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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RAIO VERDE / Júlio Verne
O RAIO VERDE / Júlio Verne

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RAIO VERDE

 

«Haveis observado alguma vez o pôr do Sol em horizonte marítimo?

Certamente.

Tende-lo seguido até ao momento em que a parte superior do seu disco toca a linha de água e vai desaparecer?

É muito provável.

Mas haveis notado o fenómeno que se produz no instante preciso em que o radioso astro despede o seu último raio, se o céu, limpo de nuvens, está então em toda a sua pureza?

Talvez não!

Pois bem, a primeira vez que se vos oferecer a ocasião- e oferece-se muito raramente - de fazer esta observação, não será, como se poderia supor, um raio vermelho que virá ferir-vos a retina, será um raio «verde», mas de um verde maravilhoso, de um verde que nenhum pintor pode tirar do seu pincel, de um verde cuja gradação a natureza nunca reproduziu, nem no matiz tão variado dos vegetais, nem na cor dos mais límpidos mares!

Se no Paraíso existe verde, não pode deixar de ser este, que é, sem dúvida, o verdadeiro verde da Esperança!»

 

 

                                       O IRMÃO SAM E O IRMÃO SIB

- Bet!

- Beth!

- Bess!

- Betsey!

- Betty!

Tais foram os nomes que sucessivamente ressoaram no magnífico salão de Helensburgh; era uma mania dos irmãos Sam e Sib interpelar por esta forma a criada da sua casa de campo.

Mas, naquele momento, estes diminutivos familiares do nome Isabel não fizeram aparecer a boa mulher como se a tivessem chamado por todo o seu nome.

Foi o mordomo Partridge, em pessoa, quem se fez ver à porta da sala, com o seu gorro na mão.

Partridge dirigiu-se a duas pessoas de boa presença, assentadas no vão de uma janela, cujos três lanços de losangos envidraçados formavam sacada na fachada da casa.

- Os senhores chamaram a senhora Bess - disse ele-, mas a senhora Bess não está em casa.

- Onde está ela então, Partridge?

- Acompanha miss Campbell, que passeia no parque. E Partridge retirou-se gravemente a um aceno das

duas personagens.

Eram os dois irmãos Sam e Sib - de seu verdadeiro nome de baptismo Samuel e Sebastião - tios de miss Campbell.

Escoceses de velha raça, escoceses de um antigo clã das Terras Altas, entre ambos contavam cento e doze anos de idade; havia apenas quinze meses de diferença entre Sam, o mais velho, e Sib, o mais novo.

Para esboçar estes protótipos da honra, da bondade e da dedicação, basta recordar que toda a sua existência havia sido consagrada a sua sobrinha.

Eram irmãos de sua mãe, que, ficando viúva depois de um ano de casamento, foi rapidamente arrebatada por uma doença fulminante.

Sam e Sib Melvill ficaram, pois, os únicos guardas, neste mundo, da pequenina órfã.

Unidos na mesma ternura, só para ela e por ela pensavam, sonhavam e viviam.

Por essa causa haviam-se conservado solteiros sem mágoa, sendo, como eram, destes bons seres a quem na Terra cabe o papel de tutor.

E ainda isto não é tudo: o mais velho transformou-se em pai e o mais novo em mãe da criancinha. Por isso acontecia às vezes saudá-los muito naturalmente com um:

- Bons dias, papá Sam; como passa, mamã Sib?

Com quem melhor se podiam comparar, estes dois tios, menos na aptidão para os negócios, era com aqueles caridosos negociantes, tão bons, tão unidos, tão afectuosos, os irmãos Checrylle, da cidade de Londres, as mais perfeitas criaturas que a imaginação de Dickens produziu.

Seria impossível encontrar mais perfeita semelhança, e ainda que se deva acusar o autor de haver copiado o seu tipo da obra-prima Nicolau Nickleby, ninguém se poderá queixar desta cópia.

Sam e Sib Melvill, aliados pelo casamento de sua irmã a um ramo colateral da antiga família dos Campbell, nunca se haviam separado.

A mesma educação fizera-os semelhantes sob o ponto de vista moral. Haviam recebido juntos a mesma instrução, no mesmo colégio e na mesma classe.

Como geralmente emitiam as mesmas ideias sobre todos os assuntos, em termos idênticos, um podia sempre acabar a frase do outro, com as mesmas palavras sublinhadas pelos mesmos gestos.

Em suma, estes dois seres só faziam um, posto que houvesse alguma diferença na sua constituição física. Com efeito, Sam era um pouco mais alto que Sib, Sib um pouco mais gordo que Sam; mas poderiam trocar os seus cabelos grisalhos, sem alterar o seu honesto tipo, em que se concentrava toda a nobreza dos descendentes do clã Melvill.

Será necessário acrescentar que no corte do seu fato, sempre à moda antiga, na escolha das fazendas, de bom pano inglês, tinham o mesmo gosto, a não ser - que poderia explicar este ligeiro desacordo? - a não ser que Sam parecia preferir o azul-escuro, e Sib o castanho-carregado.

Em verdade, quem não queria viver na intimidade

destes dignos gentlemen}

Acostumados a andar ao mesmo passo na vida, parariam, sem dúvida, a curta distância um do outro, quando soasse a hora da última paragem. Em todo o caso, eram sólidos estes dois últimos esteios da casa de Melvill.

Deviam sustentar ainda por muito tempo o velho edifício da sua raça, que datava do décimo quarto século - tempos épicos dos Roberto Bruce e dos Wallace, período heróico durante o qual a Escócia disputou aos Ingleses os direitos à independência.

Se Sam e Sib Melvill já não tinham tido ocasião de combater a favor do seu país, se a sua vida, menos agitada, se havia passado no sossego e bem-estar que dá a fortuna, não podiam por isso ser acusados, nem supor-se que houvessem degenerado. Tinham, fazendo o bem, continuado as nobres tradições dos seus antepassados.

Assim, ambos saudáveis, não tendo a queixar-se de uma irregularidade na vida sequer, estavam destinados a adiantar-se em anos, sem nunca envelhecerem de espírito ou de corpo.

Talvez tivessem um defeito - quem pode gabar-se de ser perfeito?

Era adornar a sua conversa com imagens e citações pedidas ao célebre castelão de Abbotsford, e mais especialmente aos poemas épicos de Ossian, pelos quais eram doidos.

Mas quem o poderia estranhar no país de Fingal e de Walter Scott?

Para acabar de os pintar com um último traço, convém notar que eram grandes tomadores de tabaco.

Ora ninguém ignora que a tabuleta dos estancos, no Reino Unido, representa as mais das vezes um valente escocês, de caixa de rapé na mão, pavoneando-se no seu trajo tradicional.

Pois bem, os irmãos Melvill poderiam figurar vantajosamente em uma dessas tabuletas de zinco grosseiramente pintadas que rangem na frente das lojas.

Tomavam tantas ou mais pitadas do que quem quer que fosse ou do lado de cá ou de lá do Tweed.

Mas, característica particularidade, tinham uma única caixa de rapé, imensa na verdade.

Este móvel portátil passava sucessivamente da algibeira de um para a algibeira do outro.

Era como mais um elo entre eles.

É escusado dizer que sentiam ao mesmo tempo, dez vezes por hora talvez, a necessidade de sorver o excelente pó nicótico, que mandavam vir de França.

Quando um tirava a caixa de rapé da algibeira do seu casaco, é que ambos tinham desejos de uma boa pitada, e, se espirravam, de se dizer-Viva!

Finalmente, duas verdadeiras crianças, os irmãos Sam e Sib, em tudo quanto dizia respeito às realidades da vida; muito pouco em dia com as coisas práticas deste mundo; em negócios industriais, financeiros ou comerciais, perfeitamente leigos, e sem pretensão de os conhecer; em política, talvez Jacobitas(1) no íntimo da alma, conservando alguns prejuízos contra a dinastia reinante de Hanôver, pensando no último dos Stuarts, como um francês poderia pensar no último dos Valois; nas questões de sentimento, finalmente, menos entendidos ainda.

E, contudo, os irmãos Melvill tinham uma ideia fixa: ler claramente no coração de miss Campbell, adivinhar os seus mais secretos pensamentos, guiá-los se fosse necessário, desenvolvê-los se fosse preciso, e, finalmente, casá-la com um bom rapaz por eles escolhido, o qual certamente não poderia deixar de a fazer feliz.

A acreditá-los-ou, antes, a ouvi-los falar - parecia que haviam precisamente encontrado o honesto moço a quem pertencia na Terra esta agradável missão.

-Assim, Helena saiu, irmão Sib?

- Sim, mano Sam; mas são cinco horas, não pode demorar-se.

- E logo que ela entrar...

- Julgo, irmão Sam, que não seria fora de propósito termos com ela uma conversa séria.

- Daqui a algumas semanas, mano Sib, a nossa filha completará dezoito anos.

- A idade de Diana Vernon, irmão Sam. E não é ela tão encantadora como a adorável heroína de Rob-Roy?

- Decerto, mano Sam, e pela graça dos seus modos...

 

*1. Partidários de Jacques II e de seu filho Carlos Eduardo, os representantes dos Stuarts, que a dinastia de Hanôver havia despojado do trono. (N. do T.)

 

- A forma dos seus chistes...

- A originalidade das suas ideias...

- Faz antes lembrar Diana Vernon do que Flora Mac Ivor, o grande, o imponente tipo de Warveley.

Os irmãos Melvill, orgulhosos do seu escritor nacional, citaram ainda alguns outros nomes das heroínas do Antiquário, de Guy Mamering, do Abade do Mosteiro, da Bela Rapariga de Perth, do Castelo de Kenilworth, etc; mas todas, na sua opinião, deviam conceder a primazia a miss Campbell.

- É uma roseira nova que nasceu um pouco depressa, mano Sib, e a que convém...

- Dar um amparo, irmão Sam. Ora eu tenho de mim para mim que o melhor guia...

- É evidentemente um marido, irmão Sib, porque também enraíza no mesmo solo.

- E cresce muito naturalmente, irmão Sam, como a delicada roseira que protege!

Um como o outro, os irmãos Melvill, tios, tinham encontrado esta metáfora, tirada do livro intitulado o Perfeito Jardineiro. Seguramente ficaram satisfeitos com ela, porque nas suas fisionomias raiou um alegre sorriso.

A caixa de rapé comum foi aberta pelo mano Sib, que ali mergulhou delicadamente os seus dois dedos; depois passou-a para a mão do mano Sam, o qual, depois de haver tomado uma boa pitada, a meteu no bolso.

- Assim estamos de acordo, mano Sam?

- Como sempre, mano Sib!

- Mesmo na escolha do guia protector?

- Onde se poderia encontrar um mais simpático e mais do agrado de Helena que esse moço sábio, o qual por mais de uma vez nos manifestou sentimentos tão dignos...

- E tão sérios, a seu respeito?

- Seria difícil, na verdade. Instruído, formado nas Universidades de Oxford e de Edimburgo...

- Físico como Tyndall...

- Químico como Faraday...

- Conhecendo a fundo a causa de todas as coisas neste mundo sublunar, mano Sam.

--E que não pode ser apanhado em falso, seja em que assunto for, mano Sib.

- Descendente de uma excelente família do condado de Fife, e, demais a mais, possuidor de uma fortuna muito regular.

- Sem falar na sua presença, muito agradável, na minha opinião, mesmo com os seus óculos de alumínio!

Embora os óculos do herói fossem de aço, de níquel, de ouro até, os irmãos Melvill não achariam isso um vício redibitório.

É certo que estes aparelhos ópticos ficam bem aos jovens sábios, a quem maravilhosamente completam o aspecto um pouco grave.

Mas o doutor das supraditas Universidades, o químico, o físico, agradaria a miss Campbell?

Se miss Campbell se parecia com Diana Vernon, Diana Vernon, como é sabido, não nutria pelo seu sábio primo Rashleigh outro sentimento que não fosse uma amizade limitada, e no fim do volume não casava com ele.

Bem, isto não era bastante para inquietar os dois irmãos.

Punham nestes negócios toda a inexperiência de solteirões, muito incompetentes em tais assuntos.

-Já se encontraram muitas vezes, mano Sib, e o nosso jovem amigo não pareceu de modo algum insensível à beleza de Helena.

- Não o duvido, mano Sam, se o divino Ossian tivesse de celebrar as suas virtudes, a sua beleza, a sua elegância, chamar-lhe-ia Moina, isto é, adorada por todos.

- A menos que lhe não desse o nome de Fiona, mano Sib, isto é, formosa sem igual das épocas gaélicas!

- Não adivinhara ele a nossa Helena, mano Sam, quando dizia: ((Ela deixa o retiro onde em segredo suspirava, e aparece em toda a sua beleza como a Lua no extremo de uma nuvem no Oriente...»

- E o brilho dos seus encantos envolve-a com um raio de luz, mano Sib, e o ruído dos seus leves passos delicia o ouvido como uma música agradável.

Felizmente, os dois irmãos, terminando aqui as suas citações, recaíram do céu um pouco brumoso dos bardos no domínio das realidades.

- Seguramente - disse um-, se Helena agrada ao nosso jovem sábio, ele não pode deixar de lhe agradar...

-E se, porventura, mano Sam, ela ainda lhe não concedeu toda a atenção devida às grandes qualidades com que a natureza foi para com ela tão pródiga...

- Mano Sib, é unicamente porque ainda lhe não dissemos que era tempo de pensar em casar-se.

- Mas no dia em que dirigirmos o seu pensamento para este ponto, admitindo que tenha alguma prevenção, se não contra o marido, ao menos contra o casamento...

- Não tardará a responder-nos sim, mano Sam.

- Como esse excelente Benedito, mano Sib, que, após haver resistido longo tempo...

- Acaba, como no desenlace do Mundo Ruído para Nada, por desposar Beatriz!

Eis aqui como dispunham as coisas os dois tios de miss Campbell, e o desenredo desta combinação parecia-lhes tão natural como o da comédia de Shakespeare.

Haviam-se erguido a par, observando-se com um fino sorriso, e esfregando as mãos a compasso.

Era negócio concluído este casamento!

Que dificuldade poderia sobrevir?

O mancebo não havia já feito o seu pedido?

A rapariga lhe daria a resposta, com que não deviam mesmo preocupar-se.

Reunia todas as conveniências. Restava apenas fixar a data.

Na verdade, seria uma bonita cerimónia.

Realizar-se-ia em Glásgua.

Certamente, não seria na catedral de San-Mungo, única igreja da Escócia que, com San-Magnus das Orcades, foi respeitada no tempo da Reforma.

Não!

É muito maciça e, por consequência, muito triste para um casamento que, na ideia dos irmãos Melvill, devia ser como um desabrochar de mocidade, uma irradiação de amor.

Escolheriam de preferência Santo Andrew, ou Santo Enoch, ou mesmo São Jorge, que pertence ao bairro mais distinto da cidade.

O mano Sam e o mano Sib continuavam a desenvolver os seus projectos por um modo que mais semelhava o monólogo que o diálogo, por isso que era sempre a mesma ordem de ideias, expressas do mesmo modo. Mesmo conversando, observavam através dos losangos da larga janela as belas árvores do parque, sob as quais miss Campbell passeava neste momento; os alegretes verdejantes encaixilhando torrentes de límpida água, e o céu impregnado dessa luminosa bruma que parece peculiar aos Highlands da Escócia Central.

Não olhavam um para o outro; seria inútil, mas, de bocado a bocado, por um como afectuoso instinto, davam o braço, e apertavam-se a mão, a fim talvez de melhor estabelecerem a comunicação dos pensamentos por intervenção de alguma corrente magnética.

Sim! Seria magnífico! Far-se-iam as coisas grande e nobremente.

Os pobres de West-Jorge Street, se os houvesse - e onde é que os não há?-, não seriam esquecidos na festa.

E se, contra toda a expectativa, miss Campbell quisesse que tudo corresse com a maior simplicidade e, sobre o assunto, algumas observações tivesse a fazer a seus tios, os seus tios saberiam bem resistir-lhe, pela primeira vez na sua vida.

Não transigiriam nem sobre este ponto, nem sobre qualquer outro.

Havia de ser de grande gala que os convidados, para o jantar das núpcias, «beberiam à pedra do lar», conforme o antigo uso.

E o braço direito do mano Sam estendia-se um pouco, bem como o braço direito do mano Sib, como se de antemão tivessem trocado a famosa saúde escocesa.

Nesse momento, abriu-se a porta da sala. Apareceu uma rapariga corada pela excitação de uma corrida rápida. Trazia na mão um jornal, que agitava. Dirigiu-se para os irmãos Melvill e distinguiu-os com dois beijos cada um.

- Bons dias, tio Sam - cumprimentou ela.

- Bons dias, querida filha.

- Como vai isso, tio Sib?

- Maravilhosamente!

- Helena - declarou o mano Sam-, temos uma pequena combinação a fazer.

- Uma combinação! Que combinação? Que conspiração é essa, meus tios? - perguntou miss Campbell, olhando maliciosamente ora para um, ora para outro.

- Tu conheces um rapaz chamado Aristobulo Ursiclos?

- Conheço.

- Desagrada-te?

- Porque me havia de desagradar, tio Sam?

- Então agrada-te.

- Porque não me havia de agradar, tio Sib?

- Finalmente, meu irmão e eu, depois de havermos maduramente reflectido, pensamos em to dar por marido.

- Casar-me, eu! - exclamou miss Campbell, que desfechou uma tão alegre gargalhada, como nunca os ecos do salão haviam repetido.

-Não te queres casar? - perguntou o mano Sam.

- Para quê?

- Nunca? - interrogou o mano Sib.

- Nunca - repetiu miss Campbell, tomando um ar sério, que a sua boca risonha desmentia-; nunca, meus tios... pelo menos enquanto não tiver visto...

  

- Enquanto não tiver visto... o Raio Verde.

 

                   HELENA CAMPBELL

A casa de campo habitada pelos irmãos Melvill e por miss Campbell estava situada a três milhas da pequena vila de Helensburgh, próximo do Gare-Loch, uma dessas pitorescas chanfraduras que se abrem caprichosamente na margem direita do Clyde.

Durante a estação invernosa, os irmãos Melvill e sua sobrinha viviam em Glásgua, num velho palácio de West-Jorge Street, no bairro aristocrático da nova cidade, próximo de Blythswood Square.

Era ali que moravam seis meses no ano, a menos que um capricho de Helena - a quem obedeciam sem observações-não os arrastasse a alguma longa viagem à Itália, à Espanha ou à França.

Durante estas peregrinações, continuavam vendo só pelos olhos da jovem sobrinha, indo aonde lhe agradava ir, parando onde lhe convinha parar, admirando somente o que ela admirava.

Depois, quando miss Campbell fechava o álbum, no qual consignara, com um traço de lápis ou com um traço de pena, as suas impressões de viagem, tomavam docilmente o caminho do Reino Unido, e tornavam a entrar, não sem algum prazer, na confortável casa de West-Jorge Street.

Tendo o mês de Maio já três semanas de idade, o mano Sam e o mano Sib sentiam então um imoderado desejo de partir para o campo.

Acontecia-lhes isto justamente na ocasião em que miss Campbell manifestava um não menos fervente anseio de deixar, com Glásgua, o ruído de uma grande cidade industrial, de fugir à agitação do negócio que se reflectia às vezes até ao bairro de Blythswood Square, de tornar a ver, finalmente, um céu menos fumoso, de respirar um ar da antiga metrópole, à qual os lordes do tabaco, «Tobacco-Lords», deram, há alguns séculos, a importância comercial.

Toda a família, amos e criados, partiu pois para a quinta, distante, quando muito, umas vinte milhas.

É um bonito sítio o da vila de Helensburgh. Fez-se ali uma estação de banhos, muito frequentada por todos aqueles a quem os seus ócios permitem variar os passeios do Clyde pelas excursões ao lago Katrine e ao lago Lomond, queridos dos viajantes.

A uma milha da pequena vila, nas margens do Gare-Loch, haviam os irmãos Melvill escolhido o melhor local para aí erguer a sua casa de campo, no meio de um labirinto de magníficas árvores, cercada de uma rede de águas correntes, sobre um solo acidentado, cujo relevo se prestava a todos os acidentes de um parque.

Frescas sombras, verdejantes relvas, variados bosques, canteiros de flores, prados cuja «erva higiénica» cresce especialmente para privilegiados carneiros, lagos com as suas toalhas de água de um claro-escuro, povoados de cisnes selvagens, graciosas aves de quem Wordsworth disse:

O cisne dupla nave, o cisne essa sua sombra!

enfim, tudo quanto a natureza pode, sem intervenção da mão do homem, reunir de maravilhas para os olhos, tal era a residência de Verão desta opulenta família.

Convém acrescentar que, da porção do parque situada acima do Gare-Loch, a vista era admirável.

Para além do estreito golfo, à direita, o olhar pousava primeiro sobre essa península de Rosenheat, em que se ergue uma bonita vila italiana pertencente ao duque de Argyle.

À esquerda, o pequeno burgo de Helensburgh desenhava a linha ondulada das suas casas litorais, dominadas por dois ou três campanários, o seu cais elegante, estendido por sobre as águas do lago para o serviço dos vapores, e no extremo horizonte as suas colinas alegradas por algumas casas pitorescas.

Em frente, na margem esquerda do Clyde, Port-Glásgua, as ruínas do castelo de Newark, Greenock e a sua floresta de mastros empenachados de pavilhões multicores formavam um panorama extremamente variado, de que os olhos se desprendiam a custo.

E esta vista era ainda mais bela, com o afastamento dos dois horizontes, se se subia à principal torre da quinta.

Esta torre quadrada, com guaritas levemente suspensas nos três ângulos da sua plataforma, ornamentada com ameias e seteiras, cingida no parapeito com uma renda de pedra, tornava-se notável no quarto ângulo por uma torrinha octogonal.

Ali se erguia o mastro do pavilhão que flutua por sobre o tecto de todas as casas, bem como na popa de todos os navios do Reino Unido.

Esta espécie de torreão, de construção moderna, dominava assim a totalidade das edificações que constituíam a casa de campo propriamente dita, com os seus tectos irregulares, janelas rasgadas a capricho, múltiplas empenas, sacadas ultrapassando as fachadas, gelosias coladas às janelas, chaminés brilhantemente lavradas no remate... fantasias muitas vezes graciosas com que voluntariamente se enriquece a arquitectura anglo-saxónia.

Ora, era sobre o último eirado da torrezinha, à sombra das dobras das cores nacionais, desfraldadas à brisa do Firth of Clyde, que miss Campbell gostava de sonhar durante muitas horas.

Havia ali arranjado um bonito refúgio, arejado como um observatório, onde podia ler, escrever, dormir, fosse qual fosse o tempo, ao abrigo do vento, do sol e da chuva.

Era ali que as mais das vezes se poderia procurar.

Se lá não estava, então é que a sua fantasia a fazia perder-se nas alamedas do parque, uma vezes só, outras acompanhada da senhora Bess, a menos que o seu cavalo não a arrebatasse através dos campos circunvizinhos, seguida do fiel Partridge, que apressava o seu para não se distanciar muito da sua jovem ama.

Entre os numerosos criados da quinta, convém especializar estes dois honestos servos, ligados desde a mais tenra idade à família Campbell.

Isabel, a «Luckie», a mãe, como se costuma designar a despenseira, a criada grave entre os Highlands, contava nesta época tantos anos como de chaves trazia penduradas do feixe que lhe caía à cinta, e não tinha ele menos de quarenta e sete. Isabel era uma verdadeira mulher de casa, séria, arranjada, conhecedora, que dirigia todo o serviço.

Talvez julgasse ter educado os irmãos Melvill, posto que fossem mais velhos do que ela, mas, com toda a certeza, tinha com miss Campbell cuidados maternos.

Junto desta preciosa intendente figurava o escocês Partridge, servo absolutamente dedicado a seus amos, sempre fiel aos antigos usos do seu clã.

Invariavelmente vestido com o trajo tradicional dos montanheses, trazia o gorro azul variegado, o saiote de lã aos quadrados de várias cores que lhe descia até aos joelhos por cima da manta philibeg(1), o pouch, espécie de bolsa de rede de longos pêlos, as compridas polainas, seguras por fitas dispostas em losango, e as charcas de couro de boi, das quais fazia sandálias.

Uma mulher como Bess para dirigir a casa, e um Partridge para a guardar, que mais é necessário a quem quiser ter a certeza da paz doméstica neste mundo sub-lunar?

Certamente notaram que, na ocasião em que Partridge veio ao chamado dos irmãos Melvill, disse, falando da jovem senhora: miss Campbell.

É que se o digno escocês a designasse por miss Helena, isto é, pelo seu nome próprio, teria infringido as regras que marcam os graus hierárquicos, infracção mais especialmente designada pela palavra «snobisme».

Jamais, efectivamente, a filha mais velha, ou a filha única de uma família da gentry (2), mesmo no berço, usa do nome que recebeu no baptismo. Se miss Campbell fosse filha de par, chamar-se-ia lady Helena; ora, o ramo dos Campbell, a que pertencia, era apenas colateral e muito afastado do ramo directo do paladino Sir Colin Campbell, cuja origem remonta às cruzadas.

De há muitos séculos, as ramificações, saídas do tronco comum, se haviam desviado da linha do glorioso antepassado, de quem procedem os clãs de Argyle, de Brea-dalbane, de Lochnell e outros; mas, embora de longe, Helena, por seu pai, sentia nas veias um pouco de sangue desta ilustre família.

Contudo, por ser apenas miss Campbell, não deixava de ser uma verdadeira escocesa, uma dessas nobres filhas de Thule, de olhos azuis e loiros cabelos, cujo retrato

 

*1. O philibeg, que nós traduzimos por manta, é como o plaid, que os escoceses põem à cinta, a tiracolo, e até em caso de frio soltam de forma a chegar aos pés, como nós fazíamos com os xales-mantas. (N. do T.)

*2. Gentry, nobreza de sangue azul.

 

gravado por Findon ou Edwards, e colocado no meio das Minna, das Brenda, das Amy Robsart, das Flora Mac Ivor, das Diana Vernon, das miss Wardour, das Catarina Glover, das Maria Avenel, não teria desenfeitado esses keepsakes, onde os Ingleses gostam de reunir os mais belos tipos femininos do seu grande romancista.

Na verdade, nada mais encantador que miss Campbell. Era digno de admiração o seu bonito rosto de olhos azuis-o azul dos lagos da Escócia, como se costuma dizer-, a sua estatura regular, mas elegante, andar um pouco altivo, fisionomia as mais das vezes sonhadora, quando um ligeiro traço de ironia não lhe vinha animar as feições, toda a sua pessoa, enfim, cheia de distinção e graça.

E miss Campbell não era somente bela, tinha a doçura da bondade.

Rica por» seus tios, não procurava parecer opulenta.

Caritativa, esforçava-se por justificar o antigo proló-quio gaélico: ((Possa a mão que se abre estar sempre cheia!»

Primeiro que tudo, dedicada à sua província, ao seu clã, à sua família, era tida por uma escocesa de alma e coração.

Teria dado ao mais ínfimo Sawney(1) a preeminência sobre o mais importante dos John Buli.

A sua fibra patriótica vibrava como a corda de uma harpa quando a voz de um montanhês lhe lançava através do espaço alguma ária nacional dos Highlands.

De Maistre disse:

- Há, em nós, dois seres: eu e o outro.

O ((eu» de miss Campbell era o ser sério, reflectido, encarando a vida mais sob o ponto de vista dos deveres que dos direitos.

 

*1. Designação vulgar do povo escocês, ou de qualquer escocês, como John Buli significa o povo inglês. (N. do T.)

 

O «outro» era o ser romanesco, um pouco inclinado às superstições, amando os contos fantásticos que tão naturalmente brotam na pátria de Fingal; um tanto ou quanto parenta das Lindamiras, essas adoráveis heroínas dos romances de cavalaria, percorria os glens próximos para ouvir ((a gaita de foles de Strathdearne», forma por que os Highlanders designam o vento que passa através das alamedas solitárias.

O mano Sam e o mano Sib amavam igualmente o ((eu» e o «outro» de miss Campbell; mas é forçoso confessar que se aquele os encantava pela sua razão clara, este não deixava de os confundir às vezes com as suas inesperadas réplicas, as suas caprichosas fugidas para países do sul, as suas cavalgadas súbitas no mundo dos sonhos.

E não era ele que, à proposta dos dois irmãos, respondera por uma forma tão extravagante?

- Casar-me! - teria dito o «eu». - Casar com o Sr. Ursiclos!... Veremos isso... depois falaremos!

- Nunca... enquanto não vir o Raio Verde! - havia retorquido o «outro».

Os irmãos Melvill olhavam-se sem entender, e, enquanto miss Campbell se instalava na grande e gótica cadeira de braços colocada no vão da janela:

- Que quer ela dizer com o Raio Verde? - perguntou o mano Sam.

- E para que quer ver esse raio? - acrescentou o mano Sib.

Para quê?

Já o vamos saber.

 

               O ARTIGO DO «MORNING POST»

Eis aqui o que os amadores de curiosidades físicas poderiam ter lido no «Morning Post» desse dia:

 

«Haveis observado alguma vez o pôr do Sol em horizonte marítimo?

Certamente.

Tende-lo seguido até ao momento em que a parte superior do seu disco toca a linha de água e vai desaparecer?

É muito provável.

Mas haveis notado o fenómeno que se produz no instante preciso em que o radioso astro despede o seu último raio, se o céu, limpo de nuvens, está então em toda a sua pureza?

Talvez não!

Pois bem, a primeira vez que se vos oferecer a ocasião- e oferece-se muito raramente - de fazer esta observação, não será, como se poderia supor, um raio vermelho que virá ferir-vos a retina, será um raio «verde», mas de um verde maravilhoso, de um verde que nenhum pintor pode tirar do seu pincel, de um verde cuja gradação a natureza nunca reproduziu, nem no matiz tão variado dos vegetais, nem na cor dos mais límpidos mares!

Se no Paraíso existe verde, não pode deixar de ser este, que é, sem dúvida, o verdadeiro verde da Esperança!»

 

Tal era o artigo do «Morning Post», o jornal que miss Campbell trazia na mão quando entrou na sala.

Esta notícia havia-a tão somente entusiasmado.

Assim, foi com voz ardente que leu a seus tios as linhas acima citadas, que sob uma forma lírica contavam as belezas do Raio Verde.

Mas o que miss Campbell lhes não disse é que precisamente esse Raio Verde se referia a uma velha lenda, cujo íntimo sentido lhe havia escapado até então, lenda inexplicada entre muitas outras nascidas no país dos Highlands, e que afirma o seguinte: é que esse raio tem o dom de fazer que quem uma vez o viu nunca mais pode enganar-se em questões de sentimentos; é que a sua aparição destrói ilusões e mentiras; é que, quem foi bastante feliz por uma só vez o avistar, vê claro no seu coração e no dos outros.

Perdoe-se a uma jovem escocesa das Terras Altas a poética credulidade que na sua imaginação reanimara a leitura deste artigo do «Morning Post».

Ouvindo miss Campbell, os manos Sam e Sib entreolharam-se com uma espécie de pasmo, abrindo muito os olhos.

Até então, haviam vivido sem ver o Raio Verde e imaginavam que se podia perfeitamente viver sem o ter visto.

Parece que não era esta a opinião de Helena, que pretendia subordinar o acto mais importante da sua vida à observação daquele fenómeno, único entre todos.

-Ah! É isso que chamam o Raio Verde? - disse o mano Sam, remexendo docemente a cabeça.

- É-respondeu miss Campbell.

- Esse que tu queres absolutamente ver? - interrogou o mano Sib.

- Que eu verei, com a vossa licença, meus tios, e quanto antes, se mo permitis!

- E, depois, quando o tiveres visto?...

- Quando o tiver visto, poderemos tornar a falar do Sr. Aristobulo Ursiclos.

O mano Sam e o mano Sib, olhando-se à socapa, sorriram-se com um sorrisinho de inteligência.

- Vamos ver o Raio Verde - propôs um.

- Sem perder um instante!-apoiou o outro.

Miss Campbell fê-los parar com um gesto, no momento em que iam abrir a janela da sala.

- É necessário esperar o ocaso do Sol - explicou ela.

- Esta tarde então-replicou o mano Sam.

- O ocaso do Sol no mais puro dos horizontes - acrescentou miss Campbell.

- Pois bem, depois de jantar, iremos todos três ao alto de Rosenheat...-sugeriu o mano Sib.

- Ou, então, nada mais simples do que subirmos a torre da quinta - acrescentou o mano Sam.

- No alto de Rosenheat, como na torre da quinta - respondeu miss Campbell - não há outro horizonte senão o litoral do Clyde. Ora, é na linha do mar e do céu que é necessário observar o pôr do Sol. Ficam, pois, avisados os meus tios de haverem por bem colocar-me em frente deste horizonte, no mais breve espaço de tempo possível!

Miss Campbell falava tão seriamente, dirigindo-lhes ao mesmo tempo o seu mais bonito sorriso, que os irmãos Melvill não podiam resistir a uma intimação formulada nestes termos.

- Talvez não seja coisa de pressa... -julgou contudo dever observar o mano Sam.

E o mano Sib veio em seu auxílio, acrescentando:

- Sempre será tempo...

Miss Campbell abanou graciosamente a cabeça.

- Não será sempre tempo - replicou ela-, e é coisa de pressa, pelo contrário!

- É então no interesse do Sr. Aristobulo Ursiclos...

- disse o mano Sam.

- Cuja felicidade depende, ao que parece, da observação do Raio Verde...-acrescentou o mano Sib.

-É, porque estamos já no mês de Agosto, meus tios!

- explicou miss Campbell-, por isso os nevoeiros não devem tardar ensombrando o nosso céu da Escócia!

«E é porque convém aproveitar as lindas noites que o fim do Verão e o princípio do Outono nos reservam ainda! Quando partimos?

Certo é que se miss Campbell queria absolutamente ver, nesse ano, o Raio Verde, não havia tempo a perder.

Dirigir-se imediatamente para algum ponto do litoral escocês voltado ao poente, instalar-se aí o mais comodamente possível, ir todas as tardes observar o pôr do Sol e espreitar o seu último raio, é o que havia a fazer, sem demora mesmo de um só dia.

Talvez então, com alguma sorte, miss Campbell visse realizar-se o seu desejo sempre fantasista, se o céu se prestasse à observação do fenómeno-o que é raríssimo-, como muito bem dizia o «Morning Post».

E tinha razão o bem informado jornal! Primeiro que tudo tratava-se, pois, de procurar e de escolher um sítio da costa ocidental em que o fenómeno pudesse ser visível.

Ora, para o achar, era necessário deixar o golfo de Clyde.

Efectivamente, toda essa embocadura, ao longo do Firth of Clyde, está eriçada de obstáculos que limitam o campo da visão.

São os Kiles de Bute, a ilha de Arran, as penínsulas de Knapdale e de Cantyre, Jura, Islay, vasta dispersão de rochas fracturadas nos tempos geológicos, que transformam em uma espécie de arquipélago toda a parte ocidental do condado de Argyle.

Perfeitamente impossível de achar ali um seguimento de horizonte do mar, no qual a vista pudesse surpreender algum ocaso do Sol.

Portanto, para não sair da Escócia, era necessário caminhar mais para o norte ou mais para o sul, diante de um espaço ilimitado, e isto antes dos nevoentos crepúsculos do Outono.

Qual fosse o lugar, pouco importava a miss Campbell.

Costas da Irlanda, da França, da Noruega, costas da Espanha ou de Portugal, iria indiferente para o sítio em que o astro radioso, quando se some, a saudasse com os seus últimos raios, e, quer isto conviesse ou não aos irmãos Melvill, ser-lhes-ia forçoso segui-la!

Os dois tios apressaram-se pois em tomar a palavra, depois de se haverem consultado com o olhar.

Mas que olhar! Como era avivado por uns toques de finura diplomática!

- Pois bem, querida Helena-disse o mano Sam-, nada mais fácil que satisfazer! Vamos para Oban.

- É evidente que em parte alguma encontraríamos melhor do que Oban - acrescentou o mano Sib.

-Vá por Oban-aceitou miss Campbell. - Mas há longa vista do mar em Oban?

- Se há vista de mar! - exclamou o mano Sam.

- Muitas vistas em vez de uma! - gritou o mano Sib.

- Bem, partamos!

- Dentro de três dias - disse um dos tios.

- Em dois - corrigiu o outro, que julgou oportuno fazer esta ligeira concessão.

- Não; amanhã - decidiu miss Campbell, levantando-se no momento em que tocava a sineta para o jantar.

- Amanhã... sim... amanhã - concordou o mano Sam.

- Quem nos dera já lá estar! - acrescentou o mano Sib.

Diziam a verdade. E porque tanta pressa? É que Aristobulo Ursiclos estava precisamente em vilegiatura em Oban, desde uma quinzena de dias.

É que miss Campbell, que o ignorava, achar-se-ia ali na presença desse mancebo, escolhido entre os mais sábios, e, o que os manos Melvill não imaginavam, entre os mais fastidiosos.

É que - pensavam as duas maliciosas personagens - miss Campbell, depois de haver inutilmente fatigado a vista observando o pôr do Sol, renunciando a este capricho, acabaria por colocar a sua mão na mão do seu noivo. Mas, ainda que Helena o suspeitasse, teria partido do mesmo modo.

A presença de Aristobulo Ursiclos não era coisa que a prendesse. ,

- Bet!

- Beth!

- Bess! --Betsey!

- Betty!

Esta série de nomes rotumbou novamente no salão; mas desta vez a senhora Bess apareceu, e recebeu ordem de se aprontar, no dia seguinte, para partir imediatamente.

E, realmente, era necessário apressarem-se. O barómetro, que havia subido a mais de trinta polegadas e três décimos (769 milímetros), prometia bom tempo com alguma duração.

Partindo no dia seguinte, chegariam a Oban ainda a horas de assistir ao pôr do Sol.

