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O PÊNDULO DE FOUCAULT / Umberto Eco
O PÊNDULO DE FOUCAULT / Umberto Eco

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PÊNDULO DE FOUCAULT

Parte I

 

Belbo, Diotallevi e Casaubon são os funcionários responsáveis pela seleção de títulos para uma editora que descobriu um "ramo de ouro": o ocultismo. Por força do trabalho, os três se envolvem com dezenas de autores que se dedicam às ciências ocultas, às sociedades secretas e a conspirações cósmicas e que são tratados por eles como "os diabólicos". Insatisfeitos com as revelações da cabala, da numerologia, dos ritos druídicos, do candomblé, das seitas esotéricas, dos Iluminados da Baviera, dos Templários, dos Rosa-cruzes e outros "diabólicos", ou movidos apenas pela necessidade de diversão. Casaubon, Diotallevi e Belbo resolvem inventar, levianamente, sem qualquer senso de responsabilidade, um Plano. Mas alguém - que sabe que os números, as formas, o fogo, a água, as letras, os túneis, o tempo e, enfim, tudo significa e traz em si uma mensagem oculta, só acessível aos iniciados - os leva a sério.

Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa e de vasta obra ensaística, sabe como ninguém desfilar erudição com humor.

Neste O Pêndulo de Foucault, ele mescla amor, paixão, satanismo, salvação e planos místicos para compor uma obra absorvente.

 

KETER

Foi então que vi o Pêndulo.

A esfera, móvel na extremidade de um longo fio fixado à abóbada do coro, descrevia suas amplas oscilações em isócrona majestade.

Eu sabia - mas quem quer que o tivesse advertido no encanto daquele plácido respirar - que o período era regulado pela correlação entre a raiz quadrada do comprimento do fio e a do número PI, o qual, embora irracional para as mentes sublunares, relaciona, por alguma razão divina, a circunferência ao diâmetro de todos os círculos possíveis - de modo que o oscilar de uma esfera de um pólo a outro decorre de uma arcana conspiração entre a mais intemporal das medidas, a unidade do ponto de suspensão, a dualidade de uma dimensão abstrata, a natureza terciária do PI, o tetrágono secreto da raiz e a perfeição do círculo.

Sabia também que na vertical do ponto de suspensão, na base, um dispositivo magnético, transmitindo sua atração a um cilindro oculto no cerne da esfera, garantia a permanência do movimento, artifício disposto para contrabalançar as resistências da matéria, mas que não se opunha às leis do Pêndulo, antes lhes permitia manifestarem-se, porque no vácuo qualquer ponto material pesado, suspenso da extremidade de um fio inextensível e sem peso, que não sofresse a resistência do ar nem o atrito com seu ponto de apoio, teria oscilado de modo regular por toda a eternidade.

A esfera de cobre emitia pálidos reflexos cambiantes sob a incidência dos últimos raios de sol que penetravam pelos vitrais. Se, como outrora, sua ponta estivesse roçando uma camada de areia úmida espalhada sobre o pavimento do coro, teria desenhado a cada oscilação um leve sulco no solo, e o sulco, mudando infinitesimalmente de direção a cada instante, ter-se-ia alargado sempre em forma de brecha, de vala, deixando adivinhar uma simetria radiada - como um esqueleto de mandala, a estrutura invisível de um pentáculo, de uma estela, de uma rosa mística. Não melhor talvez a peripécia, registrada na extensão do deserto, dos traços que deixaram caravanas infinitas e erráticas. Uma história de lentas e milenares migrações, talvez da mesma forma como se deslocaram os atlântidas do continente Mu, numa peregrinação obstinada e possessiva, da Tasmânia à Groenlândia, do Capricórnio ao Câncer, da Ilha do Príncipe Eduardo ao Svalbard. A ponta repetia, narrava novamente num tempo bastante compacto, o que eles haviam feito entre uma e outra glaciação, ou que talvez ainda fizessem, agora mensageiros dos Senhores - quem sabe no percurso entre Samoa e Zemlia, a ponta, na sua posição de equilíbrio, aflorasse Agarttha, o Centro do Mundo. E intuí que um plano único unia Avalon, a hiperbórea, ao deserto austral que abriga o enigma de Ayers Rock.

Naquele momento, às quatro da tarde de 23 de junho, o Pêndulo amortecia a própria velocidade numa extremidade do plano de oscilação, para recair indolente em direção ao centro, readquirir velocidade a meio do percurso e desferir seus golpes de sabre confidentes no quadrado oculto das forças que o destino lhe apontava.

Se eu permanecesse muito tempo, resistente ao passar das horas, a fixar aquela cabeça de pássaro, aquele ápice de lança, aquele elmo emborcado, enquanto desenhava no vazio as suas diagonais, aflorando os pontos opostos de sua astigmática circunferência, teria sido vítima de uma ilusão fabulatória, pois o Pêndulo me levaria a crer que o plano de oscilação teria realizado uma rotação completa, tornando ao ponto de partida, em trinta e duas horas, descrevendo uma elipse achatada - elipse que girasse em torno de seu próprio centro com uma velocidade angular uniforme, proporcional ao seno da latitude. Como teria girado se o ponto fosse fixado ao alto da cúpula do Templo de Salomão? Talvez os Cavaleiros tivessem experimentado também lá. Talvez o cálculo, o significado final, não houvesse modificado. Talvez a igreja abacial de Saint-Martin-des-ChamPS fosse o verdadeiro Templo. Contudo, a experiência só teria sido perfeita no Pólo, único lugar em que o ponto de suspensão incide sobre o prolongamento do eixo de rotação da Terra, no qual o Pêndulo realizaria seu círculo aparente em vinte e quatro horas.

Mas não era este desvio da Lei, que de resto a própria Lei previa, não era esta violação da medida áurea que tornava menos admirável o prodígio. Eu sabia que a Terra estava rodando, e eu com ela, e Saint-Martin-des-Champs e Paris inteira comigo, e juntos rodávamos sob o Pêndulo que na realidade não mudava jamais a direção do próprio plano, porque lá em cima, de onde pendia, e ao longo do infinito prolongamento ideal do fio, para o alto em direção às mais remotas galáxias estava, imóvel por toda a eternidade, o Ponto Fixo.

A Terra girava, mas o lugar onde o fio estava ancorado era o único ponto fixo do universo.

Por isso, não era propriamente à Terra que o meu olhar se dirigia, mas ao alto, lá onde se celebrava o mistério da imobilidade absoluta. O Pêndulo dizia-me que, embora tudo se movesse, o globo, o sistema solar, as nebulosas, os buracos negros e todos os filhos da grande emanação cósmica, desde os éons primitivos à matéria mais viscosa, um único ponto permanecia, eixo, cavilha, engate ideal, deixando que o universo se movesse em torno dele. E eu participava agora daquela experiência suprema, eu que embora me movesse com tudo e com o todo, eu podia ver o Quid, o Não-Movente, a Rocha, a Garantia, a caligem luminosíssima que não é corpo, não tem figura forma peso quantidade ou qualidade, e não vê, não sente, não é apreendido pela sensibilidade, não é um lugar, nem um tempo ou um espaço, não é alma, inteligência, imaginação, opinião, número, ordem, medida, substância, eternidade, não é treva nem luz, não é erro nem verdade.

Sacudiu-me um diálogo, preciso e desenvolvido, entre um rapaz de óculos e uma jovem que infelizmente não os tinha.

"E o pêndulo de Foucault", dizia o moço, "Foi primeiro experimentado numa cave em 1851, depois no Observatoire, e em seguida sob a cúpula do Panthéon, com um fio de sessenta e sete metros e uma esfera de vinte e oito quilos. Finalmente, desde 1855 está aqui, em formato reduzido, e pende daquele furo, na travessa da abóbada."

"E para que serve, só para ficar balançando"?

"Serve para demonstrar a rotação da Terra. Se considerarmos que o ponto de suspensão permanece fixo...”

"Mas por que permanece fixo?"

"Porque um ponto..., como direi..., no seu ponto central, quer dizer todo ponto que esteja no meio dos pontos que você vê, bem, aquele ponto - o ponto geométrico - você não vê, não tem dimensão, e portanto não tendo dimensão não pode mover-se nem à esquerda nem à direita, nem para baixo nem para cima. Conseqüentemente, não gira. Entendeu? Se um ponto não tem dimensão, não pode sequer girar em torno de si mesmo. Nem mesmo este si mesmo existe...”

"Nem com a Terra girando?"

"A Terra gira, mas o ponto não. Se lhe agrada, é assim, se não, dane-se. Está bem?"

"Problema dele."

Miserável. Tinha sobre a cabeça o único lugar estável do cosmo, o único ponto resgatado da danação do ponta rei, e pensava que fosse problema Dele, e não dela. Mas logo em seguida o casal se afastou - ele, tendo estudado nesses manuais que lhe obnubilaram as possibilidades de maravilhar-se, ela inerte, inacessível ao arrepio do infinito, ambos sem terem registrado na memória a experiência terrificante daquele seu encontro - primeiro e último - com o Uno, o En-sof, o indizível. Como não cair de joelhos diante do altar daquela certeza?

Quanto a mim, fitava-o com reverência e espanto. Naquele momento, estava convencido de que Jacopo Belbo tinha razão. Quando me falava do Pêndulo, eu atribuía sua emoção a um devaneio estético, àquele câncer que estava tomando forma, informe, em sua alma, transformando, passo a passo, sem que ele se desse conta, o seu jogo em realidade. Mas se tinha razão quanto ao Pêndulo, talvez fosse verdade todo o resto, o Plano, a Conspiração Universal, e era justo que tivesse vindo ali na vigília do solstício de verão. Jacopo Belbo não era louco, simplesmente havia descoberto por jogo, através do Jogo, a suma verdade.

É que a experiência do Numinoso não pode durar muito tempo sem transtornar a mente.

Procurei então distrair o olhar, seguindo a curva que, dos capitéis das colunas dispostas em semicírculo, apontava ao longo das nervuras da abóbada em direção à chave, repetindo o mistério da ogiva, que se sustém sobre uma ausência, suprema hipocrisia estática, e faz parecer às colunas que elas erguem para o alto os espigões, e a estes, rechaçados pela chave, que fixam as colunas à terra, sendo por sua vez a abóbada um todo e um nada, efeito e causa ao mesmo tempo. Mas me dei conta de que negligenciar o Pêndulo, pendente da abóbada, e admirar a abóbada, era o mesmo que abster-se de beber no manancial para inebriar-se na fonte.

O coro da igreja de Saint-Martin-des-Champs só existia para que pudesse existir, por virtude da Lei, o Pêndulo, e este existia para que existisse aquele. Não se pode fugir a um infinito, disse comigo, fugindo em direção a outro infinito; não se foge da revelação do idêntico, na ilusão de que se pode encontrar o diverso.

Sempre sem poder desviar os olhos da chave da abóbada retrocedi, passo a passo - pois que em poucos minutos, tão logo entrei, tinha gravado o percurso na memória, e as grandes tartarugas de metal apostadas de um e outro lado eram imponentes bastante para assinalar sua presença pelo canto do olho. Recuei ao longo da nave, em direção da porta principal, e novamente senti sobre minha cabeça aqueles ameaçadores pássaros pré-históricos de tecido esfrangalhado e fios metálicos, aquelas libélulas malignas que uma vontade oculta havia feito pender do teto da nave. Eu os tomava por metáforas sapienciais, bem mais significantes e alusivas do que o pretexto didascálico fingia querer que fossem. Vôos de insetos e répteis jurássicos, alegoria das longas migrações que o Pêndulo em terra estava reencetando, arcontes, emanações perversas, eis que mergulhavam contra mim com seus compridos bicos de arqueoptérix - o aeroplano de Breguet, o de Bleriot, o de Esnault e o helicóptero de Dufaux.

É dessa forma na verdade que se entra no Conservatoire des Arts et Métiers, em Paris, depois de se haver passado por um pátio setecentista, e avançando pela velha igreja abacial, engastada no complexo mais tardio, tal como foi outrora engastada no priorato de origem. Ao entrarmos, somos ofuscados por essa conspiração que congrega o universo superior das ogivas celestes e o mundo octânico dos devoradores de óleos minerais.

Espalhados pelo chão, um cortejo de veículos automóveis, bicicletas e carroças a vapor; no alto ameaçam as máquinas aéreas dos pioneiros da aviação, e em alguns casos os objetos expostos são os originais, embora descascados ou corroídos pelo tempo, e ali todos juntos aparecem, na luz ambígua em parte natural e em parte elétrica, como cobertos por uma pátina, por um verniz de violino antigo; vez por outra surgem esqueletos, chassis, desarticulações de bielas e manículas que ameaçam inenarráveis torturas, e te pões a imaginar-te atado a essas camas de suplício donde pode surgir de repente alguma coisa que te embarafuste pela carne e te leve à confissão fatal.

E para além dessa seqüência de antigos objetos móveis, agora imóveis, de alma enferrujada, puros signos de um orgulho tecnológico que os quiseram expostos à reverência do público, velado à esquerda por uma estátua da Liberdade, modelo reduzido daquela que Bartholdi havia projetado para um outro mundo, e à direita por uma estátua de Pascal, abre-se o coro, onde, fazendo coroa às oscilações do Pêndulo, encontra-se o pesadelo de um entomólogo enfermo - quelas, mandíbulas, antenas, proglótides, asas, patas -, um cemitério de cadáveres mecânicos que poderiam voltar a funcionar todos ao mesmo tempo - magnetos, transformadores monofásicos, turbinas, grupos conversores, máquinas a vapor, dínamos - e, ao fundo, além do Pêndulo, no ambulacro, ídolos assírios, caldeus, cartagineses, grandes Baals de ventres outrora incandescentes, virgens de Nurembergue com seus corações hirtos de cravos postos a nu, aquilo que no passado foram motores de avião - indizível coroa de simulacros que jazem em adoração ao Pêndulo, como se os filhos da Razão e das Luzes tivessem sido condenados a custodiar pela eternidade o próprio símbolo da Tradição e da Sabedoria.

E os turistas enfadados, que pagam seus nove francos na caixa e entram de graça nos domingos, poderão acaso pensar que os velhos senhores do século XIX com a barba amarelecida pela nicotina, o colete amarrotado e sebento, a gravata negra e desbotada, a sobrecasaca cheirando a rapé, os dedos escurecidos pelos ácidos, a mente azedada pelas invejas acadêmicas, fantasmas de vaudeville que se chamavam reciprocamente de cher maitre, haviam colocado tais objetos sob aquela abóbada por uma virtuosa vontade expositiva, para satisfação do contribuinte burguês e radical, para celebrar os magníficos feitos do progresso? Não, de modo algum; desde o princípio como priorado e em seguida como museu revolucionário, Saint-Martin-des-Champs tinha sido concebida como silogeu das ciências ocultas, e todos aqueles aeroplanos, aquelas máquinas automotrizes, aqueles esqueletos eletromagnéticos estavam ali a entreter um diálogo cuja fórmula ainda me escapava.

Deveria crer, como me propunha hipocritamente o catálogo da exposição, que a bela empresa fora idealizada pelos senhores da Convenção para tornar acessível à massa um santuário de todas as artes e ofícios, quando me era assaz evidente que o projeto, as próprias palavras usadas, eram as mesmas com que Francis Bacon descrevera a Casa de Salomão em sua Nova Atlântida?

Seria possível que apenas eu - eu e Jacopo Belbo, e Diotallevi houvéssemos intuído a verdade? Naquela noite talvez obtivesse a resposta. Aconteceu que havia conseguido permanecer no museu além da hora de encerramento, e aguardava agora o soar da meia-noite.

Por onde Eles haveriam de entrar era algo que ainda não sabia - suspeitava que ao longo da rede de esgotos de Paris um conduto qualquer ligasse um ponto do museu a outro ponto da cidade, provavelmente próximo à Porte-St.-Denis - mas sabia com certeza que, se tivesse saído do museu, não haveria de conseguir entrar por aquela parte. Por isso, devia esconder-me e permanecer lá dentro.

Procurei fugir ao fascínio do lugar e tratei de observar a nave com olhos frios. Naquele instante, não buscava uma revelação, mas sim uma informação. Imaginava que nas outras salas seria difícil encontrar um canto onde pudesse fugir ao controle dos vigias (é seu dever, na hora de fechar, percorrer as salas para verificar se algum ladrão não se oculta em algum canto), mas aqui na nave, atulhada de veículos, poderia haver melhor sítio para um passageiro ocultar-se em algum lugar? Esconder-se, vivo, num veículo morto. Já havíamos feito tantos ardis, que não custava nada tentar mais este.

Coragem, ânimo, disse para mim, não pensemos mais na Sapiência: pede à Ciência que te ajude.

 

Temos diversos e curiosos Relógios, e outros que desenvolvem Movimentos Alternativos... E temos também Casas de Ludibriar os Sentidos, com as quais realizamos toda espécie de Manipulações, Falsas Aparições, Ilusões e Imposturas... Tais são, meu filho, as riquezas da Casa de Salomão.

(Francis Bacon, New Atlantis, ed. Rawley. London, 627, pp. 41-42.)

 

Tinha readquirido o controle dos nervos e da imaginação. Devia jogar com ironia, como havia feito poucos dias antes, sem me deixar comprometer. Estava num museu e precisava ser dramaticamente astuto e lúcido.

Olhei confiante para os aviões que pairavam sobre mim: poderia embarafustar-me na carlinga de um biplano e esperar a noite como se estivesse sobrevoando a Mancha, pregustando a Legião de Honra. Os nomes dos automóveis ao meu redor soavam-me afetuosamente nostálgicos... Hispano Suíça 1932, belo e acolhedor. Mas era de evitar-se porque estava próximo demais da caixa, conquanto pudesse enganar o bilheteiro se me apresentasse knickerbocker. Cedendo passagem a uma senhora de tailleur creme, com longa echarpe em volta do pescoço filiforme e um chapeuzinho à cloche cobrindo os seus cabelos de corte à la garçonne. O Citroën C 64 de 1931 era exposto apenas em corte vertical, belo modelo escolástico mas esconderijo irrisório. Nem mencionar a máquina a vapor de Cugnot, enorme, só caldeira, ou marmita que seja. Era preciso observar à direita, onde estavam junto à parede os velocípedes de grandes rodas florais, as draisiennes de quadro chato, as patinetes, que evocavam cavalheiros de cartola a espernear pelo Bois de Boulogne, como verdadeiros arautos do progresso.

Em frente aos velocípedes, havia boas carrocerias, apetitosos receptáculos. Talvez não a Panhard Dynavia de 1945, transparente demais e exígua no seu torneado aerodinâmico, mas era de se considerar a alta Peugeot 1906, uma mansarda, uma alcova. Uma vez lá dentro, afundado nos assentos de couro, ninguém poderia suspeitar minha presença. O difícil era entrar nela, pois um dos guardiães estava sentado a um banco bem à sua frente, de costas voltadas para as bicicletas. Subiria no estribo, um tanto empachado pelo sobretudo de gola de pelúcia, enquanto ele, de botas de cano longo, boné de viseira à mão, me abriria obsequioso a portinhola...

Concentrei-me por um átimo na Obéissante, 1873, o primeiro veículo francês de tração mecânica, para doze passageiros. Se a Peugeot era um apartamento, este era um palácio. Mas longe de pensar que se poderia entrar nele sem chamar a atenção de todo mundo. Como é difícil esconder-se quando os esconderijos são os Quadros de uma exposição.

Voltei a atravessar a sala: a estátua da Liberdade erguia-se, "éclairant le monde", sobre uma peanha de quase dois metros, concebida como uma proa com remate afilado. Ocultava em seu interior uma espécie de guarita, dentro da qual se podia ver em frente, através de uma vigia de proa, um diorama da baia de New York. Bom ponto de observação para quando chegasse a meia-noite, pois que se poderia dominar na escuridão o coro à esquerda e a nave à direita, a retaguarda protegida por uma grande estátua de pedra de Gramme, com a face voltada para os outros corredores, colocada como estava numa espécie de transepto. Mas em plena luz podia-se perceber perfeitamente se a guarita estava ou não vazia, e qualquer guardião normal decerto daria uma olhadela ali, por desencargo de consciência, depois de evacuar os visitantes.

Não dispunha de muito tempo; às cinco e meia iriam fechar. Apressei-me em recorrer o ambulacro. Nenhum dos motores poderia prover esconderijo. Tampouco, à direita, os grandes aparelhos de armação de navios, relíquias de algum Lusitânia engolido pelas águas, nem o imenso motor a gás de Lenoir, com sua variedade de rodas dentadas. Não, ainda mais agora, que a luz amortecia e penetrava de modo aquóreo pelos cinzentos vitrais e eu me sentia novamente presa do medo de esconder-me entre esses monstros e ter de enfrentá-los logo mais no escuro, à luz de minha lanterna elétrica, renascidos nas trevas, a ansiar por uma grave respiração telúrica, ossos e vísceras já sem pele, estralejantes e fétidos de uma baba oleosa. Naquela mostra, que eu começava a achar imunda, de genitais Diesel e vaginas em turbina, gargantas inorgânicas que outrora arrotavam - e que talvez viessem esta noite novamente a arrotar - chamas, vapores, sibilos, ou então voltear indolentes como pandorgas, zunindo como cigarras, entre aquelas manifestações esqueléticas de uma pura funcionalidade abstrata, autômatos capazes de descascar, segar, remover, partir, cortar em fatias, acelerar, ir de encontro, engolir estilhaços, soluçar em cilindros, desarticular-se como marionetes sinistras, fazer tambores rodar, converter freqüências, transformar energias, rodar volantes - como teria podido sobreviver? Haveriam de enfrentar-me, instigados pelos Senhores do Mundo, que as utilizaram para falar dos erros da criação, dispositivos inúteis, ídolos dos patrões do baixo universo - como poderia resistir sem vacilar?

Eu devia ir-me embora, ir embora, era tudo uma loucura, estava caindo no jogo que fizera Jacopo Belbo perder o juízo, também eu, o homem incrédulo...

Não sei se fiz bem em permanecer ali aquela noite. Se não, hoje saberia apenas o início, mas não o fim da história. Ou melhor, não estaria aqui, isolado nesta colina, enquanto os cães ladram ao longe, lá embaixo no vale, a perguntar-me se meu fim havia deveras chegado ou se ainda estava por vir.

Decidi prosseguir. Saí da igreja dobrando à esquerda junto à estátua de Gramme e entrando por uma galeria. Estava na seção de ferrovias, e as miniaturas de locomotivas e vagões me pareceram tranqüilos brinquedos, trechos de uma Bengodi, de uma Madurodam, de uma Disneylândia em tamanho reduzido... Agora já estava me habituando àquela alternância de angústia e confiança, terror e desencanto (não se trata de fato de um início de doença?) e pensei que as visões da igreja me haviam perturbado porque chegara a elas seduzido pelas páginas de Jacopo Belbo, que as decifrara à custa de tantos volteios enigmáticos - e que no entanto sabia fictícios. Estava num museu da técnica, dizia para mim, estás num museu da técnica, uma coisa honesta, talvez um pouco obtusa, mas num reino de mortos inofensivos, sabe como são os museus, ninguém jamais foi devorado pela Gioconda - monstro andrógino, Medusa só para estetas - e muito menos serás devorado pela máquina de Watt, que só podia espaventar os aristocratas ossiânicos e neogóticos, e por isso surge assim tão pateticamente comprometedora, toda funções e elegâncias coríntias, manivela e capitel, caldeira e coluna, roda e tímpano. Jacopo Belbo, embora distante, estava procurando arrastar-me na trampa alucinatória que o havia perdido. É preciso, eu me dizia, comportar-se como um cientista. Porventura o vulcanólogo se queima como Empédocles? Frazer fugiria perseguido no bosque de Nemi? Ora, tu és o Sam Spade, não é mesmo? Deves explorar apenas os bas-fonds, é mister. A mulher que te conquistou deve morrer antes do fim, possivelmente pela tua mão. Adeus, Emily, tudo foi bom, mas eras um autômato sem entranhas.

Ocorre porém que a galeria dos transportes vai desembocar no átrio de Lavoisier, fronteiro à grande escadaria que leva aos pisos superiores.

Aquele conjunto de redomas, aquela espécie de altar alquímico ao centro, aquela liturgia de civilizada macumba setecentista, não eram resultantes de uma disposição casual, mas antes um estratagema simbólico.

Em primeiro lugar, a abundância de espelhos. Se há espelho, é estágio humano quereres ver-te nele. Mas nestes não te vês. Tu te procuras, buscas tua posição no espaço na qual o espelho te diga "estás aqui, e és tu mesmo", e acabas te danando todo, te aborrecendo, porque os espelhos de Lavoisier, sejam côncavos ou convexos, te desiludem, escarnecem de ti: arredando-te, tu te encontras, mas depois te deslocas e te perdes. Aquele teatro catóptrico fora disposto para tolher-te toda identidade e fazer com que te sintas inseguro de teu lugar. Como se te dissesse: não és o Pêndulo nem estás no lugar do Pêndulo. E te sentes não apenas inseguro de ti mas igualmente dos objetos colocados entre ti e outro espelho. É verdade que a física sabe o que é e por que isso ocorre: basta colocar um espelho côncavo que recolha os raios emanados do objeto - neste caso um alambique sobre uma panela de cobre - e o espelho reenviará os raios incidentes de modo que não vejas o objeto, bem delineado, dentro do espelho, mas tenhas dele uma intuição fantomática, evanescente, a meio-termo, e invertido, fora do espelho. Naturalmente bastará que te movas um pouco para que o efeito desvaneça.

Mas, de repente, me vi, invertido noutro espelho.

Insustentável.

Que pretendia dizer Lavoisier, que buscariam sugerir os registrosdo Conservatoire? Desde a Idade Média árabe, desde Al-Hazen, que conhecemos todas as magias dos espelhos. Valia a pena fazer a Enciclopédia, e o Século das Luzes, e a Revolução, só para afirmar que basta fletir a superfície de um espelho para se precipitar no imaginário? E no caso do espelho normal, não será igualmente ilusório este outro que te olha de dentro, condenado a um mancinismo perpétuo todas as manhãs quando te barbeias? Valeria a pena dizer-te apenas isto, nesta sala, ou não o teria dito para sugerir-te que observes de maneira distinta todo o resto - as vitrinas, os instrumentos que simulam celebrar os primórdios da física e da química iluminista?

Máscara de couro para proteção do rosto nas experiências de calcinação. Mas, de fato? Será mesmo que o senhor dos círios se enfiava naquela fantasia de rato de cloaca, naquele capacete de invasor ultraterreno, apenas para não irritar os olhos? Oh, how delicate, doctor Lavoisier. Se queria estudar a teoria cinética dos gases, para que haveria de reconstituir tão minuciosamente a pequena eolípila, um canudinho sobre uma esfera que, aquecida, roda vomitando vapor, quando a primitiva eolipila foi construída por Héron de Alexandria, no tempo da Gnose, como subsídio para as estátuas falantes e outros prodigios dos sacerdotes egípcios?

E que era aquele aparelho para estudar a fermentação pútrida, de 1781, bela alusão aos putrefactos bastardos do Demiurgo? Uma seqüência de tubos vítreos que saindo de um útero em forma de bola passam por esferas e condutos, sustentados por forquilhas, para dentro de duas ampolas, e transmitem uma essência qualquer de uma para outra através de serpentinas que desembocam no vácuo... Fermentação pútrida? Balneum Mariae, sublimação do hidrargírio, mysterium conjunctionis, produção do Elixir!

E a máquina para estudar a fermentação (de novo) do vinho? Um conjunto de arcos de cristal, que vai de atanor a atanor, saindo de um alambique para terminar em outro? E aqueles óculos minúsculos, a diminuta clepsidra e o reduzido eletroscópio, a lente, o bisturi de laboratório que lembra um dos caracteres cuneiformes, a espátula com alavanca de expulsão, a lâmina de vidro, o cadinho de terra refratária de três centímetros para produzir um homúnculo do tamanho de um gnomo, útero infinitesimal para clonações, os estojos de acaju cheios de pacotinhos brancos, iguais aos papelotes dos boticários do interior, envoltos em pergaminhos vincados de caracteres intraduzíveis, como espécimens mineralógicos (assim se diz), mas na verdade fragmentos da Síndrome de Basilides, relicários com o prepúcio de Hermes Trismegisto, e o martelo de tapeceiro comprido e fino para bater o início de um hrevíssimo dia de juízo, uma hasta de quintessências a realizar-se entre o Pequeno Povo dos Elfos de Avalon, o inefável e miniatural aparelho para analisar a combustão dos óleos, os glóbulos de vidro dispostos em pétalas de quadrifólios, e outros quadrifólios coligados uns aos outros por tubos de ouro, e os quadrifólios a outros tubos de cristal, e estes a um cilindro de cobre, e ainda - a prumo embaixo - um outro cilindro de ouro e vidro, e mais tubos, descendentes, apêndices pênseis, testículos, glândulas, excrescências, cristas... É esta a química moderna? E por causa disto acontecia guilhotinarem o autor, quando se sabe que nada se cria e tudo se transforma? Ou o matavam para fazê-lo calar sobre aquilo que fingia revelar, como Newton, que estendeu-nos tantas asas, mas que continuava a meditar sobre a Cabala e as essências qualitativas?

A sala Lavoisier do Conservatoire é uma confissão, uma mensagem cifrada, um epitome do próprio conservatório, irrisão do orgulho do forte pensamento da razão moderna, sussurro de outros mistérios. Jacopo Belbo tinha razão, a Razão estava errada.

Devia apressar-me, iminente a hora. Lá estavam o metro, o quilo, as medidas, falsas garantias de garantia. Eu aprendera com Aglié que o segredo das Pirâmides é revelado não pelos cálculos em metros, mas pelos cúbitos antigos. Eis as máquinas aritméticas, triunfo fictício do quantitativo, na verdade promessa das qualidades ocultas dos números, retorno à origem do Notarikon dos rabinos em fuga pelas landes da Europa. Astronomia, relógios, autômatos, gritos e sussurros a entreter-me em meio àquelas novas revelações. Prestes estaria penetrando no cerne de uma mensagem secreta em forma de Theatrum racionalista, exploraria depois, entre a hora de fechar e a meia-noite, aqueles objetos que à luz oblíqua do ocaso assumiriam seu verdadeiro vulto, figuras, e não instrumentos.

Em cima, atravessando as salas dos ofícios, da energia, da eletricidade, não encontrei vitrina em que pudesse esconder-me. Agora que pouco a pouco ia descobrindo ou intuindo o sentido daquelas seqüências, vi-me tomado de ânsia por não haver tempo para encontrar um esconderijo de onde pudesse presenciar a revelação noturna de sua razão secreta. Movia-me agora como um homem perseguido - pelo relógio e pelo avanço hórrido do número. A terra girava inexorável, a hora chegava, em breve estariam à minha procura.

Foi aí que, atravessando a galeria de instrumentos elétricos, Cheguei à saleta dos vidros. Que razão ilógica havia disposto para que houvesse, além dos aparelhos mais avançados e custosos do engenho moderno, uma zona reservada a práticas conhecidas pelos fenicios, milênios atrás? Era uma sala de coleções, onde se alternavam as porcelanas chinesas e os vasos andróginos de Lalique, cerâmica, maiólicas, faianças e muranos, e ao fundo, num escrínio enorme, em tamanho natural e a três dimensões, um leão que esmaga uma serpente. A razão aparente daquela presença era que o grupo figurava inteiramente realizado em pasta de vidro, porém sua razão emblemática devia ser bem outra... Procurava lembrar-me onde já havia contemplado aquela imagem. Logo recordei. O Demiurgo, odioso produto da Sophia, o primeiro arconte, Ildabaoth, responsável pelo mundo e sua radical imperfeição, tinha a forma de uma serpente e um leão, e seus olhos emitiam luz de fogo. Era bem possível que o Conservatoire inteiro fosse uma imagem do processo infame pelo qual, da plenitude do princípio primitivo, o Pêndulo, e do fulgor do Pleroma, de éon em éon, o Ogdóade se desprende e alcança o reino cósmico, onde reina o Mal. Mas agora aquela serpente, e aquele leão, me estavam dizendo que minha viagem iniciática - pobre de mim, à rebours - havia então terminado, e dentro em pouco eu iria rever o mundo, não como devesse ser, mas como de fato é.

Com efeito, notei que no ângulo direito, contra uma janela, estava a guarita do Periscópio. Entrei. Achei-me diante de uma lâmina de vidro, como uma prancha de comando, sobre a qual via moverem-se imagens de um filme, bastante desfocadas - a seção longitudinal de uma cidade. Logo ocorreu-me que a imagem era a projeção de outra tela, posta sobre a minha cabeça, onde aparecia invertida, e que esta segunda tela era a ocular de um periscópio primitivo, feito por assim dizer com dois caixotes engastados em ângulo obtuso, sendo que o mais longo protendia à maneira de tubo para o exterior da guarita, bem em cima de minha cabeça, apontando para as minhas costas, alcançando uma janela superior, da qual, certamente em virtude de um jogo interno de lentes que lhe permitia um grande ângulo de visão, captava as imagens externas. Calculando o percurso que havia feito ao subir, compreendi que o periscópio me permitia observar o exterior como se estivesse olhando a partir dos vitrais superiores da abside de Saint-Martin - como se olhasse suspenso do Pêndulo, a última visão de um enforcado. Adaptei melhor a pupila àquela imagem fosca: podia agora distinguir a rue Vaucanson, sobre a qual dava o coro, e a rue Conté, que perlongava idealmente a nave. A rue Conté desemboca na rue Mont-golfier à esquerda e a rue de Turbigo à direita, com um bar em cada ângulo, o Week End e La Rotonde, havendo defronte uma fachada onde sobressaía um letreiro, que decifrei com dificuldade, LES CREATIONS JACSAM. O periscópio. Não me pareceu óbvio que estivesse colocado na sala das vidrarias, pois lhe assentava melhor que figurasse em meio aos instrumentos ópticos, sinal de que era importante que a prospecção do exterior fosse apreciada naquele sítio, embora ainda não atinasse com a razão da escolha. Por que este cubículo, positivístico e verniano, junto ao chamariz emblemático do leão e da serpente?

Em todo caso, se tivesse força e coragem de permanecer ali ainda por alguns décimos de segundo, talvez o guardião não me pudesse ver.

Permaneci, submarino, por um tempo que pareceu longuíssimo. Ouvia os passos dos retardatários, dos últimos vigias. Fui tentado a anichar-me sob a prancha, para melhor fugir a alguma eventual olhadela ao acaso, mas me contive, pois permanecendo de pé, se alguém me houvesse flagrado, sempre poderia fingir que era um visitante absorto, que ali ficou a inebriar-se do prodígio. Logo depois, as luzes se apagaram e a sala ficou envolta na penumbra, a guarita se tornou menos escura, iluminada tenuemente pela tela que eu continuava a fitar como se representasse meu último contato com o mundo.

A prudência pedia que eu permanecesse de pé, ou agachado, se os pés me doessem, pelo menos duas horas. A hora de encerramento para os visitantes não coincide com a de saída dos empregados. Surpreendeu-me o medo da limpeza: e se agora começassem a limpar todas as salas, palmo a palmo? Depois pensei, já que o museu abria tarde pela manhã, que decerto os serventes prefeririam trabalhar à luz do dia e não de noite. Assim devia ser, pelo menos nas salas superiores, pois não ouvia passar ninguém. Apenas alguns murmúrios distantes, algum rumor seco, talvez de portas que se fechavam. Devia manter-me firme. Teria tempo de alcançar a igreja entre as dez e as onze, ou mesmo mais tarde, pois os Senhores só haveriam de chegar por volta da meia-noite.

Naquele momento um grupo de jovens saía da Rotonde. Uma das moças foi seguindo pela rue Conté e virou para a rue Montgolfier. Não era uma zona muito freqüentada; como haveria de resistir horas a fio contemplando o mundo insípido que tinha às minhas costas? Mas se o periscópio estava ali, não era para enviar-me mensagens de secreta importância? Senti vir-me a necessidade de urinar: precisava não pensar naquilo, considerá-lo um indício nervoso.

Quantas coisas te vêm à mente quando estás sozinho, clandestino, em frente a um periscópio. Deve ser a mesma sensação de quem se esconde no escaler de um navio para emigrar em busca de um país distante. Com efeito, a meta final seria a estátua da Liberdade, com o diorama de New York. Poderia sobrevir-me a sonolência, pois que até fosse um bem. Não, porque talvez pudesse acordar tarde demais...

O mais terrível teria sido uma crise de angústia: quando tens a certeza de que dali a instantes gritarás. Periscópio, submersível, bloqueado no fundo, talvez ao teu redor já naveguem grandes peixes negros dos abismos, e não os vês, e sabes apenas que te falta o ar.

Respirei profundamente várias vezes. Concentração. A única coisa que nestes momentos não te trai é o rol da lavadeira. Voltar ao terra-a-terra, agendar os fatos, individualizar as causas, os efeitos. Cheguei a este ponto por isto, e por um outro motivo a...

Sobrevieram-me lembranças, nítidas, precisas, ordenadas. As lembranças dos frenéticos três últimos dias depois dos dois últimos anos, confundidos com recordações de quarenta anos antes, como as encontrei violentando o cérebro eletrônico de Jacopo Belbo.

Recordo (e recordava), para dar um sentido a desordem de nossa criação desordenada. De novo, como naquela noite no periscópio, me concentro em um ponto remoto da mente para dali arrancar uma história. Como o Pêndulo. Diotallevi já me tinha dito que a primeira sefirah é Keter, a Coroa, origem de tudo, vácuo primordial. Primeiro criou um ponto, que se tornou o Pensamento, onde imprimiu todas as figuras... Era e não era, encerrado no nome e esquecido no nome, não tinha ainda outra designação que "Quid?", puro desejo de ser chamado por um nome... No princípio traçou signos no vento, uma chama escura brotou de seu fundo mais secreto, como uma névoa incolor que desse forma ao informe, e mal esta começou a expandir-se, em seu centro surdiu um manancial flamante que se derramava para iluminar as sefirot inferiores, descendo em direção do Reino.

Mas talvez nesse tsimtsum, neste retiro, nesta solitude, dizia Diotallevi, já houvesse a promessa do tiqqun, a promessa do retorno.

 

HOKMAH

In hanc utilitatem clementes angeli saepe figuras, characteres, formas et voces invenerunt proposueruntque nobis mortalibus et ignotas et stupendas nullius rei iuxta consuetum linguae usum significativas, sed per rationis nostrae summam admirationem in assiduan, intelligibilium pervestigationem, deinde in illorum ipsorum venerationem et amorem inductivas.

(Johannes Reuchlin, De arte cabalistica, Hagenhau, 1517, III)

 

Fora dois dias antes. Aquela quinta-feira eu estava refestelado na cama sem ânimo para levantar. Havia chegado na tarde anterior e telefonara para a editora. Diotallevi continuava no hospital e Gudrun se mostrava pessimista: ele estava na mesma, ou seja, cada vez pior. Eu não ousava ir visitá-lo.

Quanto a Belbo, não estava no escritório. Gudrun me informou que ele havia telefonado dizendo que estaria fora por motivos de família. Que família? O fato estranho é que havia levado consigo o Word processor - Abulafia, como agora o chamava - juntamente com a impressora. Gudrun disse-me que ele os havia levado para casa a fim de terminar um trabalho. Para que tanto empenho? Não podia trabalhar no escritório?

Senti-me deslocado. Lia e o menino só voltariam na semana seguinte. Na noite anterior, dei uma passada no Pílades, mas não encontrei ninguém.

Fui despertado pelo telefone. Era Belbo, com voz alterada e distante.

"Então? De onde está telefonando? Achei que tinha ido visitar seus parentes nos cafundós-do-judas."

"Não brinque, Casaubon, o assunto é sério. Estou em Paris."

"Em Paris? Mas eu é que devo ir a Paris! Sou eu que devo visitar o Conservatoire!"

“Não brinque, estou dizendo. Estou numa cabina..., ou, melhor, num bar, de modo que não posso falar por muito tempo...”.

"Se você não tem moedas, peça uma ligação a cobrar. Estou em casa e posso esperar."

"Não se trata de moedas. Estou em apuros." Começava a falar às pressas, para não me dar tempo de interrompê-lo. "O Plano. O Plano é verdadeiro. Por favor, não me diga coisas óbvias. Estou sendo procurado."

"Por quem?" Custava-me ainda compreender.

"Mas, ora Casaubon, pelos Templários; sei que você não vai querer acreditar em mim, mas é tudo verdade. Eles pensam que eu tenho o mapa, me apertaram, obrigaram-me a vir a Paris. Sábado à meia-noite querem que eu esteja no Conservatoire, sábado - entendeu? - a noite de São João...” Falava de maneira desconexa e eu não conseguia acompanhá-lo. "Eu não quero ir lá, Casaubon, estou fugindo, são capazes de me matar. Você deve avisar o De Angelis - não, o De Angelis é inútil - nada de polícia, pelo amor de Deus...”

"E então?"

"Então, não sei; leia os disquetes, no Abulafia, nos últimos dias deixei tudo gravado ali, até mesmo o que aconteceu neste último mês. Você não estava, não sabia a quem contar, fiquei escrevendo durante três dias e três noites... Ouça, vá ao escritório, na gaveta da minha escrivaninha há um envelope com duas chaves. Não faça caso da grande, pois é a chave da casa de campo, mas a menor é do apartamento de Milão; vá lá e leia tudo, depois você decide, ou melhor, depois nos falamos, sei lá, não sei bem o que fazer...”

"Está bem, vou lá e leio. Mas depois, como encontrar você?"

"Não sei ainda, estou mudando toda noite de hotel. Digamos que você faz isso tudo hoje e espera em minha casa amanhã de manhã, que eu tento telefonar para lá, se puder. Meu deus, a senha...”

Ouvi uns rumores, a voz de Belbo aproximava-se e afastava-se com intensidades variáveis, como se alguém lhe tentasse arrancar o aparelho.

"Belbo! Que está havendo?"

"Me acharam. A senha...”

Um golpe seco, igual a um disparo. Devia ser o fone que caíra e batera contra a parede da cabina ou sobre aquelas prateleiras que ficam embaixo do telefone. Um alvoroço. Depois o dique do aparelho desligado. Certamente não por Belbo.

Meti-me rápido embaixo da ducha. Precisava despertar. Não percebia o que estava acontecendo. O Plano era verdade? Mas que absurdo, se o havíamos inventado nós. Quem capturara Belbo? Os Rosa-Cruzes, o conde de San Germano, a Okrana, os Cavaleiros do Templo, os Assassinos? Aquela altura tudo era possível, já que tudo era inverossímil. Podia ser que Belbo tivesse perdido a razão, pois nestes últimos tempos andava muito tenso, não sei se por causa de Lorenza Pellegrini ou porque estivesse cada vez mais fascinado pela sua imaginação - ou melhor, o Plano era comum, nosso, meu, dele, de Diotallevi, mas era ele que parecia havê-lo levado, agora, para além dos limites do jogo. Inútil elaborar outras hipóteses. Fui até a editora, Gudrun acolheu-me com ácidas objurgações dizendo que tinha agora que carregar tudo nas costas, encontrei o envelope, as chaves e corri para o apartamento de Belbo.

Cheiro de casa fechada, de guimbas râncidas, os cinzeiros atulhados até a boca, a pia da cozinha repleta de pratos sujos, a lixeira transbordando embalagens desventradas. Numa prateleira do estúdio, três garrafas de uísque vazias, a quarta ainda com dois dedos de álcool. Era o apartamento de alguém que havia passado os últimos dias sem sair, comendo o que havia, trabalhando como um louco, intoxicado.

Eram duas peças ao todo tapadas de livros amontoados em cada canto, alguns servindo de calço às prateleiras que vergavam ao peso deles. Vi logo a mesa do computador, com a impressora ao lado, e o estojo de disquetes. Poucos quadros nos espaços de parede não ocupados pelas estantes, e bem em frente à mesa uma gravura seiscentista, reprodução emoldurada com carinho, de uma alegoria cuja presença eu não havia notado no mês anterior, quando lá fui beber uma cerveja, antes de sair de férias.

Sobre a mesa, uma foto de Lorenza Pellegrini, com uma dedicatória em caracteres diminutos e um tanto infantis. Só se via o rosto, mas o olhar, já o olhar, me perturbava. Num movimento indistinto de delicadeza (ou de ciúme), voltei a foto sem ler a dedicatória.

Havia algumas fichas. Nelas procurei algo que pudesse interessar, mas eram apenas índices, planejamentos editoriais. Em meio àqueles documentos encontrei no entanto o impresso de um file que, a julgar pela data, devia ter nascido das primeiras experiências com o word processor. De fato, intitulava-se "Abu". Recordei-me de quando Abulafia fez sua aparição na casa editora e do entusiasmo quase infantil de Belbo, dos muxoxos de Gudrun e das ironias de Diotallevi.

"Abu" fora certamente a resposta pessoal de Belbo aos seus detratores, um divertimento goliárdico, de neófito, mas dizia muito do furor combinatório com que se aproximou da máquina. Belbo, que sempre afirmava, com seu sorriso pálido, que a partir do momento em que havia descoberto não poder ser protagonista havia decidido ser espectador inteligente - é inútil escrever quando não se tem uma poderosa motivação, é melhor reescrever os livros dos outros, como faz um bom redator editorial - ele havia encontrado na máquina uma espécie de alucinógeno; punha-se a dedilhar sobre o teclado como se fizesse variação sobre o tema de O Bife, no velho piano de sua casa, sem o menor temor de ser julgado. Não pensava criar: ele, tão aterrorizado pela escrita, sabia que aquilo não era criação, mas prova de eficiência eletrônica, exercício ginástico. Mas, esquecendo-se de seus próprios fantasmas habituais, estava encontrando naquela brincadeira a fórmula para exercitar a adolescência de retorno, própria de um cinqüentão. Em todo caso, e de qualquer modo, seu pessimismo natural, seu difícil acerto de contas com o passado, se haviam diluído no diálogo com uma memória mineral, objetiva, obediente, irresponsável, transistorizada, tão humanamente desumana que lhe permitisse não se advertir de seu costumeiro "mal da vida".

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filename: Abu

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O que bela manhã de fins de novembro, no princípio era o verbo, canta-me ó deusa do pélide Aquiles as damas e cavaleiros as armas e os barões. Ponto e vai ao principio sozinho. Prova prova prova parakaló parakaló, com o programa certo faz até anagramas, e se escreveste um romance inteiro sobre um herói sulista que se chama Rhett Butler e uma jovem caprichosa de nome Scarlett O’Hara, e não estiver gostando, basta digitar uma ordem que Abu transforma o Rhett Butler em príncipe Andrei, a Scarlett em Natascha, Atlanta em Moscou, e acabas de escrever guerra e paz.

Abu vai fazer uma coisa: bato esta frase e ordeno-lhe que mude cada "a" em "akka" e cada "o" em "ulla", e lá vem uma frase que parece finlandês:

Akkabu fakkaz akkagullarakka umakka cullaisakka: bakkatulla estakka frakkase e ullardenulla akka Akkabu mudakkar cakkadakka "akka" em "akkakkakka" e cakkadakka "ulla" em "ullaka", e lakká vem umakka frakkase que pakkarece finlakkandês.

Ó ventura, ó vertigem da diferença, ó meu leitor/escritor vítima ideal de uma ideal insônia, ó vigília de finnegan, ó animal gracioso e benigno. Não te ajuda a pensar mas te ajuda a pensar por ele. Uma máquina totalmente espiritual. Escrever com pena de ganso deve arranhar os suados pergaminhos e requer que se molhe a cada instante, os pensamentos se atropelam e o pulso não mantém a linha; escrever à máquina as letras se acavalam, não podes avançar à velocidade de tua sinapse, mas apenas ao ritmo acanhado da mecânica. Com isto, com este (esta?) ao contrário os dedos fantasiam, a mente aflora o teclado, voando nas asas douradas, avalias finalmente a severa razão crítica logo à felicidade do primeiro toque.

Voij struv btndi neste bloco fe tertalogua ortolaquina em memoria reponsde deum farloia sutil paraminguento, e apartune legalgitismamente num tlecando ao fim desis mesmo,

Veja, estava batendo às cegas, e agora tomei aquele bloco de teratologia ortográfica e comandei a máquina para repetir tudo desde o princípio, fazendo as correções, de modo que este aparecesse agora totalmente legível, perfeito, extraindo daquele angu um Puro Frumento.

Poderia arrepender-me e deitar fora esse primeiro bloco: deixo-o aqui apenas para mostrar como podem nesta tela coexistir o ser e o dever ser, contingência e necessidade. Contudo, poderia subtrair o bloco indesejado ao texto visível mas não à memória, conservando assim o arquivo dos meus remorsos, roubando aos freudianos onívoros e aos virtuosos das variantes o prazer das conjecturas, a própria ocupação e a glória acadêmica.

Muito melhor que a memória verdadeira, porque esta, quiçá a preço de duro exercício, aprende a lembrar mas não a esquecer. Diotallevi ficou sefarditicamente louco com aqueles palácios de grandes escadarias, e a estátua de um guerreiro que perpetra crime horrível contra a mulher indefesa, depois corredores com centenas de quartos, cada qual com a representação de um portento, aparições subitâneas, acontecimentos inquietantes, múmias animadas, e a cada imagem, fácil de gravar, podes associar um pensamento, uma categoria, um elemento da alfaia cósmica, decerto um silogismo, um sorites imane, cadeias de apotegmas, colares de hipálages, rosários de zeugmas, danças de hýsteron próteron, lógoi apofânticos, hierarquias de estoiquéias, precessões de equinócios, paralaxes, herbários, genealogias de gimnosofistas - ad infinitum - ó Raimundo, ó Camilo, que vos bastava repassar na mente as vossas visões e logo reconstruíeis a grande cadeia do ser, em Love and joy, pois tudo aquilo que se desencaderna no universo em vossa mente já estava reunido em volume, e Proust vos teria feito sorrir. Mas quando juntamente com Diotallevi, pensávamos construir uma ars oblivionalis, não conseguimos chegar a encontrar as regras para o esquecimento. É inútil, podes andar em busca do tempo perdido seguindo lábeis indícios como o Pequeno Polegar no bosque, mas não consegues perder de propósito o tempo reencontrado, como uma idéia fixa. Não existe uma técnica do esquecimento, estamos ainda nos processos naturais causais - lesões cerebrais, amnésia ou a improvisação manual, sei lá, uma viagem, o álcool, a sonoterapia, o suicídio.

Abu pode, ao contrário, conceder-te pequenos suicídios locais, amnésias provisórias, afasias indolores.

Onde estavas ontem à noite, L

Muito bem, leitor indiscreto, tu jamais saberás, mas aquela linha ali em cima, interrompida, era exatamente o início de uma longa frase que escrevi de fato mas que depois preferi não ter escrito (e nem mesmo pensado), porque queria que o escrito não tivesse sequer acontecido. Bastou um comando para que uma baba lactiginosa se espalhasse sobre o texto fatal e inoportuno, apertei a tecla "cancelar" e pssst, tudo desapareceu.

Mas não basta. O trágico do suicida é que, mal ele salta da janela, entre o sétimo e o sexto andares, raciocina: "Ah, se pudesse voltar atrás!" Mas embalde. Jamais aconteceu. Splash. Abu, ao contrário, é indulgente, permite a resipiscência, poderia em seguida recuperar meu texto desaparecido se decidisse em tempo e comprimisse a tecla de recuperação. Que alívio. Só de saber que, se quiser, poderei recordar, esqueço num minuto.

Não mais andarei pelos barezinhos a desintegrar naves espaciais com os projéteis tracejantes, já que o monstro não te desintegra. Faz melhor que isso, desintegra os pensamentos. É uma galáxia de milhares e milhares de asteróides, todos enfileirados, brancos ou verdes, acredite se quiser. Fiat Lux, Big Bang, sete dias, sete minutos, sete segundos, e nasce diante de teus olhos um universo em perene liquefação, onde não existem nem mesmo linhas cosmológicas precisas e vínculos temporais, nada senão numerus Clausius, aqui se vai para trás mesmo no tempo, os caracteres surgem e reafloram com ar indolente, brotam do nada e dóceis a ele retornam, e quando voltas a chamar, concatenas, cancelas, dissolvem-se e reectoplasmam-se em seu lugar natural, é uma sinfonia submarina de enlaçamentos e fraturas moles, uma dança gelatinosa de cometas autófagos, como o lúcio do Yellow Submarine; premes a falangeta e o irreparável começa a escorregar para trás na direção de uma palavra voraz desaparecendo em suas fauces, que a suga e swrrlurp, lá se foi, se não paras ela se come a si mesma e se engorda de seu nada, buraco negro de Cheshire.

E se escreves algo que o pudor não queira, tudo acaba no disquete, neste imprimes uma palavra de ordem, e pronto, ninguém mais te poderá ler, ótimo para os agentes secretos, escreves a mensagem, pões a ressalva e terminado, metes o disco no bolso e vais à vida, que nem mesmo Torquemada poderá saber o que escreveste, apenas tu e o outro (o Outro?). Supõe também que te torturam, finges que vais confessar e digitas a palavra, mas em vez disso comprimes uma tecla oculta e a mensagem lá se foi.

Ora, eu havia escrito algo, movi o polegar por engano, desapareceu tudo. Que era? Não me lembro. Sei que não estava revelando Mensagem alguma. Mas quem sabe se a seguir.

 

Quem tenta penetrar no Rosal dos Filósofos sem possuir a chave, lembra o homem que procura caminhar sem pés.

(Michael Maier, Atalanta Fugiens, Oppenheim, De Bry, 1618, emblema XXVII)

 

A descoberto, só havia isto. O resto tinha de procurar nos disquetes do word processor. Estavam dispostos em ordem numérica e pensei que tanto fazia começar pelo primeiro, já que Belbo havia mencionado a senha. Sempre fora cioso dos segredos de Abu.

Com efeito, mal premi a máquina, apareceu uma mensagem que me solicitava: "Tens a senha?" Fórmula não imperativa, Belbo era uma pessoa educada.

A máquina não colabora, sabe que deve receber a palavra, não a recebe, fecha-se. Como se acaso me dissesse: "Ouve lá, tudo o que queres saber eu trago aqui na minha pança, mas cava cava, velha toupeira, jamais o encontrarás." Vire-se, disse para mim, gostavas tanto de jogar permutações com Diotallevi, eras o Sam Spade da editora, como disse Jacopo Belbo, trata de encontrar o falcão.

A senha de Abulafia podia ser de sete letras. Quantas permutações de sete letras se poderiam fazer com as vinte e cinco letras do alfabeto, calculando ainda as repetições, pois nada impedia que a palavra fosse "cadabra"? Existe a fórmula em alguma parte, e o resultado deve dar seis bilhões e pouco. Se tivesse um computador gigante, capaz de encontrar seis bilhões de permutações a um milhão por segundo, teria mesmo assim de comunicar uma por uma a Abulafia, para experimentá-las, e sabia que ele precisava de cerca de dez segundos para perguntar e em seguida checar a password. Logo, sessenta bilhões de segundos. Visto que num ano há pouco mais de trinta e um milhões, digamos trinta para arredondar, o tempo de trabalho seria algo como dois mil anos. Nada mau.

Era necessário proceder por conjecturas. Em que palavra poderia ter pensado Belbo? Antes de mais nada, seria uma palavra que tivesse encontrado ao princípio, quando começou a usar a máquina, ou que havia descoberto, e mudado, nos últimos dias, ao se dar conta de que os disquetes continham material explosivo e o jogo, pelo menos para ele, já não era mais um jogo? Seria aliás muito diverso.

Melhor optar pela segunda hipótese. Belbo sente-se perseguido pelo Plano, leva o Plano a sério (porquanto assim me havia deixado perceber pelo telefone), e pensa então em algum termo que tem relação com a nossa história.

Ou talvez não: um termo ligado à Tradição podia da mesma forma ocorrer à mente dEles. Por um momento pensei que talvez Eles tivessem entrado no apartamento, copiado os disquetes, e naquele instante mesmo estariam provando todas as combinações possíveis em algum sítio remoto. O calculador máximo num castelo dos Cárpatos.

Que tolice, admiti comigo, aquilo não era gente de calculador, antes teriam procedido com o Notarikon, a Gematria, a Temurah, tratando os disquetes como se fosse a Torah. E teriam gasto tanto tempo nisto quanto gastaram na redação do Sefer Ietzirah. Contudo, a conjectura não era de desprezar. Se Eles existissem, certamente haveriam de seguir uma inspiração cabalística, e se Belbo estava convencido de que, de fato existiam, possivelmente teria seguido a mesma via.

Por desencargo de consciência, tentei com as dez sefirot: Keter, Hokmah, Binah, Hesed, Geburah, Tiferet, Nezah, Hod, Jesod, Malkut, e ainda introduzi a Shekinah de lambujem... Não funcionava, é claro, era a primeira idéia que poderia ocorrer à mente de qualquer um.

Contudo, a palavra devia ser qualquer coisa de óbvio, que vem à mente por força das circunstâncias, pois quando trabalhas num texto, de maneira obsessiva, como devia ter trabalhado Belbo nos últimos dias, não te podes esquivar do universo do discurso em que vives. Seria desumano pensar que ele tivesse enlouquecido por causa do Plano e que lhe viesse à mente apenas, sei lá, Lincoln ou Mombasa. Deveria ser algo relacionado com o Plano. Mas o quê?

Busquei identificar-me com os processos mentais de Belbo, que

havia escrito fumando compulsivamente, bebendo e olhando à sua volta. Fui à cozinha e despejei o último gole de uísque no último copo limpo que encontrei, voltei para o console, as costas contra o espaldar, as pernas sobre a mesa, bebendo a curtos goles (não era assim que fazia Sam Spade - ou talvez fosse o Marlowe?) e girando o olhar em torno. Os livros estavam distantes demais e não lhes podia ler os títulos nas lombadas.

Tomei a última gota de uísque, fechei os olhos, reabri-os. Diante de mim a estampa seiscentista. Era uma típica alegoria rosa-cruciana daquele período, tão rico de mensagens em código, destinada aos membros da Fraternidade. Representava evidentemente o Templo dos Rosa-Cruzes, onde aparecia uma torre da qual ascendia uma cúpula, segundo o modelo iconográfico renascentista, cristão e hebraico, no qual o Templo de Jerusalém aparecia reconstruído segundo o modelo da Mesquita de Omar.

A paisagem em torno à torre era incôngrua e incongruamente povoada, como ocorre naqueles rébus onde se vêem um palácio, uma rã em primeiro plano, um mulo com a albarda e um rei que recebe a dádiva de um pajem. Neste, à esquerda, embaixo, um cavaleiro, seguro a uma roldana presa a um perno, saía de um poço por força de estranhos cabrestantes puxados para um ponto no interior da torre, através de uma janela circular. No centro um cavaleiro e um viandante, à direita um peregrino ajoelhado que segura uma âncora à guisa de bordão. Do lado direito, quase em frente, um pico, uma rocha da qual se precipita um personagem com espada, e, do lado oposto, em perspectiva, o Ararat, com a Arca encalhada no topo. Ao alto, nos ângulos, duas nuvens, cada qual iluminada por uma estrela, irradiando sobre a torre os seus raios oblíquos, ao longo dos quais levitam duas figuras, um homem nu envolvido por uma serpente, e um cisne. No alto, ao centro, um nimbo sobre o qual havia a palavra "oriens" em caracteres hebraicos, donde despontava a mão de Deus que sustinha a torre por meio de um fio.

A torre movia-se sobre rodas, tinha uma primeira elevação quadrangular, com janelas, uma porta, uma ponte levadiça, na ala direita, depois uma espécie de balaustrada com quatro torreões de observação, cada qual guardado por um soldado tendo numa das mãos um escudo (gravado com caracteres hebraicos), e agitando uma palma com a outra. Mas só três dos quatro soldados eram visíveis, sendo que o quarto se adivinhava apenas, oculto pela mole da cúpula octogonal, sobre a qual se elevava um tibúrio, da mesma forma octogonal, e deste despontava um grande par de asas. Por cima, havia outra cúpula menor, com uma torrezinha quadrangular que, aberta em grandes arcos suspensos por delgadas colunas, deixava ver no próprio interior um sino. Depois uma cupulazinha final, de quatro gomos, acima da qual se estendia o fio mantido no alto pela mão divina. Dos lados da cupulazinha, a palavra "Fa/ma", e sobre a cúpula um friso: "Collegium Fraternitatis".

Não acabavam aí as bizarrices, porque das outras duas janelas redondas da torre despontavam, à esquerda, um braço enorme, desproporcional em relação às outras figuras, empenhando uma espada, como se pertencesse ao ser alado inserido na torre, e à direita uma imensa corneta. A corneta, por sua vez...

Comecei a suspeitar do número de aberturas da torre: rigorosamente regulares nos tibúrios, casuais no entanto nos lados da base. A torre era vista apenas de dois quartos, em perspectiva ortogonal, e era possível imaginar-se que por motivos de simetria as portas, as janelas e a vigia que se viam de um lado, embaixo, estivessem reproduzidas igualmente do lado oposto na mesma ordem Portanto, quatro arcos no tibúrio do sino, oito janelas no tibúrio inferior, quatro torrezinhas, seis aberturas entre a fachada oriental e a ocidental, quatorze entre a fachada setentrional e a meridional. Fiz os cálculos: trinta e seis aberturas.

Trinta e seis. Há mais de dez anos que esse número me obceca. E também o cento e vinte. Os Rosa-Cruzes. Cento e vinte dividido por trinta e seis dava - mantendo sete dígitos - 3, 333333. Exageradamente perfeito, mas talvez valesse a pena experimentar. Sem resultado.

Ocorreu-me que aquela cifra, multiplicada por dois, dava aproximadamente o número da Besta, 666. Mas essa conjectura também se revelou por demais fantasiosa.

Impressionou-me de repente o nimbo central, sede divina. Eram muito evidentes as letras hebraicas, que eu podia ver até mesmo da cadeira onde estava. Mas Belbo não podia escrever letras hebraicas no Abulafia. Observei melhor: eu as conhecia, sem dúvida, da direita para a esquerda, jod, he, waw, he. Iahveh, o nome de Deus.

 

Com as vinte e duas letras fundamentais que gravou, plasmou, combinou, sopesou e permutou, ele deu forma a todo o criado e ao que se há de formar no futuro.

(Sefer Ietzirah, 2.2)

 

O nome de Deus... É claro. Lembrei-me do primeiro diálogo entre Belbo e Diotallevi, no dia em que instalaram Abulafia no escritório.

Diotallevi estava à porta de sua sala, e ostentava indulgência. A indulgência de Diotallevi era sempre ofensiva, mas Belbo parecia aceitá-la, de fato, com indulgência.

"Não te servirá para nada. Não vais querer copidescar ali os manuscritos que não lês?"

"Serve para classificar, para ordenar índices e atualizar verbetes. Poderei escrever um texto meu, não o de outros."

"Mas juraste que nunca mais escreverias nada teu."

"Jurei que não afligiria o mundo com outro manuscrito. Disse que havendo descoberto não ter o estofo do protagonista...”

"...serias um espectador inteligente. Isso já sei. E daí?"

"Daí que até o espectador inteligente, quando volta de um concerto, cantarola um trecho do segundo movimento. O que não significa de forma alguma pretender regê-lo no Carnegie Hall...”

"Quer dizer então que farás experiências de escrita solfejada para descobrir que não deves escrever."

"Seria uma escolha honesta."

"É mesmo?"

Diotallevi e Belbo eram ambos de origem piemontesa e dissertavam amiúde sobre aquela capacidade que dos piemonteses que hão por bem de ouvir-te, com toda a cortesia, olhar-te bem nos olhos, e perguntar "É mesmo?" num tom que parece de educado interesse mas que na verdade te faz sentir motivo de profunda desaprovação. Eu era um bárbaro, diziam eles, e essas sutilezas me haveriam sempre de escapar.

"Bárbaro?" protestava. "Mas eu nasci em Milão, e minha família é de origem valdostana...”

"Tolice", diziam, "conhece-se um piemontês imediatamente pelo seu ceticismo."

"Mas eu sou cético."

"Negativo. É apenas incrédulo, o que é diverso."

Eu sabia por que Diotallevi duvidava de Abulafia. Ouvira dizer que com ele se podia alterar a ordem das letras, de modo que um texto poderia gerar seu próprio contrário e prometer sombrios vaticínios. Belbo tentava explicar-lhe. "São jogos de permutação", dizia, "não chamas a isso Temurah? Não é assim que o rabino devoto procede para ascender às portas do Esplendor?"

"Meu caro amigo", dizia-lhe Diotallevi, "jamais hás de compreender. É verdade que a Torah, refiro-me à visível, não passa de uma das possíveis permutações das letras da Torah eterna, como Deus a concebeu e a confiou a Adão. E que, permutando-se ao longo dos séculos, as letras do livro, poder-se-ia chegar à Torah originária. Mas não é o resultado que conta. E o processo, a fidelidade com que farás girar ao infinito o moinho da oração e da escritura, descobrindo a verdade pouco a pouco. Se esta máquina te desse de súbito a verdade, não a reconhecerias, porque teu coração não estaria purificado por uma prolongada interrogação. Além do mais, num escritório! O Livro deve ser murmurado num exíguo cubículo de gueto, onde dia após dia aprendes a curvar-te e a mover os braços estendidos ao longo do corpo; entre a mão que segura o Livro e aquela que o folheia, não deve haver quase espaço, e para umedecer os dedos deves levá-los verticalmente aos lábios, como se mordiscasses o pão ázimo, atento em não perder a mínima migalha. A palavra precisa ser mastigada lentissimamente, e deves dissolvê-la e recombiná-la depois de a deixares fundir sobre a língua, atento a que ela não respingue sobre o cafetã, pois se uma letra se evapora, quebras o fio que está para se unir às sefirot superiores. Abraham Abulafia dedicou sua vida a isso, enquanto o vosso santo Tomás se empenhava em encontrar a Deus através de seus cinco sendeiros. A sua Hokmath ha-Zeruf era ao mesmo tempo ciência da combinação das letras e ciência da purificação dos corações. Lógica mística, o mundo das letras e de seu vórtice de permutações infinitas é o mundo da beatitude, a ciência das combinações é a música do pensamento; mas tenhas cuidado em mover-te com lenteza e com cautela, porque tua máquina poderia proporcionar-te o delírio, e não o êxtase. Muitos dos discípulos de Abulafia não souberam manter-se naquela soleira estreitíssima que separa a contemplação do nome de Deus da prática da magia, da manipulação dos nomes para deles se fazerem talismãs, instrumentos de domínio sobre a natureza. E não sabiam, como tu não sabes - e nem sabe a tua máquina - que cada letra está ligada a um dos membros do corpo, e se deslocas uma consoante sem lhe conheceres o poder, uma de tuas articulações pode mudar de posição, ou natureza, ver-te-ás terrivelmente estropiado, pela vida inteira, e, em teu interior, por toda a eternidade."

