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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RIO QUE SAIA DO ÉDEN / Richard Dawkins
O RIO QUE SAIA DO ÉDEN / Richard Dawkins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RIO QUE SAIA DO ÉDEN

 

                                                   Nature, it seems, is the popular name

                                           For milliards and milliards and milliards

                                           Of particles playing their infinite game

                                           Of billiards and billiards and billiards.

                                           Piet Hein

 

                   A natureza, assim parece, é o nome popular

                   Para milhares e milhares e milhares

                   De partículas jogando seu jogo infinito

                   De “bilhares” e “bilhares” e “bilhares”

 

Piet Hein capta o mundo classicamente prístino da física. Mas quando os ricochetes das bolas de bilhar atômicas por acaso formam um objeto que tem uma certa, e aparentemente inocente, propriedade, algo espetacular acontece no universo. Esta propriedade é a capacidade de auto-reproduzir-se; isto é, o objeto é capaz de utilizar a matéria no meio ambiente para fazer cópias exatas de si mesmo, inclusive réplicas das falhas menores que podem surgir ocasionalmente no ato de copiar. O que se seguirá a partir desta ocorrência singular, em qualquer lugar do universo, é a seleção darwiniana e, portanto a extravagância barroca que, neste planeta, chamamos vida. Nunca tantos fatos foram explicados com tão poucas hipóteses. A teoria darwiniana não detém apenas um poder excessivo de explicação. Sua economia ao fazê-lo tem uma elegância esbelta, uma beleza poética que ultrapassa mesmo os mitos mais obsessivos sobre as origens do mundo. Um dos meus propósitos ao escrever este livro é prestar o reconhecimento devido à qualidade inspiradora da nossa compreensão moderna da vida darwiniana. Há mais poesia na Eva mitocondrial do que na Eva mitológica original.

As características da vida, que nas palavras de David Hume mais “provocaram a admiração de todos os homens que a contemplaram”, são os detalhes complexos por meio dos quais seus mecanismos – mecanismos que Charles Darwin chamou “órgãos de extrema perfeição e complexidade” – satisfazem um propósito aparente. A outra característica da vida na Terra que nos impressiona é sua diversidade luxuriante: medida pelas estimativas do número de espécies, há mais ou menos uns 10 milhões de maneiras diferentes de fazer um ser vivo. Um outro propósito meu é sinônimo de “transmitir textos codificados em ADN para o futuro”. Meu “rio” é um rio de ADN, fluindo e formando afluentes através do tempo geológico, e a metáfora das margens íngremes que confinam os jogos genéticos de cada espécie revela-se um esquema explicativo útil e surpreendentemente poderoso.

De uma forma ou de outra, todos os meus livros têm sido dedicados a expor e a explorar o poder quase ilimitado do princípio darwiniano – um poder liberado onde e sempre que haja tempo suficiente para que as conseqüências da auto-reprodução primordial se revelem. O rio que saía do Éden prossegue com esta missão e leva a um clímax extraterrestre a história das repercussões que podem seguir-se quando o fenômeno dos reprodutores é introduzido no até aqui humilde jogo de bilhar atômico.

Durante a feitura deste livro desfrutei o apoio, encorajamento, conselho e crítica construtiva, em combinações variadas, de Michael Birkett, John Brockman, Steve Davies, Daniel Dennett, John Krebs, Sara Lippincott, Jerry Lyons, e especialmente minha esposa, Lalla Ward, que também fez as ilustrações. Aqui e ali, alguns parágrafos foram reescritos a partir de artigos publicados em várias revistas. As passagens do capítulo 1 sobre os códigos digital e analógico baseiam-se em meu artigo publicado no The Spectator de 11 de junho de 1994. O relato do capítulo 3 do trabalho de Nilsson e Susanne Pelger sobre a evolução do olho foi parcialmente extraído do meu artigo “News and Views” publicado na revista Nature de 21 de abril de 1994. Agradeço aos editores de ambas as revistas, que permitiram a reutilização destes artigos. Finalmente, sou grato a John Brockman e Anthony Cheetham pelo convite inicial para fazer parte da série Mestres da Ciência.

                         Oxford, 1994

 

                   O rio digital

Todos os povos têm lendas épicas sobre seus antepassados tribais, e estas lendas muitas vezes tomam a forma de cultos religiosos. Os povos reverenciam e até veneram seus antepassados com toda a força que podem, pois são seus antepassados reais, e não deuses sobrenaturais, que detêm a chave da compreensão da vida. De todos os organismos que nascem, a maioria morre antes de atingir a maturidade. Da minoria que sobrevive e se reproduz, uma minoria ainda menor terá um descendente vivo daqui a mil anos. Esta diminuta minoria da minoria, esta elite de progenitores, é tudo o que as gerações futuras serão capazes de chamar de ancestrais. Os ancestrais são raros, mas os descendentes são comuns.

Todos os organismos que viveram – todo animal e planta, todas as bactérias e todos os fungos, toda coisa rastejante, e todos os leitores deste livro – podem olhar para seus ancestrais e afirmar orgulhosamente: nenhum de nossos ancestrais morreu na infância. Todos eles atingiram a idade adulta, e todos sem exceção foram capazes de encontrar pelo menos um parceiro heterossexual e copular com sucesso1. Nenhum de nossos antepassados foi morto por um inimigo, ou por um vírus, ou por um passo mal dado na borda de um penhasco, antes de trazer pelo menos um rebento ao mundo. Milhares de contemporâneos de nossos ancestrais falharam em todos estes aspectos, mas nem um único e solitário antepassado nosso falhou em qualquer um deles. Estas afirmações são bastante óbvias, ainda assim muita coisa pode ser deduzida a partir delas; muitas coisas curiosas e inesperadas, muitas coisas que explicam e muitas que espantam, todas estas questões serão assunto deste livro.

Como os organismos herdam todos os seus genes de seus ancestrais, e não dos contemporâneos malsucedidos de seus ancestrais, todos os organismos tendem a possuir genes bem sucedidos. Eles têm aquilo que é necessário para tornar-se ancestrais – e isto significa sobreviver e reproduzir-se. Esta é a razão pela qual os organismos tendem a herdar genes com uma propensão para construir uma máquina bem projetada – um corpo que trabalha ativamente como se estivesse se esforçando para tornar-se um antepassado. Esta é a razão por que as aves são tão boas no vôo, os peixes tão bons no nado, os macacos tão bons em trepar em árvores, os vírus tão bons em disseminar-se. Esta é a razão pela qual amamos a vida, amamos o sexo e amamos as crianças. É porque todos nós, sem uma única exceção, herdamos nossos genes de uma linhagem contínua de antepassados bem sucedidos. O mundo transforma-se em um lugar cheio de organismos que têm aquilo que é necessário para tornar-se ancestrais. Isto, em uma frase, é darwinismo. Darwin, é claro, disse muito mais do que isto, e hoje em dia há muito mais que podemos dizer, o que é a razão pela qual este livro não acaba aqui.

Há um modo natural, e profundamente pernicioso, de interpretar maio parágrafo anterior. É tentador pensar que, considerando que os ancestrais realizaram coisas bem-sucedidas, os genes que eles transmitiram para os seus filhos eram, conseqüentemente, aperfeiçoados em relação aos genes que receberam de seus pais. Alguma parte de seu sucesso ficou em seus genes, e esta é a razão por que seus descendentes são tão bons em voar, nadar e cortejar. Errado, completamente errado! Os genes não melhoram com o uso, eles são apenas transmitidos, imutáveis, exceto por erros aleatórios muito raros. Não é o sucesso que faz bons genes. São bons genes que fazem o sucesso, e nada que um indivíduo faça durante o seu tempo de vida tem qualquer tipo de efeito sobre eles. Aqueles indivíduos que nascem com bons genes são os que têm maior probabilidade de crescer e tornar-se ancestrais bem-sucedidos; portanto os genes bons têm mais probabilidade de ser transmitidos para o futuro do que os genes ruins. Cada geração é um filtro, uma peneira: os genes bons tendem a passar pela peneira para a próxima geração; os genes ruins tendem a ter o seu fim em corpos que morrem jovens ou que não se reproduzem. Os genes ruins podem passar pela peneira por uma ou duas gerações, talvez porque tenham a boa sorte de compartilhar um corpo com os genes bons. Mas é necessário mais do que sorte para passar com sucesso através de um milhar de peneiras sucessivas, uma peneira depois da outra. Depois de mil gerações sucessivas, os genes que conseguiram sobreviver são provavelmente os genes bons.

Afirmei que os genes que sobrevivem ao longo das gerações serão aqueles que conseguirem produzir ancestrais. Isto é verdade, mas há uma exceção aparente que devo levar em conta antes que sua consideração provoque confusão. Alguns indivíduos são irremediavelmente estéreis, ainda assim eles são aparentemente projetados para auxiliar na passagem de seus genes para as gerações futuras. Formigas, abelhas, vespas e térmites operárias são estéreis. Elas trabalham não para tornar-se ancestrais, mas para que seus parentes férteis, usualmente irmãs e irmãos, o consigam. Há dois pontos que devem ser entendidos aqui. Primeiro, em qualquer tipo de animal, irmãs e irmãos têm uma grande probabilidade de compartilhar cópias dos mesmos genes. Segundo, é o meio ambiente, e não os genes, que determina se, digamos, uma térmite individual se tornará uma reprodutora ou uma operária estéril. Todas as térmites têm genes capazes de transforma-las em operárias estéreis sob certas condições ambientais ou reprodutoras sob outras condições. As reprodutoras transmitem cópias dos mesmos genes que fazem com que as operárias estéreis as ajudem a fazê-lo. As operárias estéreis trabalham sob a influência dos genes, cópias dos quais localizam-se nos corpos das reprodutoras. As cópias destes genes da operária estão se esforçando para ajudar suas próprias cópias reprodutivas a passar pela peneira transgeracional. As térmites operárias podem ser machas ou fêmeas; mas entre as formigas, abelhas e vespas as operárias são todas fêmeas; de outro modo o princípio é o mesmo. De uma forma mais fraca, este princípio também se aplica a diversas espécies de aves, mamíferos e outros animais que exibem certa intensidade de cuidados com os jovens por parte das irmãs e irmãos mais velhos. Em resumo, os genes podem abrir caminho através da peneira, não apenas dando assistência ao seu próprio corpo para que ele se torne um ancestral, mas também dando assistência ao corpo de um parente para que este se torne um ancestral.

O rio do título deste capítulo é um rio de ADN2, e ele corre através do tempo, não do espaço. É um rio de informação, não um rio de ossos e tecidos: um rio de instruções abstratas para a construção de corpos, não um rio de corpos sólidos. A informação passa pelos corpos e os afeta, mas não é afetada por eles em sua passagem. O rio não sofre as influências das experiências e das realizações dos corpos sucessivos através dos quais flui. Ele também não é influenciado por uma fonte potencial de contaminação que, aparentemente, é muito mais poderosa: o sexo.

Em todas as suas células, metade dos genes de sua mãe estão ombro a ombro com metade dos genes do seu pai. Seus genes maternais e seus genes paternais conspiram uns com os outros de modo íntimo para torná-lo o amálgama sutil e indivisível que é você. Mas os genes não se misturam. Apenas seus efeitos o fazem. Os próprios genes têm uma integridade ígnea. Quando chega a época de passar para a geração seguinte, um gene vai para o corpo de uma determinada criança ou não. Os genes paternais e maternais não se misturam; eles se recombinam de modo independente. Um determinado gene em você veio ou da sua mãe ou de seu pai. Ele também veio de um, e apenas um, de seus quatro avós; de um, e apenas um, de seus oito bisavós; e assim por diante.

Falei de um rio de genes, mas poderíamos ter igualmente falado de um grupo de bons companheiros marchando através do tempo geológico. Todos os genes de uma população que se reproduz são, a longo prazo, companheiros uns dos outros. A curto prazo, eles se localizam em corpos individuais e são temporariamente companheiros mais íntimos dos outros genes que compartilham aquele corpo. Os genes sobrevivem através dos tempos apenas se forem bons em construir corpos que são bons para viver e reproduzir-se da maneira particular de viver escolhida pela espécie. Mas há mais do que isto. Para ser bom em sobrevivência, um gene deve ser bom para o trabalho em conjunto com outros genes da mesma espécie – o mesmo rio. Para sobreviver a longo prazo, um gene deve ser um bom companheiro. Deve sair-se bem em companhia dos outros genes do mesmo rio, ou sair-se bem confrontando-se com o cenário criado por eles. Genes de outras espécies estão em um rio diferente. Eles não têm por que dar-se bem juntos – de qualquer maneira, não no mesmo sentido – , pois não dividem os mesmos corpos.

A característica que define uma espécie é que todos os seus membros têm o mesmo rio de genes fluindo através deles, e todos os genes de uma espécie devem estar preparados para ser bons companheiros uns para os outros. Uma nova espécie passa a existir quando uma espécie existente divide-se em duas. O rio de genes bifurca-se no tempo. Do ponto de vista de um gene, a formação de espécies, a origem de novas espécies, é “um demorado adeus”. Depois de um breve período de separação parcial, os dois rios prosseguem por leitos separados para sempre, ou até que um ou outro desapareça na areia. Segura entre as margens de qualquer um dos dois rios, a água mistura-se e remistura-se por meio da recombinação sexual. Mas a água nunca salta as margens que a contêm para contaminar o outro rio. Depois que uma espécie dividiu-se, os dois conjuntos de genes não são mais companheiros. Eles não mais têm encontros no mesmo corpo, e não se exige mais deles que se dêem bem. Não há mais intercurso entre eles – e intercurso aqui significa, literalmente, intercurso sexual entre seus veículos temporários, seus corpos.

Por que deveriam duas espécies dividir-se? O que dá início ao demorado adeus de seus genes? O que faz com que o rio divida-se em dois e os dois braços separem-se para nunca mais encontrar-se novamente? Os detalhes são controvertidos, mas ninguém duvida de que o ingrediente mais importante é a separação geográfica acidental. O rio de genes flui no tempo, mas o reencontro físico dos genes tem lugar nos corpos sólidos, e corpos ocupam um lugar no espaço. Um esquilo cinzento da América do Norte é capaz de reproduzir-se com um esquilo cinzento da Inglaterra, se chegarem a encontrar-se. Mas é pouco provável que se encontrem. O rio de genes do esquilo cinzento da América do Norte está efetivamente separado, por uma muralha do rio de genes, do esquilo cinzento da Inglaterra. Os dois grupos de genes não são mais companheiros de fato, embora eles ainda sejam presumivelmente capazes de agir como bons companheiros caso surja a oportunidade. Eles disseram adeus, embora não seja um adeus irrevogável – ainda. Mas dados mais uns poucos milhares de anos de separação, é provável que os dois rios tenham se separado tanto que, se esquilos individuais encontrarem-se, estes não serão mais capazes de trocar genes. “Separação” significa aqui separação não no espaço, mas em compatibilidade.

Algo parecido com isto está quase certamente por trás da separação mais antiga entre esquilos cinzentos e esquilos vermelhos. Eles não podem cruzar. Eles se interpenetram geograficamente em partes da Europa, e, embora tenham encontros e provavelmente confrontem-se de tempos em tempos por causa da disputa de uma noz, eles não podem acasalar-se para gerar uma prole fértil. Seus rios genéticos separaram-se muito, o que quer dizer que seus genes não mais estão bem preparados para colaborar uns com os outros no interior dos corpos. Há muitas gerações, os ancestrais do esquilo cinzento e os ancestrais do esquilo vermelho eram um único e mesmo animal. Mas eles tornaram-se geograficamente separados – talvez por uma cordilheira de montanhas, talvez pela água, finalmente pelo oceano Atlântico. E seus conjuntos genéticos desenvolveram-se separadamente. A separação geográfica produziu uma falta de compatibilidade. Bons companheiros tornaram-se maus companheiros (ou se revelariam maus companheiros se fossem testados em um encontro sexual). Maus companheiros tomaram-se piores, até que agora eles não são mais companheiros. Seu adeus é final. Os dois rios estão separados e destinados a tornar-se cada vez mais separados. A mesma história está por trás de separações muito mais antigas, digamos, entre nossos ancestrais e os ancestrais dos elefantes. Ou entre os ancestrais da ostra (que também foram nossos ancestrais) e os ancestrais dos escorpiões.

Há agora talvez 30 milhões de braços originados do rio de ADN, pois este é o número estimado de espécies sobre a Terra. Foi estimado também que as espécies sobreviventes constituem cerca de um por cento das espécies que existiram. Segue que teria havido cerca de 3 bilhões de braços de rio originados do rio de ADN. Os 30 milhões de braços de rio que existem hoje em dia estão irremediavelmente separados. Muitos deles estão destinados a secar, pois a maioria das espécies acaba por extinguir-se. Se você acompanhar os 30 milhões de rios (para ser breve, me referirei aos braços de rio como rios) voltando para o passado, você descobrirá que, um por um, eles reúnem-se com outros rios. O rio dos genes humanos junta-se com o rio de genes do chimpanzé mais ou menos na mesma época em que o rio dos genes de gorila o faz, há cerca de 7 milhões de anos. Uns poucos milhões de anos mais para o passado, nosso rio compartilhado com o macaco africano é reforçado pela corrente de genes do orangotango. Mais no passado ainda, reunimo-nos com o rio dos genes de gibão – um rio que separa-se corrente abaixo em um grande número de espécies separadas de gibão e do siamango3. À medida que voltamos para trás no tempo, nosso rio genético une-se com rios destinados, se acompanhados corrente abaixo de novo, a ramificar-se nos macacos do Velho Mundo, nos macacos do Novo Mundo, e nos lêmures de Madagáscar. Mais para trás ainda, nossos rios unem-se com aqueles que conduzem a outros grupos importantes de mamíferos: roedores, gatos, morcegos, elefantes. Depois disto, encontramos as correntes que conduzem a vários tipos de répteis, aves, anfíbios, peixes e invertebrados.

Agora, aqui está um aspecto importante com o qual temos de ser cautelosos sobre a metáfora do rio. Quando pensamos sobre a separação conduzindo todos os mamíferos – oposta, digamos, à corrente que conduz ao esquilo cinzento –, é tentador imaginar algo numa escala grandiosa, um rio como o Mississippi ou o Missouri. O braço mamífero está, afinal de contas, destinado a criar outros braços, até produzir todos os mamíferos – do musaranho pigmeu ao elefante, da toupeira que vive embaixo da terra aos macacos que vivem no topo das árvores. Se o braço mamífero do rio é destinado a alimentar tantos milhares de rios menores importantes, como poderia ele deixar de ser uma torrente volumosa e caudalosa? Mas esta imagem está profundamente errada. Quando os ancestrais de todos os mamíferos modernos separaram-se daqueles que não são mamíferos, o acontecimento não foi mais espetacular do que qualquer outro que levou à formação de uma espécie. Ele poderia ter passado despercebido por qualquer naturalista que por acaso na época estivesse por perto. O novo braço de rio de genes teria sido um filete de água, percorrendo uma espécie de pequenas criaturas noturnas não mais diferentes de seus primos não mamíferos do que um esquilo vermelho é de um esquilo cinzento. É apenas como uma visão a posteriori que vemos o ancestral mamífero como mamífero. Naqueles dias, ele teria sido apenas uma outra espécie de réptil semelhante a um mamífero, não marcadamente diferente de talvez uma dúzia de outros pequenos mamíferos insetívoros de focinho comprido que serviam de comida para os dinossauros.

A mesma falta de drama teria acompanhado as separações anteriores entre os ancestrais de todos os grandes grupos de animais: os vertebrados, os moluscos, os crustáceos, os insetos, os vermes segmentados, os platelmintos, as medusas e assim por diante. Quando o rio que conduziria aos moluscos (e outros) separou-se do rio que conduziria aos vertebrados (e outros), as duas populações de criaturas (provavelmente semelhantes a vermes) teriam sido tão parecidas que poderiam ter se acasalado uma com a outra. A única razão pela qual elas não o fizeram é que haviam se tornado acidentalmente separadas por alguma barreira geográfica, talvez terra fIrme separando águas anteriormente unidas. Ninguém poderia ter adivinhado que uma população estava destinada a gerar os moluscos e a outra os vertebrados. Os dois rios de ADN eram filetes pouco separados, e os dois grupos de animais eram quase indistinguíveis.

Os zoólogos reconhecem tudo isto, mas eles o esquecem algumas vezes quando contemplam os grupos realmente grandes de animais, como o dos moluscos e o dos vertebrados. Eles são tentados a pensar sobre a separação entre grupos principais como um evento espetacular. A razão pela qual os zoólogos podem enganar-se é que eles foram educados numa crença quase reverente de que cada uma das grandes divisões do reino animal é dotada de alguma coisa profundamente singular, muitas vezes designada pela palavra alemã Bauplan. Embora esta palavra signifique apenas blueprint (planta de projeto), tornou-se reconhecida como um termo técnico, e a usarei como se fosse uma palavra da língua inglesa, embora (o que me causou um leve choque ao descobri-lo) não conste ainda da atual edição do Oxford English Dictionary. (Como me divirto menos com as palavras do que alguns de meus colegas, admito um ligeiro frisson de Schadenfreude ao constatar sua ausência; estas duas palavras estrangeiras estão no Dictionary, de modo que não há um preconceito sistemático contra a importação.) No seu sentido técnico, Bauplan é muitas vezes traduzido como “plano fundamental do corpo”. O uso da palavra “fundamental” (ou de modo equivalente, a utilização autoconsciente do termo alemão para indicar profundidade) é o que causa o estrago. Ela pode levar os zoólogos a cometer sérios erros.

Um zoólogo, por exemplo, sugeriu que a evolução no Cambriano (mais ou menos entre 600 milhões e 500 milhões de anos atrás) deve ter sido um tipo de processo completamente diferente do processo evolutivo posterior. Seu argumento era que hoje em dia são novas espécies que estão surgindo, enquanto no Cambriano os grupos principais estavam aparecendo, tais como os moluscos e os crustáceos. A falácia é evidente! Mesmo criaturas tão radicalmente diferentes umas das outras como moluscos e crustáceos eram populações da mesma espécie originalmente separadas apenas de modo geográfico. Por um breve tempo, elas poderiam ter intercruzado se tivessem se encontrado, mas não o fizeram. Após milhões de anos de evolução em separado, elas adquiriram as características que nós, com a visão a posteriori dos zoólogos modernos, agora reconhecemos respectivamente como as dos moluscos e crustáceos. Estas características são dignificadas com o título grandioso de “plano corporal fundamental” ou “Bauplan”. Mas os Bauplans principais do reino animal divergiram a partir das suas origens comuns gradualmente.

Admitidamente, há um desacordo menor, embora muito popularizado, sobre o quão gradual ou “nervosa” é a evolução. Mas ninguém, e quero dizer ninguém mesmo, pensa que a evolução tenha sido suficientemente nervosa para inventar um Bauplan novo e completo de uma vez só. O autor que citei escreveu em 1958. Poucos zoólogos assumiriam explicitamente sua posição hoje em dia, mas algumas vezes eles o fazem implicitamente, falando como se os principais grupos de animais tivessem surgido espontânea e perfeitamente formados, como Atenas da cabeça de Zeus, e não por meio da divergência de uma população ancestral em isolamento acidental geográfIco4.

De qualquer modo, o estudo da biologia molecular mostrou que os grandes grupos de animais estão muito mais próximos uns dos outros do que costumávamos pensar. Você pode tratar o código genético como um dicionário no qual 64 palavras em uma língua (as 64 trincas de um alfabeto de quatro letras) são mapeadas em 21 palavras de uma outra língua (os 21 aminoácidos mais um sinal de pontuação). As chances de obter o mesmo mapeamento 64:21 por acaso duas vezes são menores do que um em 1 milhão de milhão de milhão de milhão de milhões. Ainda assim o código genético é de fato literalmente idêntico em todos os animais, plantas e bactérias observados. Todas as coisas vivas terrestres são certamente descendentes de um único ancestral. Ninguém contestaria isto, exceto por algumas semelhanças espantosas entre, por exemplo, insetos e vertebrados que agora estão se revelando quando as pessoas examinam não apenas o código genético propriamente dito, mas também seqüências detalhadas de informação genética. Há um mecanismo genético bastante complicado responsável pelo plano corporal segmentado dos insetos. Um mecanismo genético estranhamente similar foi também descoberto nos mamíferos. De um ponto de vista molecular, todos os animais são parentes bastante próximos uns dos outros e mesmo das plantas. Você terá de ir até as bactérias para encontrar nossos primos distantes, e mesmo assim o código genético em si mesmo é idêntico ao nosso. A razão pela qual é possível fazer estes cálculos precisos sobre o código genético, mas não sobre a anatomia dos Bauplans é que o código genético é estritamente digital, e os dígitos são coisas que você pode contar precisamente. O rio de genes é um rio digital, e devo explicar agora o que este termo oriundo da engenharia quer dizer.

Os engenheiros fazem uma distinção importante entre os códigos digital e analógico. Toca-discos e gravadores – e até recentemente telefones – utilizam códigos analógicos. Compact disks (CD), computadores, e a maioria dos sistemas telefônicos modernos utilizam códigos digitais. Em um sistema telefônico analógico, ondas de pressão flutuando continuamente no ar (os sons) são transformadas por meio de transdutores em ondas flutuantes de voltagem correspondentes em um circuito. A gravação fonográfica funciona de modo similar: os sulcos ondulantes fazem com que a ponta da agulha vibre, e os movimentos da ponta da agulha são transformados por um transdutor em flutuações de voltagem correspondentes. Na outra ponta da linha estas ondas de voltagem são reconvertidas, por uma membrana vibrante localizada na parte do telefone que serve para escutar ou pelo alto-falante acoplado ao toca-disco, em ondas correspondentes de pressão no ar, para que possamos ouvi-los. O código é simples e direto: flutuações elétricas no fio são proporcionais às flutuações no ar. Todas as voltagens possíveis, dentro de certos limites, podem passar pelo fio, e as diferenças entre elas são importantes.

Em um telefone digital, apenas duas voltagens possíveis ou algum número discreto de voltagens possíveis, tal como 8 ou 256 – passam pelo fio. A informação não está nas voltagens em si mesmas, mas sim nos padrões dos níveis discretos de voltagem. Isto é chamado código de modulação por pulsos. Em um determinado momento, a voltagem real raramente será igual a um dos, digamos, oito valores nominais, mas o aparelho receptor a arredondará para a mais próxima das voltagens designadas, de modo que o que emerge na outra ponta da linha é quase perfeito mesmo que a transmissão ao longo desta seja ruim. Tudo o que você tem de fazer é dispor os níveis discretos de voltagem suficientemente separados para que as flutuações aleatórias não possam nunca ser mal interpretadas pelo aparelho receptor como níveis errôneos. Esta é a grande virtude dos códigos digitais, e é a razão pela qual os sistemas de áudio e vídeo – e de modo geral a tecnologia da informação – são cada vez mais digitais. Os computadores, é claro, utilizam códigos digitais em tudo que fazem. Por razões de conveniência, é um código binário isto é, ele tem apenas dois níveis de voltagem e não oito ou 256.

Mesmo em um telefone digital, os sons que entram no bocal e saem no audiofone são ainda flutuações analógicas da pressão do ar. É a informação que passa de troca em troca que é digital. Algum tipo de código tem de ser criado para traduzir os valores analógicos, de microssegundo em microssegundo, em uma seqüência de pulsos discretos. Quando você argumenta com sua namorada ao telefone, todas as nuances, todos os tons de sua voz, todo suspiro apaixonado e timbres de desejo são transportados ao longo do fio unicamente na forma de números. Você pode ser leva-lo às lágrimas pelos números – desde que eles sejam codificados e decodificados de modo suficientemente rápido. Os dispositivos eletrônicos modernos de chaveamento são tão rápidos que o tempo de linha pode ser dividido em pedaços, de modo bastante parecido ao mestre de xadrez que pode dividir seu tempo entre vinte partidas simultâneas. Por este meio, milhares de conversas telefônicas podem ser alocadas na mesma linha, aparentemente simultâneas, mas na verdade segregadas eletronicamente sem interferências. Um tronco de linhas de informação – muitos deles hoje em dia não são constituídos por fios, mas sim por feixes de sinais de rádio, transmitidos diretamente do topo de uma colina para outro, ou transmitidos para um satélite e depois retransmitidos – é um rio caudaloso de dígitos. Mas em razão desta segregação eletrônica engenhosa, este rio é na verdade formado por milhares de rios digitais, que compartilham as mesmas margens apenas num sentido superficial. Como esquilos vermelhos e cinzentos, que compartilham as mesmas árvores, mas nunca misturam seus genes.

Voltando ao mundo dos engenheiros, as deficiências dos sinais analógicos não são muito importantes se não forem copiadas de modo repetido. Um gravador pode ter um chiado próprio tão baixo que você mal conseguirá distinguí-lo – a menos que você amplifique o som, e neste caso você amplifica o chiado e também introduzem novos ruídos. Mas, se você fizer uma gravação em fita de uma gravação em fita, e depois uma gravação em fita da gravação da gravação, e assim por diante, depois de uma centena de “gerações” tudo o que restará será um chiado horrível. Alguma coisa parecida com isto era o problema naqueles dias em que os telefones eram todos analógicos. Qualquer sinal telefônico que percorra uma linha longa tende a desaparecer e deve ser re-lntensificado – re-amplificado – a cada centena de quilômetros ou mais ou menos isto. Nos dias da telefonia analógica isto era um problema, porque cada estágio de amplificação aumentava a intensidade do chiado de fundo. Os sinais digitais também precisam ser reintensificados. Mas, por razões que já vimos, a reintensificação não introduz nenhum erro: as coisas podem ser arrarijadas de modo tal que a informação é transmitida perfeitamente, não importa o número de estações de reintensificação que intervenham no processo. O chiado não aumenta mesmo para distâncias de centenas e centenas de quilômetros.

Quando eu era criança, minha mãe explicou-me que as nossas células nervosas eram os fios telefônicos do corpo. Mas serão eles analógicos ou digitais? A resposta é que eles são uma mistura interessante dos dois. Uma célula nervosa não é como um fio elétrico. Ela é um tubo longo e fino ao longo do qual passam ondas de alterações químicas, como um rastilho de pólvora sibilando no chão – exceto que, ao contrário do rastilho de pólvora, o nervo logo se recupera e pode sibilar novamente após um curto período de repouso. A magnitude absoluta da onda – a temperatura da pólvora – pode flutuar à medida que esta percorre o nervo, mas isto é irrelevante. O código o ignora. Ou o pulso químico está lá ou não, como dois níveis discretos de voltagem em um telefone digital. Neste aspecto, o sistema nervoso é digital. Mas os impulsos nervosos não são reduzidos a bytes: eles não se juntam em números de código discretos. Em vez disto, a intensidade da mensagem (a intensidade do som, o grau de brilho da luz, talvez mesmo a agonia da emoção) é codificada por taxas de impulso. Os engenheiros conhecem isto como modulação pela freqüência de pulsos, e este processo foi muito popular entre eles antes que o código de modulação por pulsos fosse adotado.

Uma taxa de pulsos é uma quantidade analógica, mas os pulsos propriamente ditos são digitais; ou eles estão lá ou não, sem meio-termo. E o sistema nervoso disto se beneficia como qualquer sistema digital. Pois da forma pela qual a célula nervosa trabalha, há um equivalente a um reintensificador eletrônico, não a cada centena de quilômetros, mas sim a cada milímetro – oitocentas estações de reintensificação entre o nervo da espinha e a ponta de seu dedo. Se a altura absoluta do impulso nervoso – a onda de pólvora – tivesse importância, a mensagem seria distorcida a ponto de se tomar irreconhecível ao percorrer o comprimento de um braço humano, que dirá o comprimento de um pescoço de girafa. Cada estágio na amplificação introduziria mais erros aleatórios, exatamente como acontece quando uma gravação em fita é feita a partir de uma gravação em fita mais de oitocentas vezes. Ou quando você faz uma cópia Xerox de uma cópia de uma cópia Xerox. Depois de oitocentas “gerações” fotocopiadas, tudo o que sobra é uma mancha cinzenta. A codificação digital oferece a única solução para o problema da célula nervosa, e a seleção natural a adotou devidamente. O mesmo é verdadeiro para os genes.

Francis Crick e James Watson, os descobridores da estrutura molecular dos genes, deveriam, acredito eu, ser homenageados por muitos séculos, como Aristóteles e Platão. Seus prêmios Nobel foram concedidos “em fisiologia ou medicina”, e isto. é correto mas quase trivial. Falar de uma revolução contínua é quase uma contradição em termos, ainda assim não apenas a medicina, mas toda a nossa compreensão da vida continuará a ser revolucionada cada vez mais como conseqüência direta da mudança de pensamento que estes dois moços começaram em 1953. Os próprios genes e as doenças genéticas são apenas a ponta do iceberg. O que é verdadeiramente revolucionário a respeito da biologia molecular na era pós-Watson-Crick é que ela tomou-se digital.

Depois de Watson e Crick, aprendemos que os genes, dentro de sua estrutura interna diminuta, são longos cordões de informação digital pura. E mais, eles são verdadeiramente digitais, no sentido forte e completo dos compact disks (CDs), não no sentido fraco do sistema nervoso. O código genético não é um código binário como o dos computadores, nem um código de oito níveis de voltagem como em alguns sistemas telefônicos, mas sim um código quaternário, com quatro símbolos. O código de máquina dos genes é estranhamente similar ao dos computadores. À parte algumas diferenças de jargão, as páginas de uma revista científica de biologia molecular poderiam ser trocadas pelas páginas de uma revista sobre engenharia de computação. Entre as suas numerosas conseqüências, esta revolução no próprio cerne da vida deu o golpe final e mortífero no vitalismo – a crença de que a matéria viva é profundamente diferente da matéria inanimada. Até 1953 era ainda possível acreditar que havia alguma coisa fundamental e irredutivelmente misteriosa no protoplasma vivo. Agora não mais. Mesmo aqueles filósofos predispostos a adotar um ponto de vista mecanicista da vida não ousavam ter esperanças de uma realização total de seus sonhos mais loucos.

O enredo de ficção científica que se segue é factível se uma tecnologia que difere da tecnologia de hoje apenas por ser um pouco mais rápida estiver disponível. O professor Jim Crickson foi raptado por uma potência estrangeira maligna e forçado a trabalhar em seus laboratórios de guerra biológica. Para salvar a civilização é de importância vital que ele possa transmitir algumas informações altamente secretas para o mundo exterior, mas os canais de comunicação normais lhe são negados. Exceto um. O código de ADN consiste em 64 “códons” triplos, o suficiente para formar um alfabeto inglês completo com maiúsculas e minúsculas mais dez numerais, um caractere de espaçamento e um ponto final. O professor retira um vírus extremamente danoso de gripe da prateleira do laboratório e escreve em seu genoma o texto completo de sua mensagem para o mundo exterior, com sentenças em inglês construídas de modo perfeito. Ele repete a sua mensagem exaustivamente no genoma, adicionando uma seqüência, “bandeira de sinalização” facilmente reconhecível digamos, os dez primeiros números primos. Ele então se infecta com o vírus e espirra em uma sala cheia de gente. Uma onda de gripe varre o mundo, e os laboratórios médicos de terras distantes passam a trabalhar para descobrir a seqüência no genoma em uma tentativa de obter uma vacina. Logo fica claro que existe um padrão estranho e repetitivo no genoma. Alertados pelos números primos – que não podem ter surgido espontaneamente alguém tem a idéia de empregar técnicas de deciframento de códigos. Daí em diante daria pouco trabalho ler o texto completo em inglês da mensagem do professor Crickson, transmitida pelo mundo todo por espirros.

Nosso sistema genético, que é o sistema universal de toda a vida no planeta, é digital até a medula. Com uma precisão de palavra por palavra, você poderia codificar o Novo Testamento inteiro naquelas partes do genoma humano que estão presentemente cheias de ADN “refugado” – isto é, ADN que não é utilizado, pelo menos do modo comum, pelo corpo. Cada célula de seu corpo contém o equivalente a 46 fitas imensas de dados, fornecendo caracteres digitais por meio de cabeças de leitura que trabalham simultaneamente. Em toda célula, estas fitas – os cromossomos – contêm a mesma informação, mas as cabeças de leitura nos diferentes tipos de células vasculham partes diferentes do banco de dados por causa de seus objetivos próprios especializados. Esta é a razão pela qual as células musculares são diferentes das células do fígado. Não existe qualquer força vital conduzida pelo espírito, não existe qualquer geléia protoplásmica e mística, pulsando, arfando ou pululando. A vida é apenas constituída por bytes, bytes e mais bytes de informação digital.