Como é bem de supor, durante esse dia, a senhora Bess e Partridge estiveram muito ocupados em consequência da jornada.

As quarenta e sete chaves da despenseira retiniam no bolso da sua saia, como os guizos de uma mula espanhola.

Quantos armários, quantas gavetas a abrir e a fechar!

Talvez a quinta de Helensburgh ficasse por muito tempo desabitada.

Era necessário contar com os caprichos de miss Campbell!

E se fosse agradável a esta menina correr atrás do seu Raio Verde?

E se o Raio Verde pusesse alguma garridice em ocultar-se?

E se os horizontes de Oban não tivessem toda a limpidez necessária para esta espécie de observação?

E se fosse preciso procurar um outro posto astronómico num litoral mais meridional da Escócia, da Inglaterra, da Irlanda, talvez até do continente?

Partiam no dia seguinte, estava combinado, mas quando voltariam à quinta?

Num mês, em seis, num ano, em dez anos?

- Que ideia é esta de ver o Raio Verde? - perguntava a senhora Bess, que Partridge ajudava quanto podia.

- Não sei, Mavourneen - respondeu Partridge-, mas deve ser coisa importante, e a nossa jovem ama nada faz sem alguma razão, muito bem o sabeis.

Mavourneen é uma palavra de que se usa muito na Escócia - quase o equivalente de minha querida, em França, e não era desagradável à excelente despenseira ouvir o bom escocês dar-lhe este nome.

- Partridge--volveu ela-, sou da sua opinião, e julgo que esta fantasia de miss Campbell, que ninguém suspeitava, pode bem ocultar algum secreto pensamento.

- Qual?

- Talvez - quem sabe? - uma recusa, ou pelo menos um adiamento, aos projectos de seus tios!

- Realmente - replicou Partridge-, não sei porque aos Srs. Melvill se lhes encasquetou tanto o tal Ursiclos! Pois é este o marido que convém à nossa menina?

- Fique certo, Partridge- retorquiu a senhora Bess-, de que, se pouco lhe convier, não porá muito em não casar com ele. Dirá um bonito não aos tios, dando-lhes um beijo em cada face, e os tios hão-de ficar muito surpreendidos de terem podido pensar um só momento nesse pretendente, cujas pretensões não me agradam!

- Nem a mim, Mavourneen!

- Olhe, Partridge, o coração de miss Campbell é como esta gaveta, perfeitamente fechada com a sua fechadura de segurança. Só ela tem a chave, e para a abrir é necessário que ela a dê...

- Ou que lha tirem! - acrescentou Partridge, com um sorriso aprovativo.

- Só lha tirarão se a quiser deixar tirar!-retorquiu a senhora Bess - e que o vento arrebate a minha touca para o pináculo do campanário de San-Mungo se a menina casar com esse Sr. Ursiclos!

- Um meridional! - exclamou Partridge-, um Southern (1), que, se nasceu na Escócia, viveu sempre ao sul do Tweed!

A senhora Bess abanou a cabeça.

Estes dois Highlanders combinavam-se perfeitamente.

Para eles as Terras Baixas quase que não faziam parte da sua velha Caledónia, mau grado todos os tratados da União.

Decididamente, eles não eram partidários do projectado casamento.

Esperavam melhor para miss Campbell. Se parecia haver conveniência, essa conveniência não lhes bastava.

- Ah! Partridge - tornou a senhora Bess-, os antigos usos dos montanheses eram ainda os melhores, e com

 

* Homem do sul.

 

os costumes dos nossos velhos clãs creio que os casamentos eram mais felizes então do que o são hoje.

- Nunca disse coisa mais certa, Mavourneen! - corroborou Partridge com gravidade.-Então procurava-se um pouco mais o coração e muito menos a bolsa!

«O dinheiro é bom, sem dúvida, mas o afecto é muito melhor.

- Sim, Partridge, e, primeiro que tudo, queriam conhecer-se bem antes de se casarem.

((Lembra-se do que acontecia na feira de Santa Olla, em Kirkwall?

«Em todo o tempo que ela durava, desde o princípio do mês de Agosto, a gente moça associava-se aos pares, a que chamavam irmão e irmã do primeiro de Agosto! Irmão e irmã, não vos dispõe isto para, muito suavemente, virem a ser marido e mulher? E, olhai, estamos precisamente no dia em que outrora começava a feira de Santa Olla, que Deus faça voltar!

- Possa ele ouvir-nos!-volveu Partridge. - Os próprios Srs. Sam e Sib, se se houvessem associado a alguma gentil escocesa, partilhariam a sorte comum, e miss Campbell contaria agora duas tias mais na família!

- Estou de acordo, Partridge, mas tente associar hoje miss Campbell com o Sr. Ursiclos, e que o Clyde retroceda de Helensburgh a Glásgua, se aos oito dias essa associação não estiver desfeita!

Sem insistirmos sobre os inconvenientes que poderia ter esta familiaridade, autorizada pelos usos de Kirkwall, que, aliás, já acabaram, limitar-nos-emos a dizer que os factos talvez dessem razão à senhora Bess. Mas, enfim, miss Campbell e Aristobulo Ursiclos não eram irmão e irmã do primeiro de Agosto, e, se o seu casamento se realizasse algum dia, os noivos não estariam no caso de se conhecer como se tivessem passado pelas provas da feira de Santa Olla!

Seja como for, as feiras foram inventadas para os negócios, e não para os casamentos. É necessário, pois, deixar com as suas saudades a senhora Bess e Partridge, que, sempre conversando, não perdiam um minuto.

Estava decidida a viagem.

O local da vilegiatura havia sido escolhido. Nos jornais do high-life, sob a rubrica «Saídas e vilegiaturas», iam figurar, no dia seguinte, a partida dos dois irmãos Melvill e de miss Campbell para a praia de Oban.

Mas como se realizaria a jornada? Era esta a primeira questão a resolver.

Dois caminhos diferentes se dirigem a esta pequena cidade, que está situada sobre o estreito de Mull, algumas cem milhas ao noroeste de Glásgua.

O primeiro é por terra.

Vai-se a Bowling, depois, por Dumbarton e a margem direita do Leven, toca-se em Balloch, extremidade do Lomond. »

Atravessa-se o mais belo dos lagos da Escócia, com as suas trinta ilhas, entre as suas margens históricas, cheias de recordações dos Mac-Gregor e dos Mac-Farlane, em pleno país de Rob-Roy e de Roberto Bruce.

Chega-se a Dalmaly; dali, por um caminho que circula pelo flanco das montanhas as mais das vezes a meia encosta, dominando torrentes ou fiordes, através dos primeiros contrafortes da cadeia dos Grampians, no meio dos vales cobertos de urzes, esmaltados de pinheiros, carvalhos, álamos e larícios, o viajante, maravilhado, desce para Oban, cujas praias nada têm a invejar às mais pitorescas de todo o Atlântico.

É uma encantadora excursão que todo o viajante na Escócia fez ou deve fazer; mas em toda esta estrada não há vista de mar.

Por isso os irmãos Melvill, que a propuseram a miss Campbell, perderam o seu tempo.

O segundo é justamente fluvial e marítimo.

Descer o Clyde até ao golfo a que deu o nome, navegar entre as ilhas e ilhotas, que fazem deste caprichoso arquipélago uma como enorme mão de esqueleto, aplicada sobre esta porção do oceano, em seguida tornar a subir pela direita dessa mão até ao porto de Oban, era coisa para tentar miss Campbell, para quem a adorável região do lago Lomond e do lago Katrine já não tinha segredos.

Além disso, através do espaço entre as ilhas, no extremo horizonte dos estreitos e dos golfos, havia abertas, pontos de vista para o poente; o perímetro era ali marcado por uma linha de água.

Pois bem, no ocaso do Sol, na derradeira hora desta travessia, se nenhuma cerração ensombrasse o horizonte, não seria pois possível avistar esse Raio Verde, cuja projecção dura apenas um quinto de segundo?

- Percebe, tio Sam - disse miss Campbell -, percebe tio Sib, basta um momento!

((Portanto, se eu vir o que quero ver, acaba-se a viagem, e é inútil irmos instalar-nos em Oban.

Era justamente isso que não convinha de forma alguma aos manos Melvill.

Queriam estar algum tempo em Oban - sabemos pro-quê - e não tinham empenho em que uma próxima aparição do fenómeno desarranjasse os seus projectos.

Contudo, como miss Campbell tinha voz preponderante no capítulo e como ela votou pelo caminho marítimo, foi este preferido ao caminho por terra.

- Que leve o diabo o tal Raio Verde! - gritou o mano Sam, apenas Helena saiu do salão.

- E os que o inventaram! - concluiu o mano Sib.

 

               DESCENDO O CLYDE

No dia seguinte, 2 de Agosto, de madrugada, miss Campbell, acompanhada pelos irmãos Melvill, seguida por Partridge e pela senhora Bess, tomava o comboio na estação do railway de Helensburgh.

Era necessário ir encontrar em Glásgua o vapor, que no seu serviço diário da metrópole a Oban não faz escala por este ponto da costa.

Às sete horas, o comboio depunha os cinco viajantes na estação de chegada em Glásgua, e uma carruagem conduzia-os a Broomielaw Bridge.

Ali, o steamer Colúmbia esperava os seus passageiros; das suas duas chaminés escapava-se um fumo negro, que se misturava com as névoas ainda espessas do Clyde; mas todas estas neblinas da madrugada começavam a dissipar-se e o disco plúmbeo do Sol principiava a matizar-se de algumas tintas de ouro.

Era o alvorecer de um lindo dia.

Miss Campbell e os seus companheiros, postas a bordo as suas bagagens, embarcaram imediatamente.

Neste momento a sineta enviava aos retardatários o seu terceiro e último chamamento.

Depois o maquinista experimentou a sua máquina, as palhetas das rodas, movidas para diante e para trás, ergueram grandes e amarelados cachões, um prolongado assobio ressoou, soltaram-se as amarras, e o Colúmbia seguiu rapidamente o fio da corrente.

No Reino Unido, os que viajam por curiosidade ou recreio seriam injustos queixando-se.

As companhias de navegação em toda a parte põem à sua disposição magníficas embarcações.

Não há delgado curso de água, pequenino lago ou ínfimo golfo, que não seja cada dia sulcado por elegantes barcos a vapor.

Não é pois de pasmar que o Clyde seja a este respeito dos mais favorecidos.

Também, ao correr de Broomielaw Street, nas aberturas do Steamboat Quay, estacionavam em grande quantidade, sempre fumando, prontos a partir para todas as direcções, os steamers, com as suas caixas de rodas pintadas das cores mais vivas, em que o ouro luta com o vermelhão.

O Colúmbia não era excepção da regra. Muito comprido, muito delgado de proa, muito fino nas suas linhas de água, provido de uma máquina poderosa que movia rodas de grande diâmetro, era um vapor de muito andamento.

No interior, todo o conforto possível nos seus salões e salas de jantar; no tombadilho, um vasto xadrez abrigado por uma tenda de leves lambrequins, com bancos e cadeiras de flácidas almofadas--verdadeiro terraço cercado de uma elegante varanda, sobre a qual os passageiros tinham bonita vista e óptimo ar.

Os viajantes não faltavam.

Vinham um pouco de toda a parte, tanto da Escócia como de Inglaterra.

O mês de Agosto é por excelência o mês das viagens.

E, entre todas, as do Clyde às Hébridas são mais particularmente procuradas.

Havia aí dessas famílias, em toda a sua abundância, cuja união havia sido generosamente abençoada pelo céu.

Raparigas muito alegres, rapazes mais sossegados, crianças habituadas já às surpresas do turismo.

Depois padres, sempre em grande número a bordo dos steamers, com o chapéu alto de seda na cabeça, comprido casaco preto de gola direita, e a bainha da gravata branca no rebuço do colete.

Em seguida, muitos rendeiros, cobertos com o gorro escocês, fazendo lembrar, pelos seus modos um pouco pesados, os antigos Bonnet-lairds de alguns anos.

Finalmente, meia dúzia de estrangeiros, desses alemães que não perdem nada da sua gravidade, mesmo fora da Alemanha, e dois ou três desses franceses que nunca abandonam a sua genial amabilidade, mesmo fora da França.

Se miss Campbell se parecesse com a maior parte das suas compatriotas, que, apenas embarcadas, se assentam em qualquer canto, e não se mexem mais durante a viagem, somente veria nas margens do Clyde o que passasse defronte dos seus olhos, sem mesmo voltar a cabeça.

Mas ela gostava de ir e vir, agora na popa do steamer, logo na proa, examinando as cidades, vilas, aldeias e casais de que essas margens estavam largamente semeadas.

Disto se seguia que o mano Sam e o mano Sib, que a acompanhavam, e lhe respondiam aprovando as suas observações e confirmando os seus reparos, não puderam ter uma hora de descanso entre Glásgua e Oban.

Todavia, não pensavam em queixar-se; aquilo pertencia às suas funções de guarda de corpo e iam indo instintivamente trocando algumas belas pitadas, que os mantinham de bom humor.

A senhora Bess e Partridge, havendo tomado lugar na parte anterior do spardeck, conversavam muito amigavelmente do tempo passado, dos usos perdidos e da desorganização dos velhos clãs.

Onde estavam esses sempre chorados séculos de outrora?

Nessa época, os puros horizontes do Clyde não eram encobertos pela expectoração carbonífera das fábricas, nas suas praias não retumbava o surdo ruído dos malhos, e as suas plácidas águas não eram perturbadas pelo esforço de alguns milhares de cavalos a vapor.

- Esse tempo há-de voltar, e talvez mais cedo do que se julga!--disse a senhora Bess em tom convencido.

- Assim o espero - respondeu gravemente Partridge--, e com ele tornaremos a ver os velhos costumes dos nossos antepassados!

Entretanto as margens do Clyde deslocavam-se rapidamente da proa à popa do Colúmbia, como os pontos de um panorama movediço.

À direita apareceram a aldeia de Patrick, na foz do Kelvin, e as vastas docas, destinadas à construção de navios de ferro, que ficam defronte das de Govan, situadas do outro lado do rio.

Que ruído de ferragens, que volutas de fumo e de vapor, tão desagradáveis aos ouvidos e aos olhos de Partridge e da sua companheira!

Mas todo este estrépito industrial, todo este nevoeiro de carvão, ia cessar pouco a pouco.

Em vez dos estaleiros, das casas cobertas, das altas chaminés das fábricas, desses agigantados andaimes de ferro, que se assemelham às jaulas de uma colecção de mastodontes, apareceram graciosas habitações, casas de campo perdidas no meio das árvores, quintas de tipo anglo-saxónio espalhadas pelas verdes colinas.

Era como uma ininterrupta sucessão de palacetes e castelos, que se desenrolava de uma a outra cidade.

Depois do antigo burgo real de Renfreu, situado na esquerda do rio, as colinas arborizadas de Kilpatrick delinearam-se à direita, acima da aldeia deste nome, defronte da qual nenhum irlandês pode passar sem se descobrir: ali nasceu S. Patrício, o protector da Irlanda.

O Clyde, de rio que tinha sido até então, começava a tornar-se braço de mar.

A senhora Bess e Partridge saudaram as ruínas de Dunglas-Castle, que trazem à memória alguns factos da história da Escócia; mas os seus olhos afastaram-se do obelisco erigido em honra de Harry Bell, o inventor do primeiro barco mecânico, cujas rodas perturbaram aquelas tranquilas águas.

Algumas milhas mais adiante, os turistas, com o seu murray na mão, contemplavam o castelo de Dumbarton, que se ergue a mais de quinhentos pés sobre o seu rochedo basáltico. O mais elevado dos dois cones da sua vista tem ainda o nome de - Trono de Wallace-, um dos heróis da luta da independência.

Nesse momento, um gentleman, do alto da ponte das rodas - sem que ninguém lho pedisse, mas também sem que a ninguém parecesse mal-julgou dever fazer uma breve conferência histórica para instrução dos seus companheiros de viagem.

Meia hora depois, não era já permitido a um só passageiro do Colúmbia, a menos que fosse surdo, ignorar que, muito provavelmente, os Romanos tinham fortificado Dumbarton, que este histórico rochedo se transformou em fortaleza real no princípio do décimo terceiro século; que, sob o benefício do pacto da União, é contado entre as quatro praças do reino da Escócia que não podem ser arrasadas; que, deste porto, Maria Stuart, em 1548, partiu para a França, de que o seu casamento com Francisco a ia fazer ((rainha de um dia»; que ali, finalmente, Napoleão esteve para ser preso, em 1815, antes de o ministério de Castlereagh haver resolvido encarcerá-lo em Santa Helena.

- Ora aí está uma coisa muito instrutiva - observou o mano Sam.

- Instrutiva e interessante - reforçou o mano Sib. - Este gentleman merece os nossos maiores elogios!

E, na verdade, os dois tios não se haviam permitido perder uma só palavra da conferência.

Por isso julgaram dever dar alguns sinais de satisfação ao professor improvisado.

Miss Campbell, absorvida nas suas reflexões, nada havia ouvido daquela lição de história corrente.

Aquilo, em tal momento pelo menos, nada a interessava.

Nem sequer concedeu um olhar para a direita do rio, às ruínas do castelo de Cardross, onde morreu Roberto Bruce.

A vista do mar, eis o que debalde buscavam os seus olhos, mas não podiam tê-la sem que o Colúmbia se desembaraçasse dessa sucessão de praias, de promontórios e de colinas que limitavam o golfo de Clyde.

Demais, o steamer passava então em frente da pequena vila de Helensburgh.

Port-Glásgua, as relíquias do castelo de Newark, a península de Rosenheat, eram coisas que a jovem castelã todos os dias via das janelas da sua quinta.

Por isso a si própria perguntava se o steamer não navegava nas caprichosas ribeiras do parque.

E, mais adiante, para que iria perder-se o seu pensamento no meio dos centos de navios que se acumulavam nos ancoradouros de Greenock, na embocadura do rio?

Que lhe importava que o imortal Watt tivesse nascido nessa cidade de quarenta mil habitantes, que é como que a antecâmara industrial e comercial de Glásgua?

Para que, três milhas além, pousaria os seus olhos sobre a aldeia de Gourock à esquerda, sobre a de Dunoon à direita, ou sobre os fiordes dentados e sinuosos, que mordem tão profundamente as linhas litorais do condado de Argyle, chanfrado como uma das costas da Noruega?

Não! Miss Campbell procurava impacientemente com a vista a torre em ruínas de Leven.

Esperava ela ver ali aparecer algum duende?

Por modo nenhum; mas queria ser a primeira a assinalar o farol de Clock, que alumia a saída do Firth of Clyde.

Finalmente apareceu o farol, com uma lâmpada gigantesca, na curva da margem.

- Clock, tio Sam - disse ela-, Clock, Clock!

- Sim, Clock - repetiu o mano Sam, com a precisão de um eco dos Highlands.

- O mar, tio Sib!

- O mar, efectivamente-confirmou o mano Sib.

- Como isto é belo! - repetiram os dois tios. Poder-se-ia supor que o viam pela primeira vez! Não havia engano possível: na aberta do golfo via-se com efeito o mar.

Contudo, o Sol não havia ainda percorrido metade da sua carreira diurna.

Sob o paralelo cinquenta e seis, sete horas pelo menos deviam passar antes que ele mergulhasse nas vagas--sete horas de impaciência para miss Campbell!

Demais, o mar aparecia a sudoeste, isto é, num segmento de arco que o astro radiante apenas toca na época do solstício de Inverno.

Não era, pois, ali que se devia ir buscar a aparição do fenómeno; devia ser mais ao poente, mesmo um pouco ao norte, visto que os primeiros dias do mês de Agosto precedem seis semanas o equinócio de Setembro.

Mas que importava?

Era o mar que se desdobrava agora perante os olhares de miss Campbell.

Por entre as ilhas Cumbray, adiante da grande ilha de Bute, cujo perfil, levemente esfumado, se suavizava um pouco, para além das pouco elevadas cristas de Aisla-Craig e das montanhas de Arran, a linha do céu e da água desenhava-se ao longe, com toda a nitidez de um traço feito a tira-linhas.

Miss Campbell observava-a, completamente entregue ao seu pensamento, sem pronunciar uma palavra. Em pé sobre a ponte, imóvel, fazia o sol aos seus pés uma pequeníssima sombra.

Parecia ela medir o comprimento do arco que a separava ainda do ponto em que o seu disco brilhante iria banhar-se nas águas do arquipélago hebrídico...

Contanto que nesse momento o céu, tão límpido então, não escurecesse com os vapores do crepúsculo!

Uma voz despertou a jovem sonhadora do seu sonhar.

-São horas - prevenia o mano Sib.

- Horas? Horas de quê, meus tios?

- Horas de almoço-respondeu o mano Sam.

- Vamos almoçar! - concluiu miss Campbell.

 

                 DE UM A OUTRO VAPOR

Depois da refeição, em parte fria, em parte quente, um excelente almoço à moda inglesa, que foi servido no dining-room do Colúmbia, miss Campbell e os irmãos Melvill tornaram a subir para o convés.

Helena não pôde conter um grito de contrariedade, apenas retomou o seu lugar no spardeck.

- E a minha vista de mar! - exclamou ela.

E, na verdade, verdade, a sua vista de mar sumira-se completamente.

Havia desaparecido alguns minutos antes.

O steamer, proa ao norte, subia nesse momento o longo estreito dos Kyles of Bute.

- É mal feito isto, tio Sam! - disse miss Campbell, com um ligeiro gesto de queixa.

- Mas, minha querida filha...

- Hei-de lembrar-me, tio Sib!

Os dois irmãos não sabiam que dizer, e contudo não era culpa deles se o Colúmbia, havendo modificado a sua direcção, aproava para o noroeste.

Com efeito, há dois caminhos perfeitamente diversos para ir por mar de Glásgua a Oban.

Um, o que não havia seguido o Colúmbia, é o mais longo.

Depois de ter feito escala em Rothesay, a capital da ilha de Bute, dominada pelo seu velho castelo do décimo primeiro século, emoldurada ao poente pelos elevados vales que a protegem dos maus ventos do mar, o steamer pôde continuar a descer o golfo de Clyde, em seguida costear o litoral da ilha, passar à vista da grande e da pequena Cumbray e adiantar-se nesta direcção até à parte meridional da ilha de Arran, que pertence quase toda ao duque de Hamilton, desde a base das suas rochas até ao cume do Goatfell, quase oitocentos metros acima do nível do mar.

Então o timoneiro dá uma volta ao leme, a agulha da bitácula marca o rumo de oeste, dobra-se a ilha de Arran, torneia-se o imenso dedo da península de Can-tyre, de que se sobe a costa ocidental, penetra-se o Gigha-passo, através do estreito de Sund, aberto entre as ilhas Islay e Jura, e chega-se a esse sector largamente aberto do Firth of Lorn, cujo apertado ângulo se vai fechar um pouco acima de Oban.

Em suma, se miss Campbell tinha alguma razão de se queixar de o Colúmbia não haver seguido este caminho, talvez também os dois tios tivessem motivo para o sentir.

Efectivamente, costeando as praias de Islay, haveriam visto essa antiga residência dos Mac Donald, que, ao começar o século XVII, vencidos e expulsos, tiveram de ceder o lugar aos Campbell.

Perante o teatro de um facto histórico que tanto lhes dizia respeito, os irmãos Melvill, sem falar da senhora Bess e de Partridge, haveriam sentido os seus corações bater em perfeita concordância.

Quanto a miss Campbell, essa tão ambicionada vista desenhar-se-ia a seus olhos por mais tempo.

Efectivamente, desde a ponta de Arran até ao promontório de Cantyre, é o mar ao sul; desde o Mull de Can-tyre até à extremidade de Islay, é o mar a oeste, isto é, essa líquida imensidão somente limitada, a três mil milhas dali, pela costa americana.

Mas este caminho é longo, algumas vezes penoso, se não arriscado, e foi necessário contar com aqueles turistas que se assustam com as eventualidades de uma travessia, muitas vezes inclemente, quando é necessário cortar mares um pouco verdes nestas paragens das Hébridas.

Por isso os engenheiros - Lesseps em ponto pequeno- tiveram a engenhosa ideia de fazer uma ilha da península de Cantyre.

Graças aos seus trabalhos, abriu-se o canal de Crinan na sua parte norte, que encurta a viagem duzentas milhas pelo menos, e bastam três quartos de hora para o transpor.

Era por esta via que o Colúmbia ia acabar a travessia de Glásgua a Oban, entre os lochs e os estreitos, tendo por único horizonte areais, florestas e montanhas.

De todos os passageiros foi seguramente só miss Campbell quem sentiu não se haver seguido o outro itinerário; mas não teve remédio senão resignar-se.

Demais a mais, essa vista de mar não devia ela tornar a encontrá-la um pouco para diante do canal de Crinan, algumas horas mais tarde, mas muito antes que o Sol tocasse as ondas com o seu inflamado disco?

No momento em que os turistas, que se haviam demorado no dining-room, voltavam ao convés, o Colúmbia, à entrada do loch de Ridden, passava rente da pequena ilha de Elbangreig, última fortaleza em que se refugiou o duque de Argyle, antes de este herói, esmagado na luta pela emancipação política e religiosa da Escócia, haver ido a Edimburgo entregar a sua cabeça ao ferro da guilhotina escocesa.

Depois, o steamer voltou ao sul, desceu o estreito de Bute, por entre esse admirável panorama de ilhas áridas ou arborizadas, cujos rudes perfis uma ligeira nebrina esfumava. Por último, após haver dobrado o             cabo Ardlamont, retomou a direcção norte, através do loch Fyne, deixou à esquerda a aldeia de East-Tabert na costa de Cantyre, costeou o cabo Ardrishaig e chegou à ilha de Lochgilphead, à entrada do canal de Crinan.

Aqui, foi necessário abandonar o Colúmbia, demasiado comprido para a navegação do canal.

Esta abertura, cujos declives são compensados por quinze diques, só pode admitir, nas suas nove milhas de comprimento, leves embarcações de pouco calado de água.

Um pequeno barco a vapor, o Linnet, esperava os passageiros do Colúmbia.

O transbordo efectuou-se em alguns minutos. Cada um se instalou, pouco comodamente, sobre o spardeck do steamer; em seguida, o Linnet seguiu rapidamente por entre as margens do canal, enquanto um bagpiper, um tocador de gaita de foles, vestido com o trajo nacional, fazia ressoar o seu instrumento.

Nada tão melancólico como esses estranhos cantos, sustentados pelos baixos contínuos e monótonos das três primeiras do tom, cujo desenvolvimento só emprega os intervalos de uma escala maior, a que falta a sensível (1), como nas velhas árias dos séculos passados.

Encantadora travessia a deste canal, umas vezes aberto entre alcantis, outras preso aos flancos de uma colina coberta de estevas, aqui alongando-se em pleno campo, ali apertado entre os estreitos muros das calas.

Há uma pequena paragem nas cadeiras.

Enquanto os pontoneiros fazem com que o vapor transponha rapidamente o dique, os rapazes, as raparigas, as crianças da localidade, vêm delicadamente oferecer aos turistas leite mungido, falando esse idioma gaélico de que os Celtas usavam entre si - língua muitas vezes incompreensível aos próprios Ingleses.

Seis horas depois - houvera uma demora de duas

horas em uma represa que funcionava mal - havia-se passado além das aldeias, dos casais desta região um tanto triste e dos imensos pântanos do Add, que se alongam à direita do canal.

O Linnet parava um pouco adiante da aldeia de Bal-lanoch.

Havia um segundo transbordo.

Os passageiros do Colúmbia, passando a passageiros do Glengarry, vogavam para noroeste, a fim de sair de Crinan e dobrar a língua de terra sobre que se ergue o antigo castelo feudal de Duntroon-Castle.

Desde o fugitivo golpe de vista na volta da ilha de Bute, o mar não tornara a aparecer.

Facilmente se adivinha qual poderia ser a impaciência de miss Campbell.

Nestas águas limitadas por todos os lados poder-se-ia julgar em plena Escócia, na região dos lagos, no centro do território de Rob-Roy.

A cada passo pitorescas ilhas com as suas ondulações e os seus viveiros de larícios e álamos.

Enfim, o Glengarry passou além da ponta norte da ilha Jura, e o mar mostrou-se então até à base do céu, entre aquela ponta e a ilhota de Scarba, que dela se desprendia.

- Ei-lo, minha querida Helena! - indicou o mano Sam, apontando para o poente.

- Não era culpa nossa - acrescentou o mano Sib - se essas malditas ilhas, que o velho Nick(2) confunda, o ocultaram alguns instantes a teus olhos!

- Estais de todo perdoados, meus tios - respondeu miss Campbell-, mas que tal não torne a acontecer.

 

*1. A sensível é uma nota meio-tom abaixo da tónica. (N. do T.)

*2. Nick é o nome popular do diabo na Inglaterra e na Escócia. (N. do T.)

 

               O ABISMO DE CORRYVREKAN

Eram então seis horas da tarde. O Sol havia apenas percorrido quatro quintos do seu curso.

Seguramente, o Glengarry chegaria a Oban antes que o astro do dia desaparecesse nas águas do Atlântico.

Miss Campbell tinha, pois, fundadas razões para supor que os seus desejos seriam ainda essa tarde completa-mente satisfeitos.

Efectivamente, o céu, sem nuvens nem vapores, parecia feito de propósito para a observação do fenómeno, e o mar, durante esta última parte da travessia, devia ser visível entre as ilhas Oronsay, Colonsay e Mull.

Mas um incidente imprevisto ia demorar um pouco o andamento do steamer.

Miss Campbell, possuída pela sua ideia fixa, imóvel no mesmo lugar, não perdia de vista a linha circular que se estendia entre as duas ilhas.

Ao nível do céu, desenhava a reverberação um triângulo de prata, de que os cambiantes vinham morrer ao lado do Glengarry.

Com toda a certeza era miss Campbell a única a bordo que conservava os olhos obstinadamente fixos nesta parte do horizonte, por isso foi somente ela que notou quanto o mar parecia agitado entre a língua de terra e a ilha Scarba.

Ao mesmo tempo chegou até ela um ruído longínquo de vagas que se combatiam. E, contudo, apenas a aragem abria algumas rugas nas águas quase viscosas, tamanha era a sua tranquilidade, que a roda da proa do steamer cortava.

- Qual é pois a causa desta perturbação e deste sussurro?- perguntou miss Campbell, dirigindo-se a seus tios.

Os irmãos Melvill teriam grande dificuldade em responder-lhe, porque eles não percebiam mais do que ela o que se passava dali a três milhas, na estreita passagem.

Miss Campbell, dirigindo-se então ao comandante do Glengarry, que passeava sobre a ponte, perguntou-lhe qual era a causa daquele barulho das águas e da sua agitação.

-Um simples fenómeno da maré - informou o capitão.- O que ouve é o ruído do sorvedouro de Corry-vrekan.

- Mas o tempo está magnífico - observou miss Campbell- e apenas corre uma aragem!

- Também este fenómeno não depende do estado do tempo - elucidou o comandante.

É um efeito do crescimento do mar, o qual, ao sair do Jura Sund, só acha saída por entre as duas ilhas de Jura e de Scarba.

Disto resulta que as águas aí se precipitam com extrema violência, sendo perigosíssimo para uma embarcação de poucas toneladas aventurar-se ali.

O sorvedouro de Corryvrekan, justamente temido naquelas paragens, é citado como um dos sítios mais curiosos do arquipélago das Hébridas.

Talvez se pudesse comparar com o encontro de correntes em Sein, formado pelo aperto do mar entre o aterro deste nome e a baía dos Finados, na costa da Bretanha, ou com o de Blanchart, pelo qual derivam as águas da Mancha, entre Aurigny e a terra de Cherburgo.

A lenda afirma que o abismo deve o seu nome a um príncipe escandinavo, cujo navio ali pereceu no tempo dos Celtas.

Na verdade, é um ponto perigoso, onde muitas embarcações foram arrastadas à sua perda, e que, pela má reputação das suas correntes, pode competir com o sinistro Maelstrom das costas da Noruega.

Entretanto, miss Campbell não cessava de observar as violentas flutuações do sorvedouro, quando a sua atenção foi mais particularmente atraída para um ponto do estreito.

Poder-se-ia julgar que ali emergia um rochedo no meio da passagem, se a sua massa não se erguesse e abaixasse com as ondulações da vaga.

- Olhai, olhai, comandante - bradou miss Campbell-; se não é um rochedo, que é pois?

- Com efeito-respondeu o capitão-, ou é algum destroço de naufrágio arrastado pela corrente, ou antes...

E pegando no óculo:

- Uma embarcação! - gritou ele.

- Uma embarcação!-repetiu miss Campbell.

- Sim!... não me engano!... Uma chalupa a naufragar, nas águas do Corryvrekan.

A estas palavras do comandante, os passageiros correram todos para a ponte, olhando para o lado do abismo.

Não havia a menor dúvida de que um navio fora arrastado para o sorvedouro.

Obedecendo às correntes da enchente da maré, arrastado pela atracção dos redemoinhos, corria a uma perda infalível.

Todos os olhares se tinham concentrado nesse ponto do abismo, a quatro ou cinco milhas do Glengarry.

- É provavelmente só uma chalupa levada pela corrente- observou um dos passageiros.

- Não! Vejo um homem - acrescentou outro.

- Um homem... dois homens! - gritou Partridge,

que viera colocar-se junto de miss Campbell.

Efectivamente, havia ali dois homens que já não eram senhores da embarcação.

Com a fraca brisa que soprava de terra, a vela não pudera livrá-los do redemoinho, e os remos seriam impotentes para os tirar da esfera da atracção do Corryvrekan.

- Capitão! -exclamou miss Campbell-, não podemos deixar morrer aqueles desgraçados! Estão perdidos se os abandonam a si próprios! É necessário ir socorrê-los!... É absolutamente preciso!

Todos a bordo pensavam do mesmo modo, e todos esperavam a resposta do comandante.

- O Glengarry - explicou ele - não pode aventurar-se até aos limites do Corryvrekan! Mas talvez, aproximando-se, chegue ao alcance daquela chalupa!...

E, voltando-se para os passageiros, parecia pedir-lhes um sinal de aprovação.

Miss Campbell dirigiu-se a eles.

- É necessário, capitão, é necessário! - gritou ela com voz ardente. - Os meus companheiros de viagem hão-de dizê-lo como eu! Trata-se da vida de dois homens, que podereis talvez salvar... Oh! capitão!... Suplico-vos!

- Sim! Sim!-apoiaram alguns passageiros, comovidos pela calorosa intervenção da jovem senhora.

O comandante tornou a pegar no óculo, observou atentamente a direcção das correntes da passagem; depois dirigiu-se ao homem do leme, colocado junto dele sobre a ponte.

- Cuidado com o governo!-ordenou. - O leme a bombordo.

Sob a acção do leme, o steamer aproou a sueste. O maquinista recebeu ordem de forçar o vapor, e o Glengarry não tardou em deixar à esquerda a ponta da ilha Jura.

A bordo ninguém falava. Todos os olhos estavam ansiosamente fixos sobre a embarcação que se tornava mais visível.

Era apenas uma chalupa de pesca, que havia arriado o mastro, a fim de evitar a repercussão dos balanços provocados pelo choque violento das ondas.

Dos dois homens que estavam a bordo, um estava estendido na popa; o outro, fazendo força de remos, tentava fugir do centro da atracção das águas.

Se o não conseguisse, ambos estavam perdidos.

Meia hora depois, o Glengarry chegava ao limite do Corryvrekan, e começava a arfar fortemente sobre as primeiras vagas, mas ninguém a bordo reclamava, posto que a rapidez das correntes fosse de natureza a assustar simples turistas.

Efectivamente, nesta parte do estreito, o mar estava bastante bravo, como se soprasse um vento forte.

Só se via um imenso lençol de escuma, que a pouca profundidade das águas, batendo no fundo elevado, levantava em massas enormes.

A chalupa estava apenas a meia milha.

Dos dois homens, o que se curvava sobre os remos fazia os mais supremos esforços para se safar do redemoinho.

Bem percebia que o Glengarry ia em seu socorro, mas sabia também que o steamer não podia aproximar-se muito mais, e que era a ele que pertencia alcançá-lo.

Quanto ao seu companheiro, imóvel na ré, parecia completamente insensível.

Miss Campbell, extremamente comovida, não despregava os olhos da chalupa em perigo, que fora a primeira a indicar nas águas do sorvedouro, e para a qual, graças às suas instantes súplicas, se dirigia agora o Glengarry.

Entretanto, ia-se agravando a situação e era para recear que o steamer não chegasse a tempo.

Seguia agora a meia força, de maneira a evitar alguma

avaria grave, e, contudo, as ondas, entrando pela proa, ameaçavam já chegar às aberturas das fornalhas, de que podiam apagar os fogos — eventualidade terrível no meio daquelas correntes rápidas como o raio.

O comandante, apoiado às grades da ponte, trabalhava para não se afastar do canal, e manobrava habilmente para não atravessar.

Todavia, a chalupa não conseguia desprender-se do redemoinho.

Umas vezes desaparecia de repente, encoberta por algum imenso escolho; outras, apanhada pelas correntes concêntricas do abismo, cuja rapidez crescia na razão directa do seu raio, torneava com a rapidez de uma flecha ou, antes, de uma pedra girando no extremo de uma funda.

— Mais depressa! Mais depressa! — gritava miss Campbell, que não se podia dominar.

Mas à vista das montanhas de água que rebentavam, alguns passageiros começavam a dar gritos de terror.

O capitão, ciente da responsabilidade em que incorria, hesitava em prosseguir o seu caminho através da passagem do Corryvrekan.

E, todavia, entre a chalupa e o Glengarry havia tão-somente a distância de meia amarra, ou seja, trezentos pés; de sorte que facilmente se podiam reconhecer os desgraçados que ela arrastava para a morte.

Era um velho marinheiro e um mancebo, o primeiro deitado à popa, o segundo lutando com os remos.

Neste momento, uma violenta onda açoitou o steamer e tornou a situação bastante difícil.