"Queres saber de uma coisa", dissera-lhe Belbo naquele mesmo instante, "em vez de me dissuadir, até me encorajaste. Não é que tenho às mãos, e sob o meu comando, como teus amigos tinham o Golem, o meu Abulafia pessoal. Vou chamá-lo de Abulafia, Abu para os íntimos. E o meu Abulafia será mais cauto e respeitoso que o teu. Mais modesto. O problema não é encontrar todas as combinações do nome de Deus? Pois bem, olha aqui neste manual, e vê que temos um pequeno programa em Basic para permutar todas as seqüências de quatro letras. Parece mesmo feito de propósito para IHVH. Aqui está, quer que o ponha na máquina?" E lhe mostrava o programa, este sim, cabalístico para Diotallevi:

 

10 REM anagrama

20 INPUT L$(1), L$(2), L$(3), L$(4)

30 PRINT

40 FOR I1=1 TO 4

50 FOR I2=1 TO 4

60 IF I2=I1 THEN 130

70 FOR I3= 1 TO 4

80 IF I3=I1 THEN 120

90 IF I3=I2 THEN 120

100 LET I4=10-(l1+I2+I3)

110 LPRINT L$(I1);L$(I2);L$(I3);L$(I4)

120 NEXT I3

130 NEXT I2

140 NEXT I1

150 END

 

"Experimenta, escreve I, H, V, H quando o input pedir, e põe o programa a funcionar. Não obtiveste grande coisa: as permutações possíveis são apenas vinte e quatro."

"Santos Serafins. E que farás com vinte e quatro nomes de Deus? Achas que os nossos sábios já não haviam feito o cálculo? Basta ler o Sefer Ietzirah, décima sexta seção do capítulo quarto. E não tinhamcalculadoras. ‘Duas Pedras constroem duas Casas. Três Pedras constroem seis Casas. Quatro Pedras constroem vinte e quatro Casas. Cinco Pedras constroem cento e vinte Casas. Seis Pedras constroem setecentas e vinte Casas. Sete Pedras constroem cinco mil e quarenta Casas. Daqui por diante vai e pensa naquilo que a boca não pode dizer e os ouvidos não podem escutar.’ Sabes como se chama hoje isto? Cal culo fatorial. E sabes por que a Tradição te adverte que dali para a frente é melhor desistir? Porque se as letras do nome de Deus fossem oito, as permutações seriam quarenta mil, e se fossem dez seriam três milhões e seiscentas mil, as permutações de teu pobre nome seriam quase quarenta milhões, e ainda bem que não tens a middle initial dos americanos, pois que então subiriam para mais de quatrocentos milhões. E se as letras do nome de Deus fossem vinte e sete, porque o alfabeto hebraico não tem vogais, mas antes vinte e dois sons e mais cinco variantes - seus nomes possíveis seriam um número de vinte e nove algarismos. Mas terias que calcular igualmente as repetições, pois não se pode excluir a hipótese de que o nome de Deus seja Alef repetido vinte e sete vezes, e aí então os fatoriais já não te bastariam e terias que calcular vinte e sete à vigésima sétima potência; e terias, creio, 444 bilhões de bilhões de bilhões de bilhões de possibilidades, ou pouco menos que isso, em todo caso um número de trinta e nove dígitos."

"Estás trapaceando para impressionar-me. Eu também li o teu Sefer Ietzirah. As letras fundamentais são vinte e duas, e com elas, apenas com elas, Deus formou todo o criado."

"Contudo, é bom não recorreres aos sofismas, porque se entras nessa ordem de grandezas, se em vez de vinte e sete à vigésima sétima fazes vinte e dois à vigésima segunda, acabas obtendo algo como trezentos e quarenta bilhões de bilhões de bilhões. Em tua ordem de grandeza humana, não faz diferença, não é mesmo? Mas fiques sabendo que se tivesses de contar um dois três e assim por diante, um número por segundo, só para chegar a um bilhão, um ínfimo bilhão, terias gasto quase trinta e dois anos. Mas a coisa é mais complexa ainda do que imaginas e a Cabala não se reduz ao Sefer Ietzirah. E digo isso porque uma boa permutação da Torah precisaria usar todas as vinte e sete letras. É verdade que as cinco finais, se devessem no curso de uma permutação cair no corpo da palavra, se transformariam na sua equivalente normal. Mas isso nem sempre ocorre. Em Isaías nove seis sete, a palavra LMRBH, Lemarbah - que por acaso significa multiplicar -, é escrita com mem final no meio."

"E por quê?"

"Porque cada letra corresponde a um número e a mem normal vale quarenta enquanto a mem final vale seiscentos. Não está em jogo a Temurah, que te ensina a permutar, mas sim a Gematria, que encontra sublimes afinidades entre a palavra e seu valor numérico. Com a mem final a palavra LMRBH não vale 277 mas sim 837, equivalendo assim a ‘ThThZL, Thath Zal’, que significa ‘aquele que doa profusamente’. Logo estás vendo que é necessário levar em consideração todas as vinte e sete letras, pois o que conta é não apenas o som mas igualmente o número. Porém, voltemos agora ao meu cálculo: as permutações são superiores a quatrocentos bilhões de bilhões de bilhões de bilhões. E sabes quanto tempo seria necessário para se experimentar todas elas, uma por segundo, admitindo-se que a máquina, não a tua, pequena e miserável, pudesse fazê-lo? Com uma combinação por segundo conseguirias sete bilhões de bilhões de bilhões de bilhões de minutos, cento e vinte e três milhões de bilhões de bilhões de bilhões de horas, pouco mais de cinco milhões de bilhões de bilhões de bilhões de dias, quatorze mil bilhões de bilhões de bilhões de anos, cento e quarenta bilhões de bilhões de bilhões de séculos, quatorze bilhões de bilhões de bilhões de milênios. E se tivesses uma calculadora capaz de processar um bilhão de combinações por segundo, ah, pensa, quanto tempo ganharias, esse teu ábaco eletrônico demoraria quatorze mil bilhões de bilhões de milênios! Mas na verdade o verdadeiro nome de Deus, seu nome secreto, o da Torah, é tão longo quanto ela e não há máquina no mundo capaz de esgotar as permutações, pois a Torah já é em si mesma o resultado de uma permutação com repetições das vinte e sete letras, e a arte da Temurah não ensina que devas permutar as vinte e sete letras do alfabeto mas todos os signos da Torah, onde cada signo vale como se fosse uma letra independente, mesmo se aparece infinitas outras vezes em outras tantas páginas, como se disséssemos que os dois hau do nome de Ihvh valessem por duas letras. Assim sendo, se quiseres calcular as permutações possíveis de todos os signos da Torah inteira, nem todos os zeros do mundo te seriam bastantes. Experimenta, experimenta com a tua miserável maquininha de contabilistas. A Máquina existe, na verdade, mas não foi produzida no teu vale de silicone, é a santa Cabala ou Tradição, e os rabinos vêm fazendo há séculos aquilo que máquina alguma poderá fazer e esperemos não faça nunca. Porque, quando a combinatória fosse alcançada, o resultado teria que permanecer secreto senão o universo teria cessado o seu ciclo - e fulguraríamos imêmores na glória do grande Metátron."

"Amém", dizia Jacopo Belbo.

No entanto, Diotallevi o estava arrastando a esse tipo de vertigem, e eu devia ter percebido. Quantas vezes vira Belbo, depois do expediente, tentando programas que lhe permitissem verificar os cálculos de Djotallevi, para demonstrar-me pelo menos que o seu Abu lhe dizia a verdade em poucos segundos, sem necessidade de calcular a mão, sobre pergaminhos amarelecidos, com sistemas numéricos antediluvianos, que talvez, digo por dizer, não conhecessem nem mesmo o zero? Debalde, também Abu respondia, até onde podia chegar, por meio de notações exponenciais, de modo que Belbo não conseguia humilhar Diotallevi com uma tela que se enchesse de zeros até o infinito, pálida imitação visual da multiplicação dos universos combinatórios e da explosão de todos os mundos possíveis...

Ora no entanto, depois de tudo quanto havia acontecido, e com a gravura rosa-cruciana à minha frente era impossível que Belbo não tivesse recorrido, em sua busca de um password, àqueles exercícios iniciais com o nome de Deus. Mas haveria de jogar com números como trinta e seis ou cento e vinte, se era verdade, como eu conjecturava, que ele também estivesse obcecado por aqueles algarismos. Portanto não podia ter combinado as quatro letras hebraicas porque, bem o sabia, quatro pedras construíam apenas vinte e quatro casas.

Poderia ter tomado a transcrição italiana, que contém ainda duas vogais. Com seis letras teria à sua disposição setecentas e vinte permutações. Teria podido escolher a trigésima sexta ou a centésima vigésima.

Havia chegado ali por volta das onze, e já era uma. Tinha que compor um programa para anagramas de seis letras, bastando apenas modificar aquele existente para quatro.

Precisava respirar um pouco. Desci à rua, comprei comida, outra garrafa de uísque.

Subi de novo, deixei os sanduíches num ângulo, passei logo ao uísque, pus o disco de sistema para o Basic, compus o programa para seis letras - com os erros de sempre, e gastei uma boa meia hora nisso, mas aí pelas duas e meia o programa girava e no painel, e diante de meus olhos, desfilavam agora os setecentos e vinte nomes de Deus.

Início da tabela

Fim da tabela

Tomei em mãos o papel corrido da impressora, sem destacá-lo, como se consultasse o rolo da Torah originária. Tentei com o nome número trinta e seis. Escuro completo. Um último gole de uísque e, em seguida, com os dedos hesitantes, experimentei o número cento e vinte. Nada.

Tinha vontade de morrer. No entanto agora eu era Jacopo Belbo e Jacopo Belbo devia ter pensado como eu estava pensando. Certamente cometera algum erro, um erro besta qualquer, um engano de nada. Estava a um passo da solução: talvez Belbo, por motivos que me escapavam, tinha contado de baixo para cima?

Casaubon, seu estúpido - disse para mim. Claro, de baixo para cima. Ou então, da direita para a esquerda. Seu input não tinha sido IAHVEH - como não haver pensado nisso antes - mas sim HEVHAI. Era natural que naquele ponto a ordem das permutações se invertesse.

Precisava pois contar de baixo para cima. Experimentei de novo ambos os números.

Nada aconteceu.

Deu tudo errado. Havia-me obstinado numa hipótese elegante mas falsa. Ocorre com os melhores cientistas.

Não, com os melhores cientistas, só, não. Com todos. Não havíamos observado precisamente um mês antes que nos últimos tempos foram publicados três romances nos quais o protagonista procura o nome de Deus num computador? Belbo não teria sido assim tão banal. Depois, vamos lá!, quando se escolhe uma senha escolhe-se uma de que se possa lembrar facilmente, que venha espontânea a digitar-se quase por instinto. Vejamos só, IHVHEA! Teria pois de sobrepor o Notarikon àTemurah, e inventar um acróstico para recordar a palavra. Algo assim como: Imelda, Hoje Vingaste Hiram Estupidamente Assassinado...

Além do mais, por que Belbo devia pensar nos termos cabalísticos de Diotallevi? Ele estava obcecado pelo Plano, e no Plano havíamos metido tantos Outros componentes, os Rosa-Cruzes, a Sinarquia, os Homúnculos, o Pêndulo, a Torre, os Druidas, a Ennoia...

A Ennoia... Pensei em Lorenza Pellegrini. Estendi a mão e desvirei a foto que eu havia censurado. Busquei afastar um pensamento importuno, a lembrança daquela tarde no Piemonte... Aproximei de mim a foto e li a dedicatória. Dizia: "Porque sou a primeira e a última. Sou a preferida e a odiada. Sou a prostituta e a santa. Sophia."

Deve ter sido depois da festa em casa de Riccardo. Sophia, seis letras. E por que me ocorria anagramá-las? Eu é que pensava de modo retorcido. Belbo ama Lorenza, ama-a precisamente por ela ser como é, e ela é Sophia - e pensando que ela, naquele momento, talvez... Não, ou antes, Belbo pensa de modo muito mais retorcido. Voltavam-me à lembrança as palavras de Diotallevi: "Na segunda sefirah o Alef tenebroso se transmuda no Alef luminoso. Do Ponto Obscuro brotam as letras da Torah, o corpo são as consoantes, o hálito as vogais, e juntas acompanham a cantilena do devoto. Quando a melodia dos signos se move movem-se com ela as consoantes e as vogais. Surge então Hokmah, a Sabedoria, a Sapiência, a idéia primordial na qual tudo se contém como num escrínio, pronto para desenvolver-se na criação. Em Hokmah está contida a essência de tudo quanto se seguirá...”

E que era Abulafia, com sua reserva secreta de files? O escrínio do qual Belbo sabia, ou supunha saber, a Sophia. Escolheu um nome secreto para penetrar no íntimo de Abulafia, o objeto com o qual faz amor (o único) mas ao fazê-lo pensa ao mesmo tempo em Lorenza, busca uma palavra que conquiste Abulafia mas que lhe sirva de talismã também para possuir Lorenza, gostaria de penetrar no coração de Lorenza e compreender, assim como pode penetrar no coração de Abulafia, quer que Abulafia seja impenetrável por todos os demais assim como Lorenza é impenetrável para ele, ilude-se em proteger, conhecer e conquistar o segredo de Lorenza assim como possui aquele de Abulafia...

Estava inventando para mim mesmo uma explicação e deixava-me iludir que fosse verdadeira. Igual em relação ao Plano: tomava os meus desejos como sendo a realidade.

Mas como já estava bêbado, voltei ao teclado e digitei SOPHIA. A máquina voltou a perguntar com delicadeza: "Tens a senha?" Máquina estúpida, não te emocionas nem mesmo com o pensamento de Lorenza.

 

Judá Leon deu-se a permutações

De letras e a complexas variações

E o nome pronunciou enfim que é a Chave,

A Porta, o Eco, o Hóspede e o Palácio...

(J.L. Borges, EI Golem)

 

Agora, por ódio a Abulafia, diante da enésima obtusa pergunta ("Tens a senha?") respondi: "Não."

 

A tela começou a encher-se de palavras, de linhas, de índices, de uma enxurrada de frases.

Conseguira violar o segredo de Abulafia.

Estava tão excitado com a vitória que sequer me perguntei por que Belbo havia escolhido essa palavra. Agora eu sei, e sei ainda que, num momento de lucidez, ele havia compreendido o que eu compreendo agora. Mas naquela quinta-feira sabia apenas que havia vencido.

Pus-me a dançar, a bater as mãos, a cantar uma canção de caserna. Depois parei e fui ao banheiro lavar o rosto. Voltei e passei para a impressora em primeiro lugar o último file, o que Belbo havia escrito antes de sua fuga para Paris. Aí então, enquanto a impressora grasnava implacável, comecei a comer com sofreguidão, e a beber ainda mais.

Quando a impressora estancou, li, e fiquei perturbado, pois não conseguia decidir se estava diante de revelações extraordinárias ou se apenas testemunhava um delírio. Que sabia, no fundo, a respeito de Jacopo Belbo? Que coisa aprendera dele nesses dois anos em que estive quase todos os dias a seu lado? Que confiança podia depositar no diário de um homem que, conforme ele próprio confessara, estava escrevendo em circunstâncias excepcionais, obnubilado pelo álcool, o fumo, o terror, separado durante três dias de qualquer contato com o mundo?

 

Agora era noite, a noite de 21 de junho. Meus olhos lacrimejavam. Desde manhã estava fixando aquele painel e o formigar puntiforme produzido pela impressora. Verdadeiro ou falso o quanto havia lido, o certo é que Belbo dissera que me telefonaria na manhã seguinte. Tinha que esperar ali. Sentia a cabeça girar.

Andei meio zonzo em direção ao quarto e deixei-me cair vestido como estava sobre a cama ainda desfeita.

Acordei por volta das oito de um sono profundo, viscoso, não me dando conta a princípio de onde estava. Por sorte havia sobrado um pacote de café e preparei o suficiente para algumas xícaras. O telefone não tocava, não ousei descer para comprar umas coisas, com medo de que Belbo chamasse precisamente naquele instante.

Voltei para a máquina e comecei a imprimir os outros discos em ordem cronológica. Encontrei jogos, exercícios, relatórios de fatos que conhecia mas, refrangidos pela visão pessoal de Belbo, até esses me surgiam agora sob luz diversa. Encontrei trechos de diário, confissões, esboços de provas, narrativas registradas com a teimosia amarga de quem já as sabe destinadas ao insucesso. Encontrei anotações, retratos de pessoas que, embora delas me recordasse, assumiam agora uma fisionomia distinta - quero dizer mais sinistra, ou quem sabe mais sinistro fosse o meu olhar, meu modo de recompor os indícios casuais de um tremendo mosaico?

Principalmente encontrei um file inteiro que registrava apenas citações. Trechos das leituras mais recentes de Belbo, reconhecia-as à primeira vista, quantos textos análogos havíamos lido naqueles últimos meses... Estavam numerados: cento e vinte. O número não era casual, ou melhor a coincidência era inquietante. Mas por que aquelas e não outras?

Agora não consigo reler os textos de Belbo, e toda a história que me trazem à mente, senão à luz daquele file. Desfio os excertos como contas de um rosário herético, e mesmo me apercebo de que alguns deles teriam podido constituir, para Belbo, um alarma, uma tábua de salvação.

Ou sou eu que não consigo mais distinguir um bom conselho da deriva de sentido? Procuro convencer-me de que minha releitura é a justa, mas não passará esta manhã sem que no entanto alguém me diga, e não a Belbo, que eu estava louco.

A lua sobe lentamente no horizonte sobre o Bricco. A grande casa está habitada por estranhos rangidos, talvez carunchos, ratos, ou o fantasma de Adelino Canepa... Não ouso percorrer os corredores, estou no escritório de tio Carlos, e olho pela janela. De vez em quando vou ao terraço, para controlar se alguém está se aproximando a subir a colina. Parece-me que estou num filme, que pena: "Eles estão chegando...”

No entanto a colina está tão calma nesta noite de início de verão.

Como era mais aventurosa, incerta, demente, a reconstrução que eu tentava, para enganar o tempo, e para manter-me vivo, naquela outra noite, das cinco às dez, firme no periscópio, enquanto para fazer o sangue circular movia lentamente e molemente as pernas, como se acompanhasse um dolente ritmo afro-brasileiro.

Repensar os últimos anos abandonando-me ao rufar encantatório

dos atabaques... Talvez para aceitar a revelação que as nossas fantasias, iniciadas como balé mecânico, agora naquele templo da mecânica se haviam transformado em rito, possessão, aparição e domínio de Exu?

Aquela noite no periscópio eu não tinha nenhuma prova de que tudo o que me revelara a impressora fosse verdade. Podia ainda defender-me com a dúvida. Ao chegar a meia-noite talvez terei percebido que viera a Paris, que me havia escondido como um ladrão num inócuo museu da técnica, só por me haver metido estupidamente numa macumba organizada para turistas e me deixara prender pela hipnose dos perfumadores e o ritmo dos pontos...

E minha memória tentava, um após outro, o desencanto, a piedade e a suspeita, a fim de recompor o mosaico, e aquele clima mental, aquela mesma oscilação entre ilusão fabulatória e pressentimento de um embuste, era tudo o que eu gostaria de conservar agora, quando de mente mais lúcida reflito sobre o que então pensava, recompondo os documentos lidos freneticamente um dia antes, de manhã no aeroporto e durante minha viagem rumo a Paris.

Procurava esclarecer para mim mesmo o modo irresponsável pelo qual eu, Belbo e Diotallevi havíamos chegado a reescrever o mundo e - Diotallevi mo teria dito - a redescobrir as partes do Livro que estavam incisas a fogo branco, nos interstícios deixados por aquelas inseridas a fogo negro que povoavam, e pareciam deixar explícita, a Torah

Aqui estou, agora, depois de haver readquirido - espero - a serenidade e o Amor Fati, para reproduzir a história que reconstituí, cheio de inquietação - e de esperança ainda que falsa - no periscópio, há duas noites, depois de havê-la lido dois dias antes no apartamento de Belbo e por havê-la vivido em parte sem dela ter consciência, nos últimos doze anos, entre o uísque do Pílades e a poeira da Garamond Editores.

 

BINAH

Não espereis demasiado do fim do mundo.

(Stanislaw J. Lec, Aforyzmy. Fraszki, Kraków, Wydawnictwo Literackie, 1977, "Mysli Nieuczesane")

 

Fazer um curso universitário depois de ‘68 é o mesmo que ser admitido na Academia de Saint-Cyr em ‘93. Tem-se a impressão de haver-se enganado com o ano do nascimento. Por outro lado, Jacopo Belbo, que tinha pelo menos quinze anos mais que eu, convenceu-me mais tarde de que esta é uma sensação que todas as gerações experimentam. Nascemos sempre sob o signo errado e estarmos no mundo de maneira dignificante equivale a corrigirmos dia após dia o nosso horóscopo.

Creio que nos tornamos naquilo que nossos pais nos ensinaram em tempos já idos, quando não se preocupavam em educar-nos. Formamo-nos por descartes de sabedoria. Eu tinha dez anos e queria que eles me fizessem a assinatura de um certo semanário que publicava as obras-primas da literatura mundial em quadrinhos. Não por mesquinhez, mas por suspeitar da propriedade dos quadrinhos, meu pai tendia a esquivar-se. "A finalidade desta revista", sentenciei então, citando a divisa da série, pois era um garoto astuto e persuasivo, "é educar de maneira agradável." Meu pai, sem erguer os olhos do jornal, disse: "A finalidade de teu jornal é a mesma de todos os jornais, ou seja, vender o máximo de exemplares possível."

Comecei a partir daquele dia a me tornar incrédulo.

Ou seja, arrependia-me de ter sido crédulo. Havia-me deixado arrastar por uma paixão da mente. Eis a credulidade.

Não é que o incrédulo não deva acreditar em nada. Não crê é em tudo. Crê numa coisa de cada vez, e numa segunda apenas se essa de certa maneira descende da primeira. Procede de maneira míope, metódica, não arrisca horizontes. Acreditar em duas coisas que não estejam juntas, com a idéia de que em alguma parte deve haver uma terceira, oculta, que as integra, é a boa imagem da credulidade.

A incredulidade não exclui a curiosidade, corrobora-a. Difidente da cadeia das idéias, amava das idéias a polifonia. Basta não acreditar nelas, para que duas idéias - ambas falsas - possam colidir criando um bom intervalo ou um diabolus in musica. Não respeitava as idéias sobre as quais outros apostavam a vida, mas duas ou três idéias que eu não respeitava podiam criar melodia. Ou ritmo, melhor se jazz.

Mais tarde Lia me haveria de dizer: "Vives de superficialidades. Quando pareces profundo é porque consegues concentrar um grande número delas, dando-lhes a aparência de um sólido - um sólido que se fosse sólido não conseguiria manter-se em pé."

"Estás dizendo que sou superficial?"

"Não", ter-me-ia respondido, "aquilo que os outros chamam profundidade é apenas um tesseract, um cubo tetradimensional. Entras de um lado, sais do outro, e te encontras num universo que não pode coexistir com o teu."

(Lia, não sei se voltarei a ver-te, agora que Eles entraram do lado errado e invadiram teu mundo, e por culpa minha: fiz-lhes acreditar que havia abismos, como eles queriam por fraqueza.)

Que de fato pensava há quinze anos passados? Cônscio de não crer, sentia-me culpado em meio a tantos que criam. Ao sentir que estavam certos, decidi também crer assim como quem toma uma aspirina. Mal não faz, e nos sentimos melhor.

Vi-me metido na Revolução, ou pelo menos na mais estupenda simulação que dela já fizeram, buscando uma fé honrosa. Julguei que era digno participar de assembléias e desfiles, gritei com os outros "fascistas, burgueses, agora poucos meses!", não atirei pedras de calçadas nem esferas de metal porque sempre tive medo que os outros fizessem comigo aquilo que eu estava fazendo com eles, mas experimentava uma espécie de excitação moral ao fugir correndo pelas ruas do centro, quando a polícia investia contra nós. Voltava para casa com a sensação de haver cumprido um dever qualquer. Nas assembléias não conseguia apaixonar-me pelas divergências que dividiam os grupos: suspeitava que seria suficiente encontrar a citação apropriada para se passar de um grupo ao outro. Divertia-me procurar as citações pertinentes. Modulava.

Como me acontecia às vezes, nos comícios, enfikirar sob uma ou outra faixa só para seguir alguma garota que me perturbava a imaginação, concluí daí que para muitos de meus companheiros a militância política talvez fosse uma experiência sexual - e o sexo era uma paixão. Eu queria ter apenas curiosidade. É certo que no curso de minhas leituras sobre os Templários, e sobre várias ferocidades que lhes eram atribuídas, dera com a afirmação de Carpócrates que, para libertar-se da tirania dos anjos, senhores do cosmo, acaba perpetrando todas as ignomínias, libertando-se dos débitos contraídos com o universo e com o próprio corpo, pois somente cometendo todas as ações a alma pode redimir-se das próprias paixões, reencontrando a pureza original. Enquanto inventávamos o Plano, descobri que muitos drogados do mistério, para encontrar a iluminação, seguem aquele caminho. Mas Aleister Crowley, que foi definido como o homem mais perverso de todos os tempos, e que portanto fazia tudo o que podia fazer com devotos de ambos os sexos, só transou segundo os seus biógrafos com mulheres feíssimas (imagino que também os homens, a julgar pelo que escreviam, não fossem melhores), e me permanece a suspeita de que nunca tenha de fato feito amor de maneira completa.

Deve depender de uma relação entre a sede do poder e a impotentia coeundi. Marx me parecia simpático porque eu tinha certeza de que ele e sua Jenny faziam amor com gosto. Sente-se isso pelo respirar pacato de sua prosa, e de seu humor. Uma vez, ao contrário, nos corredores da universidade, eu disse que, de tanto se ir para a cama com a Krupskaia se acabava escrevendo um livreco como Materialismo e empiriocriticismo. Arrisquei ser expulso e disseram que eu era fascista. Disse-o um sujeito alto, de bigodes à tártara. Recordo-me dele perfeitamente, hoje deve estar de todo imberbe e filiado a uma comunidade qualquer onde se tecem cestos.

Reevoco os humores daquele tempo apenas para reconstituir o ânimo com que me aproximei da Garamond e me simpatizei com Jacopo Belbo. Cheguei para ele com o espírito de quem enfrenta os discursos sobre a verdade preparando-se para corrigir-lhe os rascunhos. Pensava que o problema fundamental, quando se cita "Eu sou aquele que é”, fosse decidir onde colocar o sinal de pontuação, se fora ou dentro do parêntese.

Por isso minha escolha política foi a filologia. A universidade de Milão era naqueles anos exemplar. Enquanto em todo o resto do país as salas de aula eram invadidas e os professores agredidos, exigindo-se-lhes que só falassem da ciência proletária, entre nós, salvo algum incidente, vigia um pacto constitucional, ou bem um compromisso territorial. A revolução presidiava a zona externa, a aula magna e os grandes corredores, enquanto a Cultura oficial se havia retirado, protegida e garantida, para os corredores internos e os andares superiores, e continuava a falar como se nada tivesse acontecido.

Assim eu podia passar a manhã embaixo a discutir ciência proletária e a tarde em cima a praticar o saber aristocrático. Vivia à vontade nessas duas universidades paralelas e não me sentia absolutamente em contradição. Também acreditava que estivesse à porta uma sociedade de iguais, mas me dizia que naquela sociedade era necessário que funcionassem (melhor que antes), por exemplo, os trens, e os revolucionários que me rodeavam não estavam de fato aprendendo a dosar o carvão na caldeira, nem a acionar as agulhas dos desvios ou a organizar uma tabela de horários. Era preciso entanto que alguém estivesse pronto para os trens.

Não sem algum remorso, sentia-me uma espécie de Stalin que ri sob os bigodes e pensa: "Tratem de trabalhar, meus pobres bolchevistas, enquanto eu estudo num seminário em Tíflis e depois traço o plano quinqüenal."

Talvez porque pela manhã vivia no entusiasmo, de tarde identificava o saber com a desconfiança. Quis assim estudar alguma coisa que me permitisse dizer o que se podia afirmar com base em documentos, para distingui-lo do que permanecia matéria de fé.

Por motivos quase casuais, inscrevi-me num seminário de história medieval e escolhi como tese o processo dos Templários. A história dos Templários me havia fascinado, desde o momento em que dera de olhos com os primeiros documentos. Naquela época em que se lutava contra o poder, indignava-me generosamente a história do processo, que seria indulgente definir-se como indiciário, com o qual os Templários foram mandados à fogueira. Mas eu descobrira bem logo que, mal foram mandados à fogueira, uma turba de caçadores de mistérios havia tratado de reencontrá-los fosse onde fosse, mas sem jamais produzirem uma prova. Esse esbanjamento visionário irritava a minha incredulidade, e decidi não perder tempo com os caçadores de mistérios, atendo-me somente às fontes da época. Os Templários eram uma ordem monástico-eqüestre, que existiu enquanto foi reconhecida pela igreja. Se a igreja havia dissolvido a ordem, e o havia feito há sete séculos, os Templários não podiam mais existir, ou se existissem não eram mais os Templários. Com isso cheguei a fichar pelo menos uma centena de livros, mas no fim acabei só lendo uns trinta.

Entrei em contato com Jacopo Belbo precisamente por causa dos Templários, no Pílades, quando estava trabalhando na tese, aí pelos fins de setenta e dois.

 

Vindo das luzes e dos deuses, eis-me no exílio, pois separado deles.

(Fragmento de Turfa’n M7)

 

O bar Pílades era naqueles tempos o porto franco, a taverna galáctica onde os seres espaciais de Ophiulco, que assediavam a Terra, se encontravam sem atritos com os homens do Império que patrulhavam as faixas de van Allen. Era um velho bar junto aos canais Navigli com balcão de zinco e bilhar, onde os motorneiros e artesãos da zona vinham de manhãzinha tomar seu trago. Por volta de setenta e Oito, e nos anos seguintes, o Pílades tornou-Se um Rick’s Bar onde na mesma mesa um militante do Movimento podia jogar cartas com um jornalista do quotidiano patronal, que lá ia para um gole no fechamento do número, quando os primeiros caminhões já partiam para distribuir nas bancas as mentiras do sistema. Mas no Pílades até mesmo o jornalista se sentia um proletário explorado, um produtor de mais-valias condenado a montar ideologias patronais, e os estudantes o absolviam por isso.

Entre as onze da noite e as duas da manhã por ali passavam o gráfico, o arquiteto, o cronista de polícia que aspirava à terceira página, os pintores da academia de Brera, alguns escritores de nível médio, e estudantes como eu.

Um mínimo de excitação alcoólica era de rigor e o velho Pílades, guardando seus garrafões de vinho branco para os motorneiros e clientes mais aristocráticos, havia substituído o espumante e o Ramazzotti pelos frisantes DOC para os intelectuais democráticos, deixando o Johnny Walker para os revolucionários. Poderia escrever a história política daqueles anos registrando os tempos e os modos durante os quais se passou gradativamente do rótulo vermelho ao Ballantines de doze anos e finalmente ao uísque de malte puro.

Com a chegada do novo público, o Pílades havia mantido o velho bilhar, no qual se desafiavam na carambola pintores e motorneiros, mas instalara igualmente um flíper.

Para mim uma bolinha durava pouquíssimo e a princípio achava que fosse por distração, ou por escassa agilidade manual. Percebi a verdade anos mais tarde quando vi Lorenza Pellegrini jogar. De início não a notei, mas tive-a na mira uma noite ao seguir o olhar de Belbo.

Belbo tinha uma maneira especial de estar no bar como se fosse de passagem (freqüentava-o há pelo menos dez anos). Interferia amiúde nas conversas, no banco ou numa das mesinhas, mas quase sempre para arremessar uma farpa que esfriava os entusiasmos, qualquer que fosse o assunto que se discutisse. Gelava também com outra técnica, a das perguntas. Alguém contava um fato, polarizando a fundo os circunstantes, e logo Belbo encarava o interlocutor com aqueles seus olhos glaucos, sempre um pouco distraídos, mantendo o copo à altura dos quadris, como se já há algum tempo tivesse esquecido de beber, e perguntava: "Mas foi assim mesmo?" Ou melhor: "Mas ele disse mesmo isto?" Não sei por que motivo, mas não havia quem àquela altura não começasse a duvidar da história, inclusive o narrador. Devia ser pela sua cadência piemontesa que tornava interrogativas as suas afirmações, e derrisórias as suas interrogações. Nele, era piemontês até aquele modo de falar sem olhar muito nos olhos do interlocutor, mas não da maneira como fazem aqueles que fogem do olhar. O olhar de Belbo não se subtraía ao diálogo. Simplesmente movendo-se para fixar de improviso uma convergência de paralelas a que não terias prestado atenção, num ponto impreciso qualquer do espaço, te fazia sentir como se tu, até então, tivesses obtusamente fixado o único ponto irrelevante.

Mas não era só o olhar. Com um gesto, com uma simples interjeição Belbo tinha o poder de tirar a gente do lugar. Quero dizer, suponhamos que te esforçasses para demonstrar que Kant tinha de fato realizado a revolução copérnica da filosofia moderna e jogasses teu destino naquela afirmação. Belbo, sentado à tua frente, podia de repente ficar olhando para as mãos, ou fixar o joelho, ou entreabrir as pálpebras esboçando um sorriso etrusco, ou permanecer alguns segundos de boca aberta, com os olhos no teto, e depois, com um leve balbucio: "Bem, é certo que esse Kant...” Ou se se empenhava num atentado ao inteiro sistema do idealismo transcendental: "Mas, será que ele que ria fazer mesmo toda aquela confusão...” Depois te olhava com solicitude, como se tu, e não ele, tivesses perturbado o encantamento, e te encorajava: "Mas, vamos, continua. Pois decerto no meio disto tudo deve haver..., há de haver qualquer coisa... O homem tinha talento."

Mas às vezes, quando estava no máximo da indignação, reagia indecorosamente. Já que a falta de decoro alheia era a única coisa que realmente o indignava, seu indecoro em represália era todo interior, e regional. Estreitava os lábios, volvia primeiro os olhos para o céu, depois baixava o olhar, e a cabeça, à esquerda para baixo, dizendo: "Destapa o rabo!" Aos que não entendiam a expressão, costumava às vezes explicar: "Destapa o rabo! diz-se ao indivíduo muito cheio de ares. Admite-se que haja chegado a essa condição posturalmente anormal pela pressão de uma rolha que traga arrochada no traseiro. Se a retira, pffffiiisch, retorna à condição humana."

Essas suas intervenções tinham a capacidade de te fazer perceber a vaidade de todas as coisas, e eu me sentia fascinado. Mas delas extraía uma lição errada, pois as elegia como modelo de supremo desprezo graças à banalidade das verdades alheias.

Só agora, depois de ter violado, com os segredos de Abulafia, também o ânimo de Belbo, sei que aquilo que me parecia desencanto, e que eu estava elevando à condição de princípio vital, para ele não passava de uma forma de melancolia. Seu aviltado libertinismo intelectual encobria uma desesperada sede de absoluto. Difícil compreendê-lo à primeira vista, porque Belbo compensava os momentos de fuga, hesitação, ausência, com momentos de expansiva sociabilidade, nos quais se divertia em produzir absolutos alternativos, com hílare incredulidade. Era quando juntamente com Diotallevi construía manuais de impossíveis, mundos às avessas, teratologias bibliográficas. E vê-lo assim entusiasticamente loquaz ao construir sua Sorbonne rabelaisiana impedia-nos de perceber o quanto sofria por seu afastamento da faculdade de teologia, essa de fato verdadeira.

Compreendi depois que eu havia só riscado o endereço, ao passo que ele o havia perdido, e não se perdoava por isso.

Nos files de Abulafia encontrei muitas páginas de um pseudodiário que Belbo havia confiado ao segredo dos disquetes, seguro de não trair sua vocação, tantas vezes contestada, de simples espectador do mundo. Alguns trazem uma data remota, evidentemente transcrição de antigos apontamentos, por nostalgia, ou porque pretendesse reciclá-los de algum modo. Outros são dos últimos anos, de quando passou a ter Abu nas mãos. Escrevia por jogo mecânico, para refletir solitário sobre seus próprios erros, iludia-se de não "criar" porque a criação, mesmo se produz o erro, se dá sempre por amor de alguém que não somos nós. Mas Belbo, sem se dar conta disso, estava passando para o outro pólo da esfera. Criava, e melhor que o não tivesse feito: seu entusiasmo pelo Plano nasceu daquela necessidade de escrever um Livro, ainda que fosse apenas, exclusivamente, de ferozes erros intencionais. Enquanto te manténs em teu vão podes pensar que estas em contato com o Uno, mas basta amassares o barro, ainda que eletrônico, para te transformares em demiurgo, e aquele que se empenha em formar um mundo está fatalmente comprometido com o erro e com o mal.

 

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filename: Três mulheres no coração...

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É isso aí: toutes les femmes que j’ai rencontrées se dressent aux horizons - avec les gestes piteux et les regards tristes des sémaphores sous la pluie...

Olha para o alto, Belbo. Primeiro amor. Maria Santíssima. Mamãe que canta tendo-me ao colo como se me embalasse quando já não tenho necessidade de ser ninado mas eu pedia que cantasse, porque gostava muito de sua voz e do perfume de lavanda de seu seio: "O Rainha do Empíreo - toda pura e toda bela - salve á filha esoosa, serva - salve á mãe do Redentor."

Natural: a primeira mulher da minha vida não foi minha - como de resto não foi de ninguém, por definição. Apaixonei-me imediatamente pela única mulher capaz de fazer tudo sem mim.

Depois Marilena (Marylena? Mary Lena?). Descrever liricamente o crepúsculo, os cabelos louros, o grande floco azul, eu diante do banco com o nariz erguido no ar, ela que caminha a equilibrar-se em cima do espaldar, os braços abertos a balançar em suas oscilações (deliciosas extra-sístoles), a saia que lhe esvoaçava levemente em torno às coxas róseas. No alto, inatingível.

Cena: na mesma tarde mamãe esparzindo de talco as carnes rosadas de minha irmã, eu pergunto quando é que o peruzinho dela vai enfim nascer, e mamãe me faz a revelação de que não nasce peruzinho nas meninas, e que elas ficam assim mesmo. De repente revejo Mary Lena, o branco das calcinhas distinguindo-se sob a saia azul que flutua e compreendo que ela é loura altaneira e inacessível exatamente por ser diferente. Nenhum relacionamento possível, pertence a outra raça.

Terceira mulher de repente perdida no abismo em que se precipita. Acaba de morrer dormindo, pálida Ofélia entre as flores de seu féretro virginal, enquanto o padre recita preces fúnebres, de súbito põe-se de pé no catafalco, o cenho franzido, branca, vindicativa, o dedo em riste, a voz estertorosa: "Padre, não ores por mim. Esta noite antes de me adormecer concebi um pensamento impuro, o único de minha vida, e agora sou maldita." Encontrar o livro da primeira comunhão. Nele havia uma ilustração ou imaginei tudo sozinho? Certamente morreu enquanto pensava em mim, o pensamento impuro era eu que desejava Mary Lena intocável por ser de outra espécie e destino. Sou culpado de sua maldição, sou culpado da maldição de todos aqueles que são condenados, é justo que não tenha tido as três mulheres: punição por havê-las desejado.

Perdi a primeira porque está no paraíso, a segunda porque anseia no purgatório as penas que nunca terá, e a terceira porque está no inferno. Teologicamente perfeito. Estava escrito.

Mas havia a história de Cecilia e Cecilia está na terra. Pensava nela antes de dormir, subia a colina para ir pegar leite no curral e enquanto os partigiani disparavam da colina fronteira contra o posto de controle via-me correndo para salvá-la, libertando-a de uma espécie de sicánios negros que a seguiam a brandir fuzis automáticos... Mais loura que Mary Lena, mais inquietante que a donzela do sarcófago, mais pura e serva do que a virgem. Cecilia viva e acessível, bastava um nada e lhe teria até mesmo falado, tinha a certeza de que podia amar alguém de minha raça, tanto assim que amava, chamava-se Papi, tinha cabelos louros hirsutos sobre um crânio minúsculo, um ano a mais que eu, e um saxofone. E eu nem sequer a corneta.

Nunca os tinha visto juntos, mas todos no parlatório murmuravam entre cutucadas e nisadinhas marotas que eles faziam amor. Certamente mentiam, meninos do campo lascivos como cabras. Queriam deixar claro para mim que ela (ela, Marylena Cecília esposa e serva) era de tal forma acessível que qualquer um lhe teria acesso. Em todo caso - quarto caso - eu estava fora do jogo.

Escreve-se um romance sobre uma história desse gênero? Talvez devesse escrever um sobre as mulheres de que fugi porque podia tê-las. Ou teria podido. Tê-las. Ou será a mesma coisa.

Em suma, quando não se sabe nem mesmo de que história se trata, o melhor é corrigir livros de filosofia.

 

Na mão direita segurava uma corneta dourada.

(Johann Valentin Andreae, Die Chymische Hochzeit des Christian Rosencreutz, Strassburg, Zetzner, 1616, 1)

 

Encontro neste file menção a uma corneta. Aquela noite no periscópio não sabia ainda o quanto era importante. Tinha apenas uma referência, bastante imprecisa e marginal.

Durante as longas tardes na editora Garamond, vez por outra Belbo, oprimido por um manuscrito, erguia os olhos das folhas e procurava distrair também a mim, que estava por acaso paginando na mesa da frente velhas gravuras da Exposição Universal, e se entregava a algumas reevocações - tratando logo de baixar o pano quando suspeitava que o tomasse muito a sério. Reevoca o próprio passado, mas só a título de exemplum, para castigar alguma vaidade. "Eu me pergunto onde iremos acabar", disse-me ele um dia.

"Fala do ocaso do ocidente?"

"Ocaso? Afinal de contas é sua função, não é mesmo? Não, falava dessa gente que escreve. Tres originais numa semana, um sobre direito bizantino, outro sobre o Finis Austriae e o terceiro sobre os sonetos de Baffo. São coisas bem diversas, não lhe parece?"

"Parece."

"Pois bem, quer saber que em todos três aparecem a certa altura o Desejo e o Objeto do Amor? É moda. Compreendo que ainda o Baffo, mas o direito bizantino...”

"Ponha no lixo."

"Não, são trabalhos inteiramente financiados pelo Conselho Nacional de Pesquisa, e além disso nada maus. No máximo chamo esses três e pergunto se não podemos tirar essas linhas. Até eles podem fazer má figura."

"E qual pode ser o objeto de amor no direito bizantino?"

"Oh, há sempre uma maneira de faú-lo entrar. Mas decerto se no direito bizantino havia um objeto de amor, não será aquele que diz este aqui. Não é decerto aquele."

"Aquele qual?"

"Aquele que você pensa. Certa vez, eu devia ter cinco ou seis anos, sonhei que havia ganho uma corneta. Dourada. Sabes, um desses sonhos em que sentimos o mel correr-nos nas veias, uma espécie de polução noturna, como a possa ter um impúbere. Acho que nunca fui tão feliz na vida quanto naquele sonho. Nunca mais. Naturalmente, ao despertar, percebi que não tinha a corneta e me pus a chorar como um bezerro. Chorei um dia inteiro. Na verdade, aquele mundo de antes da guerra, aí por mil novecentos e trinta e oito, era um mundo bem pobre. Hoje se eu tivesse um filho e o visse assim desesperado lhe diria pára com isso, vou te comprar uma corneta - tratava-se de uma corneta de brinquedo, nada que pudesse custar os olhos da cara. Isso nem sequer passou pela cabeça de meus pais. Gastar dinheiro era, então, uma coisa muito séria. E mais sério ainda era educar as crianças para não terem tudo quanto desejavam. Não gosto de sopa com couve, dizia - e era verdade, santo Deus, a couve na sopa me dava nojo. Nunca que diriam está bem, por hoje deixas a sopa e comes apenas a carne (não éramos pobres, tínhamos entrada, prato principal e sobremesa). Não senhor, come-se o que está na mesa. Quase sempre, como solução de compromisso, a avó se punha a tirar a couve do meu prato, uma por uma, talinho por talinho, folhinha por folhinha, e eu tinha que tomar a sopa depurada, mais nojenta que antes, e já era uma concessão que meu pai desaprovava."

"Mas e a corneta?"

Olhou para mim hesitando: "Por que lhe interessa tanto a corneta?"

"A mim, não. Você é que falou de corneta a propósito do objeto de amor que afinal não é exatamente...”

"A corneta... Naquela tarde deviam chegar os tios de***, não tinham filhos e eu era o sobrinho predileto. Vêem-me chorar por causa do raio da corneta e dizem que resolverão tudo, que no dia seguinte iremos ao magazine onde havia um balcão inteiro de brinquedos, uma maravilha, e lá encontrava a corneta que queria. Passei a noite em claro e estive indócil toda a parte da manhã. De tarde fomos ao magazine, e de fato havia cornetas de pelo menos três tipos, que talvez não passassem de brinquedinhos de lata mas que me pareciam os metais da orquestra da ópera. Havia uma corneta militar, um trombone de vara e uma pseudotrompa, porque tinha bocal e era de ouro mas com chaves de saxofone. Não sabia qual escolher e talvez tenha levado muito tempo nisso. Queria todos e dei-lhes a impressão de não querer nenhum. Entretanto achei que os tios haviam olhado as etiquetas de preço. Não eram mesquinhos, mas tive a impressão de que achavam mais barato um clarim de baquelite, todo preto, com chaves de prata. "Você não prefere em vez este?" perguntaram. Eu o experimentei, balia de modo razoável, procurava convencer-me de que era belíssimo, mas na verdade raciocinei e acabei me convencendo de que os tios queriam que eu escolhesse o clarim porque custava menos, a corneta devia valer uma fortuna e não podia impor aquele sacrifício a eles. Haviam-me ensinado sempre que quando te oferecem alguma coisa deves imediatamente dizer não obrigado, e não uma só vez, não dizer não obrigado e estender logo a mão, mas esperar que o ofertante insista, que diga por favor. Só aí então a criança educada cede. Por isso disse que talvez não quisesse a corneta, que o clarim podia muito bem me servir, se eles preferissem. E os olhava de cima a baixo, esperando que insistissem. Não insistiram, Deus os tenha na santa glória. Estavam muito contentes por me comprarem o clarim - disseram - já que eu o preferia. Era muito tarde para voltar atrás. Fiquei com o clarim."

Senti seu olhar de suspeita: "Quer sabem se sonhei depois com a corneta?"

"Não", disse, "quero saber qual era o objeto de amor."

"Ah", disse, voltando a folhear o manuscrito, "veja, até você está obcecado por esse objeto de amor. Esse assunto se pode manipular à vontade. Mas... E se eu tivesse de falo ganho a corneta? Teria sido realmente feliz? Que me diz disso, Casaubon?"

"Talvez começasse a sonhar com o clarim."

"Não", concluiu secamente. "Eu só ganhei o clarim. Não creio que o tenha soado."

"Soado ou sonhado?"

"Soado", disse escandindo a palavra e, não sei por quê, me senti um bufão.

 

Por fim, não se infere cabalisticamente de vinum outra coisa que não VIS NUMerorum, de cujos números depende esta Magia.

(Cesare della Riviera, II Mondo Magico degli Eroi, Mantova, Osanna, 1603, pp. 65-66)

 

Mas falava de meu primeiro encontro com Belbo. Conhecíamo-nos de vista, umas trocas de frases no Pílades, mas não sabia muito sobre ele, salvo que trabalhava na Garamond, e na universidade acontecia caírem-me nas mãos alguns livros dessa editora. Uma pequena editora, porém séria. O jovem que esteja terminando sua tese sente-se sempre atraído por alguém que trabalhe para uma editora cultural.

"E o amigo o que faz?" perguntou-me uma tarde quando estávamos ambos apoiados no ângulo extremo do balcão de zinco, espremidos por um grupo enorme das grandes ocasiões. Era a época em que todos se tratavam por tu, os estudantes aos professores e os professores aos alunos. Não falemos da fauna do Pílades: "Paga um trago aí para mim", dizia o estudante de dólmã verde-oliva ao redator-chefe de um grande periódico. Parecia São Petersburgo nos tempos do jovem Sklovski. Tudo Maiakovski e nenhum Jivago. Belbo não se furtava ao tu generalizado, mas era evidente que o cominava por desprezo. Empregava o tu para mostrar que respondia à vulgaridade com a vulgaridade, mas que existia um abismo entre forçar intimidade e em ser íntimo. Vi-o empregar o tu com afeto, ou com paixão, só poucas vezes e com poucas pessoas, Diotallevi, algumas mulheres. A quem estimava, sem conhecer há muito, empregava o amigo. Assim fez comigo durante todo o tempo que trabalhamos juntos, e eu apreciei o privilégio.

"E o amigo o que faz?" me havia perguntado, agora o sei, com simpatia.

"Na vida ou no teatro?" disse, acenando para o palco do Pílades.

"Na vida."

"Estudo."

"Freqüenta a universidade ou estuda?"

"Não lhe parecerá verdade mas as duas coisas não se contradizem. Estou terminando uma tese sobre os Templários."

"Que coisa horrível", disse. "Isso não é coisa de doidos?"

"Estou estudando os autênticos. Os documentos do processo. Mas que sabe sobre eles?"

"Trabalho numa editora e numa editora aparecem sábios e loucos. É função do redator reconhecem os loucos num golpe de vista. Quando alguém aparece com essa dos Templários é quase sempre um louco."

"Não me diga. Seu nome é legião. Mas nem todos os loucos falarão dos Templários. E os outros, como é que os conhece?"

"Tarimba. Já lhe explico, ao amigo que é jovem. A propósito, como é seu nome?"

"Casaubon."

"Não era um personagem da Middlemarch?"

"Não sei. Em todo caso era também um filólogo da Renascença,

se não me engano. Mas não somos parentes."

"Fica para a próxima. O amigo toma outra? Pílades, mais duas aqui, por favor. Pois vejamos. No mundo existem os cretinos, os imbecis, os estúpidos e os loucos."

"Sobra alguém?"

"Sim, nós dois, por exemplo. Ou pelo menos, sem querer ofender, eu. Mas em suma, todos, a bem dizer, participam de uma destas categorias. Cada um de nós vez por outra é cretino, imbecil, estúpido ou maluco. Digamos que a pessoa normal é aquela que mistura em proporções racionais todos esses componentes, estes tipos ideais." "Idealtypen."

"Muito bem. Também sabe alemão?"

"Arranho, dá para as bibliografias."

"No meu tempo quem sabia alemão não precisava diploma. Passava a vida sabendo alemão. Creio que hoje isso acontece com o chines".

"Como não sei alemão bastante, me formo. Mas, voltando à sua tipologia, que é o gênio, Einstein, digamos?"

"O gênio é aquele que faz uma componente atuar de maneira vertiginosa, alimentando-a com as outras." Bebe. Diz: "Boa noite beleza. Já tentou o suicídio?"

"Não", responde a passante, "agora estou numa comunidade."

"Ótimo", lhe diz Belbo. Retornando a mim: "Pode-se praticar até mesmo suicídio coletivo, não acha?"

"Mas e os loucos?"

"Espero que não tenha tomado a minha teoria muito ao pé da letra. Não estou pondo o universo no lugar. Estou dizendo o que é um louco para uma casa editora. A teoria é ad hoc, está bem?"

"Está. Agora é a minha vez."

"Concordo Pílades, por favor menos gelo. Se não entra logo no circuito. Então. O cretino não fala sequer, baba, é espástico. Atocha o sorvete na testa, por falta de coordenação. Entra na porta giratória pelo lado contrário."

"Como consegue?"

"Ele consegue. Por isso é cretino. Não nos interessa, a gente e reconhece de estalo, e não é do tipo que aparece na editora. Deixemo-lo à parte."

"Pois deixemos."

"Sem imbecil é mais complexo. É um comportamento social. O imbecil é aquele que fala sempre fora do copo."

"Em que sentido?"

"Assim." Ergueu o indicador, apontando-o em direção ao copo, mas veio batê-lo fora, contra o balcão. "O imbecil quer falam daquilo que está no copo, mas vai e volta, acaba falando do que está fora. Se preferir, em termos vulgares, é o mesmo que a gafe do sujeito que pergunta como está sua senhora ao indivíduo que acaba de ser abandonado pela mulher. Dei-lhe a idéia?"

"Deu-me. Conheço muitos."

"O imbecil é muito solicitado, em especial nos eventos mundanos. Põe todos embaraçados, mas depois oferece ocasião de comentário. Em sua forma positiva, torna-se diplomata. Faia fora do copo quando outros cometem a gafe, sabe como desviar o assunto. Mas não nos interessa, não é nada criativo, trabalha de repórter, logo não vem oferecer manuscritos às casas editoras. O imbecil não diz que o gato ladra, fala do gato quando os demais falam do cão. Confunde as regras da conversação e quando o faz bem é sublime. Creio que se trata de uma raça em via de extinção, um portador de virtudes eminentemente burguesas. Vidrado em salão Verdurin, até mesmo em casa Guermantes. Os estudantes ainda lêem essas coisas?"

"Eu leio."

"O imbecil é Joachim Murat, que passa em revista seus oficiais e vê, cheio de condecorações, um da Martinica. "Vous êtes nêgre?", pergunta-lhe. E este: "Oui mon général!" E Murat: "Bravo, bravo, continuez!" E assim por diante. Está me seguindo? Desculpe, mas esta noite estou comemorando uma decisão histórica da minha vida. Deixei de beber. Quer mais outro? Não responda, me faz sentir culpado. Pílades!"

"E o estúpido?"

"Ah. O estúpido não se engana de comportamento. Engana-se no raciocínio. É aquele que diz que todos os cães são animais domésticos e que todos os cães latem, mas que também os gatos são animais domésticos e que portanto latem. Ou antes, que todos os atenienses são mortais, todos os habitantes do Pireu são mortais, logo todos os habitantes do Pireu são atenienses."

"O que é verdade."

"Sim, mas por acaso. O estúpido pode mesmo dizer uma coisa certa, mas por motivos errados."

"Pode-se dizer coisas erradas, basta que as razões sejam justas."

"Por Deus. Para que então esforçar-se tanto para se ser animais racionais?"

"Todos os grandes símios antropomorfos descendem de formas de vida inferiores, os homens descendem de formas de vida Ínferiores, logo todos os homens são grandes símios antropomorfos."

"Essa é bem boa. Já estamos naquele limiar em que a gente suspeita de que algo não se encaixa, mas que nos requer certo trabalho para demonstrarmos o que é e por quê. O estúpido é insidiosíssimo. O imbecil a gente reconhece de súbito (para não falar do cretino), enquanto o estúpido raciocina quase como tu, salvo um desvio infinitesimal. E um mestre dos paralogismos. Não há salvação para o redator-editorial, tem que esperdiçar uma eternidade. Publicam-se muitos livros de estúpidos porque à primeira vista nos convencem. O redator-editorial não é obrigado a reconhecer o estúpido. Se a academia de ciências não o faz, por que deveria fazê-lo o editor?"

"A filosofia não o faz. O argumento ontológico de santo Anselmo é estúpido. Deus deve existir porque posso pensá-lo como um ser que encerra todas as perfeições, inclusive a existência. Confunde existência na mente com a existência no real."

"Sim, mas também é estúpida a refutação de Gaunilone. Posso pensar numa ilha no mar mesmo se tal ilha não existe. Confundo o pensamento do contingente com o pensamento do necessário."

"Uma luta entre estúpidos."

"Certo, e Deus se diverte como um louco. Quis a si mesmo impensável só para demonstrar que Anselmo e Gaunilone eram estúpidos. Que escopo sublime para a criação, que digo, para o próprio ato em virtude do qual Deus se quer. Finalizando tudo na denúncia da estupidez cósmica."

"Estamos cercados de estúpidos."

"Não se escapa. Todos são estúpidos, exceto o amigo e eu. De novo, sem querer ofender, exceto o amigo."

"Mas sabe que se aplica a prova de Gódel?"

"Não sei, sou cretino. Pílades!"

"A vez é minha."

"Depois dividimos. Epimênides de Cnosso diz que todos os cretenses são mentirosos. Se ele, que é cretense, assim o diz, e os conhece bem, então é verdade."

"Isto é estúpido."

"São Paulo. Epístola a Tito. Ora esta: todos aqueles que pensam que Epimênides seja mentiroso não podem senão confiar nos cretenses, mas os cretenses não confiam nos cretenses, portanto nenhum cretense pensa que Epimênides seja mentiroso."

"Isto é estúpido ou não?"

"Veja. Disse-lhe que é difícil individualizar o estúpido. Um estúpido pode até ganhar o prêmio Nobel."

"Deixe-me pensar... Alguns daqueles que não crêem que Deus haja criado o mundo em sete dias não são fundamentalistas, mas alguns fundamentalistas pensam que Deus haja criado o mundo em sete dias, portanto ninguém que não creia que Deus haja criado o mundo em sete dias é fundamentalista. É estúpido ou não?"

"Meu Deus - é o caso de dizer... Não saberia. O que me diz?"

"É em todos os casos, mesmo se fosse verdade. Viola uma das leis do silogismo. Não se pode extrair conclusões universais de duas particularidades."

"E se o estúpido fosse o senhor?"

"Estaria em boa e secular companhia."

"Isto mesmo, a estupidez nos rodeia. E talvez por um sistema lógico diverso do nosso, a nossa estupidez é a sabedoria deles. Toda a história da lógica consiste em definir uma noção aceitável de estupidez. Grande demais. Todo grande pensador é o estúpido de um outro."

"O pensamento como forma coerente da estupidez."

"Não. A estupidez do pensamento é a incoerência de um outro pensamento."

"Profundo. Já são duas horas, daqui a pouco Pílades fecha e não teremos chegado aos loucos."

"Já chegamos. O louco é reconhecível de cara. Um estúpido que não conhece os truques. O estúpido procura demonstrar sua tese, tem uma lógica cambeta, mas tem. O louco ao contrário não se preocupa em ter uma lógica, procede por curtos-circuitos. Tudo para ele demonstra tudo. O louco tem uma idéia fixa, e tudo o que encontra lhe serve para confirmá-la. Reconhece-se o louco pela liberdade com que toma nos confrontos os deveres de prova, na disposição de encontrar iluminações. E lhe parecerá estranho, mas o louco mais cedo ou mais tarde acaba vindo com essa dos Templários.

"Sempre?"

"Há também loucos sem Templários, mas os de Templários são mais insidiosos. No princípio não o reconhece, parece que falam de modo normal, depois, de súbito...” Fez um sinal de pedir outro uísque, mas voltou atrás e pediu a conta. "Mas a propósito dos Templários. Um dia desses um indivíduo me deixou um original datilografado sobre o assunto. Estou quase apostando que seja um louco, mas de aspecto humano. O original começa de maneira pacata. Quer dar-lhe uma olhada?"

"Com muito prazer. Pode ser até que nele encontre alguma coisa que me sirva."

"Não creio muito. Mas se tem uma horinha livre dê um pulo na editora. Via Sincero Renato número 1. Será de mais proveito para mim do que para o amigo. Poderá me dizer desde logo se lhe parece um trabalho fidedigno."

"Por que confiar em mim?"

"Quem lhe disse que confio? Mas se vier confio. Confio na curiosidade."

Entrou um estudante, de fisionomia alterada: "Companheiros, os fascistas estão ao longo do canal, com correntes!"

"Vou esmagá-los", disse o de bigodes à tártara que me havia ameaçado a propósito de Lenin. "Vamos companheiros!" Saíram todos.

"Que fazemos? Vamos embora?" perguntei, culpabilizado.

"Não", disse Belbo. "São falsos alarmas que Pílades manda espalhar para desobstruir o local. Por ser a primeira noite que deixo de beber, sinto-me alterado. Deve ser a crise de abstinência. Tudo o que lhe disse, até este instante inclusive, é falso. Boa noite, Casaubon."

 

Sua esterilidade era infinita. Participava do êxtase.

(EM. Cioran, Le mauvais demiurge, Paris, Gallimard, 1969, “Pensées étranglées”)

 

A conversação no Pílades me havia fornecido, de Belbo, o vulto externo. Um bom observador teria podido intuir a natureza melancólica de seu sarcasmo. Não posso dizer que fosse uma máscara. Talvez máscara fossem as confidências a que se entregava em segredo. O sarcasmo que representava em público revelava no fundo sua melancolia mais verdadeira, que em segredo procurava ocultar de si mesmo, mascarando-a de uma melancolia amaneirada.

Vejo agora este file, onde no fundo tentava romancear o que me dissera sobre sua ocupação no dia seguinte na editora. Reencontro aqui sua acrimônia, sua paixão, sua desilusão de redator que escreve por interposta pessoa, sua nostalgia de uma criatividade jamais realizada, o rigor moril que o obrigava a punir-se porque desejava o que não se sentia com direito de desejar, dando de seu desejo uma imagem patética e oleográfica. Jamais encontrei alguém que soubesse lamentar-se com tamanho desprezo.

 

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filename: Jim do Pango

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Ver amanhã o jovem Cinti.

1. Bela monografia, rigorosa, talvez um pouco acadêmica demais.

2. Na conclusão, a comparação entre Catulo, os poetae novi e os vanguardistas contemporâneos é a coisa mais genial.

3. Por que não como introdução?

4. Convencê-lo. Dirá que essas maquinações numa coleção filológica não é coisa que se faça. Está condicionado pelo mestre, arrisca perder o prefácio e estragar a carreira. Uma idéia brilhante nas últimas duas páginas passa despercebida, mas no início não tem escapatória, e pode irritar os mandachuvas.

5. Basta colocá-la em cursivo, sob forma de discurso estendido, fora da pesquisa propriamente dita, de modo que a hipótese permaneça apenas uma hipótese e não comprometa a senedade do trabalho. Contudo, os leitores se verão imediatamente conquistados, enfrentarão o livro com uma perspectiva diferente.

Mas estarei impelindo-o de fato a um gesto de liberdade, ou antes o estarei usando para escrever meu próprio livro?

Transformar os livros com duas palavras. Demiurgo das obras alheias. Em vez de tomar a argila mole e plasmá-la, pequenos golpes na argila endurecida que já serviu a outro para esculpir a estátua. Moisés, é dar-lhe a martelada certa que ele fala.

Receber W.S.

- Vi seu trabalho, não é nada mau. Tem tensão, fantasia, dramaticidade. É a primeira vez que escreve?

- Não, já escrevi outra tragédia, a história de dois amantes veroneses que...

- Mas falemos deste trabalho, senhor S. Estava perguntando a mim mesmo por que o senhor o situa na França. Por que não na Dinamarca? Digo por dizer, e não é preciso muito, basta mudar dois ou três nomes, o castelo de Châlons-sur-Marne que se transformaria, digamos, no castelo de Elsinor... É que num ambiente nórdico, protestante, onde paira a sombra de Kierkegaard, todas essas tensões existenciais...

- Talvez tenha razão.

- Eu acho mesmo. Além do mais seu trabalho precisa de um enxugamento estilístico, nada mais que uma repassadinha, como a do barbeiro que dá os últimos retoques no corte antes de colocar-lhe o espelho atrás da nuca... Por exemplo o espectro paterno. Por que no fim? Eu o colocaria no início. De modo que a advertência do pai domine logo o comportamento do jovem príncipe e o ponha em conflito com a mãe.

- Parece uma boa idéia, já que se trata de deslocar apenas uma cena.

- Exatamente. E por fim o estilo. Tomemos um trecho ao acaso, aqui está, este em que o rapaz vem ao proscênio e inicia aquela sua meditação sobre o agir ou o não-agir. O trecho é belo, não resta dúvida, mas não o acho com bastante nervo.

"Agir ou não agir? É o que interroga a minha angústia! Devo sofrer as ofensas de uma sorte adversa ou...” Por que minha angústia interroga? Eu o faria dizer esta é a questão, aí está o problema, entende, não o seu problema individual mas a questão fundamental da existência. A alternativa entre o ser e o não-ser, por assim dizer...

Popular o mundo com filhos que andam por aí com outro nome, e nenhum saberá que são teus. Como ser Deus à paisana. Tu és Deus, andas pela cidade, ouves a gente falar de ti, e Deus isto e Deus aquilo, e que admirável universo é este, e que bem boiada a gravitação universal, e tu sorris sob os bigodes (é preciso andar por aí de barba postiça, ou melhor, sem barba, porque pela barba Deus é logo reconhecido), e dizes de ti para ti (o sotipsismo de Deus é dramático): "Muito bem, este sou eu e eles não sabem." E alguém esbarra em ti na rua, quem sabe te insulta, e tu humilde pedes desculpa, e vais em frente, porquanto és Deus e se quisesses, um estalar de dedos, e o mundo viraria cinzas. Mas és tão infinitamente potente que te permites ser bom.

Um romance sobre Deus andando incógnito. Inútil, se a idéia me veio já deve ter vindo a outro qualquer.

Variante. És um autor, não sabes ainda quão grande és, aquela que amavas te traiu, a vida para ti não tem mais sentido e um dia, para esquecer, fazes uma viagem no Titanic e naufragas nos mares do Sul, recolhe-te (único sobrevivente) uma piroga indígena e passas longos anos ignorado de todos, numa ilha habitada apenas por papuásios, com as moças que cantam canções de intenso langor, balouçando os seios cobertos apenas pelos colares de flores. Começas a habituar-te, chamam-te de Jim, como fazem com os brancos, uma garota de pele cor de âmbar se introduz uma noite em tua cabana e te diz: "Eu tua, eu contigo." No fundo é belo, de noite, estares estendido na varanda a contemplar o Cruzeiro do Sul enquanto ela te acaricia a fronte.

Vives segundo o ciclo das alvoradas e crepúsculos, e não sabes de mais nada. Um dia chega uma barca a motor cheia de holandeses, ficas sabendo que se passaram dez anos, prometes ir em companhia deles, mas hesitas, preferes trocar cocos por mercadorias, prometes que poderias ocupar-te da colheita de cânhamo, os nativos trabalham para ti, começas a navegar de uma ilhota a outra, transformado agora para todos em Jim do Pango. Um aventureiro português arruinado pelo álcool vem trabalhar contigo e se redime, todos falam agora de ti pelos mares de Sonda, aconselhas o marajá de Bornéu a fazer uma campanha contra o dajaki do rio, consegues reativar um velho canhão dos tempos de Tipp Sahib, carregado a metralha, treinas uma esquadra de maleses devotos, com dentes enegrecidos pelo bétel. Num combate junto à Barreira de Coral o velho Sampan, dentes enegrecidos pelo bétel, serve-te de escudo com o próprio corpo - Estou feliz de morrer por ti, Jim.

- Velho, velho Sampan, meu amigo.

Agora estás famoso em todo o arquipélago entre Sumatra e Port-au-Prince, tratas com os ingleses, na capitania do porto de Darwin estás registrado como Kurtz, e agora és Kurtz para todos. - Jim do Pango para os nativos. Mas uma noite, em quanto a garota te acaricia na varanda e o Cruzeiro do Sul cintila como nunca, aí quão diverso da Ursa!, chegas à conclusão: queres voltar. Só por uns tempos, para ver o que restou de ti, lá fora.

