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O RAPTO / Robin Cook
O RAPTO / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RAPTO

 

Uma vibração estranha acordou Perry Bergman de um sono inquieto, e ele sentiu-se imediatamente invadido por um estranho pressentimento. o ruído desagradável fazia lembrar o som de unhas a arranhar um quadro negro. Perry estremeceu e atirou para trás o cobertor fino. Levantou-se e a vibração continuou. Com os pés descalços no convés de aço, o ruído parecia-lhe agora semelhante ao de uma broca de dentista. Para além disso, conseguia distinguir o zumbido normal dos geradores do navio e o som das hélices de ar condicionado.

 

- Que diabo? - exclamou em voz alta, apesar de não haver ali ninguém que o pudesse ouvir e dar-lhe uma resposta. Tinha chegado ao barco, o Benthic Explorer, de helicóptero, na noite anterior, depois de um longo voo de Los Angeles para Nova Iorque e daí para Ponta Delgada, na ilha açoreana de São Miguel. Entre mudanças de fusos horários e um longo relato dos problemas técnicos sentidos pela sua tripulação, ele sentia-se compreensivelmente exausto. Não lhe agradou ser acordado após apenas quatro horas de sono, especialmente por aquela vibração desagradável.

 

Levantou do descanso o auscultador do telefone do navio e marcou com alguma irritação o número da ponte de comando. Enquanto esperava que a ligação se completasse, pôs-se em bicos de pés e espreitou pela escotilha do seu compartimento VIP. Com cerca de Um metro e meio, Perry não se considerava um homem baixo, mas apenas não muito alto. Lá fora, o sol tinha acabado de surgir no horizonte. A sombra do navio espalhava-se longamente no Atlântico. PerrY olhou para Oeste através da névoa que pairava sobre um mar calmo, cuja superfície se assemelhava a uma vasta extensão de alumínio. A água ondulava sinuosamente, com vagas baixas e espaçadas. A serenidade da cena era enganadora em relação ao que se passava abaixo da superfície. o Benthic Explorer estava a ser mantido numa posição fixa por instruções transmitidas por comPUtador para as hélices e também para os motores da proa e da Popa, flutuando sobre uma zona sísmica e vulcanicamente activa da crista do Atlântico-Médio, uma cadeia montanhosa que se estendia ao longo de doze mil milhas e que dividia o oceano em duas partes. Com a constante expulsão de enormes quantidades de lava, explosões subaquáticas de vapor e frequentes mini-tremores de terra, a cordilheira submersa era a antítese da tranquilidade de Verão observada à superfície.

 

- Ponte - uma voz enfadada soou ao ouvido de Perry.

- Onde está o capitão Jameson? - disparou Perry.

 

- Deve estar no beliche dele - disse a voz num tom despreocupado.

 

- Que diabo vem a ser esta vibração? - perguntou Perry

 

- Não faço ideia, mas não vem dos motores do navio, se é isso que quer saber. Senão teriam dito alguma coisa da sala das máquinas. Deve ser a perfuradora. Quer que eu fale para lá?

 

Perry não respondeu; desligou o telefone com força. Era incrível que quem estava na ponte não tivesse tido a iniciativa de investigar de onde provinha a vibração. Será que não se importava? Perry ficou irritadíssimo por o navio estar a ser dirigido de um modo tão pouco profissional, mas decidiu tratar desse assunto mais tarde. Em vez disso, tentou concentrar-se apenas no trabalho de enfiar-se dentro dos seusjeans e vestir a sua grossa camisola de lã de gola alta. Não precisava que lhe dissessem que a vibração talvez viesse da perfuradora. Isso era evidente. Fora exactamente por existirem dificuldades na operação de perfuração que Perry fora mandado vir de Los Angeles.

 

Perry sabia que estava a arriscar o futuro da Benthic Marine neste projecto: a perfuração de um compartimento de magma a oeste dos Açores. Era um projecto feito à margem de um contrato, o que significava que a Companhia despendia verbas em vez de as receber, e a saída de dinheiro era tremenda. A motivação de Perry estava no facto de ele acreditar que o feito atrairia a atenção do público, provocaria interesse na exploração submarina e traria a Benthic Marine para a vanguarda da investigação oceanográfica. Infelizmente, as coisas não estavam a correr de acordo com os planos.

 

Uma vez vestido, Perry deitou uma olhadela para o espelho por cima do lavatório, no cubículo que era a sua casa de banho. Há alguns anos atrás não teria perdido tempo com isso. Mas as coisas tinham mudado. Agora que estava na casa dos quarenta, descobrira que o ar descuidado que costumava resultar para ele, fazia-o agora parecer mais velho ou, na melhor das hipóteses, cansado. o seu cabelo começava a escassear e precisava de óculos para ler, mas ainda mantinha um sorriso atraente. Perry orgulhava-se dos seus dentes brancos e direitos, especialmente porque faziam um belo contraste com o bronzeado que tanto se esforçava por manter. Satisfeito com o seu reflexo no espelho, saiu rapidamente do seu compartimento e Correu pelo corredor. Ao passar pelas portas dos aposentos do capitão e do primeiro-oficial, sentiu-se tentado a bater para manifestar a sua irritação. Perry sabia que as superfícies metálicas ecoariam como tambores, fazendo saltar os ocupantes dos seus sonos tranquilos. Como fundador, presidente e sócio maioritário da Benthic Marine, esperava que as pessoas se empenhassem mais enquanto ele estava a bordo. Seria possível que só ele estivesse suficientemente preocupado para se decidir a investigar esta vibração?

 

Subindo para o convés, Perry tentou localizar a origem do estranho zumbido, que agora se confundia com o som da perfuradora a trabalhar. o Benthic Explorer era uma embarcação com cento e quarenta metros e uma torre de perfuração da altura de vinte andares, a meia nau, que rodeava um poço central. Para além da estrutura de perfuração, o navio possuía um complexo de mergulho, um submersível para grandes profundidades e uma série de suportes de câmaras móveis operados por controlo remoto, cada um contendo um impressionante conjunto de câmaras de vídeo. Juntando a este equipamento um laboratório completo, o Benthic Explorer permitia à sua companhia, a Benthic Marine, realizar uma enorme variedade de estudos e operações oceanográficas.

 

Perry viu a porta da estrutura de perfuração a abrir. Um homem enorme apareceu. Bocejou e espreguiçou-se antes de passar as alças das suas jardineiras por cima dos ombros e de enfiar o seu capacete amarelo, que tinha as palavras SUPERVISOR DE TURNO escritas em letras de imprensa por cima do visor. Ainda entorpecido pelo sono, dirigiu-se para a mesa rotativa. Obviamente não estava com pressa nenhuma, apesar da vibração que se espalhava pelo navio.

 

Apressando o passo, Perry alcançou o homem ao mesmo tempo que outros dois ajudantes se juntavam a ele.

 

- Há vinte minutos que está a fazer isto, chefe - gritou um deles sobrepondo-se ao barulho vindo da perfuradora. Nenhum dos homens prestou atenção a Perry.

 

O supervisor resmungou enquanto calçava um grosso par de luvas de trabalho e caminhou despreocupadamente por cima da estreita grade de metal que cobria o poço central. o seu sangue-frio impressionou Perry. A passadeira parecia frágil e havia apenas um Corrimão estreito e baixo a separá-lo de uma queda de quinze metros para a superfície do oceano lá em baixo. Chegando à mesa rotativa, o Supervisor inclinou-se e colocou ambas as mãos enluvadas sobre o dispositivo de rotação. Ele não tentou agarrá-lo com força mas deixou-o antes rodar nas palmas das suas mãos. Inclinou a cabeça para o lado enquanto tentava interpretar o tremor que chegava pelo poço. Demorou apenas um minuto.

 

- Parem a perfuradora! - gritou ele.

 

Um dos ajudantes voltou para o painel de controlo exterior. Uns momentos depois, a mesa rotativa parou com um rangido e a vibração deixou de se fazer sentir. o supervisor voltou para trás e saltou para o chão.

 

- Por amor de Deus! A broca partiu-se outra vez -, disse ele com uma voz irritada. - Isto está mas é a tornar-se uma grande anedota.

 

- A anedota é só termos perfurado sessenta e nove centímetros nos últimos quatro ou cinco dias - disse o outro ajudante.

 

- Cala-te! - disse o supervisor. - Vai mas é puxar a grua para a entrada do poço!

 

o segundo ajudante juntou-se ao primeiro. Logo a seguir ouviu-se de novo forte som de máquinas a trabalhar enquanto a grua era preparada para cumprir a ordem do chefe. o navio estremeceu.

 

- Como é que pode ter a certeza de que a broca se partiu? gritou Perry, sobrepondo-se ao novo ruído.

 

O supervisor olhou-o de alto a baixo.

 

- Experiência - gritou ele, virando-se e encaminhando-se para a popa do navio.

 

Perry teve que correr para o alcançar. Cada um dos passos do enorme homem era o dobro dos seus. Perry tentou fazer-lhe outra pergunta, mas o supervisor ou não o ouviu ou ignorou-o. Chegaram à escada e o supervisor começou a subir, três degraus de cada vez. Dois andares acima entrou num corredor e parou em frente à porta de um compartimento. o nome escrito na porta era MARK DAVIDSON, COMANDANTE DE OPERAÇõES. o homem bateu com força. Ao princípio apenas um ataque de tosse lhe respondeu, mas depois uma voz disse-lhe para entrar.

 

Perry enfiou-se no pequeno compartimento atrás do supervisor.

- Más notícias, chefe - disse este último - Acho que a broca está de novo partida.

 

- Que raio de horas são estas? - perguntou Mark, passando os dedos pelo cabelo desalinhado. Estava sentado ao lado do seu beliche com a roupa interior vestida. Os seus traços faciais tinham um aspecto inchado e a sua voz estava rouca de sono. Sem esperar pela resposta, agarrou num maço de tabaco. o ar do quarto cheirava a fumo entranhado.

 

- São mais ou menos seis da manhã - disse o supervisor.

 

- Jesus. - disse Mark. Os seus olhos encontraram então Perry e ele manifestou o seu espanto, pestanejando.

 

- Perry? o que é que andas a fazer já levantado?

 

- Era impossível dormir com aquela vibração - respondeu Perry.

 

- Qual vibração? - perguntou Mark. Olhou de novo para o supervisor que estava a fitar Perry.

 

- Você é o Perry Bergman? - perguntou o supervisor.

 

- Até há dois minutos atrás - disse Perry. Perceber que o supervisor estava pouco à vontade, deu-lhe alguma satisfação.

 

- Desculpe - disse o homem.

 

- Esqueça - disse Perry, magnânimo.

- A perfuradora estava a vibrar?

 

O supervisor fez um sinal de assentimento.

 

- Exactamente como das últimas quatro vezes, talvez um pouco pior.

 

- Já só temos mais uma broca de carboneto de volfrâmio cravada em diamante - lamentou-se Mark.

 

- Nem precisa de me dizer - disse o supervisor.

- Qual é a profundidade? - perguntou Mark.

 

- Não muito diferente da de ontem - disse o supervisor.

 

- A parte do tubo que está de fora tem quatrocentos e treze metros. Uma vez que o fundo está apenas a trezentos e dez metros e que não há sedimento, entrámos na rocha mais ou menos cento e quatro metros.

 

- Era isso que eu te estava a explicar ontem à noite - disse Mark a Perry. - Estava tudo a correr bem até há quatro dias atrás. A partir dessa altura não avançámos nada, talvez uns sessenta ou noventa centímetros, e já demos cabo de quatro brocas perfuradoras.

 

- Então achas que estamos a bater numa camada especialmente dura? - disse Perry, por pensar que tinha que dizer alguma coisa.

 

Mark riu, sarcasticamente.

 

- Dura não é o termo. Estamos a usar brocas cravadas de diamante, das mais aguçadas que existem! o pior é que ainda faltam trinta e tal metros do mesmo material, seja lá o que for, até chegarmos ao compartimento de magma, pelo menos é isso que mostra o radar. Com este ritmo daqui a dez anos ainda cá estaremos.

 

- O laboratório analisou a rocha que veio com a última broca que se Partiu? - perguntou o supervisor.

 

SiM - disse Mark. - É um tipo de rocha que nunca tínhamos ”isto antes. Pelo menos foi isso que disse o Tad Messenger. É comPosta Por um tipo de olivina cristalina que lhe parece ter um centro micrOscóPio de diamante. Seria bom que conseguíssemos arranjar uma amostra maior. Um dos principais problemas de fazer perfurações no mar alto é não recebermos os fluidos que circulam com a perfuração. É como estar a trabalhar no escuro.

 

- Será que se conseguia usar um desbastador lá em baixo? inquiriu Perry.

 

- Não serviria de grande coisa, se não conseguimos abrir caminho nem com uma broca cravada de diamante.

 

- Podíamos tentar puxar com a broca. Se conseguíssemos uma verdadeira amostra do que estamos a tentar perfurar, talvez pudéssemos elaborar um bom plano de ataque. Estão demasiadas coisas em jogo para desistirmos assim tão facilmente.

 

Mark olhou para o supervisor, que encolheu os ombros. Depois olhou novamente para Perry.

 

- Tu é que mandas.

 

- Pelo menos por agora - disse Perry. Não estava a ser irónico. De facto não sabia por quanto tempo seria ele a mandar se o projecto não desse em nada.

 

- Está bem - disse Mark, pousando o cigarro na borda de um cinzeiro a abarrotar de beatas. - Puxem a broca para a entrada do poço.

- Os rapazes já estão a tratar disso - disse o supervisor.

 

- Tragam a broca de diamante que resta - disse Mark pegando no telefone. - Vou pedir ao Larry Nelson que tenha o sistema de mergulho pronto e o submersível na água. Vamos substituir a broca e ver se conseguimos colher uma melhor amostra do material que estamos a tentar penetrar.

 

- Sim, senhor - respondeu o supervisor virando-se e saindo enquanto Mark levava o auscultador ao ouvido para falar com o comandante de mergulho.

 

Perry preparava-se para ir também embora quando Mark fez um sinal com a mão pedindo-lhe para ficar. Depois de acabar de falar com Larry Nelson, Mark olhou para Perry.

 

- Há uma coisa que eu não mencionei ontem quando falámos

- disse ele. - Mas acho que tens de saber.

 

Perry engoliu em seco. A sua boca estava áspera. Não gostou do tom de voz de Mark. Soava-lhe a más notícias.

 

- Pode não ser nada de importante - continuou Mark - mas quando usámos o radar de penetração no solo para estudarmos esta camada que estamos a tentar perfurar, como eu já tinha dito antes, encontrámos por acaso algo de inesperado. Tenho os dados aqui na secretária. Queres ver?

 

- Diz só o que é - disse Perry. - Posso ver os dados mais tarde.

- O radar sugeriu que o conteúdo do compartimento de magma pode não ser o que pensávamos após os estudos sísmicos originais. Pode não ser líquido.

 

- Estás a brincar! - Esta nova informação veio aumentar o desconforto de Perry. Fora por acaso que no Verão anterior o Benthic Explorer descobrira a elevação submersa que estavam agora a perfurar. o espanto da descoberta fora que sendo uma parte da crista do Atlântico-Médio, a área tinha sido estudada até ao pormenor pelo Geosat, o satélite de medição da gravidade da Marinha dos E.U.A., usado para criar mapas do contorno do fundo do oceano. No entanto, esta elevação submersa em particular escapara ao radar do Geosat.

 

Embora a tripulação do Benthic Explorer estivesse desejosa de regressar a casa, fizeram uma paragem durante o tempo suficiente para passarem várias vezes por cima da misteriosa elevação. Com o sofisticado sonar do navio fizeram um estudo superficial da estrutura central da montanha submarina. Para surpresa geral, os resultados haviam sido tão inesperados como a própria existência da montanha. A elevação parecia ser um vulcão particularmente fino e inactivo cujo centro líquido estava uns meros cento e vinte e quatro metros abaixo do solo do fundo do oceano. Ainda mais surpreendente era o facto da substância dentro do compartimento de magma ter características de propagação de som idênticas às da descontinuidade de Mohorovicic, ou de Molio, a misteriosa fronteira entre a crosta e o manto terrestre. Uma vez que nunca se conseguiu tirar magma de Molio, apesar de tanto os Americanos como os Russos terem tentado durante a Guerra Fria, Perry decidiu voltar e perfurar a montanha com esperança da Benthic Marine vir a ser a primeira organização a obter a matéria fundida. o raciocínio dele era que a análise da matéria poderia trazer luz em relação à estrutura e até, talvez, à origem da terra. Mas agora o seu comandante de operações do Benthic Explorer estava a dizer-lhe que os dados sísmicos iniciais podiam estar errados!

 

- O compartimento de magma pode estar vazio, - disse Mark.

- Vazio? - explodiu Perry.

 

- Bem, vazio não - disse Mark corrigindo-se a si próprio. - Cheio de um qualquer tipo de gás comprimido, ou talvez vapor. Eu sei que extrapolar as informações quando se trata desta profundidade é estar a ultrapassar os limites da tecnologia de radares de penetração no solo. De facto, muita gente diria que os resultados de que falo são apenas artefactos, uma espécie de leitura do lado gráfico, por assim dizer. Mas o facto dos dados do radar não estarem de acordo com Os sísmicos não deixa de me preocupar. Quer dizer, não gostaria nada de fazer este esforço todo para no final conseguir apenas uma quantidade de vapor superaquecido. Ninguém irá ficar satisfeito com isso, e muito menos os investidores.

 

Perry trincou o interior da sua bochecha enquanto ponderava as preocupações de Mark. Começou a desejar nunca ter ouvido falar na montanha Olympus, que era o nome dado pela tripulação à montanha submersa de cume direito na qual eles estavam a tentar fazer um furo.

 

Já falaste nisto à Dra. Newell? - quis saber Perry. A Dra Zanne Newell era a oceanógrafa principal do Benthic Explorer. - Ela já viu estes dados do radar?

 

- Ninguém os viu - respondeu Mark. - Foi por acaso que eu ontem reparei na sombra que apareceu no monitor do meu computador enquanto me estava a preparar para a tua chegada. Pensei em mencioná-la na reunião de ontem à noite, mas decidi esperar e falar contigo em particular. Não sei se reparaste que o moral de certos membros da tripulação anda um bocado em baixo. Muita gente começa a pensar que perfurar este guyot é um pouco como lutar contra moinhos de vento. As pessoas estão a começar a achar que isto não leva a lado nenhum e já falam em regressar às suas casas e às suas famílias antes do Verão acabar.

 

Perry sentiu as pernas a fraquejar. Puxou a cadeira da secretária de Mark e sentou-se pesadamente. Esfregou os olhos. Sentia-se cansado, com fome e desmotivado. Apetecia-lhe bater em si próprio por ter apostado tanto no futuro da sua companhia baseando-se em dados tão pouco fiáveis, mas a descoberta parecera-lhe um golpe de sorte. Ele tinha agido num impulso.

 

- Olha, eu não quero ser o portador de más notícias - disse Mark. - Vamos fazer o que sugeriste. Vamos tentar ter uma ideia melhor acerca da pedra que estamos a perfurar. Não nos vamos sentir vencidos.

 

- É um bocado difícil não nos sentirmos assim - disse Perry, - tendo em conta o quanto está a custar à Benthic Marine manter aqui o navio. Talvez devêssemos tentar reduzir as despesas.

 

- Por que é que não vais comer qualquer coisa? - sugeriu Mark.

- Não faz sentido tomar decisões precipitadas com o estômago vazio. Acho mesmo que vou contigo, se não te importares de esperar enquanto tomo duche. Que diabo! Mais cedo do que pensas iremos ter mais informações sobre esta coisa na qual estamos a bater. Talvez então se torne mais claro o que devemos fazer.

 

- Quanto tempo é que demora a trocar a broca? - perguntou Perry.

 

- O submersível estará na água dentro de uma hora - respondeu Mark. - Eles vão levar a broca e as ferramentas para a entrada do poço. Os mergulhadores vão demorar mais tempo a chegar porque têm que ser submetidos à compressão antes de os baixarmos. Isso demora para aí umas duas horas, ou mais se eles começarem a sentir dores devido à compressão. Trocar a broca não é difícil. A operação completa é capaz de demorar umas três ou quatro horas, talvez UM pouco menos.

 

Perry levantou-se com um esforço.

 

- Dá-me uma apitadela para o meu compartimento quando estiveres pronto para comer - disse ele, aproximando-se da porta.

- Ei, espera aí! - disse Mark com um súbito entusiasmo. - Tenho uma ideia que talvez te agrade. Por que é que tu não desces com o submersível? Dizem que aquilo lá em baixo no guyot é lindo, pelo menos é o que pensa a Suzanne. Até o piloto do submersível, o Donald Fuller, ex-oficial da marinha, que normalmente é um tipo de poucas palavras e que vai directo aos assuntos, diz que a paisagem é sublime.

 

- O que é que pode haver assim tão especial numa montanha de cume direito submersa? - perguntou Perry

 

- Eu nunca desci até lá, - admitiu Mark. - Mas tem algo a ver com a geologia da área. Por fazer parte da Crista do Atlântico-Médio e isso tudo. Mas pergunta à Newell ou ao Fuller! Digo-te que eles vão ficar radiantes quando lhes pedirmos para descerem até lá novamente. Com as luzes de halogéneo do submersível e a claridade da água do fundo do mar, eles disseram que há visibilidade entre sessenta e noventa metros.

 

Perry acenou com a cabeça. Mergulhar não era má ideia e iria por certo permitir-lhe abstrair-se da presente situação e sentir que estava a fazer alguma coisa de útil. Para além disso, ele só tinha estado uma única vez no submersível, na ilha Santa Catalina, quando a Benthic Marine tomara posse do submarino, e tinha sido uma experiência memorável. Ao menos teria a oportunidade de ver essa montanha que lhe estava a causar tantas preocupações.

 

- A quem é que eu devo dizer que farei parte da tripulação? inquiriu Perry.

 

- Eu trato disso - disse Mark, levantando-se e despindo a sua T-shirt. - Eu informarei o Larry Nelson.

 

 

Richard Adams tirou um par de ceroulas largas do armário e fechou a porta com um pontapé. Depois de ter a roupa interior vestida, enfiou o seu gorro preto de vigia. Depois de estar pronto, saiu do seu compartimento e bateu às portas de Louis Mazzola e de Michael Donaghue. Ambos responderam com um chorrilho de interjeições. o praguejar deixara de ter um sentido ofensivo, uma vez que constituía uma grande percentagem do vocabulário destes membros da tripulação. Richard, Louis e Michael, mergulhadores profissionais, pertenciam àquele tipo de homens que bebiam bastante, estavam habituados a uma vida dura e que regularmente estavam prontos a colocar a sua vida em risco ao ter que soldar debaixo de água, se tal fosse necessário, fazer explodir coisas, como recifes, por exemplo, ou trocar brocas durante operações submarinas de perfuração. Eram eles que faziam o trabalho pesado debaixo de água, e orgulhavam-se disso.

 

Tinham treinado os três juntos na Marinha dos E.U.A., cedo se tornando amigos e óptimos elementos. Todos tinham desejado chegar às Forças Especiais da Marinha, mas o destino não o quis. o gosto que tinham por cerveja e por sessões de pancadaria excedia o dos outros companheiros. o facto dos três terem crescido com pais alcoólicos, brutais, violentos, fanáticos e operários que batiam nas esposas era uma explicação para o comportamento deles, mas não uma desculpa. Longe de se sentirem envergonhados pelos exemplos patriarcais, todos eles encaravam as suas infâncias duras como uma progressão natural para se tornarem verdadeiros homens. Nenhum deles perdera tempo a reflectir sobre o velho provérbio: tal pai, tal filho.

 

A masculinidade era uma virtude cardeal para cada um deles. Eram impiedosos a punir alguém que lhes parecesse ser menos masculino do que eles e que tivesse a lata de entrar no bar onde eles estivessem a beber. Advogados «chicanistas» e pessoal do exército de traseiro generoso, eram os seus alvos mais frequentes. Também condenavam alguém que eles achassem ser um idiota, anormal ou um maricas. A homossexualidade era o que mais os perturbava, e para eles a política militar do «não perguntes e não contes a ninguém» era ridícula e uma afronta pessoal.

 

Apesar da Marinha tender a ser condescendente com os mergulhadores e tolerar comportamentos que não toleraria a outro pessoal, Richard Adams e os seus companheiros tinham esticado a corda demasiado. Numa quente tarde de Agosto, eles tinham-se refugiado no seu bar favorito em Point Loma, San Diego. Tinha sido um dia exaustivo, com mergulhos difíceis. Depois de numerosas rodadas de cerveja e de um número igual de discussões sobre a actual época de basebol, eles ficaram desagradavelmente surpreendidos e irritados ao ver um par de tipos do Exército entrar alegremente pelo bar dentro. De acordo com os depoimentos dos mergulhadores no tribunal-militar, estes homens estariam «na marmelada» num dos compartimentos ao fundo do bar.

 

O facto dos soldados serem oficiais só fez com que os mergulhadores se sentissem ainda mais insultados. Nunca perguntaram a eles próprios o que é que estariam dois oficiais do Exército a fazer em San Diego, uma cidade conhecida por alojar a Marinha. Richard, que sempre fora o líder do grupo, foi o primeiro a aproximar-se do compartimento. Perguntou - sarcasticamente - se podia juntar-se à orgia. Os homens do Exército, interpretando mal as palavras de Richard - cujo sentido era para eles se porem a andar dali - riram-se, negando estarem em qualquer tipo de orgia, e ofereceram-se para pagar a Richard e aos seus amigos uma rodada de bebidas para celebrar o resultado foi uma cena de pancadaria unilateral, que colocou os homens do exército no Hospital Naval de Balboa. Também resultou na prisão de Richard e dos seus companheiros e finalmente na sua expulsão da Marinha. Os homens em questão eram afinal elementos do A.J.A., a Associação de Juizes e Advogados do Exército.

 

- Despachem-se, seus idiotas! - gritou Richard ao ver que os outros nunca mais apareciam. Deu uma olhadela ao seu relógio de mergulho. Ele sabia que Nelson ficaria aborrecido. As suas ordens ao telefone tinham sido para eles irem para o comando central de mergulho o mais depressa possível.

 

o Primeiro a aparecer foi Louis Mazzola. Ele era uns bons centímetros mais baixo que Richard, que tinha um metro e oitenta e seis. Richard achava que Louis era um homem do tipo bola de bowling. Ele tinha traços grosseiros, uma sombra poderosa, e um cabelo escuro e curto que parecia colado à sua cabeça redonda, Aparentava não ter pescoço; os seus ombros, formando um trapézio, destacavam-se da sua cabeça parecendo não haver nada entre os dois.

 

- Qual é a pressa? - lamentou-se Louis.

 

- Vamos mergulhar! - disse Richard.

 

- Grande novidade! - resmungou Louis.

 

A porta de Michael abriu-se. Ele era um meio termo entre a silhueta ossuda de Richard e o cabedal de Louis. Tal como os seus amigos ele era musculado e estava, obviamente, em boa forma. Estava igualmente com um ar desmazelado vestindo umas idênticas ceroulas largas. Mas, ao contrário dos outros, tinha na cabeça um boné de basebol dos Red Sox, com a pala posta de lado. Michael vinha de Chelsea, Massachusetts, e era um fanático dos Sox e dos Bruins.

 

Michael começou a queixar-se pelo facto de ter sido acordado, mas Richard ignorou-o e dirigiu-se para o convés principal. Louis imitou-o. Michael encolheu os ombros e depois seguiu-os. Enquanto desciam pela escada principal, Louis gritou para Richard que seguia à sua frente:

 

- Ei, Adams, trouxeste as cartas?

 

- Claro que trouxe as cartas - respondeu Richard por cima do ombro. - E tu, trouxeste o livro de cheques?

 

- Vai-te lixar - disse Louis. - Há quatro mergulhos que tu não me ganhas.

 

- Faz parte do meu plano, pá - retorquiu Richard. - Tenho estado a preparar-te uma rasteira.

 

- Que se lixem as cartas - disse Michael. - Trouxeste as tuas revistas pornográficas, Mazzola?

 

- Achas que eu mergulharia sem elas? - perguntou Louis. Bolas, preferia esquecer-me das barbatanas.

 

- Espero que tenhas verificado, e que tenhas trazido as revistas com as miúdas e não as dos rapazes - meteu-se Michael.

 

Louis parou abruptamente. Michael chocou com ele.

- o que é que queres dizer com isso? - rosnou Louis.

 

- Só queria ter a certeza de que trouxeste as revistas certas disse Michael com um sorriso amarelo. - Pode ser que eu te as peça emprestadas, e não me quero ver a olhar para uns mariconÇos-

 

A mão de Louis disparou e agarrou a parte de cima das ceroulas de Michael. Este respondeu, agarrando o braço de Louis com a mão esquerda e preparando um murro com a direita. Antes de ele ir mais longe, Richard interveio.

 

- Vá lá, seus anormais! - gritou Richard colocando-se no meio dos seus dois amigos. Com um gesto ele puxou o braço de Louis para o lado. Ouviu-se o ruído de algo a rasgar, e a mão de Louis trouxe um pedaço rasgado da camisola interior de Michael preso nos seus dedos. Como um touro ao ver a cor vermelha, Louis tentou passar empurrando Richard. Quando viu que não resultava, tentou Michael por cima do ombro de Richard. Michael riu alto e desviou-se, agachando-se.

 

- Mazzola, meu grande burro! - gritou Richard. - Ele está a Ver se te pica. Acalma-te por amor de Deus!

 

- Filho da mãe! - disse Louis entredentes. Atirou o pedaço de tecido rasgado da camisola interior de Michael ao seu agressor. Michael riu-se novamente.

 

- Vamos lá! - disse Richard enfadado e continuou a percorrer o corredor. Michael abaixou-se e apanhou o pedaço de tecido. Quando fingiu estar a colocá-lo de novo no peito, Louis não pôde deixar de rir Depois ambos começaram a correr para apanhar Richard.

 

Quando os mergulhadores subiram ao convés viram que o guindaste estava a içar o tubo.

 

- Devem ter partido a broca outra vez - disse Michael. Tanto Richard como Louis acenaram concordando. - Ao menos já sabemos o que é que vamos fazer.

 

_. Entraram no compartimento de mergulho e atiraram-se para címa de três cadeiras desdobráveis que estavam perto da porta. Era aqui que Larry Nelson, o homem que dirigia todas as operações de mergulho, tinha a sua secretária. Por trás dele, do lado direito

 

do compartimento e estendendo-se até ao fundo, estava a consola de mergulho. Aí estavam todos os mostradores, indicadores e botões para fazer funcionar o sistema de mergulho. Do lado esquerdo do compartimento estavam os botões e monitores para os Suportes de câmara. Ainda do lado esquerdo havia uma janela que dava para o poço central do navio. Era por este poço central que o disPositivo de mergulho era baixado.

 

o sistema de mergulho do Benthic Explorer era um sistema de saturação o que significava que os mergulhadores deveriam absorver a máxima quantidade de gás inerte durante um determinado mergulho. Isso equivalia a dizer que o tempo de descompressão requerido para se libertarem do gás inerte seria o mesmo independentemente do tempo que estivessem submetidos à pressão, o sistema era composto por três compartimentos cilíndricos de descomPressão (CCD), cada um com uma largura de três metros e meio e com seis metros de comprimento. Os CCI) estavam ligados uns aos outrOs, como enormes salsichas, com postigos de dupla pressão a separá-los. Dentro de cada um estavam quatro beliches, várias mesas desdobráveis uma sanita, um lavatório e um duche.

 

Cada CCI) tinha`ainda uma entrada de lado e uma escotilha de pressão no cimo, onde o dispositivo de mergulho, ou cápsula de transPOrte pessoal (CTP) podiam acoplar. A compressão e descompressão dos mergulhadores era feita no CCI). Quando eles atingiam a pressão equivalente à profundidade onde iam trabalhar, subiam para a CTP, que era nessa altura separada e baixada para a água. Quando a CTP chegava à profundidade apropriada, os mergulhadores abriam a escotilha, por onde tinham entrado no dispositivo, e nadavam até ao ponto de trabalho designado. Enquanto permaneciam dentro de água, os mergulhadores estavam presos por um cordão umbilical contendo mangueiras para o ar que respiravam, para a água quente que aquecia os seus fatos de material à prova de água, para os cabos dos sinais vitais e para cabos de comunicação. Uma vez que os mergulhadores do Benthic Explorer usavam máscaras que lhes cobriam toda a face, a comunicação era possível, apesar de difícil, devido à distorção da voz provocada pela mistura de hélio e oxigénio que eles respiravam. Os cabos dos sinais vitais continham a informação sobre o ritmo cardíaco, respiratório e a pressão de oxigénio por cada um dos mergulhadores. Cada um destes níveis era continuamente monitorizado em tempo real.

 

Larry levantou os olhos da sua secretária e fitou a sua segunda equipa de mergulho com desdém. Era incrível como eles apareciam sempre com um aspecto tão desmazelado, descarado e pouco profissional. Reparou no vistoso boné de basebol de Michael e na sua camisola rasgada, mas não disse nada. Tal como a Marinha, ele tolerava comportamentos nos mergulhadores que não aceitaria a outros elementos da sua equipa. Três outros mergulhadores que também eram provocadores e desordeiros estavam ainda num dos CCI) a fazer a descompressão do último mergulho. Quando se mergulha a uma profundidade de quase trezentos e dez metros, o tempo de descompressão é medido em dias e não em horas.

 

- Lamento tê-los acordado do vosso sono de beleza, seus palhaços - disse Larry. - Demoraram uma eternidade a chegar aqui.

 

- Tive que limpar os meus dentes com fio dental - disse Richard.

- E eu tive que arranjar as unhas - disse Louis abanando a mão de um modo ostensivamente feminino.

 

Michael revirou os olhos, simulando enfado.

 

- Ei, não comeces! - grunhiu Louis olhando para Michael. PÔS um dos seus dedos carnudos na cara do amigo. Michael afastou-() com um gesto brusco.

 

- Muito bem, oiçam lá, seus animais! - berrou Larry. - Tentem controlar-se. Vão fazer um mergulho de trezentos e três metros para inspeccionar e trocar a broca.

 

- oh, isso é novo, ei, chefe? - disse Richard num tom alto e agudo. - É a quinta vez que este mergulho é feito, e a terceira vez para nós. Vamos mas é começar.

 

- Calem-se e ouçam - ordenou Larry. - Há uma novidade. Vocês vão carregar um desbastador até à broca de diamante para nós vermos se conseguimos tirar uma amostra decente do raio da coisa que estamos a tentar perfurar.

 

- Soa-me bem - disse Richard.

 

- Vamos apressar o tempo de descompressão - disse Larry. Está um manda-chuva a bordo, cheio de pressa para ver os resultados, Vamos ver se os conseguimos colocar em profundidade dentro de um par de horas. Agora, quero que me digam imediatamente se sentirein alguma dor. Não quero ninguém a armar-se em mergulhador machão. Perceberam?

 

os três mergulhadores acenaram, concordando.

 

- Levaremos comida lá para dentro, assim que vier da cozinha continuou Larry. - Mas agora quero que vão para os vossos beliches, para a compressão, e isso quer dizer que não vão andar de um lado para o outro a arranjar brigas.

 

- Vamos jogar às cartas - disse Louis.

 

- Se jogarem às cartas façam-no dos vossos beliches - disse Larry. - E repito: nada de brigas. Se começarem a lutar, acabaram-se as cartas. Faço-me entender?

 

Larry fitou cada um dos homens de cada vez, e estes desviaram o olhar. Ninguém contestou o que ele dissera.

 

- Vou tomar este raro silêncio como significando o vosso acordo - disse Larry. - Muito bem, Adams, tu vais ser o mergulhador vermelho. Donaghue, tu serás o verde, Mazzola, tu vais na cápsula.

 

Richard e Míchael manifestaram o seu contentamento batendo com a palma da mão de um, na do outro e dizendo «Dá cá mais cinco.» LOUis soprou com enfado, por entre os lábios cerrados. A função do mergulhador de cápsula durante o mergulho era permanecer dentro da CTP, controlar as mangueiras dos mergulhadores vermelho e verde e observar os mostradores; ele não deve entrar na água, a não ser em caso de emergência. Apesar da sua posição ser mais Segura, era vista como inferior pelos mergulhadores. As designações de mergulhador vermelho e verde eram usadas para evitar qualquer confusão nas comunicações com a superfície, que poderia ocorrer se fossem usados nomes próprios ou apelidos. No Benthic Explorer, o mergulhador vermelho era reconhecido como o líder em campo.

 

Larry aproximou-se da sua secretária e pegou num bloco. EntregOu-o a Richard.

 

- Aqui está a lista com os procedimentos para antes do mergulho, mergulhador vermelho. Agora metam-se no CCI. Quero comeÇar a compressão dentro de quinze minutos.

 

Richard pegou no bloco e saiu do compartimento. Uma vez todos cá fora, Louis começou a lamentar-se por ser o mergulhador de cápsula, queixando-se de ter sido também mergulhador de cápsula no último mergulho.

 

- Se calhar o chefe pensa que ninguém o faz melhor do que tu - disse Richard, enquanto piscava o olho a Donaghue. Ele sabia que estava a espicaçar Louis. Mas não conseguia evitá-lo. Sentiu-se aliviado por não ter sido ele o escolhido, já que era a sua vez.

 

Ao passarem pelo CCI, que estava ocupado, cada um dos homens do grupo, deu uma olhadela através da pequena janela e fez um gesto com o polegar para cima para os três ocupantes, que tinham ainda pela frente vários dias de descompressão. Os mergulhadores podem brigar uns com os outros de vez em quando, mas também têm um forte espírito de camaradagem. Eles respeitam-se uns aos outros devido aos perigos inerentes às suas funções. o isolamento e o risco de se mergulhar com saturação são, em certos aspectos, ironicamente idênticos ao de se estar num satélite à volta do globo. Qualquer problema se pode tornar complicado, e é difícil regressar a casa.

 

Quando chegaram ao CCI, Richard foi o primeiro a passar pela estreita passagem circular, do lado do cilindro. Para o fazer, ele teve que se agarrar a uma barra horizontal de metal, levantar as pernas e entrar, pondo os pés na frente e balançando-se pela abertura.

 

o interior era utilitário, com os beliches ao fundo, e os aparelhos de respiração de emergência pendurados nas paredes. Todo o equipamento de mergulho, incluindo os fatos à prova de água, cintos com pesos, luvas e toda a outra parafernália formava um monte entre os beliches. As máscaras de mergulho estavam na cápsula de mergulho, juntamente com todas as mangueiras e fios de comunicação. Do lado oposto do CCI), e sem qualquer parede de separação, estavam o duche, a sanita e o lavatório. o mergulho com saturação era uma verdadeira experiência de vida em comum. Não havia qualquer tipo de privacidade.

 

Louis e Michael entraram logo atrás de Richard. Louis subiu directamente para dentro da cápsula de mergulho enquanto Michael começou a separar o material que estava no chão. Enquanto Richard ia dizendo os nomes das várias peças que constituíam o equiPamento, Louis ou Michael gritavam se elas estavam ou não presentes, e Richard fazia uma cruz na lista que estava no bloco. Algo que não estivesse presente era imediatamente entregue, através da entrada, por um dos vigilantes.

 

Quando as quatro páginas da lista estavam completas, Richard fez um sinal com o polegar virado para cima, para o supervisor de mergulho, através da câmara montada no tecto.

 

_ Okay, mergulhador vermelho - disse o supervisor pelo intercomunicador - Fechar e trancar a escotilha de entrada e preparar para começar a compressão, Richard fez o que lhe foi pedido. Quase imediatamente, ouviu-se o assobio do gás comprimido e a agulha do indicador de pressão a subir. Os mergulhadores dirigiram-se com satisfação para os beliches, Ríchard tirou um baralho de cartas já gasto do bolso das suas ceroulas.

 

Perry apareceu, vindo do interior do navio, e saltou para a grade que formava parte do convés. Estava vestido com um fato de treino castanho por cima de outras camisolas - por sugestão de Mark. Este dissera a Perry que fora isso que ele levara vestido da última vez que estivera no submersível. o espaço não era muito e, portanto, quanto mais confortáveis fossem as roupas, melhor; e era bom usar várias camadas de roupa, porque podia fazer frio. A temperatura exterior da água andava apenas à volta dos 4C, e era insensato gastar muita da energia da bateria em aquecimento.

 

Ao princípio, Perry achou quase impossível caminhar sobre a grade de metal, uma vez que conseguia ver a superfície do oceano lá em baixo, a uns quinze metros de distância. A água era de um azul acinzentado e tinha o aspecto de estar bem fria. Perry sentiu arrepios, apesar da agradável temperatura ambiente que se fazia sentir, e pensou se de facto seria uma boa ideia fazer este mergulho. o estranho pressentimento que ele tivera ao acordar regressou, eriçando-lhe os cabelos da nuca. Apesar de não sofrer de claustrofobia, nunca se sentira confortável em espaços apertados, como era o caso do interior do submersível. De facto, uma das mais terríveis recordações de infância de Perry, era a de ter sido descoberto pelo seu irmão mais velho escondido debaixo dos cobertores. o irmão começara a dar-lhe murros em vez de puxar os cobertores para trás, e não o deixara sair durante o que lhe parecera uma eternidade. De vez em quando, Perry ainda tinha pesadelos em que se via novamente debaixo da roupa, com a terrível sensação de estar a sufocar.

 

Perry parou e observou o pequeno submarino, que assentava sobre cunhos, à popa do navio. Por cima dele estava colocado um enorme guindaste capaz de o balançar sobre a água e baixá-lo até à superfície desta. Vários trabalhadores atarefavam-se à sua volta, parecendo abelhas à volta de uma colmeia. Perry tinha conhecimentos suficientes para saber que eles procediam às verificações antes da operação de mergulho.

 

Perry sentiu-se aliviado ao verificar que a embarcação tinha um aspecto maior do que parecia ter dentro de água, facto que apaziguou a sua claustrofobia. o submersível não era tão pequeno como a maior parte deste tipo de embarcações. Tinha quinze metros de comprimento e três e meio de largura, e uma forma bojuda, como se fosse uma gigantesca salsicha de metal com uma superestrutura em fibra de vidro. Tinha quatro janelas de observação, feitas de secções cónicas de Plexiglas, com vinte centímetros de espessura: duas à frente e uma de cada lado. Braços manipuladores hidráulicos, dobrados na parte de baixo do submersível, faziam-no parecer um enorme crustáceo. o casco estava pintado de vermelho-vivo, com inscrições a branco ao longo das partes laterais. o seu nome era oceanus, como o deus grego do alto mar.

 

- É jeitosinho, não é? - disse uma voz.

 

Perry virou-se. Mark tinha aparecido por trás de si.

 

-Afinal talvez seja melhor eu não ir no mergulho -disse Perry, tentando dar um tom despreocupado à sua voz.

 

- E porquê? - perguntou Mark.

 

- Não quero ser um estorvo - disse Perry - Eu vim aqui para ajudar, não para ser um empecilho. Tenho a certeza de que o piloto preferia não ter uma espécie de turista atrelado a ele.

 

Isso é conversa fiada! - disse Mark sem hesitar. - Tanto o Donald como a Suzanne estão encantados por tu ires. Falei com eles ainda não há vinte minutos, e foi isso que me disseram. A propósito, é o Donald que está ali naquele andaime, a supervisionar a ligação com a grua de lançamento. Ainda não o conheces, pois não?

 

Perry olhou na direcção apontada pelo indicador de Mark. Donald Fuller era um afro-americano com a cabeça rapada, um elegante bigode fininho e uma impressionante figura musculada. Vestia Inacacão azul escuro imaculadamente engomado, com galões nos Ombros e um brilhante distintivo com o seu nome. Apesar da distância, Perry pôde apreciar o porte marcial do homem, especialMente quando ouviu a sua profunda voz de barítono e a forma confiante e séria como dava ordens. Não havia dúvida sobre quem iria liderar a presente operação.

 

- Vamos - apressou Mark, antes de Perry poder responder. Deixa-me fazer as apresentações.

 

Relutantemente, Perry deixou-se conduzir até ao submersível. Parecia infelizmente óbvio, que ele não poderia escapar ao mergulho dentro do Oceanus sem que isso se virasse contra ele. Teria que admitir que tinha medo, e isso dificilmente seria aceitável. Para além disso, até tinha gostado da sua primeira viagem no submerSível, apesar dela ter acontecido somente a trinta metros de profundidade, à saída do porto de Santa Catalina, situação muito diferente da de estar no meio do oceano Atlântico.

 

Uma vez satisfeito com a ligação do submersível ao cabo que o ia içar, Donald desceu do andaime e começou a caminhar pelo barco, Apesar da equipa de superfície ser responsável pela verificação exterior antes do mergulho ser efectuado, Donald queria verificar visualmente, por si próprio, todas as penetrações através do casco. Mark e Perry alcançaram-no na proa. Mark apresentou Perry como sendo o presidente da Benthic Marine.

 

Donald respondeu com um bater de tornozelos e fazendo a continência. Antes de se aperceber do que estava a fazer, Perry fez também a continência. Só que Perry não sabia realmente bater a continência, nunca em toda a sua vida tinha feito esse gesto. Sentiu-se tão patético como provavelmente parecia.

 

- É uma honra conhecê-lo, senhor - disse Donald. Ele estava absolutamente direito, com os lábios muito fechados e as narinas bem abertas. A Perry ele parecia um guerreiro prestes a iniciar a luta.

 

- Prazer em conhecê-lo - disse Perry. Fazendo um gesto na direcção do Oceanus acrescentou: - Não quero interrompê-lo.

 

- Não há problema, senhor - retorquiu Donald.

 

- Também não é obrigatório que eu vá neste mergulho - disse Perry. - Não quero ser um estorvo para ninguém. De facto...

 

- Não vai estorvar ninguém, senhor - disse Donald.

 

- Eu sei que este é um mergulho com um objectivo determinado - insistiu Perry. - Não quero que deixem de dar atenção ao vosso trabalho.

 

- Quando estou a pilotar o Oceanus, ninguém me distrai do meu trabalho, senhor!

 

- Ainda bem que é assim - disse Perry. - Mas não ficarei de todo ofendido se você achar que eu devo ficar cá em cima. Quer dizer, eu compreenderei.

 

- Estou ansioso por lhe mostrar as potencialidades deste submersível, senhor.

 

- Bem, obrigado - disse Perry, reconhecendo a futilidade de estar a tentar desculpar-se de uma forma graciosa.

 

- o prazer é meu, senhor - retorquiu Donald.

 

- Não é necessário tratar-me por senhor - disse Perry.

 

- Sim, senhor! - respondeu Donald. A sua boca formou uw ligeiro sorriso ao dar-se conta do que tinha dito. - Quer dizer, sim, Mr. Bergman.

 

- Trate-me por Perry.

 

- Sim, senhor - disse Donald. Sorriu de novo ao aperceber-se que se tinha enganado pela segunda vez, em tão pouco tempo             É difícil habituar-me a tratá-lo de outra forma.

 

_ Estou a ver que sim - disse Perry. - Penso que não estarei errado ao pensar que obteve a sua experiência para este tipo de trabalho nas forças armadas.

 

- Afirmativo - disse Donald. - Vinte cinco anos nos serviços de submarinos. - Era oficial? - perguntou Perry.

 

- Exactamente. Quando me retirei era comandante.

 

os olhos de Perry desviaram-se de novo para o submarino. Agora que se tinha reconciliado com a ideia do mergulho, queria sentir-se confiante.

 

Como é que se tem comportado o Oceanus?

- Sem uma única falha - respondeu Donald.

 

- Então é um bom barquinho? - perguntou Perry. Deu umas palmadinhas no frio casco de aço.

 

- O melhor - disse Donald. - Melhor do que qualquer um que eÜ tenha pilotado, e já pilotei uns quantos.

 

-, Não está apenas a ser patriota? - interrogou Perry.

 

De modo algum - disse Donald. - Em primeiro lugar, pode chegar mais fundo que qualquer outra nave tripulada que eu tenha pilotado. Como é decerto do seu conhecimento, pode atingir uma profundidade certificada de seis mil metros e uma profundidade de choque apenas aos dez mil e seiscentos metros. Mas mesmo essa é enganadora. Com a margem de segurança que possui, poderíamos PrOVavelmente descer ao fundo de Mariana Trench sem um safanão.

 

Engoliu em seco. Ouvir a expressão profundidade de choque, trouxe de volta o arrepio que ele sentira há poucos minutos atrás. E se fizesses a Perry um rápido resumo das restantes estatísticas do Oceanus? - disse Mark. - Só para lhe refrescar a memória. Claro - disse Donald. - Esperem só um segundo. - Pôs as mãos em concha à volta da boca e gritou para um dos homens que estava a completar as verificações: - As câmaras de TV foram verificadas no interior?

 

- Afirmativo! - respondeu o trabalhador. Donald virou-se de novo para Perry.

 

- O submarino pesa sessenta e oito toneladas, tem espaço para dois pilotos dois observadores e mais seis passageiros. Temos compartimentos herméticos de segurança para os mergulhadores e podemos ser acoplados aos CCI), se isso for necessário. Temos condições     de auto-suficiência para um máximo de duzentas e dezasseis horas. A energia provém de baterias de zinco. o movimento é assegurado por um motor propulsor, e as possibilidades de manobra são intensificadas por propulsores verticais e horizontais, controlados por dois manípulos gêmeos, operados com os polegares. Possui um sonar de curto alcance, com ângulo de visão exploratória de precisão, um radar de penetração do solo, um magnetómetro de protão e termistores. o equipamento de gravação inclui vídeo gravadores intensificados com silicone. As comunicações são feitas através da rádio FM à superfície e telefone subaquático UQC. Tem um sistema automático de navegação giroscópica.

 

Donald fez uma pausa, enquanto os seus olhos passeavam pelo submersível.

 

- Penso que referi o mais importante. Alguma pergunta?

 

- Para já não - disse Perry apressadamente. Ele receava que Donald lhe colocasse alguma questão. A única coisa que Perry conseguira reter do monólogo inteiro fora a indicação da profundidade de choque: dez mil e seiscentos metros.

 

- Tudo pronto para lançar o Oceanus! - ecoou uma voz através de um altifalante.

 

Donald afastou Perry e Mark do submarino. o cabo elevatório estava esticado. Com um estalido o submersível foi erguido do convés. Foi impedido de balançar demasiado pela acção de múltiplas cordas de lançamento ligadas a pontos estratégicos ao longo do seu casco. Um guincho muito alto acompanhou o movimento do turco enquanto este ia balançando o submarino para fora da popa do navio e o começava a baixar em direcção à água.

 

- Ah, aqui vem a nossa doutora - disse Mark.

 

Perry virou-se ligeiramente, para olhar para trás de si. Uma figura estava a sair pela porta principal que conduzia ao interior do navio. Perry viu-a, e depois deitou-lhe uma segunda olhadela. Ele só tinha visto Suzanne Newell uma vez, e isso acontecera quando ela apresentou os primeiros estudos sísmicos sobre Sea Motint Olympus. Mas isso fora em L.A., onde não faltava gente bonita. Em pleno Oceano, e dentro do utilitário Benthic Explorer com quase cem por cento da tripulação composta por homens desmazelados, ela destacava-se como um lírio num canteiro de ervas daninhas. À beira dos trinta, ela parecia cheia de energia e tinha um aspecto atlético. Vestindo um macacão semelhante ao usado por Donald, transmitia uma espantosa imagem sexual que era a antítese da de Donald. No cimo da sua cabeça assentava um boné de basebol azul escuro, com uma pala debruada a dourado, e as letras das palavras, BENTHIC EXPLORER, cosidas ao longo da parte da frente. Da parte de trás do boné, mesmo acima da banda de ajustar, saía um rabo-de-cavalo, feito com um brilhante e forte cabelo cor de avelã.

 

Suzanne avistou o grupo e acenou, dirigindo-se para eles. Enquanto ela se aproximava, a boca de Perry foi-se abrindo devagar, reacção que não passou despercebida a Mark.

Nada má, hem? - disse ele.

 

É muito atraente - admitiu Perry.

 

Pois é, e espera mais alguns dias - disse Mark. - Quanto mais tempo ficarmos por aqui, melhor ela fica. Está em óptima forma, para uma oceanógrafa geofísica, não te parece?

 

- Não tenho conhecido muitas oceanógrafas geofisicas - disse perry Subitamente pareceu-lhe que, apesar de tudo, a operação de mergulho não seria assim tão má.

 

pena que ela não seja médica - disse Mark em voz baixa. -,Não me importava que ela me examinasse para ver se eu tenho a hérnia.

 

Se me permitem, vou continuar com o meu trabalho e prepararmo-nus para mergulhar - disse Donald.

 

...Claro - disse Mark. - A broca nova e o desbastador vão chegar daqui a pouco, e eu tratarei do seu carregamento.

 

Senhor! - disse Donald, fazendo a continência. Ele caminhou de novo para a borda, e olhou para o submersível que estava a ser descido.

 

- Ele é sério de mais - disse Mark -, mas é um trabalhador e pêras. De toda a confiança.

 

não o estava a ouvir. Ele não conseguia desviar os olhos de

Suzanne. Ela tinha um andar fantástico; o seu sorriso era amigável e caloroso. Com a sua mão esquerda, ela comprimia dois enormes livros contra o peito.

 

- Mr. Perry Bergman! - exclamou Suzanne, estendendo a sua mão direita. - Fiquei muito contente ao saber que vinha para o navio e estou encantada por ter a sua companhia na operação de mergulho. Como está? Ainda deve estar a recuperar do seu longo voo.

 

Estou bem, obrigado - disse Perry, enquanto apertava a mão à oceanógrafa. Inconscientemente, levou a mão ao cabelo para se certificar que este cobria a clareira que se começava a formar no topo da sua cabeça. Reparou que os dentes de Suzanne eram tão brancos como Os seus.

 

Após o nosso encontro em Los Angeles, não tive ainda a oportunidade de lhe dizer como fiquei contente por ter decidido trazer o Benthic EXPlorer de novo até Sea Mount Olympus.

 

Fico contente com isso - disse Perry, forçando um sorriso. Ele estava encantado com os olhos de Suzanne. Não conseguia decidir se eram azuis ou verdes. - Só é pena que a perfuração não esteja a processar com mais facilidade.

 

- Lamento muito - disse Suzanne. - Mas tenho que admitir que, vendo as coisas pela minha perspectiva um pouco egoísta, não me importo nada de ficar por aqui mais uns tempos. A montanha submarina é fascinante, como em breve poderá ver, e os problemas com a broca vão levar-me mais uma vez até lá abaixo. De mim, não ouvirá nenhuma queixa, portanto.

 

- Ainda bem que a situação faz alguém feliz - disse Perry - que tem de tão fascinante esta montanha em particular?

- É a sua geologia - disse Suzanne. - Sabe o que são diques de basalto?

 

- Não posso dizer que saiba - admitiu Perry - Suponho que devem ser feitos de basalto. - Riu-se da sua ignorância e decidiu que os olhos dela eram azuis claros, mas parecendo quase verdes pelo reflexo do oceano circundante. Apercebeu-se também que apreciava o modo comedido como ela usava a maquilhagem. Parecia que tinha apenas um leve toque de bâton. A questão dos cosméticos era um assunto amargo entre Perry e a sua mulher. Esta trabalhava como maquilhadora para um estúdio de cinema, e ela própria tinha o hábito de se maquilhar bastante, para desgosto de Perry E agora, as filhas de onze e treze anos começavam a seguir o exemplo da mãe. o problema tinha-se tornado uma verdadeira batalha, que Perry tinha poucas probabilidades de vencer.

 

o sorriso de Suzanne tornou-se mais expansivo.

 

- Os diques de basalto são, de facto, feitos de basalto. São formados quando o basalto fundido é forçado a sair através das fissuras da crosta terrestre. o que torna alguns deles tão interessantes, é que têm uma forma suficientemente geométrica para parecerem feitos pelo homem. Espere só até os ver.

 

- Lamento interromper - disse Donald. - o Oceanus está pronto para a operação e deveríamos estar a bordo. Apesar do mar estar calmo, é perigoso deixá-lo muito tempo perto do navio.

 

- Sim, senhor! - disse Suzanne, de um modo despachado. Fez uma rápida continência, mas com um sorriso provocante, meio de troça. Donald não achou graça. Sabia que ela se estava a meter com ele.

 

Suzanne fez um gesto indicando a Perry que fosse à sua frente pelo corredor que levava a uma combinação de plataforma de mergulho com doca de lançamento. Perry começou a andar, mas hesitou quando um novo arrepio lhe percorreu a espinha. Apesar das suas tentativas para se sentir mais confiante acerca da segurança do submersível, e apesar do gozo que lhe iria dar a agradável companhia de Suzanne, o pressentimento que sentira de manhã cedo voltou, como se fosse uma fria corrente de ar saindo de um túmulo subterrâneo, que era como ele imaginava que devia ser o interior do Oceanus. Algures na sua mente, uma voz dizia-lhe que devia estar doido para se ir enfiar dentro de um barco, que já estava afundado, no meio do Oceano Atlântico.

 

- Só um momento! - disse Perry - Quanto tempo é que esta operação vai demorar?

 

- No mínimo umas duas horas - disse Donald, - ou todo o tempo que desejar. Normalmente mantemo-nos lá embaixo enquanto os mergulhadores estiverem na água.

 

- Por que é que pergunta? - quis saber Suzanne.

 

- Porque... - Perry esforçou-se por encontrar uma explicação.

- Porque tenho de telefonar para os escritórios.

 

- Ao Domingo? - questionou Suzanne. - Quem é que está no escritório num Domingo?

 

Perry sentiu-se corar. Devido aos voos nocturnos de Nova Iorque para os Açores, ele tinha-se baralhado com os dias. Deu uma sonora gargalhada e deu uma leve pancada num dos lados da cabeça.

 

- Devo estar com sintomas de Alzheimer, bastante precocemente.

 

- Vamos lá então! - disse Donald antes de descer para a plataforma de mergulho.

 

Perry seguiu-o, dando um passo de cada vez, sentindo-se ridiculamente cobarde. Começou então, apesar de achar que não o devia fazer, a percorrer a prancha que balançava. Era impressionante o movimento que havia naquilo que parecia ser um mar calmo. A prancha levava directamente ao cimo do Oceanus. o convés do submersível já estava à superfície da água, uma vez que a embarcação estava a boiar. Foi com dificuldade que Perry conseguiu passar pela escotilha. Enquanto prosseguia o seu caminho pelo submersível abaixo, teve que se segurar com força aos frios degraus de aço da escada.

 

o espaço interior era tão apertado como Mark dissera. Perry começou a duvidar que houvesse espaço para dez pessoas. Teriam que estar como sardinhas em lata. Contribuindo para dar um aspecto ainda mais apertado, as paredes da frente do submarino estavam forradas de indicadores, leitores de LCI) e interruptores. Não havia um centímetro quadrado onde não estivessem mostradores ou botões. As quatro janelas de observação pareciam pequenas ao pé da profusão de equipamento electrónico. o único aspecto positivo era que o ar cheirava a limpo. Perry conseguiu ainda distínguir o som da ventilação, na parte de trás.

 

Donald conduziu Perry para uma cadeira baixa, exactamente atrás da sua, ao lado de uma janela. Em frente ao lugar do piloto estavam vários monitores CRT, cujos computadores podiam construir imagens virtuais do solo submarino para ajudar à navegação. Donald estava a utilizar a rádio FM para falar com Larry Nelson na sala de controle, enquanto procedia à verificação do equipamento e dos sistemas eléctricos.

 

Perry ouviu a escotilha fechar fazendo um som surdo, seguido de um clique. Uns instantes depois, Suzanne desceu com bastante mais agilidade do que aquela que Perry exibira. Ela até tinha conseguido descer com os dois enormes livros na mão. Aproximou-se de Perry e entregou-lhos.

 

- Trouxe-os para si - disse ela. - o mais grosso é sobre a vida marinha nos oceanos e o outro é sobre geologia marinha. Achei que poderia gostar de procurar neles algumas das coisas que vamos ver. Não queremos que se aborreça.

 

- Foi uma ideia simpática - retribuiu Perry. Mal sabia Suzanne que ele estava ansioso demais para poder sentir-se aborrecido. Ele sentia-se exactamente como se costumava sentir antes de um avião levantar voo: havia sempre a hipótese dos minutos seguintes virem a ser os últimos da sua vida.

 

Suzanne sentou-se a estibordo do lugar do piloto. Em breve, ela começava a mexer nos interruptores e a comunicar os resultados a Donald. Era evidente que trabalhavam em equipa. Depois de Suzanne se ter juntado à verificação do equipamento, ouviram-se uns assustadores silvos que ecoaram pelo ínfimo espaço existente. Era um som singular, que Perry associava aos filmes de submarinos passados na Segunda Guerra Mundial.

 

Perry estremeceu de novo. Fechou os olhos durante um instante e tentou não pensar no seu trauma de infância, quando fora preso debaixo dos cobertores pelo seu irmão. Mas o truque não resultou. Olhou pela janela de observação à sua esquerda e esforçou-se por compreender porque se sentiria a tomar a grande decisão da sua vida ao participar naquela curta e rotineira operação de mergulho. Sabia que não era um sentimento racional, uma vez que estava rodeado de profissionais para quem aquele mergulho era banalíssimo. Sabia que o submersível era seguro e que recentemente pagara a conta de uma inspecção.

 

De repente, Perry deu um salto. Uma face tapada com uma máscara tinha-se materializado à frente dos seus olhos. Um guincho involuntário e infeliz escapou dos lábios de Perry, antes de este se aperceber que estava a olhar para a cara de um dos trabalhadores do submersível, que entrara na água com o equipamento de mergulho. Um instante mais tarde, Perry viu outros mergulhadores. Com um ballet subaquático em câmara lenta, os mergulhadores retiraram rapidamente as linhas de suporte. Ouviu-se um baque do lado de fora do casco. o Oceanus estava por sua conta.

 

- Recebido o sinal de okay - disse Donald para o microfone da rádio. Estava a falar com o superior da equipa de lançamento, que se encontrava no navio. - Peço permissão para me afastar do navio.

- Permissão concedida - respondeu uma voz longínqua.

 

Perry sentiu um novo movimento linear juntar-se ao oscilar passivo, às guinadas e ao baixar do submarino. Encostou o nariz à janela de observação e viu o Benthic Explorer afastar-se do seu campo de visão. Ainda com a cara encostada ao vidro, olhou para baixo, para as profundezas do oceano para onde estava a descer. A luz do sol provocava algumas curiosas ilusões de óptica, enquanto era refractada pela água ondulante da superfície, lá em cima, fazendo Perry imaginar que estava a olhar para as entranhas do infinito.

 

Com um outro arrepio, Perry reconheceu que estava tão vulnerável como uma criança. Um misto de vaidade e de estupidez tinha-o atirado para este ambiente estranho e desconhecido, dentro do qual ele não tinha controle sobre o seu destino. Apesar de não ser religioso, apercebeu-se de que estava a rezar para que o pequeno cruzeiro subaquático fosse curto, agradável e seguro.

 

- Não há contacto - disse Suzanne em resposta à pergunta de Donald, sobre se o sonar mostrava algum obstáculo inesperado por baixo do Oceanus. Apesar de se moverem no mar alto, parte das verificações que tinham de efectuar, era analisar se nenhuma outra nave submarina se tinha, sub-repticiamente, colocado por baixo deles.

 

Donald pegou no microfone da rádio V.H.F e entrou em contacto com Larry Nelson, na sala de controle das operações.

 

- Estamos afastados do navio, o oxigénio está ligado, os purificadores também, a escotilha está fechada, o telefone subaquático está ligado, o solo parece normal, e nada aparece no sonar. Peço permissão para mergulhar.

 

- o farol de orientação está activado? - interrogou a voz de Larry através da rádio.

 

- Afirmativo - disse Donald.

 

- Têm permissão para mergulhar - disse Larry, com um pouco de estática. - A profundidade para a entrada do poço é de trezentos e oito metros. Desejo-vos um bom mergulho.

 

- Recebido! - disse Donald.

 

Donald preparava-se para pendurar o microfone quando Larry acrescentou:

 

- está praticamente a atingir a pressão, por isso a cápsula seguirá o mais depressa possível. Prevejo que os mergulhadores estejam no local dentro de meia hora.

 

- Ficaremos à espera - disse Donald. - Termino e desligo. Pendurou o microfone e, em seguida, acrescentou para os colegas:

- Mergulhar! Mergulhar! Abrir os reservatórios principais de lastro!

 

Suzanne inclinou-se para a frente e ligou um interruptor.

 

- Reservatórios de lastro abertos - repetiu ela, para não haver engano. Donald fez um sinal no seu bloco.

 

Ouviu-se um som parecido com o de um chuveiro que estivesse num quarto ao lado, enquanto a fria água do Atlântico corria pelos reservatórios de lastro do Oceanus. Uns instantes depois, a nave que boiava desceu rapidamente e, uma vez totalmente submersa, foi deslizando silenciosamente e afastando-se da superfície.

 

Durante os minutos que se seguiram, tanto Donald como Suzanne estiveram sempre ocupados, certificando-se de que todos os sistemas estavam a funcionar dentro da normalidade. A troca de palavras entre eles limitava-se ao vocabulário próprio desta operação. De uma forma rápida, eles foram verificando pela segunda vez a maior parte dos itens da lista, enquanto a descida do submersível acelerava até uma velocidade terminal de trinta e um metros por minuto.

 

Perry passou o tempo a olhar pela janela de observação. A cor passou rapidamente do azul-esverdeado inicial, para um azul-índigo. Cinco minutos mais tarde, tudo o que conseguia ver era um brilho azul, quando olhava para cima. Para baixo, tudo era de um roxo-escuro, quase negro. Fazendo um contraste absoluto, o interior do Oceanus estava banhado por uma fria luminosidade electrónica, que provinha da miríade de monitores e indicadores.

 

- Acho que estamos com muito peso à frente - disse Suzanne depois de ter verificado todo o equipamento electrónico.

 

- Concordo - disse Donald. - Temos de compensar a presença do Sr. Bergman!

 

Suzanne ligou outro interruptor. Ouviu-se o ruído de algo a girar. Perry inclinou-se para a frente, por entre os dois pilotos.

 

- o que querem dizer com compensar» a minha presença? - A sua voz soava estranha, até para si próprio. Engoliu para aliviar a garganta seca.

 

- Temos um sistema de lastro variável - explicou Suzanne. Está cheio de óleo e, agora, estou a bombear algum para a popa, para compensar o peso que o seu corpo provoca à frente do centro de gravidade.

 

- Ah! - disse Perry simplesmente. Encostou-se para trás. Sendo ele próprio engenheiro, compreendia os pormenores da física. Sentia-se também aliviado por eles não se estarem a referir à sua timidez, como a sua consciência lhe tinha sugerido.

 

Suzanne desligou a bomba do lastro, quando se sentiu satisfeita com a estabilidade do barco. Depois virou-se e olhou para Perry. Ela desejava tornar o seu mergulho até à montanha submarina o mais positivo possível. Depois de estarem de novo no navio, ela tencionava falar com ele acerca da possibilidade de se fazerem mergulhos puramente exploratórios à montanha. Até esse momento, ela só tinha estado lá em baixo para a mudança da broca. Não tinha tido a sorte de convencer Mark Davidson do valor das operações de mergulho com o objectivo de fazer investigação.

 

Para aumentar ainda mais a ansiedade de Suzanne, tinha-se espalhado o rumor de que a operação de perfuração seria cancelada devido a problemas técnicos. A Sea Motint; Olympus seria abandonada antes de ela a poder observar melhor. Isso era a última coisa que ela queria que acontecesse, e não só pelos seus interesses a nível profissional. Mesmo antes de ter partido para este projecto, ela tinha acabado, pela última vez, a sua pouco saudável e volátil relação com um aspirante a actor. Nesse momento, voltar para L.A. era a última coisa que ela queria fazer. o súbito aparecimento de Perry Bergman fora uma feliz coincidência. Agora podia levar o seu caso à mais alta instância.

 

- Confortável? - perguntou Suzanne.

 

- Nunca me senti tão confortável em toda a minha vida - afirmou Perry

 

Suzanne sorriu, apesar do óbvio sarcasmo contido na resposta de Perry. A situação não era das melhores. o presidente da Benthic Marine ainda estava bastante tenso, a avaliar pelo modo como os seus braços se agarravam à cadeira, como se estivesse com medo de cair dela. Os livros que ela tinha feito o sacrifício de trazer estavam ainda no chão, por abrir.

 

Durante uns momentos, Suzanne observou o tenso presidente, cujos olhos olhavam para todo o lado menos para os dela. o que ela não conseguia perceber era se a ansiedade dele se devia a apreensão de estar no submersível, ou se era uma manifestação da sua verdadeira personalidade. Já no primeiro encontro que tivera com ele, há seis meses atrás, ela achara-o um tipo ligeiramente excêntrico, fútil e nervoso. Ele não era decididamente o seu tipo de homem, para além de ser suficientemente baixo para ela o poder olhar directamente nos olhos, se estivesse de ténis. E no entanto, apesar de pouco ter em comum com ele, especialmente por ele ser um engenheiro e ela uma cientista, ela acreditava que ele estaria receptivo aos seus argumentos. Afinal, ele já tinha respondido positivamente ao pedido dela para que trouxesse o Benthic Explorer de volta até Sea Mount Olympus, ainda que tivesse sido só com o objectivo de perfurar o presumível compartimento de magma.

 

A Sea Mount Olympus tinha sido a principal preocupação de Suzanne durante quase um ano, desde que ela tropeçara na sua existência ao ligar o sonar de exploração-lateral do Benthic Explorer quando estava sem nada para fazer e o navio se dirigia para o porto. Ao princípio a sua curiosidade só tinha a ver com o facto de ela não saber explicar por que razão um vulcão de tão grandes proporções e aparentemente extinto não tinha sido detectado pelo Geosat. Mas agora, depois de ter feito quatro mergulhos no submersível, ela estava igualmente fascinada pelas formações geológicas no seu cume plano, especialmente porque só tinha tido a oportunidade de explorar as proximidades da entrada da cratera. Mas o facto mais interessante dera-se quando ela resolvera datar a rocha que tinha sido trazida para cima juntamente com a broca partida.

 

Para Suzanne os resultados eram espantosos, e ainda mais interessantes do que a aparente dureza da rocha. Pela posição da montanha perto da crista do Atlântico-Médio, seria de esperar que a idade da rocha rondasse os setecentos mil anos. Em vez disso, o resultado dos testes apontara para os quatro mil milhões de anos!

 

Sabendo que as rochas mais antigas encontradas na superfície da terra ou no solo do oceano eram significativamente menos antigas, Suzanne pensou que, ou o instrumento de datação não estava a funcionar bem, ou ela tinha cometido algum erro estúpido nos seus procedimentos. Não desejando parecer ridícula, decidira guardar os resultados só para si.

 

Ela passou horas a recalibrar o equipamento com mil cuidados, e depois a testar outras amostras uma e outra vez. Inacreditavelmente, ela constatou que os resultados apresentavam datas que distavam trezentos ou quatrocentos milhões de anos umas das outras. Continuando a acreditar que tinha de haver um mau funcionamento do instrumento de datação, Suzanne pedira a Tad Messenger, o director técnico do laboratório, para o recalibrar. Quando testou de novo a amostra, o resultado distava alguns milhões de anos do primeiro. Ainda com dúvidas, Suzanne decidiu que tinha de esperar até regressar a L.A. e poder utilizar o equipamento do laboratório universitário. Entretanto, os resultados foram escondidos no seu cacifo do navio. Ela tentava não pensar no assunto, mas o seu interesse na Sea Motint Olympus estava sempre presente.

 

- Há café quente num termo na popa, se lhe apetecer - disse Suzanne. - Posso ir buscá-lo para si.

 

- Acho que prefiro que fique ao comando - disse Perry.

 

- Donald, e se acendêssemos as luzes do exterior por um momento? - sugeriu Suzanne.

 

- Estamos só a passar pelos cento e cinquenta e cinco metros

- disse Donald. - Não há nada para ver.

 

- É o primeiro mergulho do Sr. Bergman em pleno oceano disse Suzanne. - Ele deveria gostar de ver o plâncton.

 

- Trate-me por Perry - disse ele. - Quer dizer, não há razão Para sermos tão formais se estamos aqui enfiados todos juntos como sardinhas em lata.

 

Suzanne aceitou a sugestão de Perry para se tratarem informalmente com um sorriso. Ela só tinha pena que ele, claramente, não estivesse a apreciar a viagem.

 

- Donald, como favor especial, acende as luzes - pediu Suzanne. Donald concordou, não fazendo mais comentários. Inclinou-se para a frente e, com um toque, acendeu as lâmpadas exteriores de halogéneo ao lado da entrada. Perry virou a cabeça e olhou lá para fora.

 

- Parece neve - disse ele.

 

- São biliões de organismos individuais de plâncton - explicou Suzanne. - Uma vez que ainda estamos numa zona epipelágica, é provavelmente fitoplâncton, ou plâncton vegetal, com capacidade de realizar a fotossíntese. Juntamente com as algas verde-azuladas, são estes seres que estão na base da cadeia alimentar de todo o oceano.

 

- Que bom - disse Perry. Donald desligou as luzes.

 

- Não vale a pena gastar energia preciosa com este tipo de reacção - explicou ele a Suzanne sotto voce.

 

Quando a escuridão voltou, Perry conseguiu ver pequenas explosões brilhantes, de centelhas néon verde-claro e amarelo. Perguntou a Suzanne o que era aquilo.

 

- Chama-se bioluminescência - disse Suzanne.

- É o plâncton? - perguntou Perry.

 

- Pode ser - disse Suzanne. - Se for, são provavelmente dinoflagelados. Claro que também podem ser pequenos crustáceos, ou até mesmo peixes. Eu coloquei um marcador no livro sobre a vida marinha a indicar a secção de bioluminescência.

 

Perry acenou, mas não fez qualquer tentativa para procurar a página.

 

«Boa tentativa» pensou Suzanne taciturnamente. o seu optimismo quanto à possibilidade de proporcionar algo de agradável a Perry diminuiu apreciavelmente.

 

- Oceanus, daqui fala o Benthic Explorer - a voz de Larry soou no altifalante telefónico acústico. - Sugiro uma rota a duzentos e setenta graus, a cinquenta amperes por dois minutos.

 

- Entendido - disse Donald. Rapidamente procedeu ao ajustamento da rota com os manípulos e alterou a potência do motor para os cinquenta amperes sugeridos. Seguidamente, anotou as alterações no seu bloco.

 

- o Larry decidiu a nossa posição procurando o nosso eco e relacionando-o com os hidrofones de fundo - explicou Suzanne. - Ao darmos mais potência para a frente enquanto descemos, chegaremos ao fundo directamente sobre a entrada da cratera. É como se nos dirigíssemos para um alvo.

 

- o que é que vamos fazer até os mergulhadores chegarem? perguntou Perry. - Ficamos sentados a rodar os polegares?

 

- Não me parece - disse Suzanne. Ela fez um novo sorriso forçado, enquanto dava uma ligeira gargalhada. - Temos que descarregar a broca, juntamente com as ferramentas que trouxemos. Depois temos que nos afastar. Nessa altura teremos mais ou menos vinte ou trinta minutos para explorar o local. É essa parte que eu acho que você irá realmente apreciar.

 

- Mal posso esperar - disse Perry, com o tipo de sarcasmo que Suzanne já começava a recear. - Mas não quero que façam nada que não seja habitual só por minha causa. Quer dizer, não é necessário que me tentem impressionar. Já estou suficientemente impressionado.

 

Subitamente, o zumbido monótono do sonar alterou-se. o submarino estava a aproximar-se do fundo, e o sonar de curto-alcance, orientado na direcção da frente, dava sinais de estar a estabelecer contacto. o minúsculo ecrã mostrava a entrada do poço e o cabo que pendia lá de cima. Donald lançou à água vários pesos de descida e o mergulho gradual da nave abrandou. Começou então a ajustar cuidadosamente o sistema variável de lastro para conseguir que o submarino começasse a boiar.

 

Enquanto Donald estava ocupado a bombear óleo, Suzanne virou-se para trás e ligou um pequeno leitor de CD. Fazia parte do seu plano. Logo a seguir, o som da Sagração da Primavera de Igor Stravinsky encheu o interior do submarino. Tomando a música como uma deixa, Donald inclinou-se para a frente e acendeu as luzes exteriores.

 

Os olhos de Perry abriram-se de espanto quando olhou pela janela de observação. A neve de plâncton tinha desaparecido e a claridade da água gelada era maior do que ele imaginara. Conseguia ver até várias dezenas de metros de distância, e o que viu deixou-o absolutamente deslumbrado. Ele tinha esperado encontrar um solo plano, sem nenhum pormenor interessante, semelhante àquilo que vira quando mergulhara perto da ilha de Santa Catalina. Pensou que, no máximo, iria ver uns pepinos do mar. Em vez disso estava diante de uma cena que nunca poderia ter imaginado: enormes figuras de um cinzento-escuro, em forma de coluna, espalhavam-se pela paisagem, umas maiores do que as outras, ordenadas como degraus de uma escada, como se fossem pistões gelados de um enorme motor. As fantasmagóricas formas continuavam até onde a vista de Perry conseguia alcançar. Alguns peixes de barbatanas longas e longos Olhos, nadavam preguiçosamente entre elas. Em algumas das saliências das rochas, gorgónias e outros animais marinhos balançavam sinuosamente na corrente.

 

- Meu Deus! - exclamou Perry Estava impressionado, e a dramática música de fundo aumentava o sentimento.

 

- Bastante fora do vulgar, não é? - disse Suzanne. Sentia-se mais encorajada. A resposta de Perry ao que estava a ver era a primeira reacção positiva que ele mostrava.

 

-Parece um templo da antiguidade - exclamou Perry.

 

- Parece a Atlântida - sugeriu Suzanne. Estava decidida a tirar o máximo da situação.

 

- Pois é! - disse Perry com entusiasmo. - Parece a Atlântida! Meu Deus! Já pensou no que seria se trouxéssemos turistas aqui abaixo e lhes disséssemos que era a Atlântida? Isto podia ser uma fantástica mina de ouro.

 

Suzanne aclarou a garganta. Trazer turistas até à sua preciosa montanha era a última coisa que ela queria ver acontecer, mas gostou do entusiasmo de Perry. Ao menos estava a envolver-se.

 

- A corrente está a menos de um oitavo de nó - disse Donald.

- Estamos a chegar à entrada do poço. Preparar para descarregar a broca.

 

Suzanne apressou-se a desempenhar as suas funções de co-piloto e accionou o comando auxiliar dos braços manipuladores. Enquanto isso, Donald assentou habilmente o Oceanus no solo rochoso. Ao mesmo tempo que Suzanne se preparava para levantar a broca e as ferramentas do tabuleiro de transporte, Donald estava a utilizar o telefone UQC.

 

- Estamos no fundo - disse Donald. - A descarregar a carga.

- Recebido - disse Larry em resposta, através do altifalante.

- Percebi que já deviam ter chegado quando ouvi a música de Suzanne. Esse é o único raio de CD que ela tem?

 

- É o mais adequado para o cenário cá de baixo - interveio Suzanne.

 

- Se fizermos mais operações destas, eu empresto-lhe alguns CDs de NewAge - respondeu Larry. - Não suporto música clássica.

- Estes é que são os filões de basalto? - interrogou Perry.

 

- É o que eu acho - disse Suzanne. - Alguma vez ouviu falar na Calçada dos Gigantes?

 

- Não me parece - disse Perry.

 

- É uma formação rochosa natural, na costa norte da Irlanda - disse Suzanne. - Parece-se com o que está a ver aqui.

 

- De que tamanho é o topo desta montanha? - perguntou Perry.

- Calculo que seja do tamanho de quatro campos de futebol disse Suzanne. - Mas, infelizmente, é apenas uma estimativa. O problema é que ainda não estivemos aqui no fundo tempo suficiente para explorar toda a zona.

 

- Bem, acho que o devíamos fazer - disse Perry.

 

- Boa! - Disse Suzanne para si própria. Teve que resistir à tentação de gritar a Larry e a Mark para saber se eles tinham ouvido o comentário de Perry através do UQC.

 

- Será que toda a área do topo da montanha tem o mesmo aspecto do que estamos a ver aqui? - quis saber Perry

 

- Não, nem toda - disse Suzanne. - Na pequena parte que já vimos, há áreas que têm formações de lava mais típicas. No último mergulho, contudo, conseguimos avistar aquilo que pode ser uma falha transversal, mas mandaram-nos regressar antes que pudésse mos verificar. A montanha permanece, na sua maior parte, inexplorada.

 

- Onde fica a falha em relação à entrada do poço? - perguntou Perry.

 

- Fica exactamente a Oeste daqui - disse Suzanne. - Mesmo na direcção para onde está a olhar agora. Consegue ver uma fila de colunas particularmente alta?

 

- Acho que sim - disse Perry. Encostou a cara ao vidro para tentar olhar para trás do submarino. Havia uma fila de colunas mesmo no limite da sua visibilidade. - Seria muito significativo se encontrássemos uma falha transversal? - perguntou ele.

 

- Seria absolutamente extraordinário - respondeu Suzanne.

- Elas ocorrem acima e abaixo da crista do Atlântico-Médio, mas encontrar uma a esta distância da crista e ao longo da parte central do que parece ser um antigo vulcão seria algo de invulgar.

 

- Vamos dar uma olhadela - sugeriu Perry. Este local é fascinante.

 

Suzanne fez um sorriso de triunfo. Deitou uma olhadela a Donald. Também este não conseguia disfarçar um sorriso. Ele tinha concordado com o plano de Suzanne, mas não se sentira optimista.

 

Suzanne demorou apenas alguns minutos a descarregar tudo o que Mark tinha colocado no tabuleiro de transporte do submersível. Depois de o material estar alinhado ao pé da entrada do poço, ela dobrou os braços manipuladores e recolocou-os na sua posição retraída.

 

- Isto já está feito - disse Suzanne. Desligou as ligações do comando auxiliar.

 

- Oceanus chama controle de superfície, - disse Donald através do microfone do UQC. - o material foi descarregado. Qual é a situação dos mergulhadores?

 

- A compressão está quase completa - transmitiu a voz de Larry através do altifalante. - A cápsula deverá começar a descida em breve. - Altura estimada da chegada ao fundo: trinta minutos, mais cinco, menos cinco.

 

- Entendido - disse Donald. - Mantenham-nos informados. Vamo-nos dirigir para Oeste para investigar uma escarpa em que reparámos durante o último mergulho.

 

- Okay - disse Larry. - Nós avisamos assim que a cápsula for separada do CCD. Também vos informaremos quando ela estiver a passar os cento e cinquenta e cinco metros, para que possam estar na posição adequada.

 

- Entendido! - repetiu Donald. Voltou a colocar o microfone do UQC no seu lugar. Com as mãos gentilmente pousadas nos manípulos, aumentou a potência do sistema de propulsão para cinquenta amperes. Com perícia, conduziu o submersível para longe da entrada do poço, com muito cuidado para não colidir com o cabo vertical. Uns momentos depois, o Oceanus movimentava-se lentamente sobre a estranha topografia do cimo da montanha, - o que me parece que estamos a ver é uma secção intacta da crosta do manto - disse Suzanne. - Mas não faço ideia de como e por que é que a lava arrefeceu e originou estas formas de polígonos. É quase como se fossem cristais gigantescos.

 

- Gosto da ideia de isto poder ser a Atlântida - disse Perry. A sua cara continuava colada à janela de observação.

 

- Estamos a chegar ao local onde vimos a tal falha - disse Donald.

 

- Acho que é atrás daquela crista de colunas que está agora a aparecer - disse Suzanne para orientar Perry.

 

Donald diminuiu a potência. o submersível abrandou ao passar pela crista.

 

- Uau! - exclamou Perry. - Desce mesmo repentinamente.

- Bem, não é uma falha transversal - disse Suzanne enquanto observava toda a formação. - Se fosse realmente uma falha, teria de ser uma graben. o outro lado é igualmente íngreme.

 

- que diabo é uma graben? - perguntou Perry.

 

É quando um bloco em falha descai em relação às rochas de cada um dos lados - explicou Suzanne. - Mas isso é algo que não acontece no cimo de uma montanha submarina.

 

- A mim parece-me um enorme buraco rectangular disse Perry - Que acha? Mais ou menos quarenta e cinco metros de comprimento e quinze de largura?

 

- Acho que deve ser isso mesmo - disse Suzanne.

 

- É incrível! - comentou Perry. - É como se um gigante tivesse pegado numa faca e cortado um pedaço de rocha, tal como se tira uma talhada a uma melancia.

 

Donald encaminhou o Oceanus para a entrada da falha e todos eles olharam para baixo.

 

- Não consigo ver o fundo - disse Perry.

- Eu também não - disse Suzanne

 

- o sonar também não - disse Donald. Apontou para o monitor. Não estava a ser recebido nenhum sinal de retorno. Era como se o Oceanus estivesse colocado sobre um fosso sem fundo.

 

- Não acredito! - disse Suzanne. Estava pasmada.

 

Donald deu uma ligeira pancada no monitor, mas continuou a não haver nenhuma indicação.

 

- Isto é muito estranho - disse Suzanne. - Achas que é mau funcionamento?

 

- Não sei - disse Donald. Tentou ajustar o monitor.

 

- Esperem aí - a voz de Perry estava tensa. - Estão os dois a pregar-me uma partida?

 

- Tenta o sonar lateral     sugeriu Suzanne, ignorando o que Perry tinha dito.

 

- Também é estranho - disse Donald. - o sinal é incompreensível, a não ser que aceitemos que o fosso só tem um metro e oitenta ou dois metros de profundidade. É isso que o monitor do sonar lateral está a sugerir. - o buraco é claramente mais profundo do que um mero metro e oitenta, ou dois metros - disse Suzanne.

 

- Obviamente - concordou Donald.

 

- Ei, acabem com isso, vocês dois - disse Perry. - Estão a começar a assustar-me.

 

Suzanne virou-se ligeiramente para encarar Perry.

 

- Não estamos a tentar assustá-lo - disse ela. - Só estamos intrigados com o que mostram os instrumentos.

 

- Eu acho que deve haver o raio de uma termoclina mesmo à beira da formação - disse Donald. - o sonar tem que estar a receber o ricochete de alguma coisa.

 

- Importava-se de traduzir isso? - disse Perry.

 

- As ondas sonoras recebem o ricochete de gradientes agudos de temperatura - disse Suzanne. - Parece que é isso que está a acontecer aqui.

 

- Para termos uma indicação da profundidade, temos de descer três ou quatro metros dentro do fosso - disse Donald. - Posso fazer diminuir a nossa flutuação, mas primeiro vou mudar de direcção.

 

Produzindo pequenos solavancos, Donald utilizou o motor da frente a estibordo para virar o submersível até este ficar paralelo ao longo do eixo do buraco. Depois, manipulou o sistema de lastro variável para provocar no submarino uma flutuação negativa. Este começou a descer gradualmente.

 

- Talvez isto não seja uma ideia lá muito boa - disse Perry. Ele olhava ansiosamente para trás e para a frente, para o monitor do sonar lateral e para a sua janela de observação.

 

o altifalante do UQD deu sinais de vida: «Controle de superfície chama Oceanus. A cápsula está neste exacto momento a ser separada do CCD. Os mergulhadores estarão a passar os cento e cinquenta e cinco metros dentro de mais ou menos dez minutos.- Recebido, controle de superfície - disse Donald através do microfone. - Estamos a cerca de trinta metros a oeste da entrada do poço. Vamos investigar uma aparente termoclina numa formação rochosa. As comunicações poderão ficar momentaneamente interrompidas, mas estaremos no local exacto à espera dos mergulhadores.

- OK - disse a voz de Larry.

 

- Reparem no brilho das paredes - fez notar suzanne, enquanto o submersível passava por baixo da extremidade do enorme buraco.

- São completamente lisas. Quase que parece obsidiana!

 

- Vamos regressar para a entrada do poço - sugeriu Perry.

- É possível que isto seja uma abertura para um vulcão extinto?

- perguntou Donald. Um ligeiro sorriso iluminou a sua expressão, habitualmente séria.

 

- É uma possibilidade - disse Suzanne com uma gargalhada.

- Apesar de eu ter que admitir que nunca vi uma caldeira perfeitamente rectilínea. - Riu-se novamente. - Estarmos a descer por aqui faz-me lembrar a Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne.

- Em que sentido? - perguntou Donald.

 

- Leste o livro?

 

- Não costumo ler romances - disse Donald.

 

- É verdade, tinha-me esquecido - disse suzanne. - Mas voltando ao que eu queria dizer, nessa história os protagonistas entram numa espécie de mundo inferior, nunca antes explorado, através de um vulcão extinto.

 

Donald abanou a cabeça. Os seus olhos continuavam colados aos valores do termistor.

 

- Que desperdício de tempo, ler esses disparates - disse ele.