De facto, o comandante não podia entrar mais na passagem, e, com muito trabalho, teve de manobrar por forma a sustentar-se aproado à corrente com alguns movimentos de leme.

De súbito, a chalupa, depois de se haver balouçado na crista de uma vaga, escorregou para o lado e desapareceu.

Soltou-se um só grito a bordo, grito de pavor!...

O barco havia-se virado? Não.

Ergueu-se no dorso de uma outra onda, e um novo esforço de remos atirou-o para o lado do steamer.

— Coragem! Coragem! — gritaram os marinheiros, colocados à proa.

E balanceavam uma rodela de cordas, espreitando o instante de a atirar.

De repente, o comandante, vendo um intervalo entre dois redemoinhos, deu à máquina ordem de forçar o vapor.

A rapidez do Glengarry acentuava-se, e dirigia-se apressadamente para entre as duas ilhas, enquanto a chalupa ganhava também mais algumas braças para o seu lado.

As cordas foram então lançadas, agarradas e enleadas em torno do mastro; depois, o Glengarry, forçando o vapor, recuou, a fim de se safar mais rapidamente, enquanto o barco, colocado a seu lado, o seguia a reboque.

Nesse momento, o mancebo, largando os remos, ergueu nos braços o seu companheiro, e, com a ajuda da tripulação do steamer, o velho marinheiro foi içado para bordo.

Havendo apanhado um violento golpe de mar, quando ambos eram arrastados para a passagem, ficaram impossibilitados de coadjuvar os esforços do mancebo, que só podia contar consigo próprio.

Entretanto este acabava de saltar na coberta do Glengarry.

Conservava todo o seu sangue-frio, e a sua atitude mostrava que a coragem moral não lhe era menos natural que a coragem física.

Imediatamente se deu pressa em fazer tratar do seu companheiro.

Era o patrão da chalupa, que um bom copo de brandy de pronto o restabeleceu.

— Sr. Oliveiros! — disse ele.

— Ah! meu velho marinheiro — respondeu o mancebo — , e aquela marejada?

— Não valeu nada! Tenho visto coisas maiores! Já tudo passou!...

— Graças a Deus!... Mas a minha imprudência em querer avançar cada vez mais esteve para nos custar caro! Finalmente estamos salvos.

— Com o seu auxílio, Sr. Oliveiros!

— Não... com o auxílio de Deus!

E o mancebo, abraçando o marinheiro, não pretendia encobrir a sua comoção, que se comunicava às testemunhas desta cena.

Em seguida, voltando-se para o capitão do Glengarry, no momento em que descia da ponte, disse-lhe:

— Comandante, não sei como reconhecer o serviço que me prestou.

— Fiz apenas o meu dever, senhor, e, para falar verdade, os meus passageiros é que mais direito têm do que eu aos seus agradecimentos.

O mancebo apertou cordialmente a mão ao capitão, e em seguida, tirando o chapéu, cumprimentou os passageiros de um modo gracioso.

Seguramente, sem a intervenção do Glengarry, o seu companheiro e ele, arrastados para o centro do Corryvrekan, haveriam perecido.

Miss Campbell, durante estas recíprocas cortesias, julgou dever afastar-se um pouco.

Não queria que se falasse no modo porque havia contribuído para este dramático salvamento.

Por isso demorava-se na extremidade da ponte, quando de repente, como se a sua fantasia houvesse despertado, deixou cair estas palavras, no momento em que se voltava para o poente:

— E o raio?... E o Sol?

— Já lá vai o Sol! — disse o mano Sam.

— Adeus, raio! — suspirou o mano Sib. Era tarde.

O disco, que acabava de desaparecer num horizonte de admirável limpidez, havia despedido o seu raio verde no espaço!

Mas, nesse instante, miss Campbell pensava em outra coisa, e o seu olhar distraído deixou perder aquela ocasião, que talvez não pudesse tão cedo tornar-se a encontrar.

— É pena! — murmurou, sem contudo mostrar muito enfado, lembrando-se de tudo que se havia passado.

Entretanto, o Glengarry manobrava habilmente para sair do passo (1) de Corryvrekan e retomava o seu caminho para o norte.

Então o velho marinheiro, depois de um último aperto de mão ao seu companheiro, voltou para a sua chalupa e fez-se de vela para a ilha Jura.

Quanto ao mancebo, cujo dorlach, espécie de saco-mala de couro, havia sido trazido para bordo, era mais um passageiro que o Glengarry levava para Oban.

O steamer, deixando à direita as ilhas de Shuna e de Luing, onde existem as ricas minas de lousa do marquês do Breadalbane, costeou a ilha Seil, que protege esta parte da costa escocesa; pouco depois, seguindo para o Firth of Lorn, navegou entre a ilha vulcânica de Kerrera e a terra firme, e em seguida, nas últimas horas do crepúsculo, fazia a sua amarração na estacada do porto de Oban.

 

*1. Passo ou passagem, termo marítimo para designar um estreito canal entre dois bancos de areia e rochas. (N. do T.)

 

 

                 ARISTOBULO URSICLOS

Ainda mesmo que Oban atraísse às suas praias uma tão grande afluência de banhistas como as frequentadíssimas estações de Brighton, de Margate ou de Ramsgate, uma personagem do valor de Aristobulo Ursiclos não poderia passar ali despercebida.

Oban, sem se colocar tão alto como as suas rivais, é uma praia muito procurada pelos ociosos do Reino Unido.

A sua posição sobre o estreito de Mull, ao abrigo dos ventos de oeste, de que a ilha Kerrera impede a acção directa, atrai-lhe grande número de estrangeiros.

Uns procuram retemperar-se nas suas águas salutíferas; outros instalam-se ali como num centro donde irradiam os itinerários para Glásgua, Inverness e as mais curiosas ilhas das Hébridas.

É necessário acrescentar que Oban não é, como muitas outras estâncias balneares, uma espécie de antessala do hospital; a maior parte dos que vão ali passar a estação calmosa gozam, e não se corre risco, como em algumas praias, de jogar algumas partidas de whist com dois doentes e «um morto».

Oban conta apenas cento e cinquenta anos de existência.

Apresenta na disposição das praças, no arranjo das casas e no traçado das ruas um cunho perfeitamente moderno.

Todavia, a igreja, espécie de construção normanda, com um bonito campanário, o velho castelo de Dunolly, vestido de hera, cuja massa se ergue sobre uma rocha desprendida pela sua extremidade norte, o seu panorama de casas brancas e de quintas multicores, que se estendem em anfiteatro sobre as colinas do último plano, finalmente as águas tranquilas da baía, nas quais vêm fundear elegantes iates de recreio, tudo isto produz um pitoresco golpe de vista.

Nesse ano, e nesse mês de Agosto, não escasseavam na pequena cidade de Oban os estrangeiros, os turistas, ou os idos ali apenas para tomar banhos.

No registo de um dos melhores hotéis, desde já algumas semanas, poder-se-ia ler entre outros nomes, mais ou menos ilustres, o nome de Aristobulo Ursiclos, de Dumfries (Baixa Escócia).

Era uma «personagem» de vinte e oito anos, que nunca havia sido nova e provavelmente nunca seria velha.

Nascera evidentemente com a idade que durante toda a vida parecia ter.

De figura, nem bem nem mal; a cara, insignificantíssima, com os cabelos muito loiros para um homem; por baixo dos seus óculos, um olhar de míope; um nariz curto, que dava a ideia de não ser o nariz daquela cara.

Dos cento e trinta mil cabelos que, segundo as últimas estatísticas, deve possuir toda a cabeça humana, restar-lhe-iam, quando muito, uns sessenta mil.

Circundava-lhe a cara um colar de barba, o que lhe dava uma face algum tanto simiana.

Se tivesse sido um macaco, fora decerto um belo mono, talvez o que falta à escola dos darwinistas para ligar a animalidade à humanidade.

Aristobulo Ursiclos era rico de dinheiro e ainda mais rico de ideias.

Demasiadamente instruído para um jovem sábio, que apenas sabe enfastiar os outros com a sua instrução universal, era graduado nas Universidades de Oxford e de Edimburgo, e conhecia mais a fundo as ciências físicas, químicas, astronómicas e matemáticas do que a literatura.

Era na realidade muito pretensioso, faltava apenas um quase nada para que fosse um tolo.

A sua principal mania, ou a sua monomania, à escolha, era dar a torto e a direito a explicação de tudo o que se compreendia nas coisas naturais; enfim, uma espécie de pedante, de desagradável trato.

Não se riam dele porque não era risível, mas talvez se rissem porque era ridículo.

Ninguém menos digno do que este rapaz velho de usar a divisa dos pedreiros-livres ingleses: Audi, vide, tace.

Não ouvia, não via nada, e falava constantemente.

Enfim, para irmos buscar uma comparação bem apropriada quando se trata do país de Walter Scott, Aristobulo Ursiclos, com o seu muito positivo industrialismo, fazia lembrar infinitamente mais o juiz Nicolau Jarvie do que o seu poético primo Rob-Roy Mac-Gregor.

E que descendente de Highlands, sem exceptuar miss Campbell, não teria preferido Rob-Roy a Nicolau Jarvie?

Tal era Aristobulo Ursiclos.

Como é que os irmãos Melvill se haviam engodado com este pedante a ponto de o quererem fazer seu sobrinho por afinidade?

Como conseguira agradar a estes dignos sexagenários?

Talvez unicamente por ser o primeiro que se lhes dirigiu a propósito de sua sobrinha.

Em uma espécie de ingénuo arroubamento, o mano Sam e o mano Sib certamente haviam pensado:

«Eis aqui um rapaz rico, de boa família, senhor da fortuna que as heranças de seus pais e de seus parentes acumularam na sua pessoa, e demais a mais extraordinariamente instruído!

«Será um excelente partido para a nossa querida Helena!

Este casamento far-se-á por si, e reúne todas as conveniências, visto que nos convém.»

Em seguida haviam trocado uma boa pitada, fechando depois a comum caixa de rapé com um pequeno estalo seco, que parecia afirmar:

«É negócio feito!»

Por isso os irmãos Melvill se julgavam muito astutos por, graças a esta bizarra fantasia do Raio Verde, haverem trazido miss Campbell a Oban.

Ali, sem que isso parecesse de antemão preparado, poderia reatar com Aristobulo Ursiclos a continuação das entrevistas que a sua ausência fizera momentaneamente suspender.

Era pelos mais belos quartos do Hotel Caledónia que os irmãos Melvill e miss Campbell tinham trocado a casa de campo de Helensburgh.

Se tivessem de se demorar em Oban, talvez fosse conveniente alugar alguma quinta nas alturas que dominam a cidade; mas, entretanto, com o auxílio da senhora Bess e de Partridge, todos estavam comodamente instalados no estabelecimento do mestre Mac-Fyne.

Mais tarde ver-se-ia.

Foi pois do vestíbulo do Hotel Caledónia, situado junto ao mar, quase em frente da estacada, que os manos Melvill saíram às nove horas da manhã logo no dia seguinte ao da sua chegada.

Miss Campbell dormia no seu quarto do primeiro andar, sem lhe passar pela mente que seus tios iam em busca de Aristobulo Ursiclos.

Os dois inseparáveis desceram à praia, e, sabendo que o seu ((pretendente» se instalara num dos hotéis situados ao norte da baía, dirigiram-se para esse lado.

É necessário convir que os guiava uma espécie de pressentimento.

Com efeito, dez minutos depois da sua partida, Aristobulo Ursiclos, que fazia o seu passeio científico de cada manhã seguindo a última baixa-mar, encontrava-os e trocava com eles um desses apertos de mão banais, puramente automáticos.

— Sr. Ursiclos! — cumprimentaram os irmãos Melvill.

— Srs. Melvill! — exclamou Aristobulo, nesse estudado tom que finge a surpresa. — Os Srs. Melvill... aqui... em Oban?

— Desde ontem à noite! — respondeu o mano Sam.

— E muito nos alegra, Sr. Ursiclos, encontrá-lo de perfeita saúde — acrescentou o mano Sib.

— Ah! Muito bem, meus senhores. Conhecem decerto o telegrama que chegou agora?

— O telegrama? — disse o mano Sam. — Por acaso o ministério Gladstone teria já...?

— Não se trata do ministério Gladstone — respondeu assaz desdenhosamente Aristobulo Ursiclos, mas sim de um telegrama meteorológico.

— Ah, efectivamente! — responderam os dois tios.

— Sim! Anuncia que a depressão de Swinemunde caminhou para o norte, acentuando-se sensivelmente. O seu centro está agora próximo de Estocolmo, e o barómetro, que baixou uma polegada, ou vinte e cinco milímetros- — para empregar o sistema usado pelos sábios — , marca somente vinte e oito polegadas e seis décimos, ou seja, setecentos e vinte e seis milímetros. Se em Inglaterra e na Escócia a pressão varia pouco, baixou ontem um décimo em Valência e dois em Stornoway.

— E desta depressão? — perguntou o mano Sam.

— Deve concluir-se...? — acrescentou o mano Sib.

— Que continuará o bom tempo — esclareceu Aristobulo Ursiclos — e que o céu, cobrindo-se bem cedo com os ventos do sudoeste, nos há-de trazer os vapores do Atlântico Norte.

Os irmãos Melvill agradeceram ao jovem sábio ter-lhes feito conhecer estes interessantes prognósticos, concluindo que o Raio Verde podia bem fazer-se esperar — o que por modo algum os contrariou, visto que esta demora prolongaria a sua estada em Oban.

— E viestes, senhores...? — interrogou Aristobulo Ursiclos, depois de haver apanhado um sílex, que examinou com escrupulosa atenção.

Os dois tios tiveram todo o cuidado em não perturbar este estudo.

Mas quando o sílex foi aumentar a colecção que o bolso do moço sábio já continha:

— Viemos com o muito natural desejo de passar algum tempo aqui — explicou o mano Sib.

— E devemos acrescentar — ajuntou o mano Sam

— que miss Campbell nos acompanhou.

— Ah... miss Campbell — replicou Aristobulo Ursiclos. — Creio que este sílex é da época gaélica. Acham-se-lhe vestígios... Realmente ser-me-á extremamente agradável tornar a ver miss Campbell!... Vestígios de ferro meteórico. Este clima, extraordinariamente suave, há-de necessariamente fazer-lhe muito bem.

— Mas ela passa admiravelmente — fez notar o mano Sam — e não tem a mínima necessidade de restabelecer-se.

— Não importa — retorquiu Aristobulo Ursiclos. — Aqui é excelente o ar, zero vinte e um de oxigénio, e zero setenta e nove de azoto, com um pouco de vapor de água, em quantidade higiénica; um quase nada de ácido carbónico. Analiso-o todas as manhãs.

Os irmãos Melvill quiseram ver nisto uma atenção amável dirigida a miss Campbell.

— Mas — volveu Aristobulo Ursiclos — , se não vieram a Oban por causa da saúde, poderei saber porque deixaram a sua casa de campo de Helensburgh?

— Na situação em que estamos, não temos motivo algum para ocultá-lo...

— Devo eu ver nesta vinda — aventurou o jovem sábio, interrompendo a frase começada — o desejo, na realidade muito natural, de me fazerem encontrar com miss Campbell, em condições tais que melhor possamos começar a reconhecer-nos, isto é, a estimar-nos?

— Certamente — respondeu o mano Sam — , julgámos que assim mais depressa atingiríamos o nosso fim.

— Aprovo-os, meus senhores — disse Aristobulo Ursiclos. — Aqui, neste terreno neutro, miss Campbell e eu poderemos, quando se oferecer ocasião, falar das flutuações do mar, da direcção dos ventos, da altura das ondas, da variação das marés e de outros fenómenos físicos que devem interessá-la o mais possível!

Os irmãos Melvill, havendo trocado um sorriso de satisfação, inclinaram-se em sinal de assentimento, acrescentando que, no seu regresso à casa de campo de Helensburgh, teriam muita satisfação de ali receber o seu amável hóspede a um título mais definitivo.

Aristobulo Ursiclos respondeu que isto o alegrava tanto mais quanto o Governo fazia agora executar importantes trabalhos de drenagem no Clyde, precisamente entre Helensburgh e Greenock — trabalhos empreendidos em condições novas por meio de aparelhos eléctricos.

Visto isto, uma vez instalado na casa de campo, poderia observar-lhes a aplicação e calcular-lhes o rendimento líquido.

Os irmãos Melvill concordaram plenamente em como esta coincidência favorecia os seus planos.

Durante as horas de ócio, na casa de campo, o jovem sábio poderia seguir as diversas fases daquele muito interessante trabalho.

— Mas — perguntou Aristobulo Ursiclos — imaginastes sem dúvida algum pretexto para aqui vir, porque miss Campbell, seguramente, não espera encontrar-me em Oban?

— É certo — confessou o mano Sib — , e este pretexto foi a própria miss Campbell quem no-lo forneceu.

— Trata-se de observar um fenómeno físico em certas condições que não se dão em Helensburgh.

— Efectivamente, meus senhores! — respondeu Aristobulo Ursiclos, firmando com o dedo a sua luneta. — Isso prova já que entre miss Campbell e eu existiam afinidades simpáticas! Poderei saber que fenómeno é esse cujo estudo não se podia fazer na casa de campo?

— O fenómeno é muito simplesmente o Raio Verde

— elucidou o mano Sam.

— O Raio Verde! — repetiu Aristobulo Ursiclos, muito surpreendido. — Nunca ouvi falar de tal! Ousarei perguntar-lhe o que é o Raio Verde?

Os irmãos Melvill explicaram o melhor que puderam em que consistia esse fenómeno, sobre o qual o «Morning Post» havia ultimamente chamado a atenção dos seus leitores.

— Ora! — disse desdenhosamente Aristobulo Ursiclos

— simples questão de curiosidade sem grande interesse, que pertence ao domínio demasiadamente infantil da física recreativa!

— Miss Campbell é ainda uma criança — replicou o mano Sib — e parece dar uma importância sem dúvida exagerada a esse fenómeno...

— Porque se não quer casar, segundo afirma, antes de o haver observado — acrescentou o mano Sam.

— Pois bem, meus senhores — respondeu Aristobulo Ursiclos — , mostrar-se-lhe-á o seu Raio Verde.

Em seguida, todos três, pelo estreito caminho traçado através das planícies que orlam o litoral, voltaram para o Hotel Caledónia.

Aristobulo Ursiclos não perdeu esta ocasião de fazer notar aos irmãos Melvill como o espírito das mulheres se compraz com futilidades, e descreveu a largos traços quanto haveria a fazer para elevar o nível da sua mal entendida educação; embora fosse sua opinião que o seu cérebro, menos provido de massa encefálica que o do homem, e muito diverso na disposição dos lóbulos, nunca poderia chegar à compreensão das altas especulações!

Mas, sem ir tão longe, talvez se conseguisse modificá-lo por meio de um tratamento especial; bem que, desde que no mundo há mulheres, nenhuma ainda se distinguiu por uma dessas descobertas que imortalizam os Aristóteles, os Euclides, os Hervey, os Hennenhman, os Pascal, os Newton, os Laplace, os Arago, os Humphrey Davy, os Edison, os Pasteur, etc.

Depois, atirou-se à explicação de diversos fenómenos físicos e discorreu de omni re scibili, sem dar mais uma palavra acerca de miss Campbell.

Os irmãos Melvill escutavam-no modestamente, com tanta melhor vontade que seriam incapazes de meter uma só palavra através desse monólogo sem parágrafos que Aristobulo Ursiclos ponteava com huns! huns! imperiosos e pedagógicos.

Chegaram assim a um cento de passos do Hotel Caledónia e pararam um instante a fim de se despedirem uns dos outros.

Uma menina estava nesse momento à janela do seu quarto.

Parecia extremamente azafamada e mesmo confusa.

Olhava em frente, para a direita e para a esquerda, parecendo procurar com a vista um horizonte que não podia achar.

De repente, miss Campbell, pois era ela, avistou seus tios.

Imediatamente se fechou a janela, e minutos depois a jovem senhora chegava à rua com os braços semicruzados, o rosto severo e a fisionomia cheia de acusações.

Os manos Melvill olharam um para o outro.

Que tinha Helena?

Era a presença de Aristobulo Ursiclos quem provocava estes sintomas de uma sobreexcitação anormal?

Entretanto, o sábio moço adiantara-se e saudava mecanicamente miss Campbell.

— O Sr. Aristobulo Ursiclos... — -anunciou o mano

Sam, apresentando-o um pouco cerimoniosamente.

— Que, pelos mais extraordinários dos acasos... se encontra precisamente em Oban!... — acrescentou o mano Sib.

— Ah!... Sr. Ursiclos? E miss Campbell apenas o cumprimentou. Em seguida, voltando-se para os manos Melvill, muito atrapalhados e não sabendo que posição tomar:

— Meus tios? — disse ela severamente.

— Querida Helena — responderam os dois tios, com a mesma intonação de voz, visivelmente inquieta.

— Estamos com certeza em Oban? — perguntou ela.

— Seguramente... em Oban. — -No mar das Hébridas?

— Certamente.

— Bem, dentro de uma hora já cá não estaremos!

— Dentro de uma hora?

— Havia-vos pedido um ponto de onde se visse o mar?

— Com certeza, querida filha...

— Tereis a bondade de mostrar-me onde está ele? Os manos Melvill, estupefactos, voltaram-se.

Em frente, tanto para sudoeste como para noroeste, nem um só intervalo aparecia entre as ilhas do lago, em que o céu e água se unissem.

Seil, Kerrera e Kismore formavam como uma barreira de uma terra à outra.

Era forçoso convir que o ponto de vista de mar pedido e prometido faltava na paisagem de Oban.

Os dois manos nem sequer haviam dado por isso no seu passeio ao longo da praia.

Por isso, soltaram estas duas interjeições muito escocesas, que exprimem a surpresa de uma verdadeira contrariedade, de mistura com algum mau humor:

— Pooh! — gritou um.

— Pswha! — acrescentou o outro.

 

                     UMA NUVEM NO HORIZONTE

Tornara-se necessária uma explicação; mas como Aristobulo Ursiclos nada tinha com isso, miss Campbell cumprimentou-o friamente e voltou para o Hotel Caledónia.

Aristobulo Ursiclos cumprimentou com igual frieza a jovem miss.

Evidentemente ofendido por haver sido equiparado com um raio, fosse de que cor fosse, retomou o caminho da praia, falando consigo próprio nos mais convenientes termos.

Os manos Sam e Sib não se sentiam no seu estado normal; por isso, quando chegaram à sala principal, esperaram de orelha caída que miss Campbell lhes dirigisse a palavra.

A explicação foi curta, mas positiva.

Tinham vindo a Oban para ter vista de mar, e não a tinham, ou era tão pequeno o horizonte que não valia a pena mencioná-lo.

Os dois tios argumentaram apenas com a sua boa-fé.

Não conheciam Oban!

Quem poderia imaginar que o mar, o verdadeiro mar, não se encontrasse ali, visto que afluíam os banhistas!

Era talvez o único ponto da costa em que, graças a essas desastrosas Hébridas, a linha de água não fizesse com o céu um perfeito arco de círculo.

— Ora, pois — decidiu miss Campbell, num tom que se esforçou por tornar quanto possível severo — , será necessário trocar Oban por qualquer outra terra, ainda mesmo que tenhamos de sacrificar a vantagem de nos encontrarmos com o Sr. Aristobulo Ursiclos!

Os irmãos Melvill, baixando instintivamente a cabeça, nada responderam a esta estocada a fundo.

— Vamos fazer os nossos preparativos — rematou miss Campbell — e partir hoje mesmo.

— Partamos! — responderam os dois tios, que só pela mais passiva obediência poderiam fazer perdoar a sua leviandade.

E logo em seguida, segundo o costume, ressoaram estes nomes:

— Bet!

— Beth!

— Bess!

— Betsey!

— Betty.

A senhora Bess apareceu, seguida de Partridge.

Foram imediatamente prevenidos ambos, e, convencidos de que a sua jovem ama devia sempre ter razão, nem sequer perguntaram o motivo desta precipitada partida.

Mas não haviam contado com mestre Mac-Fyne, proprietário e senhor do Hotel Caledónia.

Seria não conhecer bem estes estimáveis industriais, mesmo na hospitaleira Escócia, se os julgássemos capazes de deixar partir uma família composta de três amos e dois criados, sem haver feito todo o possível para a demorar.

Foi o que aconteceu.

Quando foi posto ao corrente desta importante questão, mestre Mac-Fyne declarou que o caso podia arranjar-se à satisfação de todos, sem falar do particular prazer que ele próprio teria em conservar o maior tempo possível tão distintos viajantes. Que pretendia miss Campbell e, por consequência, que reclamavam os Srs. Sib e Sam Melvill?

A vista do mar aberta sobre um largo horizonte?

Nada mais fácil, visto que bastava observar esse horizonte ao pôr do Sol.

Não o podiam ver do litoral de Oban? Seja! Seria bastante irem colocar-se na ilha de Kerrera? Não.

A grande ilha de Mull apenas deixaria enxergar uma pequena porção do Atlântico ao sudoeste.

Mas, tornando a descer a costa, encontra-se a ilha Seil, ligada na sua extremidade por uma ponte ao litoral escocês.

Ali, nenhum obstáculo à vista, ao ocidente, nos dois quintos do compasso.

Ora, ir a esta ilha era um simples passeio de quatro ou cinco milhas, o muito, e, quando o tempo fosse propício, uma boa carruagem, puxada por uma óptima parelha, poderia conduzir ali em hora e meia miss Campbell e os que a acompanhavam.

Para corroborar a sua eloquente loquela, o dono da hospedaria mostrava o grande mapa pendurado no vestíbulo do hotel.

Miss Campbell pôde, pois, verificar que mestre Mac-Fyne não procurava impor-se.

Com efeito, ao longo da ilha Seil desenvolvia-se um largo sector, compreendendo um terço desse horizonte, sobre o qual desliza o Sol durante as semanas que precedem e seguem o equinócio.

O negócio arranjou-se, pois, com grande contentamento do mestre Mac-Fyne, concordando plenamente os irmãos Melvill.

Miss Campbell, perdoando-lhes generosamente, não tornou a fazer a mínima alusão desagradável à presença de Aristobulo Ursiclos.

— Mas — observava o mano Sam — é pelo menos singular que precisamente em Oban não haja vista de mar!

— É tão caprichosa a Natureza! — replicou o mano

Sib.

Aristobulo Ursiclos considerou-se, sem dúvida, muito feliz ao saber que miss Campbell não iria procurar em outra parte um lugar mais próprio às suas observações meteorológicas; mas andava tão absorvido pelos seus elevados problemas que se esqueceu de lhe significar toda a sua alegria.

A singular menina agradeceu-lhe provavelmente esta reserva, pois, continuando indiferente, recebeu-o contudo menos friamente que no seu primeiro encontro.

Entretanto o estado da atmosfera havia-se modificado ligeiramente.

Se o tempo continuava sempre fixo no bom, algumas nuvens, que os ardores do meio-dia dissipavam, enevoavam o horizonte ao nascer e pôr do Sol.

Era pois desnecessário ir procurar um ponto de observação à ilha Seil.

Seria trabalho inútil. Era forçoso ter paciência, pois não havia outro remédio.

Durante esses longos dias, miss Campbell, deixando seus tios agarrados ao noivo que lhe haviam escolhido, ia algumas vezes acompanhada da senhora Bess, mas quase sempre só, vaguear pelas praias da baía.

Evitava com a melhor vontade toda essa sociedade de ociosos que constitui a povoação flutuante das terras de banhos, quase a mesma por toda a parte:

Famílias cuja única ocupação é ver subir e descer o mar, enquanto rapariguitas e rapazes se rolam sobre a areia com uma liberdade de posições muito britânica;

Gentlemen, graves e fleumáticos, com o seu vestuário de banhistas muitas vezes demasiadamente rudimentar, tendo por principal afazer mergulhar-se durante seis minutos na água salgada; Homens e senhoras de grande respectability, hirtos e imóveis sobre bancos verdes de almofadas encarnadas, folheando algumas páginas desses livros cartonados, grosseiramente pintados e de texto compacto, de que se abusa um pouco nas edições inglesas;

Alguns turistas de arribação, com o óculo a tiracolo, o chapéu-capacete na cabeça, compridas polainas nas pernas, guarda-sol debaixo do braço, que chegaram ontem e partirão amanhã;

Depois, no meio desta multidão: industriais cuja indústria é essencialmente ambulante e portátil, eléctricos que, por dois pence, vendem fluido a quem quer pagar-se este capricho; artistas dos quais o piano mecânico, colocado sobre rodas, mistura com as canções do país os motivos desfigurados das canções de França;

Fotógrafos ao ar livre, que dão dúzias de provas instantâneas as famílias agrupadas para este efeito;

Vendedores de casaco preto, vendedores de chapéus de flores, empurrando as suas pequenas carriolas, onde se vêem os mais belos frutos do mundo; minstrels, finalmente, cuja carantonha se decompõe sob a pintura que a cobre, representando cenas populares com variados vestuários, cantando essas plangentes canções locais, de inúmeras coplas, no meio de um círculo de crianças, que em coro lhes repetem gravemente os ritornelos.

Nesta vida das praias não havia já, para miss Campbell, nem segredos nem encantos.

Preferia afastar-se deste vaivém de pessoas que são tão desconhecidas umas às outras como se viessem dos quatro extremos do mundo.

Assim, quando os tios, inquietos pela sua ausência, queriam ir encontrá-la, era na orla do mar, sobre alguma ponta de terra estendida pela baía, que deviam ir procurá-la.

Ali, miss Campbell estava sentada, como a pensativa Minna do Pirata, com o cotovelo apoiado na saliência de um rochedo, a cabeça encostada à mão, e com a outra debulhando as bagas dessa espécie de calcífraga que cresce entre as pedras.

O seu distraído olhar ia de um stack, erguendo a pino o cimo rochoso, a alguma obscura caverna, um desses helyers- — como se diz na Escócia — cheio de rugidos do fluxo do mar.

Ao longe, os corvos marinhos estavam colocados em filas, com uma imobilidade de animais hieráticos, e ela seguia-os à distância com a vista, quando, perturbados no seu sossego, levantavam voo, ferindo com a asa a crista das curtas vagas da ressaca.

Em que pensava a jovem senhora? Aristobulo Ursiclos, certamente, haveria tido a impertinência, e os tios a ingenuidade, de julgar que pensava nele: enganar-se-iam.

Miss Campbell evocava pela memória as cenas do Korryvrekan.

Via de novo a chalupa em perigo, e as manobras do Glengarry aventurando-se até ao meio do estreito canal. Tornava a sentir no fundo do coração a comoção que tão estreitamente o apertara quando os imprudentes desapareceram do côncavo do vórtice! Seguia-se o salvamento, a corda lançada a propósito, o elegante rapaz aparecendo no tombadilho, tranquilo, risonho, menos comovido do que ela, saudando com o gesto os passageiros do steamer. Para uma cabeça romanesca havia nisto o princípio de um romance; mas parecia que o romance devia parar no primeiro capítulo. O livro começado fechara-se repentinamente nas mãos de miss Campbell.

Em que página poderia tornar a abri-lo, visto que eco seu herói», à semelhança de algum Wodan das epopeias gaélicas, não tornara a aparecer?

Mas havia-o ao menos procurado nessa multidão de indiferentes que frequentavam as praias de Oban? Talvez.

Encontrara-o? Não.

Ele, sem dúvida, não poderia reconhecê-la. Porque a teria notado a bordo do Glengarry? Porque teria corrido para ela?

Como poderia adivinhar que lhe devia em parte vida?

E, contudo, fora ela quem primeiro avistara a embarcação em perigo iminente, ela que antes de todos tinha suplicado ao capitão que fosse em seu socorro!

E, na verdade, isso lhe custara talvez, nessa tarde, o Raio Verde!

Era para recear certamente.

Durante os três dias que seguiram à chegada da família Melvill a Oban, o céu teria feito o desespero de um astrónomo dos Observatórios de Edimburgo ou de Greenwich.

Estava como forrado de uma espécie de vapor, mais condensado do que o teriam sido nuvens.

Os óculos ou telescópios dos mais poderosos modelos, o reflector de Cambridge bem como o de Parsontown não conseguiriam atravessá-lo.

Somente o Sol possuiria bastante força para o trespassar com os seus raios; mas, no ocaso, a linha do mar esfumava-se de ligeiras brumas, que purpureavam o ocidente com as mais esplêndidas cores.

Era pois impossível que a verde flecha chegasse aos olhos de um observador.

No seu sonho, miss Campbell, arrastada por uma imaginação um pouco fantástica, confundia num só pensamento o náufrago do abismo de Corryvrekan e o Raio Verde.

O certo é que nem um nem outro apareciam. Se as névoas escureciam este, o incógnito ocultou aquele.

Os irmãos Melvill, quando se lembravam de exortar

a sua sobrinha a ter paciência, não eram muito bem recebidos.

Miss Campbell não punha a mínima dificuldade em torná-los responsáveis por estas perturbações atmosféricas.

Eles então queixavam-se do excelente barómetro aneróide que haviam tido o cuidado de trazer de Helens-burgh, cuja agulha persistia em não subir.

Na verdade, teriam dado a sua caixa de rapé para obter no ocaso do radioso astro um céu limpo de nuvens.

Enquanto ao sábio Ursiclos, um dia, a propósito dos vapores de que se carregava o horizonte, cometera a inépcia de achar a sua formação perfeitamente natural.

Daqui a fazer um breve curso de física ia apenas um passo, e ele deu-o na presença de miss Campbell.

Falou das nuvens em geral, do seu movimento descendente que as faz voltar ao horizonte com baixa de temperatura, dos vapores reduzidos a forma vesicular, da sua classificação científica, com nimbos, estratos, cúmulos, cirros!

É inútil dizer que foram perdidas as suas despesas de erudição.

E foi coisa tão evidente que os manos Melvill não sabiam que posição tomar durante esta inoportuna conferência!

Sim! Miss Campbell cortava, rente, o jovem sábio, para usarmos da expressão do dandismo moderno: primeiro, fingiu olhar para outro lado para não o ouvir; em seguida, ergueu obstinadamente os olhos para o castelo de Dunolly, para figurar não ouvir; finalmente, fixou a vista na extremidade dos seus finos sapatos de banhista — o que é a prova da mais perfeita indiferença, do mais completo desdém que pode dar uma escocesa, não só ao que diz o seu interlocutor, como à sua própria pessoa. Aristobulo Ursiclos, que sempre só a si via e ouvia, que só para si falava, em coisa alguma fez reparo, ou fingiu não reparar.

Assim se passaram os dias 3, 4, 5 e 6 de Agosto, mas neste último, com grande alegria dos manos Melvill, o barómetro subiu algumas linhas acima do variável.

O dia seguinte anunciou-se sob os melhores auspícios.

Às dez da manhã o Sol brilhava com grande claridade, e o céu estendia por cima do mar o seu azul de uma perfeita limpidez.

Miss Campbell não podia deixar escapar esta ocasião.

Uma carruagem de passeio estava sempre às suas ordens nas cocheiras do Hotel Caledónia.

Era então, ou nunca, o momento de se servir dela. Assim, pois, às cinco horas da tarde miss Campbell e os irmãos Melvill tomaram lugar no trem, conduzido por um cocheiro hábil nas manobras do four-in-hand, Partridge subia para o assento de trás, e os quatro cavalos, acariciados pela pita do comprido chicote, galopavam na estrada de Oban a Clachan.

Aristobulo Ursiclos, com grande mágoa sua — embora não de miss Campbell — , ocupado com alguma importante memória científica, não pôde acompanhá-los. A excursão foi em tudo encantadora. A carruagem seguia o caminho do litoral, ao longo do estreito que separa a ilha Kerrera das costas da Escócia. Esta ilha, de origem vulcânica, era muito pitoresca, mas tinha um contra aos olhos de miss Campbell: era encobrir-lhe a vista do mar.

Todavia, como havia apenas quatro milhas a andar nestas condições, consentiu em admirar-lhe o harmonioso perfil, cujo recorte se desenhava sobre um fundo de luz, com as ruínas do castelo dinamarquês que lhe coroa a ponta meridional.

— Foi em outro tempo a residência dos Mac-Douglas de Lorn — fez notar o mano Sam.

— E para a nossa família — acrescentou o mano Sib — tem este castelo um interesse histórico, visto que foi destruído pelos Campbell, que o incendiaram, depois de haverem degolado sem piedade todos os habitantes!

Este heróico feito pareceu merecer mais especialmente a aprovação de Partridge, que bateu docemente as palmas em honra do clã.

Depois de passar para além da ilha Kerrera, a carruagem entrou num caminho estreito, levemente acidentado, que levava à aldeia de Clachan.

Chegada ali, tomou por esse fictício istmo, que, sob a forma de ponte, atravessa o pequeno canal e liga a ilha Seil ao continente.

Meia hora mais tarde, havendo deixado a carruagem no fundo de um barranco, os viajantes subiram por uma colina bastante íngreme e iam assentar-se na extremidade das rochas, na orla do litoral.

Desta vez nada servia de obstáculo aos olhares dos espectadores, voltados para o poente: nem a ilhota de Easdale, nem a de Inish, encalhadas junto de Seil.

Entre a ponta Ardanalish, da ilha Mull, uma das maiores das Hébridas, ao nordeste, e a ilha Colonsay, a sudoeste, recortava-se uma larga porção de mar, sob o qual o disco solar ia em breve afogar os seus raios.

Miss Campbell, toda entregue à sua ideia, inclinara-se um pouco para a frente.

Algumas aves de rapina, águias ou falcões, únicas a animar esta solidão, pairavam por cima dos dens, espécie de vales abertos como funis de paredes rochosas.

Astronòmicamente, o Sol, nesta época do ano e naquela latitude, devia pôr-se às sete horas e cinquenta e quatro minutos, precisamente na direcção da ponta Ardanalish.