Tomas o barco a motor, alcanças Manila, de lá um avião a hélice te leva para Báu. Depois Samoa, llhas do Almirantado, Cingapura, Tananarive, Timbuctu, Aleppo, Samarcanda; Bássora, Malta e estás em casa.

Dezoito anos se passaram, a vida te marcou, a face bronzeada pelos alísios, estás mais velho, talvez mais belo. E eis que mal chegas descobres que as livrarias ostentam todos os teus livros, em reedições críticas, que o teu nome figura no frontão da velha escola onde aprendeste a ler e a escrever. És o Grande Poeta Desaparecido, a consciência de sua geração. Mocinhas românticas se suicídam diante de teu túmulo vazio.

Depois te encontro, amor, com tantas rugas em torno dos olhos, o vulto ainda belo que se desfaz em recordações, e suave remorso. Quase esbarrei em ti na calçada, estavas ali a dois passos, e tu me olhaste como olhas a todos, buscando um outro além da sombra deles. Poderia falar, apagar o tempo. Mas com que fim? Já não tive aquilo que queria? Eu sou Deus, a própria solidão, a própria vanglória, a própria desesperação por não ser uma das minhas criaturas como todos. Todos a viverem na minha luz e eu que vivo na cintilação insuportável de minha treva.

Vai, vai pelo mundo, William S.! És famoso, passas ao meu lado e não me reconheces. Eu murmuro para mim mesmo ser ou não ser e me digo bravo Belbo, bom trabalho. Vai velho William S., desfrutar tua parte da glória: tu apenas criaste, eu te refiz.

Nós que fazemos partejar os partos alheios, não devemos como os atores ser sepultados em terra consagrada. Mas os atores dão a ilusão de que o mundo, assim como é, segue de modo diverso, enquanto nós fantasiamos com o universo infinito e os mundos, a pluralidade dos compatíveis...

Como pode ser tão generosa a vida, que proporciona compensação tão sublime á mediocridade?

 

Sub umbra alarum tuarum, Jehova.

(Fama Fraternitatis, in Allgemeine und general Reformation, Cassel, Wessel, 1614, fine)

 

No dia seguinte fui à Garamond. O número 1 da via Sincero Renato conduzia a uma estreita passagem poeirenta, através da qual se entrava num pátio onde funciona uma oficina de cordoeiro. Numa entrada à direita estava o elevador que poderia figurar num pavilhão de arqueologia industrial, e como tentei tomá-lo produziu alguns sacolejões suspeitos, sem se decidir a subir. Por prudência saí e subi dois lances de uma escada quase em caracol, de madeira, igualmente poeirenta. Como soube depois, o Sr. Garamond amava aquela sede porque fazia lembrar uma editora parisiense. No patamar uma placa dizia "Garamond Editores S.A.", e uma porta aberta permitia acesso a uma sala de espera sem telefonista ou secretária de recepção. Mas não se podia entrar sem ser observado de uma exígua sala defronte, e logo me abordou uma pessoa de sexo provavelmente feminino, idade imprecisa e estatura que um eufemista teria definido como inferior à média.

A pessoa agrediu-me numa língua que me pareceu já ter ouvido em qualquer parte, até que percebi tratar-se de um italiano quase desprovido de vogais. Perguntei-lhe por Belbo. Depois de me fazer esperar alguns segundos, conduziu-me pelo corredor a uma sala no fundo do escritório.

Belbo acolheu-me com gentileza: "Então o amigo é gente séria. Entre." Fez-me acomodar em frente à sua escrivaninha, antiga como o resto, sobrecarregada de manuscritos, como as estantes junto às paredes.

"Não se assustou com a Gudrun", me disse.

"Gudrun? Aquela..., senhora?"

"Senhorita. Não se chama Gudrun. Nós a chamamos assim por causa de seu aspecto nibelúngico e porque fala de modo vagamente teutônico. Quer dizer tudo muito rápido, e engole as vogais. Mas tem o sentido da justitia aequatrix: quando bate à máquina economiza as consoantes."

"O que ela faz?"

"Tudo, infelizmente. Veja, em toda editora há um tipo que é indispensável por ser a única pessoa com capacidade de encontrar as coisas na desordem que cria. Mas, pelo menos, quando se perde um manuscrito, ficamos sabendo de quem é a culpa."

"Perde também os manuscritos?"

"Não mais que os outros. Numa editora todos perdem manuscritos. Creio ser essa a atividade principal. Mas é preciso haver no entanto um bode expiatório, não lhe parece? Só lhe reprovo não perder aqueles que eu queria. Incidente desagradável para aquilo que o velho Bacon chamava de The advancement of Iearning."

"Mas onde se perdem?"

Abriu os braços: "Desculpe, mas acaso percebeu o quanto a pergunta é tola? Se soubéssemos onde, não estariam perdidos."

"Lógico", disse. "Mas ouça. Quando vejo circulando os livros da Garamond, parecem-me edições muito cuidadas e vocês têm um catálogo bastante rico. Fazem tudo aqui mesmo? E são quantos?"

"Aqui em frente há uma grande sala com os técnicos, aqui ao lado meu colega Diotallevi. Ele cuida dos manuais, das obras de longa duração, as que levam muito tempo para fazer e muito tempo para vender, no sentido de que se vendem ao longo do tempo. As edições universitárias sou eu que faço. Mas não pense que seja um trabalho imenso. Oh deus, apaixono-me por certos livros, devo ler os manuscritos, mas em geral é tudo trabalho garantido, econômica e cientificamente. Publicações do Instituto Tal e Tal, ou antes livros de convênio, programados e financiados por uma entidade universitária. Se o autor e principiante, o mestre faz a apresentação e a responsabilidade é sua. O autor corrige pelo menos duas remessas de provas, controla as notas e citações, e não recebe direitos. Depois que o livro é adotado, se se vendem mil ou dois mil exemplares em coisa de um ano, as despesas estão cobertas... Nenhuma surpresa, todo livro é um ativo."

"Então o que faz?"

"Muitas coisas. Antes de tudo é preciso escolher. Além disso, há alguns livros que publicamos por nossa conta, quase sempre traduções de autores de prestígio, para manter a representação do catálogo. Finalmente há os manuscritos que chegam assim, trazidos em mão por alguém. Quase nunca é coisa que preste, mas é necessário examiná-los, nunca se sabe."

"Diverte-se?"

"Se me divirto? É a única coisa que sei fazer bem.

Fomos interrompidos por um tipo de uns quarenta anos, metido num paletó de tamanho bem mais amplo, poucos cabelos louros claros que lhe caiam ao longo das sobrancelhas espessas, igualmente amarelas. Falava de maneira pausada, como se instruísse uma criança.

"Estou enfastiado com aquele Vademecum do Contribuinte. Tenho que reescrevê-lo todo e não estou com vontade. Interrompo?"

"Este é Diotallevi", disse Belbo, e nos apresentou.

"Ah, veio ver os Templários? Coitado. Ouça, veio-me à mente uma boa: Urbanística Cigana."

"Ótima", disse Belbo admirado. "Eu estava pensando em Hípica Asteca."

"Sublime. Mas essa vai para a Pociosecção ou a Adynata?"

"Primeiro temos que ver", disse Belbo. Procurou na gaveta e tirou umas folhas. "A Pociosecção...” Fitou-me, notando a minha curiosidade. "A Pociosecção, instruiu-me, é a arte de cortar a sopa. Mas não", disse a Diotallevi, "a Pociosecção não é um departameto, é matéria, como a Avunculogratulação Mecânica e a Pilocatábase, todas no departamento de Tetrapiloctomia."

"Que é tetralo...” arrisquei.

"É a arte de cortar um cabelo em quatro. Esse departamento compreende o ensino das técnicas inúteis, por exemplo: a Avunculogratulação Mecânica ensina a construir máquinas para cumprimentar a tia. Estamos em dúvida se deixamos nesse departamento a Pilocatábase, que é a arte de escapar por um fio, e que não parece de todo inútil. Não acha?"

"Por favor, me digam primeiro o que é essa história...” implorei.

"É que Diotallevi, e eu próprio, estamos projetando uma reforma do saber. Uma Faculdade da Irrelevância Comparada, onde se estudam matérias inúteis ou impossíveis. A faculdade tende a reproduzir estudiosos em grau de aumentar ao infinito o número de matérias irrelevantes."

"E quantos departamentos são?"

"Por ora quatro, mas já poderiam conter todo o sabível. O departamento de Tetrapiloctomia tem uma função preparatória, tende a educar no sentido da irrelevância. Um departamento importante é o de Adynata ou Impossibilia. Por exemplo Urbanística Cigana e Hípica Asteca... A essência da disciplina é a compreensão das razões profundas de sua irrelevância, e no departamento de Adynata também as de sua impossibilidade. Eis portanto Morfemática do Morse, História da Agricultura Antártica, História da Pintura na Ilha de Páscoa, Literatura Sumeriana Moderna, Tecnologia da Roda nos Impérios Pré-Colombianos, Iconologia Braille, Fonética do Filme Mudo...”

"O que me dizem de Psicologia das multidões no Saara?"

"Muito bom", disse Belbo.

"Muito bom", disse Diotallevi com convicção. "O senhor deve colaborar. Esse jovem tem estofo, não é mesmo, Jacopo?"

"Tem, eu vi logo. Ontem à noite elaborou uns raciocínios estúpidos com extrema agudeza. Mas continuemos, visto que o projeto lhe interessa. Que foi que pusemos no departamento de Ossimórica, que não encontro mais anotado?"

Diotallevi tirou do bolso um folheto e me fixou com sentenciosa simpatia: "Em Ossimórica, como a própria palavra diz, o que conta é a autocontraditoriedade da disciplina. Eis por que Urbanística Cigana segundo minha opinião devia acabar aqui...”

"Não", disse Belbo, "só se fosse Urbanística Nomádica. Os Adynata contemplam uma impossibilidade empírica, a Ossimórica uma contradição em termos."

"Veremos. Mas que foi que pusemos em Ossimórica? Está aqui, Instituições de Revolução, Dinâmica Parmenídea, Estática Heracliana, Espartânica Sibarítica, Instituições de Oligarquia Popular, História das Tradições Inovativas, Dialética Tautológica, Erística Booliana...”

Agora me sentia desafiado a mostrar a minha têmpera: "Posso sugerir-lhes uma Gramática do Desvio?"

"Ótimo, Ótimo!" disseram ambos, e se puseram a tomar nota.

"Há um porém", disse eu.

"Qual?"

"Se tornarem público o projeto, vai aparecer aqui um montão de gente com publicações aceitáveis."

"Fique sabendo que é um rapaz arguto, Jacopo", disse Diotallevi. "Mas sabe que este é exatamente o nosso problema? Sem querer traçamos o perfil ideal de um saber real. Demonstramos a necessidade do possível. Daí a necessidade de calar. Mas agora preciso ir”.

"Aonde?" perguntou Belbo.

"É tarde de sexta-feira."

"Ó Jesus santíssimo”, disse Belbo. Depois a mim: "Aqui defronte há duas ou três casas habitadas por judeus ortodoxos, sabe aqueles com chapéu preto, barba enorme e cabelos em caracol. Não há muitos em Milão. Hoje é sexta-feira e ao entardecer começa o sábado. Por isso aqui no apartamento em frente já começam a preparar tudo, a acender o candelabro, a cozer os alimentos, a dispor as coisas de tal modo que amanhã não tenham de acender nenhum fogo. Até a televisão permanece ligada a noite toda, embora sejam obrigados a escolher imediatamente o canal. O nosso Diotallevi tem uma pequena luneta, e ignominiosamente espreita pela janela, e se delicia, sonhando estar do outro lado da rua."

"E por quê?" perguntei.

"Porque o nosso Diotallevi se obstina em sustentar que é judeu."

"Como me obstino?" perguntou melindrado Diotallevi. "Eu sou judeu. Tem alguma coisa contra, Casaubon?"

"Imagina!"

"Diottalevi", disse Belbo em tom decidido, "tu não és judeu."

"Não? E o meu nome?* Como Graziadio (graças-a-Deus), Diosiaconté (Deus-seja-contigo), todas traduções do hebraico, nomes de gueto, como Shalom Aleichem."

 

* Diotallevi em italiano é o mesmo que Deus te crie. (AI, do T)

 

"Diotallevi é um nome de bom agouro, amiúde dado pelos registros civis aos enjeitados. E teu avô era um enjeitado."

"Um enjeitado hebreu."

"Diotallevi, tens a pele rosada, a voz gutural e és praticamente albino."

"Já que há coelhos albinos, pode haver judeus albinos."

"Diotallevi, não se pode decidir tornar-se judeu como se decide tornar-se filatelista ou testemunha-de-jeová. Judeu se nasce. Resigna-te, és um gentio como todos."

"Fui circuncidado."

"Ora, vamos! Qualquer um pode ser circuncidado por motivos de higiene. Basta um médico e um termocautério. Com que idade foste circuncidado?"

"Não sutilizemos."

"Ao contrário, sutilizemos. Um judeu sutiliza."

"Ninguém poderá demonstrar que meu avô não tenha sido judeu."

"Sem dúvida, era um enjeitado. Mas poderia ser igualmente o herdeiro do trono de Bizâncio, ou um bastardo dos Habsburgos."

"Ninguém pode demonstrar que meu avô não foi judeu, e que foi encontrado no gueto."

"Mas tua avó não era judia, e a descendência daquelas partes vem por via materna... "..., e acima das razões anagráficas, porque mesmo os registros civis podem ser lidos além da letra, há razões de sangue, e o sangue diz que os meus pensamentos são esquisitamente talmúdicos, e seria racismo de tua parte sustentar que até mesmo um gentio pode ser assim esquisitamente talmúdico como eu acho que sou."

Saiu. Belbo me diz: “Não faça caso. Esta discussão ocorre quase todos os dias, só que cada dia procuro trazer um argumento novo. O fato é que Diotallevi é devoto da Cabala. Mas havia igualmente cabalistas cristãos. Depois, Casaubon, se Diotallevi quer ser judeu, não me posso opor”.

"Acho que não. Somos democratas."

"Somos democratas."

Acendeu um cigarro. Recordei-me por que havia vindo. "Falou-me de um original sobre os Templários", disse.

"É verdade... Vejamos. Estava numa pasta de couro plástico...”

Procurava numa pilha de manuscritos, tentando arrancar dali um, metido no meio, sem retirar os outros. Operação arriscada. Com efeito a pilha tombou em parte sobre o pavimento. Belbo tinha agora nas mãos a pasta de couro plástico.

Examinei o índice e a introdução. "Diz respeito à prisão dos Templários. Em 1307 Filipe o Belo decidiu prender todos os Templários da França. Ora, há uma lenda que diz que dois dias antes de Filipe expedir a ordem de prisão, uma carroça de feno, puxada por bois, deixa o recinto do Templo, em Paris, com destino ignoto. Diz-se ser um grupo de cavaleiros guiados por um certo Aumont, os quais se refugiarão na Escócia, ligando-se a uma loja maçônica em Kilwinning. A lenda quer que os cavaleiros se identificassem com as companhias de maçons que tramavam os segredos do Templo de Salomão. Isso, já prevíamos. Até este pretende encontrar a origem da maçonaria naquela fuga dos Templários para a Escócia... Uma história ruminada por dois séculos, com base em fantasias. Nenhuma prova, posso pôr na mesa uns cinqüenta livrecos que narram a mesma façanha, plagiando uns aos outros. Veja aqui, abrindo ao acaso: "A prova da expedição escocesa está no fato de que, até hoje, a seiscentos e cinqüenta anos de distância, existem ainda no mundo ordens secretas que evocam a Milícia do Templo. Como explicar de outra forma a continuidade dessa herança espiritual?" Compreende? Como é possível não existir o marquês de Carabas se até o gato de botas diz estar a seu serviço?"

"Compreendo", disse Belbo. "Vou jogá-lo fora. Mas a sua história dos Templários me interessa. Não vou perder esta chance de ter à mão um entendido. Por que todos falam dos Templários e não dos cavaleiros de Malta? Não, não me diga agora. Já está ficando tarde, Diotallevi e eu devemos ir daqui a pouco a um jantar em casa do Sr. Garamond. Mas devemos estar de volta aí pelas dez e meia. Se puder, vou convencer também o Diotallevi para dar um salto ao Pílades - ele em geral é abstêmio e gosta de dormir cedo. Encontro-o lá?"

"Mas como não? Pertenço a uma geração perdida, e só me encontro quando assisto em grupo à solidão de meus semelhantes."

 

Li frere, li mestre du Temple

Qu’estoient rempli et ample

D’or et d’argent et de richesse

Et qui menoient tel noblesse,

Où sont il? que sont devenu?

(Chronique à Ia suite du roman de Favel)

 

Et in Arcadia ego. O Pílades naquela noite era a imagem da idade de ouro. Uma daquelas noitadas em que te advertes de que a Revolução não só se fará, mas que será patrocinada pelo Sindicato das Indústrias. Só no Pílades se podia ver o proprietário de um cotonifício, de barba e dólman verde-oliva, jogando biriba com um futuro foragido, de jaquetão e gravata. Estávamos nos alvores de uma grande revirada do paradigma. Ainda no inicio dos anos a barba era fascista - mas era preciso desenhar com ela o perfil, raspando-a nas maçãs do rosto, à Italo Balbo*

 

* Prócer fascista. (N. do T.)

 

- em sessenta e oito passara a ser contestatória, e agora estava se tornando neutra e universal, opção de liberdade. A barba sempre foi máscara (põe-se uma barba postiça para não ser reconhecido), mas na perspectiva do início dos anos setenta a gente se podia camuflar com uma barba verdadeira. Podia-se mentir dizendo a verdade, ou mais, tornando a verdade enigmática e fugidia, porque diante de uma barba não se podia mais inferir a ideologia do barbudo. Mas naquela noite, a barba resplendia mesmo sobre os rostos glabros dos que, não usando, deixavam compreender que podiam cultivá-la renunciando a isso apenas por provocação.

Divago. Mas a certa altura chegaram Belbo e Diotallevi, murmurando reciprocamente, com ares transtornados, acres comentários sobre o recente jantar de que vieram. Só mais tarde vim a saber o que eram os jantares do Sr. Garamond.

Belbo passou imediatamente aos seus destilados preferidos, Diotallevi refletiu um bom tempo, hesitante, e se decidiu pela água tônica. Arranjamos uma mesinha ao fundo, naquele instante deixada livre por dois motorneiros que deviam acordar cedo na manhã seguinte.

"Com que então", disse Diotallevi, "aqueles Templários...”

"Não, agora por favor não me ponham em crise... São coisas que se podem ler em qualquer parte...

"Somos pela tradição oral", disse Belbo.

"É mais mística", disse Diotallevi. "Deus criou o mundo falando, e não mandando um telegrama."

"Fiat lux, stop. Segue epístola", disse Belbo.

"Aos tessalonicenses, imagino", disse.

"Os Templários", perguntou Belbo.

"Pois", disse eu.

"Não se começa nada com pois", objetou Diotallevi.

Fiz menção de levantar-me. Esperei que me pedissem para ficar. Não o fizeram. Sentei-me e falei.

"Bem, quero dizer, a história todos sabem. Houve a primeira cruzada, está bem? Godofredo adora o santo sepulcro e escolhe o claustro, Balduíno torna-se o primeiro rei de Jerusalém. Um reino cristãona Terra Santa. Mas uma coisa é ter Jerusalém, outra coisa o restoda Palestina, e os sarracenos foram vencidos mas não eliminados. A vida naquela parte não é fácil, nem para os novos entronizados, nem para os peregrinos. E eis que em 1118, sob o reinado de Balduíno II, aparecem nove personagens, liderados por um certo Hugues de Payns, e constituem o núcleo de uma Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo: ordem monástica, mas com espada e armadura. Os três votos clássicos, pobreza, castidade e obediência, e mais o de defesa dos peregrinos. O rei, o bispo, todos, em Jerusalém, logo ajudam com dinheiro e alojamento, e os instalam no claustro do velho Templo de Salomão. E aí está por que se tornaram os Cavaleiros do Templo."

"Quem eram?"

"Provavelmente Hugues e os primeiros oito eram idealistas, devotos da mística da cruzada. Mas em seguida agirão como cadetes em busca de aventuras. O novo reino de Jerusalém é um pouco a Califórnia daqueles tempos, pode-se fazer fortuna. Em sua terra não são muitas as perspectivas, e é de supor que entre eles haja algum que tenha feito das suas. Penso no assunto em termos de legião estrangeira. Que fazes se estás em apuros? Fazes-te Templário, pode-se conhecer novas terras, a gente se diverte, combate, te dão comida, vestes e no fim até salvas a alma. E verdade, é preciso que estejas bastante desesperado, pois se trata de vagar pelo deserto, dormir em tendas, passar dias e dias sem ver vivalma a não ser os outros Templários e a cara de algum turco, a cavalgar embaixo do sol, dividindo as rações de água e estripando outros pobres-diabos...”

Calei-me por um instante. "Talvez esteja tornando a coisa demasiadamente western. Há provavelmente uma terceira fase: a ordem se torna poderosa, procuram fazer parte dela mesmo aqueles que têm boa posição na pátria. Mas àquela altura ser Templário já não significa necessariamente trabalhar, pode-se ser Templário até em casa. História complexa. As vezes parecem recrutas sem eira nem beira, outras vezes demonstram ter certa sensibilidade. Por exemplo, não se pode dizer que fossem racistas; combatiam os muçulmanos, estavam ali para isso, mas com espírito cavaleiroso, e admiravam-se mutuamente. Quando o embaixador do emir de Damasco visita Jerusalém, os Templários lhe destinam uma pequena mesquita, já transformada em igreja cristã, para que possa fazer suas orações. Um dia entra um franco que se indigna de ver um muçulmano num lugar sagrado, e o trata mal. Os Templários correm com o intolerante e se desculpam com o muçulmano. Essa fraternidade de armas com o inimigo os levará mais tarde à ruína, porque com o correr do tempo serão até mesmo acusados de terem tido ligações com seitas esotéricas muçulmanas. E talvez seja verdade, um pouco assim como aqueles aventureiros do século passado tomados pelo mal da Africa, que não tinham uma educação monástica regular, não eram assim tão Sutis em entender as diferenças teológicas, imagine-os como outros Lawrences da Arábia, e com pouco se vestem como xeiques... Mas depois é difícil avaliar suas ações, porque amiúde os historiógrafos cristãos como Guilherme de Tiro não perdem ocasião de denegri-los."

"Por quê?"

"Porque se tornam poderosos demais e muito diligentes. Tudo começa com são Bernardo. Estão vendo são Bernardo, não? Grande organizador, reforma a ordem beneditina, elimina da igreja as condecorações, quando um colega o irrita, como Abelardo, ataca-o à McCarthy, e se pudesse o mandaria à fogueira. Não podendo, manda queimar seus livros. Depois prega a cruzada, armai-vos e parti...”

"Não lhe é nada simpático, não", observou Belbo.

"Não, não o suporto, se dependesse de mim iria terminar num dos círculos horrendos, apesar de santo. Mas era um bom agente de publicidade de si mesmo, veja a homenagem que lhe presta Dante, nomeando-o chefe de gabinete de Nossa Senhora. Torna-se imediatamente santo porque alcovitou com a gente certa. Mas falava dos Templários. Bernardo intuiu logo que a idéia era de se cultivar, e apóia aqueles nove aventureiros, transformando-os numa Militia Christi, digamos mesmo que os Templários, em sua versão heróica, quem inventa é ele. Em 1128 faz convocar um concílio em Troyes especialmente para definir o que são aqueles novos monges soldados, e alguns anos depois escreve um elogio daquela Milícia de Cristo, e prepara uma regra de setenta e dois artigos, divertida de se ler, porque aí se encontra de tudo. Missa todos os dias, não devem freqüentar cavaleiros excomungados, mas se algum deles solicita admissão no Templo devem acolhe-lo cristãmente, e vejam que eu tinha razão quando falava de legião estrangeira. Vestirão manto branco, simples, sem peles, a não ser que sejam de ovelha ou de carneiro, proibido usar calçados recurvos e macios segundo a moda, devem dormir de camisa e ceroulas, um colchão, um lençol e uma coberta...”

"Com aquele calor decerto fediam...” disse Belbo.

"Do fedor falaremos depois. A regra apresentava outras durezas: a mesma escudela para dois, come-se em silencio, carne três vezes por semana, penitencia às sextas, acorda-se de madrugada, se o trabalho da véspera foi muito fatigante concede-se uma hora de sono a mais, mas em compensação devem-se recitar treze padre-nossos na cama. Existe um mestre, toda uma série de hierarquias inferiores, desde os cavalariços, aos escudeiros, aos fâmulos e servos. Cada cavaleiro terá três cavalos e um escudeiro, nenhuma decoração de luxo nas bridas, sela ou nas esporas, armas simples, mas boas, vedada a caça, exceto o leão, em suma, uma vida de penitência e de batalha. Sem falar no voto de castidade, sobre o qual se insiste particularmente, porque eles eram gente que não estava em convento mas que fazia a guerra, vivia em meio ao mundo, se quisermos chamar de mundo a vermina que a Terra Santa devia ser naqueles tempos. Em suma, diz a regra que a companhia de uma mulher é perigosíssima e só se pode beijar a mãe, a irmã e a tia...”

Belbo hesitou: "Bem, quanto à tia, eu teria sido mais prudente... Mas, quanto me lembro, os Templários não foram acusados de sodomia? Há aquele livro de Klossovski, Le Baphomet. Quem era esse Bafomé, uma divindade diabólica deles, não?"

"Lá chegaremos. Mas pensem um momento. Passavam uma vida de marinheiro, meses e meses no deserto. Estás na casa do diabo, é noite, dormes na tenda com o mesmo sujeito que come na mesma escudela que a tua, tens sono sede medo queres a mamãe. Que fazes?"

"Amor viril, legião tebana", sugeriu Belbo.

"Mas pensem que vida infernal, em meio a outros soldados e pajens que não fizeram voto, quando invadem uma cidade estupram as mourazinhas de ventre cor de âmbar e olhos de veludo, que faz o Templário, entre os aromas dos cedros do Líbano? Pois deixem-lhe o mourinho. Agora compreendem por que se difundiu o ditado ‘beber e praguejar como um Templário’. É um pouco a história do capelão na trincheira, que entorna pinga e pragueja com seus soldados analfabetos. E basta disto. O sinete deles sempre os representa a dois, um à garupa do outro, no mesmo cavalo. Por que, visto que a regra lhes concede três cavalos a cada um? Deve ter sido uma idéia de Bernardo, para simbolizar a pobreza, ou a duplicidade de seu papel de monges e cavaleiros. Mas sabem como é a imaginação popular, que dizer desses monges que vão por aí a toda brida, um com a pança contra o rabo do outro? Acabarão por serem caluniados...”

"...não decerto sem motivo", comentou Belbo. "São Bernardo certamente não era nenhum estúpido."

"Não, estúpido não era, mas era monge também ele, e naqueles tempos o monge tinha uma estranha idéia do corpo... Ainda há pouco estava receoso de ter levado a minha história um pouco demais para o western, mas, pensando bem, ouçam o que dizia Bernardo sobre seus cavaleiros prediletos, trago aqui comigo a citação porque vale a pena: "Evitam e aborrecem os mimos, os prestidigitadores e os ilusionistas, as canções inconvenientes e as farsas, cortam curtos os cabelos, tendo aprendido do apóstolo ser ignominia o homem cuidar da própria cabeleira. Jamais são vistos penteados, raramente lavados, a barba hirsuta, fétidos de pó, sujos por causa da armadura e do calor"."

"Eu é que não queria morar junto deles", disse Belbo.

Diotallevi sentenciou: "Sempre foi típico do eremita cultivar uma sadia sujeira, para humilhar o próprio corpo. São Macário não vivia sobre uma coluna e, quando os vermes lhe caíam das costas, os recolhia e os punha de novo no corpo para que eles, também criaturas do Senhor, tivessem o seu festim?"

"O estilita era são Simeão", disse Belbo, "e acho que ficava em cima da coluna só para cuspir na cabeça daqueles que passavam por baixo."

"Odeio o espírito do iluminismo", disse Diotallevi. "Em todo caso, Macário ou Simeão, houve um estilita com vermes como eu disse, mas não sou autoridade na matéria porque não me ocupo das loucuras dos gentios."

"Acaso eram limpos os teus rabinos de Gerona?" perguntou Belbo.

"Estavam em lúgubres casebres porque vocês os gentios os confinavam no gueto. Os Templários ao contrário se emporcalhavam por gosto."

"Não dramatizemos", disse eu. "Já viram um pelotão de recrutas depois da marcha forçada? Mas lhes contei estas coisas para faze-los compreender a contradição dos Templários. Deve-se ser místico, ascético, não comer, não beber, não varrer, mas vai para o deserto, corta a cabeça aos inimigos de Cristo, quanto mais cortas tanto mais ganhas cupões para o paraíso, fede, faz-se hirsuto a cada dia que passa, e Bernardo ainda pretendia que depois de haver conquistado uma cidade não se atirassem sobre alguma mocinha ou velhinha que fosse, e que nas noites sem lua, quando como se sabe o simum sopra no deserto, não se deixassem fazer um servicinho qualquer pelo seu companheiro de armas preferido. Só porque és monge e espadachim, estripas muçulmanos e rezas a ave-maria, não deves encarar tua prima e quando entras numa cidade, depois de dias e dias de assédio, os outros cruzados fodendo a mulher do califa diante dos teus olhos, sulamitas maravilhosas abrindo o corpete e dizendo-te toma-me toma-me mas deixa-me a vida... E o Templário nada, devia ficar duro, fedorento, hirsuto como o queria são Bernardo a recitar completas... Além do mais, basta ler os Retraits...”

"Que era isso?"

"Estatutos da ordem, redigidos bem mais tarde, digamos quando a ordem já estava de pantufas. Não há nada pior do que um exército que se entedia porque a guerra acabou. Por exemplo proibiram-se as rixas, que se ferisse um cristão por vingança, comércio com as mulheres, caluniar o irmão. Não se deve perder um escravo, encolerizar-se e dizer ‘vou para o lado dos sarracenos!’, deixar extraviar por incúria um cavalo, dar animais com exceção de cães e gatos, partir sem permissão, quebrar o sigilo do mestre, deixar a capitania de noite, emprestar dinheiro da ordem sem autorização, atirar o hábito por terra quando enfurecido."

"Através de um sistema de vetos pode-se intuir o que as pessoas faziam habitualmente", disse Belbo, "e com isso traçar esboços da vida quotidiana."

"Vejamos", disse Diotallevi, "um Templário, irritado por alguma coisa que os irmãos lhe haviam dito ou feito àquela noite, sai tarde sem permissão, a cavalo, com um sarracenozinho de escolta e três capões pendurados na sela, para ir à casa de uma rapariga de costumes indecorosos e locupletando-a com os ditos capões dela obtém as vantagens de ilícito conúbio... Depois, durante a esbórnia, o mourinho escapa com o cavalo e o nosso Templário, mais sujo suado e hirsuto que de costume, volta para casa com o rabinho entre as pernas e procurando passar despercebido entrega dinheiro (do Templo) ao usurário de costume, um judeu que o espera como um abutre sobre a trípode...”

"Tu o disseste, Caifás", observou Belbo.

"E assim por diante, segundo os estereótipos. O Templário procura reaver se não o mouro, pelo menos uma sombra do cavalo. Mas um co-templário percebe a tramóia e à noite (estamos vendo, naquela comunidade a inveja é de casa), quando entre a satisfação geral chega a carne, faz pesadas alusões. O capitão fica desconfiado, o suspeito se atrapalha, enrubesce, arranca o punhal e atira-se sobre o tipo...”

"Sobre o sicofanta", precisou Belbo.

"Sobre o sicofanta, bem dito, atira-se sobre o miserável golpeando-lhe o rosto. Este arranca da espada, litigam indecorosamente, o capitão procura acalmá-los a catanadas, os irmãos escarnecem...”

"Bebendo e praguejando como Templários...” disse Belbo.

"Juradeus, nomededeus, pordeus, afédedeus, sanguededeus!" dramatizei. "Sem dúvida, o nosso Templário se altera, assim..., como diabo fica um Templário quando se altera?"

"Fica com o rosto pavonáceo", sugeriu Belbo.

"Isso, tal como dizes, fica com o rosto pavonáceo, arranca o hábito e o arremessa por terra...”

"Fiquem com esta túnica de merda vocês e seu maldito templo!" propôs. "Depois, dá uma espadagada no sinete, despedaça-o e grita que lá se vai unir aos sarracenos."

"Violando pelo menos oito preceitos de um só lance."

Concluí, para melhor ilustrar minha tese: "Pois ali havia tipos assim, que dizem lá me vou com os sarracenos, no dia em que o bailio do rei os prende e os faz ver o ferro em brasa? Fala marrano, diz que lhe metias no traseiro! Nós? Mas a mim as vossas tenazes me fazem rir, não sabem do que é capaz um Templário, meto no traseiro vosso, do papa, e se estiver à mão até mesmo no do rei Filipe!"

"Confessou, confessou! Foi decerto assim a coisa", disse Belbo.

"E já para o calabouço, uma passada de óleo todos os dias, que assim queima melhor."

"Como crianças", concluiu Diotallevi.

Fomos interrompidos por uma jovem, com uma nódoa de morango no nariz, e folhas de panfleto na mão. Perguntou-nos se já havíamos assinado pelos companheiros argentinos presos. Belbo logo assinou, sem sequer olhar a folha. "Em todo caso, estão pior que eu", disse a Diotallevi, que o observava com ar perdido. Depois voltou-se para a moça: "Ele não pode assinar, pertence a uma minoria indiana que proibe escrever o próprio nome. Muitos deles estão na cadeia porque o governo os persegue." A garota fixou Diotallevi com compreensão e passou o papel para mim. Diotallevi relaxou-se.

"Quem são?" perguntei.

"Como quem são? Companheiros argentinos."

"Sim, mas de que grupo?"

"Taquara, não?"

"Mas os Taquaras são fascistas", arrisquei, ao que sabia.

"Fascista", me sibilou com ódio a jovem. E lá se foi.

"Mas, em suma, esses Templários eram então uns pobres coitados?" perguntou Diotallevi.

"Não", disse eu. "e tenho a culpa, porque estava procurando tornar mais viva a minha história. Tudo o que dissemos respeita à tropa, mas a ordem desde o início recebeu doações fantásticas e pouco a pouco foi constituindo capitanias em toda a Europa. Notem que Afonso de Castela e Aragão presenteou-a com um país inteiro, e, além disso, em seu testamento lhe deixa o reino caso venha a morrer sem herdeiros. Os Templários não confiam no gesto e fazem uma transação, como quem diz contentamo-nos com pouco, mas esse pouco são nada menos que uma dezena de fortalezas na Espanha. O rei de Portugal lhes doa uma floresta, e como ainda estivesse ocupada pelos sarracenos os Templários se metem ao assalto, expulsam os mouros, e por assim dizer fundam Coimbra. E são apenas episódios. Em resumo, uma parte combate na Palestina, mas o grosso da ordem progride em casa. E que acontece? Se alguém tem que ir à Palestina e precisa de dinheiro, e não tem coragem de viajar com jóias e ouro, entrega-os aos Templários na França, na Espanha ou na Itália, recebe um bônus que pode ser resgatado no Oriente."

"A carta de crédito?" perguntou Belbo.

"Isto mesmo, inventaram o cheque, e antes dos banqueiros fIorentinos. Donde se compreende que, por força de doações, conquistas à mão armada e corretagens sobre operações financeiras os Templários se tenham tornado uma multinacional. Para dirigir uma empresa do gênero era preciso gente de boa cabeça. Gente que consegue convencer Inocêncio II a conceder-lhes privilégios excepcionais: a ordem pode ficar com as pilhagens de guerra, e onde tiver bens não está obrigada a prestar obediência ao rei, aos bispos ou ao patriarca de Jerusalém, mas apenas ao papa. Isentados em toda parte do pagamento da dízima, têm o direito eles próprios de impô-la nas terras que controlam... Em suma, trata-se de uma empresa sempre no ativo na qual ninguém pode meter o bedelho. Compreende-se por que passam a ser malvistos pelos bispos e reinantes, que contudo não podem passar sem eles. Os cruzados são uns trapalhões, gente que parte sem saber para onde vai nem o que vai encontrar, já os Templários neste particular estão em casa, sabem como tratar o inimigo, conhecem o terreno e a arte militar. A ordem dos Templários é uma coisa séria, ainda que se sustente sobre as fanfarronadas de sua tropa de choque."

"Mas eram fanfarronadas?" perguntou Diotallevi.

"Muitas vezes sim, e de novo nos surpreendemos com a variedade entre seu conhecimento político e administrativo, e seu estilo de boinas-verdes, todo fígado e nenhum cérebro. Tomemos a história de Ascalão...’

"Tomemos", disse Belbo, que se havia distraído para cumprimentar com ostensiva luxúria uma certa Dolores que entrava.

Esta veio sentar-se ao nosso lado, dizendo: "Quero ouvir a história de Ascalão, quero ouvir.”

"Ora, um dia o rei de França, o imperador germânico, Balduíno III de Jerusalém e dois grão-mestres dos Templários e dos Hospitalários decidiram assediar Ascalão. Partem todos para o assédio, o rei, a Corte, o patriarca, os padres com as cruzes e estandartes, os arcebispos de Tiro, de Nazaré, da Cesaréia, em suma, uma grande festa, com as tendas erguidas diante da cidadela inimiga, e as auriflamas, o grande paves, os tambores... Ascalão era defendida por cento e cinqüenta torres e os habitantes já estavam preparados há tempos para o assédio, cada casa dispondo de seteiras, outras tantas fortalezas na fortaleza principal. Digo, os Templários, que eram tão hábeis, deviam saber essas coisas. Mas nada, todos se excitam, constroem tartarugas e torres de madeira, sabem aquelas construções sobre rodas que se empurram para junto dos muros do inimigo e lançam fogo, pedras, flechas, enquanto de longe as catapultas bombardeiam com pedregulhos... Os ascalonitas procuram incendiar as torres, o vento lhes é desfavorável, as chamas pegam nas muralhas, que pelo menos em um ponto cedem. A brecha! Neste ponto todos os assediantes entram como se fossem um só, e acontece um fato estranho. O grão-mestre dos Templários faz uma barragem, de modo que na cidadela só entrem os seus. As más línguas dizem que fez isso para que o saque enriquecesse só os Templários, os de boa-fé acham que temendo uma emboscada quisesse mandar na vanguarda os seus audazes. Em todo caso não daria a eles a direção de uma escola de guerra, porque quarenta Templários percorrem toda a cidade a cento e oitenta por hora, vão dar de cara com a muralha do lado oposto, freiam levantando grande nuvem de poeira, olham uns para os outros e se perguntam que coisa estão fazendo ali, invertem a marcha e desfilam precipitadamente entre os mouros, que os perseguem atirando-lhes pedras e venábulos das janelas, massacrando-os todos inclusive o grão-mestre, e em seguida tapam a brecha, penduram nos muros os cadáveres e fazem figa para os cristãos entre escárnios obscenos."

"O mouro é cruel", disse Belbo.

"Como as crianças", repetiu Diotallevi.

"Mas eram uns baderneiros do cacete esses seus Templários", disse Dolores, excitada.

"A mim fazem lembrar o Tom & Jerry", disse Belbo.

Arrependi-me. No fundo estava há dois anos vivendo com os Templários, e os amava. Intimidado pelo esnobismo de meus interlocutores, acabei apresentando-os como personagens de desenho animado. Talvez fosse culpa de Guilherme de Tiro, historiador infiel. Não eram assim os cavaleiros do Templo, barbudos e flamejantes, com a bela cruz encarnada sobre o manto cândido, esvoaçante à sombra de sua bandeira branca e negra, o Beauceant, destinados - e maravilhosamente - à sua festa de morte e de audácia, e o suor de que falava são Bernardo talvez fosse um lucilar brônzeo que conferia uma nobreza sarcástica ao seu sorriso tremendo, enquanto estavam assim aplicados em festejar cruelmente o adeus da vida... Leões na guerra, como dizia Jacques de Vitry, cordeiros cheios de doçura na paz, rudes na batalha, devotos na prece, ferozes com os inimigos, benévolos com os irmãos, marcados do branco e do negro de seu estandarte porque cheios de candor pelos amigos de Cristo, soturnos e terríveis para com seus adversarios...

Patéticos campeões da fé, último exemplo de uma cavalaria no crepúsculo, por que me comportar em relação a eles como um Ariosto qualquer, quando poderia ser seu Joinville? Vieram-me à mente as páginas que lhes dedicara o autor da História de São Luís, que havia seguido para a Terra Santa em companhia do Rei Santo, escrivão e combatente ao mesmo tempo. Enfim os Templários existiam há cento e cinqüenta anos, haviam feito cruzadas bastantes para extenuar qualquer ideal. Desaparecidas como fantasmas as figuras heróicas da rainha Melisanda e de Balduíno o rei leproso, consumadas as lutas intestinas daquele Líbano ensangüentado desde então, tendo caído já uma vez Jerusalém, Barba-Roxa afogando-se na Cilícia, Ricardo Coração de Leão derrotado e humilhado que regressa à pátria travestido precisamente de Templário, a cristandade perde sua batalha, e os mouros têm uma idéia bem diversa da confederação dos potentados autônomos mas unidos na defesa de uma civilização - leram Avicena, não são ignorantes como os europeus, como é possível permanecer dois séculos exposto a uma cultura tolerante, mística e libertina, sem ceder às lisonjas, podendo-a comparar à cultura ocidental, rude, insolente, bárbara e germânica? Até que em 1244 ocorre a última e definitiva queda de Jerusalém, a guerra, iniciada cento e cinqüenta anos antes, é perdida, os cristãos irão deixar de empunhar armas numa terra destinada à paz e ao perfume dos cedros do Líbano, pobres Templários, de que serviu vossa epopéia?

Ternura, melancolia, palores de uma glória fenecente, por que não se dedicar então à consulta das doutrinas secretas dos místicos muçulmanos, à acumulação hierática de tesouros ocultos? Talvez daí tenha nascido a lenda dos cavaleiros do Templo, que até hoje obsidia as mentes desiludidas e desejosas, a história de uma potência sem limites que já agora não sabe mais sobre o que exercitar-se...

Contudo, já no ocaso do mito, aparece Luís, o rei santo, o rei que tem por comensal o Aquinate, que ainda acredita na cruzada, mau grado dois séculos de sonhos e tentativas falidas pela estupidez dos vencedores, vale a pena tentar mais uma vez? Vale a pena, diz Luís o Santo, os Templários topam, seguem-no na derrota, pois é este o seu dever, como justificar o Templo sem a cruzada?

Luís ataca Damieta por mar, a praia inimiga é todo um reluzir de lanças e alabardas e auriflamas, escudos e cimitarras, bela e valorosa gente de se ver, diz Joinville cavalheiresco, que portam armas de ouro percutidas pelo sol. Luís poderia esperar, decide em vez disso desembarcar a qualquer custo. "Meus fiéis, seremos invencíveis se formos inseparáveis em nossa fé. Se formos vencidos seremos mártires. Se triunfarmos, a glória de Deus estará acrescida." Os Templários não vão na conversa, mas foram educados para serem cavaleiros do ideal, e tal é a imagem que devem apresentar de si mesmos. Seguiram o rei em sua mística loucura.

O desembarque incrivelmente teve êxito, os sarracenos incrivelmente abandonam Damieta, tanto assim que o rei hesita em entrar na cidade pois não crê naquela fuga. Mas é verdade, a cidadela é sua e seus são os tesouros e as cem mesquitas que imediatamente Luís converte em igrejas do Senhor. Agora se trata de tomar uma decisão: marchar sobre Alexandria ou sobre o Cairo? A decisão prudente teria sido Alexandria, para subtrair ao Egito um porto vital. Mas lá estava o gênio mau da expedição, o irmão do rei, Rohert d’Artois, megalômano, ambicioso, sedento de glória e impulsivo, como todo caçula. Aconselha a marcha sobre o Cairo, coração do Egito. O Templo, a principio prudente, obedece contrariado, O rei havia vetado as escaramuças isoladas, mas é o marechal do Templo que infringe a proibição. Vê um destacamento de mamelucos do sultão e grita: "Vamos a eles, em nome de Deus, pois não posso suportar uma vergonha dessas!"

Os sarracenos em Mansurah se entrincheiram do outro lado de um rio, os franceses tratam de construir um dique para poderem vadeá-lo, protegendo-o com suas torres móveis, mas os sarracenos aprenderam com os bizantinos a arte do fogo grego. O fogo grego tinha uma ponta grossa como um barril, a cauda era como uma grande lança, chegava como um raio e parecia um dragão que voasse pelos ares. E desprendia tal luz que o campo ficava claro como se fosse dia.

Enquanto o campo cristão está todo em chamas, um beduíno traidor indica ao rei um vau, por trezentos besantes. O rei decide atacar, a travessia não é fácil, muitos se afogam e são arrastados pelas águas, e na margem oposta estão à espera trezentos sarracenos a cavalo. Porém o grosso do exército finalmente toca em terra, e de acordo com as ordens os Templários cavalgam na vanguarda, seguidos do conde de Artois. Os cavaleiros muçulmanos põem-se em fuga e os Templários esperam o resto do exército cristão. Mas o conde de Artois avança com os seus em perseguição do inimigo.

Então os Templários, para não ficarem desonrados, lançam-se também eles ao ataque, mas cavalgando apenas na retaguarda de Artois, que já invadiu o campo inimigo e andava a fazer estragos. Os muçulmanos empreendem a fuga em direção a Mansurah. Para Artois, é como um convite para a festa, e toca a persegui-los. Os Templários tentam detê-lo, o irmão GilIes, comandante-em-chefe do Templo, lisonjeia-o dizendo que Artois já havia realizado uma empresa admirável, das maiores empreendidas em terras de ultramar. Mas Artois, janota sedento de glória, acusa de traição os Templários, aduzindo ainda que, se tivessem querido, os Templários e os Hospitalários aquela terra já teria sido conquistada há muito, e ele próprio dera uma prova do que se podia fazer quando se tinha sangue nas veias. Era demais para a honra do Templo. O Templo não se deixa secundar por ninguém, todos se atiram em direção à cidade, invadem-na, seguem o inimigo até as muralhas do lado oposto, e naquele instante os Templários se dão conta de estarem repetindo o erro de Ascalão. Os cristãos - Templários inclusive - demoraram-se em saquear o palácio do sultão, os infiéis se reorganizam, precipitam-se sobre aquela malta de aves de rapina, já agora dispersa. Será que os Templários mais uma vez se deixaram cegar pela cobiça? já outros afirmam que, antes de seguir Artois na invasão da cidade, o irmão Gilles lhe dissera com lúcido estoicismo: "Sire, eu e meus irmãos não temos medo e vos seguiremos. Mas sabei que duvidamos, e muito, que ambos possamos retornar." Em todo caso, Artois, graças a Deus, acaba sendo morto, e com ele tantos outros bravos cavaleiros, inclusive duzentos e oitenta Templários.

Pior que uma desfeita, uma vergonha. Contudo, não vem registrada como tal, nem mesmo em Joinville: isso ocorre, é a beleza da guerra.

Sob a pena do senhor de Joinville muitas dessas batalhas, ou escaramuças que fossem, se transformam em delicados balés, com algumas cabeças que rolam, e muitas implorações ao bom Senhor, e vez por outra um pranto do rei por algum súdito fiel que expira, mas tudo como filmado a cores, entre gualdrapas ruhras, ornamentos dourados, lampejar de elmos e de espadas sob o sol amarelo do deserto e defronte ao mar turquesino, e quem sabe se os Templários não viveram precisamente assim sua carnificina quotidiana?

O olhar de Joinville se move de alto a baixo ou de baixo para cima, segundo ele caia do cavalo ou volte a montar, e põe em destaque cenas isoladas, o plano da batalha lhe escapa, tudo se resolve em duelos individuais e freqüentemente de êxito casual Joinville se lança em auxilio do senhor de Wanon, um turco o fere com um golpe de lança, o cavalo cai de joelhos, Joinville voa para a frente por cima da cabeça do animal, levanta-se de espada em punho e o senhor Érard de Siverey ("Deus o absolva") faz-lhe sinal para se refugiarem numa casa em ruínas, são literalmente esmagados por um regimento de turcos, mas conseguem erguer-se indenes, retornam a essa casa, fazem dela barricada, os turcos os assediando do alto com a ponta das lanças. O senhor Frédéric de Loupey é ferido no ombro "e tal era a ferida que o sangue esguichava como a rolha que salta de uma pipa" e o senhor de Siverey leva tal espadada no meio dos cornos "que o nariz lhe caía sobre a boca". E por aí afora, até que chega socorro, saem da casa, são transferidos para outra área do campo de batalha, nova cena, outras mortes e resgates in extremis, preces em voz alta ao senhor são Tiago. E no meio disto tudo, o bom conde de Soissons grita, enquanto desfere seus golpes de espada, "senhor de Joinville, deixemos urrar essa canalha, que haveremos, por Deus, de ainda falar deste dia quando estivermos entre as damas!" E quando o rei pede notícias de seu irmão, o maldito conde de Artois, o frade Henry de Ronnay, preposto dos Hospitalarios, responde "que tinha boas notícias, sabendo por certo que o conde de Artois estava já no paraíso". O rei diz Deus seja louvado por tudo que lhe mandar, e grossas lágrimas lhe rolam dos olhos.

Mas não é sempre balé, por angélico e sanguinário que seja. Morre o grande mestre Guillaume de Sonnac, queimado vivo pelo fogo grego, o exército cristão, em razão da fedentina dos cadáveres e da escassez de víveres, acaba vítima do escorbuto, a armada de são Luís está a caminho, o rei é minado pela disenteria, de tal forma que tem de cortar o fundilho dos calções para ganhar tempo em meio das batalhas. Damieta é perdida, a rainha tem de pactuar com os sarracenos e lhes paga quinhentas mil liras tornesas para salvar a vida.

Mas as cruzadas se faziam com teologal má-fé. Em São João de Acre, são Luís foi acolhido como triunfador e toda a cidade se dirige ao seu encontro em procissão, com o clero, as mulheres e as crianças. Os Templários conhecem a história toda e procuram entrar em tratativas com Damasco. Luís vem a sabê-lo, não admite ser apeado do trono, excomunga o novo grão-mestre em frente dos embaixadores muçulmanos, e o grão-mestre desrespeita a palavra dada aos inimigos, ajoelha-se diante do rei e lhe pede perdão. Não se pode dizer que os cavaleiros não se tenham batido bem, e desinteressadamente, mas o rei de França os humilha, para reafirmar seu poder - e para reafirmar seu poder, meio século depois, seu sucessor Filipe os mandará à fogueira.

Em 1291 São João de Acre é conquistada aos mouros, todos os seus habitantes são imolados. O reino cristão de Jerusalém chega ao fim. Os Templários estão mais ricos, mais numerosos e mais poderosos que nunca, criados para combater na Terra Santa e na Terra Santa não se encontram mais.

Vivem esplendidamente sepultados nas capitanias de toda a Europa e no Templo de Paris, e sonham ainda com a esplanada do Templo de Jerusalém em seus tempos de glória, com a bela igreja de Santa Maria de Latrão constelada de capelas votivas, com buquês de troféus, e um rebuliço de forjas, selarias, lojas de fazendas, celeiros, uma cavalariça para dois mil cavalos, um enredar de escudeiros, fâmulos, turcópolos, as cruzes vermelhas sobre os mantos brancos, as cotas castanhas dos auxiliares, os enviados do sultão com grandes turbantes e elmos dourados, os peregrinos, um emaranhado de belas patrulhas e estafetas, e a euforia dos cofres cheios, o porto do qual partiam ordens e disposições e encargos para os castelos da mãe-pátria, das ilhas e das costas da Ásia Menor...

Tudo acabou, meus pobres Templários.

Percebi aquela noite, no Pílades, já então no quinto uísque, que Belbo estava me dando corda, que eu estava sonhando, com sentimento (que vergonha), mas em voz alta, e devo ter contado uma história belíssima, com paixão e compaixão, porque Dolores estava com os olhos lúcidos, e Diotallevi, precipitado na insânia de uma segunda água tônica, volvia os olhos seráficos para os céus, ou antes para o teto nada sefirótico do bar, e murmurava: "E talvez fosse tudo isso, almas perdidas e almas puras, palafreneiros e cavaleiros andantes, banqueiros e heróis...”

"Certo que eram singulares", foi a síntese de Belbo. "Mas, Casaubon, quero saber se os ama?"

"Faço uma tese sobre eles, e quando se faz uma tese seja lá sobre a sífilis a gente acaba amando o treponema pálido."

"Belo como um filme", disse Dolores. "O caso é que agora tenho que me mandar, estão ouvindo, pois amanhã bem cedo vou circular uns volantes por aí. Vamos ajudar nos piquetes na Marelli."

"Feliz de você que ainda se pode permitir essas coisas", disse Belbo. Ergueu a mão fatigada e acariciou-lhe os cabelos. Pediu, disse, o último uísque. "É quase meia-noite", observou. "Não falo por causa dos humanos, mas por Diotallevi. Porém, terminemos a história, quero saber do processo. Quando, como, por quê...”

"Cur, quomodo, quando", assentiu Diotallevi. "Isso, isso."

 

Afirmava ter visto no dia anterior cinqüenta e quatro irmãos da ordem serem conduzidos à fogueira, porque não haviam querido confessar os supraditos erros, e que havia ouvido dizer que tinham sido queimados, e que ele próprio, temendo não oferecer boa resistência se fosse condenado à fogueira, havia confessado, por temor da morte, na presença dos senhores comissários e de não importa quem mais, se fosse interrogado, que todos os erros imputados a ordem eram verdadeiros e que ele, se lhe fosse perguntado, teria também confessado ter morto Nosso Senhor.

(Depoimento de Aimeryde Villiers-le Duc, 13.5.1310)

 

Um processo cheio de silêncios, contradições, enigmas e estupidezes. Estas últimas eram as mais evidentes, e por serem inexplicáveis coincidiam em regra com os enigmas. Naqueles dias felizes eu acreditava que a estupidez criasse o enigma. Aquela noite no periscópio pensava que os enigmas mais terríveis, para não se revelarem como tais, se mascaram de loucura. Agora penso ao contrário que o mundo seja um enigma benigno, que a nossa loucura faz terrível por pretender interpretá-lo segundo a própria verdade.

Os Templários haviam perdido sua razão de ser. Ou melhor, haviam transformado os meios em fins, administrando sua imensa riqueza. Natural que um monarca centralizador como Filipe o Belo os visse com maus olhos. Como se podia ter sob controle uma ordem soberana? O grão-mestre tinha o mesmo status de um príncipe de sangue azul, comandava um exército, administrava um patrimônio fundiário imenso, era eleito como o imperador, e tinha autoridade absoluta. O tesouro francês não estava nas mãos do rei, mas sob a custódia do Templo de Paris. Os Templários eram os depositários, os procuradores, os administradores de uma conta corrente atribuída formalmente ao rei. Recebiam, pagavam, manobravam com os juros, comportavam-se como um grande banco privado, mas com todos os privilégios e as franquias de um banco estatal... E o tesoureiro do rei era um Templário. Pode-se reinar em tais condições?

Quando não se pode vencer alguém, melhor unir-se a ele. Filipe pede para ser feito Templário honorário. Resposta negativa. Ofensa que um rei jamais esquece. Então sugere ao papa a fusão dos Templários e os Hospitalários, pondo a nova ordem sob o controle de um de seus filhos. O grão-mestre do Templo, Jacques de Molay, chega em grande pompa de Chipre, onde então reside como um monarca no exílio, e apresenta ao papa um memorial no qual finge analisar as vantagens, mas na realidade põe à mostra as desvantagens da fusão. Sem pudor, Molay observa entre outras coisas que os Templários eram mais ricos que os Hospitalários, e a fusão serviria para empobrecer uns e enriquecer outros, o que seria de grave dano para o ânimo de seus cavaleiros. Molay vence esta primeira cartada no jogo que se estava iniciando, e o processo é arquivado.

Não restava senão a calúnia, e aqui o rei tinha bom jogo. Boatos sobre os Templários já circulavam desde muito. Como deviam parecer esses "coloniais" aos bons franceses que os viam à sua volta a recolher dízimas e a nada oferecer em troca, nem mesmo - já agora - o próprio sangue de protetores do Santo Sepulcro? Franceses também eles, embora não de todo, para dizer a verdade quase pieds noirs, ou como se dizia então, poulains. É possível que ostentassem hábitos exóticos, quem sabe se entre eles não falassem a língua dos mouros, a que estavam habituados. Eram monges, mas davam espetáculo público de seus costumes petulantes, e já alguns anos antes o papa Inocênio III fora induzido a escrever uma bula De insolentia Templariorum. Faziam voto de pobreza, mas viviam no fausto de uma casta aristocrática, tinham a avidez das novas classes mercantis e o atrevimento de uma companhia de mosqueteiros.

Precisa-se de pouco para passar à murmuração alusiva: homossexuais, heréticos, idólatras que adoram uma cabeça barbuda não se sabe donde veio, mas não decerto do panteão dos crentes fiéis, talvez partilhem do segredo dos ismaélitas, relacionem-se com os Assassinos do Velho da Montanha. De qualquer modo, Filipe e seus conselheiros tiram partido dos disse-me-disses.

À sombra de Filipe agem as suas almas danadas. Marigny e Nogaret. Marigny é este que no final porá as mãos no tesouro do Templo e o administrará por conta do rei, à espera de que passe aos Hospitalários, e não é certo que usufrua dos interesses. Nogaret, chanceler do rei, fora em 1303 o estratego do incidente de Anagni quando Sciarra Colonna esbofeteou o napa Bonifácio VIII, que morreu de humilhação no curso de um mês.

A certa altura entra em cena um tal de Esquieu de Floyran. Parece que, estando preso por delitos imprecisos e às vésperas da pena capital, encontra na cela um Templário renegado, também este à espera do haraço, de quem recolhe terríveis confissões. Floyran, em troca de sua incolumidade e de uma boa soma em dinheiro, vende o que sabe. O que sabe é exatamente aquilo que agora todos já murmuram. Mas agora passou-se da murmuração ao depoimento junto ao juiz de instrução. O rei comunica as sensacionais revelações de Floyran ao papa, que é agora Clemente V, este que levou a sede papal para Avignon. O papa acredita e não acredita, e além do mais sabe que não é fácil meter a mão nos negócios do Templo. Mas em 1307 consente em que se abra um inquérito oficial. Molay é informado disso, mas se declara tranqüilo. Continua a participar, ao lado do rei, das cerimônias oficiais, príncipe em meio aos príncipes. Clemente V deixa o tempo correr e o rei suspeita que o papa queira dar aos Templários a chance de fugir. Nada de mais falso, os Templários bebem e praguejam em suas capitanias na ignorância de tudo. Eis o primeiro enigma.

Em 14 de setembro de 1307 o rei envia mensagens seladas a todos os bailios e senescais do reino, ordenando a prisão em massa dos Templários e o confisco de seus bens. Entre o envio da ordem e a prisão, que ocorre a 13 de outubro, passa-se um mês. Os Templários não suspeitam de nada. Na manhã da prisão caem todos na rede e - outro enigma - rendem-se sem oferecer resistência. E note-se que nos dias precedentes os oficiais do rei, para se assegurarem de que nada seria subtraído ao confisco, tinham feito uma espécie de inventário do patrimônio templar, em todo o território nacional, alegando razões administrativas francamente pueris. E os Templários nada, tenha a bondade senhor bailio, pode olhar o que bem quiser como se a casa fosse sua.

O papa, ao saber da prisão, tenta um protesto, tarde demais. Os comissários reais já começam a trabalhar de ferro e corda, e muitos cavaleiros, sob tortura, acabam por confessar. Isto ocorrido, não resta senão passá-los aos inquisidores, os quais ainda não usam o fogo, mas isso basta. Os confessos confirmam.

E aqui está o terceiro mistério: é verdade que houve tortura, e vigorosa, já que trinta e seis cavaleiros dela morreram, mas o que impressiona é que esses cavaleiros de ferro, habituados a enfrentar os turcos cruéis, nenhum deles faz frente aos bailios. Em Paris, de cento e trinta e oito cavaleiros, só quatro se recusam a confessar. Os demais confessam tudo, inclusive Jacques de Molay.

"Mas confessam o quê?" indaga Belbo.

"Confessam exatamente aquilo que já estava escrito na ordem de prisão. Pouquíssimas variações nos depoimentos, pelo menos na França e na Itália. Ao contrário, na Inglaterra, onde ninguém quer verdadeiramente processá-los, aparecem nos depoimentos acusações canônicas, embora atribuídas a testemunhas estranhas à ordem, que falam apenas por ouvir dizer. Em suma, os Templários confessam só ali onde alguém quer que confessem e só o quanto querem que confessem."

"Processo inquisitório normal. Já vimos tantos assim", observou Belbo.

"Contudo o comportamento dos acusados é bizarro. Os pontos de acusação são que os cavaleiros durante seus ritos iniciáticos renegavam três vezes Cristo, cuspiam sobre o crucifixo, eram desnudados e beijados in posteriori parte spine dorsi, quer dizer no rabo, no umbigo e depois na boca, in humane dignitatis opprobrium; enfim se davam a concúbito recíproco, diz o texto, um com o outro. A orgia. Era-lhes depois mostrada a cabeça de um ídolo barbudo, e eles deviam adorá-lo. Ora, o que respondem os acusados quando postos de frente a essas acusações? Geoffroy de Charnay, este que morrerá mais tarde na fogueira com Molay, diz que sim, que havia acontecido com ele, que havia renegado Cristo, mas com a boca, não com o coração, e não se lembra de haver cuspido sobre o crucifixo porque naquela noite estavam todos com pressa. Quanto ao beijo no rabo, também isto lhe havia ocorrido, e ouvira o preceptor de Alvernia dizer que no fundo era melhor unir-se com os irmãos do que se comprometer com mulheres, mas que ele no entanto jamais havia cometido pecados carnais com os outros cavaleiros. Ah, sim, a coisa era quase uma brincadeira, ninguém lhes dava verdadeiramente crédito, os outros faziam, eu não, estava ali só por cortesia. Jacques de Molay, o grão-mestre, que não era o último da banda, diz que quando lhe deram o crucifixo para nele cuspir, fingiu que o fazia mas cuspiu por terra. Admite que as cerimônias de iniciação fossem daquele gênero, mas - como sempre - não sabe dizer com exatidão por que ele durante sua carreira só tenha iniciado pouquíssimos irmãos. Outro confessa ter beijado o mestre, mas não no rabo, só na boca, mas talvez o mestre sim o tenha beijado no traseiro. Alguns confessam mais que o necessário, não só renegavam Cristo mas afirmavam ser ele um criminoso, negavam a virgindade de Maria, diante do crucifixo sobre o qual haviam até mesmo urinado, não só no dia de sua iniciação, mas também durante a semana santa, não criam nos sacramentos e não se limitavam a adorar o Bafomé, adoravam igualmente o diabo sob a forma de gato...”

Da mesma forma grotesco, embora menos incrível, é o balé que se inicia àquela altura entre o rei e o papa. O papa quer tomar o caso nas mãos, o rei prefere conduzir sozinho o processo ao fim, o papa gostaria de suprimir a ordem apenas provisoriamente, condenando os culpados, restaurando-a depois em sua pureza primitiva, o rei quer que o escândalo se propague, que o processo comprometa a ordem em seu todo e conduza ao seu desmembramento definitivo, político e religioso, é certo, mas sobretudo financeiro.

A certa altura aparece um documento que é uma obra-prima. Mestres em teologia instituem que não se deve conceder aos condenados um defensor, para impedir que se retratem: visto que confessaram, não há por que instruir um processo, o rei deve exercer seu poder, o processo se faz quando o caso é dúbio, e aqui de dúbio não há nada. "Por que se lhes dar um defensor senão para defender seus erros confessos, dado que a evidência dos fatos torna o crime notório?"

Mas como há o risco de que o processo escape ao rei e passe às mãos do papa, o rei e Nogaret levantam novo caso clamoroso que envolve o bispo de Troyes, acusado de bruxaria, por delação de um misterioso intrigante, um tal de Noffo Dei. Mais tarde se descobrirá que Dei havia mentido - e será enforcado - mas enquanto isso são despejadas sobre o pobre bispo acusações públicas de sodomia, sacrilégio e usura. As mesmas culpas dos Templários. Talvez o rei quisesse mostrar aos filhos da França que a igreja não tinha direito de julgar os Templários, por não estar isenta de sua mácula, ou então lança simplesmente uma advertência ao papa. É uma história obscura, uma trama de polícias e serviços secretos, de infiltrações e delações... O papa é posto entre a parede e a espada e consente em interrogar setenta e dois Templários, os quais confirmam as confissões obtidas sob tortura. O papa entretanto leva em conta o arrependimento deles e joga a carta da retratação, para lhes poder perdoar.

E aqui acontece uma outra coisa - que constituía um ponto a solucionar na minha tese, e eu estava dilacerado em meio a fontes contraditórias: o papa mal obtém a custo, e só no fim, a custódia dos cavaleiros, e ato contínuo os restitui ao rei. Jamais compreendi o queaconteceu. Molay se retrata das confissões feitas. Clemente oferece-lhe ocasião de defender-se e envia três cardeais para interrogá-lo. Molay a 26 de novembro de 1309 assume uma arrogante defesa da ordem e de sua pureza, chegando a ameaçar os acusadores, depois é abordado por um emissário do rei, Guillaume de Plaisans, que acredita seu amigo, recebe alguns conselhos obscuros e no dia 28 do mesmo mês volta a produzir um depoimento timidíssimo e vago, em que diz ser um cavaleiro pobre e sem cultura, e se limita a arrolar os méritos (já agora remotos) do Templo, e as esmolas que deu, o tributo de sangue deixado na Terra Santa e assim por diante. Ainda por cima chega Nogaret, que recorda como o Templo tivera contatos, mais que amigáveis, com Saladino: estamos diante da insinuação de um crime de alta traição. As justificações de Molay são penosas, nesse depoimento aquele homem, já agora afeito a dois anos de cárcere, parece um frangalho, mas frangalho ele já se havia mostrado logo após a prisão. Num terceiro depoimento, em março do ano seguinte, Molay adota outra estratégia: não fala, e não falará senão diante do papa.

