— Por favor... não nos faça mal!

Os olhos amarelos arregalaram-se, os lábios negros esboçaram um trejeito pesaroso.

— Receio que isso seja impossível. Recebi as minhas ordens... designadamente, aplicar o Cilindro Negro às vossas pessoas... e não posso rejeitar esta ordem sem vir a correr enorme perigo. Gostariam que eu fosse sujeito ao Fogo Abrasador?

— Muito sinceramente, acho que preferia.

A cauda do demônio agitou-se de um lado para o outro como a de um gato irritado; encolheu uma perna e coçou a parte de trás do outro joelho com uma garra articulada.

— Sem dúvida. Bem, a situação é desagradável. Sugiro que acabemos com ela o mais rápido possível.

Levantou uma mão.

Kitty colocou o braço em volta da cintura de Jakob. Através da carne e do tecido, sentiu o palpitar do coração dele.

Um círculo de fumaça cinzento ondulante estendeu-se de um ponto bem à frente dos dedos esticados do demônio e partiu direito a eles. Kitty ouviu Jakob gritar. Teve apenas tempo suficiente para ver chamas vermelhas e laranja tremeluzirem no centro da fumaça antes de a atingirem no rosto com uma explosão de calor, e ficou tudo escuro.

 

— Kitty... Kitty!

— Hum?

— Acorda. Está na hora.

Levantou a cabeça, pestanejou, e acordou com ímpeto no tumulto do intervalo da peça teatral. As luzes tinham-se acendido no auditório, descera uma enorme cortina púrpura sobre o palco; a platéia fragmentara-se em centenas de indivíduos de rosto vermelho que saíam lentamente. Kitty foi inundada por um lago de som que batia nas suas têmporas como uma maré. Sacudiu a cabeça para se libertar e olhou para Stanley, que se debruçava na cadeira da frente, uma expressão sardônica no rosto.

— Oh — respondeu um tanto confusa. — Sim. Sim, estou pronta.

— O saco. Não se esqueça dele.

— Será muito improvável, não acha?

— Também seria improvável adormecer.

Respirando a custo e afastando uma madeixa de cabelo dos olhos, Kitty pegou no saco, e levantou-se para deixar um homem passar pela frente. Virou-se para segui-lo pela fila de cadeiras. Enquanto isso, olhou Fred por um momento: como sempre, os seus olhos mortiços eram difíceis de decifrar, mas Kitty julgou detectar uma expressão de escárnio. Comprimiu os lábios e arrastou-se até à coxia.

Cada centímetro de espaço entre as cadeiras estava cheio de pessoas mais ou menos apinhadas que se dirigiam aos bares, casas de banho, à garota dos sorvetes, de pé, encostada à parede debaixo de um foco de luz. Era difícil o movimento em qualquer direção; fez lembrar a Kitty um mercado de gado, com a manada a ser conduzida lentamente através de um labirinto de argamassa e uma vedação metálica. Respirou fundo e, com uma sucessão de desculpas balbuciadas e cotoveladas magistralmente aplicadas, reuniu-se à manada. Avançou vagarosamente entre diversas costas e barrigas em direção a umas portas duplas.

A meio do caminho, uma pancada nas costas. O rosto sorridente de Stanley.

— Estou vendo que não gostou muito do espetáculo.

— É claro que não. Maçante.

— Achei que tinha um ou outro aspecto positivo.

— Só podia.

Fingiu-se surpreendido.

— Pelo menos, eu não estava dormindo em serviço.

— O serviço — contrapôs Kitty — vem agora.

De rosto carrancudo e cabelo em desalinho, saiu pelas portas para o corredor lateral que contornava a extremidade do auditório. Agora estava furiosa consigo mesma, furiosa por cochilar, furiosa por permitir que Stanley a irritasse tão facilmente. Ele estava sempre à procura de qualquer sinal de fraqueza, a tentar tirar partido disso com os outros; só estaria lhe dando munição. Abanou a cabeça impacientemente. Esquece: não é o momento.

Avançou até o átrio do teatro, onde uma boa quantidade de elementos da assistência saía para a rua a fim de tomar bebidas geladas e apreciar a noite de Verão. Kitty foi com eles. O céu estava azul-escuro; a luz desaparecia lentamente. Bandeiras e flâmulas coloridas pendiam das casas do outro lado, prontas para o feriado público. Os copos tilintavam, as pessoas riam; em estado de alerta silencioso, os três passaram por entre a multidão feliz.

Na esquina do edifício, Kitty confirmou as horas.

— Temos quinze minutos.

Stanley observou:

— Esta noite há poucos magos por aqui. Vê aquela velha emborcando genebra... a de verde? Há algo na mala dela. Aura poderosa. Podíamos roubá-la.

— Não. Cumprimos o estabelecido. Continue, Fred.

Fred anuiu. Retirou um cigarro e o isqueiro do bolso do blusão de couro. Avançou lentamente até um ponto que permitia ver uma transversal e, enquanto acendia o cigarro, observou-a. Aparentemente satisfeito, avançou por ela sem olhar para trás. Kitty e Stanley seguiram-no. A rua continha lojas, bares e restaurantes; andava por lá um número considerável de pessoas, pegando ar. Na esquina seguinte, o cigarro de Fred pareceu apagar-se. Parou para reacendê-lo, observando novamente com atenção em todas as direções. Desta vez, de olhos semicerrados; descontraidamente, voltou pelo caminho do qual viera. Kitty e Stanley estavam entretidos vendo vitrines, um casal feliz de mãos dadas. Fred passou por eles.

— Vem aí um demônio — disse baixinho. — Mantenha o saco escondido.

Decorreu um minuto. Kitty e Stanley admiraram e elogiaram os tapetes persas na vitrine. Fred inspecionou as flores expostas na loja seguinte. Pelo canto do olho, Kitty espreitava a esquina da rua. Um cavalheiro idoso bem vestido e de cabelo branco contornou-a, cantarolando uma ária militar. Atravessou a rua e desapareceu de vista. Kitty olhou para Fred. Quase imperceptivelmente, abanou a cabeça. Kitty e Stanley ficaram onde estavam. Uma senhora de meia-idade com um grande chapéu florido apareceu na esquina; caminhava lentamente, como se meditasse sobre os males do mundo. Parou na esquina, suspirou pesadamente e virou-se para eles. Kitty cheirou o perfume dela quando passou, uma essência forte, bastante ordinária. Os passos dela deixaram de se ouvir.

— Muito bem — disse Fred. Voltou para a esquina, efetuou um reconhecimento rápido, acenou com a cabeça e desapareceu ao contorná-la. Kitty e Stanley afastaram-se da vitrine e seguiram-no, soltando as mãos como se tivessem lepra. O saco de couro, que estivera debaixo do casaco de Kitty, reapareceu na sua mão.

A rua seguinte era mais estreita e não havia peões nas proximidades. A esquerda, escuro e vazio por trás de um gradeamento preto, ficava o pátio de entregas da loja de carpetes. Fred estava curvado junto ao gradeamento, olhando para um e outro lado da rua.

— A esfera de busca acaba de passar nos fundos — disse. — Mas estamos livres. É sua vez, Stan.

O portão do pátio estava fechado a cadeado. Stanley aproximou-se e examinou-o com atenção. Retirou, de uma parte obscura do seu vestuário, um alicate de aço. Apertou, torceu e o cadeado abriu-se. Entraram no pátio, Stanley na dianteira. Olhava com atenção para o chão à frente deles.

— Alguma coisa? — indagou Kitty.

— Aqui não. A porta dos fundos tem uma turvação: uma espécie de fórmula. Deveríamos evitá-la. Mas aquela janela é segura. — Apontou.

— Está certo. — Kitty aproximou-se furtivamente da janela, espreitou lá para dentro. Do pouco que conseguiu ver, o cômodo do outro lado era um armazém; tinha carpetes empilhadas, cada uma enrolada e firmemente envolta em pano. Olhou para os outros.

— Então? — perguntou entre dentes. — Vê alguma coisa?

— É por isso — afirmou Stanley, animado —, que é uma estupidez ser você a responsável. Não serve para nada sem nós. Cega. Ná... nenhuma armadilha.

— Nem demônios — disse Fred.

— Pronto. — Kitty calçara umas luvas pretas. Fechou um punho, enfiou-o na vidraça mais baixa da janela. Um ruído seco, um breve tinir de vidro a cair sobre o parapeito. Kitty estendeu a mão, abriu o fecho, levantou a janela. Saltou e entrou no cômodo, aterrando silenciosamente, os olhos deslocando-se de um lado para o outro. Sem esperar pelos outros, passou por entre as pirâmides de tecido, respirando o forte cheiro de bafo dos carpetes amortalhados, chegando rapidamente a uma porta entreaberta. Tirou uma lanterna do saco: um feixe de luz iluminou um gabinete grande, ricamente decorado, com escrivaninhas, cadeiras, quadros na parede. A um canto, baixo e escuro, um cofre.

— Espere. — Stanley agarrou o braço de Kitty. — Há um pequeno fio brilhante ao nível dos pés... passe por entre as escrivaninhas. Fórmula de tropeço. Evite-o.

Furiosa, libertou-se da mão dele.

— Eu não ia avançar de rompante. Não sou estúpida.

Ele encolheu os ombros.

— Claro, claro.

Levantando bem os pés por cima do fio invisível, Kitty alcançou o cofre, abriu o saco, retirou uma pequena esfera branca e colocou-a no chão. Com muito cuidado, recuou. De novo à porta, proferiu uma palavra; com um suspiro suave e um afluxo de ar, a esfera implodiu em nada. A sua sucção arrancou os quadros da parede próxima, o carpete do chão, a porta do cofre das dobradiças. Calmamente, passando por cima do fio invisível, Kitty veio ajoelhar-se junto ao cofre. As suas mãos moviam-se com rapidez, metendo objetos no saco.

Stanley agitava-se de impaciência.

— O que temos?

— Vidros mouler, duas esferas de elementos... documentos... e dinheiro. Um monte dele.

— Ótimo. Depressa. Temos cinco minutos.

— Eu sei.

Kitty fechou o saco e abandonou o escritório sem pressa. Fred e Stanley já tinham saído pela janela e aguardavam impacientemente do lado de fora. Kitty atravessou o cômodo, saltou para o pátio e correu direto ao portão. Um momento depois, com uma estranha intuição, olhou por cima do ombro, bem a tempo de ver Fred arremessar algo para o armazém.

Ficou estarrecida.

— O que diabo era aquilo?

— Não há tempo para conversas, Kitty. — Fred e Stanley passaram por ela apressados. — A peça vai começar.

— O que acabou de fazer?

Stanley piscou o olho enquanto caminhavam em passo rápido pela rua.

— Pau de inferno. Um presentinho para eles. — A seu lado, Fred dava risadas.

— Não foi isso que planejamos! Tratava-se apenas de um assalto! — Sentia já o cheiro de fumaça, espalhando-se pelo ar. Contornaram a esquina, passando pela frente da loja.

— Não podemos levar os carpetes, não é? Então para quê deixá-los para serem vendidos aos magos? Não pode ter pena dos colaboracionistas, Kitty. Eles merecem.

— Podíamos ser apanhados...

— Não seremos, descansa. Além disso, um pequeno furto chato e sem importância não faz notícia, não é? Mas um assalto seguido de incêndio fará.

Branca de fúria, os dedos cravados nas abas do saco, Kitty seguiu ao lado deles rua acima. Não era uma questão de publicidade — Stanley voltara a desafiar a autoridade dela, e com maior gravidade do que antes. O plano fora dela, a estratégia fora dela, e ele estragara tudo deliberadamente. Teria sem dúvida de agir já. Mais cedo ou mais tarde, ele os mataria a todos.

Na fachada do Metropolitan Theatre, tocava uma campainha intermitente, e a escória da assistência avançava para dentro das suas portas. Kitty, Stanley e Fred reuniram-se a eles sem alterarem o ritmo, e alguns minutos depois sentaram-se mais uma vez nos seus lugares. A orquestra voltara ao aquecimento; no palco, a cortina de segurança fora levantada.

Ainda a tremer de raiva, Kitty colocou o saco entre os pés. Quando o fez, Stanley virou a cabeça e sorriu.

— Confie em mim — murmurou. — Agora vamos ser notícia de primeira página. Amanhã seremos os maiores.

 

Oitocentos metros ao norte das águas escuras do Tamisa, os feirantes do mundo reuniam-se diariamente no bairro da City para trocar, vender e comprar. Tanto quanto era possível ver, as bancas da feira estendiam-se, amontoadas sob os beirais das casas antigas como pintos sob a asa da mãe. Não tinha fim, a riqueza exposta: ouro da África austral, pepitas de prata dos Urais, pérolas da Polinésia, lâminas de âmbar do Báltico, pedras preciosas de todas as cores, sedas iridescentes da Ásia e mil outras maravilhas. Mas o mais valioso de tudo eram os artefatos mágicos que haviam sido saqueados de antigos impérios e trazidos para Londres para serem vendidos.

No coração da City, no cruzamento de Cornhill com Poultry Street, os gritos de súplica dos comerciantes feriam os ouvidos. Só os magos podiam aceder a esta zona central, e policiais de uniforme cinzento guardavam as entradas da feira.

Cada banca estava atulhada de artigos que se reclamavam extraordinários. Um exame sumário poderia revelar flautas e liras encantadas da Grécia; vasos contendo terra de sepulturas dos cemitérios reais de Ur ou Nimrud; frágeis artefatos de ouro de Tashkent, Samarcanda e outras cidades da Rota da Seda; totens tribais dos desertos da América do Norte; máscaras e efígies polinésias; estranhas caveiras com cristais incrustados nas bocas; punhais de pedra, cheios de máculas de sacrifícios, recuperados das ruínas dos templos de Tenochtitlán.

Era a este local que, uma vez por semana, no final das tardes de segunda-feira, o eminente mago Sholto Pinn se dirigia pomposamente, para observar o desafio ao vivo, e adquirir quaisquer ninharias que fossem do seu agrado.

Meados de Junho, e o Sol descia por trás das vigas. Apesar da própria feira, cravada entre os edifícios, estar firmemente envolta em sombra azul, a rua refletia ainda calor suficiente para constituir um passeio agradável para Mr. Pinn. Trazia um terno de linho branco, e um palhinha de aba larga na cabeça. Uma bengala de marfim pendurada numa mão; a outra batia ocasionalmente de leve no pescoço com um enorme lenço amarelo.

A indumentária elegante de Mr. Pinn era extensiva até aos seus sapatos de verniz. Isto a despeito da sujeira nas calçadas, que estavam carregadas de provas de centenas de refeições apressadas — fruta jogada fora, invólucros de falafel, cascas de frutos secos e de ostras e restos de gordura e cartilagem. Mr. Pinn ignorou-os: por onde quer que ele caminhasse, o lixo era varrido por uma mão invisível.

Enquanto avançava, inspecionava as bancas de ambos os lados através do seu monóculo grosso. Apresentava a habitual expressão de divertimento enfadado — proteção contra as abordagens dos feirantes, que o conheciam bem.

— Señor Pinn! Tenho aqui uma mão embalsamada de proveniência misteriosa! Foi encontrada no Saara... Desconfio de que seja a relíquia de um santo. Resisti a todos os fregueses, à sua espera...

— Por favor, espere um pouco, Monsieur; veja o que tenho nesta estranha caixa de obsidiana...

— Observe este pedaço de pergaminho, estes símbolos rúnicos...

— Mr. Pinn, senhor, não dê ouvidos a estes bandidos! O seu gosto requintado dirá que...

— ...esta estátua voluptuosa...

— ...estes dentes de dragão...

— ...esta cabaça...

Mr. Pinn sorriu maliciosamente, observou os artigos, ignorou os pregões dos feirantes, avançou com lentidão. Nunca comprava muita coisa; a maior parte das suas mercadorias chegava-lhe diretamente dos seus agentes que trabalhavam por todo o Império. Mas, mesmo assim, nunca se sabe. Valia sempre a pena dar uma olhada na feira.

A fila terminava com uma banca empilhada com vidros e cerâmicas. Via-se que a maior parte dos artigos era constituída por falsificações recentes, mas um minúsculo vaso verde-azulado com a rolha selada despertou a atenção de Mr. Pinn. Dirigiu-se desinteressadamente à empregada.

— Este artigo. O que é?

A vendedora era uma mulher jovem com um lenço colorido na cabeça.

— Senhor! É um vaso de faiança de Ombos no Antigo Egito. Foi encontrado numa sepultura funda, debaixo de uma pesada pedra, ao lado dos ossos de um homem alto e alado.

Mr. Pinn arqueou uma sobrancelha.

— Verdade? E tem esse maravilhoso esqueleto?

— Infelizmente, não. Os ossos foram dispersos por uma multidão inflamada.

— Tão conveniente. Mas o vaso: não foi aberto?

— Não, senhor. Creio que contém um djinni, ou possivelmente uma Pestilência. Compre-o, abra-o e constate pessoalmente!

Mr. Pinn pegou no vaso e virou-o nos seus dedos brancos gordos.

— Hum — murmurou. — Parece pesado demais para o seu tamanho. Talvez uma fórmula comprimida... Sim, o artigo tem um interesse relativo. Qual é o seu preço?

— Por ser para o senhor, cem libras.

Mr. Pinn soltou uma sonora gargalhada.

— Realmente sou rico, minha querida; mas também não sou para brincadeiras. — Estalou os dedos, e com um chocalhar de cerâmica e um amarfanhar de tecido, uma pessoa invisível subiu rapidamente por um dos postes que sustentava a banca, correu pelo toldo e caiu com ligeireza sobre as costas de mulher. Ela soltou um grito. Mr. Pinn não tirou os olhos do vaso que tinha na mão. — O regateio é perfeitamente legítimo, minha querida, mas deve-se sempre começar por um nível razoável. Então, por que não me sugere outra quantia? O meu assistente, Mr. Simpkin, confirmará prontamente se o seu preço vale a pena.

Alguns minutos depois, de rosto arroxeado e a sufocar do aperto de dedos invisíveis em volta do seu pescoço, acabou por balbuciar uma quantia irrisória. Mr. Pinn atirou algumas moedas para a banca e partiu de bom humor, levando o seu troféu na segurança do bolso. Abandonou a feira e afastou-se por Poultry Street até onde o seu carro o aguardava. Quem lhe bloqueasse o caminho era afastado sem cerimônia pela mão invisível.

Mr. Pinn enfiou o seu corpanzil no carro e fez sinal ao motorista para arrancar. Depois, recostando-se no banco, falou para o ar.

— Simpkin.

— Sim, amo?

— Hoje não vou trabalhar até tarde. Amanhã é o Dia de Gladstone, e Mr. Duvall vai oferecer um jantar em honra do nosso Fundador. Infelizmente, tenho de estar presente nesta reunião entediante.

— Muito bem, amo. Chegaram vários caixotes de Persépolis pouco depois do almoço. Deseja que comece a abri-los?

— Sim. Separe e etiquete tudo o que for de menor importância. Deixe por abrir qualquer embrulho marcado com uma chama vermelha; essa marca indica um grande tesouro. Encontrará igualmente um caixote de placas de sândalo empilhadas... Tenha muito cuidado com isso; contém uma caixa escondida com uma múmia de criança dos dias de Sargon. A alfândega persa está cada vez mais atenta e o meu agente tem de recorrer a todos os ardis para ocultar a mercadoria. Ficou tudo claro?

— Ficou, sim, amo. Obedecerei com zelo.

O carro parou diante das colunas douradas e das vitrines iluminadas de Pinn’s Accoutrements. Abriu-se uma porta traseira, mas Mr. Pinn permaneceu no interior. O carro afastou-se, mergulhando no tráfego de Piccadilly. Passado pouco tempo, uma chave rodou na fechadura da porta da frente da loja; esta abriu-se, depois voltou a fechar-se de mansinho.

Minutos depois, um vasto sistema de alarme de nós azuis de aviso estendeu-se pelo edifício no quarto e quinto planos, serpenteando até o alto da casa e fechou-se. Pinn’s Accoutrements estava seguro para a noite.

Caía a noite. O trânsito abrandara em Piccadilly e passavam menos peões pela loja. Simpkin, o foliot, agarrou numa vara curva com a cauda e fez descer as persianas articuladas de madeira sobre as vitrines. Uma delas chiou um pouco ao baixar. Com uma expressão de contrariedade, Simpkin retirou a sua capa de invisibilidade, revelando-se pequeno e verde-lima, com pernas arqueadas e uma expressão nervosa. Encontrou uma lata por trás do balcão e esticou a cauda para olear a dobradiça. Depois varreu o chão, despejou os cestos de lixo, compôs os manequins expostos e, com a loja limpa a seu contento, trouxe vários caixotes grandes do cômodo dos fundos, arrastando-os.

Antes de meter mãos à obra, Simpkin voltou a verificar o sistema mágico de alarme com enorme cuidado. Dois anos antes, um djinni espertalhão conseguira entrar enquanto estava de vigia e tinham sido destruídos muitos artigos preciosos. Por sorte, o amo perdoara-lhe, bem mais do que merecia. Mesmo assim, a lembrança dos castigos ainda fazia tremer a sua essência. Nunca mais isso deveria voltar a se repetir.

Os nós estavam intactos e vibravam preventivamente sempre que ele se aproximava das paredes. Estava tudo bem.

Simpkin abriu o primeiro caixote e começou a retirar o enchimento de lã e serragem. O primeiro artigo que encontrou era muito pequeno e estava embrulhado em gaze da cor de alcatrão; com dedos hábeis, retirou a gaze e inspecionou o objeto com alguma reserva. Era uma espécie de boneca, feita de osso, palha e concha. Simpkin anotou-o no livro de registro com uma comprida pena de ganso. «Bacia do Mediterrâneo, aprox. 4000 anos. Só valor como antigüidade. De pouca importância.» Colocou-a em cima do balcão e continuou a desempacotar.

O tempo passou. Simpkin chegou ao penúltimo caixote. Era aquele que vinha cheio de madeira de sândalo, e mexia-lhe com muito cuidado à procura da múmia escondida, quando ouviu pela primeira vez sons ressoantes. O que seriam? Trânsito? Não — paravam e começavam muito abruptamente. Talvez o ribombar de um trovão distante?

Os ruídos aumentaram, tornando-se cada vez mais inquietantes. Simpkin pousou a pena e pôs-se à escuta, a cabeça redonda ligeiramente inclinada para um lado. Sons estranhos e desarticulados... marcados por pancadas fortes. De onde vinham? De algum lugar para lá da loja, isso era óbvio, mas de que direção?

Levantou-se com um salto e, aproximando-se cautelosamente da vitrine mais próxima, levantou um pouco as persianas. Para lá do azul dos nós de segurança, Piccadilly estava escura e vazia. Havia raras luzes nas casas em frente e pouco trânsito. Não conseguia ver nada que explicasse os sons.

Pôs-se de novo à escuta... eram agora mais fortes; na verdade, pareciam vir de algum lugar atrás dele, dos recessos do edifício... Simpkin baixou a persiana, a sua cauda agitando-se, inquieta. Recuando um pouco, estendeu-se por trás do balcão e pegou numa moca grande e nodosa. Munido dela, foi até à porta do armazém e espreitou lá para dentro.

No cômodo parecia tudo normal: cheia de pilhas de caixotes e caixas de papelão, e prateleiras de artefatos a serem preparados para exposição ou venda. A luz elétrica no teto zumbia suavemente. Simpkin voltou para a loja, franzindo o cenho de perplexidade. Os ruídos eram agora bastante altos — algo, algum lugar, estava a ser partido. Deveria alertar o seu amo? Não. Uma idéia insensata. Mr. Pinn detestava ser incomodado desnecessariamente. Era melhor não importuná-lo.

Outro estrondo ressoante e o som de vidro a partir-se; pela primeira vez, a atenção de Simpkin foi atraída para o lado direito do estabelecimento de Pinn’s, que ficava a meia parede com uma charutaria e loja de vinhos. Muito estranho. Avançou para investigar. Naquele momento, aconteceram três coisas.

Metade da parede explodiu para dentro.

Algo grande entrou no cômodo.

Todas as luzes da loja se apagaram.

Petrificado no centro do chão, Simpkin não conseguia ver nada — nem no primeiro plano, nem em qualquer dos outros quatro a que tinha acesso. A loja fora envolvida por uma faixa de escuridão gélida, e, ao fundo dela, algo se movia. Ouviu um passo, depois um estrondo horrendo vindo da direção das porcelanas antigas de Mr. Pinn. Seguiu-se outro passo, depois um rasgar e lacerar que só podia vir dos cabides com os ternos que Simpkin pendurara com tanto cuidado naquela mesma manhã.

A angústia profissional suplantou o seu medo: soltou um gemido de fúria e, baixando a moca, raspou-a sem querer no balcão.

Os passos cessaram. Sentiu algo espreitar na sua direção. Simpkin ficou estático. Envolvia-o a escuridão.

Moveu os olhos de um lado para o outro. Sabia, de memória, que estava apenas a alguns metros da vitrine mais próxima com persiana. Se recuasse agora, talvez conseguisse alcançá-la antes que...

Avançava algo pela loja em direção a ele. Os seus passos eram pesados.

Simpkin recuou na ponta dos pés.

Ouviu-se entretanto um ruído de estilhaçar no meio do cômodo. Parou, estremecendo. Aquele era o armário de mogno de que Mr. Pinn tanto gostava! Do período da Regência, com puxadores de ébano e embutidos de lápis-lazúli! Uma terrível catástrofe!

Fez um esforço para se concentrar. Só mais dois metros para a vitrine. Continuaria... estava quase lá. O rastro pesado veio atrás dele, cada passo um abalo vibrante no chão.

Um estrondo súbito e o som desagradável de metal arrebentado. Oh — agora era o cúmulo! Levara uma eternidade a dispor aqueles expositores com colares protetores de prata!

Na sua revolta, voltara a parar. Os passos estavam agora mais próximos. Simpkin avançou apressadamente um pouco mais e os seus dedos tateantes tocaram nas persianas de madeira. Sentiu os nós de aviso a vibrarem do outro lado. Bastava-lhe irromper por ali.

Mas Mr. Pinn dera-lhe instruções para permanecer sempre dentro da loja, protegê-la com a sua vida. É certo que não se tratara de uma ordem oficial, feita dentro de um pentagrama. Há anos que não tinha nada disso. Por isso, podia desobedecê-lo, se quisesse... Mas o que diria Mr. Pinn, se ele abandonasse o seu posto? A idéia não merecia sequer consideração.

Um passo arrastado a seu lado. Uma mancha fria de terra, vermes e barro.

Se Simpkin tivesse obedecido aos seus instintos, dado meia-volta e fugido, ainda poderia ter-se salvo. As persianas poderiam ter sido atravessadas, os nós de alarme ativados, poderia ter caído para a rua. Mas anos de subjugação voluntária a Mr. Pinn haviam-no privado de iniciativa. Esquecera-se de como fazer algo por vontade própria. Assim, só lhe restou ficar ali a tremer e a soltar guinchos de tom cada vez mais estridente enquanto o ar à sua volta se tornava sepucralmente frio e se enchia lentamente de uma presença invisível.

Encolheu-se contra a parede.

Bem por cima dele, vidro partiu-se; sentiu-o cair ao chão.

Os frascos de incenso fenício de Mr. Pinn! De valor incalculável!

Soltou um grito de raiva e, no seu momento derradeiro, lembrou-se da moca que segurava na mão. Então, às cegas, com toda a sua força, desferiu finalmente um golpe, tentando atingir o escuro gigantesco que se curvava para recebê-lo.

 

Quando amanheceu o Dia do Fundador, há muito que os investigadores do Ministério da Administração Interna andavam atarefados em Piccadilly. Ignorando as convenções do feriado, que aconselhavam roupa informal para todos os cidadãos, os funcionários vestiam ternos cinzento-escuros. Ao longe, enquanto trepavam incessantemente pelos escombros das lojas destruídas, faziam lembrar formigas em volta de um formigueiro. Em todas as direções, viam-se homens e mulheres a trabalhar, curvando-se sobre o chão, endireitando-se, colocando fragmentos de detritos em sacos de plástico com pinças ou inspecionando minúsculas manchas nas paredes. Tomavam notas nos blocos e rabiscavam diagramas em faixas de pergaminho. Mais peculiar, ou pelo menos assim parecia à multidão reunida para lá das bandeiras amarelas de aviso, era o fato de proferirem ordens e esboçarem sinais secos para o ar vazio. Estas indicações eram muitas vezes acompanhadas de pequenas correntes de ar inesperadas, ou leves ruídos precipitados que sugeriam movimento rápido e preciso — sensações que atormentavam desconfortavelmente a imaginação dos espectadores até se lembrarem de repente de outros compromissos e voltarem à sua vida.

De pé, no alto de uma pilha de alvenaria que se estendia desde Pinn’s Accoutrements, Nathaniel viu os comuns partirem. Não os culpava pela sua curiosidade.

Piccadilly estava uma confusão. Desde a Grebe’s à Pinn’s, cada loja fora destruída, o seu conteúdo espalhado e atirado para a rua através das portas e janelas arrebentadas. Gêneros alimentícios, livros, roupas e artefatos jaziam tristes e destruídos no meio de uma confusão de vidro, madeira e pedra partida. Dentro dos edifícios o cenário era ainda pior. Cada uma destas lojas era de origem nobre e antiga; cada uma delas fora destruída de forma irreparável. Prateleiras e balcões, expositores e tecidos tinham sido reduzidos a fragmentos, o produto valioso arremessado, esmagado e transformado em pó.

A cena era acabrunhante, mas era também muito estranha. Parecia que algo atravessara a parede divisória entre cada loja numa linha mais ou menos reta. Quem se colocasse do lado de dentro numa extremidade da zona de devastação, podia olhar direto no comprimento do quarteirão, através das paredes das cinco lojas, e ver funcionários a mover-se nos escombros no outro extremo. De igual modo, só o térreo dos edifícios fora afetado. Os pisos de cima permaneciam intactos.

Nathaniel bateu com a caneta nos dentes. Estranho... Não era nada semelhante a qualquer ataque da Resistência que tivesse visto. Muito mais devastador, para começar. E a sua causa exata era pouco transparente.

Surgiu uma mulher jovem no meio dos escombros de uma vitrine próxima.

— Ei, Mandrake!

— Sim, Fennel?

— Tallow quer falar contigo. Ele está lá dentro.

O rapaz carregou ligeiramente o cenho, mas virou-se e, apoiando os pés com cuidado para evitar sujar muito os seus sapatos de verniz com o pó dos tijolos, desceu pelos escombros até o escuro do edifício em ruínas. Uma figura baixa e corpulenta, vestindo um terno escuro e usando um chapéu de aba larga, encontrava-se no que em tempos fora o centro da loja. Nathaniel aproximou-se.

— Queria falar comigo, Mr. Tallow?

O ministro esboçou um gesto brusco a toda a volta.

— Quero a tua opinião. O que diria que aconteceu aqui?

— Não faço idéia, senhor — respondeu Nathaniel, animado. — Mas é muito interessante.

— Não quero saber se é interessante — replicou o ministro. — Não te pago para se interessar. Quero uma solução. O que acha que significa?

— Ainda não posso afirmar, senhor.

— De que me serve isso? Não vale nada! As pessoas vão querer respostas, Mandrake, e temos de dá-las.

— Sim, senhor. Talvez se eu continuasse a dar uma vista de olhos, senhor, pudesse...

— Responda-me o seguinte — pediu Tallow. — O que acha que causou isto?

Nathaniel suspirou. Não lhe passou despercebido o desespero na voz do ministro. Tallow sentia agora a pressão; um ataque tão descarado no Dia de Gladstone não cairia bem junto aos seus superiores.

— Um demônio, senhor — disse ele. — Um afrit conseguiria causar semelhante destruição. Ou um marid.

Mr. Tallow passou uma mão amarela penosamente pelo rosto.

— Nenhuma dessas entidades esteve envolvida. Os nossos rapazes enviaram esferas por todo o quarteirão enquanto o inimigo ainda estava lá dentro. Pouco antes de desaparecerem, não aludiram nenhum indício de atividade de demônio.

— Perdoe-me, Mr. Tallow, mas isso não pode ser verdade. Agentes humanos não conseguiriam fazer semelhante coisa.

O ministro praguejou.

— Isso é o que você diz, Mandrake. Mas, muito sinceramente, o que é que descobriu até o momento sobre o modo como a Resistência opera? A resposta é: quase nada. — Havia um tom desagradável na voz dele.

— O que o leva a pensar que foi a Resistência, senhor? — Nathaniel manteve a voz calma. Via o rumo que a conversa estava a tomar: Tallow faria de tudo para lançar o máximo de culpa possível sobre os ombros do seu adjunto. — É muito diferente dos ataques que conhecemos deles — prosseguiu. — Uma escala completamente diferente.

— Até termos provas em contrário, Mandrake, eles são os suspeitos mais prováveis. São eles que causam semelhante destruição arbitrária.

— Sim, mas apenas com vidros mouler, coisas sem importância. Não conseguiriam destruir um quarteirão inteiro, especialmente sem a magia de demônios.

— Talvez usassem outros métodos, Mandrake. Agora, relate-me os acontecimentos da noite passada.

— Sim, senhor, seria um prazer. — E uma completa perda de tempo. A espumar por dentro, Nathaniel consultou o seu bloco de velino durante alguns momentos. — Bem, senhor, por volta da meia-noite, testemunhas que moram nos apartamentos do outro lado de Piccadilly chamaram a Polícia Noturna, queixando-se de ruídos perturbadores que vinham de Grebe’s Luxuries, ao fundo do quarteirão. A polícia chegou, encontrou um buraco enorme aberto na parede do fundo, e o melhor caviar e champanhe de Mr. Grebe espalhados pela calçada inteira. Um lamentável desperdício, se me é permitido comentar, senhor. Entretanto, vinham estrondos tremendos de Dashell’s Silk Emporium, duas portas abaixo; os agentes espreitaram pelas janelas, mas todas as luzes se tinham apagado no interior e desconhecia-se o motivo. Talvez valha a pena mencionar aqui, senhor — acrescentou o rapaz, erguendo o olhar do bloco —, que hoje todas as luzes elétricas estão em pleno funcionamento no edifício.

O ministro esboçou um gesto de irritação e deu um pontapé nos restos de uma pequena boneca de osso e concha, que jazia nos escombros. — E isso quer dizer o quê?

— Que o que quer que tenha entrado aqui conseguiu apagar todas as luzes. É outra singularidade, senhor. Mas, mesmo assim... o comandante da Polícia Noturna enviou seis homens lá dentro. Seis, senhor. Altamente treinados e valorosos. Entraram pela vitrine de Dashell’s, um atrás do outro, próximo do lugar onde se ouvia o estrondo. Depois calou-se tudo... A seguir houve seis pequenos clarões de luz azul no interior da loja. Um após o outro. Nenhum ruído grande. Ficou novamente tudo escuro. O comandante esperou, mas os seus homens não regressaram. Um pouco depois, ouviu novos estrondos, em algum lugar próximo da Pinn’s. Entretanto, cerca da uma e vinte e cinco da madrugada, os magos da Segurança tinham chegado e vedado todo o quarteirão com um nexo. Foram enviadas lá para dentro esferas de busca, conforme o senhor mencionou. Desapareceram imediatamente... Não muito depois, à uma e quarenta e cinco, algo irrompeu pelo nexo, nos fundos do edifício. Não sabemos o quê, porque os demônios ali colocados desapareceram igualmente.

O rapaz fechou o bloco de notas.

— E é tudo o que sabemos, senhor. Seis baixas policiais, mais oito demônios da Segurança desaparecidos... oh, e o ajudante de Mr. Pinn. — Olhou para a parede do fundo do edifício, onde um pequeno monte de carvão fumegava suavemente. — Está claro que os prejuízos financeiros são bem maiores.

Não se percebia bem se Mr. Tallow ficara muito esclarecido; resmungou, irritado, e virou as costas. Um mago de terno preto com um rosto pálido e descarnado passou por cima dos escombros, transportando uma pequena gaiola dourada com um diabrete lá dentro. De vez em quando, o diabrete sacudia as grades furiosamente com as garras.

Mr. Tallow dirigiu-se ao homem quando ele passou.

— Ffoukes, já teve alguma notícia de Ms. Whitwell?

— Sim, senhor. Ela quer resultados e muito rapidamente. Foram as palavras dela, senhor.

— Estou vendo. O estado do diabrete indicia alguma pestilência ou veneno residual na loja seguinte?

— Não, senhor. Ele é ativo como um furão, e duplamente mau. Não há perigo.

— Muito bem. Obrigado, Ffoukes.

Enquanto se afastava, Ffoukes falou de esguelha para Nathaniel.

— Vai ter que fazer horas extraordinárias neste caso, Mandrake. O PM não está nada satisfeito, segundo apurei. — Sorriu, e foi-se embora; o barulho do diabrete na gaiola foi sumindo aos poucos com o aumento da distância.

De expressão rígida, Nathaniel afastou o cabelo para trás de uma orelha e virou-se para seguir Mr. Tallow, que caminhava com cuidado no meio dos escombros da loja.

— Mandrake, vamos inspecionar os restos dos agentes da polícia. Já tomou o café-da-manhã?

— Não, senhor.

— Ainda bem. Vamos ali ao lado, à Coot’s Delicatessen. — Suspirou. — Costumava arranjar bom caviar ali.

Chegaram à parede divisória que dava para o estabelecimento seguinte. Fora aberto um rombo. Aqui, o ministro estacou.

— Agora, Mandrake — disse ele —, use esse teu cérebro de que tanto ouvi falar, e diga-me o que deduz deste buraco.

Dissessem o que dissessem, Nathaniel gostava de desafios como este. Ajustou os punhos e franziu os lábios, pensativamente.

— Dá-nos alguma idéia sobre o tamanho e a forma do perpetrador — começou. — O teto tem quatro metros de altura aqui, mas o buraco apenas três metros de altura: portanto, o que quer que o tenha feito, é improvavel que tenha dimensões superiores. A largura do buraco é de metro e meio; por conseguinte, a avaliar pelas proporções relativas de altura e largura, diria que poderia ter a forma humana, conquanto obviamente muito maior. Mas o mais interessante é a maneira como o buraco foi feito. — Calou-se, coçando o queixo no que esperava fosse uma forma inteligente, cogitativa.

— Bastante óbvio até aqui. Continue.

Nathaniel não acreditava que Mr. Tallow já tivesse efetuado aqueles cálculos.

— Bem, senhor, se o inimigo tivesse usado uma Detonação ou algum explosivo mágico idêntico, os tijolos no caminho teriam-se vaporizado, ou desfeito em pequenos fragmentos. No entanto, ficaram aqui, estalados e partidos nas extremidades, sem dúvida, mas muitos deles ainda firmes com argamassa em pedaços sólidos. Eu diria que o que quer que irrompeu por aqui abriu simplesmente caminho, senhor, passou pela parede como se esta não existisse.

Esperou, mas o ministro limitou-se a anuir, como se tomado por um tédio inexprimível.

— Então...?

— Então, senhor... — O rapaz rangeu os dentes; sabia que estava tendo que pensar pelo seu chefe, e melindrou-se veementemente. — Então... isso afasta a probabilidade de um afrit ou marid. Derrubaria tudo no caminho. Não estamos a lidar com um demônio convencional. — E pronto; Tallow não iria arrancar nem mais uma palavra.

Mas o ministro pareceu satisfeito de momento.

— Foi exatamente o que pensei, Mandrake. Ora, ora, tantas perguntas... E aqui está outra. — Transpôs o espaço na parede para a loja seguinte. De má vontade, o rapaz seguiu-o. Julius Tallow era um palerma. Parecia satisfeito, mas, tal como um fraco nadador fora de pé, as suas pernas agitavam-se freneticamente sob a superfície, tentando manter-se à tona. Acontecesse o que acontecesse, Nathaniel não tencionava afundar-se com ele.

