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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O REI LOBO / Alice Borchardt
O REI LOBO / Alice Borchardt

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Os exércitos de Carlos Magno acampam em Genebra, dispostos a somar a Itália à longa lista de conquistas de seu senhor. Do outro lado dos Alpes, as forças mercenárias do corrupto rei Desidérius vigiam as passagens da montanha, como gatos impacientes escondidos em frente à ratoeira. Entre os dois lados se abre uma selvagem e inóspita terra em que os mutantes moram sem confusão, protegidos por seu líder Maeniel e sua esposa Regeane.

Mas agora a guerra dos homens ameaça destruir a cuidadosa obra de séculos. A parte humana de Maeniel jura lealdade a Carlos Magno... Mas o lobo não reconhece senhor algum.

Apesar de tudo, é como lobo e como homem que Maeniel embarca em uma perigosa missão em nome de Carlos Magno. Capturado, o mutante é condenado a morrer duas vezes. Uma delas como espião e a outra como demônio mutante. Agora, com a ajuda de um guerreiro saxão, cujo amor apresenta perigos próprios, Regeane enfrentará as gélidas quebradas e abismos dos Alpes para resgatar seu marido, para descobrir que ele é a isca de uma armadilha tecida por um vilão de seu passado mais sombrio. Um homem que não se deterá diante de nada para reclamar a vingança com a qual sonha.

 

 

 

 

                                                      Capítulo 1

Quando ele a encontrou sobre o montículo de neve logo pensou que ela devia estar morta.

Estes francos não levavam o mau tempo a sério, ele pensou. Certo. Haviam chegado de além do Anel para conquistar parte do território romano; mas o excesso de vida fácil que desfrutaram após os havia derrubado.

Estava surpreso e furioso. Não com a gentil criatura que sem dúvida havia sido a dama, mas com seus homens e protetores. Porque era certo que ela devia ter estado rodeada de gente dedicada as suas necessidades. Era óbvio que a garota pertencia à nobreza. Parecia um destino impossível para uma mulher assim, ser abandonada a mercê da fúria da última tempestade de neve do inverno.

Em nome de Deus! Não, esse nome lhe amargurava a boca. Os sacerdotes com saias de mulher lhe disseram que os poderes aos quais honrava sua gente eram de demônios. Que eram, por algum motivo, perversos. Asseguravam que seu Jesus era o único deus. Mas os deuses aos quais ele venerava, fosse qual fosse sua moral estavam mais bem preparados para o tipo de vida que sua gente levava, que esse imbecil do Cristo.

O homem afastou a neve do rosto da mulher o mais rapidamente possível, enquanto se perguntava se ela realmente estaria morta. Tirou a luva. Uma fúria crescente começava a lhe esquentar; não teria problemas com o frio. Que tipo de homens estaria a cargo desta fina beleza, para que ela acabasse agonizando entre a neve? Tocou-lhe a face, depois à testa. Fria. Fria e dura como o mármore.

Ela usava um vestido de seda com bordas guarnecidas de pele de Marta e uma capa de brocado branco. O vento uivava a seu redor enquanto o mundo se inundava em um azul frio e cinzento ao entrar o sol em algum lugar além das nuvens. Levantou-lhe a mão. Gelada mas flexível, ainda sem rigidez. A camada exterior do homem era uma pesada pele de urso, um pouco gasta e suja. Não, muito gasta e suja, mas macia.

Inclinou sobre ela, levantou-lhe a cabeça e tentou ver se a respiração da garota lhe soprava na face. As duras bolinhas de água e neve, arrastadas pelo vento e agora misturadas com a neve da tempestade feriam-lhe o nariz e os lábios.

Não percebia nada. Ele parou por um momento e depois desafogou sua frustração com um forte palavrão. Poderia colocar a mão sob seu vestido, mas tocar uma jovem em certos lugares, inclusive com sua permissão era considerado como uma ofensa particularmente infame. Sentia indeciso. Não queria desonrar a família da garota até no caso de que já fosse um cadáver.

Então cuspiu outro palavrão, desta vez dirigida a si mesmo. Se já não estivesse morta, podia morrer facilmente enquanto ele se dedicava a duvidar sobre o que era decoroso ou não. Passou a mão por baixo de seu vestido, procurando o lugar onde se nota o batimento do coração com mais facilidade, na parte esquerda do torso, sob o peito. Viu recompensado com certa calma e um lento, mas contínuo batimento. Depois disso, não perdeu mais tempo. Tirou sua pesada capa de pele de urso e a envolveu firmemente com ela. Caiu na conta de que provavelmente tanto ele como sua capa cobrissem um mau gênio, ainda viva, graças ao calor de seu enorme corpo. Esta garota não tinha nem de longe a sadia temperatura da qual ele desfrutava; talvez as pequenas bastardas morressem. Em qualquer caso, o extermínio de seus companheiros parasitas seria o único benefício que obteria desta aventura.

Tinha planejado evitar o monastério que se encontrava ao pé da passagem e procurar algum lugar oculto onde dormir até que acabasse a tempestade de neve, para depois continuar seu caminho sem delatar sua presença aos francos. Isso já não seria possível. Se não levasse a garota a um lugar sob um teto e quente, ela morreria logo. Bastava-lhe aconchegar-se a ela dentro da capa e deixar que o calor de seu próprio corpo o isolasse do frio. Poderia sobreviver a vários graus abaixo de zero envolto na pele. E depois, essa tinha sido a razão pela que matara o animal.

Encontrou o urso nas montanhas quando não tinha mais de quatorze anos. Era um animal velho, corcunda e com a pele prateada ao redor do focinho, mas bem alimentado e com uma grossa pelagem de inverno.

—Parece,. - ele disse ao urso, - que sou seu destino.

O urso se elevou sobre seus quartos traseiros e rugiu um desafio.

—Pode ir, se assim desejar. – Ele lhe fez saber. - Não o impedirei.

Mas o urso ficou e trotou para ele para prendê-lo em um abraço mortal. O homem sabia que só teria uma oportunidade; se falhasse, a criatura o mataria. Manteve-se em seu lugar e dirigiu a lança para o flanco do urso quando este se elevava novamente para fazê-lo pedaços. A lâmina com forma de espada afundou até o punho de cruz, mas o urso não morreu. E ele pensou. Não o alcancei no coração, no instante em que o urso lhe arrancava a pele das costelas com uma garra enquanto que, com a outra, tentava desmembrá-lo com bastante habilidade. Bem, ele pensou, e recordava-se que estava tranqüilo. Isto é a morte.

Mas não, porque então o urso morreu deixando-lhe a maior e melhor pele que teria visto jamais. Pelo menos foi à melhor depois de curti-la e costurar o buraco feito pela ponta da lança. Alegrava-se de ter se obstinado a ela ao longo dos muitos caminhos pelos quais sua vida o havia levado após.

Desceu a colina com grande esforço carregando a mulher sobre seu ombro. O cruel vento gelado que lhe golpeava o rosto e tentava lhe cegar e congelá-lo com uma perversidade quase consciente, mas ele era muito orgulhoso e estava muito zangado para ceder A seu mal-estar. Sua própria raiva o esquentava. Poderia ter procurado entre a neve onde ela jazia, disse-se mentalmente, os protetores ou companheiros que estivessem com ela. Mas não o fiz.

—Imbecis merecem morrer. – Ele sussurrou entredentes ao vento. Falava com seus fantasmas, no caso de estarem lhe seguindo. Dizem que franco significa livre. Eu diria que franco significa imbecil, idiota.

Ouça, mulher? Ele sacudiu o corpo inerte que estava sobre seu ombro. Acredito que os teus são estúpidos. Acredito que os teus são sujos. Acredito que os teus são vagos. Acredito que os teu são... Mas a noite e a tormenta não ouviram o seguinte insulto porque nesse preciso momento o homem se bateu contra o muro do monastério.

Cambaleou para trás e ficou sentado sobre um monte de neve. Desceu de seu ombro o corpo inerte com supremo cuidado e o embalou entre seus braços.

A garota seguia respirando. A pele de urso havia feito sua missão. Seu corpo estava agora mais quente que o do homem. Ele só usava sua camisa, uma capa de lã, as calças e umas perneiras presas com tiras de couro cruzadas. E estava mais cansado do que pensava ou do que estaria disposto a admitir.

Levantou-a novamente, ficou em pé e foi em busca de uma porta.

Encontrou a entrada depois de um longo momento de busca no muro. Busca durante a qual seu principal temor tinha sido entrar na gelada escuridão e morrer congelado antes de poder voltar a encontrar o edifício. Sim, podia se deitar ao relento e usar a capa para envolvê-los, mas não confiava em que a pele de urso pudesse servir para esquentar duas pessoas em uma noite como aquela.

As mulheres eram segundo sua experiência, criaturas frágeis e ele não desejava absolutamente deitar na escuridão para sentir que a vida da garota desvanecia e seu corpo esfriava cada vez mais. Quando os escravistas francos o conduziram através dos Alpes para vendê-lo aos lombardos, ele viveu uma experiência similar com o ancião ao que estava acorrentado. A partir de certa idade o corpo perde a capacidade de se manter quente. Acostumado a invernos glaciais e violentas tempestades de neve, o homem avisou os negociantes de escravos de que os mais velhos do grupo poderiam não sobreviver a escalada sobre a passagem. Mas tudo o que obteve em troca de seus esforços foi um golpe no rosto com o extremo do látego do condutor. Um golpe que quase lhe rompera o queixo e que o fez comer a bolacha e a carne seca e eles lhes atiravam todos os poucos dias fosse tão difícil, como incômodo. Depois foi duplamente amaldiçoado quando três dos escravos morreram no topo da passagem. Despertou uma manhã para encontrar olhando um par de frágeis olhos azuis e sem vida. Recordou que tinha estado ali deitado quando o ancião começou a se queixar e gemer a noite. Não falava nenhuma palavra do idioma do velho; sequer estava seguro de que idioma era. Tudo o que pôde fazer foi compartilhar sua pele de urso com ele. Não gostava de recordar que havia insultado e ameaçado o ancião para que se calasse temendo que o condutor castigasse a todos.

No fim, seu vizinho ficou em silêncio. Ela havia pensado que o velho dormia. Mas quando a luz cinza que chegara além das nuvens começou a encher o elevado caminho rochoso, não como o amanhecer, mas como a água que enche uma taça, se deu conta de que estava acorrentado a um morto. Então tocou a ele gritar e gemer, pelo que foi devidamente castigado. E, pior ainda, os condutores de escravos riram dele por ter se assustado de um cadáver.

Recordava a forma em que o rígido corpo do ancião ricocheteou de um saliente a outro até que, finalmente, desapareceu na espessa e pálida nuvem gelada que cobria os vales do fundo. Apertou com mais força entre seus braços a mulher e rezou para poder voltar a encontrar os negociantes de escravos. Rezou a seus próprios deuses, tercamente defendidos, para que lhe permitissem voltar a encontrá-los em alguma ocasião em que as circunstâncias fossem favoráveis a ele. Não pedia nenhuma vantagem especial, só ter armas e que não houvesse correntes que o prendessem. Agradeceria solenemente aos seus deuses e se encarregaria do resto. Também rezou por encontrar a porta do muro. Já era noite e tudo estava tão escuro como o traseiro de um porco.

Rodeou a estrutura, medindo com sua mão direita. Por fim seus dedos golpearam madeira, pranchas de carvalho pelo tato, unidas mediante ferros. Deu um forte murro contra ela e a porta se abriu. Encontrou-se em um pequeno pátio quase tão escuro como a noite que deixava para trás.

Havia um pouco de luz, suficiente para ver que nas passagens de colunas protegidos do vento havia meia dúzia de homens. Um deles se levantou e lhe gritou:

—Fecha de uma vez a condenada porta, seu estúpido de cabeça oca. Já faz bastante frio para que em cima um imbecil como você deixe entrar a tormenta.

Ele não se encontrava em situação de poder discutir, então fechou a porta de um chute.

Um farol com uma pequena chama estava em de uma prateleira que se sobressaía da parede. Sua luz lhe permitiu ver o grupo de figuras que se apoiava contra o muro.

—É assim que se alojam os hóspedes por aqui? - Ele perguntou de maneira depreciativa.

—Assim é como se aloja os preparados. - A resposta chegou de acima, do homem que lhe havia gritado antes. - Este não é o melhor dos lugares para passar a noite. Como tampouco o senhor abade é o mais amável dos homens. Pelo menos poderemos sobreviver aqui e continuar atrás de lugares mais cômodos pela manhã. O que leva aí? - O tipo assinalou ao fardo envolto na pele de urso.

—Uma... - Ele se deteve. Não era o que se dizia a companhia mais respeitável que teria desfrutado.

—Uma... O que? —Alguém às suas costas pegou o abajur da parede, sustentou-a em alto e olhou a cara da figura.

—Uma mulher!

O homem que lhe tinha gritado ficou em pé.

—Uma o quê? Uma mulher! Filho de má mãe. Como te ocorre trazer para uma mulher precisamente a este lugar e em uma noite como esta?

—Encontrei-a.

Alguém nas sombras riu de forma desagradável.

—Meu primo encontrou oito moedas de ouro, ou pelo menos isso. Mas o juiz do rei lhe cortou a mão direita, de toda forma.

—É bonita? - Perguntou-lhe o homem que o tinha chamado filho de má mãe. - Se é, que talvez possa vendê-la por umas quantas moedas, uma noite de alojamento e um pouco de comida. Se for o bastante carinhosa, pode ser inclusive o deixem conservá-la quando for.

Naquele preciso momento, algo o golpeou com força na parte superior das costas. Ele sentiu que algo pontiagudo se introduzia em sua pele, soltou a mulher e se voltou. Enquanto se voltava notou como a faca saía de suas costas ao escapar da mão de seu atacante. As habilidades que o mantivera vivo nos cárceres de escravos lombardos lhe foram muito úteis. Golpeou o queixo de seu assaltante com a mão, lançando sua cabeça bruscamente para trás, enquanto lhe dava uma ajoelhada entre as pernas.

Sentiu um golpe surdo e doloroso no joelho ao dar contra uma tanga de couro com puas. Um profissional, ele pensou. Então não teve nenhum escrúpulo em esmagar a cabeça do homem da faca contra uma das colunas de pedra que sustentavam o teto do alpendre. Ela se rompeu como um ovo contra o chão de paralelepípedos. Seus miolos se espalharam pelo pátio.

Gritos. Ele estava ouvindo gritos. Seu oponente não deveria estar gritando. Deveria estar extraordinariamente morto. Não, os gritos se ouviam atrás dele. Voltou-se rapidamente. A mulher estava em pé. Tinha uma faca de mais de trinta centímetros de comprimento na mão e estava cravando-a na garganta do homem que lhe gritara que fechasse a porta. A garota não parecia muito estável em pé, mas a mão que sustentava a faca foi bastante precisa. O aço havia entrado sob o pomo de Adão do homem e a ponta lhe chegou até perto da coluna vertebral.

Ela não gritava. Não, que gritava era o outro dos hóspedes, que segurava o abajur. O sangue emanava de sua face. O sangue de quatro longas tiras em uma de suas faces lhe gotejava sobre a camisa. A garota devia ter lhe alcançado com as unhas. Pegou a pele de urso, lançou-a sobre ela. Ele pegou-a e se pôs a correr através do pátio, para a porta interior.

A porta se abriu diante deles. Um homem permanecia em pé atrás dela com uma vela na mão. Supôs que seria um dos monges. Uma vez a salvo no interior, o monge fechou a rapidamente e puxou os ferrolhos. O monge. Bem, se era mesmo um monge, deixou-os recuperar o fôlego.

—Vamos... - Ele ofegou, com o braço ao redor da mulher; ela se deixou cair sobre seu ombro.

O homem pôde sentir o aroma um débil perfume na escuridão. Ela estava entrando em calor e o aroma provinha de sua pele e roupas. Foi uma surpresa para ele, uma delicada essência como a do incenso das Igrejas cristãs, que seus amos lombardos lhe tinham feito seguirmas não tão almiscarada. Aproximava-se mais ao aroma das flores.

—Vamos, - ele ofegou novamente, - em busca de comida e proteção...

—Silêncio! - Sussurrou o ancião. - O que aconteceu aí fora? Estão tentando despertar o abade e toda sua casa?

Ouviram o riso de alguém na escuridão. O monge, se é que era, murmurou algo ininteligível em voz baixa.

—Uma lástima para vocês dois. – Ele sussurrou.

A mulher respirou fundo e se envolveu um pouco mais na pele de urso.

—Meu marido e eu... - Ela assinalou para ele. – Nos perdemos. Vínhamos pela passagem... E...

—Marido? Hi... Hi... Hi... Oh, que decepção.

A figura se materializou junto a eles. Levava uma tocha. O homem pôde ver e sentir cheiro para saber que era sujo, aleijado e velho; a idade exata não poderia dizer. Ele coxeava e tinha o cabelo espesso e branco. Aleijada, suas costas eram torcidas. Ele possuía os ombros mais altos que a cabeça. Sujo, o cheiro de carne sem lavar empesteava asquerosamente o corredor de muros de pedra. Ele nunca havia encontrado com um humano tão mal cheiroso, nem nos barracões de escravos onde os homens passavam meses sem se lavar.

O velho riu novamente e aproximou uma fétida garra da mulher.

O homem que ainda estava se refazendo da comoção de ouvir que era casado, postou instintivamente seu corpo entre essa coisa e a garota. O homenzinho se voltou para o monge da vela enquanto ria entredentes de uma forma horripilante.

—Diz que é seu marido?

—Sim, meu senhor abade. – Ela respondeu servilmente o guardião da porta.

- Deveríamos honrar a santidade do vínculo matrimonial com Cristo... - O porteiro falava com cuidado, devagar, como se lidasse com uma criança.

—Abade? - Sussurrou a mulher. Ele então se deu conta de que sustentava a mão da garota. Ela sentiu como ele apertava-a com mais força.

A criatura deu as costas ao guardião e começou a tentar arrancar a pele de urso do corpo da mulher. Um fio de saliva lhe caía do canto dos lábios até o queixo. A mucosidade brilhava a luz... A luz que provinha atrás deles.

Algo se estrelou contra um lado de sua face. Ele sentiu que soltava a mão da garota ao perder o controle de seu corpo e cair ao chão. A parte de atrás de sua cabeça bateu contra os paralelepípedos do corredor; sua visão desapareceu em brilhos de luz. Não, pensou. Não. Retorcendo, ele tentou lutar contra os efeitos atordoantes do golpe e recuperar o controle de seus braços e pernas.

Alguém gritou. Uma mulher.

Teve um momento para se sentir desventurado por não ter conseguido oferecer um amparo melhor a ela. Ainda lutava, mas não podia sentir nem seus braços ou suas pernas; e, quando conseguiu, depois do que pareceram só alguns segundos, deu-se conta de que estava preço de pés e mãos e era arrastado pelo corredor com as pernas para frente e a cabeça batendo de forma pouco agradável sobre a passagem de pedra.

—Meu senhor, eu vos rogo...

Tudo estava negro como o fundo de um poço. Ele perguntou se o golpe o teria deixado cego... Mas não. Simplesmente estava escuro, porque ele podia ver um pouco.

—Meu senhor!. - O velho que abriu a porta seguia admoestando seus captores.

—Tire esse imbecil de minha vista! —A ordem saiu de que respondia ao título de abade. - Levem-no de volta a sua cela. Não quero que este me escape. —A criatura soava como um menino mal-humorado.

—Sabe quanto eu gosto de ouvi-los gritar. Pode-se ouvi-los muito tempo depois. Depois de baixar a laje alguns gritam, gritam e gritam.

 

Ela não estava tão assustada como deveria. Esse foi seu primeiro pensamento consciente. Despertou quando ele colocou a mão debaixo de seu vestido. Por um momento, por um alegre momento, ela pensou que se tratasse de seu marido tomando liberdades familiares enquanto despertava de uma sesta. Mas esse feliz e despreocupado momento desapareceu com rapidez.

As outras lembranças se misturavam. Ele a levava. Fazia frio, sim. Fazia muito frio. Ele dizia coisas insultantes. O levavam arrastando pelo vestíbulo. Então apareceram três mulheres saídas das sombras. Alguém carregava uma vela, mas ela podia as ver todas com claridade. Devo ver bem na escuridão, ela pensou.

Estavam lhe fazendo perguntas, tirando sua roupa e tentando que as acompanhasse.

—É realmente seu marido?

Embargou-a uma estranha sensação de enjôo. Quem lhe perguntava era a mulher mais velha. Parecia bastante respeitável com sua capa marrom e o véu de linho. Cheirava a sabão, suor e vinho. As outras duas cheiravam a álcool. Não usavam véu e seus vestidos eram informes e não muito limpos. Rodeava-lhes tal aroma de deterioração alcoólica que ela se perguntou como faziam para estar em pé. Estava segura de que ambas estavam bêbadas de forma quase constante há meses.

Uma era de pele escura e tinha o cabelo murcho e gordurento; a outra poderia ser loira, mas estava tão suja, que era impossível dizer alguma coisa sua aparência original.

—É seu marido? Realmente ele é seu marido? - Perguntou novamente a mulher mais velha.

Não. A idéia, por várias razões era absurda. Mas não estava disposta a lhes dizer isso. Havia dito com a esperança de protegê-los da luxúria oportunista que pudesse surgir no que então estava segura ser um ninho de bandidos.

—O que acontece? - Disse a mulher, com voz alta. - É surda como a pobre Morgana? - Ela assinalou a mais lamentável de suas duas companheiras, uma menina.

—Não, não sou surda. – Ela se ouviu responder. - Sim, ele é meu marido. O que estão lhe fazendo? Aonde o levam? Tudo o que pedimos é proteção para esta noite, depois iremos pela manhã e nunca voltaremos a lhes incomodar.

A loira, a chamada Morgana, começou a gemer. Parecia um cão ao qual açoitaram muitas vezes.

A do cabelo murcho se inclinou sobre ela.

—Olhe... Olhe, Lavínia. Ela tem... Jóias.

A mulher se aproximou vacilante, procurando seu pescoço. Atenta a idéia de ser tocada por qualquer daquelas mulheres lhe resultava repugnante, ela deu uns passos para trás.

—Você não gosta, não é? - Zombou a mulher mais velha - Não se preocupe. Quando estiver tanto tempo como nós, não terá melhor aspecto. O fato é que certamente fique pior. Provavelmente Sully não seja muito mais velha que você. Mas nestes momentos ele não conseguirá tirar as mãos de cima de você. Esqueça-se de seu homem e seja amável com o abade. Ele é quem manda aqui. Sully, Morgana, tragam-na agora. Garota, você vem conosco. Não nos cause problemas e não lhe faremos mal. Seria uma lástima danificar seu bonito rosto.

Seguidamente, as duas esfarrapadas ficaram uma de cada lado e começaram a pressioná-la para que avançasse pelo corredor.

Novamente ela sentiu a estranha sensação de enjôo. Sua memória era uma confusão de imagens. Imagens que não podia ordenar. Cada vez que se movia, sentia-se aturdida e lhe doía à cabeça. A cada passo parecia que uma adaga cravava em uma das faces. O cavalo corcoveou. Ela viu sua cabeça recortada contra um céu sulcado de vermelho, laranja e negro, um céu ao anoitecer. A neve era de cor azul ante a luz moribunda. Ela era uma boa amazona. De algum jeito sabia que deveria tê-lo controlado, mas o animal estava louco de medo e caía. Caía. E havia dor. Dor então como agora, como uma adaga de gelo que lhe cravava no ouvido e na maçã do rosto.

Depois, ele estava mexendo em seu vestido. A princípio ela estava encantada, já que pensava que havia chegado o fim do cavalo empinado, da dor, do frio. Não um frio passivo, mas uma sensação aguda e abrasadora em seus pés e mãos. Um frio que provocava, precedido por um formigamento agônico através de todos seus dedos, que depois passou às mãos e aos pés. Soube que morreria congelada. Não era uma morte tranqüila, mas uma extraordinariamente angustiosa, em que se formariam cristais de gelo em sua carne que provocariam paralisia e ainda mais dor... Aprofundando-se cada vez mais para o osso.

Depois estava segura de que tudo tinha sido um pesadelo e de que despertaria a salvo e quente em sua cama... Com... E depois perdeu o fio do pensamento em meio à confusão. Mas ele estaria ali e ela só estaria sonhando. Levou-lhe poucos segundos para se dar conta de que o calor e a segurança tinham sido o sonho e o pesadelo... A realidade. Mas de fato, ele a carregava sobre o ombro e estava insultando os francos, sua gente, em saxão. Havia envolvido-a na pele de urso e parecia não lhe desejar mal algum.

Depois estavam em um quarto e Deus... Deus! O mau cheiro. Mas a mulher mais velha, Lavínia, estava acendendo um abajur de azeite com vários braços usando uma pequena vela. O abajur emitiu uma labareda enchendo de luz o que até alguns segundos antes era escuridão. Quando sua visão limpou, ela notou que a mulher mostrava algo parecido a horror nos olhos. Morgana se enrodilhou perto da lareira em um canto do aposento, tremendo. Sully apontava novamente para seu pescoço.

—Jóias, Lavínia... Jóias. Posso ficar com algumas?

Lavínia sacudiu a cabeça, sacudiu-a uma e outra vez e ignorou Sully.

—Eu sabia que aconteceria algum dia. – Ela disse. - Tentariam morder algo muito grande. Muito grande para suas bocas e presas, algo bastante forte para comê-los. E agora, por seu aspecto mulher, eu diria que o encontraram. Qual é seu nome menina e de que família provém?

Interrogada, ela deu uma olhada em si mesma tentando descobrir o que tinha inspirado tal temor nos olhos da mulher. Vestia uma dalmática de brocado de seda verde com bordas de pele de Marta sobre uma saia calça de montar feita com leve bordado de ouro. Sua capa era de brocado branco, um material denso forrado de arminho. Ela levou a mão ao pescoço. Sully tinha razão. Jóias, pelo menos meia dúzia de colares; seu cabelo estava recolhido em uma rede para cabelo de suaves correntes de metal; e se os colares e a rede para cabelo faziam jogo com os anéis de seus dedos, somavam sete. Todos eram feitos de prata ou ouro e adornados com pedras preciosas.

—São muitas jóias. - disse Sully. - Acredita que ele me dará algumas?

—Não... - Respondeu Lavínia bruscamente. - O que passa na tua cabeça? É meio tola como ela? - Ela assinalou Morgana. - Pode ser que esteja olhando a morte de todos nós. Acredita que mulheres que se vestem como elas vagam pelas montanhas a noite, esperando a que alguém as rapte? Não, sua família estará procurando-a e não sossegarão até que a encontrem. Garota, você é o bastante idiota para se deixar levar por um descarado de cara bonita, como o escravo que arrastaram para a capela?

—Não, eu não fugiria com ninguém.

—Marido. Marido, nada menos. Esse escravo não é o marido de ninguém. Não, você pertence a algum grande senhor, marido ou pai, que estará furioso até que a encontre. E quando te encontrar provavelmente matará todos e cada um de nós. Ela se deu uma palmada na testa. - O que faremos? O que faremos? Como te chama?

—Regeane. - A palavra saiu de lábios que pareciam pertencer à outra pessoa. - Regeane, - ela repetiu vacilante. - Regeane é meu nome.

                                                         Capítulo 2

Quando Maeniel retornou na fortaleza foi recebido por parte de sua gente. Gordo, um enorme homem de barba deu-lhe as notícias.

—O que quer dizer com «partiu»? Há dois dias? E ninguém a acompanhou? No que está pensando? No que estava pensando? - Ele quase gritou.

Gordo tentou parecer ferido e surpreso ao mesmo tempo; era pouco habitual que seu líder mostrasse suas emoções a respeito de alguma coisa. A conduta atual de Maeniel se aproximava muito à histeria. A desaprovação foi dominando a expressão preocupada de Gordo. Isto simplesmente não se fazia.

—Esquece-se da dignidade de sua posição. – Ele admoestou seu senhor.

Maeniel passou os dedos pelo cabelo. Levantou uma mão para depois deixá-la cair a um lado.

—Onde está minha esposa?

Sua voz tinha um tom perigoso. Gordo não se alterou.

—Estou lhe tentando dizer. Por favor, ouça.

Maeniel respirou fundo e expulsou o ar devagar.

—Ela estava preocupada com o tempo,. - continuou Gordo. - Estava preocupada contigo. Assustou-a pensar que você não voltasse a tempo de se reunir com o rei. Estava preocupada com o exército de Carlos e dizia que uma boa tempestade de neve poderia varrer os guerreiros francos. Respondemos-lhe que não nos parecia uma grande perda, que estas rixas entre reis não são mais que uma chateação para gente humilde. Se todos morressem, muito melhor para nós... Matrona disse isto, não eu.

Maeniel assentiu.

—Conheço bem os sentimentos de Matrona. Continue.

—O tempo ficou pior. Todos nós podíamos sentir a tormenta, mas Matrona disse que chegaríamos ao pé da passagem antes que desabasse, se nos apressássemos. Então ela foi.

—Mas ela não iria sozinha!

—Não, é obvio que não. - Explicou Gordo pacientemente. - Ela levou Matrona. Gavin gemeu e se queixou muito pelo frio que fazia, mas ele, Antonius e alguns outros foram com elas. A tormenta desatou essa noite e esteve soprando após. Sem Matrona aqui, não há ninguém que cozinhe. - Gordo parecia desconsolado. - Com sua permissão, vou caçar. – Ele disse, enquanto saía com tranqüilidade fleumática do aposento.

Maeniel se dirigiu rapidamente aos seus aposentos. Sua esposa podia escrever. Era possível, se possível, que houvesse lhe deixado uma nota.

O quarto estava vazio, mas quente. Sobre a lareira, uma pequena abertura na parede estava um enorme sino de mármore. Mesmo no pior frio do inverno, a pedra uma vez aquecida prendia calor suficiente para manter uma temperatura agradável. Caso, claro se alguém mantivesse o fogo aceso. Alguém o acendera.

Quando os romanos construíram a fortaleza não tinham previsto converter o aposento em dormitório. Pode que era o tablinum do general que dirigia o lugar.

Três grandes janelas redondas, situadas na parte mais alta de uma das paredes laterais, iluminavam o quarto. Cada uma delas estava coberta por um cristal de grossura suficiente para manter fora tanto o vento como o frio. Não se podia ver quase nada através delas, mas deixavam entrar muita luz. Debaixo delas havia uma porta e duas janelas mais. Agora todas estavam fechadas com pesadas venezianas de carvalho para proteger o aposento do mau tempo.

Quando ela havia chegado pela primeira vez, o quarto a atraiu. Não só pela luz, mas também porque as janelas e a porta saiam em um balcão privado com vistas para um precioso vale com as montanhas de fundo. Com a passagem dos anos havia convertido o aposento em um lugar luxuoso. Tapetes de seda de algum lugar do oriente cobriam o piso e as paredes, isolando a pedra fria. A gigantesca cama tinha um dossel de madeira de cedro esculpida e estava comodamente equipada com três camadas de tecidos pendentes. Gaze de seda para as cálidas noites de verão; brocado de seda para o frescor da primavera e o outono; e pesada tapeçaria de lã e seda para o pior tempo invernal.

Excelentes e grossas capas cheias de pluma cobriam a cama. E, sobre elas, lençóis de seda e um pesado edredom de peles.

Ela não tinha deixado nenhuma nota, mas sua camisola estava sobre uma das cadeiras junto ao fogo. Levantou-a e a levou ao rosto e inspirou com força. Cheirava como ela. Ela seguia um antigo costume romano que prodigalizava especial atenção, porque sabia que o encantava. Ela perfumava cada parte de seu corpo com um azeite distinto. Rosas para os braços; limão para as mãos; mirra para o pescoço e os seios; lavanda dos reinos francos para o ventre e as coxas; sálvia e louro para as pernas e os pés. Uma embriagadora mistura de aromas: comida, fruta e ervas ao mesmo tempo.

Havia quatro cadeiras junto ao fogo e quatro jogos espalhados sobre a mesa. Cada um de seus assistentes tinha uma cadeira atribuída. Matrona possuía a cadeira que estava de frente para a lareira; Bárbara, de frente para ela; e Antonius, de costas para o fogo. Gavin também tinha deixado seu rastro junto ao fogo. Maeniel pensou nele com uma pontada de ciúmes. Era um touro em permanente cio e seria capaz de aceitar qualquer coisa que lhe oferecessem, mas Matrona o mantinha sob controle.

Quase podia vê-los ali uma tarde, rindo, bebendo juntos, compartilhando um jogo de xadrez ou backammon. Gavin gostava de apostar e às vezes jogava grandes somas mas Antonius, que estava acostumado a ficar com seu dinheiro, evitava que ele se aproximasse muito das mulheres. Quando Antonius chegou pela primeira vez à fortaleza com o Regeane, gerou uma situação desagradável. Gavin o acusou de fazer armadilhas com as cartas e o ameaçou com uma espada. Maeniel não vacilou. Pegou Gavin e o lançou pela janela que estava mais perto.

Antonius havia ficado horrorizado. Mas Maeniel o conduziu até a janela, a mesma pela qual havia atirado Gavin e assinalou o lobo vermelho que se retorcia sobre um montículo de neve.

—Ele não gosta da neve. - Disse Maeniel. - Sua pelagem é curta. E demora horas em abrir caminho de volta até as portas. Não voltará a te ameaçar com a espada.

Depois partiu tranqüilamente, mas primeiro perguntou a Antonius:

—Você trapaceou?

—É obvio. - Respondeu Antonius.

—Não o faça... - Disse Maeniel.

E, pelo que sabia Antonius não havia tornado a trapacear. Mas seguia ganhando, de todo o modo, já que era, em seu pior dia, bem mais inteligente que Gavin... Ou qualquer deles, para falar a verdade.

Maeniel voltou a se dirigir para a cama. Regeane e Matrona haviam perfumado os lençóis e a colcha. Em seu mundo, pouca gente dormia sozinha. Quando Regeane se retirava a noite estava acostumada a levar com ela alguma de suas mulheres se ele não estivesse ali.

Fora, o vento golpeava as venezianas. Podia ouvir o grito sussurrante através dos muros de metro e meio de espessura.

—Não. – Ele murmurou. - Não.

Não importava quem tivesse ido com ela. Partiria nessa mesma noite e... Ele se voltou e viu Bárbara sentada em sua cadeira junto ao fogo.

Seu corpo se sobressaltou, pego por surpresa; evitou a transformação com um esforço de vontade, um esforço consciente.

—Bárbara! Você não foi?

—Não. – Ela negou com um gesto de cabeça. - Esqueceu-se. Eu não estou disposta a brincar com o tempo. Antonius é bem mais jovem que eu. – Ela disse. - Fiz tudo o que pude para retê-la aqui, mas ninguém me ouvia, e menos ainda Regeane. – Ela voltou à vista para o céu. - E quanto ao resto, quando sugeri que contivessem sua paixão em viajar de meio a tempestades de neve, tudo o que consegui foram alguns olhares muito peculiares.

—Interferir na liberdade de atuação alheia às vezes é impensável. - Lhe explicou Maeniel enquanto se aproximava para se acomodar na cadeira de Regeane, em frente a Bárbara.

—Esse Gordo. – Continuou ela. - Esse idiota quase nem se incomodou em me dizer que você havia chegado. Só lhe ocorreu mencionar quando passava pela cozinha, a caminho de Deus sabe onde.

—Foi caçar. - Disse Maeniel.

—Com isto? —Bárbara fez um gesto para as janelas fechadas.

—Provavelmente não sopre tão forte nos vales abaixo. Mesmo que, sempre pode proteger em qualquer lugar e dormir.

—Pelo menos levou Audovald. - Comentou Bárbara.

—Isso me faz sentir melhor. - Respondeu Maeniel. - Audovald é uma criatura muito responsável. Essa égua que lhe dei de presente é uma fêmea volúvel, muito jovem e nervosa...

—Se não fosse um cavalo, eu diria que é uma zorra. - Disse Bárbara. - Só lhe interessa uma coisa...

—Já disse, . - interveio Maeniel, - não até a primavera.

—Não... Sim. - Disse Bárbara lentamente. - Disse a Regeane...

—Não! Eu disse à égua que podia ir esquecendo se disso... E que não fosse tirar o pescoço do estábulo para levantar o ferrolho ou tentasse saltar sobre a meia porta.

—Sim. - Meditou Bárbara. - Você disse a égua... Assombroso. Eu gostaria de saber como.

—Algum dia a ensinarei. - Respondeu Maeniel com ar ausente. - Mas Audovald é sensato. Pode encontrar o caminho para descer da montanha na escuridão. Alegro-me de que esteja com ela. Qual é o problema com a carne? Por que Gordo vai caçar? E, não se desconcerta viver conosco?

—Não sei por que ele vai caçar e não, normalmente nem você nem seus amigos me parecem desconcertantes. Comparados com meu marido são um sopro de ar fresco. Qualquer outro homem provavelmente estaria descarregando sua fúria sobre nós.

—Não... - Disse Maeniel. - Simplesmente irei atrás dela. Agora mesmo.

—Com este tempo? Com a noite a ponto de cair? - Objetou Bárbara.

—Não importa. - Respondeu ele.

As venezianas vibravam e davam golpes enquanto o vento açoitava o edifício.

—Espero que nenhum deles tenha ido atrás do gado. - Murmurou Maeniel ao se levantar. - Diga-lhes que as ovelhas são para a lã e o leite e o mesmo vale para o touro, as vacas e as cabras. Nada de lanches, com o risco de provocar meu mais profundo desagrado. Entendeu?

Bárbara assentiu.

—Acredito que estão todos, presentes e controlados. O gado. Refiro-me a eles. Pelo que concerne a sua gente, não poderia te dizer.

—Necessita de dinheiro?

—Não. - Disse Bárbara. - Prometi a Regeane que permaneceria aqui até que voltasse.

—Bem. Eu a trarei para casa assim que a encontrar.

Bárbara o seguiu escada abaixo, Através do grande vestíbulo e durante outro lance de serpenteantes escadas, para depois observar como ele se fundia com a noite.

A coisa estava ruim, Maeniel pensou enquanto descia pelo atalho, mas o vento estava em sua direção e ele podia ver bastante bem. Como lobo, podia viajar inclusive em meio a uma forte tempestade de neve... Como Bárbara a havia descrito. Mas esta tormenta não era tão grave.

—É obvio. – Ele resmungou para si. - Não deveria ter nenhuma tormenta, absolutamente. É primavera. O céu deveria ser azul, não uma manta de velozes nuvens escurecidas pela bruma. O sol deveria luzir durante o dia, esquentando o ar e derretendo os rios e riachos gelados e enchendo o vale de um frondoso verde novamente s brotos. Mas não. Aqui está o último fôlego do inverno. De repente, ele obrigou a se calar. Ficou completamente imóvel. Esperou a que o vento parasse um pouco. Ele soprava levantando o espesso colarinho de pelagem de seu pescoço até as orelhas e açoitando seus sensíveis tímpanos com o gritante som de sua revoada.

O ruído chegou novamente. Um grito de um cavalo. Um grito de dor, terror e aflição.

A montanha se erguia sobre o lobo, sua cúpula perdida entre as nuvens. Junto a ele, por um lado, uma garganta caía virtualmente em linha reta até um rio ainda confinado no gelo. Um lobo pode observar em uma escuridão quase completa, mas nesses momentos havia pouca luz que os olhos de Maeniel pudessem utilizar. Manteve sua posição sobre o atalho mediante o tato. O contato de suas patas sobre a neve, seu sentido da direção do vento e o perigo do atalho sob seus pés. Não poderia viajar mais rápido sem entrar em perigo.

Aumentou seu ritmo. Sabia que se aproximadamente da direção ao som que havia ouvido. Era tudo o que podia fazer por agora.

Estes eram seus domínios.

Seus domínios no sentido humano e legal. Como o homem Maeniel, possuía-os, cortesia de Carlos rei dos francos. Os que subiam e atravessavam a passagem seguiam seu caminho e suas regras. Não tinha ouvido falar de nenhum viajante que passasse por ali, então o cavalo devia ser dele e estava com o grupo de sua mulher, Regeane.

Audovald? Não queria nem pensar nisso. Não, Audovald não era simplesmente um cavalo, também era um velho amigo no qual confiava e Regeane... Deus, Oh, Deus, Regeane estava montada nele. O lobo parou. Uma rajada de vento especialmente violenta esmagou sua pelagem e o frio lhe rasgou a pele. Sacudiu-se bruscamente para se livrar da neve, enquanto pensava que havia passado muito tempo na cidade romana. O clima temperado dali me abrandou, ele pensou. Se for Audovald, ele reconhecerá minha voz. Maeniel levantou a cabeça e uivou. Colocou no grito toda sua força, começando com o grave tom de barítono da chamada de caça e subindo, ululando através da solidão, para depois mover para os mais altos registros de tristeza e saudade desconsolada, subindo, subindo, quase até mais além do alcance do ouvido humano.

Recebeu resposta. O som era um assobiante relincho de profunda angústia.

Apesar do vento e do frio e da escuridão, ele começou a correr. O primeiro salto foi bem, mas o segundo o introduziu na escuridão.

 

Regeane sussurrou e se voltou na cama.

—Eu não olharia para esse lado, nobre dama. - Disse Lavínia. - Ela era uma das favoritas do abade e tomou veneno. Ele gosta de mulheres mais mortas, que vivas. Então ela segue aqui, mas agora cheira mal e lhe caem alguns pedaços.

—O que? - Sussurrou Regeane, sabendo que Lavínia estava dizendo a verdade. Seus sentidos de acuidade sobrenatural lhe advertiram que havia um cadáver no aposento e estava na cama. Levou uma mão no rosto e sentiu a mesma desorientação que provoca o álcool, mas não estivera bebendo. Estava cavalgando por um atalho da passagem. O cavalo se empinou. Sua última e horrorosa lembrança era a sensação de notar que Audovald o cavalo havia perdido o equilíbrio. A terra que formava o estreito caminho devia... Devia haver...

Regeane tocou a face. Sua mão estava fria, gelada. O contato de seus próprios e frios dedos sobre a pele a sobressaltou, devolvendo-a a um estado de alerta completo. Deslocou-se o mais longe possível da cama.

—Não há por aqui perto nenhum outro lugar mais limpo e agradável que esta... Esta câmara mortuária?

—Não. - Sussurrou Lavínia. - As mulheres vêm aqui porque é seguro. Apesar de que ela... - Lavínia assinalou a cama. - Não é a companhia mais agradável do mundo. Pelo menos não nos golpeará e nem violará. Algo que não posso assegurar dos companheiros mais animados do abade.

Sim, pensou Regeane. Isto era um ninho de bandidos, se não fosse algo pior. Pior, a idéia preocupava sua nublada mente. O que podia ser pior, a este lado da morte? Mas era possível que não estivesse neste lado da morte. Talvez tivesse morrido quando o cavalo... Caiu? Não estava segura de ter caído, mas então... Não. Sim, estava segura. O cavalo havia caído. A que altura do vale? Alguém... Não podia se recordar quem, disse que quase a uma milha do caminho. Não, nada poderia sobreviver a uma queda como essa. Então ela estava morta. Mas como era possível? Porque ainda podia sentir, pensar, se mover e sim, ela respirou fundo o ar gelado, também podia respirar.

Mas podia estar morta de toda forma, tinha tanto frio... Aproximou-se lentamente da baixa lareira em que se estava a menina Morgana. A mulher chamada Lavínia pegou um tronco de um ralo de metal perto do fogo e o jogou sobre as brasas, já quase mortas. A madeira tentou pegar fogo. A casca devia estar molhada. Depois se acendeu, emitindo uma onda de calor que percorreu o aposento.

Regeane, agradecida, estendeu as mãos para o calor que se elevava do recém-nascido fogo. Fechou os olhos, observando o resplendor avermelhado. A fumaça da lareira que se introduzia em suas fossas nasais e se apegava a sua roupa, tinha um aroma bem mais limpo que qualquer outra coisa no pútrido aposento em que se encontrava.

—Ah, sinta bem. - Murmurou Lavínia.

Regeane sentiu como se sua mente começasse a esclarecer.

—Ma... Marido?

—Não seja tola. Disse-lhe Lavínia. - Está claro que sequer sabe seu nome.

—Não sei, mas ele tentou me ajudar. Pode ser que inclusive me tenha salvado a vida. Então onde o levaram e o que vão fazer com ele?

—Sh! Se alegre de que o tenham, para mantê-los ocupados toda a noite. Deixe que terminem de matá-lo e amanhã eu... - Ela se voltou para onde estava Regeane e sufocou um grito de surpresa. A mulher havia desaparecido!

 

O saxão não era um homem otimista e, de fato, seus piores medos se confirmaram. Tinha ouvido, inclusive entre os lombardos, escuras histórias sobre aquele lugar, o chamado monastério ao pé da passagem. Essas histórias não lhe preocuparam absolutamente, já que planejava evitar a todo custo os funcionários do rei franco. Não sabia se devolveriam a seus proprietários lombardos, mas não pensava por a prova sua caridade. Em nenhum lugar deste cruel mundo podia um homem sem amigos ou parentes esperar proteção, nem sequer compaixão. Esta era sua firme crença e nada em sua vida lhe haviam persuadido ao contrário. Certamente, não sua própria experiência.

Tinha conseguido recuperar o controle sobre seus reflexos, para evitar que sua cabeça se convertesse em polpa contra o solo, mas seguia preso. No caminho para onde estavam levando-o, ele só se concentrou em manter seu crânio longe dos paralelepípedos; pelo resto, deixou de se revolver e tentou relaxar os músculos. Preso ou não, ainda estava enredado na pele de urso e a grossa pele impedia que o descuidado tratamento de seus captores o deixasse machucado ou lhe destroçasse. A capa lhe trazia boa sorte ou talvez não. Havia sido capturado com ela, mas provavelmente lhe salvara a vida quando foi vendido aos lombardos. Mas nos barracões de escravos tivera que lutar contra três homens por conservar a maldita coisa... Ou haviam sido quatro? A batida na cabeça havia sido forte... Então acabaram suas especulações, já que se encontrou na capela do monastério. Estava deitado sobre o chão.

A coisa, pois assim era como sua mente o classificava, a coisa que ria estava examinando-o. Cravou-lhe o dedo em vários lugares.

—Estão seguros de que não lhe bateram muito forte? - Ele perguntou aos criados que lhe tinham trazido até ali. - Parece morto.

—Morto e um chifrudo. . - Grunhiu uma voz que ele reconheceu como a de um dos homens da porta. - Abra os olhos, porco.

Alguém, provavelmente o que falava deu-lhe um chute nas costelas.

O saxão sussurrou o mais insultante epíteto que conhecia e abriu os olhos. Estavam todos formando um círculo a seu redor. Nunca havia visto pior bando de assassinos. Todos tinham cicatrizes e a todos faltavam olhos, mãos, narizes ou inclusive lábios. Mas o que lhe provocou um calafrio de puro terror foi o fato de que o homem que falava era um dos que estavam junto à porta. Era o homem que sua companheira tinha apunhalado na garganta. Ele não só estava vivo, mas também parecia desfrutar de uma saúde razoavelmente boa.

A coisa soltou uma gargalhada tola muito desagradável.

—Odd, não se pode acreditar que esteja vivo.

Odd pigarreou e cuspiu uma asquerosa mistura de escarros e sangue no saxão.

—Não graças a ele e sua linda puta.

O saxão girou a cabeça bem a tempo de evitar que a viscosidade lhe salpicasse a cara.

—Tem boa mão com a faca essa sua mulher. - Disse Odd. - Talvez fique algum tempo, para nos fazer companhia.

Sim, pensou o saxão. Ele tem um buraco na garganta, quase como outra boca, no lugar onde entrou a faca da mulher. Alguém havia lhe costurado. Via-se uma linha vermelha desde seu pomo de adão até debaixo da orelha. Não, ele deveria estar morto. Como era possível?

—Alguém machucou. - Disse Odd. Sua voz soava espessa, áspera... Como se lhe cortar o pescoço danificou um pouco sua habilidade para a fala. - Uma lástima que não pudéssemos trazer Gui de volta. Este porco lhe bateu forte contra o poste.

—É que arrebentei o crânio? - Perguntou o saxão.

Odd riu com um estranho som. Depois pigarreou e cuspiu novamente.

—Não estou bom de tudo. Ainda sangro. – Ele gemeu.

—Solte-me. - Disse o saxão. - Te cuidarei tão bem como ao outro. Não sangrará nunca mais, bastardo.

Alguém lhe deu um chute. Um bom chute brutal, que o deixou quase sem fôlego.

—Suplique por sua vida, porco. - Disse a coisa risinho. - Eles o fizeram. – Ele gesticulou para as cadeiras do coro que se encontravam ao longo da parede da capela.

Sim, o saxão reconheceu o lugar como uma igreja, uma das Igrejas cristãs. Ele e os outros escravos tinham sido conduzidos a uma, cada semana no estado onde os encarceraram. Estes lugares unicamente recordavam estábulos, mas com tetos mais altos. Eram longos e bastante estreitos. Ao longo dos muros havia cadeiras com elevados respaldos de madeira esculpida. Estes eram para os sacerdotes, os únicos podiam se sentar. Os escravos e os poucos camponeses que se enfrentavam o serviço disposto para os mais humildes trabalhadores da vila, ajoelhavam-se no solo nu de pedra, enquanto os sacerdotes cristãos com saias seguiam um complicado ritual sobre o altar, levantado a um extremo do aposento.

O frio, a pressão sobre os descobertos joelhos e o mau cheiro dos corpos sem se banhar de seus companheiros escravos, para não mencionar a presença dos capatazes contratados para evitar que os escravos causassem moléstias, tinham convertido toda a experiência religiosa em algo horrível. Em alguns momentos do serviço, nunca soube com segurança quais, os vigilantes descarregavam o látego sobre o desventurado escravo que fizesse o mais leve som. Uma vez, depois de observar como despojavam de olhos e língua um de seus companheiros menos inteligentes por ter amaldiçoado ao Deus cristão em meio dos ritos, ele concluiu que esse deus tinha gênio pior que os espíritos do vento. O frio, a tormenta, o fogo, o desejo e a fecundidade aos quais venerava sua gente. A eles, pelo menos era indiferente o sofrimento humano. O deus cristão era realmente perverso. De fato, este abade com cérebro de verme, rodeado do que agora ele sabia serem homens mortos era um servente muito adequado para esse deus.

—Suplique por sua vida... - Desta vez a chute veio do abade.

— Vou urinar em você. - Disse o saxão.

—Suplique. – Gritou o abade. Do nariz lhe caíam mucos e dos lábios, saliva. Ele parecia decepcionado. - Nestes momentos, eles já estavam todos suplicando.

— Vou defecar em você. - Disse o saxão. - Não te daria nem minhas urinadas. São muito boas para você.

—Já o tenho, já o tenho. - Gritou um dos homens perto de Odd. - Mostremos a nossas hóspedes. – Ele disse enquanto assinalava os assentos do coro.

—Sim... - Respondeu o abade.

O abade saltava uma e outra vez com regozijo, mas no segundo salto, o saxão viu para onde foram as coisas e conseguiu rolar. O abade aterrissou sobre suas costelas. O saxão saltou como um cavalo furioso. Preso ou não ele podia se mover, mas então todos se alternaram tentando se manter em cima dele. Apertou os dentes, se retorceu e girou, tentando manter-se vivo enquanto todo o bando tentava matá-lo a chutes. Felizmente só havia poucas botas bastante pesadas para lhe fazer mal, mas ele ouviu como lhe partia uma costela e logo outra. Depois se impulsionou para cima com a cabeça, para chegar à tela em forma de cruz de madeira em frente ao altar, dando arcadas e tentando recuperar o fôlego.

O resto retrocedeu, com aspecto fatigado, mas o abade conseguiu lhe dar uns quantos chutes mais na região lombar.

—Esse sim é um tipo entretido. - Balbuciou o abade alegremente. - Fazia tempo que não tínhamos ninguém com tanta energia. Sim, vamos mostrá-lo a nossas hóspedes.

Dois deles o pegaram pelos braços e o arrastaram de volta ao centro do longo aposento.

—A tocha. - Gritou o abade.

Desde algum lugar junto ao altar apareceu à chama de uma tocha que descreveu um arco no ar em direção ao velho. Com uma habilidade surpreendente, o abade a pegou no vôo e aproximou o fogo do rosto do saxão. Os companheiros do abade pareciam ainda piores à luz da tocha. Todos deviam ter morrido em um ou outro momento. A cabeça de um deles caía de um modo estranho sobre os ombros. Enforcado? A pele de outro estava enegrecida e possuía um brilho oleoso e parte de um osso torrado aparecia pelo cotovelo. Queimado?

A morte não parecia ter alterado seus hábitos alcoólicos. Eles estavam com uma garrafa. Quando chegou até Odd, ele deu-lhe um bom gole; depois começou a dançar meio afogado e gritando, ao ver que parte do vinho lhe saía pelo corte da garganta e descia pelo peito. Aos outros pareceu divertido.

- Queima! – Ele gritava - Arde.

O saxão imaginava que devia ser certo. Algumas partes do pescoço deviam estar ainda em carne viva. Vivos ou mortos todos eram bem mais altos que o abade, mas ainda assim, ele os dominava com apesar de seu olhar idiota e o constante baba.

—Olhe. - Disse o abade, movendo-se para as cadeiras alinhadas nos lados da igreja. Aproximou a tocha de algum deles que ali se sentava.

O saxão só pode vê-lo fugazmente, mas a breve visão foi quase suficiente para imobilizá-lo. Estava virtualmente seguro de que acabaria se unindo as pessoas que se sentavam ali, antes que o sol saísse. Se é que o sol brilhasse alguma vez sobre esse lugar maldito. E se amanhecesse, provavelmente não seria para ele. Voltou o rosto resolutamente e fechou os olhos.

O abade gritou de fúria e investiu novamente contra ele.

—Você vai olhar. Vai olhar ou a primeira coisa que farei será arrancar seus olhos. – Ele disse enquanto golpeava a face do saxão com a tocha.

Ele ouviu-se gritar enquanto sentia como lhe queimava o cabelo e a pele. Podia ouvir a risada do abade.

—Sabia que podia te fazer gritar. Cedo ou tarde, sempre consigo que gritem.

—Acredito. - Disse o saxão quando se recuperou o bastante para falar.

—Oh, sim, acredite nisso

A tocha se encontrava entre o abade e ele. Tudo o que ele podia ver eram as chamas.

—Levantem-no. - Ordenou o abade. - coloquem-no em pé. Tragam aqui para que ele possa ver o resto dos hóspedes.

Obrigaram-lhe a ficar de joelhos. Tiveram que de insistir entre cinco ou seis. O saxão era um homem grande. Enquanto o faziam, ocorreu-lhe uma idéia. A parte crítica de seu cérebro lhe dizia que era um plano desastroso, mas a mais otimista lhe sugeria que, já que havia ficado sem idéias brilhantes, não perdia nada tentando.

Gritou com força.

Imediatamente soltaram-no e ele caiu no chão. Caiu pesadamente e gritou novamente Não foi difícil. Estava com duas costelas quebradas e era insuportavelmente doloroso.

Em situações normais, não teria gritado, já que era como um homem de ferro. Mas os gritos pareceram entreter os monstros. Então ele gritou muitas vezes.

—O que está acontecendo? - Perguntou Odd com voz de bêbado. - Não lhe fizemos tanto dano... Pelo menos ainda não... - Ele começou a rir e espalhar gotas de vinho e sangue que lhe saíam do corte na garganta.

—Estou ferido. - Gemeu o saxão. - Ferido por dentro. Quando saltaram sobre mim me romperam algo.

Odd lhe deu um chute e o grito resultante convenceu o resto de que ele estava realmente ferido e não fingia, porque Odd o acertou com a ponta da bota em uma das costelas quebradas. O reflexo de pura agonia arqueou as costas do saxão e quase o fez desmaiar.

O que despertou a ansiedade do abade.

—Vamos, coloquem-no em pé. Quero-o aqui antes que morra. Ele, - disse o abade, indicando o escuro altar, só me deixa brincar com eles até que morrem. Não me deixa que continue depois. Não os traz de volta. Se este morrer, - ele choramingou, - eu não voltarei tê-lo. E quero que fique mais um pouquinho. Então o levantem. – Ele gritou.

A equipe dos cadáveres, pois assim era o que o saxão pensava deles, obrigou-lhe a ajoelhar outra vez. O saxão fez com que seu corpo ficasse inerte. E caiu com um forte golpe.

—Se levante. - Gritou o abade, enquanto o acertava com a tocha.

O saxão gritou por sua vez e gemeu, mas conseguiu permanecer quieto; depois deixou escapar um autêntico rugido de pura agonia quando o abade pressionou a tocha contra seu rosto.

 

Devo estar morta, pensou Regeane. Sim, isso explicaria tudo. Devo estar morta; do contrário, como poderia ver tão bem na escuridão? Ela seguia a curva da parede do outro lado do quarto que as mulheres a tinham levado, mas era capaz de ver o longo vestíbulo que a rodeava. De fato, parecia haver uma luz mais adiante e ela podia ouvir o distante som de gritos e gemidos. Sim, havia luz. Regeane se apressou, mas quando chegou até o resplendor prateado se deu conta de que era só a lua que brilhava através das vigas quebradas do teto. Fora, a tormenta devia ter passado. Agora a lua brilhava de forma esporádica entre as nuvens que se moviam com rapidez pelo céu noturno.

O vento soprava através do telhado quebrado, de tal forma que lhe arrepiou o cabelo em cada centímetro exposto de sua pele. O frio era cortante, mas a brisa era limpa e amortecia os aromas daquele lugar. A neve também havia entrado pelo buraco do teto e se amontoava sobre o chão. Estava gelada e escorregadia, então ela tentou dar à volta. Suas botas de montar eram torpes sobre o gelo.

—O que? Mulher? Está louca? Tentei te manter longe dele. - O sussurro provinha das sombras junto à poça de luz de lua.

Regeane reconheceu a voz. Era a do velho monge que lhes tinha deixado entrar em um primeiro momento.

—Devo encontrar meu marido. – Ela respondeu.

—Não me repita essa mentira. – Ele respondeu com um pouco de aspereza. - Te mandei junto às mulheres para tentar te salvar de nosso suposto abade e seu grupo demoníaco e a encontro aqui correndo a seu encontro. Tanta pressa tem de encontrar seu final? O homem é um escravo fugitivo. Notei seu colar quando ele se chocou contra mim na porta. Não é marido para uma mulher como você.

—Não importa. - Disse Regeane. - Devo ajudá-lo. Ele tentou me salvar.

O homem, só uma sombra na penumbra, pegou-a pelo braço, mas ela se soltou com assombrosa facilidade. Justo nesse momento ouviu um terrível grito.

—Não... Não, não. - Gemeu o ancião. Tentou pegar Regeane novamente, mas ela já corria para a capela, para as enormes portas de carvalho mais adiante. Estava fechada, mas a outra tinha uma fresta aberta. Uma débil luz se projetava sobre o vestíbulo vazio.

Ela estendeu a mão e a abriu.

 

Para Maeniel a sensação foi voar, que de cair. Cair, estava lhe produzindo um terror primário, embora a nevada escuridão fosse tão espessa que não estava tão assustado como deveria. O atalho pareceu desaparecer depois que ele se encontrou voando. Logo aterrissou. Ficou sem ar de repente. Poderia ter perdido a consciência, mas não estava seguro. Só sabia que batera fortemente contra um monte de pedras e que ficou completamente sem fôlego. Fez o que qualquer humano faria em tais circunstâncias: ficou deitado muito quieto e tentou desesperadamente recuperar a respiração.

Enquanto isso sua visão começou a esclarecer. Não era de muita ajuda, ele pensou, já que tudo o que podia ver eram longas cortinas de neve, açoitadas pelos ventos da tormenta como se fossem gigantescos pedaços de tecido. Mas quando olhou para cima foi capaz de ver, mesmo na brumosa penumbra que o atalho havia desaparecido varrido por uma avalanche monstruosa que se lançara montanha geleira.

Regeane, ele pensou, enquanto lutava para se levantar. Quando por fim pôde se levantar parecia ter passado uma eternidade. A luz já começava a melhorar e pôde notar que havia lhe salvado a vida. Encontrava-se sobre uma acumulação de neve da própria avalanche. A topografia da paisagem havia ficado alterada por completo. Além do arrasado atalho havia desaparecido parte da cúpula, estendida agora em forma de leque sobre o que antes era um escarpado até o vale, com a corrente da montanha na garganta ao fundo. O abismo já não era tão pronunciado e o rio estava tentando abrir um novo caminho sobre os restos da geleira caída da montanha.

O lobo se abaixou e uivou novamente.

E novamente obteve resposta.

A luz aumentava, embora a nevada seguisse caindo. Agora, mais que uma cortina. Era uma fina névoa. E ele pode notar muito longe, um ponto negro sobre a neve. Era Audovald. O cavalo estava em meio a uma depressão do solo. Só se podia ver seu pescoço e uma das patas dianteiras.

O cavalo soprou pelo focinho quando sentiu o lobo aproximar. É você?

Sim. Saudaram-se esfregando os focinhos.

Audovald se tranqüilizou. Está zangado?

O lobo voltou a esfregar contra seu focinho. Não. Estou assustado. Ele usava sua linguagem corporal, intraduzível ao humano.

Perdi-a. Foi o grito de dor do cavalo.

O lobo se esfregou novamente contra seu focinho para tranqüilizá-lo. Somos mortais. Sei o que fez todo o possível.

A montanha inteira caiu. O cavalo estava muito afetado. O atalho desapareceu sob meus pés. Os outros fugiram. Antonius tentou levá-los a um lugar seguro. Audovald gemeu. Um único e terrível som saiu da boca do cavalo. Não sei se conseguiu, mas havia incitado aos outros que avançassem e nós estávamos muito longe. Tentei cavalgar para baixo com a avalanche. Falhei. Ele alongou o pescoço para fora, pousou a cabeça sobre o monte de neve e fechou os olhos.

O lobo começou a cavar.

Provavelmente terei todas as patas quebradas.

Os cavalos são uns pessimistas, pensou o lobo. Parou um momento e perguntou.

Dói-te?

Não.

Então o tentaremos. O lobo seguiu cavando.

Ela a ouviu chegar. Também eu. Continuou o cavalo. O problema foi que o desprendimento de gelo era tão grande que não confiamos em nossos sentidos, mas ela voltou e nos fez adiantar e deu o alarme. Antonius atuou com rapidez. Mas já estava em cima de nós, ela e eu fomos os últimos da coluna e a neve nos arrastou. Não sei o que aconteceu com outros.

O lobo liberou a outra pata dianteira do cavalo. Audovald tentou se lançar para diante, mas deu um grito de dor e caiu para trás.

Não o tente até que eu lhe diga, disse o lobo.

Sim, meu senhor, respondeu o cavalo. Entretanto, o lobo notou que estava mais animado.

 

O saxão a viu abrir a porta. Milagrosamente, o resto da corte de meia-noite não o fez. O abade acabava de retirar a tocha de sua cara e ele e a equipe dos cadáveres observavam avidamente as reações de sua vítima. O saxão se deixou cair de costas e ficou de lado, com os olhos meio fechados, tentando recuperar a respiração. Ela era uma luz de pura beleza em um universo de escuridão. Novamente maldiçoou brevemente seus guardiões. Como haviam deixado que uma mulher de seu tipo, uma nobre com toda certeza, caísse em tão grave perigo? Esperava que, ao ver o que estavam lhe fazendo, ela fugisse dali. Deveria estar aterrorizada com o espantoso grupo, mas não parecia assustada. Em vez disso, voltou-se um pouco e sacou sua faca.

Uma faca de mesa, ele supôs com desespero. Mas não. A coisa era uma espada curta, um sax de um só fio e mortífero.

—Deixem-no em paz. - Ordenou a garota.