Muda o cenário e passamos agora ao drama épico. Em abril de 1310 quinhentos e cinqüenta Templários pedem para ser ouvidos em defesa da ordem, denunciam as torturas a que foram submetidos os confessantes, negam tudo e demonstram ser inconcebíveis todas as acusações. Mas o rei e Nogaret conhecem o seu mister. Alguns Templários se retrataram? Melhor, devem por isso ser considerados reincidentes e perjuros, ou antes relapsi - terrível acusação naqueles tempos - porque negavam arrogantemente aquilo que já haviam admitido. Pode-se mesmo perdoar ao que se confessa e se arrepende, mas não àquele que não se arrepende porque retrata a confissão e diz, perjurando, não ter de que se arrepender. Cinqüenta e quatro retratadores perjuros acabam condenados à morte.

É fácil pensar na reação psicológica dos outros detidos. Quem confessa permanece vivo no cárcere, e quem viver verá. Quem não confessa, ou pior, se retrata, vai para o fogo. Os quinhentos retratadores ainda vivos retratam sua retratação.

O cálculo dos arrependidos foi aquele que prevaleceu, pois em 1312 os que não haviam confessado foram condenados à prisão perpétua enquanto os confessos foram perdoados. A Filipe não interessava um massacre, só queria desmembrar a ordem. Os cavaleiros libertados, já agora destruídos no corpo e no espirito após quatro ou cinco anos de cárcere, passaram silenciosamente para outras ordens, só querem agora ser esquecidos, e este desaparecimento, essa anulação pesará demoradamente sobre a lenda da sobrevivência clandestina da ordem.

Molay continua a pedir para ser ouvido pelo papa. Clemente reúne um concílio em Viena, em 1311, mas não convoca Molay. Sanciona a supressão da ordem e adjudica seus bens aos Hospitalários, ainda que no momento seja ele quem os administra.

Passam-se outros três anos, chega-se enfim a um acordo com o papa, e em 19 de março de 1314, no adro da Notre-Dame, Molay é condenado a pena perpétua. Ouvindo tal sentença, Molay tem um sobressalto de dignidade. Havia esperado que o papa lhe permitisse exculpar-se e sente-se traído. Sabe muito bem que se se retrata Outra vez será tido também por perjuro e reincidente. Que se passa em seu coração, depois de quase sete anos à espera de julgamento? Readquire a coragem de seus maiores? Decide, já agora destruído, com a perspectiva de acabar seus dias desonrado e entre quatro paredes, que mais vale enfrentar uma bela morte? Protesta inocência, sua e de seus irmãos. Os Templários só cometeram um delito, diz: o de traírem, por vileza, o Templo. Ele não está nessa.

Nogaret esfrega as mãos: para delito público, condenação pública, e definitiva, com processo de urgência. Também o preceptor da Normandia, Geoffroy de Charnay, se havia comportado como Molay. O rei decide na hora: ergue-se uma fogueira na ponta da île de la Cité. Ao entardecer, Molay e Charnay são queimados vivos.

A tradição quer que o grão-mestre antes de morrer tenha profetizado a ruína de seus perseguidores. Na verdade o papa, o rei e Nogaret estariam mortos dentro de um ano. Quanto a Marigny, depois do desaparecimento do rei, ficará sob a suspeita de malversação. Seus inimigos o acusam de bruxaria e fazem-no enforcar. Muitos começam a pensar em Molay como um mártir. Dante fará eco à indignação de tantos pela perseguição dos Templários.

Aqui termina a história e começa a lenda. Segundo um de seus desenvolvimentos, no dia em que Luís XVI foi guilhotinado, um desconhecido salta sobre o patíbulo e grita: "Jacques de Molay, foste vingado!

Foi esta mais ou menos a narrativa que fiz aquela noite no Pilades, interrompido a cada instante.

Belbo perguntava: "Mas está certo de que não leu esta em OrwelI ou em Koestler?" Ou ainda: "Mas, espere aí, este é o caso de..., como se chama mesmo aquele da revolução cultural?...” Diotallevi agora intervinha sentencioso, a cada instante: "Historia magistra vitae." Belbo dizia-lhe: "Deixe disso, um cabalista não crê na história." E ele, invariavelmente: "De fato, tudo se repete em círculos, a história é mestra porque nos ensina que não é. Mas contam as permutações."

"Mas em suma", disse Belbo ao fim, "quem eram os Templários? Primeiro os apresentou como sargentos de um filme de John Ford, depois como porcalhões, a seguir como cavaleiros em miniatura, depois ainda como banqueiros de Deus que faziam grossas sujeiras, também como um exército derrotado, e finalmente como adeptos de uma seita luciferina e mártires do livre-pensamento... Quem eram afinal?"

"Eis aí talvez a razão por que se transformaram em mito. Eram provavelmente todas essas coisas juntas. Qual terá sido a igreja católica, poderá perguntar um historiador marciano do ano três mil, aquela dos fiéis que se deixavam comer pelos leões ou a daqueles que massacravam os heréticos? Tudo junto."

"Mas, diga lá, aquelas coisas, fizeram mesmo ou não?"

"O fato mais divertido é que seus sequazes, quero dizer os neo-templaristas de épocas diversas, disseram que sim. As justificativas são muitas. Primeira tese, tratava-se de ritos goliardescos: queres tornar-te Templário, mostra que tens um par de colhões assim, cospe no crucifixo e vejamos se Deus te fulmina; para entrares nesta milícia deves dar-te de mãos e pés aos irmãos, fazer-te beijar no traseiro. Segunda tese, eram chamados a negar o Cristo para saber como se sairiam quando os sarracenos os viessem a aprisionar. Explicação idiota, porque não se educa ninguém a resistir à tortura fazendo-o fazer, ainda que simbolicamente, aquilo que o torturador lhe exigirá. Terceira tese: os Templários no Oriente entraram em contato com heréticos maníqueus que desprezavam a cruz, porque foi o instrumento de tortura do Senhor, e professavam que era preciso renunciar ao mundo, desencorajando o matrimônio e a procriação. Idéia antiga, típica de muitas heresias dos primeiros séculos, que passará aos cátaros - e há toda uma tradição que quer os Templários embebidos de catarismo. E então seria compreensível o porquê da sodomia, mesmo se apenas simbólica. Admitamos que os cavaleiros tenham entrado em contato com aqueles heréticos: não eram decerto intelectuais, um pouco por ingenuidade, um pouco por esnobismo e por esprit de corps, criam um folclore pessoal para eles, que os distingue dos outros cruzados. Praticam ritos como gestos de reconhecimento, sem perguntar o que acaso significam."

"Mas e o tal de Bafomé?"

"Vejam, em muitos depoimentos fala-se de uma figura Baffometi, mas pode tratar-se de um erro do primeiro escrivão e, com o manipular das atas, esse primeiro erro se teria reproduzido em todos os documentos. Em outros casos alguém mencionou Maomé (istud caput vester deus est, et vester Mahumet), e isso queria dizer que os Templários haviam criado uma liturgia sincretística deles. Em alguns depoimentos diz-se mesmo que foram exortados a invocar ‘yalla’, que devia ser Alá. Mas os muçulmanos não veneravam a imagem de Maomé, logo por quem afinal teriam sido influenciados os Templários? Os depoimentos dizem às vezes que muitos viram a cabeça, em outras que em vez de cabeça era um ídolo de corpo inteiro, de madeira, com cabelos crespos, coberto de ouro, e sempre de barba. Parece que os inquisidores encontraram essas cabeças e as mostraram aos inquiridos, mas em suma, das cabeças não permanece o menor traço, todos a viram, ninguém a viu. Como a história do gato, que um dizia ser cinza, outro ruço e um terceiro preto. Mas imaginem um interrogatório com ferro em brasa: viu um gato durante a iniciação? E como não, uma fazenda templar, tendo que salvar dos ratos todas as colheitas que abrigava, devia estar cheia de gatos. Naqueles tempos, na Europa, o gato não era muito comum como animal doméstico, ao passo que no Egito sim. Quem sabe se os Templários não tinham gatos em casa, contra os costumes da gente vulgar, que os considerava animais suspeitos. E o mesmo pode ocorrer em relação à cabeça de Bafomé, que talvez fossem relicários em forma de cabeça, pois assim se usava à época. Naturalmente há quem sustente que Bafomé era uma figura alquímica."

"Sempre entra a alquimia", disse Diotallevi com convicção, "os Templários provavelmente conheciam o segredo da fabricação do ouro."

"Certo que conheciam", disse Belbo. "Assalta-se uma cidade sarracena, degolam-se mulheres e crianças, rapina-se tudo aquilo que cai à mão. A verdade é que toda esta história é uma grande barafunda."

"Talvez tivessem barafunda na cabeça, entendem, que lhes importavam os debates doutrinais? A História é cheia de histórias desses corpos eleitos que criam seu próprio estilo, um pouco fanfarrão, um pouco místico, nem mesmo eles sabiam ao certo que coisa faziam. Naturalmente há a interpretação esotérica, eles sabiam tudo muito bem, eram adeptos dos mistérios orientais e até o beijo no rabo tinha um significado iniciático."

"Explique-me um pouco o significado iniciático do beijo no traseiro", disse Diotallevi.

"Certos esotéricos modernos sustentam que os Templários entregavam-se a doutrinas indianas. O beijo no rabo teria servido para despertar a serpente Kundalini, uma força cósmica que reside na raiz da espinha dorsal, nas glândulas sexuais, e que uma vez despertada atinge a glândula pineal...”

"A de Cartésio?"

"Suponho, e lhe devia abrir na fronte um terceiro olho, o da visão direta no tempo e no espaço. Por isso se procura até hoje o segredo dos Templários."

"Filipe o Belo devia queimar é os esoteristas modernos e não aqueles pobres coitados."

"É, mas os esoteristas modernos não têm um vintém."

"Mas vejam só que histórias a gente tem que ouvir", concluiu Belbo. "Agora compreendo por que os Templários obsidiam tantos dos meus malucos."

"Creio que seja um pouco a história daquela outra noite. Todo caso deles é um silogismo retorcido. Comporta-te como estúpido e te tornarás impenetrável por toda a eternidade. Abracadabra. Manel Tekel Phares. Papai Satã Papai Satã Aleppe, le vierge le vivace et lê bel aujourd’hui, sempre que um poeta, um pregador, um chefe, um mago emitem borborigmos sem significado, a humanidade leva séculos para decifrar sua mensagem. Os Templários permanecem indecifráveis por causa de sua confusão mental. É por isso que tantos os veneram.”

"Explicação positivística", disse Diotallevi.

"Sim", disse eu, "talvez eu seja positivista. Com uma boa operação cirúrgica na glândula pineal os Templários teriam podido tornar-se Hospitalários, vale dizer pessoas normais. A guerra corrompe os circuitos cerebrais, deve ser o rumor dos canhonaços, ou do fogo grego... Cuidado com os generais."

Era a uma da manhã. Diotallevi, embriagado de água tônica, cambaleava. Despedimo-nos. Eu me havia divertido. Não sabia então que estava começando a brincar com fogo grego, que queima, e consome.

 

Disse-me Érard de Siverey: "Sire, se julgais que nem eu nem meus herdeiros seremos desonrados por isso, irei vos buscar socorro junto ao conde de Anjou, que vejo lá em meio ao campo de batalha." E eu lhe disse: "Messire Erard, parece-me que seria grande demonstração de coragem vossa irdes buscar socorro para nós, quando vossa própria vida corre tamanho perigo."

(Joinville, Histoire de Saint Louis, 46, 226)

 

Depois da jornada dos Templários só tive com Belbo algumas conversas ocasionais no Pílades, aonde ia cada vez com menos freqüência, porque estava trabalhando em minha tese.

Um dia houve uma grande passeata contra as maquinações da direita, que devia partir da universidade, para a qual estavam convidados, como acontecia então, todos os intelectuais antifascistas. Pomposa formação policial, mas parecia que o intuito era deixar a coisa correr. Típico daqueles tempos: passeata não-autorizada, mas desde que não acontecesse nada de grave a força pública se limitava a observar controlando (então os compromissos territoriais eram muitos) para que a esquerda não transgredisse nenhum dos limites ideais que haviam sido traçados no centro de Milão. Numa determinada área se concentrava a contestação, para além do largo Augusto e em toda a zona da praça San Babila estacionavam os fascistas. Se alguém invadia o terreno do outro havia incidentes, mas em geral não acontecia nada, como entre o domador e o leão. De hábito acreditamos que o domador seja atacado pelo leão, ferocíssimo, e o consegue domar erguendo o chicote ou disparando um tiro de pistola. Puro engano: o leão já está saciado e drogado quando entra na jaula e não deseja agredir ninguém. Como todos os animais têm uma área de segurança, fora da qual pode ocorrer o que quiser que ele permanece tranqüilo. Quando o domador mete o pé na área do leão, o leão ruge; depois o domador ergue o chicote, mas na verdade dá um passo para trás (como tomando impulso para um salto à frente), e o leão se acalma. Uma revolução simulada deve ter suas próprias regras.

Eu fora à passeata, mas não me situei em nenhum dos grupos. Fiquei de fora, na praça Santo Stefano, por onde circulavam jornalistas, redatores editoriais, artistas que vinham manifestar solidariedade. O Pílades em peso.

Vi-me ao lado de Belbo. Estava com uma garota com quem já o vira várias vezes no bar, e imaginei que fosse sua amiga (desapareceu mais tarde - agora sei por quê, por haver lido no file a história sobre o Dr. Wagner).

"Também está nesta?" perguntei.

"Que quer", sorriu embaraçado. "É preciso salvar também a alma. Crede firmiter et pecca fortiter. Esta cena não lhe recorda qualquer coisa"?"

Olhei em torno. Era uma tarde de sol, um daqueles dias em que Milão é bela, com as fachadas amarelas de suas casas e um céu docemente metálico. A polícia em frente a nós estava encafuada em seus elmos e escudos de plástico, que pareciam desprender fulgores de aço, enquanto um comissário em trajes civis, mas com uma faixa tricolor berrante, ziguezagueava à frente de seus comandados. Olhei à minha frente, o início do desfile: a multidão se movia, porém marcando passo, as fileiras estavam organizadas mas irregulares, quase em serpentina, a massa surgia eriçada de cartazes, estandartes, dísticos, bastões. Alas impacientes entoavam de quando em quando slogans ritmados; ao longo do desfile, caracolavam os baderneiros, com lenços vermelhos amarrados à testa, camisas multicores, cintos de tachas nos jeans que haviam conhecido todas as chuvas e todos os sóis; até mesmo as armas impróprias que empunhavam, sob o disfarce de bandeiras enroladas, surgiam como elementos de uma palheta, e pensei em Dufy e na alegria de seu colorido. Por associação, de Dufy passei a Guillaume Dufay. Tive a impressão de estar vivendo numa miniatura, entrevi na pequena multidão dos lados das fileiras, algumas mulheres, andróginas, que esperavam a grande festa de audácia que lhes haviam prometido. Mas tudo me cruzou a mente num relâmpago, senti que estava revivendo uma outra experiência, mas sem reconhecê-la.

"Não é a tomada de Ascalão?" perguntou Belbo.

"Para o senhor são Tiago, meu bom senhor", retruquei-lhe, "é na verdade a peleja dos cruzados! Tenho por certo que esta noite alguns dentre eles estarão no paraíso!"

"Sim", disse Belbo, "mas o problema é saber de que parte estão os sarracenos."

"A polícia é teutônica", observei, "ao passo que nós podemos ser as bordas de Alexandre Nevski, mas talvez esteja confundindo os textos. Olha lá na frente aquele grupo, devem ser soldados do conde de Artois, anseiam por ferir combate, porque não podem suportar o ultraje, e já se dirigem contra a frente inimiga, provocando-a com gritos de ameaça!"

Foi neste ponto que ocorreu o incidente. Não me lembro bem, a massa começou a mover-se, um grupo de ativistas, armado de correntes de automóvel, tinha começado a forçar a formação da polícia para se dirigirem à praça San Babila, lançando slogans agressivos. O leão moveu-se, e com certa decisão. A primeira fila da formação policial abriu-se e apareceram os carros de bombeiros. Da vanguarda do desfile partiram as primeiras esferas, as primeiras pedras, um grupo de soldados partiu firme para eles, baixando o sarrafo com violência, e a multidão começou a ondular. Naquele momento, ao longe, para os lados da via Laghetto, ouviu-se um disparo. Talvez fosse apenas o estourar de um pneu, talvez um petardo, ou mesmo um verdadeiro tiro de advertência partido de um daqueles grupos que dentro de alguns anos iriam usar habitualmente a pistola 38.

Foi o pânico. A polícia começou a mostrar as armas, ouviram-se os toques de corneta de carregar, o desfile dividiu-se entre os belicosos, que aceitavam a refrega, e os demais, que consideravam encerrada a sua participação. Vi-me fugindo pela via Larga com um medo louco de ser atingido por algum objeto contundente, manobrado por alguém. De súbito encontrei-me ao lado de Belbo e sua companheira. Corremos bem velozes, mas sem pânico.

Na esquina da via Rastrelli, Belbo me agarrou pelo braço: "Por aqui, meu caro", disse-me. Tentei perguntar por quê, a via Larga me parecia mais à mão e cheia de gente, e fui tomado de claustrofobia no dédalo de vielas entre a via Pecorari e a do Arcebispado. Pareceu-me que no lugar para onde Belbo me estava levando seria muito mais difícil camuflar-me caso a polícia viesse ao nosso encontro surgindo de alguma parte. Fez-me sinal para estar calado, dobrou duas ou três esquinas, desacelerou gradativamente, e nos encontramos a caminhar, sem correr, exatamente pelos fundos do Domo, com o tráfego normal e aonde não chegavam ecos da batalha que se estava travando a menos de duzentos metros dali. Mantendo silêncio contornamos o Domo, e acabamos chegando à fachada, do lado da Galeria. Belbo comprou um saquinho de alpiste e pôs-se a alimentar os pombos com seráfica beatitude. Estávamos perfeitamente disfarçados de multidão do sábado, eu e Belbo de paletó e gravata, a moça em uniforme de senhora milanesa, um pulôver folgado de gola rulê cinzenta e um colarzinho de pérolas, por cultivadas que fossem. Belbo apresentou-a: "Esta é a Sandra. Já se conhecem?"

"De vista. Como vai?"

"Está vendo, Casaubon, " disse Belbo, "a gente não foge nunca em linha reta. Seguindo o exemplo dos Sabóias em Turim, Napoleão III mandou demolir Paris transformando-a numa rede de avenidas, que todos admiram como obras-primas da cultura urbanística. No entanto as vias metas servem para melhor controlar a multidão em revolta. Quando se pode, como nos Champs Elysées, até mesmo as ruas laterais devem ser largas e compridas. Quando não se pode, como nas vielas e becos do Quartier Latin, é aí então que o maio de 68 encontra seus melhores momentos. Quando se foge entra-se numa viela. Nenhuma força pública pode controlá-las todas, e mesmo a polícia tem medo de penetrar por elas em grupos isolados. Se damos de cara com dois sozinhos, vai ver que eles têm mais medo que a gente, e de comum acordo saem eles correndo para um lado e nós para outro. Quando se vai participar de um comício e não se conhece bem a zona, faz-se no dia anterior um reconhecimento do local, e depois é só colocar-se no ângulo de onde partem as ruas mais estreitas."

"Esteve em algum curso na Bolívia?"

"As técnicas de sobrevivência a gente só aprende em criança, a menos que depois de crescido nos alistemos nos Boinas Verdes. Passei meus tempos maus, os da guerra de resistência, em ***” e designou uma cidade entre Monferrato e Langhe. "Abandonar as cidades em 43 era uma decisão admirável: o lugar e o tempo certo para apreciar tudo, as buscas e devassas, os SS, os tiroteiros pelos caminhos... Recordo uma noite, subia a colina para buscar leite fresco num curral, e sinto um rumor acima da cabeça, vindo do alto das árvores: frr, frr. Dou-me conta de que de uma colina distante, à minha frente estão metralhando a linha férrea, que está embaixo, atrás de mim. O instinto é o de escapar, ou de atirar-se ao chão. Cometo um erro, corro para baixo, e a certa altura ouço no campo à minha volta um chaque chaque chaque. Eram os tiros curtos, que caíam antes de chegar à ferrovia. Percebo que são disparados de cima, de muito alto, para um ponto bem distante abaixo, a gente deve escapar subindo: quanto mais sobes mais os projéteis passam acima de tua cabeça. Minha avó estava numa roça de milho durante um tiroteio entre fascistas e resistentes que se enfrentavam colocados nos lados opostos do campo; aí teve uma idéia sublime: já que, se tentasse escapar, arriscava pegar uma bala perdida, jogou-se por terra em meio da plantação, exatamente entre as duas linhas de tiro. E lá ficou uns dez minutos, de cara no chão, esperando que nenhuma das duas fileiras avançasse demais. Acabou escapando com vida. Veja, quando a gente apreende essas coisas desde menino, elas se integram em nossos circuitos nervosos."

"Com que então esteve também na resistência, como se sói dizer."

"Como espectador", disse ele. E percebi um leve embaraço em sua voz. "Em 43 tinha onze anos, no fim da guerra apenas treze. Muito cedo para tomar parte, o bastante para acompanhar tudo, com uma atenção que diria fotográfica. Mas que podia fazer? Tratava de ver. E de escapar, como hoje."

"Então poderia narrar, em vez de ficar só corrigindo os livros alheios."

"Mas tudo já foi contado, Casaubon. Se eu tivesse então vinte anos, nos anos 50 teria feito poesia da memória. Por sorte nasci tarde demais, quando pude escrever não me restava senão ler os livros já escritos. Por outro lado, teria podido até acabar com uma bala na cabeça, no alto do morro."

"De que parte?" perguntei, depois me senti embaraçado. "Desculpe, foi só uma piada."

"Não, não é piada alguma. É verdade que agora eu sei, mas só o sei agora. Sabia-o então? Sabe que se pode ficar obcecado pelo remorso durante a vida inteira não por haver escolhido o erro, do qual pelo menos a gente se pode arrepender, mas por ficar-se na impossibilidade de provar a si mesmo que não se escolheria o erro... Fui um traidor potencial. Que direito teria daí por diante de escrever uma verdade qualquer e ensiná-la aos outros?"

"Desculpe-me", disse eu, "mas potencialmente podia se transformar até mesmo no monstro do médico, e não se transformou. Isso já é neurose... Ou seu remorso se apóia sobre indícios concretos?"

"O que são indícios nestes casos? E a propósito de neuroses, hoje à noite tenho um jantar com o Dr. Wagner. Vou tomar um táxi na praça do Scala. Vamos, Sandra?"

"O Dr. Wagner?" perguntei, enquanto me despedia. "Em pessoa?"

"O próprio, está em Milão por uns dias e talvez o convença de entregar-nos algum de seus ensaios inéditos para um volumezinho. Seria uma boa."

Portanto desde aquela época Belbo já estava em contato com o Dr. Wagner. Pergunto-me se teria sido naquela noite que Wagner (pronuncia-se Vanhér, à francesa) psicanalisou Belbo grátis, e sem que nenhum dos dois o soubesse. Ou talvez isso tenha acontecido mais tarde.

Contudo aquela fora a primeira vez que Belbo fizera menção à sua infância em***. Curioso que fosse o relato de algumas fugas - quase gloriosas, na glória da lembrança, mas que afloraram à memória depois de, comigo mas à minha frente, de modo inglório, embora com perspicácia, ter fugido novamente.

 

Depois do que o irmão Stefan de Provins, trazido à presença dos ditos comissários, e perguntado por estes se queria defender a ordem, disse que não queria, e que se os mestres o quisessem fazer, que o fizessem, mas que ele antes da prisão só havia estado na ordem durante nove meses.

(Depoimento de 27.11.1309)

 

Encontrei em Abulafia a narrativa de outras fugas. E nelas pensava aquela noite no periscópio, enquanto percebia na escuridão uma seqüência de murmúrios, rangidos e chiados - e me pedia para estar calmo porque aquela era a maneira pela qual os museus, as bibliotecas, os palácios antigos conversam à noite, apenas velhos armários que se assentam, molduras que reagem à umidade vespertina, rebocos que trincam avaros, um milímetro em cada século, muralhas que bocejam. Não podes fugir, dizia a mim mesmo, porque estás aqui exatamente para saber o que aconteceu a alguém que procurou pôr fim a uma série de fugas com um ato de coragem desassisado (ou desesperado), talvez para acelerar aquele encontro tantas vezes adiado com a verdade.

 

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filename: Canaletto

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Escapei diante de uma carga da polícia ou de novo diante da história? E faz diferença? Fui ao comício por uma escolha moral ou para pôr-me mais uma vez à prova diante da Ocasião? Está certo, perdi as granaes ocasiões porque chegava cedo demais, ou muito tarde, mas a culpa era do registro civil. Gostaria de ter estado naquele campo disnarando mesmo se arriscasse ferir a avó. Não estava ausente por covara ia, mas pela idade. Está bem. Mas e o comício? Fugi de novo por motivos de geração, aquele confronto não me dizia respeito. Mas podia ter arriscado, mesmo sem entusiasmo, para provar que então, no campo, teria sabido escolher. Tem sentido escolher a Ocasião errada para se convencer que se teria escolhido a Ocasião certa? Quem sabe quantos daqueles que hoje aceitaram o confronto tenham procedido assim. Mas uma ocasião falsa não é a boa Ocasião.

Pode-se ser covarde só porque a coragem dos Outros te parece desproporcional à vacuidade da circunstância? Logo o raciocínio é que faz a covardia. E assim se perde a boa Ocasião quando se passa a vida a observar a Ocasião e a raciocinar sobre ela. A Ocasião é escolhida por instinto, e no momento em que ela ocorre não sabes que é a Ocasião. É possível que uma vez a tenhas colhido e nunca o soubeste? Como se faz quando se está com o rabo de palha ou quando se sente covarde só por ter nascido no decênio errado? Resposta: te sentes covarde porque uma vez foste covarde.

E se também naquela vez tivesses evitado a Ocasião só por senti-la inadequada?

Descrever a casa de***, isolada na colina entre os vinhedos e logo a rua que levava aos limites do vilarejo, até a bifurcação da última ruela habitada - ou da primeira (é claro que não saberei dizer se não escolher o ponto de vista). O pequeno migrante que abandona a proteção familiar e penetra no aglomerado tentacular, costeando ao longo da rua e teme com inveja o Viottolo.

O Viottolo era o ponto de reunião do bando do Viottolo. Rapazes do campo, sujos, gritadores. Eu era muito gente da cidade, melhor evitá-los. Mas para chegar à praça, à banca de jornais e à papelaria, a menos que tentasse um périplo quase equatorial e pouco dignificante, não restava senão passar pelo CanaleLto. Os rapazes do Viottolo eram pequenos cavalheiros em relação aos do bando do Canaletto, o nome de um ex-regato, transformado em canal de esgoto, que atravessava então a zona mais pobre do lugar. Os tipos do Canaletto eram de fato asquerosos, desocupados e violentos.

Os do Viottolo não podiam atravessar a zona do Canaletto sem serem atacados e batidos. No princípio eu não sabia que era do Viottolo, mal tinha chegado, mas os do Canaletto já me haviam identificado como inimigo. Passei em frente deles com um jornalzinho aberto diante dos olhos, caminhava lendo, e eles me avistaram. Pus-me a correr, e eles atrás, jogando pedras, uma atravessa a folha, que eu continuava a manter aberta diante de mim enquanto corria, para me dar compostura. Salvei a vida mas perdi o jornal. No dia seguinte resolvi alistar-me no bando do Viottolo.

Apresentei-me ao sinédrio deles, acolhido a gargalhadas. Naquela época tinha muito cabelo, os fios tendenciosamente retos na cabeça, como no anúncio dos lápis Presbítero. Os modelos que me ofereciam o cinema, a publicidade, o passeio de domingo após a missa, eram jovens de jaquetão, de bigodinho e cabelos luzidios emplastrados ao crânio. Na época o penteado para trás se chamava, entre o povo, Ia mascagna. Eu queria a mascagna. Adquiria na praça do mercado, aos sábados, por somas irrisórias relativamente aos padrões da bolsa de valores mas imensas para mim, potinhos de brilhantina grossa como mel em favos, e passava horas a espalhá-la nos cabelos até brunilos como uma calota plúmbea, um camauro. Depois punha-lhes em cima uma rede para mantê-los comprimidos. Os caras do Viottolo já me tinham visto passar de rede, e haviam lançado chistes naquele seu dialeto aspérrimo, que eu compreendia mas não falava. Naquele dia, depois de ficar em casa duas horas usando a rede, tirei-a, controlei o soberbo efeito no espelho, e me apressei em ir ao encontro daqueles a quem estava para jurar fidelidade. Lá cheguei quando a brilhantina do mercado já tinha perdido sua função aglutinante, e os cabelos começavam a voltar à posição vertical, embora em câmara lenta. Vibração entre os caras do Víottolo, que faziam círculo à minha volta, dando-se de cotovelos. Pedi para ser admitido.

Acresce que me exprimia em italiano: era um cara diferente. Avançou para mim o chefe da turma, Martinetti, que então me pareceu dominante, esplêndido de pés no chão. Decretou que eu devia receber cem pontapés na bunda. Talvez fosse para despertar a serpente Kundalini. Topei. Pus-me contra a parede, segurado nos braços por dois esbirros, e levei cem chutes de pés descalços. Martinetti cumpria sua tarefa com força, com entusiasmo, com método, chutando com a planta do pé e não com a ponta, para não machucar os dedões. O coro dos bandidos ritmava o rito. Contavam em dialeto. Depois resolveram prender-me numa casinhola de coelhos, durante meia hora, enquanto se entretinham em conversas guturais. Deixaram-me sair quando reclamei de cãibra nas pernas. Estava orgulhoso porque soubera adequar-me à liturgia selvagem de um grupo selvagem, mantendo a dignidade. Era um homem chamado cavalo.

Naquela época, andavam por*** uns soldados da cavalaria alemã ainda um tanto despreocupados porque a resistência até então não se fizera sentir - estávamos aí pelos fins de 43, ou início de 44. Uma de nossas primeiras missões foi entrar furtivamente numa das barracas enquanto alguns dos nossos engambelavam o soldado de guarda, um enorme teutão que comia um imenso sanduich - pareceu-nos, horripilados - de salame e marmelada. O grupo encarregado de desviar a atenção bajulava o soldado elogiando-lhe as armas, enquanto nós outros na barraca (penetrável pelos fundos, descosidos) roubávamos algumas bananas de dinamite. Não creio que depois a dinamite tenha sido de todo usada, mas se destinava, nos planos de Martinetti, a ser explodida no campo, com intuitos pirotécnicos, e por métodos que agora sei bastante rudes e inadequados. Mais tarde em lugar dos alemães vieram os da Décima Mas*

 

*Brigadas fascistas. (N. do T.)

 

, que estabeleceram um posto de vigia à margem do rio, exatamente na bifurcação onde, às seis da tarde, desciam a alameda as meninas do colégio Maria Auxiliadora. Tratava-se de convencer os componentes da Décima (não deviam ter mais de dezoito anos) de atar um molho de granadas de mão alemãs, daquelas de cabo comprido e arrancar-lhes o anel de segurança para fazê-las explodir à flor d’água no momento preciso em que as meninas chegassem. Martinetti sabia bem o que era preciso fazer, e como calcular o tempo. Explicava aos cabras, e o efeito era prodigioso: uma coluna de água se levantava do leito, entre fragores de trovão, exatamente quando as garotas dobravam a esquina. Fuga generalizada em meio a gritinhos histéricos, e nós e os cabras a contorcer de riso. Ter-se-iam recordado daqueles dias de glória os sobreviventes do campo de concentração de Coltano, depois da fogueira de Molay.

O esporte predileto dos rapazes do Viottolo era recolher latas e resíduos vários, que depois do 8 de setembro não faltavam, como velhos capacetes, cartucheiras, embornais, às vezes até mesmo balas ainda virgens. Para se utilizar uma bala boa, procede-se assim: segura-se a cápsula e introduz-se o projétil no buraco de uma fechadura, fazendo força; o chumbo soltava e passava a fazer parte das coleções especiais. Despejava-se fora a pólvora da cápsula (às vezes eram tírinhas de balistita), que se colocava depois numa estrutura em forma de serpentina, à qual se punha fogo. O cartucho, tanto mais valioso se a cápsula estivesse intacta, entrava para enriquecer o Exército. O bom colecionador tinha muitas delas, e as dispunha em fileiras, segundo a marca, a cor, a forma e a altura. Havia os manípulos**

 

**Manipoli: pelotão das milícias fascistas. (N. do T.)

 

da infantaria, os cartuchos de fuzil de repetição e do sten inglês, depois os alferes e cavalarianos - carabina, fuzil noventa e um (só vimos o Garand com os americanos) - e, aspiração suprema, grandes mestres dominadores, as baias de metralhadora pesada.

Enquanto estávamos entregues a esses jogos de paz, uma noite Martinetti disse que o momento havia chegado. A mensagem de desafio fora enviada ao bando do Canaletto, que a havia aceito. O encontro estava previsto para se dar em território neutro, atrás da estação. Aquela noite, às nove.

Foi uma tarde longa, quente e extenuante, de grande excitação. Cada um de nós se preparou com a parafernália mais aterrorizante, procurando pedaços de madeira que pudessem ser agilmente empunhados, enchendo as algibeiras e sacolas de pedras de vários calibres. Um dos nossos, com a correia de um fuzil, tinha feito um chicote, terrível se manobrado com decisão. Pelo menos naquelas horas vespertinas, sentíamo-nos todos heróis, eu mais do que todos. Era a excitação que precede o assalto, acre, dolorosa, esplêndida - adeus meu amor adeus, dura, doce empresa é ser homem de armas, andavam imolando a nossa juventude, como nos haviam ensinado na escola antes do 8 de setembro.

O plano de Martinetti era sagaz: devíamos cruzar o leito da via férrea mais a norte, para surpreendê-los por detrás, de improviso, já praticamente vencedores. Aí, ataque impiedoso, e guerra sem quartel.

Ao cair da noite, cruzamos a escarpa da forma prevista claudicando pelas rampas e declives, carregados que estávamos de pedras e bastões. Do alto da escarpa, lá os vimos, a postos, detrás dos mictórios da estação. Eles também nos viram porque olhavam para cima, suspeitando que viéssemos por aquele lado. Não restava senão descermos sem dar-lhes tempo de espantar-se com a obviedade de nosso movimento.

Ninguém havia tomado uns tragos antes do ataque, mas nos precipitamos assim mesmo, vociferando. E o fato aconteceu a cem metros da estação. Ali começavam a surgir as primeiras casas que, embora poucas, já constituíam um retículo de vielas. Acontece que o grupo mais fogoso tomou a dianteira, sem medo, enquanto eu e - para minha sorte - alguns outros diminuímos o passo e nos abrigamos nos ângulos das casas, observando de longe.

Se Martinetti nos houvesse organizado em vanguarda e retaguarda, estaríamos cumprindo nosso dever, mas aquela foi uma espécie de distribuição espontânea. Os corajosos na frente, os medrosos atrás. E de nossos refúgios, o meu ainda mais recuado que os demais, observamos o encontro. Que não houve.

Ao chegarem a poucos metros uns dos outros, os dois grupos se defrontaram, a ranger os dentes, mas em seguida os chefes deram um passo à frente e parlamentaram. Foi uma Yalta, decidiram dividir as zonas de influência e respeitar os trânsitos ocasionais, como ocorria entre os cristãos e os mouros na Terra Santa. A solidariedade entre as duas cavalarias prevaleceu sobre a inevitabilidade da batalha. Cada qual dera boa prova de si. Em boa harmonia se retiraram para bandas opostas. Em boa harmonia os bandos se retiraram para bandas opostas. Retiraram-se para lados opostos.

Hoje admito que não tenha enfrentado o ataque porque me deu vontade de rir. Mas na hora não achei assim. Senti-me covarde e basta.

Admito agora comigo de maneira ainda mais covarde que se tivesse corrido para a frente como os outros não teria arriscado nada, e teria vivido melhor pelos anos a seguir. Perdi a Ocasião, aos doze anos. Como perder o tesão na primeira vez, é impotência para o resto da vida.

Um mês depois, quando por causa de uma invasão de território ocasional, o Viottolo e o Canaletto se defrontaram num campo de plantio, e começaram a voar torrões, não sei se animado pela dinâmica do evento anterior, ou desejoso de martírio, fui o primeiro a me expor na linha de frente. Foi uma chuva de pedras incruenta, menos para mim. Um torrão, que evidentemente ocultava um coração de pedra, atingiu-me no lábio e fez-me um talho. Fugi para casa chorando, e minha mãe teve de usar a pinça de toalete para retirar a terra do golpe que se formara no interior da boca. De tal maneka que fiquei até hoje com um nódulo, na interseção do canino direito inferior, e quando passo a língua por cima dele sinto uma vibração, um arrepio.

Mas esse nódulo não me absolve, porque acabei por obtê-lo por inconsciência, não por coragem. Passo a língua contra olábio e que faço? Escrevo. Mas a má literatura não redime.

 

Depois do dia do comício não voltei a ver Belbo durante cerca de um ano. Estava apaixonado por Amparo e não ia mais ao Pílades, ou antes, nas poucas vezes que por lá passei em companhia de Amparo, Belbo não estava. E Amparo não gostava daquele lugar. Seu rigor moral e político - comparáveis apenas à sua graça, e à sua esplêndida altivez - faziam com que ela considerasse o Pílades um clube para dândis democráticos, e o dandismo democrático era para ela uma das tramas, talvez a mais sutil, do complô capitalista. Foi um ano de grande empenho, de grande seriedade e de grande doçura. Trabalhávamos com gosto mas com calma em nossas teses.

Um dia encontro Belbo ao longo dos canais, a pouca distância da Garamond. "Olha só quem está aí", disse-me com alegria, "meu Templário favorito! Acabo de ganhar de presente um néctar de inenarrável vetustez. Porque não dá um salto à editora? Tenho copos de papel e a tarde livre."

"Um zeugma", observei.

"Não, um burbom engarrafado, creio, antes da queda de Alamo."

Acompanhei-o. Mal o começamos a degustar entrou Gudrun e veio dizer que havia um senhor à espera. Belbo bateu com a palma da mão sobre a testa. Sim havia se esquecido daquele encontro, mas o acaso tinha gosto de complô, me disse. Pelo que depreendi, o visitante queria apresentar um livro que dizia respeito inclusive aos Templários. "Liquido rápido com ele", disse, "mas me apóie com agudas objeções."

Tinha sido certamente um acaso. E assim fui apanhado na rede.

 

Assim desapareceram os cavaleiros do Templo com seu segredo, à sombra do qual palpitava uma bela esperança da cidade terrena. Mas o Abstrato ao qual estava encadeado seu esforço prosseguia em regiões desconhecidas sua vida inacessível... e mais de uma vez, no curso dos tempos, deixou fluir sua inspiração nos espíritos capazes de acolhê-lo.

(Victor Emile Michelet, Le secret de la Chevalerie, 1930, 2)

 

Tinha uma cara dos anos 40. A julgar pelas velhas revistas que havia encontrado no porão de nossa casa, todos nos anos 40 tinham uma cara igual. Devia ser a fome dos tempos de guerra: cavava o rosto sob os zigomas e dava aos olhos um brilho vagamente febril. Era uma cara que vira nas cenas de fuzilamento, de ambos os lados. Naqueles tempos homens com a mesma cara fuzilavam-se entre si.

Nosso visitante trajava um terno completo azul com camisa branca e gravata cinza-pérola, e instintivamente me perguntei por que estava vestido à paisana. Os cabelos, artificialmente negros, eram estirados para trás ao longo das têmporas em duas faixas emplastradas, embora com critério, e deixava no alto da cabeça, luzidio, uma calvície sulcada de tiras finas e regulares como fios de telégrafo, que partiam em vê do alto da testa. O rosto era bronzeado, marcado, e não só pelas rugas - explicitamente coloniais. Uma cicatriz pálida atravessava-lhe a face esquerda, do lábio à orelha, e como usasse bigodes negros e compridos, à Adolphe Menjou, o lado esquerdo do bigode estava imperceptivelmente sulcado ali onde, por menos de um milímetro, a pele se havia aberto e depois tornado a fechar. Mensur* ou bala de raspão?

 

*Duelo dos estudantes alemães. (N. do T.)

 

Apresentou-se: coronel Ardenti, estendeu a mão a Belbo, fez-me um simples sinal com a cabeça quando Belbo me definiu como um de seus colaboradores. Sentou-se, cruzou as pernas, consertou o friso da calça no joelho, deixando aparecer um par de meias amarelas - de cano curto.

"Coronel..., da ativa?" perguntou Belbo.

Ardenti pôs à mostra algumas próteses apreciáveis: "Digamos aposentado. Ou, se preferir, da reserva. Talvez não pareça, mas sou um homem de idade."

"Não parece", disse Belbo.

"Já passei por quatro guerras."

"Então deve ter começado com Garibaldi."

"Não. Tenente, voluntário, na Etiópia. Capitão, voluntário, na Espanha. Major de novo na Africa, até o abandono da quarta margem. Medalha de prata. Em 43..., digamos que escolhi a parte dos vencidos: e perdi tudo, salvo a honra. Tive a coragem de recomeçar do princípio. Legião estrangeira. Escola de ousadia. Em 46 sargento, em 58 coronel, com Massu. Evidentemente sempre escolho a parte perdedora. Com a subida ao poder do sinistro de Gaulle reformei-me e passei a viver na França. Fizera bons conhecimentos na Argélia e fundei uma empresa de importação e exportação, em Marselha. Dessa vez escolhi a parte vencedora, creio, dado que hoje vivo de rendas, e posso ocupar-me de meu hobby - assim se diz hoje, não é verdade? E nos últimos anos consegui até mesmo o resultado de minhas pesquisas. Ei-los...” Tirou de uma bolsa de couro uma pasta volumosa, que então me pareceu vermelha.

"Quer dizer", disse Belbo, "um livro sobre os Templários?"

"Os Templários", assentiu o coronel. "Uma paixão quase juvenil. Também eles eram soldados da fortuna que buscaram a glória atravessando o Mediterrâneo."

"O Sr. Casaubon se ocupa dos Templários", disse Belbo. "Conhece o assunto melhor que eu. Mas conte-nos."

"Os Templários me interessaram desde sempre. Um punhado de cavaleiros generosos que levam as Luzes da Europa para os selvagens das duas Tripolis...”

"Os adversários dos Templários não eram assim tão selvagens", disse eu em tom conciliador.

"O senhor já foi alguma vez prisioneiro dos rebeldes de Magreb?" perguntou-me com sarcasmo.

"Ainda não", disse eu.

Fixou-me, e me senti feliz por não ter servido em seu pelotão. Falou diretamente a Belbo. "Desculpe-me, sou de outra geração." Depois, olhando-me com ar de desafio: "Estamos aqui para responder a um processo ou para...”

"Estamos aqui para falar de seu trabalho, coronel", disse Belbo.

"Queira falar-nos dele, por favor."

"Gostaria de deixar imediatamente clara uma coisa", disse o coronel, pousando a mão sobre a pasta. "Estou disposto a contribuir para as despesas de publicação, não lhe proponho nada que possa dar prejuízo. Se estão à procura de garantia científica, tenho possibilidades de obtê-las. Encontrei há poucas horas um estudioso do assunto, que veio especialmente de Paris. Poderá fazer um prefácio autorizado...”

Adivinhou a pergunta de Belbo e fez um sinal, como a dizer que por ora era melhor permanecer incógnito, dada a delicadeza do assunto.

"Dr. Belbo", disse, "aqui nestas páginas tenho material para uma história. Verdadeira. Nada banal. Melhor que os romances policiais americanos. Encontrei algo, de muito importante, mas é apenas o início. Quero dizer a todos aquilo que sei, de modo que se houver alguém que esteja em condições de concluir este quebra-cabeça, que o leia e apareça. Pretendo lançar uma isca. E além do mais é preciso fazê-lo com urgencia. Quem sabia o que agora sei, antes de mim, foi provavelmente morto, a fim de que não o divulgasse. Mas se o que sei o digo a dois mil leitores, ninguém terá mais interesse em eliminar-me." Fez uma pausa: "Os senhores sabem algo sobre a prisão dos Templários...”

"O Sr. Casaubon falou-me recentemente sobre isso, e chamou-me atenção o fato de que a captura se fez sem qualquer resistência, tendo sido os cavaleiros apanhados de surpresa...”

O coronel sorriu, com comiseração. "De fato. É pueril pensar que homens tão potentes capazes de causar medo ao rei de França não estivessem a nível de saber com antecedência que quatro velhacos estavam instigando o rei e que o rei estava instigando o papa. Ora vamos! É força pensar num plano. Num plano sublime. Suponhamos que os Templários tivessem um projeto de conquistar o mundo, e conhecessem o segredo de uma imensa fonte de poder, um segredo cuja preservação valeria o sacrifício de todo o quartel do Templo em Paris, as comendas espalhadas por todo o reino, e pela Espanha, Portugal, Inglaterra e Itália, os castelos da Terra Santa, os depósitos monetários, tudo... Filipe o Belo suspeita disso, pois de outra forma não se compreende por que tenha desencadeado a perseguição, atirando descrédito sobre a fina flor da cavalaria francesa. O Templo percebe que o rei desconfia, e tentará destruí-lo, de nada adianta opor resistência frontal, o plano requer ainda tempo, o tesouro ou o que seja deve ser ainda devidamente localizado, ou é preciso desfrutá-lo lentamente...E o diretorio secreto do Templo, cuja existência é já agora reconhecida por todos...”

"Todos?"

"Certo. Não é admissível que uma ordem tão poderosa pudesse sobreviver tanto tempo sem a existência de um regulamento secreto."

"O raciocínio é impecável", disse Belbo, olhando-me de esguelha.

"Daí", disse o coronel, "serem igualmente evidentes as conclusões. O grão-mestre sem dúvida alguma faz parte do diretório secreto, mas deve ser sua fachada exterior. Gauthier Walther, em La chevalerie et les aspects sécrets de l’histoire, diz que o plano templar para a conquista do poder contemplava como termo final o ano dois mil! O Templo decide passar à clandestinidade, e para poder fazê-lo é preciso que aos olhos de todos a ordem desapareça. Sacrificam-se, eis o que fazem, o grão-mestre inclusive. Alguns se deixam matar, provavelmente terão sido sorteados. Outros se submetem, se camuflam. Onde acabam as hierarquias menores, os irmãos leigos, os carpinteiros navais, os vidreiros?... E o nascimento da corporação dos pedreiros livres, que se difunde pelo mundo, história conhecida. Mas o que acontece na Inglaterra? O rei resiste às pressões do papa, e aposenta a todos, para acabarem tranqüilamente a vida nas capitanias da ordem. E eles, quietinhos, lá se vão. O senhor engole essa? Eu não. Na Espanha a ordem decide trocar de nome, torna-se a ordem de Montesa. Meus senhores, aquela era gente que podia convencer um rei, tinham tantas cambiais do reino em seus cofres que podiam levá-lo à bancarrota em menos de uma semana. Até o rei de Portugal pactua: façamos assim, caros amigos, diz, não vos chamareis mais cavaleiros do Templo mas cavaleiros de Cristo, e estamos conversados. E na Alemanha? Poucos processos, abolição puramente formal da ordem, mas lá dentro têm uma ordem gêmea, os Teutônicos, que naquela época faz algo mais do que criar um Estado dentro do Estado: são o próprio Estado, agregam um território do tamanho dos países que hoje estão sob o tacão dos russos, seguem nesse ritmo até os fins do século XV, porque àquela altura chegam os mongóis - mas essa é outra história, porque os mongóis ainda os temos às portas..., mas não divaguemos."

"Não, por favor", disse Belbo. "Siga em frente."

"Portanto. Como todos sabem, dois dias antes de Filipe expedir a ordem de prisão, e um mês antes de ser executada, uma carreta de feno, puxada por bois, deixa o recinto do Templo com destino ignorado. Disso fala até mesmo Nostradamus em uma de suas centúrias...”

Procurou uma página no manuscrito:

 

Souz la pasture d’animaux ruminant

par eux conduits au ventre herbipolique

soldats cachés, les armes hruit menant...

 

"A carreta de feno é lenda", disse eu, "e não tomaria Nostradamus como autoridade em matéria historiográfica...”

"Pessoas muito mais velhas que o senhor, Sr. Casaubon, deram fé a muitas profecias de Nostradamus. Por outro lado não sou tão ingênuo em dar fé à história da carreta. É um símbolo. O símbolo do fato, evidente e consolidado, de que em vista da prisão Jacques de Molay passa o comando e as instruções secretas para o seu sobrinho, o conde de Beaujeu, que se torna o chefe oculto do Templo já agora oculto."

"Há documentos históricos?"

"A história oficial", sorriu amargamente o coronel, "é a que escrevem os vencedores. Segundo a história oficial homens como eu não existem. Não, sobre o episódio da carreta há algo mais. O núcleo secreto se transfere para um centro tranqüilo e ali inicia a formação de sua rede clandestina. Foi dessas evidências que parti. Há anos, ainda antes da guerra, me perguntava sempre onde teriam acabado esses irmãos no heroismo. Quando me retirei à vida privada decidi finalmente buscar uma pista. Porque ocorreu na França a fuga da carreta, na França deveria encontrar o lugar da reunião originária do núcleo clandestino. Mas onde?"

Tinha senso teatral. Belbo e eu agora queríamos saber onde. Não achamos nada melhor para dizer que: "Diga."

"Pois digo-lhes. Onde se ocultam os Templários? De onde vem Hugues de Payns? De Champagne, vizinha a Troyes. E em Champagne governa Hugues de Champagne, que poucos anos depois, em 1125, os reúne em Jerusalém. Depois regressa à pátria e parece que se põe em contato com o abade de Cîteaux, e o ajuda a iniciar em seu mosteiro a leitura e a tradução de certos textos hebraicos. Vejam só, os rabinos da alta Borgonha são convidados a vir a Cîteaux, pelos beneditinos brancos, e por quem? por são Bernardo, para estudarem quem sabe quais textos Hugues havia encontrado na Palestina. E Hugues oferece aos monges de são Bernardo uma floresta, a Bar-sur-Aube, onde surgirá Clairvaux. E o que faz são Bernardo?"

"Torna-se o defensor dos Templários", disse eu.

"E por quê? Mas sabe que faz os Templários se tornarem mais fortes que os beneditinos? Que proibe os beneditinos de receberem terras e propriedades em doação e faz com que as casas e as terras sejam doadas aos Templários? Já viu a Forêt d’Orient próximo de Troyes? Uma coisa imensa, uma capitania após outra. E entrementes na Palestina os cavaleiros não combatem, sabiam? Instalam-se no Templo, e em vez de matar os muçulmanos fazem amizade com eles. Tomam contato com seus iniciados. Em suma, são Bernardo, com apoio econômico dos condes de Champagne, constitui uma ordem que na Terra Santa entra em contato com as seitas secretas árabes e hebraicas. Uma direção desconhecida planifica as cruzadas para fazer viver a ordem, e não o contrario, e estabelece uma rede de poder que se subtrai à jurisdição real... Não sou homem de ciência, sou homem de ação. Em vez de fazer demasiadas conjecturas, fiz o que tantos estudiosos, verbosos demais, nunca fizeram. Fui lá onde os Templários estavam e onde tinham sua base há dois séculos, onde podiam nadar como peixes na água..”

"O presidente Mao diz que o revolucionário deve estar entre o povo como o peixe na água", disse eu.

"Parabéns ao seu presidente. Os Templários, que estavam preparando uma revolução bem maior do que aquela dos seus comunistas de rabicho...”

"Já não usam rabicho."

"Não? Pior para eles. Os Templários, dizia, não podiam senão buscar refúgio em Champagne. Em Payns? Em Troyes? Na Floresta do Oriente? Não. Payns era e é uma vila de quatro casas, e então devia ter no máximo um castelo. Troyes era uma cidade grande, com muita gente do rei em volta. A floresta, templar por definição, seria o primeiro lugar onde a guarda real iria procurá-los, como, aliás, aconteceu. Não: Provins, disse para mim. Se havia um lugar, devia ser Provins!"

 

Se pudéssemos penetrar no interior da Terra e ali víssemos com nossos próprios olhos, de um pólo a outro, e sob os pés nossos antípodas, com horror discerniriamos uma enorme massa tremendamente perfurada por túneis e cavernas.

(T.Burnet, Telluris Theoria Sacra, Amsterdam, Wolters, 1694, p. 38)

 

"Por que Provins?"

"Nunca esteve em Provins? Lugar mágico, até hoje sente-se isso, não deixe de ir. Lugar mágico, ainda todo recendente de segredos. Mas na época, século xi, é a sede do condado de Champagne e permanece zona franca onde o poder central não pode meter o bedelho. Os Templários aí se sentem em casa, até hoje há uma rua ali em homenagem a eles. Igrejas, palácios, uma rocha que domina toda a planície, e dinheiro, circulação de mercadorias, comerciantes, feiras, confusões nas quais se pode confundir-se. Mas sobretudo, e desde tempos pré-históricos, galerias. Uma rede de galerias que se estendem sob toda a colina, verdadeiras e autênticas catacumbas, algumas das quais se pode visitar até hoje. Locais em que, durante as reuniões secretas, se o inimigo aí penetrasse, os conjurados poderiam se dispersar em poucos segundos. Deus sabe para onde, e conhecendo bem os condutos sair em alguma parte, e dali entrar pela parte oposta, silentes como gatos, chegando pelas costas dos invasores e os matando no escuro. Por Deus, meus senhores, asseguro-lhes que essas galerias patecem ter sido feitas para os comandos, rápidos e invisíveis, que se insinuam na noite, punhal entre os dentes, duas granadas nas mãos, e os outros massacrados como ratos, por Deus!"

Seus olhos cintilavam. "Compreendem que fabuloso esconderijo pode ser Provins? Um núcleo secreto que se reúne no subsolo, e toda a gente do lugar vendo isso sem nada comentar. Os homens do rei chegam até Provins, é verdade, prendem aqueles Templários que se mostram à superfície, e os levam a Paris. Reynaud de Provins é submetido a tortura mas não fala. Segundo o plano secreto, é claro, devia deixar-se prender para dar a impressão de que Provins tivesse sido saneada, mas devia ao mesmo tempo deixar um sinal: Provins não cede. Provins, a sede dos novos Templários subterrâneos... Galerias que levam de edifício a edifício, simula-se entrar num depósito de grãos ou numa loja e vai-se sair numa igreja. Galerias construídas com pilastras e abóbadas de alvenaria, todas as casas da cidade alta têm até hoje uma cave, com abóbadas ogivais, certamente mais de cem, cada cave, que digo, cada quarto subterrâneo devia ser a entrada de um daqueles condutos."

"Conjecturas", disse eu.

"Não, Sr. Casaubon. Provas. O senhor não viu as galerias de Provins. Salas e mais salas, no coração da terra, cheias de grafitos. São encontrados pelo menos naquelas que os espeleólogos chamam de alvéolos laterais. São representações hieroglificas, de origem druídica. Grafitos de antes da chegada dos romanos. César passava lá em cima e cá embaixo se tramava a resistência, a feitiçaria, a emboscada. E lá estão igualmente os simbolos dos cátaros, sim senhores, os cátaros não estavam sozinhos em Provença, os de Provença foram destruídos, os de Champagne sobreviveram em segredo e se reuniam ali, naquelas catacumbas da heresia. Cento e trinta e três deles foram levados à fogueira na superfície, e os outros sobreviveram ali. Os cronistas definiam-nos como bougres et manichéens - a propósito, os bougres eram os bogomilos, cátaros de origem búlgara, não lhes diz nada a palavra francesa bougre? Na origem, queria dizer sodomita, porque se dizia que os cátaros búlgaros eram chegados ao vício...” Deu uma risadinha embaraçada. "E quem acaba sendo acusado do mesmo vicio?

Eles, os Templários... Curioso, não é verdade?"

"Até certo ponto", disse eu, "naqueles tempos se a gente queria dar fim a um herético era só acusá-lo de sodomia... “

"É verdade, e não pensem que penso que os Templários... Qual nada, eram homens de armas, e nós homens de armas somos inclinados às belas mulheres, e mesmo que tenham pronunciado votos, homem é homem. Mas estou mencionando este fato porque não creio que seja algo demais os heréticos cátaros terem encontrado refúgio num ambiente templar, e de todo modo os Templários haviam aprendido com eles como se usavam os subterrâneos."

"Mas em suma", disse Belbo, "ainda são hipóteses suas...”

“Hipóteses de partida. Já lhe disse a razão por que me pus a explorar Provins. Agora vamos propriamente à história verdadeira. No centro de Provins há um grande edifício gótico, a Grange-aux-Dîmes, o celeiro das dízimas, e sabem que um dos pontos fortes dos Templários é que eles recolhiam diretamente as dízimas sem pagar nada ao Estado. Embaixo deles, como de resto em toda a parte, uma rede de subterrâneos, hoje em péssimas condições. Pois bem, enquanto eu rebuscava os arquivos de Provins, cai-me às mãos um jornal local de 1894. Nele se conta que dois dragões, os cavaleiros Camille Laforge de Tours e Edouard lngolf de Petroburgo (assim mesmo, de Petroburgo), estavam visitando alguns dias antes a Grange com o zelador, e desceram a uma das salas subterrâneas, no segundo plano sob a superfície do solo, quando o zelador, para demonstrar que existiam outros planos subjacentes, bateu com o pé sobre o chão e ouviram-se ecos e ribombos. O cronista elogia os corajosos dragões que se muniram de lanternas e cordas, entraram sabe-se lá em quais galerias como garotos em cavernas, arrastando-se sobre os cotovelos e insinuando-se por misteriosos condutos. E chegam, diz o jornal, a uma grande sala, com uma bela lareira., e um poço ao centro. Fazem baixar uma corda com uma pedra e descobrem que o poço tem uma fundura de onze metros... Voltam uma semana mais tarde trazendo cordas mais fortes, e, enquanto dois outros seguram a corda, Ingolf se mete no poço e descobre uma grande câmara de paredes de pedra, de dez metros por dez, e de cinco metros de altura. Os outros dois, descendo cada qual por sua vez, dão-se conta de estar no terceiro plano abaixo da superfície do solo, a trinta metros de profundidade. Não se sabe o que viram nem fizeram os três nessa sala. O cronista confessa que, tendo de permanecer no posto, não teve força de se introduzir no poço. A história despertou minha curiosidade e me deu vontade de visitar o local. Mas dos fins do século passado aos dias atuais muitos subterrâneos haviam derruído, e se acaso aquele poço tivesse alguma vez existido, quem sabe hoje onde seria. Ocorreu-me a idéia de que os dragões haviam encontrado lá no fundo alguma coisa. Eu lera exatamente naqueles dias um livro sobre o segredo de Rennesle-Château, esta também uma aventura na qual entram de certa forma os Templários. Um pároco sem recursos e sem futuro, enquanto procedia à restauração de uma velha igreja, num vilarejo de duzentas almas, remove uma pedra do pavimento do coro e encontra um estojo com manuscritos antiqüissimos, consta. Só manuscritos? Não se sabe bem o que ocorre, mas nos anos que se seguem fica imensamente rico, despende e expande, leva vida dissipada, sofre um processo eclesiástico... E se a um dos dragões ou a ambos tivesse ocorrido algo semelhante? Ingolf desce primeiro, encontra um objeto precioso de reduzidas dimensões, esconde-o sob o gibão, sobe de volta, não diz nada aos outros dois... Em resumo, sou turrão, e se não tivesse sido sempre assim minha vida teria sido inteiramente diferente." Passara os dedos de leve sobre a cicatriz. Depois levou as mãos às têmporas, alisando-as em direção à nuca, para assegurar-se de que os cabelos estavam devidamente assentados.

"Vou a Paris e na central telefônica consulto todos os guias da França em busca de alguma família Ingolf. Só encontro uma, em Auxerre, e escrevo-lhes apresentando-me como estudioso de coisas arqueológicas. Ditas semanas mais tarde recebo resposta de uma velha parteira; filha daquele Ingolf, e está curiosa de saber por que me interesso por ele, chega a me perguntar se por amor de Deus sei de alguma coisa... Achei que estava na pista de algum mistério. Precipito-me para Auxerre, a Srta. Ingolf vive numa pequena casa toda coberta de hera, um portãozinho de madeira fechado por um cordão e um prego. Uma senhorita idosa, bonita, gentil, de escassa cultura. Pergunta-me de chofre o que sei sobre seu pai e lhe digo que só sei que um dia ele desceu a um subterrâneo em Provins, e que estou escrevendo um ensaio histórico sobre aquela região. Ela cai das nuvens, pois nunca imaginou que seu pai tivesse estado em Provins. Pertenceu aos dragões, é verdade, mas deixara o serviço em 1895, antes de ela nascer. Comprara aquela casinha em Auxerre, e em 1898 desposara uma jovem do lugar, que tinha algumas posses. A mãe morrera em 1915, quando ela contava cinco anos. Quanto ao pai, desaparecera em 1935. Desaparecera, literalmente. Partira para Paris, como fazia pelo menos duas vezes por ano, e nunca mais dera notícias. A polícia local telegrafara a Paris: desaparecido. Declaração de morte presuntiva. E dessa forma a nossa senhorita ficara sozinha no mundo e começou a trabalhar, porque a herança paterna não era grande coisa. Evidentemente não havia encontrado marido, e pelos suspiros que deu o caso devia ser uma história complicada, a única de sua vida que tivera um fim desagradável. "E sempre com esta angústia, com este remorso contínuo, Sr. Ardenti, de nada saber a respeito de meu pobre pai, nem mesmo o lugar de seu túmulo, se é que ele existe em alguma parte." Tinha ânsias de falar do pai: muito terno, tranqüilo, metódico, tão culto. Passava os dias em seu pequeno estúdio no alto na mansarda, a ler e a escrever. A não ser isso, uma cavoucadela no jardim e dois dedos de prosa com o farmacêutico - já falecido como ele. De quando em vez, como dissera, uma viagenzinha a Paris, a negócios, como se referia a elas. Mas voltava sempre com algum pacote de livros. O estúdio ainda estava cheio deles, quis me mostrar. Subimos. Um quartozinho limpo e arrumado, de que a Srta. Ingolf ainda tirava o pó uma vez por semana, podia levar flores à mãe no cemitério, mas para o pobre do pai só podia fazer aquilo. Tudo estava como havia deixado, teria sido bom se tivesse estudado para poder ler as coisas dele, mas estava tudo escrito em francês antigo, em latim, alemão, talvez até em russo, porque papai havia nascido e passara lá a infância, era filho de um funcionário da embaixada francesa. A biblioteca continha uma centena de volumes, a maior parte (exultei) sobre o processo dos Templários, por exemplo os Monuments historiques relattfs à Ia condamnation des chevaliers du Temple, de Raynouard, de 1813, uma peça de antiquário. Muitos volumes sobre escritas secretas, uma verdadeira e precisa coleção de criptólogo, alguns volumes de paleografia e diplomática. Havia um registro com velhas contas, e ao folheá-lo encontrei uma nota que me fez estremecer: dizia respeito à venda de um estojo, sem outras indicações, e sem o nome do adquirente. Não se mencionava a cifra, mas a data era a de 1895, e logo em seguida havia contas precisas, o livro razão de um senhor prudente que administra com cautela o seu pecúlio. Algumas notas sobre a aquisição de livros nos alfarrabistas parisienses. A mecânica da aventura se me torna clara: Ingolf encontra na cripta um estojo de ouro incrustado de pedras preciosas, não perde um minuto a pensar, enfia-o no casaco, volta a subir e não dá um pio com os companheiros. Em casa verifica existir no interior um pergaminho, o que me parece evidente. Vai a Paris, contata um alfarrabista, um agiota, um colecionador, e com a venda do estojo, ainda que abaixo do preço, torna-se na pior das hipóteses remediado. Mas faz melhor, deixa o serviço militar, retira-se para o interior e começa a adquirir livros e a estudar o pergaminho. Talvez fosse sempre uma dessas pessoas inclinadas à busca de tesouros pois de outra forma não teria descido aos subterrâneos de Provins, provavelmente tem cultura bastante para admitir que pode decifrar por si mesmo o pergaminho que encontrou. Trabalha tranqüilo, sem preocupações, como bom monômano, durante mais de trinta anos. Revela a alguém as suas descobertas? Quem sabe? O fato é que em 1935 deve ter sentido que chegara a bom ponto, ou antes, ao contrário, a um ponto morto, porque decide recorrer a alguém, seja para dizer-lhe o que já sabe ou para que lhe digam o que ainda não sabe. Mas o que sabe deve ser tão secreto, e terrível, que a pessoa a quem recorre fá-lo desaparecer. Mas tornemos à mansarda. Nesse ínterim precisava saber se Ingolf havia deixado alguma pista. Disse à boa senhorita que, talvez se examinasse os livros do pai, encontraria algum traço de sua descoberta em Provins, e em meu ensaio daria amplo testemunho do fato. Ela ficou entusiasmada, pobre papai, disse que eu podia ficar a tarde toda e voltar no dia seguinte se fosse necessário, trouxe-me um café, acendeu-me as luzes, e voltou para o jardim deixando-me de posse da peça. O quarto tinha paredes lisas e brancas, não dispunha de armários, repositórios, escrínios, anfractos onde pudesse vasculhar, mas não descuidei nada, busquei embaixo, em cima, dentro dos poucos móveis, num armário quase vazio só com algumas peças de roupa atulhado apenas de naftalinas, revirei os três ou quatro quadros com estampas de paisagens. Vou lhes poupar os detalhes, digo-lhes só que trabalhei bem, o acolchoado das poltronas não só foi testado, como houve por bem enfiar agulhas para sentir se dentro deles não havia corpos estranhos...”

Percebi que o coronel não havia freqüentado apenas campos de batalha.

"Sobravam-me os livros, em todo caso valia a pena anotar-lhes os títulos, e verificar se não havia apontamentos marginais, linhas suhlinhadas, quaisquer indícios... E finalmente ao tomar desajeitado um volume antigo de encadernação pesada, este me escapa da mão, e dele salta uma folha manuscrita. A julgar pelo tipo do papel de caderno e da tinta, não parecia muito antigo, podia ter sido escrito nos últimos anos de vida de Ingolf. Eu o divisei apenas, mas o bastante para ler uma anotação à margem: "Provins 1894." Imaginem minha emoção, a onda de sentimentos que me assaltaram... Compreendi que Ingolf fora a Paris com o documento original, mas que aquela folha constituía uma cópia dele. Não hesitei. A Srta. Ingolf havia espanado aqueles livros durante anos a fio, mas nunca havia distinguido aquela folha, de outra forma me teria falado. Pois bem, haveria de continuar a ignorá-la. O mundo se divide entre vencidos e vencedores. Tivera minha parte suficiente de derrotas, agora devia agarrar a vitória pelos cabelos. Apanhei a folha e meti-a no bolso. Despedi-me da senhorita dizendo-lhe não haver encontrado nada de interessante mas que iria citar o nome de seu pai assim mesmo se viesse a escrever algo, e ela me abençoou. Senhores, um homem de ação, e consumido por uma paixão como aquela em que ardia, não se deve dar a excessivos escrúpulos diante da esqualidez de um ser que o destino já havia condenado."

