Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PECADOR DAS TERRAS ALTAS / Hannah Howell
O PECADOR DAS TERRAS ALTAS / Hannah Howell

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Tormand Murray já acordou inúmeras vezes ao lado de uma mulher, mas nunca de uma que tivesse sido brutalmente assassinada. Ele não sabe explicar o que aconteceu à sua ex-amante, tampouco sua presença ao lado do corpo mutilado da pobre mulher. Alguém está empenhado em continuar matando, até que Tormand seja preso e condenado à forca. E sua única esperança de encontrar o verdadeiro culpado é pedir ajuda a Morainn Ross, uma linda mulher que vive reclusa e que tem o dom da vidência...

Considerada uma bruxa, Morainn nunca conheceu um homem que aceitasse seu estranho dom, e tampouco um que a fizesse se apaixonar. Não há como resistir ao charme másculo do atraente Tormand, bem como escapar de um inimigo que se torna mais ousado e mais perigoso a cada dia. E embora uma união entre ambos pareça ser impossível, Morainn sabe que seu destino está ligado para sempre àquele homem que conquistou seu corpo e seu coração...

 

 

 

 

Escócia, verão de 1478

Que cheiro era aquele? Tormand Murray queria se livrar daquele odor que invadia suas narinas. Gemeu ao se virar de lado e a cabeça latejou. Deitado, cuidadosamente passou a mão pelos cabelos e encontrou a causa. O couro cabeludo estava inchado e úmido no local machucado, indicando que havia sangrado. Uma prova de que ele ficara inconsciente por algum tempo.

Tentando se livrar da sensação que o incomodava, abriu os olhos. Sentiu uma fisgada ainda mais aguda e praguejou. Alguma coisa além da pancada na cabeça o tinha feito ficar inconsciente.

De repente, lembrou-se de que algo fora jogado em suas vistas antes que tivesse desmaiado. Esfregou os olhos de leve e os abriu apenas o suficiente para ver se havia água por perto para lavá-los.

Caso ele fosse a fonte daquele cheiro horrendo, poderia se banhar também. Para sua vergonha, em algumas ocasiões, ele acordara malcheiroso devido às bebedeiras e, consequentemente, aos tombos sobre estrume nas ruas. Porém, nunca tinha se sentido tão sujo como naquele instante, e o fedor começava a embrulhar seu estômago.

Então, todo seu corpo ficou tenso quando reconhe­ceu o cheiro da morte. Além do odor desagradável de roupas sujas havia o de sangue, muito sangue, que não vinha de seu ferimento.

Logo em seguida, Tormand notou que estava nu. Por um breve momento, o pânico o dominou. Será que ele tinha sido jogado em um túmulo aberto? Rapidamente deixou aquela idéia de lado. Não era terra nem carne humana fria que sentia debaixo dele, mas sim uma cama macia.

Com os olhos totalmente abertos, percebeu que a claridade fazia sua cabeça doer ainda mais. Tudo estava meio embaçado, mas notou que se encontrava em um quarto ricamente decorado e que lhe parecia familiar. Seu sangue gelou, e ele relutou, em procurar a fonte daquele cheiro. Com certeza não vinha de uma briga, pois não havia nenhum sinal de luta.

Se há um cadáver nesse quarto, é melhor que des­cubra logo. Talvez você precise correr.

Ouviu uma voz em sua cabeça que se assemelhava à de seu escudeiro Walter, e ele concordava com a sugestão. Olhando ao redor, descobriu a morte dividia a cama com ele.

Afastou-se tão rápido do corpo que quase caiu ao chão. Lutando para se acalmar, saiu da cama e procu­rou água para lavar os olhos e enxergar melhor.

Após lavar o rosto com o líquido refrescante, a visão embaçada melhorou. Uma das primeiras coisas que viu depois de se secar foi sua roupa, arrumada sobre uma cadeira, como se ele tivesse sido convidado a ocupar aquele quarto.

Tormand não perdeu tempo e se vestiu. Olhando em volta à procura de algo mais que pudesse lhe pertencer, pegou as armas e o casaco.

Vencido pela curiosidade, ele foi até a cama. Sentiu vontade de vomitar quando observou o que um dia tinha sido uma linda mulher.

O corpo estava tão mutilado que ele demorou para perceber que aquilo era o que havia sobrado de lady Clara Sinclair. As poucas mechas dos cabelos loiros e os enormes olhos azuis abertos diziam isso a ele, assim como a marca de nascença em forma de coração acima, do ferimento aberto, de onde o seio esquerdo fora arrancado. O rosto feminino estava tão ferido que seria difícil para a própria mãe reconhecê-la.

Depois de se acalmar um pouco, Tormand foi capaz de olhar mais de perto. Apesar da mutilação, a expressão do rosto de Clara mostrava que ela ainda estava viva durante os horrores que lhe foram infli­gidos. Os pulsos e os calcanhares indicavam que ela havia sido amarrada e lutara, aumentando as suspei­tas de Tormand. Ela devia ter alguma informação que alguém tentara conseguir por meio de tortura ou tinha sido vítima de alguém que a odiava muito.

Assim como ele, concluiu, tenso.

Sabia que não viera ao quarto de Clara para uma simples noite de prazer. Ela havia sido sua amante, mas o romance tinha terminado e ele nunca voltava a procurar uma mulher que deixara. Especialmente uma que havia se casado com um homem poderoso e ciumento como sir Ranald Sinclair.

Aquilo significava que alguém o tinha trazido até ali. Alguém que queria que ele visse o que fora feito com a mulher que ele levara para a cama, ou talvez, para que fosse considerado culpado por aquele crime.

Tal pensamento fez com que saísse do transe em que se encontrava.

— Pobre Clara — murmurou, pesaroso. — Espero que você não tenha sofrido por minha causa. Pode ter sido uma mulher fútil e sem juízo, mas ainda assim não merecia uma morte tão terrível.

Ele fez o sinal da cruz e uma oração para ela. Ao olhar pela janela, constatou que o dia estava prestes a amanhecer e que teria de partir em breve.

— Eu gostaria de poder ajudá-la, só que não há nada que eu possa fazer para livrá-la da morte. Porém, prometo que vou encontrar quem fez isso com você e o farei pagar muito caro.

Após se certificar de que não havia nenhuma evidência de sua presença no quarto, Tormand foi embora. Estava agradecido pelo crime ter aconteci­do naquela casa, onde conhecia todas as passagens secretas.

O romance com Clara fora breve mas intenso, ele tinha entrado e saído da casa muitas vezes. Duvidava de que mesmo sir Ranald conhecesse todos os túneis que levavam ao quarto da esposa.

Do lado de fora, moveu-se ligeiro pelas sombras. A certa altura, encostou-se a um áspero muro de pedra que cercava a casa e pensou para onde ir. Queria rumar para sua casa em Dubhlinn e esquecer tudo, no entanto sabia que não o conseguiria.

Mesmo que não sentisse afeição verdadeira por Clara, uma das razões pela qual o romance de ambos acabara tão rápido, ele não podia simplesmente esquecer que ela havia sido brutalmente assassinada. Ainda mais quando suspeitava de que alguém queria que ele fosse encontrado ao lado do corpo e acusado de tê-la matado.

Talvez fosse apenas a sua imaginação, mas ele pre­cisava de um banho e de roupas limpas para se livrar daquele odor de morte.

Decidido, concluiu que o primeiro ponto de parada dessa missão investigativa seria a casa de sua famí­lia na cidade e tomou o furtivo caminho, pensando que seria uma pena o banho não poder lavar também a imagem do corpo da pobre Clara de sua mente.

— Tem certeza de que precisa contar essa história a alguém?

Tormand mordia um pedaço de queijo, enquanto observava o velho amigo. Walter Burns era seu escu­deiro havia doze anos e não desejava ser mais do que isso, apesar de ter provado seu valor, sua coragem e seu comprometimento em inúmeras ocasiões.

— Preciso descobrir quem cometeu o assassinato — Tormand disse e tomou um gole de cerveja. Ele bebia devagar, pois o estômago ainda não estava muito bom.

— Por quê? — Walter se sentou à direita do amigo e se serviu de um pouco de cerveja. — Você conse­guiu escapar Já estamos na metade do dia e ninguém apareceu para se vingar. Sendo assim, acho que saiu limpo dessa história. Por que deixar que alguém des­cubra que esteve com aquela mulher? Está tentando colocar uma corda no pescoço? Se bem me lembro, você não costuma alimentar nenhum tipo de senti­mento por uma mulher depois que seu desejo por ela acaba. Então, por que está tão empenhado em fazer justiça à alma dessa criatura?

— É verdade que eu não a amava, porém ela não merecia morrer de forma tão cruel.

Walter fez uma careta e preguiçosamente cocou a cicatriz do lado esquerdo do rosto.

— Concordo, entretanto ainda acho que contar a alguém que você acordou ao lado da vítima é procurar encrenca.

— Eu gostaria de pensar que poucas pessoas acre­ditariam que eu pudesse matar uma mulher, mesmo que eu fosse encontrado deitado sobre o sangue dela, com uma adaga na mão.

— Claro que você não cometeria tal ato, muitos sabem disso, mas não todos não é mesmo? Não des­confia de ninguém que gostaria de vê-lo enforcado? Alguém que sinta ciúme de você ou de sua família e queira prejudicá-los? Lembre-se do caso de seu irmão James, por exemplo. Qualquer tolo que o conhecesse saberia que ele não tinha matado a esposa, mesmo assim ele passou anos sob a suspeita de ter cometido um assassinato, não é verdade?

— Eu sabia que o tinha contratado por um bom motivo. Quem mais poderia elevar minha autoestima quando estou tão arrasado e me encher de esperança e coragem quando estou tão precisado?

— Quanto sarcasmo! Sabe que falo a verdade e não seria inteligente de sua parte me ignorar.

Tormand anuiu, movendo a cabeça bem devagar, com medo de que a dor aumentasse.

— Eu não pretendia ignorá-lo. Por isso, decidi falar apenas com Simon.

Walter praguejou baixinho e tomou mais um gole de cerveja.

— Ora, mas ele é um dos homens do rei!

— Sim, e meu amigo. Ele se esforçou para ajudar James. É uma pessoa com grande habilidade para resolver esse tipo de problema. Não se trata apenas de fazer justiça a Clara. Alguém queria me culpar pela morte dela, Walter. Fui colocado ao lado do corpo para ser encontrado e acusado pelo crime. Eu seria enforcado. Isso significa que alguém me quer morto.

— Eu diria que não apenas morto, creio que tam­bém desejem acabar com seu bom nome.

— Tem razão. Vou chamar Simon aqui, com urgência.

Tormand parecia mais confiante de sua decisão do que realmente estava. Na verdade, levou horas para escrever uma mensagem, marcando um encontro com Simon. Uma voz fraca em sua mente dizia que esquecesse aquela história, assim como Walter lhe aconselhara. Porém, a suspeita de que o assassinato de Clara tinha o intuito de molestá-lo lhe deu força para silenciar a voz covarde.

Ele tinha a sensação de que o desconforto estoma­cal se devia ao crescente medo de passar pelo mesmo tipo de sofrimento que vitimara o irmão.

James havia levado três longos anos para provar sua inocência e limpar sua honra. Três solitários anos fugindo e se escondendo do mundo. Tormand temia viver o mesmo pesadelo. E ainda se preocupava em como tudo aquilo afetaria sua mãe, que já sofrera muito com a má sorte dos filhos.

Primeiro sua irmã Sorcha tinha sido violentada, depois a irmã Gillyane fora seqüestrada duas vezes, na seqüência viera o problema com James, que pre­cisou fugir e se esconder nas montanhas. A mãe não precisava passar pela mesma aflição porque outro filho estava correndo perigo.

— Se você encontrasse algum objeto tocado pelo assassino, poderia resolver o problema mais rápido — opinou Walter.

Tais palavras interromperam os pensamentos obscuros de Tormand sobre a possibilidade de sua família ser amaldiçoada.

— Do que está falando? — Franziu as sobrancelhas.

— Bem, se você tivesse alguma coisa que foi tocada pelo assassino, poderia levá-la à bruxa Ross.

Tormand já tinha ouvido falar dessa mulher. Ela morava em uma cabana a alguns quilômetros fora da cidade. Apesar de ter sido expulsa da comunidade local havia dez anos, muitas pessoas ainda a procura­vam para pedir ajuda e conseguir as poções de ervas que preparava.

Alguns diziam que ela tinha o dom da visão sobrenatural e que os ajudara a resolver problemas. Apesar de ter crescido cercado por pessoas com dons especiais como aquele, duvidava de que aquela mulher fosse tudo o que diziam a respeito. Geralmente essas bruxas eram apenas velhas senhoras que conhe­ciam o poder de cura de algumas ervas e com habi­lidade de convencer as pessoas de que tinham uma grande e misteriosa aptidão.

— E por que acha que ela me ajudaria se eu levasse algo tocado pelo assassino? — perguntou.

— Porque ela tem visões quando apalpa um objeto. — Walter fez o sinal da cruz, com medo de perder sua alma só de falar naquela mulher. — O velho George, camareiro da casa dos Gillespie, disse que sua patroa teve algumas jóias roubadas e levou a caixa de onde as peças foram retiradas para a bruxa Ross. No momento em que ela segurou o porta-jóias, teve uma visão do que havia acontecido.

— O que ela viu?

— Que o filho mais velho de lady Gillespie tinha pegado as preciosidades. Ele entrara no quarto da mãe, aproveitando que ela estava na corte.

— Não é preciso ser uma bruxa para saber disso. O filho de lady Gillespie é conhecido por gastar muito dinheiro com roupas finas, mulheres e jogo de dados. Quase todos na cidade sabem disso. — Tormand bebeu sua cerveja para não rir do rosto contrariado de Walter. — Agora sei que o tolo foi banido para a casa do avô para que ficasse longe das tentações da corte.

— Não custaria nada tentar. Uma pessoa como você deveria acreditar nessas coisas.

— Ah, mas acredito. O suficiente para desejar que você não chame essa mulher de bruxa. É uma palavra que pode trazer muitas complicações para criaturas abençoadas com o dom divino, como a morte, por exemplo.

— Sim, é verdade. Mas um dom de Deus?

— Sinceramente acredita que o diabo daria a uma mulher o dom da cura ou das visões, sobrenaturais ou outra dádiva qualquer que pudesse ser usada para ajudar pessoas?

— Não, claro que não. Então, por que duvida da bruxa Ross?

— Porque há muitas mulheres que, por possuírem algum conhecimento das ervas, afirmam ter visões e ser capazes de curar alguém apenas com um simples toque, a fim de esvaziar os bolsos dos tolos que acre­ditam nelas. São charlatãs que depõem contra aquelas que realmente possuem um dom.

Walter parou um momento para pensar, antes de questionar:

— Está me dizendo que não vai pedir ajuda à bruxa Ross?

— Não estou tão desesperado assim.

— Eu não recusaria nenhuma ajuda neste momento — disse uma voz dura e fria, vinda da porta da sala.

Tormand se virou e sorriu brevemente para sir Simon Innes, um dos homens do rei. Naquele momen­to, a face pálida não parecia nada amigável. Pelo contrário, exibia uma expressão de fúria. Tormand esperava a visita de Simon, mas temia que o amigo suspeitasse de sua inocência. Decidiu manter a calma e aguardar o que Simon tinha a dizer. Afinal, o amigo tinha um forte senso de justiça e não agiria de modo precipitado.

No entanto, ele ficou alarmado quando Simon foi em sua direção. Cada parte do corpo daquele homem alto e magro demonstrava raiva. Olhando de lado, Tormand se deu conta de que não era o único a pressentir o perigo, pois Walter pousara a mão sobre a espada, tenso. Quando olhou de volta para Simon, percebeu que este segurava alguma coisa.

Num piscar de olhos, Simon jogou um objeto sobre a mesa. Tormand viu um pesado anel de ouro com pedras vermelhas. Incapaz de acreditar em seus olhos, fitou as próprias mãos e depois a jóia. Seu primeiro pensamento foi como pôde ter deixado o quarto de Clara, sem ter percebido que não estava usando seu anel. O segundo se relacionava à ponta da espada de Simon, que estava perigosamente afiada e perto demais de sua garganta.

— Não o mate! Ele é inocente!

Morainn Ross piscou, surpresa, ao olhar à sua vol­ta. Ela estava em casa, sentada na cama, e não em uma grande sala, assistindo a um homem ser pressionado pela ponta de uma espada em sua garganta. Ignorando o miado dos gatos que foram perturbados pela sua repentina explosão, ela se deitou novamente e ficou olhando para o teto. Tinha sido apenas um sonho.

— Não foi um sonho — ela murmurou depois de refletir. — Foi uma visão.

Pensando a respeito, ela balançou a cabeça de for­ma afirmativa. Definitivamente havia sido uma visão. O homem que estava com a espada encostada à gar­ganta não lhe era estranho. Ela o via em sonhos e visões fazia alguns meses. Ele tinha o cheiro da morte, estava cercado por ela, embora suas mãos não estives­sem sujas de sangue.

— Morainn? Você está bem?

Ela olhou em direção à porta do quarto e sorriu para o menino ali parado. Walin tinha apenas seis anos, mas já era de grande ajuda. Ele também se preocupava muito com ela. Desde que o encontrara, abandonado à porta de sua casa, quando ele tinha apenas dois anos de idade, ela era a única família que ele conhe­cia. Só desejava poder oferecer ao menino uma casa melhor que aquela.

Walin já havia crescido o suficiente para entender por que ela era chamada freqüentemente de bruxa, assim como o perigo que isso acarretava. Infelizmente, de cabelos pretos e olhos azuis, ele se parecia com ela o suficiente para que muitos acreditassem que fosse seu filho bastardo, o que causava problemas aos dois.

— Sim, estou bem, Walin — ela respondeu, saindo da cama onde os gatos dormiam. — Deve ser muito tarde.

— Já é meio-dia, mas você precisava dormir. Vol­tou, muito tarde para casa depois de ajudar naquele parto.

— Bem, coloque alguma coisa na mesa para a gente comer, irei encontrá-lo em alguns minutos.

Após trocar de roupa e prender os cabelos, Morainn juntou-se ao menino na sala principal da cabana. Ao ver o pão, o queijo e as frutas sobre a mesa, ela sorriu, reconhecendo o trabalho prestimoso de Walin. Ela serviu um pouco de suco de maçã aos dois e então se sentou num pequeno banco, de frente para ele.

— Você teve um sonho ruim? — o garoto perguntou ao passar uma pera para que ela a cortasse.

— Primeiro pensei que fosse um sonho, porém agora tenho certeza de que foi uma visão. Na verdade, outra, com o homem de olhos de cores diferentes. — Ela colocou a pera com cuidado sobre um prato de madeira e começou a fatiar a fruta.

— Você tem muitas visões com ele, não é mesmo?

— Sim, meu querido. É muito estranho. Não sei quem ele é, nunca o vi antes. E, se a visão for verda­deira, acho que jamais vou conhecê-lo.

— Por quê? — Walin pegou o prato com a pera cortada que lhe era oferecido e começou a comê-la.

— Porque dessa vez o vi com uma espada apontada contra a garganta dele.

— Mas você não diz que suas visões são sobre coisas que ainda vão acontecer? Talvez ele esteja vivo agora. Quem sabe você devesse encontrá-lo e avisá-lo do perigo que corre...

Morainn considerou a possibilidade e então sacudiu a cabeça negativamente.

— Não, acho que não. Meu coração e minha mente não me dizem para fazê-lo. Se fosse assim, eu sentiria a necessidade de sair agora mesmo para procurá-lo. E teria recebido alguma pista de onde ele poderia ser encontrado.

— Mas eu acho que logo vamos ver o homem com os olhos de cores diferentes!

— Pode ser...

— Vai ser interessante.

Ela sorriu e voltou sua atenção em seu prato. Se aquele homem aparecesse à porta de sua casa seria muito curioso. Também poderia ser arriscado. Ela não podia esquecer que a morte o acompanhava. As visões diziam que ele não era um assassino, entretanto sua simples presença parecia desencadear uma agonia sangrenta. Ela não queria fazer parte do derrama­mento de sangue que sempre via ao redor dos pés dele.

Infelizmente, não tinha certeza de que o destino daria a ela alguma chance de evitar o encontro com aquele homem. Tudo o quê Morainn podia fazer era rezar para que, se ele aparecesse à sua porta, não estivesse acompanhado da morte.

 

— Você pretende ser o meu juiz e o meu carrasco, Simon?

Tormand notou que o amigo se esforçava para recuperar a calma e a sanidade pelas quais era conhe­cido. Apesar de ser doloroso pensar que Simon pudes­se acreditar que ele seria capaz de cometer tamanha atrocidade com Clara ou com qualquer outra mulher, podia entender o que preocupava o amigo.

Qualquer homem honrado ficaria horrorizado com o fato e desejaria fazer com que o culpado pagasse pelo crime. A breve insanidade que atingia um homem depois de presenciar tanta brutalidade explicaria facilmente por que encontrar seu anel na mão da vítima levaria Simon a procurá-lo, cego pela raiva. Se Simon não o havia matado assim que chegara, era porque ainda restava alguma dúvida.

— Por que ela estava segurando seu anel? — Simon perguntou, seco.

— Temo não ter uma resposta para você — res­pondeu Tormand. — Sem dúvida, a jóia foi colocada na mão de Clara pela mesma pessoa, ou pessoas, que me pôs na cama junto a ela.

Simon olhou para Tormand por um momento antes de baixar a espada. Sentou e se serviu de uma caneca de cerveja. Tomou tudo de uma vez. O corpo alto e esguio estremeceu, e ele tornou a encher a caneca com a bebida.

— Você estava lá? — ele finalmente indagou, mais calmo.

— Sim.

Tormand bebeu um pouco de cerveja, preparando-se para contar a Simon tudo o que sabia. Mal termina­ra de engolir quando percebeu que sabia muito pouco sobre o que havia acontecido. Apenas podia assegurar que alguém tinha matado Clara e que esse alguém não era ele. Não sabia dizer como fora capturado e levado para o quarto dela. Nem imaginava como Simon acabara envolvido na história. Podia ser simplesmente falta de sorte, porém os instintos de Tormand diziam que era muito mais do que isso.

— Por que foi ver Clara? — perguntou a Simon. — O marido dela chegou, encontrou o corpo e o man­dou para você?

— Não. Recebi um recado que acredito ter sido enviado por Clara. — Simon estremeceu. — Pedia para que eu fosse até a casa dela com alguns dos meus homens, num determinado horário, o mais discreta­mente possível.

— E foi o que fez? Você a conhecia o suficiente para que ela lhe pedisse tal favor?

— Eu não a conhecia tão bem quanto você... — rosnou Simon. — Porém, era minha prima. — Ele sorriu de leve ao notar que Tormand havia ficado chocado com a revelação. — Não se preocupe, não vou exigir um duelo de espadas para defender a honra de Clara. Minha prima tinha muito pouco a ser defendido. Ela levantava as saias para qualquer um com um rosto bonito desde que se tornou moça. Nunca foi uma criatura doce nem honesta, e achava que o mundo lhe pertencia só porque era bonita. Fiz o que ela me pediu porque tinha esperanças de que ela me desse provas dos crimes cometidos pelo marido, a quem eu investigava fazia alguns meses. Tratava-se de uma falsa esperança, já que ela se beneficiava dos negócios que ele geria, mas eu não podia ignorar tal pedido.

— Acha que ele a matou? — Tormand duvidava dessa possibilidade, apesar de ter questionado Simon a respeito.

— Não. Ela era útil a ele e duvido de que delataria o homem de quem adorava gastar cada centavo que ele ganhava com seus crimes e suas mentiras. Embora, ao ver o corpo massacrado, o nome dele tenha sido o primeiro que me veio à cabeça.

— Então, você encontrou o meu anel na mão de Clara?

— Sim. — Simon passou os dedos pelos cabelos negros. — Eu não podia acreditar no que estava ven­do. O que este anel fazia lá? De repente me lembrei de que você havia sido amante dela. Deus! Pensei que você tivesse enlouquecido, um cachorro raivoso que precisava ser eliminado. Achei que a loucura houvesse me atingido, por ter considerado por um instante que você pudesse ter praticado tal covardia. Era como se o assassino de Clara tivesse deixado sua loucura naquele quarto e eu a houvesse absorvido.

— Sei o que está querendo dizer. Quando percebi que Clara podia estar viva durante os horrores que lhe foram infligidos, imaginei se não à haviam torturado para conseguir alguma informação.

— É uma possibilidade, embora não explique tanto esforço para fazer parecer que você tenha cometido o crime. Há alguns maridos traídos que gostariam de vê-lo morto, mas não consigo entender por que eles fariam algo do tipo para acabar com você.

— Eu não enganei nenhum marido. Não que eu saiba. — Tormand odiava o tom defensivo que sua voz adquiria. — Ainda assim, não consigo me livrar da sensação de que Clara foi morta por minha causa, por ter sido minha amante. Parece vaidade pensar que...

— Não. Você foi colocado lá para levar a culpa. — Simon descansou os braços sobre a mesa e olhou para sua caneca de cerveja. — O marido dela não é o autor do crime e teria sido um ótimo suspeito. Contudo, sei onde ele estava e sei que não foi para casa, para matar a mulher, e depois voltar para junto da amante que vive a quinze quilômetros de distância da propriedade que ele dividia com Clara. Quanto a torturá-la para conseguir informações? Bem, o homem certamente tem inimigos e muitos competidores que talvez pensassem que sua esposa soubesse de alguma coisa sobre os negócios do marido, alguma coisa que pudesse ser usada contra ele. Eu duvido de que Clara conseguisse ficar calada depois da primeira ameaça, e ela teria uma morte rápida, com uma facada no coração ou a garganta cortada. E se fosse assim você não estaria envolvido. — Olhou para Tormand. — Acho que o problema é com você, amigo. Mas por quê?

— E quem?

— Quando soubermos o motivo, poderemos procu­rar alguém.

Tormand sentia-se mal. Nenhuma mulher merecia morrer daquela maneira simplesmente porque tinha se deitado com ele. Que tipo de inimigo mataria inocentes para atingi-lo? Se alguém o queria morto e era muito covarde para fazê-lo, poderia, contratar um matador para executar a tarefa. Era uma triste possibilidade, mas havia muitos homens dispostos a aceitar o trabalho. Se o plano era acabar com seu nome, isso poderia ter sido feito sem que um ser humano fosse assassinado. Porém, o inimigo queria que ele sofresse e fosse enforcado pelo crime. Além do mais, Clara fora atingida por esse ato de loucura que ninguém conseguia explicar.

— Os pecados que cometi vieram me assombrar agora — ele murmurou.

— Acredita que pecou? — perguntou Simon, sustentando um fraco sorriso nos lábios.

— A gula é um pecado — disse o escudeiro.

— Obrigado por me lembrar, Walter — Tormand agradeceu com voz arrastada. — Estou ciente disso. Ouvi tal comentário de minha mãe, irmãs, tias e de quase todas as mulheres do meu clã.

— Suspeito de que de alguns homens também. — Simon sorriu mais abertamente diante da expres­são de incredulidade de Tormand. — Bem, é verdade que você tem sido um tanto... guloso.

— Gosto de me divertir com uma mulher debaixo dos lençóis. Que homem não gosta?

— A maioria pelo menos tenta ser prudente. Exigente. Mais reservado quanto às suas escolhas.

— Todas as mulheres com as quais me deitei eram limpas e bonitas.

Quase todas, Tormand pensou.

— O problema é que você tem sempre muitas opções, todas oferecidas de boa vontade.

— É verdade — concordou Walter. — Pensando apenas na diversão, essas mulheres se tornam fáceis.

— E, quanto mais fáceis, mais rápido são descarta­das — Simon concluiu.

— Pensei que fosse meu amigo, Simon. — Tormand ficou magoado e sentiu-se insultado ao mesmo tempo.

— E sou, mas não significa que devo aprovar cegamente tudo o que você faz. Às vezes, admito que até sinto um pouco de inveja de você. Mas, diga-me, Tormand, você gostava de Clara?

— Não, no entanto a luxúria me cegou por algum tempo. Ela era muito talentosa.

— Não estou surpreso. Assim que completou treze anos, ela começou suas lições nessa arte. Confesso que às vezes não sou muito exigente, mas ao menos procuro conhecer a mulher com quem me deito, assim aproveito mais a companhia.

Ocorreu a Tormand que ele vinha se deitando com mulheres muito abaixo do padrão mediano de Simon. Ele se recusava a pensar naquilo que sua prima Marta lhe dissera certa vez, que era um garanhão muito estúpido para cobrar pelos seus serviços. Afinal, pelo que sabia, ele nunca tinha feito um filho, e não era essa a finalidade de um reprodutor?

Quanto mais ele pensava no assunto, mais temia ser um estúpido inconseqüente como Simon estava afirmando. Nos últimos anos, a mulher que levasse para a cama devia ser atraente, relativamente limpa e disposta. Na maioria das vezes, acabava se deixando levar mais pela disposição. Era uma conclusão per­turbadora, e ele achou melhor voltar ao assunto da morte de Clara.

— Não encontrou nada que indicasse outro cul­pado além de mim? — ele questionou Simon, igno­rando a surpresa nos olhos do amigo, por ter mudado o rumo da conversa de forma tão repentina.

— Não — respondeu Simon. — Não havia nada além do seu anel que apontasse que mais alguém este­ve naquele quarto. E, quando interrogados, os criados disseram não ter ouvido nem visto nada. Entretanto, é óbvio que Clara não teria amarrado a si mesma na cama nem cortado o próprio corpo.

— Como pode? Ela teria quebrado os vidros das janelas com seus gritos assim que visse uma faca.

— E verdade, mas acredito que ela tenha sido amordaçada. Havia sinais de amordaçamento no que sobrou do rosto dela.

— Imagino se Clara teria sido torturada em algum outro lugar. A julgar pelo que foi feito com ela, eu deveria ter acordado em meio a uma poça de sangue. Havia muito e tenho a sensação de que ela morreu naquela cama, mas não foi onde todos aqueles cortes foram feitos.

Simon assentiu com a cabeça.

— Também penso assim. Mesmo que ela estivesse com uma mordaça, alguém teria escutado alguma coisa. Pelas marcas no corpo, ficou evidente que ela lutou contra as amarras em seus pulsos e tornozelos. A cama também teria feito barulho com a agitação dela, porém os criados nem desconfiaram que ela estava em casa.

— Então, o assassino sabia entrar e sair da casa sem ser visto.

— O que significa que ele a conhecia bem: — Simon franziu o cenho. — Considerando todos os amantes que Clara teve, duvido de que essas pas­sagens fossem realmente secretas. Os empregados nunca levavam em consideração os barulhos vindos do quarto. Ou seja, eles não ouviram nada de dife­rente. Retornarei à casa dela para ver se encontro alguma pista que indique que ela foi trazida depois de ter sido torturada. — Tomou outro gole de cerveja antes de continuar: — Mas eu preferiria não estar por perto depois que Ranald tivesse visto o que sobrou da esposa. Ambos não se amavam, porém ele apreciava a beleza de Clara.

— Eu também não a amava, mas ao ver o estado em que ela se encontrava, passei mal.

— E Ranald não tem a mesma força que você. Quando ele se recuperar, vai agir como um impor­tante proprietário de terras e exigir que eu descubra quem é o culpado. Ele também vai dar muitas infor­mações inúteis e fazer algumas ameaças do que pode acontecer comigo se eu não encontrar o assassino. Eu sempre quis dar um jeito na arrogância dele, quem sabe essa não seja a minha chance.

Tormand deu um breve sorriso, mas a seriedade da situação acabava com qualquer tentativa de humor. Era bom saber que Simon tinha aceitado tão rapida­mente sua inocência, apesar da raiva. Infelizmente o amigo não havia encontrado nenhuma outra pista, o que significava que não tinham nada que os levasse ao assassino, deixando o facínora livre para que agisse novamente.

Ele se serviu de mais cerveja, pensando em ficar bêbado. Uma tentação da qual deveria fugir por um bom tempo. Precisava de todos os seus sentidos em alerta, pois os tempos eram perigosos. Alguém queria prejudicá-lo. E a lembrança do corpo esquartejado de Clara era mais do que suficiente para que não se esquecesse do que o inimigo era capaz.

Não tinha dúvidas de que não merecia a culpa que estava sentindo, porém isso não a diminuía. Se. Simon não encontrasse logo o criminoso, ele seria capaz de se declarar culpado apenas para evitar mais mortes.

— Não acho que Clara será a única — Simon opinou.

Piscando ao ouvir o eco de seus pensamentos, Tormand assentiu.

— Também creio que não. Se tudo foi feito com a intenção de me levar ao cadafalso e o plano não deu certo, o maldito tentará de novo. Mas esteja certo de que não serei pego desprevenido dessa vez.

— Seria inteligente de sua parte não sair sozinho.

— Em minha opinião, seria um problema.

— Por quê?

— Bem, há lugares onde uma companhia pode atrapalhar.

Tormand não precisava dos olhares que o amigo lhe dirigia para saber que estava se comportando como um idiota. Era apenas uma questão de bom-senso não ser apanhado sozinho de novo. Da próxima vez, ele poderia não ter a sorte de acordar e fugir antes de ser visto deitado ao lado de uma mulher morta.

Aquilo soou insensível, uma preocupação egoísta com a própria segurança. Contudo, precisava ser frio, apesar da possível culpa pela morte de Clara ou de qualquer outra mulher.

Se fosse condenado por esse ou outro crime que viesse a acontecer, o verdadeiro culpado sairia impu­ne. Ele estava determinado a fazer com que o assas­sino pagasse pelo que tinha feito e antes que atacasse outra vez.

Ele também queria saber o motivo, e isso se devia à culpa da qual não conseguia se livrar. Poderia acabar com esse sentimento se descobrisse por que alguém o odiava tanto. Aquele ataque fora praticado com ódio. Era uma pena, mas ele não conseguia pensar em ninguém, amante ou marido, que tivesse um senti­mento tão profundo a ponto de causar uma fúria tão insana.

— Ficar zangado não fará com que eu mude de idéia — argumentou Simon. — Você não é tolo, Tormand. Sabe muito bem que não poderá ficar sozi­nho até que esse louco seja preso.

— Sim, mas nem por isso tenho que gostar da idéia.

— O celibato temporário não vai matá-lo, porém seu inimigo, sim.

— Celibato? Prefiro ser enforcado!

— Idiota.

— Talvez, mas a necessidade de um guarda-cos­tas não foi o que me deixou zangado. De repente, pensei no modo como Clara foi morta, com tama­nha fúria e ódio, e não fui capaz de me lembrar de ninguém que sentisse algo tão forte por ela. Se o plano era me incriminar, não seria necessário fazer tudo aquilo. — Quando Simon apenas o observou, Tormand se sentiu desconfortável. — Foi apenas um pensamento.

— Um bom pensamento — murmurou Simon. — Todo o ódio e a fúria no modo como a mataram foram aplicados contra o que tornava Clara bonita e desejável.

— Também podem tê-la torturado para conseguir alguma informação — interveio Walter, embora sua expressão demonstrasse que tinha dúvidas a respeito.

— Mas creio que Clara teria falado tudo o que soubesse só de estar sob a mira de uma faca. Antes mesmo que tocassem em um fio de seus cabelos. Era muito vaidosa. A beleza era tudo para ela. E, por estar amordaçada, imagino que o objetivo do assassino não fosse conseguir alguma informação.

— Então ainda não temos nada. — Tormand olhou para a caneca vazia e resistiu à vontade de enchê-la de novo.

— Não, temos um assassino que estava determina­do a colocar a culpa em você — respondeu Simon. — Portanto, devemos procurar o maldito entre os seus inimigos.

— E por que não os inimigos de Ranald? O que seria mais humilhante para um homem do que todos saberem que sua mulher se deitou com outro antes dele e foi morta na cama do casal?

— Todos sabiam que Clara era quase uma prosti­tuta para que se importassem com mais uma de suas aventuras. E a amante de Ranald também é muito conhecida. Era de conhecimento público que os dois não honravam os votos do casamento. — Simon se levantou. — Quer vir comigo para tentarmos encontrar alguma pista?

Relutante, Tormand se levantou. Voltar à cena do crime era a última coisa que gostaria de fazer, porém sabia que isso poderia ajudá-lo a encontrar algumas respostas. Esperava apenas que Ranald não estivesse lá, pois o marido traído estava ciente de que ele e Clara tinham sido amantes e mal conseguia disfarçar seu desagrado.

Ele não entendia aquele tratamento em relação a sua pessoa especificamente, já que a maioria dos homens da corte tinha ido para a cama com ela. E, para ser honesto, não se importava em ver aquele ros­to de desagrado caso fosse forçado a encarar Ranald em sua própria casa, enquanto o corpo de Clara esti­vesse sendo preparado para o enterro.

— Bem, foi divertido — murmurou Tormand uma hora mais tarde, enquanto seguia Simon por um dos túneis que os amantes de Clara haviam usado em muitas ocasiões.

Ranald por certo ficara tão mal quanto ele. Era visível que o homem estava nervoso, quem sabe estava até mesmo triste, e provavelmente viu nele o alvo perfeito para descontar a sua raiva.

Se não fosse pela intervenção de Simon, Tormand e Ranald estariam lutando com suas espadas naquele momento,

— Por um instante, cheguei a pensar que ele pudes­se amar Clara, no entanto ele está triste por perder a influência da esposa — Simon disse, segurando um lampião enquanto observava o chão à sua frente.

— Ela pode ter sido, praticamente, uma prostituta, mas tinha alguma influência. Clara obtinha muitas informações dos homens que levava para a cama e, dessa forma, ajudava muito Ranald. Ele também deve estar sofrendo pela visão do que restou da bela esposa. Porém, não posso descartar a possibilidade de que ele a tenha matado. — Ele parou de andar de repente. — Olhe aqui — murmurou ao se agachar.

Tormand se abaixou ao lado do amigo e olhou de perto o ponto que Simon indicava.

— Sangue?

Simon tocou a mancha e analisou a ponta do dedo.

— Sem dúvida, é sangue. Estamos com sorte. O chão de pedra não absorveu o sangue e o lugar é frio o suficiente para conservá-lo. — Ele se levantou. — Acho que encontramos a nossa pista.

A esperança de uma rápida solução para esse mis­tério aumentava, enquanto Tormand seguia o amigo. A trilha os levou para fora da passagem, na direção de um beco próximo da mais popular estalagem da cida­de, onde havia constante movimentação de pessoas e cavalos.

Após quase uma hora à procura de mais pistas, Simon foi buscar um cachorro. Tormand ainda estava em seu encalço, embora a esperança começasse a diminuir.

Assim que o cão de Simon, Bonegnasher, conseguiu farejar algo, Tormand sentiu que não deveria desistir de ter esperança. A busca acabou em uma cabana vazia à margem da cidade. Ele podia sentir o cheiro de sangue e não precisava das habilidades de Simon para saber que haviam encontrado o lugar onde Clara fora torturada. O assassino não tinha se preocupado em limpar a cabana. Tormand sentiu vontade de vomi­tar, mas se controlou e ficou ao lado do amigo, que vasculhava o lugar com calma e cuidado.

Ele não tinha os dons das mulheres de sua família, porém possuía uma sensibilidade aguçada, era capaz de captar as emoções no ar. Fechou os olhos e tentou apreender os sentimentos deixados por aqueles que tinham estado ali antes dele. O medo não foi surpresa, mas, ao persistir, ele percebeu outras coisas. Havia também no ar raiva e ódio, e ele suspeitava de que tais sentimentos haviam sido os fatores responsáveis pela mutilação da vítima. Aquelas emoções estavam marcadas pela loucura.

— Descobriu alguma coisa? — Simon perguntou.

Tormand abriu os olhos e concluiu que o amigo imaginava que ele possuía algum dom.

— Medo, raiva, ódio, frieza e... acho que... loucura.

— Provavelmente.

— Encontrou mais alguma pista? — Tormand quis saber, seguindo Simon para fora da cabana e respirando fundo na esperança de se livrar do odor da morte impregnado em seu nariz.

— Creio que quando Clara foi retirada daqui, já estava morrendo. — Simon ergueu a mão. — Veja, encontrei isto.

Tormand franziu as sobrancelhas diante do pequeno grampo de cabelo que o amigo segurava.

— Acha que era de Clara?

— Não sei, encontrei-o no chão. — Simon colocou o objeto no bolso. — Pode ter pertencido à mulher que morou aqui, mas o guardarei mesmo assim.

— Então, falhamos.

— Bem, não encontramos o assassino, mas eu já esperava por isso. É algo que levará tempo.

— Outra mulher pode morrer.

— Temo que sim, porém não há nada que possamos fazer.

— Devemos apenas esperar até que aconteça?

— Não podemos vigiar cada mulher da cidade, Tormand. Apenas continuaremos procurando, meu amigo. Até pegarmos e prendermos o bastardo.

Só espero que eu não seja enforcado primeiro, Tormand concluiu em pensamento.

 

Assim que entrou na loja, Morainn viu o dono do estabelecimento fazer o sinal da cruz. Ela pensou em ir embora, entretanto precisava dos bar­ris para sidra e hidromel que somente ele vendia na cidade.

Ela poderia ignorá-lo da mesma forma como fazia com as outras pessoas da região que se afas­tavam quando ela passava, benziam-se e rezavam baixinho, acreditando que, desse modo, afastariam o mal. Tais atitudes a machucavam, contudo já estava acostumada com aquela dor e tentava se convencer disso.

De qualquer maneira, todos não passavam de hipó­critas, ela refletiu enquanto a mágoa se transformava em raiva.

Afinal, era para ela que corriam quando alguém se machucava ou ficava doente e as sanguessugas ou a parteira não podiam ajudar. Também a procuravam quando precisavam de respostas que ninguém mais podia lhes dar. Se era assim tão má, por que iam bater em sua porta e pedir ajuda?

Morainn respirou fundo para acalmar a raiva que só lhe causaria dor de cabeça. Pelo modo como o dono da loja a fitava, pálido, ela deduziu que o infeliz talvez, estivesse com medo de que ela o transformasse em uma salamandra ou coisa pior. Se possuísse tal poder, não seria tão boazinha.

Ela já estava terminando de negociar com o homem quando sentiu um estranho frio percorrer sua espinha e sabia que não era por causa do clima. Farejou o ar como se fosse um cão de guarda, agradeceu ao homem pela relutante ajuda e deixou a loja apressadamente. Os barris seriam levados até sua casa na manhã seguin­te. O que quer que estivesse no ar não era problema seu, pensou e começou a longa caminhada de volta para casa.

Assim que alcançou a saída da cidade, onde moravam aqueles com dinheiro suficiente para ter grandes extensões de terra, um homem saiu de uma dessas grandes propriedades, logo à frente de onde ela passava. Percebeu que ele estava tremendo, o rosto pálido e suado enquanto gritava. Ela até pensou em ajudá-lo, mas o bom-senso a fez mudar de idéia. As pessoas não costumavam apreciar suas gentilezas.

Vindas de outras casas e do centro da cidade, as pessoas corriam na direção dele, atraídas pelos gritos. Olhando ao redor, Morainn procurou um lugar para se esconder da multidão. E se esgueirou para trás de uma árvore ali perto.

Embora soubesse que poderia continuar seu cami­nho por trás das casas, ela continuou ali por simples curiosidade. O calafrio que sentira na loja estava ainda mais intenso e de repente soube que alguém havia morrido violentamente. A intuição lhe dizia que saísse dali e fugisse daquelas pessoas que logo estariam procurando um assassino.

— Minha mulher está morta! — exclamou o homem. — Morta em nossa cama! — Ele se curvou e despejou todo o conteúdo de seu estômago.

Um dos homens que o socorreram entrou na casa para sair alguns minutos depois, como se fosse vomi­tar também. Muitos queriam invadir a residência e ver o que tanto os abalara. Morainn não conseguia entender aquele tipo de curiosidade.

Subitamente, a multidão ficou silenciosa, e Morainn observou que as pessoas abriam caminho para que outros dois homens passassem. Ela reconheceu o mais alto de cabelos pretos, era sir Simon Innes, um dos homens do rei, conhecido por ser capaz de resolver qualquer enigma. Quando pousou os olhos no outro homem que estava ao lado dele, ela quase parou de respirar.

Era o homem de suas visões. Não conseguia ver se ele tinha os olhos de cores diferentes de onde estava, mas não restava dúvida de que era ele mesmo. Exatamente como ela havia sonhado. Com os longos cabelos ruivos e ombros largos.

Sob a sombra das árvores, Morainn se aproximou da casa, na esperança de descobrir o nome do homem que aparecia em seus sonhos.

— Sir Simon — gritou o homem, perturbado ao agarrar o braço de Innes. — Preciso do senhor. Isabella foi morta. Ela... ela... — Começou a chorar.

— Tente se acalmar, sir William — pediu Simon. — Encontrarei o culpado. O senhor tem a minha palavra. Agora, por favor, deixe-me ver o que aconteceu.

— Trata-se de uma cena muito infeliz — murmurou o homem que entrara na casa depois de sir William.

— Nem cheguei a pisar no quarto. Só um olhar foi suficiente.

— O mesmo se deu comigo — informou sir William.

— E não tenho dúvida de que ela esteja morta. Foi brutalmente assassinada. — De repente, ele percebeu o homem parado ao lado de Simon. — O que esse selvagem está fazendo aqui?

— Sir Tormand Murray me ajudou a resolver outros casos antes. Quero que ele me ajude desta vez, para que eu tenha a certeza de colocar a corda no pescoço certo.

— Como sabe que ele...

— Cuidado, sir William — avisou Simon com a voz tão fria que até Morainn tremeu. — Não pro­fira nenhum insulto do qual venha a se arrepender depois. O senhor é bom em fazer contas, mas não tão bom com uma espada. E Tormand é muito bom com armas, assim como eu.

Sir William ficou pálido, demonstrando que havia entendido o recado. Mordeu o lábio em sinal de ner­vosismo e respirou fundo algumas vezes antes de se pronunciar de novo:

— Ele a conheceu antes de eu me casar com ela. Simon segurou sir William pelos ombros.

— O que importa aqui é que o senhor era casado com ela.

Os homens falavam tão baixo que Morainn mal podia ouvir o que diziam.

— Ele também conhecia lady Clara, e ela foi morta há três dias. — A acusação estava implícita na voz de sir William, revelando que já havia esque­cido as ameaças, mas sabiamente mantinha a voz baixa.

— Infelizmente meu amigo conhecia muitas mulheres — respondeu Simon. — Porém, isso apenas faz dele um mulherengo, e não um assassino. Se con­tinuar com essas tolices, vai acabar dificultando meu trabalho e desviando minha atenção do verdadeiro culpado, sir William.

O pobre homem concordou, contudo ainda olhava feio para Tormand.

Morainn estudou, as belas feições de Tormand Murray e constatou que ele não devia ter a menor dificuldade em conseguir as mulheres que quisesse aos seus pés. Ele até poderia ser considerado inocente dos dois crimes, mas ela suspeitava de que ele tinha outros pecados. E ficou bastante desapontada com aquele pensamento.

— Agora, permita-nos ver o que aconteceu — pediu Simon. — Quanto antes cumprirmos nosso dever, mais cedo o senhor poderá cuidar de sua Isabella. Tenho certeza de que deseja prepará-la para o funeral.

— Não acredito que seja possível — opinou sir William com a voz rouca. — Ela foi cortada em peda­ços. Lady Clara também sofreu tamanha crueldade?

O rosto de Simon dizia a Morainn que ele não estava nada satisfeito com a rapidez com que aquela história estava se espalhando. Mulheres da nobreza sendo assassinadas já era o suficiente para provocar raiva e medo nos habitantes da cidade. A maneira como estavam sendo mortas só piorava a situação. Se outros pensassem do mesmo modo que sir William, então Tormand Murray corria perigo. Quanto mais demorassem para encontrar o assas­sino, mais suspeitas recairiam sobre os ombros do amigo.

Assim que os homens entraram na casa, Morainn ficou em dúvida se deveria ficar, ou ir embora e esquecer aquele assunto. Se fosse descoberta ali, teria problemas. Alguém que fosse chamada de bruxa não deveria ser encontrada perto de onde uma mulher fora morta de forma tão horrível. Mesmo que estivesse ali só por curiosidade. Suspirando, decidiu esperar até que os dois homens voltassem, prometendo a si mesma que iria embora caso alguém a visse.

Tormand olhou para os restos mortais de Isabella Redmond e desejou sair correndo do quarto. Os lindos cabelos negros cortados cobriam o corpo benfeito, Embora ele suspeitasse de que as madeixas não haviam sido cortadas naquele quarto, seus instintos diziam que ela tinha sido morta em outro lugar e que aquela cena fora montada cuidadosamente. Como no caso de Clara, o rosto de Isabella fora igualmente desfigurado. Os grandes olhos verdes, com os quais ela atraía os homens para sua cama, estavam em uma pequena bacia sobre a mesa de cabeceira. Os belos seios estavam separados do corpo. Os horríveis ferimentos eram numerosos. Tormand imaginava o quanto a pobre mulher havia sofrido antes de morrer.

— O corpo de Isabella se encontra em condi­ções muito piores do que Clara — opinou Simon. — Ou o assassino odiava Isabella mais do que Clara, ou estava ainda mais irritado por você ter escapa­do da armadilha que ele preparou para que fosse enforcado.

— Rezo para que tudo isso não tenha sido feito por­que Isabella demorou para morrer — disse Tormand, observando Simon começar uma busca por pistas ao redor do quarto.

— Ela estava grávida.

— Por Deus, não pode ser!

— Acredito que sim. Espero que William não venha a saber. Ele ficaria louco de tanta raiva e tristeza.

— E descontaria tudo em mim. Não vou nem perguntar como você tomou conhecimento dessa informação.

— É melhor mesmo. Você já está ficando pálido.

— Acha que o assassino estava ciente do fato e ficou mais nervoso por isso?

— E possível. — Simon franziu o cenho ao olhar na direção do piso, perto da janela. — Ela foi trazida por aqui.

— Isso me leva a concluir que buscamos um homem forte e ágil.

— Forte, sim. Mas ele não precisa ser ágil, apenas ter sorte.

— Vamos usar o cachorro novamente?

— Logo — respondeu Simon. — Assim que sir William fique ocupado o suficiente para não descon­fiar do que vamos fazer.

— Tem medo de que ele queira se juntar a nós na caçada?

— Ele e muitos outros tolos que estão reunidos na frente da casa.

Tormand tinha de admitir que o amigo estava certo. A vizinhança se tornaria uma multidão barulhenta. Se o criminoso estivesse por perto, perceberia o que estava se passando e fugiria. Embora ele acreditasse que o assassino não fosse estúpido o suficiente para ficar ali observando a reação das pessoas.

Quando ia perguntar se Simon tinha descoberto mais alguma coisa, ouviu o ruído das pessoas agitadas do lado de fora.

— O que diabos está provocando essa barulheira?

— Não sei — Simon respondeu, saindo do quarto. — Mas duvido que seja algo bom.

— Vejam ali! — alguém gritou em meio a multidão. — Não é a bruxa Ross?

Aquelas palavras interromperam os pensamentos de Morainn sobre Tormand Murray. Ela sentiu um frio na espinha ao se virar lentamente para a multidão. Então, notou que a velha Ide, a parteira, apontava um dos dedos sujos na sua direção, e o receio começou a se transformar em medo.

A velha Ide a odiava, do mesmo jeito que havia detestado a mãe de Morainn, pois a enxergava como sendo uma rival. Sempre que podia, a mulher lhe cau­sava algum problema. E ali não era nem o lugar nem o momento para encontrar tal inimiga.

— O que está fazendo aqui, bruxa?

Morainn soltou um grito de susto quando sir William a agarrou pelo braço. Ela se culpou intima­mente por sua estupidez. Se não estivesse distraída pensando em sir Tormand, não teria sido vista pela velha Ide. Dez anos atrás, Ide incitara a multidão con­tra sua mãe. Agora ela tinha sido apanhada e duvidava de que aquelas pessoas estariam dispostas a ouvir qualquer explicação.

