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O PRÍNCIPE E O LOBO / Ronda Thompson
O PRÍNCIPE E O LOBO / Ronda Thompson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PRÍNCIPE E O LOBO

 

                   Mansão Collingsworth, Inglaterra, 1821

Seu marido a mataria. O pensamento surgiu na mente de Amélia Sinclair Collingsworth no momento em que as mãos de lorde Collingsworth se fechavam em torno de seu pescoço. No entanto, as mãos geralmente suaves não pare­ciam verdadeiras mãos na escuridão. Era como se fossem... garras. Aquela era a sua noite de núpcias, e o tímido marido de Amélia não estava agindo com timidez, ou como o cava­lheiro com quem ela havia se casado naquela manhã, em Londres. O que se passava com ele?

— Robert, você está me machucando! — protestou, ofegante, aprisionada sob o corpo dele, na cama onde planejara perder a inocência, não a vida.

Seu noivo riu, mas não foi uma risada normal. Sua voz soou profunda, alterada, como se ele tivesse a garganta seca. Os dedos rudes desceram pelo pescoço de Amélia, rasgaram a camisola, do decote até a cintura. Ela gritou, lutando com desespero sob o peso surpreendente do homem a quem seu pai um dia se referira como sendo "de aspecto frágil".

— Robert, por favor! Está me assustando!

Ouviu novamente a risada, que fez os cabelos arrepiarem em sua nuca.

— Robert não está aqui — ele anunciou.

O que ele queria dizer com isso? Estaria Amélia tendo um pesadelo? Talvez estivesse prestes a acordar e descobrir que estava na casa dos pais, em Londres. Talvez não houvesse se casado naquela manhã, diante de grande parte da alta sociedade londrina. E também não houvesse viajado até a propriedade de Robert no campo, para uma curta lua-de-mel, antes de partir para a longa viagem de núpcias.

— Estou sonhando — murmurou baixinho, tentando se acalmar. — Vou acordar em um instante.

Robert soltou mais uma risada estranha e rolou para o lado. Amélia pôde respirar novamente. Ouviu o som de tecido se rasgando e perguntou-se se ele estaria rasgando a própria roupa. Fosse sonho ou não, as batidas desesperadas de seu coração, o ardor nos arranhões em seu pescoço pareciam muito reais. Seus instintos gritavam para que ela fugisse... enquanto ainda podia.

Rolou para a beirada da cama, pensando em correr dali. Robert puxou-a de volta e deitou-se sobre ela... nu... mas sua pele parecia coberta de pêlos.

Amélia cravou as unhas nos olhos de Robert, que urrou como um animal ferido. Com toda força, ela o empurrou, desvencilhando-se e atirando-se no chão. Ainda de quatro, arrastou-se rapidamente para longe da cama. Em nome do recato, que Amélia nem sequer possuía, Robert insistira em manter os lampiões apagados. A escuridão era total. Onde estava a porta?

— Maldita!

A voz rouca e pouco humana provocou um arrepio na es­pinha de Amélia, imobilizando-a. Teve medo de se mover e, com isso, delatar sua posição. Tateando o chão, sua mão co­lidiu com uma peça de mobília. A escrivaninha, lembrou-se, tendo visitado o quarto de Robert somente uma vez, poucas horas antes, quando subira para descansar antes do jantar.

Com movimentos lentos e cuidadosos, ajoelhou-se e pas­sou a mão pela escrivaninha, até seus dedos pousarem sobre um objeto pequeno e frio. Antes que tivesse a chance de identificar tal objeto, foi agarrada por trás e atirada com força no chão.

— Você é minha, agora.

Embora não pudesse vê-lo no escuro, sentiu a presença ameaçadora sobre ela. O hálito de Robert era fétido, como o de um animal que se alimenta de carne crua. Sentiu a cabeça doer onde atingira o chão. O pescoço ardia pelos arranhões. Então, Robert ergueu sua camisola e afastou seus joelhos. A sensação das garras afiadas contra suas coxas provocou uma onda de náusea em Amélia.

Agora, pensou, esse homem, essa coisa que não pode ser Robert, vai me deflorar. A mãe lhe dissera que deveria sub­meter-se a Robert na noite de núpcias, fazer tudo o que ele lhe pedisse. Ora, de jeito nenhum! Ergueu o objeto frio que encontrara sobre a escrivaninha e desferiu um golpe.

Ouviu um som que a fez lembrar-se da cozinheira enter­rando a faca na carne crua de um carneiro. Robert emitiu outro rugido medonho e tombou para trás. O coração ainda aos saltos, Amélia virou-se de bruços e arrastou-se para lon­ge dele. Esperava que as garras a alcançassem novamente, que Robert a matasse em sua fúria. No entanto, a porta que separava o quarto dele do seu abriu-se com um estrondo.

Ela havia deixado uma vela acesa em seu quarto. A luz suave delineou a silhueta de um homem muito alto, de ca­belos loiros que refletiam o brilho da vela. Naquele instante, Amélia teve a certeza de que estava sonhando, pois sonhara com aquele homem antes.

— Que diabos está acontecendo aqui? — ele perguntou. Estranho. Ele nunca falara em seus sonhos, antes. E, se houvesse falado, ela teria sonhado exatamente com aquela voz: profunda, baixa, extremamente sensual. Somente lorde Gabriel Wulf poderia ter uma voz como aquela. Só ele sur­giria em seus pesadelos para salvá-la. Ora, mas ele não podia estar mesmo ali. Aquilo não podia estar acontecendo. Amélia riu da própria imaginação, embora não pudesse ignorar o tom histérico de seu riso.

— Quem está aí? — ele inquiriu.

Amélia perguntou-se se ele conversaria com ela, caso ela respondesse. O sonho tornava-se mais absurdo a cada ins­tante.

— Lady Amélia — respondeu. — Collingsworth — acres­centou, contendo outro risinho histérico. — Ou era. Acabo de matar meu marido.

Um momento de silêncio e constrangimento seguiu-se à declaração. A silhueta entrou no quarto. Amélia distinguiu a forma escura de uma pistola.

Ah, meu Deus, será que ele vai me matar! Perguntou-se se o pesadelo mudaria, de Robert tentando matá-la, para Gabriel Wulf se tornando o assassino.

— Onde está lorde Collingsworth?

Amélia decidiu que, mesmo em um sonho, seria melhor responder a um homem que empunhava uma arma.

— No chão, ao lado da cama.

Se estava mesmo sonhando, e devia estar, o pesadelo pa­recia real demais. Poderia jurar que sentia um fio de sangue escorrendo de seu pescoço.

— Robert... tentou me machucar. Ele... parece ser outra pessoa.

Amélia não sabia por que se preocupava em explicar qual­quer coisa, já que nada em seu sonho fazia o menor sentido. Talvez, porém, em um nível mais profundo, ela compreen­desse por que seu marido transformara-se em um monstro e por que Gabriel Wulf aparecera para salvá-la. A sociedade era o verdadeiro monstro.

Fazer o que era esperado dela resultava em uma punição. Gabriel Wulf representava o lado rebelde de sua natureza. Ele representava a liberdade.

— Robert não está aqui.

O fato de ele repetir exatamente as mesmas palavras que Robert pronunciara com sua voz gutural provocou-lhe ar­repios. E foi mais que a lembrança dos momentos de terror que a deixaram nervosa. Se Robert não estava lá, onde estaria?

Uma sombra escura surgiu atrás do anjo loiro de Amélia.

Um brilho prateado cortou a escuridão. O objeto desceu no ar, atingindo o ombro de Gabriel Wulf. Ouviram-se sons de luta. A pistola disparou. Amélia gritou e fechou os olhos, cobrindo os ouvidos com as mãos. Voltou a gritar quando alguém a tocou.

— Não tenha medo. Não vou machucá-la.

Como podia um homem possuir voz tão sensual e, ao mes­mo tempo, tão reconfortante? Não podia, a menos que tal homem fosse mero produto de sua imaginação. Amélia agar­rou-se àquele resquício de sanidade. Tinha de acordar, antes que se atirasse nos braços dele, antes que o conforto se tor­nasse algo mais. Porém, ela não acordou, nem se atirou nos braços de Gabriel Wulf. A porta do quarto de Robert se abriu e a chama de uma vela iluminou a passagem.

— Minha senhora — chamou uma voz feminina. — Ouvi um tiro. O que está acontecendo?

Com olhos arregalados de medo, a figura delgada perma­neceu junto à porta. Amélia não se lembrava do nome da jovem criada. Ela fora a única pessoa a receber Amélia e Robert quando os dois chegaram à Mansão Collingsworth. A garota, muito magra, da mesma estatura de Amélia, usava um vestido surrado, avental e uma touca que cobria comple­tamente seus cabelos. Amélia calculava que a menina tinha em torno de quinze anos, jovem demais para arcar com todas as responsabilidades da Mansão Collingsworth.

Robert ficara profundamente perturbado ao saber que to­dos os seus criados, com exceção daquela garota, haviam partido. Somente um homem cuidava do estábulo. Ele dis­sera a Amélia que subisse para descansar, enquanto ele ten­tava descobrir o que havia acontecido. Mais tarde, porém, quando ela havia descido para jantar, Robert agira de ma­neira diferente, recusando a falar sobre o que descobrira.

— Minha senhora? — a criada repetiu.

— Traga a vela até aqui, garota! — Gabriel Wulf ordenou. — Depressa!

Como se viesse de muito distante, Amélia viu a chama da vela aproximar-se. A criada abaixou-se junto dela, e a vela lançou um brilho assombrado sobre o quarto. Amélia ergueu os olhos para Gabriel. Vira-o, uma vez, cavalgando pelas ruas de Londres com o irmão mais velho, Armond Wulf. Na ocasião, achara-o o homem mais atraente que já vira... e continuava achando.

Era ele mesmo. Amélia sabia que o estava encarando como uma desavergonhada qualquer, mas ele estava ocu­pado, examinando-a, provavelmente estudando seus seios que, sem dúvida, haviam saltado para fora da camisola ras­gada. Ele tocou com cuidado o seu pescoço, e ela encolheu-se de dor.

— Você — ele murmurou baixinho.

Amélia sentiu a cabeça girar, a visão turvar-se. A escuri­dão fechou ao seu redor e o rosto de Gabriel Wulf foi se tor­nando distante. Embora jamais houvesse desmaiado antes, ela se deu conta de que era exatamente o que estava acon­tecendo.

Gabriel tomou a mulher inconsciente nos braços e pôs-se de pé. Se tanta adrenalina não corresse em seu sangue na­quele momento, sentiria a dor do ferimento a faca no ombro e da bala que estava em sua coxa. Carregou a mulher até o quarto ao lado e acomodou-a na cama.

— Água — pediu à criada. — E panos limpos para limpar o sangue.

Voltou a tocar o pescoço da mulher. Dois arranhões pro­fundos marcavam a pele clara. Examinou-lhe o rosto, certificando-se de que ela era mesmo quem ele pensava que fosse. A pele branca como mármore, os cachos dourados a emoldu­rar o rosto oval, os olhos, quando abertos, azuis como o céu... e a suave covinha no queixo.

Era linda, e por isso chamara-lhe a atenção nas ruas de Londres, meses antes. Não se conheciam, mas desde aquele dia, ele havia sonhado com ela... freqüentemente.

— A água, meu senhor.

Mesmo carregando um jarro de água, com um punhado de toalhas debaixo do braço, a jovem criada movia-se silenciosamente. Ela depositou o jarro junto à bacia, sobre a mesa de cabeceira.

— Onde estão os demais criados? A governanta? — per­guntou Gabriel.

— Eles se foram, todos — ela sussurrou —, por medo. Gabriel despejou a água na bacia.

— Medo de quê? — indagou, curioso.

Passara boa parte da infância na Mansão Collingsworth e jamais imaginara que houvesse ali algo a temer.

A garota não respondeu de pronto e, quando Gabriel a encarou, ela disse:

— Receio que, se eu lhe contar, meu senhor, vai pensar que enlouqueci.

— Tente — ele ordenou em tom seco.

Estava fazendo um esforço enorme para ignorar a dor latejante no ombro e na perna, além do fato de ter acabado de atirar em seu amigo de infância.

— Monstros, meu senhor — a criada murmurou. — Exis­tem monstros nos bosques que circundam a casa. Às vezes, são lobos, mas às vezes, são homens.

Um homem normal pensaria que a moça estava louca, mas Gabriel não era um homem normal.

— Já viu essas criaturas, menina? Ela baixou os olhos e assentiu.

— Sim, meu senhor.

Gabriel pegou uma das toalhas e mergulhou-a na água.

— E, mesmo assim, preferiu ficar, quando todos os outros partiram? É mesmo tão corajosa?

A garota sacudiu a cabeça com vigor.

— Não, meu senhor. Eu não tinha para onde ir. Não tenho família, exceto meu irmão, que está trabalhando só Deus sabe onde. Eu era nova por aqui, quando tudo começou. Nin­guém se ofereceu para me levar. Foi cada um por si.

Limpando o pescoço da mulher inconsciente com gestos cuidadosos e delicados, Gabriel perguntou:

— Por que não respondeu ao meu chamado, lá embaixo? Vi que ainda havia luz na casa.

— Não abro a porta para ninguém depois do anoitecer. Não com tudo isso acontecendo.

Gabriel não sabia ao certo com o que havia se deparado ali. O que dera em Robert para atacar a noiva? Ele só havia parado na Mansão Collingsworth por causa do ferimento na coxa e de seu cavalo exausto. Não havia ninguém no estábulo, quando ele chegou.

Pensou em, simplesmente, roubar um dos cavalos de Robert e seguir para Wulfglen, a propriedade de sua fa­mília, vizinha à Mansão Collingsworth, mas ele e Robert eram amigos de infância. A consciência lhe dizia que ao menos pedisse ao amigo um cavalo.

Quando ninguém atendeu à porta, ele se resignou à idéia inicial de pegar um cavalo e deixar as explicações para de­pois. Foi então que ouviu gritos. Tentou abrir a porta, mas estava trancada. Lembrando-se de uma árvore que ele e o irmão haviam utilizado muitas vezes para escapar do quarto de Robert e nadar nus, no meio da noite, em um lago perto dali, Gabriel deu a volta na casa e subiu pela árvore. Uma vez dentro da casa, os gritos o levaram até aquele quarto, onde ele se deu conta de que, na verdade, vinham da suíte vizinha.

A mulher gemeu e Gabriel baixou os olhos para fitá-la. A camisola estava rasgada e, embora ele tentasse não prestar atenção, os seios pálidos estavam parcialmente expostos a seus olhos. Ele desviou o olhar.

— Cuide dela — disse à criada, deixando a toalha ensan­güentada de lado. — Encontre algo para cobri-la.

Levantou-se, pegou a vela e foi até o quarto ao lado. Quase esperava que Robert o atacasse novamente, embora soubes­se que um tiro de pistola à queima-roupa o teria matado. Ainda não conseguia acreditar que tinha matado Robert, ou que o amigo de infância o esfaqueara. O Robert que ele co­nhecia tão bem era um rapaz tímido e frágil.

A amizade entre eles terminara anos antes. Todas as ami­zades de Gabriel haviam se acabado após a descoberta de que a família Wulf era amaldiçoada.

Aproximando a vela do chão, embora não precisasse de mais luz, Gabriel examinou a área. Enxergava muito bem no escuro, mas o que viu deixou-o confuso. Não era Robert Collingsworth que jazia no chão, morto por um tiro.

— Criada — chamou. — Venha cá!

Silenciosa como a noite, ela apareceu ao lado dele.

— Quem é este homem? — Gabriel inquiriu. A moça teve um sobressalto.

— Esse é Vincent, que cuida do estábulo. Foi o único que não fugiu. O que ele está fazendo no quarto do lorde?

Ali estava uma pergunta cuja resposta Gabriel também queria saber. O que o homem estivera fazendo, ou tentando fazer, era óbvio. Estava nu. Onde estava Robert? Como dei­xara aquilo acontecer?

— Cuide de sua senhora — Gabriel repetiu. — Vou pro­curar lorde Collingsworth.

— Não saia da casa — a criada advertiu. — Pode não voltar.

Embora suspeitasse de que a imaginação da garota a es­tivesse assustando demais, Gabriel sabia que realmente existiam coisas assim, como homens capazes de mudar de forma. Anos antes, seu pai se suicidara devido a uma dessas transformações. Sua mãe morrera pouco depois, em resul­tado do choque ou da loucura. Toda a sociedade acreditava que os Wulf carregavam a maldição da insanidade e, por isso, a família fora excluída de todos os círculos. Gabriel sem­pre havia pensado que os outros, sim, eram motivo de riso, pois não se tratava de um mero caso de loucura.

Dirigiu-se à porta que levava ao corredor.

— Feche aquela porta — disse, indicando a que levava ao quarto conjugado, embora a porta pendesse das dobradiças, graças ao chute que ele mesmo dera para abri-la.

— E quanto a... ele? — a criada apontou para o corpo no chão.

— Cuidarei dele depois.

Depois de sair dos aposentos de lorde Collingsworth, Gabriel apagou a vela que carregava. Possuía visão extraordinária no escuro. Possuía audição extraordinária. Possuía muitas coi­sas extraordinárias. Decidiu revistar os aposentos do andar superior primeiro.

Tudo parecia em ordem lá em cima. Foi quando descia a escada que voltou a sentir dor nos ferimentos.

Havia meses que procurava pelo irmão mais novo, Jackson. O tolo desaparecera em Londres, e Gabriel prometera ao irmão mais velho, Armond, que encontraria Jackson. A busca não fora fácil.

Finalmente, Gabriel seguira uma pista sobre o paradeiro de Jackson e foi parar em uma pequena vila chamada Whit Hurch, onde planejava perguntar se alguém ali sabia de seu irmão. Porém, foi recebido por camponeses furiosos, arma­dos de forcados e mosquetes, que obviamente o confundiram com Jackson. Gabriel foi atingido por uma bala na coxa, an­tes que tivesse tempo de montar o cavalo e fugir.

Os camponeses o seguiram. Ele passou a maior parte de uma semana tentando despistá-los. Então, passou a maior parte de outra semana viajando de volta a Wulfglen. Pelo que sabia, o idiota do irmão mais novo tinha voltado para casa. Agora, isso!

Os aposentos do andar inferior estavam desertos. Na co­zinha, uma panela de ensopado fervia sobre o fogo baixo. Gabriel claudicou até a despensa, que se encontrava prati­camente vazia. Encontrou uma porta que levava à adega, no porão.

A escada rangeu sob o seu peso. Sua coxa latejava. Apesar da escuridão total, pôde distinguir algumas formas. Um camundongo assustado, suprimentos que precisavam da tem­peratura baixa para não se estragar. A adega cheirava a poeira úmida e... ele parou. Fechou os olhos por um momento e inspirou profundamente. Morte.

Caminhou para o fundo da adega, já com a certeza do que estava prestes a encontrar. Deitado no chão úmido, Robert fitava o teto sem enxergar, o semblante congelado em uma máscara de horror, uma das mãos sobre o coração. Estava morto.

 

Que cheiro horrível! Amélia voltou depressa da escuridão que a envolvia. Lutou para remover o odor medonho de de­baixo de seu nariz.

— Acalme-se, minha senhora. São apenas os sais para trazê-la de volta.

Amélia tossiu. Olhou em volta, confusa. Não estava em seu quarto, em Londres. O pesadelo voltou com força total. Sentiu a pele arrepiar-se. Estaria sonhando, ainda? Deus, tomara que não.

— Belisque-me — sussurrou para a criada. — Belisque-me para que eu possa acordar.

A garota arregalou os olhos.

— Não está sonhando, minha senhora. Passou por um susto terrível.

Amélia olhou para a porta que separava seu quarto do quarto de seu noivo. Estava fechada, mas parecia pender das dobradiças. Gabriel Wulf abrira aquela porta a pontapés. Ou, ao menos, ela achava que fora Gabriel Wulf.

— Havia um homem...

— Eu sei, minha senhora. O criado que cuidava do estábulo. Não sei como ele entrou na casa, ou no quarto do lorde. Está morto, agora. O outro homem o matou.

Amélia sentiu a cabeça voltar a girar.

— O que? De que criado do estábulo está falando?

— Vincent — respondeu a criada. — E ele quem está mor­to no outro quarto. Não conheço o outro homem. E alto como um carvalho, e quase tão largo nos ombros. Não tenho idéia de como nenhum dos dois entrou na casa. Tranquei as todas as portas.

— Mas... — Amélia massageou as têmporas que latejavam. — Mas era lorde Collingsworth, no outro quarto. Eu o vi à luz da vela quando ele bateu à porta e pediu que eu me juntasse a ele.

A garota franziu o cenho e sacudiu a cabeça.

— Não era o seu marido, no quarto. Era Vincent, do estábulo. Foi ele quem tentou machucá-la. O outro homem saiu à procura do lorde.

Reclinando-se nos travesseiros, Amélia tentou digerir o que a criada dissera. Tinha certeza de que fora Robert quem a chamara para juntar-se a ele no leito nupcial. Como podia a história da criada ser verdadeira? Por outro lado, por que a garota mentiria para ela? E se não fora um pesadelo, seria mesmo Gabriel Wulf quem saíra em busca de seu marido? E se era ele, o que estava fazendo na Mansão Collingsworth?

A porta do quarto se abriu. Um gigante loiro entrou. Lorde Gabriel Wulf. Ele olhou para Amélia e, então, dirigiu-se à criada:

— Providencie uma bebida para nós. Algo bem forte.

A garota assentiu, encaminhou-se para a porta, mas he­sitou, parecendo assustada.

— Tem certeza de que é seguro?

— Sim — Wulf afirmou. — Não há mais ninguém na casa. Relutante, a criada continuou na direção da porta.

— Traga, também, um pouco daquele ensopado que es­tá no fogo — Wulf acrescentou. — A senhora precisa ali­mentar-se.

Amélia estudou Gabriel Wulf com cautela. Aquela noite exigia precaução, se ela não estava mesmo sonhando.

— O que está fazendo aqui?

Ele oscilou ligeiramente e olhou em volta.

— Aquelas cadeiras delicadas se quebrariam sob o meu peso — ele disse, indicando as cadeiras dispostas diante da lareira. — Posso me sentar na cama? Minha perna...

Só então Amélia notou a mancha escura na calça de ca­murça.

— Está ferido?

Sem esperar por permissão, ele se aproximou, mancando, e sentou-se na beirada da cama de Amélia.

— Foi por isso que parei aqui. E também porque meu cavalo estava exausto. Planejava pedir a Collingsworth que me emprestasse um de seus cavalos e seguir viagem até Wulfglen, mas...

Ainda atordoada, Amélia sussurrou:

— A criada disse que o homem no quarto ao lado não é Robert, mas insisto que deve ser. Foi ele quem bateu à minha porta e me chamou para que me juntasse a ele.

Os cílios escuros e espessos cobriram os olhos de Wulf por um longo momento, antes que ele os erguesse para fitá-la. E seus olhos eram de um verde puro e brilhante. Costeletas escuras tornavam sombrio o queixo de linhas másculas, en­quanto os cabelos de um loiro escuro apresentavam mechas tão claras que chegavam a parecer prateados à luz da vela. Para um homem tão grande, seus traços eram refinados. Ele possuía nariz reto e proporcional, sobrancelhas escuras, ros­to quadrado e lábios carnudos, esculpidos para formar um conjunto perfeito com o restante das feições. Era um homem de tirar o fôlego.

— Collingsworth está morto—Wulf anunciou sem preâm­bulos. — Encontrei-o na adega.

Amélia fitou-o inexpressiva por um longo instante, temen­do que estivesse em estado de choque e que sua mente fosse incapaz de absorver as palavras. Os acontecimentos que ha­viam levado até aquele momento pareciam não penetrar seus sentidos. Nunca amara Robert. Casara-se com ele so­mente porque ele era um bom partido e seus pais o haviam aprovado para ser seu marido. Tentara enganar-se, forçando-se a acreditar que viria a amá-lo com o tempo, mas a verdade era que não acreditava em amor. "Amor" era apenas uma palavra bonita que as pessoas usavam em lugar de "de­sejo" ou "obrigação".

— Morto — repetiu aturdida, embora minutos antes hou­vesse pensado que ele jazia morto no quarto ao lado. — Mor­to... como?

Wulf passou a mão pelo rosto.

— Pelo que pude ver, ele morreu do coração. Não encontrei um arranhão sequer em seu corpo.

Os olhos de Amélia encheram-se de lágrimas, e ela se esforçou para contê-las. Não importava se amava Robert ou não; ele era seu marido. Não desejaria a morte dele. Tendo sido mimada e protegida durante toda a sua vida, imaginara que seu jovem marido seguiria o mesmo rumo. Agora, ele estava morto. E o homem no quarto ao lado não era seu marido. Nada fazia sentido.

— Isso não pode estar acontecendo — murmurou. — Juro que era Robert quem estava no quarto comigo. Não houve tempo para uma troca acontecer.

Wulf estendeu o braço para a bacia sobre a mesa-de-cabeceira, apanhou uma toalha de dentro dela e torceu-a.

— Seu pescoço voltou a sangrar — disse.

Amélia ainda sentia os arranhões arderem. Wulf limpou o sangue com todo cuidado. Ela teve a presença de espírito de baixar os olhos e examinar-se, e foi com alívio que cons­tatou o cobertor que cobria seu corpo. O roupão encontrava-se a seu lado, sobre a cama.

Sua camisola era fina e um pouco ousada para uma noiva recém-casada, mas Amélia sempre fora um pouco arrojada. O tecido quase transparente rasgara-se com facilidade sob as... garras de Robert. Ela estremeceu.

— Vou acender a lareira — Gabriel anunciou, obviamente interpretando a reação dela como frio.

Depois de devolver à bacia a toalha que usara para limpar o sangue do pescoço de Amélia, ele se levantou e foi até a lareira.

A criada retornou em seguida. Um aroma delicioso er­guia-se dos dois pratos que a moça trazia na bandeja. Amélia poderia jurar que seria incapaz de comer em um momento como aquele, mas seu estômago discordou com um ronco suave.

— Trouxe o ensopado — disse a criada —, e uma garrafa de conhaque. Achei que faria bem à senhora.

Apesar de tão jovem, a garota parecia madura para a ida­de. Amélia, porém, sabia que estava à beira de uma crise histérica. Os acontecimentos da noite pareciam irreais, como um sonho, ou melhor, um pesadelo. A Mansão Collingsworth provocara-lhe uma sensação desagradável no momento em que ela e Robert haviam posto os pés ali pela primeira vez.

A casa não era tão grande quanto ela esperava. Construí­da de pedras brancas, era cercada por arbustos secos e es­pinhosos. Mortos. Toda a vegetação em torno da casa estava morta. Um belo arco levava ao jardim, mas a hera que con­seguira sobreviver à visível falta de cuidados era esparsa e pouco atraente. Janelas e portas precisavam de pintura. A casa parecia estar desmoronando. O estado da propriedade de campo de Robert a surpreendera.

Seu pai lhe assegurara que o marido cuidaria dela de ma­neira apropriada, que ela teria tudo do bom e do melhor, como estava acostumada. Seu noivo rira da expressão em seu rosto quando chegaram à Mansão Collingsworth e dis­sera que ela teria total liberdade para tornar o lugar apresentável.

Robert admitira que, na qualidade de homem solteiro, não tivera o menor interesse naquele tipo de coisa. Eram os cava­los que lhe despertavam o interesse na Mansão Collingsworth. Os cavalos e a rica plantação... mas os campos pareciam descuidados, também, quando passaram por eles. Embora não dissesse nada, Robert ficara profundamente contrariado com o fato pelo restante da viagem. Descobrir que a maior parte dos criados havia fugido só fizera piorar seu humor já sombrio.

— O cocheiro — Amélia lembrou-se de súbito. — E um lacaio. Vieram conosco, de Londres. Deveriam estar no estábulo.

Com o fogo ardendo atrás de si, Wulf voltou para perto da cama.

— Não havia ninguém no estábulo. Anunciei minha che­gada em alto e bom som, para não ser confundido com um ladrão de cavalos.

— Talvez tenham fugido como os outros — sugeriu a criada.

Ao falar, ela foi finalmente notada por Wulf.

— Ponha a bandeja ali — ele instruiu, apontando para a penteadeira. Então, esfregou o ombro com expressão de dor. Havia uma mancha de sangue também em sua camisa.

Amélia lembrou-se de que Robert, ou quem quer que es­tivesse no outro quarto com ela, havia esfaqueado Gabriel. Lá estava ele, preocupado com um par de arranhões em seu pescoço, quando ele mesmo poderia sangrar até a morte.

— Lorde Gabriel — Amélia chamou. — Por favor, venha sentar-se. Seus ferimentos precisam de cuidados.

Em vez de obedecer, ele foi até a penteadeira, encheu dois copos de conhaque, bebeu o conteúdo de um deles e trouxe o outro para ela.

— Haverá tempo para isso mais tarde — disse, estendendo-lhe o copo. — Beba. Vai queimar sua garganta no início, mas ajudará a sentir-se mais forte.

Ele não teve de falar duas vezes. Amélia pegou o copo, levou-o aos lábios e bebeu todo o conteúdo de um só gole. Quando terminou, notou as sobrancelhas arqueadas de Wulf.

— Já tomei conhaque antes — explicou. — Aliás, foi sua cunhada, lady Wulf, quem me apresentou à bebida.

— Rosalind? Ela assentiu.

— Somos grandes amigas.

Wulf finalmente sentou-se na beirada da cama.

— Como sabe meu nome?

Amélia sentiu-se tola por todas as horas que passara pen­sando em Gabriel Wulf, quando deveria ter pensado em Robert que, ao menos, fizera-lhe a corte. Vira Gabriel uma única vez, e mesmo assim, ele permanecera presente em seus pensamentos. Naquela manhã, quando pronunciava seus votos, a imagem dele surgira em sua mente.

— Eu o vi uma vez em Londres. Mais tarde, reconheci-o no retrato que vi na casa de sua família, e Rosalind disse-me seu nome. — Ergueu o copo vazio. — Posso beber mais um?

Wulf lançou um olhar para a criada que, prontamente, apanhou a garrafa. Enquanto a moça servia-lhe a bebida, Amélia tentou reunir suas forças. Sentindo o olhar de Gabriel sobre si, forçou-se a beber devagar, em pequenos goles.

— Poderia virar-se para eu vestir meu roupão? Quero me levantar e minha camisola está rasgada.

Por uma fração de segundo, o olhar de Wulf desceu pelo corpo de Amélia e voltou a subir.

— Percebi.

O comentário soou um tanto estranho, diante de tudo o que se passava. Ele havia percebido que sua camisola estava rasgada e, sem dúvida, que seus seios quase haviam saltado para fora do decote. Por mais estranho que fosse, ela sentiu um leve arrepio pelo fato de ele ter notado.

— Deveria ficar na cama — disse Wulf. — Tenho certeza de que uma senhora tão sensível desmaiaria de novo e, para ser honesto, com a dor que estou sentindo no ombro, não creio que conseguiria carregá-la pela segunda vez.

Tal afirmação chocou-a, pois não era o que esperava ouvir de um cavalheiro. Porém, Amélia sabia que Gabriel Wulf não era um cavalheiro e supunha que isso era parte da atra­ção que ele exercia sobre ela.

— Não vou desmaiar — declarou com firmeza, rezando para que fosse verdade. — Se não se virar, simplesmente, exibirei meus seios.

As sobrancelhas dele voltaram a se arquear. O fato de ter sido capaz de chocá-lo quase fez Amélia sorrir, mas as cir­cunstâncias a impediram.

— Talvez devesse sair por um instante, meu senhor, en­quanto ajudo a senhora a vestir o roupão.

Amélia havia se esquecido da presença da criada.

— Ele mal consegue se manter de pé — Amélia descartou a sugestão. — Se ele desmaiar, duvido que nós duas juntas sejamos capazes de levantá-lo.

Os lábios de Gabriel curvaram-se na mais leve indicação de um sorriso.

— Creio que nós dois fomos colocados em nossos devidos lugares — ele disse à criada.

A moça não sorriu, mas adiantou-se para ajudar Amélia a vestir o roupão.

— Como é mesmo o seu nome? — Amélia perguntou a ela.

— Mora, minha senhora.

— Mora diz que bestas rondam a casa, lobos que se trans­formam em homens e vice-versa. Acredita nessas coisas, lady Collingsworth? — Wulf manteve o olhar fixo em um ponto distante, enquanto Mora ajudava Amélia com o roupão.

—E claro que não — ela respondeu. — Sem querer ofender Mora, essas coisas não passam de folclore, histórias inven­tadas para amedrontar crianças pequenas das vilas, para que não saiam pelos bosques e acabem se perdendo.

Enquanto amarrava o cinto do roupão, Amélia encarou a criada, tentando exibir uma expressão que indicasse que ela não culpava a garota por acreditar em coisas que não exis­tiam. Afinal, vinham de realidades muito diferentes.

A moça, em resposta, limitou-se a baixar os olhos, assu­mindo postura submissa.

— Mora, por favor, traga o que tivermos para cuidar dos ferimentos de lorde Gabriel.

Mora saiu do quarto em silêncio. Amélia passou por Wulf e foi até a penteadeira. Apanhou um prato de sopa e estendeu para ele. Nunca servira alguém antes, exceto chá, mas nas atuais circunstâncias, concluiu que seria melhor não fazer pose.

— Acho que precisa se fortalecer. Está com fome?

Quando ele pegou o prato, seus dedos roçaram de leve nos dela. As mãos de Wulf não eram macias... não como as de Robert, mas mesmo assim, foi como se uma corrente elétrica percorresse o braço de Amélia.

— Não me lembro da última vez em que comi uma refeição decente — ele admitiu. — Tive de fugir.

De repente, Amélia sentiu as pernas trêmulas. Temendo voltar a desmaiar, sentou-se na beirada da cama, ao lado dele, apesar de saber que uma mulher decente não o faria.

— Fugir? — repetiu.

Embora estivesse faminto, Wulf comia com boas manei­ras. Mastigou e engoliu a comida antes de falar:

— É uma longa história. Saí à procura de meu irmão, Jackson. Ele desapareceu em Londres há alguns meses.

— Lorde Jackson? Ora, eu o vi esta manhã, na cerimônia do meu casamento. Estava acompanhado da esposa, lady Lucinda.

Wulf afastou o talher dos lábios.

— Esposa?

Concluindo, pela expressão chocada de Gabriel, que ele não sabia que o irmão havia se casado recentemente, Amélia perguntou:

— Não sabia que seu irmão se casou?

Wulf mal começara a comer, mas pôs de lado o prato.

— Nem sabia que ele tinha voltado para casa e, menos ainda, que está casado.

Sentindo-se grata por qualquer assunto que a distraísse, Amélia prosseguiu:

— Há um toque de escândalo na história. Correm boatos de que lady Lucinda é bruxa, mas gosto dela. E a criança é adorável.

Os olhos verdes de Gabriel arregalaram-se.

— Criança?

— Um menino, Sebastian. Não se parece em nada com o pai, mas é um lindo bebê.

Wulf passou a mão pelos cabelos, sacudindo a cabeça.

— Preciso voltar para casa.

Amélia sentiu uma pontada de saudade de casa. Queria voltar, também. Ansiava por voltar para a segurança do teto de seus pais.

Mora entrou no quarto, trazendo nos braços um amontoa­do de bandagens, uma tesoura e uma longa e ameaçadora pinça. Gabriel estendeu a mão para ela e pegou o jarro de água limpa e algumas toalhas.

— Trouxe tudo o que achei que poderíamos precisar — disse a criada. — Já tratei de alguns ferimentos, antes.

Amélia não fazia a menor idéia de como cuidar de qual­quer coisa que não fosse sua higiene pessoal ou eventos so­ciais. Sentiu-se inútil e duvidou da capacidade de sequer olhar para os ferimentos de Gabriel e, menos ainda, de lim­pá-los e cobri-los com bandagens.

— Cuidarei do ombro, primeiro — Mora anunciou. — Pre­cisa tirar a camisa, meu senhor.

Ele o fez sem pensar, puxando a camisa suja e amarrotada de dentro da calça e, depois, pela cabeça, embora não pudesse esconder a expressão de dor provocada pelos movimentos do ombro. Amélia, que havia se imaginado incapaz de olhar, ao contrário, não conseguiu desviar os olhos.

Ele tinha o peito forte e bronzeado, decorado por um par de mamilos cor de cobre. Não havia o menor sinal de gordura no abdome. Os ombros eram largos e musculosos. Então, ela viu o ferimento, o sangue, e teve de virar o rosto.

— Poderia ter sido pior — concluiu a criada. — Acho que não terei de costurar o corte.

O estômago de Amélia revirou, e ela caminhou trêmula até a penteadeira. O cheiro do ensopado fizera seu estômago roncar pouco antes. Agora, provocou-lhe náuseas. Ela apa­nhou a garrafa de conhaque.

— É melhor não beber demais. Pode passar mal.

Ela espiou por cima do ombro e viu que Wulf a observava, enquanto Mora fazia o curativo em seu ombro. Agora, com o ferimento devidamente coberto, podia voltar a olhar para ele sem tremer.

— O álcool não me afeta — afirmou. — Bebi um bocado de conhaque, uma tarde, com lady Wulf, e não senti qualquer efeito.

— Precisamos nos manter sóbrios — ele advertiu assim mesmo.

Amélia franziu o cenho.

— Se ainda vai acontecer mais alguma coisa ruim esta noite, prefiro estar bêbada como um gambá.

Ele quase sorriu, e Amélia tentou imaginar o rosto más­culo iluminado por um sorriso largo. Notara que os dentes dele eram perfeitos e muito brancos.

A criada voltou a falar:

— Agora, a perna. Vai ter de tirar a calça, meu senhor.

A simples idéia de ver Gabriel Wulf nu provocou uma onda de calor que deixou Amélia ofegante. Ela olhou para o copo de conhaque. Talvez fosse o efeito do álcool. Uma noiva não deveria ter tais pensamentos sobre outro ho­mem em plena noite de núpcias. Pôs o copo de lado e virou-se para ele.

— Pode usar o cobertor para se cobrir. — Mora e eu fica­remos de costas enquanto se despe.

Wulf deu de ombros.

— Para mim, não faz a menor diferença. — Levantou-se e começou a desabotoar a calça empoeirada e manchada de sangue.

Amélia deu-se conta de que nem ela, nem a criada, haviam se virado até ele quase terminar.

— Mora, vire-se — ela comandou.

Obediente, a moça juntou-se a ela, embora Amélia demo­rasse ainda mais um instante para realmente desviar o olhar de Gabriel, que estava prestes a abaixar a calça diante de quem quisesse ver.

Ela e Mora puseram-se de frente para a penteadeira. Amélia teve de fazer um esforço enorme para não espiar o espelho, a fim de ter um vislumbre de Wulf sem roupa. De­finitivamente, o álcool havia alterado sua capacidade de ra­ciocínio, mas ela voltou a pegar a garrafa para se fortificar um pouco mais.

— É melhor deixar um pouco para mim — disse Mora. — Vou precisar de álcool para limpar o ferimento, depois de extrair a bala.

Curiosa, Amélia indagou:

— Ele lhe contou que levou um tiro? A criada voltou a corar.

— Não, mas não precisou. Já vi ferimentos assim, antes. O meio em que fui criada não é particularmente bom, minha senhora.

— Muito bem, estou coberto — Wulf anunciou, interrom­pendo a conversa. — Depressa, garota. Ainda tenho muito que fazer, esta noite.

As duas viraram e depararam com Gabriel sentado na cama, o cobertor em torno da cintura, aberto para que a perna ferida ficasse exposta. Amélia nunca vira uma perna de homem, antes. Embora a moda masculina atual deixasse pouco por conta da imaginação, ver uma perna nua era muito diferente de ver apenas a forma de uma perna envolta pela calça justa.

Mesmo ferida, a perna de Gabriel era uma visão e tanto. Longa e musculosa, era coberta de pêlos dourados. Amélia limitou-se a apreciar a visão, enquanto Mora entrava em ação. Permaneceu junto da criada durante todo o processo, assistindo muda à garota extrair a bala da coxa de Wulf com a pinça enorme. Ele cerrou os dentes e gotas de suor brota­ram em sua testa, mas não se queixou.

— A bebida, minha senhora — Mora pediu. — Poderia, por favor, apanhar a garrafa?

Grata por ter o que fazer, Amélia apanhou a garrafa de cima da penteadeira e trouxe até a cama. Bebeu um gole, antes de entregar a garrafa a Mora que, por sua vez, ofere­ceu-a a Gabriel.

— Para se sentir mais forte — disse. — Vai arder um bocado.

Ele assentiu, aceitou a garrafa, bebeu um longo gole e devolveu-a. Amélia vibrou ao vê-lo tocar os lábios onde os dela haviam estado pouco antes. Como se sentisse a reação dela, os olhos de Wulf fixaram-se nos seus, e permaneceram assim enquanto Mora despejava o líquido sobre sua coxa.

Em momento algum, ele exibiu qualquer demonstração de dor.

— Agora, tenho de costurar — disse Mora. — Se mantiver o ferimento limpo como fez até agora, logo estará cicatrizado.

Wulf não disse nada. Continuou olhando fixamente para Amélia, e ela suspeitou de que ele o fazia para distrair-se da dor. Embora fosse bastante ousada, começou a sentir-se constrangida pelo olhar intenso. Perguntou-se o que ele con­seguia ver debaixo do roupão fino que usava. Não era reca­tada como uma jovem de família deveria ser. Uma vez, atre­vera-se a molhar o vestido durante um evento social. Sua mãe quase morrera ao vê-la emergir de um quarto de hós­pedes no andar superior, onde outras moças faziam o mesmo.

No entanto, havia algo estranho na maneira como ele a estudava... como uma raposa estudando um coelho. Amélia sentiu-se inquieta. E tudo o que acontecera naquela noite já fora inquietante demais. Ela precisava encontrar algo que mantivesse seus pensamentos longe dali.

— Posso tentar achar roupas limpas — ofereceu. — Robert... — Um nó formou-se em sua garganta, e ela precisou de um momento para se recompor. — Robert não era grande como você, mas talvez eu encontre algo.

— Não se preocupe com isso — ele disse e, finalmente, desviou o olhar para a porta que separava o quarto de Amélia do quarto de Robert. — Não lhe pediria para entrar ali.

De certa forma, ela precisava ver o corpo. Tinha de se convencer de que o homem não era Robert. Como pudera ficar tão confusa? Como o tal homem conseguira enganá-la?

— Vou conseguir — murmurou, sem saber ao certo a quem tentava convencer, se a si mesma ou Gabriel Wulf.

Amélia levou uma vela consigo. Não queria olhar para o chão, onde sabia estar o corpo do impostor. Preferiria evitar a visão, mas esse era o seu intento, além de encontrar roupas limpas para Gabriel Wulf usar. Respirando fundo, olhou para o chão. Não havia ninguém ali.

Suspirou aliviada. Evidentemente, Wulf removera o corpo durante ou depois da busca por Robert. Sentindo-se mais forte, foi até o guarda-roupa de Robert e abriu a porta. Cal­culou que uma camisola de dormir teria de servir como ca­misa para Gabriel, mas não pôde imaginar uma calça que lhe servisse. Além de ser muito mais alto que Robert, as coxas de Wulf eram... bem, suas coxas mais pareciam troncos de árvore.

Apanhou a camisola e virou-se para pegar a vela. Viu algo brilhar no chão: um abridor de cartas de prata, a extremi­dade suja de sangue. Estremecendo, notou que havia algo mais, e abaixou-se para apanhar o objeto. Parecia a garra de um animal e ela soltou-a rapidamente.

Ao voltar para seu quarto, viu Mora erguer-se ao lado de seu paciente.

— Acho que o ferimento está bem tratado — disse a criada.

Amélia depositou a vela na mesa-de-cabeceira e desdo­brou a camisola.

— Isso vai ter de servir, por enquanto.

Wulf pegou a vestimenta e enfiou os braços musculosos pelas mangas. Mais uma vez, ela admirou-lhe o físico.

— Obrigada por ter retirado o... homem. Achei que deveria me certificar de que não era Robert, mas...

— O quê? — Wulf imobilizou-se, a camisola ainda sobre a cabeça. — O que disse?

— O corpo, você o removeu... não?

Com movimentos rápidos, ele acabou de vestir a camisola e saltou da cama. A porta não resistiu a mais um ataque e tombou de vez. Chocada, Amélia limitou-se a observá-lo. Ou­viu-o praguejar no outro quarto e, em seguida, ouviu passos apressados no corredor.

Ora, não eram passos apressados, mas sim o som de ca­valos em disparada. O estábulo!

Amélia abriu a porta e saiu para o corredor. Teve um rápido vislumbre da camisola branca descendo a escada. Vol­tou para o quarto e avistou a pistola de Gabriel ainda sobre a penteadeira.

— Fique aqui — ordenou a Mora.

Apressada, apanhou a pistola e desceu correndo. Gabriel deixara a porta escancarada, e Amélia perguntou-se como ele havia conseguido retirar as trancas e, ainda, sair com tamanha rapidez. Uma nuvem de poeira erguia-se do lado de fora e ela tossiu. Então, alguém a agarrou por trás.

— O que está fazendo aqui?

Amélia quase gritou mas, reconhecendo a voz, reclinou-se nele, aliviada.

— A pistola. Achei que poderia precisar.

Passando um braço em torno corpo dela, Wulf retirou a pistola pesada de sua mão. Amélia desejou mais alguns mo­mentos ali, simplesmente apoiada naquele homem forte e sólido, que representava segurança.

— Alguém espantou os cavalos — ele disse. — Vou des­cobrir quem foi. Volte para dentro e tranque as portas.

Não importava o que mais a noite lhe reservava; Amélia sentia-se segura com Gabriel. Afinal, ele a salvara de um impostor determinado a violentá-la. Por isso, não queria per­dê-lo de vista.

— Vou com você.

Wulf suspirou, o hálito quente provocando um arrepio no pescoço de Amélia.

— Não tenho tempo de cuidar de você e de mim mesmo. Faça o que digo, mulher.

Chocada, parcialmente embriagada, Amélia jamais tole­raria ser tratada assim por um homem.

— Mulher? Você me chamou de "mulher"? Fique sabendo que não obedeço sequer aos homens com quem tenho relações de parentesco. E, certamente, não vou receber ordens de um estranho! Aposto que estarei mais segura acompanhando um homem grande e forte como você, do que me acovardando dentro de casa, na companhia de uma garota assustada.

Amélia sentiu o calor das mãos dele através do roupão fino, quando ele a virou para encará-la,

— Aquela "garota" está demonstrando mais bom senso do que você. Ela, ao menos, sabe ficar em seu lugar e não dis­cutir com seus...

— Seus o quê? — ela inquiriu, indignada. — Seus supe­riores? Era isso o que ia dizer?

Wulf não respondeu. Limitou-se a sacudir a cabeça e então passou por ela.

— Faça como quiser. Afinal, é o seu pescoço que está em risco.

Agora que tinha a permissão dele para segui-lo na peri­gosa missão, Amélia reconsiderou. Olhou para a casa atrás de si. A escuridão era total, exceto pela vela acesa em seu quarto. Viu o rosto pálido de Mora colado à janela e duvidou de que a criada pudesse ser de alguma ajuda, caso ela vol­tasse a ser atacada.

Gabriel já estava a meio caminho do estábulo. Ela decidiu arriscar-se com ele.

Lady Collingsworth o deixava perplexo. Gabriel sabia que ela o seguia. Não se parecia em nada com qualquer das jo­vens da alta sociedade que ele conhecera; não que conhecesse muitas. Ela nem se parecia com a idéia que ele fazia de uma jovem da sociedade. Talvez o conhaque houvesse lhe dado coragem, pois ele esperava que histeria e desmaios freqüen­tes fossem acontecer, depois de ser atacada e enviuvar na mesma noite. No entanto, ela o seguia na escuridão, vestindo apenas um roupão fino que revelava mais do que escondia.

Gabriel sentia fortes dores no ombro e na coxa, mas tentou se concentrar. O perfume de lady Collingsworth o distraía. Tudo nela o aturdia: desde o fato de que a vira antes e não fora capaz de tirá-la da cabeça, à maneira como ela o per­turbava como nenhuma mulher jamais perturbara. Sentira-se atraído por ela no momento em que a vira no quarto, em circunstâncias que tornavam ridículo qualquer sentimento que não fosse preocupação pela segurança dela ou pesar por sua terrível perda.

Não deveria ter aquele tipo de pensamento para com uma mulher que mal se casara e já estava viúva... Porém, se ela estava decidida a segui-lo, precisava saber onde ela estava. Parou diante da porta do estábulo, completamente aberta, agora que os cavalos haviam fugido. Assim que Amélia o al­cançou, ele levou um dedo aos lábios, indicando-lhe que fi­zesse silêncio. Juntos, entraram no estábulo com passos cui­dadosos. Não havia lampiões acesos, e o silêncio era mortal.

Gabriel olhou ao redor, a mão firme na pistola. Ouviu o movimento de camundongos no celeiro, o rangido do couro de rédeas e arreios que oscilavam à brisa que entrava pela porta aberta. Havia uma carruagem, que ele vira ao chegar, mas à qual não dera atenção.

Onde estariam o cocheiro e o lacaio? Gabriel tinha um forte palpite de que já sabia. Virou-se para Amélia.

— Fique aqui — sussurrou, antes de caminhar até a car­ruagem e abrir uma das portas laterais. Deparou com dois corpos, os dois homens com as gargantas cortadas. Rapida­mente, fechou a porta e voltou para Amélia, segurou-a pelo braço e levou-a até a porta do estábulo.

— O que aconteceu? — ela perguntou baixinho. — O que você viu?

Ele não respondeu. Algo muito errado estava acontecendo na Mansão Collingsworth. Tinha de levá-la de volta para dentro da casa e trancar as portas. Estavam perto de seu destino, quando ouviram os uivos. Gabriel e Amélia imobi­lizaram-se.

