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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PALHAÇO VERDE / Matilde Rosa Araújo
O PALHAÇO VERDE / Matilde Rosa Araújo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PALHAÇO VERDE

 

       Vou falar-lhes de um palhaço. Tinha um nariz muito grande e uns olhos que brilhavam como estrelas. E no peito um coração de oiro os olhos brilhavam como estrelas porque ele tinha um coração de oiro. E as mãos, quando estavam fora das luvas grandes, eram grandes, isso eram, mas meigas e bonitas.

       O Palhaço era bom. Sonhava muito. Sonhava que no mundo todos deviam ser bons, alegres, bem dispostos.

       O Palhaço não tinha pai nem mãe. Vivia sozinho desde criança. Sozinho com o seu coração de oiro.

 

       Um dia olhou o espelho do seu quarto, era ainda rapazito. E disse para a figura que o espelho reflectia:

       – Tenho tanta graça!

       E riu. Riu numa gargalhada que parecia a escala de um piano: Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       Isso, Sol. O riso era sol. E os seus olhos estrelas. E o coração de oiro.

       Riu outra vez para a figura que o espelho reflectia: Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       E acrescentou:

       - Vou fazer rir todos os meninos!

       E deitou-se a sonhar.

 

       No dia seguinte pegou numas calças velhas, cor de ferrugem. Num casaco de quadrados encarnados e verdes, muito largo, que era tão grande que nele caberiam dois palhaços. E nuns sapatos muito grandes, também, amarelos como as patas de uns patos.

       E numas luvas enormes, muito brancas.

       E, por fim – e isso era tão importante! – num macio chapéu verde tenro da cor dos prados antes de as papoulas nascerem como pingos de sangue.

       Lindo, o nosso Palhaço!

 

       E o Palhaço foi ao circo. Não bateu à porta porque o circo era de lona. Bateu as palmas. Chamou. Veio o dono do circo, o Senhor Forças, que tinha uns bigodes muito grandes.

       – Que quer o menino?

       – Não sou menino. Sou já um senhor que quer trabalhar. Quero ser palhaço para fazer rir as crianças.

       – Mas o Senhor já trabalhou num circo, alguma vez? Que sabe do seu ofício?

       - Ser palhaço não é bem um ofício, senhor, peço perdão de lhe lembrar tal. Ser palhaço é isto: Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       E riu. Riu com todo o seu coração bom que lhe brilhou nas estrelas dos olhos.

       E o Senhor Forças riu também.

       – Entre, entre então, que fazia cá falta! O nosso Palhaço mudou de terra, foi-se embora...

 

       E o Palhaço entrou. Entrou e riu. Que circo bonito! Dó! Ré! Mi! Fá! Sol! Era de lona já velha, com muitos remendos, mas bonito. Quem olhasse para aqueles remendos diria: "Isto foi o tempo que passou, já se deram, aqui, muitos espectáculos.

       Pareciam mesmo dizer: "Já houve aqui muita alegria. Já muitos olhos de meninos brilharam aqui".

 

       A um canto, uma rapariga vestida de cor-de-rosa, com uma saia pequenina de muitos folhos, apertava um sapatinho de cetim.

       A seu lado estava um cavalo branco.

       – Esta é a Juju - disse o Senhor Forças - E aquele o seu Cavalinho «Luar».

       Juju sorriu olhando o Palhaço. E o cavalinho levantou uma pata e poisou-a no chão, firme, como quem diz: «Bom dia, Amigo!»

       Eu disse só que Juju sorriu, mas posso acrescentar que quando Juju sorriu foi como se dentro do circo nascesse o Sol. Tão lindo o sorriso e tanto lhe brilhavam os olhos.

       «Linda, linda menina! – pensou o Palhaço. – Que seja boa também...»

       E riu: Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       Juju riu com um sol maior no riso e no olhar. E depois ficou-se, de repente, muito séria, e continuou a atar o sapatinho.

 

       O Palhaço foi andando guiado pelo Senhor Forças.

       Conheceu a senhora do Senhor Forças, a Dona Esperancinha, que trazia uma saia amarela muito franzida e um xailezinho, sobre os ombros, amarelo também.

       – Bom dia, menino - disse ela.

       - Repara que já é um senhor, Esperancinha. É agora o nosso Palhaço – corrigiu o Senhor Forças, delicadamente.

       – Seja bem-vindo, Senhor Palhaço, a esta sua casa! – emendou Dona Esperancinha.