"Não precisa justificar-se", disse Belbo. "O senhor já fez. Agora conte...”

"Agora mostro aos senhores aquele texto. Consintam que lhes exiba uma fotocópia. Não por desconfiança. Mas para não submeter o original a manuseio."

"Mas o documento de Ingolf já não era o original", disse eu. "Era a cópia que ele fizera de um suposto original."

"Sr. Casaubon, quando os originais já não existem, a última cópia passa a ser o original."

"Mas Ingolf podia ter transcrito mal."

"O senhor não sabe se é assim. E eu sei que a transcrição de Ingolf diz a verdade, porque não vejo como a verdade poderia ser outra. Portanto a cópia de Ingolf é o original. Estamos de acordo nesse ponto, ou vamos ficar fazendo brincadeiras intelectuais?"

"Odeio-as", disse Belbo. "Vejamos sua cópia original."

 

Depois de Beaujeu a Ordem não deixou um instante jamais de subsistir e conhecemos depois de Aumont uma seqüência ininterrupta de Grão-Mestres da Ordem até os nossos dias e, se o nome e a sede do verdadeiro Grão-Mestre e dos verdadeiros Superiores que comandam a Ordem e dirigem hoje seus sublimes trabalhos é um mistério só conhecido pelos verdadeiros iluminados, mantido em segredo impenetrável, é porque a hora da Ordem ainda não soou e os tempos ainda não se cumpriram...

(Manuscrito de 1760, in G.A. Schiffmann, Die Entstehung der Rittergrade in der Freimauerei um die Mitte des XVIII Jahrhunderts, Lipsia, Zechel, 1882, pp. 178-190)

 

Foi o nosso contato inicial, remoto com o Plano. Naquela ocasião eu poderia muito bem estar em outra parte. Se não tivesse ido aquele dia ao escritório de Belbo, agora estaria..., vendendo gergelim em Samarcanda, editando uma coluna em Braille ou dirigindo o First National Bank na Terra de Francisco José? Os condicionais contrafactuais são sempre verdadeiros porque a premissa é falsa. Mas naquele dia eu estava lá, e por isso agora estou onde estou.

Com gesto teatral o coronel nos havia mostrado a folha. Tenho-a ainda aqui, entre os meus papéis, numa capa de plástico, mais amarelecida e desbotada do que já era então, naquela cópia em papel térmico que se usava à época. Eram na realidade dois textos, o primeiro corrido, que ocupava a primeira metade da página, e o segundo disposto em versículos mutilados...

O primeiro texto era uma espécie de litania demoníaca, parodiando uma língua semítica:

 

Kuabris Defrabax Rexulon Ukkazaal Ukzaab Urpaefel Taculbain Habrak Hacoruin Maquafel Tebrain Hmcatuin Rokasor Himesor Argaabil Kaquaan Docrabax Reisaz Reisabrax Decaiquan Oiquaquil Zaitabor Qaxaop Dugraq Xaelobran Disaeda Magisuan Raitak Huidal Uscolda Arabaom Zipreus Mecrim Cosmae Duquifas Rocarbis

 

"Não é inteligível", observou Belbo.

"Não, mesmo?" concordou com malícia o coronel. "E eu teria perdido a vida em cima dele se um dia, quase por acaso, não tivesse encontrado numa banca de livros um opúsculo sobre Tritêmio e não desse com os olhos em uma de suas mensagens cifradas: "Pamersiel Oshurmy Delmuson Thafloyn...” Havia encontrado uma pista, e a segui a fundo. Tritêmio para mim era um desconhecido, mas em Paris encontrei uma edição de sua Steganographia, hoc est ars per occultam scripturam animi sul voluntatem absentibus aperiendi certa, Franco-forte 1666. A arte de mostrar através de uma escrita oculta o próprio ânimo a pessoas distantes. Personagem fascinante, esse Tritêmio. Abade beneditino em Spannheim, viveu entre os séculos XV e XVI, um douto que sabia hebraico e caldaico, línguas orientais como o tártaro, vivendo em contato com teólogos, cabalistas, alquimistas, certamente com o grande Cornélio Agripa de Nettesheim e talvez com Paracelso... Tritêmio disfarça suas revelações sob escritas secretas com mistificações necromânticas, diz que necessita enviar mensagens cifradas do tipo daquela que os senhores viram e que o destinatário precisa evocar anjos como Pamersiel, Padiel, Dorothiel e assim por diante, para ajudá-lo a compreender o verdadeiro sentido da mensagem. Mas os exemplos que fornece são freqüentemente mensagens militares, o livro é dedicado a Filipe, conde palatino e duque da Baviera e constitui um dos primeiros exemplos de trabalho criptográfico sério, coisa a nível de serviço secreto."

"Desculpe", perguntei, "mas se compreendo bem esse Tritemio viveu pelo menos cem anos depois da redação do manuscrito de que nos estamos ocupando...”

"Tritêmio era filiado a uma Sodalitas Celtica, que se ocupava de filosofia, astrologia, matemática pitagórica. Percebem o nexo? Os Templários são uma ordem iniciática que se nutre também da sabedoria dos antigos celtas, já está agora amplamente provado. De alguma forma Tritêmio aprende os mesmos sistemas criptográficos usados pelos Templários."

"Impressionante", disse Belbo. "E que diz a transcrição da mensagem secreta?"

"Calma, senhores. Tritêmio apresenta quarenta criptossistemas maiores e dez menores. Tive realmente sorte, ou bem os Templários de Provins não quiseram espremer demasiadamente o crânio, seguros de que ninguém iria adivinhar a sua chave. Experimentei logo com o primeiro dos quarenta criptossistemas maiores, partindo da hipótese de que neste texto só contam as iniciais."

Belbo tomou a folha e examinou-a: "Mas mesmo assim resulta uma seqüência sem sentido: kdruuuth...”

"Natural", disse com condescendência o coronel. "Os Templários não quiseram espremer muito o crânio, mas também não eram assim tão indolentes. Esta primeira sentença é por sua vez uma mensagem cifrada, e pensei imediatamente na segunda série dos dez criptossistemas. Vejam que para essa segunda série Tritêmio usava rótulas, e aqui está a correspondente ao primeiro criptossistema."

Tirou de sua pasta outra fotocópia, aproximou a cadeira da mesa e procedeu à sua demonstração tocando as letras com a ponta da estilográfica fechada.

"Trata-se do sistema mais simples. Considerem apenas o círculo externo. Cada letra da mensagem em claro deve ser suhstituída pela letra precedente. Para o A se escreve Z, para o B se escreve A, e assim por diante. Brinquedo de criança para os agentes secretos, hoje em dia, mas naqueles tempos era considerado bruxaria. Naturalmente para decifrar, procede-se de maneira inversa, e substitui-se cada letra da mensagem cifrada pela letra que se segue. Fiz minhas tentativas, é verdade que tive sorte de acertar logo da primeira vez, e aqui está a solução."

Transcreveu: "Les XXX Vi inuisibles separez en six bandes, os trinta e seis invisíveis separados em seis grupos."

"E que significa isso?"

"À primeira vista nada. Trata-se de uma espécie de cabeçalho da constituição de um grupo, escrita em linguagem secreta por motivos rituais. Em seguida, para o resto do texto os nossos Templários, certos de que estavam colocando sua mensagem num invólucro inviolável, limitaram-se a usar o francês do século XIV. Vejamos em que consiste o segundo texto:

 

a la ... Saint Jean

36 p charrete de fein

6 ... entiers avec saiel

p ... les blancs mantiax

r ... s ... chevaliers de Pruins pour la ... j . nc .

6 foiz 6 en 6 places

chascune foiz 20 a ... 120 a…

iceste est l’ordonation

al donjon li premiers

it li secunz joste iceus qui ...,pans

it al refuge

it a Nostre Dame de l’altre part de l’iau

it a l’ostel des popelicans

it a la pierre

3 foiz 6 avant Ia feste ... Ia Grant Pute.

 

"E esta seria a mensagem não-cifrada?" perguntou Belbo, desiludido e divertido ao mesmo tempo.

"É evidente que na tradução de Ingolf as reticências representam palavras ilegíveis ou espaços onde o pergaminho se havia desfeito... Mas aqui está minha transcrição final em que, por meio de conjecturas que me permitiram uma definição lúcida e inatacável, restituo o texto ao seu antigo esplendor - como se sói dizer."

Virou com gesto de prestidigitador a folha e nela nos mostrou seus apontamentos em letras de fôrma:

NA (NOITE DE) SÃO JOÃO

36 (ANOS) (DE)P(OIS DA) CARRETA DE FENO

6 (MENSAGENS) INTACTAS COM SINETE

P(ARA OS CAVALEIROS D)OS MANTOS BRANCOS

R(ELAPSO)S DE PROVINS PARA A (VAIN) lANCE [VINGANÇA]

6 VEZES 6 EM 6 LUGARES

CADA VEZ 20 A(NOS FAZEM) 120 A(NOS)

ESTA É A ORDENAÇÃO [PLANO]:

(VÃO AO) CASTELO OS PRIMEIROS

IT(ERUM) [NOVAMENTE APOS 120 ANOS] OS SEGUNDOS SE JUNTAM AQUELES (DO) PÃO

DE NOVO AO REFÚGIO

DE NOVO À NOSSA SENHORA DO OUTRO LADO DA ÁGUA [RIO]

DE NOVO À ESTALAGEM DOS POPELICANT

DE NOVO À PEDRA

3 VEZES 6[666] ANTES DA FESTA (DA) GRANDE MERETRIZ.

 

"Pior que andar às cegas", disse Belbo.

"Certamente ainda está tudo por interpretar. Mas Ingolf decerto havia conseguido, assim como eu consegui. É menos hermético do que parece, para quem conhece a história da ordem."

Pausa. Pediu um copo d’água, e continuou a nos fazer acompanhar o texto, palavra por palavra.

"Pois bem: na noite de São João, trinta e seis anos depois da carreta de feno. Os Templários destinados à perpetuação da ordem fogem à captura em setembro de 1307, escondidos numa carreta de feno. Naqueles tempos o ano era calculado de uma Páscoa a outra. Logo o ano de 1307 acaba por volta do que seria segundo nossos cálculos a Páscoa de 1308. Procurem calcular trinta e seis anos depois do fim de 1307 (que é a nossa Páscoa de 1308) e chegaremos à Páscoa de 1344. Depois dos trinta e seis anos fatídicos, estamos em nosso 1344. A mensagem foi depositada na cripta dentro de um recipiente precioso, à guisa de sinete, de ato notarial de uma cerimônia qualquer que se tenha realizado naquele local, após a constituição da ordem secreta, na noite de São João, ou seja a 23 de junho de 1344."

"Por que 1344?"

"Julgo que de 1307 a 1344 a ordem secreta se reorganize e aguarde o projeto cujo encaminhamento é sancionado pelo pergaminho. Era preciso esperar que as águas se acalmassem, que voltassem a se reatar os fios entre os Templários de cinco ou seis países. Por outro lado, os Templários haviam esperado trinta e seis anos, não trinta e cinco ou trinta e sete, evidentemente porque o número 36 tinha para eles valores místicos, o que a própria mensagem cifrada confirma. A soma interna de 36 dá nove, e não lhes preciso recordar os significados profundos desse número."

"Licença?" Era a voz de Diotallevi, que se introduzira às nossas costas, silencioso como um Templário de Provins.

"Pão para os teus dentes", disse Belbo. Apresentou-o rapidamente, o coronel não pareceu excessivamente perturbado com sua presença, antes pelo contrário dava a impressão de que desejava audiência numerosa e atenta. Continuou a interpretar, e Diotallevi babava de prazer diante daquelas guloseimas numerológicas. Pura Gematria.

"Mas vamos aos sigilos: seis coisas fechadas com um selo. Ingolf encontra um estojo, evidentemente fechado por um selo. Para quem teria sido selado aquele estojo? Para os Mantos Brancos, conseqüentemente para os Templários. Ora, encontramos na mensagem um r, algumas letras apagadas, e um s. Eu leio aí "relapsos". Por quê? Porque sabemos todos que os relapsos eram os réus confessos que se retratavam, e os relapsos desempenharam um papel nada insignificante no processo dos Templários. Os Templários de Provins assumem orgulhosamente sua natureza de relapsos. São aqueles que se dissociam da infame comédia do processo. Portanto, trata-se aqui dos cavaleiros de Provins, dos relapsos, prontos para o quê? As poucas letras à nossa disposição sugerem "vainjance" - para a vingança."

"Mas qual vingança?"

"Ora, senhores! Toda a mística templar, a partir do processo, se concentra em torno do projeto de vingar Jacques de Molay. Não tenho em grande consideração os ritos maçônicos, mas eles, caricatura burguesa da cavalaria templar, não deixam de ser sempre um reflexo daqueles, conquanto degenerado. E um dos graus da maçonaria de rito escocês é o de Cavaleiro Kadosch, que significa em hebraico cavaleiro da vingança."

"Está bem, os Templários se dispõem à vingança. E depois?"

"Quanto tempo deverá levar esse plano de vingança? A mensagem cifrada nos ajuda a compreender a mensagem em linguagem clara. São requeridos seis cavaleiros por seis vezes em seis lugares, trinta e seis divididos em seis grupos. Depois se diz "Cada vez vinte", e aqui há algo que não está bem claro mas que na transcrição de Ingolf parece ser um a. Vinte anos de cada vez, deduzi, durante seis vezes, cento e vinte anos. Se continuamos pelo resto da mensagem vamos encontrar um conjunto de seis lugares, ou de seis deveres a desenvolver. Fala-se de uma "ordenação", um plano, um projeto, um procedimento a seguir. E se diz que os primeiros devem ir a um donjon ou torreão de castelo, os segundos a um outro lugar, e assim por diante até o sexto. Logo o documento nos revela que deveria haver outros seis documentos igualmente selados, espalhados por lugares diversos, e me parece evidente que tais selos devam ser abertos um após outro com um espaço de cento e vinte anos entre si...”

"Mas por que vinte anos de cada vez?" indagou Diotallevi.

"Esses cavaleiros da vingança devem cumprir uma missão em determinado lugar a cada cento e vinte anos. Trata-se de uma forma de estafeta. É claro que depois da noite de 1344 seis cavaleiros partem, cada qual se dirigindo para um dos seis lugares previstos no plano. Mas o guardião do primeiro selo não pode permanecer vivo por cento e vinte anos. É de entender que cada guardião de cada s elo deve permanecer no cargo por vinte anos, e depois passar o comando a um sucessor. Vinte anos é prazo razoável, seis guardiães por selo, vinte anos cada um, garantiriam que no centésimo vigésimo ano o depositário do selo pudesse ler uma instrução, digamos, e passá-la ao primeiro guardião do segundo selo. Eis por que a mensagem se exprime no plural, vão os primeiros ali, vão os segundos acolá... Cada lugar é por assim dizer controlado, no espaço de cento e vinte anos, por seis cavaleiros. Façamos os cálculos, do primeiro ao sexto lugar são cinco passagens, que abrangem seiscentos anos. Somando-se seiscentos a 1344, obtemos 1944. O que é confirmado também pela última linha da mensagem. Claro como o sol."

"Ou seja?"

"A última linha diz "três vezes seis antes da festa (da) Grande Meretriz". Também aqui temos um pequeno jogo numerológico, porque a soma interna de 1944 dá precisamente 18. Dezoito é três vezes seis, e essa nova e admirável coincidência numérica sugere aos Templários um outro sutilíssimo enigma. 1944 é o ano em que o plano deve concluir-se. Em relação a quê? Mas ao ano dois mil! Os Templários crêem que o segundo milênio assinalará o advento de sua Jerusalém, uma Jerusalém terrestre, a Antijerusalém. São perseguidos como heréticos? Em seu ódio à igreja identificam-se com o Anticristo. Sabem que 666 em toda a tradição oculta é o número da Besta. O seiscentos e sessenta e seis, o ano da Besta, é o ano dois mil em que triunfará a vingança templária, e a Antijerusalém é a Nova Babilônia, razão por que 1944 é o ano do triunfo de la Grant Pute, a grande meretriz da Babilônia de que fala o Apocalipse! A referência a 666 é uma provocação, uma bravata de homens de armas. Um assumir de oposição, como se diria hoje. Bela história, não?"

Olhava-nos com olhos úmidos, úmidos os lábios e o bigode, enquanto acariciava a pasta com as mãos.

"Pois muito bem", disse Belbo, "aqui se esboçam os prazos de um plano. Mas qual plano?"

"Está querendo muito. Se eu soubesse, não teria necessidade de lançar a minha isca. Mas uma coisa eu sei. Que nesse lapso de tempo ocorreu um incidente, e o plano não se cumpriu, pois de outra forma, permitam-me, teríamos sabido. E posso até compreender por quê: 1944 não é um ano fácil, os Templários não poderiam saber que haveria uma guerra mundial capaz de tornar todos os contatos mais difíceis."

"Desculpem se me intrometo", disse Diotallevi, "mas se percebo bem, uma vez aberto o primeiro selo, a dinastia de seus guardiães não se extingue. Continua até a abertura do último, quando se exigirá a presença de todos os representantes da ordem. E portanto em cada século, ou melhor, a cada cento e vinte anos, teremos sempre seis guardiães em cada lugar, conseqüentemente trinta e seis”.

"Exato", disse Ardenti.

"Trinta e seis cavaleiros em cada um dos seis postos faz 216, cuja soma interna é 9. E como os séculos são 6, multipliquemos 216 por 6 e teremos 1296, cuja soma interna é 18, vale dizer três vezes seis, 666."

Diotallevi teria possivelmente procedido à reformulação aritmológica da história universal se Belbo não o tivesse interrompido com uma dessas olhadas, como fazem as mães quando o filho comete alguma gafe. Mas o coronel estava reconhecendo em Diotallevi um iluminado.

"É esplêndido o que o senhor acaba de me demonstrar, doutor! O senhor sabe naturalmente que nove é o número dos primeiros cavaleiros que constituíram o núcleo do Templo em Jerusalém!"

"O Grande Nome de Deus, como expresso pelo tetragrámmaton", disse Diotallevi, "contém setenta e duas letras, e sete e dois fazem nove. Mas lhe direi algo mais, se me permite. Segundo a tradição pitagórica, que a Cabala retoma (ou inspira), a soma dos números ímpares de um a sete dá dezesseis, e a soma dos números pares de dois a oito dá vinte, e vinte mais dezesseis fazem trinta e seis."

"Meu deus, doutor", fremia o coronel, "eu sabia, sabia. O senhor me conforta. Estou muito próximo da verdade."

Eu não compreendia até que ponto Diotallevi fazia da aritmética uma religião ou da religião uma aritmética, e provavelmente ambas as coisas eram verdadeiras, e tinha à minha frente um ateu que gozava do êxtase em algum céu superior. Poderia tornar-se um devoto da roleta (o que teria sido melhor) e acabava com pretensões a rabino descrente.

Agora não me recordo exatamente que coisa aconteceu, mas Belbo interveio com seu bom senso piemontês e quebrou o encanto. Restavam ao coronel mais algumas linhas para interpretar e todos queriam saber. E já eram seis da tarde. As seis, pensei, que são também as dezoito.

"Vamos lá", disse Belbo. "Trinta e seis por século, os cavaleiros vão passo a passo se preparando para descobrir a Pedra. Mas qual Pedra?"

"Ora vamos! Trata-se naturalmente do Graal."

 

A Idade Média aguardava a chegada do herói do Graal e que o chefe do Sacro Império Romano se tornasse uma imagem e manifestação do próprio "Rei do Mundo"..., o Imperador invisível fosse também o manifesto e a Idade do Meio..., tivesse também o sentido de uma Idade do Centro... O centro invisível e inviolável, o soberano que deve despertar, o próprio herói vingador e restaurador, não são fantasias de um passado morto mais ou menos romântico, mas antes a verdade daqueles que hoje, sós, podem legitimamente chamar-se vivos.

(Julius Evola, Il mistero del Graal, Roma, Edizioni Mediterranee, 1983, c. 23 e Epílogo)

 

"O senhor diz que o Graal também entra nesta história?" informou-se Belbo.

“Naturalmente. E não sou eu a dizê-lo. Creio não necessitar alongar-me sobre o que seja a lenda do Graal, já que estou falando com pessoas cultas. Os cavaleiros da távola redonda, a busca mística desse objeto prodigioso, que para alguns seria o cálice que recolheu o sangue de Jesus, levado para a França por José de Arimatéia, e para outros uma pedra dotada de misteriosos poderes. Não raro o Graal surge como luz fulgente... Trata-se de um símbolo, que representaria uma força qualquer, uma fonte qualquer de imensa energia. Serve de alimento, sara as feridas, provoca a cegueira, fulmina... Um raio laser?”.

Houve quem pensasse na pedra filosofal dos alquimistas, mas se assim fosse, que teria sido a pedra filosofal senão um símbolo de alguma energia cósmica? A literatura a esse respeito é interminável, mas podem-se particularizar facilmente algumas manifestações inconfundíveis. Se lerem o Parsifal de Wolfram von Eschenbach verão que o Graal aí surge como guardado num castelo dos Templários! Eschenbach seria um iniciado? Um imprudente que teria revelado algo que fora melhor calar? Mas não basta. Esse Graal guardado pelos Templários é definido como uma pedra caída do céu: Iapis exillis. Não se sabe se significa pedra do céu (ex coelis) ou que vem do exílio. Em todo caso é algo que vem de longe, e alguém sugeriu que poderia ser um meteorito. No que nos concerne, o importante é que seja uma Pedra. Seja lá o que fosse o Graal, para os Templários simboliza o objeto ou o fim do plano."

"Desculpem", disse, "a lógica do documento requer que no sexto encontro os cavaleiros devam estar juntos ou sobre uma pedra e não achando uma pedra."

"Outra ambigüidade sutil, outra luminosa analogia mística! Certamente o sexto encontro é sobre uma pedra, e veremos onde, mas sobre aquela pedra, uma vez realizada a transmissão do plano e a abertura dos seis sinetes, os cavaleiros saberão onde encontrar a Pedra! Temos aí portanto o jogo de palavras evangélico: Tu és Pedro e sobre esta pedra... Sobre a pedra encontrareis a Pedra."

"Só pode ser isso", disse Belbo. "Por favor, continue. Casaubon, não fique interrompendo sempre. Estamos ansiosos por conhecer o resto.”

"Logo", disse o coronel, "a evidente referência ao Graal me fez pensar com o tempo que o tesouro fosse algum imenso depósito de material radiativo, quem sabe caído de outro planeta. Considerem por exemplo, na lenda do Graal, a misteriosa ferida do rei Amfortas... Parece um radiologista que se tenha exposto demais... E de fato é algo em que não se deve tocar. Por quê? Pensem na emoção que os Templários devem ter sentido ao chegarem às margens do mar Morto, como sabem, águas betuminosas muito pesadas, sobre as quais se flutua como cortiça, e de propriedades curativas... Poderiam ter descoberto na Palestina um depósito de rádio ou de urânio, logo percebendo que não tinham condições de aproveitá-lo de imediato. As relações entre o Graal, os Templários e os cátaros foram estudadas cientificamente por um brilhante oficial, falo de Otto Rahn, um Obersturmbannführer da SS que dedicou a vida a meditar com alto rigor sobre a natureza européia e ariana do Graal - não quero dizer como e por que perdeu a vida em 1939, mas há quem afirme..., bem, podemos nos esquecer do que aconteceu a Ingolf?... Rahn nos mostra as relações entre o Velocino de Ouro dos Argonautas e o Graal..., em suma é evidente que há uma ligação entre o Graal místico da lenda, a pedra filosofal (lapis!) e aquela fonte de potência extraordinária com que ansiavam os seguidores de Hitler desde a vigília da guerra, até o seu último instante. Notem que numa das versões da lenda os Argonautas vêem um cálice, isso mesmo um cálice, pairando sobre a Montanha do Mundo com a Arvore da Luz. Os Argonautas encontram o Velocino de Ouro e a nave em que estão é transportada por encanto para a Via-Láctea, no hemisfério boreal onde juntamente com a Cruz, o Triângulo e o Altar domina e afirma a natureza luminosa do Deus eterno. O triângulo simboliza a Trindade divina, a cruz o divino Sacrifício de amor e o altar a Távola (ou Mesa) da Ceia, sobre a qual estava o Cálice da Ressurreição. A origem céltica e ariana de todos esses simbolos é mais que evidente."

O coronel parecia tomado da mesma exaltação heróica que havia evado ao supremo sacrifício o seu obersturmunddrang ou que diabo de nome tenha. Era forçoso trazê-lo à realidade.

"A conclusão é?" perguntei.

"Sr. Casaubon, não está vendo com seus próprios olhos? Falou-se aqui do Graal como Pedra Luciferina, assemelhando-a à figura de Bafomé. O Graal é uma fonte de energia, os Templários eram os guardiães de um segredo energético, e traçam seu plano. Onde se estabeleceram as sedes desconhecidas? Aqui, senhores", e o coronel nos olhou com um ar cúmplice, como se estivéssemos conspirando juntos, "eu tinha uma pista, errada mas útil. Um autor que devia ter ouvido de passagem algum segredo, Charles-Louis Cadet-Gassicourt (por coincidência, sua obra estava presente na pequena biblioteca de Ingolf) escreve em 1797 um livro, Le tombeau de Jacques Molay ou le secret des conspirateurs à ceux qui veulent tout savoir, e sustenta que Molay, antes de morrer, funda quatro lojas secretas, em Paris, Escócia, Estocolmo e Nápoles. Essas quatro lojas deveriam exterminar todos os monarcas e destruir o poder do papa. Admito que Gassicourt fosse um exaltado, mas parti de sua idéia para estabelecer o local onde os Templários poderiam de fato ter estabelecido sua sede secreta. É natural que não teria podido compreender os enigmas da mensagem se não tivesse tido uma idéia guia. Mas eu tinha, e estava persuadido, com fundamento em inúmeras evidências, de que o espírito templar era de inspiração céltica, druídica, era o espírito do arianismo nórdico que a tradição identifica com a ilha de Avalon, sede da verdadeira civilização hiperbórea. Saibam que vários autores identificaram Avalon com o jardim das Hespérides, com a Ultima Thule e com a Cólquida do Velocino de Ouro. Não é por acaso que a maior ordem de cavalaria da história seja a do Tosão de Ouro. Com isto se torna claro o que oculta a expressão ‘Donjon’ (Torreão ou Castelo). E o castelo hiperbóreo onde os Templários custodiavam o Graal, provavelmente o Montsalvat da lenda."

Fez uma pausa. Queria que pendêssemos de seus lábios. Pendíamos.

"Vamos à segunda ordenação: os guardiães do selo devem ir até onde estão aquele ou aqueles que fizeram algo com o pão. A indicação já é em si claríssima: o Graal é o cálice do sangue de Cristo, o pão é a carne de Cristo, o lugar onde se comeu o pão é o mesmo lugar da Santa Ceia, em Jerusalém. Impossível pensar que os Templários, mesmo depois da reconquista sarracena, não tivessem conservado ali uma base secreta. Para ser franco, a princípio me perturbava um pouco esse elemento judaico num plano que se coloca inteiramente sob o signo de uma mitologia ariana. Depois, pensando bem, concluí que somos nós que continuamos a considerar Jesus como expressão da religiosidade judaica, porque a igreja de Roma no-lo repete. Os Templários sabiam muitíssimo bem que Jesus é um mito céltico. Toda a narrativa evangélica é uma alegoria hermética, a ressurreição depois de haver se dissolvido nas entranhas da Terra etc, etc. O Cristo não é outra coisa senão o Elixir dos alquimistas. Por outro lado todos sabem que a trindade é uma noção ariana, daí por que toda a regra templária, ditada por um druida como são Bernardo, está dominada pelo número três."

O coronel acabou de beber outro gole d’água. Estava rouco. "E cá estamos na terceira etapa, o Refúgio. É o Tibet."

"Mas por que o Tibet?"

"Antes de mais nada, porque von Eschenbach nos conta que os Templários abandonaram a Europa e transportaram o Graal para a Índia. O berço da estirpe ariana. O refúgio está em Agarttha. Já ouviram falar de Agarttha, sede do rei do mundo, a cidade subterrânea da qual os Senhores do Mundo dominam e dirigem o acontecer da história humana. Os Templários constituíram um de seus centros secretos precisamente ali nas raízes de sua espiritualidade. Os senhores conhecem as relações entre o reino de Agarttha e a Sinarquia...”

"Na verdade não...”

"Melhor assim, pois são segredos que matam. Não divaguemos. Em todo caso todos sabem que Agarttha foi um reino fundado há seis mil anos, no inicio da época do Kali-Yuga, na qual ainda estamos vivendo. A missão das ordens de cavalaria foi sempre a de manter uma ligação com esse centro secreto, a comunicação ativa entre a sabedoria do Oriente e a sabedoria do Ocidente. E a essa altura já está bastante claro o local onde deverá ocorrer o quarto encontro, num outro santuário druídico, na cidade da Virgem, ou seja, na Catedral de Chartres. Chartres em relação a Provins se encontra do outro Lado do rio principal da Île de France, o Sena."

Não conseguíamos acompanhar mais o nosso interlocutor: "Mas que tem a ver Chartres com seu percurso céltico-druídico?"

"Mas de onde acham os senhores que tenha vindo a idéia da Virgem? As primeiras virgens que aparecem na Europa são as virgens negras dos celtas. São Bernardo quando jovem estava ajoelhado na igreja de Saint Voirles, diante de uma virgem negra, quando essa espremeu do seio três gotas de leite que caíram sobre os lábios do futuro fundador dos Templários. Daí os romances do Graal, para criar uma cobertura para as cruzadas, e as cruzadas para reencontrar o Graal. Os beneditinos são os herdeiros dos druidas, todos sabem."

"Mas onde estão essas virgens negras?"

"Desapareceram com elas aqueles que queriam inquinar a tradição nórdica - transformar a religiosidade céltica na religiosidade mediterrânea, inventando o mito de Maria de Nazaré. Ou estão transmutadas, desnaturadas, como tantas madonas negras que ainda se expõem ao fanatismo das massas. Mas quando se lêem devidamente as imagens das catedrais, como feio grande Fulcanelli, vê-se que essa história é contada às claras, da mesma forma como é clara a representação dos laços que unem a virgem céltica à tradição alquímica de origem templar, que faz da virgem negra um símbolo da matéria-prima sobre a qual trabalham aqueles que buscam a pedra filosofal, que, como vimos, outra coisa não é senão o próprio Graal. E agora reflitam de onde veio a inspiração daquele outro grande iniciado dos druidas, Maomé, para a pedra negra de Meca. Em Chartres alguém emparedou a cripta que faz comunicação com o sítio subterrâneo onde ainda existe a estátua pagã originária, mas procurando bem pode-se encontrar uma virgem negra, Nossa Senhora de Pillier, esculpida por um padre odinista. A imagem sustém na mão o cilindro mágico das grandes sacerdotisas de Odin e à sua esquerda está esculpido o calendário mágico em que apareciam - digo infelizmente apareciam, porque tais esculturas não se salvaram do vandalismo dos padres ortodoxos - os animais sagrados do odinismo, o cão, a águia, o leão, o urso branco e o lobisomem. Por outro Lado não escapou a nenhum dos estudiosos do esoterismo gótico que precisamente em Chartres existe uma estátua que traz na mão o cálice do Graal. Ah, meus caros senhores, se se soubesse interpretar a catedral de Chartres não segundo os guias turísticos católicos apostólicos romanos, mas com olhos de ver, digo com os olhos da Tradição, a verdadeira história que aquela rocha de Erec relataria...”

"E com isso chegamos aos popelicans. Quem são eles?"

"São os cátaros. Um dos apelativos dados aos heréticos era o de popelicanos ou popelicantes. Os cátaros de Provença foram destruidos, não serei assim tão ingênuo de imaginar um encontro nas ruínas de Montségur, mas a seita não morreu, existe toda uma geografia do catarismo que inclui até mesmo Dante, os poetas do Stil Nuovo, a seita dos Fiéis do Amor. O quinto encontro se dá em alguma parte da Itália setentrional ou da França meridional."

"E o último encontro?"

"Mas qual é a mais antiga, a mais sagrada, a mais estável das pedras célticas, o santuário da divindade solar, o observatório privilegiado do qual, chegando ao fim do plano, os descendentes dos Templários de Provins poderão confrontar, finalmente juntos, os segredos lacrados pelos seis selos e descobrir afinal a maneira de desfrutar o imenso poder concedido ao possuidor do Santo Graal? Certamente na Inglaterra, no círculo mágico de Stonehenge! Qual mais seria?"

"O basta lá", disse Belbo. Só um piemontês pode compreender o ânimo com que se pronuncia esta expressão de eduçada estupefação. Nenhum de seus equivalentes em outra língua ou dialeto (não me diga isso, dis donc, are you kidding?) pode expressar o soberbo senso de desinteresse, o fatalismo com que ela reconfirma a indefectível persuasão de que os demais são, e irremediavelmente, filhos de uma divindade inapta. Mas o coronel não era piemontês, e pareceu lisonjeado pela reação de Belbo.

"Seguro. Este é o plano, a ordenação, em sua admirável simplicidade e coerência. Vejam que se tomarem um mapa da Europa e da Ásia e traçarem as linhas de seqüência do plano, desde o norte onde está o Castelo a Jerusalém, de Jerusalém a Agarttha, de Agarttha a Chartres, de Chartres às margens do Mediterrâneo e dali a Stonehenge, irão obter um traçado, uma runa aproximadamente desta forma."

 

"E então?"

"Então é que essa é a mesma runa que conecta idealmente alguns dos principais centros do esoterismo templar, Amiens, Troyes, reino de São Bernardo, às bordas da Floresta do Oriente, Reims, Chartres, Rennes-le-Château e o monte Saint-Michel, local de antiqüíssimo culto druídico. Além disso, esse mesmo desenho recorda a constelação da Virgem!"

"Tenho gosto pela astronomia", disse timidamente Diotallevi, "e quanto me recordo a constelação da Virgem tem um desenho diferente desse, contando, segundo me parece, com onze estrelas...”

O coronel sorriu com indulgência: "Senhores, senhores, sabem melhor do que eu que tudo depende da maneira de traçar as linhas, podendo-se obter um carro ou uma ursa, à vontade, e como é difícil decidir se uma estrela está dentro ou fora de uma constelação. Imaginem a constelação da Virgem, fixando a Espiga como ponto inferior, correspondente à costa provençal, e identifiquem apenas cinco estrelas que a semelhança entre os dois traçados será de fato impressionante."

"Basta decidir que estrelas descartar", disse Belbo.

"Exato", confirmou o coronel.

"Ouça", disse Belbo, "como pode excluir a hipótese de que os encontros se tenham realizado regularmente e que os cavaleiros já estejam em marcha sem que o saibamos?"

"Não localizo os sintomas, e me permita acrescentar "infelizmente". O plano foi interrompido ou talvez aqueles que o devessem levar a cabo não existam mais, os grupos dos trinta e seis se dissolveram no curso de alguma catástrofe mundial. Mas um grupo de audazes que tivesse as informações corretas poderia retomar os fios da trama. Aquele algo ainda está lá. Estou à procura dos homens adequados. Por isso quero publicar o livro, para provocar reações. E ao mesmo tempo procuro colocar-me em contato com pessoas que possam me ajudar a buscar a resposta nos meandros do saber tradicional. Hoje fui ao encontro da maior autoridade no assunto. Mas, qual! Embora sendo um luminar no assunto, nada soube me dizer, ainda que estivesse muito interessado em minha história e me prometesse escrever o prefácio...”

"Desculpe-me", disse-lhe Belbo, "mas não teria sido imprudente confiar seu segredo a esse senhor? Não se esqueça que nos falou da imprudência de Ingolf...”

"Com licença", respondeu o coronel, "Ingolf era um ingênuo. Eu travei conhecimento com um estudioso acima de qualquer suspeita. Pessoa que não arrisca hipóteses levianas. Tanto que hoje me pediu que esperasse um pouco antes de apresentar minha obra a um editor, até aclarar de todo os pontos controversos... Não quis perder a sua simpatia e por isso não lhe disse que viria aqui, mas hão de compreender que chegando a essa fase de minha obra esteja naturalmente impaciente. Aquele senhor..., ora, ao diabo com a discrição, não quero que pensem que estou blefando. Trata-se de Rakosky...”

Fez uma pausa, esperando nossa reação.

"Quem?" desiludiu-o Belbo.

"Mas, de Rakosky! Uma autoridade em estudos da tradição, ex-diretor dos Cahiers du Mystère!"

"Ah!", disse Belbo, "ah, sim, eu sei, o Rakosky, certo...”

"Ora bem, reservo-me o direito de estender definitivamente meu texto depois de haver ouvido os conselhos daquele senhor, mas como pretendo queimar etapas, se no entretempo chegasse a um acordo com a editora... Insisto, tenho pressa de suscitar reações, de recolher notícias... Há gente por aí que sabe e que não fala... Senhores, embora se dê conta de que a guerra está perdida, precisamente por volta de 1944 Hitler começa a falar de uma arma secreta que lhe permitirá reverter a situação. Está maluco, disseram. Mas e se não estivesse? Estão percebendo?" Tinha a fronte coberta de suor e os bigodes quase hirtos, como um felino. "Em suma", disse, "eu lanço a isca. Vejamos se alguém aparece.

Pelo quanto sabia e pensava de Belbo, fiquei à espera naquele dia de que ele se descartasse do coronel com alguma frase de circunstância. Ao contrário, ouvi-o dizer: "Ouça, coronel, a coisa é sumamente interessante, abstraído o fato de que venha ou não a ser editada por nós. Pode ficar comigo ainda alguns minutos, não pode coronel?" Depois voltando-se para mim: "Sei que está com pressa, Casaubon, e já o retive aqui demasiado. Em todo caso nos veremos amanhã, não?"

Era um sinal de despedida. Diotallevi tomou-me pelo braço e disse que também já ia. Despedimo-nos. O coronel apertou calorosamente a mão a Diotallevi e me fez um sinal com a cabeça, acompanhado de um sorriso frio.

Enquanto descíamos as escadas Diotallevi me disse: "Deve naturalmente estar se perguntando por que Belbo lhe pediu para sair. Não tome isso por descortesia. É que Belbo estará fazendo ao coronel uma proposta editorial muito reservada. Reservada, por ordem do Sr. Garamond. Eu também me afasto, para não criar embaraço."

Como compreendi em seguida, Belbo procurava atirar o coronel nas fauces da Manuzio.

Arrastei Diotallevi para o Pílades, onde pedi um Campari e ele um ruibarbo. Parecia-lhe, disse, monacal, arcaico e quase templar.

Perguntei-lhe o que achava do coronel.

"Nas editoras", respondeu, "aflui toda a insipiência do mundo. Mas como na insipiência do mundo fulgura a sapiência do Altíssimo, o sábio observa o insipiente com humildade" Depois desculpou-se, tinha que ir embora. "Hoje à noite tenho um banquete", disse.

"Uma festa?" perguntei.

Pareceu desconcertado com a minha futilidade. "Zohar", precisou. "Lekh Lekha. Páginas ainda de todo incompreensíveis."

 

O Graal... é um peso tão grande que ao pecador não é dado removê-lo do lugar.

(Wolfram vou Eschenbach, Parzival, IX, 477)

 

O coronel não me tinha sido simpático mas era interessante. Pode-se observar demoradamente, fascinado, até mesmo um lagarto. Estava saboreando as primeiras gotas de veneno que nos iriam levar todos à perdição.

Tornei a estar com Belbo na tarde seguinte e falamos um pouco a propósito do visitante. Belbo disse que o coronel lhe pareceu um mitômano: “Viu como citava aquele Roscofi ou Rostropovich como se fosse Kant?"

"Além de tudo são histórias já velhas", disse eu. "Esse Ingolf era um maluco que acreditava em si mesmo e o coronel é um maluco que acredita em Ingolf."

"Talvez acreditasse ontem e hoje já acredite em outra coisa qualquer. Agora posso lhe dizer, ontem antes de deixá-lo marquei-lhe um encontro com..., com outro editor, uma casa de bom gosto, disposta a publicar livros financiados pelo autor. Parecia entusiasmado. Pois bem, acabo de saber que lá não foi. E dizer que deixou comigo a fotocópia da mensagem, veja. Deixa por aí o segredo dos Templários como se nada fosse. São personagens desse gênero."

Foi nesse momento que soou o telefone. Belbo atendeu: "Sim, quem está falando é Belbo, da editora Garamond. Bom dia, pode dizer... Sim, esteve aqui ontem à tarde, propondo a edição de um livro. Desculpe, mas por motivo de privacidade de minha parte, poderia dizer-me...”

Ouviu por alguns segundos, depois olhou para mim, pálido, e disse: "Mataram o coronel, ou qualquer coisa do gênero." Voltou a falar com seu interlocutor: "Desculpe-me, estava dizendo a Casaubon, meu colaborador que esteve ontem presente à entrevista... Estava dizendo que o coronel Ardenti veio falar-nos de um projeto seu, uma história que considero meio fantasiosa, a propósito de um suposto tesouro dos Templários. Eram cavaleiros da Idade Média...”

Cobriu instintivamente o fone com a mão, como para isolar o auscultador, depois, vendo que o observava, retirou a mão e falou com alguma hesitação. "Não, Dr. De Angelis, aquele senhor falou-nos de um livro que pretendia escrever, mas sempre de maneira um tanto vaga... Como? Ambos? A que horas? Vou anotar o endereço."

Desligou. Permaneceu em silêncio por alguns segundos, tamborilando sobre a escrivaninha. "Ora, desculpe, Casaubon, mas sem querer acabei metendo-o também no assunto. Fui apanhado de surpresa. Era um comissário de polícia, um tal De Angelis. Ao que parece o coronel morava num apart-hotel e alguém o teria encontrado morto ontem à noite...”

"Teria? E o comissário não sabe se é certo ou não?"

"Parece estranho, mas o comissário não sabe. Tudo indica que tenham encontrado meu nome e a marcação do encontro de ontem escritos em sua agenda. Creio que somos a única pista. Quer falar conosco, vamos lá."

Chamamos um táxi. Durante o trajeto Belbo tomou-me pelo braço. "Casaubon, provavelmente se trata de uma coincidência. Em todo caso, meu deus, talvez tenha um espírito retorcido, mas na minha terra se diz que "o melhor é não dar nomes"... Havia um auto natalino, em dialeto, que eu ia ver quando era rapazinho, uma farsa devota, com pastores que a gente não sabia bem se habitavam em Belém ou no vale do Pó... Surgem os três reis magos e perguntam ao filho do pastor como se chama o pai e o menino lhes responde que é Gelindo. Quando Gelindo vem a saber, enche de pancada o menino porque, diz ele, não se põe um nome à disposição de qualquer um... Em todo caso, se estiver de acordo, o coronel nada nos disse a propósito de Ingolf e da mensagem de Provins."

"Não queremos ter o mesmo fim de Ingolf", disse eu, tentando sorrir.

"Volto a dizer, é uma tolice. Mas em certas histórias o melhor é ficar de fora."

Disse que estava de acordo, mas continuei perturbado. Afinal de contas era um estudante que participava de comícios, e um encontro com a polícia sempre me deixava embaraçado. Chegamos ao apart-hotel. Não dos melhores, longe do centro. Fizeram-nos subir diretamente para o apartamento - assim o definiam - do coronel Ardenti. Agentes da polícia nas escadas. Levaram-nos ao número 27 (sete e dois nove, pensei): quarto de dormir, entrada com uma mesinha, kitchenette, banheirozinho com ducha (sem cortina), pela porta semi-aberta não se via o bidê, mas num apart-hotel do gênero era provavelmente a primeira e a única comodidade que os clientes reclamariam. Decoração insossa, não muitos efeitos pessoais, mas tudo em grande desordem, alguém teria revistado às pressas os armários e as valises. Provavelmente a polícia, entre agentes à paisana e fardados contei uma dezena de pessoas.

Veio ao nosso encontro um indivíduo bastante jovem, com cabelos bastante longos. "Sou De Angelis. Dr. Belbo? Dr. Casaubon?"

"Não sou doutor, estou estudando ainda."

"Pois estude, estude. Sem se formar não pode fazer concurso para a polícia e não sabe o que está perdendo." Tinha um ar contrafeito.

"Desculpem, mas comecemos pelos preliminares necessários. Aqui está o passaporte que pertencia ao habitante deste quarto, registrado com o nome de coronel Ardenti. Os senhores o reconhecem?"

"É ele mesmo", disse Belbo, "mas ajude-me a orientar-me. Pelo telefone não compreendi bem se está morto ou se...”

"Gostaria muito que o senhor me dissesse", disse De Angelis com uma careta. "Mas creio que os senhores tenham o direito de saber alguma coisa mais. Pois bem, o Sr. Ardenti, ou coronel que fosse, hospedou-se aqui há quatro dias. Já viram que não se trata do Grande Hotel. Temos o porteiro, que vai dormir às onze horas porque os clientes têm a chave da portaria, uma ou duas arrumadeiras que vêm de manhã fazer as camas, e um velho alcoólatra que trabalha de carregador e também traz bebida nos quartos quando os clientes pedem pelo telefone. Alcoólatra, insisto em dizer, e também esclerosado: interrogá-lo foi um suplício. O porteiro sustenta que tem a mania de fantasmas e que já espantou vários clientes. Ontem à noite por volta das dez o porteiro viu chegando da rua o Sr. Ardenti em companhia de duas outras pessoas que fez subir com ele ao quarto. Aqui não fazem caso se alguém leva para cima um bando de travestis, mas imaginemos que tenham sido duas pessoas normais, embora segundo o porteiro tivessem sotaque estrangeiro. As dez e meia Ardenti chama o velho e pede para trazer uma garrafa de uísque, uma água mineral e três copos. Por volta da uma ou uma e meia o velho ouve barulho no quarto vinte e sete, como se fossem safanões, disse ele. Mas da maneira como o encontramos esta manhã, àquela hora já devia ter entornado muitos copos de alguma bebida, das fortes. O velho sobe, bate à porta, não respondem, abre a porta com a chave-mestra, encontra tudo em desordem como agora e sobre a cama o coronel, com os olhos esbugalhados e um fio de arame em volta do pescoço. Então desce a correr, acorda o porteiro, nenhum dos dois tem coragem de voltar lá em cima, agarram o telefone mas a linha parece interrompida. Hoje de manhã funcionava perfeitamente, mas vamos dar-lhes crédito. Então o porteiro sai, corre à pracinha em frente onde há um telefone de moeda, para chamar a policia, enquanto o velho se arrasta em direção oposta, onde reside um médico. Total, gastam nisto uns vinte minutos, voltam para o hotel, esperam na portaria, espavoridos. O médico enquanto isso se veste e chega aqui quase junto com o patamo da polícia. Sobem todos ao vinte e sete e não encontram ninguém."

"Como ninguém?" pergunta Belbo.

Não havia nenhum cacdáver. Desse momento em diante o médico volta a casa e meus colegas encontram apenas o que está aqui. Interrogaram o velho e o porteiro, com os resultados de que já falei. Onde estavam os senhores que subiram com Ardenti às dez horas? Quem sabe, poderiam ter saído entre as onze e a uma sem que ninguém percebesse. Estariam ainda no quarto quando o velho entrou? E quem sabe se este ficou apenas um minuto e não olhou nem na kitchenette nem no WC. Podiam ter saído enquanto os dois desgraçados foram buscar auxílio, levando consigo o cadáver? Não seria impossível, pois há uma escada exterior que dá para a área interna e dali se poderia chegar ao portão dos fundos, que sai numa via lateral. Mas, em primeiro lugar, havia de fato um cadáver, ou o coronel teria saído digamos à meia-noite com os dois sujeitos, e tudo não passou de imaginação do velho? O porteiro afirma não ser esta a primeira vez que o velho tem dessas alucinações, pois faz alguns anos disse ter visto uma cliente enforcada nua, e meia hora depois a cliente apareceu no hotel fresca como uma rosa, embaixo do catre do velho acharam uma revista sadopornográfica, e é bem capaz que lhe tivesse vindo a bela idéia de espreitar o quarto da moça pelo buraco da fechadura e visse uma cortina que se movia naquele lusco-fusco. O único dado concreto é que o quarto não está em estado normal, e que Ardenti desapareceu. Mas agora já falei muito. É a sua vez, Dr. Belbo. A única pista que temos é uma folha de papel que estava no chão junto àquela mesinha. As quatorze horas, Hotel Principe e Savoia, Mr. Rakosky; às dezesseis, Garamond, Dr. Belbo. O senhor confirmou que ele esteve lá. Agora me diga o que aconteceu."

 

Os cavaleiros do Graal não queriam que se lhes fizessem mais perguntas.

(Wolfram von Eschenbach, Parzival, XVI, 819)

 

Belbo foi breve: repetiu-lhe tudo o que já lhe tinha dito pelo telefone, sem outros esclarecimentos que fossem essenciais. O coronel lhe havia contado uma história nebulosa, dizendo ter descoberto a pista de um tesouro em certos documentos encontrados na França, mas não dissera muito mais que isto. Parecia pensar que estava de posse de um segredo perigoso, e queria torná-lo público mais cedo ou mais tarde, para não ser seu único depositário. Havia mencionado o fato de que, outros antes dele, uma vez descoberto o segredo, tinham desaparecido misteriosamente. Só mostraria os documentos se o contrato lhe fosse assegurado, mas Belbo não podia assegurar nenhum contrato antes de ver alguma coisa, e assim se despediram com um vago compromisso. O coronel havia mencionado um encontro com um tal Rakosky, que informava ter sido diretor dos Cahiers du Mystére. Pretendia pedir-lhe um prefácio. Tudo indica que Rakosky lhe teria aconselhado sustar a publicação. O coronel não teria informado a ele que viria à entrevista na Garamond. Era tudo.

"Muito bem", disse De Angelis. "E que impressão lhes causou?"

"Pareceu-nos um exaltado mental e referiu-se a um passado, como direi, um tanto nostálgico, e a um tempo em que andou na legião estrangeira."

"Disse-lhe a verdade, embora não toda. De certa maneira já o tínhamos de olho, mas sem muita preocupação. Casos assim temos aos montes... Ademais, seu nome não é de fato Ardenti, mas tinha um passaporte francês em ordem. Retornou à Itália, esporadicamente, há poucos anos, e era identificado, sem certeza, com um certo capitão Arcoveggi, condenado à morte à revelia em 1945. Colaborou com a SS para mandar uns tantos para Dachau. Também na França estava sob vigilância, por ter sido processado por fraude, escapando por um fio. Presume-se, presume-se, reparem, que tenha sido a mesma pessoa que sob o nome de Fassotti, foi no ano passado denunciada por um pequeno industrial de Peschiera Borromeo. Esse Fassotti o havia convencido de que no lago de Como ainda se encontrava o tesouro de Dongo*,

 

*Suposto tesouro escondido por Mussolini. (N do T.)

 

e que ele havia identificado o lugar exato, bastando agora algumas dezenas de milhões de liras para arranjar dois mergulhadores e uma lancha a motor... Assim que recebeu o dinheiro, desapareceu. Agora os senhores me confirmam que tinha mania de tesouros."

"E esse Rakosky?" perguntou Belbo.

"Já checamos. No Principe e Savoia hospedou-se um Rakosky, Wladimir Rakosky, registrado com passaporte francês. Descrição vaga, senhor distinto. A mesma descrição do porteiro daqui. No balcão da Alitalia soubemos que estava registrado para o primeiro vôo de hoje para Paris. Comuniquei à Interpol. Delegado Annunziata, chegou alguma coisa de Paris?"

"Nada ainda, doutor."

"Está bem. Ora pois o coronel Ardenti, ou seja lá como se chame, chega a Milão há quatro dias, não sabemos o que faz nos três primeiros, ontem às duas encontra-se presumivelmente com o Sr. Rakosky no hotel e não lhe diz que iria em seguida entrevistar-se com os senhores, o que me parece interessante. A noite vem para o hotel, provavelmente com o mesmo Rakosky e um outro indivíduo..., e a partir daí tudo se torna impreciso. Mesmo se não o mataram, o certo é que vasculharam o apartamento. De que estariam à procura? No paletó..., ah sim, porque mesmo que tenha saído, saiu em mangas de camisa, pois o paletó com o passaporte permaneceram no quarto, mas não creiam que isto simplifique as coisas, porque o velho diz tê-lo visto estendido sobre a cama, de paletó, mas pode ser que fosse um robe de chambre, meu deus, até parece que estou numa gaiola de loucos - dizia, no paletó ainda havia algum dinheiro, até muito... Logo estavam à procura de outra coisa. E a única idéia boa me vem dos senhores. O coronel tinha uns documentos. Que aspecto tinham?"

"Ele trazia na mão uma pasta marrom", disse Belbo.

"Achei que era vermelha", disse eu.

"Marrom", insistiu Belbo, "mas talvez me engane."

"Marrom ou vermelha que fosse", disse De Angeli, "aqui não está. Os senhores de ontem à noite devem tê-la levado. Logo é em torno dessa pasta que devemos girar. Na minha opinião Ardenti não queria de fato publicar um livro. Havia reunido alguns dados para chantagear Rakosky e estava procurando exibir esses contatos editoriais como elemento de pressão. Seria de seu estilo. E a esta altura poderíamos levantar outras hipóteses. Os dois saem ameaçando-o, Ardenti se amedronta e foge de noite deixando tudo, com a pasta embaixo do braço. E sabe-se lá por que motivo faz crer ao velho que tenha sido assassinado. Mas tudo seria romanesco demais, e não explicaria o quarto em desordem. Por outro lado se os dois o mataram e roubaram a pasta, para que depois levar o cadáver? Veremos. Desculpem, sou forçado a tomar suas referências pessoais.”

Revirou duas vezes entre as mãos minha carteira da universidade. "Estudante de filosofia, hem?"

"Somos muitos", disse eu.

"Até demais. E faz estudos sobre os Templários... Se eu tivesse que estudar essa gente, que livros deveria ler?"

Sugeri-lhe dois livros de divulgação, mas bastante sérios. Disse-lhe que havia encontrado informações fidedignas só até o processo e que daí em diante era tudo disparate.

"Estou vendo", disse ele. "Também os Templários, agora. Um grupinho que ainda não conhecia."

O tal de Annunziata apareceu com um telegrama fonado. "Chegou a resposta de Paris, doutor."

Leu. "Ótimo. Em Paris esse Rakosky é desconhecido, e além disso o número de seu passaporte corresponde ao de um documento roubado há dois anos. E assim estamos arrumados. O Sr. Rakosky não existe. O senhor me disse que ele era diretor de uma revista..., como é mesmo o nome?" Tomou nota. "Vamos checar, mas desconfio que iremos descobrir que nem mesmo a revista existe, ou que deixou de ser publicada sabe-se lá quando. Bem, senhores. Obrigado pela colaboração, talvez ainda tenha que incomodá-los mais uma vez. Oh, e uma última pergunta. Esse Ardenti deixou entender que tinha conexão com algum grupo político?"

"Não", disse Belbo. "Tinha leito de haver abandonado a política pela caça de tesouros."

"E pelo abuso de menores." Voltou-se para mim: "Não creio que lhe tenha agradado, imagino."

"Não me agradam tipos como ele", disse eu. "Mas nem por isso me vem à mente estrangulá-los com um fio de arame. A não ser idealmente."

"É natural. Dá muito trabalho. Não tenha receio, Sr. Casaubon, não sou daqueles que consideram todos os estudantes criminosos. Pode ir tranqüilo. Boa sorte em sua tese."

Belbo perguntou: "Desculpe, comissário, mas é só por saber. O senhor é da seção de homicídios ou de atividades políticas?"

"Boa pergunta. Meu colega da homicídios veio ontem à noite. Como encontrou nos arquivos algo mais sobre as atividades de Ardenti, passou o caso para mim. Meu departamento é político. Mas estou em dúvida se sou mesmo a pessoa adequada. A vida não é tão simples como nos romances policiais."

"Elementar", disse Belbo, dando-lhe a mão.

Lá fomos nós, e eu continuava intranqüilo. Não por causa do comissário, que me pareceu uma boa pessoa, mas porque me encontrava, pela primeira vez na vida, no centro de uma história obscura. E havia mentido. E Belbo também.

Deixei-o à porta da Garamond e estávamos ambos embaraçados.

"Não fizemos nada de mal", disse Belbo em tom culposo. "Não faz muita diferença que o comissário saiba a respeito de Ingolf ou dos cátaros. Quem sabe Ardenti teve que escapulir por outras razões quaisquer, que eram mil. Quem sabe Rakosky pertence ao serviço secreto israelense e veio para acertar velhas contas. Quem sabe terá sido contratado por algum figurão que Ardenti tenha passado para trás. Talvez fosse um antigo companheiro da legião estrangeira cheio de velhos rancores. Quem sabe fosse um sicário argelino. Quem sabe a história do tesouro templar fosse apenas um episódio secundário na vida do nosso coronel. Sim, eu sei, está faltando a pasta, vermelha ou marrom que fosse. Fiz bem em contradizer-me, deixando assim claro que só a vira de relance...”

Eu continuava em silêncio, e Belbo não sabia como terminar.

"Poderá me dizer que escapamos de novo, como na via Larga."

"Tolice. Fizemos bem assim. Até logo."

Tinha pena dele, porque se sentia um covarde. Eu não, me haviam ensinado na escola que com a policia não se mente. Por princípio. Mas é assim, a má consciência corrompe a amizade.

Desde aquele dia não o vi mais. Eu era o seu remorso, e ele o meu.

Mas foi então que me convenci de que sendo estudante a gente é sempre mais suspeito que os formados. Trabalhei ainda um ano e levantei duzentas e cinqüenta fichas sobre o processo dos Templários. Era nos tempos em que apresentar uma tese significava dar prova de leal adesão às leis do Estado, e era-se tratado com indulgência.

Nos meses que se seguiram alguns estudantes começaram a disparar: a época das grandes manifestações a céu aberto estava desaparecendo.

Andava curto de ideais. Tinha um álibi, de que fazendo amor com Amparo estava amando o Terceiro Mundo. Amparo era bonita, marxista, brasileira, entusiasta, desencantada de tudo, tinha uma bolsa de estudos e o sangue admiravelmente misto. Tudo junto.

Eu a havia encontrado numa festa e agira de impulso: "Desculpe, mas quero fazer amor contigo."

"És um porco machista."

"E daí?"

"Daí que sou uma porca feminista."

Estava para voltar ao seu país e eu não queria perdê-la. Foi ela quem me pôs em contato com uma universidade do Rio que andava à procura de um professor de italiano. Obtive o lugar por dois anos, renováveis. Como a Itália não me estivesse agradando, aceitei.

Além disso, me dizia, no Novo Mundo não irei encontrar os Templários.

Ilusão, pensei sábado à noite no periscópio. Subindo as escadas da Garamond eu me havia introduzido no Palácio. Dizia Diotallevi: Binah é o palácio que Hokmah constrói expandindo-se do ponto primordial. Se Hokmah é a fonte, Binah é o rio que dele brota dividindo-se depois em seus vários ramos, até que todos vão desembocar no grande mar da última sefirah - e em Binah todas as formas já estão prefiguradas.

 

HESED

A analogia dos contrários é a relação que vai da luz à sombra, do vértice ao abismo, do pleno ao vazio. A alegoria, mãe de todos os dogmas, é a substituição da impressão pelo selo, da sombra pela realidade, é a mentira da verdade e a verdade da mentira.

(Eliphas Levi, Dogme de lla haute magie, Paris, Baillére, 1856, XXII, 22)

 

Eu tinha chegado ao Brasil por amor de Amparo e aí ficara por amor do país. Jamais compreendi por que aquela descendente de holandeses que se haviam fixado no Recife e se miscigenaram com índios e negros sudaneses, com a figura de uma jamaicana e a cultura de uma parisiense, tinha um nome espanhol. Jamais cheguei também a me sentir à vontade com os nomes próprios brasileiros. Desafiam qualquer dicionário onomástico e só existem naquele país. Amparo me dizia que em seu hemisfério, quando a água é chupada pelo ralo da pia, o redemoinho gira da direita para a esquerda, enquanto na Europa faz o contrário - ou vice-versa. Não cheguei a verificar se era verdade. Não só porque em nosso hemisfério ninguém jamais observou em que sentido gira a água, mas ainda porque depois de várias experiências no Brasil me dei conta de que era muito difícil perceber. O redemoinho é rápido demais para se poder acompanhá-lo, e provavelmente sua direção depende da força e da inclinação do jato, da forma do lavabo ou da pia. Além disso, se fosse verdade, que haveria de ocorrer no equador? Talvez a água corresse para cima, sem redemoinho, ou não corresse de todo?

Naquela época não dramatizei demasiadamente o problema, mas sábado à noite pensava que tudo dependia das correntes telúricas e que o Pêndulo lhes ocultasse o segredo.

Amparo era firme em sua fé. "Não importa o que ocorra no caso empírico", me dizia, "trata-se de um princípio ideal, para ser verificado em condições ideais, ou seja nunca. Mas é verdade."

Em Milão Amparo pareceu-me desejável pelo seu desencanto. No Brasil, reagindo aos ácidos de sua terra, transforma-se em algo ainda mais inapreensível, lucidamente visionária e capaz de racionalidades subterrâneas. Sentia agitarem-na paixões antigas, ela vigilante para lhes manter o freio, patética em seu ascetismo que lhe ordenava refutar-lhes a sedução.

Tive a medida de suas esplêndidas contradições vendo-a discutir com seus companheiros. Eram reuniões em casas mal arrumadas, decoradas com uns poucos pôsteres e muitos objetos folclóricos, retratos de Lenin e cerâmicas nordestinas que celebravam o cangaceiro, ou fetiches ameríndios, Não havíamos chegado num momento político dos mais límpidos e eu estava resolvido, depois da experiência em casa, que me manteria afastado de ideologias, principalmente ali, onde não as compreendia. O discurso dos companheiros de Amparo aumentava a minha incerteza, mas estimulava em mim novas curiosidades. Eram naturalmente todos marxistas, e à primeira vista falavam quase como um marxista europeu, mas falavam de uma coisa diversa, e de repente no curso de uma discussão sobre a luta de classes falavam de um "canibalismo brasileiro", ou do papel revolucionário dos cultos afro-americanos.

Foi ouvindo falar desses cultos que me convenci de que lá até o redemoinho ideológico rodava no sentido oposto. Mas desenhavam um panorama de migrações pendulares internas, com os deserdados do Norte que desciam para o Sul industrial, se subproletarizavam nas grandes metrópoles, asfixiados pelas nuvens da poluição, retornavam desesperados ao Norte, para retomarem um ano depois a fuga em direção ao Sul; mas nessa oscilação muitos encalhavam nas grandes cidades e eram absorvidos por uma plêiade de igrejas autóctones, entregavam-se ao espiritismo, à evocação das divindades africanas... E aqui os companheiros de Amparo se dividiam, pois para alguns isto demonstrava um retorno às raízes, uma oposição ao mundo dos brancos, enquanto para outros os cultos eram uma droga com a qual as classes dominantes mantinham nas rédeas um imenso potencial revolucionário, sendo que para outros ainda era o crisol em que brancos, índios e negros se fundiam, desenhando perspectivas ainda vagas e de destino incerto. Amparo estava convencida de que as religiões sempre foram em toda a parte o ópio dos povos e com maior razão aindá o eram os cultos pseu-dotribais. Depois eu tinha a experiência viva das escolas de samba, quando também participava dos cordões de dançarinos, que desenhavam sinusóides ritmadas ao batido insuportável dos tambores, e me dava conta de que ela aderia àquele mundo com os músculos do abdome, o coração, a cabeça, as narinas... E mal saiamos, ela era a primeira a anatomizar-me com rancor e sarcasmo a religiosidade profunda, orgiástica, daquela lenta dedicação, semana após semana, mês a mês, ao rito do carnaval. Igualmente tribais e feiticeiros, dizia com ódio revolucionário, eram os ritos futebolísticos, que levavam os deserdados a despender sua energia combativa, e o sentido da revolta, na prática de encantamentos e sortilégios para obter dos deuses de todos os mundos possiveis a destruição da defesa adversária, esquecendo-se daquele domínio que os prefere extáticos e entusiastas, condenados à irrealidade.

Lentamente perdi o senso da diferença. Assim é que estava pouco a pouco me habituando a não procurar reconhecer as raças, naquele universo de rostos que contavam histórias centenárias de hibridações incontroladas. Renunciei a determinar onde estivesse o progresso, onde a revolta, onde a trama - como se exprimiam os companheiros de Amparo - do capital. Como podia ainda pensar à européia, se aprendia que a esperança da extrema esquerda era mantida viva por um bispo do Nordeste, suspeito de ter simpatizado na juventude com o nazismo, que com fé intrépida mantinha a chama da revolta, transtornando o Vaticano apavorado, e os tubarões da Wall Street, inflamando de júbilo o ateísmo dos místicos proletários, conquistados pelo estandarte ameaçador e dulcissimo de uma Nossa Senhora, que afligida por sete dores contemplava os sofrimentos de seu povo?

Certa manhã, saindo com Amparo de um seminário sobre a estrutura de classe do Lumpenproletariat, percorríamos de carro uma estrada litorânea. Na praia à beira da água vi oferendas votivas, velas, colares de flores brancas. Amparo me disse que eram oferendas a Iemanjá, a deusa das águas. Desceu do carro, inclinou-se reverente sobre o parapeito da balaustrada, permaneceu alguns momentos em silêncio. Perguntei-lhe se acreditava naquilo. Indagou-me irritada como poderia acreditar. Depois acrescentou: "Minha avó me trazia aqui a esta praia, e invocava a deusa, para que eu crescesse bela e boa, e fosse feliz. Quem é aquele seu filósofo que falava dos gatos pretos, e dos búzios de coral, e dizia "Não é verdade, mas creio"? Pois bem, eu não creio nisso, mas é verdade." Foi nesse dia que resolvi economizar um pouco o dinheiro da bolsa, e tentar uma viagem á Bahia.

Mas foi também então, bem sei, que comecei a me deixar embalar pelo sentimento da semelhança: tudo podia ter misteriosas analogias com tudo.

Quando voltei para a Europa transformei essa metafísica em mecânica - e por isso precipitei-me na armadilha em que agora me encontro. Mas então me movia num crepúsculo onde as diferenças se anulavam. Racista, pensei que as crenças alheias são para o homem forte boas ocasiões de brando devaneio.

Aprendi os ritmos, as maneiras de deixar o corpo e a alma seguirem à vontade. Dizia para mim mesmo naquela noite no periscópio, enquanto para combater as cãibras dos membros os movia como se percutisse ainda o agogô. Vê, dizia-me, para subtrair-te ao poder do ignoto, para mostrares a ti mesmo que não acreditas neles, aceitas-lhes os encantamentos. Como um ateu confesso, que à noite vê o diabo e que raciocina ateisticamente assim: ele decerto não existe, e isto não passa de uma ilusão dos meus sentidos excitados, talvez decorrente da digestão, mas ele não o sabe, e acredita em sua teologia às avessas. Que poderia lhe causar medo, a ele seguro de sua existência? Fazes então o sinal-da-cruz e ele, crédulo, desaparece numa explosão de enxofre.