Oh, Deus obrigado. Eles deixaram.

O saxão passou da culpabilidade ao notar que agora eles estavam se concentrando nela, a uma alegria selvagem porque ela estava distraindo-os por alguns momentos, para sentir a esperança de que ela fosse o bastante boa com a faca, para contê-los até que ele conseguisse se desatar. Havia comprovando as cordas durante a anterior refrega e estava seguro de poder se liberar, se é que o deixasse tranqüilo alguns segundos.

Certo, estava ferido e se pudesse parar para pensar, dolorido, mas também fervia de raiva e sentia uma sede de vingança cega e absoluta.

Toda a equipe se equilibrou sobre ela.

Ele rodou sobre suas costas, levantou os joelhos até tocar o peito e passou as atadas mãos sobre os pés. Quando as teve diante, pegou as cordas dos tornozelos. Elas cederam ao primeiro puxão. Meio podres, como todo o resto neste asqueroso lugar, ele pensou. Imediatamente, já estava em pé.

Odd tinha uma espécie de espada. Não parecia muito boa; estava coberta de uma grossa camada de óxido. O saxão se aproximou dele por detrás e a arrebatou das mãos.

Odd, surpreso, voltou-se rapidamente.

O saxão brandia a espada com uma só mão. Deuses de minha gente! Ele se sentia bem em ter uma espada. Havia passado tanto tempo, ele pensou enquanto seu fio rasgava o ombro de Odd, atravessava-lhe as costelas e terminava de cortar seu torso pela metade justo acima do quadril.

Não era uma espada tão má, pensou o saxão. Deve ter pertencido a um verdadeiro guerreiro. Em qualquer lugar que esteja; ele disse a seu espírito, eu o vingarei. E ele fatiou o abade em quatro partes.

Comprovou horrorizado que os pedaços jaziam no chão, retorcendo-se e tentando se juntar, da mesma forma que uma serpente se move e abana o rabo até muito depois de ter morrido. O sangue borbulhava na garganta do homem morto, derramando sobre o chão de pedra. O sangue, mais sangue da que poderia ter um corpo humano, saía a jorros do cadáver mutilado, salpicando tudo.

Regeane viu o terror refletido no rosto do saxão. Fazendo caso omisso de sua valia, envolveu o braço esquerdo com a capa de brocado branco. O homem cuja cabeça estava em um ângulo estranho investiu contra ela com uma lança. Ela o enfrentou com o braço envolto na capa, parando a ponta em alto, enquanto lhe cravava a faca no abdômen. Saiu-se melhor do que esperava. Um segundo depois, o assassino tropeçava com seus próprios intestinos.

O saxão estava paralisado de medo.

—A tocha. - Gritou ela. - Usa fogo. O fogo os assusta.

Estava se recordando de Roma, vespas negras sobre a face de uma mulher e uma tumba. Primeiro estava ali e depois não estava mais.

O saxão se lançou para diante, pegou a tocha e a jogou sobre a tela da cruz de madeira em frente ao altar. A madeira era velha, quebradiça e devia estar seca como isca, somada as cortinas de linho ao fundo da tela. Arderam com grande estrondo e em poucos segundos, a capela estava iluminada como o dia. O que Regeane e o saxão viram era horrível.

O saxão concluiu que deviam ser os troféus do abade. Os assentos do coro estavam cheios de cadáveres. Alguns eram reconhecíveis, talvez fossem de uns quantos meses atrás; outros eram somente roupas e pele seca, dente, conchas vazias e ossos marrons. O que estava muito claro era que todos tiveram uma morte terrível. Um cadáver recente parecia não ter sinais, mas por sua expressão de terror e a posição em que suas mãos ficaram rígidas, estava claro que tinha sido enterrado em vida.

Regeane olhou ao seu lado onde havia uma mulher. Estava nua. Estava cravada na cadeira de madeira com uma dúzia de lanças, nenhuma em um ponto vital. Parecia ter vivido durante dias, pensou Regeane.

O resto dos membros da equipe dos cadáveres fugiu para o altar.

Uma idéia pouco inteligente.

O ser se ergueu diante deles do profanado altar, só visível porque as chamas que corriam sobre a tela da cruz o rodeavam e definiam. Um urso, mas o urso maior que Regeane ou o saxão tivessem visto. Um urso com pele de fogo. Rugiu e as paredes pareceram tremer. A equipe de cadáveres caiu ao chão e se ajoelhou aos seus pés.

—Morto. – Ele rugiu. – Você matou meu devoto, meu adorador, meu sacerdote. Mantive vivos a ele e suas criaturas durante cem invernos enquanto morava aqui.

—Sim... - Gritou Regeane. - Sua existência manchava tudo o que é bom.

—O que importa como se entretêm minhas criaturas?

Os rogos da equipe só pareceram irritar o ser com forma de urso.

—Morram. – Ele disse e assim eles o fizeram, caindo sobre o piso em vários montes. - Os encontrei na forca. Voltem para lá.

Eles desapareceram.

—Lastimo que não possa lhes fazer o mesmo. – Ele gritou. - Mas talvez meus vassalos possam.

Tanto Regeane como o saxão observaram aterrorizados, que seu redor os cadáveres do coro começavam a se mover.

 

Ao lobo cinza levou quase uma hora liberar os quartos traseiros do cavalo. Ambos sofreram temerosos de que uma das patas pudesse estar quebrada. Se assim fosse, nenhum dos dois saberia o que fazer.

O lobo cinza não sabia se teria coragem para matar um amigo, nem para salvá-lo de um terrível sofrimento. E o cavalo sabia que uma pata destroçada decretaria o seu fim. Até um humano com tal ferimento tinha poucas possibilidades de se recuperar. A perda de sangue e a infecção causavam um tremendo efeito mesmo nos que sofriam ferimentos menores. Mas a sorte quis que, quando o lobo havia liberado as quatro patas, Audovald se visse capaz de ficar em pé comodamente.

Não me explicou, disse-lhe o lobo enquanto comprovava cada pata, dobrando-a. Como é possível que não ficasse ferido de morte. Mas parece que não o estou. Agora vejamos se pode descer até o vale. Devo procurar o restante do pessoal.

Os dois se mantinham em equilíbrio sobre a escarpada superfície em forma de leque. A neve já havia deixado de cair e o céu estava se limpando. A lua brilhava com intensidade. Tanto o cavalo como o lobo viam tão bem como se fosse meio-dia.

Pode ser que estejam à milhas de distância ou profundamente enterrados na neve, disse Audovald.

Os cavalos são uns pessimistas, pensou novamente o lobo cinza. Estava a ponto de começar a dar voltas quando ouviu uma aguda chamada mais acima.

Ainda restavam alguns restos dispersados pelo atalho. Sobre um deles havia uma loba negra. Seu rabo se movia com um gesto gracioso, mas não de entusiasmo.

Estou viva, venha.

Eles estavam em uma cova pouco profunda, uma gruta natural. Antonius estava deitado, com uma das selas de montar como travesseiro. Gavin se ocupava de um pequeno fogo. A loba negra, Matrona e Maeniel se tornaram humanos. Maeniel pegou emprestados alguns objetos do Gavin, uma túnica de lã e uma calça. Gavin parecia culpado e abatido ao mesmo tempo.

— Nós a perdemos. – Ele disse e começou a chorar.

Antonius abriu os olhos uma vez, sacudiu a cabeça e voltou a fechá-los. Matrona se vestiu com uma dalmática de seda branca e uma saia calça de montar marrom.

—Lamentaremos depois... - Disse Maeniel com firmeza. - Quando estivermos seguros. Ela é uma de nós e nós somos difíceis de matar.

Os olhos de Antonius se abriram.

—Quer dizer que pensa que ela pode seguir viva? Mas viu a queda que...?

—- Quando estivermos seguros de uma ou outra coisa, haverá tempo de sobra para a dor e as recriminações. Enquanto isso a procuraremos. Antonius, você pode montar?

—Sim. —Antonius ficou em pé imediatamente.

—Bem. - Disse Maeniel. - Audovald vem para aqui.

—O cavalo sobreviveu?

—Sim, desenterrei-o. Nós... - ele assinalou Gavin e Matrona. - Iremos como lobos. —eles tiraram a roupa.

O brilho da lua encheu os olhos de Antonius antes que se perdessem na noite.

 

Um pesadelo. Isto era um pesadelo, pensou Regeane enquanto esfregava os olhos com a mão.

—É possível que tenhamos morrido? - Ela perguntou ao saxão.

Ele assentiu.

—Eu mesmo já pensei. Mortos em meio do nada, sem oferendas e sem família que nos chore. Sem os sacrifícios e as sentenças apropriados para dizer aos deuses que ambos fomos nobres e nos comportamos com correção. Fomos enviados a terra selvagem como proscritos.

—Eu sempre fui uma proscrita. - Disse Regeane. - Não tenho medo.

—Dá a casualidade de que eu também sou. Reduzido ao mais baixo estado de escravidão. Vendido só pela força de meu corpo, trabalhei com correntes nos campos de trigo lombardos; uma vez me fizeram de cavalo para puxar um arado.

A conversa   era muito tranqüila.

Com a expressão vazia, sacudindo-se como uma marionete, ele começou a se aproximar do primeiro cadáver, aquele cuja cara era uma máscara de terror. Enquanto isso, as chamas que a princípio pareciam se limitar a tela do altar e a cúpula sobre ele começava a se arrastar lentamente para o resplandecente teto.

—Deveríamos ter problemas para respirar. - Disse Regeane. - Em vez disso, a fumaça sai do aposento.

Ambos retrocediam ante o avanço do morto.

—Imagino que haverá buracos no teto. - Disse o saxão. Depois gritou de medo e asco quando algo composto só de ossos negros com uns quantos e andrajosos restos de carne e roupa o pegou por detrás.

A cabeça estava meio coberta por um capuz. Com uma coragem que desconhecia possuir, Regeane lhe deu um murro no crânio. A coisa caiu no chão e o saxão a pisoteou até destroçá-la com suas botas. Depois cortou com sua espada o seguinte cadáver em três peças.

Um segundo depois, Regeane gritou.

A cabeça, ombros e um braço do abade ainda estavam grudados. Com um olhar malévolo, ele pegou à barra da túnica de Regeane com os dentes e mordeu com força.

A coisa que observava entre as chamas que consumiam o altar riu a gargalhadas.

—Ainda resta um pouco de vida e muita malícia em minha criatura.

—Fica quieta. - Ordenou o saxão a Regeane. Depois, cortou a metade superior do crânio do abade com a espada. - Já não existe mais. - Disse o saxão enquanto os restos rodavam pelo chão.

—Devemos, - sussurrou Regeane com lábios rígidos e pálidos, - encontrar alguma estratégia para tratar com estas coisas.

—Sim. - Respondeu o saxão.

E assim o fizeram.

Acima deles, o fogo consumia lentamente o teto. Tições e brasas ardentes enchiam o ar a seu redor. Os assentos do coro queimaram com um brilho e um rugido, incinerando os mortos que estavam muito decompostos para servir de ajuda ao malvado ser do altar.

Regeane e o saxão se viram obrigados a retroceder até o vestíbulo. E estava claro que tudo o que restava do monastério estava em chamas.

—Eu corto... - Disse o saxão. - Você queima.

—Sim. - Disse Regeane pegando duas tochas do destroçado marco da porta enquanto se separavam do inferno que se estendia através da antiga e condenada estrutura.

Todas as partes da ruína protegidas dos elementos estavam secas como palha. O saxão se adiantava fazendo em pedaços os horrores que os rodeavam e ela incendiava as partes de carne mumificada, farrapos de roupa e osso seco.

O saxão era um homem de ferro e sua ladainha, coragem, mulher, coragem, manteve Regeane viva ao longo de uma noite cheia de dor, terror, asco e cansaço.

O pior momento foi quando a coisa da cama no primeiro aposento que haviam levado Regeane se levantou para atacá-los. O corpo putrefato estava muito úmido para arder com as tochas de Regeane, então ela arrancou os forros da cama, atirou-as em cima do horrível ser e queimou-o. Depois acrescentou as almofadas e o resto da roupa de cama. Todo o edifício estava já envolto em chamas. O telhado da capela já havia caído.

Regeane e o saxão fugiram pela porta e saíram à paisagem nevada. Para sua surpresa, havia luz pelo este e era dia. Eles pararam ao cruzar a porta, respirando fundo o ar limpo e frio. O saxão se deixou cair sobre uma coluna de pedra posta frente à abadia, mas depois se levantou o ver a aproximação de três lobos rapidamente.

Não estava terrivelmente assustado. Havia lutado contra lobos com antecedência e sabia que estes três, que pareciam bem alimentados e em boas condições, provavelmente fugiriam de dois adultos, um deles armado.

—Não. - Disse Regeane. - Não os ataques. São meu marido e dois de seus amigos. Comentei... - Ela disse-lhe, segurando sua mão. - Comentei que sempre fui uma proscrita.

 

                                                                 Capítulo 3

—Suponho... - Disse o saxão mais tarde, enquanto Antonius lhe tirava o colar de ferro do pescoço. - Acredito que não estou morto.

Antonius levantou as sobrancelhas.

—É obvio. É o que pensava?

—Sim. – O saxão respondeu vacilante. - Pensei durante um momento ontem à noite. É um sacerdote?

Antonius levantou as sobrancelhas ainda mais.

—Não. – Ele disse. - Embora meu padrasto fosse papa.

—Papa? - Disse o saxão.

Antonius lastimou o que via como um bárbaro bastante desconcertado.

—Sou o chefe da guarda de minha senhora. Seu marido governa um ducado aqui nas montanhas. Ele não o chamaria ducado, mas por seu tamanho, prestígio, riqueza e poder, mas é.

Então o saxão fez a pergunta que estivera queimando sua mente desde que Regeane recebeu o enorme lobo de montanha com um sentido beijo e um abraço:

—Sou prisioneiro novamente?

Antonius sabia muito bem o que significavam tanto o colar como a pergunta.

—Não. – Ele respondeu no mesmo instante em que cedia o colar.

Por alguns segundos pareceu que o saxão fosse chorar. Antonius se voltou com rapidez, já que não desejava ver como vinha abaixo uma criatura de força tão contundente.

— Mas o colar? - Perguntou o saxão.

—Que colar? - Respondeu Antonius.

—Venha. - Disse Matrona. Ela usava um vestido longo de seda negra com um colar de ouro e granadas, uma elaborada construção decorada com esfinges aladas. Como a maior parte das riquezas de Matrona, parecia incrivelmente antigo.

O saxão o assinalou com o índice.

—O que...?

—Uma calorosa noite em Babilônia. – Ela disse. - Amei um rei.

Então estendeu a mão até sua face onde o abade havia queimado. Ele estremeceu, mas a dor abandonou seus ferimentos... Todos eles. Enquanto ela o atendia, ele adormeceu, mas sonhou que havia retornado aos barracos dos escravos no grande estado lombardo. Despertou com um sobressalto e tentou golpear Matrona, mas ela lhe pegou a mão com tanta força que o homem soube que poderia ter lhe quebrado com facilidade se ela quisesse.

—Quem é deus? - Perguntou o saxão.

—A mãe. - Respondeu Matrona.

—A mãe é muito poderosa... - Disse ele.

—Alegra-me que saiba. Vamos nos dar muito bem.

Regeane se aproximou deles. Trazia algumas peças de roupa e a pele de urso sobre o ombro.

—Tenho roupa limpa. Matrona, você poderia sustentar a capa como cortina enquanto ele se veste, por favor?

—Talvez eu segure, - disse Matrona, - talvez não. Eu gostaria de ver que ele mais tem.

Regeane se ruborizou, mas o saxão se ruborizou ainda mais. Sua roupa parecia farrapos. O homem ficou vermelho dos pés a cabeça.

—Matrona, você é terrível. - Riu Regeane.

A seu redor o sol brilhava com intensidade, tanto que havia começado a esquentar o ar e derreter a neve. O caminho estava espaçoso e muitas pessoas de Maeniel investigavam o monastério queimado.

—O que encontraram? - Perguntou o homem.

Regeane estremeceu e se abraçou como se tivesse frio.

—Nada, ou pelo menos nada novo. Ossos, pedaços de carne podre. Pode ser que tenham pensado em um bota de cano longo, porque há um pouco de ouro e prata, mas não levaremos isso. Enterraremos junto aos restos humanos no cemitério do recinto.

—O velho monge e as mulheres? - Perguntou o saxão.

Regeane voltou a tremer.

—Acredito que não eram reais, mas sombras do espírito. Seus serventes. Todos tentaram evitar que eu o ajudasse.

O saxão assentiu.

—Agora, se vista. – Ela lhe indicou as roupas. - Vamos a Genebra dizer ao rei franco que seu melhor caminho através dos Alpes está em ruínas. Deve parecer um guerreiro de nosso grupo, um cavalheiro, para que sua presença não seja questionada. Nós o protegeremos. E você poderá seguir sua viagem quando for possível, se assim o desejar.

Ele pegou a pele de urso e a roupa que ela lhe oferecia. Ela se voltou e se afastou.

— Se vista. - Disse Matrona, sustentando em alto a pele de urso. - Sua delicadeza o honra. Um pouco de castidade, não muita lhe advirto, mas alguma é atrativa em um homem jovem.

—Agora compreendo. – Ele estava tirando a camisa e a calça. - Agora compreendo. – Ele repetiu.

—Compreender o que? - Perguntou Matrona do outro lado da pele de urso.

—Tudo. - Disse o saxão. - Tudo. Perguntava-me por que os deuses haviam colocado uma pesada carga sobre meus ombros. A perda de tudo o que era e possuía. Agora sei. Alguém devia estar aqui para tirá-la da neve. Para se assegurar de que ela vivesse. Eu fui escolhido e nunca questionarei o preço.

Atrás da pele, Matrona franziu o cenho.

 

Uns quantos dias depois, Genebra se estendia sob eles. A cidade não era grande coisa, mas o lago era bonito. Nele se refletiam as montanhas e a luz mortiça. Quando encontrara Regeane e o saxão, Maeniel havia mandado buscar gente. Alguns estavam fora caçando com Gordon, mas se uniram ao resto à sua ordem. Estavam junto a ele trinta guerreiros. A maioria era parte de sua alcatéia. Uns quantos, como Antonius ou Bárbara, não eram.

Matrona cavalgava junto ao saxão. Havia permanecido ao seu lado os últimos dois dias. Certo que ele já não sofria nenhuma dor, mas o ferimento infligido pelo abade tinha sido grave e necessitava que o vigiasse. Também ele a necessitava, pensou Matrona. Ele montava como se estivesse em uma nuvem, como se uma grande dor ou uma grande alegria havia saído de seu corpo. A princípio não podia dizer com certeza, mas no segundo dia estava segura de que era alegria.

A primeira noite de acampamento o lobo cinza e a loba de prata desapareceram entre os abetos que margeavam o atalho.

—Ela é a loba prateada, ele o lobo cinza, você a negra e o capitão da guarda é vermelho. - Disse o saxão a Matrona.

—Sim.

Ele assentiu com a cabeça.

—ouviste falar do Irmunsul?

—Uma árvore famosa. - Disse Matrona.

—A árvore da vida.

—Não. - Disse Matrona. - Não acredita nisso, acredita?

Ele não respondeu. Em vez disso, perguntou:

—O pai de Regeane?

—Um Wolfstan. - Disse Matrona.

Ele não fez mais pergunta, mas quando voltou a fitá-lo notou lagrimas nos olhos do saxão.

—São muito emocionais estes homens selvagens de além do Anel. – Ela disse a Maeniel alguns dias depois.

—O pai de Regeane era saxão. - Respondeu Maeniel. - Gundabald o assassinou.

—Seu defunto tio?

—Seu muito, muito defunto tio. - Respondeu Maeniel.

Estavam sozinhos, caminhando juntos sobre a neve. Os outros estavam sentados ao redor das fogueiras e se preparavam para se deitar. Regeane e Maeniel tinham um elaborado pavilhão para eles dois. Maeniel olhou para lá e viu como sua sombra se movia no interior.

—Deve estar se despindo. - Disse. - Eu não gostaria de fazê-la esperar.

Matrona sorriu.

—Não, não estaria nada bem.

—Qual o interesse por ela?

—Qual é o teu? - Perguntou Matrona.

—Não brinque comigo.

Havia lua cheia. Pintava a neve de luz azul; as sombras eram formas cinza com incrustações de prata. Maeniel estava com o rosto vermelho e as fossas nasais distendidas como as de um semental.

—Se esse for o caso, anime-o a partir. Tem minha permissão. Dê-lhe tudo o que peça. Dinheiro, armas cavalos... Exceto Audovald. O resto, não me importa.

—Não acredito que isso sirva de alguma coisa. - Disse Matrona. - O pai de Regeane era sagrado para sua gente.

—Ela é uma franco. - Disse o lobo cinza.

—Metade saxã pelo sangue de seu pai. Acredito que talvez seja a metade mais importante.

—Não. - Disse Maeniel. - Matei mais de um homem por ela e mataria mil antes que ela se separasse de mim, embora fosse somente por uma hora, sem meu consentimento. Estive-a esperado durante mil anos.

—Não mate a este. - Disse Matrona. - Ela não o perdoaria.

—Não... - Disse ele com um grunhido de sua garganta.

—Não. Advirto-o.

— Estão tão mal as coisas? - Maeniel tinha os olhos cheios de uma luz fria e pálida e brilhavam como os de um predador ao tênue resplendor das fogueiras.

Matrona colocou um dedo sobre os lábios.

—Nenhuma palavra; ela não sabe. Agora vá para a cama.

—Sim.

Não houve mais movimento no pavilhão. O abajur foi apagado.

Quando ele se voltou para Matrona, viu sua roupa pendurada em um ramo de uma árvore, mas a loba negra já havia desaparecido. Maeniel sabia que ela vigiaria o saxão; na verdade, ela o vigiava tudo.

Apressou a entrar no pavilhão. O abajur estava apagado, mas mesmo através da lona, uma difusa luz de lua alagava o local. Ela usava uma camisola de seda, mas só ficou em seu corpo um momento.

 

Quando chegaram Às imediações do acampamento de Carlos em Genebra, todos se voltaram para Antonius. Como chanceler, só ele havia conhecido o poderoso rei franco cujo nome ressonava agora por toda a Europa.

Antonius coçou a cabeça.

Gavin, o lobo vermelho capitão do guarda, começou a rir.

—Tampouco você sabe como se aproximar dele.

—Cale-se, Gavin. - Disse Maeniel.

— Ele diz muito isso quando Gavin está perto. - Comentou Regeane.

—Sim... - Acrescentou Matrona. - E nunca funciona. Ele não para de falar nem um momento.

—Não desta vez. - Disse Maeniel com firmeza. Ele estava com os olhos fixos em um grupo de cavaleiros armados que se aproximavam deles, dirigidos por um homem mais velho, mas as tropas eram jovens e a qualidade de suas armas e vestimentas os proclamava como parentes de algumas das grandes famílias do reino franco.

—Fiquem todos aqui, salvo Antonius. Ele deve me acompanhar. —Maeniel montava Audovald. - Adiante. – Ele disse ao cavalo. Antonius os seguia.

Quando alcançaram os cavaleiros, ambos os grupos puxaram as rédeas.

—Os scarae. - Disse Regeane observando-os de acima. - Ouvi falar deles, é a guarda pessoal do rei.

Eles rodearam Maeniel e Antonius. Regeane os observava com inquietação.

—Matrona? —perguntou. - Bárbara?

—Algo está errado? - Respondeu Bárbara.

—Não poderia dizer. - Disse Gavin. - O vento sopra para o lado contrário. Não posso cheirá-los.

—É possível que o rei os esteja tratando com honra. - Especulou Bárbara.

Justo nesse momento, Maeniel voltou os olhos. Primeiro para sua mulher, depois Apara Matrona. Ele e outros se afastaram galopando para o acampamento dos francos.

—Algo está errado. - Afirmou Matrona de forma categórica.

—Deveríamos fugir? - Perguntou Gavin.

—De certo modo. - Disse Regeane. - Procure um lugar para acampar e suba os pavilhões.

Ela olhou para cima. Podia ver a lua, um círculo quase transparente recortado contra um céu azul tão claro que parecia feito de fino esmalte. Os últimos raios dourados de sol ardiam pelo oeste e uma escuridão blasonada de milhões de estrelas dominava o este.

—E? - Perguntou Matrona.

—Mude. - Disse Regeane, mas quando fez seu cavalo se voltar, notou que atrás deles havia mais membros da scarae.

Gavin puxou as rédeas e o cavalo quase se levanta sobre as patas dianteiras. Ele pegou sua espada.

Regeane guiou seu cavalo até ficar em frente a ele e cavalgou para o que estava segura ser o capitão dos scarae, um homem fornido com uma massa de cicatrizes e rugas no rosto. Dedicou-lhe um sorriso deslumbrante e se deu por satisfeita ao ver como o endurecido guerreiro se tornava da cor de uma ameixa amadurecida.

Bárbara emitiu um pequeno som de aprovação do fundo da garganta.

Matrona sussurrou entredentes para Gavin:

—Idiota! Aqui não. Fará que nos massacrem.

—Meu senhor, - disse Regeane. - Assustastes ao capitão de meu marido.

—Fui enviado para lhes conduzir ao seu acampamento. - Disse o guerreiro de sotaque suave e culto, que contrastava com seu feroz aspecto. - Sou Arnulf da Bretanha.

Regeane sorriu novamente e lhe ofereceu a mão. O velho guerreiro se inclinou ante ela cortesmente.

—Tentarei, - ele disse, - levar-lhes a um lugar onde se encontrem cômodos.

Não foram alojados em lugar cômodo. O capitão levou o grupo até o centro do acampamento. De um lado estavam as lojas dos nobres scarae, mas do outro se encontravam os carros puxados por bois que transportavam, mulheres de prazer, e fornecedores de comida e bebida, sobre tudo bebida, das tropas. Antes devia ter sido um prado aberto, sob a sombra de árvores dispersas perto da pantanosa margem do lagomas agora a vegetação abrasada pelo inverno havia sido pisoteada até se converter em lodo e árvores cortadas para lenha; o lugar era insuportavelmente ruidoso e cheirava a refugos humanos, comida podre, álcool e nuvens de fumaça das fogueiras próximas.

Os homens de Maeniel rodearam estreitamente Regeane, Matrona e Bárbara. Gordo espirrou. Joseph, um guerreiro formidável de barba fechada e longos bigodes parecia disposto a desafiar Arnulf a um duelo.

—Não posso acreditar, - disse Regeane arrogantemente a Arnulf, - que o rei franco consigne para uma de suas parentas um lugar tão desagradável.

—Minha senhora, na ausência de seu senhor eu e meus homens velaremos por sua segurança. - Disse Arnulf brandamente. - E acho difícil acreditar que um homem de tão alta posição como seu senhor exponha sua esposa aos desleixos de um acampamento do exército, em vez de deixá-la segura em casa com seus teares.

Depois, ele dirigiu a Regeane um olhar que a fez ruborizar e afastar os olhos. Tentou o mesmo com Matrona. Ele estava acostumado usar seu olhar mais insolente nas mulheres, para intimidá-las.

Matrona respondeu com um frio olhar avaliador e depois lhe falou em voz baixa, audível unicamente para ele:

—Não sei o que é menor, se seu membro ou seu cérebro, para que se atreva a insultar um parente do rei. Não acredito que seja um homem tão fraco para sofrer docilmente.

—Ela não deixa de se gabar de sua conexão. - Ele também falava em voz baixa e entredentes. - Sua relação é distante e desonrosa.

—Não entra em suas funções julgar. - Disse Matrona. - Agora, vá. Não é correto que minha senhora sofra a insolência de subordinados.

Matrona lhe deu as costas e se dirigiu a Regeane e o resto.

—Estamos aqui, minha senhora. Então será melhor que nos acomodemos para passar a noite. – Ela assinalou para as poucas árvores que restavam na margem. - Vocês, os homens, cortem um pouco de lenha e montem as lojas. As mulheres precisam começar o jantar.

Arnulf estava sentado em seu cavalo, olhando-os fixamente.

—Podem ir. - Disse Matrona a ele. - Não necessitamos e nem queremos nada mais de você.

Quando Matrona deixou de falar, Arnulf continuava ali. Ignoraram-no e finalmente ele foi embora, rechaçado pelos membros da alcatéia.

Cada um ficou com a tarefa lhe atribuída para levantar o acampamento. Ao saxão eles desconcertavam, mas também ele os achava bons. Ninguém dava ordens. De vez em quando, aparecia algum estranho que tentava, mas era totalmente ignorado. Levantaram os pavilhões e acenderam as fogueiras. Matrona e Gavin encontraram madeiras frescas para os pisos dos pavilhões, mas de forma parecida com os juncos que se utilizavam em moradas mais permanentes.

Deram comida aos cavalos e os alinhou ao redor do acampamento, formando uma zona intermediária entre eles e seus vizinhos mais desagradáveis. Audovald presidiu a distribuição dos cavalos e a partilha da comida. Uma medida pouco usual, mas eficaz, já que ele sabia onde preferia dormir cada animal e nenhum deles era jamais maneado ou preso. Nenhum deles se afastava, tampouco.

Os animais encontravam segurança em serem cavalos de tiro. Dado que na fortaleza da montanha, aqueles que não desejavam trabalhar eram permitidos se valer por si mesmos. A comida era o pagamento e os cavalos ganhavam.

Apesar da declaração de Matrona, ninguém cozinhou. Regeane desempacotou uma comida fria a base de frutas, carne em fatias, queijo e vinho. O saxão, Regeane e o resto das mulheres a compartilharam.

Gavin desapareceu assim que se tornou noite e outros, incluindo à poderosa Silvia o seguiram.

Matrona estava ressentida pela clausura.

—Pode ir. - Disse Regeane.

—Não, não a deixarei aqui sozinha.

—Obrigado. – Disse Bárbara.

—Bárbara, não te ofenda. - Disse Matrona. - Nem você... Qualquer que seja seu nome. – Ela disse ao saxão. - Já sabe ao que me refiro. Eu lhe disse a Maeniel que se mantivesse afastado destas rixas reais. Quase todas elas provocam a cobiça. Uma cobiça que não compartilhamos.

—Ele sentia que não podia fazer isso. - Disse Regeane. - Tinha medo por vocês. Não notou? - Ela rogou a Matrona.

—Não. - Disse ela, desviando os olhos das velas da mesa e voltando-os para a noite. - De todas as guerras que vi, e vi inumeráveis ao longo de minha vida, exceto uma ou duas nas quais as pessoas envolvidas atuaram claramente em defesa própria, quase todas elas começaram por uma loucura e acabaram em desgraça para todos os participantes.

—E quantas você viu? - Perguntou o saxão.

—A primeira já foi suficiente. - Disse Matrona. A vela mais próxima a ela se consumia, ardia com chama azul; o olhar refletido da caçadora se dirigiu novamente para ele. - Se dizem que a guerra é o esporte dos reis, não acredito que seu apetite por ela decaia nunca.

—Pegue mais vela e a acenda. - Disse Bárbara ao saxão. - Se alguém chegasse agora e visse os olhos de vocês dois provavelmente matariam todos.

Ouviram um grito lá fora.

O saxão se apressou a chegar até a entrada do pavilhão e afastou o tecido. Arnulf estava ali com quatro de seus soldados; um deles se retorcia no chão.

—Obterei uma compensação por isso. Seu cavalo escoiceou meu homem.

—Os cavalos escoiceiam. - Disse Regeane. - Que fazia ele perto do cavalo, para que ele o escoiceasse?

—Sequer estão presos aos postes. – Gritou Arnulf. - Não estava perto do cavalo. O animal veio até aqui, voltou e o golpeou.

Uma das éguas, a de Matrona, estava junto ao homem do chão que ainda gemia e ofegava. Ela havia lhe acertado no abdômen. O animal estava com a cara de não ter quebrado nunca um prato.

—O que faziam em um lugar onde podiam ser escoiceados? - Perguntou o saxão.

—Devemos ver as damas. - Disse Arnulf. - Para nos assegurar de que estavam a salvo. Nenhum dos homens parecia estar por aqui. - Seus olhos exploraram o quase vazio acampamento.

—Estão dormindo. - Respondeu o saxão. - Como todos os justos e virtuosos devessem estar a estas horas.

—É tarde e as damas não recebem. - Disse Regeane. - Agora, vá. Se encarregue disso. Ela disse ao saxão bruscamente, para depois fechar a lapela do pavilhão.

O saxão, em pé e em silêncio cruzou os braços.

Arnulf tentou intimidá-lo com o olhar. Não funcionou. O saxão media mais de metro oitenta, pesava cento e seis quilos e usava uma espada longa com uma só mão quando a maioria dos homens necessitaria das duas mãos para levantá-la e a expressão de sua face sugeria vontade de brigar. Ninguém queria desafiá-lo. Arnulf e seus companheiros pegaram o ferido e se bateram em vergonhosa retirada.

 

Maeniel e Antonius foram levados até uma local perto do pavilhão principal, onde os puseram à grilhões. Antonius protestou energicamente em latim; em franco, a versão germânica do latim; em gaélico, um latim falado similar ao italiano; e em outros dialetos menos reconhecíveis. Quando Maeniel tentou abrir a boca, Antonius o cortou.

—Mantenha a conduta de um grande nobre. Eu estou aqui para protestar por ti. Isso é o que fazem os Chanceleres, protetores e demais.

Maeniel encolheu os ombros.

—Posso me desfazer disto assim que queira. – Ele disse.

—Eu sei. - Respondeu Antonius. - Mas não o faça, por favor.

—Não. – Concordou Maeniel. - Há algo que aprendi rápido em minha associação com os humanos e é uma máxima que procuro ter presente há todas as horas.

—O que?

—Que nada é tão simples como devesse ser ou como eu antecipei que seria.

—Pergunto-me o que terá acontecido. - Murmurou Antonius para si.

—Não me posso nem imaginar. —Maeniel falava com resignação.

—Meus senhores,. - um homem jovem entrou. - Sou Arbeo de Sens. Minhas desculpas para ambos, senhores, mas atuo segundo as ordens de meu senhor, o rei. —Criados entraram com uma mesa dobradiça e um banco. - Por favor, sentem-se e farei com que lhes tragam pão, queijo e vinho para que possam tomar um lanche.

—Compreendo. - Respondeu Maeniel cortesmente.

Antonius levou alguns segundos observando ao jovem. Ele usava uma couraça de couro cozido sem decorar e sua espada era velha e tinha um punho simples e envolto em arame. Pobre, pensou Antonius e, portanto suscetível se for tratado com cortesia.

Eles se sentaram à mesa; o jovem saiu rapidamente.

—Pode ser que você compreenda, mas eu não. - Disse Antonius. - Eu não. – Ele repetiu. - Não o bastante. Dê-me um de seus anéis.

Seguindo o conselho de Antonius, todos haviam se vestido até os dentes. Maeniel levava um anel em cada dedo. Desenroscou um e o deu a Antonius, uma criação de incalculável valor fabricada em ouro maciço com uma bela gravura que representava a cabeça de um dos imperadores romanos, ele não sabia qual deles. Mas a pedra incrustada era um enorme rubi índio.

—É incrível,. - disse Antonius, - as coisas com as quais você aparece. Onde conseguiu isso?

—Me esqueci. - Disse Maeniel. Não esquecera, mas não estava disposto a contar a história.

Arbeo voltou, seguido de um servente com uma bandeja de pão, vinho e queijo. O servente a colocou sobre a mesa. Depois, ao sinal do Arbeo, o servente se retirou. Só para se assegurar, Antonius observou uma olhada às botas de Arbeo. Más, muito más. Eram muito grandes, tão gastas e roçadas que quase tinham perdido a forma. Ele enrolara tiras de linho em torno das pernas para se proteger do frio; podia se ver a através dos buracos das botas.

—Senhor... - Antonius se dirigiu a Arbeo.

Obviamente surpreso pelo tratamento, a face de Arbeo adquiriu certo aspecto solene.

—Sim?

—Meu senhor,. - disse Antonius, - deseja se assegurar de que não sofra privações por culpa de sua cortesia. Pede-me que eu te dê isto... - Antonius ofereceu o anel a Arbeo.

O jovem o colheu com cautela e ficou olhando-o assombrado.

—Isto é muito.

Antonius abriu a boca, mas Maeniel falou.

—Não se nos diz o que está acontecendo. Por que nos trata assim?

Arbeo sopesou o anel em sua mão; depois, com um olhar de pesar, deixou-o sobre a mesa.

—Senhor, me foi proibido expressamente discutir algo relacionado com a detenção.

Maeniel procurou em sua bolsa e encontrou um pouco de prata.

—Então, aceite isto. Sigo sem querer que pague por nosso jantar. E toma o anel, se assim o desejar. A dama que me deu de presente o anel de presente teria gostado.

Arbeo meio desembainhou a espada, desenroscou a parte superior do pomo e colocou o anel no oco.

—Não soará? - Perguntou Antonius.

—Pode me dizer se minha esposa se encontra a salvo? - Perguntou Maeniel.

—Oh, sim, senhor. Posso lhes dizer isso. A dama é, depois de tudo, parenta do rei.

—Está aqui o Conde Otho?

—Sim. – O jovem parecia perplexo.

—Bem. Pode lhe levar uma mensagem a minha esposa?

—À senhora Regeane? Sim senhor! Seria uma honra.

—Bem. Diga-lhe que tirem a manteiga...

Antonius lhe lançou um duro olhar.

Maeniel respirou fundo e começou novamente.

—Diga-lhe que faça chamar o Conde Otho e... E... Peça a ele seu amparo e... Assistência.

Quando o menino partiu, Antonius falou.

—Dirigiu bem o assunto. Por um momento tive minhas dúvidas, mas no fim resolveu. Por certo. Quem te deu o anel?

—Não importa. - Disse Maeniel. - Paguei a esse assume de serpente, o Otho, o bastante para que me faça alguns favores. Muitos favores, de fato.

—As serpentes têm assume?

—Caso que seja macho, sim.

—Nunca conheci ninguém que tivesse visto um.

—São retráteis.

—Céus! - Disse Antonius. - Imagino que é algo necessário, tendo em conta seu método de locomoção. Observaste um casal no ato sexual?

—Sim. Numa longa e aborrecida tarde, eu observei.

—É obvio... - Antonius assentiu enquanto acariciava o queixo. - É obvio.

 

Arbeo entregou a mensagem.

—Otho! Deveria ter pensado - Disse ela, e lhe deu algo de ouro ao jovem. Depois saiu, com o Arbeo de guia, em busca da casa do Otho. Bárbara, Matrona e o saxão a acompanhavam.

Decididamente, eles necessitavam de amparo.

O exército do grande rei gostava de farra. Havia rastros em frente a botequim e os carros do bordel. Algumas prostitutas satisfaziam seus clientes em público, deitadas sobre as bagagens da parte traseira dos carros de bois enquanto os homens faziam fila em frente a elas.

Regeane assimilava o espetáculo o melhor possível atrás do véu e a capa que lhe cobriam a boca, mas Matrona e Bárbara caminhavam com tranqüilidade olhando ao seu redor, despreocupadas.

As damas melhor pagas, aquelas que preferiam associações mais prolongadas, as cortesãs, em outras palavras, presidiam grupos ruidosos e em ocasiões violentos. Um homem nu passou correndo diante deles. Sangrava e era açoitado por outros dois homens armados. De outra loja saíram gritos, sons que indicavam uma verdadeira batalha em progresso, pontuada por agudos gritos femininos. Quando Matrona quis investigar, o saxão e Arbeo a afastaram. Permitiu que os homens a urgissem a se apressassem, mas dedicou a ambos um olhar de indignação.

—Não é correto que uma dama se exponha a tais cenas de libertinagem - Disse Arbeo.

—Por quê? Dá-lhe medo que uma ou mais de nós possamos querer nos unir a diversão?

Arbeo parecia horrorizado.

Regeane fechou o semblante, para evitar gargalhar e notou como o saxão também lutava em uma tentativa de suprimir seu regozijo.

—Não tema. Eu sou muito velha. - Disse Bárbara.

—Fale por si mesma. - Lhe disse Matrona. - Eu não sou, mas agora estou ocupada. Venha me visitar. – Ela ronronou ao jovem. No dia que estiver livre o instruirei na arte da libertinagem criativa e civilizada.

O olhar de absoluta e gelada perplexidade de Arbeo quase destrói por completo a compostura de Regeane.

Nesse preciso momento, uma das garotas trabalhadoras do bordel do caminho cuspiu em um cliente. O homem tirou uma faca. O gigolô da garota tentou intervir e recebeu um feio corte no peito em troca de seus esforços.

Matrona pegou a mão do soldado com ar de indiferença, levantou-a até situá-la entre as omoplatas do homem e lhe tirou a faca. Depois lhe deu um chute nas pernas e quando ele caiu de bruços contra o chão, ela golpeou-o com força atrás da orelha, na sensível zona da apófise mastóide. O soldado jazia trêmulo no chão, paralisado pela dor.

A garota do carro se sentou. Amaldiçoou seu gigolô por ser tão inepto por deixar que seu cliente o ferisse e depois ao soldado por ser um piolhento pervertido e mal cheiroso.

Matrona perguntou: - Por quê?

—Ele queria que o chupas... Mamasse. Eu não chupo. Trabalho exclusivamente deitada.

—Procuramos o Conde Otho. - Disse Matrona a ela.

—Eu também. - Disse a garota. - Ele contratou isto aí... — Ela assinalou ao gigolô com um movimento do polegar. - Faz quatro dias que não o vejo. Este saco de esterco... —Ela voltou a assinalar ao gigolô novamente. - Leva muito. E como amparo... — A garota ergueu os olhos para o alto. - Bom, já viram.

—Otho tem mulheres?

—Um lote completo. —A garota sacudia a cabeça para dar ênfase. - Muitas mulheres. Os homens do rei estão mais quentes que pó em um palheiro. Fatso está perdendo dinheiro por toda parte.

—Não parece próprio de Otho descuidar de seu negócio. - Disse Regeane.

—Certo. —Concordou Bárbara. - Não estou segura de que ele tenha coração, mas se tiver, o dinheiro é o que ele mais ama.

A garota assentiu.

—Falamos do mesmo tipo, estou certa. Quando fui a sua casa, nada. A velha que estava lá não me deixou entrar.

—Onde é sua casa? —Perguntou Matrona.

—Perto da casa do rei. - Respondeu a garota.

O acampamento estava mais ou menos montado como um conjunto de anéis, com o pavilhão do rei no centro. Ao redor dele se agrupavam os dos grandes nobres; depois deles, os scarae; e, mais à frente, na escuridão exterior, a chusma composta por camponeses, soldados comuns, seguidores do acampamento, prostitutas, carros puxados por animais e os tipos da sombra: assassinos, bandidos, mendigos e ladrões profissionais em busca da bota de cano longo, em caso de vitória.

Mas igualmente satisfeitos com a derrota, já que seriam capazes de roubar os feridos e os mortos no campo de batalha.

Ali era onde se encontravam nesses momentos.

O saxão ofereceu a garota um pouco de prata, o salário de duas ou três noites de trabalho para uma prostituta de seu tipo.

—Leve-nos até a casa dele. – Ele lhe disse.

Ela pegou o dinheiro e saltou da parte de atrás do carroção.

—Em seguida. – Ela disse. - Deve tomar cuidado com os cavaleiros. Patrulham a noite e não querem que nenhum de nós entre.

Era tarde e uma vez longe da algazarra da infantaria, o acampamento foi se tornando cada vez mais silencioso. Os refúgios ocupados pelos mais ricos eram maiores e mais afastados entre si. Os criados se alojavam ali. A maioria mostrava um monte de lixo e uma latrina. A garota assinalou um grande pavilhão de três dependências, próximo ao exterior do enclave tomado pelos de alto berço. Era situado bastante longe do resto. Havia uma tocha acesa na frente da mais próxima, mas pelo resto a escuridão era completa.

—Talvez ele esteja dormido, - sugeriu Arbeo. - Deveríamos voltar pela manhã. – Ele parecia inquieto.

—Não. - Disse Regeane. - Se ele está dormido, nós o despertaremos.

— Ele não está dormido. - Disse Matrona. - Algo está errado.

—Seguro? — Perguntou o saxão.

—Sim - Disse Matrona. - Regeane, o vento está à nossas costas. Devemos rodeá-la, mas não nos aproximemos mais.

Regeane assentiu e as duas mulheres começaram a se mover rodeando o pavilhão mais próximo do de Otho.

—Apague sua tocha. - Disse Matrona ao saxão.

Ele o fez, inundando-a em uma sarjeta com um líquido de aspecto suspeito. Parte do mesmo se desfez em vapor e já não restou dúvida alguma sobre sua identidade.

—Eca! — Exclamou a garota.

O saxão se voltou para ela e Arbeo.

—Vocês podem ir. – Ele assinalou para o caminho pelo que tinham vindo.

Ambos puseram objeções.

—As damas podem necessitar de meu amparo. - Disse Arbeo.

—Eu não sou uma garota, sou Gilas. - Disse a mulher. - E preciso saber sobre Otho. Se algo aconteceu a ele, preciso conseguir outro protetor.

—Deixem de discutir. - Ordenou Regeane. - Você, Gilas, pode ficar. Arbeo, você escolte Bárbara de volta ao nosso acampamento.

Bárbara sorriu e pegou pelo braço um desventurado Arbeo e o levou dali.

—Gilas, você fica aqui. - Disse Regeane.

—Não, eu quero ver. —insistiu Gilas.

—De acordo. - Disse o saxão com um perigoso tom de voz. - Mas não faça ruído. Se fizer o mais leve som, esmago-a no chão como um prego.

—Prometo. Eu prometo. Ficarei mais calada que uma pedra. Ela disse dando pinotes.

—Certo. Então fecha o bico.

Matrona encabeçava o grupo, entre as casas até que sentiu que o quase imóvel ar lhe em seu rosto.

—Aqui. – Ela disse.

O ar estava carregado de fumaça de madeira queimada, eflúvios humanos, comida e o espesso aroma da água estancada do lago. O saxão decidiu não farejar. Concluiu que não poderia cheirar nem seu lábio inferior, mas Regeane sim.

—Oh! Meu Deus. – Ela sussurrou a Matrona. - Não enfrentei nada igual nem em Roma.

—Reconhece o que está aí dentro como Otho? — Pergunto Matrona.

—Sim. Vivo ou morto, não poderia dizer. Mas está aí.

Gilas abriu a boca para perguntar o que estavam fazendo, mas captou o olhar do saxão e a fechou imediatamente. O saxão tirou com cuidado a espada de sua bainha. Regeane pegou sua tocha e Matrona fez aparecer uma faca de vinte e cinco centímetros do interior de sua roupa.

—Vamos pela parte de trás! — Sussurrou o saxão.

Os outros assentiram e eles se moveram o mais silenciosamente possível. Aproximaram-se da parte traseira da casa.

Otho estava vivo, embora fosse certo que não por muito tempo. A essas alturas, ele deveria estar desejando que a criatura que o capturou o tivesse matado. Todo seu corpo fervia de dor. Estava preso em sua outrora espaçosa e confortável cama, com facas lhe atravessando as mãos e os tornozelos. Não havia recebido comida em quatro dias nem água desde há dois, mas ainda se aferrava à vida. Estava amordaçado, mas a mordaça estava tão empapada no sangue de seus lábios e faces e rastro de vômito, que já não funcionava. De toda forma, já não importava, porque sua boca e garganta estavam tão inchadas que ele não podia articular som algum. Felizmente, havia começado a perder a consciência por volta de uns quantos dias.

Ainda assim, se aferrava à vida. Otho estava corrompido até a medula de seus ossos. Quando jovem havia decidido que o dinheiro era a única coisa que valia a pena ter na vida. Havia procurado riqueza com uma energia inquebrável e uma diligência que ultrapassava por completo as fracas e esporádicas tentativas de quem se movia levado pelo desejo de outras formas de gratificação mais mundanas, como sexo, bebida e comida ou as mais complexas considerações de amor, família, dedicação profissional ou mesmo artística. Em um período de tempo surpreendentemente curto, se tornara muito rico. Mas para ele não era o bastante. Muito não é suficiente para nenhum espírito motivado somente pela avareza. De fato. À suas torturas corporais, se acrescentavam o saber que sua própria cobiça o havia conduzido até a situação atual.

Quando o estrangeiro chegou até sua casa dias atrás, em um primeiro momento Otho se negou a recebê-lo; mas o presente, um bracelete de ouro maciço quase puro, fez-lhe mudar de idéia. Recebera o estrangeiro e realizara a escolha fatal. Ele pegou dinheiro. Tanto dinheiro que as somas de Maeniel pareciam irrisórias em comparação. Ele ouvira as acusações do estrangeiro. E ele foi visitar o rei, a quem repetiu as acusações.

Uma vez de volta em sua casa no acampamento do rei, Otho havia tentado despachar o homem, se era um homem. Quando a criatura simplesmente riu e se negou a partir, Otho ordenou aos seus criados que o jogassem...

Eles falharam; Apesar de ser um bando de endurecidos mercenários, tinham falhado. Oh, como haviam falhado. De fato, de suas armas que haviam ficado intactas eram as que ele cravara Otho na cama. A única razão pela qual ele seguia vivo era que o ser queria que ele sofresse.

Pelo resto, o estrangeiro estava feliz. Rondava a casa noite e dia tomando uma ou outra horrível forma, esperando. O que ele esperava, não podia se imaginar.

E Otho tentou esperar, lutando contra a morte, porque ultimamente havia acrescentado outra paixão que governava sua vida junto à necessidade de riquezas e que era tão forte como aquela. Esta nova paixão consistia em uma absoluta lealdade para o rei Carlos, cujos homens começavam a chamar de O Grande, era o principal amor de sua vida. E Otho estava convencido de que, ao lhe transmitir a intriga que lhe proporcionou a criatura, de alguma forma lhe tinha traído.

 

Aproximadamente À mesma hora, Antonius e Maeniel eram levados ante o rei. Acompanhavam-lhe outros doze nobres. O lobo cinza tinha ouvido dizer que Carlos não usava trajes elaborados ou distintivos. De fato. Freqüentemente o circulavam a sua volta, homens que faziam maior ostentação de riqueza que ele, mas Maeniel o reconheceu logo que entrou no quarto. Reconheceu quem e o que era. Só em uma ocasião anterior havia visto outro indivíduo com o mesmo olhar e sem sequer pedir a Antonius que o assinalasse, Maeniel fincou um joelho no chão.

Carlos não era o homem melhor vestido, nem o mais velho. Sequer era o mais impressionante dos homens presentes. Ele era como Maeniel, fornido, musculoso, de cabelo escuro e com uma barba curta, talvez por deferência à sua esposa Hildegarda, que não desejava que ele se apresentasse barbeado ante os Lombardos. Afinal, famosos por sua barba. Daí o nome de longobardos ou Lombardos, Barbas Longas. Ela queria que ele demonstrasse ser o bastante homem para cobrir seu queixo de pelos.

O rei estendeu fortes e calosas mãos para levantar Maeniel e Antonius.

—Por favor, sem cerimônias. Se as histórias que chegaram ao meu conhecimento forem ser falsas, eu mesmo os abraçarei como irmãos. Se não... Teremos que ver as medidas a tomar.

Depois de dizer isto, o rei se sentou em uma cadeira dobradiça. A nobreza da corte franco se apinhou em torno dele.

—Serei breve. Informaram-me que você e Antonius conspirastes no assassinato do tio de sua esposa, Gundabald e de seu filho, Hugo. E que, além disso, roubaram o monastério ao pé da passagem protegida por sua fortaleza, assassinaram seus habitantes e depois queimaram o edifício. Inclusive a igreja.

Antonius abriu a boca.

—Não. - Disse o rei. - Deixe-o falar por si mesmo.

Maeniel assentiu.

—Primeiro Gundabald e Hugo.

—Eram homens de hábitos licenciosos. - Começou Antonius.

—Antonius... - Disse Carlos. - Está tendo problemas com sua memória? Já lhe disse, que o deixe responder por si mesmo.

Antonius levantou os braços e as correntes soaram.

—Antonius, você é capaz de fazer com que o mal pareça bem, que o dia pareça noite, que a manhã pareça tarde e, em definitivo, mediante seus circunlóquios. Você pode confundir por completo a um exército de advogados, juízes e escribas e enterrar graves crimes em tão escuros legalismos e de tal forma, que sequer um rei trabalhador e seus igualmente trabalhadores eruditos seriam capazes de resolvê-los. Como já lhe disse, deixe-o responder por si mesmo.

Antonius suspirou profundamente.

—Muito bem. - Disse Maeniel. - Serei breve e direto. Gundabald era um inútil e um bêbado. Seu filho era um aprendiz de inútil e bêbado. Era um casal tão desagradável que sua santidade acreditou ser apropriado afastar minha esposa de sua companhia e alojá-la com as monjas até que estivéssemos casados. Embora não fosse a mais encantadora das companhias, eu respeitava-os como parentes de minha esposa. Entreguei-lhes uma importante soma de dinheiro no dia de nossas bodas. As conseqüências de minha generosidade foram totalmente previsíveis. Dias depois das bodas, ambos desapareceram sem deixar rastro e nunca se souberam noticias deles. Sua santidade, o Papa Adriano, teve a cortesia de se encarregar ele mesmo do assunto, mas não pôde encontrar nenhum dos dois. Antonius, aqui presente, pode dar fé, já que foi testemunha da situação. Provavelmente lhes cortaram o pescoço ou roubaram suas carteiras. Ou, vice e versa. É possível que seus corpos tenham acabado no Tíber, que serve de cemitério desde que a cidade consistia em sete colinas de terras de lavoura. Agora, a respeito do monastério, ele possui sua própria e considerável herdade. Essas terras não se limitam as minhas em nenhum ponto. Quando minha esposa e eu viajávamos para cá houve uma avalanche. Ela varreu boa parte do caminho que os romanos construíram sobre a passagem. Isto nos obrigou a dar uma volta grande e então vimos fumaça. Investigamos e...

Alguém gritou:

—Fogo, fogo!

O rei correu para a porta e afastou o tecido. O fogo pintava as nuvens baixas do céu noturno. Antonius se voltou para Maeniel. As correntes estavam no chão. O lobo cinza havia desaparecido.

 

O saxão fez um longo corte na lona. Felizmente, a estrutura estava um pouco inclinada e o tecido de lona estava solto. A primeira coisa que ele viu foi um dardo carregado e pronto para disparar, à entrada. E logo, ele teve a visão de quatro cadáveres.

Pareciam ter sido esquartejados. O segundo havia sido decapitado limpamente. O terceiro era o causador de que o poste do pavilhão estivesse solto. O homem foi atravessado pelo poste, que novamente voltou a seu lugar, prendendo o corpo do homem.

Depois viu a figura sobre a cama. Ainda se movia. O saxão passou através da lona, entrou olhou para Otho. Os olhos do conde, abertos e espectadores, olharam-no e piscaram. O saxão arrancou as duas facas que atravessavam as mãos do Otho e as duas espadas que lhe atravessavam as pernas.

De algum modo, Otho conseguiu não gritar. Poderia ter gritado em semelhantes extremos, mesmo embora tivesse a garganta e a língua tão inchadas que quase bloqueavam a entrada de ar. A dor era tão atroz que ele poderia ter gritado. Mas conseguiu suprimir até o mais leve som enquanto perdia a consciência.

Quando empurrava as pernas de Otho para tirá-lo pela abertura da loja, o saxão sentiu a coisa atrás dele. Voltou-se, com a espada no alto. Desta vez a forma era a de um urso, mas nenhum urso vivo era jamais, tão grande.

Ele tentou golpear o rosto do saxão e este se protegeu com a espada, lhe causando um profundo ferimento na pata dianteira. A coisa emitiu um grito de raiva pura, mas a espada não pôde parar por completo o impulso do golpe. A garra deu contra um lado do rosto do saxão, fazendo-o girar.

Mas Regeane era já loba e entrou na loja como um surdo relâmpago de prata, à meia luz. A coisa estava à meia volta, ainda recuperando do golpe do saxão. Ela foi direta à coxa para lhe cortar as artérias, mas falhou, embora infligisse um ferimento bastante respeitável nos músculos da parte superior. O sangue salpicava tudo.

A criatura voltou a rugir com fúria e se voltou para atacar à loba prateada, tentando encurralá-la em um dos cantos onde as poderosas garras das patas dianteiras poderiam literalmente fazê-la pedaços.

Matrona, a loba negra, aterrissou sobre seu lombo. O pescoço da criatura era muito grosso e forte para mordê-lo, Então ela procurou as omoplatas enormes e sentiu que suas presas tocavam osso.

Desta vez, a coisa gritou de dor e começou a girar sobre si mesmo para tentar alcançar a loba negra. Como não conseguiu, ele começou a se jogar para os lados, na tentativa de atirá-la longe.

O corpo da negra estalava quase como um látego. Matrona se perguntou se ele lhe romperia as costas, mas resistiu, com os dentes cravados até as gengivas no ombro do urso gigante.

A loba de prata ficou sob baixo ela e voltou a atacar, desta vez a pata traseira. Se pudesse partir um osso, a batalha acabaria definitivamente... Ela pensava.

Atrás do joelho. Levaria-lhe poucos segundos chegar até ele. Ela se lançou e conseguiu perfeitamente. Houve outro grito quando suas presas seccionaram os tendões e entraram na cartilagem da rótula. Mas ambas as lobas haviam se esquecido contra o que combatiam.

Repentinamente, à coisa mudou de tática e pegou o dardo. A loba de prata não pôde soltá-lo rapidamente. Só tinha conseguido abrir a mandíbula quando a flecha lhe rasgou o corpo.

Morte! E tudo parou. O mundo se converteu em uma nuvem de silêncio. A mulher estava em pé em frente à loba moribunda; estava completamente nua. Já havia se desdobrado antes, quando fora ao outro mundo para obter a cura para Antonius. Ela fitou os olhos da criatura urso e sentiu a influência de sua solidão. Os longos, solitários, doloroso anos de silêncio e desespero. Estava em ambos os lugares de uma vez, presa em seu corpo moribundo, lutando para respirar enquanto a flecha fazia seus pulmões em pedaços e destruía seu coração mortal, aferrando-se a consciência, enquanto desvanecia pelas obscurecidas passagem de seu cérebro. E mulher, observava a coisa gemer e soluçar sua eterna tristeza pelo que havia sido e nunca voltaria a ser. Sentindo sua própria forma carnal, braços, pernas, mãos, estômago, seios, pernas e mesmo a planta dos pés, sobre o poeirento piso de tecido da casa e observando como o lobo cinza fechava suas mandíbulas sobre a pata dianteira da coisa em uma tentativa desesperada de desviar de seu objetivo.

Oh, meu amor, pensou Regeane. Por que te deixar assim...

Algo se acomodou em sua que havia estendido. Ela distinguiu a forma e o tato. Sempre se recordaria daquela que o levava consigo. Era uma fortificação.

Golpeou-o. Não para matar, porque sentia lástima pela coisa, apesar de toda sua monstruosa escuridão. Desaparecer. Eu a farei desaparecer, ela pensou. Fora, ela gritou, mas somente em sua mente.

Agora morrerei, ela pensou. Como meu pai morreu nas mãos de Gundabald e minha mãe.

E então Regeane caiu, fundindo-se com a forma de loba que jazia a seus pés e converteu-se em mulher, já consciente de que a parede do pavilhão era uma cortina de fogo. Ficou atônita ante seu próprio e nu, embora intacto corpo. Converteu-se novamente em loba enquanto as chamas subiam pelo seco telhado de lona. Depois, escavando o chão com desespero, ela conseguiu fugir para a comoção e confusão da noite que a esperava.

 

Maeniel e Regeane se sentaram em seu pavilhão mais tarde, nessa mesma noite e conversaram sobre o que aconteceu. Ela tinha vestido a camisola, mas ele queria conversar e distraía-o muito vê-la vestida de seda. Maeniel lhe pediu que ela usasse uma de suas longas regatas de lã.

Ela também usava as camisas de linho de Maeniel de vez em quando, mas ele se distraía ainda mais ao vê-la com elas, já que ela não estava acostumada a não usar nada sob elas.

O sexo é divertido quando a gente é jovem e está apaixonado e ela contava com ambas as coisas. Ele já não era jovem, mas também era divertido sempre.

—Por que não o matou?

—Não sei se teria conseguido. – Ela respondeu. - Se Hildegard não tivesse chegado, ele teria me matado. Mas de alguma forma fez com que o tempo se detivesse e me deu sua fortificação de endrino. Sabia que o objeto era poderoso; tudo o relacionado com Hildegard é. Escolhi usá-lo para lhe fazer desaparecer.

—Eu não gosto disso. - Disse ele. - Hildegard pertence a Cristo. Nós não. Eu rendo comemoração a Cristo, igual a você, já o notei, mas não lhe pertencemos.

Regeane encolheu os ombros. Estava sentada em uma cadeira de acampamento, em frente a ele. Ela levantou a camisa, deixando as pernas a descoberto.

—Fique quieta. – Maeniel disse, enquanto afastava a vista.

Ela sorriu, depois ficou séria.

—Não tenho jeito de quem pertence a pessoas como Hildegard. A primeira vez que nos encontramos, ela me defendeu de um fantasma...

—E na segunda fez com que a jogassem fora do convento aonde vivia.

—Não. - Disse Regeane. - Fui por própria vontade. Tinha coisas a fazer. Ela veio advertir a mim e as monjas de que o assado de porco estava envenenado. Eu já sabia. Podia sentir o cheiro, mas elas não e algumas poderiam ter comido. Hildegard é boa. É quase a definição da bondade. Não quis matar sequer uma coisa tão perversa como ele, não com algo que pertenceu a Hildegard.

—Não sei como pode estar segura a respeito dela. Por todos os céus! A mulher já estava morta quando a conheceu.

—Sim. - Disse Regeane. - Estava.

Por uns instantes, ambos ficaram calados.

—Quase a perco esta noite. - Disse ele, finalmente. - Não foi um de meus momentos mais felizes.

—Crê que é o único que sofreu? — Perguntou ela. - O pior de tudo para mim era saber que ao morrer o deixaria, talvez para sempre. Estou segura de que os mortos não perecem, mas é o único do que estou segura sobre os mundos além da morte. Tenho razões para acreditar que a morte é uma viagem bem mais complexa do que nenhum dos vivos compreende e quem sabe se alcançaremos os lugares onde habitam nossos seres queridos ou se simplesmente vagaremos durante toda a eternidade? Ser feliz nesta vida é questão de ter muita sorte. Ser feliz na vida seguinte talvez também seja. Só sei uma coisa... Não quero seguir falando disso.

Ela se levantou e caminhou em direção da cortina que separava seu dormitório do resto do pavilhão.

Maeniel havia se equipado com um pavilhão pelo menor, como o de qualquer dos nobres. O aposento dianteiro tinha uma sala de jantar e uma sala de recepções. Toda a casa estava reunida em torno de uma longa mesa, todos comendo e bebendo. Sem nada melhor a fazer eles se converteram em lobos, foram se caçar e havia pegado dois cervos e numerosas peças de caça menor. Nesses momentos estavam de festa, embora o banquete começasse a se declinar.

—Faminta? — Perguntou-lhe Maeniel.

—Não. Preocupada. - Disse ela. - Antonius me contou que você deixou a morada real em grande velocidade.

—Antonius tirou suas próprias correntes e fez com que as minhas parecessem forçadas. - Disse Maeniel. - Antonius sempre nos cobre as costas.

—Preferia que não tivesse que cobrir. - Disse Regeane. - Se fizer algum milagre diante de Carlos, espero que tenha uma explicação sólida e boa a lhe oferecer. Acha que alguém notou algo?