       Dona Esperancinha era gorda com o ar meigo e repousado de ser mãe de muita gente. Assim como certas árvores que dão muita sombra. A própria voz era repousada e meiga também.

       A seu lado estava um cão castanho e fininho e ela apresentou-o:

       – «Zero», fale ao Senhor Palhaço!

       E «Zero» ladrou, abanou a cauda: – Béu! Béu! Béu!, como se risse. E o palhaço riu também: Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       Dona Esperancinha, muito bondosa, ria também, estremecendo e aconchegando o xailezinho de franjas contra o peito, toda inclinada.

       Igual a uma árvore que um vento manso tocasse.

 

       E o Palhaço foi andando, acompanhado pelo Senhor Forças, até que este parou e disse, contente:

       – Senhor Palhaço, tem aqui o seu quarto! Venha ver!

       Era um pequeno espaço, por detrás de um biombo, com uma cama de ferro branca, coberta com uma manta de bocadinhos de chita e muitas cores, todos unidos a ponto miúdo por Dona Esperancinha.

       - Ih! que lindo! disse o Palhaço. – Parece um campo de flores!

       Que importava ter só aquela cama de chita se para o Palhaço ela era mesmo um campo de flores? Flores que nasceram dos dedos pacientes de Dona Esperancinha para alegrar quem as olhasse.

       - Ih! que lindo! – repetia o Palhaço.

       E aquele quarto pareceu-lhe um mundo. Pareceu-lhe e era mesmo: o seu mundo onde se deitaria a sonhar.

 

       Ali deixou a mala - esqueci-me de lhes contar que o Palhaço trazia uma mala cinzenta com fechos amarelos.

       Nela guardava os retratos do pai e da mãe, o vermelhão para pintar o nariz e a boca e o pó de arroz para as faces. E também um ursinho de pelúcia castanha de quando era menino e o deitava a seu lado para adormecer.

       Era uma recordação da infância, lembrava-lhe o menino que fora.

       O urso só tinha um olho, dourado cor de avelã, o outro havia caído e ele nunca mais lhe encontrara um igual.

       Aquele olho único e dourado parecia dizer-lhe: <Diverte os meninos, Palhaço! Como eu te diverti a ti quando estavas acordado ou quando adormecias à minha beira...»

 

       O Palhaço agora não riu ao tirar todas aquelas coisas da mala, mas sorriu: Si! Lá! Sol! Ré! Mi! Ré! Dó!

       E, lembrando-se de quando era menino, era como se escutasse a voz da mãe, do pai, dos pássaros. Das árvores a baloiçarem com o vento. Da chuva nos vidros da janela ou na rua, quando ia para a Escola.

       ... Pingo...! Pingo!... Pingo...! Assim como uma música mansa.

       A essa lembrança chamam os homens grandes Saudade. Não é tristeza, não. É antes lembrança das coisas lindas e boas. Si... Lá... Sol... Fá... Mi... Ré... Dó...

 

       Mas o Palhaço depressa quebrou esta espécie de encanto. Bateu as palmas com as luvas muito grandes enfiadas e disse ao Senhor Forças:

       – Isto é lindo! Tudo isto!

       E dava uma volta, assim a bater, como a dizer: «O circo, o meu quarto, o coração do senhor, o de Dona Esperancinha, «Zero», – ah! não esquecer! — e Juju, Juju e o seu cavalo «Luar».

       O Senhor Forças estendeu-lhe a grossa mão cheia de calos de pegar nos halteres e nas cordas.

       – Muito obrigado, Senhor Palhaço, por achar e dizer que o circo é lindo. Ficamos amigos de hoje em diante!

       – Ficamos amigos de hoje em diante! – repetiu o Palhaço.

 

       E o Senhor Forças apertou-lhe a mão, mesmo por cima da luva, com tanta força que o nariz do Palhaço ficou muito vermelho por baixo do vermelhão. Parecia um morango.

 

       Ah! Como Dona Esperancinha era boa! Tinha pressa de vir mostrar ao Palhaço a sua menina, a graça daquela família.

       Tinha dois anos, chamava-se Flor e era mesmo uma flor a abanar com o vento quando caminhava em passinhos miúdos, a fazer tem-tem pelo circo fora.

       Era a Menina Flor, de olhos azuis e caracóis castanhos dourados da cor das folhas das árvores no Outono, douradas por fios de sol.

       A Menina Flor ria para o Palhaço, ria muito só por olhar para ele e batia palmas com as mãos brancas, cheias de covinhas rosadas, como só são as mãos dos meninos muito pequenos.