Os genes são informação pura – informação que pode ser codificada, recodificada e decodificada, sem qualquer degradação ou alteração do significado. A informação pura pode ser copiada e, como ela é informação digital, a fidelidade das cópias pode ser imensa. Os caracteres de ADN são copiados com uma precisão que rivaliza com qualquer coisa que os engenheiros possam fazer. Eles são copiados por gerações, com erros ocasionais apenas suficientes para introduzir variações. Entre estas variações, aquelas combinações codificadas que se tornam mais numerosas no mundo serão aquelas que, quando decodificadas e obedecidas no interior dos corpos, óbvia e automaticamente farão com que estes corpos tomem atitudes ativas para preservar e propagar estas mensagens de ADN. Nós – e isto quer dizer todas as coisas vivas – somos máquinas programadas para propagar o banco de dados digitais que executou o programa. O darwinismo agora é considerado como a sobrevivência dos sobreviventes no nível do código digital puro.

Com uma visão a posteriori, não poderia ser de outra forma. Um sistema genético analógico poderia ser imaginado. Mas vimos já o que acontece com a informação analógica quando ela é recopiada por gerações sucessivas. Ela simplesmente se torna irreconhecível. Sistemas telefônicos com estações de reintensificação dos sinais, fitas regravadas, fotocópias de fotocópias – sinais analógicos são tão vulneráveis à degradação acumulativa que o ato de copiar não pode ser realizado além de um número limitado de gerações. Os genes, por outro lado, podem replicar-se por 10 milhões de gerações e mal sofrer uma degradação. O darwinismo funciona apenas porque – deixando de lado mutações discretas, que a seleção natural elimina ou preserva o processo de cópia é perfeito. Apenas um sistema genético digital é capaz de sustentar o darwinismo durante eras e eras de tempo geológico. Mil novecentos e cinqüenta e três, o ano da hélice dupla, será considerado não apenas como o ano que marcou o fim dos pontos de vista místicos e obscurantistas sobre a vida; os darwinianos o considerarão como o ano em que seu tema de estudo passou a ser digital.

O rio de informação digital pura, fluindo majestosamente através do tempo geológico e dividindo-se em 3 bilhões de braços, é uma imagem poderosa. Mas como ficam as características familiares da vida? Como ficam os corpos, as mãos e os pés, os olhos, os cérebros e as suíças, as folhas, os troncos e as raízes? Como ficamos nós e nossas partes? Seremos nós – nós animais, plantas, protozoários, fungos e bactérias – apenas as margens entre as quais fluem os pequenos rios de informação digital? Em certo sentido, sim. Mas há, como deixei implícito, muito mais do que isto. Os genes não fazem apenas cópias de si mesmos que fluem através das gerações. Eles na verdade passam seu tempo nos corpos, e influenciam a forma e o comportamento dos corpos sucessivos nos quais se encontram. Os corpos também são importantes.

O corpo, digamos, de um urso polar não é apenas um par de margens fluviais para uma pequena corrente digital. Ele também é uma máquina de uma complexidade do tamanho de um urso. Todos os genes da população inteira formam uma comunidade – bons companheiros, brincando uns com os outros através dos tempos. Mas eles não passam todo o tempo em companhia de todos os outros membros da comunidade: eles trocam de parceiros dentro do conjunto que é a comunidade. E a comunidade é definida como o conjunto de genes que potencialmente podem encontrar-se com quaisquer outros genes da comunidade (mas com nenhum membro de qualquer das outras 30 milhões de comunidades existentes no mundo). Os encontros reais sempre acontecem dentro de uma célula do corpo do urso polar. E este corpo não é um receptáculo passivo para o ADN.

Para começar, o próprio número de células, em cada uma das quais há um conjunto completo de genes, assombra a imaginação: cerca de 900 milhões de milhão para um urso macho grande. Se você alinhasse todas as células de um único urso polar para que formassem uma fileira, esta faria a viagem de ida e volta da Terra à Lua com facilidade. Estas células são de duzentos tipos diferentes, essencialmente as mesmas duzentas para todos os mamíferos: células musculares, células nervosas, células ósseas, células epiteliais e assim por diante. Células de qualquer um destes tipos diferentes são reunidas para formar os tecidos: o tecido muscular, o tecido ósseo e assim por diante. Todos os tipos diferentes de células contêm as instruções genéticas necessárias para fabricar qualquer um destes tipos de células. Somente aqueles genes apropriados a um tipo de tecido em particular são ativados. Esta é a razão pela qual os diferentes tecidos são de forma e tamanho diversos. E o mais interessante é que os genes ativados nas células de um tipo particular fazem com que estas constituam tecidos com formas particulares. Os ossos não são massas disformes de tecido duro e rígido. Os ossos têm formas particulares, formando hastes ocas, rolamentos e encaixes, espinhaços e esporões. As células são programadas, pelos genes ativados em seu interior, para comportar-se como se soubessem onde estão relativamente às suas células vizinhas, por isto constituem tecidos na forma do lóbulo da orelha e das válvulas coronárias, das lentes oculares e dos músculos do esfíncter.

A complexidade de um organismo como o do urso polar é constituída por muitas camadas. O corpo é um conjunto complexo de órgãos precisamente formados, como, por exemplo, fígado, rins e ossos. Cada órgão é uma construção complexa erigida com tecidos particulares cujos tijolos fundamentais são as células, muitas vezes dispostas em camadas ou placas, mas muitas vezes também como massas sólidas. Em uma escala muito menor, cada célula tem uma estrutura interior altamente complexa de membranas dobráveis. Estas membranas, e a água contida entre elas, formam o cenário para reações químicas intricadas de tipos numerosos e diferentes. Uma fábrica de produtos químicos que pertença à ICI (Imperial Chemical Industries) ou à Union Carbide pode ter centenas de reações químicas distintas ocorrendo em seu interior. Estas reações químicas serão mantidas separadamente uma das outras pelas paredes dos frascos, tubos de ensaio, e assim por diante. Uma célula viva pode ter um número similar de reações químicas em andamento em seu interior simultaneamente. De certo modo, as membranas de uma célula são como os frascos e tubos de vidro do laboratório, mas a analogia não é boa por dois motivos. Primeiro, embora muitas das reações químicas ocorram entre as membranas, um bom número delas ocorre no interior da substância que constitui a própria membrana. Segundo, existe um modo mais importante pelo qual as diversas reações são mantidas separadamente. Cada reação é catalisada por sua própria enzima particular.

Uma enzima é uma molécula muito grande cuja forma tridimensional acelera um tipo particular de reação química que fornece uma superfície que encoraja esta reação. Como o que é importante nas moléculas biológicas é sua forma tridimensional, podemos considerar uma enzima como uma grande máquina de fabricar ferramentas, cuidadosamente projetada para criar uma produção em linha de moléculas com uma forma particular. Qualquer célula, portanto, pode conter centenas de reações químicas separadas ocorrendo em seu interior simultânea e separadamente, nas superfícies das diversas moléculas de enzimas. As reações químicas particulares que ocorrem em uma célula em especial são determinadas pelos tipos particulares de moléculas enzimáticas que estão presentes em grande número. Cada molécula de enzima, inclusive a sua forma que é muito importante, é montada sob a influência determinística de um gene particular. Para ser específico, a seqüência precisa das diversas centenas de letras de código nos genes determina, por meio de um conjunto de regras inteiramente conhecidas (o código genético), a seqüência de aminoácidos na molécula de enzima. Toda molécula de enzima é uma cadeia linear de aminoácidos, e toda a cadeia linear de aminoácidos enrosca-se espontaneamente, formando uma estrutura tridimensional única e particular como um nó, no qual partes da cadeia formam elos com outras partes da cadeia. A estrutura tridimensional exata do nó é determinada pela seqüência unidimensional dos aminoácidos, e, portanto pela seqüência unidimensional de letras de código no gene. E assim as reações químicas que ocorrem em uma célula são determinadas pelos genes que são ativados.

O que, então, determina que genes serão ativados em uma célula particular? A resposta são os produtos químicos que já estão presentes na célula. Há aqui um elemento do paradoxo ovo-galinha, mas este não é insuperável. A solução do paradoxo é, na verdade, muito simples em princípio, embora complicado em seus detalhes. É a solução que os engenheiros de computadores conhecem como bootstrapping (o “princípio do cordão de sapatos”). Quando comecei a utilizar pela primeira vez os computadores nos anos 60, todos os programas tinham de ser carregados por meio de fitas de papel. (Os computadores americanos do mesmo período usavam muitas vezes cartões perfurados, mas o princípio era o mesmo.) Antes que você pudesse carregar a fita principal de um programa sério, você tinha que carregar um programa menor chamado bootstrap loader (carregador do [princípio do] cordão de sapatos). O bootstrap loader era um programa que fazia apenas uma coisa: dizer ao computador como carregar as fitas de papel. Mas – e aqui está o paradoxo ovo-galinha como a fita do bootstrap loader era carregada? Nos computadores modernos, o equivalente do bootstrap loader está embutido na máquina, mas naqueles dias de outrora você tinha que começar acionando interruptores em uma seqüência ritualmente padronizada. Esta seqüência dizia ao computador como começar a ler a primeira parte da fita do bootstrap loader. A primeira parte desta fita dizia então ao computador um pouco mais sobre como ler a parte seguinte da fita e assim por diante. Quando a fita completa do bootstrap loader tivesse sido digerida, o computador saberia como ler qualquer fita de papel, e teria se tornado um computador útil.

Quando um embrião é formado, uma única célula, o óvulo fertilizado, divide-se em dois, cada uma das duas partes divide-se em quatro, cada uma das quatro divide-se para formar oito, e assim por diante. São necessárias apenas umas poucas dúzias de gerações para fazer com que o número de células atinja a casa dos trilhões, tamanho é o poder da divisão exponencial. Mas, se isto fosse tudo, os trilhões de células seriam todas iguais. Como, ao invés disto, as células se diferenciam (para usar um termo técnico) para formar as células do fígado, as células dos rins, as células dos músculos e assim por diante, cada uma com genes e enzimas diferentes ativadas? Pelo princípio do cordão dos sapatos, e ele funciona da seguinte maneira. Embora o óvulo assemelhe-se a uma esfera, ele na verdade possui polaridade em sua química interna. Ele tem uma parte superior e uma parte inferior e, em muitos casos, uma parte frontal e uma parte traseira (e, portanto um lado direito e um lado esquerdo) também. Estas polaridades manifestam-se na forma de gradientes de substâncias químicas. As concentrações de algumas substâncias químicas aumentam constantemente quando você percorre o óvulo a partir da parte frontal em direção à parte de trás, e outras concentrações comportam-se da mesma forma quando você se move da parte superior para a parte inferior. Estes gradientes iniciais são bastante simples, mas suficientes para formar o primeiro estágio no funcionamento do princípio do cordão dos sapatos5.

Quando o óvulo dividiu-se em digamos, 32 células – isto é, após cinco divisões –, algumas destas 32 células terão mais do que sua cota normal de substâncias químicas na sua parte superior, outras terão mais do que a sua cota normal de substâncias químicas na sua parte inferior. As células podem também estar desequilibradas relativamente às concentrações de substâncias químicas entre a sua parte da frente e a sua parte de trás, criando um gradiente nesta direção. Estas diferenças são suficientes para fazer com que combinações diferentes de genes sejam ativadas em células diferentes. Portanto, combinações diferentes de enzimas estarão presentes nas células de partes diferentes do embrião inicial. Este mecanismo fará com que combinações diferentes de genes adicionais sejam ativadas em células diferentes. Portanto, as linhagens de células divergem ao invés de permanecerem idênticas aos seus clones ancestrais dentro do embrião.

Estas divergências são muito diferentes das divergências entre espécies sobre as quais falamos anteriormente. Estas divergências celulares são programadas e prognosticadas com detalhes, enquanto as divergências entre as espécies são resultados fortuitos de acidentes geográficos e eram impredizíveis. Mais ainda, quando as espécies divergem, os próprios genes divergem, o que chamei imaginativamente de “o longo adeus”. Quando as linhagens de células no interior de um embrião divergem, ambas as divisões recebem os mesmos genes – todos eles. Mas as diferentes células recebem combinações diferentes de produtos químicos, as quais ativam combinações diferentes de genes, e alguns genes trabalham para ativar ou desativar outros genes. E assim o princípio do cordão de sapatos continua operando, até que tenhamos um repertório completo de diferentes tipos de células.

O embrião em desenvolvimento não se diferencia apenas em um par de centenas de tipos diferentes de células. Ele também passa por transformações dinâmicas elegantes na forma interna e externa. Talvez a mais dramática destas transformações seja uma das primeiras: o processo conhecido como gastrulação. O eminente embriologista Lewis Wolpert chegou a afirmar: “Não é o nascimento, o casamento ou a morte, mas sim a gastrulação que é verdadeiramente o período mais importante em sua vida”. O que acontece na gastrulação é que uma bola oca de células transforma-se em uma taça com um revestimento interno. Essencialmente todas as embriologias no reino animal sofrem este mesmo processo de gastrulação. É a base uniforme sobre a qual repousa a diversidade de embriologias. Menciono aqui a gastrulação como apenas um exemplo – um exemplo particularmente dramático – de um tipo de movimento incessante, semelhante à feitura de um origami, de camadas completas de células que é muitas vezes observado no desenvolvimento embrionário.

Ao final da performance digna de um virtuose do origami; depois de numerosas dobraduras em si mesma, estiramentos, formação de volumes e esticamentos de camadas de células; depois de muitos crescimentos diferenciais dinamicamente orquestrados de partes do embrião à custa de outras partes; depois da diferenciação em centenas de tipos de células química e fisicamente especializadas; quando o número de células atingiu a casa dos trilhões, o produto final é um bebê. Não, mesmo o bebê não é o final, porque o crescimento por completo do indivíduo – com novamente algumas partes crescendo mais rápido do que as outras –, passando pela maturidade e chegando à velhice, deveria ser visto como uma extensão do mesmo processo embriológico: a embriologia total.

Os indivíduos variam em razão das diferenças nos detalhes quantitativos da sua embriologia total. Uma camada de células pode crescer um pouco mais antes de dobrar-se em si mesma, e o resultado é – o quê? – um nariz aquilino em vez de um nariz arrebitado; pés chatos que podem salvar sua vida, pois impedem que você preste o serviço militar; uma conformação particular da omoplata que o predispõe a ser um bom lançador de lanças (ou granadas de mão ou bolas de críquete, dependendo das suas circunstâncias). Algumas vezes mudanças individuais no origami de camadas de células podem ter conseqüências trágicas, como quando um bebê nasce com cotos no lugar dos braços ou das mãos. As diferenças individuais que não se manifestam no origami formado com camadas de células, mas são puramente químicas podem ser não menos importantes em suas conseqüências: uma inabilidade em digerir leite, uma predisposição para a homossexualidade, ou uma alergia aos amendoins, ou achar que as mangas têm o gosto ruim de aguarrás.

O desenvolvimento embriônico é uma performance física e química muito complicada. A alteração de um detalhe em seu decurso pode ter conseqüências notáveis bem no final da linha. Isto não é surpreendente, quando você lembrar o quão importante o princípio do cordão de sapatos é para o processo. Muitas das diferenças no modo pelo qual os indivíduos se desenvolvem são devidas às diferenças de meio ambiente – falta de oxigênio ou exposição à talidomida, por exemplo. Muitas outras diferenças se devem a diferenças nos genes – não apenas nos genes considerados isoladamente, mas genes em interação com outros genes, e em interação com diferenças ambientais. Um processo complicado, caleidoscópio, que obedece intrínseca e reciprocamente ao princípio do cordão dos sapatos, como é o desenvolvimento embrionário, é robusto e sensível. É robusto porque combate muitas alterações em potencial, para produzir um bebê vivo contra chances que algumas vezes parecem ser esmagadoramente contrárias; e ao mesmo tempo é sensível a alterações, pois dois indivíduos – nem mesmo dois gêmeos idênticos – não são literalmente idênticos em todas as suas características.

E agora passamos para o ponto ao qual tudo isto nos conduz. Já que as diferenças entre indivíduos se devem aos genes (uma medida que pode ser grande ou pequena), a seleção natural pode favorecer algumas esquisitices do origami embriológico ou da química embriológica e desfavorecer outras. Na medida em que seu braço que serve para lançar lanças ou outros objetos é influenciado pelo gene, a seleção natural pode favorecê-lo ou desfavorecê-lo. Se ser capaz de lançar bem tem conseqüências, não importa quão pequenas, na probabilidade de um indivíduo sobreviver o tempo suficiente para gerar crianças, já que a habilidade de lançar é influenciada pelo gene, correspondentemente estes genes terão uma chance maior de passar para a próxima geração. Qualquer indivíduo pode morrer por razões que não têm nada a ver com sua habilidade de atirar uma lança. Mas um gene que tende a fazer indivíduos melhores no lançamento de lanças quando está presente do que quando está ausente habitará muitos corpos, bons e maus, durante muitas gerações. Do ponto de vista do gene particular, as outras causas de morte não são levadas em conta. Olhando da perspectiva de um gene, há apenas a constatação de longo prazo de um rio de ADN fluindo através das gerações, enquanto ele está apenas temporariamente hospedado em corpos particulares, e apenas temporariamente dividindo um corpo com outros genes que podem ser bem-sucedidos ou malsucedidos.

A longo prazo, o rio fica cheio de genes que são bons na arte da sobrevivência por diversas razões: uma habilidade levemente aperfeiçoada de atirar lanças, uma habilidade levemente aperfeiçoada de provar veneno, ou qualquer outra habilidade. Genes que, na média, são menos bons na arte de sobreviver porque eles tendem a causar uma visão astigmática nos corpos sucessivos que habitam, que são, portanto atiradores de lança menos bem-sucedidos; ou porque eles tomam os corpos sucessivos que habitam menos atraentes e, portanto com probabilidades menores de acasalar – tais genes tenderão a desaparecer do rio genético. Em tudo isto, lembre-se do ponto que levantamos anteriormente: o de que os genes que sobrevivem no rio serão aqueles que são bons na arte da sobrevivência no meio ambiente médio da espécie, e talvez o aspecto mais importante deste meio ambiente médio seja os outros genes da espécie; os outros genes com os quais um gene tem a probabilidade de compartilhar um corpo: os outros genes que nadam através do tempo geológico no mesmo rio.

 

                   Toda a África e suas progênies

Muitas vezes pensamos que é inteligente dizer que a ciência não é mais do que nosso mito de origem moderno. Os judeus tinham Adão e Eva, os sumérios, Marduk e Gilgamesh, os gregos, Zeus e os deuses do Olimpo, os nórdicos, o Valhala. O que é a evolução, dizem algumas pessoas espertas, senão o nosso equivalente moderno dos deuses e dos heróis épicos, nem melhor ou pior, nem mais verdadeira ou mais falsa? Há uma filosofia de salão elegante chamada relativismo cultural que afirma, na sua versão radical, que a ciência não tem mais direito em afirmar a verdade do que o mito tribal: a ciência é apenas a mitologia favorecida por nossa tribo ocidental moderna. Uma vez fui provocado por um colega antropólogo e coloquei a questão claramente, do modo que se segue: suponha que existe uma tribo, disse eu, que acredita que a Lua é uma cabaça velha lançada aos céus, pendurada fora de alcance um pouco acima do topo das árvores. Você afirma realmente que nossa verdade científica – que afirma que a Lua está a 382 mil quilômetros afastada e tem um quarto do diâmetro da Terra – não é mais verdadeira do que a cabaça da tribo? “Sim”, disse o antropólogo. “Nós apenas fomos criados em uma cultura que vê o mundo de um modo científico. Eles foram criados para ver o mundo de outro modo. Nenhum destes modos é mais verdadeiro do que o outro”.

Aponte-me um relativista cultural a 10 quilômetros de distância e lhe mostrarei um hipócrita. Aviões construídos de acordo com princípios científicos funcionam. Eles mantêm-se no ar e o levam ao seu destino escolhido. Aviões construídos de acordo com especificações tribais ou mitológicas, tais como os aviões de imitação dos cultos de carregarnento6 nas clareiras das selvas ou as asas coladas com cera de abelha de Ícaro, não funcionam7. Se você estiver voando para um congresso internacional de antropólogos ou de críticos literários, a razão pela qual vocêprovavelmente chegará lá – a razão pela qual você não se esborrachará em um campo cultivado – é que uma multidão de engenheiros ocidentais cientificamente treinados realizou os cálculos corretamente. A ciência ocidental, com base na evidência confiável de que a Lua orbita em torno da Terra a uma distância de 382 mil quilômetros, conseguiu colocar pessoas em sua superfície. A ciência tribal, acreditando que a Lua estava um pouco acima do topo das árvores, nunca chegará a tocá-la, exceto em sonhos.

Raras são as ocasiões em que ministro uma palestra popular sem que um espectador não me apresente de forma brilhante alguma coisa na mesma linha de meu colega antropólogo, e isto em geral provoca um murmúrio e movimentos de aprovação com as cabeças por parte dos demais. Sem dúvida os que aprovam sentem-se bons, liberais e não racistas. Uma afirmação provocadora ainda mais segura é: “Fundamentalmente, sua crença na evolução reduz-se à fé, e portanto não é melhor do que a crença de alguém no Jardim do Éden”.

Toda tribo tem seu mito de origem – sua história para explicar o universo, a vida e a humanidade. Há um sentido no qual a ciência realmente fornece o equivalente disto, pelo menos para a parte instruída da nossa sociedade moderna. A ciência pode até ser descrita como uma religião, e eu publiquei, não de modo inteiramente jocoso, uma defesa curta da ciência como um tema apropriado para as aulas de educação religiosa8. (Na Inglaterra, a educação religiosa é uma parte obrigatória do currículo escolar, ao contrário dos Estados Unidos, onde ela está banida por medo de ofender qualquer uma das múltiplas crenças mutuamente incompatíveis.) A ciência compartilha com a religião a pretensão de responder às questões profundas sobre as origens, a natureza da vida e o cosmos. Mas a semelhança acaba aqui. As crenças científicas são apoiadas pela evidência, e elas obtêm resultados. Mitos e crenças não são apoiados pelas evidências e não obtêm resultados.

De todos os mitos de origem, a história judaica do Jardim do Éden é tão influente em nossa cultura que legou seu nome a uma importante teoria sobre nossa ancestralidade, a teoria da “Eva africana”. Estou dedicando este capítulo à Eva africana em parte

porque ele me permitirá desenvolver a analogia do rio de ADN, mas também porque quero contrastá-la, como hipótese científica, com a legendária matriarca do Jardim do Éden. Se eu conseguir, você achará a verdade mais interessante, talvez mesmo mais poeticamente comovedora, do que o mito. Começaremos com um exercício de raciocínio puro. Sua relevância em breve ficará clara.

Você tem dois pais, quatro avós, oito bisavós e assim por diante. A cada geração o número de ancestrais dobra. Volte para trás g gerações e o número de ancestrais será 2 multiplicado por si mesmo g vezes: 2 elevado à potência g. Exceto que, sem deixar a sua poltrona, você pode ver rapidamente que não pode ser assim. Para convencer-nos disto, temos apenas que voltar um pouco no passado – digamos, até o tempo de Jesus, quase exatamente 2 mil anos atrás. Se supusermos conservadoramente quatro gerações por século – isto é, que as pessoas procriam na média com a idade de 25 anos – 2 mil anos significam umas meras oitenta gerações. O número real é provavelmente maior do que isto (até recentemente, muitas mulheres procriavam muito jovens), mas isto é apenas um cálculo feito sem sair da poltrona, e a questão não depende destes detalhes. Dois multiplicado por si mesmo oitenta vezes é um número formidável, um 1 seguido de 24 zeros, 1 trilhão de trilhões americanos. Você teve 1 milhão de milhões de milliões de milhões de ancestrais que foram contemporâneos de Jesus, e eu também! Mas a população total do mundo naquela época era uma fração de uma fração desprezível do número de ancestrais que acabamos de calcular.

Obviamente cometemos um erro em algum lugar, mas onde? Fizemos o cálculo corretamente. A única coisa errada que consideramos foi a nossa suposição sobre a duplicação a cada geração. De fato, esquecemos que os primos casam entre si. Supus que nós todos temos oito bisavós. Mas qualquer criança fruto de um casa mento entre primos de primeiro grau tem apenas seis bisavós, pois os avós compartilhados dos primos são de dois modos distintos bisavós da criança. Você pode perguntar: “E dai?” As pessoas ocasionalmente casam com seus primos (a esposa de Charles Darwin, Emma Wedgwood, era sua prima de primeiro grau), mas seguramente isto não acontece com freqüência suficiente para fazer diferença? Sim, acontece, pois “primos” para os nossos propósitos inclui primos de segundo grau, quinto grau, décimo sexto grau e assim por diante. Quando você conta primos tão distantes assim, todo casamento é um casamento entre primos. Você algumas vezes ouve pessoas vangloriando-se de serem primos distantes da rainha, mas isto é bastante pomposo da parte delas, pojs todos nós somos primos distantes da rainha, e todos os demais, e de mais maneiras do que é possível contar. A única coisa especial sobre a realeza e os aristocratas é que eles podem fazer a contagem explicitamente. Como disse o décimo quarto conde de Home quando foi zombado por causa de seu título por um oponente político: “Imagino que o Sr. Wilson seja o décimo quarto Sr. Wilson”.

A conseqüência de tudo isto é que somos primos nuito mais próximos uns dos outros do que normalmente percebemos, e temos muito menos ancestrais do que os cálculos simples sugerem. Procurando fazer com que uma estudante seguisse este raciocínio, uma vez lhe pedi que fizesse uma estimativa razoável de qUiIDto tempo atrás nosso ancestral comum mais recente poderia ter vivido. Olhando duramente para mim, ela retrucou sem hesitar, com uma voz lenta e sotaque rural: “Na época dos macacos”. Um salto intuitivo desculpável, mas que está aproximadamente errado em 10 mil por cento. Ele sugeriria uma separação medida em milhões de anos. A verdade é que o ancestral mais recente que eu e ela compartilhamos provavelmente teria vivido há não mais do que dois séculos, provavelmente bem depois de Guilherme, o Conquistador. E, mais ainda, nós certamente éramos primos de muitas maneiras distintas simultaneamente.

O modelo de ancestralidade que conduziu ao nosso cálculo erroneamente inflacionado do número de ancestrais era constituído por uma árvore que se ramifica sem parar, ramificando-se e tornando a ramificar-se infinitas vezes. Virado de cabeça para baixo, e igualmente errado, está o modelo da árvore da descendência. Um indivíduo típico tem dois filhos, quatro netos, oito bisnetos e assim por diante até atingir em uns poucos séculos os impossíveis trilhões de descendentes. Um modelo bem mais realista da ancestralidade e da descendência é o modelo do rio de genes, que intro duzimos no capítulo anterior. Contidos pelas margens, os genes formam uma corrente que flui sempre através dos tempos. A corrente forma redemoinhos separados que se juntam novamente à medida que os genes atravessam o rio do tempo. Retire um balde cheio em intervalos nos pontos espaçados ao longo do comprimento do rio. Pares de moléculas na água do balde terão sido companheiras antes, durante o seu progresso rio abaixo, e elas serão companheiras mais uma vez. Elas também estiveram bastante separadas no passado, e estarão bastante separadas novamente. É difícil traçar os pontos de contato, mas podemos estar matematicamente certos de que o contato ocorre – matematicamente certos de que se dois genes estão fora de contato em um ponto particular, não teremos de viajar muito rio abaixo ou rio acima até que eles se toquem novamente.

Você pode não saber que é prima de seu marido, mas é estatisticamente provável que você não tenha de voltar muito atrás na sua ancestralidade até que encontre um ponto de junção com a linhagem dele. Olhando na outra direção, na direção do futuro, pode parecer óbvio que você tenha uma boa chance de compartilhar descendentes com seu marido ou esposa. Mas aqui está um pensamento muito mais atraente. Na próxima vez em que você estiver com um grupo grande de pessoas – digamos, numa sala de concerto ou num jogo de futebol –, olhe para a audiência e reflita sobre o seguinte: se você tiver quaisquer descendentes no futuro distante, há provavelmente pessoas na mesma sala de concerto cuja mão você poderia apertar como co-ancestral de seus futuros descendentes. Co-avós das mesmas crianças usualmente sabem que são co-ancestrais, e isto deve dar-lhes um certo sentimento de afinidade, não importando se eles se relacionam bem ou não pessoalmente. Eles podem olhar uns para os outros e dizer: “Bem, posso não gostar muito dele, mas seu ADN está misturado com o meu no nosso neto comum, e podemos esperar compartilhar descendentes no futuro, muito tempo depois de termos partido. Certamente isto cria um elo entre nós”. Mas meu ponto é que, se você é abençoado com descendentes distantes, alguns dos perfeitos estranhos na sala de concerto provavelmente serão seus co-ancestrais. Você pode examinar o auditório e especular sobre quais indivíduos, homens ou mulheres, estão destinados a compartilhar seus descendentes e quais não estão. Eu e você, não importa quem você é ou a sua cor e sexo, podemos muito bem ser co-ancestrais. Seu ADN pode estar destinado a misturar-se com o meu. Parabéns!

 

Suponha agora que viajemos para trás numa máquina do tempo, talvez em direção a uma multidão no Coliseu, ou mais para trás, para um dia de compras no mercado em Ur, ou ainda mais para trás. Examine a multidão, exatamente como imaginamos para a nossa audiência moderna na sala de concerto. Perceba que você pode separar estes indivíduos falecidos há muito tempo em duas e somente duas categorias: aqueles que são seus ancestrais e aqueles que não são. Isto é bastante óbvio, mas agora chegamos a uma verdade notável. Se sua máquina do tempo o levou suficientemente para o passado, você pode dividir os indivíduos que encontrar naqueles que são os ancestrais de todo ser humano vivo em 1995 e naqueles que não são os ancestrais de ninguém que está vivo em 1995. Não há intermediários. Todo indivíduo sobre quem você puser os olhos quando de embarcar da sua máquina do tempo ou é um ancestral humano universal ou não é ancestral de ninguém.

Este raciocínio é cativante, mas é trivialmente fácil de provar. Tudo o que você tem de fazer é mover sua máquina do tempo mental para um tempo passado absurdamente longo: digamos, para 350 milhões de anos atrás, quando nossos ancestrais eram peixes com nadadeiras em forma de lóbulos e com pulmões, emergindo da água e tornando-se anfíbios. Se um peixe particular é meu ancestral, é inconcebível que ele não seja seu ancestral também. Se ele não o fosse, isto implicaria que a linhagem que conduz a você e a linhagem que conduz a mim evoluíram independentemente, sem referências cruzadas, do peixe passando pelo anfíbio, pelo réptil, pelo mamífero, pele) primata, pelo macaco e pelo hominídeo, terminando de modo tão similar que podemos falar um com o outro e, se formos do sexo oposto, acasalar um com o outro.

Provamos que, se viajarmos suficientemente longe e para trás no tempo, todo indivíduo que encontrarmos deve ser o ancestral ou de todos nós ou de ninguém. Mas quão longe é suficientemente longe? Nós claramente não precisamos voltar até os peixes da nadadeiras em forma de lóbulos – aquilo foi o reductio ad aburdum –, mas até que ponto devemos voltar para trás no tempo até encontrar um ancestral universal de todo ser humano vivo em 1995? Esta é uma questão muito mais difícil, e é aquela que desejo considerar a seguir. Esta questão não pode ser respondida sentado na poltrona. Precisamos de informação real, medidas do mundo duro dos fatos particulares.

Sir Ronald Fisher, o formidável geneticista e matemático inglês, que poderia ser considerado o maior sucessor de Darwin no século XX, assim como o pai da estatística moderna, tinha isto a dizer em 1930:

“São apenas as barreiras geográficas e outras barreiras ao intercurso sexual entre as diferentes raças... que impedem a humanidade inteira de ter tido, deixando de lado os últimos mil anos, uma ancestralidade praticamente idêntica. A ancestralidade dos membros de uma mesma nação pode diferir pouco para além dos últimos quinhentos anos; para 2 mil anos atrás as únicas diferenças que pareceriam ter restado seriam aquelas entre raças etnográficas distintas; estas... podem na verdade ser extremamente antigas; mas isto poderia ser o caso apenas se durante longos períodos a difusão do sangue entre os grupos separados fosse quase inexistente”.

 

Em termos da nossa analogia do rio, Fisher está, com efeito, utilizando o fato de que os genes de todos os membros de uma raça geograficamente unida estão fluindo ao longo do mesmo rio. Mas quando consideramos os seus números – quinhentos anos, 2 mil anos, a antiguidade da separação das diferentes raças – Fisher devia estar fazendo estimativas razoáveis. Os fatos relevantes não eram disponíveis na sua época. Agora, com a revolução da biologia molecular, há uma quantidade embaraçosa de dados. Foi a biologia molecular que nos deu a carismática Eva africana.

O rio digital não é a única metáfora que tem sido usada. É tentador comparar o ADN em cada um de nós com uma família bíblica. O ADN é um texto muito longo, escrito, como vimos no capítulo anterior, em um alfabeto de quatro letras. As letras têm sido escrupulosamente copiadas dos nossos ancestrais, e apenas dos nossos ancestrais, com uma fidelidade notável mesmo no caso de ancestrais muito remotos. Deveria ser possível, comparando os textos preservados em pessoas diferentes, reconstruir seu parentesco e remontar a um ancestral comum. Primos distantes, cujo ADN teve mais tempo para divergir – digamos, noruegueses e aborígines australianos –, deveriam diferir em um grande números de palavras. Os eruditos fazem este tipo de coisa com as diferentes versões dos documentos bíblicos. Infelizmente, no caso dos arquivos de ADN, há um pequeno problema. O sexo.

O sexo é o pesadelo do arquivista. Em vez de deixar os textos ancestrais intactos exceto por um erro ocasional inevitável, o sexo penetra de modo vigoroso nos arquivos e destrói as evidências. Nenhum elefante fez jamais tanto estrago em uma loja de porcelana chinesa corno o sexo tem feito estragos nos arquivos de ADN. Não há nada parecido com isto na erudição bíblica. Admite-se que, ao procurar traçar as origens, digamos, do cântico de Salomão, um erudito está consciente de que este não é bem o que parece ser. O cântico tem passagens estranham ente desconexas, sugerindo que ele é na verdade constituído por fragmentos de diversos poemas diferentes, sendo apenas alguns deles eróticos, costurados juntos. Ele contém erros – mutações – especialmente na tradução. “Agarrai-nos as raposas, as raposas pequeninas, que devastam nossas vinhas” é uma tradução errônea, mesmo que a sua repetição durante uma vida inteira lhe tenha conferido uma misteriosa atração própria, que é improvável que seja atingida pelo mais correto “Pegai para nós os morcegos frugívoros, os pequeninos morcegos frugívoros...”:

Vê, o inverno passou, a chuva acabou e se foi. As flores surgem na terra; o tempo do cantar das aves chegou, e a voz da tartaruga se faz ouvir em nossa terra9.

 

A poesia é tão arrebatadora que me sinto relutante em estragá-la observando que aqui, também, está uma mutação indubitável. Insira novamente “rola” no lugar de “tartaruga”, corno as traduções modernas correta mas condutoramente o fazem, e ouça a cadência entrar em colapso. Mas estes são erros menores, as ligeiras e inevitáveis degradações que devemos esperar quando documentos não são impressos aos milhares ou gravados nos discos de alta fidelidade dos computadores mas sim copiados e recopiados por escribas mortais a partir de papiros raros e vulneráveis.

Mas agora deixemos o sexo entrar em cena. (Não, no sentido em que emprego o termo, o sexo não entra no Cântico dos Cânticos.) Sexo, no sentido em que emprego o termo, significa rasgar metade de um documento, na forma de fragmentos aleatoriamente escolhidos, e misturá-lo com a metade rasgada complementar de um outro documento. Por mais inacreditável– mesmo vandalístico – que possa parecer, isto é exatamente o que acontece sempre que uma célula sexual é produzida. Por exemplo, quando um homem produz uma célula de espermatozóide, os cromossomos que ele herdou de seu pai formam pares com os cromossomos que ele herdou de sua mãe, e partes inteiras destes trocam de lugar. Os cromossomos de uma criança são uma mistura irrecuperavelrnente confusa dos cromossomos de seus avós e assim por diante até os seus ancestrais distantes. Dos supostos textos antigos, as letras, talvez as palavras, podem sobreviver intactas ao longo das gerações. Mas os capítulos, páginas, mesmo parágrafos são rasgados e recombinados com urna eficiência tão grosseira que corno meio de reconstituir a história eles são quase inúteis. No que diz respeito à história antiga, o sexo é um bom disfarce.