- É por isso que eu não leio romances. Há tantos livros técnicos que não tenho tempo para ler.

 

Suzanne ia responder, mas mudou de ideias. Ela nunca conseguira alterar as rígidas opiniões de Donald sobre a ficção em particular e a arte em geral.

 

- Não quero ser aborrecido - disse Perry - mas...

 

Perry não chegou a acabar a frase. De repente, o submersível começou a descer com maior aceleração, e Donald gritou:

 

- Deus Todo Poderoso!

 

Perry agarrou-se com força aos lados do seu assento até os nós dos dedos ficarem brancos. o rápido aumento da velocidade da queda tinha-o assustado, mas não tanto como o pouco habitual grito de Donald. Se o imperturbável Donald Fuller estava preocupado, a situação devia ser crítica.

 

- Lançar pesos! - ordenou Donald. A descida diminuiu imediatamente, em seguida parou. Donald libertou mais peso e o submarino começou a subir. Depois utilizou o propulsor lateral para manter a orientação em relação ao longo eixo do fosso, A última coisa que ele queria era chocar com as paredes.

 

- Que diabo aconteceu? - interrogou Perry, quando voltou a ter voz.

 

- Perdemos a flutuação - disse-lhe Suzanne.

 

- Tornámo-nos de repente mais pesados, ou a água mais leve - disse Donald enquanto verificava os instrumentos.

 

- o que é que quer dizer? - perguntou Perry.

 

- Uma vez que obviamente não ficámos mais pesados, só pode ter sido a água que ficou, de facto, mais leve - disse Donald. Apontou para o indicador de temperatura. - Passámos pelo gradiente de temperatura que suspeitávamos existir aqui, e é muito maior do que esperávamos - mas na direcção oposta. A temperatura exterior subiu quase 381 C!

 

Vamos mas é sair daqui! - gritou Perry.

 

É o que estamos a fazer - disse Donald, num tom sóbrio. Tirou o microfone UQC do descanso e tentou contactar com o Benthic Explorer. Quando percebeu que não o conseguia fazer, colocou de novo o microfone no seu lugar. - As ondas sonoras não chegam até aqui, e também não conseguem sair.

 

- Mas o que é isto, uma espécie de buraco negro no sonar? perguntou Perry irritado.

 

- A sonda sonora está a captar qualquer coisa, agora, - disse Suzanne. - Mas é impossível! Está a transmitir que este fosso tem mais de nove mil e duzentos metros de profundidade!

 

- E ainda há dúvidas de que é um mau funcionamento! - disse Donald para si próprio. Deu uma pancada ainda mais forte no instrumento, com os nós dos dedos. A leitura digital continuava a ser de 9268.

 

- Esqueçam a sonda - disse Perry. - Não podemos sair daqui mais depressa? - o Oceanus estava a subir, mas muito devagar.

 

- Nunca tinha tido problemas com esta sonda - disse Donald.

- Talvez este fosso tenha sido uma espécie de poço de magma.

 

- disse Suzanne. - É obviamente muito profundo, apesar de não sabermos quanto, e a água é quente. Isso sugere contacto com lava.

- Ela inclinou-se para a frente para olhar pela janela de observação.

 

- Podemos ao menos desligar a música? - pediu Perry A música estava a aproximar-se de um crescendo que só aumentava a sua ansiedade.

 

- Caramba! - exclamou Suzanne. - Reparem nas paredes! o basalto está na transversal. Nunca ouvi falar num dique transversal. E olhem! Tem um tom esverdeado. Talvez seja gabro e não basalto.

 

- Acho que vou ter que me impor - disse Perry, sem esconder a sua exasperação. Já estava farto de ser ignorado. - Quero ser levado para a superfície, pronto!

 

Suzanne virou-se para responder, mas só conseguiu abrir a boca. Antes de ela poder dizer o que quer que fosse, uma vibração poderosa, de baixa-frequência, abanou o submersível. Ela teve de se agarrar ao assento para não cair. o súbito tremor fez com que alguns objectos soltos rolassem pelo chão. Uma chávena de café caiu e partiu-se; os cacos tremeram no chão juntamente com as canetas que também tinham caído. Ao mesmo tempo ouviu-se um som baixo, que parecia uma trovoada ao longe.

 

Isto durou quase um minuto. Ninguém falou, apesar de um grito involuntário ter escapado da boca de Perry, enquanto a sua face se tornava branca.

 

- o que terá sido isto? - Perguntou Donald. Verificou rapidamente os instrumentos.

 

- Não tenho a certeza, - disse Suzanne - mas se tivesse que adivinhar, diria que foi um tremor de terra. Acontece muitas vezes, acima e abaixo da Crista do Atlântico-Médio.

 

- Um tremor de terra! - exclamou Perry.

 

- Talvez este velho vulcão esteja a acordar - disse Suzanne.

- Seria o máximo se conseguíssemos observar algo assim!

 

- Atenção! - disse Donald. - Há algo que não está bem!

 

- Qual é o problema? - perguntou Suzanne. Tal como Donald, ela deu uma rápida vista de olhos aos mostradores, marcadores e ecrãs que estavam no seu campo de visão. Eram esses os instrumentos fundamentais para o funcionamento do submersível. Tudo parecia estar em ordem.

 

- A sonda! - disse Donald num tom de urgência pouco habitual nele.

 

Os olhos de Suzanne desviaram-se rapidamente para baixo, para o indicador digital colocado perto do chão, entre os dois assentos dos pilotos. A leitura estava a diminuir a uma velocidade alarmante.

 

- o que é que está a acontecer? - perguntou ela. - Achas que é lava a subir pelo poço?

 

- Não! - gritou Donald. - Somos nós. Estamos a afundar e eu já lancei todos os pesos de descida. Perdemos a flutuação!

 

- Mas, e o indicador de pressão?! - disse Suzanne quase a gritar.

- Não está a subir. Como é que nos podemos estar a afundar?

 

- Não deve estar a funcionar. - disse Donald, freneticamente.

- Não há dúvida que estamos a afundar. É só olhar pelo raio da janela!

 

Os olhos de Suzanne desviaram-se para a janela. Era verdade. Estavam a afundar-se. A lisa parede da rocha estava a mover-se rapidamente para cima.

 

- Vou abrir os tanques de lastro - gritou Donald furiosamente.

- A esta profundidade não deve fazer muito efeito, mas é a única hipótese.

 

O som do ar comprimido a ser liberto, sobrepôs-se à Sagração da Primavera de Stravinsky, mas só por vinte segundos. Com aquele tipo de pressão, os tanques de ar comprimido esvaziaram-se rapidamente. A descida manteve-se.

 

- Faça qualquer coisa! - gritou Perry, quando teve forças para isso.

 

- Não posso - gritou Donald. - Os comandos não respondem. Não há mais nada que possa ser feito.

 

Mark Davidson daria tudo por um cigarro. Ele era profundamente viciado, e contudo, achava que seria possível deixar de fumar, uma vez que fazia isso uma vez por semana. o pior era quando estava a tentar descansar, a trabalhar ou se sentia ansioso, e, nesse momento, ele estava de facto bastante ansioso. Para ele, operações de mergulho a grandes profundidades eram sempre algo de bastante arriscado; ele sabia, por experiência própria, que de um momento para o outro as coisas podiam correr horrivelmente mal.

 

Olhou para cima, para o enorme relógio institucional na parede da sala de controle das operações de mergulho, observando o monstruoso ritmo do ponteiro dos segundos. A sua presença intimidante fazia com que fosse difícil não dar pelo tempo a passar. Já tinham passado doze minutos desde a última vez que se estabelecera contacto com o Oceanus. Apesar de Donald ter avisado que poderia haver uma pequena interrupção nas comunicações, já tinha passado mais tempo do que seria razoável, nomeadamente porque o submersível não tinha respondido à última mensagem de Larry Nelson. Isso acontecera quando Larry tentara dizer-lhes que os mergulhadores estavam a passar pelos cento e cinquenta e cinco metros

 

Os olhos de Mark desviaram-se na direcção do maço de Marlboros, que ele tinha, despreocupadamente, atirado para cima do tampo da secretária. Era uma agonia não poder pegar nele, tirar um cigarro e acendê-lo. Infelizmente, havia a proibição, recentemente instituída, de fumar nas áreas comuns do navio, e o capitão Jameson era uma pessoa rigorosa quanto às regras e regulamentos.

 

Com alguma dificuldade, Mark desviou o olhar dos cigarros e observou o interior da sala. As restantes pessoas presentes pareciam calmas, o que só fez com que Mark se sentisse ainda mais tenso. Larry Nelson estava sentado, muito quieto, frente ao sistema de monitorização das operações de mergulho, ao lado de Peter Rosenthal, o operador do sonar. Mesmo ao lado deles estavam os dois vigias, em frente à consola de operações do sistema de mergulho. Apesar dos seus olhos estarem constantemente a observar os indicadores de pressão dos dois CCDs pressurizados e da cápsula de mergulho, o resto dos seus corpos não se movia. Em frente aos vigias estava o operador do guincho. Estava sentado num banco alto, em frente à janela que dava para o poço central. A sua mão pousava no manípulo de mudanças do guincho. Lá fora, o cabo ligado ao aro do topo da cápsula de mergulho estava a ser movido com a máxima velocidade permitida. De um tambor ao lado saía um segundo cabo, passivo, que continha o tubo de gás comprimido, a mangueira da água quente e os cabos de comunicação.

 

No lado oposto da sala estava o Capitão Jameson, mordendo um palito com um ar ausente. À sua frente estavam os comandos, que ocupavam uma grande extensão da ponte. Apesar dos motores e propulsores do navio estarem a ser controlados por computador para o manter imóvel sobre a entrada do fosso, o Capitão Jameson podia assumir o comando, se isso fosse necessário durante as operações de mergulho.

 

- Raios me partam! - disse Mark num tom zangado. Bateu com um lápis, que tinha estado inconscientemente a torturar, no tampo da secretária e levantou-se.

 

- Qual é a profundidade dos mergulhadores?

 

- Estão a passar os cento e oitenta e cinco metros senhor informou o operador do guincho.

 

- Tenta o Oceanus novamente! - rosnou Mark para Larry. Começou a andar para trás e para a frente. Tinha um mau pressentimento que lhe provocava um aperto no estômago e que estava a ficar pior. Começou a arrepender-se amargamente de ter encorajado Perry Bergman a ir naquele mergulho. Estando pessoalmente a par do interesse que a Dr. Newell tinha pela montanha submarina e o desejo dela de fazer mergulhos exploratórios, ele estava preocupado com o facto de ela poder tentar impressionar o presidente para alcanÇar os seus objectivos. Isso podia significar que ela tivesse pressionado Donald a fazer coisas que ele normalmente não faria, e Mark estava consciente de que a Dr. Newell era a única pessoa a bordo do navio que conseguia ter esse tipo de influência sobre o absolutamente rigoroso ex-oficial naval.

 

Mark estremeceu. Seria uma tragédia enorme se o submersível ficasse entalado numa fissura ou numa cavidade pela qual tivesse descido para examinar de perto algum pormenor geológico. Isso quase tinha sucedido ao submersível Alvin porcausa do Poço de Woods, e essa quase tragédia tinha acontecido na Crista do Atlântico-Médio, não muito longe da localização que tinham agora.

 

- Continua a não haver resposta - disse Larry, após várias tentativas sem sucesso para comunicar com o Oceanus através do UQC.

 

- Algum sinal do submersível no sonar lateral? - perguntou Mark ao operador do sonar.

 

- Negativo - disse Peter. - E os hidrofones de fundo não têm qualquer contacto com o localizador deles. A termoclina que eles encontraram deve ser impressionante. É como se eles tivessem caído para dentro do solo do oceano.

 

Mark parou de andar de um lado para o outro e olhou de novo para o relógio.

 

- Há quanto tempo foi aquele tremor? - perguntou ele.

 

- Aquilo foi mais que um tremor - disse Larry. - o Tad Messenger disse que alcançou os 4.4 na escala de Richter.

 

- Não me surpreende, deitou abaixo aquela pilha de tubos no convés - disse Mark. - E por muito que o tenhamos sentido aqui, deve ter sido bem pior lá no fundo. Há quanto tempo é que foi?

 

Larry olhou para a sua caderneta de bordo.

 

- Já foi há quase quatro minutos. Achas que tem alguma coisa a ver com o facto de não conseguirmos contactar o Oceanus? Mark sentiu relutância em dar uma resposta. Não era supersticioso, mas não gostava nada de contar as suas preocupações, com medo que o simples facto de as pôr em palavras pudesse aumentar a sua possibilidade de virem a acontecer. Mas ele estava receoso que o tremor de terra de 4.4 tivesse provocado um deslizamento de rochas que pudesse ter encarcerado o Oceanus. Uma catástrofe assim não estava, de modo algum, fora de questão, se Donald tivesse, de facto, descido por uma depressão estreita por insistência de Suzanne.

 

- Deixa-me falar com os mergulhadores - disse Mark. Foi até junto de Larry e pegou no microfone. Enquanto pensava no que queria dizer, deu uma olhadela ao monitor no qual podia observar a imagem reduzida do cimo das cabeças e os corpos dos três homens.

 

- Merda, pá! - queixou-se Michael. - Deste-me um pontapé nos tomates! - A voz dele soou como uma série de chios e guinchos que teriam sido, na sua maior parte, ininteligíveis para seres humanos normais. A distorção devia-se ao hélio que ele respirava em vez de nitrogénio.

 

Na pressão equivalente a trezentos metros de água do mar, o nitrogéneo actuava como um anestésico. Substituir o nitrogénio por hélio resolvia o problema, mas causava grandes alterações na voz. Os mergulhadores estavam habituados a isso. Apesar de soarem como o Pato Donald da Walt Disney, conseguiam entender-se perfeitamente uns aos outros.

 

- Então tira-os da minha frente - disse Richard. - Não estou a conseguir pôr estas barbatanas esquisitas.

 

Os três mergulhadores estavam dentro da cápsula de mergulho, cujo casco de pressão era uma esfera com um diâmetro de apenas dois metros e quarenta. Enfiado juntamente com eles estava todo o equipamento de mergulho, várias dezenas de metros de mangueira enrolada, e todos os instrumentos necessários.

 

- Tira-os da frente, diz ele - disse Michael em tom irónico. o que é que queres que eu faça, queres que salte lá para fora? Um altifalante deu sinais de vida. Estava colocado mesmo no topo da esfera, ao lado de uma câmara de filmar com uma lente que parecia um olho de peixe. Apesar dos mergulhadores saberem que estavam constantemente a ser observados, mantinham-se totalmente indiferentes a essa vigilância.

 

- Dêem-me um minuto de atenção, rapazes! - ordenou Mark. Em contraste com a voz dos mergulhadores, a sua soava relativamente normal. - Fala-vos o comandante de operações.

 

- Que raio! - queixou-se Richard, enquanto olhava para a barbatana que lhe estava a dar tanto trabalho. - Não admira que eu não consiga enfiar esta coisa. Isto não é meu, é teu, Donaghue. Sem um aviso, Richard bateu na cabeça de Michael com a barbatana. Michael só se preocupou com a pancada porque ela fez cair o seu adorado boné dos Red Sox. o boné escorregou-lhe pelo corpo e foi poisar em cima da escotilha trancada.

 

- Ei, ninguém se mexa! - disse Michael. - Mazzola apanha aí o meu boné! Não quero que ele se molhe. - Michael já estava totalmente equipado para o mergulho, dentro do seu fato à prova de água, com o colete de controle da flutuação e os pesos. Era impossível ele conseguir dobrar-se para apanhar o boné.

 

- Meus senhores! - a voz de Mark estava mais alta e mais insistente.

 

- Vai-te lixar - disse Louis. - Posso ser o mergulhador de cápsula, mas não sou teu escravo.

 

- Ei, prestem atenção, seus animais! - a voz de Larry gritou através do pequeno altifalante. o som ecoou pela esfera apertada, num tom que quase provocou dor. - Sr. Davidson quer dizer-vos uma coisa, portanto calem-se!

 

Richard atirou a barbatana e o seu par para as mãos de Michael, e depois olhou para a câmara.

 

- Está bem, está bem - disse ele. - Estamos a ouvir.

 

- Aguardem um momento - disse a voz de Larry. - Não tínhamos percebido que o descodificador de hélio não estava ligado.

 

- Dá-me lá as minhas barbatanas - disse Richard a Michael enquanto esperavam.

 

- Quer dizer que as que eu tenho não são as minhas?

 

- Seu anormal! - disse Richard num tom de gozo. - Se estás com as tuas na mão, não podem estar nos pés, estúpido!

 

Michael acocorou-se de uma maneira estranha, e pondo as suas barbatanas debaixo do braço, conseguiu tirar as que tinha nos pés. Richard pegou nelas com desdém. Em seguida, os dois mergulhadores chocavam um com o outro, enquanto se esforçavam por enfiar, ao mesmo tempo, as respectivas barbatanas.

 

- OK, rapazes - disse a voz de Larry. - Estamos ligados ao codificador e por isso parem e ouçam! Vai falar o Sr. Davidson.

 

Os mergulhadores não se deram ao trabalho de olhar para cima. Encostaram-se à estrutura da CTP e fizeram uma expressão de aborrecimento.

 

- Não estamos a conseguir contactar com o Oceanus através do UQC, nem o encontramos com o sonar - disse a voz de Mark. Precisamos que vocês estabeleçam contacto visual. Se não os virem quando chegarem à entrada do poço, digam-nos e nós transmitiremos mais instruções. Compreenderam?

 

- Afirmativo - disse Richard. - Agora já podemos continuar a preparação para o mergulho?

 

- Afirmativo - disse Mark.

 

Richard e Michael movimentaram-se e, dando um ao outro um ínfimo espaço de manobra, conseguiram pôr as barbatanas nos pés. Michael tentou mesmo apanhar o seu boné enquanto Richard colocava o seu colete de flutuação e os pesos, mas, tal como ele previra, não conseguiu dobrar-se.

 

Cinco minutos depois, a voz do operador do guincho disse-lhes que estavam a passar os duzentos e setenta metros. Depois dessa informação, a descida passou a fazer-se bastante mais lentamente. Enquanto Richard e Michael tentavam atrapalhar o mínimo possível, Louis ia preparando as mangueiras. Enquanto mergulhador de cápsula, era a ele que competia manobrar os cabos.

 

- Luzes exteriores acesas - anunciou Larry

 

Richard e Michael torceram-se o suficiente para espreitar pelas duas minúsculas janelas de observação, uma de cada lado da cápsula. Louis estava demasiado ocupado para olhar para qualquer uma das outras duas janelas.

 

- Vejo o fundo - disse Richard.

- Eu também - disse Michael.

 

Apenas com um cabo principal de suporte, a cápsula de mergulho fazia uma ligeira rotação, apesar de esta ser limitada pelos cabos do sistema de apoio à vida. A cápsula girava numa direcção várias vezes, e em seguida virava e girava para o outro lado. Quando a cápsula chegou aos trezentos metros e parou, a rotação tornou-se mais lenta e acabou também por parar, não antes de cada mergulhador poder ter uma vista de 360 graus.

 

Uma vez que a cápsula estava suspensa quatro metros acima da superficie da rocha de uma das secções mais altas do topo da montanha, os mergulhadores podiam observar uma vasta área definida pela iluminação das luzes exteriores de halogéneo. Avista só estava limitada a oeste, estando nessa direcção obstruída por uma crista rochosa. A Richard e Michael, a crista aparecia como uma série de colunas ligadas umas às outras, cujo topo era ligeiramente mais alto do que o seu campo de visão. Mas mesmo essa formação estava na periferia da esfera de luz.

 

- Consegues ver o submarino? - perguntou Richard a Michael.

- Ná! - disse Michael. - Mas estou a ver as peças e as ferramentas ao pé da entrada do poço. Está tudo ali, muito bem empilhado.

 

Richard desviou-se da janela de observação e virou-se para a câmara.

 

- Negativo, em relação ao Oceanus - disse ele. - Mas já esteve aqui.

 

- Então vai haver alteração ao plano do mergulho - respondeu a voz de Larry. - o Sr. Davidson quer que os mergulhadores vermelho e verde prossigam precisamente para oeste. Conseguem ver uma escarpa nessa direcção?

 

- Que diabo é uma escarpa? - perguntou Richard.

 

- É uma parede, ou uma arriba - disse Mark rapidamente. Sim, acho que sim - disse Richard. Olhou para trás para a crista de colunas.

 

- o Sr. Davidson quer que vocês se dirijam para cima da crista - disse Larry - A que altura está a crista, em relação à cápsula?

- Muito perto - disse Richard.

 

- Okay, nadem por cima da crista e vejam se conseguem estabelecer contacto visual com o submersível. o Sr. Davidson pensa que talvez haja aí alguma cavidade. E tomem atenção à temperatura. Parece que existe um gradiente nessa área.

 

- Entendido - disse Richard.

 

- E não se esqueçam - acrescentou Larry - estão limitados a Um mergulho de quarenta e cinco metros. Não se elevem mais do que três metros acima da cápsula. Não queremos deitar tudo a Perder. Percebido?

 

- Percebido - repetiu Richard. As recomendações de Larry eram as normais para um mergulho de saturação.

 

- Mergulhador de cápsula - disse Larry - o composto de respiração tem de ficar com um e meio por cento de oxigénio e noventa e oito e meio por cento de hélio. Entendido?

 

- Entendido - disse Louis.

 

- Uma última coisa - disse Larry. - Mergulhadores vermelho e verde, não quero que se armem em machões nem que corram qualquer risco, portanto tenham cuidado.

 

- Certo! - disse Richard. Fez um sinal com o polegar para cima, virado para a câmara, enquanto fazia uma careta para Michael dizendo: - Dizerem-nos para termos cuidado aqui em baixo é como dizer a um filho para ter cuidado antes de o mandarmos ir brincar para o meio da auto-estrada.

 

Michael acenou afirmativamente com a cabeça, mas não estava a ouvir. Esta fase do mergulho era para ser levada a sério. Concentrou-se apenas no que estava a fazer, enquanto ligava o seu cordão umbilical e a restante parafernália. Quando ficou pronto, Louis entregou-lhe a máscara, que lhe cobria toda a face e que estava montada dentro de um capacete em fibra de vidro, de um cor de laranja vivo. Michael colocou-a debaixo do braço e esperou por Richard. Apesar da sua larga experiência, ficava sempre arrepiado antes do momento de entrar na água.

 

Em breve, Richard estava também totalmente equipado. Pegou em seguida em duas lanternas subaquáticas, verificou se funcionavam, e passou uma a Michael. Quando ficou pronto, acenou para Michael e ambos colocaram os capacetes precisamente ao mesmo tempo.

 

A primeira coisa que verificaram depois de Louis abrir o tubo de ventilação foi o fluxo de gás. Em seguida, a água quente, uma medida necessária uma vez que a temperatura exterior da água era de apenas 20 C; era difícil, para um mergulhador, trabalhar, se sentisse frio. Por fim, verificaram o sistema de comunicação e os fios do sistema de apoio à vida.

 

Quando tudo estava em ordem, Louis informou a superfície e pediu autorização para os mergulhadores entrarem na água.

 

- Autorização concedida - respondeu a voz de Larry. - Abram a escotilha!

 

Com alguma dificuldade e muitos grunhidos, Louis conseguiu empurrar a sua estrutura volumosa pela saída da cápsula.

 

- o meu boné! - gritou Michael, apesar da sua voz ser abafada pelo som do fluxo do gás de respiração.

 

Louis agarrou no boné de basebol e entregou-o a Michael. Este, com todo o cuidado, pendurou-o numa das várias protuberâncias existentes na cápsula. Tratava-o como se fosse o objecto mais valioso que possuía. Mas o que ele não queria admitir, era que considerava o boné o seu amuleto da sorte.

 

Louis destrancou a escotilha de pressão e, com alguma dificuldade, levantou-a. Encostou-a à parede. Lá em baixo, a luminosa água azul-marinho, elevou-se ameaçadoramente em direcção à entrada da cápsula. Cada um dos três mergulhadores suspirou silenciosamente de alívio quando, tal como seria de prever, a água parou mesmo antes de tocar a borda da escotilha. Todos eles sabiam que ela pararia aí, mas também sabiam que se não parasse não haveria nenhum sítio para onde pudessem fugir.

 

Richard fez um sinal de okay com o polegar. Michael respondeu com o mesmo gesto. Então, Richard desceu cuidadosamente pela abertura e saltou do fundo da cápsula.

 

Para Richard, sair da apertada cápsula era um alívio que ele comparava ao nascimento. A súbita sensação de liberdade era estonteante. A única parte do seu corpo que podia sentir o frio da água, eram as mãos enluvadas. Ele observou a área que o rodeava, enquanto ajustava a sua flutuação. Só demorou um momento até ver a sombra escura que passava mesmo na periferia da luz. Não era o submersível. Era um tubarão com os olhos luminosos. o comprimento do enorme peixe era mais do dobro do diâmetro da cápsula de mergulho.

 

- Temos companhia - disse Richard calmamente. - É melhor atirares o meu bastão e dizeres ao Michael para trazer o dele, não vá isto dar para o torto. - De toda a parafernália antitubarão que existia no mercado, Richard preferia um simples bastão de metal com pouco mais de um metro. Já tinha tido a experiência de como os tubarões fugiam do bastão como da peste se este estivesse apontado na direcção deles. Não tinha tanta certeza que o bastão funcionasse durante o frenesim existente no meio de uma refeição de tubarões, mas numa situação dessas nada resultava a cem por cento.

 

Uns segundos depois, o bastão caiu e bateu na rocha sem qualquer ruído. Um instante mais tarde apareceram as pernas de Michael, enquanto este se esforçava por sair através da abertura. Depois de ele estar cá fora, os dois mergulhadores estabeleceram contacto visual. Richard fez um gesto na direcção do tubarão, que estava agora a dirigir-se para a luz.

 

- Ah, é só um tubarão Greenland - disse Richard a Louis, o qual se assegurou de que Michael também tinha ouvido. Agora, Louis estava ainda menos preocupado. Era um tubarão grande, mas não perigoso. Ele sabia que o outro nome daquele tubarão era tubarão sonolento, devido aos seus hábitos indolentes.

 

Depois de Michael ter feito todos os seus ajustamentos, Richard apontou na direcção da crista. Michael acenou, e os dois começaram a dirigir-se para lá. Ambos seguravam as suas lanternas na mão esquerda e os bastões na direita. Sendo óptimos nadadores, eles chegaram ao destino em pouco tempo sem terem nadado à pressa. Numa pressão de quase trinta atmosferas, o mero trabalho de respirar o viscoso ar comprimido, tirava-lhes as energias.

 

Dentro da cápsula de mergulho, Louis atarefava-se freneticamente com a manipulação de ambos os pares de correntes. Não queria restringir os mergulhadores, mas também não queria dar-lhes demasiada extensão, para que eles não corressem o risco de ficar entrelaçados. Até os mergulhadores começarem a trabalhar, o mergulhador de cápsula tinha bastante que fazer. o seu trabalho requeria concentração e reflexos rápidos. Ao mesmo tempo que manipulava as correntes, Louis tinha que verificar os indicadores de pressão e os leitores digitais da percentagem do oxigénio. Para além disso, ele mantinha-se em permanente comunicação com cada um dos mergulhadores e com a sala de controle de mergulho à superfície. Para poder ter as mãos livres, tinha um pequeno fone no ouvido e um microfone posicionado em frente da boca.

 

Lá fora, na água, os dois mergulhadores nadaram para o topo da crista e pararam. À distância que estavam da cápsula de mergulho, a qualidade de iluminação era muito precária. Richard apontou para a sua lanterna e ambos ligaram os aparelhos.

 

Por trás deles, a cápsula emitia um brilho soturno, como um satélite repousando numa rochosa paisagem alienígena. Uma corrente de bolhas saía dela e dirigia-se para a superfície distante. À sua frente, os mergulhadores tinham apenas escuridão indelével e cada vez mais densa, tendo apenas um ínfimo sinal de claridade quando olhavam na direcção da superfície, quase mais de trezentos metros acima. Algures na sua mente, permanecia a certeza da presença do tubarão, em algum sítio que eles não podiam ver. A luz das lanternas, dirigida para a frente, proporcionava pequenos cones de luz que penetravam apenas doze ou quinze metros, na escuridão gélida.

 

- Há uma espécie de descida do outro lado da crista - informou Richard. - Deve ser a tal escarpa.

 

Louis transmitiu a informação para o controle de mergulho na superfície. Apesar do controle de superfície conseguir ouvir os mergulhadores e falar com eles, Larry preferia usar a cápsula como intermediário. A combinação da distorção de voz provocada pelo hélio e do barulho do fluxo de gás respiratório tornava extremamente difficil a compreensão para quem estava na sala de controle, mesmo usando o descodificador. Era muito mais eficiente usar o mergulhador de cápsula, uma vez que este estava mais acostumado às distorções do discurso.

 

- Mergulhador vermelho - chamou Louis. - o controle quer saber se há algum sinal do Oceanus.

 

- Negativo - disse Richard.

 

- E vêm alguma cavidade, ou um buraco? - quis saber Louis.

- Neste momento não - informou Richard. - Mas vamos começar a descer a parede rochosa.

 

Richard e Michael nadaram por cima da colina e desceram pela parede.

 

- A rocha é tão lisa como se fosse de vidro - comentou Richard. Michael acenou com a cabeça, concordando. Ele já tinha passado a mão pela parede.

 

- Estão a chegar aos últimos trinta metros de mangueira disse Louis. Tirou rapidamente os últimos metros que estavam enrolados e pendurados em ganchos, enquanto praguejava baixinho. Em breve teria que recolher de novo toda a mangueira. Era raro que os mergulhadores se afastassem tanto da cápsula de mergulho, e tinha sido pouca sorte sua, ser nomeado mergulhador de cápsula quando isso acontecera.

 

Richard parou de descer. Agarrou Michael para que este parasse também e apontou para o seu termómetro de pulso. Michael também olhou para o seu, e voltou a olhar uma segunda vez, incrédulo.

 

- A temperatura da água mudou mesmo agora - informou Richard. - Subiu quase 8 c.Corta o fluxo de água quente!

 

- Estás a gozar comigo, mergulhador vermelho? - perguntou Louis.

 

- o termómetro do Michael faz a mesma leitura - disse Richard.

- É como se tivéssemos entrado numa banheira de água quente. Richard tinha estado a apontar a luz da sua lanterna, enquanto desciam, tentando ver a base da escarpa. Agora fazia-a incidir à sua volta. Mesmo na periferia da luz ele conseguiu distinguir uma Parede situada no lado oposto àquele por onde eles desciam.

 

- Ei! Parece que estamos numa espécie de cavidade enorme disse ele. - Consigo ver o outro lado, mas com muita dificuldade. Deve ter uns quinze metros de largura.

 

Michael deu uma ligeira pancada no ombro de Richard e apontou para o lado esquerdo.

 

- Também há uma parede aqui deste lado - disse ele.

 

- o Michael tem razão - disse Richard depois de olhar. Deu uma volta e apontou a luz na direcção oposta. - Acho que é uma espécie de desfiladeiro fechado, porque não consigo ver um quarto lado, pelo menos não daqui.

 

- Ei - disse Michael. - Estamo-nos a afundar!

 

Richard olhou para a rocha por detrás de si. Era verdade, estavam a afundar-se, e mais depressa do que ele alguma vez pensara ser possível. Não sentiam grande resistência contra a força da água.

 

Richard e Michael deram alguns impulsos violentos para cima. Para grande espanto deles, isso não produziu grande efeito. Continuavam a afundar-se. Com um misto de confusão e susto, ambos reagiram por reflexo e insuflaram os seus coletes de flutuação. Quando verificaram que também isso não resultava, lançaram os seus cintos de pesos. Sentindo-se ainda a descer, atiraram os bastões. Finalmente, e após uma outra série de impulsos, a descida tornou-se mais lenta e acabou por parar.

 

Richard apontou para cima, e ambos começaram a nadar. Apesar do grande esforço que faziam para respirar, conseguiram nadar vigorosamente. o estranho episódio tinha-os deixado nervosos, e para piorar ainda mais as coisas, começavam a sentir o calor através dos fatos.

 

Estavam quase a chegar ao cimo da colina, quando uma súbita e contínua vibração, se elevou das profundezas, como uma onda de choque. Por alguns instantes, os dois homens ficaram ligeiramente desorientados. Estava a ser-lhes difícil respirar e nadar ao mesmo tempo. o tremor era semelhante ao que eles tinham sentido dentro da cápsula de mergulho durante a descida, só que muito pior. Eles perceberam que se tratava de um tremor de terra subaquático e sentiram, intuitivamente, que estavam perto, ou mesmo no próprio, epicentro.

 

Para Louis, o tremor foi ainda mais violento. No momento do impacto ele estava freneticamente a puxar as correntes, que de repente tinham ficado mais soltas. Tinha sido forçado a largar os cabos para não ficar espetado numa das saliências montadas na parede.

 

Richard recuperou o suficiente para respirar fundo, apesar de isso lhe ser muito doloroso. A onda de pressão tinha-o magoado no peito. Sendo um mergulhador experiente, a sua primeira reacção fora verificar a situação do seu companheiro, e procurou-o freneticamente, virando-se para todos os lados. Por um segundo, pensou que não conseguia encontrar Michael, e o seu coração quase parou. Depois olhou para baixo. Michael parecia estar a tentar agarrar a água com as mãos, tentando subir. Richard inclinou-se para baixo para lhe estender a mão. Quando o fez, apercebeu-se de que se estaVam ambos a afundar - e muito rapidamente.

 

Sem ter outro modo de diminuir o seu peso, Richardjuntou-se a Michael na sua tentativa de nadar para cima. Em desespero, livraram-se das lanternas para terem as mãos livres. Mas não saíam do mesmo sítio. Se algum movimento havia, era para baixo. Então caíram rapidamente, resvalando pela parede da rocha, enquanto eram inexoravelmente puxados para o abismo.

 

No interior da cápsula, Louis tinha recuperado suficientemente o equilíbrio para agarrar as correntes, que estavam ainda soltas. Rapidamente, ele enrolou-as, mas antes de as conseguir pendurar, sentiu um súbito puxão na direcção contrária. Primeiro tentou segurar as correntes para evitar que saíssem, mas era impossível. Se as tivesse segurado, teria sido puxado também para fora da cápsula.

 

Louis praguejou enquanto saía furiosamente do caminho das mangueiras, que estavam agora a escorregar para fora da cápsula, a uma velocidade estonteante. Era como se Ríchard e Michael fossem iscos que tivessem sido apanhados por um peixe gigante.

 

- Mergulhador de cápsula, está tudo bem por aí? - perguntou a voz de Larry.

 

- Sim, eu estou bem! - gritou Louis. - Mas algo de estranho se está a passar! As mangueiras estão a sair a cem quilómetros à hora!

 

- Nós estamos a ver aqui no monitor - disse Larry apressadamente. - Não se podem parar?

 

- Como? - implorou Louis, berrando. Olhou para a extensão de mangueira que restava. Já não era muita. Sentiu-se gelar. Não sabia o que havia de pensar. As últimas voltas escorregaram para fora da cápsula e, por um breve instante, ficaram esticadas. Então, para grande horror de Louis, elas foram arrancadas dos seus suPortes, desapareceram pelo poço que dava para a saída da cápsula e saíram para o mar impíedoso.

 

- oh, meu Deus! - gritou Louis, enquanto se esforçava por desligar o tubo de distribuição do gás.

 

- o que é que está a acontecer aí em baixo? - quis saber Larry.

- Não sei - gritou Louis. Então, para aumentar ainda mais o seu terror, a vibração e os abanões começaram de novo. Em pânico, ele tentou agarrar-se a alguma coisa enquanto a cápsula de mergulho abanava como se fosse um saleiro nas mãos de um gigante. Ele gritou e, como em resposta a uma oração, os abanões diminuíram de intensidade, transformando-se num ligeiro estremecimento. Ao mesmo tempo, apercebeu-se de um som sibilante e de um brilho vermelho que entrava através das janelas de observação.

 

Tentando recuperar do susto de morte que sentira durante o tremor, Louis virou-se para olhar através de uma dasjanelas de observação. o que viu deixou-o de novo petrificado. Por cima da crista que os mergulhadores tinham escalado havia tão pouco tempo, elevava-se uma surreal cascata de lava quente, vermelha e brilhante. o ponto mais alto do jacto expelia a lava explosivamente, borbulhava e fumegava enquanto transformava a água gelada, em vapor.

 

Quando Louis recuperou o suficiente para poder falar, atirou a cabeça para trás para olhar para a lente da câmara de televisão.

- Tirem-me daqui! - gritou ele. - Estou no meio de um vulcão em erupção!

 

Tinha-se feito silêncio no interior da sala de controle. Uma sensação de choque espalhava-se pelo compartimento. o único ruído provinha dos motores montados no convés, puxando os ganchos que içavam a cápsula de mergulho e os cabos do sistema de suporte à vida. Uns momentos antes tinha-se gerado um pandemónio, quando se tornara claro que tinham perdido dois mergulhadores numa espécie de tragédia piroclástica. o único consolo era que o terceiro mergulhador estava bem, e já vinha a caminho da superficie.

 

Mark inspirou longa e nervosamente o fumo do seu Marlboro. Esquecido das novas regras, ele tinha pegado nos cigarros, por reflexo, aos primeiros sinais de problema, e agora que a verdadeira extensão da tragédia se revelava, ele fumava cigarro atrás de cigarro, devido à ansiedade que sentia. Não só tinha conseguido perder um submersível que valia cem milhões de dólares, com dois operadores experientes, e mais dois experientes mergulhadores de saturação; também tinha perdido o presidente da Benthic Marine. Se ao menos ele não tivesse insistido com Perry Bergman para que este participasse no mergulho. Era ele o único responsável por isso.

 

- Que raio vamos fazer? - perguntou Larry manifestando o espanto e confusão que sentia. Até ele estava a fumar, apesar de supostamente ter desistido há seis meses atrás. Como supervisor de mergulho, também ele se sentia responsável pelo desastroso acontecimento.

 

Mark deu um grande suspiro. Sentia-se fraco. Nunca, em toda a sua carreira, lhe tinha acontecido perder uma vida à sua responsabilidade, e isso incluía complicadíssimas operações de mergulho em locais arriscados como o Golfo Pérsico durante a Tempestade do Deserto. E agora tinha perdido cinco pessoas. Era demasiado para ele conseguir, sequer, pensar.

 

- A cápsula está a passar os cento e cinquenta e cinco metros disse o operador do guincho em voz alta, para ninguém em particular.

 

- E a operação de perfuração? - perguntou Larry a si próprio, em voz alta.

 

Mark deu novamente um longo trago no seu cigarro e quase queimou os dedos. Deitou-o fora furiosamente e acendeu outro.

 

- Preparar para lançar o suporte móvel da câmara - disse Mark. - Temos que ver o que se está a passar lá em baixo.

 

- o Mazzola foi muito claro - disse Larry, em voz arrastada.

- Enquanto o puxávamos para cima, ele disse que todo o cimo da montanha submarina era lava fundida, borbulhando por detrás da crista. E estamos a gravar tremores contínuos. Estamos em cima de um vulcão activo, que diabo. Tens a certeza que queres a câmara móvel lá em baixo, naquele inferno?

 

- Quero ver o que se passa - disse Mark devagar -, e quero gravar tudo. Tenho a certeza que vai haver a porcaria de um inquérito por causa desta confusão. E quero ver o desfiladeiro ou o buraco pelo qual o Oceanus desapareceu. Tenho que ter a certeza que não há hipótese nenhuma... Mark não terminou a frase. Sabia, lá no fundo, que não adiantava nada; Donald Fuller tinha conduzido o submersível para dentro da caldeira de um vulcão, momentos antes da sua erupção.

 

- Compreendo - concedeu Larry. - Vou providenciar para que a tripulação prepare a câmara móvel. Mas... e a broca? Espero que não estejas a pensar em mandar para baixo outra equipa quando, ou se, o vulcão acalmar.

 

- Não, que diabo! - disse Mark, emotivamente. - Perdi o interesse em perfurar esta montanha esquisita, especialmente agora que Perry Bergman já não está connosco. A obsessão era dele, não minha. Se a câmara móvel confirmar que a caldeira, ou lá o que aquilo é, está cheia de lava recente, e se não encontrarmos nenhum sinal do Oceanus, saímos logo daqui.

 

- Parece-me bem! - disse Larry, levantando-se. - Vou mandar Preparar o suporte móvel e estará na água o mais depressa possível.

- Obrigado - disse Mark. Inclinou-se para a frente e pousou a cabeça nas mãos. Nunca se tinha sentido tão mal em toda a sua vida.

 

Suzanne foi a primeira a recuperar o suficiente da terrível descida precipitada para conseguir falar. Com uma voz hesitante disse:

- Acho que parámos, graças a Deus!

 

Durante o que parecera uma eternidade aos seus três aterrorizados ocupantes, o submersível tinha caído como uma pedra, pelo misterioso fosso abaixo. Era como se tivessem sido engolidos por um enorme cano, no fundo do oceano. Enquanto se afundava, o Oceanus não respondera a nenhum dos comandos que Donald Fuller manipulara.

 

Apesar de inicialmente o barco descer em linha recta, acabou por descer em espiral e fazer mesmo ricochete nas paredes. Uma das primeiras colisões destruiu as luzes de halogéneo exteriores. Outra arrancou o manipulador de estibordo com um choque estridente.

 

Perry fora o único que gritara enquanto tudo se estava a passar, mas mesmo ele ficara silencioso ao tomar consciência do desespero da sua situação. A única coisa que podia fazer era olhar com impotência para o gravador digital de profundidade, enquanto este ia avançando às centenas. Os números tinham passado tão rapidamente, que não se conseguiam ler. E quando se estavam a aproximar dos seis mil e duzentos metros, tudo o que ele conseguira pensar fora na terrível expressão que tinha ouvido: a profundidade de choque!

 

- De facto, penso que não nos estamos a mover - acrescentou Suzanne. Estava a falar muito baixo. - o que poderá ter acontecido? Será que estamos no fundo? Não senti qualquer impacte.

 

Ninguém moveu um único músculo, com receio que isso pudesse perturbar a súbita e bem-vinda tranquilidade. Respiravam con, dificuldade, fazendo pequenas inspirações, e gotas de transpiração brilhavam nas suas testas. Ainda estavam os três agarrados aos seus assentos, com medo de que o mergulho pudesse recomeçar.

 

- Parece que parámos, mas olhem para o indicador de profundidade - conseguiu Donald dizer. A sua voz estava áspera, devido à secura da sua garganta.

 

Todos os olhos se voltaram, de novo, para o leitor de profundidade que até há poucos minutos atrás prendera todas as atenções. Estava de novo em movimento, lentamente ao princípio, mas ganhando rapidamente velocidade. A diferença era que estava a andar na direcção oposta.

 

- Mas eu não sinto qualquer movimento - disse Suzanne. Ela expirou profundamente e tentou relaxar os músculos. Os outros imitaram-na.

 

- Nem eu - admitiu Donald. - Mas olhem para o indicador! Está a ficar maluco.

 

O leitor de profundidade tinha voltado à anterior velocidade frenética.

 

Suzanne inclinou-se, devagar, para a frente, como se pensasse que o submersível estava em equilíbrio precário e o seu movimento o pudesse fazer cair. Espreitou pela janela de observação, mas tudo o que conseguiu ver foi a sua própria imagem. Com as luzes exteriores arrancadas pelas colisões com a rocha, a janela estava tão opaca como um espelho, reflectindo a luz interior.

 

- Que está a acontecer agora? - perguntou Perry, com uma voz estranha.

 

- Sabemos tanto como você - respondeu Suzanne. Respirou fundo. Estava a começar a sentir-se melhor.

 

- o indicador de profundidade diz que estamos a subir - disse Donald. Deu uma olhadela aos outros instrumentos, incluindo os monitores do sonar. Os seus sinais erráticos sugeriam que existiam muitas interferências na água, afectando particularmente o sonar de curto-alcance. o sonar lateral estava um pouco melhor, com menos ruído electrónico, mas era difícil de interpretar. A imagem pouco distinta, indiciava que o submarino estava completamente imóvel, numa superfície vasta e perfeitamente plana. Os olhos de Donald dirigiram-se de novo para o indicador de profundidade. Sentia-se intrigado; em contraste com o que o sonar sugeria, estavam ainda a subir, e mais depressa do que há uns momentos atrás. Ele reabriu rapidamente os tanques de lastro, mas isso não produziu qualquer efeito. Em seguida, virou os planadores para baixo e acrescentou Potência ao sistema de propulsão. Os comandos não responderam. Continuavam a subir, apesar de tudo.

 

- Estamos a acelerar - avisou Suzanne. - A subir a esta velocidade, estaremos na superfície dentro de dois minutos!

 

- Mal posso esperar - disse Perry, obviamente aliviado.

 

- Espero que não estejamos a subir por baixo do Benthic Explorer

- disse Suzanne. - Seria um grave problema.

 

Todos os olhares estavam voltados para o indicador de profundidade. Passou os trezentos metros e não mostrou sinais de abrandamento. Os 155 metros passaram. Quando passavam os trinta metros Donald disse em tom de alarme:

 

- Segurem-se! Vamos subir em flecha.

 

- Que quer dizer com isso de «subir em flecha?» - gritou Perry. Ele tinha ouvido o desespero na voz de Donald, e isso provocara-lhe um novo arrepio.

 

- Quer dizer que vamos saltar para fora da água! - gritou Suzanne, repetindo em seguida o aviso de Donald. - Segurem-se! Enquanto a velocidade frenética do indicador de profundidade chegava a um crescendo, Perry, Donald e Suzanne seguraram-se de novo aos assentos, agarrando-os com força. Sustendo a respíração, prepararam-se para o impacte. o indicador de profundidade chegou ao zero e parou.

 

Imediatamente a seguir ao clique final do indicador, fez-se ouvir um enorme barulho de sucção, vindo de um lado qualquer do exterior da nave. Depois disso, um silêncio relativo espalhou-se pelo interior do submarino. o único ruído era agora o da ventoinha de ventilação e o zumbido electrónico do sistema propulsor, maior do que o normal, mas, ainda assim, abafado.

 

Passou quase um minuto, sem a mínima sensação de movimento. Finalmente, Perry deixou sair o ar que estivera a conter.

 

- Bem - disse ele. - Que aconteceu?

 

- Não podemos estar a pairar durante este tempo todo - admitiu Suzanne.

 

Todos tentaram relaxar do pânico que tinham sentido e olharam através das respectivas janelas de observação. Estava tudo negro como breu.

 

- Mas que diabo? - interrogou Donald. Olhou de novo para os instrumentos. Os monitores do sonar estavam agora repletos de ruídos electrónicos sem sentido. Ele desligou-os. Desligou também o sistema de propulsão e o zumbido deste parou. Depois olhou para Suzanne.

 

- Não me perguntes - disse Suzanne quando os seus olhares se cruzaram. - Não faço a mais pequena ideia do que é que se está a passar.

 

- Como é que pode estar escuro lá fora, se estamos na superfície?

- perguntou Perry.

 

- Isto não faz sentido nenhum - disse Donald. Olhou mais uma vez para os seus instrumentos. Inclinando-se para a frente, ligou de novo o sistema de propulsão. o zumbido recomeçou, mas não houve qualquer movimento. A nave permanecia perfeitamente imóvel.

 

- Alguém me pode dizer o que se está a passar? - pediu Perry. A euforia que sentira há alguns minutos atrás tinha-se dissipado. Eles não estavam, obviamente, na superficie.

 

- Nós não sabemos o que se está a passar - admitiu Suzanne.

- Não há qualquer resistência ao propulsor - informou Donald. Desligou o sistema propulsor. o zumbido extinguiu-se pela segunda vez. o único som era agora o da ventoinha de ventilação. - Acho que estamos ao ar livre

 

- Como é que podemos estar ao ar livre? - disse Suzanne. Está tudo escuro e não há actividade de ondas.

 

- Mas é a única explicação para o facto de o sonar não estar a funcionar e para a falta de resistência ao propulsor - disse Donald.

- E repara. A temperatura exterior subiu para os 210 C. Temos de estar ao ar livre.

 

- Se isto é a nossa outra vida, ainda não estou preparado para ela - disse Perry.

 

- Queres dizer que estamos completamente fora da água? Suzanne sentia ainda dificuldade em acreditar.

 

- Eu sei que parece muito estranho - admitiu Donald. - Mas é a única maneira que tenho para explicar tudo, incluindo o facto do telefone subaquático não estar a funcionar. - Em seguida, Donald experimentou a rádio, e também não aconteceu nada.

 

- Se estamos em terra firme - disse Suzanne - como é que ainda não nos desequilibrámos? Quer dizer, o casco é cilíndrico. Se estivéssemos em terra firme, já teríamos, com certeza, rolado para o lado.

 

- Tens razão! - admitiu Donald. - Não sei como explicar isso. Suzanne abriu o cacifo de emergência, entre os assentos dos dois pilotos, e tirou uma lanterna. Ligando-a, apontou-a para fora através da sua janela de observação. Lá fora, comprimido contra a janela, via-se uma espécie de sedimento de cor creme e de textura grosseira.

 

- Ao menos já sabemos por que é que não nos desequilibramos - disse Suzanne. - Estamos em cima duma camada de vasa de globigerina.

 

- o que é isso? - perguntou Perry. Ele tinha-se inclinado para a frente para conseguir ver.

 

- A vasa de globigerina é o sedimento mais comum que se encontra no solo do oceano - disse Suzanne. - É composto principalmente por carcaças de um tipo de plâncton chamado foraminífero.

 

- Como é que podemos estar sobre sedimento do oceano e ao ar livre? - perguntou Perry.

 

- Essa é que é a questão - concordou Donald. - Não podemos, pelo menos eu não vejo como é que isso seria possível.

 

- Também é impossível existir vasa de globigerina tão perto da crista do Atlântico-Médio - disse Suzanne. - Esse tipo de sedimento encontra-se em planícies do fundo do oceano. Nada disto faz sentido.

 

- Isto é absurdo! - disse Donald em tom zangado. - Não estou a gostar mesmo nada do que se está a passar. Seja lá onde for que nós estamos, estamos presos!

 

- Será que estamos completamente enterrados em vasa? perguntou Perry, hesitante. Se tivesse razão, não ia gostar de o saber,

- Não! Nem pensar - disse Donald. Se assim fosse haveria maior resistência ao propulsor, não menor.

 

Durante alguns minutos ninguém disse nada.

 

- Há alguma hipótese de estarmos dentro da montanha? - perguntou Perry, quebrando finalmente o silêncio.

 

Donald e Suzanne viraram-se para ele.

 

- Como é que podíamos estar dentro de uma montanha? - perguntou Donald, realmente zangado.

 

- Ei, é só uma ideia - disse Perry. - o Mark disse-me, ainda esta manhã, que tinha alguns dados do radar que sugeriam que a montanha podia conter gás, em vez de lava fundida.

 

- Ele nunca me falou sobre isso - disse Suzanne.

 

- Ele não falou nisso a ninguém - disse Perry. - Ele não estava muito seguro acerca das informações, uma vez que provinham de um estudo superficial da camada que estamos a tentar perfurar. Era uma especulação, e só me falou no assunto de passagem.

 

- Que tipo de gás? - perguntou suzanne, enquanto na sua mente tentava imaginar como é que, dentro de um vulcão submerso podia não existir água nenhuma. Geofisicamente falando, parecia ser algo impossível, apesar de ela saber que, em terra, alguns vulcões ruíam para o seu interior, formando assim caldeiras.

 

- Ele não fazia a mínima ideia - disse Perry - Acho que estava convencido de que era vapor, preso lá dentro pela camada dura que nos estava a dar tanto trabalho.

 

- Bem, vapor não pode ser - disse Donald. - Não com uma temperatura de quase 211 C.

 

- Pode ser gás natural? - sugeriu Perry.

 

- Não me parece - disse Suzanne. - Estando tão perto da Crista do Atlântico-Médio, esta área é geologicamente recente. Não pode existir aqui petróleo ou gás natural.

 

- Então talvez seja ar - disse Perry.

 

- E como é que poderia ter chegado até aqui? - perguntou Suzanne.

 

- Você é que poderá saber - disse Perry. - Você é que é a oceanógrafa geofisica, não sou eu.

 

- Se é de facto ar, não há nenhuma explicação natural que eu conheça - disse Suzanne. - É tão simples quanto isso.

 

Olharam os três uns para os outros, durante algum tempo.

 

- Parece-me que o que temos a fazer é abrir a escotilha e ver disse Suzanne.

 

- Abrir a escotilha? - perguntou Donald. - E se o gás não for respirável, ou se for tóxico?

 

- Acho que não temos escolha - disse Suzanne. - Não temos maneira de comunicar. Estamos como peixes fora de água. Temos material de sobrevivência que dá para dez dias, mas o que é que acontece a seguir a isso?

 

- Não vamos sequer pôr essa questão. - disse Perry, nervoso.

- Eu acho que devíamos abrir a escotilha.

 

- Está bem! - disse Donald com resignação. - Enquanto capitão é a mim que compete fazê-lo. - Ele ergueu-se do seu assento de piloto e deu um passo de gigante contornando a consola central. Perry afastou-se para que Donald pudesse passar.

 

Donald subiu pelo poço que conduzia à abertura. Fez uma pausa enquanto Suzanne e Perry se posicionavam por baixo dele.

 

- Por que é que não experimentas destrancá-la sem a abrir propôs Suzanne.     Para ver se cheira a alguma coisa.

 

- Boa ideia     disse Donald. Seguiu a sugestão de Suzanne, agarrando o volante central e rodando-o. Os ferrolhos que selavam a abertura retraíram-se em direcção à estrutura da escotilha.

 

- E então? - perguntou Suzanne em voz alta, depois de terem passado alguns momentos. - Cheira-te a alguma coisa?

 

- Só a humidade - disse Donald. - Acho que vou prosseguir. Donald abriu a escotilha por um breve momento e tentou identificar algum cheiro.

 

- o que é que te parece? - perguntou Suzanne.

 

- Parece-me tudo okay - disse Donald com alívio. Abriu um pouco mais a escotilha e cheirou o ar húmido que entrou pela abertura. Quando chegou à conclusão que, tanto quanto podia avaliar, o ar era seguro, abriu totalmente a escotilha e pôs a cabeça de fora. o ar cheirava à humidade salgada própria de uma praia quando a maré está baixa.

 

Donald rodou a cabeça lentamente, em 360 graus, tentando habituar os olhos à escuridão. Não conseguiu ver absolutamente nada, mas sabia intuitivamente que se tratava de um espaço amplo. Estava diante de uma escuridão estranha e silenciosa, que tinha tanto de vasta como de assustadora.

 

Baixando a cabeça de novo para o interior do submersível, pediu que lhe passassem a lanterna.

 

Suzanne foi buscá-la e, enquanto lha entregava, perguntou-lhe o que tinha visto.

 

- Absolutamente nada - respondeu ele.

 

Emergindo de novo pela escotilha, Donald apontou a luz da lanterna para longe. A lama espalhava-se em todas as direcções, tanto quanto a luz permitia ver. Algumas poças de água isoladas reflectiam a luz como espelhos.

 

- Olá! - disse Donald depois de ter colocado as mãos em concha à volta da boca. Esperou um pouco. Fez-se ouvir um ligeiro eco, vindo da direcção da popa do Oceanus. Donald gritou de novo; ouviu-se distintivamente um eco após quatro ou cinco segundos, segundo o que pareceu a Donald.

 

Donald voltou a descer para o interior do submersível fechando a escotilha atrás de si. Os outros olharam para ele, em expectativa.

- Isto é a coisa mais lixada que eu já vi - disse ele. – Estamos numa espécie de caverna que até há pouco tempo estava cheia de água.

 

- Mas agora está cheia de ar - disse Suzanne.

 

- E, definitivamente, ar - disse Donald. - Para além disso, não sei o que é que hei-de pensar. Talvez o Sr. Bergman tenha razão. Talvez tenhamos sido, de algum modo, puxados para dentro da montanha submarina.

 

- Chame-me Perry, por amor de Deus - disse Perry. - Dê-me a luz! Vou dar uma olhadela. - Tirou a lanterna da mão de Donald e subiu desajeitadamente a escada do poço da abertura do submarino. Teve que se segurar com o braço à volta do último degrau e enfiar a lanterna no bolso para conseguir levantar a pesada escotilha cuneiforme.

 

- Meu Deus! - exclamou Perry, depois de ter imitado o que Donald tinha feito, incluindo as experiências com o eco. Voltou a descer mas deixou a escotilha aberta. Entregou a lanterna a Suzanne e foi a vez desta subir.

 

Quando Suzanne voltou, olharam uns para os outros, abanando negativamente a cabeça. Nenhum deles tinha uma explicação para os factos, mas cada um esperava que um dos outros a pudesse ter.

 

- Acho que é evidente - começou Donald, quebrando o silêncio desconfortável - que estamos, no mínimo, numa situação difícil. Não podemos esperar qualquer tipo de ajuda do Benthic Explorer. Depois da série de tremores de terra, eles devem estar convencidos de que fomos vítimas de algum desastre. Talvez mandem para baixo um dos suportes móveis, mas a câmara nunca nos encontrará aqui, onde quer que seja que isto fica. Em resumo, estamos por nossa conta, sem comunicações e com pouca comida e água. Portanto... Donald fez uma pausa, pensativamente.

 

- Portanto, que sugeres? - perguntou Suzanne.

 

- Eu sugiro que vamos lá para fora e que façamos o reconhecimento do local - disse Donald.

 

- E se esta caverna, ou o que quer que isto seja, ficar de novo inundada? - interrogou Perry.

 

- Parece-me que temos de correr o risco - disse Donald. Não me importo de ir sozinho. Se quiserem vir também, é convosco.

- Eu vou - disse Suzanne. -É melhor do que ficar simplesmente aqui sentada sem fazer nada.

 

- Eu não fico aqui sozinho - declarou Perry.

 

- OK - disse Donald. - Temos mais duas lanternas. Vamos levá-las, mas é melhor usarmos só uma para pouparmos energia.

- Vou buscá-las - disse Suzanne.

 

Donald foi o primeiro a sair. Ele utilizou os degraus da escada, montada ao longo do poço de entrada e do casco, para se descer. Os degraus existiam para dar acesso ao submersível quando este estava suportado pelos cunhos do Benthic Explorer.

 

Chegado ao último degrau, Donald apontou a luz para o solo. Verificando a profundidade a que o Oceanus ficou enterrado na lama, estimou que esta devia ter cinquenta a sessenta centímetros.

 

- Há algum problema? - perguntou Suzanne. Ela foi a segunda a sair e viu que Donald estava hesitante.

 

- Estou a tentar perceber qual é a profundidade deste sedimento - disse ele. Ainda agarrado a um dos degraus, baixou o pé direito. o pé desapareceu pela vasa. Só quando a lama lhe estava a chegar ao joelho é que sentiu terra firme.

 

- Isto não vai ser nada agradável - informou ele. - A lama dá-me pelo joelho.

 

- Esperemos que seja esse o único problema - disse Suzanne. Alguns minutos mais tarde, estavam os três em pé no meio da lama. À excepção de um ligeiro brilho que emanava da escotilha aberta do submersível, a única luz provinha da lanterna de Donald. Esta espalhava um pequeno cone de luz na escuridão cerrada. Suzanne e Perry também seguravam lanternas, mas, tal como Donald sugerira, não estavam acesas. Não se ouvia qualquer som em toda aquela escura vastidão. Para poupar a energia do submersível, Donald tinha desligado quase todos os instrumentos, até mesmo a ventoinha de ventilação. Tinha deixado uma luz acesa para servir de farol e ajudá-los a encontrar o submarino, caso se afastassem demasiado.

 

- Isto intimida - disse Suzanne com um estremecimento.

 

- Acho que usaria uma palavra mais forte - disse Perry. Qual é o nosso plano de ataque?

 

- Isso deve ser discutido - disse Donald. - Eu sugiro que sigamos a direcção que o Oceanus está a apontar. Parece-me ser essa a parede mais próxima, pelo menos pela experiência que fiz com o eco. - Olhou para a sua bússola. - É para Oeste.

 

- Parece-me um plano sensato - disse Suzanne.

- Vamos, então - disse Perry.

 

o grupo começou a movimentar-se, com Donald à frente logo seguido por Suzanne. Perry deixou-se ficar atrás dos outros. Era difícil caminhar na lama profunda e o cheiro que dela emanava era um pouco desagradável.

 

Ninguém falava. Cada um deles estava perfeitamente consciente da precariedade da situação, consciência essa que aumentava à medida que se afastavam do submersível. Quando tinham passado dez minutos, Perry insistiu para que se fizesse uma pausa. Ainda não tinham chegado a qualquer parede e a sua coragem começava a enfraquecer.

 

- Andar nesta porcaria não é fácil - disse Perry, evitando assim referir-se à verdadeira questão. - E ainda por cima cheira mal.

- Que distância é que achas que já percorremos? - perguntou

 

Suzanne. Tal como os outros, ela estava exausta e com dificuldade em respirar.

 

Donald virou-se e olhou para o submersível, que não era agora mais do que um ponto de luz na negra escuridão.

 

- Não andámos muito - disse ele. - Talvez uns cem metros.

- Eu diria mil metros, pelo modo como sinto as minhas pernas - comentou Suzanne.

 

- Quanto é que ainda faltará para essa suposta parede? perguntou Perry.

 

Donald gritou de novo, na direcção pela qual seguiam. o eco fez-se ouvir após dois segundos.

 

- Acho que devem faltar mais ou menos trezentos metros. Um súbito movimento e uma série de sons de algo a sacudir-se na escuridão fez com que todos eles dessem um salto. Donald apontou a luz na direcção do barulho. Um peixe aflito fez mais alguns movimentos agonizantes contra a lama molhada.

 

- Oh, meu Deus, assustei-me tanto - admitiu Suzanne. A sua mão estava colocada no peito. o seu coração batia descontroladamente.

 

- Não foi a única - confessou Perry.

 

- Estamos todos compreensivelmente bastante nervosos – disse Donald- - Se vocês quiserem voltar para trás, eu continuo o reconhecimento sozinho.

 

- Não, eu quero ficar - disse Suzanne.

 

- Eu também - disse Perry. A ideia de voltar sozinho para o submersível era pior que a de continuar a caminhar pelo lamaçal.

- Então vamos lá - disse Donald. Começou de novo a andar e os outros seguiram atrás dele.

 

o grupo seguiu em frente, em silêncio. Cada passo que davam no escuro aumentava o medo e a ansiedade que sentiam. Atrás deles, o submersível era engolido pela escuridão. Depois de passados mais dez minutos, todos se sentiam tão tensos como uma corda de piano que estivesse prestes a saltar, e foi então que se ouviu o alarme.

 

o som, que durou pouco tempo, quebrou o silêncio como se fosse uma bala a sair de um canhão. A primeira reacção deles foi ficarem petrificados nos sítios onde se encontravam, tentando desesperadamente perceber de que direcção tinha vindo o barulho. Mas com a multiplicidade de ecos que se lhe seguiram, era uma tarefa impossível. No instante seguinte, começaram a avançar, o mais depressa que conseguiam, de volta para o submersível.

 

Movimentavam-se totalmente em pânico; uma investida louca em direcção à suposta segurança. Infelizmente, a lama não cooperou. Todos eles tropeçaram quase imediatamente e caíram de cabeça na odiosa vasa. Depois de se terem levantado, tentaram novamente correr, mas o resultado foi o mesmo.

 

Sem sequer tentarem falar para chegar a um consenso, resignaram-se com o facto de terem que avançar mais lentamente. Depois de alguns minutos, ao verificarem que não tinham avançado quase nada, perceberam a inutilidade da tentativa de fuga. Uma vez que a caverna não se tinha novamente enchido de água, pararam perto uns dos outros, completamente exaustos.

 

Os múltiplos ecos do horrendo alarme extinguiram-se deixando que a anterior tranquilidade sobrenatural regressasse. o silêncio instalou-se mais uma vez, cobrindo a escuridão profunda como o cobertor asfixiante no pesadelo de Perry.

 

Suzanne levantou as mãos. o lodo, que ela sabia ser uma mistura de carcaças de plâncton e de fezes de inúmeros vermes, pingou-lhe dos dedos. Ela queria desesperadamente passar as mãos pelos olhos, mas não se atrevia. Donald, que estava ligeiramente mais à frente, virou-se e olhou para Suzanne e Perry. O vidro da sua lanterna estava sujo de lama, o que reduzia o seu efeito e o tornava quase invisível Para os outros. Eles só conseguiam distinguir o branco dos seus olhos.

 

- Que alarme foi aquele? - conseguiu Suzanne dizer. Ela cuspiu alguns fragmentos granulosos que estavam na sua boca. Não quis pensar qual poderia ser a sua origem.

 

- Eu tive medo que fosse para avisar que a água ia regressar admitiu Perry.

 

- Tenha lá o sentido que tiver - disse Donald - para nós tem um significado tremendo.

 

- De que é que ele está a falar? - perguntou Perry.

 

- Eu sei o que ele quer dizer - disse Suzanne. - Quer dizer que isto não é uma formação geológica natural.

 

- Exactamente! - disse Donald. - Deve ser algo do tempo da Guerra Fria. E uma vez que eu estava a par de tudo o que se passava no serviço submarino dos Estados Unidos, posso garantir-vos que não é uma instalação nossa. Tem de ser russa!

 

- Quer dizer que é uma espécie de base secreta? - perguntou Perry. Olhou à volta para o espaço vazio e escuro, agora mais espantado do que assustado.

 

- É a única coisa que me ocorre - disse Donald. - Uma espécie de instalação nuclear submarina.

 

- É possível - disse Suzanne. - E se assim for, o nosso futuro ficou subitamente bem mais brilhante.

 

- Talvez sim, talvez não - disse Donald. - Em primeiro lugar, só é significativo se estiver ainda alguém a tomar conta das instalações. E se houver alguém, a nossa preocupação seguinte vai ser a de saber até que ponto é que eles querem manter isto secreto.

 

- Não tinha pensado nisso - admitiu Suzanne.

 

- Mas a Guerra Fria já acabou - disse Perry. - Certamente não vamos ter que nos preocupar com essas histórias de capa e espada.

 

- Há pessoas nas forças militares russas que não pensam assim

- disse Donald. - Eu sei porque as conheci.

 

- Então o que é que achas que devemos fazer agora? - perguntou Suzanne.

 

- Acho que alguém já respondeu por nós a essa pergunta disse Donald. Levantou a mão que tinha livre e apontou por cima dos ombros dos outros. - Olhem para ali, na direcção do caminho que nós estávamos a seguir antes do alarme tocar!

 

Suzanne e Perry deram meia volta. Acerca de um quarto de milha dali, abria-se lentamente uma porta para o interior da caverna. Uma luz brilhante e artificial entrou na caverna escura, vinda do compartimento que ficava para além da porta, formando uma linha que se reflectia até junto dos pés deles. Estavam os três demasiado afastados para conseguirem distinguir qualquer pormenor do interior, mas perceberam que a luz era intensa.

 

- Eis a resposta para a questão das instalações estarem ou não a ser vigiadas - disse Donald. - É óbvio que não estamos sozinhos. Agora a questão é saber até que ponto eles estarão contentes por nos ver.

 

- Acha que devemos ir até lá? - perguntou Perry.

 

- Não temos escolha - disse Donald. - Em algum momento teremos que ir.

 

- Por que é que eles não vieram até aqui falar connosco? - perguntou Suzanne.

 

- É uma boa pergunta - disse Donald. - Talvez tenha a ver com o tipo de recepção de boas vindas que nos estão a preparar.

 

- Estou novamente a ficar com medo - disse Suzanne. - Isto é tudo tão estranho.

 

- Eu nunca deixei de ter medo - admitiu Perry.

 

- Vamos lá conhecer então os nossos captores - disse Donald.

- E esperemos que eles não nos considerem espiões - e que estejam a par dos termos da Convenção de Genebra.

 

Endireitando as costas, Donald começou a andar, parecendo não se dar conta da lama à volta dos seus pés. Passou pelos dois companheiros, que tiveram de admirar a sua coragem e capacidade de liderança.

 

Perry e Suzanne hesitaram um momento antes de seguirem o comandante naval reformado. Nenhum dos dois falou enquanto, resignadamente, lhe seguiram os passos em direcção à porta que parecia chamar por eles. Não faziam a mínima ideia se iriam encontrar a liberdade ou mais provações, mas tal como Donald dissera, não tinham escolha.

 

Avançavam lentamente. A certa altura, Perry escorregou e caiu de novo no lamaçal. Ficou coberto de vasa.

 

- A primeira coisa que eu vou fazer é pedir para tomar um duche - gracejou Perry, tentando levantar a moral do grupo. Não foi, no entanto, bem sucedido. Ninguém lhe respondeu.

 

Enquanto se aproximavam da porta, esperavam ver as suas desconfianças apaziguadas. Mas não apareceu ninguém à entrada para lhes desejar as boas vindas, e a luz que se espalhava pela escuridão era tão brilhante que não conseguiam ver nada para o interior. Era, inclusivamente, difícil fitar a entrada sem proteger os olhos.

 

Quando se aproximaram o suficiente, conseguiram observar que a porta tinha quase sessenta centímetros de espessura e uma fileira de enormes ferrolhos embutidos na periferia. Parecia a porta de um cofre. Os cantos do enorme portão eram revirados para dentro. Estava obviamente construído para suportar a enorme pressão da água do mar quando esta inundava a caverna.

 

Quando estavam a uns sete metros da parede, Suzanne e Perry pararam. Sentiam-se relutantes em continuar sem terem uma ideia mais clara sobre o sítio para onde se estavam a dirigir. Olharam na direcção da porta com atenção, tentando encontrar algo que lhes pudesse dar uma pista. Do pouco que lhes era possível ver, pareceu-lhes que as paredes, chão e tecto do interior eram construídos em aço inoxidável, e brilhavam como espelhos.

 

Donald tinha continuado em frente, caminhando sozinho, e apesar de não ter passado pelo umbral inclinou-se para dentro. Com o braço a servir-lhe de protecção contra a luz brilhante, observou o compartimento.

 

- Então? - questionou Suzanne. - o que é que estás a ver?

- É um compartimento grande e quadrado, feito de metal gritou Donald, por cima do ombro. - Vejo duas esferas enormes e brilhantes, mas mais nada para além disso. Não me parece que haja outra porta para além desta entrada. E não consigo perceber de onde é que vem a luz.

 

- Há algum sinal de que possa estar aí alguém?

 

- Negativo - disse Donald. - Eia, acho que as esferas são feitas de vidro. E devem ter um metro e vinte, um metro e meio de diâmetro. Venham ver!

 

Perry olhou para Suzanne e encolheu os ombros.

- Para quê adiar o inevitável?

 

Suzanne tinha os braços à volta do corpo, tentando aconchegar-se a si própria. Estava a tremer.

 

- Eu pensei que quando chegasse aqui iria sentir-me melhor em relação a isto tudo, mas não sinto. Isto não pode ser uma base submarina. Estamos perante uma obra de engenharia que faria a construção da Grande Pirâmide assemelhar-se a um passeio pelo parque.

 

- Então o que é que pensa que é? - perguntou Perry. Suzanne voltou-se para olhar de novo para o submersível. A luz que vinha da porta aberta iluminava-o, apesar da distância. Mais para trás só havia escuridão.

 

- Não faço ideia.

 

Quando Donald reparou que tanto Suzanne como Perry estavam a olhar para o submersível, seguiu em frente, passando o umbral e entrando no compartimento. Assim que o fez abriu os braços para se equilibrar e evitar cair. A combinação da lama molhada nos seus sapatos e do metal polido tornava o chão tão escorregadio como gelo.

 

Depois de ter recuperado o equilíbrio, Donald olhou de novo à sua volta. Agora que os seus olhos já se tinham adaptado à luz, conseguia ver muito melhor, e viu centenas de reflexos de si próprio em todas as direcções. As paredes, chão e tecto não tinham qualquer separação entre si. A única porta que parecia existir era aquela por onde ele tinha entrado. Procurou a fonte de onde provinha a luz brilhante, mas, misteriosamente, não encontrou nada. Quando as duas enormes bolas de vidro entraram no seu campo de visão, ele olhou-as com atenção. Conseguiu perceber que o vidro não era totalmente opaco. Eram suficientemente transparentes para se conseguir ver o que havia no interior.

 

- Suzanne, Perry! - gritou Donald. - Afinal estão aqui duas pessoas. Mas estão fechadas dentro das esferas de vidro. Venham cá! No instante seguinte, Suzanne e Perry apareceram à porta.

 

- Cuidado com o chão! - avisou Donald. - Está escorregadio como se fosse gelo.

 

Fazendo deslizar os pés em movimentos curtos, como se estivessem a patinar sem patins, Suzanne e Perry aproximaram-se de Donald, ansiosos por ver o que estava nas esferas de vidro.

 

- É incrível! - exclamou Suzanne. - Estão a flutuar numa espécie de fluido.

 

- Estás a reconhecê-los? - perguntou Donald.

- Devia estar? - respondeu Suzanne.

 

- Eu acho que os conheço - disse Donald. - Penso que são dois dos nossos mergulhadores.

 

Suzanne olhou incredulamente para Donald. Em seguida, para tentar ver melhor, pôs as mãos em concha à volta dos olhos e inclinou-se para uma das esferas, cuja superfície era de tal modo opalescente que reflectia a brilhante iluminação do compartimento.

 

- Acho que tens razão - disse Suzanne. - Consigo distinguir o logotipo do Benthic Explorer no fato à prova de água e num dos lados do capacete.

 

Perry imitou Suzanne, protegendo os olhos com as mãos e encostando-se à mesma esfera pela qual Suzanne estava a olhar. Donald fez o mesmo, num outro ângulo da esfera.

 

- Ele está a respirar! - disse Perry. - Ainda está vivo.

 

- Estou a ver uma coisa que parece um cordão umbilical, que sai de um dispositivo colocado à frente do seu abdômen - disse Suzanne. - Alguém consegue ver onde é que vai dar?

 

- Passa por baixo dele - disse Donald. - Vai para a base do contentor.

 

Suzanne afastou-se o suficiente para se poder baixar. A esfera tinha uma área plana, sobre a qual assentava. Não conseguiu ver nada que penetrasse na esfera, e se existisse alguma coisa devia vir directamente através do chão.

 

- Isto é tão estranho como a caverna - disse Suzanne enquanto se punha de pé. Esticou a mão e tocou na esfera com a ponta do seu dedo indicador. o material parecia vidro, mas ela não tinha a certeza do que poderia ser.

 

Os outros endireitaram-se.

 

- Como é que eles teriam vindo aqui parar? - perguntou Perry.

- Muitas perguntas - disse Donald - e poucas respostas.

 

- Ainda te parece que isto é alguma espécie de instalação militar? - perguntou Suzanne a Donald.

 

- o que mais poderia ser? - perguntou Donald na defensiva.

- Se os mergulhadores estão mesmo vivos dentro das esferas, não consigo imaginar que tecnologia é esta, que permite tal coisa.

- disse Suzanne. - Parecem dois embriões gigantes. Também não tenho uma explicação para a caverna. Até este compartimento é estranho.

 

- Estranho porquê? - perguntou Donald

- A porta! - gritou Perry.

 

Todos os olhares se voltaram rapidamente para a entrada. A enorme porta estava a fechar-se silenciosamente.

 

Desesperadamente, eles tentaram correr para impedir que a porta se fechasse, mas o chão escorregadio não lhes permitiu avançar tão rapidamente quanto desejavam. Quando chegaram ao pé da porta, esta estava praticamente fechada. Todos juntos tentaram forçá-la a abrir-se de novo, mas com o peso que ela tinha e com o chão escorregadio era uma tarefa inútil. Com um som poderoso, a porta fechou-se. Em seguida ouviram o som dos ferrolhos a voltarem ao lugar.

 

Novamente em pânico, afastaram-se os três da porta.

 

- Alguém está a controlar isto tudo - disse Suzanne com ar sério. o seu olhar preocupado vagueou pelas faces contínuas do compartimento. - E agora estamos presos.

 

- São mesmo os russos - disse Donald.

 

- Acaba com essa história dos russos! - gritou Suzanne. - Foste militar durante demasiado tempo. Encaras tudo do ponto de vista das antigas hostilidades. Isto não tem nada a ver com os russos.

 

- Como é que sabes? - perguntou Donald também a gritar. - E não te atrevas a denegrir os meus serviços em prole da nação.

 

- oh, por favor! - disse Suzanne em tom irónico. - Eu não estou a desprestigiar o teu serviço. Mas olha à tua volta, Donald! Isto não é deste planeta. Repara na luz, por amor de Deus. - Suzanne pôs uma mão no ar. - Não se vê a fonte de luz, mas a iluminação é totalmente uniforme. E não há sombra.

 

Perry pôs as mãos no ar e tentou provocar sombras, mas era impossível. Donald observou-o mas não tentou fazer o mesmo.

 

- É um fluxo uniforme de fotões que deve, de algum modo, passar através das paredes - disse Suzanne. - E aposto que possui um componente de ultravioletas bastante significativo.

 

- Como é que sabe? - disse Perry.

 

- De facto não posso saber - admitiu Suzanne. - Não posso ter a certeza absoluta, uma vez que a visão humana não capta os ultravioletas, mas parece-me que há, definitivamente, uma distorção do azul dos nossos macacões e do castanho do seu fato de treino.

 

Perry olhou para baixo para a sua roupa. A cor parecia-lhe exactamente igual ao que sempre fora.

 

- As esferas! - gritou Donald.

 

Todos os olhares se desviaram para as bolas de vidro. A sua opalescência tinha súbita e dramaticamente aumentado e o seu brilho era agora muito maior, Um instante depois, ouviu-se o som de algo a partir e as esferas abriram-se ao mesmo tempo como flores enormes que estivessem a perder as suas pétalas. Juntamente com algum fluído os mergulhadores deslizaram para o chão.

 

Donald foi o primeiro a recuperar do choque. Correu o mais rapidamente que pôde para o lado de Richard. Apercebendo-se de que o mergulhador inconsciente tentava respirar, Donald tirou-lhe o capacete e atirou-o para o lado. Richard teve um violento ataque de tosse.

 

Perry dirigiu-se rapidamente para perto de Michael. Enquanto lhe tirava o capacete ouvia a tosse de Richard. Michael, contudo, não estava sequer a respirar. Tentou recordar-se do seu curso de primeiros socorros, e depressa soube o que tinha de fazer. Começou por retirar Michael de cima dos fragmentos da esfera estilhaçada, trazendo também o umbilical que ainda estava preso a ele. Depois de rapidamente se ter assegurado que o mergulhador não tinha nada na boca, apertou-lhe as narinas, inspirou profundamente e deu a Michael uma golfada de ar. Virando a cabeça para o lado, Perry inspirou novamente. Estava prestes a repetir o ciclo quando reparou que os olhos de Michael estavam abertos.

 

- o que diabo estás a fazer, pá! - perguntou Michael. Afastou a cara de Perry que estava a escassos centímetros da sua.

 

- Estava a fazer respiração boca a boca - disse Perry levantando-se. - Pareceu-me que não estava a respirar.

 

- Eu estou a respirar! - insistiu Michael. Fez uma cara de enojado e limpou a boca com as costas da mão. - Acredite em mim, eu estou a respirar.

 

o ataque de tosse de Richard parou abruptamente, e ele pestanejou para limpar as lágrimas que a tosse tinha provocado. o seu primeiro pensamento foi para Michael. Quando viu que o seu companheiro estava são e salvo, olhou à volta do compartimento antes de levantar o olhar para os outros.

 

- o que é que se passa? - perguntou ele. - o que é que aconteceu?

 

- Essa é a grande questão - respondeu Perry

 

- Onde raio é que nós estamos? - perguntou Michael. Os seus olhos desviaram-se de novo para dar uma olhadela rápida pelo compartimento. Uma expressão de perplexidade ensombrou-lhe a face.

 

É uma questão igualmente interessante - disse Perry. Andaram à nossa procura, durante o vosso mergulho? - perguntou Donald a Richard.

 

Por um momento, a expressão na face de Richard foi de pura confusão. Em seguida, a pergunta de Donald ajudou-o a lembrar-se.

- Oh, meu Deus! - gritou ele. - Nós estávamos num mergulho a mais de trezentos metros! E não fomos à descompressão! Richard pôs-se em pé com alguma dificuldade. Sentia as pernas a tremer, e o chão escorregadio só piorava a situação, - Michael, temos que ir para o CM

 

- Calma! - disse Donald. Agarrou o braço de Richard numa tentativa de o acalmar e de evitar que ele caísse. - Aqui não há nenhum CCI). E para mais, vocês estão bem. É óbvio que não estão com dores.

 

A confusão de Richard aumentou. Esticou as pernas e os braços para verificar as articulações. Piscando repetidamente os olhos, olhou novamente à volta do compartimento e, enquanto o fazia, reparou no umbilical que o ligava à base da esfera quebrada.

 

- Que diabo é isto? - perguntou ele. Agarrou o grupo de cabos e fios e largou-os logo de seguida. Fez uma expressão enojada. Bolas, isto é mole; é como se estivesse a segurar os intestinos de alguém.

 

- É, de certeza, uma espécie de sistema de apoio à vida - disse Suzanne, falando pela primeira vez desde que os mergulhadores tinham saído das esferas. - o facto de estarem em boa forma mesmo sem descompressão deve ter alguma relação com esse umbilical.

 

Richard tocou cuidadosamente no dispositivo preso à sua barriga. Era do tamanho e da forma da cabeça de um desentupidor de sanita. Assim que ele lhe tocou, o dispositivo desprendeu-se. Segurando-o na mão, ele observou-o. Para seu grande horror, uma série de apêndices parecendo pequenos vermes saíam pelo dispositivo com as cabeças contorcidas encharcadas de sangue - o seu sangue.

 

- Ah! - gritou Richard. Deixou cair o dispositivo que se retraiu rapidamente para a base plana da esfera, como se fosse o fio de um aspirador a desaparecer. Em pânico, Richard desabotoou o fecho do seu fato à prova de água, até à zona do púbis. Quando olhou para a barriga, gritou de novo. Tinha seis pequenas feridas formando um círculo à volta do umbigo.

 

Depois de ver o que se passava com Richard, Michael pôs-se em pé e olhou, hesitante, para o seu próprio ventre. Assustou-se ao ver que possuía um dispositivo semelhante. Com uma expressão idêntica à de Richard, tocou relutantemente nele com o dedo indicador. Com enorme alívio, verificou que o dispositivo se desprendeu e retraiu imediatamente. Abrindo o seu fato de mergulho, viu que tinha também as mesmas feridas, ainda húmidas, rodeando o seu umbigo exactamente da mesma maneira.

 

- Que raio! - disse Michael. - Parece que fomos furados um monte de vezes com um picador de gelo. - Estremeceu. - Não suporto ver sangue.

 

Richard correu de novo o fecho do fato para cima e em seguida tentou dar alguns passos com as suas pernas bambas. Aproximou-se da parede e encostou-se a ela.

 

- Sinto-me como se tivessse sido drogado, pá.

 

- Eu sinto-me como se um camião me tivesse passado por cima - disse Michael.

 

- Onde está Mazzola? - perguntou Richard.

 

- Não fazemos a mínima ideia - disse Donald. - Que aconteceu durante o mergulho?

 

Richard coçou a nuca. Ao princípio só se conseguiu lembrar de ter entrado no CCD para fazer a compressão, mas depois, com a ajuda de Michael, conseguiram lembrar-se dos pormenores da descida dentro da cápsula e da entrada na água.

 

- É só isso? - perguntou Donald. Não se lembram de nada após terem deixado a cápsula?

 

Richard abanou a cabeça. Michael fez o mesmo.

 

- Por que é que vocês parecem ter saído duma pocilga? perguntou Richard. Não esperou pela resposta. Em vez disso, olhou com mais atenção para as paredes. - Que sítio é este, é uma espécie de hospital ou algo do género?

 

- Não é um hospital - disse Donald. - A única coisa que vos podemos explicar é como é que viemos aqui parar, e isso inclui a explicação de como é que nos sujámos.

 

- Já é alguma coisa - disse Richard. - Podem começar! Donald foi-lhes explicando tudo enquanto os mergulhadores se encostavam à parede. Era uma história difícil de engolir e os olhos deles manifestavam a incredulidade que sentiam.

 

- Parem lá com isso! - escarneceu Richard. - o que é isto? É alguma partida que nos querem pregar? - Olhou com um ar de suspeita para o trio. Aquilo tinha que ser uma brincadeira. Michael acenou, concordando.

 

- Não é uma partida - assegurou-lhe Donald.

 

- Reparem só neste compartimento - disse Suzanne.

 

- Ouçam! - disse Donald, tentando ser paciente. - Nenhum de vocês se consegue lembrar de como chegou até aqui? Não viram ninguém?

 

Richard abanou a cabeça. Empurrou com o pé os fragmentos da esfera. o material estava agora amolecido em vez de rígido e quebradiço.

 

- Estão a falar a sério? Nós estávamos mesmo dentro destas coisas? Disseram que pareciam feitas de vidro, mas agora parecem tudo menos isso.

 

- Até há pouco tempo pareciam - assegurou-lhe Suzanne.

 

- Nós pensamos que isto é uma base submarina russa continuou Donald.

 

- Correcção! - interrompeu Suzanne. - Isso é o que tu pensas.

- Russos? - a voz de Richard ecoou pelo compartimento. Que merda! - Pôs-se mais direito. Olhou à volta do compartimento, desta vez com mais interesse, e Michael imitou-o. Pousaram ambos as mãos nas paredes perfeitamente polidas. Richard bateu com os nós dos dedos na superfície brilhante. - Isto é feito de quê, titânio?

 

Suzanne começou a responder, mas foi interrompida por um silvo. Todos olharam para os locais onde as esferas tinham estado. Através dos buracos abertos estava a sair vapor. Um cheiro acre espalhou-se rapidamente pelo compartimento fechado, e todos os olhos se encheram de lágrimas.

 

- Estão a deitar-nos gás! - gritou Suzanne antes de ser acometida por um violento ataque de tosse.

 

Todos eles se encolheram, em pânico, encostando-se à fria parede de metal numa vã tentativa para fugir ao gás. Mas dentro de pouco tempo estavam todos a tossir e a fechar com força os olhos devido ao ardor que sentiam.

 

- Deitem-se no chão! - gritou Donald.

 

Todos, excepto Perry, se estenderam no chão enquanto tentavam, em vão, tapar a boca e o nariz com as mãos.

 

Perry dirigiu-se aos tropeções para a porta que dava para a caverna e começou a dar-lhe murros, enquanto gritava para que ela se abrisse. A porta não se moveu, mas Perry teve a presença de espírito para reparar em algo, apesar do seu pânico e tormento físico. Ele não se sentia a desmaiar, nem sequer um pouco tonto. o gás parecia não estar a ter os efeitos letais que ele receara.

 

Com alguma força de vontade, Perry conseguiu parar de tossir e abrir os olhos por um instante, apesar do desconforto que isso lhe provocava. o compartimento estava cheio de um vapor que se assemelhava a nevoeiro. Perry não conseguiu ver grande coisa, mas reparou que os seus braços tinham ficado subitamente nus.

 

Curioso em saber o que podia ter acontecido às mangas do seu fato de treino, Perry olhou com os olhos semicerrados. Viu que as suas mangas tinham caído aos bocados. Pendiam em farrapos como se ele tivesse mergulhado os braços em ácido.

 

Sentindo que todo o seu corpo estava agora frio, Perry passou as mãos ao longo do peito. o seu fato de treino - aliás todas as suas peças de roupa - seguiam o mesmo caminho que as mangas. o tecido estava progressivamente a perder a sua integridade estrutural.

 

No passado, em fases da sua vida nas quais ele se sentira sob grande stress, tinha tido pesadelos em que se via nu em público.

 

Subitamente, ao sentir as suas roupas a caírem aos bocados, era como se tudo se estivesse a tornar real. Agarrou as roupas e sentiu-as desintegrarem-se nas suas mãos.

 

- São as nossas roupas! - gritou Perry para os outros. - o gás está a dissolver as nossas roupas!

 

Ninguém respondeu devido ao medo que sentiam. Perry gritou de novo a sua mensagem e avançou aos tropeções pelo nevoeiro, quase caindo em cima de Donald.

 

- o gás está a dissolver as nossas roupas - repetiu ele. - E não estou a sentir qualquer espécie de efeito a nível mental. Donald conseguiu sentar-se. o seu macacão estava nas mesmas condições do fato de treino de Perry. Passou rapidamente as mãos ao longo do corpo para verificar se estava de facto a ficar despido. Mas não conseguiu abrir os olhos; o gás fazia-lhe arder demasiado os olhos. Mas mesmo sem a confirmação visual, ele ficou convencido. Dirigiu-se aos outros:

 

- o Perry tem razão!