— Fiquei presa aqui por causa da multidão — res­pondeu, procurando disfarçar o medo, quando sir William apertou-a no braço com mais força.

— Ela veio porque alguém morreu aqui — falou a velha Ide, abrindo caminho por entre as pessoas. — Gente da laia dela sempre vem onde está a morte. Elas podem sentir seu cheiro.

— Não seja mais tola do que já é — replicou Morainn.

— Tola, eu? Sei tudo sobre você, bruxa. Veio aqui para se apossar da alma da pobre mulher que foi assassinada naquela casa.

Morainn estava prestes a chamá-la de louca quando um murmúrio na multidão chamou sua aten­ção. Algumas pessoas estavam concordando com as tolices de Ide, o suficiente para que a impedissem de escapar. Se a velha não se calasse, ela temia que mais pessoas acreditassem naquelas mentiras. Lembrava-se muito bem de como Ide podia controlar aquela gente, e duvidar das ameaças da velha foi o que pro­vocara a morte se sua mãe.

— Eu estava indo para casa — explicou, tentando parecer calma.

— Você não precisava ter parado aqui. Poderia ter desviado de nós. Mas, não, aqui está você, escon­dendo-se nas sombras. — Ide gritou para a multidão: — Ela está atrás da alma da pobre mulher.

Morainn olhou para sir William, na esperan­ça de encontrar um aliado, porém ele a fitava como se ela fosse fazer exatamente o que a velha dizia.

— Não sou bruxa nem estou aqui para me apoderar da alma de ninguém — ela tentava se defender.

— Então por que veio à cidade? Foi banida daqui, não é verdade?

— Posso ter sido banida, sir William, mas ninguém reclama quando venho para curar alguém ou gastar o meu dinheiro nas lojas.

— Isso ainda não explica por que você estava se escondendo, espreitando nas sombras, perto da minha casa.

— E por que o senhor não pergunta a eles o que estão fazendo aqui? — Ela encarou a velha Ide. — Sim, por que não pergunta o que fazem reunidos aqui, como corvos, alimentando-se da desgraça alheia?

Morainn se arrependeu logo em seguida de suas palavras. A multidão ficou irritada o que deu mais crédito a Ide para que continuasse a semear suas men­tiras. Ela não teria ajuda de sir William também. O homem a encarava como se ela fosse se transformar em um demônio a qualquer momento.

Enquanto tentava se libertar, ela fazia de tudo para convencê-los de sua inocência. No entanto, era óbvio que não acreditavam nela. Pressentiu que dessa vez sofreria algo pior do que ser banida da cidade.

— Silêncio!

Aquele grito se sobrepôs a todo o barulho que a multidão fazia e assustou tanto Morainn, que ela até desistiu de chutar sir William como tinha planejado. Simon e Tormand estavam parados diante da multi­dão, com as mãos em suas espadas. Morainn rezou para que ambos fossem os salvadores de que ela precisava.

Após conseguir o silêncio que havia ordenado, Simon prosseguiu com a voz calma, porém firme:

— O que está acontecendo aqui? Esqueceram que se encontram diante de uma casa que está de luto?

— A bruxa foi capturada, sir — disse a velha Ide, apontando para Morainn.

— Sim — afirmou uma mulher gorda de cabelos grisalhos. — Ide diz que a bruxa veio roubar a alma da mulher que morreu.

O olhar que Simon lançou para a multidão fez com que muitos ficassem envergonhados e abai­xassem a cabeça. Morainn estava grata por não ser alvo daquele olhar de puro desprezo. Ela não conseguia ver claramente o rosto de Tormand, mas tudo levava a crer que a expressão dele também era reprovadora.

— Nenhum de vocês deveria acreditar em tais superstições — Simon falou. Em seguida, olhou para Ide. — E a senhora não deveria criar mais confusão diante dessa casa. Silêncio! — ele ordenou quando a mulher tentou protestar. — Somente um tolo falaria tal bobagem. Ou uma pessoa que queira prejudi­car outra. Tem medo de perder sua posição como parteira, Ide Bruce?

As pessoas se voltaram na direção da velha senhora com raiva e suspeita. A mulher cruzou os braços e não disse mais nada. Morainn sentiu William começar a soltar seu braço quando Simon o encarou. Arriscando um olhar na direção de sir William, viu que ele corava.

— É essa a mulher? — Simon perguntou.

Quando sir William balançou a cabeça afirmativa­mente, Simon fez um sinal para que ele a trouxesse para mais perto. Morainn tropeçou quando foi puxada com força. Um duro olhar de Simon fez com que sir William a soltasse. Ela massageou o braço, fitando seu salvador e contendo-se para não olhar na direção de Tormand Murray.

— Sim, essa é a bruxa Ross — sir William respondeu.

— É a mulher que foi banida da cidade por todos vocês? — questionou Simon, olhando para ela e depois para a multidão. — Ela não devia ser mais do que uma criança quando a puniram. Assustava-os tanto assim? — Como a maioria foi incapaz de encará-lo, ele meneou a cabeça e a observou novamente. — Qual é seu nome?

— Morainn Ross.

— Não acredito no que essa mulher diz. — Ele deu um sorriso desanimado quando Ide deu um suspiro ultrajado. — Está claro que ela acha que você atra­palha o trabalho dela. Mas para o bem de todos que são seduzidos pelas mentiras que ela conta, diga-me por que está aqui, moça?

— Vim à cidade comprar alguns barris para estocar a sidra e a cerveja que preparo. — Com o canto do olho, ela percebeu que o tanoeiro estava tentando escapar. — Ali está o dono da loja, sir. Ele pode con­firmar que digo a verdade.

O tanoeiro parou e olhou para Simon.

— É verdade, sir. — Ele cocou a barriga. — Apenas fiquei surpreso por ela estar tão distante do centro da cidade, a caminho de casa. A moça deve andar rápido.

— Talvez ela tenha voado, hein, Ide? — gritou um homem.

Quando a multidão começou a rir, Morainn sentiu-se relaxar.

— Ela é uma bruxa — insistia Ide, não pretendendo desistir tão facilmente da batalha.

— Ela já machucou um de vocês? — indagou Tormand, com voz profunda e fria.

As pessoas murmuram negativamente.

— Ela mentiu? Enganou? Roubou? — ele insistiu. Todas as respostas foram negativas.

— Ah, mas a srta. Ross curou alguns de vocês, não curou?

Dessa vez, a resposta foi afirmativa,

— Então, se ela não é bruxa por que foi banida? — interrogou um jovem.

— Suspeito de que alguém instigou a multidão com mentiras e superstições. Quando os boatos se espalharam, não houve como desfazer o malfeito. — Tormand sorria, enquanto Ide era observada pelas pessoas, dando a entender que não era a primeira vez que a velha agia de má-fé. — Vão para casa. E sintam-se envergonhados por terem desrespeitado uma casa de luto e ouvido as mentiras dessa mulher invejosa.

Morainn observou Tormand. Em seu coração, sou­be que ele acreditava nela e que não havia dito tudo aquilo apenas para dispersar a multidão. Ela tentou conter a admiração por aquele homem. Não podia se deixar levar por uma paixão nem mesmo passageira. Tormand estava fora do alcance de alguém como ela e sua reputação com as mulheres não oferecia nenhu­ma esperança de que se importaria com ela ou seria fiel. A única coisa que poderia fazer por ele seria tentar evitar que fosse enforcado pelos crimes que não cometera.

Tormand viu as pessoas irem embora e voltou seu olhar para Morainn Ross. Ele quase perdeu o fôlego quando ambos se fitaram. Os grandes olhos azuis da cor do mar o observavam com surpresa e cautela. Os cabelos negros chegavam à altura da cintura. Era impossível ver as formas do corpo feminino debaixo daquele casaco escuro, mas deu para perceber que ela tinha belos seios e quadris largos. Não era tão pequena quanto as mulheres de sua família, mas não era alta também. Ele suspeitava de que a cabeça de Morainn batia em seu queixo.

No entanto, foi o rosto de traços delicados que o deixou fascinado. As sobrancelhas formavam dois arcos perfeitos sobre os belos olhos, os cílios eram longos e espessos. A pele não apresentava marcas, o que era uma raridade, e tinha um leve tom de dourado. Ele imaginou se ela era inteira daquela cor. O nariz pequeno e o rosto em forma de coração contrastavam com o queixo ligeiramente proemi­nente. A boca era sensual, os lábios cheios e rosa­dos. Não foi essa mulher que ele havia imaginado quando Walter sugerira que ele falasse com a bruxa Ross.

— Vá para casa, moça — pediu Simon. — Será melhor que evite este lugar por algum tempo.

— Pelo fato de aqueles tolos escutarem as men­tiras contadas por Ide? — Morainn questionou, sen­tindo a raiva crescer dentro dela por conta de tanta injustiça.

— Creio que sim. Sei que é injusto, mas não pode­mos discutir esse assunto no momento. — Depois que Morainn foi embora, Simon voltou-se para sir William. — Está tudo terminado. Talvez o senhor queira ver sua esposa. Minhas mais profundas condolências.

Sir William aquiesceu, então olhou na direção de Morainn.

— O senhor tem certeza de que ela não é mesmo uma bruxa? A igreja diz que...

— A igreja diz muitas coisas que devemos inter­pretar com bom-senso. Ela não é bruxa, sir William. Ela é apenas uma boa curandeira, nada mais.

— Dizem que ela tem visões...

— Ouvi a respeito, mas se as visões ajudam a solu­cionar os problemas das pessoas, que mal há nisso? Vá, sir William, cuide de sua esposa e nos deixe encontrar o assassino.

Enquanto caminhava ao lado de Tormand, Simon explicou calmamente:

— Ela foi expulsa da cidade quando ainda era uma criança.

— Sim. — Tormand ficou surpreso com a pró­pria raiva. — Eu esperava encontrar uma mulher de meia-idade ou mesmo uma anciã. Talvez a sugestão de Walter tenha algum mérito.

— Que sugestão?

— Que eu pegue alguma coisa tocada pelo assassi­no ou pela vítima para que ela a segure e tenha uma visão de quem cometeu os crimes.

— Você está querendo é vê-la novamente.

Tormand sorriu. Ele não podia negar. O que o perturbava era a força da atração que sentia por ela. Seu interesse pelas mulheres nunca fora tão intenso. Era preocupante, no entanto ele sabia que no final das contas não faria diferença. Talvez Morainn não fosse bruxa, porém possuía algum poder que o colocaria a seu lado, disso ele não tinha dúvida.

 

Os olhos de Tormand brilhavam tanto pelo fogo da paixão, que Morainn podia sentir o calor dominá-la enquanto era observada. Os olhos de cores diferentes, um azul e outro verde, pareciam devorá-la enquanto ele a tomava nos braços. Ela gemeu de satisfação quando os lábios pecaminosos cobriram os seus, Seus braços finos envolveram o corpo forte enquanto ele se apossava de sua boca, a língua atre­vida atiçando o calor que a consumia de uma maneira que ela nunca sentira.

Ansiosa e faminta por ele, ela lhe tirou as roupas ao mesmo tempo em que ele arrancava as dela, até que ficaram completamente nus. A visão do corpo másculo a fez perder o fôlego. Quando ambos se abraçaram, ela gemeu de prazer. Ele era um homem muito bonito e forte. Ela sentia aprova do desejo mas­culino pressionado contra seu ventre, rijo, poderoso. Seus seios estavam intumescidos, desejando o toque de Tormand.

Ele a deitou em uma cama enorme e macia, os lençóis de linho gelados provocando arrepios na pele quente. Quando ele a cobriu com seu corpo, ela o recebeu de braços abertos. O modo como se encai­xavam era tão perfeito, que ela lhe gritou o nome. Os lábios experientes passearam por seu pescoço suavemente, deixando uma trilha de fogo, enquanto suas mãos frágeis acariciavam o corpo musculoso. Quando o calor dos lábios de Tormand a tocou nos seios, ela se arqueou, implorando por mais.

De repente, ele desapareceu. Ela sentiu como se uma parte de sua alma tivesse sido arrancada. Sentou-se e o procurou. Então, foi empurrada de volta ao leito, dessa vez de maneira nada gentil. Seus pulsos e tornozelos foram amarrados às colunas da cama e o medo cresceu dentro dela a ponto de querer sufo­cá-la. O aroma de um rico perfume tomou conta de seu nariz, e ela tossiu. Ela gritou para que Tormand a salvasse daquela ameaça invisível.

— O seu amante é amaldiçoado — sussurrou uma voz fria e suave. — Assim como você, bruxa.

Ela viu uma faca manchada de sangue segura por uma mão delicada e gritou.

Morainn se levantou de uma vez da cama, assustan­do os gatos que dormiam com ela. Ver que estava no próprio quarto não diminuiu as batidas descompassa­das de seu coração. Era a terceira vez que tinha aquele sonho, agora com mais detalhes. Ela não sabia quantas vezes mais poderia agüentar, mesmo que ajudassem a responder por que aquelas pobres mulheres esta­vam sendo mortas ou quem era o autor dos crimes. Tinha certeza de que os sonhos tentavam lhe mostrar alguma coisa.

— Mas de que forma Tormand Murray estaria rela­cionando com aquelas mortes? — Ela pensou em voz alta.

Olhou através da pequena janela e viu que o sol estava nascendo. Saiu da cama resmungando. Um barulho à porta chamou sua atenção, fazendo seu coração saltar de susto. Ela respirou fundo para se acalmar e viu Walin, observando-a, preocupado. Ela devia tê-lo acordado. De novo.

— Você gritou — ele disse.

— Acho que sim, meu querido — ela respondeu. — Essas visões são muito perturbadoras. Estão ten­tando me dizer algo importante, porém ainda não entendi a mensagem. — Somente a parte que mostrava que ela desejava Tormand como amante. — Sinto muito por tê-lo acordado. Mas não posso prometer que não acontecerá novamente.

— Pelo menos dessa vez você acordou na hora de se levantar.

— É mesmo — ela concordou, com um sorriso. — Vá trocar de roupa, para tomar o café da manhã, querido.

Assim que o garoto se foi, Morainn ficou olhan­do para o teto. Aqueles sonhos eram preocupantes, e não apenas pela maneira como terminavam. Ela nunca havia se imaginado na cama com um homem antes dos sonhar com Tormand Murray. Apesar da visão horrível no final, ela ainda se sentia excitada. Não que entendesse o que se passava com ela. Vira-o uma única vez. Embora ele a tivesse defendido da multidão furiosa, não havia motivo para que sonhasse estar nua nos braços dele e gostando do que acontecia entre os dois. Principalmente quando o próprio amigo o chamara de mulherengo.

Ela suspirou e foi se lavar.

Duas mulheres tinham sido brutalmente assassina­das. De acordo com sir William, Tormand as conhecia e por isso se tornava suspeito pelas mortes.

Por intermédio das poucas pessoas com quem con­versara, Morainn conseguiu descobrir algo sobre as mulheres mortas. Lady Clara e lady Isabella haviam se deitado com vários homens, embora lady Isabella tivesse sido fiel ao marido após o casamento. No entanto, sir William sentia ciúme de Tormand, e o mesmo podia acontecer com outros homens. Suas visões diziam que ele era inocente, assim como seus instintos, porém ela sabia que isso não era o suficiente para salvá-lo do enforcamento.

Após ter trocado de roupa, ela desceu para se juntar a Walin à mesa da refeição matinal. Precisava fazer algo para evitar que Tormand fosse enforcado. Era isso que as visões pretendiam lhe mostrar. Ela só gostaria de descobrir alguma coisa útil antes que fosse tarde demais.

Quando trabalhavam no jardim, Walin, finalmente, pronunciou-se sobre os sonhos que a afligiam.

— Talvez fosse bom você ter uma conversa com sir Tormand. Ele é o homem de olhos de cores diferentes, não é?

— Sim. Mas o que eu diria a ele, Walin? Que sonho com ele? Sir Tormand pode ter me defendi­do, mas isso não significa que ele irá acreditar nas minhas visões. Pode até pensar que eu esteja querendo chamar a atenção.

— Por que ele é um mulherengo?

— Isso mesmo. — Provavelmente, aquela não era a coisa certa a ser dita a Walin, ela deduziu, antes de acrescentar: — Além do mais, o que ele poderia fazer mesmo que acreditasse nos meus sonhos? Já está ajudando sir Simon a procurar o assassino. E não acho que ele seja do tipo que foge dos problemas. Os sonhos não me disseram o suficiente para que eu possa ajudá-lo.

— Quem sabe você está deixando escapar alguma coisa porque fica assustada.

— Pode ser, meu sábio amiguinho. Vou tentar avaliar meus sonhos mais atentamente. — Embora me deixem aterrorizada e ardendo de desejo ao mesmo tempo, concluiu em pensamento. — Realmente sin­to que sir Tormand está cada dia mais próximo da forca.

— Morainn! — gritou uma mulher em frente à cabana.

— Aqui no jardim, Nora! — Morainn sorriu ao avistar a mais antiga e fiel amiga. — Que bom tê-la aqui. Vou me limpar e depois vamos tomar um pouco de sidra.

— Parece-me uma boa idéia — respondeu Nora, brincando com os cachos dos cabelos de Walin.

Não demorou muito para que Morainn se juntasse a Nora à sombra de uma enorme árvore perto da cabana. Entregou-lhe uma caneca de sidra fresca e sentou-se ao lado da amiga no antigo banco de madei­ra. Tomando um gole da própria bebida, ela observou Walin brincar com os gatos.

— Estou feliz de vê-la, mas imaginava que viesse me visitar somente na próxima semana — disse à amiga.

Nora ficou vermelha e mostrou a mão direita.

— James finalmente a pediu em casamento? Você está noiva?

Quando Nora anuiu com a cabeça, Morainn riu e a abraçou.

— Um casamento de verdade?

— Sim. Vou me casar e quero que tudo seja como manda a tradição.

O brilho nos olhos escuros de Nora mostrava que ela acreditava em cada palavra.

— Então a família de James a aceitou?

— Sim. São boas pessoas e não os culpo por terem desejado que ele procurasse uma esposa de posição mais elevada que a minha. Não sou uma qualquer, mas também não sou da mesma classe social que ele. Não possuo terras nem dote. Contudo, eles sabem que James e eu nos amamos e não puderam negar a bênção ao filho. — Nora fitou Morainn nos olhos. — Eu disse a eles que você seria minha madrinha de casamento.

— Ah, não, Nora — Morainn começou a protestar.

— Claro que sim, orgulho-me de dizer que eles não se opuseram. Então não se preocupe, pois será bem-recebida. A única coisa que me perguntaram foi sobre Walin. Você sabe que todos comentam que ele é seu filho.

— Sim, sei disso. Às vezes essa situação me machu­ca e pode me causar certo problema com os homens, entretanto eu nunca desistiria desse garoto.

— Foi o que eu disse a eles. Também contei como ele veio parar na porta de sua casa. Você sabe que mantê-lo sob seus cuidados prejudica o seu bom nome...

— Que bom nome? O da bruxa Ross? Nora a ignorou e continuou a falar:

— Eles não sabiam que você tinha apenas treze anos quando foi expulsa da cidade. E o fato de conti­nuar lutando para sobreviver foi o que os conquistou definitivamente. Então? Você aceita?

Morainn tinha muitas dúvidas quanto a participar do casamento de Nora, porém as deixou de lado. A amiga e a família não tinham culpa do que havia acontecido com ela no passado.

— Sim, aceito. Quando será?

— Um mês após o Sabbath. E Walin está convida­do também. — Antes que Morainn pudesse protestar, Nora acrescentou: — O outro motivo que me trouxe aqui... — Ela respirou fundo e bebeu sua sidra. — Mais uma mulher foi morta.

— Não me diga!

— Sim, lady Marie Campbell, casada com o dono das terras de Banloch. Ele está na cidade para vender as lãs de seu clã. — Nora suspirou. — Pelo menos essa mulher não estava grávida.

— As outras estavam?

— Lady Isabella, sim. Tenho pena do marido dela, pois o filho poderia não ser dele. Parece que ele tinha acabado de voltar de uma viagem à França que durou seis meses. E a gravidez de lady Isabella estava no início.

— Mas ouvi dizer que ela era fiel ao marido, diferentemente de lady Clara.

— Acho que sua boa reputação advenha do fato de muitos não gostarem de falar mal dos mor­tos. Já lady Marie era uma boa esposa, o marido e ela se amavam. Ele está profundamente desolado. Pobre homem. Agora é viúvo com dois filhos pequenos.

— O que será que está acontecendo por aqui? — murmurou Morainn. — Já tivemos mortes violen­tas antes, mas nada parecido com o que está havendo nos últimos dias. Nunca as vítimas foram mulheres da nobreza, mortas de forma tão brutal.

Nora assentiu com a cabeça, balançando os cachos avermelhados.

— Também não sei... Quando se mora perto da corte, problemas podem acontecer, mas não dessa maneira. Você está certa quanto a isso. E tem se falado muito de um homem chamado sir Tormand Murray. Parece que ele conheceu essas mulheres antes que se casassem. Algumas pessoas acham o fato muito suspeito.

— Ele é inocente. Pode ser considerado um con­quistador, mas não é assassino.

Nora piscou, surpresa.

— Você o conhece bem?

Morainn sentiu-se corar e instintivamente levou a mão à testa.

— Não — apressou-se em dizer. — Quero dizer, eu o vi pessoalmente uma vez e outras três em meus sonhos.

— Você teve visões com sir Tormand Murray?

— Imagino que muitas mulheres já sonharam com ele — respondeu Morainn com certa amargura.

— Acho que ele vem cometendo o pecado da carne com certa obstinação, no entanto não está matando essas mulheres. Nas últimas três noites, tive sonhos dos quais acordei gritando e tremenda de medo. No começo, sir Tormand estava lá e tudo ia bem. — Ela novamente corou e percebeu que Nora sorria, mas resolveu ignorar a amiga. — Os sonhos terminam com minhas mãos e pés amarrados a uma cama, e não consegui mais ver sir Tormand. Além disso, sinto que estou em perigo.

— Às vezes esse tipo de visão é mais uma maldição do que um dom, não é mesmo?

— Tem razão. Não posso contar para ninguém sobre meus sonhos. Quem acreditaria em mim? Se sir Tormand e sir Simon tomassem conhecimento a respeito e não me considerassem louca, decerto pensariam que sou uma bruxa, como muitos têm me acusado.

— Não tantos quanto imagina, minha querida. — Nora pegou as mãos de Morainn e apertou-as de leve. — Mas continue. Essas visões mostram o verdadeiro assassino?

— Acho que estão tentando me mostrar exatamente isso. Cada vez que sonho, estou mais perto da respos­ta. Mas acordo gritando e acabo assustando o pobre Walin.

— Na verdade, ele teme por você. Tem medo que se machuque. Espero que você obtenha a resposta antes que fique muito fraca ou até mesmo doente.

Morainn esboçou um sorriso.

— Estou tão mal assim?

— Não, minha amiga. Apenas parece muito cansa­da. E acho que o que está tirando seu sono são as decisões que tem que tomar.

— Uma delas seria falar ou não com sir Tormand Murray?

Nora assentiu.

— Você contou que ele a defendeu na frente de todo mundo. Não é um bom sinal?

— Mas não significa que ele vai acreditar nas minhas visões e que podem ajudá-lo a encontrar o verdadeiro culpado pelos crimes. Como eu disse a Walin, sir Tormand talvez pense que estou apenas interessada em ir para a cama com ele. — Ela riu com Nora, mas logo em seguida ficou séria. — Tenho muito pouco para contar. A única coisa que vi foi uma faca com sangue, ouvi uma voz suave e fria, e senti um forte perfume, como aqueles que as damas da corte usam. Não é o suficiente. Tenho que conseguir mais dados para ajudar a prender esse louco. Ou sir Tormand seria tão amaldiçoado quanto a voz em meu sonho sussurrou que ele fosse.

— Os rumores estão aumentando — disse Tormand, enquanto seguia Simon e o enorme cachorro que tinha farejado outra trilha de sangue.

— Sei disso. Contudo, mesmo que maliciosos, são apenas rumores — Simon opinou.

— Não tente me tranqüilizar, Simon. A corda está cada vez mais apertada em meu pescoço, e ambos sabemos disso.

Quando o cachorro parou ao lado da cabana de um pastor de ovelhas, Simon encarou Tormand.

— É por isso mesmo que estamos usando nosso cérebro para resolver o problema. Precisamos de toda nossa inteligência e força para apanhar esse louco. Marie era uma boa mulher.

— Sim — concordou Tormand, sentindo tristeza em seu coração.

— E mesmo assim você foi para a cama com ela.

— Foi há muito tempo. Ela estava triste. O primei­ro marido tinha morrido fazia seis meses, e a solidão a torturava. A família dele tentava tomar tudo o que ele tinha deixado para ela. Marie brigava com eles todo santo dia. — Olhou para Simon e acrescentou com firmeza: — Não se tratou de sedução, e sim de conforto. E foi só uma vez. Ela contou tudo para o segundo marido antes que se casassem e ele a compreendeu.

— Isso explica por que ele não está espalhando boatos venenosos sobre você.

— Sim, no entanto os que vivem ao redor dele estão. Marie e eu continuamos amigos, embora nunca mais houvéssemos dormido juntos. Creio que a nos­sa amizade tenha sido o suficiente para que alguns tolos acreditassem que éramos amantes. É tudo minha culpa.

— Eu gostaria de dizer que não. Mas, de certa forma, a culpa é sua, sim. Você não é o tipo de homem que fica perto de uma mulher sem que os outros des­confiem de que a leva para a cama. O problema não é porque você dormiu com muitas, mas sim porque as conquista com muita facilidade. Não duvido de que alguns homens acreditem que você use algum truque ou até mesmo magia para ter tantas mulhe­res. Eles não sabem que você é apenas um homem comum, abençoado com a aparência que as mulheres gostam.

O comentário do amigo não agradou muito a Tormand.

— Obrigado, Simon. Você sabe como me consolar — disse com certo sarcasmo.

— De nada. — Simon respirou fundo. — Bem, já perdemos muito tempo. Vamos acabar logo com isto.

Dessa vez, foi pior do que Tormand temia, pois ele realmente gostava de Marie e considerava-a uma boa amiga. Sentia muito pelo marido dela também. Observando a mancha de sangue na roupa de Marie, sentiu lágrimas nos olhos. Rezou para que ela tivesse morrido rapidamente e não tivesse sentido tanta dor.

— Quero esse maldito morto — afirmou com voz dura. — E, antes que morra, desejo que sinta a dor e o medo que causou a essas pobres mulheres.

— É para isso que rezo todos os dias — respondeu Simon com o mesmo tom de voz, ao analisar o chão da pequena cabana.

Quando o amigo pegou alguma coisa do chão, Tormand se aproximou.

— O que você encontrou?

— Outro grampo de cabelo, feito de osso — respondeu Simon.

— Na cabana de um pastor de ovelhas?

— Muitas mulheres o utilizam.

— Está dizendo que qualquer um pode tê-lo derrubado aqui?

Simon concordou e saiu da cabana, seguido de perto por Tormand.

— É muito esquisito termos encontrado um grampo de cabelo nos lugares onde aconteceram os crimes.

Tormand olhou para o amigo, incrédulo.

— Acha que o culpado pode ser uma mulher? Sei que a mulher é capaz ser tão má quanto o homem, mas esses assassinatos requeriam força, não apenas para imobilizar as vítimas como para levá-las ao lugar onde seriam torturadas e depois conduzidas de volta para casa.

— Eu sei. Por isso, não acho que esses grampos indiquem o assassino. Trata-se de um quebra-cabe­ça. Talvez o bandido esteja matando essas mulheres porque eram adúlteras e deixa o grampo de cabelo como se fosse a sua marca.

— Mas por que as mulheres que levei para a cama?

— Essa é uma boa pergunta.

Tormand amaldiçoou aquela situação, enquanto tomavam o longo caminho de volta à cidade a pé. Ele rezou para que não houvesse mais crimes, pois não suportaria ver outro corpo. A culpa estava tirando o seu sono. Mesmo não encontrando nenhuma prova que o ligasse aos assassinatos, o fato era que todas as mulheres mortas tinham dormido com ele. Cada vez mais pessoas começavam a notar esse fato e as suspeitas iam aumentando.

Ao chegar em casa, ele se sentia exausto. Olhou para Simon e percebeu que o amigo não estava muito melhor. Tudo o que ele queria era um banho quente e roupas limpas. Em seguida, uma boa refeição e uma cama macia. Não tinha a menor dúvida de que Simon ansiava pelas mesmas coisas.

Ao abrir a porta, Tormand ouviu vozes. Entrou com expressão carrancuda. Conhecia bem aqueles sons. Sua família havia chegado.

— Aí está você! — Walter saiu da cozinha, carre­gando uma jarra de bebida. — Seus irmãos e primos chegaram. E não estão nada felizes.

Antes que ele pudesse dizer que não se importava, Walter desapareceu na grande sala. Tormand olhou para Simon, e, sem trocar uma palavra, os dois subi­ram a escadaria. Ele precisava tomar um banho e mudar de roupa antes de enfrentar o interrogatório familiar. Seria difícil convencê-los de que estava tudo bem com aquele cheiro de sangue e morte no corpo.

Uma hora depois, ele estava pronto. Seu instinto lhe dizia que não seria fácil esconder a verdade dos parentes, contudo faria o possível. Não queria que a mãe sofresse mais.

— Pronto? — perguntou Simon.

— Sim, acho que estou. Não os convidei, ainda mais sabendo que iam me encher de perguntas. Eles certamente estão aqui para meter o nariz na minha vida.

— Algumas pessoas seriam gratas por tal preocu­pação.

Tormand estreitou o olhar para Simon. Sabia que o amigo dizia a verdade, mas não estava com vontade de concordar. Simon não tinha quase ninguém para se importar com ele. Tormand, por sua vez, conside­rava-se abençoado pela família que tinha, mesmo que às vezes não quisesse tanta atenção.

— Eu só gostaria de saber como descobriram que estou em apuros.

— Tem certeza de que eles estão aqui por causa dos crimes?

— Sim. Não faz tanto tempo que nos vimos para que viessem me visitar.

No momento em que Tormand entrou na sala, todos se voltaram para ele. Os primos Rory e Harcourt pareciam se divertir. Os irmãos Bennett e Uillian demonstravam preocupação. Todos sabiam que ele não queria a família envolvida com seus problemas.

Ele lançou um olhar para Walter, que fingiu ino­cência.

— Acho que sei quem avisou minha família — sussurrou para Simon.

— Bem, não o mate agora — pediu Simon, divertindo-se com a situação. —Estou com fome e precisa­mos que ele cuide do jantar.

— Está certo. Vou matá-lo mais tarde. — Tormand endireitou o corpo, tentando parecer preparado para enfrentar a família.

 

— Precisamos sair daqui — opinou Bennett, no momento em que Tormand e Simon lhe contaram o que se passava. — Se você não estiver na cidade, não poderá ser acusado pelas mortes. Tudo o que precisa fazer é esperar que o criminoso seja preso, e o problema estará resolvido.

Era verdade, porém Tormand não queria concordar de imediato com o irmão mais novo. Estava dividido. Se ele era o motivo pelo qual essas mulheres estavam sendo mortas, partir talvez salvasse algumas vidas. Por outro lado, o assassino poderia segui-lo para onde quer que ele fosse e continuar cometendo os crimes.

Sentiu-se envergonhado ao perceber que existiam muito poucos lugares onde poderia se esconder, onde não houvesse mulheres que não tinham ido para a cama com ele ou que não fossem suspeitas de terem ido. Até mesmo as mulheres que trabalhavam na casa de sua família corriam perigo. Mesmo que nunca tivessem sido suas amantes. Era uma regra que ele seguia fielmente.

Partir parecia covardia. Ele sabia que o orgulho era motivo para a queda de um homem, mesmo assim não podia evitá-lo. E, caso fosse embora da cidade, também poderia aumentar a suspeita de que era cul­pado, principalmente se as mortes cessassem com sua partida.

— Não acho que seria uma boa idéia — opinou Simon. — Não ainda. Fugir nesse momento, poderia parecer que Tormand estaria fugindo da justiça. Pode ser que no futuro ele tenha de fato que se esconder. Nesse caso, já pensei em um lugar onde ele poderá ficar.

Tormand olhou para o amigo, surpreso.

— Você tem?

— Trata-se de uma sábia precaução — prosseguiu Simon. — As suspeitas sobre você estão aumentando com cada morte.

— Não posso acreditar que alguém realmente pense que eu tenha sido capaz de matar aquelas mulheres.

— Muitos não acreditam. Por isso, ainda não teve que fugir de uma multidão furiosa. Mas o fato de você ter sido amante das três vítimas está acabando com essa crença. E, como não estamos nem perto do assassino, tenho medo de que haja uma quarta morte.

— Mas se Tormand não estivesse aqui quando isso acontecesse... — argumentou Uillian, com os olhos verdes repletos de preocupação com a segurança do irmão.

— Como eu já disse, seria como se ele confessas­se a culpa — Simon o interrompeu, discordando da opinião do outro.

Tormand suspirou.

— Era no que eu estava pensando.

— É melhor que alguns desconfiem da inocência de Tormand do que a maioria o arraste para a forca. — Bennett tomou um grande gole de cerveja, numa tentativa de aplacar a raiva.

— Não permitirei que ele seja enforcado — asse­gurou Simon, calmo. — Tenho a fuga cuidadosamente planejada e não hesitarei em tirá-lo de cena caso seja necessário.

— E eu aqui pensando que você só estava comigo porque gostava de mim — Tormand murmurou.

Simon ignorou o comentário e continuou.

— Também existe a possibilidade de o assassino seguir Tormand e continuar com os crimes.

— Você também acredita que esses crimes estão ligados a Tormand de alguma maneira? — pergun­tou Harcourt, como um guerreiro pronto para a batalha.

— Não temos prova alguma, mas imagino que sim — respondeu Simon. — Há poucas mulheres na cidade que não foram para a cama com ele. — Sorriu quando Tormand resmungou, irritado, com o comen­tário. — E nenhuma delas foi morta. Por isso, acho que a coincidência está se tornando mais visível a cada dia. Dois maridos não acusaram Tormand abertamente, mas também não desmentiram os comentários maldosos. O único marido que poderia ajudá-lo está recolhido em casa, confortando os filhos pequenos.

— Quanto mais você fala, mais parece difícil desvendar esse mistério.

— Devemos apenas continuar a caçada. Mesmo tendo conseguido tão pouco com todo o nosso tra­balho, uma coisa aprendi durante todos esses anos de experiência profissional: um erro será cometido. Encontraremos algo que nos leve ao criminoso. Alguém vai ver ou escutar alguma coisa que irá nos ajudar a encontrar o meliante. Ou o assassino se tor­nará tão arrogante que ficará descuidado.

— Também podemos levar os grampos de cabelo que você achou para a bruxa Ross. Talvez eles sus­citem alguma visão a ela — propôs Walter, dando de ombros quando todos o encararam.

Simon tirou os grampos do bolso e os estudou.

— Não é uma má idéia, Walter, especialmente depois de Tormand ter visto a bruxa...

— Pensando melhor, talvez não seja bom. — Walter fez uma careta.

— Você a conhece? — Tormand questionou o escudeiro.

— Mas, primeiro — interrompeu-os Simon —, precisamos que faça uma lista das mulheres com quem se deitou nesta cidade e nos arredores, Tormand. Talvez daquelas que também viajam com a corte.

— Elas não irão gostar que eu revele seu segredo — argumentou Tormand.

— Acho que há muito pouco o que esconder sobre suas diversões, meu caro. Eu mesmo poderia fazer uma lista só das fofocas que ouvi, porém algumas mulheres talvez tenham sido discretas. Sabia que elas consideram um prêmio ir para a cama com você?

Ele sentiu o rosto vermelho e olhou para os parentes assim que os ouviu rir.

— Farei uma lista, mas não esta noite. — Tormand tornou a se voltar para o amigo.

— Tem razão. Esta noite devemos descansar.

Mesmo precisando dormir, Tormand só conseguiu ir para a cama bem tarde da noite. Egoísta, manteve o quarto só para ele, deixando que os outros homens se arranjassem pela casa. Aproveitou o momento de solidão para organizar os pensamentos e se livrar da frustração da caçada a um assassino que parecia ser feito de fumaça.

No fundo, ele sabia que logo teria que se esconder. Simon era bom em resolver quebra-cabeças e ainda assim não encontrara nada que os levasse à solução dos crimes. Haveria outra morte, disso ele não tinha dúvida, e continuariam até que ele fosse declarado culpado.

Cobriu os olhos com o braço e tentou esquecer aquela história. Um sorriso se formou em sua boca quando a imagem de Morainn Ross apareceu em sua mente, excitando-o.

Fazia tempo que uma mulher não lhe despertava o interesse com um simples pensamento. Era melhor sonhar com ela do que com sangue e morte.

 

Tormand tirou a roupa de Morainn e beijou cada parte do corpo dourado. Saboreou os suspiros de prazer que escapavam dos lábios macios e sentiu a leve pressão dos dedos finos em seu couro cabeludo. Um pequeno grito de surpresa escapou da boca sen­sual quando ele a acariciou nos seios, primeiro com as mãos depois com a boca. O calor do desejo fez com que os olhos azuis adquirissem o tom esverdeado do mar durante uma tempestade. Ele se sentiu hip­notizado diante de tanta beleza. Quando se prepa­rava para unir seu corpo ao dela, tudo começou a mudar.

A escuridão os envolveu. O corpo cálido de desejo em seus braços se transformou em um cadáver cober­to de sangue. Os belos olhos escurecidos pela pai­xão desapareceram, e ele olhava para dois buracos negros. Uma voz suave e fria perguntou, rindo, se ele gostava de sua nova amante.

Tormand se levantou tão rápido da cama que quase caiu. Estava molhado de suor e respirava com dificuldade. Como ninguém invadiu seu quarto, sig­nificava que ele ao menos se manteve em silêncio durante o pesadelo. Foi até uma pequena mesa perto da lareira e se serviu de um pouco de vinho. Precisou de mais de uma caneca da bebida para que o coração voltasse a bater normalmente e as mãos parassem de tremer.

Antes de retornar para a cama, ele trocou a roupa suada. A primeira parte do sonho era fácil de enten­der. Ele achava Morainn fascinante. Era o final que o deixava preocupado. Teria sido fruto dos horrores que ele vira? Ou pior, seria um aviso do que estava por vir? Do que sua atração por Morainn poderia causar? Ele rezou para que estivesse enganado, pois não era de resistir facilmente a uma tentação.

Aos poucos foi relaxando e esperando o sono chegar. Imaginou se a bruxa Ross realmente tinha visões. Ao segurar algo, ela poderia mesmo ver alguma coisa? Se fosse verdade, ela poderia ajudar Simon e ele a encontrar o assassino. Precisariam mantê-la por perto, protegê-la. E, com aquela mulher por perto, ele duvidava de que resistisse à tentação de conquistá-la.

Morainn sufocou o grito na garganta, ao se sentar tão rápido na cama que chegou a ficar tonta por um momento. Pegou a caneca de sidra que estava na mesa de cabeceira e tomou o líquido refrescante. Levou um bom tempo para que seu coração voltasse ao ritmo normal.

Se esses sonhos continuassem, ficaria tão cansada que não conseguiria fazer os serviços de casa mais sim­ples. Tinha medo de que começasse a evitar dormir.

Colocou a bebida de lado, ajeitou-se debaixo dos cobertores e tentou criar coragem para voltar a pegar no sono. A visão de seu corpo sem vida, mutilado e sem os olhos era uma imagem difícil de ser esquecida.

Todo esse terror depois do adorável ato de amor com Tormand... Ela quase podia sentir o toque da boca quente sobre seus seios. Para uma virgem, esta­va tendo sonhos ardentes demais com sir Tormand Murray.

Ainda bem que não costumava vê-lo com freqüên­cia, pois seria difícil resistir à atração que sentia por ele.

E pagaria muito caro se sucumbisse àquela fraqueza. Tremeu só de pensar. Estava certa de que o final do sonho tentava alertá-la de que, se fosse para a cama com Tormand, sofreria o mesmo que as outras mulheres. Tais idéias, provavelmente tinham sido fruto da conversa que tivera com Nora naquele dia.

Morainn sentiu que os gatos se aconchegavam a ela e deu as boas-vindas ao calor que ofereciam. Ela duvidava de que um homem como Tormand Murray viesse a desejá-la e não sabia o motivo daqueles avisos.

Bem... no fundo, ela sabia. Podia negar o quanto quisesse, mas a verdade aparecia em seus sonhos. Quanta estupidez! Tormand era um homem arrebata­do pelos pecados da carne e, se os rumores fossem verdadeiros, ele não fugia das tentações.

Após anos se resguardando, apesar da profunda solidão, não seria muito esperta caso se entregasse a um homem como ele.

De olhos fechados, afagou o grande gato amarelo, que estava deitado sobre sua barriga. Lentamente, ela começou a relaxar, a respiração foi ficando mais tranqüila e, por fim, o sono chegou. De manhã, deci­diria se deveria procurar sir Innes e sir Murray para falar sobre as visões.

Tal decisão requeria uma mente descansada, pois o verdadeiro perigo não consistia em que não acre­ditassem nela, e sim que poderia passar muito tempo na companhia de um homem que estava destinado a fazê-la pecar, muitas vezes e com grande entusiasmo.

Um barulho chamou a atenção de Morainn, enquan­to alimentava as galinhas. O gato malhado subiu no baixo muro de pedra que cercava o rústico galinheiro. Os pelos do animal estavam eriçados e as orelhas, alertas.

Ela olhou na mesma direção que o gato, porém não viu nada. Mas continuou atenta, William podia ser apenas um gato, mas seus sentidos não se enganavam, era o aviso de uma possível ameaça.

Já estava terminando o serviço no galinheiro quando ouviu o som de cavalos se aproximando, e seu coração acelerou.

— Walin — ela chamou o menino que jogava bola atrás da cabana. — Entre em casa agora.

— Quer que eu me esconda? — ele interrogou ao apanhar a bola.

— Sim, até eu descobrir quem são os cavaleiros que se aproximam e o que querem de mim.

— Talvez você deva se esconder também.

— Já me viram. Vá.

Assim que o garoto desapareceu dentro da cabana, Morainn se dirigiu à frente da casa para receber os inesperados visitantes. Ficou espantada quando os gatos se reuniram ao seu redor. Eles pouco poderiam ajudar na luta contra seis homens, no entanto ela não mandou os felinos embora. Afinal, uma garra afiada poderia ajudá-la a se livrar de um tolo que pensasse que ela se venderia por uma moeda ou duas.

Quando os cavaleiros chegaram mais perto, ela os reconheceu. Sir Tormand foi até ela. Alguém teria contado a ele sobre as visões? Ele a procurava para pedir ajuda? Se fosse assim, seria fácil contar o que ela vira em seus sonhos. A presença de sir Simon ela podia entender, mas não a dos outros quatro homens. Isso a deixou inquieta.

— Srta. Ross — Simon a cumprimentou, com uma reverência. — Fique tranqüila, não viemos lhe causar problema.

— Não? — Ela acreditava nele, mas mesmo assim perguntou: — Então, por que vieram em tantos homens?

Tormand lançou um rápido olhar a seus acompa­nhantes.

— Eles insistiram em dizer que precisaríamos de proteção durante a jornada até aqui. — Encarou-a. — Porém, a verdade é que estão apenas curiosos.

— De ver uma bruxa? — Ela observava os quatro belos homens. — Vai me apresentá-los?

Tormand deu um suspiro tão pesado, que ela quase riu. Morainn foi apresentada aos dois irmãos, Bennett e Uillian, e depois aos primos de Tormand, Harcourt e Rory. Todos constituíam uma verdadeira tentação aos olhos de uma mulher, e ela se sentiu meio agitada com a situação. As fofocas sobre aquela visita, provavelmente, seriam difíceis de ser suporta­das. Deixando de lado a preocupação, convidou-os a entrar na cabana e chegou a duvidar de que homens tão altos e fortes pudessem caber lá dentro.

Antes que pudesse cruzar a soleira da porta, Tormand foi parado por William.

— Esse deve ser o maior e mais forte gato que já vi. — Ele se abaixou para acariciar o bichano.

— Cuidado, senhor. William não gosta de homens — Morainn avisou, admirada quando percebeu que o felino recebia o carinho atrás das orelhas sem recla­mar. — Que estranho — murmurou, torcendo para que aquilo não fosse um sinal, já que ela não queria confiar em Tormand.

— Talvez ele não tenha gostado dos homens que encontrou antes. — A voz de Tormand soou amigável. No entanto, ficou pensando quem seriam os outros homens que tinham se aproximado do animal.

Ele não gostou nada da idéia de imaginá-la com outro, como se sentisse ciúme. Não duvidava de que ela tinha problemas com a atenção indesejada de homens que achavam que uma mulher sozinha esta­va disponível, ainda mais uma mulher pobre e sem família. Mas será que ela estava comprometida com alguém?

Ele bem que queria uma resposta para aquela per­gunta, mesmo que não gostasse. Não se importava de desejá-la, mas não queria que ninguém mais sentisse o mesmo. Não se incomodava com a origem humil­de nem com as superstições que pesavam sobre ela, contudo não estava pronto para mudar seus costumes. Só queria uma amante e nada mais. Tinha apenas trinta e um anos e não precisava de herdeiros. Contava com alguns anos ainda para pensar a respeito.

Quando o pequeno Walin lhe foi apresentado, Tormand teve que se conter para não franzir o cenho. De olhos azuis e cabelos negros, o menino se parecia muito com Morainn, mas não era isso que o preocu­pava. Havia alguma coisa no garoto que o lembrava alguém. Contudo, ele não conseguia identificar quem.

Logo todos estavam ao redor da mesa, saboreando biscoitos de aveia e mel, e com uma caneca de sidra nas mãos. Enquanto conversavam, Tormand viu os primos e os irmãos flertarem com Morainn. Ficou tão aborrecido que pensou não ter sido uma boa idéia ter vindo vê-la. Então, ela o fitou nos olhos, e seu coração disparou, satisfeito.

Não era nada bom. Infelizmente, ele não tinha como evitar o que começava a sentir. Como se esti­vesse caindo na mesma armadilha que seus familia­res, numa daquelas que o coração de um homem não conseguia escapar.

— É bom ter companhia para quebrar o tédio do dia — ela disse com um sorriso — mas não acredito que tenha vindo até aqui somente para apresentar sua família, sir Tormand.

— Não, ainda mais porque não os convidei a me acompanhar — esclareceu ele. — Decidiram que eu precisava de proteção e grudaram em mim.

Morainn sentiu uma pontada de inveja. Embora Tormand os encarasse, contrariado, ela tinha certeza de que ele se importava com os parentes. O laço entre eles era muito forte. E ela nunca tivera uma família de verdade. O pai a abandonara logo depois do nas­cimento e a mãe acabou perdendo o interesse em ser carinhosa com a filha. Ela nunca tinha machucado Morainn, mas também não demonstrara nenhuma afei­ção. Morainn havia crescido se sentindo um fardo.

Tentou se livrar daquelas lembranças, afinal a mãe nunca deixara que lhe faltasse comida à mesa, nem roupas e muito menos um teto para morar. Ela tam­bém a tinha ensinado tudo o que sabia sobre a arte da cura, a única coisa capaz de despertar a paixão de Anna Ross. Aquele conhecimento permitiu que Morainn ganhasse a vida depois de ter sido expulsa da cidade. Por tudo isso, era muito grata à sua mãe. Embora não houvesse sido agraciada com uma famí­lia amorosa como a de Tormand, tinha conseguido mais do que muitas pessoas.

— Ouvimos comentários sobre suas visões — comentou Tormand, pensando se tratar de uma maneira muito pobre de começar uma conversa, mas não tinha outro jeito de explicar por que estavam ali.

Morainn sentiu medo de admitir tal fato, no entanto se lembrou de que ele a defendera uma vez.

— Sim, às vezes. Visões, sonhos, pesadelos. Chame como quiser.

— Eles a fazem gritar durante a noite — interveio Walin.

— Bem, nem sempre. — Ela deu um biscoito ao menino na esperança de que ele se calasse. — Não consigo ter uma visão só porque alguém precisa. Elas vêm quando querem. E às vezes não são claras quanto ao que pretendem me transmitir.

— Não tenha medo de ser franca conosco — dis­se Tormand ao perceber que ela hesitava. — O clã Murray tem pessoas com esses mesmos dons, mulhe­res em sua maioria. — Ele ouviu os familiares mur­murarem, concordando. — Não a consideramos uma bruxa somente porque tem esse tipo de sonho.

Ela olhou para os outros homens e viu que Tormand não estava mentindo. Eles a observavam em silêncio, com uma certa compaixão nos olhos, como se entendessem exatamente como era difícil ter um dom como aquele.

Algumas pessoas achavam que era uma dádiva de Deus, e não algo do demônio. Entretanto ela nunca tinha encontrado ninguém que o admitisse em sua linhagem. Percebeu que havia orgulho na expressão de Tormand quando ele falou a respeito.

— Então, por que não procurou as mulheres de sua família? — ela indagou.

— Se alguma delas tivesse visto alguma coisa, eu teria sido informado. Muitas sentiram que eu teria problemas, que eu podia estar em perigo, mas só.

Era difícil não pedir mais informações sobre a família dele e seus dons, porém ela resistiu.

— Por que você não vai embora da cidade?

— Porque eu iria parecer culpado e o assassino me seguiria de qualquer maneira. Eu não conseguiria impedi-lo de cometer outros assassinatos, apenas os deslocaria para outro lugar.

— Tem razão. Em meus sonhos, descobri que esses crimes estão relacionados a você, mas que não é o assassino. Eu o vejo perto do sangue, mas suas mãos estão limpas. Infelizmente, isso não é suficiente para defendê-lo de possíveis acusações.

— Sabemos disso, srta. Ross — Simon manifes­tou-se por fim. — Não queremos que a senhorita fale diante de pessoas que acreditam ver a mão do diabo em tudo que não entendem. Mas esperamos que nos ajude a encontrar o culpado. Três mulheres estão mortas e não temos a menor idéia do motivo nem de quem vem cometendo essas barbaridades. Precisamos desesperadamente de alguma pista a ser seguida.

— Quer que eu conte os meus sonhos? Não vejo nenhuma pista neles, senhor. O rosto desse monstro nunca apareceu para mim se é o que o senhor está querendo saber.

— Não, estamos aqui para saber se a senhorita tem o dom que todos comentam na cidade.

— Então por que vieram?

— A habilidade de tocar algo e enxergar a verdade.

 

Morainn olhava os três grampos de cabelo que sir Simon lhe mostrava com muito cuidado. Odiava qualquer coisa que tivesse ficado perto da morte, tragédia ou violência. As visões que tinha nessas ocasiões eram raramente agradáveis. Ficou com medo das imagens que aqueles utensílios suscitariam em sua mente. Os sonhos que vinha tendo já eram ruins o suficiente.

— Onde os encontrou? — ela perguntou embora já imaginasse a resposta. — Não são grampos comuns, e sim peças finas que apenas as damas da sociedade usariam.

Simon a observou antes de responder:

— Encontrei-os onde os crimes foram cometidos.

— As mulheres foram mortas na cama?

— Não. Teoricamente foram torturadas em outro lugar e trazidas para suas respectivas casas e colo­cadas na cama quando já estavam mortas ou quase mortas. Os grampos podem pertencer a mulheres que estiveram naqueles locais por algum motivo qualquer e talvez não estejam relacionados às mortes.

As mãos de Morainn tremiam só de olhá-los. Seus instintos lhe diziam que essa seria uma daquelas vezes em que considerava seu dom uma maldição. Ela se assustou quando Tormand a segurou pela mão. O ros­to masculino demonstrava preocupação, mas não foi isso que a deixou sem fôlego. O toque dos longos dedos lhe irradiaram um calor pelo corpo, que ela teve que fazer um grande esforço para se afastar. A súbita ternura naqueles olhos lindos e incomuns lhe diziam que ele sentira o mesmo.

— Só posso ter uma visão se tocá-los, — Ela torceu para que todos pensassem que a insegurança em sua voz fosse por causa do medo do que poderia ver em breve.