—Não, não acredito. E, se o fizeram, de toda forma nunca acreditam no que seus olhos lhes dizem. Queimaram-se mais de dezessete casas. Todo o acampamento estava em polvorosa, mas pensavam que Desidério penetrara de alguma forma pelas montanhas e tinha atacado o exército durante a noite. Carlos quase tivera uma derrota em suas mãos sem sequer ter liberado a batalha. Levou-lhe horas, para ele e seus homens conseguir que todos se acalmassem. Havia muitos ferimentos leves, queimaduras, escaldaduras; alguns conseguiram se cortar com suas próprias armas ou quase se asfixiar, para tirar suas posses das casas em chamas. Então não acredito que ninguém tenha notado que alguns cães que corriam pelo acampamento em meio a confusão.

—Otho? — Perguntou Regeane.

—Está ferido gravemente, mas Matrona acredita que ele viverá. E ela sempre acerta. Pelo menos no que se refere isso. Ele sofre muita dor em seu corpo e também uma grande agonia em sua mente, porque pensa que traiu a mim e ao rei por ouvir essa criatura... À criatura que me acusou dos crimes.

—Sim. Que você matou Gundabald. - Disse ela em voz baixa.

—Por favor! Você lamenta?

Regeane deixou cair à cortina, para fechá-la.

—Não, não. Lucila e Antonius estavam com a razão. Tinha que fazer. O que aconteceu Hugo?

—Nunca averiguamos para onde ele foi. Todo o dinheiro de Gundabald havia desaparecido. Adriano estava convencido de que ele havia fugido levando só o que podia carregar. Encarregamo-nos do assunto antes que você e eu saíssemos de Roma.

—Você não me disse. - Disse ela.

—Você havia passado por uma horrível experiência. Não queria te preocupar, mas pelo que sei, Hugo segue fugindo.

Regeane assentiu, mas continuava se mostrando inquieta.

—Amanhã Otho falará com o rei. - Continuou Maeniel. - Carlos o viu e era óbvio que havia sido brutalmente assaltado. Otho disse o bastante a Carlos, para limpar meu nome por completo.

—Onde ele está agora? — Perguntou Regeane.

—No aposento ao lado, com Matrona e Gilas. Estão cuidando dele.

—É uma menina muito doce.

—É uma prostituta - Disse Maeniel.

—Quem é você para julgar?

Ele assentiu.

—Tomo boa nota, mas eu não a chamaria “menina doce”. E, seguindo com o assunto, sempre me perguntei sobre seu carinho por Silve. Foi um pouco ridículo que lhe montasse seu próprio negócio, o bar independente em Roma. Ela fez todo o possível para que a queimasse viva na estaca. Por que não a deixou seguir vendendo o que tinha estivera vendendo toda sua vida?

—Silve vende seu corpo, - Disse Regeane tranqüilamente, - porque é a única coisa que pode vender. Tudo o que fiz foi lhe dar um lugar de refúgio onde poder fazer um pouco de dinheiro, estar cômoda e dormir sozinha se assim o desejar. Gundabald estava acostumado a lhe bater. Também me batia.

—Sim. - Disse Maeniel em voz baixa. - Eu sei.

—Não - Disse Regeane. - Não sinto absolutamente que o matasse. Só me alegro de não ter sido eu a fazê-lo. O que me preocupa é... Bom, disse que ele e Hugo desapareceram?

—Sim, fizeram-no, assim...

—Quem o comeu? — Perguntou ela.

Ele franziu o cenho.

—Provavelmente... Provavelmente... Sem dúvida, Matrona não. Ela é delicada; inclusive Silvia é muito melindrosa. Provavelmente Gavin. Ele comeria o que aparecesse.

—Quer dizer que Gavin é a tumba do Gundabald?

—Sim, acredito que sim. Nunca abordei o assunto com ele, mas sim. Acredito que seja. Isso a faz infeliz?

—Não. É assombrosamente apropriado. Isso é tudo. Tão completa e devastadoramente apropriado que Gundabald acabasse como jantar de Gavin. Isso é tudo.

 

No aposento ao lado, Otho despertou e pediu água. Matrona, que dormitava em uma cadeira junto à cama, o atendeu. Ele estava pálido e embora pesado, ninguém voltaria a chamá-lo de gordo. Ele usava uma dalmática limpa, uma de Maeniel, pois as suas se perderam no fogo.

—Dói-te? — Perguntou Matrona.

—Não. - Respondeu ele. - Me perguntava o que direi ao rei amanhã.

Matrona não lhe sugeriu que contasse a verdade.

—Ama seu rei? — Ela perguntou ao conde.

—Sim.

—Então encontre uma forma de explicar suas ações de maneira verossímil. Uma forma em que ele acredite de uma vez que deixe claro que o senhor Maeniel e a senhora Regeane não são culpados de nenhum crime. Meu senhor é leal a Carlos e pode lhe ser de grande ajuda em sua atual missão, mas só se for livre para tanto.

—Sim. — Respondeu Otho. - Me recuperarei?

—Sim. - Disse Matrona. - Se fizer como te digo. Talvez também se não me obedecer, mas seria bem melhor para sua saúde que o fizesse, no sentido de que sou uma curadora consumada e você não gostaria de perder meus serviços prematuramente.

—Oh, não. Definitivamente, não. Compreendo totalmente suas preocupações e as compartilho. Oh, sim, querida dama. Nunca serei ingrato por seus serviços. Você e sua senhora salvaram minha vida, colocando em perigo a de vocês. Vi a briga, pelo menos parte dela. É obvio que minha mente e meus sentidos estavam confusos, então não posso estar seguro de tudo o que vi, mas confie em mim. Não só estou disposto, mas também desejoso de ser de utilidade ao seu senhor e sua senhora. E estou mais que disposto a acreditar que podem ser de grande ajuda ao rei.

—Efetivamente. - Disse Matrona. - Então recupere suas forças e tenha a história preparada para quando chegar o rei pela manhã.

Fora, no aposento comum, Antonius, Bárbara e o saxão estavam jogando xadrez, ou melhor, dizendo, Antonius e Bárbara jogavam e o saxão os observava.

—Mate em três movimentos. - Disse Bárbara a Antonius.

Ele estudou sua posição durante dois minutos e depois pegou o tabuleiro e lhe deu a volta.

Bárbara começou a rir.

—Isto faz três jogos. - Disse o saxão. - Por que não prova com outra coisa? Tabas, jogo de dados... Algo no que ela não seja tão boa. Venha, tome uma cerveja.

Antonius foi para uma mesa lateral em que havia vinho, fruta e queijo.

—Não! Deus me libere dessa urina de porco alemão. E o fato dela ser boa no jogo, eu... Eu a ensinei.

Bárbara riu ainda mais forte e deu uma cotovelada nas costelas do saxão.

—Mal perdedor. Pode me dar uma cerveja. Não me queixarei.

O saxão encheu uma taça e se aproximou. Antonius se serviu de uma taça de vinho para ele e depois começou a recolher as peças do xadrez de marfim, para guardá-las em sua caixa.

Satisfeita sabendo que Otho a chamaria se a necessitasse Matrona entrou no aposento e se uniu aos jogadores.

—Onde estão? —perguntou.

—Todos aí dentro. - O saxão inclinou a cabeça para indicar o aposento de Maeniel e Regeane.

Matrona também se serviu uma taça de vinho. Depois se aproximou e afastou a cortina para dar uma olhada no interior do dormitório.

—Oh, céus! – Ela disse. - E aqui, entre todos os lugares possíveis.

—O que estão fazendo? —perguntou Bárbara. - Não olhamos. Queríamos, mas saber muito sobre algumas das coisas que acontecem... — Sua voz se foi baixando o tom. Ela tomou outro gole da cerveja do saxão, um líquido escuro, com um rico sabor de malte. – Boa. – Ela disse ao saxão.

Ele assentiu e grunhiu: - Faz-te urinar muito. Mais que o vinho. É mais sadia. – Ele parecia virtuoso. - Limpa os deságües.

—Acredito que é a primeira vez que o ouço expressar assim. - Disse Bárbara.

—O que estão fazendo? — Perguntou Antonius a Matrona.

—Só dormem juntos. - Respondeu.

Antonius parecia espantado.

—Dormem!

- Só dormem. - Repetiu Matrona. - Se quiser, pode olhar.

—Não. Estou cansado. Deve estar perto do amanhecer. Acredito que vou me deitar. Há muitas coisas que não sei e ainda outras mais que não quero saber e esta é uma delas. — Como oficial da corte de alta classe, ele possuía seu próprio alojamento em um carroção.

O saxão se levantou, limpou a boca e afastou a cortina. O aposento estava repleto de lobos. Estavam empilhados sobre a cama, no chão e sobre os tapetes persas que cobriam o chão. Como líder, o lobo cinza era o que estava mais perto de um braseiro aceso. A loba de prata se enrodilhava na curva de seu corpo, com o focinho sobre o pescoço do lobo cinza. Gavin se apoiava em suas costas. Enquanto o saxão olhava, ele gemeu em sonhos e suas garras tremeram. O saxão podia reconhecer quase todos, desta forma: Joseph; Gordo, um vagabundo das montanhas espanholas; Silvia, gorda como mulher e enorme como loba. Todos juntos em alcatéia, dormindo profundamente. Fechou novamente a cortina.

—Juntos em alcatéia. – Ele disse, expressando seu pensamento.

—Sim. - Disse Matrona. - Devem recordar de vez em quando.

Antonius e Bárbara saíram. Todas as damas tinham seus próprios carroções.

—Honramos-lhes - Disse o saxão. - O lobo é um amigo de confiança, um mau inimigo, e é fiel aos seus. Gentil com sua mulher, pai devoto para seus filhos, casto e atento as suas obrigações para com a alcatéia. Que homem poderia pretender ser mais virtuoso? Assim se diz. Assim acredito. Os deuses trouxeram o lobo aqui para nosso ensino, para que soubéssemos como nos comportar. Depois nos deram um talismã, um sinal de nosso pacto, que eles cuidassem de nós como nós cuidamos deles.

Matrona foi até a mesa e apagou o abajur.

—Então, nossa forma de vida não te incomoda?

—Não. – Ele respondeu. - Me sinto como se, depois de um longa viajem, tivesse chegado em casa.

Depois, ele pegou sua pele de urso, enrolou-se nela e se dispôs a dormir no chão.

 

                                                         Capítulo 4

Silve ficava poucas horas acordada. Ela olhou através das venezianas que isolavam sua adega enquanto se perguntava se valia à pena abrir tão cedo. A maior parte de sua clientela não começava a aparecer até depois de pôr-do-sol e a maioria se comportava furtivamente, porque preferiam as sombras e os lugares com pouca iluminação para comer e beber.

Silve tentava satisfazê-los, mantinha as luzes baixas, boa qualidade de vinho e a comida que servia era abundante e sempre fresca. Ante a mais absoluta e total surpresa de todos, ela triunfara como mulher de negócios. Embora os taberneiros das áreas mais longe da cidade eterna não dessem boas-vindas aos clientes de Silve, ela prosperou porque os aceitava tal e como eram.

Nenhum deles era nem remotamente honesto, então ela só aceitava efetivo. A maioria eram ladrões, algum outro assassino, fanfarrões que brigavam por dinheiro de forma encoberta e um grupo mais público de mercenários assassinos que eram contratados por nobres ou por qualquer outra facção em qualquer parte da dividida a Itália. Todos eles agradeciam um lugar tranqüilo onde comer, beber e fazer transações de negócios antes de começar suas rondas noturnas. Isso era o que Silve lhes oferecia.

E, em troca, seus agradecidos embora violentos clientes mantinham a ordem no botequim. Apesar de que se produziam muitos assassinatos na área circundante, nenhum podia conduzir até a agora muito respeitável proprietária.

Não era mais da sétima hora, tarde noite. A única criatura a vista era o gato listrado de seu vizinho e tudo o que fazia o gato era dormir ao sol, deitado com a branca barriga olhando para cima e as patas para o ar. Era a viva imagem da tranqüilidade absoluta.

Silve bocejou e pensou na possibilidade de voltar para a cama. Ainda conseguiria dormir mais um pouco antes da noite. Começava a se voltar quando alguém começou a bater na porta, com certo cuidado. O gato na soleira da casa nem se alterou.

Ela pensou em subir as escadas, voltar para a cama e ignorar as batidas, mas estava bastante segura de que era um de seus clientes habituais. Poucos deles apareciam cobertos com capa e capuz em uma tarde cálida. Então abriu o ferrolho e abriu um dos fechamentos.

O homem penetrou dentro.

Silve ficou atrás do mostrador.

—Ainda não tenho nenhuma comida preparada, mas...

Ela se interrompeu ao olhar atentamente o cliente.

Hugo!

O bofetão a derrubou. Ele apoiou um joelho no chão e lhe pôs uma faca na garganta.

—Onde está seu dinheiro? Sei que este lugar é teu e que é próspero. Então, onde está o dinheiro?

Silve tentou se afastar dele usando os cotovelos. Estava de costas contra o chão, mas Hugo a pegou pelo cabelo com uma mão e aproximou mais a faca de sua carótida.

Hugo nunca havia assustado-a. Ele vivia completamente dominado por seu pai, Gundabald. Mas agora Hugo a assustava. Estava mais magro, parecia bem mais velho e já começava a perder os dentes, mas sua fisionomia havia adquirido um aspecto selvagem, de que carecia quando era jovem. Dava a impressão de ter tido que lutar para sobreviver e isso não havia melhorado nem seu julgamento nem seu temperamento.

—Silve. —A ponta da faca fez correr um pouco de sangue.

—Sim, sim, Hugo. – Ela sussurrou. - Dinheiro. Está encima no dormitório. Deixa que eu me levante, de acordo? Irei pegá-lo.

Outro homem entrou na loja, seguido por um terceiro. Pareciam, se é que fosse possível, maiores e mais maltratados que Hugo. Um deles não tinha as orelhas e ao outro lhe faltava uma mão.

—Wedo, vá pegar o dinheiro. - Ordenou Hugo ao homem sem orelhas.

Wedo passou rapidamente ao seu lado para subir as escadas do fundo da loja. O terceiro homem observava a rua com inquietação.

Silve aproveitou a momentânea distração para ficar em pé e tentar se afastar o mais longe possível de Hugo.

—Adiante, adiante! - Disse o maneta a Hugo. - Já disse onde está. Termine com ela, imbecil. Termine com ela.

Hugo rilhou os dentes e se lançou sobre Silve. E pisou em um gato.

O gato não sofreu danos, mas o espantoso grito resultante, que provavelmente despertou da sesta todos os habitantes da quadra, permitiu que ela passasse por cima do balcão. Ela não estava segura de como havia dado o salto, de altura ou longo ou se simplesmente havia criado asas. Mas em um segundo ela estava ao outro lado do balcão e correndo pela rua, gritando forte e chorosamente, para acabar com a sesta de qualquer pessoa que teria sido capaz de continuar dormindo após o grito de angústia do gato.

Meia hora mais tarde estava sentada no jardim de peristilos de Lucila, enquanto suas donzelas lhe aplicavam emplastos no rosto e a temível Lucila tentava lhe surrupiar uma história coerente.

—Está segura de que era ele?

Silve deixou de tossir e soluçar o tempo suficiente para dizer, com grande indignação:

—É obvio que estou segura de que era ele. Ia me matar.

—Começa a me fazer desejar que tivesse conseguido. - Lhe espetou Lucila. - Mulher, se controle e responda as minhas perguntas como é devido.

Dulcínia, a cantora, estava com Lucila, como de costume. Silve procurara primeiro a Dulcínia, com medo de que Lucila a matasse. Hugo era, no melhor dos casos, um homem açoitado. Lucila, o Papa e inclusive, só talvez , o duque lombarde Desidério desejavam ter uma conversa com ele. O tipo de conversa que alguém mantém em um quarto em que os potros e os ferros em brasa fossem os móveis mais destacados. Lucila poderia acreditar. Que deus a liberasse, que Silve havia dado dinheiro a Hugo por vontade própria ou que albergava em seu coração um secreto carinho por ele.

Dulcínia, vendo a condição emocional de Silve, compreendeu que este claramente não era o caso e a conduziu imediatamente até Lucila. Prometeu interceder ante ela, se a dama ficasse irritada.

—Por favor, Silve. - Rogou Dulcínia. - Tente se acalmar um pouco e contar a nossa ilustre patroa o que aconteceu.

Dulcínia espremeu um pano em uma bacia com água e o colocou com suas mãos de longos dedos sobre a testa e os olhos de Silve; depois, deu-lhe um lenço limpo.

—Agora assue o nariz, garota e tente dizer algo com sentido.

Silve a soou e depois respirou profundamente. Na escuridão, onde não tinha que olhar a franca desaprovação no rosto de Lucila, sentia-se melhor.

—Isso. – Elogiou-a Dulcínia. - Boa garota.

—Realmente não sei nada mais exceto que era Hugo. - Disse Silve. – Bateram em minha porta e eu atendi. Ele estava coberto com uma capa e um capuz, então não pude saber quem era. Então pensei... Eu pensei...

—Não nos interessa o que você pensou - Disse Lucila com uma voz terrível.

Silve rompeu a chorar novamente.

O que acabou com a paciência de Dulcínia.

—Já está bem, parem. As duas. Silve, deixa de uivar como uma gata de rua no cio e você, Lucila, deixe de assustá-la.

—Pensou que era um de seus clientes habituais. Todos nós sabemos que tipo de gente freqüenta o estabelecimento de Silve.

Silve engoliu a saliva.

—Sim, isso é o que pensei. Mas não era. Era Hugo. Eu logo estava no chão com Hugo com uma faca no meu pescoço e me disse que queria dinheiro. E eu disse-lhe onde encontrá-lo.

—Havia mais homens com ele? — Perguntou Lucila.

—Sim, dois. Proscritos.

—Proscritos? — Perguntou Lucila.

—Um deles tinha as orelhas recortadas; o outro só tinha uma mão. Hugo chamou o de orelhas cortadas de Wedo. Não disse o nome do outro, o maneta. De toda forma... —os olhos de Silve se arregalaram de medo. - Esse disse a Hugo que terminasse comigo! Veio até mim e pisou no gato...

—Quem foi em você? E o que tem o gato a ver com tudo isto? — Perguntou Lucila.

—Hugo veio até mim e pisou ao gato. É uma gata amarela, negra e branca. Pertence ao meu vizinho do outro lado da rua e às vezes vem meu estabelecimento. Eu a alimento porque ela caça ratos para todo mundo, não só para seu dono e, além disso...

—Ou seja, ela dá muito mais conta sobre a gata. – Interrompeu-a Lucila. - Agora, Silve, respire fundo e me diga o que fez Hugo depois de pisar na gata.

—Não sei por que, quando a gata miou todo mundo deu um salto e eu corri e corri e corri... Até que cheguei à vila de Dulcínia. E... —Silve começou a soluçar novamente.

—Não acredito que haja nenhum tipo de dúvida. É Hugo. - Disse Dulcínia.

Lucila se levantou e foi chamar seus guardas.

—Não se preocupe. - Disse Dulcínia a Silve. - Agora você tem amigos. Amigos poderosos. Nós a protegeremos. Esta noite mandarei um de meus homens contigo ao botequim e depois poderemos nos reunir novamente pela manhã para decidir o que fazer. Agora, se acalme. O médico de Lucila virá vê-la.

—Não necessito de nenhum médico. Não me aconteceu nada de errado. - Acrescentou Silve.

—Claro que necessita querida. Pode ser que ainda não te tenha se dado contamas está com um olho arroxeado e muito feio. Vá com os criados e faça o que lhe digam. - Disse Dulcínia enquanto as donzelas de Lucila guiavam Silve.

Dulcínia passou tranqüilos minutos só até que Lucila retornou. Entretanto, ela não estava sozinha. Dentro da mente de Dulcínia sempre soava música. Ela era famosa por sua voz e às vezes compunha suas próprias melodias para poemas que convertia em canções. Nesses momentos, ela tentava encontrar um tema que expressasse a beleza dos jardins de Lucila ao anoitecer. A beleza do eterno gorjeio das fontes, dos sutis aromas das ervas e flores que cresciam ao longo de atalhos. Bem perto, uma rosa em flor misturava sua fragrância com a do tomilho branco e a sálvia de suaves flores azuis. Algo, talvez jasmim, acariciava-a de vez em quando com sua deliciosa essência.

Um absinto de folhagem prateada e aveludadas flores amarelas resplandecia fracamente sob os primeiros raios de lua. Lucila retornou e se sentou junto à Dulcínia.

—Obrigado por trazê-la até aqui. É uma notícia realmente importante. Sinto ter sido tão impaciente com Silve, mas seu histrionismo me é exasperante.

—Sim, mas hoje está irritável. Acredito que se eu tivesse passado pela mesma experiência que ela, também estaria histérica.

—Tolices. - Disse Lucila. - Nunca em toda sua vida, sequer quando menina, se comportou tão mal como Silve em seu melhor momento. Quando Regeane me pediu que fiscalizasse a “operação empresarial” desse inseto fiquei furiosa. Mas é obvio que não deixei que Regeane notasse. Concordei. Regeane fazia muito por mim, por Adriano, por todo mundo, para que eu lhe negasse um pedido tão relativamente modesto. Quando penso no que essa garota passou nas mãos de seus repulsivos parentes, do grupo lombardo, de todas as facções que se enfrentam aqui em Roma, me gela o sangue. Presa a uma estaca, enquanto observava como seu campeão lutava para lhe salvar a vida. Sabe que chegaram a...

—Acender o fogo. – Concluir Dulcínia. - Sim, eu estava lá. Como também estavam todos os habitantes de Roma de entre dois a noventa anos. E agora um desses parentes voltou e está preparado para causar mais problemas a pobre menina.

—Não, se eu conseguir pegá-lo. - Disse Lucila. - Já alertei Adriano, a guarda papal e mandei minha própria gente rastrear a cidade, mas não acredito que encontremos Hugo. Nem sequer esse desagradável filho de cadela é tão estúpido. Além disso, alguém estará com Silve e sua casa será vigiada dia e noite. Às vezes a detesto, é certo. Não a perdoei por falar contra Regeane quando a garota só tentava salvar sua piolhenta pele. Regeane a perdoou e depois inclusive conseguiu pô-la sob meu amparo. E todo aquele que está sob meu amparo deve se manter a salvo a todo custa. Minha reputação exige. O que estou fazendo agora é tentar pensar em alguma forma de desacreditar Hugo ante Desidério. Porque, tenha por seguro, meu amor, que é a Desidério a que Hugo vai se dirigir. Todos nós temos desejos de acolher esse rato como de cobrir uma coleção de sanguessugas ou qualquer outro tipo de praga.

—Está segura? — Perguntou Dulcínia.

—Completamente. É provável que Hugo esteja na miséria. Enganaram-nos esplendidamente quando abandonaram Regeane e transferiram suas lealdades à facção lombarda de Roma. Maeniel é um homem bondoso e talvez os teria pagado para que se mantivessem afastados, mas quando tentaram assassinar Regeane por via judicial foi muito até para seu estômago. Regeane tinha tentado evitar que eu lhes fizesse cortar o pescoço e, se tivessem se mantido em um segundo plano, pode ser que tivesse cessado seus desejos. Mas esses bastardos pensaram que podiam marcar um tanto e se vingar de Regeane por haver atravessado em seu caminho. Falharam. Gundabald está morto.

—Está segura?

—Sim. - Disse Lucila. - Estou segura. Mas nenhum de nós, nem eu, nem Adriano ou Maeniel pudemos encontrar rastros de Hugo e acredite-se amor, que todos nós temos diferentes, mas altamente eficazes métodos de busca. Minha hipótese é que Gundabald disse a Hugo que ia contar a Maeniel com que tipo de esposa se casou. Maeniel já sabia e a informação foi, digamos, redundante.

—Isso me perturba. - Disse Dulcínia. - Eu conheci Regeane. Eu gostei. Mas você e Silve Às vezes falam dela como se não fosse de tudo humana.

—Sim, sim... —respondeu Lucila. - Mas Às vezes a ignorância é muito mais segura que alguns tipos de conhecimento. Então, por favor, não se preocupe por isso, meu amor. Em qualquer caso, Gundabald não voltou. Em Hugo suas tripas lhe fizeram água. É claro que assim que conseguiu sair da garrafa correu o mais rápido que foi possível. Entre uma coisa e outra, Gundabald havia conseguido uma quantidade de dinheiro considerável, então Hugo levou um tempo para arrasar com ele. Uma lástima. Eu pensava que alguém cortaria o pescoço da pequena doninha, para lhe roubar seus ilegais lucros, mas parece que não foi assim. Agora ele retornou para vender a única coisa de valor que tem... Informação.

Dulcínia estava feliz. Não tinha visto Lucila tão animada há meses. Já começava A pensar que sua adorada amiga estava a ponto de sucumbir à velhice, mas agora ela parecia revitalizada. Sim, Dulcínia se dera conta de que Lucila estava simplesmente aborrecida. Em sua juventude tinha sido absorvida por uma feroz luta para sobreviver. Depois, sua associação com Adriano a tinha levado até a política e ela passou sua maturidade batalhando contra a facção lombarda que estava determinada a obter o controle do papado.

Agora, os lombardos haviam sido derrotados, pelo menos em seus planos com respeito ao papado. Adriano era Papa. Os filhos de Lucila eram auto-suficientes. Seu filho Antonius estava com Regeane e sua filha Augusta se casou com um membro de uma das famílias mais enriquecidas e socialmente proeminentes de Roma. Lucila estava protegida, era rica e muito respeitada em quase todos os âmbitos, mas se encontrava aborrecida e solitária.

Regeane e Antonius haviam se distanciado para as montanhas. Adriano e Lucila eram ainda amantes, mas ele estava cada vez mais envolto em assuntos administrativos, tanto seculares como sagrados. Quinze minutos de conversa com Augusta eram suficientes para induzir uma vírgula ou um arrebatamento de fúria, dependendo do que lhe parecia mais apropriado instruir sua mãe sobre política ou sobre sociedade. Augusta não sabia nada sobre o primeiro, e muito sobre o segundo. Em qualquer caso, Lucila se encontrava sozinha e com poucas coisas a fazer.

Mas agora...! A volta de Hugo introduzia na vida de Lucila alguns novos e interessantes problemas.

Dulcínia sorriu.

—Isto não é coisa para rir. - Disse Lucila.

—É obvio, mas é tarde e acredito, que se você não esqueceu, me convidou para jantar esta noite. Não comi nada desde esta manhã. Não tive tempo e almoçar e depois chegou Silve e...

—Oh, deus meu! —Lucila levou a mão na testa. - Havia me esquecido. Recebi um carregamento de alcachofras e um barril de ostras e o cozinheiro prometeu preparar alcachofras ao estilo siciliano com um recheio de javali feito a azeite de oliva, queijo e miolo de pão. E as ostras, cruas com um molho azedo de manteiga e limão. E, se por acaso for pouco tenho uma maravilhosa ânfora de Farlenum de seis anos, de colheita própria.

—Uau! Que festa. - Exclamou Dulcínia. - Só nós duas?

—Sim, mas temo que terá que cantar em troca de seu jantar.

—Sempre é um prazer cantar para ti, meu amor.

E as duas mulheres se saíram juntas, de braços dados.

 

Hugo e seus amigos se refugiaram em uma tumba afastada das portas da cidade, a caminho da Lombardía. A tumba não era romana. Sequer era uma tumba etrusca do período anterior, no qual a riqueza proporcionada pelo ferro e o comércio grego fez florescer uma civilização na Etruria. Tratava-se de uma ainda mais antiga, da idade de bronze, quando os mortos não eram separados de suas famílias. Que eram devolvidos aos seus para que seus ossos fossem enterrados sob os pisos das casas e fossem objeto de sacrifícios como antepassados venerados. Assim era um lugar estranhamente vazio, tranqüilo, mas deserto. Era feito de pedra decorada, mas sem argamassa, em forma de colméia, com uma cuba perto da porta para a água lustral e às vezes, para o fogo sagrado; tanto o fogo como a água se usavam para santificar os ritos funerários.

Logo seria de noite. Hugo e sua corte engoliam um pouco de pão e uma parte de queijo que haviam conseguido roubar do botequim de Silve. Hugo só havia dado aos seus amigos algumas moedas de prata e ficou com o restante.

—E depois, ela é minha mulher. A casa é minha e posso fazer com que...

—Se o fizer, é um imbecil. - Disse o homem de orelhas recortadas chamado Wedo.

—Por quê? Estive pensando que ela é minha esposa. Casamo-nos antes e que eu saísse de casa e...

—Se Roma for como as outras cidades nas quais estive, — sussurrou Wedo, - uma mulher só ou igualmente um homem só, não poderia ser proprietário de nenhum negócio... Não sem o amparo dos poderosos.

—Silve é uma zorra. Não tem amigos na nobreza.

—Agora sim. - Disse Wedo. - Conta com isso. Pelo que me contaste, Silve ganhava quando muito algumas moedas por noite vendendo-se aos bêbados, atrás dos botequins. Eu vi esse bar. Um mostrador com caixas de vinho, mesas, cadeiras... E encima era mais agradável. Uma cama com cortinas ao redor, lençóis de linho, mantas de lã e três vestidos e mais de três aventais, todos pendurados em pregos na parede. Essa tua mulher tem amigos poderosos. Pode crer. Se Gimp e você não tivessem sido tão idiotas e não a tivessem assustado, lhe teríamos tirado ainda mais.

Gimp baixou a cabeça e tentou parecer invisível.

—Não, menino. Volte lá. - Disse Wedo. – A próxima coisa que Silve cozinhará será sua pele. E agora, que tal dividirmos decentemente o que tiramos de sua mulher? Depois poderemos seguir cada um nosso caminho em paz.

Hugo terminou de comer, levantou-se, sacudiu os miolos de pão e a graxa das mãos e depois foi urinar na cuba aonde antes se guardava a água para os rituais dos sacrifícios.

Não, ele pensou enquanto o jorro caía sobre o meandro que uma vez marcara o caminho que os mortos deviam seguir para o paraíso. Não, não queria lhe dar mais dinheiro de Silve. Nem ao homem chamado Gimp nem A Wedo. Necessitava de cada moeda, se conseguisse audiência com algum dos criados de Desidério.

Muito a seu pesar, ele teve que admitir que Wedo estava com a razão. Era impossível que uma garota como Silve tivesse ganhado o bastante, sequer com um protetor generoso, para pagar por um estabelecimento daqueles. A única pessoa que lhe ocorria com suficiente compaixão para ajudar Silve era Regeane.

Hugo temia Regeane, mas pensar em Lucila ou Maeniel lhe gelava o sangue nas veias. Comparada com qualquer um deles, Regeane era uma mulher doce. Maeniel o mataria sem pensar e Lucila faria algo pior: faria com que o torturassem até estar segura de que não tinha nada mais que a contar e, depois, o assassinaria da forma mais dolorosa possível. Era justo o que ela havia prometido. Ele havia presenciado a tortura de Lucila nas mãos dos homens do duque lombardo.

Terminou de urinar e retornou ao lugar no qual seus companheiros comiam. Vacilação. A vacilação lhe havia feito perder a oportunidade de matar Silve. Então não vacilou. Pegou Wedo pelo cabelo, jogou-lhe a cabeça para trás e lhe cortou o pescoço.

Gimp levantou a cabeça, surpreso, mas um segundo mais tarde, a bota de Hugo lhe acertou a ponta do queixo. Não sentiu como a faca de Hugo lhe perfurava a garganta e a cortava até a espinha dorsal, nas costas.

De repente, a tumba ficou em silêncio. Hugo havia matado outros homens antes, o primeiro em uma briga de botequim não muito depois da morte de Gundabald. Mas estava acostumado a ser mais difícil que desta vez e lhe seguiram muitas complicações. Sentia, entretanto, que não seria prudente ficar ali. Então limpou sua faca na camisa de Wedo, revistou os cadáveres e notou que da garganta de Wedo ainda brotava um escuro riacho de sangue.

Como era de supor, Gimp não possuía nada. Mas Wedo guardava duas moedas de ouro que devia haver surrupiado quando tirou o dinheiro da caixa forte de Silve.

Hugo se felicitou por ter abordado o problema de tratar com seus dois companheiros da forma mais sensata. Precisava desfazer-se de ambos. Seguramente seriam uma vergonha na corte lombarda. E as duas moedas de ouro o ajudariam muito quando chegasse o momento de encenar o espetáculo necessário para ganhar Desidério.

Depois, ele se levantou e deixou a tumba.

O brilho da tarde lhe picou os olhos durante um segundo. Deu uma furtiva olhada ao redor, mas estava absolutamente sozinho. O único som era o produzido por insetos que cantavam na nova e alta vegetação e a única coisa em movimento ao alcance da vista era um redemoinho de pó que girava sobre as pedras do antigo caminho romano para a Lombardía.

Ele começou a andar com a intenção de pôr toda a distância possível entre ele e os cadáveres que deixava atrás de si.

Dentro da tumba, Gimp começou a se mover; o sangue escuro de sua veia jugular fluía mais rápido enquanto ele recuperava a consciência.

No caminho do exterior da tumba a brisa da tarde parou e o redemoinho de pó desapareceu misturando-se com o ar como uma espiral de fumaça. A consciência que viajava nele pendia imóvel, indiferente ao movimento ou a quietude. Recordava uma espécie de lúgubre malícia, mas isso era tudo. Estava desvanecendo; sem energia humana da qual se alimentar, logo se dissiparia da mesma forma que a espessa névoa o faz sob a luz do sol, desvanecendo em tênues filamentos até desaparecer.

Os guardiões da tumba agora eram somente as sombras. As últimas procissões das quais tinham memória ocorreram há mil anos. Dormiam e sonhavam com gente já perdida que levava oferendas de trigo, frutas e flores para tratar com atenção os falecidos, antes de queimá-los em uma pira. Desta forma, os espíritos podiam começar a viagem para a longínqua terra dos mortos. As pessoas que conheciam já não existiam. O mundo tinha mudado tanto que já não considerava necessária sua intercessão. A única razão pela qual permaneciam ali era porque alguns granjeiros dos arredores vinham fazer oferendas de azeite e vinho, na crença de que tais oferendas traziam boa sorte. Sempre haviam feito. Desde tempos imemoriais.

Os guardiões dormiam inclusive quando os pastores usavam a antiga tumba para se refugiar do mau tempo com suas ovelhas. Porque os pastores, nada tolos, faziam todas as oferendas que podiam e estes espíritos compreendiam as eternas necessidades dos que lutam para ganhar a vida na terra poeirenta e quente, próxima ao mar. Compreendiam-nos, de fato, bem melhor que seus equivalentes posteriores e eram mais tolerantes e amáveis.

Mas Hugo os despertara. Primeiro profanando a antiga cuba e depois derramando o sangue de seus companheiros. Não teriam feito muito a vingar seu vandalismo. Não poderiam ter feito muito, porque agora eram débeis e imprecisos, mas sentiram tanto a forte presença do caminho, como a fútil luta de Gimp para viver. Então o convidaram para entrar.

 

Antonius se levantou primeiro. Deixou seu carroção no acampamento, escolheu um pavilhão usado pela gente do Maeniel e lhe tirou os móveis. Joseph chegou pouco depois. Queria urinar, mas depois de mostrar o nariz pela porta da casa de Maeniel decidiu que fazê-lo em uma árvore como lobo poderia haver complicações. Havia o que para ele, um incômodo número de humanos passeando por ali. Transformou em homem, vestiu-se e foi capaz de encontrar uma trincheira próxima. Depois voltou com parcimônia. Joseph nunca se movia mais rápido que com parcimônia.

—O que faz? — Ele perguntou a Antonius, que estava desenhando linhas e círculos no solo de areia.

—Ah, bem, alguém se levantou. Necessito de pedras de todos os tamanhos, pequenas e grandes; pelo menos quatro ou cinco cubas de barro e alguns ramos verdes.

Joseph, que não lhe tinha muito carinho pelo trabalho, olhou para Antonius, incrédulo.

—por quê?

—Isso não importa. Traga-a. Estou ocupado.

Joseph considerou a possibilidade de perguntar a Maeniel se devia obedecer Antonius, mas era o bastante preparado para saber que sua líder diria que sim e se fosse lobo nesse momento, acompanharia o sim com uma dentada no ombro.

—E se apresse com isso.

Uma hora mais tarde, Antonius havia construído uma maquete bastante boa das montanhas no piso da casa de Joseph. Usou o barro para as colinas menores, a folhagem para o bosque e as rochas para os picos mais altos. Certo, era esquemático, não parecia a escala e ignorava certo número de detalhes, mas era o bastante claro para Maeniel, que tinha vivido nas extensões alpinas muitos mais anos dos quais Antonius gostava de pensar.

Não muito depois que ele e Regeane se uniram aos outros na fortaleza das montanhas, uma noite Antonius havia enchido Gavin de vinho até deixá-lo em um estado de bebedeira profunda. Gavin balbuciou sobre várias coisas. César. O primeiro Cessar, que deu seu nome ao resto. Britânia, uma poderosa feiticeira, romanos imperiais a quem, segundo Gavin, Maeniel havia conhecido bem e todo tipo de raridades. Antonius não acreditou nem na metade do que lhe contara Gavin, mas se algo era certo, embora só fosse uma décima parte, Maeniel era um homem bem mais estranho e poderoso do que ele havia imaginado.

Em todo caso, mostrou a maquete a Maeniel, para sua aprovação.

Maeniel fez algumas mudanças, não muito importantes e declarou que era uma reprodução fiel.

Nesse momento chegou Arbeo para anunciar que o rei estava tomando o café da manhã com seus nobres e que chegaria em breve. Regeane se retirou para seu aposento deixando os outros para que recebessem o rei.

Ela deitou-se na cama e fechou os olhos.

Bárbara e Matrona entraram.

—O está te acontecendo? — Perguntou Bárbara.

—Dói-me a cabeça. - Respondeu Regeane.

Bárbara se surpreendeu.

—Nunca lhe dói a cabeça.

Matrona olhou para Regeane especulativamente.

—Agora me dói. - Disse Regeane imediatamente.

Bárbara olhou para Matrona. Sentia-se perdida, mas Matrona simplesmente observou Regeane, com olhos opacos e escuros.

—Acredito que tenho algo para essa enxaqueca. – Ela disse e voltou com um espelho etrusco e entregou a Regeane.

—Oh, é esse tipo de enxaqueca. - Disse Bárbara.

—Sim. — Respondeu Matrona.

—Não quero olhar. - Insistiu Regeane.

—Não? — Perguntou Matrona. - Por que não?

—Dá-me medo do que possa ver. Em Roma olhei antes do julgamento e me vi queimar.

—Sei. - Disse Matrona. - E não podia saber que um segundo depois extinguiriam o fogo. Mas seguiu adiante com valentia e vai fazer o mesmo agora.

Bárbara foi até uma das cadeiras dobradiças e se sentou. Esta gente possuía presciência, até aí chegava Bárbara. Não os considerava afortunados. O conhecimento do futuro era um dom perturbador, muito mais propenso a ser doloroso, que não ser.

Durante um segundo, Regeane sustentou o espelho na mão, pressionando-o contra seu corpo.

Matrona se aproximou do braseiro do canto, com o qual se pretendia esquentar o aposento durante as frias noites de inverno. As brasas estavam quase apagadas. Só seguia ardendo um pequeno grupo no centro, coberto de cinzas brancas; as demais estavam negras e mortas. Matrona jogou algo nas brasas.

Regeane se viu sentada em um bosque povoado de inumeráveis e gigantescas árvores. Os troncos se elevavam como os pilares de uma grande igreja, sem galhos até que alcançavam muita altura. Lá no alto eles colhiam a luz do sol, deixando o chão envolto em profundas sombras cheias dos refugos de mil invernos, que por sua vez formavam um tapete suave e elástico. O chão do bosque ficava salpicado de raios de sol unicamente quando o vento movia as enormes árvores em um abismo de sussurros, o som eterno casado de alguma forma com o silêncio eterno.

Na cama, Regeane sentiu um brilho de pânico. Estava ali, mas não estava. Como estivera na casa de Otho, quando enfrentou o ser escuro. Podia ver matrona e Bárbara, o aposento e seus móveis, mas de algum modo o bosque incrivelmente antigo parecia mais real que as sombras das pessoas e as coisas que a rodeavam, então ela se sentou e olhou no espelho.

O vento se movia pelo bosque, um brilho de luz aparecia e desaparecia. Depois desapareceu, da mesma forma que a névoa ante o sol.

—E? — Perguntou Matrona.

—Foi decepcionante. - Disse Regeane.

—O que viu?

Os lábios de Regeane se torceram de asco.

—Hugo!

Matrona riu entredentes.

—Isso é tudo?

—Bem. - Disse Regeane. – Ela parecia ter medo.

 

Hugo estava com medo.

Gimp o alcançara.

Hugo comprou pão e queijo em uma granja não muito longe. Não havia visto homens, mas o lugar estava protegido e as mulheres atentas. Mas quando ele lhes ofereceu prata, elas acorrentaram os cães e lhe venderam pão de cebola misturado com azeitonas negras e suave queijo branco em um pote de cerâmica. Tinha o gosto forte e ligeiramente ácido do queijo de cabra. Era pesado, salgado e estava coberto por uma casca grosa e pálida, mas a parte interior era cremosa.

A paisagem plana estava deserta e o caminho romano se reduzia a um rastro de pó, às vezes só indicado pelos ciprestes que os engenheiros romanos plantaram ao longo das margens. Aqui e ali se viam as ruínas de uma granja abandonada, com o pátio coberto de altos arbustos.

Passou também por um local tinha sido uma grande vila e quase foi pedir hospitalidade durante a noite, mas só andou poucos passos para se dar conta de que as venezianas ainda fechadas estavam enegrecidas pelo fogo e os campos e pastos ao seu redor estavam cheios de vegetação ruim. O edifício vazio, que devia estar cheio seres humanos, dava-lhe uma curiosa sensação de intranqüilidade. Sentia-se como se houvesse olhos o observando através das frestas das paredes enegrecidas e algo vagasse pelas vazias casas sem coberta, atrás dele.

Apressou-se. Aquelas planícies, objeto de incursões desde mar e de lutas entre os estados lombardos e o Papa haviam sido despovoadas séculos atrás. Só resistiram os fortes. Agora, mesmo estes caíam ao se estender os distúrbios internos e externos.

Começava a temer não encontrar um lugar seguro onde passar a noite, quando notou os restos de um povoado em frente a ele. Como quase todas as estruturas atuais, este estava situado no ponto mais alto, em quilômetros a sua volta.

Nesse preciso momento o caminho romano desapareceu. Desapareceu levado pelas enchentes do inverno que haviam se formado uma pequena ravina que chegava até o mar. À margem do caminho, Hugo se deu conta de que se voltasse e seguisse a ravina seca, ela o levaria até o povoado que se via à distância.

Quando chegou até ele, Hugo notou que, longe de ser um povoado havia sido uma pequena cidade, mas quase toda ela tinha desaparecido desgastada pelas correntes criadas pela ravina. Era impossível discernir se seu abandono havia sido causado pela destruição das inundações ou se havia sido abandonada muito antes e depois destruída.

Então Hugo subiu pela costa da ravina e se encontrou no foro. As ruínas do templo se abatiam sobre ele por um lado e pelo outro, uma colunata onde uma vez houvera casas se fitava a vazia ravina e a praia além dela. Os paralelepípedos que cobriam as ruas da antiga cidade estavam quase enterrados na areia levada da praia, pelo vento. Havia centenas de rastros sobre a areia. Podia se notar rastros de pássaros, ratos e coelhos e aqui e ali, de gatos selvagens, mas não pisadas humanas.

Ele estremeceu. Nunca tinha estado em um lugar tão desolado. Subiu pelos degraus que levavam ao templo situado sobre uma alta plataforma com vistas ao mar. A plataforma do templo lhe pareceu fria; o vento do oceano, que antes era uma brisa refrescante, agora soprava com força e o sol já não estava muito longe ma margem do horizonte.

De sua posição, ele podia ver a paisagem circundante. Não havia rastros de assentamento humano em parte alguma. A noite se aproximava e Hugo não queria que a pegasse a descoberto.

Encontrou proteção em uma fossa perto do templo. Em seu bom momento devia ter sido a casa de que cuidava o foro, mas o piso havia apodrecido ou queimado quando abandonaram a cidade, pois só restava um porão pouco profundo. Havia centenas de ramos da ravina, suficientes para acender um fogo e as paredes do porão eram bastante altas para protegê-lo de olhos curiosos.

Quando chegou a noite, ele já tinha uma boa fogueira, não muito alta, já que não queria que fosse vista por ninguém mais que rondasse por aquela paragem destroçada pela guerra, mas o suficiente para lhe manter quente. Restava um pouco de vinho. Ele bebeu, comeu o pão e desfrutava enormemente do queijo quando uma voz lhe disse:

—Você devia ter guardado um pouquinho disso, para mim.

Hugo olhou para cima e viu Gimp sentado em frente a ele. O buraco de sua garganta ainda estava aberto, mas já não sangrava.

Hugo começou a gritar.

 

Um dos soldados do guarda real, um capitão, despertou Lucila no dia seguinte. Parecia satisfeito consigo mesmo.

—Acredito que encontramos um dos homens que procurava, minha senhora.

Ele carregava um saco consigo. Pô-lo no chão, levantou o extremo e a cabeça de Wedo saiu rolando.

—Vocês o mataram? - Disse Lucila com voz acusadora.

—Não. — Respondeu o capitão. - Não somos tão ineptos. Estava morto quando o encontramos. Alguém lhe cortou o pescoço. Sua cabeça não deixava de tentar cair, assim a serramos do resto do corpo e deixamos a carniça para os corvos e os cães selvagens. Pareceu-nos mais simples.

Lucila assentiu.

—Tinha a esperança de pegar vivo pelo menos um deles.

—Desejaria poder lhes agradar, minha senhora, mas isso é tudo o que temos. Alguns pastores o encontraram na via Aurélia. Estavam em uma caverna ou uma tumba antiga. Ainda faz frio fora. Refugiaram-se ali para passar a noite. Encontraram-no. Entretanto, havia muito sangue no chão. Pode ser que tenha acontecido uma pequena desavença entre ladrões?

Lucila assentiu novamente.

—No caminho da Lombardía.

Lucila mandou procurar Silve. Ela manteve certa reticência até que os soldados lhe disseram que o homem estava morto. Ver cadáveres não a preocupava.

—Não é Hugo. - Disse ela.

—Isso eu já sei. - Disse Lucila entredentes. - Mas é um deles?

—Parece diferente.

O Capitão virou a cabeça de Wedo com o pé.

—Sim. — Disse. - É que Hugo chamou de Wedo. Ele roubou meu dinheiro.

—Sim. - Disse Lucila.

—Recuperaram-no? — Perguntou Silve desconsolada.

—É obvio que não. — Respondeu Lucila. - Mas não se preocupe, eu a compensarei. Não que me importe o traseiro de um rato se o recuperar ou não, mas Regeane gostaria que o fizesse.

—Precisarei dele. - Disse Silve. - Estou grávida.

 

                                                     Capítulo 5

Regeane decidiu não se apresentar ante o que só podia ser um conselho de guerra.

Carlos chegara. Seguiam-lhe seus companheiros da cavalaria, os scarae. Arbeo se encontrava entre eles, a ponto de se arrebentar de orgulho.

O rei saudou Maeniel e não lhe deixou que se inclinasse ou se ajoelhasse, mas lhe deu a mão. Carlos disse a Arbeo:

—Ele falou bem de ti; essa é a razão para que hoje nos acompanhe.

—Obrigado, senhor. - Gaguejou Arbeo.

—Como está Otho? — Perguntou o rei.

—Melhor. Matrona, uma dama de minha casa está cuidando dele. É uma doutora muito hábil. Otho não poderia estar em melhores mãos.

Quando chegou o momento da visita ao aposento dos doentes, Carlos deixou sua escolta fora. Matrona relaxava na mesma cadeira dobradiça em que estava no dia anterior. Embora não tivesse admitido, vestira-se para o rei. Usava uma dalmática bela com mangas largas e um desenho de duas asas de pássaro, sob ela, uma séria camisa de manga longa fabricada em seda branca. Suas jóias, uma gargantilha da que desciam cem correntes de ouro. Quande Carlos entrou, ela se levantou e inclinou um joelho, enquanto fazia uma reverência com a cabeça.

A seda se pegava A todas e cada uma das voluptuosas curvas de seu corpo. Carlos estava impressionado e lhe indicou que ficasse em pé, o que ela fez com uma graça quase desumana.

Otho, da cama, sorria maliciosamente.

—Devo lhes agradecer o que, graças aos seus excelentes cuidados, meu amigo já esteja se recuperando de seus ferimentos.

—É um prazer dar uso a minhas habilidades por tão boa causa. Agora, com sua permissão, retiro-me para lhe permitir conversar em particular com seu súdito.

Ele assentiu, tomando boa nota de como a decorada seda deslizava pelo corpo dela, enquanto saía elegantemente do aposento.

Matrona entrou no aposento ao lado, em que se encontravam Regeane e o saxão. O suave murmúrio das vozes chegava através da parede de lona.

O saxão não disse nada porque, embora ele somente pudesse ouvir um sussurro apagado, era óbvio que Regeane e Matrona estavam ouvindo. Várias vezes seus olhos se encontraram. Matrona assentiu e depois Regeane. Depois de um momento, até o saxão pôde ouvir como Otho chorava e o rei o consolava.

—Lágrimas de verdade. - Sussurrou Matrona. - Ele ama o rei.

Os olhos de Regeane se umedeceram.

—Matrona, - ela perguntou. – O que era essa coisa? — Ela colocou a mão sobre o ombro do saxão. - Lutamos contra ela no monastério, mas já havia encontrado isso antes em Roma, em uma tumba. Também lutei contra ela. Ela tentou nos pegar, a mim ou a Silve. Acredito que me queria mais, mas levaria Silve se conseguisse pegá-la. Mas ela correu. Ei disse a ela que corresse. Depois lutei contra o ser. No fim, depois de que quase me paralisasse de terror, ela fugiu. Por isso Silve acreditou que eu era uma bruxa e atestou no julgamento. Ela disse a verdade, mas ninguém entendeu e menos ainda Gundabald e Hugo.

—Silve contou a verdade tal como a via. - Disse Matrona. - Lembro-me. A mente de Silve é limitada, como muitas e nunca foi capaz de compreender o que o enfrentava nessa coisa nem em... — Ela parou e levantou um dedo. – A ti.

—Sim. — Assentiu Regeane pensativa.

Maeniel entrou então.

—Minha senhora, - ele ofereceu uma mão a Regeane. - Venha para que eu lhe presente ao rei.

Regeane também se vestiu para a ocasião, mas não como Matrona. Magnificamente, mas com uma rigidez bizantina que ocultava tanto como embelezava. Camisa de linho egípcio; sobretudo de manga longa de seda bordada com fio dourado; e sobre ele, uma dalmática de rígido brocado de ouro. O conjunto havia sido complementado com um véu de renda branca sobre um duro véu de freira de ouro, engomado e bem preso com prendedores longos e douradas, que lhe cobria o cabelo.

Maeniel a conduzia cheio de orgulho.

O saxão se voltou para Matrona.

— Ela bem poderia ser uma monja.

Ele havia visto algumas delas na Lombardía. Usavam longos vestidos azuis ou negros, com toucas brancas. Alguém lhe disse que elas eram as mulheres do deus cristão, mas se eram, o deus nunca parecia estar interessado por elas, já que não possuíam filhos. Outro escravo cristão disse que era assim que tinha que ser. Ele tinha respondido com certa grosseria, perguntando do que servia uma mulher se não pudesse lhe dar filhos. Mas o outro escravo não parecia ser um cristão muito convencido, já que respondeu:

—Não sei. Eu também me pergunto isso.

Não tinha sido uma conversa muito longa. Ambos estavam exaustos, pois já entrara a primavera e eles haviam sido condenados a puxar um arado. O saxão havia quebrado o queixo de um dos condutores. Não sabia o que havia feito seu companheiro e nunca averiguou. Após três dias de trabalho brutal sob o sol, o escravo morrera.

Seu proprietário o considerou uma perda e o saxão foi por isso devolvido a equipe de trabalho. Só que desta vez nunca lhe tiravam as correntes.

—Essa é a idéia. Ela escolheu evitar problemas. - Respondeu Matrona. - O homem gosta das mulheres. Todo um desfile de damas passou por sua cama. Regeane não quer se encontrar entre elas. É uma complicação que não necessitamos.

—Seu marido não tem por que saber.

—Não seja tolo. - Disse Matrona. - Ele sabe tudo. Saberia exatamente o ocorrido no momento de aproximar dela. Quanto tempo, com quanta freqüência, quem era o homem e se foi ou não forçada. Que nunca te ocorra lhe esconder nada. O desejo, inclusive o frustrado, é tão evidente para qualquer um de nós, como o estandarte de dragão de Carlo Magno.

—Então ele sabe que a amo. - Disse o saxão.

—Sim. — Respondeu Matrona. – E eu também, mas desde que ela não te corresponda, não importa. No que diz respeito ao rei, planejamos uma distração. Otho já disse a Carlos que sou acessível.

O saxão levantou as sobrancelhas.

— Eu gostaria, - disse Matrona, com um sorriso perverso, - e também o rei.

—Onde conseguiu...? — O saxão indicou o colar.

—De um homem chamado Príamo, em um lugar chamado Tróia.

O saxão sacudiu a cabeça.

—Nunca ouvi falar nem da cidade nem do homem. – Ele disse.

Regeane retornou para a privacidade do dormitório e Maeniel e Carlos foram ver a maquete de Antonius. Todos os homens jovens se juntaram ao seu redor muito interessados, embora tanto Maeniel como Antonius albergassem certas dúvidas, se compreendiam seu significado. Davam-se cotoveladas uns nos outros para presumir ante o jovem rei. Pelo menos tentavam dizer coisas inteligentes sobre ela.

—Supõe-se que isto seja Genebra, onde estamos acampados. — Antonius assinalou uma parte de tecido azul à beirada da mesa. E traçou com o dedo uma das rotas que Carlos seguiria sobre as montanhas.

—Observem - Disse Carlos aos jovens dos scarae. - Não digo que será fácil, mas tampouco é impossível. Não com amigos como estes.

Com um gesto de seu braço, ele indicou Maeniel e Antonius. Os jovens os aclamaram. Antonius sorriu cortesmente, como se todo o assunto não fosse mais que um agradável passeio pelo jardim.

Em um dos botequins móveis do exterior estalou uma briga e os gritos chegaram até eles.

— O que fizeram, para acabar em um lugar tão espantoso? — Perguntou Carlos.

—Conduziram-nos aqui. Ou pelo menos conduziram minha esposa e amigos, depois de nossa chegada.

— Um engano, sem dúvida. - Disse Carlos.

Carlos se voltou para os scarae.

—Amigos, eu estou seguro de que há melhores ligares de acampada. Por favor, se assegurem que meu senhor Maeniel encontre uma. Mas não... – Ele continuou voltando-se para a maquete de Antonius. - Não toquem isto.

—É portátil. - Disse Antonius.

Carlos assentiu.

—Acredito que vocês dois serão de inestimável ajuda nesta missão. Falaremos disso mais tarde. Agora, meninos... – Ele se dirigiu aos scarae. - Ajudem nossos amigos a levantar o acampamento e mudar.

O novo assentamento era bem mais tranqüilo. A beira de um bosque, ele estava à sombra das árvores e era fresco durante o dia. De noite era inclusive mais atraente, pelo menos para eles.

Bárbara e Matrona concordaram em organizar um banquete: javali com sálvia, maçãs, feijões com salsichas e um pouco de presunto defumado e ao sal, do outono anterior. Verduras selvagens recolhidas por Regeane e Silvia perto de um riacho, regadas a azeite e vinho. Pães, de pelo menos uma dúzia de tipos diferentes. Matrona era uma perita na arte de fazer pães e o que ela não conseguia fazer, Bárbara o fazia.

Como sempre, a maioria deles se levantou da mesa, introduziram-se na noite e desapareceram. Quando acabou o jantar, Regeane, Maeniel, Antonius, Bárbara e o saxão se sentaram ao redor da maquete para discutir sobre ela.

Antonius havia formado o deslizamento de terra que mostrava a destruição do caminho.

—Entendeu? — Perguntou Antonius a Maeniel.

Maeniel parecia distraído.

—Alguém está chegando. – Ele disse. De todos eles, Maeniel era o que possuía os sentidos mais agudos.

O saxão pegou o candelabro e acendeu quatro velas mais. Ninguém queria que seus olhos brilhassem muito.

—Acredito, - disse Maeniel, - que é o rei e talvez três pessoas mais.

Regeane se levantou. Carlos a tinha visto vestida de ouro e era a única forma em que queria que ele a visse. Mas o rei entrou na loja antes que ela pudesse se retirar. Seus olhos percorreram a companhia.

—Vejo que não são tão formais com seus íntimos. – Ele disse enquanto sorria para Regeane.

Ela só usava uma camisa de linho de manga longa coberta por um vestido marrom com brocado de ouro em pescoço e pregas. Havia tirado o véu e a capa.

—Com sua permissão, — Ela se inclinou e se afastou para a porta.

—Diga-me, - perguntou Carlos, - você partiria se eu não estivesse aqui?

—Não.

—Uma garota sincera - Disse o rei.

—Às vezes muito. - Respondeu Antonius com um suspiro.

—Neste caso, não acredito. Perguntava-me se ela se sentiria cômoda com este matrimônio. Não conhecia nenhum dos dois antes de aprová-lo. Foi, de fato, idéia de Otho.

—Eu sou rico, ela é bela. - Disse Maeniel. - Como não iríamos nos dar bem?

Regeane ruborizou.

—Agora eu sou feliz. – Continuou Maeniel. - E ela é mimada.

Regeane ficou ainda mais vermelha e começou a rir.

—É certo. Ele não me nega nada.

Maeniel pegou a mão de Regeane, levou aos lábios e a beijou.

—Certamente, não minha companhia. - Disse Maeniel.

—Temo que seja eu que o faça. - Disse Carlos.

—Como é isso? — Perguntou Maeniel.

—Tenho vários mapas da região que vamos atravessar. - Disse o rei, examinando novamente a maquete. - Mas não acredito que sejam muito precisos.

—Mapas, sim. - Disse Antonius. - Os mapas são um problema. Há uns quantos bons. Mas meu senhor Maeniel viveu nestas montanhas toda sua vida e assinalou duas boas rotas que poderiam tomar.

—E pelo que diz respeito à segurança da passagem, - disse Maeniel, - comprem as provisões que queiram e as paguem. Os habitantes do alto vale não são caçadores; talvez fossem antes, nos tempos dos romanos, mas já não são. O que desejam é viver em paz. A vida não é fácil ali e devem lutar muito. Os romanos acantonaram as passagens e os perseguiram, mas não acredito que chegaram a ser realmente conquistados. Eles aprenderam os benefícios de viver bem com os grandes grupos armados; entretanto, advirto-os, não prometam o que não pensem cumprir. Há muita chusma em sua caravana. Pensem antes de partir. Leve somente os soldados.

Carlos assentia enquanto ouvia.

—Sábios conselhos! Adriano não se equivocou contigo. Enviou cartas dizendo que é um homem capaz. Mas então, minha chegada é esperada tanto em tempo como em lugar.

—Sim. - Respondeu Maeniel.

—Então Desidério estará me esperando. Se não estiver é mais imbecil do que pensei. Porque, se eu soubesse que ele estava se aproximando, eu estaria esperando-o.

Antonius foi até a maquete e assinalou dois ou três pontos.

—Mas não saberei qual deles, certo?

—Não. A não ser que alguém o averigúe para você. - Disse Maeniel.

—Sim. - Disse Carlos.

—Oh! - Disse Regeane.

—Eu conheço as pessoas dali e conheço a rota. Atravessei estas montanhas muitas vezes. - Disse Maeniel. - Sairei esta noite. Se... Se me derem sua palavra de que minha esposa e amigos ficarão sob seu amparo.

—Sim. - Respondeu Carlos. – Você tem minha palavra.

 

Hugo fugiu, mas logo se deu conta de que não poderia ir muito longe. A parte dianteira do buraco do porão era pouco profunda, mas a traseira era alta e restava teto suficiente para lhe impedir de subir pela superfície da parede.

Gimp riu. Ou, melhor dizendo, a coisa que possuía Gimp sorriu.

—Venha. – Ele disse. - Avive o fogo. A criatura em que viajo tem frio. Ou quer ficar só e as escuras comigo?

Não, pensou Hugo. Isso seria impensável e horrível. Quase balbuciando de medo, ele se aproximou pouco a pouco e jogou mais combustível ao fogo.

—Você não é Gimp. - Choramingou Hugo. - Nem sequer soa como ele.

—Não. Sou bem mais preparado que o pequeno Gimp aqui presente. Então não tente nenhum de seus truques comigo.

—Onde está? — Perguntou Hugo olhando freneticamente ao seu redor.

A coisa em Gimp lhe mostrou os dentes.

—Aqui. Justo aqui. Dentro dele. Você ofendeu enormemente os guardiões da tumba onde o deixou e então eles mandaram me chamar. Resultou que eu estava perto dali. Posso conferir vida aos moribundos. Sua outra vítima estava morta. Bem morta para meus cuidados. Mas o pobre Gimp ainda lutava, paralisado e moribundo, é obvio, mas a faísca da vida ainda brilhava nele. Admitiu-me em sua mente sem pigarrear quando lhe prometi vida. Como pode ver, ele, igual a você, desfruta da vida. Como eu.

Hugo estava doente de medo, mas não era como Gimp. Hugo possuía mais inteligência. Certo, Gundabald havia lhe dominado quando vivia, mas desde que seu pai morrera, ele tivera de se valer por si mesmo e não lhe tinha parecido nada fácil.

Agora esta coisa, um pouco saído de seus mais escuros pesadelos, expressava o desejo de lhe possuir. E de um modo doente e sinistro, Hugo se sentiu atraído pela idéia. Mas não ia se vender tão barato como Gimp. Não. Se converteria na posse dessa coisa só se ela pudesse lhe prometer o que ele mais desejava.

Mostrou os dentes para ela, que estava sentada ao outro lado do fogo formando algo que não se parecia absolutamente com um sorriso.

—Pode me comprar.

O companheiro de Gimp considerou a compra. Havia seduzido ao abade. Aos outros havia aterrorizado, acossado, como fizera a Otho. Mas nunca tinha comprado diretamente. Agora esta criatura, só marginalmente mais capaz que a qual já habitava, oferecia-se à venda.

Considerou os prós e os contra. A força e o terror só eram de utilidade limitada quando se tratava com os melhores. Mas sua prática sempre tinha sido vencer primeiro mediante a força, porque então a mente se debilitava e caía. Em Roma tinha visto Regeane como uma criatura de grande poder e tentara tomá-la; mas ela o rechaçara com uma resolução e êxito que não tinha encontrado até então, defendendo não só a si mesmo, mas também Silve.

E Mesmo Otho o vencera quando tentou controlar sua mente. Estava seguro de poder converter esta criatura em uma marionete se exercesse toda sua força, mas por que gastar todos seus esforços em dominar? Como a encolhida criatura que tinha a sua frente, também era finita. A batalha contra os lobos quase lhe esvaziara até a inexistência. Por que trabalhar mais duro que o necessário?

Mas o preço. Tudo dependia do preço.

—O que pediria?

 

Quando entrou Regeane, Matrona e o saxão estavam lavando Gilas, a garota que os guiara até a cada de Otho. Ela deixava escapar um grito agudo e estridente, como o de um pássaro profundamente alterado.

Os arrebatamentos de emoção não assentavam bem ao bárbaro.

Matrona lhe lavava o corpo e o saxão o cabelo. Ela havia dito a Matrona que isso lhe parecia menos perturbador.

—Por que faz ruído como se fosse um frango doente? – Ele disse severamente a garota.

—Estou toda molhada.

—Essa não é razão para protestar, — respondeu ele categoricamente.