 

Suzanne, tal como Perry, conseguiu abrir os olhos intermitentemente. ”viu que era verdade o que lhe estavam a dizer acerca das roupas. o seu macacão estava, literalmente, a abrir-se ao meio. Reparou também que não havia qualquer alteração no seu estado psíquico, apesar do desconforto que sentia na garganta e no peito. Sentindo-se aliviada, ela pôs-se de pé.

 

Richard e Michael sentaram-se. Como ainda se sentiam um pouco atordoados, não tinham a certeza se o gás os afectara ou não, mas ambos tossiam violentamente. o efeito a nível da respiração, era-lhes mais difícil de suportar do que aos outros.

 

--- o meu fato de mergulho está normal - conseguiu ele dizer entre dois ataques de tosse. Mas em seguida cometeu o erro de passar a mão pelo ombro. Quando o fez, o fato desintegrou-se desfazendo-se em pequenas esferas.

 

Pestanejando várias vezes, Michael conseguiu vislumbrar o que acontecera ao fato de Richard. Foi olhando intermitentemente para o seu próprio fato, não querendo tocar-lhe nem sequer mexer-se, mas Richard esticou a mão e deu-lhe uma pancada no ombro. o efeito foi instantâneo. Num momento o fato de mergulho tinha um aspecto normal, e no momento seguinte estava a escorregar de Michael como se se tivesse transformado em inúmeras gotas de água.

 

Subitamente, ouviu-se o som de um alarme e uma luz vermelha começou a apagar e a acender na parede oposta à porta da caverna. Alguns momentos antes, essa mesma parede parecera ser uma superfície totalmente lisa. Através do vapor cáustico, os cinco começaram a distinguir os contornos de uma porta aberta mesmo por baixo da luz.

 

Depois de alguns minutos, o alarme parou, mas a luz continuou a piscar. Ouviram então um som de assobio bastante agudo. Estava a entrar ar através de uma abertura estreita.

 

Perry avançou lentamente na direcção da luz que piscava. Quando alcançou a parede, viu que os contornos da porta estavam mais distintos. Passou a mão ao longo das suas extremidades. Enquanto o fazia sentiu uma forte corrente de ar que o empurrava. o assobio estava explicado. Com o pé, verificou se o chão estava nivelado com o solo para lá do umbral da porta. Em seguida, entrou.

 

Perry sentiu um alívio imediato. A cortina de ar que se movimentava rapidamente não permitia que o gás acre penetrasse no corredor para onde ele entrara. As paredes, chão e tecto eram construídos com o mesmo metal polido usado no compartimento que estava agora cheio de gás, mas o nível de iluminação era significativamente mais baixo. Perry conseguiu ver que seis metros mais à frente o corredor dava para um outro compartimento.

 

Perry passou novamente a cabeça pela cortina de ar.

 

- Há outro compartimento - gritou ele. - E não tem gás. Venham depressa!

 

Os outros quatro puseram-se em pé com dificuldade e dirigiram-se para a luz intermitente. Suzanne teve que guiar Donald; ele não suportava ter os olhos abertos. Em menos de um minuto, todos eles se dirigiram para o novo compartimento.

 

o gás extinguiu-se rapidamente. Sentiam-se tão aliviados que não estavam preocupados com a completa desintegração das suas roupas. Estavam os cinco completamente despidos, mas tinham mais com que se preocupar. À frente deles, surgia o segundo compartimento.

 

- Despachem-se - disse Donald. Fez um sinal a Perry para os preceder, uma vez que ele já estava à frente.

 

Perry encostou-se à parede, abrindo caminho para que Donald pudesse passar.

 

- Acho que deve ir você à frente. Ainda é o capitão do navio. Donald acenou com a cabeça e passou para a frente. Perry foi atrás dele e Suzanne seguiu-o. Os dois mergulhadores foram os últimos.

 

- É bastante evidente o que está a acontecer agora - disse Donald.

 

- Fico contente por ser evidente para si - disse Perry.

- Que queres dizer? - perguntou Suzanne.

 

- Estamos a ser preparados para um interrogatório - disse Donald. - É uma técnica bem conhecida, despir uma pessoa do seu sentimento de identidade como forma de evitar qualquer tipo de resistência. As nossas roupas fazem claramente parte da nossa identidade.

 

- Eu não tenho qualquer tipo de resistência - disse Perry. Eu direi a quem quer que seja, o que quer que seja que eles queiram saber.

 

- Donald, isso quer dizer que tu sabes que gás era aquele? perguntou Suzanne.

 

- Negativo - disse Donald.

 

Donald parou à entrada do segundo compartimento e espreitou lá para dentro. Era consideravelmente mais pequeno que o primeiro, apesar de também ser feito com o mesmo misterioso material metálico. Do sítio onde se encontrava, ele conseguiu distinguir uma saída com uma porta de vidro e parte de um hall com o que pareciam ser quadros emoldurados nas paredes. Reparou ainda que o chão do compartimento se inclinava em direcção ao centro, onde havia uma grade, e que o tecto se elevava para um ponto central onde estava uma segunda grade.

 

- E então? - perguntou Suzanne. Do local onde estava, ela não conseguia ver nada do que existia lá à frente.

 

- Tem um aspecto encorajador - disse Donald. - Estou a ver um corredor com um aspecto relativamente normal, que fica para lá de uma porta de vidro.

 

- Então vamos - disse Richard com impaciência, por trás de Suzanne.

 

Com ambas as mãos apoiadas no umbral da porta, Donald moveu primeiro um pé até ao chão inclinado e depois o outro. Tal como ele tinha previsto, começou a escorregar assim que tirou as mãos do seu apoio. Deslizou uns noventa centímetros com os braços esticados para os lados para não cair. Chegou assim a um ponto em que o chão formava um ângulo e se tornava quase plano. Virou-se e avisou os outros.

 

Todos foram cuidadosos, excepto Michael. Fora criado em Chelsea, Massachusetts, onde jogara hóquei desde os cinco anos de idade, e não iria agora ficar preocupado com o facto do piso ser escorregadio. Mas a inclinação do piso apanhou-o de surpresa. Assim que deu o primeiro passo, o chão fugiu-lhe debaixo dos pés e ele chocou com os outros como se fosse uma bola de bowling. De repente o grupo transformou-se numa amálgama de membros nus.

 

- Por amor de Deus! - disse Donald zangado. Conseguiu libertar-se a si próprio e ajudou Suzanne a levantar-se. Os outros levantaram-se com bastante dificuldade. Michael não parecia sentir grandes remorsos. Agora que tinha os olhos abertos, estava bastante mais interessado em admirar o corpo de Suzanne. Richard praguejou e deu uma pancada no cimo da cabeça do companheiro. Michael reagiu empurrando Richard, o que fez com que ambos fossem de novo parar ao chão.

 

- Acabem com isso! - gritou Donald. Com cuidado para não cair, ele separou os dois mergulhadores. Richard e Michael obedeceram, mas não desviaram os olhos um do outro.

 

- Meu Deus! - soou a voz de Suzanne. - Olhem! - Ela apontou para a porta pela qual tinham acabado de passar. Todos abriram a boca de espanto. A entrada estava a fechar-se silenciosamente, como se os dois lados da parede de metal se fundissem um no outro. Uns minutos depois, a entrada tinha desaparecido sem deixar qualquer vestígio. A superfície da parede era agora perfeitamente contínua.

 

- Se eu não tivesse visto isto com os meus próprios olhos, nunca iria acreditar - disse Perry. - É sobrenatural; parece um filme com efeitos especiais.

 

- Nunca vou conseguir compreender esta tecnologia - disse Suzanne. - Acho que põe os russos a um canto.

 

Um profundo som gorgolejante fez-se ouvir vindo da grade central. Todos os olhares se viraram para aí.

 

- Oh, não! - disse Suzanne. - o que é que irá acontecer agora? Antes de alguém ter a oportunidade de responder, um líquido claro que parecia água começou a jorrar através da grade central do chão. Todos recuaram e começaram a fugir para a porta de vidro. A inclinação do piso e o facto da superfície ser escorregadia forçou-os a movimentar-se com os joelhos e as mãos no chão. o primeiro a chegar à porta começou a bater desesperadamente no vidro, tentando encontrar uma forma de a abrir. Atrás deles, a água tinha-se transformado num géiser, e o seu nível subia rapidamente.

 

Passados alguns minutos a água chegava-lhes à cintura. Uns momentos mais tarde estavam completamente dentro de água, olhando em pânico para o tecto que estava cada vez mais perto. Mesmo que eles conseguissem ficar a boiar indefinidamente, em breve não haveria espaço para respirar. Rapidamente, todos os elementos do grupo foram forçados a juntar-se por baixo do ponto mais alto do tecto, lutando pelas últimas golfadas de ar. Uma vez que os melhores nadadores, Richard e Michael estavam no centro, directamente por baixo da grade, enfiaram os dedos através dos buracos e tentaram tirar a grade do sítio numa tentativa desesperada de encontrar mais ar.

 

Mas os seus esforços foram em vão. A grade não se mexeu e a água continuou a subir até o compartimento ficar cheio até ao tecto. Assim que todos ficaram submersos, o compartimento começou a esvaziar, a um ritmo extraordinário. Dentro de alguns segundos já conseguiam ter novamente a cabeça fora de água; passados alguns minutos, Donald e Richard, os mais altos do grupo, sentiram os pés a tocar no chão.

 

Em breve se fez ouvir o som da água a desaparecer pelo cano e os cinco foram deixados nus e a pingar deitados na bacia central do chão côncavo. Durante algum tempo ninguém se mexeu. Um misto de terror, pânico e o facto de terem inadvertidamente engolido uma grande quantidade de goles do líquido, deixara-os física e emocionalmente exaustos.

 

Por fim, Donald conseguiu sentar-se. Sentia-se tonto. Tinha a estranha sensação de que tinha passado mais tempo do que aquele que ele se lembrava. Ocorreu-lhe que talvez tivessem sido drogados através da água que tinha inundado o compartimento. Fechou os olhos durante um instante e massajou as têmporas. Quando voltou a abrir os olhos, olhou para os outros. Pareciam estar todos a dormir. Dirigiu o olhar para a porta de vidro quando algo o fez virar-se de novo para Suzanne.

 

- Deus do Céu! - murmurou Donald. Não podia acreditar no que estava a ver. Suzanne estava careca! Donald passou a mão pelo cimo da sua cabeça, mas lembrou-se que a mantinha rapada já há bastantes anos. Apalpou o sítio do bigode. Tinha desaparecido! Levantou o braço e viu que também não tinha qualquer pêlo. Olhou para o peito; não se via um único cabelo.

 

Donald abanou Perry e em seguida acotovelou Suzanne. Quando ambos estavam suficientemente despertos para entenderem o que lhes queria dizer, explicou-lhes o que se estava a passar.

 

- Oh, não! - lamentou-se Perry. Sentou-se muito direito. Com ambas as mãos erguidas tocou cautelosamente no cimo da sua cabeça. Não tinha cabelo, só a sua pele macia. Afastou as mãos rapidamente como se tivesse tocado em algo muito quente. Estava horrorizado.

 

Suzanne sentia-se mais curiosa do que aflita. Algo os deixara sem um único cabelo. Como é que isso tinha acontecido - e porquê?

- Que se passa? - perguntou Richard. Falava de um modo ininteligível. Sentou-se e teve que se equilibrar. - Ai_ sinto-me como se tivesse bebido.

 

- Eu também me sinto um pouco tonto - admitiu Perry. Devem ter posto alguma coisa na água. Eu sei que engoli alguma.

- Acho que estamos sob o efeito de uma droga - disse Donald.

- Engolimos todos bastante água - disse Richard. - Era difícil isso não acontecer, numa situação daquelas. Foi pior do que os treinos de fuga submarina.

 

- Penso que sei o que é que se está a passar - disse Suzanne.

- Pois, eu também - disse Perry. - Estamos a ser torturados e humilhados.

 

- São técnicas usadas nos interrogatórios - acrescentou Donald.

- Não me parece que tenha alguma coisa a ver com interrogatórios - disse Suzanne. - A estranha luz intensa, o gás acre e agora a depilação sugerem outra coisa.

 

- que é depilação? - perguntou Richard.

 

- É o que aconteceu à sua cabeça - disse Perry.

 

Richard pestanejou, olhou para Perry e em seguida tocou o cimo da sua cabeça.

 

- Meu Deus, estou careca. - Olhou para Michael que estava ainda a dormitar. Aproximou-se dele e deu-lhe um abanão. - Ei, minha beleza careca. Acorda!

 

Michael sentiu dificuldade em abrir os olhos.

 

- Penso que estamos a ser descontaminados - disse Suzanne.

- Acho que é isso que nos está a acontecer: estão a limpar-nos de todos os microrganismos, como bactérias e vírus. Estivemos a ser esterilizados.

 

Ninguém disse nada. Perry acenou, concordando com o que Suzanne dissera. Parecia-lhe bastante possível.

 

- Eu continuo a achar que tudo isto faz parte da nossa preparação para o interrogatório - disse Donald. - Não faz nenhum sentido para mim, essa ideia de esterilização. Não sei se são ou não os russos que estão por trás disto, mas alguém quer alguma coisa de nós.

 

- Talvez estejamos prestes a saber - disse Perry. Fez um gesto com a cabeça na direcção da porta vidrada, que estava agora entreaberta. - Acho que a próxima etapa está à nossa espera.

 

Apesar de não sentir grande estabilidade, Donald conseguiu pôr-se de pé.

 

- Havia de certeza uma droga qualquer na água - disse ele. Fez uma pausa, esperando que mais uma tontura passasse e em seguida começou a dirigir-se para a porta aberta. Quando o piso escorregadio começou a inclinar teve que avançar de gatas. Assim que chegou à porta, levantou-se e deparou-se com um corredor branco, com cinquenta metros de comprimento.

 

- Sinto-me drogada, mas também me sinto estranhamente esfomeada - disse Suzanne.

 

- Estava a pensar exactamente a mesma coisa - admitiu Perry.

- Ouçam - chamou Donald. - As coisas estão a melhorar. Estou a ver camaratas ao fundo do hall. Vamos até lá!

 

Suzanne e Perry apoiaram-se nos pés e levantaram-se, sentindo as mesmas tonturas passageiras que Donald tinha sentido.

 

- Acho que camarata é sinónimo de cama - disse Suzanne. E isso soa-me bastante bem. Para além disso quero sair daqui, não vá a água voltar.

 

- É exactamente o que eu estava a pensar - disse Perry. Richard e Michael tinham voltado a adormecer. Suzanne deu uma pancada em cada um, mas nenhum deles se mexeu. Perry imitou-a.

 

- o que quer que fosse que estava na água, afectou-os mais a eles do que a nós - disse Suzanne, ao mesmo tempo que abanava Richard para que este abrisse os olhos.

 

- Eles já se sentiam drogados pelo facto de terem estado nas esferas, mesmo antes da água - disse Perry. Ele conseguiu sentar Michael, que resmungou para que o deixassem em paz.

 

- Despachem-se! - chamou Donald. - não quero que a porta se feche antes de estarem todos cá fora.

 

Apesar do sono que sentiam, o aviso de que a porta se podia fechar, penetrou nas suas letargias, e eles levantaram-se. À medida que se iam movimentando, o seu estado melhorou. Quando o grupo se juntou a Donald, os mergulhadores já conversavam.

 

- Isto não é mau de todo - disse Richard enquanto inspeccionava o corredor com olhos entreabertos. As paredes e o tecto eram de um branco laminado e brilhante, em vez do metal espelhado que ficara para trás. Gravuras tridimensionais e emolduradas alinhavam-se ao longo das paredes. o chão estava coberto por uma carpete branca, sem pêlo.

 

- Estes quadros são bestiais - comentou Michael. - São tão reais. Parece que consigo ver até vinte milhas de distância, ao olhar para eles.

 

- São hologramas - informou Suzanne. - Mas eu nunca tinha visto hologramas com cores tão vivas e naturais. São espantosos, principalmente por estarem neste ambiente todo branco.

 

- Parecem ter todos cenas da Grécia antiga - disse Perry. Pelo menos podemos dizer que os nossos torturadores, quem quer que sejam, são civilizados.

 

- Vamos lá pessoal! - disse Donald em voz alta. Ele esperava impacientemente junto da passagem seguinte. - Temos algumas decisões tácticas para tomar.

 

- Decisões tácticas - imitou-o Perry em voz baixa, virando-se para Suzanne. - Será que ele nunca põe de lado esta postura militar?

 

- Raramente - admitiu Suzanne.

 

o grupo percorreu o corredor até ao fim e em seguida todos eles pararam, impressionados pela cena que viam diante dos seus olhos. Depois de todos os compartimentos desolados e de aspecto industrial por onde tinham passado, não estavam preparados para a sumptuosidade deste novo espaço. A decoração era futurista, com bastantes espelhos e mármores brancos, tendo, contudo, um aspecto calmo, arejado e acolhedor. Encostadas a duas paredes, viam-se doze camas de dossel cobertas com colchas de caxemira branca. Cinco dessas camas estavam convidativamente abertas, e em cima de cada almofada viam-se roupas lavadas e dobradas. Uma suave música instrumental completava a atmosfera.

 

No centro do quarto estava uma comprida mesa baixa, rodeada por cadeiras, de tipo espreguiçadeira. A mesa estava posta para uma refeição, vendo-se várias travessas cobertas e jarros com bebidas geladas. Os pratos eram brancos, a toalha de mesa era branca e o faqueiro era dourado.

 

- Se isto é o Paraíso, eu ainda não me sinto preparado - disse Perry quando conseguiu finalmente recuperar a voz.

 

- Não me parece que a comida cheire assim tão bem no Paraíso - disse Richard. - E acabei de verificar que estou mais esfomeado do que cansado. - Começou a andar, sendo de imediato seguido por Michael.

 

- Esperem aí! - disse Donald. - Não sei se devemos comer alguma dessas coisas. É provável que a comida tenha droga ou algo pior.

 

- Acha mesmo? - disse Richard, obviamente desapontado. Ele olhou hesitante de Donald para a mesa e desta novamente para Donald.

 

- E aqueles espelhos - disse Donald, apontando para as paredes espelhadas ao fundo do quarto. - Eu diria que estamos a ser vigiados.

 

- E o que é que isso interessa, se nos tratarem assim - disse Michael. - Eu acho que devemos comer.

 

Os olhos de Suzanne dirigiram-se para as roupas dobradas que estavam em cima das camas. Ainda não tinha reparado nelas porque eram brancas, como quase tudo o resto, e dificilmente se conseguiam distinguir dos lençóis. Foi até à cama mais próxima, pegou nas roupas e desdobrou-as. Eram duas peças de roupa simples: uma túnica de mangas compridas, aberta à frente, e um par de calções. Eram ambos de cetim branco e não se viam quaisquer costuras.

 

- Vejam só! É um pijama! - exclamou Suzanne. - Muito bem Pensado. - Sem hesitar um instante, Suzanne enfiou os calções. A túnica tinha proporções generosas e chegava-lhe aosjoelhos, tapando os calções. Tinha um cordão com enfeites dourados para apertar e vários bolsos em ambos os lados.

 

o facto de Suzanne se estar a vestir, recordou a todos que estavam nus. Os quatro homens retiraram das camas as peças de roupa e vestiram-nas.

 

Michael olhou para a sua imagem reflectida no espelho do fundo do quarto.

 

- Não são grande coisa - disse ele. - Mas pelo menos são confortáveis.

 

Richard riu-se dele.

 

- Pareces um maricas.

 

- Como se tu também não parecesses, parvo - disse Michael prontamente.

 

- Já chega! - interrompeu Donald asperamente. - Não quero que haja qualquer espécie de luta entre nós. Guardem essas manifestações para quem estiver por trás disto tudo. E por falar nisso, temos que combinar os turnos de vigia.

 

- Que raio está a dizer? - perguntou Richard. - Isto não é um exercício militar. Vou mas é comer e depois vou para a cama. Não vou fazer nenhum turno de vigia.

 

- Estamos todos cansados - disse Donald. - Mas não temos controle nenhum sobre aquela porta e não nos podemos esquecer disso.

 

Todos olharam para a porta que ficava na parede oposta aos espelhos. Era branca, como tudo o resto, não tinha maçaneta nem fechadura, nem dobradiças.

 

- Temos que ficar de vigia - acrescentou Donald. - Eu não quero que os Russos, ou seja lá quem forem, entrem por aqui dentro e façam de nós o que lhes apetecer.

 

- Ajulgar pelo esmero com que prepararam estes aposentos, não me parece que essa paranóia se justifique - disse Suzanne. E pensei que já tínhamos chegado à conclusão de que isto não tem nada a ver com essa história dos russos.

 

- Bem, vocês podem continuar a discutir sobre isso - disse Richard antes de se encaminhar para a mesa e levantar a tampa de uma das travessas. Um delicioso aroma espalhou-se pelo quarto.

 

- o que é? - perguntou Michael, inclinando-se para espreitar.

- Não faço ideia - disse Richard. Pegou na colher. A comida fumegante era de cor creme e tinha uma consistência pastosa, como se fossem cereais quentes.

 

- Parece uma papa de cereais e cheira muito bem. - Levou a colher à boca e provou o seu conteúdo. - Diabos me levem! Como é que eles adivinharam? Sabe ao meu prato favorito: costeletas.

 

Michael provou um pouco.

 

- Costeletas? Estás doido, ou quê? Sabe a batata doce.

 

- Que disparate! - disse Richard. - Tu e as tuas batatas doces. Ele sentou-se numa das cadeiras e serviu-se de uma grande quantidade de comida. - Estás sempre a falar em batatas doces.

 

Suzanne e Perry aproximaram-se da mesa, sentindo-se curiosos após esta troca de palavras. Sentiam uma fome irresistível. A próxima a provar a comida foi Suzanne.

 

- Isto é incrível - disse ela. - Sabe a manga.

 

- Não sei se consigo acreditar nisso - disse Perry. - Porque a mim, sabe-me a milho acabado de sair da maçaroca.

 

Suzanne provou mais um pouco.

 

- A mim sabe-me a manga, sem dúvida nenhuma. Talvez a comida provoque no nosso cérebro algo que faz com que interpretemos o sabor consoante as nossas preferências.

 

Até Donald se sentiu intrigado. Foi até à mesa e provou uma quantidade mínima de comida. Abanou a cabeça, incrédulo.

 

- Sabe-me a bolachas: bolachas de manteiga e leite. - Sentou-se numa das cadeiras. - Tenho tanta fome como vocês.

 

Todos se foram servindo, várias vezes, do curioso alimento. Era difícil resistir à tentação de repetir. Descobriram também que a bebida gelada provocava o mesmo efeito. Tinha sabores diferentes para cada pessoa, de acordo com as suas preferências.

 

Assim que todos ficaram saciados, as sensações de exaustão e sono regressaram, e desta vez ainda com mais força. Tentando manter abertos os olhos que teimavam em fechar-se, levantaram-se da mesa e cada um deles se deitou numa cama. Assim que se taparam, todos, à excepção de Donald, caíram num sono profundo, como se estivessem num ciclo de hibernação. Donald esforçou-se por se manter acordado, mas era impossível. Dentro de poucos minutos, também ele dormitava.

 

Assim que os olhos de Donald se fecharam, apareceram umas minúsculas luzes vermelhas nos dosséis de cada uma das camas. Precisamente ao mesmo tempo, surgiu um brilho vindo dos dosséis, que envolveu cada um dos indivíduos adormecidos num halo de cor violeta.

 

As minúsculas luzes vermelhas por cima das camas dos aposentos ficaram momentaneamente verdes e o brilho violeta extinguiu-se. Uns instantes mais tarde as luzes verdes apagaram-se.

 

Perry foi o primeiro a acordar. Não foi uma transição gradual mas antes uma mudança súbita de um estado de sono profundo para a plena consciência. Durante alguns segundos, ele fitou o dossel por cima de si, tentando identificar o que estava a ver e perceber onde é que se encontrava. Mas não conseguiu. o que encontrou ao acordar não tinha nada a ver com o que ele esperava ver, mais precisamente, o tecto branco da suposta suite VIP do Benthic Explorer.

 

Perry sentia-se confuso, mas assim que virou a cabeça lembrou-se de tudo. Não tinha sido um sonho. A horrível queda do Oceanus para as insondáveis profundidades tinha sido real.

 

Viu que, perto da sua cama, estava um cabide preto. Um conjunto de calções e túnica em cetim branco, semelhante ao que ele julgava ter vestido, estava aí pendurado. Perry apercebeu-se de que se sentia completamente despido debaixo das cobertas. Levantou uma ponta da coberta de caxemira e olhou para o seu corpo. Não só estava, de facto, nu, como verificou que à volta do seu umbigo tinha o mesmo anel de pequenas feridas que vira em Richard e Michael quando estes tinham saído das esferas.

 

Perry deu um pequeno grito e depois saltou da cama para examinar as suas feridas com mais cuidado. Esticou a pele macia da sua barriga. As feridas não eram profundas e não lhe doíam, para seu enorme alívio. Mas mais importante do que isso era o facto de estarem cicatrizadas.

 

Enquanto ia tomando consciência da sua descoberta, Perry teve outro choque. As suas pernas e virilhas tinham novamente pêlos! Olhou para um braço e viu que também aí voltara a haver cabelo. Passou uma mão pelo cimo da cabeça e sorriu.

 

Perry tirou as roupas do cabide cor de ébano e vestiu-as enquanto percorria o quarto.

 

o reflexo da sua imagem no espelho quase que o fez ter uma síncope. o cimo da sua cabeça estava completamente coberto de cabelo. Tinha poucos centímetros de comprimento, mas era tão grosso e escuro como tinha sido nos seus tempos de liceu. Sentiu-se como se tivesse encontrado a fonte da juventude.

 

Perry ouviu barulho atrás de si. Voltou-se ainda a tempo de ver Donald e Suzanne a vestirem as suas roupas. Richard e Michael estavam sentados nas bordas das suas camas, olhando em volta, embasbacados. Tinham as roupas no colo.

 

- Tal como eu previ - disse Donald, para ninguém em particular. - Eu sabia que aqueles filhos da mãe viriam para aqui fazer o que lhes apetecesse assim que estivéssemos a dormir. Era por isso que eu queria organizar turnos de vigia.

 

- Não é assim tão mau - disse Perry ao aproximar-se. - Temos cabelo! Já viu bem? o meu está mais forte do que estava quando eu o perdi.

 

- Também já reparei no meu cabelo - disse Suzanne com pouco entusiasmo.

 

- Não está contente? - perguntou Perry.

 

- Eu preferia que ele tivesse o comprimento que tinha ontem

- disse Suzanne. - Ou melhor, o comprimento que tinha há três dias.

 

- o que quer dizer com isso de «há três dias»? - interrogou Perry

- Ontem foi dia vinte e um de Julho - disse Suzanne. - Certo?

- Acho que sim - disse Perry. Ele não tinha a certeza, devido ao voo nocturno até aos Açores.

 

- Bem, o meu relógio, que alguém tirou do meu pulso mas foi suficientemente amável para não levar, diz que hoje é dia vinte e quatro.

 

o relógio de Suzanne fora o único a resistir ao gás. A sua bracelete de ouro não se tinha dissolvido.

 

- Talvez quem o tirou lhe tivesse alterado a data - sugeriu Perry. A ideia de ter estado a dormir durante três dias era, no mínimo, preocupante.

 

- É possível - disse Suzanne. - Mas não creio. Quer dizer, para o nosso cabelo ter crescido desta maneira foram precisos mais do que três dias. Talvez tivéssemos estado a dormir durante um mês e três dias.

 

Perry estremeceu.

 

- Um mês? - disse ele a custo. - Não consigo imaginar como é que isso é possível. o crescimento do cabelo deve ser resultado de algum tratamento fantástico. o meu cabelo está igual ao que era quando eu tinha catorze anos. Vou dizer-lhe uma coisa: como homem de negócios, eu daria tudo para saber qual é o segredo. Já pensou bem? Que produto!

 

- A mim não me fizeram favor nenhum - disse Donald. - Eu não queria ter cabelo.

 

- Repararam nas feridas que têm na barriga? - perguntou suzanne a Perry e a Donald.

 

Ambos acenaram afirmativamente.

 

- Isso significa que estivemos ligados a algum dispositivo de apoio à vida - disse Suzanne. - Talvez igual ao dos nossos mergulhadores quando estavam nas esferas.

 

- Foi isso que eu pensei - disse Perry - Devem ter-nos ligado alguma coisa, se é realmente verdade que passámos tanto tempo a dormir.

 

- Ei, está tudo bem convosco? - perguntou Suzanne, levantando a voz na direcção de Richard e Michael, que estavam a acabar de se vestir.

 

- Tudo bem - disse Richard. - o único problema é que eu acordei com a esperança de que tudo isto fosse apenas um pesadelo. E afinal...

 

- Se eles nos drogaram, violaram a Convenção de Genebra resmungou Donald. - Nós somos civis! Sabe-se lá o que é que estas feridas podem querer dizer. Eles podem ter-nos injectado com tudo o que lhes apeteceu... SIDA, ou soros da verdade.

 

- A verdade é que eu me sinto óptimo - admitiu Perry Flectiu os braços e esticou as pernas. Era como se, para além do seu novo cabelo, o seu corpo também tivesse rejuvenescido.

 

- Eu também - disse Michael. Esticou os braços até tocar nos dedos dos pés e começou a correr no mesmo sítio. - Sinto que conseguiria nadar umas vinte milhas.

 

- Fiquei outra vez com cabelo, mas a minha barba desapareceu

- disse Richard. - Quem é que me explica isto?

 

Por reflexo, os outros três homens passaram a mão pelo queixo. Era verdade. Não tinham nenhum vestígio de barba.

 

- Isto está a ficar cada vez mais interessante - disse Perry-

- A mim parece-me que está a ficar cada vez mais irreal disse Suzanne. Olhou mais de perto para as bochechas de PerryAté há pouco tempo ele tivera uma leve penugem, agora a sua pele estava totalmente lisa.

 

- Esperem aí, malta! - exclamou Richard. Apontou para a porta que ficava na parede oposta aos espelhos. - Parece que nos vão deixar sair da jaula.

 

Todos se viraram e viram a porta a abrir-se silenciosamente. Do outro lado podia ver-se um novo corredor longo e branco com hologramas emoldurados. A luz que vinha do outro extremo era brilhante e natural.

 

- Parece a luz do Sol - disse Suzanne.

 

- Não pode ser a luz do Sol - disse Donald. - Anão ser que, de algum modo, nos tivéssemos movimentado.

 

Perry sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Ele sabia, intuitivamente, que tudo o que tinha acontecido até agora era apenas um preâmbulo do que ia acontecer nos próximos minutos. o problema era que ele não tinha a mais pequena ideia do que seria.

 

Richard deu uns passos até à porta para tentar ver melhor. Teve que proteger os olhos da claridade reflectida pela superfície brilhante das paredes brancas.

 

- Consegue ver alguma coisa? - perguntou Suzanne.

 

- Não muito bem - admitiu Richard. - Há uma passagem ao fundo e uma parede do lado oposto. Deve ser uma passagem lá para fora. Vamos!

 

- Espere só um momento - disse suzanne, olhando em seguida para Donald. - o que é que te parece? Vamos? Parece-me evidente que é o que os nossos anfitriões esperam que nós façamos.

 

- Penso que devemos ir, mas formando um grupo - disse Donald. - Devemos manter-nos todos juntos sempre que pudermos, mas talvez fosse boa ideia escolhermos alguém para ser o porta-voz, para o caso de encontrarmos os nossos captores.

 

- Muito bem - disse Suzanne. - Eu nomeio o Perry

 

- Eu? - guinchou Perry. Aclarou a garganta. - Porquê eu? o Donald ainda é o capitão.

 

- É verdade - disse Suzanne. - Mas você é o presidente da Benthic Marine. Quem nos está a manter aqui irá apreciar o facto de falar com alguém com autoridade, principalmente se o assunto for a operação de perfuração.

 

- Acha que é esse o motivo por que estamos aqui? Por causa da perfuração?

 

- Passou-me essa ideia pela cabeça, sim - disse Suzanne.

 

- Mas apesar de tudo, o Donald já foi militar - disse Perry em tom queixoso. - Eu nunca fui. E se isto for, de facto, uma base militar russa?

 

- Acho que podemos dizer com toda a segurança que isto não é uma base russa - replicou Suzanne.

 

- Não está totalmente fora de questão - disse Donald. - Mas eu acho que o Perry é uma boa escolha, mesmo assim. Isso dar-me-á hipótese de avaliar melhor a situação, principalmente no caso de as coisas se tornarem mais sérias.

 

- Richard e Michael! - chamou Suzanne. - Algum de vocês tem opinião sobre quem deve ser o nosso porta-voz?

 

- Eu acho que deve ser o chefão - disse Michael.

 

Richard limitou-se a acenar afirmativamente. Sentia-se impaciente por continuar.

 

- Então está decidido - disse Suzanne. Fez um sinal a Perry para que este fosse o primeiro a encaminhar-se para o corredor.

 

- Okay - disse Perry com mais entusiasmo do que aquele que realmente sentia. Apertou melhor o cordão dourado à volta da sua túnica, endireitou os ombros e dirigiu-se para o corredor. Richard deitou-lhe um olhar desdenhoso quando ele passou e depois seguiu atrás dele. Os outros seguiram em fila indiana.

 

Ao aproximar-se do fim do corredor, os passos de Perry tornaram-se mais lentos. Ao sentir um calor radiante, ficou com a certeza de que a luz que se espalhava pelo corredor era, de facto, a luz do sol. Calculou que o recinto à sua frente devia ter uns seis metros quadrados e que em cima tinha uma abertura para o ar livre.

 

Uns dois metros mais à frente, Perry parou e Richard chocou contra ele.

 

- Qual é o problema - quis saber Suzanne. Empurrou ligeiramente Richard para passar por ele.

 

Perry não respondeu, porque ele próprio não sabia exactamente por que é que tinha parado. Inclinou-se lentamente para a frente para, progressivamente, conseguir ver melhor a parede à sua frente. Estava a tentar ver o seu topo, mas não conseguia. Depois de dar mais um passo, tentou outra vez. Desta vez conseguiu ver a parede até ao cimo, que calculou estar a uns quatro metros e meio do chão. Por cima da parede ele viu pés, tornozelos, plantas dos pés e bainhas de roupas iguais às que ele vestia.

 

Perry voltou a endireitar-se e virou-se para os outros.

 

- Estão pessoas por cima daquela parede ali à frente - disse ele num murmúrio. - Estão vestidas como nós.

 

- A sério? - perguntou Suzanne. Inclinou-se para a frente, tentando ver por ela própria, mas estava muito para trás.

 

- Não tenho a certeza - disse Perry. - Mas parece-me que estão vestidos com roupas leves de cetim, iguais às nossas. - Ele, tal como os outros, tinha assumido que as estranhas roupas de cetim, tipo lingerie, faziam parte do seu uniforme de prisioneiros.

 

- Vá lá - disse Richard cada vez mais impaciente - tenho de ver isso. Vamos embora!

 

- Por que é que andarão vestidos à moda da Grécia antiga? perguntou Suzanne a Donald.

 

Donald encolheu os ombros.

 

- Não sei responder a isso. Vamos mas é avançar e ver com os nossos próprios olhos.

 

Perry foi à frente. Com uma mão a proteger os olhos da intensa luminosidade vinda do quadrado de céu por cima dele, olhou para cima. o que viu, deixou-o de tal maneira impressionado que parou abruptamente no sítio onde estava e a sua boca abriu-se de espanto. Suzanne foi de encontro a ele e o resto do grupo chocou com ela, ficando todos igualmente perplexos.

 

Encontravam-se numa espécie de jaula. Quatro metros e meio acima via-se uma galeria vidrada, rodeada por uma balaustrada de mármore e apoiada em colunas estriadas cujos capitéis estavam adornados com criaturas marinhas douradas. Em frente à galeria estavam várias pessoas, imóveis e silenciosas, encostadas ao vidro e olhando para baixo com um ar de intensa curiosidade. Tal como Perry tinha vislumbrado antes, todos estavam vestidos com os mesmos amplos conjuntos de túnica e calção em cetim branco.

 

Perry não tinha tido qualquer imagem mental específica de como seriam as caras das pessoas que estavam prestes a conhecer, mas o que ele viu estava totalmente para além da sua imaginação. o que ele inconscientemente esperava eram expressões impiedosas dos seus captores. Antes de ter visto as roupas de cetim ele tinha esperado ver uniformes, e imaginara que se iria deparar com expressões fechadas, ou até mesmo hostis. Em vez de tudo isto, ele deu por si a olhar para o mais belo grupo de pessoas que ele jamais vira, cujas faces reflectiam uma serenidade quase divina. Apesar das idades variarem desde crianças pequeninas a adultos vigorosos, a maioria devia ter vinte e poucos anos. Com os seus corpos graciosos, olhos muito vivos, cabelo reluzente e uns dentes tão brancos que fizeram Perry achar que os dele eram amarelos, todos eles irradiavam saúde.

 

- Não acredito! - disse Richard efusivamente ao observar a cena.

 

- Quem é esta gente? - murmurou Suzanne, num tom perplexo.

- Nunca vi um grupo de pessoas tão bonitas - conseguiu Perry dizer. - Todos eles. Não há um único que tenha um aspecto mais vulgar.

 

- Sinto-me como se fôssemos cobaias de alguma experiência disse Donald, muito baixinho. - Vejam como eles olham para nós! E lembrem-se que as aparências enganam! Não se esqueçam que eles fizeram de nós o que quiseram. Tudo isto pode ser uma espécie de armadilha.

 

- Mas eles são tão belos - comentou Suzanne, enquanto se virava para ver melhor - especialmente as crianças, mas os mais velhos também. Como é que isto pode ser uma armadilha? Posso dizer-te uma coisa, ao ver estas pessoas acho que podemos pôr definitivamente de lado a ideia de isto ser uma base submarina russa.

 

- Bem, americanos é que eles não são - disse Perry - Não há uma única pessoa com excesso de peso no grupo.

 

- Estamos no Paraíso - sussurrou Michael extasiado.

 

- A mim parece-me mais um jardim zoológico - disse Donald.

- A única diferença é que os animais somos nós.

 

- Tenta ter um pensamento mais positivo - sugeriu Suzanne.

- Eu tenho de admitir que me sinto aliviada.

 

- Bem, há uma coisa boa - comentou Donald. - Pelo menos não vejo nenhuma arma.

 

- Tem razão! - disse Perry. - E isso é bastante encorajador.

- É lógico que eles não precisam de armas, se nos mantêm aqui fechados e permanecem lá em cima - acrescentou Donald.

 

- Isso é verdade - disse Perry. - Que acha, Suzanne?

 

- Não acho nada - disse Suzanne. - Tudo isto me continua a parecer irreal. o que estamos a ver, ali em cima, será mesmo o céu?

- É o que parece - disse Perry

 

- Achas possível que tivéssemos sido levados para Este quando o Oceanus caiu pelo poço? - perguntou Suzanne. - Isto é, achas possível que isto seja uma das ilhas açoreanas?

 

- Só podemos descobrir isso se eles decidirem dizer-nos - disse Donald.

 

- Que importância tem o sítio onde estamos? - exclamou Michael.

- Olhem só para aquelas mulheres! Que corpinhos! Serão mesmo reais ou estamos a imaginar isto tudo?

 

- É uma ideia interessante, essa - disse Suzanne. - Ontem à noite - ou no mês passado - a comida tinha o sabor que nós desejáVamos; poderá estar a acontecer o mesmo agora, com a nossa visão? É uma outra maneira de ver a questão. Talvez estejamos a ver aquilo que queremos ver.

 

- Parece-me uma teoria demasiado elaborada - disse Perry.

- Nunca acreditei muito nessas coisas sobrenaturais.

 

- Mas o que é que isso interessa - disse Richard. - Olhem só para o borrachinho de cabelo castanho comprido. Que formas! Ei, ela está a olhar para mim.

 

Richard fez um enorme sorriso, levantou a mão e acenou com entusiasmo. A mulher respondeu-lhe com um novo sorriso e encostando a palma da mão ao vidro.

 

- Ei! - disse Richard, com orgulho. - Ela gosta de mim! Richard atirou-lhe alguns beijos, o que fez com que a mulher sorrisse ainda mais.

 

Encorajado pelo sucesso de Richard, Michael olhou directamente para uma mulher com um brilhante cabelo preto azeviche. Ela mostrou que tinha reparado nele, colocando a palma da sua mão encostada ao vidro, tal como a outra tinha feito. Michael começou a saltar, como um louco, e a acenar vigorosamente com as duas mãos. A mulher respondeu com uma gargalhada, apesar do vidro não permitir ouvir o som.

 

Suzanne deixou de olhar para cima e tentou chamar a atenção de Donald.

 

- Não vejo nada que me sugira hostilidade - disse ela. - Têm todos um ar tão pacífico.

 

- Provavelmente, é um estratagema - disse Donald. - Uma maneira de nos tirarem da defensiva.

 

Relutantemente, Perry desviou o olhar das pessoas maravilhosas, para olhar para Suzanne e Donald. Richard e Michael continuaram a trocar olhares com as duas mulheres. Estavam a tentar comunicar através de sinais.

 

- Que fazemos agora? - perguntou Perry.

 

- Eu, pessoalmente, não gosto de estar aqui a servir de espectáculo - disse Donald. - Sugiro que voltemos para os nossos aposentos e que esperemos para ver o que é que acontece. Não se esqueçam que eles estão a jogar em casa. Vamos deixar que sejam eles a vir ter connosco.

 

- Mas quem será esta gente? - perguntou Suzanne. - Isto é estranhíssimo; parece um filme de ficção científica.

 

Perry ia responder quando sentiu que as palavras lhe ficaram presas na garganta. Apontou para algo por cima dos ombros de Suzanne e Donald. Uma das paredes do recinto estava misteriosamente a abrir-se, mostrando uma escada que conduzia até à galeria.

 

- Bem - exclamou Suzanne. - Tal como disseste, Donald, eles estão a jogar em casa, e penso que estamos a ser convidados para um frente-a-frente.

 

- Que fazemos? - perguntou Perry, sentindo-se nervoso.

 

- Acho que devíamos subir a escada - disse Donald. - Mas todos juntos e devagar. E, Perry, será você a falar, tal como combinámos.

 

Richard e Michael não tinham ainda reparado no silencioso aparecimento da escada por estarem empenhados na comunicação gestual, que se tornara absolutamente disparatada. Lá em cima, as pessoas correspondiam alegremente à mímica deles, o que só os encorajava a tentar novos sinais. Mas assim que viram as escadas, correram para elas. Estavam ambos ansiosos por estabelecer um contacto mais íntimo com as suas novas amigas.

 

- Esperem! - ordenou Donald. Pusera-se de modo a impedir a louca correria dos mergulhadores. - Ponham-se na fila! Nós vamos em grupo e o Sr Bergman será o porta-voz.

 

- Eu quero ser apresentado àquela morenaça - disse Richard, entusiasmado.

 

- E eu quero conhecer aquela brasa de cabelo negro - acrescentou Michael, quase sem fôlego.

 

Os dois mergulhadores tentaram passar por Donald, mas este segurou-os com força pelos braços. Ambos protestaram, mas depressa mudaram de ideias, quando viram a cara de Donald. As narinas do ex-oficial estavam distendidas e a sua boca fechada tinha uma expressão determinada.

 

- Bem, suponho que posso esperar alguns minutos - conseguiu Richard dizer.

 

- Claro que sim - disse Michael. - Temos tempo.

 

Donald largou os braços dos mergulhadores, e em seguida fez um sinal a Perry para que ele passasse para a frente.

 

Perry sentia-se muito mais confiante agora, enquanto subia as escadas, do que se sentira antes no corredor. Ficar frente a frente com um grupo de pessoas tão bonitas, vestindo peças de lingerie semelhantes às suas, parecia-lhe bem menos intimidante do que aquilo que a sua imaginação tinha anteriormente previsto. Apesar disso, essa confiança foi diminuindo à medida que ia avançando e que ia tomando consciência das circunstâncias invulgares em que o grupo se encontrava. Deu por si a pensar se Michael teria razão ao sugerir que tudo isto podia ser uma alucinação colectiva e, por consequência, uma armadilha, como dissera Donald. Mas o temperamento naturalmente optimista de Perry teve dificuldade em imaginar uma razão para tudo aquilo ser uma armadilha, principalmente porque estas pessoas, fossem quem fossem, já possuíam o controle da situação e não precisavam de montar nenhuma armadilha.

 

As pessoas bonitas, tal como Perry lhes chamava quando pensava nelas, tinham-se juntado inicialmente ao pé das escadas, como um grupo de adolescentes esperando por uma estrela de música. Mas à medida que Perry e os outros se aproximavam do cimo, elas afastaram-se. Isto deixou Perry confuso, uma vez que a multidão se tinha afastado como se estivessem com medo ou, pelo menos, com respeito, como se se aproximasse um animal domesticado mas potencialmente feroz.

 

Perry subiu o último degrau e parou. Três metros à frente, o grupo de pessoas bonitas formava um semicírculo. Ninguém se mexia. Ninguém falava. Ninguém sorria.

 

Perry presumira que os captores seriam os primeiros a falar. Não pensara que seria ele a dizer as primeiras palavras, mas por fim decidiu quebrar o silêncio desconfortável, com um experimental «Olá».

 

o seu cumprimento provocou alguns risinhos nas pessoas bonitas, mas pouco mais. Perry virou-se para ver se os seus companheiros tinham alguma sugestão a fazer. Suzanne encolheu os ombros. Donald não disse nada. Sentia-se muito mais desconfiado do que Perry.

 

Perry voltou-se de novo para a multidão.

 

- Alguém fala inglês? - perguntou ele, não sabendo o que dizer mais. - Um pouco de inglês, ou talvez espanhol? - Perry sabia alguma coisa de espanhol.

 

Um casal deu alguns passos para a frente. Ambos aparentavam ter vinte e poucos anos e, tal como todos os outros, eram extraordinariamente belos. Tinham traços clássicos e perfeitos, que lembraram a Perry imagens que ele tinha visto em camafeus antigos. o homem tinha cabelos louros, pelos ombros. Os olhos eram de um intenso azul céu. A mulher tinha o cabelo de um ruivo bastante vivo, apanhado num proeminente bico-de-viúva. Os seus olhos verdes eram tão brilhantes como esmeraldas. Ambos tinham uma pele rosada e radiosa, sem quaisquer vestígios de imperfeições. Se estivesse em L.A., não haveria qualquer dúvida: eles eram estrelas de cinema.

 

- Olá amigos, como estão? - disse o homem com uma perfeita pronúncia americana. - Por favor, não tenham medo. Ninguém vos fará mal. o meu nome é Arak e esta é a Sufa. - o homem fez um gesto em direcção à mulher que se encontrava ao seu lado.

 

- Também gostava de os cumprimentar - disse Sufa. - Como é que cada um de vocês gostaria de ser chamado?

 

Perry ficou pasmado ao ouvi-los falar inglês de um modo tão correcto. Era estranhamente reconfortante ouvir algo que soava tão familiar, comparado com todas as coisas extraordinárias que tinham visto desde que o Oceanus se tinha afundado.

 

- Quem são vocês? - conseguiu ele dizer.

 

- Somos habitantes da Interterra - disse Arak. A sua poderosa voz de barítono não era muito diferente da de Donald.

 

- E onde diabo fica a Interterra? - perguntou Perry. A sua voz soou um pouco ríspida, sem que ele tivesse essa intenção. Subitamente tinha-lhe ocorrido que tudo isto podia ser uma piada bem elaborada, em vez da armadilha que Donald temia.

 

- Por favor! - disse Arak solicitamente. - Eu sei que vocês estão confusos e exaustos, e têm todo o direito a estar, depois de tudo o que vos aconteceu. Nós temos plena consciência do quanto pode ser difícil a sequência da descontaminação, por isso tentem relaxar. Têm de estar preparados para as emoções que temos planeadas para vocês,

 

- Vocês são americanos expatriados? - interrogou Perry.

 

Tanto Arak como Sufa taparam a boca com as mãos, numa vã tentativa de conter o riso. Todas as pessoas bonitas que estavam suficientemente perto para terem ouvido a pergunta de Perry, fizeram o mesmo.

 

- Desculpem o nosso riso, por favor - disse Arak. - Não temos a intenção de ser indelicados. Não, não somos americanos. Nós, os Interterrestres, conhecemos bem as vossas línguas. o inglês, com todas as suas variantes, é a minha especialidade e a de Sufa.

 

Suzanne inclinou-se e sussurrou à orelha de Perry:

 

- Pergunte-lhes novamente onde é que fica a Interterra. Perry fez o que ela pediu.

 

- A Interterra fica debaixo dos oceanos - respondeu Arak. Situa-se numa falha entre o que vocês chamam a crosta terrestre e o manto. É a área a que os vossos cientistas chamam a descontinuidade de Mohorovicic.

 

- Isto é um mundo subterrâneo? - explodiu Suzanne. Olhou para cima, para o que parecia ser o céu cheio de sol. Estava estupefacta.

 

- «Submarino» é o termo correcto - interveio Sufa. - Mas, por favor.. nós sabemos que devem ter imensas questões. Todas elas serão respondidas quando chegar a altura certa. Por agora, pedimos gentilmente que tenham um pouco de resignação.

 

- o que é resignação? - perguntou Richard.

 

- Significa paciência - disse Sufa, sorrindo graciosamente.

- Gostávamos mesmo de saber como é que devemos tratar cada um de vocês - disse Arak.

 

- Eu sou o Perry, presidente da Benthic Marine - disse Perry, tocando com a mão no peito. Em seguida apresentou os outros, dizendo os seus nomes completos.

 

Arak deu mais um passo em frente e apresentou-se directamente a Suzanne. Era bastante mais alto do que ela. Ele estendeu o braço direito com a palma da mão virada para ela. Apontou com a outra mão.

 

- Talvez me conceda a honra de um cumprimento interterrestre

- disse ele. - Encoste a sua palma à minha.

 

Suzanne hesitou e olhou furtivamente para Perry e Donald, antes de fazer o que lhe tinha sido pedido. A sua mão era muito mais pequena do que a de Arak.

 

- Seja bem-vinda Dra. Newell - disse Arak, depois das suas palmas se terem tocado. - Temos muito gosto em que nos tenha vindo visitar. - Fez uma vénia e retirou a mão.

 

- Bem, obrigada - disse Suzanne. Sentia-se confusa, e contudo lisonjeada, por ter sido escolhida para uma saudação individual.

 

Arak afastou-se um pouco.

 

- E agora, excelentíssimos convidados - disse ele -, serão acompanhados até aos vossos aposentos, os quais acharão por certo agradáveis.

 

- Espere aí, Arak! - chamou Richard, pondo-se em bicos de pé.

- Está por aí uma morenaça fantástica que me quer conhecer.

 

- E há um borracho de cabelo negro a quem eu quero ser apresentado - disse Michael. Desde que tinham subido as escadas, os dois mergulhadores tinham estado a observar a multidão com atenção, tentando encontrar as duas mulheres. Para seu grande desgosto não tinham conseguido ver nenhuma delas.

 

- Haverá muito tempo para convivermos - disse Arak -, mas agora é importante que vão para os vossos aposentos, uma vez que têm de comer e de se lavar convenientemente. Mais tarde haverá uma festa de gala para celebrarmos a vossa presença. Por isso, sigam-me por favor.

 

- Eu não demoro muito - disse Richard. Começou a andar, com o objectivo de passar porArak e Sufa e misturar-se com as pessoas. Mas Donald agarrou-o com tanta força como tinha feito antes de terem subido as escadas.

 

- Pare com isso, marinheiro! - disse-lhe Donald em voz baixa.

- Nós ficamos sempre juntos! Não se esqueça disso!

 

Richard olhou para trás durante um momento, contendo-se para não dizer a Donald que se fosse lixar. Estava tão perto de conhecer aquela mulher linda, que lhe era difícil controlar-se. o autocontrole nunca tinha sido o seu forte. Mas a intensidade do olhar de Donald fez com que ele se rendesse.

 

- Uma comidita até não era má ideia - disse ele, para não parecer que se estava a submeter.

 

- É melhor que não pise o risco, companheiro - disse-lhe Donald. - Ou, então, as coisas não vão correr nada bem entre nós os dois.

 

- Só para que conste - disse Richard - eu não tenho medo de si.

 

Enquanto seguia Arak e Sufa, Suzanne ia pondo um pé à frente do outro, mas sentia os seus movimentos como se fossem desconexos, como se os seus pés não estivessem solidamente assentes no chão. Não estava exactamente tonta, mas era uma sensação muito semelhante. Ela conhecia o termo psiquiátrico despersonalização e interrogou-se se não estaria a sofrer alguma variação desse fenómeno. Tudo à sua volta lhe parecia tão irreal. Era como se estivesse a sonhar, apesar dos sentidos lhe fornecerem sensações bem vivas. Conseguia ver, cheirar e ouvir normalmente. Mas para além disso nada mais fazia sentido. Como é que era possível que eles estivessem debaixo do oceano?!

 

Sendo uma oceanógrafa geofísica, Suzanne sabia que a descontinuidade de Mohorovicic era o nome dado a uma específica camada da terra que marcava uma mudança brusca na velocidade do som e das ondas sísmicas. A sua localização aproximada era de quatro a seis mil metros abaixo do fundo do oceano, e cerca de trinta e oito mil metros abaixo dos continentes. Também sabia que o seu nome eponímo provinha do sismólogo sérvio que a tinha descoberto. Mas para além do facto de ter um nome, ninguém fazia ideia do que era essa camada na realidade. Tanto quanto Suzanne podia saber, nem ela nem qualquer outro geólogo ou sismólogo tinha alguma vez considerado a possibilidade da camada ser uma enorme caverna cheia de ar. A ideia era demasiado absurda para poder ser seriamente considerada.

 

- Por favor, dêem aos nossos humanos secundários a honra que eles merecem - disse Arak em voz alta, aos seus companheiros Interterrestres enquanto ia avançando pelo meio deles. - Recuen, e dêem-nos passagem! - Fez sinal para que as pessoas se afastassem, o que elas fizeram silenciosamente.

 

- Façam favor! - disse Arak gentilmente para Suzanne e para os outros, apontando para um caminho que conduzia para fora da galeria. Ele avançou e fez um gesto para que os outros o seguissem.

- Assim que deixarmos o hall de chegada dos visitantes, depressa chegaremos às vossas acomodações.

 

106
Como se estivesse a ver-se a si própria num filme, Suzanne foi caminhando por entre a multidão de Interterrestres, Sentia Perry imediatamente atrás de si e calculou que Donald e os mergulhadores estivessem logo a seguir. A situação já não era assustadora. As pessoas bonitas sorriam para eles e cumprimentavam-nos de um modo tímido e envergonhado. Suzanne não conseguiu deixar de lhes sorrir em resposta.

 

Isto estará realmente a acontecer?, era a pergunta que colocava continuamente a si própria enquanto caminhava atrás de Arak. Estarei a sonhar? Parecia tudo tão irreal e, contudo, era indubitável que ela estava a sentir o mármore frio por debaixo dos seus pés descalços, e a carícia que a brisa suave fazia na sua face. Nunca tinha tido sensações tão pormenorizadas num sonho, por mais realista que ele tivesse sido.

 

Sufa virou-se para Suzanne.

 

- Como pode constatar vocês são verdadeiras celebridades. Os humanos da segunda geração são mesmo populares. Vocês são extremamente estimulantes. É melhor estarem preparados pois irão ser muito solicitados.

 

- o que é que quer dizer com «humanos de segunda geração»? - perguntou Suzanne.

 

- Então, Sufa - interrompeu Arak gentilmente. - Lembra-te do que ficou combinado! Estes hóspedes serão elucidados acerca do nosso mundo a um ritmo mais lento do que aconteceu com outros no passado.

 

- Eu não me esqueci - respondeu Sufa, e em seguida acrescentou: - Quando for a altura apropriada, nós discutiremos todos esses assuntos, e todas as vossas questões serão respondidas. Prometo-vos.

 

Em breve, o grupo chegou a um espaçoso terraço que se abria para uma extraordinária e colossal caverna subterrânea, tão imensa que dava a impressão de não ser um espaço fechado. A iluminação era semelhante à luz do dia, apesar de não haver sol. o tecto era em abóbada e de um azul pálido como a cor do céu num dia de verão nublado. Algumas nuvens ligeiras flutuavam vagarosamente com a brisa.

 

o terraço ficava num dos lados de um edifício localizado na ponta mais distante de uma cidade. A partir da balaustrada estendia-se uma paisagem bucólica de montes suaves, vegetação luxuriante e lagos, distinguindo-se, não muito longe, algumas aldeias. Os edifícios eram construídos em basalto negro, bastante polido e trabalhado sob a forma de linhas curvas, abóbadas, torres e pórticos com colunas clássicas. Ao longe erguia-se uma série de montanhas com largos sopés e que subiam em direcção à abóbada, formando gigantescas colunas de suporte.

 

- Se tiverem a bondade de esperar só um instante - disse Arak. Em seguida começou a falar em voz baixa através de um microfone que fazia parte de um instrumento que ele tinha à volta do pulso.

 

Os cinco «humanos de segunda geração» estavam enfeitiçados pela inesperada beleza e pelas dimensões de cortar a respiração daquele paraíso subterrâneo. Estava muito para além daquilo que a imaginação deles podia ter concebido. Até os mergulhadores estavam boquiabertos.

 

- Estamos à espera do transporte - explicou Sufa.

 

- Isto é a Atlântida? - perguntou Perry, com a boca aberta de espanto.

 

- Não! - disse Sufa, num tom ligeiramente ofendido. - Isto não é a Atlântida. Esta é a cidade de Saranta. AAtlântida fica exactamente a leste daqui. Mas não a conseguem ver. Fica atrás daquelas colunas que suportam aquelas protuberâncias à superfície a que vocês chamam Açores.

 

- Então a Atlântida existe mesmo? - disse Perry

 

- Claro que existe - disse Sufa. - Mas, pessoalmente, não acho que seja tão agradável como Saranta. É uma cidade recente, só agora é que está a começar a evoluir, e está cheia de gente convencida, se querem saber a minha opinião. Mas terão oportunidade de julgar por vocês mesmos.

 

- Ah, aqui vamos nós - exclamou Arak, enquanto uma nave em forma de disco com o cimo em cúpula se materializava silenciosamente junto aos degraus. Aproximou-se tão rapidamente que só quem estava a olhar na direcção certa a conseguiu ver chegar.

 

- Desculpem a demora - disse Arak. - Deve estar a haver uma grande procura, por qualquer razão. Mas entrem, por favor.

- Apontou para baixo, para uma entrada que tinha miraculosamente aparecido num dos lados do disco.

 

o grupo desceu os degraus e entrou na nave, que planava silenciosamente a poucos metros do chão. Tinha nove metros de diâmetro e era encimada por uma abóbada semelhante à dos presumíveis OVNIS que por vezes inundavam as páginas de alguns jornais, No seu interior, via-se um banco circular, com estofos brancos, tendo ao centro uma mesa redonda de cor preta. Não se viam quaisquer comandos.

 

Arak foi o último a entrar a bordo da nave e, assim que o fez, a porta desapareceu, tão silenciosa e misteriosamente como tinha aparecido.

- Ah, é sempre a mesma coisa - queixou-se Arak, depois de ter olhado à sua volta. - Agora que tentamos impressionar alguém, calha-nos uma destas naves antigas. Esta está a dar as suas últimas voltas.

 

- Pára com isso - disse Sufa. - Este veículo é bastante eficiente. Suzanne olhou para Donald e este arqueou ligeiramente as sobrancelhas. Ela observou o interior da nave. Tinha tantas perguntas a fazer que não sabia por onde começar.

 

Arak colocou a palma da sua mão no centro da mesa preta e inclinou-se para a frente.

 

- Para o palácio dos visitantes - disse ele. Encostou-se novamente para trás e sorriu. Pouco depois, a paisagem lá fora começou a mover-se. o reflexo imediato de Suzanne foi agarrar-se à borda da mesa para se equilibrar, mas tal não era necessário. Não havia qualquer sensação de movimento, nem tão pouco qualquer ruído. Quando se elevaram trinta metros e começaram a acelerar na horizontal, foi como se a nave permanecesse imóvel e a cidade se estivesse a mover.

 

- Muito em breve, saberão como chamar e usar estes táxis aéreos - disse Arak. - Terão muito tempo para fazer explorações. Várias cabeças acenaram. A equipa do Benthic Explorer estava fascinada com tudo o que via à sua volta. Pareciam estar a passar pelo centro de uma movimentada metrópole, onde inúmeras pessoas andavam de um lado para o outro, e milhares de outros táxis aéreos se cruzavam em todas as direcções.

 

Para Suzanne, este mundo era cheio de contradições. A cidade e a tecnologia avançada pareciam tão futuristas, e no entanto as árvores e a vegetação tinham um aspecto pré-histórico, um pouco assustador. A flora lembrava a do período carbonífero de há trezentos milhões de anos atrás.

 

Um pouco mais à frente, os brilhantes edifícios de basalto negro, com vários andares, foram substituídos por aquilo que aparentava ser uma zona residencial, relvada, com árvores e piscinas. o número de pessoas diminuiu e o bulício de táxis também. o que viam agora eram pessoas isoladas ou pequenos grupos caminhando pelos parques. Grande parte dessas pessoas faziam-se acompanhar por animais de estimação de aspecto bastante curioso, que pareceram a Suzanne uma combinação fantástica de cão, gato e macaco.

 

A paisagem foi passando mais lentamente à medida que se aproximavam de um magnífico palácio rodeado por muralhas. o conjunto era dominado por uma enorme estrutura central, de tecto abobadado, suportado por colunas dóricas, negras e estriadas. À sua volta viam-se outros edifícios ovais construídos com o já familiar basalto negro e polido. Vários caminhos serpenteavam por entre lagos cristalinos, zonas de relva e fetos de aspecto luxuriante.

 

o táxi aéreo deixou de se mover na horizontal e iniciou um movimento descendente. Pouco depois, a porta abriu-se do mesmo modo silencioso e misterioso.

 

- Dra. Newell - disse Sufa. - Esta será a sua casa. Pode desembarcar se não se importa. Eu irei acompanhá-la, para me certificar de que fica confortável. - Fez um gesto, apontando para a porta,

 

Sentindo-se atrapalhada, Suzanne olhou para Sufa e para Donald. Ela não esperara ser separada do grupo e sabia que Donald pensava que todos se deviam manter juntos.

 

- E os outros? - perguntou Suzanne. Tentou interpretar a expressão na cara de Donald, mas não conseguiu perceber o que é que ele esperava que ela fizesse.

 

- o Arak irá acompanhá-los aos seus alojamentos - disse Sufa. - Cada um deles ficará instalado numa casa.

 

- Nós gostávamos de ficar todos juntos - disse Suzanne.

 

- E vão ficar - disse Arak. - Este palácio e os terrenos à volta são só para os visitantes. Tomarão as refeições em conjunto e se quiserem partilhar as casas estão à vontade para o fazer.

 

Os olhares de Suzanne e de Donald encontraram-se. Donald encolheu os ombros. Interpretando esse gesto como uma maneira de dizer que a decisão era dela, Suzanne desceu da nave. Sufa foi atrás dela. Um momento depois, o disco moveu-se silenciosamente através do relvado e parou numa casa vizinha.

 

- Venha! - encorajou Sufa. Ela já tinha começado a caminhar em direcção à casa, mas olhou para trás, quando percebeu que Suzanne não a seguira.

 

Suzanne desviou o olhar da nave e apressou o passo para se juntar à sua anfitriã.

 

- Daqui a pouco irá encontrar-se com os seus amigos, para tomarem juntos uma refeição - disse Sufa. - Eu só quero verificar se os seus aposentos são aceitáveis. E para além disso, pensei que gostaria de nadar um pouco e refrescar-se antes de comer. Foi esse o meu primeiro desejo depois de ter saído da descontaminação.

 

- Você fez o mesmo que nós? - perguntou Suzanne.

 

- Fiz - disse Sufa. - Mas foi há muito, muito tempo atrás. Há várias vidas atrás, na verdade.

 

- Como disse? - perguntou Suzanne. Pensou que não tinha ouvido bem. A expressão há várias vidas não fazia sentido.

 

- Venha! - disse Sufa. - Temos de a instalar. As perguntas podem esperar. - Ela pegou no braço de Suzanne. Lado a lado subiram os degraus e entraram na casa.

 

Suzanne parou à entrada da porta, pasmada com a decoração do interior. Contrastando com o preto das paredes exteriores, o interior era quase exclusivamente branco: mármore branco, caxemira branca e várias superfícies espelhadas. Fazia lembrar os aposentos onde Suzanne dormira recentemente, mas a uma escala bastante mais profusa. Suzanne viu uma piscina, com fundo azul celeste, que se prolongava do interior do compartimento para o exterior. A água provinha de uma cascata que saía da parede.

 

- o quarto não lhe agrada? - perguntou Sufa, preocupada. Tinha reparado na expressão de Suzanne, e interpretara o seu espanto como sendo desagrado.

 

- A questão não é se me agrada ou não - respondeu Suzanne. - Isto é inacreditável.

 

- Mas nós queremos que se sinta confortável - insistiu Sufa.

- E os outros? - quis saber Suzanne. - Os aposentos deles também são assim?

 

- São idênticos - disse Sufa. - Todas as casas dos visitantes são iguais. Mas se achar que precisa de mais alguma coisa, diga-me. Tenho a certeza de que poderemos fornecê-la.

 

o olhar de Suzanne dirigiu-se para a enorme cama circular que estava sobre um estrado de mármore, mesmo no centro do aposento. Um enorme dossel estendia-se sobre ela. Do seu suporte em forma de circunferência pendiam panos de fino tecido branco.

 

- Talvez me pudesse dizer o que é que falta - insistiu Sufa.

- Não falta nada - disse Suzanne. - o quarto é espectacular.

- quer dizer que lhe agrada - disse Sufa aliviada.

 

- É formidável - disse Suzanne. Esticou o braço e tocou na parede de mármore. A sua superfície estava polida como se fosse um espelho, e estava quente, como se estivesse a ser aquecida por um radiador no seu interior.

 

Sufa dirigiu-se a um armário encastrado ao longo da parede do lado direito. Apontou para ele.

 

- Aqui dentro estão consolas de comunicação, peças de roupa, material de leitura na sua língua, um frigorífico grande com uma selecção de comida e bebida, artigos de higiene pessoal que facilmente reconhecerá, e tudo o mais que possa vir a precisar.

 

- Como é que se abre? - perguntou Suzanne.

 

- Só precisa de utilizar a voz - disse Sufa. Depois apontou para uma das duas portas da parede oposta à do armário. - As casas de banho são ali.

 

Suzanne dirigiu-se para o lado de Sufa e olhou para o armário.

- o que é que eu tenho que dizer, exactamente?

 

- Diga o nome daquilo que deseja - explicou Sufa. - E em seguida exclame «por favor» ou «agora».

 

- Comida, por favor! - disse Suzanne, compenetradamente.

 

Assim que proferiu as Palavras, uma das portas do armário abriu-se e revelou um frigorífico de grande capacidade, recheado de recipientes contendo líquidos frescos e comida sólida de várias cores e consistências.

 

Sufa inclinou-se e olhou para o interior do armário. Mexeu em alguns recipientes.

 

- Já devia ter calculado - disse ela, endireitando-se. - Receio que só esteja aqui a selecção standard, apesar de eu ter encomendado algumas especialidades. Mas não tem importância. Um clone-empregado poderá trazer-lhe aquilo que desejar.

 

- o que quer dizer com clone-empregado»? - perguntou Suzanne. A expressão parecia-lhe sinistra.

 

- Os clone-empregados são os empregados - disse Sufa. - São eles que fazem todo o trabalho manual aqui na Interterra.

 

- Já vimos algum? - quis saber Suzanne.

 

- Ainda não - disse Sufa. - Eles preferem não se mostrar até serem chamados. Eles gostam de estar uns com os outros, nas suas próprias instalações.

 

Suzanne acenou com a cabeça, como se estivesse a compreender, e compreendia de facto, mas não do modo que Sufa supunha. Suzanne acenou porque sabia que na maior parte dos casos de intolerância, o grupo dominante atribuía determinadas atitudes aos oprimidos que faziam com que os opressores não se sentissem tão mal em relação à opressão.

 

- E esses clones-empregados são mesmo clones? - perguntou Suzanne.

 

- Exactamente - disse Sufa. - Têm vindo a ser clonados desde há muito tempo. A sua origem remonta aos hominídeos primitivos, ou o que o vosso povo chama «homem de Neandertal».

 

- o que quer dizer com «o vosso povo»? - perguntou Suzanne. - Em que é que nós somos diferentes de vocês, a não ser no facto de vocês serem tão belos?

 

- Por favor... - implorou Sufa.

 

- Já sei, já sei - repetiu suzanne com frustração. - Não posso fazer perguntas, mas as respostas que dá às minhas questões precisam sempre de uma explicação.

 

Sufa deu uma pequena gargalhada.

 

- Eu percebo que se esteja a sentir confusa. - disse ela. - Mas só lhe peço um pouco mais de paciência. Como estávamos a dizer há pouco, sabemos por experiência que é melhor fazer a introdução no nosso mundo de uma forma progressiva.

 

- Isso quer dizer que já foram visitados no passado por pessoas como nós - disse Suzanne.

 

- Claro que sim - confessou Sufa. - Tivemos muitos visitantes ao longo dos últimos dez mil anos.

 

A boca de Suzanne abriu-se de espanto.

- Disse dez mil anos?

 

- Disse - respondeu Sufa. - Antes disso não estávamos interessados na vossa cultura.

 

- Está a sugerir que?

 

- Por favor - disse Sufa, suspirando. - Não faça mais perguntas, a não ser que tenham a ver com os seus aposentos. Lamento ter que insistir.

 

- Está bem - concordou Suzanne. - Voltemos ao assunto dos clones-empregados. Como é que eu os chamo, se precisar?

 

- É só dar a ordem oralmente - disse Sufa. - Quase tudo funciona desse modo, aqui na Interterra.

 

- Então só tenho que dizer «clone-empregado»? - perguntou Suzanne.

 

- «Clone-empregado» ou apenas «empregado» - disse Sufa. E claro, a seguir tem de dizer «por favor» ou «já». Mas a frase tem de ser dita em tom de exclamação.

 

- Posso tentar agora? - perguntou Suzanne.

- Claro - respondeu Sufa.

 

- Empregado, por favor - disse Suzanne, não desviando o olhar de Sufa. Mas nada aconteceu.

 

- o tom de exclamação não foi suficiente - explicou Sufa. Tente outra vez.

 

- Empregado, por favor! - gritou Suzanne.

 

- Muito melhor - disse Sufa - Mas não é preciso falar tão alto. Não é o volume que importa. É o sentido que se dá. Os humanóides têm que perceber claramente que nós desejamos que eles apareçam. Em caso de dúvida, eles não aparecem, para não se tornarem maçadores.

 

- Queria mesmo dizer humanóides? - perguntou Suzanne.

 

- Claro que sim - disse Sufa. Os clones-empregados têm um aspecto bastante semelhante ao dos humanos, apesar de serem uma fusão de elementos andróides, engenhos biomecânicos e partes de hominídeos. Eles são metade máquina e metade organismos vivos, capazes de cuidarem de si próprios e até de se reproduzirem.

 

Suzanne olhou para Sufa, com uma expressão que combinava desagrado e incredulidade. Sufa interpretou-a como sendo medo.

- Não se preocupe - disse Sufa. - É muito fácil lidar com eles

 

e estão sempre prontos para ajudar. Na verdade, são criaturas maravilhosas, como irá por certo descobrir. A única desvantagem é o facto de, tal como os seus antepassados hominídeos, eles não falarem - mas perceberão perfeitamente tudo o que lhes disser.

 

Suzanne continuou a fitar Sufa. Antes de poder colocar outra questão, uma das portas da parede oposta ao armário, abriu-se e uma mulher escultural entrou no quarto.

 

suzanne apercebeu-se que tinha estado à espera de ver um autómato grotesco, mas a mulher que tinha diante de si era assombrosamente bela, com traços clássicos, cabelo dourado, pele de alabastro e uns olhos escuros e penetrantes. Vestia um macacão de cetim preto, com mangas compridas.

 

- Aqui está um bom exemplo de uma clone-empregada, - disse Sufa. - Repare que ela usa um brinco em argola. Todos eles os usam por qualquer razão que eu nunca consegui perceber, apesar de achar que tem a ver com orgulho ou linhagem. Como também está a ver, ela é bastante atraente tal como as versões masculinas o são. Mas o mais importante é que ela agirá sempre de acordo com os seus desejos. o que quer que seja que lhe peça, ela tentará fazê-lo, à excepção de provocar ferimentos em si própria.

 

Suzanne olhou para os olhos da mulher que pareciam dois lagos negros. Os seus traços faciais eram tão perfeitos e atraentes como os de Sufa, mas não tinham qualquer expressão.

 

- Ela tem nome? - perguntou Suzanne.

 

- Meu Deus, claro que não - disse Sufa com um risinho. - Isso seria complicar demasiado as coisas. Não queremos personalizar as nossas relações com os trabalhadores. Em parte, foi essa a razão pela qual eles nunca foram preparados para falar.

 

- Mas ela fará o que eu lhe pedir?

 

- Sem dúvida - disse Sufa. - Fará o que quer que seja. Ela pode vir buscar as suas roupas, lavá-las, preparar o seu banho, encher o frigorífico, fazer-lhe uma massagem, ou até alterar a temperatura da água da piscina. Tudo o que quiser ou precisar.

 

- Acho que, por agora, seria melhor ela retirar-se - disse Suzanne. Estremeceu ligeiramente. A ideia de alguém ser metade ser vivo e metade máquina era inquietante.

 

- Saia, por favor! - disse Sufa. A mulher virou-se e saiu, tão silenciosamente como entrara. Sufa virou-se novamente para Suzanne. - Claro que quando chamar novamente um clone-empregado, o mais provável é que apareça um diferente. o que estiver disponível, virá.

 

Suzanne acenou como se entendesse, mas de facto não compreendia.

 

- De onde é que eles vêm?

 

- Dos subterrâneos - disse Sufa.

 

- Das cavernas? - insistiu Suzanne.

 

- Suponho que sim - disse Sufa vagamente. - Nunca fui até lá, nem conheço alguém que tenha ido. Mas não falemos mais de clones-empregados! Temos que a preparar para ir até à sala de refeições. Não quer nadar um pouco, ou tomar um banho? Você é que decide, mas já não temos muito tempo.

 

Suzanne engoliu em seco. A sua garganta estava áspera. Depois de tudo com que se deparara era-lhe difícíl tomar uma simples decisão. Deu uma olhadela à piscina. A sua cor, agora mais azul-marinho do que azul-celeste, era tão convidativa como a sua superfície ligeiramente ondulante.

 

- Talvez fosse boa ideia nadar um pouco - disse Suzanne.

 

- Muito bem - respondeu Sufa. - Estão roupas lavadas no armário. E sapatos também.

 

Suzanne acenou com a cabeça.

 

- Esperarei por si lá fora - disse Sufa. - Penso que seria bom para si ficar um pouco sozinha por alguns minutos, para pôr as ideias em ordem.

 

- Acho que tem razão - afirmou Suzanne.

 

A sala de refeições ficava situada num edifício de proporções e formas semelhantes às das casas, mas não tinha cama. Também abria para o exterior, mas estava virada para o imponente pavilhão central em vez de dar para os relvados ou para as sebes de fetos. A sua comprida mesa central era igual à que tinham visto nos aposentos da área de descontaminação. As cadeiras estofadas também eram idênticas.

 

o grupo tinha aparecido ao mesmo tempo, vindo cada um dos seus aposentos individuais e apresentando cada um deles um modo distinto de reagir às circunstâncias. Richard e Michael recusavam-se a admitir a existência de qualquer facto que pudesse provocar-lhes desconfiança. Estavam completamente histéricos, como se fossem duas crianças deixadas à vontade no parque temático dos seus sonhos, e tencionando aproveitar todos os divertimentos disponíveis. Perry também se sentia excitado ao pensar nas potencialidades inerentes a este mundo novo, mas conseguia manter uma aparência mais calma do que os tontos mergulhadores. Suzanne estava mais confusa do que excitada. Continuava a lidar com a impressão de que eles estariam a experimentar uma espécie de alucinação colectiva de acordo com as suas próprias predilecções. Ao contrário de todos os outros, Donald permanecia mal-humorado, convencido de que tudo o que os rodeava era uma ilusão bem elaborada, com o objectivo de os conduzir até um final nefasto.

 

A conversa andou à volta da viagem a bordo da nave em forma de disco e das maravilhas dos aposentos. Richard e Michael eram os mais animados, especialmente depois de saberem que o clone-empregado de Suzanne tinha sido feminino. Richard referiu-se aos desejos que poderiam ser satisfeitos por tão servil criatura.

 

Suzanne ficou chocada e dirigiu-se a Ríchard sem meias palavras

- Tente agir como se fosse uma pessoa civilizada!

 

A comida era semelhante à que fora servida nos aposentos da área de descontaminação, com a mesma curiosa variação de gostos, apesar de ser apresentada em sofisticadas travessas. Foi trazida até eles por dois homens extraordinariamente bem-parecidos, vestindo macacões de cetim preto, com mangas compridas e um fecho à frente. Cada um deles usava uma argola na orelha.

 

De súbito, Donald atirou com força o seu garfo de ouro para o prato dourado. o ruído que se espalhou pela sala de mármore foi surpreendentemente alto, ecoando pelas paredes de pedra. Richard, com a boca cheia daquilo que ele insistia ser sorvete com calda quente de chocolate, viu interrompida a sua descrição do mergulho que tinha dado na piscina. Suzanne deu um salto, assustada, deixando cair o seu próprio garfo, com muito menos barulho, manifestando assim a tensão que se apoderara dela. Michael engasgou-se com a sua comida que sabia a tarte de batata doce.

 

- Como é que vocês conseguem comer numa situação destas! gritou Donald.

 

- Que situação? - perguntou Richard, com a boca ainda cheia de comida. o seu olhar percorreu a sala, receoso de que o compartimento estivesse a ser invadido.

 

Donald inclinou-se para Richard.

 

- Que situação? - repetiu ele, escarnecendo, enquanto abanava a cabeça, com ar de gozo. - Há uma coisa que eu nunca consegui perceber em relação aos mergulhadores de saturação; não sei se eles têm de ser suficientemente estúpidos para aceitar mergulhar, ou se a pressão e o gás inerte destroem a meia dúzia de células cerebrais que eles tinham antes de começar.

 

- Que raio é que está para aí a dizer? - perguntou Michael, sentindo-se ofendido.

 

- Eu explico-lhe - disse Donald, zangado. - Olhe à sua volta! Onde diabo é que nós estamos? o que é que estamos aqui a fazer? Quem é esta gente, vestida como se fosse para o baile de finalistas da universidade?

 

Durante alguns minutos fez-se silêncio. Todos desviaram o olhar de Donald. Eles tinham estado a evitar este tipo de questões.

 

- Eu sei onde é que estamos - disse Richard, por fim. - Estamos na Interterra.

 

- Oh, Deus do céu - exclamou Donald, pondo as mãos no ar, com frustração. - Estamos na Interterra - repetiu ele. - Isso explica tudo. Deixe-me dizer-lhe que isso não explica absolutamente nada. Não nos diz onde é que estamos, nem o que estamos aqui a fazer, nem quem são estas pessoas. E agora estamos convenientemente separados uns dos outros, cada um na sua casa.

 

- Eles disseram que nos explicariam tudo o que nós quiséssemos - disse Suzanne. - Pediram que fôssemos pacientes.

 

- Pacientes! - ironizou Donald. - Eu digo-vos o que é que estamos a fazer aqui... Estamos prisioneiros!

 

- E depois?! - disse Richard.

 

Reinou novamente o silêncio. Michael pousou o garfo, aborrecido com a explosão de Donald. Richard voltou à sua deliciosa sobremesa, olhando Donald com ar pedante. Suzanne e Perry deixaram-se ficar a observar os outros, tal como faziam os silenciosos clones-empregados.

 

Richard comeu mais uma colherada da sua sobremesa. Com a boca ainda cheia disse:

 

- Se nós somos prisioneiros, gostaria de ver como é que eles tratam os amigos. Olhem só para isto tudo. É fantástico. Fuller, se não quiser comer, não coma! A mim, sabe-me muito bem, portanto vá-se lixar!

 

Donald pôs-se em pé com a intenção de chegar até Richard, do outro lado da mesa. Perry interveio, antes deles começarem aos murros um ao outro.

 

- Muito bem, vocês dois - gritou Perry. - Parem de implicar um com o outro! Não queremos violência no interior do grupo. Até porque ambos têm razão. Não sabemos onde estamos, nem por que é que aqui estamos, mas estamos a ser bem tratados. Talvez até bem tratados de mais.

 

Perry largou o braço de Donald quando sentiu que este se acalmara, e olhou depois para os imóveis clones-empregados tentando perceber se a cena os tinha afectado. Mas não tinha. As suas caras permaneciam com a mesma expressão ausente que tinham tido ao longo da refeição.

 

Donald seguiu o olhar de Perry, enquanto endireitava a sua túnica.

- Estão a ver o que eu quero dizer - resmungou ele. - Até enquanto comemos há carcereiros para nos controlar.

 

- Não me parece que a intenção seja essa - disse Suzanne. Em seguida, disse em voz alta: -Trabalhadores, saiam, por favor! Sem darem qualquer outro sinal de terem ouvido a ordem de Suzanne, os clones-empregados desapareceram através de uma das três portas existentes na sala de refeições.

 

- Está resolvido o problema - disse Suzanne.

 

- Ah, isso não quer dizer nada - disse Donald. o seu olhar passeou-se pelo compartimento. - Estão, de certeza, microfones e câmaras escondidos por toda a sala.

 

- Ei - disse Michael. - Estive aqui a olhar para o prato e para o garfo. São mesmo de ouro, ou quê?

 

Suzanne pegou no seu garfo, tentando tomar-lhe o peso.

 

- Já pensei nisso antes - disse ela. - Por muito surpreendente que possa parecer, acho que é mesmo ouro.

 

- Não pode ser! - disse Michael. Pegou no seu prato e levantou os dois objectos. - Está aqui uma pequena fortuna.

 

- Temos sido bem tratados, até agora - disse Donald, retomando o tópico da discussão.

 

- Acha que isso vai mudar? - perguntou Perry.

 

- Pode mudar num segundo - disse Donald, estalando os dedos.

- Assim que eles tiverem aquilo que querem, sabe-se lá o que pode acontecer. A nossa situação é de total vulnerabilidade.

 

- É verdade que tudo pode mudar, mas não me parece que isso vá acontecer - disse Suzanne.

 

- Como é que podes ter assim tanta certeza? - quis saber Donald.

- Não posso ter a certeza absoluta - admitiu Suzanne. - Mas não faz sentido ser de outra maneira. Olha à tua volta. Eles são tão evoluídos. o que é que podem querer de nós? Na verdade, penso que nós é que poderemos aprender coisas extraordinárias com eles.

 

- Eu sei que este é um assunto que temos estado a evitar disse Perry. - Mas quando diz que eles são muito avançados, está a sugerir que são alienígenas?

 

A questão colocada por Perry provocou um novo período de silêncio. Ninguém sabia o que pensar, e muito menos o que dizer.

- Está a querer dizer que eles são de outro planeta? - perguntou Michael, por fim.

 

- Eu não sei o que é que estou a sugerir - disse Suzanne. Mas todos experimentámos a incrível viagem na nave. Deve pertencer a uma tecnologia de levitação magnética que nós desconhecemos por completo. E dizem que estamos por baixo do oceano, o que me custa muito a aceitar. Mas há uma coisa que vos quero dizer. A descontinuidade de Mohorovicic existe realmente, e ninguém, até hoje, a conseguiu explicar.

 

Richard fez um gesto com a mão mostrando o seu desacordo. Estas pessoas não são extraterrestres. Por amor de Deus, viram bem aquelas raparigas?! Que diabo, já vi muitos filmes sobre extraterrestres, e de certeza que não se parecem nada com esta gente.

 

- Eles podem ter transformado o seu aspecto, de acordo com os nossos gostos - disse Suzanne.

 

- Pois é - concordou Michael. - Foi a primeira coisa que eu pensei. Estamos a sonhar que eles são muito belos.

 

- É por isso mesmo que eu não estou nada preocupado - disse Richard. - o que conta é o que está na minha mente. Se eu penso que elas são giras, então elas são giras.

 

- A verdadeira questão é saber quais são os motivos deles disse Donald. - o que nos trouxe até aqui não foi um acidente. Parece-me bastante evidente que nós fomos literalmente puxados por aquele poço abaixo. Eles querem algo de nós, ou já não estaríamos vivos.

 

- Acho que tens razão quando dizes que nos trouxeram para aqui de propósito - disse Suzanne. - A Sufa confirmou-me uma série de coisas. Em primeiro lugar, ela admitiu que nós estivemos a ser descontaminados.

 

- Mas por que é que fomos descontaminados? - perguntou Perry.

 

- Isso ela não disse - respondeu Suzanne. - Mas admitiu que, no passado, já tiveram visitantes como nós.

 

- Isso é interessante - disse Donald. - Ela disse-te o que é que lhes aconteceu?

 

- Não, não disse - respondeu Suzanne.

 

- Bem, podem continuar com as vossas preocupações doentias - comentou Richard. Em seguida, pôs a cabeça para trás e gritou.

- Clones-empregados, apareçam!

 

No mesmo instante, surgiram dois humanóides, um masculino e outro feminino. Richard observou a mulher e deitou um olhar cúmplice a Michael.

 

- Temos festa! - disse ele em voz baixa, com incontida excitação.

- Richard - avisou Suzanne. - Quero que me prometa que não fará nada que nos possa embaraçar ou que nos ponha em causa como grupo.

 

- Quem é que você pensa que é, a minha mãe? - perguntou ele. Olhou novamente para o clone feminino e disse: - E que tal mais um pouco daquela sobremesa, querida?

 

- Para mim também - disse Richard. Bateu com o garfo dourado no seu prato de ouro.

 

Donald ia levantar-se de novo, mas Perry impediu-o.

- Nada de violência - disse Perry. - É inútil.

 

Richard dirigiu um sorriso de provocação a Donald, aumentando a frustração e raiva deste último.

 

o toque suave de uma campainha interrompeu a música de fundo ecoou pelo compartimento. Um instante depois, um enérgico Arak surgiu à frente deles. Estava vestido como habitualmente, mas com uma novidade. À volta do seu pescoço, via-se uma fita de veludo azul, que condizia na perfeição com o invulgar tom de azul dos seus olhos. Estava atada com um laço simples.

 

- Olá, meus amigos - disse ele com exuberância. - Espero que a refeição vos tenha agradado.

 

- Estava óptima - respondeu Richard. - Mas é feita de quê? Não se parece nada com aquilo a que sabe.

 

- É feito basicamente a partir de proteínas de plâncton e de carbo-hidratos vegetais - respondeu Arak. Esfregou as mãos com entusiasmo. - Vamos lá ao que interessa! Lembram-se da cerimónia de que vos falei há pouco? Não fazem ideia da quantidade de pessoas que, aqui em Saranta, estão encantadas por vocês terem chegado à nossa cidade. Tivemos que mandar pessoas embora. A nossa cidade não recebe assim tantos visitantes do vosso mundo: pelo menos não tantos como a Atlântida, a leste, ou Barsama, a oeste. Toda a gente está ansiosa por vos conhecer. Isto leva-nos à questão principal: vocês estão dispostos a vir até ao pavilhão, ou estão demasiado cansados devido à descontaminação?

 

- Onde é o pavilhão? - perguntou Michael.

 

- Ali - disse Arak, apontando em direcção à parte da sala que dava para o exterior. - A cerimónia terá lugar no pavilhão da zona dos visitantes. Assim fica tudo mais fácil. Fica a menos de um quilómetro, por isso até podemos ir a pé. o que é que vos parece?

 

- Contem comigo - disse Richard. - Eu nunca perco uma festa.

- Eu também vou - disse Michael.

 

- Esplêndido! - disse Arak. - E os restantes?

 

Fez-se um silêncio pouco confortável. Por fim, Perry pigarreou.

- Arak, para ser sincero, estamos um pouco nervosos.

 

- Eu não diria só «nervosos» - disse Donald. - Para falar com toda a clareza, nós sabemos que fomos raptados.

 

- Compreendo a vossa preocupação e curiosidade - disse Arak. Fez um gesto conciliatório com as mãos. - Mas por favor, só por esta noite permitam que seja eu a orientá-los. Não é a primeira vez que lido com aqueles que nos vêm visitar, e embora tenha que admitir que não foram tantos como isso, nem num grupo tão grande, deram-me experiência suficiente para eu saber o que é que é melhor. Amanhã responderei a todas as vossas questões.

 

- Por que é que temos que esperar? - perguntou Donald. - Por que é que não nos responde já?

 

- Vocês não têm consciência do stress que o processo de descontaminação provoca - disse Arak.