       Dona Esperancinha pegou-lhe ao colo e disse-lhe: – Vês, Flor? Este é o Senhor Palhaço!

       E ela gritou com a sua voz muito fina e clara:

       – Ó xenhô Palhaxo! Ó xenhô Palhaxo!

       E o Palhaço perguntou-lhe:

       – Que quer, Menina Flor?

       Ela não queria nada, claro está, queria só que ele olhasse para ela como se lhe dissesse: «Estou aqui, sou teu amigo.»

       Porque a menina, com aquele «Ó xenhô Palhaxo!», queria dizer o mesmo.

 

       E depois, envergonhada sem saber porquê – os meninos pequenos às vezes são assim –, escondeu a cabecinha dourada no colo da mãe.

       Talvez tivesse sono. Também as flores se fecham quando querem dormir.

       E Dona Esperancinha, sorrindo meigamente, pôs o indicador defronte dos lábios estendidos:

       – Psiu... – E aconchegou mais a menina nos braços.

       E o Senhor Forças fez também: Psiu...

       E levou o Palhaço para fora do circo, por outra abertura oposta à da entrada que, também, não se podia chamar porta.

       Via-se mesmo que estava contente por ter olhado a sua

mulher e a sua menina.

 

       Fora principiava a entardecer. A estrela da tarde muito brilhante já, estremecendo no azul do céu.

       – Temos que ir jantar, para começarmos o espectáculo – disse o Senhor Forças, olhando a noite que nascia.

       E vieram para dentro e foram jantar.

 

       Todos (menos a Menina Flor que adormecera) se sentaram em volta de uma mesa redonda. No meio estava poisada uma jarra de loiça com uma rosa vermelha. Fosse Primavera ou Inverno, sempre uma flor lhes fazia companhia. Dona Esperancinha ia colhê-la nem que fosse muito longe. Dizia sorrindo:

       – É dever de todos nós junto do pão poisar a alegria.

       E compunha a rosa muito fresca com duas lágrimas de orvalho nas pétalas de veludo.

       E cortava o pão branco e distribuía-o por todos com um sorriso.

       Quando veio o caldo de hortelã, cheirando muito bem, o Palhaço olhou as caras dos novos amigos e sorriu-lhes deliciado. Como a dizer: «Que bom é ter família!»

 

       Mas não se podiam demorar muito, pois a hora do espectáculo estava quase a soar.

       Entretanto chegou o Senhor Fumo, que o Palhaço ainda não conhecia.

       Vestia uma casaca preta com duas grandes pontas e o cabelo preto brilhava tanto que parecia de vidro.

       E que compridas eram as suas mãos, compridas e morenas e leves como asas de pombas! O Senhor Forças apresentou:

       - O Senhor Fumo, o prestidigitador.

       – O Senhor Palhaço – apresentou o Senhor Forças.

       O Palhaço não riu. Sorriu apenas, levantando-se numa vénia. Ih! Que grande Senhor! Si! Lá! Sol! Fá! Ré! Dó!

 

       Daquelas mãos iguais a asas de pomba podiam, afinal, sair pombas mansas largando penas, lenços de muitas cores e cigarros a arder.

       O Palhaço pensou: «Dizem que o Senhor Fumo é um homem fantástico e que saem pombas, lenços e cigarros de suas mãos; oxalá que do seu coração também se desprenda Bondade».

       – Quer sentar-se, Senhor Fumo? É servido? - ofereceu Dona Esperancinha.

       – Não, Dona Esperancinha, muito obrigado. Já jantei. Que vos faça muito bom proveito.

       Mas, mesmo assim, o Senhor Fumo sentou-se, cruzando as grandes pernas.

       No fim, tomou uma chávena de café, pequenina, de loiça azul, que o Senhor Forças delicadamente lhe ofereceu.

 

       E fumou um cigarro muito comprido, a deitar muito fumo – como o seu nome. E, de vez em quando, olhava Juju como se olhasse o Sol. E esta parecia estar muito longe.

 

       - Daqui a pouco tempo temos de começar o espectáculo. Está quase na hora! – preveniu de repente Juju, olhando muito nervosa o seu reloginho de prata.

       E todos se levantaram.

       Já começavam a chegar os músicos com calças de riscas azuis e brancas e casacos amarelos.