Podemos usar os arquivos de ADN para reconstruir a história sempre que o sexo estiver confiavelmente fora de cena. Posso dar dois exemplos importantes. Um é a Eva africana, e chegarei a ela mais tarde. O outro exemplo é a reconstrução da ancestralidade mais remota – o exame das relações entre as espécies e não das relações no interior de uma espécie. Corno vimos no capítulo anterior, a mistura sexual só acontece no seio de urna espécie. Quando uma espécie progenitora dá origem a uma espécie-filha, o rio de genes divide-se em dois braços. Após terem divergido por tempo suficiente, a mistura sexual nas águas de cada rio, longe de se constituir em obstáculo para o arquivista genético, na verdade presta auxílio na reconstrução da ancestralidade e da relação de parentesco entre primos das espécies. É somente onde as relações de parentesco entre primos no seio da espécie são importantes que o sexo embaralha as evidências. Onde as relações de parentesco entre primos das espécies são importantes, o sexo ajuda, pois tende automaticamente a tornar seguro que cada indivíduo seja uma boa amostra genética da espécie inteira. Não importa que balde cheio particular você retirou de um rio de águas bem misturadas; ele será representativo da água daquele rio.

Os textos da ADN retirados de representantes de espécies diferentes têm sido na verdade comparados com grande sucesso, letra por letra, para reconstruir as árvores de família das espécies. É mesmo possível, de acordo com urna influente escola de pensamento, atribuir datas às ramificações. Esta oportunidade é conseqüência da controvertida noção de “relógio molecular”: a suposição de que as mutações em qualquer parte do texto do código genético ocorrem a uma taxa constante por milhão de anos. Retomaremos à hipótese do relógio molecular em um instante.

O “parágrafo” nos nossos genes que descreve a proteína chamada citocromo c tem 339 letras. Doze trocas de letras separam o citocromo c humano do citocromo c dos cavalos, nossos primos muito distantes. Apenas uma troca de letra no cito cromo c separa os humanos dos macacos (nossos primos bastante próximos), uma troca de letra separa os cavalos dos jumentos (seus primos muito próximos) e três trocas de letras separam os cavalos dos porcos (seus primos um tanto mais distantes). Quarenta e cinco trocas de letra separam os humanos do levedo e o mesmo número separa os porcos do levedo. Não é surpresa que estes números sejam os mesmos, pois, à medida que subimos o rio que conduz aos humanos, ele reúne-se ao rio que conduz aos porcos muito antes de o rio comum a humanos e porcos se juntar ao rio que conduz ao levedo. Entretanto, há um leve erro nestes números. O número de letras trocadas no citocromo c que separa os cavalos do levedo não é 45, mas sim 46. Isto não significa que os porcos são primos mais próximos do levedo do que os cavalos. Eles são exata e igualmente próximos do levedo, como o são todos os vertebrados – e, na verdade, todos os animais. Talvez uma troca extra tenha ocorrido sub-repticiamente na linhagem que conduz aos cavalos desde a época do ancestral relativamente recente que eles compartilham com os porcos. Isto não é importante. No total, o número de troca de letras do citocromo c que separa pares de criaturas é mais ou menos aquele que esperaríamos das idéias prévias que temos sobre o padrão de ramificação da árvore evolutiva.

A teoria do relógio molecular, como observei, afirma que a taxa de mudança de um determinado trecho de texto por milhão de anos é aproximadamente constante. Das 46 trocas de letra no citocromo c que separam os cavalos do levedo, assume-se que cerca de metade delas ocorreu durante a evolução de um ancestral comum para os cavalos modernos e cerca de metade delas ocorreu durante a evolução do ancestral comum para o levedo moderno (obviamente, os dois caminhos evolutivos exigiram exatamente o mesmo número de milhões de anos para serem percorridos). No começo isto parece uma coisa surpreendente de ser assumida. Afinal de contas, é muito provável o ancestral comum assemelhar-se mais ao levedo do que ao cavalo. A reconciliação está na suposição, crescentemente aceita desde que foi defendida pela primeira vez pelo eminente geneticista japonês Motoo Kimura, de que a maior parte dos textos genéticos pode mudar livremente sem que o seu significado seja afetado.

Uma boa analogia é variar o tipo da letra em uma sentença impressa. “O cavalo é um mamífero”. “Um levedo é um fungo”. O significado destas sentenças chega até nós em alto e bom som, mesmo que cada palavra seja impressa com uma fonte diferente. O relógio molecular marca o tempo com o equivalente das trocas de fonte que não significam nada, à medida que são decorridos milhões de anos. As mudanças que estão sujeitas à seleção natural e que descrevem a diferença entre um cavalo e um levedo – as mudanças no significado das sentenças – são a ponta do iceberg.

Algumas moléculas têm uma taxa de marcação do tempo mais alta do que outras. O citocromo c evolui de modo relativamente lento: cerca de uma troca de letra a cada 25 milhões de anos. Isto provavelmente porque a importância vital do citocromo c para a sobrevivência de um organismo depende de modo crítico da sua forma detalhada. A maioria das mudanças nesta molécula cuja forma é tão crítica não são toleradas pela seleção natural. Outras proteínas, tais como as chamadas fibrinopeptídeos, embora sejam importantes, funcionam igualmente bem com grande variedade de formas. Os fibrinopeptídeos são utilizados na coagulação do sangue, e você pode mudar a maioria de seus detalhes sem prejudicar sua capacidade de coagulação. A taxa de mutação nestas proteínas é de cerca de uma mutação a cada 600 mil anos, uma taxa mais de quarenta vezes mais rápida do que a do citocromo c. Portanto, os fibrinopeptídeos não são bons para reconstruir uma ancestralidade antiga, embora sejam úteis para reconstruir uma ancestralidade mais recente – por exemplo, entre os mamíferos. Há centenas de proteínas diferentes, cada uma com sua própria taxa característica por milhão de anos e cada uma podendo ser usada de forma independente para reconstruir árvores de família. Elas todas conduzem à mesma família – a qual, a propósito, é uma evidência bastante boa, se são necessárias evidências, de que a teoria da evolução é verdadeira.

Chegamos a esta discussão a partir da percepção de que a mistura sexual embaralha o registro histórico. Distinguimos dois modos pelos quais os efeitos do sexo podem ser contornados. Acabamos de tratar com um deles, a partir do fato de que o sexo não mistura genes entre as espécies. Isto abre a possibilidade da utilização de seqüências de ADN para reconstituir árvores de família remotamente antigas de nossos ancestrais que viveram muito tempo antes de nos tomarmos reconhecivelmente humanos. Mas já concordamos que, se voltarmos tanto assim no tempo, nós humanos somos todos definitivamente descendentes do mesmo e único indivíduo. Queríamos descobrir até quão recentemente poderíamos ainda ter uma descendência comum com todos os outros humanos. Para descobrir isto, temos que voltar nossa atenção para um tipo diferente de evidência de ADN. E aqui a Eva africana entra na história.

A Eva africana é algumas vezes chamada Eva mitocondrial. As mitocôndrias são pequenos corpos em forma de losango que existem aos milhares em cada uma de nossas células. Elas são basicamente ocas mas com uma estrutura interior complicada formada por anteparos membranosos. A área oferecida por estas membranas é muito maior do que você poderia pensar observando a aparência externa da mitocôndria, e ela é utilizada. As membranas são as linhas de produção de uma fábrica de produtos químicos – mais precisamente, uma central produtora de energia. Urna reação em cadeia cuidadosamente controlada é orquestrada ao longo das membranas – uma reação em cadeia que envolve mais etapas do que aquelas que existem em qualquer fábrica de produtos químicos humana. O resultado é que a energia, que se origina nas moléculas da comida, é liberada em passos controlados e armazenada de modo reutilizável para ser queimada mais tarde, sempre que se fizer necessário, em qualquer parte do corpo. Sem nossas mitocôndrias, morreríamos em um segundo.

Isto é o que urna mitocôndria faz, mas aqui estamos mais preocupados com sua origem. Originalmente, na história evolutiva antiga, elas era bactérias. Esta é a teoria notável defendida pela temível Lynn Margulis, da Universidade de Massachusetts em Arnherst, a partir de origens heterodoxas e vencendo interesses mesquinhos até atingir uma aceitação triunfante e quase universal hoje em dia. Há 2 bilhões de anos, os ancestrais remotos das mitocôndrias eram bactérias que viviam livremente. Junto com outras bactérias de diferentes tipos, elas instalaram-se dentro de células maiores. A comunidade resultante de bactérias (“procarióticas”) transformou-se na grande célula (“eucariótica”) que faz parte de nós. Cada um de nós é uma comunidade de urna centena de milhões de milhões de células eucarióticas mutuamente dependentes. Cada uma destas células é Urna comunidade de milhares de bactérias domesticadas especial e totalmente contidas no interior da célula, onde elas se multiplicam corno as bactérias o fazem. Foi calculado que, se todas as mitocôndrias de um único corpo humano fossem colocadas uma atrás da outra, elas dariam a volta em torno da Terra não apenas uma vez, mas sim 2 mil vezes. Um animal ou planta individual é uma vasta comunidade de comunidades localizadas em camadas que interagem entre si, corno uma floresta tropical. Quanto à floresta tropical, ela é uma comunidade fervilhando com talvez 10 milhões de espécies de organismos, sendo cada membro individual de cada espécie ele próprio uma comunidade de comunidades de bactérias domesticadas. A teoria das origens da Dra. Margulis – de que a célula é um jardim fechado de bactérias – é não apenas incomparavelmente mais inspiradora, excitante e enaltecedora do que a história do Jardim do Éden. Ela tem a vantagem adicional de ser quase certamente verdadeira.

Corno muitos biólogos, agora assumo a teoria de Margulis corno verdadeira, e neste capítulo eu a menciono apenas para acompanhar uma implicação em particular: as mitocôndrias têm seu próprio ADN, que está confinado a um único cromossomo em forma de anel, corno em outras bactérias. E agora vamos ao ponto ao qual tudo isto conduz. O ADN mitocondrial não participa de qualquer mistura sexual, ou com o ADN “nuclear” principal do corpo ou com o ADN de outras mitocôndrias. As mitocôndrias, corno muitas bactérias, reproduzem-se simplesmente dividindo-se. Sempre que uma mitocôndria divide-se em duas mitocôndrias filhas, cada uma destas filhas recebe uma cópia idêntica – a menos que haja uma mutação ocasional – do cromossomo original. Você pode ver agora, a partir do nosso ponto de vista de genealogistas de longo alcance, a beleza disto. Descobrimos que, no que diz respeito aos nossos textos comuns de ADN, em cada geração o sexo mistura as evidências, confundindo as contribuições das linhagens paternal e maternal. O ADN mitocôndrial é, graças a Deus, celibatário.

Recebemos nossas mitocôndrias somente de nossas mães. Os espermatozóides são muito pequenos para conter mais do que umas poucas mitocôndrias; eles têm apenas um número suficiente para fornecer a energia que movimenta seus flagelos à medida que nadam em direção ao óvulo, e estas mitocôndrias são jogadas fora junto com o flagelo quando o corpo do espermatozóide é absorvido pelo óvulo na fertilização. Comparativamente o óvulo tem urna massa grande, e seu interior amplo, preenchido com fluidos, contém uma rica cultura de mitocôndrias. Esta cultura dá origem ao corpo da criança. Deste modo, seja você homem ou mulher, suas mitocôndrias são todas descendentes de uma inoculação inicial de mitocôndrias de sua mãe. Seja você homem ou mulher, suas mitocôndrias são todas descendentes das mitocôndrias de sua avó materna. Nenhuma delas vem de seu pai, nenhuma delas vem de seu avô, nenhuma delas vem de sua avó paterna. As mitocôndrias constituem um registro independente do passado, não contaminadas pelo ADN nuclear principal, o qual tem probabilidades iguais de originar-se de cada um de seus quatro avós, de cada um de seus oito bisavós e assim por diante.

O ADN mitocôndrial não é contaminado, mas não é imune às mutações – aos erros aleatórios de cópia. Na verdade, ele sofre mutações com uma taxa mais alta do que o nosso “próprio” ADN, pois (como é o caso com todas as bactérias) lhe falta a sofIsticada maquinária de leitura preliminar de texto que as nossas células desenvolveram com o decorrer dos tempos. Haverá umas poucas diferenças entre o seu ADN mitocôndrial e o meu, e o número de diferenças será uma medida de quanto tempo atrás nossos ancestrais divergiram. Não qualquer um de nossos ancestrais, mas nossos ancestrais na linha exclusivamente feminina. Se por acaso sua mãe é uma nativa australiana pura, ou uma chinesa pura, ou uma !Kung San do Kalahari pura, haverá muitas diferenças entre seu ADN mitocôndrial e o meu. Não importa quem seja seu pai: ele pode ser um marquês inglês ou um chefe Sioux, no que diz respeito às diferenças em suas mitocôndrias, e a mesma coisa vale para qualquer um de seus ancestrais masculinos, sempre.

Deste modo há textos apócrifos mitocondriais, passados adiante junto com a Bíblia familiar principal, mas com a grande virtude de serem transmitidos apenas pela linhagem feminina. Este ponto não é sexista; daria no mesmo se isto acontecesse apenas através da linhagem masculina. A virtude está na sua integridade, no fato de não ser cortado e misturado em cada geração. Uma descendência consistente por via de qualquer um dos sexos mas não por via de ambos é o que nós, como genealogistas, precisamos. Os cromossomos Y, que, como o sobrenome, são transmitidos apenas por meio da linhagem masculina, seriam em teoria igualmente bons para isto, mas eles contêm muito pouca informação para serem úteis. Os textos apócrifos mitocondriais são ideais para datar ancestrais comuns dentro de uma mesma espécie.

O ADN mitocôndrial foi explorado por um grupo de pesquisadores associados ao falecido Allan Wilson em Berkeley, Califórnia. Nos anos 80, Wilson e seus colegas fIzeram amostragens com as seqüências de 135 mulheres vivas escolhidas em todas as partes do mundo – aborígines australianas, montanhesas da Nova Guiné, nativas americanas, européias, chinesas e representantes de vários povos da África. Eles examinaram as diferenças no número de letras que separavam cada mulher de outra mulher. Eles passaram estes números para um computador e pediram-lhe que construísse a árvore de família mais parcimoniosa que pudesse. “Parcimoniosa” aqui significa evitar o máximo possível a necessidade de postular a coincidência. Isto exige um pouco de explicação.

Volte para trás até nossa discussão anterior sobre cavalos, porcos e levedos, e sobre a análise da seqüência de letras no citocromo c. Você deve lembrar-se que os cavalos diferem dos porcos em apenas três de tais letras, os porcos diferem do levedo em 45 letras, e os cavalos diferem do levedo em 46 letras. Considero importante que, teoricamente, como os cavalos e os porcos estão relacionados uns com os outros por um ancestral comum relativamente recente, eles deveriam estar exatamente a uma mesma distância do levedo. A diferença entre 45 e 46 é uma anomalia, algo que em um mundo ideal não existiria. Ela pode ser uma mutação adicional na rota que conduz aos cavalos ou uma mutação reversa na rota que conduz aos porcos.

Agora, por mais absurda que esta idéia na realidade seja, é teoricamente concebível que os porcos estejam realmente mais próximos do levedo do que dos cavalos. É teoricamente possível que os porcos e os cavalos tenham desenvolvido sua semelhança íntima uns com os outros por uma grande coincidência (seus textos de citocromo c são diferentes em apenas três letras, e seus corpos são basicamente construídos com um padrão mamífero quase idêntico). A razão pela qual não acreditamos nisto é que o número de modos pelos quais os porcos se assemelham aos cavalos é muito maior do que o número de modos pelos quais os porcos se assemelham ao levedo. Admite-se que há uma única letra de ADN pela qual os porcos parecem estar mais próximos do levedo do que dos cavalos, mas isto é esmagado por milhões de semelhanças que apontam para o outro lado. O argumento é o argumento de parcimônia. Se admitirmos que os porcos estão próximos dos cavalos, precisamos acomodar apenas uma semelhança coincidente. Se tentarmos assumir que os porcos estão próximos do levedo, temos que postular uma concatenação prodigiosamente irreal de semelhanças coincidentes adquiridas de modo independente.

Nos casos dos cavalos, porcos e levedo, o argumento da parcimônia é demasiado esmagador para ser posto em dúvida. Mas no ADN mitocôndrial das diferentes raças humanas não há nada esmagador a respeito de semelhanças. Os argumentos de parcimônia podem ainda ser aplicados, mas eles são argumentos suaves e quantitativos e não argumentos maciços e acachapantes. Aqui está o que o computador, teoricamente, deve fazer. Ele deve fazer uma lista de todas as árvores de famílias possíveis que relacionam as 135 mulheres. Ele então examina este conjunto de árvores possíveis e escolhe a mais parcimoniosa – isto é, aquela que minimiza o número de semelhanças coincidentes. Devemos aceitar que mesmo a melhor árvore provavelmente nos forçará a aceitar umas poucas coincidências, exatamente como somos forçados a aceitar o fato de que, com respeito a uma letra do ADN, os levedos estão mais próximos dos porcos do que dos cavalos. Mas – pelo menos em teoria – o computador deveria ser capaz de levar isto em conta e informar-nos quais das muitas árvores possíveis é a mais parcimoniosa, a que tem menos coincidências.

Isto é em teoria. Na prática, há um problema. O número de árvores possíveis é maior do que você, eu, ou qualquer matemático, pode possivelmente imaginar. Para o cavalo, o porco e o levedo há apenas três árvores possíveis. A obviamente correta é [[porco, cavalo], levedo], com o porco e o cavalo aninhados juntos dentro das chaves mais internas e o levedo como (grupo externo) não relacionado. As outras duas arvores teóricas são [[porco, levedo], cavalo] e [[cavalo, levedo] porco]. Se adicionarmos uma quarta criatura – digamos, um polvo –, o número de árvores sobe até 12. Não listarei todas as 12, mas a verdadeira (mais parcimoniosa) é [[[porco, cavalo], polvo], levedo]. Novamente, o porco e o cavalo, como parentes próximos, estão aninhados confortavelmente juntos nas chaves mais internas. O polvo é o próximo a juntar-se ao clube, tendo um ancestral mais recente com a linhagem porco cavalo do que o levedo. Qualquer uma das outras 11 árvores – por exemplo, [[porco, polvo], [cavalo, levedo]] – é definitivamente menos parcimoniosa. É altamente improvável que o porco e o cavalo pudessem ter desenvolvido de modo independente suas numerosas semelhanças se os porcos realmente fossem primos mais próximos do polvo e o cavalo fosse realmente um primo mais próximo do levedo.

Se estas três criaturas geram três árvores possíveis, e quatro criaturas geram 12 árvores possíveis, quantas árvores possíveis podem ser construídas com 135 mulheres? A resposta é um número tão ridiculamente grande que não faz o menor sentido escreve-lo. Se o maior e mais rápido computador do mundo fosse programado para listar todas as árvores possíveis, o fim do mundo chegaria a nós antes que o computador tivesse feito uma parte perceptível da tarefa.

Não obstante, a causa não é destituída de esperanças. Estamos acostumados a domesticar números impossivelmente grandes com técnicas judiciosas de amostragem. Não podemos contar o número de insetos da bacia amazônica, mas podemos estimar o número fazendo amostragens em pequenas extensões espalhadas aleatoriamente pela floresta e supor que estas pequenas extensões de floresta são representativas. Nosso computador não pode examinar todas as árvores possíveis que relacionam as 135 mulheres, mas ele pode escolher amostras aleatórias do conjunto de todas as árvores de família possíveis. Se, sempre que você escolher uma amostra das gigabilhões de árvores de família possíveis, você notar que os membros mais parcimoniosos da amostra têm certas características comuns, você pode concluir que provavelmente a mais parcimoniosa de todas as árvores tem as mesmas características.

E é isto o que as pessoas fizeram. Mas não é necessariamente óbvio qual é a melhor maneira de fazê-lo. Exatamente como os entomologistas que podem discordar sobre o modo mais representativo de fazer amostragens da floresta tropical brasileira, os genealogistas do ADN utilizaram diferentes técnicas de amostragemo E infelizmente os resultados nem sempre concordam entre si. Não obstante, até onde chega a sua validade, apresentarei as conclusões que o grupo de Berkeley extraiu de sua análise original do ADN mitocôndrial humano. Suas conclusões são extremamente interessantes e provocativas. De acordo com elas, a árvore mais parcimoniosa tem as suas raízes firmemente fincadas na África. Isto significa que alguns africanos estão relacionados de maneira mais distante com outros africanos do que qualquer pessoa no resto do mundo todo. O resto do mundo – europeus, nativos americanos, aborígines australianos, chineses, nativos da Nova Guiné, Inuits, e todos os outros – forma um grupo relativamente próximo de primos. Alguns africanos pertencem a este grupo de primos próximos. Mas outros africanos não. De acordo com esta análise, a árvore mais parcimoniosa parece-se com isto: [alguns africanos, [outros africanos, [ainda outros africanos, [ainda outros africanos e todos os demais]]]]. Eles, portanto concluíram que a grande ancestral de todos nós viveu na África: a “Eva africana”. Como já afirmei, esta conclusão é controvertida. Outros têm afirmado que árvores igualmente parcimoniosas podem ser encontradas e nas quais os ramos mais externos ocorrem fora da África. Eles também afirmam que o grupo de Berkeley obteve os resultados particulares em parte em razão da ordem na qual seu computador procurou pelas árvores possíveis. Obviamente, a ordem pela qual a procura é feita não é importante. Provavelmente a maioria dos especialistas ainda apostaria o seu dinheiro no fato de a Eva mitocôndrial ser africana, mas eles não o fariam com muita confiança.

A segunda conclusão do grupo de Berkeley é menos controvertida. Não importa onde a Eva mitocôndrial viveu, eles foram capazes de estimar quando. É um fato conhecido a rapidez com que o ADN mitocôndrial evolui; você pode portanto atribuir uma data aproximada para cada um dos pontos de ramificação da árvore da divergência do ADN mitocôndrial. E o ponto de ramificação que une todas as mulheres – a data de nascimento da Eva mitocôndrial – está entre 150 mil e um quarto de milhão de anos atrás.

Seja a Eva mitocôndrial africana ou não, é importante evitar uma possível confusão com um outro sentido pelo qual é indubitavelmente verdadeiro que nossos ancestrais vieram da África. A Eva mitocôndrial é um ancestral recente de todos os humanos modernos. Ela era component.e da espécie Homo sapiens. Fósseis de hominídeos muito mais primitivos, o Homo erectus, foram encontrados tanto na África como fora dela. Os fósseis de ancestrais ainda mais remotos do que o do Homo erectus, tais como o Homo habilis e as várias espécies de Australopithecus (inclusive um recentemente descoberto com mais de 4 milhões de anos), foram encontrados somente na África. Assim, se somos descendentes de uma diáspora africana ocorrida no último quarto de milhão de anos, esta foi a segunda diáspora africana. Houve um êxodo anterior, talvez há um 1,5 milhão de anos, quando o Homo erectus saiu da África para colonizar partes do Oriente Médio e da Ásia. A teoria da Eva africana não está afirmando que estes asiáticos primordiais não existiram, mas que eles não deixaram descendentes que tivessem sobrevivido. De qualquer modo que você olhar para a questão, somos todos, se você voltar 2 milhões de anos, africanos. Além disto à teoria da Eva africana está afirmando que nós humanos que sobrevivem somos todos africanos se você voltar no tempo apenas umas poucas centenas de milhares de anos. Seria possível, se novas evidências fossem disponíveis, traçar todo o ADN mitocôndrial moderno até uma ancestral que tivessse vivido fora da África (“a Eva asiática”) enquanto ao mesmo tempo concordássemos que nossos ancestrais mais remotos fossem encontrados apenas na África.

Vamos assumir, por um momento, que o grupo de Berkeley está correto, e examinar o que suas conclusões significam e não significam. O apelido “Eva” tem tido conseqüências infelizes. Alguns entusiastas saíram correndo com a idéia de que ela deve ter sido uma mulher solitária, a única mulher sobre a face da Terra, o gargalo de garrafa genético final, e mesmo uma confirmação do Gênese! Isto é um mal-entendido completo. A afirmação correta não é que ela tenha sido a única mulher sobre a superfície da Terra, nem mesmo que a população era relativamente pequena durante a sua época. Seus companheiros, de ambos os sexos, podem ter sido numerosos e fecundos. Eles podem ter ainda numerosos descendentes vivos hoje. Mas todos os descendentes de suas mitocôndrias desapareceram, pois seu elo conosco passa, em algum ponto, por um homem. Do mesmo modo, um sobrenome nobre (os sobrenomes estão ligados aos cromossomos Y e são transmitidos exclusivamente pela linha masculina numa imagem especular exata das mitocôndrias) pode desaparecer, mas isto não significa que os detentores do sobrenome não tenham descendentes. Eles podem ter numerosos descendentes por outros caminhos além do caminho exclusivamente masculino. A afirmação correta é apenas de que a Eva mitocôndrial é a mulher mais recente de quem pode ser dito que todos os humanos modernos descendem na linha exclusivamente feminina. Deve haver uma mulher a respeito da qual esta afirmação pode ser feita. A única discussão é sobre se ela viveu aqui e não lá, nesta época e não naquela. O fato de que ela realmente viveu, em algum lugar e em alguma época, é certo.

E aqui está um segundo mal-entendido – um mal-entendido mais comum, que ouvi perpetrado mesmo por eminentes cientistas que trabalham no campo do ADN mitocôndrial. É a crença de que a Eva mitocôndrial é a nossa ancestral comum mais recente. Ela é fundamentada na confusão entre “ancestral comum mais recente” e “ancestral comum mais recente na linha puramente feminina”. A Eva mitocôndrial é nossa ancestral comum mais recente na linha puramente feminina, mas existem muitas outras maneiras de ser descendente de nossos ancestrais além da linha feminina. Milhões de outras maneiras. Volte aos nossos cálculos do número de ancestrais (esquecendo a complicação do casamento entre primos, que antes era o ponto principal do argumento). Você tem oito bisavós, mas apenas um deles é de linha puramente feminina. Você tem dezesseis trisavós, mas apenas um deles é de linha puramente feminina. Mesmo que permitamos que casamento entre primos reduza o número de ancestrais em uma determinada geração, ainda é verdade que há muitíssimas maneiras de ser um ancestral além da linha exclusivamente feminina. À medida que acompanhamos o nosso rio genético, remontando até a Antiguidade remota, provavelmente encontraremos muitas Evas e muitos Adãos – indivíduos focais, de quem é possível dizer que todas as pessoas vivas em 1995 são descendentes dela, ou dele. A Eva mitocôndrial é apenas um desses ancestrais. Não existe qualquer razão particular para pensar que de todos estes Adãos e Evas, a Eva mitocondrial é a mais recente. Ao contrário. Ela é defInida de um modo particular: somos descendentes dela por meio de um caminho particular através do rio da descendência. O número de caminhos possíveis que podem ser colocados ao lado do caminho exclusivamente feminino é tão grande que é matematicamente muito improvável que a Eva mitocôndrial seja a mais recente destes muitos Adãos e Evas. Ele é especial entre os caminhos possíveis de um certo modo (por ser exclusivamente feminino). Seria uma coincidência notável se ele fosse um caminho especial entre os caminhos possíveis de um outro modo (ser o mais recente).

Um ponto adicional de interesse mediano é que o nosso ancestral comum mais recente pode de algum modo ter sido mais provavelmente um Adão do que uma Eva. Haréns de fêmeas têm maior probabilidade de ocorrer do que haréns de machos, pois os machos são fisicamente capazes de ter centenas de rebentos, e mesmo milhares. O Guinness Book of Records registra um recorde superior a mil rebentos, atingido por Moulay Ishmael, o Sedento de Sangue. (Incidentalmente, Moulay Ishmael pode muito bem ser adotado pelas feministas como símbolo de machismo desagradável. Diz-se que seu método de montar um cavalo era tirar a espada da bainha e saltar na sela, partindo rapidamente ao mesmo tempo em que decapitava o escravo que segurava as rédeas. Por mais incrível que isto possa parecer, o fato é que a lenda chegou até nós, junto com a reputação de ter matado 10 mil homens com suas próprias mãos, dando talvez uma idéia do tipo de qualidades que eram as mais admiradas entre os homens de seu tipo.) As mulheres, mesmo em condições ideais, não podem ter mais do que duas dezenas de filhos. É mais provável que a mulher tenha o número médio de fIlhos do que o homem. Uns poucos homens podem ter um quinhão ridiculamente grande de rebentos, o que significa que os outros homens não podem ter nenhum. Se alguém fracassa completamente como reprodutor, é muito mais provável que seja o homem e não a mulher. E se alguém gera uma posteridade desproporcionada, é também provável que este alguém seja um homem. Isto vale para o ancestral comum mais recente de toda a humanidade, que é portanto muito mais provável ter sido um Adão do que uma Eva. Considerando um exemplo radical, quem é mais provavelmente o ancestral de todos os marroquinos de hoje, Moulay Ishmael, o Sedento de Sangue, ou qualquer mulher de seu infeliz harém?

Podemos chegar às seguintes conclusões: primeiro, é necessariamente certo que existiu uma única mulher, a quem podemos chamar de Eva mitocôndrial, que é o ancestral comum mais recente de todos os humanos pelo caminho exclusivamente feminino. Também é certo que existiu uma pessoa, de sexo desconhecido, a quem podemos chamar o Ancestral Focal, que é o ancestral comum mais recente de todos os humanos qualquer que seja o caminho. Terceiro, embora seja possível que a Eva mitocôndrial e o Ancestral Focal sejam uma única pessoa, é desprezivelmente improvável que isto seja assim. Quarto, é de algum modo mais provável que o Ancestral Focal tenha sido um homem e não uma mulher. Quinto, a Eva mitocôndrial muito provavelmente viveu há menos do que um quarto de milhão de anos. Sexto, há discordância sobre o lugar onde a Eva mitocôndrial viveu, mas a balança da opinião informada ainda favorece a África. Apenas cinco e seis dependem da análise da evidência científica. As quatro primeiras podem ser trabalhadas a partir do conhecimento comum e raciocínio de poltrona.

Mas eu disse que os ancestrais detêm a chave da compreensão da vida. A história da Eva africana é um microcosmos humano, paroquial, de um épico incomparavelmente mais antigo e maior. Usaremos novamente o recurso da metáfora do rio de genes, o nosso rio que saía do Éden. Mas deveremos voltar para trás no tempo através de uma escala temporal incomensuravelmente mais antiga do que os milhares de anos da Eva legendária e das centenas de milhares de anos da Eva africana. O rio de ADN vem fluindo através de nossos ancestrais ao longo de um curso ininterrupto que abrange não menos de 3 mil milhões de anos.

 

                   Faça o bem furtivamente

O criacionismo tem uma atração duradoura, e o motivo não é difícil de entender. Não o é, pelo menos para a maior parte das pessoas que encontro, por causa da adesão à verdade literal do Gênese ou a alguma outra história tribal sobre as origens. Isto acontece porque as pessoas descobrem por si mesmas a beleza e a complexidade do mundo vivo e concluem que ele deve ter sido “obviamente” planejado. Os criacionistas que reconhecem que a evolução darwiniana fornece pelo menos algum tipo de alternativa à sua teoria fundamentada nas escrituras muitas vezes apelam para uma objeção ligeiramente mais sofisticada. Eles negam a possibilidade de intermediários evolutivos. “X deve ter sido planejado por um Criador”, dizem as pessoas, “pois um X pela metade não funcionaria de modo algum. Todas as partes de X devem ter sido colocadas juntas simultaneamente; elas não poderiam ter evoluído de modo gradual”. Por exemplo, no dia em que comecei a escrever este capítulo aconteceu de eu receber uma carta. Era de um pastor americano que havia sido ateu, mas convertera-se ao ler um artigo do National Geographic. Eis aqui um trecho extraído da carta:

O artigo era sobre as espantosas adaptações que as orquídeas fizeram aos seus ambientes para propagar-se de modo bem-sucedido.

Enquanto lia fiquei particularmente intrigado pela estratégia reprodutiva de uma espécie, que envolvia a cooperação de urna vespa macho. Aparentemente a flor lembrava de muito perto a fêmea desta espécie de vespa, inclusive tendo uma abertura no lugar apropriado, para que a vespa macho pudesse alcançar, ao copular com a flor, o pólen produzido por esta. Ao voar para a flor seguinte o processo seria repetido, e desta maneira acontece à polinização cruzada. Em primeiro lugar, o que tomou a flor atraente para a vespa foi o fato de que ela emitia feromônios [produtos químicos específicos muito utilizados pelos insetos e que servem para reunir os sexos] idênticos aos das fêmeas desta espécie de vespa. Examinei com algum interesse as fotografias que acompanhavam o texto durante mais ou menos um minuto. Então, com uma sensação formidável de choque, percebi que para que aquela estratégia reprodutiva tivesse dado certo, ela tinha de ser perfeita desde a primeira vez. Passos incrementais não poderiam explicá-la, pois se a orquídea não se parecesse com e Gheirasse como a fêmea da vespa, e possuísse uma abertura apropriada para a copulação com o pólen perfeitamente dentro do alcance do órgão reprodutivo da vespa macho, a estratégia seria um fracasso total.

Nunca esquecerei o sentimento de depressão que tomou conta de mim, pois naquele minuto tomou-se claro que algum tipo de Deus em algum tipo de forma deve existir, e ter uma relação contínua com o processo pelo qual as coisas passam a existir.

Que, em suma, o Deus criador não era um mito antediluviano, mas alguma coisa real. E, muito relutantemente, também vi que deveria pesquisar para descobrir mais sobre Deus o mais rápido possível.

 

Outros, sem dúvida, chegam à religião por caminhos diferentes, mas certamente muitas pessoas tiveram uma experiência similar àquela que mudou a vida deste pastor (cuja identidade, em nome da boa educação, não revelarei). Eles viram uma maravilha da natureza, ou leram sobre ela. E isto, de um modo geral, os encheu de temor e admiração, chegando à reverência. Mais especificamente, como meu missivista, eles decidiram que este fenômeno natural particular – uma teia de aranha, um olho de águia, ou o que quer que seja – não pode ter evoluído em estágios graduais, porque os estágios intermediários, semicompletos não serviriam para nada. O propósito deste capítulo é destruir o argumento de que maquinações complicadas devem ser perfeitas se queremos que elas funcionem. Incidentalmente, as orquídeas estavam entre os exemplos favoritos de Charles Darwin, e ele devotou um livro inteiro à demonstração de corno o princípio da evolução gradual pela seleção natural passa pelo teste de explicar “As várias maquinações pelas quais as orquídeas são fertilizadas pelos insetos10” .

A chave do argumento do pastor está na afirmação “para que aquela estratégia reprodutiva tivesse dado certo, ela tinha de ser perfeita desde a primeira vez. Passos incrementais não poderiam explicá-la”. O mesmo argumento poderia ser aplicado – e freqüentemente o é – à evolução do olho, e voltarei a isto no decorrer do capítulo.

O que sempre me impressiona quando escuto este tipo de argumento é a confiança com que ele é apresentado. Como, quero perguntar ao pastor, o senhor poderia estar certo de que a orquídea que imita a vespa (ou o olho, ou qualquer outra coisa) não poderia funcionar a menos que cada parte dela fosse perfeita e estivesse no lugar? O senhor deu à questão, de fato, um segundo de sua atenção? O senhor realmente sabe o básico sobre orquídeas, ou vespas, ou sobre os olhos com os quais as vespas olham para as fêmeas e as orquídeas? O que o faz ser ousado a ponto de afirmar que as vespas são tão difíceis de ser enganadas que a semelhança da orquídea deveria ser perfeita em todas as suas dimensões para funcionar?