 

- Pode ao menos dizer-nos quanto tempo durou o processo? perguntou suzanne.

 

- Um pouco mais do que aquilo a que vocês chamam um mês disse Arak.

 

- Estivemos a dormir durante um mês? - perguntou Michael, incrédulo.

 

- Durante a maior parte do tempo, sim - confirmou Arak. - E é tão stressante para o cérebro como para o corpo. Amanhã terão de lidar com mais informações surpreendentes. Já aprendemos que é mais fácil para os visitantes apreenderem as novidades quando estão relaxados. Uma só noite faz toda a diferença. Portanto, peço-vos que relaxem esta noite, aqui todos juntos, sozinhos nos vossos aposentos ou, e essa era a melhor ideia, connosco na cerimónia em honra da vossa chegada.

 

Perry tentou interpretar a expressão da cara de Arak. Este não desviou o olhar e os seus olhos azuis transmitiam uma sinceridade de que Perry não pôde duvidar.

 

- OK - disse ele. - De qualquer maneira, acho que não conseguiria dormir. Eu vou, mas amanhã não o deixarei sossegado até que cumpra a sua palavra.

 

- Parece-me justo - disse Arak, olhando em seguida para Suzanne. - E a Dr. Newell, já decidiu?

 

- Eu vou - respondeu Suzanne.

 

- óptimo - disse Arak. - E o Sr. Fuller? Qual é a sua decisão?

- A minha resposta é não - disse Donald. - Não vejo qualquer motivo para celebrar.

 

- Muito bem - disse Arak, esfregando as mãos, obviamente deleitado. - Estou mesmo muito contente. Ainda bem que a maior parte das pessoas decidiu vir. Ficaria muita gente desapontada se me vissem aparecer sozinho, Sr. Fuller, eu compreendo como se sente e estou solidário consigo. Espero que o seu descanso seja o mais agradável possível. Os clones-empregados estarão à sua inteira disposição.

 

Donald acenou taciturnamente.

 

- Vamos então? - disse Arak para os outros. Começou a dirigir-se para o lado do compartimento aberto para o exterior.

 

- Essa festa vai ter alguma coisa que se coma? - perguntou Richard.

 

- Sem dúvida - disse Arak. - Os melhores pratos de Saranta.

- Então não vou repetir a sobremesa - disse Richard. Atirou com a colher para a mesa, levantou-se, espreguiçou-se e deu um sonoro arroto.

 

Suzanne deitou-lhe um olhar reprovador.

 

- Richard, tenha algum respeito pelas outras pessoas, já que não o tem por si próprio.

 

- Mas eu tenho todo o respeito - disse Richard com um sorriso amarelo. - Estou a controlar-me para não dar um peido à frente de toda esta gente.

 

Arak riu-se.

 

- Richard, você vai ser um grande sucesso. É tão encantadoramente primitivo.

 

- Está a gozar comigo? - perguntou Richard.

 

- De modo algum - disse Arak. - A sua presença será muito solicitada, posso garantir-lhe. Venham. Vamos exibi-los! - Dando uma volta, Arak aproximou-se da saída para o exterior.

 

- Fixe! - disse Richard, virando-se para Michael fazendo um entusiástico sinal de okay com o polegar. Michael retribuiu o gesto com igual exuberância.

 

- Vamos para a festa! - gritou Michael. Os dois mergulhadores seguiram alegremente atrás de Arak.

 

Suzanne olhou para Perry, que encolheu os ombros e disse:

 

- É uma loucura ir para uma celebração numa situação destas, mas o melhor que temos a fazer é enfrentar o que por aí vier. - Olhou em seguida para Donald. - Tens a certeza de que não queres vir?

 

- Sim, tenho a certeza - disse Donald, num tom sombrio. Mas se vocês querem confraternizar, estejam à vontade.

 

- Eu vou para ver se fico a saber mais alguma coisa - disse Suzanne. - Não para confraternizar, como disseste.

 

- Venha! - chamou Perry da outra ponta da sala.

 

- Até já - disse Suzanne. Apressou-se ajuntar-se a Perry e aos outros, que estavam já a atravessar o relvado.

 

Donald começou a matutar nas palavras de Arak. A única coisa que sabia era que não confiava nele. Arak parecia-lhe demasiado atencioso. Toda esta fantástica hospitalidade era decerto uma espécie de armadilha. Donald não sabia, contudo, qual poderia ser o seu objectivo, a não ser fazer com que eles se sentissem mais confiantes.

 

Donald virou-se e olhou para o fundo do compartimento. o grupo ia a meio do caminho em direcção ao pavilhão de colunas, e as silhuetas recortavam-se contra o seu exterior iluminado. Dirigindo o olhar para o outro lado, Donald observou os dois clones-empregados que permaneciam imóveis, perto da parede. Tinham uma aparência tão humana que Donald tinha dificuldade em acreditar que, tal como Arak afirmara, eles eram, em parte, máquinas. Talvez seja mais uma mentira, pensou ele.

 

- Empregado, quero um pouco mais de bebida - disse Donald. o clone-empregado feminino pegou imediatamente no jarro que se encontrava sobre o aparador e dirigiu-se para a mesa. o seu cabelo, que lhe caía até aos ombros, era cor de canela. Tinha uma pele pálida e translúcida. Inclinando-se, começou a servir a bebida a Donald.

 

Donald agarrou-lhe subitamente no pulso, sem um aviso. Sentiu a pele fria sob os seus dedos. Ela não se assustou, nem teve qualquer outra reacção. Continuou apenas a servir a bebida.

 

Donald apertou com mais força, tentando obter uma reacção, mas em vão. A mulher acabou de encher o copo e endireitou o jarro, apesar de Donald a continuar a agarrar. Donald sentia-se estupefacto. A mulher tinha uma força impressionante.

 

Inclinando a cabeça para trás, Donald ergueu os olhos para a face inexpressiva da mulher. Ela não tentou libertar o pulso, mas devolveu-lhe o olhar, fitando-o vagamente. Donald soltou-lhe o braço.

- Como é que se chama? - perguntou ele.

 

Ela não deu qualquer tipo de resposta. o único movimento do corpo dela, era o ritmo da sua respiração. Fora isso, nem sequer pestanejava.

 

- Clone-empregada, fale! - ordenou Donald.

 

o silêncio persistiu. Donald olhou para o clone-empregado masculino, mas também ele não emitiu qualquer resposta.

 

- Por que é que vocês têm que trabalhar e os outros não? perguntou Donald.

 

Nenhum dos clones deu qualquer resposta.

 

- Muito bem - disse Donald. - Empregados, saiam!

 

Os dois empregados saíram imediatamente pela porta por onde tinham entrado e desapareceram. Donald levantou-se e abriu a porta. Viu uma escada que desaparecia na escuridão.

 

Fechando a porta, Donald dirigiu-se para a porta da sala que abria para o exterior. Observou a cena diante de si. A luz, que anteriormente fora tão brilhante, tinha enfraquecido como se o sol não existente estivesse perto do ocaso. Donald conseguiu distinguir Arak e os outros já muito perto do pavilhão. Abanou a cabeça. Perguntou novamente a si próprio se estaria a sonhar. Parecia tudo tão estranho e, contudo, tão perturbadoramente real. Apalpou os seus braços e a sua cara. Sentia-se absolutamente normal.

 

Donald inspirou profundamente. Sabia, intuitivamente, que estava perante a missão mais exigente de toda a sua carreira. Esperava que a sua experiência não o deixasse ficar mal, especialmente a sua experiência enquanto prisioneiro de guerra.

 

No seu próprio vernáculo escatológico, Richard e Michael estavam «borrados de medo», mas tentavam mostrar exactamente o contrário. Tal como acontecia em relação aos perigos do mergulho de saturação, eles reagiam exibindo uma espécie de fanfarronada machista, tentando assim esconder os seus verdadeiros sentimentos.

 

- Achas que aquelas raparigas que vimos estarão na festa? perguntou Richard a Michael. Tinham-se deixado ficar um pouco para trás, a caminho da cerimónia no pavilhão.

 

- Esperemos que sim - respondeu Michael.

 

Em silêncio, avançaram mais um pouco. Ouviam a voz de Arak a falar com Suzanne e Perry, mas não se deram ao trabalho de escutar o que ele dizia.

 

- Acreditas que estivemos mesmo a dormir durante um mês? - perguntou Michael.

 

Richard parou.

 

- Achas-me com cara de parvo, ou quê?

 

- Não! - disse Michael. - Só estava a perguntar. - Para Michael, o sono não era um momento de descanso. Enquanto criança, fora constantemente vítima de pesadelos. Depois de ele adormecer, o seu pai chegava a casa, bêbedo, e espancava a mãe. Quando ele acordava, devido ao barulho, tentava intervir, mas o resultado era sempre o mesmo: também ele era espancado. Infelizmente, o processo de adormecer ficara para sempre associado a este episódio, e portanto, para Michael, a ideia de ter estado a dormir durante um mês provocava-lhe uma enorme ansiedade.

 

- Olá! - disse Richard, dando a Michael uma série de pancadinhas na cara. - Está alguém em casa?

 

Michael desviou-se dos irritantes golpes de Richard.

- Pára com isso!

 

- Não te esqueças que decidimos não nos preocupar com isto tudo - disse Richard. - Há aqui qualquer coisa que não me cheira nada bem, mas que se lixe. Vamos mas é divertir-nos, não vamos ficar como aquele idiota do Fuller. Deus do céu! Só o facto de o ouvir falar faz-me sentir feliz por termos sido expulsos da porcaria da Marinha. Se não, ainda agora estaríamos a receber ordens de tipos como ele.

 

- Claro que nos vamos divertir - insistiu Michael. - Mas eu estava só a pensar que um mês é muito tempo para ficar a chonar.

- Então não penses! - disse Richard. - Só serve para ficares ainda mais baralhado.

 

- Está bem! - disse Michael.

 

Suzanne chamou-os em voz alta; ela e os outros estavam à espera.

- E como se não bastasse, ainda temos de aturar uma mãe-galinha - acrescentou Richard.

 

Os dois mergulhadores alcançaram o resto do grupo, que tinha parado no primeiro degrau da escada que conduzia à entrada do pavilhão.

 

- Está tudo bem? - perguntou-lhes Suzanne.

 

- Ouro sobre azul - disse Richard, forçando um sorriso.

 

- o Arak acabou de nos dizer algo que é capaz de vos interessar

- disse Suzanne. - Não sei se repararam que já está a escurecer, como se o Sol se tivesse posto.

 

- Reparámos - disse Richard, irritadamente.

 

- Aqui também há noite e dia - disse Suzanne. - E ficámos a saber que a luz vem da bioluminescência.

 

Os dois mergulhadores inclinaram as cabeças para trás e olharam para cima.

 

- Estou a ver estrelas - disse Michael.

 

- São pequenos pontos azuis e brancos de bioluminescência disse Arak. - A nossa intenção foi recriar o mundo tal como nós o conhecíamos, o que, obviamente, incluía o ciclo do dia e da noite. A diferença é que, no nosso mundo, os dias e as noites são mais longos e têm a mesma duração ao longo de todo o ano. Claro que os nossos anos também são mais longos.

 

- Então viveram no mundo exterior, antes de mudar para aqui - disse Suzanne.

 

- Claro - respondeu Arak.

 

- Quando é que foi a mudança? - perguntou Suzanne.

 

Arak fez um gesto defensivo, com as mãos erguidas. Deu uma gargalhada.

 

- Estamos a ir depressa de mais. Não era suposto que eu vos encorajasse a colocar mais questões durante esta noite. Lembrem-se, combinámos que faríamos isso amanhã.

 

- Só mais uma coisa - insistiu Perry. - É uma pergunta simples, creio eu. De onde é que vem a energia que vocês gastam aqui?

 

Arak suspirou com exasperação.

 

- É a última pergunta, prometo - disse Perry - Pelo menos, por hoje.

 

- E você é um homem de palavra? -perguntou Arak.

- Claro que sim - disse Perry.

 

- A nossa energia vem de duas fontes principais - disse Arak.

- Primeiro, temos a energia geotérmica que é extraída do núcleo terrestre. Mas isso coloca-nos o problema do aquecimento excessivo do qual temos que nos libertar. Fazemo-lo de dois modos. Por um lado, permitindo que o magma suba por aquilo a que vocês chamam a crista do oceano-médio, e por outro, através da circulação da água do mar. Necessitamos de um enorme volume de água para esse processo, o que nos proporciona uma boa oportunidade para filtrar o plâncton. o único aspecto negativo, é que tudo isto provoca correntes oceânicas, mas vocês já se habituaram a viver com elas, especialmente aquela a que chamam a Corrente do Golfo.

 

A segunda fonte de energia vem de um processo de fusão. Isolamos as partículas de oxigénio da água, as quais respiramos, e as de hidrogénio, que fundimos. Mas amanhã discutiremos tudo isto com mais cuidado. Esta noite, quero que vivam o momento e que se divirtam, principalmente que se divirtam.

 

- E é isso que nós pretendemos fazer - disse Richard. - Diga-me, vai ser uma festa seca ou molhada?

 

- Receio que sejam expressões com as quais não estou familiarizado - disse Arak.

 

- Tem a ver com bebidas alcoólicas - disse Richard. - Há por aí algumas?

 

- Mas é claro que sim - disse Arak. - Vinho, cerveja e uma bebida espirituosa muito especial, a que chamamos cristal. o vinho e a cerveja são semelhantes aos que vocês estão habituados a beber. o cristal é diferente, aconselho-os a beberem com calma até estarem acostumados.

 

- Não tem que se preocupar, companheiro - disse Richard. o Michael e eu somos profissionais.

 

- Vamos para a festa! - disse Michael, com entusiasmo. Perry e Suzanne foram empurrados para a frente. Tinham ficado ambos impressionados com as explicações de Arak, mas especialmente Suzanne. De um momento para o outro, vira solucionados dois mistérios da oceanografia, nomeadamente, por que é que havia magma nas cristas do oceano-médio e por que é que existiam correntes oceânicas, especialmente a Corrente do Golfo. Nenhum cientista tinha encontrado resposta para estas questões.

 

o grupo subiu os degraus, com Arak à frente. Ao passarem por entre duas das portentosas colunas que suportavam a cúpula do tecto, Suzanne apercebeu-se da excitação que marcava a expressão da cara de Richard. Preocupada com a conduta que ele poderia ter se estivesse sob a influência do álcool, inclinou-se para ele e murmurou:

 

- Veja lá como é que se comporta.

 

Richard olhou para ela de soslaio, com uma expressão que era um misto de gozo e de incredulidade.

 

- Estou a falar a sério, Richard - prosseguiu Suzanne. - Não fazemos ideia do que é que ainda vamos ter de enfrentar, e não devemos correr mais riscos do que aqueles que estamos presentemente a correr. Se necessita mesmo de beber, faça-o com contenção.

 

- Vá morrer longe! - disse Richard. Apressou o passo para se juntar a Arak, mesmo no momento em que duas enormes portas de bronze se abriam de par em par.

 

A primeira coisa com que os visitantes se depararam, foi com o barulho de milhares de vozes excitadas a ecoar pelo vasto interior de mármore branco do pavilhão. o andar por onde eles tinham entrado formava uma galeria com balaustrada que contornava todo o salão circular. Todos juntos, dirigiram-se para o cimo de uma enorme escadaria e olharam para baixo.

 

- Isto é que é uma festa! - gritou Richard. - Meu Deus! Devem estar aqui umas mil pessoas.

 

- Poderiam estar dez mil, se houvesse espaço - disse-lhes Arak. No centro do enorme salão, via-se uma piscina circular, iluminada de modo a parecer uma gigantesca água-marinha. À volta da piscina havia um rebordo com trinta centímetros de altura e três metros de largura. Várias escadas ligavam a galeria ao andar inferior.

 

o recinto do pavilhão estava cheio de pessoas. Todos vestiam as mesmas roupas simples, de cetim branco, à excepção de um ou outro clone-empregado vestindo de preto, como habitualmente.

 

Os clones-empregados seguravam enormes tabuleiros carregados de copos dourados e de comida. Cada um dos convidados usava uma fita de veludo atada à volta do pescoço, igual à de Arak. As fitas só variavam na cor; o tamanho, a forma e o modo como estavam atadas era o mesmo. E tal como anteriormente, as pessoas eram todas espantosamente belas ou atraentes.

 

A notícia da chegada dos visitantes espalhou-se como fogo pela multidão. As conversas foram interrompidas e as cabeças inclinaram-se para cima. Era impressionante olhar para baixo e ver tantas pessoas silenciosas e expectantes.

 

Arak ergueu as mãos acima da cabeça, com as palmas viradas para a audiência.

 

- Saudações para todos! Tenho o prazer de vos anunciar que todos os nossos visitantes, com uma excepção, aceitaram gentilmente estar presentes nesta celebração da sua chegada a Saranta.

 

Toda a gente levantou os braços, imitando o gesto de Arak, em sinal de saudação.

 

- Venham! - disse Arak. Fez um sinal para que o grupo o seguisse e começou a descer pela larga escadaria.

 

Richard e Michael avançaram com entusiasmo, seguidos de Suzanne e Perry, mais hesitantes.

 

- Isto é demais! - sussurrou Richard, excitado. - Olhem só para as mulheres! Parece que estou no meio duma festa da Victoria’s Secret.

 

- Todas elas podiam aparecer emposters de revistas - comentou Michael.

 

- É difícil não nos deixarmos impressionar - disse Suzanne em voz baixa para Perry. - Sinto-me como se estivesse numa grande produção de Cecil B. De Mille dos anos 50.

 

- Percebo o que quer dizer - respondeu Perry. - Também me dá uma ideia de como deve ser a vida de uma estrela de rock. Esta gente está mesmo feliz por nos ver. E repare como são todos tão novos..A maior parte deles aparenta vinte e poucos anos.

 

- É verdade, mas há também um número bastante significativo de crianças - disse Suzanne. - Vejo algumas que não podem ter mais do que três ou quatro anos.

 

- Não se vê muita gente idosa - comentou Perry.

 

Ao fundo das escadas, as pessoas iam recuando à medida que eles desciam, mas assim que chegaram ao fim, a multidão avançou até eles, com as mãos erguidas e as palmas para fora.

 

Suzanne e Perry recuaram instintivamente alguns passos, apesar da atitude acolhedora de toda aquela gente. Pelo contrário, Richard e Michael deixaram-se envolver. Os mergulhadores perceberam rapidamente que a multidão queria estabelecer contacto físico com as mãos, e estenderam alegremente os braços para tocar nas palmas que procuravam as suas. Era uma saudação semelhante à que Arak usara quando dera anteriormente as boas-vindas a Suzanne.

 

- Adoro-vos a todos - disse Richard em voz alta, para alegria dos Interterrestres que estavam mais perto de si, mas foi escolhendo as palmas das mulheres mais novas e mais bonitas, enquanto ia avançando por entre a multidão. Estava tão entusiasmado que não se conteve e beijou algumas delas - o que fez com que todas as saudações parassem subitamente.

 

Richard olhou para as mulheres que tinha beijado e, por alguns instantes, considerou a hipótese de voltar a subir as escadas. As mulheres, estupefactas, tocaram nos lábios e em seguida examinaram os dedos como se estivessem à espera de ver sangue. Beijar não fazia, claramente, parte do repertório normal de saudações dos Interterrestres. Sentindo-se culpado, Richard olhou para Michael, que ficara igualmente tenso ao sentir a repentina mudança de humor da multidão.

 

- Não consegui conter-me - explicou Richard.

 

Três das mulheres a quem ele beijara olharam umas para as outras e desataram às gargalhadas. Em seguida, dirigiram-se ao mesmo tempo a Richard, devolvendo-lhe o gesto. A multidão ficou encantada e chegou-se ainda mais para os mergulhadores. Depois de várias tentativas de beijo bastante desajeitadas, as três mulheres afastaram-se com elegância, dando o lugar a outros.

 

Um sorriso matreiro espalhou-se pela cara de Richard.

 

- Parece que vamos ter que ensinar uma ou duas coisinhas, a estas miúdas - disse ele alegremente. Sentia-se suficientemente encorajado para fazer mais algumas demonstrações. Ao observar o sucesso de Richard, Michael apressou-se a imitá-lo. Mas em breve foram interrompidos por um clone-empregado que, respondendo à sugestão de Arak, oferecia bebida aos visitantes. Os clones aproximaram-se e colocaram-lhes os copos dourados nas mãos.

 

Até Suzanne e Perry se começaram a sentir mais à vontade, em face de tão contagiante animação. Estavam rodeados de pessoas calorosas e atraentes, ansiosas por tocarem nas palmas das suas mãos. Algumas das boas-vindas eram dadas pelas criancinhas em que Suzanne reparara assim que chegara. Suzanne dirigiu-se a uma delas, perguntando-lhe a idade, depois de ter ficado impressionada com o seu correctíssimo inglês e aparente inteligência.

 

- Quantos anos tens tu? - perguntou a criança, sem responder à questão de Suzanne.

 

Suzanne estava prestes a responder quando um homem que poderia ter feito o papel de um deus grego no tal filme de Cecil B. DeMille se aproximou dela e lhe perguntou se tinha um companheiro. Antes de Suzanne poder responder à curiosa questão, um homem mais velho perguntou-lhe se ela conhecia os seus pais.

 

- Só um momento, por favor - disse Arak, pondo-se entre Suzanne e os seus admiradores. - Como todos sabem, dissemos aos nossos convidados que as perguntas deles devem esperar até amanhã. É mais do que justo que as nossas também esperem. Esta noite vamos comemorar este acontecimento maravilhoso para Saranta e divertir-nos.

 

- Ei, Arak! - chamou Richard, que se encontrava no centro de um grupo de fãs. Tinha um copo dourado na mão. - Este é que é o tal cristal, de que falava?

 

É esse mesmo - respondeu Arak.

 

É fantástico! - gritou-lhe Richard. - Estou mesmo a curtir. Ainda bem que gosta - disse Arak.

 

Só mais uma coisa - gritou novamente Richard. - Vocês não têm música? Como é que se faz uma festa sem música?

 

- Concordo - bradou Michael.

 

- Empregados, música! - ordenou Arak, sobrepondo-se à algazarra geral. Uns momentos depois, como por milagre, começou a ouvir-se uma música de fundo que envolveu todas as conversas. Era tão suave como a que tinham ouvido no alojamento da zona de descontaminação.

 

Michael deixou escapar uma gargalhada desdenhosa.

 

- Não estava a pensar em música de elevador - exclamou Richard, dirigindo-se a Arak. - Não têm qualquer coisa com mais ritmo e mais mexida. Uma coisa que dê para dançar.

 

Arak deu uma nova ordem aos clones-empregados e, em breve, a música tinha mudado.

 

Richard e Michael trocaram olhares, manifestando o seu espanto. A música tinha ritmo e era mexida, mas sincopada de uma forma diferente de qualquer outra música.

 

- Que coisa é esta? - perguntou Michael. Inclinou um pouco a cabeça para o lado, tentando ouvir melhor.

 

- Sei lá - disse Richard. Fechou os olhos e movimentou a cabeça, num movimento ondulante. Ao mesmo tempo, deu alguns passos pouco seguros e abanou as ancas. Os seus movimentos provocaram alguns risinhos nas raparigas que se tinham juntado à sua volta.

 

- Estão a gostar disto, não estão? - perguntou-lhes Richard. As mulheres acenaram afirmativamente.

 

Richard levou o copo aos lábios e bebeu o seu conteúdo de um só trago, para grande surpresa de todos os que o rodeavam. Pousando o copo no chão, pegou na mão da mulher que estava mais perto de si e dirigiu-se para a plataforma elevada à volta da piscina, no centro do salão. No meio de várias gargalhadas, a multidão abriu espaço para eles passarem, gritando palavras de encorajamento ao par. Chegando à plataforma, Richard saltou lá para cima, arrastando a mulher consigo. Virou-se para ela e, por instantes, sentiu-se ofuscado pela sua beleza. Depois de ter visto tanta gente bonita já começava a achar que isso era o normal, mas ficou particularmente impressionado com o aspecto da rapariga que tinha à sua frente.

 

- Tu és lindíssima! - murmurou ele, mastigando um pouco as palavras.

 

- Obrigada - disse ela. - Tu também és atraente.

- Achas? - perguntou Richard.

 

- E muito divertido - disse a mulher.

 

- Ainda bem que pensas assim - disse Richard. Nessa altura teve que dar um passo para o lado, para não perder o equilíbrio. Por alguns instantes, a imagem da mulher saiu do seu campo de visão. Sentia-se tonto.

 

- Sentes-te bem? - perguntou a mulher.

 

- Sim, está tudo bem - assegurou-lhe Richard. Começava a sentir as pontas dos dedos a latejar. - Aquele licor bate bem.

 

É o meu preferido - afirmou a mulher.

 

Então também é o meu - disse Richard. - Ei, queres aprender a dançar?

 

- o que é que isso quer dizer, exactamente? - perguntou a mulher.

- Era o que eu estava a fazer há pouco - disse Richard. - Só que agora vamos fazê-lo os dois juntos.

 

Ríchard fechou os olhos e repetiu os movimentos que tinha feito anteriormente. Só conseguiu fazê-lo durante alguns segundos, pois teve rapidamente que abrir os olhos para não perder o equilíbrio pela segunda vez. A multidão reagiu, aplaudindo e pedindo mais.

 

Richard virou-se para eles e fez uma vénia exagerada. Ouviram-se mais aplausos. Voltando-se de novo para a mulher, Richard começou a empertigar-se, a dobrar-se e a abanar-se o melhor que podia, ao som da música. A mulher olhou-o, com bastante interesse e sentindo-se divertida, mas teve dificuldade em imitá-lo. A única coisa que ela conseguia fazer razoavelmente bem era pôr as mãos no ar e fazer os gestos que Ríchard fazia.

 

- Eu ajudo-te - disse Richard. Dirigiu-se à mulher e pôs as mãos nas ancas dela, tentando fazê-la movimentar-se ao ritmo da música. Ela não conseguiu acertar, mas as desajeitadas tentativas que fez deram-lhe vontade de rir. E à multidão também.

 

suzanne e Perry observavam a cena, com compreensível desconfiança. Suzanne disse a Perry que estava preocupada com o facto de Richard poder estar bêbedo, e Perry concordou. Não puderam, contudo, deixar de reparar no quanto a multidão parecia estar a gostar das brincadeiras dele.

 

- o seu amigo é muito divertido - disse uma voz por trás de Perry Ele virou-se e deparou-se com uma mulher muito jovem, que ele pensou que devia ter mais ou menos dezoito anos. Tinha olhos azuis claros, muito vivos, que lhe fizeram lembrar os de Suzanne, e um sorriso contagiante. Ela ergueu a palma da mão. Perry encostou cuidadosamente a sua mão à dela; sentiu-se corar. A mulher era extraordinariamente atraente, e alguns centímetros mais alta que ele.

 

- Chamo-me Luna - disse a rapariga, num tom de voz que fez com que os joelhos de Perry fraquejassem,

 

- Eu sou o Perry.

 

- Eu sei - disse Luna. - E é muito atraente. Já reparei que os seus dentes são mais brancos do que os de Richard.

 

Perry ficou ainda mais corado. Acenou com a cabeça.

- Obrigado - conseguiu ele dizer.

 

Os olhos de Luna desviaram-se para o centro do salão.

- Sabe dançar como o Richard?

 

Perry olhou novamente para o mergulhador, que fazia agora movimentos de break dance. Estava deitado com as costas no chão, girando com as pernas erguidas no ar.

 

- Acho que sim - disse Perry, não muito convictamente. Talvez não tão bem como Richard. Ele é mais extrovertido do que eu. Mas para ser franco, há já alguns anos que não danço.

 

- o Richard é tão bom como qualquer clone entertainer - disse Luna. Ela parecia estar bastante impressionada com Richard, que estava agora a fazer uns passos de moon walking, provocando grande satisfação na multidão.

 

- É um elogio que Richard nunca deve ter ouvido - disse Perry. Agindo, como sempre, por imitação, Michael pegou na mão de uma das mulheres que estavam à sua volta, e juntou-se a Richard em cima do rebordo da piscina. Assim que ele começou a dançar, uma dúzia de outras mulheres subiram para a plataforma, juntando-se ao grupo.

 

Um bando de mulheres bonitas rodeava agora Richard e Michael, tentando mexer os braços e movimentar as ancas de uma forma idêntica à dos tontos mergulhadores. Mas não era uma tarefa fácil. Os próprios mergulhadores tinham dificuldade em coordenar os seus movimentos com a estranha batida da música.

 

Alguns dos jovens Interterrestres do sexo masculino mais aventureiros saltaram para cima da plataforma e experimentaram alguns passos da estranha dança. Richard não achou muita graça. Sem parar de dançar, foi-se aproximando de cada um dos homens. Com bruscos e exagerados movimentos das ancas, empurrou cada um deles para fora da plataforma. Toda a gente, incluindo os próprios homens, achou graça, pensando que fazia parte da coreografia.

 

Depois de meia hora em que dançaram ininterruptamente, começaram a sentir-se bastante cansados. Richard, fazendo como sempre o papel de líder, esticou os braços e agarrou-se a todas as mulheres que conseguiu, antes de cair para o chão, dando pequenas gargalhadas. Michael imitou a manobra de Richard, juntando-se à pilha de pernas, braços e troncos parcialmente cobertos e transpirados. Os mergulhadores, reclinados, não se importavam nada de continuar com o ritual das saudações com as palmas das mãos, e as mulheres retribuíam prontamente com beijos. Seguindo a sugestão de Arak, os clones-empregados apressaram-se a servir mais bebidas.

 

- Este sítio é um sonho que se tornou realidade - exclamou Michael, depois de ter bebido um gole do seu copo, novamente cheio.

- Coitado do Mazzola - disse Richard. - Mais uma vez se confirma que o desgraçado do mergulhador de cápsula perde sempre a melhor parte.

 

- Este licor cristal será feito de quê? - perguntou Michael. Olhou com atenção para dentro do copo. o líquido era completamente transparente.

 

- o que é que isso interessa? - disse Richard, ao mesmo tempo que puxava para si e abraçava, com um só braço, uma das mulheres que estava ao seu lado. Ao fazê-lo, entornou a bebida, que caiu sobre o seu peito, o que divertiu imenso todos os que repararam.

 

- Michael, tenho uma coisa para si - disse uma morena de olhos azuis.

 

- o que é, minha linda? - perguntou Michael. Ele estava deitado de costas, a olhar para a mulher que se encontrava em pé, junto à plataforma. Ela sorriu e mostrou-lhe um pequeno frasco.

 

- Gostava que experimentasse um pouco de caldorfina - disse ela, enquanto tirava a tampa ao frasco. Aproximou o frasco de Michael, que usou a mão que tinha livre para retirar um pouco do seu conteúdo cremoso.

 

- Não vai precisar de tanto - disse ela - mas não faz mal.

 

- Desculpe - disse Michael. - Que faço com isto? - Aproximou o creme do nariz e cheirou-o. Não tinha qualquer odor.

 

- Esfregue-o na sua mão - disse ela. - Eu faço o mesmo, e depois juntamos as nossas palmas da mão.

 

- Ei, Richie - disse Michael, enquanto rolava sobre si próprio e se sentava. - Está aqui uma novidade. - Richard não respondeu. Estava a ver o seu copo a encher-se novamente de cristal.

 

Michael passou o creme pela palma da sua mão e em seguida olhou para a atraente mulher que lho tinha dado. Ela parecia estar a sonhar acordada, com os olhos meio fechados. A mulher ergueu a mão, lentamente, e Michael pressionou a sua palma contra a dela.

 

A reacção foi, para Michael, imediata e poderosíssima. Os seus olhos abriram-se, e depois fecharam-se, com a fantástica sensação de prazer. Durante alguns minutos, ele não conseguiu mexer-se, devido ao êxtase que sentia. Quando finalmente pôde movimentar-se, agarrou no frasco e afastou-o da mulher. Aproximou-se de Richard, e pendurou-se no seu braço.

 

- Richie! - gritou Michael. - Tens de experimentar isto. Richard tentou libertar-se do aperto de Michael, mas este não o largou.

 

- Ei, não estás a ver que estou ocupado - disse Richard. Estava a tentar beijar duas mulheres ao mesmo tempo.

 

- Richie, tens de experimentar isto - repetiu Michael, mostrando-lhe o frasco.

 

- Que porcaria é essa? - disse Richard. Ergueu-se um pouco, apoiando-se num cotovelo.

 

- É creme para as mãos - disse Michael.

 

- Estás a interromper-me por causa de creme para as mãos? Richard não queria acreditar. - o que é que se passa contigo?

 

- Experimenta - disse Michael. - Nunca experimentei um creme assim. É melhor do que cocaína. É dinamite!

 

Com um suspiro, Richard tirou um pouco de creme do frasco, e esfregou-o nas mãos. Olhou para Michael.

 

- E então, o que é que acontece agora?

 

- Junta a tua palma à de uma das raparigas - disse Michael. Richard acenou a uma das duas raparigas que tinha estado a beijar, mas ela fez-lhe sinal para que esperasse. A rapariga tirou também um pouco de creme, passou-o pela palma da sua mão e pressionou-a contra a de Richard. o resultado foi o mesmo que tinha sido para Michael. Richard precisou de um minuto inteiro para se refazer, após o fantástico delírio que se tinha apoderado dele.

 

- oh, meu Deus - gritou Richard. - Foi como ter um orgasmo. Dá-me mais creme!

 

Michael afastou o frasco, da mão estendida de Richard.

- Arranja um para ti - disse ele.

 

Richard fez outra tentativa para se apoderar do frasco, mas Michael deu-lhe uma pancada na mão, para o afastar.

 

Perry estava a explicar a Luna o que é que significava ser o presidente da Benthic Marine, quando sentiu alguém tocar-lhe no ombro. Era Suzanne, e tinha um ar preocupado.

 

- o Richard e o Michael estão a começar uma briga - disse Suzanne. - Estou a ficar preocupada. o Arak não deixa que os copos deles fiquem vazios, e eles já estão bastante bêbedos.

 

- Pois é! - disse Perry. - Se calhar vamos ter problemas. Olhou na direcção dos mergulhadores e viu-os aos empurrões e repelões um ao outro.

 

- É melhor irmos até lá e vermos se os conseguimos controlar

- disse Suzanne.

 

- Tem razão - disse Perry, apesar de não lhe apetecer separar-se de Luna.

 

- Vamos deixar que eles se divirtam - disse uma voz atrás de Suzanne. - Estão a fazer tanto sucesso. Eles são muito animados.

- Ela virou-se e deparou-se com o mesmo homem que lhe tinha perguntado se vivia com alguém.

 

- Nós estamos com receio que o comportamento deles se torne inconveniente - disse Suzanne. - Não queremos abusar da vossa hospitalidade.

 

- Deixe essas preocupações para Arak - disse o homem. Como já deve ter reparado, ele tem estado a encorajá-los a beber.

- Já reparei, sim - disse Suzanne. - E acho que não é boa ideia.

- Deixe isso com Arak - disse o homem. - É a ele que compete tomar conta deles, não a si. Para além disso, eu gostaria de falar consigo em particular, só por um instante.

 

- Ah, sim? - perguntou Suzanne, sentindo-se intrigada com o pedido. Olhou outra vez para os mergulhadores, e ficou aliviada ao verificar que eles tinham parado com a disputa e estavam novamente entretidos com as mulheres reclinadas à sua volta. Suzanne olhou para Perry, para ver se ele tinha ouvido o pedido do homem. E tinha. Perry sorriu maliciosamente e fez-lhe um sinal, encorajando-a.

 

- Por que não? - murmurou Perry, inclinando-se para ela. Estamos aqui para nos divertirmos, e a crise dos mergulhadores acalmou, por agora.

 

- Só demoraremos um instante - disse o homem.

 

- o que é que quer dizer com «em particular?» - perguntou Suzanne.

 

Ela observou as feições perfeitas e os olhos límpidos do estranho, e sentiu o coração parar por um segundo. Nunca tinha visto um homem com uma tal beleza clássica, e muito menos tinha falado com algum.

 

- Bem, não será propriamente em particular - disse o homem, com um sorriso cativante. - Pensei que nos pudéssemos afastar alguns metros, ou talvez subir para a galeria. Só pretendo falar consigo, sem ninguém por perto, por alguns momentos.

 

- Bem, suponho que não fará mal - disse Suzanne. Olhou mais uma vez para Perry.

 

- Eu estarei por aqui - disse Perry, - com a Luna. Suzanne deixou-se conduzir pelas escadas.

 

- o meu nome é Garona - disse o homem, enquanto subiam.

 

- Eu chamo-me Suzanne Newell - respondeu Suzanne. a

 

- Isso eu já sei - disse Garona. - Dr. Suzanne Newell, para ser mais preciso.

 

Quando chegaram ao cimo da escada, encostaram-se à balaustrada. Lá em baixo, a festa parecia estar a ser um enorme sucesso: de todos os lados chegavam sons de gargalhadas e de conversas animadas. A maior parte das pessoas estava reunida à volta da zona da piscina central, onde os mergulhadores e o seu harém eram o centro das atenções. A multidão era ordeira, gentil e respeitadora. Aqueles que se encontravam mais perto de quem estava a dançar, estavam constantemente a ceder os seus lugares aos que estavam mais longe, para que estes pudessem ver melhor.

 

- Obrigado por me ter concedido este momento - disse Garona.

- É injusto da minha parte estar a monopolizar o seu tempo.

 

- Não tem importância - disse Suzanne. - É agradável poder retirar-me e ver as coisas aqui de cima.

 

- Eu tinha que falar consigo para lhe dizer que a acho irresistível - disse Garona.

 

Suzanne olhou de soslaio para o lindo rosto de Garona. Ela esperava ver, pelo menos, os vestígios de um sorriso maroto. Em vez disso, ele olhava-a sorrindo intensa e calorosamente, deixando transparecer uma enorme sinceridade.

 

- Diga-me lá isso outra vez ---disse Suzanne.

 

- Acho que você é absolutamente irresistível - repetiu Garona.

- Acha mesmo? - perguntou Suzanne, rindo nervosamente.

- Juro - disse Garona.

 

Suzanne desviou o olhar para a multidão, tentando processar aquele encontro inesperado. Hesitou um pouco, antes de se voltar novamente para ele.

 

- É muito simpático, Garona - disse ela. - Pelo menos, é isso que me parece. Por isso, desculpe-me se eu pareço um pouco céptica, mas, com todas estas mulheres magníficas e perfeitas, custa-me um bocado a acreditar que você esteja interessado em mim. Quero dizer, eu tenho consciência das minhas limitações. No que diz respeito a ser irresistível, eu não posso competir com nenhuma destas mulheres.

 

Garona não parou de sorrir.

 

- Talvez seja difícil, para si, acreditar - disse ele. - Mas é inteiramente verdade.

 

- Bem, então sinto-me bastante lisonjeada - disse Suzanne.

- Mas talvez me possa dizer por que é que me acha assim tão irresistível.

 

- É difícil de pôr em palavras - disse Garona.

 

- Pode tentar, pelo menos - disse Suzanne.

 

- Suponho que terá a ver com a sua frescura ou com a sua inocência. Ou talvez seja a sua encantadora primitividade.

 

- Primitividade? - repetiu Suzanne. - Foi assim que Arak caracterizou Richard.

 

- Bem, é verdade que também se aplica a ele - disse Garona.

- E é suposto isso ser um elogio? - perguntou Suzanne.

 

- Aqui, na Interterra, é - disse Garona.

 

- o que é, exactamente, a Interterra? - perguntou Suzanne.

- E há quanto tempo é que existe?

 

Garona fez um sorriso paternal e abanou a cabeça.

 

- Fui avisado de que não devia responder a qualquer pergunta que não fosse estritamente pessoal.

 

Suzanne revirou os olhos.

 

- Desculpe - disse ela, num tom ligeiramente sarcástico. Saiu-me.

 

- Não tem importância.

 

- Então tenho de pensar em perguntas pessoais?

- Se assim o desejar - disse Garona.

 

- Bem... - disse Suzanne, tentando pensar em alguma coisa.

- Viveu sempre aqui?

 

Garona deu uma grande gargalhada, suficientemente alta para atrair as atenções de dois homens lá em baixo. Eles olharam para cima, acenaram ao reconhecer Garona, começando em seguida a caminhar em direcção à escada.

 

- Peço desculpa por me ter rido - disse ele. - Mas a sua pergunta mostra bem como é maravilhosamente inocente. É tão diferente do habitual. Adoraria conhecê-la melhor. Quando estiver farta da festa e quiser sair, diga-me. Adoraria acompanhá-la até ao seu quarto. Poderíamos passar um tempo juntos e contactar mais intimamente, juntando as palmas das nossas mãos, só nós os dois. o que é que lhe parece?

 

Suzanne abriu a boca, sentindo-se espantada, ao aperceber-se do verdadeiro significado da proposta de Garona. Ela deu uma gargalhada, divertida.

 

- Garona, não acredito nisto - disse ela. - Há bem pouco tempo atrás eu pensava que ia morrer. Agora, estou na terra da fantasia, com um homem espectacular a atirar-se a mim e a querer vir até ao meu quarto. o que é que eu posso dizer?

 

- Diga que sim - disse Garona.

 

- Receio que esteja demasiado espantada para poder dizer simplesmente isso.

 

- Eu compreendo - disse Garona. - Mas posso tentar confortá-la e fazê-la relaxar.

 

Suzanne abanou a cabeça.

 

- Não me parece que esteja a compreender. Eu não estou sequer a conseguir pensar como deve ser.

 

- A Suzanne excita-me - disse Garona. - Enfeitiça-me. Quero estar consigo.

 

- Não se pode dizer que não seja persistente - disse Suzanne.

- Voltaremos a falar mais tarde - disse Garona. - Vêm aí dois amigos meus.

 

Suzanne voltou-se e viu que os dois homens que tinham reparado na gargalhada de Garona haviam chegado ao cimo das escadas e se estavam a aproximar. Não pôde evitar reparar que eles eram tão atraentes como Garona. Caminhavam de braço dado, como dois amantes.

 

- Como estão, Tarla e Reesta - cumprimentou Garona. - Já conhecem a nossa distinta convidada, a Dr. Suzanne Newell?

 

- Ainda não - disseram os dois homens em uníssono. - Mas estávamos ansiosos por ter essa honra. - Fizeram ambos uma vénia elegante.

 

Suzanne forçou um sorriso. Era tudo tão encantadoramente estranho. Era, com certeza, um sonho.

 

Richard tinha consciência de que estava bêbedo, mas de certeza que não era a maior bebedeira que já tinha apanhado. A sua embriaguez não parecia intimidar as mulheres, que continuavam a aproximar-se dele. Ele reparava que as faces das mulheres se iam alterando enquanto ele dançava, o que significava que elas se iam revezando, mas isso não importava, uma vez que eram lindíssimas.

 

Sem querer, ele deu um forte encontrão a Michael, e ambos perderam o equilíbrio. Caíram no chão, mas estavam demasiado moles para se magoarem. Quando perceberam o que tinha acontecido, desataram a rir ao ponto das lágrimas lhes virem aos olhos.

 

- Que festa! - exclamou Michael, quando recuperou o suficiente para conseguir falar. Limpou os olhos com as costas da mão.

 

- Ninguém vai acreditar em nós, quando regressarmos a casa

- disse Richard. - Especialmente quando lhes dissermos que todas as miúdas estão disponíveis. É como andar à caça do peru. Nem parece real.

 

- E os homens nem se incomodam - disse Michael. - Ei, olha para aquela ali.

 

- Qual delas? - perguntou Richard. Virou-se para o outro lado, tentando seguir o olhar de Michael através da multidão. Por fim, os seus olhos pousaram numa ruiva escultural, que caminhava de braço dado com um rapazinho.

 

- Uau! - exclamou.

 

- Eu vi-a primeiro - disse Michael.

 

- Pois foi, mas eu vou agarrá-la primeiro.

- Nem penses.

 

- Vai-te lixar - disse Richard, enquanto se punha em pé. Michael inclinou-se para a frente e agarrou uma das pernas de Richard, pregando-lhe uma rasteira. Ele caiu de cabeça, escorregando da plataforma e batendo com a testa no chão. Não se aleijou, mas ficou muito zangado, especialmente quando Michael tentou passar por ele para alcançar a rapariga.

 

Richard conseguiu esticar um pé, fazendo Michael tropeçar. Enquanto este se tentava levantar, Richard atirou-se para cima dele. Em seguida, agarrou na parte da frente da sua túnica e deu-lhe um murro no nariz.

 

A súbita cena de violência alarmou toda a gente, e as pessoas começaram a afastar-se deles. Quando o nariz de Michael começou a sangrar, ouviu-se um oh colectivo.

 

Michael conseguiu tirar Richard de cima de si e prendeu as pernas dele debaixo do seu corpo. Richard tentou fazer o mesmo, mas Michael atingiu-o num dos lados da cabeça com tanta força que ele ficou estendido no chão.

 

- Vamos lá, filho da mãe - espicaçou Michael. - Levanta-te e luta. - o sangue escorria-lhe pelo queixo e pingava para o chão. o seu corpo balançava, instável.

 

Richard pôs-se de gatas e olhou para Michael.

- Estás feito - disse ele num grunhido.

 

- Vamos lá, seu atrasado! - foi a resposta de Michael. Richard levantou-se com bastante esforço, mas também ele sentiu dificuldade em se equilibrar.

 

Arak, que se encontrava a relativa distância dos mergulhadores quando a briga começou, aproximou-se, abrindo caminho através da multidão silenciosa. Colocou-se entre os dois mergulhadores bêbedos.

 

- Por favor - disse ele. - Qualquer que seja o problema, nós vamos resolvê-lo.

 

- Sai da minha frente - disse Richard, em tom ríspido. Empurrou Arak para o lado e preparou-se para dar um soco na cabeça de Michael. Michael agachou-se, mas ao fazê-lo desequilibrou-se e tombou para o chão. Richard também perdeu o equilíbrio, quando o seu golpe falhou o alvo.

 

- Clones-empregados, sustenham os convidados! - ordenou Arak.

 

Tanto Richard como Michael conseguiram levantar-se e trocar mais alguns murros antes de dois enormes clones-empregados terem tempo de intervir. Cada um dos clones agarrou com força um mergulhador. Richard e Michael continuaram a tentar bater um no outro até serem afastados. Nessa altura, Perry apareceu, vindo do meio da multidão.

 

- Seus idiotas, já se esqueceram onde é que estamos? - gritou Perry. - Por amor de Deus, parem de lutar! São doidos ou quê?

- Foi ele que começou - disse Richard.

 

- Foi ele que começou - disse Michael.

- Não, foi ele.

 

- Não, ele é que começou.

 

Antes de Perry poder interromper este diálogo infantil, os mergulhadores desataram a rir. De cada vez que tentavam olhar um para o outro, riam-se ainda mais. Em breve, toda a gente, excepto Perry e os clones-empregados, estava também a rir. Obedecendo a uma ordem de Arak, os clones largaram os mergulhadores que imediatamente bateram com as mãos um no outro, amigavelmente.

 

- Qual foi a razão desta briga? - perguntou Arak a Perry

- Exageraram no cristal - disse Perry

 

- Talvez fosse boa ideia passarem para uma bebida mais fraca

- disse Arak.

 

- Ou isso, ou cortar-lhes de vez com a bebida - disse Perry.

- Mas eu não queria estragar a festa - disse Arak_ - Está toda a gente a gostar tanto deles.

 

- Bom, a festa é sua - disse Perry.

 

Richard e Michael começaram a dirigir-se novamente para a plataforma.

 

- Já sei o que vamos fazer - disse Richard, em voz baixa, para Michael. - Vamos tirar à sorte para ver quem fica com a ruiva.

- Okay - disse Michael.

 

- Começas tu - disse Richard. - Par ou ímpar.

- Par - disse Michael.

 

Os mergulhadores contaram até três e em seguida cada um deles esticou apenas um dedo. Michael sorriu, satisfeito.

 

- Justiça foi feita! - exclamou ele.

- Bolas! - disse Richard.

 

- Onde é que ela se meteu? - perguntou Michael. Os dois mergulhadores olharam à sua volta.

 

- Lá está ela - disse Richard, apontando. - E ainda está com o miúdo.

 

- Eu volto já - disse Michael, Foi direito à mulher, e reparou que ela o observava com interesse à medida que ele se aproximava.

- Olá, boneca - disse Michael, evitando olhar para o jovem ao lado dela. - Eu sou o Michael.

 

- Eu sou a Mura. Está ferido?

 

- Claro que não - disse Michael. - Uma pancadita no nariz não chega para deitar abaixo o velho Michael. Nem pense nisso.

- Nós não estamos habituados a ver sangue - disse Mura.

 

- Ouça! - disse Michael - E se juntássemos as palmas das nossas mãos? Venha comigo até à borda da piscina, temos lá a nossa própria festa.

 

- Adoraria tocar nas palmas das suas mãos - disse Mura. Mas, primeiro, deixe-me apresentá-lo ao Sart.

 

- Ah sim, olá Sart - disse Michael, apressadamente. - Tens aqui uma mãe toda gira, mas agora podias ir brincar um pouco com os teus amiguinhos.

 

Mura e Sart começaram às gargalhadinhas. Michael não achou graça.

 

- Teve graça, não teve? - perguntou ele, irritado.

 

- Digamos que foi inesperado - disse Mura, por fim.

 

Michael aproximou-se mais um pouco, e pegou no braço de Mura.

- Venha, querida. - E virando-se para o jovem, acrescentou, - Até já, Sart.

 

De braço dado com Mura, Michael pavoneou-se, com algumas oscilações não planeadas, até junto de Richard e do resto do grupo. Richard tinha escolhido duas mulheres que eram particularmente demonstrativas da afeição que sentiam por ele. Apresentou-as como Meeta e Palenque. Uma era loura e a outra morena, e eram ambas incrivelmente voluptuosas.

 

- Richie, esta é a Mura - disse Michael, com orgulho. Richard fingiu não ter reparado na espantosa ruiva. Em vez disso, apontou por cima do ombro de Michael e perguntou quem era o miúdo. Michael virou-se e sentiu-se irritado ao ver que o rapaz tinha vindo atrás deles.

 

- Desaparece, miúdo - disse Michael, rispidamente.

 

Mura ignorou as palavras de Michael e encorajou Sart a vir para junto deles. Em seguida, apresentou-o a Richard.

 

- Prazer em conhecer-te, Sart - disse Richard. - A si também, Mura. Não se querem sentar um pouco?

 

- Gostaríamos muito - disse Mura.

- Bastante - acrescentou Sart.

 

Os olhos de Michael mostravam a sua irritação e frustração perante o triunfo de Richard. Por alguns instantes, considerou a hipótese de o esmurrar,

 

- Ei, tu também, Mikey - incitou Richard. - Vá lá, companheiro, senta-te e tenta relaxar um pouco! Vai fazer-te bem. Afinal, somos todos uma enorme família feliz.

 

o comentário provocou o riso a todos os Interterrestres que o ouviram, e isso só fez com que Michael se sentisse pior. Despeitado, acabou por se sentar.

 

- Ouve lá, Mikey - prosseguiu Richard. - A minha lourinha bombástica, a Meeta, acabou de me dizer uma coisa interessante. Toda a gente, aqui na Interterra, adora nadar.

 

- A sério? - disse Michael, um pouco mais bem-humorado. Disseste que nós éramos profissionais?

 

- Claro - disse Richard. - Mas acho que eles não perceberam bem o que eu estava a dizer. Parece-me que eles não compreendem a ideia de trabalho.

 

- Se o vosso trabalho é nadar, isso significa que vocês gostam de nadar? - perguntou Meeta.

 

- Claro que gostamos de nadar - afirmou Richard.

 

- Então, por que é que não vamos todos dar um mergulho? sugeriu Meeta.

 

- Sim, é boa ideia - concordou Mura. - Vocês precisam de refrescar um pouco.

 

- É uma óptima ideia - disse Sart,

 

Richard olhou para a convidativa piscina, que parecia uma água-marinha.

 

- Estão a sugerir que nademos agora? - perguntou ele.

 

- É uma boa altura. - disse Palenque. - Estamos todos tão quentes e suados.

 

- Mas, as nossas roupas - disse Richard. - Ficarão encharcadas.

- Nós não nadamos vestidos - disse Meeta.

 

Richard olhou para Michael.

 

- Isto está cada vez melhor - disse ele.

 

- E então? - insistiu Meeta. - o que é que,os nadadores profissionais têm a dizer?

 

Richard engoliu em seco. Tinha medo que as suas palavras o fizessem acordar daquele sonho maravilhoso.

 

- Eu digo que é para já - gritou Michael.

 

- Óptimo! - disse Meeta. Levantou-se com um salto, e ajudou Palenque a pôr-se de pé. Sart ergueu-se e estendeu a mão a Mura. Num piscar de olhos, os Interterrestres libertaram-se despudoradamente das suas túnicas e despiram os calções.

 

Exibindo a sua esplendorosa nudez, eles atiraram-se graciosamente para a água e nadaram até ao centro da piscina com poderosas e eficientes braçadas.

 

Richard e Michael ficaram, momentaneamente, demasiado pasmados para os imitar. Em vez disso, olharam à sua volta, observando as pessoas que os rodeavam. Ficaram ainda mais surpreendidos quando perceberam que ninguém prestava atenção, excepto Perry. Richard e Michael trocaram olhares.

 

- De que é que estamos à espera? - perguntou Richard, fazendo um sorriso embriagado.

 

Apressadamente, e com alguma atrapalhação, os mergulhadores começaram a despir as suas roupas, ao mesmo tempo que se dirigiam para a piscina. Michael não conseguiu tirar os calções e acabou por tropeçar neles. Richard teve mais sorte e entrou rapidamente na água, nadando até à zona pouco profunda, no centro da piscina,

 

Assim que chegou, Richard foi literalmente assaltado por Meeta e Palenque que, na brincadeira, o mergulharam repetidamente. Richard reagiu animadamente às brincadeiras das duas beldades nuas, mas começou a sentir-se sem fôlego. Quando Michael chegou e se envolveu em actividades semelhantes com Mura, uma vez que Sart e Palenque tinham nadado para a outra parte da piscina, Richard ficou aliviado por ter a oportunidade de descansar num local onde ele e Meeta se puderam sentar, com as cabeças fora da água.

 

- Richard, Richard, Richard - disse Meeta alegremente, ao mesmo tempo que comprimia a palma da sua mão contra a de Richard e lhe acariciava a cabeça. - Você é o visitante mais atraente e primitivo que nós jà tivemos em Saranta - talvez mesmo em toda a Interterra - desde há vários milhares de anos.

 

- E eu que pensava que só a minha mãe é que gostava de mim - disse Richard, com ironia.

 

- Conheceu a sua mãe? - perguntou Meeta. - Que curioso.

- Claro que conheci a minha mãe - disse Richard. - Você não conhece a sua?

 

- Não - disse Meeta, ao mesmo tempo que dava uma gargalhada. - Aqui, na Interterra, ninguém conhece. Mas não vamos falar sobre isso. Não gostaria de me levar para o seu quarto?

 

- Ora aí está uma óptima ideia - disse Richard. - E a sua amiga Palenque? o que é que lhe dizemos?

 

- o que quiser - disse Meeta despreocupadamente. - Mas o mais fácil é perguntar-lhe directamente. Tenho a certeza de que ela também virá. E a Karena também. Eu sei que ela quer vir.

 

Richard tentou mostrar o ar mais normal do mundo, mas receou que a sua surpresa, perante esta inesperada boa notícia, fosse demasiado evidente. Desejou ainda não ter bebido tanto, tendo em conta a auspiciosa reviravolta dos acontecimentos.

 

Era um grupo animado, o que saiu do pavilhão, em direcção à sala de refeições. Suzanne, Perry e os mergulhadores, cantavam canções antigas dos Beatles, a plenos pulmões, fazendo as delícias dos restantes que, surpreendentemente, conheciam as letras. Suzanne caminhava junto a Garona, Perry com Luna, Richard com Meeta, Palenque e Karena, e Michael com Mura e Sart.

 

Apesar de Suzanne e Perry não terem bebido muito, o que haviam bebido subira-lhes à cabeça. Não estavam, de maneira nenhuma, tão bêbedos como Richard e Michael, mas ambos reconheceram que estavam um pouco tocados. Estavam, também eles, imensamente divertidos.

 

Arak tinha-se despedido deles quando a festa começara a esmorecer, prometendo estar com eles de manhã. Ele desejara-lhes um bom descanso e tinha-lhes agradecido a sua presença na cerimónia.

 

- Ei - disse Richard, quando acabaram de interpretar o «Come Together». - Não conhecem nenhumas canções vossas?

 

- Claro - disse Meeta. Os Interterrestres começaram imediatamente a cantar uma canção e, apesar das palavras serem inglesas, o ritmo era tão irregular como tinha sido o da música da festa.

 

- Corta! - gritou Richard - Isso tem um som muito estranho. Vamos voltar aos Beatles.

 

- Richard, isso não é justo - disse Suzanne.

 

- Não faz mal - disse Meeta. - Nós também preferimos as vossas canções.

 

- Michael? o que é que estás a fazer com os copos? - perguntou Richard, ao reparar que o seu colega trazia inúmeros copos vazios.

- Eu pedi ao Arak - disse Michael. - Ele disse-me que eu os podia trazer. São de ouro. Aposto que tenho aqui o dinheiro suficiente para a entrada de uma carrinha nova.

 

Richard aproximou-se dele e agarrou um dos copos.

- Ei, dá cá isso - pediu Michael.

 

Richard riu-se.

 

- Vamos fazer uns passes. Eu atiro-to!

 

Michael passou os outros copos a Mura e em seguida afastou-se e preparou-se para receber o copo. Richard atirou o copo como se fosse uma bola de futebol e ele foi parar às mãos de Michael. Todos aplaudiram. Michael fez uma vénia, desequilibrou-se e caiu. Todos riram e aplaudiram com mais força.

 

- Temos animais de estimação que jogam esse jogo - disse Mura.

 

- Eu vi alguns deles, quando voávamos para cá - disse Suzanne.

- Pareciam criaturas compostas.

 

- E são - disse Mura.

 

- Vocês costumam fazer competições desportivas? - quis saber Richard.

 

Michael regressou e pegou nos restantes copos.

 

- Não, não temos desportos - disse Meeta. - Anão ser que se estejam a referir a jogos psicológicos, ou coisas desse tipo.

 

- Não, não! - disse Richard. - Eu estou a falar de hóquei e de futebol.

 

- Não - disse Meeta. - Não temos competições físicas.

- Porquê? - perguntou Richard.

 

- Não é necessário - disse Meeta. - E não é saudável. Richard olhou para Míchael.

 

- Não admira que os homens sejam uns mariconços - disse ele. Michael acenou, concordando.

 

- E se cantássemos «Lucy in the Sky with Diamonds» - sugeriu Suzanne. - Parece-me bastante apropriado.

 

Uns momentos mais tarde, entoando ainda o refrão, o grupo chegou à sala de refeições. A sala estava escura, mas os Interterrestres fizeram com que ficasse iluminada. Perry estava prestes a perguntar como é que eles tinham feito aquilo, quando reparou na presença de Donald. o ex-oficial tinha estado sentado na escuridão. A sua expressão era tão mal-humorada como fora na altura em que eles tinham saído para a cerimónia.

 

- Meu Deus - disse Richard. - o Grande Chefe está exactamente onde o deixámos.

 

Orgulhosamente, Michael pousou o conjunto de copos dourados na mesa, fazendo grande alarido.

 

Richard dirigiu-se para a mesa, colocando-se em frente a Donald. Arrastou as três mulheres com ele, como se fossem troféus.

 

- E então, Almirante Fuller - disse ele com ironia e fazendo uma saudação cómica. - Como pode ver pela presente companhia e pelos prémios, você perdeu muito em não ter ido à festa.

 

- Tenho a certeza que sim - disse Donald, com sarcasmo.

 

- Você nem imagina como foi fantástico, seu espertinho - disse Richard.

 

- Você está bêbedo, marinheiro - disse Donald, em tom de gozo. - Felizmente, alguns de nós têm autocontrole suficiente para não fazer figuras tristes.

 

- Pois é, mas deixe-me dizer-lhe qual é o seu problema - disse Richard, apontando um dedo trémulo à cara de Donald. - Você pensa que ainda está na porcaria da Marinha. Pois deixe-me dizer-lhe uma coisa. Isto não é a Marinha.

 

- Você não é apenas estúpido - disse Donald. - E nojento. Algo saltou no cérebro de Richard. Empurrou as mulheres para um lado e, passando por cima da mesa de mármore, atirou-se a Donald, apanhando-o de surpresa. Apesar da sua embriaguez, conseguiu pôr-se em cima do homem e dar-lhe alguns murros pouco eficazes num dos lados da cabeça.

 

A reacção de Donald foi agarrar Richard, não o deixando movimentar os braços. Agarrados num violento abraço, os dois homens caíram da cadeira onde Donald tinha estado sentado. Nenhum deles conseguiu magoar verdadeiramente o outro, mas foram-se atacando com pequenos socos. Conseguiram, no entanto, chocar contra a mesa e provocar a queda da colecção de copos dourados de Michael, que bateram no chão com grande alarido.

 

Os Interterrestres recuaram, um pouco alarmados, enquanto Suzanne e Perry se dirigiram para os dois homens. Não foi fácil, mas por fim conseguiram separá-los. Desta vez, foi Richard que ficou com o nariz a sangrar.

 

- Seu filho da mãe - tartamudeou Richard enquanto tocava no nariz e observava o sangue.

 

- Tens sorte em ter aqui os teus amigos - disse-lhe Donald. Podia ter dado cabo de ti.

 

- Basta - disse Perry. - Chega de insultos e de lutas. Isto é ridículo. Parecem duas crianças.

 

- Idiota - disse Donald. Com um safanão, libertou-se dos braços de Perry, e endireitou a túnica de cetim.

 

- Palhaço! - respondeu Richard. Afastou-se de Suzanne e virou-se para as suas três amigas. - Venham, meninas! - disse ele. - Vamos para o meu quarto, para eu não ter de olhar para a tromba deste sujeito.

 

Richard deu alguns passos instáveis na direcção das mulheres, mas elas recuaram. Em seguida, sem uma única palavra, saíram pelo lado do compartimento que abria para o exterior, desaparecendo na noite. Richard correu atrás delas, mas parou ao chegar ao relvado. As mulheres já estavam a meio caminho do pavilhão.

 

- Ei! - gritou Richard, pondo as mãos à volta da boca. - Venham cá! Meeta...

 

- Acho que é melhor ir deitar-se - disse-lhe Suzanne. - Já arranjou problemas suficientes para uma só noite.

 

Richard voltou-se e entrou no compartimento, desapontado e zangado. Bateu com a mão aberta na mesa, com tanta força que todos se assustaram.

 

- Merda! - exclamou ele, dirigindo-se a ninguém em particular.

 

Perry abriu a porta da sua casa, tentando esconder as mãos trémulas, e deixou que Luna fosse a primeira a entrar. Havia já muito tempo que ele não estava sozinho com uma mulher como aquela. Não sabia se a ansiedade que sentia se devia ao sentimento de culpa em relação ao seu casamento, ou ao reconhecimento da pouca idade de Luna. Para além disso, sentia-se tonto devido à bebida, mas ainda mais inebriante do que o cristal era o facto de uma mulher absolutamente espectacular o achar atraente.

 

Enquanto se esforçava por esconder os nervos, Perry foi suficientemente sensível para perceber que Luna também estava um pouco agitada.

 

- Precisa de alguma coisa? - perguntou Perry - Suponho que deve haver por aí comida e bebida. - Olhou para a rapariga que se aproximara da piscina e estava debruçada a verificar a temperatura da água.

 

- Não, obrigada - disse Luna, começando a andar à volta do quarto.

 

- Parece preocupada - disse Perry. Não tendo mais nada para fazer, ele foi sentar-se na cama.

 

- E estou - admitiu Luna. - Nunca tinha visto alguém agir como Richard agiu.

 

- Ele não é o nosso melhor embaixador - disse Perry

 

- Há muitas pessoas como ele, lá de onde vocês vêm? - perguntou Luna.

 

- Infelizmente, o seu tipo é bastante comum - disse Perry o que normalmente acontece é que há um ciclo de violência que se vai transmitindo de geração em geração.

 

Luna abanou a cabeça.

 

- Mas qual é o estímulo que leva a esse tipo de violência? Perry coçou o cimo da sua cabeça. Não pretendera entrar numa análise sociológica, nem se sentia capaz disso, naquele momento. Mas ao mesmo tempo, sentiu que tinha que dizer alguma coisa. Luna olhava para ele, interessada.

 

- Bem, vejamos - disse ele. - Nunca pensei muito nisso, mas há, na nossa sociedade, muita insatisfação que resulta de uma grande ambição e de um elevado sentido de posse. Poucas são as pessoas que se dizem, realmente, satisfeitas.

 

- Não compreendo - disse Luna.

 

- Deixe-me dar-lhe um exemplo - disse Perry - Se uma pessoa compra um Ford Explorer e depois vê um anúncio a um Lincoln Navigator, acha logo que o Explorer não presta.

 

- Eu não conheço esses nomes - disse Luna.

 

- São apenas coisas - disse Perry. - E a publicidade constante condiciona-nos a achar que as nossas coisas nunca são boas.

 

- Não compreendo esse tipo de ganância - disse Luna. - Aqui na Interterra não temos nada disso.

 

- Bem, então é difícil de explicar - disse Perry. - Mas o que interessa é que existe muita insatisfação, especialmente nas familias mais pobres, que têm muito menos coisas do que as outras pessoas; e dentro dessas famílias as pessoas tendem a agredir-se umas às outras.

- Isso é muito triste - disse Luna. - E assustador.

 

- Pode ser, de facto, - concordou Perry. - Mas nós somos mais ou menos condicionados para não pensarmos no assunto, uma vez que é isso que comanda a nossa economia.

 

- É estranho que exista uma sociedade que encoraja a violência - disse Luna. - A violência é algo de chocante para nós, uma vez que na Interterra ela não existe.

 

- Não existe qualquer tipo de violência? - perguntou Perry.

- Não, nenhum - disse Luna. - Eu nunca vi uma pessoa agredir outra. Pensar nisso faz-me sentir mal.

 

- Então por que é que não se senta? - disse Perry. Deu umas pancadinhas na cama, sentindo-se transparente enquanto o fazia. Luna, contudo, caminhou até à cama e sentou-se ao lado dele.

 

- Não se está a sentir tonta, pois não? - perguntou Perry, esforçando-se por manter a conversa, agora que ela estava tão perto dele. - Quer dizer, não vai desmaiar, pois não?

 

- Não, está tudo bem.

 

Perry olhou para os pálidos olhos azuis de Luna. Durante um momento não conseguiu falar. Quando recuperou, disse:

 

- Você é muito nova, não é?

 

- Nova? o que é que isso tem a ver?

 

- Bem... - disse Perry, procurando as palavras indicadas. Ele mesmo não sabia se se estava a referir à reacção dela perante o comportamento de Richard, ou à sua própria reacção a ela. - Uma pessoa nova, não tem tanta experiência como aquela que se possui quando se é mais velho. Talvez você ainda não tenha vivido o suficiente para saber o que é a violência.

 

- Ouça, aqui não há violência - disse Luna. - Foi totalmente banida. Para além disso, eu não sou tão nova como provavelmente está a pensar. Que idade é que imagina que eu tenho?

 

- Não sei - disse Perry, acabrunhado. - Talvez vinte anos.

- Agora está a ficar com um ar preocupado.

 

- Um pouco - admitiu Perry. - Você podia ser minha filha. Luna sorriu.

 

- Garanto-lhe que tenho mais de vinte anos. Isso fá-lo sentir melhor?

 

- Sim - admitiu Perry. - Na verdade, não sei por que é que estou tão nervoso. É tão agradável, este sítio, mas é ao mesmo tempo enervante.

 

- Eu compreendo - disse Luna. Sorriu novamente e ergueu as palmas das suas mãos, em direcção a Perry.

 

Cuidadosamente, Perry colocou as suas, junto às dela.

 

- Por que é que se faz isto com as mãos? - inquiriu ele.

 

- É a nossa maneira de mostrarmos amor e respeito. Não gosta?

- Quando se trata de demonstrar amor, eu prefiro um beijo disse Perry.

 

- Como o Richard fez, esta noite?

 

- Um pouco mais intimamente do que Richard - disse Perry.

- Mostre-me - disse Luna.

 

Perry respirou fundo, inclinou-se e, gentilmente, beijou os lábios de Luna. Quando ele se afastou, a reacção de Luna foi tocar suavemente nos lábios com as pontas dos dedos, como se estivesse espantada com a sensação.

 

- Não gosta? - perguntou Perry. Luna abanou a cabeça.

 

- Não é isso, mas os meus dedos e as palmas das minhas mãos são mais sensíveis que os meus lábios. Mas mostre-me mais. Perry engoliu, nervosamente, em seco.

 

- Está a falar a sério?

 

- Sim - disse Luna. Aproximou-se mais dele e olhou-o com os seus olhos sonhadores. - Eu acho-o muito tentador, Sr. Presidente da Benthic Marine.

 

Perry abraçou-a e deitou-a na colcha de caxemira.

 

Michael estava no sétimo céu. Mura era a mulher dos seus sonhos. Não poderia ter arranjado melhor. Já nem se importava com a contínua presença de Sart. o rapaz estava na piscina, deixando-o à vontade para desfrutar Mura.

 

No preciso momento em que Michael estava quase a perder a cabeça de tanta felicidade, o seu prazer foi interrompido por uma pancada na porta. Ele tentou ignorar o som, mas acabou por se dirigir para a porta, completamente nu. Quando se levantou, sentiu-se ainda mais bêbedo.

 

- Quem é? - perguntou ele.

- Sou eu, o teu amigo Richard. Michael abriu a porta.

 

- Qual é o problema?

 

- Não há problema - disse Richard, tentando olhar para dentro do quarto. - Eu pensei que talvez pudesses precisar de ajuda, estás a perceber o que eu quero dizer, não estás?

 

o cérebro drogado de Michael demorou alguns segundos a captar o sentido das palavras de Richard. Olhou para Mura, deitada na cama circular, e de novo para Richard.

 

- Estás a gozar comigo? - perguntou Michael.

 

- Não - disse Richard, fazendo um sorriso desonesto.

 

- Mura - chamou Michael. - Importa-se que o Richard se venha juntar a nós?

 

- Só se ele prometer que se porta bem - respondeu Mura. Michael olhou novamente para Richard, com uma exagerada expressão de surpresa.

 

- Bem, ouviste o que a senhora disse - disse ele, com um sorriso matreiro. Abriu mais a porta e deixou Richard entrar no quarto. Enquanto os dois homens se aproximavam da cama, Mura ergueu as duas mãos.

 

- Venham cá, seus primitivos! - disse ela. - Eu adoraria juntar as palmas das minhas mãos às vossas.

 

Os dois mergulhadores trocaram um olhar de incredulidade e, em seguida, Michael subiu para a cama, enquanto Richard tirava as suas roupas de cetim. Ao juntar-se a Mura, Richard disse:

 

- Vocês são muito liberais em relação ao amor.

 

- É verdade - disse Mura. - Nós temos muito amor. É a nossa maior riqueza.

 

Pouco tempo depois, os dois mergulhadores embriagados desfaleciam de prazer nos braços de Mura. Não era exactamente sexo, uma vez que, no estado em que estavam, nenhum deles era capaz de consumar o acto, mas apesar disso eles não se podiam sentir mais felizes.

 

Sart, que se encontrava na ponta mais afastada da piscina, tinha visto Richard chegar. Ele sentia, ao mesmo tempo, atracção e repulsa por Richard. E sentia curiosidade, principalmente. Depois de se ter cansado de nadar, saiu da água, secou-se e aproximou-se do trio. Mura sorriu-lhe. Ela tinha os braços à volta dos dois mergulhadores, que tinham adormecido.

 

Mura fez sinal a Sart, para que este se sentasse na cama. Ela tinha estado a acariciar gentilmente as costas dos mergulhadores, mas de boa vontade deixou que Sart se ocupasse de Richard. Isso dava-lhe a oportunidade para se concentrar em Michael.

 

Sart começou por acariciar as costas de Richard, tal como Mura tinha estado a fazer, mas, cansando-se disso, começou a improvisar. Primeiro esfregou-lhe o braço e o ombro. A pele de Richard era bastante intrigante para Sart. Não era tão firme como a dos Interterrestres e tinha pequenas imperfeições bastante curiosas. Sart transferiu a sua atenção para a cabeça de Richard, na qual ele tinha observado uma pequena e mal definida descoloração vermelho-azulada, por baixo do cabelo, sobre a orelha. Enquanto Sart se dobrava para examinar a imperfeição de mais perto, tocando-a suavemente com a ponta do dedo, os olhos de Richard abriram-se. Sart sorriu, de um modo sonhador, e voltou a acariciá-lo.

 

- Mas que diabo...? - gritou Richard. Empurrou a mão de Sart para o lado. Saltou da cama, atabalhoadamente, devido ao seu estado.

 

Sart também se levantou, pensando que a marca acima da orelha de Richard devia ser extremamente sensível.

 

A súbita movimentação de Richard foi suficiente para despertar Michael. Tonto e ensonado, ele sentou-se, apesar do braço de Mura continuar à sua volta. Ele viu Richard, vacilante, em pé ao lado da cama, a olhar para Sart, que tinha uma expressão de culpa.

 

- o que foi Richie? - perguntou Michael, com uma voz grave e pouco inteligível.

 

Richard não respondeu. Em vez disso, passou a mão pela cabeça, enquanto continuava a fitar Sart.

 

- o que aconteceu, Sart? - perguntou Mura.

 

- Eu toquei na mancha de Richard - explicou Sart. - Aquela que ele tem sobre a orelha. Peço desculpa.

 

- Michael, chega aqui! - ordenou Richard. Fez sinal para que Michael saísse da cama, enquanto se dirigia, um pouco oscilante, para a piscina.

 

Michael levantou-se, sentindo-se atordoado pelo curto sono. Seguiu os passos de Richard. Os dois homens afastaram-se para um local onde não podiam ser ouvidos. Michael percebeu que Richard estava extremamente perturbado.

 

- o que é que se passa? - perguntou Michael, num murmúrio. Richard passou as costas da mão, pela sua boca. Ainda estava a olhar para Sart.

 

- Acho que já percebi por que é que estes tipos não se importam que nós nos deitemos com as mulheres deles - disse Richard, também em voz muito baixa.

 

- Porquê? - perguntou Michael.

- Acho que são todos maricas.

-A sério? - Michael olhou para Sart. Essa possibilidade já lhe tinha passado pela cabeça quando, na festa, vira tantos homens a passearem-se de braço dado, mas, com toda a excitação, tinha-se esquecido disso.

 

- Sim, e digo-te mais uma coisa - disse Richard. - Aquele anormaleco ali estava-me a esfregar as costas e a cabeça. E eu a pensar que era a rapariga!

 

Michael riu-se, apesar do evidente rancor de Richard.

 

- Não tem graça nenhuma - disse Richard, rispidamente.

- Aposto que o Mazzola iria achar graça - disse Michael.

- Se contares ao Mazzola, mato-te - ameaçou Richard.

 

- Tu e mais outras dez pessoas - escarneceu Michael. - Mas até lá, o que é que vamos fazer?

 

- Acho que devíamos mostrar a esta aberração o que é que nós pensamos de tipos como ele - disse Richard. - Por amor de Deus, o tipo fartou-se de me tocar. Não posso deixar passar uma coisa dessas sem fazer nada. Acho que não devemos deixá-los com uma ideia errada a nosso respeito.

 

- Está bem - disse Michael. - Estou contigo. Em que é que estás a pensar?

 

- Primeiro, temos de nos livrar da rapariga! - disse Richard.

- Oh, não! Temos mesmo? - perguntou Michael.

 

- Tem de ser - disse Richard, impacientemente. - Tens de a pôr a andar. Podes dizer-lhe para voltar amanhã. É importante dar uma lição a este tipo, e não queremos público a assistir. Ela começaria a gritar e, quando menos esperasses, apareciam dois desses clones-empregados.

 

- Okay - disse Michael. Respirou fundo para se sentir mais forte e encaminhou-se para a cama.

 

- Está tudo bem com o Richard? - perguntou Mura.

 

- Sim - disse Michael. - mas sente-se cansado. A verdade é que estamos os dois cansados. Talvez exaustos seja a palavra certa. E, ainda por cima, estamos bêbedos, como já deve ter reparado.

 

- Isso não me incomoda - disse Mura. - Eu diverti-me imenso.

- Ainda bem - disse Richard. - Mas nós estávamos a pensar se não se importaria se continuássemos amanhã. o que eu estou a tentar dizer-lhe é que talvez fosse melhor ir-se embora.

 

- Claro - disse Mura, sem qualquer hesitação. Ela saiu rapidamente da cama e começou a vestir-se. Sart imitou-a.

 

- Eu não quero que me interprete mal - disse Michael. Gostava de voltar a estar consigo, amanhã.

 

- Eu compreendo que você esteja cansado - disse Mura gentilmente. - Não se preocupe. Vocês são nossos convidados, e eu voltarei amanhã, se é isso que desejam.

 

Sart apertou o seu robe debruado à volta da cintura e olhou de novo para Richard, que ainda não se tinha movido do sítio onde estava a meio caminho da borda da piscina.

 

- Sart - disse Michael, seguindo a direcção do olhar do rapaz.

- Por que é que não ficas mais um pouco? o Richard quer pedir-te desculpa por te ter assustado, quando se levantou da cama.

 

Sart olhou para Mura. Esta encolheu os ombros.

- É contigo, meu amigo.

 

Sart olhou novamente para Michael, que sorriu e lhe piscou o olho.

 

- Se os convidados desejam que eu fique, eu fico - disse Sart. Dirigiu-se de novo para a cama, com um andar um pouco presunçoso, e sentou-se.

 

- óptimo, óptimo - disse Michael.

 

Mura acabou de se vestir e dirigiu-se primeiro a Michael e depois a Richard para juntar as palmas das suas mãos às deles, uma última vez. Disse a ambos que lhe tinham dado muito prazer ao terem estado com ela, e que estava ansiosa por voltar a vê-los no dia seguinte. Antes de fechar a porta atrás de si, desejou-lhes boa noite.

 

Depois do som da porta a fechar-se se ter extinguido, fez-se um curto e desconfortável silêncio. Richard e Michael fitaram Sart, e este olhou de um para o outro. Sart começou a sentir-se irrequieto e levantou-se.

 

- Talvez fosse boa ideia pedir mais bebida - disse Sart, para fazer conversa. Richard fez um sorriso forçado e abanou a cabeça. Em seguida, aproximou-se de Sart com um modo de andar que sugeria que ele não sabia muito bem onde é que punha os pés.

 

- E mais comida? - disse Sart.

 

Richard abanou de novo a cabeça. Estava já muito perto do rapaz. Sart recuou um passo.

 

- Eu e o meu companheiro temos uma coisa importante para lhe dizer - disse Richard.

 

- É verdade - disse Michael. Ele caminhou, com idêntica instabilidade, à volta da cama, aproximando-se de Richard e encurralando Sart numa esquina entre a cama e a parede.

 

- Para falar claramente e para não haver nenhum mal-entendido - continuou Richard - nós não suportamos maricas como você.

- A verdade é que nos deixam de cabeça perdida - disse Michael. o olhar de Sart saltava de uma cara sarcástica e embriagada para outra.

 

- Talvez seja melhor eu ir-me embora - disse Sart, nervosamente.

 

- Mas não antes de nós nos certificarmos de que percebeu exactamente o que nós dissemos - disse Richard.

 

- Eu não sei o que quer dizer «maricas» - admitiu Sart.

 

- Homossexual, gay, paneleiro, larilas - disse Richard zombeteiro. - Não é a palavra que interessa. A questão é que nós não gostamos de tipos que gostam de homens. E temos uma pequena suspeita de que você pertence a essa categoria.

 

- Claro que gosto de homens - disse Sart. - Eu gosto de todas as pessoas.

 

Richard olhou para Michael, e depois para Sart.

- Também não gostamos de bissexuais.

 

Sart movimentou-se em direcção à porta, mas não conseguiu alcançá-la. Richard agarrou-lhe um braço e Michael uma mão-cheia de cabelo.

 

Rapidamente, Richard segurou também no outro braço de Sart e, com um riso triunfante, prendeu-lhos ambos atrás das costas. Sart lutou para se libertar, mas em vão, especialmente com Michael ainda a puxar-lhe o cabelo. Assim que o rapaz ficou imobilizado, Míchael socou-o no estômago, fazendo com que ele se dobrasse.

 

Os mergulhadores largaram o rapaz e riram-se, enquanto o observavam a dar alguns passos inseguros. Sart estava, desesperadamente, a tentar recuperar o fôlego. A sua face estava púrpura.

 

- OK, florzinha - disse Richard, atabalhoadamente. - Aqui vai mais uma por teres posto as tuas patas nojentas em cima de mim.

 

Ríchard levantou a cara de Sart com a mão esquerda e, com a direita, deu-lhe um murro. Não foi apenas um murro, mas um golpe selvagem no qual ele aplicou toda a sua força e todo o seu peso. Este segundo golpe apanhou em cheio a cara do rapaz, partindo-lhe o nariz e fazendo com que ele se desequilibrasse e caísse para trás, indo bater com a cabeça na esquina aguçada do tampo de mármore da mesa de cabeceira. Infelizmente, a pedra fria penetrou vários centímetros na parte de trás da cabeça do jovem.

 

Inicialmente, Richard não se apercebeu das consequências fatais do seu poderoso ataque. Estava demasiado preocupado com a intensa dor que sentia nos nós dos dedos magoados. Encolhendo-se, ele esfregou a sua mão doi ida com a outra mão e praguejou em voz alta.

 

Michael viu, aterrorizado, o corpo flácido de Sart a imobilizar-se. Da horrível ferida, saíam pedaços de tecido cerebral. Sentindo-se subitamente sóbrio, Michael dobrou-se sobre o rapaz ferido, que emitia sons balbuciantes.

 

- Richard! - chamou Michael, sussurrando, mas não muito baixo. - Temos aqui um problema!

 

Richard não respondeu. Ainda estava com dores, dando voltas pelo quarto e sacudindo a mão no ar, com os dedos bem abertos. Michael ergueu-se.

 

- Richard! Meu Deus! o tipo está morto.

 

- Morto? - ecoou a voz de Richard. o significado da palavra quebrou o autismo de Richard.

 

- Quase morto. A cabeça dele tem um buraco. Ele bateu na porcaria da mesa.

 

Richard encaminhou-se parajunto de Michael e olhou para a figura imóvel de Sart.

 

- Merda! - disse ele.

 

- E agora, o que é que vamos fazer? - perguntou Michael. Por que é que lhe bateste com tanta força?

 

- Não foi de propósito, está bem?! - gritou Richard.

- Bem, e o que é que vamos fazer? - repetiu Michael.

- Sei lá - disse Richard.

 

Nesse preciso momento, o corpo desfalecido de Sart deixou escapar um último suspiro e os sons balbuciantes extinguiram-se.

 

- Já está - disse Michael, estremecendo. - Está morto! Temos que fazer qualquer coisa, e depressa.

 

- E se saíssemos daqui? - disse Richard.

 

- Não podemos sair daqui - queixou-se Michael. - Para onde é que iríamos? Nem sequer sabemos onde é que estamos, que diabo.

- Está bem, então deixa-me pensar - disse Richard. - Merda, eu não o queria magoar.

 

- Oh, claro que não - disse Michael, sarcasticamente.

- Bem, não a este ponto - disse Richard.

 

- E se alguém entra aqui? perguntou Michael.

 

-Tens razão - disse Richard. - Temos de esconder o corpo.

- Mas onde? - perguntou Michael, com ansiedade.

 

- Não sei! - gritou Richard. Olhou à sua volta freneticamente. Em seguida, olhou outra vez para Michael. - Tive uma ideia que é capaz de resultar.

 

- Óptimo - disse Michael. - Onde?

 

- Primeiro ajuda-me a pegar nele - disse Richard. Passou por cima do corpo, fê-lo rolar sobre si próprio e pôs as mãos por baixo dos braços de Sart.

 

Michael agarrou nos pés de Sart e, em conjunto, ergueram o rapaz do chão

 

o novo dia amanheceu gradualmente, tal como aconteceria se estivessem na superfície da terra. A luz aumentou lentamente de intensidade, fazendo com que o tecto escurecido e arqueado perdesse as suas estrelas. A sua cor foi passando do azul índigo profundo ao rosa, e finalmente ao puro azul celeste. Saranta começava a acordar.

 

Suzanne foi a primeira, dos visitantes da superficie, a acordar com a chegada da aurora artificial. Enquanto olhava à sua volta, examinando o quarto e observando o mármore branco, os espelhos e a piscina, ela apercebeu-se, com um pequeno susto, que a surrealista experiência interterrestre não tinha sido um sonho.

 

Lentamente, virou-se para o lado e olhou para a figura adormecida de Garona. Ele estava deitado de lado, virado para ela. Estava surpreendida consigo própria por ter permitido que o homem dormisse ali. Não era assim que ela costumava agir. o único ponto em que ela mostrara alguma firmeza, fora ao insistir em manter a túnica e os calções. Ela tinha dormido vestida, tal e qual como se encontrava agora.

 

Suzanne não tinha a certeza se devia culpar o cristal que bebera ou o óptimo aspecto de Garona e os seus galanteios pela sua decisão de deixar o homem ficar. Por muito que lhe custasse admitir, no que dizia respeito ao sexo masculino, a atracção física era importante para ela. Na verdade, tinha sido em parte por esta razão que ela se mantivera presa a uma relação volátil com um actor em L. A., mesmo depois do relacionamento ter deixado de ser saudável.

 

Como se tivesse pressentido o olhar dela, Garona abriu os seus olhos escuros e brilhantes e fez um sorriso sonhador. Era difícil para Suzanne sentir-se arrependida.

 

- Desculpe tê-lo acordado - disse ela, após alguns instantes. Ele era tão belo à luz do dia como tinha sido na noite anterior.

 

- Não precisa de se desculpar - disse Garona. - Agrada-me estar acordado e ver que ainda estou consigo.

 

- Como é que consegue dizer sempre as palavras certas? disse Suzanne. Estava a ser sincera e não sarcástica.

 

- Digo o que gostaria que me dissessem - disse Garona.

 

157
Suzanne acenou com a cabeça. Era uma variante sensata da regra de ouro do Evangelho.

 

Garona rolou até ela e tentou envolvê-la com os braços. Suzanne escapou-se ao abraço e saiu da cama.

 

- Por favor, Garona, não vamos repetir a noite passada. Agora não.

 

Garona deixou-se cair na cama e fitou Suzanne.

 

- Não compreendo a sua relutância - disse ele. - Será que não gosta de mim?

 

Suzanne deixou escapar um resmungo, bastante audível.

 

- oh, Garona, sendo você tão sofisticado e sensível, não percebo como é que não compreende isto. Como lhe disse ontem à noite, preciso de um certo tempo até conhecer uma pessoa.

 

- Que quer saber? - perguntou Garona. - Pode fazer todas as perguntas pessoais que lhe apetecer.

 

- Ouça - disse Suzanne. - Pode estar certo de que gosto de si. Só o facto de o ter deixado ficar já é prova disso. Não o costumo fazer com pessoas que acabei de conhecer. Deixei-o ficar e estou contente por tê-lo feito. Mas não pode ter demasiadas expectativas em relação a mim. Pense em tudo o que ainda estou a tentar compreender.

 

- Mas não é natural - disse Garona. - As suas emoções não devem ser tão contingentes.

 

- Não concordo! o nome que se dá a isso é autoprotecção. Não posso andar por aí e permitir que os meus desejos esporádicos orientem o meu comportamento. E você devia fazer o mesmo. Afinal não sabe de nada acerca de mim. Talvez tenha um marido, ou um amante.

 

- Mas eu assumo que tem - replicou Garona. - De facto, ficaria muito surpreendido se não tivesse. Mas, de qualquer maneira, isso não me interessa.

 

- Muito bem. - Suzanne pôs as mãos nas ancas, num gesto de desafio. - Talvez não importe para si, mas importa para mim. Obrigou-se a parar de falar. Esfregou os olhos ensonados. Só tinha acordado há pouco e já estava a ficar enervadíssima.

 

- Não vamos discutir agora o assunto - disse Suzanne. - o dia já promete muitos desafios. Arak prometeu responder às nossas perguntas e eu tenho imensas, pode acreditar. - Dirigiu-se a um dos espelhos e, cautelosamente, pôs-se frente a ele. Fez uma careta à imagem reflectida no espelho. A sua mente podia estar muito confusa, mas havia uma coisa acerca da qual ela tinha a certeza: o seu aspecto, com o cabelo assim tão curto, não era dos melhores.

 

Pondo as pernas para fora da cama, Garona sentou-se e espreguiçou-se.