O ar em Coot’s Delicatessen tinha um cheiro forte, acre e desagradável. Nathaniel levou a mão ao bolso para pegar no volumoso lenço colorido e segurou-o debaixo do nariz. Avançou com hesitação até o interior escuro. Frascos de azeitonas e anchovas em conserva tinham-se partido e o conteúdo fora derramado; o seu cheiro misturava-se de forma desagradável com algo mais denso, mais ácido. Vestígios de incêndio. Os olhos de Nathaniel arderam um pouco. Tossiu no lenço.

— Afinal estão aqui: os melhores homens de Duvall. — A voz de Tallow estava carregada de sarcasmo.

Seis montes cônicos de cinza e ossos negro-azeviche estavam espalhados aqui e ali pelo chão da loja. No mais próximo, viam-se perfeitamente dois dentes caninos pontiagudos; também a extremidade de um osso fino e comprido, talvez a tíbia do policial. A maior parte do corpo fora consumida por completo. O rapaz mordeu o lábio e engoliu em seco.

— Tem que se acostumar a este tipo de coisa na Administração Interna — disse o mago com sinceridade. — Fique à vontade para ir lá fora se sentir náuseas, John.

Os olhos do rapaz brilharam.

— Não, obrigado. Estou bem. Isto é muito...

— Interessante? É, não é, apesar de tudo? Reduzidos a carbono puro... ou quase, é indiferente; só o dente escapou. E no entanto, cada montinho conta uma história. Veja aquele próximo da porta, por exemplo, mais espalhado do que os outros. Quer dizer que se movia com rapidez, saltando para a segurança, talvez. Mas não foi suficientemente rápido, pelo visto.

Nathaniel nada disse. Achava a insensibilidade do ministro mais difícil de suportar do que os restos mortais, que estavam, afinal, dispostos com método.

— Então, Mandrake — interpelou Tallow —, alguma idéia?

O rapaz respirou fundo de forma sinistra e consultou rapidamente a sua memória bem recheada.

— Não foi uma Detonação — começou —, nem um Miasma, nem uma Pestilência... são todos muito devastadores. Podia ter sido um Inferno...

— Acha que sim, Mandrake? Porquê?

— Eu estava a dizer, senhor, que podia ter sido um Inferno, só que não se vêem estragos em lugar nenhum em volta dos restos mortais. São a única coisa queimada, nada mais.

— Oh. Nesse caso, o quê?

O rapaz olhou para ele.

— Na realidade, não faço idéia, senhor. O que lhe parece?

O rapaz duvidou de que Mr. Tallow tivesse conseguido dar uma resposta; o ministro foi salvo pelo tinido suave de um sino invisível e um brilho no ar ao lado dele. Estes sinais anunciavam a chegada de um servo. Mr. Tallow proferiu uma ordem e o demônio apareceu por completo. Por razões que se desconhecem, tinha o aspecto de um pequeno macaco verde, que se sentou de pernas cruzadas numa nuvem luminosa. Mr. Tallow olhou para ele.

— O que tem a informar?

— Conforme solicitou, examinei os escombros e todos os níveis dos edifícios em cada plano à mais ínfima dimensão da escala — referiu o macaco. — Não conseguimos encontrar vestígios de atividade mágica remanescente, exceto o seguinte, que passarei a enumerar.

«Um: tênues reflexos do limite do nexo, que a equipe de Segurança criou em volta do perímetro.

«Dois: vestígios residuais dos três semi-afrits que foram enviados para o interior do limite. Parece que a sua essência foi destruída no estabelecimento de Mr. Pinn.

«Três: inúmeras auras dos artefatos da Pinn’s Accoutrements. A maior parte encontra-se espalhada pela rua, apesar de vários pequenos artigos de valor terem sido sonegados pelo seu adjunto, Mr. Ffoukes, quando o apanhou distraído.

«Eis o somatório das nossas investigações.» — O macaco enrolou a cauda de forma descontraída. — Deseja mais alguma informação nesta fase, amo?

O mago agitou uma mão.

— É tudo, Nemaides. Pode ir.

O macaco inclinou a cabeça. Esticou a cauda no ar, agarrou-a com as quatro patas como se fosse uma corda, e subiu rapidamente por ela, desaparecendo de vista.

O ministro e o seu adjunto mantiveram-se em silêncio por um momento. Finalmente, Mr. Tallow quebrou-o.

— Está vendo, Mandrake? — disse ele. — É um mistério. Não foi obra de magos: algum demônio superior teria deixado vestígios à sua passagem. Por exemplo, as auras dos afrits permanecem detectáveis durante dias. Todavia, não há vestígios de nenhuma! Até encontrarmos provas em contrário, temos de presumir que os traidores da Resistência descobriram alguma maneira não mágica de atacar. Bem, temos de nos aplicar, antes que voltem a fazê-lo!

— Sim, senhor.

— Sim... Bem, acho que já viu o suficiente para um dia. Vai investigar, ponderar o problema. — Mr. Tallow deu-lhe um olhar de soslaio; a sua voz continha insinuações levemente ocultas. — Afinal, é oficialmente responsável por este caso, tratando-se de um assunto da Resistência.

O rapaz curvou-se rigidamente.

— Sim, senhor.

O ministro agitou a mão.

— Tem autorização para ire embora. Oh, e importa-se de pedir a Mr. Ffoukes que venha aqui dentro por um instante?

Estampou-se um breve sorriso no rosto de Nathaniel.

— Com certeza, senhor. Será um prazer.

 

Naquela noite, Nathaniel foi para casa num estado de abatimento muito pronunciado. O dia não correra bem. A catarata de mensagens chegadas durante a tarde proclamava a agitação dos ministros principais. Qual era a última informação sobre a violência em Piccadilly? Haviam sido detidos alguns suspeitos? Seria de aplicar um recolher obrigatório naquele que era um dia de júbilo nacional? Quem era exatamente o responsável pela investigação? Quando seriam atribuídos mais poderes à polícia para lidar com os traidores no nosso seio?

Enquanto trabalhava arduamente, Nathaniel sentira os olhares de lado dos seus colegas e o riso disfarçado de Jenkins nas suas costas. Não confiava em nenhum deles; estavam todos ansiosos para verem seu fracasso. Isolado, sem aliados, não dispunha sequer de um servo decente em quem pudesse confiar; por exemplo, os dois foliots tinham-se revelado inúteis. Dispensara-os de vez naquela tarde, muito abatido para aplicar-lhes o Pontilhado que mereciam.

«Do que eu preciso», pensou, ao abandonar o seu gabinete sem olhar para trás, «é de um servo decente. Algo com poder. Algo que eu saiba que vai me obedecer. Algo como o Nemaides de Tallow, ou o Shubit, da minha mestra.»

Mas isso era mais fácil de dizer do que fazer.

Todos os magos necessitavam de uma ou mais entidades demoníacas como seus escravos pessoais, e a natureza destes escravos constituía um nítido indicador de posição. Os grandes magos, como Jessica Whitwell, tinham ao seu serviço djinn poderosos, que chamavam com a rapidez de um estalar de dedos. O próprio Primeiro-Ministro era servido por nada menos do que um afrit verde-azulado — conquanto as palavras aprisionadoras necessárias para o subjugar tivessem sido preparadas por vários dos seus auxiliares. Para uso no dia-a-dia, a maior parte dos magos recorria a foliots ou diabretes de maior ou menor poder, que geralmente estavam ao serviço dos seus amos no segundo plano.

Há muito que Nathaniel ansiava dispor de um servo próprio. A princípio, chamara um diabrete-trasgo que aparecera numa nuvem amarela de enxofre; ficara obrigado a servi-lo, mas Nathaniel não tardara a achar insuportáveis os seus tiques e caretas e mandara-o desaparecer da sua vista.

Depois experimentara um foliot: apesar de manter um aspecto discreto, era um mentiroso compulsivo, tentando distorcer cada uma das ordens de Nathaniel em seu proveito. Nathaniel vira-se na obrigação de exprimir as ordens mais simples em complexa linguagem legal para que a criatura não pudesse fingir ter interpretado mal. Foi ao levar quinze minutos a ordenar ao seu servo que pusesse água para um banho que a paciência de Nathaniel se esgotou; atingiu o foliot com Palpitações quentes e expulsou-o definitivamente.

Seguiram-se diversas outras tentativas, em que Nathaniel chamou ousadamente demônios cada vez mais poderosos em busca do servo ideal. Possuía a energia e a perícia necessárias, mas faltava-lhe a experiência para avaliar o caráter das suas escolhas antes de ser tarde demais. Num dos livros da sua mestra de encadernação branca, encontrara um djinni chamado Castor, invocado pela última vez durante a Renascença italiana. Aparecera obedientemente, era cortês e eficiente e (agradou a Nathaniel registrar) muito mais elegante do que os diabretes maljeitosos dos seus colegas no ministério. Todavia, Castor possuía um orgulho ardente.

Um dia, realizara-se uma importante reunião social no Consulado Persa; era uma oportunidade para todos exibirem os seus servos, e deste modo, as suas capacidades. A princípio, correu tudo bem. Castor acompanhou Nathaniel junto ao ombro sob a forma de um querubim gordo e de faces coradas, chegando inclusive a usar roupa combinando com a gravata do amo. Mas o ar inofensivo que arvorava suscitara o desagrado dos outros diabretes, que murmuraram insultos à sua passagem. Chegou uma altura em que Castor não pôde continuar a ignorar semelhante provocação; num ápice, saiu de junto de Nathaniel, agarrou um shish kebab de uma travessa e, sem sequer parar para tirar os legumes do espeto, arremessou-o como um punhal no peito do pior ofensor. No pandemônio que se seguiu, vários outros diabretes saltaram para a refrega; o segundo plano encheu-se de membros a rodopiar, baixelas brandidas e rostos contorcidos de olhos negros. Os magos precisaram de vários minutos para repor a ordem.

Felizmente, Nathaniel dispensara Castor de imediato, e não obstante a investigação, nunca se chegara a apurar de forma satisfatória qual o demônio que começara a luta. Bem que Nathaniel gostaria de ter dado uma lição em Castor pelos seus atos, mas era muito arriscado chamá-lo de novo. Voltou aos seus escravos menos ambiciosos.

No entanto, por mais que tentasse, nada que Nathaniel invocasse conseguia combinar iniciativa, poder e obediência como pretendia. Mais de uma vez, na verdade, ficou surpreendido ao se pegar pensando, quase com um vago desejo, no seu primeiro servo...

Mas decidira não voltar a invocar Bartimaeus.

 

Whitehall estava cheio de grupos de comuns excitáveis que se encaminhavam para o rio para o desfile naval e espetáculo de fogos-de-artifício noturnos. Nathaniel esboçou um esgar; toda a tarde, enquanto estivera sentado à escrivaninha, os sons de bandas a marchar e multidões felizes tinham entrado pela janela aberta, interrompendo-lhe a concentração. Mas era uma contrariedade oficialmente aprovada e não podia fazer nada em relação a isso. No Dia do Fundador, as pessoas comuns eram encorajadas a comemorar; os magos, que não era suposto engolirem a propaganda tão facilmente, trabalhavam como de costume.

Em toda a sua volta havia rostos vermelhos e suados, sorrisos felizes. Os comuns haviam já desfrutado de horas de comida e bebida gratuitas nas bancas especialmente montadas por toda a capital, e tinham-se deixado cativar pelas exibições preparadas pelo Ministério dos Espetáculos. Todos os parques na zona central de Londres apresentavam maravilhas: homens a caminhar sobre pernas-de-pau, saltimbancos do Punjab a engolir fogo; filas de jaulas — umas com animais exóticos, outras contendo rebeldes mal-humorados capturados nas campanhas da América do Norte; pilhas de tesouros recolhidos em todo o Império; desfiles militares; festas e carrosséis.

Viam-se alguns elementos da Polícia Noturna ao longo da rua, muito embora estivessem a se esforçar por não destoar da frivolidade geral. Nathaniel viu diversos agentes segurando paus de algodão-doce rosa-vivo e até um que, mostrando os dentes num sorriso pouco convincente, posava com uma senhora idosa para o marido lhes tirar uma foto turística. O estado de espírito da multidão parecia descontraído, o que era um alívio — os acontecimentos em Piccadilly não tinham deixado-os muito agitados.

O Sol resplandecente continuava alto sobre as águas cintilantes do Tamisa quando Nathaniel atravessou Westminster Bridge. Ergueu um olhar semicerrado; através das suas lentes de contato, entre as gaivotas que voavam em círculos, viu os demônios pairando no ar, observando as multidões, para a eventualidade de um ataque. Mordeu o lábio, desferiu um pontapé violento num invólucro de falafel jogado fora. Era exatamente o tipo de dia que a Resistência escolheria para os seus golpezinhos: publicidade máxima, embaraço máximo para o Governo... Era possível que o ataque em Piccadilly fosse obra deles?

Não, não podia aceitar. Era muito diferente dos seus crimes normais, muito mais violento e destruidor na sua escala. E não era obra de humanos, dissesse o tonto do Tallow o que dissesse.

Chegou à margem sul e virou à esquerda, afastando-se das multidões, entrando numa área residencial restrita. Por baixo do cais, os iates de recreio dos magos balançavam sem vigilância, sendo o Firestorm de Ms. Whitwell o maior e o mais aerodinâmico de todos.

Quando se aproximou do condomínio, o som estridente de uma buzina fê-lo sobressaltar-se. A limusine de Ms. Whitwell estava estacionada junto a calçada, o motor a trabalhar. Um motorista impassível olhava para frente. A cabeça angulosa da sua mestra saiu de uma janela traseira. Chamou-o.

— Até que enfim. Mandei um diabrete, mas já tinha saído. Entre. Vamos a Richmond.

— O Primeiro-Ministro...?

— Quer falar conosco, já. Apresse-se.

Nathaniel correu rapidamente para o carro, o coração a bater-lhe forte no peito. Um pedido súbito de audiência como este não pressagiava nada de bom.

Quase antes de bater a porta, Ms. Whitwell fez sinal ao motorista. O carro partiu bruscamente ao longo do Embankment do Tamisa, atirando Nathaniel de encontro ao banco. Ajeitou-se o melhor que pode, consciente de que estava na mira da sua mestra.

— Sabe do que se trata, presumo? — Falou com secura.

— Sim, minha senhora. O incidente desta manhã em Piccadilly?

— Naturalmente. Mr. Devereaux quer saber o que estamos fazendo para resolvê-lo. Note que eu disse «nós», John. Como Ministra da Segurança sou responsável pela Administração Interna e estarei sujeita a uma certa pressão por causa disto. Os meus inimigos tentarão tirar partido da situação. O que vou lhes dizer sobre esta catástrofe? Efetuou alguma detenção?

Nathaniel pigarreou.

— Não, minha senhora.

— De quem é a culpa?

— Nós... não sabemos ao certo, minha senhora.

— Pois é. Falei com Mr. Tallow esta tarde. Ele culpa a Resistência muito claramente.

— Oh. Hã... Mr. Tallow também vai a Richmond, minha senhora?

— Não. Trouxe-o porque Mr. Devereaux gosta de você, o que pode jogar a nosso favor. Mr. Tallow não tem tanta presença. Acho-o pretensioso e incompetente. Ah, nem sequer se pode confiar nele para proferir uma fórmula corretamente, como o atesta a cor da sua pele. — Soltou um suspiro pelo seu nariz afilado. — Você é um jovem inteligente, John — prosseguiu ela. — Compreende que, se o Primeiro-Ministro perder a paciência comigo, eu perderei a paciência com os que estão abaixo. Mr. Tallow é, por conseqüência, um homem preocupado. Não se deita sossegado. Sabe que podem acontecer coisas piores do que pesadelos a um homem enquanto dorme. No momento, ele o protege do olhar irado do meu desagrado, mas não se iluda. Apesar de ser jovem, pode ser culpado pelo sucedido muito facilmente. Mr. Tallow já tenta transferir a responsabilidade para você.

Nathaniel nada disse. Ms. Whitwell observou-o durante um bocado em silêncio, depois voltou o olhar para o rio, onde uma flotilha de pequenos navios começara a descer para o mar com muito alarde. Havia alguns couraçados com destino às longínquas colônias, os seus cascos de madeira cobertos com revestimento de metal; outros eram barcos de patrulha menores, concebidos para águas européias; mas tinham todos as velas desfraldadas, as bandeiras a agitar-se. Nas margens, multidões soltavam vivas, lançavam serpentinas para o ar que caíam no rio como chuva.

Naquela altura, Mr. Rupert Devereaux era Primeiro-Ministro havia quase vinte anos. Era um mago de capacidades secundárias, mas um político consumado, que conseguira manter-se no poder devido à sua perícia em virar os colegas uns contra os outros. Haviam sido feitas várias tentativas para derrubá-lo, mas a sua eficaz rede de espiões conseguira quase sempre apanhar os conspiradores antes de atacarem.

Reconhecendo desde o princípio que o seu domínio dependia, em grande medida, da manutenção de uma certa distância dos seus ministros menos importantes em Londres, Mr. Devereaux instalara a sua residência em Richmond, a cerca de dezesseis quilômetros do coração da capital. Os ministros principais eram convidados a reunir-se com ele todas as semanas; mensageiros sobrenaturais mantinham um fluxo constante de ordens e relatórios, e assim o Primeiro-Ministro mantinha-se informado. Entretanto, podia satisfazer a sua tendência para uma vida requintada, um hábito a que a natureza isolada da sua propriedade de Richmond se adequava magnificamente. Entre os seus outros prazeres, Mr. Devereaux desenvolvera uma paixão pelo teatro. Durante alguns anos, cultivara a amizade do proeminente dramaturgo da época, Quentin Makepeace, um cavalheiro de entusiasmo ilimitado, que freqüentava regularmente Richmond para dar ao Primeiro-Ministro espetáculos privados de um homem só.

À medida que ficava mais velho e as suas energias diminuíam, Mr. Devereaux raramente chegava sequer a sair de Richmond. Quando o fazia — talvez para passar revista às tropas de partida para o Continente ou assistir à estréia de um espetáculo teatral — fazia-se acompanhar sempre de uma guarda pessoal de magos do nono nível, e de um batalhão de borlas no segundo plano. Esta precaução tornara-se mais acentuada desde a conspiração de Lovelace, em que Mr. Devereaux quase morrera. A sua paranóia crescera como uma erva daninha num monte de estrume, torcendo-se e entrelaçando-se firmemente em volta de todos aqueles que o serviam. Nenhum dos seus ministros se sentia inteiramente seguro no que se referia ao emprego ou à própria vida.

A estrada de cascalhos passava por uma sucessão de aldeias que a generosidade de Mr. Devereaux tornara prósperas, antes de acabar em Richmond propriamente dita — um aglomerado de cabanas bem cuidadas espalhadas num gramado salpicado de carvalhos e castanheiros. De um lado do gramado havia um muro alto de tijolo, interrompido por um portão de ferro forjado que fora reforçado com as habituais seguranças mágicas. Do outro lado, um caminho curto entre filas de buxo terminava no pátio de tijolo vermelho de Richmond House.

A limusine imobilizou-se diante dos degraus da entrada, e quatro criados de libré vermelha, que estavam de serviço, desceram apressados. Apesar de ainda ser dia, lanternas fortes pendiam por cima da entrada e brilhavam alegremente em várias das janelas altas. Em algum lugar ao longe, um quarteto de cordas tocava com melancólica elegância. Ms. Whitwell não fez imediatamente sinal para que a porta do carro fosse aberta.

— Será um conselho decisivo, por isso não preciso dizer-lhe como se comportar. Sem dúvida Mr. Duvall irá se mostrar muito agressivo. Ele vê os acontecimentos de ontem à noite como uma grande oportunidade de obter uma vantagem decisiva. Temos ambos de manter a calma.

— Sim, minha senhora.

— Não me decepcione, John.

Bateu no vidro; avançou um criado, que abriu a porta do carro. Subiram juntos uns degraus baixos de arenito e entraram no átrio da casa. A música era mais forte aqui, vogando indolentemente entre as cortinas pesadas e o mobiliário oriental, aumentando esporadicamente, voltando a diminuir. O som parecia bastante próximo, mas nem sinal dos músicos. Nathaniel não estava à espera de vê-los. Nas ocasiões anteriores que fora a Richmond, houvera sempre música idêntica a tocar; seguia-nos para onde quer que fôssemos, um pano de fundo permanente para a beleza da casa e dos terrenos.

Um criado conduziu-os por uma série de aposentos luxuosos, até passarem por baixo de um arco branco e alto e entrarem num cômodo aberto e ensolarado, sem dúvida uma estufa anexa à casa. Estendiam-se de cada lado canteiros castanhos, bem proporcionados e elegantes, de onde brotavam roseiras ornamentais. Aqui e ali, pessoas invisíveis revolviam a terra com ancinhos.

Dentro da estufa, o ar estava quente, agitado apenas pela ventuinha indolente pendurada no teto. Embaixo, num semicírculo de canapés e divãs baixos, estavam reclinados o Primeiro-Ministro e a sua comitiva, a beber café de pequenas xícaras bizantinas brancas e a escutar as queixas de um homem imenso de terno branco. O estômago de Nathaniel agitou-se ao vê-lo ali: era Sholto Pinn, cujo negócio ficara destruído.

— Considero o ultraje mais desprezível — dizia Mr. Pinn. — Uma enorme afronta. Sofri tamanhas perdas...

O divã mais próximo da porta encontrava-se vazio. Ms. Whitwell sentou-se aqui, e Nathaniel, após alguma hesitação, fez o mesmo. Os seus olhos rápidos percorreram os ocupantes da sala.

Primeiro: Pinn. Normalmente, Nathaniel olhava o negociante com desconfiança e aversão, dado que fora amigo íntimo do traidor Lovelace. Mas nunca se provara nada, e este era manifestamente ali a parte lesada. Continuou as suas lamentações.

— ...que receio nunca mais vir a recuperar. A minha coleção de relíquias insubstituíveis desapareceu. Tudo o que me resta é um vaso de faiança contendo uma pasta seca sem utilidade! Mal posso...

O próprio Rupert Devereaux estava reclinado num divã de costas altas. Era de estatura e constituição medianas, atraente quando jovem, mas agora, graças aos muitos e variados prazeres, ligeiramente mais pesado em volta do rosto e da barriga. Expressões de tédio e contrariedade atravessavam-lhe constantemente o rosto enquanto escutava Mr. Pinn.

Mr. Henry Duvall, o Chefe de Polícia, estava sentado próximo, de braços cruzados, o boné cinzento repousando com aprumo nos joelhos. Vestia o uniforme característico dos Lobos Cinzentos, o corpo de elite da Polícia Noturna de que era comandante: uma camisa branca com gola de tufos; um blusão cinzento-nevoeiro, de forma quadrangular, cheio de goma e decorado com botões vermelho-vivos; calças cinzentas enfiadas em botas altas pretas. Nos ombros, dragonas de latão brilhante faziam lembrar garras. Com semelhante equipamento, a sua estrutura pesadona parecia ainda maior e mais larga do que na realidade era; silencioso e sentado, dominava a sala.

Encontravam-se presentes mais três ministros. Um homem discreto de meia-idade, com cabelo louro escorrido, estava sentado a mirar as unhas — era Carl Mortensen, do Ministério do Interior. A seu lado, bocejando ostensivamente, encontrava-se Helen Malbindi, a Ministra de Informação, de falinhas mansas. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Marmaduke Fry, homem de apetites vorazes, não fingia sequer escutar Mr. Pinn; pedia naquele momento, em alto e bom som, um almoço a um criado obsequioso.

— ...seis croquetes de batata, feijão verde, cortado no comprimento...

— ...durante trinta e cinco anos, fui reunindo as minhas mercadorias. Cada uma delas beneficiou da minha experiência...

— ...e outra omelete de ovas de bacalhau, com uma pitada de pimenta preta.

No mesmo divã de Mr. Devereaux, separado dele por uma pilha instável de almofadas persas, estava sentado um cavalheiro de cabelo ruivo. Vestia um colete verde-esmeralda, calças pretas justas com sequins pregados no tecido, e exibia um sorriso enorme. Parecia estar extremamente divertido com o debate. Os olhos de Nathaniel detiveram-se nele por um momento. Quentin Makepeace era autor de mais de vinte peças bem sucedidas, a última das quais, Cisnes da Arábia, ultrapassara os recordes de bilheteria em todo o Império. A sua presença ali era um tanto imprópria, mas não de todo inesperada. Era tido como o confidente mais chegado do Primeiro-Ministro, e os outros ministros toleravam-no com prudente cortesia.

Mr. Devereaux registrou a chegada de Ms. Whitwell e levantou uma mão em reconhecimento. Tossiu discretamente; a torrente de lamúrias de Mr. Pinn cessou imediatamente.

— Obrigado, Sholto — disse o Primeiro-Ministro. — Foi muito eloqüente. Estamos todos profundamente sentidos com a sua situação difícil. Talvez possamos agora ter algumas respostas. Jessica Whitwell chegou, juntamente com o jovem Mandrake, de quem, estou certo, todos se recordarão.

Mr. Duvall soltou um resmungo, a sua voz cheia de ironia.

— E quem é que não conhece o grande John Mandrake? Acompanhamos a sua carreira com interesse, em particular os seus esforços contra a incômoda Resistência. Espero que traga notícias de uma descoberta neste caso.

Todos os olhos se fixaram em Nathaniel. Esboçou uma breve vênia empertigada, como o impunha a cortesia.

— Boa tarde, meus senhores, minhas senhoras. Hã, ainda não há informações certas. Temos estado a investigar cuidadosamente o local e...

— Eu sabia! — As medalhas no peito do Chefe de Polícia oscilaram e tiniram com a força da sua interrupção. — Está ouvindo isso, Sholto? «Não há informações certas.» É um caso perdido.

Mr. Pinn olhou Nathaniel através do seu monóculo.

— Efetivamente. Muito decepcionante.

— Está na hora da Administração Interna ser afastada deste caso — prosseguiu Duvall. — Nós na polícia podíamos fazer muito melhor. Chegou o momento da Resistência ser esmagada.

— Apoiado, apoiado. — Mr. Fry ergueu o olhar por breves instantes, depois virou-se para o criado. — E uma torta de morango para sobremesa...

— Sem dúvida chegou — afirmou Helen Malbindi, com ar circunspecto. — Eu própria sofri algumas perdas... Recentemente, foi roubada uma valiosa coleção de máscaras de espíritos africanas.

— Alguns dos meus colegas — acrescentou Carl Mortensen — também foram roubados. E o armazém do meu fornecedor de carpetes persas foi incendiado a noite passada.

Do seu canto, Mr. Makepeace sorria amenamente.

— Na verdade, a maior parte destes crimes é principalmente em pequena escala, não é? Não nos atingem verdadeiramente. A Resistência não passa de uma cambada de tolos; afastam os comuns com as suas explosões... As pessoas estão com medo deles.

— Em pequena escala? Como pode dizer semelhante coisa — insurgiu-se Mr. Duvall —, quando uma das ruas mais prestigiadas de Londres foi destruída? Os nossos inimigos por esse mundo irão correndo dar as boas novas... que o Império Britânico está muito fraco para evitar ataques bem à sua porta. Chegará até às florestas interiores da América, posso lhes garantir. E, para cúmulo, logo no Dia de Gladstone!

— O que é uma extravagância ridícula, infelizmente — referiu Mortensen. — Um desperdício de recursos valiosos. Não sei por que homenageamos o velho tonto.

Ouviu-se uma risada de Mr. Makepeace.

— Não lhe teria dito isso na cara, Mortensen.

— Meus senhores, meus senhores... — O Primeiro-Ministro agitou-se. — Não devíamos estar discutindo. Num aspecto, Carl está certo. O Dia do Fundador é um assunto sério e tem de ser tratado como deve ser. Confundimos a população com trivialidades de mau gosto. Saem milhões do Cofre Público para financiar comida e jogos gratuitos. Até a Quarta Frota atrasou a sua partida para a América a fim de proporcionar um espetáculo extra. Qualquer coisa que estrague o efeito... e atinge Mr. Pinn no seu negócio — precisa ser rapidamente tratada. Neste momento, cabe à Administração Interna investigar crimes desta natureza. Agora, Jessica, se fizer o favor de informar...

Ms. Whitwell indicou Nathaniel.

— Mr. Mandrake tem estado a conduzir o caso com Mr. Tallow. Ainda não teve tempo de me informar. Sugiro que o ouçamos.

O Primeiro-Ministro sorriu favoravelmente a Nathaniel.

— Pode começar, John.

Nathaniel engoliu em seco. A sua mestra estava deixando-o entregue a si mesmo. Muito bem, nesse caso...

— É muito cedo para afirmar o que causou a destruição desta manhã — afirmou. — Talvez...

O monóculo de Sholto Pinn saltou-lhe do olho.

— Destruição? — bradou. — Isto é uma catástrofe! Como se atreve, rapaz?

Nathaniel prosseguiu obstinadamente.

— É muito cedo, senhor — insistiu —, para dizer se isto foi mesmo a Resistência. Pode muito bem não ter sido. É possível que sejam agentes de uma potência estrangeira, ou o ressentimento de um renegado do nosso país. Há uma série de aspectos estranhos no caso...

Mr. Duvall levantou uma mão peluda.

— Ridículo! É um ataque da Resistência com certeza. Tem todas as características dos seus crimes.

— Não, senhor. — Nathaniel obrigou-se a corresponder o olhar do Chefe de Polícia. Não ia continuar a vergar-se. — Os ataques da Resistência são em pequena escala, envolvendo geralmente ataques mágicos de baixo nível: vidros mouler, esferas de elementos. São sempre conduzidos contra alvos políticos... contra os magos, ou os estabelecimentos que nos fornecem... e têm um cunho de oportunismo. São sempre rápidos. O incidente em Piccadilly foi diferente. Foi feroz na sua intensidade, e durou muitos minutos. Os edifícios foram destruídos de dentro para fora; as paredes exteriores permanecem intactas na sua maioria. Em suma, creio que algo estaria a exercer um controle mágico de nível elevado sobre a destruição.

Ms. Whitwell falou então.

— Mas não havia sinais de diabretes ou djinn.

— Não, minha senhora. Passamos metodicamente a zona a pente fino, procuramos indícios, não encontramos nenhum. Não havia vestígios de magia convencional, o que parece excluir a presença de demônios; mas também não existia qualquer sinal de envolvimento humano. As pessoas presentes durante o ataque foram mortas por uma determinada magia forte, mas foi-nos impossível identificar a sua proveniência. Se me fosse permitido falar com franqueza... Mr. Tallow é extremamente meticuloso, mas os seus métodos não levam a lugar nenhum. Caso o nosso inimigo volte a atacar, estou convencido de que iremos continuar a seguir vacilantes atrás dele, a menos que mudemos de tática.

— Precisamos de mais poder para os Lobos Cinzentos — pediu Mr. Duvall.

— Com todo o respeito — disse Nathaniel —, seis dos seus lobos não foram suficientes ontem à noite.

Seguiu-se um breve silêncio. Os olhos negros miudinhos de Mr. Duvall mediram Nathaniel de cima a baixo. O seu nariz era pequeno mas largo demais; o queixo azul com a barba crescida, protuberante como um limpa-neves. Nada disse, mas a expressão nos seus olhos era muito expressiva.

— Bem, isto é que foi franqueza — disse por fim Mr. Devereaux. — Nesse caso, qual é a sua sugestão, John?

Agora é que era. Tinha de agarrar a oportunidade. Estavam todos à espera de que fracassasse.

— Penso que tudo aponta para que o assaltante de ontem à noite volte a dar sinal. Acabou de atacar Piccadilly — um dos destinos turísticos mais populares de Londres. Talvez pretenda humilhar-nos, semear a dúvida entre os visitantes do estrangeiro, para destruir a nossa posição internacional. Seja qual for o motivo, necessitamos de djinn de alto nível a patrulhar a capital. Eu os colocaria próximos de outras zonas comerciais importantes, e locais turísticos, como museus e galerias. Depois, se acontecesse algo, estaríamos em condições de agir prontamente.

Ouviram-se suspiros de descontentamento dos ministros reunidos e um clamor geral. A sugestão era absurda: as esferas de vigilância já andavam a patrulhar; os policiais estavam também em força; djinn de alto nível implicavam muitos gastos de energia... Só o Primeiro-Ministro permaneceu calado — juntamente com Mr. Makepeace, que se reclinou no sofá com uma expressão de grande regozijo.

Mr. Devereaux pediu silêncio.

— Parece-me que as provas são inconclusivas. Será este ultraje obra da Resistência? Talvez sim, ou talvez não. Haveria utilidade uma maior vigilância? Quem sabe? Bem, tomei uma decisão. Mandrake, você revelou-se mais do que capaz no passado. Volte a fazê-lo agora. Organize esta vigilância e persiga o perpetrador. Vá também atrás da Resistência. Quero resultados. Se a Administração Interna falhar — aqui olhou intencionalmente para Nathaniel e Ms. Whitwell —, teremos de deixar que outros departamentos se encarreguem do caso. Sugiro que se retirem agora e escolham os seus demônios com todo o cuidado. Quanto aos outros aqui presentes... É o Dia do Fundador, e deveríamos comemorar. Vamos jantar!

Ms. Whitwell não falou até o carro ter deixado bem para trás a aldeia de Richmond.

— Tem em Duvall um inimigo — comentou por fim. — E não me parece que os outros gostem muito de ti. Mas isso é o que menos interessa agora. — Olhou para as árvores escuras, os campos que passavam a correr ao crepúsculo. — Tenho fé em ti, John — prosseguiu. — Esta tua idéia pode dar alguns frutos. Fale com Tallow, põe o teu serviço a trabalhar, manda os teus demônios investigar. — Passou uma mão magra e comprida pelo cabelo. — Não posso me concentrar pessoalmente neste problema. Tenho muitos preparativos a fazer com as campanhas americanas. Mas se conseguir descobrir o nosso inimigo, se trouxer algum orgulho de volta à Administração Interna, será bem recompensado... — A afirmação continha a insinuação do seu oposto. Deixou-a em suspenso; não precisava de dizer o resto.

Nathaniel sentiu-se obrigado a responder.

— Sim, minha senhora — proferiu em voz atrapalhada. — Obrigado.

Ms. Whitwell anuiu lentamente. Olhou para Nathaniel e, não obstante a admiração e o respeito pela sua mestra, não obstante os longos anos vivendo na casa dela, sentiu subitamente que ela o olhava com desprendimento, como se de uma grande distância. Era o olhar que um falcão no ar dá a um coelho assustado, enquanto pondera se vale a pena o vôo rasante. Nathaniel ficou de repente muito consciente da sua juventude e fragilidade, da sua imensa vulnerabilidade, comparadas com o poder dela.

— Não temos muito tempo — disse a sua mestra. — Para o teu bem, espero que tenha um demônio competente a postos.

 

Como sempre, claro, tentei resistir.

Usei todas as minhas energias para contrariar o puxão, mas as palavras de submissão eram muito fortes; cada sílaba era um arpão a penetrar na minha substância, a atraí-la a si, a arrastar-me dali. Durante três breves segundos, a delicada gravidade do Outro Lugar ajudou-me a resistir... depois, num ápice, o seu apoio enfraqueceu e fui arrancado como uma criança do seio da mãe.

Subitamente, a minha essência foi compactada, entendeu-se até uma distância infinita e, um momento depois, foi arremessada para o mundo e os odiados limites familiares de um pentagrama.

Onde, de acordo com as leis imemoriais, me materializei de imediato.

Opções, opções. O que iria ser? O chamado era poderoso — o mago desconhecido era sem dúvida experiente, e assim, pouco provável que se intimidasse com um buggane a bradar ou um espectro de olhos tipo teia de aranha. Decidi-me então por um aspecto delicado, esmerado, para impressionar o captor com a minha formidável sofisticação.

Foi um trabalho e tanto, se me é permitido afirmá-lo. Uma enorme bolha iridescente, toda ela a brilhar com um resplendor perolado, a rodar no meio do ar. Espalharam-se fragrâncias suaves de madeiras aromáticas — tenuemente, como se vinda de longe — a música etérea de harpas e violinos. Dentro da bolha, com óculos pequenos redondos empoleirados no seu delicado nariz, estava uma bela donzela.11 Espreitou calmamente lá para fora.

 

11 O rosto dela baseava-se no de uma Vestal que conhecera em Roma, uma mulher de idéias incrivelmente independentes. Julia costumava afastar-se da Chama Sagrada à noite para ir apostar nas corridas do Circo Máximo. Ela não usava óculos realmente, claro. Acrescentei-os aqui para dar um pouco mais de circunspeção ao rosto. Chamem-lhe liberdade artística.

 

E soltou um grito de fúria estupefata.

— Você!

— Tenha calma, Bartimaeus...

— Você! — A música etérea foi interrompida com um som desagradável; as suaves fragrâncias aromáticas tornaram-se fétidas e acres. O belo rosto de donzela ficou carmesim, os seus olhos salientes como dois ovos escalfados; o vidro das lentes estalou. A sua boca de botão de rosa abriu-se e revelou dentes amarelos afiados agitando-se impacientemente de raiva. Dançaram chamas dentro da bolha e a sua superfície cresceu perigosamente, como se prestes a arrebentar, o ar começou a zumbir.

— Escute-me só por um minuto...

— Nós tínhamos um acordo! Cada um de nós fez uma jura!

— Ora, para falarmos com rigor, isso não é bem verdade...

— Não? Esqueceu-se tão depressa? E foi depressa, não foi? Perco a noção do tempo no Outro Lugar, mas você não me parece muito diferente de antes. Continua a ser um moleque!

Ele levantou-se.

— Sou um membro importante do Governo...

— Nem sequer faz a barba ainda. Quanto foi... passaram-se dois anos, talvez três?

— Dois anos e oito meses.

— Portanto agora tem catorze. E já está a me chamar outra vez.

— Sim, mas espere um minuto... Eu não cheguei a fazer um juramento nessa altura. Apenas te deixei partir. Eu nunca disse...

— ...que não voltaria a me chamar? Isso estava firmemente implícito. Eu esqueceria o teu nome verdadeiro, você esqueceria o meu. Combinado. Mas agora... — Dentro da bolha giratória, o rosto da bela donzela regredia rapidamente por uma vertente evolutiva; apareceu uma testa muito saliente, um nariz com reentrâncias, olhos vermelhos ferozes... Os pequenos óculos redondos estavam destoando um pouco; uma garra subiu dentro da bolha, agarrou os óculos e enfiou-os na boca, onde dentes afiados os transformaram em pó.

O rapaz ergueu uma mão.

— Pare de se mexer e ouça-me por um momento.

— Ouvi-lo? Por que haveria de fazê-lo, quando a dor da última vez ainda mal passou? Vou te dizer, estava a contando com muito mais do que dois anos...

— Dois anos e oito meses.

— ...dois miseráveis anos humanos para recuperar o trauma de te aturar. É claro que eu sabia que algum idiota de chapéu bicudo haveria de me chamar um dia, mas nunca imaginei que fosse o mesmo da última vez!

Ele franziu os lábios.

— Eu não tenho um chapéu bicudo.

— Você é um tolo! Conheço o teu nome próprio e você me traz de volta ao mundo contra a minha vontade. Bem, não podia estar melhor, porque vou gritá-lo dos telhados antes de partir!

— Não... você jurou...

— O meu juramento terminou, acabou, desfez-se, anulou-se, foi devolvido ao remetente sem ser aberto. É preciso dois jogadores, rapaz. — O rosto da donzela desaparecera. No seu lugar, uma forma bestial, toda ela dentes e pêlos espinhosos, beliscava a superfície da bolha como se tentasse se libertar.

— Se me der só um minuto para explicar! Estou te fazendo um favor!