—Estou molhada. Por toda parte. - Gritou ela. - Os sacerdotes dizem... — Foi tudo o que pôde articular. O saxão, que a segurava pelo cabelo, inundou-a ao ouvir a palavra “sacerdotes”.

Ela se sentou gritando.

—Pelo menos me deixe fechar a boca.

Ele pegou-a pelo cabelo outra vez.

—Se não a tivesse aberto em primeiro lugar, a água não teria entrado. – Ele disse com mal dissimulada ironia. - Uma palavra mais sobre sacerdotes e eu te afogo.

Gilas balbuciou algo e se calou.

—O que ela disse? — Perguntou ele a Matrona.

—Não sei. Algo sobre o pecado. - Disse Matrona. - Garota, você se dedica a vender seu corpo na parte traseira de um carroção. O que importam a ti as divagações dos sacerdotes?

—É meu negócio, meu comércio. - Respondeu Gilas em um tom tão desafiante como ferido. - Não o desfruto, então não é pecado.

—O que é pecado? — Perguntou o saxão.

—Também me é pouco claro o conceito. - Disse Matrona. - Embora, quando a religião cristã começou a fazer ruído pelo mundo, transladei-me a uma comunidade cristã e estudei sua filosofia. Nunca consegui tirar a limpo algumas de suas idéias. O pecado é uma delas.

O saxão grunhiu e tirou Gilas da banheira. Matrona a envolveu em lençóis de linho.

O saxão acendeu o fogo do braseiro e Matrona começou a escovar o cabelo de Gilas com um pente de puas.

—Sabe? - Disse Gilas, como se tivesse feito um descobrimento importante. - Acredito que isto me faça bem. Se me converter em criada de Otho, quantas vezes terei que fazer isto?

—Só uma ao mês, mais ou menos. - Disse Matrona. - Mas pode ser que chegue a gostar. Otho é rico. Tem uma vila com seus próprios banhos, como tinham os romanos. Você está subindo de nível, porque Otho está agradecido por sua lealdade e quer que você encontre outra profissão. — Matrona se voltou para Regeane. - O conde pensa que, sem a ajuda da garota, ele teria morrido em pouco tempo.

—Provavelmente tenha razão. - Disse o saxão. - Até ele mover os olhos, eu acreditava que estava morto.

—Gilas? — Perguntou Regeane. - Tem outro nome? Além de Gilas, refiro-me.

—Não. — Respondeu ela. - Minha mãe seguia o exército e também sua mãe. E isso é tudo o que me recordo. Durante a época de campanhas estávamos acostumadas tirar o bastante para nos manter no inverno. Às vezes encontrávamos um oficial que nos pagava para lavar sua roupa e cuidar de suas coisas, mas todos queriam muito trabalho duro por poucas moedas. Sempre era melhor na parte de atrás de um carroção. O mesmo acontece comigo. Otho promete bons pagamentos. Primeiro terei que ver isso. – Ela disse em tom sombrio. - Terei que ver de verdade. – Ela repetia enquanto Matrona a penteava.

O saxão virou a banheira, jogando a água sobre a vegetação lá fora.

—Desejava algo, minha senhora? — Ele perguntou a Regeane amavelmente.

—Não, na realidade devia falar com Matrona.

Ele assentiu enquanto escorria a água restante da banheira com uma esponja e a secava. A banheira era de pele cozida e era guardada em um dos carroções.

O saxão se inseriu habilmente em suas vidas a, caminho das montanhas. Era tranqüilo, nunca se entremetia, sempre estava disposto a fazer qualquer tarefa que lhe pedisse. Fez-se útil para todo mundo e sua tremenda força lhe convertia em uma presença de incalculável valor em todas e cada uma das dificuldades, desde enfrentar o torturador de Otho até liberar um carroção preso no barro.

—Por que fica conosco? — Perguntou-lhe Regeane.

—Por ti.

—Isso não tem futuro.

—Pede-me que me vá?

—Não, não. Quero-o, mas não... Não de...

—Sim. - Disse ele. - Eu sei. Passa-me algo parecido. Provavelmente eu me sinta mais atraído por ti pela paixão, que você por mim, mas talvez seja só porque sou um homem. Igual uma coisa com a outra.

—Sei - Disse Regeane. Ela estudava a ponta de suas botas de montar como se, de repente, se converteram em uma coisa muito importante. - Não quero que ele vá sozinho.

—Então, vá com ele.

—Não sei se ele vai querer me levar.

—Então, não lhe pergunte.

—Sou sua esposa.

—Não me faça rir. É uma esposa convencional tanto como ele um marido convencional.

—Há um problema.

—Qual? — O saxão levantou a banheira do chão e a apoiou contra um das colunas do pavilhão. Vazia, ela pesava muito pouco.

—Ele é um lobo que às vezes é homem. Eu sou uma mulher que às vezes é uma loba. Não mantenho minha forma facilmente durante o dia. Não tanto como ele.

O saxão assentiu.

—Então eu os seguirei com uma mula e levarei roupas para os dois.

—Eu não gosto deste assunto de ser uma esposa. O rei me fez sentir desnecessária.

Matrona entrou atrás de Regeane.

—As mulheres são frágeis. – Salmodiou ela, em tom religioso.

—Deveria te dar vergonha. - Disse o saxão.

 

—Dinheiro - Disse Hugo. - O que é dinheiro? Ouro, prata, pedras preciosas, sedas, veludo e outras roupagens de qualidade. Dinheiro.

A coisa deu um passo para trás. Gimp se sentou com a boca aberta e um olhar vazio nos olhos. Finalmente piscou e pareceu recuperar a consciência, depois disse:

—Deixe-me comer um pouco de queijo.

Os olhos de Hugo rastrearam rapidamente todo o aposento. A criatura saíra de Gimp? Ele deu a Gimp o pote e o observou comer com os dedos. Quando terminou, Gimp engoliu os miolos de pão que restavam. Depois suspirou, deitou-se de lado e começou a dar a impressão de estar a ponto de dormir.

Hugo o observava se perguntando se lhe serviria de alguma coisa, escapulir na escuridão. De repente Gimp se sentou muito direito e disse:

—Vá ao canto do porão que fica a sua direita e cave no lugar onde eu te disser.

—Necessitarei de luz.

Gimp pegou um dos lenhos do fogo que ardia e foi para o fundo, perto do muro. Hugo o seguiu.

Curioso e muito a seu pesar, Hugo cavou.

Quando o buraco ainda não chegava nem aos dois metros de profundidade, Hugo começou a se cansar. Fez uma pausa, ofegante.

—Cave. - Ordenou a coisa dentro de Gimp.

—Trabalho tão rápido como posso.

—Sei disso. - Disse a coisa. - Vocês, os mortais, são as piores criaturas na hora de abusar de seus corpos. Ele é um bêbado, um vago e um estúpido e você é um bêbado e um vago. Mas ele está mais prejudicado que você. Então prefiro a ti.

—Prejudicado? Refere-se à faca que lhe cravei?

—Não. Sua mãe esteve doente durante muito tempo antes que ele nascesse. Cave. – A coisa rugiu.

Hugo reuniu as forças que restavam, para rapar uns quantos centímetros mais de terra e encontrou um pequeno pote de terracota. Esqueceu o cansaço. Cavou a terra que o envolvia; arrancou-o do buraco, rompendo-o de um puxão. Moedas de ouro saltaram por toda parte.

Com as mãos trêmulas, Hugo começou a contá-las. Eram áureos de ouro, a moeda do antigo império. Uma fabulosa fonte de riqueza, um tipo de moeda que não circulava há centenas de anos.

Hugo soube que estava rico quando provou com os dentes uma das moedas e esta se dobrou. Ouro maciço e puro. Não tinha nem idéia de quanto valiam, mas não precisava se preocupar com isso nesse preciso momento porque, junto com o ouro havia um monte de prata também em forma de moedas e jóias.

—Acredito que seja um preço justo para nossa associação.

As palavras devolveram Hugo a terra, com um forte golpe.

O vento do mar começava a se levantar e avivava o fogo que ardia perto do foro em ruínas. As chamas projetavam uma vacilante luz amarelada por todo o buraco do velho porão.

Os punhos de Hugo se abriam e fechavam sobre o metal que lhe enchia as mãos.

—Tenho o que quero, — ele disse, com voz trêmula, - mas há mais?

—O que acha que sou? — Perguntou a coisa do interior de Gimp. - Um prestidigitador barato? Um saltimbanco, um enganador que atua por seu pagamento? Não viu nem um ápice do que posso fazer.

Gimp gritou quando sua roupa se incendiou e ele e ficou envolto em chamas. Depois, tão rápido como havia começado, o fogo desapareceu. Hugo se encolheu tiritando no chão, com as moedas espalhadas a seu redor. Enquanto Gimp se ajoelhava com os restos queimados de sua roupa pelo corpo, Hugo choramingava em silêncio. Então, Gimp falou.

—Fale. Estou cansado de regatear contigo, idiota. Diga sim ou não e acabemos com isto.

—Sim. - Gemeu Hugo, enquanto seus dentes tiritavam e todo seu corpo tremia. - Sim, sim.

Algo escuro como uma nuvem de tormenta pareceu flutuar sobre Hugo, para depois cair como um aguaceiro. Durante um segundo Hugo temeu ser esmagado, mas depois o peso, a sombra, passou através dele, entrou nele da mesma forma em que a água penetra a terra seca e desvanece.

Hugo ficou em pé, trêmulo, fraco com um cansaço emocional e físico absoluto e incontrolável. Sua capa estava junto ao fogo. Ele cambaleou até chegar a ela, se deitou e foi tomado imediatamente por uma inconsciência profunda.

Nas semanas posteriores, Hugo mostrou uma energia que qualquer pessoa que lhe tivesse conhecido antes acharia bem pouco característica. O certo é que ele temia desobedecer a seu “hóspede”.

Ele despertou ou, melhor dizendo, seu cérebro despertou em frente ao sol que começava a se elevar sobre o mar. O abrolho era tranqüilo e o vento que sentia no rosto, fresco.

—O que?

—Fique quieto, idiota. Estou vendo a saída do sol.

—você faz isso todos os dias. - Protestou Hugo.

—Sim, um milagre que você e os de seu tipo não podem compreender.

Hugo conseguiu voltar para dormir enquanto a coisa usava seu corpo, o que resultava divertido. Era secretamente divertido para seu hóspede.

Quando foi despertado novamente, seu hóspede o levou em busca de mais esconderijos secretos de moedas. Encontrou mais dois, não tão proveitosos como o primeiro, mas suficientes para lhe proporcionar um bom começo no primeiro povoado que encontraram em seu caminho ao longo da costa.

Gimp o seguia, andando em silêncio. Podia falar, mas aparentemente, sua voz havia sido afetada pela faca e, além disso, o espírito lhe ordenara que se mantivesse calado.

O dinheiro permitiu a Hugo comprar cavalos, roupa e passar a noite nos melhores alojamentos para viajantes. Nenhum dos melhores era muito bom. Na terceira noite estavam dormindo em uma estalagem de um diminuto lugar chamado Curvo. Pela primeira vez desde seu acordo, seu hóspede lhe tinha deixado beber até ficar submerso em uma névoa mental e ele e Gimp cambalearam até a cama. A criatura despertou de madrugada e ficou consciente de que estava com uma enxaqueca surda e aguda e uma sede tremenda.

Hugo tentou gemer, mas seu hóspede o advertiu que se mantivesse em silêncio. Notou um som e movimento no escuro aposento. Não deveria haver nenhum dos dois. Hugo não estava tão bêbado para deixar o quarto aberto e as janelas eram estreitas e estavam cobertas de grades de ferro.

—Sente-se. - Ordenou seu hóspede. - Acende uma luz.

Hugo o fez. A primeira chispada da vela, ele notou como o hospedeiro se aproximava atravessando o aposento, com uma tocha em alto. Hugo tentou gritar, mas não pôde porque a criatura soltou uma gargalhada.

O urinol voou pelos ares esvaziando seu considerável conteúdo diretamente sobre o rosto do hospedeiro. A urina caiu sobre os olhos do homem que ficou cego e enfurecido. Ele se lançou para diante e tentou dar uma machadada em Hugo... Ou na cama onde Hugo estava sentado.

Desta vez Hugo gritou e saltou, soltando palavrões como um desesperado. Seu hóspede voltou a rir e atirou o corpo de Gimp sobre os joelhos do hospedeiro. Este tropeçou com as costas de Gimp, mas a tocha continuou sua trajetória. Em vez de cravar no colchão de palha, ela seguiu e cortou dois dos dedos do pé do hospedeiro.

O homem gritou de dor e se calou retorcendo-se no chão.

A vela voou da mão de Hugo e aterrissou no colchão. A colcha de tecido demorou alguns segundos em queimar, mas depois as chamas chegaram até o colchão e o consumiram.

—Corra. - Ordenou o hóspede de Hugo. - É provável que ele tenha amigos. Este é seu povoado.

Hugo recolheu os poucos pertences que ainda não estavam em seus alforjes e seguiu Gimp, que já havia alcançado o pátio próximo ao estábulo. Os cavalos já estavam selados e esperando, o que fez Hugo parar para pensar. Não sabia que seu hóspede pudesse funcionar tão eficazmente sem ele, mas não dedicou nenhum segundo de fração para considerar o assunto, porque todo o povoado zumbia como um vespeiro. Os homens gritavam, as mulheres gritavam e as chamas haviam se estendido da janela até o seco teto de palha. Hugo esporeou seu cavalo e, com ressaca ou sem ela, fugiu.

Ao amanhecer, eles estavam a quilômetros de distância e já deixavam à costa para trás, seguindo de perto a via Aurélia pelo interior, para Florença. Hugo se permitiu parar junto a um riacho de montanha para tomar uns goles de água e lavar o rosto.

—Não deveria beber tanto. - Disse seu hóspede. - Especialmente o raticida que servem em botequins como o último que visitamos. Idiota, ele estava tentando te drogar.

—Bonito momento para me dizer. - Murmurou Hugo.

Um potente chute no traseiro mandou Hugo para dentro do riacho.

—Isso te esclarecerá cabeça - Disse seu hóspede.

Hugo se levantou, balbuciando. A água estava geada.

Ninguém podia ter lhe chutado. Gimp estava em pé perto dos cavalos, com os olhos abertos e a três metros de distância.

—Como faz estas coisas? — Perguntou Hugo perplexo.

—Não sei. Como vê a cor azul?

—Quer dizer que você não pode ver.

—Só quando uso seus olhos.

Hugo cambaleou até os cavalos e se apoiou em sua sela.

—Como posso conseguir um pouco de tranqüilidade?

—Me converta em um deus, Hugo. Converta-me em um deus - Disse seu hóspede. - Uma vez eu fui, sabia?

—Um deus? — Murmurou Hugo. - Não é um deus. Você é um fantasma.

O chute subseqüente levantou Hugo a uns bons centímetros do chão.

—Alguma vez viu um fantasma que possa fazer isto?

—Não. Ai! — Hugo se arrastou até a sela, onde sentia que pelo menos suas costas estariam protegidas. - Se fosse um deus, — ele choramingou, - você saberia como vejo o azul e não teria que dar chute nas pessoas.

—Provavelmente tenha razão. Odeio admitir, mas assim é.

Justo então algo, - Hugo estava seguro de que seu hóspede, - golpeou a garupa do cavalo e este se lançou ao galope.

 

Regeane estava sentada junto ao atalho em meio à brumosa meia luz da alvorada, quando Maeniel passou por ali. Ele havia saído sigilosamente da cama antes do amanhecer e estava seguro de tê-la deixado dormindo.

Havia deixado-a dormindo.

Ele parou e lhe dedicou um longo e pensativo olhar, que ela já havia visto antes. Ele o dirigira a Gavin quando seu valioso capitão foi encontrado mastigando um grande e carnudo fêmur de alce sobre um dos belos tapetes persas de Maeniel. Isto deu lugar a uma perseguição que acabou quando Gavin se refugiou atrás de Regeane e começou a gemer lastimosamente.

Regeane, que estava em forma humana, havia dito: — Por favor, querido... — E Maeniel se tornou humano.

—Vá. – Ele havia ordenado a Gavin. - Vá antes de eu o expulse com minha vara.

—Tem uma vara? — Havia perguntado ela.

Gavin saiu disparado como uma flecha.

Maeniel vestiu sua túnica, sorriu e disse:

—Não, mas Gavin não sabe.

Entretanto, Regeane pensava: eu não sou Gavin. E lançou a Maeniel um olhar arrogante e seguiu sentada junto ao atalho, com o nariz ligeiramente levantado.

Ambos se sustentaram o olhar.

Regeane se negava a que ele a intimidasse.

Finalmente Maeniel voltou a adotar a bamboleante forma de caminhar do lobo viajante e não pôs nenhuma objeção quando ela se situou junto a ele.

O sol nunca os incomodou e Regeane estava surpresa. Em Roma, como mutante jovem e inexperiente, ela havia acreditado que o dia e as noites limitavam seu acesso a loba. Sim, a luz maltratava a mulher e às vezes ela se sentia enjoada, como se sua metade humana quisesse tomar o comando e empurrasse com força para fazê-lo; mas nesses momentos ela procurava os lugares profundos e ocultos, de espessos arbustos e altas árvores, e evitava estar a descoberto onde o sol podia alcançá-la. Em pouco tempo, a loba era capaz de reafirmar com força.

Maeniel abria passo aos dois, conduzindo-a através de atalhos que, com total segurança, nenhum humano havia pisado nunca. Ao longo dos caminhos e postos avançados romanos, o inverno que mal começava a perder seu controle sobre as alturas, se manteve nos vales. Estava mais quente. As plantas começavam a florescer. Margaridas amarelas e brancas, e as árvores criavam folhas novas, cor verde e verde dourada. Mais acima, perfumavam o ar, os sempre verdes abetos, pinheiros e inclusive os poucos cedros que restavam. A vegetação nova e de um verde esmeralda estava cheia de violetas, grupitos morados e brancos, e inclusive amarelos.

Chegaram ao lago quase de noite. Sua primeira impressão foi a de que era menor que antes. Realmente havia passado tanto tempo? Voltando os olhos para trás, soube que sim.

A rocha onde estava acostumada descansar depois de seu banho estava agora em terra seca quando, fazia tempo, tinha projetado sua imagem sobre a água. A catarata seguia ali, mas parecia cair menos água pelos negros degraus de basalto e, inclusive de onde se encontrava, podia ver que o lago que se estendia sob seus pés era bem menor e estava rodeado de árvores jovens do bosque invasor.

O lago sob a catarata estava se enchendo de lama. A folhagem das bordas de águas baixas se estendia até o interior. A cicuta, com suas flores brancas de aparência inocente; pontederias, com suas puas cor anil; altas espadanas olhavam para leitos de agriões doces, ácidos e com flores amarelas. Além dos agriões se via certa erva vagabunda com frisadas flores brancas e longas folhas com forma de espada; e, perto do centro, o lótus silvestre e o nenúfar abriam taças perfeitas de branco, amarelo, malva e rosa, e redondas almofadinhas verde oliva flutuavam na superfície.

Ambos os lobos se inundaram no lago; a luz do sol resplandecia sobre as ondas que seus corpos formavam nas tranqüilas águas, uma luz que teria cegado qualquer espectador. De repente, os dois eram humanos.

—É precioso. - Sussurrou Regeane, tentando não perturbar o silêncio da tarde.

—Sim. - Disse ele. - Mesmo depois de tantos anos e tanta dor.

—Já esteve aqui antes?

—Oh, sim. Muitas e muitas vezes... Mas isso ocorreu há muito tempo.

— Eu vi.

—Quando?

—Na noite que nos casamos. Estava me fazendo amor... Acredito que, justo aqui.

Ele permaneceu em silêncio, ouvindo.

—Ouve algo? Alguém?

—Não. Só o vento no bosque, a música da cascata e o som de seu coração pulsando.

—Não pode. - Disse ela brandamente.

—Posso. Ouço-o — Então ele a abraçou e beijou seus lábios.

Quando se separaram para respirar, ele falou.

—Façamos realidade sua visão profética.

—Sim. — Foi tanto uma palavra como um suspiro.

 

Hugo se manteve calado durante uns quantos dias. Ante a surpresa de seu hóspede e de Gimp, não se excedeu com a bebida nos botequins e estalagens nas quais pararam. Aguou seu vinho e comeu bem, deitando-se na cama repleto, com o estômago cheio e sem dor de cabeça pela manhã.

Disse- poucas coisas a seu hóspede. Só fez uma pergunta na segunda noite quando estava a ponto de ir dormir.

Gimp não se encontrava ali, pois tinha ido se aliviar atrás da estalagem, em uma ladeira.

—Como encaixa Gimp em seus planos? — Perguntou Hugo com um tom bastante ácido.

—Prometi-lhe a vida. Cumpro minhas promessas, mesmo quando meus sacerdotes são lunáticos e meus seguidores vêm da forca.

Hugo assentiu.

—Não o abandonará.

Hugo reconheceu claramente como uma ordem.

Hugo tinha passado a maior parte de sua maturidade envolvida em uma neblina alcoólica... Maturidade que considerou alcançada aos doze anos. Mas tinha cérebro e, quando estava seco, funcionava bastante bem. Recordava a vida de Gundabald antes de sua descida a mais abjeta pobreza: boa comida; roupa suave e cômoda; os melhores vinhos; criados para limpar a sujeira dele; e mulheres pelo menos atraentes e sempre a disposição de seu pai. E, quando Hugo cresceu o bastante, também ao seu dispor. Seu pai e ele eram sido tratados com respeito por seus comerciantes e inclusive pela baixa nobreza. Mas Gundabald tinha jogado com o desastre ao tentar comprar sua entrada no círculo interno de grandes magnatas que rodeava o rei. Era muito ambicioso. Suas propriedades não eram tão grandes e ele gastou a quantia de terras e dinheiro capaz de mantê-los cômodos em enriquecer aos que lhe prometiam a grandeza, os que moravam nos extremos da corte real, os parasitas indigentes da nobreza. Mas até o fim de seus dias, Gundabald acreditou que tinha o prêmio dourado da ascensão real ao alcance da mão. A melhor parte da bota de cano longo obtido pelo rei franco em suas conquistas ia engrossar os recursos de seus cortesãos preferidos. Estar entre seus íntimos supunha um nível de riqueza ainda além dos sonhos de cobiça de Gundabald.

Sóbrio, primeiro a força e depois voluntariamente, Hugo considerou todas estas coisas. Nunca havia gostado de seu pai como homem e, pensando sobre suas ambições, ele chegou a conclusão de que Gundabald havia sido um imbecil. O homem tinha abusado e aterrorizado Regeane com sua insistência em que participasse dos planos para assassinar seu marido. Gundabald a tinha conduzido finalmente até a rebelião, para poder conseguir mais dinheiro com o que enriquecer ainda mais os mentirosos.

Não, pensou Hugo. Esse caminho não era para ele. Graças a seu pai, ele era um homem açoitado, isolado para sempre do mundo da aristocracia franco na qual tinha crescido. Mas agora ele tinha a oportunidade de recuperar sua fortuna. Sóbrio, começou tranqüilamente a pensar em como fazê-lo.

Sua oportunidade se apresentou a caminho de Florença.

Seu hóspede lhe dirigira para uma vila abandonada. Ou que uma vez fora um povoado. O lugar estava tão destroçado que era impossível saber. Este tesouro escondido tinha abundante prata. Seu hóspede lhe indicou que tirasse um tijolo de um dos muros. A caixa escondida havia sido muito bela. As jóias que se encontravam no interior estavam cuidadosamente envoltas em seda e embora escuras, ainda estavam em boas condições, como também estavam as moedas de prata do fundo da caixa, provavelmente reunidas ao longo de toda uma vida.

De volta ao caminho, ele viu os salteadores. Estava olhando-os de cima, porque se escondia em uma sarjeta aberta na rocha, coberta de rosas silvestres. O esconderijo era bom, já que os caules das rosas eram tão grossos que era fácil passar acima da sarjeta.

—Por quê? — Ele perguntou a seu hóspede.

—Vem uma caravana de mercadores.

—É nossa oportunidade.

—Nossa oportunidade para que?

—Para começar a te converter em um deus. - Disse Hugo, sentindo-se superior pela primeira vez. - Diga a esse idiota de Gimp que a partir de agora fique mudo.

O plano dos bandidos era muito singelo: emergir da espessura de caules de rosas, pegarem uma das mulas de carga dos mercadores e escapar para as rochosas malesas de carvalhos. Um grupo de mercenários escoltava a caravana. Tanto eles como os mercadores estavam a cavalo e não poderiam entrar nas rochas da ladeira. Pelo menos não o bastante rápido para evitar que os ladrões roubassem a mula e desaparecessem sem deixar rastro no que agora era uma selva de terreno instável, árvores atrofiadas e espessas roseiras silvestres.

Os bandidos estavam desarmados ou armados precariamente. Tudo o que Hugo teve que fazer quando eles pegaram a mula foi cavalgar para eles e gritar. Um deles, o mais teimoso que o restante não soltou as rédeas do animal. Outros se dispersaram.

Hugo desembainhou a espada, mas uma pedra lançada com boa pontaria se estrelou contra um lado da cabeça do homem.

A mula relinchou, empinou e deu um coice. O último foco de resistência se assustou e correu para junto dos outros. Hugo tomou as rédeas soltas da mula e conduziu o animal de volta ao caminho.

Nesses instantes, a brigada de mercenários subia a ladeira. Hugo passou por um breve e inquietante momento no qual parecia que iriam lhe confundir com um dos ladrões. Mas foi capaz de solucionar a confusão em seguida assinalando a direção em que tinham fugido os bandidos. A escolta foi atrás dos salteadores.

—Temo que me seja inútil - Disse Hugo ao mercador.

Os mercenários já voltavam. O terreno era traiçoeiro e ninguém queria perder um animal valioso.

—Sim. - Respondeu o mercador. - Mas obrigado por salvar nossa propriedade. Sou Armine Welborn de Florença.

—Hugo da Bayona - Disse Hugo enquanto se inclinava. Hugo nunca estivera perto de Bayona, mas soava bem.

—Não sabe que grande serviço me prestou. Cada um destes animais é de incalculável valor. Nesta viagem só levamos seda, gazes, damascos, tapeçarias, pendentes de lã chegados do oriente, todos com destino à corte do rei da Pavia. A perda de só uma destas mulas poderia ter me arruinado.

—Não há de quê. - Disse Hugo, inclinando-se novamente. - Estou encantado em haver servido de ajuda. Se for natural da cidade das flores, talvez possa me dizer onde poderia encontrar um alojamento seguro para esta noite.

Hugo sentiu os olhos do mercador sobre ele, calculando com astúcia sua valia. Suas roupas estavam enrugadas e manchadas pela viagem, mas levava um anel de prata maciça em uma mão e um de ouro na outra. Tanto ele como Gimp montavam uns cavalos magníficos.

—Pois em minha casa, é obvio. - Disse Armine. - Me prestaste um grande serviço. Os melhores alojamentos da cidade são sórdidos, sem as comodidades que um cavalheiro como você daria por certo.

Hugo conseguiu forçar um sorriso moralista.

—De fato, sofri muitas penalidades nesta viagem, mas se cumprir meu objetivo, me sentirei recompensado.

—Céus! - Disse Armine. - Qual seria esse objetivo?

—Tenho, - disse Hugo— tristes e desagradáveis assuntos de família a resolver.

A ponta do nariz de Armine se torceu.

—É! – Ele exclamou. - Em Florença?

—Não, não nessa bela cidade, mas mais à frente, na Pavia.

—Armine! - Gritou alguém. - Vamos? Devemos chegar à cidade antes que escureça, a não ser que queira perder essas valiosas coisas. Comece a se mover.

Hugo e Gimp se uniram a caravana e retomaram o caminho. Umas quantas horas depois atravessavam o Arno e entravam em Florença.

Para Hugo, Florença lhe pareceu deprimente, um lugar de altos muros, ruas estreitas e um medo quase constante entre os que não ostentavam o poder. A cidade estava agora nas mãos de umas doze famílias poderosas, cada uma com sua própria residência fortificada, todas reclamando um segmento do povoado como seguidores.

Com a decadência do governo romano, o pequeno proprietário e o empresário independente, desapareceram. A única forma de sobreviver que tinha o pequeno comerciante ou o granjeiro era aceitar o patronato de uma destas famílias líderes e lhe render comemorações. A violência de ruas entre as famílias em luta era quase constante e não havia noite sem uma briga selvagem entre os seguidores de uma família e os de outra.

A residência de Armine era cômoda, mas tão bem fortificada que causava temor. Havia portas duplas na entrada. Uma de madeira e a outra de ferro e os muros que davam à rua eram altos e tinham pontas agudas de aço na parte superior. Mercenários contratados patrulhavam os muros noite e dia.

Dentro, havia um atraente jardim rodeado por uma colunata. Era, descobriu Hugo, para as damas que virtualmente não deixava o recinto. De fato, as filhas de Armine nunca haviam saído da casa e ambas eram já adolescentes.

Ao chegar, Hugo fez sua primeira visita a casa de banhos e depois, refrescado e cheirando a limpo, foi levado até um ameaçador conjunto de casas. Todas as janelas tinham barrotes de ferro; as paredes e o assoalho eram de pedra.

Gimp só disse: — Parece uma prisão.

—Você é mudo. - Lhe recordou Hugo.

—Ainda assim, parece uma prisão.

Hugo ia golpear-lhe, mas seu hóspede o impediu.

—Ele se manterá calado quando for necessário. Deixe-lhe. Como vai me converter em deus?

—Observa e verá. - Disse Hugo agressivamente.

Seu hóspede grunhiu.

—Está-me fazendo zangar-se.

Hugo se estirou na cama.

—O que quer? — Ele murmurou.

—Uma explicação.

—Não tenho uma explicação. - Disse Hugo. - Vou ter que improvisar.

Nesse momento alguém bateu na porta. Um criado entrou no aposento com uma bandeja. Nela, uma jarra de vinho e uma taça, entre outras coisas.

—Meu senhor me pediu que lhes dissesse que o jantar se atrasará um pouco. - Disse o criado. - Para que não passem fome, ele pensou que poderiam necessitar de um lanche.

Para Hugo não interessava as outras coisas bandeja. Uns quantos dias de sobriedade tinham sido suficientes para ele. Levantou-se com certa presteza, pegou a jarra de vinho e se serviu de uma grande dose, enquanto Gimp dava conta da fruta, do pão e do queijo. Hugo só pôde beber uma taça, a segunda foi arrebatada de sua mão.

—Não confio em suas improvisações quando está sóbrio; como pensa que me sinto quando está bêbado? - Disse seu hóspede com uma voz marcada e rangente.

Mas o vinho sobre o estômago vazio já havia feito seu trabalho e Hugo adormeceu sobre a cama.

Um criado despertou-o muito depois. Ele havia tido um pesadelo com Gundabald. Todos os pesadelos de Hugo eram sobre Gundabald. Sentia-se como se não tivesse dormido nadamas tendo em conta o que estava a ponto de fazer, pensou que seria melhor parecer um pouco simpático. E seu aspecto era bom. Vestiu-se com cuidado, escolhendo seus objetos mais escuros, para dar impressão de pálido e interessante.

Do tesouro conseguido por seu hóspede, ele escolheu presentes para as garotas e uma belíssima corrente para o pai.

Gimp, sentado no chão em um canto o fitava.

—Bem, o que pensa? — Perguntou a Gimp e a criatura.  

—Parece que está há uma semana com diarréia. - Disse Gimp.

—Como demônios? - Disse o hóspede. - Para mim todos os humanos são iguais. São todos fracos e feios. Desça as escadas e coloque em ação esse magnífico plano que guarda tanto segredo. E deixa de me incomodar. Se quiser saber, você parece alguém com uma enfermidade debilitante. Satisfeito?

Depois ele girou Hugo para a porta, abriu-a e o empurrou para o corredor.

O jantar foi majestoso e a comida boa, mas Hugo pensou que era a reunião mais deprimente que já havia assistido. Madonna Helen e suas duas filhas estavam presentes. Todas tinham o aspecto de prisioneiras, as quais haviam sido permitidas viver seus últimos dias sob o cuidado de suas famílias.

As duas garotas eram loiras e superavam Hugo em palidez, que não ajudava o fato de que a moda do momento em Florença convidasse a usar abundante quantidade de pó branco para proteger a pele do mais leve raio de sol. Tendo em conta a atenção que prestavam a cada palavra de Hugo, ambas estavam necessitadas de companhia.

Os três meninos, mais jovens que suas irmãs, tentaram animar os atos iniciando uma guerra de comida, então foram conduzidos para a cama cedo em companhia de doze ajudantes de câmara.

Na opinião de Hugo, um homem sem um ápice de imaginação, eles pareciam prisioneiros escoltados até a forca.

Madonna Helen, uma esbelta mulher loira estava no que amavelmente se conhece como “declive”. Os médicos a tinham sangrado copiosamente e prescrito todo tipo de caras panacéias fabricadas a peso de venenos como mercúrio, alumínio ou ópio. Para complicar mais a coisa, tinha que se alimentar de uma dieta de vegetais cozidos. Este tratamento a tinha levado várias vezes a beira da morte e a tinha reduzido a tal estado de debilitação espectral que a Hugo parecia difícil acreditar que estava olhando para uma mulher viva.

Uma vez deitados os meninos, a conversa decaiu até que o mercador começou a perguntar a Hugo sobre suas viagens.

—Como estava Roma?

—Só estive lá uns quantos dias. - Respondeu Hugo.

—Umas quantas horas, melhor dizendo. – Disse o hospede na mente de Hugo.

Hugo seguiu adiante:

—O Papa atual é um inimigo dos lombardos e, embora tenha tentado conseguir sua ajuda em meus problemas familiares, ele me ameaçou me jogar da cidade se não partisse logo. Agora estou sozinho, exceto por meu pobre e mudo criado, então fugi.

—Que horror! - Disse a mais velha das filhas do Armine. Seu nome era Chiara; o de sua irmã, Phyllis.

—Minha vida foi muito triste desde que meu pai foi assassinado. - Disse Hugo.

—Deveu ser terrível para ti. - Disse Phyllis com um suspiro.

—Terrível pelo fato em si, - disse Hugo— e terrível pela forma em que aconteceu, mas temo que não seja uma história apta para os ouvidos de tão doces damas.

—Oh, sou bastante liberal com minhas filhas. - Disse Armine.

—O que aprovo. - Disse Hugo. - Porque esta história é uma que deveria servir para educar os corações das mulheres, ensinando-as a respeitar a sabedoria superior de seus homens e a loucura que pode resultar quando os desejos de seus corações se antepõem ao cérebro. Uma boa lição moral.

— Ouçam e aprendam - Disse Armine A suas filhas.

—Começou - Disse Hugo— quando minha tia Gisela se prometeu com um saxão pagão selvagem chamado Wolfstan. Meu pai... —Hugo levantou a vista ao céu—, que em paz descanse, um homem santo como nenhum outro... Em qualquer caso, meu pai, Gundabald, se opôs a esta união vendo que o saxão se negava a se converter ao cristianismo, inclinar seu pescoço ante o doce jugo de Cristo e ser lavado nas águas do renascimento e da vida eterna. Mas Gisela se negava a ouvir tanto as advertências de seu irmão como qualquer das objeções dos muitos sacerdotes que ele chamou para apoiar sua postura de que a carne pagã e a cristã não deveriam conviver no leito marital. Porque este saxão era bonito e rico e Gisela estava loucamente apaixonada por ele. A fortuna de minha família estava em declive naquela época e Gisela, embora não fosse pobre, não era nem muito menos tão rica como desejava ser; talvez se apaixonasse pela excelente vida que ele podia lhe proporcionar. E, de fato, durante seu primeiro ano de matrimônio pareciam ser felizes e ter realizado uma afortunada união. Ele permitiu-lhe ter seu próprio capelão e receber os sacramentos; entretanto, ela dizia que ele não observava as muitas ocasiões nas quais a igreja ordena a castidade inclusive aos unidos na sorte matrimonial.

Tanto Armine como sua esposa pareceram um pouco incômodos enquanto Hugo recitava a lista:

—Todos os domingos, todos os dias Santos, o período completo de Advento e Quaresma e muitos mais.

—Sim que parecem ser muitos - Disse Armine, olhando para sua mulher. - Nem todos os fiéis são tão estritos...

—Mas meu pai sentia que Gisela devia fazer mais para avançar na causa do cristianismo com seu marido, em vez de permitir deixar vencer pelos costumes pagãos. Então a repreendeu com dureza, deixando-a envolta em lágrimas e enfurecendo enormemente Wolfstan. Uns quantos dias depois meu pai se foi caça com alguns dos saxões de Wolfstan. De alguma forma eles conseguiram levá-lo até as profundidades do bosque e abandoná-lo ali. Depois ele foi atacado por um lobo gigantesco. Nesse momento, temendo por sua vida, caiu de joelhos ante a fera selvagem e pegou a cruz de Cristo que sempre levava no pescoço. Para seu mais absoluto assombro, a sanguinária criatura retrocedeu ante o objeto sagrado. Aproveitando a oportunidade, meu pai pegou dardo e pediu a Deus que benzera a flecha e disparou no lobo. Ante os horrorizados olhos de meu pai, um forte vento soprou pelo bosque e o céu se obscureceu como se pressagiasse uma temível tormenta. Isto só durou uns segundos, mas... Mas...

Todos tinham a boca aberta, dependentes de cada palavra de Hugo.

—Mas quando o vento cessou, o céu esclareceu e os pássaros cantaram novamente, meu pai notou que onde estivera o lobo antes, estava o corpo de Wolfstan, o marido de sua irmã.

Esta revelação merecia um reconstituinte para os homens e doces de mel e vinho doce para as mulheres. Hugo podia ver que ganhara uma popularidade instantânea no lar de Armine.

—Que horror! — Phyllis apertava a mão contra o peito. - Não entendo como pôde sobreviver ao trauma de semelhante experiência.

—Meu pai era um homem forte. - Disse Hugo. - Mas ai de mim, isso não é tudo, só é o princípio.

—De verdade? - Disse Chiara.

Hugo acreditou detectar certo tom de brincadeira em suas palavras, mas os outros lhe observavam com espectadora credulidade. Então ele a ignorou e continuou.

—Como tão acertadamente observou, o trauma de meu pai foi enorme. Mas isto não o impediu de fazer Gisela a retornar para a casa. Nem tampouco descansou até que a viu casada com um bom homem cristão chamado Firminius. Mas se esqueceu da contumácia e obstinação de algumas mulheres. De volta para casa, pouco depois de seu segundo matrimônio, ela disse que estava grávida. Exortamo-la a que se... Desfizesse da criança, já que sem dúvida seria poluído pelo mal, mas ela se negou.

—Ela se negou a matar seu filho. - Disse Chiara.

Armine a fulminou com um olhar reprovador e sua face se tornou inexpressiva. Não estou ganhando esta, pensou Hugo, mas de todo o modo é ao pai quem quero.

—Não tínhamos nada em contra a criança, - disse Hugo — mas pensamos que seria melhor entregá-lo como oferenda a Deus, quer dizer, enviá-lo a um estabelecimento de santas monjas e criá-lo em, digamos, em isolamento. Mas Gisela defendeu seu filho energicamente e recebeu o apoio de Firminius em seu teimoso e equivocado carinho por Regeane.

—Regeane era o nome da pequena? — Perguntou Chiara.

—Sim. Mas logo, Regeane começou a mostrar inclinação pelas artes escuras, igual a seu pai. Desgraçadamente, Firminius morreu quando Gisela era ainda jovem e ela não voltou a ceder ante a sólida orientação masculina proporcionada por meu pai, Gundabald. Em vão levou a menina de santuário a santuário, a Igrejas dedicadas à adoração de Cristo, sua Santa mãe e os muitos Santos, tentando a todo custo tranqüilizar o turbulento espírito de Regeane e submeter sua alma rebelde. Mas falhou. Então estávamos em Roma procurando a bênção do Papa quando Gisela, esgotada depois de tantas penas e tribulações, por fim obteve o descanso eterno. Pouco depois de sua morte recebemos a notícia de que Carlos, rei dos francos, tinha preparado um matrimônio para Regeane. Naturalmente, estávamos horrorizados.

—Naturalmente. - Chiara arqueou uma sobrancelha e imitou Hugo com ironia.

Hugo a ignorou.

—Mas o Papa, o novo Papa Adriano, interferiu em nossas tentativas de impedir o matrimônio. Afastou Regeane de nossos cuidados e se assegurou de que fosse desposada, como a pobre Gisela, com um selvagem e um descarado. Nem tem que se dizer tem que este descarado estava encantado com ela.

—Devo supor que este carinho por Regeane era de muito mau gosto? — Perguntou Chiara.

Novamente, Hugo a ignorou.

—Somos uma grande família, embora vinda estejamos aparentados com os Arnulfing, os reis francos. Um humilde plebeu como este Maeniel a teria considerado um grande prêmio, mesmo se tivesse sido uma mulher meio boba com um só dente. Mas o Papa fez ouvidos surdos às advertências de meu pai. Então Gundabald e eu contatamos com a facção lombarda em Roma. Pediram contas ao Papa em pessoa e Regeane foi julgada por bruxa.

Chiara franziu o cenho, mas os outros comensais estavam boquiabertos.

—Ela escolheu um julgamento por combate e o tal Maeniel a defendeu. Foi uma batalha longa e encarniçada, mas embora resulte difícil de acreditar dado que o campeão lombardo era um guerreiro poderoso, ousado, justo e honesto, ele foi derrotado à mãos por Maeniel. Acredito que ele e Regeane deviam ter combinado com magia negra para destruir o campeão de Deus.

—Não vá tão longe, - advertiu seu hóspede a Hugo, - mas continue. Até agora está fazendo bem.

Estava. Ele sabia. Todos, salvo Chiara o olhavam com a boca aberta, de admiração.

—Mas isso não é o pior.

—Não? —ofegou Armine.

—Não. Meu pai acreditou que cabia certa esperança de que Maeniel não estivesse tão enfeitiçado por Regeane para ser imune a todo bom conselho, então foi tentar uma vez mais. Encontrou-os em seu banquete de bodas. Eu sei; eu o segui. Estava terrivelmente preocupado por sua segurança e tinha uma boa causa. Porque, quando ele começou a admoestar Maeniel, ele e Regeane abandonaram suas emprestadas formas humanas. Sob a aparência de um lobo, igual ao seu pai, ela caiu sobre meu santo pai e... Junto com seu encantado amante, também ele em forma lupina... Destroçaram-no membro a membro. Aconteceu tão rápido! Não pude fazer nada. Quando vi que tentavam me fazer pagar pelo espantoso crime. Que acabariam rapidamente com minha própria vida, eu fugi com a determinação de vingar meu pai, para depois me retirar a um monastério onde passar o resto de meus dias dedicando-me à oração, a flagelação, as boas obras e a sagrada penitência. Mas antes de partir, devo advertir ao duque lombardo sobre Maeniel e Regeane, quem agora serve ao rei franco e esperam lhe ajudar em sua guerra contra o legítimo governante da Lombardía, o duque Desidério.

—É toda uma história. - Disse Chiara.

—Oh, temível será o dia no qual o senhor ungido por Cristo, sua excelência o governante dos lombardos, seja atacado mediante a magia negra. - Disse Armine. - Mas o que pode ele fazer contra este casal? Diga-me! Rogo-lhe.

Hugo sorriu. Os dentes que ainda lhe restavam eram impressionantes, um pouco manchados de verde, mas ainda bons.

—Lhe diga que inclua cães lobo entre seus cães de guerra porque, tenham por seguro, Maeniel e Regeane tentarão espreitar seus movimentos e planos, para informar Carlos, o rei franco. Se o lombardo pode destruí-los, arrebatará aos francos uma de suas armas mais poderosas.

Armine franziu o cenho.

—Eu ia enviar cartas ao rei Desidério esta noite. Esta história é tão fantástica... Que quase não dou crédito. Mas todos sabem que os redutos do paganismo ameaçam constantemente aqueles que acolhem a Cristo. Então o advertirei de que este vil casal dirigiu sua malícia contra ele... E de que inclua os melhores cães lobo entre seus cães de guerra.

 

                                                                 Capítulo 6

Depois de fazer amor, eles nadaram até a cascata no centro do lago e descansaram sobre a plataforma de basalto negro, erodida pela água ao longo dos séculos. As noites nas montanhas ainda eram frias. Às vezes eram mesmo em pleno verão, mas o sol da tarde era quente sobre seus corpos e a água estava, para surpresa de Regeane, quase quente.

—Há um manancial de água quente nos arredores, — explicou Maeniel. - Ela enche o lago lá de cima. Antes eu o conhecia como o Espelho da Dama.

—Dama? — Perguntou Regeane.

—Sim. - Disse Maeniel. - Só Dama. Matrona me disse que assim é como a conhecia na Grécia há dois mil anos.

Regeane sorriu.

—Matrona se lembra?

—Sim. — Maeniel não sorria. - Matrona se lembra.

Regeane descansava de costas sobre a pedra, com a cabeça no regaço de Maeniel, deixando que a água morna fluísse sobre ela. O ar que os rodeava ainda soprava com certo frio e a mistura constituía um prazer para os sentidos. Ela levantou o braço e lhe tocou a face.

—Fizemos o amor como homem e mulher muitas vezes, mas nunca nos amamos em nossa outra forma.

Ele parecia um pouco inquieto. Depois se inclinou e lhe beijou a ponta do nariz.

—Você ainda não está preparada. Como mulher, está completamente desenvolvida, mas uma loba evita o desejo até que alcance a cúpula de seus poderes. Ainda não alcançaste a tua, mas deve saber que se pensa que é como os cães, você está equivocada.

—Não é?

—Não. Quando chegar o momento e você estiver preparada, eu a guiarei. Até então, dê-se por satisfeita.

Ela levantou os braços, enlaçou os dedos entre os cabelos de Maeniel e ergueu seu rosto até o dele, para beijá-lo. O sol era quente, igual que seu corpo. A luz do sol deslumbrava ao se refletir na água e até o mesmo ar que lhes rodeava cheirava a primavera. Quando seus lábios se separaram, ela descobriu que já não descansava sobre seu corpo. Agora ele estava sobre ela, que estava entre seus braços.

—Outra vez? — Ela perguntou com simulada enfado.

—Sim.

—Bem. Não me importa amá-lo. Ou, melhor dizendo, não me importa que me ame.

—Eu a amarei. - Disse ele.

Ela se sobressaltou ligeiramente.

—Acredito que já o tem feito.

—Só estou começando.

—Se isso é o começo, como é o final?

—Concentre... E me assegurarei de que averigúe.

Depois disso, os dois deixaram de se interessar pelas palavras.

Quando terminaram, Regeane adormeceu nos braços de Maeniel. Ele era muito lobo nesses momentos para dormir. Ficou deitado e a sustentou. O sol entrou um pouco mais no céu. Só podia ouvir o canto dos pássaros e o doce e urgente som da água ao cair. Às vezes o vento sussurrava ao agitar as copas das árvores. Com seu fôlego ele fazia com que a cor dos álamos que margeavam o lago mudasse do verde ao prateado. Mais longe, Maeniel ouviu o uivo de um lobo. E se perguntou se a alcatéia ainda se reuniria no lago de cima antes da caça; mas depois, o uivo do lobo se converteu da agradável frouxidão em desconforto.

Ela despertou e abriu os olhos. Maeniel se introduziu na água do lago, perto da cascata, e ela o seguiu.

—Há uma alcatéia perto. Será melhor que irmos embora. Para eles, só somos outros lobos. Não gostarão de nos encontrar em seu território.

Ela assentiu e se voltou para retornar nadando, mas ele a pegou pelo braço.

—Quieta! – Maeniel lhe pôs um dedo nos lábios. A canção do lobo começava novamente e ele queria ouvir. - Falam sobre um humano acampado não muito longe.

Estavam descansando juntos na água, com os braços sobre a plataforma de basalto perto da cascata. Ele a olhou.

—Oh! - Disse Regeane. - O saxão. Esqueci-me de mencioná-lo. Veio comigo, no caso de...

—O que é isto? - Disse Maeniel. - Um desfile de Estado? Quem será o seguinte a sair dos arbustos? Matrona? Gavin? Antonius? Bárbara?

—Gavin. - Disse ela. - O certo é que não o viu desde que acampamos com o rei.

—Naturalmente, - respondeu Maeniel. - Suas oportunidades para a libertinagem são limitadas nas montanhas. Quando descobriu os carroções de “apoio” que acompanham o rei, provavelmente ficou louco.

Regeane mergulhou de cabeça, tornou e começou a nadar para a margem.

Maeniel a seguiu.

Umas quantas horas mais tarde, eles chegaram ao acampamento do saxão. Ele estava com cara de mau humor, agachado junto a um fogo. Os dois lobos saíram de entre as árvores e entraram sigilosamente em um pavilhão montado junto ao bosque. Quando viram que estava vazia, mudaram de forma e se vestiram com roupa humana; depois saíram para saudar o saxão.

Ele havia colocado armadilhas e conseguiram jantar um bom composto de guisado de coelho com pão, que ele havia feito simplesmente esquentando uma pedra e jogando a massa sobre ela. Tinha passado muito tempo desde a última vez que Maeniel viu alguém fazer pão daquela forma.

Passaram a noite com todas as comodidades. Regeane e Maeniel ficaram no pavilhão e o saxão se envolveu em sua pele de urso e passou a noite sob as estrelas.

A discussão surgiu antes da alvorada.

—Você passou um bonito dia no bosque. - Disse Maeniel a Regeane. - Agora está me atrasando e me afastando de meu verdadeiro objetivo.

Ainda não havia amanhecido e uma névoa prateada fluía através do bosque, procurando seu caminho entre as árvores com longos e finos filetes. Tinha começado a cair antes do pôr-do-sol, e brilhava como madrepérola a suave luz da lua. Então, ao amanhecer, antes que o sol voltasse a despertar mais à frente da passagem, parecia que o mundo inteiro sob seu suave domínio.

Nesse momento foi quando entrou no pavilhão, tão suave e silenciosamente que sequer Maeniel, o lobo cinza, pôde intuí-la ou senti-la. Mas Regeane despertou, nadou até subir das profundezas de águas negras que descansam o fundo da consciência. Talvez atormentasse a loba de prata, como atormenta a todos, porque foi de onde surgiu de um nada o primeiro antepassado, nem planta nem animal e atravessou a barreira infinita e desconhecida entre o animado e o inanimado, para que nascesse a vida. A vida conhece a água antes que todo o resto. Enche nossos pulmões no útero como aviso do lugar de onde viemos e o que somos; descansa como um lago sob a consciência e, abaixo, sob os sonhos. E no mais profundo sono, o cérebro meio descansa nela e se renova para poder recuperar a consciência quando acorda.

E do mais profundo dos lagos, o poço mais à frente do mundo, da névoa e da voz havia chamado Regeane. Se o amar, não lhe deixe partir sozinho. Depois a voz se tornou farrapos pelos ventos do tempo enquanto a névoa se dissolvia no ar da alvorada e ela caía no sono e a esquecia.

Agora, Maeniel a beijava na testa e a empurrava para o saxão.

—Vá para casa. – Ele lhe ordenou. - A partir de agora devo viajar rápido, nas sombras durante o dia e na escuridão da noite. Não tenho tempo para me preocupar de que você não possa manter sua forma. Ou mesmo para te defender de outras alcatéias de lobos ou para te ensinar como viver na natureza, comer algo que possa caçar e evitar deixar rastros para outros lobos ou homens. Você ainda não sabe o bastante para ir comigo e passarão muitos anos antes que o faça. Esta não é uma excursão de um dia por minhas terras ou uma caça organizada para sua diversão e eu não tenho tempo para te dar lições sobre as habilidades que necessitaria para sobreviver. Um engano de sua parte pode fazer com que me matem no melhor dos casos ou que matem a nós dois, no pior. Isto é a guerra... E a guerra não é lugar para tolos. E quanto a você... — Ele se voltou para saxão. - Posso te encarregar a missão de levá-la para casa a salvo. Em todo o tempo que está conosco, você nunca me viu realmente zangado, mas se eu descobrir que a ajudou e a apoiou em sua loucura, depois disto, você conhecerá minha ira. Prometo-lhe. E a sofrerá durante muito tempo. Provavelmente pense que seus amos lombardos eram duros, mas o que lhe fizeram não é nada comparado com o que eu posso fazer. Eu o encontrarei em qualquer lugar que se esconder e obterei minha compensação. Se acontecer alguma coisa a ela... – Maeniel se interrompeu. - Regeane, – ele se voltou para ela. - Sua vida está em suas mãos. Entende-me? As lágrimas corriam pelas faces da mulher. - Não há força terrestre que possa me obrigar a te fazer o mais leve dano, mas não posso dizer o mesmo respeito dele. Entende?

—S-sim. - Gaguejou ela.

—Bem.

Por um instante se pôde notar uma sombra cinza fugaz na névoa da manhã e depois ela desapareceu.

 

Lucila e Dulcínia se encontraram uns quantos dias depois que Silve lhes fizera saber de sua grande notícia.

—Como demônios, você ficou grávida Silve? — Perguntou Dulcínia.

Ambas as mulheres estavam no jardim de Lucila, descansando depois do jantar. Nenhuma tinha vontades de se mover muito. Lucila simplesmente ergueu os olhos para o alto e olhou para Dulcínia.

—Ou descuidei completamente sua educação...

—Sei, sei. Mas meia Roma passou por cima do corpo de Silve. Se não ficou grávida antes, por que agora, em nome de Deus?

—Pode ser que tenha ficado antes, - disse Lucila - e tomasse uma beberagem para perdê-lo. Lembre-se que ela sofreu muitas privações antes que Regeane a tomasse sob seu amparo. Agora tem abundante comida e a intervalos regulares deixou de beber a horrível beberagem que estava acostumada.

—Agora a serve aos seus clientes. - Disse Dulcínia.

Lucila sacudiu a cabeça.

—O que servem nos piores botequins é bem pior do que o que ela serve. Não direi que as poções que ela vende sejam boas para a saúde, mas ela é estranhamente honesta nesse sentido. Toda a vizinhança recorre a ela para beber e ela trata muitas enfermidades com suas misturas.

Dulcínia parecia surpresa.

—Os pobres vão freqüentemente ao botequim quando estão doentes. Silve tem poções para a febre intermitente, para as febres periódicas, crianças doentias e inclusive para os bebês com cólica. Pouco pode ajudar com as enfermidades que os afligem. Várias ervas misturadas ao vinho podem limitar os efeitos. E depois, é obvio, a mulher cujo período não veio e cujo marido está fora da cidade... Pode que só eu seja um atraso, mas...

—Ah, sim - Disse Dulcínia.

—E depois a procuram, os que têm uma enfermidade dos pulmões, para não mencionar outros que são simplesmente velhos e lhes incomodam as dores dos ossos.

—O que ela não sabe, - Disse Dulcínia, - provavelmente Simona saiba. Ela aconselha Silve freqüentemente.

—Simona? — Perguntou Lucila.

—A mãe de Póstumo. - Disse Dulcínia. - Silve correu a ela depois de escapar de Hugo. Simona me enviou-a e depois...

—Você a trouxe até mim. - Disse Lucila.

—E a criança?

Lucila respirou fundo.

—Bom, está claro que o quer; se não, com suas habilidades, não o estaria levando. Assim que a mandei A casa com a Susana, minha donzela, e lhe dava ordens estritas para que obedecesse A Susana em tudo.

—O pai?

—Ela não tem a menor idéia de quem pode ser.

—Talvez seja melhor assim. Dada a natureza dos amigos de Silve, se soubesse pode que só causasse problemas.

Lucila assentiu.

—Certamente, quando começar a se notar, todos seus clientes vão ficar de olho uns nos outros.

—Sim e provavelmente todos tenham boas razões para tanto. Sem dúvida nenhuma.

 

 

 

Dias depois de Hugo contar sua história a Armine, Chiara foi o bastante tola para deixá-lo lhe pegar sozinha no jardim. Ela fazia todo o possível para lhe evitar desde que ouviu a história, inclusive chegou a jantar em seus aposentos quando a família jantava com ele, mas o jardim precisava de cuidados. Era simplesmente uma questão prática. O jardim do pátio era um lugar onde tomar ar e receber visitas, mas se estendia ao redor da parte traseira da casa fortificada e continha uma pequena horta e árvores frutíferas. Uma variedade de ervas subministrava condimentos e verduras para a casa e remédios para a Madonna, que para grande pesar de Chiara, não melhorava absolutamente. O médico havia a tornado a sangrá-la, mas sua mãe estava tão fraca que Chiara havia ficado horrorizada pela crueldade do procedimento.

O doutor cheirava a álcool e havia cortado-a em meia dúzia de lugares antes de encontrar uma veia que gostasse. Quando o braço de sua mãe esteve por fim sobre a terrina, o sangue não deixava de coagular e o médico teve que seguir reabrindo cada corte, até que Chiara o expulsou do aposento como fúria e consolou sua mãe. Enquanto ela jazia chorando nos braços da Chiara, Chiara lhe prometeu que se desfaria do homem, sem importar o que dissesse seu pai.

A garota estava no jardim recolhendo ervas para o armário de remédios de sua mãe e pensando em como levar a cabo sua façanha. Ela sabia que ali cresciam várias coisas...

De repente, Hugo a tinha entre seus braços e respirava sobre sua face. A respiração de Hugo fedia como água de pântano. Chiara se revolveu tentando se desembaraçar, de puro asco. Tentou lhe cravar as unhas nos olhos e quase o deixa cego. O fato provocou a saída de seu hóspede, que golpeou Hugo com força e o lançou contra uma pérgula de ferro usada para cultivar uvas.

—Deixe-a em paz ou o destroço a pauladas.

Chiara se afastou do cambaleante Hugo, com o rosto perfeitamente pálido. Tanto o hóspede como Hugo eram conscientes de que ela havia ouvido-o.

—Idiota! - Rugiu o hóspede e deu uma bofetada em Hugo e este caiu no chão. – Vai estragar tudo, estúpido libertino. Em uma cidade cheia de cortesãs, tem que escolher uma garota respeitável. Quão estúpido pode chegar a ser!

—Não. - Disse Chiara. - Não o golpeie novamente. Poderia lhe matar.

—E isso a preocupa? — Perguntou o hóspede de Hugo.

—Absolutamente. - Disse ela. - Mas nunca seria capaz de explicar ao meu pai.

—Certo. - O hóspede de Hugo sorriu, em uma desagradável gargalhada de alegria.

A pele de Chiara arrepiou.

—O que é? Um demônio?

—Provavelmente. Estou surpreso.

—Do que?

—De que possa me ouvir. A maioria não pode.

—Sim, é um dom. - Disse Chiara. - Quando morreu tia Stella, eu a vi subir as escadas para os aposentos de minha mãe. Não sabia que havia morrido. Pensei que simplesmente estava de visita, mas quando perguntei a minha mãe sobre isso, ela começou a chorar e me disse que Stella estava morta. Mas não se preocupe, não direi a ninguém. Eu... Eu... Eu acredito que entendo melhor o que está acontecendo. Essa estranha história. Ele vendeu-te sua alma?

—O que posso querer desta podre, suja e diminuta alma? Seu corpo já é o bastante ruim. Não, só quero usá-lo durante um tempo.

Hugo estava sentado, sustentando-a cabeça.

—Pergunto-me, se poderia me ajudar com um problema. - Disse o hóspede.

Hugo começou a se levantar.

—Sente. - Disse o hóspede. - Fique aí.

Hugo se sentou.

—O que quer? — Perguntou ela com voz trêmula.

—Sua influência com seu pai. Ele já escreveu ao rei?

—Sim. Logo que ouviu a história que ele, - Chiara assinalou Hugo, - contou. Mas eu o persuadi para que não fosse muito crédulo.

—Tente que ele escreva e elogie todo o possível o querido Hugo.

—Sim. - Disse ela e assentiu para dar ênfase as suas palavras. - Sim, certamente o farei.

—Agora, qual é seu problema?

—Quero me desfazer do médico que trata de minha mãe. Acredito que a está matando.

—Está bem. - Disse o hóspede de Hugo com voz desagradável. - Jogue fora seus remédios e os substitua por extratos de frutas. São venenos. – Ele disse e depois gritou. - E, pelo amor de Deus, alimente essa mulher.

Chiara retrocedeu piscando.

—Farei isso. Farei isso. Eu ia levar-lhe um pouco de capão e sopa.

—É um bom começo. Agora, se mova.

Chiara fugiu.

 

Regeane retornou ao pavilhão, com a cabeça alta e os punhos crispados. Uma vez dentro, derrubou-se de tudo e chorou. As lágrimas saíam em igual medida que sua raiva. Não havia muito que destroçar por ali, somente um par de panelas, mas ela as atirou contra no chão de toda forma. E depois atacou as grossas paredes de lona com sua faca e as deixou em migalhas.

—Vou deixá-lo. Farei isso. Não pode me reter. Pelo menos é o que diz Matrona. Irei. Não... Eu ficarei... Ficarei só para lhe castigar. Nunca voltarei a falar com ele.

O saxão encolheu os ombros e foi se barbear junto ao arroio, um pequeno passeio colina abaixo. Quando voltou, sentou-se sobre uma pedra e esperou. Quando cessaram os ruídos, ele se levantou e começou a misturar pão para o café da manhã. Ao cabo de um momento saiu Regeane. Estava mais calma, mas tinha o nariz e os olhos vermelhos. Ela se sentou sobre um tronco junto ao fogo.

O saxão fez pão sobre uma pedra quente, acrescentou-lhe queijo e a passou a Regeane.

—Ele conhece-me muito bem. - Disse ela. - Posso arriscar minha vida, mas não poderia suportar que te acontecesse algo. – Ela disse e rasgou grosseiramente o pão com os dentes.

—Se um homem, - Disse o saxão, - qualquer homem, encontra algo que ama loucamente, protegerá essa pessoa ou coisa. Se necessário a protegerá até a morte.

—Sim, mas o que eu faço? —As lágrimas começaram a deslizar por suas faces novamente.

—Tome o café da manhã. - Disse o saxão. - Já pensaremos em algo.

E eles desenvolveram várias idéias durante algumas horas, mas não puderam encontrar nenhuma que ambos considerassem viável. Depois, desanimados, eles andaram os poucos quilômetros que os separavam do lago e ficaram em pé olhando a água.

— Ele me trouxe aqui ontem. Comportava-se como se já conhecesse o lugar. - Disse Regeane. - Mas está longe da fortaleza.

O saxão estremeceu e lhe arrepiou os pêlos dos braços.

—Não faz frio.

—Este lugar... – Ele disse enquanto esfregava os braços. - Pode senti-lo?

—Suponho.

—Perto... Perto da árvore...

—Que árvore? — Perguntou ela.

—Ouviste falar do Irmunsul? A árvore sagrada, que Carlos destruiu?

—Não sei.

—Ele veio a nossa terra, não faz muito tempo. Quando fui capturado, nós, minha família, éramos os guardiães da árvore. Eu saí a cavalo para dar o alarme, mas este Carlos é muito bom soldado. Pegou-nos de surpresa e minha mãe e eu éramos os únicos membros presentes de minha família. — O saxão se calou por um momento. Parecia perdido em suas lembranças. - Carlos veio ao santuário pelo ouro que enterramos no campo. Mas não precisava destruir a árvore para isso. Minha mãe estava no santuário. Era rodeado de três anéis, com bordas de terra e a árvore se levantava sozinha no centro, sobre um monte. Reuníamo-nos ali e celebrávamos nossas assembléias quatro vezes por ano. Minha mãe enfrentou os francos, sozinha. Mataram-na. Diz que, antes de morrer, ela disse a Carlos que tudo o que ele fizesse, no fim se converteria em cinzas. Disse que ele conquistaria um império, mas seus filhos não governariam por muito tempo. Eles o perderiam e que a pessoa que mais amasse lhe trairia e outros recolheriam o que ele tivesse semeado.