— A senhorita não precisa fazê-lo... — ele disse sem entender o motivo, já que era o maior interessado.

Tormand precisava das respostas que ela poderia lhe dar. A princípio, duvidara de que ela visse alguma coisa somente ao segurar objetos, agora não mais. O medo de Morainn era real. Por isso, ele relutava em forçá-la. Mesmo que três mulheres tivessem morrido e ele fosse o principal suspeito.

— Sim, preciso. Mulheres estão morrendo. Elas podem ter pecado, mas acho que não mereciam a crueldade que sofreram. Além do mais, todos estão começando a suspeitar de você, não estão?

— Sim — ele respondeu. — Porém, se esses gram­pos foram tocados pelo assassino, sua visão não será nada agradável.

— Exato, mas esse louco deve ser pego. Que tipo de pessoa eu seria se não fizesse alguma coisa para impedir tais atrocidades? Não é para isso que serve um dom? — Ela encarou Simon. — Dê-me apenas um para começar.

Ele colocou um dos grampos na mão delicada. Morainn pensava nos seis homens de expressões preocupadas à sua volta quando, de repente, foi envia­da ao inferno.

As imagens vinham tão rápido e com tanta força que era como se alguém estivesse dando pancada em seu cérebro. Emoções fortes e ruins a atingiam, fazen­do com que seu coração batesse mais rápido.

Medo. Dor. Ódio. Fúria. Prazer. Esse último sen­timento fez o estômago de Morainn ficar embrulha­do. Havia loucura também envolvendo a dupla que infligia tais horrores a uma pessoa. Facas brilhavam e o sangue escorria. Morainn tentou evitar o cheiro de sangue e de morte, mas foi em vão.

Ela tremia violentamente, e não conseguia soltar o grampo. Então, procurou se concentrar na sombra das duas figuras que se moviam sob uma névoa espessa. Ela podia ouvir os gritos da vítima em sua mente, e viu quando os assassinos se curvaram, prontos para causar mais dor à pobre criatura.

Por fim, ela pressentiu a presença de alguém for­te, musculoso e de ombros largos. Também notou a fragrância marcante que detectara em seus sonhos, vinha de uma mulher frágil e pequena. De repente, avistou uma faca apontada para lindos olhos verdes, arregalados e cheios de terror, em um rosto coberto de sangue.

Morainn não podia agüentar mais. Com um grito, enfim conseguiu soltar o grampo. Teve a sensação de que ia vomitar quando braços firmes a envolveram, ajoelhada ao chão e gemendo. Um balde apareceu na sua frente, e ela colocou para fora todo o veneno produzido por aquela visão.

Quando conseguiu algum controle sobre seu estômago, ela estava muito fraca para fazer qualquer coisa além de se apoiar no homem que a segurava por trás. Ainda meio zonza, percebeu que Simon se encontrava ajoelhado ao seu lado, limpando gentil­mente seu rosto suado com um pano úmido. Alguém fez com que ela bebesse um pouco de sidra. De relan­ce, ela viu que um dos homens confortava Walin.

Os sentidos começaram a voltar lentamente, e Morainn ficou envergonhada ao constatar que estava nos braços de Tormand. Um dos homens levou o bal­de para fora. Se não estivesse tão fraca, ela correria para se esconder no quarto. Quase não conseguia suportar tanta humilhação.

Não disse nada quando Tormand a colocou de pé e a levou para se sentar à mesa. Foi incapaz de olhá-lo quando ele se acomodou ao seu lado, segurando-a de leve pelo braço. Ela queria fugir daquela mão quente, mas não podia. Após algumas mordidas em um peda­ço de pão com manteiga, achou-se mais forte para falar com clareza. Seus olhos se fixaram na mesa, incapaz de encarar ninguém. Massageando a testa dolorida, pensou em como contar a eles o que vira.

— Alguma das mulheres perdeu os olhos? Eram verdes?

— Sim — Tormand respondeu, chocado. Tal per­gunta provava que Morainn, de fato, tinha visto parte do assassinato. — Isabella Redmond.

— Jesus! — Ela estremeceu e tomou um gole de sidra para se acalmar. — Eu jamais adivinharia o que sir William quis dizer quando falou que ela foi morta cruelmente.

— Sinto muito que agora você tenha uma idéia melhor do que a pobre Isabella sofreu. — Tormand notou que Walin estava assustado. — Talvez não devêssemos tratar desse assunto na frente do menino.

Morainn se recriminou por ter ignorado a presença do garoto.

— Querido, é melhor você ir brincar lá fora — ela propôs a Walin, — Temos um assunto muito, sério a ser discutido agora.

— Está se sentindo melhor, Morainn? — Walin interrogou, já se levantando para sair.

— Sim, estou melhorando a cada minuto. — Assim que o garoto se foi, ela se voltou para os homens.

— Vi uma faca apontada para um par de olhos verdes num rosto coberto de sangue, com muitos cortes. Minhas visões não costumam ser muito precisas. — Ela não queria se deixar levar pelo toque suave da mão de Tormand em suas costas.

— Viu o assassino? — indagou Simon. Ela endireitou o corpo e o encarou.

— Sim e não. Vi que duas pessoas torturavam a vítima. Um homem e uma mulher.

Os homens se mostraram chocados. Ela também havia ficado surpresa, mas não tanto quanto eles. Era difícil acreditar que as mulheres fossem capazes de cometer tamanha maldade, que tinham um desejo assassino. Na verdade, uma mulher podia ser tão perigosa quanto um homem.

— Uma mulher ajudou o criminoso? — perguntou Tormand, incrédulo.

— Sim. O grampo de cabelo é dela. O outro tam­bém deve ser. Não sei se caíram ou se ela os tira de propósito.

— Como se desejasse deixar sua marca, talvez — concluiu Simon.

Algo no olhar de aço de sir Innes dizia que ele já estava trabalhando nesses novos fatos, tentando montar o quebra-cabeça. Ela gostaria que houvesse mais homens como Simon no mundo, assim pessoas inocentes não morreriam na forca.

— Por que ela deixaria uma pista? — questionou Harcourt. — E por que um objeto tão comum que ninguém conseguiria entender o que ela estaria ten­tando dizer?

— Esses grampos não são comuns — repetiu Morainn, corando quando todos olharam para ela.

— São feitos de chifres de veado e têm um pequenino desenho.

Simon estudou os grampos e praguejou.

— Maldição, como não vi isso! Tem razão, um grampo comum não teria um desenho entalhado. Isso custa dinheiro. O desenho parece uma rosa.

— O perfume — interveio Tormand.

Morainn o fitou, tão surpresa que quase engasgou.

— Sabe de quem é?

— Não, é que tive um sonho a noite passada sobre essas mortes e senti um perfume...

A maneira como a fitava deu a entender que ele havia sonhado com algo mais além das mortes, porém ela tentou se concentrar no significado de sua visão. Mais tarde, pensaria por que o homem pelo qual se sentia atraída, provavelmente, havia tido o mesmo sonho que ela. Foi difícil não corar ao se lembrar do que acontecera no sonho antes que este se tornasse um pesadelo.

— A fragrância era tão forte que chegava a ser nauseante — ela acrescentou.

— Exatamente. Você a sentiu também? — ele indagou.

Ela anuiu com a cabeça, concentrando-se na parte ruim do sonho.

— Em todos os sonhos que tive. Apenas pensei que fosse uma maneira de saber que era uma mulher que estava sendo morta. A voz que ouvi no sonho não era muito clara para que eu pudesse perceber se era de um homem ou de uma mulher. Em um dos sonhos a mão que segurava a faca com sangue era pequena e delicada.

— Conseguiu ver o rosto do casal de assassinos? — perguntou Simon.

— Não muito bem. Cada sonho me dá mais deta­lhes. O perfume, a voz e depois a mão. A visão que tive tocando o grampo me mostrou muito mais. — O medo do que ainda poderia ver fez o sangue de Morainn gelar. — Talvez, se segurar o outro, eu descubra qual­quer outra coisa que possa ajudar a encontrar esses assassinos.

Simon sorriu gentilmente para ela.

— Não hoje. Pelo que percebi, essas visões afetam seu corpo e sua mente. Descanse um ou dois dias, então tentaremos novamente. Vou separar o grampo que a senhorita já segurou.

— Mas outra mulher poderá morrer enquanto esperamos.

— Sim, existe essa possibilidade, porém o seu dom não será de grande ajuda se a senhorita não estiver bem. Descanse. Voltaremos amanhã se achar que é capaz de tocar outro grampo. Agora se concentre nos sonhos e nas visões que teve. Talvez haja algum detalhe importante que tenha ficado esquecido.

Morainn não achou que um dia fosse o suficiente para que se recuperasse, mesmo assim concordou. Teve que admitir que, no fundo, empenhava-se mais pela segurança de Tormand Murray do que pelas mulhe­res mortas. Odiava pensar que estava sendo guiada por um rosto bonito.

Algum tempo depois, ela estava na porta de casa, com o braço ao redor dos ombros de Walin, observando os homens partir. Todos se despediram galantemente, mas era a imagem de Tormand que havia ficado na mente de Morainn. O olhar que ele lhe lançara fez com que o coração solitário batesse com um misto de medo e ansiedade. Se ela não quisesse acabar como as mulheres que tinham sido mortas, era melhor que resistisse ao charme daquele homem.

— O dom é verdadeiro — Simon comentou, enquanto cavalgava ao lado de Tormand.

— Ou talvez esteja mais para uma maldição. A srta. Ross viu os assassinos de Isabella tirando os olhos da pobre moça.

— Sim, embora não perfeitamente, graças a Deus. Estou relutante em pedir que ela toque outro grampo. No entanto temos pouquíssimas pistas. Quem quer que esteja cometendo esses crimes é muito esperto ou sortudo.

— Dizem que loucura e inteligência estão separa­das por uma linha tênue — interveio Bennett. — Só acho difícil acreditar que uma mulher esteja envol­vida nessa sujeira. Sei que elas podem ser cruéis, mas empunhar uma faca? E duro de aceitar.

— E ainda assim faz sentido — concluiu Harcourt, e os outros olharam para ele. — Pelo que vocês me disseram, as três mulheres mortas tiveram sua bele­za destruída. Só uma mulher entenderia o que isso significaria para outra, quem sabe até mesmo o ódio pela beleza alheia. Além do mais, um homem num momento de raiva ou ciúme destruiria o rosto ou o corpo, mas duvido de que percebesse como os cabe­los são importantes para uma mulher e os cortaria, como ocorreu nesses casos.

— Talvez você tenha razão — falou Simon. — Também concordamos que há algo insano por trás dessas mortes, e quem pode entender a mente de um homem ou de uma mulher atormentados pela loucura?

Tormand não prestava muita atenção à conversa. Seu pensamento estava voltado para a mulher que acabara de deixar, e não às palavras dela. Ele tinha certeza de que os dois haviam tido o mesmo sonho na noite anterior. Nunca acontecera algo assim com ele, porém sabia que devia ter algum significado impor­tante que o deixava inquieto. Era como se um elo houvesse se formado entre ele e Morainn Ross, e não estava interessado em nenhum tipo de compromisso amoroso.

O fato de se sentir fortemente atraído por uma mulher tornava o sexo melhor, mais quente. Ele já havia desejado uma mulher fortemente, mas nunca só de tocá-la na mão. Por um lado, ele desejava possuir Morainn, descobrir como seria tê-la nua entre os lençóis. Por outro, gostaria de poder esporear seu cavalo e ficar ornais longe possível dessa mulher.

— Eu apreciaria se você não tentasse seduzir essa moça.

A voz de Simon arrancou Tormand de seus pensa­mentos, o que foi bom, pois uma parte de seu corpo já se excitava. Ficou feliz por ver que os familiares cavalgavam mais à frente e não tinham ouvido o que Simon disse.

Por um momento, zangou-se com o amigo por ousar lhe dar tal aviso. Contudo, acabou admitindo que o merecia. Ele pensava em seduzir Morainn. De fato, queria voltar para a cabana onde ela morava e levá-la para a cama o quanto antes. Talvez estivesse tão ansioso para possuí-la, pelo fato de fazer alguns meses que não se deitava com uma mulher. Andava meio confuso. Mas pensaria nesse assunto mais tarde, no momento outra questão o atormentava.

— Você a quer? — perguntou, não muito surpreso com o tom de possessividade em sua voz.

— Eu não a ignoraria se ela sorrisse para mim, porém não é disso que estou falando. Ela já tem problemas suficientes na vida sem que você a acres­cente em sua lista de conquistas. Ainda mais agora. Se alguém realmente deseja acabar com você, matan­do as mulheres que estiveram em sua cama, dormir com Morainn Ross colocaria mais do que a virtude e o coração dela em perigo. Principalmente a virtude. Porque não creio que o garoto seja filho dela como muitos afirmam.

— Também não acredito nessa história. Tormand ficou arrepiado com as palavras de Simon, e sentiu medo de que ela fosse tirada de sua vida antes que descobrisse o que realmente significava para ele.

De uma maneira inexplicável, Morainn e ele esta­vam ligados, tinha certeza disso. Assim como estava certo de terem tido o mesmo sonho naquela noite, e imaginou se ela os teria visto fazendo amor. Será que havia sentido o mesmo calor que ele?

Ele tinha a sensação de que seus dias de liberdade estavam chegando ao fim. Sempre achara bobagem o romantismo entre casais. Por precaução, costumava evitar as mulheres que pudessem fazê-lo sentir mais do que desejo. O fato de ter gostado de Marie havia sido uma das razões que o levara a se afastar dela, antes que uma simples noite de prazer se transformas­se em algo mais. No entanto, alguma coisa lhe dizia que não poderia escapar de Morainn.

Tentou se convencer de que era apenas porque ela possuía um dom que poderia ajudá-lo, mas não funcionou. Estava atraído por ela de uma maneira que não podia entender. E não era apenas o fato de ela ser bonita que o fazia desejá-la.

Lutar contra aquele sentimento era mais uma prova de que ele tentava fugir. Mesmo relutante em mudar seu modo de vida, não era tolo o suficiente para se afastar da mulher que talvez fosse seu destino.

Então, lembrou-se da lista que Simon pedira e quase gemeu. Era possível que ele nem precisasse se preocupar em afastar Morainn. Seu passado poderia fazer isso por ele.

— Por que você não acredita que o garoto seja filho dela? — Simon retomou a conversa. — Ele tem cabelos pretos e olhos azuis como os da srta. Ross.

— Mas não são iguais — respondeu Tormand. — Claro que uma criança herda os traços físicos de ambos os pais, até mesmo de um ancestral, mas ainda assim é possível notar a semelhança com a família. Porém, não foi o que vi em Walin. Além do mais, ele a chama de Morainn, e não de mãe. Por que ela faria esse tipo de jogo se o mantém por perto e sabe que todos na região pensam que o garoto é seu filho?

— É verdade. E fico imaginando quem seriam os verdadeiros pais da criança...

— Não sei, embora haja algo estranhamente fami­liar nele.

— Talvez você deva checar aquela sua lista.

— Ah, a lista! Talvez eu deva mostrar a ela a lista dos meus pecados. Uma simples olhada faria com que qualquer mulher com um pouco de inteligência ficasse bem longe de mim. — Tormand sentia pena de si mesmo, mas então a intenção de Simon com aquela sugestão ficou clara. — O que você quer dizer com isso?

— Um homem que passou tanto tempo plantando sua semente pode ter produzido algo.

— Sempre fui muito cuidadoso e nunca plantei nada.

— Tenho a impressão de que muitos pais dizem a mesma coisa.

Antes que Tormand pudesse responder, Simon adiantou seu cavalo e foi falar com Harcourt. Um turbilhão de pensamentos passavam pela mente de Tormand, e o comentário do amigo serviu apenas para fazer com que se sentisse pior.

Não havia a menor possibilidade de que Walin fos­se seu filho. Ele sempre tomara precauções, mesmo quando estava bêbado. A maioria das mulheres que tinham ido para a cama com ele, principalmente as da corte, sabia muito bem como evitar uma gravidez.

A palavra "maioria" de repente chamou sua aten­ção. Recusava-se a acreditar que uma de suas aman­tes pudesse ter tido um filho seu e não lhe contara.

Simon tinha razão. Muitos pais provavelmente pen­savam que haviam sido cuidadosos, certos de que não tinham feito nenhum filho. Não fora sua mãe que certa vez dissera que somente o celibato evitava o nascimento de uma criança? Uma condição que ele nunca praticara, desde os catorze anos, quando Jenna, filha de um oficial, havia lhe dado o primei­ro gosto dos prazeres da carne. Exceto nos últimos meses...

Agora a dúvida estava plantada em sua cabeça. Não havia como voltar à feliz ignorância ou à simples negação. Além de ter que caçar um brutal assassino e tentar manter o pescoço longe da forca, ele devia descobrir tudo o que pudesse sobre Walin. Se tivesse alguma chance de o garoto ser seu filho, não poderia ignorá-la.

Precisava descobrir a verdade de uma maneira ou de outra, o que o aproximaria mais de Morainn. O destino estava jogando com ele, e ele estava perdendo.

 

Com o coração aos pulos, Morainn abriu os olhos. Sentia-se como quando tinha uma visão, enfra­quecida pelo esforço que a deixava de joelhos. Tinha ido para a cama cedo e dormira profundamente. No entanto, alguma coisa a despertara. Algo que a fizera sentir muito medo.

Então, ouviu um rosnado. A lua iluminava o quar­to o suficiente para que visse que seu gato William estava na cama, com o pelo todo arrepiado. Ele olha­va fixamente para a porta, e ela podia jurar que os olhos do bichano brilhavam. Ao observar ao redor, percebeu que os outros gatos também estavam tensos.

Foi então que ela ouviu um barulho do lado de fora do quarto. Agarrando a faca que mantinha debaixo do travesseiro, levantou-se bem devagar, procurando não fazer qualquer ruído. Em algumas ocasiões, tolos haviam tentado entrar ali, querendo roubar o que ela se recusava a entregar de bom grado. Eles tinham saído de lá punidos e sangrando. Contudo, seu instinto lhe dizia que dessa vez seria diferente.

Enquanto a porta se abria, ela sentiu o perfume adocicado de rosas e seu coração ficou apertado de medo. Tentou controlar o pânico que ameaçava domi­ná-la e se encolheu na cama. Se as visões que tivera estavam corretas, ela estava prestes a se encontrar com a mulher e o homem que queriam matá-la.

Pensou em Walin e, mesmo com o medo aumen­tando dentro dela, encontrou força e determinação. Sabia que, se o garoto acordasse, esses monstros o matariam sem nenhum remorso. Com sorte, ela poderia passar por eles rapidamente, pegaria Walin e então fugiria. Uma vez fora da cabana, teria muitos lugares onde se esconder até que esses assassinos desistissem de caçá-la. Rezou para que conseguisse fugir nem que fosse só pelo bem de Walin.

Um empurrão terminou de abrir a porta e a voz de seus sonhos sibilou:

— Devagar, seu idiota!

— Não é necessário, milady — disse ó homem grande, parado à porta. — Ela está acordada. Com certeza nos escutou.

Morainn amaldiçoou a escuridão que a impedia de vê-los melhor quando a mulher apareceu do lado dele. Ela era pequena e delicada. No entanto, Morainn podia ver o brilho de uma faca em sua mão.

Minha faca é maior, pensou enquanto decidia qual dos invasores atacaria primeiro. Algo lhe dizia que devia ser a mulher, pois o homem se preocuparia em ajudá-la, dando-lhe a chance de sair pela porta que ele bloqueava.

Entretanto, William decidiu por ela. Para sua sur­presa, o gato não atacou o homem como ela esperava, mas pulou na direção da mulher, que gritou quando o animal pousou em sua cabeça, arranhando-a e rosnando, enfurecido. O homem correu a ajudar a mulher, que tentava desesperadamente se livrar do animal.

Morainn valeu-se desse momento e correu em direção à porta. Uma mão enorme a alcançou, e ela a atingiu com a faca enquanto corria. Um grito abafado indicou que ela tivera sucesso em sua investida.

Um sonolento Walin estava parado em frente ao próprio quarto. Ela agarrou o menino e o empurrou para a escada, gritando:

— Corra! Vá se esconder!

O garoto não hesitou em obedecer, acordado o suficiente para saber que corria perigo.

Morainn sentiu dor quando uma mão grande e forte a agarrou pelo pescoço, puxando-a para cima. Ela se contorceu nos estreitos degraus e atacou com sua faca de novo. Atingiu o homem uma segunda vez. Num momento de fúria ele a empurrou, e ela foi rolando escada abaixo e quase derrubou Walin.

Teve vontade de ficar deitada no chão, gemendo de dor, porém não podia se permitir a esse luxo. Levantou-se, pegou Walin pela mão e o conduziu para fora da cabana, correndo em direção à floresta.

— Quem são eles? — o menino questionou num sussurro, escondendo-se em um buraco, próximo às raízes de uma velha árvore.

Ela se ajeitou perto do garoto ao tentar recuperar o fôlego.

— São pessoas malvadas, meu querido. Agora fique quietinho porque podem estar atrás de nós.

Morainn imaginava que essas pessoas estavam atrás dela porque queriam fazer o mesmo que haviam feito com as outras três mulheres. Só que ela nun­ca tinha sido amante de Tormand. Ela jamais o vira antes, a não ser em seus sonhos, até o dia da morte de Isabella Redmond. E ninguém sabia que ele e seus companheiros tinham ido visitá-la.

A não ser que os assassinos estivessem vigiando Tormand. Ao pensar na possibilidade, sentiu um cala­frio percorrer seu corpo, mas não se mexeu com medo de que as folhas ao redor os denunciassem. Tormand precisava ser avisado a respeito. Se sobrevivesse, ela lhe contaria suas suspeitas.

O som de vozes alcançou seus ouvidos, e ela se encolheu ainda mais dentro do buraco. Escutou o barulho de cavalos e ficou satisfeita, pois se os assassinos estivessem cavalgando, seria mais difícil de ela e Walin serem descobertos.

— Tem certeza de que aquela fera maldita está morta? — indagou a mulher com a mesma voz fria que assombrava os sonhos de Morainn.

— Sim, milady. Joguei-a contra a parede, e ela não estava se mexendo quando partimos.

Morainn sentiu uma forte dor no coração, mas ten­tou não ficar triste com a morte de William. Precisava se concentrar e ouvir o que aqueles dois diziam. Quem sabe deixassem escapar alguma pista de quem eram. Queria que eles fossem pegos e enforcados.

E não apenas porque eram assassinos, mas também por invadirem sua casa para matá-la e colocar a vida de Walin em risco, além de terem matado seu gato. Ela nunca sentira tanta raiva na vida.

— Quero aquela bruxa morta.

— Em breve ela será, milady. Mas talvez não esta noite.

O homem falou num tom suave, embora sua voz fosse rouca e profunda, mostrando que tinha muita experiência em controlar a mulher.

— Deveríamos usar um cachorro — ela propôs. — Dunstan poderia farejar aquela prostituta.

— De fato ele tem ótimo faro, mas já estaria muito claro para a busca quando o trouxéssemos aqui. E a senhora precisa cuidar desses machucados. Eu tam­bém não me importaria de cuidar dos meus. Aquela mulher tinha uma faca muito grande e a manejava com habilidade.

— Ela não pode viver. Dizem que tem um dom, que pode ver a verdade. Seria o nosso fim. Innes usaria esse dom para nós encontrar e não terminei minha missão ainda. Aquele maldito Tormand tem que pagar por tudo o que me fez sofrer, por toda a humilhação que passei. Eu não teria me casado se não fosse por ele, e ele tem que ser punido por isso. Também por escolher todas essas prostitutas, e não a mim.

— Mas não sabemos se ele foi para a cama com a bruxa.

— Você viu como ele olhou para ela na casa dos Redmond.

— Sim, mas hoje foi a primeira vez que ele a visitou e não estava sozinho.

— Não importa. Ele quer que ela seja mais uma de suas conquistas. Está atraído por ela, si disso. Talvez Innes esteja interessado na ajuda que a bruxa possa lhes oferecer, mas Tormand quer levantar as saias dela. Eu a quero morta antes que ela vá para a cama com ele. Não quero que ele sinta mais prazer nenhum. Desejo que ele seja humilhado, condenado e enforcado.

Àquele era o tom de uma criança mimada, que tinha sido forçada a fazer o que não queria, pensou Morainn. Como aquela mulher era capaz de matar na calada da noite sem que o marido notasse sua ausência? A menos que ele tivesse sido uma de suas vítimas. Ela tentou não se distrair com seus pensa­mentos.

— Milady, ainda está sangrando. E eu também. Estamos deixando uma trilha que qualquer criança poderia encontrar e seguir.

— Temos que apanhar aquela bruxa. — A mulher estava nitidamente descontrolada.

— Nós a acharemos, Tem a minha palavra. Agora, por favor, acalme-se. Mas, antes, devemos nos limpar, descansar até que nossos ferimentos se curem o sufi­ciente, para não chamar a atenção das pessoas, então voltaremos,

— Eu a quero morta! — a mulher insistia. — Ela contará a Innes sobre nós e vai fazer com que sejamos capturados. Não podemos deixar que ela nos veja, Small.

Morainn ainda podia ouvir o homem tentando acalmar a mulher, enquanto os dois se afastavam. Minutos se passaram e ela continuou imóvel, pen­sando em tudo o que escutara. Estava marcada para morrer por algo que nem tinha feito. Tormand sequer a beijara. Ele era tão devasso que bastava olhar para uma mulher para que todos acreditassem que ela logo estaria esquentando sua cama? No fundo, Morainn sabia que a mulher não a queria morta pelas informa­ções que as visões poderiam fornecer, e sim porque um homem a olhara com desejo. Aquilo só comprova­va a insanidade da criminosa.

— Eles foram embora, Morainn — sussurrou Walin.

— Devemos ficar aqui mais um pouco, querido. Eu não conseguiria enfrentar aqueles dois numa luta.

— Por que querem matá-la? Você não conhecia sir Tormand até hoje.

— Eu sei, querido. Mas isso não significa nada para aqueles dois.

— Quanto tempo vamos ter que ficar aqui?

— Até que o sol nasça. Será mais fácil de encon­trarmos o caminho de volta para casa. Além do mais, se eles estiverem escondidos ao longo do trajeto, nossa chance de vê-los será bem maior e teremos mais chance de fugir.

— E se tiver alguma fera por perto e pensar que somos comida?

— Bem, primeiro, essa fera vai ter dificuldade em nos encontrar aqui. Depois, tenho uma enorme faca. — Ela sorriu ao notar que o menino relaxava quan­do o aconchegou em seus braços. — Descanse, meu amor. Eu o manterei a salvo. — Rezou para que con­seguisse cumprir aquela promessa.

— Acha que aquele homem matou mesmo William?

— Não sei, querido. Só saberemos quando chegar­mos em casa. Se ele o matou, nosso William morreu como um herói. Ele atacou a mulher, e enquanto o homem a ajudava, eu saí correndo.

— Se William estiver morto, vou enterrá-lo no jardim. Ele adorava brincar lá.

— É verdade. Daremos ao nosso corajoso bichano um lindo enterro. Agora descanse, meu bem.

— Tenho que fazer minhas orações primeiro.

Ela abraçou Walin, enquanto o menino rezava pela segunda vez aquela noite. Morainn o ouviu pedir a Deus que deixasse William viver ou pelo menos desse ao gato um jardim no céu. Ficava feliz por o garoto pensar nos gatos como seus amigos. Mas era muito triste saber que o melhor amigo de Walin era um gato e que ele não tinha outras crianças para brincar. Ninguém queria que o filho bastardo de uma bruxa brincasse com seus filhos. Morainn o deixava com Nora quando tinha que ir à cidade, e na casa dos Chisholm não havia crianças. Era uma vida triste, porém ela não sabia como mudá-la.

Walin adormeceu assim que terminou de rezar. Ela também gostaria de dormir um pouco, porém o medo a manteve acordada. Havia a chance de aquela mulher de voz gelada e aquele homem enorme volta­rem a caçá-los, auxiliados por um cachorro.

O problema agora era que sua cabana não era mais segura. A única saída seria encontrar outro lugar para ficar até que os criminosos fossem presos.

Mas para onde ela iria com Walin? Não podia pedir abrigo a Nora nem aos poucos amigos que tinha, pois poderia colocá-los em perigo. Pensou por um breve momento em pedir proteção ao proprietário das terras onde ela morava, sir Kerr, porém logo desis­tiu da idéia. O senhorio havia sido bom com ela ao permitir que ficasse com o menino na propriedade. No entanto, duvidava de que ele os aceitasse em sua casa. Sem mencionar que corriam boatos de que ele era mais devasso que Tormand.

Talvez devesse pedir ajuda a Simon e Tormand. Afinal, eles precisavam dela. Por outro lado, ela ficaria muito perto do homem que lhe despertava emoções nunca sentidas. Ele era uma tentação e a melhor maneira de se conter era ficando distante.

Tormand provavelmente tinha muita dificuldade em evitar as tentações, o que tornava a situação mais difícil. Se ele tentasse seduzi-la, ela não resistiria. Pedir a ele que a protegesse colocaria sua virtude em risco. Contudo, não pedir ajuda poderia colocar sua vida e a de Walin em perigo.

Era uma decisão muito difícil e ela estava cansada. Ainda sentia o gosto amargo do medo em sua boca para decidir alguma coisa naquele momento.

Tormand cavalgava ao lado de Simon enquanto controlava a vontade de continuar a discussão que haviam tido durante o café da manhã. Embora achasse que seria muito perigoso para Morainn ter outra visão, Simon tinha razão quando dissera que precisa­vam tentar.

Mas não era apenas esse motivo que o fazia hesi­tar quanto a ir até a cabana de Morainn. O orgulho o impedia de admitir, porém estava com medo de ficar muito perto dela. Quando estava longe, podia se convencer de que o desejo que sentia por ela era o de um homem que estava sem uma mulher havia algum tempo, mas, quando olhava para aqueles belos olhos, ele não conseguia se enganar.

No fundo, sabia que ela era sua alma gêmea. E, se quisesse continuar com a vida que levava, o melhor seria ficar o mais longe possível de Morainn. Só que precisava capturar os assassinos.

Não sabia que decisão tomar. Morainn era bonita, mas ele já tinha levado para a cama mulheres muito mais bonitas do que ela. Embora não acreditasse, não podia ignorar o fato de que os outros achavam que Walin era o filho bastardo dela. Ele também desco­brira que ela pagava uma quantia muito pequena a sir Kerr, para morar naquela cabana e cuidar das terras ao redor. Como diziam que sir Kerr era considerado um mulherengo, era natural que ele imaginasse que houvesse alguma coisa entre os dois. E isso o deixava com ciúme.

— Se ela ainda estiver pálida e fraca, não insis­tirei em que toque outro grampo hoje — explicou Simon.

— Acho que essas visões não fazem bem à saúde nem à mente de Morainn.

Harcourt aproximou-se de Tormand para dar sua opinião:

— As mulheres não são tão fortes quanto os homens.

— Espero que você não diga isso para as mulheres de nosso clã.

Sorrindo, Harcourt negou com a cabeça.

— Eu disse que são fracas, mas podem ser covardes ou más. Tremo só de pensar no que fariam comigo se me ouvissem dizer essas coisas.

— Pelo menos você tem um pouco de juízo debai­xo de todo esse cabelo. — Tormand sorriu para o outro. — Como eu estava muito ocupado discutindo com Simon durante o café da manhã, esqueci-me de perguntar, se você ouviu alguma coisa interessante quando foi até a cidade a noite passada.

— Não, nada. Eu teria dito. Só encontrei muita cerveja e algumas mulheres.

O modo como Harcourt evitou olhá-lo fez Tormand ficar preocupado.

— Harcourt, você sempre foi um péssimo mentiroso. Diga lá, o que escutou?

— Conversas. Nada mais do que isso. Apenas tolices. A doce Jennie mandou-lhe lembranças. — Ele deu uma piscadela para o primo.

Tormand praguejou. Harcourt não contou o que estavam dizendo sobre ele nas tavernas e nos prostí­bulos. O que era muito fácil de adivinhar. Os comen­tários de que ele era o assassino cresciam a cada dia e se espalhavam pela cidade como uma praga.

Estava prestes a interrogar o primo sobre o que estavam falando sobre ele, quando viu a cabana de Morainn. A porta estava aberta, e ele ficou apreensi­vo. Sem pensar, acelerou o galope. Ouviu quando os outros também se apressaram.

Desmontou antes mesmo que o cavalo parasse, e ia entrar quando tropeçou numa pedra manchada de sangue. Estava dividido entre gritar por Morainn ou ficar ali parado, com medo do que poderia ver se seguisse em frente. Foi Simon quem passou por ele apressadamente.

Tormand ficou agradecido por nenhum de seus parentes seguir o amigo. Isso fez com que ele não parecesse tão covarde.

— Ela não está aqui — informou Simon. — Nem o garoto. Há sangue no quarto dela, mas não muito.

— Também não havia muito no quarto das outras mulheres — Tormand argumentou num fio de voz.

— Acha que os assassinos estão com Morainn? No entanto, ela não é sua amante e nunca foi, vocês se encontraram pela primeira vez outro dia.

— Sim, e na frente da casa de Isabella. Os criminosos poderiam estar em meio à multidão, observando-nos,

— É possível — Simon concordou, pensativo. — Mas onde está o corpo de Morainn? Eles levaram as mulheres à noite e as trouxeram de volta antes do amanhecer. Acho que você pensa como eu.

— Sim.

— Então, meu amigo, onde está o corpo?

— Por que não pergunta a eles? — desdenhou Harcourt, apontando para a floresta.

Tormand olhou na direção indicada por Harcourt e viu Walin e Morainn se aproximando. Sentiu-se tão aliviado que quase caiu de joelhos. Logo notou que ambos vestiam roupas de dormir e que Morainn carregava uma faca na cintura.

Com medo do que pudesse dizer ao abrir a boca, ele esperou que alguém dissesse algo. Mas seus parentes e Simon se mantiveram em silêncio. Morainn parecia amedrontada e embaraçada enquanto cami­nhava, mas também nada disse. O silêncio começou a irritá-lo. Seus sentimentos estavam confusos e tinha certeza de que pareceria um completo tolo se falasse.

 

— William!

O grito de felicidade de Walin quebrou o tenso silêncio. Tormand se virou para ver o enorme gato deitado à soleira da porta. O garoto abraçou o animal, e Morainn correu na direção de ambos. Ela se agachou ao lado do felino e, com delicadeza, pro­curou algum ferimento.

Depois de ouvir os dois elogiando o gato um bom tempo, Tormand decidiu que era hora de saber por que ela estava andando de camisola pela mata e por que havia sangue do lado de fora e dentro da cabana.

— O que aconteceu? — ele finalmente perguntou. Walin, com o gato no colo, olhou para Tormand e respondeu:

— Uma mulher e um homem grande entraram na casa ontem à noite e tentaram matar Morainn, mas ela tinha uma faca debaixo do travesseiro. E William atacou a mulher, ajudando eu e Morainn a escapar. Então nós corremos até nos escondermos debaixo de uma árvore, só que eles seguiram a gente e chegaram bem perto. Mas eles não viram a gente. Então eles foram embora porque os dois estavam sangrando e o homem disse que eles precisavam cuidar dos machu­cados. Ele também disse que tinha jogado William na parede e que o matou porque ele tinha arranhado a mulher louca. Só que como você pode ver, ele não morreu. Eu e Morainn ficamos escondidos debaixo da árvore por muitas horas, e quando voltamos para casa, eu ainda estava muito assustado. — Ele olhou para Morainn. — Eu preciso dar leite para o William porque ele foi muito corajoso.

Morainn teve que se controlar para não rir da expressão dos homens. Quanto será que eles haviam entendido o que o menino tinha dito? Walin falara tão rápido que mal tomara fôlego. Ela se levantou, limpou a camisola e viu que estava rasgada.

— Senhores, Walin e eu tivemos uma noite muito longa — ela começou, — Se nos derem um momento para que troquemos de roupa, ficarei feliz em contar o que aconteceu em detalhes. Há pão, carne, cerve­ja e sidra na cozinha. Sirvam-se à vontade. Walin e eu não vamos demorar. — Ela pegou a mão do meni­no e o puxou para dentro da cabana.

— Quero dar leite a William — protestou Walin.

— Você fará isso assim que se lavar e trocar de roupa.

— Estou feliz por não ele não ter morrido.

— Eu também, querido.

Tormand entrou, enquanto observava Morainn e Walin desaparecer pela escada que levava aos quartos, então encarou Simon.

— Você entendeu tudo o que o garoto disse? Simon riu e rumou para a cozinha.

— Mais ou menos. Ajude-me a arrumar a comi­da porque acho que aqueles dois devem estar com fome.

— Ela disse que tinha carne?

— Sim — Simon franziu o cenho, — Um alimento muito caro para uma simples curandeira ter em casa, mas não acredito que ela tenha roubado. Quem sabe ganhou de alguém. Levando em consideração que sou um dos homens do rei, que jurei servir a lei, ela é esperta o bastante para saber que não deveria me dizer que tem carne roubada. O cozinheiro do proprie­tário destas terras deve ter dado a ela.

— É bem possível. — O relacionamento entre Morainn e sir Kerr era um assunto que Tormand não queria pensar.

— Mal posso acreditar no que esse gato fez — interveio Harcourt ao pegar uma jarra de cerveja e colocá-la na mesa.

Olhando para o bichano sentado num banco, Rory entrou na conversa: — Ele atacou uma mulher.

— Você entendeu tudo o que o menino disse?

— Algumas coisas. Fiquei tentando entender como alguém consegue se esconder debaixo de uma árvore.

Enquanto colocavam a mesa, discutiam qual a aparte da história de Walin chamou mais a atenção, e Tormand olhou para Simon.

— E o que prendeu sua atenção além da capacidade do garoto em falar rápido?

— O homem e a mulher — respondeu Simon. — Eu realmente não queria crer que uma mulher estivesse envolvida nessas atrocidades — disse Simon. — Cheguei até a duvidar da visão de Morainn quanto a esse respeito. Um erro que não cometerei novamente. Será que essa mulher participou dos crimes? É a líder ou uma seguidora? Pelo visto, não são infalíveis já que Morainn conseguiu escapar.

— Ela estava com uma faca enorme — acrescentou Tormand,

— E um gato feroz. — Simon ficou sério de repen­te. — Esses malditos devem estar nos observando. É a única explicação para que tenham vindo atrás da srta. Ross, logo depois de nossa visita. Se eu não estivesse absolutamente certo da honra dos que nos acompanham nessa caçada, procuraria um traidor entre nós.

O amigo tinha razão, e Tormand sentiu medo por Morainn.

— Então, devemos convencê-la a vir conosco. Ela não pode ficar sozinha nesta cabana, não até que esses bandidos sejam apanhados.

— Concordo, embora não goste da idéia de dei­xar uma mulher bonita como Morainn em sua casa, Tormand.

— Santo Deus! Não sou um animal no cio, Simon! — Tormand suspirou e foi em direção à porta, sentindo como se tivesse levado um tapa na cara.

— Acho melhor eu ir cuidar dos cavalos.

Simon se arrependeu do comentário. Tormand era um bom homem, mas nos últimos tempos parecia ter perdido o rumo. Ele precisava assumir o controle de suas necessidades e de seus desejos ou em breve teria problemas.

— Acha que fui muito duro? — ele perguntou a Harcourt.

— Não. Ele tem agido como um animal há alguns anos. — Harcourt deu um breve sorriso quando os parentes riram. — Mas peço que não seja tão direto.

— Diminuindo o tom de voz, prosseguiu: — Não creio que a criança seja de Morainn nem que ela seja amante de sir Kerr.

Simon entendeu porque Harcourt estava falando baixo e fez o mesmo:

— Significa que ela é uma mulher virtuosa e já tem muitos problemas na vida. Não precisa de outro, o que aconteceria se tivesse um caso com Tormand.

— Eu concordo com você e sei que ela não é mãe do menino. Ele já tinha dois anos quando alguém o deixou na porta da casa de Morainn. No meio de uma noite fria. Foi um milagre que ele não tenha morrido.

— Como descobriu tudo isso?

— Perguntando. E sir Kerr nunca a visita, nem mesmo vem receber o aluguel. Ele manda o cozinhei­ro em seu lugar. Você sabia que sir Kerr tem olhos azuis e cabelos pretos?

— É com esse seu rosto bonito que você consegue todas essas informações de forma tão rápida, não é? Só não entendo seu interesse nessa história.

— Morainn é a alma gêmea de Tormand, embora ele lute contra esse fato.

O sorriso dos outros Murray dizia a Simon que eles concordavam com aquela estranha afirmação.

— Alma gêmea? — ele questionou.

— Sim. Os Murray acreditam na relação de um homem e uma mulher que foram feitos um para o outro.

— E você acha que Morainn Ross é a mulher ideal para Tormand? Ele acabou de conhecê-la!

— Não importa. Pode ser rápido. Meu pai diz que lutou muito contra essa idéia, negou o máximo que pôde, mas acabou trazendo sua Gisele da França para a Escócia. E Tormand foi atingido pelo Cupido com força.

Pensando na maneira como o amigo vinha agin­do desde que colocara os olhos em Morainn, Simon achou que havia alguma verdade no que Harcourt lhe dizia.

— Talvez seja apenas desejo.

— Em minha opinião, é mais do que isso. Não reparou no rosto de Tormand quando viu sangue na soleira da porta, imaginando que Morainn poderia estar morta no interior da cabana? Ele ficou aterro­rizado. Aposto que ele não agiria dessa maneira com outras mulheres. Não, especialmente, levando-se em conta que ainda nem a beijou.

— Não, ainda não — Simon teve de admitir. — Mas Tormand e eu tivemos uma discussão pela manhã.

Ele não queria que viéssemos para cá, e tal fato vai contra o que você acabou de dizer.

— É óbvio. Ele não queria ficar tão perto dela. Ele é esperto o suficiente para saber, ou pelo menos suspeitarão que essa mulher significa para seu futu­ro, o fim da vida de solteiro e conquistador. Ele dá sinais de ciúme, praticamente voou sobre a mesa quando ela quase caiu por causa da visão, continuou a segurá-la mesmo quando Morainn já tinha melho­rado e ele quase desmaiou quando viu o sangue do lado de fora da cabana. Sim, ele está se envolvendo rápido.

— Então, ficarei quieto. Mas se ele abusar da con­fiança da srta. Ross ou da necessidade de proteção da pobre, não espere que eu fique quieto,

— Justo, mas somente depois que colocarmos um pouco de bom-senso naquele cabeça-dura.

Olhando para a expressão de felicidade dos Murray, Simon riu. Ele não tinha certeza se acreditava naque­la história de pessoa ideal ou alma gêmea, embora fosse um pensamento agradável. Explicava por que os Murray nunca arranjavam casamento para seus filhos, algo considerado muito estranho pelas outras pessoas. Quando questionados, eles apenas respon­diam que queriam que seus filhos fossem felizes. Como muitos Murray conseguiam bons e vantajosos casamentos, alguns acreditavam que o clã fazia arran­jos ou negociações, por isso conseguiam tão boas alianças.

Ele também se lembrou de que o clã era conhecido por ser composto de esposas e maridos fiéis.

Tinha que admitir que Tormand vinha agindo de maneira estranha desde que encontrara Morainn Ross. Não houvera sorrisos sedutores nem os comen­tários lisonjeiros que costumavam atrair as mulheres para a cama do amigo. Houvera, sim, muita preocupa­ção com a saúde e o bem-estar da srta. Ross.

Simon se recordava perfeitamente de como Tormand tinha ficado aterrorizado ao ver sangue na soleira da porta da cabana. E o amigo não hesitara em entrar na casa das outras mulheres mortas, incluindo a casa de Marie. Nem mesmo quando já imaginava o que encontraria lá dentro.

Definitivamente, havia algo entre Tormand e Morainn. Por enquanto, ele não pretendia intervir. Seria divertido observar o grande amante acabar no caminho do amor e do casamento. Simon só queria ter certeza de que Morainn não sofreria com os erros e a incapacidade de Tormand de ser fiel a uma mulher. Ela já tinha assassinos em seu encalço, e não precisa­va de mais problemas.

Tormand terminou de inspecionar os cavalos e deixou o estábulo. Era um lugar grande e bem cuidado por uma mulher que não era da nobreza nem tinha família. Assim como aquela cabana. O proprietário das terras, sir Adam Kerr, fora muito generoso com uma garota órfã, apesar dos comentários do povo da cidade. Tormand era grato por isso, embora não conseguisse parar de pensar por que aquele homem havia tomado tal iniciativa. Poucas pessoas conheciam sir Kerr e não falavam muito sobre ele. Boatos diziam que era um pecador, que tinha um harém igual aos do oriente. O simples pensamento de que Morainn fizesse parte desse harém deixou-o com os dentes cerrados de raiva.

Ele respirou fundo, tentando se acalmar antes de voltar à cabana. Aquele não era o momento de investigar o que havia entre Morainn e o senhor de Dubhstane. Não tinha dúvida de que o casal que ata­cara Morainn queria matá-la. Era seu dever mantê-la segura. Além disso, o dom que ela possuía poderia ajudar a capturar os culpados.

Parou à entrada da cabana e observou o sangue que ali estava. Só de pensar no corpo de Morainn, na cama, o rosto desfigurado, os adoráveis olhos frios e sem vida, ficou apavorado.

Ele precisava encarar o fato de que estava enfeitiçado pela bruxa de olhos azuis como o mar num dia de verão. Evitou fugir do que poderia ser seu destino e entrou.

Justo quando ia perguntar o motivo que os homens estavam rindo, Walin desceu correndo as escadas e tropeçou no último degrau.

Tormand foi mais rápido e pegou o garoto antes que ele caísse. Walin sorriu e ele sentiu um estra­nho aperto no coração. Não conseguia se livrar da sensação de que havia algo familiar naquele menino.

— Obrigado, sir Tormand — agradeceu Walin.

— Deve tomar mais cuidado. — Ele detestou reconhecer o quanto seu tom de voz parecia com o do pai.

— Eu sei, mas preciso dar leite a William.

Após um breve olhar em direção à escadaria, para verificar se Morainn vinha descendo, Tormand seguiu o menino até a cozinha. Ao entrar, teve a prova de que sir Kerr presenteara Morainn com uma bela casa.

Ele observou o garoto servir o leite numa tigela de madeira. O gato pulou do banco e foi degustar a recompensa. Como em um passe de mágica, outros três gatos apareceram na cozinha, mas um rosnado do gato maior manteve os outros afastados. Um feliz Walin serviu um pouco de leite em outra tigela para os recém-chegados.

— William vai ficar muito gordo.

O som daquela doce voz imediatamente atraiu o olhar de Tormand. Morainn deu um sorriso tímido para ele, que ficou excitado no mesmo instante.

— Obrigada por colocar a mesa — ela agradeceu, meio desconfortável, sob os olhares de seis homens. — Walin, venha se sentar, por favor. — Ela se assus­tou quando Tormand a segurou pelo braço. — O que foi?

Ele afastou a trança negra e olhou de perto o machucado que vira de relance quando ela virou a cabeça para chamar o menino.

— Onde conseguiu isso? Parece a marca de uma mão.

— Ah... O homem me agarrou por trás quando eu descia as escadas, mas o golpeei com a minha faca e ele me soltou. — Ela sentiu a aproximação de alguém e olhou por sobre o ombro.

Simon examinou a mancha arroxeada no pescoço de Morainn.

— O homem tinha uma mão muito grande — ele concluiu.

— Ah, sim. Ele tinha — Walin afirmou ao se sentar à mesa. — Era gigante!

— Sente-se, srta. Ross — pediu Simon. — Conte-nos o que aconteceu enquanto come. Estou certo de que está com fome.

Ela se acomodou e ficou um tanto desconcertada quando Tormand se sentou a seu lado. A proximidade daquele homem fazia seu corpo tornar-se dormente. Harcourt sentou-se do outro lado e começou a ser­vi-la. Estar entre dois homens maiores do que ela fazia com que se sentisse protegida. Com uma olhada sobre a mesa, avistou Walin sentado entre Simon e Rory, que colocavam comida no prato do menino. Era muito bom o modo com que cuidavam dela e de Walin. Decerto ela sentiria falta quando perdesse toda aquela atenção.

— Antes que você comece a sua história — come­çou Rory, seus olhos âmbar brilhando com humor —, eu preciso saber de uma coisa. Como você se escondeu debaixo de uma árvore?

— Bem, quando eu vim morar aqui a lembrança de como minha mãe foi morta ainda era muito viva. Com medo de que uma multidão viesse atrás de mim, eu procurei lugares onde pudesse me esconder na flo­resta. Então encontrei uma grande e velha árvore com raízes grossas que surgiam do chão, onde só precisava cavar um pouco. Aquilo era o suficiente para que pudesse me esconder.

— Inteligente, considerando que a senhorita era apenas uma criança. — Simon a elogiou.

— Até mesmo uma criança entende a necessidade da sobrevivência.

— É verdade. Então, senhorita, se puder falar e comer ao mesmo tempo, eu gostaria muito de saber o que aconteceu com você.

Durante a refeição, ela relatou tudo o que havia acontecido, exceto a conversa entre os assassinos na floresta. Era algo que devia ser discutido cuidado­samente. Ela tinha certeza de que Simon analisaria cada palavra.

— O homem tinha pés grandes — Walin acrescen­tou quando Morainn terminou o relato. — E o cavalo dele era enorme também, com uma perna branca.

— Você estava espiando? — Morainn perguntou com uma súbita raiva.

O menino poderia ter sido visto, e ela não teria muito o que fazer.

— Só com um olho, Morainn. Não me mexi nem levantei a cabeça — ele se defendeu, envergonhado.

— Qual perna do cavalo era branca? — Simon quis saber.

— A perna direita, da frente — Walin informou, parecendo incerto.

— Notou alguma outra coisa?

— Não. O homem era muito grande e estava sen­tado num cavalo enorme, eu teria que me mexer para ver melhor.

— Então eles estavam bem perto de vocês. — Simon olhou para Morainn. — A senhorita disse que eles conversaram entre si, mas ainda não nos contou sobre o que falavam. Conseguiu ouvir bem?

— Sim, claramente. Eles estavam sangrando. William fez um baita estrago no rosto da mulher. Justiça divina. O homem tinha dois cortes, um na mão ou no braço. O outro pode ter sido no corpo, Eu o atingi com a faca duas vezes, mas não sei exatamente onde. Mas ele estava preocupado com os ferimentos da mulher e com o rastro de sangue que deixavam no chão.

— Algo mais? — insistiu Simon.

— Eles estão vigiando sir Tormand. — Ela o encarou rapidamente. A beleza dos olhos de cores diferentes fazia com que ela se sentisse feminina, desejável, e precisava manter-se calma para terminar de contar o que escutara. — Sabiam que você veio me ver e tinham certeza de que eu usaria meu dom para caçá-los. Ela me quer morta para que eu não possa ajudá-los.

— Mas por que estão cometendo todos esses cri­mes? — Tormand passou as mãos pelos cabelos.

— Ela quer que você pague pela humilhação e a vergonha que ela sofreu, sir Tormand. Disse que foi forçada a se casar por sua causa. Ela também quer puni-lo por ter escolhido outras mulheres e não ela. Chamou a todas de prostitutas. — Morainn sentiu vontade de abraçá-lo, confortá-lo, quando o viu ficar pálido.

— Então, é tudo minha culpa — ele murmurou com voz trêmula. — É por minha causa que essas mulheres estão sendo mortas.

— Não — interveio Harcourt. — Elas estão mor­rendo porque uma louca decidiu que você deve pagar pela infelicidade que a hostiliza. Muitas mulheres têm o coração partido ou são obrigadas a se casar com um homem de quem não gostam. Mas nenhuma delas sai matando as outras como se fossem rivais. Se ela quer culpar alguém pela sua desgraça, por que não começa pelo marido e pela família que a forçou a se casar?

— Harcourt está certo, Tormand. A mulher é louca — opinou Simon. — Você não pode se culpar pelo que ela faz. — Fitou Morainn. — E agora ela está com medo de ser descoberta por meio das visões da senhorita, não é?