— Um favor? Oh, pago para ver! Esta eu tenho mesmo que ouvir.

— Então cale-se durante meio segundo e deixe-me falar.

— Está bem! Pronto! Vou me calar!

— Ótimo.

— Ficarei silencioso como um túmulo. O teu túmulo, por sinal.

— Nesse caso...

— E vamos ver se, ainda que vagamente, consegue arranjar um pretexto que valha a pena ouvir, porque eu duvido...

— Quer se calar!? — O mago ergueu subitamente uma mão e senti a correspondente pressão no exterior da bolha. Parei logo com as baboseiras.

Ele respirou fundo, puxou o cabelo para trás e compôs os punhos desnecessariamente.

— Ora bem — disse. — Estou dois anos mais velho, como calculou muito acertadamente. Mas também estou dois anos mais sábio. E devo avisá-lo de que não irei usar o Aperto Sistemático, se pisar a risca. Não. Já passou pela experiência da Pele Invertida alguma vez? Ou da Essência Suspensa? Está claro que sim. Com uma personalidade como a tua, é garantido.12 Portanto, agora não abuse da minha paciência.

 

12 Ele tinha razão, infelizmente. Passara por ambas no meu tempo. A Pele Invertida é particularmente incômoda. Dificulta os movimentos e quase impossibilita a conversa. Inferniza-nos também as partes moles.

 

— Já passamos por tudo isto antes — disse eu. — Lembra-se? Sabe o meu nome. Eu sei o teu. Você dispara um castigo contra mim, eu devolvo de imediato. Ninguém vence. Saímos ambos a perder.

O rapaz suspirou, acenou com a cabeça.

— É verdade. Talvez devêssemos nos acalmar. — Cruzou os braços e concedeu-se alguns momentos de impiedosa contemplação da minha bolha.13

 

13 Que pairava agora sem se mexer, ainda a um metro ou coisa assim do chão. A superfície estava opaca, tendo o monstro lá dentro desaparecido, todo enxofrado.

 

Foi a minha vez de olhá-lo com frieza. O seu rosto tinha ainda o mesmo aspecto pálido, ou pelo menos a parte que eu conseguia ver tinha, dado que metade estava coberto por uma imensa cabeleira. Juro que ele não devia ter estado perto de uma tesoura desde a última vez que lhe pusera os olhos em cima: os caracóis caíam-lhe em cascata em volta do pescoço como umas gordurosas Cataratas do Niágara negras.

Quanto ao resto, estava menos escanzelado do que antes, é certo, mas encorpara menos, pelo que dava a idéia de ter sido esticado desajeitadamente. Parecia que um gigante pegara nele pela cabeça e pelos pés, dera um puxão, depois fora-se embora, repugnado: o seu torso era estreito como um fuso, os braços e as pernas uns palitos desengonçados, os pés e as mãos com leves reminiscências simiescas.

O efeito de palito era acentuado pela escolha das roupas: um terno pretensioso, tão justo que parecia ter sido pintado sobre ele, um ridículo casaco comprido preto, sapatos afiados como punhais e um lenço farfalhudo do tamanho de uma pequena tenda pendia do respectivo bolso. Podia dizer-se que ele se julgava tremendamente elegante.

Houve aqui alguns ensejos de duros insultos, mas eu iria saber esperar. Dei uma olhada rápida na sala, que me pareceu uma câmara de chamado algo formal, provavelmente num edifício governamental. O chão era de uma espécie de madeira artificial, completamente liso, sem nós nem defeitos, evidentemente perfeito para a construção de um pentagrama. Um armário com portas de vidro a um canto continha uma série de paus de giz, réguas, compassos e papéis. Um outro ao lado encontrava-se cheio de frascos e garrafas de várias dúzias de incensos. As paredes estavam pintadas de branco. Uma janela quadrada numa parede mostrava um céu noturno preto; um aglomerado monótono de lâmpadas pendendo do teto iluminava a sala. A única porta era de ferro e estava trancada por dentro.

O rapaz chegou ao fim da sua meditação, ajustou novamente os punhos e franziu a testa. Pôs uma expressão ligeiramente compungida: ou estava tentando mostrar-se cerimonioso, ou tivera uma horrível indigestão... era difícil saber qual das duas.

— Bartimaeus — começou ele, em tom solene —, escute bem. Acredite em mim, lamento profundamente voltar a te chamar, mas não tive muitas escolhas. As circunstâncias mudaram, neste caso, e beneficiaremos ambos ao renovarmos o nosso relacionamento.

Fez uma pausa, parecendo pensar que eu pudesse querer fazer um comentário construtivo. Nem pensar. A bolha permanecia murchinha e imóvel.

— No essencial, a situação é simples — prosseguiu ele. — O Governo, de que faço parte agora,14 está planejando uma grande ofensiva terrestre nas colônias americanas neste Inverno. Provavelmente, os combates terão custos para ambos os lados, mas dado que as colônias se recusam a vergar à vontade de Londres, infelizmente parece não haver outra hipótese senão autorizar o derramamento de sangue. Os rebeldes estão bem organizados e têm magos próprios, com algum poder. Para derrotá-los, vamos enviar uma grande força de guerreiros-magos, com os seus djinn e demônios menores a reboque.

 

14 Aqui, compôs mais uma vez o cabelo. Este gesto emproado fez-me lembrar vagamente alguém, mas não sabia muito bem quem.

 

Agitei-me ante aquelas palavras. Abriu-se uma boca na parte lateral da bolha.

— Vai perder a guerra. Já esteve na América? Eu morei lá, intermitentemente, durante duzentos anos. Todo o continente é um deserto... Ao que parece, vai ser eternamente assim. Os rebeldes recuarão, te arrastarão para uma campanha de guerrilha sem fim e o sangrarão até à morte.

— Nós não vamos perder, mas tem razão ao dizer que será difícil. Muitos homens e muitos djinn perecerão.

— Muitos homens, sem dúvida.

— Os djinn caem com igual rapidez. Não foi sempre assim? Esteve em muitas batalhas no teu tempo. Sabe como é. Por isso estou te fazendo um favor. O Arquivista-mor tem estado a analisar os registros e catalogou uma lista de demônios que poderiam ser úteis para a campanha americana. O teu nome consta dela.

Uma grande campanha? Listas de demônios? Parecia-me pouco provável. Mas avancei cautelosamente, tentando tirar-lhe mais informações. A bolha contorceu-se, um gesto algo semelhante a um encolher de ombros.

— Ótimo — disse ela. — Gostei da América. Melhor do que este chiqueiro de Londres a qual chama de pátria. Nada da horrível selva urbana... Extensões muito grandes de céu e erva, com montanhas de cumes brancos erguendo-se até se perder de vista... — Para acentuar a minha satisfação, fiz aparecer dentro da bolha uma cara de búfalo feliz.

O rapaz esboçou aquele sorriso familiar de lábios finos que eu conhecera e abominara tão profundamente dois anos antes.

— Ah. Já não vai à América há um bom tempo, não é?

O búfalo olhou-o de soslaio.

— Porquê?

— É que agora também existem cidades lá, estendendo-se ao longo da costa oriental. Algumas até se aproximam de Londres no tamanho. Aí é que está o problema. Para lá da faixa cultivada, fica o deserto a que se refere, mas isso não nos interessa. Irá lutar nas cidades.

O búfalo inspecionou um casco com falsa indiferença.

— Não me incomoda nada.

— Não? Não preferia trabalhar aqui para mim? Posso tirá-lo da lista de guerra. Seria a tempo determinado, apenas algumas semanas. Um pouco de trabalho de vigilância. Bem menos perigoso do que um campo de batalha.

— Vigilância? — Fui mordaz. — Peça a um diabrete.

— Os Americanos têm afrits, sabia?

Isto já fora longe demais.

— Oh, por favor — disse-lhe. — Eu me arranjo. Consegui sobreviver à batalha de Al-Arish e ao Cerco de Praga sem ter você por lá para me segurar a mão. Sejamos sinceros, deve estar metido numa grande enrascada, senão nunca me teria trazido de volta. Especialmente considerando o que eu sei... hã, Nat?

Por um instante, pareceu que o rapaz fosse explodir de fúria, mas controlou-se a tempo. Encheu as faces de ar e soprou enfastiado.

— Está bem — concordou. — Admito. Não te chamei aqui só para te fazer um favor.

O búfalo revirou os olhos.

— Oh!, mas que grande novidade.

— Estou aqui um pouco sob pressão — prosseguiu o rapaz. — Preciso de resultados rapidamente. Caso contrário — cerrou os dentes com força —, posso ser... dispensado. Acredite em mim, adoraria ter chamado um de... um djinni com melhores modos do que você, mas não tenho tempo para procurar um convenientemente.

— Ora, isso me cheira à verdade — afirmei. — Aquela história da América era uma grande mentira, não era? Tentando obter a minha gratidão antecipadamente. Pois é. Não caio nessa. Sei o teu nome próprio e tenciono usá-lo. Se não for tolo, despacha-me em três tempos. A nossa conversa acabou. — Para frisá-lo, a cabeça do búfalo ergueu o focinho para o céu e girou altivamente dentro da bolha. O rapaz saltitava de agitação.

— Oh, vamos lá, Bartimaeus...

— Não! Pode suplicar à vontade, que este búfalo faz orelhas moucas.

— Nunca te suplicarei! — Agora, a sua raiva libertara-se com toda a intensidade. Caramba, foi uma torrente medonha de petulância. — Ouça bem o que te digo — falou com rispidez. — Se eu não tiver ajuda, não sobreviverei. Isto pode não significar nada para você...

O búfalo olhou por cima do ombro, de olhos arregalados.

— Quantos poderes! Leu-me o pensamento!

— ...Mas isto talvez. A campanha americana realmente existe. Não há lista, confesso, mas se não me ajudare e eu perder a vida, farei de tudo antes para que o teu nome seja lembrado às tropas que estão lá. Depois pode proclamar o meu nome próprio aos quatro ventos que não te servirá de nada. Não estarei aqui para sofrer. Por isso, são estas as tuas opções — concluiu, cruzando mais uma vez os braços —: apenas alguma vigilância ou a exposição aos combates. É contigo.

— Ah é? — disse eu.

Ele respirava com dificuldade; o cabelo caía-lhe diante do rosto.

— Sim, traiu-me por tua conta e risco.

O búfalo virou-se e deitou-lhe um longo olhar fuzilante. Na verdade, um pouco de vigilância era infinitamente preferível a ir para a guerra — as batalhas têm o desagradável hábito de se descontrolarem. E, apesar de furioso com o jovem, sempre o achara marginalmente um amo mais compassivo do que a maior parte dos outros. Só não sabia se conservaria-se assim. Como decorrera pouco tempo, era possível que ele não tivesse se deixado corromper completamente. Abri a parte dianteira da bolha e espreitei lá para fora, de casco no queixo.

— Bem, parece que voltou a ganhar — afirmei tranqüilamente. — Pelo visto não tenho alternativa.

Ele encolheu os ombros.

— Realmente, não tem.

— Nesse caso — continuei —, o mínimo que pode fazer é dar-me algumas informações. Vejo que subiu na escala. Qual é a tua categoria?

— Trabalho na Administração Interna.

— Administração Interna? Esse não era o pelouro de Underwood? — O búfalo arqueou uma sobrancelha. — Ah... Alguém anda a seguir os passos do antigo mestre...

O rapaz mordeu o lábio.

— Não ando. Isto não tem nada a ver.

— Talvez alguém ainda se sinta um pouco culpado pela sua morte...15

 

15 Devido a uma complexa série de roubos e mentiras, Nathaniel provocara (mais ou menos) inadvertidamente, a morte do seu mestre, dois anos antes. Na altura, isso atormentara-lhe a consciência. Estava curioso para ver se ainda se sentia assim.

 

O rapaz corou.

— Que bobagem! É uma perfeita coincidência. A minha nova mestra sugeriu que eu aceitasse o trabalho.

— Ah sim, claro. A cheirosa Ms. Whitwell. Uma criatura deliciosa.16 — Observei-o com atenção, começando a entusiasmar-me com a minha tarefa. — Ela também te aconselhou sobre o teu sentido de estilo? Afinal, onde foi arranjar essas calças justas caricatas? Consigo ler a etiqueta das tuas cuecas através delas. E quanto a esses punhos...

 

16 É o que se chama ironia. Whitwell era, na verdade, um espécime absolutamente desagradável. Alta e esquelética, os seus membros pareciam paus secos compridos. Surpreendia-me que não pegasse fogo quando cruzava as pernas.

 

Crispou-se.

— Esta camisa foi caríssima. Seda milanesa. Os punhos grandes são a última moda.

— Parecem escovas de limpar sanitários com rendas. Não sei como é que não fica todo eriçado numa corrente de ar. Por que não os arrancas e faz um segundo terno com eles? Não ficaria pior do que esse que usa. Ou então uma fita bonita para o teu cabelo.

Era espantoso como estas brincadeiras sobre as suas roupas pareciam aborrecê-lo mais do que a menção a Underwood. As suas prioridades tinham sem dúvida mudado com o passar dos anos. Esforçou-se por controlar a fúria, mexendo incessantemente nos punhos, compondo repetidamente o cabelo.

— Olhe para você — disse-lhe. — Tantos habitozinhos novos. Aposto que foi copiar de um dos teus ricos magos.

A mão dele largou o cabelo.

— Não fui, não.

— Provavelmente mete os dedos no nariz, como faz Ms. Whitwell, tão desesperado está por ser igualzinho a ela.

Apesar se ser bastante mau estar de volta, dava gosto vê-lo a contorcer-se novamente de fúria. Deixei-o andar aos saltos dentro do seu pentagrama durante um momento ou dois.

— Não me diga que já te tinha esquecido? — zombei, todo animado. — Chama-me, e tem a insolência como brinde. Vem com o pacote.

Soltou um gemido, cobrindo a boca com as mãos.

— De repente, a morte não parece tão assustadora.

Sentia-me agora um pouco melhor. Pelo menos as nossas regras básicas estavam firmemente restabelecidas.

— Fale-me então deste trabalho de vigilância — pedi. — Disse que é simples?

Recompôs-se.

— Sim.

— E, no entanto, o teu trabalho, a tua própria vida, dependem disso.

— É verdade.

— Por conseguinte, não existe nele nada de remotamente perigoso ou complexo?

— Não. Bem... — Deteve-se. — Nem por isso.

O búfalo bateu ameaçadoramente com o casco.

— Vamos lá...

O rapaz suspirou.

— Há algo em Londres que é altamente destrutivo. Não é um marid, nem um afrit, nem um djinni. Não deixa vestígios de magia. Destruiu metade de Piccadilly ontem à noite, provocando estragos terríveis. A Pinn’s Accoutrements ficou destruída.

— Sério? O que aconteceu a Simpkin?

— O foliot? Oh, pereceu.

— Tch. Que pena.17

 

17 Estou sendo sincero. Via-me privado da minha vingança.

 

O rapaz encolheu os ombros.

— Partilho alguma responsabilidade na segurança da capital e a culpa recairá sobre mim. O Primeiro-Ministro está furioso, e a minha mestra recusa-se a proteger-me.

— Está surpreendido? Eu o avisei sobre Whitwell.

Mostrou-se taciturno.

— Ela vai acabar por se arrepender da sua deslealdade, Bartimaeus. Seja como for, estamos a perder tempo. Preciso que fique de vigia e localize o agressor. Estou também organizando outros magos para enviarem os seus djinn para a rua. O que me diz?

— Vamos logo acabar com isso — respondi. — Qual é a ordem e quais são as tuas condições?

Deu-me um olhar fuzilante por entre os seus voluptuosos caracóis.

— Proponho um contrato semelhante ao da última vez. Você aceita servir-me, sem revelar o meu nome próprio. Se for zeloso e reduzir ao mínimo os comentários injuriosos, a duração do teu serviço será relativamente curta.

— Quero uma duração específica. Nada de indefinições.

— Está bem. Seis semanas. Para você, é um mero abrir e fechar de olhos.

— E quais são as minhas obrigações?

— Proteção geral do teu amo (eu) com várias finalidade. Vigilância de certos locais em Londres. Perseguição e identificação de um inimigo desconhecido de considerável poder. Que tal?

— Vigilância, está certo. A cláusula de proteção é um bocado chata. Por que não a deixamos de fora?

— Porque depois não poderei confiar em você para me manter seguro. Nenhum mago correria semelhante risco.18 Você me apunhalaria pelas costas na primeira oportunidade. Então, concorda?

 

18 Neste aspecto, ele estava enganado: um mago dispensara efetivamente todas as cláusulas de proteção, e depositara confiança em mim. Tratou-se de Ptolomeu, claro. Mas ele era único. Nada de semelhante jamais voltaria a acontecer.

 

— Concordo.

— Então prepare-se para aceitar a tua ordem! — Levantou os braços e espetou o queixo, uma postura que perdeu a sua imponência visto o cabelo estar sempre caindo para frente dos olhos. Aparentava cada um dos seus catorze anos.

— Espera aí. Deixe-me ajudar. É tarde, já devia estar na caminha. — O búfalo pusera agora os óculos da donzela no focinho. — E que tal isto... ? — Proferi-o em voz monótona, oficial: «Servir-te-ei mais uma vez durante seis semanas inteiras. Se sujeito a tortura, prometo não revelar o teu nome durante esse tempo...»

— O meu nome próprio.

— Oh, está bem: «... o teu nome próprio durante esse tempo a qualquer humano que atravesse meu caminho.» Que tal?

— Ainda não chega, Bartimaeus. Não é uma questão de confiança, mas antes de plenitude. Proponho: «... durante esse tempo a qualquer humano, diabrete, djinni ou outro espírito sensível, neste mundo ou noutro, em qualquer plano; não deixar escapar as sílabas do nome de forma a que seja possível ouvir-se um eco; nem murmurá-las para dentro de uma garrafa, cavidade ou outro lugar secreto onde os seus vestígios venham a ser detectados por meios mágicos; nem escrevê-las nem registá-las de outra forma, em qualquer língua conhecida, de modo a que o seu significado possa ser descoberto.»

Bastante justo. Repeti as palavras sinistramente. Seis longas semanas. Pelo menos ele deixara de fora uma implicação do fraseado que eu escolhera: uma vez terminadas as seis semanas, eu seria livre para falar. E falaria, ah se não, se tivesse a mais remota hipótese.

— Muito bem — disse eu. — Está feito. Conte-me coisas sobre este teu inimigo desconhecido.

 

Na manhã seguinte ao Dia do Fundador, o tempo mudou nitidamente para pior. Nuvens cinzentas carregadas acumulavam-se sobre Londres e começou a cair uma chuva miudinha. Rapidamente as ruas ficaram vazias, à exceção do tráfego essencial, e os membros da Resistência, que normalmente andariam à procura de novos alvos, reuniram-se na sua base.

O ponto de encontro deles era uma pequena loja bem equipada, no coração de Southwark. Vendia tintas e pincéis e outros materiais afins, e era popular entre os comuns com tendências artísticas. Algumas centenas de metros para o norte, por trás de uma fila de casas decrépitas, corria o grande Tamisa; para lá disso, ficava o centro de Londres, onde abundavam os magos. Mas Southwark era relativamente pobre, cheio de pequena indústria e comércio, e os magos raramente punham os pés ali.

O que muito convinha aos ocupantes da loja de arte.

Kitty encontrava-se de pé por trás do balcão de vidro, a arrumar resmas de papel de acordo com o tamanho e o peso. De um dos lados do balcão havia uma pilha de rolos de pergaminho, atados com cordel, um pequeno expositor de espátulas e seis frascos de vidro grandes, cheios de pincéis de crina de cavalo. Do outro lado, muito próximo para se sentir confortável, encontrava-se o traseiro de Stanley. Estava sentado de pernas cruzadas sobre o balcão, a cabeça enterrada no matutino.

— Ele nos culpam, sabe — afirmou ele.

— Do quê? — perguntou Kitty. Sabia perfeitamente.

— Daquele assunto desagradável lá na cidade. — Stanley dobrou o jornal ao meio e colocou-o sobre o joelho. — E passo a citar:

«Na seqüência do ultraje de Piccadilly, o porta-voz da Administração Interna, Mr. John Mandrake, aconselhou todos os cidadãos leais a ficarem atentos. Os traidores responsáveis pela carnificina ainda andam à solta em Londres. As suspeitas recaem sobre o mesmo grupo que desencadeara anteriormente uma série de ataques em Westminster, Chelsea e Shaftesbury Avenue.» Shaftesbury Avenue... Eh, isso somos nós, Fred!

Fred limitou-se a soltar um resmungo. Estava sentado numa cadeira de vime entre dois cavaletes encostados à parede, pelo que balançava e vacilava sobre as duas pernas. Estava na mesma posição havia quase uma hora, a olhar para o ar.

— «Pensa-se que a chamada Resistência seja constituída por jovens descontentes» — prosseguiu Stanley —, «altamente perigosos, fanáticos e dados à violência»... Credo, Fred, foi a tua mãe que escreveu isto? Eles parecem conhecê-lo tão bem... «... não deveriam ser abordados. Por favor informem a Polícia Noturna», blá, blá, blá... «Mr. Mandrake irá organizar novas patrulhas noturnas... recolher obrigatório depois das nove da noite para segurança pública»... a história de costume. — Atirou o jornal para cima do balcão. — Um nojo, é o que eu acho. O nosso último trabalho quase não é referido. A coisa de Piccadilly roubou-nos por completo o impacto. Ainda não chega. Precisamos agir.

Olhou para Kitty, que estava ocupada a contar folhas de papel.

— Não lhe parece, ó mandona? Devíamos pegar algumas daquelas mercadorias do porão; fazer uma visita a Covent Garden ou outro lugar. Causar agitação de verdade.

Ela levantou os olhos, fuzilando-o por baixo das sobrancelhas.

— Não há necessidade, não é? Alguém já fez por nós.

— Alguém, sim... Mas quem? — Levantou a parte de trás do boné, coçou-se com precisão. — Aqui pra nós, eu culpo os checos. — Fitou-a pelo canto do olho.

Estava novamente a provocá-la, novamente a contestar a sua autoridade, a testar os seus pontos fracos. Kitty bocejou. Ele teria de se esforçar um pouco mais.

— Talvez — disse indolentemente. — Ou podem ser os magiares, ou os americanos... ou uma centena de outros grupos. Opositores é o que não falta. Seja quem for, atingiu um local público e isso não é o nosso modo de atuar, como sabe muito bem.

Stanley protestou.

— Não me diga que ainda está chateada com o incêndio dos tapetes? Chata. Nem sequer seríamos mencionados se não fosse isso.

— Houve feridos, Stanley. Comuns.

— Colaboracionistas, muito provavelmente. Correram para salvar os tapetes dos patrões deles.

— Mas por que é que você não...? — Calou-se; a porta se abrira. Uma senhora de meia-idade, cabelo escuro, rosto enrugado, entrou na loja, sacudindo o chapéu de chuva.

— Olá, Anne — saudou Kitty.

— Olá a todos. — A recém-chegada olhou à sua volta, sentindo a tensão. — Está se fazendo sentir o efeito do mau tempo? Paira aqui um ambiente pesado. O que se passa?

— Nada. Estamos ótimos. — Kitty esboçou um sorriso descontraído. Era inútil prolongar a discussão. — Como se saiu ontem?

— Oh, uns furtozitos aos ricos — disse Anne. Pendurou o chapéu de chuva e encaminhou-se para o balcão, despenteando o cabelo de Fred ao passar. Não era muito elegante, com um andar algo bamboleante, mas tinha uns olhos penetrantes e vivos como os de uma ave. — Todos os magos estavam junto ao rio a noite passada, assistindo ao desfile naval. É espantoso como pouquíssimos deles protegiam os seus bolsos. — Levantou uma mão e esboçou com os dedos um movimento rápido de arrebanhar. — Peguei duas jóias com auras fortes. O Chefe vai ficar interessado. Pode mostrá-las a Mr. Hopkins.

Stanley agitou-se.

— Trouxe-as para cá? — perguntou.

Anne esboçou um esgar.

— No caminho passei pelo pátio e deixei-as no porão. Acha que ia trazê-las para cá? Vá me preparar uma xícara de chá, rapaz estúpido.

«No entanto, é capaz de ser a última coisa que arranjaremos durante uns tempos — continuou Anne, enquanto Stanley saltava do balcão e desaparecia nos fundos da loja. — Aquele ataque de Piccadilly foi sensacional, seja lá quem o cometeu. Foi o mesmo que colocar uma pedra num vespeiro. Viu os céus ontem à noite? A transbordar de demônios.

Da sua cadeira, Fred resmungou em concordância.

— A transbordar — disse.

— É outra vez aquele Mandrake — comentou Kitty. — Vem no jornal.

Anne anuiu, carrancuda.

— Não desiste. Aquela criança falsa...

— Espere. — Kitty indicou a porta. Entrou um homem magro de barba, vindo da chuva. Remexeu durante um bocado nos lápis e blocos. Kitty e Anne movimentaram-se pela loja, e até Fred efetuou algum trabalho subalterno. Por fim, o homem comprou o que queria e saiu.

Kitty olhou para Anne, que abanou a cabeça.

— Ele era normal.

— Quando é que o Chefe volta? — perguntou Fred, largando a caixa que trazia.

— Em breve, espero — respondeu Anne. — Está investigando algo grande com Hopkins.

— Que bom. E nós aqui ralando.

Stanley regressou, trazendo um tabuleiro com xícaras de chá. Acompanhava-o um homem jovem entroncado com cabelo muito louro, de braço ao peito. Sorriu a Anne, bateu nas costas de Kitty e tirou uma xícara do tabuleiro.

Anne olhou carrancuda para o braço dele.

— Como? — limitou-se a perguntar.

— Meti-me numa briga. — Bebeu um gole de chá. — Ontem à noite, no ponto de encontro, nos fundos do bar Black Dog. O auto-proclamado grupo de ação dos comuns. Estava tentando interessá-los numa verdadeira ação positiva. Assustaram-se; recusaram terminantemente. Aborreci-me um pouco, disse-lhes o que pensava a seu respeito. Houve uma rixa. — Esboçou um esgar. — Não foi nada.

— Você é um idiota, Nick — censurou Kitty. — Dessa maneira não vai conseguir recrutar ninguém.

Ele carregou o semblante.

— Devia tê-los ouvido. Estão aterrorizados.

— Covardes. — Stanley sorveu ruidosamente o seu chá.

— Com o quê? — indagou Anne.

— Com tudo, à escolha: demônios, magos, espiões, esferas, magia de todo o tipo, polícia, represálias... É inútil.

— Bem, não admira — observou Kitty. — Eles não têm as nossas vantagens, não é?

Nick abanou a cabeça.

— Quem sabe? Eles não correm riscos para saber. Lancei algumas pistas sobre os tipos de coisas que fazíamos... mencionei aquela loja de tapetes da outra noite, por exemplo... mas eles ficaram todos calados, beberam as suas cervejas e recusaram-se a responder. Não existe empenho em lado nenhum. — Bateu com a xícara no balcão, furioso.

— Precisamos que o Chefe volte — alegou Fred. — Ele nos dirá o que fazer.

A raiva de Kitty veio mais uma vez à superfície.

— Ninguém quer se envolver em coisas como o trabalho dos tapetes: é sujo e perigoso e acima de tudo afeta mais os comuns do que os magos. É esse o problema, Nick: temos de lhes mostrar que a nossa atividade não se limita a fazer explodir coisas. Mostrar-lhes que estamos levando-os a algum lugar...

— Ouçam-na. — vangloriou-se Stanley. — Kitty está amolecendo.

— Olha aqui, seu patife...

Anne bateu duas vezes com a borda da xícara no balcão de vidro, com tanta força que estalou. Olhava na direção da porta da loja. Lentamente, sem seguir o olhar dela, todos dispersaram. Kitty foi para trás do balcão; Nick voltou para o cômodo dos fundos; Fred tornou a pegar na caixa.

A porta da loja abriu-se e enfiou-se lá dentro um homem magro com uma gabardina abotoada. Baixou o capuz revelando uma enorme cabeleira preta. Com um sorriso ligeiramente tímido, acercou-se do balcão, onde Kitty estava a inspecionar as faturas na caixa.

— Bom dia — saudou ela. — Posso ajudá-lo?

— Bom dia, menina. — O homem coçou o nariz. — Trabalho para o Ministério da Segurança. Será que podia fazer-lhe umas perguntas?

Kitty pousou as faturas e brindou-o com toda a sua atenção.

— Diga lá.

O sorriso alargou-se.

— Obrigado. Deve ter lido nos jornais a respeito de uns incidentes desagradáveis, recentemente. Explosões e outros atos de terrorismo não muito longe daqui.

O jornal estava ao lado dela em cima do balcão.

— Sim — concordou Kitty. — Li.

— Estes atos malvados feriram gente comum decente, assim como danificaram a propriedade dos nossos nobres líderes — referiu o homem. — É imperativo descobrirmos os autores antes que voltem a atacar.

Kitty anuiu.

— Absolutamente.

— Estamos pedindo aos cidadãos honestos que fiquem atentos a algo de suspeito: desconhecidos na sua zona, atividades estranhas, esse tipo de coisa. Percebeu algo estranho, menina?

Kitty refletiu.

— É difícil dizer. Há sempre desconhecidos por estas bandas. Estamos perto do cais, claro. Marinheiros estrangeiros, feirantes... É difícil ter noção.

— Não viu nada de específico que recorde?

Kitty fez um esforço mental.

— Receio que não.

O sorriso do homem tornou-se caricato.

— Bem, procure-nos se vir realmente algo. Há grandes recompensas para os informantes.

— Farei isso, certamente que farei.

Os olhos dele observaram o rosto de Kitty; virou-se. Um instante depois saíra e caminhava pela rua até à loja seguinte. Kitty reparou que se esquecera de puxar o capuz sobre a cabeça, apesar da chuva que caía.

Um por um, os outros saíram dos seus esconderijos e recessos. Kitty deu olhares inquiridores a Anne e Fred. Estavam ambos muito pálidos e transpirando.

— Presumo que não se tratasse de um homem — afirmou com secura. Fred abanou a cabeça. Anne disse:

— Uma coisa com cabeça de escaravelho, toda preta, com partes da boca vermelhas. As suas antenas estavam espetadas, quase te tocando. Ugh, como é que não sentiu?

— Não tenho esse talento — limitou-se Kitty a responder.

— Estão apertando o cerco — murmurou Nick. Tinha os olhos arregalados; falou quase de si para si. — Precisamos fazer algo de concreto em breve, senão eles nos apanham. Basta um erro, nada mais...

— Hopkins tem um plano, creio — Anne procurou tranquilizá-los. — Ele há de arranjar-nos a solução. Vocês vão ver.

— Espero que sim — afirmou Stanley. Soltou uma imprecação. — Quem me dera poder ver como Anne.

Ela franziu os lábios.

— Não é um dom agradável. Ora essa, demônio ou não demônio, quero registrar aquilo que roubei. Quem me acompanha ao porão? Sei que está chovendo, mas é apenas a duas ruas daqui... — Olhou à sua volta.

— Antenas vermelhas... — Fred sentiu um arrepio. — Deviam tê-las visto. Cobertas com pequenos pelos castanhos...

— Desta vez foi por muito pouco — comentou Stanley. — Se aquilo nos ouviu falar...

— Basta um erro. Só um, e seremos...

— Oh, cale-se, Nick! — Kitty atirou ruidosamente para trás o tampo móvel do balcão e atravessou a loja com passos pesados. Sabia que estava apenas sentindo o mesmo que todos os outros: a claustrofobia do acossado. Num dia como aquele, com a chuva a cair incessantemente, estavam todos condenados a passar o tempo indolentemente por trás das portas, um estado que exacerbava a sensação permanente de medo e isolamento. Estavam afastados do resto da cidade apinhada, com poderes inteligentes e malévolos virados contra eles.

A sensação não era nova para Kitty. Nunca conseguira se libertar dela, nem por uma só vez, em três longos anos. Não desde o ataque no parque, em que o seu mundo se virara de pernas para o ar.

 

Decorrera talvez uma hora antes que um cavalheiro que passeava o seu cão encontrasse os corpos na ponte, e contatasse as autoridades. Chegara uma ambulância pouco depois e Kitty e Jakob foram retirados dali.

Acordara na ambulância. Uma pequena janela de luz acendeu-se ao longe e durante algum tempo viu-a aproximar-se numa curva lenta através do escuro. Moviam-se pequenas formas dentro da luz, mas não conseguia distingui-las. Parecia que tinha os ouvidos cheios de cortiça. A luz foi aumentando gradualmente, depois com um ímpeto súbito, e os seus olhos abriram-se. Os sons voltaram-lhe aos ouvidos com um estouro doloroso.

Um rosto de mulher olhou para ela.

— Tente não se mexer. Vai ficar bem.

— O quê... o quê?

— Evite falar.

Com um pânico súbito, a memória voltou:

— Aquele monstro! Aquele macaco! — Debateu-se, descobriu os braços presos à maca.

— Por favor, querida. Não se mexa. Vai ficar bem.

Deitou-se, todos os músculos rígidos.

— Jakob...

— O teu amigo? Ele também está aqui.

— Ele está bem?

— Procure descansar.

E se foram os balanços da ambulância, ou o cansaço entranhado nela, acabou mesmo por adormecer, acordando no hospital e encontrando enfermeiras a cortar-lhe as roupas. A parte da frente do blusão e o calção estavam carbonizados e duros, desfazendo-se no ar como pedaços de jornal queimado. Uma vez vestida uma bata branca fina, foi durante algum tempo alvo de atenção: os médicos reuniam-se à sua volta como abelhas em volta do mel, verificando-lhe o pulso, a respiração, a temperatura. Depois retiraram-se subitamente e Kitty ficou deitada, sozinha, na enfermaria vazia.

Daí a um longo tempo, apareceu uma enfermeira.

— Já informamos os teus pais — anunciou. — Eles vão levá-la para casa. — Kitty olhou para ela com incompreensão. A mulher parou. — Está muito bem — disse. — O Cilindro Negro não deve tê-la apanhado, passou apenas de raspão. É uma garota de sorte.

Levou algum tempo a absorver a informação.

— Nesse caso, Jakob também está bem.

— Receio que ele não teve tanta sorte.

O terror brotou dentro dela.

— O que quer dizer? Onde é que ele está?

— Aqui perto. Estão cuidando dele.

Começou a chorar.

— Mas ele estava bem a meu lado. Ele tem de estar bem.

— Vou trazer-lhe algo para comer, querida. Vai se sentir melhor. Por que não procura ler alguma coisa para se distrair? Há revistas em cima da mesa.

Kitty não leu as revistas. Quando a enfermeira foi embora, saiu da cama e ficou de pé, vacilante, no chão frio de madeira. Depois, passo a passo, mas adquirindo cada vez mais confiança na sua força, atravessou a enfermaria silenciosa, passando pelas manchas brilhantes de luz do Sol baixo das altas janelas em arco, até chegar ao corredor lá fora.

Do outro lado havia uma porta fechada. Fora corrida uma cortina do lado de dentro da sua janela. Olhando rapidamente para a esquerda e a direita, Kitty avançou como um fantasma, até tocar com os dedos no puxador. Pôs-se à escuta, mas a sala do outro lado estava silenciosa. Kitty rodou o puxador e entrou.

Era um quarto arejado, pequeno, com uma única cama lá dentro, e uma janela grande que dava para os telhados da zona sul de Londres. O sol projetava uma diagonal amarela sobre a cama, cortando-a simplesmente ao meio. A metade superior da cama estava na sombra, e igualmente a figura ali deitada a dormir.

Notavam-se no quarto os cheiros normais de um hospital — medicamentos, iodo, anti-sépticos — mas um outro odor sobrepunha-se a todos eles, o de fumaça.

Kitty fechou a porta, avançou na ponta dos pés pelo chão, aproximando-se da cama. Olhou para Jakob, os olhos marejados de lágrimas.

O seu primeiro pensamento foi de raiva pelos médicos terem raspado o cabelo. Por que tinham de deixá-lo careca? Ia levar uma eternidade para voltar a crescer, e Mrs. Hyrnek se orgulhar dos longos caracóis dele. Parecia tão estranho, em particular com as sombras esquisitas no seu rosto... Só nessa altura se apercebeu do que eram as sombras.

No lugar onde o cabelo a protegera, a pele de Jakob tinha a cor normal trigueira. Em todo o resto, da base do pescoço até à linha do cabelo, ficara queimada ou manchada com faixas onduladas mais ou menos verticais de preto e cinzento, a cor da cinza e da madeira queimada. Não havia um pedacinho da cor da sua pele normal no rosto, exceto muito de leve nas sobrancelhas. Estas também tinham sido raspadas: viam-se ali dois crescentes castanho-rosados. Mas os lábios dele, as pálpebras, os lobos das orelhas estavam todos descoloridos. Mais parecia uma máscara tribal, uma efígie feita para um desfile carnavalesco, do que um rosto vivo.

Sob as roupas da cama, o seu peito subia e descia entrecortadamente. Vinha de entre os seus lábios uma leve respiração ruidosa.

Kitty estendeu o braço e tocou na mão sobre o cobertor. As palmas, que ele levantara para se proteger da fumaça, tinham a mesma cor riscada do rosto.

O toque dela suscitou uma reação: a cabeça virou-se de um lado para o outro; o desconforto estampou-se no rosto lívido. Os lábios cinzentos afastaram-se; moveram-se como se tentassem falar. Kitty retirou a mão, mas debruçou-se.

— Jakob?

Os olhos abriram-se com tamanha subitaneidade que não conseguiu evitar um recuo com o choque, colidindo dolorosamente com uma quina da mesa de cabeceira. Debruçou-se de novo, embora percebesse de imediato que ele não estava consciente. Os olhos fitavam a frente, arregalados e sem verem. Na pele cinzenta e preta, destacavam-se pálidos e claros como duas opalas de um branco leitoso. Foi então que se perguntou se estaria cego.

Quando os médicos chegaram, acompanhados de Mr. e Mrs. Hyrnek, e a mãe de Kitty clamando atrás, encontraram-na ajoelhada à cabeceira, as mãos agarrando as de Jakob, a cabeça apoiada no cobertor. Foi a custo que conseguiram libertá-la.

Em casa, Kitty furtou-se sucessivamente às perguntas angustiadas dos pais e subiu as escadas até ao patamar da pequena habitação. Ficou longos minutos diante do espelho, vendo-se, olhando para o seu rosto normal, sem mácula. Viu a pele lisa, o cabelo preto volumoso, os lábios e as sobrancelhas, as sardas nas mãos, o sinal na asa do nariz. Estava tudo exatamente na mesma, como sempre, e como simplesmente não tinha o direito de estar.

O mecanismo da Lei, apesar de deficiente, pôs-se laboriosamente em ação. Mesmo enquanto Jakob jazia inconsciente na cama do hospital, a polícia visitou a família de Kitty a fim de recolher um depoimento, para grande ansiedade dos pais. Kitty relatou concisamente e sem enfeites o que sabia, a uma jovem agente da polícia que ia tomando notas.

— Esperemos que não haja problemas, senhora agente — disse o pai de Kitty, quando ela terminou.

— Não estávamos nada interessados nisso — acrescentou a mãe. — Pode crer que não.

— Haverá uma investigação — disse a agente da polícia, continuando a escrever.

— Como é que vão encontrá-lo? — indagou Kitty. — Não sei o nome dele, e esqueci-me do nome da... coisa.

— Podemos localizá-lo pelo carro. Se bateu, como disse, o veículo terá sido rebocado por alguma garagem, levado para ser reparado. Depois podemos apurar a verdade.

— A senhora tem a verdade — insurgiu-se Kitty, sem rodeios.

— Não queremos nenhum problema — voltou a frisar o pai dela.