 

- Vocês, os humanos da segunda geração, são tão sérios.

- Não sei o que quer dizer com isso de «segunda geração» disse Suzanne. - Mas acho que tenho motivos para estar séria. Afinal, eu não vim para aqui de livre e espontânea vontade. Tal como o Donald disse, nós fomos raptados. E não preciso de lhe explicar que isso significa ser levado à força.

 

Tal como tinha prometido, Arak apareceu logo após o grupo ter terminado o pequeno-almoço e quis saber se estavam preparados para a sessão didáctica. Perry e Suzanne mostraram entusiasmo, Donald nem por isso e Richard e Michael estavam completamente desinteressados. Estes últimos estavam bastante tensos e apagados, muito diferentes dos habituais mergulhadores vivaços. Perry concluiu que deviam estar com uma ressaca e disse-o a Suzanne.

 

- Não duvido. Bêbedos como eles estavam, é natural. E você, como se sente?

 

- Óptimo - disse Perry. - Tendo em conta tudo o que aconteceu. Foi um serão interessante. E o seu amigo Garona? Demorou-se muito?

- Um pouco - disse Suzanne, evasivamente. - E a Luna?

 

- Também. - Nenhum deles olhou directamente para o outro. Assim que todos ficaram prontos, Arak conduziu-os através do relvado até uma estrutura hemisférica, semelhante ao pavilhão, mas a uma escala bastante menor. Perry e Suzanne seguiam ao lado de Arak. Donald caminhava alguns passos atrás e Richard e Michael estavam ainda mais atrás.

 

- Continuo a achar que devias contar ao Donald - insistiu Michael, falando muito baixo. - Pode ser que ele tenha alguma ideia sobre o que devemos fazer.

 

- o que é que esse filho-da-mãe pode fazer? - foi a resposta de Ríchard. - o miúdo está morto. o Fuller não o consegue pôr vivo outra vez.

 

- Talvez ele tenha alguma ideia sobre o melhor sítio para esconder o corpo. Tenho medo que encontrem o miúdo. Nem quero imaginar o que é que eles costumam fazer aos assassinos.

 

Richard deteve-se.

- Ou seja, a mim?

 

- Bem, tu mataste-o - disse Michael.

- Tu também lhe bateste.

 

- Mas não o matei. E a ideia foi tua.

 

Richard olhou, com os olhos bem abertos, para o amigo.

 

- Estamos juntos nisto, meu monte de porcaria. Era o teu quarto. o que me acontecer a mim, também te acontecerá a ti. É tão simples quanto isto.

 

- Ei, vocês os dois, despachem-se - chamou Arak. Ele segurava a porta que levava à pequena estrutura hemisférica sem janelas. Os outros elementos do grupo estavam ao lado da porta, a olhar na direcção dos mergulhadores.

 

- Mas, para além disso tudo - murmurou Michael, nervoso

 

a grande questão é que o corpo não está muito bem escondido. Tens de perguntar a Donald se ele consegue sugerir um sítio melhor. Ele pode ser o filho-da-mãe de um ex-oficial, mas é esperto.

 

- Okay - disse Richard, relutantemente.

 

Os dois mergulhadores apressaram o passo e juntaram-se aos outros. Arak sorriu agradavelmente e, em seguida, entrou no edifício, seguido por Suzanne e Perry, Quando Donald passava pela porta, Richard deu-lhe um puxão na manga. Donald afastou bruscamente o braço, olhou para Richard e continuou a andar.

 

- Ei, comandante Fuller! - sussurrou Richard. - Espere um segundo.

 

Donald virou-se para trás, olhou Richard com desdém e continuou a andar. Arak estava a levá-los através de um longo corredor, sem janelas.

 

- Queria pedir-lhe desculpa por ontem à noite - disse Richard, alcançando Donald e caminhando mesmo atrás dele.

 

- Desculpa por quê? - perguntou Donald, sarcasticamente. Por ser estúpido, por estar bêbedo, ou por se ter deixado enganar por esta gente?

 

Richard mordeu o lábio inferior antes de responder.

 

- Talvez pelas três coisas. Estávamos completamente pedrados. Mas não é por isso que eu quero falar consigo.

 

Donald parou de andar. Richard quase chocou com ele. Míchael acabou por bater em Richard.

 

- Que se passa, marinheiro? - disse Donald, em tom impaciente.

- Mas seja breve. Não quero perder a interessante conversa que nos espera.

 

- Bem, é que... - começou Richard, mas atrapalhou-se e não soube como continuar. Sentia-se intimidado por Donald, contrariamente à fanfarronice que mostrara anteriormente.

 

- Vamos lá, marinheiro - disse Donald rispidamente. - Diga o que tem a dizer.

 

- o Michael e eu pensámos que seria melhor sairmos da Interterra - disse Richard.

 

- Oh, isso é muito inteligente da vossa parte - disse Donald.

- Suponho que essa súbita revelação só vos ocorreu hoje de manhã. Bem, talvez eu deva recordar-lhes que nós não sabemos onde estamos até que o Arak decida dizer-nos. Portanto, assim que possuirmos essa informação, podemos continuar a nossa conversa. - Donald preparou-se para recomeçar a andar. Desesperado, Richard agarrou-lhe o braço. Donald olhou para a mão de Richard. - Largue-me antes que eu perca completamente o controle.

 

- Mas... - disse Richard.

 

- Deixe-se disso, marinheiro! - rosnou Donald, acabando com a conversa e afastando o braço de Richard. Começou a andar rapidamente, tentando apanhar os outros, e encolheu-se um pouco para conseguir passar por uma porta no fim do corredor.

 

- Por que diabo é que não lhe disseste? - perguntou Michael, num murmúrio, irritado.

 

- Tu também não lhe disseste - defendeu-se Richard.

 

- Pois não, porque disseste que querias ser tu a falar - disse Michael, pondo as mãos no ar num gesto de frustração. - Isso é que foi falar! A minha avó teria feito melhor. Voltámos à estaca zero. E tens de admitir que o corpo não está propriamente no melhor sítio do mundo. E se o encontraram?

 

Richard encolheu os ombros.- Não quero pensar nisso. Mas, naquelas circunstâncias, fizemos o melhor que podíamos.

 

- Talvez fosse melhor não sairmos do quarto - sugeriu Michael,

- Isso não ia resolver nada - disse Richard. - Anda, vamos ver se pelo menos descobrimos onde é que estamos, para tentarmos perceber como é que se sai daqui.

 

Os dois homens seguiram os passos de Donald e foram ter a um compartimento circular, de aspecto futurista, com novecentos metros de diâmetro e um tecto em abóbada. Não tinha janelas. À volta da área central, escura e ligeiramente convexa, via-se uma fileira de doze assentos moldados.

 

Arak e Sufa estavam sentados de frente para a porta, em assentos que tinham consolas embutidas nos braços. Imediatamente à sua direita, estavam duas pessoas que os mergulhadores nunca tinham visto. Apesar de estarem vestidos com as habituais vestes brancas, eles não eram tão atraentes como os outros Interterrestres. Suzanne e Perry estavam sentados à esquerda de Arak e Sufa. Donald estava numa ponta, do lado direito, sozinho e com vários lugares de intervalo entre ele e os restantes.

 

- Por favor, Richard, Michael - chamou Arak. - Sentem-se onde quiserem. Em seguida podemos começar.

 

Richard fez questão de passar por vários lugares vazios e ir sentar-se ao lado de Donald. Richard fez-lhe um sinal, mas Donald reagiu encolhendo-se e afastando-se o mais possível do mergulhador. Michael sentou-se ao lado de Richard.

 

- Mais uma vez, sejam bem-vindos à Interterra. - disse Arak.

- Hoje vamos desafiar a vossa inteligência de um modo bastante positivo. Durante esse processo, vocês irão perceber a sorte que têm.

 

- E se começassem por nos dizer quando é que podemos ir embora? - disse Richard.

 

- Cale a boca! - rosnou Donald. Arak riu-se.

 

- Richard, eu aprecio a sua espontaneidade e impulsividade, mas tenha um pouco de paciência.

 

- Em primeiro lugar, gostaria de vos apresentar dois dos nossos mais distintos cidadãos - disse Sufa. - Estou certa de que acharão extremamente útil falar com eles, pois, tal como vocês, vêm do mundo à superfície. Apresento-vos o Ismael e a Mary Black.

 

o casal pôs-se em pé e inclinou-se para a frente. Michael aplaudiu, por reflexo, mas parou imediatamente ao perceber que era o único a fazê-lo. Suzanne e Perry observavam o par com grande curiosidade.

 

- A Mary e eu, também vos damos as boas-vindas - disse Ismael. Era um homem bastante alto, de rosto fino e comprido e olhos encovados. - Nós estamos aqui porque já passámos pela experiência por que vocês vão passar agora, e porque poderemos ajudá-los. A minha sugestão é que não tentem absorver demasiado ao mesmo tempo.

 

Michael inclinou-se para Richard e murmurou:

 

- Achas que ele se está a referir àquele creme fabuloso que usámos ontem à noite?

 

- Cale-se! - repreendeu Donald, enfatizando cada sílaba. Se vocês os dois continuarem a interromper, quero que se afastem de mim.

 

- Está bem, está bem - disse Michael.

 

- Obrigado, Ismael - disse Arak. Em seguida, olhando para cada um dos visitantes, ele acrescentou: - Espero que aproveitem a ajuda dos Black. Nós pensamos que o melhor será dividirmos tarefas. Eu e Sufa estaremos disponíveis para os assuntos que tenham a ver com as informações; o Ismael e a Mary tratarão das questões de acomodação.

 

Suzanne inclinou-se para Perry. Na sua face, via-se uma nova expressão de preocupação.

 

- o que é que ele quererá dizer com «questões de acomodação»? Quanto tempo é que eles nos irão manter aqui?

 

- Não sei - respondeu Perry em voz baixa. Também ele estava preocupado.

 

- Antes de começarmos, gostaria de vos fornecer um telecomunicador e um dispositivo ocular - disse Sufa. Abriu uma caixa que tinha trazido para a reunião e retirou cinco pequenos volumes, cada um deles com um nome gravado em maiúsculas. Segurando-os nos braços, ela foi andando à volta da sala, distribuindo-os a cada um dos visitantes. Richard e Michael rasgaram os deles como se fossem miúdos a atacar os presentes de Natal. Suzanne e Perry abriram os deles com cuidado. Donald deixou o seu por abrir, pousado sobre as pernas.

 

- Parece um par de óculos e um relógio de pulso, sem mostrador - disse Michael. Estavam desapontados. Colocou os óculos. Tinham uma forma aerodinâmica e umas lentes claras.

 

- É um sistema telecomunicador - disse Sufa. - Os aparelhos são activados pela voz, e cada um deles está programado para receber a vossa voz individual; não são transmissíveis, portanto. Daqui a pouco, mostro-vos como é que se utilizam.

 

- Para que é que servem? - perguntou Richard. Colocou também os seus óculos.

 

- Para quase tudo - disse Sufa. - Estão ligados às fontes centrais, cuja informação será virtualmente transmitida através dos óculos. Também são utilizados para comunicar com qualquer outra pessoa na Interterra, visualmente ou através da voz. Até servem para fazer coisas tão comuns como chamar táxis aéreos, mas mais tarde voltaremos a falar sobre isso.

 

- Vamos começar - disse Arak. Ele tocou no tabuleiro da consola que estava à sua frente, e a área central, escura e convexa, tornou-se azul-fluorescente.

 

- A primeira coisa sobre a qual vamos falar é o conceito de tempo

- disse Arak. - Este talvez seja o assunto mais difícil de compreender, uma vez que aqui, na Interterra, o tempo não é a construção imutável que aparenta ser na superficie da Terra. o vosso cientista, o Sr. Einstein, reconheceu a relatividade do tempo, no sentido em que ele depende do ponto de vista do observador. o exemplo mais simples é o da idade da nossa civilização. Na perspectiva das referências da superfície da Terra, a nossa civilização é incrivelmente antiga, enquanto que pelos nossos pontos de referência, e pelo resto do sistema solar, não é. A vossa civilização é medida em milénios, a nossa em milhões de anos, e o sistema solar em mil milhões de anos.

 

- oh, por amor de Deus - queixou-se Richard. - Temos que ficar aqui sentados a ouvir isto? Pensei que nos iam dizer onde é que estamos.

 

- Se não compreenderem estas noções básicas - disse Arak aquilo que eu vos vou dizer será inacreditável e sem sentido.

 

- Por que é que não começamos pelo fim? - disse Richard Diga-nos primeiro onde estamos e depois as outras coisas.

 

- Richard! - interrompeu Suzanne, rispidamente. - Esteja calado!

 

Virando-se para Michael, Richard olhou para cima, em sinal de enfado. Michael manifestava a sua impaciência descruzando e voltando a cruzar as pernas.

 

- o tempo não é uma constante - continuou Arak. - Como eu estava a dizer, o vosso brilhante cientista Sr. Einstein reconheceu isto, mas o erro dele foi pensar que a velocidade da luz era o limite máximo do movimento. Não é bem assim, embora seja necessária uma enorme quantidade de energia concentrada para quebrar a barreira. Uma boa analogia que vem da vida quotidiana é a da quantidade extra de energia necessária para se passar da fase sólida à fase líquida, ou da líquida à gasosa. Colocar um objecto a uma velocidade superior à da luz é como a passagem para uma outra dimensão, onde o tempo é plástico e relacionado apenas com o espaço.

 

- Deus do céu - interrompeu Richard. - Isso é alguma anedota? Donald levantou-se e sentou-se longe dos mergulhadores.

 

- Tente ter um pouco de paciência - disse Arak. - E tente concentrar-se no facto do tempo não ser uma constante. Pense nisso! Se, de facto, o tempo é relativo, então ele pode ser controlado, manipulado e alterado. o que nos leva até ao conceito de morte. Ouçam com atenção! Na superficie da Terra, a morte tem sido algo necessário à evolução, e a evolução a única justificação da morte. Mas a partir do momento em que a evolução cria um ser sensato e conhecedor, a morte não só deixa de ser inútil, como se torna desnecessária.

 

Quando ouviram a palavra «morte», Richard e Michael encolheram-se mais nos seus lugares. Perry pôs a mão no ar. Arak virou-se imediatamente para ele.

 

- É permitido fazer perguntas? - quis saber Perry.

 

- Claro que sim - disse Arak, com uma voz simpática. - Isto pretende ser mais um seminário do que uma conferência. Só lhe peço que me faça perguntas sobre aquilo que já foi dito e não sobre aquilo que pensa que irá ser dito a seguir.

 

- Falou na medição do tempo - disse Perry. - Estava a sugerir que a vossa civilização é anterior à nossa?

 

- É verdade - disse Arak. - E por uma quantidade de tempo quase incompreensível para vocês. A história dos Interterrestres data de há seiscentos milhões de anos.

 

- Não me venha com tretas! - escarneceu Richard. - Isso é impossível. Isto é um disparate. Está a falar de uma data anterior aos dinossauros.

 

- Muito anterior aos vossos dinossauros - concordou Arak. E a vossa incredulidade é perfeitamente compreensível. É a razão pela qual temos de avançar lentamente nesta introdução à Interterra. Não quero estar sempre a repetir o mesmo, mas a vossa adaptação à presente realidade será mais fácil se ocorrer por etapas.

 

- Isso é muito bonito - afirmou Richard. - Mas onde é que estão as provas de todas essas balelas? Começo a acreditar que tudo isto é uma brincadeira muito bem planeada e, para ser franco, não estou interessado em ficar aqui sentado a perder tempo.

 

Nem Donald nem Suzanne se queixaram da nova interrupção de Richard. Partilhavam, de algum modo, desses pensamentos, apesar de Suzanne não concordar com a maneira rude de Richard expressar o seu cepticismo. Arak, contudo, estava imperturbável.

 

- Está bem - disse Arak, pacientemente. - Apresentaremos algumas provas que poderão relacionar com a história da vossa civilização. A nossa civilização tem vindo a observar e a registar o progresso da vossa civilização de humanos de segunda-geração desde o tempo da sua evolução.

 

- o que é que quer dizer exactamente com «humanos de segunda-geração»? - perguntou Suzanne.

 

- Em breve compreenderão - disse Arak. - Primeiro, deixem-me mostrar-vos algumas imagens interessantes. Tal como eu disse, temos observado o progresso da vossa civilização, e, até há cinquenta anos atrás, podíamos fazê-lo à vontade. A partir dessa altura, a crescente sofisticação da vossa tecnologia tem limitado a nossa observação, uma vez que queríamos evitar ser detectados. Na verdade, deixámos de utilizar a maior parte das nossas antiquadas saídas, tais como aquela que foi usada para chegarem à Interterra ou a de Barsama, a nossa cidade vizinha a oeste. Demos ordem para serem seladas com magma, mas a inépcia burocrática dos clones-empregados tem protelado a execução do decreto.

 

- Meu Deus, você nunca mais se cala - disse Richard. - Onde é que está a tal prova?

 

- Refere-se à caverna aonde o nosso submersível foi parar? perguntou Suzanne. - Foi a isso que chamou saída?

 

- Exactamente - disse Arak.

 

- A caverna costuma estar cheia de água? - perguntou Suzanne.

- Acertou novamente - disse Arak.

 

Suzanne virou-se para Perry.

 

- Não admira que a Sea Mount Olympus nunca tenha sido descoberta pelo Geosat. A montanha submarina não possui a massa suficiente para ser detectada pelo gravímetro.

 

- Vamos lá! - resmungou Richard. - Já estão a adiar demasiado. Vamos lá a essa prova!

 

- Okay, Richard - disse Arak, pacientemente. - Por que é que não sugere um período da vossa história que gostasse de observar através dos nossos arquivos de referência? Quanto mais antigo melhor, para compreenderem bem o que vos quero dizer.

 

Richard olhou para Michael, pedindo-lhe ajuda.

 

- Gladiadores - disse Michael. - Quero ver alguns gladiadores romanos.

 

- Podemos mostrar-lhes combates de gladiadores - disse Arak com relutância. - Mas esse tipo de registos violentos são reservados. Para os ver, teríamos de obter uma licença especial do Concílio dos Anciãos Talvez fosse melhor escolher outra era.

 

- Isto é ridículo! - disse Richard.

 

- Tente controlar-se, marinheiro - disse Donald, rispidamente.

- Deixe-me ver se compreendo o que está a dizer - disse Suzanne. - Está a sugerir que possuem registos de toda a história humana e pede-nos para escolhermos uma determinada época histórica para que possamos ver algumas imagens desse tempo?

 

- Precisamente - respondeu Arak.

 

- Pode ser a Idade Média? - disse Suzanne.

 

- É uma época muito vasta - disse Arak. - Não pode ser mais específica?

 

- Está bem - disse Suzanne. - Pode ser a França do século catorze.

 

-Isso é durante a Guerra dos Cem Anos - disse Arak, sem entusiasmo. - É curioso que até a Dr. Newell escolha imagens de um período tão violento. Mas também é verdade que vocês, humanos de segunda-geração, têm tido uma história marcada pela violência.

 

- Então mostre-me pessoas a divertirem-se, e não na guerra disse Suzanne.

 

Arak tocou no teclado da sua consola e, em seguida, inclinou-se para a frente para falar através de um pequeno microfone central. Quase instantaneamente, a iluminação do quarto tornou-se mais sombria e o ecrã que se encontrava no solo encheu-se de imagens indistintas passando a uma velocidade incrível. Sentindo-se cativados, todos se inclinaram por cima de uma pequena parede e olharam para o ecrã.

 

As imagens estavam agora a passar mais lentamente e depois pararam. Acena projectada era de uma clareza cristalina, com cores naturais e perfeitamente tridimensional. Era um pequeno campo de milho, no fim do Verão, visto a uma altitude de cento e vinte cinco ou cento e cinquenta metros. Um grupo de pessoas fazia uma pausa nas suas actividades de colheita. As foices estavam casualmente caídas no chão, à volta de vários cobertores nos quais estava disposta uma refeição modesta. o som era o zumbido intermitente de cigarras.

 

- Isto não tem interesse - disse Arak, após ter dado uma olhadela. - Não fará prova de nada. A não ser o facto das pessoas usarem roupas tão pobres, não há qualquer outra indicação da época histórica. Vamos continuar a procurar.

 

Antes de alguém poder dizer o que quer que fosse, milhares de imagens voltaram a passar rapidamente, tornando o ecrã novamente indistinto. Era estonteante olhar para a rápida sucessão de imagens, mas, em breve, começaram a passar mais lentamente e depois pararam.

 

- Ah, isto já é melhor - disse Arak. Via-se um castelo erguendo-se numa elevação rochosa onde decorria uma espécie de torneio. o ponto de observação era significativamente mais elevado do que o da cena anterior.

 

A coloração da vegetação à volta das paredes do castelo sugeria que estavam a meio do Outono. o terreiro estava cheio de pessoas barulhentas, cujas vozes formavam um som abafado. Todos vestiam peças de roupa coloridas e tipicamente medievais. Galhardetes heráldicos esvoaçavam com a brisa. Em cada uma das pontas de uma longa e baixa cerca de madeira que atravessava o centro do terreiro, dois cavaleiros ocupavam-se com as preparações finais para um combate. Os respectivos cavalos, ataviados em cores alegres, estavam virados um para o outro, levantando as patas, com excitação.

 

- Como é que estas imagens são captadas? - perguntou Perry. Estava deslumbrado com a imagem.

 

É um dispositivo de gravação normal - disse Arak.

 

Não. Eu refiro-me ao sítio a partir do qual foram registadas - continuou Perry - Foi de um helicóptero?

 

Arak e Sufa riram-se.

 

- Desculpem-nos por nos estarmos a rir - disse Arak. - Os helicópteros fazem parte da vossa tecnologia. Não da nossa. Para além disso, um veículo desses seria facilmente notado. Estas imagens foram captadas por uma pequena e silenciosa aeronave antigravidade, não tripulada, a passar a cerca de seis mil e duzentos metros.

 

- Ei, Hollywood faz isto todos os dias - disse Richard. - Grande coisa! Isto não é prova de nada.

 

- Se isto é um cenário, é o mais realista que eujá vi - disse Suzanne. Inclinou-se mais um pouco. Do seu ponto de vista, os detalhes iam muito para além do que Hollywood conseguia fazer.

 

Enquanto eles observavam, os pagens de cada um dos cavaleiros com armadura recuaram e os homens armados baixaram as suas lanças. Ao som agudo de uma fanfarra, os dois cavalos avançaram, cada um num lado da cerca de madeira. Quando eles avançaram um para o outro, a algazarra da multidão aumentou. Em seguida, mesmo antes dos cavaleiros se tocarem, a imagem desapareceu. Um momento mais tarde, o ecrã voltou ao seu azul-fluorescente inicial. Apareceu um rectângulo onde se podia ler: «Cena censurada. Dirija-se ao Concílio dos Anciãos.»

 

- Bolas! - exclamou Michael. - Logo agora que eu estava a gostar. Quem é que ganhou: o tipo de verde ou o tipo de vermelho?

- o Richard tem razão - disse Donald de súbito, ignorando Michael. - Estas cenas podem ser facilmente montadas.

 

- Talvez - disse Arak sem se mostrar minimamente ofendido.

- Mas eu posso mostrar-lhes aquilo que quiserem. Não seria possível que tivéssemos montado tudo o que se passou na história da primeira-geração só para que agora vocês pudessem escolher o que desejam.

 

- E se fosse algo mais antigo? - sugeriu Perry. - Por exemplo, a época do Neolítico precisamente no mesmo sítio onde se encontrava o castelo.

 

- É uma ideia interessante! - disse Arak. - Vou introduzir as coordenadas sem uma referência temporal específica, a não ser, digamos, mais de dez mil anos atrás e veremos se o mecanismo de busca encontra alguma imagem.

 

o ecrã iluminou-se de novo. Mais uma vez, as imagens sucediam-se a grande velocidade. Desta vez, o processo foi muito mais demorado.

 

Suzanne tocou no braço de Perry e inclinou-se para ele, quando ele se virou.

 

- Eu acho que as imagens são reais - disse ela.

 

- Eu também - disse Perry. - Já pensou na tecnologia que isto envolve?!

 

- Mais importante do que a tecnologia, é a possibilidade deste lugar ser real - murmurou Suzanne. - Afinal, não estamos apenas a sonhar.

 

- Ah! - exclamou Arak. - Parece que a busca deu resultado. E a época é há vinte e cinco mil anos. - Enquanto ele falava, as imagens começaram a passar mais lentamente, até que pararam.

 

A cena passava-se na mesma elevação rochosa sem, contudo, existir um castelo. Em seu lugar, o topo do monte era dominado por uma pequena escarpa, escavada no centro para formar uma estreita caverna. Agrupados à volta da entrada da caverna, estavam Neandertais cobertos com peles e trabalhando com utensílios tacanhos.

 

- Parece, de facto, ser o mesmo local - comentou Perry.

Enquanto todos eles observavam, a câmara aproximou-se mais da cena doméstica.

 

- E as imagens são muito mais nítidas - acrescentou Perry.

- Nesta altura não nos importávamos com o facto de as aeronaves poderem ser vistas - explicou Arak -, portanto sentíamo-nos à vontade para descer até uns meros trinta metros, ou coisa parecida, para estudarmos os comportamentos.

 

Enquanto eles olhavam, um dos Neandertais endireitou-se para alisar uma pele. Enquanto o fazia, olhou directamente para cima, e a sua face abrutalhada ficou subitamente lívida e a sua boca abriu-se num misto de surpresa e terror. A imagem no ecrã era suficientemente próxima e nítida para revelar os seus enormes dentes quadrados.

 

- Bem - comentou Arak - aqui está um exemplo de alguém que detectou a nossa nave antigravidade. o pobre diabo deve pensar que está a receber uma visita dos deuses.

 

- Meu Deus - disse Suzanne. - Ele está a fazer com que os outros olhem para cima!

 

- A linguagem deles era muito limitada - disse Arak. - Mas sei que existiam outras subespécies nesta mesma época e nesta mesma área, às quais vocês chamam Cro-Magnon. As suas capacidades, em termos de linguagem, eram muito melhores.

 

o Neandertal grunhiu e saltou para cima e para baixo, enquanto apontava para a câmara. Em breve, todo o grupo olhava para o céu. Várias mulheres, com crianças pequeninas, abraçaram imediatamente os seus bebés e desapareceram para o interior da caverna, enquanto outras se começavam a levantar.

 

Um homem mais expedito dobrou-se, apanhou uma pedra do tamanho de um ovo e atirou-a em direcção ao céu. o míssil aproximou-se e depois desapareceu por um dos lados.

 

- Nada mau - disse Michael. - Os Red Sox podiam pô-lo a jogar ao centro.

 

Arak tocou na sua consola e a imagem desapareceu. Ao mesmo tempo, as luzes do compartimento acenderam-se. Todos voltaram para os seus lugares. Arak e Sufa olharam à volta do compartimento. Os visitantes permaneciam, por enquanto, em silêncio, até mesmo Richard.

 

- Qual é, supostamente, a data dessa gravação? - perguntou Perry, por fim.

 

Arak consultou a sua consola.

 

- Segundo o vosso calendário, teria sido dia catorze de Julho do ano vinte e três mil, trezentos e quarenta e dois a.C.

 

- Não ficaram preocupados com o facto da vossa plataforma de câmara ter sido vista? - perguntou Suzanne. A imagem da cara do Neandertal perseguia-a.

 

- Estávamos a começar a ficar preocupados com a detecção concordou Arak. - Na altura, as alas mais conservadoras chegaram a falar na hipótese da eliminação dos seres cognitivos da superfície da terra.

 

- Por que é que se preocupavam com esta gente primitiva? perguntou Perry.

 

- Só pelo facto de podermos vir a ser detectados - disse Arak.

- É óbvio que há vinte e cinco mil anos atrás, a vossa civilização era tão primitiva que isso não importava. Mas sabíamos que acabaria por importar. Temos conhecimento de que as nossas aeronaves têm sido, ocasionalmente, avistadas, mesmo nos tempos modernos, e isso preocupa-nos. Por sorte, a maior parte dos avistamentos têm sido acolhidos com incredulidade, ou então com a ideia de que as nossas naves interplanetárias vieram de qualquer outro local do universo, e não do interior da própria terra.

 

- Espere um momento - disse Donald, de súbito. - Não quero ser desmancha-prazeres, mas não me parece que este espectaculozinho que você tem estado a montar aqui prove o que quer que seja. Seria facílimo construir tudo isto através de imagens produzidas por computador. Por que é que não acaba com esse palavreado e nos diz quem é que você representa e o que é que quer de nós.

 

Durante alguns momentos, ninguém disse nada. Arak e Sufa inclinaram-se um para o outro e trocaram algumas palavras em sotto voce. Depois, falaram com Ismael e Mary. Após uma pequena conferência em voz baixa, os anfitriões voltaram a encostar-se nas suas cadeiras. Arak olhou directamente para Donald.

 

- Sr. Fuller, o seu cepticismo é compreensível - disse Arak. Não sabemos se as suas suspeitas são partilhadas pelos outros. Talvez mais tarde eles consigam influenciar a sua opinião. Claro que apresentaremos mais provas à medida que a introdução for prosseguindo, e estou confiante de que você será conquistado. Até lá, gostaríamos de implorar a sua paciência por mais algum tempo. Donald não respondeu. Olhou simplesmente para Arak.

 

- Vamos continuar - disse Arak. - Permitam-me que vos fale sucintamente da história da Interterra. Para isso, temos que começar nos vossos domínios, ou seja, na superfície da Terra. A vida começou aí cerca de quinhentos milhões de anos depois da formação da Terra, e demorou vários outros mil milhões a evoluir. Os vossos cientistas sabem-no muito bem. Aquilo que eles não sabem é que nós, os humanos da primeira-geração, evoluímos há cerca de quinhentos e cinquenta milhões de anos atrás, durante a primeira fase da evolução. A razão pela qual os vossos cientistas desconhecem esta primeira fase é porque a quase totalidade dos seus registos fossilizados desapareceram durante um período a que nós chamamos o Período Negro. Mais tarde voltaremos a falar disso. Para já, temos algumas imagens destes primeiros tempos da nossa civilização, mas a qualidade não é muito boa.

 

A luz diminuiu progressivamente. Suzanne e Perry trocaram olhares na escuridão envolvente, mas não disseram nada. A atenção de ambos foi, em breve, dirigida para o ecrã no solo. Após uma nova rápida sucessão de imagens, apareceu uma cena, captada dentro do ângulo normal de visão, mostrando um ambiente semelhante ao que os visitantes tinham visto na Interterra. A principal diferença era que os edifícios eram brancos em vez de pretos, apesar das formas serem idênticas. E as pessoas tinham um aspecto de seres humanos normais - não eram todas belas, e estavam ocupadas com várias tarefas quotidianas.

 

- Ver estas cenas faz-nos sorrir do nosso próprio primitivismo - disse Sufa.

 

- É verdade - concordou Arak. - Não tínhamos clones-empregados, neste tempo tão antigo.

 

Suzanne pigarreou. Estava a tentar compreender tudo o que Arak estivera a dizer. o discurso dele colidia com tudo o que ela, enquanto cientista, sabia sobre a evolução em geral e a evolução humana em particular.

 

- Está a sugerir que estas imagens que estamos a ver datam de há quinhentos e cinquenta milhões de anos atrás?

 

- É isso mesmo - respondeu Arak. Teve vontade de rir, mas conseguiu evitá-lo. Ele e Sufa pareciam estar divertidos com os esforços feitos por um indivíduo que tentava levantar um bloco de pedra.

 

- Desculpem-nos por acharmos isto tão engraçado - disse ele.

- Há já muito tempo que não víamos estas sequências. Isto passa-se na altura em que nós tínhamos algo de semelhante às vossas nacionalidades, mas elas desapareceram após os primeiros cinquenta mil anos da nossa história. Foi nessa altura que as guerras também desapareceram, como podem imaginar. Como estão a ver, a superfície da Terra era muito diferente daquilo que é agora, e foi esse aspecto que recriámos aqui na Interterra. Nessa altura só existia um supercontinente e um superoceano.

 

- E o que é que aconteceu? - perguntou Suzanne. - Por que é que a vossa civilização optou por vir cá para baixo?

 

- Devido ao Período Negro - disse Arak. - A nossa civilização tinha quase um milhão de anos de um progresso pacífico, quando tivemos conhecimento de que algo de nefasto estava a acontecer numa galáxia próxima da nossa. Em relativamente pouco tempo, ocorreu uma série cataclísmica de explosões de supernovas que bombardearam a Terra com a radiação suficiente para destruir a camada do ozono. Poderíamos ter tentado arranjar uma solução para isso, mas os nossos cientistas consideraram que estes acontecimentos galácticos também influenciariam o delicado equilíbrio da população de asteróides do sistema solar. Tornou-se evidente que a Terra seria vítima de colisões à escala planetária, tal como acontecera nos seus primórdios.

 

- Pela vossa saúde! - resmungou Richard. - Não aguento ficar muito mais tempo a ouvir isto.

 

- Silêncio, Richard! - disse Suzanne, rispidamente, sem afastar os olhos de Arak. - Então a Interterra foi obrigada a tornar-se subterrânea.

 

- Exactamente - disse Arak. - Sabíamos que a superficie terrestre se tornaria inabitável. Foram tempos de desespero. Procurámos um novo lar por todo o sistema solar, mas não tivemos sorte, e ainda não tínhamos desenvolvido a tecnologia do tempo para podermos ir até outras galáxias. Foi então sugerido que a nossa única hipótese de sobrevivência seria mudarmo-nos para debaixo da terra, ou melhor, para debaixo do oceano. Tínhamos a tecnologia necessária, e conseguimos fazê-lo num espaço de tempo miraculosamente curto. Pouco tempo depois de nos termos mudado, o mundo, tal como nós o conhecíamos, foi consumido por uma radiação mortal, por um bombardeamento de asteróides e por uma sublevação geológica. Foi por pouco que não fomos destruídos, mesmo estando por baixo da camada protectora do oceano, porque a certa altura o oceano esteve prestes a evaporar-se devido ao calor intenso. Todas as formas de vida da Terra foram destruídas, excepto algumas bactérias primitivas, alguns vírus e algumas algas verde-azuladas.

 

Subitamente, a imagem desapareceu e a iluminação voltou. Ficaram todos em silêncio.

 

- Bem, aí têm - disse Arak. - Uma breve história da Interterra e alguns factos científicos. Agora, decerto, terão perguntas a fazer.

- Quanto tempo durou o Período Negro? - perguntou Suzanne.

- Um pouco mais de vinte e cinco mil anos - respondeu Arak. Suzanne abanou a cabeça, perplexa e incrédula, pensando que,

 

no entanto, tudo o que ouvira fazia um certo sentido, do ponto de vista científico. Mas o mais importante era que ficava explicada a situação em que ela presentemente se encontrava.

 

- Mas vocês permaneceram debaixo do oceano - disse Perry.

- Por que é que não voltaram para a superfície?

 

- Por duas razões - disse Arak. - Primeiro, porque tínhamos tudo o que precisávamos e já estávamos habituados ao ambiente. Em segundo lugar, quando a vida à superficie voltou a evoluir, as bactérias e os vírus que se desenvolveram eram organismos aos quais nunca fôramos expostos. Por outras palavras, na altura em que o clima permitiria o nosso regresso, a biosfera era antigenicamente nossa inimiga. Ou talvez fatal seja a palavra exacta, a não ser que estivéssemos dispostos a passar por uma adaptação extenuante. E assim ficámos, muito felizes e satisfeitos, especialmente porque aqui, debaixo do oceano, não estamos sujeitos aos caprichos da natureza. De todo o universo que já visitámos, este pequeno planeta é o mais adequado ao organismo humano.

 

- Agora compreendo por que é que tivemos que passar por todo aquele processo de descontaminação - disse Suzanne. - Tínhamos de nos libertar de todos os microrganismos.

 

- Precisamente - disse Arak. - E ao mesmo tempo tiveram de se adaptar aos nossos organismos.

 

- Por outras palavras - continuou Suzanne. - A evolução ocorreu duas vezes na Terra, praticamente com os mesmos resultados.

 

- Com resultados semelhantes - disse Arak. - Existiam algumas diferenças em certas espécies. De início, ficámos surpreendidos com isso, mas depois começou a fazer sentido, porque o ADN de origem é o mesmo. A vida multicelular evoluiu, nos dois casos, do mesmo tipo de algas e tendo, aproximadamente, as mesmas condições climáticas.

 

- Então é por isso que vocês se intitulam humanos de primeira-geração - disse Suzanne - e se referem a nós como humanos de segunda-geração.

 

Arak sorriu com satisfação.

 

- Esperávamos que compreendesse tudo tão rapidamente como compreendeu, Dr. Newell - disse ele.

 

Suzanne virou-se para Perry e para Donald.

 

- Os estudos científicos confirmam algumas destas coisas disse ela - tanto as provas geológicas como as oceanográficas, sugerem que existiu um único continente antigo na terra, chamado Pangeia.

 

- Peço desculpa - disse Arak. - Não queria interromper, mas esse não é o nosso continente original. Pangeia formou-se de novo durante a última parte das sublevações geológicas do Período Negro. o nosso continente foi completamente suprimido pela astenosfera antes disso.

 

Suzanne acenou com a cabeça.

 

- Muito interessante - disse ela. - E deve ser por isso que não existem fósseis da primeira evolução.

 

Arak fez novamente um sorriso de satisfação.

 

- A sua capacidade de compreensão destes assuntos é impressionante, Dr. Newell. Mas não é nada que não tivéssemos antecipado, mesmo antes da sua chegada.

 

- Antes da minha chegada? - admirou-se suzanne. - o que é que isso quer dizer?

 

- Nada - apressou-se Arak a acrescentar. - Talvez fosse boa ideia lembrarmos os seus companheiros de que foi a partir da separação da Pangeia que se formou a presente configuração continental.

 

- É verdade - concordou Suzanne, enquanto olhava de modo inquisidor para Arak. Tinha a desconfortável sensação de que ele lhe estava a esconder algo. Olhou para Donald e para Perry e tentou imaginar o que é que eles estavam a conseguir captar. o discurso de Arak estava claramente para além das capacidades de Richard e de Michael. Eles tinham o ar de miúdos de escola aborrecidos.

 

- Muito bem - disse Arak, manifestando algum entusiasmo, esfregando as mãos uma na outra. - Imagino o quanto todas estas informações os afectam. É uma experiência algo assustadora, a de ver as nossas noções preconcebidas e as nossas convicções postas em causa. É por isso que temos insistido para que a introdução ao nosso mundo se faça lentamente. Atrevo-me a pensar que já ouviram muita coisa por hoje, talvez demasiadas coisas. Penso que, por agora, o melhor seria mostrar-vos directamente algumas coisas acerca do nosso modo de vida.

 

- Quer dizer que vamos até à cidade? - perguntou Richard.

- Se todos estiverem nessa disposição. - disse Arak.

 

- Eu vou - disse Richard, cheio de entusiasmo.

- Eu também - afirmou Michael.

 

- E os restantes? - perguntou Arak.

- Eu quero ir - disse Suzanne.

 

- E eu também, claro - disse Perry quando Arak olhou para ele.

 

Chegada a vez de Donald, este acenou, simplesmente.

 

- óptimo - disse Arak, erguendo-se. - E agora, se nos derem licença, eu e a Sufa vamos tratar de tudo enquanto vocês ficam mais uns minutos nos vossos lugares. - Ele estendeu a mão a Sufa e ela levantou-se. Juntos, saíram da pequena sala de conferências. Perry abanou a cabeça.

 

- Sinto-me abalado. Isto está a tornar-se cada vez mais inacreditável.

 

- Eu não sei se acredito no que quer que seja - disse Donald.

- Ironicamente, a mim parece-me que é fantástico de mais para

 

não ser verdadeiro - disse Suzanne. - E tudo acaba por fazer um certo sentido, do ponto de vista científico. - Ela olhou para Ismael e Mary Black, que tinham estado pacientemente sentados. - Podem contar-nos a vossa história, por favor? É verdade que vêm do mundo da superfície?

 

É, sim - disse Ismael.

 

De onde vêm? - perguntou Perry

 

- De Gloucester, Massachusetts - disse Mary.

 

- A sério? - comentou Michael, pondo-se em pé. - Ei, eu também sou de Massachusetts: de Cheisea. Conhecem?

 

- Já ouvi falar - disse Ismael. - Mas nunca lá estive.

 

- Toda a gente de North Shore já esteve em Chelsea - disse Michael com um riso abafado. - Porque um dos lados da Ponte Tobin termina aí.

 

- Nunca ouvi falar da Ponte Tobín - disse Ismael. Os olhos de Michael manifestaram a sua incredulidade.

 

- Como é que vieram parar aqui à Interterra? - perguntou Richard.

 

- Tivemos muita sorte - disse Mary. - Muita sorte, mesmo. Tal como vocês.

 

- Estavam a mergulhar? - perguntou Perry.

 

- Não - disse Ismael. - Fomos apanhados no meio de uma terrível tempestade, quando viajávamos dos Açores para a América. Devíamos ter-nos afundado, tal como as outras pessoas do navio. Mas, tal como a Mary disse, tivemos sorte, e fomos salvos inadvertidamente por um veículo interplanetário da Interterra. Fomos literalmente engolidos pelo mesmo poço por onde vocês entraram e, em seguida, fomos reanimados pelos Interterrestres.

 

- Como se chamava o vosso navio? - perguntou Donald.

 

- Chamava-se Tempestade - disse Ismael - o que acabou por ser bastante apropriado, tendo em conta o seu destino. Era uma escuna de Gloucester.

 

- Uma escuna? - perguntou Donald, em tom de suspeita. Em que ano é que isso aconteceu?

 

- Deixe-me pensar - disse Mary. - Eu tinha dezasseis anos. Foi em mil oitocentos e um.

 

- Oh, por favor - murmurou Donald. Fechou os olhos e passou a mão pela cabeça calva. Tinha-a rapado essa manhã. - E vocês ainda se admiram do meu cepticismo?

 

- Mary, isso foi há duzentos anos - disse Suzanne.

 

- Eu sei - disse Mary. - É difícil de acreditar, mas não é maravilhoso? Já viu como parecemos tão jovens?

 

- Esperam que nós acreditemos que vocês têm mais de duzentos anos? - perguntou Perry.

 

- Vai levar algum tempo até que compreendam o mundo em que estão agora - disse Mary. - Tudo o que vos posso dizer é que tentem não formar opiniões antes de ver e ouvir mais coisas. Nós lembramo-nos daquilo que sentimos quando fomos sujeitos às mesmas informações. E não se esqueçam, para nós foi tudo muito mais surpreendente, uma vez que a vossa tecnologia evoluiu bastante nos últimos duzentos anos.

 

- Faço minhas as palavras de Mary - disse Ismael. - Tentem não esquecer o que Arak disse, logo no início da sessão. o tempo tem um significado diferente, aqui na Interterra. Na verdade, os Interterrestres não morrem da mesma maneira que as pessoas morrem na superficie.

 

- Não que não morrem - sussurrou Michael.

 

- Cala-te! - respondeu Richard, com os dentes cerrados.

 

Para Perry, e para os outros, o táxi aéreo parecia exactamente igual àquele em que tinham viajado no dia anterior, mas Arak disse-lhes que era um modelo mais moderno e bastante superior. De qualquer maneira, a nave transportou-os do mesmo modo fácil e silencioso, desde o palácio dos visitantes até à cidade movimentada.

 

- Os imigrantes costumam passar uma semana inteira na sala de conferências, antes de se aventurarem deste modo - disse Sufa.

- Pode ser complicado para o intelecto e também para as emoções. Esperamos não estar a exigir muito de vocês.

 

- Têm alguma coisa a dizer em relação a isto? - disse Arak. Estamos abertos a sugestões.

 

Os elementos do grupo entreolharam-se, cada um deles esperando que fosse outro a responder. Tal como Sufa dera a entender, tudo o que os rodeava era extraordinário, especialmente a nuvem de táxis aéreos que cruzavam o ar em todas as direcções possíveis. o facto de eles não colidirem uns com os outros era, só por si, algo que provocava perplexidade.

 

Ninguém quer dizer nada? - persistiu Arak.

 

É tudo tão esmagador - admitiu Perry. - É difícil ter alguma opinião. Mas, do meu ponto de vista, parece-me que quanto mais eu puder ver, melhor. o simples facto de tomar conhecimento com a vossa tecnologia, como por exemplo este táxi aéreo, torna tudo o que disse bastante mais credível.

 

- o que é que nos vão mostrar? - perguntou Suzanne.

 

- Essa foi uma decisão difícil - disse Arak. - Foi por isso que a Sufa e eu demorámos tanto a tratar das coisas. Foi difícil decidir por onde começar.

 

Antes de Arak poder terminar, a nave parou subitamente e, em seguida, começou a descer rapidamente. Um instante depois, a porta de saída apareceu no local onde anteriormente não estava nada, a não ser a parede lisa.

 

- Como é que a porta se abre assim? - perguntou Perry.

 

- É uma transformação molecular que se opera no material composto - disse Arak. Fez sinal a todos para que desembarcassem.

Enquanto se levantava, Perry inclinou-se para Suzanne,

- como se isso explicasse alguma coisa - queixou-se ele.

 

o táxi aéreo tinha-os deixado em frente a uma estrutura relativamente baixa, sem janelas, revestida com o mesmo basalto negro que se via nos outros edifícios. As suas paredes tinham trinta metros de comprimento e seis de altura, e estavam inclinadas para dentro, num ângulo de sessenta graus, formando uma pirâmide atarracada e truncada. Não se viam muitos pedestres por ali. Apesar disso, no momento em que os humanos de segunda-geração apareceram, começou ajuntar-se uma multidão.

 

- Espero que vocês não se incomodem com o facto de serem celebridades - disse Arak. - Como já se devem ter apercebido pelo que aconteceu ontem à noite, toda a cidade de Saranta está encantada com a vossa chegada.

 

A multidão que se formava era ruidosa mas educada. Os que estavam mais perto dos visitantes erguiam as palmas das suas mãos, com entusiasmo, tentando tocar as palmas das mãos dos elementos do grupo. Richard e Michael prontificaram-se de imediato, virando-se principalmente para as mulheres. Arak teve que actuar como um guarda-costas, para conseguir que o grupo chegasse à porta, especialmente os dois mergulhadores. A multidão manteve-se, respeitadoramente, do lado de fora.

 

- Cada vez gosto mais disto - disse Richard.

- Fico contente - disse Arak.

 

- São todos tão simpáticos - disse Suzanne.

 

- Claro - disse Sufa. - Está na nossa natureza. E para mais, vocês são tão extraordinariamente interessantes.

 

Suzanne olhou para Donald, para ver a reacção dele. Tudo o que ele fez foi acenar com a cabeça, quase imperceptivelmente, como se estivesse a dizer que as suas suspeitas se tinham confirmado.

 

Lá dentro, o grupo viu que se encontrava num enorme compartimento quadrado cujo interior era negro, em vez do branco habitual. Era um compartimento simples, não decorado, sem mobiliário e sem portas, exceptuando aquela por onde tinham entrado. Alguns Interterrestres estavam em pé, fitando as paredes vazias. Quando repararam em quem tinha entrado ficaram bastante animados.

 

Arak conduziu o grupo por entre as pessoas que lhes iam dando as boas-vindas, até a uma parte da parede que não tinha ninguem por perto, e murmurou algo para o seu comunicador de pulso. Para grande espanto do grupo, a parede à frente deles abriu-se do mesmo modo que os táxis aéreos. Arak guiou-os até um pequeno cubículo que estava por trás.

 

- Quando puder, há-de explicar-me como é que funciona este abrir e fechar - disse Perry a Arak. Perry tocou na parede, depois de ter entrado para o compartimento mais pequeno mas igualmente vazio. A textura do material e a condução de calor sugeriu-lhe algo semelhante a fibra de vidro.

 

- Certamente - disse Arak, mas desviou a atenção, falando pelo comunicador. Pouco depois, a parede fechou-se e o compartimento começou a afundar.

 

Cada um se agarrou instintivamente a quem estava mais perto, enquanto se sentiam a ficar praticamente sem peso.

 

- Meu Deus! - exclamou Michael. -Isto vai cair.

- É apenas um elevador - disse Arak.

 

Todos os humanos de segunda-geração se riram deles próprios.

- Ei, como é que eu podia adivinhar? - disse Michael, em tom queixoso. Ele pensou que se estavam a rir dele.

 

- Voltando a falar daquilo que vos queria mostrar em primeiro lugar - disse Arak -, eu e a Sufa decidimos fazer o contrário daquilo que fariam na superfície. Em vez de vos mostrarmos a vida desde o nascimento até à morte, vamos mostrar-vos a vida da morte até ao nascimento. - Arak riu-se da aparente inversão sem lógica, e Sufa imitou-o.

 

- Devemos estar a descer até grande profundidade - disse Suzanne. Estava demasiado preocupada com o que estava a acontecer para responder ao comentário de Arak. Apesar de não se ouvir nenhum ruído, nem se notar qualquer movimento, o facto de estarem a perder peso, dava-lhes uma indicação sobre a velocidade da descida.

 

- É verdade que estamos a descer bastante - disse Arak. Isto aqui dentro vai tornar-se um pouco mais quente, em consequência disso.

 

Por fim, a descida parou, e todos se abraçaram a si próprios, instintivamente. Perry voltou a tocar na parede e sentiu uma onda de calor antes de ela se abrir. Arak e Sufa foram os primeiros a sair.

 

À sua frente viam-se corredores bastante iluminados estendendo-se em três direcções: em frente e para cada um dos lados. Cada um deles proporcionava uma visão em perspectiva. Podiam distinguir-se vários outros corredores que formavam ângulos rectos com os primeiros.

 

Perto do elevador encontrava-se um pequeno veículo de caixa aberta. Parecia ostentar uma tecnologia semelhante à dos táxis aéreos, uma vez que estava suspenso a vários centímetros do chão. Arak fez-lhes sinal para que entrassem. Perry e Suzanne subiram para o veículo, seguidos de Sufa, mas Donald hesitou e acabou por impedir a passagem de Richard e de Michael. Ele observou os corredores, aparentemente infindáveis. Tal como Arak os tinha avisado, o ar era quente. o cimo da cabeça de Donald luzia de suor.

 

- Entre, por favor - disse Arak, apontando para um lugar do pequeno autocarro antigravidade

 

- Isto parece uma prisão - disse Donald, em tom de suspeita.

- Não é uma prisão - assegurou-lhe Arak. - Na Interterra não existem prisões.

 

Michael olhou para Richard e fez-lhe um sinal de okay, com o polegar para cima.

 

- Se não é uma prisão, o que é, então? - perguntou Donald.

- São catacumbas - disse Arak. - Não há razão para preocupações. o lugar é absolutamente seguro, e só nos demoraremos o tempo necessário para uma visita curta e elucidativa.

 

Relutantemente, Donald subiu para o autocarro. Era evidente que o entusiasmo que ele sentia por estar numa espécie de cemitério era idêntico ao que sentiria se estivesse numa prisão. Ríchard e Michael seguiram-no. Assim que se sentou, Arak falou através do microfone da consola. Alguns segundos depois, eles percorriam o corredor como se estivessem num combóio rápido, sendo o som do vento a única diferença.

 

A razão pela qual fora necessário um veículo tornou-se evidente depois de alguns minutos de caminho. Na grelha que era o enorme labirinto subterrâneo onde se encontravam, estavam a cobrir grandes distâncias a uma velocidade vertiginosa, que a proximidade com as paredes parecia fazer aumentar. Depois de um quarto de hora e de meia dúzia de estonteantes mudanças de direcção, o veículo começou a mover-se mais lentamente, acabando por parar.

 

Cada um dos corredores tinha inúmeros pequenos compartimentos, e foi para um deles que Arak dirigiu o grupo. Donald, deixando bem claro que não apreciava aquele isolamento, permaneceu à entrada.

 

As paredes do pequeno compartimento estavam cheias de nichos. Arak dirigiu-se para um deles em particular, que lhe ficava à altura do peito, e retirou uma caixa e um livro.

 

- Há já muito tempo que não vinha aqui - disse ele. Sacudiu o pó que cobria ambos os objectos. - Esta é a minha urna. - Ergueu a caixa, que era preta e tinha o tamanho aproximado de uma caixa de sapatos. - E este livro contém uma lista das datas de todas as minhas mortes anteriores.

 

- Realmente! - explodiu Richard. - Agora quer que nós acreditemos que ressuscitou dos mortos! E ainda por cima não foi apenas uma vez, mas uma série de vezes. Deixe-se disso, homem!

 

Suzanne deu por si a acenar com a cabeça, enquanto Richard punha em palavras a reacção que ela própria sentia. Logo agora que ela estava a começar a acreditar em tudo o que lhe tinham dito, Arak afirmava algo que desafiava totalmente a sua credulidade. Olhou para Perry, tentando perceber se ele estava a reagir da mesma forma. Mas Perry estava deslumbrado com o livro que Arak depositara nas suas mãos.

 

Arak tirou cuidadosamente a tampa da caixa, olhou para o seu interior e, em seguida, passou-a aos outros para que eles a examinassem. Suzanne olhou, relutantemente, sem saber o que devia esperar ver. E o que viu foi apenas uma madeixa de cabelo.

 

Arak e Sufa sorriram. Era como se eles se estivessem a divertir com a confusão sentida pelos visitantes.

 

- Deixem-me explicar - disse Arak. - Dentro da caixa está uma madeixa de cabelo de cada um dos meus corpos anteriores. Os corpos regressaram à astenosfera fundida, que não fica muito longe do sítio onde nos encontramos. Como devem calcular, na Interterra tudo é reciclado.

 

- Não compreendo este livro - disse Perry. Virou algumas páginas, olhando para as colunas de algarismos escritos à mão, parecendo-lhe que as datas não faziam sentido como datas dum calendário Gregoriano. Para complicar ainda mais as coisas, viam-se centenas delas.

 

- Não é suposto que compreenda - disse Arak com um sorriso divertido. - Pelo menos, por agora. Tem de esperar até nos dirigirmos para a galeria central. - Ele retirou o livro das mãos de Perry e voltou a colocá-lo no nicho, juntamente com a caixa.

 

Confundidos, os elementos do grupo seguiram Arak, saindo do pequeno compartimento e voltando a entrar no veículo antigravidade. A viagem de volta pareceu ser mais rápida do que a de ida, e em breve estavam novamente no elevador.

 

- Se era suposto que nós assimilássemos alguma coisa com esta pequena visita, não resultou - disse Suzanne enquanto entravam para o elevador.

 

- Mas vai resultar - assegurou-lhe Arak. - Tenha um pouco de paciência.

 

À saída do elevador, encontraram-se num piso bastante agitado, onde se viam vários humanos de primeira-geração e alguns clones-empregados. Estava tão cheio de gente que foi difícil para eles manterem-se todos juntos, especialmente quando alguns indivíduos os reconheceram, por terem estado na festa da noite anterior, e os cercaram, tentando tocar nas palmas das mãos dos humanos de segunda-geração. Richard e Michael eram os mais procurados.

 

Apesar do congestionamento, Arak e Sufa conseguiram, por fim, conduzir o grupo até um enorme ecrã. Aí viam-se centenas de nomes de indivíduos, seguidos de números e de datas. Arak examinou-os até encontrar um nome que lhe fosse familiar.

 

Ora vejam só - disse Arak para Sufa, apontando para um dos nomes. - o Reesta decidiu ir desta para melhor. Que conveniente. E reservou o quarto trinta e sete. Não podia ser melhor. É um dos quartos mais modernos, em que o aparelho fica a descoberto.

 

Já não era sem tempo - comentou Sufa. - Há anos que ele se queixava daquele corpo.

 

- É perfeito para os nossos planos - disse Arak.

 

- Uma vez que está decidido, talvez seja melhor eu ir até ao centro de desova - disse Sufa. - Assim posso preparar as coisas e avisaros clones de que o grupo em breve estará lá.

 

- É uma óptima ideia - disse Arak. - Dentro de uma hora, estaremos lá. Vê se consegues arranjar uma emergência mais ou menos para essa altura.

- Vou tentar - disse Sufa. - E a seguir?. Levamo-los para os nossos aposentos?

 

Era essa a minha ideia - disse Arak. - Espero ter tempo para isso tudo.

 

Então, até já - disse Sufa, enquanto tocava nas palmas das mãos de Arak, afastando-se em seguida.

 

Muito bem, amigos - disse Arak, dirigindo-se ao grupo. - Vamos tentar ficar todos juntos. Se alguém se perder, é só perguntar onde é o quarto trinta e sete. - Arak começou a andar, abrindo caminho por entre a multidão que consultava o ecrã.

 

Suzanne esforçou-se por ficar o mais perto possível de Arak. «Ir desta para melhor» tem o mesmo sentido eufemístico, que tem no nosso mundo? - perguntou Suzanne.

 

Eu diria que tem um sentido semelhante - disse Arak. Estava atento aos dois mergulhadores que estavam ocupados a tocar nas palmas de todas as mulheres que encontravam. - Richard e Michael

- chamou ele. - Por favor, não se deixem ficar para trás! Terão muito tempo para isso, esta noite. Ficarão por vossa conta.

 

Aquilo que vamos ver é uma espécie de eutanásia? - perguntou Suzanne, desconfiada.

 

Deus do céu, claro que não! - exclamou Arak.

 

- o Ismael e a Mary disseram que vocês não morrem do mesmo modo que nós - disse Suzanne.

 

Isso é verdade - disse Arak. Nessa altura, ele teve que parar e voltar para junto de Richard e de Michael, que estavam rodeados de mulheres. Enquanto ele libertava os mergulhadores, Suzanne inclinou-se para Perry.

 

- Não estou preparada para assistir a uma cena mórbida - disse ela.

 

- Nem eu - concordou Perry.

 

- Talvez tivesse sido melhor termos optado por mais tempo de seminário antes de fazermos estas visitas de campo - disse Suzanne, tentando aparentar algum bom humor.

 

Perry riu-se surdamente.

 

Arak conseguiu que Richard e Michael começassem a andar e deixou-se ficar ao lado deles para controlar as investidas dos fãs entusiasmados. Suzanne e Perry continuaram à frente, com Donald logo atrás. Dessa maneira, conseguiram chegar até à porta do quarto trinta e sete.

 

Perry observou os relevos da enorme porta de bronze. Reconheceu Cerberu, o cão com três cabeças, que era o guardião do mundo subterrâneo, na mitologia grega. Surpreendido, mencionou-o a Arak.

 

- Não o fomos buscar aos gregos - disse Arak, sorrindo. - Foi exactamente o oposto.

 

- Quer dizer que foram os gregos que os copiaram? - perguntou Perry.

 

- Exactamente - disse Arak.

 

- Como é que isso aconteceu? - perguntou Perry

 

- Foi uma experiência falhada - disse Arak. - Há milhares de anos atrás, um contingente de indivíduos liberais, provenientes da Atlântida, persistiram na adaptação da superfície com planos grandiosos para modificar o desenvolvimento sociológico da superfície da Terra. Infelizmente, tudo acabou por ser um fiasco. Depois de várias centenas de anos de uma persistência infrutífera, tornou-se dolorosamente evidente que não havia forma de alterar a tendência que os humanos de segunda-geração têm para a violência. Toda a experiência acabou por ser abandonada. Apesar disso, os Interterrestres deixaram algumas heranças, depois de terem afundado a ilha que tinham erigido. Por exemplo, as formas arquitecturais, o conceito de democracia e uma série de coisas relacionadas com a nossa mitologia primitiva, incluindo o Cerberu.

 

- Então existiu uma base factual para a lenda da Atlântida interrompeu Suzanne.

 

- Claro que sim - disse Arak. - A Atlântída elevou uma das suas montanhas submarinas usadas como saída, para formar uma ilha, mesmo junto à entrada para o mar Mediterrâneo.

 

- Ei, despachem-se! - resmungou Richard. - Parem lá de dar à língua! Ou entramos aqui, ou então o Mike e eu voltamos para a sala principal, que é bem animada.

 

- Está bem, desculpe - respondeu Arak, acrescentando em seguida para Suzanne - Poderemos voltar a falar sobre a experiência da Atlântida noutra altura, se assim o desejar.

 

- Gostaria muito - disse Suzanne. Depois, enquanto Arak abria a porta, ela inclinou-se para Perry. - Platão, nos seus diálogos, situou a Atlântida perto do Estreito de Gibraltar.

 

- A sério? - perguntou Perry. Mas desviou a sua atenção para o que conseguia ver e ouvir da cena para além da porta de bronze. Dificilmente se poderia considerar uma cena mórbida, tal como Suzanne temera. Em vez disso, era uma festa animada, semelhante àquela que tinham presenciado na noite anterior, apesar de a uma escala menor. o quarto tinha as dimensões de uma sala de estar grande. As cento e tal pessoas ali reunidas estavam vestidas com as habituais peças de roupa, à excepção de um indivíduo que se destacava dos restantes. Estava vestido de vermelho, e não de branco. Ao fundo do quarto, na parede oposta à da porta, via-se um aparelho em forma de donut, que lembrou a Perry uma máquina MRI. Ao lado, estava uma caixa e um livro semelhantes aos que Perry mostrara ao grupo nas catacumbas.

 

- Arak! - exclamou o homem vestido de vermelho quando reparou nos recém-chegados. - Que surpresa tão agradável! - Pediu licença às pessoas com quem estivera a conversar e dirigiu-se para a porta. - E trouxeste os teus protegidos. Sejam bem-vindos!

 

- Meu Deus - murmurou Suzanne para Perry, enquanto o homem de vermelho se aproximava. - Eu conheci-o ontem à noite.

- Suzanne lembrava-se claramente que ele fora um dos dois homens que se tinham juntado a ela e a Garona. - Não está nada mal, para alguém que está prestes a ir desta para melhor. - Aos olhos dela, ele era a saúde em pessoa e um arquétipo da beleza masculina, com o seu forte cabelo negro, pele perfeita e olhos brilhantes. Ela calculou que ele devia estar na casa dos trinta.

 

- Isto é tudo menos uma despedida dolorosa - comentou Perry.

- Obrigado, Reesta - disse Arak. - Pensei que não te importarias que os nossos visitantes viessem ver a tua festa. Chegaste a conhecê-los na festa de ontem à noite?

 

- Tive o prazer de conhecer a Dra. Newell - disse Reesta. Fez uma vénia a Suzanne e estendeu a palma da sua mão direita. Cuidadosamente, suzanne tocou com a sua mão na dele. Ele sorriu.

 

- Deixa-me apresentar-te a Perry, Donald, Richard e Michael

- disse Arak. Foi apontando para cada um dos homens, enquanto falava. Reesta inclinou-se para cada um deles. Richard e Michael não estavam a prestar muita atenção. Estavam mais interessados nas convidadas, muitas das quais eles tinham visto na noite anterior.

 

- Eu e a Sufa decidimos mostrar aos nossos visitantes alguns aspectos da nossa cultura - prosseguiu Arak. - Estamos a mostrar-lhes as coisas antes de darmos grandes explicações. Pensámos que isso poderia reduzir a incredulidade habitual.

 

- É uma boa ideia - comentou Reesta. - Entrem, por favor!

- Afastou-se da porta e fez-lhes gentilmente sinal para que entrassem.

- Então eles não sabem para que serve esta cerimónia? - perguntou Reesta, enquanto os humanos de segunda-geração entravam no quarto.

 

- Não - disse Arak.

 

- Ah, que inocência maravilhosa - comentou Reesta. - É tão refrescante.

 

- Acabámos de chegar de uma visita ao meu nicho - acrescentou Arak. - Mas, propositadamente, não lhes expliquei tudo.

- Foi um golpe de mestre - comentou Reesta, enquanto piscava o olho a Arak e lhe dava uma cotovelada. Em seguida, olhou para o grupo, antes de fixar o olhar em Suzanne. - Hoje é um dia importante para mim. Hoje, este meu corpo vai morrer.

 

Suzanne não conseguiu deixar de recuar ao ouvir isto. Não só porque o homem parecia perfeitamente saudável, mas também porque agia como tal. As palavras de Reesta também chamaram a atenção de Richard e de Michael.

 

- Ah, mas não vale a pena ficar assim - disse Reesta, sorrindo ao notar o pouco à vontade de Suzanne. - Aqui na Interterra é uma ocasião razoavelmente alegre, embora talvez um pouco aborrecida e enfadonha. E para mim, já não era sem tempo. Desde o princípio que nunca gostei muito deste corpo. Tive que substituir vários órgãos e os joelhos por duas vezes. A cada dia que passa surge uma nova complicação. Tem sido uma luta sem tréguas. E ouvi dizer que, agora, o tempo de espera é só de quatro anos, porque não tem havido muita procura. Parece que ultimamente ninguém quer morrer.

 

- Só quatro anos! - exclamou Arak. - Isso é magnífico! Andava a pensar o que é que te teria feito tomar a decisão tão repentinamente. Ainda a semana passada dizias que estavas a considerar a hipótese de fazer alguma coisa dentro de dois anos.

 

- É daquelas coisas que vamos sempre adiando - disse Reesta.

- Tenho estado a tentar evitá-lo, admito. Mas agora não posso deixar passar esta hipótese de um tempo de espera tão curto.

 

- Desculpe - disse Perry. - Mas estou um pouco confuso, quanto tempo é que vocês costumam viver, aqui na Interterra?

 

- Depende daquilo a que se está a referir - disse Reesta, piscando-lhe o olho. - Há uma grande diferença entre o corpo e a essência, em termos de duração da vida.

 

- Um corpo dura, habitualmente, duzentos ou trezentos anos

- disse Arak. - Mas existem excepções.

 

- E eu sou um exemplo disso - acrescentou Reesta. - Este só durou cento e oitenta. Foi o pior que eu já tive.

 

- Quer dizer que o dualismo corpo-alma é um facto, na Interterra? - disse Suzanne.

 

- É verdade - disse Arak, sorrindo como um pai orgulhoso. Em seguida, acrescentou para Reesta: - A Dra. Newell capta tudo muito rapidamente.

 

- Já percebi que sim - disse Reesta.

 

- o que é que vocês estão para aí a dizer? - perguntou Richard.

- Se em vez de estar a olhar não sei para onde, estivesse com atenção, talvez conseguisse perceber alguma coisa - disse Suzanne.

 

- Queira desculpar! - disse Richard, imitando um sotaque inglês.

 

- o que é que querem dizer com «essência»? - perguntou Perry

- Queremos dizer a alma, a personalidade, o conjunto da nossa parte espiritual e mental - disse Arak. - Aquilo que faz com que você seja você. E aqui, na Interterra, as essências são eternas. Permanecem intactas e são transferidas do corpo antigo para o novo.

 

Tanto Suzanne quanto Perry começaram a fazer uma série de questões, e Perry calou-se para que Suzanne pudesse continuar. Arak, contudo, fez-lhes sinal com as mãos para que se calassem.

 

- Lembrem-se que somos intrusos nesta festa - disse ele. Têm por certo muitas perguntas a fazer. E é esse o objectivo desta visita. Mas é indelicado interromper este momento tão íntimo; mais tarde eu explicarei tudo com todos os detalhes. - Em seguida, virou-se para Reesta. - Obrigado, meu amigo. Não vamos incomodar mais. Parabéns e espero que tenhas um bom descanso.

 

- Não é preciso agradecer - disse Reesta. - Foi uma honra para mim teres trazido estes convidados. A presença deles torna esta ocasião ainda mais especial.

 

- Mais tarde voltaremos a comunicar - disse Arak. - Quando é que vais morrer? - Ele começou a conduzir o grupo para a porta.

- Um pouco mais tarde - disse Reesta, despreocupadamente.

 

- Ainda temos o quarto por mais algumas horas. Mas espera! Arak deteve-se e virou-se para o amigo.

 

- Acabei de ter uma ideia - disse Reesta, bastante excitado. Talvez os nossos convidados de segunda-geração gostassem de me ver morrer.

 

- É uma proposta muito generosa - disse Arak. - Não queremos incomodar, mas seria bastante didáctico.

 

- Não incomodam nada - disse Reesta, entusiasmado com a ideia. - Já estou farto da festa, e eles podem continuar mesmo sem a minha presença física.

 

- Então aceitamos a proposta - disse Arak. Fez sinal a Richard e a Michael para que voltassem, uma vez que os mergulhadores, aborrecidos, já estavam lá fora.

 

- Espero que isto não seja mórbido - murmurou Suzanne para Arak.

 

- Claro que não, sobretudo se o compararmos com o que vocês costumam ver como distracção, lá no vosso mundo da superfície disse Arak.

 

Reesta utilizou o seu comunicador de pulso antes de dar uma volta pelo quarto e tocar as palmas das mãos de todos os presentes. Isto provocou um crescente sentimento de excitação. Em seguida, aproximou-se da mesa onde se encontravam a caixa e o livro. Enquanto o fazia, as pessoas começaram a aplaudir. Primeiro, cortou uma madeixa de cabelo e colocou-a dentro da caixa. Depois, assinalou uma data no livro e os aplausos aumentaram.

 

Apareceu uma porta ao pé do aparelho parecido com a maquina MRI e dois clones-empregados entraram no quarto. Traziam ambos copos dourados, que entregaram a Reesta. Este ergueu os copos e todos ficaram em silêncio. Em seguida, Reesta esvaziou-os, um a seguir ao outro.

 

Quando ele terminou, as pessoas aplaudiram. Reesta fez uma vénia para os seus convidados e também para os humanos de segunda-geração. Depois, com a ajuda dos dois clones, passou através da abertura, de noventa centímetros de largura, do aparelho. Enfiou primeiro os pés e depois deslizou até a sua cabeça ficar totalmente dentro da estrutura. Nessa altura, apareceu um espelho que permitia a Reesta olhar para os seus convidados e, a estes, observarem o seu rosto. Depois de ter acenado uma última vez, Reesta fechou os olhos e pareceu adormecer.

 

Um dos clones-empregados dirigiu-se para um dos lados dos aparelhos e pôs a palma da sua mão num quadrado branco. Logo a seguir, ouviu-se um zumbido e uma luz avermelhada espalhou-se pela abertura do aparelho. Uns momentos depois, o corpo de Reesta tornou-se rígido e os seus olhos abriram-se. Este estado tetânico manteve-se durante vários minutos, após os quais o corpo de Reesta se tornou flácido, os seus olhos afundaram-se nas órbitas, e a sua boca descaiu. Estava morto.

 

Todos os murmúrios cessaram. o brilho vermelho que iluminava a abertura da máquina foi diminuindo, e o zumbido dissipou-se. Em seguida, ouviu-se o som de algo a ser sugado, depois o ruído de uma enorme válvula a fechar-se, e o corpo de Reesta desapareceu. Num minuto estava perfeitamente visível, e no minuto seguinte tinha desaparecido.

 

Todos se mantiveram em silêncio, e ninguém se mexeu. Os segundos foram passando. Suzanne sentia-se emocional e intelectualmente confusa. Fosse em que forma fosse, a morte era algo que a perturbava. Olhou para Perry. Este encolheu os ombros, sentindo-se também ele bastante perturbado.

 

- Então, já acabou? - perguntou Richard.

 

Arak fez-lhe sinal para que se calasse e esperasse. Michael mexeu-se um pouco e bocejou.

 

Logo a seguir, todos os comunicadores de pulso se activaram em simultâneo, incluindo os dos humanos de segunda-geração. Apesar do Ismael e da Mary Black lhes terem dado algumas instruções básicas sobre o funcionamento dos dispositivos - que, no fundo, se resumiam ao facto de as ordens terem de ser dadas em tom de exclamação - nenhum dos elementos do grupo os tinha ainda experimentado. Quando ouviram a voz de Reesta através do comunicador, todos ficaram perplexos.

 

- Olá, amigos - disse a voz de Reesta. - Está tudo bem. A morte correu bem, não houve qualquer complicação. Vejo-os a todos daqui a quatro anos, mas não se esqueçam de comunicar.

 

Todos os humanos da primeira-geração manifestaram a sua alegria, e tocaram as palmas das mãos uns dos outros numa celebração bastante entusiasmada.

 

- Parece que por aqui a morte não é um grande problema disse Michael, em voz baixa, para Richard.

 

- Pois, mas acho que tem de ser feita desta forma especial respondeu Richard, falando também em voz baixa.

 

- É uma boa altura para nos retirarmos - disse Arak. Tentando ser o mais discreto possível, ele conduziu os humanos de segunda-geração até ao corredor e guiou-os novamente até aos elevadores. Suzanne e Perry tinham muitas perguntas, mas Arak pediu-lhes silêncio. Estava demasiado ocupado tentando fazer com que Richard e Michael não parassem de andar. Donald, como habitualmente, estava sério e silencioso.

 

Só quando se encontravam de novo no táxi aéreo é que foi possível conversar. Ainda antes de a entrada na nave se ter fechado, Perry disse:

 

- Receio que esta visita tenha proporcionado mais perguntas do que respostas.

 

Arak acenou com a cabeça.

 

- Então foi bem sucedido - disse ele. Colocou a palma da mão na mesa circular preta, no centro da nave, e disse - Para o Centro de Desova, por favor! - Quase imediatamente, a nave fechou-se, levantou e começou a movimentar-se na horizontal.

 

- o que é que nós presenciámos, realmente? - perguntou Suzanne.

- Assistiram à morte do mais recente corpo de Reesta - disse Arak, sentando-se e começando a relaxar. Não estava acostumado à pressão resultante do facto de andar em público com um grupo tão numeroso e inexperiente de humanos de segunda-geração.

 

- Para onde é que foi o corpo? - perguntou Richard.

- Voltou para a astenosfera fundida - disse Arak.

- E a essência? - perguntou Perry.

 

Arak não respondeu logo, parecendo estar à procura das palavras certas.

 

- Não é fácil explicar estas coisas, mas poderão ficar com uma ideia se vos disser que as suas memórias e personalidade foram transferidas para o nosso centro informático integrado.

 

- Vejam - exclamou Michael. - Olhem para ali, à frente daquele edifício! É um Vette!

 

Apesar de todos estarem bastante interessados nas explicações de Arak, não puderam evitar reagir às exclamações do Michael, e seguiram com o olhar a direcção apontada pelo seu dedo. Viram um Chevrolet Corvette dos anos vinte, decorado com incrustações, que estava numa plataforma de basalto, em frente a um edifício que parecia uma construção infantil feita de legos.

 

- o que é que está aqui a fazer um Vette? - perguntou Michael, enquanto se afastavam. - É um sessenta e dois - acrescentou. Já tive um assim, mas era verde.

 

- Aquele edifício é o Museu da Superficie da Terra - explicou Arak. - o automóvel é o objecto que melhor representa a vossa cultura.

 

- Não está em muito bom estado - disse Michael, voltando a sentar-se.

 

- Claro - disse Arak. - Passou muito tempo debaixo de água, antes de ter sido resgatado. Mas voltando à pergunta de Perry: quando o clone-empregado iniciou a sequência da morte, a totalidade da mente de Reesta, ou seja, a sua memória, personalidade, emoções, consciência e até o seu modo de pensar único, foram extraídos e guardados, permanecendo disponíveis e contactáveis.

 

Os humanos de segunda-geração fitaram Arak, sem proferir qualquer palavra.

 

- A essência de Reesta não está apenas guardada - continuou Arak. - Ele pode ser contactado e podemos conversar com ele através do comunicador de pulso, antes de ele voltar a ter um corpo. E mais, para além de estar comunicável, ele também pode ser visto, com a configuração do seu último corpo, através da consola de comunicação em cada um dos vossos aposentos. A Central de Informação cria uma imagem virtual que combina com a conversa que se esteja a ter.

 

- E se alguém morrer antes de chegar àquela máquina? perguntou Richard.

 

- Isso nunca acontece - disse Arak. - A morte é um exercício planeado, aqui na Interterra.

 

- Isto é demasiado - disse Perry. - o que nos está a dizer é tão pouco plausível que nem sei o que hei-de perguntar.

 

- Isso não me surpreende - disse Arak. -Foi exactamente por essa razão que eu e a Sufa decidimos que vos mostraríamos tudo isto, em vez de simplesmente vos falarmos no assunto.

 

- Não sei se consigo acreditar que a mente pode ser transferida

- disse Suzanne. - A inteligência, a memória e a personalidade estão associadas às conexões dendríticas do cérebro humano. o seu número é quase infinito. Estamos a falar de biliões de neurónios com cerca de mil conexões em cada um deles.

 

- É, de facto, muita informação - concordou Arak. - Mas não é assim tanta, do ponto de vista cósmico. E tem razão quando afirma que as conexões dendríticas são importantes. o que o nosso centro de informação faz é reproduzir essas conexões a nível molecular, usando átomos de carbono. Funciona como uma impressão digital; chamamos-lhe impressão mental.

 

- Estou cada vez mais confuso - disse Perry.

 

- Não desespere - encorajou-oArak. - Lembre-se de que ainda só estamos no princípio. Haverá tempo suficiente para conseguir assimilar tudo isto. Para além disso, a nossa próxima visita ao centro de desova vai mostrar-lhe tudo o que fazemos com as impressões mentais.

 

- Que tipo de coisas é que estão no tal Museu da Superfície da Terra? - perguntou Donald.

 

Arak hesitou. A questão de Donald tinha interrompido o fio do seu pensamento.

 

- o que é que está lá exposto? - insistiu Donald. - Sem ser o Corvette danificado pela água.

 

- Uma série de objectos variados - disse Arak vagamente. Uma variedade de coisas que são representativas da história e da cultura da segunda geração de humanos.

 

- De onde vieram essas coisas? - perguntou Donald.

 

- A maior parte delas, do fundo do oceano - disse Arak. Para além das tragédias marítimas e das guerras, vocês começaram, progressiva e inconscientemente, a usar o oceano como se fosse um caixote do lixo. Ficariam surpreendidos se soubessem a quantidade de informação que se pode obter acerca de uma cultura através do lixo.

 

- Gostaria de ir até ao museu - disse Donald. Arak encolheu os ombros.

 

- Como quiser - disse ele. - É o primeiro visitante a manifestar esse desejo. Tendo em conta as maravilhas disponíveis na Interterra, surpreendo-me com o seu interesse. Não há, certamente, nada no museu com o qual você não esteja familiarizado.

 

- As pessoas são diferentes - disse Donald, laconicamente. Alguns minutos mais tarde, o táxi aéreo deixou-os nos degraus que conduziam ao centro de desova. o edifício assemelhava-se ao Pártenon, mas era preto. Quando Perry se referiu à semelhança, Arak disse-lhe novamente que o processo de imitação tinha sido exactamente o oposto, tal como no caso da adaptação do Cerberu feita pelos Gregos, uma vez que o centro de desova tinha muitos milhões de anos.

 

Tal como o Centro de Morte, a estrutura estava situada numa zona menos movimentada da cidade. Apesar disso, assim que os humanos da segunda-geração apareceram, atraíram novamente uma pequena multidão, forçando Arak a ocupar-se mais uma vez de Richard e Michael e a guiá-los através da porta, evitando assim a pressão feita pelos humanos da primeira-geração, que os rodearam com as palmas das mãos erguidas.

 

o interior do edifício era a antítese do interior do centro da morte. Era bem iluminado e branco, à semelhança dos edifícios que compunham o palácio dos visitantes. Outro aspecto diferente era o facto de existirem vários clones-empregados, atarefando-se de um lado para o outro.

 

Arak conduziu o grupo até um compartimento lateral, onde se viam inúmeros pequenos tanques de aço inoxidável que lembravam a Suzanne bioreactores em miniatura. Estavam ligados uns aos Outros por uma complicada rede de tubos, formando o que parecia ser uma linha de montagem de alta tecnologia. A atmosfera era quente e húmida. Alguns clones-empregados controlavam vários indicadores e botões.

 

- Esta não é a parte mais interessante - disse Arak. - Mas, já que aqui estamos, podemos começar pelo princípio. Dentro destes tanques estão culturas de tecido dos ovários e dos testículos. Os óvulos e os espermatozóides são seleccionados ao acaso, os seus cromossomas são analisados para verificar se existe alguma imperfeição molecular e, em seguida, são misturados. As células embrionárias assim formadas são verificadas antes do processo de fertilização. Se alguém quiser espreitar, há uma pequena janela de observação.

- Arak apontou para uma estrutura binocular, em vidro.

 

Suzanne foi a única a aceitar a sugestão. Inclinou-se e espreitou através dos vidros. Dentro de um minúsculo compartimento, situado abaixo da objectiva do microscópio, ela viu um ovócito a ser penetrado por um espermatozóide activo. o processo deu-se muito rapidamente. Uns segundos depois, o zigoto tinha desaparecido e dois novos gâmetas foram injectados para o compartimento.

 

- Mais alguém quer ver? - inquiriu Arak, depois de Suzanne se ter endireitado.

 

Ninguém se mexeu.

 

- OK - disse Arak. - Vamos até à sala de gestação, que é uma fase mais interessante. - Ele conduziu-os através da sala de gâmetas, até uma sala do tamanho de vários campos de futebol ligados uns aos outros. Dentro da sala viam-se inúmeras filas de prateleiras que serviam de suporte a uma infinidade de esferas transparentes. Centenas de clones-empregados circulavam por entre as filas, verificando cada uma das esferas.

 

- Meu Deus! - murmurou Suzanne ao aperceber-se do que estava a ver.

 

- Os zigotos replicativos que vêm do processo de fertilização são novamente analisados para prevenir qualquer anormalidade molecular a nível dos cromossomas - explicou Arak. - Uma vez que se tenha a certeza de que estão livres de qualquer tipo de imperfeição, e de que atingiram o número desejado de células, são implantados nas esferas para que se desenvolvam.

 

- Podemos passar por entre as esferas? - perguntou Suzanne.

- Claro - disse Arak. - É para isso que estamos aqui, para que possam ver com os vossos próprios olhos.

 

o grupo caminhou lentamente ao longo de uma fila com várias centenas de metros de comprimento, e com prateleiras de esferas de ambos os lados. Suzanne sentia-se, ao mesmo tempo, fascinada e espantada. Cada esfera continha um embrião flutuante, e viam-se vários embriões de vários tamanhos e idades. Acoplada à base de cada esfera estava uma placenta amorfa, de um tom púrpura escuro.

- Isto é tão artificial - disse Suzanne.

 

- De facto, é - disse Arak.

 

- Na Interterra, a reprodução é sempre feita por meio de ectogénese? - perguntou suzanne.

 

- Sempre - afirmou Arak. - Uma coisa assim tão importante não deve ser deixada ao acaso.

 

Suzanne parou e olhou para um embrião que não tinha mais do que quinze centímetros de comprimento. Ela abanou a cabeça. Os minúsculos braços e pernas do embrião estavam a mover-se, como se ele estivesse a nadar.

 

- Este processo incomoda-a? - perguntou Arak. Suzanne acenou afirmativamente com a cabeça.

 

- Estão a mecanizar um processo que faz parte da natureza.

- A natureza nem sempre é cuidadosa - disse Arak. - Podemos fazer o mesmo que ela, mas com mais cuidado.

 

Suzanne encolheu os ombros. Não lhe apetecia discutir. Continuou a caminhar.

 

- Estas esferas são como aquelas em que vocês estiveram disse Perry a Richard e Michael.

 

- Estivemos nesta porcaria?! - disse Richard.

 

- Por favor! - disse Suzanne, irritada, dirigindo-se a Richard.

- Estou a ficar farta da vossa linguagem.

 

- Desculpe tê-la ofendido, sua majestade - respondeu Richard.

- As esferas são de facto idênticas, mas não são as mesmas disse Arak rapidamente. A última coisa que ele queria era que começassem a discutir em pleno centro de desova.

 

Suzanne parou abruptamente e espreitou para o interior de uma das esferas. Ficou perplexa com o que viu. Lá dentro estava uma criança que parecia ter, pelo menos, dois anos de idade.

 

- Por que é que esta criança ainda está dentro da esfera? perguntou ela.

 

É perfeitamente normal - assegurou-lhe Arak.

 

Normal? - admirou-se Suzanne. - A que idade é que eles são... - Ela hesitou, tentando encontrar o termo certo. - decantados?

 

- Nós dizemos nascer - disse Arak. - Ou, se quiser o termo técnico, dizemos emergir.

 

- Seja o que for - disse Suzanne. o facto de ver a criança dentro da esfera cheia de líquido fê-la estremecer de náusea. Parecia tudo tão frio, calculado e cruel. - Com que idade é que as crianças são libertadas?

 

- De preferência, não antes dos quatro anos - disse Arak. Esperamos até que o cérebro esteja suficientemente amadurecido para receber a impressão mental. Também não queremos que o cérebro fique desorganizadamente cheio de informações naturais que não sejam estritamente necessárias.

 

Suzanne e Perry trocaram olhares.

 

- Venham! - chamou Sufa, fazendo-lhes sinal para que se aproximassem. - Vai haver agora uma emersão. Tentei atrasá-la ao máximo; têm de vir depressa. - Sufa voltou-se e dirigiu-se apressadamente para o sítio de onde tinha vindo.

 

Arak disse-lhes que seguissem Sufa, passando por uma sala a que ele chamou a sala das impressões, que levava até à sala de emersão. Mas Suzanne ficou para trás, parada à entrada da sala de impressões, sentindo-se perplexa com o espectáculo que tinha perante si.

 

A sala tinha um quarto do tamanho da sala de gestação. Em vez das esferas de embriões, o que enchia aquele espaço eram tanques transparentes que continham crianças com um ar angélico e aparentando quatro anos de idade. Cada criança estava suspensa no líquido, mas mantendo uma posição fixa. Ainda se viam os cordões umbilicais e as placentas, apesar das idades relativamente avançadas das crianças.

 

- Eu não sei se quero ver isto - disse Suzanne, enquanto era gentilmente conduzida por Arak.

 

o resto do grupo já estava reunido à volta do primeiro tanque, com as bocas abertas de espanto. A cabeça da criança estava imobilizada como se estivesse preparada para uma cirurgia cerebral. Os olhos do rapazinho mantinham-se abertos pela acção de retractores de pálpebras, e os próprios olhos estavam fixos por suturas. De um aparelho semelhante a uma pistola, saíam raios de luz que atravessavam o tanque transparente e se dirigiam para cada uma das pupilas da criança. Os raios oscilavam com uma frequência rápida e alternada.

 

- Que está a acontecer? - perguntou Perry. Parecia uma espécie de tortura.

 

- É um procedimento perfeitamente seguro e indolor - disse Arak, juntando-se ao grupo e fazendo sinal a Suzanne para o imitar.

- Parece que estão a atingir o miúdo com uma pistola - disse Michael.

 

- Tendo em conta a violência da vossa cultura, percebo a comparação - disse Arak. - Mas não é nada disso. Voltando àquilo de que vos falei no Centro de Morte, esta criança está simplesmente a receber a transferência da impressão mental de um indivíduo cuja essência foi guardada na Central de Informação. o que está a ver aqui é esse processo de transferência.

 

Suzanne aproximou-se lentamente com uma mão à frente da boca. Sentia-se como uma criança perante um filme de terror: com medo de olhar, mas não conseguindo desviar os olhos do ecrã. Olhou para o rapazinho imobilizado e estremeceu. Para ela, a imagem era a encarnação dos avanços cegos da biotecnologia.

 

- Tal como viram no centro da morte - continuou Arak - a extracção da impressão mental só demora alguns segundos. Mas a sua implantação já é diferente. Temos que utilizar a técnica primitiva do laser, uma vez que ainda não foi descoberto outro acesso para além da retina. Claro que o acesso retinal faz todo o sentido, uma vez que a retina está embrionicamente ligada ao cérebro. o processo resulta, mas não é muito rápido. Chega a demorar trinta dias.

 

- Bolas! - comentou Richard. - o pobre do miúdo tem que ficar assim durante um mês?

 

- Mas podem acreditar, não causa qualquer tipo de sofrimento

- disse Arak.

 

- E o que é que acontece à essência da própria criança? perguntou Suzanne.

 

- Estamos a dar-lhe a sua essência neste preciso momento disse Arak - para além de uma quantidade extraordinária de conhecimento e experiência. - Arak sorriu orgulhosamente.

 

Suzanne acenou com a cabeça, mas não concordou com Arak. Para ela, o processo era pura exploração. Transferir uma alma velha para uma criança acabada de nascer, parecia-lhe uma espécie de parasitismo. A impressão mental apoderava-se do corpo da criança duma maneira que não lhe parecia correcta.

 

- Arak! Depressa! - chamou Sufa insistentemente, falando da outra ponta da sala, perto de uma porta. - Estão a perder a melhor parte!

 

- Venham! - disse Arak para o grupo. - É importante que vejam isto. É o produto final.

 

Suzanne sentiu-se aliviada por se poder afastar da inquietante imagem da criança imóvel. Seguiu rapidamente atrás de Arak, tendo o cuidado de não olhar para qualquer um dos outros tanques. Donald, Richard e Michael não se mexeram, impressionados com o que viam. Michael levantou um dedo e esticou-o com a intenção de interromper o raio laser. Donald afastou-o com uma pancada.