Aconteceu comigo assim como a um etnólogo sabichão que durante anos tivesse estudado o canibalismo e, para desafiar a obtusidade dos brancos, conta a todos que a carne humana tem um sabor delicado. Irresponsável, porque sabe que não lhe acontecerá jamais experimentá-la. Até o momento em que alguém, ansioso de conhecer a verdade, queira provar a dele. E enquanto vai sendo devorado pedaço por pedaço já não sabe quem tem razão, e quase espera que o rito seja bom, para justificar ao menos a própria morte. Foi assim que, naquela noite, eu devia achar que o Plano era verdadeiro, porque pelo menos nestes últimos dois anos eu teria sido o arquiteto onipresente de um pesadelo maligno. Melhor que o pesadelo fosse real, se uma coisa é verdadeira é verdadeira, e tu não tens nada com isso.

 

Sauvez la faible Aischa des vertiges de Nahash, sauvez la plaintive Héva des mirages de la sensiblité, et que les Khérubs me gardent.

(Joséphin Péladan,Comenton devient Fée, Paris, Chamuel, 1893, p. XIII)

 

Enquanto me embrenhava na selva das semelhanças, recebi uma carta de Belbo:

 

Caro Casaubon.

Vim a saber, somente há pouco, que o amigo estava no Brasil, depois de ter perdido totalmente seu contato, não sabendo sequer que se tinha doutorado (parabéns), até que no Pílades encontrei alguém que me deu suas coordenadas. Julgo oportuno colocá-lo ao corrente de alguns fatos novos que dizem respeito á infeliz aventura do coronel Ardenti. Já se passaram mais de dois anos, segundo creio, mas ainda agora lhe peço desculpas por tê-lo metido naquela embrulhada, embora involuntariamente.

Já quase me havia esquecido daquela estranha história, mas há coisa de duas semanas fiz uma excursão a Montefeltro e cheguei até o rochedo de San Leo. Parece que no século XVIII era domínio pontifício, e o papa havia ali encarcerado Cagliostro, numa cela sem porta (nela se entrava, pela primeira e última vez, através de um alçapão no teto), tendo apenas uma rótula da qual o condenado podia ver apenas as duas igrejas do povoado. Sobre o catre onde Cagliostro dormia e onde morreu vi um ramo de rosas, e me explicaram que até hoje muitos devotos fazem peregrinação ao local do martírio. Disseram-me ainda que entre os peregrinos mais assíduos estavam os membros do Picatrix, um cenáculo milanês de estudos misteriosóficos, responsável pela publicação de uma revista que se chama - aprecie a imaginativa - Picatrix.

Sabe que tenho curiosidade por essas bizarrias, e em Milão andei a procurar um número da Picatrix, pela qual fiquei sabendo que em breve seria celebrada uma evocação do espírito de Cagliostro. Pois lá fui.

As paredes estavam atapetadas por grandes estandartes com signos cabalisticos, uma verdadeira profusão de mochos e corujas, escaravelhos e íbis, divindades orientais de incerta proveniência. Ao fundo havia um palco, com um proscênio de archotes ardentes em suportes de cepo tosco, ao fundo um altar com retábulo triangular e duas estatuetas de Isis e Osíris. Em volta um anfiteatro com figuras de Anúbis, um retrato de Cagliostro (de quem haveria de ser, não é mesmo?), uma múmia dourada de formato Quéops, dois candelabros de cinco braços, um gongo sustentado por duas serpentes rampantes, uma estante sobre um pódio recoberto de fazenda de algodão estampada de hieróglifos, duas coroas, duas trípodes, um pequeno sarcófago de fim de semana, um trono, uma poltrona imitação século XVII, quatro cadeiras desaparelhadas tipo banquete dos filmes de Robin Hood, velas, candeias, cirios, todo um ardor muito espiritual.

Por fim, entram sete pequenos clérigos de sotainas escarlates carregando tochas, seguidos do celebrante, ao que parece o diretor da Picatrix - que se intitulava Brambilla, que os deuses lhe perdoem - com paramentos rosa e oliva, e por fim a pupila, ou médium, juntamente com seis acólitos vestidos de branco que pareciam outros tantos Ninetto Davoli*

 

* Artista preferido de Pasolini. (N. do T.)

 

mas de ínfula, a do deus, se recorda os nossos clássicos.

O Brambilla enfia na cabeça uma tiara com meia-lua, empunha um espadão ritual, traça no palco figuras mágicas, evoca alguns espíritos angélicos com final em "eI", e naquele momento me vêm à mente vagamente aquelas diabruras pseudo-semíticas da mensagem de Ingolf, mas foi coisa de um átimo e logo me distrai. Mesmo porque àquela altura ocorre algo de singular, os microfones do palco estão conectados a sintonizadores, que deviam captar ondas vagantes pelo espaço, mas o operador, de mitra, teria cometido algum engano, pois primeiro se ouve música de discoteca e logo em seguida entra a onda da Rádio de Moscou. O Brambilla abre o sarcófago, tira de dentro um grimoire, esparze com um turíbulo e grita: "O senhor que venha o teu reino" e parece conseguiu algo, pois a Rádio de Moscou emudece, mas no momento de maior magia reaparece com uma canção de cossacos embriagados, daqueles que dançam com o traseiro tocando no chão. Brambilla evoca a Clavícula Salomonis, incinera um pergaminho sobre uma trípode, quase provocando uma fogueira, evoca algumas divindades do templo de Carnaque, pede com petulância para ser colocado sobre a pedra cúbica de Esod, e chama insistentemente um certo Familiar 39, que devia ser familiaríssimo do público porquanto um frêmito perpassa em toda a sala. Uma espectadora cai em transe com os olhos revirados para cima, dos quais só se via o branco, as pessoas gritam um médico um médico, a esse ponto o Brambilla chama em causa o Poder dos Pentáculos e a pupila, que entrementes estava sentada na poltrona imitação do século XVII, começa a agitar-se, a gemer, o Brambilla vai-lhe em cima interrogando-a ansiosamente, ou melhor, interrogando o Familiar 39, que como intui naquele momento era o próprio Cagliostro sem tirar nem pôr.

E então começa a parte inquietante, pois a moça realmente dava pena e parecia sofrer de fato, sua, treme, brada, começa a pronunciar frases incompletas, fala de um templo, de uma porta a ser aberta, diz que está criando uma corrente de força, que precisa subir à Grande Pirâmide, o Brambilla se agita no palco percutindo o gongo e chamando por Ísis em altos brados, eu estou apreciando o espetáculo, quando percebo que a moça, entre um suspiro e um gemido, fala de seis sinetes, de cento e vinte anos de espera e de trinta e seis invisiveis. Não tenho mais dúvida, está falando da mensagem de Provins. Enquanto me esforço por ouvir melhor, a moça se prostra exausta, o Brambilla a acaricia na fronte, bendiz o auditório com o turíbulo e diz que o rito terminou.

Porque estivesse um tanto impressionado e quisesse compreender melhor, procurei aproximar-me da moça, que nesse ínterim se havia recomposto, vestira um casaco bastante mal-ajambrado e está saindo de costas. Estava para tocar-lhe o ombro quando sinto alguém me tomar pelo braço. Volto-me e vejo o comissário De Angelis, que me diz para não abordar a jovem, pois sabe onde encontrá-la se necessário. Convida-me a tomar um café. Sigo-o, como se me tivesse apanhado em flagrante, o que de certa maneira era exato, e no bar me pergunta por que eu havia ido ali e por que estava procurando aproximar-me da moça. Agasto-me, respondo-lhe que não estamos numa ditadura, e que posso aproximar-me de quem bem entenda. Ele se desculpa e me explica: as investigações sobre Ardenti marcavam passo, por isso estavam tentando reconstituir o que teria feito em Milão nos dois dias antes do encontro com o pessoal da Garamond e o misterioso Rakosky. Há coisa de um ano, graças a um golpe de sorte, ficaram sabendo que alguém vira Ardenti sair da sede do Picatrix, na companhia da médium. Esta por sua vez também lhe interessava pois tinha relações com um indivíduo não de todo desconhecido da delegacia de tóxicos.

Afirmo-lhe que estava ali por acaso, e que me chamara a atenção o fato de a moça dizer uma frase sobre os seis sinetes que eu ouvira mencionados pelo coronel. Ele me faz observar que era bastante estranho eu me lembrar tão bem depois de dois anos o que me dissera o coronel, visto que no dia seguinte eu me referira a uma vaga história sobre o tesouro dos Templários. Digo-lhe que o coronel havia falado de fato sobre um tesouro, protegido por algo assim como seis sinetes, mas que eu pensara não ser isso um detalhe importante, porquanto todos os tesouros são protegidos por seis sinetes e escaravelhos de ouro. E ele volta a dizer-me que não entende por que me chamassem a atenção as palavras da médium, já que todos os tesouros são protegidos por escaravelhos de ouro. Peço-lhe que não me trate como um suspeito qualquer e ele muda de tom e começa a rir. Diz que não acha nada estranho que a moça tenha dito aquilo que disse, porque de algum modo Ardenti lhe devia ter falado de suas fantasias, quem sabe tentando usá-la como trâmite para algum contato astral, como dizem naquele ambiente. A sensitiva é uma esponja, um filme fotográfico, deve ter um inconsciente que lembra um parque de diversões - disse-me - e os membros do Picatrix fazem-lhe provavelmente lavagem cerebral o ano inteiro, não sendo inverossímil que em estado de transe - pois a moça faz aquilo a sério, não finge, nem tem a cabeça no lugar - lhe venham à tona imagens que lhe haviam causado impressão antes.

Dois dias depois De Angelis me aparece no escritório, e me diz veja que estranho, no dia seguinte ele M procurar a moça, e não a encontrou. Perguntou aos vizinhos, ninguém a havia visto, mais ou menos a partir da tarde que precedeu o rito fatal, ele fica desconfiado, entra no apartamento, encontra-o todo revirado, roupas de cama pelo chão, travesseiros jogados a um canto, jornais amassados, gavetas vazias. Desaparecera, ela e seu amante ou cáften ou conivente ou seja lá o que for.

Diz-me que se eu souber de alguma outra coisa o melhor é contar-lhe por que lhe parece estranho que a moça tenha desaparecido e acha que as razões só podem ser duas: ou alguém descobriu que ele, De Angelis, estava em sua pista, ou então notaram que um certo Jacopo Belbo estava tentando abordá-la. E portanto as coisas que ela tinha dito em transe podiam-se referir talvez a alguma coisa de sério, e que até mesmo Eles, fossem quem fossem, não se haviam ainda dado conta de que ela soubesse tanto. "Imagine se algum colega meu concluísse que o senhor a tenha matado", acrescentou De Angelis com um largo sorriso. "daí a conveniência de caminharmos juntos. Estava para perder a calma, sabe deus que isso não me ocorre com freqüência, perguntei-lhe por que uma pessoa tem que estar morta simplesmente por não se encontrar em casa, e ele me perguntou se eu me lembrava da história do coronel.

Disse-lhe que, em todo caso, se eu a tivesse morto ou seqüestrado, teria sido aquela noite em que estive em sua companhia, e ele me perguntou como é que eu fazia para estar tão seguro, porquanto nos despedimos aí pela meia-noite e que depois disso ele não sabia o que se tinha passado comigo, perguntei-lhe se estava falando sério, respondeu-me indagando se eu nunca havia lido romances policiais e não sabia que a polícia deve suspeitar por principio de qualquer um que não tenha um álibi luminoso como Hiroxima, e que era capaz de dar a cabeça para um transplante ainda que rápido se eu tivesse um álibi para o período entre a uma hora daquela noite e a manhã seguinte.

Que dizer-lhe, Casaubon, talvez fizesse bem em lhe contar a verdade mas a gente da nossa terra é cabeçuda e nunca se arrisca a dar marcha a ré.

Escrevo-lhe porque, assim como consegui seu endereço, De Angelis também pode consegui-lo: se entrar em contato com o amigo, saiba pelo menos a linha em que me coloquei. Mas como me parece uma linha pouquissimamente reta, se achar melhor, diga tudo. Envergonho-me, desculpe, mas me sinto cúmplice de alguma coisa, e busco uma razão, passavelmente nobre, para justificar-me, e não encontro. Deve ser por causa de minhas origens campesinas, naqueles nossos campos somos gente estranha. Toda uma história -como se diz em alemão - unheimlich.

Seu Jacopo Belbo

 

...estes misteriosos iniciados tornaram-se numerosos, ousados, conspiradores: jesuitismo, magnetismo, martinismo, pedra filosofal, sonambulismo, ecletismo, tudo nasce deles.

(C.-L. Cadet-Gassicourt, Le tombeau de Jacques de Molay, Paris, Desenne, 1797, p. 91)

 

A carta perturbou-me. Não pelo receio de ser procurado por De Angelis, imagine, em outro hemisfério, mas por motivos mais imperceptíveis. Naquele instante pensei que me irritava o fato de ser atingido em ricochete por um mundo distante que eu deixara. Agora compreendo que o que me perturbava era uma enésima trama da semelhança, a suspeita de uma analogia. Como reação instintiva pensei que me enfastiava reencontrar Belbo com seu rabo-de-palha. Decidi ignorar tudo, e não mencionei a carta a Amparo.

Fui ajudado pela segunda carta, que Belbo me enviou dois dias depois, para tranqüilizar-me.

A história da médium terminara de maneira racional. Um olheiro da policia informara que o amante da moça esteve implicado num acerto de contas em torno de uma partida de drogas, por tê-la vendido a varejo em vez de entregá-la ao honesto atacadista que já havia pago por ela. Coisas que no ambiente são muito malvistas. Para salvar a pele tinha desaparecido. Era óbvio que levasse junto a companheira. Vasculhando depois os jornais deixados no apartamento De Angelis havia encontrado revistas do tipo Picatrix com uma série de artigos vistosamente sublinhados a vermelho. Um dizia respeito ao tesouro dos Templários, outro aos Rosa-Cruzes que viviam num castelo ou em uma caverna ou que diabo seja, onde estava escrito "post 120 annos patebo", e eram definidos como os trinta e seis invisíveis. Para De Angelis portanto estava tudo claro. A sensitiva se alimentava daquela literatura (a mesma de que se alimentava o coronel) e a extravasava depois quando entrava em transe. O caso estava encerrado, passando à seção de tóxicos.

A carta de Belbo transfundia alivio. A explicação de De Angelis revelava-se a mais prática.

Naquela noite no periscópio no entanto dizia para mim mesmo que os fatos talvez tivessem ocorrido de modo bem diverso: a médium tinha, de fato, citado algo que ouvira de Ardenti, mas algo que as revistas jamais haviam dito, e que ninguém devia conhecer. No ambiente do Picatrix alguém fizera desaparecer o coronel para fazê-lo calar, e esse mesmo alguém, percebendo que Belbo tencionava interrogar a sensitiva, a havia eliminado. Depois, para despistar as investigações, eliminara igualmente o amante, e havia instruído o olheiro da polícia para espalhar a história da fuga.

Tão simples, se tivesse havido um Plano. Mas havia, já que nós o tínhamos inventado, muito tempo depois? É possível que a realidade não apenas supere a ficção, mas também a preceda, ou antes corra à sua frente para reparar os danos que a ficção criará?

Contudo, então no Brasil, não foram esses os pensamentos que a carta me suscitou. Antes, de novo, senti que algo se assemelhava a alguma outra coisa. Pensei na viagem à Bahia, e dediquei uma tarde a visitar barracas de livros e objetos de culto, que até então havia relegado. Encontrei tendinhas quase secretas, e armazéns sobrecarregados de imagens e ídolos. Adquiri perfumadores de Iemanjá, aspersores misticos de pungente perfume, varinhas de incenso, bombas de spray com odor adocicado, de nome Sagrado Coração de Jesus, amuletos de preço convidativo. Além de encontrar muitos livros, alguns para os devotos, outros para os que estudam os devotos, tudo misturado, formulários de exorcismos, Como adivinhar o futuro na bola de cristal e manuais de antropologia. E uma monografia sobre os Rosa-Cruzes.

Tudo se amalgamou de repente. Ritos satânicos e mourescos no Templo de Jerusalém, feiticeiros africanos para os subproletários nordestinos, a mensagem de Provins com seus cento e vinte anos, e os cento e vinte anos dos Rosa-Cruzes.

Eu me havia tornado um shaker ambulante, que só prestava para misturar beberagens de licores diversos, ou havia provocado um curto-circuito tropeçando por acaso num emaranhado de fios multicores que se estavam enredando sozinhos, e a longuíssimo tempo? Comprei o livro sobre os Rosa-Cruzes. Depois me convenci de que, se permanecesse mais algumas horas naquela livraria, teria encontrado pelo menos dez coronéis Ardenti e outras tantas sensitivas.

Voltei para casa e comuniquei oficialmente a Amparo que o mundo estava cheio de desnaturados. Ela prometeu confortar-me e terminamos o dia segundo a natureza.

Estávamos no final de ‘75. Decidi esquecer as semelhanças e dedicar todas as minhas energias ao trabalho. Afinal de contas devia ensinar cultura italiana, e não os Rosa-Cruzes.

Dediquei-me à filosofia do Humanismo e descobri que, mal saídos das trevas da Idade Média, os homens da modernidade leiga nada haviam encontrado de melhor senão dedicar-se à Cabala e à magia.

Após freqüentar por dois anos os humanistas que recitavam fórmulas para convencer a natureza a fazer coisas que não tinha a intenção de fazer, recebi notícias da Itália. Meus antigos companheiros, ou pelo menos alguns deles, disparavam na nuca daqueles que não estavam de acordo com eles, para convencer as pessoas a fazerem coisas que não tinham a intenção de fazer.

Não entendia. Decidi que agora eu fazia parte do Terceiro Mundo, e o melhor era conhecer a Bahia. Parti com uma história da cultura renascentista embaixo do braço e o livro sobre os Rosa-Cruzes, que permanecera na estante sem abrir.

 

Todas as tradições da Terra devem ser vistas como as tradições de uma tradição-mãe e fundamental que, desde a origem, era confiada ao homem culpado e aos seus primeiros rebentos.

(Louis-Claude de Saint Martin, De I’esprit des choses, Paris, Laran, 1800, II, "De I’esprit des traditions en général")

 

E vi Salvador, Salvador da Bahia de Todos os Santos, a "Roma negra", e suas trezentas e sessenta e cinco igrejas alcantiladas na linha das colinas ou pousadas ao longo da baía, onde se cultuam os deuses do panteão africano.

Amparo conhecia um artista primitivo, que pintava grandes peças de madeira apinhadas de visões bíblicas e apocalípticas, resplandecentes como uma miniatura medieval, de elementos coptas e bizantinos.

Era naturalmente marxista, falava da revolução iminente, passava os dias a sonhar nas sacristias do santuário do Nosso Senhor do Bonfim, triunfo do horror vacui, escamosas de ex-votos que pendiam do teto e incrustavam as paredes, numa ensambladura mística de corações de prata, próteses de madeira, pernas, braços, imagens de salvamentos milagrosos no ápice de borrascas rutilantes, trombas marinhas, maelstrom. Levou-nos à sacristia de uma outra igreja, cheia de grandes móveis odorosos de jacarandá. "Que representa aquele quadro", perguntou Amparo ao sacristão, "são Jorge?"

O sacristão olhou-nos com cumplicidade: "Nós o chamamos de são Jorge, e é melhor chamá-lo assim, senão o padre se aborrece, mas é Oxossi”.

O pintor levou-nos a visitar durante dois dias naves e claustros, ao abrigo das fachadas decoradas como se fossem pratos de prata agora enegrecidos e gastos. Éramos acompanhados por servidores enrugados e claudicantes, as sacristias estavam enfermadas de ouro e chumbo, de pesados baús, de cornijas preciosas. Em redomas de cristal dominavam ao longo das paredes imagens de santos em tamanho natural, banhadas de sangue, com as chagas abertas salpicadas de gotas de rubi, Cristos contorcidos pelo sofrimento com pernas avermelhadas de hemorragia. Num luzir de ouros de um barroco tardio, vi anjos de face etrusca, grifos românicos e sereias orientais que serviam de arremates aos capitéis.

Movia-me por ruas antigas, encantado pelos nomes que pareciam canções, Rua da Agonia, Avenida dos Amores, Travessa de Chico Diabo... Havia chegado a Salvador na época em que o governo, ou alguém em seu nome, estava saneando a cidade velha para expelir seus milhares de bordéis, mas ia-se ainda à metade do caminho. Ao pé das igrejas desertas e leprosas, empanturradas de seu fausto, estendiam-se ainda becos malcheirosos nos quais fervilhavam prostitutas negras de quinze anos, velhas vendedoras de doces africanos, de cócoras ao longo das calçadas com seus fogareiros acesos, turmas de rufiões que dançavam em meio aos regos de esgoto ao som dos transístores do bar em frente. Os antigos palácios dos colonizadores, encimados por brasões agora ilegíveis, haviam se tornado casas de tolerância.

No terceiro dia acompanhamos nosso guia ao bar de um hotel da cidade alta, na parte já restaurada, numa rua cheia de antiquários de luxo. Iria encontrar um senhor italiano, informou-nos, que estava para comprar, sem discutir o preço, um grande quadro seu de três metros por dois, em que avultavam legiões angélicas travando uma batalha mortal contra outras legiões.

Foi assim que conhecemos o Sr. Agliê. Corretamente vestido com um jaquetão risca-de-giz, apesar do calor, óculos de armação dourada no rosto róseo, cabelos grisalhos. Beijou a mão de Amparo, como quem não conhecesse outra maneira de cumprimentar uma senhora, e pediu champanhe. O pintor tinha que ir, Agliè entregou-lhe um maço de travellers’ cheques, pediu-lhe que mandasse o quadro para o hotel. Ficamos ainda a conversar, Agliê falava o português com correção, mas como alguém que o tivesse aprendido em Lisboa, o que lhe dava ainda mais o tom dos cavalheiros de outras épocas. Perguntou a nosso respeito, fez algumas considerações sobre a possível origem genebrina de meu nome, interessou-se pela história familiar de Amparo, mas quem sabe já houvesse deduzido que o tronco fosse do Recife. Quanto à sua origem, permaneceu no vago. "Sou como um indivíduo daqui", disse, "tenho inúmeras raças acumuladas no gene... O nome é italiano, provém de antiga possessão de um antepassado meu. Sim, talvez nobre, mas quem liga hoje para essas coisas. Vim ao Brasil por curiosidade. Apaixonam-me todas as formas de Tradição."

Tinha uma boa biblioteca de ciências religiosas, me disse, em Milão, onde vivia desde algum tempo. "Venha visitar-me quando voltar, tenho muita coisa interessante, desde os ritos afro-brasileiros aos cultos de Ísis no baixo Império."

"Adoro os cultos de Ísis", disse Amparo, que amiúde por orgulho costumava fingir-se de pedante. "O senhor sabe tudo sobre os cultos de Isis, imagino."

Aglié respondeu com modéstia. "Só o pouco que vi."

Amparo tratou de ganhar terreno: "Isso não foi há dois mil anos?"

"Não sou jovem como a senhorita", sorriu Agliê.

"Como Cagliostro", brinquei. "Não foi ele quem uma vez passando diante de um crucifixo falou para que os outros ouvissem enquanto se dirigia a seu criado: ‘Bem que avisei a esse judeu para tomar cuidado, aquela noite, mas ele não me deu ouvidos?’"

Agliê se empertigou, temendo que o gracejo fosse grave. Fiz sinal de escusar-me, mas o nosso anfifrião me interrompeu com um sorriso conciliador. "Cagliostro era um impostor, pois sabe-se perfeitamente onde e quando nasceu, e não conseguiu nem mesmo viver muito tempo. Exagerava."

"Sem dúvida".

"Cagliostro era um impostor", repetiu Agliê, "mas isso não quer dizer que não haja ou tenha havido personagens privilegiados capazes de atravessar várias existências. A ciência moderna sabe tão pouco a respeito dos processos de senescência, que é possível admitir-se a mortalidade como simples efeito de uma educação imprópria. Cagliostro era um impostor, mas não o conde de São Germano, que quando dizia haver aprendido alguns de seus segredos químicos com os antigos egípcios talvez não exagerasse. Mas como ninguém acreditava nele quando citava tais episódios, fingia estar pilheriando talvez por cortesia aos seus interlocutores."

"Mas o senhor finge brincar para provar-nos que diz a verdade", disse Amparo.

"Não só é bela, como extraordinariamente perceptiva", disse Agliê. "Mas suplico-lhe não me acredite. Se lhe aparecesse no fulgor poeirento dos meus séculos, sua beleza murcharia de súbito, e eu não poderia perdoar-me isso.”

Amparo estava conquistada, e experimentei uma ponta de ciúme.

Desviei o assunto para as igrejas e para o são Jorge - Oxóssi que haviamos visto. Agliè disse que tínhamos de assistir sem falta a um candomblé. "Não devem ir para os lugares onde lhes pedem dinheiro. Os autênticos são aqueles onde os recebem sem nada pedir, nem mesmo que acreditem. Mas sim, que assistam com respeito, com a mesma tolerância com que eles admitem até mesmo a sua falta de crença. Alguns pais ou mães-de-santo, quando os vemos parecem mal saídos da cabana de pai Tomás, mas têm a cultura de um teólogo da Gregoriana".

Amparo apoiou a mão sobre a dele. "Leve-nos!" disse, "já fui uma vez, há muitos anos, a um terreiro de umbanda, mas só tenho recordações confusas, me lembro apenas de uma grande turvação...”

Agliè pareceu embaraçado pelo contato, mas não fugiu a ele. Apenas, como o vi fazer em seguida nos momentos de reflexão, com a outra mão tirou do colete uma caixinha de ouro e prata, talvez uma tabaqueira ou um porta-pílulas, cuja tampa tinha um adorno de ágata. Sobre a mesa do bar ardia uma pequena vela de cera, e Agliê, como por acaso, aproximou dela a caixinha. Vi que ao calor não se distinguia mais a ágata, e em seu lugar aparecia uma miniatura, finíssima, cor verde-azul e ouro, representando uma pastorinha com um cestinho de flores. Rolou-a entre os dedos com esquecida devoção, como se desfiasse as contas de um rosário. Percebeu meu interesse, sorriu, e tornou a guardar o objeto:

"Turvação? Minha cara senhora, não gostaria que fosse além de perceptiva também exageradamente sensível. Delicada qualidade, quando se associa à graça e à inteligência, mas perigosa, para quem vai a certos lugares sem saber o que procura ou o que irá encontrar... E além do mais, não me confunda umbanda com candomblé. Este é inteiramente autóctone, afro-brasileiro legítimo, como se costuma dizer, ao passo que a outra é uma flor assaz tardia, nascida dos enxertos de ritos indígenas na cultura esotérica européia, com uma mística que chamaria de templária...”

Os Templários me haviam novamente encontrado. Disse a Aglié que fizera uma tese sobre eles. Olhou-me com interesse. "Curiosa conjuntura, meu jovem amigo. Aqui sob o Cruzeiro do Sul, encontrar um jovem Templário...”

"Não gostaria que me considerasse um adepto...”

"De modo algum, Sr. Casaubon. Se o senhor soubesse quanta charlatanice há nesse campo."

"Eu sei, eu sei."

"E então. Mas gostaria de vê-los novamente, antes de partirem."

Marcamos um encontro para o dia seguinte: queríamos os três explorar o pequeno mercado coberto que havia junto ao porto.

Foi lá efetivamente que nos encontramos na manhã seguinte, e era um mercado de peixe, um suk árabe, uma feira patronal que se tivesse proliferado com virulência cancerosa, uma Lourdes invadida pelas forças do mal, onde os magos da chuva podiam conviver com capuchinhos extáticos e estigmatizados, entre escapulários propiciatórios com preces costuradas no chumaço, figas de pedra-sabão, dentinhos de coral, crucifixos, estrelas-de-davi, simbolos sexuais de religiões pré-judaicas, redes, tapetes, bolsas, esfinges, sagrados corações, aljavas de índios, colares de conchinhas. A mística degenerada dos colonizadores europeus se fundia com a ciência qualitativa dos escravos, assim como a pele de cada transeunte contava uma história de genealogias perdidas.

"Aí está", disse Agliè, "uma imagem daquilo que os manuais de etnologia chamam de sincretismo brasileiro. Uma tremenda palavra, segundo a ciência oficial. Mas em seu sentido mais elevado o sincretismo é o reconhecimento de uma Tradição única, que perpassa e alimenta todas as religiões, todos os saberes, todas as filosofias. O sábio não é aquele que discrimina, é aquele que sabe reunir num só todos os raios de luz, seja de onde vierem... Portanto são mais sábios esses escravos, ou descendentes de escravos, do que os etnólogos da Sorbonne. Espero que pelo menos aqui a nossa bela senhora me tenha compreendido."

"Não com a mente", disse Amparo. "Com o útero. Desculpe, creio que o conde de São Germano não se exprimiria assim. Quero dizer que nasci neste país, e mesmo aquilo que não sei me fala a alguma parte, aqui, creio...” E tocou o seio.

"Como foi que disse aquela vez o cardeal Lambertini a uma senhora com uma esplêndida cruz de diamantes aparecendo no decote? Que alegria morrer nesse calvário. Assim também gostaria eu de ouvir aquelas vozes. Agora quem pede desculpas sou eu, e a ambos. Venho de uma época em que se era condenado por render homenagem à formosura. Querem ficar sós. Estaremos em contato."

"Poderia ser teu pai", disse a Amparo enquanto a arrastava em meio às mercadorias.

"Até meu bisavô. Deu-nos a entender que tinha pelo menos mil anos. Tens ciúme da múmia do faraó?"

"Tenho ciúmes de quem te faz acender uma luzinha na cabeça."

"Que bonito, isto é amor."

 

Contando um dia que conhecera Pôncio Pilatos em Jerusalém, descrevia minuciosamente a casa do governador, e citava os pratos servidos à mesa. O cardeal de Rohan, achando que estava a ouvir fantasias, volta-se para o camareiro do conde de São Germano, um velho de cabelos brancos e de expressão honesta: "Ouça aqui, meu amigo, custa-me crer um pouco naquilo que diz seu patrão. Que seja ventriloquo, está bem; que fabrique ouro, ainda passa; mas que tenha dois mil anos de idade e que tenha visto Pôncio Pilatos, já é demais. Você estava com ele?" "Oh não, meu caro senhor, respondeu ingenuamente o camareiro, só estou a serviço do senhor conde há quatrocentos anos."

(Collin de Plancy, Dictionnaire infernaI, Paris, Mellier, 1844, p. 434)

 

Nos dias que se seguiram fui tomado de amores por Salvador. Passava pouquíssimo tempo no hotel. Folheando o índice do livro sobre os Rosa-Cruzes encontrei uma referência ao conde de São Germano.

Vejam só, disse comigo, tout se tient.

A seu respeito escrevia Voltaire "c’est un homme qui ne meurt jamais et qui sait tout", mas Frederico da Prússia lhe retrucava que "c’est un comte pour rire". Horace Walpole referia-se a ele como sendo um italiano, ou espanhol, ou polaco, que fizera grande fortuna no México e que fugira depois para Constantinopla, com as jóias da mulher. As referências mais seguras a seu respeito encontram-se nas memórias de madame de Hausset, dama de companhia da Pompadour (bela referência, dizia Amparo, intolerante). Fazia-se passar por vários nomes, Surmont em Bruxelas, Welldone em Leipzig, marquês de Aymar, de Bedmar ou de Belmar, conde Soltikoff. Preso em Londres em 1745, onde brilhava como músico tocando violino e clavicórdio nos salões; três anos mais tarde em Paris oferece seus serviços a Luís XV como conhecedor de tinturas, em troca de uma residência no castelo de Chambord. O rei o emprega para missões diplomáticas na Holanda, onde arranja algumas confusões e foge de novo para Londres. Em 1762 vamos encontrá-lo na Rússia, depois de novo na Bélgica. Aí o encontra Casanova, que relata como o viu transformar uma moeda em ouro. Em 1776 aparece na corte de Frederico 11, a quem apresenta vários projetos químicos. Oito anos mais tarde morre em Schleswíg, junto ao landgrave de Hesse, onde estava instalando uma fábrica de tintas.

Nada de excepcional, carreira típica de aventureiro do século XVIII, com menos amores que Casanova e lances menos teatrais que Cagliostro. No fundo, em decorrência de alguns incidentes, desfruta de certo crédito junto aos poderosos, a quem promete maravilhas alquímicas, embora de caráter industrial. Exceto que a seu redor, certamente estimulada por ele, vai tomando forma a balela de sua imortalidade. Compraz-se em citar nos salões com certa desenvoltura acontecimentos remotos como se deles tivesse sido testemunha ocular, e cultiva sua lenda com graça, quase em surdina.

Meu livro citava mesmo um trecho do Gog, de Giovanni Papini, onde é descrito um encontro noturno, no convés de um transatlântico, com o conde de São Germano: oprimido pelo seu passado milenar, pelas memórias que lhe povoam a mente, com acentos de desespero que recordam Funes, "el memorioso" de I3orges, embora o texto de Papini fosse de 1930. "Não penseis que nosso destino seja digno de inveja", diz o conde a Gog. "Decorrido um par de séculos, um tédio incurável se apossa dos infelizes imortais. O mundo é monótono, os homens não aprendem nada e recaem a cada geração nos mesmos erros e horrores, os acontecimentos não se repetem mas se assemelham... acabam-se as surpresas, a novidade, as revelações. Posso confessar-vos, agora que só o mar Vermelho nos escuta: minha imortalidade já me causa enfado. A Terra já não tem segredos para mim e não tenho mais esperança nos meus semelhantes."

"Curioso personagem", comentei. "É claro que o nosso Agliè se diverte em personificá-lo. Cavalheiro maduro, um tanto flacido, com dinheiro para gastar, tempo livre para andar em viagens, e uma propensão para o sobrenatural."

"Um reacionário coerente, que tem coragem de ser decadente. No fundo, prefiro ele aos burgueses democráticos", disse Amparo."Women power, women power, e depois cai em êxtase por causa de um beija-mão."

"Vocês nos educaram assim, por séculos e séculos. Agora deixem que nos libertemos pouco a pouco. Também não disse que queria casar com ele."

"Ainda bem."

Na semana seguinte foi Agliê quem me telefonou. Seríamos recebidos aquela noite num terreiro de candomblé. Não iríamos participar do rito, porque a lalorixá desconfiava dos turistas, mas ela própria nos receberia antes de iniciar a sessão e nos mostraria o terreiro.

Veio buscar-nos de carro, e guiou através das favelas, para além da colina. O edifício diante do qual paramos tinha um aspecto modesto, como um grande armazém industrial, mas à porta um negro velho nos acolheu purificando-nos com fumigações. Mais à frente, num jardinzinho sem enfeites, encontramos uma espécie de corbelha imensa, feita de grandes folhas de palmeira, sob a qual apareciam alguns manjares tribais, as comidas de santo.

No interior vimos uma grande sala, de paredes recobertas por quadros, espécie de ex-votos, máscaras africanas. Agliè explicou-nos a disposição dos arranjos: ao fundo os bancos para os não-iniciados, junto aos quais estava o pequeno palanque dos instrumentos, e as cadeiras para os ogãs. "São pessoas de boa condição, não necessariamente crentes, mas que respeitam o culto. Aqui na Bahia o grande Jorge Amado é ogã num terreiro. Foi escolhido por Iansã, senhora das guerras e dos ventos...”

"Mas de onde vêm essas divindades?" indaguei.

"É uma história complexa. Em primeiro lugar trata-se de um ramo sudanês que se impôs no Norte do Brasil desde os primórdios da escravidão, e desse cepo provém o candomblé dos orixás, ou seja das divindades africanas. Nos estados do Sul há influência de grupos bantos e a partir daí iniciam mesclas em cadeia. Enquanto os cultos do Norte permanecem fiéis às religiões africanas originárias, no Sul a macumba primitiva evolve em direção da umbanda, por sua vez influenciada pelo catolicismo, o espiritismo e o ocultismo europeus...

"Pelo menos hoje não entram aqui os Templários."

"Os Templários eram uma metáfora. Em todo caso hoje não entram. Mas o sincretismo tem uma mecânica muito sutil. Observaram do lado de fora da porta, junto às comidas de santo, uma estatueta de ferro, uma espécie de diabrete com o tridente, tendo algumas oferendas votivas em torno? É Exu, poderosíssimo na umbanda, mas não no candomblé. Contudo, também o candomblé o venera, considera-o um espírito mensageiro, uma espécie de Mercúrio degenerado. Na umbanda as pessoas são possuidas por Exu, aqui não. Todavia é sempre tratado com benevolência, nunca se sabe. Veja lá ao fundo junto à parede...” Indicou-me a estátua policroma de um índio nu e a de um velho escravo negro vestido de branco, sentado a fumar cachimbo: "São um caboclo e um preto velho, espíritos de mortos que nos ritos de umbanda têm muito valor. Que fazem ali? Recebem homenagem e não são utilizados porque o candomblé só estabelece relações com os orixás africanos, mas nem por isso são renegados aqui."

"Mas afinal o que permanece em comum, em todas essas seitas?"

"Digamos que todos os cultos afro-brasileiros são de qualquer modo caracterizados pelo fato de que durante o rito os iniciados são possuidos, como em transe, por seres superiores. No candomblé são os orixás, na umbanda, os espíritos dos mortos...”

"Tinha esquecido meu país e minha raça", disse Amparo. "Meu deus, um pouco da Europa e um pouco de materialismo histórico me fizeram esquecer tudo, e no entanto essas histórias eu as ouvi de minha avó...”

"Um pouco de materialismo histórico?" sorriu Agliè. "Acho que já ouvi falar dele. Um culto apocalíptico praticado pelo homem de Trier*,

 

* Terra natal de Karl Marx. (N. do T.)

 

não é mesmo?"

Apertei o braço de Amparo. "No pasarán, meu bem."

"Cristo", murmurou ela.

Aglié havia acompanhado sem interromper aquele nosso breve diálogo a meia voz. "As forças do sincretismo são infinitas, minha cara. Se quiser, poderei oferecer-lhe a versão política de toda essa história. As leis do século XIX restituiram a liberdade aos escravos, mas na tentativa de extinguir os estigmas da escravidão queimaram todos os arquivos do mercado escravagista. Os escravos se tornam formalmente livres, mas sem passado. E procuram então reconstruir uma identidade coletiva, à falta daquela familiar. Voltam às raízes. É seu modo de opor-se, como vocês jovens dizem, às forças dominantes."

"Mas o senhor acabou de dizer que houve interferência das seitas européias...” disse Amparo.

"Minha cara, a pureza é um luxo, e os escravos pegam o que têm à mão. Mas se vingam. Hoje já cativaram mais brancos do que pensa. Os cultos africanos originários tinham a fraqueza de todas as religiões, eram locais, étnicos, míopes. Em contato com os mitos dos colonizadores reproduziram um antigo milagre: ressuscitaram os cultos mistéricos do segundo e terceiro séculos de nossa era, no Mediterrâneo, entre a Roma que se desfazia aos poucos e os fermentos que vinham da Pérsia, do Egito, da Palestina pré-judaica... Nos séculos do baixo Império a África recebe os influxos de toda a religiosidade mediterrânea e se torna escrínio para eles, condensando-os. A Europa torna-se corrompida pelo cristianismo da razão de estado, a Africa conserva os tesouros do saber, como já os havia conservado e difundido no tempo dos egípcios, doando-os aos gregos, que dele fizeram tábula rasa."

 

Há um corpo que abrange todo o conjunto do mundo, e deve ser representado de forma circular pois essa é a forma do Todo... Imagine agora que sob o círculo desse corpo estejam os 36 decanatos, no centro entre o círculo total e o círculo do zodíaco, separando esses dois círculos e por assim dizer delimitando o zodíaco, transportados ao longo do zodíaco com os planetas... A mudança dos reis, a sublevação das cidades, a carestia, a peste, o refluxo do mar, os terremotos, nada disso acontece sem o influxo dos decanatos...

(Corpus Hermeticum, Stobaeus, excerptum VI)

 

"Mas qual saber?"

"Tem uma idéia do quanto era grande a época entre o segundo e o terceiro séculos depois de Cristo? Não pelos faustos do Império, já na decadência, mas pelo que entrementes floresceu na bacia mediterrânica. Em Roma os pretorianos chacinavam seus imperadores, enquanto no Mediterrâneo florescia a época de Apuleio, dos mistérios de Isis, daquele grande retorno de espiritualidade que foram o neoplatonismo e a gnose... Bons tempos, em que os romanos não haviam ainda tomado o poder e condenado os heréticos à morte. Época esplêndida, habitada pelo Nous, fulgurante de êxtase, povoada de presenças, emanações, demônios e coortes angelicais. Era um saber difuso, desconexo, antigo como o mundo, que remonta além de Pitágoras, aos brâmanes da India, aos hebreus, aos magos, aos gimnosofistas, e até mesmo aos bárbaros do extremo Norte, aos druídas das Gálias e das ilhas britânicas. Os gregos consideravam os bárbaros como tais porque estes só sabiam exprimir-se naquela linguagem que aos seus ouvidos mais educados soava como latidos. Mas ao contrário nessa época se reconhece que os bárbaros sabiam muito mais que os helenos, precisamente porque sua linguagem era impenetrável. Acham que as pessoas que vão dançar hoje aqui sabem o significado de todos os cantos e nomes mágicos que irão pronunciar? Felizmente não, porque o nome desconhecido funcionará como exercício respiratório, vocalização mística. A época dos Antoninos... O mundo estava cheio de maravilhosas correspondências, de semelhanças sutis, era preciso penetrá-las, deixar-se penetrar por elas, através do sonho, do oráculo, da magia, que permitem agir sobre a natureza e suas forças movimentando o símile com o símile. O saber é inapreensível, volátil, escapa a qualquer medida. Eis o motivo por que naquela época o deus vigente era Hermes, inventor de todas as astúcias, deus das encruzilhadas, dos ladrões, mas artífice da escrita, arte da elusão e divergência, da navegação, que leva para o fim de todos os confins, onde tudo se confunde no horizonte, dos guindastes para elevar as pedras do solo, das armas, que mudam a vida em morte, das bombas de água, que fazem levitar a matéria pesada, e da filosofia, que ilude e engana... E sabem onde Hermes está hoje? Aqui, vocês o viram junto à porta, chamam-no Exu, este mensageiro dos deuses, mediador, comerciante, ignorante da diferença entre o bem e o mal."

Observou-nos com divertida curiosidade. "Acham que como Hermes em relação às mercadorias eu esteja sendo muito rápido em redistribuir os deuses. Vejam este livrinho que comprei hoje de manhã numa livraria popular do Pelourinho. Magias e mistérios de são Cipriano, receitas de simpatias para se conseguir um amor, ou para fazer com que o próprio inimigo morra, invocações aos anjos e à Virgem. Literatura popular, para esses místicos de pele negra. Mas trata-se de são Cipriano de Antioquia, sobre quem existe uma imensa literatura nos séculos de prata. Seus pais queriam que ele fosse instruído sobre todas as coisas e soubesse tudo o que existe na Terra, no ar e na água dos mares, por isso enviam-no aos países mais remotos para conhecer todos os mistérios, aprender a geração e a degenerescência das ervas e as virtudes das plantas e dos animais, não as da história natural, mas das ciências ocultas, imersas no fundo das tradições arcaicas e longínquas. E em Delfos Cipriano se devota a Apoio e à dramaturgia da serpente, conhece os mistérios de Mitra, em quinze anos de monte Olimpo, sob a guia de quinze hierofantes, assiste a ritos de invocação do Príncipe dEste Mundo, para dominar suas tramas, e em Argos vê-se iniciado nos mistérios de Hera, na Frígia aprende a mântica da hepatoscopia, e já não havia então na terra, no mar e no ar nada que ele não conhecesse, nem fantasma, nem objeto de saber, nem artifício de qualquer sorte, nem mesmo a arte de mudar as escritas por meio de sortilégio. Nos templos subterrâneos de Mênfis aprende como os demônios se comunicam com as coisas terrestres, os locais que temem, os objetos que amam, e como habitam as trevas, e que resistências opõem a determinados domínios, e como sabem possuir as almas e os corpos, e que efeitos obtêm de conhecimento superior, memória, terror, ilusão, e a arte de produzir comoções terrestres e de influenciar as correntes do subsolo... Depois, vejam só, se converte, mas algo de sua sabedoria permanece, se transmite, e agora o encontramos aqui, na boca e na mente destes maltrapilhos que vocês chamam de idólatras. Minha amiga, ainda há pouco estava olhando para mim como se eu fosse um ci devant. Quem vive no passado? A senhorita que gostaria de presentear este país com os horrores do século operário e industrial, ou eu que quero que a nossa pobre Europa reencontre a natureza e a fé destes filhos de escravos?"

"Cristo", sibilou Amparo, agastada. "o senhor sabe perfeitamente que esta é uma forma para mantê-los passivos...”

"Passivos, não. Capazes ainda de cultivar a espera. Sem o sentido da espera não há nem mesmo o paraíso, não foi o que vocês europeus ensinaram a eles?"

"E serei eu a européia?"

"Não conta a cor da pele, conta a fé na Tradição. Para restituir o sentido de espera a um Ocidente paralisado pelo bem-estar, estes pagãos talvez sofram, mas conhecem ainda a linguagem dos espíritos da natureza, dos ares, das águas e dos ventos...

"E com isso nos desfrutam novamente."

"Novamente?"

"Sim, o senhor devia tê-lo aprendido em oitenta e nove, conde. Quando nos cansamos, zás!" E sorrindo como um anjo tinha passado a mão tesa, belissima, na altura do pescoço. Em Amparo eu desejava também aqueles dentes.

"Dramático", disse Agliè tirando do bolso a tabaqueira e acariciando-a com ambas as mãos. "Com que então me reconheceu? Mas em oitenta e nove não foram os escravos que fizeram rolar as cabeças, mas sim os bravos burgueses que a senhorita deve detestar. Além do mais, o conde de São Germano já viu rolar tantas cabeças ao longo de tantos séculos, e tantas voltarem para cima dos mesmos pescoços. Mas aí vem chegando a mãe-de-santo, a Ialorixá."

O encontro com a guia do terreiro foi calmo, cordial, popularesco e culto. Era uma preta imensa, de sorriso deslumbrante. À primeira vista dir-se-ia tratar-se de uma dona de casa, mas quando começamos a falar compreendi por que as mulheres do gênero podiam dominar a vida cultural de Salvador.

"Esses orixás são pessoas ou forças?" perguntei-lhe. A mãe-de-santo respondeu-me sim, que eram forças, água, vento, folhas, arco-íris. Mas como impedir que os simples os vissem como guerreiros, mulheres, santos da igreja católica? A igreja também não adora talvez uma força cósmica sob a forma de várias virgens? O importante é venerar a força, o aspecto deve adequar-se às possibilidades de compreensão de cada um"

Depois convidou-nos a entrar no jardim dos fundos, para visitar as capelas, antes de ter início o rito. No jardim estavam as casas dos orixás. Um grupo de moças negras, vestidas de baianas, agitavam-se alegremente nos últimos preparativos.

As casas dos orixás estavam dispostas no jardim como as capelas de uma Via Sacra, e mostravam no exterior a imagem do santo correspondente. No interior gritavam as cores cruas das flores, das estátuas, das comidas preparadas há pouco e oferecidas aos deuses. Branco para Oxalá, azul e rosa para Iemanjá, vermelho e branco para Xangô, amarelo e ouro para Ogum... Os iniciados se ajoelhavam beijando o umbral e tocando-se na fronte e atrás da orelha.

Mas então, perguntei, Iemanjá é ou não é Nossa Senhora da Conceição? E Xangô é ou não é são Jerônimo?

"Não faça perguntas embaraçosas", aconselhou-me Agliê. "Na umbanda é ainda mais complicado. Da linha de Oxalá fazem parte santo Antônio e os santos Cosme e Damião. Da linha de Iemanjá fazem parte sereias, ondinas, caboclas do mar e dos rios, marinheiros e estrelas-guia. Da linha do oriente fazem parte hindus, médicos, cientistas, árabes e marroquinos, japoneses, chineses, mongóis, egípcios, astecas, incas, caribenhos e romanos. Da linha de Oxóssi fazem parte o sol, a lua, o caboclo das cascatas e o caboclo dos negros. Da linha de Ogum fazem parte Ogum Beira-Mar, Rompe-Mato, a Iara, Megé, Narueê... Em suma, depende."

"Cristo", disse outra vez Amparo.

"Diga Oxalá", murmurei aflorando-lhe a orelha. "Tenha calma, no pasarán."

A lalorixá nos mostrou uma série de máscaras que alguns acólitos estavam usando no terreiro. Eram grandes dominós de palha, ou capuzes, de que se deviam vestir os médiuns à medida que entrassem em transe, possuídos pela divindade. É uma forma de pudor, disse-nos, em certos terreiros os escolhidos dançam de rosto nu, expondo aos assistentes a sua paixão. Mas o iniciado fica protegido, respeitado, isento da curiosidade dos profanos, ou daqueles que não possam compreender o júbilo interior, e a graça. Era o costume daquele terreiro, afirmou, e por isso quase nunca admitiam estranhos. Mas talvez um dia, quem sabe, comentou. Nosso adeus era apenas um até-breve.

Contudo não nos queria deixar antes de nos oferecer uma prova das comidas de santo, não daquelas que estavam na corbelha, porque deviam permanecer intactas, mas diretamente de sua cozinha. Levou-nos para os fundos do terreiro, e foi um festim policromo de mandiocas, pimentas, cocos, amendoim, gengibre, muqueca de siri-mole, vatapá, efó, caruru, feijão-preto com farofa, entre um odor macio de especiarias africanas, sabores tropicais adocicados e fortes, que degustamos com compunção, sabendo que participávamos dos manjares de antigos deuses sudaneses. Justamente, nos disse a Lalorixá, porque cada um de nós, sem o saber, era filho de um orixá, e quase sempre se podia dizer de qual. Perguntei ousadamente de quem era filho. A Ialorixá escusou-se a princípio dizendo que não se podia precisar com certeza, depois concordou em examinar-me a palma da mão. Passou os dedos sobre ela, olhou-me nos olhos e disse: "És filho de Oxalá."

Fiquei orgulhoso. Amparo, já agora relaxada, sugeriu que se descobrisse de quem Agliè era filho, mas ele disse que preferia não saber.

Ao voltarmos, Amparo me disse: "Viu sua mão? Em vez da linha da vida, tem uma série de linhas interrompidas. Como um riacho que encontra uma pedra e começa a correr de novo um metro mais à frente. A linha de alguém que deve morrer várias vezes."

"O campeão mundial de metempsicoses em distância."

"No pasarán", riu-se Amparo.

 

Pelo simples fato de mudarem e ocultarem seu nome, de mentirem sobre sua idade e de admitirem eles próprios que podem passar sem ser reconhecidos, não é lógico que se possa negar que necessariamente existam de verdade.

(Heinrich Neuhaus, Pia et ultimissima admonestatio de Fratribus Roseae-Crucis, nimirum: an sint? quales sint? unde nomen illud sibi asciverint, Danzica. Schmidlin, 1618 - ed, fr. 1623, p. 5)

 

Dizia Diotallevi que Hesed é a sefirah da graça e do amor, fogo branco, vento do sul. Naquela noite no periscópio pensava que os últimos dias que vivi na Bahia com Amparo se colocavam sob aquele signo.

Recordo - quanta coisa se recorda, enquanto se espera no escuro, por horas a fio - uma daquelas últimas noites. Tínhamos os pés doidos de tanto andar pelas vielas e becos, e fomo-nos deitar cedo, mas sem vontade de dormir. Amparo estava encolhida contra o travesseiro em posição fetal, e fingia ler por entre os joelhos levemente afastados um dos meus pequenos manuais de umbanda. De quando em quando virava-se preguiçosamente de costas, as pernas abertas, o livro sobre o ventre, e ficava a ouvir-me, enquanto eu lia em voz alta o livro sobre os Rosa-Cruzes e procurava interessá-la nas minhas descobertas. A noite estava agradável mas, como havia escrito Belbo em um de seus files, exausto de literatura, não exalava um hálito de vento. Havíamo-nos concedido um bom hotel, da janela se avistava o mar e no vão da cozinha ainda iluminada confortava-me a vista uma cesta de frutas tropicais adquiridas naquela manhã no mercado.

"Aqui diz que em 1614 aparece na Alemanha um escrito anônimo Allgemeine und general Reformation, ou melhor Reforma geral e completa do universo inteiro, seguido da Fama Fraternitatis da Honorável Fraternidade Rosa-Cruz, dirigido a todos os sábios e soberanos da Europa, juntamente com uma breve resposta do Sr. Haselmeyer, que por esse motivo foi atirado a um cárcere pelos Jesuítas e posto a ferros na prisão. Ora dado à estampa e tornado público a todos os corações sinceros. Editado em Cassel por Wilhelm Wessel."

"Não é longo demais?"

"Parece que no século XVII os títulos eram todos assim. Quem o diz é Lina Wertmüller. Trata-se de uma obra satírica, uma fábula sobre a reforma geral da humanidade, e além do mais copiada em parte de Minudências do Parnaso de Traiano Boccalini. Mas contém um opúsculo, um libelo, um manifesto de uma dezena de páginas, a Fama Fraternitatis, que seria republicado em parte no ano seguinte, juntamente com outro manifesto, desta vez em latim, a Confessio fraternitatis Roseae Crucis, ad eruditos Europae. Em ambos a Fraternidade Rosa-Cruz se apresenta e fala do próprio fundador, um misterioso C.R. Somente mais tarde, e através de outras fontes, se poderá apurar ou estabelecer que se trata de um certo Christian Rosencreutz."

"Por que ali não consta o nome completo?"

"Olha, havia então um verdadeiro esbanjamento de iniciais, aquininguém é designado por inteiro, chamam-se todos G.G.M.P.I, e mesmo quando se trata de um nomezinho afetuoso este é chamado de P.D. São relatados os anos de formação do C.R, que primeiro visita o Santo Sepulcro, depois faz-se de vela para Damasco, passa pelo Egito, dali vai a Fez, que na época devia ser um dos santuários da sabedoria muçulmana. Nosso Christian, que já sabia grego e latim, aprende por lá línguas orientais, física, matemática, ciências naturais, e acumula toda a sabedoria milenária dos árabes e dos africanos, até a Cabala e a magia negra, traduzindo além disso para o latim um misterioso Liber M, dominando todos os segredos do macro e do microcosmo. Já havia dois séculos que estava em moda tudo o que fosse oriental, principalmente quando não se compreendia o que era."

"Fazem sempre assim. Famintos, frustrados, explorados? Quereis a taça do mistério? Aqui a tendes...” E enrolava um pedaço de papel. "É das boas."

"Veja que até você quer se alienar."

"Mas sei que isso é química, e chega. Não há mistério, até quem não sabe hebraico exagera. Vamos lá."

"Espera aí. Depois o tal de Rosencreutz passa à Espanha e também ali faz uma apropriação das doutrinas mais ocultas e diz que está cada vez mais se aproximando do Centro de todos os saberes. E no curso dessas viagens, que para um intelectual da época representava um verdadeiro trip de cultura geral, percebe que precisa fundar na Europa uma sociedade que dirija os governantes pelos caminhos da sabedoria e do bem."

"Uma idéia original. Não precisava ter estudado tanto. Quero mamão gelado."

"Está na geladeira. Não seja preguiçosa, vai lá, estou trabalhando".

"Quem trabalha é formiga e se você é formiga tem que agir como tal. Anda a buscar provisões."

"O mamão é deleite, portanto que vá a cigarra. Se não vou eu e você fica lendo."

"Cristo, de jeito nenhum. Odeio a cultura do homem branco. Vou eu."

Amparo andava em direção à kitchenette, e me agradava desejá-la à contraluz. Enquanto isto C.R, retornava à Alemanha, e em vez de dedicar-se à transmutação de metais, como lhe teria então permitido seu enorme saber, decide consagrar-se a uma reforma espiritual.Funda a Fraternidade inventando uma língua e uma escrita mágicas, que serviriam de fundamento à sabedoria dos irmãos no porvir.

"Não, que assim vou acabar sujando o livro, põe na minha boca, não - não banque a tola - assim, assim. Deus que bom este mamão, rosencreutzlische Mutti - ja-ja... Mas sabe que aquilo que os Rosa-Cruzes escreveram nos primeiros anos teria podido iluminar o mundo, sequioso de verdade?"

"Que foi que escreveram?"

"Aí é que está o nó, pois o manifesto não diz, te deixa com água na boca. É uma coisa tão importante, mas tão importante que deve permanecer secreta."

"Que putos."

"Não, não, ai, não quero mais. Todavia os Rosa-Cruzes, à medida que se multiplicam, resolvem disseminar-se pelos quatro cantos do mundo, empenhados em cuidar gratuitamente dos enfermos, em não endossar hábitos que os tornem reconhecíveis, em adotar sempre os costumes dos países em que estejam, em se reunir uma vez por ano e em permanecer secretos durante um século."

"Vai me desculpar, mas que reforma é essa que queriam fazer se já tinha havido uma? E Lutero, o que era, um merda à-toa?"

"Mas isso aconteceu antes da reforma protestante. Aqui numa nota se diz que de uma leitura atenta da Fama e da Confessio se intui...”

"Quem intui?"

"Quando se intui se intui. Não importa quem. É a razão, o bom senso... Eh, mas que é isso, estamos falando dos Rosa-Cruzes, um assunto sério...”

"Estou vendo."

"Pois bem, como se intui, Rosencreutz nasceu em 1378 e morreu em 1484, com a bela idade de cento e seis anos e não é difícil intuir que a confraria secreta tenha contribuído não pouco para aquela Reforma que em 1615 festejava o seu centenário. Tanto é verdade que no brasão de Lutero há uma rosa e uma cruz."

"Bela fantasia."

"Você queria que Lutero pusesse no brasão uma girafa em chamas ou um relógio liqüefeito? Cada um é fruto de seu próprio tempo. Você já sabe de quem sou filho e agora fique quieta, deixe-me prosseguir. Ai por 1604 os Rosa-Cruzes, enquanto restauram parte de seu palácio ou castelo secreto, encontram uma lápide em que estava fincado um grande prego. Extraem o prego, rui uma parte da parede, aparece uma porta, sobre a qual está escrito em grandes caracteres POST CXX ANNOS PATEBO...”

Eu já vira a expressão na carta de Belbo, mas não consegui deixar de reagir: "meu deus...”

"Que houve?"

"É que num documento aos Templários... Uma história estranha que nunca te contei, de um certo coronel...”

"E daí? Os Templários copiaram os Rosa-Cruzes, pronto."

"Mas os Templários vieram antes."

"Então os Rosa-Cruzes copiaram dos Templários."

"Querida, sem você eu viveria em curto-circuito."

"Querido, quem te estragou foi o tal Agliê. Você está esperando a revelação."

"Eu? Estou lá esperando alguma coisa?"

"Ainda bem, cuidado com o ópio dos povos."

"El pueblo unido jamás será vencido."

"Ria, vai rindo. Continua, leia para mim o que diziam aqueles cretinos.

"Aqueles cretinos aprenderam tudo o que havia na África, está sabendo?"

"Eles já estavam na África começando a empacotar-nos e a mandar-nos para cá."

"Dêem graças a Deus. Podiam ter nascido em Pretória." Dei-lhe um beijo e prossegui. "Além da porta se descobriu um sepulcro de sete lados e sete ângulos, iluminado prodigiosamente por um sol artificial. No meio, um altar redondo, ornado de vários motos ou emblemas, do tipo NEQUAQUAM VACUUM...”

"Né quá quá? Assinado Pato Donald?"

"Isso é latim, está sabendo? Quer dizer o vácuo não existe."

"Ainda bem, imagina o horror que seria."

"Liga o ventilador para mim, animula vagula blandula."

"Mas estamos no inverno."

"Para vocês do hemisfério errado, querida. Estamos em julho, tenha paciência, liga o ventilador, não por eu ser o macho, mas por estar do teu lado. Obrigado. Em suma, em cima do altar se encontra o corpo intacto do fundador. Nas mãos tem um Livro I, transbordante de infinita sabedoria, e pena que o mundo não possa conhecê-la - diz o manifesto - porque senão gulp, wow, brr, sguisssh!"

"Ai."

"Continuo. O manifesto termina prometendo um imenso tesouro ainda por descobrir e revelações estupendas sobre as relações entre o macrocosmo e o microcosmo. Não pensem que somos alquimistas de dois vinténs e que vos ensinaremos a fabricar ouro. Isso é coisa de malandros e queremos algo melhor e aspiramos a algo mais elevado, em todos os sentidos. Estamos difundindo esta Fama em cinco idiomas, para não falar da Confessio, proximamente neste cinema. Aguardamos as respostas e o julgamento dos doutos e dos ignorantes. Escrevam-nos, telefonem, ittandem seus nomes, veremos se são dignos de participar de nossos segredos, dos quais só lhes demos uma pálida amostra. Sub umbra alarum tuarum Iehova."

"Que disse?"

"É a frase de despedida. E ponto final. Em suma, parece que os Rosa-Cruzes fogem de revelar aquilo que aprenderam, e esperam apenas encontrar o interlocutor justo. Mas nem uma palavra sobre aquilo que sabem."

"Como aquele sujeito da foto do anúncio que vimos numa revista do avião: se me mandar dez dólares ensino-lhe o segredo para tornar-se milionário."

"Mas esse não mente. Ele descobriu o segredo. Como eu."

"Ouça, melhor é continuar a ler. Parece que nunca me viu antes."

"É sempre como se fosse a primeira vez."

"Pior. Não dou confiança ao primeiro que chega. Será que quer encontrar tudo? Primeiro os Templários, depois os Rosa-Cruzes, nunca leu, sei lá, Plechanov?"

"Não, espero encontrar-lhe o sepulcro, dentro de cento e vinte anos. Se Stalin não o enterrou com uma caterpillar."

"Que chato. Vou ao banho."

 

E já a famosa fraternidade dos Rosa-Cruzes declara que correm delirantes vaticínios por todo o universo. De fato mal surgiu aquele fantasma (embora Fama e Confessio provem que se tratava de simples divertimento de mentes ociosas) logo se produziu uma esperança de reforma universal, gerando coisas em parte ridículas e absurdas, em parte inacreditáveis. E assim homens probos e honestos de vários países se prestaram ao escárnio e à derrisão por terem abertamente patrocinado a causa ou por se terem persuadido de que poderiam manifestar-se a esses irmãos..., através do Espelho de Salomão ou de outra fórmula oculta.

(Christoph von Besold (?), Apêndice a Tommaso Campanella, Von der Spanischen Monarchy, 1623)

 

O melhor vinha depois, e quando Amparo voltou do banho eu já estava na condição de poder antecipar-lhe algumas aventuras admiráveis. "É uma história incrível. Os manifestos saíram numa época em que pululavam textos desse gênero, todos buscando uma renovação, um século de ouro, um país da cocanha do espírito. Este se dana a compulsar os textos mágicos, aquele faz suar os fornos a preparar metais, um procura dominar os astros, outro elabora alfabetos secretos e línguas universais. Rodolfo II transforma a corte de Praga num laboratório de alquimia, convida Comênio e John Dee, o astrólogo da corte da Inglaterra que havia revelado todos os segredos do cosmo em umas poucas páginas de uma Monas Ierogliphica, juro que o título é esse, monas significa mônada."

"E que foi que eu disse?"

"O médico de Rodolfo II é aquele Michael Maier que escreve um livro de emblemas visíveis e musicais, a Atalanta Fugiens, uma festa de ovos filosofais, dragões que mordem a própria cauda, esfinges, nada é tão luminoso quanto a cifra secreta, tudo é o hieróglifo de alguma outra coisa. Está vendo só, Galileu deixa cair suas pedras de cima da Torre de Pisa, Richelieu joga monopólio com meia Europa, e aqui todos vivem em função de ler as assinaturas do mundo: grandes coisas essas que estão dizendo, pois nós aqui além da queda dos corpos pesados, nós aqui embaixo (ou antes, em cima) estamos em outra. Em verdade vos digo: abracadabra. Torricelli construía o barômetro e estes faziam bailados, jogos aquáticos e fogos de artifício no Hortus Palatinus de Heidelberg. E a guerra dos trinta anos estava para arrebentar."

"Quem sabe como estaria contente a Mãe Coragem?"

"Mas também eles nem sempre se divertiam. O eleitor palatino em 1619 aceita a coroa da Boêmia, creio que o faça por ter vontade de reinar sobre Praga a cidade mágica, mas em vez disso os Habsburgos um ano depois o prendem na Montanha Branca, os protestantes são massacrados em Praga, queimam a casa de Comênio, sua biblioteca, matam-lhe a mulher e o filho, e ele escapa de corte em corte a repetiro quanto era grande e cheio de esperanças o ideal dos Rosa-Cruzes."

"Pobre coitado, queria que ele se consolasse com o barômetro? Mas espera um instante, sabe que nós as mulheres não apreendemos tudo de um lance como vocês: quem escreveu os manifestos?"

"Aqui está o nó, não se sabe. Vamos verificar, coça-me aqui a rosa-cruz..., não, entre as duas espáduas, não mais para cima, não mais à esquerda, aí, aí. Ora pois, neste ambiente germânico há personagens incríveis. Por exemplo Simon Studion que escreve a Naometria, um tratado oculto sobre as medidas do Templo de Salomão, Heinrich Khunrath, que escreve um Amphitheatrum sapientiae aeternae, cheio de alegorias com letras hebraicas, e cavernas cabalísticas que devem ter inspirado os autores da Fama. Estes são provavelmente amigos de uma dessas dez mil panelinhas de utopistas da renascença cristã. A opinião pública quer que o autor seja um certo Johann Valentin Andreae, que no ano seguinte publicará As bodas químicas de Christian Rosencreutz, que escrevera quando jovem, logo essa idéia dos Rosa-Cruzes já lhe passava pela cabeça há muito tempo. Mas a seu redor em Tübingen havia outros entusiastas, sonhando com a república de Cristianópolis, que talvez se tenham reunido num só grupo. Mas ao que parece o fizeram por brincadeira, por diversão, não pensando realmente em criar o pandemônio que acabaram criando. Andreae passará depois a vida a jurar que os manifestos não foram escritos por ele, que ademais não passavam de um Iusus, um ludibrium, uma goliardice, invoca sua reputação acadêmica, aborrece-se, diz que os Rosa-Cruzes se é mesmo que existiram não passavam todos de impostores. Mas nada. Mal saem os manifestos parece que as pessoas não estavam esperando outra coisa. Os doutos de toda a Europa escrevem efetivamente aos Rosa-Cruzes, e como não sabem onde encontrá-los mandam-lhes cartas abertas, opúsculos, livros a publicar. Maier publica ainda nesse mesmo ano uma Arcana arcanissima onde não menciona os Rosa-Cruzes mas todos estão convencidos de que se trata deles e que ele saiba bem mais do que se permite dizer. Alguns se jactam, dizem que já haviam lido a Fama em manuscrito. Não creio que fosse pouca coisa naquela época preparar um livro, quem sabe com gravuras, mas Robert Fludd nesse mesmo ano de 1615 (escreve na Inglaterra e edita em Leiden, calcula ainda o tempo de viagem para as provas) põe em circulação uma Apologia compendiaria Fraternitatem de Rosea Cruce suspicionis et infamiis maculis aspersam, veritatem quasi Fluctibus abluens et abstergens, para defender os Rosa-Cruzes e liberá-los das suspeitas, das ‘máculas’ com que foram presenteados - e isto quer dizer que já estava se alastrando um debate entre a Boêmia, a Alemanha, a Inglaterra e a Holanda, tudo com correios a cavalo e eruditos itinerantes."