— Entraremos em contato — concluiu a agente da polícia. Fechou o bloco com força.

O carro, um Roll-Royce Silver Thruster, foi rapidamente localizado; seguiu-se a identidade do seu proprietário. Era um tal Mr. Julius Tallow, um mago que trabalhava para Mr. Underwood no Ministério da Administração Interna. Apesar de não se incluir entre os principais, estava bem relacionado, e era uma figura conhecida na cidade. Admitiu prontamente que fora ele que libertara o Cilindro Negro sobre duas crianças em Wandsworth Park; na verdade, queria que constasse que se orgulhava do que fizera. Vinha dirigindo tranqüilamente quando fora atacado pelos indivíduos em questão. Tinham-lhe partido o pára-brisas com um projétil, pelo que perdera o controle do carro. Haviam-se aproximado dele agressivamente, empunhando dois compridos bastões de madeira. Era evidente que tencionavam roubá-lo. Agira logo em autodefesa, atingindo-os antes de terem chance de atacar. Considerou a sua reação muito contida, dadas as circunstâncias.

— Bem, obviamente ele está mentindo — afirmou Kitty. — Nós nem sequer estávamos perto da rua, para começar... se agiu em legítima defesa na beira da rua, como explica que nos encontrassem na ponte? Prendeu-o?

A agente da polícia ficou surpreendida.

— Ele é um mago. Não é assim tão simples. E nega as tuas acusações. O caso será levado aos Tribunais de Justiça no mês que vem. Se quiser que o caso vá até ao fim, terá que comparecer e depor contra Mr. Tallow.

— Ótimo — disse Kitty. — Estou ansiosa que chegue o dia.

— Ela não vai comparecer — interveio o pai. — Já causou danos suficientes.

Kitty suspirou, mas não disse nada. Os pais abominavam a idéia de um confronto com os magos e reprovavam veemente o seu ato de invasão do parque. Depois do seu regresso sã e salva do hospital, tinham-se mostrado mais irritados com ela do que com Mr. Tallow — uma situação que despertara em si um forte ressentimento.

— Bem, é contigo — referiu a agente da polícia. — De qualquer forma, vou enviar os pormenores.

Durante uma semana ou mais, pouco se soube do estado de Jakob, ainda hospitalizado. Estavam proibidas as visitas. Num esforço para ter notícias, Kitty enchera-se finalmente de coragem para se arrastar pela rua e ir até casa dos Hyrnek pela primeira vez desde o incidente. Subira acanhadamente o caminho familiar, sem saber como seria recebida; a culpa pesava profundamente na sua consciência.

Mas Mrs. Hyrnek foi bastante educada; na verdade, atraiu Kitty ao seu peito amplo e abraçou-a com força antes de levá-la para dentro de casa. Acompanhou-a até à cozinha, onde, como sempre, o cheiro de comida pairava forte e acre. Tigelas de legumes meio cortados encontravam-se no centro da mesa da cozinha; junto à parede, estendia-se o enorme aparador de carvalho, carregado de travessas com decorações berrantes. Havia todo o tipo de utensílios estranhos pendurados nas paredes escuras. A avó de Jakob estava sentada na sua cadeira alta ao lado de um grande fogão preto, mexendo uma caçarola de sopa com uma colher de cabo comprido. Estava tudo como sempre, inclusive a última fenda familiar no teto.

Só que Jakob não estava lá.

Kitty sentou-se à mesa e aceitou uma caneca de chá fortemente aromatizado. Com um suspiro profundo e um estalido de protesto da madeira, Mrs. Hyrnek sentou-se defronte dela. Durante alguns minutos, não falou — em si uma ocorrência única. Por seu lado, Kitty achou que não devia iniciar a conversa. Junto ao fogão, a avó de Jakob continuava a mexer a sopa fumegante.

Por fim, Mrs. Hyrnek sorveu uma golada de chá, engoliu, falou abruptamente.

— Ele acordou hoje — disse.

— Oh! E ele está...?

— Ele está tão bem quanto se poderia esperar. O que não é bem.

— Não. Mas se ele acordou, isso é bom, não é? Ele vai ficar bom?

Mrs. Hyrnek fez uma cara expressiva.

— Ah! Foi o Cilindro Negro. O seu rosto não se recuperará.

Kitty sentiu as lágrimas brotarem.

— Nada mesmo?

— As queimaduras são muito graves. Devia saber. Viu-o.

— Mas porque é que ele...? — Kitty franziu o cenho. — Quero dizer... Eu estou bem, e também fui atingida. Fomos ambos...

— Você? Você não foi atingida! — Mrs. Hyrnek bateu com os dedos no rosto e olhou para Kitty com uma condenação tão intensa que esta se encolheu toda contra a parede da cozinha e nem se atreveu a continuar. Mrs. Hyrnek fitou-a durante um longo momento com um olhar de basilisco, depois continuou a beber o chá.

Kitty falou em voz baixa.

— La-lamento muito, Mrs. Hyrnek.

— Não tenha pena. Não foi você quem fez mal ao meu filho.

— Mas não existe uma maneira de mudar tudo? — perguntou Kitty. — Quer dizer, com certeza se os médicos não dispõem de tratamentos, os magos podiam fazer alguma coisa?

Um abanar de cabeça.

— Os efeitos são definitivos. Mesmo que não fossem, eles não iriam nos ajudar.

Kitty carregou o semblante.

— Eles têm de nos ajudar! Como se atrevem a não fazê-lo? O que nós fizemos foi um acidente. O que ele fez foi um crime premeditado. — A raiva brotou dentro de si. — Ele queria nos matar, Mrs. Hyrnek! O Tribunal tem que entender isso. Jakob e eu podemos dizer-lhes, no mês que vem, na audiência... Ele estará melhor nessa altura, não estará? Haveremos de destruir por completo a história de Tallow e eles hão de levá-lo para a Torre. Depois encontrarão uma maneira de ajudar o rosto de Jakob, Mrs. Hyrnek, vai ver.

Mesmo no meio do calor do seu discurso, percebeu quão ocas soavam as suas palavras. Mas o que Mrs. Hyrnek disse a seguir não deixou de ser inesperado.

— Jakob não irá à audiência, querida. Nem você deveria ir. Os teus pais não querem que vá, e eles estão cobertos de razão. Não é prudente.

— Mas nós temos que ir, se queremos contar...

Mrs. Hyrnek debruçou-se sobre a mesa e apoiou a sua enorme mão rosada na de Kitty.

— O que acha que vai acontecer à Hyrnek and Sons se Jakob mover um processo judicial contra um mago? Então? Mr. Hyrnek perderia tudo em vinte e quatro horas. Eles nos encerrariam, ou transfeririam o seu comércio para a Jaroslav ou outro dos nossos concorrentes. Além disso... — Sorriu com tristeza. — Para quê incomodarmo-nos? Não teríamos quaisquer hipóteses de vencer.

Por um momento, Kitty ficou muito aturdida para responder.

— Mas pediram-me para comparecer — alegou. — E Jakob também.

Mrs. Hyrnek encolheu os ombros.

— As autoridades preferiam não ser incomodadas com um assunto sem importância. Duas crianças comuns? É um desperdício do seu precioso tempo. Siga o meu conselho, querida. Não vá ao Tribunal. Não virá nenhum bem dali.

Kitty olhou para o tampo da mesa de alto a baixo.

— Mas isso significa libertarem-no... Mr. Tallow... deixá-lo ficar impune — afirmou em voz baixa. — Não posso... Não estaria certo.

Mrs. Hyrnek levantou-se de repente, a sua cadeira chiando no chão de mosaico.

— Não é uma questão de «estar certo», garota — disse-lhe. — É uma questão de bom senso. E de qualquer forma — agarrou com uma mão numa tigela de couve cortada e avançou para o fogão —, não é totalmente garantido que Mr. Tallow vá escapar tão livremente quanto julga. — Com um movimento dos pulsos, jogou a couve a silvar e a borbulhar numa panela de água fervente. Ao lado do fogão, a avó de Jakob acenava e sorria por entre o vapor como um duende, mexendo, mexendo, mexendo a sopa com as suas mãos magras e deformadas.

 

Passaram-se três semanas, durante as quais, através de um misto de obstinação e orgulho, Kitty resistiu a todos os esforços para a dissuadirem do caminho que escolhera. Quanto mais os pais tentavam ameaçá-la ou adulá-la, mais ela se entrincheirava: estava decidida a ir ao Tribunal no dia marcado para que se fizesse justiça.

A sua determinação fortaleceu-se ainda mais ao ter conhecimento do estado de Jakob: permanecia hospitalizado, consciente, lúcido, mas sem conseguir ver. A família tinha esperança de que a sua visão voltasse com o tempo. Só de pensar na alternativa, Kitty ficava a tremer de dor e raiva.

Se os pais dela pudessem fazê-lo, teriam declinado a convocatória quando ela chegou. Mas Kitty era a queixosa: era necessária a sua assinatura para desistir do processo, e ela não o faria por nada deste mundo. A ação judicial foi adiante e, na manhã marcada, Kitty chegou à Grande Porta dos Tribunais às oito e meia em ponto, vestindo o seu casaco mais elegante e as suas melhores calças de camurça. Os pais não a acompanharam; tinham-se recusado a ir.

Viu-se rodeada por uma multidão variada, que a empurrava e acotovelava enquanto aguardava que as portas se abrissem. No extremo inferior do espectro, alguns garotos de rua andavam para lá e para cá a vender pastéis e empadas quentes em tabuleiros grandes de madeira. Kitty mantinha a bolsa a tiracolo bem agarrada sempre que eles passavam por perto. Reparou também em diversos feirantes, gente comum como ela, vestindo a sua melhor roupa, todos muitos pálidos e achacados dos nervos. De longe, o maior grupo era constituído por magos de ar despreocupado, resplandecentes nos seus ternos de Piccadilly e capas e togas formais. Kitty observou os rostos deles, procurando Mr. Tallow, mas ele não se via em lugar nenhum. Elementos entroncados da Polícia Noturna mantinham vigilância nas orlas da multidão.

As portas abriram-se, ouviu-se um apito; a multidão entrou a rodos.

Cada visitante tinha que passar por um funcionário de farda vermelha e dourada. Kitty indicou o seu nome; o homem inspecionou uma folha.

— Sala de audiências vinte e sete — indicou-lhe. — Escadas da esquerda, bem no alto. Procure a quarta porta. Apresse-se.

Empurrou-a e ela seguiu, passando por baixo de um arco de pedra. Por fim, chegou aos salões frescos de mármore dos Tribunais Judiciais. Bustos de pedra de grandes homens e mulheres olhavam calmamente para baixo, de nichos nas paredes; pessoas silenciosas andavam para lá e para cá. O ar fervilhava de austeridade e silêncio e um característico cheiro de desinfetante. Kitty subiu as escadas e seguiu por um corredor apinhado até chegar à porta da Sala 27. Havia do lado de fora um banco de madeira. Um cartaz por cima deste instruía todos os queixosos a sentarem-se e esperar que os chamassem.

Kitty sentou-se e aguardou.

Durante os quinze minutos seguintes, foi-se reunindo pouco a pouco um pequeno grupo de pessoas pensativas do lado de fora da sala de audiências. Estavam de pé ou sentadas em silêncio, mergulhadas nos seus próprios pensamentos. A maior parte era constituída por magos: embrenhavam-se em pilhas de documentos legais, escritos em papel com complexas estrelas e símbolos nos cabeçalhos. Esforçavam-se por evitar os olhos uns dos outros.

A porta da Sala 27 abriu-se. Um homem jovem com um elegante barrete verde e uma expressão ansiosa enfiou a cabeça por ela.

— Kathleen Jones! — chamou. — Está presente? É a seguinte.

— Sou eu. — O coração de Kitty batia com força; os seus pulsos formigavam com o medo.

— Muito bem. Julius Tallow. Está presente? Também precisamos dele.

Silêncio no corredor. Mr. Tallow não chegara.

O homem jovem esboçou um esgar.

— Bem, não podemos perder tempo. Se ele não está aqui, estivesse. Miss Jones, se quiser fazer o favor...

Fez Kitty entrar à sua frente pela porta e fechou-a silenciosamente atrás de ambos.

— O seu lugar é ali, Miss Jones. A sessão vai começar.

A sala do tribunal era pequena, quadrada e banhada por uma luz colorida e melancólica que entrava por janelas em arco, gigantes e com vidro de cor. As figuras nas janelas apresentavam dois heróicos magos-cavaleiros. Um, com armadura, preparava-se para trespassar com a espada a barriga de um enorme animal demoníaco, todo ele garras e dentes protuberantes. O outro, com um elmo e o que parecia uma túnica branca comprida, exorcizava um hediondo trasgo, que caía por um buraco negro quadrado que se abrira no solo. As outras paredes na sala estavam revestidas de painéis de madeira escura. O teto também era de madeira, talhado a imitar os arcos de pedra de uma igreja. A sala era assustadora de tão antiquada. Como talvez fosse a intenção, Kitty sentiu-se amedrontada e imensamente deslocada.

Junto a uma parede havia um estrado alto sobre o qual assentava um trono alto de madeira, por trás de uma mesa comprida. Numa ponta da mesa via-se uma pequena escrivaninha onde estavam sentados três escrivães vestidos de preto, atarefados a escrever em computadores e a folhear pilhas de papel. Kitty passou diante do estrado, seguindo a direção do braço estendido do homem jovem, encaminhando-se para uma cadeira solitária de espaldar, silhuetada diante das janelas. Sentou-se nela. Outra cadeira idêntica estava virada para ela na parede oposta.

Na parede restante, em frente do estrado, dois bancos públicos eram separados do tribunal por um corrimão de latão. Para surpresa de Kitty, reuniam-se ali alguns espectadores.

O homem jovem consultou o relógio, respirou fundo, depois gritou tão alto que Kitty até deu um pulo na cadeira.

— Levantem-se todos! — trovejou. — Vai presidir a Meritíssima Fitzwilliam, Maga do Quarto Nível e Juíza deste Tribunal! Levantem-se todos!

Um arrastar de cadeiras, um agitar de pés. Kitty, os escrivães e os espectadores puseram-se de pé. Quando o fizeram, abriu-se uma porta nos painéis por trás do trono e entrou uma mulher, com toga e capuz pretos. Sentou-se no trono e baixou o capuz, revelando-se jovem, com cabelo castanho preso e muito batom.

— Obrigada, senhoras e senhores, obrigada! Podem sentar-se, por favor! — O homem jovem fez uma vênia na direção do trono e veio sentar-se num canto discreto.

A juíza esboçou um pequeno sorriso frio ao tribunal reunido.

— Bom dia a todos. Vamos começar, creio, com o caso de Julius Tallow, Mago do Terceiro Nível, e Kathleen Jones, uma plebéia de Balham. Miss Jones decidiu comparecer, pelo visto; onde está Mr. Tallow?

O homem jovem pôs-se em pé de um salto como um boneco de mola.

— Ele não está aqui, Meritíssima! — Fez uma vênia rápida e sentou-se.

— Já tinha reparado. Onde se encontra?

O homem jovem levantou-se rapidamente.

— Não faço a mais pálida idéia, Meritíssima!

— Bem, é pena. Escrivães, registrem provisoriamente que Mr. Tallow desrespeitou o tribunal não comparecendo. Vamos começar... — A juíza pôs os óculos e avaliou os papéis durante alguns momentos. Kitty estava sentada muito reta, rígida com os nervos.

A juíza tirou os óculos e olhou para ela.

— Kathleen Jones?

Kitty pôs-se em pé de um salto.

— Sim, Meritíssima.

— Sente-se, sente-se. Gostamos de manter a audiência o mais informal possível. Ora, sendo jovem... Quantos anos você tem, Miss Jones?

— Treze, Meritíssima.

— Estou vendo. Sendo jovem, e de origem plebéia como sem dúvida é... vejo aqui que o seu pai é assistente de vendas e a sua mãe empregada de limpeza — proferiu estas palavras com ligeira repulsa —, poderia perfeitamente sentir-se intimidada por este ambiente solene. — A juíza indicou o tribunal. — Mas devo dizer-lhe que não receie. Esta é uma casa de justiça, onde até o menos igual de entre nós é bem-vindo, desde que fale a verdade. Compreende?

Kitty sentiu um aperto na garganta; teve dificuldade em responder com clareza.

— Sim, Meritíssima.

— Muito bem. Nesse caso, vamos ouvir a sua versão do caso. O que tem a dizer?

Durante os minutos que se seguiram, numa voz bastante áspera, Kitty descreveu a sua versão dos acontecimentos. Começou acanhadamente, mas foi-se entusiasmando, passando a referir o máximo de pormenores possível. O tribunal escutou em silêncio, incluindo a juíza, que a olhava impassivelmente por cima dos óculos. Os escrivães batiam nos teclados.

Concluiu com uma descrição exaltada do estado de Jakob sob o efeito do Cilindro Negro. Quando terminou, um silêncio pesado invadira a sala de audiências. Alguém tossiu em algum lugar. Durante a exposição, começara a chover lá fora. Os pingos batiam suavemente nas janelas; a luz na sala era pálida e difusa.

A juíza recostou-se na cadeira.

— Escrivães do tribunal, anotaram tudo?

Um dos três homens de preto levantou a cabeça.

— Sim, Meritíssima.

— Muito bem. — A juíza franziu o cenho, como se insatisfeita. — Na ausência de Mr. Tallow, tenho, com relutância, de aceitar esta versão dos acontecimentos. O veredicto do tribunal...

Ouviu-se uma súbita pancada violenta na porta da sala de audiências. O coração de Kitty, que dera um grande salto ante as palavras da juíza, caiu-lhe aos pés num crescendo de mau presságio. O homem jovem de barrete verde correu a abrir a porta; quando o fez, quase foi derrubado pela entrada musculosa de Julius Tallow. Vestindo um terno cinzento com riscas finas cor-de-rosa e de queixo esticado, avançou em grandes passadas até à cadeira vazia e sentou-se nela com ar decidido.

Kitty olhou-o com aversão. Ele retribuiu com um sorrisinho velado e virou-se para a juíza.

— Mr. Tallow, presumo — disse ela.

— Efetivamente, Meritíssima. — Tinha os olhos baixos. — Apresento...

— Chegou atrasado, Mr. Tallow.

— Sim, Meritíssima. Apresento humildemente as minhas desculpas ao Tribunal. Fiquei retido no Ministério da Administração Interna esta manhã, Meritíssima. Uma situação de emergência... a pequena questão de três foliots com cabeça de touro à solta em Wapping. Possível ato terrorista. Tive de ajudar a dar instruções à Polícia Noturna sobre os melhores métodos de lidar com eles, Meritíssima. — Adotou uma postura divertida, piscou o olhou à assistência. — Uma pilha de fruta, coberta de mel... é esse o truque. A doçura os atrai, entende, por isso...

A juíza bateu com o martelo na mesa.

— Se não se importa, Mr. Tallow, isso é absolutamente irrelevante! A pontualidade é vital para o bom funcionamento da Justiça. Declaro-o culpado de desrespeito ao tribunal e, por conseguinte, multo-o em quinhentas libras.

Ele baixou a cabeça, a imagem volumosa da contrição.

— Sim, Meritíssima.

— No entanto... — A voz da juíza amenizou-se um pouco. — Chegou mesmo a tempo de apresentar o seu relato da ocorrência. Já ouvimos a versão de Miss Jones. Conhece as acusações. Como se declara?

— Inocente, Meritíssima! — Subitamente, voltara a levantar-se, cheio de confiança agressiva. As riscas no seu peito esticaram-se como cordas de harpa dedilhadas. — Lamento dizer, Meritíssima, que sou obrigado a narrar um acidente de uma selvajeria quase inacreditável, em que dois rufiões... incluindo, lamento dizê-lo, a jovem empertigada ali sentada... atacaram o meu carro com o intuito de roubar e agredir. Só por mero acaso é que, com o poder que tenho a sorte de possuir, consegui desviar-me deles e escapar.

Continuou a desenvolver a sua mentira durante quase mais vinte minutos, providenciando relatos pungentes de ameaças tenebrosas feitas pelos dois assaltantes. Enveredava com freqüência por pequenas histórias que lembravam ao tribunal a sua importante função no Governo. Kitty permaneceu sempre sentada, muito pálida devido à fúria, cravando as unhas nas palmas das mãos. Por uma ou duas vezes percebeu que a juíza abanava a cabeça ante algum pormenor desagradável; dois dos escrivães arfaram sonoramente de ultraje quando Mr. Tallow descreveu a pancada da bola de críquete no seu pára-brisas, e os espectadores na galeria soltaram ohs e ahs com crescente regularidade. Percebeu para que lado o caso estava a pender.

Por fim, quando, com uma repugnante anulação da sua pessoa, Mr. Tallow descreveu como ordenara que o Cilindro Negro fosse disparado apenas sobre o lider — Jakob — dado o seu desejo de reduzir os feridos ao mínimo, Kitty não conseguiu se conter mais.

— Isso é outra mentira! — exclamou. — Aquilo também veio direito para mim!

A juíza bateu com o martelo na mesa.

— Ordem no Tribunal!

— Mas é uma mentira tão descarada! — afirmou Kitty. — Nós estávamos um ao lado do outro. O macacóide disparou sobre ambos, como Tallow ordenara. Eu fui derrubada por aquilo. A ambulância levou-me para o hospital.

— Silêncio, Miss Jones!

Kitty soçobrou.

— Eu... peço desculpa, Meritíssima.

— Mr. Tallow, queira ter a gentileza de prosseguir.

O mago terminou pouco depois, deixando os espectadores a cochichar animadamente uns com os outros. Ms. Fitzwilliam matutou durante um bocado no seu trono, curvando-se esporadicamente para trocar apartes segredados com os Escrivães do Tribunal. Por fim, bateu na mesa. Fez-se silêncio na sala.

— É um caso difícil e triste — começou a juíza —, e temos o nosso trabalho dificultado devido à falta de testemunhas. Dispomos apenas da palavra de uma pessoa contra a outra. Sim, Miss Jones, o que é?

Kitty levantara a mão cortesmente.

— Existe outra testemunha, Meritíssima. Jakob.

— Nesse caso, por que não se encontra aqui?

— Ele não se encontra bem, Meritíssima.

— A família poderia tê-lo representado. Preferiu não fazê-lo. Talvez ache que o caso não procede?

— Não, Meritíssima — disse Kitty. — Têm medo.

— Medo? — As sobrancelhas da juíza arquearam-se. — Que absurdo! Do quê?

Kitty hesitou, mas agora não havia volta.

— Represálias, Meritíssima. Por acusarem um mago em tribunal.

Ante estas palavras, a sala irrompeu numa barulheira vinda das bancadas dos espectadores. Os três escrivães pararam de escrever, perplexos. O homem jovem de barrete verde ficou boquiaberto no seu canto. Ms. Fitzwilliam semicerrou os olhos. Teve de bater sucessivamente na mesa para a sala se acalmar.

— Miss Jones — declarou ela —, se ousa proferir semelhante absurdo, terei de acusá-la! Não volte a falar inoportunamente.

Kitty viu Julius Tallow sorrir abertamente. Fez um esforço para reprimir as lágrimas.

A juíza olhou para Kitty com severidade.

— A sua acusação imprudente só aumenta o peso das provas que já são tão agravantes para si. Fique calada! — Vencida pelo choque, Kitty abriu de novo a boca automaticamente.

— De cada vez que falar, prejudicará mais o seu caso — prosseguiu a juíza. — Manifestamente, se o seu amigo estava seguro da sua história, deveria ter vindo pessoalmente. Também manifesto é o fato de não ter sido atingida pelo Cilindro Negro, como acaba de afirmar, caso contrário mal poderia... como dizê-lo? ...estar aqui tão bem produzida hoje. — A juíza fez uma pausa para beber um gole de água.

— Chego a admirar a sua ousadia em trazer a acusação ao tribunal — disse ela —, bem como a sua temeridade em desafiar um cidadão tão proeminente como Mr. Tallow. — Indicou o mago, que pusera a expressão complacente de um gato acariciado. — Todavia, semelhantes considerações não podem ser aceites num tribunal. O caso de Mr. Tallow assenta na sua excelente reputação e na avultada fatura da garagem para fazer face aos estragos que lhe causou. O seu assenta apenas em acusações, que acredito terem sido forjadas. — (Expressões de pasmo da assistência.) — Porquê? Simplesmente porque mentiu em relação ao Cilindro... que afirma tê-la atingido, quando manifestamente isso não sucedeu. Não existem motivos para o tribunal aceitar o resto da sua história. Além disso, não consegue apresentar testemunhas, nem sequer o seu amigo, a outra «parte lesada». Como o provaram as suas explosões intempestivas, é manifestamente de índole arrebatada e turbulenta, susceptível de ter um ataque de raiva à menor oportunidade. Quando pondero estes aspectos, só me vejo perante um fato flagrante que bem me esforcei por ignorar. Que é o seguinte: tendo em conta tudo o que se passou, além de menor, é também uma plebéia, cuja palavra não merece qualquer credibilidade comparada com a de um fiel servidor do Estado.

Neste ponto, a juíza respirou fundo e ouviu-se uma discreta exclamação de «Apoiado» vinda das bancadas do público. Um dos escrivães levantou a cabeça e murmurou:

— Muito bem, Meritíssima — e voltou a enfiar o nariz no computador. Kitty escorregou em sua cadeira, vencida pelo peso do desespero. Não conseguia encarar a juíza, os escrivães e, muito menos, o odioso Mr. Tallow. Preferiu olhar para as sombras das gotas de chuva que escorriam pelo chão. Naquele momento, só desejava poder fugir dali.

— Em conclusão — a juíza pôs uma expressão da mais profunda dignidade —, o tribunal decide contra si, Miss Jones, e rejeita a sua acusação. Se fosse mais velha, não escaparia certamente a uma pena de prisão. Nas presentes circunstâncias, e dado que Mr. Tallow já aplicou o castigo que considerou adequado ao seu bando de criminosos, limitar-me-ei a multá-la por desperdiçar o tempo do tribunal.

Kitty engoliu em seco. «Por favor, que não seja muito, por favor, que não seja...»

— É, por este meio, multada em cem libras.

Não era muito mau. Conseguia fazer face. Tinha quase £75 na sua conta bancária.

— Além disso, é usual transferir as custas do vencedor para a parte perdedora. Mr. Tallow deve quinhentas libras por ter chegado atrasado. Também terá de pagá-las. A quantia devida ao tribunal é, por conseguinte, de seiscentas libras.

Kitty recebeu um duro choque, sentindo agora as lágrimas chegarem em força. Furiosa, reprimiu-as. Não ia chorar. Não ia. Não ali.

Conseguiu transformar o primeiro soluço numa tosse sonora e ruidosa. Naquele momento, a juíza bateu duas vezes com o martelo.

— A sessão está encerrada.

Kitty saiu da sala correndo.

 

Kitty deu vazão às lágrimas numa pequena transversal empedrada que partia da Strand. Depois, limpou o rosto, comprou um reanimador bolo com passas num café persa na esquina oposta aos Tribunais, e tentou decidir o que fazer. Era óbvio que não conseguiria pagar a multa e duvidava de que os pais o pudessem também. Isso significava que tinha um mês para arranjar seiscentas libras, senão ela — e era possível que também os pais — seria levada para a prisão dos caloteiros. Sabia-o porque, antes de ter conseguido sair das salas de audiências ressoantes, um dos escrivães de terno preto aparecera, agarrara-a respeitosamente pelo cotovelo, e enfiara nos seus dedos trêmulos uma Ordem para Pagamento com a tinta ainda molhada. Especificava com clareza quais seriam as penalizações.

A idéia de informar os pais provocou fortes dores no peito de Kitty. Não conseguia ir para casa; primeiro iria dar um passeio junto ao rio.

A viela empedrada ia da Strand ao Embankment, um agradável caminho pedestre que acompanhava a margem do Tamisa. Parara de chover, mas as pedras estavam escuras e salpicadas de água. Estendiam-se de ambos os lados os estabelecimentos habituais: espeluncas de comida de plástico do Oriente Médio, lojas para turistas cheias de recordações baratas, ervanárias cujos cestos de corniso e rosmaninho a preço reduzido vinham até o meio da rua.

Kitty estava quase chegando ao Embankment quando umas pancadas rápidas atrás de si anunciaram o aparecimento súbito de uma bengala e atrás um homem idoso, que descia descontroladamente, meio a coxear, meio aos tropeções, pela inclinação do pavimento. Deu um salto, desviando-se do caminho dele. Para sua surpresa, em vez de seguir e ir para o rio, o homem estacou, com muito arrastar de pés e respiração difícil, bem junto dela.

— Ms. Jones? — As palavras chiavam entre cada inspiração de ar. Ela falou sombriamente.

— Sim. — Algum outro escrivão com uma nova exigência.

— Ótimo, ótimo. Deixe... deixe-me recuperar o fôlego.

Foram precisos alguns segundos, durante os quais Kitty o observou com atenção. Era um cavalheiro magro, ossudo e idoso, calvo no alto, com um semicírculo de cabelo branco-sujo a enfeitar com um tufo a parte de trás do crânio. O seu rosto era incrivelmente magro, mas tinha uns olhos vivos. Vestia um terno elegante e calçava luvas de couro verdes; as mãos oscilavam ao apoiar-se na bengala.

Por fim:

— Queira desculpar. Estava com medo de perdê-la. Primeiro vim pela Strand. Depois voltei para trás. Intuição.

— O que quer? — Kitty não tinha tempo para aturar velhos intuitivos.

— Sim. Já chegamos lá. Ora bem. Estive agora mesmo na galeria. Sala de audiências vinte e sete. Vi-a em ação. — Olhou-a fixamente.

— E depois?

— Queria saber. Fazer uma pergunta. Simples. Se não se importar.

— Não quero falar do assunto, obrigada. — Kitty fez menção de se afastar, mas a bengala atravessou-se com extraordinária rapidez e barrou-lhe delicadamente o caminho. A raiva fervilhava dentro dela; no seu atual estado de espírito, atirar um velho no chão não parecia uma hipótese a excluir.

— Com licença — disse ela. — Não tenho nada a dizer.

— Compreendo perfeitamente. De verdade. No entanto, poderia ser vantajoso para si. Ouça primeiro, depois decida. O Cilindro Negro. Sentado ao fundo da sala. Um pouco surdo. Pareceu-me ter dito que o Cilindro a atingiu.

— Disse. Atingiu.

— Ah. Derrubou-a, disse.

— Sim.

— Chamas e fumaça em toda a sua volta. Calor abrasador?

— Sim. Agora eu...

— Mas o tribunal não aceitou.

— Não. Agora tenho mesmo de ir. — Kitty desviou-se da bengala estendida e percorreu os últimos metros até ao Embankment. Porém, para sua surpresa e fúria, o velho acompanhou-a, atravessando constantemente a bengala num ângulo de modo a emaranhar-se nas pernas dela, ou fazê-la tropeçar, ou obrigá-la a dar passos de gigante para evitá-la. Por fim, não agüentou mais; agarrando a extremidade da bengala, deu-lhe um puxão com força, fazendo com que o cavalheiro se desequilibrasse e batesse no muro junto ao rio. Depois partiu em passo brusco, mas voltou a ouvir as pancadas frenéticas bem atrás dela.

Virou-se de rompante.

— Olhe aqui...

Estava bem atrás de si, de rosto pálido, arfando.

— Ms. Jones, por favor. Compreendo a sua raiva. Realmente. Mas estou do seu lado. E se eu lhe dissesse... e se eu lhe dissesse que lhe poderia pagar a multa... que o tribunal lhe aplicou? As seiscentas libras. Teria alguma influência?

Olhou para ele.

— Ah. Já lhe interessa. Estou conseguindo alguma coisa.

Kitty sentiu o seu coração bater feito um doido de confusão e raiva.

— Do que está falando? Está tentando tramar-me. Fazer com que eu seja presa por conspirar... ou outra coisa...

Ele sorriu; a sua pele esticou-se toda no crânio.

— Ms. Jones. Não pretendo nada disso. Não estou levando-a a nada. Ouça. O meu nome é Pennyfeather. Aqui tem o meu cartão. — Levou a mão ao bolso do casaco e, com um floreado, entregou a Kitty um pequeno cartão de visita. Estava decorado com dois pincéis cruzados por cima das palavras T. E. PENNYFEATHER, MATERIAIS ARTÍSTICOS. Havia um número de telefone num canto. Hesitante, Kitty aceitou-o.

— Ótimo. Agora vou andando. Deixo-a com o seu passeio. Está um bom dia para isso. O sol vai descobrir. Telefone, se estiver interessada. Daqui a uma semana.

Pela primeira vez, Kitty esboçou uma tentativa de ser educada, sem saber muito bem porquê.

— Mas, Mr. Pennyfeather — disse —, por que haveria de me ajudar? Não faz sentido.

— Não, mas há de fazer. Ahh! O que... ? — A sua exclamação foi ocasionada por dois homens jovens (evidentemente magos, pela ostentação das suas roupas) que, descendo a rua em passos largos, rindo sonoramente e empanturrando-se de lentilhas compradas no café persa, passaram de rompante por ele, quase o atirando para a sarjeta. Continuaram alegremente, sem olharem sequer para trás. Kitty estendeu uma mão para agarrar o velho, mas recuou ante o clarão de raiva nos olhos dele. Endireitou-se lentamente, apoiando-se pesadamente na sua bengala e murmurando de si para si.

— Peço desculpas — disse. — Ah, aqueles... julgam que são donos disto. E... e talvez assim seja. No momento. — Olhou ao longo do Embankment; lá embaixo, no fundo azul distante, as pessoas andavam na sua vida, visitando bancas ou subindo as ruas transversais apinhadas. No rio, quatro batelões de carvão amarrados vogavam, os barqueiros reclinados a fumar na amurada. O velho mostrou os dentes. — Poucos daqueles tolos desconfiam do que voa por cima deles ao ar livre — disse. — Ou calculam o que saltita atrás deles na rua. Porque, se adivinhassem, não se atreveriam a desafiá-lo. Deixam que os magos se pavoneiem entre eles; deixam-nos construir os seus palácios com o esforço e o suor do povo; arrastam todos os conceitos de justiça pela lama. Mas a menina e eu... nós vimos o que os magos fazem. E aquilo com que o fazem. Talvez não sejamos tão passivos quanto os nossos companheiros, hã?

Compôs o casaco e sorriu de repente.

— Deve pensar pela sua cabeça. Mais não direi. Apenas isto: acredito na sua história. Toda ela... claro que sim... mas em particular no Cilindro Negro. Afinal, quem seria estúpido a ponto de inventar isso se não tivesse sido afetado? Ah, por isso é tão interessante. Aguardarei o seu telefonema, Ms. Jones.

Dito aquilo, o velho girou nos calcanhares e partiu em passo enérgico pela rua transversal, a fazer toc-toc-toc nas pedras, ignorando as súplicas fortes de um ervanário à porta da sua loja. Kitty ficou a vê-lo até virar para a Strand e desaparecer de vista.

 

Aguardando no escuro do porão, Kitty passou em revista os acontecimentos de há muito tempo. Como tudo parecia distante; quão ingênua fora, de pé na sala de audiências a pedir que se fizesse justiça. Corou, furiosa: a recordação era dolorosa, mesmo agora. A justiça dos magos? A idéia em si era ridícula. Sem dúvida, a ação direta era a única alternativa viável. Pelo menos sempre estavam a fazer alguma coisa agora, a mostrar o seu desafio.

 

Olhou para o relógio. Anne entrara na câmara secreta há algum tempo. Ao todo, tinham sido roubados onze novos artefatos mágicos no Dia do Fundador — nove armas menores e duas jóias de finalidade desconhecida. Anne estava agora a guardá-las. Lá fora, a chuva intensificara-se. Durante a breve caminhada desde a loja de arte até o pátio deserto, tinham ficado completamente encharcados. Nem no porão estavam a salvo da água: caíam constantemente pingos de uma fenda funda no teto estucado. Por baixo encontrava-se um balde preto extremamente antigo. Estava quase cheio até à borda.

— Esvazie o balde, está bem, Stanley? — pediu Kitty.

Stanley estava sentado na caixa de carvão, de ombros curvados, a cabeça apoiada nos joelhos. Hesitou apenas um momento mais do que o necessário; por fim, desceu, pegou no balde e levou-o, com alguma dificuldade, até uma grade ao lado da parede. Despejou a água.

— Não sei porque é que ele não manda arrumar o cano — bufou, voltando a colocar o balde na sua posição. A manobra demorara apenas alguns segundos, mas formara-se já uma pequena poça entre os tijolos velhos do chão do porão.

— Porque ele quer que o porão pareça abandonado — respondeu Kitty. — É óbvio.

Stanley resmungou.

— O material está lá dentro sem ser usado. Não há lugar para ele.

Do seu posto próximo do arco da entrada, Fred anuiu. Tinha uma navalha de ponta e mola aberta na mão.

— Deviam deixar-nos entrar — comentou.

No outro extremo do pequeno cômodo, que era apenas iluminado difusamente por uma única lâmpada, fora arrecadada precariamente uma pilha de toras. A parede por trás dela parecia sólida, apesar de um pouco decrépita, mas sabiam todos como funcionava o mecanismo: uma alavanca de metal descia até o chão; ao mesmo tempo, a alvenaria por cima das toras deslizava com um toque. Conheciam o som monótono e irritante, o cheiro frio de químicos que emanava do interior. Mas não sabiam muito bem o que continha o recesso secreto, já que apenas Anne, que era a encarregada do grupo, tinha autorização para entrar na câmara do líder deles. Os outros ficavam sempre do lado de fora, de guarda.

Kitty mudou de posição, encostada à parede.

— É inútil usar tudo, por enquanto — disse. — Precisamos poupar o máximo possível, esperar até termos mais apoio.

— Como se isso fosse acontecer algum dia. — Stanley não voltara para a caixa do carvão, mas andava com irritação em volta do porão. — Nick tem razão. Os comuns são como bois. Nunca fazem nada.

— Todas aquelas armas ali dentro — observou Fred, melancolicamente. — Devíamos estar a dar-lhes mais uso. Como fez Mart.

— Não lhe serviu de muita coisa — comentou Kitty. — O Primeiro-Ministro continua vivo, não continua? E onde está Mart? Servindo de comida aos peixes.

Não quisera magoar ninguém, mas magoara. Stanley e Martin tinham sido grandes amigos. A sua voz subiu de intensidade, áspera e ressentida:

— Ele teve azar. A esfera não era suficientemente forte, é tudo. Podia ter apanhado Devereaux e metade do seu gabinete. Onde está Anne? Porque é que ela não se apressa?

— Está a iludir-se. — Kitty continuou a falar com azedume. — As defesas deles eram muito fortes. Mart nunca teve chance. Quantos magos matamos em todos estes anos? Quatro? Cinco? E nenhum deles importantes. Estou a dizer-lhe: com armas ou sem elas, precisamos de uma estratégia melhor.

— Vou lhe contar o que disse — replicou Stanley. — Quando ele regressar.

— É bem capaz, seu traiçoeiro. — A voz de Kitty era contundente. Mesmo assim, a idéia fê-la estremecer.

— Estou com fome — queixou-se Fred. Apertou o botão do fecho da navalha, fazendo saltar de novo a lâmina.

Kitty olhou para ele.

— Fartou-se de comer. Eu vi.

— Estou com fome outra vez.

— Agüenta.

— Não consigo lutar se estiver de barriga vazia. — Fred inclinou-se para frente; os seus dedos torceram-se, indistintos, ouviu-se um ruído sibilante, e a navalha de ponta e mola cravou-se no cimento entre dois tijolos, sete centímetros e meio acima da cabeça de Stanley. Lentamente, este levantou a cabeça e olhou para o cabo a tremer; o seu rosto estava um pouco verde.