Mas, algumas semanas mais tarde, seria impossível vê-lo desaparecer por detrás desta linha do mar, porque a massa da ilha Colonsay tê-lo-ia roubado aos olhares.

Aquela tarde, pois, o tempo e o local eram bem escolhidos para a observação do fenómeno.

Nesse momento o Sol seguia por uma trajectória oblíqua sobre o horizonte perfeitamente livre.

Os olhos sentiam alguma dificuldade em suportar o brilho do seu disco, já de um rubro ardente, que as águas reflectiam num longo rasto de luz.

E, todavia, nem miss Campbell nem seus tios consentiriam em fechar os olhos sequer um instante.

Mas, antes que o astro mordesse o horizonte com o seu bordo inferior, miss Campbell soltou um grito de decepção.

Aparecera uma pequena nuvem, delgada como uma frecha, comprida como a flâmula de um navio de guerra.

Cortava o disco em duas partes desiguais, e parecia ir descendo com ele até ao nível do mar.

Um sopro, por mais leve que fosse, bastaria para a afastar, para a desfazer! Mas tal sopro não o houve!

E, quando o Sol ficou reduzido a um pequeno arco, foi esse fino vapor que, em vez dele, circunscreveu a linha do céu e da água.

O Raio Verde, perdido naquela pequena nuvem, não pudera chegar aos olhos dos observadores.

 

                   OBSERVAÇÕES DA SENHORA BESS

O regresso a Oban fez-se silenciosamente. Miss Campbell não proferia uma só palavra. Os manos Mel-vill não ousavam falar.

Não era contudo culpa deles se esse desastrado vapor aparecera justamente no momento próprio para observar o último raio do Sol.

Em suma, era necessário não perder a esperança. A boa estação devia durar ainda mais de seis semanas.

Se, durante todo o Outono, alguma bonita tarde não viesse apresentar o seu horizonte sem névoas, seria seguramente estar em maré de infelicidade!

Não obstante, era uma admirável tarde perdida, e o tempo parecia não prometer uma semelhante, tão cedo pelo menos. Com efeito, durante a noite, a caprichosa agulha do aneróide voltou suavemente para o variável.

Mas o que era ainda bonito tempo para toda a gente não podia satisfazer miss Campbell.

No dia seguinte, 8 de Agosto, o Sol coava-se através de alguns quentes vapores. A brisa do meio-dia não foi desta vez bastante forte para os dissipar.

Pela tarde o céu tomou a viva cor da púrpura.

Todos os matizes misturados, desde o amarelo do cromo até ao sombrio azul-escuro, transformaram o horizonte numa deslumbrante paleta de colorista.

Sob o flocoso véu de pequenas nuvens o ocaso do Sol estampou na linha de perspectiva do litoral todos os raios do espectro, com excepção apenas daquele que a fantasiadora miss Campbell tanto desejava ver.

E foi assim também nos outros dias.

A carruagem ficou, pois, na cocheira do hotel.

De que servia ir em busca de uma observação que o estado do céu tornava impossível?

Os pontos elevados da ilha Seil não poderiam ser mais favorecidos do que as praias de Oban, e mais valia não correr ao encontro de algum desengano.

Com um mau humor, que não ultrapassava o que exigiam as conveniências, miss Campbell contentava-se, quando chegava a noite, em voltar para o seu quarto, um tanto amuada com tão pouco complacente Sol.

Descansava então dos seus longos passeios, e, apesar de acordada — sonhava.

Com quê? Com a lenda que se ligava ao Raio Verde?

Ser-lhe-ia necessário ainda vê-lo para ler claramente no seu coração?

No seu, não talvez; mas no dos outros?

Nesse dia, acompanhada da senhora Bess, era às ruínas de Dunolly-Castle que Helena fora passear a sua contrariedade.

Deste sítio, e do pé de um velho muro coberto pelos espessos liames da hera, nada mais admirável do que o panorama formado pela chanfradura da baía de Oban, os selvagens aspectos de Kerrera, as ilhotas semeadas no mar das Hébridas, e essa grande ilha de Mull, cujas rochas ocidentais sofrem os primeiros assaltos das tempestades vindas do Oeste Atlântico.

E então miss Campbell contemplava os admiráveis longes que se desenvolviam diante dos seus olhos; mas via-os ela?

Não se obstinaria em distraí-la alguma recordação?

Seja como for, pode-se afirmar que não era por certo a imagem de Aristobulo Ursiclos.

Na verdade, não viria bem, esse jovem pedante, para ouvir a opinião que, nesse dia, a senhora Bess emitia muito francamente a respeito dele.

— Não me agrada! — repetia ela. — Não me agrada! Ele só pensa em ser agradável a si próprio. Que figura faria na quinta de Helensburgh? Ele é do clã dos «Mac-Egoístas» ou eu não entendo nada disto.

«Como pensaram os Srs. Melvill que ele poderia ainda um dia ser seu sobrinho? Partridge embirra tanto com ele como eu, e Partridge é entendedor.

((Vejamos, miss Campbell, gosta dele?

— De quem falas tu? — perguntou a jovem, que não ouvira uma só das reflexões da senhora Bess.

— Desse em que não podeis pensar, ainda que só fora pela honra do clã!

— Em quem pois julgas tu que eu não devo pensar?

— Nesse tal Aristobulo, que faria melhor indo ver, da outra banda do Tweed, se houve em qualquer tempo algum Campbell em procura de Ursiclos!

A senhora Bess não costumava mascar as palavras, mas era necessário que estivesse muito excitada para se pôr em contradição com os amos — verdade é que em proveito da sua jovem ama!

Demais a mais, bem percebia que Helena mostrava por aquele pretendente mais que indiferença.

Não poderia ela porém imaginar que essa indiferença era acompanhada por um sentimento mais vivo com respeito a um outro.

Todavia, a senhora Bess suspeitou-o quando miss Campbell lhe perguntou se ela havia tornado a ver em Oban esse mancebo a quem o Glengarry prestara com tanta felicidade socorro e assistência.

— Não, miss Campbell — respondeu a senhora Bess —, deve ter partido logo, mas Partridge julga tê-lo visto...

— Quando? Onde?

— Ontem, na estrada de Dalmaly. Voltava, com o saco a tiracolo, como um artista em viagem! Ah! é um imprudente aquele rapaz! Deixar-se assim agarrar pelo sorvedouro de Corryvrekan é de mau agouro para o futuro! Não se encontrará sempre algum navio para lhe acudir, e há-de acontecer-lhe alguma desgraça!

— Julgas isso, Bess? Se foi imprudente, mostrou-se ao menos corajoso, e naquele perigo nem por um minuto, sequer, parece haver perdido o sangue-frio!

— É possível, mas com toda a certeza, miss Campbell — replicou a senhora Bess — , esse moço não soube que talvez lhe devesse a si a salvação; do contrário, no dia seguinte à sua chegada a Oban, teria seguramente vindo agradecer-lhe!

— Agradecer-me? — volveu miss Campbell. — E porquê? Não fiz em seu favor mais do que faria por qualquer outro, e, acredita-o, o que qualquer outro haveria feito em meu lugar!

— Reconhecê-lo-ia? — perguntou a senhora Bess, fixando a jovem senhora.

— Sim — respondeu francamente miss Campbell — , e confesso que o seu tipo, a tranquila coragem que mostrou quando apareceu no convés, como se não acabasse de evitar a morte, as afectuosas palavras que disse ao seu velho companheiro, estreitando-o contra o peito, tudo isso me impressionou vivamente!

— Ora, pois — exclamou a digna mulher — , com quem se parece não poderia eu dizê-lo, mas em todo o caso nada se parece com o Sr. Aristobulo Ursiclos!

Miss Campbell sorriu-se, sem nada responder; ergueu-se e ficou um instante imóvel, lançando um derradeiro olhar às longínquas elevações da ilha Mull; depois, seguida da senhora Bess, tornou a descer o árido carreiro que conduz à estrada de Oban.

Essa tarde o Sol descia envolvido numa espécie de poeira luminosa, leve como um filó palhetado de ouro e prata, e o seu último raio perdia-se ainda na cerração

da noite.

Miss Campbell regressou ao hotel, fez pouca honra ao jantar que os tios haviam encomendado em sua intenção, e, depois de um curto passeio na praia, recolheu-se ao seu quarto.

 

                   UMA PARTIDA DE «CROQUET»

Os irmãos Melvill, é forçoso dizê-lo, começavam a contar os dias, se não haviam ainda chegado a contar as horas.

As coisas não corriam como desejavam. O visível aborrecimento de sua sobrinha, a necessidade de estar só, que começava a sentir, o frio acolhimento que fazia ao sábio Ursiclos, com que este se preocupava talvez menos do que eles, eram motivo para lhes não tornar agradável a estada em Oban.

Não sabiam que inventar para quebrar esta monotonia.

Espreitavam inutilmente as mínimas variações atmos féricas.

Julgavam que miss Campbell, satisfeito o seu desejo, voltaria a ser mais tratável — ao menos para eles.

É que há dois dias, Helena, mais absorta ainda, se esquecia de lhes dar esse beijo da manhã que os punha de bom humor para as restantes vinte e quatro horas.

Entretanto, o barómetro, insensível às recriminações dos dois tios, não se resolvia a predizer uma próxima modificação do tempo.

Qualquer que fosse o seu cuidado em dar-lhe dez vezes por dia uma pequena pancada para determinar uma oscilação da agulha, a agulha não subia uma linha. Oh! estes barómetros!

Entretanto, os manos Melvill tiveram uma ideia.

Na tarde de 11 de Agosto imaginaram propor a miss Campbell uma partida de «croquet», para a distrair, se fosse possível. Posto que Aristobulo Ursiclos devesse ser um dos jogadores, Helena não recusou, tanto conhecia ser-lhes agradável.

É necessário dizer que o mano Sam e o mano Sib se jactavam de ser de primeira força neste jogo, tanto em voga no Reino Unido.

É, ninguém o ignora, a antiga «malha ou choca», muito habilmente apropriado ao gosto da mocidade feminina.

Ora, havia precisamente em Oban muitos sítios planos dispostos para as manobras do «croquet».

Se na maior parte das praias de banhos se contentam com um local mais ou menos bem nivelado, prado ou areal, prova isto menos a exigência dos jogadores que a sua indiferença ou o seu pouco zelo por esta nobre distracção.

Aqui as planícies eram, não areentas, mas cobertas de relva, como é conveniente, o que se denomina «crockets-grounds» — humedecidas, cada tarde, com bombas de regar, roladas cada manhã com um instrumento especial, macias como um veludo passado pelo laminador.

Pequenos cubos de pedra à superfície do solo eram destinados a garantir a fixidez das estacas e dos arcos.

Além disto, um fosso da altura de algumas polegadas delimitava cada local, dando-lhe os mil e duzentos pés quadrados necessários aos movimentos dos jogadores.

Quantas vezes os irmãos Melvill haviam olhado com inveja para os rapazes e raparigas que manobravam nestes admiráveis e escolhidos terrenos!

Assim, foi imensa a sua alegria quando miss Campbell acedeu ao seu convite.

Conseguiriam pois distraí-la, entretendo-a com o jogo de que mais gostava, cercados de espectadores, que não lhe faltariam aqui como em Helensburgh.

Vaidosos!

Aristobulo Ursiclos, prevenido, consentiu em suspender os seus trabalhos, e à hora marcada comparecia no teatro da luta.

Ele tinha a pretensão de ser tão forte no «croquet» teórica como praticamente, de o jogar como um sábio, um físico, um matemático, numa palavra, por A + B, como convém a uma cabeça em x.

O que pouco agradava a miss Campbell era ter forçosamente por parceiro o moço pedante.

Mas poderia ser de outro modo?

Pois havia de dar a seus tios o desgosto de os separar na luta, de os opor um ao outro, eles tão unidos de coração e pensamento, de corpo e de espírito, eles que sempre jogavam juntos!

Não, não faria tal!

— Miss Campbell — afirmou-lhe logo Aristobulo Ursiclos — , é para mim grande felicidade ser seu parceiro, e se permite que lhe explique a causa determinante dos diversos incidentes do jogo...

— Sr. Ursiclos — respondeu Helena, chamando-o à parte — , é necessário deixar que meus tios ganhem.

— Ganhem?...

— Sim... mas sem que pareça de propósito. Seriam muito infelizes se perdessem.

— Contudo... se me dá licença!... — redarguiu Aristobulo Ursiclos. — Conheço o jogo do «croquet» geometricamente, posso-me gabar! Calculei a combinação das linhas, o valor das curvas, e julgo poder ter algumas pretensões.

— A minha única pretensão — replicou miss Campbell — é ser agradável aos nossos adversários. Mas, além disso, eles são muito hábeis ao «croquet», fique-o sabendo; e duvido que toda a destreza deles.

— É o que vamos ver! — murmurou Aristobulo Ursiclos, que nenhuma consideração podia resolver a deixar-se voluntariamente vencer... nem mesmo para ser agradável a miss Campbell.

Entretanto, o moço do «crocket-ground» tinha trazido a caixa que continha as estacas, as marcas, os arcos, as bolas e os maços.

Os nove arcos foram colocados em losango sobre as pequenas lajes, espetando-se as duas estacas em cada extremo do eixo grande do mesmo losango.

— Vamos tirar à sorte — gritou o mano Sam.

Deitaram as marcas num chapéu, e cada um dos jogadores tirou uma ao acaso.

A sorte deu as seguintes cores para o regulamento da partida: ?

Uma bola e um maço azul ao mano Sam; uma bola e um maço vermelho a Ursiclos; uma bola e um maço amarelo ao mano Sib; e uma bola e um maço verde a miss Campbell.

— Enquanto espero o raio da mesma cor! — notou ela. — É de bom agouro!

Ao mano Sam pertencia começar, e principiou, depois de haver trocado uma boa pitada com o seu parceiro.

Fazia gosto vê-lo com o corpo nem muito direito nem muito inclinado, a cabeça meio voltada, de modo a bater na bola no sítio próprio, as mãos colocadas uma junto da outra sobre o cabo do maço, a esquerda por baixo, a direita por cima, as pernas firmes, os joelhos ligeiramente dobrados para contrabalançar o impulso do golpe, o pé esquerdo em frente da bola e o pé direito um pouco para trás.

Um perfeito tipo de gentleman-crocketer! Então o mano Sam levantou o seu maço, fazendo-lhe suavemente descrever um semicírculo; em seguida bateu na bola, posta a dezoito polegadas do fock, ou estaca de partida, e não lhe foi necessário usar do direito, que lhe pertencia, de recomeçar três vezes esta entrada em jogo.

Efectivamente, a bola, habilmente impelida, passou sob o primeiro arco, depois sob o segundo, uma outra pancada fez-lhe transpor o terceiro, e foi só à entrada do quarto que encalhou um pouco e parou.

Era magnífico para começo.

Por isso um muito lisonjeiro murmúrio correu entre os espectadores que estavam pela parte de fora do pequeno fosso do terreno arrelvado.

Era a vez de Aristobulo Ursiclos jogar.

Foi menos feliz. Falta de jeito ou má sorte, foi-lhe necessário começar três vezes para fazer passar a bola por debaixo do primeiro arco, e não pôde vencer o segundo.

— É provável — observou ele a miss Campbell- — que esta bola não esteja perfeitamente calibrada, e neste caso o centro de gravidade, colocado excentricamente, fez com que se desviasse da sua carreira.

— Jogue, tio Sib — disse miss Campbell — , não querendo ouvir tão científica explicação.

O mano Sib foi digno do mano Sam.

A sua bola transpôs dois arcos e parou junto da bola de Aristobulo Ursiclos, que lhe serviu para transpor o terceiro, depois de a haver roçado, isto é, ferido a distância; em seguida roçou de novo a do moço sábio, cujo rosto parecia dizer: «Havemos de fazer melhor do que isto!»

Finalmente, colocadas as duas bolas em contacto, pôs o pé sobre a sua, e, impelindo-a com uma vigorosa pancada do maço, crocou a bola do seu adversário, isto é, por um efeito de repercussão, atirou-a a sessenta passos, para além do fosso limitativo.

Aristobulo Ursiclos teve de correr atrás dela, mas fê-lo com calma, como um homem reflectido, e esperou na atitude de um general que medita um golpe supremo.

Miss Campbell tomou por seu turno a bola verde, e com muita destreza passou os dois primeiros arcos.

A partida continuou em condições muito vantajosas para os manos Melvill, que se fartaram de roçar e desviar as bolas contrárias.

Que morticínio!

Trocavam pequenos sinais, entendiam-se por um olhar, sem terem necessidade de falar, e, finalmente, iam-se adiantando, com grande satisfação de sua sobrinha, mas com grande desgosto de Aristobulo Ursiclos.

Miss Campbell, todavia, vendo-se suficientemente distanciada, cinco minutos depois do começo da partida principiou a jogar com mais cuidado, e mostrou muito mais habilidade que o seu parceiro, o qual, contudo, não lhe poupava os conselhos científicos.

— O ângulo de reflexão — dizia-lhe ele — é igual ao ângulo de incidência, e isto deve-lhe indicar a direcção que hão-de seguir as bolas, depois do choque. É necessário pois aproveitar...

— Mas aproveite o senhor mesmo — replicou miss Campbell. — Não vê que estão três arcos adiante de si!

E, com efeito, Aristobulo Ursiclos ficava lastimosamente para trás.

Dez vezes já havia tentado transpor o duplo arco central sem o conseguir.

Queixou-se pois deste instrumento, mandou-o endireitar, modificou-lhe a abertura, e tentou de novo a fortuna.

A fortuna não lhe foi favorável.

A sua bola foi bater todas as vezes no ferro, e não conseguiu passar.

Na verdade, miss Campbell teria toda a razão de se queixar do seu parceiro.

Ela jogava muito bem, e merecia os cumprimentos que não lhe poupavam os seus dois tios.

Era encantador vê-la entregando-se completamente a este jogo tão próprio para mostrar a graça do corpo; a ponta do pé direito um pouco levantada, a fim de segurar a sua bola no momento de bater na outra; os seus dois braços elegantemente arredondados, quando descrevia com o maço um semicírculo, a animação do seu rosto ligeiramente inclinado para o chão, a sua figura, que se balouçava com um delicioso movimento, este todo era realmente adorável para os olhos. E, contudo, Aristobulo Ursiclos nada via.

É forçoso confessar que estava danado, o sábio moço.

Com efeito, os manos Melvill tinham-se adiantado a ponto tal que seria difícil alcançá-los.

E, contudo, os acasos do jogo do «croquet» são tão inesperados, que nunca se deve desesperar da vitória.

A partida continuava, então, nestas desiguais condições, quando se deu um incidente.

Aristobulo Ursiclos achou enfim a ocasião de roçar a bola do mano Sam, a qual acabava de tornar a passar o arco central, em cuja frente ele estava obstinadamente preso.

Verdadeiramente despeitado, embora quisesse mostrar-se tranquilo aos olhos dos espectadores, quis dar um golpe de mestre, e pagar na mesma moeda ao seu adversário, mandando-o para fora dos limites do terreno do jogo-

Colocou, pois, a sua bola junto da do mano Sam, assegurou a sua aderência amontoando a erva com o máximo cuidado, pôs-lhe em cima o pé esquerdo, e, descrevendo um círculo completo, a fim de dar mais força ao choque, fez voltear rapidamente o maço.

Que grito lhe escapou! Foi um rugido de dor!

O maço, mal dirigido, havia batido, não na bola, mas no pé do desastrado, e ei-lo saltitando sobre uma perna, soltando gemidos, muito naturais sem dúvida, mas algum tanto ridículos.

Os irmãos Melvill correram para ele.

Felizmente o couro da bota havia amortecido a violência do golpe e a contusão não era de gravidade.

Mas Aristobulo Ursiclos julgou dever explicar a sua desventura por esta forma:

— O raio, figurado pelo meu maço — disse ele, fazendo algumas caretas — , descreveu um círculo concêntrico ao que devia tocar tangencialmente o solo, porque eu tive este raio um pouco curto. Daí o choque...

— Então, senhor, damos por finda a partida? — perguntou miss Campbell.

— Dar por finda a partida! — exclamou Aristobulo Ursiclos! — Confessar-nos vencidos! Nunca. Segundo as fórmulas do cálculo das probabilidades, achar-se-ia ainda que...

— Seja! Continuemos! — tornou miss Campbell.

Mas todas as fórmulas do cálculo das probabilidades pouco poderiam favorecer os adversários dos dois tios.

Já o mano Sam estava rover, isto é, a sua bola, havendo transposto todos os arcos, tocara o besan, a estaca de chegada, consistindo agora apenas o seu jogo em ajudar o parceiro, afastando ou roçando todas as bolas conforme fosse conveniente.

Na verdade, algum tempo depois, estava definitivamente ganha a partida, e os irmãos Melvill triunfavam, com toda a modéstia, como é próprio dos mestres.

Quanto a Aristobulo Ursiclos, apesar das suas pretensões, nem sequer conseguira transpor o arco central.

Sem dúvida, miss Campbell quis então mostrar-se muito mais zangada do que realmente estava, e com o maço bateu na sua bola uma pancada violenta, sem bem lhe calcular a direcção.

A bola correu para fora do perímetro circunscrito pelo pequeno fosso, do lado do mar, precipitou-se, ressaltando sobre um seixo, e, como diria Aristobulo Ursiclos, o seu peso, multiplicado pelo quadrado da velocidade, fez com que passasse além dos limites da praia.

Infeliz pancada!

Um jovem artista estava ali, sentado em frente do seu cavalete, em acção de tirar uma vista do mar, limitada pela extremidade meridional da enseada de Oban.

A bola, batendo em cheio na tela, manchou a sua cor verde com todas as cores da paleta em que roçou ao passar, e atirou com o cavalete a alguns passos de distância.

O moço pintor voltou-se tranquilamente e observou:

— É costume prevenir antes de começar um bombardeamento. Nós não estamos aqui seguros!

Miss Campbell, havendo tido o pressentimento deste acontecimento, antes mesmo de ele se dar, correra para a praia.

— Ah! senhor — exclamou ela, dirigindo-se ao artista — , queira perdoar a minha falta de jeito!

Este levantou-se e cumprimentou, sorrindo, a bonita rapariga, muito enleada, que vinha pedir-lhe desculpa... Era o náufrago do abismo de Corryvrekan!

 

                   OLIVEIROS SINCLAIR

Oliveiros Sinclair era um bonito homem, para empregar a expressão usada antes na Escócia com respeito aos rapazes valentes, ágeis e desembaraçados, e, se esta expressão lhe convinha moralmente, é forçoso confessar que não lhe era menos apropriada no tocante ao físico.

Última vergôntea de uma honrada família de Edimburgo, este jovem ateniense da Atenas do Norte era filho de um antigo conselheiro desta capital de Mid-Lothian.

Sem pai nem mãe, educado por seu tio, um dos quatro bailios da administração municipal, havia frequentado com aproveitamento a Universidade; em seguida, na idade de vinte anos, assegurando-lhe alguma fortuna a independência, curioso de ver o mundo, visitou os principais estados da Europa, a índia, a América, e, em algumas ocasiões, a célebre «Revista de Edimburgo» não recusou publicar os seus apontamentos de viagem.

Pintor distinto, que podia, se quisesse, vender as suas obras por subido preço, poeta, nos seus dias, e — quem o não será na idade em que tudo na existência nos sorri? — coração ardente, natureza de artista, era feito para agradar, e agradava sem pretensões nem fatuidade.

É de grande facilidade o casamento na capital da velha Caledónia.

Com efeito, os sexos estão ali em proporção muito desigual, e o fraco, numericamente, excede muito o forte.

Por isso um mancebo, instruído, amável, bem-educado, de parecer muito agradável, há-de infalivelmente encontrar mais de uma herdeira a seu gosto.

E, contudo, Oliveiros Sinclair, aos vinte e seis anos, não parecia ter ainda experimentado a necessidade da vida a dois.

Parecer-lhe-ia o caminho da existência muito estreito para o seguir de braço dado?

Seguramente, não; mas era mais que provável ser mais do seu agrado caminhar só, tomar pelos atalhos, correr a seu capricho, sobretudo dados os seus gostos de artista e de viajante.

No entanto, Oliveiros Sinclair era perfeitamente próprio para inspirar mais que simpatia a alguma jovem e loira filha da Escócia.

A sua estatura elegante, o seu semblante ingénuo, o seu ar franco, o seu rosto varonil, enérgico pelas feições, doce pela expressão dos olhos, a graça dos seus movimentos, a distinção das suas maneiras, a sua palavra fácil e espirituosa, o desembaraço do seu andar, o sorriso do seu olhar, tudo isto finalmente era próprio para dominar os corações.

Não o imaginava ele, não sendo vaidoso, ou não pensava em tal, não se sentindo em disposição de prender-se.

Demais, se a sua pessoa merecia ao clã feminino de Auld-Reeky(1) tão lisonjeiras apreciações, não agradava menos aos seus companheiros de mocidade, aos seus condiscípulos; segundo a bonita frase gaélica, ele era daqueles que nunca voltam as costas nem a um amigo nem tão-pouco a um inimigo.

Pois bem, neste dia, é forçoso contudo convir que, no momento do ataque, ele voltava as costas a miss Campbell.

*1. A velha defumada, alcunha posta a Edimburgo.

 

Verdade é que miss Campbell não era nem amiga nem inimiga.

Assim, naquela posição, não tinha podido ver a bola tão rudemente impelida pelo maço da jovem senhora.

Daí aquele efeito de bomba em plena tela, e o trambolhão de todos os petrechos de pintar.

Miss Campbell logo ao primeiro olhar reconhecera o seu «herói» do Corryvrekan; mas o herói não tinha reconhecido a jovem passageira do Glengarry.

Apenas dera pela presença de miss Campbell a bordo, no fim da travessia da ilha Scarba a Oban.

Seguramente, se soubesse a parte directa que ela tomara na salvação da sua vida, ter-lhe-ia mais especialmente agradecido, ainda que só o fizesse por delicadeza, mas ignorava-o ainda e, provavelmente, ignorá-lo-ia sempre.

E, com efeito, nesse mesmo dia miss Campbell proibia — proibia é a palavra — tanto a seus tios como à senhora Bess e a Partridge que, na presença do mancebo, fizessem qualquer alusão ao que se havia passado a bordo do Glengarry, antes e depois do salvamento.

Entretanto, depois do incidente da bola, os irmãos Melvill haviam ido ter com sua sobrinha, mais confusos do que ela, se é possível, c principiaram a dar pessoalmente as suas desculpas ao moço pintor, quando este os interrompeu, dizendo:

— Minha senhora... meus senhores... por quem são, o caso não vale a pena!

— Senhor- — continuou o mano Sib, insistindo. — Não! Estamos verdadeiramente aflitos.

— E se o mal é irreparável, como receamos... — acrescentou o mano Sam.

— É um ligeiro incidente, não uma desgraça — respondeu rindo o jovem pintor. — Umas garatujas e nada mais, a que esta vingadora bola fez justiça.

Oliveiros Sinclair dizia isto com tão bom humor, que os manos Melvill de boa vontade lhe estenderiam a mão sem a mínima cerimónia.

Em todo o caso, resolveram apresentar-se reciprocamente, como é de praxe entre gentlemen.

— O Sr. Samuel Melvill — disse um.

— O Sr. Sebastião Melvill — disse o outro.

— E a sua sobrinha, miss Campbell- — acrescentou Helena, que apresentando-se a si própria não julgou faltar às conveniências.

Era convidar o mancebo a dizer o seu nome e profissão.

— Miss Campbell, Srs. Melvill — volveu ele com a maior seriedade — , poderia responder-lhes que me chamo fock, como uma das estacas do seu «croquet», por isso que a bola me bateu, mas chamo-me muito simplesmente Oliveiros Sinclair.

— Sr. Sinclair — replicou miss Campbell, que não sabia bem como tomar esta resposta — , queira ainda uma vez aceitar todas as minhas desculpas.

— -E as nossas — acrescentaram os irmãos Melvill.

— Miss Campbell — tornou Oliveiros Sinclair — , repito-lhe que isto nada vale. Procurava obter um efeito da arrebentação das vagas, e é provável que a sua bola, como a esponja de não sei que pintor da Antiguidade, lançada em cima de um seu quadro, terá produzido o efeito que eu em vão procurava traduzir!

Isto foi dito com um tom amável que miss Campbell e os manos Melvill não puderam deixar de sorrir.

Quanto à tela que Oliveiros Sinclair foi apanhar, estava completamente estragada e só lhe restava principiá-la de novo.

Convém notar que Aristobulo Ursiclos não viera tomar parte nesta luta de amabilidades e desculpas.

Acabada a partida, o sábio moço, muito vexado por não haver podido fazer concordar os seus conhecimentos teóricos com a sua aptidão prática, retirara-se para o hotel.

Não o deviam mesmo tornar a ver antes de três ou quatro dias, visto que ia partir para a ilha Luing, uma das pequenas Hébridas, situada ao sul da ilha Seil, da qual desejava estudar as ricas pedreiras de ardósia, sob o ponto de vista geológico.

Não poderia, pois, vir perturbar a conversação com as explicações que não deixaria de dar acerca da tensão das trajectórias ou outras questões relativas ao acontecimento.

Oliveiros Sinclair soube então que não era perfeitamente um desconhecido para os hóspedes do Hotel Caledónia, e foi posto ao corrente dos incidentes da travessia.

— Pois quê, miss Campbell, meus senhores — exclamou ele — , estavam a bordo do Glengarry, que me pescou tanto a propósito?

— Sim, Sr. Sinclair.

— E assustou-nos imenso — acrescentou o mano Sib — , quando, pelo maior dos casos, vimos a sua embarcação perdida no redemoinho de Corryvrekan!

— Providencial acaso — acrescentou o mano Sam — e, muito provavelmente, sem a intervenção de...

Nesta parte miss Campbell fez-lhe compreender por um sinal que não queria figurar como salvadora.

Por preço algum aceitaria o papel de Nossa Senhora dos Naufragados.

— Mas, Sr. Sinclair — continuou então o mano Sam — , que imprudência a do velho pescador que o acompanhou aventurando-se naquelas correntes.

— De que, sendo do país, devia conhecer perfeitamente o perigo — acrescentou o mano Sib.

— Não o condenem, Srs. Melvill — observou Oliveiros Sinclair. — A imprudência foi minha, minha só, e por um minuto julguei que teria a acusar-me pela morte daquele excelente homem! Mas havia tãoextraordinárias cores na superfície do redemoinho, onde o mar parece uma imensa renda lançada sobre um fundo de seda azul. Por isso, sem nada mais me importar, eis-me em busca de alguns novos matizes no meio dessa escuma impregnada de luz. E caminhava cada vez mais para a frente, sempre para a frente! O meu velho pescador via bem o perigo, fazia-me reflexões, queria voltar para o lado da ilha Jura, mas eu não o escutava, de sorte que o nosso barco caiu numa corrente, e depois foi arrastado para o abismo! Quisemos resistir à atracção!... Um golpe de mar feriu o meu companheiro, que não me pôde auxiliar, e seguramente, sem a chegada do Glengarry, sem a dedicação do seu comandante e a humanidade dos passageiros, o meu marinheiro e eu haveríamos passado ao estado legendário, estaríamos agora catalogados no obituário do Corryvrekan!

Miss Campbell escutava-o em silêncio, e erguia de quando em quando os lindos olhos para o mancebo, que não a constrangia com os seus olhares. Não pôde deixar de sorrir quando ele falou da sua caçada, ou, antes, da sua pesca dos marítimos cambiantes. Não tentava ela também uma aventura semelhante, um pouco menos perigosa, contudo, a caçada dos celestes matizes, a caçada do Raio Verde?

E os manos Melvill não deixaram de o fazer notar, falando do motivo que os trouxera a Oban, isto é, a observação de um fenómeno físico cuja natureza explicaram ao jovem pintor.

— O Raio Verde! — exclamou Oliveiros Sinclair.

— Já alguma vez o viu? — perguntou vivamente a jovem senhora — , já o viu?

— Não, miss Campbell — respondeu Oliveiros Sinclair. — Acaso sabia eu que em alguma parte existia um Raio Verde! Na verdade, não! Pois bem, também eu o quero ver! Não mais desaparecerá o Sol descendo no horizonte sem que eu assista ao seu ocaso. E, por S. Dunstan, não tornarei a pintar senão com o verde do seu último raio!

Era difícil conhecer se Oliveiros Sinclair falava com uma ligeira ponta de ironia, ou se se deixava arrastar pelo lado artístico da sua natureza. Contudo, certo pressentimento disse a miss Campbell que o mancebo não estava a gracejar.

— Sr. Sinclair, o Raio Verde não me pertence! Brilha para todo o mundo. Nada perde do seu valor por se mostrar a muitos curiosos ao mesmo tempo. Podemos pois, se assim o quiser, procurar vê-lo, juntos.

— Com mil vontades, miss Campbell.

— Mas necessita-se muita paciência!

— Tê-la-emos...

— E não recear estragar a vista — disse o mano Sam.

— O Raio Verde vale bem a pena que por ele se corra esse perigo — replicou Oliveiros Sinclair — e asseguro-lhes que não deixarei Oban sem o ver.

— Já uma vez fomos à ilha Seil — informou miss Campbell — para observar esse tal raio, mas uma pequena nuvem veio velar o horizonte justamente no momento em que se punha o Sol.

— Que fatalidade!

— Uma verdadeira fatalidade, Sr. Sinclair, porque desde esse dia nunca mais tornámos a ver um céu suficientemente limpo.

— Há-de tornar a aparecer, miss Campbell! O Verão ainda não disse a sua última palavra, e, acredite-me, antes que volte a má estação, o Sol há-de dar-nos a esmola do Raio Verde.

— Para lhe dizer tudo, Sr. Sinclair — tornou miss Campbell — , já com certeza o teríamos visto, na tarde de 2 de Agosto, no próprio horizonte da passagem do Corryvrekan, se não tivéssemos concentrado toda a nossa atenção na tentativa de salvar...

— Pois quê, miss Campbell — volveu Oliveiros Sinclair, - fui tão infeliz que a distraí num tal momento! A minha imprudência custou-lhe o Raio Verde! Sou então eu que devo pedir-lhe perdão, e desde já lhe exprimo a minha imensa mágoa pela minha inoportuna intervenção! Tal não tornará a suceder!

E nestas e noutras coisas se foi conversando no regresso ao Hotel Caledónia, onde precisamente Oliveiros Sinclair se tinha hospedado na véspera, ao voltar de uma excursão aos arredores de Dalmaly.

Este mancebo, cujos modos francos e comunicativa alegria não desagradavam aos dois tios — bem longe disso — , foi então levado a falar de Edimburgo e de seu tio, o bailio Patrick Oldimer.

Ora deu-se o caso de os irmãos Melvill haverem tido muita intimidade com o bailio Oldimer durante alguns anos.

Haviam-se em outro tempo estabelecido relações de sociedade entre as duas famílias, que o afastamento fizera interromper. Acharam-se pois muito conhecidos.

Assim, Oliveiros Sinclair foi convidado a reatar relações com os Melvill, e como não havia razão alguma que lhe fizesse preferir para estabelecer a sua banca de artista qualquer outro ponto a Oban, declarou mais que estava resolvido a permanecer ali, a fim de tomar parte nas pesquisas do famoso raio.

Nos dias seguintes, miss Campbell, os irmãos Melvill e Oliveiros Sinclair encontraram-se frequentemente nas praias de Oban.

Observavam juntos se as condições atmosféricas tendiam a modificar-se, e dez vezes por dia interrogavam o barómetro, que mostrava algumas veleidades de subida. E, com efeito, o amável instrumento passou além de trinta polegadas e sete décimos na manhã de 14 de Agosto. Com que satisfação, nesse dia, Oliveiros Sinclair trouxe a boa notícia a miss Campbell!

Um céu puro como os olhos de uma madona!

Um azul, que ia de cambiante em cambiante desde o anil até ao escuro! No espaço nem um único vapor de natureza higrométrica!

A perspectiva de uma tarde esplêndida e de um pôr do Sol a maravilhar os astrónomos de um observatório!

— Se ao pôr do Sol não virmos o nosso raio — disse Oliveiros Sinclair — é que estamos cegos !

— Meu tio — gritou miss Campbell —, bem ouvis: é para esta tarde!

Ficou pois resolvido que partiriam para a ilha Seil antes de jantar.

Assim se fez às cinco horas.

A caleça conduzia pela pitoresca estrada de Glachan miss Campbell, radiosa, Oliveiros Sinclair, refulgente, e os manos Melvill, que tomavam a sua parte neste refulgi-mento e nesta irradiação.

Dir-se-ia, na verdade, que levavam consigo o sol no assento da sua carruagem, e que os quatro cavalos do rápido trem eram os hipogrifos do carro de Apoio, deus do dia!

Chegados à ilha Seil, os observadores, de antemão entusiasmados, acharam-se em frente de um horizonte cujas linhas nenhum obstáculo alterava.

Foram colocar-se na extremidade de um estreito cabo, que separava duas quebradas do litoral e avançava pelo mar cerca de uma milha.

A oeste, nada podia embaraçar a vista, sobre a quarta parte do horizonte.

— Vamos, pois, examinar esse caprichoso raio, que tão pouca vontade mostra de se deixar ver! — disse Oliveiros Sinclair.

— Creio — respondeu o mano Sam.

— Tenho a certeza — acrescentou o mano Sib.

— E eu assim o espero — exclamou miss Campbell, olhando para o mar deserto e para o céu sem uma só mancha.

Na verdade, tudo fazia prever que, ao pôr do Sol, o fenómeno havia de mostrar-se em todo o seu esplendor. Já o astro radiante, descendo por uma linha oblíqua, estava apenas alguns graus acima do horizonte.

O seu vermelho disco tingia de uma cor uniforme o último plano do céu e lançava um longo e deslumbrante rasto sobre as águas adormecidas do alto mar.

Todos, mudos, à espera da aparição, um pouco comovidos perante este fim de um lindo dia, observavam o Sol, que afundava pouco a pouco, semelhante a uma enorme bólide.