Pense sobre a última vez em que o senhor foi enganado por uma semelhança casual. Talvez o senhor tenha tirado o chapéu para uma estranha na rua, confundindo-a com uma pessoa de suas relações. As estrelas de cinema têm dublês masculinos e femininos que caem dos cavalos ou saltam do penhasco em seus lugares. A semelhança do dublê com a estrela é usualmente muito superficial, mas durante a rápida tomada da ação ela é suficiente para enganar uma audiência. Os machos humanos são excitados sexualmente pelas fotografias de uma revista. Uma foto de revista é apenas uma impressão a tinta sobre o papel. Ela é bidimensional e não tridimensional. A imagem tem apenas uns poucos centímetros. Ela pode ser uma caricatura grosseira consistindo em uns poucos traços, e não uma representação natural. Ainda assim ela pode levar um homem a ter uma ereção. Talvez uma visão fugidia da fêmea seja tudo o que uma vespa que voa velozmente possa obter antes de tentar copular com ela. De qualquer modo, talvez as vespas macho percebam apenas uns poucos estímulos-chave.

Existem todas as razões para pensar que as vespas possam ser enganadas mais facilmente do que os humanos. As espinhelas certamente são, e os peixes têm cérebros maiores e visão melhor do que as vespas. As espinhelas machos têm ventres vermelhos, e eles ameaçarão não somente outros machos como também imitações grosseiras com o “ventre” vermelho. Meu velho mestre, ganhador do prêmio Nobel, o etologista Niko Tinbergen, contou uma história famosa sobre uma caminhonete vermelha do correio que passou rapidamente na frente da janela de seu laboratório, e como todas as espinhelas machos correram para o lado de seus tanques que davam para a janela e a ameaçaram vigorosamente. As espinhelas fêmeas que estão cheias de ovas têm os ventres inchados de maneira característica. Tinbergen descobriu que uma imitação prateada, extremamente grosseira, vagamente alongada, que não se assemelhava em nada aos nossos olhos a uma espinhela, mas possuía um “ventre” bem redondo, provocava um comportamento sexual próprio para o acasalamento por parte dos machos. Experiências mais recentes na linha de pesquisa criada por Tinbergen mostraram que a assim chamada “bomba sexual” um objeto em forma de pêra, a personificação da rechonchudez, mas não alongada e não semelhante a um peixe por nenhum esforço de imaginação (humana) – era ainda mais eficiente em excitar sexualmente o macho da espinhela. A “bomba sexual” para a espinhela é um exemplo clássico de um estímulo supernormal – um estímulo ainda mais eficiente do que a coisa real. Como outro exemplo, Tinbergen publicou a foto de um ostreiro tentando chocar um ovo do tamanho de um ovo de ostra. As aves têm cérebros maiores e uma visão melhor do que os peixes – e a fortiori do que as vespas –, ainda assim os ostreiros aparentemente “pensam” que um ovo do tamanho de ovo de ostra é um objeto superlativo no que diz respeito a incubação.

Gaivotas, gansos e outras aves que constroem seus ninhos em solo firme têm uma resposta estereotipada para um ovo que rolou para fora do ninho. Eles o alcançam e o fazem rolar de volta com a parte inferior de seus bicos. Tinbergen e seus estudantes mostraram que as gaivotas farão isto não apenas com seus próprios ovos, mas também com ovos de galinha e mesmo cilindros de madeira ou latas de cacau descartadas por gente acampada. As gaivotinhas herring11 obtêm a sua alimentação pedindo-a aos pais; elas dão bicadas em uma mancha vermelha no bico dos pais, estimulando-os a regurgitar alguns peixes de seu papo cheio. Tinbergen e um colega mostraram que uma imitação grosseira da cabeça dos pais feita de papelão era muito eficiente para provocar o comportamento pedinte por parte das gaivotinhas. Tudo o que é realmente necessário é uma mancha vermelha. No que diz respeito à gaivotinha, seus pais são uma mancha vermelha. Ela pode muito bem ver o resto do corpo de seus pais, mas isto não parece ser importante.

Esta visão aparentemente restrita não é limitada as gaivotinhas. As gaivotas adultas de cabeça preta são conspícuas por causa de suas máscaras faciais negras. Robert Mash, aluno de Tinbergen, investigou a importância disto para os outros adultos pintando uma imitação de madeira da cabeça destas gaivotas. Cada uma das cabeças foi fincada na extremidade de um bastão de madeira preso a motores elétricos ,dentro de uma caixa, de modo que, por controle remoto, Mash podia erguer ou abaixar as cabeças e fazê-las girar para a esquerda e para a direita. Ele enterrava a caixa perto do ninho de gaivota e a deixava com a cabeça seguramente fora da visão sob a areia. Então, dia após dia, ele ia até um anteparo perto do ninho e observava a reação das gaivotas do ninho à cabeça de imitação quando esta era erguida e girava para um lado ou outro. As aves responderam à cabeça e aos seus movimentos como se ela fosse uma gaivota real, ainda assim ela era apenas uma imitação presa na extremidade de um bastão de madeira, sem qualquer corpo, sem pernas, asas ou cauda, silenciosa e sem movimentos exceto os bastante robóticos e sem vida de levantar, girar e abaixar. Parece que, para uma gaivota de cabeça preta, um vizinho ameaçador é um pouco mais do que uma face negra e destituída de corpo. O corpo, as asas ou qualquer outra coisa parecem não ser necessários.

Entrem no anteparo para observar as aves. Mash, como muitas gerações de ornitólogos antes e a partir dele, exploraram a limitação há longo tempo conhecida do sistema nervoso das aves: as aves não são matemáticos naturais. Suponha que dois de vocês vão para o anteparo, e apenas um sai dele. Sem este truque, as aves desconfiariam do anteparo, “sabendo” que alguém entrou nele. Mas se elas vêem apenas uma pessoa sair, “pressupõem” que ambos saíram. Se uma ave não pode dizer a diferença entre uma pessoa ou duas, será surpreendente que o macho da vespa possa ser enganado por uma orquídea que tem uma semelhança um pouco menos que perfeita com a fêmea?

Mais uma história de aves nesta linha, e esta é uma tragédia. As peruas mães são protetoras ferozes de sua prole. Elas precisam protegê-los contra os predadores dos ninhos, como a doninha ou ratos. A regra que uma perua mãe usa para reconhecer os ladrões de ninho é uma regra constemadoramente rude: nas vizinhanças de seu ninho, ataque qualquer coisa que se mova, a menos que ela faça um barulho igual ao de um peru bebê. Isto foi descoberto por um zoólogo austríaco chamado Wolfgang Schleidt. Schleidt teve uma vez uma perua mãe que matou selvagem ente todos os seus bebês. A razão era lastimosamente simples: ela era surda. Os predadores, no que diz respeito ao sistema nervoso dos perus, são definidos como objetos que se movem e que não emitem um som de bebê. Estes perus bebês, embora parecessem perus bebês, se movessem como perus bebês, e corressem confiantemente para a sua mãe como perus bebês, foram vítimas da defInição restrita de “predador” da mãe. Ela estava protegendo suas crianças delas mesmas, e ela os massacrou a todos.

Em uma versão da trágica história do peru vivida por um inseto, certas células sensoriais rias antenas da abelha são sensíveis a apenas um produto químico, o ácido oléico. (Elas têm outras células que. são sensíveis a outros produtos químicos.) O ácido oléico é produzido pelos corpos das abelhas em decomposição, e ele aciona o comportamento “de agente funerário” das abelhas, a remoção dos cadáveres das abelhas mortas da colméia. Se um pesquisador experimental pinçar uma gota de ácido oléico numa abelha viva, a infeliz criatura será arrastada para fora da colméia, chutando e brigando, e obviamente muito viva, para ser jogada fora junto com as abelhas mortas.

Os cérebros dos insetos são muito menores do que os cérebros dos perus ou os cérebros dos humanos. Os olhos dos insetos, mesmo os grandes olhos compostos das libélulas, possuem uma fração da acuidade de nossos olhos ou dos olhos das aves. Por outro lado, é sabido que os olhos dos insetos vêem o mundo de um modo completamente diferente do modo pelo qual os nossos olhos o vêem. O grande zoólogo austríaco Karl von Frisch descobriu quando jovem que os insetos são cegos para a luz vermelha., mas que eles podem ver – e vêem com matiz marcadamente próprio – a luz ultravioleta, para a qual nós somos cegos. Os olhos dos insetos são muito mais preocupados com algo chamado “vibrações luminosas”, que parecem – pelo menos para um inseto que se move velozmente – substituir parcialmente o que nós chamaríamos “forma”. Borboletas machos já foram vistas “cortejando” folhas mortas que caem das árvores. Nós vemos uma fêmea de borboleta como um par de asas grandes agitando o ar para cima e para baixo. Um macho de borboleta a vê, e a corteja, como uma concentração de “vibrações luminosas”. Você pode enganá-lo com uma lâmpada estroboscópica, a qual não se move, mas apenas emite cintilações de luz. Se você acertar a taxa de cintilações, ele a tratará como se fosse uma outra borboleta agitando suas asas com a mesma freqüência. As listras, para nós, são padrões estáticos. Para o inseto, à medida que ele voa passando por elas, as listras aparecem como “cintilações” e podem ser imitadas com uma lâmpada estroboscópica que emite cintilações de luz com a freqüência correta. O mundo visto por meio dos olhos dos insetos é tão estranho para nós que fazer afirmações com base em nossa própria experiência ao discutir o quão “perfeitamente” uma orquídea precisa imitar o corpo de uma vespa fêmea é uma presunção humana.

As próprias vespas foram o tema de uma experiência clássica, originalmente realizada pelo grande naturalista francês Jean-Henri Fabre e repetida por vários outros pesquisadores, inclusive membros da linha de pesquisa de Tinbergen. A vespa cavadora fêmea retoma a sua toca carregando sua presa aferroada e paralisada. Ela a deixa fora da toca enquanto entra, aparentemente para verificar se tudo está bem antes de reaparecer e arrastar a presa para dentro. Enquanto a vespa está na toca, o experimentador afasta a presa uns poucos centímetros do lugar onde ela a deixou. Quando a vespa reaparece, ela nota a falta e rapidamente recoloca a presa no lugar. Ela então a arrasta de volta para a entrada da toca. Passaram-se apenas alguns segundos desde que ela inspecionou o interior da toca. Nós pensamos que não há realmente motivos pelos quais ela não deveria prosseguir para a próxima etapa da sua rotina, arrastar a presa para dentro da toca e acabar com ela. Mas seu programa foi recolocado em uma etapa anterior. Ela laboriosamente deixa a presa fora da toca de novo e entra para fazer uma outra inspeção. O experimentador pode repetir esta charada quarenta vezes, até ficar aborrecido. A vespa comporta-se como uma máquina de lavar colocada em uma etapa anterior de seu programa e não “sabe” que já lavou aquelas roupas quarenta vezes repetidas. O eminente cientista da computação Douglas Hofstadter adotou um adjetivo novo, “sphexish”, para rotular este automatismo inflexível e sem sentido. (Sphex é o nome de um tipo representativo de vespa cavadora.) Portanto, pelo menos em alguns aspectos, as vespas são fáceis de ser enganadas. É um tipo muito diferente de ludibriação daquele planejado pela orquídea. Não obstante, devemos ser cautelosos ao usar a intuição humana para concluir que “para que esta estratégia reprodutiva funcionasse, ela tinha que ser perfeita desde a primeira vez”.

Posso ter realizado muito bem meu trabalho de persuadi-lo de que as vespas são propensas a ser enganadas facilmente. Você pode estar alimentando uma suspeita quase oposta à de meu missivista ordenado pastor. Se a visão do inseto é tão pobre, e se as vespas são tão fáceis de enganar, por que a orquídea se dá o trabalho de tornar a sua flor tão semelhante a uma vespa fêmea? Bem, a visão das vespas não é sempre tão pobre. Há situações nas quais as vespas parecem ver bastante bem: por exemplo, quando estão localizando sua toca após um longo vôo de caçada. Tinbergen investigou isto com a Philantus, a vespa cavadora que caça as abelhas. Ele esperava até que a vespa entrasse na toca. Antes que reaparecesse, Tinbergen colocava rapidamente “marcos” em volta da entrada da toca – digamos, um raminho e uma pinha. Ele então afastava-se e esperava a vespa sair da toca. Depois que saía da toca, a vespa dava duas ou três Voltas circulares em torno desta, como se estivesse tirando uma fotografia mental da área, então voava em busca de sua presa. Durante o tempo em que a vespa estivesse fora, Tinbergen movia o raminho e a pinha para um lugar uns poucos metros afastado. Quando a vespa retomava, ela errava a toca e mergulhava na areia no ponto apropriado relativo às novas posições do raminho e da pinha. Novamente, a vespa tinha sido “enganada” num certo sentido, mas desta vez ela merece nossa admiração por sua visão. Parece que “tirar uma fotografia mental” era o que ela realmente estava fazendo no seu vôo circular preliminar. Ela parece ter reconhecido o padrão, ou “gestalt”, do raminho e da pinha. Tinbergen repetiu a experiência muitas vezes, usando tipos diferentes de marcos, tais como anéis de pinha, com resultados consistentes.

Agora, eis aqui uma experiência de Gerard Baerends, aluno de Tinbergen, que contrasta de modo impressionante com a experiência da “máquina de lavar” de Fabre. A espécie de vespa cavadora de Baerends, a Ammophila campestris, uma espécie também estudada por Fabre, é atípica por ser uma “provedora progressista”. A maioria das vespas cavadoras abastecem suas tocas e depositam um ovo, depois selam as tocas e deixam as larvas para que se alimentem por conta própria. A Ammophila é diferente. Como uma ave, ela retoma diariamente à toca para verificar o bem-estar da larva, e lhe dar comida quando é necessário. Até agora, nada de particularmente notável. Mas uma fêmea individual de Ammophila terá duas ou três tocas para tomar conta ao mesmo tempo. Uma toca conterá uma larva relativamente grande, quase crescida; uma conterá uma larva pequena, recém-posta; e uma, talvez, uma larva de tamanho e idade intermediários. As três naturalmente têm exigências alimentares diferentes, e a mãe as satisfaz devidamente. Por meio de uma série cansativa de experiências que envolviam a troca do conteúdo das tocas, Baerends foi capaz de mostrar que as vespas mães realmente levam em consideração as exigências alimentares diferentes de cada toca. Isto parece inteligente, mas Baerends descobriu que isto também, de um modo muito estranho, não é o caso. A vespa mãe, como primeira tarefa matutina, faz uma ronda de inspeção em todas as suas tocas ativas. É o estado de cada toca na hora da inspeção matutina que a mãe verifica e isto influencia seu comportamento como provedora pelo resto do dia. Baerends podia trocar os conteúdos das tocas quantas vezes quisesse após a inspeção matutina, e isto não fazia qualquer diferença para o comportamento da vespa mãe como provedora. Era como se ela tivesse ligado seu equipamento de assistência às tocas apenas durante a duração da inspeção matutina e então o tivesse desligado, para economizar eletricidade pelo resto do dia.

Por um lado, esta história sugere que há um equipamento sofisticado para contar, medir, e mesmo calcular, na cabeça da vespa mãe. Agora fica fácil acreditar que o cérebro da vespa poderia ser verdadeiramente enganado apenas por uma semelhança detalhada e completa entre a orquídea e a fêmea. Mas ao mesmo tempo, a história de Baerends sugere uma capacidade de cegueira seletiva e de ser enganada que está de acordo com a experiência da máquina de lavar, e faz acreditar que uma semelhança grosseira entre a orquídea e a fêmea pode muito bem ser suficiente. A lição geral que devemos aprender é nunca usar o julgamento humano ao avaliar tais questões. Nunca diga, e nunca leve a sério qualquer um que diga, “eu não posso acreditar que isto assim assim possa ter evoluído por meio de seleção gradual”. Chamo este tipo de falácia de “argumento da incredulidade pessoal”. Por diversas vezes, ele tem se mostrado um prelúdio a uma experiência intelectual do tipo escorregadia como uma casca de banana.

O argumento que estou atacando é aquele que diz: a evolução gradual de tal coisa não poderia ter acontecido, pois assim “obviamente” deve ser perfeito e completo se é que deve funcionar. Até agora, em minha resposta, atribuí muita importância ao fato de que as vespas e outros animais têm uma visão do mundo muito diferente da nossa, e de qualquer modo mesmo nós não somos difíceis de ser enganados. Mas há outros argumentos que quero desenvolver que são ainda mais convincentes e mais gerais. Vamos usar a palavra “frágil” para um engenho que deve ser perfeito se quisermos que funcione – como o meu missivista alegava a respeito das orquídeas que imitavam as vespas. Acho significativo que na verdade seja muito difícil pensar em um engenho ou dispositivo inequivocamente frágil. Um avião não é frágil, pois embora nós todos preferíssemos confiar nossas vidas a um Boeing 747 completo com todas as suas miríades de partes em perfeitas condições de funcionamento, um avião que tenha perdido mesmo algumas peças principais do equipamento, como, por exemplo, um ou dois de seus motores, ainda pode voar. Um microscópio não é frágil, pois embora um de qualidade inferior nos dê uma imagem borrada e mal iluminada, você ainda pode ver pequenos objetos com ele melhor do que veria se não tivesse microscópio algum. Um rádio não é frágil; ele pode deixar a desejar sob alguns aspectos, ele pode perder a fidelidade e seu som pode ser metálico e distorcido, mas você pode ainda distinguir o que as palavras significam. Venho olhando pela janela há dez minutos tentando pensar sobre um único e realmente bom exemplo de um engenho fabricado pelo homem que seja frágil, e consegui pensar em apenas um: o arco. Um arco tem certa fragilidade no sentido em que, já que seus dois lados estejam reunidos, ele tem grande resistência e estabilidade. Mas, antes de juntar os dois lados, nenhum deles ficará de pé. Um arco tem de ser construído com a ajuda de algum tipo de andaime. O andaime fornece um suporte temporário até que o arco esteja completo; então pode ser removido e o arco permanece estável por um tempo muito longo.

Na tecnologia humana não há razão por que um engenho ou dispositivo não deva ser em princípio frágil. Os engenheiros têm a liberdade de projetar em suas pranchetas engenhos que, se semicompletos, não funcionariam de modo algum. Mesmo no campo da engenharia, porém, temos dificuldades de descobrir um engenho genuinamente frágil. Acredito que isto seja ainda mais verdadeiro para os engenhos vivos. Vamos examinar alguns dos dispositivos supostamente frágeis do mundo vivo que a propaganda criacionista tem utilizado. O exemplo da vespa e da orquídea é apenas um exemplo do fascinante fenômeno do mimetismo. Um grande número de animais e algumas plantas obtêm vantagens em razão de sua semelhança com outros objetos, muitas vezes outros animais e plantas. Quase todos os aspectos da vida têm sido em algum lugar reforçados ou subvertidos pelo mimetismo: obter comida (os tigres e os leopardos são quase invisíveis quando espreitam suas presas na floresta salpicada de manchas criadas pela luz solar; os peixes-sapos assemelham-se ao fundo do mar sobre o qual estão assentados, e atraem suas presas com uma “vara de pesca” comprida, em cuja extremidade está uma isca que mimetiza um verme; as fêmeas dos pirilampos, comportando-se como verdadeiras femmes fatales, mimetizam o padrão de acasalamento para as cintilações luminosas de outras espécies, atraindo machos, que elas então devoram; os blênios de dente de sabre imitam outras espécies de peixes que se especializam em fazer a limpeza de peixes maiores, e então, uma vez que lhes tenha sido dado acesso privilegiado, arrancam pedaços das barbatanas de seus clientes); evitar ser comido (animais que podem servir de presas para outros animais podem mimetizar uma casca de árvore, um ramo, folhas verdes e novas, folhas mortas e ressecadas, flores, espinhos de rosas, copas de plantas ou algas marinhas, pedras, dejetos de aves e outros animais conhecidos como venenosos ou tóxicos); ludibriar predadores afastando-os dos filhotes (avocetas e muitas outras aves que fazem seus ninhos sobre o solo mimetizam o andar e os trejeitos de uma ave com a asa quebrada); obter cuidados para seus ovos por parte de outros animais (os ovos dos cucos assemelham-se aos ovos das espécies hospedeiras particulares que parasitam; as fêmeas de certos peixes ciclídeos [acarás] têm imitações de ovos pintados em seus flancos para atrair os machos e fazer com que estes ponham os ovos verdadeiros nas suas bocas e os choquem).

Em todos os casos, há uma tentação em pensar que a mimetização não funciona a menos que seja perfeita. No caso particular da orquídea da vespa, ressaltei as imperfeições perceptuais das vespas e outras vítimas da mimetização. Na verdade, aos meus olhos, as orquídeas não são tão misteriosas em sua semelhança com vespas, abelhas ou moscas. A semelhança de um inseto com uma folha é muito mais próxima aos meus olhos, possivelmente porque meus olhos se parecem muito mais com os olhos dos predadores (presumivelmente aves) contra os quais é dirigida a mimetização da folha.

Mas há um sentido mais geral no qual é errado sugerir que a mimetização deve ser perfeita se quisermos que ela funcione. Não importa quão bons os olhos de, digamos, um predador possam ser, as condições de visibilidade não são sempre perfeitas. Mais ainda, haverá quase inevitavelmente um contínuo de condições de visibilidade que vai de péssimas até muito boas. Pense em algum objeto que você realmente conhece bem, tão bem que você nunca poderia tomá-lo por qualquer outra coisa. Ou pense em uma pessoa – digamos, uma amiga íntima, tão querida e familiar que você nunca poderia confundi-la com qualquer outra pessoa. Mas agora imagine que ela está caminhando na sua direção a uma distância muito grande. Deve haver uma distância tão grande para a qual você não pode vê-la de modo algum. E uma distância tão próxima que você poderá ver cada característica, cada cílio, cada poro. Para distâncias intermediárias, não há transformações súbitas. Há um aumento ou diminuição gradual da capacidade de reconhecimento. Os manuais militares de tiro afirmam: “A uma distância de 200 metros, todas as partes do corpo são distintamente vistas. A uma distância de 300 metros, o contorno do rosto é vago. A uma distância de 400 metros, não se vê o rosto. A uma distância de 600 metros, a cabeça é um ponto e o corpo toma-se afilado. Alguma pergunta?” No caso de uma amiga que se aproxima gradualmente, você pode reconhecê-la repentinamente. Mas neste caso a distância fornece um gradiente de probabilidade de reconhecimento repentino.

De uma maneira ou de outra, a distância fornece um gradiente de visibilidade. Ele é essencialmente gradual. Para qualquer grau de semelhança entre um modelo e uma imitação, seja esta semelhança marcante ou quase inexistente, deve haver uma distância para a qual os olhos do predador serão enganados e uma distância ligeiramente mais curta para a qual eles terão uma probabilidade menor de que isto aconteça. Portanto, à medida que a evolução prossegue, semelhanças com uma perfeição que melhora gradualmente podem ser favorecidas pela seleção natural, na medida em que a distância crítica para a qual o predador pode ser enganado torna-se menor. Uso as palavras “olhos de predador” no lugar de “olhos de qualquer um que precisa ser enganado”. Em alguns casos serão os olhos dos predadores, olhos de pais substitutos, olhos de uma fêmea de peixe e assim por diante. .

Tenho demonstrado este efeito em palestras populares para audiências constituídas por crianças. Meu colega, o Dr. George McGavin, do Oxford University Museum (Museu da Universidade de Oxford), gentilmente construiu para mim um modelo de “chão da floresta” coberto com ramos, folhas mortas e musgo. Sobre este chão ele habilmente colocou dúzias de insetos mortos. Alguns deles, tais como os besouros de coloração azul metálica, eram bastante salientes; outros, inclusive insetos que se assemelham a gravetos e borboletas que mimetizam as folhas, estavam requintadamente camuflados; outros ainda, tais como a barata marrom, tinham uma camuflagem intermediária. As crianças da audiência eram convidadas e lhes era pedido que canúnhassem lentamente em direção ao tablado, procurando pelos insetos e avisando quando tivessem descoberto um deles. Quando estavam suficientemente longe, as crianças eram incapazes de descobrir mesmo os insetos mais conspícuos. À medida que se aproximavam do tablado, elas viam os mais óbvios, depois aqueles de camuflagem intermediária, como as baratas, e finalmente os bem camuflados. Os insetos muito bem camuflados não eram percebidos mesmo quando as crianças os olhavam de muito perto, e quando eu os apontava as crianças davam suspiros de desapontamento.

A distância não é o único gradiente sobre o qual podemos apresentar este tipo de argumento. O anoitecer é outro. Na calada da noite, quase nada pode ser visto, e mesmo uma semelhança muito grosseira de uma mimetização com o modelo real passará pelo teste. Ao meio-dia, apenas uma mimetização meticulosamente precisa pode escapar despercebida. Entre estas duas partes do dia, ao raiar do dia e ao anoitecer, no lusco-fusco, num nevoeiro ou em uma tempestade de chuva, temos um contínuo suave e ininterrupto de condições de visibilidade. Mais uma vez, as semelhanças de precisão gradualmente crescente serão favorecidas pela seleção natural, pois para qualquer semelhança determinada haverá um nível de visibilidade para o qual esta qualidade particular da semelhança fará toda a diferença. À medida que a evolução prossegue, semelhanças aperfeiçoadas gradualmente conferem uma vantagem para a sobrevivência, pois a intensidade crítica da luz para ser enganado torna-se pouco a pouco maior.

Um gradiente similar é fornecido pelo ângulo de visão. A mimetização de um inseto, seja ela boa ou má, será vista algumas vezes pelo canto dos olhos de um predador. Em outras oportunidades ela será vista impiedosamente de frente. Deve haver um ângulo de visão tão periférico que a mimetização mais pobre possível escapará de ser detectada. E deve haver uma visão tão central que mesmo a mimetização mais brilhante fica em perigo. Entre estas duas situações há um gradiente contínuo de visão, um contínuo de ângulos. Para um determinado nível de perfeição na mimetização, haverá um para o qual uma pequena melhora ou uma pequena piora é crucial. À medida que a evolução prossegue, as semelhanças que aperfeiçoam de modo contínuo a sua qualidade são favorecidas, pois o ângulo crítico para ser enganado torna-se cada vez mais central.

A qualidade dos olhos e cérebros dos inimigos pode ser considerada como um outro gradiente, e já indiquei isto nas partes iniciais deste capítulo. Para qualquer grau de semelhança entre um modelo real e sua mimetização, há uma probabilidade de que exista um olho que será enganado e um olho que não o será. Novamente, à medida que a evolução prossegue, semelhanças com uma qualidade que aumenta continuamente são favoreci das, pois olhos de predador cada vez mais sofisticados estão sendo enganados. Não quero dizer que os predadores estão desenvolvendo olhos melhores em paralelo com o aperfeiçoamento da mimetização, embora possam. Quero dizer que existe, em algum lugar, predadores com bons olhos e predadores com olhos ruins. Todos estes predadores constituem-se em um perigo. Uma mimetização pobre engana apenas os predadores com olhos ruins. Uma mimetização boa engana quase todos os predadores. Entre estes extremos há um contínuo suave.

A menção a olhos bons e ruins leva-me ao quebra-cabeça favorito dos criacionistas. Qual é a utilidade de um olho pela metade? Como pode a seleção natural favorecer um olho que é menos do que perfeito? Tratei desta questão antes e apresentei uma gama de olhos intermediários, calcados naqueles que realmente existem nos vários phyla do reino animal. Aqui incorporarei os olhos sob a rubrica dos gradientes teóricos que criei. Há um gradiente, um contínuo, de tarefas para as quais um olho pode ser utilizado. No momento, estou utilizando os meus para reconhecer as letras do alfabeto à medida que elas aparecem na tela do computador. Você precisa de bons olhos, com uma acuidade grande, para fazer isto. Atingi uma idade em que não posso mais ler sem a ajuda de óculos, que agora são de lentes magnificadoras mais ou menos fracas. À medida que envelhecer, a intensidade das lentes prescritas aumentará constantemente. Sem meus óculos, descobrirei que é cada vez mais difícil ver os pequenos detalhes. Aqui temos um outro contínuo – o contínuo da idade.

Qualquer humano normal, não importa quão velho seja, tem uma visão melhor do que um inseto. Há tarefas que podem ser realizadas de modo útil por pessoas com uma visão relativamente pobre, mesmo que estas estejam próximas da cegueira total. Você pode jogar tênis com uma visão bastante borrada, pois a bola de tênis é um objeto grande, cujos posição e movimento podem ser vistos mesmo que estejam fora de foco. Os olhos das libélulas, embora pobres pelos nossos padrões, são bons pelos padrões dos insetos, e as libélulas podem caçar insetos com as asas, uma tarefa tão difícil quanto acertar uma bola de tênis. Olhos muito piores podem ser usados na tarefa de evitar a colisão com uma parede, cair de um penhasco ou em um rio. Olhos que são ainda piores podem perceber quando uma sombra, que pode ser uma nuvem ou também trair a presença de um predador, paira sobre a cabeça. E olhos que são ainda mais pobres podem servir para perceber a diferença entre o dia e a noite, o que é útil para, entre outras coisas, sincronizar as temporadas de reprodução e saber a hora de dormir. Há um contínuo de tarefas para as quais um olho pode ser classificado, de magnífico a terrível, de modo que, para uma determinada qualidade de visão, existe um nível de tarefas para o qual um aperfeiçoamento marginal na visão poderia ser de suprema importância. Portanto, não há dificuldade em entender a evolução gradual do olho, desde seus começos primitivos e rudimentares, passando pelo contínuo suave de qualidades intermediárias, até a perfeição que vemos no gavião e nos humanos jovens.

Assim, a pergunta do criacionista – “Qual é a utilidade de um olho pela metade?” – é uma questão peso-leve, fácil de ser respondida. Um olho pela metade é apenas 1 por cento melhor do que 49 por cento de um olho, o que já é melhor do que 48 por cento, e a diferença é significativa. Uma demonstração mais ponderável de peso parece estar por trás do complemento inevitável: “Falando como físico12, não posso acreditar que tenha havido tempo suficiente para que um órgão tão complicado como o olho tenha evoluído a partir do nada. Você realmente pensa que houve tempo suficiente?” Ambas as perguntas originam-se do Argumento da Incredulidade Pessoal. Não obstante, as audiências apreciam uma resposta, e usualmente tenho recorrido à magnitude pura do tempo geológico. Se um passo representa um século, o tempo em Anno Domini é reduzido ao salto de um grilo. Para chegar até a origem dos animais multicelulares nesta mesma escala, você teria que caminhar com o passo apertado de Nova York até San Francisco.

Agora temos a impressão de que o impacto da enormidade do tempo geológico é como usar um martelo pneumático para quebrar um amendoim. Caminhar de costa a costa dramatiza o tempo disponível para a evolução do olho. Mas um estudo recente realizado por dois cientistas suecos, Dan Nilsson e Susanne Pelger, sugere que uma fração ridiculamente pequena deste tempo seria o suficiente. A propósito, quando alguém diz “o olho”, implicitamente quer dizer o olho do vertebrado, mas olhos úteis, formadores de imagens evoluíram entre quarenta e sessenta vezes, independentemente a partir do zero, em muitos grupos diferentes de invertebrados. Entre estas mais de quarenta evoluções independentes, pelo menos nove princípios distintos de planejamento foram descobertos, inclusive olhos semelhantes a cabeças de alfinete, dois tipos de olhos semelhantes a lentes de câmera fotográfica, olhos curvos e refletores (semelhantes às antenas em forma de prato dos satélites), e diversos tipos de olhos compostos. Nilsson e Pelger concentraram-se nos olhos semelhantes a lentes de câmera, tais como os bem desenvolvidos nos vertebrados e nos polvos.

Como você começaria uma estimativa do tempo necessário para uma determinada quantidade de mudança evolutiva? Temos de encontrar uma unidade para medir o tamanho de cada passo evolutivo, e é sensato expressá-lo como uma mudança percentual no que já existe. Nilsson e Pelger usaram o número de mudanças sucessivas de 1 por cento como sua unidade para medir mudanças nas quantidades anatômicas. Esta é apenas uma unidade conveniente – como a caloria, definida como a quantidade de energia necessária para realizar certa quantidade de trabalho. É mais fácil usar a unidade de 1 por cento quando a mudança é ela toda em uma dimensão. No evento improvável, por exemplo, de que a seleção natural favorecesse caudas de ave-do-paraíso de tamanho sempre crescente, quantos passos seriam necessários para que esta evoluísse de 1 metro para 1 quilômetro de comprimento? Um aumento de 1 por cento no comprimento da cauda não seria notado pelo observador de aves casual. Não obstante, surpreendentemente, são necessários poucos passos para alongar a cauda até o comprimento de 1 quilômetro – menos do que setecentos passos.

Alongar uma cauda de 1 metro até 1 quilômetro é fácil (e bastante absurdo), mas como você colocaria a evolução de um olho na mesma escala? O problema é que, no caso do olho, muitas coisas devem acontecer em muitas partes diferentes, em paralelo. A tarefa de Nilsson e Pelger era criar modelos de evolução para o olho no computador e responder a duas perguntas. A primeira é essencialmente a pergunta que fizemos repetidas vezes no passado em diversas páginas deste livro, mas eles a fizeram de modo mais sistemático, usando um computador: haverá um gradiente suave de mudança, da superfície achatada até o olho de câmera completo, tal que cada olho intermediário seja um aperfeiçoamento do anterior? (Ao contrário dos projetistas humanos, a seleção natural não pode escorregar montanha abaixo – nem mesmo se houver uma montanha tentadora mais alta no outro lado do vale.) Segundo – a questão com a qual começamos esta seção –, quanto tempo seria necessário para que a quantidade necessária de mudança evolutiva ocorresse?

Nos seus modelos construídos no computador, Nilsson e Pelger não fizeram qualquer tentativa de simular o funcionamento interno das células. Eles começaram a partir da invenção de uma única célula sensível à luz – não faz mal algum chamá-la de uma fotocélula. Seria ótimo, no futuro, criar um outro modelo no computador, desta vez ao nível do interior da célula, para mostrar como a primeira fotocélula de ser vivo tornou-se realidade por meio de uma modificação passo a passo de uma célula mais anterior e de finalidades mais gerais. Mas você deve começar em algum lugar, e Nilsson e Pelger começaram após a evolução da fotocélula. Eles trabalharam no nível dos tecidos: o nível da coisa feita de células e não no nível das células individuais. A pele é um tecido, assim como o revestimento dos intestinos, ou os músculos e o fígado. Os tecidos podem mudar sob a influência das mutações ao acaso de várias maneiras. As camadas de tecidos podem tornar-se maiores ou menores em área. Elas podem tornar-se mais espessas ou mais finas. No caso especial dos tecidos transparentes como o tecido das lentes oculares, elas podem mudar o índice de refração (o poder de encurvar a luz) de partes locais do tecido.

A beleza de simular um olho, diferentemente de, digamos, a perna de uma chita veloz, é que sua eficiência pode ser facilmente medida usando as leis elementares da óptica. O olho é representado como uma seção reta bidimensional, e o computador pode calcular facilmente sua acuidade visual, ou resolução espacial, expressa por um único número real. Seria muito mais difícil obter uma expressão numérica e equivalente para a eficácia de uma perna ou espinha dorsal de uma chita. Nilsson e Pelger começaram com uma retina plana em cima de uma camada pigmentada também plana e rodeada por uma camada protetora transparente plana. Era permitido que a camada transparente sofresse mutações localizadas e aleatórias no seu índice de refração. Eles então deixavam o modelo deformar-se ao acaso, obedecendo apenas à exigência de que qualquer mudança deveria ser pequena e também um aperfeiçoamento daquilo que existia antes.

Os resultados foram rápidos e decisivos. Uma trajetória de acuidade constantemente crescente conduziu sem hesitar a partir da superfície plana passando por uma indentação rasa até uma forma de taça, à medida que o olho modelado deformava-se na tela do computador. A camada transparente tornou-se mais espessa para preencher a taça e suavemente a sua superfície externa passou a formar uma curva. Então, quase como se fosse mágica, uma parte deste preenchimento transparente condensou-se em uma sub-região local, esférica, com alto índice de refração. Não de modo uniforme, mas com um gradiente de índice de refração de modo que a região esférica funcionava como uma ótima lente de índice de refração variável. Lentes de índice de refração variável não são familiares aos fabricantes humanos de lentes, mas são comuns nos olhos dos seres vivos. Os humanos fabricam lentes torneando o vidro até que este adquira uma forma particular. Nós fazemos lentes compostas, como as caríssimas lentes de cor violeta das câmeras modernas, montando várias lentes juntas de modo a formar um conjunto, mas cada uma dessas lentes individuais é fabricada com uma única peça uniforme de vidro. Em contraste, uma lente de índice de refração variável é uma lente com índice de refração que varia continuamente no interior da substância com a qual a lente é formada. Tipicamente, ela tem um alto índice de refração perto do seu centro. Os olhos dos peixes são formados por lentes deste tipo. Agora, sabe-se há muito tempo que, para uma lente de índice de refração variável, os resultados mais livres de aberração são obtidos quando você obtém um valor ótimo teórico particular para a razão entre a distância focal e o raio da lente. Esta razão é chamada de razão de Mattiessen. O modelo de computador de Nilsson e Pelger obteve sem hesitar a razão de Mattiessen.