— Vê? — disse Fred. — Falta de pontaria. — Cruzou os braços. — Isso é porque estou com fome.

— Pareceu-me bastante bem — comentou Kitty.

— Bem? Não acertei nele.

— Devolva a navalha, Stanley. — Kitty sentiu-se subitamente muito cansada.

Stanley esforçava-se em vão por arrancar a navalha da parede, quando a porta oculta se abriu por cima da pilha de toros e Anne apareceu. Não se via em lado nenhum o saco que levara consigo.

— Discutindo outra vez? — perguntou em tom mordaz. — Venham, crianças.

O caminho de volta à loja foi tão molhado quanto a viagem pelo exterior, e o moral do grupo estava mais baixo quando chegaram. Depois de entrarem espalhando água e vapor, Nick avançou correndo, o seu rosto brilhante de entusiasmo.

— O que é? — indagou Kitty. — O que aconteceu?

— Acabei de saber — disse, esbaforido. — Por Hopkins. Eles vão voltar ainda esta semana. Vão anunciar-nos algo de enorme importância. Um novo trabalho. Maior do que algo que jamais fizemos.

— Maior do que Westminster Hall? — Stanley mostrou-se cético.

Nick sorriu.

— Com todo o respeito pela memória de Mart, ainda maior do que isso. A carta de Hopkins não o diz, mas vai abalar tudo, segundo ele. É aquilo que sempre quisemos, cada um de nós. Vamos fazer algo que mudará os nossos destinos de uma vez por todas. É perigoso, mas, se o fizermos bem, diz ele, derrubaremos os magos do seu poleiro. Londres nunca mais será a mesma.

— Até que enfim — disse Anne. — Stanley, vá pôr a chaleira no fogo.

 

Imaginem a cena. Londres sob chuva torrencial. Lençóis de água cinzentos despejados do céu, caindo sobre as calçadas com estrondo maior do que um tiro de canhão. Uma ventania arremessava a chuva nesta e naquela direção, atirando-a para baixo de alpendres e beirais, cornijas e capitéis, invadindo cada possível refúgio com um jato gélido. Havia água por todo o lado, saltando no asfalto, correndo pelas sarjetas, juntando-se em cantos de porões e por cima dos esgotos. Inundava as cisternas da cidade. Caía horizontalmente em cascata pelos canos, diagonalmente sobre os telhados, descendo na vertical pelas paredes, manchando a alvenaria como extensos mares de sangue. Pingava entre os barrotes e através das fendas nos tetos. Pairava no ar sob a forma de uma névoa branca gélida, e mais acima, sem que se visse, nos domínios negros do céu. Infiltrava-se na estrutura dos edifícios e nos ossos dos seus habitantes amedrontados.

Nos lugares escuros por baixo do solo, os ratos amontoavam-se nas suas tocas, escutando os ecos do tamborilar lá em cima. Nas casas humildes, os homens e mulheres comuns fechavam as persianas, acendiam as luzes todas e reuniam-se em volta dos fogões com xícaras de chá fumegantes. Até nas suas mansões solitárias, os magos fugiam da chuva inesgotável. Recolhiam-se aos seus gabinetes de trabalho, trancavam rapidamente as portas de ferro e, criando nuvens de reconfortante incenso, perdiam-se em sonhos com terras distantes.

Ratos, comuns, magos: todos bem abrigados. E quem os culparia? As ruas estavam desertas, Londres inteira estava parada. Era quase meia-noite e a tempestade agravava-se cada vez mais.

Ninguém no seu perfeito juízo andaria na rua numa noite como esta.

Alto lá!

Em algum lugar no meio da chuva fustigante, havia um cruzamento onde confluíam sete ruas. No centro deste cruzamento havia um pedestal de granito, com uma estátua eqüestre em cima, um homem grande montado. O homem brandia uma espada, o seu rosto apanhado em pleno grito heróico. O cavalo estava empinado, as patas traseiras afastadas, as dianteiras estendidas. Talvez representasse um desafio dramático, talvez se preparasse para entrar na batalha. Talvez estivesse simplesmente a tentar derrubar o sujeito gordo que o montava. Nunca o saberemos. Mas reparem: por baixo da barriga do cavalo, sentado bem no centro do pedestal, com a cauda elegantemente enrolada nas patas — um enorme gato cinzento.

O gato parecia alheio ao vento cortante que fustigava o seu pêlo ensopado. Os seus belos olhos amarelos fitavam intensamente o escuro, como se penetrassem a chuva. Apenas a ligeira inclinação das orelhas felpudas assinalava a sua insatisfação com as circunstâncias. Sacudia uma orelha de vez em quando; de outro modo, o gato podia ser feito de pedra.

A noite escureceu. A chuva intensificou-se. Enrolei a cauda, com ar carrancudo e observei as ruas.

O tempo foi passando.

Quatro noites não é assim tanto tempo mesmo para os humanos, quanto mais para nós, seres superiores do Outro Lugar.19 No entanto, as últimas quatro noites tinham demorado muito a passar, pois durante cada uma delas eu andara a patrulhar as zonas centrais de Londres, em busca do destruidor desconhecido. Não estivera só, tenho que confessar: contara com a companhia de alguns outros desafortunados djinn e de foliots até dizer chega. Os foliots em particular, haviam causado confusões incessantes, sempre tentando esconder-se debaixo de pontes ou descendo por chaminés, ou apanhando cagaços de morte20 com os trovões ou as sombras uns dos outros. Era tudo o que se podia fazer para os metê-los nos eixos. E sempre a chover sem parar, o que já era suficientemente mau para provocar uma úlcera na essência de alguém.

 

19 Onde o tempo, em bom rigor, não existe. Ou, se existe, apenas de uma forma sinuosa, não linear... Olhem, é um conceito complicado e adoraria discuti-lo com vocês, mas talvez este não seja o momento mais indicado. Lembrem-me de fazê-lo mais tarde.

20 Sem tirar nem pôr, lamento. Tudo bastante deselegante e inconveniente.

 

Nathaniel, inútil será dizer, não fora nada meigo. Ele próprio estava pressionado, segundo afirmara, e necessitava de resultados rapidamente. Por seu lado, tinha dificuldade em controlar o pequeno grupo de magos do seu setor que providenciavam outros djinn para as patrulhas. Lendo nas entrelinhas, eram manifestamente indisciplinados, detestando receber ordens de um jovem arrogante. E, sejamos sinceros, quem os culparia? Todavia, todas as noites, tanto os djinn como os foliots reuniam-se carrancudos nos telhados cinzentos de lousa de Whitehall e eram encaminhados para as nossas patrulhas.

O nosso objetivo era proteger determinadas zonas turísticas privilegiadas, que Nathaniel e o seu superior imediato, um tal Mr. Tallow, consideravam ameaçadas. Fora-nos entregue uma lista de possíveis locais: museus, galerias, restaurantes chiques, o aeroporto, centros comerciais, estátuas, arcos e outros lugares... resumindo e concluindo, abarcava a maior parte de Londres. Isto implicava pôr os nossos circuitos a funcionar continuamente durante a noite, para termos hipótese de manter o controle.

Não se tratava apenas de uma tarefa entediante e cansativa (e muito úmida); era também um processo enervante, uma vez que a natureza do nosso adversário estava simultaneamente envolta em mistério e malignidade. Diversos foliots mais nervosos desencadearam logo uma campanha de boataria: o nosso inimigo era um afrit malvadão; pior — era um marid; andava permanentemente envolvido num manto de negrura, pelo que as suas vítimas não conseguiam ver a morte aproximar-se; não, destruía os edifícios com o seu bafo;21 fazia-se acompanhar do odor da sepultura que paralisava de igual modo humanos e espíritos. Para levantar o moral, tentei lançar um contra-boato de que não passava de um pequeno diabrete de índole resmungona, mas, infelizmente, não pegou: os foliots (e dois dos djinn) ficaram de olhos esbugalhados e tentados a fugir.

 

21 Conheci magos com poderes idênticos, especialmente logo pela manhã.

 

Tive um pequeno bônus, que foi o aparecimento, entre os djinn, nada mais nada menos de uma velha companheira dos meus dias de Praga: Queezle. Fora novamente escravizada por um dos outros magos no setor de Nathaniel, um indivíduo azedo e ressequido chamado Ffoukes. Não obstante o seu regime de austeridade, Queezle conservava o vigor de outros tempos. Decidimos trabalhar juntos sempre que fosse possível.22

 

22 Gostava de Queezle. Era viçosa e jovem (qualquer coisa como 1500 anos no vosso mundo) e tivera sorte com os seus amos. O primeiro chamado dela fora um eremita que vivia nos desertos jordanos, comia mel e tubérculos secos e a tratava com austera cortesia. Quando morreu, ela conseguiu escapar a novos servidores até uma maga francesa (por altura do século XV) ter encontrado o seu nome. Esta ama era também de uma clemencia fora do comum e nem uma só vez a submeteu ao Círculo Estimulante. Quando chegou a Praga, a personalidade de Queezle era menos acrimoniosa do que a de prisioneiros mais antigos. Liberta do serviço naquela cidade pela morte do nosso amo, servira desde então magos na China e no Ceilão, sem grandes incidentes.

 

Nas duas primeiras noites de vigilância não aconteceu nada, exceto a captura de dois foliots, levados enquanto se escondiam debaixo de London Bridge. Porém, na terceira noite, ouviram-se fortes sons estrondosos pouco antes da meia-noite, vindos da ala norte da National Gallery. Um djinni chamado Zeno foi o primeiro a chegar ao local, comigo a segui-lo de não muito longe. Simultaneamente, diversos magos, incluindo o meu amo, surgiram uns atrás dos outros; envolveram a galeria num denso nexo e ordenaram-nos que atacássemos.

Zeno demonstrou uma bravura admirável. Sem hesitação, foi direito à fonte dos distúrbios e nunca mais o viram. Eu ia bem atrás dele, mas devido a uma perna adoentada e ao complexo traçado dos corredores da galeria, fiquei para trás, perdi-me e não consegui alcançar a ala oeste senão muito mais tarde, e nessa altura o destruidor já partira.

As minhas alegações não funcionaram com o meu amo, que teria inventado algum castigo original para me aplicar não tivesse eu a proteção de saber o nome dele. Assim sendo, jurou meter-me num cubo de ferro caso eu não conseguisse atacar o inimigo da próxima vez que aparecesse. Dei respostas calmas, percebendo que ele estava desorientado com a ansiedade: o cabelo em desalinho, os punhos pendurados e inertes, as calças justas a caírem-lhe pelas pernas abaixo como se tivesse perdido peso. Fiz-lhe ver de uma forma algo compadecida.

— Tem que se alimentar melhor — sugeri. — Está muito magro. Neste momento, o único pedaço de ti que cresce para fora é o teu cabelo. Se não tiver cuidado, ainda se desequilibra.

Esfregou os olhos vermelhos, insones.

— Quer parar de implicar com o meu cabelo? Comer é para as pessoas que não têm mais nada o que fazer. Tempo é coisa que me falta... e a você também. Se conseguir destruir o inimigo, será ouro sobre azul; se não, pelo menos tente obter alguma informação sobre a sua natureza. Caso contrário, o mais provável é a Polícia Noturna vir a encarregar-se do caso.

— E depois? O que tem isso a ver comigo?

Falou muito sério.

— Significará a minha queda.

— E depois? O que tem isso a ver comigo?

— Tudo, se eu te prender no cubo de ferro antes de ir-me embora. Na verdade, seria melhor um de prata... É mais doloroso. E é o que vai acontecer, a menos que apresente resultados rapidamente.

Acabei então com as discussões. De pouco valiam. O rapaz estava um bocado mudado desde a última vez que o vira, e não fora para melhor. A mestra e a carreira tinham exercido sobre ele uma alquimia desagradável: estava mais duro, mais cruel e, de um modo geral, mais irritadiço. Apresentava igualmente menos sentido de humor do que anteriormente, o que em si constituía uma proeza notável. Fosse como fosse, estava ansioso pelo fim das minhas seis semanas.

Mas, até lá, vigilância, perigo, e chuva.

Da minha posição por baixo da estátua, conseguia ver três das sete ruas. Cada uma delas estava cheia de fachadas de lojas elegantes, escuras e sombrias, cobertas de grades de metal. Lanternas frágeis brilhavam nos nichos por cima das portas, mas a chuva era mais forte do que a luz e o seu brilho não ia muito longe. A água escorria pelas calçadas.

Um movimento súbito na rua do lado esquerdo: a cabeça do gato virou-se. Algo saltara para o parapeito de uma janela no primeiro andar. Ficou ali por um momento, uma mancha negra no escuro — depois, com um único movimento enérgico, escorregou pelo parapeito e desceu a parede, correndo em ziguezague pelos sulcos entre os tijolos como um fio fino de melaço quente. No fim da parede caiu para a calçada, tornou-se novamente uma pequena mancha negra, desenvolveu pernas e começou a chapinhar pela calçada na minha direção.

Observei tudo isto. Não me mexi nem um milímetro.

A mancha chegou ao cruzamento, atravessou as diversas poças de água e saltou para o pedestal. Aqui, revelou-se plenamente como um elegante spaniel com enormes olhos castanhos. Deteve-se diante do gato, estacou, sacudiu-se vigorosamente. Libertou uma quantidade de água que atingiu o gato em cheio no focinho.

— Obrigadíssimo, Queezle — disse-lhe. — Deve ter achado que eu ainda não estava suficientemente molhado.

O spaniel piscou os olhos, inclinou timidamente a cabeça para um lado e soltou um latido de desculpas.

— E pode parar já com esses velhos procedimentos — prossegui. — Não sou nenhum humano estúpido que vai ficar todo derretido com olhinhos meigos e uma bola de pêlo molhado. Esquece-se de que te vejo com clareza no sétimo plano, com tubos dorsais e tudo.

— É inevitável, Bartimaeus. — O spaniel levantou uma pata traseira e coçou-se descontraidamente atrás de uma orelha. — É todo este trabalho sob disfarce. Está a tornar-se uma segunda natureza para mim. Já é muita sorte não estar sentado debaixo de um poste de iluminação pública.

Não dignifiquei esta observação com uma resposta torta.

— Então, onde esteve? — inquiri. — Chegou com duas horas de atraso em relação ao combinado.

O spaniel anuiu com enfado.

— Falso alarme nos armazéns das sedas. Dois foliots julgaram ter visto algo. Foi preciso revistar todo o lugar minuciosamente, antes de dar luz verde. Nabos incompetentes. É claro que tive de lhes pregar uma reprimenda.

— Mordeu-lhes os tornozelos, foi?

Estampou-se um pequeno sorriso de esguelha no focinho do spaniel.

— Mais ou menos isso.

Afastei-me para dar um pouco de espaço a Queezle no centro do pedestal. Não que estivesse menos úmido ali, mas pareceu-me um gesto de camaradagem fazê-lo. Ela subiu para lá e colocou-se ao meu lado.

— Na verdade, não posso culpá-los — disse-lhe. — Andam nervosos. É toda esta chuva. E o que aconteceu a Zeno. Ser chamado noite após noite também não ajuda. Desgasta a essência, ao fim de um certo tempo.

Queezle olhou-me com aqueles enormes globos castanhos de cachorrinho.

— A tua essência também, Bartimaeus?

— Estava falando em termos retóricos. Eu estou bem. — Para prová-lo, arqueei o dorso numa exuberante espreguiçada, daquelas que vão da extremidade dos bigodes à pontinha do rabo. — Ahhh, assim está melhor. Ná, já vi pior do que isto e você também. Apenas um diabrete empolado à espreita no escuro. Não é nada que não consigamos resolver, assim que o encontrarmos.

— Foi o que Zeno disse, se bem me lembro.

— Não me recordo do que disse o Zeno. Onde está o teu amo esta noite? Abrigado e em segurança?

O spaniel soltou uma pequena rosnadela.

— Ele diz que vem assim que receber o sinal. No gabinete em Whitehall, supostamente. Na verdade, o mais provável é estar num bar para magos com uma garrafa numa mão e uma pequena na outra.

Resmunguei.

— Não me diga que ele é desse tipo?

— Pois é. Como é o teu?

— Oh, o mesmo. Ou ainda pior. É capaz de ter uma pequena e uma garrafa na mesma mão.23

 

23 Pura mentira. Apesar das camisas com pregas e da cabeleira esvoaçante (ou quiçá em virtude delas), ainda não vira muitas provas de que Nathaniel soubesse o que era uma pequena. Se alguma vez houvesse conhecido uma, eram fortes as probabilidades de terem ambos fugido a correr em direções opostas. Mas, tal como a maioria dos djinn, ao conversar, eu preferia, de um modo geral, exagerar nos pontos fracos do meu amo.

 

O spaniel soltou um ganido compadecido. Ergui-me lentamente.

— Bom, é melhor trocarmos as rondas — disse-lhe. — Vou começar a patrulhar até o Soho e venho para trás. Você pode começar pelas lojas chiques em Gibbet Street e ir até o bairro do museu por trás.

— Naturalmente, vou descansar um pouco — afirmou Queezle. — Estou cansada.

— Sim. Então boa sorte.

— Boa sorte. — O spaniel apoiou melancolicamente a cabeça nas patas. Expus-me à chuva fustigante, na beira do pedestal; flexionei as patas, pronto para o salto. Ouviu-se uma vozinha atrás de mim:

— Bartimaeus?

— Sim, Queezle?

— Oh, não é nada.

— O que é?

— Sabe... bem, não são só os foliots. Também estou nervosa.

O gato voltou para trás e sentou-se a seu lado por um momento, enrolando afetuosamente a cauda em volta dela.

— Não precisa de estar — disse-lhe. — Já passa da meia-noite e nenhum de nós viu nada. Nas outras ocasiões em que esta coisa atacou, à meia-noite já o tinha feito. O teu único receio deveria ser o enfado de uma vigília longa e entediante.

— Acho que sim. — A chuva tamborilava a toda a volta, como uma coisa sólida. Estávamos enclausurados nela. — Aqui entre nós — Queezle falou baixinho —, o que acha que seja?

A minha cauda agitou-se.

— Não sei, e preferia não descobrir. Até o momento, matou tudo o que encontrou. O meu conselho é: manter uma guarda vigilante e, se ver aparecer algo de anormal, correr logo no sentido contrário.

— Mas temos que destruí-lo. Foi essa a nossa ordem.

— Bem, destruí-lo fugindo.

— Como?

— Hum... Deixá-lo te perseguir, depois atraí-lo para o trânsito intenso? Algo dessa natureza. Não sei, o que acha? Só não faça o mesmo que Zeno, atacá-lo diretamente.

O spaniel soltou um suspiro.

— Eu gostava do Zeno.

— Um pouco impaciente demais, foi esse o mal dele.

Seguiu-se um silêncio carregado. Queezle nada disse. A chuva continuava a cair incessantemente.

— Bem — quebrei finalmente o silêncio. — Até breve.

— Sim.

Desci do pedestal e corri, de cauda no ar, debaixo de chuva, atravessando a rua alagada. Um único salto levou-me a um muro baixo, ao lado de um café deserto. Depois, numa série de pulos e pinotes — muro para sacada, sacada para parapeito, parapeito para telhas — exibi a minha agilidade felina, até ter que saltar para calha do telhado mais próximo e mais baixo.

Olhei rapidamente para trás, para a praça lá embaixo. O spaniel era uma mancha isolada e abandonada, acocorado nas sombras por baixo da barriga do cavalo. Uma rajada de chuva encobriu-o da minha vista. Virei-me e corri pelas cumeeiras.

Naquela parte da cidade, as casas antigas estavam pegadas umas às outras, inclinando-se para a frente como mexeriqueiros corcundas, de modo que as suas vigas quase se tocavam por cima da rua. Mesmo com a chuva, era fácil para um gato seguir rapidamente em qualquer direção. E assim fiz. Quem tivesse a sorte de estar espreitando por entre as persianas da sua janela poderia ter visto um clarão de relâmpago cinzento (nada mais) a saltar de chaminé em cata-vento, deslocando-se com rapidez por telhas e colmo, sem nunca pôr uma pata em falso.

Parei por um momento na depressão entre dois telhados muito íngremes e observei os céus ansiosamente. Teria sido mais rápido chegar ao Soho voando, mas tinha ordens para permanecer perto do solo, ficando atento a problemas ali. Ninguém sabia ao certo como o inimigo chegava ou partia, mas o meu amo desconfiava de que estava de alguma forma preso à terra. Duvidava inclusive de que fosse sequer um djinni.

O gato retirou alguma umidade do rosto com uma pata e preparou-se para outro salto — um bem grande desta vez, mais concretamente da largura da rua. Naquele momento, ficou tudo iluminado por uma explosão súbita de luz cor-de-laranja — vi as telhas e as chaminés a meu lado, as nuvens baixas por cima, e até as cortinas de precipitação em toda a volta. Depois a escuridão voltou a instalar-se.

O clarão cor-de-laranja era o sinal de emergência combinado. Vinha bem lá de trás.

Queezle.

Encontrara algo. Ou algo a encontrara.

Não havia tempo para regras. Virei-me; nesse meio tempo, efetuei a mudança: uma águia de crista negra e asas de pontas douradas, lançando-se apressada no céu.

Percorrera apenas dois quarteirões desde o lugar onde o imponente cavaleiro vigiava as sete ruas. Mesmo que se tivesse deslocado, Queezle não podia estar longe. Levaria menos de dez segundos para regressar. Tudo bem. Eu chegaria a tempo.

Passados três segundos, ouvi o grito dela.

 

A águia mergulhou na noite, atirando-se perigosamente para as garras da ventania. Voou por cima dos telhados até os cruzamentos solitários; direto à estátua. Pousei na beira do pedestal, onde a chuva batia com intensidade na pedra. Estava tudo exatamente como há um minuto ou dois antes. Mas o spaniel desaparecera.

— Queezle? — Nenhuma resposta. Nada, exceto o uivo do vento.

Um momento depois, empoleirado no chapéu do cavaleiro, observei as sete ruas em cada um dos sete planos. Não se via o spaniel em lugar nenhum; tampouco quaisquer djinn, diabretes, feitiços ou outras efusões mágicas. As ruas estavam desertas. Encontrava-me completamente sozinho.

Na dúvida, voltei ao pedestal e submeti-o a um exame minucioso. Pareceu-me detectar uma tênue marca preta na cantoneira, mais ou menos onde tínhamos estado sentados, mas era impossível dizer se já se encontrava lá antes.

De um momento para o outro, senti-me muito exposto. Para onde quer que me virasse no pedestal, a minha retaguarda estava vulnerável a algo que saísse a rastejar da chuva. Levantei vôo de imediato e andei em espiral em volta da estátua, o barulho das gotas de chuva a latejar nos meus ouvidos. Elevei-me para lá do nível dos telhados, seguramente fora do alcance de algo que espreitasse na rua.

Foi então que ouvi o ruído. Não se pode dizer que fosse assim agradável, contido... digamos, como uma garrafa a partir-se na cabeça de um homem. Mais parecia que uma floresta enorme de carvalhos estava a ser arrancada e arremessada para o lado com indiferença, ou que um edifício inteiro fora afastado com impaciência do caminho de algo muito grande. Em outras palavras, nada promissor.

Pior ainda, sabia de que direção vinha. Se a chuva fosse apenas um pouquinho mais ruidosa, ou o estrondo um nadinha mais baixo, talvez eu pudesse me enganar e avançar corajosamente, para investigar na direção errada. Mas tal não aconteceu.

De qualquer forma, havia sempre a reduzida hipótese de Queezle ainda poder estar viva.

Então, fiz duas coisas. Primeiro, enviei outro Foguete Luminoso, esperando sem ter esperança que pudesse ser avistado por outro vigilante do nosso grupo. O mais próximo, se a memória me não falhava, era um foliot, postado em algum lugar próximo de Charing Cross. Era um indivíduo magro, destituído de valentia ou iniciativa, mas quaisquer reforços seriam bem-vindos neste momento, nem que fosse como carne para canhão.

Prossegui depois rumo ao norte, ao nível das chaminés, pela rua de onde viera o som. Dirigia-me para o bairro do Museu. Voei por ali tão lentamente quanto é possível a uma águia sem cair do ar.24 Fui observando continuamente os edifícios por baixo. Era uma zona de lojas de luxo, pequenas, escuras, discretas. Tabuletas antigas pintadas por cima das portas sugeriam as delícias lá dentro: gargantilhas, rolos de seda, relógios de bolso incrustados com jóias. O ouro era rei neste bairro, os diamantes idem. Era a estes estabelecimentos que os magos vinham comprar aqueles pequenos extras que realçavam a sua posição social. Os turistas ricos afluíam também aqui.

 

24 Se é possível bater as asas delicadamente, era exatamente isso que eu fazia.

 

O tremendo estrondo não se repetira; todas as fachadas das lojas pareciam em bastante bom estado, as suas luzes de presença acesas, as tabuletas de madeira a chiar ao vento.

A chuva caía à minha volta, lá embaixo na rua. Em certos lugares, as pedras tinham desaparecido debaixo da superfície pontilhada da água. Não se via ninguém, mortal ou de outro tipo. Bem podia estar a sobrevoar uma cidade-fantasma.

A rua alargava um pouco, para passar de cada lado de um pequeno círculo de relva e flores bonitas. Parecia uma visão imprópria na rua estreita, talvez um pouco deslocada. Depois reparava-se no velho poste partido no meio da relva, nas lajes de pedra escondidas entre as flores, e percebia-se a sua finalidade original.25 Esta noite tudo tinha um aspecto muito alagado e varrido pelo vento, mas o que me interessou, e fez andar às voltas para pousar no poste, foram as marcas na relva.

 

25 O nome da rua, Gibbet Street* dizia tudo. As autoridades de Londres sempre tinham sabido dar exemplos aos comuns, muito embora, mais recentemente, os corpos dos criminosos fossem apenas pendurados no bairro da Prisão, nas proximidades da Torre. Em qualquer outro lugar seria dissuasor do turismo.

 

{* Rua da Forca. (NT)}

 

Eram uma espécie de pegadas. Grandes. Vagamente em forma de espátula, com a marca de um dedo grande, separado, visível na extremidade mais ampla. Atravessavam o círculo de relva de um lado ao outro, cada pegada afundando-se na terra.

Sacudi a água das penas da crista e cravei as garras no poste. Perfeito. Simplesmente perfeito. O meu inimigo não era apenas misterioso e poderoso, também era grande e pesado. A noite estava ficando cada vez melhor.

Segui a direção das pegadas com os meus olhos de águia. Os primeiros passos logo a seguir à relva eram ainda parcialmente visíveis, como o indicava o rastro irregular de lama depositada. Para lá dela desapareciam, mas via-se que nenhuma das lojas fora alvo das atenções de qualquer destruidor. Era evidente que a minha presa se dirigia para outro lado. Levantei vôo e continuei rua afora.

Gibbet Street terminava numa avenida larga que se estendia da esquerda para a direita, mergulhada na escuridão. Do outro lado havia um gradeamento alto e imponente com barras metálicas, cada poste com seis metros de altura, cinco centímetros de espessura. O gradeamento tinha portões duplos, e estes pendiam, abertos. Na verdade, para ser exato, pendiam abertos de um poste público próximo, juntamente com uma porção do gradeamento adjacente. Fora aberto um enorme buraco torcido no gradeamento. Algo o rasgara em dois com a pressa de entrar. Quanta ansiedade! Em contraste, foi com extrema relutância que me acerquei, atravessando lentamente a rua em vôo.

Pousei numa ponta de metal torcida e torturada. Do outro lado do portão destruído ficava um acesso largo que conduzia a uma ampla escadaria. No alto desta encontrava-se um pórtico gigante com oito colunas imponentes, ligadas a um edifício grande, alto como um castelo, tristonho como um banco. Reconheci-o de outros tempos: o mítico Museu Britânico. Estendia-se em ambos os sentidos, ala após ala, mais do que os meus olhos conseguiam alcançar. Era do tamanho de um quarteirão.26

 

26 O Museu Britânico albergava um milhão de antigüidades, várias dúzias das quais tinham sido adquiridas legitimamente. Nos duzentos anos que antecederam o domínio dos magos, os governantes de Londres tinham tido por hábito roubar tudo o que tivesse interesse dos países que os seus comerciantes visitavam. Era uma espécie de vício nacional, firmado na curiosidade e na avareza. Os cavalheiros e as damas que efetuavam o Grande Tour da Europa mantinham-se atentos a pequenos tesouros que pudessem ser enfiados às escondidas nas malas de mão; os soldados em campanha enchiam as arcas com preciosidades e relíquias saqueadas; cada negociante que regressava à capital trazia um caixote extra com artigos valiosos. A maior parte destes artigos acabava por ir parar nas coleções cada vez maiores do Museu Britânico, onde eram exibidas com indicações em muitas línguas para que os turistas estrangeiros pudessem vir ver os seus tesouros perdidos com um mínimo de incômodo. A seu tempo, os magos despojaram o museu dos seus artigos mágicos, mas permaneceu como imponente ossuário cultural.

 

Era de mim, ou parecia tudo muito grande neste lugar? A águia compôs as penas vigorosamente, mas não pôde deixar de se sentir bastante pequena. Ponderei a situação. Não havia prêmios para quem adivinhasse o motivo que trouxera ali o inimigo desconhecido, patudo e manifestamente forte. O museu continha material digno de destruição suficiente para mantê-lo ocupado durante uma semana. Quem quer que desejasse causar embaraço ao Governo britânico escolhera bem, e podia mesmo afirmar-se que a desventurada carreira do meu amo não continuaria por muito mais tempo se o destruidor levasse a cabo uma noite de trabalho ininterrupto.

Claro que isso implicava eu ter de segui-lo até lá dentro.27

 

27 Eu tinha agora um outro motivo: a vingança. Já não alimentava muitas esperanças de voltar a ver Queezle com vida.

 

A águia avançou, voando baixo pelo acesso e por cima dos degraus para pousar entre as colunas do pórtico. Lá na frente ficava a enorme porta de bronze do museu; tipicamente, a minha presa decidira ignorá-la e avançar antes pela parede de pedra. Não era uma coisa nada elegante, mas possuía uma impressionante característica de causar um aperto nas tripas que me fez passar alguns minutos extras em flagrantes táticas de prorrogação, como verificar cuidadosamente os escombros do pórtico à procura de perigo.

O buraco no edifício era amplo e negro. Espreitei lá para dentro de uma distância respeitosa, para uma espécie de pátio. Estava tudo sossegado. Nenhuma atividade em qualquer dos planos. Uma confusão de madeira e alvenaria partidas e uma tabuleta destruída que anunciava alegremente BEM-VINDOS AO MU mostravam o lugar onde algo abrira caminho destemidamente. O pó pairava densamente no ar. Uma parede do lado esquerdo fora derrubada. Apurei os ouvidos. Ao longe, por trás da chuva que caía, julguei ouvir o som característico de antigüidades de valor incalculável a serem partidas.

Enviei outro Foguete Luminoso para o céu, para o caso de o foliot medroso decidir olhar na minha direção. A seguir, efetuei a mudança e entrei no edifício.

O feroz minotauro28 olhou arrogantemente para o pátio em ruínas, o vapor a sair-lhe das narinas, as patas dianteiras flexionadas, raspando os cascos no chão. Quem se atreveria a desafiá-lo? Ninguém! Bem, não propriamente, porque, conforme esperava, não havia nada na sala. Melhor era impossível. Isso queria dizer que tinha de passar à seguinte. Tudo bem. Respirando fundo, o minotauro avançou cautelosamente na ponta dos cascos pelos detritos da parede derrubada. Espreitou com enorme cautela.

 

28 Garantidamente capaz de amedrontar um inimigo humano, não existe nada melhor do que um minotauro com cabeça de touro se querem recuperar a adrenalina do choque e do medo. E, depois de séculos de esmerado apuramento, o aspecto do meu minotauro em particular estava um mimo. Os cornos possuíam precisamente o número adequado de curvas e os dentes eram magnificamente afiados, como se limados. A pele era ébano negro-azulado. Conservei o torso humano. Mas preferira as patas de bode e os cascos fendidos de um sátiro, que eram um pouco mais assustadores do que joelhos cheios de bolhas e sandálias.

 

Escuridão, chuva a tamborilar nas janelas, ânforas e vasos fenícios espalhados pelo chão. E, em algum lugar, ao longe: vidro a partir-se. O inimigo estava ainda várias salas à frente. Ótimo. O minotauro avançou corajosamente.

Os minutos subsequentes foram um jogo bastante lento de gato e rato, repetindo-se o processo várias vezes. Nova sala, vazia, sons lá mais adiante. O destruidor seguia alegremente o seu caminho de destruição; prossegui hesitante no rastro dele, menos ansioso do que deveria ter estado, em bom rigor, para alcançá-lo. Não era exatamente a bravata tradicional do vosso Bartimaeus, tenho que admitir. Chamem de excesso de cautela, mas o destino de Zeno pesava fortemente no meu espírito e tentava arranjar um plano infalível para evitar ser morto.

A extensão da carnificina por que eu estava passando fez com que me parecesse improvável estar a lidar com qualquer agente humano. Portanto, o que seria? Um afrit? Possível, mas absolutamente fora de moda. Esperava-se que os afrits usassem montes de ataques mágicos — Detonações e Infernos de categoria elevada, por exemplo — e não havia provas de nada aqui a não ser mera força bruta. Um marid? Outra vez o mesmo, e certamente ter-me-ia já apercebido da sua presença mágica.29 Mas não obtinha qualquer informação conhecida. Todas as salas estavam mortas e frias. Isto não condizia nada com o que o rapaz me dissera sobre os anteriores ataques: não parecia que houvesse sequer espíritos envolvidos.

 

29 Os marids irradiam tanto poder que é possível acompanhar os seus movimentos recentes seguindo um rastro mágico residual: deixam-no ficar a pairar na atmosfera tal como um caracol deposita visco. Está claro que não é sensato usar esta analogia na presença de um marid.

 

Para ter certeza absoluta, enviei uma pequena Pulsação mágica a borbulhar à minha frente pelo buraco irregular seguinte, de onde chegavam ruídos sonoros. Esperei que a Pulsação regressasse, ou mais fraca (se não houvesse magia lá na frente) ou mais forte (se algo potente estivesse à espreita).

Para minha consternação, ela não chegou sequer a voltar.

O minotauro esfregou o focinho, intrigado. Estranho, e vagamente familiar. Tinha certeza de que já vira este efeito antes.

Escutei junto ao buraco; mais uma vez, os únicos sons eram distantes. O minotauro esgueirou-se...

E foi dar em uma galeria grande, com o dobro da altura das outras salas. A chuva batia nas janelas retangulares altas que se erguiam de cada lado, e de algum lugar na noite, talvez alguma torre distante, uma tênue luz branca incidia sobre o conteúdo do salão. Era um cômodo cheio de estátuas antigas de tamanho colossal: dois porteiros djinn assírios — leões alados com cabeças humanas, que tinham estado antes diante das portas de Nimrud*;30 um conjunto heterogêneo de deuses e espíritos egípcios, esculpidos numa dúzia de variedades de pedra colorida e com as cabeças de crocodilo, gato, íbis e chacal;31 enormes representações esculpidas do escaravelho sagrado; sarcófagos de sacerdotes há muito esquecidos; e, acima de tudo, fragmentos de estátuas monolíticas dos grandes faraós — rostos, braços, torsos, mãos e pés partidos, encontrados enterrados nas areias e levados de barco à vela e a vapor para as terras tristonhas do Norte.

 

* Cidade nas margens do rio Tigre, a trinta e cinco quilômetros da atual Mosul, no Iraque; fundada no século XIII, tornou-se o mais importante centro militar da Assíria durante o século IX a. C. com Assurnazirpal II. (NT)

 

30 Estes eram apenas representações de pedra; nos tempos gloriosos da Assíria, os djinn teriam sido reais, colocando enigmas aos desconhecidos de maneira idêntica à da Esfinge, e devorando-os se a resposta estivesse errada, gramaticalmente incorreta ou fosse simplesmente proferida com pronúncia rústica. Eram uns animais muito protocolares.

31 Este último, o velho Anúbis, deixa-me sempre enervado se o avisto pelo canto do olho. Mas, aos poucos, estou aprendendo a descontrair. Há muito que Jabor se foi.

 

Noutra ocasião, poderia ter efetuado aqui uma viagem nostálgica, procurando imagens de amigos e amos distantes, mas não era o momento oportuno. Fora aberto um corredor no meio do salão; diversos faraós menores já tinham sido derrubados e jaziam como pinos de boliches em montes indignos nas margens, enquanto dois dos deuses estavam mais próximos um do outro do que teriam apreciado em vida. Mas se estes haviam dado pouco trabalho, algumas das estátuas maiores pareciam oferecer mais resistência. No meio do salão, e diretamente no caminho que o inimigo estava a tomar, erguia-se uma figura gigante sentada de Ramsés II, mais de nove metros de altura e esculpida em granito sólido. O alto do seu toucado balançava ligeiramente; vinham raspadas abafadas da escuridão por baixo, sugerindo que algo tentava tirar Ramsés do seu caminho.32

 

32 Ramsés não teria se surpreendido por sua estátua estar dando tanto trabalho: de todos os humanos que tive a infelicidade de servir, não havia quem possuísse ego maior. E isto apesar de ser pequeno, ter as pernas arqueadas e um rosto tão bexigoso quanto o traseiro de um rinoceronte. Contudo, os seus magos eram fortes e inflexíveis — durante quarenta anos trabalhei em projetos de construção grandiosos em seu nome, juntamente com mil outros espíritos ignorantes.

 

Até um utukku teria percebido, ao cabo de um minuto ou dois, que o mais fácil era contornar algo tão grande e prosseguir nas suas andanças. Mas o meu inimigo sacudia a estátua como um cão pequeno tentando levantar uma tíbia de elefante. Por isso, talvez (um pensamento positivo) o meu adversário fosse muito estúpido. Ou talvez (menos positivo, este) fosse simplesmente ambicioso — determinado em causar a máxima destruição.

Fosse como fosse, via-se que estava todo entretido de momento. E isso dava-me oportunidade de ver mais de perto o que enfrentava.

Sem um único som, o minotauro avançou elegantemente pela escuridão do salão até chegar a um sarcófago alto que até o momento se mantinha intacto. Espreitou por trás dele na direção da base da estátua de Ramsés. E carregou o cenho de perplexidade.

A maior parte dos djinn possui uma visão noturna perfeita; é uma das inúmeras maneiras de suplantarmos os humanos. A escuridão pouco significa para nós — mesmo no primeiro plano, que vocês também vêem. Mas, afinal, enquanto inspecionava os outros planos à velocidade do pensamento, verifiquei que não conseguia penetrar num poço fundo de negrura centrado na base da estátua. Inchava e encolhia em volta das suas extremidades, mas permanecia tão cerradamente inescrutável no sétimo plano quanto no primeiro. O que quer que estivesse sacudindo Ramsés encontrava-se bem embrenhado na escuridão, mas eu não conseguia divisar nada.

Todavia, dava sem dúvida para calcular mais ou menos onde estaria, e uma vez que se conseguia manter razoavelmente fixo, parecia ter chegado o momento de um ataque-surpresa. Olhei à minha volta, procurando um míssil apropriado. Num armário de vidro próximo havia uma estranha pedra preta, de contornos irregulares, suficientemente pequena para erguer, mas suficientemente grande para abrir os miolos de um afrit com perfeição. Apresentava muitos rabiscos numa face plana, que nem tive tempo de ler. Provavelmente um conjunto de regras para os visitantes do museu, uma vez que parecia estar escrito em duas ou três línguas. Fosse o que fosse, serviria perfeitamente.

Cuidadosa e silenciosamente, o minotauro levantou a vitrine do chão e passou-a por cima da pedra, pousando-a de novo sem qualquer som. Inspecionou à sua volta: a negrura continuava a atacar agressivamente os pés de Ramsés, mas a estátua permanecia imóvel. Ótimo.