Subitamente, miss Campbell soltou um involuntário grito, seguido de uma ansiosa exclamação, que nem os irmãos Melvill nem Oliveiros Sinclair puderam reprimir. Uma chalupa passava para além da ilhota de Easdale, encalhada junto de Seil, e avançava lentamente para oeste.

A sua vela, estendida como um pára-fogo, ultrapassava a linha do horizonte.

Iria ela ocultar o Sol no momento em que ele fosse apagar-se nas vagas?

Era uma questão de alguns segundos apenas. Já não havia tempo para retroceder, para se afastarem para um outro lado, a fim de ficarem em frente do ponto de contacto; e a estreiteza do cabo não permitia que se desviassem fazendo um ângulo suficiente para tornarem a colocar-se no eixo do Sol.

Miss Campbell, desesperada com este contratempo, andava para cá e para lá sobre os rochedos.

Oliveiros Sinclair fazia longos gestos à embarcação e gritava-lhe que arriasse a vela. Baldados esforços! Nem o viam, nem podiam ouvi-lo. A chalupa, impelida por uma ligeira brisa, continuava a subir para oeste com a vaga que a levava.

No momento em que o bordo superior do disco solar ia desaparecer, a vela passou-lhe em frente e ocultou-o debaixo do seu opaco trapézio.

Decepção!

Desta vez, o Raio Verde havia-se desprendido neste límpido horizonte, mas fora de encontro à vela, antes de haver chegado ao promontório, onde tantos olhares avidamente o espreitavam.

Miss Campbell, Oliveiros Sinclair, os irmãos Melvill, extremamente contrariados, mais irritados talvez do que o comportava esta má sorte, continuavam petrificados no seu lugar, esquecendo-se mesmo de se ir embora, amaldiçoando a embarcação e os que a tripulavam.

Entretanto, a chalupa atracara numa pequena enseada da ilha Seil, na base mesmo do promontório.

Neste momento desembarcou um passageiro, deixando a bordo os dois marinheiros que o haviam trazido da ilha Luing pelo mar alto; depois, contornando a praia, escalou as primeiras rochas, de modo a chegar à extremidade do cabo.

Com toda a certeza, este importuno reconhecera o grupo de observadores postados no planalto, porque os saudou com um gesto em que havia certa familiaridade.

— O Sr. Ursiclos — exclamou miss Campbell.

— Ele! Era ele! — acrescentaram os dois irmãos.

«Quem será este senhor?», disse consigo Oliveiros Sinclair.

Era com efeito Aristobulo Ursiclos, em pessoa, que voltava depois de uma científica digressão de alguns dias à ilha Luing.

É inútil descrever como foi recebido por aqueles que viera perturbar na realização do seu mais caro desejo.

O mano Sam e o mano Sib, esquecendo todas as conveniências, nem mesmo pensaram em apresentar Oliveiros Sinclair e Aristobulo Ursiclos um ao outro.

Perante o descontentamento de Helena, baixaram os olhos para não ver o pretendente que haviam escolhido.

Miss Campbell, com as pequeninas mãos fechadas, „„ braços cruzados sobre o peito, os olhos fulgurantes, olhava-o em silêncio.

Depois, finalmente, escaparam-lhe dos lábios as seguintes palavras:

— Sr. Ursiclos, teria feito melhor não chegando tanto a propósito para praticar uma inépcia!

 

                 NOVOS PROJECTOS

O regresso a Oban fez-se em condições menos agradáveis que a ida à ilha Seil. Haviam julgado correr a uma vitória, e voltavam depois de uma derrota.

Se alguma coisa podia mitigar a decepção experimentada por miss Campbell era o ser causada por Aristobulo Ursiclos.

Tinha o direito de acabrunhar esse grande culpado, de carregar a sua cabeça de maldições.

Não o poupou.

Os manos Melvill, se ousassem defendê-lo, veriam o bom e o bonito.

Não! Para esconder o horizonte no momento em que o Sol soltava o seu último dardo luminoso fora necessário que chegasse mesmo na ocasião própria o barco daquele desastrado. São coisas que se não perdoam.

Escusado é dizer que, depois desta algazarra, Aristobulo Ursiclos, que, para se desculpar, se permitira demais a mais caçoar com o Raio Verde, voltara à chalupa, a fim de regressar a Oban.

Tinha procedido com juízo, pois é muito provável que não lhe dessem lugar na caleça, nem mesmo na almofada.

Assim, pois, duas vezes já o pôr do Sol se realizara em condições tais que teria sido possível observar o fenómeno, e duas vezes os olhos ardentes de miss Campbell se haviam exposto em vão às rutilantes carícias do astro, que lhe deixavam a vista turva durante algumas horas.

Primeiramente o salvamento de Oliveiros Sinclair, e em seguida a aparição de Aristobulo Ursiclos, haviam feito falhar ocasiões que talvez por muito tempo não se tornassem a dar.

Verdade é que as circunstâncias nos dois casos não tinham sido as mesmas, e miss Campbell tanto desculpava um como censurava o outro.

Quem poderia acusá-la de parcialidade?

No dia seguinte, Oliveiros Sinclair, bastante pensativo, passeava nas praias de Oban.

Quem era esse tal Aristobulo Ursiclos?

Um parente de miss Campbell e dos irmãos Melvill, ou simplesmente um amigo?

Era, pelo menos, um íntimo da casa: bastava ver o modo com que miss Campbell o repreendera pela sua falta de tacto.

Mas, que lhe importava a ele, Oliveiros Sinclair?

Se quisesse ficar perfeitamente informado, bastava-lhe interrogar o mano Sam ou o mano Sib...

Era, porém, isto o que ele não queria fazer e o que com efeito não fez.

E, contudo, não lhe faltaram ocasiões. Todos os dias encontrava ora os irmãos Melvill passeando juntos — quem poderia gabar-se de os ter visto alguma vez um sem o outro —, ora acompanhando sua sobrinha à borda do mar.

Falava-se de mil coisas, e mais especialmente do tempo, o que, neste caso, não era um modo de falar por falar.

Apareceria ainda uma dessas serenas tardes, cuja volta espreitavam para tornar à ilha Seil? Êra lícito duvidar. Na verdade, depois do admirável tempo dos dias 2 a 14 de Agosto, haviam voltado o céu duvidoso, as nuvens tempestuosas, os relâmpagos de calor sulcando o horizonte, as neblinas crepusculares, enfim mais que o suficiente para fazer desesperar um estudante de astronomia agarrado à objectiva do seu óculo, e trabalhando na revisão de um pedaço do mapa celeste!

Porque não confessar que o moço pintor estava agora tão namorado do Raio Verde como miss Campbell?

Tinha tomado esta tineta de companhia com a linda rapariga.

Corria com ela os campos do espaço.

Cavalgava nesta fantasia com tanto ardor e com tanta impaciência como a sua jovem companheira.

Ah! não era ele, não, como Aristobulo Ursiclos, com a cabeça perdida nas nuvens da alta ciência, perfeitamente desdenhoso para um simples fenómeno de óptica.

Ambos se compreenderam e ambos queriam ser dos raros privilegiados honrados pelo Raio Verde com a sua brilhante aparição!

— Havemos de vê-lo, miss Campbell — repetia Oliveiros Sinclair —, havemos de vê-lo, ainda que vá eu mesmo acendê-lo. Em suma, foi por minha causa que lhe escapou a primeira vez, e tenho tanta culpa como esse Sr. Ursiclos... seu parente... julgo?

— Não... meu noivo... segundo parece... — respondeu nesse dia miss Campbell, afastando-se à pressa para se ir encontrar com seus tios, que seguiam na frente e trocavam uma pitada.

Seu noivo!

Foi singular o efeito que produziu em Oliveiros Sinclair esta simples resposta, e principalmente o tom em que fora dada!

E porque não havia de ser noivo dela aquele jovem pedante?

Dado esse caso, explicava-se, ao menos, a sua presença em Oban!

Porque ele fora suficientemente desastrado para se interpor entre miss Campbell e o Sol no ocaso, não se seguia...

Que é que se não seguia?

Oliveiros Sinclair talvez se visse muito atrapalhado se o quisesse dizer.

Além disso, depois de dois dias de ausência, Aristobulo Ursiclos tornara a aparecer.

Oliveiros Sinclair havia-o visto muitas vezes em companhia dos manos Melvill, que não tinham podido continuar zangados com ele.

Pareciam todos nas melhores relações.

O jovem sábio e o moço artista também por diversas vezes se haviam encontrado ou na praia ou nas salas do Hotel Caledónia.

Os dois tios julgaram dever apresentá-los um ao outro.

— O Sr. Aristobulo Ursiclos, de Dumfries!

— O Sr. Oliveiros Sinclair, de Edimburgo!

Isto custara a cada um dos mancebos um pequeno cumprimento, uma simples inclinação de cabeça, na qual o corpo, demasiadamente hirto, não tomara a mínima parte.

Evidentemente nunca poderia haver simpatia entre aqueles dois caracteres.

Um corria o céu para lá ir despregar as estrelas, o outro para lhe calcular os elementos; um, artista, não procurava tomar atitudes sobre o pedestal da arte; o outro, sábio, tomava-as, fazendo da ciência um pedestal.

Quanto a miss Campbell, mostrava-se completamente enfadada com Aristobulo Ursiclos.

Se ele estava presente, não parecia dar por ele; se acontecia passar, voltava-lhe as costas muito visivelmente.

Numa palavra, como já anteriormente explicámos, ela «cortava-o» com toda a clareza do formalismo britânico.

Os irmãos Melvill tinham bastante trabalho para juntar os bocados.

Mas, fosse como fosse, na sua opinião tudo se arranjaria, sobretudo se esse caprichoso raio quisesse finalmente aparecer.

Entretanto, Aristobulo Ursiclos observava Oliveiros Sinclair por cima dos seus óculos — processo familiar a todos os míopes que querem olhar sem que se dê por isso.

E o que via: a assiduidade do mancebo junto de miss Campbell, e o amável acolhimento que ela sempre lhe fazia, não era decerto para lhe agradar.

Mas, confiando muito em si, manteve-se na reserva.

Contudo, perante esse incerto céu, e esse barómetro cuja móbil agulha não chegava a fixar-se, sentiam todos a sua paciência posta a uma bem longa prova.

Com a esperança de encontrar um horizonte limpo de névoas, ainda que só por alguns instantes, ao pôr do Sol, fizeram-se ainda duas ou três excursões à ilha Seil, nas quais Aristobulo Ursiclos julgou não dever tomar parte.

Trabalho inútil!

Chegou o dia 23 de Agosto sem que o fenómeno se dignasse aparecer.

Então, este capricho transformou-se numa ideia fixa, que não deixou lugar a nenhuma outra.

Chegava a ser obsessão.

Era o sonho dos dias e das noites, a ponto de fazer recear alguma nova espécie de monomania — numa época em que já não tem conta.

Sob esta contensão de espírito, as cores transformavam-se numa única: o céu azul era verde, as estradas verdes, verdes as praias e os rochedos; a água e o vinho eram verdes como o absinto.

Os manos Melvill imaginavam-se vestidos de verde e julgavam-se dois grandes papagaios que tomavam de uma caixa verde tabaco também verde.

Numa palavra, era a loucura do verde!

Estavam todos atacados de uma espécie de daltonismo (1) e os professores de oculística encontrariam ali assunto para publicar interessantes memórias nas suas revistas de oftalmologia.

Este estado não podia prolongar-se.

Felizmente, Oliveiros Sinclair teve uma ideia.

— Miss Campbell — declarou ele nesse dia —, Srs. Mel-vill, parece-me que, bem pesado tudo, estamos muito mal em Oban para observar o fenómeno de que se trata.

— E de quem é a culpa? — perguntou miss Campbell, encarando bem de frente os dois culpados, que abaixaram a cabeça.

— Aqui não há larga vista de mar! — continuou o jovem pintor. — Por causa disto, a necessidade de a ir procurar à ilha Seil, e o perigo de não estar ali no momento preciso!

— É evidente! — concordou miss Campbell. — Na verdade, não sei por que motivo meus tios escolheram precisamente este horrível local para a nossa experiência.

— Querida Helena! — replicou o mano Sam, não sabendo o que havia de dizer. — Julgámos...

— Sim... julgámos... a mesma coisa... — acrescentou o mano Sib, vindo em seu auxílio.

— Que o Sol não desdenhava sumir-se todas as tardes no horizonte de Oban...

— Por isso que Oban está situada à borda do mar!

— Pois julgaram mal, meus tios — respondeu miss Campbell, visto que não se dá aqui o seu ocaso!

— Com efeito — admitiu o mano Sam. — São aquelas desgraçadas ilhas que nos encobrem a vista do mar largo.

— -Seguramente não têm a pretensão de as fazer saltar? • perguntou miss Campbell.

— Já o teríamos feito, se fosse possível — respondeu o mano Sib em tom decidido.

 

* Doença de olhos que faz com que se tenha só a sensação de uma cor. (N. do T.)

 

— Todavia, não podemos ir acampar à ilha Seil! — observou o mano Sam.

— E porque não?

— Querida Helena, se absolutamente o queres...

— Absolutamente.

— Partamos, pois! — decidiram o mano Sib e o mano Sam, resignadamente.

E aqueles dois seres, tão submissos, declararam-se prontos a deixar imediatamente Oban. Oliveiros Sinclair interveio.

— Miss Campbell, se o permite, parece-me que temos melhor solução do que irmos instalar-nos na ilha Seil.

— Fale, Sr. Sinclair, e, se o seu alvitre é melhor, meus tios não recusarão adoptá-lo!

Os manos Melvill inclinaram-se com um movimento de autómato por tal forma idêntico, que talvez nunca se tivessem parecido tanto.

— A ilha Seil — continuou Oliveiros Sinclair — não é na verdade própria para nela permanecer, ainda que apenas por alguns dias.

((Se tem de experimentar a sua paciência, miss Campbell, é necessário que não seja com detrimento das suas comodidades.

«Além disso, notei que na ilha Seil a vista do mar é muito limitada pela configuração da costa.

((Se, por desgraça, nos fosse necessário esperar mais tempo do que pensamos, se a nossa estada ali se devesse prolongar por algumas semanas, poderia acontecer que o Sol, que agora retrograda para o ocidente, desaparecesse no seu ocaso por trás da ilha Colonsay, ou da ilha Oronsay, ou mesmo da grande Islay, e a nossa observação falharia ainda, por não termos um horizonte suficiente.

— Na verdade — respondeu miss Campbell — seria o golpe mortal da má sorte.

— Que tal possamos evitar procurando um local situado por fora deste arquipélago das Hébridas, e perante o qual se desenrole todo o infinito do Atlântico.

— E conhece algum, Sr. Sinclair? — perguntou vivamente miss Campbell.

Os irmãos Melvill estavam pendentes dos lábios do mancebo.

Que iria ele responder?

Aonde diabo iria dar com eles o capricho de sua sobrinha?

Em que extremo limite dos continentes do antigo mundo se deveriam fixar para satisfazer o seu desejo?

A resposta de Oliveiros Sinclair desde logo os tranquilizou.

— Miss Campbell — afirmou ele —, há, não longe daqui, um local que me parece reunir todas as condições favoráveis.

«É situado por detrás das alturas de Mull, que fecham o horizonte ao ocidente de Oban.

«É numa das pequenas Hébridas, as que estão mais para a frente na orla do Atlântico: é na encantadora ilha Iona.

— Iona! — exclamou miss Campbell — Iona, meus tios! E ainda não estamos lá?

— Lá estaremos amanhã — redarguiu o mano Sib.

— Amanhã, antes do pôr do Sol — acrescentou o mano Sam.

— Partamos, pois — continuou miss Campbell —, e se, em Iona, não acharmos um espaço largamente descoberto, ficai-o sabendo, meus tios, procuraremos um outro ponto do litoral, desde John O'Groats, na extremidade norte da Escócia, até ao Éden, no extremo sul da Inglaterra; e, se ainda isto não for bastante...

— Nada mais simples — concluiu Oliveiros Sinclair —, daremos volta ao mundo!

 

                       AS MAGNIFICÊNCIAS DO MAR

Quem se mostrou desesperado quando soube a resolução tomada pelos seus hóspedes foi o dono do Hotel Caledónia.

Como mestre Mac-Fyne, se pudesse, teria feito saltar todas essas ilhas e ilhotas que encobrem a vista de Oban do lado do mar!

Consolou-se, porém, logo que eles partiram, manifestando todo o seu prazer por haver albergado semelhante família de monomaníacos.

Às oito horas da manhã, os irmãos Melvill, miss Campbell, a senhora Bess e Partridge embarcavam no rápido steamer Pioneer — conforme diziam os prospectos — que dá volta à ilha de Mull, fazendo escala em Iona e Staffa, regressando na mesma tarde a Oban.

Oliveiros Sinclair havia precedido os seus companheiros no cais de embarque, bem como na prancha de comunicação, e esperava-os na ponte lançada de uma a outra caixa das rodas do vapor.

Em Aristobulo Ursiclos nem sequer se pensara para esta viagem.

No entanto, os irmãos Melvill julgaram dever preveni-lo da precipitada partida.

A mais trivial delicadeza exigia este proceder.

Eles, aliás, eram as pessoas mais bem-educadas do mundo.

Aristobulo Ursiclos recebeu com bastante frieza a notícia dada pelos dois tios, contentando-se em agradecer-lhes, sem nada dizer dos seus projectos.

Os manos Melvill foram-se pois embora, a si próprios dizendo que, se o seu protegido se conservava na mais extrema reserva, e se miss Campbell o ia aborrecendo um pouco, tudo isso passaria depois de uma bela tarde de Outono, em seguida a um desses belos ocasos de Sol de que a ilha de Iona não se mostrava avara.

Pelo menos assim o pensavam.

Estando a bordo todos os passageiros, largaram-se as amarras ao terceiro silvo do assobio a vapor, e o Pioneer manobrou por forma a sair da baía, para seguir, ao sul, o estreito de Kerrera.

Havia a bordo um certo número desses turistas a quem essa encantadora excursão de doze horas em volta da ilha Mull atrai duas ou três vezes por semana; mas miss Campbell e os seus companheiros deviam-nos deixar na primeira escala.

Na realidade, tinham pressa de chegar a Iona, novo campo aberto às suas observações.

Estava soberbo o tempo e o mar tranquilo como se fora lago.

Se nessa tarde não se realizassem os seus desejos, paciência! Esperariam resignados, depois de se haverem instalado na ilha.

Ali, pelo menos, teria sempre o pano corrido e a decoração no devido lugar. Só em caso de mau tempo haveria interrupção.

Em suma, antes do meio-dia teriam chegado ao seu destino.

O rápido Pioneer desceu o estreito de Kerrera, dobrou a ponta meridional da ilha, lançou-se através da larga abertura do Firth of Lorn, deixou à esquerda Colonsay e a sua velha abadia, fundada no século XIV pelos célebres lordes das Ilhas, e foi passar junto da costa meridional de Mull, varanda em pleno mar, como um imenso caranguejo, cuja tenaz inferior se curva ligeiramente para

o sudoeste.

Por um momento, apareceu o Ben More a uma altura de três mil e quinhentos pés por cima de longínquas colinas, ásperas e escabrosas, de que as urzes formam o natural vestido, e o seu cimo arredondado dominando essas pastagens mosqueadas de ruminantes, que a ponta de Ardanalish corta bruscamente com o seu imponente volume.

A pitoresca Iona destacou-se então para o noroeste, quase na extremidade da tenaz meridional da ilha Mull.

Para além, imenso, infinito, estendia-se o oceano Atlântico.

— Gosta do oceano, Sr. Sinclair? — perguntou miss Campbell ao seu jovem companheiro, que, sentado junto dela na ponte do Pioneer, contemplava aquele admirável espectáculo.

— Se gosto, miss Campbell! Gosto e não sou desses indignos que lhe acham o aspecto monótono! Na minha opinião, não há nada mais variável, para quem o saiba observar nas suas diversas fases.

Na realidade, o mar é feito de tantos matizes, tão maravilhosamente fundidos uns com os outros, que para um pintor é talvez mais difícil reproduzir-lhe o todo, juntamente uno e múltiplo, que tirar um retrato, por muito móbil que seja a fisionomia.

— Com efeito — observou miss Campbell —, modifica-se constantemente à passagem do mais leve sopro, e, conforme a luz de que se impregna, muda a todas as horas

do dia.

— Contemple-o agora, miss Campbell! — continuou Oliveiros Sinclair —, está absolutamente sossegado! Não poderia comparar-se a um lindo rosto adormecido, de que nada altera a admirável pureza? Nem uma ruga: é jovem, belo, é encantador!

«É apenas um imenso espelho, se assim o querem, mas um espelho que reflecte o céu, e no qual Deus pode ver-se.

— Espelho que o sopro das tempestades muitas vezes embacia!- — acrescentou miss Campbell.

— Ah! — disse ainda Oliveiros Sinclair — é essa a causa da grande variedade de aspectos do oceano!

«Que um pouco de vento se erga, e mudará o rosto, ficará cheio de rugas, a vaga dar-lhe-á cabelos brancos, envelhecendo num instante; terá mais cem anos, mas há-de continuar soberbo sempre com as suas fosforescências caprichosas e os seus bordados de escuma!

— Julga, Sr. Sinclair — perguntou miss Campbell — . que algum pintor, por maior que seja, possa reproduzir na tela todas as belezas do mar?

— Não o creio, miss Campbell, e como o poderia ele? O mar não tem verdadeiramente cor própria, não é mais que uma vasta reverberação do céu.

«É azul? Mas não é com o azul que se pode pintar! É verde? Mas também não é com o verde!

((Seria mais fácil colhê-lo nas suas cóleras, quando está sombrio, lívido, mau, quando parece que o céu lhe mistura todas as nuvens que sobre ele tem suspensas! Ah! miss Campbell, quanto mais o vejo, mais acho sublime esse oceano.

((Oceano! Esta palavra diz tudo! É a imensidade. Oculta as insondáveis profundidades e planícies sem fim, comparadas com as quais as nossas são desertos!, disse Darwin. Que são em face dele os mais vastos continentes? Simples ilhas que as águas cercam! Cobre as quatro quintas partes do Globo.

«Por uma espécie de circulação incessante, como um ser animado, cujo coração pulsasse na linha equatorial, sustenta-se a si próprio com os vapores que emite, com que alimenta as nascentes que lhe voltam pelos rios, ou que directamente retoma pelas chuvas saídas do seu seio!...

Sim! O oceano é o infinito, infinito que se não vê, mas que se sente, segundo a frase de um poeta, infinito como o espaço que as suas águas reflectem!

— Gosto de o ouvir falar com esse entusiasmo, Sr. Sinclair — declarou miss Campbell —, entusiasmo que participo porque eu também amo o mar tanto quanto o pode amar!

— E não teria receio de lhe afrontar os perigos? — perguntou Oliveiros Sinclarir.

— Não, na verdade, não teria medo! Pode-se acaso temer o que se admira?

— Seria pois uma audaciosa viajante?

— Talvez, Sr. Sinclair — admitiu miss Campbell. — Seja como for, de todas as viagens cuja narração li, prefiro as que tiveram por fim a descoberta de longínquos mares. Que de vezes os percorri com os grandes navegadores? Que de vezes me lancei nesse profundo desconhecido — somente pelo pensamento, é verdade; mas nada julgo mais digno de inveja que o destino dos heróis que realizaram tão grandes coisas!

— Sim, miss Campbell, na história da humanidade, que há de mais belo que essas descobertas! Atravessar pela primeira vez o Atlântico com Colombo, o Pacífico com Magalhães, os mares do pólo com Parry, Franklin, d'Urville e tantos outros — que sonhos! Não posso ver partir uma embarcação, navio de guerra, barco de comércio, ou simples chalupa de pesca, sem que todo o meu ser não se embarque a seu bordo! Penso que nasci para homem do mar, e, se desde a infância não é esta a minha carreira, lamento-o cada dia!

— Mas ao menos já viajou por mar? — perguntou miss Campbell.

— Tanto quanto tenho podido — respondeu Oliveiros Sinclair. — Corri um pouco o Mediterrâneo desde Gibraltar até às escalas de Levante; um pouco também o Atlântico até à América do Norte, depois os mares setentrionais da Europa, e conheço todas essas águas que a natureza prodigalizou à Inglaterra como à Escócia, tão generosa. ..

— E tão magnificamente, Sr. Sinclair.

— Sim, miss Campbell, e nada conheço comparável a estas paragens das nossas Hébridas, sobre as quais este steamer nos transporta! É um verdadeiro arquipélago, com um céu menos azul que o do Oriente, mas com mais poesia talvez, no seu todo de selváticos rochedos e de nevoentos horizontes.

«O arquipélago grego deu origem a todo um mundo de deuses e deusas!

«Seja! Mas deve notar que eram as mais burguesas divindades, extremamente positivas, entregues principalmente à vida material, arranjando os seus pequenos negócios, e fazendo rol das suas despesas! Na minha opinião, o Olimpo aparece-nos como um salão, mais ou menos bem composto, onde se reuniam os deuses, que se pareciam um pouco demasiado com esses homens, de que participavam todas as fraquezas! Não acontece assim às nossas Hébridas. São a morada dos seres sobrenaturais.

«As divindades escandinavas, imateriais, etéreas, são formas impalpáveis, e não corpos.

«É Odin, é Ossian, é Fingal, é toda a ninhada desses poéticos fantasmas, fugidos dos livros dos Sagas!

((Como são belas essas imagens, cuja aparição o nosso pensamento pode evocar no meio das névoas dos mares árcticos, por entre as nuvens das regiões hiperbóreas!

«Eis um Olimpo divino muito diverso do representado pelo Olimpo helénico. Aquele nada tem de terrestre, e, se fosse necessário escolher-se um local digno de tais hóspedes, seria certamente nos mares das nossas Hébridas!

((Sim, miss Campbell, é aqui mesmo que eu irei adorar as nossas divindades, e, como verdadeiro filho dessa antiga Caledónia, não trocarei o nosso arquipélago, com as suas duzentas ilhas, o seu céu coberto de vapores, e as suas vibrantes marés, aquecidas pelas correntes do Gulf Stream, por todos os arquipélagos dos mares do Oriente!

— E bem nos pertence a nós, escoceses dos Highlands! — respondeu miss Campbell, entusiasmadíssima com as ardentes palavras do seu companheiro — a nós, escoceses do condado de Argyle! Ah! Sr. Sinclair, também como o senhor, amo com paixão o nosso arquipélago caledónico. É admirável e até nos seus furores o adoro!

— E são com efeito sublimes — concordou Oliveiros Sinclair. — Nada detém a violência das borrascas que ali caem, depois de um percurso de cerca de cinco mil quinhentos e cinquenta quilómetros! É a costa americana que fica em frente da Escócia! Se acolá, do outro lado do Atlântico, nascem as grandes tempestades do oceano, aqui se desencadeiam os primeiros assaltos das ondas e dos ventos, lançados sobre a Europa Ocidental! Mas que podem os temporais contra as nossas Hébridas, mais audazes do que esse homem, de que fala Livingstone, que não receava os leões, mas tinha medo do oceano; estas ilhas, solidamente assentes sobre a sua base granítica, riem-se das violências das tempestades e do mar!

— O mar! Uma combinação química de hidrogénio e de oxigénio, com dois e meio por cento de cloreto de sódio. Nada mais belo do que os furores do cloreto de sódio!

Miss Campbell e Oliveiros tinham-se voltado, ouvindo estas palavras, evidentemente ditas em sua intenção, e pronunciadas como uma resposta ao seu entusiasmo.

Aristobulo Ursiclos estava ali sobre a ponte.

O importuno não pudera resistir ao desejo de deixar Oban ao mesmo tempo que miss Campbell, sabendo que Oliveiros Sinclair a acompanhava a Iona.

Assim, embarcando antes deles, conservara-se na sala do Pioneer durante toda a travessia, e à vista da ilha subira.

Os furores do cloreto de sódio! Que murro no sonho de Oliveiros Sinclair e de miss Campbell!

 

                     A VIDA EM IONA

Entretanto, Iona — antigamente conhecida pela ilha das Vagas —, erguendo a sua colina do Abade a uma altura que não excede quatrocentos pés acima do nível do mar, emergia cada vez mais. e o steamer ia-se aproximando rapidamente.

Perto do meio-dia, o Pioneer foi atracar a um pequeno paredão feito de rochedos apenas desbastados e completamente enverdecidos pelas águas.

Os passageiros desembarcaram, a maior parte para tornar a embarcar uma hora depois e regressar a Oban pelo estreito de Mull, alguns — bem sabemos quais — com tenção de se demorar em Iona.

A ilha não tem porto regular. Um cais de pedra resguarda uma das calhetas das águas do alto mar. Nada mais.

É ali que se abrigam, na boa estação, alguns iates de recreio e as chalupas de pesca, que exploram estas paragens.

Miss Campbell e os seus companheiros, deixando os turistas à mercê de um programa que os obriga a ver a ilha em duas horas, trataram de procurar uma morada conveniente.

Não podiam esperar em Iona os cómodos das ricas praias do Reino Unido.

Na verdade, Iona não tem mais de três milhas de comprido por uma de largo, e conta apenas quinhentos habitantes.

Pertence ao duque de Argyle, a quem rende algumas centenas de libras.

Não há ali cidade que mereça realmente este nome, nem mesmo vila ou aldeia. Algumas casas dispersas; pela maior parte simples casebres, pitorescos, se quiserem; mas rudimentares, quase todos sem janelas, recebendo a luz somente pela porta, sem chaminé, com um buraco no tecto, paredes de palha e seixos, telhados de estevas e canas atadas com grossas fibras de sargaço.

Quem diria, contudo, que Iona foi o berço da região dos druidas, nos primeiros tempos da história escandinava?

Como se poderia imaginar que em seguida a eles, no século VI, S. Columbano — o irlandês de que ela tem também o nome —, para ensinar a nova religião de Cristo, aí fundaria o mais antigo mosteiro de toda a Escócia, habitado por monges de Cluny até à Reforma!

Onde estão agora os vastos edifícios que foram como que o seminário dos bispos e dos poderosos abades do Reino Unido?

Como encontrar, no meio dos destroços, a biblioteca, rica em arquivos do passado, em manuscritos relativos à história romana, a qual vinham utilmente consultar os eruditos da época?

Não! No momento presente, somente ruínas no sítio em que nasceu a civilização que devia modificar tão profundamente o Norte da Europa.

Da Santa Columba desses tempos resta apenas a actual Iona, com alguns rudes camponeses, que arrancam trabalhosamente à terra areenta uma medíocre colheita de cevada, batatas e trigo, e alguns pescadores, cujas chalupas vivem das águas piscosas das pequenas Hébridas!

— Miss Campbell — perguntou Aristobulo Ursiclos com um modo muitíssimo desdenhoso —, à primeira vista julga que isto valha Oban?

— Vale muito mais! — retorquiu miss Campbell, posto que, seguramente, pensasse que ia haver um habitante de mais na ilha.

Entretanto, na falta de casino ou de hotel, os manos Melvill descobriram uma espécie de hospedaria, quase suportável, onde se acolhem os turistas que não se contentam com o tempo que lhes dá o barco para visitar as ruínas druídicas e cristãs de Iona.

Puderam pois instalar-se no mesmo dia nas Armas de Duncan, enquanto Oliveiros Sinclair e Aristobulo Ursiclos se alojaram, o melhor que puderam, cada um na sua barraca de pescador.

Mas era tal a disposição do espírito de miss Campbell que, no seu pequeno quarto, e em frente da sua janela, aberta ao ocidente sobre o mar, se achava tão bem como sobre o terraço da alta torre de Helensburgh, e muito melhor que no salão do Hotel Caledónia.

Dali desenrolava-se o horizonte sob os seus olhos, sem que a mais pequena ilha lhe quebrasse a linha circular, e com alguma imaginação poderia avistar, a três mil milhas, a terra da América, do outro lado do Atlântico.

Verdadeiramente, o Sol tinha ali um excelente teatro para um esplêndido ocaso!

A vida comum organizou-se, pois, fácil e simplesmente.

O jantar era servido a todos na sala que a hospedaria tinha no andar de baixo.

Conforme o antigo costume, a senhora Bess e Par-tridge assentavam-se à mesa com os seus amos. Talvez Aristobulo Ursiclos mostrasse alguma surpresa, mas Oliveiros Sinclair não viu nisto nada de extraordinário.

Começava a afeiçoar-se aos dois servos, que lho pagavam bem.

Foi então que a família viveu a antiga vida escocesa em toda a sua simplicidade.

Depois dos passeios pela ilha, depois das conversações sobre as coisas dos velhos tempos, em que Aristobulo Ursiclos nunca deixava de lançar inoportunamente a sua nota moderna, reuniam-se ao meio-dia para jantar e às oito horas da noite para a ceia.

Miss Campbell vinha sempre observar o pôr do Sol, ainda mesmo nos dias enevoados.

Quem sabe? Poderia fazer-se na baixa zona das nuvens uma abertura, uma fenda, um hiato, por onde, enfim, passasse o último raio!

E que refeições!

Os mais caledonianos dos convivas de Walter Scott, num jantar de Fergus Mac-Gregor, ou numa ceia de Oldbuck o Antiquário, não teriam nada que dizer às comidas preparadas segundo os usos da velha Escócia.

A senhora Bess e Partridge, transportados um século para trás, sentiam-se felizes como se tivessem vivido no tempo de seus avós.

O mano Sam e o mano Sib acolhiam com evidente prazer as combinações culinárias antigamente em uso na família Melvill.

E eis aqui as conversas que se ouviam na sala de baixo, transformada em sala de jantar:

— Um bocado destes queques de farinha de aveia, muito mais saborosos que os pastéis de tutano de Glás-gua!

— Um pedacinho deste sowens, com que ainda hoje se regalam os montanheses nos Highlands!

— Mas ainda deste haggis, que o nosso grande poeta Burns tão dignamente celebrou nos seus versos como o primeiro, o melhor, o mais nacional dos pudins escoceses!

— Repita deste cockylecky! Se o galo já está um pouco duro, o tempero de alhos é excelente!

— E pela terceira vez um pouco desse holchpotch, mais bem feito que qualquer sopa da cozinheira de Helensburgh!

Ah! comia-se bem nas Armas de Duncan, com a condição de ir buscar fornecimento todos os dois dias à despensa dos steamers, que fazem a carreira das pequenas Hébridas!

E bebia-se admiravelmente também!

Era bom ver os manos Melvill, ébrios e de copo na mão, bebendo à saúde um do outro por essas grandes taças que não levam menos de duas canadas inglesas, e nas quais espumava o usquehaugh, a cerveja nacional por excelência, ou o melhor hummok, fabricado expressamente por eles!

E o uísque, extraído da cevada, cuja fermentação parece continuar ainda no estômago dos bebedores! E se a cerveja forte faltasse, contentar-se-iam com o simples mum, destilado do trigo, ainda que fosse desse two-penny que se pode sempre enfeitar com um copinho de aguardente!

Na verdade, não se lembravam de ter saudades do Shcrry e do Porto das adegas de Helensburgh e de Glásgua.

Se Aristobulo Ursiclos, habituado ao conforto moderno, não deixava de se queixar muito mais vezes do que seria conveniente, ninguém dava importância aos seus lamentos.

Se ele achava longo o tempo nesta ilha, para os outros passavam as horas rápidas, e miss Campbell já não se indignava contra os vapores que todas as tardes enevoavam o horizonte.

Iona, com certeza, não é grande, mas será necessário largo espaço a quem gosta de bom ar?

Não se podem acomodar num bocadinho de jardim as imensidades de uma tapada real?

Passeava-se, pois.

Oliveiros Sinclair tirava aqui e ali algumas vistas. Miss Campbell via-o pintar, e assim passava o tempo.

Os dias 26, 27, 28 e 29 de Agosto seguiram-se sem um só instante de aborrecimento.

Esta selvagem vida era própria para essa ilha selvagem, cujos estéreis rochedos o mar continuamente batia.

Miss Campbell, feliz por ter fugido da sociedade curiosa, faladora, inquisitorial, que frequenta as praias, saía, como se estivesse na quinta de Helensburgh, embrulhada no rokelay como numa mantilha, penteada somente com o snod, fita que se entrelaça nos cabelos, e que fica muito bem às raparigas escocesas.

Oliveiros Sinclair não se cansava de admirar a graça e o encanto de toda ela, essa atracção enfim que lhe produzia um efeito que ele sabia muito bem avaliar.

Muitas vezes iam ambos vaguear, conversando, vendo, sonhando, até às praias mais remotas da ilha, e pisavam os sargaços deixados pela maré.

Na sua frente erguiam-se aos bandos os mergulhadores escoceses, os tamnienories, cuja solidão perturbavam, os pictarnies à espreita dos pequenos peixes trazidos com a ressaca na babugem do mar, e as patolas ou gansos-do-mar, de plumagem negra, com a extremidade das asas branca, e de pescoço e cabeça amarelos, que representam mais especialmente a classe dos palmípedes na ornitologia das Hébridas.

E ao cair da tarde, depois do pôr do Sol, sempre velado por algumas névoas, que doce encanto era para miss Campbell e para os seus o passarem juntos, em alguma praia deserta, as primeiras horas da noite!

Erguiam-se as estrelas no céu, e com elas voltavam todas as recordações dos poemas de Ossian.

Em tão profundo silêncio, miss Campbell e Oliveiros Sinclair ouviam os dois irmãos recitar alternadamente as estrofes do velho bardo, o infeliz filho de Fingal (1).

 

«Estrela, companheira da noite, que descobres a radiosa fronte envolta nas nuvens do poente, e imprimes os majestosos passos no azul do firmamento, que espreitas na planície?

«Calam-se os ventos tempestuosos do dia; as ondas aplacadas arrastam-se junto dos rochedos; os insectos da noite, que as suas ligeiras asas transportam rapidamente, enchem com o seu zumbido o silêncio dos céus.