       Cada um trazia um instrumento debaixo do braço, menos o pianista, que, claro está, não podia trazer o piano. O piano, muito negro e brilhante, esperava--o com as teclas em fila, umas de marfim muito branco, outras mais estreitinhas e pequenas, pretas e recuadas. E o pianista podia lá poisar as mãos e tocar: Dó! Ré! Mi! Fá! Sol! Um Dó! Ré! Mi! Fá! Sol! que, apesar de muito lindo, não conseguia ser tão alegre como a gargalhada do Palhaço.

 

       A música começou a tocar. Tudo ao mesmo tempo! O piano negro e brilhante.

       E o violino com um arco como um galho de árvore ao vento a poisar sobre as cordas, numa dança.

       E o saxofone com um tubo muito comprido e dourado por onde o músico soprava fazendo umas bochechas muito grandes, redondas e vermelhas iguais a maçãs.

       E um tambor de pele esticada - pam! pam! pam! –, como se viessem muitos cavalos a descer por uma estrada no meio de nuvens de pó.

       Que alegria!

 

       E abriram-se todas a luzes, muito brancas e azuladas, sobre a arena do circo.

       À porta já Dona Esperancinha começara a vender os bilhetes cor de laranja ou verdes, conforme os lugares.

       - É entrar! É entrar! Minhas senhoras e meus senhores, as crianças não pagam nada! As crianças não pagam nada!

       E as crianças entravam pelas mãos dos avós, dos pais, dos tios, dos irmãos, dos amigos.

       A música tocava e as luzes eram mais brancas.

 

       E os olhos das crianças eram estrelas, estrelas azuis, negras, castanhas, douradas e verdes, eram estrelas debaixo do céu das cabecinhas loiras e morenas.

       Oh! Que coisa linda ver entrar assim as crianças, de mãos dadas, as mãozinhas de pele macia agarradas às mãos grandes das pessoas mais velhas, avós, pais, tios, irmãos, amigos, os olhos como estrelas a olharem o circo cheio de luz.

       E o palhaço, só de olhar aquelas estrelas — os olhos dos meninos —, tinha o rosto coberto de alegria.

       Tão lindo! Tão lindo!

 

       Tão lindo ver aqueles meninos todos!

       Algumas meninas traziam uma boneca ao colo, muito encostadinha ao peito — queriam que as bonecas também vissem o circo, Juju, Dona Esperancinha, o Senhor Forças, o Senhor Fumo e o Palhaço sobretudo o Palhaço, que faria rir aquelas carinhas de pasta, aqueles olhinhos de vidro, muito brilhantes.

       Tão lindo ver aqueles meninos todos!

 

       E até veio um rapaz muito pobre, com uma camisola muito grande. Trazia um pau com uma batata na ponta. E na batata espetara muitas canas de moinhos. Moinhos que ele andava a vender, certamente. Vinha tão contente e tão sério, ao mesmo tempo, com aqueles moinhos de papel de lustro de muitas cores!

       Ai! se vissem o nariz deste menino! Lembrava uma batatinha, mais pequena, claro está, do que aquela em que espetara os moinhos, uma batatinha cheia de pintas castanhas. Chamam-se sardas a estas pintas na pele deixadas pelo sol.

 

       E o Palhaço ria, ria!

       Iria fazer rir tanto menino ao mesmo tempo, iria torná-los felizes, iria tornar

felizes todos, desde os avós aos netos, às bonequinhas de olhos de vidro.

       Iria fazer rir meninos que vendem moinhos de papel de lustro.

       Meninos que sorriem como estrelas numa noite sem luar.

       Que lindo! Que lindo!

 

       Já os meninos, as meninas, as senhoras, os senhores, procuravam todos os seus lugares para se sentarem, com muita pressa, desejosos de ver o espectáculo.

 

       De vez em quando ouvia-se pam!..., era alguma malinha que uma menina deixava escorregar da mão, ou um sapato deixado cair por alguma criança que ia ao colo. E até se ouviu pam! e uma menina a chorar muito: «Ai a minha bonequinha!» A menina chorava tanto...

 

       O espectáculo ia começar.

       A música parou. Apagaram-se as luzes todas. E, de repente, abriu-se só uma luz, enorme, sobre a pista de madeira.

       Todos os meninos e quem os acompanhava olhavam aquela luz. Que iriam ver?

       Viram o Senhor Forças, que apareceu a sorrir com os dentes enormes e muito brilhantes.   E falou:

       - Respeitável público! Queridas crianças!

       As «queridas crianças» eram as meninas e os meninos que, sentados nos seus

lugares, abriam os olhos admirados à espera, à espera. E alguns até abriam a

boca, muito distraídos, deslumbrados com a ideia do que iam ver.