Uma inclinação e um levantamento, e a pedra estava nos braços musculosos do minotauro; voltei para trás galeria afora, procurando um ponto de vantagem adequado. Um faraó pequeno despertou a minha atenção. Não o reconheci — não devia ter sido um dos mais memoráveis. A sua estátua tinha até uma expressão ligeiramente acanhada. Mas estava sentado no alto de um trono esculpido sobre um estrado, e o seu colo parecia suficientemente grande para um minotauro se equilibrar.

Segurando ainda a pedra, dei um salto, primeiro para o estrado, depois para o trono, a seguir para o colo do faraó. Espreitei por cima do ombro dele: perfeito — agora estava muito próximo da negrura pulsante, suficientemente alto para conseguir a trajetória perfeita.

Retesei as minhas patas de bode, flexionei os bíceps, soltei um resfolego para dar sorte e arremessei a pedra para longe, como se de uma catapulta de cerco.

Durante um único segundo, talvez dois, a sua superfície gravada brilhou na luz das janelas, depois desceu a pique diante do rosto de Ramsés, até à base da estátua e ao centro da nuvem negra.

Em cheio! Um bater de pedra em pedra, rocha em cima de rocha. Saltaram pequenos pedaços escuros da negrura em todas as direções, projetando bocados da peça e partindo vidro.

Bem, acertara em alguma coisa, e era dura.

A nuvem negra ferveu como se de raiva súbita. Recuou ligeiramente; vislumbrei algo muito grande e sólido no centro, agitando um braço gigante em descuidada fúria. Depois a nuvem voltou a fechar-se e cresceu para fora, batendo nas estátuas mais próximas como se procurando às cegas o autor do crime.

Na realidade, o heróico minotauro dera sumiço: eu estava acocorado todo encolhidinho no colo do faraó, espreitando por uma fenda no mármore. Até os meus cornos estavam um pouco caídos, para não ficarem expostos. Vi a negrura mover-se enquanto o que quer que estivesse no interior iniciava uma perseguição; afastou-se decididamente da base de Ramsés, batendo nas estátuas mais próximas. Ouviu-se uma série de pancadas pesadas: o ruído de passos ocultos.

Se pode-se dizer que não tinha muitas esperanças relativamente ao meu primeiro ataque, dado o meu adversário ser capaz de derrubar paredes sólidas, estava um pouco decepcionado pela pedra não ter causado maior impacto. Mas dera-me um ínfimo vislumbre da criatura lá dentro, e como — já que não podia dar cabo dela — uma das minhas ordens era obter informações sobre o destruidor, sempre valia a pena investigar. Se uma pedra pequena causara tão pouca comoção na negrura... então, o que faria uma pedra grande?

A nuvem ondulante afastou-se para investigar um grupo suspeito de estátuas do outro lado do salão.

Com improvável furtividade, o minotauro desceu do colo do faraó e avançou, numa série de pequenos movimentos rápidos entre esconderijos, pela galeria, até um grande torso de arenito de outro faraó junto à parede.33

 

33 A cartela no seu peito proclamava-o como Ahmose da XVIII dinastia, «aquele que une na glória». Como presentemente lhe faltavam a cabeça, as pernas e os braços, este alarde soava um pouco a oco.

 

O torso era alto — cerca de quatro metros. Comprimi-me nas sombras atrás dele, tirando entretanto um pequeno vaso funerário de um suporte próximo. Uma vez devidamente escondido, estendi um braço peludo e atirei o vaso para o chão a cerca de três metros de distância. Partiu-se com um satisfatório estalido seco.

Imediatamente, como se tivesse estado à espera de semelhante som, a nuvem de negrura mudou de posição e começou a avançar rapidamente na direção do ruído. Ouviram-se passos céleres; estenderam-se tentáculos tateantes da negrura, fustigando as estátuas por onde passavam. A nuvem aproximou-se do vaso partido; ali estacou, erguendo-se vacilante.

Estava em posição. Nesta altura, o minotauro subira até metade do torso de arenito, apoiara as costas na parede por trás, e empurrava a estátua com toda a força dos seus cascos fendidos. O torso começou a agitar-se de imediato, balançando para trás e para frente, e emitindo um ligeiro som de raspagem.34 A nuvem de negrura captou o ruído; correu na minha direção.

 

34 O meu adversário deveria ter pensado no princípio da alavanca quando tentara empurrar Ramsés. Como eu disse uma vez a Arquimedes, «Dêem-me uma alavanca suficientemente grande e eu farei mover o mundo.» Neste caso, o mundo era um bocadinho ambicioso, mas um torso sem cabeça com seis toneladas vinha mesmo a calhar.

 

Mas não com rapidez suficiente. Num esforço derradeiro, o centro de equilíbrio do torso alterou-se irremediavelmente; desceu assobiando pelo salão escuro, batendo violentamente na nuvem.

A força do impacto desfez a nuvem num milhão de pedaços desiguais; dispersaram em todas as direções.

Dei um salto, aterrando agilmente ao lado. Virei-me ansioso, observando a cena.

O torso não ficara espalmado no chão. Partira-se ao meio; a extremidade de cima estava a um metro do chão, como se assentasse em algo grande.

Encaminhei-me para lá, cautelosamente. Do meu ângulo, não conseguia ver bem o que jazia comatoso por baixo. Mesmo assim, parecia que eu fora bem sucedido. Dali a instantes poderia ir-me embora, chamar o rapaz e preparar-me para ser dispensado.

Aproximei-me, debrucei-me para olhar para baixo da estátua.

Saiu de lá uma mão, mais rápida do que o pensamento, e agarrou-me por uma pata peluda. Era cinzento-azulada, detentora de três dedos e um polegar e fria como pedra soterrada. Corriam nela veios como no mármore, mas pulsavam com vida. A sua pressão esmagava a minha essência como um torno. O minotauro bramiu de dor. Precisava mudar, retirar minha essência do punho, mas sentia a cabeça girando — não conseguia me concentrar o suficiente para fazê-lo. Estendia-se uma terrível friagem, envolvendo-me como uma mortalha. Senti os meus fogos diminuírem, a minha energia escoar-se de mim como sangue a escorrer de uma ferida.

O minotauro oscilou, caiu como um títere vazio no chão. A solidão gélida envolveu-me.

Depois, inesperadamente, o pulso de pedra dobrou-se, a pressão aliviou; o corpo do minotauro foi arremessado para o ar num arco desgracioso, batendo com força na parede próxima. A minha consciência vacilou; caí, aterrando com a cauda por cima dos cornos lá embaixo, no chão.

Fiquei ali por um momento, atordoado, confuso. Ouvi sons de algo a raspar, como se o torso de arenito fosse mudado de posição, e nada fiz. Senti o chão estremecer como se o torso fosse sumariamente atirado para o lado, e nada fiz. Ouvi primeiro um abalo firme, depois outro, como se de enormes pés de pedra a endireitarem-se, e continuei a não fazer nada. Contudo, o hediondo frio ardente da pressão da manopla diminuía lentamente, e os meus fogos foram repostos. E agora, enquanto os enormes pés de pedra se moviam intencionalmente para mim, e sentia algo fixo em mim com intuitos frios, voltou a energia suficiente para agir.

Abri os olhos; vi uma sombra pairando.

Comum esforço torturado da vontade, o minotauro transformou-se mais uma vez no gato; este saltou alto para o ar, saindo do caminho do pé que descia, e que assentou com toda a força na estrutura do assoalho. O gato caiu a curta distância, com o pêlo eriçado, a cauda grossa como um escovão sanitário; soltando um miado, voltou a dar um salto.

Quando saltou, olhou para o lado e conseguiu ter uma visão global do adversário.

Os pedaços negros formavam-se já à sua volta como glóbulos de mercúrio na mortalha permanente que ocultava a criatura. Mas permanecia suficientemente livre para que eu conseguisse vê-lo, o seu contorno exposto ao luar, seguindo o meu salto com um movimento rápido da cabeça.

À primeira vista, era como se uma das estátuas no salão tivesse ganhado vida: uma figura imensa, relativamente humanóide na forma, com três metros de altura. Dois braços, duas pernas, um torso maljeitoso, uma cabeça relativamente pequena assentada em cima de tudo.

Existia apenas no primeiro plano: nos outros, a escuridão era profunda e absoluta.

O gato aterrou na cabeça escamosa de Sobek, o deus crocodilo, e ficou ali empoleirado por um momento, bufando provocadoramente. Tudo na figura irradiava uma estranha diversidade; senti a minha energia escoar-se só de vê-la.

Avançou para mim com surpreendente rapidez. Por um instante, o seu rosto — tal como se apresentava — foi apanhado pela luz da janela, e eis então que a comparação com as estátuas antigas caiu por terra. Aquelas estátuas tinham sido delicadamente esculpidas, sem exceção; nisso os Egípcios eram mesmo bons, juntamente com a religião organizada e a engenharia civil. Mas, além da escala, o aspecto mais óbvio da criatura era a sua imperfeição, a sua artificialidade. A superfície da pele estava coberta de irregularidades; com altos, fendas e zonas planas, como se a forma lhe tivesse sido dada muito grosseiramente. Não apresentava orelhas, nem cabelo. Onde se esperaria ver olhos, tinha dois buracos redondos que pareciam ter sido simplesmente abertos na sua superfície com a ponta afiada de um lápis gigante. Não se via nariz, e apenas uma fenda enorme a fazer de boca, que pendia ligeiramente aberta de uma maneira estúpida e voraz, fazendo lembrar um tubarão. E, no meio da testa, estava uma forma oval que eu sabia já ter visto antes, não há muito tempo.

Esta oval era relativamente pequena, feita da mesma substância cinzento-azulada do resto do corpo, mas tão complexa quanto o rosto e o corpo eram toscos. Tratava-se de um olho aberto, sem pálpebras nem pestanas, mas com uma íris quadriculada e pupila redonda. E no centro dessa pupila, antes mesmo do manto de negrura escondê-lo da minha vista, captei o clarão de uma inteligência obscura, a observar-me.

A negrura atacou; o gato deu um salto. Atrás de mim, ouvi Sobek partir-se em pedaços. Aterrei no chão, corri para a porta mais próxima. Estava na hora de partir; descobrira o que precisava. Não me parecia que pudesse fazer algo mais ali.

Um míssil qualquer passou por cima da minha cabeça, colidiu com a porta, abrindo um rombo nela. O gato saiu disparado. Passos arrepiantes foram atrás dele.

Encontrava-me numa sala pequena e escura, cheia de frágeis panos étnicos e tapeçarias. Uma janela alta ao fundo prometia uma saída. O gato correu para lá, os bigodes para trás, as orelhas coladas à cabeça, as unhas a rasparem no chão. Saltou; guinou para o lado no último instante com uma imprecação nada felina. Vira as linhas brilhantes de um nexo de força enorme por baixo da janela. Os magos haviam chegado. Tinham-nos encerrado lá dentro.

O gato deu meia-volta, procurando outra saída. Sem encontrar nenhuma.

Malditos magos.

Uma nuvem ebuliente de negrura tapava a ombreira da porta.

O gato curvou-se numa postura defensiva, comprimindo-se contra o chão. Atrás dele, a chuva tamborilava nas vidraças.

Por um momento, nem o gato nem a escuridão se mexeram. Depois, algo pequeno e branco irrompeu da nuvem, atravessando a sala: a cabeça de crocodilo de Sobek, arrancada dos ombros. O gato saltou para o lado. A cabeça foi de encontro à janela, zumbindo ao bater no nexo. Entrou chuva quente pelo buraco, fazenda fumaça do contato com a barreira; fez-se acompanhar de uma corrente de ar súbita. As tapeçarias e os panos nas paredes esvoaçaram lá para fora.

Passos. Uma negrura a aproximar-se. Pareceu crescer e ocupar a sala toda.

O gato encolheu-se a um canto, reduzindo ao máximo o seu tamanho. A qualquer momento, aquele olho me veria...

Outra rajada de chuva; as extremidades das tapeçarias agitaram-se na ascendente. Formou-se uma idéia.

Não muito boa, mas naquele momento não podia estar com esquisitices.

O gato saltou para o tecido pendurado mais próximo, uma peça frágil, possivelmente da América, mostrando humanos abraçados num mar de milho estilizado. Subi até o topo, onde fios o prendiam cuidadosamente à parede. O brilho de uma garra — o pano soltou-se. Imediatamente, o vento apanhou-o; voou pela sala, colidindo com algo no meio da nuvem negra.

O gato passara já à tapeçaria seguinte, soltando-a. Depois outra. Em menos de nada, meia dúzia de faixas de tecido tinham sido largadas no centro da sala, onde dançavam palidamente como fantasmas entre o vento e a chuva que entravam.

A criatura na nuvem arrancara a primeira faixa, mas levava agora com outra em cima. Caíam de todos os lados fragmentos de tecido, confundindo a criatura, tapando-lhe a visão. Senti os braços enormes agitando-se, as pernas gigantes vacilando para trás e para frente dentro dos limites da sala.

Enquanto ela estava assim ocupada, eu fazia tenções de dar o fora dali.

Mais fácil de dizer do que fazer, já que a nuvem negra parecia encher agora a sala toda, e não me apetecia nada chocar com o corpo portador de morte dentro dela. Avancei então com cautela, coladinho nas paredes.

Chegara na metade, quando a criatura, evidentemente atingindo o auge da frustração, perdeu todo o sentido de perspectiva. Ouviu-se um súbito bater de pés e uma pancada grande na parede da esquerda. Caiu estuque de cima e uma nuvem de pó e detritos invadiu a sala, juntando-se ao turbilhão geral do vento, da chuva e dos tecidos antigos.

À segunda pancada a parede desabou, e com ela todo o teto.

Durante uma fração de segundo, o gato ficou imóvel, de olhos arregalados; depois enrolou-se numa bola protetora.

Um instante depois, uma dúzia de toneladas de pedra, tijolo, cimento, aço e alvenaria diversa caíram diretamente sobre mim, soterrando a sala.

 

O pequeno homem esboçou um sorriso acanhado.

— Removemos a maior parte dos escombros, minha senhora — disse ele —, e, até agora, não encontramos nada.

A voz de Jessica Whitwell era fria e calma.

— Nada, Shubit? Tem consciência que o que está dizendo é completamente impossível? Acho que alguém anda fugindo às responsabilidades.

— Acredito humildemente não ser assim, minha senhora. — Parecia sem dúvida bastante humilde nesta altura, de pé, com as pernas arqueadas ligeiramente flexionadas, cabisbaixo, o boné todo amarfanhado nas mãos. Apenas o fato de estar no centro de um pentagrama revelava a sua natureza demoníaca. Isso e o pé esquerdo — uma pata peluda de urso preto saindo de baixo das calças — que, por negligência ou capricho, esquecera de transformar.

Nathaniel olhou sinistramente para o djinni e bateu com os dedos uns nos outros no que esperava ser uma forma meditabunda e enigmática. Estava sentado numa poltrona de costas altas, de couro verde tachonado, uma das várias dispostas em volta do pentagrama num círculo elegante. Adotara deliberadamente a mesma pose de Ms. Whitwell — costas retas, pernas cruzadas, cotovelos assentados nos braços da poltrona — numa tentativa de imitar o ar de forte determinação dela. Tinha a desconfortável sensação de que não conseguia disfarçar assim o seu terror. Manteve a voz o mais firme possível.

— Tem que procurar em cada cantinho das ruínas — disse-lhe. — O meu demônio deve estar lá.

O pequeno homem fitou-o uma única vez com os seus olhos verdes vivos, mas de outro modo ignorou-o. Jessica Whitwell falou:

— O teu demônio pode muito bem ter sido destruído, John — observou ela.

— Acho que teria sentido a sua perda, minha senhora — retorquiu cortesmente.

— Ou pode ter escapado ao aprisionamento. — A voz ressoante de Henry Duvall proveio de uma poltrona preta defronte de Nathaniel. O Chefe de Polícia enchia cada centímetro dela; os seus dedos tamborilavam impacientemente nos braços. Os olhos negros brilharam.

— Temos conhecimento de que essas coisas têm acontecido a aprendizes muito ambiciosos.

Nathaniel sabia que não devia responder à provocação. Permaneceu em silêncio.

Ms. Whitwell dirigiu-se mais uma vez ao seu servo.

— O meu aprendiz tem razão, Shubit — disse ela. — Tem que inspecionar novamente os escombros. Faça isso, a toda velocidade.

— Assim farei, minha senhora. — Baixou a cabeça, desapareceu. Seguiu-se um momento de silêncio na sala. Nathaniel manteve o rosto calmo, mas a sua mente era um turbilhão de emoções. A sua carreira, e talvez a sua vida, estavam em jogo, e Bartimaeus não fora encontrado. Apostara tudo no seu servo e, a avaliar pelas expressões dos presentes na sala, acreditavam que ele estava prestes a perder. Olhou à sua volta, testemunhando a ávida satisfação nos olhos de Duvall, o descontentamento impiedoso nos da sua mestra e, das profundezas de uma poltrona de couro, a furtiva esperança nos de Mr. Tallow. O responsável pela Administração Interna passara grande parte da noite a distanciar-se de toda a missão de vigilância e a despejar críticas em cima de Nathaniel. Na verdade, este não podia culpá-lo. Primeiro a Pinn, depois a National Gallery, agora (e o pior de tudo) o Museu Britânico. A Administração Interna estava numa situação desesperada, e o ambicioso Chefe de Polícia preparava-se para avançar. Assim que se tinham conhecido as proporções dos danos no museu, Mr. Duvall insistira em estar presente nas operações de limpeza. Assistira a tudo com indisfarçado ar de triunfo.

— Bem... — Mr. Duvall bateu com as mãos nos joelhos e preparou-se para se levantar. — Acho que já perdi tempo suficiente, Jessica. Resumindo, na seqüência dos esforços da Administração Interna, temos: uma ala do Museu Britânico destruída e a perda de um cento de artefatos no seu interior. Temos um rastro de destruição pelo piso térreo, várias estátuas valiosíssimas destruídas ou partidas, e a pedra de Roseta* transformada em pó. Não temos qualquer perpetrador deste crime nem perspectiva de encontrá-lo. A Resistência continua livre como um passarinho. E Mr. Mandrake perdeu o seu demônio. Não é um rol muito impressionante mas, apesar de tudo, tenho de comunicá-lo ao Primeiro-Ministro.

 

* Cidade e porto do Egito, no delta do Nilo. Ali foi descoberta, em 1799, uma esteia de basalto negro — a pedra de Roseta — com texto de 196 a.C. escrito em grego demótico e caracteres hieroglíficos; foi a partir dela que Champollion decifrou os hieróglifos. (NT)

 

— Faça o favor de permanecer sentado, Henry. — A voz de Ms. Whitwell foi tão venenosa que Nathaniel sentiu a sua pele arrepiar-se. Até o Chefe de Polícia pareceu transfixo por ela: após um momento de hesitação, voltou a sentar-se na poltrona. — A exploração ainda não terminou — prosseguiu ela. — Vamos esperar mais alguns minutos.

Mr. Duvall estalou os dedos. Um criado humano avançou das sombras do aposento, trazendo uma bandeja de prata com copos de vinho. Mr. Duvall tirou um, fazendo girar o vinho à volta dele, pensativo. Seguiu-se um longo silêncio.

Julius Tallow arriscou uma opinião por baixo do seu chapéu de aba larga.

— É uma pena o meu demônio não ter estado no local — afirmou. — Nemaides é uma criatura competente e teria conseguido alguma comunicação comigo antes de morrer. Este Bartimaeus era manifestamente muito fraco.

Nathaniel fuzilou-o com o olhar, mas nada disse.

— O teu demônio — indagou Duvall, olhando subitamente para Nathaniel. — De que nível era?

— Um djinni do quarto nível, senhor.

— Coisas traiçoeiras. — Agitou o copo. O vinho dançou com a luz de néon do teto. — Manhosas e difíceis de controlar. Poucas pessoas da tua idade o conseguem.

Era nítida, a insinuação. Nathaniel ignorou-a.

— Faço o que posso, senhor.

— Requerem chamados complexos. Algumas citações erradas matam os magos, ou permitem que o demônio fique louco. Podem ser destrutivos... — Os olhos negros brilharam.

— Isso não aconteceu no meu caso — argumentou Nathaniel calmamente. Uniu os dedos para que não tremessem mais.

Mr. Tallow fungou.

— Sem dúvida o jovem foi promovido acima das suas capacidades.

— Precisamente — corroborou Duvall. — A primeira coisa sensata que já disse, Tallow. Talvez Ms. Whitwell, que o promoveu, tenha algum comentário a fazer sobre o assunto? — Esboçou um sorriso cínico.

Jessica Whitwell brindou Tallow com um olhar de pura maldade.

— Acho que você é perito em efetuar chamados citados incorretamente, Julius — disse ela. — Não foi assim que a sua pele adquiriu essa cor maravilhosa?

Mr. Tallow puxou a aba do chapéu sobre o rosto amarelo.

— Não tive culpa — afirmou, carrancudo. — Havia um erro tipográfico no meu livro.

Duvall sorriu, levou o copo aos lábios.

— Ministro da Administração Interna e lê mal o seu próprio livro. Bonito. Que esperança podemos ter? Bem, vamos ver se o meu setor consegue esclarecer algo sobre a Resistência, quando receber poderes extraordinários. — Bebeu um pequeno gole, esvaziou o copo de uma assentada. — Primeiro, sugiro...

Sem som, odor ou outro expediente teatral, o pentagrama foi ocupado mais uma vez. O pequeno homem acanhado estava de volta, só que agora com duas patas de urso no lugar dos pés. Trazia delicadamente um objeto nas duas mãos. Um gato sujo, inerte e comatoso.

Abriu a boca para falar, depois — lembrando-se da sua pretensa humildade — largou o gato, que ficou pendurado de uma mão pela cauda. Serviu-se da outra para tirar o boné, como convinha aos seus modos servis.

— Minha senhora — começou ele —, encontramos este espécime no espaço entre duas vigas partidas; estava numa pequena abertura, minha senhora; enfiado lá dentro. Tinha-nos escapado da primeira vez.

Ms. Whitwell carregou o cenho com repulsa.

— Esta coisa... é merecedora da nossa atenção?

As lentes de Nathaniel, tal como as da sua ama, não conseguiam esclarecer mais: para ele, era um gato em todos os três planos. Mesmo assim, adivinhou o que estava vendo, e pareceu-lhe morto. Mordeu o lábio.

O pequeno homem fez uma careta; sacudiu o gato de um lado para o outro pela cauda.

— Depende do que entende por «merecedora», minha senhora. É um djinni de uma casta desonrosa, sem a menor dúvida. Feio, desleixado; emana um fedor desagradável no sexto plano. Além disso...

— Presumo — interrompeu Ms. Whitwell — que isso ainda esteja vivo.

— Sim, minha senhora. Precisa apenas de um estímulo apropriado para despertar.

— Encarrego-o disso, depois pode ir embora.

— Com todo o prazer. — O pequeno homem atirou o gato ao ar sem qualquer cerimônia; apontou, proferiu uma palavra. Irrompeu do seu dedo um arco vibrante de eletricidade verde, incidiu na cabeça do gato e manteve-o a estrebuchar e a dançar no meio do ar, com o pêlo todo espetado. O pequeno homem bateu palmas e desceu ao chão. Decorreu um momento. A eletricidade verde desapareceu. O gato caiu direto no centro do pentagrama, onde, desafiando todas as leis normais, aterrou de costas. Ficou ali um bocado, as patas apontadas para fora em quatro direções no meio de uma bola de pêlo estático.

Nathaniel pôs-se de pé.

— Bartimaeus!

Os olhos do gato abriram-se; tinham uma expressão indignada.

— Não é preciso gritar. — Fez uma pausa e piscou os olhos. — O que te aconteceu?

— Nada. Você é que está de pernas para o ar.

— Oh. — Com um movimento rápido, o gato endireitou-se. Relanceou a sala, reparando em Duvall, Whitwell e Tallow sentados impassivelmente nas suas poltronas de costas altas. Coçou-se, indiferente, com uma pata traseira. — Está acompanhado, pelo que vejo.

Nathaniel anuiu. Fazia figas por baixo do casaco preto, pedindo que Bartimaeus não resolvesse revelar algo de inapropriado, como o seu nome.

— Veja lá como me responde — admoestou-o. — Estamos entre os grandes. — Fez com que o aviso soasse o mais sinistro possível por causa dos seus superiores.

O gato olhou em silêncio para os outros magos por um momento. Levantou uma pata, inclinou-se para a frente conspirativamente.

— Aqui entre nós, já vi maiores.

— E calculo que eles também. Parece um pompom com patas.

O gato apercebeu-se pela primeira vez do estado do seu pêlo.

Bufou de contrariedade e mudou imediatamente; apareceu uma pantera negra no pentagrama, de pêlo macio e brilhante. Enrolou a cauda em volta das patas.

— Ora bem, quer que informe?

Nathaniel ergueu uma mão. Tudo dependia do que o djinni fosse dizer. Se não possuísse um forte conhecimento da natureza do adversário, a posição do seu amo ficaria mesmo muito vulnerável. O nível de destruição no Museu Britânico era quase comparável ao de Piccadilly na semana anterior, e sabia que um diabrete mensageiro já visitara Ms. Whitwell, comunicando a ira do Primeiro-Ministro. Não augurava nada de bom para Nathaniel.

— Bartimaeus — disse-lhe —, sabemos o seguinte. O teu sinal foi visto do lado de fora do museu, ontem à noite. Cheguei logo em seguida, juntamente com outros do meu setor. Ouviram-se distúrbios lá dentro. Vedamos o museu.

A pantera esticou as garras e bateu no chão significativamente.

— Sim, deu para perceber.

— Aproximadamente à uma e quarenta e cinco da madrugada foi vista uma parede interior da Ala Leste a desabar. Pouco depois, algo desconhecido atravessou o cordão de segurança, matando os diabretes nas imediações. Desde então inspecionamos a zona. Não se encontrou nada, exceto você... desmaiado.

A pantera encolheu os ombros.

— Bem, o que é que queria, depois de levar com um prédio na cabeça? Que me pusesse a dançar uma mazurca* nas ruínas?

 

*Antiga dança polaca caracterizada por quebras rítmicas e acentuação do segundo tempo, incluída por Chopin na música de concerto. (NT)

 

Nathaniel tossiu ruidosamente e aproximou-se.

— Até pode ser — referiu com austeridade —, na ausência de outras provas, que a culpa recaia sobre ti como causa de toda esta devastação, a menos que nos forneça informações em contrário.

— O quê!? — Os olhos da pantera arregalaram-se, de tão ultrajada. — Está a culpar-me? Depois do que sofri? A minha essência é uma ferida enorme, pode crer! Tenho equimoses onde elas não deveriam estar!

— Muito bem — disse Nathaniel —, o que causou aquilo?

— O que fez desmoronar o edifício?

— Sim.

— Querem saber o que causou toda a devastação ontem à noite e no entanto desapareceu debaixo dos seus narizes?

— Exatamente.

— Nesse caso, está me pedindo que identifique a criatura que chega como se do nada, volta a partir invisível e, enquanto está aqui, envolve-se num manto de negrura para se proteger da visão de espírito, humano ou animal, neste e em todos os outros planos? É isso mesmo que estás me pedindo?

O coração de Nathaniel caiu-lhe para dentro das botas.

— Sim.

— É fácil. Um golem.

Ouviu-se um ligeiro arfar vindo de Ms. Whitwell e resfolegos de Tallow e Duvall. Nathaniel recostou-se, em choque.

— Um... um golem?

A pantera lambeu uma pata e alisou o pêlo por cima de um olho.

— É bom que acredite, oras.

— Tem certeza disto?

— Um homem gigante de barro animado, duro como granito, invulnerável ao ataque, com força para deitar paredes abaixo. Encobre-se na escuridão e deixa atrás de si o odor de terra. Um toque que traz a morte a todos os seres do ar e do fogo como eu... que em segundos reduz as nossas essências a cinzas fumegantes. Sim, eu diria que tenho certeza absoluta.

Ms. Whitwell esboçou um gesto de rejeição.

— Pode estar equivocado, demônio.

A pantera voltou para ela os seus olhos amarelos. Por um momento horrível, Nathaniel julgou que fosse ser descarada. Mas se sim, pareceu reconsiderar. Fez uma vênia.

— Minha senhora, até posso. Mas já vi golems, quando estive em Praga.

— Em Praga, sim! Há séculos. — Mr. Duvall falou pela primeira vez; parecia irritado com o rumo dos acontecimentos. — Eles desapareceram com o Sacro Império Romano.* A última vez que há registro de terem sido usados contra as nossas forças foi na época de Gladstone. Atiraram um dos nossos batalhões ao Vltava, por baixo das muralhas do castelo. Mas os magos que os controlavam foram encontrados e destruídos e os golems desintegraram-se na Ponte de Pedra**. Vem tudo nos anais da época.

 

* O Sacro Império Romano-Germânico, criado por Otão em 962, e que perdurou até 1806. Constituído de início pela Germânia e a Itália, em 1032 agregou a Borgonha. Surgiu como herdeiro do Império Romano do Ocidente e do Império Carolíngio. Perdida a Itália em 1254, o império ficou praticamente reduzido à Alemanha. Em 1806, Francisco II renunciou ao título de imperador do Sacro Império Romano-Germânico, assumindo o de imperador da Áustria. (NT)

** Ponte de Carlos IV (segunda metade do século XIV). Ponte pedestre com 516 m de comprimento e 10 de largura, sustentada por 16 pilares, terminando com uma torre em cada extremidade, tendo feito parte das muralhas da cidade. De inspiração gótica, constitui uma galeria de esculturas ao ar livre, com 30 estátuas e grupos de esculturas, contribuindo para a atmosfera mágica de Praga. (NT)

 

A pantera efetuou nova vênia.

— Isso pode perfeitamente ser verdade, senhor.

Mr. Duvall bateu com um punho pesado no braço da poltrona.

— É verdade! Desde a implosão do Império Checo, nunca mais houve registro de golems. Os magos que passaram para o nosso lado não trouxeram consigo os segredos da sua construção, ao passo que os que ficaram em Praga eram sombras dos seus antecessores, amadores em matéria de magia. Daí que o conhecimento se tenha perdido.

— Evidentemente não para todos. — O djinni sacudiu a cauda para cá e para lá. — Os atos do golem estão sendo controlados por alguém. Ele ou ela estava observando através de um olho-espião na testa do golem. Vi o brilho da sua inteligência quando as nuvens negras se afastaram.

— Tch! — Mr. Duvall não estava convencido. — Isto não passa de uma fantasia. O demônio mente!

Nathaniel olhou para a sua mestra; estava com ar carrancudo.

— Bartimaeus — disse ele —, ordeno-te que fale a verdade. Podem existir dúvidas no que viu?

Os olhos amarelos piscaram lentamente.

— Nenhuma. Há quatrocentos anos, presenciei as atividades do primeiro golem, que o grande mago Liva criou no âmago do gueto de Praga. Enviou-o das suas águas-furtadas cheias de mortalhas e teias de aranha com a missão de lançar o medo entre os inimigos do seu povo. Apesar de ser uma criatura mágica, conseguiu derrotar a magia dos djinn. Controlou a essência da terra com grande intensidade: as nossas fórmulas falhavam na presença dele, tornava-nos cegos e fracos; venceu-nos. A criatura com quem lutei ontem à noite era do mesmo tipo. Matou uma das minhas companheiras. Eu não minto.

Duvall resmungou.

— Já ando por aqui há muito tempo para engolir todas as mentiras de um demônio. Isto é uma invenção descarada para proteger o seu amo. — Pousou o copo e, de pé, olhou carrancudo para todos os presentes. — Mas, com ou sem golem, vem a dar no mesmo. Está claro que a Administração Interna perdeu todo o controle da situação. Veremos se o meu setor consegue fazer melhor. Vou solicitar imediatamente uma audiência ao Primeiro-Ministro. Tenham um bom dia.

Dirigiu-se para a porta de costas retas, o couro das suas botas altas a chiar. Ninguém disse uma palavra.

A porta fechou-se. Ms. Whitwell permaneceu calada. As luzes fluorescentes no teto incidiam intensamente sobre ela; o seu rosto estava mais cadavérico do que o habitual. Coçou o queixo pontiagudo pensativamente, as unhas compridas arranhando a pele com algum ruído.

— Temos de ponderar o assunto com cautela — disse por fim. — Se o demônio fala a verdade, obtivemos um conhecimento valioso. Mas Duvall tem razão em mostrar-se cético, apesar de ser o desejo de amesquinhar o nosso trabalho que o move. Criar um golem é tarefa difícil, considerada quase impossível. O que sabe disso, Tallow?

O ministro fez um esgar.

— Muito pouco, minha senhora, felizmente. É um tipo de magia primitiva que nunca foi praticada na nossa sociedade iluminada. Nunca me dei ao trabalho de investigar.

— Mandrake, o que diz?

Nathaniel pigarreou; sempre valorizara a cultura geral.

— Um mago necessita de dois artefatos poderosos, minha senhora — respondeu com vivacidade —, cada um com uma função diferente. Em primeiro lugar, ele ou ela precisa de um pergaminho onde foi inscrita a fórmula que traz o golem de volta à vida; mal o corpo tenha sido formado com barro do rio, este pergaminho é introduzido na boca do golem para animá-lo.

A sua mestra anuiu.

— Exatamente. Essa é a fórmula que julgamos perdida. Os mestres checos nunca passaram o segredo para o papel.

— O segundo artefato — prosseguiu Nathaniel — é um pedaço de barro especial, criado por fórmulas distintas. Coloca-se na testa do monstro e ajuda a concentrar o seu poder. Serve de olho-espião para o mago, tal como Bartimaeus descreveu. Ele ou ela pode então controlar a criatura através de uma bola de cristal.

— Correto. Portanto, se o teu demônio fala a verdade, andamos à procura de alguém que tenha adquirido simultaneamente um olho de golem e um pergaminho de animação. Quem poderia ser?

— Ninguém. — Tallow entrelaçou os dedos e, ao dobrá-los, as articulações estalaram ruidosamente, como uma salva de tiros de espingarda. — Isto é um absurdo. Tais objetos já não existem. A criatura de Mandrake deveria ser submetida ao Fogo Abrasador. Quanto a Mandrake, minha senhora, esta catástrofe é responsabilidade sua.

— Parece-me muito confiante nas suas afirmações — observou a pantera, bocejando sonoramente e exibindo uma dentadura impressionante. — É verdade que os pergaminhos se desintegram quando retirados da boca do golem. E, segundo os termos da fórmula, o monstro deve voltar para o seu amo e transformar-se de novo em barro, para que o corpo também não sobreviva. Mas o olho de golem não é destruído. Pode ser usado muitas vezes. Portanto, deve existir um aqui, na Londres moderna. Por que está tão amarelo?

O maxilar de Tallow pendeu de raiva.

— Mandrake... controle esta coisa, senão sofrerá as conseqüências.

Nathaniel desfez de imediato o seu sorriso.

— Sim, Mr. Tallow. Silêncio, escravo!

— Oooh, queira perdoar, muito sinceramente.

Jessica Whitwell levantou uma mão.

— A despeito da sua insolência, o demônio tem razão num aspecto. Os olhos de golem existem mesmo. Eu própria vi um, há dois anos.

Julius Tallow arqueou uma sobrancelha.

— Deveras, minha senhora? Onde?

— Na coleção de alguém que todos temos motivos para lembrar. Simon Lovelace.

Nathaniel soltou um pequeno estremecimento; um arrepio percorreu-lhe as omoplatas. O nome exercia ainda algum poder sobre ele. Tallow encolheu os ombros.

— Há muito que Lovelace morreu.

— Eu sei... — Ms. Whitwell estava com um ar preocupado. Reclinou-se na sua poltrona e rodou-a para ficar de frente para outro pentagrama idêntico àquele onde se encontrava a pantera. A sala continha diversos, cada um ligeiramente diferente no desenho. Estalou os dedos e o seu djinni apareceu, desta vez com o aspecto integral de um urso.

— Shubit — disse ela —, vá aos cofres-fortes dos artefatos no porão da Segurança. Localize a coleção de Lovelace; descreva-a em pormenores. Nela encontrará um olho esculpido em barro duro. Traga-me rapidamente.

O urso flexionou as patas e desapareceu ao saltar.

Julius Tallow sorriu untuosamente para Nathaniel.

— É de um servo assim que você precisa, Mandrake — disse. — Nada de fluência excessiva, nem de tagarelice. Obedece sem questionar. Se eu fosse você, livrava-me desta serpente de falinhas mansas.

A pantera sacudiu a cauda.

— Olhe, todos temos problemas, amigo. Eu sou excessivamente falador. Você parece um campo de ranúnculos amarelos dentro de um terno.

— O traidor do Lovelace tinha uma coleção interessante — divagou Ms. Whitwell, ignorando os gritos de fúria de Tallow. — O olho de golem era um entre os vários artigos dignos de nota que confiscamos. Seria interessante inspecioná-lo agora.

O urso regressou, com um estalido de articulações peludas, aterrando com ligeireza no centro do seu círculo. Vinha de patas abanando, à exceção do boné, que segurava numa pose absolutamente humilde.

— Pois, eis o tipo de serpente que você precisa — comentou a pantera. — Poucas falas. Obediente. Absolutamente inútil. Espere: se calhar esqueceu-se da ordem. — Ms. Whitwell fez um gesto de impaciência.

— Shubit, foi à coleção de Lovelace?

— Fui, minha senhora.

— Encontra-se um olho de barro entre os artigos?

— Não, minha senhora, não se encontra.

— E entre os artigos catalogados no inventário?

— Estava. Número trinta e quatro, minha senhora. «Um olho de barro com nove centímetros de comprimento, decorado com símbolos cabalísticos. Finalidade: olho-espião de golem. Origem: Praga.»

— Pode retirar-se. — Ms. Whitwell rodou a cadeira para ficar de frente para os outros. — Afinal — disse —, o olho existiu. Agora desapareceu.

O rosto de Nathaniel ruborizou-se de excitação.

— Não pode ser coincidência, minha senhora. Alguém o roubou e colocou a funcionar.

— Mas teria Lovelace o pergaminho de animação na sua coleção? — perguntou Tallow, com irritação. — É claro que não! Então de onde é que ele veio?

— Isso — afirmou Jessica Whitwell — é o que vamos ter que descobrir. — Esfregou as elegantes mãos brancas uma na outra. — Cavalheiros, temos uma nova situação. Depois da ocorrência desta noite, Duvall irá pressionar o Primeiro-Ministro para obter maiores poderes à minha custa. Tenho de ir agora a Richmond e preparar-me para falar com ele. Na minha ausência, pretendo que você, Tallow, continue a organizar a vigilância. Sem dúvida o golem... se é disso que se trata... voltará a atacar. Será o único responsável por esta missão.

Mr. Tallow anuiu com ar ufano. Nathaniel pigarreou.

— A senhora... hã, já não deseja que eu colabore?

— Não. Está metido numa camisa de onze varas, John. Confiei-te enorme responsabilidade... E o que acontece? A National Gallery e o Museu Britânico são saqueados. No entanto, graças ao teu demônio, temos uma pista sobre a natureza do nosso inimigo. Agora precisamos conhecer a identidade de quem o controla. É uma potência estrangeira? Um renegado local? O roubo do olho de golem sugere que alguém descobriu uma maneira de criar a fórmula de animação. É por aí que deve começar. Procure o conhecimento perdido, e faça-o rapidamente.

— Muito bem, minha senhora. Como queira. — Os olhos de Nathaniel estavam vítreos da dúvida. Não fazia a mais pálida idéia de por onde começar a sua tarefa.