O ruído vinha dos bosques que cercavam a propriedade. Perto. Perto demais. Lobos? Que Gabriel soubesse, os lobos haviam sido extintos na Inglaterra, havia muito tempo. Além disso, lobos não abriam portas de estábulos e espan­tavam cavalos. Não se deitavam na cama de uma noiva recém-casada, fingindo ser seu marido. E não matavam ho­mens sem motivo.

— Parece haver uma centena deles — Amélia sussurrou ao seu lado.

Gabriel sabia que o som se propagava facilmente pelos bosques. Duvidou de que houvesse tantos lobos quantos lhes parecia. E, atentando para a direção da qual vinha cada uivo, sabia também que estavam cercados.

 

Amélia abriu os olhos e se deparou com uma cena con­fusa. Do outro lado do quarto, havia um homem, de costas para ela, observando pela janela os primeiros raios de sol. Ele vestia uma camisola, calça de camurça empoeirada e botas até os joelhos. Os cabelos roçavam a gola da camisola e eram de um loiro escuro, exceto pelas mechas quase prateadas. Gabriel Wulf. E ela não estava sã e salva na casa de seus pais em Londres.

— Você não dormiu? — perguntou.

Gabriel virou-se. Amélia tentou não demonstrar a própria reação. Bom Deus, ele era lindo, e uma mulher precisaria estar muito mais que apavorada para não notar.

— Achei melhor ficar acordado. Ela olhou em volta.

— Onde está Mora?

— Lá embaixo — Wulf respondeu, aproximando-se da ca­ma sem desviar os olhos dos dela. — Disse que prepararia o nosso desjejum. Uma jovem muito prática, eu diria.

Ao contrário dela mesma, nada prática, Amélia concluiu, mas decidiu deixar o comentário passar em branco. Havia coisas muito mais importantes com que se preocupar.

— O que vamos fazer? — indagou. Ele passou a mão pelos cabelos.

— Precisamos chegar a Wulfglen.

— A pé? Os cavalos se foram — perguntou, franzindo o cenho.

Sem ter sido convidado, Wulf sentou-se na beirada da ca­ma. Amélia supôs que era bom para ele o fato de ela não ser prática, pois sabia que aquilo era indecente.

— A pé, demoraríamos alguns dias, mas se conseguirmos chegar à estrada principal, talvez encontremos alguém que possa nos dar uma carona.

A Mansão Collingsworth ficava longe da estrada. Amélia constatara isso em sua viagem na véspera. Os campos eram vastos e a casa era cercada pelos bosques.

— Teríamos de viajar pelo bosque. Levando em conside­ração tudo o que aconteceu até agora, não creio que seja sensato.

— Por causa dos lobos? Amélia considerou a pergunta.

— Por causa de quem quer que esteja matando pessoas por aqui. O cocheiro e o lacaio estão mortos, não estão?

Gabriel desviou o olhar. O fato de não responder já era uma resposta.

— Não acho que os lobos que ouvimos ontem à noite sejam lobos de verdade.

Amélia recordou a sensação de garras em seu pescoço, o hálito fétido, os pêlos contra sua pele. Estremeceu. Ora, mas estava sendo ridícula, assim como ele.

— É claro que eram lobos — retrucou. — Não me diga que se deixou impressionar pelas histórias de Mora.

— Depois do que aconteceu com você, ontem à noite, não está com medo? — ele desafiou.

Não querendo pensar na noite anterior, pois sabia que não conseguiria raciocinar com clareza, Amélia racionalizou:

— Ontem à noite, eu estava histérica. Não posso ter ou­vido ou sentido o que pensei ter ouvido e sentido no quarto ao lado deste. Devo ter imaginado coisas.

Wulf ergueu uma sobrancelha.

— O que você ouviu e sentiu?

Como se o ato de fechar os olhos pudesse bloquear a lembrança, Amélia tentou. Infelizmente, o pesadelo estava lá, à sua espera. Voltou a abrir os olhos de pronto.

— Fui atacada por um homem que fingiu ser Robert. De­via ser bastante parecido com meu marido, para conseguir me enganar.

— Nem tanto — Wulf negou. — Ele tinha estatura e peso semelhantes, a mesma cor de cabelos, mas não se parecia em nada com Robert. Não se esqueça de que eu o vi.

Amélia levantou-se da cama e pôs se a andar de um lado para outro.

— Tem de haver uma explicação lógica — insistiu. Gabriel também se levantou e postou-se diante dela. Es­tendeu a mão e tocou de leve seu pescoço.

— E há uma explicação lógica para esses arranhões? Há uma explicação lógica para o fato de um homem no qual atirei e verifiquei estar morto conseguir fugir e desaparecer? E quanto a Robert estar morto na adega, e outros dois ho­mens terem as gargantas cortadas, no estábulo?

O coração de Amélia apertou-se e seus olhos se encheram de lágrimas.

— Robert — ela murmurou. — Não posso acreditar que esteja morto. Fico rezando para que tudo isso seja um pesa­delo e que eu vá acordar a qualquer momento e descobrir que tudo voltou a ser como era antes.

Tais palavras suavizaram a expressão de Wulf.

— Perdoe-me. Foi insensível de minha parte dizer aquilo. Tenho certeza de que gostava muito de Robert.

Amélia chegou a se perguntar quanto gostara de Robert, mas decidiu não tentar se enganar, dizendo que o amava. Lamentava a morte dele, mas exagerar seus sentimentos seria hipocrisia.

— Eu gostava dele — admitiu. — Achei que ele seria um bom marido. A morte dele me entristece, mas não vou fingir que Robert era o amor da minha vida. Não acredito em amor.

Um leve sorriso curvou os lábios sensuais de Wulf.

— Ora, viva a sinceridade! Ela empinou o queixo.

— Preferia que eu mentisse?

A expressão divertida desapareceu do rosto dele.

— Sei que, raramente, um casamento em Londres ocorre por amor, mas você poderia ter mentido. Afinal, Robert não está mais aqui para dizer o contrário.

Amélia não se deixaria morder a isca.

— E mentiria em benefício de quem? Seu?

Ele deu um passo adiante, aproximando-se ainda mais. Em matéria de tamanho, era uma figura ameaçadora, e Amélia teve de conter o impulso de recuar.

— Ele foi meu amigo.

O sentimento de culpa levou intenso rubor às faces de Amélia.

— Desculpe-me. Deve pensar que sou uma mulher terri­velmente fria.

Wulf virou-se e voltou à janela.

— Não penso nada, lady Collingsworth. Mal a conheço.

Mora apareceu na porta de repente, assustando Amélia.

— O desjejum está pronto — a criada anunciou. — Devo trazer a comida para o quarto, ou os senhores vão comer lá embaixo?

Amélia sentiu-se grata pela interrupção. Por que a facili­dade com que Gabriel Wulf a descartara, assim como a seus sentimentos, magoara tanto? Provavelmente, por causa dos sonhos que tivera com ele. De certa forma, sentia que o co­nhecia. O que era uma grande tolice.

— Vamos descer — Wulf respondeu. — Não faz sentido você carregar as bandejas até aqui. Deve estar tão cansada quanto nós.

Gabriel era uma pessoa muito mais atenciosa que Amélia. Ela acabara de pensar que seria ótimo comer no quarto e voltar para a cama, a fim de escapar da realidade por mais algum tempo. Quando Wulf olhou para ela em busca de con­firmação, o que mais poderia dizer?

— Sim, claro. Se puderem se retirar, irei me juntar a vocês assim que me vestir.

Mora assentiu e saiu apressada. Wulf atravessou o quarto, lançando um olhar curioso para Amélia, antes de sair e fechar a porta. Amélia calculou que ele a considerava inca­paz de vestir-se sozinha, e só então ela se deu conta de que nunca antes o fizera completamente sem ajuda. Foi até o guarda-roupa, onde seus vestidos haviam sido pendurados no dia anterior. A visão das rendas e babados proporcionou-lhe certo conforto, lembrando-a da vida anterior, que vivera até a véspera.

Escolher um vestido azul claro, de mangas bufantes, pa­receu-lhe alegre demais, considerando-se que era uma viúva, agora. Supôs que buscar consolo no fato de ficar muito bem de preto, com sua compleição clara, também era insensível. Porém, que escolha tinha? Nem sequer lhe ocorrera que fosse precisar de roupas sombrias em sua lua-de-mel. Teria de usar o que trouxera consigo. Despiu-se do roupão e da camisola rasgada. Casar-se e tornar-se viúva certamente seria motivo de escândalo. Seus pais não ficariam nada felizes. Raramente fazia algo que os agradasse e, por isso, anos antes decidira ser boa no que fazia: desagradá-los. Uma vez, pro­metera à duquesa de Brayberry, uma viúva muito rica, ami­ga dos notórios irmãos Wulf, que um dia se tornaria a mulher mais escandalosa da Inglaterra. Agora, parecia estar viven­do um bom começo.

De repente, Amélia ficou zangada. Zangada com Robert por tê-la colocado naquela situação. Supostamente, sua vida deveria melhorar com o casamento mas, ao contrário, tudo dera errado. Deveria ter acordado "mulher" naquela manhã, as indiscrições do passado esquecidas por seus pais, ou ao menos perdoadas. Robert deveria fazê-la feliz. Fora o que ele lhe prometera. Nunca dissera nada sobre morrer. Nunca dissera uma palavra sobre nada do que estava acontecendo agora. Não mencionara os horrores que cercavam a Mansão Collingsworth, nem o fato de que ela correria perigo ali.

E, certamente, não contara que lobos nem sempre eram o que pareciam ser. Amélia tratou de mudar o rumo de seus pensamentos. Não queria pensar naquelas coisas. Não que­ria pensar na noite anterior. Tentou concentrar-se em se vestir. O espartilho foi um problema. Tentou amarrá-lo à frente do corpo, para então fazê-lo deslizar em torno da cin­tura, mas amarrou apertado demais e não conseguiu movê-lo. E, ainda, quebrou uma unha na tentativa.

Seus joelhos vergaram de súbito, e ela caiu. Um nó for­mou-se em sua garganta. Seus olhos encheram-se de lágri­mas. Amélia fechou-os e apertou-os, lutando contra o deses­pero que tomava conta dela. Não adiantou. Primeiro, foi um soluço que escapou de sua garganta. Em seguida, veio o pranto. Então, foi como se uma represa arrebentasse. Por mais superficial que quisesse ser, por mais que desejasse distanciar-se da dor, do medo, da realidade do que aconte­cera na noite anterior, do fato de Robert estar morto, ela não conseguiu.

Foi como se os sentimentos de toda uma vida se voltassem contra ela naquele momento, e perdeu o que restava de seu controle. Não saberia dizer por quanto tempo chorou e solu­çou. Perdeu a noção do tempo e só voltou ao presente quando sentiu o toque da mão suave em seu ombro. Quase gritou. Ergueu a cabeça, sobressaltada, e descobriu-se a encarar Gabriel Wulf.

— Subi para ver o que a estava atrasando tanto — ele disse. — Não tive a intenção de assustá-la.

Se não pretendia assustá-la, ele não deveria se mover tão silenciosamente. Amélia secou as lágrimas na beirada da anágua. Quando viu o olhar dele baixar por um instante, antes de voltar a se fixar em seu rosto, deu-se conta de que vestia apenas a anágua, combinação e o espartilho torcido.

— Não consegui vestir o espartilho. Wulf ergueu a sobrancelha.

— Tudo isso por um espartilho? Amélia fungou.

— Quebrei uma unha, também.

A expressão de Gabriel voltou a suavizar.

— Deixe-me ajudá-la — ele disse.

Então, levantou-se, fazendo uma careta de dor. Segurou-a pelos ombros, virando-a de costas. Com dedos firmes e ágeis, soltou os cordões do espartilho e colocou-o na posição correta, para então voltar a amarrá-lo.

— Vejo que já fez isso antes — ela comentou em tom ácido.

Wulf riu.

— Não exatamente, mas já vi muitas mulheres livrarem-se das roupas, e acabei compreendendo o funcionamento de um espartilho.

Amélia não sabia que sentimentos a afirmação lhe des­pertava. Seus sonhos com Gabriel Wulf nunca haviam en­volvido outras mulheres.

— Quão apertado você quer?

Considerando tudo o que havia acontecido, talvez fosse melhor deixar o espartilho um pouco folgado, para o caso de ela ter de correr para salvar a própria vida.

— Não muito apertado. Quero poder respirar.

— Acho que não precisa disso. Sua cintura é delicada, mesmo sem o espartilho.

As mãos quentes em torno de sua cintura provocavam ondas de calor por todo o corpo. Bem, seria melhor mudar o rumo dos pensamentos. Não era certo, especialmente depois de uma crise de choro pela morte do pobre Robert. Podia ser uma jovem rebelde, mas até mesmo ela sabia que não podia chorar a morte de um homem e, minutos depois, arder de desejo por outro.

— Sinto-me grata por não amá-lo. Acho que não suporta­ria a dor. Tudo isso já é horrível demais.

Com gentileza, Gabriel virou-a para fitá-la.

— Ele merece ao menos algumas lágrimas da esposa, e meu respeito, pela amizade que partilhamos um dia. Talvez devêssemos fazer um momento de silêncio pelo pobre Robert.

Amélia assentiu e fechou os olhos. Um segundo depois, espiou por debaixo das pestanas, curiosa para saber se Gabriel também fechara os dele. Os cílios formavam man­chas escuras contra as faces. Ela se perguntou por que ele era loiro, mas tinha pêlos faciais escuros. O contraste era bonito.

Tudo nele era bonito, ao menos, nas características físicas.

Ele a fazia sentir-se muito pequena, com aqueles ombros largos e estatura impressionante. Gabriel abriu os olhos e, de repente, estavam encarando um ao outro.

Embora soubesse que deveria desviar o olhar, Amélia fi­cou paralisada. Foi então que sentiu o perfume de Gabriel. Suas narinas se dilataram na tentativa de reconhecer aquele cheiro, mas foi em vão. Ela sentira cheiro parecido, antes. Ora, sim, na primeira vez em que visitara Lucinda, e fora apresentada a Jackson, o irmão mais novo de Gabriel.

Sentiu como se uma fogueira se acendesse em seu ventre e as chamas se espalhassem em todas as direções: pelo peito, pescoço e rosto, pelas pernas, especialmente entre elas. Seus mamilos enrijeceram. Seus lábios se entreabriram e ela teve dificuldade em respirar. Gabriel poderia fazer com ela o que quisesse, e ela não resistiria. O corpo falou mais alto que a mente e Amélia deu um passo na direção de Wulf. Ele inspirou profundamente, mas não desviou o olhar, nem se afastou.

Amélia queria sentir as mãos dele em seu corpo, os lábios nos seus. Queria deitar-se com ele e entregar-lhe o que ne­nhuma mulher recém-casada deveria possuir. Sua inocên­cia. Como se pudesse ler seus pensamentos, ele estendeu a mão e tocou-a. A mão era grande e áspera pelo trabalho, mas quente e suave sobre sua pele. Lentamente, deslizou por seu braço, até chegar ao pescoço e, então, à nuca, e ele a puxou para si. Ela ainda o fitava, fascinada, quando os olhos verdes exibiram um súbito e estranho brilho azul.

Amélia disse a si mesma que estava vendo coisas. Talvez ainda estivesse sonhando. E certamente estava, pois apesar de sentir-se atraída por Gabriel Wulf, não devia desejar que ele a beijasse, depois de tudo o que havia acontecido. E ela desejava desesperadamente aquele beijo.

A mão dele deslizou da nuca até sua face, e o polegar acariciou seus lábios.

— Tão tentadora...

Os lábios dele estavam tão próximos que ela quase podia senti-los nos seus. Amélia fechou os olhos e ergueu-se nas pontas dos pés.

Era errado, deliciosamente errado, mas durante meses ela se perguntara como seria beijá-lo. Quente, firme... Essa foi a primeira sensação que registrou quando os lábios dele tocaram os seus. A medida que o beijo foi se tornando mais intenso, decidiu que era muito mais potente que conhaque.

Amélia estava perdida. Perdida em sensações, no perfume dele, no calor que se espalhava por seu corpo. Sentiu o co­ração disparar no peito, o sangue ferver nas veias. Os beijos castos de Robert não eram nada, se comparados àquilo. Bei­jar Gabriel era como se afogar em chocolate. Era diferente de tudo o que ela já experimentara.

Ele mordiscou-lhe os lábios, para então voltar a beijá-la com ardor, um verdadeiro mestre na arte da sedução, embora não parecesse consciente disso. Era como se ele também es­tivesse à mercê dos próprios sentimentos, tão indefeso quan­to ela para resistir.

Amélia pressionou o corpo contra o dele. Gabriel empur­rou-a com gentileza, não para longe, mas na direção da cama atrás deles. Ela se deixou levar de coração aberto, sem medo ou dúvida e, principalmente, sem culpa.

Um instante depois, seus joelhos encontraram a beirada da cama, e ela se deixou cair no colchão. Apoiando-se nos cotovelos, ergueu-se para fitá-lo. Os olhos ainda exibiam o estranho brilho azul. O peito largo erguia e baixava, ofegante, na camisola que um dia pertencera ao seu marido. Ele a desejava; não havia como negar o desejo nos olhos dele, que viajavam por todo o seu corpo. Ele deu um passo na direção da cama, parecendo prestes a juntar-se a ela, mas então, parou.

Com expressão assombrada, piscou os olhos e recuou.

— Que diabos estou fazendo? — indagou com voz rouca.

Olhou em volta, como se tentasse lembrar-se de onde es­tava, quem era e, talvez, quem ela era, também. Seu olhar pousou na porta quebrada que separava o quarto de Amélia do quarto de Robert. Fechou os olhos por um momento, antes de voltar a fitá-la.

— Perdoe-me. Eu não tinha o direito.

E foi só o que ele disse, antes de sair do quarto e fechar aporta.

Abalada, Amélia permaneceu onde estava. O que acabara de acontecer? Como pudera ser tão atrevida, quando seu pobre marido ainda nem fora enterrado? Era verdade que sempre fora uma criatura sensual. Estivera muito mais in­teressada na noite de núpcias do que Robert demonstrara estar.

Chocara seu pretendente ao oferecer-lhe a língua, quando ele finalmente reunira coragem para beijá-la, mas jamais se comportara com ele como havia se comportado com Gabriel Wulf.

Amélia cobriu o rosto com as mãos. Talvez estivesse en­louquecendo. Já não conseguia mais se enganar de que tudo o que acontecera desde a noite anterior fora apenas sonho. Se estivesse sonhando com Gabriel Wulf, ele não teria se afastado e saído do quarto. Ao contrário, teria se juntado a ela na cama e feito dela uma mulher. O que deveria fazer agora? Não poderia esconder-se no quarto o dia inteiro. De­cisões tinham de ser tomadas. Realidades tinham de ser en­frentadas.

Havia apenas uma coisa que podia fazer. Vestir-se e des­cer. A única coisa pior que encarar Gabriel Wulf novamente seria forçar-se a descer até a adega para ver o corpo de Robert. No entanto, tinha de fazer isso, também. Se preten­dia aceitar o fato de que lorde Collingsworth estava mesmo morto, teria de vê-lo com seus próprios olhos.

Gabriel apenas tentou comer. As boas maneiras ditavam-lhe que esperasse por lady Collingsworth, mas ele definiti­vamente não possuía boas maneiras. Estava faminto, já que comera tão pouco durante a última semana, durante a via­gem de volta para casa, mas sua fome não era por comida. Era por ela, pela mulher no andar superior. Ora, o que estava acontecendo com ele? Estava acostumado a ter controle sobre os próprios sentimentos, sobre a própria vida. De repente, não tinha controle sobre nada.

Sentiu o perfume antes que ela aparecesse na sala de jantar. Os sabões perfumados conseguiam mascarar parte do cheiro de mulher que a pele dela exalava, o aroma almiscarado de promessas femininas que um homem não podia ignorar. Gabriel, porém, tinha de ignorar.

A criada, Mora, estava sentada diante dele, parecendo fora de lugar na sala de jantar. A conversa entre eles havia se limitado às cortesias sociais. Ao ver Amélia entrar, Gabriel levantou-se, como lhe fora ensinado tempos antes, quando boas maneiras ainda importavam. Ela estava linda em seu vestido de musselina azul estampada. Os cabelos estavam presos em um coque elegante, embora algumas mechas já se soltassem do arranjo.

Ele não fazia idéia do que havia acontecido no quarto: por que se comportara daquela maneira; por que sonhara com aquela mulher antes; o que o levara a perder o controle com ela; ou por que cedera ao impulso de beijar a viúva de seu amigo de infância, ainda nem sequer enterrado. Desejava fazer mais do que beijá-la. Muito mais.

— Desculpem a demora — ela disse e sentou-se. — Já temos alguma decisão?

Ora, ela era mesmo boa em fingir que nada de errado havia acontecido entre eles no quarto, pois nem corou. Gabriel de­cidiu seguir o exemplo.

— Não — respondeu, voltando a se sentar. — Ainda acho que devemos encontrar uma maneira de chegar a Wulfglen, onde vocês duas estarão mais seguras.

— Não podemos sair daqui — Mora murmurou, encarando os dois. — As bestas estão à nossa espera no bosque. Estão planejando alguma coisa, acreditem.

Amélia ajeitou o guardanapo sobre as pernas e virou-se para a criada.

— Lobos não fazem planos — declarou. — Cheguei à con­clusão de que deixamos nossa imaginação nos enganar, ontem à noite. Hoje, vamos encarar os fatos de maneira racio­nal. Talvez seja melhor seguirmos para Wulfglen.

— Daríamos a eles uma grande vantagem — Mora insis­tiu. — Perdoe-me a petulância, minha senhora, mas acredito que todos estaremos mais seguros aqui. Talvez eles decidam ir embora, agora.

Gabriel estudou-a por alguns instantes. Então, pegou a colher e fixou os olhos no mingau à sua frente.

— O que a faz pensar que eles partiriam, Mora?

Era evidente que a moça sentia-se mal por ser o centro das atenções. Depois de remexer-se na cadeira e ajeitar a touca em torno do rosto, ela respondeu:

— Acho que Vincent era um deles e, como não conseguiu o que desejava de lady Collingsworth, talvez todos eles partam.

Gabriel observou a reação de Amélia, que empalideceu e levou a mão aos arranhões no pescoço.

— O que ele desejava ficou bastante óbvio — ela disse. — Queria que eu acreditasse que ele era lorde Collingsworth e me submetesse a ele.

Inclinando-se para frente, Gabriel apoiou os cotovelos na mesa, mesmo sabendo ser rude.

— Se chegou a acreditar que ele era mesmo Robert, por que não se submeteu a ele? Por que gritou e lutou para desvencilhar-se?

O rosto de Amélia corou até a raiz dos cabelos.

— Ele estava me machucando e rindo, embora sua voz não parecesse... humana.

— Eu lhe disse — Mora comentou em voz baixa. — Estou convencida de que Vincent é um deles.

Já que Mora parecia disposta a falar, Gabriel fez algumas perguntas, cujas respostas precisava saber.

— Como Vincent entrou na casa? Verifiquei as portas, enquanto procurava por lorde Collingsworth, e estavam to­das bem trancadas.

A garota deu de ombros.

— Acho que entrou pela adega. Há uma porta de saída, lá. Não pensei que alguém fosse entrar por ali. Na verdade, relaxei minha guarda quando o jovem lorde retornou. Acre­ditei que seria melhor deixar que ele decidisse como cuidar da minha segurança e da de lady Collingsworth.

A explicação de Mora fazia sentido. Robert fora encontra­do na adega. Provavelmente, ouvira ruídos lá embaixo e fora investigar.

— Disse ao lorde que lobos capazes de se transformar em homens haviam causado a fuga dos outros criados?

Os olhos de Mora encheram-se de lágrimas e ela sacudiu a cabeça.

— Tive medo de ele me achasse louca e me despedisse. Devia ter contado. Ele está morto porque não o avisei.

A criada parecia profundamente perturbada pela situa­ção. Gabriel não sabia como confortá-la, pois não estava ha­bituado a lidar com a tendência feminina ao choro. Para sua surpresa, Amélia levantou-se e aproximou-se da garota, pou­sando a mão em seu ombro.

— Não foi sua culpa, Mora — Amélia afirmou. — Lorde Collingsworth... bem, desculpe, mas ele não acreditaria na história, assim como também não acredito. Não sei o que está acontecendo, mas nada foi culpa sua.

Mora tocou com timidez a mão de Amélia.

— Deus a abençoe por dizer isso, minha senhora.

A criada parecia tão surpresa quanto Gabriel, diante da demonstração de gentileza de lady Collingsworth.

A verdade era que ele não havia esperado qualquer de­monstração de gentileza, nem da paixão que ela mostrara no quarto. Amélia tornava-se mais interessante a cada mo­mento que passava.

Ela virou-se para Gabriel.

— Preciso vê-lo. Não conseguirei me convencer de que Robert está morto se não o vir.

Gabriel lembrou-se de que, no quarto, Amélia agira como se não tivesse qualquer dificuldade em aceitar a morte de Robert. Então, disse a si mesmo que ele era o verdadeiro culpado pelo que havia ocorrido. Fora o seu cheiro que atraíra lady Collingsworth e a fizera agir de maneira irracional. Seu irmão, Jackson, o alertara para aquele "dom" que todos os Wulf possuíam.

Gabriel nunca tinha feito uso disso com uma mulher, ao menos, conscientemente. Talvez não fosse capaz de evitar o que se passara com Amélia. Era possível que sua pele sim­plesmente exalasse o cheiro quando ele se sentia irracional­mente atraído por alguém.

— Preciso enterrar Robert e os outros dois, no estábulo — anunciou.

Amélia respirou fundo.

— Robert merece um funeral decente, com os amigos para lhe dar adeus. Como vou explicar... quero dizer, se ele foi assassinado...

— Não há nenhuma prova de que ele foi assassinado — Gabriel lembrou-a. — Como já lhe disse, não há um arranhão sequer no corpo dele. É como se ele houvesse morrido de susto.

Ao ver Amélia estremecer, se deu conta de que, mais uma vez, fora insensível na escolha das palavras. Embora esti­vesse acostumado à companhia de mulheres, preferia aque­las mais experientes e endurecidas, como ele. Não sabia co­mo se comportar diante de uma criatura delicada, deliciosa de olhar, mas inútil no que dizia respeito às duras realidades da vida.

— Não podemos deixar Robert e os outros como estão — disse. — Os três merecem ser sepultados.

Amélia firmou a mão no encosto da cadeira de Mora, bus­cando apoio. Tentou parecer corajosa, mas Gabriel notou o tremor em sua mão.

— Sim, tem razão. Mas, por favor, enterre-o no cemitério da família. Sei que fica nas terras dos Collingsworth.

— Não é longe daqui — Gabriel confirmou e, como ela demonstrasse surpresa, explicou: — Costumávamos brincar lá, quando meninos. Nós nos escondíamos atrás das lápides e assustávamos um ao outro.

— Por favor, gostaria de vê-lo agora.

— O seu desjejum, senhora — Mora protestou. — Precisa se fortificar.

— Perco o apetite quando vejo a comida — Amélia escla­receu. — Prefiro acabar logo com isso.

— Então, irei com a senhora para lhe dar o meu apoio — disse a criada.

Amélia pousou a mão no ombro de Mora, agradecida. Gabriel pôs o guardanapo na mesa e levantou-se. Concluiu que seria melhor Amélia ver logo o corpo do marido. Ela precisava encontrar algum tipo de conclusão para a his­tória da noite anterior.

Embora ainda não soubesse ao certo o que se passava na Mansão Collingsworth, Gabriel poderia ao menos permitir que ela chorasse a morte do marido da maneira apropriada. Sentiu a perna latejar, mas o ferimento parecia bem melhor do que antes dos cuidados de Mora. Tentou não mancar en­quanto conduzia as duas mulheres até a adega.

A adega fez Amélia pensar em uma catacumba, fria, úmi­da e escura. Sentiu as pernas trêmulas sob o vestido, mas forçou-se a seguir Gabriel pelos degraus de madeira. En­quanto descia, tentou preparar-se mentalmente para a visão do corpo de Robert.

Apesar de já ter ido a vários velórios, a maioria havia sido de parentes idosos. Parecia um sacrilégio que um homem tão jovem morresse na flor da idade. Por outro lado, o marido jamais fora um retrato de vitalidade e saúde. Não gostava de dançar, pois demorava a recuperar o fôlego, depois.

— Ele está aqui — disse Wulf, erguendo o lampião que em pouco diminuía a escuridão.

Amélia preparou-se, mas quando Gabriel aproximou o lampião do chão, não havia nada lá.

Franzindo o cenho, ele andou pela adega, lançando a luz por todos os cantos. Tudo o que Amélia viu foram alguns sacos de batatas, um cesto de cenouras, outro de cebolas, mas nenhum corpo.

— Ele se foi — Wulf declarou.

— Devem tê-lo levado — Mora sussurrou.

— Diabos! Não me ocorreu que o corpo de Robert também desapareceria. Eu devia ter pensado nisso.

Amélia voltou a estremecer.

— Por que alguém o levaria?

— Mais importante, no momento, é saber como o levaram — Gabriel resmungou, nada satisfeito com o desenrolar dos fatos.

Mora foi até um canto escuro.

— A porta, senhor. Qualquer um poderia carregá-lo para fora.

Gabriel juntou-se a ela e iluminou os degraus.

— Mora, precisamos bloquear esta porta.

— Sim, senhor, mas temos de fazer isso pelo lado de fora. Acha sensato deixarmos a segurança da casa?

Gabriel considerou a questão.

— Bem, ao menos, temos da luz do sol — respondeu, afi­nal. — Além disso, tenho minha pistola, e não precisaremos de muito tempo para examinar a porta.

Amélia imaginou-se abrindo a porta e se deparando com um assassino do outro lado.

— Acho que deveríamos voltar por dentro da casa, para então sairmos.

Wulf olhou para a escada escura.

— Concordo. Assim, poderei espiar pelas janelas antes de sairmos, e me certificar de que não há ninguém à espreita.

Uma vez tomada a decisão, ele liderou o pequeno grupo de volta à escada que levava ao interior da casa. Amélia e Mora o seguiram. Depois de observar os jardins de diversas janelas diferentes, ele abriu a porta. Amélia posicionou-se logo atrás, esperando que ele retirasse a pistola presa à cin­tura, escondida pela camisola que alcançava suas coxas.

— Imagino que os corpos que estavam no estábulo tam­bém tenham desaparecido — disse Gabriel. — Quem quer que sejam essas pessoas, e estou convencido de que há mais de uma, sabem cobrir seus rastros.

— Não são pessoas — Mora murmurou atrás deles. — Ao menos, não são pessoas normais. Acreditem no que digo.

Amélia tentou controlar outro calafrio, sentindo-se ridí­cula por ter medo de algo que não existia. Lobos são lobos, homens são homens, e ponto final, pensou. Esforçou-se para esquecer a garra que encontrara no chão do quarto de Robert.

— Vou ver o estábulo, primeiro — Wulf anunciou, esten­dendo a pistola para Mora. — Sabe atirar, Mora?

A criada encolheu-se.

— Nunca toquei em uma arma. Nem quero. Mais de uma vez, vi o que elas podem fazer a uma pessoa.

Gabriel olhou para Amélia, mas pareceu descartar a pos­sibilidade antes mesmo de fazer a pergunta. Ela ficou irri­tada.

— Sei como usar uma pistola. Aliás, tenho excelente mira. — Como Wulf erguesse uma sobrancelha, aparentemente cético, Amélia achou melhor explicar: — Quando era mais jovem, decidi superar meu irmão em tudo o que fosse mas­culino, só para desafiar meu pai.

Os lábios dele se curvaram na insinuação de um sorriso.

— Ora, por que isso não me surpreende? — comentou e entregou a pistola a Amélia. — Fiquem aqui, na varanda, até eu voltar.

Embora pesasse em sua mão, Amélia sentiu-se grata pela pistola, que lhe oferecia a sensação de segurança. Enquan­to observava Wulf afastar-se, perguntou-se o que ele pre­tendia fazer se fosse confrontado no estábulo. Um pensa­mento ocorreu-lhe.

— Mora, imagino que existam outras armas na casa, para caça e coisas assim.

— Não temos mais nenhuma — a criada respondeu. — Os outros criados pegaram todas que puderam encontrar, antes de fugir, para se protegerem.

— Que vergonha, deixarem você aqui, e sem defesa algu­ma! Francamente! — Amélia resmungou.

A verdade era que não teria dado a menor atenção às aflições de um criado, até se ver naquele pesadelo. A garota era tão jovem, parecia tão indefesa, que ela não podia evitar o sentimento de revolta.

— É muita gentileza sua dizer isso, minha senhora — disse Mora —, mas para ser honesta, não havia acontecido quase nada, até ontem à noite, até ele chegar.

Mora fez um sinal na direção de Gabriel. No mesmo ins­tante, Amélia perguntou-se como Wulf conseguira entrar na casa, na noite anterior. Não se lembrava de tê4o ouvido ex­plicar aquele detalhe. Então, disse a si mesma que seria tolice suspeitar dele. Gabriel podia ser de uma família rejei­tada pela sociedade londrina devido aos rumores de que to­dos os Wulf haviam sido amaldiçoados com a insanidade, mas sua família ainda possuía riquezas. Não havia nada suspeito em Gabriel. Ao contrário, fora ele quem salvara sua vida na noite anterior.

Gabriel desapareceu no estábulo um instante depois, e foi quando Amélia notou algo estranho.

— Ouça — sussurrou ao ouvido de Mora.

A moça fitou-a.

— Não ouço nada, minha senhora. Amélia apertou com força o cabo da pistola.

— Eu sei. Deveríamos ouvir alguma coisa, pássaros can­tando, insetos nas árvores. O silêncio é total.

Mora esfregou as mãos pelos braços.

— Está sentindo? — indagou. — Eles estão nos obser­vando.

Examinando a árvores ao redor da casa, Amélia não viu nada, mas Mora estava certa. Ela mesma podia sentir que eram observadas. Se Gabriel não saísse do estábulo em pou­cos segundos, ela levaria a criada de volta para dentro e trancaria a porta.

Respirou aliviada ao vê-lo emergir do estábulo. Embora tivesse o cenho franzido, era tão atraente que ela não con­seguia desviar os olhos. Exatamente como fizera meses an­tes, em Londres, acabando por ganhar uma cotovelada de sua dama de companhia, por ser tão atrevida em público.

— Os corpos desapareceram, como eu suspeitava — Gabriel confirmou ao alcançá-las. — Não vi qualquer rastro ou pista. Mora, mostre-me onde fica a porta da adega.

A criada assentiu, embora deixasse claro que não tinha o menor desejo de se aventurar ao ar livre. Gabriel apanhou a pistola que Amélia empunhava. Seus dedos roçaram os dela e, novamente, ela sentiu uma corrente elétrica percorrer seu braço. A julgar pelo ligeiro movimento do queixo de Wulf, ele sentira o mesmo.

— Temos de dar a volta na casa — disse a criada. — Venham.

Os dois a seguiram. Amélia notou que os arbustos espi­nhosos que cercavam a casa dificultavam o acesso às janelas do andar inferior.

— No passado, os arbustos viviam cobertos por rosas — Wulf disse, como se houvesse notado o interesse de Amélia pelas plantas. — Isso, quando a mãe de Robert ainda era viva. Ele abandonou os cuidados com o jardim, depois que ela morreu.

— Como entrou na casa, ontem à noite? — Amélia per­guntou à queima-roupa, determinada a esclarecer a dúvida de uma vez por todas.

Gabriel apontou para um grande carvalho que fazia som­bra sobre um lado da casa.

— Quando garotos, nós costumávamos descer por aquela árvore, tarde da noite, para nadar em um lago perto daqui. Lembrei-me disso e subi pela árvore. A janela do quarto que pertencia a Robert na juventude não estava trancada. De­vemos nos certificar de que todas as janelas estejam tran­cadas, quando voltarmos.

— Aqui está — Mora anunciou, parando diante de uma porta de madeira. — Veja! — apontou, assombrada.

Havia marcas profundas de garras na madeira antiga, como se um animal houvesse arranhado a porta. Amélia vol­tou a estremecer. Wulf estudou a porta.

— Não vejo como bloquear esta porta pelo lado de fora — concluiu. — Levarei para cima tudo o de que você precisar, Mora, então, bloquearei a porta da escada que desce da casa para a adega.

— Da maneira como fala, parece que temos de transfor­mar a casa em uma fortaleza — Amélia comentou.

— Isso mesmo — ele retrucou —, ao menos até decidirmos o que fazer.

Um pensamento ocorreu a Amélia, enchendo-a de espe­rança.

— Com certeza, alguém virá fazer uma visita...

Wulf virou-se para ela, parecendo pesar as palavras.

— Devo ser honesto. Tanto a Mansão Collingsworth quan­to Wulfglen são bastante isoladas. E, por se tratar da sua lua-de-mel, duvido que alguém sequer pense em invadir a sua privacidade.

Amélia amaldiçoou a sensibilidade das pessoas.

— Planejávamos voltar a Londres daqui a um mês. Meus pais queriam que ficássemos na casa deles até o dia de em­barcarmos no navio. Seria uma longa lua-de-mel. Ninguém sentirá nossa falta, até lá.

— Acho que não temos suprimentos para um mês — Mora declarou, preocupada. — Os criados levaram tudo o que po­diam carregar, quando fugiram.

— Ainda é cedo para se preocupar — Wulf assegurou. — Ainda nem sabemos ao certo qual é a ameaça.

— E claro. Desculpe-me, senhor.

Amélia desconfiava de que Wulf estivesse tentando pro­tegê-la da verdadeira gravidade da situação, apesar de ter dito que devia ser honesto com ela. O motivo era óbvio. Ele não acreditava que ela fosse capaz de enfrentar a verdade. Ainda assim, no quarto, a beijara. E a desejara, o que o tor­nava igual a todos os homens, que faziam seus julgamentos a partir da aparência de uma mulher. Contudo, estranho era o fato de que ela jamais se incomodara com isso, já que seu rosto e corpo eram suficientes para atrair qualquer homem. Agora, porém, sentia-se profundamente desconfortável.

Outra coisa intrigou-a ainda mais. Enquanto contemplava o bosque, achou ter visto uma sombra movimentar-se. Então, outra.

— Venham, senhoras — Wulf chamou de repente e Amélia soube que ele vira o mesmo. — Devemos voltar para dentro e passar o dia nos preparando.

Com isso, conduziu as duas mulheres para a frente da casa.

Uma arma, poucos suprimentos...

— Preparando para quê, exatamente? — Amélia inquiriu. Após um instante de silêncio, Gabriel respondeu:

— Para a noite. E o que quer que ela nos traga.

Amélia já tinha verificado as janelas do andar superior duas vezes. Mora havia retirado suprimentos da adega antes de Gabriel bloquear a porta. Agora, os três descansavam na sala, enquanto o dia se transformava em noite. A lareira estava acesa. Gabriel adormeceu assim que Mora terminou de cuidar de seus ferimentos. Amélia calculou que ele esti­vesse exausto. A criada, também, reclinou a cabeça e fechou os olhos. Amélia estava tensa demais para dormir. Além disso, alguém tinha de permanecer em vigília e, ao que pa­recia, esse alguém era ela.

Até o casamento, as obrigações de Amélia na vida haviam sido praticamente inexistentes, com exceção de encontrar um bom marido. Nunca antes tivera de se preocupar com a possibilidade de passar fome por falta de alimentos, nem temer pela própria vida. Também não tivera de questionar o que era real e o que era imaginário. E nunca se sentira ameaçada pelo que via ou não via nas sombras.

Tudo isso, porém, havia mudado no dia de seu casamento. O absurdo da situação a deixava nervosa e inquieta. Lamen­tou não ter aprendido a bordar quando era menina. Agora, poderia ao menos se sentar e bordar, a fim de se distrair.

Um chá seria ótimo, e ela quase acordou Mora para pe­dir-lhe que preparasse uma xícara. Então, deu-se conta de que estava na hora de aprender a fazer as coisas por si mes­ma, pelo menos até estarem em segurança, longe da Mansão Collingsworth. Fazer chá não era tão difícil. Certamente, ela seria capaz.

Ignorou o fato de que, horas antes, acreditara-se capaz de vestir-se sem ajuda. Além de humilhante, a lembrança estava carregada de pensamentos envolvendo Gabriel. A sensação das mãos quentes em sua pele, a emoção de ser beijada por ele, desejada por ele. E, como ele mesmo dissera, o que quer que houvesse acontecido naquele breve instante de insanidade, era errado. Perversamente, deliciosamente errado.

Amélia levantou-se e dirigiu-se à porta, mas parou diante de Gabriel. Adormecido, as feições relaxadas, ele se parecia mais com o jovem do retrato que ela vira na mansão londrina dos Wulf. Uma mecha de cabelos pendia sobre um dos olhos, e ela se sentiu tentada a afastá-la. Por que tinha sentimentos tão ternos para com um desconhecido? Precisava encontrar uma distração. O chá, lembrou-se, e foi para a cozinha. O fogão ainda estava quente do jantar modesto que Mora pre­parara. Havia uma chaleira sobre o fogo. Tocou a tampa e queimou um dedo. Levando o dedo à boca, espiou pela janela e ficou maravilhada com a claridade da lua e a facilidade com que podia enxergar tudo lá fora. Lembrou-se das som­bras que vira durante o dia e pôs-se a examinar o bosque.

Um instante depois, seu coração quase parou de bater. Em meio à vegetação densa, distinguiu a forma de um ho­mem. Em seguida, ele cambaleou adiante, aproximando-se. Ela pôde vê-lo nitidamente ao luar.

— Robert... — murmurou. — Wulf! — gritou. — Lorde Gabriel!

Gabriel surgiu ao lado dela no mesmo instante.

— O que foi?

— Veja, é Robert. — Apontou para o vulto.

Robert cambaleou por mais alguns metros e caiu de joe­lhos, estendendo a mão em súplica para Amélia.

— Fique aqui — disse Gabriel, antes de sair da cozinha. Ficar ali? E se fosse mesmo seu marido? Talvez Gabriel houvesse se enganado e Robert não estivesse morto. Correu atrás dele. Mora, que despertara com o grito, encontrava-se junto à porta, de olhos arregalados.

— O que está acontecendo? — indagou a criada.

— Fique aqui — Amélia repetiu a instrução que Gabriel lhe dera. — Aguarde o nosso retorno, mas se vir algo ou alguém mais, tranque a porta.

Assim dizendo, correu para fora, deu a volta na casa e deparou com Gabriel parado diante do homem, pistola em punho.

— Não! — ela gritou. Correu até Gabriel e pousou a mão em seu braço. — Acho que é mesmo Robert. Ele precisa da nossa ajuda!

— Volte para dentro! — Wulf ordenou. — Este não é seu marido, Amélia. Robert está morto.

Ora, como ele podia estar tão certo disso? O homem pa­recia-se com Robert. Então, ele a chamou.

— Amélia...

Sentindo um arrepio na nuca, reconheceu a voz, a mesma que ouvira na escuridão, em sua noite de núpcias. Apavora­da, recuou um passo.

Gabriel engatilhou a pistola.

— Quem é você? — inquiriu.

O homem não respondeu. Seus olhos exibiram um brilho estranho na escuridão. Então, ele falou, ou melhor, arreganhou os dentes e rosnou. Seu casaco se abriu, e Amélia pôde ver a camisa manchada de sangue. Diante de seus olhos, o homem começou a se transformar, até exibir as feições de uma outra pessoa... alguém que ela reconheceu. Era o criado que cuidava do estábulo quando ela e Robert chegaram. No mesmo instante, ele começou a se transformar em outra coi­sa, algo não-humano. Os dentes cresceram, pêlos brotaram da pele. A forma pareceu contorcer-se, virar, encolher. Foi nesse momento que Gabriel atirou. O homem, a coisa, o que quer que fosse, foi lançado para trás.

Os uivos se ergueram. O som ecoou na noite, ao redor deles.

— Diabos! — Wulf praguejou. — Ele era apenas uma isca para nos atrair para fora da casa. Corra, Amélia! Corra para dentro!

Amélia ouviu o comando, sabia que tinha de correr, mas sentiu-se paralisada pelo medo e pelo choque. Praguejando outra vez, Wulf tomou-a nos braços e correu na direção da casa.

Mesmo em estado de choque, ela ouviu os galhos de árvo­res se quebrando. As criaturas escondidas no bosque vinham atrás dela e de Gabriel. Percebeu também a rapidez com que ele se movia, a facilidade com que a carregava. Como podia um homem com uma perna ferida correr tão depressa?

Quando alcançaram a casa, Gabriel se atirou sobre a porta, abrindo-a com o ombro, quase derrubando Mora. Correu para dentro e, praticamente, atirou Amélia para a criada. Apesar de sentir os joelhos fracos e trêmulos, ela conseguiu ficar de pé, surpresa pelo fato de Mora ser capaz de sustentá-la.

Wulf já fechava a porta, quando algo a atingiu e a mão coberta de pêlos, com garras emergindo dos dedos, surgiu na abertura.

Amélia gritou. Wulf atirou o corpo contra a porta. A cria­tura do outro lado uivou de dor e retirou a mão. Então, Gabriel ocupou-se das trancas, recuou um passo e apontou a pistola para a porta.

— Mora, leve lady Collingsworth para a sala, longe das janelas.

Juntas, as duas dirigiram-se à sala, onde o fogo ainda ardia na lareira, como uma zombaria àquele pesadelo inter­minável. Amélia sabia que estava em choque. Sentiu os pés e as mãos gelados. Viu os lampiões se apagarem. Logo, a casa mergulharia em total escuridão.

Não conseguia ouvir nada, exceto as batidas do próprio coração. Não saberia dizer quanto tempo ficou ali, com Mora a seu lado, esperando, mas Gabriel finalmente apareceu.

— Eles se foram... por enquanto — anunciou, abaixando-se diante de Amélia, tomando-lhe as mãos geladas e esfregando-as.

— Como sabe que eles se foram, meu senhor? — Mora perguntou.

Sim, Amélia pensou, mas não conseguiu falar. Como ele sabia?

— Confie em mim — ele respondeu. — Eles se retiraram para o bosque. Não os vejo mais.

— Está escuro, lá fora — lembrou a criada. — Talvez o senhor não possa vê-los, mas é possível que eles ainda este­jam perto.

Gabriel desviou o olhar de Amélia e virou-se para Mora com expressão severa.

— Não há necessidade de deixar sua senhora mais ner­vosa, Mora. Eles se foram. Estamos seguros e continuaremos assim, eu garanto. Compreendeu?

A garota abaixou a cabeça e assentiu. A voz de Wulf soou mais suave, ao dizer:

— Pegue uma vela e acenda-a na lareira. Então, vá até a cozinha e prepare uma xícara de chá para lady Collingsworth.

— O que são aquelas coisas? — Amélia perguntou, assim que a criada saiu. — Como podem se transformar daquela maneira, ora em monstros, ora em homens diferentes?

Gabriel não sabia ao certo como responder. Era possível que homens se transformassem em lobos? Sim, e ele sabia muito bem disso. Vira o próprio pai transformar-se durante o jantar, anos antes. Os Wulf haviam sido amaldiçoados por uma bruxa, muito tempo antes. A transformação relaciona­va-se com a lua cheia e com o coração do homem em questão, mas Gabriel nunca ouvira falar de criaturas que adquiriam as feições de outra pessoa.

— Gabriel? — Amélia insistiu.

Os belos olhos azuis mostravam confusão e medo, como seria de se esperar. Era a mesma expressão que Gabriel veria, se Amélia soubesse que ele também não era um ho­mem normal, que também fazia parte das sombras.

— Não sei o que são — respondeu, afinal —, mas sei que Robert está morto, Amélia. E você deve ter essa certeza em sua mente, para o caso de um deles tentar enganá-la de novo.

— Como sabe que o homem na adega era mesmo Robert? Pode ter sido outro impostor. Talvez ele ainda esteja vivo e tenha saído em busca de ajuda.

Não seria fácil explicar, mas Gabriel sabia que Amélia precisava compreender de uma vez por todas que seu marido estava morto e que ninguém viria socorrê-los.

— Cada pessoa tem seu próprio cheiro, como uma marca — disse. — Tenho uma facilidade incomum de identificar uma pessoa pelo cheiro. Sei que era Robert quem encontrei na adega, porque ele exalava o mesmo cheiro de quando éra­mos meninos.

Amélia fitou-o, interessada.

— Também tenho um cheiro só meu?

— Sim — ele respondeu, livrando-a dos sapatos. Como havia suspeitado, os pés dela estavam tão gelados quanto as mãos. Começou a esfregá-los. — Embora você mascare esse cheiro com sabão e perfume. Aliás, esse hábito feminino tor­na mais difícil o meu reconhecimento do cheiro particular de cada mulher.

— Você tem uma porção de talentos extraordinários — Amélia comentou. — Lá fora, fiquei impressionada com a rapidez com que correu comigo nos braços.

As circunstâncias o haviam forçado a lançar mão das antigas habilidades, e ele se perguntou o que mais Amélia Collingsworth descobriria a seu respeito.

— Estava assustado — explicou.

Como ela não dissesse nada, Wulf ergueu os olhos e de­parou com o olhar ousado de Amélia.

— Não acredito que tenha medo de coisa alguma — ela declarou.

Naquele momento, Mora entrou na sala, trazendo um co­po cheio de um líquido vermelho.

— Vinho culinário — anunciou, antes de entregar o copo a Gabriel. — Vou buscar o chá.

Gabriel ofereceu o copo a Amélia, que bebeu o vinho com a mesma facilidade com que bebera o conhaque, na noite anterior.

— Gosto mais de conhaque — ela disse. — Este vinho é muito doce.

Gabriel não conteve um sorriso. Lady Amélia era a jovem mais espontânea que ele já vira. Quanto mais tempo pas­sava junto dela, mais se dava conta de sua singularidade. Ainda assim, ali não era lugar para ela. Amélia pertencia a Londres, aos salões de baile, usando lindos vestidos e vi­rando a cabeça de muitos homens com um simples sorriso.