((Fulgente estrela, que procuras tu na planície? Mas vejo-te já descer sorrindo para o extremo do horizonte. Estrela silenciosa, adeus, adeus!»

 

Depois, o mano Sam e o mano Sib calavam-se, e voltavam todos para os seus pequenos quartos na hospedaria.

Contudo, por pouco perspicazes que fossem os irmãos Melvill, bem percebiam que Aristobulo Ursiclos perdia no coração de miss Campbell exactamente o que ganhava Oliveiros Sinclair.

Os dois mancebos faziam tudo quanto possível por se não encontrarem.

Também os dois tios passavam, com muito trabalho, a vida a provocar aproximações, correndo o risco de apanharem algum mau modo da sua sobrinha.

Como seriam felizes se vissem Ursiclos e Sinclair procurarem-se em vez de se evitarem, em vez de conservarem um para com o outro a mais fria reserva!

 

* Esta poesia foi admiravelmente imitada por Alfredo de Musset na tão conhecida invocação:

 

Ó pálida estrela Vésper,

Ó mensageira celeste,

Quando dos véus do poente

Sai o teu rosto a brilhar.

Nos plainos, que a sombra veste,

Que miras tu docemente

Com longo e saudoso olhar?

 

Imaginariam eles que todos os homens são como irmãos, do mesmo modo que eles o eram?

Enfim, manobraram tão habilmente que, a 30 de Agosto, ficou combinado irem todos juntos visitar as ruínas da igreja, do mosteiro e do cemitério, situadas a nordeste e a sul da colina do Abade. Os novos hóspedes de Iona ainda não tinham dado este passeio, em que os turistas gastam apenas duas horas.

Era faltar às conveniências para com as sombras legendárias dos monges eremitas que outrora haviam habitado as choças do litoral, faltar às atenções devidas aos grandes mortos das famílias reais, desde Fergus II até Macbeth.

 

                     AS RUÍNAS DE IONA

Nesse dia, pois, miss Campbell, os irmãos Melvill e os dois mancebos partiram após o almoço. Fazia um lindo tempo de Outono.

A cada momento algum raio de luz se filtrava através dos rasgões das nuvens pouco espessas.

Sob estas intermitências, as ruínas que coroam esta parte da ilha, os rochedos do litoral tão felizmente agrupados, as casas dispersas pelo terreno acidentado de Iona, e o mar, estriado ao longe pelas carícias de uma brisa fresca, pareciam renovar o seu aspecto um pouco triste e alegrar-se pelos efeitos do Sol.

Não era o dia dos visitantes. O steamer havia na véspera desembarcado cerca de cinquenta, desembarcaria outros tantos no dia seguinte; mas, naquele dia, a ilha de Iona pertencia completamente aos seus novos habitantes.

As ruínas estariam, pois, absolutamente desertas quando os transeuntes ali chegassem.

O percurso fez-se alegremente.

O bom humor do mano Sam e do mano Sib transmitira-se aos seus companheiros.

Conversavam, iam e vinham, afastando-se através dos atalhos pedregosos, por entre muros baixos feitos de pedras secas.

Tudo corria, pois, maravilhosamente, quando pararam primeiro em frente do calvário de Mac-Lean. Este belo monólito de granito vermelho, da altura de catorze pés, que domina o talude de Main Street, é o único resto das trezentas e sessenta cruzes de que a ilha esteve coalhada até ao tempo da Reforma, pelo meado do século XVI.

Oliveiros Sinclair quis, com razão, tirar um esboço daquele monumento, que é de um bom trabalho e produz excelente efeito no meio de uma planície árida, tapetada de erva esbranquiçada.

Miss Campbell, os irmãos Melvill e ele agruparam-se, pois, a cinquenta passos do calvário, para terem uma vista do todo. Oliveiros Sinclair assentou-se na esquina de um pequeno muro e começou a desenhar os primeiros planos do terreno, sobre o qual se ergue a cruz de Mac-Lean.

Alguns instantes depois pareceu a todos que uma forma humana tentava subir as primeiras fiadas do calvário.

— Bem! — disse Oliveiros — que vem aqui fazer este intruso? Se ao menos estivesse em hábito de frade, não ficaria deslocado, e eu poderia prostrá-lo aos pés desta velha cruz!

— É apenas um curioso que vai incomodar muito, Sr. Sinclair — observou miss Campbell.

— Mas não é Aristobulo Ursiclos, que nos passou adiante? — perguntou o mano Sam.

— É ele, é ele! — respondeu o mano Sib.

Era efectivamente Aristobulo Ursiclos. Em cima do envasamento do calvário, atacava-o a grossas marteladas.

Miss Campbell, furiosa com este desembaraço de mineralogista, dirigiu-se logo para ele e perguntou-lhe:

— Que faz o senhor aqui?

— O que vê, miss Campbell — respondeu Aristobulo Ursiclos — ; procuro quebrar um bocado deste granito.

— Mas para que servem essas manias? Julgava eu que o tempo dos iconoclastas (1) havia passado.

— Não sou um iconoclasta — replicou Aristobulo Ursiclos —, mas sou um geólogo, e nessa qualidade tenho empenho em saber de que género é esta pedra.

Uma violenta martelada concluiu aquela obra de destruição: uma pedra do envasamento rolou sobre o solo.

Aristobulo Ursiclos apanhou-a, e, duplicando o poder óptico dos seus óculos com uma forte lente de naturalista, que tirou do seu estojo, aproximou-a da ponta do nariz.

— É o que eu julgava — declarou ele. — Aqui está um granito vermelho, de um grão muito unido e muito resistente, que foi decerto tirado do ilhéu das Monjas, e que é portanto idêntico ao de que se serviram os arquitectos do século XII para construir a catedral de Iona.

E Aristobulo Ursiclos não deixou de aproveitar tão excelente ocasião de se lançar numa dissertação arqueológica, que os manos Melvill — os quais acabavam de chegar junto dele — julgaram dever escutar.

Miss Campbell, sem mais cerimónia, voltara para junto de Oliveiros Sinclair e, quando ficou concluído o desenho, todos se tornaram a encontrar no adro da catedral.

Este monumento é um edifício complexo, composto de duas igrejas unidas, cujas paredes, espessas como baluartes, e pilares, sólidos como rochas, têm afrontado há mil e trezentos anos as injúrias daquele clima.

Durante alguns minutos, os visitantes percorreram a primeira igreja, que, pelo arco das abóbadas e curva das arcadas, é romana, e em seguida a segunda,

 

*1. Nome de uma seita que teve origem no império grego e condenava a reprodução das imagens visíveis de divindades, santos, heróis, etc.

(N. do T.)

 

edifício gótico do século XII, que forma a nave e a galeria transversal do primeiro templo.

E assim iam, por entre estas ruínas de uma e outra época, pisando as grandes lajes quadradas, cujas junturas deixavam apontar o solo.

Aqui viam-se tampas de sepulcros; acolá, algumas lápidas funerárias erguidas aos cantos, com as suas figuras esculpidas, que pareciam estar esperando a esmola dos que passavam.

Todo este conjunto, pesado, severo, silencioso, respirava a poesia dos tempos que foram.

Miss Campbell, Oliveiros Sinclair e os irmãos Melvill, sem repararem que o seu muito sábio companheiro ficava para trás, penetraram então sob a grossa abóbada da torre quadrada — abóbada que dominava antigamente a fachada da primeira igreja, e se ergueu mais tarde no ponto de intercepção dos dois edifícios.

Alguns minutos depois ouviram-se medidos passos, ecoando nas lajes sonoras.

Dir-se-ia que uma estátua de pedra, animada pelo sopro de algum génio, andava pesadamente, como o comendador nas salas de D. João.

Era Aristobulo Ursiclos, tomando, com as suas pernadas métricas, as dimensões da catedral.

— Cento e sessenta pés de nascente a poente — informou ele, inscrevendo este número na sua carteira, quando entrava na segunda igreja.

— Ah! é o Sr. Ursiclos! — comentou ironicamente miss Campbell. — Depois do mineralogista, o geómetra!

— E somente setenta pés no cruzamento das galerias — continuou Aristobulo Ursiclos.

— E quantas polegadas? — perguntou Sinclair. Aristobulo Ursiclos olhou para Oliveiros Sinclair, como homem que hesita se deve ou não zangar-se.

Mas os manos Melvill, intervindo a propósito, levaram miss Campbell e os dois mancebos a ver o mosteiro.

Deste edifício restam apenas ruínas desfiguradas, posto que sobrevivessem aos estragos da Reforma.

Ainda depois desta época serviu até de comunidade a algumas cónegas, religiosas de Santo Agostinho, a quem o Estado ali deu asilo.

Agora são apenas as lastimosas ruínas de um convento devastado pelas tempestades, o qual não tem nem abóbada circular nem pilares romanos para poder impunemente resistir às intempéries de um clima hiperbóreo.

Todavia, os visitantes, depois de haverem explorado o que restava desse mosteiro, tão florescente outrora, puderam ainda admirar-lhe a capela, mais bem conservada, de que Aristobulo Ursiclos não julgou dever tomar as dimensões interiores.

A esta capela, mais moderna ou mais solidamente construída que os refeitórios ou os claustros do convento, faltava só o tecto; mas o coro, que está quase intacto, é um pedaço de arquitectura muito estimado pelos antiquários.

Do lado do poente ergue-se ali o túmulo da que foi a última abadessa da comunidade.

Sobre a sua lápida de mármore preto vê-se uma virgem, esculpida entre dois anjos, e, por cima, uma madona segurando o Menino Jesus nos braços.

— Como a Virgem da Cadeira, e a madona de S. Xisto, as únicas virgens de Rafael que não têm os olhos baixos, esta olha, e parece que os seus olhos sorriem.

Esta reflexão foi feita muito a propósito por miss Campbell, mas trouxe aos lábios de Aristobulo Ursiclos um gesto irónico.

— Onde é que soube, miss Campbell, que alguma vez

sorrissem olhos?

Talvez que miss Campbell tivesse vontade de lhe responder que não seria decerto olhando para ele que os seus pudessem tomar essa expressão, mas calou-se.

— É um uso vulgar — continuou Aristobulo Ursiclos, como se estivesse professando ex cathedra — falar do sorriso dos olhos; certo é, porém, que estes órgãos da visão nada podem exprimir, como nos ensina a oculística. Exemplo: ponha uma máscara a alguém, observe-lhe os olhos através da máscara, e aposto que não poderá conhecer se o rosto está alegre, triste ou irado.

— Ah! realmente? — volveu o mano Sam, que parecia seguir com interesse esta pequena lição.

— -Ignorava isto — acrescentou o mano Sib.

— E, contudo, é exactíssimo — reforçou Aristobulo Ursiclos — e se eu tivesse uma máscara...

Mas o espantoso mancebo não tinha máscara, e por isso não pôde fazer a experiência de modo a tirar todas as dúvidas a tal respeito.

Demais a mais, miss Campbell e Oliveiros Sinclair haviam já saído do claustro, dirigindo-se ao cemitério de Iona.

Este local chama-se ((Relicário de Oban», em memória dos companheiros de S. Columbano, ao qual se deve a edificação da capela, cujas ruínas se erguem no meio do campo dos mortos.

É um curioso lugar, este terreno semeado de funéreas lousas, onde dormem quarenta e oito reis escoceses, oito vice-reis das Hébridas, quatro vice-reis da Irlanda, e um rei de França, de nome esquecido como o de um chefe pré-histórico.

Cercado por uma comprida grade de ferro, ladrilhado com lajes justapostas, dir-se-ia uma espécie de campo de Karnac, cujas pedras fossem túmulos, e não rochas druídicas.

Entre os sepulcros, deitado na sua verde cama, estende-se o granito do rei da Escócia, esse Duncan, tornado ilustre pela sombria tragédia de Macbeth.

Destas pedras, umas têm simplesmente ornatos de desenho geométrico; outras, esculpidas em baixo-relevo, representam alguns desses ferozes reis célticos, repousando ali com uma rigidez de cadáver.

Que de recordações adejam por sobre essa necrópole

de Iona!

Até que ponto do passado recua a imaginação ao escavar o solo desse S. Dinis das Hébridas!

E como olvidar essa estrofe de Ossian, que parece inspirada para aqueles mesmos lugares?

 

((Estrangeiro, habitas aqui uma terra coberta de heróis. Canta alguma vez a glória desses mortos célebres. Que as suas ligeiras sombras venham folgar em torno

de ti!»

 

Miss Campbell e os seus companheiros olhavam em silêncio.

Não tinham de sofrer o aborrecimento de um guia ajuramentado, desvendando, para alguns turistas, as incertezas de uma história tão longínqua.

Parecia-lhes rever os descendentes do lorde das Ilhas. Angus Og, o companheiro de Roberto Bruce, e irmão de armas desse herói, que lutou pela independência do seu país.

— Gostava de voltar aqui ao cair da noite — declarou miss Campbell. — Parece-me a hora mais própria para evocar estas recordações. Veria conduzir o corpo do infeliz Duncan. Havia de ouvir as reflexões dos coveiros, depositando-o na terra consagrada aos seus antepassados. Na verdade, Sr. Sinclair, não seria o momento próprio para chamar os duendes que guardam o real cemitério?

— Oh! sim, miss Campbell, e creio bem que não recusariam aparecer ao seu chamamento!

— O quê, miss Campbell, acredita nos duendes! — exclamou Aristobulo Ursiclos.

— Acredito, senhor, acredito, como verdadeira escocesa que sou — respondeu miss Campbell.

— Mas, realmente, bem sabe que tudo isso é imaginário, que nada existe de todo esse fantástico!

— E se eu quero acreditar! — replicou miss Campbell, excitada por esta inoportuna contradição. — Se me agrada crer nos brownies domésticos, que guardam a mobília da casa; nas feiticeiras, que fazem os seus encantos declamando versos rúnicos; nas Valquírias, essas virgens fatais da mitologia escandinava, que levam os guerreiros caídos na batalha; nas fadas familiares, cantadas pelo nosso poeta Burns, nestes imortais versos, que um verdadeiro filho das Highlands não pode esquecer:

«Esta noite, as ligeiras fadas dançam em Cassilis Dawnan's ou se dirigem para Golzean, à pálida claridade da Lua, para se irem perder no Coves, por entre os rochedos e as torrentes.»

— Ora, miss Campbell — insistiu o pateta teimoso —, pensa que os poetas acreditam nesses sonhos da sua imaginação?

— Seguramente, senhor — respondeu Oliveiros Sinclair —, ou então a sua poesia soaria falso como toda a obra que não nasce de uma convicção profunda.

— Também o senhor? — disse Aristobulo Ursiclos. — Sabia que era pintor, mas ignorava que era poeta.

— Éa mesma coisa — tornou miss Campbell. — A arte é só uma sob diversas formas.

— Mas não... não!... é inadmissível!... Não acredito em toda essa mitologia dos velhos bardos, criando no perturbado cérebro imaginárias divindades!

— Ah! Sr. Ursiclos! — interveio o mano Sam, ferido na sua parte mais sensível —, não trate assim aqueles de entre os nossos antepassados que celebraram em seus versos a nossa velha Escócia!

— E digne-se ouvi-los! — apoiou o mano Sib, voltando às citações do seu poema favorito. — «Amo as canções dos bardos. Agrada-me escutar as narrações do passado. São para mim como a calma da manhã e a frescura do orvalho que humedece as colinas...

— Quando o Sol só raios enfraquecidos deixa cair sobre as encostas — continuou o mano Sam — e o lago está azulado e tranquilo no fundo do vale!»

Sem dúvida os dois tios continuariam indefinidamente a embriagar-se com as poesias ossiânicas, se Aristobulo Ursiclos não os tivesse violentamente interrompido, perguntando:

— Senhores, viram alguma vez um só desses pretendidos génios, de que falam com tanto entusiasmo? Não! E será possível vê-los? De modo nenhum, não é assim?

— Está enganado, senhor, e lamento-o por nunca os ter visto — replicou miss Campbell, que não cederia ao seu contraditor um só cabelo de qualquer dos seus duendes. — Vêem-se aparecer em todas as terras altas da Escócia, deslizando ao longo dos solitários vales, erguendo-se do fundo dos despenhadeiros, adejando à superfície dos lagos, revendo-se nas águas tranquilas das nossas Hébridas, folgando no meio das tempestades que lhes arremessa o Inverno boreal. E, veja, porque não será esse Raio Verde, que persigo com tanta obstinação, o cinto de alguma Valquíria, cuja franja se arrasta nas águas do horizonte?

— Ah! não! — exclamou Aristobulo Ursiclos. — Enquanto a isso, com certeza não! E vou dizer-lhe o que é o seu Raio Verde.

— Não diga, senhor — gritou miss Campbell — . não quero saber!

— Mas sim — teimou Aristobulo Ursiclos, exaltado pela discussão.

— Proíbo-lho...

— Embora; hei-de dizer-lho, miss Campbell. Esse último raio que o Sol despede no momento em que o bordo superior do seu disco toca ao de leve o horizonte, se é verde é talvez porque no momento em que atravessa a delgada camada de água se impregna da sua cor...

— Cale-se, Sr. Ursiclos!

— A não ser que o verde muito naturalmente suceda ao vermelho do disco, que subitamente desapareceu, mas de que os olhos conservaram a impressão, porque, em óptica, o verde é a sua cor complementar.

— Ah! senhor, as suas demonstrações físicas...

— Os meus raciocínios, miss Campbell, estão de acordo com a natureza das coisas, e tenciono justamente publicar uma memória sobre o assunto.

— Saiamos daqui, meus tios! — disse miss Campbell, verdadeiramente irada. — O Sr. Ursiclos, com as suas explicações, acabaria por me estragar o meu Raio Verde!

Oliveiros Sinclair interveio então.

— Senhor — observou ele —, julgo que a sua memória acerca do Raio Verde há-de ser o mais curiosa possível; mas permita-me que lhe indique uma outra sobre um assunto talvez mais interessante ainda?

— Qual? — perguntou Aristobulo Ursiclos, emproando-se com toda a gravidade.

— Não ignora decerto que alguns sábios trataram cientificamente esta muito palpitante questão: Da influência dos rabos de peixe nas ondulações do mar?

— Ora, senhor!

— Pois bem, proponho-lhe esta outra, que muito particularmente recomendo às suas sábias cogitações: Da influência dos instrumentos de sopro na formação das tempestades.

 

                   DOIS TIROS

No dia seguinte, e durante os primeiros dias de Setembro, Aristobulo Ursiclos não tornou a aparecer.

Teria saído de Iona, no barco dos turistas, havendo compreendido que perdia o seu tempo junto de miss Campbell?

Ninguém o poderia dizer.

Fosse como fosse, fazia bem em não se mostrar. Não era já somente indiferença, era uma espécie de aversão que inspirava à jovem senhora.

Ter despoetizado o seu raio, materializado o seu sonho, transformado o cinto de uma Valquíria num brutal fenómeno de óptica!

Talvez lhe tivesse perdoado tudo, tudo, excepto isto. Nem mesmo os manos Melvill tiveram licença de ir saber o que era feito de Aristobulo Ursiclos.

E porquê? Que poderiam eles dizer-lhe e que esperanças lhes restavam?

Poderiam doravante sequer pensar na união projectada entre dois seres que se eram tão profundamente antipáticos, separados pelo profundo abismo cavado entre a vulgar prosa e a sublime poesia, um com a sua mania de reduzir tudo a fórmulas científicas, o outro vivendo somente no ideal, que desdenha as coisas, contentando-se/ com as impressões!

Contudo, Partridge, instigado pela senhora Bess, soube que o «moço velho sábio», como o denominavam, não havia partido ainda, continuando a habitar a sua cabana de pescador, onde solitariamente vivia.

O que importava, porém, era haver desaparecido Aris-tobulo Ursiclos.

A verdade é que, quando se não encerrava no seu quarto, certamente ocupado com alguma alta especulação científica, ia correr de espingarda na mão os areais do litoral, desabafando o seu mau humor numa verdadeira carnificina de patos bravos e de gaivotas que não tinham a mínima culpa.

Conservaria ainda alguma esperança?

Pensaria que, satisfeito o capricho do Raio Verde, miss Campbell voltaria a melhores sentimentos? É possível, em suma, dada a sua personalidade.

Mas aconteceu-lhe, um dia, uma aventura bastante desagradável, que poderia ser-lhe fatal sem o auxílio tão generoso quanto inesperado do seu rival.

Na tarde de 2 de Setembro, Aristobulo Ursiclos tinha ido estudar as rochas que formam o promontório extremo ao sul de Iona. Uma dessas massas graníticas, um stack, atraiu tão especialmente a sua atenção que resolveu subir-lhe ao pináculo.

Ora, era um pouco imprudente a tentativa, porque o rochedo apresentava apenas superfícies escorregadias, e onde o pé não podia firmar-se!

Ainda assim, Aristobulo Ursiclos não quis dar-se por vencido.

Começou, pois, a trepar ao longo das paredes, agarrando-se a alguns arbustos que desciam aqui e ali, e com bastante dificuldade pôde alcançar o cimo do stack.

Chegado ali, entregou-se ao seu habitual e insignificante trabalho de mineralogista, mas quando quis descer é que o caso se tornou sério. Efectivamente, depois de haver cuidadosamente procurado por que lado da rocha seria conveniente deixar-se escorregar, tentou a sorte.

Porém, nesse momento, faltou-lhe o pé, rolou sem poder segurar-se, e ter-se-ia despenhado nas violentas ondas da ressaca se um tronco quebrado não o retivesse no meio da sua queda.

Aristobulo Ursiclos encontrou-se, pois, numa situação ao mesmo tempo perigosa e ridícula.

Se já não podia tornar a subir, também não podia descer.

Passou-se uma hora assim, e não se sabe o que teria acontecido se Oliveiros Sinclair, com o seu saco de pintor às costas, não tivesse passado por aquele sítio, e nesse momento, ouvindo gritar, parasse. Começou a rir-se por ver Aristobulo Ursiclos enganchado à altura de trinta pés, parecendo um desses bonecos de sabugo suspensos na tabuleta de uma taberna; mas, como é bem de supor, não hesitou em arriscar-se para o tirar dali. Custou-lhe a consegui-lo, e Oliveiros Sinclair teve de subir à crista do stack, içá-lo pendurado, e ajudá-lo a descer pelo outro lado.

— Sr. Sinclair — disse Aristobulo Ursiclos, logo que se viu em lugar seguro —, calculei mal o ângulo de inclinação que faz esta face do rochedo com a vertical. E, por isso, este escorregamento e esta suspensão...

— Sr. Ursiclos — respondeu Oliveiros Sinclair —, estimo muito que o acaso me concedesse vir em seu auxílio.

— Deixe-me portanto agradecer-lhe...

— Não vale a pena. O senhor ter-me-ia feito sem dúvida outro tanto.

— Certamente.

— Pois bem, até à desforra! E os dois moços separaram-se.

Oliveiros Sinclair julgou não dever falar deste incidente, a que não ligava importância.

Quanto a Aristobulo Ursiclos, também não disse uma palavra, mas no fundo, como estimava bastante a pele, ficou muito obrigado ao seu rival por o haver tirado daquele mau passo.

E então esse famoso raio? É necessário confessar que se fazia rogar muito.

E, contudo, já não havia tempo a perder.

A estação outonal não podia tardar em cobrir o céu com o seu véu de neblinas.

Sendo assim, findariam essas noites límpidas, de que Setembro se mostra tão avaro nas altas latitudes.

Acabariam esses claros horizontes, que mais parecem traçados pelo compasso de um geómetra que pelo pincel de um artista. Seria preciso renunciar a ver o fenómeno, causa de tantas mutações?

Ver-se-iam obrigados a adiar a observação para o ano seguinte, ou teimariam em prossegui-la sob outros céus?

Na verdade era um motivo de enfado tanto para miss Campbell como para Oliveiros Sinclair.

Ambos se desesperavam a valer, vendo o horizonte das Hébridas encoberto pelo vapor do alto mar.

Foi assim durante os quatro primeiros dias desse nevoento mês de Setembro.

Todas as tardes, miss Campbell, Oliveiros Sinclair, o mano Sam, o mano Sib, a senhora Bess e Partridge, assentados sobre algum rochedo banhado pelas curtas vagas da maré, assistiam conscienciosamente ao pôr do Sol com admiráveis efeitos de luz, seguramente mais esplêndidos do que se a pureza do céu fosse perfeita.

Um artista teria dado palmas em face das magníficas apoteoses que se realizavam ao cair do dia; perante uma deslumbrante gama de cores, afrouxando de nuvem para nuvem, desde o roxo-violeta do zénite até ao vermelho-ouro do horizonte; em frente de tão admirável cascata de fogos, ressaltando sobre rochas aéreas. Mas aqui rochas eram nuvens, e essas nuvens, mordendo o disco solar, absorviam com os seus últimos raios aquele que os olhos dos observadores em vão procuravam.

Então, sumido o astro, erguiam-se contrariados, como os espectadores de uma mágica a que falhasse o principal efeito por culpa do maquinista; depois, tomando o caminho mais longo, regressavam à hospedaria das Armas de Duncan.

— Até amanhã! — dizia miss Campbell.

— Até amanhã! — respondiam os dois tios. — Temos um vago pressentimento de que amanhã...

E todas as tardes os manos Melvill tinham um pressentimento, que terminava invariavelmente por uma desilusão.

Porém, o dia 5 de Setembro começou por uma manhã soberba.

Os vapores do nascente fundiram-se ao calor dos primeiros raios do Sol.

O barómetro, cuja agulha desde alguns dias caminhava para o bom tempo, subia ainda, até parar no bom tempo seguro.

Já não fazia suficiente calor para que o céu estivesse impregnado desse fumo tremente dos ardentes dias de Verão.

A secura da atmosfera sentia-se ao nível do mar, como se sentiria sobre uma montanha, a alguns mil pés de altura, numa atmosfera rarefeita.

É impossível dizer com que ansiedade todos seguiram as fases desse dia.

Não se podem descrever as palpitações de coração com que observavam se alguma nuvem se erguia no espaço.

Pretender exprimir quais as angústias com que se prendiam à trajectória descrita pelo Sol na sua marcha diurna, seria temeridade.

Por grande felicidade a brisa, ligeira mas contínua,

soprava de terra.

Passando por sobre as montanhas do nascente, tocando ao de leve a superfície das longas planícies do último plano, não devia carregar-se dessas húmidas moléculas que as grandes extensões de água desprendem e que os ventos do mar alto trazem com a noite.

Como pareceu grande este dia, e quanto custou a

passar!

Miss Campbell não podia estar quieta.

Afrontando o ardor das canículas, andava de um lado para o outro, enquanto Oliveiros Sinclair subia aos pontos mais elevados da ilha para abranger um horizonte mais

vasto.

Toda uma caixa de rapé ficou por conta dos dois tios, e Partridge, como se estivesse de guarda, conservava-se na posição de um guarda campestre incumbido de vigiar as celestes planícies.

Tinha-se combinado que nesse dia o jantar fosse às cinco horas, a fim de chegar cedo ao local da observação. Devendo pôr-se o Sol às seis horas e quarenta e nove minutos, havia tempo de o avistar até o ocaso.

— Parece que desta vez sempre o apanhamos! — disse o mano Sam, esfregando as mãos.

— -Assim o creio! — respondeu o mano Sib, repetindo

o gesto.

Contudo, pelas três horas houve alarme. Uma grande nuvem, um esboço de cúmulo, ergueu-se a nascente e, impelida pela brisa de terra, avançou para o mar.

Foi miss Campbell quem primeiro a viu e não pôde conter um grito de contrariedade.

— É uma só nuvem, e não há que recear — afirmou um dos tios. — Não tardará a desfazer-se.

— Ou há-de andar mais depressa que o Sol — acrescentou Oliveiros Sinclair — e desaparecerá do céu primeiro.

— Mas não será esta nuvem precursora de um grupo de névoas? — perguntou miss Campbell.

— Vamos ver.

E Oliveiros Sinclair foi a correr às ruínas do mosteiro. Dali o seu olhar pôde mergulhar até aos últimos confins do nascente, por cima das montanhas de Mull.

Estes montes desenhavam-se com extrema clareza, assemelhando-se a parte mais elevada a uma linha tremida traçada a lápis, sobre um fundo da mais perfeita limpidez.

Não havia nenhuma outra nuvem no céu, e o Ben-More, perfeitamente visível, a três mil pés acima do mar, não se toucava com a mínima névoa.

Oliveiros Sinclair voltou meia hora depois com palavras tranquilizadoras.

Aquela nuvem era apenas uma sentinela perdida no espaço; sem poder alimentar-se na atmosfera ressequida, morreria de inanição no caminho.

Entretanto, o esbranquiçado floco caminhava para o zénite. Com grande descontentamento de todos, seguia o caminho do Sol, de que se aproximava sob a influência da brisa.

Deslizando através do espaço, a sua estrutura ia-se modificando com o redemoinho da corrente aérea.

Do feitio de uma cabeça de cão, que tinha a princípio, passou a ter o de um peixe, uma como raia agigantada; depois aglomerou-se em bola, sombria no centro, deslumbrante nos extremos, e nesse momento atingiu o disco solar. Miss Campbell soltou um grito e ergueu os braços para o céu.

O astro radioso, escondido atrás de um pára-luz de vapores, não dardejava um só dos seus raios sobre a ilha. Iona, colocada fora da zona de irradiação directa, velara-se com uma grande sombra.

Mas bem depressa a sombra imensa se deslocou. O Sol reapareceu em todo o seu esplendor.

A nuvem desceu para o horizonte, onde mesmo não devia chegar, e meia hora depois desapareceu, como se se tivesse feito algum

buraco no céu.

— Enfim, ei-la desfeita — exclamou a jovem senhora — -e oxalá que não apareça mais alguma.

— Não; fique tranquila, miss Campbell — respondeu Oliveiros Sinclair. — Se aquela nuvem desapareceu tão depressa e por tal forma, é porque não encontrou outros vapores na atmosfera, e porque todo o espaço a poente está de uma pureza absoluta.

Às seis horas da tarde os observadores, agrupados num sítio muito descoberto, ocupavam o seu posto.

Era na extremidade setentrional da ilha e no ponto mais elevado da colina do Abade.

Desta altura, o olhar podia circularmente abranger toda a parte alta da ilha de Mull.

Ao norte, a pequena ilha de Staffa representava uma enorme concha de tartaruga, encalhada nas águas das Hébridas.

Para além, Elva e Gometra desprendiam-se do litoral prolongado da grande ilha.

Para poente, sudoeste e noroeste, estendia-se a imensidade do mar.

O Sol baixava rapidamente por uma trajectória oblíqua.

O perímetro do horizonte desenhava-se por um traço negro, que parecia feito com tinta-da-china.

Na parte oposta, todas as janelas das casas de Iona se inflamavam como ao reflexo de um incêndio cujas chamas fossem de ouro.

Miss Campbell e Oliveiros Sinclair, os manos Melvill, a senhora Bess e Partridge, dominados por este sublime espectáculo, haviam emudecido.

Olhavam, semicerrando os olhos, para esse disco que se deformava e, inchando na linha paralela à água, tomava a forma de um enorme aeróstato escarlate.

Ao largo nem um único vapor.

— Desta vez creio que sempre o apanhamos — repetiu o mano Sam.

— Também assim o penso — acrescentou o mano Sib.

— Silêncio, meus tios! — pediu miss Campbell.

Calaram-se e retiveram a respiração, como se temessem que se condensasse em forma de ligeira nuvem que encobrisse o disco do Sol.

O astro havia cortado o horizonte com o seu bordo inferior. Engrossava e tornava a engrossar, como se se houvesse enchido inteiramente de um fluido luminoso.

Todos aspiravam com a vista os seus últimos raios.

Tal Arago, instalado nos desertos de Palma, nas costas de Espanha, espreitava o fogo de sinal que devia aparecer no cimo da ilha de Ibiza, permitindo-lhe fechar o último triângulo do seu meridiano!

Finalmente, um pequeno segmento do arco foi tudo quanto restou do disco no afloramento das águas.

Antes de quinze segundos, o supremo raio ia ser projectado no espaço, dando aos olhos, prontos a recebê-la, essa impressão de um verde paradisíaco!

Súbito, ressoaram duas detonações no meio dos rochedos da praia, por baixo da colina.

Ergueu-se fumo, e por entre as suas volutas estendeu-se uma nuvem de aves do mar, guinchos, gaivotas, procelárias, assustadas por aqueles intempestivos tiros de espingarda.

A nuvem subiu em linha recta, e em seguida, interpondo-se como um véu entre o horizonte e a ilha, passou em frente do moribundo astro, no instante em que ele enviava à superfície das águas o seu último traço de luz.

Nesse momento, avistou-se na penedia o inevitável Aristobulo Ursiclos, tendo na mão a sua espingarda, que ainda lançava fumo, e seguindo com a vista toda a revoada de pássaros.

— Ah! agora, com efeito, é excessivo! — gritou o

mano Sib.

— É de mais! — concluiu o mano sam.

«Devia tê-lo deixado suspenso no rochedo — disse consigo mesmo Oliveiros Sinclair. — Ao menos, lá estaria ainda.»

Miss Campbell, mordendo os lábios e de olhos fixos, não pronunciou uma só palavra.

Mais uma vez, e por culpa de Aristobulo Ursiclos, deixara de ver o Raio Verde!

 

                 A BORDO DA «CLORINDA»

No dia seguinte, cerca das seis horas da manhã, a Clorinda, lindíssimo iate de quarenta e cinco a cinquenta toneladas, saía do porto de Iona e, sob uma fresca brisa de nordeste, com as amuras a estibordo, subia de rumo,, ganhando o alto mar.

A Clorinda levava miss Campbell, Oliveiros Sinclair, o mano Sam, o mano Sib, a senhora Bess e Partridge.

Claro é que o desastrado Aristobulo Ursiclos não ia a bordo.

Depois da aventura da véspera, havia-se combinado e executado imediatamente o que segue.

Ao deixar a colina do Abade para regressar à hospedaria, miss Campbell havia dito com voz seca:

— Meus tios, visto que o Sr. Aristobulo Ursiclos pretende ficar em Iona, suceda o que suceder, deixaremos Iona ao Sr. Aristobulo Ursiclos. Primeiro em Oban, e iagora aqui, foi por sua culpa que a nossa observação falhou. Não havemos de ficar nem mais um dia no local em que semelhante importuno tem o privilégio de fazer as suas tolices!

A esta proposta, tão claramente formulada, os irmãos Melvill não tiveram que replicar.

Demais a mais, também eles participavam do descontentamento geral e maldiziam Aristobulo Ursiclos.

Decididamente, a situação do seu pretendente estava comprometida para sempre.

Miss Campbell em caso algum reconsideraria.

Era forçoso, agora e já, renunciar à realização de um projecto que se tornava impossível.

— Em suma — como o mano Sam fez notar ao mano Sib, que chamara de parte —, as promessas imprudentes não são algemas de ferro!

O que significa, por outras palavras, que um juramento temerário nunca pode obrigar, prolóquio escocês, a que o mano Sib dera inteira aprovação com um gesto muito expressivo.

No momento em que se trocavam as despedidas de noite na sala baixa das Armas de Duncan, declarou miss Campbell:

— Partiremos amanhã. Não quero ficar aqui nem mais um dia!

— É negócio resolvido, minha querida Helena — respondeu o mano Sam —, mas aonde iremos nós?

— Para sítio em que tenhamos a certeza de não tornar a encontrar esse Ursiclos! É necessário, pois, que todos ignorem que deixamos Iona e para onde vamos.

— Seja assim — respondeu o mano Sib —, mas minha querida filha, como havemos de partir e para onde iremos?

— Pois quê! — exclamou miss Campbell — não havemos de encontrar meio de sair desta ilha logo ao amanhecer? As praias da Escócia não terão um local qualquer desabitado, inabitável até, onde nos seja possível continuar em paz as nossas tentativas?

Seguramente, por si só, os manos Melvill não poderiam responder a esta dupla pergunta, feita num tom que não admitia evasivas nem subterfúgios.

Estava, porém, presente, Oliveiros Sinclair. — felizmente.

— Miss Campbell — afirmou ele —, tudo se pode arranjar, e eu vou dizer-lhe como. Há perto daqui uma ilha, ou antes, uma simples ilhota, excelente para as nossas observações e onde nenhum importuno nos virá incomodar.

— Qual é?

— É Staffa, que pode avistar a duas milhas, quando muito, ao norte de Iona.

— -E pode-se lá ir, e viver lá? — perguntou miss Campbell.

— Certamente — assegurou Oliveiros Sinclair — e com muita facilidade. No porto de Iona vi um desses iates sempre prontos para navegar, que se encontram em todos os portos ingleses durante a boa estação. Capitão e tripulantes estão às ordens do primeiro viajante que queira utilizar-se dos seus serviços para a Mancha, o mar do Norte ou o mar da Irlanda. Ora, pois, quem nos impede de fretar esse navio, de meter-lhe provisões para uns quinze dias, visto que Staffa é desprovida de recursos, e de partir amanhã aos primeiros alvores da madrugada?

— Sr. Sinclair — volveu miss Campbell —, se amanhã deixarmos secretamente esta ilha, fique certo de que lhe serei muito reconhecida!

— Amanhã, antes do meio-dia, contanto que a aurora nos traga algum vento, estaremos em Staffa, e salvo durante a visita dos turistas, que, duas vezes por semana, dura apenas uma hora, ninguém irá importunar-nos.

Conforme o costume dos irmãos Melvill, ouviram-se logo todos os sobrenomes da criada grave:

— Bet!

— Beth!

— Bess!

— Betsey!

— Betty!

A senhora Bess apareceu imediatamente.

— Partimos amanhã! — anunciou o mano Sam.

— Amanhã de madrugada! — acrescentou o mano Sib.

E só com isto, sem nada mais perguntar, a senhora Bess e Partridge trataram imediatamente dos preparativos da jornada.

Entretanto, Oliveiros Sinclair dirigiu-se ao porto e fez as suas combinações com John Olduck.