       – Queridas crianças! - continuou o Senhor Forças - Hoje vão conhecer

o nosso novo Palhaço. Ele é simples, é alegre, é bom. E chama-se...

       Aqui o Senhor Forças atrapalhou-se. Como se chamava o Palhaço? Palhaço

não é nome. Todos os palhaços, como todas as pessoas, têm um nome...

       - E chama-se...

       Mas que falta de lembrança! Porque não lho tinha perguntado?

       – E chama-se...

       Coitado do Senhor Forças! Mas é tão natural estarmos atrapalhados, sem palavras, por uma distracção ou falta de memória...

 

       Entretanto ouviu-se uma gargalhada. Luminosa. Que o riso também pode ter luz.

       O Palhaço, o nosso Palhaço, vira o Senhor Forças assim a modos que embaraçado e viera a correr em sua ajuda.

       Chegou a correr da sombra até àquela lua de luz, abraçou o Senhor Forças e gritou para o circo inteiro:

       – Chamo-me Palhaço Verde!

       E riu! Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       E as meninas e os meninos, isto é, as «queridas crianças» riram, riram, até fecharem as estrelas dos olhos, e começaram a bater as palmas e a gritar.

       – Palhaço Verde!

       – Palhaxo Vêdi!

       - Palaço Vede!

 

       Cada um dizia à sua maneira, com vozinhas finas ou fortes, mas todas luminosas e puras como as gargalhadas do Palhaço.

       – Palhaço Verde!

       - Palhaxo Vêdi!

       - Palaço Vede!

 

       O Senhor Palhaço, então, sentiu uma gota morna pela cara

abaixo. Uma gota morna e transparente como cristal que lhe derretia o alvaiade e o pó de arroz.

       Eu não sei se já lhes disse que também se chora de alegria. E foi isso.

       Levou os enormes dedos aos lábios pintados de vermelhão e atirou muitos beijos em redor, a todas as meninas, a todos os meninos.

       E fez o jeito amigo de quem abraça.

       E os meninos continuaram a gritar e a chamá-lo:

       – Palhaço Verde!

       – Palhaxo Vêdi!

       – Palaço Vede!

       Que alegria!

       E a lágrima continuava suspensa no rosto do Palhaço, delicada e brilhante como uma gota de luz.

       O Senhor Forças, então, teve forças para dizer:

       - Queridas crianças! Deixo-vos o Senhor Palhaço Verde aqui na pista que é o mesmo que vos dizer: – Deixo-lhes um Amigo.

       E as meninas e os meninos batiam as palmas e olhavam aquele Palhaço alegre e mimoso.

       E o Palhaço, então, disse-lhes:

       – Queridas crianças! Amigos!...

       E disse!... Disse... Ai quem pode saber o que diz um Palhaço! Um Palhaço que sente a alegria transbordar no coração e que quase não tem palavras na boca vermelha como um cravo?

       E o Palhaço dava pulos, cambalhotas...

       Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

 

       Mas já vinha a entrar Juju sobre o cavalinho «Luar», deslizando delicada,

graciosa, como se não pisasse o chão mas um tapete de nuvens macias.

       E os meninos diziam: «Oh!» com a boca muito aberta e o coração ainda cheio

da alegria que lhes deixara o Palhaço.

 

       E Juju erguia-se sobre o cavalinho «Luar», levantava os braços muito leves e brancos, movia ora uma, ora outra das suas pernas muito finas cobertas por uma meia de malha de seda cor-de-rosa, terminadas pelos sapatinhos aguçados de cetim.

       Não era Juju quem ali estava sobre o cavalinho «Luar», mas uma rosa enorme, rosada e branca, que sobre ele se movia como as flores se movem pela manhã quando o vento lhes sopra para as acordar.

       E Juju erguia-se, dobrava-se em cima do cavalinho e sorria, sorria...

       E o Palhaço, olhando-a, não tinha desejo de sair da pista. Olhava-a tomado de uma estranha alegria, de repente dava pulos, cambalhotas e depois parava para a olhar de novo.

       E «Luar» agora corria mais.

       O Palhaço olhava Juju e sentia no peito aquilo que os homens grandes chamam Felicidade. Uma felicidade diferente daquela que sentia quando olhava as queridas crianças.