— O que disse sobre as pessoas exalarem um cheiro par­ticular — ela falou, deixando o copo de lado —, é verdade. Acho que nunca reparei nisso, até hoje.

Gabriel encarou-a.

— Por que hoje, não ontem?

Ela passou a língua pelos lábios rosados e generosos, le­vando-o a pensar em coisas que não deveria.

— Por que senti o seu cheiro. Hoje cedo, no quarto, quando nós... quando você foi saber por que eu estava demorando tanto, senti o seu cheiro... e tive uma sensação estranha.

Gabriel voltou a baixar os olhos depressa. Qualquer ex­plicação verdadeira faria com que ela perdesse a confiança nele.

— Ouvi dizer que os homens têm a capacidade de exalar um perfume que atrai as mulheres. Trata-se de algo no suor. Ao menos, foi o que meu irmão me disse. — Amélia fez uma pausa. — Você não estava suando.

Ele voltou a fitá-la.

— Nem estou exatamente limpo, agora. Faz tempo que não tomo um banho decente. — Decidiu tentar elevar os ânimos, embora tal tarefa parecesse impossível diante das circunstâncias. — Deve ter sido a razão pela qual você se sentiu atraída por mim, no quarto. Sou o patinho feio da família.

— Evidentemente, isso é uma questão de opinião — mur­murou Amélia. — E o que aconteceu no quarto é, evidente­mente, algo que nós dois deveríamos esquecer.

Era difícil esquecer, estando assim tão perto um do outro, as mãos dele na pele suave dos pés de Amélia. Gabriel per­guntou-se se as pernas seriam tão macias quanto o resto do corpo. Chegou à conclusão de que os pés já estavam quentes o bastante, e voltou a calçar neles os sapatos.

— Chá — Mora anunciou, trazendo uma bandeja com um bule e três xícaras.

A criada depositou a bandeja sobre a mesinha e começou a servir. Gabriel levantou-se e sentiu a coxa latejar. Cami­nhou com dificuldade até a poltrona e sentou-se.

As mãos de Mora estavam visivelmente trêmulas, quando ela estendeu as xícaras para Amélia e Gabriel. Ele tinha de dar crédito à moça por manter a cabeça fria. Mesmo lady Collingsworth, ele admitiu, não desmaiara ou ficara histé­rica. Considerou-se um homem de sorte.

— Mora, lady Collingsworth disse que você foi criada em meio a histórias de folclore e superstição. É verdade?

A criada sentou-se ao lado de Amélia e bebericou o chá.

— Acho que sim — respondeu.

— Ouviu alguma história sobre homens que se transfor­mam em lobos?

Mora remexeu-se inquieta.

— Sim, meu senhor. Todos já ouviram essas histórias, não?

— Creio que sim — Gabriel concordou. — E quanto a homens que adquirem a forma de outra pessoa? Já ouviu histórias sobre isso?

Fixando os olhos na xícara, Mora refletiu.

— Os wargs... Talvez eles sejam capazes. Gabriel inclinou-se para frente.

— Wargs?

— Criaturas da floresta — ela explicou. — Dizem que eles vivem nos bosques da Europa há séculos. Fazem suas casas lá, como qualquer outro animal. Também dizem que é im­possível saber quando estão por perto, pois possuem a capa­cidade de se fundir na paisagem.

— E esses wargs podem mudar de forma?

A garota assentiu.

— É o que diz a lenda. Como lady Amélia disse antes, os pais usam os wargs para evitar que seus filhos se percam nos bosques. Uma vez, ouvi dizer que um warg pode fingir ser o pai ou a mãe da criança, para atraí-la. É claro que, então, ele a come.

A xícara de Amélia tilintou contra o pires. Só então Gabriel deu-se conta de que deveria ter questionado Mora sobre o folclore dos camponeses quando Amélia não estivesse por per­to. Afinal, ela já tinha o suficiente para tentar assimilar em uma noite.

— Vocês duas deveriam ir para a cama — ele sugeriu. — Ficarei de guarda.

— Eu não conseguiria dormir, agora — disse Amélia —, mesmo antes da agradável história. Além do mais, meus joelhos ainda estão tremendo tanto, que duvido ser capaz de subir a escada.

Apesar da dor na perna, Gabriel levantou-se, aproximou-se dela e tomou-a nos braços. Amélia protestou, mas ele a ignorou. Ao subir a escada, teve de cerrar os dentes para suportar a dor na coxa. Uma vez lá em cima, dirigiu-se ao quarto e acomodou-a na cama.

Ele observou as feições delicadas. Ela parecia sonolenta, apesar das afirmações contrárias que fizera pouco antes. Gabriel perguntou-se se o vinho começava a exercer efeito. Para sua surpresa, ela se inclinou, os lábios muito próximos dos dele. E ele se deu conta de que queria muito beijá-la. Então, Amélia inspirou, entreabriu os lábios carnudos e passou a ponta da língua por eles.

— Precisa mesmo tomar um banho — murmurou. — Deve estar suando de novo.

 

Gabriel teve de usar toda a sua força de vontade para não beijar Amélia. Ela podia estar embriagada, fosse pelo vinho, ou pelo cheiro que ele exalava quando ela estava por perto. Por isso, limitou-se a desenroscar delicadamente os braços dela de seu pescoço e deixá-la na cama para dormir. Lamentou não poder fazer o mesmo.

Estava exausto e seus ferimentos doíam. Mora tinha se oferecido para trocar os curativos, mas ele dissera que podia cuidar disso sozinho. Agora, porém, sentia-se cansado de­mais e, simplesmente, sentou-se diante da lareira e reclinou a cabeça no encosto da poltrona. Dentre tantas coisas que deveriam estar ocupando sua mente, era surpreendente a imagem que insistia em tomar conta de seus pensamentos.

Tratava-se da imagem de Amélia no quarto, quando ele voltou para se certificar de que as duas mulheres estavam bem. Vestindo uma fina camisola de algodão, ela parecia prestes a cair no sono, enquanto Mora escovava seus cabelos. Tinha as pálpebras pesadas, os lábios rosados. Nenhuma delas notou sua presença, mas enquanto observava lady Collingsworth, ele sentiu um aperto no peito. Desejo? Pro­vavelmente, já que esse era o único sentimento que jamais se permitira ter por uma mulher.

Gabriel passara a vida evitando qualquer sentimento, exce­to os mais básicos. Entregara-se à administração de Wulfglen e sentia-se contente ali, em meio aos seus cavalos, procuran­do uma mulher ocasionalmente, quando sua masculinidade assim o exigia. Não era como Armond, que precisava inte­ragir socialmente, ou Jackson, que tinha uma fraqueza pela bebida e pelas mulheres, e desfrutava de ambas com fre­qüência. Gabriel considerava-se o mais sensato dos irmãos.

O que estava acontecendo na Mansão Collingsworth, po­rém, não fazia o menor sentido. O que eram aquelas criatu­ras capazes de se transformar em outras pessoas e, com a mesma facilidade, tornarem-se lobos? O que queriam de Amélia? Por quanto tempo ele, Amélia e Mora conseguiriam se manter em segurança dentro da casa? Teriam melhores chances nos bosques, entre as tais criaturas? Seriam capazes de escapar e chegar a Wulfglen, sãos e salvos? As perguntas persistentes e a falta de sono provocaram-lhe dores de cabeça.

Precisava descansar para poder raciocinar com clareza. Tentou clarear os pensamentos e acabou cochilando. Ao me­nos, pensou que havia cochilado. Despertou sobressaltado. Ouvira algo.

Uma figura fantasmagórica estava na escada, os longos cabelos loiros flutuando, enquanto ela descia os degraus e seguia na sua direção. A camisola nada recatada refletia a luz do fogo na lareira, permitindo que as pernas longas e bem torneadas o provocassem. Gabriel limitou-se a assistir, fascinado, aos movimentos determinados que a aproxima­vam dele.

— Lady Collingsworth? — indagou em voz baixa. — O que está fazendo aqui embaixo?

Ela se inclinou e pousou um dedo sobre os lábios de Gabriel, como se quisesse silenciá-lo. Em seguida, seus lábios substi­tuíram o toque suave do dedo. Surpreso demais para reagir, ele permaneceu imóvel, observando as sombras lançadas pe­los cílios espessos de Amélia sobre a pele perfeita, absorvendo a sensação deliciosa dos lábios dela colados aos seus. O per­fume provocante o envolveu, lançando chamas em suas veias, e quando ela passou de leve a língua por seus lábios, Gabriel abriu-se para ela. Repreendera-se a tarde inteira pelo comportamento que tivera com ela de manhã, dizendo a si mes­mo que nada daquilo voltaria a acontecer.

Ainda assim, algo naquela mulher o atraía, desde a pri­meira vez que a vira em Londres. Estendeu a mão, enroscou os dedos nos cabelos sedosos e puxou-a para si. Ela se deixou levar, sentando-se em seu colo, provocando uma intensa onda de prazer, que percorreu todo o corpo de Gabriel. Ela podia ter cochilado pouco antes, mas agora, todos os seus sentidos estavam despertos e alertas.

O beijo tornou-se mais intenso e ardente, e Gabriel entre­gou-se à exploração da boca que se oferecia timidamente para ele, desejando explorar outras partes daquele corpo quente e macio. Amélia pressionou os quadris contra os dele, com um suspiro de prazer que libertou Gabriel do feitiço que o escravizava. Ele se afastou, fitando-a com olhos semi-cerrados.

—Volte para a cama — murmurou. — Vá, enquanto ainda pode.

Ela abaixou a cabeça, envergonhada, os cabelos esconden­do seu semblante.

— Não pense que não a desejo — Gabriel explicou, o que era estranho, uma vez que ele não costumava dar explicações a ninguém e muito menos se preocupar com os sentimentos alheios. — É errado. Você sabe disso. Volte para a cama.

Com movimentos graciosos, ela se levantou. Gabriel ob­servou-a afastar-se, a silhueta das lindas pernas quase o levando a fazer algo de que os dois se arrependeriam. Quis chamá-la, puxá-la de volta a seus braços e seguir adiante no pecado. E como queria. Só pôde relaxar quando ela desapa­receu no patamar da escada. Nunca antes conhecera uma mulher como ela, ao menos, nenhuma que pudesse ser con­siderada uma dama.

Havia imaginado que tais donzelas não passassem de cria­turas tolas e castas, interessadas apenas em vestidos, sapa­tos e chapéus. Além de maridos ricos, claro. Amélia, no en­tanto, era uma mulher sensual, engraçada às vezes, apaixo­nada. Ela o intrigava.

Seria isso o que acontecera a seus irmãos? Teriam eles sido enfeitiçados por uma mulher? Ora, vejam onde aquilo os levara: à ruína, ao casamento... esquecendo-se da maldi­ção que pairava sobre suas cabeças. Gabriel não se encon­trava em posição de brincar com fogo. Estava cheio de pro­blemas, no momento. Precisava ter juízo, e Amélia compro­metia em muito a sua capacidade de julgamento. Mesmo agora, seus pensamentos centravam-se nela, quando deveria estar pensando em um plano para escapar da mansão.

Levantou-se e foi até a lareira para atiçar as brasas. Por toda a sua vida, fora responsável apenas por si mesmo e pela administração de Wulfglen, a criação e venda de cavalos. Ago­ra, era responsável por duas estranhas: uma ainda garota, a outra, já mulher. Como conseguiria levar a melhor sobre aqueles monstros? Como protegeria lady Collingsworth e Mora? E o que aconteceria se falhasse?

Amélia precisava de um banho e pretendia fazê-lo. Mora a ajudara a acender o fogão e colocar grandes chaleiras de água para esquentar. Pediram a Gabriel que carregasse a banheira de cobre para a sala e a colocasse diante da lareira. As portas seriam fechadas a fim de garantir privacidade. Amélia decidiu que todos se banhariam, principalmente Gabriel, que exalava um cheiro que a atraía.

Ele havia agido de maneira estranha durante toda a ma­nhã. Fitava-a como se esperasse dela algum tipo de reação. Estaria esperando que ela se mostrasse embaraçada pelo que acontecera na véspera? A verdade era que não se sentia envergonhada como certamente deveria. Aliás, não se sentia nem um pouco envergonhada. Ao contrário, esperava que o incidente se repetisse.

Por outro lado, decidira não pensar no acontecimento aterrorizante da noite anterior, pois sabia que acabaria ficando histérica. Por isso, concentrou-se naquela tarefa normal, que ajudava a afastar a sensação de que o mundo desmoronava ao seu redor.

— Pode me acompanhar até o quarto? — pediu a Wulf.

— Acho que devemos inspecionar os guarda-roupas e encon­trar algo melhor para você vestir, e uma navalha para se barbear.

Ele passou a mão pelo rosto.

— Tem consciência de que temos coisas muito mais im­portantes para nos preocupar, do que nossa aparência?

Ela franziu o cenho.

— Minha mãe sempre diz que sua vida estar aos pedaços não é motivo para se relaxar da higiene. — Ao vê-lo revirar os olhos, acrescentou: — Por favor, preciso fazer isso agora. Não quero pensar sobre a noite de ontem, ou a de hoje, nem no amanhã. Só quero tomar um banho quente.

A expressão dele suavizou, fazendo o coração de Amélia derreter.

— Está bem — Gabriel concordou. — Mora, fique de guar­da aqui embaixo —instruiu a criada. — Até agora, essas criaturas só se mostraram ativas durante a noite, mas não devemos nos descuidar. Chame se vir ou ouvir qualquer coisa suspeita.

— Pode deixar, senhor. Acho que minha senhora tem ra­zão. É bom fazer algo normal. E nunca vi as criaturas se manifestarem durante o dia. Acho que podemos tirar algum proveito disso. — Mora passou a mão pela testa suada.

— Não muito — Gabriel advertiu, antes de seguir Amélia para fora da cozinha.

No andar superior, Amélia entrou no quarto para pegar sabão e uma muda de roupas limpas. Teve dificuldade para escolher entre o vestido de seda rosa e o de tafetá lilás.

— Nenhum dos dois.

Amélia virou-se e deparou com Gabriel recostado no ba­tente da porta.

— O que disse?

— Nenhum dos vestidos. Use algo prático, que facilite seus movimentos.

Franzindo o cenho, ela voltou a examinar o guarda-roupa. Não possuía nada muito prático. Pegou um vestido cinza simples, destinado às tardes dentro de casa.

— Este está bom — Wulf aprovou.

— É feio — ela protestou. — Nem tenho certeza de que é meu. Parece os vestidos que minhas criadas usam.

— Por isso mesmo, é prático.

Amélia pensou em discutir, mas precisava mesmo de algo que facilitasse seus movimentos. Evidentemente, não pen­sara em levar roupas do tipo "corra para salvar a própria vida" e talvez fosse pura sorte o fato de aquele vestido ter sido incluído por engano em sua bagagem.

— Os utensílios de barbear de Robert devem estar no quarto ao lado — disse. — Eu os pegaria para você, mas não pretendo voltar a entrar lá.

— Compreensível — disse Wulf, desencostando da porta e entrando no outro quarto.

Ouvindo-o no quarto ao lado, Amélia pegou roupas ínti­mas limpas e escondeu-as no vestido cinza.

— Tenho tudo o de que preciso.

Ela se virou e descobriu que Gabriel voltara a assumir sua posição na porta, desta vez, com um pequeno saco de pano nas mãos. Amélia examinou-lhe as roupas sujas.

— Acho que deveríamos procurar nos outros quartos por roupas que possa usar. Sei que é grande demais para usar as roupas de Robert, exceto pelas camisolas.

Ele deu de ombros.

— O pai dele era um homem grande. Tenho certeza de que Robert guardou ao menos parte de seus pertences.

— Conheceu os pais de Robert? — Amélia perguntou, aproximando-se.

— Quando era jovem. Antes... antes de as coisas mudarem.

Lorde Gabriel certamente falava da suposta maldição que assombrava os irmãos Wulf, o escândalo que fizera a famí­lia, um dia influente, ser banida por toda a sociedade, com exceção de umas poucas... bem, somente uma pessoa que Amélia conhecesse, a duquesa de Brayberry.

— Não acredito que sua família seja amaldiçoada — ela declarou, encaminhando-se para o quarto do outro lado do corredor. — Acho que seus pais foram desafortunados.

— Dadas as nossas circunstâncias, muito conveniente. Ela o estudou por cima do ombro.

— Uma vez, dancei com seu irmão mais velho em público — informou. — Acredito que a sociedade os perdoará em breve.

Um leve sorriso curvou os lábios de Gabriel.

— Perdoar-nos por quê? Por sermos loucos? Amélia foi até o guarda-roupa e abriu as portas.

— Ora, por tudo, eu acho — respondeu.

— Meu coração dança de alegria, diante da possibilidade. O sarcasmo dele provocou um sorriso em Amélia.

— Não passam de um bando de gente grosseira — admi­tiu, ao mesmo tempo em que se dava conta de que só havia lençóis e toalhas naquele guarda-roupa. Fechou as portas e voltou ao corredor. — Eu, por exemplo, acho todas aquelas regras e tradições tolas, um tanto cansativas. Gente escan­dalosa é muito mais interessante.

— E foi por isso que você se casou com um homem a quem não amava, somente para agradá-los?

Amélia virou-se, quase dando de encontro com Wulf.

— O que sabe sobre amor? Quem é você para me julgar?

O sorriso sarcástico que ainda curvava os lábios dele se dissipou.

— Como você bem sabe, não sou ninguém. E tem razão: não sei nada sobre amor, nem quero saber.

Embora Amélia houvesse declarado que não acreditava em amor, sentiu uma pontada de dor ao ouvi-lo ecoar seus próprios sentimentos. Imaginava ser normal que os homens a amassem; ela simplesmente não retribuiria um sentimento tão forte e tão tolo.

— Nesse caso, concordamos em alguma coisa.

Deu as costas a ele e marchou até o aposento mais próxi­mo. Juntos, ela e Gabriel inspecionaram o guarda-roupa e as gavetas. Não encontraram nada, mas tiveram maior sorte dois quartos adiante.

— E o que foi aquilo, ontem à noite?

Nenhum dos dois falara desde que haviam declarado seu desinteresse pelo amor. Estavam revistando um guarda-rou­pa que abrigava umas poucas peças masculinas, aparente­mente no tamanho de Gabriel.

Amélia fitou-o.

— Ontem à noite? — repetiu. Ele revirou os olhos.

— Não finja que nada aconteceu.

Ela sentiu um aperto no estômago.

— Está se referindo ao homem... ou o que quer que fosse? Por favor, fico perturbada de pensar naquilo. Quero esquecer o que vi, ao menos por algum tempo.

Gabriel sacudiu a cabeça.

— Não é disso que estou falando. Refiro-me ao que acon­teceu mais tarde, quando você desceu.

Amélia encontrou dificuldade em se lembrar dos aconte­cimentos da noite anterior. Suspeitou de que Mora havia colocado algo em seu chá para fazê-la dormir. De repente, deu-se conta do que poderia ter acontecido.

— Ah, meu Deus! Não diga que tive um episódio de sonambulismo.

— O quê? — Gabriel indagou, incrédulo. Ela sentiu as faces arderem.

— Trata-se de um hábito horrível que tenho desde a in­fância. O que fiz? Cantei, dancei? Toquei algum instrumen­to? Deus sabe que era convidada a me hospedar em casa de amigos com freqüência muito maior que a maioria das mo­ças, justamente por essa razão. Pelo que sei, transformo-me em excelente entretenimento.

Gabriel piscou os olhos, confuso.

— De fato — murmurou. — E não se lembra de nada?

— Não, nada. O que eu fiz?

Ele desviou o olhar e passou a mão pelos cabelos.

— Nada. Só desceu para a sala, parou diante de mim por alguns momentos e, então, voltou para o quarto.

Amélia suspirou.

— Graças a Deus! Já tive longas conversas enquanto dor­mia. É profundamente embaraçoso. Avisei Mora sobre o pro­blema, quando ela escovava meus cabelos, achando que os acontecimentos do dia poderiam provocar um desses episó­dios. Já que estamos partilhando o quarto, por uma questão de segurança, achei que ela deveria saber de todos os meus maus hábitos.

Havia sido Gabriel quem insistira para que as duas dor­missem no mesmo quarto. Amélia ficara pouco à vontade no início, mas acabou concordando que se sentiria mais segura, tendo alguém por perto.

— Isso explica o que fez — ele disse, embora ainda pare­cesse confuso. — É bom saber que é sonâmbula. Assim, não ficarei preocupado se acontecer outra vez.

— E pode voltar a ocorrer — Amélia assegurou, erguendo uma camisa de cambraia e decidindo que o tamanho era perfeito para ele. — Acontece com maior freqüência quando fico agitada por alguma razão.

— E você tem certeza de que não se lembra de nada?

— Absoluta. Por quê? Fiz algo de que deveria me lembrar? Gabriel fitou-a por um momento, antes de responder:

— Não.

Amélia deu de ombros e colocou a camisa sobre o braço, junto de suas roupas.

— Se encontrar uma calça que sirva, leve para baixo. Im­porta-se se eu e Mora nos banharmos antes?

Gabriel baixou os olhos para o próprio corpo.

— Não. Na verdade, é uma boa idéia, já que sou eu quem vai sujar mais a água. Faz tempo que não me dou o luxo de um banho. A água já deve estar quente. Descerei em um instante para carregar as chaleiras até a banheira.

— Seu ombro... — Amélia lembrou, preocupada.

— Ora, não é nada. Já sofri arranhões piores. Permaneceram ali parados, fitando um ao outro, até o constrangimento pairar no ar. Amélia perguntou-se se ele estaria relembrando os momentos que haviam passado juntos na manhã da véspera Ela estava relembrando e dese­jando que ele a beijasse outra vez, por mais impróprio que fossem seus pensamentos. Talvez só precisasse de mais uma distração, algo que a impedisse de pensar na noite anterior e no que vira lá fora

— Quer mais alguma coisa?

A voz de Gabriel, baixa e ligeiramente rouca, soou sedu­tora. Amélia voltou à realidade.

— Não — respondeu e, como não sabia o que dizer, saiu do quarto e desceu a escada

Deixou as roupas e o sabão na sala e foi até a cozinha, onde as chaleiras apitavam no fogão. Olhou em volta, à pro­cura de Mora.

A porta para a adega estava aberta Os itens pesados que Gabriel empilhara contra a porta haviam sido afastados. Amélia sentiu a pele arrepiar-se. Por que a porta estava aberta? E onde estava a criada?

— Mora? — chamou. — Mora, está aí embaixo? — Silên­cio. Deu um passo na direção dos degraus que desciam para a adega. — Mora, responda!

— Estou aqui, minha senhora — a criada finalmente res­pondeu. — Vim apanhar batatas para o ensopado desta noi­te. Pensei ter pedido a lorde Gabriel que as pegasse, mas não encontrei nenhuma na cozinha.

— Você não devia estar aí! Volte agora mesmo!

— Eu sei, eu sei, mas não quis pedir ao lorde que voltasse aqui. Ele não vai se recuperar, se continuar fazendo tantos esforços. Além disso, ele garantiu que estamos seguros du­rante o dia.

— O que está acontecendo? — Gabriel perguntou da porta. Tinha uma calça limpa sobre o ombro. — Por que essa porta está aberta?

— Mora desceu para pegar batatas — Amélia explicou.

— Garota tola! — ele resmungou, colocando a calça no encosto de uma cadeira e atravessando a cozinha.

Em questão de segundos, estava descendo os degraus para a adega.

Amélia prendeu a respiração até os dois voltarem um ins­tante depois. Mora trazia algumas batatas envoltas pelo avental, e Gabriel parecia prestes a explodir em ira. Rapi­damente, ele fechou a porta e pôs-se a arrastar o pesado bloqueio de volta ao lugar.

— Nunca mais desça lá sozinha! — Gabriel advertiu Mora ao terminar. — O que estava pensando? Está louca?

Os olhos da moça encheram-se de lágrimas.

— Eu só queria preparar um bom ensopado... e não queria que o senhor forçasse o ombro. E o senhor mesmo disse que as criaturas do bosque não aparecem antes do anoitecer.

— E se eu estiver errado? E se uma das criaturas estivesse na adega, à sua espera? Você não só se colocou em perigo, mas também a todos nós, quando deixou a porta aberta.

Lágrimas correram pelas faces de Mora.

— Tentei ouvir qualquer coisa, antes de descer. Sabia que não havia ninguém lá.

Gabriel abriu a boca para falar mais, porém Amélia in­terferiu.

— Por favor, chega — ela comandou e aproximou-se de Mora, passando um braço em torno dos ombros da criada. — Não vê que ela não teve a intenção de fazer mal?

Gabriel recuou um passo, mas suas feições ainda expres­savam fúria.

— Mora, precisa entender quanto foi perigoso o que fez. Compreende?

— Fui tola. — a moça assentiu. — Estou acostumada a fazer pelos outros, e não esperar que façam por mim. Foi simplesmente natural descer para pegar as batatas.

Amélia apertou-lhe os ombros.

— Estamos todos sãos e salvos — dirigiu-se a Gabriel. — Ela compreende que cometeu um erro. Por favor, leve as chaleiras para a sala e encha a banheira. Deixaremos Mora banhar-se primeiro, para se recompor.

— Está bem — Gabriel concordou, mas só depois de encarar Mora por tempo suficiente para fazê-la explodir em lágrimas outra vez. — Quando tivermos cuidado de nossa higiene, discutiremos o que fazer para nos livrarmos desse apuro.

Mora foi tomar seu banho chorando. Sentindo-se mal pela garota, Amélia ofereceu-se para ajudá-la, mas ela sacudiu a cabeça, dizendo que queria ficar só. Como era sempre a pri­meira a cair no sono e a última a acordar, Amélia nunca vira a criada despir-se à noite, ou vestir-se pela manhã, mas sus­peitava de que a moça havia experimentado o seu perfume e não a culpava. Por isso, fez questão de espalhar seus sabões e outros artigos de perfumaria para que pudessem ser usa­dos por todos.

Enquanto Mora banhava-se, Amélia esperou na cozinha, sentada diante de Gabriel, cuja expressão continuava sombria.

— Você tem de esquecer o que aconteceu — disse, afinal. Gabriel ergueu os olhos, como se houvesse se esquecido de que ela estava ali.

— Não entendo o que deu na garota para fazer algo tão estúpido — ele explicou.

— Ela é jovem — Amélia defendeu a criada — e como ela mesma disse, está acostumada a fazer pelos outros, não a ter quem faça por ela.

A expressão de Gabriel não suavizou.

— Mesmo assim, seria de se esperar que tivesse medo de se aventurar fora da casa sozinha.

Amélia deu de ombros.

— Ela disse que colou o ouvido à porta e esperou vários minutos, para se certificar de que não havia ninguém na adega. Também alegou que não queria que você fizesse mais esforços físicos. Estava apenas sendo atenciosa.

Gabriel resmungou em resposta, mas não disse mais na­da. O silêncio estendeu-se até o ar tornar-se denso e Amélia encontrar dificuldade para respirar. Além disso, o cheiro de Gabriel parecia envolvê-la como um manto. Ela ergueu os olhos e viu que ele a fitava. Ah, poderia se perder no verde profundo daqueles olhos... e se perdeu. As pupilas de Gabriel pareceram dilatar, tornando-se alongadas em vez de redon­das. Ele baixou os olhos para seus lábios, e Amélia poderia jurar que sentiu um leve formigamento, como se ele a hou­vesse beijado.

— Com licença. Já terminei meu banho.

Amélia só conseguiu dirigir o olhar a Mora depois que Gabriel desviou os olhos dos dela para encarar a criada. Mora parecia ter se esfregado com capricho e usava um vestido limpo e uma feia touca na cabeça.

— Não acha essa touca muito quente para usar dentro de casa? — Amélia sugeriu. — Por favor, não se sinta obrigada a usá-la para manter uma aparência servil. Lorde Gabriel e eu não nos importamos, dadas as circunstâncias.

A garota abaixou a cabeça, as faces corando.

— Minha religião não permite que eu mostre meus cabe­los, pois seria um sinal de orgulho, e todos sabem que orgulho é pecado.

Amélia lançou um olhar para Gabriel, que se limitou a arquear uma sobrancelha. Embora já tivesse ouvido falar em tal religião, ela não acreditava de fato que o orgulho de­vesse ser considerado um pecado. Como uma pessoa não po­deria orgulhar-se da própria aparência? Dando-se conta de que seu pensamento era um tanto superficial, levantou-se.

— Vou me apressar para que a água continue quente para você — dirigiu-se a Gabriel, acrescentando em um sussurro: — Seja simpático.

Simpático? Ora, mulher nenhuma jamais ordenara a Gabriel que fosse simpático... exceto sua mãe. Ele observou Mora amarrar um avental em torno da cintura delgada e começar a descascar as batatas pelas quais ela havia arris­cado a vida de todos na casa. Não queria tratar mal a garota. As lágrimas dela o haviam perturbado.

— Peço desculpas por ter sido tão rude, Mora — falou por fim. — Eu estava nervoso por você ter colocado a todos em perigo. Só quero que entenda a seriedade do que fez.

— Eu entendo — ela murmurou, sem virar-se para fitá-lo. — O que fiz foi errado e não farei mais nada parecido.

Gabriel tentou relaxar. Desde o momento em que havia entrado na cozinha e vira a porta para a adega aberta, seu corpo estivera preparado para uma possível luta. Admitiu para si mesmo que gostava de lutar. No passado, fora um meio que encontrara de aliviar a tensão que se acumulava por ser ele uma figura solitária. Havia se envolvido em várias brigas em tavernas ao longo dos anos, mas nunca antes en­frentara o que enfrentava agora. Nem sabia ao certo o que estava acontecendo.

— Essas criaturas, Mora... Disse que apareceram pouco depois que você começou a trabalhar aqui. O que elas fizeram para assustar os outros e provocar a fuga em massa?

A criada manteve a posição que ocupava do outro lado da cozinha, manejando a faca com precisão na tarefa de descas­car as batatas.

— Nunca as vi fazer nada, mas Constance, a lavadeira, contou que uma das criaturas foi até ela durante a noite, na forma de homem, dizendo que todos deveriam partir. Então, ela disse que o homem se transformou em lobo diante de seus olhos.

Gabriel cocou o queixo, dando-se conta de que mal podia esperar para tomar banho e barbear-se.

— E todos fugiram, baseados exclusivamente na palavra de Constance?

Mora finalmente virou-se para fitá-lo, endireitando o corpo.

— A mulher era respeitada por toda a criadagem. Ela trabalhava para os pais do jovem lorde. Ninguém imaginou que estivesse mentindo.

— Estranho — Gabriel comentou, mais para si mesmo —, que tenha sido necessário tão pouco para que todos fugissem.

— Perdoe-me por dizer isso, meu senhor, mas não é tão pouco ver um homem transformar-se em lobo, ou o contrário, não acha?

O olhar da criada incomodou Gabriel. Era como se ela enxergasse dentro dele, mais fundo do que ele queria que ela visse, como se ela soubesse a verdade sobre ele e sua família. Mas ela não podia saber. Todos acreditavam que a maldição que pairava sobre os irmãos Wulf era a insanidade. Ninguém conhecia a verdade. Ou conhecia? Pensou nos ir­mãos, agora casados. Teriam escapado da maldição? Teria a maldição expirado? Ele precisava saber, mas não desco­briria nada enquanto estivesse preso na mansão.

— Imagino que seja estranho — respondeu, afinal —, se alguém acredita em tais coisas.

— Ver é acreditar — Mora comentou, voltando às batatas. — O senhor e lady Collingsworth também viram.

A menção da criada a Amélia dirigiu os pensamentos de Gabriel para a sala. Estaria Amélia nua, deitada na banheira, relaxando? Por mais que tentasse desviar a mente daquela visão, não conseguiu. Ainda não acreditava que ela não se lembrava de ter descido durante a noite para seduzi-lo.

— Lady Collingsworth comentou algo sobre sonambulismo com você?

A criada depositou as batatas descascadas e cortadas na panela sobre o fogão.

— Sim, avisou-me de que às vezes ela caminha dormindo, e que eu não deveria me assustar. Nunca vi alguém fazer isso, mas já ouvi falar.

— Ouviu a senhora se levantar ontem à noite? Mora virou-se e encarou-o.

— Não. Dormi como um bebê, estava exausta. Ela se le­vantou?

Bem, ao menos agora sabia que Amélia não mentira.

— Sim. Ela desceu, mas não se lembra.

— Pobre mulher — a criada murmurou, voltando a cuidar do ensopado. — Ficar viúva na noite de núpcias e, agora, isso. Ela está se portando melhor do que eu esperava de uma delicada moça da sociedade. Não concorda, senhor?

— Sim — ele admitiu.

— E ela é tão gentil — Mora acrescentou. — Nunca tra­balhei para a alta sociedade, antes de vir para esta casa, mas fui advertida de que não esperasse gentileza dos pa­trões. Ouvi dizer que são egoístas demais para se preocupar com a criadagem. Com exceção de criadas bonitas que des­pertam o interesse do patrão para... bem, o senhor sabe.

Na verdade, Gabriel não sabia. Enquanto crescia, antes que a maldição visitasse seu pai e transformasse sua vida em um inferno, a família tivera criados. Gabriel não se lem­brava de ninguém os maltratando. Aliás, não se lembrava de nada sobre eles. Eram como fantasmas, que mantinham a casa funcionando com eficiência. Gabriel tivera de apren­der a fazer por si mesmo. Homens aceitavam o dinheiro que os Wulf pagavam pelo trabalho, mas não as mulheres.

Se os Wulf queriam suas roupas lavadas, tinham de levá-las para uma mulher na vila mais próxima, Hempshire. As mulheres aceitavam de bom grado o pagamento dos Wulf, desde que não tivessem de fazer o trabalho em Wulfglen.

Gabriel deu-se conta de quanto sentia falta de casa, dos irmãos e, de repente, tomou a decisão: ele, Amélia e Mora tinham de deixar a Mansão Collingsworth e chegar a Wulfglen a pé. Comunicaria Amélia assim que se banhas­se e barbeasse, logo após o jantar que Mora preparava.

Amélia entrou na cozinha pouco depois, surpreendendo Gabriel pela rapidez. Estava corada, limpa e profundamente embaraçada pela pobreza do vestido.

— A banheira é toda sua — disse a ele —, mas receio que vá cheirar como Mora e eu, por causa dos sabões que usamos.

Gabriel deu de ombros.

— Uma grande melhora diante de como estou cheirando agora.

Levantou-se, sentindo uma pontada na coxa. Seu ombro também doía, mas se a criada achasse que ele não estava se recuperando como deveria, só Deus sabia que outra tolice faria para poupá-lo. Por isso, fez o possível para disfarçar a dor ao sair da cozinha.

A sala estava aquecida e cheirosa. Por um instante, Gabriel fechou os olhos e inspirou a fragrância do sabão perfumado.

O perfume de Amélia... Despiu-se e sentiu-se grato por se ver livre das roupas sujas e manchadas. Retirou as bandagens dos ferimentos e entrou na banheira, sem conter um longo suspiro de contentamento. Como ninguém esperava para usar a banheira, não teve pressa.

— Acha que está tudo bem com ele? — Amélia perguntou a Mora, preocupada pela demora de Gabriel no banho.

Sem deixar de mexer o ensopado, a criada deu de ombros.

— Imagino que ele esteja apenas desfrutando do conforto do banho. A senhora pode ir vê-lo, se estiver preocupada.

Mora devia saber que tal sugestão era imprópria, mas sendo de classe inferior, talvez nem se desse conta. Se Amélia houvesse feito a mesma pergunta em sua casa, qualquer uma de suas criadas teria corrido para verificar a situação.

Admitia que aquela era uma idéia interessante: ver Gabriel Wulf nu. Já o vira despido da cintura para cima, vira sua per­na... não podia imaginar como seria vê-lo por inteiro. Bem, podia imaginar, se tentasse, mas não tentaria.

— Posso ajudá-la em alguma coisa? — perguntou a Mora, à procura de uma distração.

— Pode por a mesa — a criada sugeriu. — O ensopado está quase pronto. Infelizmente, não temos carne, mas guar­dei um pouco de pão e queijo. Teremos de nos contentar com isso.

A refeição pareceu maravilhosa para Amélia. Durante to­da a sua vida, comera os melhores pratos, preparados pelas melhores cozinheiras. Agora, lá estava ela, ajudando a cria­da a pôr a mesa. E, ainda, com imenso apetite por uma re­feição que, no passado, teria recusado. Pensou na mudança drástica que sua vida sofrera no espaço de um dia. Não teria acreditado que algo assim pudesse acontecer. Especialmente a ela. Por alguma razão, sempre tivera a certeza de que ri­queza e privilégio traziam consigo a segurança.

Sempre fora protegida, mimada, tendo do bom e do me­lhor. Poucas vezes na vida fizera alguma coisa, ou fora a algum lugar, sem alguém a seu lado. De certa forma, isso a sufocava. Talvez fosse por isso que se rebelasse com tamanha freqüência. Agora, daria qualquer coisa para estar cercada de criados e da família.

Mora já havia colocado pratos e talheres sobre o balcão. Amélia só teria de transferi-los para a mesa, o que não de­morou. Quando ela depositava o último prato, Gabriel voltou do banho e ela perdeu o fôlego.

Ele vestia uma camisa de cambraia branca e calça preta tão justa que beirava a indecência, delineando os músculos fortes de suas coxas. Os cabelos molhados, penteados para trás, emolduravam o rosto agora liso como a pele de um bebê.

— Nossa! — Amélia não pôde conter a exclamação e, quan­do Gabriel sorriu, ela sentiu os joelhos fraquejarem.

—Tracei um plano durante o banho—ele anunciou, apro­ximando-se da mesa —, e gostaria de partilhá-lo com vocês duas.

Mora levou a panela de ensopado até a mesa, serviu pe­quenas porções para ela e Amélia e uma porção bem maior para Gabriel. Então, apanhou pão e queijo. Depois de acomo­dar as duas mulheres em suas cadeiras, Gabriel sentou-se.

— Precisamos sair daqui. Estamos vulneráveis demais, presos aqui dentro.

Mora arregalou os olhos.

— Não correremos perigo maior lá fora, entre eles? — indagou. — Aqui, temos ao menos as paredes para nos pro­teger e mantê-los longe.

Gabriel sacudiu a cabeça.

— Seria muito fácil para eles nos forçar a sair. Poderiam esperar até ficarmos sem comida e estarmos fracos demais para lutar, ou estragar nossa água. Enfim, há várias coisas que poderiam fazer.

Amélia estremeceu. Não havia pensado em nenhum da­queles cenários. Perguntou-se se as criaturas já não esta­riam planejando algo sinistro contra eles.

— Ele está certo, Mora — disse. — Se partirmos durante o dia, se levarmos suprimentos, talvez tenhamos uma chance.

— Prefiro morrer de fome a ser comida por um deles — a criada resmungou.

— Já decidimos — Gabriel dirigiu-se a ela. — Você tem de vir conosco, Mora. Não posso deixá-la para trás.

Amélia vibrou diante de tamanho cavalheirismo, embora voltasse a estremecer de medo da decisão que haviam aca­bado de tomar. Ao menos, agora, tinham um plano de fuga. Fazer planos era muito melhor do que não fazer nada. Per­cebeu que a criada não estava convencida, e pousou a mão sobre a dela.

— Aperfeiçoaremos nosso plano depois do jantar. Vou pre­cisar da sua ajuda com os suprimentos. Você sabe melhor do que eu o que é necessário, em matéria de comida...

— Senhoritas — Gabriel interrompeu. — Não há tempo para planejamento. Eles acabaram de atear fogo à casa,

Amélia pensou que ele estivesse brincando, pois não tinha sentido cheiro de fumaça, mas quando inspirou novamente, acreditou ter reconhecido um leve cheiro... De repente, não havia mais tempo sequer para pensar. Gabriel lançou-se à ação.

Gabriel levantou-se e olhou em volta, dando-se conta de que a fumaça entrava por debaixo da porta da adega. Dia­bos, queriam queimar a casa de baixo para cima. Estendeu o braço e arrancou Mora da cadeira, satisfeito ao ver que Amélia tivera o bom senso de se levantar, também.

— Vamos — ele disse. — Temos de sair agora.

— Mas, mas não deveríamos tentar apagar o fogo? — a criada gaguejou. — E os suprimentos, nossas roupas? Não podemos sair correndo no meio da noite, sem nada!

— Precisamos ir! — Gabriel repetiu. — Eles devem ter calculado que gastaríamos tempo nos preparando para fugir. Nossa melhor chance é sairmos agora, neste exato momento.

— A pistola — Amélia lembrou. — Onde está?

Em vez de responder, ele a retirou da cintura da calça.

— Pela frente! — comandou.

Amélia seguiu-o de pronto, mas Mora permaneceu imóvel, e Gabriel teve de arrastá-la. Amélia correu na frente e cuidou das trancas. Abriu a porta em um instante. Os três foram recebidos por um homem, cujos olhos exibiam um brilho ma­ligno, os dentes pontiagudos, revelando-se em um medonho arremedo de sorriso.

Gabriel apontou a pistola e atirou, já puxando Mora atrás de si. Tropeçando, os três passaram por cima do homem caído e quando Gabriel soltou a mão da criada para gritar que corressem para o bosque, ela parou, petrificada. Raciocinan­do rapidamente, Amélia agarrou-a pelo braço e, sem parar de correr, arrastou-a consigo. Gabriel seguiu logo atrás, a pistola engatilhada, o olhar frenético, tentando esquadri­nhar todas as direções de onde a ameaça pudesse surgir. Surpreendeu-se pelo fato de não serem atacados subitamen­te, mas então se deu conta de que era exatamente o que as criaturas queriam: que deixassem a casa e ficassem a céu aberto.

E como ele havia suspeitado, certamente tinham acredi­tado que eles insistiriam em lutar de dentro da casa, ou que se demorariam para apanhar suprimentos. No momento, Gabriel tinha a vantagem e não pretendia desperdiçá-la.

Com a pistola firme em sua mão, ele correu atrás das duas mulheres. Mesmo ferido, alcançou-as com facilidade. Quan­do Mora tropeçou em um galho caído, ele se deu conta de que levava algumas vantagens sobre as duas. Enxergava perfeitamente no escuro. Pegou a mão de Amélia e instruiu-a a segurar a da criada com firmeza; então, conduziu-as o mais rápido que elas podiam acompanhá-lo, pelo bosque, por entre as árvores, captando o perigo ao redor.

Gabriel conhecia um atalho para Wulfglen. Quando garo­tos, ele e os irmãos haviam utilizado aquele caminho com freqüência para visitar Robert. A cavalo, a viagem durava umas poucas horas; a pé, sendo perseguidos, poderiam de­morar dias. Parou por um instante, a fim de se situar e per­mitir que Amélia e Mora recuperassem o fôlego. Então, pros­seguiu. Lembrou-se de um lugar onde talvez pudessem pas­sar a noite em relativa segurança: uma toca de animais que ele e os irmãos haviam descoberto enquanto exploravam a região do lago.

— Por aqui — instruiu.

O verão chegava ao fim, e o ar frio da noite provocou um arrepio em Amélia. Gabriel finalmente parara, permitindo que elas descansassem. O pequeno lago refletia a luz do luar e era mais fácil enxergar fora do bosque, mas não havia som algum ao redor. Era sinistro. Ela passou os braços em torno do corpo e deixou que o ar frio enchesse seus pulmões. Tinha, a garganta seca, fosse em resultado do medo ou da fuga apressada.

Observou Gabriel. Completamente imóvel, ele parecia apurar os ouvidos em busca de ruídos; parecia farejar o ar. Com certeza, ela pensou, ele não estava fazendo nada disso. Estava apenas respirando. Após alguns instantes, ele pare­ceu relaxar.

— Bebam a água do lago — Gabriel disse. — Não é a mais limpa, mas não acho que vá nos matar.

Mora não hesitou. Com passos rápidos, foi até a beira do lago e bebeu. Amélia passou a língua pelos lábios, mas não havia umidade suficiente em sua boca. Vendo Gabriel ajoe­lhar-se e beber, ela forçou-se a fazer o mesmo.

— Que gosto tem? — perguntou a ele.

— Peixe.

Amélia estremeceu. Detestava peixe.

— Não é tão ruim — Mora afirmou, secando os lábios na manga do vestido —, mas é bom que esteja escuro, assim não podemos ver a água. Aposto que é esverdeada.

A idéia revirou o estômago de Amélia.

— Acho que vou esperar até encontrarmos água mais limpa.

Gabriel ergueu a cabeça para fitá-la.

— Há um riacho que corta o bosque — admitiu —, mas talvez só consigamos chegar lá em dois dias. Beba agora.

O tom era de comando. Amélia queria discutir mas, ao mesmo tempo, queria beber. Respirou fundo, juntou as mãos em concha e mergulhou-as na água gelada. O primeiro gole provocou-lhe ânsias. Gabriel não havia exagerado. A água tinha mesmo gosto de peixe. Ela se forçou a beber, apesar do sabor horrível.

— O que faremos agora? — Mora perguntou.

O luar realçava as mechas prateadas rios cabelos de Gabriel.

— Sei de um lugar onde podemos dormir — respondeu.

— Fica aqui perto.

Os três se levantaram. Gabriel conduziu-as ao que parecia ser um grande buraco no chão.

— Vocês terão de entrar — ele disse. — Vou na frente, vocês me seguem.

— Ali dentro? — Amélia torceu o nariz. — Parece sujo. Gabriel suspirou.

— É um buraco na terra; é claro que é sujo. Prefere ficar aqui e arriscar ser encontrada pelo que quer que esteja nos seguindo?

Amélia não se arriscaria, mas não gostava de espaços pe­quenos e fechados.

— Parece muito escuro lá embaixo — comentou. Mora deu um passo adiante.

— Descerei depois de lorde Gabriel — anunciou. — Em­bora não goste de lugares pequenos.

Gabriel desceu pelo buraco. Devido ao seu tamanho, teve de se esgueirar para conseguir passar. Só de olhar, Amélia sentiu falta de ar. Um instante depois, ele desapareceu.

Mora tocou de leve o braço de Amélia.

— Será que há mais alguma coisa nesse buraco? — inda­gou. — Quando se encontra um buraco no chão, geralmente, encontra-se um animal também.

A idéia fez os pêlos de Amélia se arrepiarem.

— Seus comentários não estão ajudando em nada — disse.

— Meu único consolo é que, se houver um animal lá dentro, vai atacar lorde Gabriel primeiro.

Mora surpreendeu-a com uma risada contida. Amélia nunca ouvira a garota rir, e sentiu-se um pouco menos tensa.

— Muito bem, venham — Gabriel chamou, a voz ecoando. — Depressa. Precisamos nos esconder.

Recuperando a seriedade, Mora respirou fundo e desceu. Observando-a, Amélia sentiu um aperto na garganta. Olhou em volta. Estava no meio do bosque, tarde da noite, com dois estranhos. Seu vestido estava sujo e manchado. Tinha na boca um gosto de peixe e, pelo que sabia, era alvo de um tipo de criatura capaz de transformar-se em homem ou lobo.

Um cheiro chamou-lhe a atenção. Hortelã? Enquanto Mora deslizava pelo buraco, Amélia procurou pela fonte do cheiro. Encontrou a erva no momento em que Gabriel cha­mou-a. Apanhou um punhado delas e enfiou-as no bolso do vestido, antes de retornar ao buraco. Por mais que tivesse medo do escuro e de lugares fechados, ela sabia que Gabriel estava certo. Preferia enfrentar a escuridão lá embaixo com ele e Mora, a ficar ali e enfrentar sozinha o que quer que viesse no seu encalço.

Respirou fundo e começou a descer, sentindo bocados de terra deslizar ao seu redor. A toca era maior do que imagi­nara e o luar penetrava pela abertura, dissipando um pouco da escuridão. Gabriel puxou-a de encontro a ele, e os três acomodaram-se no chão de terra. A proximidade encorajou Amélia a partilhar suas folhas de hortelã.

Depois de se aconchegarem uns aos outros em busca de calor, Gabriel sugeriu às duas que dormissem. Amélia não tinha sono. Estava colada a Gabriel e o corpo forte e musculoso não lhe proporcionava um bom travesseiro. Por outro lado, ela não se sentiu inclinada a abrir mão do calor que ele emanava. Deixou-se relaxar junto dele, enquanto Mora aconchegava-se do outro lado do corpo de Gabriel. Amélia logo ouviu o ronco suave da criada e invejou-a por se capaz de dormir naquelas circunstâncias.

— Amanhã, teremos de zombar dela pelo ronco. Amélia sobressaltou-se. Pensara que Gabriel havia caído no sono.

— Aposto uma libra como ela não vai nem sorrir — sus­surrou. — Mora não possui senso de humor.

Gabriel virou-se para poder encará-la.

— Estou surpreso com o seu senso de humor — disse. — Quando a vi em Londres, não imaginei que fosse assim.

Amélia apoiou-se em um cotovelo.

— Lembra-se de mim, então?

A constatação agradou-a mais do que deveria. Continuava se esquecendo de que estava de luto. O fato de não ter visto o corpo de Robert não a ajudava a lembrar-se. Era como se sua mente se recusasse a aceitar a morte dele, apesar de Gabriel ter dito que tinha de aceitar.

— Sim — ele admitiu. — Por alguma razão, você ficou na minha lembrança.

Mesmo sabendo que não deveria, ela confessou:

— E você na minha.

— Não por muito tempo. Você se casou.

Amélia perguntou-se o que mais poderia ter feito. Espe­rado por ele? Tentado arranjar um encontro casual? Implo­rado para ser convidada a se hospedar em Wulfglen, para estar perto dele?

— Fiz o que esperavam de mim — respondeu. — Você é homem. Não faz idéia da pressão que a sociedade e os pais colocam sobre uma moça para fazer um bom casamento. Eu queria ter minha própria vida, e a única maneira de conse­guir isso era me casando.