E agora a pergunta relativa ao tempo necessário para que esta evolução ocorresse. Para responder a esta pergunta, Nilsson e Pelger tiveram que fazer algumas hipóteses sobre a genética das populações naturais. Eles precisavam alimentar seu modelo com valores plausíveis de quantidades tais como “herdabilidade”. A herdabilidade é uma medida de até onde a variação é governada pela hereditariedade. O modo favorito de medir isto é ver até onde gêmeos monozigotos (isto é, idênticos) assemelham-se um ao outro quando comparados com gêmeos comuns. Um estudo determinou que a herdabilidade do comprimento da perna nos machos humanos era 77 por cento. Uma herdabilidade de 100 por cento significaria que você poderia medir uma perna de um dos gêmeos idênticos e obter um conhecimento perfeito do comprimento da perna do outro gêmeo, mesmo que os gêmeos fossem criados separadamente. Uma herdabilidade de zero por cento significaria que as pernas dos gêmeos monozigotos não são mais similares entre si do que as pernas de membros ao acaso de uma população especificada em um determinado meio ambiente. Algumas outras herdabilidades medidas nos humanos são 95 por cento para o tamanho da cabeça, 85 por cento para a altura quando sentado, 80 por cento para o comprimento do braço e 79 por cento para a estatura.

As herdabilidades são freqüentemente maiores do que 50 por cento, e Nilsson e Pelger sentiram-se, portanto seguros em atribuir uma herdabilidade de 50 por cento no seu modelo do olho. Esta hipótese era conservadora, ou “pessimista”. Comparada com uma hipótese mais realista de, digamos, 70 por cento, a hipótese pessimista tende a aumentar a sua estimativa [mal do tempo necessário para que o olho evolua. Eles desejavam errar para mais, pois somos intuitivamente céticos com relação a estimativas curtas para o tempo exigido na evolução de algo tão complicado como um olho.

Pela mesma razão, eles escolheram valores pessimistas para o coeficiente de variação (isto é, para a quantidade de variação que tipicamente existe na população) e a intensidade de seleção (a vantagem quantitativa em sobrevivência que uma visão aperfeiçoada confere). Eles chegaram até a assumir que qualquer geração nova diferia em apenas uma parte do olho de cada vez: mudanças simultâneas em diferentes partes do olho, que teriam acelerado bastante a evolução, foram declaradas ilegítimas. Mas, mesmo com estas hipóteses conservadoras, o tempo necessário para a evolução de um olho de peixe a partir de uma superfície plana era minúsculo: menos de 400 mil gerações. Para os tipos de animais pequenos de que estamos falando, podemos assumir uma geração por ano, assim parece que seriam necessários menos de 500 anos para fazer evoluir um bom olho semelhante a uma câmera.

À luz dos resultados de Nilsson e Pelger, não é surpreendente que “o” olho tenha evoluído de modo independente pelo menos quarenta vezes no reino animal. Houve tempo suficiente para que o olho evoluísse a partir do nada 1.500 vezes sucessivas dentro de cada linha de evolução. Assumindo períodos de tempo geracionais típicos para os pequenos animais, o tempo necessário para a evolução do olho, longe de provocar espanto com a sua extensão, revela-se ser muito curto pelos padrões geológicos. Um piscar de olhos, por estes padrões.

Faça o bem furtivamente. Um aspecto-chave da evolução é o seu gradualismo. Isto é mais uma questão de princípios do que de fatos. Pode ser ou não o caso de alguns episódios da evolução sofrerem uma guinada brusca. Pode haver pontos de evolução rápida, ou mesmo macromutações abruptas – grandes mudanças separando uma criança de seus pais. Certamente há extinções súbitas – provocadas, talvez, por grandes catástrofes naturais tal como a colisão de um cometa com a Terra – e estas extinções deixam vácuos a ser preenchidos por substitutos que se aperfeiçoam rapidamente, como os mamíferos que substituíram os dinossauros. Como fato real, a evolução não é possivelmente sempre gradual. Mas deve ser gradual quando é empregada para explicar o surgimento de coisas complicadas, aparentemente projetadas, como os olhos. Pois se nestes casos ela não for gradual, cessa de ter qualquer poder explanatório. Sem o gradualismo nestes casos, voltamos ao milagre, que é simplesmente sinônimo para a ausência total de explicação.

A razão pela qual os olhos e as orquídeas polinizadas pelas vespas nos impressionam tanto é que são improváveis. As chances adversas à sua existência espontânea, fruto da boa sorte, são chances muito grandes para que isto aconteça no mundo real. A evolução gradual por pequenos passos, cada passo dotado de sorte, mas não muita sorte, é a solução para o problema. Mas, se ela não é gradual, não é solução; é apenas uma reafirmação do problema.

Haverá épocas para as quais será difícil imaginar como as etapas intermediárias devem ter sido. Estas etapas se constituirão em desafio para a nossa engenhosidade, mas se a nossa engenhosidade falhar, pior para ela. Isto não se constitui em evidência de que não houve etapas intermediárias. Um dos desafios mais árduos à nossa engenhosidade em imaginar etapas intermediárias é fornecido pela célebre “linguagem da dança” das abelhas descoberta no trabalho clássico pelo qual Karl von Frisch é mais conhecido. Aqui o produto final da evolução parece tão complicado, tão engenhoso e tão distante do que esperaríamos normalmente de um inseto que é muito difícil imaginar as etapas intermediárias.

As abelhas informam umas às outras sobre a localização das flores por meio de uma dança cuidadosamente codificada. Se o alimento estiver muito próximo da colméia, elas executam a “quadrilha”. Isto apenas excita as outras abelhas, e estas correm para fora da colméia e examinam as vizinhanças. Nada de particularmente notável. Mas é muito notável o que acontece quando a comida está longe da colméia. A abelha provedora que descobriu o alimento executa a assim chamada “dança do balanço”, e sua forma e sincronização informam às outras abelhas a direção e a distância da colméia ao alimento. A dança do balanço é executada no interior da colméia sobre a superfície vertical de um favo. A colméia é escura, de modo que a dança do balanço não é vista pelas outras abelhas. Ela é percebida por elas, e também ouvida, pois a abelha dançarina acompanha a sua performance com pequenos ruídos rítmicos. A dança tem a forma de um oito, com um curso reto no meio. É a direção do curso reto que, na forma de um código engenhoso, informa sobre a direção da comida.

A direção da dança não aponta diretamente para a comida. Não pode ser assim, já que a dança é realizada sobre a superfície vertical do favo e o alinhamento do próprio favo é fixo, não interessando onde a comida possa estar. A comida deve estar localizada na geografia horizontal. O favo vertical é mais como um mapa pendurado na parede. Uma linha desenhada no mapa da parede não aponta diretamente para um destino em particular, mas você pode ler a direção por meio de uma convenção arbitrária.

Para entender a convenção que as abelhas utilizam, você deve saber primeiro que as abelhas, como muitos insetos, orientam-se usando o Sol como uma bússola. Nós o fazemos também, de um modo aproximado. O método tem duas desvantagens. Primeiro, muitas vezes o Sol fica escondido atrás das nuvens. As abelhas resolvem este problema por meio de um sentido que nós não possuímos. Mais uma vez, foi Von Frisch que descobriu que elas podem perceber a direção da polarização da luz e isto as informa sobre a posição do Sol mesmo que este esteja invisível. O segundo problema com a bússola solar é que o Sol “move-se” nos céus à medida que as horas passam. As abelhas dão conta disto utilizando um relógio interno. Von Frisch descobriu, quase inacreditavelmente, que as abelhas dançarinas presas dentro da colméia durante horas após a sua expedição à cata de comida giravam lentamente a direção do curso direto da dança, como se este curso reto fosse o ponteiro das horas de um relógio que marca 24 horas. Dentro da colméia elas não podiam ver o Sol, mas estavam orientando lentamente a direção do curso reto da sua dança para manter-se em compasso com o movimento do Sol, o qual, seus relógios internos lhes diziam, devia estar ocorrendo lá fora. Fascinantemente, as abelhas do hemisfério Sul fazem a mesma coisa ao contrário, como deveriam.

Agora, examinemos o código propriamente dito. O curso da dança, ao apontar diretamente para cima em relação ao favo, sinaliza que o alimento está na mesma direção do Sol. Para baixo sinaliza que o alimento está na direção oposta. Todos os ângulos intermediários sinalizam o que você esperaria. Cinqüenta graus à esquerda da vertical significam 50 graus à esquerda da direção do Sol no plano horizontal. A precisão da dança, porém, não é exata. Por que deveria ser, pois é uma convenção arbitrária nossa dividir a bússola em 360 graus? As abelhas dividem-no em mais ou menos 8 graus apícolas. Na verdade, isto é o que fazemos aproximadamente quando não somos navegadores profissionais. Dividimos nosso compasso informal em oito quadrantes: N, NE, E, SE, S, SO, O e NO.

A dança das abelhas codifica também à distância. Ou melhor, os vários aspectos da dança. A taxa de volteio, a taxa de balanço, a taxa de emissão de ruído – são todas relacionadas com a distância ao alimento, e qualquer uma destas ou qualquer combinação poderia, portanto ser utilizada pelas outras abelhas para obter a distância. Quanto mais perto está a comida, mais rápida é a dança. Você pode lembrar-se disto pensando que, ao encontrar comida perto da colméia, é natural que uma abelha fique mais excitada, e menos cansada, do que uma abelha que descobriu comida a uma distância muito grande. Isto é mais do que apenas um aidememoire; como veremos, é a chave para descobrir como a dança evoluiu.

Em resumo, a abelha batedora descobre uma boa fonte de alimentação. Ela retoma à colméia, carregada de néctar e pólen, e entrega sua carga às operárias que estão ali para recebê-la. Então ela começa a sua dança. Em algum lugar sobre um favo vertical, não importa onde, ela volteia repetidas vezes, traçando a figura de um oito. As outras operárias aglomeram-se em tomo dela, sentindo, ouvindo. Elas contam a taxa de emissão de ruído e talvez a taxa de volteio. Elas medem, relativamente à vertical, o ângulo do curso reto da dança enquanto a dançarina faz balançar o seu abdômen. Então elas vão para a porta da colméia e saem da escuridão para a luz do dia. Elas observam a posição do Sol– não a sua altura vertical, mas sim a sua orientação em relação a uma bússola no plano horizontal. Depois voam em linha reta, cujo ângulo em relação ao Sol combina com o ângulo da dança original da batedora relativamente à vertical no favo. Elas mantêm o vôo neste curso, não por uma distância indefinida, mas por uma distância (inversamente) proporcional à (na verdade, o logaritmo da) taxa de emissão dos pequenos ruídos rítmicos da dançarina original. De modo intrigante, se a abelha original realizou um vôo com escalas para descobrir a comida, ela orienta sua dança não na direção destas escalas, mas sim na direção reconstituída com compasso direcional da comida.

A história das abelhas dançarinas é difícil de ser acreditada, e alguns a têm posto em dúvida. Retomarei aos céticos, e às experiências recentes que finalmente estabeleceram as evidências, no próximo capítulo. Neste capítulo, quero discutir a evolução gradual da dança das abelhas. Como teriam sido as etapas intermediárias na sua evolução, e como estas etapas operavam quando a dança ainda estava incompleta?

A propósito, o modo pelo qual a questão foi colocada não está completamente correto. Nenhuma criatura consegue viver sendo “uma etapa intermediária”, “incompleta”. As abelhas de outrora, há tempo desaparecidas e cujas danças podem ser interpretadas, com uma visão a posteriori, como etapas intermediárias rumo ao modo pelo qual as abelhas modernas dançam, viviam bem. Elas viviam uma vida completa como abelhas e não pensavam “estar a caminho” de algo “melhor”. E, mais ainda, nossa dança das abelhas “moderna” pode não ser a última palavra e evoluir para alguma coisa ainda mais espetacular quando nós e nossas abelhas já tivermos desaparecido. Não obstante, temos realmente um quebra-cabeça no modo pelo qual a dança atual das abelhas pode ter evoluído em passos graduais. Como eram estas etapas intermediárias e como funcionavam?

O próprio Von Frisch atacou o problema, e ele o atacou examinando a árvore de família, os primos modernos distantes das abelhas. Estes não são os ancestrais das abelhas, pois são seus contemporâneos. Mas eles podem reter características dos ancestrais. A abelha é um inseto da zona temperada que nidifica em busca de abrigo em árvores ocas ou cavernas. Seus parentes mais próximos são as abelhas tropicais que podem nidificar em campo aberto, pendurando as suas colméias em arbustos de árvores ou nas rochas. Portanto, elas são capazes de ver o Sol enquanto dançam, e não têm de recorrer à convenção de deixar a vertical “substituir” a direção do Sol. O Sol pode desempenhar ele próprio o seu papel.

Um destes parentes tropicais, a abelha anã Apis florea, dança sobre uma superfície horizontal no topo do favo. O curso reto da dança aponta diretamente para o alimento. Não há necessidade de uma convenção de mapas: a orientação direta é suficiente. Certamente, uma etapa de transição plausível no caminho da abelha comum, mas ainda temos de pensar sobre as etapas intermediárias que precederam e sucederam a esta. Como poderiam ter sido as precursoras da dança da abelha anã? Por que deveria uma abelha que encontrou comida recentemente traçar uma figura em forma de oito e cujo curso reto aponta na sua direção? A sugestão é de que se trata de uma forma ritualizada de decolagem. Antes que a dança evoluísse, sugeriu Von Frisch, a batedora que tivesse descarregado a comida simplesmente decolaria na mesma direção, voando de volta para a fonte de alimentos. Como preparação para a sua decolagem, ela voltaria a face na direção correta e poderia dar alguns passos. A seleção natural favoreceria qualquer tendência em exagerar ou prolongar a decolagem se isto encorajasse as outras abelhas para que a seguissem. Talvez a dança seja uma espécie de decolagem repetida ritualizada. Isto é plausível porque, utilizem ou não a dança, as abelhas freqüentemente utilizam a tática mais direta de simplesmente seguir uma à outra até a fonte de alimentação. Um outro fato que dá plausibilidade à idéia é que as abelhas dançarinas mantêm as suas asas levemente esticadas como se fossem voar e as fazem vibrar, não de modo suficientemente vigoroso para decolar, mas o suficiente para produzir o ruído que é parte importante da dança de sinais.

Uma maneira óbvia de prolongar e exagerar a corrida para a decolagem é repeti-la. A repetição significa voltar ao começo e novamente efetuar uns poucos passos na direção da comida. Há duas maneiras de voltar ao começo: você pode virar para a esquerda ou para a direita no final da pista. Se você consistentemente virar para a direita ou consistentemente virar para a esquerda, ficará ambígua a ,direção que deve ser a verdadeira direção da decolagem e a direção de retorno ao começo da pista. A melhor maneira de remover a ambigüidade é virar alternativamente para a esquerda e para a direita. Daí o favorecimento pela seleção natural do padrão da figura do oito.

Mas como a relação entre a distância da comida e a rapidez da dança evoluiu? Se a rapidez da dança fosse positivamente relacionada com a distância da comida, isto seria difícil de explicar. Mas, você deve lembrar, na verdade acontece o oposto: quanto mais perto está a comida, mais rápida é a dança. Isto sugere imediatamente uma trajetória plausível de evolução gradual. Antes que a dança propriamente dita evoluísse, as batedoras poderiam ter executado a sua repetição ritualizada da decolagem, mas sem que isto fosse feito com uma velocidade em particular. A rapidez da dança seria aquela que quisessem. Agora, se você tivesse voado de volta para casa percorrendo vários quilômetros, sobrecarregado com néctar e pólen, você se sentiria com disposição para uma arremetida em alta velocidade em torno do favo? Não, você provavelmente se sentiria exausto. Por outro lado, se você tivesse recém-descoberto uma rica fonte de alimentos bastante perto da colméia, sua curta viagem para casa o teria deixado outro e energético. Não é difícil imaginar como uma relação original acidental entre a distância da comida e a lentidão da dança poderia ter se ritualizado em um código formal e seguro.

E agora a mais desafiadora de todas as etapas intermediárias. Como é possível que uma dança antiga na qual a direção apontava diretamente para a comida tenha se transformado em uma dança na qual o ângulo relativo à vertical é um código para o ângulo da comida em relação ao Sol? Tal transformação era necessária em parte porque o interior da colméia é escuro e não se pode ver o Sol, e em parte porque, ao dançar em um favo vertical, não se pode apontar diretamente para a comida a menos que a própria superfície aponte para a comida. Mas não é suficiente mostrar que algo desta transformação era necessário. Temos também de explicar como esta transição difícil foi realizada por meio de uma série plausível de etapas intermediárias percorridas passo a passo.

Parece espantoso, mas um fato singular a respeito do sistema nervoso dos insetos vem em nosso auxilio. O notável experimento que vem a seguir foi realizado com uma variedade de insetos, desde os besouros até as formigas. Comecemos com um besouro caminhando ao longo de uma tábua de madeira horizontal na presença de luz elétrica. A primeira coisa a ser demonstrada é que o inseto está usando uma bússola fornecida pela luz. Mude a posição da lâmpada, e o inseto mudará a sua direção concomitantemente. Se ele estava seguindo um curso de digamos, 30 graus relativamente à luz da lâmpada, ele mudará seu curso para manter a orientação de 30 graus em relação à nova posição da luz. De fato, você pode mudar o curso da trajetória do besouro do modo que desejar, usando o feixe de luz como timão. Este fato a respeito dos insetos é há muito tempo sabido: eles utilizam o Sol (ou a Lua, ou as estrelas) como bússola, e você pode enganá-los facilmente com uma lâmpada. Até aqui tudo bem. Agora passemos para a experiência interessante. Desligue a luz e ao mesmo tempo incline a tábua até alinhá-la com a vertical. Impassível, o besouro continua a caminhar. E, mirabile dictu, ele muda a sua direção de caminhada para que o ângulo com relação à vertical seja igual ao ângulo prévio em relação à luz: no nosso exemplo, 30 graus. Ninguém sabe por que isto acontece. Este fato parece trair uma esquisitice acidental do sistema nervoso do inseto – uma confusão dos sentidos, uma interferência entre o sentido da gravidade e o sentido da visão, talvez um pouco parecido com o que acontece conosco quando vemos um flash de luz ao sermos atingidos na cabeça. De qualquer modo, este fato fornece provavelmente a ponte para a evolução do código em que “a vertical substitui o Sol” da dança das abelhas.

De modo revelador, se você acender a luz no interior de uma colméia, as abelhas abandonarão seu senso de gravidade e usarão a direção da luz como substituto direto do Sol em seu código. Este fato há muito conhecido, foi explorado em um dos experimentos mais engenhosos jamais realizado, o experimento que finalmente permitiu a obtenção das evidências. de que a dança das abelhas realmente funciona. Retomarei a isto no próximo capítulo. Entrementes, descobrimos uma série plausível de danças intermediárias pela qual a dança moderna das abelhas poderia ter evoluído a partir de começos mais simples. A história como eu a relatei, com base nas idéias de Von Frisch, pode na verdade ser a história correta. Mas alguma coisa um pouco parecida com ela certamente aconteceu. Contei esta história como uma resposta ao ceticismo natural – o Argumento da Incredulidade Pessoal – que surge nas pessoas quando estas deparam com um fenômeno natural realmente engenhoso ou complicado. O cético diz: “Eu não posso conceber uma série plausível de estágios intermediários, portanto não há nenhum, e o fenômeno surgiu por um milagre espontâneo”. Von Frisch apresentou uma série plausível de estágios intermediários. Mesmo que não seja a série correta, o fato de que é plausível é suficiente para contrapor-se ao Argumento da Incredulidade Pessoal. O mesmo é verdadeiro para todos os outros exemplos que examinamos, desde as orquídeas que mimetizam a fêmea da vespa até os olhos semelhantes aos das câmeras fotográficas.

Muitos fatos da natureza curiosos e intrigantes poderiam ser reunidos por pessoas céticas em relação ao gradualismo darwiniano. Por exemplo, me foi pedido que explicasse a evolução gradual das criaturas que vivem nas fendas profundas do oceano Pacífico, onde não há luz e onde a pressão da água pode exceder as 1.000 atmosferas. Uma comunidade inteira de animais cresceu em torno de crateras vulcânicas e quentes nas profundezas dos abismos do Pacífico. Uma bioquímica completa alternativa é conduzida pelas bactérias, que utilizam o calor das crateras e metabolizam o enxofre em vez do oxigênio. A comunidade de animais maiores é dependente destas bactérias sulfurosas, exatamente como a vida comum é dependente das plantas verdes que capturam energia do Sol.

Os animais da comunidade sulfurosa são todos parentes dos animais mais convencionais encontrados em outras partes. Como evoluíram e através de que estágios intermediários? Bem, a forma do argumento será exatamente a mesma. Tudo de que precisamos para a nossa explicação é pelo menos um gradiente natural, e os gradientes são abundantes quando descemos às profundezas dos mares. Mil atmosferas é uma pressão horrenda, mas é apenas quantitativamente maior do que 999 atmosferas, que por sua vez é apenas quantitativamente maior do que 998 e assim por diante. O fundo do mar apresenta gradientes de profundidade desde zero metro passando por todos os valores intermediários até 11 quilômetros. A pressão varia suavemente desde 1 atmosfera até 1.000 atmosferas. A intensidade da luz varia suavemente desde a plena luz do dia próximo da superfície até a escuridão total das profundezas, aliviada apenas pelos raros aglomerados de bactérias luminescentes dos órgãos luminosos dos peixes. Não há cortes bruscos. Para cada nível de pressão e escuridão, haverá um projeto de animal já adaptado a estas condições, ligeiramente diferente de outros animais existentes, que pode sobreviver um centímetro mais fundo, uma candela a menos de luz. Para todo... mas este capítulo já está se estendendo para além da conta. Você conhece meus métodos Watson. Aplique-os.

 

                     A função de utilidade de Deus

Meu missivista clerical do capítulo anterior descobriu a fé por meio de uma vespa. Charles Darwin perdeu a sua com a ajuda de uma outra: “Não posso convencer-me”, escreveu Darwin, “de que um Deus benéfico e onipotente tenha criado propositalmente as Ichneumonidae .com a intenção expressa de que estas buscassem o seu alimento no interior do corpo vivo das lagartas”. Na verdade, a perda gradual da fé por parte de Darwin, que ele dissimulava com medo de aborrecer sua devota esposa Emma, tinha causas mais complexas. Sua referência às Ichneumonidae era aforística. Os hábitos macabros aos quais ele se referiu são compartilhados por suas primas, as vespas cavadoras13, as quais encontramos no capítulo anterior. A fêmea da vespa cavadora não apenas põe seus ovos numa lagarta (ou gafanhoto ou abelha) para que suas larvas alimentem-se de seu corpo, mas, de acordo com Fabre e outros, ela cuidadosamente dirige seu ferrão para cada um dos gânglios do sistema nervoso central da presa, de modo a paralisá-la mas não matá-la. Deste modo, a carne mantém-se fresca. Não se sabe se a paralisia funciona como uma anestesia geral ou se ela funciona como o curare que simplesmente suprime a habilidade que a vítima tem de mover-se. Se este for o caso, a presa pode estar consciente de estar sendo comida viva a partir de seu interior, mas é incapaz de mover um músculo para fazer qualquer coisa a respeito. Isto parece selvagemente cruel mas, como veremos, a natureza não é cruel, apenas implacavelmente indiferente. Esta é uma das lições mais duras que os humanos têm de aprender. Não podemos admitir que as coisas possam ser nem boas nem más, nem cruéis nem carinhosas, mas simplesmente cruas – indiferentes a todos os sofrimentos e sem nenhum propósito.

Nós humanos temos o propósito no cérebro. Achamos difícil olhar para qualquer coisa sem perguntar-nos “para que serve?”, qual o motivo ou qual o propósito por trás disto. Quando a obsessão com o propósito toma-se patológica, ela é chamada paranóia – e interpretar como propósito malevolente o que na verdade é aleatório é chamado de má sorte. Mas esta é uma forma exagerada de uma ilusão quase universal. Mostrem-nos quase qualquer objeto ou processo e será difícil para nós resistir à pergunta “por quê?” – ou à pergunta “para que serve?”

O desejo de ver propósito em toda parte é natural em um animal que vive cercado por máquinas, obras de arte, instrumentos e outros artefatos projetados; além do mais, um animal cujos devaneios diurnos são dominados por seus próprios objetivos pessoais. Um carro, um abridor de latas uma chave de parafuso ou um forcado garantem a legitimidade na pergunta “para que serve?”. Nossos antepassados pagãos teriam feito a mesma pergunta sobre os trovões, os eclipses, as rochas e as correntes de água. Hoje orgulhamo-nos de termos nos livrado deste animismo primitivo. Se, em um curso d’água, uma pedra serve como apoio, consideramos sua utilidade como um benefício acidental, e não algo com um propósito verdadeiro. Mas a velha tentação volta para vingar-se quando uma tragédia nos atinge – na verdade, a própria palavra “atinge” é um eco animístico: “Por quê, mas por quê, o câncer/terremoto/furacão tinha de atingir a minha criança?” E a mesma tentação é muitas vezes saboreada de modo positivo quando o tópico é a origem de todas as coisas ou as leis fundamentais da física, culminando na questão existencial vazia “Por que existe algo em vez de nada?”.

Perdi a conta do número de vezes em que um membro da platéia levantou-se após uma palestra pública ministrada por mim e disse algo mais ou menos como se segue: “Vocês cientistas são muito bons em responder perguntas do tipo ‘como?’. Mas devem admitir que são impotentes frente a perguntas do tipo ‘por quê?’’’. O príncipe Philip, duque de Edimburgo, ressaltou este mesmo ponto quando em uma palestra em Windsor dirigiu-se a meu colega, o Dr. Peter Atkins. Por trás da pergunta há sempre a implicação não dita mas injustificada de que, como a ciência é incapaz de responder às perguntas do tipo “por quê?”, deve haver alguma outra disciplina qualificada para respondê-las. A implicação é, naturalmente, bastante ilógica.

Temo que o Dr. Atkins tenha dado pouca atenção ao “por quê?” real. O simples fato de que se possa fazer uma pergunta não toma sensato ou legítimo fazê-la. Há muitas coisas sobre as quais você pode perguntar: “qual é a sua temperatura?” ou “qual é a sua cor?”, mas você não pode fazer a pergunta sobre a temperatura ou sobre a cor relativamente ao, digamos, ciúme ou à oração. Da mesma forma, você está certo em perguntar “por quê?” a respeito dos pára-lamas da bicicleta ou da represa de Kariba, mas no mínimo você não tem direito de supor que a pergunta do tipo “por quê?” merece uma resposta quando feita a respeito de um rochedo, um infortúnio, o monte Everest ou o universo. Perguntas podem ser simplesmente inapropriadas, não importa quão sincera seja sua formulação.

Em algum lugar entre limpadores de pára-brisa e abridores de lata de um lado e o universo do outro estão às criaturas vivas. Os corpos vivos e seus órgãos são objetos que, ao contrário das rochas, parecem ter a palavra propósito escrita em todas as suas partes. De modo notório, é claro, a finalidade aparente dos corpos vivos dominou o clássico Argumento do Plano14, invocado pelos teólogos desde são Tomás de Aquino e William Paley aos criacionistas “científicos” modernos.

O processo verdadeiro que dotou as asas e os olhos, os bicos, os instintos de procriação e todos os demais aspectos da vida de uma intensa ilusão de plano proposital está agora bem entendido. É a seleção natural darwiniana. Nossa compreensão disto, de modo espantoso, chegou até nós recentemente, no último século e meio. Antes de Darwin, mesmo as pessoas instruídas que haviam abandonado as perguntas do tipo “por quê?” com respeito às rochas, cursos d’água e eclipses ainda aceitavam implicitamente este tipo de pergunta sempre que dizia respeito às criaturas vivas. Agora apenas os cientificamente analfabetos a fazem. Mas “apenas” esconde a verdade indigesta de que ainda estamos falando sobre a maioria absoluta.

Na verdade, os darwinianos fazem perguntas do tipo “por quê?” a respeito das coisas vivas, mas eles o fazem em um sentido especial, metafórico. Por que as aves cantam, e para que servem as asas? Tais perguntas seriam aceitas como uma espécie de taquigrafia pelos darwinianos modernos e teriam respostas sensatas em termos da seleção natural dos ancestrais das aves. A ilusão do propósito é tão poderosa que os próprios biólogos utilizam a suposição do propósito com boas intenções como ferramenta de trabalho. Como vimos no capítulo anterior, muito antes de seu trabalho sobre a dança das abelhas que marcou época, Karl Von Frisch descobriu, nas barbas da forte opinião ortodoxa em contrário, que alguns insetos têm visão colorida verdadeira. Suas experiências apaixonantes foram estimuladas pela simples observação de que as flores polinizadas pelas abelhas dão-se o trabalho de produzir pigmentos coloridos. Por que deveriam elas fazer isto se as abelhas fossem cegas às cores? A metáfora do propósito – mais precisamente, a suposição de que a seleção darwiniana faz parte do processo – é usada aqui para fazer uma inferência forte sobre o mundo. Teria sido uma atitude bastante errônea por parte de Von Frisch se ele tivesse dito: “As flores são coloridas, portanto as abelhas devem ter visão em cores”. Mas foi correto da parte dele dizer, como o disse: “As flores são coloridas, portanto pelo menos vale a pena trabalhar duro em algumas experiências novas para testar a hipótese de que as abelhas têm visão em cores”. O que Von Frisch descobriu quando examinou a questão com detalhes foi que as abelhas têm uma boa visão em cores, mas que o espectro no qual vêem é deslocado em relação ao nosso. Elas não podem ver a luz vermelha (as abelhas poderiam dar o nome de “infra-amarelo” ao que chamamos vermelho). Mas as abelhas podem ver na parte do espectro que corresponde a comprimentos de onda mais curtos que chamamos ultravioleta, e elas vêem o ultravioleta como uma cor diferente, algumas vezes chamada de “roxo das abelhas”.

Quando se deu conta de que as abelhas vêem a parte ultravioleta do espectro, Von Frisch mais uma vez fez alguns raciocínios utilizando a metáfora do propósito. Para que, ele perguntou-se, as abelhas usam sua capacidade de ver a luz ultravioleta? Seus pensamentos voltaram-se novamente, de modo circular, para as flores. Embora não possamos ver a luz ultravioleta, podemos fazer um filme fotográfico que é sensível a ela, e podemos fazer filtros que são transparentes para a luz ultravioleta, mas que cortam a luz “visível”. Agindo de acordo com sua suposição, Von Frisch tirou algumas fotografias ultravioletas das flores. Para sua alegria, viu o padrão de manchas e listras que nenhum olho humano havia visto antes, que muitas vezes servem como sinalizadores de pista de pouso para guiar as abelhas até o néctar. A suposição de propósito aparente havia mais uma vez dado certo: as flores, se bem projetadas, explorariam o fato de que as abelhas podem ver nos comprimentos de onda ultravioleta.

Quando Von Frisch já estava velho, seu trabalho mais famoso – sobre a dança das abelhas, que discutimos no último capítulo – foi questionado por um biólogo americano chamado Adrian Wenner. Felizmente, Von Frisch viveu o tempo suficiente para ver seu trabalho conímnado por um outro americano, James L. Gould, agora em Princeton, em uma das experiências mais brilhantemente concebidas de toda a biologia. Relatarei brevemente a história, pois esta é relevante para o meu argumento sobre o poder da suposição do tipo “como se tivesse sido planejado”.

Wenner e seus colegas não negaram que a dança acontece. Eles nem mesmo negaram que ela contém toda a informação que Von Frisch disse que continha. O que eles realmente negaram foi que outras abelhas interpretam a dança. Sim, disse Wenner, é verdade que a direção da corrida em linha reta da dança agitada em relação à vertical está relacionada com a direção da comida em relação ao Sol. Mas não, as outras abelhas não recebem esta informação da dança. Sim, é verdade que as taxas de várias coisas podem ser interpretadas como informação a respeito da distância da comida. Mas não há boas evidências de que as outras abelhas possam interpretar a informação. Elas as poderiam estar ignorando. As evidências de Von Frisch, disseram os críticos, eram falhas, e quando eles repetiram suas experiências com os “controles” apropriados (isto é, levando em conta os meios alternativos pelos quais as abelhas podem descobrir a comida), as experiências não mais apoiavam a hipótese da linguagem da dança das abelhas.

É aqui que Jim Gould entra na história com suas experiências requintadas e engenhosas. Gould explorou um fato há muito sabido sobre as abelhas comuns, que você recordará do capítulo anterior. Embora elas usualmente dancem no escuro, utilizando a direção diretamente para cima no plano vertical como um símbolo codificado da direção do Sol no plano horizontal, as abelhas comuns passarão sem esforço para um modo possivelmente mais antigo de fazer as coisas se você acender a luz dentro da colméia. Elas esquecerão tudo sobre a gravidade e usarão a lâmpada como seu Sol de imitação, permitindo que ela determine diretamente o ângulo da dança. Felizmente, não há qualquer mal-entendido quando a dançarina troca de objeto de fidelidade, passando da gravidade para a lâmpada. As outras abelhas que “interpretam” a dança trocam de fidelidade, do mesmo modo, de modo que a dança ainda tem o mesmo significado: as outras abelhas ainda se desviam procurando a comida na direção que a dançarina pretendia.

Agora o golpe de mestre de Jim Gould. Ele pintou os olhos de uma abelha dançarina com esmalte preto, de modo que ela não podia ver a lâmpada. Esta abelha, portanto dançou utilizando a convenção normal imposta pela gravidade. Mas as outras abelhas que acompanhavam a sua dança, não estando cegas, podiam ver a lâmpada. Elas interpretaram a dança como se a convenção imposta pela gravidade tivesse sido deixada de lado e a substituíram pela convenção imposta pela lâmpada “solar”. As dançarinas acompanhantes mediram o ângulo da dança em relação à luz, enquanto a dançarina cega a orientava em relação à gravidade. De fato, Gould estava forçando a abelha dançarina a ficar na direção da comida. Ficar não apenas em um sentido geral, mas ficar em uma direção particular que Gould podia manipular precisamente. Ele realizou a experiência não apenas com uma abelha cega, é claro, mas com uma amostra estatística de abelhas e ângulos variadamente manipulados. E funcionou. A hipótese original de Von Frisch sobre a linguagem da dança foi confirmada de modo triunfante.

Não contei esta história apenas por divertimento. Queria realçar os aspectos positivos e negativos da suposição de bom planejamento. Quando li pela primeira vez os trabalhos céticos de Wenner e seus colegas, fui abertamente zombeteiro. Não era uma coisa boa de ser feita, mesmo que finalmente Wenner se mostrasse errado. Minha zombaria era fundamentada na hipótese do “bom planejamento”. Wenner, afinal de contas, não estava negando que a dança existisse, nem que ela corporificasse toda a informação que Von Frisch afirma que continha a respeito da distância e da direção da comida. Wenner simplesmente negava que as outras abelhas interpretassem a informação. E isto era intragável para mim e para outros biólogos darwinianos. A dança era tão complicada, tão requintadamente detalhada, tão perfeitamente sintonizada com seu propósito aparente de informar às outras abelhas sobre a distância e a direção da comida. Esta sintonia perfeita não poderia ter surgido, do nosso ponto de vista, senão pela seleção natural. De um certo modo, nós caímos na mesma armadilha em que os criacionistas caem quando contemplam as maravilhas da vida. Simplesmente a dança tinha de estar servindo a um propósito útil, e isto presumivelmente significava ajudar as abelhas a encontrar comida. Mais ainda, aqueles mesmos aspectos da dança que eram precisamente ajustados – a relação do seu ângulo e velocidade com a direção e distância à comida – tinham de estar servindo a um propósito útil também. Portanto, no nosso ponto de vista, Wenner tinha de estar errado. Eu estava tão confiante que, mesmo se fosse suficientemente engenhoso para propor a experiência da abelha cega de Gould (o que certamente eu não era), não teria me dado o trabalho de realizá-la.