"E os Rosa-Cruzes?"

"Silêncio total. Post cento e vinte annos patebo patavina. Observam do nada absoluto de seu palácio. Creio fosse exatamente esse silêncio que excitava os ânimos. Se não respondem quer dizer que existem de fato. Em 1617 Fludd escreve um Tractatus apologeticus integritatem societatis de Rosea Cruce defendens, e um certo Aloisius Marlianus diz que é chegado o momento de revelar o segredo dos Rosa-Cruzes."

"E revela?"

"Pois sim! Torna-o mais complicado ainda. Pois descobre que se subtrairmos os 188 anos prometidos pelos Rosa-Cruzes de 1618 vamos obter 1430, que é o ano em que foi instituída a ordem do Tosão de Ouro."

"E que tem a ver?"

"Não compreendo por que 188, já que devia ser 120, mas quando fazemos subtrações e adições místicas a conta dá sempre certo. Quanto ao Tosão de Ouro, é o mesmo Velocino de Ouro dos Argonautas, e soube de fonte limpa que tem algo a ver com o Santo Graal, e já agora se me permite também com os Templários. Mas a coisa não acaba aí. Entre 1617 e 1619 Fludd, que evidentemente publicava mais do que a Barbara Cartland, dá a lume outros quatro livros, entre os quais a Utriusque cosmi historia, algo assim como breves noções sobre o universo, ilustrado, todo rosa e cruz. Maier enche-se de coragem e publica o seu Silentium post clamores, sustentando que a irmandade existia e que não só estava ligada ao Tosão de Ouro mas igualmente à ordem da larreteira. Contudo é humilde demais para ser nela admitido. Veja só os doutos da Europa. Se não acolhem nem mesmo um Maier, é que a coisa devia ser de fato muito exclusiva. E por isso todos os borra-botas começam a arranjar cartas falsas para serem admitidos. Todos a dizer que os Rosa-Cruzes existem, todos a confessar que nunca os viram, todos a escrever como para marcar encontro, para solicitar uma audiência, ninguém é suficientemente descarado para dizer eu sou Rosa-Cruz, alguns dizem que não existem porque não foram contatados, outros dizem que existem exatamente para serem contatados."

"E os Rosa-Cruzes mudos."

"Como peixes."

"Abre a boca. Se queres mamão."

"Delícia. Entrementes começa a guerra dos trinta anos e Johann Valentin Andreae escreve uma Turris Babel para prometer que dentro de um ano surgirá o Anticristo, enquanto um certo Mundus escreve um Tintinnabulum sophorum.”

"Bonito esse tintinnabulum!"

"...de que não percebo patavina do que diz, mas é certo que Campanella ou quem por ele intervém na Monarchia Spagnola, diz que toda essa história dos Rosa-Cruzes não passa de uma distração de mentes corruptas... E chega, entre 1621 e 1623 desaparecem todos."

"Assim, sem mais nem menos?"

"Assim. Cansaram. Como os Beatles. Mas só na Alemanha. Parece até a história de uma nuvem tóxica. Dirige-se para a França. Numa bela manhã de 1623 aparecem nos muros de Paris manifestos Rosa-Cruzes informando os bons cidadãos de que os deputados do colégio principal da irmandade se haviam transferido para lá e estavam prontos a abrir inscrições. Mas segundo outras versões os manifestos dizem da maneira mais clara que se trata de trinta e seis invisíveis espalhados pelo mundo em grupos de seis, e que têm o poder de tornar invisíveis os seus adeptos... Porra, de novo os trinta e seis...”

"Quais?"

"Aqueles do meu documento dos Templários."

"Gente sem imaginação. E daí?"

"Daí surge uma loucura coletiva, este os defende, aquele os quer conhecer, Outro os acusa de praticar satanismo, alquimia e heresia, quando intervém Astarotte dizendo que são ricos, poderosos, capazes de se deslocar voando de um lugar para outro, em suma, o escândalo do dia."

"Sabidos esses Rosa-Cruzes. Nada como um lançamento em Paris para pôr a coisa na moda."

"Parece que tem razão, pois veja só o que acontece em seguida, eta época das boas. Cartésio, o próprio, que tinha estado na Alemanha nos anos precedentes, onde os havia buscado, mas não os encontrara segundo seu biógrafo porque, bem sabemos, andavam girando por aí disfarçados. Quando regressa a Paris, depois do aparecimento dos manifestos, fica sabendo que todos o consideram um Rosa-Cruz. No ambiente reinante, não era uma boa fama, causando embaraços até mesmo a seu amigo Mersenne, que já então os tratava como miseráveis, subversivos, magos, cabalísticos, semeadores de doutrinas perversas. Então o que faz Cartésio? Faz-se ver em todos os lugares que pode. E já que todos o vêem, o que é inegável, quer provar com isso que não é invisivel e portanto não é um Rosa-Cruz."

"Isto é que é método."

"Claro que não bastava negar. Da maneira como andavam as coisas, se alguém chegava à sua frente e lhe dizia boa-tarde, eu sou um Rosa-Cruz, era sinal de que não era. O Rosa-Cruz que se respeita não o diz. Pelo contrário, nega-o em altas vozes."

"Contudo não se pode dizer que todo aquele que afirma não ser um Rosa-Cruz o seja, pois eu digo que não sou e nem por isso sou."

"Contudo negar já é um indicio suspeito."

"Não. Porque o que faz o Rosa-Cruz quando percebe que as pessoas não acreditam em quem diz que é e suspeitam daqueles que dizem que não são? Começa a dizer que é para fazer acreditar que não o seja."

"Diabo. Então daí por diante todos os que dizem ser Rosa-Cruzes mentem, e no entanto o são de fato! Ah não não, Amparo, não vamos cair nessa armadilha deles. Seus espiões andam por toda parte, talvez até mesmo aqui embaixo da cama, e portanto já sabem que nós sabemos. Logo dizem que não são."

"Meu bem, estou ficando com medo."

"Tenha calma, querida, aqui estou eu que sou estúpido, quando disserem que não são eu acredito que são, e assim os desmascaro logo. O Rosa-Cruz desmascarado torna-se tão inócuo, que você o põe para fora da janela, enxotando-o com o jornal."

"E Agliè? Ele quer que a gente acredite que é o conde de São Germano. Evidentemente para que pensemos que não é. Logo um Rosa-Cruz. Ou não?"

"Escuta, Amparo, vamos dormir?"

"Não, agora quero ouvir o resto."

"Esborrachamento total. A Rosa-Cruz inteira. Em 1627 veio a lume a Nova Atlântida de Bacon e os leitores pensaram que ele falava da terra dos Rosa-Cruzes ainda que nunca os tivesse mencionado. O pobre Johann Valentin Andreae morre a jurar em falso que não fora ele ou se fosse o dissera por brincadeira, mas já aí a coisa está feita. Tirando vantagem de não estarem em lugar algum, os Rosa-Cruzes estavam em toda a parte."

"Como Deus."

"Agora você me fez pensar nisto... Vejamos, Mateus, Lucas, Marcos e João são um bando de patuscos que se reúnem em algum lugar e decidem fazer uma competição, inventam um personagem, estabelecem alguns poucos fatos essenciais e depois tome, cada qual está livre para fazer o que quiser e depois veremos quem fará melhor. Finalmente as quatro narrativas caem em mãos de amigos que começam a sentenciar, Mateus é bastante realista mas insiste demais com aquela história do Messias. Marcos não é mau mas um tanto desordenado, Lucas é elegante, força é admiti-lo, João já exagera na filosofia..., mas seja como for os livros agradam, circulam de mão em mão, quando os quatro percebem o que está acontecendo já é tarde demais, Paulo já encontrou Jesus na estrada de Damasco, Plínio inicia sua investigação por ordem do imperador preocupado, uma legião de apócrifos tinge que também estão sabendo do caso..., toi, apocryphe lecteur, mon semhlable, mon frère... Pedro ergue a cabeça, toma-se a sério, João ameaça dizer a verdade, Pedro e Paulo mandam-no prender, agrilhoam-no na ilha de Patmos e o pobre coitado começa a ver coisas, vê gafanhotos na cabeceira da cama, fazei calar essas cornetas, de onde vem todo esse sangue... E os outros a dizerem que ele bebe, que está esclerosado... E se tivesse acontecido mesmo assim?"

"Pois acho bem que foi. Leia Feuerbach em vez dos teus livrecos."

"Amparo, já é de madrugada."

"Somos loucos."

"A aurora dos dedos rosacrúzeos acaricia docemente as ondas...”

"Isso, faz assim. E Iemanjá, veja, está vindo."

"Faça-me ludibria...”

"Oh o Tintinnabulum!"

"És minha Atalanta Fugiens...”

"Oh a Turris Babel...”

"Quero a Arcana Arcanissima, o Velocino de Ouro, pálida e rosa como uma concha marinha...”

"Sss... Silentium post clamores", disse.

 

É provável que a maioria dos pretensos Rosa-Cruzes, comumente designados como tais, fossem na verdade apenas Rosacrucianos... E ainda certo que não o eram de modo algum, pelo simples fato de fazerem parte de tais associações, o que pode parecer paradoxal e contraditório à primeira vista, mas que é facilmente compreensível...

(René Guénon, Aperçu sur l’initiation, Paris, Editions Traditionnelles, 1981, XXXVIII, p. 241)

 

Voltamos para o Rio e recomecei a trabalhar. Um dia vi numa revista ilustrada que existia uma Ordem da Rosa-Cruz Antiga e Aceita. Propus a Amparo que fôssemos lá dar uma olhada, e ela me acompanhou de má vontade.

A sede ficava numa rua secundária, havia de fora uma vitrina com estatuetas de gesso que reproduziam Quéops, Nefertite, a Esfinge.

Sessão plenária precisamente naquela tarde: "Os Rosa-Cruzes e a Umbanda". O orador era um certo professor Bramanti, Referendário da Ordem na Europa, Cavaleiro Secreto do Grão-Priorado In Partibus de Rodes, Malta e Tessalonica.

Decidimos entrar. O ambiente não primava pela arrumação, decorado com miniaturas tântricas que representavam a serpente Kundalini, aquela que os Templários queriam despertar com um beijo no traseiro. Disse comigo que afinal de contas não tinha valido a pena atravessar o Atlântico para descobrir um novo mundo, de vez que poderia encontrar aquelas mesmas coisas na sede da Picatrix.

Por trás de uma mesa recoberta por um pano vermelho, e diante de uma platéia reduzida e sonolenta, estava o Sr. Bramanti, homem corpulento que, se não fosse pela envergadura, poder-se-ia definir como um tapir. Já havia começado a falar, com oratória rotunda, mas não há muito, pois discorria sobre os Rosa-Cruzes no tempo da décima oitava dinastia, sob o reinado de Amósis I.

Quatro Senhores Velados velavam sobre a evolução da raça que vinte e cinco mil anos antes da fundação de Tebas dera origem à civilização do Saara. O faraó Amósis, influenciado por eles, fundara uma Grande Fraternidade Branca, depositária daquela sabedoria pré-diluviana que os egípcios tinham à ponta dos dedos. O conferencista sustentava haver documentos (naturalmente inacessíveis aos profanos) que remontavam aos sábios do Templo de Carnaque e a seus arquivos secretos. O símbolo da rosa e da cruz tinha sido portanto idealizado pelo faraó Akhenaton. Há quem tenha o papiro, dizia Bramanti, mas não me perguntem quem.

No álveo da Grande Fraternidade Branca se haviam formado Hermes Trismegisto, cuja influência sobre o Renascimento italiano era tão irrefutável quanto a deste sobre a Gnose de Princeton, Homero, os druidas das Gálias, Salomão, Sólon, Pitágoras, Plotino, os essênios, os terapeutas, José de Arimatéia que trouxe o Graal para a Europa, Alcuíno,

o rei Dagoberto, santo Tomás, Bacon, Shakespeare, Spinoza, Jakob Boehme e Debussy, Einstein. Amparo me sussurrou que lhe parecia só estar faltando Nero, Cambronne, o índio Jerônimo, Pancho Villa e Buster Keaton.

No que respeita à influência dos Rosa-Cruzes originários sobre o cristianismo, Bramanti fazia observar, a quem ainda não se tivesse apercebido disto, não ser por acaso que a lenda reza que Cristo tenha morrido na cruz.

Os sábios da Grande Fraternidade Branca eram os mesmos que haviam fundado a primeira loja maçônica nos tempos do rei Salomão. Que Dante fosse Rosa-Cruz e maçom - como por sua vez santo Tomás - era algo que estava manifesto em sua obra. Nos cantos XXIV e XXV do Paraíso encontram-se o beijo tríplice do príncipe Rosa-Cruz, o pelicano, as túnicas brancas, as mesmas dos anciãos do Apocalipse, as três virtudes teologais dos capítulos maçônicos (Fé, Esperança e Caridade). Na verdade a flor simbólica dos Rosa-Cruzes (a rosa cândida dos cantos XXX e XXXI) fora adotada pela igreja de Roma como símbolo da Mãe do Salvador - donde a Rosa Mystica das ladainhas.

E era patente que os Rosa-Cruzes tivessem atravessado os séculos medievais não apenas pela sua infiltração junto aos Templários, mas através de documentos bem mais explícitos. Bramanti citava um certo Kiesewetter que nos fins do século passado havia demonstrado que os Rosa-Cruzes na Idade Média fabricaram quatro quintais de ouro para o príncipe eleitor da Saxônia, tendo à mão como prova a página exata do Theatrum Chemicum publicado em Estrasburgo em 1613. Poucos no entanto terão percebido uma menção aos Templários na lenda de Guilherme Tell: Tell fabrica sua seta com um ramo de visco, planta da mitologia ariana, e transpassa a maçã, símbolo do terceiro olho ativado da serpente Kundalini - e sabe-se que os arianos vinham da Índia, onde irão posteriormente esconder-se os Rosa-Cruzes depois de abandonarem a Alemanha.

Por sua vez em relação aos vários movimentos que pretendem filiar-se, embora com bastante puerilidade, à Grande Fraternidade Branca, Bramanti reconhecia como bastante ortodoxa a Rosicrucian Fellowship de Max Heindel, mas só porque nesse ambiente se havia formado Allan Kardec. Todos sabem que Kardec foi o pai do espiritismo, e que de sua teosofia, que contempla a possibilidade de contato com a alma dos mortos, é que se formou a espiritualidade umbanda, glória do nobilíssimo Brasil. Nessa teosofia Aum Bhandá é uma expressão sânscrita que designa o princípio divino e a fonte da vida ("Nos enganaram de novo", murmurou Amparo, "nem mesmo umbanda é uma palavra nossa, de africano só tem o som.")

A raiz é Aum ou Um, que é o Om budista, e é o nome de Deus na língua adâmica. Um é uma sílaba que pronunciada na forma exata se transforma num poderoso mantra e provoca correntes fluídicas de harmonia na psique através da siakra ou Plexo Frontal.

"E que vem a ser plexo frontal?" perguntou Amparo. "Um mal incurável?"

Bramanti precisou que era necessário distinguir entre os verdadeiros Rosa-Cruzes, herdeiros da Grande Fraternidade Branca, obviamente secretos, como a Ordem Antiga e Aceita que ele humildemente representava, e os "rosacrucianos", vale dizer qualquer um que por interesse pessoal se tenha inspirado na mística rosa-cruz sem ter direito a ela. Recomendou ao público que não fizesse fé em nenhum rosacruciano que se definisse como Rosa-Cruz.

Amparo observou que todo Rosa-Cruz é o rosacruciano de outro.

Um imprudente em meio ao público se levantou e perguntou a Bramanti por que razão sua ordem pretendia ser a autêntica, dado que violava a regra do silêncio, característica de todo verdadeiro adepto da Grande Fraternidade Branca.

Bramanti ergueu-se e disse: "Não imaginei que mesmo aqui se haviam de infiltrar os provocadores a soldo do materialismo ateu. Nestas condições não direi mais nada." E saiu, com certà majestade. Naquela noite Agliè telefonou, querendo saber notícias nossas e avisando-nos que no dia seguinte seríamos finalmente convidados para um rito. Nesse meio-tempo, convidava-me para beber alguma coisa.

Amparo tinha uma reunião política com os amigos, e fui sozinho ao encontro.

 

Valentiniani..., nihil magis curant quam occultare quod predicant: si tamen praedicant, qui occultant... Si bona fides quaeres, concreto vultu, suspenso supercilio - altum est - aiunt. Si subtiliter tentes, per ambiguitates bilingues communem fidem affirmant. Si scire te subostendas, negant quidquid agnoscunt... Habent artificium quo prius persuadeant, quam edoceant.

(Tertulliano, Adversus Valentinianos)

 

Agliê me convidou para irmos a um lugar onde ainda se fazia uma batida como só os homens sem idade sabem fazer. Saímos, com poucos passos, da civilização de Cármen Miranda, e me encontrei num local escuro, onde algumas pessoas pitavam um fumo de rolo grosso como uma salsicha, enrolado em cordas que pareciam cabos de marinha. Comprimiam o fumo com a ponta do polegar até obterem folhas largas e transparentes, que eram enroladas em pedaços de palha oleosa. Era preciso reacender com freqüência, mas compreendia-se o que deve ter sido o tabaco quando sir Walter Raleigh o descobriu.

Contei-lhe sobre a minha aventura daquela tarde.

"Até os Rosa-Cruzes, sim senhor? Seu desejo de saber é insaciável, meu amigo. Mas não dê ouvidos àqueles loucos. Falam todos de documentos incontestáveis, mas jamais mostraram algum. Esse tal Bramanti, já conheço. Mora em Milão, mas anda por toda a parte a difundir seu verbo. É inócuo, mas acredita até hoje em Kiesewetter. Legiões de rosacrucianos se apóiam naquela página do Theatrum Chemicum. Mas se vai consultá-lo - e modestamente esse livro faz parte de minha pequena biblioteca em Milão - nele não encontrará a citação...

"Um gaiato, o Sr. Kiesewetter."

"Citadíssimo. É que os ocultistas do século XIX também foram vítimas do espírito positivista: uma coisa só é verdadeira se pode ser provada. Veja o debate sobre o Corpus Hermeticum. Quando foi introduzido na Europa no século XV, Pico della Mirandola, Ficino e tantas outras pessoas de elevada cultura viram logo a verdade: aquilo devia ser obra de alguma inteligência antiqüissima, anterior aos egípcios, anterior mesmo a Moisés, pois ali se encontravam idéias que seriam mais tarde enunciadas por Platão e por Jesus."

"Como mais tarde? São os mesmos argumentos de Bramanti sobre o Dante maçom. Se o Corpus repete as idéias de Platão e de Jesus significa que foi escrito depois deles!"

"Está vendo? Até o senhor. E com efeito esse foi o argumento dos filólogos modernos, que até lhe acrescentaram algumas análises lingüísticas confusas para mostrar que o Corpus tinha sido escrito entre o segundo e o terceiro séculos de nossa era. O mesmo que dizer que Cassandra nasceu depois de Homero porque já sabia que Tróia ia ser destruída. É ilusão moderna crer que o tempo seja uma sucessão linear, que vai de A para B. Pode perfeitamente vir de B para A, e o efeito produzir a causa... Que quer dizer vir antes ou vir depois? A sua belissima Amparo vem antes ou depois de seus miscigenados ascendentes? É esplêndida demais - se permite um julgamento desapaixonado de alguém que poderia ser pai dela. Logo vem antes. Ela é a origem misteriosa de tudo o que contribuiu para criá-la."

"Mas neste ponto...”

"O erro está no conceito de "neste ponto". Os pontos foram colocados pela ciência, depois de Parmênides, para estabelecer de onde e para onde uma coisa se move. Nada se move, e só existe um ponto, o jíionto do qual se geram num mesmo instante todos os outros pontos. A ingenuidade dos ocultistas do século XIX, e também do nosso, é querer demonstrar a verdade da verdade com métodos da mentira científica. Não é preciso raciocinar segundo a lógica do tempo, mas segundo a lógica da Tradição. Todos os tempos se simbolizam entre si, e portanto o tempo invisível dos Rosa-Cruzes existe e existiu sempre, independentemente dos fluxos da história, da história que o senhor representa. O tempo da revelação final não é o tempo dos relógios. Seus vínculos se estabelecem no tempo da "história sutil" onde o antes e o depois da ciência contam muito pouco."

"Mas, em suma, todos aqueles que sustentam a eternidade dos Rosa-Cruzes...”

"Bufonarias do cientismo que procura provar aquilo que ao contrário se deve saber, sem demonstração. Acha que os fiéis que veremos amanhã à noite sabem ou estão em grau de demonstrar tudo aquilo que lhes disse Allan Kardec? Sabem porque estão predispostos a saber. Se todos tivéssemos conservado essa sensibilidade para o segredo, estaríamos ofuscados de revelações. Não é necessário querer, basta estar disposto."

"Mas em suma, e me desculpe se pareço banal. Os Rosa-Cruzes existem ou não?"

"Que significa existem?"

"Problema seu."

"A Grande Fraternidade Branca, chamem-na Rosa-Cruz, chamem-na cavalaria espiritual, da qual os Templários são uma encarnação ocasional, é uma coorte de sábios, poucos, pouquíssimos eleitos, que viaja através da história da humanidade para preservar um núcleo de sabedoria eterna. A história não se desenvolve ao acaso. É obra dos Senhores do Mundo, aos quais nada escapa. Naturalmente os Senhores do Mundo se defendem por meio do segredo. E portanto toda vez que encontrar alguém que se diz Senhor, ou Rosa-Cruz ou Templário, este alguém estará mentindo. Há que procurá-los além."

"Mas então essa história continua ao infinito?"

"Isto mesmo. É a astúcia dos Senhores."

"Mas afinal que querem que se saiba?"

"Que há um segredo. De outra forma para que viver, se tudo fosse assim como aparece?"

"E qual é o segredo?"

"Aquele que as religiões reveladas não souberam dizer. O segredo está além."

 

As visões são brancas, azuis, branco-vermelho-claras. Enfim são mistas e sempre claras, cor da chama de uma vela branca; vereis cintilações, sentireis um arrepio ao longo de todo o corpo, tudo isso anunciando o princípio da tração que a coisa exerce sobre aquele que executa a obra.

(Papus, Martines de Pasqually, Paris, Chamuel, 1895, p. 92)

 

Chegou a noite prometida. Como em Salvador, foi Aglié que nos veio buscar. A tenda onde se ia realizar a sessão, ou gira, era numa zona bastante central, se se pode falar de centro numa cidade que estende línguas de terra em meio às suas colinas, até lamber o mar, de modo que vista do alto, iluminada à noite, parece uma cabeleira manchada de alopecia escura.

"Lembrem-se, esta noite se trata de umbanda. A possessão não é feita por orixás mas pelos eguns, que são espíritos de mortos. E também por Exu, o Hermes africano que viram na Bahia, e pela sua companheira, a Pomba Gira. Exu é uma divindade ioruba, um demônio inclinado ao malefício e à brincadeira, mas existia um deus burlão também na mitologia ameríndia."

"E quem são os mortos?"

"São os pretos velhos e os caboclos. Os pretos velhos são velhos guias africanos que comandaram sua gente nos tempos da deportação, como o Rei do Congo ou o Pai Agostinho... São a lembrança de uma fase mitigada da escravatura, quando o negro não é mais um animal e está se tornando um amigo da família, um pai velho, um vovô. Os caboclos ao contrário são espíritos índios, talvez virgens, a pureza da selva originária. Na umbanda os orixás africanos permanecem ao fundo, já agora inteiramente sincretizados com os santos católicos, e apenas estas entidades intervêm. São eles que produzem o transe: um médium, o cavalo, a certo ponto da dança percebe ter sido penetrado por uma entidade superior e perde a consciência de si. Dança sem parar, até que a entidade ou divindade o tenha abandonado, quando sesentirá melhor, mais limpo, purificado."

"Benditos sejam", disse Amparo.

"Benditos, mesmo", disse Agliê. "Entram em contato com a terra-mãe. Esses fiéis foram desraigados, atirados no horrendo cadinho da cidade e, como dizia Spengler, o Ocidente mercantil, no momento da crise, se volta novamente para o mundo da terra."

Chegamos. De fora a tenda parecia um edifício comum: também aqui se entrava por um jardinzinho, mais modesto que o da Bahia, e diante da porta do barracão, uma espécie de armazém, encontramos a estatueta de Exu, já circundada pelas oferendas propiciatórias.

Enquanto entrávamos Amparo me puxou à parte: "Já compreendi tudo. Não sacou? Aquele tapir da conferência falava de uma época ariana, este fala do declínio do Ocidente, Blut und Boden, sangue e terra. é puro nazismo."

"Não é tão simples assim, meu bem, estamos em outro continente."

"Obrigada pela informação. A Grande Fraternidade Branca! Trouxe-nos aqui para comer o Deus de vocês."

"Isso são os católicos, amor, não é a mesma coisa."

"É a mesma coisa, não percebeu? Pitágoras, Dante, Maria Virgem e os maçons. Sempre para nos ludibriar. Faça a umbanda, não faça o amor."

"Agora a sincretizada é você. Vamos ver, anda. Isto também é cultura."

"Só há uma cultura: enforcar o último padre nas tripas do último Rosa-Cruz."

Agliê fez-nos sinal de entrar. Se o exterior era acanhado, lá dentro havia uma fogueira de cores violentas. Era uma sala quadrangular, com uma zona reservada à dança dos cavalos, o altar ao fundo, protegido por uma grade, para além da qual se erguia o palco dos tambores, os atabaques. O espaço ritual estava ainda desimpedido, enquanto do lado de fora da cancela já se agitava uma multidão compósita, fiéis, curiosos, brancos e pretos misturados, entre os quais se destacavam os médiuns e seus assistentes, os cambonos, vestidos de branco, alguns de pé no chão, outros calçados de tênis. O altar logo me chamou a atenção: pretos velhos, caboclos com penas multicores, santos que podiam parecer de pão de açúcar, não fosse por suas dimensões pantagruélicas, são Jorge com a couraça cintilante e o manto escarlate, os santos Cosme e Damião, uma Virgem trespassada de espadas, e um Cristo despudoradamente hiper-realista, com os braços abertos como o redentor do Corcovado, mas a cores. Faltavam os orixás, mas sua presença era notada nos rostos dos presentes, e no odor adocicado de cana e das comidas preparadas, na exalação de tantas respirações devidas ao calor e à excitação pela gira iminente.

Fez-se avante o pai-de-santo, que se sentou vizinho ao altar e acolheu alguns fiéis, e os hóspedes, perfumando-os com densas expirações de seu charuto, bendizendo-os e oferecendo-lhes uma taça de licor, como para um rápido rito eucarístico. Ajoelhei-me, juntamente com meus companheiros, e bebi: notei, ao ver um camhono verter o líquido de uma garrafa, que era Dubonnet, mas me empenhei em sorvê-lo como se fosse um elixir de longa vida. No palco os atabaques já começavam a ensaiar o ritmo, em batidas surdas, enquanto os iniciados estavam entoando um canto propiciatório a Exu, e a Pomba Gira: Seu Tranca-Ruas é Mojuba! É Mojuba!, é Mojuba! Sete Encruzilhadas é Mojuba! É Mojuba! é Mojuba! Seu Marabé é Mojuba! Seu Tiriri, é Mojuba! Exu Veludo, é Mojuba! A Pomba Gira é Mojuba!

Tiveram início as defumações, que o pai-de-santo fazia com um turíbulo, de forte odor a incenso indiano, com orações especiais a Oxalá e a Nossa Senhora.

Os atabaques aceleraram o ritmo, e os cavalos invadiram o espaço diante do altar começando a render-se ao fascínio dos pontos. A maior parte era constituída de mulheres, e Amparo aproveitou para ironizar sobre a fraqueza de seu sexo ("somos mais sensiveis, não é mesmo?").

Entre as mulheres havia mesmo algumas européias. Agliê indicou-nos uma loura, que era psicóloga alemã e há anos assistia aos ritos. Havia tentado tudo, mas quando não se é predisposto, ou predileto, é inútil: ela nunca entrava em transe. Dançava com os olhos perdidos no vazio enquanto os atabaques não davam tréguas nem aos seus nem aos nossos nervos, acres fumigações invadindo a sala, aturdindo praticantes e assistentes, revolvendo o estômago de todos, creio, mas garanto o meu. Mas isso me havia acontecido até mesmo nas escolas de samba no Rio, conhecia a potência psicagógica da música e do rumor, a mesma a que se submetem os nossos febricitantes do sábado à noite em suas discotecas. A alemã dançava com os olhos arregalados, como pedindo o oblívio com cada movimento de seus membros histéricos.

Com pouco mais outras filhas-de-santo caíam em êxtase, entortavam a cabeça para trás, agitavam-se aquóreas, navegavam num mar de deslembranças, e ela tensa, quase chorando, perturbada, como se estivesse procurando desesperadamente atingir o orgasmo, e se agita, e se empenha, e não descarrega os seus humores. Procurava perder o controle e o reencontrava a cada instante, pobre teutã enfermiça de cravos bem temperados.

Os eleitos entrementes realizavam seu salto no vazio, o olhar se tornava átono, os membros se enrijeciam, os movimentos se faziam cada vez mais automáticos, mas não casuais, porque revelavam a natureza da entidade que os visitava: alguns suaves, com as mãos que se moviam de lado com as palmas para baixo, como se estivessem nadando, outros curvos e com movimentos lentos, e os cambonos recobriam com o pano de linho branco, para subtraí-los à visão dos assistentes, aqueles tocados por um espírito excelso...

Alguns cavalos sacudiam violentamente o corpo e os invadidos pelos pretos velhos emitiam sons surdos - hum hum hum - movendo-se com o corpo inclinado para a frente, como um velho que se apoiasse a um bastão, esticando a maxila, assumindo fisionomias ossudas e desdentadas. Os possuidos pelos caboclos emitiam ao contrário gritos estridentes de guerreiros - hiahou!! - e os cambonos se esforçavam por segurar aqueles que não agüentavam a violência do dom.

Os tambores batiam, os pontos se elevavam no ar espesso de fumo. Eu estava de braço com Amparo, quando a certo ponto senti que suas mãos transpiravam, o corpo tremia, os lábios se entreabriam. "Não me sinto bem", disse ela, "quero ir embora."

Agliè percebeu o que se passava e ajudou-me a tirá-la dali. Respirando o ar livre da noite, se refez. "Não é nada", disse, "devo ter comido alguma coisa que não me fez bem. Depois, aquele calor, aqueles perfumes...

"Não", disse o pai-de-santo que nos havia seguido, "é que ela tem qualidades mediúnicas e reagiu bem aos pontos, eu estava observando."

"Chega!" gritou Amparo, e acrescentou uma palavra qualquer de uma língua que eu não conhecia. Vi o pai-de-santo empalidecer, ou acinzentar, como se dizia nos romances de aventura quando eram os pretos que empalideciam. "Chega, sinto náuseas, comi alguma coisa que não devia... Por favor, deixem-me aqui tomando um pouco de ar, e voltem. Prefiro ficar sozinha, não sou nenhuma inválida."

Fizemos-lhe a vontade, mas ao regressar, depois daquela interrupção ao ar livre, os perfumes, os tambores, o suor já agora invasivo que impregnava todos os corpos, o próprio ar viciado, agiram sobre mim como um sorvo de álcool sobre alguém que voltasse a beber depois de longa abstinência. Passei a mão pela testa, e um velho me ofereceu um agogô, pequeno instrumento dourado, parecido com o triângulo mas de campânulas sobre as quais se bate com um bastão. "Sobe no palco", disse-me ele, "toca, vai te fazer bem."

Havia uma sabedoria homeopática naquele conselho. Eu batia o agogô, procurando adequar-me ao ritmo dos tambores, e aos poucos ia fazendo parte do evento, e participando passei a dominá-lo, desafogando minhas tensões com movimentos das pernas e dos pés, libertando-me do todo que me circundava, provocando-o ou encorajando-o. Mais tarde Agliè me falaria da diferença entre aquele que conhece e o que suporta.

À medida que os médiuns se recuperavam do transe, os cambonos os conduziam para a beira do salão, faziam-nos sentar, ofereciam-lhes charutos e cachimbos. Os fiéis excluidos do processo corriam a se ajoelhar aos pés deles, falavam-lhes ao ouvido, escutavam seus conselhos, recebiam seus influxos benéficos, se desfaziam em confissões, deles obtinham alivio. Alguns davam mostras de um início de transe, que os cambonos encorajavam com moderação, reconduzindo-os depois de novo à multidão, já agora mais dispersa.

Na área dos dançarmos moviam-se ainda muitos candidatos ao êxtase. A alemã agitava-se sem naturalidade à espera de ser tomada pelas forças naturais, mas em vão. Alguns tinham sido possuidos por Exu e exibiam uma expressão perversa, traiçoeira, astuta, avançando aos pulos desarticulados.

Foi então que vi Amparo.

Agora sei que Hesed não é apenas a sefirah da graça e do amor.

Como recordava Diotallevi, é também o momento da expansão da substância divina que se difunde para a sua periferia infinita. É cuidado dos vivos em relação aos mortos, mas alguém deve ter dito que é também cuidado dos mortos para com os vivos.

Eu, batendo o agogô, não mais acompanhava o que acontecia na sala, empenhado que estava em articular meu controle e em deixar-me guiar pela música. Amparo devia ter voltado ao terreiro há pouco tempo, e certamente provara o mesmo estranho efeito que me invadira a principio. Não lhe tinham dado um agogô, ou quem sabe também não o quisesse. Chamada por vozes profundas, havia-se despojado de qualquer vontade de defesa.

Vi-a arrojar-se de um golpe em meio à dança, parar com o rosto anormalmente tenso voltado para o alto, o pescoço quase rígido, depois abandonar-se desmemoriada numa sarabanda lasciva, com as mãos acenando ao oferecimento do próprio corpo. "A Pomba Gira, a Pomba Gira!" gritavam alguns alegres com o milagre, porque naquela noite a deusa-demônio ainda não se havia manifestado: O seu manto é de veludo, rebordado todo em ouro, o seu garfo é de prata, muito grande é seu tesouro... Pomba Gira das Almas, vem toma cho cho...

Não ousei intervir. Talvez tenha acelerado as batidas de meu bastão de metal para unir-me carnalmente com aquela mulher que era minha, ou ao espírito ctônio que ela encarnava.

Os cambonos tomaram conta dela, fizeram-na envergar as vestes rituais, sustiveram-na enquanto terminava seu transe, breve mas intenso. Acompanharam-na a sentar-se quando já estava agora banhada de suor e respirava com afã. Recusou-se a acolher aqueles que se aproximavam mendigando oráculos, e se pôs a chorar.

A gira chegava a termo, abandonei o palco e corri para ela, que já tinha Aglié a seu lado, e lhe massageava levemente as têmporas.

"Que vergonha", dizia Amparo, "não creio nisto, não queria, como é que pode?"

"Isto acontece, acontece", lhe dizia Agliê com ternura.

"Mas agora não tem perdão", chorava Amparo, "continuo sendo escrava. Sai da minha frente", disse-me com raiva, "sou uma porca e miserável escrava negra, que precisa de um senhor, porque mereço!"

"Isto acontecia até com os louros aqueus", confortava-a Agliè.

"É a natureza humana...”

Amparo pediu para ir ao banheiro. O rito estava terminando. Sozinha no meio da sala a alemã dançava ainda, depois de haver acompanhado com olhar invejoso o que ocorrera a Amparo. Mas agora se movia com obstinação dissuadida.

Amparo voltou poucos minutos depois, enquanto nós já nos despedíamos do pai-de-santo, que se alegrava com o esplêndido sucesso de nosso primeiro contato com o mundo dos mortos.

Agliè guiou em silêncio pela noite agora alta, e despediu-se de nós com um aceno de cabeça ao chegarmos em frente à nossa casa. Amparo disse que preferia ficar sozinha. "Por que você não vai dar uma andada", me disse, "e volta quando eu já tiver dormido. Vou tomar um comprimido. Peço desculpa a ambos. Volto a dizer, devo ter comido alguma coisa que me fez mal. Odeio o meu país. Boa noite."

Agliè compreendeu meu embaraço e me convidou a irmos a um bar de Copacabana, que ficava aberto a noite toda.

Eu estava calado. Aglié esperou que começasse a saborear minha batida, rompendo depois o silêncio, e o embaraço.

"A raça, ou a cultura, se prefere, constituem parte do nosso inconsciente. E outra parte é habitada por figuras arquetípicas, iguais para todos os homens e para todos os séculos. Esta noite o clima, o ambiente, relaxaram a vigilância de todos nós, o senhor sentiu por si próprio. Amparo descobriu que os orixás, que acreditava ter destruído em seu coração, habitavam ainda no seu ventre. Não creia que julgue isto um fato positivo. O senhor me ouviu falar a respeito dessas energias supranaturais que vibram em torno de nós neste país. Mas não creia que veja com particular simpatia a prática da possessão. Não é a mesma coisa ser um iniciado e ser um místico. A iniciação, a compreensão intuitiva dos mistérios que a razão não consegue explicar, é um processo abissal, uma lenta transformação do espírito e do corpo, que pode conduzir ao exercício de qualidades superiores e até mesmo à conquista da imortalidade, mas é algo de íntimo, de secreto. Não se manifesta exteriormente, é pudica, e sobretudo feita de lucidez e de exclusão. Por isso os Senhores do Mundo são iniciados, mas não tratam com indulgência a mística. O místico é para eles um escravo, o centro de manifestação do numinoso, através do qual se espreitam os sintomas de um segredo. O iniciado encoraja o místico, serve-se dele como o senhor se serve de um telefone, para estabelecer contatos a distância, como o químico se serve do cartão de tornassol, para saber que em um lugar qualquer uma determinada substância atua. O místico é útil, porque é teatral, se exibe. Os iniciados ao contrário só se reconhecem entre si. O iniciado controla as forças que o misthzo suporta. Neste sentido não há diferença entre a possessão dos cavalos e os êxtases de Santa Teresa de Ávila ou de San.luan de la Cruz. O misticismo é uma forma degradada de contato com o divino. A iniciação é fruto de uma longa ascese da mente e do coração. O misticismo é um fenômeno democrático, se não demagógico, e a iniciação é aristocrática."

"Um fato mental e não carnal?"

"De certo modo, sim. A sua Amparo vigiava ferozmente a sua mente e não cuidou de seu próprio corpo. O leigo é mais fraco do que nós."

já era muito tarde. Agliê me informou que estava deixando o Brasil. Deu-me seu endereço em Milão.

Voltei para casa e encontrei Amparo adormecida. Estendi-me em silêncio a seu lado, no escuro, e passei a noite insone. Parecia-me ter ao lado um ser desconhecido.

Na manhã seguinte Amparo me disse, seca, que iria a Petrópolis visitar uma amiga. Despedimo-nos meio sem graça.

Partiu, com uma bolsa de pano, e um volume de economia política embaixo do braço.

Durante dois meses não me deu notícias, e não a procurei. Depois me escreveu uma cartinha curta, muito evasiva. Dizia que estava precisando de um tempo, para refletir. Não lhe respondi.

Não senti paixão, ciúmes, nem saudade. Sentia-me vazio, mas lúcido, limpo, límpido, como uma panela de alumínio.

Fiquei um ano ainda no Brasil, mas sentindo-me sempre a ponto de partir. Não vi mais Agliè, nem mais os amigos de Amparo, passava horas sem conta na praia apanhando sol.

Soltava pipas, que no Brasil são belíssimas.

 

GEBURAH

Beydelus, Demneymes, Adulex, Metucgayn, Atine, Ffex, Uquizuz, Gadix, Sol, Veni cito cum tuis spiritibus.

(Picatrix, Ms. Sloane 1305, 152, verso)

 

A Ruptura dos Vasos. Diotallevi nos havia falado amiúde do tardio cabalismo de Isaac Luria, no qual se perdia a ordenada articulação das sefirot. A criação, dizia, é um processo de inspiração e expiração divina, como um hálito ansioso ou a ação de um fole.

"A Grande Asma de Deus", gozava Belbo.

"Experimenta criar do nada. É uma coisa que se faz uma única vez na vida. Deus, para soprar o mundo como se sopra uma ampola de vidro, teve necessidade de contrair-se em si mesmo, para tomar fôlego e depois emitir o longo sibilo luminoso das dez sefirot."

"Sibilo ou luz?"

"Deus soprou e fez-se a luz."

"Multimidia."

"Mas é necessário que as luzes das sefirot sejam recolhidas em recipientes capazes de resistir ao seu esplendor. Os vasos destinados a acolher Keter, Hokmah e Binah resistiram ao seu fulgor, enquanto nas sefirot inferiores, de Hesed a Jesod, a luz e o suspiro emanaram de um só jato e com tanta força que os vasos se despedaçaram. Os fragmentos da luz se dispersaram pelo universo, deles nascendo a matéria ordinária."

A ruptura dos vasos é uma catástrofe séria, dizia Diotallevi preocupado, nada é menos vivível do que um mundo abortado. Devia haver um defeito no cosmo desde as origens, que nem mesmo os rabinos mais cultos tinham sido capazes de explicar de todo. Pode ser que no momento em que Deus espira e se esvazia, permaneçam no recipiente originário algumas gotas de óleo, um resíduo material qualquer, o reshimu, e Deus já se propaga juntamente com esse resíduo. Ou talvez em alguma parte as conchas, as qelippot, os príncipes da ruína, esperavam sorrateiros à tocaia.

"Gente asquerosa essas qelippot", dizia Belbo, "agentes do diabólico Dr. Fu Manchu... E depois?"

Depois, explicava Diotallevi paciente, à lüz do Juízo Severo, de Geburah, dita igualmente Pachad, ou Terror, a sefirah onde segundo lsaac o Cego o Mal se exibe, as conchas assumem uma existência real.

"Logo estão entre nós", dizia Belbo.

"Olhem em torno", dizia Diotallevi.

"Mas sai-se delas?"

"Nelas reentramos, de preferência", dizia Diotallevi. "Tudo emana de Deus, na contração do tsimtsum. Nosso problema é realizar o tiqqun, o retorno, a reintegração de Adam Qadmon. Então reconstruiríamos o todo na estrutura equilibrada dos partsufim, os rostos, ou melhor, as formas que tomam o lugar das sefirot. A ascensão da alma é como um cordão de seda que permite à intenção devota encontrar tateando, na obscuridade, o caminho em direção à luz. É assim que a cada instante o mundo, combinando as letras da Torah, se esforça por retornar à forma natural que o faça sair de sua horrenda confusão."

E assim estou fazendo eu, agora, em plena noite, na calma inatural destas colinas. Mas naquela noite no periscópio eu ainda me encontrava impregnado da baba viscosa das conchas, que percebia a meu redor, lesmas imperceptíveis incrustadas nas redomas de cristal do Conservatório, confundidas entre barômetros e rodas enferrujadas de relógios em surda hibernação. Pensava que, se houve a ruptura dos vasos, a primeira rachadura se formou talvez naquela noite no Rio durante o rito, mas que a explosão se deu quando voltei à pátria. Lenta, sem fragor, como se nos encontrássemos todos presos na vasa da matéria grosseira, onde criaturas verminosas surgem por geração espontânea.

Eu tinha voltado do Brasil sem saber mais quem era. Estava agora aproximando-me dos trinta anos. Naquela idade, meu pai já era pai, sabia quem era e onde vivia.

Estivera distante de meu país, no momento em que nele aconteciam grandes fatos, e tinha vivido num universo cheio de absurdos, onde até mesmo os acontecimentos italianos chegavam aureolados de lenda. Pouco antes de deixar o outro hemisfério, enquanto concluía minha permanência aí concedendo-me uma viagem aérea sobre a Amazônia, caiu-me entre as mãos um jornal brasileiro, embarcado durante um pouso em Fortaleza. Na primeira página destaca-se a foto de alguém que conhecia, por tê-lo visto tomando seus aperitivos anos e anos no Pílades. A legenda dizia: "O homem que matou Moro."

Naturalmente, como soube ao meu retorno, não fora ele quem havia matado Moro. Se posto diante de uma pistola carregada seria capaz de disparar no ouvido para ver se estava funcionando. Estava simplesmente presente quando a Digos*

 

* A polícia política. (N. do T.)

 

fez uma irrupção num apartamento onde alguém havia escondido três pistolas e dois pacotes de explosivos embaixo da cama. Ele estava em cima da cama superior, estático, porque era o único móvel daquele cubículo que um grupo de ex-combatentes de sessenta e oito havia alugado em conjunto, para satisfazer as necessidades da carne. Se não estivesse decorado unicamente com um manifesto dos Inti Illimani, podia ser considerado uma garçonniére. Mas um dos locatários estava ligado a um grupo armado, e os outros não sabiam que lhe estavam financiando o esconderijo. Assim acabaram todos presos, por um ano.

Eu sabia muito pouca coisa da Itália desses últimos tempos. Deixara-a às vésperas de grandes mutações, quase sentindo-me culpado por haver fugido no momento do acerto de contas. Quando parti sabia reconhecer a ideologia de qualquer um pelo tom da voz, a construção da frase, as citações canônicas. Ao tornar já não sabia quem estava com quem. Não se falava mais de revolução, citava-se Desidério, quem fosse de esquerda mencionava Nietzsche e Céline, as revistas de direita celebravam a revolução do Terceiro Mundo.

Voltei ao Pílades e me senti em terra estranha. O bilhar continuava, lá estavam praticamente os mesmos pintores, mas a fauna jovem havia mudado. Soube que alguns antigos clientes haviam agora aberto cursos de meditação transcendental e restaurantes macrobióticos. Perguntei se alguém já havia aberto uma tenda de umbanda. Não, talvez eu fosse pioneiro, por ter adquirido conhecimentos inéditos. Para agradar o núcleo histórico, Pílades instalara agora um flipper de modelo antigo, daqueles então copiados no Liechtenstein e adquiridos em massa pelos antiquários. Mas ao lado, onde os mais jovens se reuniam, estavam alinhadas outras máquinas de painéis fluotescentes, onde plainavam em grande quantidade formações de abutres rebitados, os camicases do Espaço Sideral, ou uma rã saltava adoidada emitindo borborigmos em japonês. O Pílades era agora um lampejar de luzes sinistras, e talvez diante do painel das Galácticas tivessem passado mesmo os correios das Brigadas Vermelhas em missão de recrutamento. Mas certamente tiveram que abandonar o flipper pois não se pode jogar tendo um revólver à cinta.

Dei-me conta disto quando segui o olhar de Belbo que se fixava sobre Lorenza Pellegrini. Compreendi de maneira imprecisa o que Belbo havia compreendido com maior lucidez, e que encontrei em um de seus files. Lorenza não é aí mencionada, mas é óbvio que se tratasse dela: só ela jogava flipper daquela maneira.

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filename: Flipper

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Não se joga flipper só com as mãos mas também com o púbis. O problema do flipper não está apenas em impedir que a bolinha se precipite no buraco, nem em fazer com que ela seja devolvida ao meio de campo com a perícia de um lateral da defesa, mas ainda em obrigá-la a se manter no alto, onde os alvos luminosos são mais abundantes, ricocheteando de um lado para o outro, revolteando-se descompassada e demente, mas por vontade própria. E consegue-se isto não impondo golpes à bola, mas transmitindo vibrações à caixa portante, de maneira delicada, para que o flipper não perceba e não vá em tilt. Pode-se fazê-lo só com o púbis, ou também com um jogo de cintura, de modo que o púbis em vez de bater apenas roce, e se permaneça sempre aquém do orgasmo. E mais que o púbis, se a anca se move segundo a natureza, são os glúteos que dão o impulso avante, mas com graça, de modo que quando este chega ao púbis já está amortecido, como na homeopatia em que, quanto mais se agita a solução, e quanto mais a substância fica dissolvida na água que se acrescenta pouco a pouco, quase a fazê-la desaparecer de todo, tanto mais potente será o efeito medicamentoso. E eis que do púbis uma corrente infinitesimal se transmite à caixa e o flipper obedece sem neurotizar-se, a bolinha desliza contra a natureza, contra a inércia, contra a gravidade, contra as leis da dinâmica, contra a astúcia do construtor que a projetou para ser fugaz, e se inebria de vis movendi, permanecendo em jogo por tempos memoráveis e imemoriais. Mas requer-se um púbis feminino, que não interponha corpos cavernosos entre o íleo e a máquina, e não haja ali no meio matéria eréctil, mas só pele nervos ossos, enfaixados num par de jeans, e um furor erótico sublimado, uma frigidez maliciosa, uma desinteressada adaptabilidade à sensibilidade do partner, um gosto de excitar o desejo sem sofrer o excesso do próprio: a amazona deve fazer o flipper enlouquecer e deleitar-se antecipadamente com a certeza de que depois o abandonará.

 

Creio que Belbo se apaixonou por Lorenza Pellegrini naquele exato momento, quando percebeu que ela poderia prometer-lhe uma felicidade inalcançável. Mas creio que através dela começasse a perceber o caráter erótico do universo mecânico, a máquina como metáfora do corpo cósmico, o jogo automático como evocação talismânica. Já estava se drogando com o Abulafia e talvez já tivesse penetrado no espírito do projeto Hermes. Certamente já havia visto o Pêndulo. Lorenza Pellegrini, não sei por que curto-circuito, lhe prometia o Pêndulo.

Nos primeiros tempos tive certa dificuldade em readaptar-me ao Pílades. A pouco e pouco, e não por ir lá todas as noites, redescobria entre a selva de rostos estranhos alguns, familiares, de sobreviventes, mesmo se enevoados pelo esforço do reconhecimento: este copywriter numa agência de publicidade, aquele numa consultoria fiscal, outro vendedor de livros a prestações - mas se a princípio colocavam as obras do Che, agora ofereciam livros de herbanária, budismo, astrologia. Voltei a vê-los, um pouco blesos, já com alguns fios de cabelos brancos, um copo de uísque na mão, e me pareceu que fosse a mesma bebida de dez anos antes, que estivessem a degustar com lentidão uma gota por semestre.

"Por onde andas, por que não o temos visto mais conosco?" perguntou-me um deles.

"Mas quem são vocês agora?"

Olhou-me como se eu estivesse ausente há cem anos: "Quero dia turma aqui do ministério da cultura, então?"

Havia perdido por demais o compasso.

Resolvi inventar um trabalho. Dei-me conta de que sabia muitas coisas, todas desconexas entre si, mas que estava em grau de conectá-las em poucas horas com algumas visitas à biblioteca. Estava certo de que era preciso arranjar uma teoria, e não me agradava o fato de não tê-la. Ora bastava ter idéias, todos estavam ávidos delas, e tanto melhor se não fossem atuais. Até mesmo na universidade, onde voltei a pôr os pés para ver se podia ali arranjar alguma coisa. As aulas transcorriam em calma, os estudantes deslizavam pelos corredores como fantasmas, trocando entre si bibliografias malfeitas. Eu sabia fazer uma boa bibliografia.

Um dia um estudante, tomando-me por docente (os professores tinham então quase a mesma idade dos alunos, ou vice-versa) perguntou-me o que havia escrito esse tal de Lord Chandos de quem tanto se falava num curso sobre as crises cíclicas da economia. Disse-lhe que era um personagem de Hofmannsthal, não um economista.

Naquela mesma noite fui à festa de uns velhos amigos e lá reconheci um deles que trabalhava numa editora. Passou a trabalhar ali depois que a casa parou de publicar romances de colaboracionistas franceses para se dedicar a textos políticos albaneses. Descobri que se fazia ainda editoria política, mas na área governamental. Mas não desprezavam algum bom livro de filosofia. Levado ao clássico, esclareceu.

"A propósito", me disse, "você que é um filósofo...”

"Obrigado, mas ainda não."

"Que é isso, você era um daqueles que sabia tudo em nosso tempo. Hoje estava revendo a tradução de um texto sobre a crise do marxismo, e encontrei a citação de um tal Anselm of Canterbury. Sabe quem é? Não encontrei nem mesmo no Dicionário de Autores." Disse-lhe que se tratava de Anselmo d’Aosta, só que os ingleses o chamavam assim porque gostam sempre de ser diferentes dos outros.

Tive uma iluminação: estava ali o emprego. Resolvi montar uma agência de informações culturais.

Uma espécie assim de detetives do saber. Em vez de ficar de nariz enfiado nos bares e bordéis, devia andar pelas livrarias, bibliotecas, corredores de institutos universitários. Depois, permanecer no escritório, com os pés sobre a mesa e um copo de papel com uísque que trazia num saco do mercado da esquina. Alguém telefona e diz: "Estou traduzindo um livro e dei com um Certo - ou certos - Motocallemin. Não consigo saber que é."

Também não sabes, mas não importa, pedes dois dias de prazo. Vais consultar alguns fichários na biblioteca, ofereces um cigarro ao encarregado da seção de consultas, consegues uma pista. A noite convidas um assistente de islamística ao bar, pagas-lhe uma ou duas cervejas, isso afrouxa o controle, ele te dá as informações que procuras, tudo de graça. Aí telefonas ao cliente: "Ouve lá, os Motocallemin eram teólogos radicais muçulmanos dos tempos de Avicena, que diziam ser o mundo, como direi, uma poeirinha de merda, e se coagulou em formas só por um ato instantâneo e provisório da vontade divina. Bastava Deus se distrair por um momento para que o universo caísse em pedaços. Pura anarquia de átomos sem sentido. Satisfeito? Trabalhei nisso três dias, veja só."

Tive a sorte de encontrar duas salas e uma kitchenette num velho edifício da periferia, que devia ter sido uma fábrica, agora com uma ala para escritórios. As salas que tinham sido aí adaptadas davam todas para um longo corredor: eu estava entre uma agência imobiliária e o laboratório de um empalhador de animais (A. Salon - Taxidermista). Parecia estar num arranha-céu americano dos anos trinta, bastava ter a porta de vidro para me sentir um novo Marlowe. Coloquei um sofá-cama na segunda sala, e o escritório na entrada. Dispus em duas prateleiras atlas, enciclopédias, catálogos que ia adquirindo aos poucos. A princípio é preciso fazer uns pactos com a consciência e escrever até mesmo teses para estudantes desesperados. Não era difícil, bastava copiar aquelas do decênio precedente. Depois, alguns editores amigos me mandavam livros estrangeiros para ler e opinar, naturalmente os mais desagradáveis e por insignificante remuneração.

Mas acumulava experiências, noções, e não punha nada fora. Fichava tudo. Não pensava ainda ter as fichas no computador (estavam acabando de entrar no comércio, e Belbo seria um pioneiro), procedia com métodos artesanais, criando uma espécie de memória feita de cartõezinhos de papelão fino, com remissões recíprocas. Kant..., nebulosa... Laplace, Kant... Koenigsberg..., os sete pontos de Koenigsberg... teoremas da topologia... Um pouco como aquele jogo que nos desafia a ir de salsicha a Platão em cinco passagens, por associação de idéias. Assim: salsicha-porco-cerda-pincel-maneirismo-Idéia-Platão. Fácil. Mesmo o original mais minguado me fazia ganhar umas vinte fichinhas para a minha corrente de santo Antônio. O critério era rigoroso, e creio que seja o mesmo seguido pelos serviços secretos: não há informações melhores do que as outras, a vantagem está em se ficharem todas e depois procurar as conexões. As conexões existem sempre, basta querer encontrá-las.

Após dois anos de trabalho estava satisfeito comigo mesmo. Divertia-me. E entrementes encontrara Lia.

 

Saiba quem for que o nome meu demanda:

chamo-me Lia, e vou movendo em torno

as mãos com que farei uma guirlanda.

(Purgatorio, XXVII, 100-102)

 

Lia. Agora que não tenho esperanças de revê-la, penso que podia não a ter nunca encontrado, o que teria sido ainda pior. Quisera que estivesse aqui, a segurar-me a mão, enquanto reconstruo as etapas de minha ruína. Porque ela me havia prevenido. Mas é melhor que permaneça fora desta história, ela e a criança. Espero que retardem sua volta, que cheguem quando tudo esteja terminado, seja lá como venha a terminar.

Era a 16 de julho de 1981. Milão estava ficando despovoada, as salas de consultas das bibliotecas viviam quase vazias.

"Espera que o tomo 109 eu estava consultando."

"E por que o deixou aqui na estante?"

"É que fui à mesa verificar uma anotação."

"Isso não é desculpa."

Saiu arrogante em direção à mesa carregando o tomo. Sentei-me à sua frente, procurando distinguir-lhe o rosto.

"Como consegue ler, se não está em Braille?" perguntei-lhe.

Tinha levantado a cabeça, e na verdade eu não sabia ainda se era o rosto ou a nuca. "Que disse?" perguntou. "Ah, vejo perfeitamente através deles." Mas ao dizê-lo ergueu o tufo de cabelos, e vi que tinha olhos verdes.

"Você tem olhos verdes", disse-lhe.

"Que mal tem isso?"

"Ora. Antes pelo contrário."

E começou assim. "Come, que você está magro como um palito", disse-me ao jantar. Á meia-noite ainda estávamos no restaurante grego junto ao Pílades, com a vela quase liquefeita no gargalo da garrafa, a falar um para o outro de nossas vidas. Fazíamos quase a mesma coisa, ela revia verbetes de enciclopédia.

Tinha a impressão de que lhe devia dizer uma coisa. À meia-noite e meia se desfizera do tufo para me ver melhor e lhe apontei o indicador mantendo o polegar erguido e lhe fazendo: "Pim."

"É estranho", disse-me ela, "eu também."

Foi assim que nos tornamos carne da mesma carne, e a partir daquela noite fiquei sendo Pim para ela.

Não tínhamos condições de montar casa nova, eu dormia na casa dela, ela vinha ficar comigo quase sempre no escritório, ou partia à caça, pois era mais determinada do que eu para seguir as pistas, e sabia sugerir-me conexões preciosas.

"Parece que temos uma ficha quase virgem sobre os Rosa-Cruzes", me disse.

"Qualquer dia volto a trabalhar nela, são anotações que trouxe do Brasil...”

"Tá, vou só fazer uma remissão recíproca em Yeats."

"Que tem a ver Yeats com isto?"

"Acho que tem. Acabo de ler que ele era filiado a uma sociedade rosacruciana que se chamava Stella Matutina."

"O que eu faria sem você?"

Voltara a freqüentar o Pilades porque ali era uma bolsa de negócios, onde encontrava os comitentes.

Uma noite, reencontrei Belbo (nos anos precedentes deve ter vindo ali de raro em raro, e voltava agora depois de ter encontrado Lorenza Pellegrini). Sempre igual, talvez um pouco mais grisalho, emagrecera um pouco, mas não muito.

Foi um encontro cordial, nos limites de sua expansividade. Algumas referências sobre os velhos tempos, sóbrias reticências ao último evento de que tínhamos sido cúmplices e suas seqüelas epistolares. O comissário De Angelis não dera mais o ar de sua graça. Caso arquivado, quem sabe.

Falei-lhe de meu trabalho e mostrou-se interessado. "No fundo é aquilo que eu gostaria de fazer, uma espécie de Sam Spade da cultura, vinte dólares por dia mais despesas."

"Mas não vêm me procurar aquelas mulheres fascinantes e ninguém me fala do falcão maltês", disse-lhe.

"Nunca se sabe. Diverte-se?"

"Se me divirto?" perguntei-lhe. E, citando-o: "É a única coisa que sei fazer bem."

"Good for you", respondeu.

Vimo-nos de outras vezes, contei-lhe sobre minhas experiências brasileiras, mas achava-o sempre um tanto distraído, mais do que de hábito. Quando Lorenza Pellegrini não estava lá mantinha o olhar fixo na porta, quando estava movia-o com nervosismo pelo bar, seguindo-lhe os movimentos. Uma noite, quase à hora de fechar, disse-me olhando além: "Ouça, podemos precisar de seus serviços, mas não para consultas volantes. Poderia trabalhar conosco digamos algumas horas por semana à tarde."

"Podemos ver. De que se trata?"

"Uma empresa siderúrgica nos encomendou um livro sobre metais. Narrativa feita preferencialmente com imagens. Chegado ao popular, embora sério. Conhece o gênero: os metais na história da humanidade, da idade do ferro às ligas para astronaves. Precisamos de alguém para percorrer as bibliotecas e os arquivos à procura de belas imagens, velhas gravuras, ilustrações de livros do século passado, sei lá, sobre a fusão ou o pára-raios."

"Topo, passo amanhã por lá."

Veio se aproximando Lorenza Pellegrini. "Você me leva em casa?"

"Por que eu hoje?" perguntou Belbo.

"Porque você é o homem da minha vida."

Ficou vermelho, como só ele podia ficar, olhando agora ainda mais para além. Disse-lhe: "Há uma testemunha." E a mim: "Está ouvindo? Sou o homem de sua vida. Lorenza."

"Oi."

Ergueu-se e sussurrou-lhe alguma coisa ao ouvido.

"Que tem a ver?" disse ela. "Eu só pedi que você me levasse em casa de carro."

"Ah", disse ele. "Desculpe Casaubon, mas tenho que bancar aqui o chofer de táxi para a mulher da vida de não sei quem."

"Seu chato", disse ela com ternura, e beijou-o na face.

 

Seja-me permitido no entanto dar um conselho ao meu futuro ou presente leitor, para que seja realmente melancólico: não deve ler os sintomas ou prognósticos na parte que se segue, para não se ficar perturbado com eles, o que lhe poderia trazer mais mal do que bem, aplicando o que lê a si próprio..., como faz a maior parte dos melancólicos.

(R.Burton, Anatomy of Melancholy, Oxford, 1621, Introdução)

 

Era evidente que Belbo estava ligado de um modo qualquer a Lorenza Pellegrini. Não sabia era com que intensidade e desde quando. Nem mesmo os files do Abulafia me permitiram reconstituir o caso.

Por exemplo não está datado o file sobre o jantar com o Dr. Wagner. Belbo conhecia esse Dr. Wagner desde antes de minha partida, e continuou a relacionar-se com ele mesmo depois do início de minha colaboração com a Garamond, tanto que eu próprio uma vez o vi. Portanto esse jantar pode vir antes ou depois dessa noite que estou recordando. Se a precede, compreendo bem o embaraço de Belbo, seu contido desespero.

O Dr. Wagner - um austríaco que há muitos anos professava em Paris, donde a pronúncia "Vanhér" para aqueles que gostavam de fingir intimidade - há coisa de dez anos vinha sendo convidado regularmente a vir a Milão por dois grupos revolucionários dos anos logo após sessenta e oito. Ambos os grupos o disputavam, e naturalmente cada um apresentava uma versão radicalmente alternativa de suas idéias. Como e por que esse homem famoso aquiescia em ser patrocinado pelos extraparlamentares é algo que nunca compreendi. As teorias de Wagner não tinham cor política, por assim dizer, e se ele quisesse podia ser convidado pela universidade, pela associação médica, pela academia. Creio que aceitava o convite daqueles por ser substancialmente um epicurista, fazendo-se reembolsar de despesas principescas. As associações privadas podiam arrecadar juntas muito mais dinheiro que as instituições públicas, e para o Dr. Wagner isso significava viagem de primeira classe, hotel de luxo, mais honorários para as conferências e congressos, calculados segundo a sua tarifa de terapeuta.

O motivo pelo qual os dois grupos encontravam fonte de inspiração nas teorias de Wagner já é outra história. Mas naqueles anos a psicanálise de Wagner parecia bastante desconstrutiva, diagonal, libidinosa, não-cartesiana, capaz de sugerir oportunidades teóricas à atividade revolucionária.

Tornava-se difícil fazê-la digerir pelos operários, e talvez por isso os dois grupos, a certo ponto, foram obrigados a escolher entre estes e o Dr. Wagner, e escolheram Wagner. Elaborou-se a idéia de que o novo objeto revolucionário não era mais o operário e sim o desviante.

"Em vez de desviar os proletários melhor seria proletarizar os desviantes, o que é mais fácil, dado o preço do Dr. Wagner", disse-me um dia Belbo.

A revolução mais cara da história certamente foi essa dos wagnerianos.

A editora Garamond, financiada por um instituto de psicologia, tinha lançado a tradução de alguns de seus ensaios menores, muito técnicos, mas então esgotadíssimos, conseqüentemente muito requisitados por seus fiéis. Wagner tinha vindo a Milão para apresentá-los, e naquela oportunidade iniciara seu conhecimento com Belbo.

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filename: Doktor Wagner

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O diabólico doktor Wagner

Quem, naquela manhã cinzenta de...

 

No debate eu Lhe havia levantado uma objeção. O satânico ancião ficou certamente irritado com isso mas não deu a perceber. Pelo contrário respondeu como se estivesse querendo me aliciar.

Parecia Charlus com Jupien, a abelha e a flor. Um gênio não admite não ser amado e tem que seduzir imediatamente quem dele dissentiu, para que depois o ame. E conseguiu, amei-o.

Mas certamente não me havia perdoado, pois naquela noite do divórcio vibrou-me um golpe mortal. Sem sabê-lo, por instinto: sem saber havia buscado aliciar-me e sem saber resolveu me punir. A custa da deontologia psicanalisou-me de graça. O inconsciente morde até seus guardiães.

 

História do marquês de Lantenac em Noventa e Três. A nau dos vendeanos navega na tempestade ao largo das costas bretãs, quando um canhão se desprende de sua enchanfradura e à medida que a nau voga e balouça inicia uma corrida desesperada de um extremo ao outro, com aquela massa volumosa que é arrisca arrombar bombordo e estibordo. Um canhoneiro (ó deus, exatamente aquele por cuja incúria o canhão não estava preso como devia), com coragem sem igual, uma corrente na mão, atira-se quase sob a mole a ponto de estraçalhá-lo e a detém, reencravando-a e reconduzindo-a ao berço, com o que salva o barco, a equipagem e a missão. Com sublime liturgia, o terrível Lantenac faz com que os homens se enfileirem na ponte de comando, louva o corajoso, arranca do próprio pescoço uma alta condecoração, condecora-o, abraça-o, enquanto a chusma grita seus hurras para o céu.