Gabriel estendeu a mão e afastou os cabelos do rosto de Amélia.

— O que vai fazer, agora? — perguntou.

Amélia esforçou-se para conter o prazer provocado pelo gesto dele e a histeria que ameaçava tomar conta dela. Não tivera tempo para pensar no que faria. Só conseguia pensar no que estava acontecendo no presente.

— Ainda não sei — respondeu. — Acho que vou voltar para a casa de meus pais, embora seja constrangedor. Sou viúva, mas nunca fui esposa.

Wulf permaneceu em silêncio por um momento, então co­mentou:

— Imagino que jovens viúvas sejam tão procuradas quan­to as debutantes, no mercado dos casamentos.

Amélia calculou que ele estava certo, mas a noção trazia pouco conforto. Já participara da caça a um marido, e não se sentia ansiosa para repetir a dose.

— Conte-me o que sabe de meus irmãos e minhas cunha­das — pediu Gabriel. — Eles estão bem? Quando deixei Londres para procurar por Jackson, Armond estava enfren­tando problemas com o irmão de criação da esposa. Sabe se isso se resolveu?

A menção do irmão de criação de Rosalind provocou um calafrio em Amélia. Era um homem atraente, mas sua aura era tão maligna que a deixava arrepiada.

— O homem está morto — contou. — A casa em que mo­rava pegou fogo, e a mãe morreu com ele.

Os olhos de Wulf brilharam no escuro.

— Lamento pela madrasta, mas conte-me, como estão Armond e Rosalind? Estão felizes?

— Ah, sim. Se acreditasse em amor, eu diria que estão apaixonados. Jackson e Lucinda, também. Rosalind vai ter um filho. Ela não me contou, mas é óbvio, mesmo ela esco­lhendo vestidos que disfarcem a barriga.

— Um filho? E Jackson já tem um?

Amélia perguntou-se se deveria emitir a sua opinião, que era a de muitas outras pessoas, sobre o filho de Jackson. Ora, por que não? Nem sabia se estariam vivos no dia seguinte.

— Não acho que o filho seja de Jackson — confessou. — O bebê não se parece em nada com ele, mas seu irmão parece gostar do menino como se fosse dele mesmo, o que é mais importante.

Gabriel emitiu um som debochado.

— Não consigo vê-lo no papel de pai. Se fosse Jackson, em vez de mim, nesta posição, entre duas mulheres, ele nem pensaria em dormir.

Embora soubesse que deveria fingir-se chocada pela insinuação, Amélia estava cansada demais. Limitou-se a dizer o que pensava.

— A menos que deseje ser amaldiçoada por uma bruxa, não acho que mulher alguma vá olhar duas vezes para Jackson Wulf, agora.

— Acredita nessas coisas, Amélia? Em bruxas e maldições?

— Há dois dias, eu não acreditava. Agora, não tenho tanta certeza.

Ele se aproximou.

— Essas coisas a assustam?

Mais uma vez, ela estava cansada demais para não ser honesta.

— Sim.

Gabriel se aproximou ainda mais, os lábios quase tocando os dela.

— Eu a assusto?

Enquanto o estudava, Amélia examinou seus sentimen­tos, à procura de algo relacionado a medo. Sim, seu coração batia em disparada, mas não era de medo.

— Por que eu teria medo de você? É meu protetor. Minha melhor amiga é casada com seu irmão. Eu estaria morta, não fosse por você.

— Apesar de tudo o que disse, ainda sou um estranho para você.

Como Amélia poderia dizer a ele que não era um estranho? Que ela havia gravado na memória cada uma de suas feições? Que ele a visitara em sonhos? Que ela havia pensado em beijá-lo, muito antes de a oportunidade se apresentar? Que pensara em fazer mais que beijá-lo? Não poderia dizer nada disso.

— Talvez seja um estranho — admitiu —, mas no mo­mento, é tudo o que tenho, separando-me daquelas criaturas horríveis.

Ele se afastou e se deitou.

— Seja honesta.

Ela riu do tom seco e aconchegou-se mais a ele, em busca de calor. Permaneceram em silêncio por um longo período e, sem a distração da conversa, Amélia tomou consciência da proximidade impossível entre eles, do som suave da res­piração dele, do cheiro... Não sentia o cheiro dele o tempo todo, mas sentia agora e tentou identificar o que o perfume a fazia lembrar.

Temperos. Não tão forte quanto cravo, nem tão doce como canela, mas algo intermediário. O perfume a envolveu e ela começou a imaginar se seria diferente beijá-lo com as faces barbeadas.

— Você me beijou quando estava sonâmbula.

Ela se sobressaltou de novo. Ora, era como se ele soubesse que ela estava pensando em beijá-lo.

—O que disse? Gabriel virou-se de lado.

— Eu não ia lhe contar, mas você desceu e me beijou. Amélia sentiu-se grata pela escuridão, pois sentiu as faces arderem.

— Está mentindo! Juro que não me lembro de nada!

— Não estou mentindo, mas foi diferente de quando você me beijou no quarto.

A posição dele, deitado de lado, aproximava-os, ou melhor, alinhava seus corpos de maneira perturbadora.

— Acho que foi você quem me beijou, no quarto — ela disse. — E foi diferente, como?

Amélia calculou que o silêncio dele indicava que estava refletindo.

— Você não tinha... paixão — ele respondeu, afinal. — Era como se estivesse apenas seguindo instruções.

Já era rude o bastante mencionar o incidente, se havia mesmo acontecido, mas criticar sua técnica de beijar era ainda pior.

— Eu estava dormindo — lembrou-o. — E obviamente não inspirada o suficiente para acordar.

Os dentes brilharam na escuridão quando ele sorriu.

— Eu não disse que foi ruim. Só disse que foi diferente.

— E é indelicado de sua parte sequer mencionar o fato.

Amélia estava profundamente envergonhada de ter ido à procura dele enquanto dormia para beijá-lo. A ação era evi­dência de um desejo inconsciente de partilhar intimidade com ele, e Gabriel era inteligente o bastante para saber disso.

— Está bem aquecida?

Ela estava muito mais quente do que estivera pouco antes, graças ao calor da vergonha que sentia.

— Estou bem.

— Então, deveríamos tentar dormir. Temos uma longa caminhada pela frente, amanhã.

A conversa havia, ao menos, distraído Amélia da condição em que se encontravam. Ela ainda não se sentia pronta para retornar ao pesadelo em que sua vida se transformara. Du­vidou de que conseguisse dormir, com tantas preocupações a perturbá-la. Não sabia nada a respeito de Gabriel Wulf. Nada além do fato de ele ser muito alto, ter um corpo ma­ravilhoso e ser bonito como o próprio pecado. Nada além do fato de ele se capaz de seduzir uma mulher com um beijo e o perfume que seus poros exalavam.

E era corajoso. Outro homem poderia ter fugido imediata­mente da situação na Mansão Collingsworth, deixando que ela enfrentasse sozinha qualquer que fosse o seu destino ali. Gabriel, porém, ficara lá e defendera ela e Mora. Oferece­ra-lhes proteção. Conduzira-as à segurança, quando a casa se incendiara. De longe, não haviam visto fogo ou fumaça. Gabriel dissera que, provavelmente, tinha sido apenas uma tática para amedrontá-los e forçá-los a sair da casa. E fun­cionara.

Mora continuava a roncar baixinho. Amélia desejou que o som a embalasse e ela pegasse no sono, também, mas ficou ali deitada. Voltou a estremecer de frio. Gabriel puxou-a pa­ra mais perto. Ela não resistiu. Aconchegando-se contra o peito largo, acomodou a cabeça sob o queixo dele. Ouviu as batidas fortes do coração de Gabriel, sentiu o corpo vigoroso colado ao seu.

Ele afagou seus cabelos, os dedos suaves, oferecendo-lhe conforto. Ao mesmo tempo, o afago a perturbava. O perfume de Gabriel voltou a envolvê-la. Amélia tentou esquivar-se, prendendo a respiração, mas o recurso só piorou a situação, pois quando seu fôlego acabou, ela teve de inspirar mais profundamente do que antes.

Lentamente, ele deslizou a mão por seus cabelos, até as costas. Ela se perguntou se deveria estar adormecendo. Se a intenção dele era fazê-la relaxar para dormir, o efeito era exatamente o contrário.

A mão em suas costas desceu um pouco mais, pressionando-a contra ele. Ela engoliu em seco. Seus quadris estavam colados aos dele, e seria impossível não sentir o volume óbvio escondido pela calça preta.

Um instante depois, Gabriel gemeu baixinho, retirou a mão e virou-se, deitando-se de costas. Amélia espiou. Ele olhava fixamente para a lua. Ela ficou imóvel, esperando para ver se ele voltaria a tocá-la, mas isso não aconteceu. Ao que parecia, Gabriel havia recuperado o controle sobre o que quer que o tivesse possuído, levando-o a tocá-la. Uma pena, Amélia pensou.

No fundo de sua alma pecaminosa, ela esperava que ele a beijasse de novo. Talvez quisesse provar a ele que não lhe faltava paixão. Só podia imaginar, já que estivera sonâmbula e não se lembrava de nada, quanta vantagem ele havia tirado da situação. Seria muita falta de sorte se houvesse roubado sua inocência e ela não se lembrasse! Não, tinha certeza de que isso não acontecera.

Haveria sinais e, certamente, ele teria contado, se as coi­sas houvessem ido além de um beijo. E Amélia deu-se conta de que não tinha mais nenhum motivo para guardar sua preciosa virgindade. Era uma mulher casada... viúva, agora. Ninguém esperaria que fosse casta. Ou estava enganada?

Se seu casamento com Robert não se consumara, teria ela direito à herança dele? Grande parte daquela herança era o dote que seu pai entregara a ele. Robert não tinha parentes vivos. Uma vez, ele lhe dissera que os homens da família dele não viviam até a idade madura. Pobre Robert, nem ele vivera.

Amélia sentiu-se consumida pela culpa. Estava deitada junto de outro homem, desejando que ele a beijasse, quando Robert nem sequer fora enterrado. Embora não houvesse amado seu marido sequer por um dia, deveria mostrar res­peito por ele.

Decidiu que era isso o que faria. Não acalentaria pensa­mentos pecaminosos com Gabriel Wulf enquanto seu período de luto não se encerrasse. Ora, mas o período era de um ano, e ela nem sabia se estaria viva no dia seguinte! A idéia de morrer virgem deixou-a mortificada. Na verdade, a simples idéia de morrer a deixava mortificada. Talvez não tivesse de guardar luto por Robert durante um ano inteiro...

Talvez, em determinadas circunstâncias, um dia ou dois seriam suficientes. Sentindo a mente exausta, Amélia acon­chegou-se a Gabriel, arrancando dele mais um suspiro, e tentou dormir.

 

Gabriel sacudiu Amélia de leve.

— Precisamos partir. Ela gemeu, e gemeu novamente ao se sentar, apreciando o calor do corpo dele. Mora já estava acordada, estudando a abertura da toca.

— Como vamos subir? — perguntou.

— Levantarei vocês — Gabriel explicou. — Estão vendo aquelas raízes emergindo da terra? Agarrem-se nelas para chegar até o topo.

Amélia sentiu-se grata a Mora por ela subir primeiro, pois teria de observar a criada para saber o que fazer.

Gabriel levantou Mora com pouco esforço. Debaixo da ca­misa agora suja de terra, Amélia viu os músculos se con­traindo. Os braços dele eram maravilhosamente bem tor­neados. Bem, tudo nele era maravilhoso. Mora esticou-se para alcançar as raízes.

— Teste-as antes — Gabriel advertiu. — Certifique-se de que podem sustentar o seu peso.

Ela obedeceu e, ao sentir que uma raiz era firme o bas­tante para sustentá-la, agarrou-a e içou-se para fora do bu­raco. Um momento depois, sua cabeça apareceu na abertura.

— Quero que ajude Amélia quando ela estiver perto do topo — disse Gabriel.

Amélia calculou que seria capaz de sair com a mesma facilidade de Mora. O fato de Gabriel obviamente não pensar assim magoou seu orgulho. Afinal, não era uma dondoca incapaz. Mas queria muito se ver fora daquele buraco e discutir com ele agora só serviria para prolongar seu des­conforto.

— Sua vez, Amélia — ele anunciou.

Ela aproximou-se de onde Gabriel ajoelhara-se. Ele a se­gurou pela cintura e a levantou do chão. Amélia sentiu o hálito quente no decote do vestido. O rosto de Gabriel en­contrava-se bem diante de seus seios, e seus mamilos enri­jeceram-se de pronto. Era embaraçosa a facilidade com que ele a perturbava. Ela se perguntou se todas as mulheres reagiam a ele da mesma forma. Mora parecia indiferente, mas era apenas uma menina. Talvez seus sentimentos fe­mininos ainda não tivessem se desenvolvido. Amélia gosta­ria de que os dela também ainda estivessem adormecidos.

— Alcance as raízes — Gabriel instruiu, com voz rouca.

Ela tentou, mas não conseguiu. As mãos de Gabriel des­lizaram até seus quadris e ele a ergueu mais alto. Os dedos dela tocaram duas raízes grossas.

Mora estendeu os braços pela abertura. Amélia calculou que deveria içar o próprio corpo para alcançar as mãos da criada. Perguntou-se se ela teria força para ajudá-la.

A tentativa de erguer-se pressionando os pés contra a pa­rede de terra úmida fez com que a terra começasse a cair ao seu redor. O buraco de abertura começou a sumir. Mora gri­tou e recolheu os braços depressa. Amélia caiu. Gabriel se­gurou-a e, em uma grande confusão de pernas e braços, os dois rolaram para o fundo da toca. Ele estava sobre Amélia, e ela não conseguia respirar, não só por causa do peso de Gabriel, mas também por toda a terra que os envolvia. E estava escuro, mais escuro que a noite.

Embora a estivesse esmagando, Gabriel estava protegen­do Amélia. A terra continuava a cair. Amélia apavorou-se diante da idéia de ser enterrada viva. Pressionou o rosto contra o pescoço de Gabriel e fechou os olhos. Não saberia dizer quanto tempo permaneceu assim. Pareceu-lhe uma eternidade, até que ela deixou de ouvir o ruído da terra cain­do sobre as costas de Gabriel.

— Você está bem? — ele perguntou, os lábios muito pró­ximos do ouvido de Amélia.

— Acho que sim — ela sussurrou. — E você?

— Estou bem. Precisamos nos manter completamente imóveis até eu ter certeza de que não há mais nada para cair sobre nós.

Ouviram Mora chamá-los.

— Não responda — Gabriel advertiu em um sussurro. — Isso poderia provocar outro deslizamento.

Amélia sentiu-se mal por não responder ao chamado de Mora, mas o que poderia fazer? E o que, exatamente, eles fariam? Desconfiou de que não havia muito ar ali embaixo. A simples idéia provocou-lhe pânico.

— Precisa relaxar — Gabriel murmurou. — Respire de­vagar.

Com certeza, ele havia sentido sua respiração acelerar-se, seu coração disparar. Era verdade, ela tinha de se acalmar; só não sabia como.

— Vou tentar — prometeu. — Mas tenho problemas com lugares pequenos e escuros. Uma vez, meu irmão me trancou em um armário durante horas.

Gabriel ficou em silêncio por um momento. Então, não resistiu à curiosidade.

— Por que ele fez isso?

Sem medir palavras, Amélia respondeu:

— Porque era um bastardinho, patife, que adorava pregar as piores peças nos outros. Estávamos brincando de escon­de-esconde, na ocasião.

Gabriel surpreendeu-a com uma risada.

— Nada em nossa situação atual é engraçado — ela co­mentou, irritada.

— E verdade, mas nunca conheci uma dama que bebesse e usasse esse tipo de linguagem, e fizesse as duas coisas tão bem.

Amélia considerou que um rubor nas faces seria apropria­do ao momento, mas nem se esforçou para consegui-lo. Afi­nal, Wulf não podia vê-la na escuridão.

— Meu irmão não é tão mau, agora — ela admitiu. — E eu também pregava algumas peças, quando podia.

— Você? Parece um anjo!

Amélia não era santa. Ao contrário, possuía um lado pe­caminoso. Ali estavam os dois, presos sob montes de terra, podendo morrer a qualquer momento, e ela continuava ali­mentando pensamentos indecentes sobre Gabriel Wulf, ain­da curiosa sobre o que não deveria querer saber. Por exem­plo, como seria se estivessem nus, agora?

— Como vamos sair daqui? — perguntou, sabendo que era só nisso que deveria estar pensando.

Lentamente, Gabriel rolou para o lado e sentou-se, apesar de mal haver espaço ali dentro.

— Vou cavar uma saída — respondeu.

Gabriel sabia que não havia muito ar dentro da toca. Tam­bém sabia que Amélia estava à beira do pânico. Tinha de agir com rapidez e cautela, pois não sabia quanto tempo a parte de cima da toca se sustentaria, antes de desabar por completo sobre eles. Deslizou devagar pela terra úmida, até onde o desabamento se iniciara, junto à entrada. Lá em cima, ainda havia um pouco de luz, embora a abertura estivesse bem menor do que na noite anterior.

Como não tinha qualquer ferramenta, escavaria com as mãos. Pôs-se a trabalhar. O pânico crescente de Amélia era uma força palpável dentro da toca. Sem ter com que se dis­trair, ela reagia ao medo infantil de estar trancada em um lugar de onde não podia sair. Gabriel achou que conversar a manteria distraída.

— Conte-me sobre sua família — pediu.

Por um momento, ela não respondeu, e ele temeu que o medo houvesse lhe roubado a capacidade de falar. Então, ela disse:

— Trata-se de uma família típica. Papai e mamãe se ca­saram porque a união seria boa para as duas famílias. Pa­recem satisfeitos um com o outro. Meu irmão é três anos mais novo do que eu. Sinto falta deles.

Gabriel espiou por cima do ombro. Amélia parecia peque­na e assustada, como uma garotinha.

— Também sinto falta de meus irmãos — ele admitiu. — Somos mais apegados que a maioria dos irmãos, provavel­mente porque já faz tempo que somos tudo o que resta uns aos outros.

Gabriel jamais fizera uma confissão tão pessoal a uma mulher antes. Devia ser resultado das circunstâncias. Tinha de continuar a conversar para evitar que ela entrasse em pânico e os colocasse em perigo ainda maior.

— Bem, nunca achei justo — disse Amélia — o modo como a sociedade julgou sua família por algo que seus pais fizeram. E incrível como sempre chegam rapidamente às piores con­clusões. Como na vez em que aquela garota foi encontrada morta no estábulo da propriedade de sua família em Lon­dres. Todos concluíram naturalmente que lorde Wulf foi o responsável.

Concentrando-se na escavação lenta, Gabriel murmurou:

— Somos muitas coisas, mas não assassinos. Lembrou-se de que ele e Armond ficaram preocupados com a possibilidade de Jackson ter alguma ligação com a morte da moça. Só porque na época do assassinato Jackson estivera em Londres e, na ocasião de um segundo crime, ele estivera em Londres novamente. Agora, Gabriel sabia que estava errado ao pensar, mesmo que por um breve instante, que Jackson seria capaz de fazer mal a uma mulher. O irmão amava as mulheres, e elas o amavam também.

— Está amargurado?

A pergunta o apanhou de surpresa e o confundiu.

— E por que estaria?

— Por terem lhe negado o direito de se relacionar com as pessoas de sua classe e forçado a viver à sombra da socieda­de. Acho que se fosse comigo, eu ficaria amargurada.

Gabriel continuou cavando, perguntando-se se estava realmente triste.

— Nunca fiz questão de ser parte da sociedade. A maioria daquelas pessoas é tola e superficial, preguiçosa e arrogante. Não, não estou amargurado.

Amélia soltou um suspiro impaciente.

— Não pode julgar a todos, com base nas opiniões e ati­tudes de uns poucos.

Ele a fitou por sobre o ombro.

— É claro que posso. Especialmente quando a sociedade que você defende é como um rebanho de ovelhas pastoreado por cães. Não são capazes de pensar por si mesmos; precisam que lhe digam em quê acreditar e que opinião devem ter sobre cada assunto e cada pessoa.

— Não é verdade — ela retrucou. — Acredito que sou dona de mim mesma e que sou livre para formar minhas próprias opiniões. E para expressá-las, também. Se você julga a todos pelo que acredita ser verdadeiro sobre alguns, é igualmente culpado de ser esnobe.

Amélia era, de fato, uma mulher de opinião, e Gabriel considerava aquela qualidade muito atraente. E supôs que ela estava certa: era mesmo esnobe. Talvez um pouco desi­ludido. De início, tentara colocá-la na mesma categoria que, em sua opinião, encontrava-se a maioria das mulheres da classe dela, mas Amélia ocupava uma categoria única. E a verdade era que ele não seria o melhor juiz de mulheres da "classe" de Amélia, pois passara pouco tempo na companhia delas. Concluiu que era mesmo um hipócrita. Nada do que ele admitia ser era pior do que ele era em realidade: amal­diçoado.

Continuou cavando na direção da abertura. O deslizamen­to havia tornado mais fácil a tarefa de alcançar o buraco. Com todo cuidado, ele começou a alargar a saída da toca. Não demorou a atingir a largura necessária para que con­seguisse passar. Pôs a cabeça para fora e espiou. Não viu Mora em lugar algum e, felizmente, também não avistou nenhuma companhia indesejada.

— Amélia, vou sair. Siga-me de perto, para o caso de pre­cisar da minha ajuda.

Deixar que ela saísse antes seria melhor, mas Gabriel sabia que voltar de onde já estava criaria o risco de um novo desabamento.

— Estou com medo — ela sussurrou. — Se a terra começar a deslizar de novo, poderei ficar presa aqui, sozinha.

— Isso não vai acontecer — ele assegurou, torcendo para estar certo. — Só precisará ter cuidado quando estiver sain­do. Tente não se apressar.

— Faço qualquer coisa para me ver fora daqui — Amélia disse.

Gabriel sentiu-se aliviado ao reconhecer a coragem e a determinação nas feições de Amélia.

Ele saiu com cuidado. O solo em torno da abertura era muito instável. Foi muito bom respirar o ar puro, sem terra ou poeira. Ele se deitou de bruços, espiando pelo buraco.

— Muito bem, venha, Amélia. Devagar e com cuidado. Viu-a aparecer lá embaixo. Ela ergueu os olhos para fitá-lo, o rosto pálido na escuridão.

— Arraste-se de bruços — ele orientou —, com movimen­tos lentos e suaves.

Amélia começou a se mover como Gabriel a instruíra; en­tão, como se o medo tomasse conta dela, arrastou-se tão de­pressa que a terra começou a deslizar ao seu redor outra vez. Rapidamente, Gabriel agarrou-a pelo braço e puxou-a para fora, ao mesmo tempo em que rolava na direção oposta de onde o chão desabava. Em questão de segundos, a toca encheu-se completamente de terra.

Amélia ofegava ao lado de Gabriel. Sentados, os dois olha­vam fixamente para o que poderia ter sido sua sepultura. Estavam cobertos de terra, mas estavam vivos.

—Você salvou minha vida — ela murmurou. — Mais uma vez.

Gabriel estendeu a mão e limpou parte da terra do rosto dela.

Vamos encontrar Mora — disse, levantando-se e esten­dendo a mão para ajudá-la.

Era estranho, mas cada vez que se tocavam, um formigamento percorria o corpo de Gabriel, como uma corrente elé­trica. Ajudou-a a se levantar e, juntos, seguiram na direção do lago. Avistaram Mora pouco depois, sentada à beira da margem.

A criada ergueu os olhos, que se arregalaram ao ver os dois, e ela levou a mão ao peito.

— Pensei que estivessem mortos — desabafou. — Não sa­bia o que fazer. Não podia voltar para a Mansão Collingsworth.

— Estamos bem — Amélia assegurou, tentando tirar com as mãos ao menos parte da terra em seu vestido. — Não podíamos gritar, por medo de provocar mais deslizamentos.

Mora mostrou-se envergonhada.

— Tive medo de ficar lá porque achei que poderia cair, também. Acho que sou covarde.

Gabriel ajoelhou-se ao lado dela e lavou as mãos no lago.

— Poderia ter provocado outro deslizamento se ficasse lá — disse. — Fez bem em se afastar.

A garota apontou para a água.

— Enquanto estava aqui sentada, tentando decidir o que fazer, percebi aquele pequeno buraco, onde alguns peixes entraram e não conseguiram sair. Pensei em tentar pegar um deles para comer.

Gabriel achou estranho o fato de ela pensar em comer, estando tão preocupada com o próprio destino. Como se hou­vesse se dado conta da mesma coisa, ela corou.

— Tinha de pensar em mim. Precisava encontrar um meio de sobreviver aqui, sem o senhor e a senhora.

Amélia ajoelhou-se ao lado de Gabriel. Torceu o nariz para a água esverdeada e, então, lavou as mãos.

— Em minha opinião, foi bastante prática — declarou. — E devo dizer que é muito mais sensata do que a maioria das jovens que conheço Mora. Mas você não poderia ter ido em busca de ajuda.

— É verdade, minha senhora. Tive medo de me aventurar sozinha pelos bosques.

— Está tudo bem, agora — Amélia assegurou. — Como comeria o peixe, se conseguisse pegá-lo?

Mora sorriu e retirou do bolso a faca que usara para des­cascar batatas.

— Poderia limpá-lo com isto, mas teria de comê-lo cru. Gabriel viu Amélia empalidecer.

— Detesto peixe cozido — ela disse. — Não posso nem pensar em comer peixe cru.

Gabriel ergueu a mão, sinalizando para que Amélia e Mora parassem. Apurou os ouvidos, o olhar esquadrinhando o bosque, enquanto ele tentava identificar o som. Ouviu ou­tra vez um rangido. Uma roda? Havia, definitivamente, al­gum tipo de veículo na estrada, a poucos metros dali. Deci­dira não usar a estrada, pois se estavam sendo caçados, como tinha certeza de que acontecia, a estrada seria o lugar mais lógico para seus perseguidores procurarem por eles.

— Por que paramos? — Amélia perguntou em um sus­surro.

— Alguém se aproxima. Vamos chegar perto da estrada.

— Não estou ouvindo nada — ela retrucou após um ins­tante.

Gabriel lançou-lhe um olhar que geralmente silenciava quem quer que pretendesse discutir com ele, mas é claro que não funcionou com Amélia.

— Ora, não estou ouvindo mesmo! — ela insistiu.

Ele fez um sinal para que seguissem adiante. A vegetação tornava-se mais densa, à medida que se aproximavam da estrada. Os galhos enroscavam-se nas roupas e nos cabelos de ambos. Mora estava protegida pela feia touca. Embora não se queixasse, Amélia expressava seu desagrado no rosto.

Assim que avistou a estrada, Gabriel tratou de encontrar um lugar onde pudessem se esconder e observar. Não acre­ditou que tivesse a sorte de que fosse um de seus irmãos viajando pela estrada.

— Onde estão? — perguntou Amélia. — Estou vendo a estrada, mas não vejo ninguém nela.

A audição de Gabriel era muito superior à dela, mas ele não poderia explicar isso, sem fazer com que ela tivesse mais medo dele do que das criaturas que os perseguiam.

— A paciência é uma virtude — ele disse.

— Não me preocupo em ser virtuosa — ela retrucou. — Estou mais interessada em conseguir uma carona até Wulfglen, para tomar um banho quente, vestir roupas lim­pas e comer.

Gabriel não resistiu à insolência de Amélia e sorriu. A simples proximidade dela o excitava. Beijara-a duas vezes, e queria muito beijá-la de novo. Ora, seus pensamentos não deveriam se ocupar do que ele queria fazer com lady Collingsworth, mas sim da situação em que se encontra­vam e em como manter as duas mulheres vivas e fora de perigo.

Ficaram sentados, em silêncio. O estômago de Mora ron­cou, e Gabriel perguntou-se como conseguiriam comida. Se­ria fácil caçar algum animal, mas não poderiam correr o risco de acender uma fogueira, que levaria seus perseguido­res diretamente a eles. Conseguira tirar as mulheres da casa mas, sem comida e abrigo, quanto tempo mais permanece­riam em segurança?

Finalmente, uma carroça surgiu na estrada. Um homem a puxava e outro caminhava a seu lado. Ambos pareciam camponeses. Um deles usava uma bengala, ou melhor, uma vara. Nenhum dos dois era particularmente grande ou forte, e Gabriel não viu nenhum sinal de armas, o que não signi­ficava nada. Os homens pareciam inofensivos... mas as apa­rências podiam ser enganosas.

— Lá estão eles — Amélia sussurrou, seus olhos foram então, capazes de identificar a carroça e os dois homens. — Acha que podem nos ajudar?

— Eles não têm cavalos — disse Gabriel, desapontado. — Duvido que tenham algo que possam nos dar. Não vejo que ajuda poderiam oferecer. E melhor deixá-los passar.

— E por que não nos ajudariam? — ela indagou, indigna­da. — Três homens são melhores que dois, em se tratando de proteção. Podemos oferecer pagamento, se nos acompa­nharem até Wulfglen.

Gabriel retirou um graveto dos cabelos de Amélia.

— Teríamos de contar a eles que estamos fugindo — disse. — Imagino que nos considerariam loucos, não acha?

— Se forem da região, não ficarão surpresos — Mora in­terferiu. — E parecem mesmo gente do campo. Provavel­mente, cresceram ouvindo as mesmas histórias que eu, e acreditam em coisas estranhas.

— Talvez tenham ao menos um pouco de comida para nos dar — Amélia contribuiu. — Qualquer coisa... Prometo que não vou me queixar.

A esperança nos olhos dela derrubou a determinação de Gabriel. Amélia estava faminta, Mora também, e ele se sen­tia um incompetente, incapaz de cuidar das duas. Tinha algumas moedas no bolso. Quando partira em busca de Jackson, não lhe ocorrera que ficaria longe por tanto tempo, ou que gastaria tanto dinheiro.

— Está bem — concordou. — Mas irei sozinho. Vocês duas, fiquem aqui, escondidas. Entenderam?

As duas assentiram e Gabriel levantou-se, sentindo a coxa latejar pelo esforço da véspera e daquela manhã. Foi até a estrada e seguiu na direção dos homens. Os dois pararam ao vê-lo, parecendo desconfiados. Gabriel deixou as mãos caídas ao lado do corpo, para que vissem que estava desar­mado, embora ainda tivesse a pistola na cintura da calça, debaixo da camisa.

— Boa tarde — cumprimentou.

Nenhum dos homens respondeu, mas também não saca­ram armas, e Gabriel continuou se aproximando.

— Sofri um percalço — anunciou. — Meu cavalo me derrubou da sela e estou caminhando há dois dias. Teriam al­guma comida sobrando? Os dois se entreolharam.

— Tem dinheiro? — um deles inquiriu.

— Não muito, mas tenho.

Provavelmente, o que tinha no bolso era muito mais do que aqueles dois veriam em um ano de salário, mas somente um tolo revelaria tal fato. Embora Gabriel fosse perfeita­mente capaz de derrotar os homens se necessário, não queria lutar diante das mulheres.

— Quanto tem? — o outro perguntou.

— Isso depende do que tem para me dar — Gabriel res­pondeu.

Os homens foram até a carroça.

— Estamos levando suprimentos para nossas famílias — disse um deles. — Do contrário, não teríamos muita coisa. Se tem moedas para pagar pelo que levar, podemos repor nosso estoque com facilidade.

Apesar de aliviado, Gabriel não pretendia relaxar a guar­da enquanto a troca não se realizasse e os homens desapa­recessem de sua vista. Eles ergueram a lona e exibiram seus suprimentos. Havia muito mais do que Gabriel imaginara.

— Temos famílias grandes — explicou um deles. — Tra­balhamos muito para alimentar a todos.

A maior parte do que tinham não seria útil para Gabriel: farinha, açúcar, fermento.

— Preciso de comida para me alimentar até chegar em casa. Vocês têm carne seca? Pão? Cidra?

— Onde fica a sua casa?

Gabriel não diria. A maioria dos camponeses já ouvira falar dos irmãos Wulf. Se o escândalo ligado ao seu nome não os assustasse, certamente a riqueza despertaria ganância.

— Fica a três ou quatro dias daqui. Nunca fui a pé, por isso não tenho certeza.

— Está sozinho? — um dos homens indagou, olhando em volta.

Todos os sentidos de Gabriel tornaram-se alertas.

— Sim — respondeu.

— Isso não é bom — disse o outro, sorrindo. — Estas estradas são perigosas para um homem solitário.

— Especialmente um homem de classe como o senhor — acrescentou o primeiro. — Basta olhar para saber que não é um trabalhador. Um janota de Londres pode se sair muito mal por aqui.

Os dois homens riram. Gabriel sorriu em resposta. Que pensassem que era um janota. Baixou os olhos para os su­primentos, esperando que um, ou os dois, tentassem algo. Apesar de seu tamanho, tornou-se um alvo fácil aos olhos deles, e não esperariam que ele fosse capaz de se defender. Teriam uma grande surpresa.

— Gabriel! Cuidado!

Ele se virou e deparou com Amélia no meio da estrada. Por causa da distração, não estava preparado para o golpe que o atingiu. O homem com a vara atingiu Gabriel nos om­bros, provavelmente mirando a cabeça, mas não sendo alto o bastante para isso. O golpe o derrubou. O homem era baixo, mas forte.

— Por que não disse que tinha companhia? — zombou o outro homem. — Ora, ela parece uma visão!

— Bonita — concordou o que empunhava a vara, antes de desferir mais um golpe.

Gabriel esquivou-se da pancada, mais uma vez dirigida à sua cabeça. Uma vez, dissera ao irmão, Arnold, que as regras da sociedade não se aplicavam a uma família banida de seus círculos. Boas maneiras eram algo que Gabriel abandonara tempos antes mas, ainda assim, sentia-se mal por lutar dian­te de Amélia. Um cavalheiro não deveria submeter uma dama a tamanha vulgaridade. Ao menos, era isso o que tinha aprendido.

— Ei, há outra mulher! Uma para você e outra para mim. — Festejou o dono da vara.

Calculando que Mora havia se juntado a Amélia na estra­da, Gabriel aproveitou-se da distração, deu um passo à frente e arrancou a vara das mãos do sujeito. Atingiu-o no rosto com força, quebrando-lhe o nariz.

— Diabos! — gritou o outro homem.

Gabriel avançou sobre ele e atingiu-o com um soco pode­roso que o fez cambalear para trás. O primeiro, mesmo com o rosto coberto pelo sangue, atacou Gabriel, e os dois rolaram na estrada de terra. Em um movimento rápido, Gabriel rolou e pôs-se de pé, para então chutar o oponente na altura das costelas. O homem gemeu e contorceu-se. Gabriel parou por um breve instante, a fim de afastar os cabelos dos olhos e limpar na manga da camisa o sangue que escorria do lábio, mas foi atacado por trás.

O outro homem havia recuperado a vara do amigo e, ao que parecia, pretendia nocautear Gabriel com ela. Atingiu-o no ombro ferido, e ele teve de conter um gemido.

Girando nos calcanhares, Gabriel teve um choque ao ver Amélia saltar sobre as costas do sujeito. Com um rugido ani­mal, o homem livrou-se facilmente do corpo leve de Amélia. Então, empurrou-a, derrubando-a no chão. Gabriel foi toma­do pela ira.

Avançou sobre o homem, tomou-lhe a vara e partiu-a em dois pedaços.

— Um homem nunca bate em uma mulher — Gabriel sibilou. — Seus pais não lhe ensinaram isso?

Apavorado, o homem levantou-se e saiu correndo.

— Espere! — gritou o amigo, que também se pôs de pé e o seguiu.

Gabriel correu para Amélia e ajudou-a a levantar-se.

— Você se machucou?

— Não, só fiquei sem fôlego por um instante. Gabriel suspirou aliviado, mas então, ficou zangado.

— O que deu em você? Não lhe disse para ficar escondida? Os cabelos se soltando da trança que Mora fizera pela manhã, mechas loiras emoldurando-lhe as faces sujas de ter­ra, Amélia ainda parecia uma princesa. Ela levou as mãos à cintura.

— Pensei que precisasse de ajuda — retrucou, baixando os olhos para a vara quebrada no chão. — Vejo que me en­ganei. Como conseguiu quebrar aquilo? Nunca vi um homem fazer nada parecido!

Gabriel havia deixado a ira tomar conta dele. Não costu­mava dar aquele tipo de demonstração diante de pessoas normais, como Amélia. Em vez de responder, virou-se para a criada e disse:

— Mora, venha escolher os suprimentos. Você sabe me­lhor que nós o que é mais necessário.

Ela se aproximou.

— Não respondeu à minha pergunta — Amélia insistiu. — Como pôde partir ao meio uma vara daquela grossura, como se fosse um graveto?

Ele não poderia explicar a força incomum, assim como não explicaria a visão e a audição tão desenvolvidas. Porém, sabia que tinha de oferecer algum tipo de explicação...

— Alguma vez, assistiu a homens lutando, Amélia? Ela franziu o cenho.

— Não, nunca, mas...

Gabriel adiantou-se para a carroça com Mora.

— A raiva proporciona a qualquer homem uma força que ele não possui em condições normais. Aquele tolo teve sorte por eu não ter partido seu pescoço, como parti a vara. Ele não deveria ter tocado em você.

— O senhor pôs aqueles dois para correr — Mora comen­tou, enquanto examinava os suprimentos. — Pensei que ca­valheiros lutassem com boas maneiras.

Estudou-o com olhar desconfiado, e Gabriel decidiu que o melhor a fazer seria desviar a atenção das duas mulheres das suas habilidades de luta.

— De quê precisamos? — perguntou à criada. Mora já havia separado alguns itens.

— Carne seca não precisa ser cozida — disse. — Dois filões de pão, queijo, maçãs, cidra para quando não encontrarmos água. Gabriel retirou a lona da carroça e estendeu-a no chão para embrulhar a comida. Amélia ainda o observava com desconfiança. Ele atirou uma maçã, a fim de distraí-la. Fa­minta como ela estava, a tática funcionou. Quando já tinham tudo de que precisavam, ele amarrou a lona e atirou-a sobre o ombro. Enfiou a mão no bolso, retirou algumas moedas e atirou-as na carroça.

— Vai pagar pela comida, depois do que eles tentaram fazer com o senhor? — Mora indagou, incrédula.

Gabriel havia recebido boa educação e, ao que parecia, mantinha aqueles valores, apesar do que acontecera à sua família mais tarde.

— Seu eu não pagar pelo que peguei, isso me torna um ladrão, o que não é melhor do que aqueles homens são. Va­mos, temos de sair da estrada.

O ombro queimando, a perna latejando, ele conduziu as mulheres para o bosque. Agora, ao menos, tinham comida e não morreriam de fome. Mas quanto tempo ainda teriam, antes que seus perseguidores os alcançassem? Gabriel não viu qualquer sinal de perigo. Não farejou a presença de ho­mens, nem animais na trilha, o que era sinistro e o deixava mais nervoso do que se tivesse de lutar a cada passo do ca­minho. Assim como tudo o que acontecera desde que pusera os pés na Mansão Collingsworth, aquilo não fazia sentido.

A noite já caía quando pararam para descansar. Amélia estava cansada demais até mesmo para mastigar a carne fibrosa, mas fez um esforço e não se queixou. Observou Mora trocar o curativo do ombro de Gabriel por tiras rasgadas de sua anágua. O ferimento voltara a se abrir durante a luta, mas a criada disse que o dano não tinha sido grande.

Os olhos de Amélia desviaram-se para o peito largo e os músculos poderosos dos braços de Gabriel. Qualquer um po­dia ver que ele era um homem muito forte, mas que homem era forte o bastante para partir uma vara grossa, como se fosse um graveto seco? E ela não precisava ter assistido a outras lutas antes, para saber que a força de Gabriel não era normal.

E quanto ao fato de ele sempre saber quando deviam parar e esperar, ou seguir viagem, descansar ou redobrar os esfor­ços da caminhada? Ela o observara com atenção, e era como se ele ouvisse coisas que ninguém mais ouvia; enxergava o que ninguém podia ver. Amélia supôs que estava sendo tola. Talvez, durante a luta, um homem possuísse força maior do que parecia humanamente possível. E Gabriel brincara na­queles bosques quando criança, o que poderia explicar o fato de ele parecer tão à vontade ali. De repente, ocorreu-lhe que havia ficado paranóica, depois de tudo o que acontecera na Mansão Collingsworth.

— Agora, a perna — disse Mora, despertando Amélia de seus pensamentos. — Preciso examinar sua coxa, também.

— A perna está bem — Gabriel declarou, pegando um pedaço de pão. — Se vocês duas querem se limpar no riacho, é melhor fazerem isso agora. Logo teremos de nos acomodar para dormir.

— Estou cansada demais para me preocupar com limpeza — disse Amélia.

E era verdade. Achou que cairia no sono assim que fe­chasse os olhos. Além disso, calculou que a água estaria ge­lada, e já não via a hora de poder se aconchegar a Gabriel e deixar que o calor do corpo dele a aquecesse. Gostaria de ter uma fogueira por perto, mas ele dissera que não seria seguro.

— Vou até o lago — Mora decidiu — Preciso lavar as mãos.

— Não demore — Gabriel advertiu. — Se vir ou ouvir qualquer coisa suspeita, chame.

Amélia estudou o local onde passariam a noite. O riacho ficava próximo, protegido por árvores de ambos os lados. E disse a si mesma que deveria fazer companhia a Mora, mas as pernas recusaram-se a obedecer aos comandos de sua mente. Por isso, limitou-se a mastigar e engolir o pedaço de carne.

— Quero deixar bem claro que, daqui por diante, caso eu seja confrontado outra vez, você deve ficar escondida, como mandei — Gabriel declarou.

Ela se virou para fitá-lo. O luar dançava nos cabelos, ilu­minando as mechas pálidas.

— De nada — disse. — Se eu não tivesse distraído aqueles homens, talvez você não tivesse conseguido vencê-los.

Gabriel estudou-a por um instante.

— Se eu não conseguisse vencê-los, faz idéia do que pre­tendiam fazer com você?

A possibilidade não ocorrera a ela. Amélia simplesmente assumiu que um homem não bateria em uma mulher; é claro que descobriu rapidamente estar enganada. Também calcu­lara que camponês algum atacaria uma dama de sua posição. Outro erro de julgamento.

— Não pensei nisso, na hora — admitiu.

— Descobri que existe um cérebro inteligente dentro des­sa sua linda cabecinha. Deveria usá-lo com mais freqüência. E, de hoje em diante, deve me ouvir e obedecer em tudo, Amélia.

— Você não é meu marido, nem meu pai — replicou. — Não que eu planejasse obedecer a um deles, mas isso não vem ao caso. Enquanto cavalheiro, é sua obrigação proteger Mora e eu. Enquanto dama, não tenho nenhuma obrigação para com você, exceto pela gratidão.

Gabriel arrancou uma mordida do pão e mastigou deva­gar, sem jamais desviar os olhos dos dela, o que a perturbou mais do que se ele tivesse erguido a voz para ela.

— O que estamos vivendo não é exatamente uma reunião social. Trata-se de uma questão de vida ou morte. E não sou um cavalheiro. Minha tarefa de proteger você e Mora se tor­naria muito mais fácil se você ouvisse minhas instruções e as obedecesse. Se não deseja chegar a Wulfglen viva, a es­colha é sua.

Amélia ficou chocada, pois esperava que ele insistisse.

— Não se importa se vou viver ou morrer?

Gabriel limpou a boca com as costas da mão; então, fitou-a com olhar desconcertante.

— Se não me importasse, nem perderia tempo com essa conversa.

Tal admissão acabou de vez com a irritação de Amélia, que se sentiu tola por discutir com ele. Era óbvio que ele se importava com o que acontecia a ela e a Mora. Do contrário, não continuaria junto delas. Naquela tarde, ele se arriscara para conseguir comida para os três. Deveria sentir-se agra­decida.

— Você é mais galante do que pretende admitir — comen­tou. — Ensinou uma boa lição a Mora, hoje, sobre ladrões. Diz não ser cavalheiro, mas não o vi fazer nada que me fi­zesse acreditar nisso. Para mim, é evidente que recebeu boa educação de seus pais.

Desviando o olhar, Gabriel esquadrinhou as árvores, à procura de Mora. Amélia havia tocado em um ponto delicado.

— Pensa muito em seus pais? — ela perguntou.

— Não — ele respondeu sem encará-la.

— Por que não? Deve ter lembranças agradáveis de sua vida, antes de eles...

— Não penso neles — Gabriel interrompeu, virando-se para ela. — Nem em minha vida antes. Vamos mudar de assunto.

Amélia tentou obedecer, mas não conseguiu.

— Mas, porque...

— Por que esse assunto me traz sofrimento — ele voltou a interromper.

Como se houvesse revelado demais sobre si mesmo, des­viou o olhar outra vez. Fixou os olhos na direção das árvore, como se visse coisas que ela não podia enxergar.

Gabriel Wulf era um homem grande, forte e bonito, mas agora Amélia via nele algo mais: vulnerabilidade. Viu o jo­vem que ele fora um dia, magoado pelas decisões impensadas dos pais. Levantou-se e foi se ajoelhar junto dele.

— Sinto muito — murmurou. — Não tive a intenção de despertar lembranças dolorosas.

Ele voltou a fitá-la.

— Teve, sim, porque é o que toda mulher faz. Vocês não ficam satisfeitas enquanto não conseguem despertar algum sentimento em um homem. Seja raiva, desejo, dor, tanto faz.

Amélia ficou chocada com a noção que ele tinha das mu­lheres.

— Nunca teve uma mulher como amiga? Uma mulher a quem pudesse confiar todos os seus segredos, suas esperan­ças e sonhos? Gosta das mulheres, afinal?

Os olhos de Gabriel agora, exibindo um leve brilho azul, passearam pelo corpo dela.

— As mulheres servem a seu propósito. Não as odeio.

Amélia sentiu as faces arderem. Compreendeu a insinua­ção e ficou zangada pela visão desfavorável que ele tinha das mulheres. Talvez ele a visse daquela forma, também.

— Se realmente pensa assim, não gosta de verdade das mulheres.

— É isso o que você quer, Amélia? — perguntou, inclinando-se na direção dela. — Quer que eu goste de você? Quer partilhar minhas esperanças e meus sonhos?

Fitando-o nos olhos, ela se sentiu tentada a dizer a pri­meira coisa que lhe veio à mente. Sim. Queria que Gabriel gostasse dela. Queria que ele lhe confiasse os pensamentos mais profundos. No entanto, não poderia confessar nada dis­so a ele. Acabara de se tornar viúva, e ele era amigo de seu falecido marido. A julgar pelo que ele acabara de dizer, era o tipo de homem que não saberia o que fazer com o amor de uma mulher. Além do mais, ela não acreditava em amor.

— Poderia começar me contando por que desenvolveu uma atitude tão negativa com relação às mulheres. Ou só eu desperto sua raiva?

A pergunta apagou o sorriso sensual dos lábios de Gabriel, e ele se afastou.

— Não tenho raiva de você. Fiquei aborrecido com o que fez hoje, colocando-se em risco quando sou perfeitamente capaz de enfrentar a situação sozinho. E mais que aborrecido com a sua aparente dificuldade de seguir instruções simples. Amélia entendeu que ele queria estar no controle. Era homem e, portanto, mais inteligente, mais forte. Era a ati­tude que a maioria dos homens partilhava, mas que a dei­xava furiosa. Não se dava bem com homens que pensavam que, só porque era bonita, ela era também inútil, exceto como objeto de decoração. Sabia que essa atitude não era bem aceita em seu círculo social. Robert, ao menos, fora condes­cendente, fingindo interessar-se pelas opiniões dela sobre tudo.

— As mulheres, assim como as crianças, existem para serem vistas, não ouvidas. É isso o que está querendo dizer?

Gabriel passou a mão pelos cabelos e emitiu um ruído zombeteiro.

— A mim, parece que é você quem está dizendo tudo, e colocando palavras em minha boca. É realmente simples. Tudo o que quero de você é que siga as minhas instruções, enquanto estivermos nos bosques. Quando estiver em segu­rança, não me importo com o que faça.

Amélia costumava gostar de discussões, mas as palavras de Gabriel a magoaram. Ele só se importava com a obrigação de protegê-la, até chegarem a um lugar seguro. Não se im­portava com ela como pessoa. Portanto, quando a beijara, fora somente porque ela lhe inspirava algo muito diferente de sentimentos ternos. Ficou aborrecida por sentir por ele o que ele, obviamente, não sentia por ela. Temeu que a ex­pressão em seu rosto a delatasse e levantou-se.

— Vou ao encontro de Mora. E vou aproveitar para me limpar. É claro que só irei com a sua permissão — ela acres­centou com sarcasmo.

— Está autorizada — ele replicou, sorrindo.

Amélia seguiu para o lago de cabeça erguida, sentindo o olhar de Gabriel em si. Ele não era nem parecido com o ho­mem que ela havia fabricado com a ajuda de seus devaneios tolos. Em sua imaginação, Gabriel partilhara com ela todos os seus segredos e sonhos, assim como ela lhe confiara os dela. Não imaginara que ele fosse tão fechado e reservado, embora houvesse sido uma grande tolice acreditar que ele não era o que parecia ser. Os irmãos Wulf viviam envoltos por mistério, e ela deveria ter levado isso em conta.

Naquele momento, deu-se conta de que a razão pela qual não fora racional com relação a Gabriel Wulf no passado era simples: não fora racional com relação a coisa alguma. Con­vencera a si mesma de que era diferente de suas tediosas amigas debutantes; então, entrara na fila para o mercado dos casamentos exatamente como elas. Casara-se com um homem a quem não amava porque ele parecia ser a melhor escolha aos olhos de seus pais.

Fizera o que a sociedade esperava dela. Não era corajosa, nem escandalosa. A constatação deixou-a abatida. Se tivesse a coragem de recusar a proposta de casamento de Robert, não estaria em apuros, agora. Continuaria segura e prote­gida, além de abençoadamente ignorante de que o mundo não era o que ela imaginara.