— Sim. Ela não duvida de que sou uma bruxa. Como eu disse, ela sabe que os ajudarei a encontrá-la. — Morainn ficou vermelha. — Ela também acha que você me quer em sua cama, sir Tormand.

— Mas acabei de conhecer a senhorita — ele protestou.

Morainn não acreditava que esse motivo importas­se muito para um homem em se tratando de se deitar com uma mulher. E, pela expressão dos outros, ela percebeu que pensavam o mesmo.

— Essa mulher acredita que sim, apesar das dúvi­das do companheiro. Ela disse que o viu olhando para mim na casa dos Redmond. Se ela se importou com você algum dia, agora não se importa mais. Tudo o que ela quer é que seja enforcado.

— Deus — sussurrou Uillian. — Você tem que ir embora daqui agora, Tormand.

— Não! — Tormand quase gritou. — Não vou fugir. Mas prometo a você que se Simon disser que é a hora de me esconder, então o farei sem discutir, É tudo o que posso garantir. — Notou que o irmão mais novo não ficou feliz, mas assentiu com a cabeça. Virando-se para Simon, disse: — E, antes que pergunte, não faço a menor idéia de quem seja essa mulher. Nunca pensei em me casar e evitei todas as mulheres que tocaram nesse assunto.

— Isso não significa que nenhuma delas não tenha pensado nem desejado se casar — Morainn disse em voz baixa, sentindo que as palavras feriam seu cora­ção. — Essa mulher me lembrou uma criança mimada. Ela havia decidido que você seria o marido dela, não importando o que você pensasse a respeito. Ela deve ter feito algo muito tolo para chamar sua aten­ção, algo que você nunca ficou sabendo, e acabou tendo que se casar com um homem de quem ela não gostava.

— E tudo o que ela tem sofrido desde então é minha culpa? Não faz sentido.

— Claro que não, não para nós. Ela é totalmente insana.

— Não mencionaram nomes? — indagou Simon.

— Não — respondeu Morainn. — Num certo momento ela chamou o homem de Small, mas acho que não era seu nome verdadeiro. Ele a chamava apenas de "milady". E falaram sobre um cachorro cha­mado Dunstan. Não é muito, não é mesmo? Lamento.

— A senhorita não tem que se desculpar. Essas informações nos são preciosas. Se o tempo continuar bom, poderemos pegar o meu cachorro e seguir a trilha de sangue.

— O senhor não está perecendo muito confiante. Será que essa iniciativa os levará a algum lugar?

— Esses dois malfeitores são espertos. Eles ain­da não cometeram nenhum deslize. Descobrimos onde praticaram os crimes, mas a partir daí o rastro sempre desaparece — explicou Simon.

— Você tem consciência de que não está segura aqui? — Tormand perguntou a Morainn.

Sim, ela sabia, mas não podia fazer nada a respeito. Com todos olhando para ela, perdeu a coragem de pedir ajuda. Apesar de ter escapado por pouco, o orgulho às vezes falava mais alto que o bom-senso.

— Não posso simplesmente ir embora daqui — respondeu. — Tenho galinhas, gatos, uma vaca e o meu jardim.

— Nós a levaremos para minha casa — informou Tormand, taxativo.

Ela não queria admitir, mas estava morrendo de medo de ficar sozinha na cabana com apenas uma faca, um garoto e um gato temperamental para protegê-la.

Suas coisas foram recolhidas embora ela continuasse protestando. Os gatos foram colocados em duas pequenas gaiolas, presas às selas dos cavalos de Rory e Simon, para o desespero dos felinos. Walin não fez nenhum esforço para esconder que estava feliz com a oportunidade de andar numa grande montaria com Harcourt.

Quando Tormand conduziu Morainn ao cavalo dele, ela olhou para a cabana, sua casa nos últimos dez anos, e imaginou se voltaria a viver ali algum dia.

A respiração falhou quando Tormand a segurou pela cintura e a colocou sobre o animal. Ela arrumou as saias do vestido da melhor maneira possível. Toda vez que ele a tocava, ela sentia-se incendiar por den­tro. Após se acomodar atrás de Morainn, ele passou os braços pelas laterais do corpo esguio, segurou as rédeas e instigou o cavalo a trotar.

Morainn pensou se realmente estaria segura na casa daquele homem. Os assassinos. talvez não a pegassem lá, mas Tormand, sim. Ela estava certa de que ele poderia ser perigoso a sua maneira. Talvez saísse viva desse pesadelo, mas não com a alma e o coração inteiros.

 

Havia dois dias Morainn estava hospedada na casa de Tormand. Embora os homens saíssem muito, o ambiente nunca tinha estado tão quieto. Esse detalhe a fez se dar conta de que a torta que colocara para esfriar, àquela altura, já teria atraído Walin à cozi­nha. Ela não via o menino desde que haviam tomado o café da manhã juntos no grande salão, escutando os planos que os homens faziam. Com tantas pessoas para tomar contar do garoto, ela sabia que ele estava seguro. Mesmo assim, não vê-lo por tanto tempo a deixava temerosa. Decidiu procurá-lo.

Após andar por toda a casa, o único lugar que ficou faltando ir foi ao quarto onde Tormand guardava seus livros, uma espécie de biblioteca. Ela parou em frente à porta fechada, hesitante. Porém a necessidade de saber onde Walin estava era maior. Na verdade, ela se mostrava insegura porque Tormand se encontra­va lá dentro.

Desde quando ali chegara, eles só se encontravam durante as refeições. Era óbvio que ele a evitava. Aquilo a machucava, no entanto sabia que era melhor assim. Só queria que fosse o suficiente para que parasse de esperá-lo todos os dias. Sacudiu a cabeça, tentando afastar tanta tolice, e bateu na porta. Como não obteve resposta, ela chamou Tormand e girou a maçaneta devagar.

Ele observou a porta se abrindo e suspirou. Vinha fazendo o melhor que podia para esquecer o fato de que ele e Morainn estavam sozinhos em casa, a não ser pelos gatos. Mas seu melhor não fora o suficien­te, já que ele não tinha realizado muito do trabalho, considerando as horas que ficara naquele quarto.

Toda vez que pensava em um nome para acrescentar à lista que Simon o havia forçado a fazer, sua mente começava a imaginar Morainn nua, sob seu corpo, gemendo, enquanto ele lhe dava prazer.

A lista, ele pensou e olhou para o papel à sua frente, horrorizado. Quando Morainn entrou, ele já havia colocado o livro de contabilidade sobre a lis­ta e o abria para ter certeza de que sua relação de amantes estaria completamente coberta.

— Oh, desculpe-me! — disse Morainn, sem-graça. — Bati na porta e chamei, mas ninguém respondeu.

Ele se levantou e foi se encostar na lateral da mesa. Cruzando os braços, tentou não parecer tão culpado. Usar o corpo para bloquear a lista já escondida sob o livro era uma idiotice, mesmo assim ele não se moveu. Quanto mais mexia naquela relação de nomes, sentia-se cada vez menos um amante e mais um reles conquistador, como Simon havia dito. Não queria que Morainn conhecesse aquele seu lado.

— Demorei a responder porque estava ocupado — ele explicou. — Em que posso ajudá-la?

— Sabe onde Walin está agora?

— Uillian e Harcourt o levaram até a cabana para que pudesse fazer algumas tarefas.

Morainn ficou aliviada e pensativa também.

— Preciso arrumar alguém que se encarregue dos serviços por lá até que eu volte para casa. Não é cor­reto que você ou os outros tenham que levar Walin ou a mim...

— E você não deveria estar desempenhando as tarefas de uma empregada enquanto está hospedada nesta casa. — Mais relaxado, Tormand afastou-se da escrivaninha e foi até uma mesa de canto, perto das suas prateleiras de livros, onde havia uma garrafa de vinho e pequenas canecas.

— Já me desculpei pela loucura e a maldade daquela mulher maldita? — ele perguntou, servindo a bebida aos dois.

— Sim, você e todos os outros. Na verdade, o trabalho não me incomoda. Pelo contrário, me ajuda a manter a mente ocupada, para que eu não pense no motivo que me trouxe a esta casa.

— Minhas hóspedes não costumam executar trabalhos domésticos.. — Ele entregou uma caneca a ela. — Sente-se e tome um pouco de vinho comigo.

Morainn pegou a bebida e deixou-se levar até uma cadeira em frente à lareira. Ele se acomodou próximo a ela, com apenas uma pequena mesa entre ambos.

Ela saboreou a bebida de altíssima qualidade, que só as pessoas com muito dinheiro podiam comprar.

Sentiu prazer com a atenção que Tormand lhe dava, embora não fosse muito inteligente ficar tão perto dele, como se pertencessem à mesma classe social. Contudo, a vontade de vê-lo, de ser envolvida pelo calor de seus sorrisos e de deixar que a voz profunda a acariciasse eram muito mais fortes.

— Teve mais algum sonho?— ele perguntou.

— Não. E nenhuma visão com os assassinos.

Morainn torceu para que ele pensasse que o rubor que lhe cobria a face fosse de vergonha por estar sozinha comum homem, e não porque estivesse preocupada com os sonhos que andava tendo. Eram do tipo que a deixavam ardendo de desejo por ele. Apesar de nunca ter desfrutado da companhia de um homem na cama nem de ter sido beijada com volúpia, estava pasma com o fato de sua mente ser domi­nada por imagens de Tormand nu e de seus corpos entrelaçados. O que mais a perturbava era que podia sentir o calor do beijo e o toque das mãos experien­tes muito tempo depois de o sonho ter acabado. Só, de pensar no assunto, ela se sentia excitada, então tentou dizer algo que a distraísse:

— Estou curiosa de saber por que Simon não me pediu que segurasse outro grampo. — Sua voz tre­meu ao pronunciar o primeiro nome de sir Innes. Ela não se sentia à vontade com a informalidade com que todos insistiam em ser tratados. — Pensei que houvessem entendido quando eu disse que que­ria ajudar. — Forçou-se a continuar, apesar de se amaldiçoar por ter iniciado aquela conversa.

Tormand queria apenas saber por que ela enrubescia quando falava de seus sonhos. Ele vinha sendo atormentado por cenas tórridas durante o sono, que faziam com que acordasse excitado como nunca. Embora sentisse ciúme só de imaginar que Morainn tivesse amantes, tinha certeza de que ela ainda era inocente. Ele queria que fosse verdade, desejava ser o primeiro a lhe ensinar o prazer que um homem e uma mulher podiam compartilhar. Esboçando um sorriso pálido, voltou ao assunto em questão.

— Simon não quer que você sofra com outra visão, apesar de termos ido a sua cabana naquele dia — ele esclareceu. — Vendo e ouvindo o que aconteceu você na outra noite, ele ficou ainda mais convencido de sua decisão.

— Não posso dizer que gosto de passar por tanto sofrimento, no entanto essas mortes têm que parar.

— Nisso concordamos.

— Talvez os ferimentos que os criminosos sofre­ram os retardem um pouco, e, já que o cachorro de Simon perdeu a pista dos dois na floresta, acho que os grampos se tornam ainda mais importantes na solução do caso, certo?

— Sim. Embora eu não goste nada da idéia e acre­dite que Magda, minha ex-criada, já tenha contado a toda a cidade que eu trouxe uma bruxa para casa, para me salvar da forca, penso que devemos tentar outra vez...

Morainn quase engasgou, chocada.

— Sua criada não seria capaz de dizer essas coisas, seria? Afinal ela trabalhou para você. Não pode acre­ditar que você seria capaz de matar uma mulher.

— Eu a pagava muito bem, mas ela nunca gostou de mim. Recusava-se a ficar aqui depois do anoite­cer e observava as moças que trabalhavam com ela como se eu fosse violentá-las a qualquer momento. Magda deixou muito claro, desde o começo, que me achava um porco lascivo, que ia queimar no fogo do inferno.

— E você a contratou mesmo assim?

— Tratava-se de uma boa cozinheira e mantinha a casa e minhas roupas limpas. Era do que eu precisa­va, e não foi difícil ficar fora do caminho dela e de suas ajudantes. Estou aqui para representar minha família na corte e não tenho que ficar o dia inteiro em casa. Pelo menos por enquanto.

— Bem, estou certa de que essa história vai ter­minar logo, e não me importo de trabalhar. — Ela terminou de beber o vinho e se levantou. — Preciso voltar a meus afazeres, caso contrário não haverá nada para comermos esta noite.

Tormand também se ergueu e pensou em algo para dizer, tentando mantê-la a seu lado por mais algum tempo. Quando ela se encaminhou para a porta, ele a segurou pela mão, delicadamente. Só de tocá-la, sentiu um calor entre a virilha. Era um homem fraco quando se tratava de mulheres e do prazer que podia encontrar naqueles corpos macios, porém acreditava que o mais santo dos homens não resistiria ao tipo de fogo e paixão que Morainn prometia como recompen­sa a quem dormisse com ela.

Um leve arrepio a percorreu e mais uma vez rubo­rizou, provando a Tormand que ela sentia o mesmo que ele.

— Tem certeza de que pode agüentar outra visão? — Ele decidiu que voltar a esse assunto era melhor do que dizer a ela que desejava possuí-ia naquele instante.

— Ah, sim. Já estou recuperada.

— Não totalmente.

— Algumas imagens desagradáveis continuam me assombrando, e não posso fazer nada quanto a isso. — Ela sabia que deveria se livrar da mão de Tormand, mas não conseguia. — Minha fraqueza foi mais pelo choque. Eu não esperava ver tanta violência, mesmo sabendo que aquele grampo de cabelo foi encontra­do onde uma mulher foi torturada. Agora que sei o que me espera, estou mais preparada. Simon não precisa se preocupar comigo. Peça a ele que marque uma hora para que eu toque outro grampo.

— Falarei com ele. — Puxou-a para mais perto, e seus corpos quase se tocaram. — Agora me conte sobre seus sonhos, Morainn.

— Mas já falei... Não vi nenhum dos assassinos nem descobri nada sobre o que planejam — ela res­pondeu num fio de voz, mal podendo pensar e menos ainda falar com clareza.

Ele a beijou na testa, saboreando o gosto da pele macia.

— Diga-me, Morainn, você sonhou comigo? Sonho com você — ele sussurrou antes que ela pudesse responder.

— Não sei por que você deveria...

Uma voz em sua mente lhe dizia que o empurrasse. Entretanto ela não tinha forças. Sabia que precisava fazer com que Tormand parasse com aqueles beijos em seu rosto. Mas em vez de se afastar, ela se moveu para mais perto dele. Quando ele a abraçou bem firme, ela sentiu os joelhos enfraquecer e o desejo invadi-la. Tormand era a maior ameaça que poderia existir para sua virtude e seu coração. Ainda assim ela não se importava.

— Por que eu não deveria? — Ele a beijou sua­vemente, apesar de todo seu corpo gritar por ela. — Um homem poderia ficar horas observando os seus olhos na esperança de descobrir todos os seus segre­dos. E essa boca... — Ele a tocou de leve com o lábio superior. — Quente, doce como mel, suave como a seda e cheia de paixão. Em meus sonhos, senti muitas vezes sua boca sobre a minha pele.

Do mesmo jeito que ela sentia o calor dos lábios sedutores. Essa era a prova de que estavam compar­tilhando os mesmos sonhos, o que deveria deixá-la alarmada, mas então ele a mordiscou na orelha. O leve roçar dos dentes contra a pele sensível fez com que ela o agarrasse. Todo o desejo com o qual havia sonhado se apossou de seu corpo naquele momento, fazendo-a sentir uma pontada de medo. A pressão dos lábios de Tormand sobre os dela logo afastaram aquele sentimento. Ela abriu a boca quando sentiu a língua ávida pedir passagem, ansiosa para saboreá-la.

Tormand gemeu quando o beijo se aprofundou. O gosto de Morainn era inebriante, chegava a fazer sua masculinidade doer de tanto desejo. Ele queria deitá-la no chão e deixá-la nua. Almejava provar cada centímetro daquela pele dourada e penetrar Morainn tão profundamente que não seria capaz de sair nunca mais.

Estava ficando cada vez mais difícil refrear o dese­jo. Foram muitos os sonhos que o deixaram alucinado, com vontade de possuí-la. Ele lutou bravamente para manter algum controle, mesmo sentindo o sabor da inocência no beijo de Morainn. Até o modo com que ela se movia entre seus braços era tímido, provando que ela nunca havia tido um amante. Ainda que o pensamento de que seria o primeiro a provar aquela paixão persistisse, ele sabia que precisava recuar um pouco.

Não querendo interromper o beijo, ele voltou a atenção para o longo e gracioso pescoço. Percorreu-o com a língua, vagarosamente, sentindo-lhe a pul­sação rápida, feliz com a constatação de que ela o queria também. Apesar da mente tomada pela paixão, ele se lembrou de que nunca tinha ido para a cama com uma virgem. Havia uma boa razão para isso, mas ele não se recordava qual era.

— Tem sonhado comigo, Morainn? — Torceu para que estivesse certo ou ia se sentir um completo idiota. — Abraçando e me beijando?

— Sim — ela sussurrou. — Sonhos pecaminosos.

— Não, são lindos sonhos de paixão e desejo. — Afagou-a nos lábios com a mão. — Doces sonhos de nós dois nos amando, sentindo o desejo um do outro.

A voz de Tormand era pura sedução, profunda e rouca. Morainn sentia como se pegasse fogo, quando as mãos grandes envolveram seus seios, adivinhando-lhe a vontade. Ela se entregou à carícia, deixando o susto de ser tocada tão intimamente de lado.

Ele mal conseguia ficar de pé de tanta paixão pela mulher em seus braços. Ao mesmo tempo em que procurava um lugar para deitá-la e fazer amor com ela, continuou afagando e beijando Morainn. Então, viu a porta entreaberta. Embora quisesse manter o interesse dela por ele, não tinha certeza se conseguiria continuar com as caricias e fechar a porta ao mesmo tempo.

Nesse, instante, a porta foi aberta totalmente. Morainn se afastou dele assim que ouviu o barulho. Tormand observou a expressão feminina mudar rapi­damente de desejo para vergonha. Sabendo que ela recuaria mais e tentaria se recompor, ele amaldiçoou e procurou quem os tinha interrompido. Imaginava os piores castigos para o intruso quando escutou um som familiar.

Tormand parou de procurar um homem e olhou para baixo. William era o invasor, e o gato se aproxi­mava da escrivaninha sem noção de que estava muito perto de perder a pele.

Ele precisou respirar fundo algumas vezes para se controlar, quando conseguiu, olhou para Morainn e quase riu. As mãos delicadas tentavam nervosamente arrumar o vestido e os cabelos. Agora que estava mais calmo, percebeu que teria sido um erro ceder aos seus desejos. Deveria fazer amor com Morainn de maneira gentil e em uma cama, por ser a primeira vez dela com um homem.

Justo quando ia lhe dizer algumas palavras de carinho, para que ela não ficasse tão embaraçada, algo caiu no chão, Ele a viu correr até a escrivaninha. Com uma sensação de medo, fitou-a. William estava sentado sobre a mesa, e tudo o que estava ali foi parar no chão. Morainn rapidamente se ocupou em apanhá-las.

Tormand teve vontade de correr até lá, agarrá-la e levá-la para fora, mas era tarde demais. Voltou-se para o gato, jurando que o danado havia feito aquilo de propósito. O animal devia estar feliz. Ele ouviu Morainn murmurar alguma coisa e a encarou. Estava parada com alguns papéis nas mãos e seu rosto muda­va de cor. De imediato, ele soube o que ela lia. Sua mente buscou palavras para atenuar o choque que a afligia, no entanto não conseguiu pensar em nada. O que ele poderia dizer para suavizar a dura realidade?

Morainn olhava para os papéis. Ela só queria colocá-los de lado como tinha feito com o pesado livro de contabilidade, porém não conseguia: Era uma lista com nomes, os de três mulheres estavam com uma cruz ao lado. Por um instante, ela pensou que Tormand era o assassino, entretanto logo descartou a possibilidade.

Era a relação que Simon mencionara uma vez. Aquela com todas as amantes de Tormand, ou pelo menos as quais ele se lembrava. Ela viu que muitas corriam perigo. Leu todos os nomes da lista que continuava na parte de trás, escrita com uma bonita caligrafia. A menos que houvesse terminado, ele ia precisar de mais papel.

Após o choque inicial, sentiu uma dor profunda e cortante, que ela não quis demonstrar. Não queria que ele soubesse que a magoara. Embora momentos antes estivera nós braços de Tormand, ela ainda tinha seu orgulho, que de alguma forma amenizava sua dor.

A raiva veio em seguida, acabando com a dor e a vergonha que sentia por ser uma tola. Ele apenas a usaria para esquentar sua cama, como tinha feito com tantas outras. Mesmo que falasse de sonhos e doces galanteios, ela não era nada mais do que um corpo que estava à mão em um momento que ele era obrigado a ficar em casa e precisava passar o tempo.

Fora uma tola em acreditar que eles dividiam os mesmos sonhos. Provavelmente era outra mentira para que ele conseguisse levá-la para a cama, Tinha vindo até ali para ajudá-lo a encontrar os assassinos, desse modo ele não iria para a forca. Contudo, ele lhe agra­decia, transformando-a em uma de suas prostitutas. Naquele momento, ela não se importava que Tormand fosse enforcado. Não permitiria que ele soubesse o quanto ela se sentia humilhada.

— Acha que precisa de mais nomes? — ela pergun­tou com fúria na voz.

— Simon me pediu a lista para sabermos quais mulheres estão em perigo. — ele respondeu, pensando em como ela ficava linda com raiva, mesmo que a tivesse perdido antes mesmo de torná-la sua.

— Seria preciso o exército do rei para proteger todas essas mulheres.

— Eu não estava tentando incluí-la na lista — ele quis explicar. — Não penso em você da mesma maneira que pensava nas outras.

— Não sussurrou palavras doces para elas? Não as levou para sua cama? Só o conheço há alguns dias, e já tentou me seduzir. — Morainn jogou os papéis sobre a mesa. — Falou com elas sobre sonhos? Foi um ótimo truque: você sabe que acredito em sonhos.

— Morainn, tudo o que eu disse era verdade. O que sinto por você nunca senti por nenhuma outra mulher.

Ela quis acreditar desesperadamente naquelas palavras, o que a fez estremecer.

— Estamos aqui com a porta aberta, você quase me jogou no chão e levantou as minhas saias e quer que eu acredite que não sou apenas um corpo para aquecer sua cama? Que sou diferente das outras? Você está tão acostumado em seduzir que conquistaria até mesmo uma freira. Porém, sir Tormand, não serei mais um nome em sua lista. Tenho apenas meu orgu­lho e não o sacrificarei em troca de seus joguinhos de sedução.

Tormand praguejou quando ela saiu do quarto. E ainda mais quando ouviu Simon cumprimentá-la. Ele não apenas a perdera como agora todos saberiam a péssima opinião que Morainn tinha sobre ele. Olhou para o gato ainda sentado sobre a escrivaninha, sentindo-se um idiota por culpar o animal pelo que havia acontecido, mas precisando de algo para despe­jar sua raiva.

— Morainn, está tudo bem? — Ele ouviu Simon perguntar e percebeu que o amigo tinha receio que ele tivesse feito alguma coisa.

— Estou, Simon. Só preciso voltar para meus afa­zeres na cozinha. Já estou preparada para tocar outro grampo.

— Tem certeza?

— Sim.

— Então, vamos tentar depois do jantar, assim que Walin for para a cama,

— Ótimo. Quanto antes resolvermos essa situação, mais depressa poderei voltar para casa e para minha vida.

Tormand estremeceu quando ouviu Morainn ir embora. Encolheu os ombros quando o amigo entrou no quarto e o encarou, erguendo uma sobrancelha de forma interrogativa.

— Ela viu a lista — confessou.

— Você mostrou para ela?

O tom da voz de Simon fazia com que Tormand parecesse um idiota.

— Claro que não! Pensei que estivesse bem escon­dida debaixo do livro. — Ele apontou para o felino. — Então, esse gato estúpido apareceu e derrubou tudo da mesa para se sentar. Morainn foi arrumar a bagunça e viu a lista. Não ria, pois estou com vontade de bater em alguém.

— Você tentou seduzi-la, não foi?

— Sim, talvez eu tenha feito isso, e você não pre­cisa fazer parecer como se eu estivesse levando uma inocente para o pecado. Não a vejo como as outras mulheres, não que ela tenha acreditado quando eu disse para ela.

— Considerando o tamanho da lista, posso ver por que ela não acreditou em você.

— Não menti para ela.

— Tormand, meu amigo, uma mulher pode confiar na palavra de um homem, exceto em relação ao pas­sado e nas razões para que ele a leve para a cama. A menos que se case, ela duvidará de cada tentativa sua de seduzi-la. Você quer se casar com Morainn?

— Não sei. — Tormand sorriu da expressão de surpresa de Simon. — Ela é diferente das outras e acho que estou confuso agora. Não sei como fazê-la acreditar em mim.

— Bem, você poderia cortejá-la em vez de tentar seduzi-la. Lembra-se de como cortejar uma mulher?

Tormand estava para responder que se lembrava, quando percebeu que não se recordava de tê-lo feito alguma vez na vida. Normalmente, o que ele preci­sava para levar uma mulher para a cama eram alguns elogios, um bonito presente e um beijo ou dois. Mas aquilo não significava cortejar. Era mais uma caçada. Numa tentativa de esconder sua consternação, ele desviou o olhar para o gato que o observava atenta­mente.

Por um breve momento, imaginou se deveria tentar cortejar Morainn, a mulher que poderia levá-lo para o altar. Por mais estranho que parecesse, a ideia de se casar com ela não o assustava nem o fazia querer fugir para as montanhas. Ele tinha visto seus filhos no último sonho e, de certo modo estava ansioso para saber se aquelas imagens, se tornariam realidade. Até mesmo o pensamento de ser fiel a uma mulher não o preocupava.

Decidiu que faria a corte a Morainn.

— Sim, posso cortejá-la, ou pelo menos fazer com que ela saiba que não a vejo como mais um nome em minha lista. Não deve ser tão difícil — falou e deixou aposento.

Simon cocou atrás da orelha do gato e sorriu ao ouvir o animal ronronar.

— Aí vai um tolo, William. Acredito que ele tem um longo e difícil caminho pela frente, e isso fará bem a ele. Mas Tormand está certo quanto a uma coisa, Morainn Ross não é outra mulher na lista dele. Começo a pensar que Harcourt tem razão, e essa possibilidade é assustadora.

 

— A senhorita tem certeza de que quer segu­rar outro grampo?

Morainn fitou os surpreendentes olhos acinzentados de Simon Innes que demonstravam bondade. Ela estava mais acostumada a vê-los frios como aço ou perdidos em pensamentos, tentando resolver um pro­blema. Esse olhar de generosidade a fez perceber que Simon Innes era um homem muito mais bonito do que ela havia julgado da primeira vez.

— Sim — ela respondeu. — Estou melhor prepa­rada desta vez. Rezo apenas para que veja algo que possa ser realmente útil a vocês.

Apenas um toque e seria enviada àquele mundo escuro e sangrento, de dor e loucura, no qual aqueles assassinos viviam. Não tinha dúvidas de que, se tives­se uma visão, ficaria horrorizada, mas tentaria não se deixar abalar como da outra vez. Ela se manteria alerta a todas as imagens que chegassem à sua mente.

Sentiu um leve movimento atrás de si e não foi necessário se virar para saber que se tratava de Tormand. Ela conhecia o perfume dele tão bem quan­to o próprio. Ainda estava furiosa com ele, mágoa e ciúme preenchiam seu coração, porém não podia negar que a presença dele lhe dava força.

Sem prestar atenção aos outros Murray, sentados em volta da mesa no grande salão, observando-a, Morainn estendeu a mão.

— Vamos logo com isso.

— Encontrei este aqui... — Simon começou a falar.

— Não, não me diga. Poderia influenciar minha visão e alterar o que quer que ela queira me mostrar.

Simon concordou com um gesto de cabeça e colocou o grampo de cabelo na mão dela. Morainn imediatamente ficou tensa, mas se forçou a relaxar. Não lutaria contra a visão, e sim se deixaria levar para onde fosse necessário. Dessa forma, talvez conseguis­se a informação de que eles precisavam.

Passados alguns minutos, ela começou a pensar que não veria nada dessa vez. Pela expressão dos homens, podia dizer que eles pensavam o mesmo. Mas, de repente, aconteceu, de maneira tão dura e rápida que ela perdeu o fôlego. Morainn sentiu duas mãos fortes segurando seus ombros e a força dela retornou. Enfrentou a visão sem temer o mal que a aguardava.

Como da outra vez, as emoções atingiram sua men­te primeiro. Dor, medo, ódio, insanidade e um prazer malévolo. Eram tão fortes que ela sentiu vontade de vomitar. Porém, a visão veio mais detalhada, e não apenas flashes de imagens rápidas.

A dor e o medo da mulher que estava no chão de ter­ra de uma choupana ganhava força e atingiu Morainn apesar de seus esforços para se proteger. Quando essa sensação subitamente desapareceu, a mulher estava morta. Então, a raiva que a dominou foi tão poderosa que fez Morainn tremer. O brilho da faca ia e vinha. Não havia controle nem precisão nas estocadas. A enorme e escura figura que estava ao lado da vítima se moveu para agarrar a arma. Um grito de fúria atravessou a mente de Morainn. A dor aumentou quando palavras duras pesaram em sua mente, e ela memorizou cada uma delas no caso de ser importante.

— Eles têm que pagar!

— Eles pagarão, milady. Eles pagarão.

Então, a mulher com o vestido respingado com o sangue da vítima, olhou diretamente para Morainn.

— E você, bruxa, é quem vai sofrer mais.

Morainn ficou tão chocada que jogou o grampo para bem longe. Estava gelada de medo. A assassina tinha falado com ela, olhara diretamente para ela. Isso nunca havia acontecido antes. Já havia escutado sussurros, mas nada tão intenso quanto aquele olhar penetrante e as palavras ameaçadoras. Era como se a mulher soubesse que ela estava vendo a cena do crime.

Tomou um gole de sidra na tentativa de se acalmar e colocar os pensamentos em ordem. Poderia lidar com a fraqueza de seu corpo mais tarde. Enquanto a visão era recente, procurou informações, que ajuda­riam Simon a capturar o casal de matadores.

— O senhor achou o grampo antes ou depois de se encontrar comigo? — ela finalmente perguntou a Innes.

— Antes. Não houve mais mortes depois que nos encontramos, apenas o ataque contra a senhorita.

— É verdade — concordou Tormand. — Solicitamos sua ajuda após o terceiro crime, mas a encontramos antes, na casa dos Redmond. E assassinos vêm nos observando desde então, não é?

Tormand sabia que Morainn ainda estava aborreci­da com ele, no entanto estava feliz por ela não igno­rá-lo. Havia muito pouco que ele pudesse fazer para ajudar ou protegê-la durante as visões, mas poderia pelo menos aliviar a dor e o medo que ela sentia depois. Morainn tremia e estava pálida, mas dessa vez não teve nenhum colapso. Ele a massageou nos ombros, tentando diminuir a tensão que a acometia.

— E o grampo veio do lugar onde a última mulher foi morta? — Morainn perguntou.

— Sim — Simon respondeu. — Acreditamos que lady Marie Campbell tenha sido morta na cabana onde encontramos esse grampo.

Morainn ouviu Tormand praguejar em voz baixa e imaginou se ele realmente tinha gostado daquela mulher. Ela se esforçou para afastar o ciúme que a atacava. Afinal, Marie estava morta. E, consideran­do como Tormand tentara seduzi-la, ela começou a duvidar de que todas aquelas mulheres tivessem sido pecadoras, mas apenas tão fracas quanto ela mesma.

— Então, agora sabemos que os assassinos já tinham me visto. Eles estavam presentes quando Tormand me defendeu da multidão e decidiram que eu seria a próxima vítima. Isso explica o que vi. — Morainn estremeceu.

— E o que foi que viu?

— A visão começou da mesma, maneira que a outra. Primeiro senti uma onda de emoções negativas. Mas a pior de todas era o prazer de praticar o mal. Eles gostam do que fazem.

— Meu Deus! — exclamou Harcourt. — São ver­dadeiros monstros.

— É verdade. — Morainn suspirou. — A dor e o medo vinham da pobre vítima, que, dessa vez, morreu rápido. Suponho que muitos dos ferimentos foram feitos depois que ela morreu. — Fez uma careta.

— A mulher tinha um coração fraco. Sabia o que ia acontecer com ela porque ouvira os comentários do que havia sido feito com as outras e o medo que a dominou foi grande o suficiente para que seu coração parasse.

Depois de um longo momento de silêncio, Simon disse calmamente:

— Talvez se enviássemos uma carta ao marido de Marie Campbell, contando esse fato, poderíamos aliviar sua dor.

— Farei isso. — Tormand se ofereceu. — Ele não terá dúvidas a respeito já que confia no dom de Morainn. Creio que a carta realmente poderá aju­dá-lo. A idéia de como Marie teria sofrido antes de morrer estava atormentando o pobre homem.

— Depois disso houve um ódio cortante — pros­seguiu Morainn. — Vi a faca várias vezes. A assas­sina golpeava a vítima descontroladamente até que o homem a fez parar. Da outra vez, houve precisão de movimentos, dessa só havia raiva. A criminosa gritava tantas coisas que foi difícil entendê-la.

Morainn massageou as têmporas. Tentando encon­trar nos sons que vagavam em sua cabeça algumas respostas, sentia mais dor. Tormand afastou as mãos delicadas, e ele mesmo começou a massageá-la. Para sua própria surpresa, não foi impedido.

— Consegue se lembrar de alguma coisa que a víbora tenha dito? — ele interrogou.

— Sim, ela soltou vários palavrões e fez amea­ças contra todos que destruíram sua vida. Ela culpa todo mundo pela sua desgraça, como se fosse uma pobre e inocente vítima. Na minha opinião, ela nasceu com essa violência. Só precisava de um motivo para liberá-la.

— E Tormand foi o motivo? — indagou Uillian. — Não posso acreditar. Tormand não machuca as mulheres.

Morainn não contra-argumentou, O jovem se referia ao aspecto físico, e ela sabia que Tormand era uma pessoa bondosa. Jamais seria cruel com uma mulher. Não acreditava que os sentimentos da crimi­nosa houvessem sido feridos, mas sim seu orgulho. Ela desejava Tormand e não o conseguiu. Como era incapaz de culpar a si mesma, achava que as outras mulheres e ele eram os culpados.

— Ele não sabe nem quem é essa mulher — informou após pensar cuidadosamente em suas palavras. — Ela está louca. Tormand talvez nunca tenha se encon­trado com ela.

— Ela o amava a distância?

Havia um tom de incredulidade na voz de Uillian que quase fez Morainn sorrir.

— Não se trata de amor, e sim de orgulho e posses­são. Ela decidiu que ele seria dela. E as amantes de Tormand estavam no caminho dela.

— Então, por que ela quer que Tormand sofra?

— Porque ele permitiu que as outras mulheres fizessem parte da vida dele, provou ser um homem fraco, que se deixa levar pelo prazer físico e não pelo cérebro. — Ela ignorou o protesto de Tormand e o sorriso dos outros homens enquanto bebia mais sidra.

As visões sempre a deixavam com sede e com vontade de comer alguma coisa doce.

— Lembrem-se, isso é o que senti, o que extraí do turbilhão de emoções que me invadiu, nada mais.

— Faz sentido — concordou Simon. — É interessante saber como a mente de um assassino funciona, mas preciso, de algo que me ajude a encon­trar aqueles dois ou que indique onde vão atacar novamente.

— Entendo... — Morainn murmurou. — É que preciso de tempo para poder interpretar o que as imagens querem me mostrar. Essas são as primeiras visões nas quais ouvi vozes com clareza.

— Por que perguntou quando achamos o grampo que estava segurando?

— Por causa do que aconteceu no final da visão. Foi como se a criminosa soubesse que eu a estava observando. Ela me ameaçou de morte, fitando-me nos olhos, não foi apenas um sussurro na minha cabeça.

— Viu o rosto dela?

— Não muito bem, vi que tinha olhos pretos. A cabeça estava coberta por um véu, acho que os cabe­los também eram escuros. E as sobrancelhas escuras formavam arcos perfeitos sobre os olhos. Ou foi abençoada ao nascer ou fez alguma coisa para que tivessem formas tão precisas.

Então, trata-se de uma nobre. São as únicas que conheço que fazem esse tipo de coisa — concluiu Tormand.

Uma pontada de ciúme atingiu Morainn, que, decidindo ignorá-la, prosseguiu:

— Acho que o marido dela está morto. E que foi ela quem o matou. Referia-se a ele como "aquele porco gordo". Ela o matou com as próprias mãos, usando uma faca.

— Não ouvi sobre nenhum nobre que tenha sido morto dessa maneira.

— Porque ninguém o encontrou ainda — afirmou Morainn.

Aos poucos, as informações se organizavam em sua mente, fazendo sua cabeça doer ainda mais. Era uma dor horrível, e ela logo teria que repousar. Sentia como se toda a força tivesse se esvaído de seu corpo, apesar do toque suave de Tormand.

— A senhorita precisa descansar — propôs Simon. — É evidente que as visões a deixaram esgotada, embora as tenha suportado melhor.

— Acho que tem razão. Tudo que ouvi começa a fazer sentido, mas sinto uma dor de cabeça insu­portável, que acaba com minha concentração. Uma boa noite de sono talvez ajude a acabar com essa confusão.

Ela se levantou, completamente zonza. Antes que pudesse firmar o corpo, Tormand lhe passou o braço pela cintura, para ajudá-la. Ela ia afastá-lo quando ouviu um barulho no corredor. Reconheceu as vozes que discutiam com Walter. Um momento depois, três pessoas surgiam à porta do salão. Um contrariado Walter escoltava Nora e o noivo.

— Eles não esperaram que os anunciasse — Walter resmungou, olhando para Nora.

Ela não lhe deu a menor atenção e fixou o olhar em Tormand, que amparava Morainn. A fúria no rosto doce da amiga deixou Morainn espantada e surpre­sa, quando Nora se desprendeu da mão do noivo e marchou na sua direção e de Tormand. Em seguida, ela foi arrancada do braço musculoso para cair no de Nora.

— O que fez com ela? — Nora exigiu saber. — Ela está horrível.

— Obrigada, minha amiga — Morainn resmungou, mas Nora a ignorou.

— James, venha até aqui e dê um jeitinho nesse sujeito lascivo.

— Mas, Nora, meu amor...

Após ouvir as desculpas do noivo, ela manteve o olhar fixo em Tormand ao indagar:

— O que Morainn faz aqui?

— Nora, estou imaginando como me encontrou nesta casa — Morainn disse antes que Tormand ou qualquer outro tivesse a chance de responder à per­gunta.

— Uma mulher chamada Magda está dizendo para todo mundo na cidade que esse homem levou uma bruxa para casa, a fim de se salvar da forca. Não acreditei nela e fui até a sua casa. Como você não estava lá, nem seus gatos, pedi que James me trouxesse aqui.

— Nada do que eu disse a fez mudar de idéia — justificou-se sir James, aproximando-se da mesa para aceitar a caneca de cerveja que Simon lhe oferecia.

Nora lançou um olhar de desagrado ao noivo e se voltou para Morainn.

— Ainda não posso crer que você tenha entrado na casa desse homem de livre e espontânea vontade. Quando batemos à porta e ela foi aberta, vimos William sentado no corredor. Foi então que eu soube que você realmente se encontrava na casa desse pecador. E vim salvá-la das garras dele.

— Ah, Nora, obrigada por sua preocupação, mas não preciso ser salva.

— Todas as mulheres precisam ser salvas de homens como ele.

— Há alguma verdade nisso, suponho. Nora, por favor, ajude-me a ir até meu quarto e lhe explicarei tudo da melhor maneira possível.

— Você está doente? — a amiga perguntou, preo­cupada.

— Não, foi apenas a visão que tive e que me dei­tou muito fraca, minha cabeça dói demais. Preciso descansar, mas poderei falar quando me deitar na cama com uma compressa na testa. Vamos, ajude-me a subir as escadas. Senhores — Morainn se mostrou indiferente ao resmungo de Nora —, essa é minha querida amiga, Nora Chisholm, e como acabaram de saber, esse é o noivo dela. Agora se nos derem licen­ça... — Depois que todos lhe desejaram melhoras, ela deixou que Nora a conduzisse ao quarto.

Assim que as duas se foram, Tormand olhou para James Grant.

— Pretende se casar com a srta. Chisholm, Grant?

— Sim. Ela é bastante espirituosa. — Riu com os outros homens, mas logo ficou sério e encarou Tormand. — Ela ama Morainn como a uma irmã e sente necessidade de protegê-la. Não conheço Morainn há muito tempo, no entanto também não quero que nada de mau lhe aconteça.

— Pensamos da mesma forma — Simon interveio.

— Sente-se, Grant. Vou explicar por que Morainn está aqui.

— E diga-me o que posso ou não dizer aos outros — James pediu ao se acomodar.

— Sim, claro.

Aliviada, com a compressa umedecida em essên­cia de lavanda colocada gentilmente sobre sua testa, Morainn sorriu para a amiga sentada ao lado de sua cama.

— Obrigada. Pensei que minha cabeça fosse se partir em duas. A lavanda misturada à água já está fazendo sua mágica.

— Essas visões fazem muito mal a você — Nora murmurou. — Por que teve uma aqui?

— Porque sir Simon me deu um objeto para segurar. Nora, vim para cá para me proteger. Fui ata­cada na cabana pelos assassinos que estão matando as mulheres da nobreza. Walin e eu tivemos muita sorte.

— Por quê? Você não é amante de sir Tormand, é?

— Não. Os assassinos têm medo de que meu dom ajude sir Simon Innes a encontrá-los, e quiseram me tirar do caminho.

— Assassinos?!

— Sim, um homem e uma mulher loucos. Sir Simon encontrou grampos de cabelo onde as vítimas foram torturadas e mortas. Toquei-os, entretanto consegui poucas informações. Descobri mais coisas ouvindo aqueles, monstros quando caçavam Walin e eu na floresta. Ainda assim, tenho que continuar ten­tando. Também há os meus sonhos. Pouco a pouco, eles estão me mostrando coisas que podem ser úteis. — Ela decidiu que aquele não era o melhor momento para contar sobre o que mais havia sonhado.

— Suponho que seja para isso que seu dom serve, mas você parece bastante debilitada.

— É porque há muito mal nessas visões. A loucura daqueles dois é muito difícil de suportar.

— Então, você foi trazida para cá para ser protegida e descobrir a verdade com a ajuda de seu dom.

— Sim. Os homens lá embaixo estão sempre aqui. Você conhece sir Innes, os outros são irmãos e pri­mos de Tormand. Os parentes de sir Murray vieram porque duas mulheres da família disseram que ele estava em perigo.

— A família de sir Tormand também possui dons? — Nora perguntou, surpresa.

— Foi o que ele me disse. O clã dele possui alguns dons especiais. Até sir Innes acredita em sonhos agora.

— Bem, pelo menos você pode fazer algo de bom, em vez de ajudar uma mulher rica a descobrir que o filho é ladrão.

— É verdade.

— Por que não me contou tudo antes, eu a ajudaria a ficar em segurança.

— E talvez esses criminosos viessem até sua porta. Não, aqui estou segura e cercada por seis homens fortes.

— Fortes e muito bonitos.

— Há males que vêm para o bem. — Ela riu junto com Nora.

— Concordo que você esteja a salvo aqui, pelo menos dos assassinos. Digo isso porque nenhuma mulher está segura com sir Tormand Murray por perto.

— Certamente. Mas tenho um grande incentivo para evitar as tentativas de sedução desse conquista­dor inveterado.

— E qual seria?

— Uma lista.

— Do quê?

— De amantes.

— Ele as fica contando? — Nora indagou, ultrajada,

— Não exatamente, Sir Simon pediu que ele fizes­se uma relação com o nome de todas as suas amantes aqui na cidade e daquelas que viajam com a corte. Ele quer saber quantas mulheres estão correndo perigo. E vi o papel. Não estou brincando quando digo que ele precisaria de um exército para proteger todas elas.

— Nossa! Ele deve ser muito bom.

Morainn riu, embora sua cabeça estivesse doendo.

— É o que parece. — Ela suspirou. — Recuso-me a ser mais um nome da lista. Por um momento, fui tola. Um beijo apenas. Pensei que ele me desejava até ver o rol de mulheres. Não serei usada dessa maneira.

— Estou preocupada com você, Morainn.

— Por causa de sir Tormand?

— Sim. Você é forte, minha amiga, mas tem um coração muito generoso. Um homem como ele poderia facilmente machucá-la.

— De modo geral, a casa está sempre cheia de gente. Sinto-me segura aqui, Nora. Como os homens precisam das minhas visões, não me sinto como se estivesse de favor. Além do mais a tal mulher chama­da Magda, que está espalhando fofocas pela cidade, era a criada de Tormand, que o abandonou. Por isso, também cozinho e cuido da casa. Walin está feliz, e acho bom que ele fique sob a influência masculina por algum tempo.

— Sim. Creio que mais importante que sua virtude é que você esteja segura.

— E não apenas eu, mas Walin também.

— Exato. — Nora se levantou e deu um beijo no rosto de Morainn. — Descanse e se não agüentar mais ficar aqui nem puder voltar para sua casa, por favor, procure-me. James encontrará homens para nos proteger.

— Obrigada, minha amiga. Duvido de que precise sair daqui, mas é bom saber que tenho outro lugar para ir. Há uma coisa que você pode fazer por mim. Preciso de alguém que cuide de meus animais e do meu jardim.

— Não se preocupe. Tenho um primo que ficará mais do que feliz de trabalhar lá até que você volte para a cabana. Agora descanse e recupere suas forças.

Depois que Nora se foi, Morainn respirou fundo e fechou os olhos. Ela se sentia como se tivesse trabalhado três dias sem parar. Ainda havia mais um grampo de cabelo, mas precisaria de alguns dias para se restabelecer antes de tocá-lo. Queria estar bem preparada para conseguir as informações que levassem Simon a capturar aqueles monstros.

Tormand observou Nora entrar na sala. Ela o estu­dava atentamente, deixando-o aborrecido. Mas seria educado. Ela se importava com Morainn, e somente por isso ele agüentaria aquele olhar de censura sem reclamar. Sentiu-se desconfortável quando ela veio em sua direção.

— É melhor o senhor cuidar muito bem de minha amiga. Ela tem sofrido muito na vida e não precisa de um homem que machuque seu coração.

Antes que ele pudesse responder, Grant se despe­diu de todos que ali estavam e levou sua espirituosa noiva embora. Tormand encarou Simon e depois sua família. O olhar zangado que lançou para eles não diminuiu em nada os sorrisos que viu no rosto de todos. Até mesmo Walter estava rindo.

— Grant vai ter muito trabalho — opinou Tormand.

— Fiquei surpreso de você não ter dado nenhuma resposta à altura do que a srta. Chisholm lhe disse — manifestou-se Uillian.

— Ela gosta de Morainn. E, como tenho certa reputação, Nora quer ter certeza de que a amiga estará segura.

— Bem, acho que você não devia ignorar os olhares que essa moça lhe lançou —Walter opinou.

— Não vou, Walter. Além do mais, Morainn viu a relação dos nomes de minhas amantes. — Ele observou os rostos horrorizados de sua família e de Walter. — É muito difícil cortejar uma mulher que sabe que você foi para a cama com tantas outras.

— Cortejar? Vai cortejá-la? — perguntou Harcourt.

— Sim, vou — Tormand respondeu por entre os dentes.

— Precisa de ajuda? Você não tem muita experiên­cia nesse campo.

— Não preciso da ajuda de ninguém, muito obri­gado.

— Bem, se quiser algum conselho, pode me pedir. — Harcourt se levantou. — Hora de ir à cidade e ten­tar descobrir algo interessante sobre os criminosos. Quem vem comigo?

Rapidamente o saguão ficou vazio, a não ser por Tormand. Ele respirou fundo e se serviu de um pouco de cerveja. Seria uma noite longa. Sua mente estava repleta de memórias de como Morainn era doce e de como seu corpo ansiava possuí-la. Mesmo ao se lembrar de como ela o encarara depois de ver a lista, o fogo que o consumia não se apagou. O desdém que havia nos grandes olhos azuis deveria ter conge­lado qualquer pensamento mais acalorado que ele tivesse. Contudo, ele só tinha certeza de uma coisa: precisava tê-la de volta em seus braços.

Arquitetaria um plano. Até encontrar a lista, Morainn sentia-se atraída por ele, Tinha experiência suficiente para saber quando uma mulher estava interessada por ele e notou que ela não era indife­rente a seu charme. Ele faria o que fosse necessário para reconquistá-la. Até pediria conselhos se seu plano não funcionasse. Apenas torcia para que não tivesse que recorrer a seus irmãos nem primos, porque sabia que, depois disso, nunca mais teria paz.

Uma batida suave de grandes patas chamou sua atenção, e ele observou William subir em uma cadeira perto da mesa. O gato o fitou, e Tormand fez uma careta para o bicho. Ainda culpava o animal pelo que tinha acontecido, ou melhor, pelo que não ocorrera na biblioteca. Se fosse supersticioso, poderia facilmente acreditar que o gato sabia exatamente o que estava acontecendo e tinha mostrado a Morainn quem ela estava beijando.

— Vá caçar ratos. Não preciso de um gato para me passar a perna. E pretendo conquistar sua dona, portanto é melhor que vá se acostumando comigo.

Agora estou falando com um gato, ele pensou. Morainn Ross está virando minha vida de cabeça para baixo.

 

— Acho que Tormand está tentando me con­quistar.

Morainn riu do modo como Nora revirou os olhos. Elas estavam sentadas na ensolarada sala de costu­ra, na casa dos Chisholm, bordando alguns lençóis. Nora estava determinada a fazer um grande e belo enxoval para seu casamento, já que não tinha terras nem era rica. O orgulho estava por trás daquela afobação no trabalho. Os Chisholm haviam decidido parecer tão bem quanto qualquer família de posses no casamento.

Morainn insistira em fazer essa visita, não apenas para ajudar a amiga, mas também porque precisava conversar com outra mulher. Tormand, em particu­lar, não ficara feliz com aquela idéia, mas acabou cedendo, com a condição de que Harcourt e Rory a escoltassem.

Depois de dias cercada apenas por homens, um garotinho que havia decidido que era um homem também e gatos, só o som de uma voz feminina faria com que Morainn se sentisse melhor. Eles eram boas pessoas, e ela amava Walin. No entanto, algumas vezes somente uma mulher poderia entender outra.

— O que a faz pensar assim? — Nora perguntou, com certo desdém. — Ele a presenteia com flores, jóias e faz galanteios vazios?

Resistindo à repentina vontade de defender Tormand, Morainn respondeu:

— Bem, há alguns galanteios, mas não os consi­dero vazio. Ele elogia meu trabalho, minha comida, até mesmo o perfume dos lençóis. Fala uma palavra ou duas sobre o meu belo sorriso, os meus adoráveis cabelos e compara a cor de meus olhos ao azul do mar. Diz que são como as águas revoltas do oceano em meio a uma tempestade quando estou nervosa, e iluminados pelo sol quando rio. — Ela quase sus­pirou ao se lembrar daquelas palavras bonitas e a voz profunda com que ele as pronunciara.

— Ah! Essas táticas são muito boas.

— Concordo. — Morainn ficou feliz de perceber que Nora também tinha ficado tocada pelas doces palavras, contribuindo para que se sentisse menos tola. — E ele me dá presentes, não flores nem jóias. E sim, um livro de poesias, um cálice de madeira...

— Madeira? Ele pode pagar por algo muito melhor. James me contou que ele construiu uma grande for­tuna, comentou até mesmo que precisava falar com Tormand para poder aprender algumas coisas.

— É um adorável cálice de madeira com flores entalhadas. É claro que ele poderia ter comprado um de prata. — Morainn sorriu. — Mas então eu teria que devolvê-lo. Um presente tão caro pareceria suborno.

Nora franziu o cenho, mas concordou.