Gould não apenas era suficientemente engenhoso para imaginar a experiência como também deu-se o trabalho de fazê-la, pois não estava seduzido pela hipótese do bom planejamento. Entretanto, é uma corda bamba muito fina esta sobre a qual estamos caminhando, pois suspeito que Gould – como Von Frisch antes dele, na sua pesquisa sobre as cores – tinha suficientes suposições do tipo “bom planejamento” em sua cabeça para acreditar que sua notável experiência tinha uma chance respeitável de sucesso e portanto valia a pena gastar tempo e esforço com ela.

Quero agora introduzir dois termos técnicos, “engenharia reversa” e “função de utilidade”. Nesta seção, sou influenciado pelo soberbo livro de Daniel Dennett Darwin’s Dangerous Idea (A perigosa idéia de Darwin). A engenharia reversa é uma técnica de raciocínio que funciona do seguinte modo. Você é um engenheiro confrontado com um artefato que encontrou, mas não entende. Você faz a hipótese de trabalho de que ele foi projetado com algum propósito. Você disseca e analisa o objeto visando descobrir para que tipo de problema ele seria a solução: “Se eu quisesse construir uma máquina que fizesse isto-e-lsto, eu a teria feito desta forma? Ou será o objeto melhor explicado como uma máquina projetada para fazer aquilo-e-aquilo?”

A régua de cálculo, símbolo até recentemente da honrosa profissão de engenheiro, é na era da eletrônica tão obsoleta quanto qualquer relíquia da Idade do Bronze. Um arqueólogo do futuro, encontrando uma régua de cálculo e se perguntando sobre ela, pode observar que esta é útil para desenhar linhas retas e passar manteiga no pão. Mas supor que qualquer uma destas atividades era o seu propósito original viola o pressuposto de economia. Uma simples régua ou faca de manteiga não teria necessidade de uma parte deslizante no meio da régua. Mais ainda, se você examinar o espaçamento das gratículas, você descobrirá escalas logarítmicas precisas, dispostas de modo demasiadamente meticuloso para serem acidentais. Um arqueólogo dar-se-ia conta de que, em uma época anterior à das calculadoras eletrônicas, este padrão se constituiria em um truque engenhoso que serviria para a multiplicação e divisão rápidas. O mistério da régua de cálculo seria resolvido pela engenharia reversa, empregando a hipótese do projeto inteligente e econômico.

“A função de utilidade” é utilizado não pelos engenheiros, mas sim pelos economistas. Ela significa “aquilo que é maximizado”. Os planejadores econômicos e engenheiros sociais parecem-se bastante com os arquitetos e os engenheiros verdadeiros, pois esforçam-se em maximizar alguma coisa. Os utilitaristas esforçam-se em maximizar”o máximo de felicidade para o maior número” (a propósito, uma frase que soa mais inteligente do que é). Debaixo deste guarda-chuva, o utilitarista pode dar à estabilidade de longo prazo uma prioridade maior ou menor à custa da felicidade de curto prazo, e os utilitaristas discordam se medem a “felicidade” pela riqueza monetária, satisfação no trabalho, realização cultural ou relações pessoais. Outros confessadamente maximizam a sua própria felicidade à custa do bem-estar comum, e podem dignificar o seu egoísmo com uma filosofia que afirma que a felicidade geral será maximizada se cada um tornar conta de si mesmo. Pela observação do comportamento dos indivíduos ao longo de suas vidas, você deveria ser capaz de aplicar a engenharia reversa às suas funções de utilidade. Se você aplicar a engenharia reversa ao comportamento do governo de um país, pode chegar à conclusão de que o que está sendo maximizado é o emprego e o bem-estar geral. Para um outro país, a função de utilidade pode revelar ser o poder ininterrupto de um presidente, ou a riqueza de uma família governante particular, o tamanho do harém de um sultão, a estabilidade do Oriente Médio, ou a manutenção do preço do petróleo. A questão é que podemos conceber mais de uma função de utilidade. Nem sempre é óbvio o que indivíduos, empresas ou governos estão se esforçando em maximizar. Mas provavelmente é seguro assumir que eles estão maximizando alguma coisa. Isto é assim porque o Homo sapiens é uma espécie profundamente dotada de propósitos. O princípio é válido mesmo que a função de utilidade revele ser uma média ponderada ou alguma outra função complicada de muitos dados de entrada.

Retomemos aos corpos vivos e tentemos extrair a sua função de utilidade. Poderia haver muitas, mas de modo revelador, finalmente elas se mostrariam redutíveis a uma. Urna boa maneira de dramatizar a nossa tarefa é imaginar que as criaturas vivas foram feitas por um Engenheiro Divino e tentar entender a partir disto, com a engenharia reversa, o que o Engenheiro estava tentando maximizar. Qual era a função de utilidade de Deus?

As chitas mostram todos os indícios de ser soberbamente projetadas para alguma coisa, e deveria ser suficientemente fácil aplicar a elas a engenharia reversa e descobrir a sua função de utilidade. Elas parecem projetadas para matar antílopes. Os dentes, as garras, os olhos, o focinho, os músculos das patas, espinha dorsal e o cérebro de uma chita são precisamente tudo o que deveríamos esperar se o propósito de Deus ao projetá-las era maximizar as mortes entre os antílopes. De modo contrário, se aplicássemos a engenharia reversa a um antílope, descobriríamos igualmente evidências impressionantes de planejamento com o objetivo precisamente oposto: a sobrevivência dos antílopes e a fome entre as chitas. É corno se as chitas tivessem sido planejadas por uma divindade e os antílopes por uma divindade rival. De modo alternativo, se há apenas um Criador que fez o tigre e o cordeiro, a chita e a gazela, aonde Ele quer chegar? Será Ele um sádico que se deleita em ser um espectador de esportes sangrentos? Estará Ele tentando evitar uma superpopulação entre os mamíferos da África? Estará Ele manobrando para maximizar os índices televisivos de David Attenborough? Todas estas seriam funções de utilidade que poderiam mostrar-se verdadeiras. Na verdade, naturalmente, elas estão todas completamente erradas. Nós agora entendemos a única função de utilidade da vida com grande detalhe e ela não se parece com nenhuma destas.

O capítulo 1 preparou o leitor para considerar a verdadeira função de utilidade da vida, aquilo que está sendo maximizado no mundo natural, a sobrevivência do ADN. Mas o ADN não flutua livremente, ele está preso nos corpos vivos e tem de explorar ao máximo os recursos ao seu dispor. As seqüências de ADN que se encontram nos corpos das chitas maximizam a sua sobrevivência fazendo com que estes corpos matem gazelas. As seqüências que se encontram nos corpos das gazelas maximizam a sua sobrevivência promovendo objetivos opostos. Mas em ambos os casos é a sobrevivência do ADN que está sendo maximizada. Neste capítulo, farei um trabalho de engenharia reversa com alguns exemplos práticos e mostrarei como tudo faz sentido uma vez que você assuma que o que está sendo maximizado é a sobrevivência do ADN.

A razão sexual – a proporção de machos para fêmeas – nas populações selvagens é usualmente de 50:50. Isto parece não fazer sentido do ponto de vista econômico para aquelas muitas espécies nas quais uma minoria de machos tem um monopólio injusto de fêmeas: o sistema do harém. Em uma população bem estudada de elefantes-marinhos, 4 por cento dos machos respondiam por 88 por cento das cópulas. Não importa que a função de utilidade de Deus neste caso pareça tão injusta com a maioria de solteiros. O que é pior, uma divindade preocupada com o corte dos custos e a eficiência observaria com certeza que os 96 por cento de destituídos estão consumindo metade dos recursos alimentares da população (na verdade mais do que a metade, pois os machos adultos do elefante-marinho são muito maiores do que as fêmeas). O excesso de solteiros não faz nada a não ser esperar por urna oportunidade de afastar um dos 4 por cento de senhores sortudos do harém. Como pode a existência destas hordas de solteiros ser possivelmente justificada? Qualquer função de utilidade que desse pelo menos uma pequena atenção à eficiência econômica da comunidade dispensaria os solteiros. Em vez disto, haveria apenas um número suficiente de machos para fertilizar as fêmeas. Novamente, esta anomalia aparente é explicada com elegante simplicidade, uma vez que você compreenda a verdadeira função de utilidade darwiniana: maximizar a sobrevivência do ADN.

Examinarei o exemplo da razão sexual com um pouco mais de detalhe, pois sua função de utilidade presta-se sutilmente a um tratamento econômico. Charles Darwin confessou-se espantado:

“Eu antes pensava que quando uma tendência em produzir os dois sexos em números iguais era vantajosa para a espécie, isto seria o que se seguiria da seleção natural, mas agora vejo que o problema todo é tão intricado que é melhor deixar a sua solução para o futuro”.

 

Como em muitas ocasiões, foi o grande Sir Ronald Fisher que surgiu no futuro de Darwin. Fisher raciocinou como se segue.

Todos os indivíduos nascidos têm exatamente uma mãe e um pai. Portanto, o sucesso reprodutivo total, medido pelos descendentes distantes, de todos os machos vivos deve ser igual àquele das fêmeas vivas. Não quero dizer cada macho e cada fêmea, porque claramente, e de modo importante, alguns indivíduos têm mais sucesso do que outros. Estou falando da totalidade dos machos comparada à totalidade das fêmeas. Esta posteridade total deve ser dividida entre os indivíduos machos e fêmeas – não dividida igualmente, mas dividida. O bolo reprodutivo que deve ser dividido entre todos os machos é igual ao bolo que deve ser dividido entre todas as fêmeas. Portanto, se há, digamos, mais machos do que fêmeas na população, o pedaço médio do bolo por macho deve ser menor do que o pedaço médio do bolo por fêmea. Segue que o sucesso reprodutivo médio (isto é, o número esperado de descendentes) de um macho comparado com o sucesso reprodutivo médio de uma fêmea é determinado unicamente pela razão macho/fêmea. Um componente médio do sexo minoritário tem um sucesso reprodutivo maior do que um membro médio do sexo majoritário. Somente se a razão sexual for harmoniosa e não houver minoria é que os sexos desfrutarão um sucesso reprodutivo igual. Esta conclusão notavelmente simples é urna conseqüência de urna lógica puramente de poltrona. Ela não depende em absoluto de quaisquer dados empíricos, exceto do fato fundamental de que todos os rebentos já nascidos têm um pai e uma mãe.

O sexo é usualmente determinado no momento da concepção, deste modo podemos assumir que um indivíduo não tem poder de determinar o seu sexo (pelo menos uma vez o circunlóquio não é ritual, e sim necessário). Assumiremos, de acordo com Fisher, que um progenitor pode ter o poder de determinar o sexo de sua prole. Por “poder”, é claro, não queremos dizer poder consciente ou deliberadamente manipulado. Mas uma mãe pode ter uma predisposição genética para criar uma química vaginal levemente hostil aos espermatozóides que produzem filhos mas não aos espermatozóides que produzem filhas. Ou um pai pode ter uma tendência genética de fabricar mais espermatozóides que produzem filhas do que espermatozóides que produzem filhos. Não importa o que possa ser feito na prática, imagine-se como um pai tentando decidir se quer ter um filho ou uma filha. Novamente, não estamos falando sobre decisões conscientes, mas sobre a seleção de gerações de genes que atuam sobre os corpos para influenciar o sexo de suas proles.

Se você estiver tentando maximizar o seu número de netos e netas, você deveria ter um filho ou uma filha? Vimos já que você deveria ter uma criança do sexo que é minoria na população. Deste modo, seu rebento pode esperar uma fatia relativamente maior na atividade de reprodução e você pode esperar um número relativamente maior de netos e netas. Se nenhum dos sexos é mais raro do que o outro – em outras palavras, se a taxa já é 50:50 –, você não pode esperar benefícios em preferir um sexo ou outro. Não importa se você terá um filho ou uma filha. Uma razão sexual de 50:50 é, portanto dita evolutivamente estável, para usar um termo cunhado pelo grande evolucionista John Maynard Smith. Somente se a razão sexual existente tem algum outro valor e não 50:50 é que uma preferência em sua escolha dará dividendos. Quanto à questão de por que os indivíduos deveriam tentar maximizar os seus netos e netas e descendentes posteriores, ela mal precisa ser formulada. Os genes que fazem com que os indivíduos maximizem os seus descendentes são os genes que esperamos ver no mundo. Os animais que estamos discutindo herdaram seus genes de ancestrais bem-sucedidos.

É tentador expressar a teoria de Fisher dizendo que 50:50 é a razão sexual “otimizada”, mas isto é estritamente incorreto. O sexo ótimo a ser escolhido para uma criança é masculino se os homens estiverem em minoria e feminino se as mulheres estiverem em minoria. Se nenhum dos sexos é minoria, não há ótimo: o progenitor bem projetado é estritamente indiferente quanto ao fato de nascer um filho ou uma filha. Cinqüenta por cinqüenta é dita ser uma razão evolutivamente estável porque a seleção natural não favorece qualquer tendência em desviar-se dela, e se há qualquer desvio a seleção natural favorece o restabelecimento do equilíbrio.

Mais ainda, Fisher percebeu que não é estritamente o número de machos e fêmeas que é mantido com razão de 50:50 pela seleção natural, mas sim o que ele chamou de “gasto parental” com os filhos e filhas. O gasto parental significa todo o alimento duramente obtido e colocado na boca de um rebento; e todo o tempo e energia gastos para cuidar dele, e que poderia ter sido gasto com alguma outra coisa, tais como tentar fazer um outro rebento. Por exemplo, suponha que os pais em uma espécie particular de focas gastassem tipicamente duas vezes mais tempo e energia criando um rebento macho do que um rebento fêmea. Os machos das focas são tão pesados quando comparados com as fêmeas que é fácil acreditar (embora, de fato, errado) que este pode ser o caso. Pense no que isto poderia significar. A verdadeira escolha disponível a um pai ou uma mãe não é “devo ter um filho ou uma filha?” mas sim “devo ter um filho ou duas filhas?” Isto porque, com a comida e os outros cuidados que são necessários para criar um filho, você poderia ter criado duas filhas. A razão sexual evolutivamente estável, medida em número de corpos, seria então duas fêmeas para cada macho. Mas, medida em quantidade de gastos parentais (em oposição ao número de indivíduos), a razão sexual evolutivamente estável é ainda 50:50. A teoria de Fisher é equivalente a um equilíbrio dos gastos dos dois sexos. Isto muitas vezes resulta, por assim dizer, equivalente a equilibrar os números dos dois sexos.

Mesmo entre as focas, como disse, parece que a quantidade de gastos parentais com os filhotes machos não é perceptivelmente diferente dos gastos com os filhotes fêmeas. A desigualdade patente em peso parece surgir depois do final dos gastos parentais. De modo que a decisão com que depara um progenitor ou progenitora é ainda “devo ter um filho ou uma filha?” Mesmo que o custo total do crescimento de um filho até a maturidade pudesse ser muito maior do que o custo total do crescimento de uma filha, se o custo adicional não é coberto por quem toma a decisão (os pais) isto é tudo o que conta na teoria de Fisher.

A regra de Fisher sobre o equilíbrio dos gastos ainda vale naqueles casos em que um sexo tem uma razão de mortalidade mais alta do que o outro. Por exemplo, suponha que bebês machos tenham uma tendência maior para morrer do que os bebês fêmeas. Se a razão sexual na concepção é exatamente 50:50, os machos que atingirem a idade adulta serão suplantados pelas fêmeas. Portanto, eles serão o sexo minoritário. E ingenuamente esperaríamos que a seleção natural favorecesse pais que se especializassem em filhos. Fisher também esperaria isto, mas somente até certo ponto – e um ponto precisamente limitado. Ele não esperaria que os pais concebessem um excesso de filhos que compensaria exatamente a taxa de mortalidade, levando a uma igualdade na população reprodutora. Não, a razão sexual na concepção deveria ser de algum modo favorável aos bebês machos, mas até o ponto em que se espera que o gasto total com os filhos iguale o gasto total com as filhas.

Mais uma vez, o modo mais fácil de pensar sobre isto é você colocar-se na posição do pai ou da mãe que tem de tomar uma decisão e fazer a pergunta “devo ter uma filha que provavelmente sobreviverá, ou um filho que pode morrer na infância?” A decisão de ter netos ou netas via filhos traz consigo a probabilidade de você ter de gastar mais recursos com alguns filhos extras para substituir aqueles que vão morrer. Você pode pensar que cada filho sobrevivente carrega o fantasma de seus irmãos mortos nas costas. Eles os carregam nas costas no sentido em que a decisão de chegar aos netos pela rota de filhos homens deixa o progenitor ou progenitora responsável por alguns gastos adicionais desperdiçados – gastos que serão desperdiçados com as crianças de sexo masculino mortas. A regra fundamental de Fisher ainda vale. A quantidade total de víveres e energia investida nos filhos homens (inclusive alimentar filhos pequenos até o ponto em que morrem) será igual à quantidade total investida com as filhas.

O que acontece se, em vez de uma taxa de mortalidade infantil masculina mais alta, há uma taxa de mortalidade masculina mais alta após o final dos gastos parentais? De fato, isto muitas vezes será o caso, pois os machos adultos lutam e ferem uns aos outros. Esta circunstância, também, conduzirá a excesso de fêmeas em uma população reprodutora. Portanto, aparentemente, isto pareceria favorecer pais que se especializassem em filhos, tirando desta forma vantagem da raridade de machos entre a população reprodutora. Entretanto, pense um pouco mais e você notará que este raciocínio é falacioso. A decisão com que um progenitor depara é a seguinte: “Deverei ter um filho, que provavelmente será morto em uma batalha após eu tê-lo criado, mas que, se sobreviver, me dará muitos netos mais? Ou devo ter uma filha, que é quase certo que me dará um número médio de netos?” O número de netos que você pode esperar de um filho é ainda o mesmo número médio que você pode esperar de uma filha, e o custo de ter um filho ainda é o custo de alimentá-lo e protegê-lo até o momento em que ele deixar o ninho. O fato de que ele provavelmente será morto pouco tempo após ter abandonado o ninho não muda o cálculo.

Em todo este raciocínio, Fisher assumiu que “quem toma a decisão” é o progenitor. O cálculo muda se é alguma outra pessoa. Suponha, por exemplo, que um indivíduo pudesse influenciar o próprio sexo. Mais uma vez, não quero dizer influenciar com intenção consciente. Estou fazendo a hipótese de que há genes que alteram o desenvolvimento de um indivíduo para macho ou fêmea, condicionado a estímulos por parte do meio ambiente. Seguindo a nossa convenção usual, para encurtar o tempo, usarei a linguagem da escolha individual por parte do indivíduo – neste caso, a escolha deliberada de seu próprio sexo. Se aos animais que têm o sistema do harém como os elefantes-marinhos fosse dado o poder desta escolha flexível, o efeito seria dramático. Os indivíduos aspirariam a ser machos com harém, mas se falhassem em ter um harém eles prefeririam ser fêmeas a machos solteiros. Os elefantes-marinhos infelizmente não podem reconsiderar o sexo que receberam na concepção, mas alguns peixes podem. Os machos do labro de cabeça azul são grandes e brilhantemente coloridos, e têm haréns de fêmeas de cores esmaecidas. Algumas fêmeas são maiores do que outras, e elas constituem uma hierarquia de dominação e poder. Se um macho morre, seu lugar é rapidamente assumido pela fêmea maior, que breve se transforma em um macho brilhantemente colorido. Estes peixes têm o melhor dos dois mundos. Em vez de desperdiçar suas vidas como machos solteiros esperando pela morte de um macho dominante, senhor do harém, eles passam o seu tempo de espera como fêmeas produtivas. O sistema de razão sexual do labro de cabeça azul é raro, e a função de utilidade de Deus coincide com algo que um economista social poderia considerar como prudente.

Assim, consideramos a ambos, o progenitor e o próprio indivíduo, tomadores de decisão. Quem mais poderia tomar a decisão? Nos insetos sociais as decisões de investimento são tomadas pelas operárias estéreis, as quais normalmente serão irmãs mais velhas (e irmãos também, no caso das térmitas) dos jovens que estão sendo criados. Entre os meus leitores, os apicultores podem já ter reconhecido que a razão sexual da colméia não parece, à primeira vista, confirmar as expectativas de Fisher. A primeira coisa que deve ser observada é que as operárias não deveriam ser contadas como fêmeas. Elas são tecnicamente fêmeas, mas não se reproduzem, de modo que a razão sexual que está sendo regulada de acordo com a teoria de Fisher é a razão entre os zangões (machos) e as rainhas que estão sendo produzidas pela colméia. No caso das abelhas e das formigas, há razões técnicas particulares, que discuti no meu livro The Selfísh Gene (O gene egoísta) e não as reapresentarei aqui, para esperar a razão sexual de 3:1 em favor das fêmeas. Longe disto, como qualquer apicultor sabe, a razão sexual real inclina-se pesadamente para o lado dos machos. Uma colméia florescente pode produzir meia dúzia de novas rainhas em um ciclo, mas produz centenas e mesmo milhares de zangões.

O que está acontecendo aqui? Como muitas vezes na teoria evolutiva moderna, devemos a resposta a W. D. Hamilton, que está agora na Universidade Oxford. Ela é reveladora e sintetiza toda a teoria das razões sexuais inspirada por Fisher. A chave para o problema das razões sexuais das abelhas está no notável fenômeno da formação do enxame. Uma colméia de abelhas é, em muitos aspectos, como um único indivíduo. Ele cresce, atinge a maturidade, se reproduz e finalmente morre. O produto da reprodução de uma colméia é o enxame. No pico do verão, quando uma colméia vem realmente prosperando, ela forma uma colônia filha – um enxame. Para a colméia, produzir enxames é o equivalente da reprodução. Se a colméia é uma fábrica, os enxames são o seu produto final, carregando com eles os genes preciosos da colônia. Um enxame é constituído por uma rainha e milhares de abelhas operárias. Elas todas deixam a colméia mãe de uma só vez e reúnem-se em um aglomerado denso, pendurando-se em um arbusto ou uma rocha. Isto será o seu acampamento temporário enquanto buscam um lar permanente. Dentro de poucos dias, elas encontrarão uma caverna ou uma árvore oca (ou, o que é mais freqüente nos dias de hoje, são capturadas por um apicultor, talvez o original, e alojadas em uma nova colméia).

É o negócio de uma colméia próspera produzir enxames filhos. O primeiro passo para isto é fazer uma nova rainha. Usualmente mais ou menos meia dúzia de rainhas são produzidas, e apenas uma delas está destinada a viver. A primeira a ferroar as outras até a morte. (Presumivelmente as rainhas em excesso estão ali apenas por finalidade de segurança) As rainhas são geneticamente intercambiáveis com as operárias, mas são criadas em células reais especiais que ficam abaixo do favo, e são alimentadas com uma dieta particularmente rica, uma nutrição real. A dieta inclui a geléia real, a substância a que a romancista Dame Barbara Cartland romanticamente atribui sua longa vida e porte real. As abelhas operárias são criadas em células menores, as mesmas células usadas mais tarde para armazenar o mel. Os zangões são geneticamente diferentes. Eles vêm de ovos não fertilizados. Notavelmente, cabe à rainha decidir se um ovo se tornará um zangão ou uma fêmea, rainha ou operária. A abelha rainha acasala-se apenas durante um único vôo nupcial, no começo de sua vida adulta, e armazena o esperma pelo resto da vida dentro do seu corpo. À medida que cada ovo desce pelo tubo ovíparo, ela pode ou não liberar uma pequena quantidade de esperma de seu estoque para fertilizá-lo. A rainha, portanto, tem o controle da razão sexual entre os ovos. Subseqüentemente, porém, as operárias parecem ter todo o poder, porque controlam o suprimento de comida das larvas. Elas poderiam, por exemplo, matar as larvas de fome se a rainha tiver posto muitos ovos (do seu ponto de vista) de machos. De qualquer modo, as operárias têm o controle sobre o fato de um ovo tornar-se uma operária ou uma rainha, já que isto depende exclusivamente das condições de criação, especialmente da dieta.

Retomemos agora ao nosso problema da razão sexual e examinemos a decisão com que deparam as operárias. Como vimos, ao contrário da rainha, elas não estão escolhendo se produzem filhos ou filhas, mas se produzem zangões (irmãos) ou irmãs (jovens rainhas). E agora voltemos ao nosso quebra-cabeça. Por que a razão sexual real parece demasiadamente inclinada à produção de machos, o que parece não fazer sentido do ponto de vista da teoria de Fisher. Vamos examinar a decisão com que deparam as operárias mais minuciosamente. Eu disse que era uma escolha entre ter irmãos ou irmãs. Mas espere um pouco. A decisão de criar um irmão é, na verdade, apenas isto: ela compromete a colméia em fornecer quaisquer tipos de comida e de outros recursos necessários para criar uma abelha zangão. Mas a decisão de criar uma nova rainha compromete a colméia com muito mais do que apenas os recursos necessários para nutrir o corpo de uma rainha. A decisão de criar uma nova rainha é equivalente ao compromisso de produzir um enxame. O custo verdadeiro de uma nova rainha inclui apenas de modo desprezível a pequena quantidade de geléia real e outros alimentos que ela comerá. Ele consiste principalmente no custo de produzir todas as operárias que serão perdidas pela colméia quando o enxame partir.

Esta é quase certamente a verdadeira explicação para a aparente tendência anômala que favorece os machos na razão sexual. Isto revela-se um exemplo extremo do que eu discuti anteriormente. A regra de Fisher afirma que a quantidade de gastos com machos e fêmeas deve ser igual, não o censo de indivíduos machos e fêmeas. O gasto com uma nova rainha significa gastos volumosos com operárias que de outro modo não seriam perdidas pela colméia. É como a nossa população hipotética de focas, na qual um sexo custa duas vezes mais para criar do que o outro, resultando que aquele sexo é duas vezes menos numeroso. No caso das abelhas, uma rainha custa centenas e mesmo milhares de vezes mais do que um zangão, pois ela carrega em suas costas o custo de todas as operárias extras necessárias para formar um enxame. Portanto as rainhas são centenas de vezes menos numerosas do que os zangões. Há um porém adicional nesta curiosa história: quando o enxame parte, ele misteriosamente contém a velha rainha, e não a nova. Não obstante, a economia é a mesma. A decisão de produzir uma nova rainha ainda traz consigo a decisão de produzir o enxame necessário para escoltar a velha rainha para a sua nova casa.

Para terminar com nosso tratamento das razões sexuais, retomemos ao problema dos haréns com os quais começamos: este arranjo imoral por meio do qual um enorme bando de machos solteiros consome quase a metade (ou mesmo mais do que a metade) dos recursos alimentares da população, mas nunca se reproduz ou faz qualquer coisa de útil. Obviamente, o bem-estar da população não está sendo maximizado aqui. O que está acontecendo? Mais uma vez, coloque-se na posição de quem tem de tomar a decisão – digamos uma mãe tentando “decidir” se tem um filho ou uma filha para maximizar o número de seus netos e netas. Sua decisão, à primeira vista ingênua, é desigual: “Deverei ter um filho, que provavelmente ficará solteiro e não me dará netos e netas, ou uma filha, que provavelmente acabará em um harém e me dará um número respeitável de netos e netas?” A resposta apropriada para esta mãe em perspectiva é: “Mas, se você tiver um filho, ele pode conseguir um harém, e neste caso ele lhe dará um número muito maior de netos e netas do que você poderia jamais esperar por meio de uma filha”. Suponha, por simplicidade, que todas as fêmeas reproduzam com a taxa média e que nove entre dez machos não se reproduzam, enquanto um macho em dez monopoliza dez fêmeas. Se você tem uma filha, você pode contar com o número médio de netos e netas. Se você tem um filho, você tem 90 por cento de chance de não ter netos e netas, mas 10 por cento de chance de ter dez vezes o número médio de netos e netas. O número médio de netos e netas que você pode esperar ter por meio de seus filhos é igual ao número médio que você pode esperar de uma filha. A seleção natural ainda favorece uma razão sexual de 50:50, mesmo que o nível econômico da espécie exija um excesso de fêmeas. A regra de Fisher ainda vale.

Expressei todos estes raciocínios em termos de “decisões” de animais individuais, mas repetindo, isto é apenas um modo de falar. O que realmente está acontecendo é que os genes que favorecem a maximização dos netos e netas tornam-se mais numerosos no acervo genético. O mundo enche-se de genes que atravessaram de modo bem-sucedido todas as épocas. Como poderia um gene bem-sucedido atravessar os tempos a não ser influenciando as decisões dos indivíduos para que estes maximizem o número de seus descendentes? A teoria da razão sexual de Fisher nos diz como esta maximização deveria ser feita, e é muito diferente de maximizar o bem-estar econômico de uma espécie ou população. Há uma função de utilidade aqui, mas está longe de ser a função de utilidade que surgiria nas nossas econômicas mentes humanas.

O desperdício da economia do harém pode ser sintetizado do seguinte modo: os machos, ao invés de devotar-se ao trabalho útil, jogam a sua energia e força fora em lutas fúteis uns contra os outros. Isto é verdade, mesmo que definamos “útil” de um modo aparentemente darwiniano, no que diz respeito à criação de crianças. Se os machos desviassem para canais úteis a energia que gastam competindo uns contra os outros, as espécies como um todo criariam mais rebentos com menor esforço e menor consumo de alimentos.

Um especialista em economia examinaria com irritação o mundo do elefante-marinho. Um paralelo aproximado seria o seguinte: uma oficina não necessita mais do que dez homens para funcionar, já que há apenas dez tornos para serem operados. Em vez de simplesmente empregar dez homens, a administração decide empregar uma centena. Todos os dias, os homens aparecem e apanham o pagamento. Eles passam o dia brigando pela posse dos dez tornos. Algumas coisas são fabricadas nos tornos, mas não mais do que seriam feitas por dez homens, e provavelmente menos, pois a centena de homens está tão ocupada brigando entre si que os tornos não estão sendo utilizados de modo eficiente. O especialista em economia do trabalho não teria dúvidas. Noventa por cento dos homens são redundantes, e deveriam ser comunicados oficialmente e dispensados.

Não é apenas nos combates físicos que os animais machos desperdiçam seus esforços – mais uma vez, “esforço” sendo definido do ponto de vista de um economista humano ou especialista em economia do trabalho. Em muitas espécies há também um concurso de beleza. Isto nos leva a uma outra função de utilidade que nós humanos podemos apreciar mesmo que não faça diretamente sentido econômico: a beleza estética. À primeira vista, é como se a função de utilidade de Deus fosse algumas vezes construída ao longo das linhas (agora graças a Deus fora d.e moda) de concurso de Miss Mundo, mas com os machos na passarela. Isto é visto de modo mais claro nos assim chamados “leks” das aves como os galos silvestres e aves com colares de penas em torno do pescoço. Um “lek” é uma parte do terreno tradicionalmente utilizado pelas aves machos para desfilar na frente das fêmeas. As fêmeas visitam o “lek” e observam os trejeitos exibidos por numerosos machos antes de escolher um e copular com ele. Os machos deste tipo de espécie muitas vezes possuem uma ornamentação bizarra, que exibem com movimentos igualmente notáveis de encurvar e torcer o pescoço, e emissão de ruídos estranhos. A palavra “bizarro” é, naturalmente, um julgamento subjetivo de valor: presumivelmente os machos das aves silvestres, com suas danças exibicionistas acompanhadas por ruídos semelhantes ao de uma rolha quando abrimos a garrafa, não parecem bizarros para as fêmeas de sua própria espécie, e isto é tudo o que importa. Em alguns casos a idéia de beleza das fêmeas das aves coincide com a nossa, e o resultado é um pavão ou uma ave-do-paraíso.

As canções dos rouxinóis, a cauda dos faisões, os lampejos dos pirilampos, as escamas com as cores do arco-íris dos peixes tropicais que habitam os corais, tudo isto está maximizando a beleza estética, mas não é – ou é apenas incidentalmente – uma beleza para o deleite humano. Se desfrutamos o espetáculo, isto é um bônus, um subproduto. Os genes que tornam os machos atraentes para as fêmeas acham-se automaticamente transmitidos para o futuro pelo rio digital. Há apenas uma função de utilidade para estas belezas que faz sentido; é a mesma que explica as razões sexuais dos elefantes-marinhos, a corrida racial superficialmente fútil das chitas e antílopes uns contra os outros, dos cucos e piolhos, olhos, ouvidos e traquéias, formigas operárias estéreis e rainhas superférteis. A grande função de utilidade do universo, a quantidade que está sendo diligentemente maximizada em todos os cantos do mundo vivo, é, em todos os casos, a sobrevivência do ADN responsável pelo aspecto que você está tentando explicar.

Os pavões são tão carregados de ornamentos pesados e incômodos que isto prejudicaria seriamente seus esforços de fazer trabalho útil, mesmo que eles se sentissem inclinados a fazer trabalho útil – o que, no todo, não são. As aves canoras machos utilizam quantidades perigosas de tempo e energia cantando. Isto certamente os coloca em perigo, não apenas porque atraem predadores, mas porque gastam energia e desperdiçam um tempo que poderia ser empregado em repor esta energia. Um estudioso da biologia das cambaxirras afirmou que um dos seus machos silvestres cantou literalmente até morrer. Qualquer função de utilidade que tenha como objetivo o bem-estar de longo prazo da espécie, mesmo a sobrevivência a longo prazo deste macho individual particular, cortaria a quantidade de energia e tempo dedicados ao canto, a quantidade de exibicionismo, a quantidade de lutas entre os machos. Ainda assim, porque o que está sendo realmente maximizado é a sobrevivência do ADN, nada pode impedir a disseminação do ADN que não tem efeitos benéficos a não ser tornar os machos belos para as fêmeas. A beleza não é uma virtude absoluta em si mesma. Mas inevitavelmente, se alguns genes realmente conferem aos machos quaisquer qualidades que as fêmeas da espécie acham desejáveis, estes genes, forçosamente, sobreviverão.

Por que as árvores das florestas são tão altas? Simplesmente para suplantar as árvores rivais. Uma função de utilidade “sensata” faria com que todas fossem baixas. Elas obteriam exatamente a mesma quantidade de luz solar, com menores gastos, com troncos grossos e apoios pesados. Mas se elas fossem todas baixas, a seleção natural não poderia ajudar favorecendo uma variante particular que tivesse crescido um pouco mais alta. A primeira tendo crescido mais do que as outras, estas a seguiriam. Nada pode parar o jogo todo de escalonamento até que todas as árvores fiquem ridiculamente altas. É ridículo e um desperdício apenas do ponto de vista de um planejador econômico racional que pensa em termos de maximizar a eficiência. Mas tudo faz sentido uma vez que você compreenda a verdadeira função de utilidade – os genes estão maximizando a sua própria sobrevivência. As analogias domésticas são abundantes. Numa festa, você grita até ficar rouco. A razão é que todos os outros estão gritando o máximo que podem. Se os convidados concordarem em apenas sussurrar, eles ouviriam uns aos outros sem forçar a voz e com menor gasto de energia. Mas acordos como este não funcionam a menos que sejam policiados. Alguém sempre estraga o acordo gritando egoisticamente um pouco mais alto, e, um por um, todos o acompanham. Um equilíbrio estável é alcançado apenas quando todos estão gritando o mais fisicamente possível, e isto é muito mais alto do que o exigido de um ponto de vista “racional”. Vezes sem conta, uma restrição cooperativa é esmagada por sua própria instabilidade interna. A função de utilidade de Deus raramente revela-se o maior dos bens para o maior número de indivíduos. A função de utilidade de Deus trai as suas origens numa corrida desenfreada pelo ganho egoísta.

Os humanos têm uma tendência bastante carinhosa em assumir que bem-estar significa bem-estar grupal, que o “bem” significa o bem da sociedade, o bem-estar futuro das espécies ou mesmo do ecossistema. A função de utilidade de Deus, derivada de uma contemplação das porcas e parafusos da seleção natural, revela estar tristemente em oposição a tais visões utópicas. Para ser correto, há ocasiões em que os genes podem maximizar o seu bem-estar egoísta no seu nível, programando uma cooperação não egoísta, ou mesmo o auto-sacrifício, pelo organismo em seu nível. Mas o bem-estar do grupo é sempre uma conseqüência fortuita, e não um motivo primário. Este é o significado de “gene egoísta”.