—Eu acredito, - disse Regeane, - que ele sonha refazendo o mundo como fizeram os romanos e estendendo seu domínio inclusive além deles, mas pensa que para fazer isto deve receber a bênção de Deus. Parece como se a grande árvore fosse seu primeiro tributo ao deus cristão. Ele acusou meu marido de queimar o monastério. Maeniel disse que não parecia muito preocupado por Gundabald ou por meu tio, mas sim pelos insultos à igreja.

—Ah, bom. - Disse o saxão. - Nós fizemos isso. E, além disso, foi um bom trabalho.

—Não me arrependo. - Disse ela. - E tampouco o faria Carlos se soubesse toda a verdade.

—O que aconteceu com esse Gundabald?

—Não era um indivíduo muito agradável.

—Não, mas isso eu já havia suposto.

— Ele assassinou meu pai.

—Wolfstan?

—Sim. Disseram que foi um acidente de caça, mas Gundabald o assassinou. Meu pai era...

—Como você. Eu sei. Seu pai era muito amado. Somos parentes... Muito longínquos, mas temos o mesmo sangue. Essa é a razão de que para mim seja uma honra te servir.

—Oh! - Disse Regeane em voz baixa. - Agora compreendo. Não havia me dado conta. Mas você deve conhecer os familiares de meu pai, não?

—Não muito. - Disse o saxão. - Recorde-se que fui vendido como escravo aos lombardos. Não vou para casa há muito tempo. Além disso, você tem obrigações aqui.

—Sim e... — Regeane o interrompeu e assinalou o alto da cascata. - Maeniel chamou esse lugar de o Espelho da Dama.

—Então, vamos dar-lhe uma olhada.

E eles subiram até o topo.

O lago estava muito tranqüilo. Parecia que ninguém passava por ali, nem sequer a alcatéia de lobos que freqüentava a região. Uma grossa vegetação crescia ao redor da água e os caules das rosas silvestres, cobertas de flores desciam até introduzir no lago. As flores desta rosa eram quão maiores o saxão tinha visto e tinham também as cores mais vivas. Um rosa intenso, quase malva nos borde, dava-lhe sua sombra ao branco, ao redor dos fios de lã cor dourado brilhante do centro. O perfume das flores se deixava sentir no ar imóvel, mas os longos e espinhosos caules que se enrolavam nos esbeltos serbales pareciam formar uma barreira quase impenetrável para qualquer que quisesse se olhar no lago.

—Não sei se poderemos passar. - Disse o saxão. - Pelo menos, não sem nos abrir passo com a espada. – Ele começou a tirar a espada que carregava pendurada atravessada sobre as costas.

—Não. - Disse Regeane. - Aqui não. – Ela estendeu a mão e o saxão sentiu que se arrepiava, enquanto os caules da roseira silvestre se afastavam sob seu toque e abriam um caminho para permitir que os dois passassem.

Um segundo depois, eles se encontravam à margem do lago. As rochas estavam cobertas de musgo, que cedia como um suave tapete sob seus pés.

—Ninguém vem até aqui, sequer os animais. - Disse Regeane.

—Quer dizer que a ninguém é permitido vir, verdade?

Regeane se olhou na água; o saxão também o fez.

—Só um bosque. - Disse ele.

—Sim, mas não este.

E ela estava com razão, porque o bosque era outro e eles estavam olhando para uma montanha coberta de nuvens cujas vertentes eram elevadas arestas e profundos ravinas. As árvores eram gigantes, mais altas que nenhum outro que Regeane ou o saxão tivessem visto.

Enquanto observavam, o céu se escureceu, o enorme bosque se encheu de luz esverdeada e um magnífico raio alcançou uma árvore. A árvore estalou em chamas e projetou uma gritante luz dourada sobre a camada de nuvens em movimento, a chuva caiu e a paisagem ficou meio coberta por suas cortinas sinuosas. A imagem do lago se tornou imprecisa e o bosque desapareceu para converter se em dúzias de círculos concêntricos, da mesma forma em que se turva um cristal quando a chuva o golpeia.

Seguindo um impulso, Regeane introduziu uma mão na água. Ela desapareceu, simplesmente desapareceu. Deveria ser capaz de poder ver seus dedos sob a superfície, mas não podia.

O saxão a pegou pelo braço e a afastou.

—Não! — Ele gritou.

—Parece, - disse Regeane, - que tenho mais de uma forma de viajar.

 

Estavam jantando quando o hóspede de Hugo se desfez do médico.

Quando o médico desceu para o jantar, suas pernas lhe tremiam um pouco. Chiara lhe lançou um olhar de hostilidade pura. O homem tinha ido protestar a seu pai pela interferência de Chiara. Isso lhe tinha dado uma boa oportunidade de advertir Armine de que era possível que Madonna Helen, sua esposa, não vivesse muito mais.

A notícia havia afetado gravemente Armine. Quando ele se casara com Madonna era um mercador com muito futuro. Nunca a vira antes das bodas e, nesse dia ele ficou decepcionado. Ela era muito magra, silenciosa, reservada e tímida e seu aspecto loiro pálido, quase descolorido, não o intrigava. Ela ficou grávida no primeiro mês de casados e ele deixou sua cama até que chegou o momento de voltar a se deitar com ela. Novamente ela ficou grávida imediatamente. Depois do nascimento de sua segunda filha, a saúde de sua esposa se deteriorou por um tempo e os assuntos de negócios o obrigaram a viajar. Quando retornou, sua mulher havia recuperado a saúde e eles reataram as relações. Preocupava-lhe um pouco o fato de que seus dois filhos mais velhos fossem garotas.

Embora Chiara estivesse aprendendo sobre seus negócio e lhe servia de ajuda, ele creditara em sua esposa os assuntos da contabilidade e com o investimento dos consideráveis benefícios de seus negócios. Pelo menos em parte, graças a sua esposa, ele era um dos homens mais ricos e importantes da cidade.

O medo o paralisava; não sabia o que ia fazer sem sua esposa. Também lhe embargava a culpa, por não ter sequer se incomodado em conhecer alguém tão importante em sua vida.

A máscara de pura e fátua satisfação do médico enfureceu Chiara que, se tivesse encontrado a forma, o teria assassinado no mesmo instante. Ela se perguntava se o amigo de Hugo manteria sua promessa quando ele fez precisamente o que prometera.

O médico estava engasgado com a sopa, um caldo de feijões, com porco salgado e arroz. Ele estava bebendo ruidosamente quando parou para soltar um grito e saltar meio metro.

—O que tem homem? — Perguntou Armine.

—Na-nada! - Gaguejou o médico.

—Nada? O que é isto? Nada? —Chiara ouviu-se dizer ao hóspede de Hugo. Ouviu as palavras com tanta claridade que estava segura de que todos na mesa as ouviram também. Ela olhou ao seu redor e só viu expressões vazias.

Desta vez, o desventurado homem emitiu um som que recordava uma matilha de cães de caça seguindo um rastro. Começava baixo e se elevava mais e mais até acabar em uma nota quase feminina. Nesse mesmo momento, ele colocou as mãos entre as pernas e saltou em cima da cadeira.

—Ah, isso está melhor - Disse o hóspede de Hugo, enquanto dava voltas na cadeira.

O médico deu um grito terrível e aterrissou de repente no chão. Durante o seguinte minuto aproximadamente, o homem realizou as acrobacias mais extraordinárias que Chiara já teria visto. Rodando uma e outra vez pelo aposento como se tentasse escapar de mãos invisíveis que o perseguiam, lhe golpeando, atiçando e medindo suas partes íntimas. Em certo momento, ele se encontrou deitado de costas, esperneando, dando voltas e mais voltas em círculo, enquanto gritava uma e outra vez com todas suas forças.

Tudo isto, pelo menos para ouvidos de Chiara, era acompanhado de escandalosas e contínuas gargalhadas. Armine se levantou de um salto.

—Por Deus bendito, homem. Está possuído pelos demônios?

O médico nem sequer parou.

—Oh. Ai. Não, oh. Não! Não! Não! — Agora ele estava de joelhos, arrastando-se para a porta.

As risadas pararam e Chiara ouviu uma voz gritar:

—Mais rápido... Mais rápido. Mais rápido, mula. - Chiara se deu conta de que a criatura estava montada sobre o desgraçado homem.

A garota se levantou, correu para a porta e a abriu de um golpe.

—Obrigado. - Disse alguém.

O médico saiu da sala de forma precipitada. Havia dois abajures em pé feitos de latão que ardiam com azeite, de cada lado das portas. O azeite caía a jorros desde ambos os abajures, dando um salto no ar e prendendo enquanto fluía. O médico gritava enquanto seguia correndo.

Chiara o seguiu até a porta. Com fogo ou sem ele, queria vê-lo na rua.

O homem alcançou a entrada. A porta se abriu sozinha, ou melhor, sem intervenção humana e o médico saiu como que impulsionado por um bom chute, que passou voando por cima dos degraus e aterrissou de bruços na rua. Depois que caiu uma chuva de moedas de ouro sobre seu corpo, o homem ficou de joelhos e começou a recolhê-las o mais rapidamente possível.

—O que é isso? — Perguntou Chiara.

—Seus honorários. — Respondeu o hóspede de Hugo. - O ouro é uma poderosa força para motivar os humanos. Sua estadia com sua família lhe foi lucrativa. Pensei que seria melhor enviar o dinheiro com ele. Não gostará que volte, não é?

—Sim... - Disse Chiara. - Quero dizer, não.

O homem ouviu sua voz e olhou para ela. Chiara enfrentou seu olhar. Os olhos da garota lhe queimavam o cérebro.

—Vá... – Ela disse. - Vá e não volte jamais.

Quando Chiara fechou a porta, o homem já havia recolhido todo o ouro, se levantou e fugiu dali a toda velocidade. Ela fechou a porta e se voltou.

—Obrigada. – Ela disse.

—Não há de que. - Foi à resposta.

Quando retornou à sala, os criados estavam recolhendo o azeite derramado. Sua irmã, Phyllis, e os meninos estavam imensamente entretidos. Seu pai estava alterado, sua mãe parecia aliviada.

Chiara voltou para seu assento.

—O que aconteceu? — Perguntou-lhe seu pai.

—Ele bebe muito. Está vendo serpentes. Ouvi-o dizer, que passa logo, a cabo de um momento.

—Uma lástima. - Disse seu pai. - Agora terei que procurar outro...

—Não, não procurará. - Lhe disse sua esposa.

Armine parecia surpreso. Em todo o tempo que estavam casados, ela nunca lhe havia contradito.

—Jamais permitirei que ninguém trate nenhuma de minhas enfermidades. Não posso nem descrever as torturas que suportei nas mãos desse idiota miserável e bêbado. Pode ser que viva ou que morra, mas o que acontecer, aceitarei a meu modo. Chiara é perfeitamente capaz de atender qualquer de minhas necessidades e ela é o único médico que me atenderá. Um dia a mais com esse imbecil e teria contratado um assassino. Fica claro?

—Sim, querida! - Disse Armine.

Uns quantos dias depois, Hugo deixava Florença, a caminho da Paia, acompanhado por Chiara e Armine, para ser apresentado ao governante lombardo, Desidério.

A esposa de Armine bem melhor e se recuperava satisfatoriamente.

 

Maeniel avançava através das montanhas, tal como havia dito a Regeane. Viajava principalmente à noite e caçava a alvorada e no crepúsculo. Havia conseguido se alimentar em pequenas quantidades até que chegou a abertura do final da passagem e olhou para baixo, para as ladeiras mais baixas da montanha para contemplar os úmidos vales do Correio.

Os vales do rio ao pé da montanha eram a porta de entrada para a Itália. Os romanos haviam se acantonado nos dois povoados do rio que ofereciam o caminho mais fácil. Esta rota comercial não era simplesmente a melhor, mas por várias razões, o caminho entre os dois vales fluviais era o único possível. Eles tomaram posições defensivas nas gargantas de Ivrea e Suas. Não só tomado, mas também fortificado e o rei lombardo tinha delegado tropas suficientes para manter ambas a bom arrecado.

De sua posição na ladeira da montanha, Maeniel observou os aterros que se estendiam através do estreito pescoço da garganta e pensou que o tal Desidério não era nenhum idiota. De todos os lugares da montanha, provavelmente este era o melhor para parar Carlos.

O lobo cinza se deitou, descansando a cabeça sobre as patas, para esperar que caísse a noite. Já havia inspecionado Ivrea e sentia que era o pior lugar para desafiar Desidério. Mesmo se Carlos conseguisse forçar o pescoço dos aterros que atravessavam a garganta, havia duas ou três excelentes posições de retirada para as forças do Desidério. Atacar ali seria como se render. Mas onde estava... Aqui, pensou o lobo, aqui há possibilidades.

Nessa noite ele foi descuidado. Estava lidando com humanos e se acostumara. Ele tinha o vento à suas costas e ainda era dia quando começou a descer. De fato, sequer havia entrado o sol, mas ele se encontrava atrás dos escarpados que davam ao vale. O rio e o caminho estavam à sombra e o vento das montanhas começava a esfriar.

Sim, ali estavam às antigas muralhas romanas que vigiavam ao rio, cujos restos não eram mais que um atalho rochoso que avançava até a margem e seguia a água por baixo das torres de pedras. Um exército que tentasse passar por ali teria de andar quase em fila indiana entre altos escarpados junto a um rio, que graças à neve derretida que o alimentava desde as cúpulas, convertera-se em uma corrente enfurecida. Mas pelo contrário que na fortaleza, o caminho só se estreitava durante um curto lance antes de voltar a se alongar. O rio caía formando corredeiras, mais à frente do forte romano; e, depois do forte havia um povoado. Não era muito grande. Era o tipo de lugar que cresce perto dos postos do exército para oferecer serviços tão prazenteiros como necessários aos militares.

O povoado também era fortemente cuidado. Era formado em uma saliência rochosa que se sobressaía em direção ao rio. Consistia em um grupo de edifícios de pedra calcária com telhados de telha vermelha, um muro resistente e uma pesada porta no lado que dava para a terra firme, para protegê-lo dos malfeitores. A localização de outros edifícios rodeados pelo rio transbordante e gelado bastava por si só para desanimar qualquer pessoa o bastante valente ou estúpido para tentar entrar pela força.

Mais à frente do povoado, o vale se alongava e continuava para baixo até uma planície fértil de agradável aspecto. O lobo, apesar de toda sua despreocupação, não era tão tolo para usar o caminho. Abriu passo junto a ele, através da espessa vegetação de arbustos, altas malesas e árvores que margeavam o estreito atalho, até que chegou tão perto da fortaleza que foi consciente do perigo de ser visto. Então se voltou e começou a subir a colina atrás dos muros.

Sim, ele pensou. Isto pode se flanquear. O lugar devia ter sido inexpugnável nos tempos dos romanos. As fortificações dominavam o primeiro ponto do vale e o povoado o segundo, mas ao longo dos anos, os altos muros entre a fortaleza e o povoado tinham começado a se desfazer.

Um deslizamento de terras havia criado um pronunciado desnível precisamente entre o povoado e as fortificações, onde antes só se levantavam escarpados muros de ambos os lados. Uma força atacante poderia rodear a fortaleza e aparecer atrás dos defensores. Nas condições atuais, o povoado oferecia poucos problemas a um grupo de guerreiros resolvidos. Sim, seria quase impossível entrar, mas seus defensores tampouco achariam fácil sair. Simplesmente selando as portas enquanto o exército principal de Carlos passasse e deixando uma pequena guarnição, em um par de semanas as pessoas de dentro, sem forma de se abastecer, acabariam se rendendo.

Carlos viria de duas direções, Mons Jovis e Mons Cenis. A parte do exército que passasse perto de Mons Jovis, a fortaleza alpina de Maeniel, poderia fingir ter sido vencida pelos defensores em Suas, enquanto que o resto fazia uma volta e flanqueava a fortificação romana.

Algo assim, ele estava seguro, era o que havia pensade Carlos quando decidiu dividir seu exército e mandar uma parte a Mons Jovis e outra a Cenis. A estratégia geral já estava planejada no cérebro de Carlos, mas Maeniel teria que lhe sugerir algumas aproximações táticas.

Maeniel se deteve sobre a quase incrivelmente ereta colina que observava sobre as fortificações que fechavam o pescoço da garganta. Dali, já não podia seguir subindo, mas lhe servia para fazer um reconhecimento do interior dos muros romanos.

Sim, eles não estavam fechados por trás, embora as partes que davam para o vale tinham sido arrumadas. Haviam lhe acrescentado novos andaimes de madeira atrás das almenas e novos aterros em frente aos muros. Estes estavam providos de afiadas estacas para repelir uma carga de cavalaria, caso necessário.

Os aterros dos dois os lados se estendiam além dos muros até o rio. De frente pareciam bastante formidáveis e de alguma forma, de trás pareciam ainda mais. Era óbvio o número de cavalos que Maeniel via pastando em campo aberto que havia uma força de reserva considerável para resistir em caso de que os atacantes não se rendessem facilmente.

Já começava a desaparecer a luz O sol já estava atrás dos picos do oeste. Maeniel arrepiou a pelagem. Ainda fazia frio nessa altitude depois do pôr-do-sol. Ele se sentou com a cabeça sobre as patas dianteiras, para esperar a escuridão, enquanto enumerava as coisas que ainda precisava fazer antes de poder se reunir com o rei. Se aproximar mais do muro protetor e se inteirar de quantas tropas defendiam o forte; se assegurar de que o povoado não escondia nenhuma surpresa desagradável para o rei e traçar um caminho que permitisse a segunda parte do exército de Carlos flanquear a fortaleza.

Sentiu uma aguda pontada de culpa ao pensar em Regeane, mas nenhuma duvida a respeito de sua decisão. Já era bastante ele ficar em perigo; se algo lhe acontecesse, muito bem. Podia assumir. Tivera uma vida longa e boa e havia experimentado muitas alegrias e tristezas; mas pôr ponto final as perspectivas de alguém tão jovem como ela seria intolerável. No fundo de seu coração, sabia que o desejo de protegê-la era fruto tanto do egoísmo como do amor. Na parte mais profunda e secreta de sua alma, ele estava seguro de que, depois de tê-la possuído, simplesmente não seria jamais capaz de voltar a viver sem ela e de que sua perda o destruiria tão eficazmente como a morte. Então a determinação de evitar que ela o acompanhasse nesta perigosa viagem era um resultado inevitável.

Ela o perdoaria. No tempo que estavam vivendo juntos, havia visto-a carinhosa, amável e desejosa em lhe agradar. Não era do tipo de pessoa que guardava rancor. Faria as pazes com ela o mais rápido possível. Depois, ele suspirou desejando que o assunto, ainda mais alheio a sua natureza que a de Regeane, terminasse para poder voltar para casa e desfrutar da companhia de sua bela esposa e de seus bons amigos, sem interferências nem interrupções. Fecharam os olhos e ao mais puro estilo dos lobos, ele dormiu uma sesta enquanto esperava a noite.

 

Hugo obteve um grande êxito na corte lombarda da Pavia. Tinha escolhido a pessoa adequada para lhe ajudar. Armine era o representante do rei no comércio de tecidos. Os reis têm que comer. Acreditava-se que o governante lombardo se abastecia economicamente graças as suas propriedades, mas o mercado para o vinho e o azeite que produziam era muito instável. Quase toda a comida se consumia dentro de um raio de poucos quilômetros do lugar de produção.

Os tempos estavam muito revoltos para enviar mercadorias de navio; os artigos em grandes quantidades, como os agrícolas, produziam benefícios pouco mais que esporádicos. O comércio de tecidos era um assunto diferente. Apesar da pobreza, o apetite pela roupa ostentosa não tinha feito mais que crescer entre a nova aristocracia Bárbara. Vestir-se até os dentes era uma das poucas armas das quais um homem dispunha para causar sensação e presumir da riqueza conseguida. Então todos os que podiam o faziam.

A seda que chegava de Constantinopla as emergentes cidades portuárias do Mar Adriático atravessava Pavia, passava pelos Alpes e se introduzia na Europa. Desidério pegou sua parte e Armine administrava suas rotas de abastecimento.

Hugo foi apresentado como um homem de sabedoria clássica com um grande conhecimento sobre as artes que dominavam os antigos: uma forma educada de indicar o fato de que havia estudado a adivinhação e a feitiçaria. E, embora a corte lombarda possuísse “homens sábios” mais que de sobra, o hóspede de Hugo se assegurou de que suas predições fossem corretas e de que seus ocasionais milagres pequenos, tais como identificar objetos escondidos ou ler mensagens ocultas em envelopes, fossem genuínos.

O hóspede não confiava a Hugo toda à informação que recolhia. Parte dela comunicava a Chiara no jardim.

—O rei não é fiel.

—Acredito que não se espera que seja. - Respondeu Chiara. - Os reis, conforme tenho entendido são uma lei em si mesmos, pelo menos no que diz as mulheres. Todos pretendem que não o vêem ou se ocorrer algum feito reconhecido, o felicitarão.

—Ah! - Disse o hóspede de Hugo.

—Onde está Hugo?

A criatura começou a rir.

Chiara se estremeceu.

—Eu gostaria que não fizesse isso. Dá-me calafrios.

—Por quê?

—Não estou segura. Terei que examinar meus sentimentos a respeito.

—Hum, que estranho. Não acreditava que sua especialidade fosse absolutamente analítica.

Chiara franziu o cenho, abaixou-se e simulou estar cheirando uma rosa.

—Você fala como se não fosse de nossa espécie.

—Não sou. Você mesma me chamou demônio.

—Sei. - Sussurrou Chiara. - Mas eu pensava que os demônios eram somente almas condenadas que trabalhavam para o diabo.

Novamente, soaram fortes gargalhadas. Pelo menos para Chiara.

—Não sei nada sobre diabo, demônios e demais, embora um antigo sacerdote meu não deixava de dizer tolices sobre essas coisas. Ele também acreditava que eu era um demônio, especialmente desde que lhe permiti satisfazer seu gosto pela crueldade e seu perverso desejo de manter relações sexuais com os mortos.

—Deus! — Sussurrou Chiara. - Eu gostaria que mudasse de assunto.

—Tampouco sei nada de Deus, — respondeu o hóspede de Hugo. - E sim, você tem razão. Cheguei a me convencer de que esse meu servente estava louco. No fim, ele forjou sua própria destruição ao desafiar alguém o bastante forte para enfrentar seus ataques, voltá-los contra ele e matá-lo. Mas louco ou não, mantive minha palavra ante ele e inclusive ante esse imbecil do Gimp e esse porco do Hugo. E também, minha bela e afetada dama, mantive minha palavra ante ti. Quando não tinha ninguém que a ajudasse, eu estava ali.

—Tranqüilo. É certo. Estava sim. E te devo mais do que jamais possa te pagar e lhe agradeço por isso. E também acredito que seja fiel a seus amigos. Mas alguma vez pensaste a respeito de um deus maior?

—Não. - A resposta foi bastante terminante. - Nem tampouco acredito que exista tal entidade. Não. Não desde que minha gente foi destruída e vocês, de entre todas as criaturas, lhes permitiu ocupar nosso lugar. Não. O universo é simplesmente resultado de forças aleatórias postas em movimento por alguma causa desconhecida e eu só cuido de minha sobrevivência e a daqueles que me servem e, se estiver preparada, faça o mesmo.

Depois desapareceu.

Chiara não sabia como era capaz de perceber a marcha da criatura, mas igual sentia sua presença, também sentia sua ausência e a surpreendeu a resposta emocional que a zangada partida despertou em seu coração.

Deu-se conta de que gostava. Isto a horrorizou levemente, mas sua conversa a intrigava e ela podia lhe dizer tudo o que quisesse. Por exemplo, tinha-lhe perguntado sobre a enfermidade de sua mãe e ele havia dito: — Sangra muito quando tem seus ciclos femininos.

—Isso é tudo? — Ela havia lhe perguntado.

—Provavelmente. É algo que notei nas mulheres que têm vários filhos e ela deu a luz a cinco. Às vezes seu fluxo aumenta.

Ela não lhe perguntou como ele havia obtido o conhecimento, porque suas respostas eram quase sempre sinceras e às vezes muito desconcertantes. Perguntou-se onde teria ido.

O hóspede de Hugo estava com ele, observando suas fúteis tentativas em persuadir uma das damas mais velhas da corte para que lhe entregasse sua virtude. Sentiu puro asco, pelo menos em parte porque sabia que esta dama em particular era considerada fácil pela maior parte da nobreza; mas ela era uma espécie de perita no referente à sedução masculina e a absoluta falta de técnica de Hugo a espantava.

—Você é, - ele disse a Hugo, - um completo idiota.

Hugo interrompeu seu ataque, porque isso era em geral ao que se reduziam suas tentativas de sedução. Havia conseguido abandonar Ilease no batente de uma janela e se mantinha afastado estirando os braços.

Hugo foi encolerizado até uma mesa e se serve um pouco de vinho.

—Eu gostaria de ver se você faz melhor, - ele murmurou em voz baixa ao seu hóspede.

Este fez uso de toda sua força e Hugo se converteu em espectador do que se seguiu. O hóspede de Hugo nunca tinha ouvido que, o licor dá calor, mas sabia. O licor e outras lisonjas oferecidas à senhora Ilease a persuadiram para que o acompanhasse até os aposentos de Hugo, onde deu a este último uma lição sobre as artes amorosas com Ilease, como sujeito. Hugo não sabia que se poderia agradar e penetrar uma mulher de tantas formas diferentes, e por tantas vezes. Quase era noite quando Ilease saiu cambaleando pela porta de Hugo. Estava exausta, dolorida, escandalizada ante seu próprio comportamento e negra e azul em alguns lugares. Nada do qual podia ser atribuído ao hóspede de Hugo, mas as suas próprias acrobacias, entusiastas em excesso. Ele levava um bracelete de prata e um broche de ouro e se sentia profundamente satisfeita.

Depois que ela partiu, Hugo que odiava se desprender de algo de valor, começou a protestar pela generosidade de seu hóspede.

—Feche a boca. Posso encontrar coisas como essas sempre que quiser. Quando necessitar mais, irei lhe trazer, mas enquanto isso feche a boca.

Hugo andou cambaleante em direção a cama. Estava nu.

—O que me fez? — Ele choramingou. - Quase não posso andar.

Seu hóspede o deteve na janela.

Hugo gemeu.

—Faz frio, meus dentes estão batendo uns contra...

—Fique quieto, - ordenou seu hóspede. - Tem sorte de que eu esteja de bom humor.

Da janela de Hugo, se podia ver da cidade romana meio ruída até a passagem de Suas.

—Siga se queixando, - grunhiu a criatura, - e pode ser que te jogue fora. Quer se arriscar?

Hugo se calou. Não estava seguro de que o espírito pudesse levar a cabo essa façanha, mas recordava os chutes depois do fracasso no botequim e da saída do médico em Florença. Não estava seguro e não tinha intenção de tentar sua sorte.

—Agora eu vou - Disse o hóspede e depois deu um chute por trás das pernas de Hugo.

Hugo aterrissou no chão com um grito e um estrondo.

—Pegue o vinho. Leve o jarro para a cama e não, eu repito, não se meta em nenhuma confusão até que eu volte. Está claro?

—S-sim - Gemeu Hugo, mas seu hóspede notou que ele já estava se arrastando para o jarro que havia sobre a mesa.

 

O lobo despertou antes que saísse a lua de entre os picos que se elevavam sobre ele. Deslizou-se como uma sombra até a ribeira no vale. Umas vacas leiteiras marrons se abarrotavam ao ar livre entre as árvores. Predador ou não, ignoraram-lhe salvo para levantar a cabeça de vez em quando e assim controlar seu avanço.

Embora a lua não iluminasse o vale, sua luz lhe dava uma cor prateada no céu e Maeniel podia ver quase tão bem como se fosse de dia. Mantendo-se entre as sombras, ele atravessou os aterros montados perto do rio e depois se aproximou do povoado. Pelo que podia observar, o trajeto era fácil, embora o desprendimento de rochas de acima havia deixado escombros por tudo o que antes eram pastos limpos e as árvores havia soltado suas raízes nos restos rochosos. A cobertura que lhe ofereciam compensava qualquer inconveniente.

Ele pode abrir caminho até o povoado e se aproximar muito dos muros sem ser visto. Era mais velho do que parecia do alto do vale. Estava amuralhado e as portas estavam fechadas. O lobo parou entre a malesa que margeava o rio. Sentia que havia algo errado no povoado. Se Regeane estivesse ali, poderia lhe ter advertido. Ela mesma havia se refugiado na Via Apia em uma tumba que não estava ali... Mas é certo que não tinha notado nada estranho então e ele não podia ver nada abertamente estranho ali.

Um riacho de água que passava através dos restos da rocha caída chegava até a frente do povoado para se internar na espessa malesa meio inundada da ribeira. Parecia ter escavado os muros do fundo, perto da água. O lobo se introduziu na malesa. Sim, havia uma greta no muro antes que este se unisse a primeira casa. Os muros não eram necessários sobre a água e as casas em si ofereciam muros lisos em frente à corrente. Ele olhou através da greta e viu os paralelepípedos de uma praça. Começou a cavar com a intenção de aumentar o buraco.

A quase um quilômetro dali, em uma cova, Gimp despertou ante o grito triunfal do hóspede de Hugo.

—Ele caiu em minha armadilha. Vamos descer até o rio para jogar as redes.

A escavação era fácil, pensou Maeniel. Quase muito fácil. Terei passado em um minuto, pensou e caiu de cabeça no rio.

O lobo era um bom nadador, mas o rio alimentado pela neve derretida das geleiras do alto da passagem estava gelado. A comoção o deixou temporalmente indefeso. A veloz corrente o arrastou até a água branca que se estendia e formava redemoinhos sobre um leito rochoso.

Uma criatura menos forte que ele poderia ter morrido. O rio derrubou Maeniel e o conduziu através das rochas que cobriam o leito do rio. Enquanto caía para o vale que se estendia mais abaixo, o arroio se estendeu repentinamente e durante um segundo, o lobo ficou parado em um ponto pouco profundo. Pôde ficar em cima de suas pernas, mas depois foi preso novamente pela corrente e sugado por uma voragem que o cuspiu sobre uma cascata para cair ao seu fundo e depois ser arrojado contra as malhas de uma rede de aço. Durante alguns segundos ele ficou preso sob a água. Lutou freneticamente por não se afogar e o tiraram à superfície. Consciente de que estava em forma humana, Maeniel sentiu como o metal lhe cortava a pele ao fechar o colar em torno de seu pescoço.

Em sua cama, a mais de cento e cinqüenta quilômetros de distância, Regeane se sentou, segurando a garganta. Um sonho, ela pensou. Era um sonho, tentou dizer a si mesma. Acabava de sonhar sobre o momento em que Gundabald a havia acorrentado e a segunda vez em que havia tentado encadeá-la... Mas seus temores não se apaziguavam.

Vários segundos depois, o saxão entrou no pavilhão. Levava uma tocha acesa na mão. A luz a cegou. As espirais de fogo projetavam um brilho horripilante ao redor de sua face.

Regeane estava apenas indecente; vestia uma regata de lã e uma camisola de linho branco com renda.

—Ele... Ele... Encontrou com... Não sei... Não posso...

—Está segura? — Perguntou o saxão.

—Não! Sim, sim... Estou.

Um segundo depois ele estava olhando para a loba. A regata e a camisola estavam no chão. Ele sentiu seu espesso colarinho quando ela passou rapidamente junto a ele para sair do pavilhão. Depois desapareceu. Como loba, Regeane correu através do bosque, para o lago. Quando o alcançou, viu que a lua estava cheia e seu reflexo flutuava na calma superfície.

A loba de prata se deteve e a branca e pálida luz resplandeceu sobre sua longa pelagem protetora. Uma vez mais ela sentiu a estranha força que lhe proporcionava a luz, como a sentiu naquela longínqua noite em Roma depois da morte de sua mãe, quando se encontrou sozinha em um caminho escuro e perigoso.

Após o que acontecera havia sido uma atrevida aventureira, amiga de uma Papa e tinha compartilhado os favores de amante com Lucila, para depois se casar com o senhor Maeniel... A mimada esposa do senhor Maeniel. Pensaria o lobo cinza que seu amparo havia mudado a essência de sua natureza? Se pensasse era um imbecil por acreditar em algo tão ridículo. Era a mesma Regeane que se aventurara na Campânia e nos mundos atrás dela para salvar a vida de Antonius. A mesma mulher que não tinha duvidado em se arriscar a morrer na fogueira para ajudar seus amigos. E mais idiota era ela por deixá-lo minar sua bem ganha confiança nas habilidades conferidas por seu duplo estado e pressioná-la para lhe permitir viajar sozinho para o perigo: um ato de loucura por ambas as partes.

Havia sido Maeniel capturado? Estava morto? Não sabia. Acontecesse o que acontecesse, ela tinha que atuar acreditando que podia fazer algo para salvá-lo.

Ela se voltou e trotou ao longo da margem do lago e começou a subir para o Espelho da Dama. Novamente, como antes, os caules de rosas e sarças se afastavam ao seu toque, mas ela ficou decepcionada quando alcançou o lago e viu o mesmo céu e a mesma lua refletidos da mesma forma nestas águas que nas do lago de abaixo. Se havia uma porta ali ela estava fechada. A mulher estava preocupada. O que vou fazer? Como chegarei até ele? A sempre prática loba disse simplesmente: Está sedenta, bem que poderia tomar um gole de água.

Seu focinho se aproximou do lago, mas quando o nariz tocou a água, ela notou que estava vendo um mundo sem lua, no preciso instante em que amanhecia, quando o céu é uma banda de opala ardente através do horizonte ocidental. Onde há um silêncio contido, tudo em calma e os contornos do jardim do mundo estão alagados pela preciosa luz dos primeiros raios do sol.

Regeane não duvidou. Lançou-se na água.

O lago se fechou a seu redor sem emitir som. Um observador teria ficado desconcertado ante a falta de ruído ao inundar. O lago resplandeceu durante um instante e depois a luz da lua voltou para água, um disco bastante brilhante para escurecer as mais longínquas estrelas.

                                                                   Capítulo 7

A cabeça da loba de prata emergiu da água. A alvorada pintava de cinza as árvores ao redor do lago, tornando-os visíveis. Regeane nadou para a borda. As raízes das árvores chegavam até a água e corriam sob a superfície; tinham o tato de sulcos viscosos sob suas patas enquanto subia com dificuldade a margem do lago.

Ela deu impulso para alcançar a ribeira e sacudiu a água da pelagem. O mundo das árvores era sombrio e estava coberto de névoa. Não se ouvia nada, salvo um grito longínquo, muito distante para lhe dar nome. Sobre ela, os troncos se elevavam mais e mais acima até desvanecer dentro de um banco de névoa baixa. Não podia ver nenhum ramo lateral.

Sabia que o sol estava saindo porque a luz se tornava cada vez mais brilhante. Nunca tinha vista árvores como aqueles. Não deixavam nem um ponto de chão nu entre os troncos e as raízes. Cobriam a terra da mesma forma que uma cota de malhas forma a couraça de um guerreiro, as raízes e os troncos se estendiam sobre o solo até que tocavam as raízes de outra árvore, formando nós, para voltar depois para o interior da terra.

As coisas cresciam na região de sombras perpétuas. O terreno preso por todos os cantos das retorcidas raízes suportava uma variedade magnífica de samambaias e outras curiosas plantas que Regeane não tinha visto nunca antes. Algo que soltava raízes sobre a casca deixava cair caules pendentes cobertos de folhas tão diminutas e numerosas que pareciam pelagem e eram tão suaves como caricias, embora estivessem verdes, frias e ligeiramente úmidas. Outras eram como as samambaias, que estava acostumada a ver, mas muitos eram maiores, enchendo os buracos entre os troncos das árvores com um deslumbrante desdobramento de persianas e renda verde. Mas por mais enfeitiçadas que estivessem nenhuma ocultava o fato de que as árvores criavam uma superfície quase impossível para que algo como um lobo pudesse viajar sobre ela.

Podia ser, que como humana fosse capaz de encontrar um passo entre os enormes troncos, mas ela suspeitava de que quem se internasse neles poderia vagar ali para sempre ou até que a fome e o desespero o reclamassem... Ou a reclamassem. Na luz crescente, ela notou como o lago emergia de uma caverna ou saliência não muito longe do lugar por onde ela havia aparecido.

Regeane abandonou a loba e se tornou humana. Voltou a entrar no lago e nadou para a caverna. Ao se aproximar mais, viu que não era uma caverna, mas uma garganta densamente coberta pelas árvores gigantes. Suas raízes desciam de cima até a água, formando uma vasta rede tão infranqueável como os barrotes de uma jaula gigante. As árvores bebiam enquanto a água pulsava entre estas grandes e esponjosas raízes e fluía durante uma distância impossível de calcular, descendo por uma escada de rocha só fracamente visível através da malha de raízes.

Não, pensou Regeane. Haviam colocado-a em um caminho e levava em uma só direção. Estava a ponto de voltar e retornar nadando para o lago quando o viu. Era um conjunto de plumas vermelhas, escamas rubis e dentes.

Caiu sobre seu pescoço com um grito e lhe cravou os dentes no ombro. Ela se converteu em loba em um reflexo brusco e protetor, fechou as mandíbulas em torno da coisa e a comeu. Antes de poder pensar, já não estava ali.

Depois a loba se voltou e nadou para o deságüe que saía do lago em direção a um rio. Quando o alcançou, a luz já era bem mais brilhante. As nuvens rolavam no céu, movendo-se velozmente como se os altos ventos de cima as conduzissem. A baixa neblina que saudava a manhã havia desaparecido, mas as árvores próximas eram tão altas que as nuvens se moviam entre eles. Como montanhas, apanhavam a sempre mutante voragem de vapor. Deixavam passar longos raios de luz que se projetavam aqui e lá sobre o bosque de samambaias que crescia ao abraço das árvores gigantes.

Regeane, a loba de prata, seguiu o rio. Ele conduziu-a através de um curso tortuoso sobre grandes pedras. Não era profundo e a maior parte do tempo só cobria as patas da loba. Para Regeane não havia mais visão ou aroma que as do ar úmido e um agradável aroma quase de chuva que ela associava com plantas verdes em crescimento. Arrependia-se de ter comido a coisa vermelha. Acreditava um problema. Mas a coisa a tinha atacado e a loba estava faminta. Ela se perguntou se poderia envenená-la, mas depois de umas quantas horas de marcha, decidiu que se ainda não havia sentido moléstias, provavelmente não o fizesse. A única outra vida animal com a que cruzara eram pequenas criaturas que emitiam um débil som como de sinos quando as importunava e depois fugiam voando, desvanecendo entre as ilhas de névoa do bosque de samambaias que se estendiam dos dois lados do rio durante uma distância desconhecida.

Quando intuiu que faltava pouco para o meio-dia, o rio se estendeu até entrar em outro lago pantanoso. Estava abarrotado de plantas aquáticas. Algumas ela conhecia: o lótus egípcio, grande e de cor púrpura rosácea, cujas flores se mostravam muito acima da água; as agulhas azuis da pontederia, que florescia em enormes cachos perto dos troncos gigantes das árvores. Abundavam os agriões amarelos e Regeane se tornou humana durante uns momentos para comer uns quantos.

Encontrou uma árvore adornada com as longas grinaldas trepadeiras da planta de folhas pequenas e suaves. Pegou uma das parras e descobriu que no extremo de cada longo e peludo caule havia uma fruta. Provou uma. O sabor lhe explodiu na boca. Rico, ácido e depois doce. Sabia que seria incapaz de descrever a alguém. Como a maioria das coisas, só tinha sabor de si mesmo.

Enquanto se deliciava com os agriões e as frutas, o tipo de comida que não se adaptava um lobo, ela notou que as nuvens começavam a se condensar ameaçadoramente. Soltou a parra e se deixou cair novamente na água. O vento se movia sobre a superfície criando pequenas ondas. Os caules e os juncos começaram a se entrechocar. Regeane se deu conta de que estavam torcidos, como deviam estar nas bordas, moldados pelos ventos predominantes. Então a chuva devia chegar. No alto, os relâmpagos ziguezagueavam através do céu.

Usando as samambaias como pedras de passagem, Regeane subiu novamente à árvore. As plantas epífitas cresciam em toda parte nas profundas gretas da casca e os longos caules desta planta em particular, a que estava repleta de fruta eram mais fortes do que pareciam.

Acima da trepadeira pendente crescia uma samambaia gigante com forma de leque com grandes folhas de renda. Parecia viver da chuva. Como um longo e frondoso brinco ela se prendia à árvore e as folhas saíam de seu centro.

Quando alcançou um vão por entre as samambaias, ela olhou para baixo e se deu conta de que podia ver o fundo do lago através de suas cristalinas águas. Também ele estava coberto das enormes raízes que formavam o solo do bosque. A vida neste lugar parecia ser um presente das grandes árvores. Estavam, em um sentido bastante literal, por toda parte.

As plantas aquáticas que não vagavam pela superfície tinham suas raízes entre as árvores e Regeane viu as longas formas de algum tipo de peixe remando junto aos inundados troncos das árvores. O céu estava já quase negro; o mundo inteiro, até onde ela podia ver, estava envolto na esverdeada penumbra que pressagia a tormenta. No alto, os relâmpagos cintilaram e um tremendo trovão sacudiu o bosque aquático. Não muito longe, uma das árvores gigantes estalou em chamas. Depois o vento açoitou e a chuva golpeou seu corpo. Ela ficou cega durante um segundo quando o vento empurrou uma mistura de fumaça, vapor, brasas e cascas ardentes sobre ela, envolvendo seu corpo com os restos da árvore queimada.

Regeane fechou os olhos e baixou a cabeça apoiando-a no tronco da árvore, para se proteger da chuva que o vento empurrava. A uns quantos metros de distância, apesar da chuva, a árvore gigante ardia como uma tocha, vaiando e chispando enquanto o fogo consumia seu tronco cheio de resina.

A Regeane dava a impressão de que alguma torre escura estivesse queimando, já que a árvore era o bastante alto para conduzir o fogo até as nuvens que se moviam acima. Regeane ouvia ao seu redor um pranto de dor cada vez mais intenso, um grito choroso de tristeza sem limite. Era o vento, ela tentou dizer a si mesma. O vento. Deve ser o vento da tormenta. Mas quando o vento parou e a chuva começou a golpear diretamente sobre o solo, extinguindo a árvore em chamas, Regeane se surpreendeu ao se dar conta de que olhava o mundo através das folhas de samambaia. Ela estava envolta nas suaves folhagens da samambaia sobre o que se apoiara.

Em um primeiro momento se assustou, mas depois descobriu que as folhas não ofereciam mais resistência que a de um vestido de fina renda. De fato, elas a envolviam como um vestido, esquentando-a da gelada chuva. Regeane descansou durante um momento, sobre o abraço protetor da samambaia até que o céu limpou e a camada de nuvens se rompeu em várias figuras inchadas e brancas.

A samambaia a liberou estendendo suas folhagens para capturar a intermitente luz do sol. Regeane desceu de um salto. Seu ímpeto a levou até o fundo do lago, onde se impulsionou com os pés sobre as raízes cobertas de lama. Justo antes de chegar à superfície um cardume de peixes passou nadando junto a ela, com suas brilhantes escamas, que eram como brilhos de luz refletida em águas cristalinas. Ela sentiu um repentino e cortante calafrio e, quando sua cabeça emergiu, ela se encontrou sendo novamente loba na área menos profunda do rio que saía das montanhas para passar junto a uma fortaleza e seu povoado. O ar era frio e o sol começava a se ocultar.

 

Antes da alvorada, Hugo foi tirado da cama e aterrissou sobre o chão.

—Tenho-o. - Lhe gritou seu hóspede na orelha.

—A quem? — Perguntou Hugo.

—Ao lobo! - Gritou novamente o hóspede. - Tenho Maeniel, o lobo cinza.

—Não! - Disse Hugo, apertando a cabeça entre as mãos.

—Sim! —Seu hóspede transbordava de júbilo.

—Matou-o?

—Não. Por que teria que fazer algo tão estúpido?

—Porque ele é perigoso, — grunhiu Hugo. - Grande, forte e muito perigoso. Havia pelo menos alguma coisa de verdade na história que contei a Armine. Eu sei. Ei o vi.

—Não importa a quem ou o que matasse, quero-o. E, além disso, ele te proporcionará boa reputação nesta corte da Pavia. Algo nada desdenhável. Não se preocupe. Eu o domarei.

—Não se preocupe. — Murmurou Hugo enquanto começava a se vestir. - Isso é precisamente o que me disse Gundabald antes de visitá-los pela última vez. Mataram-lhe e depois um deles provavelmente o tenha comido.

—Sim, as duas mulheres quase acabaram comigo. - Disse o hóspede de Hugo.

A cara de Hugo ficou gelada.

—Conhece-as?

Seu hóspede se pôs a rir.

—Oh, sim. Eu as conheci. Mataram meu devoto. Ela, a cadela, e um amigo. Quase a peguei em outra ocasião, mas dessa vez ela estava com outra mulher. Tiraram-me do encolhido humano que estava torturando. Agora quero minha vingança. É seguro que ela virá buscá-lo, mas eu possuirei ao senhor Maeniel... E, por conseguinte, também a ela. Espere e verá.

—Não. - Disse Hugo. - Mate-o. Ou ele encontrará a forma de te matar.

—Porco. —O hóspede de Hugo usou toda sua força novamente, mas desta vez falhou. Gastara muita energia no encontro sexual da noite anterior e, além disso, Hugo estava mortalmente aterrorizado por causa de Maeniel. Isto lhe proporcionou vigor que desconhecia possuir.

Começaram a destroçar o aposento.

O hóspede de Hugo começou a lançar sobre ele tudo o que podia levantar. A contribuição de Hugo foi correr como louco de um lado para outro, tropeçando com os móveis e gritando como um condenado.

A criatura pegou a roupa de cama e tentou asfixiar Hugo com ela. Hugo escapou arrastando-se sob a mesa. Então o hóspede soltou os lençóis, pegou a jarra de vinho e tentou arrojar seu conteúdo no rosto de Hugo. Não teria por que ter se incomodado: ela estava vazia. Mas não se podia dizer o mesmo do urinol...

Hugo se levantou e deixou escapar um bramido de fúria e asco que fez tremer as vigas do teto. Depois pegou a mesa e a lançou na direção aproximada da que vinham tanto a voz como as ações do hóspede. A estas alturas do processo, Chiara abriu a porta.

—Estão os dois loucos? — Ela gritou. - Meu pai está apavorado, como todo mundo o bastante perto para lhes ouvir. Estou segura de que alguém chamou o guarda.

Ouviram ruídos de pegadas e segundos depois, meia dúzia de homens armados chegaram rapidamente junto a Chiara para entrar no aposento. Hugo havia conseguido se alojar em palácio e não queria perder seu lugar no centro da ação. Tentou enredar o capitão da guarda pessoal de Desidérius com uma história sobre ter saído da cama, para cair em cima do urinol.

Era uma história que o sério e velho soldado não acreditou, mas o advertiu com severidade que o rei mantinha sua casa em ordem e que, por favor, ele minimizassem tais moléstias no futuro.

Chiara disse ao capitão que ao ouvir os ruídos tinha ido correndo para ver o que acontecia. E o soldado acreditou, já que ela usava as quatro camadas de roupa requeridas por seu estado virginal e pelas frias noites das montanhas. Entretanto, ele acompanhou Chiara de volta até seu quarto e se assegurou de que ela estivesse em seu interior. Ela saiu furtivamente assim que ele saiu.

Hugo cheirava a urina rançosa e seu hóspede ainda estava furioso.

—Você é um covarde bastardo. Uma choramingada e nojenta desculpa de ser humano. Um piolhento chupa-rolas. Um...

—Pare! - Sussurrou Chiara. - Insultá-lo não o levará a parte alguma. Bem, pelo menos não a parte para a qual queira que ele vá. Se provocarem novamente esse velho enrijecido de calças de ferro, estejam seguros de que passarão a noite na rua.

Era certo. Ambas as criaturas se acalmaram.

—Deus! — Sussurrou Chiara a Hugo. - Você cheira mal. Vá se banhar e se recorde que pegou. – ela olhou ao seu redor, - seu dinheiro e fez algumas promessas. — Ela chutou o chão com um de seus pequenos pés. - Não me diga que não está preparado para mantê-las.

—Mais lhe vale. - Disse o hóspede.

—Bom... - Disse Chiara a Hugo. - O que tem que dizer em seu favor?

—Ele... Ele capturou aquela coisa.

—Que coisa?

—Ao homem-lobo. - Disse Hugo e cuspiu. - E não quer matá-lo.

Chiara pareceu surpreendida.

—Por que não?

—Porque ele, o senhor Maeniel, tem grandes poderes e eu quero controlá-lo... A eles.

—E a sua bela esposa, a senhora Regeane. - Acrescentou Hugo.

—Sim, também esta. - Declarou o hóspede categoricamente. - Lutei contra ela em Roma por uma tola e áspera prostituta. Depois novamente com meu sacerdote. Mataram-no. Ela e seu parente, um senhor saxão. Embora não o conhece, ele é seu parente. E depois, no acampamento de Carlos, eles quase me vencem... Eles extinguem-me, como suponho que diria você.

—Quase o matam? — Perguntou Chiara.

—Sim. Eu não morro. Não como vocês, mas posso ser destruído. E ela e aquela mulher, Matrona, quase o conseguem. Agora... Agora o tenho e quero a ela também. – ele sacudiu Hugo da mesma forma em que um cão sacode um rato.

Chiara deu um passo para trás, porque salpicava um pouco de urina. Havia muitas urinadas no urinol e o cabelo e as roupas de Hugo estavam molhadas.

—Se lave, porco.

—Acredito que será melhor que faça o que ele te diz. – Disse Chiara a Hugo.

Hugo sussurrou algo realmente vil entre dentes.

—Feche sua suja boca. - Lhe disse seu hóspede.

—Estão os dois contra mim, - gemeu Hugo.

—Não, eu não. - Disse Chiara. - Eu também penso que seria mais inteligente desfazer-se desta criatura, Maeniel, como vocês lhe chamam, mas... Você e eu aceitamos seu favor e nos comprometemos. A meu ver, não temos escolha neste assunto.

Hugo recebeu um empurrão. Um forte empurrão em direção a casa de banhos.

—Vá e se lave.

Amaldiçoando o mundo inteiro e a tudo o que nele habita, Hugo se afastou cambaleando.

Ele estava ainda ali. Chiara sabia que não estava sozinha.

—É isto inteligente? — Ela perguntou. A resposta a surpreendeu. Era meditada, inclusive sensata.

—Sim, assim eu acredito. Em primeiro lugar, as criaturas como Maeniel são difíceis de matar e dispõem de recursos que inclusive eles desconhecem. Se provasse e falhasse, ele poderia ficar livre e, uma vez solto, seria um inimigo formidável. Eu posso, como você viu, fazer algumas coisas, mas não sou tão forte como este homem-lobo. Hugo...

—Não se incomode. - Disse ela. - Eu não confiaria nele nem para que fosse ao mercado comprar cebolas. Eu sei ou acredito que sei.

—Bem... - Foi à resposta.

—Por certo. - Disse ela, levantado as sobrancelhas. - Tem...? Hugo te acusou de querer a bela esposa deste Maeniel.

—Volte para a cama. - Disse a criatura com aspereza. - E não me incomode mais com suas perguntas.

 

Gimp não era má pessoa. E ao seu modo, porque estava mais acostumado a fazer o que lhe diziam era mais eficaz que Hugo. Haviam-lhe dito que pescasse o estranho do rio e que o acorrentasse. E o hóspede de Hugo lhe havia dito exatamente como acorrentar Maeniel, e Gimp o fez, temendo desobedecer. Estava mortalmente assustado com Hugo e seu hóspede; simplesmente tinha a esperança de se livrar de algum modo dos dois. Alguém o havia matado e o outro, de alguma forma incompreensível, tinha lhe salvado a vida.

Ele acorrentou Maeniel a uma argola na parede da caverna e colocou mais correntes nas mãos e nos pés. E, já que não era cruel, deu ao prisioneiro uma velha túnica e o cobriu com uma manta.

Maeniel evitou a transformação. Não se atrevia. Não lhe levou muito imaginar que Gimp era só um pouco mais preparado que o tronco de uma árvore e não queria perturbar a mente de seu captor. Mente. De fato havia dois ou três mais, mas eram, se é que isso fosse possível, mentes ainda mais lentas que a de Gimp.

Eles se sentavam como mochos alinhados sobre um tronco, o observando, com bastante aspecto de estar esperando que ele se transformasse não em lobo, mas pelo menos em um dragão. Decidiu que seria melhor decepcioná-los. Então vomitou água por duas vezes e depois conseguiu dormir.

Perto do amanhecer o ruído da chegada de Hugo o despertou. Gimp, acompanhado do resto, levantou e saiu. Teve lugar uma forte discussão depois da qual Gimp voltou, aparentemente, sozinho.

—Pode dizer a Hugo que entre. - Disse Maeniel. - Eu o ouvi e posso cheirá-lo. Sei que está aqui. Tem um aroma bastante característico inclusive quando está recém tomado banho, como agora.

Não havia muita luz no exterior. Gimp acrescentou outro tronco ao fogo na entrada da caverna e Maeniel, que pôde então vê-lo com maior claridade, soube que não era Gimp. Seria difícil explicar a alguém não dotado como ele de tanto de sentidos lupinos, como humanos como sabia, mas assim era.

—Quem é você? — Ele perguntou-lhe. Mesmo estando acorrentado, ele conseguiu se sentar e apoiar as costas contra o muro de pedra.

—O urso. - Foi à resposta. – Gimp, que não era Gimp sorriu. Era uma risada particularmente desagradável.

—Nós já lutamos. - Disse Maeniel.

—Provavelmente mais de uma vez. - Respondeu o urso. - Se é que tem as mesmas lembranças que eu.

—Tenho-as - Disse Maeniel. - Mas refiro a mais recentemente.

—Sim. Eu era o urso então e, como sempre, no passado. Sou o urso e uma vez lutamos para conseguir o mundo.

—Sim. - Disse Maeniel. - Mas então eu era o lobo e não parte da luta.

—Oh, sim - Disse o falso Gimp. - Mesmo então foi parte de seu bando, embora o seguisse através da neve e lhe pedia as sobras de seus festins. Confiavam em ti e você foi bem-vindo aos seus fogos.

—Suponho que seja certo. - Respondeu Maeniel lentamente. Depois ele disse. - O urso... Todos os ursos recordam embora não o admitiriam. Recordam-se quando caçavam quase como iguais e se sentiam honrados por levar seu nome. Mesmo estes romanos, - continuou Maeniel, - que se fizeram chamar filhos do lobo, amamentavam das tetas de uma loba. Eles, os filhos do lobo, deixaram seus rastros por todo mundo e estes bárbaros selvagens ainda tomam os nomes de vocês e, às vezes, inclusive os desafiam. Sim... - Disse Maeniel. - Se diz que é o urso, então faz tempo que sua gente desapareceu e foi esquecida. As árvores, a vegetação e o céu estrelado, já não os conhecem.

—Sim. - Disse o falso Gimp. - E nunca me cansarei de chorar. Até sendo eu o único que se lembra, sempre lhes renderei o tributo de minha eterna desgraça. Mas isto é mais difícil do que pensava, porque você parece compreender.

—Não posso dizer que me falte compreensão. - Respondeu Maeniel. - Mas o que quer de mim?

—Você. A ti mesmo. Quero me unir a você. Unir-me da forma em que possuo Hugo e aos outros.

—Possuir? Pessoas possuem escravos. Eu não sou posse de ninguém.

—Minha escolha de palavras não foi acertada, — protestou o falso Gimp. - Por uma vez, depois de tantos anos me nutrindo destes tolos que substituíram minha própria espécie, teria como companheiro um igual. Alguém que poderia compartilhar minha mente, minha vontade. Poderíamos varrer estes reis guerreiros e governar o mundo. Governá-lo a nossa maneira. Devolvê-lo ao que era antes: bosques sem fim, savanas pelas quais vagava um milhão de feras selvagens. Desertos embelezados com flores que brotavam de seus caules pelo dia e céus iluminados de estrelas, de noite. Oceanos que acariciavam praias limpas e brancas, campos de neve que resplandeciam com um milhar de cores quando a aurora boreal brilhava nas alturas. Lembra-se, lobo, de quando seus antepassados vagavam livres em alcatéias que chegavam a ter centenas de membros e governavam sem rivais nas longas noites de inverno?

—Sim. Eu me lembro. - Disse Maeniel. - E lembro-me quando chegaram os outros. Primeiro os portadores do fogo e depois os da pedra e do aço. Lutamos contra eles como lutamos às vezes agora, mas nunca foi uma guerra. Não como você a propõe.

—Bom, olhe ao seu redor. A guerra é a única coisa que entendem. Olhe para estes reis, preparados e dispostos a gastar quantas vidas seja necessário, inclusive as suas, para controlar o que? Pergunto-lhe, para controlar o que? Uma coroa de ferro feita com um prego que foi usado para crucificar um homem que teria desprezado a ambos.

—Sim, talvez tenha razão. - Disse Maeniel. - Mas também se diz que «no que beneficia um homem ganhar o mundo se perder sua alma?». É minha alma o que quer?

—Sim. O que poderia nos vencer se nos unirmos?

—Tenho que pensar sobre isso.

—Bem. Eu volto a vê-lo esta noite. Este... — Ele assinalou ao corpo de Gimp. – Este servente meu o alimentará. Espero sua decisão.

Gimp se sentou e desabou contra o muro, sem expressão alguma no rosto. Minutos depois ele despertou, coçou a cabeça, se levantou e foi cambaleando até o fogo da entrada da caverna.

Quando Gimp saiu, Hugo já havia desaparecido. O hóspede de Hugo havia trazido roupa para Maeniel e Gimp a colocou na caverna. Não teria resultado fácil para Maeniel se vestir com as correntes, mas havia uma capa entre os objetos e ele se envolveu com ela. Depois comeu o pão e a carne seca que Gimp lhe levou.

O hóspede de Hugo desejou um grande número dos destinos desagradáveis a Hugo e depois partiu para procurar Regeane na passagem de Suas.

Os soldados chegaram ao meio-dia. Prenderam Gimp, colocaram Maeniel sobre um cavalo e cavalgaram rumo à capital lombarda da Pavia. Alguém, a quem Maeniel conhecia havia traído alguém. Não sabia como ou por que havia acontecido. Maeniel apostava em Hugo. Era mais que provável que o pequeno rato urinasse nas calças em apenas pensar em enfrentar Maeniel. Então, provavelmente teria se deslocado para ver Desidérius, logo que soube que seu inimigo havia sido capturado. Maeniel não fazia idéia de como ele tinha conseguido se esquivar de seu hóspede, mas de alguma forma ela havia obtido e agora o tinha acorrentado e a caminho de Pavia.

O fato de ter mudado de captores não era um consolo para Maeniel. Os soldados lombardos se asseguraram tanto como Gimp, de que suas correntes estivessem bem presas e Desidérius estaria bem mais disposto a matá-lo.

 

O hóspede de Hugo não encontrou Regeane. Na forma de loba, ela já havia passado por Suas. Quando a loba de prata saiu do rio, localizou sem dificuldade o lugar onde Maeniel tinha entrado. Depois, explorando rio abaixo, também encontrou o ponto no qual Gimp e seus homens haviam lhe tirado.

A ilusão ainda estava presente. O espírito parecia não ter problema para produzir estas coisas, mas esta vez não a enganou. Um povoado, qualquer povoado, sempre tinha um pouco de movimento. No mínimo teria que haver fumaça e, dado o frio do princípio da primavera, em um verdadeiro povoado deveriam arder um ou mais fogos. Além disso, teria que haver ruído, gente indo e vindo inclusive em altas horas da noite. Não se via nada disso.

Notou imediatamente como o tinham apanhado e depois de descobrir onde seus captores o haviam acorrentado se dispôs a seguir seu rastro. Encontrou a caverna, mas chegara depois que os homens de Desidérius saíram para a Pavia, levando Maeniel com eles. Depois de investigar os rastros que haviam deixado ao redor da entrada da caverna, ela se sentou na escuridão para considerar a situação.

Assustava-lhe a idéia de seguir de perto uma grande quantia de homens armados durante o dia. O terreno era aberto e era muito fácil ser descoberta, encurralada pelos cavaleiros e ser assassinada. Além disso, eles parariam em povoados pelo caminho e estes lugares sempre estavam protegidos por ferozes mastins. Para onde se dirigiriam? Turin? Talvez, mas a capital lombarda da Pavia fosse o lugar mais provável. Sim, o Doura Riparia se uniria ao Correio rio abaixo e Pavia estava localizada perto da confluência.

A mulher assentiu.

A loba também ficou satisfeita.

Durante alguns momentos enfrentaram uma a outra.

O que acontecerá no vale do rio, se encontrar outros lobos?

Teremos que nos ocupar disso, respondeu sua escura companheira, se acontecer.

 

Passaram a noite em uma vila fortificada do rei. Permitiram Maeniel tomar banho. Quatro soldados lombardos o observavam e dado que os banhos da vila declinaram desde os tempos romanos, só havia uma piscina, não muito limpa, alimentada por um manancial próximo. Mas o antigo hipocausto estava aceso e a água estava quente. O edifício era de pedra calcária natural. O teto era de cimento com grandes janelas de cristal que deixavam entrar a luz. Só uma porta servia de entrada e saída para os banhos.

Os quatro soldados lombardos, que por suas armas e ornamentos deviam ser da guarda de palácio, estavam em pé junto à porta o observando olhando como águias em uma granja de frangos. Maeniel ouviu como murmuravam um ao outro: - Dizem que é um poderoso feiticeiro capaz de trocar de forma.

—Isso é sério? — Respondeu um deles com um sorriso.

—Sim. - Respondeu o capitão. - E que nenhum de vocês se arrisque com ele. Seja o que for, os bandidos dos arredores se mantêm afastados de seu ducado. Tem fama de ser um temível guerreiro e, quando estive em Roma, vi-o cortar em pedaços lentamente o espadachim mais perigoso que a facção lombarda pôde mandar contra ele. Se descuidarem um pouco, é provável que ele os fatie o cangote... E se não o faz e escapa de alguma forma, eu o farei. Peguem-no?

Maeniel notou que os outros soldados pareciam impressionados. Quando terminou de banhar-se lhe deram roupa limpa e não menos de dez deles o vigiaram enquanto voltavam a lhe acorrentar. Fizeram turnos e sempre o observavam pelo menos dois homens, enquanto ele permanecia acorrentado a uma argola no muro do cubículo onde dormia.

Deram-lhe uma manta pesada e escura. Foi bem-vinda. Tão perto das montanhas as noites sempre eram frias. Mas tinha um aroma estranho e forte que lhe provocava náuseas quando a aproximava muito do nariz e às vezes, o fazia espirrar.

Tampouco embebedou nenhum de seus guardas... Algo surpreendente, já que a embriaguez noturna era comum entre os soldados. Dada a eficácia de seus captores, Maeniel decidiu que não tentaria escapar naqueles momentos. Sentia ter falhado em sua missão, mas confiava em que um comandante tão hábil como Carlos tivesse mais de um ás na manga e mandasse outro para fazer um reconhecimento. Talvez nem tudo estivesse perdido e Maeniel pudesse conseguir um resgate por si só. Tudo dependia do quanto Desidério acreditara na história de Hugo; Maeniel não se recordava de Hugo como um indivíduo impressionante. O melhor para ele seria fazer-se de inocente prejudicado e oferecer um suborno importante a Desidérius ou a quem fosse que tomasse as decisões na corte lombarda. Tinha, ele confiava nisso, os recursos para comprar sua liberdade em caso necessário.

Com isto em mente, ele bocejou, ficou o mais cômodo possível considerando o número de pesadas correntes que atavam seu corpo e se pôs a dormir.