— Atacaremos o golem através do seu amo — decidiu Ms. Whitwell. — Quando encontrarmos a origem do conhecimento, descobriremos o rosto do nosso inimigo. E depois poderemos agir com determinação. — Havia dureza na voz dela.

— Sim, minha senhora.

— Este teu djinni parece útil... — Olhou a pantera, que estava sentada a lavar as patas de costas para eles, ignorando intencionalmente a conversa.

Nathaniel carregou o cenho.

— Não é mau de todo, creio.

— Sobreviveu ao golem, o que é mais do que qualquer outra coisa fez. Leve-o contigo.

Nathaniel parou por um momento.

— Desculpe, minha senhora, acho que não estou compreendendo. Aonde quer que eu vá?

Jessica Whitwell levantou-se, pronta para partir.

— Aonde é que acha? À pátria histórica de todos os golems. O único lugar de todos possíveis, onde o conhecimento terá sido preservado. Quero que vá a Praga.

 

Kitty raramente permitia que considerações fora do grupo a afetassem, mas, no dia a seguinte em que parou de chover, resolveu ir visitar novamente os pais.

Naquela noite, na reunião de emergência, a Resistência iria ser informada da excelente nova esperança, o maior trabalho que haviam realizado. Ainda não se sabiam os pormenores, mas predominava na loja uma atmosfera de dolorosa expectativa, uma carga de excitação e incerteza que deixou Kitty fora de si com a agitação. Curvando-se à sua inquietação, saiu cedo, comprou um pequeno ramo de flores num quiosque e apanhou o ônibus apinhado para Balham.

A rua estava tranqüila como sempre, a pequena casa cuidada e limpa. Bateu com força, procurando as chaves na mala, enquanto segurava as flores o melhor que podia entre o ombro e o queixo. Antes de encontrá-las, aproximou-se uma sombra por trás do vidro e a mãe abriu a porta, espreitando com hesitação.

Os seus olhos animaram-se.

— Kathleen! Que surpresa! Entra, querida.

— Olá, mãe. São para você.

Seguiu-se um estranho ritual de beijos e abraços, à mistura com uma inspeção das flores e Kitty a tentar entrar. Por fim, com dificuldade, a porta fechou-se e Kitty foi conduzida à pequena cozinha familiar, onde coziam batatas no fogão e o pai estava sentado à mesa a engraxar os sapatos. De escova e sapato ainda nas mãos, levantou-se, deixou que ela lhe beijasse a face, depois indicou-lhe uma cadeira vazia.

— Estou fazendo um assado, querida — anunciou a mãe de Kitty. — Ficará pronto dentro de cinco minutos.

— Oh, que bom. Adoro.

— Bem... — Passado um momento de ponderação, o pai colocou a escova em cima da mesa e pousou o sapato ao lado, com a sola para baixo. Esboçou-lhe um largo sorriso. — Como está indo no meio das tintas e dos pincéis?

— Muito bem. Nada de especial, mas estou aprendendo.

— E Mr. Pennyfeather?

— Está ficando um pouco debilitado. Agora tem mais dificuldade em andar.

— Ai, ai. E o negócio? Diga-me, atende clientes magos? Eles pintam?

— Nem tanto.

— É para isso que deve canalizar as tuas energias, garota. É daí que vem o dinheiro.

— Sim, pai. Agora estamos a canalizar as nossas energias para os magos. Que tal o trabalho?

— Oh, você sabe. Fiz uma grande venda na Páscoa.

— Mas a Páscoa foi há meses, pai.

— O negócio está parado. Que tal uma xícara de chá, Margaret?

— Antes do almoço, não. — A mãe estava entretida a tirar mais talheres e colocou um lugar diante de Kitty com imenso cuidado. — Sabe, Kitty — disse-lhe —, não entendo por que não fica aqui conosco. Não é tão longe assim. E te sairia mais barato.

— O aluguel não é caro, mãe.

— Sim, mas a comida e o resto? Gasta tanto dinheiro, quando podíamos cozinhar para você. É um desperdício.

— Hum. — Kitty pegou no garfo e bateu distraidamente com ele na mesa. — Como está Mrs. Hyrnek? — perguntou. — E Jakob... tem o visto ultimamente?

A mãe calçara um par de luvas grandes de forno e estava ajoelhada diante dele; saiu pela porta aberta uma baforada muito quente, carregada do aroma de carnes condimentadas. A voz dela ecoou estranha enquanto remexia no interior.

— A Jarmilla está bastante bem — respondeu. — Jakob trabalha com o pai, como sabe. Não o tenho visto. Ele não sai. George, podia ir buscar a base de madeira? Isto está a escaldar. Pronto. Agora escorre as batatas. Devia ir visitá-lo, querida. Ele iria gostar de companhia, pobrezinho. Especialmente se for você. É uma pena já não se dar com ele.

O rosto de Kitty ensombrou-se.

— Não era o que costumava dizer, mãe.

— Tudo isso já foi há muito tempo... Agora está muito mais sossegada. Oh, e a avó morreu, Jarmilla contou-me.

— O quê? Quando?

— O mês passado. Não me olhe dessa maneira... Se viesse nos visitar mais vezes, teria sabido mais cedo, não acha? Não me parece que isso te afete muito. Oh... comece a de servir, George. Olha que esfria.

As batatas tinham ficado cozidas demais, mas o assado estava excelente. Kitty comeu com voracidade e, para satisfação da mãe, serviu-se uma segunda vez antes dos pais terem terminado a primeira. Depois, enquanto a mãe lhe contava as novidades de pessoas que Kitty nunca vira ou não se recordava, sentou-se calada, mexendo num objeto liso, pequeno e pesado no bolso das calças, perdida em pensamentos.

 

A noite subsequente ao julgamento fora profundamente desagradável para Kitty, já que primeiro a mãe, e depois o pai, haviam expresso a sua ira ante as conseqüências. Em vão Kitty lhes relembrou a sua inocência, a malvadez de Julius Tallow. Em vão jurou que arranjaria de alguma maneira as 600 libras necessárias para aplacar a ira do Tribunal. Os pais não cederam. O argumento deles resumia-se a alguns pontos eloqüentes:

 

(1) Não dispunham de tal quantia.

(2) Teriam de vender a casa.

(3) Ela era uma fedelha estúpida e arrogante para se atrever a desafiar um mago.

(4) O que todo mundo tinha lhe dito?

(4b) O que eles tinham lhe dito?

(5) Que não o fizesse.

(6) Mas ela era muito cabeça-dura para dar ouvidos.

(7) E o que iam fazer agora?

 

A discussão terminara, como seria de prever, com a mãe a chorar, o pai a gritar e Kitty a correr furiosamente para o quarto. Só quando lá chegara e se sentara na cama, a fitar de olhos vermelhos a parede em frente, é que se lembrara do velho, Mr. Pennyfeather, e da sua estranha proposta de ajuda. Esquecera-a por completo durante a discussão, e agora, no meio da sua confusão e aflição, parecia-lhe completamente irreal. Guardou-a no subconsciente.

A mãe, ao levar-lhe uma xícara de chá conciliatória passadas algumas horas, encontrara uma cadeira a travar firmemente a porta do lado de dentro. Falara através do compensado fino.

— Esqueci de te dizer uma coisa, Kathleen. O teu amigo Jakob saiu do hospital. Veio para casa esta manhã.

— O quê? Por que não me contou? — A cadeira foi retirada de rompante; um rosto afogueado e de olhar fuzilante apareceu por baixo de uma cabeleira desgrenhada. — Tenho que ir vê-lo.

— Não acho que seja possível. Os médicos...

Mas Kitty já saíra.

Estava sentado na cama, vestindo um pijama azul novinho em folha que ainda tinha os vincos nas mangas. As suas mãos crispadas estavam apoiadas no colo. Havia uma tigela de vidro com uvas em cima da colcha. Dois círculos brancos brilhantes de gaze recente cobriam-lhe os olhos, e despontava um cabelo curto frisado na cabeça. O rosto estava como o recordava, manchado pela camada horrível cinzenta e preta.

Quando entrou, ele esboçou um pequeno sorriso forçado.

— Kitty! Quanta rapidez...

Tremendo, aproximou-se da cama e pegou-lhe na mão.

— Como... como soube que era eu?

— Mais ninguém sobe as escadas como um elefante senão você. Está bem?

Olhou para as suas mãos branco-rosadas sem mácula.

— Sim. Ótima.

— Soube daquilo. — Procurou manter o sorriso, falhou por pouco. — Teve sorte... fico satisfeito.

— Sim. Como se sente?

— Oh, arrasado. Doente. Como uma fatia de toucinho defumado. Dói-me a pele quando me mexo. E tenho comichões. Há de passar tudo, dizem. E os meus olhos estão sarando.

Kitty sentiu uma onda de alívio.

— Ainda bem! Quando...?

— Daqui a algum tempo. Não sei... — Subitamente, pareceu muito cansado, irritado. — Não se preocupe com isso. Conte-me o que se tem passado. Soube que foi ao Tribunal.

Contou-lhe tudo, exceto o encontro com Mr. Pennyfeather. Jakob estava sentado na cama, de rosto manchado e melancólico. No final, suspirou.

— Você é tão estúpida, Kitty — comentou.

— Muito obrigada. — Tirou algumas uvas do cacho e enfiou-as furiosamente na boca.

— Minha mãe te disse para não ir. Ela disse...

— Ela e todo mundo. Estavam todos cobertos de razão e eu tão iludida. — Cuspiu as sementes para a palma da mão e atirou-as numa cesta ao lado da cama.

— Acredite em mim, estou grato pelo que tentou fazer. Só lamento que agora esteja sofrendo por minha causa.

— Não é nada disso. Havemos de arranjar o dinheiro.

— Todo mundo sabe que os Tribunais são manipulados... O que conta ali não é o que você fez, mas sim quem é e quem conhece.

— Pronto! Não vamos falar mais disso. — Kitty não estava com disposição para ouvir sermões.

— Está bem. — Sorriu, um pouco mais satisfatoriamente do que antes. — Sinto o teu olhar carrancudo através das ligaduras.

Ficaram algum tempo sentados em silêncio. Por fim, Jakob disse:

— De qualquer forma, não julgue que Tallow vai escapar impune. — Esfregou a cara de lado.

— Não coce. O que quer dizer?

— Dá muito comichão! Que existem outras maneiras além dos Tribunais...

— Como, por exemplo?

— Ahh! É inútil, só se me sentar em cima das mãos. Bem, aproxime-se... Podem estar à escuta... Assim está melhor. Tallow, sendo mago, vai achar que se livrou de nós de vez. Nunca mais se lembrará de mim, se alguma vez isso aconteceu. E certamente não vai associar à Hyrnek.

— A empresa do teu pai?

— Bem, de quem mais poderia ser? Claro que é a empresa do meu pai! E vai sair caro a Tallow. Tal como muitos outros magos, ele manda encadernar os seus livros de magia na Hyrnek. Karel contou-me: ele verificou as faturas. Tallow faz encomendas mais ou menos de dois em dois anos. Gosta de encadernação de pele de crocodilo castanho-avermelhada, o Tallow, pelo que podemos acrescentar falta de gosto aos seus outros crimes. Bem, nós saberemos esperar. Mais cedo ou mais tarde vai mandar-nos outro livro para tratarmos, ou encomendar algo — Ah! Não agüento mais! Tenho que me coçar!

— Não, Jakob... come uma uva ao invés disso. Tente distrair-se.

— Não servirá de nada. Acordo de noite coçando a cara. Minha mãe tem de me envolver as mãos em ataduras. Neste momento está dando cabo de mim. Vai ter que pedir creme à mãe.

— É melhor eu ir andando.

— Já vai. Como estava dizendo, da próxima vez não será apenas a encadernação do livro de Tallow que será mudada.

Kitty franziu a testa.

— O quê... as fórmulas lá dentro?

Jakob esboçou um sorriso sinistro.

— É possível substituir páginas, frases sábias ou alterar diagramas, se souber o que fazer. Na realidade, é mais do que possível; é facílimo para algumas pessoas conhecidas do meu pai. Vamos sabotar algumas fórmulas encantatórias mais prováveis e depois... veremos.

— E ele não perceberá?

— Lerá simplesmente a fórmula, desenhará o pentagrama, ou lá seja lá o que faz, e depois... quem sabe? Podem acontecer coisas desagradáveis aos magos quando as fórmulas saem erradas. É uma arte exata, segundo diz o meu pai. — Jakob voltou a recostar-se nas almofadas. abstrair — Pode levar anos até Tallow cair na armadilha... E daí? Tenho todo o tempo do mundo. O meu rosto continuará desfigurado daqui a quatro, cinco anos. Posso esperar. — Virou subitamente o rosto. — É melhor chamar a mãe, agora. E não conte a ninguém o que acabei de te dizer.

Kitty encontrou Mrs. Hyrnek na cozinha; estava a coar uma loção branca extremamente oleosa, engrossada com ervas aromáticas verdes, para um frasco medicinal. Quando Kitty lhe transmitiu o recado, ela anuiu, os olhos mortiços de cansaço.

— Preparei a loção bem a tempo — afirmou, rolhando apressadamente o frasco e tirando um pano do aparador. — Não se importa de sair sozinha, não é? — Após o que desapareceu do cômodo.

Kitty não dera mais do que dois passos arrastados em direção à entrada quando um assobio baixo e breve a fez estacar. Virou-se: a idosa avó de Jakob estava sentada na cadeira habitual junto ao fogão, uma tigela enorme com ervilhas por descascar enfiada no colo ossudo. Os seus olhos negros brilhantes cintilaram na direção de Kitty; as inúmeras rugas no seu rosto agitaram-se ao sorrir. Kitty correspondeu, na dúvida. Ergueu uma mão mirrada; curvou um dedo engelhado e chamou-a, duas vezes. Com o coração a bater apressado, Kitty aproximou-se. Nunca, em todas as suas muitas visitas, trocara duas palavras com a avó de Jakob; nunca a ouvira falar. Encheu-a de um pânico ridículo. O que lhe diria? Não sabia falar checo. O que queria a velha? Kitty sentiu-se de repente a fazer parte de um conto de fadas, uma criança abandonada trancada na cozinha de uma bruxa canibal. Ela...

— Isto — disse a avó de Jakob em nítida pronúncia da zona sul de Londres — é para você. — Enfiou uma mão em algum lugar nos bolsos das suas saias volumosas. Os olhos dela não deixaram de fitar o rosto de Kitty. — Deve guardá-lo junto... Ah, onde diacho é que está? Ah-ha... sim. Aqui.

A mão dela, quando a levou à de Kitty, estava firmemente fechada, e esta sentiu o peso do objeto, e a sua frieza na palma da mão, antes de ver o que era. Um pequeno berloque de metal, com a forma de uma lágrima. Uma pequena argola no alto mostrava onde se podia pendurar num fio. Kitty não soube o que dizer.

— Obrigada — disse. — É... bonito.

A avó de Jakob resmungou.

— Huh. É prata, mais precisamente, garota.

— Deve... deve ser muito valioso. Eu... não creio que deva...

— Aceite-o. E use-o. — Duas mãos ásperas envolveram as de Kitty, fechando os dedos sobre o berloque. — Nunca se sabe. Agora, tenho um cento de ervilhas para descascar. Talvez cento e duas... uma por cada ano, hein? Bom. Tenho de me concentrar. Pode ir!

Os dias que se seguiram foram de debates sucessivos entre Kitty e os pais, mas o resultado era sempre o mesmo — juntando todas as suas poupanças, faltavam ainda várias centenas de libras para o Tribunal. Vender a casa, com a incerteza que isso acarretava, parecia ser a única solução.

Talvez, à exceção de Mr. Pennyfeather.

Telefone se estiver interessada. Daqui a uma semana. Kitty não o mencionara aos pais, nem a mais ninguém, mas as palavras dele não lhe saíam da cabeça. Prometera ajudá-la, e ela não tinha qualquer problema nisso, a princípio. A questão era: porquê? Não lhe parecia que ele fosse fazê-lo só por bondade.

Mas os pais dela perderiam a casa, se não agisse.

  1. E. Pennyfeather existia realmente na lista telefônica: vinha em «Materiais Artísticos», em Southwark, juntamente com o mesmo número de telefone que Kitty tinha no cartão. Pelo menos nisso a sua história batia.

Mas o que quereria? Uma parte de Kitty inclinava-se fortemente para deixá-lo em paz; outra parte não conseguia ver o que teria a perder. Se não pagasse em breve, seria presa, e a proposta de Mr. Pennyfeather era a única corda a que se agarrar.

Por fim, decidiu-se.

Havia uma cabine telefônica a duas ruas do lugar onde morava. Uma manhã, enfiou-se no espaço estreito e sufocante e discou o número.

Atendeu uma voz seca e sem fôlego.

— Alô? Materiais Artísticos.

— Mr. Pennyfeather?

— Ms. Jones! Fico muito satisfeito. Temi que não fosse ligar.

— Aqui estou. Ouça, estou... estou interessada na sua proposta, mas preciso de saber o que quer de mim antes de avançar mais.

— Evidentemente, evidentemente. Irei explicar-lhe. Posso sugerir um encontro?

— Não. Diga-me agora, pelo telefone.

— Talvez não seja prudente.

— Para mim, seria. Não quero correr riscos. Não o conheço...

— Muito bem. Sugiro-lhe o seguinte. Se não concordar, ficamos assim. O nosso contato terminará aqui. Se concordar, podemos prosseguir. Sugiro o seguinte: encontramo-nos no Druids’ Coffee House, em Seven Dials. Sabe onde fica? Um lugar popular... sempre cheio. Pode falar comigo em segurança, ali. Caso tenha dúvidas, sugiro outra coisa. Meta o meu cartão num envelope juntamente com a informação sobre o lugar onde vamos nos encontrar. Deixe-o no seu quarto, ou envie-o pelo correio para si mesma. Como preferir. Caso lhe aconteça algo, a polícia me encontrará. Assim poderá ficar descansada. Outra coisa. Qualquer que seja o resultado do nosso encontro, lhe darei o dinheiro do mesmo jeito. A sua dívida estará saldada ao final do dia.

Mr. Pennyfeather parecia cansado depois deste longo discurso. Enquanto ele chiava suavemente, Kitty considerou a proposta. Não demorava muito. Era boa demais para resistir.

— Está bem — disse. — Aceito. A que horas no Druids’?

Kitty preparou-se calmamente, escrevendo um bilhete aos pais e enfiando-o com o cartão de visita dentro de um envelope. Colocou-o em cima da cama. Os pais só voltariam às sete. O encontro estava marcado para as três. Se corresse tudo bem, teria muito tempo para regressar e recolher o bilhete antes deste ser encontrado.

Saiu do Metro em Leicester Square e partiu na direção de Seven Dials. Dois magos passaram acelerados em limusines conduzidas por motoristas; todos os demais caminhavam com dificuldade pelas calçadas cheias de turistas, protegendo os seus bolsos dos batedores de carteiras. Avançava com lentidão.

Para se apressar, seguiu por um atalho, um beco que curvava por trás de uma butique elegante e dividia um quarteirão ao meio, indo desembocar numa rua próximo de Seven Dials. Era úmido e estreito, mas não havia músicos de rua nem turistas ao longo dele, o que, na opinião de Kitty, proporcionava uma excelente via de acesso. Entrou nele e caminhou em passo rápido, olhando para o relógio. Dez para as três. Perfeito.

No meio do beco teve um choque. Com um guincho estridente, um gato malhado saltou de uma saliência oculta diante do rosto dela e desapareceu por um gradeamento no muro do outro lado. Veio lá de dentro o som de garrafas a cair. Silêncio.

Respirando fundo, Kitty prosseguiu.

Um instante depois, ouviu passos furtivos bem atrás de si.

Os cabelos na nuca eriçaram-se. Acelerou. «Não entre em pânico». Alguém cortando caminho. De qualquer forma, o fim do beco já não estava muito longe. Via pessoas passando na rua principal lá ao fundo.

Os passos atrás pareceram acelerar com os dela. De olhos esgazeados, o coração a bater depressa, Kitty começou a correr.

Então, saiu algo das sombras de uma ombreira. Vestia-se de preto e o seu rosto estava coberto com uma máscara lisa com fendas estreitas para os olhos.

Kitty gritou e virou-se.

Mais duas figuras mascaradas, andando na ponta dos pés.

Abriu a boca para gritar, mas não teve chance de fazê-lo. Um dos seus perseguidores efetuou um movimento rápido: saiu algo da sua mão esquerda — uma pequena esfera escura. Bateu no chão bem aos pés dela, desfazendo-se em nada. Do local onde desapareceu elevou-se uma nuvem negra de vapor, rodopiando, adensando-se.

Kitty estava muito assustada para se mexer. Apenas conseguiu ver o vapor formar-se numa pequena criatura com asas negro-azuladas, com cornos finos e olhos vermelhos arregalados. A coisa ficou a pairar por um instante, dando voltas no ar, como se não soubesse o que fazer.

A figura que arremessara a esfera apontou com a mão para Kitty e gritou uma ordem.

A coisa parou de rodopiar. Um esgar de júbilo maldoso quase dividiu o seu rosto em dois.

A seguir baixou os cornos, bateu as asas num frenesi, e com um grito estridente de prazer, atirou-se à cabeça de Kitty.

 

Num instante, a coisa estava sobre ela, com luz a brilhar nos seus cornos afiados e a boca dentada toda escancarada. Asas negro-azuladas bateram no seu rosto, mãos pequenas e calosas tentaram arrancar-lhe os olhos. Sentiu o bafo fétido daquilo sobre a pele; o grito cortante ensurdeceu-a. Kitty bateu-lhe furiosamente com os punhos, gritando agora, berrando...

Com um estouro sonoro e úmido, a coisa arrebentou, deixando apenas uma chuva de gotículas negras e frias e um cheiro acre a pairar.

Kitty encostou-se à parede mais próxima, respirando com dificuldade, olhando à sua volta. Não havia dúvida — a coisa desaparecera, e as três figuras mascaradas haviam sumido também. De ambos os lados, o beco estava vazio. Nada se mexia.

Correu então, o mais depressa que podia, virando para a rua movimentada e serpenteando, baixando-se, esquivando-se por entre as pessoas, subindo a inclinação suave que conduzia a Seven Dials.

Sete ruas confluíam aqui numa rotatória empedrada, que estava rodeada de todos os lados por edifícios medievais irregulares de madeira preta e estuque colorido. No centro da rotatória havia uma estátua de um general a cavalo, por baixo da qual estavam sentadas descontraidamente várias pessoas, aproveitando o sol da tarde. Defronte dele encontrava-se outra estátua, esta de Gladstone com o seu ar de Legislador. Vestia toga e segurava na mão um pergaminho aberto, com um braço erguido como se declamasse às multidões. Alguém — ou embriagado, ou de tendência anarquista — trepara no grande homem e colocara um cone sinalizador cor de laranja na sua cabeça majestosa, dando-lhe o aspecto de um feiticeiro cômico, daqueles que surgem na literatura infantil. A polícia não percebera ainda.

Bem por trás das costas de Gladstone ficava o Druids’ Coffee House, um ponto de encontro para os jovens e os sequiosos. As paredes do térreo do edifício tinham sido arrancadas e substituídas por toscas colunas de pedra decoradas com trepadeiras enroladas. Uma série de mesas cobertas com toalhas brancas espalhava-se em volta das colunas, vindo até à rua empedrada, à maneira do Continente. Todas as mesas estavam ocupadas. Empregados com túnicas azuis andavam numa roda-viva.

Kitty estacou junto à estátua do general e recuperou o fôlego. Olhou para as mesas. Três horas. Será que ele...? Ali! — quase encoberto por uma coluna: o crescente de cabelo branco, a cabeça calva reluzente.

Mr. Pennyfeather bebia um caffè latte* quando ela se acercou. A sua bengala estava em cima da mesa. Viu-a, sorriu-lhe amplamente, indicou-lhe uma cadeira.

 

* Em italiano no original: café com leite. (NT)

 

— Ms. Jones! Pontualíssima. Sente-se, por favor. O que deseja tomar? Café? Chá? Um bolo de canela? São muito bons.

Kitty passou uma mão agitada pelo cabelo.

— Hum, um chá. E chocolate. Preciso de chocolate.

Mr. Pennyfeather estalou os dedos; aproximou-se um empregado.

— Um chá e um éclair.** Dos grandes. Muito bem, Ms. Jones. Parece-me um pouco esbaforida. Veio correndo. Ou estou enganado?

 

** Em francês no original. (NT)

 

Os olhos dele brilharam, o sorriso estendeu-se. Kitty inclinou-se para a frente, furiosa.

— Onde é que está a graça? — perguntou com voz sibilante, dando um olhar às mesas vizinhas. — Acabo de ser atacada! Quando vinha ter consigo — acrescentou, para chegar onde queria.

O divertimento de Mr. Pennyfeather não diminuiu.

— Verdade? Mesmo? Isso é muito grave! Tem que me contar... Ah! Chegou o seu chá. Quanta rapidez! E que éclair tão grande! Ótimo. Prove um bocadinho, e depois conte-me tudo.

— Três pessoas encurralaram-me num beco. Atiraram algo ... um recipiente, creio... e apareceu um demônio. Atacou-me e tentou matar-me e... Está levando isto a sério, Mr. Pennyfeather? Olhe que eu me levanto e vou-me embora já. — O constante bom humor dele começava a enfurecer Kitty, mas ante as palavras dela o seu sorriso desapareceu.

— Queira perdoar, Ms. Jones. O assunto é sério. No entanto, conseguiu escapar. Como foi possível?

— Não sei. Rebati... batendo na coisa quando ela estava me atacando o rosto, mas na realidade não fiz nada. Aquilo apenas arrebentou como um balão. Os homens também desapareceram.

Bebeu um longo gole de chá. Mr. Pennyfeather olhou-a calmamente, sem dizer nada. O rosto dele permanecia circunspecto, mas os olhos pareciam animados, cheios de vida.

— É aquele mago... Tallow! — prosseguiu Kitty. — Eu sei que é. Ele está tentando me matar, depois do que eu disse no tribunal. Vai mandar outro demônio, agora que aquele falhou. Não sei o que...

— Prove o éclair — sugeriu Mr. Pennyfeather. — É a minha primeira sugestão. Depois, quando estiver mais calma, vou contar-lhe uma coisa.

Kitty comeu o éclair em quatro dentadas, empurrando-o com o chá, e sentiu-se um pouco mais calma. Olhou à sua volta. De onde se encontrava sentada, conseguia ver bem todos os clientes na cafeteria. Alguns eram turistas, mergulhados em mapas e guias coloridos; os restantes eram jovens — provavelmente estudantes — e grupos em saídas familiares. Não parecia haver a probabilidade imediata de outro ataque.

— Pronto, Mr. Pennyfeather — disse ela. — Desembuche.

— Está bem. — Limpou os cantos da boca com um guardanapo impecavelmente dobrado. — Já iremos àquele... incidente, mas tenho algo mais a dizer primeiro. Estranhará que eu esteja interessado nos seus problemas. Bem... na verdade, não estou tão interessado assim nos seus problemas, mas antes em si. A propósito, as seiscentas libras estão seguramente guardadas aqui. — Sorriu e bateu no bolso do casaco. — Irá recebê-las no final da nossa conversa. Bom. Eu estava na galeria do tribunal e ouvi o seu depoimento sobre o Cilindro Negro. Mais ninguém acreditou em si — a juíza na sua arrogância, os restantes na sua ignorância. Mas eu arrebitei as orelhas. Por que haveria de mentir? Perguntei. Nenhum motivo. Por conseguinte, devia ser verdade.

— Foi verdade — insurgiu-se Kitty.

— Mas ninguém que seja atingido por um Cilindro Negro, nem sequer pela sua borda externa, consegue escapar às suas marcas. Sei o que estou afirmando.

— Como? — indagou Kitty, bruscamente. — É mago?

O velho estremeceu.

— Por favor, pode insultar-me de todas as maneiras que quiser: dizer que sou careca, feio, um velho tonto que cheira a couves ou outra coisa qualquer, mas não me chame disso. Ofende-me a alma. Pode ter a certeza de que não sou um mago. Mas nem só os magos têm conhecimentos, Ms. Jones. Há outros que sabem ler, mesmo que não andem mergulhados em malvadezas como eles. Sabe ler, Ms. Jones?

Kitty encolheu os ombros.

— Claro. Aprendi na escola.

— Não, não, isso não é propriamente ler. Os magos escrevem os livros que vocês usam lá; não pode confiar neles. Olhe, estou a divagar. Acredite em mim... o Cilindro Negro mancha tudo o que toca. Tocou-lhe, segundo diz, mas não ficou manchada. Isso é um paradoxo.

Kitty pensou no rosto manchado de Jakob e sentiu uma onda de culpa.

— Não posso fazer nada.

— Este demônio que a atacou ainda há pouco... Descreva-o.

— Asas quase pretas. Uma boca vermelha grande. Dois cornos finos, retos...

— Uma barriga grande, coberta de pêlo? Sem cauda?

— Isso mesmo.

Ele anuiu.

— Um mouler. Um demônio menor sem grande poder. Mesmo assim, certamente a teria deixado inconsciente devido ao seu cheiro repugnante.

Kitty franziu o nariz.

— Cheirava mal, sem dúvida, mas não tanto assim.

— Os moulers também não costumam arrebentar. Grudam as mãos no cabelo e ficam presos até o amo deles dispensá-los.

— Mas este apenas arrebentou.

— Minha cara Ms. Jones, perdoe-me se me mostro novamente animado. Sabe, estou encantado com o que acaba de me contar. Significa, muito simplesmente, que possui algo especial: uma resiliência à magia.

Recostou-se na cadeira, chamou um empregado e pediu, sorridente, mais duas bebidas e bolos, ignorando a expressão desconcertada de Kitty. Durante o tempo que o pedido demorou a chegar ele limitou-se a sorrir-lhe do outro lado da mesa, soltando risadas de si para si de vez em quando. Kitty fez um esforço para manter a cortesia. O dinheiro continuava guardado, no bolso do casaco dele.

— Mr. Pennyfeather — disse por fim. — Desculpe, mas não compreendo nada do que diz.

— É óbvio, não lhe parece? A magia menor — não podemos ter certeza em relação às coisas mais poderosas — tem pouco ou nenhum efeito sobre si.

Kitty abanou a cabeça.

— Que bobagem. O Cilindro Negro derrubou-me.

— Eu disse pouco ou nenhum efeito. Não é imune. Tampouco eu, mas consegui resistir ao ataque de três foliots de uma só vez, o que creio ser absolutamente incomum.

Aquilo não significava nada para Kitty. Olhou-o inexpressivamente. Mr. Pennyfeather esboçou um gesto de impaciência.

— O que estou a afirmar é que você e eu... e diversos outros, pois não estamos sozinhos... somos capazes de resistir às fórmulas dos magos! Não somos magos, mas também não somos impotentes, ao contrário do resto dos comuns — proferiu a palavra com indisfarçado veneno —, neste pobre país amaldiçoado.

Kitty sentia a cabeça girando, mas continuava cética; ainda não acreditava nele.

— Não faz qualquer sentido para mim — contrapôs. — Nunca ouvi falar dessa «resiliência». Só me interessa não ir parar na cadeia.

— Verdade? — Mr. Pennyfeather fez menção de levar a mão dentro do casaco. — Nesse caso, deve querer pegar já no dinheiro e ir-se embora. Muito bem. Mas acho que quer algo mais do que isso. Vejo-o na sua cara. Quer várias coisas. Quer vingar o seu amigo Jakob. Quer mudar as coisas que se fazem por aí. Quer um país onde homens como Julius Tallow não prosperem nem se sintam confiantes. Nem todos os países são como este. Alguns lugares não têm magos! Nem um só! Pense nisso da próxima vez que for visitar o seu amigo no hospital. Estou lhe dizendo — prosseguiu, em voz mais calma — que pode ter um papel importante a desempenhar. Se me der ouvidos.

Kitty olhou para as folhas no fundo da sua xícara e viu o rosto desfigurado de Jakob refletido lá. Suspirou.

— Não sei...

— De uma coisa tenha certeza... posso ajudá-la na sua vingança.

Kitty olhou para ele. Mr. Pennyfeather sorria-lhe, mas os seus olhos tinham o mesmo brilho intenso e irado que vira quando fora empurrado na rua.

— Os magos fizeram-lhe mal — disse ele, baixinho. — Juntos, podemos empunhar a espada da vingança. Mas apenas se me auxiliar primeiro. Você me ajuda. Eu a ajudo. Uma troca justa.

Por um instante, Kitty viu novamente Tallow, sorrindo afetadamente do outro lado da sala de audiências, cheio de autoconfiança e a garantia da proteção dos amigos. Estremeceu, repugnada.

— Diga-me primeiro como quer que o ajude — pediu ela.

Alguém sentado duas mesas adiante tossiu ruidosamente e, como se uma pesada cortina tivesse caído subitamente dentro de sua mente, Kitty percebeu o perigo que corria. Ei-la ali, sentada entre desconhecidos, a discutir abertamente a traição.

— Somos loucos! — protestou, furiosa. — Podem ouvir-nos! Vão chamar a Polícia Noturna e levar-nos.

Ante aquelas palavras, o velho soltou mesmo uma gargalhada.

— Ninguém vai ouvir — garantiu ele. — Não tenha medo, Ms. Jones. Está tudo sob controle.

Kitty quase nem o ouvia. A sua atenção fora atraída para uma mulher jovem e loura sentada a uma mesa por trás do ombro esquerdo de Mr. Pennyfeather. Apesar de ter o copo vazio, permanecia sentada, embrenhada na leitura. Tinha a cabeça baixa, os olhos descidos, numa atitude de modéstia; uma mão brincava com o canto de uma página. De repente, Kitty convenceu-se de que tudo aquilo era uma impostura. Recordava-se vagamente de ter reparado na mulher quando se sentara, mantendo uma postura idêntica e, apesar de Kitty poder vê-la por completo todo este tempo, não se lembrava nem uma só vez dela ter efetivamente virado a página.

No momento seguinte teve a certeza. Como se o olhar fixo de Kitty tivesse roçado por ela, a mulher levantou a cabeça, fitou-a e esboçou-lhe um sorriso frio antes de retomar a leitura. Não podia haver dúvida — estivera ouvindo tudo!

— Sente-se bem? — A voz de Mr. Pennyfeather soou à margem do pânico dela.

Kitty mal conseguia falar.

— Atrás de si... — murmurou. — Uma mulher... uma espiã, uma delatora. Ela esteve a ouvir tudo.

Mr. Pennyfeather não se virou.

— Uma senhora loura? A ler um livro de bolso amarelo? Deve ser Gladys. Não se preocupe, ela é uma das nossas.

— Uma das...? — A mulher ergueu o olhar e piscou o olho a Kitty.

— A sua esquerda está Anne; à minha direita... bem do outro lado desta coluna... está sentada Eva. Aquele à minha esquerda é Frederick; Nicholas e Timothy estão colocados atrás de si. Stanley e Martin não arranjaram mesa, por isso estão no bar em frente.

Estupefata, Kitty olhou à sua volta. Uma mulher de meia-idade com cabelo preto sorriu-lhe por trás do ombro direito de Mr. Pennyfeather; à direita de Kitty, um jovem sardento e de ar sério, levantou os olhos de um exemplar do Motorbike Trader com os cantos dobrados. Da mulher por trás da coluna só se via um casaco preto pendurado na sua cadeira. Arriscando-se a um torcicolo, Kitty virou-se para trás, avistando mais dois rostos — jovens, sisudos — que a olhavam de outras mesas.

— Está vendo, não precisa se preocupar — disse Mr. Pennyfeather. — Está entre amigos. Ninguém além deles poderia ouvir o que dizemos, e demônios não estão presentes, senão saberíamos.

— Como?

— Haverá tempo para as perguntas depois. Primeiro tenho que lhe pedir desculpas. Temo que já tenha encontrado Frederick, Martin e Timothy. — Kitty ficou novamente confusa. Estava a tornar-se rapidamente um hábito. — No beco — indicou Mr. Pennyfeather.

— No beco? Espere aí...

— Foram eles que lhe lançaram o mouler. Tenha calma! Não vá embora! Lamento que a tenhamos assustado, mas precisávamos ter certeza, sabe. A certeza de que tinha uma resiliência como nós. O vidro mouler estava à mão; era uma questão simples...

Kitty recuperou a voz.

— Seu porco! É tão mau quanto Tallow! Eu podia ter morrido.

— Não. Eu lhe disse: o pior que um mouler consegue fazer é derrubá-la. O seu fedor...

— E isso já não é suficientemente ruim? — Kitty levantou-se furiosa.

— Se quer ir embora, não se esqueça disto. — O velho tirou um envelope branco grosso do casaco e arremessou-o com desdém para cima da mesa entre as xícaras. — Encontrará aí dentro seiscentas libras. Notas usadas. Não volto com a minha palavra atrás.

— Não o quero! — Kitty estava lívida, incandescente; apetecia-lhe partir algo.

— Não seja tola! — Os olhos do velho chisparam. — Quer apodrecer na Prisão de Marshalsea? É para onde vão os devedores, sabe? Esse envelope contém a primeira parte do nosso acordo. Considere-o um pedido de desculpas pelo mouler. Mas podia ser apenas o começo...

Kitty pegou no envelope de rompante, quase atirando as xícaras para o chão com o gesto.

— O senhor é doido. O senhor e os seus amigos. Muito bem. Vou aceitar. De qualquer forma, foi para isso que vim. — Continuava de pé. Empurrou a cadeira para trás.

— Posso contar-lhe como tudo começou para mim? — Mr. Pennyfeather debruçara-se agora sobre a mesa, os seus dedos curvos pressionando com força a toalha, amarfanhando-a. Falou em tom baixo, urgente. — Eu era como você, a princípio: os magos não significavam nada para mim. Era jovem, feliz no casamento... O que me podia preocupar? Então a minha querida mulher, que a sua alma descanse em paz, despertou as atenções de um mago. Não muito diferente do seu Mr. Tallow: um janota cruel e empertigado. Queria ficar com ela, tentou seduzi-la com jóias e finas roupas orientais. Mas a minha mulher, coitada, recusou as iniciativas dele. Riu na cara dele. Foi um ato de coragem, mas uma tolice. Quem me dera agora — e desejo-o há trinta anos — que ela tivesse ido com ele.

— Morávamos num apartamento por cima da minha loja, Ms. Jones; eu trabalhava até tarde todos os dias, arrumando a mercadoria e fazendo a contabilidade, enquanto a minha mulher ia para casa preparar o jantar. Uma noite, estava sentado à escrivaninha como de costume. O fogo ardia na lareira. A minha caneta raspava no papel. De repente, os cães na rua começaram a uivar; um instante depois o fogo agitou-se e extinguiu-se, deixando os carvões incandescentes a sibilar como os apagados. Levantei-me. Temia já... bem, não sabia o quê. E depois... ouvi a minha mulher gritar. Apenas uma vez, um grito que ficou pelo meio. Nunca corri tão depressa. Subi as escadas, tropeçando com a pressa, abri a porta, fui até à nossa pequena cozinha...

Os olhos de Mr. Pennyfeather já não a viam. Olhavam para alguma coisa, ao longe. Mecanicamente, mal sabendo o que fazia, Kitty voltou a sentar-se e aguardou.

— A coisa que fizera aquilo — disse por fim Mr. Pennyfeather — acabara de desaparecer. Senti a sua presença a pairar. Enquanto estava ajoelhado ao lado da minha mulher no nosso chão de linóleo, os bicos de gás no fogão voltaram a acender-se, o assado na panela retomando a fervura. Ouvi os cães a ladrar, as janelas lá embaixo na rua a bater com uma brisa súbita... depois silêncio. Passou um dedo pelas migalhas de éclair num prato, reuniu-as e meteu-as na boca. — Ela era boa cozinheira, Ms. Jones — disse. — Ainda me lembro, embora tenham passado trinta longos anos.