Vamos examinar um outro aspecto da função de utilidade de Deus, começando com uma analogia. O psicólogo darwiniano Nicholas Humphrey descobriu um fato esclarecedor sobre Henry Ford. Diz-se que Ford, o santo patrono da eficiência manufatureira, uma vez

“contratou uma pesquisa dos ferros-velhos de carros da América para descobrir se havia partes do Ford modelo T que nunca haviam falhado. Seus inspetores voltaram com relatórios com quase todos os tipos de falhas: eixos, freios, pistões – todos tinham probabilidade de falhar. Mas eles chamaram a atenção para uma exceção notável, os pinos-mestre dos carros do ferro-velho tinham anos ainda de uso. Com uma lógica implacável Ford concluiu que os pinos-mestre no modelo T eram muito bons para o seu trabalho e ordenou que no futuro eles deveriam ser fabricados com especificações inferiores”.

 

Você pode, como eu, estar um pouco confuso sobre o que são pinos-mestre, mas não importa. Eles são algo de que os motores dos carros precisam, e a suposta rudeza de Ford era, na verdade, inteiramente lógica. A alternativa teria sido melhorar todas as outras partes do carro para fazê-las atingir o padrão dos pinos-mestre. Mas então não seria um modelo T que ele estaria fabricando, mas sim um Rolls Royce, e isto não era o objetivo da pesquisa. Um Rolls Royce é um carro respeitável de ser manufaturado assim como o é um modelo T, mas por um preço diferente. O truque é assegurar-se de que o carro todo seja fabricado com as especificações de um Rolls Royce ou com as especificações de um modelo T. Se você fabricar um carro híbrido, com alguns componentes com a qualidade do modelo T e alguns componentes com a qualidade do Rolls Royce, você estará obtendo o pior de dois mundos, pois o carro será jogado fora quando o mais fraco de seus componentes desgastar-se inapelavelmente, e o dinheiro gasto com componentes de alta qualidade que nunca serão tempo de desgastar-se será desperdiçado.

A lição de Ford aplica-se ainda mais fortemente aos corpos vivos do que aos carros, pois os componentes de um carro podem, dentro de certos limites, ser substituídos por sobressalentes. Os macacos e os gibões vivem no topo das árvores e há sempre o risco de cair e fraturar um osso. Suponha que tivéssemos encomendado uma pesquisa em cadáveres de macacos para contar a freqüência de fraturas nos ossos principais do corpo. Suponha que a pesquisa revelasse que todo osso quebra-se em um momento ou outro, com uma exceção: nunca foi observado uma fratura de fíbula (o osso que corre paralelamente à tíbia) em qualquer macaco. A prescrição firme de Henry Ford seria re-projetar a fíbula com especificações inferiores, e isto é exatamente o que a seleção natural faria também. Indivíduos mutantes com uma fíbula inferior – indivíduos mutantes cujas regras de crescimento exigem um desvio de cálcio precioso para outras partes do corpo que não a fíbula poderiam utilizar o material economizado para reforçar outros ossos do corpo e deste modo tomar todos os ossos igualmente inclinados a sofrer uma fratura. Ou os indivíduos mutantes poderiam usar o cálcio economizado para produzir mais leite e assim criar mais indivíduos jovens. O tecido ósseo da fíbula pode ser raspado, pelo menos até o ponto em que esta se toma tão inclinada a quebrar-se quanto o osso mais durável que vem a seguir. A alternativa – a solução “Rolls Royce” de fazer com que todos os outros componentes atinjam o padrão da fíbula – é mais difícil de ser realizada.

O cálculo não é tão simples quanto parece, pois alguns ossos são mais importantes do que outros. Suponho que seja mais fácil para um macaco-aranha sobreviver com um osso do calcanhar quebrado do que com um braço fraturado, de modo que não deveríamos esperar que a seleção natural literalmente fizesse todos os ossos igualmente inclinados a fraturar. Mas a lição principal que extraímos da história de Henry Ford está indubitavelmente correta. É possível que um componente do corpo do animal seja muito bom, e devemos esperar que a seleção natural favoreça uma diminuição do padrão de qualidade até o ponto, mas não abaixo dele, de equilíbrio com a qualidade dos outros componentes do corpo. Mais precisamente, a seleção natural favorecerá o nivelamento da qualidade para cima e para baixo, até que o equilíbrio se estabeleça em todas as partes do corpo.

É particularmente fácil apreciar este equilíbrio quando ele é alcançado entre dois aspectos bastante separados da vida: por exemplo, a sobrevivência do pavão versus a beleza nos olhos do faisão. A teoria darwiniana nos diz que toda sobrevivência é apenas um meio para atingir um fim, a propagação dos genes, mas isto não nos impede de partir o corpo em componentes, como as pernas, que são primariamente comprometidas com a sobrevivência individual, ou os pênis, que estão comprometidos com a reprodução. Ou ainda os chifres, que são destinados à competição entre indivíduos rivais versus as pernas e os pênis, cuja importância não depende da existência de indivíduos rivais. Muitos insetos impõem uma separação rígida entre as etapas radicalmente diferentes da sua história de vida. As lagartas dedicam-se ajuntar alimentos e a crescer. As borboletas são como as flores que costumam visitar, dedicadas à reprodução. Elas não crescem, mas sugam o néctar apenas para queimá-lo como combustível de aviação. Quando uma borboleta se reproduz, ela espalha os seus genes não apenas porque é uma borboleta que voa e acasala-se de modo eficiente, mas também porque foi uma lagarta eficiente na alimentação. As efeméridas alimentam-se e crescem como ninfas subaquáticas durante um período de até três anos. Elas então emergem como indivíduos adultos capazes de voar e viver por apenas umas poucas horas. Muitas delas são comidas pelos peixes, mas, mesmo que não o fossem, de qualquer modo morreriam em pouco tempo, pois não podem alimentar-se e nem mesmo possuem intestino (Henry Ford as teria adorado). Sua tarefa é voar até encontrar um companheiro. Então, tendo transmitido os seus genes – inclusive os genes que as tomam ninfas eficientes capazes de alimentar-se debaixo da água durante três anos –, elas morrem. Uma efemérida é como uma árvore que leva anos para crescer, e então floresce por um único e glorioso dia e morre. A efemérida adulta é como a flor que floresce no final da vida e dá início a uma nova.

Um salmão jovem migra corrente abaixo a partir do ponto em que nasceu e passa a maior parte de sua vida alimentando-se e crescendo no mar. Quando atinge a maturidade, ele procura novamente, provavelmente pelo cheiro, a cabeceira da corrente em que veio ao mundo. Em uma jornada épica e muito celebrizada, o salmão nada corrente acima, saltando as quedas e as corredeiras, rumo à cabeceira da corrente onde foi gerado há muito tempo. Ali ele gera novos salmões e o ciclo se renova. Neste ponto existe tipicamente uma diferença entre o salmão do Pacífico e o salmão do Atlântico. O salmão do Atlântico, tendo gerado novos salmões, pode retomar ao mar com alguma chance de repetir o ciclo por uma segunda vez. O salmão do Pacífico morre, esgotado, poucos dias após ter gerado.

Um salmão do Pacífico típico é como uma efemérida, mas sem a separação anatomicamente clara entre a fase de ninfa e a fase adulta na sua história biológica. O esforço de nadar contra a correnteza é tão grande que não pode ser repetido duas vezes. Portanto a seleção natural favorece indivíduos que colocam cada grama de seus recursos em um único esforço “explosivo” de reprodução. Quaisquer recursos que porventura sobrassem após a reprodução seria um desperdício – o equivalente aos pinos-mestre superespecificados de Henry Ford. O salmão do Pacífico evoluiu reduzindo a sua sobrevivência pós-reprodutiva até que esta chegasse a zero, sendo os recursos economizados desta maneira destinados aos ovos e ao esperma. Os salmões do Atlântico evoluíram na outra direção. Talvez porque os rios que têm de subir tendem a ser mais curtos e originar-se de montanhas menos formidáveis, os indivíduos que mantêm alguns recursos para um segundo ciclo algumas vezes conseguem completá-lo. O preço que estes salmões do Atlântico pagam é não poder comprometer-se tanto com sua prole. Há um intercâmbio entre a longevidade e a reprodução, e tipos diferentes de salmão optaram por diferentes tipos de equilíbrio. Uma característica especial da vida cíclica do salmão é que a odisséia cruel de sua migração impõe uma descontinuidade. Não há uma continuidade suave entre uma temporada de procriação e outra. Um compromisso com uma segunda temporada de procriação corta a eficiência da primeira. O resultado é que um indivíduo típico morre inequivocamente logo após o seu único e titânico esforço de reprodução.

O mesmo tipo de compromisso marca todas as vidas, mas ele é usualmente menos dramático. Nossa própria morte é provavelmente programada como alguma coisa com o mesmo sentido que a do salmão, mas de um modo menos direto e claro. Sem dúvida nenhuma um eugenista poderia criar uma raça de humanos superlativamente dotados de uma vida longa. Você escolheria para a procriação aqueles indivíduos que aplicassem a maior parte de seus recursos em seus próprios corpos à custa de sua prole: indivíduos, por exemplo, cujos ossos fossem maciçamente reforçados e resistentes às fraturas, mas que têm pouco cálcio de sobra para produzir leite. É muito fácil viver um pouco mais, se você é bem tratado à custa da geração seguinte. O eugenista poderia mimá-lo e explorar os arranjos na direção desejada da longevidade. A natureza não mima os indivíduos desta maneira, pois os genes que prejudicam a próxima geração não são transmitidos para o futuro.

A função de utilidade da natureza nunca valoriza a longevidade em si mesma, mas apenas em razão da reprodução futura. Qualquer animal que, como nós, mas não como o salmão do Pacífico, gera por mais de uma vez depara com compromissos entre as crianças de agora (ou ninhada) e as futuras. Uma coelha que dedicou toda a sua energia e recursos à sua primeira ninhada provavelmente terá uma primeira ninhada de qualidade superior. Mas ela não terá recursos sobrando para leva-la a ter uma segunda ninhada. Os genes que fazem com que algo seja mantido como reserva tenderão a disseminar-se através da população de coelhos, transportados nos corpos da segunda e da terceira ninhada. São os genes deste tipo que de modo tão saliente não se difundiram entre a população do salmão do Pacífico, pois a descontinuidade prática entre uma temporada de reprodução e outra é demasiado formidável.

À medida que ficamos mais velhos nossas chances de morrer no próximo ano, depois de ter inicialmente decrescido e então se estabilizado por certo tempo, começam a crescer. O que está acontecendo neste longo aumento de mortalidade? É basicamente o mesmo princípio que vale para o salmão do Pacífico, mas espalhado sobre um período de tempo maior e não concentrado em uma breve orgia que leva à morte depois de uma orgia de reprodução. O princípio pelo qual a senilidade evoluiu foi originalmente explorado pelo ganhador do prêmio Nobel e cientista médico Sir Peter Medawar no início dos anos 50, com várias modificações da idéia básica acrescentadas pelos eminentes darwinianos G. C. Williams e W. D. Hamilton.

O argumento essencial é o seguinte: primeiro, como vimos no capítulo 1, qualquer efeito genético normalmente será ativado em uma época particular durante a vida do organismo. Muitos genes são ativados no embrião inicial, mas outros – como os genes da coréia de Huntington, a doença que matou tragicamente o poeta folclórico e cantor Woody Guthrie – não são ativados até a meia-ldade. Segundo, os detalhes de um efeito genético, inclusive a época em que é ativado, podem ser modificados por outros genes. Um homem que tem o gene da coréia de Huntington pode esperar morrer por causa desta doença, mas, se ela o mata quando ele está com 40 ou quando está com 55 anos (como era o caso de Woody Gutluje) pode ser influenciado por outros genes. Segue-se que, selecionando genes “modificadores”, a época da ação de um gene particular pode ser postergada ou adiantada no tempo evolutivo.

Um gene como o gene da coréia de Huntington, que é ativado entre as idades de 35 e 55 anos, tem muitas oportunidades de ser transmitido para a próxima geração antes que mate o seu possuidor. Se, entretanto, ele fosse ativado na idade de vinte anos, seria transmitido apenas por pessoas que reproduzem um pouco cedo, e, portanto seria fortemente selecionado. Se ele fosse ativado na idade de dez anos, essencialmente não seria nunca transmitido. A seleção natural favoreceria quaisquer genes modificadores que tivessem o efeito de postergar a época da ativação do gene da coréia de Huntington. De acordo com a teoria de Medawar e Wllliams, isto seria exatamente a razão pela qual normalmente ele não é ativado até a meia-idade. No passado ele pode ter sido um gene maturando precocemente, mas a seleção natural favoreceu um adiamento de seu efeito letal até a meia-idade. Sem dúvida há ainda uma leve pressão seletiva para que ele seja ativado na velhice, mas esta pressão é fraca, pois poucas vítimas morrem antes de reproduzir e transmitir o gene.

O gene da coréia de Huntington é um exemplo particularmente claro de gene letal. Há muitos genes que não são em si mesmos letais, mas que, não obstante, produzem efeitos que aumentam a probabilidade de morrer em razão de alguma outra causa e são chamados semiletais. Mais uma vez, sua época de ativação pode ser influenciada por genes modificadores e, portanto postergada ou acelerada pela seleção natural. Medawar percebeu que as debilidades da velhice podem representar uma acumulação de efeitos genéticos letais e semiletais que foram adiados para uma época cada vez mais posterior no ciclo da vida e que tiveram a permissão de passar através da rede reprodutiva para as gerações futuras simplesmente porque atuavam mais tarde.

A interpretação dada a esta história em 1957 por G. C. Williams, o decano dos darwinistas americanos, é muito importante. Ele nos leva novamente ao nosso ponto sobre compromissos econômicos. Para compreendê-lo, precisamos adicionar-lhe um par de informações de fundo. Um gene usualmente provoca mais do que um efeito, muitas vezes em partes do corpo superficialmente bastante diferentes. Não apenas é esta “pleiotropia” um fato, como também deve ser bastante esperada, já que os genes exercem os seus efeitos no desenvolvimento embriônico e o desenvolvimento embriônico é um processo complicado. Assim, qualquer mutação nova é inclinada a ter não apenas um, mas diversos efeitos. Embora um dos seus efeitos possa ser benéfico, é improvável que seja mais de um. Isto acontece simplesmente porque a maioria dos efeitos mutacionais são ruins. Além de ser um fato, isto deve ser esperado em princípio; se você começar com um mecanismo de funcionamento complicado – digamos, como um rádio –, há muitas maneiras mais de torná-lo pior do que melhor.

Sempre que a seleção natural favorece um gene em razão de seus efeitos benéficos na juventude – digamos, na atração sexual de um macho jovem –, haverá provavelmente um outro lado desfavorável: por exemplo, alguma doença particular na meia-idade ou na velhice. Teoricamente, os efeitos da idade poderiam ser outros, mas de acordo com a lógica de Medawar, a seleção natural dificilmente favorecerá a doença nos jovens por causa de um efeito benéfico do mesmo gene na velhice. Mais ainda podemos invocar novamente o ponto a respeito do gene modificador. Cada um dos diversos efeitos de um gene, efeitos bons e ruins, pode ter sua época de ativação alterada na evolução subseqüente. De acordo com o princípio de Medawar, os efeitos bons tenderiam a ser ativados mais cedo e os efeitos ruins postergados para mais tarde. Mais ainda haverá em alguns casos um compromisso direto entre os efeitos ativados mais cedo e os adiados para mais tarde. Isto estava implícito na discussão sobre o salmão. Se um animal tem uma quantidade finita de recursos para gastar com algo, digamos, tornando-se fisicamente forte e capaz de fugir do perigo, qualquer predileção em usar estes recursos cedo será favorecida em relação a uma preferência em utilizá-los mais tarde. Aqueles que gastam os seus recursos mais tarde têm mais probabilidade de serem mortos por outras causas antes que tenham uma chance de utilizar estes mesmos recursos. Colocando o ponto de vista geral de Medawar em uma espécie de versão ao contrário da linguagem que introduzimos no capítulo 1, todo mundo descende de uma linha ininterrupta de ancestrais que em sua totalidade foram em alguma época de suas vidas jovens, mas dos quais muitos não alcançaram a velhice. Assim herdamos tudo o que é necessário para sermos jovens, mas não necessariamente tudo o que é preciso para sermos velhos. Tendemos a herdar genes que causam a morte muito tempo depois de termos nascido e não o contrário.

Retomando ao início pessimista deste capítulo, quando a função de utilidade – aquilo que está sendo maximizado – é a sobrevivência do ADN, isto não é uma receita de felicidade. Enquanto o ADN estiver sendo transmitido, não importa quem ou o quê sai prejudicado no processo. É melhor para a vespa ichneumon de Darwin que a lagarta esteja viva, e portanto fresca, ao ser comida, não importa o custo em sofrimento. Os genes não se importam com o sofrimento, pois eles não se importam com nada.

Se a natureza fosse caridosa, ela faria pelo menos a pequena concessão de anestesiar as lagartas antes que fossem comidas vivas de dentro. Mas a natureza não é caridosa ou cruel. Ela não é a favor nem contra o sofrimento. A natureza não está interessada de uma forma ou outra no sofrimento, a menos que ele afete a sobrevivência do ADN. É fácil imaginar um gene que, digamos, tranqüilize as gazelas quando estas estão prestes a levar uma mordida mortal. Tal tipo de gene seria favorecido pela seleção natural? Não, a menos que o ato de tranqüilizar a gazela aumentasse as chances de propagação do gene para as gerações futuras. É difícil ver por que isto deveria ser assim, e podemos, portanto supor que as gazelas sofrem uma dor terrível e sentem medo quando são perseguidas até a morte – como a maioria delas finalmente são. A quantidade total de sofrimento anual no mundo natural está além de toda a contemplação decente. Durante o minuto que foi gasto para escrever esta sentença, milhares de animais estão sendo comidos vivos; outros estão correndo para salvar as suas vidas, gritando de medo; outros estão sendo lentamente devorados por dentro por parasitas; milhares, de todas as espécies, estão morrendo de fome, sede e doenças. Isto deve ser assim. Se algum dia houver um tempo de fartura, este fato por si só conduzirá automaticamente a um excesso populacional até que o estado natural de fome e miséria seja restaurado.

Os teólogos preocupam-se com o “problema do mal” e um “problema do sofrimento” que lhe é relacionado. No dia em que escrevi este parágrafo em sua forma original, os jornais britânicos traziam uma história terrível sobre um ônibus cheio de crianças de uma escola católica romana que acidentou-se sem motivos óbvios, com uma grande perda de vidas. Não pela primeira vez, os clérigos chegaram ao paroxismo sobre a questão teológica que um colunista de um jornal de Londres (The Sunday Telegraph) colocou do seguinte modo: “Como podemos acreditar em um Deus amantíssimo e todo-poderoso que permite uma tragédia deste tipo?” O artigo continuava citando a resposta de um padre: “A resposta simples é que nós não sabemos por que deveria haver um Deus que permite que estas coisas horrendas aconteçam. Mas o horror do desastre, para um cristão, confirma o fato de que vivemos em um mundo de valores reais: positivos e negativos. Se o universo fosse apenas elétrons, não haveria o problema do mal ou do sofrimento”.

Ao contrário, se o universo fosse constituído apenas por elétrons e genes egoístas, tragédias sem sentido como o desastre deste ônibus seriam exatamente o que esperaríamos, junto com uma boa sorte igualmente destituída de significado. Este universo não teria intenções boas ou más. Não manifestaria qualquer tipo de intenção. Em um universo de forças físicas e replicação genética cegas, algumas pessoas serão machucadas, outras pessoas terão sorte, você não achará qualquer sentido nele, nem qualquer tipo de justiça. O universo que observamos tem precisamente as propriedades que deveríamos esperar se, no fundo, não há projeto, propósito, bem ou mal, nada a não ser uma indiferença cega, impiedosa. Como o infeliz poeta A. E. Housman colocou:

For Nature, heartless, witless Nature             Pois a natureza, desapiedada, a natureza estúpida!

 

                                                           Will neither know or care.                            

                                     Não saberá ou se importará.

 

O ADN não sabe e nem se importa. O ADN apenas é. E nós dançamos de acordo com a sua música.

 

                     A bomba de replicação

A maioria das estrelas – e o nosso Sol é uma estrela típica – queima de uma maneira estável durante milhares de milhões de anos. Muito raramente, em algum lugar da galáxia, uma estrela explode subitamente sem aviso óbvio em urna supernova. Em poucas semanas, ela aumenta em brilho por um fator de muitos bilhões e então extingue-se deixando vestígios enegrecidos de si mesma. Durante os seus poucos dias de glória como supernova, urna estrela pode emitir mais energia do que em todos as suas centenas de milhões de anos anteriores como urna estrela comum. Se o nosso Sol se transformasse em urna supernova, o sistema solar inteiro seria vaporizado em um instante. Felizmente isto é muito improvável. Na nossa galáxia constituída por urna centena de bilhões de estrelas, apenas três supernovas foram registradas pelos astrônomos: em 1054, em 1572 e em 1604. A nebulosa do Caranguejo é formada pelos vestígios do evento de 1054, registrado por astrônomos chineses. (Quando digo o evento “de 1054” quero dizer, é claro, o evento sobre o qual as notícias chegaram a Terra em 1054. O evento propriamente dito aconteceu 6 mil anos antes. A frente de onda luminosa originada por ele atingiu-nos em 1054.) Desde 1604, as únicas supernovas observadas foram observadas em outras galáxias.

Há um outro tipo de explosão que pode acontecer em urna estrela. Em vez de transformar-se em supernova, ela transforma-se em informação. A explosão começa mais lentamente do que a explosão de uma supernova e demora um período de tempo incomparavelmente mais longo para formar-se. Podemos chamá-la urna bomba de informação ou, por razões que se tornarão aparentes, urna bomba de replicação. Nos primeiros poucos bilhões de anos de sua formação, você poderia detectar uma bomba de replicação somente se estivesse nas suas vizinhanças imediatas. Finalmente, manifestações sutis da explosão começam a vazar para regiões mais distantes do espaço e ela se toma, pelo menos potencialmente, detectável a uma distância muito grande. Não sabemos como este tipo de explosão acaba. Presume-se que ela deva extinguir-se finalmente como uma explosão de supernova, mas não sabemos quanto tempo é tipicamente necessário antes para a sua formação. Talvez acabe em uma catástrofe violenta e autodestrutiva. Talvez em uma emissão repetida e tranqüila de objetos que se movem em uma trajetória dirigida e não em uma trajetória balística simples, afastando-se da estrela em direção aos confins do espaço, onde podem infectar outros sistemas estelares com a mesma tendência de explodir.

A razão pela qual sabemos tão pouco sobre a bomba de replicação no universo é que observamos somente um exemplo, e um exemplo de qualquer fenômeno não é suficiente para dar fundamento a generalizações. A história de nosso único exemplo está ainda em andamento. Este andamento vem se dando por um período de tempo entre 3 e 4 bilhões de anos, e apenas agora atingiu o limiar de emissão a partir das vizinhanças imediatas da estrela. A estrela em questão chama-se Sol, uma estrela anã amarela localizada na borda de nossa galáxia, em um dos braços espirais. A explosão na verdade originou-se em um dos satélites que tem uma órbita muito próxima em tomo do Sol, mas a energia necessária para provocar a explosão vem toda dele. O satélite é, naturalmente, a Terra, e a explosão que já dura 4 bilhões de anos, a bomba de replicação, é chamada vida. Nós humanos somos uma manifestação extremamente importante da bomba de replicação, pois é por nosso meio – por meio de nossos cérebros, nossa cultura simbólica e nossa tecnologia – que a explosão pode prosseguir para a próxima etapa e reverberar através das profundezas do espaço.

Como disse, a nossa bomba de replicação é, até agora, a única que conhecemos no universo, mas isto não significa necessariamente que eventos deste tipo sejam mais raros do que os eventos que dão origem as supernovas. Admite-se que as supernovas foram detectadas com uma freqüência três vezes maior em nossa galáxia, mas as supernovas, por causa das imensas quantidades de energia liberada, são muito mais fáceis de serem observadas de uma distância muito grande. Até umas poucas décadas atrás, quando ondas de rádio produzidas pelo homem começaram a ser irradiadas a partir de nosso planeta, nossa explosão de vida poderia ter passado despercebida por observadores mesmo em planetas bastante próximos. Provavelmente a única manifestação conspícua de nossa explosão de vida até tempos recentes foi a Grande Barreira de Coral.15

Uma supernova é uma explosão gigantesca e repentina. O evento que dá início a qualquer explosão é alguma quantidade que ultrapassa um valor critico, após o que as coisas saem de controle e produzem um resultado muito maior do que o evento original que lhe deu início. O evento que inicia uma bomba de replicação é o surgimento espontâneo de entidades auto-replicantes, mas ainda assim variadas. A razão pela qual a auto-replicação é um fenômeno potencialmente explosivo é a mesma de qualquer explosão: crescimento exponencial – quanto mais você tem, mais você consegue. Uma vez que você tenha Um objeto auto-replicante, você em breve terá dois. Então cada um dos dois faz uma cópia de si mesmo e você terá quatro. Depois oito, depois 16, 32, 64... Depois de umas meras trinta gerações desta duplicação, você terá mais do que 1 bilhão de objetos que podem duplicar-se. Depois de cinqüenta gerações, haverá mil milhões de milhão deles. Depois de duas centenas de gerações, haverá 1 milhão de milhão de milhão de milhão de milhão de milhão de milhão de milhão de milhão de milhão de milhão. Em teoria. Na prática isto nunca aconteceria, pois este número é um número maior do que o número de átomos no universo. O explosivo processo de auto-reprodução deve ser limitado muito antes de alcançar as duas centenas de gerações capazes de duplicar-se sem problemas.

Não temos indicação direta do evento de replicação que deu início a este processo neste planeta. Podemos apenas inferir que ele deve ter acontecido em razão da explosão em estágios da qual somos parte. Não sabemos exatamente como foi o evento critico original, o início da auto-replicação, mas podemos inferir que tipo de evento ele deve ter sido. Ele começou como um evento químico.

A química é um drama que se passa em todas as estrelas e em todos os planetas. Na química os atores são os átomos e as moléculas. Mesmo os átomos mais raros são extremamente numerosos pelos padrões de contagem com os quais estamos acostumados. Isaac Asimov calculou que o número de átomos de astatínio 215, um elemento raro, em toda a América do Sul e do Norte até uma profundidade de 16 quilômetros é “apenas 1 trilhão”. As unidades fundamentais da química são átomos que trocam incessantemente de parceiros para produzir uma população cambiante, mas sempre muito grande de unidades maiores – as moléculas. Não importa quão numerosas sejam, as moléculas de um determinado tipo – ao contrário de, digamos, os animais de uma determinada espécie ou os violinos Stradivarius – são sempre idênticas. Os padrões do rodízio atômico da química fazem com que, no universo, algumas moléculas tomem-se mais numerosas e outras mais raras. Naturalmente, um biólogo tem a tentação de descrever as moléculas que se tomam mais numerosas em população como “bem-sucedidas”. Mas sucumbir a esta tentação não ajuda. Sucesso, no sentido esclarecedor da palavra, é uma propriedade que surge apenas em uma etapa mais posterior em nossa história.

O que foi, então, este evento crítico espetacular que deu início a esta explosão de vida? Falei que havia sido q surgimento de entidades autoduplicadoras, mas de modo equivalente poderíamos chamá-lo o surgimento do fenômeno da hereditariedade – um processo que poderíamos rotular de “semelhantes gerando semelhantes”. Isto não é algo que as moléculas exibem comumente. As moléculas de água, embora existam em enxames com populações gigantescas, não exibem nada que se aproxime da verdadeira hereditariedade. Julgando pelas aparências, você poderia pensar que elas o fazem. A população das moléculas de água (H2O) aumenta quando o hidrogênio (H) entra em combustão com o oxigênio (O). A população das moléculas de água diminui quando a água é decomposta, por eletrólise, em bolhas de hidrogênio e oxigênio. Mas, embora exista uma população dinâmica de moléculas de água, não há hereditariedade. A condição mínima para a existência de hereditariedade seria a existência de pelo menos dois tipos distintos da molécula de H2O, ambas as quais dariam origem (“gerariam”) cópias de seu próprio tipo.

As moléculas algumas vezes existem em duas variedades que são a imagem no espelho uma da outra. Há dois tipos de molécula de glucose, que contêm átomos idênticos unidos de modo idêntico com a diferença de que uma é a imagem no espelho da outra. O mesmo é verdadeiro para outras moléculas de açúcar, e outras moléculas além dessas, inclusive os importantíssimos aminoácidos. Talvez aqui esteja uma oportunidade para “semelhantes gerando semelhantes” – uma oportunidade para a hereditariedade química. Poderiam as moléculas dextrogiras gerar moléculas dextrogiras filhas e as levogiras gerar moléculas filhas canhotas? Primeiro, um pouco de informação sobre as moléculas que possuem imagens especulares. O fenômeno foi descoberto pelo grande cientista francês do século XIX Louis Pasteur, que estava examinando cristais de tartarato, um tipo de sal de ácido tartárico, uma substância importante no vinho. Um cristal é como um edifício sólido, suficientemente grande para ser observado a olho nu e, em alguns casos, ser usado em tomo do pescoço. Ele é formado quando os átomos ou as moléculas, todos ou todas do mesmo tipo, empilham-se um em cima do outro, ou uma em cima da outra, para constituir um sólido. Eles ou elas não se empilham desordenadamente, mas sim de maneira ordenada, criando um arranjo geométrico, como granadeiros de mesma altura e marcha impecável. As moléculas que já se constituem em parte do cristal formam uma espécie de molde com o qual são adicionadas novas moléculas, que são obtidas a partir de uma solução aquosa e ajustam-se perfeitamente a ele, de modo que o cristal inteiro cresce com a precisão de uma rede geométrica. Esta é a razão por que os cristais de sal têm faces quadradas e os cristais de diamantes são tetraédricos (em forma de diamante). Quando qualquer forma age como molde na construção de uma outra forma semelhante a si mesma, temos uma nesga da possibilidade de auto-replicação.

Agora, voltando aos cristais de tartarato de Pasteur. Pasteur observou que quando deixava a solução de tartarato na água, surgiam dois tipos de cristal, idênticos exceto pelo fato de serem imagens no espelho um do outro. Laboriosamente ele separou os dois tipos de cristal em duas pilhas separadas. Ao dissolvê-los novamente e em separado, obteve duas soluções diferentes, dois tipos de tartarato na solução. Embora as soluções fossem similares em muitos aspectos, Pasteur descobriu que elas desviavam a luz polariza da em direções opostas. É isto que dá aos dois tipos de moléculas seus nomes convencionais de dextrogira e levogira, já que elas desviam a luz polarizada no sentido anti-horário e horário, respectivamente. Como você pode adivinhar, quando se permitiu que as duas soluções cristalizassem mais uma vez, cada uma delas produziu cristais puros que eram imagens no espelho uns dos outros.

As moléculas especulares são realmente diferentes no sentido em que, como acontece com o pé de sapato esquerdo e com o pé de sapato direito, não importa quantas tentativas você faça, você nunca poderá girá-las de modo que uma possa ser substituída pela outra. A solução original de Pasteur era constituída por uma população mista dos dois tipos de moléculas, e os dois tipos insistiam em alinhar-se separadamente ao cristalizar. A existência de duas (ou mais) variedades distintas de uma entidade é condição necessária para a existência da verdadeira hereditariedade, mas não é suficiente. Para que haja uma hereditariedade verdadeira entre os cristais, os cristais dextrogiros e levogiros deveriam partir-se em dois ao alcançar um estado crítico e cada metade servir de molde para um novo crescimento até atingir o tamanho original. Sob estas condições nós realmente teríamos uma população crescente de dois tipos rivais cristalinos. Poderíamos falar verdadeiramente de “sucesso” na população, pois – já que ambos os tipos estariam competindo pelos mesmos átomos constituintes – um tipo poderia estar se tomando mais numeroso à custa do outro, em virtude de ser “bom” em fazer cópias de si mesmo. Infelizmente, a maioria das moléculas conhecidas não possuem a propriedade singular da hereditariedade.

Digo “infelizmente” porque os químicos, ao tentar fazer com objetivos medicinais moléculas que são todas, digamos, levogiras, gostariam muito de ser capazes de “gerá-las”. Mas, na medida em que as moléculas agem como moldes para a formação de outras moléculas, elas normalmente o fazem para as suas imagens no espelho, e não para as que têm sua mesma dexteridade. Isto torna as coisas difíceis, pois, se você começar com uma forma levogira, acabará com uma mistura igual de moléculas levo giras e dextrogiraso Os químicos que trabalham neste campo da química estão tentando “lograr” as moléculas induzindo-as a “gerar” moléculas filhas com a mesma dexteridade. Um truque muito difícil de ser aplicado.

De fato, embora ele provavelmente não envolva a dexteridade, uma versão deste truque foi aplicada natural e espontaneamente há 4 mil milhões de anos, quando o mundo era jovem e a explosão que transformou-se em vida e informação começou. Mas algo mais do que a simples hereditariedade era necessária antes que a explosão pudesse dar início de modo apropriado a seu curso. Mesmo que uma molécula exibisse uma hereditariedade real entre as formas levo giras e dextrogiras, qualquer competição entre elas não teria conseqüências interessantes, pois há somente dois tipos. Uma vez que, digamos, as do tipo levogiro tivessem vencido a competição, isto encerraria a questão. Não haveria mais progresso.

As moléculas maiores podem exibir dexteridade em diferentes partes da molécula. O antibiótico monensin, por exemplo, tem 17 centros de assimetria. Em cada um destes 17 centros, há uma forma levo gira e uma dextrogira. Dois multiplicado por si mesmo 17 vezes é 131.072, e, portanto, há 131.072 formas distintas da molécula. Se estas 131.072 formas possuíssem a propriedade da hereditariedade verdadeira, com cada forma gerando apenas formas de seu próprio tipo, poderia haver uma competição bastante complicada, na medida em que os membros mais bem-sucedidos do conjunto de 131.072 gradualmente se afirmassem nos censos populacionais sucessivos. Mas mesmo isto seria uma espécie limitada de hereditariedade, pois 131.072, embora seja um número grande, é finito. Para termos uma explosão de vida que mereça o nome, a hereditariedade é necessária, mas também o é uma variedade indefinida e sem limites.

Com o monensin chegamos ao fim do caminho, no que diz respeito a uma hereditariedade especular. Mas levogiro versus dextrogiro não é o único tipo de diferença que pode prestar-se para a reprodução hereditária. Julius Rebek e seus colegas do Massachusetts Institute ofTechnology são quúnicos que têm levado a sério o desafio de produzir moléculas auto-replicantes. As variantes que eles explorart:l não são imagens no espelho umas das outras. Rebek e seus colegas pegaram duas pequenas moléculas – os nomes detalhados não importam, vamos chamá-las apenas de A e B. Quando A e B são misturadas em uma solução, elas unem-se para formar um terceiro composto – você adivinhou – C. Cada molécula de C age como um molde, ou fôrma. As moléculas de A e B, flutuando livremente na solução, vão parar dentro do molde. Uma molécula A e uma molécula B são colocadas na sua posição no molde e, portanto acham-se corretamente alinhadas para formar uma nova molécula C, exatamente como a anterior. As moléculas C não se unem para formar um cristal, mas separam-se. Ambas as moléculas estão agora disponíveis como moldes para fabricar novas moléculas C, desta maneira a população das moléculas C cresce exponencialmente.

Do modo como foi descrito até agora, o sistema não exibe uma hereditariedade verdadeira, mas registra a conseqüência. A molécula B chega em uma variedade de formas, cada uma das quais combina com A para fazer a sua própria variedade de molécula C. Assim, temos Cl C2 C3 e assim por diante. Cada uma destas versões da molécula C serve como molde para a fabricação de outras moléculas C de sua própria variedade. A população de moléculas C é, portanto heterogênea. Mais ainda, os diferentes tipos de C não são igualmente eficientes na produção de moléculas filhas. Portanto, há uma competição entre as versões rivais de C na população de moléculas C. Melhor ainda, “mutações espontâneas” das moléculas C podem ser induzidas com radiação ultravioleta. O novo tipo mutante provou ser um “reprodutor puro-sangue”, produzindo moléculas filhas que são cópias exatas de si mesmo. De modo satisfatório, a nova variante ultrapassou a variante progenitora e rapidamente assumiu o controle do tubo de ensaio no qual estas protocriaturas passaram a existir. O complexo A/B/C não é o único conjunto que se comporta desta maneira. Há o complexo D/E/F, para citar apenas uma trinca comparável. O grupo de Rebek foi mesmo capaz de produzir luôridos auto-replicantes a partir de elementos do complexo A/B/C e do complexo D/E/F.