       Sem dizer nada, pensava muitas coisas, num instante só. Pensava que Juju podia ser sua mulher, poisar-lhe uma rosa na mesa redonda onde todos os dias comessem os dois. Que podia estender-lhe o pão e sorrir-lhe por detrás do fumo de uma sopa bem feitinha.

       E, quando ele estivesse triste, poderia agarrar com a mão pequena e branca a sua mão enorme e dar-lhe alegria.

       Quando o visse contente receberia a sua alegria como um espelho encantado.

       E ele, Palhaço, saberia amá-la, protegê-la e receber-lhe as lágrimas e os sorrisos como um espelho encantado também.

       A isto os homens grandes chamam Amor.

       Talvez até, um dia, Juju o esperasse a ele, Palhaço, com uma Menina Flor ao colo, como Dona Esperancinha.

       Talvez... Que nos espelhos encantados também há flores.

 

       E Juju continuava a rodar no cavalinho e sorria. Os meninos batiam as palmas e gritavam:

       - Juju! Juju! Corre «Luar»! Corre «Luar»!

       E Luar corria, parecia entender aquelas vozes.

       E o Palhaço dava saltos, caía, levantava-se. Um delírio.

       O rapaz dos moinhos, distraído, desceu do seu lugar e veio com os moinhos e o narizito cheio de sol ali à pista, devagarinho, para ver melhor.

 

       Mas já entrava o Senhor Forças.

       Trazia um ferro tendo uma bola enorme em cada ponta.

       Juju sumia-se com o cavalinho «Luar».

       E o Senhor Forças gritava:

       — Queridas crianças! Olhem, queridas crianças!

       E o braço direito do Senhor Forças começava a ganhar um grande músculo, que subia, subia, e dava a impressão de ficar muito duro. E erguia aquelas bolas, esferas, ou halteres, como se diz menos vulgarmente — com toda a força dos músculos e do seu coração amigo e bom.

 

       E os meninos diziam «Oh!» admirados, admirados. Como podia haver um braço tão forte!? E quase sem darem por isso, palpavam os músculos dos bracinhos ainda fracos de crianças. Como aqueles bracitos tinham de se tornar fortes!

       Sabiam — ai! todos sabemos! — que desde meninos temos um trabalho enorme a cumprir: tornarmos o corpo mais forte, o coração também.

       Quem diz o coração diz aquilo que em nós é capaz de sentir tristeza ou alegria, a saudade, a amizade, o amor.

       E os meninos sabiam isso.

       Os meninos sabem tanto, tanto, e tanto têm sempre de aprender.

       A comer, a andar, a falar, a ler, a escrever, a contar. Tanta, tanta coisa!

       Um trabalho tão importante que não pode ser pago com dinheiro mas só com carinho, com alegria. O trabalho de se tornarem fortes de corpo e coração, de se tornarem bons.

 

       Ah! mas já entrava Dona Esperancinha com «Zero» a seu lado, abanando a cauda e saudando: — Béu! Béu! Béu!

       E o Senhor Forças poisou de repente as esferas no chão — pam! — e anunciou:

       — Minha mulher, Esperancinha, e «Zero», o nosso cão!

 

       Aquele circo não tinha outros animais além de «Zero», as pombas, o cavalo «Luar».

       Feras domesticadas, para quê? O Senhor Forças e Dona Esperancinha não podiam querê-las no circo. Sabiam que, para domesticá-las, elas teriam de sofrer muito, longe das verdes selvas onde costumavam viver.

       Teriam de sofrer muito para poderem estar defronte dum homem sem o ferirem de morte mesmo que este tivesse uma barra de ferro na mão.

 

       Porque as feras têm dentro de si o desejo de fazer sangue, de ferir. Esse desejo é uma força que arrasta os animais, como o leão, o tigre, o lobo, a matarem mesmo quem lhes não faz mal. Uma força que está dentro deles e que lhes diz: «Anda! Fere! Mata!»

       E os animais, que não sabem pensar, não podem dizer ao tal instinto: – não!

       Assim como certos homens que são capazes de fazer guerra, de serem maus para os outros homens. O que é uma vergonha, afinal.

 

       Também os meninos não gostariam de ver, atrás de grades de ferro, um leão meio adormecido que depois se enraivece com a entrada de um homem.

       Um leão prisioneiro como se tivesse culpa de ser um animal feroz, ali num espaço tão pequeno da jaula, cego pelas luzes do circo, soltando urros desesperados.

 

       Não! Dona Esperancinha e o Senhor Forças não quereriam tal. Nem os meninos haviam de gostar.