— Seria mesmo. Pareceria um pagamento pelos seus favores. O que você não pensaria sobre um cálice de madeira, não importando o quão bonito o objeto seja. Homem esperto. Ele está lhe dando presentes simples.

— De fato. Ele disse que uma fita de cabelo fez com que ele se lembrasse dos meus olhos, deu-me também um diário para que eu pudesse escrever meus pensamentos, além de uma pena e tinta.

— Presentes de valor para pessoas como você e eu, mas sem importância para um homem como ele. Um plano muito esperto — concluiu Nora.

— Acho que tudo começou há uma semana. Eu ainda estava muito zangada com Tormand, más ele ficou o tempo todo ao meu lado durante a visão, ajudando-me a encontrar a força e a coragem de que eu precisava, até mesmo massageou minha cabeça para acalmar a dor depois do que vi.

— Você está gostando dele, não é? Morainn, esse homem quer somente levá-la para a cama.

— Sei disso e talvez eu queira ir para a cama com ele.

— Não me surpreende. Ele é um homem bonito, mesmo com aqueles olhos de cores diferentes. Mas pense na sua reputação... — Nora começou, porém fez uma pausa e então uma careta.

— Exatamente. Quase todo mundo na cidade pensa que tenho um filho bastardo e passam boa parte do tempo tentando adivinhar quem é o pai, mesmo depois de todos esses anos. Todos agora sabem que estou morando na casa de Tormand, graças a Magda. Muitos realmente acreditam que sou uma bruxa e gostariam de me ver sofrer o mesmo destino que minha mãe. E não vamos esquecer que também acham que ganhei a minha casa do proprietário de Dubhstane por me deitar com ele. Não tenho um bom. nome a zelar, Nora.

— Você e aqueles que a amam sabem muito bem que tudo isso não passa de fofocas.

— Sim, e, por esse motivo, agüento a dor que esses rumores me causam. Eu também gostaria de pensar que aqueles que me amam continuariam me amando se eu resolvesse experimentar algo diferente.

— É claro que a amaríamos, Morainn, mas este homem só quer se aproveitar de você. Não pode esperar mais de alguém como ele.

— Sei disso, ainda assim tenho esperanças de que ele possa mudar.

— Este tipo de homem não costuma ser sincero, apenas brinca com as mulheres, pulando de uma cama para outra, feito um sapo. — Elas riram. — Você merece algo melhor e sabe disso.

— Eu sei. Mas duvido de que um dia eu encontre minha alma gêmea.

— Por que não? Você é bonita e esperta. Tem uma ótima casa e terras...

— Que muitos pensam que consegui vendendo meu corpo a um homem.

Nora ignorou o comentário ácido e continuou: — Você é trabalhadora, costura muito bem, faz lindos bordados com uma agulha, cozinha como nunca o conseguirei, motivo pelo qual estou feliz por James ter um cozinheiro...

Antes que a amiga continuasse com a lista de predicados, que a estava deixando embaraçada, Morainn a interrompeu:

— E um garoto que todo mundo pensa que é meu filho.

— São uns idiotas. Deve ser o sentimento de cul­pa que os faz dizer essas coisas, um deles deve ter deixado a criança em sua porta e os outros decerto sabem quem foi, nenhum deles contou a você nem se ofereceu para ficar com a criança.

— As pessoas acreditam no que querem para que se sintam melhores. Por causa dessa fofoca, os únicos homens que me quiseram foram aqueles que pensam que podem comprar meus favores ou me tomar à força.

— Tolos.

— Concordo. Muitos também têm medo do meu dom. Tormand, não. Ele disse que em seu clã há mui­tas pessoas com dons. É muito bom estar com pessoas que não me tratam como bruxa ou alguém predis­posta a fazer o mal. Pessoas que acreditam no que digo quando vejo ou sinto alguma coisa e não fazem o sinal da cruz quando me vêem. Tormand não ape­nas se importa como me ajuda quando fico fraca por causa das visões.

Nora colocou o bordado de lado e segurou as mãos de Morainn.

— Ele vai magoá-la, vai partir seu coração bondoso em mil pedaços e pisar neles.

— Ele não seria tão mau. Não há crueldade nele. Acredite em mim. Você sabe que eu o sentiria se houvesse. Sim, talvez ele parta meu coração, mas terei ótimas lembranças quando estiver sozinha nova­mente. Sinto que Tormand será um hábil e generoso amante. Considerando a quantidade de mulheres que levou para a cama, deve ter aprendido muita coisa.

— Realmente é o que deseja? Está apaixonada por este tolo?

— Acho que sim. Eu ainda lutava contra a atração que sinto por ele quando ouvi alguns comentários há dois dias que me fizeram mudar de idéia. Ouvi a família o provocando por causa das tentativas de me cortejar. Deixaram claro que Tormand nunca havia feito isso antes. Ele falou que nunca tinha precisado, e os parentes o menosprezaram por essa resposta.

— Um tanto arrogante, mas provavelmente verda­deira. — Nora pegou seu bordado. — Confesso que, se estivesse no seu lugar, eu também interpretaria essas palavras como uma promessa.

— Também o ouvi conversando com Simon à noite passada. Tormand disse que estava ficando cada vez mais difícil para ele adicionar nomes àquela maldita lista, pois percebia que as provocações de seus fami­liares carregavam o gosto amargo da pura verdade. Ele confessou algo que deixou Simon surpreso. Parece que Tormand Murray, o grande amante, está vivendo como um celibatário há quatro meses. — Ela meneou a cabeça afirmativamente quando Nora quase engasgou, chocada. — Ele acha que a aversão ao próprio comportamento começou a mudar sua mente e seu coração. A minha reação ao ver aquela lista e o que eu disse a ele o atingiu fortemente.

— Minha nossa! Realmente são palavras muito promissoras. Ainda assim, tem certeza de que quer entregar seu coração e sua virtude a um homem que muda de idéia tão rapidamente?

— Acho que sim. Sonho com ele, Nora. Toda noite e muito antes de conhecê-lo. Os sonhos começaram a ficar mais detalhados desde que o encontrei pes­soalmente. Acordo me sentindo vazia e ansiosa pelo toque dele. Os primeiros sonhos apenas me mostra­vam dividindo a cama com um homem de olhos de cores diferentes, tolice romântica. Agora eles são mais ardentes e não apenas quanto ao ato de amor. Sonho com ele sorrindo para mim por causa da boa refeição que preparei ou quando ele volta da corte falando sobre tudo o que viu ou fez. E, Nora, sonho com ele segurando nossos filhos no colo.

— É... você ama mesmo aquele mulherengo.

— Acho que sim.

— Não, você o ama. Não existe "acho". O sonho com crianças me diz isso. Aposto que se parecem com ele.

— Sim, mas posso estar tendo esse tipo de sonho pelo fato de eu ter vinte e três anos e nunca ter sido cortejada.

— Quem sabe, quando os autores desses crimes monstruosos forem pegos e as pessoas souberem que você ajudou a apanhá-los, sua situação mudará.

Morainn sorriu ao captar certa dúvida na voz da amiga. O que ela não havia percebido durante a con­versa foi desaprovação nem condenação. Nora estava apenas preocupada que ela se machucasse. Havia uma grande possibilidade que isso acontecesse, con­tudo não a impediria de seguir adiante.

— Não, nada vai mudar. Minha ajuda apenas irá confirmar a opinião das pessoas de que sou uma bruxa.

— Vai aceitá-lo, não vai?

— Acredito que sim. Eu o quero, mesmo que tenhamos uma relação passageira. Ainda que tudo o que ele possa me dar seja paixão e amizade. Talvez ele me dê mais, talvez ele seja o homem que os sonhos me mostram, e eu seria uma tola se o perdesse.

— Você não poderia conquistá-lo sem ir para a cama com ele?

— Quem sabe, mas é de Tormand Murray que estamos falando. Ele não é o tipo de homem que se contentaria em me cortejar e trocar alguns beijos. Dizem que é pelo estômago que se agarra um homem, porém, no caso de Tormand, se eu der a menor demons­tração de que estou disposta a ser sua amante, o fato terá de ser consumado. Mas, quem sabe, no calor da paixão, eu encontre o caminho para o coração dele. Para dizer a verdade, também não pretendo morrer virgem. Antes que algum bastardo tente invadir meu quarto no meio da noite para me estuprar ou me pegue sozinha em algum lugar, prefiro me entregar a um homem de minha escolha, alguém com quem eu possa ter um futuro.

— Tem razão, acho que eu faria o mesmo se esti­vesse em seu lugar e desejo-lhe sorte. — Ela riu e abraçou Morainn. — Agora me conte como está a caça aos assassinos.

O sol se punha quando Morainn deixou a casa de Nora. A amiga a acompanhava com Harcourt e Rory bem atrás delas. Nora ia jantar na casa da tia, que morava no caminho da propriedade de Tormand. Morainn pensava na comida que ia preparar para a refeição noturna quando sentiu um ar gelado envolvê-la e parou de andar.

— O que foi? — perguntou Nora. — Viu alguém com quem gostaria de falar?

— Você está sentindo o frio? — indagou a Nora.

— Não, não está frio, Morainn — a amiga respon­deu, confusa. — Na verdade, a noite está quente.

— Seria o frio que sente quando é acometida por suas visões? — interrogou Harcourt.

Morainn olhou para ele com gratidão. Era bom ter pessoas ao seu redor que a compreendiam.

— Sim, é o mesmo. Estão nos observando. — Ela sentiu Nora apertar sua mão. — Só não consigo vê-los.

Ela começou a se mover como um caçador esprei­tando um veado, seguindo a direção do frio que sentia e levando Nora consigo. Harcourt e Rory ficaram perto e alertas, o que lhe deu mais coragem. Ela caminhou até uma passagem muito escura e parou. O frio aumentou, fazendo-a tremer. Agora também podia sentir olhos sobre si e um mal intenso vindo do observador. Ele ficou furioso por ter sido desco­berto. Virando rapidamente, ela observou a passagem. Uma sombra enorme estava lá, parada. Morainn sabia que se tratava de um dos assassinos. Ela havia visto aquele homem enorme em seus sonhos muitas vezes. O modo como ele a encarava, imóvel, fez com que ela tivesse vontade de voltar correndo para a casa de Tormand e de se esconder debaixo cama.

— Ele está lá — sussurrou, temendo que nem Rory nem Harcourt a ouvissem, porém ambos se aproximaram rapidamente. Rory hesitou, obviamente pensando que alguém deveria ficar com as mulheres. — Vá. Ficaremos aqui onde podemos ser vistas e ouvidas por muitas pessoas.

Observando-o seguir Harcourt, ela soube que eles não conseguiriam pegar o malfeitor, pois ele já tinha desaparecido nas sombras.

— Era um dos assassinos? — Nora cochichou, com voz trêmula de medo.

— Sim, mas não se preocupe. Estamos no claro com dezenas de pessoas por perto. — Morainn sor­riu. — E tenho uma faca bem grande escondida sob minha saia.

— E você conseguiria pegá-la rapidamente caso fosse necessário?

— Sim. Está perto da minha cintura.

— Eles não vão pegá-lo, vão?

— Acho que não. E ficarão muito aborrecidos.

— Estou morrendo de medo, e você parece tão calma.

Morainn quase riu. No fundo, ela também estava com medo. O fato de estar sendo observada tão de perto por um dos assassinos a deixava aterrorizada. Ainda podia sentir aqueles olhos sobre ela e queria se livrar daquela sensação. Por um breve momento, quando olhou para aquela sombra, percebeu o cheiro de sangue no ar e ouviu os gritos das mulheres mortas em sua mente.

— Nora, quero que você e sua família nunca fiquem sozinhos. Peça ao James que providencie homens para protegê-los.

— Mas nenhum de nós tem nada a ver com sir Tormand, e você disse que esses monstros estavam atrás das amantes dele. — Nora fitou Morainn com os olhos arregalados. — Meu Deus, você pretende se tornar uma das mulheres de Tormand.

— Na verdade, a minha intenção é me tornar a ultima mulher da lista que ele está preparando, mas não se esqueça de que os assassinos já estão atrás de mim. Aquela louca sabe que ele me deseja e quer privá-lo de qualquer tipo de prazer na vida. Além do mais, ela também está preocupada com a possibilida­de de meu dom ajudar sir Simon a encontrá-la. Tenho medo de que me preparem uma armadilha, usando aqueles que amo. Então, por favor, peça a James que proteja você e sua família, e nunca deixe ninguém sair sozinho.

— Vou falar com ele. Fiquei horrorizada com as mortes, mas nunca pensei que eu ou alguém que conheço estivesse em perigo. Mas, como você disse, essas pessoas são loucas e não faz sentido algum como escolhem suas vítimas.

— E pior, elas gostam de matar. Sentem prazer nisso.

— Eu preferiria que você não tivesse me dito nada. Agora estou mesmo com muito medo.

— Bom. Até que esses dois malditos sejam pre­sos, acredito que todo mundo deva ficar com medo. Essa mulher é capaz de matar qualquer um que ela pense que lhe fez algum mal. Acho que ela matou o marido ou alguém da própria família.

— Parece que seus guarda-costas não encontraram ninguém — disse Nora, quando Harcourt e Rory vol­taram frustrados.

— O homem desapareceu como fumaça — falou Harcourt com raiva.

— Tive receio de que isso acontecesse — disse Morainn, enquanto retomavam o trajeto na direção da casa da tia de Nora. — Aconselhei Nora a pedir a James que ela e a família fiquem protegidas.

— Boa idéia. Esses criminosos estão ficando cada vez mais audaciosos, sentem necessidade de alimentar sua fome doentia.

— Por que não alertam as pessoas de que qualquer um pode se tornar a próxima vítima desses assassinos malucos? — indagou Nora.

— Não importa o que dissermos, todos pensam que o problema é com Tormand e que por isso estão seguros.

Pararam em frente à casa da tia de Nora, e as duas amigas se abraçaram.

— Tenha muito cuidado, querida — Nora sussur­rou ao ouvido de Morainn. — Escolheu um homem perigoso e uma péssima hora para se apaixonar.

Morainn observou a amiga desaparecer dentro da casa, suspirou e voltou a caminhar.

— Demorei muito para saber o que aquele frio significava — falou mais para si mesma do que para seus acompanhantes.

— Não — opinou Rory —, aquele homem nos observava e foi mais rápido. Você teve outra visão?

— Não, foi só uma sensação. Parece que algum tipo de ligação se estabeleceu entre mim e os assassinos, Não sinto apenas que estão perto. Escuto suas vozes na minha cabeça durante as visões e os sonhos que tenho. Eu gostaria de acabar logo com essa situação, nem que para isso o laço que me une a eles se intensificasse e nos levasse até eles.

— Não, não seria nada bom para você — opinou Harcourt. — Sei que na vida real você não pode ser influenciada pela insanidade dessas duas criaturas, mas e durante as visões e os sonhos? Se eles podem entrar na sua mente, o que mais são capazes de fazer?

— Não sei. Apenas fico morrendo de medo quando ouço aquelas vozes em minha cabeça. — Ela passou os braços em forno do próprio corpo, no momento em que entravam na casa de Tormand. — Preciso tomar um banho e então irei preparar alguma coisa para comermos. Sei que vão sair essa noite e precisam estar bem alimentados.

Pouco depois, Morainn servia uma refeição sim­ples, mas reforçada, enquanto respondia a todas as perguntas sobre o que tinha acontecido. Então, colo­cou Walin na cama, sorrindo ao ver como o menino estava cansado.

Após limpar a cozinha, ela voltou ao saguão. Todos tinham desaparecido, deixando apenas Tormand olhando para o fogo, melancolicamente. Ela se ser­viu de uma caneca de cerveja e foi se sentar ao lado dele, num pequeno banco de madeira de frente para a lareira. O fogo brando iluminava Tormand. Ela tomou um gole da cerveja, refletindo sobre a beleza masculina, capaz de fazer qualquer mulher perder o ar, mesmo quando estava de mau humor, como naque­le instante.

— Eu deveria estar lá fora com eles, ajudando a procurar aqueles bastardos.

— Eles teriam que dar proteção a você o tempo todo, o que retardaria as buscas. Os comentários das pessoas da cidade se tornam cada dia mais ácidos em relação a você.

— Não entendo como podem acreditar que estou cometendo tamanha barbaridade. Nunca machuquei uma mulher. Jamais maltratei os pobres e até ajudei um amigo a encontrar uma boa casa para crianças abandonadas.

— Foi muita bondade de sua parte.

— Posso ser bom de vez em quando.

— Tenho certeza de que sim.

Tormand olhou para ela, surpreso. Aquelas palavras o encheram de esperanças. Ele se recostou na cadeira e passou o braço ao redor dos ombros de Morainn, sentindo-se como um adolescente tentando roubar o primeiro beijo. Ela não o encarava, entretanto seu rosto ficou vermelho, fazendo-o acreditar que ouvira bem o que ela havia dito. Ela não tinha se referido B/aos atos de caridade de Tormand. Com medo de estar enganado, ele resolveu mudar de assunto.

— Começo a me sentir uma donzela de algum conto presa em uma torre.

Morainn riu.

— Não, Tormand, isso você nunca será. Seja hones­to, você não seria capaz de enfrentar uma multidão raivosa.

— Sei disso. E sei também que Simon ou minha família poderiam se machucar quando tentassem me ajudar, e é o que me mantém aqui. — Ele se aproximou com cuidado e gentilmente brincou com os cabelos negros. — É claro que há algo bom em ser prisioneiro em minha casa.

— E o que é? — ela perguntou sem se surpreender com o desejo na própria voz. O calor e o perfume masculinos despertavam seus sentidos.

— Tenho uma mulher bonita como companhia.

— Então, mande-a embora porque estou aqui.

Ele riu e a beijou na testa, sentindo o aroma de lavanda na pele sedosa. Ele provavelmente não seria mais capaz de sentir aquela fragrância sem se lembrar de Morainn.

Ela esperava que ele fizesse mais do que tocá-la discretamente ou lhe desse leves beijos na cabeça. Ansiava que a boca experiente tomasse seus lábios, no entanto ele se comportava como um cavalheiro. Queria que ele não se contivesse, pois assim o seguiria pelo caminho do pecado. Mas, pelo visto, ela teria que provar que as demonstrações de carinho de Tormand haviam funcionado. Colocando a bebida sobre a mesa, ela virou a cabeça, de modo que sua boca ficou a poucos centímetros da dele.

— Ainda está me cortejando? — provocou-o.

— Estou tentando.

— Tem feito um ótimo trabalho.

— Tenho? — Ele ousou beijar a boca macia e sentiu que os lábios delicados o convidavam a seguir adiante. — Morainn?

— Trilhando um novo caminho e com medo de dar um passo errado?

— Sim, isso mesmo. — Ele a beijou novamente e se sentiu bem-vindo. — Preciso beijá-la. Estou louco para sentir seu gosto outra vez.

— Não podemos deixá-lo tão desejoso, podemos? — Ela pousou a boca sobre a dele.

O beijo que ele lhe deu foi ardente e voraz. Morainn retribuiu aquela urgência da melhor forma que podia. Quando recuou, ele colocou a testa contra a dela, levemente trêmulo. Talvez fosse apenas uma paixão passageira, mas estava cansada de fugir de Tormand. Ela o acariciou na nuca e o ouviu gemer.

— Ah, minha doce bruxinha, não sou bom nisso.

— Pensei que fosse muito bom. Ele sorriu de leve e então suspirou.

— O que sinto é muito forte para apenas ficarmos sentados aqui, trocando beijos inocentes. Bem que tentei, mas o desejo me comanda. Se você não quiser estar na minha cama em breve, é melhor que vá para o seu quarto. E tranque a porta.

Morainn pareceu hesitante. Entretanto, logo fez sua escolha.

— Acho que ficarei bem aqui, a não ser que me leve a outro lugar.

Sem perda de tempo, ele a pegou no colo e quase saiu correndo do saguão. Em vez de se assustar com a avidez com que era conduzida ao quarto de Tormand, mais especificamente para sua cama, ela ficou con­tente. O que começaria naquela noite poderia acabar em lágrimas, com ela sozinha na própria casa. Contudo, havia decidido dar uma chance ao destino.

Pelo menos uma vez na vida, ela ia se arriscar a agarrar o que mais desejava no momento e tinha esperança de que tudo desse certo.

 

Morainn passou os olhos rapidamente pelo quar­to de Tormand antes de se encontrar deitada na cama enorme e macia. Havia sinais de riqueza em todos os cantos. Tapetes no chão, tapeçarias na parede e castiçais de prata revelavam um homem cora dinheiro suficiente para aproveitar o melhor que a vida tinha a oferecer. De repente, sentiu-se intimidada por tanta opulência, uma breve demonstração de como seus mundos eram diferentes. Ele não apenas tinha uma família que o amava, um título, mas também era rico o bastante para escolher uma dama para ser sua esposa.

Ele se deitou sobre ela, Apesar da promessa que fizera a si mesma de não pensar no passado de Tormand, a imagem de todas as suas amantes invadiram a mente de Morainn. Ela começou a imaginar quantas daque­las mulheres da lista dividiram aquela cama com ele e ficou tensa quando foi abraçada. Tentou mudar o foco de seus pensamentos e relaxar antes que ele lhe notasse a mudança de comportamento. Entretanto soube que havia falhado quando ele a fitou.

— Não entendi direito ou você mudou de idéia? — ele perguntou, rezando para que a resposta fosse negativa.

Nunca estivera tão desesperado, para fazer amor com uma mulher como se sentia com Morainn.

— Não. — Ela o abraçou e silenciosamente amal­diçoou o fato de um simples movimento revelar sua tensão.

Tormand a estudou e logo suspirou ao adivinhar o que fez Morainn mudar de comportamento. Ela pen­sava nas mulheres que tinham dormido com ele, con­cluiu pela maneira como se recusava a olhá-lo. Afinal de contas, era Tormand, o grande amante, o pecador ou, como as primas diziam, o homem cuja calça era tirada somente com o balançar de uma anágua. Contudo, ele havia jurado que seria sempre sincero com Morainn, mesmo que essa atitude lhe causasse momentos desagradáveis. Dessa vez, ele falaria a verdade com tranqüilidade.

— Eu nunca trouxe mulher nenhuma aqui. — Ele a viu arregalar os olhos, surpresa. — Juro que é a primeira a dividir esta cama comigo.

— Mas por que você não trouxe nenhuma para cá?

— Acreditaria se eu dissesse que era para que Magda não tivesse motivos para fazer fofocas?

— Não, porque ela nunca estava aqui à noite para ver se você trazia mulheres para casa. Tinha medo de que o perfume feminino impregnasse sua cama mesmo depois que terminasse com elas?

Ele piscou, surpreso, ao perceber que aquela era uma ótima razão para manter as amantes fora de casa.

— Nunca pensei nisso, portanto não foi esse o motivo. Alguém uma vez me disse que a coisa mais sábia a fazer era manter a casa onde se mora livre das mulheres com quem se deita só para o prazer ou para satisfazer uma necessidade. Um homem não deve nunca manchar o próprio ninho.

Antes que ela pudesse perguntar o que aquilo sig­nificava, ele a beijou. Com apenas um toque da língua na boca, ela esqueceu toda a preocupação com as outras mulheres, camas e ninhos. O fogo que por um breve momento havia esfriado dentro dela voltou a queimar cheio de vida. Ela fez uma tentativa de tocar a língua sensual com a sua e o ouviu respirar com dificuldade. Aquele sinal de que ele gostava que ela o imitasse fez com que se sentisse ousada, dava tanto quanto recebia, apesar da falta de experiência.

Ele lutava para manter o controle de seu crescente desejo. Morainn aprendia rapidamente a beijar, dei­xando-o ofegante. Liberar toda a paixão que o consu­mia poderia assustá-la e essa era a última coisa que ele queria.

Quando ela deslizou as pequenas mãos sob a camisa que ele usava, Tormand gemeu com a força do prazer que o atingiu. Se estivesse em pé, certamente cairia de joelhos. Arrancando a camisa jogou-a para o lado, irritado com o tecido que a impedia de acariciá-lo livremente. Ele podia sentir o poder dos tímidos afagos por todo seu corpo.

Beijando-a novamente, faminto pelo gosto de Morainn, ele começou a lhe abrir o vestido. Precisava sentir seus corpos se tocarem, pele contra pele. A expectativa daquele primeiro encontro o fazia tremer. Toda sua experiência fluía por seus dedos a cada toque, a cada beijo que compartilhavam.

Morainn sentiu a timidez dominá-la quando Tormand retirou seu vestido e começou a desamarrar a combinação. Ela nunca ficara nua na frente de um homem. Aliás, não tinha ficado sem roupa diante de ninguém desde que era criança. Ao pensar nas lindas mulheres que ele levara para a cama, ficou com medo de não estar à altura das outras. Defeitos que ela nunca havia visto em seu corpo de repente surgiam em sua mente. Esforçou-se para se lembrar dos sonhos em que ela se sentia bem com o corpo de Tormand junto ao seu. Lentamente a timidez foi desa­parecendo. A sensação da pele quente sob o toque de suas mãos a ajudou a afastar qualquer preocupação de que logo ela estaria nua diante de um homem tão bonito que era capaz de lhe tirar o fôlego, que conhecera muitas mulheres e ainda assim sentia um forte desejo por ela. Resolveu pensar que em breve ele também estaria nu e ela poderia ver e sentir aquele corpo musculoso.

No momento em que removeu a última peça de roupa de Morainn, ele começou a retirar a própria roupa, sem a mesma atenção nem o cuidado que tinha dedicado a ela. Não pretendia fazer nenhum jogo de sedução, queria apenas ficar nu para se unir ao corpo curvilíneo o mais rápido possível. Ele poderia lhe ensinar os prazeres de tais jogos mais tarde.

Não tirou os olhos de Morainn enquanto se des­pia. Ela era esbelta, de seios lindamente fartos e quadris arredondados, macia em todos, os lugares que uma mulher devia ser. Os mamilos rosados e intumescidos convidavam ao toque. A pele sem mácula era dourada, exatamente como ele sonhara. Entre as pernas bem definidas havia um triângulo escuro indicando o caminho do paraíso. Ele teve que resistir para não levantar as pernas roliças, colocá-las sobre seus ombros e beijá-la na intimidade, pois, como era a primeira vez dela com um homem, ele tinha que ir devagar.

Notou que ela observava seu corpo, o olhar apreciativo foi suficiente para ele se sentir vaidoso. Então, ela se fixou na masculinidade rija e orgulhosa. Quando seus olhos se arregalaram, ele percebeu uma pontada de medo roubar um pouco do calor daquele olhar, então voltou para os braços de Morainn e a beijou. A sensação do corpo macio e da pele quente onde seus corpos se tocavam fez com que tremesse como um jovem inexperiente. Tormand se deu conta de que em sua vida não existira nada tão bom. Ele sabia que devia ficar alarmado com aquela sensação, mas tudo o que pôde fazer foi se deixar levar pelo momento.

Um som de prazer escapou dos lábios de Morainn quando a mão forte deslizou do pescoço rumo os seios. Até que ele lhe tocasse os mamilos com a ponta do dedo, ela nunca teria acreditado que fosse capaz de desejá-lo ainda mais, de forma quase dolorosa. Em seguida, ele começou a brincar com o outro seio da mesma maneira, beliscando-o bem de leve, com os dedos habilidosos, enquanto a beijava na boca. Ela arqueava o corpo, querendo mais e não sabendo como pedir. Então, ele tomou um mamilo no calor de sua boca e o sugou com vontade.

Uma onda de impetuosidade a dominou, levando-a a querer tocar Tormand em todo lugar, puxá-lo para mais perto e friccionar o corpo contra o membro ardente com urgência. De repente, a mão de Tormand estava lá, tocando-a intimamente e provocando-lhe prazeres inimagináveis. Devagar ele deslizou um dedo para dentro dela e gemeu ao sentir como esta­va molhada e quente. Logo concluiu que não podia esperar mais tempo para possuí-la. Cada gritinho de prazer que Morainn soltava, cada parte de seu corpo contra o dele diminuía o controle que tentava manter. Sabia que poderia chegar ao clímax facilmente se não a tomasse logo, e aquilo seria uma situação vergo­nhosa pela qual ele não queria passar. Acariciando-a nas pernas, posicionou-se entre elas e devagar come­çou a penetrá-la,.com o suor escorrendo pelas costas, devido ao esforço de se mover gentilmente.

Quando Morainn sentiu algo muito maior que um dedo começar a abrir caminho entre suas pernas, seu corpo ficou tenso apesar de todos os esforços para que isso não acontecesse. Lembrou-se de todas as terrí­veis histórias que as mulheres contavam sobre ir para a cama com um homem pela primeira vez, e como uma parteira ajudava a resolver o resultado dessas histórias, O bom-senso lhe dizia que não podia ser ruim como falavam, senão não manteriam relações tantas vezes. Ela se sentiu estender para acomodar a invasão de Tormand em seu corpo, mas o medo voltou a aparecer.

— Calma, minha Morainn — Tormand sussurrou contra a boca delicada. — Segure-se em mim e me beije. Não pense em nada mais além de como é bom estarmos juntos.

Ela obedeceu e o calor dos beijos ousados afasta­ram-lhe o medo.

— Agora coloque as pernas ao meu redor. Ah, sim. Desse jeito. Como imaginei... Esta é sua primeira vez com um homem.

O tom de voz rouco, repleto de orgulho masculino e satisfação, através sou-lhe a mente turva de desejo. Então, ele a penetrou com mais força e uma dor aguda a atingiu, como um balde de água gelada.

— Calma, amor — ele sussurrou com sua boca tocando levemente a dela. — Vai passar.

— Como pode ter tanta certeza? — ela perguntou, preocupada com a dor que estava sentindo e fascina­da pela maneira como seus corpos estavam unidos. — Já foi para a cama com muitas virgens?

Tormand não queria falar sobre mais nada, pois, enfim, estava completamente acomodado dentro da mulher que tanto desejava. Mas lembrou-se da pro­messa de ser sempre sincero com ela, não importava quão desagradável o assunto pudesse ser. Seria a única maneira de conquistar a confiança de Morainn e isso era muito importante para ele. Alguns diriam que ele já tinha a confiança dela, já que se encontravam unidos, os corpos nus, mas ele sabia que a paixão podia colocar de lado dúvidas e preocupações, mesmo que fosse por um curto espaço de tempo.

— Não — ele respondeu, acariciando-a gentil­mente nos quadris. — Nunca estive com uma virgem antes. Você é a minha primeira. — Ela ficou tentada a perguntar por que ele quebrava as próprias regras, mas o desejo a invadia outra vez. Sem conseguir se conter ela se agarrou bem forte a ele e começou a se movimentar com sofreguidão. Só ele poderia lhe dar o que precisava. Quando Tormand se retirou de dentro dela, ela protestou e então ele a penetrou mais fundo, fazendo-a gritar de prazer. Era o que ela queria. Havia sido isso que seus sonhos lhe prometeram.

Aos poucos as investidas lentas e gentis foram se intensificando até que ela sucumbiu ao seu desejo e foi guiada ao êxtase.

Enquanto ela se contraía ao redor de sua masculinidade, ele gritou com a força do próprio orgasmo. Um riso de pura alegria escapou de seus lábios quando ambos relaxaram, plenamente satisfeitos.

A consciência de Tormand foi voltando aos pou­cos. Preocupado com seu peso sobre Morainn, ele deslizou para o lado do corpo macio. Ela parecia adormecida quando ele se afastou e desceu da cama para apanhar um pano e limpar a ambos. Ela resmun­gou em seu sono, enquanto ele retirava os sinais da inocência perdida e do ato de amor compartilhado. Então ele bocejou, jogou o pano de lado e voltou para a cama. Puxando-a para junto de si, decidiu que um pequeno descanso era uma boa idéia.

Acordado por um grito, Tormand quase pulou da cama. Ele já procurava sua espada, quando percebeu que havia alguém na cama com ele e esse alguém se contorcia e gemia. Um segundo depois, sua mente clareou o suficiente para que se lembrasse do que havia acontecido antes que pegasse no sono. Ele se virou para procurar Morainn quando a porta do quarto foi aberta com um chute. Ignorando os homens que corriam para dentro, ele se concentrou em tirá-la daquele pesadelo.

Colocando um cobertor ao redor dela, tentou impe­dir que ela se debatesse.

— Morainn! É só um sonho. Acorde agora. Vamos, abra os olhos.

Ao ouvi-lo, ela parou de lutar o suficiente para que ele a balançasse gentilmente e a acalmasse com palavras de carinho até que ela abriu os olhos.

Ela o encarou por algum tempo antes de perceber que ele não fazia parte de um sonho. Ainda tremia de medo pelo que tinha visto e pressionou o corpo contra ele, procurando calor. Justo quando começou a respirar com mais facilidade, sentiu que alguém a observava e o temor voltou. Instintivamente, pro­curou a faca que costumava deixar debaixo de seu travesseiro e logo se deu conta de que não estava em sua cama.

Uma vela foi acesa, e ela olhou ao redor. Todos os Murray e Simon se encontravam parados ao redor da cama. Walter espreitou a entrada do quarto com um assustado Walin agarrado a sua perna. Todos olhavam para ela na cama, com Tormand, nus. Por um instante, preferiu que eles fossem o inimigo que ela havia enfrentado no sonho. Seria perigoso, porém menos embaraçoso. Então, lembrou-se do que tinha acontecido no sonho e deixou a humilhação de lado. O que vira era muito mais importante do que a vergonha de ser apanhada na cama com Tormand.

— Ela não enterrou o marido — Morainn disse, tremendo por ter visto um homem mutilado e pendu­rado por correntes. — Ela acabou de matá-lo. Pensei que ela já o tivesse feito, mas não. Ele acabou de morrer.

— Você consegue se lembrar de algum nome? — perguntou Simon.

— Ela o chamou de Edward. Ela o chamou de gordo Edward e o vi pendurado por correntes. Realmente era muito gordo. — Morainn fechou os olhos, lutando contra a terrível imagem do homem morto.

— Tinha cabelos não muito vermelhos, sardas. — Tremeu novamente e Tormand a puxou para mais perto. — Não sei o que ele fez para ela, mas não senti maldade nele. Ela o matou bem devagar e ele sofreu muita dor por um longo tempo.

— Saberia dizer onde ou quando esse fato pode ter acontecido? Conheço muitos Edward e nenhum é pequeno. Se houvesse uma pista de onde está o corpo, poderíamos economizar muito tempo.

— Tudo o que vi foi onde ele estava. Um calabouço, acho. Um lugar úmido e iluminado por fogo ou tochas. — Ela esfregou a cabeça, odiando ter que reviver aquele sonho sangrento. — Havia uma grande porta com o desenho de um cachorro, não, de um lobo.

— Já sei! É onde Edward MacLean vive. Ele cha­ma sua casa de santuário do lobo. Fica ao norte da cidade. — Simon parecia empolgado com as novas descobertas.

— Dessa vez vou com vocês — gritou Tormand quando os homens começaram a correr para fora do quarto.

Assim que Tormand se levantou, Morainn jogou-se no colchão e gemeu. Ele se virou para ela com uma expressão preocupada, observando-a cuidadosamen­te enquanto se vestia. Ela estava pálida, mas não parecia ter sofrido muito durante o sonho.

— Você está bem, Morainn?

Ela gemeu de novo e puxou o cobertor até a cabeça.

— Acabei de ser encontrada, nua, na sua cama, por todos da casa.

Ele se controlou para não rir.

— Cobri você com o cobertor antes que alguém a visse sem roupa.

Ela se sentou e olhou para ele.

— Mas eles me viram aqui. — Ficou ainda mais pálida ao levar a mão à boca. — Como posso ser tão fria e egoísta? Há um pobre homem morto, que sofreu muito pelas mãos da própria mulher e eu me preocupando por seus amigos e sua família terem descoberto que nós dois dormimos juntos.

Tormand se sentou na cama, abraçou-a e a acariciou nas costas.

— Você não é fria nem egoísta. Tudo aconteceu tão rápido que nem teve tempo de pensar. Em um momen­to, você estava tendo um pesadelo e em outro está em uma cama, cercada por seis homens seminus e armados. Não pode se sentir, culpada por todas essas mortes, meu amor. Isso vai acabar com você. E quanto aqueles idiotas que a viram na minha cama, não se preocupe. Quanto a Walin, o único interesse dele era ver se estava machucada — Beijou-a de leve e se levantou para terminar de se vestir e pegar suas armas.

— Acho que você não deve ir — ela opinou. — E se for uma armadilha ou aqueles que o consideram culpado estiverem, lá fora, à espera de uma briga?

— Estarei acompanhado de cinco homens arma­dos, que já sangraram em batalhas. Vou ficar bem.

— Ele lhe deu outro beijo, saiu correndo e olhou para trás. — Walter ficará aqui para cuidar de você e Walin.

Morainn resmungou e deitou-se na cama novamen­te. Pelo menos, enquanto eles estivessem fora, ela poderia se recuperar da vergonha. A descoberta seria inevitável, disse a si mesma. Seria impossível manter em segredo que ela estava dormindo com Tormand numa casa cheia de gente. Rezou para que Walin fosse muito jovem para entender o que significava o fato de tê-la encontrado na cama de Tormand, pois não desejava responder às perguntas de um garotinho curioso.

Ainda restavam algumas horas para o amanhecer, e ela precisava dormir um pouco. Decidiu apanhar suas roupas e sair do quarto de Tormand, rumando para os próprios aposentos. Estava certa de que ele espe­rasse que ela ficasse na cama dele, no entanto ela não faria isso enquanto ele não pedisse.

Já na sua cama com os gatos à sua volta, sentia-se mais calma, certa de que conseguiria dormir. O som dos passos de Walter apenas aumentaram sua sensa­ção de paz, Como Tormand havia dito, ela e Walin não ficariam desprotegidos. Havia algumas coisas que vira no sonho e não teve tempo, de dizer a eles, faria isso depois. Contar que a mulher tinha sorrido para ela quando gritara, acordando a todos, apenas os dei­xaria preocupados.

— Minha vida seria bem mais feliz se eu tivesse me poupado de ver esta cena — disse Harcourt.

O que sobrara do pobre Edward MacLean fez o estômago de Tormand revirar, a ponto de ele mal con­seguir controlar a vontade de vomitar. Os assassinos deviam ter torturado Edward por muito tempo. Não tinha restado quase nada do homem grande que ele fora um dia. Praticamente o esfolaram vivo, quebraram-lhe os dedos das mãos e dos pés e o castraram. Tormand tinha certeza de que havia outros ferimen­tos, pois o pobre-coitado estava todo coberto de sangue.

— Não posso pensar em nada que esse pobre homem possa ter feito à esposa para merecer tal morte. — Foi o comentário de Simon ao iniciar as buscas no local do crime. — Ele era irritante, orgulhoso, de alguma maneira um porco e não muito brilhante, no entanto nunca o vi levantar a mão contra alguém nem dizer algo grosseiro. Na verdade, era jovial e se achava engraçado.

— Você conhece a mulher dele? — perguntou Tormand.

— Eu a vi uma vez — Simon respondeu. — Calada, fácil de ser esquecida. Eu nunca poderia imaginá-la capaz de tamanha brutalidade.

— Talvez seja por isso que ela conseguiu ir tão longe.

— Mas onde estão os empregados da casa? — indagou Rory. — Com uma propriedade daquele tamanho, seria preciso pelo menos duas criadas e um cozinheiro. — Ninguém veio atender a porta, nem encontramos ninguém quando descemos até aqui.

— Ela pode tê-los dispensado por algum motivo — opinou Simon. — Além do mais, duvido de que alguém ouviria o pobre homem aqui embaixo. Acho que ela e o gigante que a acompanha foram embora há muito tempo.

— Sim, são muito espertos. Ela já imaginava que, assim que víssemos Edward, adivinharíamos quem ela é. Sabe o nome dela, Simon?

— Não. Como eu disse, ela era fácil de ser esqueci­da. Mas encontrarei alguém que a conheça.

— E depois?

— Primeiro vou investigar se ela tem algum paren­te ou, mais importante, se algum de seus familiares foi morto recentemente. Assim que eu reunir toda informação possível sobre a esposa desse homem, voltaremos à nossa caçada. O que espero é que alguém possa nos dar uma boa descrição de seu companheiro.

— A enorme sombra que se mover silenciosa­mente na escuridão e desaparece como fumaça? — perguntou Harcourt.

— Sim, ele mesmo. — Simon deixou o calabouço. — Ele não deve viver apenas escondido. Alguém já deve tê-lo visto. Vamos procurar no restante da casa e ver se encontramos alguma pista.

— E quanto ao pobre Edward? Vamos deixá-lo aí, pendurado?

— No momento, sim.

Após horas de busca infrutíferas, Tormand caval­gava ao lado de Simon, enquanto voltavam para casa. Incomodava deixar Edward MacLean no cala­bouço, mas Simon queria voltar lá com alguns de seus homens e cuidar do corpo.

— Então, seduziu Morainn — disse Simon.

Arrancado de repente de seus sombrios pensamen­tos, Tormand precisou de um momento para entender o que o amigo tinha acabado de dizer e suspirou.

— Esqueça, Simon. Tudo o que posso dizer é que ela não é mais uma para mim.

— Planeja se casar com ela?

— Não sei. Não sei bem o que sinto nem o que espero dela. A única coisa que sei é que Morainn faz meu sangue correr mais rápido do que qualquer outra mulher já fez. Não posso mais ficar longe dela, assim como não posso deixar de respirar. É simples e complicado ao mesmo tempo. É difícil pensar no futuro quando, pelo que sei, posso ser mandado para a forca.

Não deixaremos que isso aconteça. Agora sabemos quem está por trás desses crimes bárbaros. Ela não despertou meu interesse quando a conheci, mas deve haver alguém que saiba descrevê-la, assim como a seu fiel parceiro.

— Eu esperava mais.

— Apanhá-los com as facas sujas de sangue nas mãos?

— Sim, quero acabar logo com essa história, não só porque estão matando pessoas, o que me faz soar egoísta, mas também porque não me agrada a idéia de ter que fugir e me esconder como James.

— Não, nunca o deixaríamos sofrer durante três anos como ele.

Tormand concordou com a cabeça, apesar de per­ceber que Simon não dera a ele nenhuma segurança de que não teria que fugir. No entanto, ficar escondido por algum tempo era muito melhor do que ser enforca­do por crimes que não havia cometido.

 

Há iam homem querendo vê-lo, sir Simon — anunciou Walter, parado à porta do saguão, com a mão sobre a espada. — Ele não me parece muito bem. Acho que são más notícias.

Morainn sentiu o coração bater mais rápido, Olhou para os homens ao redor e notou que compartilha­vam seu medo. Incapaz de se conter, ela procurou a mão de Tormand.

Estavam reunidos, conversando sobre o outro sonho que ela havia tido duas noites atrás, o aviso de que outra morte estava para acontecer. Todos tentavam descobrir alguma coisa que lhes indicasse quem seria a próxima vítima. Más notícias poderiam significar que estavam atrasados para evitar outro assassinato. Amaldiçoou suas visões por mostrar-lhe imagens confusas e informações insuficientes.

— Mande-o entrar, Walter — ordenou Tormand.

Ele praguejou em voz baixa assim que o homem surgiu no saguão. Era sir John Hay. Pela expressão de tristeza no rosto do homem, Tormand soube que a nobre lady Katherine fora a vítima que eles estavam tentando salvar.

Sir John aproximou-se do dono da casa, porém perdeu o equilíbrio, e Tormand correu para ampará-lo.

— Calma, John — murmurou ao conduzir o homem até uma cadeira.

Então, serviu-lhe uma caneca de vinho. Após tomar toda a bebida, as mãos de sir John pararam de tremer um pouco.

— Minha Kat foi cruelmente assassinada, assim como as outras. Meu pobre anjo, morto.

O homem começou a chorar, e todos os outros o fitaram, desconfortáveis. Antes que alguém tomasse alguma iniciativa, Morainn correu para ele e o abra­çou. Enquanto tentava acalmá-lo, ele soluçou por algum tempo até que recuperou o controle. Então, ela lhe entregou um lenço para que limpasse o rosto e sorriu gentilmente na esperança de diminuir o embaraço que ele obviamente sentia, apesar da dor profunda.

— É a senhorita a quem chamam de bruxa, não é? — ele interrogou com a voz ainda embargada por causa do choro. — Comentam que a senhorita está ajudando a encontrar os culpados por essas mortes.

— Sim, estou tentando, sir. Assim como esses bons homens. — Sentindo que sir John estava mais controlado, ela voltou a seu assento ao lado de Tormand.

— Por favor, se o senhor puder, diga o que sabe ou o que viu, não importa o quão pouco seja, vale a pena tentar — pediu Simon.

Sir John respirou fundo e começou a falar: — Eu estava voltando, tarde da noite, da casa de meu primo. Kat tinha muitas coisas para fazer, por isso não tinha me acompanhado, Deixei o jovem Geordie MacBain para protegê-la. Ao chegar, encon­trei-o no chão, debaixo da janela do quarto, com o pescoço quebrado. E Kat... — Ele estremeceu e seus olhos se encheram de dor. — Acho que ela já estava morta havia algum tempo, — Olhou para Simon. — Lembro-me do senhor, no passado, reclamando das pessoas que mexiam na cena de um crime. Então, deixei meu anjo exatamente como estava e vim procurá-lo. Apenas coloquei um cobertor sobre ela, não pude evitar. Ela estava nua e eu não queria que fosse vista daquele jeito.

Enquanto Simon fazia algumas perguntas, entre breves pausas para que John se recompusesse, Morainn ficou observando os outros homens. Havia levado algum tempo para que criasse coragem e os encarasse depois de ter sido apanhada na cama de Tormand, mas a necessidade de contar tudo sobre o aviso de que outro crime estava sendo planejado lhe deu forças para que os enfrentasse. Nenhum deles olhou para ela com desprezo nem mencionaram o assunto. Estava tudo exatamente como antes. Também não citaram o fato de que ela vinha passando as últimas noites envolvida nos braços de Tormand. Fato que a fazia sentir-se segura. Nem mesmo Walin não havia dito nada, e ela imaginou se não teriam alertado o menino a não fazer perguntas a respeito.

Ela podia ver a tristeza pela morte da esposa de Sir John no rosto dos companheiros. E também desa­pontamento pelo fato de não terem podido evitar o ocorrido, apesar de terem ficado horas discutindo sobre o sonho e procurado os assassinos por toda a cidade. Era evidente que pensavam ter falhado com a pobre vítima e com sir John, e Morainn duvidava de que alguma coisa que dissesse fosse diminuir a culpa que sentiam. Voltando a atenção a Tormand, percebeu que ele estava triste e sentiu uma pontada de ciúme. Ela já havia se encontrado com lady Katherine pouco depois de Walin ter sido deixado em sua porta. A jovem dama era boa e generosa e ficara extremamente aborrecida por não ter sido capaz de encontrar os pais do menino. Morainn não se lembrava de ter visto o nome de lady Katherine na lista de Tormand.

Dessa vez aqueles monstros mataram uma mulher completamente inocente.

Quando os homens se levantaram para levar sir John para casa, Tormand se juntou a eles. De repente, sir John se virou e o agarrou pelo braço.

— Não, meu amigo.

Tormand pareceu tão magoado, que Morainn correu para o seu lado e o pegou pelo punho cerrado.

— Não pode pensar que eu tenha algo a ver com isso, John — disse Tormand.

— Claro que não, meu amigo. Nunca. Não acre­ditei em nenhum momento que você fosse culpado pelas outras mortes. Peço que fique aqui, porque havia uma multidão furiosa, reunida em frente à minha casa quando saí de lá. Já sabem que minha Kat está morta e querem que alguém seja punido. Deixe Simon fazer o serviço dele enquanto você fica aqui, seguro atrás dos muros de sua propriedade. Você correria perigo se viesse conosco.

— Como quiser, John — Tormand respondeu com a voz sufocada. — Ofereço-lhe as minhas mais profundas condolências.

— Obrigado, amigo. Sei que é sincero. — Sir John olhou para Morainn antes de prosseguir: — Eu gosta­ria que você achasse o bastardo que a matou. Quero vê-lo pendurado numa corda, então cuspirei em seu túmulo. Pegue-o para mim, Tormand.

— Eu o pegarei, prometo.

Quando os homens partiram, Tormand sentou-se diante da mesa e segurou a cabeça entre as mãos, dominado pela tristeza. Morainn se acomodou ao lado dele e o abraçou, com os olhos cheios de lágrimas.

A morte de lady Katherine não fazia sentido. Mesmo sabendo que estavam lidando com pessoas insanas, Morainn ficou profundamente preocupada. Essa morte poderia transformar todos os boatos que cor­riam pela cidade sobre a culpa de Tormand em gritos de justiça. Abraçou-o mais forte e se lembrou de que Simon o esconderia se fosse necessário.

Simon entrou na elegante e grande sala dos Hay e encontrou sir John parado ao lado de uma enorme janela, olhando para a rua em frente a casa. O enorme lenço molhado que ele segurava indicou a Simon que o amigo andara chorando novamente e teve pena. Dessa vez, ele não sentiu apenas que a justiça deveria ser feita, uma necessidade de que aqueles crimes vem sentido tivessem um fim, mas também queria vingança. Lady Katherine havia sido uma boa mulher e sir John também era um bom amigo. Aquela morte tornava a busca pelos culpados uma questão pessoal. Ele se aproximou de sir John e colocou a mão sobre o ombro curvado, mesmo sabendo que não havia como confortar o amigo.

— Terminei, John. A velha Mary e a jovem Mary estão com sua esposa. Ambas irão prepará-la para o velório.

— Eu deveria ajudá-las — John murmurou, mas não se moveu.

— Não, meu amigo. Vamos deixar que as mulheres cuidem disso. Você não precisa ver aquilo de novo.

— É uma visão que jamais serei capaz de apagar da minha mente, Simon.

— Tente amenizar essa dor com as boas lembranças de seu casamento.

— Sim, seguirei seu conselho. Algum dia. — Sir John franziu o cenho ao observar a multidão do outro lado rua. — A quantidade de curiosos está aumen­tando assim como a raiva que sentem. Há muitas pessoas que pensam que Tormand é o assassino e dão sua opinião publicamente. Minha Kat era muito ama­da, por seu coração generoso e por ajudar os pobres. Essas pessoas perderam uma amiga e querem que alguém pague por isso.

— Tormand, para ser mais exato.

— Ele e a bruxa Ross, como a chamam.

— Acha que o perigo aumentou para ele? — Simon estudava a multidão.

— Sim. Para ele e para a mulher. No começo, eram só desconfianças, mas agora os acusam abertamente. Quanto à bruxa, as opiniões estão divididas: alguns comentam sobre a grande ajuda que ela tem dado na caçada ao autor dos crimes, outros acreditam que ela esteja envolvida nos assassinatos. Penso que há alguém incitando a multidão contra Tormand. Quem sabe os próprios assassinos? É melhor que a mulher e ele se escondam em um lugar seguro.

— Ele não vai gostar de saber disso.

— Pelo menos, ele estará vivo para reclamar. E eu o avisaria agora. Há pessoas sugerindo que o assas­sino seja enforcado. Presumo que você já tenha um esconderijo preparado para ele.

— Sim — afirmou Simon, já se retirando.

— Tire-os daqui. Mesmo que você tenha que amar­rar e amordaçar aquele tolo do Tormand.

— Eles partirão em uma hora.

Morainn franziu o cenho e pousou a mão sobre a boca, de Tormand. Eles falavam de lady Katherine. Desabafar o ajudava a aliviar a tristeza pela perda de uma boa amiga. Era tão somente isso o que Katherine representava para ele, e Morainn não precisou de mui­to para perceber. Ele falava da amiga como se fosse uma tia ou prima, não como uma amante.

— Você ouviu isso? — ela perguntou.

— O quê?

Ele lhe lambeu a palma da mão de Morainn e sorriu quando ela gritou e corou de prazer ao puxar a mão.

Seu coração doía pela velha amiga lady Katherine e de repente teve uma idéia de como esquecer aquela dor. A paixão de Morainn tinha aquecido suas noites e ele sempre estava faminto por ela. Também queria evitar os homens quando eles voltassem com as novidades sobre a morte de lady Katherine. Ele já sabia o que teriam visto e trariam mais um grampo.