 

Pela manhã, Chiara despertou com ruídos espantosos no corredor. Seu pai dormia em um quarto interior; por sorte, sua porta estava fechada. Chiara abriu a porta uma fresta e viu Hugo correndo de um lado a outro pelo corredor. Estava com o traseiro ao vento e algo ou alguém o açoitava. Os ruídos espantosos eram seus gritos amortecidos, porque ele estava com um urinol de estanho firmemente encaixado na cabeça. Em meio aos golpes da vara que Chiara via dar contra o traseiro e as coxas de Hugo, ele gritava tentando tirar o urinol. Entretanto, o metal estava torcido de tal forma que resultava impossível.

—Oh, não! — Sussurrou ela. - Oh, por favor... Por favor.

—Volta para seu aposento. - Disse o hóspede de Hugo. - Não acabei.

Hugo gritou:

—Bliaraa, añuda.

O que Chiara traduziu como “Chiara, ajuda”.

—Añuda! Añuda! Ajuda! — Gritava Hugo.

— Você me traiu. - Chiou seu hóspede. - Se atreveu a me trair. Pedaço de... —Então o hóspede trocou para outros idiomas distintos, nenhum dos quais Chiara compreendia.

Chiara fechou a porta com força atrás dela e se plantou na entrada com as costas contra as pranchas.

—Pare! Pare de uma vez. – Ela disse ao hóspede de Hugo.

Ele o fez, não sem antes lançar em Hugo um paralisante chute na virilha.

Chiara trouxe para Hugo uma capa e fez chamar o ferreiro. Este chegou com uma serra de metal e grandes tesouras de aspecto perigoso.

—Graças A Deus é estanho, - disse o ferreiro. - Se tivesse sido qualquer outro metal mais forte nunca teríamos tirado. Mas com todos meus receios, o que não posso entender é, para começar, como a encaixou aí com tanta força.

Por um segundo, a Chiara faltaram palavras. Finalmente ela pôde dizer: — Foi um acidente.

—Sei. - Disse o ferreiro com calma. - Os homens desta idade vivem caindo nesse tipo de acidentes, mas uma moça de sua tenra idade... Envolver em farras como estas...

—Oh... Deus... Meu! — Sussurrou Chiara, enquanto sua face ficava escarlate e ela sentia suas orelhas queimar. - Eu... Eu... Eu não, quero dizer... Eu não poderia... Eu não faria. Oh, Deus. Só escutei ruídos no vestíbulo... E o encontrei...

Só ela pôde ouvir como o hóspede de Hugo deixava escapar gargalhadas luxuriosas.

—Bem merecido por interferir em minhas pequenas diversões.

Chiara fugiu.

 

O campo estava retornando à natureza. Os pequenos proprietários já não podiam se manter. Os lombardos possuíam as grandes fazendas romanas e as dirigiam como os romanos, usando equipes de escravos. Regeane notou as fazendas, de longe. Os cultivos não eram acostumados a ser perto do rio, embora estivesse claro que desviavam uma parte da água mediante canais de irrigação; mas a levantada e rochosa borda, junto com a espessa vegetação arbórea, desaconselhavam qualquer assentamento muito perto da água. Uma vez encontrou-se com lobos. Uma pequena alcatéia de não mais de seis indivíduos, que estavam se alimentando do cadáver um pouco passado de um jovem boi que tinha aspecto de haver quebrado o pescoço ao cair por um aterro.

Ela se manteve afastada da alcatéia e dos restos do boi. Ainda tinha muitas tendências humanas e para a mulher, a carne desprendia um mau cheiro nauseabundo. Quando Regeane ficou à vista, os lobos levantaram a cabeça e a observaram passar.

Ela não pensava que algum deles fosse prestar mais atenção, mas um deles foi atrás. Regeane ouviu o débil som de suas almofadinhas sobre o brando lodo.

A mulher sentiu um calafrio de puro medo, mas a loba estava zangada. Os lobos têm certas leis. Ela não estava interferindo em nenhuma. Não havia ameaçado nenhum e nem matado em seu território. Tinham que a ter deixado passar tranqüilamente, mas aí estava um imbecil detrás dela. Matrona lhe havia dito o que devia fazer. A mulher esperava que funcionasse.

No segundo último, ela se voltou e fincou seu ombro no lobo que se aproximava. A loba de prata era quase duas vezes maior que seu atacante. Ela, pois era uma das fêmeas, caiu rodando pelo baixio.

A loba de prata se manteve firme, grunhindo.

A outra ficou se levantou de um salto e não mostrou nenhum desejo de continuar o ataque. Manteve-se em pé sobre a borda e sacudiu a água da pelagem.

Havia funcionado, pensou a loba de prata, de forma um tanto triunfante, assim quase não viu os outros dois ocultos atrás das espadanas e a malesa, movendo-se ao seu lado. De fato, nunca soube o que a colocou de sobre aviso, mas um segundo não estavam ali e no seguinte sim.

Regeane estava junto a uma árvore caída e eles passaram por cima dela, dispostos a aterrissar sobre seu lombo, ou melhor, ela sabia, diziam suas lembranças, que um deles aterrissaria sobre seu lombo e atacaria sua coluna e o outro tentaria lhe arrancar a garganta.

Não corra, havia lhe dito Matrona. Sequer pense em correr. Se o fizer, eles a pegarão.

Ela não correu. Voltou-se e os recebeu ainda no salto. Flanqueou-os. O primeiro caiu em cima do segundo e as mandíbulas de Regeane se fecharam sobre seu pescoço. A mulher desejava que pensasse, mas a loba afundou suas presas até as gengivas.

Seu adversário se liberou com o som mais parecido a um grito que tinha ouvido emitir um lobo e, quando se voltou, pronta para seguir a batalha, deu conta de que todos fugiam. A velocidade do desaparecimento foi assombrosa. Pareceram fundir-se com a malesa da margem do rio. Todos desapareceram exceto o boi, com as moscas ainda lhe revoando encima e uma poça de sangue junto a seus quartos traseiros afundados no lodo.

Trêmula, Regeane a mulher tinha agora todo o controle e saiu disparada e não parou de correr até ficar sem fôlego vários quilômetros rio abaixo. Esperava não voltar a encontrar com nenhum mais de seus irmãos. Entretanto, eles haviam ultrapassado suas expectativas; eram matreiros, inteligentes e ferozes. Agora ela compreendia melhor por que Maeniel tinha sido resistente em levá-la com ele. Ela mesma não possuía absolutamente essas qualidades na medida necessária. Certamente, não o bastante para impressionar alguém como ele. Estava resolvida a cultivá-las em sua própria personalidade.

Inundou no rio para limpar sua pelagem, sacudiu-se e seguiu adiante, dando-se conta de que lhe esperava uma perspectiva sombria. A noite anterior não contava. Havia transpassado-a cheia de energia, seguindo o rastro dos homens que capturaram Maeniel. Não tivera ocasião para descansar. Agora tinha que dormir. Agora.

Como encontro uma guarida? Ela se perguntou. Uma guarida segura?

Não tinha nem idéia.

 

Adriano foi ver Lucila. Ele, Lucila e Dulcínia jantaram antes de anoitecer. Dulcínia deu em Lucila um beijo de boa noite e foi para sua casa. Adriano e Lucila passeavam pelo jardim.

—Ele vem pelo lago Genebra através dos Alpes. – ele disse a Lucila. – É obvio que não é de domínio público. Desidérius bloqueou alguns passos para a Lombardía. Ignora-se onde estão e qual é à disposição de suas tropas,

Lucila assentiu.

—Quer minha ajuda para averiguar?

—Não. - Disse Adriano. - Acredito que já se estão se ocupando disso. Nós, Carlos e eu temos um problema mais urgente.

—Qual? — Perguntou Lucila e depois suspirou. - Querido, estou velha. — Ela se sentou em um banco.

O jardim estava às escuras, mas seus criados haviam colocado tochas nos muros do triclinio que rodeava o jardim e perto da fonte, então havia luz. Havia chovido durante o dia e o ar era fresco e úmido.

—Não estou segura de querer ouvir isto. - Disse Lucila.

—Não?

Lucila baixou a vista e olhou para as mãos.

—Você é Papa. É o que queríamos e estou cansada.

Ele levantou sua mão. Mostrava as cicatrizes da tortura perpetrada pelos lombardos e as unhas eram grosas e estavam torcidas. Ela recordava a dor que sentiu enquanto as arrancavam uma a uma. Havia gritado. Recordava como tinha gritado e sentia uma vergonha terrível por ter descido tão baixo. A mão se apertou em um punho e a retirou.

—Arrancaram-me as unhas e quando isso não funcionou... Estava funcionando, embora eles não soubessem. Não sabia se poderia suportar outra mais. Mas tiraram os ferros candentes.

—Sh! – Adriano a beijou nos lábios e depois se afastou. - Não pode esquecer?

—Não. - Ela sacudiu a cabeça. - Não posso. Nunca voltarei a te deixar ver meu corpo.

Não deixara mais. Não desde que fora torturada. Não desde que ele a resgatara dos lombardos.

—Você foi vingada. - Disse ele desolado. - Basílio, o agente lombardo está morto. Gundabald... Não sei. Mas esse Maeniel que se casou com Regeane me disse antes de deixar Roma que não precisava me preocupar com ele.

—Acredite nele. - Sussurrou Lucila. - Regeane me contou o que tinha acontecido e você não vai querer saber. Certamente, estou vingada.

—Mas, - Disse ele — esse pequeno excremento de Hugo encontrou de algum jeito a forma de entrar na Pavia e se converteu em um membro respeitado da corte.

Lucila deixou escapar um vaio de pura fúria.

—Me diga o que necessita que eu faça. – Ela disse.

—Não - Disse Adriano. - Não esta noite. Eu vim, - Adriano disse em voz baixa, - para remediar esta separação entre nós.

—Não. - Sussurrou Lucila. - Procure uma amante mais jovem. Dê-me umas quantas semanas e eu... — Lucila estava se levantando enquanto falava. - Eu te encontrarei uma garota limpa e não muito inteligente. Uma de tão baixo berço que não venha carregada com uma tribo de parentes...

—Deixe disso. - Ele também se levantou e a pegou pelos braços. Lucila fechou os olhos e, à luz das tochas, Adriano pôde ver duas lágrimas que desciam lentamente pelo seu rosto. —Quando vou a minha casa, a casa onde nasci, para visitar meus irmãos e irmãs, sei que a casa é velha, que os afrescos estão descascando; inclusive as lajes do pátio e da escada que sobe para o teto estão gastas pela passagem de muitos pés. Mas também sei que meus antepassados sacrificavam ali nas lareiras de minha família e mais tarde celebravam o sacrifício da eucaristia no triclinio depois de ouvir as palavras de Cristo e lhe aceitar como o centro de suas vidas. Não trocaria esse edifício pela a mais famosa casa de ouro de Nero. Toco com meus lábios a entrada da porta quando entro; e, muito minha amada, uma casa é só uma coisa de pedra, tijolos e morteiro. Mais posso amar a mulher que levou alegria a minha vida, à mãe de meus filhos e companheira de minha vida. Não há nenhuma outra mulher em minha vida e o que é mais, querida, em minha alma, nunca a haverá. Nosso amor não se apoiou nunca na luxúria da carne. Recorda-se de quando nos conhecemos?

Ela se lembrou e o sol pareceu brilhar sobre ela, quente sobre seu pescoço. Estava grávida de quatro meses e havia caminhado um longo trecho das montanhas que se estendiam como uma espinha dorsal do centro da Itália até Roma. Lucila possuía ouro, mas lhe assustava usá-lo. Uma moeda de ouro nas mãos de uma mulher solitária e sem parentes que a protegessem era simplesmente um convite aos ladrões. O ouro estava costurado em sua camisa e em um cinto que lhe envolvia os quadris.

Vestia-se de negro e dizia a quem encontrava que era viúva. De fato, havia tingido o vestido e o véu com guelra de carvalho das montanhas. Parou junto a uma fonte perto da entrada da cidade. Sabia que as mulheres se reuniriam ali antes que saísse o sol, para recolher água para seus familiares e preparar com ela a comida matinal antes que se deixasse sentir o calor do dia.

As mulheres a enviaram a uma comunidade de viúvas que se encarregavam de proporcionar alojamento seguro para a multidão de solitárias peregrina que lotavam a cidade Santa. Alugaram-lhe um quarto, ao qual se tinha acesso subindo uma estreita escada, no terceiro andar de uma padaria próxima as ruínas do foro. Não podia gastar o ouro e tinha que comer, então que lhe disseram que fosse a igreja no palácio Luterano, no qual se distribuía diariamente pão, vinho e carne aos pobres.

—Há uma colunata, — lhe disse uma das viúvas mais velhas, - onde se pode descansar, resguardada do sol e atravessando a rua há uma escada e um pórtico rodeado por uma pintura de Cristo e seus Santos dando esmola aos pobres. Diga seu nome ao sacerdote que se encarrega dos necessitados e ele te ajudará.

—Sabe, - disse Adriano, - quando me apaixonei por ti?

—Não.

—Quando te vi em pé entre as outras mulheres que tinham vindo para receber as esmolas.

—Que estranho. Não sabia que havia se fixado em mim esse dia.

— Sim. Seu véu escorregou de sua cabeça, caiu sobre seus ombros e sua face e seu dourado cabelo parecera uma flor brotando frente ao negro de seu vestido. Uma flor que me olhava. Quis te beijar então, mas senti tanto acanhamento que só pude te pedir o nome. Mas cada dia esperava angustiado que aparecesse. Sabia que estava grávida.

—Sabia? — Ela estava surpresa. - Pensei que tinha enganado todo mundo.

—Não - Disse ele. - Podia ser que não soubesse muito sobre mulheres, mas sim que havia visto muitos delas em meu trabalho com os pobres. Posso dizer quando a dama está esperando. Também poderia dizer a dama algo mais. Nenhuma cicatriz poderia jamais te tornar feia para mim.

Lucila teria continuado a discutir, mas sentiu que ele estava beijando-a e em poucos segundos, não estava disposta a discutir mais.

Mais tarde, em seu dormitório, ela o fez olhar seus seios.

—Deus! - Sussurrou ele. - A dor...

—Já não importa – Interrompeu Lucila. - Mas confessei. Há certas coisas...

—Não. – Adriano a interrompeu. - Nada mais... Não esta noite. – Ele pegou o abajur de suas mãos e apagou a chama.

—Por isso, eu me assegurarei de que Carlos luza a coroa de ferro. Espere meu amor, espere e verá. Você é meu único amor e, quando nos separarmos, da forma que for, pode estar segura de que será a última... Do mesmo modo como foi à primeira. Para sempre.

Perto da alvorada, ela despertou.

— Eu o ajudarei a encontrar Gerberga.

—Tinha decidido não pedir lhe disse isso ele.

—Não, a antiga esposa de Carloman e seus dois filhos são a essência do assunto. Esses meninos são os herdeiros legítimos ao trono da Francia. Mesmo se Carlos destronar Desidérius, toda sua habilidade para governar e seu poder na batalha poderiam não servir para nada. O tempo está de parte de Gerberga e ela sabe bem. Se puder evitar Carlos, não só manterá viva a causa lombarda, mas também ela e seus filhos se converterão no centro de atenção de cada magnata descontente da Francia. Todos os que esperam destronar Carlos ou inclusive lhe criar dificuldades se dirigirão a ela. E não ajuda que ela tenha mais direito a ser a legítima soberana da Francia, que Carlos.

—Não sei. - Disse Adriano. - Os meninos são ainda pequenos e estes reinos bárbaros não aceitarão um menino como rei.

—Por que não? —perguntou Lucila. - Já o fizeram. A senhora Fregundis obteve o apoio dos nobres do rei e levou os filhos de Clovis ao poder na Francia, ainda pequenos.

—Gerberga não é outra Fregundis. - Disse Adriano. - Não tem nem a inteligência dessa eminente senhora nem, em todo caso, a confiança dos notáveis que decidem as coisas no reino franco. Não estou de acordo. Só pode causar problemas. Já tem feito isso, muitos problemas. E cada dia esses filhos se tornam maiores e em pouco tempo serão excelentes candidatos ao trono. O próprio Carlos só tinha dezesseis anos quando sucedeu Pipino o Breve, como rei. Não, querida. Estive investigando por minha conta. Ela fugiu da Pavia para... Ninguém sabe. Provavelmente com Adalgisus, o filho de Desidérius; diz que é seu amante e é seguro que ele espera ajudar em sua causa.

—Cadela intrigante! - Sussurrou Lucila. - Para Adalgisus, lhe cega a idéia não só de levar a coroa de ferro da Lombardía, mas também de ser o rei de fato da Francia quando se sentar no trono governando em nome de seus dois filhos. Meu amor, os homens não são os únicos que podem sussurrar falsas promessas, para conseguir seus fins.

Adriano sorriu.

—Não te negarei isso. Você será meu único amor.

—Para sempre? — Perguntou Lucila.

—Assim é. E às vezes desejaria que não fosse, mas é. – Ele respondeu com tristeza.

—Oh, meu amor! Qualquer que seja meu destino, viva sua vida e volte a amar. Você me ensinou como fazer. Ensine a alguém mais quando eu tiver ido. Porque não te ajudarei a encontrar Gerberga por meu carinho para ti, mas porque fui uma jogadora neste jogo de poder muito tempo, para me levantar e ceder meu posto na mesa, a outro. É muito apropriado que uma garota camponesa trafique no esporte dos reis.

 

Ao aproximar a noite, Regeane se encontrava em território virgem. Estava muito cansada. Estava em pé há dois dias e duas noites quase inteiros. Tinha consumido grande parte de seus recursos físicos: de maneira nenhuma todos, mas sim muitos.

O vale do Correio era uma das regiões mais ricas da Itália. Mas embora fosse produtiva, uma parte importante havia sucumbido Ao despovoamento e abandono generalizados que perseguiam os vestígios do que uma vez foi um grande império.

O que havia acontecido com eles? Com esta gente de grandiosa magnificência, para que seus lucros se tornassem um caos, tão rapidamente? Tal análise estava mais à frente do alcance de uma loba faminta e cansada.

Porque agora ela estava faminta, muito faminta e a carniça consumida por seus congêneres rio acima começava a lhe parecer mais atraente, vista em perspectiva. Se não para a delicada mulher, sim para sua irmã da luz de lua.

A terra ao redor do rio estava se convertendo velozmente em restingas e pântano, enquanto o rio continuava seu serpenteante curso através da região úmida. A loba de prata acabou nadando tanto como andando. Via muitas ruínas. Estavam sendo lentamente absorvidas pelo pântano. Muitas não eram mais que pedras cobertas de salgueiros, carvalhos de água, caules gigantes e espadanas, mas de vez em quando, uma casa sem cobertura com o interior repleto de malesas verdes a olhava, com suas janelas como olhos, da outra borda.

Ao longe, o sol entrava em uma tira de nuvens defumadas que viajavam acima do horizonte. O ar estava quente no vale do Correio e ocasionalmente algum mosquito a importunava. Os lagos estavam cheios de aves aquáticas, patos e gansos de todo tipo, mas a faminta loba não tinha nem idéia de como caçá-los.

A mulher, entretanto, foi capaz de admirá-los enquanto elevavam o vôo. E perguntava se lhe esperava outra noite sem comer e meneava metaforicamente a cabeça ao pensar nas deficiências de sua educação lupina, quando viu o povoado.

As ruínas se estendiam de ambos os lados do rio. Pedras rotas, colunas solitárias, fragmentos de um foro com seus destroçados templos, dos quais já fora roubado há tempo algo com um mínimo de valor para alguém... Uma vista melancólica à enviesada luz áurea da tarde. A mulher suspirou. A loba provou o ar.

Se por acaso há bandidos, ela disse a sua companheira. As ruínas não eram lugares encantadores, mas sinistros, Freqüente e desagradavelmente habitados a noite. Os foragidos mais perigosos estavam acostumados a procurar refúgio nelas.

A loba, ainda sob a sombra da frondosa ribeira do rio, voltou a comprovar o ar. Não, há nada, mas este lugar a preocupa. Por quê? Não tinha nem idéia.

Ela entrou por entre os quebrados blocos de pedra. Não, nada humano poderia viver aqui. Tudo o que restava do povoado era já parte do pântano. Ela teve que ir saltando de uma pequena ilha de pedra a outra. Deteve-se em uma, mais longa e grossa que as outras, para recuperar o fôlego e olhar na água. Um peixe grande descansava a sua sombra, movendo lentamente suas aletas, para manter sua posição no preguiçoso riacho. Regeane tinha aprendido a caçar como os lobos, graças a Matrona. Em alguns segundos havia caçado, matado e consumido seu jantar e relaxava sobre o grande bloco de pedra, desfrutando de do calor dos últimos raios do sol.

Agora, precisava de uma guarida.

Os romanos tinham construído uma ponte sobre o rio. Os arcos ainda permaneciam em pé. E como era a engenharia romana, provavelmente seguiriam em bom estado durante outros mil anos. O rio não tinha destruído a ponte, mas a rodeara cobrindo o povoado. Onde a ponte terminava, perto do foro, o rio passava sob um arco coroado que devia ter sido um posto de guarda que vigiava o fundo foro. Uns quantos saltos de bloco em bloco e um pequeno mergulho de cabeça a levaram até o posto de guarda.

Logo havia chegado a uma estreita escada de pedra que agora começava sob a água e subia até o alto do arco para acabar em uma plataforma. A loba não podia subir a escada, mas a mulher sim... Era difícil e as pedras estavam escorregadias e úmidas, mas quando ela alcançou o topo descobriu que podia fiscalizar o campo em quilômetros a sua volta. Também descobriu que estava vestida com uma rede de brancas plantas aquáticas em flor.

Bom, pensou a mulher, não é tão estranho. Estivera estado coberta de samambaias em sua viagem através do outro mundo.

Estas plantas eram igualmente belas e cheirosas.

O sol tocava o horizonte e escurecia fracamente com as negras nuvens, mas sua sombra ficava mais que compensada com os metálicos reflexos vermelhos e dourados. E na distância, rio abaixo, ela viu as características torres do que sabia ser de Pavia, fracamente distinguíveis contra as brilhantes cores do pôr-do-sol, graças a vários pontos de luz.

Regeane tirou sua túnica de plantas aquáticas pela cabeça e a deixou cair sobre o pequeno lago abaixo; tornou-se loba; girou umas quantas vezes sobre si mesma. Se deitou, apoiou a cauda na cara e adormeceu.

 

                                                                 Capítulo 8

Pavia era a cesta de pão do reino lombardo. Ali se concentrava a maior parte da riqueza do afortunado reino, em fazendas nas quais os escravos trabalhavam duro, para cultivar as colheitas de terrenos reclamados pelos pântanos. Os romanos tinham adornado a cidade com o melhor de seus fabricantes. A maior parte das pessoas que viviam nesta jóia engastada em um campo de magnífica abundância era ou ricos, ou escravos que atendiam as necessidades dos ricos ou cuidavam de suas propriedades quando se ausentavam. A cidade mostrava, já que consistia em uma coleção de esplêndidas vilas, caros edifícios públicos municipais e estabelecimentos recreativos.

Ninguém o bastante afortunado para desfrutar de diversões como as carreiras, o circo ou os amplos e cômodos banhos se preocupava absolutamente pelo anel de lares respeitáveis, embora pobres, e casas de madeira, estuque e tijolo que percorriam a cidade e se amontoavam dentro e fora dos muros. As ruas ali eram estreitas, as casas não eram vilas espaçosas e as pessoas que residia nelas trabalhava para ganhar a vida e não estava em posição de desfrutar do teatro, da arena e dos banhos.

 

É obvio, que os lombardos não eram romanos, mas quando tomaram o povoado decidiram, que viver da mesma forma que os antigos habitantes romanos era um prêmio adequado para os conquistadores. Mas nestes momentos, o sistema começava a desfiar. Os escravos eram mais caros. Os tipos mais pobres do povoado provavam ser mais difíceis de controlar e bem mais exigentes com seus direitos legais, por exemplo, que os intimidados humiliores dos tempos romanos. Mas a presença direta do rei e da corte estava mantendo, até certo ponto, as coisas em seu lugar.

O hipocausto dos banhos estava aceso. Os gladiadores raras vezes lutavam na arena e o bispo montava uma balburdia tremenda quando um deles era morto. Não porque simpatizasse com o pobre homem, mas porque não deveria ser uma forma de entretenimento, observar o derramamento de sangue. Mas sempre que se limitasse a pagãos, o velho prelado não fazia mais que choramingar um pouco. E, se todo o resto falhasse, sempre havia as execuções públicas e os escravos fugitivos a quem castigar. Então os lombardos tinham conseguido preservar até agora alguns aspectos da cultura romana. E, dado que os escravos ainda podiam ser comprados para trabalhar até a morte nas enormes fazendas e que as colheitas ainda obtinham um bom preço, os lombardos pensavam que estavam fazendo todo o possível para conservar a sociedade clássica.

Maeniel foi levado ao foro no centro da cidade. Ainda estava acorrentado. O comandante de olhar frio da guarda real não ia correr riscos. Maeniel nunca antes tinha visto Desidério, mas esteve seguro imediatamente de que o alto e encanecido homem que o fitava dos degraus do reconvertido templo da deusa Roma tinha que ser o rei lombardo.

O conceito da deusa Roma era uma das últimas invenções clássicas. Naquela época todo o império romano em um ninho de gralhas que colecionava religiões estranhas, incluindo não poucos cultos a imperadores deificados bastante humanos. Alguém, não ficou registrado quem, fizera um amálgama com toda a confusão e decidiu que se houvesse disponível sobre como levar a arte de governar, o melhor e mais seguro seria dedicar uns quantos sacrifícios e um monte de incenso de vez em quando a uma personificação do aparelho estatal romano. Desta forma, se surgiam perguntas a respeito de sobre quem recaía a lealdade de indivíduos ou grupos, podiam cobrir as costas dizendo que rendiam comemoração à deusa Roma.

Ela era uma espécie de suplente genérica dos deuses antigos, dos imperadores mortos, de toda a panda do Olimpo, dos espíritos locais bons e maus, das fadas, duendes... Dos íncubos, súcubos, gnomos, anões, ogros e algo que pudesse surgir de noite, cujos ritos propiciatórios pudessem ter sido passados por cima, ignorados ou simplesmente esquecidos por algum motivo. Os templos tinham bom aspecto, os seguidores não adoravam a nada e nem a ninguém que tivesse existido nunca e só esses cristãos tão loucos poderiam pôr alguma objeção em usar um pouquinho de incenso sobre as brasas.

Este tempero em concreto era agora uma catedral cristã. A deusa, cosmopolita como era provavelmente nunca se alterara. Mas o novo campanário era pouco apropriado junto à bela basílica romana de concreto, mármore e tijolo.

Maeniel suspirou e desmontou do cavalo. As correntes o arrastavam.

Doze degraus de mármore bastante levantados conduziam até as enormes portas duplas de bronze. O capitão da guarda real cravou a lança nos rins de Maeniel e disse: - Mova-se.

Maeniel, que não queria conhecer mais de perto a lança, moveu-se degraus acima, através de um estreito alpendre e cruzando as portas de cobre. O bispo, ou alguém vestido de forma bastante impressionante para ser, orvalhou-o com água benta e lhe benzeu ao passar. Dado que Maeniel não começou a soltar fumaça de enxofre, nem estalou em chamas e nem se desapareceu em uma nuvem de pó, tanto o bispo como o rei decidiram que era o bastante seguro lhe seguir pelo corredor até o interior da igreja.

O rei se sentou a um lado do altar e o bispo no outro. Maeniel fitou os dois. O olhar foi lupino, mas aparentemente eles não tomaram como tal. Atrás dele, Maeniel ouviu como as pessoas entravam na igreja.

Os senhores e damas lombardas tinham prioridade. Eles e seus criados que levavam leques, cadeiras, tamboretes, sais cheirosos, ramalhetes de ervas contra contágios e, por último, mas não menos importante, comida e bebida, ocuparam todos os melhores lugares junto ao altar. Atrás deles, o pessoal do povoado abria passo a empurrões, para chegar até os lugares que a nobreza havia deixado livres, até que cada canto do edifício ficou abarrotado por completo.

Maeniel esperou. Nesse ínterim, ele se ajoelhou ante Cristo, lhe saudando como o mais poderosa de todos os deuses e lhe oferecendo seus receios. Depois ficou em pé. As correntes soaram quando ele se inclinou e novamente a o se levantar; pelo resto, a igreja permanecia em silêncio.

O rei decidiu falar em primeiro lugar.

—Meu senhor Maeniel, o que fazem em meu reino?

Maeniel respondeu honestamente, principalmente porque tinha passado muito tempo tentando achar uma história convincente que explicasse suas atividades ao rei e não tinha conseguido, nem sequer depois muitas horas de sérios esforços mentais, inventar uma medianamente acreditável.

—Sua majestade, tentava espiar a disposição e número de suas tropas para proporcionar a informação ao rei franco, Carlos.

—Isso não é nenhum segredo. - Respondeu Desidério. - Reforcei Ivrea e Suas. Ele tem que vir por uma ou outra rota. Estarei lhe esperando.

—Eu notei. - Disse Maeniel.

O rei assentiu. Ele era algum ano mais velho que Carlos e seu cabelo negro tinha fios prateados e ele mostrava um ar de cansaço e dúvida.

Ele perderá, pensou Maeniel. Posso ver em sua face. Ele não tem confiança em si mesmo que necessitaria para derrotar ao rei franco. Não tem a confiança que qualquer rei deve ter para manter sua posição. Escolhi o lado correto. Qualquer que seja meu destino, este homem está condenado.

—Uma resposta honesta. - Disse Desidério.

—Sei. - Disse Maeniel. - Não me ocorreu uma boa mentira.

Uma suave risada tola percorreu a igreja.

—Muito bem. - Continuou Desidério. - O que devo então pensar das outras histórias que se contam sobre você?

—Oh - Disse Maeniel. - Que histórias? — Ele tentou parecer cândido, mas não conseguiu de todo.

—Que você é um poderoso feiticeiro confabulado com o diabo, capaz de mudar de forma a vontade de homem para fera e vice-versa e que não vieste se informar sobre meus planos militares, mas sim, acabar com minha vida. - Disse o rei.

Maeniel respirou fundo e respondeu o melhor que pôde.

—Meu senhor rei, não tenho planos sobre sua morte. Sou um soldado, não um mercenário. E não sei nada do diabo. Nem, se esse tal ser existe estou em dívida com ele.

Alguém riu.

Maeniel reconheceu Hugo.

—Oh, bem... – Ele disse. - Acreditei que estaria aqui, Hugo. Por que não sai aonde eu possa vê-lo?

Hugo voltou a rir.

—Acredito que não.

—Fique preparado. - Disse Maeniel. - Porque se alguma vez puser as mãos em cima...

—Calem-se. - Disse Desidério. - Uma resposta inteligente, senhor Maeniel, mas parcial. Se não se importar... Responda toda a pergunta.

—Não sou um feiticeiro. - Disse Maeniel. - E podem outorgar toda a credibilidade que desejem aos contos deste imbecil enganado, mas eu não apostaria nada pela veracidade de nenhuma declaração que saísse de seus lábios.

—Muito bem. - Disse o rei. - Então, nega sua acusação?

Maeniel sentiu como lhe gelava o sangue nas veias. O rei baixou os olhos para não enfrentar os seus. Uma armadilha, pensou Maeniel. Uma armadilha. Estava na capa que lhe haviam dado a noite anterior.

Nafta. Ao contato com a vela que Hugo tinha na mão, ela pegou fogo.

O lobo se apoderou dele com toda a força do terror mortal e irracional quando suas roupas arderam. As correntes e a roupa em chamas de Maeniel aterrissaram formando um monte no chão da igreja e o lobo cinza ficou preso somente pelo colar de aço que lhe rodeava o pescoço.

A corrente o puxou em meio de um salto e o capitão da guarda real lhe deu um forte golpe no crânio com a parte traseira da lança. O bastante forte para matá-lo, mas lhe restava suficiente vida para levá-lo através da transformação e deixá-lo caído chão em forma humana, sangrando pelo nariz e boca e profundamente inconsciente.

 

A loba de prata despertou para ouvir som de pegadas sobre a ponte e então se lembrou que não havia pés humanos em setenta quilômetros a sua volta e, sim, havia arcos, mas não ponte. Os mortos, ela pensou. Esta ruína é um lugar para os mortos, como Cumae. Levantou mulher sem querer e se encontrou olhando ao mundo escuro.

Podia ver a ponte tal e como uma vez fora e, quando se voltou, o foro da cidade com sua praça de mármore estavam intactos, mas tudo salvo a cidade estava às escuras. Não podia ver lua e nem estrelas, mas somente a corte romana sobre a ponte: seu comandante e os homens que o seguiam. Sua aparência lhe intrigava muito. Deviam ser romanos, os templos e o foro proclamavam que o lugar era romano, mas a armadura e as armas que usavam eram arcaicas. Couraças de triplo anel, lanças, espadas de um só fio, longos escudos de madeira laminada. O exterior estava pintado, mas neste mundo não havia cores, elmos com longas cristas de plumas. Uma cabeça de lobo mostrava-lhe as presas de cada um dos escudos. O centurião, o líder, não levava escudo, mas três cristas de plumas.

—Estou, — perguntou Regeane, - com os mortos?

—Mortos e esquecidos. - Disse o centurião. Ele parecia orgulhoso disso.

—Não estou vestida. - Disse ela.

—Não estou vivo, — respondeu o centurião. - Mas te deixarei minha capa. – Ele a tirou e a lançou para ela.

Regeane se envolveu no versátil objeto e desceu os degraus. Levaram-na até um quarto de guarda vazio, para alívio de Regeane e ela atravessou a porta e saiu à ponte que não existia.

O centurião estava com seus homens. Olhando-lhe, Regeane não pôde reprimir um calafrio. Era uma múmia sem olhos e nem lábios e sua pele seca se estirava com tensão sobre os ossos. Seus homens não estavam melhores. Todos eles luziam seus ferimentos mortais: A um faltava parte da face, outro tinha um horrível ferimento que quase lhe amputava a perna e o pescoço cortado. Regeane tentou não olhar com muita atenção para o resto.

—Defendemos a ponte, - disse o centurião, - enquanto nossa comandante e seu filho se retiravam. Vingaram-nos dos cartaginenses. Estamos satisfeitos, honramo-nos de guardar a ponte. Arrancamos a cunha que sustentava a rocha que esmagou nossos inimigos. Roma se tornou grande. Se não tivéssemos caído, o ocidente e as épocas posteriores teria sido diferentes. Mas nos pediu e estávamos dispostos a pagar o preço.

—Entretanto, está escuro. —Regeane voltou à vista para o que era, salvo pelos edifícios brancos como ossos da ponte e do povoado, uma escuridão impenetrável que a envolvia e aos soldados. – Escuro, - ela repetiu, — e muito frio. Onde estão a lua e as estrelas, o vento, as silhuetas noturnas das árvores, o suave murmúrio da água e o tato sedoso da vegetação? Vocês eram homens e devem se recordar do sol.

—Sim. - Foi à resposta. - Recordo-me que o sol quando não era cruel.

Regeane viu um vinhedo que descia até um lago no qual se refletiam as cores da alvorada sobre imprecisas fileiras de vinhas adornadas com cachos de frutas, ametistas e safira. Depois a visão mudou e ela viu um homem morrendo ao sol parecido em uma cruz com forma de x: o centurião. Seus olhos haviam desaparecido e o quente calor lhe esticava a pele sobre os ossos.

—Fui o último. Cortei o pescoço dos feridos, mas os cartaginenses se zangaram ao ver que o comandante havia escapado e morri da forma que você viu. Mas meu espírito segue vivo, algo a considerar... E você o chamou. Às vezes temos que construir com ilimitada tristeza.

—Não posso acreditar nisso. - Sussurrou Regeane, mas o romano e seus homens desapareceram e a loba sumiu em um sonho mais profundo. Quando ela despertou se encontrou olhando através do terreno pantanoso aberto para o sol nascente. Estava deitada sobre um dos blocos que tinham servido de revisto ao foro do povoado e estava agasalhada com os restos manchados esfarrapados de uma capa escarlate.

 

Isto deve ter sido uma cisterna, pensava Maeniel, como a prisão de Roma. Ele a vira há muito tempo em uma das viagens que fez até ali. Vira e cheirara um buraco na terra. O prisioneiro caía no poço. O verdugo esperava embaixo. Desta vez não havia verdugo, mas ele não acreditava que o rei fosse mostrar alguma compaixão. Sentou-se. Doía-lhe a cabeça, estava nu, tinha sangue ressecado sobre o rosto e o peito.

Entretanto, estava cansado. Ainda um pouco enjoado pelo golpe, reconheceu com cuidado seu entorno mais imediato usando todos seus sentidos, tanto lupinos como humanos. Só podia observar.

A prisão tinha forma de garrafa com base plaina; a única entrada que podia ver era uma tampa redonda de aproximadamente um metro de diâmetro na parte superior. Os lados da garrafa se alongavam, formando um pendente para fora da entrada no pescoço e formando um espaço redondo de uns três metros de diâmetro no fundo. Estava coberto de areia. Uma areia muito macia. E então viu algo que lhe produziu calafrios. Havia grades e pesadas grades de ambos os lados da cela.

Não, não tinha sido uma cisterna. Era uma cisterna.

Ele ficou de joelhos. Uma voz do outro lado da grade lhe perguntou:

—Está cômodo?

Maeniel reconheceu a voz do rei.

—Dificilmente. - Disse Maeniel. - Faz frio, estou nu e não rechaçaria um pouco de vinho e algo para comer.

—Uma lástima. - Disse Desidério. - Mas terá que se conformar. A não ser que me ensine como fazer esse truque.

—Que truque?

—Oh, por todos os Santos. Por favor, não se faça de tolo. O truque que te vi fazer... Não só eu, mas também meio povoado e a corte inteira. Todos nós vimos como se convertia em lobo.

Maeniel não respondeu. Ficou em silêncio.

—Assombroso. - Continuou o rei. - Não quer admitir.

—Não.

—Homem, o fato de que esteja vivo agora é só um tributo a minha insaciável curiosidade.

—Sim.

—Assim é. — Disse Desidério. - O bispo não pode se agüentar de vontade de te queimar. O capitão de minha guarda quer que o estrangulem. Seu amigo Hugo fez algumas sugestões; bastante imaginativas, permitia-me acrescentar.

—Adivinho.

—Sim, e tão letais como as outras sugestões, embora um pouco mais dolorosas. Depois, você estrangulou ao seu pai.

—Sim, estrangulei-o. Provavelmente uma de minhas ações mais úteis e virtuosas. Não posso me arrepender. —Então Maeniel sorriu. - Duvido que Hugo tampouco o faça. Acredito que estava mais contente que triste por se desfazer de seu mal-humorado, bêbado e maquiavélico pai. Provavelmente se sentiu encantado de poder ficar com toda a riqueza que o velho safado repelente teria pegado e fugir da cidade. Se quer saber, o Papa e eu o buscamos por toda parte e não houve forma de lhe encontrar. É provável que descobrisse sua perda só quando despertou sóbrio em uma manhã e se deu conta de que não lhe restava dinheiro. Rogo-lhe encarecidamente que o mantenham perto de você. Preferiria acariciar uma víbora.

O rei riu entredentes.

—Realmente é um professor da dissimulação. Ele me advertiu sobre isso. Mas eu, como você, separo o assunto.   Qual é o truque? Como se converte em lobo?

—Eu não me converto como vocês dizem, em lobo. Sou um lobo, só que às vezes me pareço com um homem. E em honra tanto a verdade como a brevidade, direi-lhe que não posso lhes ensinar como mudar de pele, porque nem eu mesmo sei como faço. Simplesmente o faço. A que me deu nome e poder não me proporcionou uma explicação.

—É algo demoníaco então? Este teu poder? — O rei parecia desejoso de que Maeniel se incriminasse.

—Não sei nada sobre demônios. Nunca encontrei nenhum. Nem tampouco sei do tudo o que vocês os cristãos querem dizer com essa palavra. Eu lhes digo que se etiquetarem tudo o que não compreendem como demoníaco, o mundo que vêem se encherá de maldade.

—Então não é cristão?

—Não.

—Aceitaria o batismo, se te desse a oportunidade?

Maeniel estava a ponto de responder com um grunhido de fúria, quando seu lado humano o conteve com brutalidade. Esta ocasião era muito boa para perdê-la. Já tinha concluído que não havia forma de sair da cela. Se pudesse persuadir o rei para que acreditasse que poderia convertê-lo, o processo de instrução e batismo poderia oferecer uma oportunidade para escapar. Uma sem correntes e ao ar livre...

—Por quê? — Ele perguntou.

—Para salvar sua alma, é obvio.

Não, disto ele não gostava e não confiava nas intenções do rei. Já lhe haviam enganado uma vez. Esta situação tinha o aroma de podre de outra armadilha.

—Não me façam rir. – Ele disse. - Ainda tenho a cabeça machucada e me dói o nariz. O melhor que podem obter de mim é um resgate, sua majestade. Tenho muito dinheiro; contente-os com isso. Quande Carlos atravessar os Alpes, vocês necessitarão.

Maeniel pôde ouvir uma forte inspiração que vinha de trás da tela de ferro.

—Rechaça minha oferta de salvação? Que contumaz obstinação! Tenha em conta sua alma imortal.

—Não é minha alma o que me preocupa. - Disse Maeniel.

Maeniel ouviu uma porta se fechar atrás da tela e depois o lento crepitar de uma porta ao ser erguida. Maeniel chamou o lobo, mas só por uns instantes. A fera oferecia força e resignação. Um olhar a escuridão eterna isenta de terrores humanos, de céu, de inferno. Muito tempo atrás só se via como parte do mundo, seu comportamento para bem ou para mal determinava o que era e não nenhum código imposto pelos outros, e este conhecimento lhe proporcionava fortaleza.

O homem lutaria. O homem não sabia como não lutar. Mas o lobo o centraria com o conhecimento e a confiança da paz do caçador noturno ante o mutante mundo e sua eterna segurança sobre o lugar que ocupa sob as estrelas e entre elas.

Vivi tão bem como pude. Sinto-me satisfeito. Depois ele abandonou o lobo, porque uma água tão fria como a morte começava a cair através das grades, alagando a cela.

 

Regeane afastou a destroçada capa e se converteu em loba. O romano havia lhe dito que ela o convocara. Não estava segura do que ele quisera dizer. Tinha viajado a terra dos mortos em outra ocasião e outro homem lhe havia deixado um sinal. Então voltou a se tornar humana, dobrou a capa com cuidado e a deixou em uma profunda greta da pedra.

Olhou por cima da água e respirou fundo. O ar estava limpo e fresco, muito fresco. Incômoda, ela esfregou os braços. Estava com a pele arrepiada, mas ela se aferrou a forma humana durante uns instantes mais, bebendo da beleza que o sonho lhe tinha negado. Que horrível ficar preso para sempre na escuridão.

A água refletia o mutante céu matinal, dourado no ensolarado centro, depois verde e, finalmente, azul nas extremidades. Arbustos, espadanas e salgueiros recortavam suas negras silhuetas sobre a florescente luz.

Às vezes temos que construir com ilimitada tristeza.

Remingus, esse era seu nome. Ela sabia, mas não sabia como; isso é o que Remingus havia dito. A frase a atormentava. Ele havia lhe falado das completas e impenetráveis barreiras do tempo e da morte.

Se me chamar, eu a acudirei.

O sussurro foi tão fraco que Regeane quase não pôde ouvi-lo. Como se fosse o barulho de papel roçando com papel, ou como as escamas de uma serpente movendo-se sobre uma rocha. Ela olhou para a Pavia. Sobre o arroxeado e o vermelho violáceo da alvorada, ainda brilhavam os pequenos pontos de luz, já quase extintos pelo dia nascente.

Então ela se fez loba, com o suave pelo reluzente, macio pela luz nova. Em poucos minutos tinha encontrado um peixe, tomado o café da manhã e se encontrava novamente a caminho. Falou com Maeniel. Mantenha-se vivo. Espere-me. Ela desejou ardentemente que assim fosse, enquanto se apressava.

 

Em Roma, Lucila tomava o café da manhã com Dulcínia. Um queijo de nata de leite com frutas e ovos cozidos em um molho de pimenta e cebola; acompanhavam-no com um vinho branco bem aguado.

—Está sendo muito desagradável, minha irmã. - Lhe disse Dulcínia amavelmente, depois de alguns momentos de conversa sobre o tempo, as verduras da primavera que apareciam no mercado e das famílias que ainda podiam se permitir retirar para seus imóveis campestres, para escapar dos meses de calor.

— Por que diz? — Lucila tentou parecer surpresa.

—Não se atreva! - Disse Dulcínia. - Meia Roma sabe. Não, não meia, mas todos os habitantes de Roma que não são senis e nem são menores de dois anos, nem têm gravemente danificadas suas faculdades mentais sabem que ele te visitou e que passou a noite aqui. O que aconteceu?

Lucila se removeu no assento, afastando o olhar de Dulcínia e dirigindo-o para o verde da manhã. Estavam perto do pátio e os serviçais haviam aberto as portas dobradiças que davam ao triclinio. De repente, lhe encheram os olhos de lágrimas.

Dulcínia agüentou a respiração. Conhecia Lucila há fazia muito tempo e a amava.

—Não. Não me diga que ele se comportou... Errado.

—Não. Não se comportou. Disse que me amava. Que sempre me amaria e depois, julgando pela quantidade de ardor que levou a nossa cama, diria que me provou que nada do acontecido fez a mínima diferença para ele.

—Sim, no palácio Luterano disseram que havia ele havia voltado todo alegre. Parecia muito feliz.

—Sim, querida. E eu também estou. Mas também é certo que ele me por ao conhecimento de um fato perturbador. Gerberga desapareceu.

—Política novamente. - Suspirou Dulcínia.

—Quando o conheci, - disse Lucila, - a política era um de seus principais interesses e eu entrei rapidamente no jogo. Se não tivesse entrado, acredito que nossa relação não teria prosperado. Já então, a facção pró-franco começava a lhe preparar para um alto cargo e pude ver que qualquer mulher que quisesse ganhar seu amor e mantê-lo teria que ocupar seu posto à mesa. Subimos juntos. E não posso dizer que me arrependa de minha ambição quando recordo a granja de meu pai, com seu interminável trabalho, sujeira, crianças gritando e ganho meio morto. Minha mãe morreu por excesso de trabalho e partos antes de cumprir sua idade, Dulcínia. Então os quadris de alguma das meninas começavam a aumentar e seus seios se mostravam no peitilho do vestido, meu pai começava a tentar vendê-la ao melhor, mesmo embora fossem os negociantes de escravos da Rávena. Minha irmã sofreu essa sorte, e... Eu também, querida. E tendo em conta o que vi dos lascivos amigos de meu pai... — Lucila se deteve. Seus olhos tinham adquirido uma dureza que assustou Dulcínia. Tinha os punhos apertados. Ela olhou as mãos e relaxou os dedos. Em alguns lugares suas unhas lhe tinham atravessado a pele e feito brotar sangue. - Devo encontrar Gerberga e esse filho de Desidério, Adalgiso.

—Tudo o que posso ver é que está te tentando muito que Carlos faça algumas coisas complicadas... Levar um exército através dos Alpes, por exemplo. Inclusive com os romanos, não era uma brincadeira de crianças. - Disse Dulcínia.

—Sim, ele tem sua parte e nós a nossa. Prefiro me concentrar no que posso controlar antes que do que no não. Ainda é solicitada entre todos esses bárbaros?

Dulcínia deixou cair às mãos.

—Sim, mas...

—Nada de, mas. Já falei com Rufus...

—Lucila, é inevitável que me reconheçam como sua agente. Nossa relação é tão bem conhecida que já ninguém se molesta sequer em fofocar sobre ela. Não ouvirei nada sobre Gerberga e seu amante. Ninguém me dirá uma palavra.

—Sim, sim, sim. Mas sua donzela, querida minha é outro cantar. Oh, todas as mulheres de cada povoado e aldeia morrerão em saber as novidades e modas nas cortes de Constantinopla e Roma. Irão aos bandos para arrumar o cabelo como a imperatriz Irene e averiguar que combinação de violetas e mirra, com um toque de rosas, que é usado entre as damas gregas de vida alegre; e se os espartilhos se fazem melhor com disco ou com tendões duros, e como são mais fáceis de costurar em seda para conseguir maior segurança. Muito complicado este assunto de ser mulher, querida minha. Muito complicado. E reconheça que sou uma perita nestes assuntos de penteados, dos usos e ocasionais, embora deliciosos, abusos da maquiagem e da arte de embelezar os lugares onde não alcança a pintura. E tenho centenas de receitas para perfumes, pós e óleos aromáticos. Inclusive posso valorizar jóias, dizer se é prata, prata dourada ou ouro, puro ou de liga, e possuo um olho excelente para as pedras, tanto preciosas como semipreciosas. Posso sopesar um broche na mão e dizer se é prata, ouro ou estanho prateado ou mesmo esse impostor de impostores, o chumbo dourado. De fato, acredito que vou me divertir muitíssimo.

—Sim. - Suspirou Dulcínia. - Novamente esta aventura é feita para ti. Diz que o senhor Rufus nos vai acompanhar?

—Oh, não, Cecília não quer lhe perder de vista. Sabia que ele lhe fez uma máscara com um nariz de prata? E ela usa todo o tempo. Mas sim, ele nos deixará uma escolta de vinte e cinco leais soldados, todos estão presos a ele por juramento e receberam terras por seus serviços. São homens de qualidade um pouco maior que os mercenários a salário. Não queria correr riscos com sua segurança, seja nos caminhos ou nas cidades.

Dulcínia assentiu.

— Irei para casa e falarei com minha secretária sobre os convites que recebi e os incentivos que me ofereceram para viajar até o reino lombardo.

O plano de Lucila era um grande perigo para Dulcínia. Ela não gostava de pensar no que aconteceria se fosse reconhecida ou capturada, mas tinha visto Lucila se mover por Roma incógnita e sem despertar muito interesse. As roupas das mulheres ajudavam no disfarce.

Assumia que uma mulher vestida de seda, ouro e com perfume caro era de certo tipo, enquanto que a mesma mulher usando um vestido gasto, véu escuro e capa eram de outro. As pessoas raras vezes questionavam estas hipóteses.

A roupa se usava para indicar posição social, grau de riqueza e classe. Quem não a utilizasse para este propósito, seria considerado um louco.

As mulheres de aluguel, prostitutas, usavam sua própria vestimenta característica e pintavam o rosto. Anunciavam sua profissão. Tal como fariam as donzelas e ajudantes de uma artista como Dulcínia. Teria tanta demanda como sua ajudante e Lucila, com sua habilidade e familiaridade com todo tipo de gente, que não teria nenhuma dificuldade em se fazer passar por uma mulher assim.

Ela já começava a envelhecer e Dulcínia sabia que se deixasse de lado a vaidade das tinturas de cabelo, perfume caros, maquiagens e espartilhos, Lucila pareceria quase outra pessoa.

Cada cidade tem seus notáveis da corte e família governante e as mulheres pertencentes a este tipo morriam de vontades de saber fofocas, conselhos sobre moda, notícias dos reinos bárbaros e do oriente grego; falariam com liberdade diante de sua donzela. E lhe diriam tudo o que soubessem. Oh, Deus! Elas diriam.

Se sua donzela não pudesse averiguar onde estava Gerberga, ninguém poderia. E provavelmente por isso Adriano havia encarregado o trabalho a Lucila. Não era a primeira vez que ele se encontrava em um apuro e não desejava que sua mão direita soubesse o que fazia a esquerda.

Lucila a afastou de seus pensamentos.

—Vá, que cara de decepção!

—Algo do qual não falamos, - disse Dulcínia enquanto se levantava, - é do que vamos fazer com a rainha da Francia se a encontrarmos.

—Não se preocupe antes de tempo. - Lhe ordenou Lucila. - Carlos como você particularizou tão astutamente, tem que atravessar os Alpes. Teremos que tomar essa decisão quando chegar o momento.

 

Chiara despertou com violentas sacudidas que dava sua cama.

—Ajude-me, maldita. Tem que me ajudar. Estão lhe matando.

—A quem? O que? A quem estão matando?

—Ao lobo.

Chiara reconheceu o hóspede de Hugo. Também estivera na igreja com Hugo quando tenderam a armadilha a Maeniel para que ele se desvendasse.

—Não estou segura de querer salvar essa criatura, - ela começou.

Isso foi tudo o que pôde articular. O hóspede de Hugo derrubou a cama, atirando-a ao chão. Chiara deixou escapar um grito. Sua donzela, como sempre, dormia em um quarto próximo e seu pai estava no aposento ao lado. Ela conseguiu ficar em pé e começou a calçar os sapatos, suaves artigos de pele, quase sandálias. Algo a pegou pelo cabelo e começou a arrastá-la através da porta, para o escuro corredor.

Ela se apegou com força a soleira da porta e resmungou entredentes.

—Deixe-me. Agora.

Ele o fez. Ela sabia que a força da criatura tinha limites. Não estava segura do que aconteceria se o enfrentasse, mas realmente não queria averiguar... Pelo menos, não agora.

—Sim. – Ela disse. - Sim, te ajudarei, mas deverá se comportar decentemente.

— Me comportarei, mas será melhor que se apresse porque ele não durará muito mais.

Chiara pegou sua capa e se envolveu nela.

—Onde está Hugo?

—Em seu quarto, balbuciando de medo, é um homem acabado. Está seguro de que o lobo vai matá-lo. Por isso arrumou esse sujo truque para fazer com que a criatura se inculpasse. Tenho notícias para esse pedaço de esterco. Se o lobo não matá-lo, eu o farei. - Disse furioso o hóspede de Hugo.

—Não vai querer fazer isso. - Disse Chiara enquanto corria velozmente escada abaixo, tentando fazer o menor ruído possível. - Tem que precisar dele para alguma coisa, igual a ao resto de nós, de outro modo não o conteria. Onde está Gimp?

—Bêbado em um botequim perto do rio. Justo quando mais necessito.

Em poucos segundos eles haviam saído do edifício. Chiara se deteve um momento. A rua estava escura e deserta.

—Por todos os céus, que horas são?

—Tarde. - Foi a resposta. - Depressa. Não posso entender o que os estúpidos humanos fazem com o tempo, que é depois de tudo mais um rio, que segmentos de...

—Não me doutrine. Onde? Onde quer que eu vá?

—Ao foro. Corra!

Chiara correu.

Pavia não era uma cidade grande. Poucos minutos depois ela se encontrava já perto da catedral.

—O que acontece se o guarda nos vê? - Disse Chiara ofegante.

—Seria sua desgraça. - Disse o hóspede inexoravelmente. - Mas ele não nos verá. Está no mesmo botequim que Gimp, também bêbado.

Ela voou degraus acima. As enormes portas de bronze estavam fechadas com chave.

—E agora?

—Entro, levanto a barra e a deixo entrar.

Em menos de um segundo já haviam terminado. A barra estava sobre um pivô. Uma vez dentro, Chiara a deixou cair novamente em seu lugar. Depois se voltou e olhou a grande, escura e vazia igreja.

—Oh! - Disse Chiara.

—Pelo que posso ver, estamos sozinhos - Disse o hóspede de Hugo.

—Está seguro?

—Não, mas se vir alguém é claro que se queixa como é de costume e, esteja vivo ou morto, poderei afugentá-lo. Depressa.

Ele empurrou-a para diante. Ela passou correndo junto ao altar. Ali só ardia uma débil luz. Uma trêmula luz de santuário. O hóspede de Hugo a pegou. Uma façanha impressionante, já que estava suspensa por correntes que desciam do teto abobadado. Pareceu voar até onde estava Chiara, depois se colocou diante dela, conduzindo-a a cripta em que se enterrava os reis lombardos.

Várias entradas e portas lhe bloqueavam a passagem, mas todas se abriram ante ela. Ela passou apressada pela cripta, um lugar bastante sinistro. Às pessoas da época não eram colocadas esfinges, nem sequer os excitantes sarcófagos, como os romanos. Os senhores e senhoras lombardos eram encerrados em caixas de pedra Lisa, todas elas elegantemente gravadas com o nome e classe de seus ocupantes.

Chiara ergueu os olhos para o alto, várias vezes, mas os membros da nobreza lombarda se mantiveram em seu lugar. Quando alcançaram a parte traseira da cripta, outra escada os levou ainda mais embaixo. Notava-se a umidade. A umidade e o frio.

O abajur do santuário esperava no ar, em frente a Chiara, a um metro e meio de altura.

—Desça mais a luz. - Disse ela. - Está me cegando. Tenho que ver onde coloco os pés.

—Malditas sejam todas as mulheres. - Disse o hóspede de Hugo, mas o abajur baixou uns quantos centímetros.

Os degraus eram muito estreitos e pareciam esculpidos na elevada rocha que sustentava a catedral. Chiara os sorteou com supremo cuidado, ajudada pelo fato de que as coisas se iluminavam mais conforme, quanto mais se aproximava do fundo.

A comporta não era muito grande, então a água não encheu a câmara rapidamente. O rio corria através da cela por direito próprio em vez de ficar nela; a outra grade estava conectada a uma passagem que devolvia a água ao lugar de onde provinha. Mas Maeniel viu em seguida a natureza da armadilha. Como o buraco principal que selava a cela por acima estava aberto, a borbulhante água subia por alguns momentos e o levaria até lá. E, quando a água alcançasse a parte superior, entraria em uma pequena fonte, um tubo que conduzia até o porão mais acima e subiria quase, mas não de tudo até o nível do chão. A água subiria e sairia da cela, mas ele não, porque a saída estava coberta por uma grade de ferro. A água passaria pela grade e ele ficaria preso sob ela. E se afogaria.

Ainda restavam alguns segundos, sobre a onda da água que subia, até que alcançasse a grade. Poucos segundos para contemplar seu destino e perguntar quem construiria uma sádica armadilha como aquela. Permitia que um observador olhasse de acima a luta dos indivíduos de baixo, olhar como se afogavam. Estava calculando bastante friamente que não levaria muito, quando se encontrou olhando o rosto de uma garota que o fitava de cima.

Ela estava de joelhos perto da abertura da cisterna. Deteve-se um segundo, tentando encontrar a forma de abrir a grade, mas rapidamente se deu conta de que não era possível. Estava bem assegurada; a barra que a abria se estendia ao longo da fonte e estava presa ao chão com um forte cadeado e uma corrente. Ela o puxou energicamente.

—Não! - Gritou o hóspede de Hugo. Ela voltou para a força à cabeça para a direita.

A comporta que abria e fechava os tubos que permitia o rio encher a cisterna se levantava com um simples sistema de alavanca. Se baixasse, subia a tampa de ferro que fechava os tubos. Se subisse, a pesada-a tampa voltava a cair por seu próprio peso e selava os tubos.

Uma solução simples e elegante, os tubos de encher estavam acima e os de deságüe, embaixo.

Se levantasse a tampa de ferro e o rio entraria. Precisava de dois homens para fazê-lo. Subir a alavanca da posição inferior, a tampa de ferro voltaria para seu lugar e a câmara se esvaziaria. Não tão rápido como enchia, mas se esvaziava. E embora precisasse de dois homens para levantar a alavanca, até um menino podia baixá-la.

Quem quer que fosse aquele homem, Chiara não queria que tivesse um fim tão horrível. Começou a ficar em pé. O hóspede de Hugo a voltou a sentar.

—Não. – Ele disse a ela. Depois se dirigiu a Maeniel. - Pode me ouvir?

—Sim. - Respondeu ele. Estava flutuando sobre a água que já chegava perto da grade. Estendeu as mãos e pegou os barrotes com os dedos. Estava olhando para Chiara.

—Quero, - Disse o hóspede de Hugo, - poder absoluto sobre seu corpo, incluindo a mudança de homem a lobo. Quero te possuir igual a Hugo.

—Deixou-o me enganar.

—Sim. - Bramou o hóspede. - Mas não pensava que o matariam tão rápido. Agora me dê o que quero e o tirarei... Deixarei-te viver.

—Como seu escravo...

—Não. Não. Seremos companheiros. Destruiremos estes bonitos. Estas criaturas dementes e cruéis. E o mundo voltará a ser o que era... Um mundo de paz. Cada um com os de sua espécie. E minha gente voltará e me honrará novamente.

—Não. - Disse Maeniel.

—Não? — O hóspede de Hugo parecia incrédulo. - Não? — Ele repetiu. - Te afogará.

—Então, me afogarei. - Disse Maeniel. - Preferiria me afogar que deixar que alguém controlasse minha vida. A vida de um escravo não é vida alguma para mim.

—Morra! - Gritou o hóspede de Hugo. - Morra com sua teimosa estúpida. Morra como o imbecil que é lobo.

Mas ele não estava prestando atenção em Chiara. A garota escapou da pressão que lhe sujeitava o ombro. O hóspede de Hugo gritou. Era um rugido de raiva e terrível fúria de urso, mas ela já estava na parede. A alavanca estava assegurada na posição descendente mediante um cano de ferro colocado em um buraco sobre o oco. De um só movimento, ela cano o perno e o lançou o mais longe possível.

A alavanca desceu tremendo, enquanto a veloz água golpeavam o pesado plugue de metal. Durante alguns instantes pareceu que a tampa não cairia.

Mas então ela caiu, levantando de um golpe a alavanca. Maeniel se encontrava esmurrando a grade quando Chiara começou a gritar.

 

Quanto mais se aproximava Regeane da cidade, mais assentamentos ela encontrava nas proximidades da ribeira. Parecia que as terras de cultivo invadiam cada vez mais o bosque e os pântanos que rodeavam o rio. Encontrou-se viajando de dia, enquanto ouvia sua irmã de luz de lua. Seja precavida, não se deixe ver e nem ouvir desnecessariamente. Assim ela avançava em silêncio, abrindo caminho entre os salgueiros e os carvalhos de água, perto da margem. Evitava o terreno brando sobre o qual pudesse deixar rastros de pés... Ou de patas, segundo o caso. Ia com tanto cuidado que as aves aquáticas que comiam perto das ribeiras chapinhavam tranqüilamente nas áreas menos profundas. Uma vez, animada pela mulher, ela parou para admirar uma mamãe pato com um bando de patinhos que nadavam perto de um tronco junto à borda. Quando a viram, o grito de alarme da mãe paralisou os bebês, o que os tornou quase invisíveis entre os caules. Regeane seguiu adiante. Sabia que em nenhuma de suas duas formas seria bem-vinda, mas sentiu que a temiam menos como loba do que como humana. Sabemos muitos truques, ela pensou.

Estava com o vento as suas costas, algo que sabia que Maeniel nunca lhe permitiria, assim não sentiu o que tinha adiante até que tropeçou com ele. A garota estava na margem do rio. Estava nua, com meio corpo dentro da água. As moscas já tinham começado A trabalhar.

A loba quis sair correndo. Quando Regeane perguntou a sua companheira escura, a loba respondeu seguindo seus princípios gerais ou ao menos, deu-lhe o mais parecido a uma resposta que uma criatura sem palavras pode articular: Saiamos daqui!

—Não. - Respondeu a mulher.

E começou a rastrear a ribeira.

A família estava um pouco mais à frente, dois homens e um menino, perto de um bote de fundo plano encalhado no baixio. Estavam todos mortos; salvo por facas e aduelas, pareciam desarmados.

A morte tem seu próprio mau cheiro. Regeane sabia; o mau cheiro já poluía o quente ar primaveril. Sangue, sedimentos, urina, os aromas miasmáticos dos assassinos e os assassinados. Medo, ira, sexo, os aromas do sêmen derramado e o sangue espesso e coagulado. A loba não necessitava que a instruísse a respeito dos motivos dos culpados.