 

- Pare com isso, marinheiro! - disse Donald.

 

- Pois é - disse Richard - o miúdo pode perder as lições de piano. - Riu-se das suas próprias palavras.

 

- Isto é muito esquisito - disse Michael. Começou a andar à volta do tanque, tentando ver melhor o cano da pistola de laser.

- Tem algumas vantagens - disse Richard. - É mais fácil do que ir à escola. Se, como o Arak diz, não dói absolutamente nada, eu sou a favor. Odiei a escola.

 

Donald olhou para Richard com um olhar escarninho.

- Ninguém diria.

 

- Venham! - disse Arak para os três homens, da outra ponta da sala. - Têm de ver isto.

 

Os três homens atravessaram rapidamente a sala. No compartimento contíguo viram Arak, Sufa, Suzanne e Perry, parados à volta de uma área forrada a cetim, que ficava na base de um escorrega em aço inoxidável. o escorrega saía da parede; a sua parte superior estava fechada com portas duplas. Sentada, no meio da depressão almofadada, estava uma adorável rapariguinha de quatro anos, completamente vestida à maneira típica dos Interterrestres. Era evidente que ela tinha acabado de chegar pelo escorrega. Vários clones-empregados aguardavam que lhes fosse dirigida qualquer ordem.

 

- Bem-vindos, cavalheiros - disse Arak a Donald e aos mergulhadores. Apontando para a rapariguinha, disse: - Esta é a Barlot.

- Olá, docinho - disse Richard com uma voz aguda, imitando a voz dos bébés. Inclinou-se para lhe fazer uma festinha na bochecha.

- Por favor - disse Barlot, baixando-se para se desviar da mão de Richard. - Durante os próximos quinze ou vinte minutos é melhor ninguém me tocar, porque acabei de sair do secador. Os nervos do meu revestimento precisam de tempo para fazer a adaptação ao ambiente gasoso.

 

Richard encolheu-se e recuou.

 

- Estes três senhores são visitantes acabados de chegar da superfície da Terra - disse Arak, apontando para Donald, Richard e Michael.

 

- A sério? - disse Barlot. - Que maravilha! Cinco visitantes da superficie, e todos ao mesmo tempo. Fico feliz por ter esta honra no dia da minha emersão.

 

- Viemos dar as boas-vindas a Barlot, que acaba de regressar ao mundo físico - explicou Arak.

 

Barlot acenou.

 

- É óptimo estar de volta. - Ela examinou as suas pequenas mãos, virando-as de um lado para o outro e esfregando-as. Depois, olhou para as pernas e para os pés. Mexeu os dedos dos pés e disse:

 

- Parece um bom corpo.- Deu uma risadinha e acrescentou:

- Pelo menos por enquanto.

 

- Parece-me um corpo magnífico - disse Sufa. - E com uns olhos azuis tão bonitos. o corpo anterior também tinha olhos azuis?

 

- Não, mas a anterior a esse tinha - disse Barlot. - Gosto de variar. Às vezes, permito que a cor dos olhos seja seleccionada ao acaso.

 

- Como é que se sente? - perguntou Suzanne. Sabia que era uma pergunta parva, mas naquele momento não conseguiu pensar em mais nada para perguntar. Estava impressionada com o nítido contraste entre a voz infantil e a construção de frases tão adulta.

 

- Estou cheia de fome - disse Barlot. - E um pouco impaciente. Estou ansiosa por chegar a casa.

 

- Quanto tempo é que esteve armazenada? - perguntou Perry.

- Não sei se é esse o termo indicado...

 

- Nós dizemos estar em memória - disse Barlot. - Penso que foram mais ou menos seis anos. Era esse o tempo de espera anunciado, quando eu fui extraída. Mas a mim, parece-me que foi de um dia para o outro. Quando estamos em memória, as nossas essências não estão programadas para medir o tempo.

 

- Não lhe doem os olhos? - perguntou suzanne.

 

- Nem um bocadinho - disse Barlot. - Suponho que se está a referir às hemorragias e às inflamações escleróticas.

 

- Sim - admitiu Suzanne. o branco de ambos os olhos de Barlot estava injectado de vermelho.

 

- Elas devem-se às suturas de fixação - disse Barlot. - Devem ter sido removidas há pouco tempo.

 

- Lembra-se de ter estado no aquário? - perguntou Michael. Barlot riu-se.

 

- Nunca ouvi ninguém referir-se ao tanque de implante como aquário. Mas a resposta à sua pergunta é não! A minha primeira memória consciente neste corpo, e em todos os corpos se passou o mesmo, foi acordar dentro do secador presa ao cinto transmissor.

 

- A experiência de extracção, memorização e transferência é muito difícil? - perguntou Suzanne.

 

Barlot pensou um pouco antes de responder.

 

- Não - disse ela por fim. - A única parte difícil é que agora tenho que esperar até à puberdade para começar a divertir-me. Ela riu-se, e Arak, Richard e Michael imitaram-na.

 

- Esta é a nossa casa - disse Sufa, ainda dentro de um táxi aéreo, quando a porta de saída se materializou. Ela apontou para uma estrutura semelhante às casas do palácio dos visitantes, apesar de não existirem grandes relvados. Era uma das centenas de casas gerninadas, todas exactamente iguais, que se viam na zona. - Arak pensou que seria instrutivo se vissem como e que nos vivemos, e talvez pudéssemos também comer alguma coisa. Estão demasiado cansados ou gostariam de entrar para uma pequena visita?

 

- Não me importava de comer - disse Richard, com entusiasmo,

- Adoraria ver a vossa casa - disse Suzanne. - É muito simpático da vossa parte.

 

- Teria muito prazer - disse Perry. Donald limitou-se a acenar com a cabeça.

- Eu estou cheio de fome - disse Michael.

 

- Então está decidido - disse Sufa. Ela e Arak desceram da nave e fizeram sinal aos outros para que os seguissem.

 

o interior da casa, tal como o interior dos alojamentos de visitantes, era uniformemente branco - mármore branco, tecido branco e vários espelhos. A sala principal também tinha uma abertura para o ar livre, e uma piscina estendia-se do interior para o exterior. A casa estava discretamente mobilada. A única decoração consistia de vários hologramas idênticos aos que o grupo tinha observado nas instalações de descontaminação.

 

- Entrem, por favor - disse Sufa.

 

o grupo entrou, observando tudo o que os rodeava.

 

- Parece o meu apartamento em Ocean Beach - disse Michael.

- Pois sim! - escarneceu Richard, enquanto Michael lhe dava uma palmada no cimo da cabeça.

 

- Todas as casas da Interterra abrem para o exterior? - perguntou Perry

 

- Sim - disse Arak. - Por muito irónico que pareça, nós, que vivemos dentro da terra, preferimos o exterior.

 

- Assim é difícil fechar a casa - disse Richard.

- Não fechamos nada, por aqui - disse Sufa.

 

- E nunca são roubados? - perguntou Michael. Arak e Sufa riram-se. Em seguida, pediram desculpa.

 

- Não nos queríamos rir - disse Arak. - Mas vocês são tão divertidos. Nunca conseguimos prever o que vão dizer a seguir. É muito engraçado.

 

- Suponho que seja devido ao nosso encantador primitivismo

- disse Donald.

 

- Exactamente - concordou Arak.

 

- Aqui não existem furtos - disse Sufa. - Não são necessários porque as coisas chegam para toda a gente. Para além disso, as coisas não pertencem a ninguém. o conceito de propriedade privada desapareceu bem cedo, na nossa história. Só usamos o que precisamos.

 

o grupo sentou-se. Sufa chamou os clones-empregados e estes apareceram imediatamente. Juntamente com eles, apareceu um dos animais de estimação que os humanos de segunda-geração tinham visto dos táxis aéreos. Visto assim de perto, o animal parecia ainda mais bizarro, com a sua curiosa mistura de cão, gato e macaco. o animal atravessou o quarto e dirigiu-se em linha recta, para os visitantes.

 

- Sark! - ordenou Arak. - Porta-te bem!

 

o animal parou obedientemente e, com os seus olhos de gato, olhou para os humanos secundários com enorme curiosidade. Quando ele se apoiou nas patas traseiras, que eram idênticas às dos macacos, com cinco dedos de cada lado, verificaram que tinha perto de noventa centímetros de altura. o animal franziu o seu nariz de cão, enquanto explorava os cheiros à sua volta.

 

É um animal muito estranho - disse Richard.

 

É um homid - disse Sufa. - Um belo exemplar. Não é adorável?

 

- Vem cá, Sark! - chamou Arak. - Não quero que incomodes os convidados.

 

Sark pôs-se imediatamente atrás de Arak e, apoiando-se nas patas traseiras, passou as patas pela cabeça de Arak.

 

- Lindo menino - disse Arak com uma voz suave.

 

- Comida para os convidados - ordenou Sufa aos clones-empregados, que desapareceram rapidamente.

 

- o Sark parece ser uma mistura de vários animais - disse Michael.

 

- É mais ou menos isso - disse Arak. - o Sark é um produto quimérico desenvolvido há eras atrás e clonado a partir daí. É um excelente animal de estimação. Querem ver algumas das suas melhores habilidades?

 

- Claro - disse Richard. o animal parecia-lhe uma experiência biológica que tinha corrido mal.

 

- Eu também quero ver - disse Michael.

 

Arak levantou-se e fez um gesto, indicando ao animal a saída da sala. Enquanto seguia o animal, pediu a Richard e a Michael que se juntassem a ele lá fora. Os mergulhadores levantaram-se obedientemente e foram para o jardim, onde encontraram Arak ocupado a procurar algo perto da cerca.

 

- Okay, aqui está - disse Arak. Endireitou-se, trazendo na não um pequeno bastão de borracha. Dirigiu-se para a relva. Vocês não vão acreditar nisto. É muito engraçado.

 

- Mostre lá! - disse Richard, em tom de dúvida.

 

Arak inclinou-se e estendeu o bastão na direcção de Sark. Sark agarrou no bastão, com grande excitação, chiando como um macaco.

Em seguida, depois de um movimento circular, lançou o bastão para a ponta mais afastada do terreno.

 

Arak não desviou o olhar do pau até ele parar. Depois, virou-se para os mergulhadores.

- Um belo lance, não acham?

 

- Não foi mau - concordou Michael. - Pelo menos para um homid.

 

Os cantos da boca de Richard curvaram-se, num sorriso trocista. Esperem só até ver o resto - disse Arak. - É só um segundo. Arak correu até onde o bastão tinha caído, apanhou-o, e trouxe-o

 

de volta. Em seguida devolveu-o a Sark. o animal rodou sobre si próprio e atirou o bastão, que foi cair mais ou menos no mesmo local. Arak foi buscá-lo e apanhou-o pela segunda vez. Quando regressou estava ligeiramente ofegante.

 

Já viram isto? - perguntou ele. - Este diabinho podia continuar nisto o dia inteiro. Sempre que eu apanhasse o bastão, ele atirá-lo-ia.

 

Os mergulhadores olharam um para o outro. Michael tinha um ar de gozo e Richard engoliu uma gargalhada.

 

A comida chegou! - chamou Sufa, do interior da casa. Arak estendeu o bastão a Richard.

 

- Quer experimentar?

 

- Desta vez não - disse Richard. - Para além disso, estou cheio de fome.

 

Então vamos comer - disse Arak, em tom amigável. Atirou o bastão para ao pé da cerca e dirigiu-se para dentro. Sark foi atrás dele.

 

Este lugar está cada vez mais estranho - disse Richard em voz baixa para Michael, enquanto contornavam a piscina.

 

Bem podes dizê-lo - disse Michael. - Agora já percebo por que é que eles não se importaram que eu tirasse os copos de ouro, ontem à noite. Nada pertence a ninguém. Ouve o que eu te digo, podíamos fazer uma fortuna com tudo isto, que eles não se importariam.

 

Para além da comida, os clones-empregados tinham trazido uma mesa desmontável, que colocaram no centro de um círculo de sete cadeiras. Arak e os mergulhadores juntaram-se aos outros. Sark empoleirou-se nas costas da cadeira de Arak e começou a passar-lhe as patas pelas orelhas. Todos se serviram e começaram a comer.

 

Bem, é aqui que nós passamos a maior parte do nosso tempo disse Arak, quebrando um curto período de silêncio desconfortável. Pressentia que os humanos secundários estavam um pouco
baralhados com todos os acontecimentos daquele dia. - Alguém quer perguntar alguma coisa?

 

- Como é que costumam passar o tempo? - perguntou Suzanne, só para fazer conversa. Sentia que era preferível conversar sobre assuntos banais, em vez de se debruçar sobre as grandes questões que lhe fervilhavam na cabeça.

 

- Tiramos partido dos nossos corpos e das nossas mentes explicou Arak. - Lemos bastante e divertimo-nos a ver hologramas.

- Não trabalham? - perguntou Perry.

 

- Algumas pessoas trabalham - disse Arak. - Mas não é necessário, e os que trabalham só fazem o que querem fazer. o trabalho manual é mais pesado, e a maior parte é assim, é feito pelos clones-empregados. Todo o trabalho de monitorização e regularização é feito pela Central de Informação. Deste modo, as pessoas ficam livres para se dedicarem aos seus interesses.

 

- E os clones não se importam? - perguntou Donald. - Nunca se revoltam, nem fazem greve?

 

- Deus do céu, claro que não - disse Arak com um sorriso. Os clones são como bem, como os vossos animais de estimação. Foram feitos com aspecto humano por razões estéticas, mas os cérebros deles são menores. Têm pouca actividade no cérebro anterior e, portanto, as suas necessidades e interesses são diferentes. Eles gostam de trabalhar e de nos servir.

 

- Isso soa-me a exploração - disse Perry.

 

- Suponho que seja - disse Arak. - Mas é para isso que servem as máquinas, tal como os automóveis na vossa cultura, e não acredito que vocês sintam que os estão a explorar. A analogia seria melhor se os vossos automóveis tivessem partes vivas, para além das mecânicas. E os carros têm que ser usados, senão deterioram-se. Passa-se o mesmo com os clones-empregados, só que, no caso deles, não toleram o lazer. Tornam-se melancólicos e começam a regredir quando não trabalham ou não recebem orientações.

 

- É um pouco desagradável para nós - disse Suzanne. - Eles parecem tão humanos.

 

- Mas não se podem esquecer que não são - disse Sufa.

- Existem diferentes tipos de clones? - perguntou Perry.

 

- Têm todos praticamente o mesmo aspecto - disse Arak. Mas existem os criados, os operários, e os clones de entretenimento; há clones masculinos e femininos. Variam de acordo com a prograMação.

 

- Com a tecnologia que possuem, por que é que não usam robôs?

- perguntou Donald.

 

- É uma boa pergunta - disse Arak. - Há muito tempo atrás, tínhamos andróides e, de facto, faziam-nos tudo. Mas as máquinas puras têm tendência para avariar e têm de ser arranjadas. Tínhamos de ter andróides que arranjassem andróides, e assim por diante até ao infinito. Era bastante inconveniente, e até mesmo ridículo. Só quando aprendemos a combinar o biológico com o mecânico é que resolvemos o problema. o resultado final das investigações e dos desenvolvimentos foram os clones-empregados, e eles são, de longe, superiores a qualquer andróide. São eles que têm todos os cuidados com a sua própria manutenção, são eles que fazem todas as reparações de que necessitam e que se reproduzem para assegurar o crescimento da sua população.

 

- Espantoso - disse Perry, simplesmente. Suzanne acenou. o grupo ficou em silêncio. Quando acabaram de comer, Sufa disse:

 

- Talvez agora fosse melhor regressarem aos vossos aposentos, no palácio dos visitantes. Precisam de tempo para pensar em tudo o que viram e ouviram. E também não queremos sobrecarregá-los no vosso primeiro dia. Amanhã é outro dia. - Dirigiu-lhes um sorriso agradável enquanto se levantava.

 

- É verdade que precisamos de tempo - disse Suzanne, enquanto também se levantava. - Penso que já me estou a sentir sobrecarregada. Este foi o dia mais assombroso, mais estranho e mais desconcertante da minha vida, sem dúvida nenhuma.

 

Michael hesitou antes de abrir a porta da sua casa. Richard estava atrás de si. Arak e Sufa tinham acabado de os deixar ali.

 

- o que é que achas que vamos encontrar? - perguntou Michael.

- Por amor de Deus! - resmungou Richard. - Como é que eu posso saber, se ainda não abriste a porcaria da porta?

 

Michael agarrou no puxador e rodou-o. Os dois mergulhadores entraram e olharam em redor.

 

- Achas que esteve cá alguém? - perguntou Michael, nervoso. Richard revirou os olhos.

 

- Que é que te parece, cabeça de burro? - disse ele. - A cama está feita e está tudo limpo. Olha, até arrumaram os pratos e os copos que trouxeste da festa.

 

- Se calhar foram só os clones - disse Michael.

- É possível - disse Richard.

 

- Achas que o corpo ainda está onde o deixámos?

 

- Bem, só podemos saber se formos lá ver - disse Richard.

- Está bem, eu vou ver.

 

- Espera aí! - disse Richard, agarrando Michael pelo braço. Deixa-me ver se a costa está livre.

 

Richard olhou à volta, para além da piscina, e depressa se sentiu satisfeito. Não se via ninguém por perto, e ele juntou-se ao seu companheiro.

 

- Okay, vai lá ver o corpo.

 

Rapidamente, Michael colocou-se em frente ao armário no lado oposto ao da cama.

 

- Bebidas, por favor! - ordenou ele. A porta do frigorífico abriu-se. Estava cheio de recipientes contendo bebidas e alimentos.

- Parece que está como o deixámos - disse Michael.

 

- É bom sinal - disse Richard.

 

Michael inclinou-se e retirou vários recipientes, revelando assim o rosto pálido de Sart. Os seus olhos sem vida estavam fixos em Michael, com um ar acusador. Michael apressou-se a colocar os recipientes no sítio para esconder a imagem horrenda. o corpo de Sart era o primeiro cadáver que Michael vira, à excepção do corpo do seu avô. Mas o seu avô estava deitado num caixão, vestindo um fato de cerimónia. E, para além disso, já tinha noventa e quatro anos.

 

- Que alívio - disse Richard.

 

- Por agora - disse Michael. - Mas isto não quer dizer que eles não o encontrem hoje à noite, ou amanhã. Talvez o devêssemos levar lá para fora e enterrá-lo numa daquelas moitas de fetos.

 

- E vamos cavar com o quê, com colheres de chá? - perguntou Richard.

 

- Então, vamos levá-lo para a tua casa e pô-lo no teu frigorífico. Faz-me impressão tê-lo aqui.

 

- Não podemos correr o risco de andar com ele às voltas por aí

- disse Richard. - Ele fica onde está.

 

- Então vamos trocar de quartos - sugeriu Michael. - Não te esqueças que foste tu que o mataste, e não eu.

 

Richard semicerrou os olhos, fazendo um olhar ameaçador.

 

- Já falámos sobre isso - disse ele pausadamente. - E já decidimos: estamos juntos nisto. Agora pára de falar na porcaria do corpo.

 

- E quando é que contas ao Fuller? - disse Michael.

- Não vou contar - disse Richard. - Mudei de ideias.

- Então porquê?

 

- Porque aquele palhaço não vai ter uma ideia melhor sobre o que fazer com o corpo. E também acho que não nos devemos Preocupar tanto. Afinal, ninguém sequer perguntou por ele durante o dia inteiro. E o Arak disse que não existem prisões.

 

- Mas isso é porque ninguém rouba nada - respondeu Michael, -- o Arak não disse nada em relação aos assassinos, e depois de tudo o que vimos sobre a extracção da mente, tenho o pressentimento de que eles não vão gostar nada disto. Ainda acabamos por ser reciclados, como o Reesta.

 

- Ei, tem calma! - disse Richard.

 

- Como é que eu posso ter calma se está um morto no meu frigorífico? - gritou Michael.

 

- Cala-me essa boca - disse Richard, também a gritar. Depois, em voz baixa acrescentou - Bolas, toda a gente aqui à volta te vai ouvir. Controla-te. o mais importante agora é pirarmo-nos daqui o mais depressa possível. Por enquanto, o Sart está no frigorífico, o que vai impedir que comece a cheirar mal. Se alguém começar a tentar meter o nariz, ou a perguntar por ele, pensaremos num outro esconderijo. Okay?

 

- Sim - disse Michael, sem grande entusiasmo.

o tecto da caverna subterrânea foi escurecendo gradualmente, numa réplica dum anoitecer normal, tal como tinha acontecido na noite anterior. Suzanne e Perry, impressionados com as semelhanças entre o tecto abobado e o céu, observavam espantados as pseudo-estrelas que começavam a brilhar à luz púrpura do entardecer. Pelo contrário, o sempre circunspecto Donald olhava, taciturnamente, para as sombras escuras por baixo dos arbustos. Estavam os três em pé, no relvado, a uns doze metros da saída da sala de estar. Lá dentro, alguns clones-empregados estavam atarefados a preparar o jantar. Richard e Michael já estavam nas suas cadeiras, esperando pela comida.

 

- Isto é realmente espantoso - disse Suzanne, inclinando o pescoço para trás para olhar para cima.

 

- Refere-se às estrelas de bioluminescência? - perguntou Perry.

- Tudo isto - disse Suzanne. - Incluindo as estrelas. - Tinha acabado de se juntar a eles, vinda dos seus aposentos, onde estivera a nadar, a tomar banho e até a tentar dormir um pouco. Mas tinha sido impossível adormecer. A sua mente estava demasiado cheia.

 

- Algumas coisas são, de facto, fantásticas - admitiu Donald.

- Ainda não vi nada que não fosse - disse Suzanne, olhando através do relvado, para a sala escura do pavilhão onde tivera lugar a festa da noite anterior. - Começando pelo facto de este paraíso espaçoso estar enterrado debaixo do oceano. Foi curioso eu ter mencionado a Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne, no início do mergulho, uma vez que agora estamos mesmo lá.

 

Perry deu um risinho.

 

- Foi uma grande coincidência.

 

- Uma coincidência um pouco assustadora - acrescentou Suzanne. - Especialmente agora, quando tudo o que Sufa e Arak nos disseram parece ser, de facto, verdadeiro, apesar de soar a pura fantasia.

 

- É difícil negar toda a tecnologia que temos observado - disse Perry, animadamente. - Estou ansioso por conhecer mais detalhes

- como a biomecânica dos clones-empregados ou os segredos dos táxis aéreos. As Patentes de qualquer uma destas coisas podem fazer de nós milionários. Então e o turismo? Já imaginaram a quantidade de pessoas que estarão interessadas em vir até aqui? Vai bater todos os recordes. - Perry riu-se novamente. - De uma forma ou de outra, a Benthic Marine vai tornar-se a Microsoft do novo século. As revelações do Arak são extraordinárias - concedeu Donald, de má-vontade. - Mas vocês estão de tal forma enfeitiçados que se esqueceram de vários pontos importantes.

 

- De que é que está a falar? - perguntou Perry.

 

- Tirem os óculos de lentes cor-de-rosa - disse Donald. - Do meu ponto de vista, a grande questão ainda não foi abordada: o que é que nós estamos aqui a fazer? Não fomos salvos de um naufrágio como os Black. Fomos propositada e deliberadamente puxados até ao que eles chamam porto de saída, e eu gostaria de saber porquê.

 

- o Donald tem razão - disse Suzanne, ficando subitamente pensativa. - Com toda esta excitação, eu esqueço-me que, apesar de tudo, nós somos vítimas de um rapto. E isso significa que precisamos de saber a razão de nós estarmos aqui.

 

- Temos sido bem tratados - disse Perry.

 

- Até agora - disse Donald. - Mas como eu já disse, isso pode mudar de um momento para o outro. Acho que ainda não se aperceberam do quanto nós somos vulneráveis.

 

Eu sei que estamos vulneráveis - disse Perry, com um toque de irritação. - Mas que diabo, eles são tão avançados que podiam dar cabo de nós num instante. o Arak falou em viagens interplanetárias, até falou em viagens galácticas e tecnologia do tempo. Mas eles gostam de nós. Isso para mim é evidente, mesmo que não o seja para si. Acho que lhes devíamos estar mais agradecidos, e ser menos paranóicos.

 

Gostam de nós! - cuspiu Donald. - Divertem-se connosco. Quantas vezes é que já nos disseram isso? Acham o nosso primitivismo engraçado ou divertido, como se fôssemos uma espécie de animais domésticos. Pois olhe, eu estou farto de que se riam à minha custa. Eles não nos tratariam assim tão bem se não gostassem de nós - persistiu Perry.

 

- É tão ingénuo - disse Donald. - Esquece-se de que, para todos os efeitos, somos prisioneiros, e que fomos raptados à força e manipulados no centro de descontaminação. Trouxeram-nos para aqui por uma razão que ainda não foi revelada.

 

Suzanne acenou, concordando. As palavras de Donald fizeram-na lembrar-se de um comentário que Arak deixara escapar, e que lhe dera a impressão de que ele estivera a antecipar a sua chegada. Na altura, tinha achado o comentário um pouco perturbador, mas entretanto ele fora esquecido no meio de tantas revelações assombrosas.

 

- Talvez nos estejam a recrutar - disse Perry, subitamente.

- Para quê? - perguntou Donald, em tom de dúvida.

 

- Talvez estejam a fazer este esforço todo com o objectivo de nos prepararem para sermos os representantes deles - disse Perry, ficando mais entusiasmado com a ideia à medida que ia falando. Talvez eles tenham finalmente decidido que é altura de se relacionarem com o nosso mundo, e queiram que nós sejamos os seus embaixadores. E, para ser sincero, acho que poderíamos fazer um óptimo trabalho, especialmente se as coisas forem tratadas através da Benthic Marine.

 

- Embaixadores! - repetiu Suzanne. - É uma ideia interessante! Eles não gostam da ideia de terem de se adaptar à nossa atmosfera devido à falta de imunidade em relação às nossas bactérias e vírus, e também não apreciam o processo de descontaminação necessário para regressar à Interterra.

 

- Exactamente - disse Perry. - Se nós fôssemos os seus representantes, não teriam de passar por nada disso.

 

- Embaixadores? Deus do céu! - resmungou Donald, levantando as mãos e abanando a cabeça com frustração.

 

- Qual é o problema, agora? - perguntou Perry, sentindo-se novamente irritado. Donald começava a enervá-lo.

 

- Já sabia que vocês eram optimistas - resmungou Donald mas esta ideia de embaixadores ganha o primeiro prémio.

 

- Acho que é uma possibilidade perfeitamente razoável - disse Perry

 

- Ouça, Sr. Presidente da Benthic Marine! - cuspiu Donald como se o que Perry acabara de dizer fosse depreciativo. - Os Interterrestres não nos vão deixar ir embora. Se não fossem uns optimistas inveterados, compreenderiam isso,

 

Suzanne e Perry ficaram em silêncio enquanto pensavam no comentário de Donald. Nenhum deles tinha querido pensar sobre esse assunto, e muito menos discuti-lo.

 

- Achas que eles querem que nós fiquemos aqui para sempre?

- perguntou Suzanne, por fim. Ela tinha que admitir que Arak e Sufa não tinham dito nada que indicasse um plano para eles regressarem à superficíe, no submarino.

 

- Eu acho que é isso que eles querem, se não nos deixarem ir disse Donald, com sarcasmo.

 

- Mas porquê? - perguntou Perry. A irritação tinha desaparecido da sua voz.

 

- É mais do que evidente - disse Donald. - Durante milhares de anos esta gente tem evitado que a Interterra seja detectada. Como é que poderiam agora permitir o nosso regresso à superficie, sabendo nós tudo o que sabemos?

 

- oh, Deus! - murmurou Suzanne.

 

- Acha que o Donald tem razão? - perguntou Perry.

 

- Acho que sim - disse Suzanne. - Não há nenhuma razão para eles estarem menos preocupados com a contaminação agora do que no passado. E estando a nossa tecnologia cada vez mais avançada, é natural que a preocupação deles seja maior. Eles podem achar o nosso primitivismo divertido, mas suspeito que estão aterrorizados com a violência da nossa cultura.

 

- Mas eles continuam a referir-se a nós como visitantes contrapôs Perry. - E este local chama-se palácio dos visitantes. Os visitantes não ficam para sempre. - Em seguida, acrescentou irracionalmente - Para além disso, eu não posso ficar aqui para sempre. Tenho uma família. Quero dizer, já estou até preocupado com o facto de não lhes poder dizer que estou bem.

 

- Isso é outra coisa interessante - disse Donald. - Eles sabem imenso a nosso respeito. Sabem que temos família. Com toda a tecnología que possuem, podiam ter-nos dado a oportunidade de comunicar com os que nos são mais chegados para eles saberem que não morremos. o facto de não o terem feito é, no meu ponto de vista, mais uma prova de que nos tencionam manter aqui.

 

- Faz sentido - disse Suzanne, suspirando. - Há meia hora atrás, quando estava no meu quarto, desejei ter ali um antiquado telefone para poder falar com o meu irmão. Ele é a única pessoa que sentirá a minha falta.

 

- Não tens mais ninguém? - perguntou Donald.

 

- Não - disse Suzanne. - É uma parte da minha vida que não resultou muito bem, e perdi os meus pais há alguns anos.

 

- Eu tenho mulher e três filhos - disse Donald. - Claro que isso não deve significar nada para os Interterrestres. Os conceitos de paternidade e maternidade devem parecer-lhes bastante antiquados.

 

- Meu Deus! - disse Perry. - o que é que vamos fazer? Temos de sair daqui. Tem de haver uma maneira.

 

- Ei, pessoal! - chamou Michael da sala. - A comida está na mesa. Venham comer!

 

- Infelizmente, eles têm o jogo na mão - disse Donald, ignorando Michael que desapareceu para o interior da casa. – Neste momento não há nada que possamos fazer a não ser manter os olhos bem abertos.

 

- o que significa aproveitarmos a hospitalidade deles - disse suzanne.

 

- Até certo ponto, sim - disse Donald. - Mas não me peçam para confraternizar com o inimigo.

 

- É isso que me parece confuso - disse Suzanne. - Eles não agem como inimigos. São tão gentis e pacíficos. É difícil imaginá-los a fazerem mal a alguém.

 

- Manter-me afastado da minha família é bastante mau - disse Perry.

 

- Mas não do ponto de vista deles - disse Donald. - Sendo a reprodução um processo mecânico, e sendo os recém-nascidos de quatro anos de idade imbuídos com a mente e a personalidade de um adulto, não existem esse tipo de laços.

 

- Que diabo é que vocês estão a fazer aí fora, ao escuro? - gritou Michael. Tinha voltado para a entrada da sala. - Os clones-empregados estão à vossa espera. Não vão comer?

 

- Acho que sim - disse Suzanne. - Tenho fome.

 

- Eu já não sei se tenho, depois desta discussão - disse Perry Começaram a andar em direcção à luz que se espalhava pela relva escura.

 

- Tem de haver alguma coisa que nós possamos fazer - disse Perry.

 

- Podemos tentar não os ofender - disse Donald. - Isso seria muito perigoso.

 

- o que é que nós podemos fazer que os ofenda? - perguntou Perry.

 

- Não é connosco que eu estou preocupado - disse Donald. É com os idiotas dos mergulhadores.

 

- E se fôssemos directos ao assunto? - sugeriu Perry. - Por que é que amanhã, quando nos encontrarmos com o Arak, não lhe perguntamos se podemos ir embora? Assim já ficaríamos a saber.

 

- Isso é arriscado - disse Donald. - Acho que não deveríamos dar ênfase ao nosso interesse em partir. Se o fizermos, eles podem limitar a nossa liberdade. Tal como as coisas estão agora, ainda Podemos, pelo menos teoricamente, chamar táxis aéreos com os nossos comunicadores de pulso e andar mais ou menos à nossa vontade. Não quero perder esse privilégio. Podemos precisar disso, se existir alguma hipótese de fugirmos daqui.

 

- Bem pensado - concordou Suzanne. - Mas não vejo porque não havemos de perguntar por que é que estamos aqui. Talvez a resposta a essa pergunta nos diga se eles esperam ou não que nós fiquemos aqui para sempre.

 

- Não é má ideia - disse Donald. - Não me importo de tentar, desde que perguntemos sem fazer grande alarido à volta do assunto. E se eu fizer a pergunta amanhã de manhã, durante a sessão que Arak mencionou que teríamos?

 

- Parece-me bem - disse Suzanne. - o que acha, Perry?

- Neste momento, não sei o que pensar - disse Perry

 

- Vá lá, despachem-se! - disse Michael, enquanto os outros entravam na sala. - o parvo deste clone-empregado não nos deixa tocar nas travessas até que todos estejam aqui, e ele é mais forte que um touro.

 

Em pé, ao lado da mesa central, estava um clone-empregado com as mãos pousadas nos pratos cobertos.

 

- Como é que sabe que ele está à nossa espera? - perguntou Suzanne, enquanto se sentava.

 

- Bem, não tínhamos a certeza, porque este pateta não fala admitiu Michael. - Mas pensámos que podia ser isso. Estamos esfomeados.

 

Perry e Donald sentaram-se. Quase de imediato, o clone-empregado tirou as tampas das travessas.

 

- Bingo! - disse Richard.

 

Dentro de alguns minutos, a comida estava servida. Durante algum tempo, não houve qualquer conversa. Richard e Michael estavam demasiado ocupados a mastigar; os restantes estavam a pensar na conversa que tinham tido lá fora no relvado.

 

- o que é que estavam a fazer lá fora, no escuro? - perguntou Richard, dando em seguida um grande arroto. - Morreu alguém? Estão todos tão sérios.

 

Ninguém respondeu.

 

- Que animação - murmurou Richard.

 

- Pelo menos, temos maneiras à mesa - disse Donald, rispidamente.

 

- Vá-se lixar! - respondeu Richard.

 

- Sabem, estou a começar a achar isto tudo estranhamente irónico - disse Suzanne.

 

- o quê? As maneiras de Richard à mesa? - perguntou Michael, dando uma sonora gargalhada.

 

- Não, a nossa reacção à Interterra - disse Suzanne.

- Que quer dizer com isso? - perguntou Perry.

 

- Pensem no que encontrámos aqui - disse Suzanne. - É um paraíso, apesar de não ser lá em cima no céu, como habitualmente imaginamos. Mas apesar disso, está aqui tudo o que nós, consciente e inconscientemente, desejamos: juventude, beleza, imortalidade e abundância. É o paraíso autêntico.

 

- Concordamos com a parte da beleza, não é, Mikey? - disse Richard.

 

- Por que é que isso lhe parece irónico? - perguntou Perry, ignorando Richard.

 

- Porque estamos preocupados com o facto de sermos forçados a permanecer aqui - disse Suzanne. - Todas as pessoas sonham com a vida no paraíso, e nós estamos preocupados porque não podemos sair de cá.

 

- Forçados a ficar aqui? - questionou Richard.

 

- Não acho que seja irónico - disse Donald. - Se a minha família estivesse aqui comigo talvez pensasse assim. Mas não nesta situação. Para além disso, não gosto de ser obrigado a fazer o que quer que seja. Pode parecer que não, mas dou muito valor à minha liberdade.

 

- Nós vamos sair daqui, não vamos? - perguntou Richard, insistentemente.

 

- o Donald pensa que não - disse Perry.

- Mas temos que sair - explodiu Richard.

 

- Porquê, marinheiro? - perguntou Donald. - Por que é que está tão desejoso de sair do paraíso da Suzanne?

 

- Estou a falar em geral, não em meu nome pessoal - interrompeu Suzanne. - Para ser franca, a maneira como eles conseguem a imortalidade, deixou-me um pouco indisposta.

 

- Não percebo o que é que estão a dizer - disse Richard. Mas quero sair daqui o mais depressa possível.

 

- Eu também - apoiou Michael.

 

Subitamente, ouviu-se o som suave de uma campainha, que nunca tinham ouvido antes. Olharam uns para os outros com ar intrigado, mas antes que alguém pudesse falar, a porta abriu-se e Mura, Meeta, Palenque e Karena entraram na sala. As belas mulheres estavam bastante bem-humoradas. Mura dirigiu-se directamente para Michael e estendeu a palma da sua mão, para o habitual cumprimento dos Interterrestres. Após um rápido toque com as palmas das mãos, ela sentou-se na beira da cadeira de Michael. Meeta, Palenque e Karena aproximaram-se de Richard, que se levantou.

 

- Estão de volta, minhas lindas! - exclamou Richard. Ele tocou nas palmas das mãos das três mulheres e abraçou-as com entusiasmo. Elas dirigiram uma rápida saudação a Suzanne, Perry e Donald, mas dedicaram toda a sua atenção a Richard que estava deleitado. Quando ele tentou voltar a sentar-se, elas impediram-no. Disseram-lhe que queriam ir para o quarto dele, para nadarem um pouco.

 

- Bem, se é isso que querem, vamos lá - balbuciou ele. Antes de se afastar com o seu miní-harém, fez um gesto de despedida dirigido a Donald.

 

- Vamos! - disse Mura a Michael. - Vamos também embora, Trouxe-lhe um presente.

 

- o que é? - perguntou Michael, enquanto se deixava conduzir para »orta.

 

- É um frasco de caldorfina! - disse Mura. - Ouvi dizer que gostava muito.

 

- Não gosto, adoro - exclamou Michael. E, dizendo isto, saíram ambos de casa.

 

Antes que os restantes elementos do grupo pudessem dizer qualquer coisa, a campainha fez-se ouvir de novo. Desta vez anunciou a chegada de Luna e de Garona. Os Interterrestres pareciam estar a visitar os companheiros da noite anterior.

 

- Oh, Suzanne! - disse Garona, enquanto tocava nas palmas das mãos dela. - Tenho estado ansiosamente à espera do anoitecer para poder estar de novo consigo.

 

- Perry, meu amor - disse Luna. - Foi um dia demasiado longo. Espero que não tenha sido muito complicado para si. Suzanne e Perry não sabiam se haviam de ficar embaraçados ou encantados ao ouvir as sentimentais palavras que lhes eram dirigidas. Balbuciaram ambos respostas ininteligíveis enquanto se deixavam cumprimentar e eram obrigados a levantar-se pelos Interterrestres,

 

- Bem, parece que me vou embora - disse Suzanne a Donald, enquanto Garona a empurrava, na brincadeira, em direcção à abertura para o exterior.

 

- E nós também - disse Perry puxado por Luna.

 

Donald fez um ligeiro aceno com a mão mas não disse nada. No momento seguinte, encontrava-se sozinho com os dois clones-empregados silenciosos.

 

Michael não se lembrava de alguma vez se ter sentido tão excitado. Nunca antes lhe acontecera ter uma mulher tão bela e desejável interessada em si. Por insistência dela, começaram a rodar enquanto avançavam através do relvado, em plena escuridão, até ao seu quarto. Com os seus longos cabelos a flutuar ao sabor do vento, ela era uma imagem intoxicante para Míchael, e ele teria continuado assim durante horas, se não fosse pelo seu ouvido interno

 

Sentindo-se tonto, Michael parou de andar à roda, mas as coisas à sua volta não pararam. Inclinou-se para o lado direito, tentando em vão manter o equilíbrio. Foi incapaz de manter as pernas debaixo de si e acabou por cair desajeitadamente no chão. Mura também caiu. Começaram a rir de um modo incontrolável. Levantaram-se sem muita segurança e começaram a correr para o quarto dele. Uma vez lá dentro, estavam os dois sem fôlego.

 

- Bem - disse Michael, respirando fundo duas ou três vezes, mas sentindo-se ainda um pouco tonto. Só o facto de olhar para Mura, vestida com roupas que pareciam querer escapulir-se, fazia-o tremer de desejo. - o que é que quer fazer primeiro? Nadar?

 

Mura olhou para Michael de um modo provocante. Abanou a cabeça e disse:

 

- Não, agora o que eu quero não é nadar - disse ela com uma voz rouca. - Ontem à noite você estava demasiado cansado para uma relação mais íntima. Mandou-me embora antes de eu o poder fazer feliz.

 

- Isso não é verdade - protestou Michael. - Eu estava feliz.

- Então foi o Sart que o fez feliz?

 

- Claro que não! - rosnou Michael, ficando imediatamente na defensiva. - Que raio de pergunta é essa?

 

- Não fique assim - disse Mura, espantada com a reacção de Michael. - Não estou a sugerir nada. Acho que é perfeitamente normal ter prazer com ambos os sexos.

 

- Para mim não é nada normal - respondeu Michael, apressadamente. - Nem pensar!

 

- Michael, por favor, acalme-se - implorou Mura. - Por que é que está a ficar tão agitado?

 

- Eu não estou agitado! - respondeu Michael.

- o Sart fez alguma coisa que o aborrecesse?

 

- Não, foi muito simpático - disse Michael, nervoso.

 

- Alguma coisa aconteceu que o deixou nesse estado - disse Mura. - o Sart passou aqui a noite? Ainda não o vi hoje.

 

- Não! Não! - balbuciou Michael. - Ele saiu logo a seguir a si. o Richard limitou-se a pedir-lhe desculpa por se ter zangado com ele. Ele saiu logo. É um miúdo porreiro.

 

- Por que é que o Richard se zangou com ele?

 

- Não sei - disse Michael, irritado. - Temos de ficar a noite toda a falar do Sart? Pensei que tivesse vindo para me ver.

 

- E vim - disse Mura, pondo-se ao lado de Michael e massajando-lhe o peito. Por baixo dos seus dedos conseguiu sentir o coração dele a bater descontroladamente. - Deve ter tido um dia difícil. Vamos tentar acalmá-lo, e eu sei o que fazer.

 

- o quê?

 

- Deite-se na cama - explicou Mura - Vou esfregar-lhe o corpo e massajar os seus músculos.

 

- Isso já me agrada mais.

 

- E assim que estiver tranquilo, juntaremos as palmas das mãos usando a caldorfina.

 

- Parece-me uma óptima ideia, querida - disse Michael, recuperando a compostura. - Vamos a isso.

 

- Está bem, espere só um momento - disse Mura, empurrando ligeiramente Michael em direcção à cama. Obedientemente, Michael subiu para o leito e deitou-se sobre a colcha suave.

 

Mura dirigiu-se ao frigorífico para ir buscar uma bebida fresca. Deu a ordem directamente através do receptor, para fazer o menos barulho possível e não incomodar Michael. Depois da explosão deste, Mura sentiu que ele devia estar tenso e necessitado de cuidados. Ela sabia, por experiência, o quanto os humanos de segunda-geração podiam ficar transtornados com as coisas mais estranhas.

 

Mura foi surpreendida pela quantidade de coisas que estavam no interior do aparelho.

 

- Olhem para isto - disse ela. - Como é que pode ter aqui tanta coisa?

 

Depois de Mura lhe ter falado em Sart, o desejo de Michael tinha diminuído significativamente. Enquanto estava estendido de barriga para baixo na cama à espera de Mura, em vez de se perder em fantasías, deu por si a pensar na discussão que tinham tido à volta da mesa de jantar, acerca de estarem presos na Interterra. Em consequência disso, o comentário acerca do frigorífico estar cheio não chegou a penetrar na sua consciência, até que ouviu o som dos recipientes da bebida e da comida a cair ao chão, seguido de uma exclamação. Só então é que se lembrou do corpo de Sart, e nessa altura era já demasiado tarde...

 

- Merda! - murmurou Michael, enquanto saltava da cama. Tal como ele temera, Mura estava em frente ao frigorífico aberto com uma mão à frente da boca. A sua expressão era de puro horror.

 

No interior do frigorífico, o rosto pálido e gelado de Sart estava emoldurado por pilhas de recipientes.

 

Michael correu para Mura e envolveu-a com os braços. Ela abateu-se sobre os seus braços e teria caído se ele não estivesse a segurá-la.

- Ouça! Ouça! - exclamou Michael, num murmúrio forçado.

- Eu posso explicar.

 

Mura recuperou o equilíbrio e afastou-se dos braços de Michael. A tremer, ela esticou a mão para o interior do frigorífico e tocou na face de Sart. Estava tão firme como um pedaço de madeira e tão fria como gelo.

 

- oh, não! - gemeu ela, Pondo as mãos à volta do seu próprio rosto desolado, começou a tremer como se uma lufada de vento gelado tivesse subitamente penetrado no quarto. Quando Michael tentou novamente pôr os braços à volta dela, ela empurrou-o para o lado para poder continuar a olhar para Sart. Por muito assustadora que fosse a imagem, ela não conseguia desviar o olhar.

 

Em pânico, Michael abaixou-se, apanhou os objectos caídos no chão e voltou a colocá-los no frigorífico para ocultar a imagem do rapaz morto.

 

- Tem de se acalmar - disse ele, nervoso.

 

- o que é que aconteceu à essência dele? - perguntou Mura, o sangue tinha voltado ao seu rosto, tornando-o escarlate. o choque e a aflição estavam a transformar-se em raiva.

 

- Foi um acidente - disse Michael. - Ele caiu e bateu com a cabeça. - Michael tentou mais uma vez aproximar-se dela, mas ela recuou mantendo-se à distância.

 

- Mas onde está a essência dele? - perguntou Mura novamente, embora no fundo já conhecesse a horrível verdade.

 

- Ouça, ele está morto, por amor de Deus - disse Michael.

 

- A essência dele está perdida! - disse Mura, mal conseguindo falar. A sua raiva estava a transformar-se em dor. Os seus olhos verde-esmeralda estavam marejados de lágrimas,

 

- Escute, querida - disse Michael, meio solícito, meio irritado.

- Infelizmente o miúdo está morto. Foi um acidente. Tente recompôr-se.

 

As lágrimas passaram a soluços quando Mura se apercebeu da realidade da tragédia.

 

- Tenho de ir dizer aos Anciãos - disse ela. Virou-se e começou a dirigir-se para a porta.

 

- Não, espere! - disse Michael, desesperado. Correu atrás dela tentando demovê-la. - Escute! - Ele agarrou-a com ambas as mãos.

- Largue-me! - gritou Mura, tentando libertar-se dele. - Tenho que anunciar esta calamidade.

 

- Não, temos de falar - insistiu Michael. Começou a puxá-la enquanto ela se tentava libertar.

 

- Deixe-me! - gritou Mura, fazendo a sua voz sobrepôr-se aos soluços. Conseguiu soltar um braço.

 

- Cale-se! - gritou Michael. Deu-lhe uma bofetada com a mão bem aberta, tentando fazê-la parar com toda aquela histeria. Em vez disso, ela abriu a boca e deu um grito muito agudo. Temendo as consequências, Michael tapou-lhe a boca com uma mão, Mas isso não foi suficiente, Mura era uma mulher alta e forte e afastou-se dele, dando outro grito.

 

Com alguma dificuldade, Michael voltou a pôr a mão à frente da boca dela, mas, apesar disso, não conseguiu fazê-la calar. Num impulso, ele arrastou-a até à parte mais funda da piscina e caíram ambos lá dentro. Mas nem o mergulho inesperado conteve os gritos de Mura, até Michael lhe empurrar a cabeça para baixo de água.

 

Ela continuou a debater-se, e quando ele a deixou vir à superfície para respirar, ela gritou de novo. Michael voltou a empurrá-la para baixo e, desta vez, segurou-a nessa posição até que os seus movimentos violentos se tornaram mais fracos, acabando por cessar.

 

Lentamente, afrouxou o abraço que a envolvia, mas com receio de a ouvir gritar novamente. Mas o corpo mole de Mura veio lentamente à superfície, ficando a cabeça submersa.

 

Ele puxou o corpo para a berma e pô-lo em cima do rebordo de mármore da piscina. Uma mistura espumosa de muco e saliva saía-lhe do nariz e da boca. Quando olhou para ela e percebeu que estava morta, sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha. Os seus dentes começaram a bater uns nos outros, descontroladamente. Tinha assassinado uma pessoa - uma pessoa de quem ele gostava.

 

Durante um momento, permaneceu absolutamente imóvel, pensando se alguém teria ouvido os guinchos de Mura. Felizmente, tudo parecia estar sossegado. Em pânico, carregou-a até a cama, deitou-a e cobriu-a com a colcha. Em seguida, passou pela piscina e correu para a escuridão.

 

A casa de Richard ficava a menos de cinquenta metros de distância, e Michael percorreu-os em poucos segundos. Bateu à porta.

- Quem quer que seja, vá-se embora! - ordenou a voz de Richard, do interior da casa.

 

- Richard, sou eu! - berrou Michael.

 

- Não quero saber! - gritou Richard, em resposta. - Estamos ocupados.

 

- Richie, isto não pode esperar - insistiu Michael. - Tenho de falar contigo.

 

Uma torrente de interjeições precedeu um curto silêncio. Por fim, a porta abriu-se.

 

- É bom que seja importante - grunhiu Richard. Estava completamente nu.

 

- Temos um problema - anunciou Michael.

 

- E tu estás a habilitar-te a ter outro - avisou Richard. Depois reparou que Michael estava ensopado. - Por que é que foste tomar banho com a roupa vestida? - perguntou ele.

 

- Tens de vir comigo até à minha casa - disse Michael, gaguejando ligeiramente.

 

Richard notou que o seu amigo estava extremamente ansioso. Olhou para trás para ver se nenhuma das mulheres os podia ouvir.

 

- Tem alguma coisa a ver com o corpo do Sart? - perguntou ele muito baixo.

 

- Infelizmente, sim - disse Michael.

- Onde está a Mura?

 

- É esse o problema - disse Michael. - Ela viu o corpo.

- Oh, Deus! - resmungou Richard. - Ficou perturbada?

- Caiu-me em cima - disse Michael. - Tens de vir já!

 

- Está bem! Acalma-te. Então ela ficou maluca?

 

- Já te disse, ficou completamente doida. Tens de vir comigo.

- OK, vou já - disse Richard. - Não grites! Dá-me só uns minutos. Vou pôr as meninas a andar.

 

Michael acenou enquanto Richard lhe fechava a porta na cara. Voltou-se e correu para os seus aposentos. Depois de verificar que o corpo de Mura estava onde o tinha deixado, vestiu umas peças de roupa secas. Em seguida, começou a andar para a frente e para trás à espera de Richard.

 

Tal como tinha prometido, Richard apareceu quando ainda não tinham passado cinco minutos. Assim que entrou, olhou à sua volta. Tudo parecia estar calmo. Estava mais ou menos à espera de ver Mura, na cama, a soluçar incontroladamente, mas ela não estava visível.

 

- Então, onde é que ela está? - perguntou ele. - Está na casa de banho?

 

Michael não respondeu. Fez sinal para Richard o seguir e caminhou até aos pés da cama. Com a mão a tremer, agarrou uma ponta da colcha e puxou-a para o lado expondo o corpo. A pele de Mura, anteriormente translúcida e branca como alabastro, estava agora azulada, e a espuma que fluía da sua boca e nariz estava tingida de vermelho.

 

- Mas que diabo? - disse Richard, a custo. Ajoelhou-se e pegou nO Pulso de Mura. Voltou a erguer-se. As suas feições estavam descaídas devido ao choque. - Está morta!

 

- Ela abriu o frigorífico - explicou Michael. - Ela viu o corpo de Sart.

 

- Está bem, já percebi isso - disse Richard, olhando fixamente para o amigo. - Mas por que é que a mataste?

 

- Já te disse, ela ficou doida - disse Michael. - Desatou para aqui aos gritos. Tive medo que ela acordasse a cidade inteira.

 

- Mas por que é que a deixaste abrir a merda do frigorífico? Perguntou Richard, zangado.

 

- Deixei de olhar para ela durante dois segundos... - disse Michael.

 

- Pois é, devias ter sido mais cuidadoso - disse Richard.

 

- Para ti é fácil dizer isso - disse Michael. - Tinha-te dito que não queria aqui o corpo. Ele devia estar no teu frigorífico, e não no meu.

- OK, acalma-te lá - disse Richard. - Temos de pensar no que havemos de fazer.

 

- Já não há espaço no meu frigorífico - disse Michael. - Ela tem de ir para o teu.

 

Richard não gostava muito da ideia de ter de arrastar o corpo até à sua casa, mas não conseguia pensar numa alternativa, e sabia que tinham de agir com rapidez. Se Mura fosse encontrada, Sart também o seria. De uma maneira ou de outra, ele estaria envolvido.

 

- Está bem - disse Richard, relutantemente. - Vamos acabar depressa com isto.

 

Com movimentos rápidos, enrolaram o corpo de Mura na colcha. Em seguida, com Richard a segurar a cabeça e Michael os pés, carregaram o corpo através do relvado até à casa de Richard. Tiveram alguma dificuldade em fazê-lo passar pela porta, uma vez que esta era relativamente estreita.

 

- Bolas - queixou-se Michael. - Transportar um corpo é parecido com transportar um colchão. É mais difícil do que parece.

- É porque é um peso morto - disse Richard, fazendo um sorriso amarelo devido ao duplo sentido das suas palavras.

 

Deixaram o corpo tombar no meio do chão. Enquanto Michael desenrolava a colcha, Richard foi até ao frigorífico e começou a esvazíá-lo. Uma vez que era a segunda vez que punha um corpo no frigorífico, sabia exactamente o que fazer, ou seja, sabia que para pôr Mura lá dentro era necessário colocar todos os recipientes de uma determinada maneira.

 

- Pronto - disse Richard. - Ajuda-me.

 

Num esforço conjunto, conseguiram encaixar Mura no interior do frigorífico. Ela era mais alta e pesada do que Sart, por isso coube mesmo à justa. Quando acabaram, tinham deixado alguns recipientes de fora.

 

Richard endireitou-se depois de ter, finalmente, conseguido fechar a porta.

 

- Isto tem de acabar - disse ele.

- o quê? - perguntou Michael.

 

- Este abate de Interterrestres - disse Richard. - Já não temos mais frigoríficos.

 

- Que gracinha - disse Michael. - Porque será que não me estou a rir?

 

- Não me obrigues a responder, cabeça de alfinete - disse Richard.

 

- Eu digo-te o que é que isto quer dizer - disse Michael. Temos de nos pirar da Interterra! Com dois corpos escondidos, as possibilidades de alguém descobrir o que se passa são a dobrar.

 

- Devias ter pensado nisso antes de dares cabo dela - disse Richard.

 

- Já te disse que não tive escolha! - gritou Michael. - Eu não queria fazer isto, mas ela não se calava.

 

- Não grites! - disse Richard. - Tens razão. Temos de sair daqui. A única coisa boa é que o excelentíssimo almirante parece pensar como nós.

 

suzanne não se lembrava da última vez que tinha nadado nua, e ficou agradavelmente surpreendida pela sensação que isso lhe provocava, enquanto atravessava a piscina. E apesar de se sentir ligeiramente constrangida por estar sem roupa, principalmente porque tinha reparado na excelente forma física de Garona, não estava tão embaraçada como tinha imaginado que iria ficar. Isso devia-se, provavelmente, ao facto de Garona a fazer sentir desejável apesar das suas imperfeições físicas.

 

Quando chegou à ponta da piscina, Suzanne virou-se e, com movimentos rápidos, nadou até onde Garona se encontrava calmamente sentado na borda, com os pés dentro de água. Ela agarrou num dos calcanhares dele e conseguiu puxá-lo para a água. Depois, puseram-se debaixo de água e abraçaram-se.

 

Quando finalmente se cansaram das brincadeiras debaixo de água, nadaram para um dos lados da piscina e saltaram para fora. Corria uma ligeira brisa, vinda da abertura para o exterior, e Suzanne ficou com pele-de-galinha na parte de trás dos braços e ao longo das coxas.

 

- Ainda bem que voltou esta noite - disse ela. Tinha ficado genuinamente feliz com a presença dele.

 

- Eu também estou feliz por ter vindo - disse Garona. - Pensei nisso o dia todo.

 

- Não tinha a certeza se você voltaria - disse Suzanne. Para ser franca, receei que não viesse. Acho que a noite passada fui UM pouco imatura.

 

- o que é que quer dizer?

 

- Devia ter feito uma escolha mais clara - disse Suzanne. Já que o deixei ficar, devia ter agido nessa conformidade, ou então teria sido melhor tê-lo mandado sair. Assim, nem fiz uma coisa nem outra.

 

- Adorei estar consigo - disse Garona. - A nossa interacção não estava orientada para um objectivo. A ideia era simplesmente passarmos algum tempo juntos, e foi o que fizemos.

 

Suzanne olhou fixamente para Garona com um ar apreciativo, lamentando-se silenciosamente pelo facto de ser necessário fazer uma viagem até a um mundo surreal e mítico para encontrar um homem tão atraente, sensível e generoso. Enquanto a sua mente brincava com a ideia de o levar consigo para a superfície, surgiu-lhe de novo o pensamento acerca da possibilidade desse regresso. Lembrou-se também da outra questão, ainda mais importante e ainda sem resposta.

 

- Garona, pode dizer-me por que é que nos trouxeram para a Interterra? - perguntou suzanne subitamente.

 

Garona suspirou.

 

- Lamento - disse ele. - Não posso interferir com o Arak. Você e o seu grupo estão a cargo dele.

 

- Se me dissesse apenas por que é que estamos aqui, estaria a interferir?

 

- Sim - disse Garona sem hesitar. - Por favor, não me ponha nessa posição. Quero ser aberto e honesto consigo, mas não posso falar sobre esse assunto, e fico aborrecido por ter de lhe negar alguma coisa.

 

Suzanne olhou para a face do seu novo amigo e pôde constatar a sua sinceridade.

 

- Desculpe ter-lhe pedido - disse ela. Levantou uma mão e ele imitou-a. Lentamente, tocaram na palma da mão um do outro. Suzanne sorriu satisfeita; estava a começar a gostar do cumprimento dos Interterrestres.

 

- Talvez devesse perguntar-lhe como é que o Arak se está a sair com o processo de orientação? - disse Garona,

 

- Muito bem - comentou Suzanne. - Ele e Sufa são muito hospitaleiros.

 

- Claro que sim - disse Garona. - Eles tiveram sorte em lhes ter calhado um grupo tão interessante. Ouvi dizer que já vos levaram à cidade. Gostaram da visita?

 

- Foi fascinante - disse Suzanne. - Visitámos o centro da morte e o centro de desova, para além de termos ido até à casa de Sufa e Arak.

 

- Foi um progresso muito rápido - comentou Garona. - Estou bastante impressionado. Nunca vi humanos de segunda-geração a progredir tão rapidamente. Como é que está a reagir a tudo o que tem visto e ouvido? Posso imaginar como tudo vos deve parecer extraordinário.

 

- Nunca usei a palavra inacreditável com tanta propriedade.

- Ficou perturbada com alguma coisa?

 

Suzanne tentou perceber se Garona lhe estava a pedir a verdade ou se estava a falar por falar.

 

- Houve uma coisa que me perturbou - disse Suzanne, decidindo ser sincera com Garona. Em seguida explicou a sua reacção negativa ao processo de implante.

 

Garona acenou, concordando.

 

- Percebo o seu ponto de vista - disse ele. - É uma consequência natural das suas raízes judaico-cristãs, que dão tanto valor ao indivíduo. Mas asseguro-lhe que nós também damos. A essência da criança não é ignorada, mas sim acrescentada à essência que é implantada. É um processo de beneficiação mútua, uma verdadeira simbiose.

 

- Mas como é que uma essência que ainda não nasceu, pode competir com a de um adulto experiente?

 

- Não é uma competição - disse Garona. - As duas essências beneficiam, apesar da criança beneficiar ainda mais, evidentemente. Tendo já passado pelo processo inúmeras vezes, posso dizer-lhe que fui fortemente influenciado pela essência de cada um dos corpos que já tive. É, definitivamente, um processo de adição.

 

- Parece-me que estão a racionalizar a questão - disse Suzanne.

- Mas vou tentar manter um espírito aberto.

 

- Espero que sim - disse Garona. - Tenho a certeza de que o Arak está a pensar em voltar a falar do assunto nas sessões didácticas. Não se esqueçam de que as visitas que fizeram hoje não pretendiam ser uma explicação exaustiva dos factos, mas uma maneira de ultrapassar a incredulidade que os nossos visitantes costuMam sentir no início.

 

- Estou consciente disso - disse Suzanne. - Mas é verdade que às vezes me esqueço. Obrigada por me lembrar.

 

- Tive muito gosto - disse Garona.

 

- E um homem muito bonito e sensível, Garona - disse Suzanne com sinceridade. - É muito agradável estar na sua companhia. Deu por si a pensar como é que se sentiria ao caminhar pela praia de Malibu, ou a conduzir com ele ao lado, à volta do Big Sur. Uma das coisas que não existiam na Interterra era um oceano e, sendo ela oceanógrafa, o mar era central no seu universo.

 

- Você é uma mulher linda. É extraordinariamente divertida.

- Graças ao meu primitivismo encantador - disse Suzanne. EIa calculava que Garona devia pensar que a estava a elogiar, mas teria preferido outra palavra em vez de divertida, especialmente depois do que Donald dissera.

 

- o seu primitivismo atrai-me muito - concordou Garona. Durante alguns instantes, Suzanne considerou a hipótese de dizer a Garona como é que se sentia quando lhe chamavam primitiva, mas acabou por não o fazer. Queria ter uma atitude positiva em relação ao seu relacionamento com Garona. Em vez disso disse:

 

- Garona, quero que saiba uma coisa a meu respeito. Garona fez um ar atento.

 

- Quero que saiba que eu não tenho outro amante. Já tive, mas acabou.

 

- Isso não importa - disse Garona. - A única coisa que importa é que está aqui neste momento.

 

- Para mim importa - disse Suzanne, ligeiramente magoada.

- Para mim importa mesmo muito.

 

A manhã do segundo dia que os humanos de segunda-geração passaram na Interterra, começou de um modo semelhante à do primeiro. Suzanne e Perry falaram um com o outro acerca das suas experiências da noite anterior e esperavam ansiosos os acontecimentos que o novo dia lhes ia trazer. Donald estava menos entusiástico e um pouco sombrio. Richard e Michael estavam tensos e silenciosos, e sempre que falavam, o assunto era o regresso à superfície. Donald teve de lhes pedir que se calassem quando Arak apareceu.

 

Depois de terem levado o grupo de volta para a mesma sala de conferências que tinham usado no dia anterior, Arak e Sufa lançaram-se numa sessão educativa que se arrastou durante várias horas. Tratou-se principalmente de uma discussão científica que incluiu o modo como a Interterra extraía a energia geotérmica da terra; como é que era mantido o clima da Interterra, incluindo a explicação do mecanismo que provocava a chuva nocturna; o modo como a tecnologia da bioluminescência era usada para gerar a iluminação interior e exterior; como é que se lidava com a água, o oxigénio e o dióxido de carbono; e como é que as plantas fotossintéticas e quimiossintéticas eram cultivadas na água.

 

Quando a imagem do ecrã do chão desapareceu e a iluminação começou a voltar, os únicos humanos de segunda-geração que estavam atentos eram Suzanne e Perry. Donald olhava para um local indefinido, obviamente perdido nos seus próprios pensamentos. Richard e Michael tinham adormecido. Quando a luz ficou na potência máxima, os dois mergulhadores acordaram e, tal como Donald,

 

, tentaram aparentar que tinham estado a escutar tudo o que fora dito.

 

- Como conclusão da sessão desta manhã - disse Arak, parecendo não se importar com a falta de atenção - Penso que ficaram COM uma ideia mais clara das razões que nos levaram a permanecer no nosso mundo subterrâneo, quero dizer, para além do problema

dos micróbios. Ao contrário do que acontece à superfície da Terra,

conseguimos criar um ambiente perfeitamente estável, sem flutuações climáticas tais como os períodos glaciares e outros desastres relacionados com o clima; conseguimos produzir a energia de que precisamos sem provocar qualquer tipo de poluição; e produzimos alimentos a partir de uma fonte absolutamente adequada e abundante.

 

- A vossa fonte de proteínas é exclusivamente o planctôn? perguntou Suzanne. Ela e Perry continuavam fascinados com as revelações científicas.

 

- É a nossa principal fonte - disse Arak. - A outra é a proteína vegetal. Costumávamos utilizar algumas espécies de peixe, mas parámos quando ficámos preocupados com a habilidade que os animais marinhos de maiores proporções tinham para se conseguirem reabastecer a eles próprios. Infelizmente, esta é uma lição que os humanos de segunda-geração não parecem querer aceitar.

 

- Principalmente em relação às baleias e ao bacalhau - disse Suzanne.

 

- Exactamente - disse Arak. Olhou em redor, para os restantes, - Mais alguma pergunta, antes de partirmos para mais umas visitas?

 

- Arak, eu gostaria de fazer uma pergunta - disse Donald.

- Faça favor - disse Arak, com satisfação. Até aquela altura, Donald não tinha mostrado grande interesse em participar.

 

- Gostava de saber por que é que nos trouxeram para aqui disse Donald.

 

- Pensava que a sua questão era sobre o que temos estado a discutir - disse Arak.

 

- É difícil concentrar-me em assuntos técnicos quando não sei a razão da minha presença aqui.

 

- Estou a perceber - disse Arak, inclinando-se e falando em voz baixa com Sufa e com os Black. Em seguida, voltou a endireitar-se e acrescentou: - Infelizmente, não posso dar-lhe uma resposta completa, uma vez que fomos proibidos de vos revelar a principal razão da vossa presença aqui. Mas posso dizer-lhe o seguinte: uma das razões foi para pôr fim à vossa tentativa de perfuração da porta de saída de Saranta, o que, felizmente, foi conseguido. Posso também assegurar-lhe que vão conhecer a razão principal, ainda hoje. Parece-lhe suficiente?

 

- Sim - disse Donald. - Mas se vamos acabar por saber não vejo por que é que não nos podem dizer já.

 

- Devido ao protocolo - disse Arak.

 

Donald acenou com a cabeça, relutantemente.

 

- Enquanto oficial da Marinha, parece-me que devo aceitar a sua resposta.

 

- Há mais alguma questão acerca da apresentação de hoje? perguntou Arak.

 

- Ainda me sinto demasiado impressionado - admitiu Perry. Mas tenho a certeza de que à medida que o dia for passando, terei perguntas para lhe fazer.

 

- Muito bem - disse Arak. - Vamos começara nossa excursão. Depois de tudo o que estiveram a ouvir, onde é que gostariam de ir em primeiro lugar?

 

- E se fôssemos ao Museu da Superfície da Terra? - sugeriu Donald antes de alguém poder responder.

 

- Pois é! - exclamou Michael, com entusiasmo. - o que tem o Vette à porta.

 

- Gostariam de ver o Museu da Superfície da Terra? - perguntou Arak obviamente intrigado. Olhou para Sufa, que aparentava a mesma reacção.

 

- Acho que deve ser interessante - disse Donald.

- Eu também - disse Michael.

 

- Mas porquê? - perguntou Arak. - Perdoem a nossa surpresa, mas depois de todas as coisas que vos estivemos a dizer, achamos estranho que prefiram ver o que já conhecem e não as novidades. Donald encolheu os ombros.

 

- Talvez seja uma ponta de nostalgia.

 

- Talvez possamos compreender melhor o que pensam do nosso mundo se virmos o que é que escolheram para a exposição esclareceu Suzanne. Ela não estava tão interessada no museu como estaria em visitar tudo o que Arak estivera a descrever, mas não se importou de apoiar o pedido de Donald.

 

- Muito bem - disse Arak, com uma voz simpática. - o Museu da Superfície da Terra será o local da nossa primeira visita do dia. Todos se levantaram. Pela primeira vez, Donald manifestou entusiasmo, principalmente depois de estarem no exterior. Ele pediu a Arak para lhe mostrar como é que se chamava um táxi aéreo, e Arak apressou-se a satisfazê-lo. Arak foi um pouco mais longe, e permitiu que Donald colocasse a palma da sua mão na mesa preta ao centro do táxi e que desse a indicação do destino.

 

- Foi fácil - disse Donald, enquanto a nave começava a subir sem esforço e em silêncio, partindo em seguida para a direcção desejada,

 

- Claro - disse Arak. - É esse o objectivo.

 

Todos os visitantes gostavam de viajar nos táxis aéreos. Não se cansavam de olhar para a cidade e para os seus arredores. Com os pescoços esticados, tentavam ver tudo o que havia para ver, mas era Uma missão difícil; havia muita coisa para ver, e o veículo movia-se a uma velocidade espantosa. Dentro de alguns minutos, encontravam-se a pairar à entrada do museu, a meia dúzia de metros do Chevrolet Coruette com incrustações.

 

- Adorava aquele carro - disse Michael suspirando, enquanto descia do táxi aéreo. Deteve-se para olhar fixamente para o monumento. - Nessa altura namorava com a Dorothy DrexIer. Não sei qual deles é que tinha formas melhores.

 

- Precisavam os dois de uma chave de ignição para começarem a trabalhar? - perguntou Richard no gozo.

 

Michael preparou-se para dar uma pancada no companheiro, com a mão aberta, mas Richard conseguiu desviar-se. Em seguida, começou a movimentar-se como se fosse um jogador de boxe prestes a atacar.

 

- Nada de lutas - disse Donald rispidamente, pondo-se entre os dois mergulhadores.

 

- o seu Corvette pode ter sido óptimo para si e para a Dorothy

- disse Suzanne, - mas sinto-me pouco à vontade com o facto dos Interterrestres acharem que simboliza a nossa cultura.

 

- De facto, isso sugere que nós somos muito superficiais concordou Perry. - Para além do facto de estar todo ferrugento e em péssimo estado.

 

- Superficiais e materialistas - disse Suzanne - o que, pensando bem, é provavelmente verdade.

 

- Estão a dar demasiadas interpretações ao simbolismo - disse Arak. - A razão pela qual o carro está em frente ao museu é bem mais simples. Uma vez que agora só podemos observá-los à distância para não sermos detectados pela vossa tecnologia cada vez mais avançada, o automóvel é, de facto, o objecto mais observado. A uma grande distância, quase parece que os automóveis são a forma de vida dominante à superfície da terra, e que os humanos de segunda-geração são uma espécie de robôs que cuidam deles.

 

Suzanne mal conseguiu disfarçar uma gargalhada quando ouviu a absurda sugestão, mas depois de pensar um pouco, percebeu que, à distância, a imagem que passava podia ser essa.

 

- o aspecto mais simbólico é o design do próprio museu - disse Arak.

 

- Todos os olhares se voltaram para o edifício. Vista de perto, a estrutura possuía uma poderosa aura sepulcral. Tinha cinco pisos, e era composto de segmentos rectilíneos uns sobre os outros ou formando ângulos rectos, criando uma complicada e rígida estrutura geométrica. A maior parte dos segmentos estavam cobertos de orifícios quadrados.

 

- o edifício simboliza a vossa arquitectura urbana - explicou Arak- É bastante feio e parece um caixote - disse Suzanne.

 

Não é agradável à vista - admitiu Arak. - A maior parte das vossas cidades também não o são; o que se vê são essencialmente arranha-céus que parecem caixotes construídos em grelha.

 

- Existem algumas excepções - disse Suzanne.

 

- Algumas - concordou Arak. - Mas, infelizmente, a maior parte das lições que o povo da Atlântida deixou aos vossos antepassados foram perdidas ou não foram nunca tidas em conta.

 

- É um edifício enorme - comentou Perry. o museu ocupava o espaço equivalente ao quarteirão de uma cidade moderna.

 

- Tem de ser assim - disse Arak. - Temos uma colecção muito extensa de artigos da superfície da Terra. Lembrem-se de que estamos a falar de um período de tempo que cobre milhões e milhões de anos.

 

- Então o museu não é apenas referente à cultura da segunda geração de humanos? - perguntou Suzanne.

 

- De maneira nenhuma - disse Arak. - Contém uma panóplia de toda a evolução à superfície da Terra. Claro que nos interessamos mais pelos últimos dez mil anos, por razões óbvias. Apesar de essa fracção de tempo representar apenas uma pequeníssima parte de todo o período, concentrámos nela a nossa colecção.

 

- E os dinossauros? - quis saber Perry.

 

- Temos uma pequena, mas representativa, exposição de espécimes preservados - disse Arak. Depois acrescentou, como num aparte: - Eram criaturas terrivelmente violentas! - Ele abanou a cabeça como se tivesse sentido uma náusea.

 

- Quero ver essa exposição - disse Perry entusiasmado. Sempre quis saber de que cor é que eram os dinossauros.

 

- A maior parte deles eram de um indefinido verde-acinzentado

- disse Arak. - Eram bastante feios, se quer saber a minha opinião.

- Vamos entrar - sugeriu Sufa.

 

o grupo caminhou até ao hall de entrada. Era uma sala enorme, forrada com o mesmo basalto preto que se via no exterior. Das aberturas do tecto, que era bastante alto, saíam raios de uma luz Muito brilhante. Cruzavam-se na semiescuridão como se fossem focos de luz em miniatura, colocados estrategicamente para iluminar, de um modo atraente, os objectos expostos. Inúmeros corredores nasciam deste compartimento central.

 

- Por que é que não está aqui ninguém? - perguntou Suzanne. À sua volta só se viam corredores de mármore vazios. A voz dela ecoou repetidamente no silêncio sepulcral.

 

- É sempre assim - explicou Arak. - Por muito importante que seja este museu, não é particularmente popular. A maior parte das pessoas prefere não ter de se lembrar da ameaça que o vosso mundo constitui para nós.

 

- Está a referir-se à ameaça de detecção - completou Suzanne.

- Precisamente - disse Sufa.

 

- Este parece ser um local onde uma pessoa se pode facilmente perder - disse Perry, espreitando para alguns dos compridos corredores, silenciosos e pouco iluminados.

 

- Não é bem assim - disse Arak, apontando para a sua esquerda.

- Se começarem por ali, onde estão as algas azul-esverdeadas, as exposições da evolução estão ordenadas cronologicamente. - Apontou depois para a direita. - E deste lado temos a cultura da segunda geração de humanos, começando com os primeiros hominídeos e estendendo-se até ao presente. Em qualquer local do museu, é possível encontrar o caminho de regresso para o hall de entrada seguindo a direcção dos espécimes progressivamente mais antigos.

 

- Gostava de ver a exposição relacionada com os tempos modernos - disse Donald.

 

- É para já - disse Arak. - Siga-me. Deixaremos para trás os primeiros cinco ou seis milhões de anos.

 

o grupo seguiu Arak e Sufa como se fossem crianças em visita de estudo ao museu. Para Suzanne e Perry era difícil não parar para observar tudo o que estava exposto, principalmente quando chegaram às salas dedicadas aos artefactos egípcios, gregos e romanos. Nenhum deles vira nada assim anteriormente. Era como se alguém tivesse voltado atrás no tempo e tivesse tido a oportunidade de escolher os melhores objectos. Suzanne ficou particularmente entusiasmada com a exposição de vestuário de época, que era exibido com extremo bom gosto em manequins de tamanho real.

 

- Decerto já repararam que há uma diferença acentuada de quantidade nas nossas colecções - explicou Arak, que tinha ficado junto de Suzanne e Perry enquanto os outros tinham continuado.

- Temos, comparativamente, pouco material moderno. Quanto mais regredirmos na história, mais extensas são as exposições. Há muito tempo atrás costumávamos viajar, usando fatos de isolamento, para recolher objectos para o museu. Por fim, fomos obrigados a parar, com receio de nos estarmos a expôr, quando os vossos antepassados desenvolveram a escrita.

 

- Arak! - chamou Sufa, que estava a várias galerias de distância. - o Donald, o Richard e o Michael estão a andar mais rapidamente, e eu vou acompanhá-los!

 

- Está bem - respondeu Arak. - Encontramo-nos no hall de entrada, dentro de uma hora.

 

Sufa acenou afirmativamente e fez um gesto de despedida com a mão.

 

- Por que é que se preocupavam com o facto de se exporem perante os povos mais antigos? - perguntou Suzanne. - Eles não tinham, certamente, tecnologia que vos pudesse causar problemas.

 

- É verdade - admitiu Arak. - Mas sabíamos que um dia iriam tê-la, e não queríamos nenhum registo das nossas visitas. o problema da experiência falhada da Atlântida era suficiente, apesar de ser menos preocupante, uma vez que os humanos primários que estiveram envolvidos nela se fizeram passar por humanos de segunda-geração.

 

Suzanne acenou, mas a sua atenção tinha sido desviada para um antigo e elaborado vestido minóico que deixaria os seios completamente expostos.

 

- Há um período da vossa história moderna do qual possuímos muitos objectos - disse Arak. - Querem ver?

 

Suzanne olhou para Perry, que encolheu os ombros.

- Claro que sim - disse ela.

 

Arak virou à esquerda e caminhou através de uma galeria lateral recheada de belíssima cerâmica proveniente da Grécia. Com Suzanne e Perry sempre atrás de si, ele contornou outra esquina e subiu um pequeno lanço de escadas. No piso superior encontraram uma enorme galeria repleta de material da Segunda Guerra Mundial. Os objectos iam desde as pequenas placas de cão e insígnias de uniforme, até a um enorme tanque Sherman, um avião Liberator B-24 e um submarino perfeitamente intacto, com uma imensa variedade de outros objectos pelo meio. Era evidente que tudo o que estava na galeria tinha estado anteriormente submerso no oceano.

 

- Deus do céu - exclamou Perry enquanto passeava por entre o material exposto. - Isto parece mais um ferro-velho do que uma exposição museológica.

 

- Parece que a nossa última guerra mundial contribuiu substancialmente para a colecção do museu - disse Suzanne. Ela e Arak ainda estavam no cimo das escadas. Não estava minimamente interessada nesta exposição.

 

- Uma grande contribuição, sim - concordou Arak. - Durante Cinco anos, objectos como os que vê aqui, não paravam de chegar ao fundo do oceano. Durante estas últimas centenas de anos da vossa história, explorar o fundo do oceano tem sido a nossa única fonte de antiguidades.

 

Suzanne deu uma olhadela ao submarino.

 

- Estão preocupados com o tremendo avanço da tecnologia e das operações submarinas?

 

- Só no que diz respeito às potencialidades do sonar - disse Arak. - Principalmente quando a tecnologia de sonar foi combinada com a elaboração de mapas de contornos batipelágicos. Essa foi uma das razões que nos levaram a fechar as portas de entrada, tal como aquela por onde vocês entraram.

 

Enquanto Arak e Suzanne continuavam a discutir a tecnologia de sonar e a ameaça que ela constituía para a segurança da Interterra, Perry chegou ao fundo da galeria da Segunda Guerra Mundial. Alguma da parafernália parecia estar em perfeitas condições. Outros tinham incrustrações como o Corvette que estava à frente do museu. No fim do corredor, ele espreitou através de uma janela virada a leste e pôde observar as enormes espirais que serviam de suporte aos Açores.

 

Perry olhou depois para baixo e viu algo que lhe captou a atenção. o Oceanus, o submersível da Benthic Marine, estava em cima daquilo que parecia um atrelado acoplado a um enorme táxi aéreo.

- Ei, Suzanne! - chamou Perry. - Venha cá ver isto!

 

Suzanne apressou-se ajuntar-se a ele. Arak seguiu-a. Ambos se inclinaram através da janela e seguiram com o olhar a direcção apontada pelo dedo de Perry.

- Meu Deus! - disse Suzanne. - É o nosso submersível! o que é que ele está a fazer aqui?

 

- Ah, sim - disse Arak. - Esqueci-me de vos dizer o interesse que a vossa embarcação provocou nos conservadores do museu. Penso que, se o permitirem, eles pensam pô-lo em exposição.

 

- Não estava danificado? - perguntou Perry.

 

- Ligeiramente - disse Arak. - Alguns clones-empregados qualificados repararam as luzes exteriores e o braço manipulador. Está familiarizado com os componentes do submarino?

 

- Mais ou menos - disse Perry. - Mas não de uma perspectiva operacional. A Suzanne está mais dentro do assunto. Só estive no submersível duas vezes.

 

- o Donald é que é o especialista - disse Suzanne. - Conhece a nave como a palma da sua mão.

 

- Óptimo - disse Arak. - Temos algumas dúvidas sobre o sonar, que até é mais sofisticado do que nós pensávamos.

 

- É com ele que deve falar - disse Suzanne.

 

- o submersível está em cima de quê? - perguntou Perry.

- Aquilo é um táxi aéreo de mercadoria - disse Arak.

 

Michael fez questão de caminhar ao lado de Donald enquanto este passava pelos corredores do museu como se estivesse a fazer um circuito de manutenção, em vez de estar a contemplar a exposição. De vez em quando, Michael tinha que correr para se manter ao lado dele. Havia já algum tempo que Sufa e Richard tinham ficado para trás.

 

- Por que é que está a andar tão depressa? - perguntou Michael. Pensa que está numa corrida?

 

- Ninguém lhe disse para andar ao pé de mim - respondeu Donald, contornando uma esquina e continuando a andar. Estavam numa galeria que continha esculturas e pinturas renascentistas.

 

- o Richard e eu achamos que devíamos sair da Interterra o mais depressa possível - disse Michael, quase sem fôlego.

 

- Já ouvi isso ao pequeno-almoço - disse Donald escarnecendo. Contornou outra esquina e entrou numa sala onde se viam carpetes penduradas.

 

- Estamos a ficar um bocado preocupados - prosseguiu Michael, tentando manter-se ao lado do ex-oficial que se movia rapidamente.

- Preocupados com quê, marinheiro? - perguntou Donald.

 

- Porque... bem... nós temos um problema - disse Michael, hesitante. - Tem a ver com um par de Interterrestres.

 

- Não estou interessado nos vossos problemas pessoais - respondeu Donald bruscamente.

 

- Mas houve um acidente - disse Michael. - Ou melhor, dois acidentes.

 

Donald parou e Michael fez o mesmo. Donald moveu uma mão à frente da cara de Michael. A sua boca tinha uma expressão de desprezo.

 

- Ouça, seu idiota! Vocês decidiram confraternizar com os Interterrestres. Eu não quero saber das dificuldades de relacionamento que estão a ter. Entendido?

 

- Mas...

 

- Não há mas, nem meio mas, marinheiro! - cuspiu Donald.

- Estou a tentar arranjar maneira de sairmos daqui e não quero ser distraído por si ou pelo idiota do seu companheiro.

 

- OK, OK - disse Michael, levantando as mãos na defensiva.

- Ainda bem que está a tratar desse assunto. A única coisa que me interessa é sair daqui o mais depressa possível. Quer dizer, estou Pronto a ajudar no que for preciso.

 

- Vou tentar não me esquecer disso - disse Donald com ironia.

- Tem alguma ideia de como o vamos conseguir?

 

- Vai ser difícil - admitiu Donald. - Vamos ter que falar com alguém acima do Arak para obtermos algumas respostas. A chave está na informação. o melhor seria encontrar alguém que não seja feliz aqui, mas que no entanto esteja cá há tempo suficiente para saber como é que se sai.

 

- Não há ninguém que me pareça infeliz - comentou Michael.

- É como se estivessem sempre em festa.

 

- Não me estou a referir aos Interterrestres - disse Donald. o Arak deixou implícito que várias pessoas do nosso mundo vieram parar aqui. Algumas delas devem estar com saudades e não tão ligados aos Interterrestres como o Ismael e a Mary Black parecem estar. Faz parte da natureza humana, ou pelo menos da natureza da segunda geração de humanos resistir à opressão. Era uma pessoa assim que eu gostava de encontrar.

 

- Como é que pensa fazer isso?

 

- Não sei - admitiu Donald. - Temos de nos manter de olhos bem abertos para sabermos aproveitar a oportunidade quando ela aparecer. Gosto de andar pela cidade. Enquanto estivermos naquela maldita sala de conferências não conseguiremos encontrar ninguém.

 

- Mas isto aqui está deserto - queixou-se Michael. Os seus olhos percorreram momentaneamente os corredores.

 

- Eu não vim aqui para conhecer pessoas - disse Donald. Vim a este maldito museu na esperança de encontrar algumas armas. Pensei que existissem algumas, mas ainda não vi nada. É ridículo fazer um museu sobre a história humana e não ter nenhuma arma. o pacifismo destes Interterrestres está a pôr-me doido.

 

- Armas! - exclamou Michael, acenando com a cabeça. Não tinha pensado nisso, mas mostrou-se imediatamente interessado.

- É uma rica ideia! Para ser franco, não tinha percebido por que é que queria vir até aqui.

 

- Bem, agora já sabe, marinheiro - disse Donald. - E talvez me possa ajudar, já que isto é enorme. Se nos separarmos, podemos cobrir uma área maior.

 

Mal tinha acabado de fazer a sugestão quando os seus olhos se depararam com algo que não tinha visto em qualquer outra sala de exposição: uma porta fechada com as palavras ENTRADA RESTRITA escritas no painel superior. Sentindo-se curioso em relação ao que poderia estar para trás dela, Donald aproximou-se, seguido de perto por Michael.

 

Quando Donald se aproximou pôde ver que existiam outras palavras, escritas em letra mais pequena: PARA ENTRAR, DIRIJA-SE AO CONSELHO DOS ANCIÃOS.

 

- Que diabo é o Conselho dos Anciãos? - perguntou Michael, falando sobre o ombro de Donald.

 

- Deve ser uma espécie de corpo governativo - disse Donald, pondo a mão na porta e empurrando. Tal como todas as portas da interterra, esta não estava trancada.

 

- Eureka! - disse Donald quando teve um vislumbre de alguns dos objectos que estavam dispostos na sala à sua frente. Abriu completamente a porta e entrou. Michael entrou atrás dele e assobiou.

 

- Não admira que não tenhamos visto qualquer arma - disse Donald. - Parece que têm aqui uma galeria secreta. - A sala era estreita, mas extremamente longa. De ambos os lados viam-se prateleiras cheias de armas.

 

Os dois homens tinham entrado na sala mais ou menos a meio da sua extensão. Na prateleira que ficava em frente à porta, viram um arco medieval ao lado de um conjunto de setas afiadas. Michael inclinou-se e tirou o arco da prateleira, assobiando novamente. Nunca tinha pegado numa arma assim.

 

- Bolas! - exclamou ele. - o ar ameaçador que isto tem. Deu uma pancada no arco com os nós dos dedos, provocando um som bastante sólido. Depois, fez vibrar a corda. Ainda estava em óptimo estado. Ergueu o arco e colocou-o em posição, fazendo pontaria. Aposto que ainda funciona.

 

Donald tinha começado a avançar para a direita, mas percebeu rapidamente que seguia na ordem cronológica errada. As armas eram cada vez mais antigas. À sua frente estava uma colecção de pequenas espadas, lanças e arcos gregos e romanos. Deu a volta e passou por Michael, que estava a tentar dobrar o arco e colocar a corda no sítio certo.

 

- o arco ainda tem bastante força - disse Michael quando finalmente conseguiu. Colocou uma das flechas na guia e ergueu a arma para Donald. - o que é que acha?

 

- É uma hipótese - disse Donald evasivamente, enquanto se dirigia para o outro lado. Sentiu-se encorajado quando viu os primeiros exemplares dos arcabuzes mais antigos. - Mas espero encontrar algo um pouco mais definitivo do que uma besta.

 

- Pensava que isto se chamava um arco - disse Michael.

- É a mesma coisa - disse Donald sem se virar.

 

Michael pôs o dedo na alavanca de lançamento e, sem querer, disparou a arma. A flecha voou da sua posição na guia, fez ricochete na parede de basalto provocando um som agudo, passou rente à orelha direita de Donald, e foi cravar-se numa das prateleiras de madeira. Donald sentiu o vento provocado pela deslocação do ar quando o míssil passou por ele.

 

- Minha mãe do céu! - rugiu Donald. - Quase que me furou com essa maldita coisa!

 

- Desculpe - disse Michael. - Quase que não toquei no gatilho.

 

- Arrume isso antes que algum de nós se aleije - gritou Donald,

- Ao menos já sabemos que funciona - disse Michael.

 

Donald sacudiu a cabeça enquanto levava a mão à orelha para ver se estava tudo bem. Felizmente não havia sangue, mas devia ter sido por pouco. Amaldiçoando a sorte que o tinha colocado junto de dois palhaços, continuou a percorrer a sala. Em breve, encontrou uma colecção de carabinas e pistolas da Segunda Guerra Mundial. Infelizmente estavam todas em mau estado, tendo sofrido os efeitos da água salgada. Sentiu-se desencorajado até que viu uma Luger alemã, mais para o fim da sala. À primeira vista, parecia estar em perfeitas condições.

 

Retendo inconscientemente a respiração, Donald dirigiu-se para a pistola e levantou-a. Para seu grande prazer, a arma parecia estar intacta, mesmo após um exame mais minucioso. Com grande ansiedade, abriu o depósito de cartuchos. Um sorriso iluminou-lhe o rosto. Estava carregada!

 

- Encontrou alguma coisa de jeito? - perguntou Michael, aproximando-se de Donald.

 

Donald fechou o depósito da pistola. Ouviu-se um reconfortante

sólido som mecânico. Donald ergueu a arma no ar.

 

- Era disto que eu andava à procura.

- Fixe! - disse Michael.

 

Com mil cuidados, Donald voltou a colocar a Luger no sítio onde

a encontrara.

 

- o que é que está a fazer? - perguntou Michael. - Não vai levá-la?