       Nem sequer queriam ali elefantes embora o elefante possa ser, perfeitamente, um animal domesticado capaz de entender o homem como este o entende a ele.

       Mas não!

       Um animal tão grande, gostando de grandes árvores, de grandes rios para tomar banho, das folhas enormes de um mato cheiroso e verde, como não havia, ali, de ser infeliz, também?

       Ali, entre as barras de ferro de uma jaula de circo, onde mal pudesse erguer a longa tromba?

       Se os meninos o vissem em liberdade, na selva!

       Apesar de grande e pesado, as orelhas têm movimentos de asa, tocando as altas árvores, voltando-se docemente para o céu. E é tão feliz!

       O Senhor Forças e Dona Esperancinha não o quereriam.

       Nem os meninos haviam de gostar.

 

       Mas tínhamos deixado Dona Esperancinha e «Zero» no meio da pista como o Senhor Forças os havia anunciado.

       Dona Esperancinha segurava um arquinho verde e luminoso igual a um tronco tenro de árvore enrolado que, na Primavera, estivesse à espera de folhas e de flores.

 

       E «Zero» saltava feliz, atravessando o arquinho, com tanto entusiasmo como se, cada vez que o fizesse, o fizesse pela vez primeira.

       — Salta «Zero»!

       E Dona Esperancinha erguia o arco, a saia franzida estremecia, voam as franjas do xailezinho.

       - Salta, «Zero»!

       E «Zero» saltava, feliz.

       E os meninos batiam as palmas e gritavam.

       — «Zero», salta!

       - «Gero», xalta!

       E «Zero», ao ouvir os meninos, parecia entendê-los todos e ladrava: Béu! Béu! Béu!, como se dissesse: «Obrigado! obrigado! obrigado! queridos meninos!» E, de vez em quando, lambia as mãos de Dona Esperancinha.

 

       Mas já vinha a entrar o Senhor Fumo, muito alto com a sua negra casaca e as mãos morenas e finas.

       E Dona Esperancinha sumia-se com «Zero» para dentro do circo.

 

       Agora a luz branca e azulada tombava em cheio sobre o Senhor Fumo que armou uma mesa de metal no meio da pista.

       Muito grave, cheio de mistério, poisou lá caixas e caixinhas de várias cores.

       Depois arregaçou os punhos da camisa muito para trás.

       E os meninos estavam todos de olhos poisados naquelas caixas e caixinhas, nas suas mãos morenas e finas que começavam a destapá-las, a mostrá-las vazias pegando-lhes com as pontas do polegar e do indicador e os outros dedos muito afastados. Até as bonecas, ao colo das meninas, se mostravam intrigadas.

 

       Vazias? oh! como podiam estar vazias se de lá saíam lenços de seda fininha, azuis, verdes, encarnados, amarelos? Dos lenços até voavam pombas brancas e cinzentas como nuvens espantadas! Vazias?!

       As mãos do Senhor Fumo elas próprias lembravam pombas de mistério.

 

       Orapaz dos moinhos, cheio de espanto, avançou um pouco mais ainda sobre a pista, esquecido que devia estar sentado no seu lugar.

       Com a batata enterrada no pau e estrelada de moinhos de tanta cor, assim muito quieto, era como uma daquelas estátuas que estão nos jardins e parecem querer dizer-nos alguma coisa.

 

       O Palhaço agora não podia interromper o Senhor Fumo, que estava a fazer um trabalho tão importante; sentou-se a descansar um pouco ao canto do circo.

       Olhava o rapaz dos moinhos, olhava aquela criança com alegria, feliz pela felicidade que iluminava aquele rostozinho cheio de pintas do sol. Mas de repente ficou triste e pensou:

       «Pobre menino! Talvez quando dali saísse e se fosse deitar não tivesse uma cama bem feita nem a mãe a esperá-lo para o adormecer e poisar-lhe na cabeça a mão com meiguice, ou para o ajudar, pela manhã, a vestir aquela camisola grande demais».

 

       Juju viera sentar-se de manso a seu lado. E perguntou-lhe:

       – Estás triste, Palhaço? Não gostas de estar aqui?

       O Palhaço estremeceu e exclamou:

       – Gosto tanto!

       – Então... – continuou Juju – não gostas, talvez, de ver trabalhar o Senhor

Fumo...

       – Pois gosto, Juju!

       – Trabalha tão bem, não trabalha, Palhaço?

       – Pois trabalha, Juju. Juju sorria mais linda agora. Agora, era toda luz na escuridão.