Um pouco mais à diante, seguindo o curso do rio, ela encontrou a segunda mulher, mais velha que a garota, mas ainda atraente. Na garota haviam cortado o pescoço, a terra estava empapada de sangue perto de sua cabeça. A outra devia ter sido sua mãe. Tinha sido surpreendida enquanto lavava a roupa em uma área de pedras, pouco profunda. As adagas que entrado em seu corpo enquanto era usada, haviam desaparecido e a água cristalina tinha lavado seu sangue. Ela jazia junto à borda, sob a água, com a cara tranqüila, os olhos fechados e não menos de cinco punhaladas no peito.

Perto de onde jazia a mulher, a loba de prata viu um caminho. A família devia dedicar a guardar o vau, levando os viajantes de uma a outra margem quando a água estava profunda. Soldados? Sim, distinguia ferro entre a mistura de aromas presente na ribeira. Os soldados deviam ter vindo para atravessar.

Ela trotou de volta e memorizou cada cadáver. Sim, cinco deles. Cinco assinaturas de homens não mortos. Aromas identificáveis; rastros de sapatos. Os camponeses estavam descalços e aqui e ali um farrapo de roupa, um fio enganchado nas roseiras silvestres recém florescidas a beira do bosque. E haviam desaparecido pelo mesmo caminho que ela seguia. Para a Pavia.

A loba se sentou, para pensar.

Necessitava de roupas, mas não queria consegui-la assim. De todo o modo, um vestido era um vestido e as duas mulheres que tinha visto não sentiriam falta deles. A mulher tinha terminado sua lavagem de roupa e esta estava secando sobre os arbustos, perto do corpo. Regeane encontrou camisa, saia e blusa, e improvisou roupa interior com um pedaço de camisa velha que parecia ter sido usada como camisola.

Usou o resto dos objetos para cobrir os cadáveres. Tirou os corpos das duas mulheres da água e tratou de colocá-los decentemente, mas dado que o rigor a morte, eles começavam a assentar, não havia muito que pudesse fazer. Finalmente optou por cobri-los todos. Incluindo os homens.

Encontrou na casa da que viviam em um terreno mais elevado com vistas ao vau. Estava vazia. Olhou dentro só o bastante para assegurar de que não houvesse crianças escondidas perto e depois seguiu andando para Pavia.

Ela trançou o cabelo e o cobriu com um véu. Sabia que os assassinos tinham tomado o mesmo caminho e lhe assustava se encontrar com eles, mas não aconteceu. Eles estavam a cavalo e deviam ter pressa por chegar a cidade, porque uma vez terminada seu atroz trabalho no vau, tinham esporeado seus cavalos para sair a galope e já fazia tempo.

Mercenários. Sim. A mulher sorriu com tristeza. Desidério devia estar contratando-os.

O sol lhe esquentava as costas, mas não foi uma caminhada longa. Quando chegou no alto da colina, ela viu que a cidade coroava a seguinte ascensão. Estava aninhada na seguinte curva do rio, rodeada de hortas, cultivos, vinhedos, e oliveiras verde cinzento, todos desfrutando da brilhante e primaveril luz do sol.

Ela atravessou uma ponte sobre um riacho que desembocava no rio. Havia gente por toda parte, mulheres em seus pátios, varrendo, descascando ervilhas, inclusive amassando pão em pilhas junto a suas portas. Os homens estavam ocupados cultivando campos e jardins e entre as vinhas. Seu passo não causou nenhum comentário, mas ela recebeu alguns olhares. As mulheres eram pouco sérias, mas seu véu, a trança de cabelo e o longo vestido a proclamavam como uma garota respeitável com algum recado privado.

Regeane conhecia as regras: mantinha a vista baixa e evitava todas as olhadas masculinas que se fixavam nela, pretendendo, como era devido, que não existiam. O caminho foi se convertendo rapidamente em uma rua. Casas de madeira, zarcos e barro se amontoavam dos dois lados. Estas não estavam tão abertas como as que tinha visto no campo: todas tinham portas pesadas de madeira e poucas janelas davam a rua. Mas inclusive ela pôde notar um par de cortinas que se agitavam a sua passagem. Justo adiante surgiram as cinzas pedras de uma porta romana.

Ela se apressou incomodada pelas moradas quase sórdidas que a rodeavam. Começava a sentir falto do rio e do bosque, da natureza que deixava para trás. Entrava agora em outro tipo de selva, uma muito mais perigosa.

Ela notou cinco homens em pé em frente a um botequim, justo para fora das portas. A loba os reconheceu antes que a mulher. E a mulher sentiu como lhe arrepiava os pêlos da nuca. Estes eram os homens. Um soldado musculoso tinha arranhões no rosto. As mulheres deviam ter oposto resistência. Dois mais; sem nada característico, cabelos claros e seus olhos lhe davam calafrios, estavam vazios e mortos. Um deles tinha uma atadura nova e manchada de sangue na mão. E dois deles não eram muito mais que meninos, mas os semblantes diziam que deixaram a infância para trás há um longo tempo.

Estudaram-na com calculado interesse conforme ela se aproximava da porta. Regeane pensava que não tentariam nada. Havia muita gente ao redor. O dono do botequim estava em sua entrada, com uma taça de barro na mão. Já era tarde. O sol estava já alto, mas a confusão de casas alcançava tanta altura, dois ou três pisos, que as calhas estavam na sombra.

Regeane passou junto a eles, respirou aliviada e atravessou as portas. Duas folhas reforçadas com ferro permaneciam abertas. Não havia guardas ou nenhum outro sinal de presença oficial. As casas na levantada rua do interior eram até mais altas que as do exterior e estavam ainda mais derrubadas para o interior, como em Roma. Regeane teve que subir quase correndo; a rua se inclinava. De vez em quando via mulheres que a fitavam dos balcões do segundo piso, mas quando as olhava diretamente ou parava para saudá-las, elas voltavam a desaparecer rapidamente em suas moradias.

Regeane seguiu andando, sentindo-se cada vez mais insegura. Tinha pensado muito em chegar até a Pavia, mas não no que faria uma vez dentro. Não conhecia ninguém na cidade. Não tinha dinheiro. Um lobo tinha que viajar forçosamente ligeiro. Havia esperado encontrar uma fonte. As mulheres tendiam a se congregar quando recolhiam água. Poderia perguntar pelo rei e pelos prisioneiros tinham sido levados à cidade e onde os encerravam. Mas diferente de Roma, com seus incontáveis piazzas e fontes, esta cidade não parecia ter espaços públicos. A não ser que contasse o botequim pela qual havia passado e não se atrevia, como mulher sozinha, a aproximar dali. E sim, enquanto avançava depressa, a loba lhe disse que ouvia pisadas atrás dela.

Os cinco do botequim?

O vento soprava da parte baixa da rua. Sim, eram muito característicos. A mente do lobo podia classificar os diferentes dados sensoriais da mesma forma em que a mão humana classifica as moedas. Dois estavam juntos, os dois mais jovens adiante do resto. Sim, possuíam mais energia. Eram os mais serenos. Os outros três estavam meio bêbados.

Regeane levantou as saias e começou a correr. Eles continuaram no mesmo ritmo. Ela estava descalça. Quando chegou ao alto da colina, deu-se conta do por que eles não tinham pressa. A rua terminava em uma pequena praça. Estava rodeada de casas que davam com suas paredes vazias para a rua e uma pequena igreja das que os pobres visitam, com um alpendre de pilares singelo e cobertura baixa. Em uma parede junto ao alpendre havia uma fonte, um tubo encaixado na parede que se esvaziava sobre uma bacia de pedra.

Remingus estava junto a ela. Já não era o cadáver reclamado da cruz onde o deixaram os cartaginenses. Não, parecia um homem. Enquanto ela o fitava, ele tirou o antiquado casco de legionário. Usava um capuz de pele sob ele. Ele o tirou também e passou os dedos pelo cabelo, empapado em suor. Recordava um pouco os cabelos de Maeniel, cheios e com úmidos cachos escuros.

—A meio-dia, - disse ela, – e sob o sol. — Sim. É um ser de poder assombroso.

—Nos permite fazer estas coisas. - Disse ele.

—Quem permite?

Remingus sorriu e assinalou para a escura rua. A luz do sol alagava a praça.

—Sei. - Disse Regeane. - Terei que matá-los.

Remingus enxaguou seu casco na fonte, encheu-o de água e deu para Regeane beber. Ela o fez. Não havia se dado conta que estava com tanta sede.

Ele lhe indicou uma estreita passagem perto da igreja. Ela não tinha visto porque estava quase perdida entre as sombras.

—Aonde vai dar? – Ela perguntou.

—A um pequeno jardim na parte de atrás da igreja. É tranqüilo. Ninguém pode vê-la. Os muros das casas que o rodeiam não têm janelas nem portas, nesse lado.

Regeane voltou a beber e assentiu.

 

                                                         Capítulo 9

—Não estou segura de poder matar os cinco homens. - Disse Regeane.

Remingus simplesmente sorriu e disse:

—Pegue-os conforme saiam do beco. Pode pegá-los de surpresa.

Os dois primeiros entraram na praça. Não tentaram dissimular suas intenções e correram para ela. Regeane se voltou e se pôs a correr para o beco. Era bastante largo, abrangia toda a lateral da igreja. Nunca chegou até o final porque uma porta se abriu, alguém a pegou pelo braço e a puxou para dentro.

Regeane, perplexa, encontrou-se em meio de uma pequena cozinha com uma mulher alta, magra e de gestos sérios. Ela havia aberto a porta justamente para puxar Regeane para dentro. Fechou-a de uma vez e correu um pesado ferrolho.

No exterior, um dos homens golpeou a porta com o ombro. A mulher pegou uma gorda frigideira de ferro e gritou:

—Filho de um porco degenerado, vá ou te arrebentarei os miolos.

Ela golpeou com força a porta com a frigideira.

Regeane podia ouvir como os homens falavam lá fora. Um dos mais velhos estava admoestando-os.

—Não seja tolo. Não tem nem idéia de quanta gente pode haver nessa casa. Deixe-a. Deixe-a. Não tenho nenhuma intenção de morrer aqui. Não por uma mulher.

Alguém deu um murro na porta ou a golpeou com o ombro. Logo se seguiu um grito de dor.

—Já lhe disse que deixe disso.

Houve outro grito e uma fileira de palavrões.

—Estou sangrando, estou sangrando.

—Tente novamente e descobrirá que isso é somente um arranhão, estúpido bastardo.

—Vou te chutar o traseiro tão forte que...

As vozes foram desvanecendo enquanto os homens se afastavam.

—Parece que eles se foram. - Sussurrou Regeane.

A velha disse.

—Eu não estaria tão segura. Provavelmente só tenham voltado para a praça.

O aposento estava quente. Regeane começou a suar. Havia fogo em um dos cantos. E expulsava a fumaça por meio do precursor romano da lareira, um muro duplo com um ralo perto do fogo que permitia que o calor e a fumaça subissem e saíssem do edifício.

Havia três mesas de pedra nas outras três paredes. Uma massa de pão subia em uma tabua de madeira no centro de uma mesa. Havia pouca luz, mas o aposento tinha uma janela, tão pequena que Regeane não a tinha visto de fora, não era mais que um estreito corte perto da porta com uma grade sobre ele.

—Garota tola. - Disse a mulher. - O que pensava que fariam quando a pilhassem sozinha no jardim do padre? Por que não entrou na igreja?

—Alcançaram-me tão depressa, que...

—Sim... — Respondeu a mulher, que parecia albergar suspeitas. - Me parece bem, mas o que faz usando o vestido de Mona?

 

Como muitas outras mulheres que não podiam oferecer explicação para seu comportamento, Chiara se refugiou no histerismo quando o vigilante a encontrou no foro em frente à catedral. O vigilante chamou o capitão da guarda. Este não pôde fazer muito mais com Chiara, que o vigilante. Então ele chamou o rei.

Desidério chegou. Estivera bebendo até tarde com seus amigões, então pelo menos duas terceiras partes da corte se congregaram para tentar averiguar o que acontecia.

E Chiara se encontrou justo onde não queria estar: no centro das atenções.

—Chamem A seu pai. - Disse Desidério. - É a filha de Armine.

Chiara estava choramingando de medo, não já do hóspede de Hugo. Resultou no fim lhe ter feito muito pouco, mas pelo absoluto desespero que sentia em não poder dar com uma explicação realmente boa para justificar que a encontrassem no foro sem mais roupa que sua camisola.

Então chegou Armine. Sem mais contemplações, disse A Chiara:

—Deixa de armar escândalos, agora mesmo jovenzinha. Nunca foi uma histérica; não tente me convencer de que começaste a se danificar a estas alturas.

Chiara se acalmou.

—Devo ter estado andando sonâmbula. Mamãe sempre disse que tinha certa predisposição a isso quando era um bebê e...

—Sonâmbula... - Disse Armine. - E não, nunca ouvi sua mãe dizer tal coisa. Sonâmbula... Quem é? Angelina, a donzela de cima? Por sonâmbula acabou tendo gêmeos.

O rosto de Chiara avermelhou.

—Não sou absolutamente como Angelina.

O bispo chegou bem a tempo para ouvir as últimas palavras do Armine e a furiosa negativa da Chiara.

—O que fez? — Gritou zangado ao capitão da guarda. - Me tirou de meu agradável sono por um simples caso de fornicação?

Chiara não sabia o que era fornicação, mas não queria ter nada a ver com o fato.

—Não sei nada sobre for-for... O que dizem. O vigilante despertou e veio. Assustou-me. Começou a gritar comigo. Todos me gritam e dizem que eu for-for... O que seja. Não fiz. Não fiz... O que quer seja que seja isso.

Chiara já estava transtornada, realmente transtornada. Além do tumulto que a rodeava, podia ouvir a risada quase homérica do hóspede de Hugo. Sobre o ruído da multidão retumbava uma gargalhada atrás da outra.

O bispo era um homem velho e vestia uma camisola de lã e um gorro de dormir.

—Eu disse a você, – ele disse mordazmente a Desidério, - que não alojasse esse bruxo do Hugo em seu palácio. Agora olhe o que ele tem feito. Corrompeu a inocente filha de um de seus homens mais leais. O ferreiro disse que encontrou ontem esse louco com um urinol na cabeça. Esta tola menina... — O bispo assinalou Chiara. – O resgatou de sua própria loucura. Além disso, mantém conversações com o ar. Este nigromante passa a noite confabulando com os demônios. A mulher que vive sob o quarto dele se diz temente pela salvação de sua alma, tão fortes soam os sons, os gemidos das almas condenadas que ele dirige. Seu próprio servente Gimp, teme-o como a morte.

O arcebispo falou tão veemente que lhe caiu o gorro. Ao recolhê-lo, ele perdeu o equilíbrio e só o firme braço do capitão da guarda o salvou de romper a cabeça contra o chão. O capitão recebeu pouca recompensa por seus serviços. O arcebispo o amaldiçoou rotundamente e mandou trazer sua fortificação e sua cadeira. Seus criados lhe trouxeram os dois.

—É certo isso? —Armine parecia atônito. - Está apaixonada por esse Hugo? —ele perguntou a Chiara.

—O que? — Gritou ela. - Hugo? Pensa que Hugo e eu estamos... Hugo? Hugo! —A indignação de Armine não era nada comparada com a de Chiara. - Preferiria fazer a besta de duas costas com... Com... Com uma cabra doente antes que com Hugo.

Pelos ruídos que fazia, parecia que o hóspede de Hugo morria da risada.

—E você. - Disse Chiara, olhando a seu redor. Ninguém estava muito seguro de quem ela se referia. - Você! Deixa-o já de uma vez. —Chiara tentou dizer algo mais, mas tudo o que saiu de sua garganta foi um grasnido. O capitão do guarda lhe deu uma taça de vinho.

Desidério estava profundamente zangado; queria voltar para sua farra. Chiara tinha sede e, além disso, estava segura de ter caído completamente em ridículo.

—Não posso recordar quanto tempo fazia que não me divertisse tanto. - Disse o hóspede de Hugo.

—Oxalá não estivesse morto. Chiara murmurou com a taça de vinho entre os dentes. - Eu gostaria de te matar eu mesma.

Então apareceu Hugo, trazido por dois membros do guarda real. Estava claro inclusive à luz das tochas, que alguém o tinha arrebentado a pauladas. Tinha um olho fechado e outro meio aberto. O lábio superior estava inchado e o inferior cortado. Era impossível contar todos seus inchaços e isso, que ele devia ter muitos mais sob a roupa. Parecia só meio consciente e lhe dobravam as pernas.

—Afogaste-o? — Perguntou Hugo a Desidério.

—Afogado? — Chiou o arcebispo. - Afogado a quem?

Desidério fez uma cara de consternação.

—Ao lobo. - Disse Hugo, cuspindo sangue entre os dentes quebrados.

O arcebispo se levantou, movendo-se como um homem muito mais jovem. Tentou dar um golpe na cabeça do rei e provavelmente lhe teria partido o crânio, se o capitão da guarda não o tivesse rechaçado com seu escudo. A fortificação era embainhada em prata e tinha a parte superior cheia de chumbo.

Novamente, o capitão recebeu poucos agradecimentos. O bispo lhe lançou um golpe de fortificação e voltou a amaldiçoá-lo.

—Pagão! Você arderá no inferno! — Ele gritou. - Farei com que saiba que minha igreja é terra consagrada. Ei disse que o pegasse afogando algum mais de seus inimigos no porão de minha igreja, eu o excomungaria... Negaria-te meus sacramentos. Eu o verei no inferno. No inferno... — O arcebispo se dirigiu cambaleante para a igreja.

Desidério e outros seguiram Hugo, que estava seguro pelo vigilante.

—Desculpo-me, filha. - Disse Armine a Chiara. - Não há forma de que ele pudesse... Quero dizer, o homem está em tais condições que... Como? Por quê?

Quando a multidão chegou ao porão, ficou claro que ninguém ia afogar ninguém durante algum tempo. O vigilante deu uma olhada na penumbra, em que o plugue estava fixado aos tubos que enchia a cela. Haviam cortado a corrente que o conectava a alavanca perto da parte superior.

O vigilante se fez o sinal da cruz e disse ao bispo:

—Quando tentamos pescar o extremo da corrente com uma vara, alguém... Algo... Alguém começou a rir.

O bispo gritou para o interior da cisterna:

—Há alguém aí?

—Sim. - Respondeu Maeniel. - Poderiam enviar um pouco de comida e bebida? Tenho fome e sede.

—Não! - Sussurrou Hugo.

—Demônios, demônios. - Murmurou o bispo.

 

—O vestido da Mona? — Repetiu Regeane.

—O vestido da Mona - Disse a mulher.

—Seu nome era Mona?

—Era? — Perguntou a outra.

—Está morta. - Respondeu Regeane.

—Morta? Não pode estar morta. Está prometida a meu filho. — A mulher pegou Regeane pelos ombros. Regeane sentiu como lhe cravava as unhas. - Morta?

—Estão todos mortos - Disse Regeane. - Os encontrei no rio. Ela, a mulher mais velha...

—Itta.

—Sim. - Continuou Regeane. - Itta estava lavando a roupa. Acredito que sua filha...

—Mona.

Regeane assentiu.

—Acredito que sua filha estava com ela. Os cinco homens que me seguiram pela rua...

—Cinco? Eu só vi três.

—Acredito que os outros foram atrás. - Disse Regeane. - Mas o caso é que eles atravessaram o rio. Acredito que queriam as duas mulheres, mas os homens, quero dizer, o marido da Itta...

—Alberic?

—Sim. - Disse Regeane. - E outro homem e um menino...

—Avitus e Alan, seu irmão e o filho de seu irmão.

—Sim. - Disse Regeane. - Suponho que ajuda lhes dar nome... Em qualquer caso, quando cheguei ali já estavam todos mortos.

—Não! — Gritou a mulher. - Está mentindo. Tem que estar.

Regeane escutou um rangido no fundo do aposento. Uma escada descia do piso superior; logo que tocou o chão, um homem jovem a baixou correndo.

—Todos mortos? Mulher, o que está dizendo? — Ele gritou.

—Meu filho. - Disse a mulher. - Meu filho, Robert.

—Mortos. - Repetiu Regeane. - Todos eles.

O rapaz saiu correndo.

—Não. - Gritou a mulher atrás dele, mas Robert fechou a porta enquanto lhe pedia que ficasse em casa.

- Não, não, na. - Sussurrava a mulher.

—Acredito, — continuou Regeane, - que eles queriam as mulheres. Os homens as defenderam, mas não eram rivais para mercenários bem armados, e...

—Não pode ser. Ontem mesmo eu estava falando com Itta na fonte sobre o matrimônio. Meu filho se preocupava que vivessem no vau, já que parece que o rei franco, Carlos, logo trará a guerra através das montanhas. Tem algum tipo de briga com Desidério.

—Sim. - Disse Regeane.

Um pequeno raio de luz entrou através da abertura da janela, criando uma barra de ouro na tábua onde repousava o pão.

—Já terminou sua primeira ascensão. Agora terá que esmagá-lo com os punhos e encher as frigideiras. Não posso esbanjar o fogo do forno.

—Deixe-me trançar a massa. - Disse Regeane. Ela seguiu as instruções da mulher, como Matrona lhe tinha ensinado. Ele fizera os pães em longas tranças cheias de azeitonas, ovos e azeite. Regeane podia ver alguns iguais pendurando em arames perto da churrasqueira do forno.

—Conservam muito tempo. - Disse a mulher. É um bom pão para levar ao trabalho. Os homens os levam ao campo. Eu os tranco de forma que não haja brigas sobre quem ficou com o maior. Meu ofício é vender pão.

E depois, inesperadamente, ela foi cambaleando até um tamborete que havia em um canto e começou a chorar.

—Oh, não. — Regeane se aproximou e a abraçou. - Eu gostaria de trazer melhores notícias. Sinto muito. Sinto muitíssimo.

Depois de uns minutos, a mulher secou os olhos, tirou o avental e foi pegar um limpo do monte que estava em cima de um dos mostradores, junto à porta.

—Itta os lavou. – Ela disse. - Eu faço o pão, ela lavava roupa. - E começou a chorar novamente, sussurrando uma e outra vez. - Não posso parar. Não posso parar. Era minha melhor amiga.

Seguindo as instruções da mulher, Regeane pôs o avental e colocou os moldes de pão e duas ou três panelas de guisado no forno.

—Deixe aqui para usar o calor enquanto eu asso o pão. – Ela explicou a mulher.

Regeane assentiu e depois trancou a porta do forno. Depois de terminar e lavar as mãos em uma cuba, a mulher falou.

—É uma nobre.

—Como sabe?

A mulher parecia zangada.

—Nenhuma camponesa tem mãos como as tuas.

Regeane estudou suas mãos por um momento.

—Sim. – Ela disse.

—por que está aqui?

—Desidério encerrou meu marido, o senhor Maeniel.

—Então pode ser que tenha suas próprias lamentações. Ele está na garrafa.

—Na garrafa? — Repetiu Regeane.

—A cisterna sob a igreja. Parece que os prisioneiros se afogam nela.

Regeane se levantou, levou a mão ao peito e fechou os olhos.

—Não.

—Sim.

—Como?

A mulher lhe explicou o mecanismo da garrafa.

—Dizem que a construíram os romanos para assegurar de que a cidade tivesse um bom fornecimento de água se fosse atacada, mas ninguém beberá dela agora. Muitas pessoas que se opuseram a Desidério morreram ali. Houve um tumulto na praça ontem à noite e dizem que o senhor Maeniel ainda vive. Mas quem sabe até quando?

—Sim. - Sussurrou Regeane. - Tenho que tirá-lo de lá. Ouviria o rei um rogo de clemência?

—A tormenta das montanhas que ruge sobre o vale sabe mais de clemência que esse homem. Não direi seu nome nem voltarei a dizer nunca porque, se o que diz é certo, ele matou minha amiga. Nunca veria nada de errado que fizessem seus soldados. Nunca. Nós do povoado nos queixamos em vão de seus estragos. Supõe que nos protegem as leis. Insistimos em nossas próprias leis quando conquistamos isto aqui e nos assentamos, mas ele não as conhece.

Ela cuspiu no chão e esfregou com o pé.

—Somos menos que isto para ele. Meu bisavô serviu ao bisavô de Desidério em seu escudo. Lutamos por ele. Fizemos-lhe rei. E ele... Ele nos renega. Beningus, a voz da lei, estará aqui esta noite. Temos uma reunião de nossa... Sociedade funerária. Veremos o que tem a dizer sobre isto. Como se chama?

—Regeane, filha do senhor saxão Wolfstan.

—Sim, ouvi falar de ti. Nada de mau; somente coisas boas. Eu sou Dorcas, a padeira da Pavia. Sigo com o negócio que meu pai e meu marido levaram antes de mim. Não nos encontramos em boas circunstâncias, mas me alegro de te conhecer.

 

O hóspede de Hugo visitou Maeniel. Maeniel havia se valido de sua pelagem para se proteger do frio; a cela subterrânea estava gelada.

—O que quer? — Ele perguntou sem mais olhares ao hóspede, uma vez que houve se tornado humano; não era cômodo. - Espero que não faça mal a garota.

—Não. - Bramou o urso. - É um dos poucos humanos que eu gosto bastante. Diga-me, pode me ver?

—Sim. Vejo uma espécie de sombra de urso e se me permitir vou chamar o lobo. — Ele disse já se tornando lobo e se sentou, com o rabo torcido respeitosamente ao redor de seu corpo, ouvindo o que dizia o urso.

— Me deixe entrar. Pedirei-lhe uma vez mais. Acredito que ainda posso te salvar, mas tem que me oferecer o uso de seu corpo.

O lobo se levantou e deu as costas ao urso, se enrodilhou no chão, deixou cair o rabo sobre o nariz para mantê-lo quente e se pôs a dormir.

—Eles o queimarão. - Gritou o urso. - Mesmo se consigo evitar que reparem os tubos, encontrarão alguma outra forma. Sou a única coisa que os mantém afastados.

O lobo abriu os olhos e olhou ao urso através de seu longo rabo.

O urso saiu cheio de fúria, fazendo vibrar a grade da cela, todos os tubos e algo solto da câmara superior.

O guarda, o vigilante Sextus, estava sentado nos degraus do porão. Estava como sempre meio bêbado, mas se ergueu imediatamente para ouvir o rugido de raiva do urso e fez o sinal da cruz. Sua mão foi para a jarra de vinho, mas o urso a pegou primeiro. Levantou-a e a estrelou contra o muro ao lado de onde se encontrava Sextus. Ante os olhos do vigilante, a jarra pareceu se levantar no ar e explodir em fragmentos de argila e vinho.

O urso saiu furioso da igreja, abrindo de repente as portas. Parecia e soava como uma destrutiva rajada de vento.

Sextus fugiu gritando.

 

Regeane ajudou Dorcas a se preparar para a reunião. Aconteceria em sua casa. Colocaram uma mesa sobre cavaletes e Dorcas e Regeane trouxeram bancos do piso de cima. A escada era desenhada de tal forma que podia recolher de acima e isolar a parte superior da casa, do porão.

A Regeane os alojamentos de cima lhe pareceram cômodos e atraentes. As janelas do fundo do aposento davam a um pátio com uma fonte e um jardim com ervas e vegetais ou, pelo menos, com a terra levantada e pronta para plantar. Romero, tomilho, alho e outros cultivos de inverno enchiam o jardim.

As paredes laterais não possuíam janelas, já que a casa as compartilhava com as do outro lado. O outro grupo de janelas dava para a rua. Regeane se precaveu de que estas tinham venezianas mais fortes que as das janelas interiores. Neste andar havia bancos e uma mesa bastante elegante com cadeiras dobradiças e inclusive uns quantos livros em uma prateleira da parede.

Dorcas assinalou uma escada, bastante alta que subia pela parede.

—Os dormitórios estão lá encima. Se não se importa em compartilhar minha cama esta noite, ofereço-te a hospitalidade da casa.

—Obrigado. - Disse Regeane. De todas as paredes penduravam tapeçarias feitas pela própria Dorcas e no canto havia um grande tear.

—Sabe que eu nunca aprendi como usar um.

—Uma nobre como você? — Dorcas parecia surpresa.

—São caros e meu tio e seu filho gastaram todo o dinheiro. - Disse Regeane.

—Odeio ver como uma mulher inteligente se sacrifica por homens sem valor.

—Acredito que isso é o que aconteceu minha mãe, mas logo fez caso a meu tio e...

—E o que?

Regeane se encontrou encurralada. Obviamente não queria contar a história de como morrera seu pai.

—Repudiou seu primeiro marido. Uma loucura! Era rico e meu tio esperava conseguir parte de seu dinheiro. Suponho que teve êxito até certo ponto, mas nunca serviu para nada.

—Esses planos não dão certo. - Disse Dorcas. - É melhor ganhar o dinheiro. Sei disso. Trabalhei toda minha vida. — Então ela começou a chorar novamente.

Regeane tentou oferecer algum consolo, mas Dorcas se afastou.

—Muito bem me tem feito todo esse trabalho. Tenho um pouco de dinheiro economizado e pensava oferecê-lo a Itta. Poderia ter comprado uma casa na cidade e se estabelecer como lavadeira. Poderia ter me devolvido o dinheiro depois. Oh, por quê? Oh, por que me atrasei? Minha própria avareza egoísta causou a morte de minha melhor amiga.

Regeane não pôde evitar chorar por simpatia e abraçar Dorcas.

—Você estava assustada e foi precavida. O mundo é um lugar cruel. Não se culpe. Como imaginar que aconteceria algo tão horrível? Fez o quanto pôde. Estou segura de que ela necessitava do trabalho que você lhe proporcionava.

Nada disto pareceu ajudar muito a Dorcas. Regeane pensou nas pessoas que amava. Suas amigas, Lucila, Bárbara e Matrona. Como se sentiria se alguma delas caísse de uma forma tão brutal e absurda? Ela tampouco sabia se seria capaz de suportar.

Então viu Robert avançar pela rua. Estava montado em uma mula. Ela e Dorcas saíram a seu encontro.

 

Chiara foi andando até o jardim do palácio. Era, nesse momento, perto do final do inverno, um lugar bastante inóspito, mas algumas flores que não podia reconhecer começavam a aparecer entre a terra. Algum tipo de lilases montanheses brancos aparecia ao pé das árvores. As flores dos marmelos e as macieiras inchavam, preparando-se para abrir. Os carvalhos, fresnos e salgueiros decoravam seus ramos com verdes correntes de flores polinizadas pelo vento antes que as folhas novas estivessem prontas para fazer ato de sua presença. O ar das montanhas que resplandeciam quase como uma miragem na distância, levantando seus picos brancos e azuis, contra um quente céu azul era fresco e levava um pingo de umidade do rio, um aroma de coisas em crescimento que abriam passo no recém coberto chão do inverno.

—É precioso! – Ela sussurrou enquanto fechava os olhos e deixava que o sol lhe esquentasse o rosto.

—Sim. — Respondeu o hóspede de Hugo.

Ela gemeu.

—Você!

—Sim. Novamente.

—Fez essas coisas tão horríveis a Hugo? — Ela perguntou severamente.

O hóspede de Hugo riu.

—Não tem graça.

—Sim. Hugo é um pedaço de merda. Não esbanje sua simpatia com ele. Demônios, se não o tivesse parado, o muito filho de puta a teria violado em seu próprio jardim.

Ele estava com a razão. Podia ser que Hugo não tivesse sido capaz de consumar o assalto sexual. Chiara teria lutado e gritado, mas ele teria tentado e poderia tê-la ferido no processo. Chiara mordeu o lábio.

—Tem razão. - Disse finalmente. - Mas o que aconteceu?

O urso grunhiu.

—Deixe de fazer isso. – Chiara o repreendeu. - E agora, o que aconteceu? Não vê que não me considero alguém especial? Preocupo-me. O que me faria se zangasse comigo?

—Nada. E você sabe. Não ter ficado mais furioso do que estive ontem à noite.

Chiara riu.

—Pare já. Eu não gosto que riam de mim. É muito constrangedor.

—Fez-me cócegas.

—Chiara, criaturas como vocês tiram a energia para viver do que comem. As plantas, de alguma forma, obtêm-na do sol. Se passarem muito tempo na escuridão, como uma vez ocorreu à terra, morrem.

—Aonde foi o sol? — Perguntou Chiara, levemente horrorizada.

—Deixe de me perguntar uma coisa quando tento te explicar outra. —O urso, o hóspede de Hugo, estava irascível.

Chiara se dispôs a atender. Toda, ouvidos.

—Por favor, continue. — Ela soava estava tão calma e adulto que o urso se sentiu tanto apaziguado, como divertido. Não podia sorrir, mas uma suave onda de riso lhe percorreu o corpo e Chiara viu o resplendor.

—Muito bem. - Continuou ele. - Eu... Eu absorvo energia. Concretamente. – Acrescentou ele, já que ela ainda parecia um pouco horrorizada. – Eu absorvo de minha relação com os seres que sentem. Sem eles, eu morreria.

—Morreria?

—Não estou seguro Chiara, de que a morte seja a palavra adequada para mim. Talvez simplesmente fique em estado latente e depois desperte... Em certas circunstâncias.

—Misterioso?

—Você é tão jovem, Chiara. Toda a vida é um mistério. Nascida do ar venenoso criado por um choque de relâmpagos, vento e chuva sobre um mar enfurecido.

—Deus a fez? — Perguntou Chiara sem fôlego.

—Não posso dizer por que não sei. Se Deus... As ferramentas que ele usou para criar o universo estão além da compreensão humana. É muito mais complicado do que esses sacerdotes obtusos gostaria que acreditasse.

—Não entendo...

—Não, e nunca entenderá. Eu tampouco e sou um milênio inteiro mais velho que você.

—Um milênio são mil anos. - Disse Chiara.

—Sim.

Chiara dirigiu os olhos para além do rio, para as montanhas.

—Mil anos! – Ela sussurrou para si. - Mil anos? Não é de se surpreender que considere Hugo um imbecil. O que deverá pensar de mim?

—Seguiria pensando que Hugo é um imbecil embora vivesse um milênio de milênios. Você? Não... Só muito, muito jovem. E invejo você e os de sua classe, por seu compromisso com a terra, com o que para mim é uma realidade alternativa, mesmo embora signifique que devam morrer.

—Sim, suponho que é certo, mas em um dia como este a morte parece algo muito longínquo.

—É muito belo? — Perguntou ele quase com melancolia.

—Não pode ver?

—Percebo-a, mas não é o mesmo. Deixe-me... Chiara? —perguntou. - Por favor, me deixe vê-la através de seus olhos, por um instante.

Chiara se afastou do débil movimento que sentiu no ar próximo.

—Não. – Ela parecia alarmada. - É assim que conseguiu o terrível poder que exerce sobre Hugo? Enganou-o para...?

Isso é tudo o que ela pôde dizer, porque uma tremenda rajada de vento saiu de alguma parte, desprendeu-lhe o prendedor com o que se estava acostumado a recolher o cabelo e lhe levantou as saias, quando ela se voltou para se proteger da corrente. E depois se foi tão rápido como havia chegado, deixando-a despenteada, assustada e completamente sozinha.

 

Regeane baixou a escada com Dorcas, para deixar Robert entrar. Ele cambaleou até cair nos braços de sua mãe. Tinha o rosto cinzento e parecia desolado. Dorcas o abraçou.

—Oh, meu filho.

Ele tragou saliva e Regeane viu como seu peito subia e baixava tentando normalizar a respiração.

—Mãe, me dê um momento. Quase não posso falar do que vi, mas me deixe te dizer uma coisa. – Ele assinalou Regeane. - Ela disse a verdade, eles estão todos mortos. Tenho outra pergunta a fazer. – Robert olhou Regeane fixamente. - Teve algo que ver com suas mortes?

—Não! - Negou Regeane categoricamente.

—Viajava sozinha?

—Sim. Vim seguindo o rio com a esperança de resgatar meu marido, o senhor Maeniel.

—A roupa...

—Necessitava de um disfarce.

—Escolheu algo pouco inteligente.

Regeane assentiu.

—Posso notar agora. – Ela apertou e afrouxou os punhos.

—As pessoas por aqui conhecem seu marido. Você tem o nome de uma bruxa e dizem que seus seguidores não são homens normais, mas que pertencem aos caçadores selvagens que cavalgam sobre as nuvens quando as tormentas chegam das montanhas, açoitando a terra com vento e frio cortantes. E pelas noites, quando o calor do verão arranca trovões das nuvens e cortinas de relâmpagos brilhantes como o dia, dançam sobre o trigo e o arroz embalados nos braços dos grandes rios. Você e seu senhor cavalgam como o primeiro de todos os caçadores, entre as altas cúpulas nublosas, sobre corcéis nascidos de cabeças de trovão, e se regozijam com as carícias da chuva de meia-noite.

—Sim. — Respondeu Regeane. - Acredito que de certo modo é assim, mas se lembre que o campo produz os frutos da tormenta que abraça a terra com sua chuva. Uma coisa pode ser terrível em sua majestade, mas não por isso perversa. Nem meu marido nem eu faríamos mal a gente inocente e nem causaríamos voluntariamente seu infortúnio. Encontrei o que você viu e lamento com vocês da loucura e a crueldade de tais ações.

—É certo. - Disse ele. - Nenhuma mulher fez e nem poderia fazer o que fizeram a Mona e a Itta e, além disso, as assassinaram com armas de aço.

Depois de dizer estas palavras, ele começou a chorar. Dorcas tentou lhe consolar, mas a dor a impediu. Durante alguns momentos, eles lamentaram juntos.

Logo Robert recuperou a compostura e falou em voz baixa para Regeane e sua mãe.

—Quando cavalguei até o rio levei comigo outros dois, Gannon e Sheiel. Encontramos os corpos. Alguém havia tentado colocar seus membros em uma postura decente.

Regeane assentiu.

—Sim, vimos suas pegadas. Depois de fazer tudo o que esteve ao nosso alcance, os lavamos no rio e limpamos as marcas de baixeza e assassinato. Depois os envolvemos em alguns tecidos de linho que Itta tinha na casa. Conversamos os três e chegamos à conclusão de que seria melhor não levá-los a público, por medo de que os homens que cometeram o brutal crime escapassem. Então os corpos estão amortalhados em sua moradia. Gannon mandou chamar sua esposa, e ela e algumas das outras mulheres ficaram com Sheiel no rio. Depois Gannon e eu conversamos com Johns. É o dono do botequim onde os soldados se alojam. Ele e o resto dos homens concluíram que esses cinco são quase com total segurança os culpados. Deixaram o botequim primeira a primeira hora da manhã. Quando Johns perguntou para onde se dirigiam, eles disseram-lhe, entre muitas risadas que iriam caçar. Acreditamos que planejavam fazer o que lhes desejasse com as duas mulheres, enquanto faziam a travessia, já que o costume é lavar roupa, pela parte da manhã e secá-las ao sol quando está alto. Mãe, nós encontramos uma dúzia de nossos aventais em um monte junto à Itta. Parece que pegaram primeiro a Mona, mas ela lutou; de fato, um deles tem arranhões no rosto e outro está ferido. Acreditam que Mona lhe fez os arranhões. Tinha sangue sob as unhas. Chegou seu pai, Alberic. Ele e seu irmão lutaram. Pensaram que feriram um dos atacantes, mas foram tomados por surpresa e não tinham armas. Os três caíram. Então, eles... Eles, esses cães humanos, tiraram Mona. — Robert ficou em silêncio alguns instantes. Ela estava com meu anel. Cortaram-lhe o dedo para tirar-lhe Por isso sei. Por isso estou seguro de que foram eles. Johns disse que quando voltaram da “caça” pagaram o alojamento para outra noite. Quando um deles rebuscava em sua bolsa para tirar o dinheiro, Johns viu o anel. Nesse momento não lhe deu importância, pensando que era somente parecido, mas quando lhe contamos o que havíamos encontrado, ele nos disse o que tinha visto.

Regeane suspirou.

—Seu dedo. Mas antes eu não me dei conta, havia muito sangue.

—Mãe, eu quero-os mortos. – Ele continuou quase com calma. - Quero todos eles mortos. Não me importa se o rei os pendurará ou se cortará o pescoço ele mesmo, mas eu os quero mortos. E os verei a caminho do inferno antes que passe outro dia. A lei está de nosso lado. A lei lombarda nos dá direitos. Demandaremos justiça de Desidério. Seus homens não insultarão nossa gente com impunidade.

—Até agora, - disse Dorcas, - ele não mostrou intenção alguma de ouvir sua gente. Mona não é a primeira, meu filho. Lillas foi abordada quando se dirigia a fonte há algumas semanas. Acabava de se casar. É obvio, não contará o que lhe aconteceu. Deus sabe que eu tampouco o faria. Ela não trará a desgraça a sua família nem a de seu marido, mas perdeu o filho que carregava no ventre. Quando seu pai e seu sogro se enfrentaram o rei, ele riu em sua cara e dois dias depois mataram seu marido na rua, quase à porta de sua casa. E ninguém se atreve a denunciar os culpados, embora pelo menos uma dúzia de pessoas viram quem eram. Agora Lillas se senta em sua casa e guarda luto por seu marido e seu bebê. Meu filho, eu não me sentarei em minha casa para guardar luto pelo último e melhor de meus filhos, você.

—Mãe, eu não poderia me considerar um homem, - disse Robert com suavidade, - se sofresse isto sem procurar vingança.

—Deixe-se ajudar. - Disse Regeane em voz baixa.

—Como você poderia nos servir de ajuda? — Perguntou Robert. - É uma mulher pequena e sem armas.

—Tenho armas que não podem ver, tanto eu como meu marido. Deixe-me estar lá quando questionar ao rei.

—Teremos que deixar descansar o assunto esta noite. - Disse Robert. - Mas não vejo que seja nenhum problema. Mandamos chamar Beningus. Ouvirá o caso e nos contará o que diz a lei.

Alguém bateu na porta e Dorcas se apressou para ver quem era e o fazer entrar. Regeane continuou preparando a mesa, cobrindo-a com um tecido e colocando colheres para as sopas que dariam inicio a comida, enquanto que Robert ajudava Dorcas com os bancos. O aposento começou a se encher de gente que falava em voz baixa com Robert e com o Dorcas e depois os abraçavam.

Todos se sentaram para comer. Regeane e Dorcas trouxeram pão e as quatro sopas. Uma com porco salgado; frango, uma galinha guisada com açafrão e verduras; cotovelo de porco, maçãs e vinho; e lentilhas cozidas com presunto e espessadas com ovo.

Beningus chegou e se sentou em um extremo da mesa. Robert se sentou no outro. Não tinha muito apetite e conforme mais gente ia entrando no aposento, ele mobilizou mais bancos e os das panelas que havia na mesa.

Fez-se noite lá fora e velas, tochas e velas de junco apareceram entre os congregados na casa. Robert havia colocado várias tochas nas paredes. Estavam acesas e iluminavam o aposento por completo. Quando todos terminaram de comer, tiraram as mesas e dispuseram mais bancos e cadeiras das moradias próximas. Agora necessitavam. Regeane estava segura de que devia ter mais de cem pessoas abarrotando o aposento. A maioria eram homens, mas também havia umas quantas mulheres entre eles.

—Viúvas. - Disse Dorcas. – E como eu, cabeças de família. Muitas, novamente como eu, não se voltam a casar. Temem pôr em perigo o futuro de seus filhos. Um segundo marido poderia acabar com a fortuna acumulada pelo primeiro.

Depois Dorcas apareceu na estreita janela.

—Está escuro. – Ela disse.

Robert se uniu a ela.

—Está escuro e não há lua. Traga-os agora. - Disse Dorcas A Robert.

Ele assentiu e se foi. Vários homens o acompanharam. Trouxeram os mortos. Estavam envoltos em tecido, amortalhados por completo, mas com os rostos a descoberto, mostrando essa última calma sobrenatural que até os que morrem violentamente assassinados mostram quando começam sua viagem para o pó.

Dorcas chorou sobre Itta e os homens. Outros entre a multidão se uniram aos seus lamentos, mas Robert permaneceu em silêncio. Permanecia mudo ante a amortalhada silhueta de Mona. De vez em quando suspirava e uma vez chegou a lhe tocar a face com o dorso de sua calosa mão.

Regeane assistia em silêncio, a tristeza geral que a rodeava. Depois de longo momento, Robert elevou a cabeça. Seus olhos encontraram os dela e ele lhe fez gestos para que se aproximasse. As tochas começavam já a se apagar para se converter em vultos cinza e fumegantes. As luzes de cera derreteram e a única iluminação do quarto eram as velas que ardiam na cabeceira i nos pés de cada um dos cinco cadáveres. Descansavam juntos sobre uma cerca apoiada sobre os mesmos suportes que havia sustenido a mesa do jantar.

—Conte-nos o que ocorreu, — lhe pediu Robert, - e nos diga, se puder quem é o culpado. —Depois, ele descobriu a mão de Mona. Regeane viu o dedo que faltava. Ele colocou a mão de Mona entre as de Regeane.

Sem duvidar um segundo, ela pegou os dedos rígidos e frios entre suas duas mãos. Notou como se fazia silêncio no aposento. Tentou fitar os olhos de Robert, mas ele evitou seu olhar.

—O que esperavam que fizesse? Sangrar? — Perguntou Regeane. Falava da crença segundo a qual, quando um assassino toca o cadáver de sua vítima, o corpo começa a sangrar, mesmo que a pessoa já esteja morta há várias horas.

O coto do dedo talhado permaneceu em carne viva. Não apareceu nenhuma gota de sangue nos dedos de Regeane.

—Tinha que saber. - Disse ele.

Regeane voltou a deixar a mão de Mona sobre seu peito e deu um passo para trás. Não olhou nem Robert e nem a multidão reunida no aposento, só o imóvel rosto de Mona.

—Os cinco soldados que se alojam no botequim junto às portas romanas, perto do rio, são os culpados. E nenhum deles é mais culpado que outros. Planejaram juntos. Todos tomaram parte na violação e nos assassinatos. Chegaram pelo caminho da cidade muito cedo, para não serem vistos e esperaram à beira do rio até que amanheceu. Se olharem, verão um claro no lugar onde deixaram seus cavalos. À alvorada, Itta desceu para o rio acompanhada de Mona, para lavar um grande monte de roupa. Os homens ficaram na casa. Todos menos um que se uniu a uma leva de queimadores de carvão e foi cortar lenha.

—Como pode saber disso? — Perguntou Robert.

Regeane espremeu entre os punhos o tecido de sua saia e disse energicamente:

— Eu sei.

—O irmão de Avitus é um queimador de carvão. - Disse Dorcas. - Robert, deixe-a falar. Ela não é obrigada a nos contar como sabe. Siga, Regeane.

—Itta lutou. Tinha uma faca. Feriu um dos soldados e arranhou com força outro com as unhas. A garota correu em busca de ajuda. Seu pai, seu irmão e seu sobrinho estavam perto do bote, acendendo uma fogueira. Não havia nenhuma possibilidade. Os soldados bateram encima antes deles poder pegar armas que eles levavam. As poucas que tinham não foram muito eficazes. Assassinaram-nos facilmente, inclusive o menino. Tiraram Mona a rastros e a levaram a rio. —Regeane se deteve. Sabia o que tinha ocorrido, mas não queria dizer. Não ao homem que tinha amado à garota, assassinada de forma tão horrível.

—Os outros já estavam mortos. - Disse Robert. - Assim ninguém foi em sua ajuda.

—Não. — Ela ficou calada.

—Oxalá tivesse estado lá. - Disse Robert.

—Então lhe teriam matado também. - Respondeu Regeane. E falava com dureza. - A morte se abate sobre esses canalhas igual à névoa sobre a água.

—Sim. - Disse Robert, segurando a mão da Mona. - Eu sei. —Depois, também ele ficou em silêncio.

Regeane permaneceu junto a ele com a cabeça encurvada. Quando a levantou, o brilho da vela se refletiu em seus olhos. O brilho era como luas gêmeas no escuro aposento.

—Estavam me seguindo. - Disse. - Não devia ter parado. Não iriam me pegar sozinha. Eu ia pegá-los. – Regeane levantou a mão entre as sombras; suas longas unhas pareciam garras.

A multidão ofegou, mas Robert andou até a parede e acendeu uma nova tocha com uma usada, de forma que a luz encheu o quarto.

—Beningus, faz falar com a lei.

Um homem alto e bastante magro deu um passo adiante entre a gente e se situou para a improvisada assembléia.

—Eu sou, - disse ele, - seu escolhido. Faz um longo tempo, quando as palavras sobre o papel só eram maravilhas estranhas para nós. Os homens e mulheres de nossa família deixaram as leis a cargo da memória. E quando mantínhamos nossas assembléias, os que tinham bastante importância para requerer a atenção de nossos melhores homens podiam nos chamar para que lhes oferecêssemos a solução mais justa segundo a lei. Junto aos nossos líderes e ante eles falávamos sobre como resolviam os desacordos e as brigas no passado e como nos parecia que deviam resolver agora que podíamos estar em paz entre nós. A este fim, nunca aprendi a ler nem a escrever. Porque agora os reis se servem de livros mofados cheios de símbolos que só alguns poucos compreendem e interpretam a lei em seu próprio benefício. Mas eu e os de minha classe somos os depositários do que foi e do que deveria ser, e temos proibido tergiversar os ensinos recebidos para nosso proveito. Não podemos aceitar pagamento por nossos serviços. Nosso comércio, já que somos mercadores de gado e curtidores, sustenta-nos. Mais que nos sustentar, na verdade. O ano passado foi muito bom.

Uma onda de baixos risos percorreu o aposento.

Robert suspirou e sussurrou a Regeane:

—A honestidade da família do Beningus é proverbial.

—Diga-nos o que devemos fazer Beningus. - Disse Dorcas.

—Pensei sobre isso. As leis de assalto e ultraje são aplicáveis ao caso.

—Houve desejo presente... – Disse um dos homens congregados.

—Sim, mas as leis sobre o desejo se aplicam ao matrimônio e a propriedade, não ao assassinato. E isto foi assassinato. As leis protegem as mulheres da violação e os homens do assassinato secreto. As mulheres foram tanto ultrajadas como assassinadas. Os homens foram assassinados secreta e silenciosamente. A lei de assalto se aplica porque estes homens são estrangeiros e não pertencem a nossa gente. Mas a lei exige que o rei ou os chefes de um lugar protejam sua gente dos roubos e atentados físicos. Então, seja ou não seus soldados, ele não pode evitar que respondam ante os cargos dos que lhes acusa. E se provar sua culpabilidade, bem, então terá que enforcá-los. Um rei que não faz justiça não está preparado para ser rei. Um rei que não pode manter a paz não é um rei absolutamente.

O aposento ficou completamente imóvel. O silêncio foi longo e clamoroso. Regeane sabia que algo decisivo estava acontecendo. Sabia que havia presenciado o nascimento de uma mudança que algum dia sacudiria ao mundo.

Não era mais que uma humilde reunião de almas compassivas que se congregavam para lamentar a perda de um punhado de homens e mulheres sem importância que tinha encontrado a morte de maneira fortuita. Não se podia imaginar como este sucesso tão ínfimo ia mudar toda a história subseqüente ou inclusive conseguir que o muito poderoso Desidério se revolvesse incômodo em seu trono, mas o faria. Ela sabia porque Remingus e seus homens estavam entre as pessoas que enchia, o aposento.

Podia vê-los por toda parte, alguns como sombras, com seus rostos e corpos de homens e mulheres vivos; outros levavam com eles a escuridão absoluta da tumba, abrindo nichos nas sombras enquanto os vivos evitavam instintivamente seus domínios. Todos levavam a clara marca do horror de sua morte e a entrada na eternidade, desde Remingus, que tinha adoecido em uma cruz cartaginense, até os outros, que mostravam os ferimentos que haviam acabado com sua existência.

Honra, pensou Regeane. A honra e o não ser. Entregaram seu momento em altares da honra e da destruição sob o olho do sol, para que seu próprio mundo pudesse sobreviver. Sabiam que a vida não é uma declaração de perdas e lucros e que não podia ser calculada como tal. Todos nós somos mais e menos que a carne que vestimos desde o nascimento até a morte, mas nunca estamos seguros do por que ou quanto.

 

Chiara despertou quando sentiu a presença do hóspede de Hugo no aposento. Estava secretamente aliviada, mais que outra coisa. Preocupara-se por ele, já que a última vez que se viram ele partiu zangado. Temia que ele não voltasse a falar com ela e se deu conta, para sua grande surpresa, de que sentiria sua falta. Comparados com o espírito errante, a maioria dos humanos aos quais lhe permitia freqüentar eram mortalmente aborrecidos. Como a maioria das garotas de sua idade, ela estava virtualmente encarcerada; a conservação do que sua família considerava sua inocência se converteu em algo de primitiva importância conforme se aproximava da idade de merecer. Então nos últimos anos tinha visto como seus contatos com outros seres humanos eram bruscamente restringidos.

A aventura noturna assustara a seu pai, embora saísse dela com sua reputação ilesa. Um milagre, tendo em conta as circunstâncias, mas a experiência convenceu Armine de que sua filha necessitava de amparo contra os perigos e tentações do mundo. A este fim, Chiara foi transladada a um quarto interior com vistas a um plácido jardim.

Sua nova donzela, uma velha séria e sombria recrutada em uma comunidade de eremitas dedicadas ao serviço da Santa igreja de Deus, dormia na câmara exterior. Como o edifício tinha quatro andares de altura e a única entrada para o dormitório da Chiara era através da câmara onde Bebo, o nome da antiga monja de clausura, dormia, estava claro que ela não iria a parte alguma sem permissão e supervisão paternas.

—Muito bonito. Mete-me em todo tipo de problemas com meu pai, para não mencionar o bispo e ao rei, e depois não se desculpa e sequer passa por aqui para falar comigo. Muito amigo que você é.

—Seu pai é um doce inocente que sabe tudo sobre os tecidos, sua fabricação e as dificuldades de transportar grandes preços desse material de um lugar a outro, para não mencionar a forma de conseguir o melhor preço para seus artigos quando chegam a seu destino. Mas é um primo total a mercê de qualquer alma agradável que pretenda lhe vender uma ponte sobre o Tíber perto de Roma.

Chiara o pensou uns segundos.

—E esse seria o Papa.

—Exato.

—Oh.

—Sim. Agora se levante. Essa bruxa daí ao lado está acordada, de joelhos, tentando redimir por uns pecados, do qual até mesmo Deus terá perdido em sua memória. Pode ouvir uma parte desta conversa, mas não a outra. Se te ouvir falar em um quarto vazio, no melhor dos casos a tomará por louca e, no pior, por possuída. Certamente fará relatórios regulares a seu pai e ele acreditará em sua versão dos fatos, antes que a sua.

—Não estou vestida. - Objetou Chiara.

—Usa roupa interior, uma camisa de linho e uma camisola de lã. Nenhuma monja poderia igualar sua modéstia. Saia ao balcão agora.

—Você é um déspota, - Disse ela, mas obedeceu.

—E você tem um humor de cães. - Lhe disse o espírito. - Mas vai ouvir o que tenho a te dizer.

Chiara abriu as venezianas, tomando cuidado em não fazer ruído. A noite estava clara. No ar se notava um frio invernal cortante e o céu estava abarrotado do que pareciam ser milhões de estrelas. Mas não ventava e a camisola e as meias três - quartos de lã de Chiara eram quentes. Ela estava a ponto de exclamar, que belo, mas recordou a origem de sua última discussão com o espírito e não queria outra. Pelo menos não tão logo.

Mas ele respondeu ao seu pensamento, de toda forma.

—Sim, é verdade.

Chiara confiava em poder assentir e assim o fez. O espírito continuou.

—Não vim aqui esta noite para discutir as maravilhas da criação, mas te trazer uma mensagem muito mais importante. A seu pai e ao rei chegará um monte de problemas.

—O que está acontecendo?

—O primeiro e menos importante neste momento é que Carlos, o rei franco. Ele avança através dos Alpes. Honestamente, devo dizer que admiro a perspicácia do lobo ao escolher seguir esse soberano em particular, já que mostra um grau alto de habilidade e inteligência para um humano e, sobretudo, para um de nobre berço. A maior parte dos humanos pertencentes a essa subespécie em concreto têm aproximadamente a mesma capacidade intelectual das lêndeas. Este Carlos parece ser um indivíduo altamente competente. O que, por certo, augura-lhe maus tempos ao covarde e matreiro rei lombardo.

—É? - Disse Chiara.

—Carlos é preparado e valente. Desidério é estúpido, covarde e inepto. O que acha que acontecerá?

—Oh! - Disse Chiara. - Mas do dito ao feito há muito trecho.

—Certo. – Se expressou o ser, mordazmente. – Mas, mais importante é o fato de que os habitantes da Pavia e dos terrenos circundantes estão farto das maldades das forças de mercenários que seu torpe rei contratou para defender seus domínios. Não confia em sua gente nem em sua nobreza e com razão. Nunca fez nada para ganhar a lealdade de nenhum deles. Em vez disso, converteu em política de estado a maquinação, as punhaladas pelas costas e o assassinato e esta política está a ponto de dar uns dos frutos mais desagradáveis. Para dizer muito brevemente, seus frangos virão amanhã ao curral e ele se dará conta de que são aves muito feias. E deve avisar a seu pai de que a praça não será um lugar seguro. Que não vá lá desprotegida, não importa o que acontecer. Não se mova deste aposento. Não posso enfatizar isto o suficiente. Crie uma enxaqueca, uma enfermidade horrorosa, caia presa de convulsões, mas fique em casa.

—Já tinha planejado me levantar com cólicas terríveis. Irão queimar amanhã, o que você chama de o lobo.

—O bispo e o rei vão convocar uma assembléia para julgar Maeniel por bruxaria. - Disse o espírito. - Mas convocar uma assembléia é um equívoco.

—Por quê?

—Porque em uma assembléia a pessoa tem direito a apresentar outros assuntos e que não te resta dúvida, será aproveitado este engano do traiçoeiro monarca. Pelo que concerne a queimar o lobo... Bem, sua esposa está aqui. Em outras circunstâncias poderia ter sido lapidada por bruxa, mas dado o feio humor da cidadania neste momento vejo que, contra todo prognóstico, eles a ouvem. É uma cadela com um passado perigoso e seus planos não incluem que seu marido seja queimado vivo.

—Bom para ela. - Sussurrou Chiara agressivamente.

—As mulheres a apóiam.

—Sim. Eu também gostaria. Olhe essa idiota da Bebo. Agora não posso fazer nada sem que ela se dê conta. Estou completamente abandonada por essa velha bruxa e meu pai.

—Você vai a praça diga o que eu diga, não é?

—Sim. - Respondeu Chiara, dando um chute no chão. - Não perderia isto por nada do mundo.

O espírito deixou escapar um vaio de fúria que no fim se converteu em um suspiro de indignação.

—Vai fazer com que matem a todos. - Espetou o espírito.

—A todos? Ninguém pode te fazer nada... Você já está morto.

—Sim, sim, sim. Podem... - Confessou o espírito. - Se gasto todas minhas energias em um ato de violência, podem me destruir. Por isso não esmaguei esse piolho repulsivo do Hugo como se fosse um copo de cristal.

—Então como lhe fez todas aquelas marcas?

—É um bêbado contumaz. Ele se embebedou para evitar que eu o obrigasse a ajudar o lobo. Saiu para o vestíbulo com a intenção, acredito, de entrar em seu aposento à força. Empurrei-o pelas escadas.

—Não posso acreditar que se fizesse tanto dano, embora caísse pelas escadas.

—Não fez. O pequeno monte de caca de cão pareceu não sentir. Então quando chegou novamente a rastros até o primeiro degrau de cima eu voltei a empurrá-lo.

—Você é terrível.

—Não tão terrível como o que ele tinha em mente para ti, querida. Eu sei. Ele murmurava sobre isso enquanto voltava a subir as escadas. Você é muito inocente e há crueldades que sequer sabe que existem. Crueldades que um homem como Hugo cometeria sem pensar duas vezes.

—Oh! - Sussurrou Chiara.

Ao espírito, agradou que Chiara parecesse mais atenta.

—Eu sei...

—Não, não... E eu não gostaria que o fizesse. Agora, você ficará em casa? Como uma mulher sensata?

—Não. - Disse Chiara firmemente. - Não vê que preciso saber o que acontece? Tenho pelo menos que tentar proteger meu pai porque, mesmo se eu me esconda, ele irá. Especialmente se o rei convocar uma assembléia. Ele acreditará que é seu dever estar lá e eu não o deixarei ir sozinho.

—Maldição! - Rugiu o hóspede de Hugo.

Justo nesse momento abriu a porta que dava acesso, a câmara de Bebo.

—Minha senhora, minha senhora! - Gritou à velha. - O perigo... O ar da noite carrega o miasmático aroma da tumba... A morte monta sobre o vento noturno. – Ela pegou Chiara pelo colarinho da camisola e por um braço e tentou arrastá-la de volta ao aposento.

—Pare! - Chiara levantou os braços, tentando afastá-la e frouxar as mãos da mulher sobre sua roupa. - Pare agora mesmo. Está me afogando. - Gritou Chiara desesperada. - Só queria um pouco de ar.

—Um amante! - Gritou à velha. – Isso... Você tem um amante... Um amante que te visita. Ele está no jardim. – A velha torceu o estreito pescoço da camisola ainda mais sobre a garganta de Chiara.

Chiara ofegou e tentou respirar. A roupa estava estrangulando-a de verdade. Um punho se estrelou contra o rosto de Bebo, acertando seu olho direito. Com um grito ensurdecedor, ela caiu de costas. Quase no mesmo instante, Armine entrou pela porta, acompanhado por dois membros da guarda do rei, ambos armados da cabeça aos pés.

—Golpeou-me. Seu amante me golpeou... - Gritou Bebo.

—Peguem-no vivo. - Rugiu Armine. - Se sua honra se viu comprometida, ele terá que casar com ela. Se não, terei sua cabeça em uma lança! Em uma lança, digo-lhes, em uma lança.

—Meu Deus! — Sussurrou Chiara e saltou para trás.

O primeiro dos guardas reais alcançou o balcão e não pôde frear seu impulso a tempo de evitar se estrelar contra o corrimão. Depois deixou escapar um grito realmente desumano quando Armine, que o seguia de perto, bateu contra suas costas e quase, quase, mas não de todo, o atira pelo corrimão. Livrou-se de uma queda de aproximadamente cinqüenta pés romanos até um pátio que estava no centro do jardim de abaixo.

Bebo gemeu novamente , desta vez com menos entusiasmo.

—Seu amante...

Armine e os dois guardas já não estavam em perigo de cair, mas já que todos tinham as espadas desembainhadas, havia uma possibilidade real de que infligissem sérios ferimentos uns nos outros por acidente. Chiara estava em pé em um quarto, protegida de um lado pela cama e pelo outro, por uma cômoda sólida de carvalho elaboradamente esculpida.

—Seu amante... —gemeu Bebo.

— Em nome de Deus, você não tem nem um ápice de sentido comum? — Gritou Chiara. - O que é isto? São todos uns loucos com cérebro de verme? Como eu iria receber um amante? Estamos a quatro andares de altura. O homem teria que ter asas.

—Aqui, - disse Armine pasmo, - não há ninguém. Como é possível?

—Seu amante... - Choramingou Bebo.

Um dos guardas se abaixou e pôs em pé em Bebo, para depois retroceder bruscamente quando cheirou seu fôlego.

—Puah! Ela cheira a botequim.

Armine se aproximou e cheirou-a.

—Bêbada, por todos os céus! – Ele se voltou para Chiara e meneou a cabeça. - Isto tudo é coisa tua, jovenzinha. Se não fosse por estas tuas peregrinações noturnas, poderíamos...

Os punhos de Chiara se fecharam e uma expressão indignada começou a se estender por seu rosto, mas então três coisas aconteceram ao mesmo tempo.

Armine recebeu um chute nos pés que o deixou sentado no chão como Bebo. As portas do balcão se fecharam de repente, deixando o aposento repentinamente em uma escuridão absoluta. E...

Chiara recebeu um inesperado e profundo beijo.