John Olduck era o capitão da Clorinda, um verdadeiro marinheiro, coberto com o pequeno e tradicional boné de galão de ouro, vestido com a jaqueta de botões de metal e calças de grosso pano azul.

Concluído o ajuste, tratou de preparar tudo para aparelhar, ajudado pelos seus seis homens — seis marinheiros escolhidos que, pescadores de ofício durante o Inverno, fazem no Verão o serviço dos yachting com incontestável superioridade sobre a maruja dos outros países.

Às sete horas da manhã, os novos passageiros da Clorinda embarcaram, sem dizer a pessoa alguma qual era o destino do iate.

Haviam feito mão baixa em todos os víveres, carne fresca ou salgada, bem como em todas as bebidas disponíveis.

Além disso, o cozinheiro da Clorinda tinha sempre o recurso de renovar provisões no steamer que faz regularmente a carreira de Oban a Staffa.

Assim, pois, logo ao romper do dia, miss Campbell havia tomado posse de um encantador e elegante quarto, situado na popa do iate.

Os dois irmãos ocupavam os beliches da câmara grande, para além do salão, confortàvelmente situado na parte mais larga do pequeno navio.

Oliveiros Sinclair remediava-se com um camarote arranjado na volta da larga escada que conduzia ao salão. A senhora Bess e Partridge dispunham de dois catres colocados, pela parte de trás da despensa e da câmara do capitão, à direita e à esquerda da sala de jantar atravessada pelo pé do mastro grande.

Mais adiante era a cozinha, onde ficava o mestre cozinheiro, e ainda mais para a frente o local onde ficava a tripulação, munido das competentes macas para seis marinheiros.

Nada faltava a este bonito iate, construído sob a direcção de Ratsey, de Cowes.

Com bom mar e fresca brisa, conservava sempre honrosa posição nas regatas do Royal Thames Yacht Club.

Foi para todos uma verdadeira alegria quando a Clorinda, tendo aparelhado e recolhido os ferros, de vela grande, traquete, mezena, cutelos e varredouras, começou a tomar vento.

Inclinou-se graciosamente sob a aragem, sem que o seu branco convés, de madeira do Canadá, se molhasse com o marulho das pequenas vagas que a roda de proa, perpendicular à linha de água, ia cortando.

É muito curta a distância entre as duas pequenas Hébridas, Iona e Staffa.

Sendo o vento de feição, vinte a vinte e cinco minutos seriam suficientes para que fosse de uma à outra um iate que sem grande esforço deitaria facilmente as suas oito milhas por hora.

Mas então tinha o vento pela proa — apenas uma fraca brisa; e, além disso, descia a maré, e era-lhe necessário bordejar um pouco, antes de chegar à altura de Staffa.

Isso, porém, pouco importava a miss Campbell. Tinha saído a Clorinda, era o principal.

Uma hora depois, sumia-se Iona nas névoas da manhã, e com ela a insuportável imagem desse desmancha-prazeres, de quem Helena até o nome queria esquecer.

E disse-o francamente a seus tios.

— Pois não tenho razão, papá Sam?

— Toda a razão, querida Helena.

— E a mamã Sib, não acha justo o que faço? — Justíssimo.

— Ora, pois — acrescentou ela, beijando-os —, concordemos que tios que pensaram em dar-me um tal marido não tiveram grande ideia.

E ambos concordaram.

Em suma, foi uma encantadora viagem, que teve apenas o defeito de ser curta.

E quem obstava a que se prolongasse, deixando o iate correr assim em busca do Raio Verde, indo até procurá-lo em pleno Atlântico?

Mas não! Havia-se combinado ir a Staffa, e John Olduck tomou as suas medidas para, no começo da maré, chegar a essa pequena ilha, célebre entre todas as Hébridas.

Às oito horas deu-se na sala de jantar da Clorinda o primeiro almoço, composto de chá, pão com manteiga e sanduíches.

Os convivas, de excelente humor, festejaram alegremente o serviço de bordo, sem saudades da mesa da hospedaria de Iona.

Ingratos!

Quando miss Campbell voltou para a coberta, o iate havia virado de bordo e mudado de rumo. Voltava então para o excelente farol construído sobre o rochedo de Skerryvore, que ergue a cento e cinquenta pés acima do nível do mar a sua luz de primeira ordem.

Tendo refrescado o vento, a Clorinda, sob as suas grandes e brancas velas, lutava então contra a vazante, mas pouco se aproximava de Staffa. E, contudo, «corria como uma pena», para designar, na frase escocesa, a rapidez da sua marcha.

Miss Campbell estava meio deitada, à popa, numa dessas espessas almofadas de grossa tela em uso a bordo dos barcos de recreio de origem britânica. Embriagava-se com essa rapidez que não perturbavam nem os solavancos de uma estrada, nem as trepidações de um railway — rapidez de patinador, voando por sobre um lago gelado.

Nada mais gracioso, sobre aquelas águas levemente escumosas, que essa elegante Clorinda, ligeiramente inclinada, subindo e descendo com a vaga. às vezes parecia librar-se no ar, como uma ave imensa sustentada pelas suas poderosas asas.

Esse mar, coberto pelas grandes Hébridas do norte e do sul, abrigado pela terra a nascente, era como uma lagoa cujas águas o vento não conseguira ainda agitar.

O iate corria obliquamente para a ilha Staffa, grande rochedo isolado ao longo da ilha de Mull, que não se ergue a mais de cem pés acima das marés vivas.

Podia-se julgar que era ele quem se movia, mostrando ora as penedias basálticas do poente, ora o rude montão de rochedos da sua costa oriental.

Por uma ilusão de óptica parecia rodar sobre a sua base, ao capricho dos ângulos sucessivamente abertos e fechados pela Clorinda.

Entretanto, apesar da corrente e do vento, o iate ia-se adiantando alguma coisa.

Quando singrava para oeste, por fora do promontório extremo de Mull, a água sacudia-o mais vivamente, mas aguentava-se galhardamente contra as primeiras ondas do alto mar; depois, na seguinte bordada, tornava a encontrar águas tranquilas, que o embalavam como a um berço de bebé.

Cerca das onze horas, a Clorinda estava bastante ao norte, para só ter de deixar-se descair para Staffa.

Afrouxaram-se as escotas, amainaram-se algumas velas, e o capitão preparou-se para ancorar.

Não há barra em Staffa, mas com todos os ventos é fácil deslizar costeando os penhascos de leste, no meio dos rochedos caprichosamente desgranados por alguma convulsão dos períodos geológicos. Contudo, com muito mau tempo, um navio de certa tonelagem não poderia aguentar a posição.

A Clorinda passou, pois, muito perto dessa sementeira de basaltos negros.

Manobrou habilmente, ficando-lhe a um lado a rocha de Bouchaillie, de que então a baixa-mar deixava emergir os fustes prismáticos, reunidos em feixe, e, do outro, o aterro que à esquerda orla o litoral.

Ali é o melhor ancoradouro da ilha; o local onde a embarcação, que traz os turistas, vem retomá-los, depois do seu passeio pelos pontos mais elevados de Staffa.

A Clorinda penetrou numa pequena enseada, quase à entrada da gruta de Clam-Shell; arriado o mastaréu de mezena, amainado o traquete, fundeou-se afinal.

Um momento depois, miss Campbell e os seus companheiros desembarcavam nos primeiros degraus de basalto, à esquerda da gruta.

Encontra-se ali uma escada de pau munida de corrimãos que sobe do primeiro socalco até ao arredondado dorso da ilha. Subiram todos por ela e chegaram ao planalto superior.

Estavam finalmente em Staffa, tão fora do mundo habitado como se alguma tempestade os tivesse arrojado à mais deserta ilhota do Pacífico.

 

                   STAFFA

SE Staffa não é mais que uma pequena ilha, fê-la em compensação a Natureza a mais curiosa de todo o arquipélago hébrido.

Nesse grande rochedo, de forma oval, tendo de comprimento uma milha e de largura meia, oculta sob a sua concha grutas admiráveis de origem basáltica. Por isso é não só o ponto de reunião dos geólogos como também dos turistas.

Entretanto, nem miss Campbell nem os irmãos Melvill haviam ainda visto Staffa. Somente Oliveiros Sinclair lhe conhecia as maravilhas. Estava, pois, naturalmente designado para lhe fazer as honras dessa ilha, à qual tinham vindo pedir uma hospitalidade de alguns dias.

Esse rochedo é unicamente devido à cristalização de um como enorme lobinho de basalto, que ali se coagulou, nos primeiros períodos da formação da camada terrestre. E isto data de longe.

Com efeito, segundo observações de Hemholtz — concluindo das experiências de Bischof acerca do esfriamento do basalto, que só pode fundir-se a uma temperatura de dois mil graus —, para que arrefecesse completamente não foram necessários menos de trezentos e cinquenta milhões de anos.

Seria, pois, nessa época fabulosamente remota que a

solidificação do Globo, depois de haver passado do estado gasoso ao líquido, teria começado a produzir-se?

Se Aristobulo Ursiclos estivesse ali, teria assunto para alguma bonita dissertação acerca dos fenómenos da história geológica.

Mas estava longe, miss Campbell já não pensava nele, e, como dizia o mano Sam ao mano Sib:

— Deixemos essa mosca sossegada sobre a parede — prolóquio que corresponde ao «não acordemos o gato que dorme» dos franceses.

Depois, olharam em roda, e uns para os outros:

— É conveniente, primeiro que tudo — propôs Oliveiros Sinclair —, tomar posse do nosso novo domínio.

— Não esquecendo o motivo que nos aqui trouxe — respondeu, sorrindo, miss Campbell.

— Não o esquecendo, com toda a certeza! — concordou Oliveiros Sinclair. — Vamos, pois, procurar um local para a observação, e verificar que vista de mar tem o ocidente da nossa ilha.

— Vamos — respondeu miss Campbell —, mas o tempo está um pouco enevoado hoje, e não me parece que o pôr do Sol se realize em condições favoráveis.

— Esperaremos, miss Campbell, esperaremos, se for necessário, até aos temporais do equinócio.

— Esperaremos, sim — acrescentaram os manos Mel-vill... —, enquanto Helena não ordenar que partamos.

— E não temos a mínima pressa, meus tios — replicou a jovem senhora, completamente feliz desde que deixara Iona. — Sim, nada nos apressa.

((A situação desta ilha é encantadora. Não seria desagradável habitar uma quinta que se mandasse construir no meio daquela planície, estendida como um verdejante tapete por sobre a sua superfície, mesmo quando as borrascas, que tão generosamente nos envia a América, caem sobre os rochedos de Staffa.

— Hum! — fez o tio Sib — devem ser terríveis nesta orla extrema do oceano!

— E são-no com efeito — confirmou Oliveiros Sinclair. — Staffa está exposta a todos os ventos que vêm do mar, e só oferece abrigo nas praias de leste, onde está ancorada a nossa Clorinda. O Inverno neste ponto do Atlântico dura cerca de nove meses em doze.

— Eis a razão — explicou o mano Sam — por que não encontramos uma única árvore. Neste planalto, toda a vegetação deve morrer, por muito tempo que se erga sobre o terreno.

— Pois bem, não valeria a pena viver nesta ilhazinha os dois ou três meses de Verão? — exclamou miss Campbell. — Se Staffa se vende, deviam comprá-la, meus tios.

O mano Sam e o mano Sib meteram imediatamente a mão no bolso, como se já se tratasse de pagar a compra, visto serem tios tão prontos a satisfazer os caprichos de sua sobrinha.

— A quem pertence Staffa? — perguntou o mano Sib.

— À família dos Mac-Donald — respondeu Oliveiros Sinclair. — Arrendam-na por doze libras por ano; mas creio que não a venderiam por preço algum.

— É pena! — disse miss Campbell, que, muito entusiasta por natureza como é sabido, estava então numa disposição de espírito para ainda mais o ser.

E, mesmo conversando, os novos hóspedes de Staffa percorriam-lhe a superfície desigual, que largas ondulações de verdura aplanavam. Esse dia não era um dos reservados pela companhia dos steamers de Oban para visitar as pequenas Hébridas.

Por isso, miss Campbell e os seus não tinham de temer a importunação dos turistas. Estavam sós sobre esse rochedo deserto. Alguns cavalos de raça pequena, algumas vacas pretas, pastavam a delgada erva do planalto, do qual as correntes de lava formavam aqui e acolá a delgada camada do torrão vegetal.

Nenhum pastor os guardava e, se vigiavam este rebanho de insulares de quatro patas, era de longe, talvez de Iona, ou mesmo das praias de Mull, quinze milhas a

leste.

Nem uma só casa também. Apenas os restos de uma choça, destruída pelas medonhas tempestades que se desencadeiam do equinócio de Setembro ao equinócio de

Março.

Na verdade, doze libras é uma bonita renda por alguns ares de prados, cuja erva é rasa como um velho veludo gasto até à rama.

A exploração da ilha, na superfície, foi, pois, rapidamente feita, e depois só se tratou de observar o horizonte. Era evidente que, nessa tarde, nada havia a esperar do pôr do Sol.

Com a mobilidade característica dos dias de Setembro, o céu, tão límpido na véspera, havia-se novamente enevoado. Pelas seis horas, algumas nuvens avermelhadas, dessas que anunciam perturbação atmosférica próxima, velavam o ocidente.

Os manos Melvill puderam mesmo verificar, com mágoa, que o aneróide da Clorinda retrogradava para o variável, com certa tendência para descer ainda mais.

Portanto, depois da desaparição do Sol por detrás de uma linha recortada pelas ondas do alto mar, regressaram todos a bordo.

A noite passou-se tranquilamente naquela pequena enseada, feita ali por causa dos atractivos de Clam-Shell.

No dia seguinte, 6 de Setembro, foi decidido fazer-se um mais completo reconhecimento da ilhota.

Depois de terem explorado a superfície, era conveniente estudar-lhe a parte interna.

Pois não era necessário entreter o tempo, visto que uma verdadeira má sorte — de que Aristobulo Ursiclos era o único culpado — havia até então impedido a observação do fenómeno?

Além disso, não foi motivo de arrependimento a excursão às grutas, que tão justamente tornam célebre aquela pequena ilha do arquipélago das Hébridas.

Esse dia foi empregado em explorar primeiramente a ((adega» de Clam-Shell, em frente da qual estava ancorado o iate.

O mestre cozinheiro, por proposta de Oliveiros Sinclair, dispôs-se mesmo a servir ali o almoço ao meio-dia. Os convivas podiam julgar-se encerrados no porão de um navio.

Com efeito, os prismas de quarenta a cinquenta pés de comprimento, que formam o esqueleto da abóbada, parecem-se bastante com o cavername de um navio.

A gruta, que tem cerca de trinta pés de altura, quinze de largura e cem de profundidade, é de fácil acesso.

Aberta pouco mais ou menos ao poente, ao abrigo dos ventos tempestuosos, não é invadida por essas ondas temíveis que os vendavais arremessam sobre as outras cavernas da ilha.

Mas, também, talvez seja a menos interessante.

Todavia, a disposição das suas cartas basálticas, que mais parecem indicar o trabalho do homem que o da natureza, é para maravilhar.

Miss Campbell gostou imenso de visitá-la. Oliveiros Sinclair fez-lhe admirar as belezas de Clam-Shell; é certo que com menos farragem científica do que o teria feito Aristobulo Ursiclos, mas seguramente com muito mais senso artístico.

— Gostava de ter uma lembrança da nossa vinda a Clam-Shell — disse miss Campbell.

— Nada mais fácil — respondeu Oliveiros Sinclair.

E, com alguns traços de lápis, fez o esboço da gruta, tirado do rochedo que se ergue na extremidade do grande talude de basalto.

A abertura, como de adega, essa aparência de enorme mamífero marinho, reduzido ao estado de esqueleto, que figuram as suas paredes, a ligeira escada que conduz ao alto da ilha, a água tão tranquila e tão pura à entrada, e sob a qual se desenha a imensa construção basáltica, tudo foi traduzido com muita arte na página do álbum. Na parte inferior o artista pôs esta dedicatória, que não prejudicava coisa alguma:

Oliveiros Sinclair a miss Campbell. Staffa, 7 de Setembro de 1881

Findo o almoço, o capitão John Olduck fez preparar o maior dos dois escaleres da Clorinda; os seus passageiros embarcaram, e, seguindo o pitoresco contorno da ilha, dirigiram-se à gruta do Batel, assim chamada porque o mar a enche e não se pode visitar a pé enxuto.

Esta gruta é situada na parte sudoeste da ilhota.

Por pouco que a mareta seja forte, seria imprudente entrar ali, porque a agitação das águas é então violenta, mas nesse dia, posto que o céu estivesse prenhe de ameaças, ainda não havia refrescado o vento, e a exploração não oferecia perigo algum.

No momento em que o escaler da Clorinda chegava em frente da abertura da profunda escavação, o steamer, cheio de turistas de Oban, vinha ancorar à vista da ilha.

Felizmente, essa demora de duas horas, durante as quais Staffa pertence aos passageiros do Pioneer, não perturbou a quietação de miss Campbell e dos seus.

Continuaram despercebidos na gruta do Batel, enquanto durou o passeio regulamentar, que só se faz à gruta de Fingal e à parte externa de Staffa.

Não tiveram, pois, ocasião de suportar o contacto dessa sociedade um tanto ruidosa, com o que muito e por muitas razões se felicitaram.

Efectivamente, depois da súbita desaparição dos seus companheiros, não teria Aristobulo Ursiclos tomado, para regressar a Oban, o steamer que acabava de fazer escala em Iona?

Era, entre todos, um encontro que se devia evitar.

Fosse como fosse, estivesse ou não o pretendente despedido entre os turistas de 7 de Setembro, ninguém ficou depois da partida do steamer.

Quando miss Campbell, os manos Melvill e Oliveiros Sinclair saíram desse comprido intestino, espécie de túnel sem saída, que parece ter sido feito à broca numa mina de basalto, tornaram a encontrar a costumada tranquilidade sobre esse rochedo de Staffa, isolado na orla do Atlântico.

Citam-se um certo número de cavernas célebres, em muitos sítios do Globo, e mais especialmente nas regiões vulcânicas.

Distinguem-se pela sua origem, que é neptuniana ou plutónica.

Com efeito, dessas cavidades umas foram formadas pelas águas, que, pouco a pouco, roem, gastam, minam até, massas graníticas, a ponto de as transformar em vastas escavações; tais são as grutas de Crozon na Bretanha, as de Bonifácio na Córsega, de Morghatten na Noruega, de S. Miguel em Gibraltar, de Saratchell sobre o litoral da ilha de Wight, de Turana nas marmóreas penedias da costa da Cochinchina.

As outras, de formação muito diversa, são devidas ao apertamento das paredes de granito ou de basalto produzido pelo resfriamento das rochas ígneas, e, na sua contextura, apresentam um carácter de brutalidade que falta às grutas de criação neptuniana.

Com as primeiras, a natureza, fiel aos seus princípios, economizou o esforço; com as segundas, economizou o tempo.

Às escavações cuja massa borbulhou pela acção do fogo das épicas geológicas pertence a célebre gruta de Fingal — Fingal's Cave —, conforme a prosaica expressão inglesa.

Era à exploração dessa maravilha do globo terrestre que ia ser consagrado o dia seguinte.

 

                   A GRUTA DE FINGAL

SE o capitão da Clorinda tivesse estado nas últimas vinte e quatro horas em qualquer dos pontos do Reino Unido, haveria tido conhecimento de um boletim meteorológico pouco tranquilizador para as embarcações em navegação sobre o Atlântico.

Efectivamente, um telegrama de Nova Iorque anunciava uma borrasca. Depois de haver atravessado o oceano do poente ao nordeste, ameaçava cair brutalmente sobre o litoral da Irlanda e da Escócia, antes de ir perder-se para além da costa da Noruega.

Mas, na falta deste aviso telegráfico, o barómetro do iate indicava próxima uma grande perturbação atmosférica, o que devia chamar a atenção do prudente homem do mar.

Assim, pois, na manhã de um dia, 8 de Setembro, John Olduck, um pouco inquieto, dirigiu-se para a orla penhascosa que limita Staffa a oeste, a fim de ali examinar o aspecto do céu e do mar.

Nuvens de formas pouco acentuadas, ou antes, fragmentos de vapores, corriam já com grande rapidez. O vento era forte e dentro em breve devia transformar-se em temporal.

O mar, embranquecido ao longe, começava a encapelar-se; as ondas quebravam-se ruidosamente sobre as estacas basálticas de que está semeada a base da ilha.

John Olduck não ficou tranquilo. Posto que a Clorinda estivesse relativamente abrigada na enseada de Clam-Shell, não era esta um ancoradouro seguro, mesmo para um navio de pequenas dimensões.

O impulso das águas, engolfando-se entre as pequenas ilhas e o aterro de leste, devia produzir uma terrível ressaca, que tornaria bastante perigosa a situação do iate.

Convinha, pois, tomar uma resolução, e tomá-la antes que os canais se tornassem impraticáveis.

Quando o capitão regressou a bordo, encontrou aí os seus passageiros, aos quais participou as suas apreensões, e a necessidade, que lhe parecia impreterível, de aparelhar o mais breve possível.

Com a demora de algumas horas corria-se o perigo de encontrar um mar perturbadíssimo nesse estreito de quinze milhas que separa Staffa da ilha de Mull.

Ora, era ao abrigo desta ilha que convinha refugiar-se, e mais especialmente no pequeno porto de Achna-graig, onde a Clorinda nada teria a temer dos ventos do alto mar.

— Deixar Staffa! — exclamou imediatamente miss Campbell. — Perder tão magnífico horizonte!

— Julgo que será muito perigoso ficar no ancoradouro de Clam-Shell — replicou John Olduck.

— Se é preciso, minha querida Helena — arriscou o mano Sam.

— Sim, se é preciso! — acrescentou o mano Sib.

Oliveiros Sinclair, vendo quanto esta precipitada partida contrariava miss Campbell, apressou-se em perguntar:

— Quanto tempo, capitão Olduck, supõe que possa durar esta tempestade?

— Nesta época do ano, dois ou três dias quando muito.

— E julga necessário partir?

— Necessário e urgente.

— E qual é o seu plano?

— Sair esta manhã mesmo. Como refrescou o vento, podemos estar antes da noite em Achnagraig. Voltaremos a Staffa quando acabar o temporal.

— Porque não voltamos para Iona, aonde a Clorinda poderia chegar numa hora? — sugeriu o mano Sam.

— Não... não... nada de Iona — respondeu miss Campbell, em frente da qual se erguia já a ameaçadora sombra de Aristobulo Ursiclos.

— E não estaríamos muito mais seguros no porto de Iona do que no ancoradouro de Staffa — fez notar o capitão John Olduck.

— Pois bem — resolveu Oliveiros Sinclair —, parta, capitão, parta imediatamente, para Achnagraig, e deixe-nos ficar em Staffa.

— Em Staffa! — estranhou John Olduck — . onde nem sequer há uma casa para vos abrigar!

— Pois para alguns dias não nos basta a gruta de Clam-Shell? — tornou Oliveiros Sinclair. — Que nos faltará ali? Nada! Temos a bordo provisões suficientes, os colchões e roupas das nossas camas, fato para mudar, e que podemos desembarcar, e, finalmente, um cozinheiro que sem dúvida estimará muito ficar também.

— Sim!... sim!... — concordou miss Campbell, dando palmas. — Parta, capitão, parta imediatamente com o seu iate para Achnagraig, e deixe-nos ficar em Staffa. Aqui estaremos como abandonados numa ilha deserta. Teremos a vida de náufragos voluntários. Espreitaremos a volta da Clorinda com as comoções, os transes e as angústias dos Robinsons quando avistam um navio nas proximidades da sua ilha. Que viemos aqui fazer? Romance, não é verdade, Sr. Sinclair, e que há mais romântico de que esta situação, meus tios? E, além disto, uma tempestade, um vendaval nesta poética ilhazinha, as cóleras de um mar hiperbóreo, a luta oceânica dos elementos desencadeados, oh! toda a minha vida me censuraria se deixasse escapar tão sublime espectáculo! Parta, pois, capitão Olduck! Aqui ficamos à sua espera.

— Contudo... — objectaram os manos Melvill, a quem esta tímida palavra escapou quase simultaneamente.

— Parece-me que meus tios falaram — disse miss Campbell —, mas creio ter um meio de os pôr de acordo com a minha opinião. É indo dar a cada um o beijo da manhã.

— Aqui tem para si, tio Sam, e para si, tio Sib. Aposto agora que nada terão a dizer.

Nem sequer pensaram em fazer a mínima objecção.

Desde que agradava a sua sobrinha ficar em Staffa, porque não haviam de ficar, e como não haviam tido eles desde logo essa ideia tão simples, tão natural, e que salvaguardava todos os interesses?

Mas a ideia fora de Oliveiros Sinclair, e miss Campbell julgou dever-lhe agradecer mais especialmente.

Tomada esta resolução, os marinheiros desembarcaram os objectos necessários para uma tal ou qual demora na ilha.

Clam-Shell transformou-se rapidamente em habitação provisória, sob o nome de Melvill-House.

Deviam estar ali tão bem ou melhor ainda que na hospedaria de Iona.

O cozinheiro incumbiu-se de encontrar um local conveniente para os seus trabalhos à entrada da gruta, numa anfractuosidade evidentemente destinada a esse uso.

Depois, miss Campbell e Oliveiros Sinclair, os manos Melvill, a senhora Bess e Partridge saíram da Clorinda, logo que John Olduck deixou à sua disposição a lancha pequena do iate, que podia ser-lhes útil para irem de um a outro rochedo.

Uma hora depois, a Clorinda, com dois rizes nas velas, arriado o mastro de mezena, e com a vela de estais de proa ao mau tempo, manobrava de modo a tornear o norte de Mull, a fim de chegar a Achnagraig pelo estreito que separa a ilha da terra firme.

Os seus passageiros, do alto de Staffa, seguiram-na com a vista, tão longe quanto possível.

Inclinada sobre o vento, como uma gaivota cuja asa roça pelas vagas, havia, passada uma hora, desaparecido por trás da ilha de Gometra.

Se o tempo era ameaçador, o céu não estava enevoado. O Sol rompia ainda por entre os grandes rasgões das nuvens que o vento entreabria no zénite.

Podia-se passear pela ilha, e seguir, contornando, a base das penedias basálticas.

Também, a primeira coisa que miss Campbell e os manos Melvill fizeram, guiados por Oliveiros Sinclair, foi dirigir-se à gruta Fingal.

Os turistas que vêm de Iona têm o costume de ir ver esta gruta nos escaleres do steamer de Oban; mas é possível chegar-lhe até ao fim desembarcando nos rochedos da direita, onde existe uma espécie de cais transitável.

Foi assim que Oliveiros Sinclair resolveu fazer esta exploração, sem se servir da canoa da Clorinda.

Saíram, pois, de Clam-Shell e tomaram pelo aterro que segue pelo litoral ao nascente da ilha.

As extremidades dos fustes, espetados verticalmente, como se algum engenheiro tivesse ali enterrado estacas de basalto, formam um empedrado sólido e seco ao rés dos primeiros rochedos.

Durante este passeio de alguns minutos foram conversando e admirando as ilhotas, acariciadas pela ressaca, as quais a água verde deixa ver até à base.

Não se poderia imaginar mais admirável caminho para conduzir a essa gruta, digna de ser habitada por algum herói das Mil e Uma Noites.

Chegados ao ângulo sudoeste da ilha, Oliveiros Sinclair fez com que os seus companheiros subissem muitos degraus naturais, que não deslustrariam as escadas de um palácio.

É no ângulo do patamar que se erguem os pilares exteriores, agrupados contra as paredes da gruta, como as do pequeno templo de Vesta em Roma, justapostos de modo a dissimular a grandeza do todo.

Na sua parte mais elevada se apoia a enorme massa de que é formado este pedaço da ilha.

As fendas oblíquas destas rochas, que parecem estar dispostas segundo o corte geométrico das pedras do intra-dorso de uma abóbada, contrastavam singularmente com a posição vertical das colunas que as sustentam.

Ao pé dos degraus, a água, menos tranquila, sentindo já a agitação do alto mar, erguia-se e abaixava-se docemente, como por efeito da respiração. Ali se reflectia todo o envasamento do maciço, cuja escura sombra ondulava sob as águas.

Oliveiros Sinclair, tendo chegado ao patamar superior, voltou à esquerda, e mostrou a miss Campbell uma espécie de estreito cais, ou antes, um passeio natural, que seguia a parede até ao fundo da gruta. Um mainel com travessas de ferro chumbadas no basalto servia de corrimão entre a muralha e a aresta viva do pequeno cais.

— Ah! — afirmou miss Campbell — este parapeito faz com que o palácio de Fingal perca para mim um pouco do seu prestígio.

— Efectivamente — respondeu Oliveiros Sinclair —, é a intervenção do homem na obra da natureza.

— Se é útil, é aproveitá-lo — declarou o mano Sam.

— É o que eu faço — -acrescentou o mano Sib.

Por conselho do seu guia os visitantes pararam à entrada de Fingal's Cave. Na sua frente abria-se uma espécie de nave profunda e elevada, cheia de misteriosa sombra.

O desvio entre as duas paredes laterais, ao nível do mar, media cerca de trinta e quatro pés.

À direita e à esquerda, pilares de basalto, unidos uns contra os outros, enchiam, como em algumas catedrais do último período gótico, a massa de muros de apoio.

Sobre o capitel desses pilares apoiavam-se as bases de uma imensa abóbada em ogiva, que a contar do fecho se elevava cinquenta pés acima das águas médias.

Miss Campbell e os seus companheiros, maravilhados deste primeiro aspecto, tiveram enfim de arrancar-se à sua curiosa contemplação e seguir pela saliência que forma o passeio interno.

Ali estão colocadas na mais perfeita ordem centenas de colunas prismáticas, de grandeza diversa, semelhantes aos produtos de uma cristalização colossal.

As suas finas arestas desprendiam-se tão nitidamente como se o cinzel de um escultor lhes tivesse contornado as linhas. Aos ângulos reentrantes de umas se adaptam geometricamente os ângulos salientes das outras.

Estas têm três bases; aquelas quatro, cinco, seis e até sete ou oito, o que varia tanto a uniformidade geral do estilo, quanto prova em favor do sentimento artístico da natureza.

A luz vinha, de fora, brincar sobre as facetas de todos

esses ângulos.

Colhida pela água interior, reflectida como num espelho, impregnando-se nas rochas submarinas e nas ervas aquáticas, de tintas verde, vermelho-escuro ou amarelo-claro, acendia mil fogos nas projecturas dos basaltos, que em irregulares emolduramentos formavam a abóbada deste hipogeu sem rival no mundo.

Ali dentro reinava um sonoro silêncio — se nos é permitido associar estas duas palavras —, silêncio especial das escavações profundas, que os visitantes não pensavam em interromper.

Somente se faziam ouvir as vozes do vento nessas longas harmonias que parecem feitas de uma melancólica série de notas graves engrossando e extinguindo-se pouco a pouco.

Julgar-se-ia que, sob um sopro poderoso, todos aqueles prismas se ouviam e ressoavam como as palhetas de uma enorme harmónica.

E é talvez a este efeito estranho que é devido o nome de An-Na-Vine, «a gruta harmoniosa», pelo qual esta caverna é designada em língua céltica.

— E que nome lhe caberia melhor. — observou Oliveiros Sinclair —, visto que Fingal era pai de Ossian, cujo génio soube reunir numa só arte a poesia e a música?

— Sem dúvida — apoiou o mano Sam —, mas, como disse o próprio Ossian: «Quando chegará a meus ouvidos o canto dos bardos? Quando palpitará o meu coração ao escutar a narrativa das festas de meus pais? Nos bosques de Sebora já não ressoa a harpa...»

— Sim — acrescentou o mano Sib —, «está agora deserto o palácio, e os ecos não tornarão a repetir os antigos cantos!»

A profundidade total da gruta está calculada em cerca de cento e cinquenta pés.

Ao fundo da nave encontra-se uma espécie de órgão, onde se delineiam um certo número de colunas de um modelo menor que o da entrada, mas de igual perfeição de linhas.

Ali, Oliveiros Sinclair, miss Campbell e os seus dois tios quiseram parar por um instante.

Daquele sítio a perspectiva, abrindo-se em pleno céu, era admirável.

Agora, impregnada de luz, deixava ver a disposição do fundo submarino, formado pelas extremidades dos fustes, tendo de uma até quatro faces, encaixados uns nos outros, como os quadrados de um mosaico.

Nas paredes laterais viam-se admiráveis jogos de luz

e sombra.

Apagava-se tudo quando alguma nuvem caía em frente da abertura da gruta como uma cortina de escumilha sobre o proscénio de um teatro.

Pelo contrário, tudo resplandecia, animando-se com as sete cores do prisma, quando uma porção de sol, reverberada pelo cristal do fundo, se erguia em longas chapas luminosas até ao fundo da nave.

Mais adiante, quebrava o mar sobre as primeiras pedras do gigantesco arco. Este quadro negro, como uma moldura de ébano, fazia sobressair os últimos planos.

Ao longe, o mar e o céu apareciam em todo o seu

esplendor, vendo-se, à distância, Iona, que, duas milhas

ao largo, recortava em branco as ruínas do seu mosteiro.

Todos, em êxtase perante essa encantadora decoração,

não sabiam como formular as suas impressões.

— É um palácio encantador — afirmou afinal miss Campbell — e como seria prosaico o espírito que se negasse a acreditar que tal morada foi criada por um Deus para os silfos e as ondinas.

«Para quem vibrariam, ao sopro dos ventos, os sons desta imensa harpa eólia?

«Não seria esta sobrenatural música que Waverley ouvia nos seus sonhos, essa voz de Selma, cujas harmoniosas notas o nosso romancista escreveu para embalar os

seus heróis?

— Tem razão, miss Campbell — declarou Oliveiros —, e, certamente, quando Walter Scott procurava as suas imagens no poético passado das Highlands, pensava no palácio de Fingal.

— Era aqui que eu desejava evocar a sombra de Ossian! — replicou a entusiástica rapariga. — Porque não tornaria a aparecer à minha voz o invisível bardo, depois de um sono de quinze séculos?

«Apraz-me pensar que o desgraçado cego, que, como Homero e como ele poeta, cantava os feitos de armas do seu tempo, mais de uma vez procurou refúgio neste palácio, que conserva ainda o nome de seu pai! Ali, sem dúvida, os ecos do Fingal repetiram muitas vezes as suas inspirações épicas e líricas, no mais puro acento dos idiomas de Gael. Não acredita, Sr. Sinclair, que o velho Ossian talvez se sentasse no sítio em que estamos, e que os sons da sua harpa se misturavam com os roncos acentos da voz de Selma?

— Quem poderá duvidar, miss Campbell — volveu Oliveiros Sinclair —, do que diz com tão profunda convicção?

— Se eu o invocasse? — murmurou miss Campbell.

E com a sua fraca voz lançou algumas vezes o nome do velho bardo através das vibrações do vento.

Mas por grande que fosse o desejo de miss Campbell, posto que o chamasse três vezes, somente o eco lhe respondeu.

A sombra de Ossian não quis aparecer no palácio paterno.

Entretanto, havia desaparecido o Sol, encoberto por densas nuvens, a gruta ia-se enchendo de pesadas névoas e, fora, o mar começava a levantar-se; as suas largas ondulações vinham já quebrar-se ruidosamente nos últimos basaltos do fundo.

Os visitantes tornaram, pois, a seguir o estreito passeio, meio coberto pelo marulho das ondas; deram volta ao ângulo da ilha, violentamente açoitada pelo vento do mar que ali ia bater; depois ficaram momentaneamente abrigados sobre o aterro.

Nas últimas duas horas o tempo havia-se tornado muito mais tempestuoso. A borrasca, ao cair sobre a costa da Escócia, ia engrossando e ameaçava transformar-se em tempestade.

Mas miss Campbell e os seus companheiros, protegidos pelas rochas basálticas, puderam facilmente regressar

a Clam-Shell.

No dia seguinte, com uma nova descida da coluna barométrica, o vento desencadeou-se com grande impetuosidade. Grossas e lívidas nuvens encheram o espaço, conservando-se numa zona mais baixa. Ainda não chovia, mas já se não via o Sol, nem mesmo a curtos intervalos.

Não pareceu miss Campbell tão contrariada com este contratempo como era de supor.

Aquela existência, numa ilha deserta, açoitada pela tempestade, estava em harmonia com a sua natureza ardente.

Como uma heroína de Walter Scott, gostava de vaguear por entre os rochedos de Staffa, absorvida em novas ideias, o mais das vezes só. Todos respeitavam o seu isolamento.

Voltou também muitas vezes à gruta de Fingal, cuja poética estranheza a atraía. Ali, passava horas inteiras, entregue aos seus pensamentos, sem atender à recomendação que lhe faziam de se não aventurar imprudentemente.

No dia seguinte, 9 de Setembro, o traçado das isóbaras marcava as menores pressões sobre a costa da Escócia.

Neste centro do temporal as correntes aéreas deslocavam-se com grande violência.

Era um ciclone. Seria impossível resistir-lhe no planalto da ilha.

Cerca das sete horas da noite, no momento em que o jantar os esperava em Clam-Shell, Oliveiros Sinclair e os irmãos Melvill ficaram extremamente inquietos.

Miss Campbell, que havia saído três horas antes, sem dizer aonde ia, não tinha ainda voltado.

Foram tendo paciência, sempre em crescente ansiedade, até às oito horas. Miss Campbell não aparecia.

Oliveiros Sinclair subiu muitas vezes ao planalto da ilha... mas não viu pessoa alguma.

Desencadeou-se então a tempestade com todo o seu furor, e o mar, erguido em ondas enormes, batia sem cessar todo o lado da pequena ilha exposta ao sudoeste.

— Desgraçada de miss Campbell — gritou de repente Oliveiros Sinclair —, se ainda está na gruta de Fingal, é necessário arrancá-la de lá, ou está perdida!