       – Ainda bem que o dizes, Palhaço. Tu és bom.

       Mas o Palhaço sentia o coração apertado, mais pequenino.

Vira nos olhos de Juju o tal encanto, aquilo que os homens grandes chamam Amor.

       E no espelho encantado de Juju estava a imagem do Senhor Fumo e as suas mãos morenas. O Palhaço bem o via.

 

       E perguntou com mágoa e medo na voz:

       – Vais casar com ele, Juju?

       – Vou, Palhaço! Como tu és bom que até adivinhas... Vamos casar na Primavera!

       – Que lindo! Casar na Primavera!... – repetiu o Palhaço como num sonho.

       – Pois é, Palhaço! Nesse dia – e Juju ao falar ainda tinha mais luz no rosto e na voz que cantava – hei-de prender nos meus cabelos um véu mais branco do que a geada que, pela manhã, cobre os prados. Nesse dia tiro estes sapatinhos de cetim e hei-de pôr uns sapatos de saltos muito altos, para ser da altura de Fumo, o meu Amado. Nesse dia «Luar» andará em liberdade pelo meio das ervas e das flores.

       E Juju era toda luz ao falar do seu espelho encantado.

 

       O Palhaço poisou as enormes mãos enfiadas nas luvas sobre o rosto pintado de branco como se as poisasse num campo de neve, como se não quisesse olhar.

       E repetia docemente por detrás das mãos:

       - Hás-de ser muito feliz, Juju. Hás-de ser muito feliz, Juju...

       Mas esta já não o ouvia. Com graça delicada fora ajudar o Senhor Fumo a fechar a mesa, a guardar as caixas e as caixinhas.

       Mas isso já o Palhaço não viu porque os seus olhos pintados de roxo, iguais a violetas escondidas e magoadas, ainda estavam por detrás das mãos.

       Si! Lá! Sol... Fá... Mi... Ré... Dó...

 

       E o menino dos moinhos aproximava-se mais.

       Esquecido de que estava a assistir a um espectáculo de circo, de que esse espectáculo estava a acabar.

       E o Palhaço, como se o sentisse, tirou as enormes mãos do rosto pintado e olhou-o.

       Levantou-se num pulo.

       Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       Aquele menino, quando saísse do circo, talvez não tivesse quem lhe segurasse a mãozinha áspera e trigueira.

       Todo ele, Palhaço, seria sol para encher o coração do menino pobre!

       E o Palhaço saltava e ria!

       Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

 

       E todos os meninos riam, como se soubessem que era precisa a música da sua alegria para encher o coração de alguém.

       Nunca! Nunca houve um Palhaço tão engraçado. Nunca! O que ele dizia? Sabe-se lá! Sabe-se lá o que diz um Palhaço!

 

       Abriam-se já todas as luzes brancas, azuladas, sobre a pista. Como se fosse prata que caísse do céu.

       - Palhaço Verde!

       - Palaço Vêdi!

       - Palhaxo Vede!

 

       E o Palhaço ria mais com duas lágrimas trementes sobre as estrelas dos olhos que já não eram violetas.

       O Palhaço não estava a chorar, não estava triste. Não estava não, meninos, agora ria tanto!

       Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

       Como podia acabar um espectáculo assim?

 

       Então o rapaz dos moinhos gritou: – Palhaço! Palhaço!

       O rapaz dos moinhos falava, ele que estivera mudo, olhando só, até então. Igual a uma estátua.

       E tirou da batata castanha uma cana de moinho da cor mais linda, como se tirasse uma flor de dentro do coração.

       E estendeu ao Palhaço essa flor feita de papel e de ternura. Essa flor que todos os homens deviam saber semear.

 

       Tanta palma! Tanta! Tanto grito:

       – Palhaço Verde!

       – Palhaxo Vêdi!

       – Palaço Vede!

       E o Palhaço com a mão direita segurou a flor linda que o rapaz dos moinhos lhe estendia.

       E, então, das estrelas dos olhos caíram lágrimas sobre essa flor que nunca havia de secar, nunca mais.

 

       Passou, depois, a flor para a mão esquerda.

       E, com a direita, tirou o chapéu verde que, na meia-luz do circo, agora, era de um verde menos tenro, da cor verde dos prados quando as papoulas já nasceram como pingos de sangue. A agradecer.

       E ria, ria ainda: Dó! Ré! Mi! Fá! Sol!

 

                                                                                Matilde Rosa Araújo  

 

                      

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