Quando um dos guardas conseguiu sair de quatro pés pelo vestíbulo e voltou com uma tocha, Armine soltou um selvagem grito de surpresa. Chiara prendeu a respiração bruscamente e pressionou as faces com os dedos; sentia o rosto arder. Seguiu a direção do olhar de seu pai e viu que sua cama estava coberta de rosas brancas.

 

Parece quatorze quilômetros de mau caminho, pensou Lucila. O ilustre passado de Roma escurecia a cidade, mas por todos os lados brilhavam fragmentos de sua antiga glória, mesmo entre as ruínas. Ali, não restava nada. De caminho para o interior desta outra urbe, elas passaram por vilas em ruínas e um povoado romano destruído nos planos mais baixos. Só restava umas quantas colunas e pedras ruídas do que tinha sido o foro e um grande anfiteatro. Algumas casas estavam habitadas por camponeses cujos rebanhos de ovelhas e cabras pastavam na rica vegetação que cobria o que uma vez foram lojas, casas e moradas. Além das ruínas da cidade, o campo aberto era cultivado por camponeses que viviam em um promontório rochoso que se elevava sobre o vale.

Dulcínia assinalou à Lucila, os restos da cidade e de várias vilas enquanto avançavam a cavalo pelo desértico plano costeiro.

—O senhor deste lugar, - ela disse a Lucila, - diz que a cidade foi abandonada porque se alagava durante as chuvas de primavera. Diz que os aldeãos às vezes cavam aqui procurando tesouros e que às vezes os encontram, mas normalmente tiram partes de cristal quebrado, cerâmica e, de vez em quando, alguns quantos fragmentos de mármore. Os pastores trazem aqui seus rebanhos para pastar porque há tantas pedras no terreno que não podem cultivá-lo.

Acabavam de plantar um mosaico de oliveiras e vinhas em uma colina próxima coroada por algum tipo de construção de pedra. Lucila assinalou as pedras ruídas.

—Pergunto-me o que seria aquilo.

Dulcínia encolheu os ombros.

—Não sei o que era, mas agora é um povoado.

Lucila olhou com mais atenção e viu a silhueta de cabanas e abrigos agrupados sob a cúpula enegrecida pelo fogo, de um antigo edifício.

—Poderiam ter sido os banhos, ou mesmo uma igreja. – Ela disse.

Dulcínia voltou a se encolher.

—Suponho. Não vejo que importância tem. O que faria meu amor? Tentar trazer tudo de volta? Nem sequer você gostaria disso.

Lucila suspirou, depois sorriu.

—Alaga, nada menos. Uma agradável e educada forma de dizer que tomemos cuidado, que o campo não é seguro por estes lugares.

Dulcínia riu brandamente, depois voltou os olhos para trás, para a escolta que as seguia. Os homens cavalgavam com descuido. Só uns quantos levavam usavam os elmos e as cotas de malha, mas a maioria deles carregava um sortido de armas muito profissional: espadas, facas e uma potente clava com forma de pau sobre a sela de cada um deles. Mesmo as duas mulheres levavam facas, o feio e perigoso sax de um só fio e um mais curto, com uma folha de duplo fio muito útil. Lucila também tinha um feroz sax com forma de meia lua, envolto em pele sob a manta de sua sela.

O dia era quente e espaçoso e o céu azul. Corria uma fresca brisa e o canto dos pássaros enchia o ar enquanto cavalgavam junto a um pequeno bosque de árvores que beirava o caminho. As duas mulheres montavam como homens e vestiam túnicas, meias e saias calça.

—Nesse último cruzamento do rio cheguei a acreditar que teríamos que lutar. - Disse Dulcínia. - Me alegro de que esteja aqui. Não sei o que teria feito sozinha.

A face de Lucila se endureceu.

—Talvez devêssemos ter lutado. Era um bastardo com pinta suspeita e suas ameaças podiam ter sido só uma fanfarronice. Mas senti que não podia me arriscar. É bem provável que teríamos ganhado; quase seguro que teríamos massacrado esse contingente de escória que estava pululando pelo vau. Mas ele insistiu que pagava seus impostos às autoridades locais, que não sei quem demônios serão neste lugar esquecido da mão de Deus. Então a ameaça de uma pequena guerra era inquietante, por não dizer mais. Isso e que reduziu a importância a pagar rapidamente quando viu bem os homens de Rufus. Fez-me decidir que não merecia a pena correr o risco. Não por umas quantas moedas de cobre. Mas me aposto que seja quem for senhor, se é que o tem, vê muito pouco dos pedágios.

—Aí está. - Disse Dulcínia. - Eu teria pagado o primeiro que pediu. Não sou valente, querida. Esses foragidos com os quais ele estava, aterrorizavam.

—Ora! - Disse Lucila. - Parasitas e carroceiros. Provavelmente lhes atira o que lhe sobra. Não tinham nenhuma pequena peça de armadura decente, sequer uma só espada boa. Não é meu assunto limpar esse ninho de víboras em particular, mas te juro que me assegurarei de que tanto Adriano como Rufus saibam deles. Um ou o outro poderiam se encarregar, de que seu líder acabe adornando uma cruz.

Justo então chegaram ao íngreme caminho que levava até o novo povoado situado no topo de uma rocha. Quando chegaram ao alto, tanto Lucila como Dulcínia ficaram animadas com o que viram. O povoado ainda estava em processo de construção. A praça estava pavimentada, com uma espécie de palácio de um lado e uma igreja em construção do outro. Ao fundo havia uma balaustrada de pedra em que alguém podia se apoiar para respirar ar, refrescar com a brisa matutina e olhar os campos férteis e belos que descansavam ao longe.

Era dia de mercado e tinha todo tipo de gente comprando e vendendo o que era, tendo em conta o pequeno tamanho do lugar, uma considerável variedade de artigos. Coelhos, frangos, gansos, ervas, louro, alho, tomilho, hortelã e pequenas quantidades de especiarias exóticas como canela, prego, açafrão e pimenta. Cogumelos em abundância, cebolas, porro, couves e alcachofras repartidas entre molhos de verduras frescas silvestres recolhidas pelas mulheres antes da alvorada, com os caules e raízes em água para mantê-las frescas durante o calor do dia.

A multidão da praça recebeu Lucila e Dulcínia com um entusiasmo quase selvagem e escoltou as duas mulheres, e inclusive seus protetores masculinos de feroz aspecto, até a escalinata do palácio. O senhor lombardo local não saiu correndo para saudá-la. Ele e alguns de seus homens já estavam fora provando, só provando é obvio, um novo lote de cerveja. Alvoroçados, os cidadãos chegaram até elas com respeito, mas sem medo e a multidão que rodeava o palácio foi que evitou que rompessem o pescoço, já que não podia ver de quão ocupado estava tentando vestir uma magnífica túnica de veludo vermelho por cima de uma camisa branca bastante desgastada.

Lucila pensou que ele bem poderia ter deixado coberto o rosto, pois tinha uma profunda cicatriz em uma das faces, um nariz muito partido e lhe faltava parte de uma orelha. Mas sua gente o aclamava e ele se inclinou ante a mão de Dulcínia como um cavalheiro.

Lucila fez uma reverência e ele respondeu gravemente:

—Senhoras, resultam um prazer para os olhos. Espero que tenham desfrutado de uma viagem segura.

—Passível. - Disse Dulcínia. - Exceto ao chegar ao rio.

O rosto do senhor se obscureceu.

—O que aconteceu no rio?

Dulcínia falou sobre como lhes pararam e pediram um pedágio.

—Estas são minhas terras... E não deveria ter acontecido. Esse pequeno e asqueroso canalha voltou. Iria até o rio agora mesmo, mas...

—Certamente ele já foi, Pai.

Quem falava era um jovem tão bonito como seu pai era feio.

—Eu sou Ansgar. - Disse o guerreiro. - E este... — Ele assinalou o jovem. - É meu filho Ludolf. Quando chegamos a este lugar, o asqueroso ladrão com o qual encontraste fazia seu ninho aqui. Todo o campo que nos rodeia parecia um desastre porque ele mantinha as pessoas aterradas.

O jovem riu.

—Pai, naquela época você não estava casado e eu sequer havia nascido.

Ansgar parecia um pouco aborrecido.

—Sinto muito. Esqueço-me que tudo isto aconteceu há anos. Quando morreu meu pai, meus irmãos e eu dividimos suas terras entre nós. O mais velho ficou com a melhor parte. Meu outro irmão e eu ficamos com os restos. – Ele gesticulou expressivamente para o final da praça que olhava sobre o vale. - Mas acredito que saí ganhando.

Responderam-lhe os gritos da multidão congregada na praça.

—Mas venham, senhoras. Entrem. Sinto dizer que nosso lar está um pouco desorganizado hoje, mas minha esposa tem um mal-estar que a aflige cada primavera e...

—Uma canção! - Gritou alguém entre a multidão. O resto recolheu o grito. - Uma canção. Uma canção.

O rosto do senhor se obscureceu, mas Lucila viu como Dulcínia ruborizava de prazer e um sorriso lhe revoava nos lábios. Ansgar parecia disposto a protestar, mas Dulcínia disse:

—Não, não. Por favor, eu adoraria cantar para eles. Onde?

—No alpendre da igreja. — Ludolf assinalou para o outro lado da praça.

Sim, a igreja tinha um pátio de colunas e paredes, ainda sem cobertura, mas os andaimes estavam preparados e os carpinteiros estavam montando as vigas do teto. De entre as pessoas ali reunidas saíram músicos como por arte de magia: uma mulher com um harpa, dois homens com flautas e várias pessoas com diferentes tipos de tambores.

Dulcínia passeou pela praça, sorrindo, saudando e sendo saudada pela gente do povoado. Parecia inspirada, pensou Lucila, pela perspectiva de interpretar para o povoado. Sim, ela concluiu e recordou o dia no qual tinha falado com ela pela primeira vez, junto ao botequim. O dia em que havia falado com a menina de oito anos que esfregava panelas quase tão grandes como ela. A garotinha estava triste, suja e desnutrida, mas quando Lucila lhe pediu que cantasse, o resplendor que alagou seu rosto foi magnífico e, nesse preciso instante, antes que a menina abrisse a boca, Lucila já tinha decidido que Dulcínia devia ser resgatada de seu brutal destino. Não importava como soasse sua voz. É obvio, uma vez que teve cantado... Oh, essa voz divina, celestial... Dulcínia tinha alcançado já a escalinata da igreja e se consultava com os músicos.

Outro homem se apressava em chegar. Levava uma enorme viola. Uniram as cabeças durante o que pareceu um longo momento, deixando escapar gritos, buzinadas, gritos, sons agudos, as ocasionais fervuras de notas. Então Dulcínia e outros se distribuíram pelo alpendre da igreja. Dois dos percussionistas se abaixaram, mas tiraram um corno e o outro uma tira de couro com campainhas. Dulcínia levantou uma mão e todos no lugar guardaram silêncio, até que ela começou a cantar.

Era uma letra muito simples sobre um amante que compara sua amada com uma rosa ou, melhor dizendo, com uma variedade de rosas, brancas e vermelhas. Inclusive mencionaram os flexíveis caules e os quadris como rosas outonais. Uma canção leve, inclusive um pouco divertida. Levava a analogia um pingo muito longe para ser tomada muito a sério e acabava com uma ornamentação vocal bastante bonita. Isto provocou os gritos do público e petições para que cantasse outra, mas Ansgar deu umas palmadas e disse:

—Já é o bastante. As damas percorreram um longo caminho e precisam jantar e se refrescar.

Um dos carpinteiros se desprendeu do telhado da igreja, colocou uma toga de veludo negro e saudou-as. Resultou ser Gerald, o irmão de Ansgar e o primeiro bispo da recém criada diocese. Ansgar e seu filho conduziram Lucila e Dulcínia para o interior do palácio. Além das portas havia um amplo salão de recepções iluminado por janelas praticadas no teto. Fora, sob o sol, fazia calor, talvez muito, mas dentro estava fresco, mesmo quando o sol deixava passar seus longos raios através das translúcidas, embora não transparentes clarabóias.

—Aqui é onde jantamos. - Disse Ansgar. - E recebemos Às visitas.

—Visita de estado? — Perguntou Dulcínia.

Ansgar riu.

—Acredito que vocês são as primeiras.

O salão terminava junto em escadas duplas, uma de cada lado, que levavam até a parte interior do palácio. Alguém, uma mulher, descia por elas e falando enquanto descia.

—Por que não me disse que ela estava aqui, meu amor? Você sabe... — Seu tom soava a reprovação. - Sabe que eu desejava ardentemente conhecer a melhor cantora de toda Roma... E...

—Minha esposa... - Disse Ansgar. - Sofre de um mal-estar, de natureza temporária, que...

—O que tenta lhes dizer é que cada primavera se torna um mártir meu fastidioso nariz. Meus olhos lacrimejam, picam-me e ardem e este nariz goteja como uma maldita fonte e tenho que...

Justo então quando Dulcínia e Lucila se introduziram em um poça de difusa luz solar gerada pela clarabóia do teto, a mulher que já tinha alcançado o pé das escadas parou, dedicou-lhes um olhar longo e atento e gritou.

—Lucila, por minha vida. Lucila! Em nome de Deus, o que faz aqui?

O punho de Ansgar se fechou como um torno sobre o braço de Ludolf.

—Feche a porta, rápido! – Ele espetou. - Agora! Ouve-me? Agora! – Ele repetiu.

Ludolf estava já em movimento, desembainhando a espada enquanto o fazia.

Lucila esquadrinhou a escuridão junto às escadas.

—Stella! – Ela ofegou. - Como...? O que?

—Ah, bom! - Murmurou Dulcínia. - Aí se vão os disfarces.

 

Regeane foi à convidada de Dorcas durante a noite que seguiu a reunião. As duas mulheres se retiraram para a parte superior da casa. Dorcas emprestou a Regeane uma camisola de lã e um par de meias. O aposento tinha quatro janelas. Algumas tinham vidro e permitia ver o pátio embaixo. As outras tinham cortinas de gaze branca bordada, persianas e venezianas de carvalho pesadas e sólidas que podiam fechar por dentro.

Duas velas iluminavam o aposento, uma de cada lado da cama. A grande cama era a peça central do quarto, mas ao longo das paredes, sob as janelas, havia grandes cômodas para guardar roupa e outros tecidos. Faziam duplo trabalho como bancos, já que estavam cobertas por almofadas suaves, aromáticas e aveludadas, muito cômodas para se sentar.

Dorcas levantou uma e deu para Regeane.

—Itta me ajudou a fazê-los. Ela se encarregou das penas dos gansos - Disse Dorcas, depois permaneceu em silêncio, imersa em seus pensamentos, com aspecto de ter esquecido tanto Regeane como o aposento em que estava.

Mas então voltou em si com sobressalto.

—Sinto muito. – Ela disse e colocou a almofada em um banco para que Regeane sentasse. - É que não posso acreditar que nunca voltarei a vê-la. Mas me diga, - Ela perguntou, - você é das que se assustam do ar noturno?

—Não. - Respondeu Regeane, rindo um pouco, apesar de seu lúgubre humor. - Como poderia?

Dorcas assentiu.

—Sim. — Ela sorriu de forma bastante sombria. - Não assusta você... Estranho... Marido?

—Não? - Disse Regeane. - Nem eu e nem ele. De fato, se você o conhecesse, o acharia mais amável e gentil que a maioria dos homens.

—Deus, isso é certo. Lembro-me um par de vezes, quando recém casada levei as marca do desagrado de meu homem.

—Golpeou-a?

—Uma vez. Uma vez queixei aos meus pais, mas eles riram de mim.

—O que fez?

—Na segunda vez, eu lhe disse que seria melhor que não dormisse nesta casa. Então ele se foi. Armou uma confusão tremenda. - Disse Dorcas entre risadas. - Meus pais me visitaram e depois o sacerdote, que citou as escrituras. Eu disse a ele que nunca tinha visto nas escrituras que um homem tivesse direito de deixar o olho de sua mulher, arroxeado. O povoado ficou sem pão, mas meu marido retornou, disse-me que não me bateria mais e me deu sua palavra. Eu a aceitei e vivemos juntos em paz e alegria até sua morte. Eu não entendia o que podia ter feito para ganhar seu desagrado. Estava fazendo o melhor possível e trabalhando duro. E ele simplesmente não tinha gostado do jantar. Não tinha cozinhado bastante a carne. Eu disse a ele, a minha mãe, a meu pai e ao padre que não viveria com um tirano cruel. Preferiria morrer ou ir pelos caminhos e ganhar o pão pedindo na porta das Igrejas ou abrindo as pernas para todos os que me pagassem.

Regeane assentiu.

—Uma vitória. Mediante tais vitórias as mulheres tornam passíveis suas vidas.

—Itta nunca agiu assim. - Disse Dorcas. - Deixava que seu marido a dirigisse em tudo. Por isso não lhe deixei o dinheiro para montar uma casa aqui no povoado. Não colocaria o dinheiro ganho com o suor de minha testa nas mãos de seu marido. Provavelmente ele teria gasto em tolices, bebida, aposta nos botequins, tentando impressionar seus amigos. Então agora só resta se arrepender pelo que perdi: minha melhor amiga e a futura esposa de Robert.

Ela começou a chorar novamente e Regeane fez o que pôde para consolá-la.

—Não se culpe assim. - Sussurrou Regeane. - Como... Além disso, esses homens são os únicos responsáveis.

Dorcas se secou as lágrimas.

—São homens mortos.

—Está segura?

—Sim - Disse Dorcas tranqüilamente.

—Como o farão?

—Esta noite o dono do botequim drogará seu vinho, depois Robert e alguns outros lhes tamparão os olhos e os levarão até aquela igreja. – Ela assinalou o outro lado do beco.

Regeane se voltou e olhou através de uma greta das venezianas. A igreja parecia escura e vazia, mas os ouvidos da loba ouviram movimento no beco e dentro do edifício.

—Ficarão lá até que o rei convoque a assembléia para tratar sobre seu marido o lobo. Depois daremos a Desidério outra oportunidade como rei. Mas de uma forma ou de outra, estes homens morrerão. Eles se agradarão ante a vingança particular, bem ante a justiça do rei. Robert e os outros homens estão decididos a isso.

—Meu marido? — Perguntou Regeane.

Dorcas afastou o olhar.

—Terá a oportunidade de falar em sua defesa. A lei garante. Não posso prometer mais.

O frio vento noturno soprou através da janela sobre a face de Regeane.

—Eu sei. – Ela disse.

—Não, não, não sabe. - Disse Dorcas. - Procurei te dar uma tranqüila noite de sonho, mas isso é todo. -Desta vez ela olhou diretamente nos olhos de Regeane. - Se tratar de escapar deste quarto, bom, Robert e alguns outros estarão justo debaixo de nós. Agora mesmo há um sentinela. Você e seu marido vieram para ajudar nossos inimigos. Sim, os homens por aqui odeiam matar mulheres, especialmente se só tentam cumprir com seu dever para com seu marido... Ele seja o que for. Mas se causar algum problema ou tentar escapar, eles farão o que devem. Compreendido?

—Compreendido. - Disse Regeane.

—Agora, vamos dormir. - Disse Dorcas. - Se pudermos. Se puder. Apague a vela.

Regeane apagou a vela de seu lado da cama. Entrou dentro dela, com seus colchões e de penas. Suaves. Mais suaves inclusive que os de sua cama das montanhas. Ela dormiu quase imediatamente depois de tocar o travesseiro.

Mas Remingus e seus legionários mortos andaram com ela em seus sonhos e juntos conversaram de muitas, muitas coisas... Sobre a vida, a morte, a perda desesperada e a ascensão e queda dos impérios, as cidades e os homens. Regeane recordava a noite como uma longa conversa, mas quando despertou para a fria e cinza luz anterior à alvorada que entrava por entre as persianas, não podia se recordar de nada do que havia se dito.

—Meus pensamentos estão contigo. – Ela sussurrou. - Meu único amor. Tenho que tentar. Perdoe-me, mas tenho que tentar.

Depois ela se levantou e, depois de vestir roupa de Mona, começou a trançar o cabelo, preparando-se para tão importante dia.

Dorcas já se levantara. Regeane desceu as escadas até a padaria da mulher. Ela estava esperando-a. Era hora de tomar algum café da manhã.

Regeane não tinha vontade de comer, mas outra das lições de Matrona era que necessitava de mais alimento do que necessitam os seres humanos normais, para recarregar a energia que lhe permitia mudar de loba a mulher e vice-versa. E pode que hoje necessitasse de toda sua força. Sopas de pão e vinho, uma sopa de feijões com caracóis e alho.

Depois Dorcas a cobriu um denso véu marrom.

—Com um pouco de sorte não saberão quem você é. Agora devo levar comida aos homens da igreja. – Ela pegou uma cesta do canto e se foi, entrando no beco atrás da igreja.

Regeane ficou sozinha. Dorcas não tinha fechado a porta atrás dela, em um claro convite à fuga, pensou Regeane. Não o abandonarei a sua sorte. Ele não me abandonaria à minha. Ela se voltou e viu Remingus em pé a um canto, acabando os restos da sopa.

—Está aqui! - Disse ela.

—Estou aqui. – Ele lhe disse. - Por ti.

Já não era o fantasma de conchas vazias com quem se encontrou na primeira vez, mas o homem que tinha visto no dia anterior. Recordava ter compartilhado a água de seu elmo.

—É pó - Disse ela.

—Não tanto para que possa alguém notar. – Ele disse. - Iremos juntos a praça. Eu a acompanharei e a Dorcas... Ela me verá.

—O que vai acontecer?

—Não sei. – Ele inclinou a terrina e engoliu o líquido do fundo. - Muito bom. Dorcas é uma cozinheira excelente; os caracóis dão um toque agradável. Como vê, minha magnífica caçadora, a morte não outorga a onisciência. – Ele estava envolto de pés a cabeça em um manto de cor vermelha escura e marrom.

Dorcas retornou e se surpreendeu ao vê-lo.

—Quem é este? — Ela perguntou.

—Um amigo. - Disse Regeane.

Ela olhou Remingus fixamente.

—Não sabia que tinha amigos na cidade.

—Não os tenho. - Respondeu Regeane. - Remingus vem de algo mais longe. Vivia perto de um lago na região dos vinhos, perto de Roma.

—Sim. - Respondeu Remingus. - É certo. Uma vez. Há muito tempo. Mas vamos em caminho. O sol está alto e queima a névoa matutina. Logo o rei estará no foro.

E ele estava com a razão. Quando os três chegaram ao antigo foro, encontraram-no já abarrotado e seguia recebendo gente em um ritmo constante. Os vendedores de pão frito e verduras, assim como outros com odres de vinho e cerveja carregada nos lombos de mulas, começavam a fazer bom negócio ao redor da multidão. Tudo o que alguém precisava era uma de taça e umas quantas moedas de cobre.

O ar fresco da manhã começava a se diminuir ante a forte luz do sol e as pessoas se abarrotavam livremente dos refrigérios que ofereciam os vendedores de comida e vinho. Regeane se sentia incômoda. Apesar do ambiente festivo, não era uma reunião alegre. Muitos homens estavam bebendo muito e muito cedo. Um número significativo de homens vestidos com capas, não bebia nada absolutamente.

Regeane sentiu como lhe arrepiava o cabelo da nuca quando a loba lhe informou que todos os homens adultos estavam armados e também não poucas mulheres. Dorcas tinha dois longos e pesadas facas de trinchar no cinturão. Estavam, como quase todos outros, escondidos sob sua capa. Quase todo mundo dava voltas por ali, saudando seus velhos conhecidos e matando o momento. Regeane não conhecia quase ninguém, então ela e Remingus saíram do centro da reunião. Os quatro lados do foro estavam rodeados de colunatas. Duas delas serviam de alpendres para lojas e armazéns nos quais se guardavam os abundantes produtos do campo e eram feitas as transações. A terceira era o pórtico do palácio real e a quarta a entrada do que uma vez fora templo de Roma, agora convertido em catedral cristã. Seus elevados degraus e enorme pórtico se erguiam acima do resto.

—Ele está aqui. - Disse Regeane.

Remingus não precisava responder. A loba encontrou o rastro de Maeniel sobre as pedras, os degraus e em uma inexplicável rajada de vento que lhe levantou o véu e lhe puxou o trançado cabelo. Um terrível e insondável sentimento de perda a rasgou por completo, inclusive enquanto o vento levantava o pó dos paralelepípedos sob seus pés e fazia voar e agitar roupas dos que já eram uma multidão.

—Eles vão se amotinar. – Ela sussurrou.

—Acredito que sim. - Respondeu Remingus e conduziu-a entre as lojas da igreja até perto do foro. O vento cessou e o ar ficou estranhamente imóvel.

Quando chegaram no fim do beco entre os armazéns, Regeane notou que podia olhar sobre os telhados do povoado até a paisagem de mais à frente. Farejou o vento. Na escuridão do mais profundo de sua mente, a loba se levantou.

Vê, sua irmã de pesadelo sussurrou. Vê. Foi uma loucura por sua parte envolver nos manejos de reis estúpidos. Pagará o preço. Corre! Cheiro a chuva que leva o vento. Não queimarão nada hoje. Mude. Salte. As telhas e os muros de pedra suportarão facilmente seu peso.

Para Regeane seu cabelo se movera. Sua trança se desfez e o cabelo caiu solto sobre os ombros. Depois se ouviu um grito no foro.

—O rei. Vem o rei.

O véu lhe deslizou do rosto até cair sobre seus ombros.

—Não! - Sussurrou a mulher. - Aconteça o que acontecer, qualquer que seja sua sorte, não empreenderá essa viagem sozinho. Na vida ou na morte, prometo estar ao seu lado.

—O horizonte se obscurece. - Disse Remingus.

—O ar parou. – Respondeu Regeane.

Houve um grito mais forte.

—O rei.

Na igreja, o bispo, seus criados e o capitão do guarda de Desidério jogaram uma escada de corda no poço.

 

Maeniel subiu.

Tinham flechas apontadas para ele. Um movimento em falso e ele viraria um coador. Maeniel calculou as possibilidades do lobo para sobreviver em tais circunstâncias e as encontrou nulas. Ordenaram-lhe se ajoelhar e lhe puseram correntes em mãos, tornozelos e pescoço. Ainda estava nu, mas o capitão da guarda teve piedade dele o bastante para fazer um buraco em uma manta desgastada e passar-lhe pela cabeça. Depois ele foi obrigado a avançar sob a ponta de lança pelas escadas, cruzando a igreja e através da porta, até que chegou ao pórtico.

A praça já estava cheia. A maioria das pessoas se agrupavam perto da igreja porque acabavam de anunciar o julgamento. Era o prisioneiro e inimigo do reino lombardo mais celebrado que o rei já tivera. Sua habilidade caçadora era ainda mais legendária que sua reputação de bruxo.

Maeniel observava as pessoas com o olhar selvagem de um autêntico lobo enquanto eles se empurravam e afastavam uns aos outros, para poder lhe ver bem. Em sua face se lia um desafio que era por sua vez indiferença, como se dissesse, vocês têm sorte de que eu esteja acorrentado, mas não importa, porque não podem me assustar com o fogo nem com a espada. Sei quem e o que sou e tanto na vida como na morte sou livre. Era a confiança absoluta da fera que possui uma inocência absoluta e não pode ser obrigada a sentir culpa ou arrependimento como as criaturas humanas inferiores.

Estudou seus olhos e depois olhou para a neblina ao bordo do horizonte. Viu a tormenta em florações, sentiu o calor, viu como o pó se levantava sobre os campos recém arados das propriedades reais próximas a cidade. Depois os guardas o empurraram para que baixasse as escadas e atravessasse o lugar até chegar ao rei, que se sentava junto aos bispos e outros notáveis lombardos sob a sombra do pórtico do palácio, olhando tanto para o prisioneiro como à multidão.

 

Regeane abriu passou entre outros para se aproximar de Maeniel. Não tinha pensado em como lhe afetaria vê-lo, tão perto e, entretanto tão longe. Mas também era prática. Nesta situação ele necessitaria de toda sua força e confiança para salvar-se. Então não devia perturbá-lo. Ele não devia adivinhar sua presença entre a multidão.

Em um bosque meio congelado nas altas cotas de seu domínio selvagem, ele a teria intuído em um raio de vinte quilômetros; mas ali, entre a massa de humanos suarentos, sua presença ficava mascarada pelos milhares de aromas gerados por homens e mulheres, além dos muito diversos artigos das lojas e depósitos que rodeavam o foro, agravado todo isso pelo belicoso humor dos machos do grupo.

Para o lobo, sua raiva e violência em estado puro eram de um mau cheiro asfixiante. Se lhe tivessem deixado sozinho nesta atmosfera, o lobo teria metido o rabo entre as pernas e fugido o mais rápido possível e, ainda mais, não teria parado até chegar a um lugar muito limpo. O homem pensou lúgubre, que alguém ia ter muitos problemas esse dia. Seria ele?

Não. Não. Seus guardas conseguiram afastar à multidão facilmente e quando os homens, os mais perigosos, olharam para Maeniel, tudo o que o lobo pôde ver em seus rostos foi uma ligeira curiosidade. Estava sendo apropriadamente humilhado, descalço e usando somente uma manta velha a modo de túnica. Seu cabelo era um ninho de ratos, tinha o corpo manchado pela lama do chão de pedra de sua úmida cela e brilhava um colar de aço em seu pescoço e correntes em cada uma de suas extremidades.

Se apor caso, parecia despertar compaixão nos corações das mulheres; aos homens era indiferente. Sentia que lhes preocupavam outros problemas mais urgentes.

Justo adiante, ele observou ou o rei sentado comodamente sob a sombra do pórtico. Desta vez Desidério não permitiu que o bispo se apresentasse como seu igual, como tinha feito o prelado na igreja. O rei se sentava no centro do alpendre, com a corte em pé ao seu redor. O bispo, como deferência a sua idade, também dispunha de uma cadeira, mas mais baixa e a um lado do rei, cujo trono estava sobre um estrado.

Maeniel reprimiu um sorriso enquanto seus guardas chegavam ao pé dos três degraus que conduziam ao pórtico. O capitão lhe fez cair de joelhos, enquanto que os mercenários, com bastante brutalidade, abriam um espaço ante o rei.

 

Chiara estava perto do trono, a um lado, perto de seu pai e de Hugo. Os olhos de Maeniel pousaram sobre ela durante o que para a garota foi um momento de autêntico terror, mas não deu amostras de reconhecimento. Bem, a igreja estava mal iluminada e talvez não a visse bem. Não seja idiota, ele disse a si mesmo. Sabe quem é, mas também sabe que não deve armar revôo, e muito menos aqui. Deu um suspiro de alívio.

O urso estava presente. Montava sobre Gimp; Hugo e o urso estavam de relações cortadas no momento. Tinham acabado lançando coisas um no outro depois de que o urso visitou Chiara. A comoção alertou o guarda de palácio e quase jogam Hugo para fora, a chutes. Chiara voltou a intervir e persuadiu o urso para que se fosse. Ele encontrou o botequim onde Gimp estava bebendo e com bastante mau humor, procurou proteção em seu discípulo mais amável. Gimp resultava uma residência mais cômoda que Hugo nestes momentos, já que era um bêbado silencioso. Depois de consumir certa quantidade de qualquer beberagem alcoólica, ele ficava sonolento; de fato, nesses momentos ele estava dormitando. O urso tinha tomado o controle de mais funções corporais das que tinha usado com qualquer outro de seus anfitriões, mesmo até o extremo de dizer a Gimp quando se coçar, urinar ou fazer cocô. Para Gimp não importava. Ele estava contente. Agora passava bêbado a maior parte do tempo e tinha mais que suficiente para comer. Seu hóspede nunca podia mantê-lo muito limpo e não tinha sequer a inteligência nem a habilidade para desenterrar os ocasionais tesouros que o urso mostrava a Hugo. Embora ao urso ele não fosse particularmente útil, pelo menos lhe resultava relaxante e cooperativo... Muito, muito mais do que podia dizer de Hugo.

Havia uma coisa da qual o urso não se precavia. Sua posse de Gimp se notava na face deste. Chiara era nervosamente consciente de sua presença e também foi Maeniel quando lhe deu uma boa olhada.

O urso, estudando Maeniel enquanto este se ajoelhava sobre o pó, não pôde reprimir o prazer de desfrutar.

—Devia ter me ouvido. - Disse o urso A Maeniel. - Sabe o que lhe vão fazer, não é?... Não é? Verdade? — ele perguntou-lhe com ironia.

Maeniel elevou a vista para Desidério, Gimp e Chiara.

— Eles vão lhe queimar, queimar vivo!

Chiara ofegou com horror. Depois, igualmente horrorizada por sua reação, tampou a boca com a mão.

O urso bramou, rindo.

—Vou desfrutar isto.

Entre a multidão, Regeane, em pé junto a Remingus, também o ouviu.

—A coisa malvada está aqui. – Ela sussurrou.

—Sim. - Respondeu Remingus com voz sussurrada. - Tome cuidado. Acredito que ainda não notou sua presença. Vi-o de longe na noite em que nos encontramos. Invocou-me do silêncio e a escuridão, de volta. De volta da paz, das águas do Leteo nas quais podia ficar a deriva e sonhar sonhos de alegria e tristeza, abandonado pelos vivos nessas bordas brumosas. De volta a abrasadora luz do ser e o pertencer, do amor, o ódio e a dor. Vim até ti. Vivo.

Regeane estremeceu ao sentir a mão de Remingus sobre seu braço. Depois ficou paralisada, porque o rei estava falando.

—Este homem, - ele disse assinalando o ajoelhado Maeniel, - é um inimigo de nosso povoado e servente do rei franco Carlos. Admitiu abertamente sua culpa. Acredito que não há mais que dizer antes de...

—Posso falar? — Perguntou Maeniel.

—Não. - Respondeu Desidério. - O Silencie. – Ele ordenou ao capitão da guarda, que ato seguido golpeou Maeniel em um lado da cabeça, com sua clava.

O golpe fez com que lhe apitassem nos ouvidos e lhe abriu um corte na maçã do rosto; sangue escarlate lhe corria pela face.

Regeane gritou. De fato, bastante mulheres entre a multidão gritaram ou falaram:

—Não. Por piedade. Ele está preso.

O rei lhes lançou um olhar de fúria sobre as cabeças dos mercenários.

—Calem-se. – Ele rugiu. - Açoitarei o próximo que cause qualquer moléstia e pendurarei qualquer pessoa que pense em se unir à desordem. Não tolerarei nenhum distúrbio nesta, minha cidade real. Quanto a este... —Desidério se levantou e assinalou Maeniel, - peguem este despojo humano e pendurem, depois queimem seu cadáver para que não possa andar a noite, já que é um cruel bruxo.

O bramido que se levantou da multidão assustou até Maeniel.

Desidério retrocedeu.

Os mercenários decidiram de repente que preferiam não dar as costas aos cidadãos que até então estavam empurrando e se apressaram escada acima para ficar de cara para a praça, com lanças e flechas preparadas.

Maeniel ficou em pé, mas o capitão era um homem inflexível e o manteve onde estava, a ponta de lança; a pequena mudança foi que agora estava frente a frente com seu prisioneiro em vez de por trás dele.

Regeane entendeu pela primeira vez o mau gênio das pessoas do povoado. Ela sabia, igual a Maeniel, que estavam dispostos a se precipitar sobre os guardas e matar tudo o que ficasse ao seu alcance. Inclusive tolo Desidério se deu conta de que tinha ido muito longe. Alguém situado junto a Maeniel se dirigiu ao rei.

—Majestade... Acredito que é nosso costume lhe dar aos acusados uma oportunidade de se defender antes de pronunciar sentença.

Regeane reconheceu a voz de Robert.

—S-sim. - Gaguejou Desidério e depois assinalou a Maeniel. - Fala... Fale.

—Tenho pouco a dizer. - Disse Maeniel. - Sim, eu sou um dos homens de Carlos. Sim, eu vim para espiar suas defesas, mas fui capturado antes de poder cumprir minha missão e, portanto não lhes causei nenhum dano. Nem a você nem a cidade ou sua gente. Acredito que minhas ações foram honoráveis. Nunca pretendi ser seu amigo e acredito que é seu costume permitir que um prisioneiro capturado compre sua liberdade.

O que Desidério precisava era uma distração e esta era boa.

—O que oferece? — Perguntou sem rodeios.

—Ofereço-lhes duas libras de ouro.

—É uma grande soma.

Maeniel pôde ver girar as rodas do mecanismo.

—E, além disso, meia libra para o bispo. Dez peças de ouro para cada um dos nobres de sua corte e uma para cada cabeça de família da cidade.

Era uma soma realmente assombrosa, mas Regeane tinha visto os cofres de Maeniel e não duvidava que ele pudesse pagar isso e mais. Seu ducado transbordava prosperidade e sua gente não era das que tinha muito interesse no referente às posses. Por um momento, o mau humor da multidão desapareceu. Os cortesões murmuraram entre si e inclusive os mercenários fizeram aritmética mental, já que alguns tinham salários atrasados. Por um breve espaço de tempo, todos se dedicaram a agradável tarefa de gastar dinheiro imaginário.

Mas Hugo provou ser um desmancha-prazeres.

—O que? — Ele gritou. - O que? Vai deixá-lo partir? E se apoiando no que? Só em sua palavra? Quem? Quem, perguntou-lhes? Quem será seu aval?

—Hugo... – Respondeu-lhe Maeniel. - Hugo, muitas coisas são ditas sobre mim, tanto boas como más, mas ninguém foi nunca tão infame para questionar minha honestidade. O que prometo, eu cumpro. Mantive minha palavra inclusive contigo e o cruel de teu pai.

—Você o matou. — Hugo quase jogava espuma pela boca. - Eu o vi matá-lo.

—Então estava lá? Bem, se estava olhando, então saberá que ele tentou matar minha esposa, Regeane. Regeane, que implorou clemência para vocês dois. É suficiente. - As correntes das mãos e tornozelos de Maeniel tilintaram. - Ah, você tem sorte pedaço de esterco, de que eu esteja acorrentado. Qualquer homem que se aprecie defenderia à mulher unida a ele pela lei e o amor.

O grito de resposta da multidão foi ensurdecedor.

—Eles sabem o que passou junto ao rio. - Sussurrou Regeane.

—Pensava que não saberiam? — Perguntou Remingus.

Desidério parecia frustrado. Hugo deu um passo adiante. Parecia tanto frustrado como furioso. Gritou ao rei.

—O que? Deixarão que esse feiticeiro, esse assassino pestilento compre sua liberdade com nada mais que promessas?

—Sim. - Desidério franziu o cenho. – Entra o assunto dos avais. Que tipo de garantia me oferece de que manterá sua palavra?

Regeane avançou uns passos, tirando o véu.

—Sua Majestade, - ela falou com uma voz alta e clara que chegou até os limites da multidão. - Eu me encarregarei de avalizar meu senhor e marido.

Com correntes ou sem elas, Maeniel se voltou.

—Regeane? Você? Aqui? Como?

A cor abandonou sua face. Ele estendeu uma mão encadeada para ela. Regeane pegou a mão estendida e se aproximou dele.

—Eu serei o aval de meu senhor. – Ela repetiu. – ele não mente. Sei bem. Pagará até a última moeda de cobre do resgate, mas liberem-no e eu ficarei, como prisioneira ou como convidada, a sua escolha, até que ele volte com o pagamento.

—Não. - Disse Maeniel.

—Sim. - Disse Regeane fitando diretamente seus olhos. - Sim, ficarei. Não temam, ele cumprirá o prometido. – Ela apertou sua mão. - Meu amor, - Regeane sussurrou. - Não me negue esta oportunidade de salvá-lo.

Apesar da multidão e dos cortesãos que os observavam do alpendre, os dois pareciam estar sozinhos. Ele estendeu sua outra mão e a apoiou na face de Regeane. Depois, beijou-a brandamente nos lábios.

—Com tão bela vencedora, como vou evitar ser conquistado. Será como você deseja meu amor - Disse ele.

As mulheres que se encontravam entre a multidão choravam; Chiara chorava, as lágrimas molhavam sua face.

O bispo estudou os dois e depois disse a Desidério:

—É melhor resolver as disputas dinheiro que com sangue. Deixem-no ir.

—De acordo. - Disse o rei.

A multidão o aclamou. Ele parecia incômodo. Desidério não estava acostumado a ser popular. Maeniel disse o mesmo a Regeane quando sussurrou ao ouvido.

—O rei não está acostumado ao carinho de sua gente.

—Não se preocupe. - Respondeu ela em uma voz ainda mais baixa. - Não lhe durará muito.

Maeniel a atraiu mais para si e depois olhou para o céu. Era meio-dia ou talvez um pouquinho mais tarde. O sol dava de pleno sobre a multidão. Só o alpendre, onde o rei tinha seus mercenários, cortesãos e outros notáveis estava à sombra. Não se movia nenhum pingo de ar.

—Sente? — Sussurrou Regeane a Maeniel.

—Sim... Desde esta manhã. Até nesse horrível buraco ao que chamam garrafa. Soube inclusive antes da alvorada.

—Muito bem. - Disse Desidério, enquanto batia as mãos, uma contra a outra. - Este assunto está concluído. – Ele dirigiu a Maeniel um olhar de soslaio. - E concluído, espero, para satisfação de todos.

Regeane sentiu como a mão de Maeniel se fechava sobre dela.

Ele está mentindo, pensou ela. Maeniel sabe; eu sei; não pensa cumprir sua parte do trato.

— Ele mente. - A voz do urso falou de sua residência no corpo do Gimp. - Não pensa te deixar partir.

Tanto Maeniel como Regeane ouviram as palavras do urso, igual fizeram Chiara e Hugo.

—Está mais certo, - continuou o urso, - que estarão os dois mortos antes que caia a noite.

—Sim. - Respondeu Maeniel com tristeza. - Não aceitaria a aposta. Pode ser que sequer pudesse cobrá-la, mas ganharia.

—Quero um dos dois. Tenho o poder. Esta turfa enfurecida é como uma fonte de vida para mim. Escolham. Deixem-me ter um. Dê-me a mulher-lobo, Maeniel e te tirarei da cidade para te levar ao bosque. Ou, se assim o preferir, se entregue a mim e eu a deixarei bem longe daqui. Do contrário, ambos perecerão.

Maeniel atraiu Regeane ainda mais para seu corpo. Ela sentiu a consoladora suavidade e força de seu corpo contra o seu, mas não chegaram a ter oportunidade de responder. Robert falou.

—Nosso assunto não está concluído. - Disse em voz alta.

Desidério já estava se preparando para partir.

—Não atenderei mais casos hoje. – Ele disse irritado.

—Oh sim. Atenderão. - Rugiu Robert. - Ouvirão este.

Robert estava em pé entre o grupo de homens que integravam a multidão. Estes eram os que Regeane tinha visto antes, os que não bebiam álcool, levavam roupagens um pouco mais grossas e não pareciam sentir o calor tanto como os outros.

Os olhos do bispo os observaram atentamente. Ainda estava sentado.

—Meu senhor, - ele disse A Desidério. - Meu senhor, eu acredito que o assunto é urgente e deveriam atendê-lo.

Algo parecido ao grunhido de um animal surgiu da multidão.

O rei se deteve.

Seus cortesãos, mesmo os mercenários de sua guarda, pareciam assustados.

Os olhos de Robert estavam vermelhos pela longa vigília na igreja e sua face estava arrasada pela dor. Para Regeane, ele parecia vinte anos mais velho, que o menino que tinha visto descer as escadas da casa de sua mãe, alarmado. Sabia que com o tempo ele faria as pazes com sua pena, mas nunca voltaria a ser tão jovem novamente.

Produziu-se uma comoção nos extremos da praça e Regeane viu alguns dos amigos do Robert escoltar os cinco soldados através das pessoas. Os homens haviam sido desarmados, mas pelo resto, pareciam ilesos. Os três mercenários mais velhos estavam claramente assustados, mas tinham visto muita violência para sentirem intimidados pelo que certamente consideravam só como um bando de camponeses. Os dois mais jovens, não tão endurecidos como os mais velhos pareciam aterrados. Atrás deles eram carregados os corpos do encarregado do vau e sua família, amortalhados como na noite anterior. Um dos homens que acompanhavam os prisioneiros era Beningus, a voz da lei.

Uma nuvem cobriu o sol e uma suave brisa agitou a roupa de todos os presentes. O aroma de chuva se deixava notar com força no vento. Descendo pelo beco, entre os armazéns, Regeane podia ver o céu se obscurecer como um cardeal ao passar pelo horizonte. Uma tormenta das grandes se aproximava das montanhas do norte.

Os cinco cadáveres estavam, cada um sobre seu féretro, ante o rei.

—E estes quem são? — Perguntou Desidério com arrogância.

Robert disse seus nomes começando pelos dois homens, para seguir com os do menino e os das duas mulheres.

—Nenhum morreu de causas naturais. – Ele disse. - Seus ferimentos demonstram que foram assassinados a ferro.

Então eles afastaram as mortalhas para deixar à vista os ferimentos dos corpos. Todos eles mostravam uma palidez amarelada e serosa; o ar se encheu do aroma do sangue derramado.

—Estou de acordo. - Disse Desidério com uma careta de asco. - Estão certamente mortos e morreram tal e como diz. Mas o que tem isto a ver comigo? Ou... — Ele assinalou para a carriola junto ao trono. - Com os guardiões de minha pessoa e minha tranqüilidade?

—Eles são os assassinos. - Disse Robert diretamente enquanto os assinalava.

—E tem alguma prova para apoiar tão monstruosa acusação?

—Sim. O taberneiro os viu sair ontem pela manhã cedo e voltar mais tarde com ferimentos. E quando registramos suas posses encontramos um anel meu, que pertencia a minha prometida; um brinco de sua mãe, Itta; e duas facas que reconhecemos como propriedade dos homens da casa. Além disso, - ele disse, assinalando o mais velho dos mercenários, - o taberneiro declara que a face deste homem estava limpa de marcas quando saiu, como disse ele, para caçar e o mais jovem não tinha nenhum ferimento no braço. Mas quando retornaram estavam feridos, tal e como podem ver agora.

—Então, - disse Desidério zangado, - devo condenar meus leais homens pela palavra de um taberneiro bêbado e do filho meio adulto de uma viúva que cuida de uma casa de má reputação?

O último foi um insulto gratuito. Todos os que puderam ouvi-lo sabiam. Dorcas era um modelo de decoro.

Robert ficou branco de raiva, mas Beningus apoiou uma mão sobre seu ombro e disse:

—John é um comerciante tranqüilo e educado e Dorcas ganha à vida vendendo pão. Pão, eu devo acrescentar, que se consome em sua mesa. Pode negar a acusação, meu senhor, mas não é necessário insultar quem lhes expõe isso.

A multidão guardava silêncio.

Regeane notou que o vento aumentava.

—Muito bem. - Respondeu o rei com pouca elegância. Depois assinalou o mais endurecido dos mercenários, ao homem com os arranhões na cara. – Diga-nos, o que aconteceu?

O homem dedicou a Robert um olhar zombador e insolente.

—Saímos, como já foi dito, para caçar e essa gente nos atacou no vau. Uma emboscada. Não estavam sozinhos. Havia outros com eles. Opusemos uma fera resistência ao covarde ataque dos ladrões e os homens morreram, o resto fugiu. Quanto às mulheres... — ele soltou umas risadinhas e deu uma cotovelada no homem que estava junto a ele. – Vocês não pode nos culpar por se deitar e recolher nosso pagamento de soldados. Não eram virgens e nenhuma se opôs de tudo.

—Então me pergunto, por que - disse Beningus - era necessário matá-las?

O homem parecia incômodo.

—Não fomos nós. Devem ter sido seus homens quando retornaram e viram que as damas tinham sido muito amáveis. — Ele soltou uma gargalhada trêmula, mas ninguém, nem sequer seus camaradas, acompanhou-o.

Desidério estalou os dedos e assinalou aos soldados.

—Soltem-nos. Regeane sentiu náuseas. Podia cheirar o mercenário arranhado, de uma forma inacessível a qualquer ser humano. Sabia o que tinha feito e sabia que Itta lhe tinha causado os arranhões, bastante feios, com as unhas antes de morrer.

Ninguém se moveu.

O silêncio se fazia mais espesso. No céu, o sol começava a escurecer e o vento soprava com força. A praça estava resguardada, mas as fortes rajadas ocasionais levantavam o pó em forma de nuvem e os redemoinhos de ar dançavam como espectros amarelos sobre os encurvados paralelepípedos. As capas dos homens ondeavam ao vento e as mulheres se apegavam com mais força aos mantos e aos véus.

Regeane se deu conta, igual de que todos outros, de que estavam parados. Os mercenários armados que rodeavam ao rei não pareciam dispostos a saltar em meio da multidão e se arriscar a Deus sabe o que, enquanto que os homens que tinham capturado os malfeitores não tinham intenção presente nem futura de deixá-los livres.

Beningus tentou romper a tensão.

—Meu senhor, - ele disse, se dirigindo ao rei, - talvez antes que atuem de forma tão precipitada, deveriam ouvir John, o taberneiro e aos homens que acompanharam Robert para recolher os corpos. Eles lhes dirão que esta família foi atacada de surpresa e desarmada. Que não houve nenhum sinal de ataque no vau. Além disso, a garota jovem, Mona, deveria ser examinada por uma parteira para ver se era virgem antes que abusassem dela. Devem saber, meu senhor, que provavelmente todos os aqui reunidos conhecessem bem a esta família e desfrutavam de um bom nome. Ninguém lhes considera capazes de um ato de pilhagem como o que descrevem estes soldados.

Desidério estava vermelho e lhe tremiam as mãos. Ele estava e todos sabiam, a beira do abismo. Robert estava em pé perto de Maeniel, que se inclinou para sussurrar algo em seu ouvido. Só Regeane ouviu o que ele lhe disse.

—Não, não fique louco. São muitos para guardar em segredo sua culpa. Pressione um pouco um dos mais jovens. Ele cederá.

Sim, pensou Regeane.

Os dois mais jovens estavam um pouco separados dos três mais velhos. A multidão tinha a cabeça inclinada e parecia imersa em si mesma. Olhava temerosa para um nada, com os olhos totalmente abertos pela comoção. Robert o escolheu. Andou tranqüilamente para os soldados e o separou do resto. Pegou a camisa do rapaz e a retorceu em seu punho enquanto rugia:

—De acordo. Diga-me que a garota a que eu amava não era virgem. Diga-me que era uma rameira. Olhe-me nos olhos e diga... Diga-me que ela desejava o que lhe fizeram.

O rapaz tentou se voltar.

—Não, maldito mentiroso. Olhe. Olhe-me nos olhos e diga-o...

—Não! – O rapaz cedeu como havia dito Maeniel. - Não, ela não nos desejava. Gritou muito. Oh, deus, ainda posso ouvi-la gritar em minha mente, inclusive depois de que o... —Ele se calou, com o horror gelado em sua face.

—Inclusive depois de que lhe cortaram o pescoço? — Acrescentou Robert em um tom incrivelmente calmo.

—Sim! – O rapaz respondeu com voz afogada. - Sim, mesmo então ainda podia ouvi-la... Gritar.

Robert retrocedeu um passo e soltou-o, limpando as mãos em sua túnica como se houvessem se poluído de algo imundo... Como Regeane pensava. O rapaz caiu de joelhos sobre a pedra, entre soluços, gemendo que estava condenado.

Robert se voltou para Desidério e lhe assinalou com o dedo.

—Você não é nenhum rei. Um rei que não administra suas próprias leis e que não defende a vida de sua gente, não é um rei.

Ao longe, brilhavam os relâmpagos e se ouviam trovões em forma de estrondos distantes.

Quando chegou o turno de Desidério, ele por sua vez assinalou Robert.

—Peguem este insolente rato de boca-de-lobo e enforquem. – Ele gritou aos soldados reunidos sob o pórtico. - Façam isso imediatamente.

Robert se manteve em seu lugar, olhando-o desafiante.

Os soldados temiam se mover. A turfa era um animal gigantesco e ninguém queria atacar. Sim, eram uns quarenta, bem armados, em posição de superioridade no alpendre acima da multidão; entretanto, sem contar mulheres e crianças, havia pelo menos várias centenas de homens capazes entre os cidadãos e, sim, estes eram homens com famílias. Então se o rei e seus mercenários se mantivessem firmes, poderiam fugir... Mas se não o fizessem, decidissem lutar, os resultados poderiam ser desastrosos tanto para o rei como para cortesãos e os soldados.

O bispo, velho como era, tentou salvar a situação.

—Meu senhor rei, - ele falou em voz alta no meio do tenso silêncio. - Meu senhor rei, a confissão do rapaz desmente a primeira história contada. É sua decisão averiguar a verdade e se estes descarados merecerem a forca, sem dúvida, enforque-os. E você, jovenzinho, - Ele se voltou para Robert, - sua dor e raiva são compreensíveis, mas não provoque mais seu soberano, o rei. Provaste que estes... — Ele gesticulou para os mercenários, - estes bandidos não dizem a verdade. Dá-te por satisfeito, rogo-lhe.

O rapaz correu para o bispo e se atirou de joelhos ante o prelado. O bispo levantou sua mão em absolvição e fez o signo da cruz.

—Estou condenado? — Perguntou o rapaz.

—Não. - Respondeu o bispo. - Implorei, tanto como poderia qualquer homem, perdão por seus pecados, mas deve se confessar.

O jovem assinalou para Robert.

—Ele diz a verdade. Eu e meus amigos somos culpados de assassinato. Ninguém nos atacou. Vimos às mulheres e as desejamos. Planejamos pegá-las a sós junto ao rio e conseguir prazer delas pela força, mas as mulheres lutaram. A mais jovem fugiu e foi em busca de seus homens, então...

—Então, - continuou o bispo, - já sei, não se podia fazer outra coisa. Tinham que matá-los a todos.

O bispo dirigiu um sombrio olhar a Desidério.

—Você é o rei. Faça justiça. – Ele olhou para cima, para as braçadeiras da colunata, vigas altas que ajudavam a afastar as colunas do edifício. Assinalou-as. - Servirão como forca.

Uma ligeira garoa caiu sobre a praça. Regeane sentiu que umas quantas gotas lhe caíam sobre o rosto. A seu redor a multidão suspirava. Na periferia da multidão, os membros menos interessados da assembléia, vendo a iminente chegada da tormenta, começaram a partir para suas casas apressadamente. Regeane pegou o braço de Maeniel e o aproximou mais ao bispo. Esperava de alguma forma colocá-los sob seu amparo. Desidério era um homem traiçoeiro. Maeniel ainda estava acorrentado. De algum modo, tinha que tirar o colar de seu pescoço.

Ela notou a raiva na face do rei e o medo na de Hugo, quando ela aproximou Maeniel do bispo. A chuva estava chegando até a praça como uma névoa empurrada pelo vento e baixo ela a multidão começava a desaparecer. A roupa de Regeane molhou antes que ela se desse realmente conta de como tinha acontecido. Hugo se inclinou e falou com rei em voz baixa. Desidério levantou a mão. Não, pensou ela. Não.

Remingus, o fantasma, o terror, o cadáver mumificado estava junto a ela. Suas conchas vazias olhavam para Hugo.

O capitão da guarda tinha uma lança. Hugo a pegou e a lançou em Regeane. A lança lhe acertou o corpo, um pouco por cima do quadril esquerdo. A dor da morte a percorreu por inteiro e ela caiu de costas sobre a rua. A mudança tentou levar-lhe como um falcão a um coelho, com um ataque súbito. Ela a rechaçou. Ainda lhe assustava o que a multidão poderia lhe fazer se convertesse em loba em plena luz do dia.

—Chame à loba. - Rugiu Maeniel. - Chama à loba, Regeane. Só a loba pode te salvar.

Nesse momento caiu toda a força da tormenta. A chuva açoitou à multidão. As mulheres fugiram para a igreja, mas os homens não correram. O mundo se desvanecia. Maeniel se voltou lobo enquanto caíam os relâmpagos. As correntes caíram.

A corrente, pensou Regeane, ainda se revolvendo na rua. A corrente.

O colar ainda lhe rodeava o pescoço e o unia a corrente, mas o extremo desta já não estava sob o controle do capitão de Desidério. Um segundo depois, Maeniel era novamente homem e a corrente se convertia em uma arma.

O primeiro dos mercenários que tentou agarrá-lo teve uma morte terrível. A corrente se enrolou em torno de seu pescoço. Seu rosto se tornou escarlate, depois azul. Maeniel puxou; os elos se fecharam formando um espiral mais estreito e lhe arrancaram a cabeça. Os mercenários do alpendre dispararam sobre a multidão. Conduzidos por Maeniel, Robert e seus amigos carregaram contra o alpendre.

Regeane notou seus sentidos embriagados de noite enquanto sua irmã escura ia ganhando o controle absoluto; no momento, a loba de prata se escondia sobre os paralelepípedos. Os nobres e funcionários da corte lombarda se paralisavam a entrada do palácio em sua histérica fuga. Sem se importar com a segurança de ninguém salvo a do rei, o capitão do guarda empurrou seus homens, converteu-os em uma ampla cunha e passou por cima e entre os corpos dos aterrorizados cortesãos até introduzir o rei no palácio. A loba de prata viu Hugo entre os últimos atrasados, agarrado nas costas do capitão. Este se voltou e lançando a Hugo um olhar malévolo, jogou-o sobre Maeniel, que dirigia a turba.

Maeniel simplesmente lhe deu uma cotovelada para afastá-lo em sua tentativa por alcançar ao rei, mas novamente, o capitão do guarda se impôs. Golpeou com sua clava o ombro de Maeniel e o pôs de joelhos. Não podia ferir realmente ao lobo, mas seus corpos bloquearam a entrada e deram ao resto da guarda, agora mortalmente aterrorizada pela turba, tempo para abrir as portas para fora.

—Para trás. – Ele disse a Maeniel. - Mataremos os que estão no corredor. Atrás.

Maeniel e Robert sabiam que era certo. O estreito corredor levava diretamente ao pátio de palácio e estava construído de tal forma que era facilmente controlado por uns quantos homens. Comporta-as se fecharam de uma portada e o som se perdeu no quase constante rufo dos trovões.

O bispo seguia sentado em sua cadeira. Os poucos atrasados que não tinham conseguido escapar com o rei estavam junto a ele. Estes incluíam Chiara, Armine, que a abraçava protetor, uns quantos anciões, mulheres e Hugo, que tinha conseguido jogar a cotoveladas, os mais frágeis e capturar a posição mais próxima ao bispo.

Regeane viu que não restava nenhuma prudência nos rostos dos integrantes da multidão.

Maeniel ficou deliberadamente entre o bispo e os furiosos homens e enrolou a corrente no braço.

—Não. – Ele disse. - Estão indefesos e são inocentes. Robert, onde estão os assassinos?

O bispo demonstrou então sua acuidade.

—Fugiram. – Ele disse. - Não puderam entrar em palácio e o resto não queria defendê-los. – Ele assinalou a rua que levava a catedral, a única entrada realmente boa para a praça.

—Não! - Gritou Robert. Cortinas e cortinas de chuva voavam pela praça. - Nunca os alcançaremos com este tempo.

—Fale por si mesmo. - Lhe respondeu Maeniel. - E se eu for muito lento, minha esposa poderá.

Regeane se voltou atravessando a praça. Robert e os outros a seguiram através da chuva. Um relâmpago caiu perto do alpendre, impactando sobre um dos armazéns. Este se prendeu em chamas enchendo o ar com um aroma de cabelos e plumas queimadas, só para se extinguir com a chuva.

Regeane, atrás do rastro da banda de criminosos pensou um segundo e depois seguiu correndo. O vento de cara lhe dizia que estavam mais adiante, loucos de medo.

Maeniel dedicou um momento ao bispo.

— Entrem na igreja.

O bispo estava já em pé e reunindo seu pequeno rebanho quando Maeniel se tornou lobo. O lobo lançou um breve olhar de fúria a Hugo, com seus selvagens olhos amarelos. Hugo se escondeu atrás do bispo, empurrando Armine e Chiara para um lado. Armine lhe devolveu o empurrão. Sua mão acertou Hugo no peito e o jogou dando voltas sob a chuva.

O bispo devolveu o olhar a Maeniel.

A mandíbula inferior do lobo desceu, ele tirou a língua para fora e por um instante, o bispo teria jurado que o animal lhe sorriu. Depois o lobo saltou do alpendre e seguiu o resto, com a corrente pendurando e dançando atrás dele, golpeando os paralelepípedos enquanto corria, fazendo voar as faíscas.

Fogo sob a chuva.

  

                                                                        CONTINUA

 

 

                                            Capítulo 10

O saxão não ouviu nada. Não viu nada, mas em um momento não havia ninguém e no seguinte sim, havia. Estava movendo seu fogo meio consumido com um pau enquanto se perguntava se deveria incomodar em acrescentar mais combustível, já que estava a ponto de se enrolar na pele de urso para dormir, quando sentiu olhos sobre ele. Olhou para cima e viu a loba negra. Ela estava sentada sobre suas patas traseiras e o observava do outro lado do fogo.

—Matrona?

Um segundo depois ela se convertia em mulher, com sua voluptuosa carne iluminada pelos mutantes desenhos do fogo. Ele afastou o olhar e tirou seu manto.

Matrona sorriu. – Um bom olhar?

—Vocês humanos se preocupam muito por um pouquinho de pele. Por que não dá uma boa olhada? O que acontece? Resulto-te repulsiva?

—Não! — Ele respondeu imediatamente. - Justamente o contrário, mas não me deixaria envergonhar ou deixar que minha virilidade se mostre sem nenhum propósito.

Matrona soltou uma gargalhada rouca.

—Como sabe que não servirá a nenhum propósito?

Desta vez se ruborizou.

—Eu não gostaria que me pilhassem com a querida do rei.

A mulher, a loba negra, que usava um colar com um magnífico dragão de com escamas de rubi, âmbar, topázio e safira. Ela soltou outra gargalhada gutural. Agora se envolvia em seu melhor manto de lã bordada, então podia fitá-la. Ela rodeou o fogo e acariciou sua hirsuta face com a mão de longos dedos.

 

 

 

 

—Ouça, formoso bruto, não sou a querida de nenhum homem e tampouco sou posse de ninguém, sequer de um rei. Faço o que quero e quando quero. Sempre tenho feito e sempre farei. Sim, deitei-me com Carlos; o senhor Maeniel me pediu. O rei desfrutou da experiência e eu obtive seu favor. E ele me abriu sua mente. Por isso estou aqui. Onde estão? Carlos já está em marcha Através das montanhas, mas confiou ao senhor Maeniel uma tarefa importante. Se tiver falhado, eu devo lhe substituir e, se eu falhar, você deve terminá-la.

—Qual é?

Matrona pegou um pedaço de pau e desenhou um rudimentar mapa.

—Carlos vem por aqui, - ela disse, enquanto fazia uma linha indicando um passo através das montanhas. - Seu tio Bernard segue outra rota. Por aqui!

—Ele dividiu suas forças?

—Sim, mas também Desidério o fez. Uma metade tem sua base em Ivrea e a outra em Suas. Se Carlos atacar qualquer dos dois lugares, sabe que Desidério chamará suas forças do outro. Diga-me o resultado. Você mandou homens. Poderá ver o plano de Carlos.

—Sim. - Respondeu o saxão. - Quando chegar o ataque, Desidério acreditará que se trata do grosso das forças de Carlos. Por exemplo, se Carlos atacar Suas, porque se eu fosse ele, é aonde iria, Desidério tirará de Ivrea seus melhores guerreiros. Então o tio de Carlos, dirigindo as forças de Ivrea poderá atacar a debilitada guarnição, abrir passo e atacar Suas pelo flanco. Atacadas por diante e por trás, as forças de Desidério fugirão para a Pavia. Ele não se atreverá a perder seu exército para Carlos, mas... 

 

                                                                                                   

                                         

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