Perdida em reflexões, surpreendeu-se ao se deparar com Mora parcialmente despida e sem a touca que jamais tirava da cabeça.

À luz do luar, os cabelos loiros da criada brilhavam em uma cascata que alcançava seus quadris. Ela estava de cos­tas, lavando-se, o vestido e a combinação abaixados até a cintura. No chão, algumas faixas de tecido jaziam ao seu lado.

— Mora? — Amélia chamou baixinho, tentando não as­sustá-la, mas não conseguiu evitar.

A criada deu um pulo e virou-se. Só então se lembrou de cobrir os seios com as mãos, mas não antes que Amélia os visse. E não eram seios de menina.

— Desculpe — Amélia murmurou, sabendo que deveria virar-se e proporcionar a privacidade de que Mora precisava, mas não pôde desviar os olhos. Então, olhou para as faixas e soube no mesmo instante para que serviam.

— Por que enfaixa os seios, Mora? Por que esconde os cabelos?

Por um instante, a criada encarou-a com ar de desafio, mas então, como se lembrasse de sua posição, abaixou a ca­beça. Os cabelos gloriosos cobriram seu rosto e ombros.

— Foi idéia de meu irmão — respondeu. — Ele temia que eu trabalhasse em uma casa rica, onde o lorde podia se in­teressar por mim. Disse que eu deveria enfaixar os seios e esconder os cabelos, além de fingir ser mais jovem do que realmente sou, para não atrair atenção.

Amélia aproximou-se.

— Quanto anos tem?

Virando-se de costas, Mora apanhou as faixas e começou a envolver os seios.

— Completei dezoito no último outono.

Ora, a criada era pouco mais jovem que Amélia, e ela não se considerava uma criança.

— Acha que deve continuar obedecendo aos desejos de seu irmão, mesmo não estando mais na Mansão Collingsworth? Está comigo e Gabriel, agora.

Mora demorou mais um momento para terminar com as faixas e ajeitar a combinação e o vestido.

— Lorde Gabriel é homem, jovem e viril. Acho que meu irmão não gostaria se eu me mostrasse para ele.

Quando Mora voltou a encará-la, Amélia notou pela pri­meira vez como a garota era bonita. Era evidente que fizera o possível para parecer comum e desinteressante, como um inseto que muda de cor para se confundir com um galho ou uma folha, e ninguém o perceba.

— Acha mesmo que Gabriel se aproveitaria de você? Como pode não confiar nele, depois de vê-lo arriscar a vida por nós duas?

A criada baixou os olhos.

— Quero confiar nele, mas sei que ele a deseja. E poderia dirigir o desejo a mim porque a senhora é uma dama e ele não pode fazer o que quer com a senhora.

Amélia foi pega de surpresa pela franqueza da moça.

— Lorde Gabriel foi amigo de meu marido. Acabei de me tornar viúva. Você não deveria falar assim.

Prendendo os cabelos na nuca, Mora perguntou:

— Por quê? É verdade. Vi a maneira com ele olha para a senhora, e como a senhora olha para ele.

As faces de Amélia arderam. Seria sua atração por Gabriel tão óbvia? Mora colocou a touca na cabeça e voltou a ser a moça sem atrativos que ela e Gabriel haviam imaginado que fosse.

— Não vai contar a ele, vai? — a criada implorou. — Eu me sentiria mal se ele me olhasse como mulher. Sinto-me mais segura sabendo que as atenções dele estão todas foca­lizadas na senhora.

Amélia não tinha certeza de que não se sentiria mal, ela mesma, caso Gabriel passasse a olhar para Mora como mu­lher. Tratava-se de uma reação ciumenta que ela não deveria ter. Ainda assim, sentia-se hesitante em enganá-lo. Aproxi­mou-se da água a fim de se limpar.

— Não direi nada por enquanto — respondeu, afinal. — Mas você terá de contar, mais cedo ou mais tarde. Não é justo enganar um homem que está fazendo o possível para proteger a sua vida, Mora.

— Eu sei. Contarei a ele, mas não é tão importante que ele saiba, é?

Amélia decidiu que não era importante. Mora só estava escondendo de Gabriel o fato de não ser tão jovem e de ser muito mais bonita do que ele imaginava.

— Acho que não — admitiu. — Mesmo assim, lembre-se da promessa de contar a ele.

Mora assentiu e, com timidez, perguntou:

— Poderia me contar sobre a sua vida em Londres? Vivia como uma princesa, lá?

A vida em Londres parecia um sonho distante. Amélia deu de ombros.

— Não, não vivia como princesa, mas meu pai é duque e ocupo uma posição privilegiada na sociedade. Eu vivia me queixando de que a vida em Londres era tediosa. Agora, daria tudo para me sentir entediada de novo.

Mora pousou a mão no ombro de Amélia.

— Acho que sua vida era formidável. Deve ter ido a tantos bailes, usado tantos vestidos lindos! E é tão bonita! Aposto que tinha muitos pretendentes.

Fazendo uma retrospectiva, Amélia concluiu que tivera tudo aquilo, mas jamais dera atenção àquelas coisas. Tomara por certo tudo o que sua posição lhe proporcionava. Agora, porém, não queria pensar nisso. Em vez de responder, disse:

— Conte-me sobre sua vida, Mora. Disse que é órfã, mas tem um irmão, certo?

— Sim. Ele sempre cuidou de mim, até o dia em que achou que estava na hora de eu sair para o mundo e cuidar de mim mesma. Fiquei contente por conseguir o emprego na Mansão Collingsworth, mas como a senhora sabe, nada deu muito certo.

A água estava fria demais para ser agradável, mas a con­versa estava interessante. Amélia jamais pensara em fazer amizade com uma pessoa das classes trabalhadoras. Ora, por que não? Tudo mais em sua vida havia mudado.

—Espero que possamos ser amigas, Mora. Acho que, nas atuais circunstâncias, nós duas precisamos de uma boa ami­zade.

— Nunca pensei que seria amiga de uma grande dama. Imaginei que esfregaria o chão de sua casa e que a senhora nem sequer me notaria.

Provavelmente, esse teria sido o caso, Amélia admitiu, se sua vida não houvesse mudado de maneira irreversível.  

— As vezes, nossas vidas seguem rumos estranhos — co­mentou, pensando que também era estranho que estivesse na companhia de Gabriel Wulf, quando pouco tempo antes só se atrevia a sonhar com ele.

Ao pensar em Gabriel, deu-se conta de que estavam se demorando. Ele logo viria procurá-las. Lavou o rosto e retirou uma folha de menta do bolso, para refrescar o hálito. Ofereceu uma a Mora e, juntas, voltaram para onde passa­riam a noite.

Haviam encontrado alguns cobertores velhos na carroça. Gabriel os estendera no chão e ainda estava sentado onde Amélia o deixara.

— Deitaremos sobre um deles e nos cobriremos com o outro — ele disse.

Dado o tamanho dos cobertores, Amélia calculou que te­riam de dormir bem próximos. Gabriel levantou-se.

— Vou me lavar, antes de me juntar a vocês.

Mora cuidou de alisar os cobertores, mas Amélia limitou-se a observar Gabriel se afastar. Adorou a maneira como a luz da lua dançava nos cabeços dele. O corpo forte e alto formava uma sombra formidável, movendo-se na direção do lago. Então, ela notou o que ele devia estar tentando escon­der: voltara a claudicar.

Ele tinha garantido que o ferimento em sua coxa estava cicatrizando, que estava bem. Agora, Amélia perguntava-se se era verdade.

— A cama está pronta — Mora anunciou. — Não é decen­te, nós duas dormindo com um homem.

— Não seria decente nenhuma de nós duas dormir com um homem — Amélia corrigiu. — Mas é mais seguro, e ele tem o corpo quente. Ou você não percebeu?

Mora sorriu.

— É verdade, ele é bem quentinho, mas não é um bom travesseiro.

Amélia franziu o cenho. Então, Mora também notara! Dei­tou e se cobriu. O chão era duro, os cobertores deviam estar cheios de piolhos, mas Amélia não pensaria em nada disso. Havia muitas coisas nas quais ela não pensaria. Do contrá­rio, começaria a gritar e nunca mais pararia. Tentou lem­brar-se de como era a sua vida apenas três dias antes. Tentou lembrar-se do rosto de Robert. Ele havia sido um homem bonito, de pele clara e olhos escuros. Porém, toda vez que ela trazia as feições dele à memória, ele se transformava em um mostro, com garras, dentes enormes e pêlos.

Amélia estremeceu. Logo ouviu o ronco suave de Mora. Ora, nunca havia conhecido alguém que dormisse tão facil­mente quanto a criada. Ficou acordada até Gabriel voltar. Chegou mais perto de Mora para abrir espaço para ele.

No silêncio da noite, ouviu-o inspirar profundamente ao se abaixar para deitar-se a seu lado.

— Sua perna está doendo de novo, não é? Dói mais do que quer nos fazer acreditar. — Como não houve resposta, ela acrescentou: — Talvez fosse melhor descansarmos, amanhã. Dar tempo para que...

— Durma, Amélia — ele interrompeu. — Você sabe que não podemos parar. Não podemos descansar enquanto não chegarmos a Wulfglen.

Ela não sabia, mas imaginava que Gabriel soubesse o que era melhor. Poucos minutos depois, começou a tremer de frio. Gabriel estendeu o braço e puxou-a para si. Amélia acon­chegou-se de encontro ao corpo dele, que parecia mais quente do que de costume. Ora, estavam todos fingindo! Mora fingia ser mais jovem e menos bonita. Gabriel fingia que a perna não doía. E ela fingia não estar perturbada pela proximidade dele.

— Não fui sincero quando disse que não me importo — ele murmurou. — Eu me importo, sim, com o que acontece a você e a Mora. Às vezes, não se importar é apenas mais simples.

Amélia concordava com ele. Em vez de perseguir seus sentimentos por Gabriel Wulf meses antes, recusando-se a casar com Robert e seguir o que seu coração lhe dissera no momento em que vira Gabriel em Londres, ela fizera o que era mais simples, o que era esperado dela.

— Não sou quem pensei que fosse — admitiu. — Acho que isso me assusta muito mais do que tudo o que aconteceu desde que cheguei à Mansão Collingsworth.

Amélia surpreendeu-se ao sentir a mão de Gabriel desli­zar por seus cabelos.

— Raramente, qualquer um de nós consegue ser o que realmente deseja ser na vida — ele disse. — Você não é quem pensei que fosse, também. Demonstrou possuir uma força surpreendente diante de tudo o que lhe aconteceu. Eu a ad­miro, Amélia.

Ele a admirava? Bem, não era exatamente uma declara­ção de amor, mas ela vivia se esquecendo de que nenhum dos dois acreditava em amor. E foi suficiente para que seu corpo se aquecesse, para que ela atravessasse a noite. E, nas circunstâncias em que se encontravam, atravessar a noite era tudo o que tinham.

 

Gabriel sabia que não poderia continuar escondendo de Amélia e Mora seu estado de saúde cada vez mais pre­cário. Acordou encharcado de suor. Amélia afastara-se dele durante a noite, como se precisasse fugir do calor excessivo. Na noite anterior, ao se lavar no riacho, ele havia examinado o ferimento na coxa e constatara que estava inchado e infla­mado; teria de ser lancetado e cauterizado. A situação exigia uma mudança nos planos.

— Há uma vila chamada Hempshire que poderemos al­cançar ao anoitecer, se caminharmos mais depressa — ele anunciou. — E importante chegarmos à vila antes de pegar o caminho para Wulfglen.

Amélia aproximou-se. Tinha os cabelos presos em um co­que na nuca. Já não parecia a grande dama, mas ainda era tão atraente quanto a moça luxuosamente vestida e pentea­da que ele conhecera. Na verdade, mais atraente ainda, aos olhos de um homem como Gabriel.

— O problema é sua perna, não é? — ela perguntou. — Está infeccionada.

— O quê? — Mora juntou-se a eles apressada. — O senhor disse que estava bem, e agora...

— Sei o que disse — Gabriel a interrompeu. — Pensei que agüentaria até chegarmos a Wulfglen, mas o ferimento precisa ser lancetado e cauterizado. Há um ferreiro em Hempshire, que cuida das ferraduras de meus cavalos Ele pode cuidar do meu ferimento, também. E poderemos con­seguir comida, cavalos, ou até mesmo uma charrete. Esta­remos seguros lá.

— E acredita que podemos chegar à vila antes do anoi­tecer? — Amélia indagou

— Se nos apressarmos — ele repetiu — E não encontrar­mos nenhum problema no caminho

Amélia olhou em volta, esfregando os braços contra o frio da manhã.

— Por que ainda não nos alcançaram? Por que não os vimos, nem ouvimos?

Gabriel estivera se perguntando o mesmo. Era como se o problema que haviam encontrado na Mansão Collingsworth houvesse ficado por lá. Por que os homens, criaturas, ou o que quer que fossem, não os perseguiram? Não que estivesse se queixando. Apenas achava estranho.

— Não sei — respondeu — Mas vamos nos considerar com sorte e torcer para continuar assim Vamos embora

Ao se levantar do tronco onde estava sentado, Gabriel fez o possível para não gemer de dor na perna.

O fato de o feri­mento estar infeccionado o enfurecia. Ele devia ser o mais forte do grupo, o mais sensato, sempre no controle dos pró­prios sentimentos e da situação.

Porém, no momento, sentia-se fraco, e abominava a fraqueza em qualquer pessoa, especialmente em si mesmo. Seu pai fora fraco. Escolhera o caminho mais fácil para a solução dos problemas. Sua mãe havia sido mais fraca ainda. Os filhos precisavam que ela fosse forte para ajudá-los, guia-los e amá-los a despeito do sangue ruim que corria em suas veias.

O sangue amaldiçoa­do.

Ela os abandonara.

Sterling fora fraco, fugindo quando Gabriel era ainda garoto, fugindo do que nenhum deles po­deria escapar Jackson, com sua paixão pelas mulheres e pela bebida, fora fraco. Armond fora quem mais surpreen­dera Gabriel, que acreditara que eles dois eram os mais for­tes entre todos, ao menos no que dizia respeito a força de vontade. Contudo, Armond também havia encontrado sua fraqueza: uma mulher.

Ele tinha de resistir à tentação que Amélia representava. Admitira para ela coisas que jamais havia admitido a nin­guém. Sentia por ela o que nunca antes sentira por outra mulher. Não podia se arriscar a perder a cabeça nas circuns­tâncias em que se encontravam. Mais importante, não podia arriscar-se a perder seu coração, fosse para ela, fosse para qualquer outra mulher. Jamais.

E não quis conversar com Amélia sobre os pais, na noite anterior. Admitiu que se ressentia deles, pois os considerava fracos. Mesmo que partilhasse o sangue amaldiçoado do pai, ele havia jurado não se parecer com ele em nada. Não tinha uma opinião formada sobre as mulheres por não ter tido muito contato com elas, exceto pela mãe. E ela o ensinara que as mulheres mentiam e não mereciam a sua confiança, ou seu coração. Quanto às esperanças e sonhos, ele não se permitia ter qualquer dos dois, pois lhe pareciam todos im­produtivos para um homem que não tinha futuro.

— Não vamos embora? — Amélia perguntou.

Gabriel deu-se conta de que estava parado, olhando fixa­mente para ela. Mora riu, e ele sacudiu a cabeça na tenta­tiva de clarear as idéias e seguiu na direção de Hempshire. Amélia carregava os cobertores; Mora, a lona com a comida. E ele trataria de colocar um pé diante do outro.

O dia se arrastou em agonia. Era ruim que a perna latejasse tanto, mas ter de esconder a dor era ainda pior. Sabia que Amélia e Mora insistiriam em parar e descansar, caso soubessem a tortura que a caminhada impunha a ele. Quan­do o sol começou a se pôr, já não conseguia evitar o andar claudicante. Adiante, além das árvores, avistou telhados e fumaça saindo de chaminés. Sabia que as companheiras de viagem ainda não podiam ver nada e, por isso, ficou quieto, mas saber que estavam tão próximos de seu destino o man­teve em movimento.

— Não deveríamos parar e descansar? — Amélia pergun­tou um pouco depois. — Meus pés estão doendo.

— Os meus também — Mora acrescentou depressa Gabriel manteve os dentes cerrados e continuou andando.

Ouviu Amélia suspirar, mas ela não disse nada Imaginou que os pés dela estivessem de fato doendo, mas sabia que ela só se queixara pelo bem dele Considerou o gesto afetuoso, embora tentasse não dar atenção

— Espere

Ele parou imediatamente ao ouvir a instrução de Amélia. Virou-se para ela e a viu fechar os olhos e inspirar profun­damente

— Sinto cheiro de fumaça

— Estamos perto da vila — Gabriel explicou

Ela abriu os olhos e seu rosto se iluminou. Ora, como era linda!

— Por quanto tempo ficaremos? O bastante para pagar­mos por um banho e uma cama?

— Sim, poderá tomar um banho — ele respondeu — Há uma taverna na vila Estou certo de que se pode pagar por um quarto no andar de cima

— Ah, seria o paraíso — Amélia festejou

— Um prato de comida quente seria bem-vindo — a criada opinou — Algo que eu não tenha de mastigar durante dois dias, antes de engolir

Amélia riu e Gabriel também. Sabia que formavam um grupo um tanto estranho, ao entrarem na vila, poucos mi­nutos depois. A noite caia rapidamente. Ao chegar, ele levou as mulheres ate a taverna. O andar inferior estava deserto, pois os fregueses só apareceriam depois de jantarem em suas casas. O homem que limpava o balcão franziu o cenho ao se deparar com Gabriel.

— Sem brigas — disse antes que Gabriel pudesse cum­primenta-lo — Só agora acabei de consertar o lugar, depois da sua ultima visita, Wulf.

Gabriel sorriu

— Não foi tão ruim, Nate. Alem do mais, dei-lhe di­nheiro mais que suficiente para repor as cadeiras e mesas quebradas.

— E verdade — o homem resmungou. — Pode continuar destruindo minha taverna quanto quiser, desde que conti­nue pagando mais do que o custo dos reparos. Terei bom lucro com você.

Sentindo os olhares curiosos de Amélia e Mora, Gabriel foi direto ao assunto:

— Trouxe duas senhoritas comigo, e elas gostariam de um banho quente e um prato de comida.

— Tenho as duas coisas — disse Nate. — É melhor cui­darmos das mulheres e tirá-las daqui, antes que os fregueses comecem a chegar para beber cerveja.

Gabriel enfiou a mão no bolso, retirou algumas moedas e colocou-as sobre o balcão.

— Tenho confiança de que elas estarão seguras aqui, com você. Preciso ver Bruin.

— Elas ficarão bem, mas Bruin não está mais aqui — Nate informou. — Pegou a família e desapareceu há poucos dias. Temos um novo ferreiro. Parece bom. Aliás, temos uma porção de gente nova, que chegou depois da sua última visita.

Gabriel virou-se para as mulheres.

— Vocês ficarão bem acomodadas, aqui. — Retirou a pis­tola da cintura da calça e colocou-a no bolso de Amélia. — Só por precaução.

Ela pôs a mão sobre a arma.

— Tem certeza de que não deveríamos ir com você? Não há um médico na vila, que possa examinar sua perna?

Ele sacudiu a cabeça.

— Não, o ferreiro é o que posso conseguir de melhor. Vocês ficarão aqui até eu voltar, entendeu?

— Mas...

— Disse que seguiria minhas instruções — Gabriel lembrou-a.

Amélia arqueou uma sobrancelha.

— De fato, eu disse que o obedeceria, mas menti. Ele tentou não sorrir.

— Fique aqui — repetiu para as duas e saiu.

A oficina do ferreiro ficava no final da rua. Gabriel notou os cavalos no curral nos fundos da propriedade. Bom. Não tinha muito dinheiro consigo, mas talvez um pequeno depó­sito fosse o bastante por um cavalo e uma charrete.

Gabriel costumava encontrar muitas desculpas para ir à vila... e à taverna. Nem tanto para beber, pois não partilhava com o irmão mais novo o gosto pela bebida. Geralmente, bastava ele aparecer na taverna para que uma boa briga começasse. Homens tornam-se estúpidos, quando têm um copo na mão, e alguém sempre dizia algo errado a Gabriel antes do final da noite.

A luta servia para aliviar as tensões. Evidentemente, ha­via outra coisa que funcionava ainda melhor, mas ele pro­curava passar sem companhia feminina o máximo de tempo possível.

Era uma ironia o fato de, agora, estar preso a uma mulher, ao menos até levá-la à segurança de Wulfglen. Isso se con­seguisse chegar lá. Ouviu o martelo do ferreiro antes de en­trar na oficina. O calor emanado pelo fogo tornava o lugar insuportável. Esperou que o homem parasse de martelar, para perguntar:

— O que aconteceu a Bruin? Estive aqui há apenas quatro meses e ele não disse nada sobre partir.

O novo ferreiro era um homem grande, de braços enormes. Tinha a camisa encharcada de suor e colada ao peito largo. Ele passou a mão pela testa molhada.

— Não sei o que aconteceu ao homem que trabalhava aqui antes mim. Pelo que ouvi, ele e a família simplesmente de­sapareceram durante uma noite. Eu estava só de passagem, mas já fiz esse trabalho antes, e concordei em assumir o posto. — O homem adiantou-se e estendeu a mão. — Meu nome é Mullins.

Gabriel apertou a mão estendida.

— Sou Gabriel Wulf. Trago meus cavalos com freqüência a Hempshire, para colocarem ferraduras.

Mullins espiou pela porta aberta.

— Trouxe-os consigo?

— Não. Tenho um outro problema: um ferimento na coxa. Pretendia pedir a Bruin que lancetasse e cauterizasse minha perna.

O homem fez uma careta.

— Não vai ser nada agradável. Tem estômago para isso? Gabriel ergueu a sobrancelha em desafio.

— Você tem?

Mullins inclinou a cabeça para trás em uma gargalhada.

— Tenho, sim! Venha sentar-se. Vou esquentar a faca no fogo.

Gabriel foi até o banco de metal onde costumava sentar-se e observar o trabalho de Bruin. Mullins retirou uma faca longa da bota e colocou-a no fogo.

— Não imaginei que precisasse de uma coisa assim, aqui — Gabriel comentou, apontando para a faca.

O ferreiro deu de ombros.

— Não estou aqui há tempo suficiente para saber se pre­ciso ou não. As pessoas que conheci parecem decentes. Estava viajando com meus dois primos, quando paramos na taverna. Meus primos também ficaram. Eles me ajudam com os cavalos.

Gabriel olhou em volta. O lugar era cheio de sombras e ferro.

— Não aqui — Mullins explicou, como se soubesse que Gabriel estava procurando pelos homens. — Posso chamá-los, se acha que precisaremos deles para segurá-lo.

Gabriel sorriu.

— Não será necessário.

Mullins riu outra vez e apanhou a faca. A lâmina estava vermelha de tão quente.

— Abaixe a calça, homem, e vamos ao trabalho.

Levantando-se, Gabriel abaixou a calça. Sentiu-se grato pelo fato de a camisa que encontrara na Mansão Collingsworth ser longa e cobrir suas partes íntimas. Não que fosse particularmente pudico, mas sentia-se vulnerável diante de um estranho que empunhava uma enorme faca em brasa.

Mullins assobiou ao ver o ferimento.

— Terei de cortar, mesmo — disse. — Estou surpreso por você não estar delirando de febre.

Era difícil responder, pois Gabriel estava muito ocupado, preparando-se para a dor que viria. Ele assentiu e apontou para a perna, e o homem se aproximou.

— Está pronto?

Mais uma vez, Gabriel assentiu. Ele não quis olhar, pre­ferindo fixar os olhos nas chamas que ardiam na grande grelha. Mullins fez seu trabalho com rapidez. Cortou o feri­mento antes que a dor alcançasse o cérebro de Gabriel. Quan­do tal registro ocorreu, ele cerrou os dentes para evitar um grito. Baixou os olhos para o corte e viu sangue e pus jorrando de sua coxa.

Mullins retirou um trapo sujo do bolso e estendeu-o para Gabriel. Embora detestasse a idéia de ser rude, ele jamais colocaria o pano imundo sobre o ferimento. Tratou de rasgar um pedaço da manga da própria camisa. O ferreiro voltou ao fogo e pôs a faca na chama outra vez.

— Aposto que agora vai gritar — declarou com um sorriso.

O sujeito parecia estar se divertindo um bocado à custa de Gabriel. A dor em sua coxa era enlouquecedora, mas ele sabia que teria de pressionar o ferimento para retirar o má­ximo possível da infecção, antes que Mullins cauterizasse a ferida para fechá-la. Quando finalmente a tarefa foi concluí­da, Gabriel estava banhado em suor.

— Está pronto? — Mullins voltou a perguntar. Gabriel respirou fundo, prendeu a respiração e assentiu. —Você é forte — disse o ferreiro em tom de respeito, antes de voltar para perto de Gabriel e pressionar a faca em brasa contra a ferida.

A queimadura provocou um forte espasmo em Gabriel, e ele teve náuseas ao sentir o cheiro da própria carne queima­da. Embora sua mente urrasse de dor, seus lábios se man­tiveram firmemente fechados, os dentes cerrados. Mullins, ajoelhado a seu lado, removeu a faca e o encarou.

— Ouvi dizer que era, mesmo.

Com o raciocínio turvado pela dor, Gabriel não compreen­deu o que o ferreiro queria dizer. Enquanto lutava para con­trolar as reações do próprio corpo, viu o homem retirar a faca de sua coxa e erguê-la lentamente, apontando-a para seu pescoço.

— Forte — explicou. — Disseram que eu deveria ficar de olho em você, caso aparecesse por aqui. Disseram que eu deveria cuidar de você.

A compreensão chegou no momento em que Gabriel viu os olhos do homem brilharem à luz fraca da oficina. O ferreiro era um deles.

Diabos, deixara a pistola com Amélia.

— O que você quer? — perguntou, a voz ainda rouca pela dor. — O que vocês são, afinal?

Mullins sorriu, exibindo dentes pontudos e afiados.

— Queremos a mulher — respondeu. — Também quere­mos você morto. Mataremos qualquer um que testemunhe nossos planos. Esperamos por muito tempo.

Gabriel havia se colocado em situação vulnerável. Algo que jamais faria se a dor não houvesse obscurecido sua men­te. Se conseguisse fazer com que Mullins falasse até ele re­cuperar parte de sua força, teria uma chance.

— O que vocês são, afinal? — repetiu.

Mullins aproximou a faca ainda mais do pescoço de Gabriel.

— Um homem, assim como você. Um homem com dons especiais.

Maldição? Dom? Gabriel calculou que se tratava apenas de uma questão de opinião.

— Como conseguem se transformar em outra pessoa?

— Nem todos podemos. Os que possuem esse dom prati­cam durante anos. Mas, agora, chega de conversa.

A conversa era exatamente o que Gabriel precisava para se recuperar o suficiente e se defender.

— Por que lancetou e cauterizou meu ferimento, se pre­tendia me matar?

Mullins voltou a sorrir.

— Para fazer você sofrer mais.

Gabriel curvou os ombros, como se resignado ao seu des­tino. Queria mais informações do homem e, também, preci­sava de um pouco mais de tempo para se recuperar da dor.

— Se vai mesmo me matar, eu gostaria de saber quais são seus planos.

Mullins sacudiu a cabeça.

— Isso não faria sentido. Chegou a hora de morrer, rapaz.

O homem cometeu o erro de afastar a mão, a fim de gol­pear com força maior. Gabriel usou a perna saudável para chutá-lo no rosto. Mullins cambaleou para trás e Gabriel colocou-se de pé rapidamente. Uma pontada de dor percor­reu-lhe a perna, mas ele tentou ignorá-la e se concentrar na sua defesa. A perna ferida quase se dobrou sob o peso de seu corpo, quando ele voltou a chutar Mullins, desta vez na ten­tativa de desarmá-lo. Mullins uivou de dor, rolou no chão e levantou-se.

— Você não tem chance comigo — sibilou. — Seria melhor deitar-se e morrer.

— Você primeiro — Gabriel retrucou, lançando-se à fren­te, atingindo-o no queixo com um forte soco.

O ferreiro voltou a cambalear e cair, mas quando ergueu os olhos para Gabriel, suas feições estavam contorcidas. Ele estava se transformando! Gabriel perguntou-se se teria me­lhores chances lutando contra uma besta, ou um homem.

Mullins atirou-se sobre ele, tentando golpeá-lo com as lon­gas garras que, agora, emergiam de seus dedos. Como não era fácil manobrar o corpo com a perna ferida, Gabriel teve o braço arranhado, antes de conseguir esquivar-se.

Precisava de uma vantagem e, no momento, só Mullins as tinha. A fim de se fortificar, ele pensou em Amélia e Mora, deixadas à mercê do ferreiro e outros como ele. Foi quando a ira suplantou a dor, tomando conta de sua mente, que não lutou por autocontrole como sempre fazia. Quando Mullins rosnou, Gabriel respondeu com outro rosnado.

Surpreso, o ferreiro imobilizou-se por um instante, limi­tando-se a encarar Gabriel com incredulidade. A contorção no rosto do homem enervou Gabriel, fazendo-o lembrar-se da noite, muitos anos antes, em que seu pai havia se trans­formado diante de toda a família, à mesa de jantar. Tal pe­sadelo o assombrara por muito tempo.

— Você é um de nós — Mullins concluiu.

— Não.

Gabriel sacudiu a cabeça e ergueu a mão, tentando cerrar o punho, mas as garras emergindo de seus dedos não o per­mitiram. Por um momento, ele olhou fixamente a própria mão, sua mente recusando-se a reconhecer o que os olhos viam.

A gargalhada odiosa do ferreiro trouxe a atenção de Gabriel de volta à ameaça que o sujeito representava. Pas­sou a língua pelos dentes. Estavam mais afiados, os cani­nos mais longos... como presas.

— Não sou como você — insistiu.

Então, encontrou a força que jamais teria... se fosse ape­nas um homem. Com um salto sensacional, desferiu um úni­co golpe com a garra afiada, cortando a garganta de Mullins de um lado a outro. O homem arregalou os olhos, as mãos deformadas, agarrando o próprio pescoço. O sangue jorrou do corte ao mesmo tempo em que suas pernas vergavam. Gabriel ficou ali parado, observando a vida se esvair do corpo do ferreiro.

Gabriel respirou fundo várias vezes, sentindo o ar passar pelas presas que haviam crescido em sua boca. Ergueu a mão mais uma vez, desejando que as garras se retraíssem. Nunca antes chegara tão perto da transformação. Por que agora? Ele achava que sabia. Amélia... e a criada. Tinha de protegê-las com tudo o que possuía, até mesmo da sua maldição.

Em questão de minutos, Gabriel sentiu a dor das garras se retraindo. Gemeu e cambaleou até o banco, onde voltou a se sentar. Com respiração ofegante, rasgou a outra manga ,da camisa e usou-a para enfaixar a coxa. Então, vestiu a calça e seguiu na direção da taverna no passo mais rápido que o ferimento lhe permitia. Tinha de encontrar Amélia e Mora imediatamente. Tinha de tirar as duas mulheres da vila!

Amélia permitiu-se relaxar na banheira pequena, deixan­do que a água quente envolvesse seu corpo.

Mora, faminta, preferiu comer antes de se banhar. Amélia deixou-a na cozinha, situada nos fundos da taverna, deliciando-se com um prato de ensopado, pão fresco e grossas fatias de queijo. Sentiu o estômago roncar ao pensar no ban­quete que a esperava, assim que conseguisse reunir a força necessária para sair da banheira. Por outro lado, a idéia de vestir a roupa suja não a agradava, mas não tinha escolha.

Com um suspiro, saiu da banheira, agradecida pelo fogo que ardia na lareira e aquecia o quarto. Uma toalha fora deixada para ela se secar. Mal começara e se enxugar, quan­do a porta se abriu. Amélia soltou um grito, segurando a toalha contra os seios. Gabriel surgiu na porta, exibindo um aspecto selvagem. Seus olhos pareciam incandescentes, e sua camisa não tinha mais as mangas.

— Temos de partir — ele anunciou sem preâmbulos. — Agora!

— O quê? — A toalha fina mal cobria Amélia, dos seios ao início das coxas. — O que está acontecendo?

— Vista-se depressa.

Com isso, Gabriel entrou no quarto e pôs-se a juntar as roupas dela. Apanhou a pistola do bolso do vestido e enfiou na cintura da calça, debaixo da camisa. Então, estendeu o vestido para ela.

— Vista isso.

— Minhas roupas de baixo — Amélia protestou. — Não posso sair por aí...

— Não há tempo! — ele disse. — Eles estão aqui.

Um calafrio percorreu o corpo de Amélia. Compreendeu o que ele dizia. Gabriel praticamente a forçou a pegar o ves­tido e virou-se para a porta.

— Vou buscar Mora. Encontre-nos lá embaixo. Depressa, Amélia!

Ela largou a toalha e se vestiu apressada. Calçou os sapatos arruinados e correu escada abaixo. Ouviu Gabriel discutir com o proprietário da taverna.

— Como assim, ela se foi? Foi para onde?

— Não sei — o homem respondeu. — Deixei-a na cozinha, mas quando fui chamá-la como me pediu, ela não estava lá. A porta dos fundos estava aberta.

Amélia juntou-se a Gabriel.

— Onde está Mora? — perguntou.

— Ela se foi. Talvez tenha sido levada. O coração de Amélia apertou-se.

— Temos de encontrá-la.

Gabriel puxou-a na direção da porta da taverna.

— Não há tempo. Temos de fugir agora.

Embora ele fosse forte e dificultasse a resistência de Amélia, ela protestou:

— Não podemos deixá-la aqui! Imagine o que aqueles mons­tros farão com ela!

— Pare de lutar — Gabriel ordenou. — Voltarei para bus­cá-la. Juro que voltarei, mas agora, tenho de tirar você da vila em segurança.

Amélia detestava a idéia de deixar a criada para trás. Durante toda a sua vida, pensara só em si mesma, nas coisas que queria e como consegui-las. Mora não era uma simples criada; tornara-se sua amiga. Gabriel, porém, estava certo. Tinham de fugir antes que...

Uivos baixos ergueram-se das sombras, interrompendo seus pensamentos. Amélia conteve um grito de pânico. Gabriel puxou-a até um cavalo amarrado ao poste diante da taverna.

O animal empinou, ou tentou; amarrado como estava não podia fazer nada além de agitar-se no lugar.

— O que está acontecendo? — Nate inquiriu da porta da taverna.

— Volte para dentro! Tranque as portas! — Gabriel gritou para ele. — Há lobos pela vila!

Amélia foi arremessada para cima do cavalo, que voltou a empinar, e ela quase deslizou pela sela.

— Segure-se! — Gabriel instruiu.

Ela passou os braços em torno da cintura dele e fechou os olhos, escondendo o rosto de encontro às costas largas. O cavalo lançou-se à frente e, um segundo depois, eles dispa­ravam pela rua que atravessava a vila. Amélia não queria olhar para trás. Queria manter os olhos fechados e rezar para conseguirem fugir. Acabou não resistindo e olhou.

Várias sombras escuras os seguiam. Duas delas corriam próximas às patas traseiras do cavalo. Sem hesitar, Amélia enfiou a mão por debaixo da camisa de Gabriel e retirou a pistola da cintura da calça dele. Engatilhou a arma com uma só mão, virou-se e atirou, derrubando o primeiro lobo.

Gabriel saiu da estrada, virando o cavalo tão subitamente que Amélia quase caiu. No esforço para se manter na sela, ela derrubou a pistola. Passaram por entre os arbustos que cercavam a estrada e seguiram pelo meio das árvores. Ga­lhos rasgavam seu vestido. Ela abaixou a cabeça e voltou a pressionar o rosto nas costas de Gabriel.

De repente, ele fez o cavalo parar. Desmontou e ajudou-a a descer da sela. Então, bateu na traseira do animal, mandando-o embora.

— Por que fez isso? — ela indagou, aflita. — Agora, esta­mos a pé novamente!

— Precisamos de abrigo. Conheço um lugar, mas o cavalo deve seguir adiante, na esperança de que eles o sigam. Pre­ciso da pistola.

Amélia teve vontade de chorar.

— Deixei cair — confessou. — Quando o cavalo desviou para sair da estrada, minha escolha foi soltar a arma ou cair.

Gabriel permaneceu em silêncio por um instante. Amélia sabia que ele estava nervoso pela perda da pistola.

— Muito bem, venha. Teremos de lutar com nossa inte­ligência.

Segurando-a pela mão, pôs-se a correr pelo bosque. Várias vezes, teve de parar por alguns minutos, e Amélia sabia que a perna ferida deveria doer muito. A noite pareceu fechar-se em torno deles, tornando-se mais sinistra do que nunca.

Sombras e formas passavam por eles em velocidade. Che­garam a uma pequena cabana, antes que Amélia pudesse enxergá-la na escuridão. Não havia lampiões acesos lá den­tro, nem fumaça saindo da chaminé. A porta rangeu quando Gabriel a abriu. Ele puxou Amélia para dentro e voltou a fechar a porta. Então, ficou imóvel, ouvindo.

Amélia também apurou os ouvidos. A cabana estava mais silenciosa que um túmulo. O ar frio da noite provocou-lhe arrepios. Quando estremeceu, não soube se era de frio ou de medo.

— Bruin morava aqui com a família — Gabriel explicou em voz baixa. — Fique aqui. Voltarei em um instante.

Como de costume, ele se moveu silenciosamente pela ca­bana. Voltou um minuto depois e Amélia sentiu um cobertor áspero sobre os braços.

— Terá de se livrar da roupa — ele disse. — Os animais caçam pelo cheiro. Preciso levar nossas roupas até o bosque e livrar-me delas.

Se qualquer outro homem lhe pedisse para se despir dian­te dele, Amélia pensaria tratar-se de um plano para seduzi-la. Sabia, porém, que Gabriel não lhe pediria isso se suas vidas não estivessem em jogo. Embora não fosse tão recata­da, era estranho despir-se no mesmo aposento onde se en­contrava um homem que fazia o mesmo. Assim que tirou o vestido, enrolou o cobertor no corpo e estendeu a roupa usada para Gabriel.

— Estarei de volta em um minuto. Fique dentro da cabana não faça qualquer barulho.

Com isso, ele saiu, antes que ela tivesse a chance de dis­cutir. Amélia não queria ficar sozinha. Seu coração batia tão alto que certamente poderia ser ouvido a um quilômetro de distância. Sentindo as pernas trêmulas, sentou-se no chão, encolhida contra a parede, e esperou. O cobertor era áspero contra sua pele, mas essa era a menor de suas preocupações.

Já começara a pensar que Gabriel não voltaria, quando a porta se abriu e ele chamou seu nome baixinho.

— Aqui, no chão — ela sussurrou.

Com um gemido baixo, ele se juntou a ela. Parecia sem fôlego. Quando Amélia estendeu o braço para tocá-lo, deu-se conta de que ele estava nu, e retirou a mão depressa.

— Onde está o seu cobertor?

— Só encontrei um. Na verdade, sabia que me movimen­taria melhor sem ter de segurar um cobertor em torno do corpo.

Gemendo outra vez, Gabriel levantou-se. Amélia ouviu-o entrar no aposento ao lado. Pouco depois, ele voltou, abai­xou-se ao lado dela e colocou um pedaço de pão seco em suas mãos.

Faminta, Amélia mordeu o pão e mastigou, achando de­licioso.

— Também temos um pouco de cidra e algumas maçãs. Bruin e a família partiram apressados e não levaram nada.

— Por quê?

— Provavelmente, porque estavam aterrorizados. Mullins, o novo ferreiro, veio a Hempshire para nos apanhar, caso passássemos por aqui. Precisava de um motivo para ficar, sem levantar suspeitas. Ele e seus homens devem ter assus­tado Bruin e a família durante a noite, para que fugissem.

Um pensamento cruzou a mente de Amélia, provocando-lhe calafrios.

— Então, é aqui que eles ficam?

— Não — Gabriel afirmou com segurança. — Não sinto o cheiro deles, aqui. E teriam devorado a comida que deixa­ram. Devem ter fixado residência na oficina do ferreiro, na vila. Não podiam se arriscar a não nos ver, caso chegássemos.

— Acha que virão até aqui?

Ele refletiu por um instante, antes de responder:

— Acho que não. Vão calcular que queríamos nos afastar o máximo possível de Hempshire. Vão nos procurar nos bosques.

Amélia sentia-se longe de estar tranqüila, mas por enquan­to, tinham um teto, comida e talvez um pouco de segurança.

— E quanto a Mora? Não podemos deixá-la para trás. Especialmente com essas bestas na vila. Eles a matariam.

Gabriel suspirou.

— Minha prioridade é levar você em segurança até Wulfglen. Sinto muito por Mora. Também não quero dei­xá-la para trás. E voltarei para encontrá-la, depois que você estiver sã e salva, e longe daqui.

Em um passado nada distante, Amélia teria se confor­mado com a situação. Agora, não mais. Não suportava a idéia de deixar a pobre moça à mercê daquelas bestas as­sustadoras.

— Não irei embora, enquanto não tentarmos ao menos encontrá-la. Estamos todos juntos nessa história, não esta­mos? Que tipo de pessoa eu seria, se permitisse que você a deixasse para trás?

Gabriel demorou a responder:

— Sabe que ela não espera que fiquemos aqui.

— Só um dia — Amélia barganhou. — Amanhã, voltare­mos à vila e daremos uma olhada. Se não a encontrarmos, iremos embora.

— É loucura voltar à vila — ele argumentou. — Mora não haveria de esperar que você coloque a sua vida em risco por ela. Ela tem o bom senso de não se colocar em perigo por você.

Amélia lembrou-se de que a criada os deixara para trás, quando a toca desabara sobre ela e Gabriel. Talvez ela não esperasse que eles fossem resgatá-la, caso fosse capturada. Amélia não conseguia deixar de acreditar que o que aconte­cera na mansão fora, por alguma razão, sua culpa. Era ela que os monstros queriam. Gabriel e Mora eram vítimas cir­cunstanciais.

— Um dia — ela implorou. — Se não a encontrarmos, iremos embora, eu prometo.

Gabriel ficou em silêncio por tanto tempo que Amélia se perguntou se havia caído no sono. Então, ele suspirou.

— Um dia — ele concordou. — E irei sozinho procurar por ela. Você ficará aqui.

Amélia sabia que continuar a discutir não seria boa idéia. Embora não quisesse outra coisa, senão escapar da ameaça que certamente os cercava, sentiu-se melhor por saber que não deixariam Mora, sem ao menos tentar encontrá-la.

— Fico pensando que tudo isso tem de ser um sonho — murmurou. — Que vou acordar na casa de meus pais, em Londres, e rir da minha imaginação fértil.

Estendeu um pedaço de pão para Gabriel.

— Se estivesse sonhando e acordasse amanhã, ainda se casaria com Robert Collingsworth?

Amélia poderia dizer com certeza que não. Agora sabia que deveria se casar por algo mais do que simplesmente agradar aos pais. Ficou curiosa para saber por que Gabriel fizera a pergunta.

— Desejaria que eu me casasse com ele?

Era uma pergunta ousada, mas a situação exigia coragem e ousadia. Mais uma vez, Gabriel demorou a responder. Quando falou, foi em voz baixa e suave.

— Não.

Sentindo o coração saltar, não de medo, mas de esperança, Amélia aventurou-se um passo adiante:

— Por que não?

Por que não? Gabriel não sabia por que tinha respondido "não". No momento em que a viu pela primeira vez, soube que Amélia não era mulher para ele, mesmo que não conse­guisse tirá-la da cabeça. O que tinha acontecido a ele ainda há pouco em Hempshire não deixava dúvidas sobre o que ele era, o que poderia facilmente se tornar. Não seria bom marido para mulher nenhuma. Sabia disso havia muito tem­po. Fora por isso que fizera o juramento, juntamente com os irmãos.

— Porque ele jamais seria capaz de fazê-la feliz — disse. — Existe uma diferença entre estar feliz e estar contente. Por que se satisfazer com um, quando pode ter o outro? — Sabia disso melhor do que ninguém. Uma mulher como Amélia jamais deveria se acomodar em submissão. Comodismo era para gente que não tinha escolha. Como ele. — Está bem aquecida? — mudou rapidamente de assunto.

Gabriel achou um par de bombachas no quarto pequeno que Bruin partilhava com a esposa. Vesti-las foi doloroso. Examinou apressado as peças femininas que encontrou, mas a esposa do ferreiro era uma mulher grande e qualquer roupa sua engoliria Amélia. O casal tinha um robusto filho de uns dez anos de idade. Se fosse mesmo necessário, Amélia pode­ria usar alguma roupa do menino.

O fato de ela estar nua debaixo do cobertor era algo que Gabriel não esqueceria com facilidade. Imagens da pele clara e macia o torturavam. O que acontecera em Hempshire o atormentava. Por que chegara tão perto de se transformar? Aquilo nunca acontecera antes. Fora o confronto com Mullins que precipitara a transformação? Ou fora Amélia? Gabriel vira a repulsa e o horror na expressão dela ao se ver amea­çada por homens capazes de mudar de forma. Se soubesse a verdade sobre ele, seria igualmente tomada de terror e repugnância. Quanto tempo mais ele ainda teria para ser apenas um homem? Quanto tempo ainda lhe restava, antes que a confiança dela deixasse de existir?

— Há algumas roupas no quarto que, provavelmente, ser­virão em você. — Encontrou a decência de informar.

Amélia não respondeu. Gabriel deitou-se ao lado dela e viu que seus olhos estavam fechados. Estava exausta. Era a única explicação para o fato de ela conseguir dormir nas circunstâncias atuais. E, também, devia confiar nele para baixar a guarda daquela maneira, quando ainda poderiam estar correndo perigo.

Passou um braço em torno dos ombros delicados e pu­xou-a para si. Ela se aconchegou contra ele, o hálito quente em seu pescoço, provocando-lhe arrepios. As curvas suaves debaixo do cobertor o tentavam. Ele afagou os cabelos, agora embaraçados. Ela emitiu um gemido baixo e aconchegou-se ainda mais, os lábios colados ao pescoço dele. Os sentidos de Gabriel despertaram, todos. Seria a besta reagindo a ela, ou simplesmente o homem?

Sua mão se fechou, segurando os cabelos de Amélia. Pu­xou delicadamente a cabeça dela para trás, a fim de fitá-la. Ela entreabriu os olhos, mas não se afastou como ele espe­rava que fizesse. Os lábios dela se abriram. Gabriel viu-se incapaz de desviar os olhos da boca tentadora. Então, incli­nou-se para ela, como se não tivesse forças para se controlar.

Amélia sabia que Gabriel estava prestes a beijá-la. Talvez fosse errado, mas ela queria sentir algo além de preocupação, medo, fome e frio. O casamento com Robert parecia ter acon­tecido em um passado distante. A vida que tivera em Londres parecia irreal, como um sonho também distante. Agora, eram somente Gabriel e ela, e a escuridão que os envolvia.

— Está acordada? — ele perguntou.

Amélia calculou que Gabriel não podia enxergar seus olhos no escuro. A única razão pela qual ela via os dele era porque brilhavam.

— Sim — respondeu.

— Se eu a beijar, vai se lembrar pela manhã?

Ela sorriu ao ouvir o lembrete de sua crise de sonambulismo.

— Vou me lembrar — prometeu.

Os lábios de Gabriel roçaram os dela de leve, a princípio, antes que ele tomasse posse por completo de sua boca. Amé­lia abriu-se para ele, sentindo o sangue ferver nas veias. O cheiro másculo a envolveu, e o calor do corpo forte aqueceu-a até os ossos enregelados. Ela passou os braços em torno do pescoço dele, sem se importar com o fato de o cobertor cair até sua cintura. O contato de pele contra pele foi como o choque entre metais, provocando estática pelo ar.

Com gestos delicados, Gabriel puxou-a para si, posicionando-a sobre ele. Ela sentiu o mamilos enrijecerem ao to­que. O calor que o corpo dele emanava pareceu excessivo, e ela se preocupou com a possibilidade de Gabriel estar com febre. Então, a mão forte deslizou por seu ventre, até pousar sobre um de seus seios, e ela não pôde pensar em mais nada, nem conter o gemido que escapou de seus lábios.

— Quero beijá-la aqui — Gabriel murmurou, o dedo cir­cundando lentamente o mamilo rijo.

A simples sugestão fez Amélia arder de desejo. Ela ainda teve consciência de que deveria ao menos tentar controlar os sentimentos e emoções. Afinal, por mais atrevida que fos­se, nunca antes fora tão longe com um homem. Gabriel, po­rém, não era um homem qualquer e, por mais que ela fingisse não acreditar no amor, temia que o amor a tivesse encon­trado, a despeito de suas tentativas de escapar.

— Também quero — declarou, confiante.

Gabriel inclinou-se e beijou-lhe o pescoço, antes de descer até os seios. O primeiro toque dos lábios quentes sacudiu o corpo de Amélia. Inspirando profundamente, ela enroscou os dedos nos cabelos dele, sentindo o calor aumentar, o san­gue latejar em suas veias.

Gabriel acariciou, beijou e mordiscou até ela ofegar e pres­sionar o corpo contra o dele em desespero. Amélia sentiu a virilidade rija de Gabriel sob seu corpo em chamas e, embora a sensação fosse poderosa e até um pouco assustadora, ela se viu envolvida pela névoa criada pelo próprio desejo.

— Gabriel — sussurrou —, faça-me sentir algo além de medo. Faça-me esquecer de que esta noite pode ser a nossa última.

Ele interrompeu as carícias para fitá-la. Na escuridão, seus olhos eram duas bolas azuis brilhantes.

— Você não me conhece de verdade, Amélia. Só vê o que eu quero que veja.

Ela queria conhecê-lo, conhecer suas esperanças, seus so­nhos, seus segredos. Naquela noite, porém, queria conhecê-lo como nunca antes conhecera homem algum.