As moléculas verdadeiramente auto-replicantes que conhecemos na natureza – as moléculas dos ácidos nucléicos ADN e ARN – têm conjuntamente um potencial mais rico de variação. Enquanto o replicante de Rebek é uma cadeia com apenas dois elos, a molécula de ADN é uma longa cadeia de comprimento indefinido; cada um das centenas de elos da cadeia pode ser de qualquer um dos quatro tipos; e quando uma parte determinada do ADN age corno molde para a formação de uma nova molécula de ADN, cada um dos quatro tipos de elos age corno molde para um tipo particular e diferente de si mesmo. As quatro unidades, conhecidas como bases, são os compostos adenina, timina, citosina e guanina, convencionalmente denotadas A, T, C e G. A age sempre corno molde para T, e vice-versa. G age sempre corno molde para C e vice-versa. Qualquer ordenamento concebível de A, T, C e G é possível e será fielmente duplicado. Mais ainda, corno as cadeias de ADN têm comprimento indefinido, a gama de variações disponíveis é efetivamente infinita. Esta é a receita potencial para uma explosão informacional cujas reverberações podem finalmente originar-se do planeta Terra e alcançar as estrelas.

As reverberações da explosão replicante do nosso sistema solar têm estado confinadas ao planeta Terra durante a maior parte dos 4 bilhões de anos desde seu início. Apenas no último milhão de anos surgiu um sistema nervoso capaz de inventar a tecnologia do rádio. E apenas nas últimas poucas décadas é que este sistema nervoso foi realmente capaz de desenvolver a tecnologia do rádio. Agora, uma frente esférica em expansão de ondas de rádio ricas em informação está se afastando do planeta com a velocidade da luz.

Digo “rica em informação” porque já havia muitas ondas de rádio ricocheteando pelo cosmos. As estrelas irradiam nas freqüências de rádio assim corno nas freqüências que conhecemos como luz visível. Existe mesmo um chiado de fundo deixado pela grande explosão original que criou o tempo e o universo. Mas este chiado de fundo não tem um padrão que faça sentido: não é rico em informação. Um radio astrônomo em um planeta que orbite Proxirna Centauri detectaria o mesmo chiado de fundo corno os nossos astrônomos o fazem, mas também notaria um padrão de ondas de rádio mais complicado emanando da direção da estrela chamada Sol. Este padrão não seria reconhecido corno uma mistura de programas de televisão transmitidos há quatro anos, mas ele seria reconhecido corno mais organizado e rico em informação do que o chiado de fundo usual. Os radioastrônomos de Proxirna Centauri relatariam, entre demonstrações de excitação, que a estrela chamada Sol explodira em um equivalente informacional de uma supernova (eles fariam a suposição, mas poderiam não ter certeza, que na verdade era um planeta orbitando em torno do Sol).

As bombas de replicação, corno vimos, seguem um curso temporal mais lento do que o das supernovas. Nossa própria bomba de replicação exigiu uns poucos bilhões de anos para atingir o limiar do rádio – o momento no qual uma porção da informação transborda do mundo original e começa a banhar sistemas estelares vizinhos com pulsos cheios de significados. Podemos supor que explosões de informação, se a nossa é típica, passam por uma série de limiares escalonados. O limiar do rádio e antes disto o limiar da linguagem foram atingidos bem mais tarde na carreira de uma bomba de replicação. Antes destes era o que é pelo menos neste planeta – pode ser chamado o limiar das células nervosas, e antes deste foi o limiar multicelular. O limiar número um, o bisavô de todos eles, foi o limiar replicante, o evento inicial que tornou a explosão total possível.

O que é tão importante a respeito dos replicantes? Corno pode acontecer que o surgimento casual de uma molécula com a propriedade aparentemente inócua de servir corno molde para síntese de uma outra exatamente igual a ela seja o gatilho de uma explosão cujas reverberações finais podem ir além dos planetas? Corno vimos, parte do poder dos replicantes está no crescimento exponencial. Os replicantes exibem crescimento exponencial de uma forma particularmente clara. Um exemplo simples é a assim chamada corrente de cartas. Você recebe no correio um cartão-postal no qual está escrito: “Faça seis cópias deste cartão e envie-os a seis amigos no prazo de uma semana. Se você não fizer isto, um feitiço será feito contra você e você morrerá sofrendo dores terríveis em um mês”. Se você é sensato, jogará o cartão-postal fora. Mas uma boa porcentagem das pessoas não são sensatas; elas ficam vagamente intrigadas, ou intimidadas, pela ameaça, e enviam seis cópias do cartão para outras pessoas. Se, na média, um terço das pessoas que receberam o cartão obedecem às instruções escritas nele, o número de cartões em circulação duplicará a cada semana. Em teoria, isto significa que o número de cartões em circulação depois de um ano será 2 elevado à potência 52, ou cerca de 4 mil trilhões. Cartões-postais suficientes para sufocar todos os homens, mulheres e crianças que vivem no mundo.

O crescimento exponencial, se não for interrompido pela falta de recursos, sempre conduz a resultados de grande escala espantosos num tempo surpreendentemente curto. Na prática, os recursos são limitados, e outros fatores, também, servem para limitar o crescimento exponencial. No nosso exemplo hipotético, os indivíduos provavelmente começarão a ficar relutantes quando a mesma carta da corrente chega até eles pela segunda vez. Na competição pelos recursos, podem surgir variantes do replicante mais eficientes em reproduzir-se. Estes replicantes mais eficientes tenderão a substituir seus rivais menos eficientes. É importante compreender que nenhuma destas entidades capazes de replicação está conscienciosamente interessada em se fazer duplicar. Mas simplesmente acontecerá que o mundo tornar-se-á cheio de replicantes que são mais eficientes.

No caso da corrente de cartas, ser eficiente pode consistir em acumular uma coleção melhor de palavras no papel. Em vez de uma afirmação um pouco implausível de que “se você não obedecer às palavras deste cartão você morrerá com dores horríveis em um mês”, a mensagem pode mudar para “por favor, eu lhe imploro, salve sua alma e a minha, não corra o risco: se você tiver a menor dúvida, obedeça às instruções e envie a carta para outras seis pessoas”. Tais “mutações” podem acontecer sempre, e o resultado finalmente será uma população heterogênea de mensagens, todas em circulação, todas descendentes do mesmo ancestral original, mas diferindo na redação detalhada e na natureza e intensidade das artimanhas empregadas. As variantes mais bem-sucedidas tenderão a crescer à custa das rivais menos bem-sucedidas. O sucesso é simplesmente sinônimo de freqüência de circulação. A “Carta de são Judas” é um exemplo bem conhecido deste sucesso; ela viajou ao redor do mundo muitas vezes, provavelmente aumentando no decorrer do processo. Quando estava escrevendo este livro, recebi do Dr. Oliver Goodenough, da Universidade de Vermont, a seguinte versão, e escrevemos um artigo juntos sobre ela, como um exemplo de “vírus da mente”, para a revista Nature:

“Com amor todas as coisas são possíveis”

Esta carta foi enviada a você para trazer sorte. O original está na Nova Inglaterra. Ela foi enviada nove vezes ao redor do mundo. A sorte foi enviada a você. Você terá boa sorte quatro dias após o recebimento desta carta com o compromisso que você por sua vez a passe para frente. Isto não é brincadeira. Você terá boa sorte no correio. Não envie dinheiro. Mande cópias para pessoas que você acha que estão precisando de boa sorte. Não envie dinheiro, pois a fé não tem preço. Não fique com esta carta. Ela deve deixar suas mãos dentro de 96 horas. Joe Elliot, oficial da A.R.P., recebeu $40.000.000. Geo. Welch perdeu sua esposa cinco dias após ter recebido esta carta. Ele deixou de circular a carta. Entretanto antes da morte da esposa ele recebeu $75.000. Por favor envie cópias e veja o que acontece depois de quatro dias. A corrente começa na Venezuela e foi escrita por Saul Anthony Degnas, um missionário da América do Sul. Como esta cópia deve dar a volta ao mundo, você deve fazer vinte cópias e enviá-las a amigos e pessoas conhecidas; depois de uns poucos dias você terá uma surpresa; isto é amor, mesmo que você não seja supersticioso. Observe o seguinte: Cantonare Dias recebeu esta carta em 1903. Ele pediu a sua seco que fizesse cópias e as enviasse. Uns poucos dias mais tarde ele ganhou na loteria 20 milhões de dólares. Carl Dobbit, um empregado de escritório, recebeu a carta e esqueceu que ela tinha que sair de suas mãos dentro de 96 horas. Ele perdeu seu emprego. Após ter encontrado a carta novamente, ele fez cópias e enviou vinte pelo correio. Uns poucos dias mais tarde ele conseguiu um emprego melhor. Dolan Fairchild recebeu a carta e não acreditando jogou fora. Nove dias mais tarde ele morreu. Em 1987 a carta foi recebida por uma moça na Calif. Estava borrada e mal podia ser lida. Ela prometeu a si mesma que rebateria a carta e a enviaria, mas ela deixou-a de lado para fazer isto mais tarde. Ela teve vários problemas, inclusive problemas muito caros com o seu carro. Esta carta não deixou suas mãos em 96 horas. Ela finalmente bateu a carta como prometeu e conseguiu um carro novo. Lembre-se, não envie dinheiro. Não ignore isto – funciona.

                               São Judas.

 

Este documento ridículo tem todos os indícios de ter passado por numerosas mutações. Há numerosos erros e frases mal escritas, e há outras versões conhecidas circulando pelo mundo.

Diversas versões significativamente diferentes me foram enviadas de diversos cantos do mundo desde que nosso artigo foi publicado na Nature. Em um destes textos alternativos, por exemplo, o oficial da A.R.P. é um “oficial da R.A.F”. A carta de são Judas é bem conhecida pelo correio americano, que relata ser ela de uma época anterior ao começo dos seus registros oficiais e exibe surtos epidêmicos recorrentes.

Observe que a suposta lista de boa sorte desfrutada pelos compiladores e dos desastres que aconteceram com quem a ignorou não pode ter sido escrita pelas vítimas ou beneficiários. A suposta boa sorte dos beneficiários não os alcançou até depois de a carta ter deixado suas mãos. E as vítimas não enviaram as cartas. Estas histórias foram presumivelmente inventadas – como poderia ser inferido de modo independente pela implausibilidade do seu conteúdo. Isto nos leva ao aspecto principal pelo qual as correntes de cartas diferem dos replicantes naturais que deram início à explosão de vida. As correntes de cartas são originalmente escritas pelos humanos, e as mudanças em seu texto surgem na cabeça dos humanos. No início da explosão de vida não havia mentes, criatividade ou intenção. Havia apenas a química. Não obstante, uma vez que substâncias químicas auto-replicantes tiveram a chance de surgir, teria havido uma tendência automática para variantes bem-sucedidas em aumentar em freqüência à custa de variantes menos bem-sucedidas.

Como no caso da corrente de cartas, o sucesso entre os replicantes químicos é simplesmente sinônimo de freqüência de circulação. Mas isto é apenas uma definição: quase uma tautologia. O sucesso é obtido pela competência prática, e competência significa algo concreto, mas nunca uma tautologia. Uma molécula replicante bem-sucedida será uma que, por razões técnicas químicas detalhadas, tem o que é necessário para ser duplicada. O que isto significa na prática pode ser quase infinitamente variável, mesmo que a natureza dos replicantes possa parecer surpreendentemente uniforme.

O ADN é tão uniforme que consiste inteiramente em variações em uma seqüência formada com as mesmas quatro “letras” A, T, C, e G. Em comparação, como já vimos nos capítulos anteriores, os meios usados pelas seqüências de ADN para fazer-se duplicar são espantosamente variáveis. Eles incluem a construção de corações mais eficientes para os hipopótamos, pernas mais flexíveis para as pulgas, asas mais aerodinâmicas para o andorinhão, bexigas natatórias que permitem aos peixes boiar melhor. Todos os órgãos e membros dos animais; as raízes, folhas e flores das plantas; todos os olhos, cérebros e mentes, e mesmo medos e esperanças, são as ferramentas por meio das quais seqüências bem-sucedidas de ADN transportam a si mesmas para o futuro. As ferramentas são quase infinitamente variáveis, mas as instruções para a construção destas ferramentas são, em contraste, ridiculamente uniformes. Apenas permutação após permutação de A, T, C e G.

Pode não ter sido sempre assim. Não temos evidência de que, quando a explosão de informação começou, o código seminal estivesse escrito em letras do ADN. De fato, toda a tecnologia de informação com base no ADN/proteína é tão sofisticada – alta tecnologia, como foi chamada pelo químico Graham Cairns-Smith – que você mal pode imaginá-la como tendo surgido graças à sorte, sem algum outro sistema auto-replicante como precursor. O precursor pode ter sido o ARN; ou pode ter sido algo como as moléculas simples e auto-replicantes de Julius Rebek; ou pode ter sido algo muito diferente: uma possibilidade tantalizante, que discuti com detalhes em The Blind Watchmaker (O relojoeiro cego), é a sugestão de Cairns-Smith (ver seu Seven Clues to the Origin of Life) de cristais inorgânicos de argila como replicantes primordiais. Podemos nunca saber com certeza.

O que podemos fazer é supor uma cronologia geral de uma explosão de vida em qualquer planeta, em qualquer parte do universo. Os detalhes daquilo que dará certo dependem das condições locais. O sistema ADN/proteína não daria certo em um mundo de amônia líquida em temperaturas muito baixas, mas talvez algum outro sistema de hereditariedade e embriologia funcionasse. De qualquer modo, estes são os tipos de especificidades que desejo ignorar, pois desejo concentrar-me nos princípios que fazem parte das instruções gerais e são independentes do tipo de planeta. Examinarei mais sistematicamente agora a lista de limiares que qualquer bomba de replicação planetária deve ultrapassar. Alguns destes limiares têm toda a probabilidade de serem genuinamente universais. Outros podem ser peculiares ao nosso planeta. Pode não ser sempre fácil decidir quais os que provavelmente são universais e quais são locais, e esta questão é interessante em si mesma.

O limiar número 1 é, naturalmente, o limiar do replicante: o surgimento de algum tipo de sistema auto-replicante para o qual existe pelo menos uma forma rudimentar de variação hereditária, com erros aleatórios ocasionais na replicação. A conseqüência da ultrapassagem do limiar número 1 é que o planeta passa a conter uma população mista, na qual as variantes competem pelos recursos. Os recursos serão escassos – ou se tornarão escassos quando a competição ficar mais intensa. Algumas réplicas de variantes se revelarão relativamente mais bem-sucedidas na competição dos recursos escassos. Outras serão relativamente malsucedidas. Temos agora uma forma básica de seleção natural.

Para começar, o sucesso entre replicantes rivais será julgado exclusivamente pelas propriedades diretas dos próprios replicantes – por exemplo, quão bem sua forma ajusta-se a um molde. Mas agora, depois de muitas gerações evolutivas, passamos para o limiar número 2, o limiar do fenótipo. Replicantes sobrevivem não em virtude de suas propriedades, mas em virtude dos efeitos causais sobre uma outra coisa, que chamamos fenótipo. No nosso planeta, os fenótipos são facilmente reconhecidos como aquelas partes dos animais e plantas que os genes podem influenciar. Isto significa todos os pedacinhos do corpo. Pense nos fenótipos como alavancas por meio das quais os replicantes bem-sucedidos abrem o caminho para a geração seguinte. De modo mais geral, fenótipos podem ser definidos como conseqüências de replicantes que influenciam o sucesso de replicantes, mas que não são eles mesmos replicados. Por exemplo, um gene particular de uma espécie de caracol de uma ilha do Pacífico determina se a concha espirala para a direita ou para a esquerda. A molécula do ADN não é levogira ou dextrogira, mas sua conseqüência fenotípica é. As conchas levo giras ou dextrogiras podem não ser igualmente bem-sucedidas no negócio de fornecer uma proteção externa para os corpos dos caracóis. Como os genes do caracol andam no interior da concha cuja forma ajudam a determinar, os genes que produzem conchas bem-sucedidas passarão a superar numericamente os genes que produzem conchas malsucedidas. As conchas, sendo fenótipos, não geram conchas filhas. Cada concha é feita de ADN, e é o ADN que gera ADN.

As seqüências de ADN influenciam seus fenótipos (como a orientação das espirais das conchas) por meio de uma cadeia de eventos intermediária mais ou menos complicada, todos sumarizados sob o título geral de “embriologia”. No nosso planeta, o primeiro elo da cadeia é sempre a síntese de uma molécula de proteína. Todos os detalhes da molécula de proteína são precisamente especificados, via o famoso código genético, pela ordenação dos quatro tipos de letras do ADN. Mas estes detalhes provavelmente têm significado apenas local. De modo mais geral, um planeta passará a conter replicantes cujas conseqüências (fenótipos) têm efeitos benéficos, quaisquer que sejam os meios empregados, no sucesso dos replicantes em replicar-se. Uma vez que o limiar do fenótipo seja cruzado, os replicantes sobrevivem por procuração, suas conseqüências sobre o mundo. No nosso planeta, estas conseqüências estão usualmente limitadas ao corpo no qual o gene se localiza fisicamente. Mas isto não é necessariamente assim. A doutrina do fenótipo estendido (à qual devotei um livro inteiro com este título) afirma que as alavancas fenotípicas com as quais os replicantes garantem sua sobrevivência a longo prazo não precisam ficar limitadas aos seus “próprios” corpos. Os genes podem atingir o exterior dos corpos individuais e influenciar o mundo lá fora, inclusive outros corpos.

Não sei como o limiar do fenótipo universal provavelmente deve ser. Suspeito que ele tenha sido cruzado em todos aqueles planetas em que a explosão de vida ultrapassou um estágio bem rudimentar. E suspeito que o mesmo seja verdade para o próximo limiar em minha lista. Este é o limiar número 3, o limiar das equipes de replicantes, que em alguns planetas pode ser cruzado antes, ou ao mesmo tempo, que o limiar do fenótipo. No início, os replicantes são provavelmente entidades autônomas nadando ao acaso junto com outros replicantes nus nas cabeceiras do rio genético. Mas é uma característica do nosso moderno sistema tecnológico de informação com base no ADN e nas proteínas aqui na Terra que nenhum gene pode trabalhar isoladamente. O mundo químico no qual o gene faz seu trabalho não é o da química independente do meio externo. Este para ser exato, forma o pano de fundo, mas um pano de fundo bem remoto. O mundo químico imediato e vitalmente necessário no qual o ADN replicante tem existência é uma bolsa de produtos químicos muito menor, muito mais concentrada – a célula. De um certo modo, chamar a célula de bolsa de produtos químicos pode conduzir ao erro, pois muitas células têm uma estrutura interna elaborada de membranas dobradas, nas quais, sobre a superfície, no interior e no volume contido entre elas ocorrem reações químicas vitais. O microcosmo químico que é a célula é criado por um consórcio de centenas – e nas células avançadas milhares de centenas – de genes. Cada gene contribui para o meio ambiente, o qual eles todos então exploram para sobreviver. Os genes trabalham em equipes. Vimos isto a partir de um ângulo ligeiramente diferente no capítulo 1.

Os mais simples dos sistemas de ADN auto-replicantes autônomos no nosso planeta são as células bacterianas, e são necessários pelo menos duas centenas de genes para fabricar os componentes de que estas células precisam. Células que não são bacterianas são chamadas eucarióticas. Nossas células, e a de todos os animais, plantas, fungos e protozoários são células eucarióticas. Elas tipicamente têm dezenas ou centenas de milhares de genes, todos trabalhando em equipe. Como vimos no capítulo 2, parece provável agora que a própria célula eucariótica tenha começado como uma equipe de meia dúzia ou algo assim de células bacterianas que se reuniram. Mas isto é uma forma de trabalho de equipe de nível mais alto e não é sobre o que estou falando aqui. Estou falando do fato de que todos os genes fazem seu trabalho em um meio ambiente químico criado por um consórcio de genes na célula.

Uma vez que tenhamos entendido o fato de que os genes trabalham juntos em equipes, é obviamente tentador chegar à conclusão de que hoje em dia a seleção darwiniana faz sua escolha entre equipes rivais de genes – concluir que a seleção passou para os níveis mais altos de organização. Tentador, mas do meu ponto de vista errado no nível profundo. É muito mais esclarecedor dizer que a seleção darwiniana ainda faz sua escolha entre genes rivais, mas que os genes favorecidos são aqueles que prosperam na presença de outros genes que estão sendo simultaneamente favorecidos na presença um do outro. Este é o ponto com que deparamos no capítulo 1, onde vimos que genes que compartilham o mesmo braço do rio digital tendem a tornar-se “bons companheiros”.

Talvez o próximo limiar importante a ser cruzado à medida que a bomba de replicação em um planeta acumula forças seja o limiar multicelular, e eu o chamo de limiar número 4. Na nossa forma de vida, qualquer célula, como vimos, é um pequeno oceano local de produtos químicos em que uma equipe de genes está mergulhada. Embora contenha a equipe inteira, ele é constituído por um subconjunto da equipe. Agora, as células se multiplicam partindo-se em duas, cada metade crescendo até o tamanho de uma célula normal. Quando isto acontece, todos os membros da equipe de genes são duplicados. Se duas células não se separam completamente mas permanecem ligadas uma à outra, grandes edificações podem ser erigidas, com as células fazendo o papel de tijolos. A habilidade de erigir edificações multicelulares pode ser tão importante em nosso mundo quanto em outros. Quando o limiar multicelular é cruzado, podem surgir fenótipos cujas formas e funções são apreciadas somente em uma escala muito maior do que a escala de uma única célula. Chifres, folhas, globos oculares ou conchas de caracóis – todas estas formas são criadas pelas células, mas as células não são versões em miniatura da forma maior. Em outras palavras, órgãos multicelulares não crescem do modo como os cristais o fazem. Pelo menos em nosso planeta, seu crescimento se assemelha mais à construção de edifícios que, afinal de contas, não têm a forma de tijolos muito grandes. A mão tem uma forma característica, mas não é feita de células que têm esta forma, como seria o caso se os fenótipos crescessem como cristais. Novamente, como edifícios, órgãos multicelulares adquirem suas formas e tamanhos característicos porque as camadas de células (tijolos) seguem regras que lhes dizem quando parar de crescer. Em certo sentido, as células devem saber também qual a sua posição em relação às outras células. As células do fígado comportam-se como se soubessem que são células do fígado e, mais ainda, sabem se estão na beirada de um lóbulo ou no meio. Como elas fazem isto é uma questão difícil e muito estudada. As respostas são provavelmente peculiares ao nosso planeta e aqui eu não as considerarei mais. Já as mencionei no capítulo 1. Quaisquer que sejam os seus detalhes, os métodos foram aperfeiçoados exatamente pelos mesmos processos gerais empregados em outras melhorias da vida: a sobrevivência não aleatória dos genes bem-sucedidos julgados por seus efeitos – neste caso, efeitos do comportamento da célula relativamente às células vizinhas.

O próximo limiar importante que quero considerar, pois suspeito que ele, também, é provavelmente de significado maior do que o local planetário é o limiar do processamento de informação de alta velocidade. No nosso planeta este limiar número 5 é atingido por uma classe especial de células chamadas neurônios, ou células nervosas, e podemos chamá-lo localmente de limiar do sistema nervoso. Todavia ele pode ser atingido em um planeta, o que é importante, pois agora a ação pode ser efetuada numa escala temporal muito mais rápida do que aquela que os genes, com suas alavancas químicas, podem efetuar diretamente. Os predadores podem saltar sobre seu jantar e as presas podem correr por suas vidas, utilizando os sistemas muscular e nervoso que agem e reagem com velocidades muito maior do que as velocidades embriológicas com que os genes criaram estes sistemas em primeiro lugar. Velocidades absolutas e tempos de reação podem ser muito diferentes em outros planetas. Mas em qualquer planeta um limiar importante é cruzado quando os dispositivos construídos pelos replicantes começam a ter tempos de reação muitas ordens de magnitude mais rápidos do que as maquinações embriológicas dos próprios replicantes. Se os instrumentos lembrarão necessariamente os objetos que nós, neste planeta, chamamos neurônios e células musculares, é menos certo. Mas naqueles planetas em que alguma coisa semelhante ao limiar do sistema nervoso é ultrapassado, conseqüências adicionais importantes provavelmente se seguirão e a bomba de replicação dará prosseguimento à sua jornada para o exterior.

Entre estas conseqüências podem estar grandes agregações de unidades manipuladoras de dados – “cérebros” – capazes de processar padrões complexos de informação captados por “órgãos dos sentidos” e capazes também de armazenar registros destes padrões na “memória”. Uma conseqüência mais elaborada e misteriosa de cruzar-se o limiar do neurônio é a percepção consciente, e eu chamarei o limiar número 6 de limiar da consciência. Não sei quantas vezes isto aconteceu em nosso planeta. Alguns filósofos acreditam que ele esteja relacionado de modo crucial com a linguagem, que parece ter sido obtida apenas uma vez, pela espécie bípede de macacos chamada Homo sapiens. De qualquer modo, a consciência exigindo ou não uma linguagem, reconheçamos o limiar da linguagem como um limiar importante, o limiar número 7, que pode ou não ser cruzado em um planeta. Os detalhes da linguagem, tais como se ela é transmitida ou não pelo som ou algum outro meio físico, devem ser relegados ao nível de significado local.

A linguagem, deste ponto de vista, é um sistema em rede por meio do qual os cérebros (como são chamados neste planeta) trocam informações com intimidade suficiente para permitir o desenvolvimento de uma tecnologia cooperativa. A tecnologia cooperativa, começando com o desenvolvimento imitativo dos artefatos de pedra e prosseguindo através das eras do metal fundido, dos veículos providos de rodas, da energia do vapor e agora da eletrônica, tem muito dos atributos para ser uma explosão por si só, e seu início merece, portanto um nome, o limiar da tecnologia cooperativa, ou limiar número 8. De fato, é possível que a cultura humana tenha criado uma bomba de replicação genuinamente nova, com um novo tipo de entidade auto-replicante – o meme, como eu a denotei em The Selfish Gene (O gene egoísta) – proliferando e “darwinizando-se” em um rio de cultura. Pode haver agora uma bomba de memes explodindo, em paralelo com a bomba de genes que estabeleceu anteriormente as condições cérebroculturais que tornaram sua explosão possível. Mas isto, de novo, é um assunto muito vasto para este capítulo. Devo retomar ao tema principal da explosão planetária e observar que, uma vez que a etapa da tecnologia cooperativa tenha sido alcançada, é bastante provável que em algum ponto ao longo do caminho o poder de causar um impacto fora do planeta que serve como lar será conseguido. O limiar número 9, o limiar do rádio, foi ultrapassado, e agora é possível aos observadores externos ver que um sistema estelar fez explodir recentemente uma bomba de replicação.

O primeiro indício que os observadores externos terão, como vimos, será provavelmente ondas de rádio vazando para o meio exterior como subprodutos das comunicações internas no planeta de origem. Mais tarde, os herdeiros tecnológicos da bomba de replicação podem eles mesmos voltar sua atenção deliberadamente em direção às estrelas. Nossos próprios passos vacilantes nesta direção têm incluído o envio de mensagens ao espaço especificamente talhadas para a inteligência alienígena. Como se podem talhar mensagens para inteligências de cujas naturezas não temos idéia? Obviamente é difícil, e é bem possível que nossos esforços tenham sido mal concebidos.

Muita atenção tem sido concedida a convencer os observadores alienígenas de que nós existimos, em vez de enviar-lhes mensagens com conteúdo substancial. Esta tarefa é a mesma com que deparou o meu hipotético professor Crickson no capítulo 1. Ele traduziu os números primos para o código de ADN, e uma política similar usando sinais de rádio seria um modo sensato de assinalar nossa presença aos outros mundos. A música pode ser uma propaganda melhor para a nossa espécie, e, mesmo que a audiência não tenha ouvidos, ela poderia apreciá-la de seu próprio jeito. O famoso cientista e escritor Lewis Thomas sugeriu que transmitíssemos Bach, tudo de Bach e mais nenhum outro tipo de música, embora ele temesse que isto pudesse parecer uma fanfarronada. Mas, da mesma forma, a música pode ser confundida, por uma mente suficientemente alienígena, com as emanações rítmicas de um pulsar. Pulsares são tipos de estrelas que emitem pulsos rítmicos de ondas de rádio com intervalos de uns poucos segundos ou menos. Quando eles foram descobertos pela primeira vez, por um grupo de radioastrônomos de Cambridge em 1967, houve uma excitação momentânea enquanto as pessoas se perguntavam se os sinais poderiam ser mensagens vindas do espaço. Mas em breve se percebeu que uma explicação mais econômica era que uma pequena estrela estava girando extremamente rápido e varrendo o espaço em torno de si com um feixe de ondas de rádio como um farol de navegação. Até o momento, nenhuma comunicação autêntica vinda de fora de nosso planeta foi recebida.

Depois das ondas de rádio, o único passo adicional que conseguimos imaginar no progresso rumo ao exterior de nossa própria explosão é a viagem espacial propriamente dita: o limiar número 10, o limiar da viagem espacial. Os escritores de ficção científica têm sonhado com a proliferação de colônias humanas, ou suas criações robóticas. Estas colônias filhas poderiam ser consideradas como sementes, ou infestações, de novos bolsões de informação auto-replicante – bolsões que podem subseqüentemente eles mesmos expandir-se de novo explosivamente para o exterior, com bombas de replicação satélites, transmitindo genes e memes. Se esta visão algum dia concretizar-se, talvez não seja demasiado irreverente imaginar algum Christopher Marlowe apelando para as imagens do rio digital: “Veja, veja, onde o rio da vida corre no firmamento!”

Até agora mal demos o primeiro passo em direção ao exterior. Estivemos na Lua, mas por mais magnífica que esta realização seja, a Lua, embora não seja uma cabaça, é tão local que do ponto de vista dos alienígenas com os quais finalmente poderemos comunicar-nos, mal conta como viagem. Enviamos uma mancheia de cápsulas não tripuladas para as profundezas do espaço, em trajetórias que não têm um fim visualizável. Como resultado da inspiração do visionário astrônomo americano Carl Sagan, uma destas cápsulas carrega uma mensagem projetada para ser decifrada por qualquer inteligência alienígena que porventura a receba. A mensagem é enfeitada com uma gravação em metal da espécie que a enviou, um homem e uma mulher nus.

Isto parece fazer com que completemos o círculo, voltando aos mitos ancestrais com os quais começamos. Mas este casal não é Adão e Eva, e a mensagem gravada sob as suas formas graciosas é um testamento mais valioso para a nossa explosão de vida do que qualquer coisa no Gênese. No que é projetada para ser uma linguagem iconográfica universalmente compreensível, a placa registra seu próprio Gênese no terceiro planeta de uma estrela da galáxia cujas coordenadas estão precisamente registradas. Nossas credenciais são ainda mais estabelecidas por algumas representações iconográficas de princípios fundamentais da química e da matemática. Se a cápsula algum dia for recolhida por seres inteligentes, eles creditarão a civilização que a produziu com algo mais do que superstições tribais primitivas. Através do abismo espacial, eles saberão que há muito tempo existiu uma outra explosão de vida que culminou em uma civilização com a qual teria valido a pena conversar.

Ai de nós, as chances desta cápsula passar ao alcance a uma distância de um parsec de uma outra bomba de replicação é desanimadoramente pequena. Alguns comentaristas vêem seu valor como inspiradora para a população aqui de casa. A gravura em metal de um homem e uma mulher nus, com as mãos erguidas em um gesto de paz, deliberadamente enviada para uma viagem exterior eterna entre as estrelas, o primeiro fruto enviado do conhecimento de nossa explosão de vida – certamente a contemplação disto pode ter alguns efeitos benéficos sobre as nossas normalmente pequenas consciências paroquiais; algum eco do impacto poético da estátua de Newton no Trinity College, Cambridge, sobre a consciência reconhecidamente gigantesca de William Wordsworth:

 

                               And from my pillow, looking forth by light

                               Of moon or favouring stars, I could behold

                               The antechapel where the statue stood

                               Of Newton with his prism and silent.face,

                               The marble index of a mind for ever

                               Voyaging through strange seas of Thought, alone*.

 

               E do meu travesseiro, olhando à frente sob

               a luz da lua ou das estrelas auspiciosas podia mirar

               a antecapela onde estava a estátua

               De Newton com seu prisma e o rosto silencioso

               O marco em mármore de uma mente para sempre

               Viajando pelos estranhos mares do Pensamento, sozinha.

 

Notas

1 Estritamente falando, há exceções. Alguns animais, como os anfíbios, reproduzem-se sem sexo. Técnicas como a inseminação artificial tornam possível aos humanos modernos ter crianças sem copular, e mesmo – já que os óvulos para a fertilização in vitro poderiam ser obtidos de um feto feminino – sem atingir a idade adulta. Mas para a maior parte de meus propósitos a força de meu argumento não é diminuída.

2 ADN é ácido desoxinibonucléico, constituinte básico dos genes. (N. do T.)

3 Symphalangus syndactüus, espécie de antropóide encontrado na Malásia. (N. do T.)

4 Os leitores deveriam manter estes pontos em mente quando consultarem Vida maravilhosa, o belo relato de Stephen J. Gould da fauna Cambriana de Burgess Shale.

5 o leitor atento poderá perguntar-se o que causará estas desigualdades iniciais de concentração na superfície do óvulo. Por estas e outras razões, o princípio do cordão dos sapatos, referência ao fato de uma pessoa poder hipoteticamente elevar-se puxando os cordões dos próprios sapatos, é discutível tanto do ponto de vista científico como do ponto de vista filosófico. (N. do T.)

6 Culto nativo religioso de caráter milenarista das ilhas do sudoeste do Pacífico que sustenta que ao final do milênio os espíritos dos mortos retomarão com grandes carregamentos de presentes para os seus adeptos. (N. do T.)

7 Esta não foi a primeira vez que utilizei este argumento arrasador, e devo chamar a atenção para que ele deve ser estritamente utilizado contra pessoas que pensam como o meu colega da cabaça. Há outros que, confusamente, também chamam a si próprios de relativistas culturais, embora seus pontos de vista sejam completamente diferentes e perfeitamente sensatos. Para estes, o relativismo cultural significa apenas que você não pode entender uma cultura se você tentar interpretar suas crenças em termos de sua própria cultura. Você deve ver cada uma das crenças de uma cultura no contexto das outras crenças desta cultura. Tenho suspeitas de que esta forma sensata de relativismo cultural é a original, e aquela que critiquei como radical, embora alarmantemente comum, uma forma perversa da original. Os relativistas sensatos deveriam trabalhar mais duramente para distanciar-se dos relativistas do tipo tolo.

8 The Spectator (Londres), 6 de agosto de 1994.

9 A versão da Bíblia de Jerusalém é: Vê o inverno: já passou! Olha a chuva: já se foi! As flores florescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola está-se ouvindo em nosso campo. (N. do T.)

10 Este é o título do livro de Darwin sobre o tema. Veja a bibliografia ao final deste livro. (N. do T.)

11 Larus argentatus, tipo de gaivota comum no hemisfério Norte. (N. do T.)

12 Espero que isto não ofenda. Em apoio ao meu argumento cito a passagem seguinte extraída de Science and Christian Beliej, escrita por um físico eminente, o reverendo John Polkinghome (1994, pág. 16): “Alguém como Richard Dawkins pode apresentar imagens persuasivas de como a peneiração e o acúmulo de pequenas diferenças podem produzir desenvolvimentos de grande escala, mas, instintivamente, um cientista físico gostaria de ver uma estimativa, não importa quão grosseira possa ser, do número de etapas que nos levaria de uma célula ligeiramente fotossensitiva para o olho completamente formado de um inseto, e do número aproximado de gerações exigidas para que as mutações necessárias possam ocorrer.”

13 Qualquer uma das vespas da família Sphecidae que nidificam no solo ou na madeira. (N. do T.)

14 Argumento baseado no pressuposto de que há um propósito de origem divina subjacente aos processos da natureza. (N. do T.)

15 Grande recife de coral paralelo à costa da província de Queensland, no nordeste da Austrália. (N. do T.)

 

                                                                                Richard Dawkins  

 

                      

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