 

- Ainda não - disse Donald. - Só quando eu souber o que vou fazer com ela.

 

Richard parou petrificado. Não queria acreditar no que os seus olhos viam. Estava diante de uma sala a abarrotar de preciosidades que, na sua maioria, eram de tempos antigos. Viam-se inúmeras chávenas, taças, e até enormes estátuas feitas de ouro maciço, muito bem iluminadas por focos de luz. Numa esquina, viam-se várias arcas cheias de dobrões. A exposição era estonteante.

 

o que deixara Richard ainda mais assombrado fora o facto de toda a colecção, cujo valor era inestimável, estar ao seu alcance, uma vez que não estava fechada nem protegida por vidros, como era usual em todos os museus que ele já visitara. E, ainda por cima, a porta da frente do museu não era guardada.

 

- É inacreditável - disse Richard, gaguejando um pouco. Nunca vi nada assim. o que eu não faria por um carrinho de mão destas coisas.

 

- Gosta destes objectos? - perguntou Sufa.

 

- Se gosto? Adoro! - tartamudeou Richard. - Duvido que haja assim. tanto ouro no Forte Knox.

 

- Temos armazéns cheios destas coisas - disse Sufa. - Houve uma época em que não paravam de se afundar navios carregados de ouro. Se quiser posso mandar alguns objectos semelhantes a estes para o seu quarto, para que os possa contemplar.

 

- Coisas iguais a estas?

 

- Claro - disse Sufa. - Prefere as estátuas grandes ou objectos mais pequenos?

 

- Não sou esquisito - disse Richard. - E jóias? o museu também tem jóias?

 

- Claro que sim - disse Sufa. - Mas a maior parte delas vem dos tempos antigos. Quer vê-las?

 

- Por que não? - respondeu Richard.

 

Enquanto caminhava em direcção à sala das jóias antigas, Richard reparou num objecto que fazia parte de uma exposição de artigos do século vinte, e não pôde deixar de sorrir. Sobre um alto pedestal, estava um disco de plástico cuidadosamente iluminado por um foco de luz, como se fosse tão valioso como o ouro.

 

- Ora, vejam só! - disse Richard para si próprio, quando parou em frente ao disco verde-amarelado. Reparou que à volta do disco se viam várias marcas de mordidelas caninas. - Por que diabo é que isto está aqui? - perguntou ele a Sufa, que estava já mais à frente.

 

Sufa voltou para onde Richard estava para ver a que é que ele se estava a referir.

 

- Não sabemos exactamente o que é isso - admitiu ela. - Mas foi sugerido que poderia ser um modelo dos nossos veículos antigravidade, como os táxis aéreos ou os cruzeiros interplanetários. Durante algum tempo, tememos que nos tivessem avistado directamente.

 

Richard atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

- Está a brincar comigo - disse ele.

 

- Não, não estou a brincar - disse Sufa. - A forma é muito Sugestiva, e pode ser atirado para apanhar uma almofada de ar que imita uma nave antigravidade.

 

- Não é um modelo - disse Richard. - É um simples disco de Plástico.

 

- Para que é que serve? - perguntou Sufa.

 

É um brinquedo - disse Richard. - Atira-se, tal como você disse, e outra pessoa vai apanhá-lo. Vou mostrar-lhe. - Richard pegou no disco e lançou-o ao ar. o disco descreveu um ângulo e depois voltou. Ele apanhou-o com a palma da mão, segurando-o entre o polegar e os restantes dedos.

 

- É para isto que serve - disse ele. - É fácil, não acha?

- Acho - disse Sufa.

 

Vou atirá-lo na sua direcção e você apanha-o como eu fiz agora - disse Richard. Correu pela galeria, afastando-se cerca de quinze metros. Virou-se e lançou o disco para Sufa. Ela movimentou-se como se o fosse apanhar, mas foi desastrada. Apesar de o disco lhe ter tocado na mão, ela não o agarrou; o disco caiu no chão. Depois de deitar um olhar impaciente a Sufa, Richard afastou-se de novo e mostrou-lhe outra vez como é que devia fazer. Mas os seus esforços foram em vão. Da segunda vez ela atrapalhou-se ainda mais.

- Vocês não são muito dados a actividades físicas, pois não? disse Richard, zombeteiramente. - Nunca conheci uma pessoa que não conseguisse agarrar um disco.

 

- Qual é o objectivo?

 

- Não há objectivo - disse Richard. - É uma diversão. E um desporto. Atirar isto de um lado para o outro, faz-nos correr.

 

- Parece-me algo sem sentido - disse Sufa.

 

- Aqui na Interterra nunca se pratica exercício físico?

 

- Claro que sim - disse Sufa. - Gostamos principalmente de nadar, mas também de andar e de jogar com os homids. E, claro, há o sexo, como calculo que Meeta, Palenque e Karena lhes devem ter mostrado.

 

Estou a falar de desporto! - disse Richard. - o sexo não é um desporto.

 

- Para nós, é - disse Sufa. - E envolve bastante exercício.

- E têm algum desporto em que se tente ganhar? - quis saber Richard.

 

- Ganhar? - perguntou Sufa.

 

- Sim, estou a falar de competição! - disse Richard, em tom de aborrecimento. - Não têm desporto de competição?

 

- Claro que não! - disse Sufa. - Acabámos com esse disparate há eras atrás, quando eliminámos as guerras e a violência.

 

- Oh, por amor de Deus - explodiu Richard. - Não têm desportos! Isso quer dizer que não têm hóquei no gelo, futebol, nem sequer golfe! Bolas! E a Suzanne ainda pensa que isto aqui é o paraíso!

 

Por favor, acalme-se - implorou Sufa. - Por que é que está tão agitado?

 

- Acha que estou agitado? - perguntou Richard, inocentemente.

- Acho, sim - disse Sufa.

 

- Preciso de fazer exercício - justificou-se Richard. Tinha o disco debaixo do braço e estalou nervosamente os nós dos dedos. Sabia que estava com os nervos em franja, e sabia porquê: a sua imaginação não parava de lhe mostrar a cena em que um cloneempregado se deparava com o corpo de Mura entalado no frigorífico.

 

- Por que é que não leva o disco? - sugeriu Sufa. - Talvez o Michael ou um dos outros queira jogar consigo.

 

- Por que não? - disse Richard, mas sem muito entusiasmo.

 

- Peço a vossa atenção! - disse Arak. o grupo estava reunido no pátio em frente ao museu, depois de terem estado mais de uma hora lá dentro. Estavam a discutir o que tinham visto, à excepção de Richard, que se tinha afastado e se entretia a lançar o disco ao ar e a apanhá-lo. Ao fundo das escadas esperavam três táxis aéreos.

 

- Vamos combinar o que é que se vai fazer durante o resto da manhã - disse Arak. - A Sufa irá acompanhar Perry até ao centro de construção e reparação de táxis aéreos. Penso que é esse o seu desejo, Perry.

 

- É sim - concordou Perry.

 

- o Ismael e a Mary irão com Donald e Michael até à Central de Informação - continuou Arak.

 

Donald acenou.

 

- E você, Richard? - perguntou Arak. - A qual destes dois sítios prefere ir?

 

- Tanto me faz - disse Richard, continuando a atirar o disco para o ar.

 

- Tem de escolher um dos dois - disse Arak.

 

- Okay, então vou à fábrica de táxis aéreos - disse Richard, permanecendo impassível.

 

- E a Suzanne? - perguntou Perry. - A Dra. Newell irá comigo a uma reunião do Conselho dos Anciãos - disse Arak.

 

- Sozinha? - Perry deitou a Suzanne um olhar protector.

 

- Não há problema - assegurou-lhe Suzanne. - Enquanto esteve dentro do submarino, na Sala da Segunda Guerra Mundial, Arak explicou-me que os Anciãos queriam conversar comigo profissionalmente, enquanto oceanógrafa.

 

- Mas por que é que vai sozinha? - insistiu Perry. - E por que é que não falam comigo? Afinal, eu dirijo uma companhia oceanográfica.

 

- Acho que o que lhes interessa não é a questão do negócio disse suzanne. - Não se preocupe.

 

- Tem a certeza? - persistiu Perry.

 

- Absoluta - disse Suzanne, dando uma palmadinha no ombro de Perry

 

- Então vamos - chamou Arak. - Encontramo-nos todos no palácio dos visitantes no final do dia. - Fazendo sinal para que os outros o seguissem, contornou o pedestal do Corvette antigo e começou a descer a escada em direcção aos táxis aéreos.

 

Enquanto o táxi aéreo os levava até ao destino, Suzanne sentiu-se um pouco estranha por estar sozinha com Arak. Nunca tinha estado longe dos outros, excepto quando se retirava para passar a noite nos seus aposentos. Ela olhou para Arak e ele sorriu-lhe. Estar a sós com ele fê-la aperceber-se de novo do quanto ele era atraente.

 

- Está a gostar da orientação? - perguntou Arak. - Ou sente-se frusttrada porque acha que estamos a ir ou depressa ou devagar demais?

 

- Impressionada» é a palavra que melhor descreve o que eu sinto - disse Suzanne. - Não é a velocidade da apresentação que está em questão, e não me sinto nada frustrada.

 

- o vosso grupo é um grande desafio para nós; não tem sido fácil planear as melhores estratégias a seguir. São todos muito diferentes, um facto que nos deixa fascinados, mas também um pouco assustados. Como deve compreender, devido aos processos de selecção e adaptação, nós somos todos muito parecidos, mas já deve ter constatado isso,

 

- São todos muito simpáticos - disse Suzanne, acenando com a cabeça e estremecendo um pouco ao proferir tal cumprimento. Apercebeu-se que, até Arak ter falado, não tinha pensado muito acerca do assunto. E, agora que pensava, percebeu que era verdade. Não só pelo facto de possuírem todos uma beleza clássica muito atraente, mas também porque eram todos igualmente elegantes, inteligentes e compreensivos. Havia pouca variedade de temperamentos, se é que existia alguma.

 

- Simpáticos é uma palavra pouco significativa - disse Arak.

- Espero que não nos ache enfadonhos.

 

Suzanne riu-se, percebendo onde Arak queria chegar.

 

- É difícil sentirmo-nos aborrecidos ao lado do vosso entusiasmo

- disse ela. - Garanto-lhe que não me sinto enfadada. - Os olhos dela afastaram-se para a incrível vista sobre a cidade, e para os táxis aéreos que cruzavam o ar. A última coisa que ela se sentia era aborrecida e, no entanto, percebia a que é que Arak se estava a referir. Depois de algum tempo, a Interterra podia tornar-se cansativa, devido à homogeneidade. Os aspectos que a tornavam paradísíaca eram os mesmos que lhe tiravam parte do interesse.

 

Suzanne fixou a atenção numa estrutura imponente, que se destacava dos restantes edifícios da cidade, e cuja visão a fez abstrair-se dos seus pensamentos, enquanto o táxi aéreo se aproximava a grande velocidade. Era uma enorme pirâmide negra com o topo dourado e brilhante. Enquanto o táxi aéreo parava e começava a descer para um caminho elevado que levava até à entrada da pirâmide, Suzanne sentíu-se impressionada com a semelhança que a estrutura tinha com a Grande Pirâmide do Egipto, em Gizé. Tendo já visitado Gizé, ela constatou que a versão da Interterra tinha, ínclusívamente, dimensões aproximadas. Quando mencionou o facto a Arak ele sorriu paternalmente.

 

- Esse design foi uma das nossas ofertas a essa cultura - disse Arak. - Depositámos grandes esperanças neles, uma vez que, no início, constituiam uma civilização bastante pacífica. Enviámos uma delegação para viver entre eles, logo no princípio da sua história, com o objectivo de os dar a conhecer a outros povos mais violentos que existiam. A experiência não foi tão abrangente como as movimentações da Atlântida, e empenhámo-nos nela, só que não correu bem.

 

- Ensinaram-lhes como haviam de a construir, para além de a terem desenhado? - perguntou Suzanne. Para ela, o enigma da Grande Pirâmide era um dos mais fascinantes do mundo antigo.

 

- Evidentemente - respondeu Arak. - Tivemos de o fazer. Também lhes ensinámos o conceito de arco, mas eles recusaram-se peremptoriamente a acreditar que resultava, e nunca o tentaram concretizar.

 

o táxi aéreo parou e surgiu uma abertura lateral.

- Faça favor - disse Arak, com delicadeza.

 

Uma vez dentro da pirâmide, Suzanne percebeu que, no que dizia respeito ao interior, as semelhanças entre as duas estruturas deixavam de existir. o interior da pirâmide Interterrestre era em mármore e o espaço era amplo, em vez de claustrofóbico.

 

Enquanto caminhava ao lado de Arak através de um corredor que levava ao centro do edifício, Suzanne teve outra surpresa. Garona apareceu, vindo de uma passagem lateral à sua frente, e envolveu-a num caloroso abraço.

 

- Garona! - murmurou Suzanne, obviamente encantada e abraçando-o também. - Que óptima surpresa! Só esperava vê-lo logo à noite. Ou pelo menos tinha essa esperança.

 

- Claro que me iria ver logo à noite - disse Garona. - Mas não pude esperar. - Olhou-a nos olhos e disse: - Sabia que hoje viria até ao Conselho dos Anciãos, por isso vim até cá ter consigo.

 

Fico muito contente - disse Suzanne.

 

É melhor continuarmos - disse Arak. - o Conselho está à espera.

 

- Certamente - disse Garona. Libertou suzanne do abraço e agarrou na sua mão. Os três caminharam através do corredor.

 

- Como foi a sua manhã? - perguntou Garona.

 

- Esclarecedora - disse suzanne. - A vossa tecnologia é impressionante.

 

- Tivemos uma sessão científica - explicou Arak.

- Fizeram alguma visita? - perguntou Garona.

 

- Visitámos o Museu da Superfícíe da Terra - disse suzanne,

- A sério? - Garona parecia surpreendido.

 

- Foi um desejo do Sr. Donald Fuller - explicou Arak.

- E foi instrutivo? - perguntou Garona.

 

- Foi interessante - disse Suzanne. - Mas teria gostado mais de visitar outros locais, depois do que aprendemos na sessão didáctica.

 

Tinham-se aproximado de duas impressionantes portas de bronze. Em cada um dos painéis via-se uma figura em relevo que suzanne reconheceu como sendo uma cruz ansada, símbolo da vida do antigo Egipto. A figura fê-la recordar-se do que Arak lhe contara acerca da troca de informações que os Interterrestres tinham efectuado com a antiga civilização de humanos de segunda-geração. Tentou imaginar o que mais teria vindo desta cultura avançada.

 

Quando se aproximaram um pouco mais, as portas abriram silenciosamente para o interior. Surgiu um compartimento circular, com um tecto em abóbada suportado por colunas. Tal como os restantes espaços do interior da pirâmide, a sala era construída em mármore branco, apesar dos capítéis das colunas serem dourados.

 

A pedido de Arak, suzanne passou através da entrada de mármore, dando alguns passos hesitantes e acabando por parar. Olhou à volta da sala. Viu doze cadeiras com um ar imperial, arrumadas em círculo à volta do compartimento. Cada uma estava situada entre um par de colunas. Todas as cadeiras estavam ocupadas, presumivelmente por membros do Conselho, cuja idade variava entre os cinco e os vinte e cinco anos. o inesperado desta situação deixou suzanne ligeiramente confusa. Algumas das pessoas eram tão novas que os seus pés não chegavam ao chão.

 

- Entre, Dra. Suzanne Newell - disse um dos Anciãos, numa voz clara de pré-adolescente. Era uma rapariga que parecia ter dez anos. - o meu nome é Ala, e é a minha vez de ser a porta-voz do conselho. Por favor, não tenha medo! Eu sei que todo o ambiente é ímponente e intimidante, mas nós só desejamos falar consigo, e, se vier até ao centro da sala, poderemos ouvi-la claramente.

 

- Estou mais surpreendida do que assustada - disse Suzanne enquanto se dirigia para um sítio que ficava directamente sob o ponto mais alto da abóbada. - Disseram-me que viria até ao Conselho dos Anciãos.

 

- E veio - disse Ala. - o factor determinante para ter lugar no Conselho é o número de vidas corporais pelas quais já se passou e não a idade do corpo actual.

 

- Compreendo - disse Suzanne, apesar de ainda se sentir um pouco desconfortável por estar perante um corpo governamental parcialmente composto por crianças.

 

- o Conselho dos Anciãos dá-lhe formalmente as boas-vindas

- disse Ala.

 

- Obrigada - respondeu Suzanne, não sabendo o que dizer a seguir

- Trouxemo-la para a Interterra na esperança de que nos pudesse fornecer informações que não conseguimos obter através da monitorização das comunicações à superfície da Terra.

 

- Que tipo de informações? - perguntou Suzanne, na defensiva. Lembrou-se da voz de Donald a dizer que os Interterrestres deviam querer alguma coisa deles e que, quando tivessem o que queriam, começariam a tratá-los de modo diferente.

 

- Não se alarme - disse Ala, com uma voz suave.

 

- É difícil - disse Suzanne. - Principalmente porque me faz recordar que eu e os meus colegas fomos raptados e trazidos para o vosso mundo, e que isso foi uma experiência aterradora.

 

- Pedimos desculpa pelo sucedido - disse Ala. - E deve compreender que é nossa intenção recompensar o vosso sacrifício. Mas nós é que estamos receosos. A integridade e a segurança da Interterra são da nossa responsabilidade. Sabemos que é uma óptima oceanógrafa no seu mundo.

 

- É muita generosidade - disse Suzanne. - Na realidade, sou relativamente nova na profissão.

 

- Peço desculpa - disse um dos Anciãos. Era um rapaz no início da adolescência. - Chamo-me Ponu. e sou, presentemente, o vice-porta-voz. Dra. Newell, nós temos plena consciência da estima com que é tratada pelos seus colegas de profissão. Consideramos que o respeito com que é tratada é um sinal seguro das suas capacidades.

 

- Se é isso que pensa - disse Suzanne. Não era um assunto que quisesse discutir nas circunstâncias actuais. - o que é que me querem perguntar?

 

- Em primeiro lugar - disse Ala - gostaria de ter a certeza de que foi informada do facto do nosso ambiente não possuir nenhuma das vossas bactérias e vírus mais comuns.

 

- o Arak já esclareceu esse assunto - disse Suzanne.

 

- E presumo que compreenda que a detecção da nossa civilização por uma civilização como a vossa seria algo de desastroso.

 

- Compreendo que estejam preocupados com a contaminação

- disse Suzanne. - Mas não me parece que fosse necessariamente desastroso, principalmente se se tomassem as devidas salvaguardas.

 

- Dra. Newell, isto não pretende ser um debate - disse Ala. Mas tenho a certeza de que compreende que a vossa civilização ainda está numa fase inicial de desenvolvimento social. A vossa principal motivação é o interesse pessoal e a violência é recorrente. Na verdade, o seu país em particular é de tal modo primitivo que permite que qualquer pessoa tenha uma arma.

 

- Deixe-me pôr as coisas de outra maneira - disse Ponu. - o que a minha estimada colega de Conselho pretende dizer é que a ganância que o vosso mundo teria em relação à nossa tecnologia seria tal que as nossas necessidades especiais seriam esquecidas.

 

- Exactamente - disse Ala. - E não podemos correr esse risco. Não durante os próximos cinquenta mil anos, aproximadamente, para dar aos humanos de segunda-geração a oportunidade de se tornarem mais civilizados. Desde que, evidentemente, não se destruam a eles mesmos durante esse período.

 

- Okay - disse Suzanne. - Tal como disse, isto não é um debate, e fiquei a perceber que vocês acreditam que a nossa cultura é um risco para a vossa. Assumindo que esse é, realmente, o caso, o que é que pretendem de mim?

 

Houve uma pausa. Suzanne olhou para Ala e para Ponu. Quando viu que nenhum deles respondia, olhou para os outros rostos. Ninguém disse nada. Ninguém se mexeu. Suzanne virou-se para Arak e Garona. Garona fez um sorriso encorajador. Suzanne olhou de novo para Ala.

 

- Então...? - perguntou ela. Ala suspirou.

 

- Gostaria de lhe fazer uma pergunta directa - disse ela. Uma pergunta cuja resposta temos receio de ouvir. Ao longo dos últimos anos, o seu mundo tem levado a cabo uma série de operações de perfuração no fundo do oceano, feitas, aparentemente, ao acaso. Temos observado esses episódios com crescente preocupação, uma vez que não estamos seguros em relação aos objectivos que pretendem atingir. Sabemos que as perfurações não são para encontrar petróleo, nem gás natural, porque não existe nenhuma dessas coisas nos locais onde têm sido levadas a cabo as perfurações. Temos monitorizado as comunicações, tal como sempre fizemos, mas ainda não conseguimos perceber os motivos das operações de perfuração.

 

- Está interessada em saber por que é que o Benthic Explorer tem estado a fazer perfurações na montanha submarina? - perguntou Suzanne.

 

- Estou muito interessada - disse Ala. - Estavam a conduzir a operação directamente por cima de uma das nossas mais antigas saídas. As probabilidades de isso ter acontecido por acaso são extremamente reduzidas.

 

- Não foi por acaso - admitiu Suzanne. Assim que ela proferiu estas palavras, ouviu-se um burburinho entre os Anciãos. - Deixem-me acabar - pediu ela. - Estávamos a escavar a montanha submarina para tentar chegar directamente à astenosfera. o nosso sonar sugeriu que a montanha era um vulcão inerte com um compartimento de magma cheio de lava de baixa densidade.

 

- A decisão de perfurar naquele sítio em particular não teve nada a ver com o facto de existirem suspeitas acerca da existência da Interterra? - quis saber Ala.

 

- Como acabei de dizer, estávamos a perfurar por razões puramente geológicas - disse Suzanne.

 

Os Anciãos conferenciavam novamente uns com os outros. Suzanne virou-se e olhou paraArak e Garona. Ambos a encorajaram com um sorriso.

 

- Dr aNewell - disse Ala, para voltar a chamar a atenção de Suzanne - alguma vez lhe sucedeu, ao desempenhar a sua actividade profissional, ouvir qualquer referência que lhe pudesse sugerir que alguém suspeitava da existência da Interterra?

 

- Não, nunca ouvi tal coisa nos círculos científicos que frequento

- disse Suzanne. - Mas foram escritos alguns romances acerca de um mundo no centro da Terra.

 

- Conhecemos os trabalhos do Sr. Verne e do Sr. Doyle - disse Ala. - Mas trata-se de ficção, de puro entretenimento.

 

- É verdade - disse Suzanne. - Trata-se de fantasia. Ninguém pensou em atribuir qualquer base factual às histórias, apesar da ideia original ter vindo de um homem chamado John Cleves Symmes, que acreditava que o centro da terra era oco.

 

Os Anciãos começaram de novo a trocar, ansiosamente, impressões entre si.

 

- As crenças do Sr. Symes chegaram a influenciar a comunidade científica? - perguntou Ala.

 

- Até certo ponto, sim - disse Suzanne. - Mas não me parece que isso seja motivo para preocupações, uma vez que estamos a falar de algo que aconteceu no início do século dezanove. Em mil oitocentos e trinta e oito, a teoria despoletou, de facto, uma das primeiras expedições científicas dos Estados Unidos. Foi dirigida pelo Tenente Charles Wilkes, e o seu objectivo inicial era encontrar a entrada para o interior oco da Terra, que Symmes acreditava ser sob o Pólo Sul.

 

o burburinho ecoou mais uma vez pela sala.

 

- E qual foi o resultado dessa expedição? - perguntou Ala.

 

- Nada que possa ter a ver com a Interterra - disse Suzanne.

- Na verdade, o objectivo da expedição foi alterado mesmo antes dela começar. Em vez de uma tentativa de encontrar a entrada para o interior da terra, no momento da partida a tarefa era encontrar novos dados sobre as baleias e as focas.

 

- Então a teoria do Sr. Symmes foi ignorada? - perguntou Al a.

- Completamente - disse Suzanne. - E a ideia nunca foi retomada.

 

- Ficamos agradecidos - disse Ala. - Principalmente porque o Sr. Symmes tinha razão em muitos aspectos. o Pólo Sul foi e ainda é a nossa principal saída ínterplanetária e intergaláctica.

 

- Que curioso - disse Suzanne. - Infelizmente é tarde demais para o Sr. Symmes. Seja como for, deduzo pelas suas perguntas, que querem saber se o vosso segredo está seguro, e a resposta é sim, pelo menos que eu saiba. Mas já que estamos a falar nesse assunto, talvez fosse melhor eu dizer que apesar de ninguém acreditar que a terra seja oca, existiram sempre grupos de pessoas que falam da existência de alienígenas vindos de culturas mais avançadas que nos visitaram ou que habitam entre nós. Houve, inclusive, um programa de televisão, que foi um sucesso, e que tratava exactamente desse tema. Mas esta ideia de alienígenas que nos visitam está mais relacionada com visitantes de outros planetas e não do interior da Terra.

 

- Temos conhecimento disso - disse Ala. - E sentimo-nos satisfeitos com essa associação. Veio a revelar-se bastante útil, nas poucas ocasiões em que uma das nossas naves interplanetárias foí observada pela segunda geração de humanos.

 

- A única coisa que posso acrescentar - continuou Suzanne, é que a nossa cultura tem criado mitos sobre a Atlântida, que chegaram até nós vindos da Grécia antiga. Mas posso garantir-lhe que a comunidade científica considera-os ou puramente mitológicos, ou o resultado da destruição de uma antiga cultura da segunda geração de humanos, pela erupção violenta de um vulcão. Nunca existiu nenhuma teoria sobre a existência de uma primeira cultura humana que vivesse debaixo do oceano.

 

os Anciãos voltaram a conferenciar ruidosamente. Suzanne apoiou-se num pé e no outro, com desconforto, enquanto eles chegavam a uma deliberação.

 

Ala deu por concluído o debate, acenando com a cabeça para os colegas e, em seguida, voltou a dirigir a sua atenção para Suzanne.

- Gostaríamos de pôr algumas questões sobre as operações de perfuração no fundo do oceano que têm sido levadas a cabo na área de Saranta, durante os últimos anos. Nenhuma delas foi efectuada na crista de uma montanha submarina.

 

- Penso que se está a referir às perfurações que têm sido feitas para confirmar as últimas teorias acerca da evolução do solo oceânico

- disse Suzanne. - Foram feitas tendo como único objectivo a obtenção de amostras de rochas para serem posteriormente datadas.

 

o Conselho voltou de novo a conversar. Quando acabaram, Ala perguntou:

 

- Alguma vez foi sugerido que o compartimento de magma que estavam a perfurar continha ar em vez de lava de baixa densidade?

- Que eu tenha conhecimento, não - disse Suzanne. - E fui eu que coordenei cientificamente o projecto.

 

- As portas de saída deviam ter sido seladas há vários anos disse um dos Anciãos, com alguma veemência.

 

- Não é esta a altura apropriada para recriminações - aconselhou Ala com diplomacia. - o que nos importa agora é o presente.

- Em seguida, olhou de novo para Suzanne. - Resumindo, ao longo da sua vida profissional nunca ouviu qualquer sugestão acerca da existência de uma civilização que vivesse debaixo do oceano, nem teve conhecimento de qualquer teoria a esse respeito?

 

- Só sob a forma de mito, como já referi - disse Suzanne.

 

- Vamos então à última questão que lhe queremos dirigir directamente - disse Ala. - Estamos cada vez mais apreensivos ein relação à falta de respeito que a vossa civilização tem vindo, progressivamente, a demonstrar pelo oceano. Apesar de termos visto este problema mencionado algumas vezes nos media, o grau de poluição e de pescas abusivas tem aumentado. Uma vez que, até certo ponto, estamos dependentes da integridade do oceano, gostaríamos de saber se estão realmente preocupados com esta situação ou se tudo não passa de conversa?

 

Suzanne suspirou. Este assunto era-lhe muito próximo. Ela sabia que a verdade era, no mínimo, pouco encorajadora.

 

- Existem algumas pessoas que estão a tentar mudar a situação

- disse Suzanne.

 

- A sua resposta sugere que a maioria das pessoas não está Preocupada - disse Ala.

 

- Talvez não estejam, mas os que estão preocupados levam o assunto muito a sério.

 

Mas talvez o público em geral não esteja consciente do papel crucial que o oceano desempenha na estrutura do ambiente da superficie da Terra, por exemplo, o facto do plancton modular tanto o oxigénio como o dióxido de carbono à superfície da Terra.

 

suzanne sentiu-se corar, como se, de algum modo, fosse responsável pelo modo como os humanos de segunda-geração tratavam o oceano.

 

Receio que a maior parte das pessoas e a maioria dos países encarem o oceano como uma fonte inesgotável de comida e como uma fossa sem fundo para lançar lixo e excedentes.

Isso é, de facto, bastante triste - disse Ala. - E preocupante.

- Revela egoísmo e falta de visão - disse Ponu.

 

- Concordo inteiramente - admitiu suzanne. - Eu e os meus colegas temos trabalhado nisso. É uma grande batalha.

 

Muito bem - disse Ala, levantando-se da cadeira. Assim que ficou de pé, dirigiu-se directamente para Suzanne com a mão estendida e com a palma para fora.

 

Suzanne levantou a sua mão e tocou na palma da mão de Ala. A cabeça desta só lhe chegava ao queixo.

 

Obrigada pelas suas palavras - disse Ala, com sinceridade. Pelo menos em relação à segurança da Interterra, aliviou os nossos receios. Como recompensa, oferecemos-lhe a variedade dos frutos da nossa civilização. Ainda tem muito que ver, e muitas experiências a passar. A sua educação e cultura fazem com que seja privilegiada, mais do que qualquer outro visitante da superfície da Terra. Vá e divírta-se!

 

De súbito, os restantes elementos do Conselho começaram a aplaudir, deixando suzanne momentaneamente embaraçada. Reagiu aos aplausos com um movimento da cabeça, antes da sua voz se elevar acima das palmas que persistiam.

 

Agradeço a todos a oportunidade que me foi dada de visitar a Interterra. Sinto-me muito honrada.

 

A honra é toda nossa - disse Ala. Fez um gesto na direcção..!           de Arak e Garona, indicando a Suzanne que se fosse juntar a eles. Momentos mais tarde, quando saíam os três da enorme pirâmide,

 

Suzanne deteve-se para dar uma última olhadela à estrutura imponente. Estava a pensar se devia ter perguntado ao Conselho se ela e os outros eram visitantes temporários da Interterra ou residentes permanentes e cativos. Uma das razões por que não colocara a questão fora o facto de temer ouvir a resposta. Mas agora desejava tê-lo feito.

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- Sente-se bem? - perguntou Garona, interrompendo o fio do seu pensamento.

 

- Estou óptima - respondeu Suzanne. Recomeçou a andar, continuando as suas reflexões. Um dos resultados positivos da visita fora o facto de ter ficado esclarecida acerca das razões pelas quais eles tinham sido trazidos para a Interterra. Os Anciãos pretendiam interrogar uma oceanógrafa profissional acerca da possibilidade de existirem suspeitas da existência da Interterra. Não lhe parecia que o tratamento que ela e os restantes tinham recebido se fosse alterar, agora que os Interterrestres tinham atingido o seu objectivo. Por outro lado, sentia-se a única responsável pela situação em que se encontravam. Se não tivesse sido por ela, não teriam sido raptados.

 

- Tem a certeza de que está tudo bem consigo? - perguntou Garona. - Parece tão pensativa.

 

Suzanne obrigou-se a sorrir.

 

- É difícil não pensar - disse ela. - Há tanta coisa para assimilar.

- A Suzanne prestou-nos um grande serviço - comentou Arak.

- Como Ala disse, estamos-lhe imensamente gratos.

 

- Fico contente - disse Suzanne, enquanto se esforçava por manter o sorriso. Mas era complicado. Tendo o pressentimento de que Donald tinha razão e de que estavam na Interterra para ficar, a sua intuição dizia-lhe que a confrontação seria inevitável, o que, tendo em conta as personalidades de alguns dos seus colegas, podia significar que, em breve, a situação se poderia tornar violenta e negativa.

 

- Este lugar causa-me arrepios - disse Michael.

 

- É estranho que esteja tão deserto - disse Donald. - Também é esquisito o facto de eles nos deixarem andar por aqui à vontade.

- Têm confiança em nós - disse Michael. - Isso temos de admitir.

- Não é muito inteligente da parte deles - disse Donald.

 

Os dois humanos de segunda-geração estavam a andar de um lado para o outro no interior da Central de Informação. Ismael e Mary Black tinham-nos acompanhado até à entrada do edifício espaçoso, mas tinham preferido ficar lá fora enquanto Donald e Michael faziam a visita. Lá dentro, os dois homens encontraram-se num enorme labirinto no qual se cruzavam corredores e passagens. o espaço era composto por inúmeros compartimentos repletos daquilo que pareciam ser as drives de um colossal sistema informático. Não tinham encontrado ninguém, excepto dois clones-empregados que estavam numa sala perto da entrada.

 

- Não nos vamos perder aqui dentro, pois não? - perguntou Míchael, pouco à vontade. Virou-se para trás, para o caminho que tinham percorrido. Os corredores pareciam todos iguais.

 

- Tenho estado a tomar atenção ao caminho - disse Donald.

- Tem a certeza? - disse Michael. - Já mudámos tantas vezes de direcção.

 

Donald parou.

 

- Ouça, seu idiota - disse ele. - Se está preocupado, por que é que não volta para a porcaria da entrada e fica à espera?

 

- Não é preciso - disse Michael. - Não estou preocupado.

 

- Não que não está - disse Donald, começando de novo a andar.

- Afinal, para que é que quis vir aqui? - perguntou Michael alguns minutos mais tarde.

 

- Digamos que estava curioso - respondeu Donald.

 

- Parece um pesadelo - disse Michael. - Ou um daqueles filmes de terror onde a tecnologia enlouquece. - Ao dizer isto, estremeceu.

- Pelo menos desta vez estou de acordo consigo, marinheiro -

 

disse Donald. - Parece que as máquinas detêm o controlo da situação.

 

- Para que é que servirá todo este equipamento?

 

- Arak disse que é aqui que são dirigidas todas as operações disse Donald. - Estão aqui todas as informações e as essências das pessoas. Só Deus sabe a quantidade de pessoas que estão guardadas dentro desta coisa, neste preciso momento.

 

Michael teve um novo estremecimento.

 

- Acha que eles sabem que estamos aqui?

 

- Não lhe sei responder, marinheiro - disse Donald. Durante alguns minutos caminharam em silêncio.

 

- Ainda não viu tudo o que queria ver? - perguntou Michael.

- Acho que sim - disse Donald. - Mas vou ficar mais algum tempo.

- Será que esta coisa se arranja a ela própria?

 

- Se o faz - disse Donald -, então devíamos perguntar-nos quem é que tem mais vida, a máquina ou as pessoas que parecem não ter quase nada para fazer.

 

Subitamente, Donald esticou a mão, fazendo sinal a Michael para que parasse.

 

- o que foi? - perguntou Michael, em voz alta. Donald levou um dedo aos lábios pedindo silêncio.

- Não está a ouvir? - murmurou Donald.

 

Michael inclinou a cabeça e pôs-se à escuta. Conseguiu ouvir alguns sons abafados, muito à distância: pequenas gargalhadas que se destacavam no silêncio quase absoluto.

 

- Consegue ouvir? - perguntou Donald. Michael acenou com a cabeça.

 

- Parecem gargalhadas. Donald acenou, concordando.

 

- E muito curiosas - disse ele. - Vêm em intervalos regulares.

- Faz-me lembrar aquele riso enlatado que aparece nos programas de televisão.

 

Donald estalou os dedos.

 

- Tem razão! Bem me parecia que o som era familiar.

- Mas não faz sentido - disse Michael.

 

- Vamos investigar - disse Donald. - Vamos seguir os sons! Cada vez mais curiosos, os dois homens prosseguiram, tentando encontrar a origem do som que ouviam. A cada intersecção de corredores, tinham que parar e escutar antes de decidir qual a direcção a seguir. Os sons foram-se tornando progressivamente mais altos, fazendo com que fosse mais fácil encontrar o caminho certo. Quando mudaram mais uma vez de direcção, perceberam que o ruído vinha de um compartimento à esquerda. Nesse momento compreenderam que estavam, de facto, a ouvir um programa televisivo; conseguiam até ouvir os diálogos.

 

- Parece um episódio do Seinfeld - murmurou Michael.

 

- Esteja calado! - disse Donald, movimentando os lábios e emitindo o mínimo som possível. Encostou-se à parede ao lado da entrada do compartimento e fez sinal a Michael para que o imitasse. Lentamente, Donald foi avançando em direcção à entrada. com grande surpresa, constatou que o compartimento parecia a sala de realização de uma estação televisiva. A parede do fundo estava coberta com mais de uma centena de monitores. Estavam todos ligados e a maior parte sintonizava diversos programas, embora alguns só mostrassem testes de imagem.

 

Inclinando-se um pouco mais, Donald reparou num homem sentado numa cadeira branca, no centro da sala, virado para os monitores. o indivíduo não era um representante do Interterrestre típico; estava a ficar calvo, possuindo ainda alguns tufos de cabelo grisalho. E não restavam dúvidas de que, no ecrã à sua frente, estavam Elaine, George, Kramer e Jerry.

 

Donald voltou a encostar-se à parede do corredor, afastando-se da porta aberta. Olhou para Michael e murmurou:

 

- Tinha razão! É um episódio antigo do Seinfeld.

 

- Reconheceria estas vozes em qualquer lugar - disse Michael. Donald levou novamente o dedo aos lábios,

 

- Está um velhote lá dentro a ver televisão - disse ele em voz muito baixa. - E não parece ser um Interterrestre.

 

- A sério? - perguntou Michael, baixinho.

 

- Não estava à espera disto - disse Donald. Mordeu o lábio inferior, enquanto avaliava a situação.

 

- Nem eu - disse Michael. - o que é que fazemos?

 

- Vamos entrar e travar conhecimento com o tipo - disse Donald. - Pode ser que tenhamos sorte. Mas ouça! Eu é que falo, está bem?

 

- À vontade - disse Michael.

 

- Muito bem, então vamos - disse Donald. Afastou-se da parede e entrou na sala. Michael seguiu-o. Movimentaram-se em silêncio, apesar do som da TV estar tão alto que o homem nunca os ouviria a aproximar.

 

Indeciso sobre o que fazer para não assustar o homem mas conseguir chamar a sua atenção, Donald dirigiu-se para o que considerou ser o campo de visão do indivíduo, posicionando-se lateralmente. o truque não resultou. o homem estava enfeitiçado pelo programa; o seu rosto parecia ter paralisado numa expressão vazia e parada, e os seus olhos estavam semicerrados e fixos no ecrã.

 

- Desculpe - disse Donald, mas a sua voz confundiu-se com o som de mais risos enlatados.

 

Donald inclinou-se e abanou cuidadosamente o braço do homem. Este saltou da cadeira ao ver os dois intrusos, mas logo pareceu recompôr-se.

 

- Esperem aí! Estou a reconhecê-los! - disse ele. - Vocês são duas das pessoas da superficie que se juntaram a nós.

 

- Juntar não é a palavra certa - disse Donald. - Ninguém nos consultou acerca do assunto. Fomos raptados. - Olhou para o homem, que não devia ter mais do que um metro e sessenta de altura e uma estrutura ossuda e curvada. Tinha olhos encovados e remelosos, feições descaídas e as faces bastante enrugadas. Era o homem com o aspecto mais envelhecido, que Donald vira na Interterra.

 

- Não foram salvos de um naufrágio? - perguntou o homem.

- Não me parece - disse Donald. Apresentou-se e em seguida apresentou Michael.

 

- Muito prazer - disse o homem alegremente. - Tinha esperança de vos chegar a conhecer. - Aproximou-se para lhes dar um aperto de mão. - Assim é que as pessoas se deviam cumprimentar

- acrescentou ele. - Estou farto daquele disparate com as palmas das mãos.

 

- Como é o seu nome? - perguntou Donald.

 

- Harvey Goldfarb! Mas pode tratar-me por Ham

- Está aqui sozinho?

 

- Pode crer. Estou sempre aqui sozinho.

- E o que é que faz?

 

- Pouca coisa - disse Harvey, dando uma olhadela aos vários monitores. - Vejo programas de TV, especialmente aqueles que são passados em Nova Iorque.

 

- É o seu trabalho?

 

- Mais ou menos, acho eu, mas é mais uma espécie de voluntariado. Faço isto principalmente porque gosto de ver partes de Nova lorque. Gosto bastante de Qem sai aos seus, mas hoje em dia é difícil captar algum episódio. É uma pena. o Seinfeld é engraçado, mas não consigo perceber a maior parte das piadas.

 

- Para que é que serve esta sala? - perguntou Donald. - É apenas para divertimento?

 

Harvey riu-se zombeteiramente enquanto abanava a cabeça. Os Interterrestres não estão interessados em televisão, e não vêm quase nunca. A Central de Informações é que está interessada. A Central de Informação de Saranta é um dos principais pontos de recepção de media da Interterra. Monitoríza todos os meios de comunicação à superficíe para veríficar se não é feita qualquer referência à existência da Interterra. - Harvey fez um gesto com as mãos em direcção aos monitores. - Isto está ligado vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. - Ei, isso faz-me lembrar uma coisa. A CNN e as outras cadeias de TV falaram imenso de vocês. Nas notícias, disseram que vocês foram vítimas da erupção de um vulcão submarino.

 

- Então ninguém suspeita que possa ter acontecido algo de estranho? - perguntou Donald.

 

- Não - disse Harvey. - Têm falado muito sobre geologia, e assim. Mas voltando a falar sobre mim, ofereci-me voluntariamente para vir para aqui e monitorizar os programas de televisão, seleccioná-los para os ficheiros e censurar tudo o que tenha a ver com violência.

 

- Não deve restar grande coisa, depois dessa censura - disse Donald, dando uma gargalhada cínica. - Para quê tanto trabalho?

- Eu sei que não faz muito sentido - concordou Harvey. -

 

Mas se eles quiserem ver os programas, não pode haver violência nenhuma. Não sei se sabem, mas eles, os verdadeiros Interterrestres, não suportam a violência. Faz-lhes muito mal. Literalmente!

- Quer dizer que não é um verdadeiro Interterrestre.

 

Harvey deu outra pequena gargalhada.

 

- Eu? o Harvey Goldflarb, um Interterrestre? Acha que pareço um Interterrestre? Com esta careca?

 

- Realmente, parece mais velho do que os outros.

 

- Mais velho e mais feio - troçou Harvey. - Mas sou eu mesmo. Eles têm tentado convencer-me a deixá-los fazer uma série de coisas na minha pessoa, até me quiseram fazer crescer o cabelo, mas eu recusei sempre. No entanto, tenho de admitir que me mantiveram saudável. Não tenho dúvidas sobre isso. Ir a um hospital aqui na Interterra é como levar o carro à oficina. Põem-nos uma peça nova e lá vamos nós. Pois é, mas não sou um Interterrestre. Sou de Nova lorque. Tenho uma casa maravilhosa na melhor zona de Harlem.

 

- o Harlem sofreu algumas alterações - disse Donald. - Há quanto tempo é que não vai lá?

 

- Vim para a Interterra em mil novecentos e doze.

- Como é que veio cá parar?

 

- Com um pouco de sorte e a ajuda dos Interterrestres. Salvaram-me de morrer afogado, a mim e a algumas centenas de pessoas que seguiam num navio que chocou com um iceberg.

 

- o TYtanic? - perguntou Donald.

 

- Esse mesmo - disse Harvey. - Era a minha viagem de regresso a Nova lorque.

 

- Quer dizer que existem bastantes passageiros do Tytanic aqui na Interterra? - perguntou Donald.

 

- Várias centenas - disse Harvey. - Mas não estão todos em Saranta. Muitos deles foram para a Atlântida e para outras cidades.

Pediram-lhes para ir para lá. Os Interterrestres acham-nos divertidos, sabe?

 

- Já tinha percebido - disse Donald.

 

- Tire proveito disso enquanto puder - aconselhou Harvey. Depois de o conhecerem bem, já não lhe vão achar tanta piada. Acredite em mim.

 

- Deve ter sido uma experiência horrível - disse Donald.

 

- Não, até tenho sido bastante feliz aqui - disse Harvey na defensiva. - Tenho tido fases melhores e fases piores.

 

- Referia-me à noite do naufrágio do Titanic.

 

- Ah, sim! É verdade. Foi uma noite horrível. Horrível!

- Tem saudades de Nova lorque?

 

- De certo modo - disse Harvey, com um olhar distante. - Na realidade, é engraçado, mas aquilo de que sinto mais falta é do mercado de acções. Eu sei que parece estranho, mas fui um homem que subiu na vida a pulso... era corretor e adoro negócios. Trabalhei muito, mas adorava toda aquela excitação. - Harvey respirou fundo e, em seguida, deixou sair o ar de uma só vez, suspirando. Olhou de novo para Donald. - E pronto, é esta a minha história. E vocês? Foram mesmo raptados? Se é verdade, então devem ter sido os primeiros. Pensava que tinham sido salvos do vulcão submarino, como disseram na CNN.

 

- Houve uma espécie de erupção, naquele momento - disse Donald. - Mas acho que isso serviu para mascarar o facto de termos sido puxados para uma das portas da Interterra. Seja como for, a nossa chegada à Interterra não foi o resultado de um fenómeno da natureza. Fomos trazidos para aqui à força, com um objectivo que ainda desconhecemos.

 

Harvey olhou de Donald para Michael e depois novamente para Donald.

 

- Vocês não me parecem lá muito encantados com a Interterra.

- Fiquei impressionado - disse Donald. - Seria difícil não ficar, mas não estou encantado.

 

- Estou a ver - disse Harvey. - Isso faz com que pertença a uma categoria especial. Todas as pessoas que vêm para cá ficam a adorar isto de um dia para o outro. E aqui o seu amigo?

 

- o Michael é da mesma opinião - disse Donald. Michael acenou afirmativamente. - Não gostamos de ser forçados a fazer seja o que for, percebe? - continuou Donald - por muito boas que as coisas possam parecer. E você, Harv?

 

Harvey observou o rosto de Donald, e olhou rapidamente para Michael que, nesse momento, se estava a rir em simultâneo com as gargalhadas do programa.

 

- Estão mesmo a falar a sério, não estão a gostar disto aqui, com estas pessoas tão bonitas e com as festas?

 

- Já lhe disse, não gostamos de ser forçados.

 

- E está mesmo interessado na minha opinião? Donald acenou afirmativamente.

 

- Okay - disse Harvey, aproximando-se e baixando o tom de voz. - Vamos pôr as coisas desta maneira: se me pudesse ir embora para Nova Iorque ainda esta noite, não pensaria duas vezes. Isto é pacífico de mais e perfeito de mais. É de loucos.

 

Donald não pôde deixar de sorrir. o tonto do velhote era um homem a sério.

 

- É o que lhe digo, aqui nunca acontece nada - continuou Harvey.

- Os dias são todos iguais. As coisas nunca correm mal. Daria tudo por um dia na Bolsa de Nova lorque. Preciso de um pouco de stress para me sentir vivo, ou, pelo menos, uma má notícia ou um aborrecimento de vez em quando, para me fazer apreciar o lado bom da vida.

 

Michael dirigiu a Donald um sinal com o polegar virado para cima. Donald, no entanto, ignorou-o. Em vez disso, perguntou a Harvey se alguém alguma vez saíra da Interterra.

 

- Está a brincar? Estamos debaixo do raio do oceano! Mesmo debaixo. o que é que pensa, que pode simplesmente caminhar para a saída? Se fosse assim, o Harvey Goldfarb não estaria aqui sentado a tentar ver algumas cenas da sua cidade. Estaria lá, dando pulos de alegria.

 

- Mas os Interterrestres conseguem sair - disse Donald.

 

- Claro que conseguem. Mas as saídas e entradas são todas controladas pela Central de Informação. E quando os Interterrestres saem, estão protegidos no interior da nave espacial. Para além disso, costumam mandar os clones-empregados em vez deles. Eles são muito cuidadosos no que diz respeito às ligações entre este mundo e o nosso. Não se esqueça que um estreptococo causaria o pânico aqui em baixo.

 

- Parece que já pensou bastante no assunto.

 

- Pois já - disse Harvey. - Mas só em sonhos. Donald dirigiu a sua atenção para os monitores de TV.

 

- Ao menos nesta sala conseguimos sentir-nos ligados ao mundo da superficie.

 

- É por isso que eu cá estou - disse Harvey, falando como um proprietário. - Isto é fantástico. Estou quase sempre aqui. Consigo captar quase todos os canais de TV mais importantes da superfície.

 

- Para além de receber, também pode transmitir? - perguntou Donald.

 

- Não, é um sistema passivo - disse Harvey. - Isto é, a energia é ilimitada e existem antenas em praticamente todas as cadeias montanhosas à superfície do globo, mas não existem câmaras. As telecomunicações da Interterra são totalmente diferentes e muito mais sofisticadas, como calculo que já tenha percebido.

 

- Se lhe fornecêssemos uma câmara gravadora, acha que conseguia ligá-la ao equipamento que tem aqui, sem ninguém dar por isso, e que conseguia fazer uma transmissão?

 

Harvey acariciava o queixo, enquanto ponderava na questão de Donald.

 

- Talvez conseguisse, se um dos clones-empregados electrónicos ajudasse - disse ele. - Mas onde é que vai arranjar uma câmara de TV?

 

- Já sei no que é que está a pensar - disse Michael, ao mesmo tempo que um sorriso manhoso se lhe espalhava no rosto. - Está a pensar nas câmaras do submersível. - Quando o grupo se juntara em frente ao museu, depois da visita, Perry e Suzanne tinham-lhes contado que tinham descoberto o Oceanus no terreno adjacente ao museu.

 

Donald olhou fixamente para Michael, mais uma vez. Michael percebeu e calou-se.

 

- Mas não estou a perceber - disse Harvey. - Por que é que desejam fazer isso?

 

- Ouça, Harv - disse Donald, recuperando a compostura. Eu e os meus companheiros não estamos a gostar nada de sermos forçados a permanecer aqui e a servir de divertimento para estes Interterrestres. Nós queremos ir embora.

 

- Espere aí - disse Harvey. - Deve-me estar a escapar qualquer coisa. Acham que se montarmos uma câmara de TV, conseguem sair da Interterra?

 

- É possível - disse Donald. - Neste momento, é apenas uma ideia: uma peça de um quebra-cabeças que ainda está inacabado, mas seja ele qual for, não conseguimos resolvê-lo sozinhos. Precisaremos da sua ajuda, uma vez que já está aqui há tempo suficiente para conhecer os cantos à casa. A questão é: você estaria disposto a ajudar?

 

- Desculpe - disse Harvey, abanando a cabeça. - Tem de compreender que os Interterrestres não reagiriam nada bem. Se eu vos ajudasse, seria uma das pessoas menos populares aqui. Eles entregar-me-iam aos clones-empregados. Os Interterrestres não gostam de fazer coisas más, mas os clones não se importam. Fazem o que lhes mandam.

 

- Mas o que é que isso lhe interessa? - perguntou Donald. Você viria connosco. Como recompensa da sua ajuda, levá-lo-íamos até Nova lorque.

 

- A sério? - perguntou Harvey. Os seus olhos luziram. - Não estão a brincar? Levavam-me para Nova lorque?

 

- Seria o mínimo que podíamos fazer - disse Donald.

 

o disco de plástico fluorescente voou através do relvado. Richard tinha feito um óptimo lançamento, e o disco abrandou e começou a descer muito perto do clone-empregado que Richard tinha mandado vir para jogar com ele. Mas, em vez de agarrar no disco, o clone-empregado deixou-o passar por cima da sua mão estendida. o disco bateu-lhe na testa, provocando um som profundo. Richard bateu com a mão na sua própria testa, completamente frustrado e praguejando como bom marinheiro que era.

 

- Grande lançamento, Richard - disse Perry, engolindo uma gargalhada. Perry estava sentado perto da piscina da sala, juntamente com Luna, Meeta, Palenque e Karena. Sufa tinha-os trazido de volta para o palácio dos visitantes depois da visita à fábrica de táxis aéreos, e tinham chegado antes do regresso dos outros, das suas respectivas visitas. Ao princípio, Richard tinha ficado contente quando vira chegar, quase simultaneamente, as suas três amigas e Luna, mas a sua euforia esmorecera quando percebeu que nenhuma delas conseguia jogar ao disco.

 

- Isto é ridículo - resmungou Richard, enquanto se dirigia ao clone-empregado para apanhar o disco que ele tinha aos pés. Não há aqui ninguém que consiga apanhar a porcaria do disco, quanto mais atirá-lo.

 

- o Richard parece estar novamente bastante nervoso - disse Luna.

 

Perry concordou.

 

- Tem estado todo o dia assim, acho eu.

 

- Ontem à noite também estava estranho - disse Meeta. Mandou-nos muito cedo para casa.

 

- Isso é que é realmente muito estranho - disse Perry.

- Não há nada que se possa fazer? - perguntou Luna.

 

- Duvido - disse Perry. - A não ser que vá até lá fora e jogue um bocado com aquele pedaço de plástico.

 

- Era tão bom que ele se acalmasse - disse Luna. Perry pôs as mãos em concha à volta da boca.

 

- Richard! - chamou ele. - Por que é que não vem para aqui e tenta relaxar um pouco? Está a cansar-se sem razão nenhuma.

Richard fez um sinal negativo a Perry.

 

Perry encolheu os ombros, dirigindo-se a Luna.

 

- Parece-me óbvio que ele não está com uma disposição muito amigável.

 

- Por que é que não vai até lá falar com ele? - sugeriu Luna. Resmungando, Perry pôs-se em pé.

 

- Temos uma surpresa para ele, quando regressarmos ao quarto

- disse Meeta. - Tente convencê-lo a vir.

 

- Já lhe perguntaram se ele queria ir? - perguntou Perry.

- Já, mas ele disse que queria jogar ao disco.

 

- Que chato! - disse Perry, abanando a cabeça. - Bem, vou ver o que posso fazer.

 

- Não lhe fale na surpresa - disse Meeta. - Senão deixa de ter graça. Não queremos que ele adivinhe o que é.

 

- Está bem - disse Perry. Irritado por ter de se afastar de Luna, dirigiu-se para Richard, que estava impacientemente a dar instruções ao clone-empregado.

 

- Está a perder tempo - disse Perry. - Eles não jogam como nós, Richard. Não estão mentalmente preparados. Não estão interessados em proezas físicas.

 

Richard endireitou-se.

 

- Isso é óbvio. - Suspirou e amaldiçoou a sua sorte. - É um bocado frustrante porque eles têm uns corpos óptimos. o problema é que não têm a mínima noção de competição, e eu preciso dela. Que diabo, até as raparigas são demasiado fáceis. Não é preciso andar atrás delas nem tentar conquistá-las. Parece que estão todos mortos. Daria tudo por um bom jogo de basquetebol ou de hóquei em patins.

 

- Tenho uma ideia - disse Perry - Vamos fazer uma corrida na piscina grande do pavilhão. Que acha?

 

Richard olhou para Perry durante alguns instantes, antes de atirar o disco com força para longe. Em seguida, disse ao clone-empregado que o fosse buscar. o clone dirigiu-se obedientemente para lá, a passo de corrida. Richard seguiu-o com o olhar durante algum tempo, antes de se virar de novo para Perry.

 

- Obrigado, mas não quero - disse Richard. - Nadar mais depressa do que você não me vai fazer sentir melhor. o que me faria mesmo sentir melhor, era ir-me embora daqui. Estou com os nervos em franja.

 

- Todos nós estamos preocupados com esse assunto - disse Perry, baixando a voz. - É natural que nos sintamos um pouco nervosos.

 

- Pois eu não estou apenas um pouco nervoso - disse Richard.

- o que é que acha que eles farão aqui às pessoas que cometem um crime grave?

 

- Não faço a mínima ideia - disse Perry. - Acho que esses crimes não são cometidos por aqui. o Arak disse que não existiam prisões. Por que é que pergunta?

 

Richard bateu na relva com a ponta do pé e, em seguida, olhou para longe. Ia começar a falar mas interrompeu-se.

 

- Está preocupado com o que eles nos podem fazer se tentarmos fugir e formos apanhados?

 

- Sim, é isso - disse Richard, aproveitando a sugestão.

 

- Bem, isso é algo que devemos ter em conta - disse Perry. Mas até lá não adianta nada estarmos preocupados com o assunto.

- Acho que tem razão - disse Richard.

 

- Por que é que não tenta divertir-se um pouco com aquelas três maravilhosas senhoras? - disse Perry, acenando com a cabeça na direcção de Meeta, Palenque e Karena. - Por que é que não canalíza alguma dessa sua energia selvagem levando-as para o seu quarto? Não consigo perceber porquê, mas elas parecem estar doidas por si.

 

- Se calhar não as devia levar para o meu quarto - disse Richard.

- Porque não? - perguntou Perry - Não acha que é uma espécie de sonho que se torna realidade? Olhe só para aquelas três raparigas. Parecem modelos de lingerie.

 

- É difícil de explicar - disse Richard.

 

- Seja qual for o seu problema, não deve ser mais importante do que satisfazer aquelas três sereias insaciáveis.

 

- Pois é, talvez tenha razão - disse Richard sem grande entusiasmo. Tirou o disco de plástico das mãos do clone-empregado que o tinha ido buscar, tal como lhe fora pedido. Regressou à sala com Perry Meeta, Palenque e Karena levantaram-se e deram-lhe as boas vindas com as palmas das mãos esticadas. Richard reagiu superficialmente.

 

- Está pronto para se retirar para o quarto? - perguntou Meeta.

- Vamos - concordou Richard. - Mas com uma condição. Ninguém pode comer nem beber as coisas que estão no meu frigorífico. Pode ser?

 

- Claro - disse Meeta. - Nem nos irá apetecer tal coisa. Não é em comida que estamos a pensar. - Riu-se em conjunto com as outras raparigas enquanto se penduravam nos ombros de Richard. o grupo caminhou através do relvado.

 

- Estou a falar a sério - disse Richard.

- Nós também - respondeu Meeta.

 

-     Perry observou-os durante um bocado antes de se voltar de novo para Luna.

 

- o Richard é assim tão agressivo devido ao facto de ser muito novo? - perguntou ela.

 

Perry foi sentar-se ao lado dela.

 

- Não. Ele é mesmo assim. Daqui a dez anos vai ser igual, e daqui a vinte também.

 

- E isso deve-se à família disfuncional que ele deve ter tido disse Luna.

 

- Calculo que sim - disse Perry vagamente. Não queria entrar noutra discussão sociológica. Não se sentia à vontade para tratar esse tipo de assuntos, como ficara claro após a última discussão que tinham tido.

 

- É algo que me custa a compreender, uma vez que nós não temos famílias - disse Luna. - E os amigos, os conhecidos e a escola que os humanos de segunda-geração frequentam? Não são factores que podem ajudar a equilibrar a influência familiar?

 

,     Perry fez um olhar longínquo enquanto tentava organizar os seus pensamentos.

 

A escola e os amigos podem ajudar - disse ele -, mas os amigos também podem ter uma influência negativa. Em algumas comunidades, a pressão social impede os miúdos de aproveitarem a educação que lhes é oferecida, e são as lacunas na educação que muitas vezes impedem que os seus horizontes se abram.

- Quer dizer que o Richard, sendo tão novo, ainda pode melhorar. - Já lhe expliquei, o Richard não vai mudar! - disse Perry, num tom próximo da irritação. - Ouça, eu não sou sociólogo, portanto talvez seja melhor falar com outras pessoas. Para além disso, ele não é assim tão novo. Tem quase trinta anos.

 

- E isso não é ser novo? - interrogou Luna.

- Olha quem fala - retorquiu Perry.

 

Luna riu-se e piscou os seus olhos azuis-claros.

 

- Meu querido Perry, que idade pensa que eu tenho?

 

- Disse que tinha mais de vinte anos - disse Perry, nervoso. Quantos tem? Vinte e um?

 

Luna sorriu e abanou a cabeça.

 

- Não, tenho noventa e quatro, isto se contarmos apenas com este corpo.

 

Lentamente, a boca de Perry abriu-se de espanto, enquanto deixava escapar um dos seus característicos guinchos agudos.

 

Depois de ter insistido mais algumas vezes para que não mexessem no seu frigorífico, Richard permitiu que as três mulheres o deitassem na cama, com os braços abertos e esticados. Assim que o puseram nessa posição, começaram a fazer-lhe massagens com um óleo que provocou um formigueiro na sua pele e que relaxou os seus músculos tensos.

 

- Uau! - Richard fechou os olhos e ronronando com prazer. Vocês são boas nisto! Sinto-me mole como um esparguete cozido,

- E isto é só o início - arrulhou Meeta. As três mulheres olharam umas para as outras, por cima do corpo reclinado de Richard, e tentaram conter o riso. Se Richard estivesse mais atento teria notado que elas estavam a preparar algo.

 

Depois de uma sessão de massagens intensas, que durou cerca de um quarto de hora, Palenque afastou-se do grupo, sem que Richard se apercebesse, e caminhou em silêncio em redor da piscina até chegar à borda do relvado. Em seguida, acenou silenciosamente, fazendo sinal Para que outras pessoas se viessem juntar ao grupo.

 

Alguns minutos depois, apareceram dois homens, que também tentavam conter o riso, e aproximaram-se da cama em bicos de pés. Começaram a massajar Richard, substituindo Karena, e ficando juntamente com Meeta a tratar do corpo de Richard. Palenque e Karena dirigiram a sua atenção para os corpos dos dois homens. o objectivo era fazer uma orgia, semelhante à dos antigos romanos.

 

- Sabem, meninas - disse Richard, numa voz arrastada e abafada pela colcha - se não fosse por vocês, este lugar já teria de certeza dado comigo em doido. Imaginem, nunca ninguém me tinha feito uma massagem. Não sabia o que estava a perder!

 

Os homens e as mulheres trocavam olhares escaldantes entre si, Estavam a provocar sensações cada vez mais fortes uns nos outros.

- Não consigo deixar de ser activo - prosseguiu Richard, sem ter consciência do que se estava a passar à sua volta. - A competição faz-me falta. É tão simples quanto isto.

 

Um dos homens passou as suas enormes mãos masculinas pelos braços de Richard, e em seguida começou a fazer-lhe massagens nas palmas das mãos. Notando que a sensação era discrepante com o que ele esperava, os olhos de Richard pestanejaram e abriram-se. Para sua consternação, as mãos que o acariciavam eram tão grandes como as suas.

 

- Mas que diabo? - explodiu Richard. Movimentando-se tão rapidamente que apanhou toda a gente de surpresa, Richard rolou sobre si próprio e deu por si a olhar para cinco caras afogueadas, em vez de três e, pior do que isso, duas delas pertenciam a homens.

 

- Mas que raio é isto? - berrou ele, saltando da cama e, inadvertídamente, fazendo com que Palenque caísse no chão. Os outros, que estavam de joelhos, puseram-se rapidamente de pé.

 

- Está tudo bem, Richard - disse Meeta apressadamente, vendo uma súbita raiva reflectida no rosto de Richard. - É uma orgia surpresa, preparada especialmente para o seu prazer.

 

- Prazer? - gritou Richard. - Quem são estes homens? Como é que eles vieram para aqui?

 

- São nossos amigos - disse Meeta. - o Cuseh. e o Uruh. Fomos nós que os convidámos.

 

- o que é que pensam que eu sou? - berrou Richard.

 

- Só o queríamos fazer feliz - disse o homem que estava mais perto de Richard. Aproximou-se e estendeu a palma da sua mão. Richard reagiu dando um murro violento na queixada do homem e fazendo-o ir de encontro à parede. Todos se assustaram com a inesperada violência.

 

- Desapareçam daqui! - gritou Richard. Para marcar bem a sua posição, atirou para o chão os copos de ouro que coleccionara e que estavam em cima da mesa de cabeceira. Os copos provocaram um enorme barulho ao cair. Enquanto os seus convidados saíam pelo lado aberto da sala, ele olhou à sua volta desesperadamente, tentando encontrar algo que pudesse partir aos bocados.

 

Suzanne deixou escapar um grito de alegria enquanto ela e Garona corriam de mão dada por um caminho frondoso, no meio de uma floresta de fetos. Ao chegarem à beira de um lago claro como cristal, detiveram-se subitamente. Suzanne, encantada com a paisagem sublime, e cansada da corrida, deixou-se ficar a contemplar a cena.

 

- Isto é magnífico! - disse ela por fim.

 

Garona, que estava ainda mais cansado do que Suzanne, teve que descansar um pouco antes de poder falar.

 

- É o meu local preferido - disse ele. - Venho aqui muitas vezes. Achei sempre que era um sítio muito romântico.

 

- Tem razão - comentou Suzanne. A alguma distância, viam-se vários outros lagos, aninhados no meio da vegetação luxuriante. Mais ao longe, recortavam-se altas montanhas que tocavam no tecto arqueado. - Para que direcção é que estamos a olhar?

 

- Oeste - disse Garona, entre duas respirações. - Aquelas montanhas são as bases daquilo a que vocês chamam Falha do Atlântico-Médio.

 

Suzanne abanou a cabeça, espantada.

 

- É tão bonito. Obrigada por partilhar isto comigo.

 

- o prazer é todo meu - disse Garona. - Gosto de a ver mais relaxada.

 

- Acho que estou, sim - disse Suzanne. - Pelo menos agora já sei por que é que nos trouxeram para a Interterra.

 

- Foi uma grande ajuda para nós.

- Não fiz assim tanta coisa.

 

- Fez sim! Aliviou a nossa ansiedade em relação às perfurações no fundo do mar.

 

- Mas há já tanto tempo que se fazem perfurações - disse Suzanne. - Por que é que só agora é que estão preocupados?

 

- Sim, mas eram para procurar petróleo - disse Garona. Com isso não nos preocupamos. Na verdade, até é uma ajuda para nós, porque o petróleo é um problema. Pode penetrar nas nossas construções mais profundas e causar danos. As perfurações feitas ao acaso é que nos deixaram preocupados.

 

- Bem, ainda bem que os pude ajudar.

 

- Devíamos celebrar - disse Garona. - Não quer vir para a minha casa durante algumas horas? Sinto-me muito próximo de si. Podemos absorver caldorfina, para o nosso prazer mútuo, e depois jantamos.

 

- A meio do dia? - perguntou Suzanne. Tendo sido sempre uma trabalhadora motivada e incansável, e tendo, nos seus tempos de estudante, pouco tempo para dedicar aos seus prazeres pessoais, a ideia de um encontro destes à tarde, parecia-lhe estranhamente decadente. E, no entanto, excitantemente erótico.

 

- Porque não? - perguntou Garona, em tom sedutor. - A sua essência vai transbordar de êxtase.

 

- Está a tornar a ideia deliciosamente sensual - brincou Suzanne.

- E vai ser - disse Garona. - Venha. - Pegou-lhe na mão e conduziu-a através do caminho por onde tinham vindo.

 

Uma viagem de cinco minutos, dentro de um táxi aéreo, deixou-os na casa de Garona. Ao descerem da nave, Suzanne referiu-se ao facto de a casa ser semelhante à de Arak e Sufa, apesar do local parecer menos congestionado.

 

- A estrutura é exactamente igual - disse Garona. - Mas há mais espaço, uma vez que estamos mais afastados do centro da cidade. - Voltou a pegar-lhe na mão e os dois correram pelo caminho que levava até à casa.

 

Já lá dentro, pareciam dois adolescentes impacientes, tirando apressadamente as roupas de cetim e caindo na piscina. Com exuberância, Suzanne dirigiu-se para a ponta mais afastada. Nadou com braçadas fortes, excitada por sentir que Garona seguia mesmo atrás, de si. Depois de suzanne ter dado uma volta, ficaram frente a frente e abraçaram-se dentro da água. Garona tocou com as palmas das suas mãos nas de Suzanne e estremeceu de prazer. Suzanne riu-se alegremente.

 

- Isto é o paraíso - afirmou Suzanne. Ela pôs a cabeça debaixo de água, puxando o seu cabelo curto para trás. - Vai muito para além da minha imaginação.

 

- Tenho tanta coisa para lhe mostrar - disse-lhe Garona. Milhões de anos de progresso. Vou levá-la até às estrelas... até a outras galáxias.

 

- Já levou - disse suzanne na brincadeira.

 

- Venha - disse Garona. - Vamos partilhar um pouco de caldorfina.

 

Nadaram novamente para a outra ponta da piscina. Garona ajudou-a a sair da água. Reparou, mais uma vez, o quanto se sentia confortável na presença dele, mesmo estando nua,

 

- Venha! - disse Garona, apontando para um divã de cetim.

- Estou a pingar - disse Suzanne.

 

- Não tem importância - disse Garona. Inclinou-se e pegou num pequeno frasco que destapou em seguida.

 

- Tem a certeza? - insistiu suzanne. Os estofos do sofá estavam imaculados.

 

- Absoluta - disse Garona, segurando o frasco para que suzanne colocasse um pouco do produto na palma da sua mão. Ele imitou-a e, enquanto se deitavam, juntaram as palmas das suas mãos.

 

Suzanne gemeu, sentindo o prazer invadi-la até ao mais profundo do seu ser. Durante a meia hora que se seguiu, ela e Garona fizeram amor e entregaram-se um ao outro alcançando um clímax apaixonado antes de atingirem uma paz íntima e sublime.

 

Suzanne nunca se sentira tão próxima de alguém. Era a primeira vez na sua vida que agira com tanto abandono e, no entanto, não se sentia culpada. Neste utópico mundo subterrâneo, não havia lugar para esse tipo de constrangimentos.

 

o tempo parecia não passar, enquanto Suzanne se deliciava com as sensações que permaneciam após o encontro íntimo, que fora diferente de tudo quanto ela já experimentara. Mas em seguida, e subitamente, tudo mudou. Uma suave voz feminina, vinda de muito próximo, quebrou a sua paz física e mental:

 

- Se já terminaram as vossas ternas relações amorosas, a que eu, devo acrescentar, adorei assistir, tenho aqui uma óptima refeição. Suzanne abriu os olhos. Em choque, viu que tinha diante de si o rosto sorridente de uma mulher extremamente atraente, com umas feições lindíssimas, olhos de um azul gelado e cabelos cor de linho.

A expressão no rosto da mulher era a de um progenitor orgulhoso das suas adoráveis crianças.

 

Suzanne sentou-se muito direita e puxou a colcha para si. Os seus movimentos súbitos perturbaram Garona, que rolou sobre si próprio e abriu os olhos.

 

o que é que disseste Alita? - perguntou ele.

 

É tempo de comerem qualquer coisa - disse ela, apontando para uma mesa junto à piscina, que estava a ser posta por um clone-empregado.

 

- Obrigado, querida - disse Garona, sentando-se. - Acho que estamos com fome.

 

- A comida estará pronta num instante - disse Alita. Virou-se, dirigiu-se para perto do clone-empregado e ajudou-o nas preparações, colocando três cadeiras de repouso à volta da mesa.

 

Garona esticou-se, bocejou e em seguida inclinou-se para pegar na sua roupa.

 

Suzanne correu directamente para as suas roupas. Apesar de até há pouco tempo atrás se sentir à vontade, já não se sentia. Vestiu a túnica e enfiou os calções.

 

- Quem é esta mulher? - sussurrou.

 

- É a Alita - disse Garona. - Venha, vamos comer.

 

Ainda confusa, Suzanne deixou-se conduzir até à mesa. Sentou-se na cadeira que Garona lhe indicou e deixou que o clone-empregado lhe servisse alguma comida. Enquanto Garona e Alita comiam com gosto, Suzanne brincava com os alimentos que tinha no prato. Fora apanhada em flagrante delito e sentia-se tremendamente embaraçada e emocionalmente frágil.

 

- A Suzanne teve hoje uma reunião com o Conselho dos Anciãos

- disse Garona a Alita entre duas colheradas de comida. - Foi muito prestável e trouxe-nos boas notícias.

 

- Óptimo - disse Alita.

 

Garona inclinou-se e apertou ternamente o ombro de Suzanne-

- Ela assegurou-nos que o segredo da Interterra ainda está seguro.

 

- Que alívio - disse Alita, com sinceridade. - Estávamos a precisar dessa garantia.

 

Suzanne só conseguiu acenar com a cabeça.

 

Garona e Alita embrenharam-se numa discussão acerca das necessidades de segurança da Interterra em relação ao mundo da superfície. Suzanne não os ouvia; em vez disso estava a olhar para Alita, que dedicava toda a sua atenção a Garona. Suzanne estava espantada com a calma que a mulher aparentava. Suzanne ainda se sentia pouco à vontade para comer ou falar.

 

Suzanne foi-se acalmando gradualmente e começou a tentar pôr as ideias em ordem. Aquilo que mais a perturbava era a aparente familiaridade com que Garona e Alita se tratavam um ao outro. Por fim, a sua curiosidade foi mais forte do que ela.

 

- Desculpe, Alita - disse ela, aproveitando uma pausa entre a conversa dos seus companheiros. - Você e Garona conhecem-se há muito tempo?

 

Garona e Alita riram-se com vontade.

 

- Desculpe - disse Alita, lutando para se conter. - É uma pergunta perfeitamente razoável, mas muito pouco usual aqui na Interterra. Eu e o Garona conhecemo-nos há muito, muito tempo,

 

- Há muitos anos, não é? - sugeriu Suzanne secamente. Apesar de Alita ter pedido desculpa, ela ficara ofendida com as gargalhadas, Garona desatou novamente a rir e teve que esconder a cara com as mãos.

 

- Sim, há anos - disse Alita. - Muitos e muitos anos.

 

- AAlita e eu já passámos muitas vidas em conjunto - explicou Garona, enquanto limpava as lágrimas que tinha nos olhos.

 

- Ah, estou a perceber - disse Suzanne, tentando manter-se calma. - Isso é maravilhoso.

 

- Pois é - disse Garona. - AAlita é... bem, acho que posso dizer que é a minha mulher permanente.

 

- Também podemos dizer que o Garona é o meu homem permanente - disse Alita.

 

É a mesma coisa - concordou Garona.

 

É óptimo que seja mútuo - comentou Suzanne sarcasticamente. - Agora, talvez me possam explicar o que significa «permanente» na sociedade da Interterra.

 

- É semelhante à vossa instituição do casamento - disse Alita.

- Só que transcende a vida de um corpo, e passa para os outros. Suzanne mordeu o lábio inferior para conter as lágrimas que os seus pensamentos lhe provocavam. Depois de se ter entregue incondicionalmente a Garona, em consequência da sua persistência e do seu charme, sentia-se violada, agora que sabia que ele já tinha uma relação de longa duração, em moldes que ela não conseguia compreender. Também se sentia estúpida e espantada com a sua própria intuição, que a deixara ficar mal duma maneira tão dramática, e por não ter sequer perguntado qual era a situação dele.

 

- Bom, isso é muito interessante - conseguiu Suzanne dizer, por fim. Pousou os talheres e o guardanapo e levantou-se. - Obrigada pela refeição e por esta tarde tão esclarecedora. Acho que está na altura de voltar para o palácio dos visitantes.

 

Garona pôs-se em pé.

 

- Tem a certeza que se quer ir já embora?

 

- Absoluta - disse Suzanne. Em seguida, virou-se para Alita e acrescentou - Foi um prazer.

 

- Igualmente - disse Alita. - o Garona tem falado tão bem de si.

 

- A sério? - perguntou Suzanne. - Que simpático da parte dele.

 

- Espero que volte mais vezes - disse Alita.

 

- É possível - disse Suzanne vagamente. Disse adeus a Garona e começou a dirigir-se para a porta. Garona seguiu-a imediatamente.

- Vou acompanhá-la até a um táxi aéreo - disse Garona. - A não ser que prefira que eu a acompanhe até ao palácio dos visitantes.

- Não é necessário - disse suzanne enquanto saía para o exterior. - Você e a Alita devem ter assuntos para discutir um com o outro.

 

- Suzanne, está um pouco estranha - disse Garona. Ele correu um pouco para a alcançar, enquanto usava o seu comunicador de pulso para chamar um táxi aéreo.

 

- Acha? - perguntou Suzanne. - Foi muito simpático da sua parte em ter reparado.

 

- o que é que se passa, Suzanne? - Garona tentou pegar-lhe no braço, mas ela afastou-se e continuou a andar.

 

- É só um pequeno pormenor cultural - disse ela, por cima do ombro.

 

- Vá lá - disse Garona. Pondo-se ao seu lado, ele agarrou-lhe novamente no braço e desta vez conseguiu fazê-la parar. - Seja sincera comigo. Não queria ter de me pôr a adivinhar o que pode ter acontecido.

 

- Mas olhe que seria interessante. E, do meu ponto de vista, não me parece ser muito difícil.

 

- Suponho que tenha a ver com a Alita.

 

- Bem pensado - disse Suzanne. - E agora, se me largar, vou-me embora para o palácio dos visitantes.

 

- Suzanne, você está na Interterra. Os nossos hábitos são diferentes. Tem de se adaptar.

 

suzanne olhou para os olhos escuros de Garona. Por um lado, queria que ele a deixasse em paz; por outro, queria dar-lhe o benefício da dúvida. Afinal, estavam na Interterra, não em L.A. - Os nossos hábitos são tão diferentes... - disse ela.

 

- Eu sei - disse Garona. - Mas peço-lhe que não nos julgue pelos hábitos da superfície. Tente não ser egoísta. o sentimento de posse não é necessário quando se gosta de algo ou de alguém. Nós partilhamo-nos com aqueles que amamos, e o amor é um sentimento infinito.

 

- Fico feliz por si - disse Suzanne. - Ainda bem que têm todo esse amor para dar. Infelizmente, eu estou habituada a partilhar o amor só com uma pessoa.

 

- Não pode encarar o assunto do ponto de vista Interterrestre?

- Neste momento, duvido que consiga.

 

- Lembre-se, grande parte da vossa moralidade à superfície tem tendência para ser comodista, egoísta e, como consequência, destrutiva.

 

- É o seu ponto de vista - disse Suzanne. - Para nós, é óptima para educar as crianças.

 

É possível - disse Garona. - Mas aqui, isso não é importante. Ouça, Garona - disse Suzanne, pondo uma mão no ombro dele. - Você é, provavelmente, um maravilhoso homem Interterrestre. E como estamos na Interterra, admito que este é um problema meu, e não seu. Vou tentar resolvê-lo.

 

o táxi aéreo surgiu subitamente, parecendo vir do nada, e num dos seus lados surgiu uma abertura.

 

- Quer que eu dirija o táxi? - perguntou Garona.

- Prefiro ser eu a fazê-lo - disse Suzanne.

 

- Então vou ter consigo, logo à noite - disse Garona. - Pode ser?

 

- Como os humanos de segunda-geração costumam dizer, preciso de um pouco de tempo - disse Suzanne. - Vamos deixar passar um ou dois dias. - Subiu para o táxi aéreo e sentou-se.

 

- Mas eu quero ir - insistiu Garona.

 

- Faça como quiser - disse Suzanne. Sentia-se demasiado frágil para iniciar uma discussão. Em vez disso, colocou a palma da mão na mesa central e disse: - Palácio dos Visitantes. - DesPediu-se de Garona com um aceno, enquanto a estrutura da nave se fechava.

 

- Imagino que estejam todos um pouco cansados - disse Arak.

- Posso vê-]o nas vossas caras.

 

No fim da tarde, Arak e Sufa tinham acompanhado o grupo novamente até à sala de conferências circular, para uma breve reunião. Os Interterrestres estavam na área central a olhar para os rostos dos visitantes, cujas disposições eram bastante diferentes umas das outras, mas não pelos motivos que Arak supunha,

 

Perry sentia-se irritado com Richard. Na altura em que ele e Luna se estavam a deitar, Meeta e as outras raparigas tinham aparecido em pânico, dizendo que Richard estava louco. Preocupado com o que o comportamento violento de Richard pudesse vir a originar, Perry tinha corrido para lá e estivera durante uma hora a tentar acalmá-lo - sem, no entanto, o ter conseguido.

 

Richard estava mal-humorado e silencioso, olhando para Arak e Sufa como se fossem eles os causadores dos seus problemas. Suzanne estava sentada ao lado de Perry, ponderando nos seus problemas emocionais. Sentia-se ainda responsável pela situação em que se encontravam. Assim que regressara, explicara-lhes que fora ela a razão de terem sido raptados. Tinha pedido desculpa, e todos lhe tinham garantido que não a culpavam de nada, mas, mesmo assim, ela sentia-se mal.

 

Apenas Donald e Michael pareciam inalterados. Arak interpretou o facto como sendo reflexo de que a visita à Central de Informação correra bem. Olhando para Donald, Arak falou dirigindo-se especialmente a ele:

 

- Antes de encerrarmos a sessão, gostaria de saber se há mais alguma questão ou comentário acerca das visitas que efectuaram. Talvez fosse útil se cada um partilhasse com os restantes as experiêncías que tiveram.

 

- Eu tenho uma questão, em relação à qual penso que estão todos interessados - disse Donald.

 

- Então tenha a bondade de a colocar - disse Arak.

- Vamos ficar aqui presos para sempre?

 

Foram todos apanhados de surpresa, especialmente Suzanne e perry que esqueceram, por instantes, as suas próprias preocupações. A questão deixara-os perplexos porque fora apenas na noite anterior que Donald tinha pedido para que não tocassem no assunto, com medo de isso lhes vir a limitar a liberdade.

 

Arak sentiu-se mais desapontado do que chocado. Precisou de alguns momentos, antes de responder.

 

- Presos não é a palavra mais correcta - disse ele por fim. Gostaríamos antes de dizer que não vão ser forçados a sair da Interterra. Muito pelo contrário. São muito bem-vindos ao nosso mundo e têm toda a liberdade para desfrutar de todos os nossos avanços, em relação aos quais ainda só conhecem uma pequena parte.

 

- Mas não fomos convidados... - disse Perry.

 

- Espere aí! - ordenou Donald, interrompendo Perry - Deixe-me acabar! Arak, vamos esclarecer as coisas, o que você está a dizer é que não podemos sair da Interterra, mesmo que essa seja a nossa vontade.

 

Arak ficou embaraçado. Sufa veio em seu auxílio.

 

- Habitualmente, evitamos discutir um assunto tão delicado na primeira fase da introdução à Interterra. Sabemos, por experiência, que os visitantes estão em melhores condições para pensar sobre essa questão depois de se terem adaptado aos benefícios da Interterra.

 

- Por favor, responda à minha pergunta - disse Donald, friamente.

 

- Basta responder sim ou não - acrescentou Míchael.

 

Arak e Sufa conferenciaram em voz baixa. Donald reclinou-se e cruzou os braços com arrogância, enquanto os outros visitantes, bastante nervosos, observavam a cena muito quietos e silenciosos. Era o seu destino que estava em jogo.

 

Por fim, Arak acenou com a cabeça. Ele e Sufa tinham chegado a acordo. Olhou para o grupo e fixou o olhar em Donald.

 

- Muito bem - disse ele. - Vamos falar com franqueza. A resposta à vossa pergunta é não. Não vão poder sair da Interterra.

- Nunca? - perguntou Perry, quase sem voz.

 

- Podemos ao menos comunicar com as nossas famílias? perguntou Suzanne. - Temos de lhes dizer que estamos vivos.

 

- Porquê? - perguntou Arak. - Seria uma notícia cruel, para quem nunca mais vos pode ver e já se começou a adaptar à vossa ausência.

 

- Mas nós temos filhos - gritou Perry. - Como é que nos podem pedir para não os contactarmos?

 

- Está fora de questão - disse Arak, firmemente. - Lamento, mas a segurança da Interterra sobrepõe-se aos interesses pessoais.

 

- Mas nós não pedimos para vir para cá - exclamou Perry, quase a chorar. - Trouxeram-nos para aqui para vos ajudarmos, e a Suzanne ajudou-os. Eu tenho uma família!

 

- Não podemos ficar aqui - tartamudeou Richard.

- Nem pensar - apoiou-o Michael.

 

- Todos nós estamos emocionalmente ligados ao nosso mundo

- acrescentou Suzanne. - Vocês são também humanos e sensíveis, não podem pensar que vamos conseguir esquecer.

 

- Percebemos que seja difícil - disse Arak. - E compreendemos a vossa situação, mas lembrem-se que as recompensas são infinitas. Estou sinceramente surpreendido com o facto de nenhum de vocês se ter ainda sentido tentado. Mas isso vai mudar. É o que acontece sempre. Não se esqueçam que temos milhares de anos de experiência com visitantes da superficie da Terra.

 

- A questão não é se nos sentimos ou não tentados - disse Donald, com arrogância. - No nosso sistema de valores éticos, os fins não justificam os meios. o problema é que estamos aqui contra a nossa vontade e, tendo em conta que somos americanos, isso é difícil de suportar.

 

- oh, por favor! - gritou Perry a Donald, bastante zangado. Não venha com essas patetices patrióticas. Isto não tem nada a ver com o facto de sermos americanos. Tem a ver com o facto de sermos humanos.

 

- Acalmem-se! - ordenou Arak. Respirou fundo e continuou:

- É verdade que, num certo sentido, podemos dizer que estão a ser obrigados a permanecer aqui devido às necessidades de segurança da Interterra, mas talvez fosse mais correcto dizermos que estão a ser orientados nesse sentido, porque neste caso podemos aplicar a analogia da relação entre pais e filhos. Estão a confundir interesses passageiros com benefícios a longo prazo, devido à vossa inocência primitiva. Nós, que vivemos vidas após outras vidas, estamos em melhores condições de tomar uma decisão racional. Lembrem-se do que vos estamos a tentar explicar: tem a ver com o objectivo de todas as vossas religiões. Estão num verdadeiro paraíso.

 

- Paraíso ou não - disse Richard atabalhoadamente - não vamos ficar aqui.

 

- Lamento - disse Arak com sinceridade. - Estão aqui e é aqui que vão ficar.

 

Suzanne, Perry, Richard e Michael olharam uns para os outros, manifestando agitações, perplexidade e tristeza. Donald, por seu turno, ainda tinha os braços cruzados numa atitude altiva e desdenhosa.

 

- Bem - disse Arak, suspirando - isto não está a correr como eu tinha planeado. Tenho pena que tenham insistido em discutir este assunto num momento tão inicial da vossa orientação. Mas peço-vos que confiem em mim; vão acabar por mudar de opinião, à medida que o tempo for passando.

 

- Quais são os planos que têm para nós? - perguntou Suzanne.

- o período de orientação dura, aproximadamente, um mês disse Arak - dependendo das necessidades individuais de cada visitante. Durante esse período terão oportunidade de viajar até outras cidades. Depois da orientação estar completa, serão colocados numa cidade à vossa escolha.

 

- Pode dizer-nos onde é que se localizam essas cidades? - perguntou Donald.

 

- Claro - disse Arak, sentindo-se satisfeito por poder desviar a conversa para outros assuntos menos polémicos. Fazendo erguer o seu assento com a consola, Arak diminuiu a intensidade da luz e ligou o ecrã do solo. Logo a seguir, apareceu um enorme mapa da área Atlântica da Interterra, incluindo os oceanos e as margens continentais. As cidades estavam assinaladas a laranja, azul ou verde. Sufa afastou-se um pouco para não tapar a vista a ninguém.

 

- Tenho a certeza de que todos reconhecem Saranta - disse Arak. Tocou na consola e o nome da cidade começou a piscar, com uma luz cor de laranja. Depois, a imagem foi substituída pela área da Interterra correspondente ao Pacífico. - Agora podem observar as cidades mais antigas que estão sob o oceano Pacífico. Irão visitar algumas delas. Todas têm as suas características próprias, e poderão viver naquela que escolherem.

 

- o facto de algumas estarem representadas a laranja, significa alguma coisa? - perguntou Donald.

 

- São as cidades que possuem as saídas interplanetárias disse Arak. - Tal como aquela por onde vocês entraram. Mas a maior parte delas tornaram-se obsoletas e já não são usadas. Aqui podem ver Calistral, a sul do oceano Indico. Deve ser a única que continua operacional, apesar de raramente ser usada. Hoje em dia, utilizamos quase exclusivamente as saídas intergalácticas sob o Pólo Sul.

 

- Podemos ver outra vez o outro mapa? - perguntou Donald, inclinando-se para a frente.

 

- Certamente - disse Arak. A imagem da área Atlântica da Interterra voltou a aparecer.

 

- A cidade de Barsama, a leste de Bóston, tem uma saída ínterplanetáría? - perguntou Donald.

 

- Tem - disse Arak. - Mas já não é usada há centenas de anos. A cidade de Barsama é muito agradável, apesar de ser pequena.

 

- Quando diz que não é usada - continuou Donald -, quer dizer que está fechada, como a saída de Saranta?

 

- Ainda não - disse Arak. - Mas em breve estará. Todas essas saídas que estão em desuso já deviam ter sido fechadas há muito tempo, como eu disse ontem. Hoje mesmo, o Conselho dos Anciãos aprovou um novo decreto para apressar o processo.

 

Donald acenou. Voltou a encostar-se para trás e a cruzar os braços.