— Vai me negar esta única noite juntos? — perguntou. — Não sabemos o que o amanhã nos trará.

Por um momento, pensou que ele fosse rejeitá-la. Gabriel parecia lutar consigo mesmo, o que ela considerou humilhante. Começou a se afastar quando ele a segurou. As mãos de Gabriel tremeram quando a tocou.

Saber a intensidade com que o afetava foi um elixir para Amélia, e ela o beijou. Gabriel retribuiu com ardor, pressio­nando o corpo contra o dela. Amélia fez o mesmo, arrancando um gemido rouco de Gabriel. Teve o cuidado de não apoiar o próprio peso na perna ferida, mas perguntou-se por quanto tempo mais conseguiria manter a presença de espírito para lembrar-se de que ele não estava em condições físicas de fazer o que estavam fazendo.

O cheiro de Gabriel, seu beijo, suas carícias trabalhavam contra os esforços de Amélia para não perder de vez a cabeça. Não havia mais nada além de mãos, bocas e desejo. Não havia lobo à porta, nem perigo espreitando nas sombras. Eram somente ela, Gabriel e a noite.

O cobertor ainda cobria seu corpo da cintura para baixo, mas por debaixo dele, ela estava nua. O tecido grosso dá calça de Gabriel irritava e, ao mesmo tempo, estimulava sua pele sensível. Quando ele voltou a beijar-lhe os seios, ela inclinou a cabeça para trás, e quando ele pressionou a ereção contra seu ventre, ela arqueou o corpo, intensificando a sen­sação até pensar que enlouqueceria de desejo.

A mão de Gabriel deslizou de seus seios até o ponto sen­sível entre suas pernas, arrancando-lhe gemidos de prazer. Ela cravou as unhas nos ombros dele, deixando seu corpo acompanhar as carícias e os movimentos sensuais.

Gabriel sabia que deveria ter recusado a oferta de Amélia. A oferta que ela lhe fizera fora doce demais: de esquecerem por uma noite de quem ela era, de quem ele era, e simples­mente estarem juntos. Ela era a forma mais poderosa de tentação. A sensação da pele macia, a umidade entre suas pernas, seu perfume combinavam-se para roubar dele a ca­pacidade de resistir. Gabriel não podia forçar-se a parar- não queria.

No fundo, havia a besta incitando-o a possuí-la. Havia também o homem que queria ser apenas um homem aos olhos dela. Mesmo que só por uma noite. Pela primeira vez, desde que tomara conhecimento de sua maldição, sentiu-se grato pela própria fraqueza, pela falta de autocontrole. Abandonou-se ao simples prazer de sentir, à tentação de ser apenas um homem fazendo amor com a mulher que desejava acima de todas as outras. No entanto, o homem dentro dele continuava no comando... ao menos por enquanto.

— Você deveria me fazer parar, antes que eu não consiga mais pensar de maneira racional — conseguiu dizer a ela.

Ela moveu os quadris, pressionando-os contra ele.

— Não quero que pare... — replicou ofegante. — Gabriel, por favor, não pare.

Gabriel acariciou-a um pouco mais, até parar apenas para livrar-se da calça. O gemido desapontado de Amélia o fez retornar rapidamente à fonte da frustração dela... e da sua.

Amélia pensou que ia morrer, quando ele interrompeu as carícias. Então sentiu a virilidade máscula, livre contra sua pele, pulsante. Não queria esquivar-se, mas não pôde evitar certa hesitação. Sua mãe lhe falara com aparente alegria sobre dor e sangue durante a primeira vez de uma mulher com um homem, fazendo a situação soar pior do que deveria ser. Era possível que sua mãe houvesse exagerado...

Gabriel voltou a tocá-la naquele ponto que parecia ser o centro de todo o seu ser, e as dúvidas se dissiparam. O desejo voltou a cegá-la, seu corpo voltou a cavalgar no ritmo dos movimentos dele, mas agora sem a barreira da calça a sepa­rar seus corpos. E Amélia queria mais. Queria sentir Gabriel dentro de si. Posicionou-se de maneira a garantir que isso pudesse acontecer.

— Você me leva ao total descontrole — ele disse, e o som da voz profunda quase fez com que ela se descontrolasse. — Tem certeza de que deseja continuar, Amélia? Se não quiser, tem de dizer agora, enquanto ainda consigo perguntar.

Não havia volta para ela. Estava decidida a ter Gabriel Wulf como amante naquela noite, sem dar a menor impor­tância ao mundo lá fora. Esperara todo aquele tempo para se tornar mulher, e agora sabia que, nos recantos secretos de sua mente, estivera esperando por ele. Robert representara uma mera obrigação, mais uma maneira de agradar a alguém que não fosse ela mesma. Gabriel libertara seu co­ração da barreira protetora. Queria pertencer a ele, coração, corpo e alma.

— Quero você... — murmurou.

Ele gemeu baixinho, antes de penetrá-la. A dor chegou, aguda e rápida, arrancando um gemido alto dos lábios de Amélia. Gabriel segurou-lhe os cabelos com força maior, pressionando a testa contra a dela.

— Desculpe se a machuquei — disse — Achei melhor ultrapassarmos essa barreira de uma vez, para podermos seguir adiante.

Sem dar tempo para que ela respondesse, ele seguiu adiante, penetrando-a mais profundamente. Por um mo­mento, Amélia reconsiderou sua decisão, mas Gabriel voltou a acariciá-la como antes. A sensação combinada era o que estava faltando antes, e enquanto ele a acariciava e pene­trava mais e mais profundamente, ela voltou a se entregar por completo.

Os sentidos de Amélia concentravam-se em Gabriel, o per­fume a envolvê-la, o peito musculoso de encontro aos seus seios, o calor que ele emanava, o brilho nos olhos que a ob­servavam. As mãos dele pousaram em sua cintura, movimentando-a para cima e para baixo, até ela compreender o ritmo, percebendo também que se assumisse uma determi­nada posição, o estímulo que as carícias dele proporcionavam tornava-se desnecessário.

Apoiando-se nos joelhos já posicionados um de cada lado de Gabriel, Amélia cavalgou-o até ele estar tão ofegante quanto ela.

— Deus — ele murmurou antes de beijá-la.

E foi o beijo que levou Amélia muito além de qualquer tipo de controle. Voltou a cravar as unhas nos ombros de Gabriel, movendo-se mais e mais depressa, até explodir em um milhão de pedaços. Enquanto seu corpo convulsionava, ela se libertou do beijo para morder o pescoço de Gabriel de leve. Uma sensação totalmente desconhecida envolveu-lhe o corpo, por dentro e por fora, e ela sentiu como se sua alma deixasse o corpo, flutuando acima dela. Gabriel continuava movimentando-se dentro dela, prolongando o prazer. De re­pente, todos os músculos dele tornaram-se tensos, as mãos fortes apertaram sua cintura e ele a puxou para cima.

No mesmo instante, ela sentiu um jato quente na parte interna da coxa, ao mesmo tempo em que o corpo de Gabriel convulsionava como acontecera com o dela, e soube que ele também encontrara o prazer; Gabriel abraçou-a e ela deixou a cabeça descansar no ombro largo, ambos respirando com dificuldade. Foi a experiência mais gloriosa da vida de Amélia.

— Deus — Gabriel murmurou outra vez. Amélia aconchegou-se a ele e suspirou.

— Sou uma mulher, agora. Ele a afagou nos cabelos.

— Você sempre foi uma mulher. Uma mulher extraor­dinária.

A falta de experiência despertou a curiosidade de Amélia, e ela queria saber se o que acabara de acontecer fora tão maravilhoso para ele quanto fora para ela.

— Agradei você? Gabriel riu.

— Se tivesse me agradado um pouco mais, acho que eu não teria sobrevivido.

O elogio aqueceu-a quase tanto quanto o calor do corpo dele. Com todo cuidado, deslizou sobre Gabriel. Sentiu as coxas pegajosas.

— O que eu não daria por um banho! — declarou, acomodando-se ao lado dele e puxando o cobertor sobre ambos.

— Imagino que haja uma bomba e um balde lá fora. Vou buscar água para você se lavar.

Amélia perguntou-se se ele conseguiria se levantar. Pen­sou em sugerir que ela mesma fosse buscar a água, mas sabia que Gabriel não a deixaria sair enquanto não tivesse ? certeza de que estavam em segurança ali. Além disso, não estava certa de que suas pernas trêmulas pudessem supor­tar o peso do corpo.

Depois de vestir a calça debaixo do cobertor, Gabriel le­vantou-se. Gemeu de dor, mas não disse nada. Abaixou-se e estendeu a mão para Amélia.

— Há um colchão no quarto ao lado. Se estivesse racioci­nando com clareza, teria sugerido que fôssemos para lá. O chão é duro e, provavelmente, não muito limpo.

Felizmente para Amélia, a escuridão escondeu o seu rubor. Acabara de fazer amor com Gabriel no chão de uma cabana de ferreiro! Desta vez, conseguira chocar até a si mesma. E se ele não estivesse raciocinando com clareza? Isso significava que ele não gozava de plenas faculdades mentais quando fizera amor com ela? Estaria arrependido? Deveria ela estar arrependida? Duvidou de que pudesse ar­repender-se, mesmo que quisesse.

Como Gabriel continuava de pé com a mão estendida, Amélia aceitou a ajuda para se levantar, mantendo o cober­tor junto ao corpo. Ele beijou-lhe os cabelos e puxou-a na direção do quarto.

— Vá. Irei me juntar a você depois que apanhar a água.

Gabriel não estava tão cego pelos sentimentos, a ponto de se esquecer de ser cuidadoso. Movimentou-se no maior silêncio que a perna ferida lhe permitia, e encontrou a bom­ba e o balde ao lado, como era costumeiro. Um turbilhão de sentimentos atacou-o: culpa, decepção diante da própria fraqueza, desejo de possuir Amélia outra vez, preocupação por talvez ser obrigado a deixá-la. Ora, não poderia dei­xá-la. Amélia não estaria segura sem ele... não estava se­gura com ele.

Ergueu os olhos para a lua quase cheia. O lobo estava mais perto, agora; podia senti-lo. Estaria apaixonado por Amélia, uma mulher totalmente diferente dele? Queria dizer que não estava apaixonado por ela, que ela não era diferente das outras mulheres com quem ele tivera prazer no passado, mas sabia que estaria mentindo. Amélia era diferente.

Ocorreu-lhe que talvez houvesse se dado conta disso na primeira vez em que a vira nas ruas de Londres. Talvez fosse por isso que havia sonhado com ela.

Agora, quando as brasas da paixão se apagavam, sua per­na doía muito. Nem toda a racionalização do mundo apagaria o fato de que ele acabara de tirar a virgindade de lady Amélia Sinclair Collingsworth. Um direito que deveria ter sido re­servado ao marido dela. Ou, pelo menos, a um homem que pudesse oferecer-lhe um futuro, um homem que fosse somen­te homem e nada mais.

E, agora, Gabriel compreendia que estar com uma mulher com quem tinha uma ligação afetiva era diferente. Era di­ferente quando estava com ela. Gostava de agradá-la, obser­var as expressões no rosto lindo. Gostava demais. De repen­te, queria fazer tudo aquilo de novo.

Cuidou da bomba. Embora o movimento quase o matasse de dor, abaixou-se e enfiou a cabeça debaixo da água gelada a fim de clarear os pensamentos. Não voltaria a fazer amor com ela. Jurou que não o faria, mas o lobo sob sua pele in­sistiu para que quebrasse o juramento, que ignorasse todos os juramentos que fizera si mesmo.

Seria capaz de impedir o que sabia estar acontecendo? Voltou a olhar para a lua quase cheia. Por um momento, limitou-se a observá-la, fascinado. A lua o chamava, sedu­zia-o com a mesma facilidade com que Amélia o seduzira. O lobo sob sua pele aproximou-se da superfície. A besta deu-lhe força, sussurrando pensamentos obscuros dentro de sua ca­beça. Ele ainda podia sentir o perfume de Amélia.

Fechou os olhos e respirou fundo, deixando que a fragrância aquecesse seu sangue e alimentasse o seu desejo por ela. Olhou para a cabana, apanhou o balde e voltou para dentro... para a sua presa.

 

Gabriel estava sonhando de novo. Sentado à mesa de jantar, ele via o pai transformar-se em lobo. Desta vez, porém, não era só o pai que se transformava. Ele olhava para as próprias mãos deformadas, cobertas por pêlos, longas gar­ras emergindo das pontas dos dedos. Então, Mullins apare­cia, rindo dele.

— Você é um de nós — murmurava e voltava a rir, até sua garganta se abrir em um corte medonho e o sangue jorrar.

Gabriel despertou sobressaltado.

De início, não sabia onde estava. Ao ver Amélia a seu lado, lembrou-se da noite anterior. Havia retornado à cabana na intenção de possuí-la de novo, mas ao parar ao lado da cama e ver Amélia adormecida, as feições serenas como as de um anjo, ele apenas se despiu da calça e se deitou junto dela, caindo finalmente no sono também.

Amélia estava, agora, sentada na beirada da cama, olhan­do para ele. Vestia uma calça justa e camisa branca. O seios não permitiam que ela fechasse completamente o decote, proporcionando a ele uma visão tentadora. E Gabriel pôde ver o contorno dos mamilos através do tecido fino. Quando conseguiu desviar os olhos da visão que o inebriava, notou que ela havia prendido os cabelos com uma fita preta. Pare­cia limpa e maravilhosa.

— Pelo que vejo, encontrou as roupas do garoto — disse Gabriel. — Eu sabia que as roupas da esposa de Bruin não lhe serviriam.

— Verdade, mas eu sempre quis usar calças masculinas.

— Você não se parece com um homem, mesmo usando calça — ele comentou, o olhar estudando toda a figura ten­tadora à sua frente.

Amélia corou e levantou-se.

— Encontrei comida. Não é muita coisa, mas temos maçãs secas e a outra metade do pão que comemos ontem à noite. Está com fome?

— Faminto por você — Gabriel respondeu com hones­tidade.

Ela voltou a corar, mas de prazer.

— Você não está em condição de... bem, eu não devia ter seduzido você, ontem à noite — admitiu.

— Já se arrependeu? — Ele tentou se levantar, fez uma careta de dor e voltou a se reclinar nos travesseiros depressa.

— Não me arrependo de nada — Amélia anunciou, antes de colocar a comida sobre a cama e inclinar-se para pousar a mão na testa de Gabriel. — Está quente demais. Acho que está com febre.

Gabriel agarrou-lhe a mão e levou-a aos lábios.

— Estou ardendo por você — garantiu. Amélia puxou a mão das dele e levou-a à cintura.

— Pare de tentar me seduzir. Não está em condições fí­sicas; aliás, preocupa-me a possibilidade de não estar em condições de procurar por Mora, também. Talvez eu deva ir.

As palavras fizeram Gabriel recuperar a seriedade.

— Nem pensar — declarou. — Eu irei. Quanto antes, me­lhor, assim posso levá-la daqui em segurança.

Ela empinou o queixo.

— Posso ajudar — insistiu. — Sei que me acha relativa­mente inútil, mas...

— Não acho nada — ele a interrompeu. — Talvez tenha achado no início, mas reconheço que a julguei mal.

E era verdade. Amélia era uma mulher extraordinária. Uma amante maravilhosa, corajosa é inteligente. Era boa demais para ele, disso estava certo.

Amélia sorriu e, em seguida, franziu o cenho.

— Você me acha útil em que aspecto? Lembro-me do que disse quando estávamos no bosque, sobre as mulheres ser­virem a um propósito.

Diabos! Como se a situação entre eles já não fosse com­plicada o bastante.

— A vila é perigosa, Amélia. Não sei quem é amigo ou inimigo. Conseguirei me concentrar melhor na busca por Mora se souber que você está aqui, sã e salva.

Gradualmente, as feições dela suavizaram.

— É... talvez você tenha razão. — Seus lindos olhos en­cheram-se de lágrimas. — Espero que Mora esteja viva. Sin­to que tudo isso é minha culpa. Se não a tivéssemos forçado a vir conosco...

— Ela já estaria morta — ele afirmou. — O homem se fazendo passar por ferreiro disse que não querem deixar ne­nhuma testemunha. Isso inclui todos nós.

Gabriel curvou-se para alcançar a calça que Amélia pu­sera sobre a cama para ele. Como havia esperado, a dor foi terrível, mas ele conseguiu apanhar a roupa. Nunca tivera uma mulher que cuidasse dele, desde quando era garotinho, mas gostou da experiência. Livrando-se do cobertor, colocou-se de pé com dificuldade. Vestir-se foi uma tarefa árdua, assim como ignorar Amélia, que examinava seu corpo com atrevimento.

Ora, sua Amélia não era tímida. Gabriel corrigiu imedia­tamente o pensamento. Ela não era sua. Jamais seria, exceto pela maneira como fora na noite anterior. Se não conseguis­sem chegar a Wulfglen, não teriam qualquer futuro juntos. Especialmente agora.

— Sua perna está horrível — Amélia comentou —, mas o resto está ótimo.

Gabriel arqueou uma sobrancelha enquanto abotoava a calça.

— Como sabe, se não tem parâmetro de comparação?

Ela sorriu, levando-o a perguntar-se se ela sabia quanto seu sorriso era sedutor.

— Posso ser muitas coisas, mas não sou idiota. Você é um homem bonito, Gabriel Wulf. Se não houvesse optado por se esconder no campo todos esses anos, imagino que a essa al­tura já teria se tornado especialista em esquivar-se ao assé­dio feminino.

O motivo pelo qual ele havia se escondido roubou-lhe a capacidade de partilhar o flerte bem-humorado de Amélia. Não sabia por quanto tempo seria capaz de manter o lobo dentro de si sob controle, mas não queria que Amélia sou­besse. Queria que ela continuasse pensando que ele era bo­nito, que pensasse qualquer coisa, exceto que ele era um monstro.

Ele calçou as botas, vestiu a camisa limpa que Amélia encontrara na casa e pôs-se a procurar por um esconderijo seguro para ela ficar. Enquanto andava por toda a casa, examinando o chão, Amélia o seguia.

— O homem... a criatura disse mais alguma coisa, na ofi­cina do ferreiro? — ela indagou. — Falou sobre o que plane­jaram e o que eu tenho a ver com tudo isso?

—Não. Disse apenas que vinham fazendo planos há muito tempo.

— O que estamos procurando? — Amélia perguntou al­guns minutos depois.

— Algum tipo de abertura. Aposto que Bruin tinha uma área escondida debaixo do chão, onde guardava seus valores, bebida, comida.

Em vez de comentar, Amélia juntou-se à busca. Poucos instantes depois, chamou-o da cozinha:

— Aqui. Encontrei!

Gabriel juntou-se a ela na pequena área onde se encon­travam o fogão, a mesa e cadeiras rústicas. Amélia estava ajoelhada debaixo da mesa, de onde retirara um tapete puído que escondia exatamente o que Gabriel descrevera.

Os dois arrastaram a mesa. Imediatamente, o cheiro de terra e legumes tomou conta do ar.

— Bom — ele disse. — Deixaremos aberto. Se você ouvir alguém se aproximar enquanto eu estiver fora, entre no bu­raco e feche a porta.

Amélia assentiu.

— Por favor, tenha cuidado, Gabriel.

Ele estendeu a mão para acariciá-la. Pareceu-lhe simples­mente natural inclinar-se e beijá-la. Seus lábios demoraram-se apenas um instante colados aos dela, antes que ele se afastasse, reunisse toda a sua força e se levantasse. Depois de instruir Amélia para trancar a porta, Gabriel deixou a relativa segurança da cabana e saiu à procura de Mora. Não fazia a menor idéia do que encontraria na vila.

Buscando proteção nos bosques, avançou lentamente na direção da vila. Gostaria de ser mais rápido, mas a perna ferida o impedia. Ao aproximar-se, escondeu-se em meio à folhagem e estudou a vila. Hempshire parecia deserta. Ele se perguntou se a oficina do ferreiro deveria ser o primeiro lugar onde procurar pela criada.

Parecia natural. Mullins dissera ter dois primos que o ajudavam. Gabriel podia apostar que os primos possuíam os mesmos "dons" do ferreiro. Retomando a caminhada, tentou manter-se entre a folhagem, que ia se dissipando na medida em que ele se aproximava da vila. Por sorte, a oficina do ferreiro situava-se nos limites da vila, sendo a primeira cons­trução em seu caminho.

Observou os cavalos no curral e reconheceu um deles como sendo o que ele mesmo montava quando chegara à Mansão Collingsworth. Seria capaz de apostar que a maioria dos ca­valos no curral havia sido roubada do estábulo de Robert.

Gabriel apoiou-se na parede da oficina, descansando a perna latejante. Ouviu um murmúrio de vozes dentro da oficina. Reunindo o que restava de suas forças, deu a volta na oficina, até chegar aos fundos. Na entrada da frente, seria visto com facilidade por qualquer um que transitasse pela vila. Teve de andar entre os cavalos, e eles resfolegaram, batendo os cascos na terra. Geralmente, cavalos gostavam dele, aos menos, os seus. O animal que ele cavalgara até a Mansão Collingsworth limitou-se a estudá-lo com curiosida­de, como se quisesse saber o que ele andava fazendo. Gabriel deu-se conta de que talvez os outros animais estivessem rea­gindo ao seu cheiro. E talvez fosse essa a razão pela qual o cavalo que ele havia roubado na noite anterior houvesse se mostrado tão difícil de controlar. Certamente, sentira o chei­ro do lobo que habitava dentro dele.

Havia duas portas nos fundos do estábulo. Gabriel parou junto delas e apurou os ouvidos. As vozes soavam mais cla­ras, mas não o bastante para ele compreender o que diziam. Entrou, sorrateiro, espiando cuidadosamente dentro de cada baia. Estavam vazias.

— Como podem ter escapado de vocês? — um homem per­guntou. — Afinal, são apenas dois, e nenhum deles possui os nossos talentos.

— O homem controla um cavalo como nunca vi qualquer homem fazer antes — outro se defendeu. — E a mulher ati­rou contra nós.

— Temos de apanhá-los antes que alcancem segurança. Esperamos demais para executar nossos planos. Não pode­mos deixar que arruínem tudo.

— Ora, acha que alguém vai acreditar neles, se consegui­rem escapar? — alguém indagou. — Provavelmente, os dois serão acusados de serem amantes e de terem assassinado o marido.

— Wulf, talvez, não seja levado a sério. A família dele não tem influência alguma na sociedade. A mulher, no entanto, sabe que temos planos para ela.

— Nada disso deveria estar acontecendo dessa forma — um outro homem argumentou. — Vocês conhecem as regras estabelecidas há muito tempo. Ela não está fraca, nem está sofrendo. O que planejamos para ela é o mesmo que assas­sinato.

Gabriel sentiu os cabelos arrepiarem na nuca. Ninguém faria mal a Amélia. Ele mataria qualquer homem ou besta que se atrevesse a tentar.

— Ela poderia ter sido útil, mas agora, o plano mudou, como todos vocês sabem muito bem.

— A srta. Toda-Poderosa, na taverna, diz que voltarão para buscá-la — uma voz anunciou. — Eu disse a ela que não passa de uma criada e que está esperando demais de duas pessoas da classe alta. Mesmo assim, ela insiste que voltarão. Afirma que não são como os outros de sua posição.

— Ela está sendo bem guardada, não está?

— Sim, cinco homens estão de guarda, para o caso de ela estar certa. Esperamos mais dois dias para ver se consegui­mos apanhar um peixe grande com um pequeno. Então, te­remos de fazer com que desapareçam.

O coração de Gabriel batia em disparada. Mora ainda vi­via. Não era tarde demais, mas ela estava sob guarda, e era óbvio que seus raptores esperavam que ele fosse resgatá-la. Como tirá-la de lá, sem ser morto ou capturado no processo? Precisava de um plano, mas sua perna latejava e a mente parecia enevoada.

— Wulf é perigoso. Ele matou Mullins, e eu só queria saber como conseguiu.

— Cortou-lhe a garganta, como todos nós vimos — alguém sugeriu.

— Mas como conseguiu dominá-lo para cortar-lhe a gar­ganta? Mullins era um homem difícil de ser apanhado de surpresa.

— Não sei, mas ele vai pagar por matar um dos nossos. Não precisamos nos sentir culpados por matá-lo. Afinal, ele já derrotou muitos de nós.

Gabriel perguntou-se quantas daquelas criaturas havia. Criaturas que tinham algum tipo de plano. Ainda não com­preendera que plano era aquele, mas agora sabia que não tinham a menor intenção de deixar Amélia ou ele viver. Afas­tou-se e seguiu para os fundos do estábulo, movimentando-se em silêncio. De repente, precisava muito ver Amélia, tocá-la, saber que ela estava bem.

 

Amélia sentiu-se completamente inútil. Havia um pouco de alimentos no buraco escuro debaixo da mesa. Havia um fogão e, provavelmente, lenha do lado de fora da cabana, mas ela não fazia a menor idéia de como acender o fogo e, menos ainda, de como preparar uma refeição decente. Gabriel pre­cisava se alimentar melhor. Tinha de se fortalecer para lutar contra a infecção que, sem dúvida, tomava conta de seu corpo. Ela estava convencida de que o que se passara entre eles na noite anterior não ajudara em nada a condição física dele.

Calculou que deveria sentir-se culpada ou, talvez, enver­gonhada por haver entregue sua virgindade a um homem que não era seu marido, mas simplesmente não conseguia sentir nada disso. Havia muitos outros sentimentos em ebu­lição dentro dela.

Cada segundo que Gabriel passava longe era pura tortura. Preocupava-se com ele. Preocupava-se também com Mora e seu destino. E se Gabriel não retornasse? E se ela não vol­tasse a vê-lo vivo? Tais pensamentos faziam seu peito doer, tornando sua respiração difícil. Gabriel era diferente de to­dos os homens que ela conhecera. Era honrado, forte e cheio de compaixão, mesmo que desejasse não ser nada disso. Po­dia não ser o príncipe encantando que ela sonhara, mas era ainda melhor. Era real.

Uma leve batida à porta provocou-lhe um sobressalto. Correu até a porta trancada e colou o ouvido a ela. Um mo­mento depois, Gabriel chamou por ela baixinho. Aliviada, abriu a porta. Ele entrou mancando e, ao avistar uma cadei­ra, dirigiu-se rapidamente até lá e sentou-se. Seus olhos pa­receram estranhos a Amélia.

— Você precisa de um médico, Gabriel — ela murmurou, preocupada.

— Isso terá de esperar — ele replicou e, então, sorriu. — Mora tem de ser resgatada.

O coração de Amélia deu um salto de alegria.

— Ela está viva? Gabriel assentiu.

— Está sob guarda, na taverna. Eles acham que voltare­mos para buscá-la. Estão usando Mora como isca.

Amélia puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dele. Sen­tiu os joelhos fracos de alívio.

— Como vamos tirá-la de lá?

— Como eu vou tirá-la de lá, é o que quer dizer. Você não chegará nem perto da vila.

A idéia teria sido aceitável para Amélia em outras cir­cunstâncias. Ela sabia que Gabriel não estava em condição de libertar Mora sozinho.

— Posso ajudar você — ela declarou com firmeza.

— Sei que é uma mulher corajosa, Amélia. — Ele suspirou. — Você é mais forte do que imaginei. Se nada disso houvesse acontecido, se você tivesse seguido sua vida com Robert, acho que ele jamais viria a saber disso. E lamento por ele, por não ter tido a chance de descobrir quanto você é extraor­dinária.

Amélia sentiu o coração se derreter. Gabriel não dissera que a amava, mas chegara muito perto. Talvez ele ainda não tivesse se dado conta disso, e ela rezou para que ele desco­brisse o mais breve possível. Para Mora, porém, o tempo estava se esgotando.

— Quando pretende voltar à vila? — ela perguntou. Gabriel secou o suor da testa na manga da camisa.

— Esta noite, sob a proteção da escuridão, como você su­geriu. Você terá de estar pronta para fugir, quando voltar­mos. Embrulhe toda a comida que pudermos levar e, talvez, algumas roupas como a que está usando, para Mora. Ela poderá se movimentar melhor e mais depressa com calça de homem.

Amélia depositou um prato de maçãs secas, pão e queijo sobre as coxas dele.

— Precisa comer, Gabriel. E precisa descansar. Ainda acho que eu deveria ir com você para ajudá-lo.

Observou-o comer sem vontade. O fato de ele não ter ape­tite não era bom sinal.

— Terá de confiar em mim, Amélia — ele disse. — Acha que consegue?

Se não confiasse nele, em quem mais poderia confiar?

— Confio em você — afirmou e, como ele não estava co­mendo nada, retirou o prato e colocou-o na mesa. — Vá para a cama.

Um sorriso fraco curvou os lábios dele.

— É um convite?

Apesar de Gabriel ter os olhos vidrados, estar visivelmen­te exausto e sofrendo com a dor, Amélia achou-o irresistível. No entanto, tratou de reprimir seus sentimentos femininos e tentou exibir expressão severa.

— Nada disso. Pelo menos, até você melhorar.

— Posso melhorar, se é o que você quer.

O coração de Amélia disparou. Como ele poderia ser me­lhor do que fora na noite anterior? A idéia era tentadora, e teria sido ainda mais em outras circunstâncias.

— E eu pensei que você não era um devasso! — ela retru­cou com um sorriso maroto, ajudando-o a se levantar da ca­deira e levando-o até a cama.

Quando ele se sentou na beirada da cama, Amélia aju­dou-o a tirar as botas. Pela manhã, ela se limpara com a água que Gabriel trouxera na véspera. A visão do sangue em suas coxas fora um choque, a comprovação de que não era mais virgem. Ela pegou o balde, despejou o restante da água em um jarro e apanhou uma toalha. Depois de torcer a toalha molhada, voltou à cama, onde Gabriel estava dei­tado de costas.

— Tire a camisa — ordenou. — A água fria ajudará a baixar sua febre.

— Quando foi que aprendeu tanto sobre como cuidar de um enfermo?

— Aprendi com Mora. Ela sabe muito sobre essas coisas. Enquanto você nos conduzia pelos bosques, concentrado em tudo o que se passava ao nosso redor, nós duas conversávamos. Eu estava preocupada com sua perna, e ela me ensinou um pouco sobre ervas curativas e como fazer baixar a febre.

— Mora tem muita experiência de vida, para uma moça tão jovem.

Amélia passou a toalha molhada na testa de Gabriel.

— Preciso lhe contar algo sobre ela — disse. — Prometi que esperaria que ela mesma lhe contasse, mas acho que você precisa saber.

— O que é? — ele indagou, atento.

Deslizando a toalha pelo pescoço e peito de Gabriel, ela respondeu:

— Mora não é tão jovem. Talvez um ano mais nova que eu. Decidiu esconder a idade, enfaixando os seios e usando aquela touca que esconde sua beleza. Acreditou que seria mais seguro disfarçar-se enquanto trabalhava para a classe alta. O irmão convenceu-a de que, se não fizesse isso, os patrões se aproveitariam dela.

Gabriel estreitou os olhos.

— Quando ela lhe contou a verdade? Amélia deu de ombros.

— Ela não me contou. Eu a surpreendi, uma noite, en­quanto ela se limpava no riacho, sem a touca e a faixa. Ela me prometeu que contaria, mas ainda não estava certa se poderia confiar em você. Disse que você me desejava e po­deria interessar-se por ela por não poder seduzir uma dama da minha posição.

— Mora estava certa. Eu desejava você — ele admitiu e, quando ela o encarou, acrescentou: — Ainda a desejo.

Amélia esperava que não se tratasse de mero desejo para ele, embora tivesse um dia acreditado que desejo e amor fossem a mesma coisa. Agora, sabia que isso não era verdade. Sentira-se atraída por Gabriel desde o instante em que o vira pela primeira vez, flertava com pensamentos pecami­nosos sobre ele, mas foi somente depois de conhecê-lo melhor que se apaixonou.

— Nesse caso, talvez ela tenha acertado na decisão de guardar o segredo — replicou, deslizando a toalha pelo ab­dômen musculoso de Gabriel. Ele pousou a mão sobre a dela.

— Ela não precisava ter medo de mim — disse. — Fui ensinado a não me aproveitar de criadas. E só há uma mu­lher a quem desejo.

Amélia engoliu em seco. Era óbvio que Gabriel estava ten­tando seduzi-la. Q cheiro inebriante que ele exalava tornou-se subitamente mais forte. Encontrando dificuldade para ra­ciocinar com clareza, ela sacudiu a cabeça em um esforço para recuperar o controle.

— Preciso ver como está sua perna.

— Vá em frente — ele sugeriu, o sorriso sedutor ainda nos lábios, os olhos fixos nos dela.

Amélia tentou concentrar-se em cuidar dele, dizendo a si mesma que era capaz de fazer isso sem se deixar seduzir por ele. Deixou a toalha de lado e pôs-se a abrir a calça de Gabriel. Segurou o cós pelos dois lados e puxou para baixo.

No mesmo instante, viu-se diante da prova da masculinidade. Uma visão capaz de intimidar e fazer correr uma don­zela. Ela, porém, sentiu-se varrida por uma onda de calor intenso, que foi se alojar entre suas pernas. E foi tomada pelo desejo quase irresistível de tocá-lo.

— Vá em frente — Gabriel murmurou, como se pudesse ler seus pensamentos.

Sobressaltada, ela desviou o olhar, calculando que ele não havia lido seus pensamentos, mas apenas tentara trazê-la de volta à realidade e à tarefa diante de si. Acabou de des­pi-lo, cuidadosa para não machucar a perna ferida. Então, voltou ao balde para enxaguar a toalha.

Deus, ele não tinha a menor vergonha! Nem sequer pu­xara o cobertor sobre si enquanto ela estivera de costas. Amé­lia fingiu não notar que ele estava confortavelmente deitado, nu, diante dela. O local onde o ferimento fora lancetado e cauterizado estava vermelho e inchado. Ela se sentou na beirada da cama e pressionou de leve a toalha fria contra a coxa de Gabriel.

— Espero que isso ajude a baixar a febre — comentou.

— Estou na cama, nu, à sua mercê. Só uma coisa pode fazer baixar a febre que me consome.

Ela ergueu os olhos e se deparou com os dele, que exibiam aquele brilho estranho. Sentiu a boca seca e, sem perceber, passou a língua pelos lábios. Certamente, ele não estava em condição de fazer o que seus olhos sugeriam que fizessem. E ela não deveria encorajá-lo. Tentou manter-se concentrada em limpá-lo. Deslizou a toalha pelo corpo forte, os dedos às vezes tocando a pele quente. Queria deslizar as mãos pelo corpo másculo, não a toalha. Queria sentir aqueles músculos contra a própria pele nua.

Gabriel inspirou profundamente quando Amélia tocou-o com a toalha. Embora continuasse dispensando a ele os cui­dados apropriados a um enfermo, ela não conseguia livrar-se do desejo de substituir a toalha pelas próprias mãos. Um instante depois, ele arrancou a toalha de suas mãos. Amélia fitou-o e não se surpreendeu com o brilho nos olhos dele. Ele tomou sua mão e guiou-a para si. Seus dedos o apertaram, como se possuíssem vontade própria. Gabriel fechou os olhos com um gemido. Temendo tê-lo machucado, ela retirou a mão depressa.

— Não pare — ele pediu com voz rouca. — Adoro sentir suas mãos em mim.

— Não devíamos. Você não está em condição de...

Em um movimento súbito, Gabriel puxou-a para si.

— Quero fazer amor com você outra vez. Quero sentir seu corpo sob o meu, sua pele contra a minha. Quero fazê-la sentir coisas que jamais imaginou ser capaz de sentir.

Amélia sabia que deveria resistir, não porque era seu de­sejo, mas porque não era certo, estando ele ferido, febril. Não era tão egoísta a ponto de pôr em risco a saúde dele por algumas horas de prazer. Porém, o cheiro inebriante a en­volveu, enfraquecendo sua resistência. Gabriel era irresistí­vel. Quando ele a segurou pela nuca e puxou-a para beijá-la, Amélia não o impediu.

 

Gabriel sabia que o desejo o comandava. Não era o desejo normal que ele conhecia, mas um impulso animal de acasa­lar com Amélia, que o anestesiara por completo. Queria fazer amor com ela, devagar, fazendo-a sentir o mesmo prazer, podendo ver a beleza do rosto dela, quando ela atingisse o clímax.

Beijou-a, determinado a seduzi-la. Queria que ela não se importasse com nada, exceto o prazer que ele podia lhe dar. Naquele momento, queria que tudo mais se dissipasse, res­tando apenas os dois, dando e recebendo.

Deslizou a mão até a camisa que ela usava e puxou-a, descolando os lábios dos dela apenas para livrá-la da vesti­menta. Os seios macios tocaram seu peito. A pele delicada e fresca contrastando com a sua, quente e áspera. Amélia era perfeita. Sem voltar a interromper o beijo, desabotoou-lhe a calça. Ouviu-a chutar as sapatilhas para longe.

Juntos, livraram-se das roupas que lhes restavam. Então, ele a virou, deitando-a de costas. Deixou que ela o tocasse, enquanto ele fazia o mesmo, acariciando e beijando-lhe os seios, deslizando uma das mãos pelo ventre liso, até pousá-la sobre os pêlos macios entre as coxas bem torneadas. Amélia afastou as pernas, livre da timidez, pronta para recebê-lo.

Na verdade, Gabriel lembrou, ela nunca fora tímida. E gostava de tê-la sem inibições. A maioria dos homens prefe­ria ter uma esposa recatada na cama e uma amante fogosa fora de casa. Com Amélia, um homem não precisaria de amante. Ela envolveu seu membro com a mão quente, e ele quase explodiu. Não estava acostumado a controlar seus im­pulsos na cama. As mulheres com quem se deitara até então haviam sido meros instrumentos usados para aliviar suas necessidades masculinas. Nunca antes desejara fazer amor com uma delas.

Deu-se conta de que fora superficial. Seu medo de sentir mais do que deveria por qualquer mulher fora também uma defesa. Agora, era tarde demais e, por isso, deixou baixarem suas defesas e entregou-se ao verdadeiro prazer de estar com uma mulher. Com aquela mulher. Com gestos delicados, afastou a mão de Amélia e deslizou os lábios do seio ate o umbigo. Desceu ainda mais, até posicionar-se entre as per­nas dela, até poder beijá-la na parte mais sensível.

Ela emitiu um suspiro surpreso, seu corpo tornando-se tenso. Gabriel concluiu que conseguira chocá-la, mesmo sen­do ela uma mulher ousada, segundo a maioria dos padrões. Continuou a beijá-la até senti-la render-se por inteiro. Amélia enrascou as mãos em seus cabelos, puxando-o para si. Gabriel deleitou-se com o sabor e o perfume feminino, sentindo o san­gue ferver ainda mais em suas veias.

Seu corpo todo latejava. Seus instintos animais de pos­suí-la o dominaram. Posicionou-se sobre ela, capturando-lhe os lábios e penetrando-a. Estar dentro dela era como ganhar o céu e o inferno, ao mesmo tempo. Queria explodir, derra­mar sua semente, mas conteve-se, movendo-se de maneira a proporcionar a ela o maior prazer possível. A respiração de Amélia tornou-se ofegante, e ela cravou as unhas em suas costas. Juntos, cavalgaram mais e mais depressa, ate esta­rem ambos cobertos de suor, respirando com dificuldade.

Gabriel sentiu os primeiros tremores do clímax de Amélia, o corpo apertando-se em torno do seu, perdendo o controle. Ela arqueou os quadris e enlaçou as pernas em sua cintura. Sentindo o próprio clímax aproximar-se, ele sabia que deve­ria afastar-se, sair de dentro dela, mas não pôde. A besta dentro dele plantaria a sua semente, pois era por essa razão que um animal copulava. A continuidade da raça.

O clímax o invadiu antes que ele tivesse a chance de ra­ciocinar como homem. Penetrou-a mais profundamente, der­ramando sua semente. Nunca antes deixara isso acontecer. Sempre fora responsável para com as mulheres com quem se deitava, não só pelo bem delas, mas pelo bem da criança que poderia ser gerada. Gabriel ergueu-se sobre os cotove­los. O rosto de Amélia era tão lindo que era quase doloroso fitá-la

Um sorriso saciado curvava os lábios ainda vermelhos de seus beijos e, mesmo ainda trêmulo, ele se abaixou para bei­já-la. Gabriel rolou para o lado, levando Amélia consigo, de maneira que seus corpos permanecessem unidos. Ela se aconchegou a ele e, juntos, tentaram retornar do paraíso para a terra.

Gradualmente, recuperaram o ritmo normal da respira­ção. Gabriel continuou a abraçá-la, pois gostava de tê-la em seus braços. Gostava de tudo nela. E estaria se enganando se continuasse a chamar de "gostar" os sentimentos que ti­nha por ela. Sabia que eram muito mais profundos. O que estava acontecendo com ele era prova disso, mesmo que ten­tasse negar tais sentimentos. E era óbvio que de nada adian­tava negá-los, no que dizia respeito à maldição.

Afagou os cabelos de Amélia até ela adormecer. Precisava descansar, também. Agora, a dor na perna voltara, e era forte o bastante para trazer bile à sua garganta. Pouco de­pois, foi atacado pela primeira dor de estômago, tão aguda que lhe tirou o fôlego e sacudiu seu corpo.

— O que foi? — Amélia indagou, sonolenta.

— Nada — ele respondeu. — Preciso sair por um instante.

Ela não protestou quando ele se levantou. Gabriel conse­guiu vestir a calça, apesar da dor na perna e do estômago enjoado. Apanhou as botas e atravessou a cabana mancando. Achou que o ar fresco lá fora fosse clarear sua mente, mas mal saiu, foi acometido por outra dor aguda no estômago, que o fez dobrar-se. Ele largou as botas junto à porta e cam­baleou para longe da cabana.

De quatro, esperou que a bile lhe subisse à garganta. En­tão, notou as próprias mãos cobertas de pêlos, com garras emergindo das pontas dos dedos. O suor cobriu sua testa, e ele sacudiu a cabeça, piscou os olhos, na esperança de que, quando voltasse a olhar, não visse o que pensava ter visto. Outra dor o fez cair. Gabriel dobrou as pernas de encontro ao abdômen. Teve a impressão de que até seus ossos doíam. Ergueu os olhos para o céu, onde a lua cheia banhava os campos com sua luz prateada. Estava acontecendo. Por mais que quisesse negar, soube que era tarde demais para ele.

Que Deus o ajudasse. Que Deus ajudasse Amélia. Ela aca­bara de se deitar com um monstro. Agora não era hora de aquilo acontecer! Ora, nunca haveria uma boa hora. Enquan­to seu corpo convulsionava, mudando de forma, Gabriel uivou alto de dor e frustração. Ah, Deus, o que faria a ela? Tentou freneticamente agarrar-se a um pensamento huma­no. Teria fechado a porta ao sair? Conseguiria entrar assim mesmo? O aconteceria a ele? Pior, o que aconteceria a ela?

Amélia arriscou um olhar rápido pela janela da cabana. Foi um dos muitos riscos que ela correu desde que os pri­meiros raios do amanhecer haviam iluminado o céu. Tinha acordado no meio da noite e descobriu que Gabriel havia saído. Embora soubesse que ele pretendia libertar Mora du­rante a noite, não entendeu por que ele não a acordara antes de sair. Já realizara suas tarefas de encontrar roupas para Mora vestir e empacotar quanta comida pudessem levar. Mas e se Gabriel e Mora houvessem voltado à cabana, e ela ainda estivesse dormindo?

Ora, não fazia sentido. Certamente, ele a acordaria para que fugissem.

De um jeito ou de outro, o fato de que nem Gabriel, nem Mora haviam aparecido a deixava nervosa.

Teriam sido capturados? Mortos? Não podia sequer pen­sar nisso, mas a possibilidade continuava a torturá-la. Não conseguira parar de andar de um lado para outro da cabana, durante todas aquelas horas. A certa altura, ouvira um lobo uivar a distância. Assustada, escondeu-se durante mais de uma hora no buraco debaixo da mesa, mas nenhum lobo apareceu, nenhum homem arrombou a porta. Onde estava Gabriel? E quanto tempo deveria esperar por ele, antes de tomar a iniciativa e descobrir por si mesma por que ele não voltara?

Amélia não podia esperar mais. Melhor fazer algo cons­trutivo, do que continuar se atormentando com pensamentos sobre o que podia ou não podia ter acontecido a Gabriel. Se ele havia sido capturado, teria de ajudá-lo a fugir. Como, ela não sabia. Não havia armas na cabana. O ferreiro e sua família haviam levado até mesmo as facas de cozinha, em­bora parecessem ter deixado todo o resto para trás.

Talvez pudesse formular um plano no caminho para a vila, decidiu, correndo para a porta, abrindo-a e saindo. A primeira coisa que viu foram as botas de Gabriel. Estavam do lado de fora, junto à porta, em uma posição que a impedira de vê-las da janela. No mesmo instante, sentiu os cabelos arrepiarem na nuca.

Não viu qualquer sinal de luta; do contrário, teria acre­ditado que ele fora atacado e levado assim que pisara fora da cabana. E se esse fosse o caso, as criaturas entrariam e, provavelmente, a matariam na cama. Uma centena de ce­nários atravessaram sua mente, enquanto ela se afastava cuidadosamente da segurança da cabana. Não estava longe quando o avistou, deitado no chão, nu, tremendo descontroladamente.

Um grito alarmado escapou-lhe dos lábios e ela correu até ele, abaixou-se e pousou a mão na testa dele. Gabriel ardia em febre.

— Gabriel — murmurou com voz estrangulada. Não sabia ao certo o que fazer. Sim, levá-lo para dentro, mas como? Gabriel tinha duas vezes o seu tamanho.

— Gabriel, está me ouvindo?

Ele gemeu baixinho, mas não respondeu. Ela tentou outra vez.

— Gabriel, abra os olhos. Olhe para mim.

Os cílios longos estremeceram. Ele abriu os olhos, mas estavam vermelhos e vidrados.

— Amélia?

Ela soluçou, aliviada, ao ouvi-lo falar.

— Precisamos entrar.

— O que aconteceu?

— Não sei. Esta manhã, você não estava na cabana. Não se lembra de ter saído durante a noite?

Ele franziu a testa.

— Não... sim.

Quando Gabriel voltou a fitá-la, ela viu algo além de con­fusão nos olhos dele. Viu medo.

— Você tem de ir embora — ele sussurrou. — Não está segura comigo. Não está segura aqui.

Ela ignorou as palavras. Como poderia deixá-lo? Gabriel estava doente, podia até mesmo morrer.

— Está bem, eu irei — mentiu —, mas só depois que você entrar e for para a cama.

— Precisa ir agora — ele disse, a voz mais forte. — Agora, Amélia!

— Não. Quando souber que você está a salvo, na cabana, eu irei. Prometo.

O corpo de Gabriel ainda tremia, mas ele fez um esforço para se levantar. Com a ajuda de Amélia, conseguiu pôr-se de pé. Ela segurou-o pelo braço.

— Apóie-se em mim — instruiu. — Vou ajudá-lo a andar.

Avançaram lentamente e, por sorte, chegaram à cabana antes de ele tombar. Amélia ajudou-o a se deitar.

— Agora, vá — Gabriel ordenou com voz rouca.

Agora que conseguira levá-lo até onde queria, não havia necessidade de continuar fingindo que o deixaria.

— Não vou deixá-lo — ela informou. — Não nesse estado. — Acrescentou baixinho: — Eu te amo.

Por um momento, Amélia achou que os olhos dele haviam se enchido de lágrimas, mas não pôde ter certeza, pois ele piscou e desviou o olhar.

— Não, você não me ama. Não pode me amar. Não sou quem, ou o que você pensa que sou. Por favor, vá, Amélia. Quero que encontre segurança, que tenha o futuro que me­rece. Siga para o Leste, pelos bosques. Deverá chegar a Wulfglen no máximo em dois dias. Estará segura, lá.

Amélia não sabia se teria um futuro, mas se tivesse, que­ria que Gabriel fizesse parte dele.

— Feche os olhos; descanse — murmurou. — Vai se sentir melhor, depois de dormir um pouco.

Com isso, levantou-se para apanhar água e uma toalha limpa. Tentou molhar o rosto dele, mas Gabriel agarrou-lhe o punho.

— Não vou me sentir melhor — ele rosnou. — Não, en­quanto você estiver aqui. Vá embora! Não pode ficar comigo. Seria suicídio!

Era evidente que ele delirava. Amélia não poderia ajudá-lo, e ele precisava de alguém capaz.

— Está bem — ela disse. — Irei embora, agora.

Gabriel soltou-a, e foi como se a força se esvaísse dele.

Amélia tinha de ir até a vila. Tinha de encontrar Mora e libertá-la. Juntas, encontrariam alguém capaz de ajudar Gabriel. Começou a se levantar e, então, inclinou-se sobre ele.

— Você me ama, Gabriel?

Viu o esforço que ele fez para abrir os olhos.

— Parece que sim — ele respondeu. Então, fechou os olhos.

Amélia soube que ele havia perdido a consciência. Levan­tou-se e, apressada, examinou as roupas deixadas no guar­da-roupa. Encontrou um casaco largo e um chapéu mascu­lino. As botas do ferreiro eram grandes, mas ela encontrou um par de meias de lã grossa que ajudariam. Lançou um último olhar para Gabriel, atravessou a cabana e saiu.

Sabia que direção seguir para chegar a Hempshire. Man­teve-se entre as árvores até não ter mais opção. Abaixou-se e esfregou terra nas mãos e, então, no rosto. Torceu os ca­belos em um nó e escondeu-os sob o chapéu.

Seu coração batia com tanta força que parecia prestes a saltar para fora do peito, mas ela não recuaria. Passara a vida pensando em si mesma. Agora, Gabriel precisava dela. Mora precisava dela, e ela não os decepcionaria. Somente uma mulher tão forte quanto Gabriel Wulf seria capaz de fazê-lo feliz, e ela pretendia ser essa mulher.