 

                   POR MISS CAMPBELL

Alguns instantes depois, Oliveiros Sinclair, tendo transposto o aterro com rápido passo, chegou à entrada da gruta, junto das escadas de basalto.

Os irmãos Melvill e Partridge haviam-no seguido de perto.

A senhora Bess ficara em Clam-Shell, esperando com inexprimível angústia, preparando tudo para receber Helena no regresso.

O mar erguia-se já bastante para cobrir o peitoril superior, rebentava por cima do parapeito, e tornava impossível toda a passagem pelo passeio.

A impossibilidade de entrar na gruta era a impossibilidade de sair dela. Se miss Campbell estava ali, ficara prisioneira!

Mas como sabê-lo, como chegar até ela?

— Helena! Helena!

Este nome, solto por entre os constantes rugidos das vagas, poderia ser ouvido?

Era como um trovão de vento e a água que se precipitava na gruta!

Nem a voz nem a vista tinham a força necessária para entrar.

— Talvez miss Campbell não esteja lá? — lembrou o mano Sam, que queria agarrar-se a esta esperança.

— Mas onde estará então?- — -replicou o mano Sib.

— Sim! Onde está? — exclamou Oliveiros Sinclair. — Procurei-a em vão no planalto da ilha, nas penedias da praia, por toda a parte, enfim. Não estaria já junto de nós se pudesse fazê-lo? Está ali... ali!

E todos se recordavam do entusiástico e temerário desejo, tantas vezes manifestado pela imprudente menina, de assistir a alguma tempestade na gruta de Fingal.

Esquecera-se de que o mar, encapelado pelo temporal, a invadira até ao cimo, e faria dela uma prisão, a que seria impossível forçar a porta.

Que se poderia agora tentar para chegar até ela e para a salvar?

Sob o impulso da tempestade, que chicoteava em cheio aquele ângulo da ilha, as ondas erguiam-se às vezes até ao cimo da abóbada. Quebravam-se ali com um barulho ensurdecedor.

O alto das vagas, repelido no choque, desfazia-se em toalhas de escuma, como as cataratas de um Niágara; mas a sua parte inferior, impelida pelas maretas do alto mar, precipitava-se dentro, com a violência de uma torrente de que se tivesse subitamente rompido a barreira. Era pois no fundo mesmo da gruta que o mar ia bater.

Em que sítio poderia miss Campbell encontrar um abrigo que não fosse invadido pelas vagas?

A parte superior da gruta estava directamente exposta aos seus golpes, e no fluxo como no refluxo deviam infalivelmente varrer o aterro ou passeio que seguia pelo lado da caverna.

E, contudo, ninguém queria acreditar que a temerária rapariga ali estivesse! Como poderia ela resistir naquele beco sem saída à invasão do mar furioso.

Não teria sido já lançado fora o seu corpo mutilado, despedaçado, envolvido pelos redemoinhos?

E a corrente da maré que enchia não a teria arrastado pelo aterro e pelos recifes até Clam-Shell?

— Helena! Helena!

Este nome era obstinadamente gritado perante o confuso ruído do vento e das ondas.

Nenhum grito lhe respondia, nem podia responder-lhe.

— Não! Não! Ela não está nesta gruta! — repetiam os irmãos Melvill, no auge do desespero.

— Está ali! — assegurou Oliveiros Sinclair. — E com o dedo apontou para um bocado de tecido que uma onda ao recuar atirara sobre um dos degraus de basalto.

Oliveiros Sinclair precipitou-se sobre o fragmento.

Era o snod, a fita escocesa que miss Campbell prendia no cabelo. Seria lícito duvidar agora?

Mas se lhe havia sido arrancada aquela fita, seria possível que miss Campbell não fosse esmagada pela mesma pancada de encontro às paredes de Fingal's Cave?

— Sabê-lo-ei! — exclamou Oliveiros Sinclair.

E, aproveitando um refluxo que deixava quase livre o caminho, agarrou-se à primeira coluna do corrimão; mas uma grande massa de água arrancou-o dali e atirou-o sobre o patamar.

Se Partridge, com risco da própria vida, não o tivesse agarrado, Oliveiros Sinclair rolaria até ao último degrau, e o mar levá-lo-ia, sem que fosse possível valer-lhe.

Oliveiros Sinclair ergueu-se. A sua resolução de penetrar na gruta não enfraquecera.

— Miss Campbell está ali! — repetiu ele. — Não morreu, porque o seu corpo não foi impelido para fora, com este pedaço de seda! É possível, pois, que encontrasse abrigo em alguma anfractuosidade. Mas em breve perderá as forças! Não poderá resistir até que a maré baixe... É, pois, necessário ir ter com ela!

— Irei eu! — declarou Partridge.

— Não!... eu — volveu Oliveiros Sinclair.

Ia tentar um último, um supremo meio de chegar junto de miss Campbell, e contudo talvez, em cem, uma probabilidade tivesse a favor.

— Esperem-nos aqui — recomendou ele aos irmãos Melvill. — Em cinco minutos estaremos de volta. Venha, Partridge.

Os dois tios ficaram no ângulo exterior da ilha, abrigados pela penedia, num sítio aonde o mar não podia chegar, enquanto Oliveiros Sinclair e Partridge voltavam o mais depressa possível a Clam-Shell.

Eram oito horas e meia da noite.

Cinco minutos depois, o mancebo e o velho servo tornaram a aparecer, arrastando ao comprido do aterro o escaler pequeno da Clorinda que havia sido deixado pelo capitão John Olduck.

Oliveiros Sinclair ia, pois, fazer-se atirar pelo mar à gruta, visto que não lhe era possível o caminho por terra?

Sim! Ia-o tentar. Era a vida que arriscava. Bem o sabia, porém não hesitou.

Trouxeram o escaler para junto da escada, ao abrigo da ressaca, na volta de um dos degraus do basalto.

— Eu acompanho-o — ofereceu-se Partridge.

— Não, Partridge — respondeu Oliveiros Sinclair —, não! É preciso não sobrecarregar inutilmente um barco tão pequeno! Se miss Campbell está ainda viva, bastarei eu só.

— Oliveiros! — gritaram os dois irmãos, sem poder reprimir os soluços. — Oliveiros, salve a nossa filha.

O mancebo apertou-lhes a mão; em seguida, saltando para o escaler, assentou-se no banco do meio, pegou nos dois remos, safou-se habilmente do redemoinho, e esperou um momento o refluxo de uma imensa vaga que o arrastou para defronte de Fingal's Cave.

Ali o mar ergueu o barco, mas Oliveiros Sinclair conservou-o aproado à gruta; se o apanhasse de través tê-lo-ia infalivelmente virado.

Primeiramente, o mar levantou o frágil barquinho quase à altura da abóbada. Julgar-se-ia que aquela casca de noz se ia despedaçar de encontro à enorme massa de rochas; mas, ao retirar-se, a vaga levou-o para o largo com um irresistível movimento de recuo.

Por três vezes o escaler foi assim balançado, em seguida precipitado para a gruta, e depois impelido para trás, sem achar passagem através das águas que lhe tapavam a abertura. Oliveiros Sinclair, senhor de si, aguentou-se com os remos.

Enfim, uma onda mais alta pegou no barco, que oscilou um instante sobre este líquido dorso quase à altura do planalto da ilha; depois cavou-se um desnivelamento profundo até junto da gruta. Oliveiros Sinclair foi arremessado obliquamente, como se descesse as quedas de uma catarata.

As testemunhas desta cena soltaram um grito de terror. Parecia que a embarcação ia infalivelmente fazer-se em pedaços contra os pilares da esquerda do ângulo da abertura.

Mas o intrépido rapaz, com uma remada, endireitou o barco; estava então livre a entrada e, um pouco antes que o mar voltasse em montanha enorme, desapareceu no interior da gruta com a rapidez de uma frecha.

Um instante depois, as toalhas de água desciam como uma avalancha e iam rebentar na aresta superior da ilha.

Ter-se-ia quebrado o escaler de encontro à parede da gruta e deviam-se contar agora duas vítimas em vez de uma?

Nada disto sucedera. Oliveiros Sinclair havia passado rapidamente, sem bater no tecto desigual da abóbada.

Deitando-se de bruços no barco, evitou bater nas pontas de basalto que afloravam.

No espaço de um segundo alcançou a parede oposta, tendo apenas o receio de ser atirado fora pelo redemoinho, sem poder agarrar-se a alguma saliência do fundo.

Felizmente o escaler, num embate amortecido pela ondulação inversa, foi de encontro aos pilares dessa espécie de órgão erguido na parte superior de Fingal's Cave; partiu-se quase de todo, mas Oliveiros Sinclair pôde deitar a mão a um pedaço de basalto, agarrar-se a ele com a tenacidade do homem que se afoga, depois içar-se até ficar ao abrigo do mar.

Passado um momento, o barco, desfeito, envolvido pela onda que saía, era lançado fora, e os irmãos Melvill e Partridge viam aparecer aqueles destroços com a terrível ideia de que o ousado moço certamente perecera.

 

                 TODA UMA TEMPESTADE NUMA GRUTA

Oliveiros Sinclair estava são e salvo, e momentaneamente em segurança.

A escuridão era então assaz profunda para que se pudesse ver no interior.

O dia crepuscular apenas penetrava no intervalo entre duas vagas, quando a entrada ficava um pouco livre da grande massa de água.

Entretanto, Oliveiros Sinclair procurou saber em que sítio miss Campbell pudera encontrar um refúgio... Baldado intento. Chamou.

— Miss Campbell! Miss Campbell!

Como descrever o que nele se passou quando ouviu uma voz responder-lhe:

— Sr. Oliveiros! Sr. Oliveiros! Miss Campbell estava viva.

Mas onde teria ela conseguido colocar-se, fora do alcance das vagas?

Oliveiros Sinclair, arrastando-se sobre o passeio, torneou o fundo de Fingal's Cave.

Na parede da esquerda, uma diminuição de volume do basalto havia produzido uma cavidade, vazada como um nicho. Ali, haviam-se separado os pilares.

Aquele abrigo, bastante largo à entrada, ia-se apertando de modo a só dar lugar a uma pessoa.

A lenda dava a este buraco o nome de «poltrona de Fingal».

Fora neste abrigo que miss Campbell, surpreendida pela invasão do mar, se refugiara.

Algumas horas antes, como a maré vazasse, a entrada na gruta era fácil, e a imprudente fora ali fazer a sua visita quotidiana.

Completamente entregue aos seus sonhos, nos devaneios da sua imaginação, mal poderia supor o perigo que a ameaçava o crescimento da maré; nada vira do que se estava a passar fora.

Quando quis sair, foi imenso o seu terror ao notar que não podia abrir caminho por entre as vagas que tudo invadiam!

Conservou, porém, o sangue-frio; procurou salvar-se, e, depois de duas ou três inúteis tentativas para chegar ao patamar exterior, conseguiu, correndo vinte vezes o perigo de ser arrebatada, colocar-se na poltrona de Fingal.

Foi ali que Oliveiros a encontrou agachada, mas ao abrigo dos golpes do mar.

— Ah! miss Campbell — disse-lhe ele —, que imprudência foi a sua expondo-se assim, no começo de uma tempestade! Julgámo-la perdida!

— E veio salvar-me, Sr. Oliveiros! — respondeu miss Campbell, mais grata à coragem do mancebo que assustada pelos perigos que ainda podia correr!

— Vim para tirá-la de um mau passo, miss Campbell, e hei-de consegui-lo, com a ajuda de Deus! Não tem medo?

— Não tenho medo... não!... Visto que está aqui, já nada temo... e, demais, perante um tal espectáculo nenhum outro sentimento posso ter além da admiração... Olhe!

Miss Campbell havia recuado até ao fundo da pequena cavidade.

Oliveiros Sinclair, em pé defronte dela, procurava resguardá-la quanto podia, quando alguma onda mais furiosamente erguida ameaçava alcançá-la.

Nenhum falava.

Acaso necessitava Oliveiros Sinclair falar para se fazer entender?

De que serviriam palavras para exprimir tudo quanto sentia miss Campbell?

Entretanto, o mancebo via com indescritível angústia, não por ele, mas por miss Campbell, aumentarem as ameaças vindas do exterior!

Ao ouvir o sibilar do vento e o ruído do mar, bem percebia que o furor da tempestade recrudescia de instante a instante! Via também as águas erguerem-se com a maré, que as devia fazer crescer por muitas horas ainda!

Até onde chegaria o mar, que a agitação do temporal fazia subir a uma altura extraordinária?

Ninguém o podia prever; mas era certo que pouco a pouco a gruta se ia enchendo cada vez mais.

Se ainda ali não havia completa escuridão é porque a crista das ondas se impregnava da luz externa; e também porque largas chapas fosforescentes lançavam aqui e ali uma espécie de esbraseamento eléctrico, que se agarrava aos ângulos dos basaltos, iluminava as arestas dos prismas, e deixava após si um vago clarão lívido.

Enquanto duravam estes rápidos relâmpagos, Oliveiros Sinclair voltava-se para miss Campbell e contemplava-a com uma comoção que não era somente provocada pelo perigo.

Miss Campbell sorria à imensa sublimidade daquele espectáculo: uma tempestade em tal caverna!

Subitamente uma onda mais forte ergueu-se até à cavidade da poltrona de Fingal.

Oliveiros Sinclair julgou que ela e ele iam ser desalojados do seu abrigo.

Enlaçou em seus braços a jovem senhora, como disputando ao mar a presa que pretendia arrebatar-lhe.

— Oliveiros! Oliveiros! — suspirou miss Campbell, num acesso de terror que não pôde reprimir.

— Nada receies, Helena! — respondeu-lhe Sinclair. — Hei-de defender-te, Helena, hei-de...

Falava assim, e havia de defendê-la! Mas como? Como poderia livrá-la da violência das vagas, se a sua cólera aumentasse, se as águas cada vez subissem mais, se fosse insustentável a posição no fundo daquele refúgio?

Mas em que outro sítio procurar um abrigo?

Onde encontrar um asilo fora do alcance daquele monstruoso levantamento do mar?

Todas estas eventualidades se lhe apresentaram ao espírito na sua terrível realidade.

Mas, primeiro que tudo, sangue-frio! E era para ficar senhor de si que Oliveiros envidava todos os seus esforços.

Assim era necessário, tanto mais que, se não a força moral, pelo menos a força física havia de vir a faltar à jovem senhora!

Cansada por uma luta demasiado longa, a reacção havia de aparecer. Oliveiros Sinclair ia-a já sentindo enfraquecer pouco a pouco.

Queria-a animar, mas também a ela a esperança começava a fugir.

— Helena... querida Helena! — murmurou ele. — No meu regresso a Oban... soube-o... foste tu... foi graças a ti que escapei ao abismo de Corryvrekan!

— Oliveiros, tu sabias! — volveu miss Campbell, com voz quase extinta.

— Sabia... e pagar-te-ei hoje a minha dívida!... Hei-de salvar-te da gruta de Fingal!

Como é que Oliveiros Sinclair ousava falar de salvação, no próprio momento em que a grande massa de água se ia quebrar junto mesmo da cavidade? A custo podia impedir que a sua companheira fosse arrebatada pelo mar.

Duas ou três vezes esteve ele mesmo prestes a ser arrastado, e só à custa de um esforço sobre-humano pôde resistir, sentindo os braços de miss Campbell estreitamente enlaçados em volta dele, compreendendo que as vagas os levariam a ambos!

Seriam onze horas e meia da noite.

A tempestade devia ter chegado ao máximo da sua intensidade!

Efectivamente, a água que subia precipitava-se em Fingal's Cave com a impetuosidade de uma avalancha. O seu choque no fundo e nas paredes laterais produzia um ruído de ensurdecer, e era tal o seu furor que pedaços de basalto, soltando-se, faziam ao cair aberturas negras na escuma fosforescente.

A este embate, de cuja violência não podemos dar ideia, iriam os pilares cair pedra a pedra? Desabaria a abóbada?

Oliveiros Sinclair tinha tudo a recear.

Sentia-se já tomado por invencível torpor, contra o qual procurava reagir.

É que o ar faltava às vezes, e, se entrava abundantemente com as ondas, estas pareciam aspirá-lo, quando o refluxo as levava para fora.

Nestas condições, miss Campbell, extenuada, perdidas as forças, desmaiou.

— Oliveiros! Oliveiros! — balbuciou, deixando-se cair nos braços dele.

Oliveiros Sinclair tinha-se agachado com a jovem senhora na parte mais profunda da cavidade.

Sentia-a fria, inanimada.

Queria aquecê-la, queria comunicar-lhe todo o calor que ainda lhe restava.

Mas a água já lhe chegava à cintura, e se também ele desmaiasse estavam perdidos ambos.

Todavia, o intrépido moço teve a força de resistir por algumas horas ainda. Sustinha miss Campbell, abrigava-a das pancadas do mar, e lutava dobrando-se em arco agarrado às saliências dos basaltos — e isto no meio da escuridão profunda, por se haver extinto a fosforescência ao ruído desse trovão contínuo feito de pancadas, de sibilos, de mugidos!

Não era já a voz de Selma, ressoando no palácio de Fingal!

Eram esses espantosos latidos dos cães de Kamtchatka, os quais, diz Michelet, em grandes bandos, aos milhares, nas longas noites, uivam contra a vaga que geme e lutam em furor com o oceano do Norte!»

Finalmente começou a vazar a maré.

Oliveiros Sinclair notou que com a descida da água as vagas do mar alto se acalmavam um pouco.

Era tão completa a escuridão, que fora fazia relativamente dia.

Nesta meia sombra, a abertura da gruta, que os saltos do mar já não tapavam, desenhava-se confusamente.

Depois só os salpicos e a humidade das águas chegavam até à poltrona de Fingal.

Agora já não era esse laço estrangulador das vagas que prende e arranca.

A esperança voltou ao coração de Oliveiros Sinclair.

Calculando o tempo pela preia-mar, podia-se assegurar ser mais de meia-noite. Duas horas mais e as vagas ao quebrar-se não invadiriam os passeios laterais da gruta, varrendo-os.

Tornar-se-iam então acessíveis.

Era, porém, necessário verificar isto na escuridão, e foi o que afinal sucedeu.

Havia chegado o momento de deixar a gruta.

Todavia, miss Campbell não voltara ainda a si.

Oliveiros Sinclair tomou-a nos braços completamente inerte; depois, deixando-se escorregar para fora da poltrona de Fingal, começou a seguir pela estreita saliência, cujo corrimão de ferro fora torcido, arrancado, quebrado pelos golpes do mar.

Quando uma onda vinha sobre ele, parava um instante ou recuava um passo.

Finalmente, no momento em que Oliveiros Sinclair ia chegar ao ângulo exterior, um último levantamento da água envolveu-o completamente... Julgou que miss Campbell e ele iam ser esmagados contra a parede ou precipitados naquele abismo que rugia a seus pés.

Por um supremo esforço conseguiu resistir, e, aproveitando a retirada da onda, precipitou-se para fora da gruta.

Num momento alcançou o ponto da penedia, onde os irmãos Melvill, Partridge e a senhora Bess, que se havia juntado a eles, tinham ficado toda a noite.

Estavam ambos salvos.

Chegado ali, findou também o paroxismo de energia moral e física que o sustentara até então: Oliveiros Sinclair caiu sem movimento junto das rochas, depois de haver depositado miss Campbell nos braços da senhora Bess.

Sem a sua dedicação e a sua coragem, Helena não teria saído viva da gruta de Fingal.

 

                     O RAIO VERDE

Alguns minutos depois, com a frescura do ar, no fundo do Clam-Shell, miss Campbell acordou como de um sonho, de que a imagem de Oliveiros Sinclair ocupara todas as fases.

Dos perigos que correra pela sua imprudência, nem sequer se recordava. Não podia ainda falar; mas ao ver Oliveiros Sinclair, estendeu a mão ao seu salvador, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas de reconhecimento.

O mano Sam e o mano Sib, sem poderem pronunciar palavra, cingiram o heróico rapaz num mesmo abraço.

A senhora Bess fazia-lhe cortesia sobre cortesia, e Partridge estava com tentações de lhe dar um beijo.

Afinal, vencendo a fadiga, havendo todos mudado a roupa alagada pela água do mar e do céu, adormeceram, e a noite findou tranquilamente.

Mas a impressão sentida nunca mais se apagaria da memória dos autores e testemunhas daquela cena que tivera por teatro a lendária gruta de Fingal.

No dia seguinte, enquanto miss Campbell descansava na pequena cama que lhe fora reservada no fundo de Clam-Shell, passeavam os manos Melvill com o braço por cima do ombro um do outro, na parte do aterro que estava próximo da gruta.

Não falavam, mas que necessidade tinham eles de palavras para exprimir as mesmas ideias?

Ambos mexiam a cabeça, e ao mesmo tempo, de baixo para cima, quando afirmavam; da direita para a esquerda, quando negavam.

E que podiam eles afirmar, a não ser que Oliveiros Sinclair arriscara a sua vida para salvar a imprudente criança? E que é que eles negavam? Que os seus primeiros projectos fossem agora realizáveis!

Nesta muda conversação, diziam-se também muitas coisas que, segundo as previsões do mano Sam e do mano Sib, em breve haviam de suceder.

A seus olhos, Oliveiros já não era Oliveiros! Era nada menos que Amin, o mais perfeito herói das epopeias gaélicas.

Pela sua parte, Oliveiros Sinclair estava entregue a uma sobreexcitação bem natural.

Por uma delicadeza do coração queria estar só. Sentir-se-ia pouco à vontade diante dos irmãos Melvill, como se o simples facto da sua presença parecesse exigir o preço da sua dedicação.

Assim, tendo deixado a gruta de Clam-Shell, passeava no planalto de Staffa.

Neste momento todos os seus pensamentos iam por si próprios a miss Campbell. Dos perigos que correra, que havia voluntariamente participado, nem sequer se lembrava.

O que lhe vinha à memória, dessa horrível noite, eram as horas passadas junto de Helena, nesse escuro abrigo, quando a cingia nos braços para evitar que fosse arrebatada pelas vagas.

Revia aos clarões fosforescentes essa linda rapariga, pálida mais pela fadiga que pelo medo, erguendo-se perante os furores do mar como o génio das tempestades!

Ouvia-a responder com comovida voz:

«Pois quê, sabia-o?», quando lhe tinha dito «Sei o que fez. quando eu ia morrer no abismo de Corryvrekan!»

Tornava-se a encontrar no fundo daquela pequena cavidade, daquele nicho, próprio para alojar alguma fria estátua de pedra, onde dois seres que tinham a mocidade e o amor haviam sofrido e lutado um junto do outro durante tão longas horas.

Ali, nem já eram Sinclair e miss Campbell. Haviam-se chamado Oliveiros e Helena, como se, no próprio momento em que a morte os ameaçava, apelassem para uma nova vida.

E assim se associavam as mais ardentes ideias no cérebro do mancebo, quando divagava no planalto de Staffa. Qualquer que fosse o seu desejo de voltar para junto de miss Campbell, uma invencível força o retinha, mau grado seu, porque na presença dela falaria talvez, e queria calar-se.

Entretanto, como acontece algumas vezes depois de uma perturbação atmosférica que vem brutalmente, e brutalmente desaparece, o tempo tornara-se admirável, e o céu de uma limpidez perfeita.

As mais das vezes, essas grandes vassouradas dos ventos de sudoeste passam sem deixar vestígio, e dão ao azul do espaço incomparável transparência. O Sol havia já ultrapassado o seu ponto de culminação, sem que o horizonte se velasse com a mais delgada névoa.

Oliveiros Sinclair, com a cabeça fervente, ia assim por entre essa intensa irradiação, reflectida pelo planalto da ilha.

Banhava-se nesses quentes eflúvios, e, aspirando a brisa do mar, retemperava-se nessa vivificante atmosfera.

Subitamente, um pensamento — pensamento completamente olvidado entre os que ocupavam agora o seu espírito — acudiu-lhe à memória quando se viu em face do horizonte do extenso mar.

— O Raio Verde! — gritou ele. — Se alguma vez o céu se prestou à nossa observação, é com certeza esta! Nem uma nuvem, nem uma névoa! E não é provável que apareçam depois da terrível borrasca de ontem, que deve tê-las repelido para longe, ao nascente. E miss Campbell sem sequer pensar que a tarde deste dia lhe vai talvez dar um esplêndido pôr do Sol! É preciso preveni-la... e já!

Oliveiros Sinclair, feliz por ter este motivo tão natural de voltar outra vez para junto de Helena, regressou à gruta de Clam-Shell.

Alguns momentos depois estava na presença de miss Campbell e de seus dois tios, que o olhavam com afecto, enquanto a senhora Bess lhe apertava a mão.

— Miss Campbell — disse ele —, está melhor!... Bem o vejo! Voltaram-lhe as forças?

— Sim, Sr. Oliveiros — respondeu miss Campbell, que estremeceu ao avistar o mancebo.

— Julgo que faria bem — tornou Oliveiros Sinclair —, se viesse ao planalto respirar um pouco esta ligeira brisa, purificada pela tempestade. Está um sol soberbo, há-de aquecê-la.

— O Sr. Sinclair tem razão — opinou o mano Sam. — - Muitíssima razão — concluiu o mano Sib.

— E depois, se é necessário dizer tudo e se não me iludem os meus pressentimentos, creio que dentro em algumas horas há-de ver realizado o mais querido dos seus desejos.

— O mais querido dos meus desejos? — murmurou miss Campbell, como se respondera a si própria.

— Sim... O céu está de uma notável pureza, e é provável que ao pôr do Sol não haja uma só nuvem no horizonte.

— Será possível? — exclamou o mano Sam. — Será possível? — repetiu o mano Sib.

— Inclino-me a acreditar — continuou Oliveiros Sinclair — que, esta mesma tarde, poderá ver o Raio Verde.

— O Raio Verde!... — repetiu miss Campbell. Parecia que procurava na confusão da sua memória o que poderia ser esse raio.

— Ah... tem razão! — disse ela. — Viemos aqui para o ver, ao Raio Verde!

— Vamos! vamos! — gritou o mano Sam, contentíssimo com aquela ocasião de arrancar a jovem senhora ao entorpecimento em que ia caindo. — Vamos ao outro lado da ilha.

— E jantaremos muito melhor à volta — acrescentou alegremente o mano Sib.

Eram então cinco horas da tarde. Sob a direcção de Oliveiros Sinclair, toda a família, sem esquecer a senhora Bess e Partridge, deixou imediatamente a gruta de Clam-Shell, subiu a escada de madeira e chegou à orla do planalto superior.

Não se pode descrever a alegria que manifestaram os dois tios quando viram um céu magnífico, no qual ia descendo lentamente o astro radioso.

Talvez exagerassem um pouco, mas nunca, nunca se tinham mostrado tão entusiasmados com o fenómeno. Parecia que havia sido principalmente por causa deles, e não por miss Campbell, que se fizera tanto movimento, que se passara por tantas provas, desde a casa de campo de Helensburgh até Staffa, seguindo por Iona e Oban. Na realidade, nessa tarde, o pôr do Sol prometia ser tão belo que o mais insensível, o mais positivo, o mais prosaico dos mercadores da cidade ou dos negociantes de Canongate teria admirado o panorama do mar que ia desdobrar-se a seus olhos.

Miss Campbell sentia-se renascer nessa atmosfera impregnada das emanações salinas trazidas do mar por uma ligeira brisa.

Devorava com os olhos as primeiras linhas do Atlântico.

Ao seu rosto, empalidecido pela fadiga, voltavam as róseas cores, tão naturais numa escocesa. Como estava bela assim! Que encanto dimanava de toda ela!

Oliveiros Sinclair caminhava um pouco atrás, contemplando-a em silêncio, e ele, que até então a acompanhava sem embaraço nos seus longos passeios, seguia-a agora inquieto, e, com o coração cheio de angústia, apenas ousava fitá-la.

Quanto aos manos Melvill, estavam positivamente tão radiantes como o Sol, a quem falavam com entusiasmo, convidando-o a realizar o seu ocaso num límpido céu; suplicando-lhe que mandasse o seu último raio como digno fim de tão esplêndido dia.

E, verso a verso, recitavam, ora um ora outro, tudo quanto lhes lembrava dos cantos de Ossian.

 

«Ó tu, que giras por cima das nossas cabeças, redondo como o escudo de nossos pais, dize-nos donde saem os teus raios, divino Sol! Donde vem a tua eterna luz?

«Tu caminhas na tua beleza majestosa! Desaparecem as estrelas no firmamento! A Lua pálida e fria esconde-se nas ondas do ocidente! Só tu te moves, ó Sol!

«Quem poderia seguir-te na tua carreira? A Lua some-se nos céus; só tu és sempre o mesmo! Regozijas-te sem cessar na tua carreira brilhante!

((Quando estala o trovão e o raio voa, sais de entre as nuvens em toda a tua beleza, e ris-te da tempestade!»

 

E todos nesta entusiástica disposição de espírito se encaminharam para a extremidade do planalto de Staffa que olha para o mar largo.

Chegados ali assentaram-se nos últimos rochedos, em frente de um horizonte cujo risco, finamente traçado pela linha do céu e da água, nada parecia dever alterar.

E desta vez não havia a recear um Aristobulo Ursi-clos para vir interpor a vela de uma embarcação ou fazer erguer uma nuvem de aves aquáticas entre o poente e a ilha de Staffa.

Entretanto o vento caía com a noite, e as últimas vagas vinham morrer junto da penedia, no embalo da ressaca.

Mais ao largo, o mar, unido como um espelho, tinha essa aparência oleosa que a menor vaga bastaria para desfazer. Era pois um concurso de circunstâncias excelente para a aparição do fenómeno.

Mas eis que, passada meia hora, Partridge, estendendo a mão para o sul, exclamou:

— Vela!

Uma vela! Passaria ela também em frente do disco solar, no momento em que ele desaparecesse sob as vagas? Realmente seria mais que má sorte.

A embarcação saía do estreito tubo que separa a ilha de Iona da ponta de Mull.

Singrava, com vento em popa, mais pela acção da enchente da maré que impelida pela aragem, cujos últimos sopros apenas lhe esticavam o velame.

— É a Clorinda — afirmou Oliveiros Sinclair — e, como ela faz caminho para aportar ao poente de Staffa, passará por dentro e não perturbará as nossas observações.

Era, com efeito, a Clorinda, que, depois de haver dado volta pelo sul à ilha de Mull, vinha de novo para o seu ancoradouro de Clam-Shell.

Todos os olhares se dirigiram então para o lado do poente.

O Sol descia já com a rapidez que parece animá-lo quando se aproxima do mar.

Na superfície das águas havia uma larga fita de prata, lançada pelo disco, cuja irradiação não se podia ainda sustentar.

Logo, dessa cor de ouro antigo, que tomara ao descer, passaria a ouro cerejo.

Perante os olhos, se os fechavam, reflectiam-se losangos vermelhos e círculos amarelos, que se entrecruzavam com as fugitivas cores do caleidoscópio.

Leves estrias ondulosas riscavam essa espécie de cauda de cometa que a reverberação traçava na superfície das águas.

Eram como flocos de palhetas prateadas, cujo brilho diminuía nas proximidades da praia.

Em todo o perímetro do horizonte nem a mais ligeira aparência de nuvens, névoa ou neblina, por muito ténue que fossem.

Nada perturbava a clareza daquela linha circular, que um compasso não traçaria com mais delicadeza na brancura de um velino.

Todos imóveis, mais comovidos do que seria para supor, olhavam o globo que, movendo-se obliquamente no horizonte, descia ainda, e por um momento ficou como suspenso por sobre o abismo.

Depois, foi-se vendo pouco a pouco a deformação do disco, modificado pela retracção; alargou-se à custa do seu diâmetro vertical e fez lembrar a forma de um vaso etrusco, de flancos arredondados, cujo pé mergulhava na água.

Já se não podia duvidar da aparição do fenómeno.

Nada viria perturbar aquele admirável ocaso do astro radiante!

«Nada interceptaria o último dos seus raios!»

Em breve, o Sol quase desapareceu por detrás da linha do horizonte.

Alguns jactos luminosos, lançados como frechas de ouro, vieram bater nos primeiros rochedos de Staffa.

Para trás, as penedias de Mull e o alto do Ben More avermelharam-se com as cores da chama.

Finalmente, ao nível do mar ficou apenas um delgado segmento do arco superior.

— O Raio Verde! O Raio Verde! — gritaram com uma só voz os manos Melvill, Bess e Partridge, cujos olhares, durante a quarta parte de um segundo, se haviam impregnado dessa incomparável tinta de líquida esmeralda.

Somente Oliveiros e Helena nada haviam visto do fenómeno, que finalmente aparecera, depois de tantas observações infrutuosas!

No momento em que o Sol dardejava o seu último raio através do espaço, cruzavam-se os seus olhares, e ambos tudo esqueciam na mesma contemplação!...

Mas Helena vira o raio negro que lançavam os olhos do mancebo; Oliveiros o raio azul fugido dos olhos da jovem senhora!

O Sol desaparecera completamente: nem Oliveiros nem Helena tinham visto o Raio Verde.

 

                     CONCLUSÃO

No dia seguinte, 12 de Setembro, a Clorinda aparelhava, com bom mar e vento a favor, e, com todas as velas, corria a sudoeste do arquipélago das Hébridas.

Staffa, Iona, o promontório de Mull, desapareceram rapidamente, encobertos pelas altas penedias da ilha grande.

Depois de uma feliz viagem, os passageiros do iate desembarcaram no pequeno porto de Oban; em seguida, pelo caminho de ferro de Oban a Dalmaly, e de Dalmaly a Glásgua, através do mais pitoresco país dos Highlands, regressaram à quinta de Helensburgh.

Passados dezoito dias fazia-se com grande aparato um casamento na igreja de S. Jorge de Glásgua; mas devemos declarar que não era o de Aristobulo Ursiclos com miss Campbell.

Posto que o noivo fosse Oliveiros Sinclair, o mano Sam e o mano Sib não estavam menos satisfeitos do que sua sobrinha.

Claro é, sem necessitar repetir-se, que uma união contraída nestas condições devia ser seguramente feliz.

A quinta de Helensburgh, o palácio de West-Jorge Street em Glásgua, o mundo inteiro, enfim, não bastariam para conter tanta felicidade, que contudo coubera na gruta de Fingal.

Oliveiros Sinclair, embora não visse o fenómeno tão ansiosamente procurado, tinha um singular empenho em deixar uma recordação duradoura dessa última tarde sobre o planalto de Staffa.

Assim, expôs um dia um «pôr do Sol», de uma execução muito especial, no qual foi muito admirada uma espécie de raio verde, de extrema intensidade, como se fosse pintado com tinta feita de esmeralda diluída.

Esse quadro, que excitou a admiração, foi também muito discutido, pretendendo uns que era um facto da natureza perfeitamente traduzido, assegurando outros que era puramente fantástico, e que em a natureza nunca se davam casos assim.

Isto irritou muito os dois tios, que o tinham visto, esse tal raio, e deram razão ao moço pintor.

— E até — disse o mano Sam — vale mais ver o Raio Verde pintado...

— Que ao natural — acrescentou o mano Sib —, pois que observar tantos ocasos do Sol, uns em seguida aos outros, faz mal aos olhos.

E tinham razão os irmãos Melvill.

Dois meses depois, os dois noivos e seus tios passeavam nas margens do Clyde, em frente do parque da casa de campo, quando encontraram, de improviso, o Sr. Aristobulo Ursiclos.

O sábio moço, que seguia com demasiado interesse todos os trabalhos da drenagem do rio, dirigia-se para a estação de Helensburgh, quando avistou os seus antigos companheiros.

Dizer que Aristobulo Ursiclos sofrera com o abandono de miss Campbell seria desconhecê-lo.

Não sentiu o mínimo acanhamento ao encontrar-se em presença de mistress Sinclair.

Cumprimentaram-se mutuamente.

Aristobulo Ursiclos saudou com delicadeza os novos esposos.

Os manos Melvill, vendo-o em tão boa disposição, não puderam deixar de manifestar quanto os tornara felizes este casamento.

— Sou tão feliz — afirmou o mano Sam —, que às vezes, quando estou só, surpreendo-me a sorrir.

— E eu a chorar — declarou o mano Sib.

— Ora, pois, meus senhores, é necessário confessar que é esta a primeira vez que estão em desacordo. Um chora e outro ri...

— É exactamente a mesma coisa. Sr. Ursiclos — fez notar Oliveiros Sinclair.

— A mesma coisa — confirmou a jovem esposa, estendendo a mão a seus dois tios.

— Exactamente o mesmo? — replicou Aristobulo Ursiclos, com esse tom de superioridade que lhe ficava tão bem; mas não... não é assim! Que é o sorriso? Uma expressão voluntária e particular dos músculos do rosto, com a qual nada têm os fenómenos da respiração, enquanto as lágrimas...

— As lágrimas? — perguntou mistress Sinclair.

— São simplesmente um humor que lubrifica o globo do olho, um composto de cloreto de sódio, de fosfato de cálcio e de...

— Em química tem razão — interrompeu Oliveiros Sinclair —, mas tão-somente em química.

— Não percebo a distinção — respondeu com azedume Aristobulo Ursiclos.

E, cumprimentando com uma rigidez de geómetra, retomou com lentos passos o caminho da estação.

— Ora, ali está o Sr. Ursiclos — notou mistress Sinclair — que pretende explicar as coisas do coração como explicou o Raio Verde!

— Mas, de facto, minha querida Helena — volveu Oliveiros Sinclair —, nós não o vimos, esse raio que tanto quisemos ver!

— Vimos melhor do que isso! — disse baixo a jovem senhora. — Vimos a própria felicidade — essa que, segundo a lenda, depende da observação do fenómeno! E visto que a encontrámos, meu querido Oliveiros, que ela nos baste, e deixemos aos que a não conhecem, e querem conhecê-la, a procura do Raio Verde!

 

                                                                                Júlio Verne  

 

                      

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