Em seguida Lantenac, imperturbável, recorda que o herói foi também responsável pelo acidente e o manda fuzilar.

Esplêndido Lantenac, virtuoso, justo e incorruptível! E assim fez comigo o Dr. Wagner, honrou-me com sua amizade e matou-me dando-me a verdade

 

e me matou revelando-me o que de fato queria

 

e me revelou o que, querendo, temia.

 

História que começa em barezinhos. Necessidade de apaixonar-me.

Certas coisas a gente sente vir, não se apaixona porque se apaixona, a gente se apaixona porque se tem então uma desesperada necessidade de apaixonar-se. Nos períodos em que se sente vontade de apaixonar deve-se ter o cuidado de saber onde pôr os pés: como ter bebido um filtro, daqueles que fazem enamorar do primeiro que se encontra. Podia ter sido um ornitorrinco.

Porque sentia necessidade precisamente naquele período, quando havia pouco tinha deixado de beber. Relação entre o fígado e o coração. Sente-se bem.

 

O barzinho é aconchegante, furtivo. Permite uma espera longa e doce pelo dia inteiro, até que te vais esconder na penumbra de uma cadeira de couro, às seis da tarde não há ninguém, a sórdida clientela virá à noite, com o pianista. Escolhe um american bar equivoco vazio já ao fim da tarde, o garçom vem só se o chamas três vezes, e já traz pronto um outro martíni.

O martíni é essencial. Não o uísque, o martíni. O líquido é claro, ergues o cálice e a vês por trás da azeitona. Diferença entre olhar a amada através do coquetel de martíni em que o cálice triangular é pequeno demais e olhá-la através do gim-martíni on the rocks, copo grande, seu vulto se decompõe no cubismo transparente do gelo, o efeito se duplica se aproximas os dois copos cada qual com a fronte contra o frio dos copos e entre a fronte e a fronte os dois copos - com o cálice não podes.

A hora íntima do barzinho. Depois esperarás tremendo um outro dia. Não existe o recato da segurança.

 

Quem se enamora nos barezinhos não tem necessidade de uma mulher só para si. Alguém lhe empresta a dele e vice-versa.

 

A figura dele. Dava-lhe toda a liberdade, ela estava sempre em viagem. A suspeita liberalidade desse tipo: eu podia telefonar a qualquer hora da noite, ele estava e você não, ele me respondia que você estava ausente, e já que telefonou não sabe acaso onde ela está? Os únicos momentos de ciúme. Mas era também desse modo que eu arrancava Cecilia do tocador de saxofone. Amar ou acreditar que se ama como eterno sacerdote de uma antiga vendeta.

 

As coisas andavam complicadas com Sandra: aquela vez se dera conta de que a história me prendia demais, que a vida a dois se havia tornado bastante tensa. Devíamo-nos separar? Então separemo-nos. Não, espera, vamos discutir o assunto. Não, assim não podemos continuar. Em suma, o problema era Sandra.

Quando se anda pelos barezinhos o drama passional não é quem encontras mas quem deixas.

 

Aconteceu então o jantar com o Dr. Wagner. Na conferência já dera a um provocador uma definição da psicanálise: - La psychanalyse? C’est qu’entre l’homme et la femme... chers amis... ça ne colle pas.

Discutia-se sobre o casal, sobre o divórcio como ilusão da Lei. Oprimido pelos meus problemas participava da discussão com calor. Deixamo-nos arrastar por jogos dialéticos, falando enquanto Wagner se calava, esquecidos de que tínhamos à nossa frente um oráculo. E foi com ar absorto

 

e foi com ar fingido

 

e foi com melancólico desinteresse

 

e foi como se se inserisse na conversação argumentando fora do assunto que Wagner disse (procuro recordar suas palavras exatas, e porque me ficaram esculpidas na mente, impossível é que me engane): - Em toda a minha atividade nunca tive um paciente neurotizado pelo seu próprio divórcio. A causa do mal-estar era sempre o divórcio do Outro.

O Dr. Wagner, mesmo quando falava, dizia Outro com O maiúsculo. A verdade é que estremeci, como se picado por uma áspide

 

o visconde estremeceu como se picado por uma áspide

 

um suor gélido orvalhava-lhe a fronte

 

o barão fitava-o através das volutas indolentes da fumaça de seus delicados cigarros russos

 

- O senhor quer dizer, perguntei, que se entra em crise não por causa do divórcio do próprio parceiro mas pelo possível ou impossível divórcio da terceira pessoa que pôs em crise o casal de que se é cônjuge?

Wagner olhou-me com a perplexidade do leigo que encontra pela primeira vez uma pessoa mentalmente perturbada. Perguntou o que eu queria dizer.

Na verdade, fosse o que fosse que tivesse querido dizer, eu o tinha dito mal. Tratei de tornar concreto o meu raciocínio. Tomei da mesa a colher e coloquei-a ao lado do garfo: - Quero dizer, aqui estou eu, o Sr. Garfo, casado com ela, a Sra. Colher. E ali temos outro casal, ela a Sra. Faquinha casada com o Sr. Facão ou Mackie Messer. Ora eu Garfo creio sofrer porque devo abandonar a minha Colher, e não gostaria, pois amo a Faquinha mas acho melhor que ela permaneça com o Facão. Mas na verdade, é o senhor que me diz, Dr. Wagner, eu me Sinto mal porque a Faquinha não se separa do Facão. É assim?

Wagner, dirigindo-se a outro comensal, respondeu que nunca havia dito tal coisa.

— Como não disse? O senhor disse que nunca encontrou ninguém neurotizado pelo próprio divórcio mas sempre pelo divórcio do outro.

- É possível, não me lembro, disse então Wagner, contrafeito.

- E se o disse, não queria significar aquilo que entendi?

Wagner calou-se por alguns minutos.

 

Enquanto os comensais esperavam em suspenso sem poder engolir, Wagner fez sinal para que lhe servissem mais vinho, olhou com atenção o líquido contra a luz e por fim falou.

 

- Se o senhor compreendeu assim é porque queria compreender assim.

Em seguida voltou-se para outra parte, disse que estava calor, aludiu a uma ária de ópera lírica movendo um grissino*

 

* Biscoito comprido e fino. (N. do T.)

 

como se dirigisse uma orquestra distante, bocejou, concentrou-se sobre uma torta com creme, e por fim, após nova crise de mutismo, pediu que o levassem de volta para o hotel.

Os convidados olharam para mim como alguém que tivesse arruinado um simpósio do qual teriam podido sair Palavras definitivas.

 

Na verdade eu tinha ouvido falar a Verdade.

Telefonei para você. Estava em casa, e com o Outro. Passei uma noite insone. Tudo estava claro: eu não podia suportar que você estivesse com ele. Sandra nada tinha a ver com isto.

Seguiram-se seis meses dramáticos, em que fiquei ali em cima, grudado a você, para envenenar a sua convivência, dizendo-lhe que a queria toda para mim, e convencendo-a de que você odiava o Outro. Aí você começou a brigar com ele, o Outro foi ficando mais exigente, ciumento, não saía à noite, quando estava viajando telefonava duas vezes ao dia, e em plena noite. Uma vez esbofeteou-a. Você me pediu dinheiro porque queria fugir, raspei o pouco que tinha no banco. Você abandonou o tálamo, foi para a montanha com alguns amigos, sem deixar endereço. O Outro me telefonava desesperado perguntando se eu sabia onde você estava, eu não sabia, e parecia mentir a ele porque lhe dissera antes que você o havia deixado por minha causa.

Quando você voltou, comunicou-me radiosa que lhe havia escrito uma carta de despedida. Aí então me perguntou o que havia acontecido comigo e Sandra, mas você não me deu tempo de inquietar-me. Disse-me que havia conhecido um cara, com uma cicatriz no rosto e um apartamento muito errático. Que ia morar com ele. - Não gosta mais de mim? - Ao contrário, você é o único homem da minha vida, mas depois do que aconteceu preciso viver esta experiência, não bancar a pueril, você me compreende, acontece que abandonei meu marido por sua causa, é preciso dar tempo ao tempo.

- Dar tempo ao tempo? Mas está me dizendo que vai morar com Outro.

- Você é um intelectual, e intelectual de esquerda, não se comporte como um qualquer. Até breve.

Devo tudo ao Dr. Wagner.

 

Quem quiser refletir sobre estas quatro coisas, melhor seria que não tivesse nascido: o que está em cima, o que está embaixo, o que é antes e o que é depois.

(Talmud, Hagigah 2.1)

 

Dei as caras na Garamond exatamente na manhã em que estavam instalando o Abulafia, enquanto Belbo e Diotallevi se perdiam em sua diatribe sobre os nomes de Deus, e Gudrun observava desconfiada os homens que inseriam aquela nova e inquietante presença entre as pilhas, cada vez mais empoeiradas, de manuscritos.

"Sente-se, Casaubon, olhe aqui os projetos da nossa história dos metais." Quando ficamos a sós, Belbo me mostrou os índices, esboços de capítulos, esquemas de paginação. Eu devia ler os textos e procurar as ilustrações. Mencionei algumas bibliotecas milanesas que me pareciam bem fornidas.

"Não vai bastar", disse Belbo. "Vai ser preciso visitar outros lugares. Por exemplo no museu de ciências de Munique há uma fototeca maravilhosa. Depois em Paris temos o Conservatoire des Arts et Métiers. Gostaria de voltar lá, se tivesse tempo."

"Bacana?"

"Inquietante. O triunfo da máquina no interior de uma igreja gótica...” Hesitou, reordenou alguns papéis na mesa. Depois, como temeroso de dar excessiva importância à sua revelação: "Está lá o Pêndulo", disse.

"Que pêndulo?"

"O Pêndulo. O chamado pêndulo de Foucault."

Explicou-me o que era o Pêndulo, tal como o vi no sábado - e talvez no sábado o tenha visto assim porque Belbo me preparara a visão. Mas naquele momento não devo ter demonstrado muito entusiasmo, pois Belbo me olhou como a alguém que, diante da Capela Sistina, pergunta se é ali.

"Talvez seja por causa da igreja, mas eu lhe garanto que se experimenta uma sensação muito forte. A idéia de que tudo flui e só ali no alto existe o único ponto fixo do universo... Para quem não tem fé é um modo de reencontrar Deus, e sem pôr em xeque a própria descrença, pois se trata de um Pólo Nada. Sabe, para as pessoas da minha geração, que teve de engolir desilusões no almoço e no jantar, pode ser mesmo confortante."

"A minha engoliu ainda mais, de outras gerações."

"Presunçoso. Não, para vocês não passou de uma estação, cantaram a Carmanhola e logo já estavam na Vendéia. Passará rápido. Para nós a coisa foi diferente. Primeiro o fascismo, mesmo se passamos por ele quando éramos ainda rapazes, como um romance de aventuras, mas os destinos imortais eram um ponto indiscutível. Depois o ponto indiscutível foi a resistência, principalmente para aqueles como eu que a viram de fora, e dela fizeram um rito de vegetação, o retorno da primavera, um equinócio, ou um solstício, confundo sempre... Depois Deus para uns e a classe operária para outros, e ambos para muitos. Era consolador para um intelectual pensar que éramos o operário, bom, saudável, forte, pronto para refazer o mundo. Depois, vocês também acabaram vendo isto, o operário ainda existia, mas a classe não. Devem ter acabado com ela na Hungria. E aí vocês vieram. Para vocês talvez fosse natural, ou até mesmo uma festa. Para os da minha idade não, era o acerto de contas, o remorso, o arrependimento, a regeneração. Nós havíamos falhado e vocês chegavam para trazer o entusiasmo, a coragem, a autocrítica. Para nós que tínhamos trinta e cinco ou quarenta anos isso foi uma esperança, humilhante, mas esperança. Devíamo-nos tornar iguais a vocês, a custo de recomeçar do princípio. Não usávamos mais gravata, púnhamos de lado o trench coat para comprar japonas e túnicas militares usadas, alguém resolveu eliminar o trabalho para não ter que servir os patrões...”

Acendeu um cigarro e fez que fingia rancor, para desculpar seu desabafo.

"E vocês acabaram cedendo em todas as frentes. Nós, com nossas peregrinações penitenciais às catacumbas ardeatinas, *

 

* Local em que, durante a resistência, os alemães massacraram antifascistas e judeus. Belbo fala em sentido simbólico. (N do T.)

 

recusávamo-nos a inventar um slogan para a Coca-Cola, porque éramos anti-fascistas. Contentávamo-nos em trabalhar na Garamond por uma miséria porque o livro pelo menos era democrático. E vocês então, para se vingarem dos burgueses que não conseguiram enforcar, vendem-lhes videocassetes e revistas especializadas, os imbecilizam com o zeri e a manutenção da motocicleta. Impuseram-lhes a preço de subscrição o seu exemplar dos pensamentos de Mao e com as moedas obtidas foram comprar foguetes para as festas da nova criatividade. Sem se envergonharem. Nós passamos a vida a nos envergonhar. Vocês nos enganaram, não representavam nenhuma pureza, era apenas acne juvenil. Fizeram-nos sentir como vermes porque não tivemos coragem de enfrentar a polícia boliviana, e depois acabaram disparando nas costas dos desgraçados que passavam ao longo da rua. Há dez anos tivemos que mentir para arrancar vocês da prisão, e vocês mentiram para mandar para a prisão os seus amigos. Esta é a razão por que gosto desta máquina: é estúpida, não crê, não me faz acreditar, faz aquilo que lhe digo, estúpida ou estúpido que ela - ou ele - é. Um relacionamento honesto."

“Eu...”

"O amigo é um inocente. Fugiu em vez de atirar pedras, doutorou-se, não atirou em ninguém. No entanto a princípio eu que sentia chantageado até por você. Veja lá bem, nada de pessoal. Ciclos geracionais apenas. E quando vi o Pêndulo, no ano passado, acabei compreendendo tudo."

"Tudo o quê?"

"Quase tudo. Veja Casaubon, mesmo o Pêndulo é um falso profeta. Olha-se para ele, pensa-se que seja o único ponto fixo do cosmo, mas se o tiramos da abóbada do Conservatoire e o penduramos no teto de um bordel, ele funciona da mesma maneira. Há outros Pêndulos, um em New York no palácio da ONU, outro em San Francisco no museu da ciência, e quem sabe quantos mais. O pêndulo de Foucault está firme com a terra que gira embaixo dele em qualquer lugar onde se encontre. Qualquer ponto do universo é um ponto fixo, basta prender-se a ele o Pêndulo."

"Deus está em toda a parte?"

"Em certo sentido sim. Por isso o Pêndulo me perturba. Promete-me o infinito, mas deixa a mim a responsabilidade de decidir onde quero tê-lo. Assim não basta adorar o Pêndulo ali onde está, é preciso tomar de novo uma decisão, e procurar o melhor ponto. No entanto...”

"No entanto?"

"No entanto - não vai me levar de modo algum a sério, não é Casaubon? Não, posso estar tranqüilo, somos gente que não leva a sério... No entanto, dizia, a sensação é a de que na vida fomos fixando o Pêndulo em tantas partes, e ele nunca funcionou, ao passo que, no Conservatoire, funciona tão bem... E se no universo houvesse pontos privilegiados? Aqui no teto desta sala? Não, ninguém iria acreditar. Requer-se atmosfera. Não sei, talvez estejamos sempre buscando o ponto justo, talvez esteja bem próximo de nós, mas não o reconhecemos, e para reconhecê-lo seria necessário acreditar... Em suma, vamos lá ver o Sr. Garamond."

"A fixar o Pêndulo?"

"Oh tolice. Vamos tratar de coisas sérias. Para que eu possa pagar-lhe é preciso que o patrão o veja, toque, cheire, e diga que está bem. Venha ser ungido pelo patrão, seu toque cura a escrófula."

 

Mestre Secreto, Mestre Perfeito, Mestre por Curiosidade, Intendente dos Edifícios, Eleito dos Nove, Cavaleiro do Arco Real de Salomão ou Mestre do Nono Arco, Grande Escocês da Abóbada Sagrada, Cavaleiro do Oriente ou da Espada, Príncipe de Jerusalém, Cavaleiro do Oriente e do Ocidente, Príncipe Cavaleiro de Rosa-Cruz e Cavaleiro da Águia e do Pelicano, Grande Pontífice ou Sublime Escocês da Jerusalém Celeste, Venerável Grão-Mestre de Todas as Lojas ad vitam, Cavaleiro Prussiano e Patriarca Noaquita, Cavaleiro da Acha Real ou Príncipe do Líbano, Príncipe do Tabernáculo, Cavaleiro da Serpente de Cobre, Príncipe de Compaixão ou de Graça, Grande Comendador do Templo, Cavaleiro do Sol ou Principe Adepto, Cavaleiro de Santo André da Escócia ou Grão-Mestre da Luz, Cavaleiro Grã-Eleito Kadosh e Cavaleiro da Aguia Branca e Negra.

(Altos graus da Maçonaria de Rito Escocês Antigo e Aceito)

 

Percorremos o corredor, subimos três lances de escadas, e passamos através de uma porta de vidro esmerilhado. De súbito entramos em outro universo. Se as salas que tínhamos visto até então eram escuras, empoeiradas, repletas, estas pareciam a saleta vip de um aeroporto. Música ambiental, paredes azuis, uma sala de espera confortável com móveis assinados, as paredes adornadas de fotografias nas quais se entreviam senhores com cara de deputado que faziam entrega de uma vitória alada a senhores com cara de senador. Sobre uma mesinha, atiradas com desenvoltura, como na saleta de um dentista, algumas revistas de capa acetinada, A Argúcia Literária, O Atanor Poético, A Rosa e o Espinho, Parnaso Enótrio, O Verso Livre. Nunca as vira em circulação, e depois soube por quê: eram difundidas apenas entre os clientes da Manuzio.

Se a principio tinha achado que entrara na zona diretiva da Garamond, tive logo que mudar de opinião. Estávamos nos escritórios de outra editora. Havia no átrio da Garamond uma vitrinazinha escura e embaciada, com os últimos livros publicados, mas os livros da Garamond eram modestos, com as folhas ainda por cortar e uma capazinha sóbria e acinzentada - deviam lembrar as publicações universitárias francesas, com aquele papel que com pouco tempo amarelava, de modo a sugerir que o autor, principalmente se jovem, o tivesse publicado há muitos anos. Já aqui havia outra vitrine, iluminada interiormente, que exibia os livros da Manuzio, alguns abertos em páginas significativas: capa branca, leve, recoberta de plástico transparente, muito elegante, e um papel tipo arroz com belos caracteres nítidos.

As coleções da Garamond tinham nomes sérios e meditativos, como Estudos Humanísticos ou Philosophia. As coleções da Manuzio tinham nomes delicados e poéticos: A Flor que não Colhi (poesia), A Terra Incógnita (narrativa), A Hora do Oleandro (acolhia títulos do tipo Diário de uma Jovem Enferma), A Ilha de Páscoa (me parecia de ensaios variados), Nova Atlântida (a última obra publicada era Koenigsberg Redimida - Prolegômenos a toda metafísica futura que se apresente como duplo sistema transcendental e ciência do número fenomenal). Sobre todas as capas, o emblema da casa, um pelicano em cima de uma palmeira, com a legenda "tenho o que dou".

Belbo foi vago e sintético: o Sr. Garamond possuía duas casas editoras, eis tudo. Nos dias seguintes dei-me conta de que a passagem entre a Garamond e a Manuzio era de todo privativa e confidencial. Na verdade a entrada oficial da Manuzio pela via Marchese Gualdi e na via Gualdi o universo poeirento da via Sincero Renato dava lugar a fachadas impecáveis, degraus espaçosos, entrada com elevadores de alumínio. Ninguém teria suspeitado que um apartamento de um velho prédio da via Sincero Renato se comunicasse, com apenas três curtos lances de escada em desnível, com um edifício da via Gualdi. Para obter a permissão o Sr. Garamond deve ter dado saltos mortais, creio que fora recomendado por um de seus autores, funcionário do Departamento de Engenharia Civil.

Fomos imediatamente recebidos pela Sra. Grazia, brandamente matronal, com fular de etiqueta e tailleur da mesma cor das paredes, que nos introduziu com um esmerado sorriso na sala do mapa-múndi.

A sala não era imensa, mas fazia lembrar o salão*

 

* Do gabinete de Mussolini. (N. do T)

 

do Palazzo Venezia, com um globo terrestre à entrada, e a escrivaninha de mogno do Sr. Garamond lá ao fundo, de tal modo que me pareceu vê-lo através de um binóculo ao contrário. Garamond fez sinal para que nos aproximássemos, e eu me sentia intimidado. Mais tarde, quando entrou De Gubernatis, Garamond lhe sairia ao encontro, e este gesto de cordialidade lhe haveria de conferir ainda mais carisma, porque o visitante primeiro o veria atravessar a sala, depois iria atravessá-la seguro pelo braço por Garamond, e o espaço quase por encanto se teria duplicado.

Garamond fez-nos sentar em frente à sua escrivaninha, e foi brusco e cordial. "O Dr. Belbo me falou a seu respeito, Dr. Casaubon. Estamos necessitados de colaboradores de peso. Como terá compreendido, não se trata de uma admissão, não nos podemos permitir tais luxos. Sua assiduidade será adequadamente compensada, direi mesmo sua devoção, se me permite, porquanto a nossa obra é uma missão."

Disse uma cifra que me pagaria por tarefa com base em horas de trabalho presumíveis, a qual na época me pareceu razoável.

"Ótimo, meu caro Casaubon." Eliminou o título a partir do momento em que eu me havia tornado seu dependente. "Esta história dos metais vai ficar esplêndida, direi mais, vai ser belíssima. Popular, acessível, mas científica. Deve atingir a fantasia do leitor, mas cientificamente. Vou lhe dar um exemplo. Leio aqui nos primeiros esboços que existia aquela esfera, como se chama, de Magdeburgo, dois hemisférios acasalados, dentro dos quais se faz o vácuo pneumático. Atrelam-se duas parelhas de cavalos normandos, uma de cada lado, os cavalos puxam em direções opostas e as calotas não se separam. Bem, isto é um fato científico. O senhor deve particularizá-lo, entre todos os outros menos pitorescos. E uma vez particularizado, deve encontrar sua imagem, o afresco, o óleo, seja o que for. Da época. E depois a estampamos em página inteira, a cores."

"Há uma gravura", disse eu, "que conheço."

"Está vendo? Ótimo. Página inteira, a cores."

"Mas sendo uma gravura terá que ser em preto e branco", disse eu.

"Tem? Excelente, pois seja em preto e branco. Exatidão é exatidão. Mas sob fundo ouro, deve atingir o leitor, deve fazê-lo sentir-se ali, no dia em que fizeram a experiência. Claro? Cientificismo, realismo, paixão. Pode-se usar a ciência e agarrar o leitor pelas vísceras. Haverá algo de mais dramático, de mais teatral, do que madame Curie, que entra em casa à noite e no escuro vê uma luz fluorescente, meu deus que coisa será aquilo... E o hidrocarbonato, a golconda, o flogístico ou como diabos o chamem, e pronto, madame Curie tinha inventado os raios X. Dramatizar. Mas respeitando a verdade."

"Mas que tem a ver os raios X com os metais?" perguntei.

"E o rádio não é um metal?"

"Creio que sim."

"Pois então? Do ponto de vista dos metais pode-se pôr em foco todo o universo do saber. Qual foi o título que resolvemos dar ao livro, Belbo?"

"Pensamos em algo sério como Os Metais e a Cultura Material."

"E deve ser mesmo sério. Mas com aquele algo mais, aquele nada que diz tudo, vejamos... História Universal dos Metais. Os chineses também entram nessa história?"

"Entram."

"Então pronto, universal. Não se trata de um truque publicitário, é a pura verdade. Ou também, A Maravilhosa Aventura dos Metais."

Foi nesse momento que a Sra. Grazia anunciou o comendador De Gubernatis. O Sr. Garamond hesitou um momento, olhou para mim com um ar de dúvida, Belbo lhe fez um sinal, como a dizer-lhe que doravante podia confiar. Garamond ordenou que fizesse entrar o visitante e levantou-se para ir ao seu encontro. De Gubernatis estava de jaquetão, tinha uma roseta na lapela, uma caneta no bolsinho do paletó, um jornal dobrado e metido no bolso grande, uma pasta embaixo do braço.

"Queira sentar-se, meu caro comendador, meu dileto amigo De Ambrosiis me falou a seu respeito, uma vida inteira dedicada ao serviço público. É uma veia poética secreta, não é mesmo? Vamos, mostre-nos lá esse tesouro que tem entre as mãos... Quero apresentar-lhe aqui dois dos meus diretores gerais."

Fê-lo sentar-se em frente à escrivaninha atulhada de manuscritos, e acariciou com as mãos vibrantes de interesse a capa da obra que lhe estava sendo entregue: "Não me diga nada, sei tudo. O senhor é filho de Vipiteno, uma grande e nobre cidade. Uma vida dedicada ao serviço aduaneiro. E em segredo, dia após dia, noite após noite, estas páginas, agitadas pelo espírito da poesia. A poesia..., que consumiu a juventude de Safo e alimentou as cãs de Goethe... Fármaco - diziam os gregos - veneno e antídoto. Naturalmente vamos ler essa sua criação, pretendo pelo menos ter a opinião abalizada de três leitores nossos, um da casa e dois consultores (anônimos, lamento, mas ficariam muito expostos), a Manuzio só publica livros de cuja qualidade esteja segura, e qualidade, o senhor sabe melhor do que eu, é algo imponderável, é necessário descobri-la com um sexto sentido, muitas vezes um livro tem certas imperfeições, excrescências - até Svevo escrevia mal, o senhor sabe melhor que eu -, mas por deus, sente-se aqui uma idéia, um ritmo, uma força. Eu sei, eu sei, não me precisa dizer, mal deitei os olhos sobre o incipit destas suas páginas e senti algo, mas como não quero julgar por mim só, mesmo se tantas vezes - oh quantas - os juízos críticos foram pouco entusiásticos, mas eu me obstinava porque não se pode condenar um autor sem se ter entrado como direi em sintonia com ele, como por exemplo, se abro ao acaso este seu texto e cai sob os meus olhos este verso, "como no outono, a margem que definha" - bem, não sei como é o resto, mas sinto uma inspiração, recolho uma imagem, às vezes com um texto se compartilha de um êxtase, de um enlevo... Cela dit, meu caro amigo, ah por deus, se se pudesse fazer tudo o que se quer! Mas até mesmo a editoria é uma indústria, a mais nobre das indústrias, mas uma indústria. Mas sabe quanto custa hoje a impressão, e o papel? Veja, veja só nos matutinos de hoje para quanto subiu a prime rate na Wall Street. Não nos atinge, é o que acha? Pois nos atinge, e como. Sabem que taxam até o armazém? Eu não vendo, e eles taxam a devolução. Pago até o fracasso, o calvário dos gênios que os filisteus não reconhecem. Este papel velino - é muito elegante, me permita dizer, que tenha batido o texto neste papel tão fino, sente-se nisto o poeta, um impostor qualquer teria usado um papel extraforte, para ofuscar os olhos e confundir o espírito, mas esta é poesia escrita com o coração, hã, as palavras são pedras e transformam o mundo - este papel velino custa para mim tanto quanto o papel de cédula."

O telefone tocou. Soube depois que Garamond costumava apertar um botão embaixo da mesa quando queria que a Sra. Grazia lhe passasse uma chamada fajuta.

"Alô! Caro Mestre! Como? Mas que ótimo! Grande notícia, é como se os sinos tocassem. Um novo livro seu é um acontecimento. Mas claro, a Manuzio se sente orgulhosa, comovida, direi melhor feliz de ter o senhor entre seus autores. Viu o que disseram os jornais a propósito de seu último poema épico. Coisa para Nobel. Infelizmente o senhor está muito à frente de seu tempo. Tivemos grande dificuldade em vender três mil exemplares...”

O comendador De Gubernatis empalideceu: três mil exemplares eram para ele um limite inesperado.

"Não chegaram a cobrir os custos de produção. É só ver por trás destas portas de vidro quanta gente preciso ter na redação. Hoje para se pagar um livro é necessário vender pelo menos dez mil exemplares, e para a felicidade de muitos é possível vender-se até muito mais que isso, mas são escritores, como dizer, com uma vocação diversa, Balzac era grande e vendia livros como se fossem sanduíches, Proust era igualmente grande e publicava suas obras a expensas próprias. O senhor acabará sem dúvida nas antologias escolares mas não nas bancas das estações, isto aconteceu até mesmo com Joyce, que publicou por conta própria, como Proust. Livros como o seu só me posso dar ao luxo de publicar um a cada dois ou três anos. Dê-me três anos de prazo... Seguiu-se uma longa pausa. No rosto de Garamond desenhava-se um doloroso embaraço.

"Como? Por sua conta? Não, não se trata do montante, este pode até ser reduzido... É que a Manuzio não costuma... Certo, o senhor sabe melhor que eu, até mesmo Joyce e Proust... Certo, compreendo...”

Outra pausa sofredora. "Está bem, vamos falar sobre isto. Estou sendo sincero, o senhor está impaciente, quer ver a obra na rua, façamos por assim dizer uma joint venture, os americanos são mestres nisto. Passe por aqui amanhã, e faremos aqui uns cálculos... Meus cumprimentos e minha admiração."

Garamond saiu como de um sonho, e passou a mão sobre os olhos, depois fez como que se desse conta de súbito da presença do visitante.

"Desculpe. Era um Escritor, um verdadeiro escritor, talvez um dos Grandes. E no entanto, talvez mesmo por isso... Às vezes nos sentimos humilhados, ao ter que fazer uma coisa destas. Não fosse nossa vocação. Mas voltemos ao senhor. Já conversamos os pontos principais, eu lhe escreverei, digamos dentro de um mês. Seu texto fica conosco, em boas mãos."

O comendador De Gubernatis saiu sem dizer palavra. Havia posto o pé na forja da glória.

 

Cavaleiro dos Planisférios, Príncipe do Zodíaco, Sublime Filósofo Hermético, Supremo Comendador dos Astros, Sublime Pontífice de Ísis, Príncipe da Colina Sagrada, Filósofo de Samotrácia, Titã do Cáucaso, Infante da Lira de Ouro, Cavaleiro da Vera Fênix, Cavaleiro da Esfinge, Sublime Sábio do Labirinto, Príncipe Brâmane, Místico Guardião do Santuário, Arquiteto da Torre Misteriosa, Sublime Príncipe da Cortina Sagrada, Intérprete dos Hieróglifos, Doutor Órfico, Guardião dos Três Fogos, Custódio do Nome Incomunicável, Sublime Édipo dos Grandes Segredos, Pastor Amado do Oásis dos Mistérios, Doutor do Fogo Sagrado, Cavaleiro do Triângulo Luminoso.

(Graus do Rito Antigo e Primitivo dos Memphis-Misraim)

 

A Manuzio era uma editora para AEPs.

Um AEP, no jargão da Manuzio, era - mas por que o uso do imperfeito? os AEPs são ainda, pois tudo lá continua como se nada tivesse acontecido, eu é que agora projeto tudo num passado tremendamente remoto, porque aquilo que aconteceu naquela noite marcou-se como uma dilaceração do tempo, na nave da abadia de Saint-Martin-des-Champs a ordem dos séculos se subverteu..., ou talvez porque de súbito, a partir daquela noite eu tenha envelhecido alguns decênios, ou o temor de que Eles me encontrem me leva a falar como se agora estivesse escrevendo a crônica de um império em desagregação, estendido no balneum, com as veias cortadas, à espera de afogar-me em meu próprio sangue.

Um AEP é um Autor a Expensas Próprias e a Manuzio é uma dessas empresas que nos países anglo-saxônios se denominam "vanity press". Faturamento altíssimo, despesas de gestão mínimas. Garamond, a Sra. Grazia, o contador dito diretor-administrativo metido numa divisória ao fundo, e Luciano, o despachante deficiente físico, no imenso armazém do subsolo.

"Não chego a entender como Luciano consegue empacotar livros com um braço só", me dissera Belbo, "acho que se ajuda com os dentes. Ademais não empacota grande coisa: os despachantes das editoras normais expedem livros para as livrarias enquanto Luciano só envia livros para seus próprios autores. A Manuzio não se interessa por leitores... O importante, diz o Sr. Garamond, é que os autores não nos traiam, sem leitores podemos sobreviver."

Belbo admirava o Sr. Garamond. Via-o portador de uma força que a ele tinha sido negada.

O sistema Manuzio era muito simples. Alguns poucos anúncios nos cotidianos locais, nas revistas especializadas, nas publicações literárias da província, principalmente aquelas que duram poucos números. Espaços publicitários de tamanho médio, com a foto do autor e pequenas legendas incisivas: "uma altíssima voz da nossa poesia", ou ainda "nova demonstração do poder narrativo do autor de Floriana e as Irmãs".

"A partir daí a rede está armada", explicava Belbo. "e os AEPs caem nela aos enxames, se numa rede se cai aos enxames, mas a incongruência da metáfora é típica dos autores da Manuzio e acabei pegando o vezo, me desculpe."

"E depois?"

"Veja o caso De Gubernatis. Daqui a um mês, enquanto o nosso aposentado se macera em ânsia, o Sr. Garamond lhe telefona convidando-o para jantar em companhia de outros escritores. O encontro será num restaurante francês, muito exclusivo, sem letreiro na porta; toca-se uma sineta e declina-se o próprio nome a um espia. Interior luxuoso, luzes difusas, música amhiental. Garamond aperta a mão ao maitre, chama os garçons pelo nome e faz voltar a garrafa de vinho porque aquela vindima não é de sua confiança, ou melhor diz vai me desculpar, mas este não é o termidor que se faz em Paris. De Gubernatis é apresentado ao comissário Caio, todos os serviços da alfândega aérea estão sob seu controle, mas antes de mais nada inventor, apóstolo do Cosmoranto, a linguagem da paz universal, que está sendo discutida na Unesco. Em seguida ao professor Fulano, forte índole narrativa, prêmio Petruzzellis della Gattina de 1980, mas igualmente um luminar da ciência médica. Quantos anos o senhor lecionou, professor? Outros tempos, ali sim os estudos eram realmente sérios. E a nossa requintada poetisa Odolinda Mezzofanti Sassabetti, autora dos Castos Pruridos, que o senhor naturalmente conhece."

Belbo me confidenciou que sempre se havia perguntado por que todos os AEPs de sexo feminino assinavam suas obras com dois sobrenomes, Lauretta Solimeni Calcanti, Dora Ardenzi Fiamma, Carolina Pastorelli Cefalù. Por que as escritoras importantes têm todas apenas um sobrenome, salvo lvy Compton-Burnett, e algumas não têm nem mesmo o sobrenome, como Colette, e uma AEP se chama Odolinda Mezzofanti Sassahetti? Porque um verdadeiro escritor escreve por amor à sua obra, e não lhe importa ser conhecido por um pseudônimo, veja Nerval, ao passo que um AEP quer ser reconhecido pelos vizinhos, pelos moradores de seu bairro, e dos outros onde antes residiu. Ao homem basta seu próprio nome, mas à mulher não, pois há os que a conheceram em solteira e os que a conhecem de casada. Daí usar os dois nomes.

"Para encurtar, uma noitada densa de experiências intelectuais. De Gubernatis terá a impressão de estar bebendo um coquetel de LSD. Ouvirá as bisbilhotices dos comensais, o delicioso comentário sobre o grande poeta notoriamente impotente, e que mesmo como poeta não vale grande coisa, deitará olhares Iuzêntes de comoção sobre a nova edição da Enciclopédia dos Italianos Ilustres que Garamond fará aparecer de improviso, mostrando ao comissário a página (viu aqui, meu caro, o senhor também entrou no Panteão, oh, pura justiça)."

Belbo me havia mostrado a enciclopédia. "Ainda há pouco eu estava dando uma de paternal: mas na verdade nenhum de nós é inocente. A enciclopédia é feita exclusivamente por mim e Diotallevi. Mas juro que não fazemos isso para engordar o salário. É uma das coisas mais divertidas do mundo, e todos os anos é necessário preparar a edição atualizada. A estrutura é mais ou menos deste tipo: uma entrada se refere a um escritor célebre e a seguinte a um AEP, consistindo o problema em calibrar bem a ordem alfabética e não desperdiçar espaço com os escritores célebres. Veja por exemplo a letra L."

 

LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di (1889-1959). Escritor siciliano. Viveu muito tempo ignorado e tornou-se célebre após a morte com seuromance O Leopardo.

 

LAMPUSTRI Adeodato (1919-). Escritor, educador, combatente (medalha de bronze na Africa Oriental), pensador, narrador e poeta. Seu vulto projeta-se na literatura italiana de nosso século, após revelar-se com o lançamento em 1959 do primeiro volume da trilogia de amplo fôlego, Os Irmãos Carmassi, a saga de uma famlia de pescadores lucanos descrita com impressionante realismo e alta inspiração poética.A esta obra, distinguida com o prêmio Petruzzellis della Gattina de 1960, seguiram-se nos anos sucessivos Os Bem Servidos e A Pantera dos Olhos sem Cílios, que talvez ainda mais do que em sua obra inicial dão a medida de seu vigor poético, de sua fulgurante imaginação plástica, da inspiração lírica deste artista incomparável. Dedicado funcionário ministerial, Lampustri é considerado em seu ambiente funcional como uma personalidade integérrima, pai e esposo exemplar, orador de fino gosto.

 

"De Gubernatis certamente vai querer figurar na enciclopédia", explicou Belbo. "Sempre havia achado que a fama dos escritores famosos não passava de um equívoco, uma conspiração de críticos complacentes. Mas principalmente vai ficar satisfeito de entrar para uma família de escritores que são ao mesmo tempo diretores do sem viço público, bancários de carreira, magistrados, aristocratas. De um golpe terá alargado seu círculo de conhecimentos, e agora quando precisar pedir um favor já sabe a quem se dirigir. O Sr. Garamond tem o poder de arrancar De Gubernatis da província e projetá-lo para o vértice. Aí pelo fim do jantar lhe dirá ao ouvido para passar na manhã seguinte em seu escritório."

"E na manhã seguinte aqui está."

"Pode-se jurá-lo. Passará a noite insone sonhando com a grandeza de Adeodato Lampustri."

"E depois?"

"Depois na manhã seguinte Garamond lhe dirá: ontem à noite não ousei dizer-lhe para não humilhar os demais, que coisa sublime, não digo por causa dos juízos críticos entusiásticos, ou melhor ainda, positivos, mas direi por mim mesmo, em caráter pessoal, que passei uma noite sobre essas suas páginas. Livro para prêmio literário. Grande, grande. Voltará para a escrivaninha, baterá com a mão sobre o manuscrito - já agora amarfanhado, usurado pelo olhar amoroso de pelo menos quatro leitores - amarfanhar os manuscritos é função da Sra. Grazia - e fitará o AEP com ar perplexo. Que vamos fazer? Quevamos fazer? perguntará De Gubernatis. E Garamond dirá que quanto ao valor da obra não se discute nem sequer um segundo, mas se trata sem dúvida de algo muito à frente de nosso tempo, e quanto à tiragem não se poderá fazer mais que dois mil, dois mil e quinhentos exemplares no máximo. Para De Gubernatis dois mil seria o bastante para cobrir todas as pessoas que conhece, o AEP não pensa em termos planetários, ou melhor seu planeta é composto de rostos conhecidos, colegas de escola, diretores de banco, professores que ensinaram como ele no mesmo colégio, coronéis reformados. Todas pessoas que o AEP quer que entrem em seu mundo poético, mesmo aqueles que não quereriam como o salsicheiro ou o prefeito... Diante do risco de que Garamond volte atrás, depois que todos em casa, em sua terra natal, na repartição, sabem que ele apresentou o manuscrito a um grande editor de Milão, De Gubernatis fará suas contas. Podia interromper o seu depósito a prazo, fazer um empréstimo, vender suas poucas ações, Paris vale bem uma missa. Oferece-se timidamente para participar das despesas. Garamond vai-se mostrar perturbado, a Manuzio não costuma, e vai por aí fora - negócio feito, afinal o senhor me convenceu, no fundo até Proust e Joyce tiveram que se dobrar à dura realidade, os custos são tantos, por ora vamos editar apenas dois mil exemplares, mas o contrato será para um máximo de dez mil. Note bem que duzentos exemplares lhe serão entregues, oferta da editora, para enviá-los a quem bem entenda, Outros duzentos vão para os jornais e revistas porque queremos fazer um rebuliço como se fosse a Angélica dos Golon, e distribuímos mil e seiscentos. Sobre estes, bem entendido, não incidem direitos, mas se o livro tiver boa aceitação, fazemos nova edição a partir da qual o senhor terá os seus doze por cento contratuais."

Depois vi o contrato-padrão que De Gubernatis, então em pleno trip poético, assinaria sem ao menos ler, enquanto o contador ficaria lamentando por ter o Sr. Garamond calculado as despesas muito por baixo. Dez páginas de cláusulas em corpo Oito, traduções estrangeiras, direitos subsidiários, adaptações para o teatro, o rádio e o cinema, edições em Braille para os cegos, cessão do resumo para o Reader’s Digest, garantia em caso de processo por difamação, direito do autor de aprovar as alterações redacionais, competência do foro de Milão para o caso de pendência... O AEP devia chegar exausto com os olhos já agora perdidos em sonhos de glória às cláusulas deletérias, onde se diz que dez mil exemplares é a tiragem máxima mas não se fala de tiragem mínima, que a soma a pagar não está condicionada à tiragem, da qual só se falou oralmente, e sobretudo que dentro de um ano o editor tem o direito de transformar a obra em pasta de papel, a menos que o autor queira ficar com os exemplares não vendidos, pela metade do preço de capa. Assinado.

O lançamento seria satrápico. Comunicado à imprensa de dez laudas, com biografia e ensaio crítico. Nenhum pudor, porquanto tudo seria atirado à cesta nas redações dos jornais. Tiragem efetiva: mil exemplares em folhas soltas dos quais só trezentos e cinqüenta seriam encadernados. Duzentos exemplares para o autor, uns cinqüenta para as livrarias secundárias e consorciadas, cinqüenta para as revistas e jornais da província, uns trinta por desencargo de consciência aos jornais, quem sabe poderiam dar uma linha que fosse sobre os livros recebidos. A sobra seria mandada como oferta grátis aos hospitais e penitenciárias - e compreende-se agora por que os primeiros não curam e os segundos não redimem.

No verão aconteceria o prêmio Petruzzellis della Gattina, criação do Sr. Garamond. Custo total: comida e hospedagem para os jurados, dois dias, e Niké de Samotrácia em vermelhão. Telegrama de felicitações dos editados da Manuzio.

Chegaria finalmente o momento da verdade, um ano e meio depois. Garamond lhe escreveria: Caro amigo, como havia previsto, seu livro apareceu com cinqüenta anos de avanço. Resenhas críticas, como viu, aos montes, prêmios e elogios da crítica, ça va sans dire. Mas exemplares vendidos muito poucos, o público não está preparado. Somos forçados a desocupar o armazém, ao término do contrato anexo). Ou vai para a fábrica de papel, ou o senhor os adquire por metade do preço de capa, como é privilégio seu.

De Gubernatis enlouquece de dor, os parentes o consolam, as pessoas não te compreendem, é claro que se pertencesses à panelinha, se tivesses mandado o envelopezinho a esta hora teriam falado de teu livro até no Corriere, são todos uma corja, é preciso resistir. Dos exemplares de autor sobraram apenas cinco, há tantas pessoas importantes ainda para se mandar, não podes permitir que tua obra seja transformada em papel higiênico, vejamos quanto se pode arrecadar, será dinheiro bem empregado, vive-se uma vida só, digamos que se possam adquirir quinhentos exemplares e quanto ao resto sic transit gloria mundi.

Na Manuzio sobraram 650 exemplares em folhas soltas, o Sr. Garamond manda encadernar 500 e lhes envia contra pagamento. Conclusão: o autor pagou generosamente os Custos da produção de 2.000 exemplares, a Manuzio imprimiu 1.000 apenas e só encadernou 850, dos quais 500 foram pagos uma segunda vez. Uns cinqüenta autores por ano, e a Manuzio fecha sempre o balanço com forte ativo.

E sem remorsos: distribui felicidade.

 

Os covardes morrem muitas vezes, antes de morrer.

(Shakespeare, Julius Caesar, II, 2)

 

Sempre observei um contraste entre a devoção com que Belbo se entregava aos respeitáveis autores da Garamond, procurando arrancar de suas obras livros de que pudesse se orgulhar, e a pirataria com que colaborava não só para insidiar os incautos da Manuzio, mas ainda enviando à via Gualdi os autores que julgava imprestáveis para a Garamond - como o vi tentar fazer com o coronel Ardenti.

Perguntava-me amiúde, trabalhando com ele, o motivo por que aceitava tal situação. Não era por dinheiro, creio. Conhecia bastante bem o seu ofício para poder encontrar um trabalho que lhe pagasse melhor.

Passei a admitir com o tempo que fizesse isso porque assim podia cultivar seus estudos sobre a estultícia humana, e a partir de um observatório exemplar. Aquilo que ele chamava estupidez, o paralogismo inapreensível, o insidioso delírio transvestido de argumentação impecável, o fascinava - e vivia a repeti-los. Mas também esta era uma máscara. Era Diotallevi quem estava aí por brincadeira, talvez esperando lhe aparecesse, um dia, num livro Manuzio, uma combinação inédita da Torah. E por brincadeira, por puro divertimento, e troça, e curiosidade, também aí estava eu, especialmente depois que Garamond havia lançado o seu projeto Hermes.

Para Belbo a história era diferente. Fiquei certo disto depois de haver remexido em seus files.

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filename: Vendetta tremenda vendetta

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Chega assim. Mesmo se há alguém no escritório, agarra-me pela gola do paletó, estende o rosto e me beija. Anna, que quando beija está na ponta dos pés. Me beija como se jogasse flipper.

Sabe que isso me embaraça. Mas me expõe.

Não mente nunca.

- Te amo.

- Nos vemos no domingo?

- Não, vou passar o fim de semana com um amigo...

- Uma amiga, quer dizer.

- Não, um amigo, você conhece, aquele que estava comigo no bar na semana passada. Já lhe prometi, não vai querer que eu falte?

- Que você falte, não, mas também que não me venha fazer... Por favor, preciso receber um autor.

- Algum gênio a ser lançado?

- Um miserável a ser destruído.

 

Um miserável a ser destruído.

 

Acabo de vir do Pílades onde fui encontrar-te. Não estavas. Esperei-te muito tempo, depois fui sozinho, senão iria encontrar a galeria fechada. Alguém ali me disse que já tinham ido para o restaurante. Fingi olhar os quadros - a arte já está morta desde os tempos de Hólderlin, dizia-me. Gastei vinte minutos para encontrar o restaurante, porque os galeristas escolhem sempre aqueles que se tornarão famosos só daqui a um mês.

Estavas lá, em meio às caras de costume, e ao teu lado o homem da cicatriz. Não tiveste um instante de embaraço. Olhaste-me com cumplicidade e - como fazes, ao mesmo tempo? - em tom de desafio, como a dizer: e então? O intruso com a cicatriz me observou como um intruso. Os demais ao corrente de tudo, à espera. Tinha que arranjar um motivo para briga. Eu me sairia bem mesmo se ele me acertasse. Todos sabiam que estavas ali com ele para provocar-me. Se eu provocasse ou não, meu papel estava garantido. Estava contudo dando vexame.

Espetáculo por espetáculo, escolhi a comédia brilhante, tomei parte com delicadeza na conversação, esperando que alguém admirasse o meu controle.

O único que me admirava era eu.

É covarde quem se sente covarde.

O vingador mascarado. Como Clark Kent protejo jovens gênios incompreendidos e como o Super-Homem puno os velhos gênios justamente incompreendidos. Colaboro para explorar aqueles que não tiveram a minha coragem, e não sabem se limitar ao papel de espectador.

É possível? Passar a vida a punir quem jamais saberá que está sendo punido? Queres ser um Homero? Tome, patife, e creia-se.

Odeio quem me tenta vender uma ilusão de paixão.

 

Quando recordamos que Daath está situado no ponto em que o Abismo intercepta a Pilastra Mediana, e que em cima da Pilastra Mediana está o Sendeiro da Flecha..., e que também aí está a Kundalini, vemos que em Daath se oculta o segredo da geração ou da regeneração, a chave das manifestações de todas as coisas para a diferenciação das duplas de opostos e sua União em um Terceiro.

(Dion Fortune, The Mystical Qabalah, London, Fraternity of the Inner Light, 1957, 7.19)

 

Contudo não me devia ocupar da Manuzio, mas da maravilhosa aventura dos metais. Comecei minha exploração pelas bibliotecas milanesas. Partia dos manuais, fichava a bibliografia, e dali recorria aos originais mais ou menos antigos, onde pudesse encontrar ilustrações decentes. Nada pior do que ilustrar um capítulo sobre viagens espaciais com uma foto da última sonda americana. O Sr. Garamond tinha me ensinado que no mínimo se precisa de um anjo de Doré.

Amealhei reproduções curiosas, mas não eram suficientes. Quando se prepara um livro ilustrado, para se escolher uma boa imagem é preciso descartar pelo menos outras dez.

Tive permissão para ir pesquisar em Paris, por quatro dias. Poucos para percorrer todos os arquivos. Tinha ido com Lia, chegado numa quinta-feira e reservado lugar de volta no trem da segunda à noite. Cometi o erro de programar o Conservatoire para segunda, e na segunda descobri que o Conservatoire fechava precisamente naquele dia. Tarde demais, voltei com o rabo entre as pernas.

Belbo ficou contrariado com isso, mas como eu havia recolhido tanta coisa interessante, levamos para o Sr. Garamond ver. Folheava as reproduções que eu havia recolhido, muitas delas a cores. Depois olhou a fatura e emitiu um sibilo: "Caro, muito caro. Nossa casa tem uma missão, aqui se trabalha pela cultura, ça va sans dire, mas não somos a Cruz Vermelha, direi melhor, não somos a Unicef. Era necessário adquirir todo este material? Digo isto, porque estou vendo aqui um cidadão de cuecas com bigodes à moda d’Artagnan, circundado por abracadabras e capricórnios, mas quem é, Mandrake?"

"Primórdios da medicina, Influência do zodíaco sobre as várias partes do corpo, com as ervas medicinais correspondentes. E os minerais, inclusive os metais. Doutrina dos sinais cósmicos. Tempos em que os limites entre a magia e a ciência ainda estavam indecisos."

"Interessante. Mas que quer dizer este frontispício? Philosophia Moysaica. Que tem a ver Moisés com isto, não é primevo demais?"

"É a disputa sobre o unguentum armarium ou melhor sobre o weapon salve. Durante cinqüenta anos médicos ilustres discutiram se esse ungüento, esfregado sobre a arma que causou o ferimento, podia sarar a ferida."

"Troço de doido. E isto é ciência?"

"Não no sentido que hoje a entendemos. Mas eles discutiam sobre essa história porque as maravilhas da imantação haviam sido descobertas há pouco, e por isso estavam convencidos de que se podia exercer uma ação a distância... Compreende, eles se enganaram, mas Volta e Marconi não se enganarão. Que são a eletricidade e o rádio senão ações exercidas a distância?"

"Vejam só. Parabéns ao nosso Casaubon. Ciência e magia de braços dados, hem? Grande idéia. E agora toca a trabalhar, tira-se um pouco desses dínamos horrendos, e põe-se um pouco mais de Mandrake. Algumas evocações demoniacas, sei lá, sob fundo ouro."

"Não queria exagerar. Esta é a maravilhosa aventura dos metais. As extravagâncias funcionam só quando vêm a propósito."

"A maravilhosa história dos metais deve ser sobretudo a história de seus erros. Põe-se uma bela extravagância e depois na legenda se diz que é falsa. No entanto lá está, e o leitor se apaixona, pois vê que mesmo os grandes homens eram despropositados como ele."

Contei-lhe sobre uma estranha experiência que havia tido às margens do Sena, não distante do Qual St-Michel. Entrara numa livraria que, em duas vitrinas simétricas, alardeava sua própria esquizofrenia. De um lado obras sobre computadores e o futuro da eletrônica, do Outro só ciências ocultas. E dentro a mesma coisa: Apple e Cahala.

"Incrível", disse Belbo.

"Óhvio", disse Diotallevi. "Ou, pelo menos, serias o último que devias te surpreender, Jacopo. O mundo das máquinas procura descobrir o segredo da criação: letras e números."

Garamond não falava. Havia cruzado as mãos, como se rezasse, e tinha os olhos no alto. Depois bateu palmas: "Tudo o que disseram hoje confirma uma idéia que tive já há alguns dias... Mas tudo a seu tempo, preciso ainda refletir sobre isso. Vamos tocar em frente. Muito bem, Casaubon, vamos rever o seu contrato, o senhor é um colaborador precioso. E não se esqueça, meta muita Cabala e computador em nossa história. Os computadores são feitos com silício. Ou não?"

"Mas o silício não é um metal, é um metalóide."

"Vai querer sutilizar sobre desinências? E que é, rosa rosarum? Computador. E Cabala."

"Que não é um metal", insisti.

Acompanhou-nos até a porta. Na soleira me disse: "Casaubon, a editoria é uma arte, não uma ciência. Não banquemos os revolucionários, que o tempo já passou. Ponha Cabala. Ah, a propósito de sua nota de despesas, permiti-me glosar a cabine do trem. Não por avareza, espero que me acredite. Mas é que a pesquisa implica, como direi, um certo espírito espartano. De outra forma não fica merecedora de crédito."

Voltou a convocar-nos alguns dias depois. Tinha em seu gabinete, informou Belbo, um visitante que nos queria apresentar.

Lá fomos. Garamond estava conversando com um senhor gordo, com cara de anta, bigodes aloirados sob um grande nariz animal, e sem queixo algum. Julguei conhecê-lo, e logo me recordei, era o professor Bramanti que tinha ouvido no Rio, referendário ou seja o que fosse da ordem Rosa-Cruz.

"O professor Bramanti", disse Garamond, "afirma que seria o momento exato, para um editor perspicaz e sensível ao clima cultural destes anos, de lançar uma coleção de ciências ocultas."

"Pela... Manuzio", sugeriu Belbo.

"Por quem mais seria?" sorriu astutamente o Sr. Garamond. "O professor Bramanti, que além do mais me foi recomendado por um caro amigo, o Dr. De Amicis, autor do esplêndido Crônicas do Zodíaco que publicamos este ano, lamenta que as poucas coleções existentes nessa matéria - quase sempre trabalho de editores de escassa seriedade e consideração, notoriamente superficiais, desonestos, incorretos, direi mais, imprecisos - não fazem certamente justiça à riqueza, à profundidade deste campo de estudos...”

"Os tempos são propícios a esta revalorização da cultura da inatualidade, após a falência das utopias do mundo moderno", disse Bramanti.

"O senhor diz coisas santas, professor. Mas deve perdoar a nossa - ah deus, não direi ignorância, mas pelo menos nossa indecisão a propósito: em que pensa o senhor quando fala de ciências ocultas? Espiritismo, astrologia, magia negra?"

Bramanti fez um gesto de desalento: "Oh por caridade! Mas essas são precisamente as patranhas que estão sendo ministradas aos ingênuos. Falo de ciência mesmo, ainda que oculta. Decerto a astrologia também entra, mas não para dizer à datilógrafa se encontrará no próximo domingo o amor de sua vida. Será antes um estudo sério sobre os Decanatos, por assim dizer."

"Estou vendo. Científico. A coisa está em nossa linha, é certo, mas gostaria que o senhor fosse um pouco mais explícito."

Bramanti relaxou-se na poltrona e correu os olhos em torno à sala, como que buscando inspiração astral. "Se pudesse dar um exemplo, digamos. Pois bem, o leitor ideal de uma coleção deste gênero deveria ser um adepto da Rosa-Cruz, e portanto um conhecedor in magiam, in necromantiam, in astrologiam, in geomantiam, in pyromantiam, in hydromantiam, in chaomantiam, in medicinam adeptarn, para citar o livro de Azoth - aquele que foi ofertado por uma criança misteriosa ao Estauróforo, como se relata no Raptus philosophorum. Mas o conhecimento do adepto deve abarcar outros campos, como a fisiognosia, que diz respeito à física oculta, estática, dinâmica e cinemática, astrologia ou biologia esotérica, e o estudo dos espíritos da natureza, zoologia hermética e astrologia biológica. Ajunte a cosmognosia, que estuda a astrologia mas sob o prisma astronômico, cosmológico, fisiológico, ontológico, ou a antropognosia, que estuda a anatomia homológica, as ciências divinatórias, a fisiologia fluídica, a psicurgia, a astrologia social e o hermetismo da história. Depois vêm as matemáticas qualitativas, ou seja como o senhor bem sabe a aritmologia... Mas os conhecimentos preliminares postulariam a cosmografia do invisível, o magnetismo, as auras, os sons, os fluidos, psicometria e clarividência - e em geral o estudo dos Outros cinco sentidos hiperfísicos - para não falarmos de astrologia horoscópica, que já é uma degeneração do saber quando não levada a efeito com as devidas precauções - e depois a fisiognômica, leitura do pensamento, artes divinatórias (tarô, interpretação dos sonhos) até os graus superiores como a profecia e o êxtase. Será necessário que se disponha de informações suficientes sobre os manejamentos fluídicos, a alquimia, espagíria, telepatia, exorcismo, magia cerimonial e evocatória, teurgia de base. Para o ocultismo verdadeiro e propriamente dito aconselharei explorações nos campos da Cabala primitiva, bramanismo, gimnosofia, hieróglifos de Mênfis...”

"Fenomenologia templar", insinuou Belbo.

Bramanti iluminou-se: "Sem dúvida. Mas esquecia-me, antes algumas noções de necromancia e feitiçaria das raças não-brancas, onomancia, furores proféticos, taumaturgia voluntária, sugestões, ioga, hipnotismo, sonambulismo, química mercurial... Wronski para a tendência mística aconselhava ter presente as técnicas dos possessos de Loudun, dos convulsos de San Medardo, as beberagens místicas, vinho do Egito, elixir da vida e acqua tofana. Para o princípio do mal, mas aqui entendo que já estaríamos chegando à seção mais reservada de uma possível coleção, direi que é necessário familiarizar-se com os mistérios de Belzebu como destruição própria, e de Satã como príncipe destronado, de Eurinômio, de Moloch, íncubos e súcubos. Para o princípio positivo, mistérios celestes de são Miguel, Gabriel e Rafael e dos agatodemôniOs. Depois os mistérios de Isis, de Mitra, de Morfeu, de Samotrácia e de Elêusis e os mistérios naturais do sexo viril, falo, Pau-da-Vida, Chave da Ciência, Bafomé, malho, os mistérios naturais do sexo feminino, Ceres, Ctéis, Pátera, Cibele, Astarte."

O Sr. Garamond inclinou-se para a frente com um sorriso insinuante: "Não se esqueceu dos gnósticos...”

"Mas certamente não, se bem que sobre esse argumento específico circule muita pacotilha, de escassa seriedade. Em todo caso todo ocultismo sadio é uma Gnose."

"Eu não dizia", disse Garamond.

"E tudo isto seria bastante" disse Belbo, com tom brandamente interrogativo.

Bramanti encheu as bochechas, transformando-se de repente de anta em roedor. "O bastante..., para iniciar, não para iniciados - se me perdoam o jogo de palavras. Mas aí com uns cinqüenta volumes os senhores já poderiam atrair um público de milhares de leitores, que esperam apenas uma palavra segura... Com um investimento de algumas centenas de milhões - venho exatamente ao Sr. Dr. Garamond porque o sei disposto a aventuras ainda mais generosas - com um modesto percentual que me tocaria, como diretor da coleção...”

Bramanti dissera o bastante e começava a perder qualquer interesse aos olhos de Garamond. Com efeito foi despedido às pressas e com grandes promessas futuras. O famoso conselho consultivo iria avaliar atentamente a proposta.

 

Mas sabei que estamos todos de acordo, seja o que for que dissermos.

(Turba Philosophorum)

 

Quando Bramanti saiu, Belbo observou que ele devia destapar o rabo. O Sr. Garamond não conhecia a expressão e Belbo tentou algumas respeitosas paráfrases, sem sucesso algum.

"Em todo o caso", disse Garamond, "não nos façamos difíceis. Aquele senhor mal tinha dito cinco palavras e eu já sabia que não se tratava de um cliente para nós. Ele. Mas aqueles de quem ele fala, sim, autores e leitores. Este Bramanti chegou a corroborar certas reflexões que eu vinha fazendo já há alguns dias. Aqui estão, senhores." E tirou teatralmente da gaveta três livros.

"Eis aqui três volumes publicados nestes anos, e todos de sucesso. O primeiro é inglês e não li, mas o autor é um crítico ilustre. E que foi que escreveu? Olhem o subtítulo, um romance gnóstico. E agora olhem este: aparentemente um romance de fundo policial, um bestseller. E de que se trata? De uma igreja gnóstica nos arredores de Turim.

Os senhores sabem quem são esses gnósticos...” Deteve-nos com um sinal da mão. "Não importa, para mim basta saber que são uma coisa demoniaca... Eu sei, eu sei, talvez esteja indo muito depressa, mas não quero falar como os senhores, quero falar como Bramanti. Neste momento, estou sendo o editor e não o professor de gnosiologia comparada ou que outro nome tenha. Que vi de lúcido, promissor, convidativo, direi mesmo curioso, no discurso de Bramanti? Esta extraordinária capacidade de colocar tudo junto, ele não disse gnósticos, mas os senhores viram que bem podia tê-lo dito, entre geomancia, gerovital e radamés ao mercúrio. E por que insisto? Porque aqui tenho outro livro, de uma jornalista famosa, contando coisas incríveis que aconteceram em Turim, isso mesmo em Turim, a cidade da indústria automobilística: bruxarias, evocações do demônio, e tudo para gente de importância, não para os pobres-diabos do interior. Casaubon, Belbo me disse que o senhor esteve no Brasil e assistiu aos ritos satânicos daqueles selvagens de lá... Está bem, depois me dirá exatamente o que eram, mas dá no mesmo. O Brasil está aqui, senhores. Entrei outro dia naquela livraria, como se chama, tanto faz, era uma livraria que há seis ou sete anos vendia textos anarquistas, revolucionários, tupamaros, terroristas, direi mais, marxistas... Pois bem? Como se reciclou? Com as coisas de que falava Bramanti. É verdade, hoje estamos numa época confusa, e se vamos a uma livraria católica, onde antigamente só havia catecismo, aí encontramos até mesmo a reavaliação de Lutero, mas nunca um livro em que se diga que a religião é todo um embuste. No entanto nessas livrarias a que me refiro vende-se tanto o autor em que se crê quanto aquele que diz o contrário, porque abordam um argumento como direi...”

"Hermético", sugeriu Diotallevi.

"Isto, creio que seja a palavra exata. Vi pelo menos dez livros sobre l-lermes. E lhes venho a falar de um Projeto Hermes. Entraremos no ramo."

"No ramo de ouro"*,

 

* Referência ao The Golden Bough, de Frazer. (N. do T.)

 

disse Belbo.

"Exatamente nele", disse Garamond, sem apreender o sentido da citação, "é um filão de ouro. Eu me dei conta de que engolem tudo, desde que seja hermético, como dizia o senhor, desde que diga o contrário daquilo que estudaram em seus livros de escola. E creio que seja até mesmo um dever cultural: não sou um benfeitor por vocação, mas nestes tempos tão negros oferecer a alguém uma fé, uma fresta para o sobrenatural... A Garamond seja como for tem sempre uma função científica...”

Belbo empertigou-se. "Pareceu-me que o senhor estivesse pensando na Manuzio."

"Nas duas. Ouçam-me. Andei investigando aquela livraria, depois fui a uma outra, seriíssima, onde havia na mesma a sua prateleira de ciências ocultas. Sobre o assunto há estudos a nível universitário, e estão ao lado de livros escritos por pessoas como Bramanti. Ora raciocinemos: talvez Bramanti jamais tenha encontrado aqueles autores universitários, mas os leu, e os leu como se fossem iguais a ele. Esses tipos, tudo o que a gente diz eles pensam que se trata do problema deles, como a história do gato que via o casal discutir sobre divórcio e achava que estavam preocupados com os miúdos de seu almoço. Você viu só, Belbo, mal você tocou naquela história dos templários, ele imediatamente, okay, os templários também entram, e entra a Cabala, a loteria esportiva e o fundo do café. São onívoros. Onívoros. Viu a cara de Bramanti: um roedor. Um público imenso, dividido em duas grandes categorias, estou vendo-as desfilar diante dos meus olhos e são legião. Em primeiro lugar aqueles que escrevem, e a Manuzio está aqui de braços abertos. Basta atraí-los publicando uma coleção que se faça notar, que poderia intitular-se, vejamos...

"A Tábula Esmeraldina", disse Diotallevi.

"Como? Não, muito complicado, a mim por exemplo não diz nada, precisamos de algo que recorde alguma coisa mais...”

"Ísis Revelada", disse eu.

"Ísis Revelada! Soa bem, bravo Casaubon, está na linha de Tutankhamon, do escaravelho das pirâmides. Isis Revelada, com uma capa levemente agourenta, mas não muito. E vamos em frente. Depois, há a segunda leva, a dos que compram. Bem, meus amigos, os senhores me dizem que a Manuzio não está interessada naqueles que compram. Foi o médico que disse? Desta vez venderemos os livros da Manuzio. meus senhores, será um salto qualitativo! E por fim sobram os estudos de nível científico, e aqui entra em cena a Garamond. Ao lado dos estudos históricos e das outras coleções universitárias, encontramos um consulente sério e publicamos três ou quatro livros por ano, numa coleção séria, rigorosa, com um título explícito mas não pitoresco...”

"Hermética", disse Diotallevi.

"Ótimo. Clássico, dignificante. Os senhores poderão me perguntar por que gastar dinheiro com a Garamond quando podemos ganhar com a Manuzio. Mas a coleção séria dá reclame, atrai pessoas sensatas que farão outras propostas, indicarão pistas, e atrai também as outras, os Bramanti, que serão desviados para a Manuzio. Parece-me um projeto perfeito, o Projeto Hermes, uma operação limpa, rendosa, que consolida o fluxo ideal entre as duas casas... Senhores, mãos à obra. Visitem as livrarias, levantem bibliografias, mandem vir catálogos, vamos ver o que estão fazendo em outros países... E depois quem sabe quanta gente nos veio procurar que trazia consigo tesouros de certo tipo, e as mandamos embora porque então não nos serviam. E faço questão, Casaubon, mesmo na história dos metais vamos colocar um pouco de alquimia. O ouro é um metal, quero crer. Os comentários depois, sabem que sou aberto às críticas, sugestões, contestações, como se faz entre pessoas cultas. O projeto entra em execução a partir deste momento. Sra. Grazia, mande entrar aquele senhor que está esperando há duas horas, isto não é modo de se tratar um Autor!" disse, abrindo-nos a porta e tratando de se fazer ouvir na sala de espera.

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

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