A vila estava praticamente deserta, mas ela avistou al­gumas pessoas e concluiu que os poucos que vagavam pelas ruas não eram camponeses normais. Eles observavam, es­peravam, contudo, esperavam por um homem alto e loiro, acompanhado por uma mulher. Amélia manteve a cabeça baixa e caminhou pela rua principal de Hempshire. Rezou para parecer-se com um órfão esfarrapado, o que não era incomum na Inglaterra. Seu coração bateu ainda mais forte quando ela se aproximou da taverna. Havia dois homens diante da entrada. Ainda olhando para o chão, ela passou por eles.

— Ei, garoto — um dos homens chamou. — O que veio fazer em Hempshire?

O coração disparado de Amélia pareceu bater em sua gar­ganta. Tentou lembrar-se dos tantos sotaques que ouvira em sua vida, entre os criados de seus pais.

— Não vim fazer nada — respondeu, disfarçando a voz e evitando olhar para os homens. — Estou só de passagem e achei que poderia comer restos de refeições, na taverna.

Ela espiou por debaixo do chapéu. Eram homens brutos. Um deles deu de ombros.

— Dê a volta e entre pelos fundos. Na cozinha, encontrará restos do nosso desjejum.

Ela assentiu e obedeceu depressa. Fora pura sorte receber permissão para entrar na taverna. Tinha certeza de que ha­via guardas lá dentro, e não fazia a menor idéia de como passaria por eles para encontrar Mora. Uma coisa de cada vez, embora o tempo fosse importante.

A porta dos fundos da taverna estava aberta, provavel­mente para dar vazão ao calor do fogão. Amélia entrou. Cha­leiras com água ferviam no fogão. Sobre uma mesa rústica, encontravam-se os restos do desjejum. Ela apanhou um bo­linho duro e enfiou na boca. Um homem corpulento entrou e ela quase engasgou.

— O que está fazendo aqui, moleque? — ele inquiriu. Engolindo o bolinho ruidosamente, Amélia abaixou a cabeça.

— Os homens lá na frente disseram que eu podia comer os restos do desjejum — respondeu. — Não tenho dinheiro e estou faminto. Estou a caminho de Londres, à procura de trabalho.

Embora não se atrevesse a erguer os olhos, sentiu que o homem a estudava.

— Quer ganhar algumas moedas antes de seguir viagem? Seria estranho recusar e, por isso, ela assentiu, o chapéu balançando na cabeça.

— Leve essas chaleiras ao primeiro quarto, junto ao topo da escada. Encha a banheira.

A sorte continuava a seu lado. Calculava que mantinham Mora prisioneira no andar superior e, agora, tinha uma des­culpa para subir e procurar pela criada. Será que conseguiria carregar as chaleiras pesadas? Tinha de conseguir; não ha­via escolha. Com certeza, não haveria outra oportunidade como aquela.

— Ao trabalho — o homem ordenou. — Poderá comer quando terminar.

Já planejando como tirar Mora da taverna, e preocupan­do-se com a possibilidade de encontrar guardas no andar superior, Amélia aproximou-se do fogão. Apanhou um pano grosso e enrolou-o em torno do cabo da chaleira. O homem resmungou e saiu da cozinha. A chaleira era grande e pesa­da, e ela teve de usar as duas mãos para carregá-la. Ao pas­sar pelo bar, viu o homem que lhe dera trabalho conversando com dois outros, cada um empunhando uma caneca, senta­dos a uma mesa rabiscada.

— Vejo que encontrou alguém para fazer o seu trabalho — um deles falou para o grandalhão, e os três caíram na risada.

Amélia continuou de cabeça baixa. Quando chegou à es­cada, perguntou-se como conseguiria subir até o topo, car­regando todo aquele peso. Tinha de conseguir. Por Gabriel. Por Mora. Concentrando-se na tarefa árdua, reuniu todas as forças e começou a subir. Os homens continuaram con­versando em voz baixa, sem lhe dar maior atenção. Eram mesmo homens? Provavelmente, não. Sentiu um calafrio chegar aos ossos diante da idéia de estar na companhia de tais criaturas. Assustou-a mais ainda pensar em como liber­tar Mora, sem se tornar ela mesma prisioneira.

A escada não era tão alta, mas também não era fácil.

Finalmente, ela chegou ao topo. Sabia que havia cinco quartos, pois os vira em sua breve estada ali. Todas as portas estavam fechadas, exceto a do primeiro quarto, onde ela de­veria encher a banheira. Amélia aproximou-se com cuidado, lutando com o peso da chaleira fumegante.

À primeira vista, não havia ninguém no quarto. Ela en­trou. Lá dentro, junto à janela que dava para a rua, estava Mora. Amélia ficou tão feliz por vê-la que quase gritou seu nome. Mordeu o lábio para manter silêncio e depositou a chaleira no chão.

— Encha a banheira, rapaz. É para isso que está aqui!

Amélia estranhou o tom autoritário de Mora, mas estava tão feliz por tê-la encontrado, que nem questionou sua ati­tude. E, olhando bem, o robe que ela usava pertencia ao seu enxoval. Como ela o conseguira? Provavelmente o tomara das criaturas que haviam pilhado Collingsworth antes de serem forçadas a fugir.

— Mora, vim buscá-la.

A jovem olhou em sua direção.

— Amélia...

— Shhh. Há três deles na sala comum, e dois na porta da frente. Não sei como vamos passar por eles.

— Onde está Gabriel? — indagou a criada.

— Doente. Muito doente e precisa de um médico. Vim ajudá-la a fugir, e depois, juntas, talvez possamos conseguir ajuda. Caso contrário, receio que ele morra. A perna ainda está infeccionada, e agora ele tem febre.

— Onde o deixou?

— Em uma cabana na periferia do vilarejo. É o nosso esconderijo. O ferreiro vivia lá com a família.

— E você ficou... por que ele não podia prosseguir?

— Não! Fiquei porque queria vir buscá-la! Gabriel aceitou me ajudar a procurar e...

— Eu disse a eles que você ficaria por mim. Eles não acre­ditaram.

— Mora, não temos tempo para conversar. Temos de des­cobrir um jeito de escapar e buscar ajuda para Gabriel.

De repente, a criada se colocou na frente da porta.

— Eu posso sair quando quiser. É você quem deve ficar.

— O que está dizendo?

Os olhos de Mora tinham um brilho estranho.

— Oh, meu Deus — Amélia gemeu desesperada. — Você é uma deles!

A criada se encolheu como se o medo da outra a ofendesse.

— Não olhe para mim desse jeito! Como se eu não fosse humana. Como se me julgasse repulsiva.

— Mentiu para nós... Por quê?

— Desde menina, sempre soube que um dia teria um dever a cumprir. Sou parte de um plano, uma trama para a me­lhoria de meu povo. Tenho de fazer o que é esperado de mim.

— Diz que é seu dever enganar e matar aqueles que a ajudam? Seus amigos?

— Nosso plano não inclui assassinato. Ou melhor, não incluía, até Gabriel Wulf interferir. Até Vincent não ser ca­paz de cumprir a parte dele, como deveria fazer. Para alguns, a besta é mais forte que o homem. Vincent não controlava. Era controlado.

— E Robert? Vocês o mataram!

— Lorde Collingsworth morreria de qualquer jeito. Um dos nossos atuava como médico em Londres, e seu finado marido o visitou pouco antes do casamento. Sabíamos que ele tinha o coração fraco. Era uma doença de família. Não acreditávamos nem que ele sobreviveria à noite de núpcias. Então, assumimos nossas posições. Fomos contratados por lorde Collingsworth, e esperamos que ele voltasse da noite de núpcias. Devíamos ter esperado até que ele morresse na­turalmente, mas Vincent não foi capaz de aguardar. Ele a queria. Por isso tomou a situação nas próprias mãos.

— Como pôde se aliar a essas criaturas, Mora? Assassi­nos? Mataram meu marido de medo! De susto!

— Sua vida sempre foi fácil, Amélia. Não sabe o que é ser caçada por esporte. Morrer de fome porque a floresta não pode mais alimentar seu povo. Houve um tempo em que os wargs se contentaram com a vida entre as criaturas da selva, mas não podemos mais sobreviver escondidos. Agora usamos nossas habilidades para nos infiltramos nas altas esferas da sociedade. Obtemos poder para os de nossa raça. Um dia, dominaremos o mundo.

Seria possível? Vincent mudara de aparência para ficar parecido com Robert. Seria possível que todos os seres hu­manos estivessem sujeitos a esse pérfido roubo de identida­de? Mora mostrava de repente características que ela não notara antes. Era educada, culta...

— Por isso não nos atacaram na floresta — Amélia en­tendeu. — Por você. Sabiam que você não permitiria que escapássemos.

Mora sentou-se na cama com a altivez de uma rainha, retirando de uma valise alguns objetos. Amélia reconheceu sua valise, suas coisas.

— Disse a eles que precisava de tempo com você, Amélia. Queria aprender seus hábitos, suas expressões, seu jeito de falar. Jamais planejamos que eu tomaria seu lugar. Se Vincent houvesse cumprido seu dever... Mas ele não cum­priu, e tudo teve de ser decidido rapidamente. Fui informa­da sobre a mudança.

— E eu a chamei de amiga...

— Tenho o meu dever, como você já teve o seu em sua sociedade. Você me chamou de amiga, mas, se houvesse re­cuperado segurança e posição, teria esquecido rapidamente esse elo forjado entre nós. Eu voltaria a ser uma criada, mais nada.

— Você não me conhece. Eu não me conhecia, até começar essa jornada. Ninguém lhe ensinou sobre o amor? Compai­xão? Sem eles, jamais poderá ser humana.

— Aprendi tudo que é necessário para sobreviver. Conhe­ço meu dever. A causa de todos acima da necessidade do indivíduo. A vitória a qualquer preço.

— E agora seu dever é me matar. Ocupar meu lugar na sociedade. As pessoas que me conhecem e amam jamais se deixarão enganar por você.

— Acha que Gabriel Wulf a conhece? E a ama? Eu já o enganei uma vez. Em Collingsworth.

— Você o enganou? Se passou por mim, simulando uma crise de sonambulismo, não foi? E ele não me conhecia. Mes­mo assim, disse que meu beijo era diferente do que havíamos trocado naquela tarde. Aparentemente, você é fria, destituí­da de paixão. Agora que me beijou de verdade, Gabriel não se deixará enganar por seus lábios gelados.

— Não? Veremos! Se ele ainda estiver vivo...

— O que vai fazer com ele?

— Nada, espero. Gabriel morrerá pela infecção. Vai ser mais fácil para todos.

— Um assassinato a menos para encobrir.

Mora encolheu os ombros e abriu a porta.

— O cocheiro e o lacaio de Collingsworth nunca serão encontrados. O jovem lorde agora descansa em paz no campo de sua propriedade, onde morreu de um ataque cardíaco. Assustada com a demora de meu senhor, peguei um cavalo e tentei chegar em Wulfglen, onde encontraria minha amiga Rosalind e o marido dela. Quanto a Gabriel Wulf, será ter­rível descobrir que ele morreu por conta de uma infecção em um vilarejo muito próximo da casa dele, mas jamais conheci realmente o homem, por isso não terei de fingir que choro por sua morte.

Era isso. Mora roubaria sua vida.

— Não vai conseguir — Amélia disparou.

— Não?

Diante de seus olhos, Mora começou a mudar de forma. Os traços se transformaram, e de repente Amélia teve a im­pressão de olhar para um espelho.

— Então? Ainda acha que não vou enganar ninguém? Até a voz era dela!

— Infelizmente, ainda não sei o suficiente sobre você para me sentir confortável em seu lugar, lady Collingsworth. E eles a deixarão viva por mais algum tempo por causa disso. Vou verificar se Gabriel está vivo. Se estiver, verei se ele consegue perceber que não sou você. Depois voltarei para continuarmos nossa conversa. Você ainda tem muitas infor­mações a me dar.

— Não perca seu tempo.

— Quer mandar algum recado ao pobre Gabriel? Alguma coisa que possa tornar sua passagem mais fácil?

Furiosa, Amélia a atacou.

Mora a arremessou sobre a cama, recuperou sua verda­deira forma e gritou:

— Homens! A mulher que estávamos procurando está aqui! Venham guardá-la!

Ela saiu e bateu a porta do quarto.

Amélia estava aturdida. Não só se deixara capturar, como havia revelado o paradeiro de Gabriel. Eles o deixariam mor­rer, ou o matariam... e a culpa seria dela. O que ia fazer? Como poderia salvá-lo?

Tinha de fazer uma coisa... Mas não lembrava...

Gabriel se moveu com esforço e abriu os olhos. Havia um rosto diante dele.

Amélia!

Haviam feito amor. Ele fugira, mas não conseguia lem­brar por quê. E era importante. A dor. A estranha sensação. A angústia que o obrigara a sair, deixar o esconderijo onde ela dormia. Suas mãos se deformando como num pesadelo. Pêlos brotando de sua pele. Presas perfurando sua língua.

Depois a escuridão. Não lembrava de mais nada. De ma­nhã, Amélia o encontrara fora da cabana, nu e tremendo, queimando de febre. Ela o havia ajudado a entrar, e ele a mandara embora. O lobo finalmente despertara. A maldição se cumpria, e Amélia não estava segura em sua companhia.

— Eu disse que devia ficar longe de mim!

— Eu sei, mas não pude. Como poderia partir e deixá-lo aqui assim, Gabriel?

— Não está segura aqui.

— As criaturas não sabem onde estamos. Ficaram perto do vilarejo, caso voltemos para buscar Mora. Estarei segura aqui por um tempo.

Amélia não entendia, mas era tão ameaçador para ela quanto para as criaturas que os perseguiam. Se ela ficasse, e se a infecção não o matasse antes do anoitecer, ela veria a transformação. Saberia de tudo. E ficaria apavorada.

— Vá embora. Se caminhar depressa, em dois dias che­gará em Wulfglen. Não pare. Volte trazendo ajuda...

A mão fria pousou sobre sua testa.

— Estará morto quando eu voltar. Não vou sair daqui, e você não pode me obrigar.

— Mora... Você precisa ir salvá-la! Eles disseram que só esperariam dois dias, e então a fariam desaparecer.

— Não pode ajudar Mora. Pense em você. Ela vai ter de se salvar sozinha.

Por que Amélia estava agindo de maneira estranha? Agora que a conhecia, sabia que ela não era aquela mulher mimada e egoísta que havia esperado encontrar em Collingsworth.

— Qual é o problema com você, Amélia? Sei que gosta muito de Mora. Jamais a deixaria entregue à própria sorte.

— Porém me importo mais com você. Por que o amo.

— Já tivemos essa conversa. Você não deve me amar, porque não sou digno de você.

— Por quê? Por causa de sua família? Por causa dos ru­mores sobre a insanidade que acaba se abatendo sobre todos os Wulf? Por que era amigo de Collingsworth?

Ele a encarou e viu uma marca vermelha em sua face.

— O que aconteceu com seu rosto? Como se machucou?

— Não sei. — Ela agitou-se, lembrando de como Amélia a atingira no quarto da taverna com as unhas afiadas. — Mas um arranhão não é nada diante da iminência de sua morte.

Gabriel sabia que estava morrendo. Mas Amélia jamais admitiria tal coisa. Seria o mesmo que admitir uma derrota. Havia algo de estranho nisso tudo.

— Que horas são? — ele perguntou.

— Tarde. Quase noite.

Ela afagou-lhe o rosto, e Gabriel sentiu as calosidades que não existiam nas mãos de Amélia.

— Feche os olhos. Vá para um lugar onde não há dor. Onde não há sofrimento. Onde só existe...

Ele a agarrou pelo pulso. Mora deixou escapar um grito assustado.

— Quem é você?

Por um segundo, a palidez que tingiu seu rosto confirmou as suspeitas de Gabriel.

— Você sabe quem sou eu. Está delirando de febre.

— Não sei quem você é, mas sei que não é Amélia. Está usando o perfume dela, mas ela não trouxe nada, nenhuma bagagem. E o cheiro de sua pele não é o dela. Conheço esse cheiro. Você nos enganou, Mora!

— Solte-me — ela exigiu, livrando-se com força física sur­preendente. — Que homem pode identificar uma pessoa pelo cheiro? Ninguém mais pode dizer que não sou lady Amélia Sinclair Collingsworth, e o único que conhece a verdade logo estará morto!

— O que fez com ela?

— Amélia está viva, porque ainda preciso dela. Tenho de saber tudo sobre seu passado, pois só assim poderei ocupar seu lugar na sociedade.

— Por quê? — ele perguntou confuso, ardendo em febre e com muita dor. — Qual é o propósito desse seu plano?

— Não é meu plano. Sou apenas um instrumento dos wargs, como somos todos nós, que podemos mudar de forma. Somos impostores. E nosso dever na vida é servir. Por in­termédio de uns poucos, muitos serão beneficiados.

— O que você é, afinal? Uma assassina fria, eu sei, mas... O que mais? Que tipo de criatura é você?

— Uma humana, na maior parte do tempo. E não sou uma assassina. Você vai morrer pela infecção. Dizem que os wargs eram favorecidos pelos antigos deuses. Eles nos deram poderes para guardarmos a humanidade... mas a humanidade se voltou contra nós. Fomos caçados, mortos, e logo apren­demos a viver nas sombras.

— E por que não ficam lá? Diz que não é uma assassina, mas sabe que Amélia morrerá por sua causa, para lhe dar as informações de que precisa para ocupar o lugar dela!

— Lamento que ela tenha de ser sacrificada, mas nossa sobrevivência é mais importante. Quer saber por que deixa­mos a vida nas sombras? Por que não podemos mais sobre­viver na floresta. Não há alimento suficiente. Não há caça, somos caçados, procurados como troféus... Somos mais fortes que o homem. E justo que o comando seja nosso.

Gabriel não conseguia entender tudo que ela dizia. Devia ser a febre, a fraqueza, ou a estranheza do assunto.

— Em Collingsworth, por que não os deixou entrar? Por que toda aquela farsa?

Mora retomou sua real aparência.

— Por que eu precisava conquistar a confiança de Amélia, mesmo que ela fosse capturada. Já disse que precisava de tempo para estudá-la, conhecê-la. Eu os convenci de que deixá-la fugir seria mais favorável à nossa causa. Eu teria o tempo necessário, embora ainda haja muito para apren­der sobre ela. E chega de conversa. Você não devia estar morrendo?

Gabriel percebeu que não se sentia mais tão fraco quanto antes. Ainda estava febril, mas já não ardia. O lobo confe­ria-lhe força? Devia ser isso, porque havia conseguido fazer amor com Amélia, mesmo estando muito doente. O que mais o lobo poderia fazer por ele?

— Há uma coisa que sua raça não pode planejar — ele disse a Mora.

— O que é?

— Alguns de nós nos negamos a simplesmente deitar e esperar pela morte. — A dor se aproximava, e dessa vez Gabriel a deixou vir sem resistir. Como homem, não poderia salvar Amélia. Mas, como lobo, talvez ainda tivesse uma chance.

 

Amélia estava encurralada. Os homens que antes a ha­viam confundido com um menino tinham sido chama­dos a prestar contas por Mora, e agora dois se mantinham posicionados do lado de fora da porta, um ao pé da escada, e dois no exterior. Eles não a deixariam escapar. Mora a havia forçado a entregar suas roupas e, estranho, oferecera o luxo de um banho que ela mesma ordenara. Ela também determinara que lhe levasse comida. Amélia se sentia como um ganso sendo engordado para a ceia de Natal.

Havia desfrutado do prazer do banho, em parte porque pretendia aproveitar esse tempo para pensar em sua situa­ção, e em como sairia dela. Na valise que estava em poder de Mora, ela havia encontrado roupas. Suas roupas. Seu perfume. Tudo de que Mora poderia precisar para conven­cer aqueles em Wulfglen de que ela era a perturbada lady Collingsworth.

Rosalind veria além do disfarce de Mora? Eram amigas o bastante para que a esposa de Armond percebesse que a mulher que se apresentava como Amélia era uma impostora? E por que se permitia ter esperanças? Se Gabriel não es­tivesse doente, possivelmente morrendo, ela nunca deixaria de acreditar na possibilidade de um resgate. Mas ele perecia, e pensar nele à mercê de Mora quase a ensandecia de preo­cupação e raiva. Sentia-se impotente quando ele mais pre­cisava de sua força. Nada em sua vida a preparara para o que havia acontecido em Collingsworth em sua noite de núpcias, ou para o que acontecera em cada dia depois disso.

Sentia medo dos homens que a vigiavam, porque sabia que eram mais do que simples homens. Entretanto, estava mais amedrontada por Gabriel. Mora havia dito que a infecção o mataria, mas e se ela não fosse paciente o bastante para esperar que causas naturais o matassem?

Precisava fazer alguma coisa. Só não sabia o quê.

Olhando em volta, ela tentou encontrar alguma coisa que pudesse utilizar como arma. O aposento era mobiliado com simplicidade. A banheira ainda ocupava o espaço central, a água agora estava fria. Havia uma vasilha para despejar água limpa na bacia. Um castiçal. Amélia o pegou. Não era pesado o bastante para levar um homem à inconsciência.

Ela olhou novamente para sua valise. Havia retirado dela um vestido simples para usar depois do banho. Francamen­te, preferia as roupas masculinas. Eram muito mais fáceis de manobrar. Pela primeira vez desde que escapara dessa mesma taverna, usava roupas íntimas outra vez. Mantinha as botas sólidas, sabendo que, se conseguisse fugir, elas se­riam mais úteis do que um par de babuches como os que tinha na valise.

Pegou o frasco de perfume, removeu a tampa e aspirou a fragrância. Era mais forte do que ela recordava, e seus olhos se encheram de lágrimas. Acostumara-se a viver sem ele. Já estava devolvendo a embalagem à valise, quando uma idéia lhe ocorreu. Ela olhou novamente para a vasilha e a bacia. Recuperando o frasco de perfume, aproximou-se daqueles itens. A vasilha estava cheia de água fresca. Amélia despejou um pouco na bacia; depois, removeu a tampa do frasco de perfume e despejou todo o conteúdo na água. O cheiro era tão forte que seus olhos lacrimejaram, novamente.

Ela levou a vasilha para perto da banheira e ali a esvaziou. E agora, o que fazer? Tinha de atrair os vigias para dentro do quarto. Segurando a embalagem vazia de perfume, ela a arremessou com força contra a porta. O vidro se partiu em centenas de pedaços. Rápida, ela correu para perto da porta, abaixou-se e pegou um dos fragmentos maiores. Quase não teve tempo para recuperar sua posição diante da bacia de lavatório, quando a porta foi aberta.

Um dos homens entrou, suas botas esmagando o vidro estilhaçado.

— O que está fazendo?

Aproximando o caco de vidro de um punho, Amélia de­clarou:

— Não tomarei parte de seus planos. Prefiro dar cabo de minha vida antes.

O homem arregalou os olhos. Ele gritou pelo companheiro e se lançou sobre Amélia. Ágil, ela soltou o vidro, agarrou a bacia, e jogou todo o conteúdo do recipiente no rosto de seu atacante. O outro homem já tentava agarrá-la, mas ela o atingiu no rosto com a bacia vazia. Ele cambaleou e caiu. O outro tinha as mãos sobre os olhos, que esfregava com de­sespero.

— Deus, isso arde! — ele gritou, e Amélia soube que só dispunha de um momento antes que ambos se recuperassem. Ela saltou por cima do vigia caído e saiu correndo, passou pela porta, atravessou o corredor e desceu a escada. Movi­mentos silenciosos eram impossíveis para alguém que cal­çava aquelas pesadas botas. O homem cujo posto era a sala comum ergueu a cabeça, mas não se moveu da mesa onde estava sentado, apesar da evidente surpresa em seu rosto.

— Ei! — ele gritou depois de um instante, recuperando-se e pondo-se em pé.

Amélia tinha a vantagem da surpresa. Além do mais, já estava em movimento, e já havia decidido tentar fugir pela porta dos fundos. Anteriormente, ela havia permanecido aberta e sem guardas. Esperava que nada houvesse mudado. A área da cozinha era muito quente. Uma panela fervia sobre a chama do fogo. Ela a agarrou, sem se importar com a pos­sibilidade de queimar as mãos. Assim que o homem que guardava o salão passou pela porta, ela arremessou o con­teúdo fumegante contra seu rosto. O homem gritou de dor e, por precaução, ao vê-lo se dobrar ao meio, Amélia jogou também a panela em sua direção. Finalmente, ela alcançou a porta dos fundos, que, de fato, continuava aberta. Um se­gundo mais tarde estava do lado de fora, correndo pela pró­pria vida e pela de Gabriel.

 

A dor o pegou de surpresa. Veio tão depressa que ele não teve tempo para preparar-se. Cruzando os braços sobre o abdômen ele se curvou. Quando ergueu os olhos, ainda ge­mendo de dor, Mora o observava. Não havia vitória em seus olhos, mas uma triste resignação. Ela pensava estar diante de uma criatura às portas da morte.

— Renda-se — disse. — Deixe a morte levá-lo rapida­mente.

A mudança ocorreria mais depressa se acatasse sua su­gestão? Deveria se render, em vez de lutar? Gabriel fechou os olhos e tentou invocar o lobo dentro dele. A maldição que pairava sobre sua cabeça e dera forma à sua vida roubara seus sonhos e seu futuro. Como odiava a besta que espreitava sob sua pele! Mas dessa vez devia ceder. Devia se curvar.

Presas cresciam em sua boca. Ele as sentiu com a língua. Olhando para Mora através da névoa que ia invadindo seu campo de visão, ele percebeu o momento em que ela com­preendeu que não testemunhava sua morte... mas a trans­formação. Os olhos dobraram de tamanho. Ela recuou um passo, um gesto que ele julgava ser inconsciente.

Os olhos dele queimavam dentro das órbitas. Garras ras­garam a pele de seus dedos, provocando uma dor que quase o fez gritar. Em vez disso, ele as exibiu.

— Não contava com isto não é? — perguntou com voz rouca, quase um grunhido.

— É um de nós... — Mora murmurou chocada.

— Nunca! Sou um amaldiçoado! Não escolho me transfor­mar nesse monstro que vive dentro de mim. Mas, por Amélia, pela vida dela, aceito a transformação com alegria.

A dor era dilacerante, mas ele mantinha o foco em Mora e no que ela pretendia fazer, agora que sabia que não estava lidando com um moribundo, mas com uma criatura que não era muito diferente dela. Contudo, ela não fez o que Gabriel esperava. Não mudou de forma para tornar-se uma besta. Ela fugiu A dor em sua perna era nada comparada a dor da transformação, mas ele se forçou a deixar a cama. Precisava resgatar Amélia, mesmo que fosse esse o último ato de sua vida.

Amélia corria. Precisava encontrar Gabriel e protegê-lo de Mora, se já não fosse tarde demais.

Gritos soaram atrás dela. O alarme havia sido dado. Ela correu ainda mais, tentando chegar à cabana. Sabia que as criaturas agora tinham consciência de que aquele era o es­conderijo onde ela e Gabriel se protegiam, mas precisava salvá-lo. Não sabia como conseguiria sem uma arma, mas tinha de tentar.

Correndo pelo bosque, quase foi ao encontro de uma figura sombria Por pouco não colidiu com um lobo. O animal he­sitou, olhando para trás, para ela, e Amélia sentiu o coração bater na garganta. O bicho exibiu as presas e rosnou baixo. Em um tempo de abençoada ignorância, ela teria pensado tratar-se apenas de um lobo, mas agora sabia que as coisas não eram tão simples. Tinha a sensação de que sabia quem era esse lobo em particular.

— Mora?

O lobo avançou e a jogou no chão, rosnando bem perto de seu rosto. A detestável criatura a mataria. O hálito do animal não lembrava carne crua, como o do homem que a atacara em Collingsworth. Era estranho, mas esse ser tinha o cheiro do perfume que um dia ela havia usado.

Mora seria capaz de raciocinar na forma de lobo? Se podia mudar de forma quando e como desejava, então, ela devia preservar a consciência, mesmo quando exibia sua porção animal. Só havia uma coisa a fazer: precisava apelar para a pessoa que a criada havia sido um dia.

— Deixe-me ir buscá-lo — ela pediu. — Por favor. Mora. Sei que não quer realmente fazer mal a nenhum de nos. Seja lá o que for, você ainda é humana.

O lobo rosnou novamente, aproximando as presas do pes­coço de Amélia. Ela sentiu sua respiração, a saliva úmida que pingava de sua boca.

— Fomos amigas — insistiu. — Eu gostava de você. Con­fiava em você.

Não sabia se o lobo entendia suas palavras, mas Mora certamente podia sentir seu medo. Os animais registravam essa emoção melhor do que os humanos. O lobo a estudou por mais um momento; depois, saiu de cima dela. Amélia temia se mover. Temia que Mora pudesse reconsiderar. De repente o animal olhou para cima; um segundo depois, ele desapareceu como um sopro de fumaça na escuridão.

Amélia levantou-se, pressionou o peito onde o coração ba­tia em velocidade frenética, e voltou a correr para a cabana. Havia dado alguns poucos passos, quando uma figura emer­giu da escuridão. Ela não conseguiu sufocar o grito.

— Amélia?

— Gabriel! — Sua voz soou aliviada. O primeiro impulso foi correr para ele, atirar-se em seus braços. Nunca antes se sentira tão feliz por ver alguém.

— Não — ele a deteve ao interpretar sua intenção. — Corra, Amélia. E continue correndo, independentemente do que ouvir ou pensar ver.

A voz dele soava estranha, diferente. E como ele havia conseguido sair da cama, caminhar pela floresta?

— Como...?

— Vá agora!

— Não sem você.

— Estarei logo atrás. Faça o que estou dizendo!

Queria discutir, argumentar, insistir. Não fizera tudo aquilo para deixá-lo agora. Mas não havia tempo a perder, e sabia que ele também tinha essa consciência. Os outros os alcançariam a qualquer momento, como homens, ou como bestas.

— Prometa que vai me seguir — ela exigiu.

— Vá!

Amélia segurou a barra da saia e correu. Sabia que não podia voltar à cabana. Lá não estariam mais em segurança. Esperava estar correndo para o Leste. Um olhar por cima do ombro, e ela se certificou de que a sombra a seguia. Como ele conseguia acompanhá-la era algo que ainda não enten­dia, nem havia tempo para considerar a questão. Só havia tempo para correr. Estava escuro, mas a lua cheia no céu iluminava o caminho, embora as árvores projetassem som­bras que exigiam grande cuidado.

Atrás dela, Amélia ouvia o som dos lobos. Estavam muito perto. Olhou para trás novamente e não viu Gabriel. Teria sido rápida demais para ele? Ela parou, enchendo os pulmões de ar. De repente, o som de animais em luta ecoou na noite. Ou seriam os lobos atacando Gabriel?

Assustada, jogou-se no chão, tentando desesperadamente encontrar alguma coi­sa que pudesse servir como arma. A única coisa disponível era um grande galho. Empunhando-o, ela se levantou para refazer os próprios passos.

De repente um lobo surgiu no caminho atrás dela. Um lobo grande. Amélia correu. Sabia que o galho não serviria para espantar a besta. Também duvidava de que pudesse ser mais veloz de que o animal, mas continuava correndo, esperando sentir o impacto do corpo do lobo sobre suas costas a qualquer momento.

Olhou para trás e constatou que a criatura ainda estava lá. Mas não parecia persegui-la. Era como se ele a acompa­nhasse, apenas, e o animal estava mancando.

Ela continuou correndo, saltando sobre galhos caídos, tropeçando, caindo, levantando-se e correndo novamente.

Tinha um ferimento em um lado do corpo e respirava com dificuldade. Algum tempo depois, as pernas começaram a ficar mais fracas, trêmulas. Precisava parar e recuperar o fôlego, mas tinha medo. Aonde poderia ir sem ser seguida por um lobo? E se entrasse num esconderijo, o lobo iria atrás dela? Onde estava Gabriel? Tinha de parar pelo menos por tempo suficiente para ele alcançá-la. Juntos, talvez pudes­sem proteger um ao outro, unir forças contra a besta que a ameaçava.

Amélia não subia em uma árvore havia anos, desde que, ainda menina, tentara conquistar a atenção do pai e superar o irmão mais novo. Pensava que, se pudesse correr, atirar e subir em árvores tão bem quanto um menino, talvez o pai a considerasse digna de alguma atenção. Mais tarde havia compreendido que ele a amava, sim, que a amava muito; mas era um homem ocupado.

Ele cumprira seu dever. A mãe dela cumprira seu dever, e ambos esperavam que ela também cumprisse o seu. "De­ver", porém, era uma palavra fria e desprovida de amor. O amor era quente e real, e seus pais, se ela sobrevivesse a essa jornada, não ficariam nada satisfeitos com sua ligação com Gabriel Wulf. E planejava manter-se próxima a ele. E esperava que fosse para sempre.

O simples fato de estar pensando nisso era prova de que havia enlouquecido desde que se casara e enviuvara. Talvez precisasse descansar do constante esforço de fugir de sua vida. Com o vestido ainda erguido, escolheu uma árvore mui­to alta e começou a subir nela. Não havia subido muito quan­do um lobo surgiu no chão, embaixo da árvore. O medo baniu todos os outros pensamentos, e ela subiu mais alto e mais depressa, encolhendo-se sobre um galho e olhando para bai­xo, esperando que o lobo desistisse de persegui-la.

A besta simplesmente se sentou, olhando para ela. Amélia questionou a propriedade da idéia de subir naquela árvore. Em algum momento teria de descer. Tirando proveito da posição de vantagem, ela olhou em volta, varrendo o bosque, mas não viu nenhum sinal de Gabriel. O que teria acontecido com ele? Havia sido capturado? Queria encontrá-lo e desco­brir, mas estava em uma situação delicada também.

Depois de alguns momentos olhando para cima, o lobo se levantou e desapareceu mancando noite adentro. Amélia ain­da não se permitia suspirar aliviada. Não se sentia segura, e duvidava de que algum dia voltaria a ter essa confortante sensação. Exausta, ela apoiou as costas no tronco da árvore, deixando as pernas caírem cada uma de um lado do galho. Fechou os olhos por um momento. Só por um momento, e depois encontraria coragem para descer e ir procurar por Gabriel.

Amélia acordou sobressaltada. Tentou se sentar mais ereta, mas o chão parecia muito distante. Teria caído, não fosse o instinto que a fez agarrar-se ao galho. A manhã chegara, e mais uma vez se surpreendia por ainda estar viva para vê-la. Ela olhou para baixo. Nem sinal de lobo. Estava dolo­rida por ter dormido em cima da árvore, mas podia ser pior. Podia ser melhor, também. Gabriel podia estar com ela, e a ausência dele foi o único motivo para que ela descesse da árvore e enfrentasse o mundo novamente.

No chão, ela pensou que já nem sabia mais se encontraria Gabriel ou se chegaria em Wulfglen. Já nem sabia se esse lugar existia de fato. Um lugar onde as pessoas eram nor­mais e cuidavam de suas vidas sem saber que homens e mulheres podiam se transformar em animais e até em outras pessoas. Talvez nunca mais pudesse voltar a esse mundo e ser quem fora antes, quando não sabia o que sabia agora.

Um barulho chamou sua atenção. Ela se virou assustada, pronta para correr, mas, antes de fugir, o viu saindo do meio das árvores e quase caiu sob o peso das emoções. Ele se aproximava mancando, os olhos verdes se misturando à flo­resta. Gabriel precisava fazer a barba, e suas roupas esta­vam rasgadas em vários lugares. Ainda assim, ele conseguia manter aquela imagem de príncipe dos seus sonhos.

— Gabriel — ela gemeu aliviada, correndo na direção dele e se atirando em seus braços. — Pensei que tivesse sido cap­turado, ou pior! — As lágrimas lavavam seu rosto.

— Graças a Deus você está bem — ele sussurrou com idêntico alívio.

— O que aconteceu com você? Aonde foi? Pensei que es­tivesse me seguindo, mas de repente o perdi, e havia um lobo atrás de mim. Subi na árvore para escapar dele.

— O lobo tentou machucar você? Ela o encarou.

— Não. E isso é estranho. Ele ficou me olhando, depois... se afastou mancando e sumiu na escuridão.

— Precisamos ir. Eles ainda estão atrás de nós. E não estamos tão longe de Wulfglen. Eles sabem que precisam nos deter antes de alcançarmos a propriedade. Temos de ir, Amélia. Agora!

O momento de idílio chegava ao fim. O inferno esperava por eles, e Amélia se sentia capaz de enfrentá-lo, desde que Gabriel estivesse a seu lado. Ele segurou sua mão e, juntos, começaram a caminhar para o Leste.

— Mora o encontrou? — ela perguntou. — Tentou matar você?

— Sabe o que ela é?

— Sim, ela é uma deles. Por causa dela não fomos atacados antes. Mora precisava de tempo comigo, para estudar-me. Planeja tomar meu lugar na sociedade.

— Bem, ela não está conosco agora, e isso significa que eles não vão mais nos poupar. Se nos atacarem, quero que corra e não olhe para trás.

— Gabriel, sei que devo seguir suas ordens enquanto es­tivermos na floresta, mas não vou deixá-lo sozinho outra vez. Não devia tê-lo abandonado ontem à noite. Teria morrido se algo houvesse acontecido, se...

— Teria morrido se não fizesse exatamente o que fez — ele a interrompeu. — Sei que é corajosa, Amélia. Também sei que é inteligente. Não quero que perca a vida por mim.

— Você perderia a sua por mim.

— Minha vida já está perdida.

O que ele estava dizendo? Então não compartilhava de seus sonhos e esperanças? Não acreditava que encontrariam segurança e passariam o resto da vida juntos, mais fortes depois de tudo que sabiam e haviam enfrentado?

— Você não me ama — ela deduziu, tomada por uma dor aguda e repentina.

— Esse não é um bom momento — ele respondeu, seguin­do em frente sem se deter e puxando-a pela mão.

Amélia se soltou.

— E quando será uma boa hora, Gabriel? Não sabemos nem se veremos o amanhã! Se não for agora, quando?

Por um momento os olhos dele se tornaram mais suaves. Ele engoliu em seco. Depois desviou o olhar e endureceu a expressão.

—Vamos. Espero chegar em Wulfglen antes do anoitecer.

Amélia sabia que insistir só provaria o quanto era tola e mimada. Ela o seguiu, sem permitir que ele segurasse sua mão novamente. E se conseguissem chegar em Wulfglen? Ele a mandaria de volta a Londres, para a sociedade, ou esperaria que fingisse que nunca haviam feito amor? Que nunca haviam vivido juntos aquela aventura? Não podia mais voltar àquela vida. Queria ficar com ele. Queria usar calça, colocar botas e cavalgar com esse homem. Queria conhecê-lo, porque, de repente, percebia que não o sabia realmente.

— Fale-me de suas esperanças e seus sonhos — ela pediu. Se ia morrer, ao menos aproveitaria seus últimos momentos para saber mais sobre ele.

— Amélia, andaremos mais depressa se não desviarmos energia para essa conversa.

— Preciso saber. Não vai fazer mal algum se você...

— Não tenho sonhos nem esperanças. Desista, Amélia. Ela não pretendia desistir.

— Por que não? Como isso é possível? Todos têm sonhos e esperanças.

Gabriel parou e virou-se para encará-la.

— Eu não tenho, porque nunca me permiti tê-los. Isso tudo é perda de tempo, um passatempo inútil a que se en­tregam pessoas sem nada melhor para fazer. Pessoas que não conseguem aceitar a vida como ela é. Para os que não aceitam o que são.

O tom sombrio das palavras a assustou.

— Seja claro, por favor. Esse sentimento não é normal, e estou certa de que sabe disso.

— Há muitas coisas em mim que não são normais. E você deve saber disso.

Sim, sabia. Além de ser filho de uma família excluída pela sociedade, de viver escondido em uma propriedade na área rural, o que o fazia diferente dos homens com quem ela se relacionava normalmente, ele também tinha estranhas ha­bilidades. Podia ouvir coisas que ela não ouvia, sentir cheiros que ela não captava, e emanava aquele aroma inebriante que a atraía... que atraía qualquer mulher, certamente.

Os olhos dele não eram sempre normais, especialmente à noite. Amélia não o amava menos por essas coisas, nem considerava esses detalhes razão suficiente para Gabriel se retirar da sociedade e desistir de esperanças e sonhos.

— Já lhe disse que gosto de pessoas que não são como todas as outras — ela disse. — Mas todos precisam de sonhos e esperanças que sirvam de sustentação nos momentos di­fíceis da vida.

Gabriel olhou para trás enquanto continuava andando.

— Teve muitos momentos difíceis até agora, Amélia?

— Não muitos.

— E suponho que tenha se casado com Robert porque ele era diferente. Francamente, Amélia, era o homem mais co­mum que poderia ter encontrado!

Era verdade. Não havia nada de único ou interessante em Robert. Mesmo assim, não era polido falar mal dos mortos, e esse morto havia sido seu marido... por um dia.

— Vincent o matou — ela disse. — As criaturas têm um médico entre elas em Londres. Ele sabia que o coração de Robert era fraco. Deixaram seu corpo no campo para tornar crível uma história que Mora pretendia criar para recitar quando aparecesse em Wulfglen perturbada com o desapa­recimento do marido. Eles haviam planejado tudo, Gabriel.

Ele parou e passou a mão pelo cabelo antes de se virar.

— Peço desculpas. Não devia ter dito aquilo sobre ele. Robert era um bom homem. E foi um bom amigo no passado. Também não devia ter falado daquela maneira sobre você. Tem enfrentado mais coisas do que a maioria dos homens poderia suportar desde sua noite de núpcias, e em nenhum momento perdeu a coragem ou pensou em desistir. Você é única, Amélia, e não devia estar aqui. Devia estar em um salão de Londres encantando a todos como me encanta.

Ele a julgava encantadora? Bem, já era alguma coisa. Pre­feria que ele a amasse, como ela o amava. Talvez tivesse de resignar-se finalmente, aceitar que nem tudo podia ser como ela desejava. Certamente não desejava sua atual situação.

— Temos de continuar — Gabriel anunciou, segurando a mão dela outra vez.

Amélia ainda tinha muitas perguntas a fazer. Queria sa­ber, por exemplo, como ele podia caminhar pela floresta ago­ra, se na noite anterior havia estado à beira da morte, ou onde ele havia estado durante toda a noite, ou por que suas roupas estavam rasgadas, ou como ele havia escapado de Mora. Mas esperaria até chegarem em Wulfglen.

Gabriel sabia que Amélia tinha perguntas. E ele não tinha respostas. Não as que gostaria de divulgar, pelo menos. Além do mais, tinha de concentrar-se em chegar a Wulfglen, on­de ela estaria segura. Então, teria de lidar com os próprios problemas. A perna estava surpreendentemente melhor. A febre havia cedido em algum momento, talvez quando a transformação ocorrera.

Havia lutado contra a dor enquanto seguia Amélia pela floresta; depois, tudo ficara confuso. Não se lembrava de mais nada até acordar naquela manhã, nu e tremendo. Re­fizera o caminho e encontrara as roupas rasgadas não muito longe do caminho por onde Amélia tinha seguido.

Vestido, já com os pensamentos mais claros, compreen­dera que poderia tê-la machucado. Nada o aterrorizava mais do que pensar no que poderia fazer com Amélia enquanto estivesse na forma de lobo. De qualquer maneira, ainda iria causar a ela sofrimento emocional, mas era necessário, para o próprio bem dela. Se já não tinha para oferecer a uma mulher antes de ser atingido pela maldição, agora tinha ain­da menos. E era obrigado a admitir que o que havia aconte­cido o embaraçava mais que tudo.

Trabalhara duro a vida toda para se fazer forte. Bloqueara emoções; mantivera-se longe da sociedade. E ainda assim, não fora forte o bastante para resistir ao amor, para lutar contra a besta dentro dele. Fora derrotado pelas duas coisas. Não estava zangado com Amélia. Ela era simplesmente ir­resistível. Estava zangado com ele mesmo.

E se preparava para a inevitável separação, caso chegas­sem vivos em Wulfglen. Não queria que ela soubesse a ver­dade. Amélia o amava, ou dizia amá-lo. A razão desse sen­timento estava além de sua capacidade de compreensão, por­que não era como os janotas que certamente a assediavam em Londres. Não era como ninguém que ela conhecia. Exceto Mora, e agora ela desprezava a jovem que um dia tomara sob sua proteção.

— Espere — Amélia pediu, parando de repente.

— O que é?

— Acho que vi alguma coisa pelo canto do olho. Uma som­bra se movendo de árvore em árvore.

Gabriel a puxou para trás de seu corpo. Perdera-se nos próprios pensamentos e havia baixado a guarda. Mais uma coisa que não era própria de sua natureza. Ele ouviu. A floresta estava quieta. Muito quieta. Seus olhos varreram a área que o cercava. Nada se movia, o que era estranho. Gabriel fechou os olhos e farejou o ar. De início não registrou nada de incomum; depois, um cheiro chegou até ele trans­portado pela brisa. O perfume de Amélia.

Gabriel abriu os olhos, fitou-a e disse:

— Corra!

Sem esperar por uma resposta ou reação, ele começou a correr puxando-a pela mão. Talvez Amélia não conseguisse acompanhá-lo, mas, embora houvesse melhorado muito, Gabriel ainda não estava totalmente curado. Já podiam ou­vir o som de botas esmagando as folhas no chão. Os gritos de um homem para outro. Por alguma razão, os persegui­dores não vinham como lobos, mas como homens. Gabriel especulou que talvez eles fossem controlados pela noite, pela lua, como ele.

Quando percebeu a armadilha, já era tarde demais; homens nas árvores, acima deles. Duas grandes redes caíram do céu. Gabriel foi forçado a soltar a mão de Amélia, tentando impedir que a rede os imobilizasse, mas ela era pesada e de malha fina. A seu lado, Amélia lutava contra a rede que a fizera cativa. Seu rosto estava pálido, seus olhos eram espe­lhos do medo. Gabriel sabia que falhara novamente em sua intenção de protegê-la. Haviam sido capturados.

O campo para onde foram levados não era longe, o que, ironicamente, deixou Gabriel feliz, porque as redes eram pe­sadas e Amélia havia tropeçado e quase caíra mais de uma vez. Os pés estavam livres, mas a rede presa, apertada nas pernas, só permitia pequenos passos. Os captores não que­riam correr o risco de deixá-los escapar novamente. Ele tinha uma horrível sensação. Havia jurado proteger Amélia, pen­sara estar fazendo um bom trabalho, mas descobrira que, por causa de Mora, nunca haviam sido realmente caçados... até agora.

Os homens que os acompanhavam tinham armas. Um deles se adiantou.

— Eles querem falar primeiro com o homem — disse aos outros. — A mulher fica do lado de fora.

Não gostava da idéia de separar-se dela. E gostava menos ainda de pensar que Amélia ficaria sozinha com aqueles ho­mens, presa e incapaz de defender-se. Ele tentou libertar os braços, mas uma voz feminina chamou sua atenção.

— Não desperdice sua energia. É inútil.

Ele olhou para a tenda no acampamento. Mora estava lá, e vestia um dos trajes mais finos de Amélia, coisas que haviam levado quando fugiram de Collingsworth. Mora não tinha mais a aparência de uma criada. Agora ela parecia uma dama, alguém que podia freqüentar os mais finos salões da sociedade, mesmo que não tomasse a forma de Amélia Sinclair Collingsworth. Exceto pelos olhos. Havia neles um traço primitivo, selvagem, algo que ela não con­seguia disfarçar.

— Amélia não sofrera nenhum mal — ela anunciou. — Não por enquanto, pelo menos. Venha pacificamente, ou essa circunstância poderá se modificar.

O fato de terem sido capturados juntos tornava a situação ainda pior, porque eles não hesitariam em usá-la para al­cançar seus fins, e era evidente que queriam alguma coisa, ou já os teriam matado imediatamente após a captura. Nesse momento, tudo que podia fazer era entrar e descobrir o que Mora desejava.

— Livrem-na da rede — ele exigiu. — Ela não é um animal. Mora sorriu.

— Amarrem as mãos dela. Dêem água à prisioneira e encontrem um lugar confortável onde ela possa descansar.

Mora dava ordens como uma rainha, mas era claro que alguns homens se ressentiam contra sua autoridade e ques­tionavam as instruções. Porém não houve discussão, e logo Gabriel era empurrado para frente e para dentro da tenda. Havia almofadas no chão, e uma mesa sobre a qual via-se comida e vinho. E havia outro homem dentro da tenda. Não era um guarda. Ele estava bem-vestido demais para isso.

— Obrigou-nos a realizar uma caçada grandiosa, lorde Gabriel Wulf — disse esse homem, indicando uma almofada no chão. — Por favor, junte-se a nós.

Um dos guardas o empurrou, obrigando-o a aceitar o convite.

— O que querem?

— Creio que minha irmã já o informou sobre nossos pla­nos. Mora costuma adiantar-se, às vezes mais do que é con­veniente.

Mora corou ao ouvir a reprimenda.

— Ela tem grandes habilidades, mas não é boa juíza de caráter. Devia ter percebido que você é um de nós. Devia ter sentido. Mas estava ocupada demais estudando lady Collingsworth e seus maneirismos.

— Vá direto ao ponto, Raef — Mora impacientou-se. — Já me censurou antes. Chega.

Raef, supostamente irmão de Mora, não era parecido com ela. Mora tinha cabelo e pele claros, e ele era moreno, com cabelos negros como a noite. O único traço em comum era a cor dos olhos.

— Mora me convenceu de que pode nos ser mais útil vivo.

— Não sei como — Gabriel protestou. — Não tenho posição ou destaque na sociedade, como devem saber.

— Talvez não agora. Mas, com lady Collingsworth por esposa, isso pode mudar. — Ele olhou para a irmã e sorriu.