Sem pistas nem testemunhas. Estavam chegando perto, mas não o suficiente para salvar a pobre Kat. Ele queria se livrar do gosto de tristeza e de derrota em sua boca com o sabor doce e quente de Morainn.

Já estava prestes a pegá-la no colo quando escutou um barulho e ela correu até a janela.

— Agora você ouviu? — ela perguntou.

— Sim — ele respondeu, aproximando-se da janela e pondo-se ao lado de Morainn. — Acho que alguém está vindo nos visitar, e não é para oferecer os pêsames pela perda de uma amiga.

Enquanto ele falava, Morainn escutou o som da multidão cheia de raiva e ansiosa para fazer justiça com as próprias mãos. No passado, quando tinham vindo atrás de sua mãe, o medo os guiara até lá. Contudo, ela sabia que agora os resultados seriam os mesmos de antes. Surgiram em sua mente lembranças daquele dia, de como haviam pegado sua mãe à força, o ódio que impregnava suas almas os levaram a matá-la.

Morainn começou a tremer, possuída por todo o medo e a tristeza que havia sofrido quando criança. Tormand passou os braços ao redor de seus ombros e a puxou para si. O calor do corpo forte e a preocupa­ção a ajudaram a se controlar.

— Não tenha medo, minha querida — ele disse com voz calma e a beijou no rosto. — Eles não irão nos pegar.

Tormand e Morainn ficaram surpresos quando Simon de repente apareceu ao lado deles.

— Por Deus, Simon! — disse Tormand, recupe­rando-se do susto. — Temos que colocar um sino em você. Como entrou aqui? Estávamos olhando pela janela e não o vimos.

— Há mais de uma maneira de entrar na sua casa, Tormand. — Simon espiou pela janela e depois encarou o amigo. — Vocês têm que sair daqui agora.

Tormand observou o grupo de pessoas que se reunia na frente de sua casa.

— Eles não são tantos assim.

— Em breve serão, meu amigo.

— Bem, talvez com meus homens e alguns dos seus, poderíamos...

— Lutar com eles? Eu realmente não gostaria de matar cidadãos inocentes, mesmo que sejam idiotas. Agora são muito mais do que sussurros de desconfian­ça, ameaças e alguns insultos, Tormand. Katherine era muito querida, e esta gente está com sede de san­gue, o seu — ele olhou para Morainn — e o dela.

— Morainn? Por quê? Há alguma coisa que você não me contou, Simon?

— Eles estão atrás de mim porque sou a bruxa Ross. Assim como fizeram com minha mãe.

Simon praguejou, baixinho.

— Eles a querem porque pensam que a senhorita está ajudando Tormand a matar essas mulheres ou evitando que ele seja enforcado pelo que fez.

— Mas é claro — ela resmungou. — Não importa que eu tenha me encontrado com ele somente depois do segundo crime.

— Magda está por trás de tudo isso.

— Ela certamente não tem ajudado, mas não acho que ela esteja guiando essa multidão pela rua. Agora peguem tudo que acham que irão precisar. Vou levá-los a um esconderijo — Vendo o rosto tei­moso de Tormand, Simon sabia que uma discussão estava a caminho e não havia tempo pára isso. — Sir John também insistiu em dizer que vocês devem partir. Ele disse que Katherine o preveniu sobre o humor das pessoas da cidade e que ela achava que estavam sendo envenenadas por alguém.

— Os assassinos? — indagou Morainn.

— Talvez, mas também poderia ser qualquer um. Eu...

O que quer que Simon estava para dizer foi inter­rompido por uma pedra que atravessou o vidro da janela e caiu diante deles. Tormand protegeu Morainn com o corpo e sentiu os pedaços de vidro atingir sua pele sobre a camisa. Um rápido olhar pelo bura­co que a pedra fez no caro vidro, e ele concluiu que poderia haver mais pedras, e a multidão logo invadiria sua casa.

— Vá. — Ele empurrou Morainn para a porta.

— Pegue algumas coisas, e então iremos embora.

— Walin... — ela começou a dizer enquanto trope­çava até a porta.

— Ele ficará a salvo com a minha família, Simon e Walter. Depressa — ele ordenou.

Depois que ela se foi, ele olhou para Simon.

— Pode nos tirar daqui?

— Sim. Seus irmãos e primos estão chegando. Pegue você também algumas coisas e então os levarei para o lugar que encontrei. Enquanto fugimos, seus irmãos poderão enfrentar a multidão e tentar mandá-los de volta para suas casas.

Praguejando, Tormand foi a seu quarto e colocou algumas roupas numa bolsa.. Pegou sua espada e algumas facas. Ele queria ficar, entretanto sabia que era seu orgulho falando. Havia muito pouco que um homem poderia fazer contra uma multidão determina­da. Mesmo quatro Murray armados não seriam sufi­cientes para conter aquelas pessoas por muito tempo. E também havia Morainn. Ele não poderia mantê-la a salvo naquele lugar.

Enquanto fugiam pelos fundos onde três cavalos os esperavam, selados e carregados de mantimentos, Tormand podia ouvir os familiares gritando para a multidão. Rezou para que os parentes não fossem feri­dos e para que Morainn e ele conseguissem escapar. Com a espada na mão, Simon os guiava silenciosa­mente pelas ruas escuras, para longe do perigo.

Tomaram um longo caminho pela cidade e seguiram fora da estrada, a oeste. Tormand observava Morainn de perto, mas não pelo fato de ela não saber cavalgar, e sim pela expressão de seu rosto. Ela continuava assustada, não importando o quanto aumentava a distância entre eles e a multidão. Lembrou-se de que ela havia comentado alguma coisa envolvendo a mãe e estremeceu. Tinha sido uma multidão como aquela que ceifara a vida de sua mãe, deixando-a órfã.

Quando pensava em perguntar a Simon se estavam chegando, surgiu uma torre em ruínas. Tormand franziu o cenho ao se aproximarem. Eles poderiam estar protegidos ali, mas não se chovesse. Embora já tivesse vivido algum tempo em lugares simples como aquele, não estava muito disposto a passar por aquilo de novo. Todavia sua preocupação maior era com Morainn. Só quando pararam e desmontaram dos cavalos, ele percebeu que alguns reparos haviam sido feitos.

— É aqui — informou Simon, enquanto Tormand ajudava Morainn a descer do cavalo.

— Rústico — opinou Tormand ao colocar o braço sobre os ombros de Morainn, ignorando o fato de ela estar sem firmeza depois do que muitos considera­riam uma curta cavalgada, mas que para ela fora um grande esforço.

— Um pouco, mas não é tão ruim quanto parece. Vamos entrar.

Sentindo que Morainn estava mais firme, Tormand a segurou pela mão e seguiu o amigo. Num primei­ro momento, parecia apenas uma grande ruína, mas então viraram um corredor e Tormand respirou, aliviado. Atrás da grossa porta que Simon abrira, apareceu um lugar com um amplo espaço dividido em uma área para cozinhar, outra para dormir e um canto mais reservado para servir como banheiro. Uma cama grande estava encostada contra uma parede e havia barris, um de bebida e outro com suprimentos. Ele ficou satisfeito e ao mesmo tempo surpreso. Estava recebendo bem a idéia de seu retiro confortá­vel, mas ainda assim era uma prisão, onde teria que se esconder não sabia até quando.

Morainn andava pelo enorme quarto, notando que o lugar estava limpo e bem equipado. Após tocar a cama, descobriu um colchão de penas muito macio. Tormand e ela podiam estar se escondendo como dois foras da lei, no entanto estariam confortáveis.

— Quando arrumou tudo isso? — perguntou a Simon, colocando sua pequena bagagem próxima a um baú, perto do pé da cama.

— Comecei a preparar este lugar no momento em que ouvi a primeira acusação contra Tormand. Já vi muitos inocentes morrerem por serem julgados injustamente. — Ele estremeceu. — Onde quer que eu vá, certifico-me de que há esconderijos onde alguém possa aguardar seguramente até que a verdade seja descoberta e o inocente possa voltar para casa sem medo. Mesmo que alguns retornem apenas para pegar suas coisas e se mudar, porque não conseguem viver num lugar onde foram perseguidos.

— Onde a paz e a confiança se foram — concluiu Morainn. — É difícil se livrar totalmente do medo de que as pessoas se voltem contra você outra vez e não consiga escapar.

— Exatamente. Agora levarei os cavalos para um lugar seguro, não muito longe daqui. Sabe aquele sítio onde os cachorros fazem muito barulho? — Ele olhou para Tormand.

— Sim. Acha que as pessoas que moram lá são confiáveis para guardar segredo?

— Sem dúvida — respondeu Simon. — Eles têm um filho a meu serviço e acham que sou um gran­de homem por dar a ele essa ótima oportunidade. — Sorriu. — Eles não deram muita importância a mim quando falei que havia recrutado o filho deles para meu exército porque ele era forte, habilidoso com a espada e inteligente.

— Acho que há muitos outros rapazes pobres como ele que gostariam de ter uma chance como essa.

— Talvez. Mas este salvou minha vida e lhe sou grato por isso.

— Para algumas pessoas, uma ou duas moedas seriam o suficiente como forma de agradecimento.

— Tormand olhou ao redor do quarto. — Este é um bom lugar para se esconder. Mas torço para não ter que ficar aqui por muito tempo. Como você vai saber se Morainn viu alguma coisa importante nos sonhos ou quando tiver alguma visão?

— Voltarei para minha casa que fica nos arredo­res da cidade. Acredito que você possa entrar e sair daqui sem muito perigo.

— Quem vai cuidar de Walin? — indagou Morainn.

— Antes de sairmos fui ao quarto dele e disse que ia ficar um tempo fora, mas não tenho certeza de que ele estivesse suficientemente acordado para me entender. Apenas preciso saber se ele estará seguro.

— Walin continuará sendo protegido como tem sido até agora na casa de Tormand. Se isso se provar insuficiente, eu o levarei para minha casa. Não se preocupe com o garoto, Morainn. Ele ficará bem. Na verdade, sem você por perto, acho que ninguém vai dar muita importância a ele, nem mesmo os assassi­nos. — Voltou-se para Tormand. — Eu gostaria que você fizesse uma lista das mulheres que são suas amigas. Encontrará pena, tinta e pergaminho naquele baú. — Ele apontou para uma pequena caixa próxima à mesa e uma cadeira no canto do quarto.

— Acha que Kat morreu por minha causa? — Tormand perguntou com medo de que não apenas ele, mas Simon também houvesse considerado essa hipótese. — Achei que todo mundo soubesse que ela nunca foi minha amante.

— Não sei, Tormand. É possível, mas estando tão perto de encontrar os assassinos de Edward MacLean, imagino se houve outra razão para que fossem atrás da pobre Kat. Algo que não tenha nada a ver com você. Vou dar uma olhada nos pertences dela e tentar encontrar alguma coisa que explique o caso. Portanto, uma lista poderia me ajudar a avisar as outras mulheres.

Morainn observou os dois homens se despedindo depois que Simon disse um polido adeus a ela, pro­metendo que Walin seria bem cuidado. Então, foi arrumar as coisas que Tormand e ela haviam trazido. Aquele esconderijo era muito melhor do que ela ima­ginara, porém desejava do fundo do coração que não precisasse usá-lo.

Assim que terminou a tarefa, foi se lavar e se pre­parar para dormir. O pavor na casa de Tormand e sua primeira cavalgada a deixaram dolorida e cansada. Ela não tinha levado em consideração o perigo que correria ao ajudar Simon e Tormand. Ao menos não estava sozinha. Passara pelo mesmo tipo de terror dez anos atrás e não desejava sofrer novamente sozinha e assustada, aguardando a morte. Sorriu quando Tormand se aproximou, usando apenas calça e lhe estendendo uma caneca de vinho.

— Sinto muito tê-la arrastado para esta situação.

— Não se desculpe. — Ela lhe deu um suave beijo no rosto. — Sinto-me bem ao usar meu dom para aju­dar alguém. Agora posso realmente chamá-lo de dom sem hesitar. Só gostaria que pudesse ter sido de mais ajuda. Acha que foi por isso que Simon não me deu outro grampo para segurar?

— Acho que, se você não tivesse sonhado com Edward MacLean, Simon teria pedido para que tentasse uma nova visão. Agora ele tem uma pista á seguir e fará isso a sua maneira. Se achar que não está funcionando, talvez ele lhe peça que segure outro grampo.

— Ele é muito preciso em reunir informações.

— Sim, ele tem um forte senso de justiça e fica profundamente ofendido quando uma pessoa inocente é obrigada a pagar por um crime. Significa que o ver­dadeiro culpado conseguiu escapar, não é mesmo?

— Suponho que sim. Você não gosta disso, não é? Ficar escondido o deixa chateado.

Tormand pegou a caneca vazia da mão de Morainn e a colocou sobre a mesa. Em seguida, levou-a até a cama.

— Sim, fico. Mas, se eu tivesse escutado a voz de meu orgulho, estaria enforcado agora. Tenho muito medo de sofrer como meu irmão James. — Perce­bendo que ela havia ficado curiosa, ele contou tudo sobre o julgamento de James, que fora injustamente acusado de matar a esposa.

— Não acho que você terá de ficar aqui por três longos anos, Tormand.

— Não? É uma profecia ou algum tipo de esperança?

— É um sentimento muito forte de que essa histó­ria logo vai acabar. Aqueles bandidos em breve serão encontrados e punidos.

— Vou considerar essas palavras uma profecia. — Ele lhe tirou a camisola e jogou-a de lado, divertindo-se com o rubor que cobria a face de Morainn.

— Também contarei com minhas bênçãos.

— E quais são?

— Tenho um lugar confortável para me esconder e uma mulher para dividi-lo comigo. Duas coisas que meu pobre irmão não teve.

— Sorte a sua.

— Muita sorte — ele murmurou, tirando as roupas e voltando para os braços dela.

Morainn ia dizer que não era como tantas outras que ele tinha conhecido, quando foi beijada e logo se sentiu envolvida pela paixão que ele lhe despertava, fazendo-a esquecer a reclamação. O calor do desejo também apagou todas as más lembranças da multi­dão raivosa de sua mente. Fazer amor com Tormand diminuía seus medos, enquanto seu corpo e seu cora­ção se rendiam à mágica daqueles beijos e carícias.

Satisfeito e entorpecido, Tormand a segurava em seus braços. Ela adormecera logo depois de terem feito amor, plenamente saciada. O fato de ele conti­nuar se mostrando atraído por ela era um sinal de que um sentimento mais forte os unia. Ele só não tinha certeza se conseguiria dizê-lo em voz alta.

Prometeu a si mesmo que depois que os assassinos fossem capturados, tentaria entender o que sentia e o que queria de Morainn. Haveria tempo de sobra para que resolvessem seus problemas e para que expres­sassem suas emoções. Fechou os olhos e sorriu. Por hora, apenas aproveitaria o puro prazer que encontra­va nos braços dela. Aquilo motivo suficiente para que se escondesse de seus inimigos em vez de lutar contra eles, parecendo mais um presente do que um castigo.

 

Tormand acordou com um grito que quebrou o silên­cio da noite. Um pé chutou forte sua perna e ele se virou para Morainn. Ela se debatia na cama como se estivesse lutando com alguém que a machucava. Esses criminosos tinham de ser rapidamente capturados Morainn precisava de uma noite de sono tranqüila. Ele odiava vê-la atormentada daquela maneira. Queria que ela fizesse amor com ele e depois dormisse doce­mente em seus braços.

— Acorde, meu amor. — Ele tentou segurá-la com seu corpo antes que ela se machucasse. — É somente um sonho, Morainn. Só um sonho. Ninguém está machucando você. Não é preciso lutar. Volte para mim, doce bruxa. Volte.

Como da outra vez, o som da voz de Tormand a acalmou e ela parou de se debater. Ele diminuiu a força com que a segurava e a viu abrir os olhos. Por um breve momento, Morainn pareceu confusa, então o reconheceu.

Um sorriso bonito e sincero surgiu nos lábios delica­dos, e ele sentiu o poder daquele gesto no fundo de sua alma. De repente, deu-se conta de que gostaria de ver aquele sorriso todos os dias, pelo resto de sua vida. Porém, logo afastou a idéia.

O sorriso não durou muito tempo. Lembranças dos horrores que ela havia visto em seu sonho roubaram toda a cor de seu rosto e encheram de medo seus olhos. Tormand foi rapidamente buscar uma caneca de sidra fresca.

Morainn tomou a bebida com avidez, e ele voltou para o lado dela na cama. Esse sonho havia sido pior que o último, mais intenso e assustador. Escutara e vira coisas que seria melhor guardar para si mesma. Tormand estava determinado a protegê-la, mantê-la a salvo daqueles assassinos porque ela os estava ajudando. Se soubesse que ela havia sonhado com a própria morte, ele a prenderia em algum lugar e a cer­caria de homens enormes e bem armados. Ele também se colocaria em perigo com suas tentativas de mantê-la segura e isso ela não permitiria.

— Foi mais um sonho ruim — disse enfim, enquan­to Tormand a observava com paciência.

— Eu percebi. — Ele a abraçou bem apertado. — Você parecia lutar contra a dor ou um inimigo.

Morainn não ousou fitá-lo nos olhos, pois tinha certeza de que ele veria a verdade. Tormand tinha adivinhado parte do que ela enfrentara durante o pesadelo, e ela não sabia se conseguiria disfarçar a surpresa com o que ele dissera. Ainda podia sentir as amarras em seus pulsos e tornozelos. A única coisa que a impedia de se esconder debaixo da coberta e gritar de terror era a constatação de que se seu sonho não tinha sido tão claro.

— Haverá outra morte muito em breve — falou com calma. Pretendia contar o que havia visto sem revelar quem seria a próxima vítima.

Tinha que ter muito cuidado para não levantar sus­peitas sobre si, ou Tormand começaria a pressioná-la em busca de respostas que ela não queria dar.

— Aquela mulher louca parecia estar em frenesi, como se o gosto pelo sangue e pela dor aumentasse a cada morte. Sentia-se poderosa por decidir quem ia viver ou morrer.

— Tamanha maldade é terrivelmente dolorosa para quem as capta. Sonhos deveriam ser sobre coisas boas, e não sobre sangue e morte.

— Até que os assassinos sejam pegos, receio que meus sonhos continuarão sendo assim. Você esta cer­to. É um tormento ver o pior e ainda senti-lo. Porém, o que me preocupa mais é que essa mulher parece saber quem sou quando estou assistindo a tudo. — Ela tremeu apesar do calor do corpo de Tormand. — É como se, de alguma maneira, ela entrasse em minha mente.

— Acha que ela tem algum dom?

— Isso explicaria porque ela é tão ardilosa. Não sei... pode ser que meus sonhos estejam me levando até ela. Nunca ouvi vozes tão claramente antes de começar a sonhar e a ter visões com esses assassinos.

— Talvez seja a violência das mortes. As emoções que a dominam quando você vê alguma coisa são muito fortes.

— É verdade. E tenho a sensação de os sonhos vão ficando cada vez mais vividos, especialmente quan­do ela fala diretamente para mim, com um sorriso frio nos lábios, e me olha de forma ameaçadora.

— Você nunca me disse que ela sorri para você na visão.

— O que importa? Ela me ameaça quase desde o começo. Contei isso a você. Mas isso não me ajuda em nada a encontrá-la. Tento me lembrar de indícios, que possam indicar onde a próxima morte vai acontecer, quem são eles ou ainda dar uma pequena pista do lugar onde podem estar se escondendo.

Estranhamente, Tormand sentia que Morainn esta­va lhe escondendo alguma coisa. Ele respirou fundo e tentou afastar o medo de que ela corria risco de morte, mas não teve muito sucesso. O ataque a Morainn que o levara a protegê-la tinha mostrado que a dupla de assassinos a queria morta. Tudo o que ele podia fazer era mantê-la fora do alcance deles e rezar para que fosse o suficiente.

— Viu algum rosto dessa vez ou escutou algum nome. Melhor ainda, imagina onde o próximo crime irá acontecer e quando?

— Escutei a mulher pronunciar o próprio nome em voz alta, Ada ou Anna, como se o dissesse a alguém. Também tive a impressão de que o homem enorme, que a mulher insiste em chamar de Small, está tendo muito trabalho para controlá-la. Ela parece mais sel­vagem a cada visão, como se isso fosse possível.

De súbito, Morainn percebeu como Tormand cheirava bem. Ele também tinha um gosto bom. Ela enrubesceu. Eram amantes não havia muito tempo, entretanto ela estava se tornando uma completa liber­tina. Continuamente sentia desejo por ele.

Por um momento, ficou tentada a distraí-lo, seduzindo-o, Controlou-se para não rir. Não era uma mulher sedutora, não tinha experiência nem conheci­mento para tal. E também seria errado. Eles estavam caçando assassinos frios e brutais..Não era hora para joguinhos de amor.

— Dessa vez, pude ver muitos detalhes de um lugar. Havia uma ovelha — ela prosseguiu.

— Ovelha? Querida, a Escócia está cheia de ovelhas.

— Sim, sei disso. — Ela acariciou os pelos que contornavam o umbigo de Tormand e desciam até o membro viril. — Havia ovelhas ao redor de uma pequena casa feita de pedra, com um telhado de palha. Era um lugar rústico, o chão parecia de terra batida e havia uma fogueira ao centro, onde a comida era cozida, além de um buraco no teto para que a fumaça saísse. — Seus pulsos queimaram enquanto descrevia o lugar em que ela aparecia com os braços e pernas amarrados firmemente em estacas enfiadas na terra.

— Uma choupana talvez. Sei que há muitas delas na região, embora as mais próximas da cidade sejam as mais importantes. Os criminosos precisam de um lugar onde possam levar suas vítimas, matá-las e depois levá-las de volta para suas respectivas casas antes de o sol nascer. E a vítima? Você viu alguma coisa sobre ela?

— Não conheço muitas pessoas na cidade, muito menos as que pertencem à nobreza. Mas tudo o que vi é que ela não é muito alta e tem cabelos escuros. — Sentiu-se culpada por mentir.

Tormand aquiesceu, sem conseguir ignorar o modo como estava sendo tocado pelas mãos macias de Morainn. Enquanto dedos longos e finos brincavam sobre seu abdômen, sua masculinidade ficou rija, implorando para ser acariciada. Morainn precisou apenas olhar de relance para baixo para descobrir como ele estava excitado. Parte dele estava um pouco embaraçada pela falta de controle, enquanto a outra queria que Morainn visse o quanto o desejo por ela precisava ser saciado.

— Eu gostaria de não ter que ouvir aquela voz de gelo — ela resmungou, distraída com o que via pelo canto do olho.

Ela também sentia a necessidade de fazer amor com Tormand, uma sensação da qual ela acreditava que nunca conseguiria se libertar. Tentou olhar para outro lado, mas parecia hipnotizada pelo membro rijo. Sua mão quase comichava para tocá-lo. Ainda não havia segurado aquela parte do corpo de Tormand, apesar de ele já tê-la afagado em todos os lugares possíveis.

Morainn observou sua mão parar na borda da cal­ça como se tivesse vida própria. Talvez gostasse da sensação de tocá-lo. Quem sabe Tormand também gostasse de ser tocado intimamente como fazia com ela.

Corou com os pensamentos. Exigiam dela uma coragem que não sabia se tinha. Apenas imaginando que pudesse ser tão ousada, deslizou a mão e o aca­riciou de leve. Ele era todo calor e rigidez. Chocada com a própria ousadia, ouviu-o suspirar. Percebeu que ele estava gostando, apesar de não falar.

Tormand estava com medo de que qualquer coisa que dissesse a fizesse interromper a carícia e essa era a última coisa que queria. Por serem amantes fazia pouco tempo e ele ter sido o primeiro a possuí-la, ele não a pressionava a fazer nada, apenas a deixava livre para lhe dar prazer. Parecia que ela estava apren­dendo rápido, descobrindo os poderes de sua femini­lidade. Ele esperava que sim, pois passava um bom tempo pensando em todas as coisas que queria fazer com aquele corpo macio uma vez que a vergonha e a incerteza atenuassem.

O toque suave e gentil começou a enlouquecê-lo de desejo. Em silêncio, permaneceu deitado, sabo­reando aquele toque delicioso, com sabor de algo proibido, de alguém que não queria ser pego em flagrante. Ficou imaginando até quando conseguiria agüentar passivamente.

Seu autocontrole desapareceu quando a pequena mão acariciou seu membro e o apertou de leve. Com um gemido, agarrou-a pela cintura e rolou sobre ela, prendendo-a com o corpo másculo.

— Eu deveria ir ao encontro de Simon para contar o que você viu — murmurou entre os beijos que lhe aplicava na suave curva dos seios.

— Ainda faltam algumas horas para o dia ama­nhecer — ela disse e gritou de prazer quando ele lhe sugou os mamilos com avidez.

— Isso é bom, porque não vou sair daqui até que perca a conta das vezes que faremos amor.

— Você vai ceder primeiro do que eu.

Ele sorriu e moveu a língua lentamente sobre a pele quente e macia entre os seios.

— Adoro um desafio.

Tormand fez um certo esforço para se levantar de onde estava deitado, saciado, ao lado de Morainn. Ele tinha que ser o primeiro a se mexer para poder declarai vitória. Embora fizesse o possível para dar prazer às suas parceiras, nunca se esforçara tanto quanto com Morainn. Enquanto se deliciava cornos gritos selvagens de prazer que ela deixara escapar quando chegou ao orgasmo, ele quase ficara cego com a necessidade da satisfação do próprio desejo. Havia sido um exercício de autocontrole que consumiu suas forças.

Olhou para Morainn deitada de bruços, os olhos fechados e o rosto ainda corado pelo prazer compar­tilhado. O único movimento que ela tinha feito desde que ambos estremeceram com a força do clímax foi se deitar na posição que estava. Ele foi o primeiro a sair daquele estado de inércia, porém seria gentil e não declararia em voz alta que era o vencedor.

Mas então ele tropeçou na espada e percebeu que era observado. Morainn parecia completamente satisfeita, e ele sentiu-se envaidecido.

— Já vai? — ela indagou com voz rouca, quase fazendo com que ele voltasse para a cama.

— Sim. E não gosto de ter que deixá-la sozinha, mas Simon precisa saber o que você viu no sonho.

— Ficarei bem.

— Esconda-se caso perceba a aproximação de alguém.

— Sim, aprendi essa tática há dez anos. Não se preocupe comigo. Vá e diga a Simon o que vi.

Tormand curvou-se e deu-lhe um beijo antes de ir em direção à porta.

— Descanse, meu amor. Precisa recuperar suas forças.

Morainn riu, divertida.

— Ah! Se eu concordar, o seu pobre orgulho mas­culino não será ferido.

Ele riu e apressou-se para pegar o cavalo.

Morainn suspirou e deitou-se de costas, fitando, o teto rústico do esconderijo. Sentindo-se fraca, pretendia permanecer na cama por um bom tempo. Tormand, de fato, merecia ser chamado de grande amante. Ela só desejava poder ignorar como ele havia conquistado tamanha fama.

Amava aquele mulherengo. Não tinha como negar. Seu coração estava nas mãos dele. Havia tentado ignorar esse fato com o intuito de não sofrer demais quando ele a deixasse. Mas fora um esforço inútil.

Ao menos poderia se consolar com as prazerosas e lindas lembranças que ficariam guardadas para sempre em seu coração e em sua mente. Suspirou e fechou os olhos.

Bem... esperava que as doces recordações não a ferissem ainda mais, intensificando a dor da solidão.

Tormand observou Simon surgir no saguão da modesta casa, parecendo precisar dormir mais um pouco. Estivera sentado ali por mais de duas horas, não querendo acordar o amigo tão cedo. Portanto, teve muito tempo para pensar e não estava certo se havia gostado das conclusões que chegara. Embora estivesse ansioso para falar, esperou pacientemente que o café da manhã fosse servido. Ficou surpreso ao ver que seus parentes também se sentaram à mesa, ainda sonolentos.

— Todos vocês têm ficado aqui? — Tormand perguntou.

— Não, somente a noite passada. Já estava muito tarde e a casa de Simon era a mais próxima — expli­cou Harcourt, servindo-se. — Decidimos que não queríamos cavalgar ainda mais.

— Estavam atrás dos assassinos? — Tormand dese­java de todo o coração poder estar com eles em vez de ter que se esconder, porém não reclamou.

— Sim. Mas, para variar, não descobrimos nada.

— Por que você está aqui? — indagou Simon a Tormand. — Aconteceu alguma coisa?

— Morainn teve outro sonho — ele respondeu enquanto comia.

— Ah, então ela viu algo que pode nos ajudar.

Tormand lhe contou tudo o que Morainn havia dito. Repetir aquelas informações em voz alta fez com que ele tivesse mais certeza quanto às conclusões a que chegara quando estava sozinho na sala. Sentiu a raiva crescer dentro do peito, enquanto tentava se convencer de que ela não tinha mentido para ele. Ela simplesmente não contara tudo, provavelmente porque não queria preocupá-lo. Harcourt suspirou.

— Então, voltaremos aos cavalos para procurar choupanas e cabanas.

— Uma que tenha ovelhas e um telhado de palha — acrescentou Tormand.

— Esses aspectos certamente limitam a quantidade — Bennett opinou.

— Eu poderia... — começou Tormand.

— Não — Simon o interrompeu. — Você já se arriscou o suficiente vindo até aqui. E não podemos esquecer a possibilidade de os assassinos estarem nos observando e descobrirem de onde você veio. Isso poderia levá-los até Morainn. Eles a querem morta. Lembra-se?

— Sei disso. Morainn sente como se a assassina estivesse dentro de sua mente.

— Talvez esteja. Sabemos muito pouco a respeito desses dons. Você mais do que eu, obviamente. Mas aposto que não sabe tudo sobre dons simplesmente porque tem um.

— Acha mesmo que eu tenho um dom?

— Ah, sim. Sua intuição é bastante aguçada. Certamente deve ajudá-lo em algumas ocasiões, É como se você captasse as emoções das pessoas no ar.

Tormand pensou sobre aquilo por um momento e sentiu vontade de negar, apesar de Simon já ter presen­ciado uma demonstração de tal habilidade certa vez.

— Talvez tenha razão. Mas nunca considerei como um dom — concordou por fim. — Na verdade, sempre julguei uma habilidade natural mais acurada do que a da maioria dos homens.

— Não, é um dom. Um pequeno dom como do meu pai — interveio Harcourt. — Ele sabe quando o perigo se aproxima. Diz que isso o mantém vivo. Às vezes eu também posso senti-lo. Um dom muito útil. Não tão forte quanto os das nossas mulheres, mas útil.

— E eu aqui pensando que você me achava inteli­gente — Tormand reclamou, sorrindo para Simon.

— Você é, embora eu odeie aumentar mais ainda a sua vaidade. Você tem uma maneira de olhar as coi­sas que também pode ser de grande ajuda.

— Não tanto quanto os sonhos e as visões de Morainn.

— Sim. E agora tenho um nome, Ada ou Anna, uma pista ainda mais clara. Acredito que a assassina se chame Ada, apesar de não confiar muito na minha memória. Não entendo como essa mulher podia estar casada com Edward e mesmo assim poucas pessoas a conhecerem. Não consigo encontrar ninguém que se lembre do nome dela nem da aparência. — Ele franziu o cenho. — Até mesmo eu, que me orgulho de sempre reparar em tudo, não importa o quão pequeno seja algo ou aparentemente insignificante.

— Ninguém consegue ver tudo. Talvez o fato de as pessoas não a enxergarem tenha alimentado a loucura dessa mulher.

— Possivelmente. Pelo menos descobrimos que o nome de seu companheiro é Small Ian. Fiquei sabendo por uma fonte bem segura. Só gostaria que Morainn conseguisse mais informações sobre quem será a próxima vítima, apesar de saber que é difícil impedir um crime.

Tormand tomou um grande gole de cerveja e continuou:

— Acho que a vítima é a própria Morainn. — Ele afirmou com a cabeça diante dos olhares chocados de seus companheiros. — Ela não me disse, mas enquanto estive sentado aqui à espera de Simon, pen­sei muito em tudo o que ela me contou.

— Ela foi evasiva?

— Bastante. Após explicar que conhecia poucas pessoas na cidade, em especial as damas da nobreza, e por isso não poderia reconhecer a vítima mesmo que a visse nitidamente no sonho, Morainn final­mente a descreveu como uma mulher não muito alta e de cabelos escuros.

— Pelo que está me dizendo, creio que ela real­mente não quis revelar a verdade para não nos pre­ocupar. Fico admirado por você não ter percebido isso na hora. Você é muito perspicaz em relação a mentiras.

— Eu estava distraído. — Ele ignorou o bufar dos outros. — Ela pode não ter feito de propósito.

— Tem razão — opinou Uillian. — Ela não é uma mulher...

— Furtiva? — Tormand concluiu.

— Isso mesmo, você é bom com as palavras. Ela somente deu as respostas de que você precisava para que parasse de pressioná-la sobre o assunto ou talvez ela também estivesse distraída...

— Esse tipo de distração, sem dúvida, é muito mais agradável do que ficar em cima de um cavalo o dia inteiro — reclamou Rory.

Já estava quase no meio da tarde quando Tormand partiu. Haviam falado tanto sobre o sonho de Morainn, que cada vez que ele repetia o que ela havia visto e ouvido e os detalhes sobre os outros sonhos e visões, percebia o quanto Morainn era uma mulher forte. De fato ela precisava ser para enfrentar tais coisas. O que ele queria, no entanto, era que aqueles assassinos fossem removidos, dos sonhos de Morainn o mais rápido possível. Porém, estava desanimado com a lentidão do processo, e, para piorar, Morainn sonhara com a própria morte.

Atento para que ninguém o seguisse, rumava para fora da cidade, rezando para que o fim daquela afli­ção estivesse próximo e que Morainn sobrevivesse para comemorar com ele.

 

Parado à porta do quarto que dividia com Morainn, Tormand esforçava-se para manter a calma. Resmungara o caminho todo de volta, com raiva e depois com compreensão, o motivo de ela não ter-lhe contado a verdade. Naquele momento não seria bom entrar e exigir que ela contasse tudo o que tinha visto no sonho. O confronto não teria propósito algum a não ser amenizar um pouco da raiva que ainda corria em suas veias. Não podia nem dizer que ela menti­ra, já que ela apenas não havia contado tudo. Ainda tinha a sensação de que ela sentia que o estava pro­tegendo de alguma maneira. Imaginou se seria justo privá-la daquele sentimento.

Ela se movia graciosamente e com eficiência, enquanto preparava o jantar. Um aroma de coelho cozido tomou conta do ar e atingiu o estômago de Tormand. Ele não comera nada durante o tempo que estivera na casa de Simon. Passara o dia todo apenas com uma pequena refeição no café da manhã. Quando havia se dado conta de que Morainn sonhara com a própria morte, perdera totalmente o apetite.

Tormand sabia que o medo que sentia por Morainn significava que seus sentimentos por ela eram profun­dos. Isso explicaria porque ele estava tão zangado e até mesmo um pouco magoado por ela não ter contado toda a verdade. Não podia mais ignorar o fato de que a cada dia seu destino estava mais entrelaçado ao de Morainn Ross, a cada hora que passava com ela, a cada momento que ficavam um nos braços do outro. Não sentia mais vontade de fugir daquele sentimento nem dela.

— Ah, chegou bem na hora — ela anunciou com um sorriso. — Estou cozinhando o coelho que você pegou ontem.

— O cheiro está bom. — Ele entrou e foi se sen­tar numa cadeira perto da lareira. Inalando fundo, acrescentou: — Muito bom de fato. Simon nos supriu muito bem.

— É mesmo.

Morainn serviu a ele uma caneca de cerveja. Ele agradeceu e sorriu. Era bom cozinhar e recebê-lo daquela maneira quando voltava. Ela, no entanto, podia perceber o perigo. Estava se comportando como uma esposa muito mais do que como uma amante, e Tormand Murray não queria uma esposa. Mesmo que quisesse, ele não escolheria a filha bastarda de uma bruxa queimada pelo povo da cidade. Um homem como ele procuraria na nobreza alguém, quando finalmente quisesse se casar e ter filhos.

Ao pensar em Tormand sendo pai do filho de outra mulher, Morainn sentiu uma dor tão forte em seu cora­ção que teve vontade de gritar. Rapidamente voltou sua atenção ao cozido, para que ele não visse a dor em seus olhos e não quisesse saber o motivo. O cozido não precisava de muita atenção, mas ela esperava que Tormand, como a maioria dos homens, não entendesse muito de cozinha.

Quando readquiriu o controle de suas emoções, começou a sentir o silêncio nada agradável, havia uma tensão no ar que a deixou preocupada. Arriscou um olhar para Tormand e viu que ele observava a parede, melancolicamente. Alguma coisa o estava incomo­dando, só que ela tinha medo de perguntar o que era. Sua mente foi rapidamente invadida por todas as razões possíveis que pudessem explicar o comporta­mento estranho de Tormand. E, infelizmente, nenhuma delas era boa. Poderia ser por culpa de terem falhado ao apanhar os assassinos, ou pelo fato de ele estar preso naquele lugar com uma mulher da qual já estava ficando cansado.

Mesmo assim, ela estava curiosa de saber o que Simon comentara sobre o último sonho que ela havia tido e sobre a caçada a Ada e Small. Mas nada per­guntou. Decidiu que seria mais seguro para seu pobre coração esperar que Tormand sentisse vontade de falar novamente.

Tão logo o cozido ficou pronto, ela se concentrou em outra tarefa. Bordar flores nos lençóis do enxo­val de Nora a manteria ocupada, e estava feliz por Uillian ter-lhe trazido alguns tecidos para continuar o trabalho. A tediosa tarefa a ajudaria a evitar de se preocupar com as razões de Tormand estar estranha­mente calado.

Não muito tempo depois de terminarem a refei­ção e Morainn retornar ao seu trabalho, Tormand finalmente melhorou seu humor. Ele não era de ficar meditando, mas parecia que havia aprendido a fazer isso nos últimos dias.

Observou-a bordar lindas flores no que parecia ser uma fronha de travesseiro e sorriu. Ela vinha se esquivando pelo quarto como se fosse um fantasma, obviamente por ter percebido seu mau humor. A raiva que ele estava sentindo finalmente se dissipava. De qualquer maneira, achava muito estranho e tocante que ela tentasse protegê-lo.

Ele a deixaria manter seu segredo. Também não diria o quanto estavam trabalhando duro para encon­trar a cabana que ela havia descrito nem como esta­vam desesperados para encontrar os assassinos antes que Morainn se tornasse a próxima vítima. A impos­sibilidade de se juntar aos outros homens para as buscas era uma das razões de seu mau humor. Morainn era sua mulher, e ele deveria ser um dos que estavam lá fora, caçando aqueles que queriam machucá-la.

Sua mulher. Ele gostou do som daquelas palavras. Possessividade era um sentimento que ele nunca experimentara, mas, definitivamente, era o que sentia em relação a Morainn.

— Sua amiga pretende fazer um grande enxoval para o casamento, não é? — ele indagou, sorrindo, quando ela o olhou, assustada.

Morainn não conseguia ver sinais do estranho humor que tomou conta de Tormand quando ele havia chegado ao esconderijo, e, sem querer, respirou aliviada.

— Ela não tem terras nem dinheiro, mas deseja levar coisas de valor para o casamento — respondeu. — Todas as mulheres da família dela estão costurando e bordando noite e dia. Fiquei feliz por seu irmão Uillian ter me trazido algum trabalho, para fazer.

— Se todos os trabalhos forem bons como o seu, a família de James ficará muito impressionada. — Ele suspirou. — Desculpe-me por ter sido uma péssima companhia nessas últimas horas. Acho que estava com pena de mim mesmo.

— Porquê?

— Por causa da situação em que nos encontramos, esses assassinos querendo me culpar pelas mortes, o fato de eu ter que me esconder enquanto Simon, meus irmãos e meus primos caçam meus inimigos.

— Imagino que tudo isso seja um problema para o orgulho de qualquer homem.

Ele riu suavemente.

— Não parece que sente simpatia pela minha desgraça, meu amor.

— Sinto, sim. Mas...

— Ah, o infame "mas"!

Ela ignorou a provocação.

— Há uma boa vida esperando por você quando tudo isso acabar. E, se tivesse se juntado à caçada, poderia perder tudo, inclusive a vida. Se deixasse se levar pelo orgulho e fosse atrás desses monstros, decerto se colocaria em perigo. Outros poderiam ser mortos ou feridos, a multidão enfurecida poderia cercar sua casa durante a noite e tentar atacá-lo, mesmo que meia dúzia de homens armados estivesse com você. Ou pior, por medo e raiva lutariam contra aqueles que estão tentando protegê-lo e procurando os verdadeiros culpados. Aos olhos da multidão, aqueles que o protegem seriam vistos como inimigos. — Quando ela terminou, sentiu um pouco de receio de ter passado dos limites, porém ele não parecia zangado.

— Sei disso. — Tormand aparentou calma. — Por isso, não lutei contra a idéia de me esconder aqui. Confiei em Simon para saber quando seria o momento apropriado para que me escondesse. Mas é muito difícil aceitar.

Ela concordou com a cabeça.

— Eles já estão perto de capturar os assassinos?

— A corda está finalmente se fechando ao redor do pescoço deles.

— Bom, é o que realmente importa. É uma pena que aqueles que estão jogando pedras na sua casa não possam ser convencidos da verdade. Seriam de alguma ajuda na caçada aos assassinos, e você não precisaria ficar preso aqui.

— Bem, esta é uma ótima prisão, E eu realmente não seria de grande ajuda porque colocaria todos em perigo, ou então teríamos que ser muito cuidadosos para que eu não fosse visto por ninguém, o que tor­naria as buscas ainda mais lentas. Como Simon disse, ele prefere agarrar os verdadeiros culpados antes que eu seja enforcado.

— Simon Innes tem um estranho senso de humor.

— Sim, creio que se deva por lidar com coisas horríveis. Ele está sempre acompanhando todo o mal que um homem ou mulher podem fazer. Às vezes pen­so se esse trabalho não irá corroer aos poucos a alma de meu amigo.

— Ou seu coração. Alguma coisa que vi em meu sonho foi de ajuda para ele?

Tormand anuiu com a cabeça.

— Sim.

— O nome da mulher ajudou? Eu não tinha certeza se era Ada ou Anna.

— Simon acredita que seja Ada, embora não tenha sido capaz de conseguir nenhuma informação sobre a esposa de MacLean, já que sua memória não está ajudando a esse respeito. Ele também não consegue encontrar nenhum dos criados que trabalharam para os MacLean, o que é muito estranho.

— Espero que seja porque tenham fugido e não porque também estejam mortos.

Tormand levantou-se e estendeu a mão a ela.

— Vamos para a cama, Morainn. Deixemos esse assunto para amanhã.

Ela colocou o bordado de lado e aceitou a mão que ele lhe estendera. Tormand a puxou e parou bem na lateral da cama, beijando-a com tamanha paixão que a deixou zonza quando ele se afastou. Tormand apagou todas as velas, exceto uma, próxima à cama. Morainn sentiu-se menos envergonhada quando a luz do quarto diminuiu. Era uma bobagem, considerando todas as vezes que tinham feito amor, mas ainda sentia vergonha de ser vista nua.

Beijando o rubor das faces femininas, Tormand a despiu lentamente. Saboreou cada pedaço de pele que descobria, Deixava-o satisfeito vê-la entorpeci­da de desejo quando a colocou na cama. Sabia que tinha provocado paixão em outras mulheres, mas era muito melhor com Morainn, Ela também agitava seu sangue de uma maneira que nenhuma outra mulher fizera. Com as outras tinha sido apenas um meio para que ele se satisfizesse fisicamente. Com Morainn, queria que ela sentisse toda a paixão de que fosse capaz, enquanto o próprio prazer vinha em segundo plano.

Livrou-se das roupas e se juntou a ela na cama. Naquela noite, faria amor como nunca havia feito com nenhuma outra mulher.

Morainn o recebeu, ansiosa, em seus braços. Via o desejo nos olhos de Tormand e não temeu entregar seu coração àquele homem. A sensação da pele quen­te contra a dela a fez suspirar de prazer. Jamais se cansaria daquele sentimento.

Embora estivesse ansiosa para que ele a penetras­se, Tormand ia com calma. Ela tentava controlar seu crescente desejo, amava o modo como ele a fazia se sentir com seu toque e com seus beijos. Gemeu, arrebatada, quando ele a acariciou e sugou-lhe os seios, arqueando o corpo enquanto recebia com satis­fação cada toque da mão habilidosa e o calor da boca sensual.

— Ah, meu amor, você é tão bonita, tão quente — ele murmurou contra a pela macia do ventre de Morainn. — Você tem o sabor do melhor vinho.

Ela quis retribuir o elogio, porém o modo como os dedos experientes tocavam sua feminilidade tornou difícil pronunciar duas palavras coerentes juntas.

De repente, ela abriu os olhos, chocada. Ele beijava o triângulo entre suas pernas. Claro, era um pecado que ela não podia deixar que ele cometesse e tentou empurrá-lo, mas ele a segurou pelos quadris e a tocou com a língua. A surpresa rapidamente deu lugar à paixão que a fez arquear ao encontro daquele beijo íntimo, permitindo que ele lhe afastasse ás pernas e fosse mais ousado. Morainn não tinha certeza se sobreviveria àquela maneira de amar, que fazia seu corpo doer de tanto desejo, como se fogo corresse por suas veias. Tormand continuou a murmurar palavras doces e fazer elogios, no entanto ela estava atordo­ada demais pelo próprio desejo para entender o que ele dizia.

Quando sentiu o corpo rígido como sempre acon­tecia antes que atingisse o clímax, ela o agarrou pelos ombros e tentou puxá-lo para seus braços. Precisava senti-lo dentro si, mas não sabia como pedir. Então ele foi subindo, enquanto beijava seu corpo. Quando alcançou a boca, beijou-a, voraz, ao mesmo tempo que a penetrava fundo. Morainn gritou e passou as pernas fortemente ao redor dele. As arremetidas eram intensas e iam ao encontro do que ela ansiava. Assina que mergulhou naquele estado de puro prazer, ouviu-o chamá-la pelo nome, enquanto ele também era arrastado pelo turbilhão de doces emoções.

Tormand a manteve nos braços, enquanto ela se recuperava o suficiente para se sentir embaraçada. Tensa nos braços fortes, enterrou o rosto contra o ombro largo. Era o pior tipo de libertina. Estava constrangida e chocada por ter permitido que ele a amasse daquela forma, queria fazer tudo de novo.

Sentindo-a tensa, Tormand lhe acariciou as costas e sorriu ao reparar nos cabelos negros desarruma­dos. Nunca tinha amado uma mulher como fizera com Morainn e tinha gostado do sabor de sua bruxinha. Ela era doce e nunca havia estado com outro homem. Não deixaria que ela sentisse vergonha de se entregar completamente.

Pare de se preocupar, minha querida — disse e a beijou nos lábios.

— Mas você não devia ter feito aquilo... — ela murmurou, incapaz de encará-lo.

— Por que não? O seu gosto é tão bom. — Riu quando ela gemeu e tornou a esconder o rosto na curva do pescoço dele. — Sei que também gostou.

— Mas não se trata de um comportamento apropriado.

— Creio que esteja enganada.

Antes que ela pudesse argumentar, ele ficou tenso e repentinamente se levantou da cama. Um momento depois, Morainn ouviu o mesmo que ele. Alguém se aproximava a cavalo. E não era apenas uma pessoa. Ela saiu da cama e tratou de se vestir rapidamente. Tormand se aprontou e se armou antes dela, movendo-se com a velocidade e a eficiência de um homem que conhecia o perigo e a batalha. Então, ordenou que ela fugisse por um pequeno buraco na parede.

Morainn desejou ficar ao lado dele, odiando deixá-lo sem saber o que ele poderia enfrentar. Contudo, havia prometido que faria o que ele lhe ordenasse, então ela entrou no buraco que a levaria para a floresta.

— Calma, Tormand — soou uma voz familiar. — Temos novidades.

Ao ouvir a voz de Simon, Morainn voltou correndo e seguiu para a cama a fim de ajeitar as cobertas. Quando Tormand destrancou a porta e Simon jun­tamente com os Murray entraram, ela ficou feliz. Porém, o fato de estarem ali no meio da noite deixou-a preocupada. Rezou para que fossem boas notícias, enquanto pegava as canecas para lhe servir alguma bebida.

Levou um bom tempo para que o mau humor de Tormand se dissipasse.

— Vocês nunca dormem? — ele perguntou, pegan­do a caneca que Morainn lhe estendia e sentando-se na cama.

— Não quando se trabalha com Simon — Harcourt respondeu, tomando de uma vez sua cerveja.

— Esta noite vamos caçar — explicou Simon, ignorando Harcourt, enquanto ele também apanhava uma caneca de cerveja e sorria para Morainn, agra­decido. — Recebemos informações sobre as pessoas que procuramos.

Era difícil para Tormand controlar o crescente entusiasmo quando Morainn se sentou ao seu lado. Tudo aquilo realmente ia acabar? Significava que ambos poderiam voltar para casa e ele finalmente analisaria o que sentia por ela e decidiria o que fazer a respeito.

— Sabe onde aqueles bastardos estão?

— Era o que dizia a mensagem que nos enviaram. Pensei em ir até lá sozinho, mas me lembrei de que você ficaria chateado se não fosse convidado.

— Muito chateado. Mas a pessoa que mandou a mensagem é confiável?

— Sempre soube que era honesta. Tormand olhou para Morainn.

— Ficará bem se eu deixá-la sozinha?

— Claro que sim. Já fiquei sozinha antes.

— Não à noite.

— A porta é bem resistente e a fechadura forte. Posso fugir e me esconder se for preciso.

— Eu não pediria que nos acompanhasse se achas­se que ela não ficaria segura — Simon intercedeu. — Ninguém sabe que vocês estão aqui, e provavel­mente tudo estará acabado pela manhã.

Pouco depois, Morainn observou os homens par­tirem e trancou a porta. Esperava que os culpados fossem apanhados e levados à forca. Por tudo o que aqueles monstros tinham feito, não mereciam menos.

Ela voltou para a cama e se encolheu debaixo das cobertas. Sentia falta do corpo grande e quente de Tormand enroscado ao seu, mas era melhor que começasse a se acostumar a dormir sozinha de novo. Tal pensamento trouxe lágrimas aos seus olhos. Se os criminosos fossem presos naquela noite, ela seria mandada de volta para casa e teria somente lembranças do amor não correspondido.

Não tinha dúvida de que Tormand apenas a deseja­va fisicamente. Ele podia ter sido mais bondoso com ela do que com suas outras amantes, entretanto nunca sentira nada além de desejo. Em nenhum momen­to dera a entender que haveria um futuro para os, dois. Ela voltaria para seu jardim e seu pomar, e ele voltaria para suas mulheres.

Essa constatação a machucava, mas tinha de se acostumar com a dor também. Quando tivesse que deixar Tormand, seu coração ficaria com ele.

— Como ficou sabendo? — Tormand perguntou após uma hora de cavalgada.

— Um garoto me entregou uma carta. Muito mal-escrita, mas compreensível. O velho Geordie disse ter visto quem estamos procurando. Contou que estão numa cabana não muito longe da dele.

— Vamos levar pelo menos duas horas para chegar à casa de Geordie, já que está escuro e devemos seguir com cuidado. Não acha que fica um pouco longe de onde os crimes foram cometidos? Pensei que esti­vessem mais próximos da cidade, para que pudessem transportar as vítimas com mais facilidade.

— Eles não têm mais casa. Talvez fosse o melhor lugar para que se escondessem. Creio que aqueles dois agora estão muito mais preocupados com sua sobrevivência do que com as vítimas.

Tormand ajustou o manto ao redor do corpo quan­do o frio da noite começou a incomodá-lo. Algo não estava certo, mas não sabia o quê. Depois de tanta busca e tantas mortes a solução daquele caso parecia fácil demais.

— Assassinos espertos como eles não evitariam ser vistos?