- Mais alguma questão? - perguntou Arak.

 

Ninguém se mexeu.

 

- Penso que estamos demasiado perplexos para colocar questões - disse Perry

 

- Seria bom que passassem algum tempo juntos, para se ajudarem uns aos outros na adaptação - disse Sufa. - E seria útil procurarem conversar com o Ismael e a Mary. Tenho a certeza de que podem beneficiar com a sabedoria e a experiência deles.

 

Ninguém respondeu.

 

- Muito bem - disse Arak. - Continuaremos com a sessão de orientação amanhã de manhã, depois de um descanso bem merecido. Lembrem-se de que, ajuntar a tudo o resto, ainda estão a recuperar do processo de descontaminação. Sabemos que o stress provocado por essa situação aumenta a fragilidade emocional.

 

Um quarto de hora mais tarde o grupo encontrava-se sozinho, regressando à sala de refeições, depois da saída de Arak e Sufa. A noite tinha começado a cair. Nenhum deles falava, enquanto caminhavam pela relva. Cada um estava perdido nos seus próprios pensamentos.

 

- Precisamos de falar - disse Donald. - Mas vamos esperar até chegarmos à sala de refeições, para deixarmos lá dentro os nossos comunicadores de pulso. Não me admirava nada que eles tivessem um dispositivo de vigilância, para além das outras funções.

 

- Boa ideia - disse Perry. Tinha recuperado o suficiente para se sentir zangado.

 

- Eu queria pedir-vos desculpa, outra vez - disse Suzanne. Sinto-me terrivelmente por ter sido responsável por vocês estarem aqui.

 

- Você não é responsável - disse Perry irritado.

 

- Ninguém a está a culpar - disse Michael. - A culpa é destes malditos Interterrestres.

 

- Vamos falar o mínimo possível, até nos livrarmos dos comunicadores - sugeriu Donald.

 

o resto do caminho foi percorrido em silêncio. Quando chegaram à sala de refeições, tiraram os aparelhos do pulso e voltaram lá para fora.

 

- Até onde é que vamos? - perguntou Perry, olhando por cima do seu ombro. Já estavam a uns trinta metros da borda da piscina da sala de refeições. A luz vinda do interior espalhava-se pelo relvado.

 

- Aqui está bem - disse Donald. Ele parou e os outros juntaram-se à volta dele. - Portanto, agora já sabemos - disse ele. Não queria dizer que já vos tinha avisado.

 

- Então não diga - resmungou Perry.

 

- Ao menos já sabemos com o que podemos contar - disse Donald.

 

- É um grande consolo - disse Perry, sarcasticamente.

 

- Fiquei surpreendida quando colocaste a questão - disse Suzanne. - Por que é que mudaste de ideia em relação a fazermos a pergunta directamente?

 

- Porque achei que quanto mais depressa soubéssemos, melhor - disse Donald. - Se tivermos de fugir daqui, e agora já sabemos que vamos ter de o fazer, temos de agir o mais depressa possível.

- Achas que vamos conseguir? - perguntou Suzanne.

 

- Acho que é possível - disse Donald. - Tivemos uma boa notícia quando vimos o Oceanus e percebemos que estava intacto. Se conseguirmos chegar até aquela saída de Barsama e descobrir como é que se inunda o compartimento e como é que se abre o poço, teremos energia e condições suficientes para ir até Boston.

 

- Não vai resultar - disse Suzanne. - Os Interterrestres são paranóicos demais para não terem as saídas totalmente vigiadas e monitorizadas. Mesmo que soubéssemos como é que tudo funciona, não conseguiríamos fugir.

 

- A Suzanne tem razão - disse Richard. - De certeza que devem ter posto imensos clones-empregados a guardar esses locais.

- Concordo - disse Donald. - Não vamos conseguir passar deSpercebidos nem arrombar as portas. Eles vão ter de nos deixar sair.

- Ora! - exclamou Perry. - Eles não nos vão deixar sair. o Arak deixou isso bem claro.

 

- De livre vontade não deixam - disse Donald. - Teremos de os obrigar.

 

- E como é que vamos conseguir fazer isso? - perguntou Suzanne. - Não nos podemos esquecer que estamos a falar de uma civilização extremamente avançada, com capacidades e tecnologia que não podemos sequer imaginar.

 

- Chantagem - disse Donald. - Temos de os convencer que será mais seguro deixarem-nos ir, do que tentarem deter-nos.

 

- Continue - disse Perry, em tom de dúvida.

 

- Eles estão aterrorizados com a ideia de virem a ser descobertos

- disse Donald. - A minha ideia é ameaçá-los com uma transmissão para a televisão da superficie e com a exposição do mundo deles.

 

- Será que as pessoas da superficie acreditariam? - perguntou Suzanne.

 

- o que interessa é que os Interterrestres acreditem - disse Donald.

 

- E existem meios para transmitir sinais de TV? - perguntou Perry.

 

- Não, mas existem meios para os receber. o Michael e eu encontrámos um homem que nos pode ajudar.

 

- É verdade - disse Michael. - É um velhote de Nova Iorque chamado Harvey Goldfarb. Está cá há muitos anos, mas passa os dias escondido na Central de Informação a ver séries na televisão. Ele também se quer ir embora.

 

- o mais importante é que ele conhece bem o equipamento de TV - disse Donald. - Temos duas câmaras gravadoras no Oceanus que podem ser temporariamente accionadas para transmitir. o Goldfarb diz que há energia suficiente.

 

- Hum. Sabe - disse Perry -, isso parece-me interessante.

- A mim, não - disse Suzanne, abanando a cabeça. - Não vejo como é que isso pode dar resultado. Percebo a ideia da ameaça, mas não percebo como é que a podemos usar para obrigar os Interterrestres a fazer uma coisa que eles, obviamente, não querem fazer.

 

- Também não sei exactamente como é que vamos fazer admitiu Donald. - Temos de pensar em conjunto e tentar elaborar um plano. Até já consigo ver o Goldfarb com o dedo no botão, preparado para iniciar a transmissão.

 

- É só isso? - perguntou Perry, desapontado. - Se o seu plano é esse, então a Suzanne tem razão. Não vai resultar. Quer dizer, eles podem simplesmente mandar um clone-empregado para apagar o Goldfarb ou, ainda mais fácil, podem cortar a energia. Para a chantagem resultar, têm de estar mais coisas envolvidas para a ameaça ser credível.

 

- É um começo - disse Donald. - Como já disse, temos de pensar nisto a sério.

 

Suzanne olhou para Perry.

 

- Que é que quer dizer com «mais coisas envolvidas»? - perguntou ela.

 

- Devíamos ter duas ameaças em simultâneo - disse Perry. Assim, se uma delas não resultar, temos a outra. Estão a ver o que é que eu quero dizer? Se eles quiserem neutralizar as ameaças têm de atacar dos dois lados.

 

- A ideia não é má - disse Donald. - Alguém consegue pensar noutra ameaça?

 

Ninguém disse nada.

 

- Assim, de repente, não consigo pensar em nada - disse Perry.

- Nem eu - disse Suzanne.

 

- Então começamos com a ideia da câmara gravadora - disse Donald. - Enquanto estivermos a tratar desse assunto, alguma coisa nos há-de ocorrer.

 

- Então e as armas do museu? - perguntou Michael.

- Encontraram armas? - perguntou Perry.

 

- Uma sala cheia - disse Donald. - Mas infelizmente, a maior parte delas são objectos velhos, ultrapassados e estragados, que foram resgatados do fundo do mar, desde os tempos da Grécia antiga até à Segunda Guerra Mundial. A peça mais promissora que vimos foi uma Luger alemã.

 

-Acha que ainda dispara? - perguntou Perry

 

- É possível - disse Donald. - Está carregada e o mecanismo parece estar em boas condições.

 

- Bem, já é alguma coisa - disse Perry. - Especialmente se funcionar.

 

- De uma coisa podemos ter a certeza - disse Donald. - Não vamos conseguir avançar com isto se formos separados, indo cada um para uma cidade diferente.

 

- Isso é verdade - disse Perry. - Portanto, temos menos de um mês.

 

- Podemos ter muito menos do que um mês - disse Richard.

- Por que é que diz isso? - perguntou Suzanne,

 

- Eu e o Michael tivemos um pequeno problema - disse Richard.

- E imagino que o céu cairá sobre nós, quando alguém descobrir.

- Richard, não, não digas nada! - gritou Michael.

 

- o que é? - perguntou Perry - Que é que fizeram agora?

- Houve um acidente - disse Richard.

 

- Que tipo de acidente? - quis saber Donald.

 

- Talvez fosse melhor mostrar-lhe - disse Richard. - Talvez tenha uma ideia sobre o que é que devemos fazer.

 

- Onde é? - rosnou Donald.

 

- No meu quarto ou no quarto do Mickey - disse Richard. - É indiferente.

 

- Vá à frente, marinheiro - disse Donald.

 

Ninguém disse nada enquanto avançavam através do relvado, até à abertura para o exterior da casa de Richard, Seguiram em fila, contornando a piscina. Richard dirigiu-se até ao armário que continha o frigorífico e deu ordem para que ele se abrisse. Assim que isso aconteceu, ele baixou-se e retirou vários dos recipientes que estavam apertados no interior, e que acabaram por cair no chão de mármore. Emoldurado pelos restantes recipientes, colocados uns sobre os outros, estava o rosto pálido e congelado de Mura. Tinha o cabelo todo embaraçado junto à testa, e a espuma ensanguentada tinha-lhe caído para as faces, formando uma mancha acastanhada. Suzanne tapou imediatamente os olhos.

 

- Isto foi um acidente, está bem? - explicou Richard. - o Michael não queria realmente matá-la. Ele estava só a tentar impedi-la de gritar, pondo-lhe a cabeça debaixo de água.

 

- Ela estava doida - explodiu Michael. - Ela viu o corpo do tipo que o Richard matou.

 

- Que tipo? - perguntou Perry.

 

- Era um rapazola que conhecemos na festa - disse Michael.

- Um que andava sempre pendurado na Mura.

 

- Onde é que está o corpo dele? - perguntou Donald.

- Enfiado no meu frigorífico - disse Michael.

 

- Seus idiotas! - gritou Perry. - Como é que o rapaz morreu?

- Isso não interessa - disse Donald em voz baixa. - o que está feito, está feito e o Richard tem razão: assim que estes corpos forem descobertos vão cair em cima de nós.

 

- Claro que interessa - disse Suzanne, enquanto afastava as mãos da cara para olhar para os mergulhadores. - Eu não acredito nisto! Vocês mataram duas destas pessoas tão pacíficas e simpáticas, e tudo isso para quê?

 

- Ele estava a atirar-se a mim - explicou Richard. - Dei-lhe um murro e ele caiu e bateu com a cabeça. Fiquei surpreendido. Eu não queria matá-lo.

 

- Seus filhos-da-mãe, idiotas, fanáticos! - escandalizou-se Suzanne.

 

- Okay, okay - interveio Perry. - Vamos com calma. Temos de trabalhar em conjunto, se queremos sair daqui.

 

- o Perry tem razão - disse Donald. - Se vamos fazer uma tentativa de fuga, tem de ser o mais depressa possível. Acho que devíamos começar hoje à noite.

 

- Concordo - disse Richard, enquanto se inclinava para voltar a colocar as caixas no frigorífico, cobrindo novamente o rosto sem vida de Mura.

 

- Que é que podemos fazer hoje à noite? - perguntou Perry

- Muita coisa, penso eu - disse Donald.

 

- Bem, você é que é o militar - disse Perry - Por que é que não assume o comando?

 

- Que é que as outras pessoas acham disso? - perguntou Donald.

 

Richard endireitou-se e conseguiu fechar a porta do frigorífico, movimentando uma anca.

 

- Por mim, esteja à vontade - disse ele. - Quanto mais depressa sairmos daqui, melhor.

 

- Eu também acho - disse Michael.

 

- E tu, Suzanne? - perguntou Donald.

 

- Não acredito que isto tenha acontecido - disse Suzanne em voz baixa fixando o olhar num ponto indefinido. - Eles passaram um mês a descontaminar-nos, mas mesmo assim conseguimos trazer o mal.

 

- o que é que está para aí a resmungar? - perguntou Perry Suzanne suspirou tristemente.

 

- É como se fôssemos os ajudantes de Satanás a invadir o paraíso.

 

- Sente-se bem, Suzanne? - perguntou Perry, agarrando-a pelos ombros e olhando-a nos olhos. Estes estavam marejados de água.

 

- Dói-me o coração - disse ela.

 

- Acho que três votos em quatro pessoas são suficientes para um mandato - disse Donald, ignorando Suzanne. - A minha proposta é a seguinte: vamos buscar os nossos comunicadores de pulso, chamamos um táxi aéreo e dirigimo-nos para o Museu da Superfície da Terra. Eu e o Richard vamos até ao submersível para ver se está tudo operacional. Ele ajuda-me a trazer uma das câmaras de TV, Perry, você e o Michael entram no museu e trazem as armas. Michael mostra-lhe onde é que elas estão. Traga tudo o que lhe parecer apropriado, mas não se esqueça da Luger.

 

- Parece-me bem - disse Perry - E você, Suzanne? Não quer vir?

 

Suzanne não respondeu. Em vez disso, tapou novamente a cara com as mãos e esfregou os olhos cheios de lágrimas. Não conseguia ultrapassar o facto de eles serem responsáveis pela morte de dois Interterrestres. Tentou imaginar o tipo de reacção que um crime assim poderia originar em Saranta. Duas essências que tinham sobrevivido durante várias eras tinham-se perdido para sempre.

 

- Okay - disse Perry, com uma voz suave. - Você fica aqui. Nós não nos demoramos.

 

suzanne acenou com a cabeça, mas nem sequer olhou quando eles saíram da sala através da parte da casa aberta para o exterior. Em vez disso, olhou para o armário que escondia o frigorífico e começou a chorar. A violenta e terrível confrontação que ela temera ia começar.

 

Donald encarava a operação como um exercício militar, e Richard e Michael, que tinham ainda mais experiência em operações secretas, também. Entrando no espírito da situação, os dois mergulhadores escureceram os rostos e as roupas com terra. Perry não estava assim tão entusiasmado, mas sentia-se aliviado por poder fazer alguma coisa em relação à situação em que se encontravam.

 

- Isso é mesmo necessário? - perguntou Perry quando viu o que Richard e Michael tinham feito com a lama.

 

- Era o que fazíamos em qualquer operação nocturna, na Marinha - respondeu Richard.

 

A viagem no táxi aéreo era, em certos aspectos, ainda mais excitante à noite do que durante o dia. Havia bastante menos tráfego, mas o que havia surgia inesperadamente das sombras.

 

- Isto parece uma viagem num parque de diversões - disse Richard, quando um táxi passou mesmo ao lado deles.

 

- Gostava de descobrir como é que estas coisas funcionam comentou Perry. - Na fábrica que eu e o Richard visitámos esta manhã, só vi clones-empregados.

 

- Foi uma perda de tempo - disse Richard.

 

- o que é que pensa da Suzanne? - perguntou Donald a Perry

- o que quer dizer? - interrogou Perry.

 

- Acha que temos de nos preocupar com ela? - perguntou Donald. - Ela pode deitar tudo a perder.

 

- Pensa que ela vai avisar os Interterrestres? - perguntou Perry.

- Algo desse estilo - disse Donald. - Ela pareceu ficar bastante perturbada com as duas mortes.

 

- Ela ficou perturbada, mas não foi só por causa das mortes disse Perry - Ela contou-me que Garona a tinha desapontado em alguma coisa. E, como ela já disse, sente-se responsável por nós estarmos aqui. Seja como for, não me parece que vá causar problemas. Ela vai ficar bem.

 

- Espero que sim - disse Donald.

 

A nave abrandou, pairou durante alguns momentos e depois desceu rapidamente.

 

- Preparem-se - disse Donald.

 

Tal como Donald ordenara, o táxi aéreo aterrou no pátio do museu. Olhando para fora, podiam ver a silhueta sombria do Oceanus, recortada contra o basalto negro do museu.

 

- Eis o nosso alvo - disse Donald. - Assim que o táxi aéreo abrir, quero que se encostem todos à parede do museu. Entendido?

- Afirmativo - disse Richard.

 

Logo que a abertura surgiu, os homens saíram para o exterior, correram para a parede e encostaram-se a ela, olhando à volta. Já estava escuro, principalmente nas sombras, e tudo estava sossegado, não se vendo quaisquer sinais de vida. Atrás deles, a forma geométrica do museu erguia-se na escuridão. A única luminosidade vinha das milhares de pseudo-estrelas de bioluminescência por cima deles, e de uma luz fraca que emanava das janelas do museu. o casco escuro do submersível estava a uns quinze metros de distância, assente em cunhos, sobre o atrelado de um táxi antigravidade.

 

A abertura lateral do táxi aéreo desapareceu, sem deixar vestígios, e a nave elevou-se silenciosamente, desaparecendo na escuridão.

 

- Não se vê ninguém - murmurou Richard.

 

- Parece-me que este local não é muito frequentado à noite respondeu Michael, falando igualmente baixo.

 

- Falem o menos possível - ordenou Donald.

 

- Isto está deserto - disse Perry, relaxando um pouco. - Assim vai ser mais fácil.

 

- Esperemos que se mantenha assim - disse Donald. Em seguida, apontou para uma janela à sua esquerda. - Perry, você e o Michael sobem por ali e voltam pelo mesmo sítio. Nós estaremos a trabalhar no Oceanus ou aqui à espera, nas sombras.

 

- Acha que haverá um sistema de alarme no museu? - perguntou Perry

 

- Não me parece! - disse Richard. - Não devem ter fechaduras, nem alarmes, nem nenhuma dessas coisas. Acho que ninguém rouba nada por aqui.

 

- Muito bem - disse Perry. - Vamos embora.

 

- Boa caça - disse Donald, acenando, enquanto Perry e Michael corriam, inclinados, até ficarem por baixo da janela. Resmungando, Perry ergueu Michael para que este se pudesse agarrar ao parapeito. Depois de ter entrado, Michael inclinou-se e puxou Perry lá para dentro. Alguns instantes depois, desapareceram os dois no interior do edifício.

 

Donald voltou a olhar para o submersível.

 

- Então, vamos ou não vamos? - perguntou Richard.

 

- Vamos lá! - disse Donald.

 

Correram para o mini-submarino, procurando manter-se o mais inclinados possível. Donald deu umas pancadinhas carinhosas no casco de aço do seu BY-140. A sua cor escarlate parecia cinzenta, no meio da escuridão, mas as palavras a branco escritas no topo, distinguiam-se perfeitamente. Donald inspeccionou a nave cuidadosamente, sempre com Richard ao seu lado. Sentiu-se impressionado com as reparações feitas pelos Interterrestres; as luzes exteriores e o braço manipulador, que tinham sido destruídos durante a queda pelo poço, pareciam perfeitamente normais.

 

- Está óptimo - disse Donald. - Só precisamos de chegar até ao oceano e o resto será fácil.

 

- E quanto mais depressa, melhor - disse Richard.

 

Donald dirigiu-se para uma caixa de ferramentas no exterior do submersível, abriu-a e tirou várias chaves de porcas, entregando-as a Richard.

 

- Pode começar pela câmara lateral a estibordo - disse ele. Só tem de desaparafusá-la. Eu vou lá acima verificar a bateria. Sem energia, não iremos a lado nenhum.

 

- Entendido - disse Richard.

 

Donald subiu os degraus que lhe eram tão familiares, chegando rapidamente à escotilha da embarcação. Ficou um pouco surpreendido ao ver que estava destrancada e ligeiramente encostada.

 

Segurando-a com as duas mãos, abriu-a completamente. Depois de uma última olhadela à sua volta, baixou-se através da abertura e desceu, totalmente às escuras.

 

Assim que chegou ao convés, foi avançando às apalpadelas. o espaço era-lhe tão familiar que conseguia orientar-se literalmente com os olhos fechados, ou pelo menos era isso que pensava até tropeçar nos dois livros que Suzanne trouxera para impressionar Perry. Donald praguejou, não tanto por ter tropeçado, mas mais por ter batido com uma mão nas costas de um dos assentos dos passageiros, ao tentar manter o equilíbrio. Conseguiu evitar a queda, que poderia ser grave, num espaço tão reduzido.

 

Depois de esfregar a mão para aliviar a dor, continuou a andar. Ao aproximar-se da estação de mergulho, viu que as quatro janelas de observação deixavam passar alguma luz, o que lhe facilitava os movimentos. Donald sentou-se no lugar do piloto, com cuidado para não bater com a cabeça em qualquer dos instrumentos salientes. Conseguia ouvir Richard lá fora, a manejar a chave de porcas contra o casco.

 

A primeira coisa que Donald fez foi ligar as luzes dos instrumentos. Em seguida, com alguma ansiedade, deixou que o seu olhar se dirigisse até ao indicador do nível da bateria. Suspirou de alívio. Havia energia suficiente. Então, quando se preparava para verificar a pressão do gás, ficou petrificado. Um ruído atrás de si disse-lhe que não estava sozinho. Alguém, para além dele próprio, estava no interior do submersível.

 

A primeira reacção de Donald foi suster a respiração e pôr-se à escuta. Algumas gotas de suor frio apareceram-lhe na testa. Passaram-se alguns segundos, que pareceram horas, mas o ruído não se repetiu. Então, quando Donald começou a pensar que talvez a sua imaginação tivesse interpretado mal o barulho que Richard fazia ao remover a câmara, ouviu-se uma voz, vinda da escuridão.

 

- É você, Sr. Fuller?

 

Donald virou-se. Os seus olhos tentaram, em vão, penetrar no escuro.

 

- Sim - respondeu ele com uma voz sonante. - Quem está aí?

- Sou eu, o Harv Goldfarb. Lembra-se de mim, da Central de Informação?

 

Donald acalmou-se e respirou fundo.

 

- Claro que sim - disse ele em tom de irritação. - Que diabo é que você está aqui a fazer?

 

Harvey aproximou-se. As luzes dos instrumentos iluminaram a sua cara enrugada.

 

- A sua conversa fez-me pensar - disse Harvey. - Você é a única esperança que eu tenho de sair daqui. Tive medo que se esquecesse de mim, por isso decidi vir para aqui dormir.

 

- Sr. Goldfarb, não podemos esquecê-lo - disse Donald. - Precisamos de si. Viu as câmaras de TV lá fora?

 

- Vi - disse Harvey. - Acho que não vão dar problemas. o que é que está a pensar transmitir?

 

- Ainda não temos bem a certeza - disse Donald. - Talvez a sua imagem, ou a nossa, ou mesmo nós todos.

 

- A minha imagem? - perguntou Harvey.

 

- Na verdade, o que nós queremos é poder fazer a transmissão - disse Donald. - o importante é a ameaça.

 

- Estou a ver - disse Harvey, - Eles deixam-vos sair porque têm medo que eu exponha a Interterra através das ondas de TV.

- É mais ou menos isso - disse Donald.

 

- Não vai resultar - disse Harvey convictamente.

- Porque não?

 

- Por duas razões - disse Harvey. - Em primeiro lugar, porque eles cortariam a energia antes de vocês poderem sair. E em segundo, porque eu não o farei.

 

- Mas você disse que ajudava.

- Pois foi, e você disse que me levava para Nova lorque.

 

- É verdade - admitiu Donald. - o facto é que ainda não planeámos todos os pormenores.

 

- Pormenores, pormenores! - escarneceu Harvey. - Mas ouça. Eu vivo aqui. Posso dizer-vos como é que se sai. Sonhei muitas noites que conseguia fugir da monotonia destes dias intermináveis.

 

- Estamos abertos a sugestões - disse Donald.

 

- Mas tenho de ter a certeza que me levam também - disse Harvey.

 

- Teremos muito gosto que venha - disse Donald. - Qual é a sua ideia?

 

Este submarino funciona? - perguntou Harvey.

 

É isso que estou a verificar - disse Donald. - Temos energia suficiente, portanto, se o conseguirmos pôr na água, vai funcionar.

- Okay, então ouça - disse Harvey. - Na vossa orientação já se falou no facto de os Interterrestres viverem para sempre? Não no mesmo corpo, mas em múltiplos corpos?

 

- Sim - disse Donald. - Já visitámos o Centro de Morte e vimos uma extracção.

 

- Sim, senhor - disse Harvey. - Estão a andar bem. Quer dizer que compreendem que o processo só resulta se a extracção for feita antes da morte. Por outras palavras, tudo tem de ser planeado. Está a ver onde é que eu quero chegar?

 

- Não tenho bem a certeza - admitiu Donald.

 

- Eles têm de estar vivos quando a memória é extraída - disse Harvey. - Ou mais precisamente, os cérebros deles têm de estar a funcionar normalmente. Se tiverem uma morte violenta, é o fim de tudo. É por isso que eles têm tanto medo da violência, e é por isso que não há violência na Interterra há milhões e milhões de anos. São incapazes de a praticar.

 

- Então podemos ameaçá-los com a violência - disse Donald.

- Já tínhamos pensado nisso.

 

- Estou a falar de algo mais específico que a violência - disse Harvey. - Têm que ameaçá-los com a morte. Uma morte sem aquela patetice da extracção, a não ser que eles façam o que vocês querem.

 

- Ah! - exclamou Donald. - Já estou a perceber. Está a dizer para fazermos reféns.

 

- É isso mesmo! - disse Harvey. - Dois, quatro, aqueles que conseguirem, e não podem ser clones, esses não contam. E mais uma coisa: os clones não se perturbam com a violência. Fazem aquilo que lhes for ordenado.

 

- Óptimo! - foi o comentário de Donald. - São várias ameaças dentro de uma só.

 

- Correcto - disse Harvey orgulhosamente, - E escusam de continuar com esta trapalhada das câmaras de TV.

 

- Estou a gostar da ideia - disse Donald. - E se fosse até lá fora dizer ao Ríchard para não continuar a remover a câmara? Vou só verificar a pressão do gás e saio já.

 

- Promete que me leva? - perguntou Harvey.

 

- Você também vai - disse Donald. - Não se preocupe.

 

- Muito bem, espere aí! - ordenou Perry - Ou sabe o caminho, ou não sabe. Há vinte minutos que andamos às voltas como dois palermas. Onde é que estão as malditas armas?

 

Michael abanou a cabeça.

 

- Desculpe, mas eu perco-me sempre dentro dos museus, até durante o dia.

 

- Tente lembrar-se de algum pormenor da galeria - disse Perry.

- Lembro-me que era comprida e estreita - disse Míchael.

 

- E ficava perto de quê? Consegue lembrar-se?

 

- Espere aí - disse Michael. - Já me lembro. Havia uma porta que dizia que para entrar tínhamos de ter a autorização do Conselho dos Anciãos.

 

- Ainda não vi muitas portas - disse Perry, olhando à sua volta.

- E aqui não há nenhuma, por isso não estamos no sítio certo.

 

- Também me estou a lembrar que estávamos numa sala cheia de tapetes persas - disse Michael. - Estou a lembrar-me de tudo. Os tapetes estavam a seguir à sala que tinha as coisas da Renascença.

 

- Já é alguma coisa - disse Perry. - Eu sei onde é essa galeria. Venha! É a sua vez de me seguir!

 

Alguns minutos mais tarde, os dois homens estavam diante da porta de admissão restrita. Era perto da janela pela qual tinham entrado.

 

- É aqui? - perguntou Perry. - Se é, estivemos a andar em círculo.

 

- Acho que é. - Passou por Perry, abriu a porta e olhou lá para dentro. - Nem mais! - exclamou ele.

 

- Já não era sem tempo - resmungou Perry enquanto entrava.

- Os outros já devem estar a pensar que nos perdemos, por isso é melhor despacharmo-nos.

 

- o que é que vamos levar? - perguntou Michael.

 

Os dois homens pararam junto à porta, enquanto Perry olhava para um lado e para o outro do compartimento pouco iluminado. Estava impressionado com o comprimento do quarto e a consequenteextensão ocupada pelas prateleiras. - Isto é mais do que eu esperava! - exclamou ele. - Temos aqui uma bela selecção.

 

- As coisas mais antigas estão à direita e as mais recentes à esquerda - disse Michael.

 

- Acho que podemos levar qualquer coisa, desde que funcione

- disse Perry - e desde que eu encontre a Luger.

 

- Há uma coisa que eu quero - disse Michael, inclinando-se e pegando no arco e nas flechas. Ao fazê-lo magoou-se num dedo. Bolas, as pontas das setas são tão afiadas como lâminas.

 

- Chamam-se quadrelos ou flechas, e não setas - disse Perry.

- Seja lá o que for - disse Michael. - São muito afiadas.

 

- Lembra-se em que direcção é que estava a Luger?

- À esquerda, seu «totó» - disse Michael.

 

- Não me chame «totó» - avisou Perry.

 

- Acabei de lhe dizer que as coisas mais recentes estavam à esquerda.

 

Perry começou a andar sem responder ao último comentário de Michael. Sentia-se irritado por ter de aturar os mergulhadores, Nunca, em toda a sua vida, se vira obrigado a passar tanto tempo com dois tipos tão idiotas e infantis.

 

Michael virou-se e seguiu na outra direcção. Já que todo o material estava danificado pela água e com incrustações, ele pensou que as armas mais antigas deviam estar em melhor estado, uma vez que, por serem mais simples, teriam menos peças estragadas pela água salgada. Em breve, estava numa área que continha uma colecção soberba de armas da antiga Grécia. Pegou numa série de pequenas espadas, punhais e escudos, trazendo também vários elmos, grevas e um par de protecções para o peito. o que mais o impressionara fora o ouro trabalhado e as jóias incrustradas que conseguira distinguir, apesar da escuridão. Carregado com os objectos, dirigiu-se para a porta por onde tinham entrado.

 

- Já encontrou alguma coisa de jeito? - perguntou Michael a Perry.

 

- Ainda não - respondeu Perry. - Só algumas pistolas enferrujadas.

 

- Vou levar estas coisas até à janela.

 

- Está bem, eu irei assim que encontrar a Luger,

 

Michael juntou o arco ao seu fardo e, em seguida, dirigiu-se com alguma dificuldade para a porta. Mal acabara de chegar ao corredor quando chocou com Richard.

 

Michael gritou e largou tudo o que trazia nas mãos, Os pesados objectos de ouro e bronze fizeram um barulho tremendo, ao caírem no chão de mármore.

 

- Faz pouco barulho, idiota! - disse Richard em voz baixa. o enorme ruído explodindo no meio do silêncio e da escuridão, assustara-o tanto como o encontro inesperado tinha assustado Michael.

 

- Que é que estás a fazer aqui? Pregaste-me um susto do caraças! - disse Michael, irritado.

 

- Por que é que estão a demorar tanto? - perguntou Richard.

- Nunca mais dávamos com a sala. Qual é o problema?

 

Perry apareceu à porta.

 

- Meu Deus, o que é que vocês estão a fazer? Estão a ver se acordam a cidade inteira?

 

- A culpa não foi minha - disse Michael enquanto se inclinava para apanhar os objectos.

 

- Encontraram a Luger? - perguntou Richard.

 

- Ainda não - disse Perry - Onde é que está o Donald?

 

- Já voltou para o palácio dos visitantes - disse Richard. Houve uma alteração nos planos. o velhote Harvey Goldfarb estava escondido no submersível e teve uma ideia muito melhor para conseguirmos fugir.

 

- A sério? - perguntou Perry. - Qual é?

 

- Vamos fazer reféns - disse Richard. - Ele diz que os Interterrestres têm tanto medo de uma morte violenta, que farão qualquer coisa, incluindo deixar-nos ir no submarino até ao oceano, se nós agarrarmos alguns deles e ameaçarmos matá-los.

 

- A ideia agrada-me - disse Perry. - Mas por que é que o Donald se foi embora antes de nós?

 

- Está preocupado com a Suzanne, especialmente agora que as coisas parecem estar a correr bem. Mas ele pediu-me para vos dizer que se despachassem; assim que estiverem prontos, eu chamo um táxi aéreo para nos transportar.

 

- Está bem - disse Perry - Venham cá os dois. Se todos procurarmos o raio da pistola, vamos encontrá-la mais rapidamente.

 

o táxi aéreo parou e abriu-se. Ficou a pairar mesmo em frente à sala de refeições do palácio dos visitantes. Richard e Míchael saíram com alguma dificuldade, carregados com todo o armamento antigo. Perry trazia apenas a Luger, que tinha, por fim, conseguido encontrar.

 

Caminharam os três pela rampa, em direcção à porta. Os mergulhadores tinham colocado as armaduras, os elmos e as grevas, evitando assim transportá-los nos braços. Já estavam suficientemente carregados com os escudos, espadas, punhais e o arco. Perry tentara persuadi-los a não levar a armadura, mas eles estavam convencidos de que, de acordo com as suas próprias palavras, lá em cima aquelas coisas iriam valer uma fortuna.

 

Ficaram surpreendidos ao ver que a sala estava vazia.

 

- Que estranho - disse Richard. - Ele disse-me para vir aqui ter com ele.

 

- Achas que ele se vai embora sem nós? - perguntou Michael.

- Não sei - respondeu Richard. - Nunca pensei nisso.

 

- Ele não vai sem nós - garantiu-lhes Perry. - Acabámos de ver o Oceanus parado onde sempre esteve, e o Donald não pode ir a lado nenhum sem ele.

 

- Será que está no quarto de Suzanne? - sugeriu Michael.

- Acho que é uma boa possibilidade - disse Perry

 

A longa caminhada através do relvado foi bastante barulhenta devido aos ruídos provocados pela armadura antiga.

 

- Vocês estão ridículos - comentou Perry.

 

- Ninguém lhe pediu a opinião - disse Richard.

 

Ao contornarem a entrada da casa de suzanne, viram Donald, Suzanne e Harvey sentados ao pé da piscina. Era óbvio que a atmosfera estava tensa.

 

- Que é que se passa? - perguntou Perry

 

- Temos um problema - disse Donald. - A suzanne não sabe se estamos a agir correctamente.

 

- Por que não, Suzanne? - perguntou Perry

 

- Porque não se deve matar - disse Suzanne. - Se levarmos reféns para o mundo da superficie, sem adaptação, eles morrem, é tão simples como isto. Nós trouxemos para cá a violência e a morte, e agora queremos usá-las para podermos fugir. Parece-me eticamente indecente.

 

- Pois é, mas eu não pedi para vir para cá - disse Perry, enervado. - Eu não queria estar sempre a repetir a mesma coisa, mas nós estamos aqui contra a nossa vontade. Eu penso que isso justifica a violência.

 

- Mas isso é confundir os fins com os meios - disse Suzanne.

- E nós, supostamente, somos contra isso.

 

- Eu só sei que tenho uma família da qual sinto a falta - disse Perry - Quero voltar a vê-la dê lá por onde der!

 

- Eu compreendo-o - disse Suzanne. - A sério! E sinto-me responsável por toda esta situação. E é verdade que fomos raptados. Mas não quero mais mortes, nem quero ver a Interterra inadvertidamente destruída. Somos eticamente obrigados a negociar. Eles são tão pacíficos.

 

- Pacíficos? - comentou Richard. - Eu diria monótonos!

- Concordo plenamente - disse Harvey.

 

- Perry, este é o Harvey Goldfarb - disse Donald. Perry e Harvey apertaram as mãos.

 

- Eu não vejo o que é que temos que negociar - disse Donald.

- o Arak deixou bem claro que nós ficaremos aqui para sempre, não disse «mas», nem «se», nem «talvez». Uma afirmação assim, exclui qualquer negociação.

 

- Acho que devíamos deixar passar mais algum tempo - disse Suzanne. - Por que é que não podemos fazer isso? Talvez mudemos de opinião, ou talvez consigamos fazer com que eles mudem a deles. Não nos podemos esquecer que trouxemos para aqui as nossas personalidades e características psicológicas que estão relacionadas com o mundo lá de cima, e estamos tão habituados a pensar que somos os «bons da fita» que nos custa admitir que estamos a ser monstruosos.

 

- Eu não me sinto um monstro - disse Perry. - Simplesmente não pertenço aqui.

 

- Nem eu - disse Michael.

 

- Deixem-me continuar - pediu Suzanne. - Vamos supor o seguinte: imaginem que conseguimos sair daqui. o que é que acontece a seguir? Revelamos ou não a existência da Interterra?

 

- Seria difícil não o fazer - disse Donald. - Onde é que diríamos que estivemos durante um mês inteiro, ou seja lá o tempo que for?

 

- E eu? - disse Harvey. - Há quase noventa anos que estou aqui.

 

- Isso seria ainda mais difícil de explicar - concordou Donald.

- Também teríamos de arranjar uma explicação para o facto de termos encontrado todo o ouro e as armaduras - disse Richard. Sim, porque eu vou levar isto comigo.

 

- E não nos podemos esquecer das possibilidades económicas que podem advir do facto de nos tornarmos intermediários - disse Perry. - Podíamos ajudar os dois lados e ficar multimilionários. Os comunicadores de pulso, só por si, causariam grande sensação.

 

- Era aí que eu queria chegar - disse Suzanne. - De uma maneira ou de outra, acabaríamos por expor a Interterra. Parem um pouco e pensem na nossa civilização e na sua tendência para a exploração. Não gostamos de admitir que somos assim, mas somos. Somos egoístas, quer a nível individual quer a nível das nações. Haveria, sem dúvida, um confronto, e sendo a civilização Interterrestre tão avançada, com poderes e armas que nem conseguimos imaginar, seria um desastre, talvez significasse mesmo o fim do mundo no que diz respeito aos humanos de segunda-geração.

 

Durante alguns minutos ninguém disse nada.

 

- Nada disso me interessa - disse Richard subitamente, quebrando o silêncio. - Quero sair daqui.

 

- Concordo - disse Perry.

 

- Está tudo dito - disse Donald. - Depois de termos saído, podemos negociar com os Interterrestres. Assim, seria uma verdadeira negociação, sem estarmos a ser controlados por eles,

 

- E você, Harvey? o que é que lhe parece? - perguntou Perry.

- Há anos que sonho poder ir-me embora - disse Harvey.

 

- Então, está decidido - disse Donald. - Vamos fugir!

 

- Eu não vou - disse Suzanne. - Não quero nem mais uma morte a pesar-me na consciência. Talvez seja porque não tenho familiares muito chegados, mas estou disposta a tentar adaptar-me à Interterra. Sei que tenho um longo caminho pela frente, mas gosto de estar no paraíso. Acho que merece o exercício de auto-exame.

 

- Desculpa, Suzanne - disse Donald, olhando-a nos olhos. - Se nós formos, tu também vais. Os teus altos padrões morais não vão dar cabo do nosso plano.

 

- o que é que vais fazer, obrigar-me? - perguntou Suzanne, irritada.

 

- Sem dúvida - disse Donald. - Deixa-me lembrar-te que já houve casos em que comandantes mataram os seus próprios homens quando acharam que os seus comportamentos poderiam comprometer uma operação.

 

Suzanne não respondeu. Em vez disso, olhou para os restantes presentes na sala. A sua cara não tinha expressão. Ninguém disse nada, ou fez qualquer sinal em sua defesa.

 

- Vamos ao que interessa - disse Donald, por fim. - Encontraram a Luger?

 

- Encontrámos - informou Perry. - Foi difícil, mas conseguimos.

 

- Deixe-me vê-la - disse Donald.

 

Enquanto Perry tirava a pistola do bolso da túnica, Suzanne saiu disparada da sala. Richard foi o primeiro a reagir. Largando o que tinha nas mãos e tirando a armadura que ainda tinha no corpo, correu atrás dela, desaparecendo na noite. Graças à sua excelente forma física, conseguiu alcançá-la rapidamente e agarrou-lhe o pulso, obrigando-a a parar. Estavam ambos sem fôlego.

 

- Você está nas mãos do Donald - conseguiu Richard dizer entre duas respirações.

 

- Isso não me interessa - respondeu Suzanne. - Largue-me!

- Ele dá cabo de si - disse Richard. - Ele pensa que ainda é um militar, Estou só a avisá-la.

 

Suzanne lutou durante alguns momentos, tentando libertar-se mas em breve percebeu que Richard não a iria largar. Os outros aproximaram-se e juntaram-se à volta deles. Donald trazia a Luger.

 

- Estás a obrigar-me a agir desta maneira - disse Donald, em tom ameaçador. - Espero que tenhas consciência disso.

 

- Quem é que está a obrigar quem? - perguntou Suzanne, em tom irónico.

 

- Levem-na para dentro! - disse Donald. - Temos de acabar com isto de uma vez por todas. - Ele começou a andar de volta para casa. Os outros seguiram-no, com Richard ainda agarrando no pulso de Suzanne. Ela lutou um pouco, mas depressa se resignou a ser arrastada em direcção ao seu quarto.

 

- Tragam-na para dentro e sentem-na - disse Donald por cima do ombro, enquanto o grupo contornava a piscina.

 

Quando entraram na sala iluminada, Richard reparou que a mão de Suzanne estava a ficar azul. Preocupado com a circulação dela, deixou de a apertar com tanta força. Assim que o fez, ela conseguiu libertar-se e deu-lhe um murro mesmo no centro do peito. Apanhado de surpresa, Richard tombou para a parte mais profunda da piscina. Suzanne voltou a desaparecer na noite.

 

Com o peso da armadura a puxá-lo para baixo, Richard atrapalhou-se, apesar de ser um poderoso e experiente nadador. Donald atirou a pistola para uma das cadeiras e lançou-se à água. Perry e Michael faziam o que podiam para ajudar na borda da piscina, até que repararam que Suzanne tinha escapado de novo.

 

- Vá buscá-la! - gritou Perry. - Eu fico aqui a ajudar. Michael saiu a correr e o esforço que teve de fazer, fê-lo sentir um enorme respeito pelos idosos com dificuldades nos movimentos, e perguntou a si próprio como é que os antigos guerreiros conseguiam lutar com o tremendo peso da armadura. A protecção do peito era particularmente incómoda, e tornava-se difícil correr com ela colocada, mas o pesado elmo e as grevas também não ajudavam nada. Fora do alcance da luz que emanava do interior da sala, Michael deteve-se. A sua vista não se tinha adaptado à escuridão e ele não via nada. Não havia sinal de Suzanne, embora ela só tivesse cerca de um minuto de avanço.

 

Enquanto os minutos passavam e os seus olhos se iam adaptando, foi distinguindo alguns pormenores que sobressaíam da escuridão, mas continuou a não ver Suzanne. Então, um movimento súbito e uma linha de luz brilhante à sua direita, atraiu a sua atenção. Quando olhou nessa direcção o seu coração disparou. Era um táxi aéreo que tinha chegado, e se tinha aberto, a uns cinquenta metros de distância, perto da sala de refeições.

 

Michael começou de novo a correr, sacudindo as suas pernas fortes. Aproximou-se rapidamente da nave mas apercebeu-se que a abertura ia desaparecer. Conseguiu ver Suzanne a entrar, a atirar-se para a banqueta e a colocar a palma da mão direita na mesa central.

 

- Não! - gritou Michael, ao mesmo tempo que se atirava contra a porta do táxi. Mas era tarde demais. o que até há momentos atrás fora uma abertura era agora a capota do táxi. Michael foi contra ela e fez ricochete, ouvindo-se o ruído de metal contra metal. A colisão atirou-o ao chão, fazendo também cair o elmo que tinha na cabeça. No instante seguinte, o táxi aéreo iniciou o seu movimento ascendente libertando um jacto de ar que levantou Michael. Ele flutuou a uns trinta centímetros do solo, como se fosse um balão de hélio, acabando por voltar a cair no chão como um peso morto.

 

A segunda colisão deixou-o sem poder respirar, e a contorcer-se no chão. Quando conseguiu recuperar o fôlego, pôs-se em pé e começou a dirigir-se para onde estavam os outros. Quando lá chegou, já eles tinham colocado Richard, totalmente encharcado e a tossir violentamente, numa cadeira.

 

Donald olhou na direcção de Michael quando este entrou na sala.

- Onde é que ela está?

 

- Fugiu num táxi aéreo! - disse Michael, com dificuldade.

 

- Deixou-a fugir! - gritou Donald, levantando-se e afastando-se de Richard. Estava fora de si.

 

- Não pude evitá-lo - disse Michael. - Ela deve ter chamado o táxi assim que saiu.

 

- Deus do céu! - disse Donald. Levou uma mão à testa e abanou a cabeça. - Tanta incompetência! Não acredito nisto

- Ei, eu fiz o que pude - defendeu-se Michael.

- Não discutam - interveio Perry.

 

- Merda! - gritou Donald, enquanto caminhava em círculo pelo interior da sala.

 

- Devia tê-la segurado com mais força - disse Richard, ainda um pouco engasgado.

 

Donald interrompeu a sua caminhada furiosa.

 

- Ainda mal começámos a operação e já estamos em crise. Nem quero pensar no que ela vai fazer. Temos de nos despachar, e depressa! Michael, vá outra vez para o Oceanus e não deixe ninguém aproximar-se!

 

- Entendido! - disse Michael, agarrando na besta e nas flechas e desaparecendo na noite.

 

- Precisamos de reféns o mais rapidamente possível - disse Donald.

 

- E se fossem o Arak e a Sufa? - sugeriu Perry.

 

- Seria perfeito - disse Donald. - Vamos pedir-lhes para vir até cá e esperemos que a Suzanne não tenha já falado com eles. Vamos dizer-lhes para irem até à sala de refeições.

 

- E o Ismael e a Mary Black? - continuou Perry

- quantos mais, melhor - disse Harvey.

 

- Óptimo - disse Donald. - Podemos chamá-los também. Mas não há espaço para mais ninguém no Oceanus.

 

o pulso de Suzanne estava bastante acelerado. Nunca se tinha sentido tão ansiosa. Sabia que tinha tido muita sorte em conseguir fugir do grupo e não podia deixar de pensar no que podia ter acontecido, caso não tivesse conseguido. Estremeceu. Eles pareciam ter-se tornado estranhos, ou mesmo inimigos, desde que tinham ficado obcecados com a ideia da fuga, estando, inclusivamente, na disposição de matar.

 

Apesar do que tinha dito na altura, ela não estava muito segura dos seus sentimentos, a não ser em relação à abominável ideia de causarem mais mortes. No entanto, e apesar de se sentir confusa, ela tivera de decidir rapidamente para onde é que se queria dirigir no táxi aéreo ou a nave não se fecharia. o primeiro local que lhe tinha ocorrido fora a pirâmide negra e o Conselho dos Anciãos.

 

Quando o táxi aéreo a deixou no destino, sentiu-se um pouco melhor. Durante a viagem, tivera oportunidade de pensar mais racionalmente. Chegara à conclusão que o Conselho dosAnciãos, melhor do que quaisquer outras pessoas, saberia como lidar com o problema de uma maneira rápida e sem prejudicar ninguém.

 

Enquanto subia os degraus que levavam à pirâmide, reparou que toda a zona estava deserta. Sendo aquele um dos mais importantes centros governamentais da Interterra, ela pensara que haveria gente disponível vinte e quatro horas por dia. Mas não parecia ser esse o caso, e continuou a não parecer depois de ela ter entrado na estrutura gigantesca.

 

Suzanne caminhou através do corredor de mármore branco. Não viu ninguém. Ao aproximar-se das enormes portas com painéis de bronze, começou a pensar no que havia de fazer. Bater à porta parecía-lhe ridículo, devido às enormes proporções de tudo o que a rodeava. Mas não teria sido necessário preocupar-se. As portas abriram-se automaticamente, tal como tinha acontecido nessa manhã.

 

Entrando na sala circular rodeada de colunas, Suzanne avançou até ao centro e parou no mesmo sítio onde tinha ficado nessa manhã. Olhou à volta do compartimento deserto, pensando no que devia fazer a seguir.

 

o silêncio era absoluto.

 

- Olá! - disse Suzanne. Quando viu que ninguém lhe respondia, chamou mais uma vez, falando mais alto. Depois chamou novamente, desta vez a gritar. A abóbada fez com que ouvisse nitidamente o eco da sua voz.

 

- Posso ajudá-la? - perguntou a voz calma de uma rapariguinha.

 

Suzanne virou-se. Atrás de si, emoldurada pelo enorme umbral da porta, estava Ala. o seu belo cabelo louro estava despenteado, sugerindo que ela acabara de sair da cama.

 

- Lamento estar a incomodá-la - disse Suzanne. - Estou aqui devido a uma emergência. Tem de deter os meus companheiros humanos secundários. Eles estão prestes a fazer uma tentativa de fuga, e, se o conseguirem, o segredo da Interterra será revelado.

 

- É difícil sair da Interterra - disse Ala, esfregando os olhos com as costas da mão. Era um gesto tão infantil que Suzanne teve de recordar a si própria que estava diante de um ser com uma inteligência e uma experiência extraordinárias.

 

- Eles estão a pensar usar o submersível em que viemos - disse Suzanne. - Está no Museu da Superfície da Terra.

 

- Estou a ver - disse Ala. - Continua a ser difícil, mas talvez seja melhor enviar alguns clones-empregados para incapacitarem a embarcação. Vou também convocar o Conselho para uma sessão de emergência. Suponho que não se importa de ficar a conversar connosco.

 

- Claro que não - disse Suzanne. - Eu quero muito ajudá-los.

- Ela pensou referir as trágicas mortes já ocorridas, mas decidiu que mais tarde teria tempo para isso.

 

- É uma situação inesperada e perturbante - disse Ala. - Por que é que os seus amigos decidiram fugir?

 

- Eles dizem que é por causa das famílias e porque não puderam escolher. Mas é um grupo muito variado e existem outros motivos.

- Parece que ainda não estão conscientes da sorte que tiveram.

- Acho que tem razão - concordou Suzanne.

 

Um táxi aéreo aterrou e abriu-se no pátio escuro e cheio de sombras do museu. Dois musculados clones-empregados surgiram vindos do seu interior. Ambos traziam martelos, mas só um deles se dirigiu para o submersível da Benthic Marine. o outro ficou a impedir que o táxi se fechasse, mantendo uma mão num dos lados da abertura.

 

o primeiro clone-empregado não perdeu tempo. Assim que chegou ao submersível, dirigiu-se directamente para o compartimento principal da bateria. Com as suas mãos experientes, abriu o painel em fibra de vidro, deixando exposto o interruptor de energia, EM seguida, recuou e ergueu o martelo acima da sua cabeça, preparando-se para deixar o dispositivo inoperante.

 

Mas o pesado martelo não descreveu um movimento normal. Em vez disso, escapou das mãos do clone e bateu no chão com um barulho abafado, ao mesmo tempo que uma flecha furava a garganta do clone. Com um som estrangulado, ele cambaleou para trás, agarrado ao míssil que o perfurava. Uma mistura de sangue e de um fluido claro semelhante a óleo mineral esguichou para a frente, ensopando o seu fato-de-macaco preto. Depois de dar alguns passos desorientados, o clone caiu de costas no chão. Depois de alguns espasmos, ficou imóvel.

 

Michael voltou a colocar a corda do arco em posição e preparou outra flecha. Armado dessa maneira, ele saiu do local onde estivera escondido, perto da parede do museu, e aproximou-se cautelosamente do clone estendido no chão. Michael não tinha visto nem ouvido o táxi aéreo: a nave tinha aterrado fora do seu campo de visão. Tivera a sorte de olhar para o submersível naquele preciso momento, pois, de facto, tinha estado a passar pelas brasas, apesar dos esforços para se manter alerta.

 

Continuando com o arco apontado para o clone, Michael moveu o pé direito e deu um pontapé no corpo. o clone não reagiu, mas houve um novo esguicho de sangue e de fluido que saiu da ferida do pescoço.

 

Retirando uma das mãos do elmo, para se equilibrar melhor, Michael deu um último pontapé no corpo, para não ter dúvidas acerca do seu estado. Para seu grande susto, o arco foi-lhe arrancado da mão.

 

Perplexo, Michael virou-se e viu que estava diante de um segundo clone, que tinha atirado o arco para o chão e erguia o martelo acima da cabeça. Instintivamente, Michael levantou as mãos, apesar de saber que não ia conseguir defender-se do golpe. Cambaleando, tropeçou no clone estendido no chão e caiu sobre ele, ficando sem o elmo, no meio da confusão.

 

Michael rolou desesperadamente para um lado, ao mesmo tempo que o martelo descia com toda a força, despedaçando o já incapacitado clone. Enquanto o segundo clone se equilibrava e retirava a arma para desferir outro golpe, Michael ergueu-se e apoiou-se num joelho, pegando na sua pequena espada grega. Ao mesmo tempo que o clone erguia o martelo acima da cabeça, expondo o abdómén, Michael avançou para ele. Com todo o peso de Michael a impulsioná-la, a espada enterrou-se no seu alvo. Uma mistura de sangue e de óleo claro esguichou para o peito de Michael.

 

Perplexo, o clone largou o martelo e agarrou a cabeça de Michael com as duas mãos. Michael sentiu que estava a ser levantado do chão, mas apenas por breves instantes. A poderosa força do clone foi-se extinguindo e ele caiu, arrastando Michael consigo.

 

Michael teve de esperar quase cinco minutos, até que a força com que o clone lhe agarrava a cabeça enfraqueceu o suficiente para que ele se conseguisse libertar. Enquanto se punha em pé, ele estremeceu e sentiu náuseas devido ao cheiro do fluido que escorria dos dois clones abatidos. Era semelhante ao cheiro de um matadouro combinado com o de uma oficina.

 

Michael pegou no arco. Ficara agora mais consciente do perigo que os clones representavam. Tinha ficado surpreendido quando o segundo clone o atacara, e pensou que eles deviam estar a obedecer a alguma ordem. o que acontecera também lhe mostrou que, tal como Harv tinha avisado, os clones não tinham problemas em usar a violência.

 

- Se calhar devíamos ter adiado isto até depois do jantar - disse Ríchard. - Estou cheio de fome.

 

- Não é altura para gracinhas - disse Perry.

 

- Quem é que está a dizer gracinhas? - perguntou Richard.

- Devem ser eles - disse Harvey. Ele estava ao pé da porta, onde Donald lhe tinha ordenado que ficasse de vigia. - Acabou de chegar um táxi aéreo.

 

o grupo estava na sala de refeições à espera de Arak, Sufa e os Black.

 

- Muito bem, homens - disse Donald. - É agora. Preparem-se. Richard pegou numa das espadas gregas. Depois da queda para a piscina tinha retirado a armadura. Donald removeu o compartimento da Luger pela vigésima vez, verificou-o e voltou a colocá-lo. Queria ter a certeza de que estava carregada.

 

Arak, Sufa, os Black e quatro enormes clones-empregados entraram na sala.

 

- OK - disse Arak, ligeiramente ofegante. - Vai tudo correr bem; por favor, relaxem.

 

Conforme o planeado, Harvey fechou a porta com uma pancada. Arak ignorou o barulho. Harvey começou a andar à volta da sala e foi juntar-se a Perry e a Richard que estavam atrás de Donald.

 

- Em primeiro lugar - disse Arak - queria dizer que não vão fugir. Não podemos permitir isso.

 

- As notícias correm depressa - disse Donald. - Quer dizer que a Suzanne já falou convosco.

 

- Fomos informados pelo Conselho dos Anciãos - disse Arak.

- Falaram connosco logo depois de vocês terem requisitado a nossa presença. Agora que estamos aqui, queremos pedir-vos que regressem às vossas casas individuais. Repito: não vão fugir,

 

- Veremos - disse Donald. - Desta vez, somos nós que damos as ordens.

 

- Isso está fora de questão - afirmou Arak. Depois voltou-se para os clones e disse - Por favor, detenham estas pessoas, mas sem as magoar!

 

Os clones avançaram obedientemente.

 

Donald empunhou a pistola e recuou vários passos. Os seus companheiros fizeram o mesmo.

 

- Não se aproximem! - ordenou Donald.

 

- Acho que eles não sabem o que é uma pistola - disse Perry, nervoso.

 

- Vão ter oportunidade de aprender - disse Donald. Continuando a recuar, ergueu a arma e apontou-a à cara do clone que se dirigia directamente para ele.

 

- Arak! - gritou Ismael. - Ele está armado. Arak...

- Parem, por favor! - ordenou Donald aos clones.

 

Tendo recebido ordens de um interterrestre, os clones ignoraram Do-nald e continuaram a aproximar-se dos humanos secundários. Donald puxou o gatilho da Luger e ela disparou com um estrondo. A bala atingiu na testa o clone da frente. Ele vacilou, acabando por cair no chão. Um fluido claro e viscoso escorreu da ferida para o mármore. Estranhamente, as suas pernas continuaram a mover-se como se ele estivesse a andar.

 

Arak e Sufa engoliram em seco.

 

Nada intimidados, os outros clones continuaram a avançar. Donald apontou a arma para o que se aproximava de Perry e disparou de novo. Abala atingiu o segundo clone na têmpora. Ele também caiu, apesar de as suas pernas se continuarem a mover.

 

- Parem, por favor - gritou Arak, com uma voz trémula aos dois clones que restavam. Os clones obedeceram instantaneamente. o rosto de Arak estava pálido e ele estava a tremer. Entretanto, o movimento das pernas dos clones tinha-se tornado mais lento e acabara por parar.

 

Donald segurava a pistola com as duas mãos. Ele fê-la girar e apontou-a a Arak.

 

- Assim está melhor - disse ele, dirigindo-se ao aterrorizado interterrestre. - Se não nos entendermos, o próximo será você.

- Por favor - gritou Sufa. - Mais violência não. Por favor!

 

- Teremos todo o prazer - disse Donald sem baixar a arma. Só têm de fazer o que nós pedirmos e tudo correrá bem. Arak, quero que faça alguns contactos com o seu dispositivo de pulso e depois sairemos daqui,

 

Suzanne estava impressionada com a calma que os Anciãos aparentavam, apesar da grave crise em que se encontravam. Ela, pelo contrário, sentia-se cada vez mais ansiosa; as mensagens que chegavam ao Conselho sugeriam que os seus companheiros estavam a conseguir o que pretendiam.

 

Enquanto o Conselho estivera reunido, tinham-lhe oferecido comida e, em seguida, ela regressara à sala das colunas. Tal como acontecera de manhã, pediram-lhe para permanecer no centro, mas desta vez deram-lhe uma cadeira parecida com a dos Anciãos, apesar de ser um pouco mais pequena. Ficou virada para Ala, com as portas de bronze atrás de si.

 

- A situação parece estar a complicar-se - disse Ala, depois de ter estado por momentos a escutar o seu comunicador de Pulso. A sua voz clara e aguda não soava preocupada ou aflitiva. - o grupo fugitivo, juntamente com quatro reféns humanos, está a aproximar-se de Barsama, levando o submersível. Arak está à espera das nossas ordens.

 

- Nunca tive de lidar com uma situação destas, em nenhuma das minhas muitas vidas - disse Ponu. - Já foram abatidos quatro clones-empregados. É, de facto, bastante preocupante.

 

- Conseguem detê-los, não conseguem? - explodiu suzanne. Começava a ficar enervada com a calma do Conselho. - E podem fazê-lo sem os ferir, não podem?

 

Ala inclinou-se para a frente, em direcção a Suzanne, ignorando as perguntas dela.

 

- Há uma coisa acerca da qual temos de estar absolutamente seguros - disse ela calmamente. - Já constatámos que os seus companheiros não têm qualquer problema em abater os clones-empregados. E em relação aos humanos? Será que seriam capazes de ferir um humano?

 

- Receio bem que sim - disse Suzanne. - Eles estão desesperados.

 

- É difícil de acreditar que eles seriam capazes de fazer uma coisa dessas depois de terem tido a oportunidade de contactar com a nossa cultura - disse Ponu. - Todos os outros visitantes acabaram por se adaptar aos nossos costumes pacíficos.

 

- Talvez eles também se adaptassem, se tivessem mais oportunidades - disse Suzanne. - Mas nesta altura eles constituem um perigo para quem lhes dificultar o caminho.

 

- Não sei se devo acreditar nisso - disse um outro elemento do Conselho. - Nunca aconteceu nada assim, como o Ponu já disse. Suzanne sentiu-se frustrada e zangada.

 

- Posso provar do que é que eles são capazes - disse ela. Eles deixaram vestígios em duas das nossas casas.

 

- De que é que está a falar? - perguntou Ala, tão serenamente como se estivesse a discutir um assunto de jardinagem.

 

- Eles já causaram a morte de dois humanos primários. As palavras de Suzanne gelaram o Conselho.

 

- Tem a certeza do que está a dizer? - perguntou Ala. Pela primeira vez a sua voz soou perturbada.

 

- Eu mesma vi os corpos, há algumas horas atrás - disse suzanne. - Um foi espancado e o outro afogado.

 

- Receio que estas trágicas notícias nos façam encarar a presente situação de um outro ângulo - disse ela.

 

«Espero bem que sim», pensou Suzanne.

 

- Recomendo que mandemos selar o poço de Barsama, imediatamente - disse Ponu.

 

Um murmúrio de assentimento espalhou-se pelo compartimento. Ala ergueu o comunicador de pulso, falou brevemente através dele e baixou o braço.

 

- Já está providenciado - disse ela.

 

- Quanto tempo é que demorará ligar o poço ao núcleo da Terra?

- perguntou Ponu.

 

- Algumas horas - disse Ala.

 

As portas eram enormes, da altura de dois andares e com cerca de dois metros e meio de espessura. Começaram a abrir para o interior, sem qualquer ruído, Arak dirigia a operação com o seu comunicador de pulso. Estava em contacto directo com a Central de Informação. Donald encontrava-se atrás dele, com a pistola encostada às suas costas.

 

Perry, Richard e Michael estavam de um dos lados, mantendo Sufa, Ismael e Mary sob vigilância. Míchael ainda tinha a armadura grega colocada, recusando-se peremptoriamente a tirá-la. Harvey estava na zona de passageiros do táxi antigravidade que trazia o Oceanus a reboque. Estava preparado para manobrar a nave até ao compartimento de descontaminação que ficava para lá das enormes portas.

 

- Isto é-me familiar - disse Donald quando se deparou com o interior em aço inoxidável. - Faz-me lembrar a sala onde fomos obrigados a tomar banho quando chegámos à Interterra,

 

Subitamente, ouviu-se um estrondo que abanou o solo, fazendo com que todos perdessem o equilíbrio. Durou uns quatro ou cinco segundos.

 

- Que raio foi aquilo? - perguntou Perry, Harvey pôs a cabeça de fora.

 

- Temos de nos despachar - avisou ele. - Eles devem estar a abrir um poço geotérmico.

 

- o que é que isso provocaria? - perguntou Donald em voz alta,

 

- o encerramento do poço de saída - gritou Harvey.

 

- Vamos lá, Arak! - ordenou Donald. - Despache-se com isso.

- Não posso fazer mais do que aquilo que estou a fazer - disse Arak. - E, para além disso, Harvey tem razão, não vão ter tempo suficiente. A abertura vai ficar inacessível.

 

- Já chegámos até aqui e não vamos desistir - avisou Donald.

- Se dentro de quinze minutos não estivermos fora daqui, Sufa será abatida.

 

Uma nova vibração, de menor duração, abanou o solo, sugerindo que as monstruosas portas de pressão estavam completamente abertas.

 

- Agora é convosco - disse Arak, fazendo sinal a Harvey para que aproximasse o táxi. - Quando a porta interior se abrir, avancem para o compartimento de lançamento e de resgate. Quando o compartimento ficar inundado e as portas de lançamento estiverem abertas, estão livres para subir pelo poço.

 

- Não é assim que vai funcionar - disse Donald. - Você vem connosco até ao fim, Arak. Você e a Sufa.

 

- Não! - gritou Arak. - Por favor, não! Não podemos. Fiz tudo o que me pediram, e nós não podemos ser expostos à atmosfera sem um processo de adaptação. Morreremos.

 

- Eu não fiz uma pergunta - disse Donald. - Dei uma ordem. Arak começou a protestar. Donald reagiu apontando-lhe a pistola à cara. Arak gritou e bateu no rosto com as mãos. Começou a escorrer-lhe sangue por entre os dedos. Donald empurrou-o para a sala de aço inoxidável.

 

o táxi começou a deslizar sem esforço para o interior do compartimento, obedecendo aos comandos de Harvey.

 

- Venham - disse Donald, chamando Perry e Richard. - Tragam a Sufa, mas deixem ficar os outros.

 

Depois de todos estarem dentro do compartimento, Donald puxou Arak para longe de Sufa, que estava a tentar confortá-lo. o olho direito do homem estava roxo e inchado.

 

- Feche a porta exterior e abra a interior, Arak - ordenou Donald. Arak murmurou qualquer coisa através do seu comunicador de pulso e as enormes portas começaram a fechar-se. Um novo estrondo, assinalando um segundo tremor de terra, ecoou pela sala; durou um pouco mais do que o primeiro.

 

- Vá lá, Arak - avisou Donald. - é melhor andar com isso!

- Já lhe disse que não pode ser mais rápido do que isto - gritou Arak.

 

- Richard - chamou Donald. - Chegue aqui e traga uma das suas facas para cortar um dedo a Sufa.

 

- Não, espere! - soluçou Arak. - Vou ver o que posso fazer. Arak falou através do seu dispositivo de pulso e o movimento das portas acelerou.

 

- Assim está muito melhor - disse Donald. - Muito melhor, de facto.

 

o compartimento inteiro estremeceu por alguns momentos, devido ao batimento das portas ao fechar. Quase em simultâneo, as portas interiores, de dimensões idênticas, começaram a abrir. Surgiu uma caverna escura, semelhante aquela onde os humanos secundários se tinham encontrado quando chegaram à Interterra. Tinha o mesmo cheiro salobro, provavelmente porque estivera cheia de água salgada.

 

Logo que a porta interior ficou totalmente aberta, Harvey dirigiu o táxi para que este transportasse o submersível lá para dentro. Os outros correram atrás dele, mas a lama não os deixou avançar tão rápido quanto gostariam.

 

- Bolas - disse Perry. - Tinha-me esquecido deste pormenor.

- Mande fechar as portas interiores! - gritou Donald a Arak, quando por fim chegaram ao táxi. A sua voz ecoou pela caverna. Ele entregou a arma a Perry. - Precisamos de luz. Vou para dentro do submersível.

 

- Okay - disse Perry, pondo o dedo à volta do gatilho e sentindo-se um pouco estranho ao fazê-lo. Nunca tinha segurado numa pistola e muito menos disparado.

 

Enquanto Donald subia pelos degraus do submersível, sentiu-se um novo tremor de terra. Ele teve de se agarrar para não cair. o som de algo a esguichar à distância, assinalou a presença de um géiser de lava.

 

- Merda! - exclamou Richard. - Estamos metidos no raio de um vulcão.

 

Assim que aquele tremor parou, Donald subiu o resto da escada e desapareceu no interior do Oceanus. Um momento mais tarde, as luzes exteriores acenderam. E foi na altura certa; as portas interiores estavam praticamente fechadas. Assim que elas se fechassem a única iluminação viria do submersível e da fonte de lava, ao longe, que aumentava a cada segundo que passava.

 

Donald pôs a cabeça de fora.

 

- Vamos embora, pessoal - disse ele. - A energia está ligada e o sistema de suporte à vida está preparado. Estamos prontos para subir.

 

Arak e Sufa foram obrigados a subir para o submersível. Atrás deles seguiram Harvey, Perry e Michael. Michael tivera, finalmente, de tirar a protecção peitoral para poder passar pela escotilha. Richard foi o último a entrar. Quando fechou a escotilha, reparou que a caverna começava a encher-se de água. Também conseguiu ouvir o detonar provocado pela colisão da água com a lava e pela consequente formação de vapor,

 

Quando Richard acabou de descer a escada interior do submersível, Donald disse-lhe para se sentar: não podiam prever a trepidação que iam sentir enquanto a caverna se estivesse a encher. Alguns minutos mais tarde, o Oceanus balançava como uma rolha de cortiça. Todos se agarraram com força.

 

- o que é que temos de fazer agora? - perguntou Donald em voz alta a Arak.

 

- Nada - disse Arak. - A água vai levar-nos pelo poço acima.

- Quer dizer que conseguimos sair? - perguntou Donald.

 

- Acho que sim - respondeu Arak, em tom desgostoso. Aproximou a sua mão da de Sufa e apertou-a.

 

Ala baixou lentamente o braço. Tinha estado a escutar o seu comunicador de pulso. Apesar de ter ficado visivelmente preocupada com a notícia das mortes de Sart e de Mura, a sua expressão estava de novo tranquila. Com uma voz calma, afirmou:

 

- o poço de Barsama não foi encerrado a tempo. o submersível já passou a comporta e encontra-se agora em pleno oceano, dirigíndo-se para oeste.

 

- E os reféns? - perguntou Ponu.

 

- Só estão dois reféns a bordo - disse Ala. - Arak e Sufa ainda estão com os humanos secundários. Ismael e Mary não foram com eles e estão em segurança.

 

- Desculpe - disse Suzanne, tentando chamar a atenção de Ala. o que acabara de ouvir parecia-lhe impossível. Aparentemente, os seus ex-companheiros tinham conseguido fugir, apesar de todos os poderes e de toda a tecnologia que ela imaginara que os ínterterrestres tinham à sua disposição!

 

- Creio que agora temos de tratar directamente com eles disse Ala, continuando a ignorar Suzanne. - Está muita coisa em jogo.

- Penso que os devíamos fazer voltar para trás e acabar com o assunto - disse um dos membros do Conselho, que estava à esquerda de Suzanne. Suzanne voltou-se para olhar para a mulher. Ao contrário da porta-voz do Conselho, este membro aparentava vinte e poucos anos.

 

- Que é que quer dizer com isso? - perguntou Suzanne, incrédula. Se era possível arranjar uma solução assim tão simples,

 

não era de estranhar que nenhum dos membros do Conselho estivesse perturbado pelos acontecimentos.

 

- Concordo com a ideia de os fazermos voltar para trás - disse um dos anciãos, sentado na outra ponta da sala, continuando a ígnorar Suzanne. Esta virou-se e viu que quem falara fora um rapazinho de cinco ou seis anos de idade.

 

- Todos concordam? - perguntou Ala,

 

Um murmúrio de assentimento espalhou-se pela sala.

 

- Então, vamos a isso - disse Ala. - Vamos mandar um clone numa pequena nave intergaláctica.

 

- Digam-lhes que usem o mínimo de energia possível - disse Ponu, enquanto Ala dava uma ordem rápida através do seu intercomunicador de pulso.

 

- Que situação tão aborrecida - disse um dos outros membros do Conselho. - É, realmente, uma tragédia.

 

- Não vão magoá-los, pois não? - perguntou Suzanne. Recusava-se a desistir e, para sua surpresa, Ala respondeu finalmente à questão.

 

- Está a referir-se aos seus amigos? - perguntou Ala.

- Sim! - disse Suzanne, sentindo-se envergonhada.

 

- Não, ninguém os vai magoar - disse Ala. - Vão ficar simplesmente surpreendidos,

 

- Eu penso que o sacrifício de Arak e de Sufa devia ser publicamente reconhecido - disse Ponu.

 

- Com todas as honras - disse o rapazinho. Ouviu-se um novo murmúrio de assentimento.

 

- o Arak e a Sufa não vão voltar para trás? - perguntou Suzanne.

- Claro que voltam - disse Ala. - Vão voltar todos.

 

Suzanne olhou de um membro para outro. Sentia-se completamente baralhada.

 

- Estou a ver luz pela janela de observação! - disse Perry, excitado. Havia já diversas horas que estavam a andar, sem que nenhum deles falasse, e tendo como única iluminação as luzes dos instrumentos. Estavam todos exaustos.

 

- Eu também - disse Richard, do lado oposto do Oceanus.

 

- É natural - disse Donald. - De acordo com o mostrador estamos a uma profundidade de trinta metros, e o Sol acabou de nascer à superfície.

 

- óptimo - disse Perry. - Quanto tempo é que falta ainda?

Donald olhou para o ecrã do sonar.

 

- Tenho estado a observar os contornos do fundo. Penso que dentro de duas horas, no máximo, teremos as ilhas portuárias de Bóston à vista.

 

- Viva! - gritaram Richard e Michael em simultâneo. E bateram na mão um do outro, em sinal de vitória.

 

- Quanto tempo de bateria é que nos resta? - quis saber Perry,

- Esse é o único problema - disse Donald. - Vai ser mesmo à justa. Poderemos ter que percorrer a nado os últimos metros.

 

- Por mim, tudo bem - disse Harvey. - Nadaria até Nova lorque, se fosse preciso.

 

- E a minha armadura? - perguntou Míchael, ficando subitamente preocupado com os seus troféus.

 

- Esse é um problema seu, marinheiro - disse Donald. - Você é que insistiu em trazer isso tudo.

 

- Eu ajudo-te, se dividires as coisas comigo - ofereceu-se Richard.

- Vai-te lixar - disse Michael.

 

- Não discutam! - disse Perry, enfaticamente.

 

Viajaram em silêncio durante vários minutos até que Arak falou.

- Já conseguiram o que queriam. Por que é que nos trouxeram, sabendo o que nos vai acontecer?

 

- É uma questão de segurança - disse Donald. - Quis ter a certeza de que o Conselho dos Anciãos não iria interferir depois de termos passado pela porta de Barsama.

 

- E também porque vocês serão muito úteis, se alguém se atrever a duvidar da nossa história - disse Richard.

 

Michael deu uma gargalhada.

 

- Mas nós vamos sucumbir - disse Arak.

 

- Podemos levá-los para o Hospital de Massachusetts - disse Donald, fazendo um sorriso amarelo. - Eles vão gostar do desafio.

- Não vai adiantar nada - disse Arak, sombriamente. - A vossa medicina é demasiado primitiva para nos ajudar.

 

- Bom, é o melhor que podemos fazer - disse Donald. Ia continuar a falar, mas acabou por não o fazer. o seu sorriso desapareceu.

 

- Qual é o problema? - perguntou Perry. Sentia-se muito tenso e estava particularmente sensível à expressão no rosto de Donald.

- Há aqui qualquer coisa que não está bem - disse Donald, inclinando-se para ajustar a imagem do sonar.

 

- o que é? - insistiu Perry.

 

- Olhe para o sonar - disse Donald. - Parece que vem alguma coisa atrás de nós, e vem a grande velocidade.

 

- A que velocidade? - perguntou Perry.

- Isto não pode estar a acontecer - disse Donald, cada vez mais aflito. - Os instrumentos mostram que está a mover-se a cem nós, debaixo de água! - Ele voltou-se para olhar para Arak. - Isto é mesmo real? Que raio de coisa é esta?

 

- Provavelmente, é uma nave ínterplanetária da Interterra disse Arak, inclinando-se para a frente para ver a imagem,

 

- Eles sabem que vocês ainda estão a bordo, não sabem? -perguntou Donald.

 

- Claro - disse Arak.

 

Donald virou-se de novo para os comandos.

 

- Não estou a gostar disto - disse ele. - Vou até à superfície.

- Acho que não podemos - disse Perry. - Acabou de ficar tudo escuro, lá fora. Devem estar mesmo por cima de nós.

 

o submersível começou a estremecer com uma vibração de baixa frequência.

 

- Arak, o que é que eles estão a fazer?

 

- Não sei - disse Arak. - Talvez nos estejam a retirar pelo poço de ar.

 

- Harvey, faz alguma ideia do que é que se está a passar? - perguntou Donald.

 

- Não faço a mínima ideia - disse Harvey. Tal como os outros, ele estava agarrado aos lados da cadeira para não ser atirado para fora dela. A vibração estava a aumentar.

 

Donald pegou na Luger e apontou-a a Arak.

 

- Entre em contacto com esses filhos-da-mãe e diga-lhes para pararem com isto! Senão, você vai passar à história.

 

- Vejam - exclamou Perry, apontando para a imagem do sonar lateral. - Consegue-se ver a imagem da nave. Parecem dois discos, um em cima do outro.

 

- Oh, não! - exclamou Arak ao ver a imagem nova. - Não é uma nave ínterplanetária! É um cruzeiro intergaláctico!

 

- Que diferença é que isso faz? - gritou Donald. A vibração tinha aumentado a ponto de ser realmente difícil qualquer um deles permanecer no lugar. o pesado casco de aço do submersível guinchava e gemia devido à pressão.

 

- Eles vão fazer-nos voltar para trás! - gritou Arak. - Sufa, eles vão levar-nos para trás!

 

- É a única coisa que podiam fazer - soluçou Sufa. - É a única coisa que podiam fazer.

 

Avibração parou subitamente, mas antes de alguém reagir, sentiram uma potentíssima aceleração em direcção ascendente. Os ocupantes do submersível pareceram ficar colados aos seus assentos, com tanta força que não se conseguiam mexer, nem tão pouco respirar, ficando praticamente inconscientes. A força de inércia era acompanhada por uma luz estranha que envolvia o interior do submersível. No instante seguinte, voltou tudo ao normal, à excepção de um balançar, que não estava presente anteriormente, e que indicava a presença de ondulação.

 

- Meu Deus! - gemeu Donald. - Que é que aconteceu? Movimentou-se, mas os seus membros estavam pesados e moles, como se o ar se tivesse tornado viscoso. Mas o efeito desapareceu assim que ele flectiu algumas vezes as articulações. Sentiu-se de novo normal. Instintivamente, os seus olhos verificaram os instrumentos. Ficou surpreendido ao ver que as leituras eram normais. Olhou em seguida para o nível da bateria. Aflito, constatou que o indicador mostrava que as baterias tinham sido descarregadas, perdendo a energia que tinham e deixando o submersível prestes a perder a potência, Depois, reparou noutro facto surpreendente: parte do submersível estava acima da linha de água! Isso explicava por que é que estavam a sentir a ondulação das ondas.

 

Os olhos de Donald dirigiram-se para o ecrã do sonar. A embarcação interterrestre, fosse ela qual fosse, tinha desaparecido. Em vez da sua imagem, Donald observou que o chão do oceano se inclinava para cima. Parecia que a terra firme estava a uns meros quatrocentos e cinquenta metros de distância,

 

Os restantes ocupantes do submersível estavam a recuperar dos estranhos acontecimentos.

 

- Será que é isto que os astronautas sentem quando são lançados para o espaço? - resmungou Perry.

 

- Se é, não estou interessado na experiência - disse Richard.

- É idêntico - disse Arak. - Mas não é exactamente igual, mas é claro que vocês não são suficientemente sofisticados para reconhecer a diferença.

 

- Cale a boca, Arak - disse Donald. - Estou farto de o ouvir.

- Pois está - disse Arak. - E merece ouvir ainda mais.

 

- Preparem-se para chegar à superficie - disse Donald. - Estamos a ficar sem energia,

 

- Oh, não! - gritou Perry.

 

- Vai correr tudo bem - garantiu Donald, ao mesmo tempo que usava gás comprimido para tentar estabilizar o submersível.

- A terra firme é já ali à frente.

 

A oscilação do submersível aumentou consideravelmente quando eles subiram à superfície e foram empurrados pelo vento e pelas ondas. Donald tentou desesperadamente determinar a posição, aproveitando a pouca energia que restava. Quando viu que não conseguia, tentou o Geosat, o que também não resultou.

 

- Não percebo isto - disse ele, coçando a cabeça. Não fazia sentido. - Um de vocês vá até lá acima, abra a escotilha e tente ver onde é que estamos. Devíamos estar perto de Boston Harbor.

 

- Eu vou - disse Michael. - Conheço esta zona como a palma da minha mão.

 

- Tenha cuidado com a ondulação - avisou Donald.

 

- Até parece que nunca estive num barco - ironizou Michael. Enquanto Michael subia a escada que levava à escotilha, Donald desligou todo o equipamento que não era essencial, para conservar a pouca energia que restava nas baterias. Mas foi em vão. As baterias não tinham carga, e um momento depois as luzes apagaram-se e o submarino deixou de avançar.

 

Ouviam Michael lá em cima a abrir a escotilha. A pálida luz da manhã alegrou o interior escuro do submersível. Conseguiram sentir o ar húmido do mar e ouvir o som áspero mas bem-vindo dos gritos das gaivotas.

 

- Como é bom ouvir isto - disse Richard.

 

- Estamos perto de uma das ilhas portuárias - disse Michael lá de cima. - Não sei muito bem qual.

 

Nesse momento, o submersível bateu no fundo arenoso e começou a inclinar-se para um dos lados.

 

- Temos que sair daqui! - gritou Donald. - Vamos afundar. Ao mesmo tempo que os humanos secundários se levantavam dos seus lugares, Arak e Sufa erguiam as mãos e juntavam as palmas amorosamente.

 

- Pela Interterra - disse Arak.

 

- Ei, vocês os dois, despachem-se - gritou Donald aos dois humanos primários. - Isto está prestes a virar-se, e quando isso acontecer vai ficar inundado.

 

Arak e Sufa ignoraram-no e continuaram com as palmas das mãos juntas e um ar sonhador.

 

- Façam como quiserem - disse Donald.

 

- Tragam a minha armadura - gritou Michael através da escotilha. Todos se precipitaram ao mesmo tempo para a escada, especialmente depois do submersível ter tombado e de a água começar a entrar pela escotilha. No convés, todos, excepto Michael, saltaram para as ondas em direcção ao cais que estava próximo. Michael tentou voltar a descer as escadas, mas mudou de ideias assim que o barco se virou completamente. Com alguma dificuldade, conseguiu nadar e libertar-se.

 

Harvey teve de ser ajudado, pois não conseguia enfrentar a forte ondulação, mas todos, excepto os interterrestres, chegaram ao declive da praia e atiraram-se para a areia quente. Michael foi o último a sair das ondas que recuavam. Richard meteu-se com ele devido a sua armadura grega que acabara por se afundar.

 

o tempo estava esplêndido. Era uma suave, e um pouco enevoada, manhã de Verão. A luz quente do sol reflectia o seu brilho na água, fazendo prever a intensidade que teria ao meio do dia. Depois do esforço que tinham feito nas ondas, sentiam-se contentes por poder descansar, respirar o ar fresco, observar o voo das gaivotas, e deixar que o sol secasse as finas peças de cetim que tinham coladas ao corpo.

 

- Tenho pena de Arak e de Sufa - disse Perry, pensativamente. o Oceanus estava tombado de lado e a encher-se de água. Já estava mais afastado do cais do que quando eles tinham desembarcado. A ondulação empurrava-o para o mar alto.

 

- Eu não tenho pena nenhuma - disse Richard. - Ainda bem que nos livrámos deles.

 

- Tenho é pena do submersível - disse Donald. - Não vai durar muito. Provavelmente, vai parar ao fundo dum banco de areia. Bolas! Tinha pensado levá-lo até Boston Harbour.

 

Assim que Donald acabou de falar, surgiu uma sequência de ondas de dimensões particularmente grandes. Depois da rebentação e da espuma ter desaparecido, o submersível deixou de estar visível.

- Bem, já se foi - disse Perry.

 

- Depois de a nossa história se espalhar, não faltarão tentativas de resgate - disse Michael. - Ainda vai acabar no Museu Sethsonjan.

- Onde é que estamos? - perguntou Harvey. Apoiou-se num cotovelo e olhou para a pequena ilha assolada pelo vento. Só viu areia, conchas e relva.

 

- Já lhe dissemos - respondeu Donald. - Estamos numa das ilhas de Boston Harbor.

 

- Como é que vamos conseguir ir até à cidade? - perguntou Perry.

- Daqui a poucas horas isto estará cheio de barcos de recreio disse Michael. - Assim que as pessoas ouvirem o que temos para contar vão todas querer dar-nos boleia.

 

- Estou ansioso por uma bela refeição daquelas em que sei o que é que estou a comer - disse Perry. - E por um telefone! Quero falar com a minha mulher e com as minhas filhas. E depois quero dormir durante dois dias.

 

- Faço minhas as suas palavras - disse Donald. - Venham! Vamos caminhar um pouco. Mesmo que seja de longe, vou gostar de ver a cidade.

 

- Boa ideia - disse Perry.

 

Todos se levantaram, espreguiçaram e começaram a caminhar pela praia, pisando a areia molhada. Apesar de exaustos, começaram a cantar. Até mesmo Donald se deixou contagiar pelo ambiente de alegria.

 

Ao contornarem a zona que formava uma das margens de uma pequenabaía, o grupo parou e ficou em silêncio. A uns meros sessenta metros deles estava um velhote, de cabelo grisalho, a apanhar mexilhões na sombra. Um esquife de tamanho médio estava encalhado ao lado. A sua vela latina estava esticada pela brisa.

 

- Que feliz coincidência - disse Perry.

 

- Já estou a sentir o cheiro a café e a lençóis lavados - disse Michael. - Venham, vamos tornar este tipo um herói. Ele vai aparecer na CNN.

 

o grupo desatou a correr e a gritar. o pescador ficou em pânico ao ver o grupo de homens que corria pelas dunas na sua direcção. Dirigiu-se para o seu barco, atirou lá para dentro o balde e a rede, e tentou fugir.

 

Richard foi o primeiro a chegar ao local e entrou na água até à cintura, tentando agarrar o gio do barco e impedir o seu progresso.

- Ei, velhote, qual é a pressa? - perguntou Richard.

 

A resposta do pescador foi soltar as amarras. Com um remo tentou afastar Richard. Este agarrou o remo, arrancou-o ao homem e lançou-o para a água. Os outros correram para a água e agarraram-se ao barco.

 

- Não é um tipo muito simpático - comentou Richard. o pescador estava em pé, no meio do barco, a olhar para eles.

 

Harvey apanhou o remo e trouxe-o de volta.

 

- Não me admira nada - disse Perry, olhando para si próprio e para os outros. - Olhem para a nossa figura! o que é que vocês pensariam se vissem quatro tipos em língerie a correr na vossa direcção?

 

Desataram todos a rir, não só pelo que Perry dissera mas também pela exaustão e stress que sentiam. Foram precisos vários minutos até se conseguirem controlar.

 

- Desculpe lá, velhote - disse Perry entre duas gargalhadas.

- Perdoe-nos pela nossa aparência e pelo nosso comportamento. Tivemos uma noite muito difícil.

 

- Abusaram do grogue, não? - perguntou o pescador.

 

As palavras do pescador provocaram um novo ataque de riso. Quando, por fim, recuperaram, conseguiram convencer o homem de que não eram perigosos e que ele seria recompensado generosamente se lhes desse boleia até Bóston. Em seguida, subiram para o barco.

 

Foi uma viagem agradável, especialmente se comparada com as horas tensas que tinham passado apertados no submersível claustrofóbico. Embalados pelo calor do sol, pelo sopro suave da brisa e pelo doce balouçar do barco, todos, excepto o pescador, adormeceram antes do esquife ter contornado a ilha.

 

Ajudado pela brisa que soprava de uma forma constante, o pescador conduziu habilmente o barco, chegando rapidamente ao porto. Não sabendo exactamente onde é que os passageiros queriam ficar, ele abanou o ombro da pessoa que estava mais perto de si. Perry resmungou qualquer coisa, ainda ensonado, e não abriu logo os olhos. Quando o fez, o pescador explicou-lhe a sua dúvida.

 

- É indiferente - disse Perry. Sentou-se com grande sacrifício. A sua boca estava seca e áspera. Piscando os olhos devido à luz brilhante do sol, olhou à sua volta. Em seguida, esfregou os olhos, pestanejou outra vez e olhou fixamente para o que o rodeava.

 

- Mas onde é que nós estamos? - perguntou ele, sentindo-se confuso. - Pensei que nos ia levar até Boston.

- Estamos» em Bóston - disse o pescador, apontando para a sua direita. - Ali é Long Wharf.

 

Perry esfregou novamente os olhos. Durante alguns momentos pensou que estava a ter uma alucinação. Estava diante de várias embarcações de vela redonda, escunas e carroças puxadas por cavalos ao longo de um cais de granito. Os edifícios mais altos tinham estrutura de madeira e apenas quatro ou cinco andares.

 

Lutando contra a onda de incredulidade que o invadia e que estava prestes a transformar-se em terror, Perry abanou Donald em pânico, tentando despertá-lo e gritando que algo estava terrivelmente errado. Os outros também foram acordados pelo alarido. Quando observaram a cena que tinham diante dos olhos ficaram igualmente perplexos.

 

Perry virou-se de novo para o pescador, que estava a baixar as velas.

- Em que ano é que estamos? - perguntou ele com uma voz hesitante.

 

- Estamos no ano mil setecentos e noventa e um de Nosso Senhor - disse o pescador.

 

A boca de Perry abriu-se de espanto. Olhou mais uma vez para os veleiros de pano redondo.

 

- Meu Deus! Eles mandaram-nos de volta para o passado.

 

- Não pode ser! - queixou-se Richard. - Devem estar a brincar connosco.

 

- Isto deve ser para fazer um filme - sugeriu Michael.

 

- Não me parece - disse Donald devagar. - Era isso que o Arak queria dizer quando referiu que nos iam fazer voltar para trás. Ele queria dizer voltar para o passado e não para a Interterra.

 

- As naves intergalácticas devem implicar tecnologia de tempo - disse Perry. - Deve ser isso que torna possível viajar até outras galáxias.

 

                                                                                Robin Cook  

 

                      

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