— Acredita que eu me casaria com sua irmã? Prefiro dor­mir com uma serpente! Confiaria mais na cobra.

Esperava que o insulto enfurecesse Mora, mas ela parecia mais magoada do que revoltada. O que havia imaginado? Cuidara dela durante a jornada. E a protegera. Mas isso havia sido antes de descobrir toda a trama, as mentiras.

— Mora cumpre ordens — disse Raef. — E você é um de nós, mesmo que não goste de admitir. Por que não se juntar a nós, então?

— Não sou como vocês! Fui amaldiçoado. Não gosto do que me tornei. Envergonho-me disso.

— Se não tivesse mais nada nessa sua vida amaldiçoada além das extraordinárias habilidades que partilhamos, pen­saria diferente. Se visse sua família passar fome, seus ir­mãos caçados como animais, pensaria muito diferente. Sei o que estou dizendo.

— O que vão fazer com Amélia? O homem suspirou.

— A bela Amélia precisa morrer. Lamento, mas tem de ser assim. Pela causa.

— Como assassinou o marido dela pela causa? Como vai matar quem se puser em seu caminho e alegar que está de­fendendo a causa?

— Pelo que entendi, a morte do marido só o beneficiou, meu caro. Além do mais, ele não a amava, como sabe. Ca­sou-se com ela pelo generoso dote oferecido pelo pai de lady Collingsworth. Todos os criados da casa sabiam disso. Você viu a casa daquele sujeito. Estava caindo aos pedaços! Ele mal dispunha de fundos para plantar seus campos, e teria de vender seus preciosos cavalos se não encontrasse uma esposa rica, e depressa. E ele tinha o coração fraco. Nós só aceleramos o processo.

Seria verdade? Robert tinha se casado com Amélia por dinheiro?

— Não diga isso a ela — Gabriel pediu.

— Ah... Está apaixonado. Isso prejudica seu julgamento. Devia estar pensando em salvar a própria pele.

— Não me importo comigo. Ela é mais importante. Mora colocou-se atrás do irmão.

— Lady Collingsworth sabe o que você é? Ela o despreza­rá, como me despreza agora. Não peço que me ame. Nem mesmo que goste de mim. Mas, juntos, podemos fazer muito por nosso povo.

— Nosso povo? Já disse que não sou um de vocês! Seja lá que diabo vocês são...

— Também não é como a mulher que ama — Raef opinou. — E ela precisa saber o que você é. Mora acredita que a lua controla as mudanças no seu caso. Aprendemos a controlar a transformação, mas a lua também nos afeta de certa ma­neira, dificultando o controle do nosso lado animal. Esta noi­te vamos permitir que Amélia assista à sua transformação. Amanhã, você nos informará de sua decisão.

Não havia nada pior do que pensar em Amélia vendo-o se transformar na besta. Saber que ela se sentiria enganada. Fizera amor com ela sem revelar a verdade, e isso o colocava na mesma posição que Mora ocupava: a de um ser despre­zível que não era digno de confiança.

— Prefiro que me matem agora — ele disse. Raef sorriu, mas era um sorriso triste.

Amélia estava apavorada. Após dias fugindo daquelas criaturas, estava agora entre elas, à mercê de sua vontade, como Gabriel. Passaram o dia separados. As criaturas lhe haviam dado água e comida, que ela recusara, sabendo que não poderia manter nada no estômago. Pelo menos era man­tida à sombra. E ainda estava viva. Mas sabia que não seria por muito tempo.

Gabriel estava do outro lado do acampamento, ainda pre­so pela rede. A dela tinha sido removida. Seu anjo loiro pa­recia derrotado. Esperava que fosse apenas uma encenação, que ele estivesse apenas pensativo, tentando encontrar um meio de escaparem dali. De sua parte, esgotara a mente e todas as possibilidades. O cenário era desesperador.

Chegara a pensar em suplicar pela misericórdia de Mora, mas sabia que seria inútil. Mora amava a tal causa. Nada era mais importante que defendê-la e lutar por ela. Nem mesmo salvar a vida de duas pessoas que haviam sido suas amigas, suas protetoras. Além do mais, ela não decidiria sozinha. Já havia notado o homem alto, moreno e elegante que saíra da tenda algumas vezes.

Por duas vezes, teve de sair para atender ao chamado da natureza, mas sempre com um guarda mantido numa dis­tância constrangedora. Teria coragem e força para tentar arrancar a arma de um desses homens? E, se conseguisse, seria capaz de fugir? Nesse caso, seria forçada a abandonar Gabriel, o que não poderia fazer. Era melhor pegar uma ar­ma e fazer um refém. Alguém por quem Gabriel seria trocado sem hesitação. Mora.

Amélia continuava pensando nisso enquanto a noite se aproximava. Ela notou que, ao longo dos dias, dois homens se ocupavam de construir um objeto feito com galhos e cor­das. Uma jaula. Uma jaula grande o bastante para conter um homem.

Mora e o desconhecido saíram da tenda. Amélia notou aborrecida que a criada ficava melhor que ela em suas rou­pas. Coelhos eram assados sobre o fogo no centro do acam­pamento, e o cheiro de comida fez seu estômago roncar. Almofadas foram dispostas no chão em torno da fogueira. Mora fez um sinal para um dos guardas, e ele foi buscar Amélia, levando-a para perto dos dois.

— Sente-se — Mora instruiu. O guarda a obrigou a obedecer. Mora olhou para Gabriel.

— Coloquem-no na jaula — ela disse.

Amélia viu três grandalhões jogarem Gabriel dentro da jaula. Um deles usou uma faca para cortar a rede antes de trancafiá-lo. Não havia espaço para ele ficar em pé. Gabriel mantinha os joelhos dobrados para caber no espaço aberto. Ele olhou para Mora e seu companheiro, os olhos brilhando na escuridão como luzes sobrenaturais.

— Quer comer alguma coisa, Amélia? — Mora ofereceu.

— Não precisa ser gentil. Sei que não tem educação, em­bora se esforce muito para fingir ser o que não é.

O homem sorriu, como se o atrevimento da prisioneira o divertisse.

— Ela tem razão, irmã. Não é necessário oferecer conforto ao inimigo.

— Conhece nossas regras, Raef. O menor sofrimento pos­sível. Devemos oferecer todo conforto até que...

O silêncio falou mais do que mil palavras.

— E Gabriel? — Amélia perguntou. — Não ofereceu ne­nhum conforto a ele. Por que o puseram em uma jaula?

— Porque precisamos contê-lo de alguma forma — res­pondeu Raef. — Além do mais, pensamos que vê-lo nessa situação faria você soltar a língua. Podemos torturá-lo, se não fornecer a Mora todas as informações sobre o seu passado.

Era inútil continuar lutando. Não podia causar sofrimen­to a Gabriel. Sim, sabia que, quando falasse, eles não teriam mais nenhuma utilidade para aquela gente, mas não havia alternativa.

— Tenho uma irmã e dois irmãos. O nome de minha irmã é Florence, e meus irmãos se chamam Michael e...

— Sabemos tudo sobre sua família e quem são aquelas pessoas — o homem a interrompeu. — Queremos detalhes, coisas mais particulares. Qual é sua cor favorita?

— Rosa, é claro — mentiu. Gostava mais do azul.

— Que ligação tem com a viúva Duquesa de Brayberry?

Amélia se surpreendeu com a pergunta.

— Somos conhecidas, embora Sua Graça mal possa tole­rar-me. Ela acha que sou franca demais em minha maneira de falar. — Amélia duvidava de que pudesse haver no mundo mulher mais franca que a duquesa, e ela sempre encorajava semelhante comportamento naqueles que considerava seus amigos.

— Como é o relacionamento com seus pais? — Mora in­dagou.

Saber que essa mulher tentaria enganar seus pais a en­cheu de um ódio tão surdo que ela não conseguiu falar, calada pela emoção.

— Normalmente, tentamos encontrar pessoas que não te­nham familiares próximos — Mora continuou. — Esse foi mais um motivo para a escolha de lorde Collingsworth.

— Cale a boca, Mora—Raef irritou-se. — Já falou demais. Nada do que disser vai melhorar a opinião que ela tem sobre você. Sobre nós.

A escuridão os envolvia por completo, e Amélia não con­seguia ver Gabriel dentro da jaula. Via apenas os olhos bri­lhantes e fixos nela. Ela sustentou aquele olhar, tentando transmitir uma mensagem. Amava-o, e se podiam estar jun­tos novamente depois da morte, ela não se importaria de morrer. Preferia viver, sim, e passar com ele todos os dias e todas as noites de sua vida, mas essa possibilidade era ine­xistente.

O jantar foi servido. Alguém pôs mais galhos na fogueira. Amélia sabia que tinha de fazer alguma coisa para ajudar Gabriel, mas sentia-se fraca. Recusar a comida havia sido tolice.

— Estou com fome — disse, olhando para Mora. — Mas não posso comer com as mãos amarradas, e não desejo ser ainda mais humilhada, alimentando-me como um animal. Permita-me ao menos um pouco de dignidade.

Mora olhou para o irmão.

— Ela não vai poder lutar contra todos nós. Vamos desa­marrá-la, ao menos para que se alimente.

Raef negou com a cabeça.

— Ela já escapou uma vez. Não devia subestimá-la, Mora. Já cometeu esse erro antes, e vejo que não aprendeu a lição.

Mora abaixou a cabeça, submissa. Maldição! Como poderia tentar pegar uma arma com as mãos presas? Talvez Gabriel tivesse um plano. Esperava que sim.

— Posso falar com Gabriel? — ela pediu. — Posso levar comida e água para ele? Já disseram que suas regras não permitem tortura, mas o que estão fazendo com ele não tem outro nome.

— As regras só se aplicam ao tratamento de gente como você — Raef respondeu sorrindo.

O que ele queria dizer com isso? Mulheres eram tratadas com respeito, mas não os homens?

— Sinto-me torturada por não poder falar com ele. Quero dizer coisas que devem ser ditas, caso nossa morte esteja próxima.

Raef olhou para cima, para o céu, e depois para a jaula.

— Tem razão, talvez devam mesmo dizer adeus. Vá dar uma boa olhada no seu eleito. Você — ele chamou um guarda.

— Leve a prisioneira até a jaula.

O homem a segurou pelo braço e a pôs em pé, puxando-a para perto da jaula. Gabriel estava de costas para a porta. Ela se abaixou.

— Gabriel... Eles me deixaram falar com você. Ele não se virou.

— Por favor, pode nos dar um momento de privacidade?— ela pediu ao guarda.

O homem deu alguns passos para trás, mas não se afastou tanto quanto ela teria gostado.

— Gabriel, fale comigo!

— Eles podem nos ouvir?

Amélia olhou para o guarda. Ele estava atento, mas não parecia muito interessado no que diziam.

— Não se falarmos baixo. Tem um plano?

— Sim.

Ela suspirou aliviada, mas logo notou os tremores que o sacudiam.

— Está doente outra vez?

— Isso não importa. — Ele levou a mão às costas e em­purrou um objeto para a porta.

Amélia introduziu a mão por entre as grades e pegou a faca.

Como ele a conseguira? Ela lembrou o guarda cortando a rede antes de jogá-lo dentro da jaula. De alguma forma, Gabriel conseguira se apoderar da arma.

— Solte-se — ele orientou.

Amélia não sabia se conseguiria. Não com os punhos amar­rados como estavam.

— Talvez tenha de fazer isso por mim — ela sussurrou.

— Não posso. Estou tremendo muito. Use os joelhos. Se­gure a faca entre eles e corte a corda em seus pulsos.

Sem saber o que deveria fazer quando conseguisse se sol­tar, Amélia seguiu as instruções, usando as dobras da saia para esconder o ato. Em poucos momentos ela estava livre.

— E agora?

— Finja que está tentando me ver melhor e mova-se na direção da parte de trás da jaula. Use a faca para cortar a corda que prende a porta à parte superior. Talvez eu possa abri-la com um chute. Antes de mudar de posição, erga a voz e suplique para que eu olhe em sua direção.

Ah, por isso ele permanecia de costas! Muito astuto.

— Gabriel, por que não olha para mim? Por que não me deixa vê-lo?

Agora parecia natural que ela buscasse uma posição de onde pudesse enxergá-lo melhor. Abaixada, ocultando as mãos livres, ela cortou a corda que mantinha fechada a porta da jaula.

— Como escaparemos? — sussurrou.

O tremor que o sacudia parecia mais intenso.

— Vou criar algum tipo de distração — ele disse com uma voz estranha, rouca. — Quero que corra, Amélia, e continue correndo. Eu os deterei pelo tempo que for possível.

Não gostava nada desse plano.

— Não. Fugiremos juntos.

— Amélia, eles nos pegariam antes que deixássemos a área do acampamento. Teremos mais chances se agir como estou sugerindo.

Ela teria mais chance. Mas ele...

— Já cortei as cordas — Amélia cochichou. — Por favor, olhe para mim agora.

Ele se mantinha de costas.

— Esconda a faca na bota. Vai poder usá-la, se for neces­sário? Se sua vida depender disso?

Mora. Ele estava perguntando se poderia usar a faca con­tra Mora, se fosse necessário. Amélia não sabia o que dizer. Sim, supunha que sim. Mas não saberia até a hora do teste de realidade. Mas não era isso que Gabriel precisava ouvir.

— Sim — ela respondeu.

— Prometa.

— Olhe para mim.

— Antes prometa.

— Eu prometo — ela disse, mesmo sem saber se mentia. Não queria mentir. Uma pessoa não devia mentir para al­guém que amava. Não sem uma boa causa. E nesse momento ela tinha todas as razões do mundo.

Gabriel ficou quieto por um instante, tremendo. Depois se virou devagar no espaço restrito da jaula. E olhou para ela.

Amélia gritou.

 

Amélia recuou chocada. Os olhos azuis de Gabriel bri­lhavam, mas a luz alaranjada da fogueira iluminava um rosto de traços distorcidos. Quando ele abriu a boca, pre­sas brancas cintilaram na escuridão. Ele estendeu as mãos, mas elas também estavam deformadas, com longas garras brotando da ponta dos dedos. Isso não podia estar aconte­cendo. Era outro sonho. Outro pesadelo.

— Amélia... — A voz soou estrangulada. — Perdoe-me. Ela balançou a cabeça.

— O que pensa de seu herói agora? — Mora perguntou em pé atrás dela. — Ele a enganou, como eu a enganei. Olhe para ele e diga que ainda o ama.

Amélia não podia olhar. Não queria. Queria negar o que via, negar a verdade, negar que aquilo estava acontecendo. Essas pessoas o haviam transformado? Isso era possível? E poderiam fazer o mesmo com ela?

— O que fizeram com ele?

Mora suspirou cansada.

— Nada. Essa é a maldição de seu adorado. Ele não disse nada? Nem enquanto estavam na cama? Vamos, diga que o ama, apesar de ele ser uma besta! Apesar de ter mentido para você!

De repente, Gabriel emitiu um rugido assustador, chutou a porta da jaula e avançou contra os dois guardas mais próxi­mos, lutando como um louco. Como um animal. Amélia sabia que ele lutava por ela. Essa era a distração a que Gabriel se referira antes.

Mora ainda estava a seu lado, mas Amélia percebeu que ela também se distraíra com o ataque. Com a faca escondida na bota, começou a se afastar lentamente, passo a passo, sem chamar a atenção, os olhos fixos em Gabriel.

Agora ele tinha presas mais salientes, nariz mais longo, o corpo deformado, mas ainda lutava com galanteria. Ela já alcançava o limite do acampamento, quando ele caiu de qua­tro. Homens tentavam se afastar enquanto ele usava as gar­ras para rasgar as próprias roupas.

A transformação pareceu durar uma eternidade, mas Amélia sabia que haviam sido apenas alguns segundos, se­parando homem e lobo. O lobo que a seguira naquela noite em que fugira da taverna. O lobo que se sentara embaixo da árvore e velara seu sono. O lobo que mancava.

Gabriel, ou o lobo, correu na direção oposta à de Amélia. Por todo o acampamento, homens se transformavam, exi­bindo garras e presas. Caçariam Gabriel na forma animal, porque assim estariam em iguais condições. E, em um mo­mento, alguém perceberia que ela havia desaparecido. Amélia levantou-se e correu. Correu como nunca havia corrido antes.

Um coral de grunhidos ecoava na floresta atrás dela. Amé­lia sufocou um grito e continuou correndo.

Não havia segurança na mata. Nenhum lugar que um lobo não pudesse farejar e encontrar. Nenhuma chance de ser mais rápida que aqueles que a perseguiam. Pensar nisso provocava uma intensa sensação de derrota. Parte dela que­ria desistir. De repente ela sentiu no ar o cheiro de fumaça. Seria o fogo da noite ardendo em Wulfglen? Ou a fogueira do acampamento que deixara pouco antes? Amélia parou.

Recuperando o fôlego, tentou decidir que direção seguir. Para onde soprava o vento? Estava contra ele, o que signi­ficava que o cheiro vinha da direção para a qual seguia, não do acampamento. Mas, se conseguisse alcançar Wulfglen, teria lá o porto seguro que imaginara antes? Mora havia falado sobre a maldição de Gabriel. Todos acreditavam que os irmãos Wulf eram amaldiçoados pela insanidade.

Armond e Jackson seriam como Gabriel? E, se fossem, sua amiga Rosalind conhecia a verdade sobre o marido? E Lucinda? Ou os irmãos Wulf guardavam seus segredos, como Gabriel fizera com ela? Tentariam matá-la por tê-los desco­berto, como os outros a queriam morta? De repente Amélia percebeu que não havia ninguém em quem pudesse confiar. Ninguém que não houvesse mentido para ela, traído sua confiança.

Ou não? Estava confusa. Gabriel mentira, enganara, mas também a protegera. Oferecera-se em sacrifício esta noite para salvar sua vida. Antes acreditava amá-lo. Poderia amar um homem amaldiçoado como ele?

Tinha de tomar uma decisão. Não podia ficar ali parada, esperando ser capturada e morta. Tinha de pensar em sua sobrevivência. O resto ficaria para depois. Precisava chegar em Wulfglen. Mesmo que não houvesse ninguém em casa, os cavalos ainda estariam no estábulo, e algum criado a so­correria. Ela seguiu na direção da fumaça cujo cheiro a atraía. Não havia ido muito longe quando foi atacada.

O lobo saltou das sombras, derrubando-a.

Amélia rolou pelo chão, conseguindo escapar do animal que já podia reco­nhecer. Era Mora.

— Vou matar você — ela ameaçou o animal. — Se não me der alternativa, terei de proteger-me pondo fim em sua vida.

O lobo rosnou para ela. Amélia se sentiu aliviada por Mora a ter atacado em sua forma animal, pois não teria sido capaz de matá-la em sua forma humana. Ainda via a mulher em seus olhos, algo que aquelas criaturas não conseguiam trans­formar, e foi para esse resquício de humanidade que ela fez um último apelo.

— Deixe-me ir. Ninguém acreditaria se eu contasse sobre você e os outros. Quero de volta a vida que planejou roubar de mim, e lutarei até o fim por ela.

O lobo se aproximava. Amélia ergueu a faca. O animal flexionou as patas traseiras, como se pretendesse atacar, mas, das sombras, um lobo maior saltou sobre Mora. Gabriel.

A luta foi feroz. Os animais grunhiam e se estudavam com os pêlos eriçados. Amélia se afastava dali passo a passo, com as costas voltadas para as árvores, a faca ainda na mão, pronta. As bestas se atacaram. Gabriel tinha clara vanta­gem, porque era muito maior que Mora. Ele a imobilizou rapidamente, atacando-a com os dentes afiados. Amélia ou­viu o ganido do lobo menor, que ficou paralisado, sangrando e tremendo.

Em vez de terminar o que havia começado, Gabriel olhou para Amélia. E começou a caminhar em sua direção. Ela engoliu em seco e levantou a faca.

— Fique longe de mim, Gabriel — sussurrou. — Não quero machucar você, mas, se for obrigada...

O lobo parou.

Seria capaz de matá-lo, caso ele a atacasse? Aqueles olhos eram os do homem que amava, ou acreditara amar. Gabriel ainda existia sob os pêlos e atrás dos dentes mortais?

Mora se moveu, e Gabriel rosnou para ela, imobilizando-a novamente.

Amélia percebeu que ele não queria que Mora chegasse perto dela. Ela baixou a faca. Agora sabia que Gabriel Wulf jamais lhe faria mal. Ele havia mentido, sim, mas ainda podia confiar a própria vida a ele. Mas e seu coração?

Estava exausta. Incapaz de prosseguir, ela se sentou no chão, com as costas e a cabeça apoiadas contra um tronco de árvore, e fechou os olhos. Gabriel a protegeria. Por en­quanto, estava segura.

 

Era horrível. Acordar nu e tremendo, confuso, tentando entender o que havia acontecido e onde estava. Gabriel es­tendeu o corpo, ignorando a dor nos músculos. A perna es­tava melhor. Ou o restante havia piorado tanto que aquela primeira dor se tornara insignificante.

Amélia! Deus, onde ela estava? Teria conseguido escapar? Tinha uma vaga noção de tê-la visto na floresta... com uma faca na mão. Ela parecia disposta a atacá-lo, mas... Estava vivo. Então... Talvez ela não estivesse! Nu, ele se levantou do chão, e então a viu. Dormindo, alguns passos distante de onde ele estava. O alívio que o inundou foi intenso, mas bre­ve, porque logo ele viu outra criatura.

Mora estava deitada no chão em sua forma humana. Ela mantinha os olhos fechados e tinha o corpo coberto por fo­lhas. Os raios de sol penetravam entre as copas das árvores. Gabriel tirou a faca da mão de Amélia, que abriu os olhos. Por um momento, ela sorriu com doçura ao vê-lo. Depois, tomada pelas lembranças, recuou apavorada. Gabriel não tinha tempo para confortá-la agora.

Antes, tinha de lidar com Mora de uma vez por todas. Ele se aproximou da mulher adormecida e pôs a faca em sua garganta. Ela abriu os olhos e, por um instante, pareceu confusa, atordoada como ele se sentira ao despertar. Seus olhos foram tomados pelo medo quando ela identificou o agressor nu e armado com uma faca. Gabriel viu as marcas em seu ombro, o sangue seco.

— Você é minha inimiga, Mora. É uma ameaça para Amélia. E chegou a hora de pôr fim às ameaças — ele murmurou.

Faria um corte fundo e longo, levando-a rapidamente à morte. Apesar de tudo, não queria causar sofrimento desne­cessário.

A mão em seu ombro o deteve.

— Não, Gabriel — Amélia sussurrou.

Ele a fitou. A luz do sol criava um halo em torno de sua cabeça loira. A compaixão em seus olhos penetrou-lhe o coração.

— Ela teve duas chances para me matar, mas ainda estou viva. Não acredito que as coisas sejam simples como a fize­ram crer.

Mora olhou para Amélia com um misto de súplica e medo.

— Eles nos ensinaram como falar, como andar, como participar adequadamente de qualquer ambiente, seja o apren­diz criado ou senhor, mas ninguém nos ensinou sobre a ne­cessidade de abrir mão da consciência e do afeto. Não nos ensinaram a matar sem sentir culpa. Não sei se estou pre­parada para viver nesse mundo.

Mora já os enganara antes. Gabriel não sentia pena dela, nem confiava nessa mulher. Mas ele também havia mentido. Mora e os de sua laia tentavam apenas sobreviver. Tinha de entender que regras distintas os comandavam.

— Está sempre enaltecendo as regras de seu povo, mas as descarta no momento em que as coisas não acontecem como foram planejadas — ele disse. — Existem patifes entre vocês, como Vincent, e às vezes vocês são mais bestas que humanos. Jamais poderá sobreviver em uma sociedade civi­lizada.

— Tem certeza?

Gabriel ouviu a voz de Raef e levantou a cabeça. O inimigo apontava uma pistola para ele.

— Agora, saia de cima de minha irmã.

Raef não estava sozinho. Seus homens o acompanhavam.

— Troco a vida dela pela de Amélia — Gabriel propôs. — Libertem-na, e depois façam o que quiserem comigo.

— Galante até o fim. Essa é uma característica que não se pode ensinar, e fico feliz quando penso que poucos de sua posição são como você.

— Raef, faça como ele diz — Mora pediu. — Liberte Amélia. Não consegui enganar este homem quando tomei a forma de minha antiga senhora; duvido que possa enganar alguém que a conheça razoavelmente bem. Matá-la seria bárbaro e inútil. Ela teve compaixão comigo, e sinto que devo retribuir da mes­ma forma.

— Eles contarão aos outros sobre nós, Mora.

— Mesmo que contem, que importância terá? Vão pensar que ela perdeu a razão, e ele... Eleja pertence a uma família maculada pelo estigma da loucura. E por que ele revelaria o segredo? Não é melhor que nós. Seria vantajoso para ele manter a sociedade ignorante sobre o que acontece nas som­bras da noite.

Sentindo que Gabriel não hesitaria em matar sua irmã, Raef baixou a arma.

— Muito bem, Wulf. Trocarei a vida de Mora pela de sua amada. Quanto a você, não temos utilidade para um homem que não compartilha dos nossos objetivos. Afaste-se de Mora. Você e a mulher podem ir. Estão livres.

Gabriel estava desconfiado. Após dias de perseguição e de inabalável dedicação à causa, agora eles os libertavam?

— Vá! — Mora insistiu. — Ele cumprirá a palavra. — Meu irmão e eu somos ligados aos wargs pela honra, mas nem sempre concordamos com seus métodos. É hora de vol­tarmos às sombras. Vamos pensar nessa experiência e ava­liá-la. E vocês, vão para casa.

— Solte-a, Gabriel — Amélia pediu. — Acabou. Devagar, ele afastou a lâmina da garganta da mulher.

— Não quero voltar a vê-la — disse. — Nunca mais!

— Você vai me ver. Mas não vai saber que sou eu.

Raef jogou a valise de Amélia no chão, guardou a pistola na cintura da calça, e estalou os dedos. Um de seus homens jogou no chão algumas peças de roupa e um par de botas. Enquanto Gabriel se vestia, Raef envolvia a irmã em um cobertor e a levantava do chão, carregando-a nos braços. Ele parou diante de Gabriel.

— Desta vez dei minha palavra à minha irmã. Porém, se cruzar nosso caminho novamente, não serei tão civilizado.

— Nem eu — Gabriel respondeu sem hesitar.

Eles se entreolharam por alguns segundos numa ameaça silenciosa. Finalmente, Raef virou-se e começou a caminhar com o porte altivo de um príncipe. Ainda desconfiado, Gabriel o observou até vê-lo desaparecer com seus homens no interior da floresta. Só então, lentamente, ele se virou para encarar a mulher que havia enganado.

Amélia sentia um grande alívio. O pesadelo chegara ao fim!

Ou não? Diante dela estava o homem que amava, mas que a enganara. Ele mentira, não era quem ela pensava que fosse. Como devia se sentir? Como poderia recuperar a an­tiga vida, se não mais era como antes?

— Você me enganou — disse.

— Sim, eu menti.

— Que maldição é essa que paira sobre sua família? Por que não me contou a verdade desde o início?

— Porque, no início, se eu revelasse a verdade, você teria sentido medo de mim. Não me teria deixado ajudá-la.

Era verdade. Depois do que ocorrera em Collingsworth, teria fi­cado aterrorizada com a revelação. Ainda assim...

— Podia ter me contado mais tarde. Devia ter me contato!

— Eu sei — ele reconheceu.

— Quero saber tudo sobre a maldição. Seus irmãos tam­bém sofrem com ela? As esposas sabem, ou vivem enganadas?

— Todos que têm nosso sangue partilham da maldição. Um de nossos ancestrais foi amaldiçoado por uma bruxa no passado, mas a maldição tem de ser posta em movimento. Não sei se Armond sofre como eu sofro agora, ou Jackson, embora tenha desconfiado dele antes do desaparecimento.

— E o que põe a maldição em movimento?

— A fraqueza de um homem.

— Doença?

— Não. Refiro-me a outro tipo de fraqueza. Uma falha de caráter. Ser incapaz de resistir a coisas que um homem mais forte pode enfrentar. Baixei a guarda contra a maldição, e agora ela me domina.

— Só agora a maldição o dominou, ou você conseguia mu­dar de forma desde o início?

— Aconteceu nessa lua cheia, e não tenho a capacidade de mudar. Não como está sugerindo, por vontade própria. Não tenho escolha. Mas sempre soube sobre uma maldição, sobre ser diferente de outros homens.

Gabriel era realmente diferente. Muito diferente. Porque, com tudo que estava enfrentando e sofrendo, ele ainda era protetor.

— O que acontece agora? Ele pegou sua valise.

— Agora vou levar você a Wulfglen. Você volta para sua vida, e eu vou tentar decidir o que fazer com a minha.

Então... devia simplesmente esquecer o que acontecera entre eles? Tudo que vira, ouvira e vivera? Tudo que sentira? Devia esquecer que o amava? Talvez fosse melhor. Afinal, ele não era seu príncipe. Era um homem amaldiçoado. Um homem que mentira para ela, embora por razões justas. De repente, ela entendia por que Gabriel não tinha esperanças ou sonhos.

— Foi isso que aconteceu com seu pai, não foi?

Ele continuou andando.

— Sim. Ele foi fraco. Minha mãe também. A maldição os destruiu.

— Não precisa ser igual para você. Não tem que se deixar destruir.

— Se acha que planejo estourar meus miolos, como fez meu pai, está enganada. Se acha que posso ter uma vida normal agora, como um homem normal, também está enga­nada. Quanto a você, volte para sua vida. Em duas semanas não vai lembrar de mais nada do que aconteceu.

— O quê? — Ela reagiu ofendida. — É isso que pensa de mim? Acha que sou fútil, superficial... e que vou esquecer o que aconteceu comigo, conosco? Gabriel, você nunca vai me machucar, se é isso que teme. Mesmo na forma de lobo, você me protegeu de Mora ontem à noite.

— Não sei... Não consigo lembrar pensamentos ou fatos relacionados aos momentos em que a lua me domina. Não posso ter certeza de que não vou machucá-la. E não supor­taria viver se isso ocorresse.

— Precisa aprender a confiar, Gabriel. Se não em outra pessoa, pelo menos em você mesmo. O que considera fraque­za, talvez seja apenas a condição humana.

— Amélia, não tem medo de mim? Não se sente... enojada depois do que viu? Lamenta ter se entregado a mim?

Não havia como expressar com palavras tudo que sentia por esse homem. Por isso, ela o segurou pelo braço, aproxi­mou-se e beijou-o.

A reação de Amélia o surpreendeu. Esperava desculpas, mentiras para poupar seus sentimentos, uma evasiva qual­quer... Mas um beijo?

Com grande esforço, ele se afastou um passo.

— Não precisa me seduzir. Eu a levarei de volta a Wulfglen em troca de nada. A besta só me domina à noite.

Amélia o esbofeteou. E o surpreendeu novamente.

— Não tenho mais tanta certeza disso. Está agindo como uma besta, e o sol brilha no céu. Já pensou que não preciso de sua ajuda para chegar em Wulfglen? Uma idiota pode decidir para que lado fica o Leste.

Ele a encarava em silêncio, espantado demais para falar. Depois de um momento, Gabriel riu.

— Qual é a graça?

— Você! Devia estar tremendo de medo, mas me beija e me bate e me coloca no meu lugar. Não é de espantar que eu a ame tanto. Não há no mundo ninguém como você.

Gabriel compreendeu o que acabara de admitir quando viu as lágrimas nos olhos dela. Queria retirar as palavras, e, ao mesmo tempo, estava feliz por tê-las dito, finalmente.

— Por que é tão difícil para você reconhecer que me ama, Gabriel? Acha que esse sentimento é uma fraqueza?

— O amor é a maldição.

— O quê?

Já havia falado demais.

— Nada. Esqueça.

— De jeito nenhum! Como assim, o amor é a maldição? Essa mulher merecia sua honestidade.

— "O amor é a maldição que o cega, mas é também a chave." É uma citação de um poema escrito pelo primeiro Wulf amaldiçoado. — Uma frase que ele nunca entendeu. Como alguma coisa podia ser maldição e chave? E chave para quê?

— Eu sou a razão pela qual você está agora sob o domínio da lua. É isso que está me dizendo?

Gabriel não queria que ela se sentisse culpada. Também não queria sua piedade. Tudo seria melhor que isso.

— Não é sua culpa, Amélia. É minha culpa. Eu sabia quais seriam as conseqüências, mas me deixei fraquejar. Entre­guei meu coração, mesmo sabendo que não devia. Troquei tudo por uma chance de ser somente um homem aos seus olhos. Mesmo que só por uma noite. Por favor, não chore. Quero que seja feliz. Quero que esqueça tudo isso e...

— Certa vez eu lhe disse que não acreditava no amor. Sempre pensei que fosse só uma palavra delicada para lu­xaria, ou dever. Mas o que sinto por você é mais que desejo. E nenhum dever me prende a você. Foi assim que percebi que o amo, e que acredito no amor. Preciso saber que sou mais que uma conseqüência para você, Gabriel. E você deve entender que o amor torna uma pessoa mais forte do que outra que esconde seu coração do mundo. E tem que entender que compaixão não é piedade. Quando aprender essas coisas, venha me procurar.

Amélia pegou a valise da mão dele è partiu. Gabriel deu o primeiro passo para segui-la, pensando em detê-la, abra­çá-la e beijá-la até que ela não pudesse mais raciocinar, mas não podia. Ela não tinha idéia do que teria de enfrentar se ficasse a seu lado. Uma vida solitária para Amélia Sinclair Collingsworth? Não podia imaginar tal coisa. Nem queria.

Não poderiam ter filhos. Ele teria de se retirar quando a maldição o visitasse. Teria de deixá-la sozinha. Com o tempo, ela aprenderia a odiá-lo. Melhor deixá-la agora, mesmo que isso o dilacerasse. Sabia que a amaria mais a cada dia e que a dor da perda seria insuportável. Como havia sido a dor de perder os pais. A dor de perceber que sua vida era amaldi­çoada. A dor de deixar morrer todas as esperanças e todos os sonhos em uma única noite, dez anos atrás, quando seu pai se transformara em um lobo à mesa do jantar.

Mas, por ela, seria capaz do sacrifício. Ou não? Gabriel a viu se afastar com passos determinados. Não a deteria. Mas a seguiria como um cão fiel até Wulfglen para certificar-se de que ela chegaria em segurança à propriedade; depois, ficaria no bosque até ela partir definitivamente.

Gabriel olhava para as janelas iluminadas de sua casa. Amélia devia estar lá dentro agora, cercada por seus irmãos, contando como chegara ali. Enquanto isso, com o cair da noite, ele sentia o lobo se preparando para emergir. Por quanto tempo? Quando poderia voltar para casa?

— Fale-me de seus sonhos e esperanças.

Assustado, ele se virou e a viu bem perto dele.

— O que faz aqui? Por que não entrou? Ela encolheu os ombros.

— Vim buscá-lo para ir comigo.

— Você sabe que não posso. A noite já caiu. Você não devia estar aqui, Amélia. É perigoso!

— Não, Gabriel. Não tenho medo. Além do mais, se os seus irmãos se casaram e são felizes, eles devem ter encon­trado uma solução.

— Não sei, mas não vou correr o risco de machucar você.

— Essa é a diferença entre nós. Eu corro riscos. Especial­mente o risco de confiar. Por favor, confie em mim! Confie no nosso amor!

— Eu confio em você, Amélia, e nunca duvidei do amor que existe entre nós. Porém...

A dor o atingiu no estômago como um soco. Ele caiu de joelhos.

— Está acontecendo, Amélia!

— Estou aqui com você. Não tenha medo.

Não temia por ele, mas por ela. Mesmo assim, ela merecia o conforto de saber a verdade sobre seus sentimentos.

— Eu... te amo, Amélia.

— E eu também amo você.

Alguma coisa parecia ferver dentro dele. Ele teve a sen­sação de que ia vomitar e abaixou a cabeça, esperando li­vrar-se da bile que parecia envenená-lo. Mas não foi nenhu­ma substância que brotou de dentro dele, e sim uma luz azul.

A boca se abria mais e mais, até ele ter a impressão de que os ossos do rosto se quebrariam. Amélia recuou, mas não fugiu. Ele a via através de uma névoa, incapaz de fazer qual­quer coisa além de abrir a boca para deixar sair aquela luz azul. Era como se suas entranhas o abandonassem, como se tudo que houvesse dentro dele o deixasse, acompanhando aquela luz, e a experiência parecia durar para sempre. De repente, a luz subiu, flutuando sobre sua cabeça. E começou a tomar forma. A forma de um lobo.

Agora ela estava sobre seu peito, e a pressão o esmagava. O animal o fitava nos olhos. Gabriel fazia um grande esforço para respirar. Amélia assistia a tudo sem se mover, pálida.

— Saia de perto dele! — ela gritou de repente. O lobo se virou para ela.

— Desapareça, besta!

Deitado, incapaz de sustentar o peso do próprio corpo de­pois do esforço monumental, Gabriel viu o animal se encolher como se as palavras o ferissem; em seguida, ele deu um salto para a noite e desapareceu na escuridão.

Gabriel sentiu o ar retornando ao interior de seu corpo como um jato quente. Amélia estava ajoelhada a seu lado.

— Gabriel! — Ela chorava. — Gabriel, fale comigo! Diga-me que está bem!

Ele ainda precisou de um momento para recuperar a voz, e outro para ter a força necessária para abraçá-la. A enor­midade do que acabara de acontecer ali o atingia como um golpe violento. A besta o deixara. Sentia a ausência. Não conseguia mais enxergar na escuridão, nem ouvir sons que antes registrava com facilidade.

— Acabou... — ele murmurou.

Amélia levantou a cabeça devagar para fitá-lo.

— O que está dizendo?

— A maldição, Amélia. Foi desfeita. Acabou!

— Mas... Oh, Gabriel! Tem certeza?

— Sim, e agora entendo! O amor é a maldição, mas é também a chave!

O inimigo estivera sempre dentro dele mesmo. Era sua incapacidade de confiar. O amor de Amélia dera a ele forças para superar seu maior inimigo. E agora, estava livre para amá-la. Para se casar com ela. Para ter uma vida muito diferente daquela existência solitária que havia imaginado. Sonhar novamente era a maior alegria que já havia sentido. E ter esperanças...

Gabriel beijou-a e sentiu que a força voltava a seu corpo combalido. O desejo que sentia por ela era intenso, ardente, e queria possuí-la ali mesmo, no chão.

— Não acha que devemos ir para casa? — Amélia sugeriu. — Preciso de um banho quente, e adoraria me deitar numa cama macia. Com você a meu lado, é claro.

Ele riu.

— Você é chocante, Amélia Sinclair Collingsworth... em breve Wulf.

— Não muito em breve. Preciso cumprir o luto de um ano.

— Um ano? Duvido que a sociedade aprove minha pre­sença em sua cama por tanto tempo antes do casamento! E não pretendo dormir em outro lugar nas próximas... todas as noites da minha vida!

Amélia riu.

— De repente senti uma enorme vontade de ir passar um longo período na adorável propriedade rural de minha grande amiga Rosalind. Não posso voltar a Collingsworth, Gabriel. Assim que nos casarmos, vamos demolir a casa e usar o ter­reno para criar cavalos.

Era um bom plano. Um sonho. Uma esperança.

Gabriel e Amélia se levantaram e, de mãos dadas, cami­nharam para as luzes cintilantes de Wulfglen. O que seus irmãos pensariam quando o vissem chegando com uma mu­lher, cujo casamento eles haviam testemunhado havia uma semana?

Seria um momento muito divertido.

— Lorde Gabriel — Hawkins o cumprimento com for­malidade ao recebê-los na porta. — Seja bem-vindo. E lady Collingsworth...

Hawkins raramente visitava a propriedade rural, prefe­rindo guardar a casa de Londres quando a família se retira­va. Sua presença era uma surpresa para Gabriel.

Mais surpreendente ainda foi ver um desconhecido entran­do no salão com uma garrafa de conhaque em uma das mãos.

— Quem é você?— Gabriel perguntou, ouvindo vozes além da porta do salão.

— Merrick. E você?

O homem era a imagem de Jackson, mas com cabelos escuros.

— Merrick, onde está o conhaque? — Um homem surgiu no corredor. Gabriel também não o reconheceu. Não de ime­diato. Mas, depois de alguns instantes, seus olhos se enche­ram de lágrimas.

— Sterling...

Sterling Wulf, seu irmão caçula! Gabriel não o via havia dez anos!

— Gabriel — ele sorriu. — Estávamos mesmo fazendo planos para você, especulando sobre seu paradeiro.

Sterling fugira no dia da morte da mãe, e todos já acre­ditavam que ele estivesse morto. Gabriel abraçou-o.

— Por Deus, homem, onde esteve?

— Viajando com uma trupe circense. Mas meu filho nas­ceu, e achei que seria melhor trazê-lo para casa.

— Filho? Sterling riu.

— Já conheceu Merrick, nosso meio-irmão? Gabriel estava boquiaberto.

— Onde está o conhaque? — Armond surgiu no corredor. Ao ver Gabriel, ele deixou escapar um suspiro aliviado.

— Gabriel, graças a Deus voltou para casa! Estávamos planejando um grupo de busca.

Jackson apareceu com ar surpreso.

— Gabriel? Por Deus, onde se meteu, meu irmão? Já es­tava começando a me preocupar!

Gabriel sorriu e abraçou cada um dos irmãos.

— Lady Collingsworth? — Armond estranhou vê-la. — O que faz aqui?

— É uma longa história — Gabriel anunciou.

— Temos todo o tempo do mundo. Hawkins, mais conha­que! E chá para as damas — Armond gritou, levando o grupo para o interior do salão.

Uma hora mais tarde, Amélia tomava o tão sonhado ba­nho quente, enquanto Gabriel continuava na sala com os irmãos e as cunhadas, provavelmente relatando a aventura que haviam vivido. De sua parte, não sabia nem como po­deria começar a explicar o que lhe acontecera na Mansão Collingsworth.

Rosalind a ajudava a lavar os cabelos. A presença da ami­ga a confortava, embora tivesse preferido a de Gabriel.

— Quando quiser falar sobre o que aconteceu, estarei pronta para ouvi-la. Vimos coisas muito estranhas, Amélia. Nada mais poderá nos chocar ou parecer incrível.

— É verdade, então, que a maldição foi desfeita? Para todos os irmãos, Rosalind?

— Por ora, sim. Quem sabe o que o futuro nos trará? Mas, juntos, enfrentaremos o mal e dividiremos nossas alegrias. E você, minha amiga? Continua não acreditando no amor?

Amélia riu, saindo da banheira e se enrolando em uma toalha quente e felpuda. Depois de vestir um robe, ela se sentou diante de um espelho, deixando Rosalind desemba­raçar seus cabelos.

— O que acha?

— Acho que foi capturada por um Wulf, como todas nós.

As mulheres haviam subido para conversar com Amélia, e os cinco irmãos, antes amaldiçoados, agora livres, conver­savam no salão.

— Mora e Raef? — Armond perguntou. — Acha que vão tentar mais alguma coisa?

Gabriel estava certo disso. Só não sabia quando eles fa­riam uma nova tentativa.

— A maldição foi quebrada para nós, mas, com ela, per­demos a única vantagem que tínhamos. Não podemos mais farejar a presença do perigo.

— É verdade — disse Jackson. — Agora somos homens comuns.

Gabriel notou que ele bebia chá, embora todos os outros tomassem conhaque. Jackson lutara contra seus demônios e saíra vitorioso. Estava orgulhoso de seu irmão. A esposa dele podia ser uma feiticeira, mas era a bruxa mais linda que Gabriel já vira. Sebastian, o bebê, fora levado por Lucinda depois de ter sido apresentado ao tio. Seu sobrinho Trenton era um bebê grande e forte de olhos verdes e caracóis loiros. Tudo era estonteante. Wulfglen, antes solitária e deserta, agora estava cheia de vida e movimento, os novos criados, em sua maioria trazidos por Rosalind.

— Desculpem, mas não pude deixar de ouvir o que diziam — revelou a bela Lucinda, esposa de Jackson, ao entrar no salão. — Gabriel, há algo que deve saber sobre essa suposta perda de habilidades que acompanhavam a maldição. Algo que eu não disse nem mesmo a Jackson. — Ela se dirigiu à janela de onde era possível ver o gramado. — Podem vir até aqui, por favor?

Todos atenderam ao chamado.

— Olhem ali, entre as árvores que marcam o início do bosque — Lucinda apontou.

Cinco pares de olhos brilhavam na escuridão.

— Eles mentiram! — Gabriel reagiu nervoso, olhando em volta em busca de armas. — Voltaram para nos atacar!

— Não, Gabriel — Lucinda o corrigiu. — Não são eles. É o espírito do lobo que um dia esteve dentro de você.

— Mas... são cinco!

— Um para cada irmão — ela confirmou.

— E o que fazem ali? — quis saber Jackson. — O que estão esperando?

Lucinda olhou para cada um deles.

— Que vocês os chamem de volta.

— Chamá-los de volta? — Armond repetiu. — Por que diabos faríamos essa tolice? Trazer de volta a maldição?

— Não, não a maldição, porque dessa vez a escolha terá sido de vocês. Eles estão ali apenas para o caso de uma ne­cessidade. Se precisarem deles...

— Mas como podem nos ajudar? — Gabriel estava confuso. — Se perdemos o controle quando eles surgem...

— Mas é possível ter o controle — contou Jackson. — Lucinda me ensinou como pensar como um homem, mesmo na forma de lobo. Se quiserem, ela pode ensinar a todos.

Gabriel ainda não sabia se queria de volta as habilidades perdidas. Estava cansado, e precisava estar com Amélia, apesar da alegria que sentia por estar ali em sua casa, cer­cado pela família.

— Se for preciso... — ele disse. — Mas, por enquanto, eles continuam lá fora. E, se me dão licença, vou me recolher.

Ele serviu conhaque em duas taças e, sorrindo, retirou-se.

— Eu não levaria conhaque para lady Collingsworth — Lucinda disse para o cunhado. — Chá seria melhor para o bebê.

Gabriel derrubou as taças.

— Bebê? — Ele encarou a bela feiticeira. — Que bebê?

— Deve ser uma epidemia. — Riu Armond, lembrando que todos ali tinham filhos pequenos ou esperavam tê-los nos próximos meses.

Gabriel não ria. Nunca ousara sonhar com filhos, nem mesmo com uma esposa. Mas Amélia o ensinara a sonhar novamente, a rir outra vez, a ter esperança. Como um ho­mem que vivera tanto tempo sob uma maldição terrível podia se sentir tão abençoado? Era simples. Bastava encontrar o amor e render-se a ele.

 

Londres, dois anos depois...

Treville era a cara do pai, e toda sociedade sabia que a criança não era filha do falecido marido de Amélia. Os rumores eram terríveis, mas ela não se importava.

Se desse ouvidos à maledicência, não estaria no meio do Hyde Park, vestindo roupas de homem e calçando botas. Ela e Gabriel haviam cavalgado naquela manhã. Seu vestuário causara certa comoção, mas ela estava acostumada com isso. Gabriel conversava com os pais dela, que brincavam com o pequeno Treville em um cobertor estendido sobre a relva. Eles adoravam o neto, e fingiam não ouvir os comentários sobre as pequenas indiscrições da filha.

Todos os Wulf estavam em Londres. A temporada havia começado, e a viúva, duquesa de Brayberry, mal podia es­perar para oferecer seu primeiro baile Wulf. Todos iriam ao evento, porque a curiosidade era grande. Amélia estava pen­sando em comparecer, vestindo calça e usando botas. A velha duquesa ficaria encantada com a ousadia.

— Vai acabar lançando moda, minha esposa — Gabriel disse rindo. — Logo todas as mulheres de Londres estarão vestindo calças masculinas.

— Tenho certeza disso. Está nervoso com seu primeiro evento social?

— Confesso que estaria mais calmo em Wulfglen, mas...

— Gabriel, o bebê. Acha que ele vai ficar bem?

— Sim, porque nós vamos cuidar disso. Se Treville for diferente, contaremos a ele por quê, e diremos a ele que ne­nhuma maldição o impedirá de viver a vida intensamente e ser feliz, de ter sonhos e esperanças.

Ela sorriu aliviada. Armond e Rosalind também tinham um filho, e Jackson e Lucinda eram pais de dois meninos encantadores. Merrick e Anne tinham uma filha. O filho de Sterling, embora ainda engatinhasse, parecia ter um dom especial com os animais, como o pai dele.

A maldição que os impedira de viver acabara por compen­sá-los no final. Talvez esse fosse o presente de despedida da bruxa para Ivan Wulf, embora ele nunca houvesse anteci­pado que poderia haver um presente em uma maldição. Amé­lia lembrou os olhos brilhantes que via todas as noites na escuridão. O espírito do lobo, esperando.

— Acha que veremos Mora ou Raef nessa temporada? — ela perguntou.

— Suponho que não saberemos se os virmos.

— Você e seus irmãos pretendem caçá-los?

— Só se for necessário. Eles já nos forçam a retomar a vida em sociedade, independentemente de nossa vontade. Alguém precisa proteger nossa raça da deles. Quem pode garantir a segurança daqueles que não conhecem os segredos das sombras? — ele perguntou, olhando para os sogros e para os filhos.

Amélia sabia que ele estava certo. Não queria mais a aben­çoada ignorância. Só os fortes podiam proteger os fracos, e só uma mulher corajosa podia viver ao lado de um guardião. Ela era essa mulher. A mulher de Gabriel. Não temia que o marido um dia tivesse de abraçar novamente o espírito do lobo para proteger sua raça de uma invasão.

Lucinda havia lhe contado que essa missão seria confiada a outros homens. Indivíduos sem filhos ou esposas para preo­cupá-los. Homens que aceitariam de bom grado uma maldi­ção e um dom, e que lutariam pelos abençoadamente igno­rantes. E se Lucinda dizia que era assim, assim seria.

 

                                                                                Ronda Thompson  

 

                      

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