— Você está tendo um mau pressentimento?

— É que, de repente, a solução do caso ficou fácil demais.

— Espera uma luta?

— Talvez, ou apenas desejasse uma.

Quando chegaram à cabana do velho Geordie, Tormand soube que não conseguiria chegar ao escon­derijo na torre antes do amanhecer do dia seguinte, a não ser que ele voltasse naquele momento. Estava tentado a fazê-lo, levando os outros com ele. Seus instintos praticamente gritavam que aquilo era uma armadilha.

O velho Geordie abriu a porta com os olhos pesados de sono após Simon bater muito, e Tormand começar a se sentir inquieto e alarmado. O homem não parecia estar esperando visitas. Tormand ouviu quando os companheiros atrás dele tiraram as espadas das bainhas. Uma olhada no cenho franzido de Simon disse-lhe que o amigo também estava desconfiado. Ele não podia ver, ouvir nem sentir o cheiro de ninguém ao redor, o que seria, impossível caso dois raivosos assassinos se escondessem nos arredores da casa de Geordie.

Então, percebeu que a armadilha não havia sido preparada para ele nem para os homens que estavam com ele, mas para alguém que tinha sido deixado para trás. Tormand lutou contra a vontade de montar em seu cavalo e correr de volta ao esconderijo na torre. Ele não tinha certeza se era uma armadilha para Morainn ou apenas o medo que vinha sentindo desde que esse tormento começara. Pelo menos ajudaria se desco­brissem por que estavam na casa de Geordie quando obviamente não eram esperados e quem teria escrito a mensagem que os levara até lá.

— Algo errado, meu amigo? — Geordie perguntou a Simon.

— Diga você — respondeu Simon. — Não me mandou uma mensagem para que viesse -encontrá-lo aqui?

— E por que eu faria isso?

— Sua carta dizia que sabe onde estão os crimino­sos que procuro.

— Carta? Mal sei escrever meu próprio nome. Se eu soubesse de algo mandaria um de meus conheci­dos falar com você, mas nunca escreveria uma carta. — Simon então mostrou a mensagem a Geordie, mas o homem balançou a cabeça negativamente. — Deixe-me acender algumas velas. Não consigo ver nada no escuro.

Tormand seguiu Simon ao interior da cabana, enquanto os outros se colocavam de guarda ao redor da casa, no caso de ser uma armadilha. Notou que Geordie tinha uma enorme faca em cima da mesa e que a cabana se revelava maior do que aparentava. Geordie não era exatamente um pobre pastor de ove­lhas. Quando as velas foram acesas, Simon entregou a carta ao velho homem. Enquanto aguardava, tenso, o que o homem ia dizer, Tormand ficou imaginando que ligação Geordie tinha com Simon, pois poucas pessoas chamavam sir Simon Innes de amigo.

— Como já disse, não fui eu quem escreveu esta carta — o velho falou, devolvendo a mensagem a Simon. — Não consigo ler muito bem. Não o sufi­ciente para escrever algo assim.

— Tem alguma idéia de quem poderia tê-la escrito?

— Parece a letra de minha prima. A velha rabugenta aprendeu a escrever sozinha, para poder registrar seus remédios e ganhos.

— E onde está sua prima?

— Aqui, infelizmente. Ela chegou a noite passa­da, dizendo que tinha acabado de fazer um parto e que gostaria de dormir aqui. — Ele fez uma careta em direção a escada que levava ao andar de cima.

— Ela alegou que queria dar uma olhada nas minhas terras para procurar algumas ervas. Não acreditei muito nessa história. — Olhou de volta para Simon.

— O que a carta diz?

— Que você tinha informações sobre os assassinos que venho tentando apanhar, que sabia onde eles estavam se escondendo.

— Não, não sei nada sobre isso, mas se foi Ide quem escreveu a carta, ela deve saber de alguma coisa. Vou chamá-la.

Tormand ficou tenso ao ouvir o nome Ide. Era a mulher que havia instigado a multidão na frente da casa dos Redmond. Também fora ela quem tinha guiado a multidão para matar a mãe de Morainn e expulsá-la da cidade quando era apenas uma crian­ça. Agora ele tinha certeza de que se tratava de uma armadilha para Morainn. Quando se voltou para a porta, Simon o segurou pelo braço.

— Calma, Tormand — pediu o amigo. — Precisamos saber o que está acontecendo.

— Essa velha está querendo arranjar alguém para matar sua rival — gritou Tormand.

— Talvez você esteja certo. Mas se acalme e pense um momento. Significa que a velha conhece os assas­sinos e pode saber onde estão se escondendo. Talvez tenha sido ela quem cuidou dos ferimentos dos dois depois que atacaram Morainn.

Com aquelas palavras, Simon conseguiu convencer Tormand a permanecer onde estava, e não voltar para a torre a fim de se certificar de que Morainn estava bem. Foi o que também o ajudou a se controlar para que não agarrasse a velha Ide, enquanto Geordie des­cia com ela pelas escadas, e lhe arrancasse a verdade.

No momento em que a mulher ficou diante deles, Tormand soube que era ela quem estava por trás de tudo e que havia tramado para que Morainn fosse morta. Havia um brilho de triunfo em seus olhos.

— Isto é trabalho seu? — Simon perguntou, mos­trando a carta a Ide.

— Sim — ela respondeu e cruzou os braços sobre o peito. — Não sei por que o senhor está tentando apanhá-los. Deveria prender o verdadeiro assassino. — Olhou para Tormand. — Ele e sua bruxa estão causando todo o problema.

— Não é apenas má, é também uma tola.

Ide olhou para Simon, espantada.

— Não tem o direito de falar assim comigo! Só estou fazendo o que o senhor já deveria ter feito, ten­tando banir o mal de nossa cidade para sempre.

Tormand ficou chocado quando Simon agarrou a velha pelos braços e a empurrou contra a parede. Nunca o vira tão furioso. Simon devia ter perdido o controle ou estava bem perto. Ele podia entendê-lo. A cada palavra dita por aquela víbora, ele tinha que se controlar muito para não estapeá-la. Viu que Geordie havia cruzado os braços e ficara observan­do a cena, sem tomar nenhuma atitude para impedir Simon.

— Geordie — a mulher gritou, tentando se libertar, das mãos de Simon.

— Diga tudo a ele, Ide. Se eu fosse você, falaria o mais rápido possível. Nunca gostei muito de você, mas se for enforcada por ter participado desses crimes hediondos, vai envergonhar o meu nome. Por isso peço que seja honesta e útil agora, e sir Simon não a mandará para o cadafalso junto com os outros.

Após lançar um olhar furioso para os homens, Ide começou a falar.

 

Um leve farfalhar em um arbusto à sua direita fez o coração de Morainn disparar, fila não devia ter saído, não importava o quanto o sol da manhã fosse tentador, Simon e os outros disseram que logo capturariam os assassinos, mas talvez tivessem dito aquilo apenas para melhorar o ânimo, dela ou deles mesmos. Poderiam também ter se enganado e ido atrás de outra pista inútil. Ela imaginou se conseguiria vol­tar ao esconderijo rápido o suficiente para evitar ser pega.

Quando um cachorro preto e marrom de repente apareceu e se sentou diante dela, Morainn franziu o cenho. O animal estava ofegante e o rabo balançava rapidamente. Ela relaxou, pois o cão não parecia uma ameaça. Logo o reconheceu, era o animal que Simon usava para procurar pistas. Será que o cachorro tinha escapado e seguido o cheiro de Simon até o esconderijo?

— Bonegnasher?— ela chamou, e o cachorro latiu, feliz.

Ouviu-se um outro barulho em meio aos arbustos, só que Morainn não entrou em pânico dessa vez. O cachorro não demonstrou perceber alguma ameaça. Ela controlou seus temores e se deu conta de que Ada e Small eram muito grandes para se esconderem ali.

No entanto, ficou surpresa quando viu quem saía de trás dos arbustos.

— Walin — ela finalmente conseguiu falar.

— Eu tinha que vê-la, Morainn — explicou o garo­to. — Eles me diziam que você estava segura, que eu não precisava me preocupar e que você voltaria logo, mas não me falavam onde você estava. Sei que você tem que se esconder das pessoas más, só que eles deviam ter me contado onde estava escondida.

Morainn suspirou, recuperando-se do choque de vê-lo ali. Os homens não tinham cuidado muito bem de Walin, porém ela não podia culpá-los. Estavam caçando assassinos. Pensaram que o menino sabia tudo o que era necessário para sua idade. Ela deveria tê-los avisado de que o garoto tinha um medo terrível de perdê-la, algo que ela acreditava que diminuiria quando ele crescesse. O ataque que os forçara a sair da cabana, o único lar que Walin conhecia, e o fato de ter ouvido a mulher falando que queria Morainn mor­ta, sem dúvida aumentara o temor do garoto. Todavia, ela não podia aceitar tal atitude. Ele se arriscara ao fazer aquela viagem durante a noite e sabia que não devia tê-la feito.

— Como me encontrou? — perguntou, cruzando os braços e tentando parecer severa.

O que não era fácil porque ela sentia muito a falta do menino e estava morrendo de vontade de abraçá-lo.

— Segui Simon e os outros — o garoto respondeu, começando a se sentir culpado e incerto quando não recebeu um sorriso nem um abraço de Morainn.

— Eles estavam a cavalo, Walin. Duvido de que estivessem viajando devagar. Você não roubou um cavalo, roubou?

— Não. Não sei cavalgar, e eles não iam rápido porque estava escuro. Só que eu perdi eles. Então, encontrei Bonegnasher. Ele sentiu o cheiro do dono e veio até aqui.

— Não tente me distrair para não levar uma bronca, você sabe muito bem que merece uma.

Os pequenos ombros caíram, e Morainn nunca vira uma criança parecer tão triste.

— Eu só queria ver você e eles não me deixavam. Não me traziam para visitar você.

— Você não parou para pensar que havia uma razão para isso? Precisa ficar em segurança, meu amor. E o deixei lá com aqueles homens fortes e armados para que ficasse a salvo. Achou que eu o deixaria por outro motivo qualquer?

— Não. Vai me mandar de volta?

Morainn quase riu. Ele era muito bom em fazer aquela carinha triste, enquanto espiava entre os lon­gos cílios, para ver se ela estava caindo no joguinho dele.

— Não posso, não é mesmo? — respondeu, fin­gindo não ver que o menino ficou feliz. — Preciso ficar aqui.

— Então posso ficar aqui com você?

— Sim. E vai ouvir a boa bronca que merece.

Ele suspirou e a seguiu para dentro da casa na torre, com o cachorro logo atrás. Walin arrastava os pés como se fosse um condenado indo à forca. Ela não brigaria muito com ele. Apesar de todos os esfor­ços para ganhar a aprovação de Morainn, o menino sabia que tinha feito algo errado e muito estúpido, ela não precisava insistir no assunto.

No esconderijo, gentilmente mostrou a Walin o que ele tinha feito de errado e todas as possíveis maneiras de se colocar em perigo, enquanto ela o limpava. O cachorro deitou no chão em frente à lareira e no mes­mo instante dormiu. Morainn esquentou um pouco do cozido de coelho para o menino, e o cão acordou bem depressa quando ela colocou uma tigela de comida na frente dele. Era bom ter Walin ali, mas não podia deixar que ele soubesse. Ela também deixou bem claro que ele voltaria para a casa de Tormand quando os homens voltassem, e sem reclamação.

Seus pensamentos se concentraram em Tormand, esperava que ele estivesse bem. Torcia para que tivessem encontrado aqueles bandidos, embora uma parte dela não quisesse que isso acontecesse, pois significaria perder Tormand. Ela sentiu vergonha de seu egoísmo: Ada e Small eram pérfidos, assassinos frios. Um machucado em seu coração não era nada comparado aos crimes que ambos cometiam.

— Quando os homens vão voltar? — Walin per­guntou, sentando perto do cachorro que tinha acabado de adormecer outra vez.

— Não faço idéia, meu amor. Talvez voltem logo se tudo correr bem ou ainda podem levar horas.

— Torço para que peguem aqueles bastardos, mas também quero ficar perto de você.

Morainn quis chamar a atenção do menino por cau­sa do linguajar. Ele provavelmente estava aprendendo coisas com os homens, que ela não aprovava. Por hora, deixaria que ele imitasse seus, heróis, que ela sabia que era o que aqueles homens tinham se tor­nado para ele. Mas quando voltassem para casa, ela lhe ensinaria como se portar diante de uma mulher.

— Se apanharem aqueles assassinos, Walin, poderemos voltar juntos para a nossa cabana. — Ela ficou confusa ao perceber que a notícia não o deixou muito feliz. — Não quer voltar para casa?

— Quero, mas vou sentir falta deles... Os rapazes têm me ensinado uma porção de coisas interessantes.

— Posso saber o que eles andam lhe ensinando?

— Tudo sobre facas, como atirá-las, a mover a minha espada de madeira como um verdadeiro guerreiro, a cavalgar e cuidar de um cavalo, embo­ra eu não tenha tido muita chance de montar um, já que estão sempre à procura daqueles bandidos. Simon está me ensinando como resolver problemas também. Ele diz que sou muito esperto.

— Sim. É o menino mais esperto que já conheci, mesmo quando faz coisas tolas, como ter vindo até aqui sozinho. Você gosta de resolver mistérios?

— Gosto. Mas se eles pensam que sou tão esperto por que não me escutam?

— Sobre o quê?

— Quando sir Simon estava se preparando para sair atrás dos assassinos a noite passada, eu disse que não achava uma boa idéia.

Morainn percebeu que os homens haviam deixado Walin muito à vontade ou ele não falaria tão livre­mente.

— O que Simon disse?

— Ele falou que não poderia ignorar uma pista como aquela. Eu ia dizer para ele que a pista não era muito clara para mim e que eu sabia de uma coisa que ele não, mas ele não teve tempo de falar comi­go de novo. — Walin fez uma careta. — Ou então esqueceu.

— O que acha que ele não sabe?

— Que era tudo mentira — a voz fria que Morainn tanto detestava soou atrás dela, e Bonegnasher começou a rosnar.

O cachorro estava de pé agora, a cabeça erguida e o corpo alerta. Morainn desejou ter muitos Bonegnasher quando virou o rosto para enfrentar seu pior pesadelo. Ela também desejou ter se lembrado de ter trancado a porta.

Ada e Small estavam parados perto da porta, dentro do esconderijo. Small ficou atrás da mulher, como se a protegesse de qualquer possível ataque. Morainn percebeu que tudo não passara de uma armadilha, e pior, Walin tinha sido apanhado com ela.

O modo como aquela mulher sorria fez com que Morainn ficasse muito, zangada. Não era segredo que ela achava a idéia de matar Morainn divertida.

— Quem a ajudou com essa armadilha? — indagou Morainn, satisfeita pela calma aparente. — Simon não é tolo, você deve ter conseguido um ótimo aliado.

— A velha Ide — a mulher respondeu, vangloriando-se.

— Simon não escutaria nada que essa mulher dissesse.

— Não, mas ele confia no primo de Ide, que é um antigo amigo do clã de Simon. Ide nos ajudou a fazer com que o idiota do Innes acreditasse que a carta foi enviada pelo velho Geordie.

— Por favor, diga-me que fez o de costume e matou aquela desgraçada.

A gargalhada de Ada era tão gelada quanto sua voz.

— Não, não a matei. Ainda não. Se Simon descobrir o que ela fez, talvez ele mesmo acabe com ela, uma velha terrível, cheia de ódio e ciúme. Ela não tem senso de honra.

E você tem?, Morainn se perguntou em pensa­mento. Sabia que não conseguiria nenhuma pista de onde Simon e os outros tinham sido mandados, sendo assim não teria como saber se haveria alguma chance de ser salva. Mas havia outra coisa que a preocupava ainda mais.

— Por favor, não machuquem o menino — implorou.

— Eu nunca feriria uma criança.

Morainn não imaginava que uma assassina fria pudesse parecer tão ofendida. Será que Ada, since­ramente, pensava que amarrar e torturar alguém até a morte era honrável? Com um homem como Small ao lado dela, as pobres vítimas não tinham tido a menor chance de lutar por suas vidas.

— Muito menos o filho de Tormand. — A mulher deu um sorriso estranho, de alguém mentalmente perturbado.

Morainn fitou Ada, chocada. Lutou para não perder os sentidos, pois precisava ficar atenta caso surgisse uma oportunidade de ela e Walin escaparem. Ficou imaginando se poderia acreditar nas palavras de uma pessoa completamente atormentada.

— Acha que Walin é filho de Tormand? — pergun­tou sem conseguir esconder o espanto. — Ele teria reivindicado o garoto se soubesse que era seu filho.

— Claro que teria. Tormand possui alguma honra. Ele nada sabia sobre o garoto. Margaret Macauley era uma estúpida prostituta. Ela acreditava que o nobre se casaria com ela quando descobrisse que estava grávida. Triste dizer que ela não teve chance, pois foi mandada a um convento pouco tempo depois de ter se deitado com ele. A família havia percebi­do que Margaret tinha uma alma de prostituta e a mandaram para lá, a fim de que fosse purificada pela Igreja. Eu estava lá naquela época e ela me contou tudo sobre seu grande amante Tormand.

A amargura na voz de Ada indicava que sua raiva estava aumentando.

— Por que ela não mandou avisá-lo? — Morrainn questionou. — Tormand a teria ajudado.

— Ela mandou, mas todas aquelas cartas de amor, contando que estava grávida e que seu coração batia apenas por ele, nunca chegaram a seu destinatário.

— Porque ela confiou em você para que as enviasse.

— Você é muito inteligente. — Ada não pareceu apreciar aquele fato. — Mas, infelizmente, a pobre-coitada morreu logo depois que a criança nasceu. Sangrou até a morte. Acontece às vezes, você sabe.

Principalmente quando se está por perto de uma mulher insana, pensou Morainn.

Deu uma espiada em Walin e viu que ele obser­vava Ada com os olhos arregalados e o rostinho pálido. Ele era muito esperto e com certeza estava entendendo tudo o que era dito. Mas a ascendência de Walin não era importante no momento nem a triste e trágica morte de sua mãe. Tudo o que Morainn devia pensar era em como mantê-lo a salvo daqueles dois loucos. Não podia gritar para que o garoto corresse. Havia uma grande chance de aquele gigante do Small agarrá-lo.

— Como Walin acabou na minha porta? — Morainn interrogou, com o intuito de ganhar tempo, enquanto pensava em alguma maneira de libertar o menino.

— Bem, pensei que tendo um filho de Tormand ele fosse me notar, então o levei para minha casa. — Ela encolheu os ombros com indiferença. — Eu não tinha gostado do convento, Meus pais pensaram que o filho era meu e estavam prontos para obrigar Tormand a se casar comigo. Antes, porém, meu pai decidiu que era melhor ter certeza se eu não estava mentindo e pediu a uma parteira que verificasse se eu ainda era virgem. Claro que eu não havia pensado naquilo e minha mentira foi descoberta. Eles tiraram o bebê de mim e o deram a uma das criadas. Depois me casaram com aquele porco gordo.

O temperamento da mulher se inflamava rapida­mente.

— Bem, todos eles pagaram. E o porco do meu marido com quem me obrigaram a casar não está tão gordo agora. Nem a criada que levou o bebê e arruinou minhas chances de ter Tormand escapou. Foi assim que o garoto foi parar em sua porta, bruxa. Eu teria ido pegá-lo depois de ter me livrado da criada traidora, mas fui forçada a me casar.

Morainn concluiu que os pais de Ada haviam pagado muito caro por obrigarem-na a fazer o que não queria. Ela dava a entender que tinha matado a empregada, talvez até mesmo o pai e a mãe. Morainn não sabia o que fazer diante de tanta loucura. Um breve olhar para Small revelou que ele estava aler­ta e a observava, enquanto a mulher se mostrava perdida entre as lembranças.

— Já é o suficiente, milady. É hora de deixarmos este lugar — Small se pronunciou pela primeira vez.

— Ora, aqueles tolos não estarão de volta tão cedo. E a bruxa quer saber algumas coisas antes de morrer. É apenas uma gentileza contar a ela o que precisa saber. — Ada bateu no peito do companhei­ro. — Iremos em breve, Small. Sei que está ansioso para fazer com que a bruxa pague por todos os feri­mentos que nos causou. — Ela olhou para Morainn e sorriu. — A velha Ide cuidou de nossos machucados muito bem e descobri que ela a odeia. Por isso, ela aceitou nos ajudar. Ela realmente pensa que é você quem está por trás dessas mortes e quer vê-la enfor­cada. Ela a quer morta, bruxa. A velha estava disposta a fazer qualquer coisa que pedíssemos para que isso acontecesse.

Small se moveu para agarrar Morainn, que deu um passo para trás, imaginando desesperadamente o que fazer. De repente, o cachorro atacou o braço do grandalhão, que berrou de dor. Sem perder tem­po, Morainn correu em direção a Walin, mas foi atacada por Ada, que quase lhe cravou as unhas nos olhos.

Quando Morainn se preparava para atirar a mulher contra a parede, viu Bonegnasher estendido no chão. Enraivecida, finalmente empurrou Ada contra a parede. A mulher gritou tão alto que os ouvidos de Morainn doeram. Então, Walin passou correndo na direção de Small. Ela se apressou atrás do garoto, em pânico. Small ergueu o braço e o sangue respingou quando ele bateu em Walin.

Morainn assistiu, com horror, o corpo do menino voar pelo ar. Ele caiu na cama, mas antes que ela pudesse se sentir aliviada, Walin rolou algumas vezes e caiu do outro lado. Ela já ia socorrê-lo, quando a enorme mão calejada de Small a agarrou pelo bra­ço, torcendo-o para trás de suas costas com tanta força que ela mal podia respirar de dor. Então, Ada se aproximou.

— Também vou gostar de acabar com você, bruxa — ameaçou Ada.

— Milady, temos que sair daqui — avisou-a Small. — Os homens podem chegar a qualquer momento e vão impedi-la de conseguir o que deseja.

— Tem razão. — Ada encaminhou-se para a porta.

— Walin... — Morainn balbuciou, querendo perguntar se podia ver como o garoto estava, mes­mo sabendo que não haveria misericórdia da parte daquelas pessoas.

— Venha conosco e, se ficar quieta, não deixarei que Small corte a garganta do menino.

Não havia outra escolha a não ser concordar e se deixar conduzir por Small, enquanto ele discutia com a mulher a melhor maneira de chegar ao lugar que planejaram matá-la. Quando o gigante come­çou a puxá-la para fora do quarto, ela chamou o menino.

— Amo você, Walin. Diga a Tormand que nunca deixarei de sonhar com ele.

Small deu-lhe um tapa tão forte na cabeça, que ela estremeceu e começou a rezar ao ser levada embora. Rogava para que Walin não estivesse muito machucado. Também pediu que Tormand e os outros retornassem logo e assim ajudassem o garoto. Torceu para que Walin estivesse consciente o suficien­te para ter ouvido sua mensagem e que a transmitisse a Tormand.

Os três saíram para o dia ensolarado, e Morainn rogou para que não chovesse, assim haveria alguma trilha que os homens pudessem seguir e, talvez, salvá-la. Em seguida, Small a atirou sobre a cela do cavalo, tirando-lhe todo o fôlego.

— De onde conhece Geordie? — Tormand pergun­tou a Simon.

Ele precisava falar para se distrair, só assim pode­ria parar de pensar no que poderia ter acontecido a Morainn. Sua intuição lhe dizia que devia encontrá-la, mesmo assim lá estava ele, parado enquanto os cavalos bebiam água e descasavam um pouco. Ele sabia que a breve parada em sua louca corrida para chegar à casa da torre era necessária. Não seria de grande ajuda se um dos cavalos se machucasse ou morresse por causa do extremo cansaço. Somente isso o fazia ficar ali parado, enquanto Morainn corria perigo.

— Ele pertence ao mesmo clã de minha família — respondeu Simon:

— É um bom homem. Sei que não teve nenhuma participação nessa trama.

— Tem razão — afirmou Tormand. — Foi aquela velha Ide. Ela merece uma punição maior do que simples ameaças, mas não sei o que poderia ser feito para castigá-la, já que você prometeu a Geordie que não a enforcaria.

— Mas eu não disse que não ia puni-la de outra maneira. — Simon sorriu. — Veja, Ide tem um bom motivo para temer Morainn, porque pensa que ela pode tomar a sua posição de parteira e curandeira da região. Ela não é muito boa no que faz. De fato, chegou a matar algumas pessoas com seus métodos ineficientes, acho até que ela desdenha do bom uso de sabão e um pouco de água.

— Vai responsabilizá-la pela morte dessas pessoas?

— Não, porque assim ela seria enforcada e prometi a Geordie que não faria isso. Mas não quer dizer que eu não possa, pouco a pouco, convencer as pessoas de que estão arriscando a vida ao chamar a velha Ide para curá-las ou trazer seus filhos ao mundo.

Tormand balançou a cabeça, admirado.

— Engenhoso. — Ele não conseguia parar de olhar na direção da casa da torre.

— Os cavalos estão descansados o suficiente — disse Simon e imediatamente montou no seu. — Mantendo um ritmo constante, logo estaremos lá.

Simon mal terminara de falar, e Tormand já estava montado em sua cela, cavalgando rumo ao esconderi­jo. Ele sentia uma enorme necessidade de encontrar Morainn e foi difícil seguir o conselho do amigo sobre o ritmo da cavalgada. Ele queria esporear o animal, exigindo que fosse o mais rápido que pudesse. Algo lhe dizia que chegariam tarde, que a armadilha que a velha Ide ajudara a preparar para Morainn já tinha se fechado ao redor de seu amor.

Seu amor?! Aquelas palavras atingiram-no tão fortemente, que ele quase caiu da cela. Amava Morainn. Estava tudo muito claro agora. Ela estava em seu coração desde a primeira vez em que a vira, desde o primeiro momento em que olhou para aqueles olhos azuis como o mar. Ele não sabia por que havia lutado tanto contra esse sentimento, já não sentia mais vontade de retomar o velho hábito de pular de cama em cama, cora mulheres que esqueceria rapidamente. Desejava apenas Morainn.

E esperava ter a oportunidade de contar sua descoberta a ela.

 

Tormand diminuiu o ritmo para se encontrar com Morainn, quando viu a porta do quarto aberta. Dessa vez, ele se forçou a entrar, lutando contra o medo que sentia e tentando se manter firme. Respirou, aliviado, por não ver nenhum corpo retalhado. Reparou em alguns sinais de luta, na mesa caída, na bagunça espalhada pelo chão e no sangue perto da porta.

Um gemido o fez seguir até um dos lados da cama, onde encontrou Walin tentando se levantar, com san­gue escorrendo pelo rosto pálido, devido a um corte na cabeça. Ajudava o menino a se levantar quando os outros se juntaram a ele. Logo Walin estava com um curativo, sentado numa cadeira e tomando suco de maçã.

Simon se encontrava agachado ao lado de seu cachorro. Tormand não conseguia ouvir o que ele dizia, mas o tom da voz do amigo dava a entender que tentava fazer o cachorro se levantar. Vendo como o garoto estava pálido e tremendo, ele se controlou para não sair correndo à procura de Morainn.

— Garoto, como você e Bonegnasher vieram parar aqui? — perguntou Simon ao aproximar-se de Walin.

— Eu queria ver Morainn — o menino respon­deu, e as lágrimas começaram a rolar por seu rosto. — Eu sentia falta dela, e ninguém queria me deixar visitá-la, nem mesmo um pouquinho.

— O que aconteceu aqui, Walin?

— Aquelas pessoas malvadas apareceram. — Ele agora chorava muito, dificultando a compreensão de quem o escutava. — A mulher disse um monte de coisas horríveis, então o homem falou que tinham que ir embora senão seriam apanhados aqui quando vocês retornassem. Ele tentou agarrar Morainn, mas Bonegnasher o atacou e mordeu o braço dele. — Olhou para o cachorro sentado ao lado de Simon, ainda parecendo meio tonto.

— Acalme-se, amigo — Tormand pediu, gentil­mente. — Precisamos que fale com clareza e conte tudo o que aconteceu passo a passo.

O menino tentou se acalmar e respirou fundo antes de contar o que havia se passado em detalhes.

— Isso significa que precisamos encontrar Morainn o quanto antes e trazê-la de volta — Simon se mani­festou quando o garoto terminou o relato.

— Vão machucá-la e depois matá-la — prosseguiu Walin. — A mulher maluca sabe quem sou. — Ele encarou Tormand. — Ela disse que você é meu pai e uma mulher chamada Margaret Macauley era minha mãe, ela foi mandada para um convento onde essa mulher malvada estava. Ela matou minha mãe e disse aos pais que eu era seu filho, queria que você fosse obrigado a se casar com ela. — Enquanto falava, seus olhos corriam de um a outro. — Acho que ela matou os próprios pais também. Você tem que salvar Morainn desses dois bastardos o quanto antes.

Tormand sentiu um súbito mal-estar e se inclinou um pouco para trás, mais do que depressa Harcourt o segurou pelo braço. Não foi por Walin ter dito que era seu filho que ela ficara atônito, mas por todo o sofrimento causado ao garoto por conta de uma loucura. Ele poderia ter perdido o menino antes de saber de sua existência.

— Agora entendo... — murmurou Harcourt. — Isso explica porque ele me lembrava alguém.

— Droga, não posso tratar desse assunto no momento.

— Não — concordou um choroso, Walin. — Você tem que trazer a minha Morainn de volta. Não pode deixar que aquela louca a machuque.

Tormand tentou ignorar a possibilidade de que aquela insana não estivesse dizendo a verdade e que Walin fosse mesmo seu filho.

— É o que importa agora. Sabe aonde eles foram? Chegou a ouvir algum comentário que possa nos ajudar a encontrá-la?

— Não — o menino sussurrou. — Apenas me lem­bro de que fui atirado na cama com tanta força que fui rolando e caí ao chão. Como se estivesse sonhando, escutei Morainn dizer que me amava enquanto a arrastavam para fora do esconderijo. Ah, ela pediu que eu lhe dissesse que sempre sonharia com você. Não entendi muito bem o motivo. Por que ela apenas não disse que amava você? Ou mesmo pedisse que você tomasse conta de mim?

— Porque ela estava me dizendo para onde a estavam levando — Tormand deduziu, calmamente, com a esperança surgindo em seu peito. Então se agachou para fitar os olhos do garoto. — Pense bem, amigo. Eles não mencionaram nada a respeito de onde estavam indo?

— Não, mas se Bonegnasher não estiver muito machucado, ele poderia rastrear o caminho. Ele mor­deu o gigante no braço e tirou sangue dele. — Walin fez uma careta.

— Bonegnasher está bom para farejar — anunciou Simon.

Uilliam levantou-se e passou a mão nos cabelos de Walin.

— Levarei nosso amiguinho de volta para sua casa, Tormand, e esperaremos lá até que você traga Morainn de volta.

— Vou com eles, para reforçar a segurança do menino, a não ser que precise de mim, Tormand — Walter propôs.

— Estamos enfrentando apenas duas pessoas, e eu me sentiria melhor sabendo que Uillian e Walin têm alguém como você por perto. — Ele baixou o olhar e acariciou o rosto do garoto. — Conversaremos mais tarde quando tivermos nossa Morainn segura em casa. Certo?

— Certo.

Quando Tormand e os outros correram para os cavalos que os esperavam, Walin ficou feliz de ver que o animal parecia completamente recuperado. O cão farejou o chão e rapidamente encontrou a trilha de sangue que Small deixara para trás na fuga. Dessa vez, não haveria Ide para limpar e cuidar dos ferimen­tos do grandalhão.

Enquanto cavalgavam seguindo o cachorro, Tormand pensava em Walin e em tudo o que ele tinha lhe contado. Era verdade que era fácil ver semelhan­ças entre ele e o garoto, mas não podia confiar apenas em seus olhos, tratando-se de um assunto tão sério. Nem era sábio acreditar no que um garotinho assustado pensara ter ouvido. A única coisa que o impedia de negar prontamente a possibilidade de Walin ser seu filho era que começava a se lembrar de Margaret Macauley e de seus grandes olhos azuis, iguais aos do menino.

— Recorda-se de ter ido para a cama com uma mulher chamada Margaret Macauley? — indagou

Simon, como se adivinhasse os pensamentos do amigo, enquanto reduziam a velocidade por um momento para que o cachorro pudesse farejar ao redor.

— Sim, e o tempo combina. Passei uma semana com ela há uns sete anos. Ela conseguia escapar de casa facilmente. Uma noite até conseguiu me fazer entrar, porque queria fazer amor comigo na própria cama, com os pais dormindo na casa. — Ele fez uma careta. — E a deixei logo depois, bêbado. Ela também tinha aquele brilho no olhar.

— Que brilho?

— Aquele que diz que ela estava pensando nas várias maneiras de me arrastar para o altar. Lá vai ele — gritou quando, com um latido, Bonegnasher voltou a correr.

Tormand tirou da cabeça todos os pensamentos sobre Margaret e o filho e pensou nas muitas maneiras de punir os bastardos que tinham levado Morainn.

Morainn reprimiu um gemido ao abrir os olhos devagar. Então, percebeu que apenas um deles abriu por inteiro. Ficou nervosa ao se lembrar por que o olho esquerdo latejava e só abria um pouco. Small a espancara quando ela havia tentado fugir assim que tinham chegado à choupana. O lugar tinha um cheiro fétido de ovelhas. Ela avistou as estacas enfiadas no chão de terra e se lembrou do sonho, lutou muito para que não fosse amarrada a elas. Porém, seu esforço foi em vão.

Por um momento, o pânico tomou conta dela ao sentir o barro na pele de suas costas. Estava nua. Tentou conter o horror que ameaçava lhe roubar a sanidade e levou alguns minutos antes que começasse a se, acalmar. Ficou com raiva pelo que faziam com ela e se agarrou a esse sentimento para se manter firme.

Disse a si mesma que Tormand viria buscá-la. De alguma maneira, o destino já havia lhe dado a grande esperança de um resgate, embora estranhasse que tivesse chegado na forma de um cachorro e um garotinho travesso. Decerto, Simon usaria o cachorro para seguir o rastro deixado por Ada e Small. Então, deu-se conta de que o cachorro tinha sido ferido e o pânico voltou a tomar conta de seu coração. Ela queria acreditar, que como o gato William, Bonegnasher ficaria bem e levaria Tormand e os outros até ela.

Assim como precisava crer que Walin se encontrava bem, meio machucado, mas, bem. Tudo o que ela precisava fazer era ficar viva até que seus salvadores chegassem.

Quando os carrascos se agacharam, um de cada lado de Morainn, ela os enfrentou com o olhar, embora cada um tivesse uma faca na mão e a fizesse tremer de medo por dentro.

Não se recordava de ter visto homem ou mulher com um rosto tão sem graça. Ada tinha olhos escuros, mas não eram de um castanho que chamava muita atenção. Os cabelos eram do mesmo tom dos olhos, nem cacheados nem muito lisos. A pele era clara, assim como as roupas. De estatura baixa, Ada era uma mulher que não chamava a atenção e não perma­necia muito tempo na memória das pessoas após um breve encontro.

Isso explicava por que Simon tivera dificulda­de para encontrar alguém que a descrevesse. Ada MacLean não tinha nada especial que alguém pudesse comentar.

— Está pronta para ser punida, Morainn Ross? — a mulher interrogou.

— Por quê? Por viver? — Morainn percebeu que a raiva em sua voz surpreendeu Ada. — Ah, imagino que muitas mulheres não lamentariam a perda de Isabella e Clara. Mas e de lady Marie? Ela era ino­cente, seu único crime foi ter sido amiga de Tormand. Por isso, você destruiu o coração de um bom homem e deixou duas crianças órfãs. E lady Katherine Hay não era o mais perto que alguém poderia chegar de ser santa?

— Ela tirou meu pajem! — Ada, respirou fundo várias vezes e continuou com. a voz gelada: — A cade­la disse que eu era cruel com o garoto, quando sim­plesmente aplicava a disciplina de que ele precisava. Ela contou o que viu aos pais do menino e eles o tiraram de mim. Aquele porco com o qual eu me casei não me deixou arranjar outro.

— E por isso a matou?

— Ela era igual a todas as outras que usavam a beleza e a astúcia para conseguir o que queriam. Ela não tinha o direito de interferir nos meus assuntos. Nenhum! E você, bruxa, não irá interferir também.

O primeiro corte não foi tão profundo, mas doeu tanto que Morainn pensou que fosse gritar. Mas em vez disso, ela cerrou os dentes e se recusou a emi­tir qualquer som. Não daria àqueles açougueiros o prazer de ouvi-la pedir misericórdia.

— Já interferi — disse, conseguindo disfarçar a dor e o medo que a consumiam. — Meus amigos sabem agora quem vocês são. Eles também sabem que vocês me pegaram, e não importa o que aconteça aqui, você vai perder neste jogo doentio. Não será Tormand que irá para a forca, mas você.

Morainn percebeu o medo nos olhos da mulher.

— Vi tudo o que está se passando e sei como esta história vai terminar — ela mentiu. — Você nunca será amada, lady MacLean. Será apenas uma blasfêmia na boca de milhares de pessoas.

— Faça-a gritar, Small.

Sorridente, ele deslizou a faca lentamente em direção a parte interna de uma das coxas de Morainn e depois subiu pela outra. Dessa vez a dor foi mui­to pior do que a anterior, entretanto a fúria contra aquele homem e Ada fez com que ela se contivesse. Assim que conseguiu falar, amaldiçoou os dois. Antes, porém, rezou para que Tormand a encontrasse viva.

Tormand e os outros observavam a choupana para onde o cachorro os tinha levado. Ele queria correr para dentro com a espada em punho, mas o bom-senso prevaleceu. Ele não tinha nenhum conhecimento do lugar e poderia ser facilmente morto. Ao menos, Morainn estava viva. Todos ouviram sua voz ao exe­crar os dois algozes pouco antes de pararem próximo à choupana.

— Devemos salvá-la logo. — Ele encarou Simon. — Como faremos?

Simon abriu a boca para responder, quando um dos cavalos lançou um alto desafio, relinchando, a outro. Seguiu-se um breve momento de silêncio que cortou o ar. Tormand olhou para Simon que concordou com um gesto de cabeça, e eles correram em direção à choupana. Um homem enorme saiu de dentro da casa, quase carregando uma pequena mulher de cabe­los castanhos. Com um gesto de mão, Tormand pediu a Bennett, ao seu lado, que entrasse na cabana. Ele então se concentrou nos dois malditos que tentavam fugir da justiça que mereciam.

O homem já alcançava os arreios do próprio cavalo, quando Tormand se jogou sobre as costas dele. Com um grito de surpresa, a mulher tropeçou, e Simon a agarrou. Tormand prendeu Small no chão e com o canto do olho viu o brilho da faca que a mulher tinha na mão.

De súbito, Small deu um bote e jogou-o para lon­ge. Sacando a espada, o gigante correu na direção de Simon e dá mulher, que lutava para se libertar e proferia uma série de imprecações. Tormand pegou sua espada, mas o som atraiu a atenção de Small, que abruptamente se voltou para ele. Ficou em dúvida se conseguiria vencer aquele homem maior e muito mais forte do que ele. Não demorou muito para que desco­brisse que o grandalhão não tinha muita habilidade com a espada. O homem também parecia distraído com os gritos de Ada MacLean e isso foi seu fim. Um deslize, um rápido olhar na direção da mulher e Small perdeu a vida com a espada de Tormand enterrada no peito.

Após limpar a espada e colocá-la de volta na bainha, Tormand foi até Simon, que estava próximo de Ada, já muito bem amarrada. A mulher olhava para o corpo de Small. A tristeza era como uma cicatriz cortan­do seu rosto comum. Então, ela se virou e encarou Tormand, o ódio em sua expressão era tão intenso que ele quase deu um passo para trás. A loucura que afligia aquela mulher começou a sair dela em forma de maldições e terríveis ameaças que preenchiam o silêncio até que Tormand pediu a Simon:

— Por favor, amordace essa louca. Preciso ver como Morainn está.

E Simon se apressou em silenciar Ada.

Morainn olhava para a porta por onde seus carras­cos tinham saído de repente. Um momento depois, ouviu os gritos de Ada e seu alívio foi tão grande que quase acabou com sua dor. Quando Bennett entrou, tudo o que ela conseguiu pensar foi que Tormand finalmente havia chegado. Então, Bennett apanhou um cobertor em um canto da cabana e o jogou sobre ela, fazendo com que Morainn se lembrasse de que estava nua e amarrada em sacrifício a algum antigo deus pagão. Ela se sentiu seu rosto ruborizar, enquanto ele cortava as amarras de seus pulsos e tornozelos.

— Minhas roupas — ela pediu, suspirando por causa da dor que tomava conta de todo seu corpo quando ele a ajudou a se levantar. — Onde está Walin?

— O garoto está bem — Bennett a tranqüilizou, recolhendo as roupas e em seguida ajudando-a a se vestir com uma eficiência admirável. — Não tenho certeza se deve colocá-las até que seus ferimentos sejam limpos e enfaixados.

— Cuidarei disso quando chegar em casa. — Ela estremeceu um pouco quando ele teve que rasgar algumas tiras de sua anágua para que pudesse ajeitar o vestido sobre ela, pois este se encontrava esfar­rapado. — Não posso sair daqui nua. — Embora tivesse cooperado enquanto Bennett a ajudava a se vestir, ainda se sentia fraca e tinha dificuldade para respirar. De repente, ouviu o som de espadas. — Tormand?

— Ele é um dos melhores espadachins que conhe­ço. Agora, fique aqui sentada e se apoie em mim se precisar. Você tem mais cortes do que eu poderia con­tar e muitos ainda estão sangrando.

Morainn não discutiu, mas lutou contra a neces­sidade de fechar os olhos e deixar que o estado de inconsciência aliviasse sua dor. Apesar de Bennett assegurar a habilidade de Tormand com a espada, ela precisava vê-lo. Quando ele finalmente entrou na choupana, ela quase chorou de felicidade. Mas, o olhar que ele lhe enviou indicava que estava muito preocupado com sua aparência.

— Está tudo bem — ela assegurou, enquanto ele se agachava a seu lado. — São todos cortes superficiais.

— O seu vestido está encharcado de sangue — Tormand constatou. — Precisamos tratar desses ferimentos.

— Não aqui, por favor.

— Ela insistiu para que eu a vestisse — Bennett explicou. — E disse que cuidaria dos cortes em casa.

— Sim — afirmou Morainn, agarrando-se ao braço de Tormand com a mão trêmula. — Quero sair deste lugar. Preciso sair daqui. Agora... — Ela conseguiu com muito esforço dizer a última palavra antes que a escuridão caísse sobre ela.

Tormand mais do que depressa lhe auscultou o coração e constatou que estava batendo. Então, foi capaz de controlar o pânico de vê-la desacordada em seus braços. Estava viva. Naquele momento, era tudo o que importava.

— Você foi apanhado de jeito, dessa vez, não acha? — indagou Bennett.

— Sim — Tormand respondeu. — Como um peixe na rede.

— E o que fará quanto a isso?

— Primeiro vou me dedicar a cuidar de Morainn até que se restabeleça. Então, rezarei para que ela não decida jogar o peixe de volta na água e ir embora.

 

Dor foi a primeira coisa que Morainn sentiu quando acordou. Lentamente, abriu os olhos e observou ao redor. Reconheceu o quarto de Tormand e mesmo assim sentiu medo quando se lembrou de tudo o que havia acontecido. Também ficou imaginando por que tinha vontade de chorar como uma criança perdida.

— Morainn?

Tormand levantou-se da cadeira perto da cama e aproximou-se da amada. Ela segurava o cobertor tão forte que parecia quê ia rasgá-lo. Então, ele pousou a mão sobre a dela, passando levemente os dedos pelas articulações. Por quatro longos dias, ele permanecera ao lado dela, cuidando de sua febre e esperando que voltasse para ele. Vê-la acordar, assustada, despedaça­va seu coração.

— Você está salva agora, minha querida. — Ele se sentou na beirada da cama. — Small está morto e Ada MacLean foi enforcada esta manhã.

Morainn respirou fundo e soltou o ar aos poucos, empurrando o medo para fora, junto com o ar. Aliviada, percebeu que a dor não era tão intensa. Significava que estava se curando.

— Quanto tempo? — ela perguntou, retraindo-se ao sentir a garganta seca e dolorida.

— Quatro dias — ele respondeu, enquanto pegava um pouco de sidra com mel para aliviar a garganta de Morainn.

Ao ajudá-la a tomar a bebida, Tormand a estudou. No momento em que tinham chegado em casa, ele a colocara na cama e tirara toda aquela roupa suja de sangue. Ao ver o corpo todo cortado, ele quase caíra de joelhos. Achou que não seria capaz de esquecer tal visão nunca mais, mas, agora que ela estava bem melhor e que os- ferimentos cicatrizavam, essa sensa­ção diminuía.

— Nora disse que ela e a mãe viriam mais tarde para banhá-la, talvez até mesmo arrumar seus cabelos, se você estiver acordada e quiser. — Ele colocou a caneca vazia de lado e segurou a mão delicada de novo, precisando sentir que ela retribuía o aperto, como prova de que estava se recuperando.

— Sim, quero — ela respondeu. — Quero muito. Preciso tirar toda essa sujeira de mim. Ada confessou tudo?

— Repetidamente e bem alto. Ela também tinha uma coleção de pequenos arcos feitos de mechas de cabelos das vítimas. Small era seu amante e seu criado. — Tormand balançou a cabeça, inconforma­do. — É difícil acreditar que uma mulher pequena e sem graça como aquela possa ter cometido tamanha crueldade. Ela era tão... — Ele parou, tentando achar a palavra certa.

— Comum. Muito comum — concluiu Morainn. — Não havia nada nela que fosse marcante.

— Acho que será lembrada a partir de agora, nem que seja apenas pelas pragas que ela rogou contra a multidão que foi assistir a sua execução.

— Ah, sim. Eles se lembrarão de quem era ela e o que fez, mas duvido de que se recordem da apa­rência dela daqui a uma semana. Acho que o fato de todos a ignorarem alimentou a loucura que nasceu com ela. — Após um pesado silêncio, enquanto cada um se ocupava com os próprios pensamentos ela fez uma pergunta: — Walin está bem?

— Sim. Ele logo virá visitar você. Ele fez isso inúmeras vezes enquanto você esteve dormindo.

— Ele é uma criança muito amorosa. — Ela sorriu e respirou fundo.

— Walin me contou que Ada disse que ele é meu filho.

Morainn estremeceu. Seu lado egoísta queria man­ter aquela informação em segredo para que pudesse ficar com Walin só para ela.

— Ada não falou desse assunto durante a confissão?

— Sim, mas ela era tão louca que não sei se deve­mos acreditar em suas palavras. Por outro lado, realmente tive uma amante chamada Margaret Macauley há sete anos e ouvi dizer que ela havia sido mandada para um convento, onde acabou morrendo. No entan­to, ninguém nunca me falou sobre a criança. Ainda assim, há traços característicos de minha família em Walin.

— De fato, há. — Morainn contou tudo o que Ada dissera aquele dia na casa da torre.

Tormand praguejou e passou os dedos pelos cabelos.

— Ela vinha matando pessoas fazia muito tempo, não?

— Acho que jamais saberemos quantas. Acredito que, no começo, ela era mais cuidadosa em esconder o que fazia, para que as mortes parecessem acidentais.

Morainn mal acabara de falar, quando Nora e a mãe entraram no quarto. Ela ficou feliz com a interrup­ção, pois tinha medo que Tormand lhe dissesse que tiraria Walin dela e sabia que precisava estar forte para discutir esse assunto, ia lutar pelo menino.

Assim que Nora e a mãe a banharam, trocaram-lhe a camisola e a roupa de cama e pentearam seus cabe­los ainda úmidos, Morainn percebeu que não tinha mais força nem para arrumar o próprio travesseiro. E simplesmente cochilou quando foi deixada sozinha por um momento, enquanto Nora foi preparar algu­ma coisa para que ela comesse. Minutos mais tarde, acordou com o barulho da porta se abrindo, quando Nora voltou com uma travessa cheia de pão, queijo, frutas e um prato de sopa.

— Sua mãe foi para casa? — ela indagou ao sentar. Nora começou a alimentá-la com colheradas de sopa.

— Não, ela está na cozinha, preparando alguma coisa para os homens comerem. Mamãe vai sugerir a sir Tormand que contrate as primas dela, Mary e Agnes, para que limpem a casa e cozinhem para ele.

— Acho que, apesar do que Magda andou dizendo por aí, sir Tormand é um bom homem para se traba­lhar — Morainn respondeu entre uma colherada e outra.

— Sim, é o que minha mãe pensa também. — Nora deu a amiga um pedaço de pão com um pouco de mel. — Lamento muito o que aqueles insanos fizeram com você.

— Estou viva, Nora. Tive muito mais sorte do que as outras vítimas.

— Foi o que eu disse a mim mesma. Só espero que não fique com muitas cicatrizes.

Morainn parou quando ia colocar um pedaço de pão na boca. Ela não havia considerado aquela possibilidade e sentiu pavor só de pensar a respeito. Deixando o pensamento de lado, mordeu o pão. A vaidade era perigosa. Ela nunca se considerara uma mulher vaidosa, mas, definitivamente, percebeu que era um pouco. Contudo, decidiu que, quando esse sentimento de pesar aparecesse, repetiria a si mesma as seguintes palavras: O mais importante é que estou viva. Ao imaginar a reação de Tormand em relação às cicatrizes, começou a entrar em pânico. Porém, logo tentou, afastar esse sentimento. Se ele não pudesse suportar algumas marcas no corpo de sua amante, então ela deveria terminar com ele.

O que certamente iria acontecer em breve. Ao pen­sar nisso, teve vontade de chorar. Seu coração ficaria em pedaços quando ele a deixasse, mas jurou que não ficaria lamentando por muito tempo. Ela sempre o amaria, mas também não pretendia ficar sofrendo por aquilo que não poderia ter. Seria melhor viver sem ele do que passar o resto da vida sem amor ou ima­ginando se Tormand procurava outras enquanto não estivesse com ela.

— Está sentindo alguma dor? — interrogou Nora, percebendo a mudança de humor da amiga.

— Não muita. — Morainn achou melhor guardar para si os verdadeiros motivos que a chateavam. — Estava apenas lutando contra um súbito ataque de vaidade. — Ela sorriu sem vontade. — Nunca pensei que fosse vaidosa, mas pelo visto há um pouco desse pecado em meu coração.

— Todo mundo sofre um pouco com isso. Descobri minha vaidade quando James me pegou limpando um porco, coberta de lama dos pés à cabeça. Para piorar a situação, ele riu de minha aparência. Mas não deixei a afronta passar incólume, e logo ele ficou coberto de lama também.

Morainn riu, apesar das fisgadas de dor provocadas pelos machucados que ainda cicatrizaram.

— Não devo reclamar de algumas marcas no corpo. Quando eu olhar para elas, vou me lembrar apenas de que estou viva. Ainda bem que eles não chegaram a cortar meu rosto nem meus cabelos, como fizeram com as outras.

— Não quero nem pensar no que poderia ter acon­tecido. Vamos falar de outra coisa. Walin é mesmo filho de Tormand?

— Não tenho certeza de que falar sobre esse assunto vá me alegrar, mas sim, acredito que seja. — Ela con­tou a Nora tudo o que Ada havia dito. — Tormand diz que o garoto se parece com sua família e é verdade. Talvez ele tenha herdado da mãe os cabelos pretos e os olhos azuis, porém o resto veio de Tormand.

— E o que você vai fazer?

— Não tenho a menor idéia. Creio que os fatos serão apurados, mas minha intuição me diz que o menino realmente é filho de Tormand. Quanto a mim, sou apenas a mulher que cuidou dele por quatro, anos.

— Você é muito mais do que isto para Walin. Quer saber? Acho que é o garoto quem vai decidir essa situação.

— Talvez deva ser assim.

Nora logo foi embora, e Morainn foi deixada com sua melancolia. A melhor cura para seu humor era dormir um pouco, e ela fechou os olhos, jurando para si mesma que seria forte e corajosa mais tarde.