Do outro lado da cafeteria um empregado de mesa entornara uma bebida em cima de um cliente; o conseqüente tumulto pareceu arrancar Mr. Pennyfeather das suas lembranças. Pestanejou, olhou novamente para Kitty. — Bem, Ms. Jones, vou resumir aqui a minha história. Basta dizer que localizei o mago; durante algumas semanas, segui-o sutilmente, observando os seus movimentos, não cedendo nem à fúria da dor, nem aos impulsos da impaciência. A seu tempo, a minha oportunidade acabou por chegar; ataquei-o num local isolado e matei-o. O seu cadáver foi juntar-se às imundícies a boiar no Tamisa. No entanto, antes de morrer, ele chamara três demônios: um por um, os seus ataques à minha pessoa falharam todos. E foi assim que... um tanto para surpresa minha, pois estava decidido a morrer na minha vingança... descobri a minha resiliência. Não procuro compreendê-la, mas é uma realidade. Tenho-a, os meus amigos a têm; você a tem. Cabe a cada um de nós decidir se quer tirar partido dela ou não.

Calou-se. Parecia que ficara esgotado, o seu rosto sulcado e velho.

Kitty hesitou alguns momentos antes de responder.

— Está bem — disse, por Jakob, por Mr. Pennyfeather e pela sua esposa morta —, não vou já embora. Gostaria que me contasse mais coisas.

 

Durante várias semanas, Kitty encontrou-se regularmente com Mr. Pennyfeather e os seus amigos, em Seven Dials, noutras cafeteiras espalhadas pelo centro de Londres e no apartamento de Mr. Pennyfeather por cima da sua loja de materiais artísticos, numa rua movimentada bem a sul do rio. A cada vez ia ficando mais informada sobre o grupo e os seus objetivos; a cada vez, achava que se identificava mais estreitamente com eles.

Parecia que Mr. Pennyfeather constituíra o seu grupo ao acaso, com base na divulgação oral e através das notícias nos jornais, que o tinham levado até pessoas com capacidades incomuns. Durante meses, fora presença assídua nas salas de audiências dos tribunais, procurando alguém como Kitty; noutros casos, servia-se apenas da conversa de bar para selecionar boatos interessantes de pessoas que haviam sobrevivido a ataques mágicos. A sua loja de arte era modestamente próspera; por norma, deixava-a nas mãos dos seus ajudantes e percorria Londres nas suas missões sub-reptícias.

Há muito que os seus seguidores se tinham reunido. Anne, uma mulher de quarenta anos cheia de vida, conhecia-o há quase quinze anos. Eram veteranos de muitas campanhas conjuntas. Gladys, a loura do café, tinha vinte e poucos anos; resistira aos efeitos secundários de uma explosão num duelo entre magos havia dez anos, era ainda uma menina. Ela e Nicholas, um homem jovem entroncado sempre pensativo, trabalhavam para Mr. Pennyfeather desde crianças. O resto do grupo era mais jovem; nenhum tinha mais de dezoito anos. Kitty e Stanley, ambos com treze anos, eram os mais novos. O velho dominava a todos com a sua presença, que era simultaneamente inspiradora e autocrática. Possuía uma força de vontade férrea e energias mentais incansáveis, mas o seu corpo ia falhando gradualmente, e levava-o a acessos de fúria incoerente. Nos primeiros tempos, essas ocasiões eram raras, e Kitty ouvia com atenção os seus relatos apaixonados da grande luta em que estavam empenhados.

Por norma, sustentava Mr. Pennyfeather, era impossível resistir aos magos ou ao seu domínio. Faziam tudo o que queriam, como todos os membros do grupo tinham descoberto à sua própria custa. Controlavam tudo o que era importante: o Governo, a função pública, as maiores empresas e os jornais. Até as peças nos teatros eram oficialmente censuradas, evitando o conteúdo de mensagens subversivas. E enquanto os magos desfrutavam dos luxos do seu domínio, todos os demais — a esmagadora maioria — iam prestando os serviços essenciais que os magos solicitavam. Trabalhavam nas fábricas, exploravam os restaurantes, combatiam no exército... quando se tratava de trabalho de verdade, eram os comuns que o faziam. E desde que o fizessem sem levantar oposição, os magos deixavam-nos em paz. Porém, ao menor indício de descontentamento, os magos caíam-lhes em cima impiedosamente. Tinham os seus espiões por todo lado; uma palavra inoportuna e era-se levado para interrogatório na Torre. Muitos agitadores desapareciam sem deixar rastro.

O poder dos magos impossibilitava a rebelião: controlavam forças ocultas que poucos haviam vislumbrado mas que todos temiam. Mas o grupo de Mr. Pennyfeather — aquele pequeno punhado de almas reunidas e movidas pelo seu ódio implacável — era mais afortunado do que a maioria. E a sua bem-aventurança processava-se de diversas formas.

Em certa medida, todos os amigos de Mr. Pennyfeather partilhavam da sua resiliência à magia, mas era impossível dizer até que ponto ela se estendia. Em virtude do seu passado, era evidente que Mr. Pennyfeather conseguia resistir a um ataque relativamente forte; a maioria dos outros, como Kitty, fora apenas levemente testada até o momento.

Alguns deles — entre os quais Anne, Eva, Martin e o intratável e bexigoso Fred — possuíam outros talentos. Desde muito cedo, cada um observara pequenos demônios andando de cá para lá pelas ruas de Londres. Alguns voavam, outros caminhavam entre as multidões. Mais ninguém reparava neles, e depois de apurado, parecia que para a maior parte das pessoas os demônios eram ou invisíveis ou escondiam-se sob um disfarce. Segundo Martin — que trabalhava numa fábrica de tintas e era, depois de Mr. Pennyfeather, o mais impetuoso e inflamado — uma boa quantidade de gatos e pombos não era bem o que parecia. Timothy (de cabelo castanho encaracolado, quinze anos, ainda estudando) dissera que vira uma vez um demônio marreco entrar numa mercearia e comprar uma réstia de alhos; a mãe dele, que o acompanhava, vira tão somente uma velhinha curvada que fora às compras.

Penetrar as ilusões desta forma era uma particularidade extremamente útil para Mr. Pennyfeather. Outra capacidade que ele valorizava muito era a de Stanley, um rapaz impertinente, bastante senhor de si que, apesar de ser da mesma idade de Kitty, abandonara a escola. Distribuía jornais. Stanley não conseguia ver demônios; mas era capaz de detectar a radiância tênue e tremulante libertada por qualquer objeto contendo força mágica. Desde menino, encantara-se tanto com estas auras que passara a roubar os objetos em questão; quando Mr. Pennyfeather o encontrara (nos Tribunais Judiciais) já era um hábil batedor de carteiras. Anne e Gladys possuíam capacidade idêntica, mas não era tão notável quanto a de Stanley, que conseguia sentir os objetos mágicos através das roupas e mesmo por trás de finas divisórias de madeira. Consequentemente, Stanley era uma das figuras-chave do grupo de Mr. Pennyfeather.

Em vez de ver a atividade mágica, parecia que o afável e calado Timothy conseguia ouvi-la. Tanto quanto lhe era possível descrever, sentia uma espécie de zumbido no ar. — Como uma campainha tocando — dissera, depois de solicitado. — Ou o som que se ouve quando se bate num copo vazio. — Se se concentrasse, e se não houvesse muitos ruídos em volta, conseguia até localizar a origem do zumbido, eventualmente um demônio ou um objeto mágico qualquer.

Quando todas estas capacidades se reuniam, afirmara Mr. Pennyfeather, formavam uma força pequena, mas eficaz, para fazer frente ao poder dos magos. Não se podia declarar abertamente, claro, mas contribuiria para a eliminação dos seus inimigos. Era possível detectar objetos mágicos, evitar perigos ocultos e — o mais importante de tudo — lançar ataques aos magos e seus servos malvados.

De início, estas revelações entusiasmaram Kitty. Viu Stanley, num dia de treino, distinguir um punhal mágico de entre seis espécimes normais, cada um deles escondido numa caixa de papelão separada. Seguiu Timothy enquanto andava para lá e para cá pela loja de Mr. Pennyfeather, a localizar a ressonância de um colar de brilhantes que fora escondido num frasco de pincéis.

Os objetos mágicos eram o centro da estratégia básica do grupo. Kitty observava regularmente a chegada dos membros do grupo à loja com pequenos embrulhos ou sacos que entregavam a Anne. A número dois de Mr. Pennyfeather guardava-os discretamente. Continham mercadoria roubada.

— Kitty — disse-lhe Mr. Pennyfeather uma noite. — Há trinta anos que venho observando os nossos líderes peçonhentos, e julgo conhecer as suas maiores fraquezas. Têm ganância de tudo: dinheiro, poder, posição social, o que quiser, e discutem constantemente por causa de todos eles. Mas nada desperta mais as suas paixões do que os adornos mágicos.

Ela anuiu.

— Refere-se a anéis e pulseiras mágicos?

— Não precisa ser joalheria — respondeu Anne. Ela e Eva tinham-se reunido a eles no cômodo dos fundos da loja, sentadas ao lado de rolos de papel empilhados. — Pode ser tudo: bordões, vasos, postes, peças de madeira. Aquele vidro mouler que te atiramos também conta, não é verdade, Chefe?

— É claro que conta. Por isso o roubamos. Por isso roubamos todas estas coisas, sempre que podemos.

— Acho que aquele vidro veio da casa em Chelsea, não veio? — perguntou Anne. — Aquela em que Eva e Stanley subiram pela calha até o primeiro andar, enquanto a festa decorria na parte da frente da casa.

Kitty ficara boquiaberta.

— Isso não é extremamente perigoso? As casas dos magos não estão protegidas por... todo o tipo de coisas?

Mr. Pennyfeather anuiu.

— Sim, muito embora isso dependa do poder do mago em questão. Aquele tinha apenas arames mágicos armadilhados estendidos pela sala... naturalmente, Stanley evitou-os facilmente... Arranjamos um bom sortimento de objetos naquele dia.

— E o que fazem com eles? — indagou Kitty. — Isto é, além de atirarem?

Mr. Pennyfeather sorriu.

— Os artefatos são o grande manancial de qualquer mago. Funcionários menores como o Secretário-Adjunto da Agricultura... acho que era ele o proprietário do vidro mouler... apenas se podem permitir objetos fracos, enquanto os maiores homens e mulheres aspiram a peças raras de força terrível. Todos o fazem porque são decadentes e preguiçosos. É muito mais fácil usar um anel mágico para atingir um inimigo do que invocar algum demônio dos infernos para fazê-lo.

— Mais seguro, também — acrescentou Eva.

— Precisamente. Por isso, Kitty, quanto mais artigos arranjarmos, melhor. Enfraquece consideravelmente os magos.

— E podemos ser nós a usá-los — interveio Kitty rapidamente. Mr. Pennyfeather fez uma pausa.

— As opiniões dividem-se um pouco nesta matéria. Aqui a Eva — repuxou um pouco os lábios, mostrando os dentes —, a Eva acredita que é moralmente perigoso seguir muito de perto as pegadas dos magos. Está convencida de que os artigos deviam ser destruídos. Eu, porém... e trata-se do meu grupo, não é, por isso a minha palavra é que vale... acredito que devemos usar quaisquer armas que pudermos contra semelhantes inimigos. E isso inclui virar a própria magia contra eles.

Eva agitou-se na cadeira.

— Parece-me, Kitty — disse ela —, que, ao usarmos essas coisas, acabamos por não ser melhores do que os próprios magos. É preferível mantermo-nos afastados das tentações das coisas más.

— Ah! — O velho resfolegou depreciativamente. — De que outra forma podemos destruir os nossos governantes? Precisamos de ataques diretos para desestabilizar o Governo. Mais cedo ou mais tarde, o povo acabará por nos apoiar.

— Bem, quando? — indagou Eva. — Não tem havido...

— Nós não estudamos a magia como os magos — interrompeu Mr. Pennyfeather. — Não vamos correr perigo moral. Mas, efetuando um pouco de pesquisa — algumas leituras dos livros roubados, por exemplo — poderemos aprender a trabalhar com armas básicas. O teu vidro mouler, Kitty, requeria apenas uma simples ordem em latim. Isso é suficiente para pequenas... manifestações do nosso desagrado. Podemos guardar os artefatos mais complexos em segurança, longe das mãos dos magos.

— Acho que estamos seguindo o caminho errado — afirmou Eva em voz baixa. — Algumas pequenas explosões não vão fazer qualquer diferença. Eles serão sempre mais fortes. Nós...

Mr. Pennyfeather bateu com toda a força com a bengala na sua bancada de trabalho, fazendo Eva e Kitty sobressaltarem-se.

— Preferem não fazer nada? — berrou. — Muito bem! Voltem para o meio do rebanho, baixem a cabeça e desperdicem as vossas vidas!

— Não foi isso que eu quis dizer. Só não vejo...

— A loja vai fechar! É tarde. Esperam-na sem dúvida em casa, Ms. Jones.

A mãe e o pai de Kitty tinham ficado bastante aliviados com o pronto pagamento da multa do tribunal. Fiéis às suas personalidades indiferentes, não haviam tentado descobrir a proveniência do dinheiro, aceitando com gratidão as histórias de Kitty a respeito de um benfeitor generoso e um fundo para erros judiciários. Assistiram, com alguma surpresa, ao gradual afastamento de Kitty dos seus velhos hábitos, visto que, durante as férias longas, passava cada vez mais tempo com os seus novos amigos em Southwark. O pai, em particular, não escondeu a sua satisfação.

— Só terá com que se beneficiar, se mantiver-se afastada do jovem Hyrnek — disse-lhe. — Ele só irá arranjar mais encrencas.

Apesar de Kitty continuar a ir ver Jakob, as suas visitas eram por norma curtas e insatisfatórias. Jakob recuperava as forças, e a mãe dele mantinha-se vigilante à sua cabeceira, mandando Kitty embora assim que detectava sinais de exaustão no filho. Kitty não pôde lhe contar sobre Mr. Pennyfeather, e Jakob, por seu lado, andava preocupado com o rosto manchado e cheio de comichão. Tornou-se cada vez mais introspectivo e talvez, julgou Kitty, ligeiramente irritado com a saúde e energia dela. Gradualmente, as deslocações à casa dos Hyrnek foram sendo menos freqüentes, e ao cabo de alguns meses cessaram.

Duas coisas mantiveram Kitty envolvida com o grupo. Em primeiro lugar, a gratidão pelo pagamento da multa. Sentia-se manifestamente em dívida para com Mr. Pennyfeather. Apesar de nunca ter voltado a mencioná-lo, era possível que o velho se apercebesse dos sentimentos dela sobre o assunto; se sim, não tentou negá-los.

O segundo motivo era, de muitas formas, mais importante. Kitty queria ficar mais esclarecida sobre a «resiliência» que Mr. Pennyfeather descobrira nela e perceber o que podia fazer. Reunir-se ao grupo parecia a única maneira de consegui-lo; prometia-lhe também um rumo, um sentido de objetivo, e o fascínio de uma pequena sociedade secreta escondida do mundo em geral. Não tardou a acompanhar os outros em expedições de pilhagem.

A princípio, limitava-se a assistir enquanto Fred ou Eva escreviam graffitis contra o Governo nas paredes, ou assaltavam os carros e as casas dos magos em busca de artefatos. Kitty ficava nas sombras, passando os dedos pelo berloque de prata no bolso, pronta a assobiar ante qualquer sinal de perigo. Depois passou a acompanhar Gladys ou Stanley enquanto eles seguiam os magos até a casa, detectando a aura dos objetos que traziam consigo. Kitty apontava as moradas como preparativo para posteriores assaltos.

Esporadicamente, ao final do dia, via Fred ou Martin abandonarem a loja em missões de natureza diferente. Vestiam roupas escuras, os seus rostos mascarrados de fuligem; levavam debaixo do braço pequenos sacos pesados. Ninguém se referia abertamente aos seus objetivos, mas quando na manhã seguinte o jornal noticiava ataques inexplicados a propriedades governamentais, Kitty retirava as suas próprias deduções.

Com o tempo, e porque era inteligente e decidida, Kitty começou a assumir um papel cada vez de maior destaque. Mr. Pennyfeather tinha por hábito enviar os seus amigos em pequenos grupos, no seio dos quais cada membro tinha uma tarefa diferente: ao fim de alguns meses, deixou que Kitty fosse responsável por um desses grupos, constituído por Fred, Stanley e Eva. A agressividade obstinada de Fred e as opiniões sem reservas de Eva eram manifestamente incompatíveis, mas Kitty conseguia domar os seus caracteres com tamanha eficácia que eles tinham voltado de uma ronda pelos armazéns dos magos carregados com vários troféus de categoria — incluindo dois globos azuis grandes, que Mr. Pennyfeather disse serem possivelmente esferas de elementos, muito raras e valiosas.

Para Kitty, o tempo passado longe do grupo acabou por se tornar extremamente entediante; desdenhava cada vez mais da perspectiva tacanha dos pais e da propaganda que lhe tinham impingido na escola. Em contraste, encantava-se com o caráter excitante das operações noturnas, mas estas eram extremamente arriscadas. Uma noite, um mago descobrira Kitty e Stanley a saírem pela janela do seu gabinete de trabalho com uma caixa mágica nas mãos. Chamara uma pequena criatura com a forma de uma doninha, que os perseguira, lançando chamas pela boca aberta. Eva, lá embaixo na rua à espera, atirara um vidro mouler ao demônio que, distraído pelo aparecimento do mouler, estacara por um momento, permitindo-lhes a fuga. Noutra ocasião, no jardim de um mago, Timothy fora atacado por um demônio de sentinela, que avançara sorrateiramente e o envolvera com os seus dedos azuis finos. As coisas teriam corrido mal, não fosse Nick ter conseguido cortar a cabeça da criatura com uma espada antiga que roubara momentos antes. Em virtude da sua resiliência, Timothy sobrevivera, mas passara a queixar-se de um leve odor de que nunca conseguiria se livrar.

Além dos demônios, a polícia era um problema constante e acabava por causar reveses. À medida que os roubos do grupo iam-se tornando mais ambiciosos, um número cada vez maior de elementos da Polícia Noturna andava nas ruas. Num final de tarde outonal, em Trafalgar Square, Martin e Stanley tinham-se apercebido de um demônio disfarçado que levava um amuleto que emitia uma pulsação mágica vibrante. A criatura fugira a pé, mas deixara uma forte ressonância atrás de si, que Tim conseguira seguir com facilidade. Não tardara a ser encurralado num beco sossegado, onde o grupo vencera os ataques ferocíssimos do demônio. Infelizmente, este acesso de magia despertara as atenções da Polícia Noturna. Kitty e os seus companheiros dispersaram, perseguidos por coisas que se assemelhavam a uma matilha de cães. No dia seguinte, todos menos um se haviam apresentado a Pennyfeather. Esse era Tim, que nunca mais voltara a ser visto. A perda de Timothy afetara bastante o grupo, e resultara numa segunda baixa, quase imediata. Diversos elementos do grupo, em particular Martin e Stanley, exigiram abertamente uma estratégia mais audaz contra os magos.

— Podíamos ficar de emboscada em Whitehall — sugeriu Martin —, quando eles fossem para o Parlamento. Ou atingir Devereaux quando ele saísse do seu palácio em Richmond. Se fosse atingido, isso os deixaria um pouco confusos. Precisamos de algo sísmico agora para começar a rebelião.

— Ainda não — afirmou Mr. Pennyfeather, com irritação. — Preciso investigar mais. Agora saia e deixe-me em paz.

Martin era um rapaz franzino, com olhos escuros, um nariz fino e reto e uma intensidade a envolvê-lo como Kitty nunca vira em ninguém. Perdera os pais por culpa dos magos, segundo lhe tinham contado, mas Kitty não conseguira saber das circunstâncias. Ele nunca olhava ninguém diretamente nos olhos enquanto falava: tinha o olhar sempre um pouco baixo e desviado. Quando Mr. Pennyfeather recusava os seus pedidos de ação, ele começava por defender apaixonadamente as suas idéias, mas, depois, fechava-se subitamente em si mesmo, apático, como se incapaz de exprimir a força dos seus sentimentos.

Alguns dias depois da morte de Tim, Martin não aparecera para a patrulha daquela noite; quando Mr. Pennyfeather entrara no porão, descobrira que o seu armazém secreto de armas fora aberto. Tinha sido roubada uma esfera de elementos. Horas depois, tivera lugar um ataque ao Parlamento. Haviam atirado uma esfera de elementos no meio dos deputados, matando diversas pessoas. O próprio Primeiro-Ministro escapara por uma unha negra. No dia seguinte o corpo de um jovem aparecera nas margens do Tamisa.

Quase de um momento para o outro, Mr. Pennyfeather tornara-se mais solitário e irritável, raramente indo à loja exceto para assuntos da Resistência. Anne comunicara que ele andava a fazer pesquisas a fundo nos livros de magia roubados.

— Quer obter armas melhores — explicara. — Temos sido muito superficiais até aqui. Precisamos de conhecimentos mais profundos, se queremos vingar Tim e Martin.

— Como é que ele vai conseguir? — protestara Kitty. Gostava particularmente de Tim, e a perda afetara-a profundamente. — Aqueles livros estão escritos num cento de línguas. Ele nunca irá entender patavina deles.

— Estabeleceu um contato — referira Anne. — Alguém que pode nos dar uma ajuda.

E, efetivamente, fora mais ou menos por esta altura que entrara um novo membro para o grupo. Mr. Pennyfeather prezava muito as opiniões dele.

— Mr. Hopkins é um erudito — disse, ao apresentá-lo ao grupo. — Um homem de enorme sabedoria. Possui muitos conhecimentos sobre os métodos malditos dos magos.

— Dou o meu melhor — afirmou Mr. Hopkins com modéstia.

— Trabalha como escriturário na Biblioteca Britânica — prosseguiu Mr. Pennyfeather, batendo-lhe no ombro. — Quase fui apanhado quando tentava, hã... apropriar-me de um livro sobre magia. Mr. Hopkins protegeu-me dos guardas, deixou-me fugir. Fiquei-lhe grato; começamos a conversar. Nunca conheci um comum com tantos conhecimentos! Aprendeu sozinho muitas coisas, lendo os textos que lá se encontram. Infelizmente, o seu irmão foi morto por um demônio há anos e, tal como nós, quer vingar-se. Ele sabe... quantas línguas, Clem?

— Catorze — disse Mr. Hopkins. — E sete dialetos.

— Então? O que me dizem? Infelizmente, ele não tem resiliência como nós, mas pode dar-nos todo o apoio.

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance — garantiu Mr. Hopkins. Infelizmente, sempre que Kitty tentava se recordar de Mr. Hopkins, era uma tarefa difícil. Não que ele fosse incomum de alguma maneira — muito pelo contrário, na verdade. Era absolutamente normal. O cabelo era, talvez, escorrido e castanho, o rosto macio, escanhoado. Era difícil afirmar se seria velho ou novo. Não possuía feições dignas de realce, nem dizia piadas espirituosas, nem tinha uma maneira incomum de falar. Tudo somado, havia algo tão imediatamente olvidável no próprio homem que mesmo na sua presença, enquanto estava falando, conseguia abstrair-se, escutando as palavras mas ignorando o orador. Era algo manifestamente curioso.

A princípio, Mr. Hopkins foi tratado com alguma desconfiança pelo grupo, principalmente porque, na falta de resiliência, não alinhava nos assaltos para obter artefatos. Ao invés disso, o seu forte era a informação, e rapidamente se revelou precioso nessa matéria, para todo o grupo. O seu trabalho na biblioteca, juntamente, talvez, com o seu aspecto curiosamente difícil de recordar, permitiam-lhe escutar os magos. Consequentemente, era muitas vezes possível prever os seus movimentos, permitindo que se efetuassem ataques às propriedade deles enquanto estavam ausentes; ouvira falar de artefatos vendidos recentemente pela Pinn, permitindo a Mr. Pennyfeather organizar os convenientes roubos. Acima de tudo, Mr. Hopkins descobrira uma grande quantidade de fórmulas encantatórias, o que faria com que se usassem novas armas de maior alcance nos ataques da Resistência. Era tal o rigor das suas indicações, que em breve todos começaram a depender implicitamente dele. Mr. Pennyfeather continuava a ser o líder do grupo, mas a inteligência de Mr. Hopkins era a sua luz-guia.

O tempo passou. Kitty deixou a escola com a idade normal de quinze anos. Possuía as poucas habilitações que a escola proporcionava, mas não via nenhum futuro no fastidioso trabalho fabril ou nos cargos administrativos oferecidos pelas autoridades. Apresentou-se uma agradável alternativa: por sugestão de Mr. Pennyfeather, e para satisfação dos pais dela, passou a trabalhar na loja de arte dele. Entre um cento de outras tarefas, aprendeu a fazer a contabilidade, cortar papel de aquarela e separar os pincéis segundo uma dúzia de variedades de cerdas. Mr. Pennyfeather não pagava bem, mas Kitty estava bastante satisfeita.

De início, agradou-lhe o perigo das atividades com o grupo; gostava da calorosa emoção sentida quando passava por funcionários governamentais que se esforçavam por encobrir algumas das frases escritas nas paredes, ou via as chamadas de ultraje no The Times queixando-se dos últimos roubos. Ao cabo de alguns meses, para escapar à vigilância dos pais, alugara um pequeno quarto num apartamento dilapidado a cinco minutos da loja. Trabalhava até tarde, de dia na loja e à noite com o grupo; a sua compleição empalideceu, os olhos endureceram devido à ameaça constante de denúncia e sucessivas perdas. Cada ano havia mais baixas: Eva morta por um demônio numa casa em Mayfair, a sua resiliência incapaz de suportar o ataque; Gladys perdida durante um incêndio num armazém, quando uma esfera largada desencadeara o fogo.

À medida que o grupo se reduzia, chegou uma súbita sensação de que as autoridades estavam esforçando-se por persegui-los. Entrara em ação um novo mago chamado Mandrake; tinham sido vistos demônios disfarçados de crianças, fazendo perguntas sobre a Resistência e oferecendo artigos mágicos para venda. Apareciam informantes humanos nos bares e cafés, exibindo notas de libra em troca de informações. O ambiente era pesado nas reuniões no cômodo dos fundos da loja de Mr. Pennyfeather. A saúde do velho debilitava-se; andava irritável e os seus adjuntos inquietos. Kitty via que se avizinhava uma crise.

Depois teve lugar a reunião fatídica, e o maior desafio de sempre.

 

— Chegaram.

Stanley estivera a vigiar por um ralo da porta, espreitando o espaço principal da loja. Já se encontrava ali há algum tempo, tenso e imóvel; passou então à ação, correu o ferrolho e abriu a porta. Afastou-se, tirando o boné da cabeça. Kitty ouviu as pancadinhas familiares da bengala aproximarem-se. Levantou-se do seu lugar, curvando as costas para atenuar as dores e o frio. A seu lado, os outros imitaram-na, Fred esfregando o pescoço e praguejando entre dentes. Ultimamente, Mr. Pennyfeather fazia mais questão destas pequenas deferências.

A única luz no cômodo dos fundos provinha de uma lanterna em cima da mesa; era tarde, e não queriam despertar as atenções de esferas de passagem. Mr. Hopkins, que entrara primeiro, estacou à porta para permitir que os seus olhos se adaptassem, depois desviou-se para conduzir Mr. Pennyfeather pela porta. À média-luz, a figura mirrada do líder parecia ainda mais diminuta do que de costume; avançava como um esqueleto animado. O corpanzil tranquilizador de Nick vinha na retaguarda. Os três entraram no cômodo, Nick fechando a porta de mansinho atrás deles.

— Boa noite, Mr. Pennyfeather. — A voz de Stanley soou menos impertinente do que o habitual; aos ouvidos de Kitty, era portadora de uma nauseante falsa humildade. Não obteve resposta. Lentamente, Mr. Pennyfeather aproximou-se da cadeira de vime de Fred; cada passo parecia provocar-lhe dor. Sentou-se. Anne avançou e colocou a lanterna num nicho ao lado dele; o seu rosto mergulhou na sombra.

Mr. Pennyfeather encostou a bengala à cadeira. Lentamente, um dedo de cada vez, descalçou as luvas. Mr. Hopkins encontrava-se de pé a seu lado, aprumado, calado, imediatamente esquecível. Anne, Nick, Kitty, Stanley e Fred permaneciam de pé. Era um ritual conhecido.

— Bem, bem, sentem-se, sentem-se. — Mr. Pennyfeather colocou as luvas sobre o joelho. — Meus amigos — começou —, percorremos juntos um longo caminho. Não preciso frisar o que nos sacrificamos, nem... — interrompeu-se, tossiu — com que finalidade. Ultimamente, tenho sido de opinião, reforçada aqui pelo meu caro Hopkins, que nos faltam os recursos para prosseguir a luta contra o inimigo. Não temos dinheiro suficiente, armas suficientes, conhecimentos suficientes. Acredito que agora podemos corrigir essa situação.

Fez uma pausa, seguida de um sinal impaciente. Anne avançou apressadamente com um copo de água.

Mr. Pennyfeather engoliu ruidosamente.

— Assim está melhor. Bem. Hopkins e eu temos estado afastados, a estudar determinados papéis roubados da Biblioteca Britânica. São documentos antigos, do séc. XIX. Através deles, soubemos da existência de um esconderijo importante de tesouros, muitos de considerável poder mágico. Se conseguirmos que venham parar em nossas mãos, poderemos revolucionar os nossos destinos.

— Que mago os detém? — indagou Anne.

— No momento, estão fora do alcance dos magos.

Stanley avançou, ansioso.

— Iremos para onde o senhor quiser! — exclamou. — França, ou Praga, ou... ou os confins da Terra. — Kitty revirou os olhos para o céu.

O velho soltou uma risada.

— Não é preciso chegar a esse extremo. Para ser exato, basta-nos atravessar o Tamisa. — Deixou que uma onda de assombro se espalhasse. — Estes tesouros não se encontram num templo distante. Estão muito perto de nós, num lugar por onde todos passamos mil vezes. Vou dizer-lhes — levantou as mãos para acalmar o rebuliço —, por favor, eu vou dizer-lhes. Fica no coração da cidade, o coração do império dos magos. Estou me referindo à Abadia de Westminster.

Kitty ouviu os outros arfarem, e sentiu um arrepio de excitação percorrer-lhe a espinha. A abadia? Mas ninguém se atreveria...

— O senhor está falando de um túmulo? — inquiriu Nick.

— Efetivamente, efetivamente. Mr. Hopkins... quer fazer o favor de continuar as explicações?

O escriturário tossiu.

— Obrigado. A abadia é o local onde se encontram sepultados muitos dos maiores magos do passado: Gladstone, Pryce, Churchill, Kitchener,* para referir apenas alguns. Encontram-se sepultados em criptas secretas, por baixo do solo, e os seus tesouros estão com eles, artigos de poder de que os tolos vacilantes de hoje apenas conseguem fazer uma pálida idéia.

 

* Lorde Robert Kitchener (1850-1916), general inglês que reconquistou o Sudão, pôs termo à Guerra dos Boers, comandou em 1902 o exército das Índias, sendo depois general residente no Egito. Nomeado Ministro da Guerra, organizou o exército inglês de 1914. (NT)

 

Como sempre, quando Mr. Hopkins falava, Kitty mal tinha consciência da presença dele; brincava com as suas palavras, com as possibilidades que acarretavam.

— Mas colocaram maldições terríveis nos seus túmulos — começou Anne. — Castigos terríveis esperam aqueles que os abrirem.

Das profundezas da sua cadeira, Mr. Pennyfeather soltou uma gargalhada ruidosa.

— Os líderes de hoje... fracos exemplos de magos, todos eles... certamente fogem dos túmulos como da peste. São covardes, cada um deles. Intimidam-se só de pensarem nas represálias que os seus antepassados poderiam exercer se mexessem nos ossos deles.

— As armadilhas podem ser evitadas — afirmou Mr. Hopkins — com um planejamento cuidadoso. Não partilhamos do receio quase supersticioso dos magos. Tenho estado a consultar os registros, e descobri uma cripta que contém maravilhas com que vocês nem sequer sonham. Escutem isto... — O escriturário tirou do casaco uma folha de papel dobrada. Num silêncio sepulcral, abriu-a, tirou um par de óculos do bolso e colocou-os no nariz. Leu: — «Seis barras de ouro, quatro estatuetas cravejadas de jóias, dois punhais com cabos de esmeralda, um conjunto de globos em ônix, um cálice de estanho, uma...» Ah, eis a parte interessante: «Uma bolsa encantada de cetim preto, com cinqüenta soberanos de ouro lá dentro.» — Mr. Hopkins olhou para eles por cima dos óculos. — Esta bolsa é extremamente comum à vista, mas reparem no seguinte: por muito ouro que se retire da bolsa, ela nunca fica vazia. Uma fonte inesgotável de receitas para o vosso grupo, penso eu.

— Poderíamos comprar armas — balbuciou Stanley. — Os checos podiam fornecer-nos o material, se tivéssemos como pagar.

— O dinheiro não te traz nada. — Mr. Pennyfeather soltou uma risada. — Continue, Clem, continue. Ainda não é tudo, de modo nenhum.

— Deixem-me ver... — Mr. Hopkins voltou a consultar o papel. — A bolsa... ah, sim, e um globo de cristal, em que... e passo a citar: «se podem divisar vislumbres do futuro e os segredos de todas as coisas sepultadas e escondidas».

— Imaginem só! — exclamou Mr. Pennyfeather. — Imaginem o poder que isso nos daria! Poderíamos antecipar-nos a cada passo dos magos! Poderíamos localizar maravilhas perdidas do passado, jóias esquecidas ...

— Nada poderia nos deter... — murmurou Anne.

— Seríamos ricos — disse Fred.

— Se for verdade — salientou Kitty em voz baixa.

— Existe igualmente um pequeno saco — prosseguiu Mr. Hopkins —, onde os demônios podem ser aprisionados, que seria muito útil, se conseguíssemos descobrir a sua fórmula encantatória. E também uma série de outros artigos de menor importância, incluindo, deixem-me ver, uma capa, um bordão de madeira e vários outros bens pessoais. A bolsa, a bola de cristal e o saco são o escol dos tesouros.

Mr. Pennyfeather inclinou-se para a frente na cadeira, sorrindo com ar malévolo.

— Bem, meus amigos — disse. — O que acham? Não vale a pena ter um tesouro assim?

Kitty achou que era o momento de introduzir uma nota de cautela.

— Está tudo muito certo, senhor — afirmou —, mas como é que essas maravilhas ainda não foram roubadas? Qual é o senão?

O comentário dela pareceu abalar ligeiramente o espírito de júbilo. Stanley deu-lhe um olhar carrancudo.

— Qual é o problema? — perguntou. — Este trabalho não é suficientemente grande para você? Não se tem queixado de que precisávamos de uma estratégia melhor?

Kitty sentiu o olhar de Mr. Pennyfeather cravado em si. Estremeceu, encolheu os ombros.

— A questão levantada por Kitty é pertinente — observou Mr. Hopkins. — Existe um senão, ou melhor, uma defesa em volta da cripta. De acordo com os registros, foi presa uma Pestilência à chave de abóbada. É acionada pela abertura da porta. Caso entrem no túmulo, a Pestilência incha desde o teto e cai sobre todos aqueles que se encontrem nas proximidades — voltou a olhar para o papel — «para tirar a carne dos seus ossos».

— Lindo — ironizou Kitty. Os seus dedos brincavam com o berloque em forma de lágrima no bolso.

— Hã... como sugere que evitemos esta armadilha? — perguntou Anne cortesmente a Mr. Pennyfeather.

— Existem maneiras — referiu o velho —, mas no momento estão fora do nosso alcance. Não possuímos os conhecimentos mágicos. Todavia, Mr. Hopkins sabe de alguém que poderia ajudar.

Olharam todos para o escriturário, que adotou uma expressão atrapalhada.

— Ele é, ou foi, mago — informou Mr. Hopkins. — Por favor — as palavras dele tinham originado um coro de protestos —, ouçam-me até o fim. Ele está descontente com o nosso regime por razões pessoais, e pretende derrubar Devereaux e os restantes. Possui a perícia necessária — e os artefatos — que nos permitirão escapar à Pestilência. E também — Mr. Hopkins esperou até se fazer silêncio na sala — tem a chave do túmulo em questão.

— Quem é ele? — quis saber Nick.

— Tudo o que posso adiantar é que se trata de um destacado membro da sociedade, um estudioso e um conhecedor das artes. Dá-se com alguns dos maiores do país.

— Como é que ele se chama? — insistiu Kitty. — Assim não chega.

— Temo que ele preserve a sua identidade com muito cuidado. Tal como deveríamos fazer todos nós, aliás. Ainda não lhe falei sobre vocês. Mas se aceitarem a ajuda dele, certamente quererá encontrar-se com um de vocês, muito em breve. Ele nos fornecerá a informação de que necessitamos.

— Mas como podemos confiar nele? — protestou Nick. — Pode estar se preparando para nos trair.

Mr. Hopkins tossiu.

— Não me parece. Ele já ajudou, muitas vezes. A maior parte das pistas que dei têm provindo deste homem. Há muito que ele deseja abraçar a nossa causa.

— Examinei os registros de óbitos da biblioteca — acrescentou Mr. Pennyfeather. — Parecem-me autênticos. Seria necessário um esforço tremendo para uma falsificação. Além disso, há anos que ele sabe de nós, através de Clem. Por que não nos traiu, se quisesse fazer mal à Resistência? Não, acredito nas palavras dele. — Pôs-se em pé, algo vacilante, a sua voz tornando-se áspera, congestionada. — E, afinal, trata-se da minha organização. Fariam bem em confiar na minha palavra. Agora, mais algumas perguntas?

— Apenas esta — disse Fred, abrindo a navalha de ponta e mola. — Quando é que começamos?

— Se tudo correr bem, assaltaremos a abadia amanhã à noite. Resta apenas... — O velho ficou a meio, dobrando-se num súbito ataque de tosse. As suas costas curvadas projetavam estranhas sombras na parede. Anne foi ter com ele e ajudou-o a sentar-se. Durante um longo momento, esteve muito atrapalhado para voltar a falar.

— Desculpem — disse por fim. — Mas vêem qual é o meu estado de saúde. Estou perdendo forças. Na verdade, meus amigos, a Abadia de Westminster é a melhor oportunidade que tenho. De conduzir a todos a... a algo melhor. Será um novo começo.

«E um fim adequado para você», pensou Kitty. «É a sua última oportunidade de conseguir algo de concreto antes de morrer. Só espero que esteja certo, é tudo.»

Como se lhe tivesse lido o pensamento, a cabeça de Mr. Pennyfeather virou-se subitamente na direção dela.

— Resta apenas — disse ele — visitar o nosso misterioso benfeitor e discutir os termos. Kitty, dado estar tão animada hoje, irá encontrar-se com ele amanhã.

Kitty retribuiu o olhar.

— Muito bem — respondeu.

— Então está decidido. — O velho virou-se para observar a todos, um por um. — Devo dizer que estou um pouco decepcionado. Nenhum de vocês perguntou ainda a identidade da pessoa em cujo túmulo nos preparamos para entrar. Não estão curiosos? — Soltou uma gargalhada, chiando.

— Hã... de quem é, senhor? — indagou Stanley.

— De uma pessoa com quem todos vocês estarão familiarizados dos tempos de escola. Acredito que continue a ser figura de destaque na maior parte das aulas. Nada mais nada menos do que o Fundador do nosso Estado, o maior e o mais terrível de todos os nossos líderes, o herói de Praga em pessoa — os olhos de Mr. Pennyfeather brilharam nas sombras —, o nosso querido William Gladstone.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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