— Morainn? Está acordada?

Não foi o toque gentil de uma pequena mão em seu rosto que a acordou, mas sim a voz familiar. Virando a cabeça ao abrir os olhos, ela sorriu para Walin. A preocupação estampada no rosto do garoto desapa­receu rapidamente, e ele sorriu de volta. Ela sentiu o coração apertado ao pensar que logo ia perde-lo para o pai. Alguém que poderia dar a Walin uma vida muito melhor do que ela jamais daria.

Ela o acariciou no rosto e sentiu uma enorme vontade de pegá-lo no colo e sair correndo.

— Agora estou. Você se comportou bem enquanto estive dormindo?

— Claro que sim. Os homens não me deixaram assistir ao enforcamento, mas não me importei muito. Eu não queria mesmo ver aquela mulher novamente. Morainn, ouviu o que aquela mulher disse naquele dia? Tenho um pai. É sir Tormand.

— Sim, e você é filho dele. Posso ver agora. Walin franziu o cenho.

— Não está feliz? — ela prosseguiu. -- Você sem­pre quis saber quem era seu pai.

— Sim, estou. Mas não quero deixá-la e ter um pai significa que tenho que ficar com ele. Os irmãos e os primos de Tormand falam que vou me encontrar com os outros Murray, que agora são a minha famí­lia, meu clã, mas não sei se é o que quero. Só de pensar que você não estará comigo, fico desesperado. — Ele suspirou e encostou a cabeça no peito dela.

— Não quero perder você. Nunca.

— Walin, meu amor, você nunca vai me perder. — Ela brincou com os cachos do menino. — Mas agora você é um garoto crescido e tem um pai que lhe proporcionará uma boa vida.

— Ainda sou um bastardo.

— Sim, isso não vai mudar. Mas ambos sabe­mos que muitos filhos bastardos ganharam honra e fortuna. Tudo que posso dar a você é trabalho num jardim e cuidando dos animais que temos.

— Você não me quer mais?

— Claro que quero. Não seja tolo. Sempre o ama­rei como se fosse meu filho, jamais duvide disso. No entanto, isso é algo que deve ser decidido entre você e seu pai.

Walin se endireitou e fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Sim, de homem para homem.

— Exatamente.

Morainn esperava que, durante aquela conversa, eles se lembrassem dela. Morreria se perdesse Walin. Então, ela realmente estaria sozinha no mundo.

Foram necessários mais três dias para que Morainn se sentisse forte novamente e em condições de cui­dar de si mesma. Conseguia até mesmo bordar um pouco o enxoval de Nora. Mas essa pouca atividade era suficiente para deixá-la exausta. Mais uma semana, e poderia voltar para sua casa e seus afazeres.

Ela não queria realmente partir. Tormand a visi­tava várias vezes por dia, a família dele vinha para conversar ou jogar xadrez, e todos tomavam conta dela muito bem. Estava ficando mimada e tinha que lutar contra a vontade de se agarrar a Tormand antes que ele a trocasse por suas outras amantes. Sabia que essa atitude não faria bem a seu coração nem a seu orgulho. Seria melhor ir embora com suas doces lembranças intactas.

E ainda havia Walin, ela pensou ao deitar na cama para descansar. O garoto estava dividido entre a alegria de ter um pai e uma grande família, que o recebia de braços abertos, e ela. Embora ele ainda não houvesse se pronunciado a respeito, ela sabia que Tormand queria o garoto e que ninguém ficaria do lado dela.

A cada nova história que o garoto contava do tempo que passava com os Murray e pronunciava a palavra pai, Morainn sentia-se mais triste. Estava perdendo seu garoto, tinha certeza.

Após uma suave batida na porta, ela pediu que a pessoa entrasse. Em princípio, ficou feliz ao ver Tormand, mas então notou que estava sério. Será que Walin tinha feito sua escolha?

— Há alguém aqui que quer vê-la — ele anunciou.

— Alguém que não conheço?

— Bem, não sei ao certo. Ele esteve aqui várias vezes depois do que houve com você, mas o impedi de visitá-la. Eu queria que você estivesse forte para falar com ele.

— Por quê?

— Porque tive medo de que a notícia de que você tem um irmão seria muito para você suportar,

Morainn olhou para o homem que surgiu à porta. Mesmo o tendo encontrado somente uma vez havia dez anos, sir Adam Kerr, senhor de Dubhstane, não era um homem que pudesse ser facilmente esqueci­do. Era alto, mais de um metro e noventa, ombros largos, corpo atlético e tão bonito quanto Tormand. Sir Kerr tinha olhos azuis, além de grossos e longos cabelos pretos. Ele também tinha uma boca bonita, o lábio inferior mais cheio que o superior. A boca de um habilidoso sedutor, ela pensou. O rosto parecia ter sido esculpido. Então, ela o fitou nos olhos, ouviu o que dizia e sentiu o sangue fugir de seu rosto, completamente atordoada.

— Eu disse a você que ela precisava ficar mais for­te — Tormand se manifestou, correndo para Morainn e a massageando no pulso, numa tentativa de impedir que ela desmaiasse.

— Acho que, de qualquer jeito, a notícia a afetaria dessa maneira, estando ela totalmente recuperada ou não — opinou Adam, sentando-se confortavelmente em uma cadeira ao lado da cama.

— Por que contar a ela agora?

— Porque ela nunca esteve tão perto da morte antes — ele explicou tranqüilamente. — De repente, percebi que ela é a única família que tenho. Meu pai produziu alguns outros bastardos, mas nenhum viveu muito. Quando eu tinha como ajudá-los, já estavam mortos e enterrados. Sobrou apenas Morainn. — Sir Kerr deu um fraco sorriso. — Nossa família nunca foi boa em procriar como a sua. — Ele olhou de volta, para Morainn. — Ela começou a se recuperar. Se você tiver a bondade de nos deixar a sós, eu gostaria de falar com ela.

Tormand hesitou por um momento, querendo recu­sar o pedido, mas então saiu. A primeira vez que sir Kerr tinha aparecido naquela casa, Tormand quase batera a porta na cara dele. O ciúme o dominara. Porém, a incredulidade do olhar daquele homem chamou sua atenção e o fez reparar na semelhança com os olhos de Morainn. Então, tentou controlar seu sentimento de posse, algo nada fácil depois de ter admitido para si mesmo que gostava do fato de ela estar sozinha no mundo, exceto por Walin, pois não teria que dividir o afeto nem a atenção de Morainn com mais ninguém. Contudo, sir Kerr acabou infor­mando que era irmão dela e que pretendia contar a verdade para a irmã. Dando-se conta do quanto estava sendo egoísta e possessivo, Tormand decidiu que não era justo se ressentir do homem por isso.

Embora tivesse permitido a sir Kerr visitar Morainn algumas vezes, ele se recusou a deixar que falasse com ela. Tormand acreditava que seria um golpe duro para ela, naquele momento, descobrir que tinha um irmão. Achava melhor aguardar mais alguns dias até que ela recuperasse totalmente as forças. O fato de Morainn quase desmaiar apenas provara que ele esta­va certo. Sentado no alto da escadaria, do lado de fora do quarto, ele pensava que talvez ainda fosse muito cedo para que ela ficasse sabendo da novidade. Estava perto o suficiente para ouvir se as coisas se agravas­sem e Morainn precisasse de alguma ajuda.

Morainn observou sir Kerr parado ao lado da cama, e ofereceu a ela uma pequena caneca. Com um murmúrio de agradecimento, ela aceitou a bebida que tinha cheiro de vinho. Ao engoli-lo, o líquido rapi­damente a aqueceu por dentro, e ela se sentiu mais calma quando devolveu o recipiente vazio a sir Kerr.

— Por quê? — indagou enquanto ele colocou a caneca na mesinha e depois puxou a cadeira para se sentar mais perto da cama.

— Porque meu pai era um velho lascivo — ele resmungou em resposta.

Ela tossiu para disfarçar a vontade de rir.

— Não, quero dizer por que resolveu me contar a verdade só agora?

— Ah, bem, quando meu pai era vivo ele não queria que eu mantivesse contato com os outros filhos dele.

— Há mais?

— É triste dizer, mas já morreram. Você foi a única que sobreviveu. Quando fiquei velho o suficiente para fazer alguma coisa, tomei uma atitude, mas os poucos que restaram não viveram por muito tempo. Tentei ajudar sua mãe, no entanto ela não quis aceitar nada de um Kerr. Tinha seu orgulho. Ainda assim, fiquei de olho nela. Infelizmente, eu não estava lá quando as pessoas da cidade se viraram contra ela e expulsaram você.

— Sim, minha mãe era orgulhosa. Então, por isso você deixou que eu usasse a cabana e as terras.

Ele concordou com a cabeça.

— Meu pai estava muito doente para saber o que eu fazia, mas consciente, por isso não a levei para viver em Dubhstane. — Ele deu uma piscadinha. — A bebida que você prepara é muito boa.

Ela sorriu, sem jeito. Era estranho ter um irmão de repente, um laço de sangue. Não conseguia deixar de se sentir desconfiada. Por que um homem sairia do anonimato no qual tinha ficado muito confortavelmente por tanto tempo?

— Apesar de uns poucos primos distantes, você é a única pessoa da família com meu sangue — ele prosseguiu. — Eu nunca havia pensado nisso com tanta seriedade até que soube que você poderia estar morrendo.

— Mas seu pai morreu há muitos anos, não foi? Por que você só se decidiu agora?

— Não lhe revelei nada antes porque estava indo bem sozinha. Senti que você já carregava muitos fardos, como a criança deixada na sua porta, pessoas comentando que você era uma bruxa e alguns tolos acreditando que podia usá-la livremente. Também herdei a reputação do meu pai por ter muitas mulhe­res. Você não precisava de mais um motivo para que as pessoas comentassem a respeito. Quando ouvi que tinha sido atacada por aqueles assassinos, pen­sei em resgatá-la, entretanto sir Tormand chegou lá primeiro.

Ele se inclinou para a frente, apoiou os braços sobre os joelhos e a olhou com atenção.

— O que sir Tormand Murray significa para você? Tudo, ela pensou, mas não disse.

— Já que você parece saber tanto sobre mim, deve ter escutado que tenho visões.

Ele concordou com a cabeça.

— Tive algumas a respeito dessas mortes e pen­sei que pudessem ajudar a descobrir quem eram os culpados — ela acrescentou. — Elas também me mos­traram que Tormand não era o assassino. Ele e Simon concluíram que as visões talvez pudessem ajudar nas buscas. Quando os assassinos voltaram sua atenção para mim, ambos sentiram que eu e Walin estaríamos mais seguros se ficássemos com eles.

— Muito boa explicação. Mas essa não é toda a verdade. — Ele ergueu a mão para impedi-la de protestar. — Não importa agora. Podemos discutir esse assunto mais tarde.

— Quem sabe... Não estou certa por que sua repu­tação o faria se afastar. Sou chamada de bruxa, sou conhecida como bastarda e pensam que Walin é meu filho. Ter um irmão com fama de conquistador não me teria prejudicado mais ainda.

— Não pensei no assunto com o devido cuidado. — Ele se encostou no espaldar da cadeira, cruzou os braços sobre o peito e lançou um olhar zangado para a lareira. — Nunca percebi o quanto precisava de você até acreditar que poderia morrer. E não quero ficar sozinho.

Morainn se conteve para não abraçá-lo, pois com­preendia muito bem o que ele estava sentindo. Mas era muito cedo para uma demonstração de tanta inti­midade e amor de irmã. Ela não sabia muito sobre ele, a não ser sobre o bem que ele tinha lhe feito.

— E quanto a seu harém? — Ela riu quando ele a encarou. — Difícil ficar sozinho mantendo um harém.

Adam a fitou e percebeu que ela estava brincando. Era uma sensação boa e esquisita ao mesmo tempo. Ninguém zombava dele, nunca ninguém o provocara, nem mesmo o pai. Levaria algum tempo para que se acostumasse com a idéia.

— Não tenho um harém. Nunca tive. Uma mulher de vez em quando é o suficiente para atrapalhar a vida de qualquer homem.

— Puxa! — Morainn se divertia com a maneira com que ele a olhava, como se não soubesse o que fazer com ela. Então, ficou séria. — O que espera de mim?

— Não tenho certeza...

— Posso continuar na cabana?

— Claro que sim. Quer dizer que não vai ficar morando com sir Tormand?

— Ele não me pediu para ficar.

— Devo agir como um irmão mais velho e fazer algo a respeito?

— Eu preferiria que não.

— Como queira.

Após um breve silêncio, ele lhe estendeu a mão.

— Então... o que acha de aprendermos a nos comportar como membros da mesma família?

Ela sorriu e apertou a mão estendida.

— Por que não?

Ele a abraçou e sentiu a dor em seu coração dimi­nuir um pouquinho.

Tormand ouviu-a rir e suspirou. Estava feliz por ela, mas um irmão poderia ser um problema para ele. Precisava resolver sua situação com Morainn antes que o recém-descoberto irmão resolvesse meter o nariz na questão.

 

Lábios quentes tocaram o pescoço de Morainn, fazendo-a suspirar. Ela não foi capaz de afastar Tormand de seus sonhos, mas nenhum pareceu tão real quanto esse. De maneira suave, mãos fortes cobriam os seios arredondados, levando-a a arquear o corpo. Ela pensou em fazer amor com Tormand pela última vez antes de voltar para casa, porém não tinha deci­dido se seria uma algo inteligente a ser feito. Após tantos dias se recuperando, ansiava pelo toque de Tormand.

— Morainn — ele lhe sussurrou ao ouvido. — Acorde, amor. Eu a quero acordada enquanto fazemos amor.

Aquela voz não era fruto de um sonho. Foi sussur­rada contra seu ouvido, cada palavra era um leve roçar de ar quente, acariciando-a. Morainn abriu os olhos e encontrou Tormand à sua frente. Os dois estavam nus. E ela não pretendia desperdiçar tal oportunidade.

Contudo, ela logo estaria sem amante novamente.

— Você é um homem muito furtivo — ela disse.

— Sou mais um homem desesperado. — Ele brin­cava com os lábios delicados. — Já faz muito tempo.

— Muito tempo — ela concordou e o beijou. Aquele era o convite de que Tormand precisava.

Controlara o desejo enquanto ela se recuperava e ago­ra podia liberá-lo. Queria devorá-la, perder-se dentro dela. Então, descansar por um momento e iniciar a dança do amor outra vez.

Aguardava, ansioso, que ela lhe dissesse que o amava, que se importava com ele. Não tinha dúvida de que compartilhava o mesmo desejo carnal. Por hora, seria o suficiente. Fariam amor até que ela gritasse o quanto precisava dele, que se lembrasse de tudo o que haviam compartilhado.

Após beijá-la até deixá-la sem fôlego, Tormand começou a beijar o corpo esbelto. Ele dedicou sua atenção aos seios fartos, então passou a outro doce lugar. Ele se deteve em cada cicatriz que encontrou pelo caminho para chegar ao prêmio que o esperava, determinado a mostrar que aquelas marcar não dimi­nuíam a beleza dela diante de seus olhos.

Sempre gentil, ele beijou o triângulo entre as bonitas pernas e logo já o explorava com a língua escaldante. Um momento depois, ela se abria para ele. Tormand se empenhava em dar-lhe o máximo de prazer.

— Pare com essa tortura — ela gemeu.

Ele riu sobre o ventre liso, apesar de todo seu corpo tremer de desejo de possuí-la.

— Tortura, é? — Ele continuou a aplicar beijos pelo corpo curvilíneo.

— Tormand. — Ela suplicou e o envolveu com as pernas quando sentiu o membro túrgido tocá-la no lugar onde tanto almejava. — Agora.

— Mulher mandona — ele murmurou aquelas pala­vras contra a boca de Morainn e a sentiu suspirar de prazer quando seus corpos se uniram.

Tormand tentou ir devagar, porém ela estava impaciente, fazendo-o perder o pouco controle que tinha. Com um gemido, ele intensificou as investidas, levando os dois ao delírio com.uma urgência que ele nunca havia conhecido antes.

Morainn olhava para o homem deitado a seu lado. O corpo ainda zunia de satisfação e mesmo assim ela podia sentir a desejo por ele surgir mais uma vez, só de observá-lo. Tormand Murray a transformara em uma verdadeira libertina, e ela não se incomodava com o fato.

Ao fitar a masculinidade no ninho de pelos aver­melhados entre as pernas musculosas, ela imaginou se poderia fazer alguma coisa que o deixasse tão louco de desejo quanto ela ficava com os beijos íntimos que ele lhe dava. Virando-se, agarrou-o pela cintu­ra. Quando ele abriu os olhos, saindo do estado de torpor em que se encontrava, ela sorriu de forma inocente.

— Ainda precisamos falar sobre Walin — ele disse com voz rouca, resultado da paixão que tinham acabado de experimentar.

Essa era a última coisa que Morainn queria fazer naquele momento. Delicadamente, deslizou os dedos para cima e para baixo no quadril e na coxa musculosa. Pelo canto do olho, viu o interesse manifesto entre as pernas dele.

Tormand se esforçou para ignorar a resposta de seu corpo às carícias que recebia. Ele teria que ir à corte e estava determinado a resolver logo o caso de Walin. Não era um bom momento para discutir sobre suas esperanças e seus planos futuros, mas ao menos precisava resolver a questão do menino. Talvez fosse o suficiente para mantê-la a seu lado até que conseguisse fazer com que Morainn se apaixonasse por ele.

— Acho que podemos dividir a responsabilidade de criá-lo — ele propôs enquanto ela o tentava com as carícias. — Walin acha uma boa idéia. Ele quer nós dois em sua vida.

— E o que você quer?

Quero que mova sua mão um pouquinho mais para a esquerda, ele pensou, zombeteiro.

— O garoto precisa de uma família — ele respon­deu, evasivo.

— Então, ele terá uma. A que poderemos dar a ele.

Ele teve que respirar fundo para se manter firme quando, como se lesse seus pensamentos, ela moveu a mão e envolveu o membro ereto.

— Acho que seria bom para ele.

Tais palavras a fizeram pensar em casamento, um futuro de amor e crianças com olhos de cores diferentes. Mas colocou aqueles sonhos de lado. Não houve proposta de casamento nem declarações de amor. Ela não pretendia alimentar tolas esperanças e sofrer ainda mais. Pior ainda seria se interpretasse mal o que ele estava dizendo e fizesse o papel de uma completa idiota.

Sentindo-o cada vez mais rijo em sua mão, ela decidiu que era melhor deixar o caso de Walin para mais tarde è começou a beijá-lo na barriga até que o ouviu gemer.

Tormand esqueceu seus planos por completo ao sentir a boca de Morainn sobre sua pele. Além do mais, o toque da mão macia o impedia de pensar claramente, muito menos conseguia falar. Quando ela beijou a parte interna de sua coxa, ele ficou tenso e ansioso. Não conseguia parar de se contorcer, surpreso com o prazer ardente que o consumia quando ela, enfim, envolveu-lhe a ereção com os lábios.

— Eu o estou machucando? — ela perguntou, já se afastando.

— Não... — Ele entrelaçou os dedos nos cabelos negros e em silêncio a conduziu de volta para que terminasse o que tinha começado. — Está bom. Muito bom.

Morainn continuou a estimulá-lo com a boca e descobriu que fazer amor daquela maneira acendia a própria paixão, tornando-a mais ousada e com mais vontade de levá-lo ao prazer. Também se deu conta de que tinha tanto poder sobre o corpo de Tormand quanto ele sobre o dela.

Um pequeno grito de protesto escapou de sua boca quando ele a agarrou pelos ombros e a puxou para cima do próprio corpo. Entorpecida pelos tumultua­dos sentimentos, levou algum tempo para entender o que ele queria fazer. Devagar ela encaixou seu corpo ao dele, ofegando com a sensação que aquele ato lhe causava. Com sussurros de encorajamento em seu ouvido, ela se movimentou sobre ele até que ambos atingiram o êxtase, com gritos de satisfação, unidos pela mais doce canção de amor.

Lembranças dos momentos de intenso prazer com­partilhados com Tormand fizeram Morainn sorrir ao acordar. Ela o procurou, mas encontrou apenas o len­çol frio e a cama vazia. Suspirou. Era melhor assim. Ela poderia simplesmente empacotar seus pertences e ir para casa.

Forçou-se a se levantar e preparar-se para enfren­tar o longo dia que teria pela frente. Ao descer para tomar o café da manhã, pensou no que dizer a Walin. Não se surpreendeu ao encontrá-lo sentado à mesa, com um prato cheio de comida à frente. O menino adorava comer e as primas de Nora eram ótimas cozi­nheiras. O que a surpreendeu foi que Adam também estava lá. Ele tinha vindo visitá-la muitas vezes desde que contara a ela que era seu irmão, mas nunca tão cedo. Ela o fitou, desconfiada, ao se sentar e começar a se servir.

— O que planeja fazer hoje, Morainn? — Adam perguntou, servindo uma caneca de leite de cabra a ela.

O modo como ele a observava a fez pensar que ele já sabia a resposta que ela daria àquela pergunta. Adam nunca a havia questionado sobre os sonhos premonitórios nem as visões que se revelavam a ela. Achou que o irmão também tinha algum dom. Ficou a imaginar por que ele lhe dera leite de cabra. Não era algo que ela bebesse com frequência. Talvez não tivesse sido da mãe que ela herdara aquele dom.

— Pretendo voltar para minha cabana — ela res­pondeu, e não notou um único sinal de surpresa no rosto dele.

— Então, preciso arrumar as minhas coisas — Walin se manifestou.

Morainn abriu a boca para explicar todas as opções que o garoto tinha, mas rapidamente levou uma colher grande de mingau à boca. Egoísta, preferia que ele fosse com ela para casa. Enquanto comia, uma vez ou outra ela pedia a Walin que se alimentasse devagar e sentia o olhar do irmão sobre si. Quando o menino pediu licença e saiu correndo para arrumar a bagagem, Morainn lançou um olhar a Adam e o pegou sorrindo.

— Mulher inteligente — ele murmurou.

— O que quer dizer?

— Levar o menino com você certamente fará com que Tormand vá até a sua porta.

— Realmente acha que eu seria capaz de usar Walin como isca? — Para a própria vergonha, ela havia pensado nessa possibilidade. Desse modo, Tormand e ela continuariam se vendo.

— Por que parece tão insultada?

— Por que eu não deveria? Seria uma atitude desonesta de minha parte.

— Como eu disse, inteligente. Por que apenas não fica aqui?

— Porque desejo escolher a hora de partir. — Morainn não sabia por que estava sendo tão since­ra, mas a maneira como Adam a encarava fazia com que a verdade fosse dita com facilidade.

— O orgulho pode ser um péssimo companheiro de cama.

— Assim como um homem que está na cama de uma mulher quando gostaria de estar na de outra. — Ela suspirou. — Não pretendo estar por perto quando ele se cansar de mim e me trocar por outra. Sim, é orgulho, e às vezes é só o que nos resta.

— Ele sabe que o garoto a considera uma mãe. Talvez deseje se casar com você legalmente. Ele seria um ótimo partido.

— Sim. — Ela teve a sensação de estar sendo provocada. Revirando os olhos com impaciência, empurrou o prato vazio para o lado e apoiou os braços sobre a mesa. — Amo Tormand.

— Imaginei que sim. Mas não gostei que ele tenha feito de você sua amante. Então, por que fugir da chance de conquistá-lo de maneira definitiva?

Morainn controlou a língua para não dizer que um irmão ausente durante vinte e três anos não tinha o direito de dizer o que ela devia ou não fazer da vida ou com sua castidade.

— Não estou fugindo. — Ela fez uma careta ao vê-lo erguer uma sobrancelha. — Tudo bem, talvez eu esteja. Mas somente do sofrimento que vejo se aproximar.

— Por que acha que ele a magoaria?

— Porque ele não me ama. Mesmo homens sem a reputação sórdida de Tormand cairiam na cama de outra mulher, sucumbindo rapidamente à tentação, se não amassem as esposas. Sei que o amor não é uma armadura impenetrável contra todas as tentações, mas ajuda a preservar a relação, e a solucionar os pro­blemas que surgem com o tempo. Eu não seria feliz se me casasse com ele e tivesse que passar o resto dos meus dias e noites imaginado em que cama ele estaria. Aliás, eu morreria aos poucos. De qualquer maneira, ele não citou casamento. Ele gosta da liber­dade. Neste momento, ele tem interesse em mim, mas amanhã pode ser diferente.

— E você não deseja estar por perto quando isso acontecer. É justo, Mas, se for embora, perderá a chance de fazer com que ele a ame.

— Não sei se é possível fazer com que uma pes­soa ame outra. Ou se ama alguém ou não. E, se levar muito tempo até que o amor floresça? Se houver muitas outras mulheres enquanto espero meu prêmio, quanto restará do meu amor? Sim, talvez eu seja tola o suficiente para amá-lo, mas não a ponto de acreditar que ele seria fiel a mim, eu jamais confiaria nele e a mágoa estragaria tudo. Preciso de um amor sincero. Toda vez que ele fosse para os braços de outra mulher, meu coração ficaria em pedaços. Seria tolice pensar que uma paixão e um garotinho são suficientes para mudar os hábitos de um homem como Tormand. Tem que haver um laço mais forte.

Morainn esperou pacientemente que Adam parasse de rir. Ele ficava bonito quando ria. Sua expressão suavizava.

— Bem, não sei se acredito no mesmo que você, mas se é o que quer...

— Sim, é o que quero — ela afirmou. — Ora, não vou viajar de navio para a França no meio da noite. Vou para minha casa e Walin irá comigo por livre e espontânea vontade. Tormand poderá me encontrar lá se quiser. E acho que será bom eu ir para casa. Lá poderei pensar com mais clareza.

— Muito bem. Então a ajudarei. Eu a convidaria a morar em Dubhstane, mas sei que não aceitaria.

— Não agora, mas eu não me importaria de conhecer o lugar algum dia.

— Eu a levarei lá quando quiser.

Algumas horas mais tarde, Adam parava em fren­te à casa de Tormand, vendo Morainn se afastar em cima de um cavalo que Walter havia preparado para ela. Os gatos, protegidos em gaiolas, protestavam alto, conforme seguiam viagem. Adam sabia que a irmã estava triste, que de uma maneira ou de outra, Tormand a magoara. Ia ser muito difícil não fazê-lo pagar pelo ressentimento no rosto de Morainn, porém ele resistiria à vontade de derrubá-lo ao chão com alguns socos. Essa batalha era da irmã.

— Tormand não vai gostar disso — reclamou Walter. — Não, ele não vai ficar nada feliz. As mulhe­res não fogem dele assim.

— Quem sabe não seja bom para ele. — Para a surpresa de Adam, um grande sorriso se abriu no rosto de Walter.

— Sim, vai ser. Uma boa pancada na cabeça pode ajudar um tolo a criar um pouco de bom-senso.

— Você o considera um tolo por deixar minha irmã ir embora?

— O maior de toda a cristandade. Apesar do modo como ele se comportou nos últimos tempos, é um homem que vem de uma família muito forte, com bons casamentos e filhos saudáveis. Ele vem tentando melho­rar. Bem, ele já deu um sinal de mudança.

— E qual foi?

— Ele teve que fazer uma lista de todas suas aman­tes e ficou enojado com o resultado.

— Ah, por isso a amiga de Morainn comentou que ele pulava de cama em cama. — Ele sorriu da garga­lhada de Walter.

— Isso o definia muito bem. Ele era mesmo assim. Mas pude ver que a moça colocou um cabresto naque­le garanhão. Chegou o momento de ele se assentar e é ela quem ele quer ao lado dele.

— E a família Murray não vai se importar por ela ser urna pobre bastarda?

— Não, eles não vão se importar com isso.

— E quanto às visões que ela tem eventualmente?

— Bobagem, ela será apenas mais uma mulher com um dom. O clã está cheio delas. É fonte de orgu­lho para eles. — Olhou para Adam enquanto voltavam para dentro da casa. — Fico imaginando de quem ela herdou esse dom.

— Continue imaginando, meu bom homem. — Adam riu do descontentamento de Walter com aquela resposta. — Então, acha que sir Tormand se apaixonou pela minha irmã?

— Ah, sim. Caiu na rede como um peixe. E o senhor não estaria me fazendo essa perguntar se tivesse visto como ele ficou quando aqueles assassinos a levaram embora. Se Tormand ainda não soubesse como se sentia em relação a ela, acho que ele teve naquele momento outra revelação. Eu já esperava por isso. Um homem que podia possuir a mulher que quisesse, como vinha acontecendo nos últimos anos, e de repente decide não se deitar com nenhuma nos últimos três, talvez quatro meses...

Adam parou de andar e encarou Walter.

— Está dizendo que Tormand ficou em celibato durante meses?

Walter assentiu comum gesto de cabeça, satisfeito.

— Sim. Dormia na própria cama todas as noites, por meses. E, antes que me pergunte, sei que não havia nenhuma mulher com ele. Nunca trouxe nenhuma para casa, além de Morainn. Então, acho que o tempo de ele sossegar chegou. Só estava esperando a mulher certa.

— Acredita mesmo que essa mulher seja Morainn?

— Não tenho dúvidas. O senhor quer ficar por aqui para ver como ele reagirá quando descobrir que o pássaro voou da gaiola?

— Sim, quero.

— Gosta de fazer apostas com dados?

— Que homem não gosta? Tem certeza de que tem dinheiro para perder?

— O senhor é convencido, hein? Acomode-se na sala enquanto vou pegar cerveja e meus dados, então veremos qual de nós dois tem mais sorte ou habilida­de. Vai torcer para que Tormand volte logo, antes que o senhor perca até as roupas do corpo.

— Onde está Morainn? Onde está Walin? Onde estão aqueles malditos gatos?

A cada pergunta, a voz de Tormand se tornava mais alta, até que o último grito foi tão alto, que Adam ficou espantado que a estrutura da sala não houvesse tremido. Sir Kerr conteve o riso, fez um gesto com a mão pedindo silêncio e observou Walter jogar os dados. Grunhiu quando Walter ganhou mais uma vez e finalmente se virou para olhar o dono da casa.

Tormand estava furioso. Adam podia ver a preo­cupação, até mesmo medo nos olhos dele. Essa não era a reação que se esperava de um homem que se livrara de uma mulher entre tantas. Aquele Tormand talvez reclamasse um pouco, mas logo iria atrás de outra. O novo parecia querer arrancar à força algumas respostas de alguém.

— Minha irmã decidiu que era hora de voltar para a própria casa — informou, observando a cor se esvair do rosto de Tormand. — Walin quis acompanhá-la.

Por um momento, foi difícil para Tormand respi­rar. Ele sentiu uma dor profunda cortar seu coração.

Como Morainn podia ir embora depois de tudo o que havia acontecido entre eles naquela manhã? Nenhuma mulher jamais tinha feito amor com ele daquela maneira. Quando chegou em casa, pensou que a encontraria à sua espera, pronta para ouvir tudo o que ele tinha a dizer. Ele até deixara a corte mais cedo porque não podia mais esperar para dizer a ela tudo o que estava preso em sua garganta. E ela havia arrumado as suas coisas e partido!

A raiva que o dominava naquele momento encobria a mágoa. Morainn nem lhe dera uma chance. Ele a tinha cercado de cuidados e gentilezas porque queria lhe mostrar que não era mais o homem de antes e que se sentia envergonhado da própria reputação. Por um breve momento, pensou que se ela fora embora tão facilmente ele não deveria procurá-la. Afinal, não teria nenhum problema em arrumar outra mulher. Mas rapidamente afastou aquele pensamento. Zangado ou não, magoado ou não, ele não queria outra. Ele queria Morainn.

— Quando ela partiu? — ele perguntou com um grande desejo de acabar com a diversão de Adam. Mas bater no futuro cunhado, antes mesmo de ter pedido a mão de Morainn em casamento, não era algo muito inteligente a ser feito.

— Esta manhã. Talvez há umas três ou quatro horas. Vai atrás dela?

— Sim.

— Por causa do menino?

— Não, por ela. Vou sacudir aquela tola até que sua cabeça funcione direito.

— Antes ou depois de pedi-la em casamento?

Embora os olhos de Adam demonstrassem uma certa dose de diversão, havia dureza em sua voz. Ele não fizera nenhum comentário a respeito do relacionamento de Tormand com Morainn, mas estava claro que ele exigia que o erro cometido fosse reparado.

Tormand queria dizer que Adam só havia procu­rado a irmã fazia poucos dias, mas achou melhor se conter. O homem tivera suas razões para se manter em silêncio, e Morainn as aceitara.

— Pretendo pedi-la em casamento e só vou sair de lá quando ela disser "sim".

— Você realmente vai honrar seus votos ?

— Sim — Tormand respondeu por entre os dentes. — Agora posso ir encontrá-la?

— Uma última coisa. — Adam puxou um pacote do bolso de sua camisa. — Quando ela disser "sim", abra isto.

Tormand pegou o pacote e saiu correndo. Ele precisava cavalgar até a cabana para se acalmar. Não seria muito bom chegar na casa de Morainn, irritado, exigindo respostas. De alguma maneira, ele tinha culpa por ela ter partido. Deveria ter sido mais claro ao dizer a ela o que queria, o que sentia. Dessa vez, não haveria nenhum mal-entendido, mesmo que tives­se de engolir todo seu orgulho.

Vendo que Uillian voltava da corte, ele pediu ao irmão que o ajudasse. Facilitaria muito as coisas se ele e Morainn pudessem resolver seus problemas, sem que Walin escutasse cada palavra.

Ficou agradecido por Uillian ter aceitado cooperar e ainda mais pelo silêncio enquanto cavalgavam. Como nunca tinha se apaixonado antes, ele sabia que teria que planejar cada palavra que pretendia dizer. Precisaria convencer Morainn de que tinha mudado.

 

Ao observar o jardim, Morainn soube que levaria muito tempo para que se sentisse feliz novamen­te. Os gatos estavam espalhados pelos cantos favori­tos, Walin brincava de bola e o primo de Nora tinha tomado conta do jardim muito bem, não havia uma semente fora do lugar. Aquele terreno florido sempre fora sua alegria e seu orgulho, porém, naquele momen­to, não representava nada a ela.

Era tudo culpa de Tormand, pensou. Como pudera se atrever a imaginar que ele poderia ser dela um dia? Ele havia lhe salvado a vida, protegera-a e tinha lhe dado o maior prazer que ela conhecera. Não podia exigir, mais desse homem.

Uma parte dela, insaciável, queria que ela voltasse à casa de Tormand e lhe fizesse algumas perguntas: se a amava, se de fato se importava com ela, se havia superado a aversão pelo casamento, se podia algum dia jurar fidelidade a uma mulher... Tentou se convencer de que provavelmente não gostaria das respostas.

E havia Walin. Ele era filho de Tormand. Ela não tinha nenhum direito sobre a criança, mesmo que o menino tivesse ficado sob seus cuidados durante qua­tro anos. Não era culpa de Tormand nunca ter conhe­cido o garoto. Mas agora ele sabia a verdade e queria o garoto. Ele seria um ótimo pai, não havia dúvida. Ela não tinha o direito de negar à criança uma vida muito melhor da que podia oferecer. Embora Tormand tivesse dito que os dois criariam o menino, decerto seria debaixo do teto dele.

E quando ele não a quisesse mais em sua cama? Ela se tornaria simplesmente a babá de Walin e teria que assistir ao homem que amava retornar à vida de luxúria. Ou pior, se Walin fosse educado para ser o filho de um cavalheiro, um homem rico, ele não preci­saria de uma babá por muito tempo.

Eles poderiam até se casar, ela pensou, ao sentar no banco de madeira. Tinha certeza de que Tormand tentara, porém ela o havia ignorado.

Morainn suspirou. Não pretendia que Tormand se casasse com ela somente porque nenhum dos dois queria se separar de Walin. Esse não era o tipo de casamento que matinha um homem fiel à esposa, especialmente Tormand, que podia escolher a mulher que quisesse. Desejava que ele ficasse com ela de coração, de corpo e alma. Só assim poderia ter cer­teza de que não passaria os dias imaginando em que cama o marido poderia estar.

Era verdade que ela o ouvira dizer que tinha per­cebido que seu passado de lascívia não era algo de que se orgulhasse. Mas até quando aquilo duraria antes que ele voltasse aos velhos hábitos? Quanto mais ela pensava no assunto, mais infeliz ficava.

O súbito silêncio chamou sua atenção, ela não escutava mais Walin, brincando com a bola. Quando ia se levantar e procurá-lo, uma figura alta e familiar surgiu no jardim e vinha em sua direção. Por um breve momento, Morainn pensou em correr, mas disse a si mesma que não seria covarde. O momento do confronto havia chegado, ela só esperava ter tido mais tempo para poder se preparar. O som do riso de Walin e de um cavalo se afastando a galope a fez entender o que acontecera, e quase pôde ouvir seu coração partir.

— Veio para levar Walin de volta — ela falou enquanto Tormand parava à sua frente.

— Não seja tola — ele respondeu, então praguejou e se sentou junto perto dela.

Morainn devia ter ficado ofendida com a resposta grosseira, mas estava muito ocupada tentando não chorar. E não era só pela perda de Walin. Tormand ves­tia um manto sobre a fina camisa de linho. Ele estava tão bonito que chegava a machucá-la, principalmente sabendo que nunca poderia tê-lo só para si.

— Não vim tirar Walin de você — ele disse depois de alguns minutos olhando para o jardim. — Porém, mandei-o embora com Uillian para que nós dois pudéssemos conversar. Sozinhos. Sem se preocupar com cada palavra dita perto de uma criança de seis anos.

Morainn ficou ainda mais tensa.

— Conversar sobre o quê?

— Para começar, por que você foi embora?

Havia um toque de raiva na voz masculina, e Morainn imaginou se seria orgulho ferido.

— Já estou curada, encontramos os assassinos e agora você está salvo. Não havia nenhuma outra razão para que eu ficasse lá, havia?

— Entendo... Você se aproximou de mim e depois decidiu ir embora. — Tormand fez uma careta.

Ele parecia uma dama ultrajada, ou pior, uma das mulheres com quem estivera, as que se achavam tão habilidosas, tão bonitas, que poderiam prendê-lo em suas armadilhas. Sentiu culpa, mas sinceramente duvidava de que alguma delas sofrerá a dor que o assolava naquele momento. Ele sempre tinha sido cuidadoso ao evitar mulheres com corações sensíveis ou grandes expectativas.

— Não, claro que não. Se me lembro bem, foi você quem veio até minha cama. Não o procurei, só tomei o que me foi oferecido livremente. Quem é você para se sentir ultrajado? Não é o que tem feito há anos?

Aquilo doeu, porém ela estava certa. Ainda assim, ele não conseguia deixar de se sentir daquela maneira. Morainn era diferente de todas as outras mulheres que ele havia conhecido. Em seu coração, ele sabia que sim. Mas estava fazendo tudo errado, estava deixando-a zangada e magoada. Ele a conhecia o suficiente para saber que aquelas emoções não eram próprias dela. De alguma maneira, tinha que contro­lar seu temperamento, o medo e pesar suas palavras cuidadosamente. Nada se resolveria se ficassem brigando um com o outro. Ele pretendia se controlar, porém ao encará-la, a raiva e a mágoa voltaram com força.

Não ia ser fácil, ele se levantou e começou a andar de um lado para o outro. Estava aterrorizado, ofere­cera tudo o que tinha, e ela não o queria. Era ver­dade que ele a havia cortejado, entretanto não estava bem certo se conseguira conquistá-la. Pela primeira vez na vida, não sabia que caminho seguir. Voltou a olhar para ela e percebeu que Morainn o observava com medo. Ele provavelmente estava agindo como um louco.

— Pensei que poderíamos nos casar e criar Walin juntos. — Uma olhada de relance mostrou que ela ficara magoada com aquelas palavras. Estranhamente aquilo lhe deu esperança. Morainn não ficaria magoada se não se importasse com ele.

— Walin é como um filho para mim. Quando ele foi deixado na minha porta, tentei encontrar os pais dele, mas não fiquei desapontada quando ninguém veio reclamá-lo. — Ela suspirou e olhou para as pró­prias mãos. — Eu estava tão sozinha quando Walin apareceu, foi como um presente caído do céu. Eu tinha alguém que me amava e precisava de mim, alguém que não se importava com minhas visões. Nunca nos separamos desde então, mas não me casarei com um homem só pelo bem do menino.

— Por que não?

— Porque é uma base muito fraca para um casa­mento.

Tormand segurou as mãos de Morainn, puxou-a para seus braços, e a beijou com ternura.

— E quanto a este fogo que queima quando estamos juntos?

Ela o empurrou.

— Você se aqueceu várias vezes em outros fogos e nunca se casou. Tentaria me enganar usando a pai­xão? Você que vem escapando dela há tantos anos?

— A paixão é um aspecto importante e não uma armadilha quando se casa por vontade própria. O que você quer de mim? Diga-me logo para que eu pare de falar besteiras.

Morainn o fitou com a boca ainda quente por cau­sa do beijo. Ele dizia a verdade. Ele se casaria com ela para formar uma família para Walin e porque a desejava. Era bastante, bem mais do que muitas esposas jamais tiveram, porém não era o suficiente.

— E você será um marido fiel?

Tormand tentou não parecer ofendido com aquela pergunta. Ela não sabia nada sobre as crenças dos Murray, das quais ele não podia se livrar nem queria. Por causa da reputação que ele conquistara ao longo de anos, ela se sentia insegura.

— Honrarei os votos do casamento — respon­deu, tentando não soar pomposo demais. — Por que você não acredita em mim? Por causa do meu passado?

— Seu passado realmente não contribui em nada para que uma mulher confie em qualquer voto de fidelidade que você faça. E não entendo por que você se sente tão ofendido por causa de minhas dúvidas a esse respeito. Muitos homens não honram os votos do casamento. Aposto que você também conhece muitos que juraram perante Deus e a família, mas no fundo eram apenas palavras vãs.

— Não sou nenhum desses homens. Morainn, estou decidido a ficar aqui até resolvermos essa questão. Quero que você seja minha esposa, que me ajude a criar Walin e jurei ser fiel, mesmo assim você hesita. Por quê? Vou atormentá-la a noite inteira até que me diga à verdade.

Dizer a verdade significava que ela teria que bai­xar suas defesas, abrir-se para o que poderia ser um golpe fatal em seu coração. Ele ficaria sabendo quanto poder tinha sobre ela.

— Então, direi a verdade. Eu te amo. — Ela o impediu de abraçá-la. Se permitisse, ele lhe daria um beijo e ela acabaria concordando com tudo. Porém, ficou feliz de notar que a confissão não desagradou a ele. De fato, ele parecia bastante satisfeito. — Porque o amo, não me casarei com você.

— Não faz sentido.

— Fará se me deixar terminar. Eu o amo, então, se nos casássemos por nada mais além da paixão e de Walin, eu ficaria exposta a mais dores do que poderia suportar. Você teria meu coração, até mesmo minha alma, enquanto eu teria sua paixão até quando ela durasse e seu senso de responsabilidade. Você provavelmente nunca ficou com uma mulher por tanto tempo quanto comigo, e duvido que tenha sido fiel a alguma. O desejo que sente por mim ainda é forte, mas o que acontecerá quando acabar? Como acha que vou ficar quando você me deixar de lado e for procurar outras mulheres para satisfazer suas necessidades?

Tormand olhou para ela, sentada, com as mãos lhe cobrindo o rosto. Naquele momento, tudo o que ele podia pensar era em que ela o amava. Então, o choro que ouviu o acordou do encanto daquelas palavras. Ele se sentou ao lado de Morainn e, ignorando o quanto ela estava tensa, abraçou-a e beijou-a no topo da cabeça.

— Tudo o que disse é verdade — murmurou, calmamente. — Vi muitos casamentos como os que descreveu. Mas posso lhe garantir que está enganada a meu respeito.

— Tormand... — ela começou a protestar.

— Não, agora é você quem vai me ouvir. Esqueceu-se apenas de um detalhe. Eu também te amo. Por isso, vou me casar com você.

Ele sorriu quando ela levantou a cabeça para olhá-lo. Mesmo com os lindos olhos molhados e o nariz vermelho pelo choro, ela lhe pareceu a mulher mais adorável que já tinha visto. Também parecia atordoada, uma reação apropriada às palavras que ele nunca havia dito a outra mulher.

— Você me ama? Tem certeza? Tormand a tocou de leve nos lábios.

— Sim, tenho.

— Ah, então, vou me casar com você.

— Fico feliz que tenha recuperado o juízo.

Antes que ela pudesse fazer qualquer comentário, ele a beijou. Morainn foi rapidamente envolvida pelo desejo que o beijo de Tormand lhe despertava. Ela mal notou quando ele a pegou no colo e rumou para a cabana. Na sua mente, só havia aquelas três palavras que faziam com que o mundo inteiro esti­vesse certo. Só recobrou os sentidos quando estava na cama, nua, vendo-o se livrar com rapidez das próprias roupas.

— Para onde mandou Walin? — perguntou, acomodando Tormand em seus braços.

— Ele estará em minha casa até que eu volte como um homem comprometido. E agora é hora de comemorarmos nosso noivado.

A risada de Morainn acabou se transformando em um beijo, que provou ser apenas o início daquele sensual ataque. Ele a acariciou e a beijou em todo o corpo, fazendo-a sentir-se bonita e adorada como nunca. Morainn não ficou envergonhada com as iniciativas de Tormand, e sim se entregou a ele por inteira. As juras de amor trocadas derrubaram as últi­mas barreiras da timidez que a limitava entre quatro paredes. E a liberdade que agora sentia para expressar completamente sua paixão por ele apenas aumentava seu desejo.

Enquanto ele se preparava para se unir a ela, Morainn o empurrou para o lado e retribuiu tudo o que ele havia lhe feito. Tormand não escondeu o prazer que sentiu com cada carícia, cada beijo. Ela ficou extremamente satisfeita ao perceber que seu toque era capaz de levá-lo ao delírio.

Ela passeava a língua quente pelo corpo de Tormand, quando, de repente, ele a virou e a deitou de costas.

Lentamente, abriu caminho para penetrá-la tão deva­gar que ela quase gritou de frustração. No momento em que se encontrava bem acomodado dentro dela, ele parou de se mover. Ela o fitou e descobriu como o amor brilhava naqueles olhos lindos, cada um de uma cor. Ele não deixou de fitá-la quando recomeçou a se mover, intensificando cada vez mais as inves­tidas, até que ela notou que os olhos de Tormand ficaram turvos, indicando que ele chegava ao clímax. Quando ela sentiu que o estava alcançando, ele finalmente fechou os olhos. Prendendo as pernas com mais força ao redor da cintura larga, ela se agarrou a ele enquanto experimentavam a mais pura felicidade.

Ainda dentro de Morainn, Tormand buscou forças para mudar de posição, sorrindo quando ela desa­bou sobre ele, completamente satisfeita. Passeou as mãos pelas costas macias, imaginando como teria sobrevivido se ela tivesse dito que não o amava e por isso não se casaria com ele. Agradeceu a Deus por não ter que saber como teria se sentido.

Saciada com o prazer que ele lhe proporcionara e entorpecida de tanto amor, Morainn indagou, com o rosto apoiado sobre o peito másculo.

— Quando você descobriu que me amava?

— Quer saber quando suspeitei ou quando tive certeza?

— Eu nunca suspeitei, sempre soube.

— Você é mulher e as mulheres têm mais certeza quanto a essas coisas. Eu me considerava muito novo para me casar. Pensei muito no assunto. Apesar de ter ficado em celibato por quatro meses...

— Você ficou sem dormir com uma mulher por quatro meses?

— Precisa fazer com que isso pareça o fim do mundo? — Ele suspirou. — Eu disse a mim mesmo que precisava parar de ignorar a voz de meu coração, que me dizia que estava cansado daquele jogo e desapontado comigo mesmo. O que não significava que eu estava pronto para encontrar uma esposa.

— Claro que não.

— Eu tinha muitas razões para me sentir daquela maneira quando olhei pela primeira vez para seus olhos. Percebi que não conseguiria continuar vivendo sem ver seus olhos novamente. Mas, ao mesmo tem­po, eu resistia à idéia de me prender a uma mulher, não queria perder minha liberdade. Eu travava uma verdadeira batalha interna.

— Teimoso.

— Muito. No entanto, quando aqueles bastardos a pegaram, eu soube que a amava. Não, admiti a verdade a mim mesmo. O modo como me senti ao pensar que não conseguiria salvá-la... — Ele respirou fundo e a abraçou com mais força.

— Sofri também. Porém, a minha angústia come­çou antes da sua. Perguntava-me por que havia me deixado envolver por você? Logo eu que dormi tantos anos com uma faca debaixo do travesseiro, sabia correr bem rápido e tinha um gato arisco?

Ele riu.

— E eu pensando que você estava feliz por ter me presenteado com sua inocência. Bem, vou ter que passar por cima de minha vaidade.

— Acho que devemos voltar a sua casa e contar a todos nossa decisão. Tenho o pressentimento de que estão aguardando a novidade.

— Sem dúvida.

Tormand a beijou e então se levantou da cama para pegar suas roupas. Foi quando avistou o pacote que Adam lhe dera e voltou para junto de Morainn. Sem dizer nada, ele lhe entregou o pacote, curioso.

Ela se sentou na cama e pegou o embrulho.

— O que é isso?

— Seu irmão disse que, uma vez que estivéssemos comprometidos, deveríamos abri-lo.

Imaginando se Adam a teria presenteado com um pequeno dote, ela desembrulhou o pacote. Seus olhos se arregalaram enquanto examinava os documentos. Era difícil acreditar no que lia.

— Ele está me dando a cabana e algumas terras.

Tormand pegou os papéis das mãos dela.

— Bem, é um bonito gesto da parte de Adam. — Quase se engasgou ao ler os documentos. — Algumas terras? Por Deus, Morainn, sabe quantos acres vêm com a casa?

— Não exatamente. — Ela tornou a pegar os papéis das mãos de Tormand e leu a mensagem de Adam. — Ele disse que era o dote de sua mãe e que está satisfeito de repassá-lo a mim. — Terminou de ler a mensagem e corou. Era óbvio que Adam também tinha seus dons, como o de prever o futuro. — Ele diz que você poderá passar suas terras aos nossos filhos.

— Filhos? Bem, suponho que tenhamos um ao menos, além de Walin. E, para ser honesto, tenho dinheiro, mas não tenho muitas terras. Se você não se sentir à vontade para aceitar tal presente, não precisamos...

— Não. Vou aceitá-lo porque não seria educado de minha parte devolver um presente e porque acredito que ele tem o suficiente para si e não lhe fará fal­ta caso venha a ter um herdeiro. Mas e sua casa na cidade, Tormand?

— É da minha família, não minha. Temos uma em cada cidade onde a corte passa algum tempo. — Ele a enlaçou pela cintura e a fitou nos olhos, notando que ela parecia um tanto desconfortável. — O que a está incomodando?

— Acho que herdei meu dom do pai de Adam. — Entregou a carta a ele. — Leia a última frase. Tormand ficou pasmo assim que a leu.

— Gêmeos? Daqui a oito meses? — Ele a encarou.

— Você está grávida?

— Não que eu saiba, mas é possível. Então, vamos chamar nosso filho de Adam, como ele pede?

Tormand riu e a deitou de volta na cama.

— Vamos fazer o nosso melhor para que ele esteja certo.

— Homem pecaminoso — ela murmurou.

— Sim, mas todo seu. De hoje em diante, só pecarei com você.

— Fico feliz de ouvir essas palavras, pois eu já estava pensando que você tinha mudado completamente.

— Nunca. Apenas acabei de descobrir que o amor faz o pecado mais excitante — ele sussurrou contra os lábios de Morainn.

— Sim, meu querido, de fato, faz.

Ela o abraçou bem forte enquanto ria. Mais tar­de, diria a ele que a profecia de Adam se encaixava perfeitamente com o sonho que ela tivera. Os gêmeos apenas seriam os primeiros dos oito meninos que viriam. Mas ainda era cedo para deixar Tormand apavorado.

 

 

                                                                                                    Hannah Howell

 

 

 

              Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades