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O SEGREDO DE LeBARON / Stephen Birmingham
O SEGREDO DE LeBARON / Stephen Birmingham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

O SEGREDO DE LeBARON

Primeira Parte

 

É importante estar apaixonada? Foi esta a pergunta que a jovem Sari Latham fez a si mesma enquanto se preparava para casar com o jovem Peter Powell LeBaron. Ela estava profundamente apaixonada por Peter, que era bonito, amável e rico. Mas embora Sari ansiasse por ouvi-lo dizer que a amava, ele nunca pronunciou tais palavras, mesmo quando faziam amor. Peter estava sempre distante, esquivo e, de algum modo, desligado.

Muitos anos depois, Assaria Latham LeBaron se pergunta se o amor é importante. Agora uma matriarca de vontade férrea, dirige o negócio de vinhos da família LeBaron, e a própria família, com mãos igualmente firmes. E se descobre em conflito com a melhor amiga e cunhada, Joanna, a respeito de quem deveria controlar os interesses dos LeBarons. Joanna conta com o apoio dos próprios filhos de Sari, Melissa e Eric.

Numa sala de reuniões se desenrolará o confronto final, enquanto a narrativa se precipita para o seu clímax empolgante, desvendando, camada por camada, um drama emocionante de amor, cobiça, coragem e ciúmes.

 

 

                                             Manhã, Tarde e Noite

 

Foi este o modo como a platéia daquela noite no teatro recordou o incidente:

O protagonista, um jovem cantor, que sempre se apresentava nu até a cintura, o peito sem pêlos coberto de correntes douradas, de repente emitiu um grito agudo em meio à sua canção, arremessou a guitarra sobre o palco e guinchou: "As serpentes podem ser substituídas!" E com isto, agarrou a serpente que se enroscara em volta de seus ombros, segurou-a pela cauda e, brandindo-a como um chicote de cocheiro, passou a agitá-la - e malhá-la - furiosamente contra o piso do palco. Um fluido, que não era sangüíneo, brotou na boca da serpente. Aquilo, a platéia percebeu, deviam ser os miolos do animal, ou algo ainda mais horrível saído de suas entranhas. Então, ainda segurando firmemente seu braço que sangrava, o cantor, autodenominado Lus-cious Lucius, bateu com o pé fortemente, repetidas vezes, atingindo a cabeça da serpente com a sua bota de cano alto de cowboy ornada de lantejoulas até que o ofídio restasse flácido e sem vida a seus pés.

De início, ouviu-se uma explosão de risos espremidos - nervosos e inseguros - e um grito ou dois de excitação, enquanto todos se perguntavam se aquilo fazia parte do número, se era sangue de verdade o que fluía do braço nu de Luscious Lucius. Ou se seria suco de tomate. O grito, o baque da guitarra sobre o palco... fizeram parte do número do cantor, não? Mas então, com um arquejo coletivo que soou mais como um gemido de descrença, a platéia de aproximadamente duas mil pessoas, na maioria adolescentes, percebeu que o sangue derramado que viam no palco era bem real. Pois justo quando Lucius executava sua última canção, fazendo cabriolas no palco e arqueando sua guitarra, a serpente com a qual ele sempre executava seu já conhecido finale movera subitamente a cabeça para trás e então o atacara, cravando suas presas com força no bíceps do cantor.

A música cessara, o grito soara, a guitarra fora arremessada longe, e, por um instante, o cantor, parecendo descarnado, assustado e solitário, olhou atordoado para o seu braço sangrando. Gritos partiram da platéia. Todos tinham vindo em busca de emoções baratas, de alguma coisa visceralmente lasciva (corriam rumores de que Luscious Lucius às vezes se expunha nu no palco), e do horror falso e obsceno. Mas não tinham vindo para presenciar aquele tipo de realismo, e os guinchos agora eram como aqueles de uma montanha-russa quando um carrinho descarrilava. Metade da platéia se erguera na ocasião em que Luscious Lucius começara a desenroscar a serpente de seu corpo, onde a enrolara, e a bater nela até matá-la diante dos olhos de todos. Ocorreu um pandemônio no auditório quando uma pequena multidão de jovens buscou em atropelo as portas de saída.

- Ouçam - gritou o cantor em seu microfone, sobrepondo sua voz ao barulho reinante, uma das mãos em concha sobre o braço ferido. - Relaxem! Fiquem calmos. Merda, eu estou bem! O espetáculo não terminou. As serpentes ficam velhas. Assim como ficam ruins, caramba. A exemplo desta, que será substituída. Não se vão ainda... - E, numa tentativa de reter sua platéia, lançou purpurina no ar.

Mas ninguém estava prestando atenção a ele e, em meio aos seus apelos naquele cenário de massacre, o contra-regra, entendendo que aquela noite estava perdida - a purpurina era a deixa para que as cortinas fossem fechadas - teve o bom senso de baixá-las depressa e acender as luzes do teatro.

A Península Gazette noticiou o incidente na manhã seguinte:

MORDIDA DE SERPENTE ACABA COM CONCERTO DE ROCK; CANTOR BATE NO OFÍDIO ATÉ MATÁ-LO NO PALCO ANTE 1.800 ESPECTADORES.

Uma serpente indiana de 2,10m de comprimento, uma atração do número do grupo punk de rock que se auto-intitula The Dildos, tornou-se de repente feroz na noite passada no meio de um show no recém-remodelado Teatro Odeon, no centro da cidade, e mordeu o cantor líder do grupo, Maurice Littlefield, de 23 anos, Littlefield passou então a bater na serpente no palco enquanto uma platéia de 1.800 fãs, aos gritos, contemplava a cena horrorizada. Littlefield, que se denomina Luscious Lucius, sangrou copiosamente do braço esquerdo.

A serpente, chamada Sylvia pelo grupo de rock, já participava do conjunto há três anos sem registro de qualquer incidente, e era tida como domesticada e inofensiva. Littlefield foi levado ao Hospital Mercy e medicado devido à mordida da serpente e lacerações. Ele recebeu alta cerca de uma hora depois, e os médicos disseram que seu ferimento resultante da picada não era considerado grave. O réptil pertencia a uma espécie não venenosa.

A platéia, nesse ínterim, reagiu ao episódio registrado no palco com muito nervosismo. A maioria era constituída de jovens, e a reação de Tracie Hodgman, de 17 anos, moradora na Morris Street, 345, em Menlo Park, foi bem característica. "Não achei nada agradável a serpente mordê-lo", disse ela. "Parecia haver sangue em toda parte. Mas então ele bateu nela até matá-la, e isto foi realmente repelente. Eu vomitei em seguida. Eu pensava que The Dildos formavam realmente um conjunto legal, e era uma fã de verdade do Lucius. Mas agora não tenho tanta certeza."

Enquanto o pano de boca descia, a platéia precipitou-se para as portas de saída, onde irrompeu um pequeno tumulto, mas sem registro de ferimentos graves.

O Teatro Odeon, que se beneficiou ano passado de uma remodelação no custo de US$ 3 milhões, como parte de um projeto a longo prazo para renovar a área da Market Street, teve a sua lotação esgotada para a apresentação de ontem à noite dos Dildos. Outros eventos culturais estão programados para o próximo ano.

Gabe Pollack estacionou seu velho Dodge Omni defronte à grande casa branca no estilo "bolo de noiva" ,Wedding-Cake House na Washington Street, 2.040, e, como fazem automaticamente os habitantes de São Francisco, fez girar a roda direita dianteira com força bem no meio-fio antes de brecar e desligar a chave de ignição, conquanto a casa de Assaria LeBaron não se localizasse num trecho particularmente íngreme da Pacific Heights. Trata-se de uma reação automática: fazer a roda direita dianteira de seu carro morder firme o meio-fio quando está estacionando. Gabe Pollack, um tanto rigidamente - sua coluna estava lhe causando problemas ultimamente -, saiu do carro e começou a caminhar pela curta entrada para carros até o alpendre da extravagante casa branca.

O dia chuvoso é que provocara aquela dor nas costas. Não eram os seus 81 anos, ele se disse. Era uma nova manhã de fevereiro úmida e friorenta na cidade, e a chuva da véspera se convertera numa garoa brumosa; a cidade - até mesmo a "Bolo de Noiva" - tinha um aspecto cinzento, um remoinho esfumaçado. Era o que os ingleses chamam um dia prateado, embora a umidade houvesse dado uma aparência clara, brilhante, às folhas verdes da sebe formada pelos limoeiros que demarcava o caminho da entrada da casa de Assaria LeBaron. A respiração de Gabe Pollack se fazia em pequenos sopros prateados, e justo antes de dar uns passos no alpendre ele ergueu os olhos na direção das janelas do segundo andar onde ficava a sala de estar de Assaria LeBaron, para ver se sua chegada estava sendo esperada. E viu - ou pensou ter visto - a branca almofada de uma vidraça ser encaixada no lugar, como se a pequena mão de alguém a tivesse deixado cair a pouco. Mas não podia ter certeza de que vira isso. Moveu-se então no alpendre, subiu os três degraus de mármore branco que levavam à porta da frente e tocou a campainha.

Houve uma curta espera e então a porta foi aberta por Thomas, o mordomo da sra. LeBaron, em seu fraque cinza.

- Bom dia, sr. Pollack.

- Bom dia, Thomas.

Já no interior da casa, Thomas ajudou Gabe a retirar o sobretudo.

- Faz muito frio esta manhã, senhor.

- É o tempo de São Francisco - disse Gabe. - O sol estava brilhando de verdade quando deixei Palo Alto. A chuva começou em Daly City.

Thomas fez um muxoxo e conduziu Gabe ao elevador à espera. Entrando nele, Gabe disse:

- Manhã friorenta, e presumo que uma acolhida fria de sua patroa me aguarda.

- Eu não sei dizer, senhor - murmurou Thomas. E fechou a porta do elevador. Com a mão recoberta de uma luva cinza de Thomas controlando-o, o elevador, um antigo Otis hidráulico, iniciou sua lenta ascensão ao andar superior. Sua caixa de ferro batido era um rendilhado irregular de treliça, ornado de feixes de trigo e videiras, folhas de uvas e papoulas em flor, e ele cumpria as tarefas designadas tão vagarosamente que, como a própria Sari dizia, duas pessoas podiam consumar um caso amoroso durante o espaço de tempo gasto por aquele mecanismo em seu trajeto de um andar para o outro. E haveria certamente tempo suficiente para se converterem em muito bons amigos. A Gabe causava uma ligeira irritação o fato de Thomas fazê-lo tomar o elevador sempre que vinha visitar Sari. Ele poderia subir facilmente pela escada. Tudo que recordasse a Gabe Pollack que ele estava idoso irritava-o. Tal como o rapazinho - um escoteiro? - que lhe oferecera o apoio de seu cotovelo outro dia para ajudá-lo a atravessar a Post Street. No outro dia. Isto fora há uns bons cinco anos. Eu não pareço um velho, ele se disse. Em meu espelho ainda vejo um jovem sim, um impulsivo camarada em seus vinte ou trinta anos. Quarenta, talvez. Para fazer a conversa durar em sua "viagem" no ascensor, Gabe disse:

- Suponho que a disposição de sua patroa se relacione com a história saída no jornal de hoje.

- Não sei dizer, senhor.

- Bem, eu estou no ramo da imprensa, e meu trabalho é divulgar as notícias.

- Oh, tenho certeza disso, senhor.

- Às vezes.sua patroa não entende perfeitamente isso.

- Nada sei sobre isso, senhor.

- Tenho certeza de que ela está obcecada por algum projeto.

- Simplesmente não sei nada a esse respeito, senhor.

Por fim o elevador chegou ao segundo andar; Thomas abriu a porta e se pôs de lado, dizendo:

- Está adiantado alguns minutos, senhor. Madame não está pronta ainda. Ela pede que o senhor a aguarde na sala de estar da ala sul.

Gabe Pollack não disse nada. Não mencionou que o recado que recebera da patroa de Thomas fora: "Venha me ver tão logo seja possível", e nem perguntou a Thomas como podia ser possível estar alguns minutos adiantado quando lhe fora pedido apenas vir tão cedo quanto possível sem fixação de hora. E a sala de estar da ala sul era um mau prenuncio, um sinal de mau agouro. Significava que ele ali estava para uma reunião com Sari, não para uma visita. A sala de estar da ala sul era a usada por Sari para abordar negócios, a coisa mais próxima de um escritório-longe-do-escritório em sua Bolo de Noiva.

A sala de estar da ala sul, como sua designação implicava, dando frente para o sul e para a rua, não oferecia nenhuma vista que proporcionasse alguma espécie de distração. A sala de visitas da ala norte, ampla, com sua fina mobília francesa, oferecia uma boa visão do Portal Dourado, a baía, e tudo mais além. Na sala de estar formal, ele seria servido de café e de um dos esplêndidos pãezinhos doces da Cookie. Na sala de estar do sul não haveria nada disso. Num momento de rebeldia, Gabe pensou que abriria caminho até a outra sala, fosse como fosse, ignorando as instruções de Thomas, mas, pensando bem, resolveu que seria melhor não fazê-lo. Não cabia irritar a querida amiga mais do que ela já estava. Se tinha que ser a sala de estar da ala sul, que assim fosse, e ele atravessou o hall, entrando na sala indicada e sentando-se na cadeira mais confortável que o aposento apresentava, uma peça de mobiliário vitoriano de espaldar duro e decorada por Belter, tal como o elevador, com uma boa quantidade de arabescos esculpidos e parreiras. A cadeira ficava voltada para a mesa comprida de biblioteca que Sari usava como uma espécie de escrivaninha, e nessa posição Gabe sentiu-se exatamente como um colegial relapso que tivesse sido chamado à presença do diretor do colégio.

No momento a casa estava estranhamente silenciosa, sem nenhum som de passos em parte alguma, somente o ruído de tique-taque do velho relógio de ouropel e mármore negro sobre a lareira. Ping, ping, emitia o relógio no consolo da lareira com a sua grade ornamental no feitio de leque, de metal pesado e bem polido, uma lareira que Gabe Pollack nunca vira acesa. Lá fora, indistintamente, na rua, o dia continuava chuvoso, com uma neblina envolvente. Do outro lado da rua, em suas guaritas, os dois policiais que guardavam o consulado russo tinham colocado capas impermeáveis. Eles batiam no chão suas botas molhadas. Sari LeBaron gostava de dizer que era pró-comunista. Os soviéticos forneciam uma segurança grátis para sua casa.

Exceto pelo tique-taque do relógio, a casa estava silenciosa.

 

A chamada Bolo de Noiva. Sempre fora assim denominada na localidade, desde o início, e era uma designação apropriada, porque fora na verdade um presente de casamento feito a Assaria LeBaron e ao seu falecido esposo, Peter Powell LeBaron. Arquiteturalmente, também, ela se assemelhava a um bolo de noivado, toda de mármore branco, erguida camada sobre camada - três camadas ao todo antes da balaustrada abaulada -, paladiana na idéia, senão no puro desenho, sua fachada ornamentada com festões esculpidos na pedra, grinaldas e folhos, para compor sua afirmação romântica definitiva. Não há nenhuma consciência culposa aqui, parecia dizer sempre aquela casa. Nada há para se envergonhar aqui, a despeito de rumores torpes. Nós pertencemos a uma alegre casa, pareciam dizer as grinaldas esculpidas, as grinaldas que compunham a arcada superciliar sobre as janelas abertas para a Washington Street, os olhos do capitalismo fixo serenamente lá embaixo no consulado soviético do outro lado da rua. "Eu nasci na Rússia, como sabem", Sari LeBaron gosta de dizer a seus amigos. "Mas simplesmente caí fora de lá a tempo, com os lobos quase mordendo as rodas da minha tróica!" Sari gosta de enfeitar histórias.

A casa também já fora chamada de nomes desagradáveis. "Sessenta quartos!" tripudiara o matutino Chronicle quando a casa fora concluída em 1927. "Noventa quartos!" corrigira o vespertino Examiner no mesmo dia. Naturalmente, os dois jornais estavam mentindo pra valer, ou apenas se divertindo com a hipérbole, a menos que houvessem computado todos os toaletes e adegas de vinhos do porão. Não havia mais do que vinte quartos principais naquela casa, mais os dois criados, é claro, e no seu apogeu ela contara com uma criadagem em tempo integral de onze componentes a fim de conservá-la: um mordomo e um lacaio, o criado pessoal de Peter LeBaron e a camareira de Sari, uma cozinheira e uma copeira, duas empregadas domésticas, uma costureira e uma lavadeira, e um motorista que era também um faz-tudo. Agora Sari se valia só de três, mais duas diaristas, com a roupa sendo lavada fora. Ainda assim, era uma casa imponente, e não havia dúvida de que papá LeBaron gastara os olhos da cara para construí-la - um tanto mais, de fato, do que ele poderia se permitir despender. Por volta de 1931, levantaram-se hipotecas contra ela, hipotecas que tinham que ser resgatadas.

De onde vinham tantas hipotecas? Fora dos muros, como camundongos, essas ações hipotecárias chegavam, e cresciam, e se multiplicavam.

Se esses muros pudessem falar, pensava Gabe, quantos segredos viriam a revelar. "O amor é importante?" perguntara-lhe ela ali. "Quero dizer, é importante estar apaixonada?" E "Eu desejo ir à China. Desejo ver de perto o Oriente. Desejo caminhar pela Grande Muralha, visitar a Cidade Proibida, ver o Palácio do Grão-Mogol. Peter amava tanto São Francisco que nunca quis ir ao exterior. No máximo Nova York... ou Bitterroot. Sabia que eu nunca estive em Los Angeles? Não há nada da Califórnia ao sul de Tehachapi, costumava dizer Peter. Mas agora eu desejo ir à China. Leve-me à China, Gabe."

Mas nesse dia a conversa não seria acerca do amor, ou de viagens ao distante Extremo Oriente. Nesse dia tudo giraria em torno de negócios naquela sala, não haveria café e nenhum dos já famosos pãezinhos doces de Cookie - café servido com grossos cristais de açúcar mascavo de Demerara, pãezinhos doces recheados de maçã, cereja, mirtilo e pêssegos em conserva, polvilhados com canela. Tinha sido saboreada com o passar dos anos uma série desses rocamboles, todos com seus próprios nomes, mas todos eram chamados de Cookie, já que Sari LeBaron não via nenhum motivo, é claro, para decorar os nomes das empregadas com quem não tinha um contato direto. Ela e Thomas programavam o cardápio, e este, por sua vez, era apresentado a qualquer "Cookie" que acontecesse estar na cozinha naquele ano. Se uma mulher podia cozinhar, e não se incomodava de ser conhecida como a "cozinheira", poderia trabalhar para Sari LeBaron. Havia somente uma condição exigida da cozinheira: "Ela pode fazer uma galantina?" perguntaria Sari. Se a resposta fosse sim, ela teria o emprego, embora, pelo que Gabe se lembrava, nenhuma das cozinheiras de Sari jamais tivesse sido solicitada a preparar algo remotamente parecido com uma galantina.

O relógio tiquetaqueava, e Gabe Pollack ainda aguardava. Tendo sido solicitado a vir de imediato, ele entrara rápido em seu carro e rumara para a cidade, ultrapassando o limite de velocidade na auto-estrada, e agora conseguira chegar um pouco cedo... Isto ocorria amiúde, quando Sari achava que devia dar-lhe uma reprimenda.

Ela o fazia esperar. E conquanto ela estivesse reunindo suas energias para essa reprimenda, e não havia dúvida a tal respeito na mente de Gabe, naquele dia ela iria mostrar-lhe o lado afiado da sua língua. Não esqueça, ele poderia dizer-lhe, que posso lembrar de quando você não era tão notavelmente rica e poderosa, quando de fato era eu quem lhe dizia o que devia fazer. E daí? Viria ela a retrucar. De que lhe serve recordar isso? Olhando-o diretamente com aqueles extraordinários olhos negros, ela lhe diria: "Essa capacidade de se lembrar de quando eu não era tão eficazmente rica e poderosa lhe fornece alguma arma especial? Se assim é, gostaria que você me demonstrasse isso efetivamente agora. Mostre-me, Gabe, o que todas as suas eficientes lembranças farão. Faça as lembranças retornarem àquele relógio. Faça as lembranças removerem a ponte da baía de Frisco e trazer as balsas de volta. Faça as lembranças soprarem uma simples vela de seu bolo de aniversário aos 81 anos."

"Você sabia", replicaria ele, tornando-se mais duro, "que algumas das coisas que são ditas sobre esta mansão não são de todo agradáveis? Não terá ouvido se referirem a ela como o Palácio do Doge? Pior ainda, não ouviu chamarem esta casa de o Palácio da Dago? Eu ouvi. Sabe que você e seu marido não são amados em geral nesta cidade?"

"Eu sou amada", responderia ela, "porque sou rica."

Gabe muda de posição na cadeira Belter, cruza as pernas e com uma das mãos alcança e esfrega o ponto dolorido em suas costas. E então um novo som se faz ouvir. O som chiante da cadeira de rodas motorizada de Assaria LeBaron quando ela abria caminho pelo comprido corredor, acarpetado, na direção da sala de estar da ala sul.

- É você, Gabriel? - ele a ouve chamá-lo. E este é um novo sinal de seu mau agouro, o fato de Sari chamá-lo pelo nome completo. Fechem todas as escotilhas, ele pensa. Todos os alertas de tempestade estão vindo do posto de Point Reyes até Point Lobos.

- Eu estou aqui.

Ela faz a cadeira de rodas avançar passando pela porta e entrando na sala.

- Você estava falando sozinho! - diz ela. Erguendo-se, ele retruca:

- Não.

- Claro que estava. Eu o ouvi. Mas não se preocupe, todos nós fazemos isso. Sente-se, Gabe - e lhe estende a mão, para que seja beijada.

Segurando-lhe a mão, ele pensa: Beijarei agora o anel do papa. E diz:

- Como está, Sari? - E beija a mão de "Sua Santidade".

- Muito bem - diz ela alegremente. - E você? Fiquei muito contente quando Thomas me disse que você estava aqui. Agora, diga-me, Gabe, em que posso servi-lo?

Ele hesita. Ela pode, ou não, estar fazendo um jogo com ele. Não se pode ter uma plena certeza a respeito de Sari. Observando-a, buscando uma pista clara, ele se sente impressionado, como sempre, com sua pequenez, seu refinamento. É difícil acreditar que tanta força e energia possam estar encasuladas numa mulher pequena, singular. As mãos dela são pequeninas e delicadas. Sua figura - e a cadeira de rodas realça isso, claro - parece, extremamente tão frágil, quase como se fosse quebradiça. Costuma-se dizer com freqüência que, à medida que envelhecemos, adquirimos a aparência que merecemos; se isto é um fato, Assaria LeBaron devia figurar entre as mulheres mais merecedoras. Embora seu cabelo fosse branco agora, e conquanto a antiga beleza ticiana de seus cabelos fosse evidente mais como uma sombra vista através de camadas de gaze, havia ainda aquela tez macia, quase da cor de oliva, e aqueles extraordinários olhos negros que podiam se mostrar ferozes ou joviais, dependendo de seu humor, e que no momento pareciam inteiramente alegres.

- O que posso fazer por você? - repete ela.

- Eu encontrei um recado esperando por mim na minha mesa esta manhã, dizendo-me que você desejava ver-me.

- Oh. Bem, suponho ter sugerido que seria gentil de sua parte passar aqui hoje.

- Não havia nada... importante em sua mente?

- Oh, creio que parecia importante na ocasião. Mas agora já não parece tanto. O que houve são águas passadas.

- Foi aquela história... sobre a serpente?

- Bem, na realidade, sim. Eu fiquei um tanto nervosa com aquilo. Mas depois compreendi; afinal de contas, você dirige um jornal, e a sua função é editar as notícias.

- Sim! - Tenta não dizer isso de modo muito defensivo.

- E algumas vezes eu me inclino a esquecer isso, não?

- Sim.

Era tudo um eco, naturalmente, de sua conversa com Thomas no elevador. O que Gabe Pollack às vezes tendia a esquecer era o estreito conluio em que viviam Sari LeBaron e seu criado. Ele era mais do que as pernas de sua patroa e um par extra de mãos. Thomas era agora, após todos aqueles anos, um anexo de sua personalidade, respondendo por quaisquer insuficiências que pudessem ter se desenvolvido em quaisquer dos sentidos de Sari - um par extra de olhos, de ouvidos, até mesmo um nariz extra e um conjunto de papilas gustativas. Thomas diria: "Receio que a cozinheira tenha carregado no açúcar em seu sorvete, senhora. Devo falar com ela sobre isso?" "Sim, faça-o." Juntos, aqueles dois constituíam uma espécie de superser funcionando plenamente, uma combinação imbatível.

Sari aperta o botão que ativa sua cadeira motorizada e se empurra destramente por trás da mesa comprida de biblioteca que lhe serve de escrivaninha. Movendo-se com a mesma facilidade com que notoriamente navega pelos corredores apinhados das lojas Saks e Magnin. Ela fixa seus olhos nele, e há uma pequenina crepitação neles.

- Você parece fatigado, Gabe. Trabalha demais. Devia estar pensando em se aposentar.

Aí vem coisa, pensa ele, e diz cautelosamente:

- Não, para ser franco, não estou pensando nisso.

- Pois deveria. E tenho certeza de que já escolheu seu sucessor.

- Não, não cuidei disso também. - E a seguir: - Sari, que acha de Josie trazer-nos o café?

Ela move sua mão com irritação, retrucando:

- Josie está ocupada. Eu já tomei o café da manhã, e preferiria conversar. Presumo que será aquele moço com os tais sapatos.

- Quem?

- Seu sucessor.

Sapatos, pensa ele. Sabe quem é o homem de quem ela fala, e tenta imaginar se há algo notável, incomum, acerca dos sapatos usados por Archie McPherson.

- Refere-se a Archie?

- Sim.

- Bem, suponho que ele seja um candidato possível, mas na realidade não pensei muito no assunto.

- Eu imagino. Terei alguma voz decisiva a respeito do assunto?

- Que assunto?

- O de quem irá sucedê-lo no jornal. Bem, presumo que isso não importe. Você não me diz como dirigir meus negócios, e eu não lhe digo como gerir os seus.

Oh, não, pensa ele. De modo algum, sem dúvida.

- O caso é que eu tenho muita esperança de que você não o escolha. Ele me parece inteiramente imerecedor de substituí-lo, Gabe. Foi ele quem escreveu aquela história sobre mim, fugindo em meu avião. O Chronicle e o Examiner tiveram bom gosto o bastante para sepultar aquele pequeno artigo nas páginas finais. Em seu jornal, ele a converteu em notícia de primeira página. E ele é o mesmo que escreveu essa história da serpente... estou certa? E também na primeira página.

- Sim, isso é verdade. Ela suspira.

- Eu tinha certeza. Já aprendi a reconhecer o... estilo dele, se é que se pode chamá-lo assim. O tipo de jornalismo marrom, sensacionalista, de que nosso falecido amigo, o sr. Hearst, gostava tanto. Isso parece... indigno de você, Gabe.

- Como você mesma disse, minha função é...

A expressão de Sari era triste agora, magoada e cansada.

- E pensar que justamente tenho tentado - disse numa voz distante -, tenho tentado intensamente... Deus sabe o quanto... fazer do meu Teatro Odeon um lugar do qual esta cidade possa orgulhar-se, uma vitrine magnífica para a apresentação de espetáculos artísticos do mais alto nível. Meu sonho, meu pequeno sonho, o meu Odeon, era convertê-lo numa das jóias da coroa mais brilhante desta cidade. Três milhões de dólares..-, oh, não se trata do dinheiro, Gabe. O dinheiro nada significa para mim, como tenho certeza de que você sabe. Mas não posso deixar de pensar... três milhões a mais, e o que nós temos? Um número de serpentes. Eu me pergunto qual será a próxima atração. Um número com cachorros e um pônei? Que tal anões? Meu belo sonho. Todos em São Francisco devem estar rindo de mim esta manhã! Você sabia que o diretor da Sociedade Protetora dos Animais da Califórnia me telefonou às oito horas desta manhã... acusando-me de matar animais inocentes?

Eu! "Você não tem voz ativa quanto ao que se passa em seu teatro?", ele me perguntou. Eu disse... Agora, espere apenas um...

- E tudo por causa da história de seu repórter! Você não tem voz ativa quanto ao que se passa em seu jornal, Gabe?

- Deixe-me apenas...

Ela ergueu a mão, atalhando:

- The Dildos! Você sabe o que é um dildo? Eu sei, porque já olhei no dicionário!

- Isso pode significar também uma sílaba de estribilho musical. Ou um cacto da índia Ocidental. - Graças a Deus ele também tinha feito consulta sobre aquela palavra pela manhã.

- Tolice! Não me venha com essa. Trata-se de um pênis artificial, e você bem o sabe!

- Ouça, Sari. Acalme-se apenas por um minuto, e...

- O que eu quero saber é quem escolhe esses números no Odeon. Eu não sei... embora o homem da SP A pareça acreditar o contrário. Como você sabe muito bem, eu deliberadamente - deliberadamente - declinei um cargo no conselho diretor do Odeon porque achei que já fizera o bastante e não desejava ter qualquer tipo de poder de veto. Mas você... você, Gabriel J. Pollack, você figura nesse conselho! Deve ter alguma voz ativa a respeito do nível dos números ali apresentados! Isto é o que eu gostaria de ouvir de você. Como toda essa coisa veio a ocorrer, para início de conversa? E, além disso, como você permitiu que aquele reporterzinho nojento inserisse a história na primeira página do seu jornal? Só pra me fazer parecer ridícula? Foi para isso?

- Claro que não, Sari. Francamente, foi para vender o jornal. Nossa edição matinal esgotou-se nas bancas em meia hora.

- É só isso com que se preocupa... com dinheiro? O que aconteceu com os seus padrões, Gabe? Você costumava tê-los!

- Eu dirijo um negócio, um negócio com acionistas, tal como você o faz, Sari.

- E que me diz desta última frase? - exigiu ela, a voz alteada. - "Outros eventos culturais estão programados para o decorrer do próximo ano." Eventos culturais! Se isso não foi uma falsidade... se não foi sarcástico, se não se trata de alguém tentando troçar de mim às escondidas..., então eu... então eu não sei distinguir meu ânus de um buraco na parede, se me perdoa a expressão!

Gabe ficou calado um momento. Então disse:

- Creio que a frase correta é "não distinguir seu traseiro de um buraco no chão". Você nunca foi atraente quando zangada, Sari.

- Oh, querido. - Ela fecha os olhos agora, faz de seus punhos duas pequeninas bolas e curva a cabeça numa atitude de repentina contrição. - Oh, querido. Sinto muito. Dá-se simplesmente que eu tento... tento com todas as forças. Sei que cometo erros, mas procuro não cometê-los. Foi aquele telefonema do homem da SPA, tão inesperadamente, lendo para mim a reportagem - eu nem sequer vira o jornal -, que provocou isto. Não esqueça que não figuro no seu conselho diretivo, Gabe. E meu primeiro pensamento foi: como isto irá repercutir? Algumas vezes penso em mim como uma mulher idosa, solitária, inválida, tentando dirigir um negócio num mundo de um homem. São tantas responsabilidades! Tantas exigências! Acho que tento fazer... demais. Às vezes tudo isso me parece simplesmente... demasiado para uma... uma velha mulher solitária. - Gabe observa como, incrivelmente, duas lágrimas gêmeas saem espremidas dos olhos cerrados de Sari e descem pelas suas faces. É um desempenho digno de uma Sara Bernhardt, e ele quase ri, mas fazer isto seria insensato. - Tudo, tudo sozinha - repete ela, e ele observa quando ela retira o lenço branco rendado que soca no punho de seu vestido e encosta no rosto, fungando o nariz. - Perdoe-me, Gabe. Eu não queria brigar com você.

- Ora, deixe disso. Não vamos começar a sentir pena de nós mesmos, vamos?

- Querido Gabe. - Ela abre seus olhos cheios de lágrimas e o encara. - Há quanto tempo nós nos conhecemos? Cinqüenta anos?

- Mais. Muito mais que isso.

- Às vezes eu penso... penso que você é meu único amigo. Que você é a única pessoa em quem confio. Não a minha família, nem mesmo meus filhos. No escritório está o... Eric. Posso sentir o Eric tentando me usurpar. Mas você... você sempre foi alguém em quem senti que poderia confiar. E aí está por que... fico magoada quando imagino que essa confiança foi traída. - E torceu o lenço entre seus punhos cerrados.

Ele cobriu-lhe as mãos delicadas com a sua dizendo:

- Você pode confiar em mim, Sari.

- Nós já passamos por muitas coisas juntos, não é mesmo? E nem tudo foi um mar de rosas. Mas... ainda estamos aqui.

- Ainda.

- Você ainda me ama um pouquinho? Você ainda é meu Polly? Você ainda é meu querido pequeno Pollywog?

Ele ri à socapa.

- Sim, ainda sou seu querido e idoso pequeno Pollywog.

- Ótimo.

Ela funga um pouco mais e esfrega de leve as faces e o nariz de novo. O pior da tempestade, ao que parece, passou. Mas pode haver mais por vir. Sari tentara as invectivas, depois as lágrimas, mas não havia ainda nenhuma indicação de que a reunião estivesse encerrada. Ah, Sari LeBaron, pensa Gabe Pollack, seu velho Pollywog a conhece muito bem. Este momento pode ser apenas o da calmaria no centro do furacão.

- Agora - diz Sari, parecendo ter recuperado sua serenidade -, diga-me apenas como aquilo, o número da serpente, foi contratado para o meu belo e novo Odeon.

- A resposta não irá deixá-la contente, Sari.

- Como poderia eu ficar mais perturbada do que já estou?

- Foi idéia de sua filha.

- De Melissa? Você não fala a sério!

- Pois receio que sim. Ela fez uma sugestão de modo muito convincente ao conselho diretor. Ela achava que o Odeon deveria, de quando em vez, oferecer algo aos jovens. E que isso não devia ser na forma de uma sinfonia, ópera ou balé, ou peças de Shakespeare. Ela achava que um concerto ocasional devia ser programado para atrair a juventude para o teatro. O conjunto que se apresentou ontem à noite foi escolhido por ela.

- Melissa!

- E resultou que ela estava com toda a razão. Foi um sucesso de bilheteria.

- E um maldito escândalo!

- Não foi por culpa de Melissa que aquela serpente resolveu... comportar-se mal. O número transcorreu muito bem, sem quaisquer incidentes, em Omaha, se não me engano.

- Omaha. Acontece que isto aqui é a sofisticada São Francisco. Não um circo em alguma pradaria. Melissa! Eu devia ter sabido que Melissa era a responsável! Às vezes fico achando que essa menina infeliz é a responsável por tudo.

Gabe Pollack abstém-se de assinalar que a "menina infeliz" é agora - o quê? - uma mulher de 57 anos. E diz:

- Em termos de bilheteria, aquilo foi uma sugestão excelente.

- Entende agora o que quero dizer sobre não poder confiar em meus próprios filhos? Naturalmente, ela não me disse nada sobre isso!

- E devia ter dito, Sari? Você mesma salientou ter se afastado deliberadamente do conselho diretivo do teatro.

- Fez isso para cuspir em mim, certamente... do modo como sempre faz. Para me deixar embaraçada. Um golpe típico. Bem, eu me entenderei com ela.

Gabe desdobrou as mãos, dizendo:

- Ela é sua filha, não minha.

- "Outros eventos culturais" - disse ela asperamente.

- Reconheço que a última frase foi... infeliz. Eu devia ter percebido quando a matéria veio ter à minha mesa.

- Pode crer que sim!

- Eu lhe digo o que farei para você - disse ele, inclinando-se para a frente. - Vou publicar um artigo subseqüente sobre o Odeon, muito bonito. Relacionando todos os eventos realmente culturais que figurarão na agenda do teatro este ano. A Sinfônica de Baltimore, o San Diego Ballet, a Orquestra de Houston, Pavarotti. A história de hoje não mencionou seu nome, Sari. Mas providenciarei para que a continuação o faça... dando a você todo o mérito pelo que tem feito com o Odeon, e anunciando o que ainda fará na área sul da Market Street. Isto a deixaria mais feliz?

Ela pondera a respeito, dizendo por fim, um pouco amuada:

- Bem, talvez. Talvez um pouco.

- Deixarei claro que o programa da noite passada foi uma coisa atípica.

- Uma ocorrência anormal. Concebida por uma anormal.

- Bem, eu não descreveria a coisa desse modo.

Ficam sentados em silêncio novamente, mas Gabe Pollack percebe que a reunião não está terminada. Ele sabe disso, e ela também. Quando estiver encerrada, ela dará o sinal. Foi sempre assim, e Gabe a conhece bem, e há tanto tempo que conhece o modo quase bizantino com que a mente dela funciona, os pequenos jogos que ela pratica com as pessoas, opondo uma série de circunstâncias a outra para obter, no fim, o resultado almejado. Mas, indireta ou ilógica como a sua abordagem possa parecer, há sempre um método em sua "loucura", que se torna o motivo pelo qual, em seus tratos de negócios, ela é tida como uma mulher difícil de se barganhar. Dizia-se que Assaria LeBaron pensava como um homem, mas Gabe Pollack discordava disso. Os homens abordam os problemas, na maioria, diretamente, usando a porta da frente. Mas Assaria LeBaron acercava-se deles furtivamente, passando pela porta dos fundos, e depois através de um labirinto de corredores e passagens secretas. Isto fora o segredo de seu extraordinário sucesso no, conforme ela definia, mundo de um homem... isto e o seu quase teatral senso de oportunidade e momento de entrar em cena. Os palcos americanos, pensava Gabe às vezes, perderam uma grande atriz quando Sari LeBaron se tornou uma mulher de negócios. Os homens pensam em termos de objetos, de coisas. Sari LeBaron, a exemplo de todas as mulheres desde o início dos tempos, pensa em termos de técnicas.

Ela está sentada agora defronte dele, franzindo ligeiramente a testa, desdobrando os dedos de suas pequenas mãos, observando as unhas perfeitamente esmaltadas e o enorme diamante solitário de corte retangular no seu dedo anelar. Finalmente ela diz:

- Despeça aquele maldito repórter! O tal com os sapatos esquisitos.

- Archie McPherson? Bem, ora vamos, Archie é um bom...

- Ele parece estar levando a cabo uma vendetta pessoal contra a família LeBaron inteira. E está fazendo-o incluído em sua folha de pagamento, Gabe, uma circunstância que não deixa de encerrar uma certa ironia, se é que você me entende.

Gabe observou-lhe o rosto durante um momento ou dois, então sorriu, dizendo:

- Posso ler em você como num livro, Sari. O motivo pelo qual você quer que eu me livre de Archie nada tem a ver com as reportagens que ele escreve, não é mesmo?

Ela lhe lançou um olhar turvo.

- Do que você está falando?

- É por causa de Archie e Melissa andarem se vendo um bocado. Não é isso?

- Oh, então você sabe.

- Sim, sei que eles jantaram juntos algumas vezes.

- Mas o que ele quer com ela, Gabe? Além do seu dinheiro, é claro... todos eles desejam isso. Mas o que ele está farejando junto a ela?

- Farejando? Presumo que ele simplesmente acha Melissa uma mulher fascinante. Muitas pessoas acham o mesmo.

Mas isso é um terreno perigoso, porque Sari era conhecida por demonstrar indícios de ciúmes em relação à sua filha e a certas atenções especiais que Melissa recebia, assim Gabe decide não prosseguir nessa linha de raciocínio.

- O que ele vê nela? Ela é bem mais velha do que ele.

- Archie está com trinta e nove para quarenta anos.

- Naturalmente, é fácil perceber o que ela vê nele. Melissa sempre gostou de homens mais moços. Você acha que eles estão tendo um caso?

- Não sei. Tenho minhas dúvidas. - Resolveu não dizer a Sari que o interesse de Archie por Melissa poderia não ser sexual, possivelmente não, a menos... Mas não interessa, pensa ele, e resolve contar-lhe o que crê ser a verdade: - Creio que o interesse de Archie em Melissa é puramente o de um jornalista. Penso que ele gostaria de escrever uma história sobre a família LeBaron.

Sari leva com vigor uma das mãos ao peito, e sua expressão é de horror.

- Mas você não lhe permitiria fazer isso, não é? ...com algumas das coisas que você sabe...

- Não, eu lhe asseguro que não permitiria.

- Graças a Deus. Ainda resta, pelo menos, alguma lealdade neste mundo.

- Fique tranqüila que ele não faria isso. Não enquanto estiver trabalhando para mim. Assim sendo, talvez seja do seu interesse que eu faça o possível para conservá-lo na folha de pagamento do meu jornal.

- Ele mencionou isso a você por acaso... uma história sobre nós?

- De passagem, sim.

- Viu só? É exatamente do que tenho receio. E estando ele vendo Melissa... Ela é terrivelmente falível. Ela é alguém em quem não se pode confiar. Melissa é a língua solta desta família, Gabe.

- Eu sei.

- E se ela estiver bebendo... quem sabe o que poderá contar a

ele.

- Entendo.

- Ouça, estou absolutamente certa de que há algo muito estranho em andamento. Eu lhe disse que tenho tido problemas com Eric no escritório... pequenas coisas, detalhes em que não preciso entrar aqui. Mas problemas. E começo a desconfiar de que possa haver uma ligação entre isso e o fato de Melissa estar se encontrando com esse Archie, e essas... essas histórias desfavoráveis que têm surgido. Creio que há uma conexão.

- Alguma espécie de conspiração, Sari? Não está se deixando levar por uma leve paranóia?

- Eu não penso assim, Gabe. Não estou exagerando. Há alguma coisa suspeita em andamento. Posso ser muitas coisas, mas uma eu não sou: tola. E tenho bons palpites. Fui capaz de converter estes negócios no que são hoje lançando mão de meus palpites. Tenho palpites danadamente bons, e o que tenho exatamente agora é de que algo muito estranho está se passando, e que envolve Eric, Melissa - a língua solta - e o sr. Fulano de Tal. Ele é bonitão, suponho.

- Sim, creio que se poderia dizer isso.

- Mas de aparência comum.

- Comum? - Gabe ri. - Eu continuo esquecendo que você se juntou à aristocracia, Sari. Você já conhece o homem?

- Não, graças a Deus. Mas Thomas o tem visto... Ele o viu buscar a nossa srta. Língua Solta. Thomas diz que ele tem uma aparência muito comum. Thomas costuma ter palpites muito bons também.

- Bem, Archie é um bom repórter. Veio diretamente do Seattle Tribune para o meu jornal. Estou com sorte de contar com ele.

Ela lhe dirige um olhar malicioso.

- É o seu novo favorito, Polly?

- Sou um homem de negócios. Homens de negócios não têm favoritos.

- Com aqueles sapatos...

- O que há afinal com os sapatos dele?

- Thomas me disse que ele usa sapatos amarelos. amarelos...tal como o tipo de jornalismo que ele pratica!

- Bem, você é quem o diz. Eu falarei com ele para parar de "farejar" Melissa. Tratarei de desviar sua atenção, afastá-lo da "pista".

- Eu ainda preferiria que ele estivesse a milhares de quilômetros de São Francisco. Compreenda, eu estou preocupada, Gabe. Profundamente apreensiva.

- Naturalmente - diz ele com condescendência -, se você tivesse adquirido a Gazette, tal como lhe sugeri várias vezes, poderia despedir quem quer que não lhe agradasse.

- Eu não desejo comprar a sua tola e velha Gazette. Já sou dona de muita coisa nesta cidade.

Isto era verdade. A sra. Assaria LeBaron, viúva de Peter, tornara-se herdeira de mais do que necessitava, mais do que realmente desejava, mais do que poderia abrir mão se devolvesse a uma centena de teatros Odeon a sua glória resplandecente, da virada do século, dourada e suntuosa. Os cupidos esculpidos, abraçados sobre o palco, o grande lampadário, a cortina dourada, todos os detalhes. Ela possui coisas demais, e isto é um clichê, mas é também um embaraço para os ricos.

 

*Refere-se à imprensa sensacionalista (amarela, nos EUA, e marrom no Brasil. (N. do T.)

 

Uma mulher de 74 anos não deveria possuir tanto. As casas, os prédios de escritórios no centro da cidade - "Alugue-os, não venda", costumava dizer papá LeBaron, seu sogro -, os apartamentos nas vizinhanças que ela mesma sentia receio de visitar, a equipe de beisebol que continuava a perder partidas mas proporcionava generosas reduções de impostos em lugar de vitórias, as duas galerias comerciais no condado de San Mateo, e uma grande percentagem - 35%, para sermos exatos - das ações da Baronet Vineyards, Inc., uma das últimas companhias vinícolas da família LeBaron na Califórnia, e produtora dos vinhos de mesa mais vendidos na América e a preços populares, com o rótulo Baronet. Na grande Bolo de Noiva na Washington Street, 2.040, num lugar de honra sob o retrato do avô na extremidade oeste do longo corredor central que percorre o segundo pavimento em toda sua extensão, está colocado, sobre uma tosca plataforma de madeira feita de um par de cavaletes de pernas troncudas reviradas, o primeiro barril de vinho (ou assim dizem... quem pode saber a verdade dessas coisas?) a sair do pequeno estabelecimento vinícola no pátio da casa do avô LeBaron - um vinho destilado das uvas moscatel cultivadas no dito estabelecimento vinícola do avô,-em Sonoma.

Dizia-se que o avô trouxera com ele da Itália as sementes de suas uvas. O avô LeBaron, dizia-se também, começara a vender seu vinho aos vizinhos, mas guardara para si mesmo o primeiro barril. Era uma coisa antiga e feia, grande, escurecida, trabalho de tanoeiro - dizem, de novo -, obra do próprio avô, e a um olhar inicial de relance, um velho barril de vinho não parecia ser um toque decorativo adequado a uma galeria de retratos de uma grande casa sob muitos aspectos formal. Mas ele vinha sendo proeminentemente exibido ali de uma geração de LeBaron para outra. E eram ainda legíveis as palavras gravadas nas aduelas de carvalho com um instrumento de xilografia:

Por trás deste vinho está o vinhateiro E por trás deste, com os anos, seu Talento E por trás de tudo isso estão as Vinhas ao Sol E a Chuva E a Vontade dos Senhores

  1. Barone Agosto de 1857
  2. Barone era o avô, Mario Barone. Fora o papá, Julius (Giulio de nascimento), quem mudara os nomes, fantasiara e afrancesara as coisas. Fora Julius quem preparara a rebuscada árvore genealógica da família, provando, ou assim ele afirmara, que conquanto, por volta do século XIX, os Barones fossem pobres campônios ligurianos, a família procedia originariamente da França, onde o nome tinha sido, na verdade, LeBaron, e onde Julius descobrira antepassados dos séculos XV e XVI, que haviam sido condes e condessas, duques e duquesas, até mesmo um rei e uma rainha ou duas. O ridículo de tudo isso divertia Sari, e também a divertia mostrar o velho barril de vinho aos visitantes, assinalando as palavras mal grafadas que traíam um emigrante iletrado. Claro que Sari não conhecera o avô, que falecera antes que ela viesse ao mundo, mas tinha um carinho muito especial pelo velho barril, e, assim, ali estava ele, uma presença melancólica, pesando aproximadamente 150 quilos, 31,5 galões de só Deus sabia o quê após todos aqueles anos, pois o seu batoque nunca fora retirado.

Somente uma coisa é certa: ele fora enchido com alguma coisa, pois os barris de vinhos, como corações, devem ser conservados cheios para permanecerem vivos; uma vez esvaziados, rapidamente encolhem e se partem. Oh, já houvera épocas - em festas loucas ou coisas parecidas, há longos anos - em que alguém sugerira que a velha rolha de madeira fosse retirada e o vinho do avô provado, mas isto nunca fora permitido, graças a Deus. Se fosse, o que sairia dali poderia ser o suficiente para envenenar a todos, Sari costuma pensar às vezes. Sari fora também avisada de que o barril um dia poderia explodir. Bem, se tal ocorresse, isto seria uma justiça poética, não? Para tudo terminar numa explosão de vinho moscatel putrefato e esverdeado com o passar do tempo. Mas Sari duvida que isso viesse a acontecer. Ela conhece muito sobre vinhos e a antiga e quase extinta arte da tanoaria (os vinhos Baronet são agora envelhecidos em tinas de metal revestidas de vidro). Esse detalhe, o suave arqueamento de uma aduela de um barril de madeira resistente, e o modo como é ligado aos outros com cintas a fim de formar um sólido e perfeito cilindro, as extremidades côncavas das aduelas ajustando-se então estreitamente - isso era como se o artesão pudesse garantir que o seu resistente barril suportaria as mais vigorosas pressões internas durante toda a eternidade. Era só Sari LeBaron começar a falar sobre a história do fabrico de vinhos e ela poderia estender-se sobre o assunto durante horas a fio. Por exemplo: nas ruínas de Pompéia, sepultadas durante séculos sob camadas de lava, escumalha do Vesúvio e cinza vulcânica, foram achados toneis de vinho intactos. Intactos após aproximadamente dois mil anos.

O tonel de vinho como um elemento decorativo da casa de Sari LeBaron era observado com freqüência por escritores que vinham entrevistá-la sobre as suas campanhas cívicas: um tonel de vinho na galeria de retratos. Que originalidade! "Um lembrete do início humilde da família", escreviam eles. E "claramente os LeBarons possuem senso de humor". Tolice! Julius LeBaron não tinha nenhum senso de humor. "Baronet: um vinho decente para o Trabalhador" - este era um dos ditos de propaganda ainda usados.

E, nos lados dos grandes caminhões vermelhos com inscrições em letra branca desenhada, transportando sua carga para a fábrica de garrafas, uma mais nova dizia: "Baronet: Simplesmente conservado, simplesmente barato e simplesmente delicioso", bolada pela própria Sari, ainda que seu filho Eric às vezes tentasse tomar para si a sua feitura. Mas a verdade é que daquele humilde e antigo tonel brotara tudo: a casa de veraneio de Tahoe, a residência de inverno em Santa Barbara que agora pertencia a Joanna LeBaron, o rancho em Montana para qualquer época do ano. Et cetera. Et cetera. Era uma ironia que a viúva de Peter LeBaron não esquecia - a de que a popularidade entre os trabalhadores fabris de seus vinhos baratos viria a proporcionar-lhe a aquisição de todos aqueles caríssimos palacetes e outros bens. E tudo isso é que estava em jogo. Isso acontece, pensava amiúde Sari LeBaron, porque eu trabalhei muito. Afinal, poderia haver outra razão?

Embora agora estivesse lendo seus pensamentos - como, na verdade, sempre fazia, Gabe Pollack lhe diz:

- Isto era o que você desejava, não?

- O quê? Eu estava distraída. Do que está falando?

- Disto. - Ele faz um gesto a seu redor. - Tudo isto.

- Oh, talvez. Suponho que sim.

- Você sabe que poderia ter tido um tipo de vida completamente diferente, em certa época.

- Oh, eu sei - diz ela um tanto mal-humorada. - História antiga. Eu podia ter sido também uma dona-de-casa no Bronx, imagino, se o desejasse.

- Você teve suas oportunidades de optar. Escolheu isto.

- Eu sei.

- Naturalmente, sempre achei que você seria bem-sucedida no que quer que fizesse.

- Ah!

Gabe observa-lhe o rosto e diz:

- Existe algo mais além disso, mais do que está me contando. Trata-se de algo mais do que apenas Melissa, certo? O que é? Você está assustada com alguma coisa, não está? Não pode me dizer o que é O que a assusta, Sari?

- Tolice! Eu... assustada? Isso é um disparate! - E ela tamborila no tampo da mesa da biblioteca com suas unhas bem manicuradas.

Este é um sinal, e Thomas, como sempre oportuno, entra silenciosamente na sala. Não surpreenderia a Gabe que Thomas tivesse permanecido todo o tempo do outro lado da porta, ouvindo a conversa, palavra por palavra.

- Desculpe-me, madame - diz Thomas. - Desejo apenas lembrar-lhe o seu encontro das dez horas no escritório.

- Sim, Thomas. Obrigada.

Gabe se levanta enquanto Thomas se retira.

- Eu providenciarei para que seja escrito imediatamente um artigo promocional sobre o Odeon. E este será redigido por mim mesmo. Um editorial, eu creio. E falarei com Archie sobre o outro pequeno assunto que abordamos aqui.

- Meu caro Gabe - diz ela, agora toda sorrisos, os olhos escuros cintilando, como se tivesse esquecido tudo que tinham conversado até ali. Foi tão gentil de sua parte passar aqui, que ótima surpresa. Justo o estímulo de que eu precisava num dia chuvoso. Meu querido Pollywog. Por que você é sempre tão bom para comigo? - E oferece sua mão para ser beijada de novo.

Porque, pensa Gabe, se eu não fosse bom para com você, você me daria como alimento aos leões. E antes cancelaria todos os seus anúncios do meu jornal. Mas não diz nada, e beija a mão erguida.

Quem já passou algum tempo na área da baía de São Francisco - e quem, como nós, mora ali - já terá ouvido histórias sobre Assaria LeBaron. Ela é algo como uma lenda local, um personagem, como dizem. Algumas das histórias são verdadeiras, outras não. Muitas dessas histórias são pura ficção. Podem ter ouvido, por exemplo, que ela foi em certa época modelo artístico, e também que foi outrora uma dançarina. Podem ter-lhes contado que ela foi a bonita jovem que posou, com vestes diáfanas, para a estátua que se acha no topo do Monumento a Dewey no centro da Union Square, e podem ter ouvido que ela posou nua para essa escultura, e que quando a estátua foi inaugurada os vereadores puritanos de Frisco insistiram para que fossem colocadas roupagens na figura esculpida. Mas como podem tais histórias ser verdadeiras? Sari não veio para São Francisco senão em 1920, muito depois de completado e inaugurado o Monumento a Dewey. Podem também ter ouvido dizer que ela serviu de modelo para algumas das figuras femininas que apareciam, despidas, nos frisos do velho edifício dos Correios. Mas façam as contas. Os frisos e o prédio dos Correios desapareceram no Grande Incêndio de 1906. Todas essas histórias são inverídicas, todas elas falsas, e lembrem-se de que leram isso aqui.

Em São Francisco, Sari LeBaron é conhecida há muito tempo como "o Terrorzinho", e ela mereceu esse apelido muito antes que ele fosse aplicado ao falecido Truman Capote. Parte desse renome é merecido, outra não. É verdade que o seu nome é ocasionalmente pronunciado em tons de apreensão dentro das salas de diretoria de determinados bancos e em certos escritórios de advocacia ao longo da

Montgomery Street. Quando ela está elaborando um contrato para a franquia de um novo distribuidor de produtos comerciais, por exemplo, pode revelar-se um perfeito demônio com as suas exigências até que os advogados erguem as mãos em desespero e lhe concedam cada artigo e subcláusula que ela deseje. "Estamos discutindo agora sobre cents, sra. LeBaron... cents!", exclamarão os advogados. "Bem, se isso significa apenas cents, então por que não me deixam tê-los?", responderá ela. Observem-na, tarde da noite com sua velha máquina de somar, examinando detalhadamente os livros contábeis da empresa, checando as cifras das vendas mensais, descobrindo pequeninas discrepâncias sobre as quais até mesmo os srs. Price e Waterhouse têm de algum modo passado por alto. Ainda assim, ninguém nesta cidade negará que Sari, quase sozinha, recuperou a Baronet Vineyards, retirou-a das dificuldades em que Julius LeBaron a deixara e fez da Baronet o que é hoje. Foi ela quem primeiro sugeriu o nome Baronet Vineyards para o rótulo da companhia, que disse que a antiga designação da firma - M. & J. LeBaron, Vinners - era difícil de memorizar e de pronunciar. "Vintners", dissera ela então, "com um t entre os dois enes, é difícil de dizer. Vineyards tem uma sonoridade romântica bonita, e Baronet dá mais classe ao que, digamos claramente, é um vinho da classe média." Quem sabe o quanto essa pequena mudança, por si só, pode ter tido a ver com o surto de vendagem da companhia durante as décadas de 50 e 60?

Ainda assim, embora ela seja - sempre foi - uma rigorista quando se trata de assuntos tais como balancetes, declarações de lucros e perdas, e frações de pontos de percentagem, sua reputação de sovinice é imerecida. Pelo contrário, ela é amada em muitos círculos pela sua generosidade - uma generosidade do tipo estritamente pessoal. Assim, por exemplo, ela é uma das poucas mulheres de São Francisco que dá gorjetas regularmente aos seus vendedores no Gumps e no Saks e todos os demais, e os cheques que envia na época natalina para empregados e outras pessoas que ela julga lhe terem prestado bons serviços totalizam milhares de dólares. Veja-se, também, o caso da srta. Sophie, que vende lingerie no Magnins. A srta. Sophie confidenciou certo dia a Sari LeBaron que o motor de seu freezer queimara, e ela tivera que jogar fora tudo que ele continha. Na manhã seguinte, chegava à casa da srta. Sophie um novo freezer, cheio de carne para bifes, perus, salmão do rio Colúmbia, e outros finos comestíveis. Esses atos são os de uma mulher sovina ou de coração duro?

Às vezes, ela pode exibir um desdém quase total e pessoal pelo dinheiro. Um exemplo bastará. Sari LeBaron tem uma coleção valiosa de objetos de jade, que são exibidos em vários mostruários e sobre as mesas de sua casa. Uma noite - creio que o ano era o de 1971 ou 1972

em uma de suas festas, um convidado que se regalara além da conta com doses de John Barleycorn resolveu, na base da brincadeira, retirar um dos objetos de uma das mesas e enfiá-lo no bolso de seu smoking. Tratava-se de um chacal de jade cor-de-rosa com olhos de esmeralda. Na manhã seguinte, com remorsos do seu feito, ele enviou o objeto de volta a Sari no centro de um arranjo floral. Sari, que não dera pela falta daquela peça, simplesmente olhou de relance o arranjo de flores e determinou que fosse enviado ao Hospital Infantil. Dois dias depois ela recebia a seguinte carta da direção do hospital:

Estimada sra. LeBaron,

Desejaria agradecer-lhe pessoalmente pela sua generosa dádiva para as crianças deste hospital.

As flores são belas, e o tigre [sic] de jade é primoroso. Pedimos aos nossos avaliadores de objetos de arte para examiná-lo, e nos asseguraram que ele vale mais de US$25.000.

Julgamos que a senhora apreciaria saber que acrescentamos seu nome à placa de bronze na entrada do hospital.

Atenciosamente, Richard J. Walters, diretor.

Naturalmente, ela poderia ter solicitado a restituição do objeto, explicado que ocorrera um engano. Mas simplesmente riu de tudo aquilo, encarando o fato como uma grande brincadeira.

George Hessler, que pilota seu avião 727, costuma chamá-la de "Pepita", porque ela, sabendo que ele as coleciona, periodicamente lhe dá pepitas de ouro bruto, extraídas de sua coleção pessoal de lembranças dos tempos da Corrida do Ouro. Ela lhe deu uma pepita particularmente grande após o encontro com Gabe Pollack, exatamente naquela manhã de fevereiro, quando falaram do que já abordamos linhas atrás. Bem, poderão argumentar, ele a merecia, já que o incidente se dera inteiramente por culpa de Sari. Ainda assim, se ela não houvesse intercedido, George poderia ter a sua licença de piloto cassada.

Vocês ouvirão muitas fofocas e especulações ociosas acerca dos LeBarons em São Francisco, e escutarão muitas piadas maliciosas acerca do modo como os LeBarons parecem ter se empenhado bastante para apagar - renegar - as suas origens de nacionalidade, tentando inventar outras novas. Bem, isto se deu principalmente com o papá Julius. Terão ouvido também que, apesar de todos os seus ares, os LeBarons de algum modo sempre acabaram por "casar mal", isto é, com pessoas de classe inferior. É verdade que, apesar de todos os seus ares de ostentação, Julius LeBaron fez esse tipo de casamento. A mama LeBaron era a ex-Constance O'Brien, e Julius sempre tentou fingir que sua mulher era uma espécie de parenta do lendário William S. ÔBrien. um dos "quatro grandes reis irlandeses da prata" dos anos de 1850 e 1860. Nada disso. Os O'Briens pais de Constance eram camareiros, e sua mãe lavava banheiros no Palace Hotel - conquanto isto seja uma coisa pouco gentil de se dizer, pois Constance era uma mulher boa e piedosa, e seus pais foram pessoas honestas e trabalhadoras. Diz-se também que Peter LeBaron fez um casamento inferior ao unir-se a Sari, e assinala-se que as próprias origens de Sari LeBaron estão envoltas numa certa aura de mistério.

Isto se dá simplesmente porque existem alguns trechos de seu passado que Sari LeBaron não deseja abordar. E, numa percepção tardia, à luz de tudo que Sari tem feito, poder-se-ia dizer que Peter se casou mal? Ele desposou uma mulher dotada de muito maior inteligência, talento e coragem do que ele, apesar de seu conhecido charme. Terão ouvido falar daquela época, no final do verão de 1946, durante a greve dos motoristas de caminhão, quando Sari pessoalmente dirigiu veículos carregados de uvas recém-colhidas dos vinhedos de Sonoma para os lagares - para onde as uvas devem ser levadas tão rápido quanto possível após a colheita - e, alertada sobre problemas com os grevistas, levava consigo, na cabine do caminhão, o revólver carregado do seu marido? Numa manhã, na rodovia, ela foi vista e reconhecida por um caminhoneiro grevista, que tentou forçá-la a sair da estrada com seu veículo pesado. Ela pegou o revólver, fez pontaria e atirou em dois dos pneus. Por isto, Peter casou-se "mal"?

Muitos desses falatórios e especulações que podem ter ouvido sobre a família LeBaron são falsos, se não francamente absurdos. Alguém outro dia mesmo disse: "Onde Peter Powell LeBaron obteve seu primeiro sobrenome?" (Powell é um antigo e respeitável sobrenome em São Francisco.) Ao que outra pessoa na reunião festiva, querendo mostrar-se espirituosa, retrucou: "Creio que ele provém do nome do bondinho da Powell Street... deduzo que foi concebido ali, em alguma parte entre Post e a Califórnia." Fofocas. Na verdade, Peter recebeu esse sobrenome em honra ao arcebispo Terence Powell - como já mencionei, Constance era muito devota. E vocês ouvirão histórias sobre como Peter P. e Sari se conheceram, e há uma versão de que eles se conheceram em circunstâncias escandalosas em um dos quartos reservados nos altos da Old Poodle Dog. Tolice pura. Sari foi apresentada aos LeBarons de um modo muito comum pela irmã de Peter, Joanna, que era sua melhor amiga. Também ouvirão dizer que Sari "teve" que se casar com Peter porque ele a engravidara. Isto é igualmente falso. Na verdade, quando o pedido de casamento foi feito, Sari ficou muito surpresa, ainda que estivesse - ou digamos que pensava estar - apaixonada por Peter. Na ocasião, sim. Naquela época, um outro homem por quem ela julgara estar apaixonada realmente a rejeitara. Seu casamento, então, teria sido uma reação ao seu outro amor fracassado?

Um revide? Não realmente. Lembremos que Peter era um homem muito bonito, uma figura muito cativante.

Ela o amava. Ela mesma me confidenciou isso. E ele a amava. Ou dizia que sim.

Grande parte dos falatórios é alimentada pela inveja. Um setor da cidade que admira Sari é a comunidade dos gays. Não que ela lhes dê a mínima atenção; não, isto não é inteiramente exato. Ela simplesmente não consegue entender a comunidade gay, não consegue compreender o que ela representa em toda parte, e prefere não pensar muito sobre isso. Mas o motivo pelo qual os gays a admiram está em seu interesse em renovar aquela área muito frágil ao sul da Market Street - "o sul do Cortiço", como dizem aqui -, a Howard Street, o Fillmore District. A sua obra de restauração do Teatro Odeon foi uma parte desse projeto em andamento. O Fillmore District está ainda muito maltratado, e há muitos bêbados e ociosos ali. "Às vezes penso até que sou responsável pelos beberrões", diz Sari - mas existem ali alguns antigos prédios de bela arquitetura, casas no estilo vitoriano e outros mais. Sari tem adquirido algumas dessas propriedades, e as oferece a baixo custo e juros reduzidos a compradores que concordem em desembolsar uma certa quantia para remodelá-las. Essas casas têm atraído especialmente casais de homossexuais. Por algum motivo, eles são mais engenhosos nesse tipo de coisa. Velhas casas em mau estado se converteram em mansões, graças a Sari. Os beberrões e os homossexuais não parecem incomodar uns aos outros. Os homossexuais chamam Sari "a abelha-mestra".

Podem ter ouvido dizer que a filha mais velha de Sari e Peter, Melissa, é excêntrica. É verdade que ela é solteira, e divide a Bolo de Noiva na Washington Street com sua mãe. Anos atrás, Sari transformou todo o primeiro andar da casa num apartamento espaçoso para Melissa, com a entrada independente; assim, ela pode entrar e sair como lhe aprouver, o que ela faz, conquanto Thomas costume controlar essas entradas e saídas. Thomas! Se ele deixar este mundo antes de sua patroa, só Deus sabe o que Sari fará. Mas não há nada absolutamente errado com a mente de Melissa, não importa o que se diga. Melissa foi submetida a todos os testes - o Stanford-Binet, o Relatório da Personalidade Multifásica Minnesota etc. - e sua mãe recolheu os resultados. Sari pode mostrá-los a quem quiser vê-los.

Eles revelam ser Melissa perfeitamente normal em todos os sentidos. Na maioria deles, pelo menos. Vocês podem ter ouvido dizer que Melissa é uma ninfo-maníaca e uma alcoólatra. O problema de Melissa, se isto é um problema, decorre mais do fato de que ela parece estar envolvida com elementos de algum modo desagradáveis, um tanto sórdidos. O tal conjunto de rock, por exemplo. Ela parece sentir atração pelo que sua mãe

chama "pessoas desprezíveis". Naturalmente, isto preocupa e enerva sua mãe. Isso preocuparia qualquer mãe de família. Os médicos costumavam dizer que ela superaria isso. Não superou.

O problema de Melissa, se trata mesmo de um problema, é - segundo o modo de pensar de Sari, pelo menos - que ela encarna um tipo de pessoa tímida e insegura e introvertida. Aí está por que ela se excita tão facilmente e por que, quando está nervosa ou desapontada, suas reações se tornam... imprevisíveis. Eis por que, às vezes, ela bebe demais. Os médicos insinuaram também haver um desequilíbrio químico, mas parte disso tudo - e a própria Sari o admite - pode ser culpa de Sari, por causa de um erro que foi cometido... um erro, uma má aplicação de confiança... há muito tempo, antes que Melissa nascesse, antes da Suíça e tudo aquilo... mas isto seria avançar demais nesta história.

Naturalmente, muitas pessoas pensam que o problema está em que Sari cumulou Melissa de atenções exageradas, sempre o fez e ainda o faz. Ser mimada tornou-se um hábito em Melissa, um mau hábito que ela não consegue eliminar. Quando criança, ela gostava disso, entendam. Agora ela o exige. E, é claro, Peter - pobre Peter - não ajudou em nada quanto a isso.

Então vêm os filhos gêmeos, Eric e Peter, gêmeos idênticos. Ambos diabinhos bonitos - puxaram ao pai -, com cabelos anelados, cheios, muito escuros, mais do que quaisquer jovens quase na casa dos quarenta têm direito a ter. Até hoje, quando estão juntos num aposento, muitas pessoas não podem distinguir um do outro. Sari sempre pôde, é claro: uma mãe sempre consegue. Mas tornou-se mais fácil para ela porque Eric - nascido três minutos e meio depois de Peter - ficou com uma marca na têmpora esquerda devido ao fórceps do médico, e a partir de então ostenta ali uma pequena cicatriz. Embora a cicatriz seja muito leve agora, nunca desaparecerá, e se vocês souberem desse detalhe, poderão notá-la.

Conquanto idênticos na aparência, os dois irmãos são completamente diferentes no temperamento. Durante anos, Eric foi o pequeno modelo de Sari, esperto e diligente, bom nos cálculos, e em 1980 Sari recompensou-o por todo o seu trabalho árduo, tornando-o vice-presidente e diretor de marketing da Baronet. Tudo bem correto. Mas ultimamente - será a crise da meia-idade de que ouvimos falar? - Eric tem avançado um pouco demais, forçando seus arreios, dando-se ares de importância, como se diz. Isto desagrada Sari, que, afinal de contas, ainda é sua chefe. Se existe algum problema com Eric, assim pode parecer, é que Sari tem procurado intensamente modelá-lo à sua própria imagem. Talvez seja um erro para um pai ou mãe tentar amoldar um filho - ou para qualquer ser humano moldar um outro ser humano - à sua própria imagem. Talvez. Há muito tempo, Sari teria gostado de ter moldado Melissa à sua própria imagem. Isso não deu certo também.

Enquanto isso, Peter LeBaron, Jr., plana pela vida como uma bolha erguendo-se do pé de um cálice de champanhe. Ele não leva nada a sério, a menos que esteja se divertindo. Peter adora carros velozes, mulheres bonitas, permanecer a noite toda em boates - numa geração anterior, ele teria sido chamado de playboy. Trabalha para a Baronet também, onde seu cargo é o de superintendente do vinhedo de Sonoma, mas ele não trabalha muito, e uma vez chegou ao local de trabalho - seu Jaguar dando voltas incertas na estrada - ainda de smoking, recém-saído de uma festa noturna em Russian Hill. Quando Sari soube dessa extravagância, houve um escarcéu daqueles, podem crer. O apelido de Peter é "Peeper" ou "Peep". Isto porque, quando era um neném, sua tia Joanna costumava dizer que ele emitia, ao chorar, sons "iguais aos de uma pequena rã furtiva". O apelido pegou, e atualmente os amigos de Peter o chamam de "Peeper" ou "Peep". Trata-se, como já notaram, de uma família apreciadora de apelidos.

Peeper não se casou, e não revela nenhum sinal de que o fará um dia. Suas relações com as mulheres não duram muito, e quando dorme com elas algumas vezes, parece perder o interesse. Mas desde 1968, Eric está casado com Alix, e não se pode dizer que Eric LeBaron "casou-se mal".

Alix é a filha de Harry Tillinghast, o presidente da Kern-McKittrick OU, e era sem dúvida uma beldade naquele tempo. "A debutante mais charmosa do ano", saiu publicado no Chronicle quando Alix apareceu no Cotillion em 1965. "Petróleo e vinho não se misturam", disse Sari, quando Eric revelou suas intenções à sua mãe, mas o casamento deu certo, de modo muito feliz. Eles têm duas filhas adolescentes, Kimberly e Sloane, também gêmeas. Dois casos de gêmeos em duas gerações de LeBarons. Mas no caso das mocinhas, elas são muito fraternais - indubitavelmente. As duas freqüentam a Sarah Dix Hamlin School, em que sua mãe estudou. Alix é um tanto esnobe. Ela matriculou as duas filhas como pensionistas, por exemplo, embora elas possam facilmente mudar-se da Península, por achar que os estudantes-pensionistas - que, naturalmente, pagam uma taxa escolar mais elevada - situam-se mais alto na hierarquia social da escola do que os alunos diaristas. Naturalmente, ela tem razão. Os dois grupos dificilmente sabem os nomes uns dos outros. Alix pronuncia seu nome com "A-lics", embora seu nome de batismo fosse Alice, que ela achou soar comum demais.

Apesar de seu estilo de vida diferente, Eric e Peeper são muito apegados.

E aí vocês têm os LeBarons. Havia um outro filho, que morreu. Mas não devemos esquecer Joanna. Ela é muito importante. Joanna é a irmã de Peter Powell LeBaron, tem a mesma idade de Sari, e se algum de vocês reside em Nova York, sem dúvida terá ouvido falar dela. Joanna tem feito uma carreira espetacular no setor de publicidade, e agora dirige sua própria agência, a LeBaron & Murdock, na Madison Avenue. Ela vive em grande estilo em Manhattan - num dúplex da Quinta Avenida, 1.040, que dá vista para o parque, o mesmo edifício onde mora Jackie Onassis. Ela passa a maior parte do seu tempo ali, embora, como já mencionamos, também possua uma casa em Santa Barbara. Joanna não tem nenhuma ligação com a Baronet Vineyards, Inc., exceto indiretamente. Não seria de surpreender o fato de sua agência possuir a conta de publicidade da Baronet - US$20.000.000 equivalentes ao valor dos negócios, pois ela tira uma comissão como um "tributo de família" que se supõe ser um segredo. Não é, na realidade. E essa comissão é de dez por cento em vez dos usuais quinze por cento.

Joanna casou-se uma vez, por curto tempo, já se vão muitos anos, e então retomou o sobrenome LeBaron. Dessa união resultou um filho, Lance, que também aboliu o sobrenome de seu pai e se assina Lance LeBaron. Ele é uma pessoa absolutamente amável. Trabalha bem distanciado do negócio de vinhos, como corretor da Bolsa para Merril Lynch, embora seu tio Peter lhe deixasse algumas ações da Baronet. Ele é dois anos mais moço que Melissa. Casado. Sem filhos.

Portanto, estão vendo que da quinta geração dos LeBarons só existem as duas filhas de Eric. Eis aí por que as ações e o comportamento de Eric são importantes para a sua mãe, desde que nada deve andar errado nesse ponto. Das duas mocinhas, Kimmie é a predileta da sua avó. Por quê? Provavelmente apenas porque Kimmie é a mais bonita, mais viva e mais popular das duas.

Sari gostaria de moldar Kimmie à sua própria imagem.

Quanto a tudo mais, não dêem ouvidos às histórias que venham a escutar, por aqui, sobre essa família. Eles têm sido apontados como "ricos como Creso". Bem, quão rico era Creso, afinal? Alguém chegou a calcular sua riqueza? Centenas de anos antes do nascimento de Cristo, os antigos, ignorantes e oprimidos lídios conheciam de perto seu rei? Tolice, diz Sari LeBaron. Tolice e disparate. Eles gostam também de falar aqui da "maldição da família" dos LeBarons. Nós ainda cremos em maldições, feitiçarias e encantos? Mais tolices e mais disparates. Não dêem ouvidos também às várias versões sobre as circunstâncias que cercaram o acidente que aleijou Sari, ou às circunstâncias da morte de Peter LeBaron etc, ou aos boatos de que há "algo estranho" acerca de Melissa, com raízes na Suíça, e a todo esse falatório que ainda prossegue.

Há somente uma verdade sobre o modo como as coisas aconteceram, e unicamente Sari LeBaron a conhece plenamente.

Ela e talvez duas outras pessoas.

Uma delas sou eu.

 

Hoje é dia dos "rapazes"da Madison Avenue virem a São Francisco, como fazem duas vezes por ano, para apresentar suas campanhas de promoção, os comerciais de TV e assim por diante, referentes aos vinhos Baronet. Sari apurou via fontes confidenciais que os "rapazes" da Madison Avenue ficam apavorados nessas viagens semi-anuais, que gastam semanas antecipadamente não apenas preparando em conjunto seus layouts e relatórios à diretoria, mas também planejando o que todos eles vestirão a fim de causar a melhor impressão à velha senhora. Ela soube que a viagem inteira entre La Guardia e o aeroporto internacional de São Francisco é gasta não só em rever anotações e relatórios de pesquisa de mercado, como também em endireitar os vincos das calças, esticar bem as meias e verificar se há manchas nas gravatas. Ela pode imaginá-los tomando o avião, revirando pelo avesso seus paletós com cuidado e dobrando-os, caprichosamente, nos bagageiros acima de suas cabeças para que eles cheguem sem vincos.

Os rapazes sempre procuram se vestir de modo parecido: ternos cinza-escuros ou azul-escuros de três botões que ostentam a inconfundível marca dos Brooks Brothers, com camisas brancas ou azul-claras abotoadas até embaixo, gravatas com diminutos desenhos de tecido escocês de cores vivas, e sapatos tipo mocassim com presilhas douradas indo até as pontas. Este é o modo como eles supõem que os homens de negócios de São Francisco se vestem (o que realmente não está correto), e Sari tem certeza de que eles não se vestirão assim em sua volta a Nova York. Foi dito a eles que São Francisco é uma cidade sossegada, elegante (o que ela realmente não é), onde as mulheres usam casacos de mink e chapéus e luvas brancas de cano curto, mesmo durante o verão (o que elas já não fazem há anos), e onde tudo que tivesse um resquício de Hollywood deveria ser cuidadosamente posto de lado. Mas isto está certo. E está certo, também, que eles temam essas reuniões em São Francisco. Afinal de contas, há aqueles US$20.000.000 em publicidade anuais a serem levados em consideração, uma soma que, na opinião de Sari, não é para se desprezar.

E conquanto a LeBaron & Murdock possa ser considerada como uma agência da família, nada impediria Assaria LeBaron de - caso desejasse - despedir todos eles e entregar sua conta a Benton & Bowles. Estes ficariam felicíssimos em aceitar a conta da Baronet. Realmente felicíssimos.

São três moços da Madison Avenue - Sari os conhece bem - e têm nomes, é claro. Um deles é Mike Geraghty, 35 anos, um irlandês de cabeça ruiva e sardento, com uma expressão agradavelmente franca. É o executivo da contabilidade e, como tal, o mais graduado em sua hierarquia publicitária. É Mike quem se arroga do privilégio de sentar-se mais próximo da mesa de Sari - não ombro a ombro, notem bem, pois isso seria muito presunçoso, muito íntimo; ninguén na organização teria a temeridade de fazer isso. Mike posiciona-se, em vez disso, apenas um pouco para a frente, e um tanto para o lado, com as provas dos anúncios dos jornais estendidas à frente para que Sari as examine.

Os outros dois moços pertencem ao departamento de criação da agência. Um é Bob Petrocelli, o diretor de arte que desenha os anúncios. O outro é Howard Friedman, o redator de material de propaganda. Esses dois sentam, um pouco afastados um do outro, em cadeiras de costas retas defronte da mesa de trabalho de Sari. Um irlandês, um italiano e um judeu, os três formando uma mescla étnica cuidadosamente calculada. Presente também à reunião, sentado no grande divã de couro a curta distância dos outros, o filho de Sari, Eric.

Os cinco achavam-se reunidos agora no escritório de Sari, e a reunião se iniciara.

A sede da empresa Baronet Vineyards está situada em um dos edifícios mais antigos da Montgomery Street, e o escritório que Sari agora ocupa foi originariamente planejado para espelhar a idéia do papá Julius LeBaron do que deveria ser o escritório de um executivo de um estabelecimento vinícola, - grande, adequadamente baronial, com toques decorativos emprestados tanto da Califórnia como da Europa Medieval. As paredes e o teto alto são revestidos de nogueira escura lustrosa, ornamentados com escudos e brasões heráldicos, e o piso de mármore polido é decorado com desenhos em branco e dourado de um ovo-e-um-dardo.

A mesa de trabalho de Sari é emoldurada pelas enormes janelas vitrais que representam, em seus vários painéis, conquistadores portando espadas, usando armaduras para as coxas muito ajustadas e joelheiras, peitorais dourados e espaldares, e elmos com plumas de pavão, como também frades tonsurados de hábito e sobrepeliz, segurando botijas e jarros de vinho. As cadeiras e o divã são grandes e com um toque vagamente espanhol, recobertos de um couro negro de primeira qualidade, o que dá ao aposento seu próprio cheiro de fumo e cera, másculo. E lâmpadas colunárias altas e de metal reforçam as nuanças pesadas de pergaminho pregueado que trazem pinturas com mais símbolos heráldicos: escudos, elmos e outros adornos armoriais.

O aposento também é ousadamente autocongratulatório. Encaixado na parede acima do divã, num nicho de vidro iluminado, são exibidas amostras dos produtos Baronet com o passar dos anos, em seus vários tamanhos, formatos - quartilho, meio quartilho, quarto de litro, litro, meio galão, galão - e variedades: os vinhos branco, tinto, rosê, o Angélica dourado, e assim por diante. Na parede oposta, numa vitrine idêntica, está uma coleção de copos para vinho de várias procedências e safras. E a parede que dá de frente para a mesa de Sari é o que papá LeBaron gostava de chamar sua Parede de Troféus. Ali, emoldurados, estão os prêmios, medalhas, tributos e citações - tanto cívicas como industriais -, juntamente com as fotos autografadas de presidentes dos Estados Unidos, todos eles, de Calvin Coolidge até Ronald Reagan (com exceção de Franklin Roosevelt), que os LeBarons e a sua empresa têm reunido com o passar dos anos. Eles se agrupam em torno do retrato emoldurado do avô Mario Barone, de bigode preto, pintado, tendo como modelo uma foto antiga. Mas mesmo aqui a mão do astuto revisionista da História andou funcionando. A placa sob o retrato do homem responsável por tudo isso lhe confere um nome pelo qual ele nunca atenderia: "Marc LeBaron", e, abaixo disto, as palavras: "Fundador: 1830-1905."

Desde os tempos de Julius LeBaron, somente um detalhe

decorativo do escritório foi mudado: as duas escarradeiras de metal que outrora ladeavam a mesa. Sari providenciou sua remoção.

Agora, na grande cadeira giratória do papá LeBaron, ela se senta atrás da mesa de nogueira dos sócios. Sua cadeira de rodas foi guardada num armário, já que se supõe que nenhum dos moços da Madison Avenue deva ser lembrado quanto à sua deficiência física. Mike Geraghty apresenta, um por um, os anúncios sugeridos, para que ela os examine, observe, analise. Ele coloca cada novo layout em papel acetinado na ordem em que - se Sari der sua aprovação - eles figurarão aos olhos dos consumidores dos vinhos Baronet. O dorso de seus dedos bem manicurados são cobertos por uma penugem rosada, cor de pêssego.

- Agora, vamos reexaminar todos eles, Mike - diz Sari por fim.

- Certamente, sra. LeBaron.

Os outros dois moços nada dizem, simplesmente sentam-se rigidamente em suas cadeiras numa atitude de atenção e profundo respeito. Meses de trabalho estão em jogo agora, e tudo depende da aprovação ou não de Sari. Até aquele momento ela não acusara nenhuma emoção, e as sobrancelhas de Howard Friedman-, o redator, tinham começado a se curvar ligeiramente. O novo slogan sugerido era seu.

- Bem, entendo o que vocês tentaram dizer aqui - diz ela finalmente. - "Baronet - O Vinho em que Você Pode Confiar." Pode-se confiar em que a Torre Inclinada de Pisa não cairá. Pode-se confiar em que a figura da Estátua da Liberdade não deixará cair seu facho. Mas...

Soou um ansioso:

- Sim, sra. LeBaron?

- Mas o que estamos nós fazendo com todos esses desenhos de bancos! O que um banco tem a ver com vinhos?

- Compreenda, sra. LeBaron - aparteia rapidamente Friedman -, a idéia é de que se pode confiar nos vinhos Baronet do mesmo modo como se pode confiar que o nosso banco cuidará de nosso dinheiro. Pode observar, no layout, que nós empregamos a frase "O vinho em que você pode confiar."*

- Isso eu entendo. Mas o que não posso entender é por que se desejaria confiar num vinho. Estou omitindo algum detalhe sutil?

- Bancos - diz Mike Geraghty - são instituições financeiras americanas confiáveis. O verdadeiro alicerce, poder-se-ia dizer, de nosso sistema capitalista americano.

- Não se esqueçam... eu sou pró-comunista! - comenta ela com uma piscadela.

 

*O autor usa aqui a expressão bank on, que permite o jogo de palavras mais efetivo. Bank on significa tanto confiar, como depositar dinheiro num banco. (N. do T.)

 

- Ah, ah, sim. Bem, os americanos se sentem muito firmes acerca de seus bancos. O sonho de todo americano jovem, homem ou mulher, é poder entrar num banco e descontar um cheque, seu próprio cheque. Isto não poderia acontecer na Rússia ou em seus outros países da Cortina de Ferro. Nós fizemos uma pesquisa sobre isso num nível psicológico bem aprofundado, sra. LeBaron, sobre os sentimentos bem enraizados dos americanos a respeito de seus bancos e...

- Tenho certeza de que tem razão, Mike - atalha Sari, movendo a mão com impaciência -, mas ainda não entendo a relação entre os sentimentos do povo acerca de seus bancos e do vinho que bebem. Isto é o que não captei nessa coisa toda.

- Os bancos - diz Mike Geraghty - são sólidos. Podem merecer confiança. Eles são como um velho amigo. Quem é mais confiável em qualquer cidade ou povoado neste país do que o banqueiro local?

- O médico do povoado, talvez? - sugere Sari.

- Mas que suscita questões de saúde - retruca Geragthy -, e, naturalmente, não queremos entrar em algo assim, realmente não podemos entrar num setor como esse, sra. LeBaron, dizendo: "O vinho é bom para vocês, bom para a sua saúde, dizem nove entre dez médicos..." esse tipo de coisa. Pois aí, o governo iria...

- Não estou sugerindo isso - atalha Sari. - Tudo que estou dizendo, Mike, é: por que bancos?

- Estamos tentando conferir à Baronet uma imagem num nível mais alto, sra. LeBaron - diz agora Howard Friedman. - O banco, o banqueiro... conservador, merecedor de confiança, a pessoa na cidade de que todos gostam...

- Bom, eu certamente não amo meu banqueiro - diz Sari. - Acontece que ele é um asno. Mas o que você quer dizer com esse negócio de nível mais alto?

- O banqueiro. O cidadão mais probo do povoado, o pilar da comunidade.

- Está tentando dizer que os banqueiros bebem vinhos Baronet?

- Isto está implícito, sim, no anúncio. Uma mensagem subconsciente.

- Mas isso é um disparate, Mike. Banqueiros não bebem vinhos Baronet... nem nesta cidade e nem em qualquer outra. Eles bebem martíni Beefeater com grande gosto, ou uísque Johnnie Walker. Ou algo igualmente mais conceituado.

- Naturalmente, isto é apenas um detalhe menor do anúncio, sra. LeBaron. Isso é a parte subliminar, do nível mais alto. O ponto principal é...

- Sim, voltemos ao ponto principal - diz Sari. - O ponto principal de tudo isso é "Baronet - O Vinho em que Você Pode Confiar", como eu entendo. Assim permitam-me perguntar-lhes isto: há algum motivo pelo qual alguém não deva confiar nos vinhos Baronet? Há algum motivo para que alguém deva confiar nos Baronet mais do que em qualquer outro vinho? Confiar em que o Baronet produza o quê? Que não nos deixa embriagados? Que não nos faça vomitar, ou nos causar uma cirrose do fígado se o bebermos demais? Ou não causar uma ressaca? Veja bem, Mike, nosso vinho é barato, sempre foi. Não é champanhe, e nem scotch ou bourbon. O Baronet é vinho para os trabalhadores fabris e manuais. Rapazinhos o bebem em tabernas que não podem se dar ao luxo de obter licença para outras bebidas. Eles bebem o Baronet em festas, nos seus pequenos clubes. Eles o compram por galão para fazer os ponches. Nós não estamos tentando ser um Beaulieu, ou Paul Masson ou mesmo Almadén. Somos apenas produtores de um vinho antigo comum com um rótulo barato, e as pessoas o bebem porque ele lhes dá uma agradável excitação. Somos a casa de vinhos, a 75 cents o copo em algum de seus não-tão-melhores restaurantes. Isto é o que nós somos, e sempre temos sido.

- Mas o gosto tem mudado atualmente, sra. LeBaron, e o...

- Tolice! Se o público estivesse se afastando de nosso vinho, veríamos isto no balanço da firma, certo? Se estivéssemos fazendo algo errado, constataríamos isso nas cifras de vendas, não é assim? Mas não vemos isso. Assim, por que mudaremos nossa feitura dos anúncios, com esse negócio de nível mais alto. Da próxima vez, pelo jeito, vocês estarão sugerindo que eu compre espaço para anunciar na Town & Country, ou no ArchitecturalDigest, revistas pedantes como essas!

Se desejam apresentar-me algo de novo, forneçam-me alguma coisa alegre... algo que verse sobre um bom e barato divertimento. Os bancos são alegres? Os bancos tratam de taxas de juros. - Ela estendeu as palmas das mãos lisas sobre o alto da mesa e fitou cada um dos três homens, alternadamente. - Na verdade, senhores, se há uma coisa com que os vinhos Baronet não têm nada a ver são os bancos.

Recai um silêncio agora, e os rostos de todos os moços da Madison Avenue que estão na sala mostram-se abatidos e desconsolados, e de imediato Sari sente quase pena deles. São muito moços, e as suas esperanças novas ficaram bastante frustradas.

- Digam-me uma coisa - diz ela num tom mais gentil -, minha cunhada aprovou algo com relação a este material?

As expressões deles tornam-se ainda mais taciturnas. É difícil para eles, afinal de contas, ver todo o seu penoso trabalho ser descartado com a expressão "este material".

- A srta. LeBaron reexamina cada sugestão da agência com muita atenção antes de ser apresentada ao cliente - diz Mike Geraghty muito formal.

- Bem, Joanna deve estar perdendo seu bom senso - diz Sari. Ao ouvir isso, Eric LeBaron limpa a garganta suavemente, inclina-se no sofá e eleva suas mãos no feitio de uma torre.

- Desculpe-me, mamãe - diz ele. É a primeira vez que toma a palavra na reunião.

Sari lhe lança um olhar rápido.

- Sim, Eric?

- Desculpe-me, mamãe, mas acho que entendi o que esses companheiros estão tentando fazer.

Agora produz-se um suspiro de alívio coletivo, embora inaudível, no escritório. Nem tudo está ainda definitivamente perdido para os rapazes. Uma outra opinião está, pelo menos, sendo apresentada, e há uma chance fugaz - bem fugaz - de que o dia possa ser resgatado, ainda que eles saibam por uma longa experiência que é Sari quem diz ao seu filho o que fazer, e não o inverso.

- Não digo que estou cem por cento a favor desta particular promoção - diz Eric cautelosamente, e a expressão brevemente esperançosa nos rostos dos publicitários se esvai rapidamente.

Mas entendo o que eles estão procurando expressar, e creio deva lhe dizer que o que nos apresentam hoje se fundamenta numa sugestão minha há algum tempo.

- Sua?

- Sim. Veja, a idéia de uma campanha promocional de alto nível para os Baronet está baseada numa tendência muito definida que vem se manifestando durante os últimos dez ou vinte anos.

- Que tendência é essa?

- O vinho tornou-se uma bebida da moda. Converteu-se na bebida de opção para pessoas avançadas, instáveis, particularmente jovens... profissionais urbanos jovens, pessoas que...

Sari move a mão com impaciência, dizendo:

- Eu sei disso tudo. Está tentando me dizer algo que eu já não saiba? Essa tendência iniciou-se em fins de 1960. Está tentando me dizer que estou fora de época?

- Claro que não, mas a questão é...

- A questão é que essa gente, esses yuppies de que está falando, não bebe nosso vinho. Afinal, eles não tocariam numa garrafa de Baronet nem com uma vara de três metros! Você não verá nosso vinho ser servido em qualquer das festinhas da Park Avenue, Eric. No Bowery, sim. Pois cada bêbado que eles pegam na zona de marginais está levando um frasco do Baronet Thunder Mountain Red num saco de papel!

- Mas o que estou tentando dizer - Eric começa devagar, e Sari pode ver a pequena cicatriz deixada pelo fórceps em sua têmpora esquerda começar a avermelhar-se, como ocorre amiúde quando ele está zangado ou nervoso. Ninguém mais nota isso, mas ela sim. Bem, pensa, deixemos que ele se contorça um pouco. - O que tento dizer - prossegue ele - é que não temos de dirigir nosso pleno empenho de marketing para beberrões da zona de marginais e vadios do Bowery.

- Você deseja conseguir melhores resultados com pessoas de quem se poderia esperar isso, não é?

- Há um outro mercado, sra. LeBaron - intervém Geraghty.

- Eu sei que há! Mas não é nosso mercado.

- Mas há algum motivo, mamãe, para que não devamos tentar também penetrar nesse outro mercado, com uma campanha publicitária destinada a tornar o nome Baronet apenas um pouco respeitável?

- E dar as costas ao mercado que já temos? Matar a galinha que põe os ovos de ouro? Eu lhe digo, nosso mercado não lê Town & Country. Lê o NationalEnquirer e as revistas para mocinhas. Eles não assistem ao "MacNeil-Lehrer Report", vêem jogos de futebol e lutas de boxe. Nossas pesquisas nos mostram isso. Nossos produtos são vendidos em supermercados, Eric, para homens e mulheres que voltam para casa dirigindo caminhonetas de entregas.

- Mas temos de nos concentrar nesse mercado exclusivamente! Enquanto o outro mercado é...

- Não troque de montaria no meio do rio. Nunca ouviu esse conselho? Não retire sua aposta num cavalo ganhador, eis um outro.

- E já que estamos trocando lugares-comuns - diz Eric -, existe outro rifão sobre arriscar tudo numa única empresa.

- Tolice!

Os outros três homens na sala mostram-se agora extremamente apreensivos. É penoso para eles ter que ver um membro de seu próprio sexo ser repreendido por um membro do sexo oposto, particularmente quando esse membro é a própria mãe do homem em questão. Eric, eles sabiam, estava falando sobre marketing, o que se supunha ser seu setor de atividades; falar sobre marketing era, portanto, supostamente, direito seu. Supõe-se que um vice-presidente de marketing ofereça, pelo menos de vez em quando, sugestões e conselhos, e era tudo que ele estava fazendo.

Faz-se silêncio, então Mike Geraghty diz:

- Entenda, sra. LeBaron, o que estamos sugerindo é uma espécie de campanha publicitária que começaria a acrescentar alguma respeitabilidade, alguma dignidade, à imagem popular que o rótulo Baronet tem agora, preparando o terreno...

- Preparando o terreno para quê?

- Para a possibilidade de lançarmos uma nova linha de vinhos de preços mais altos. Da qualidade château. Com uma nova

embalagem, um novo rótulo... conservando a marca Baronet, é claro. "Château Baronet", na verdade, é um dos rótulos que nós temos cogitado.

- "Nós" quem? Isso é uma nova idéia de Joanna?

- Não, na realidade foi minha - diz Eric.

- Apenas uma sugestão, é claro - diz Geraghty -, num esforço para conquistar uma parcela, pelo menos, desse mercado de alto nível.

- Com atraso - acrescenta Eric.

- O que acha do nome Château Baronet, sra. LeBaron? - indaga Geraghty. - Nós gostamos muito dele.

Sari faz uma careta, dizendo a seguir:

- Château Baronet. Soa como uma espécie de efeminação para mim. Bem, eu lhes direi o que penso. Creio que isto tudo é uma idéia péssima. Acho que é pior do que péssima. Creio que é uma idéia nojenta. Acho que ela fede.

Agora os suspiros tornam-se audíveis.

- Deixem que eu lhes diga algo sobre o vinho - prossegue Sari, dobrando as mãos sobre a mesa e assumindo a atitude de uma madre superiora onisciente de um convento dirigindo-se a um grupo de noviças inexperientes. - O vinho é extraído de uvas esmagadas, e as uvas crescem nas parreiras, e estas crescem no solo, na terra. Na terra, elas dependem da chuva e do sol, da natureza, dos dias ensolarados e frescos, das noites secas. Em alguns de nossos vinhedos do norte, como Napa, deixamos crescer as mostardeiras-do-campo entre as parreiras na primavera. Por que as mostardeiras? Ninguém sabe ao certo, mas a mostarda parece nutrir as vinhas em determinadas regiões. Bem alto, nos contrafortes, essas ervas são todas cultivadas por baixo, e isto parece também ajudar as parreiras. Proporcionam textura ao solo. Entendam, isto é o que creio que todos vocês, rapazes, algumas vezes parecem esquecer... vocês, em seus escritórios da Madison Avenue, Joanna em seu dúplex da Quinta Avenida, mesmo o Eric aqui, no seu escritório, na cidade. Vocês esqueceram a mostardeira silvestre, o trevo e a ervilhaca roxa. Quantos de vocês já observaram as abelhas, o modo como um enxame de abelhas ataca um vinhedo?

Uma única abelha pode sugar uma uva até esta ficar seca, vazia e pregueada como um balão apagado. Já observei isso, com lágrimas nos olhos, e vi como essas abelhas caem, uma por uma, no chão, bêbadas por terem sugado nossas vinhas.

"E as cotovias! Ouçam! Ouçam! A cotovia canta na porta dos céus, pensam vocês, mas as cotovias podem ser uma de nossas piores predadoras. Esses belos pássaros canoros podem se tornar um de nossos mais vorazes rapinantes... insaciáveis! E um verão de cotovias para nós é um verão desastroso. Quando menina, eu costumava observar os trabalhadores campesinos chineses cantarem, gritarem, balançando os braços, fazendo soar os gongos, tentando afugentar um bando de cotovias dos parreirais. Não serviam de nada! As forças da natureza, percebem? - Faz uma pausa de efeito. - Isto é o que acho que todos vocês esqueceram, sentados ali em suas torres de marfim. Nós não somos aristocratas da Park Avenue. Que diabo, nós somos agricultores. Cultivamos a terra. Observamos o céu e farejamos o ar em busca de sinais de chuva. Batalhamos com a natureza diariamente. Somos pessoas reais, pessoas comuns, exatamente o tipo de gente que bebe nosso vinho. Eis aí como construímos nossa reputação. - Ela abaixa seu punho, firme, sobre o alto da mesa de nogueira dos sócios. - E eis aí como enriquecemos.

Após um curto momento, Eric diz secamente:

- Bem, obrigado pela palestra, mãe.

- Isto não foi uma conferência - retruca Sari. - Foi um sermão! - Faz uma pausa e então sorri. - Bem, que tal almoçarmos? No que toca a vocês, não sei, mas eu estou faminta. - Aperta um botão sobre a sua mesa e chama sua secretária, a srta. Martino.

Eric levanta-se, dizendo:

- Lamento, mas não posso almoçar com você. Tenho um compromisso.

Ele pode fazer isso. Ele pode escapar, com um pretexto, mas os outros não. Enquanto os rapazes da Madison Avenue permanecem em São Francisco, pertencem a Assaria LeBaron. Sari bate a cabeça num curto "até logo" para Eric, e Gloria Martino aparece no umbral, bloco de anotações e lápis na mão.

- Bebem algo antes do almoço, rapazes? - pergunta Sari. Mike Geraghty fala em primeiro lugar:

- Aceitarei um copo de vinho Baronet Chablis gelado.

- Ó último! - diz Sari. - Tomarei um vermute Baronet - pisca para eles - misturado com uns pingos de gim Beefeater.

Eric LeBaron entra em passadas largas no seu escritório na outra ala do edifício e refestela-se na poltrona atrás da sua mesa de trabalho. Marylou Chin, sua esbelta secretária eurasiana, acompanhou-o na sala.

- Bem - diz ele -, ela fez aquilo de novo. Deixou-me receber o sermão diante da turma toda da Madison Avenue. Merda!

Comumente, Marylou se limitaria a emitir ruídos de cacarejo com a língua, murmuraria algo não obrigatoriamente solidário e então lhe perguntaria se estava liberada para o seu horário de almoço. Mas justamente naquelas últimas semanas a natureza de seu relacionamento mudara, e assim, em vez de fazer aquilo, fecha a porta do escritório, fenta-se numa pequena cadeira de frente para Eric, cruza as pernas e cautelosamente acende um cigarro de filtro longo, observando-lhe o rosto. Pergunta por fim:

- Por quanto tempo mais irá deixar que ela o trate desse modo, Eric?

- Diacho, eu não sei. Até que me removam daqui com uma úlcera supurada, imagino.

- Isso é... intolerável, eis o que é.

- Eu sei.

- Você tem trabalhado demais, deu a ela tanto, e ela o recompensa tratando-o como se você fosse uma espécie de escravo das galés. Como uma merda, tal como você diz.

- Eu sei.

- Você é quem devia estar dirigindo esta empresa. Não ela.

- Sei que poderia dirigi-la com uma visão muito melhor.

- Claro que poderia. - Marylou modela a cinza de seu cigarro na borda do cinzeiro dele. - Houve... houve a mesma espécie de coisa hoje?

- Claro que sim. Ela simplesmente se recusa... se nega a levar em consideração tudo que mesmo remotamente cheire a uma idéia nova.

- Você tem sugerido a ela muitas idéias boas.

- O pessoal da Madison Avenue veio aqui com o layout de uma nova campanha promocional que era, francamente, uma merda. Mas eles estavam na pista certa.

Ela, no entanto, naturalmente, descarrilou o trem antes mesmo que eles pudessem pegá-lo. Recusou-se a ouvir tudo mais que tinham para dizer.

- Pobre Eric.

- Você devia ter ouvido seu pequeno discurso de hoje. Tudo sobre cotovias e abelhas, mostardeira-do-campo...

Mais uma vez ela amolda a cinza de seu cigarro no cinzeiro. E diz:

- Sabe, eu estive pensando.

- Pensando o quê?

- Num artigo que saiu há duas semanas na Newsweek. Na realidade, era a reportagem ilustrada na capa. Versava sobre a doença de Alzheimer, essa coisa que ataca as pessoas idosas. É como a senilidade. Podem se lembrar de algo ocorrido há cinqüenta anos, mas não conseguem recordar se abriram a porta da geladeira para pôr algo dentro ou retirar algo. Ela está agora com... 74 anos? Não acha que pode ser disso que ela está sofrendo, Eric?

- Ah! Eu desejaria que fosse.

- Eu me refiro... bem, àquilo que ela fez com o seu avião. Foi realmente muito louco. Sei como você ficou desconcertado com o fato. Todos nós ficamos embaraçados. "Aquela é a mulher para quem você trabalha?", perguntaram as minhas amigas.

- Não, ela estava só representando. Apenas se mostrando engraçadinha. Só para ver o quanto pode voar para longe... ela e George Hessler. E estou certo de que George teve algo a ver com isso. Deve ter tido. Ela deixou-o ir adiante porque acha que ele é uma graça.

Marylou Chin ri suavemente.

- Bem, ele é muito bem-parecido. Mas, afinal de contas...

- Não. Ela sempre tem agido assim, receio, Marylou. Desde que a conheço. O que, é claro, significa toda a minha vida.

- E como era ela quando seu pai estava vivo? Portava-se do mesmo modo com ele?

Eric franze a testa.

- Então era um pouco diferente. Eles eram mais como parceiros de trabalho. Juntos num negócio. Papai era um apaziguador, mamãe era a durona. Quando as cabeças deviam ser marteladas, isto era tarefa de mamãe.

Aí os punidos recorriam ao meu pai para que lhes aplicasse Band-Aids... Isto era o que ele fazia melhor, atenuando os sentimentos feridos que mamãe deixava em sua esteira.

- Pobre Eric - repete Marylou. - Magoa-me tanto ver o que ela está fazendo com você!

- Uma parceria de trabalho, eis o que aquele casamento foi. Sabe, às vezes eu tentava imaginar minha mãe e meu pai fazendo amor, e simplesmente não conseguia. Simplesmente não consigo descrever os dois... você sabe, fazendo sexo. Fodendo. E, no entanto, eles devem ter feito, duas ou três vezes pelo menos.

Ficam sentados em silêncio por momentos, e muito devagar Marylou Chin apaga seu cigarro no cinzeiro. Dizendo finalmente:

- Bem, eu acho que sei o que você deveria fazer.

- O quê?

- Enfrente sua mãe. Diga-lhe exatamente o que você pensa. É ruim para você manter suas idéias e sentimentos refreados desse jeito. Creio que devia ir até ela e dizer-lhe que não pretende admitir mais esse tipo de tratamento. Dê-lhe um ultimato.

- Ah. O que adiantaria isso? Ela simplesmente diria: "Ótimo, desapareça." E então onde eu estaria? No olho da rua, sem um emprego.

- Mas ela seria uma idiota, uma completa idiota, se deixasse você ir embora!

- Mas não esqueça, eu a conheço, Mlou. Eu a conheço muito melhor do que você, e lido com ela há muito mais tempo. Eu a conheço, repito.

- Bem, mesmo se ela fosse tola o bastante para deixá-lo ir... afinal, existem dezenas de companhias nesta cidade que simplesmente dariam tudo para contratar você!

- Você não entende. Esta é a minha carreira. Estou com quase quarenta anos, e trabalho há vinte nesta firma. Fiz dela a minha carreira. Mesmo nas férias de verão, de volta a casa do colégio, eu estava ali com os trabalhadores, colhendo uvas, sendo pago por caixa colhida, trabalhando para a Baronet. É o único emprego que tive até hoje.

- Mas há inúmeros outros...

- Se ela ficasse bastante zangada, e ela pode muito bem ficar furiosa, providenciaria para que nenhum outro estabelecimento vinícola da Califórnia me contratasse... jamais. Ela tem esse tipo de poder, Marylou. Já a tenho visto usá-lo.

- É... desumano, isso é que é!

- Essa é a minha mãe. Não, receio não seja essa a solução.

- Mas, mesmo sem um emprego, você teria...

- Dinheiro, quer dizer?

Marylou hesita, mordiscando o lábio inferior. Está patinando em gelo fino ali. Como secretária de Eric, ela cuida de suas contas bancárias, faz depósitos periódicos e retiradas para ele. Mas do seu quadro financeiro global ela conhece pouco, e é, afinal de contas, somente a sua secretária.

- Bem - diz ela com tato -, os jornais sempre incluem você na lista dos homens mais abastados de São Francisco.

- Um Gordon Getty regular, hem?

- Não, eu simplesmente quero dizer que, considerando-se quem você é, com seu talento e idéias, poderia fazer tudo que desejasse nesta cidade.

- Sim. - Ele está franzindo a testa agora, olhando não para ela, mas para o tampo de sua mesa. - Sim, bem, uma das coisas que eu gostaria de fazer agora era minha alegada tarefa de diretor de marketing da Baronet.

- Mas ela não deixará...

- Ocorre que ela é a presidente da companhia, Mlou.

- Trata-se simplesmente de que não suporto vê-la usar você como vem fazendo... como o seu bode expiatório.

- Está me chamando de maricas?

- Não! Você é um dos homens mais inteligentes e talentosos que já conheci. Mas aquela mulher...

- Acontece também que aquela mulher é minha mãe.

- É claro! E, naturalmente, você a ama. Mas qualquer mãe que ame o seu filho não deveria tratá-lo desse modo. - O gelo imaginário sob seus pés tornou-se ainda mais fino, mas ela prossegue. - Apenas... apenas gostaria que você me deixasse levá-lo às minhas aulas de afirmação pessoal, Eric. Estamos agora no capítulo da elevação da consciência. Nos reunimos todas as...

- Sim, bem, não creio que necessite dessas aulas, Marylou. De qualquer modo, obrigado.

- Eu o fiz zangar-se, não fiz? Oh, Eric, sinto muito! Mas apenas... apenas julguei que você estivesse pedindo minha opinião.

- Sim. Bem, eu ajeitarei as coisas. Não se preocupe comigo, Mlou.

Ela ri, mas sem gosto.

- São as minhas aulas de afirmação pessoal, suponho. Elas me fizeram ficar muito agressiva. Desculpe-me.

- Simplesmente não desejo que você fique de cabelos grisalhos por causa disso. Deixe as coisas comigo, está bem?

- Naturalmente, Eric.

Ficam sentados em silêncio por alguns instantes. "Infelizmente", ela pensa, "eu o deixei ainda mais nervoso."

Ele pensa: "A culpa é minha por me queixar diante dela em primeiro lugar."

- Bem... - diz ela, e com os dedos da mão direita varre uma cinza imaginária da saia de seu terninho de seda azul. Então descruza as longas pernas e se ergue. - Bem, vou fazer um rápido almoço hoje, assim estarei aí pertinho se precisar de mim para algo.

- Obrigado, Marylou.

- Posso pedir um sanduíche pra você?

- Hum... não, obrigado. Ela hesita antes de perguntar:

- Eu verei... você hoje à noite? Ainda de testa franzida, ele agita a mão.

- Acho que... não. Estou tendo desgostos no front doméstico também. Assim, creio que seria melhor dizer não.

- Pobre Eric.

Ele ergue os olhos para ela.

- Amanhã, talvez?

- Nós nos veremos - retruca ele.

- Desculpe se eu o deixei zangado. Sinto, realmente.

- Não, zangado não. - Sorri fracamente. - Escape para MMou - diz ele. - Escape para Mlou, meu amor. Fuja com Mlou, meu querido.

Ela tenta retribuir o sorriso. Então, lentamente, afasta-se dele e atravessa a sala com seus sapatos de salto alto. Junto à porta, hesita novamente.

- Devo deixar a sua porta aberta ou fechada?

- Fechada, eu acho.

Ela abre a porta, sai e então, muito silenciosamente, volta a fechá-la. Sozinho no escritório, Eric pensa: "Escape para Marylou." E então reflete: "Nessa direção jazem somente frustração, confusão e desespero." Ele simplesmente decidiu renunciar a ela. Pela terceira vez naquela semana.

Senta-se durante longo tempo no escritório vazio, olhando fixamente as gravuras representando caçadas (caçadores de casaco cor-de-rosa perseguindo a raposa) sem vê-las, evitando que seus olhos incidam sobre a mesa baixa junto a uma parede, onde, em três molduras prateadas e iguais, com as suas iniciais inscritas, as fotos de uma esposa loura e duas meninas lhe sorriem com expressões de notável autoconfiança e segurança, nenhuma delas necessitada de umas aulas de afirmação pessoal.

Finalmente, ele estende a mão para o telefone na sua mesa, ergue o receptor e aperta uma curta série de números musicais. Quando uma voz de mulher atende, ele diz:

- Gloria, posso falar com a minha mulher agora?

- Sinto, sr. LeBaron, mas a sra. LeBaron estará ausente hoje. Posso ajudá-lo?

- Então faça a ligação para a casa dela, por favor.

- Sinto muito, sr. LeBaron, mas a sra. LeBaron deixou instruções para que não fizéssemos nenhuma ligação para ela.

- Obrigado, Gloria. - Repõe o telefone no lugar. Então olha para o seu relógio. Que horas serão em Nova York? Mentalmente acrescenta três horas. Quase quatro. Pega o telefone de novo e calca uma série de números.

Muito bem, mãe, pensa. Estou pronto agora para disputar exatamente o tipo de jogo que você entenderá.

- Tia Joanna? - diz ele quando ela atende. - Creio que preciso ir a Nova York para vê-la.

Assaria LeBaron ordenara ao seu motorista que a levasse diretamente ao Candlestick Park após o almoço com os rapazes da Madison Avenue. Ali é onde seu clube de futebol, o Condors, está em treinamento na primavera. Há muito rebuliço, corre-corre e consternação geral quando a cadeira de rodas motorizada se apresenta na entrada da temporária casa de campo e abre caminho pelo piso de linóleo do saguão. Harry Olsen, o empresário da equipe, precipita-se na sua direção e diz:

- Sra. LeBaron, os rapazes acabaram de sair do campo... estão no chuveiro agora!

- Está tudo bem, só desejo trocar umas poucas palavras com eles, Harry.

- Eles estão ótimos, sra. LeBaron - diz Olsen enquanto se apressa atrás da cadeira de rodas. - Mas não tínhamos idéia de que a senhora viria, e exatamente agora, justo neste momento; os rapazes adorariam vê-la, eu sei... se puder dar-lhes alguns minutos, sra. LeBaron, eu lhes direi que está aqui..., mas neste exato momento os rapazes estão no chuveiro, sra. LeBaron! Sra. LeBaron!

Apressa-se a segui-la quando ela movimenta sua cadeira de rodas pelo comprido corredor, contorna um ângulo, passa pelas mesas de massagem e as pilhas de esteiras de exercícios, depois pelas balanças de pesagem e fila de mictórios, onde o ar cheira a uma mistura de cânfora e óleo de gualtéria e álcool para fricções, rumo à rouparia e ao som de chuveiros ligados.

- Não se preocupe, isto não levará um minuto - diz ela.

- Rapazes! - grita Harry Olsen na direção do som de água correndo. - A sra. LeBaron está aqui!

Ela contorna o último ângulo e está no interior do grande recinto cheio de vapor.

Ouve-se uma série de repentinos gritos quando os jogadores reconhecem sua visitante, e ocorre um coletivo agarramento de toalhas; as sungas que tinham sido arriadas até abaixo dos joelhos são apressadamente recolocadas na posição, enquanto os chuveiros são, um por um, desligados.

- Rapazes, sei que estão ocupados - diz Sari jovialmente - e sei também que têm muito o que fazer esta tarde. Mas quis passar aqui, aproveitando estar na vizinhança, e trocar umas poucas palavras com vocês. Há um pequeno assunto que gostaria de esclarecer, e achei que vocês deviam ouvir isso de mim, pessoalmente... direto do forno, como dizem. Sei que foram publicados artigos nos jornais - vocês os leram, eu os li - insinuando que adquiri este clube como um arranjo para deduzir impostos. Isto, naturalmente, é o que os repórteres sempre fazem: especular. Ninguém sabe o que eu faço com meus impostos, além de mim mesma, do meu contador e do Imposto de Renda. Quanto a isso, tudo certo. Mas essa espécie de especulação deixa a impressão de que eu não ligo a mínima se esta equipe ganha ou perde. Rapazes, estou aqui para lhes dizer pessoalmente que isso não é verdade. Não só eu ligo como me interesso profundamente.

Adquiri este clube porque achei que o time tinha garra para ganhar partidas de futebol! Isto é o que acredito que possam fazer, e o que desejo que façam, e o que espero que consigam. Desejo que todos vocês dêem a esta equipe o máximo, e quero que saibam que os apoiarei totalmente. Desejo um time que participe do campeonato mundial... se não for este ano, no próximo, e se não no próximo, então um ano depois. Rapazes, eu desejo uma flâmula, e creio que vocês têm o que é preciso para me darem isto. Vocês têm a qualidade adequada, e eis por que adquiri este clube. Quero que saibam que enquanto estiverem lá fora, suando a camisa, lutando e jogando uma bola redondinha no campo, eu estarei ali na arquibancada suando, torcendo e rezando - sim, rezando - por vocês. Quero que saibam que não me portarei como uma espécie de patrão ausente. Irei fazer o melhor possível por vocês, e sei que irão fazer o máximo por mim, e algum dia iremos estar no campeonato mundial de clubes juntos - e quando lá estivermos, iremos vencer! Nesse meio tempo, segundo Harry me disse há pouco, vocês estão treinando muito bem, e parecem estar em grande forma. Ótimo! Isto é o que gosto de ouvir. Continuem assim! Estamos nisto juntos, todos por um e um por todos, e lhes darei cobertura todo o tempo, e sei que vocês me apoiarão. Isto é tudo o que eu queria dizer... Boa sorte, bom trabalho e que Deus os abençoe a todos. Vocês têm o que é necessário, e os adoro por isso. Assim, agora saiam... e joguem! Tão rapidamente como chegara, ela se foi.

No quarto 315 do Marriott, o único motel perto do aeroporto, os cinco componentes - quatro homens e uma mulher - do conjunto que se chamava The Dildos estavam cheirando cocaína. Naquele exato momento.

- E daí, o que iremos fazer afinal? - diz Maurice Littlefield, que se auto-intitula Luscious Lucius e que, sem a sua maquiagem, tem o rosto marcado de espinhas. E que, embora possa ser o cantor principal do conjunto, não é o membro mais inteligente do quinteto.

- Zip-dee-doo-dah - diz um deles.

- Ei, homens, ouçam isto - diz um outro. Faz soar um acorde na sua guitarra. - Caras, isto não é um barato? - Ele se deita de costas em uma das duas camas largas, desfeitas, as pernas esticadas e separadas, os olhos fixados no teto, a guitarra atravessada sobre o peito. É o mais alto do grupo de rock. Seus respectivos nomes não interessam aqui.

- Mas que diabos iremos fazer? - pergunta de novo Littlefield.

- A merda daquele conselho de diretores não irá nos pagar pela exibição - diz o altão, olhar fixo no teto. - Eles dizem que apresentamos um espetáculo "ofensivo ao gosto da platéia". Eles tinham isso fixado no contrato.

- Então o que faremos afinal? Aqueles putos nos devem cinco mil dólares.

- Agora, por que você tinha que matar Sylvia? Foi isso que estragou tudo.

- Aquela filha da puta me mordeu! - grita Littlefield. - O que afinal você acha que é isto? - E aponta para o seu antebraço enfaixado.

- Mas você tinha que fazer a coisa no palco? Foi isso que enrolou tudo. Matar a cobra.

- Eu lhes disse que devíamos ter recebido adiantado nossa grana - diz a moça do conjunto. - Lembram-se de que eu lhes disse?

- Talvez fosse bom contratarmos um advogado.

- Sim, e pagar a ele com quê? Advogados custam uma nota, cara, e querem receber adiantado.

- O que desejo saber é como vamos pagar o quarto desta merda de motel. Como faremos isso?

- É moleza. Esperamos anoitecer, colocamos nossos trecos no carro, damos uma fugida à cidade e arrumamos outro show.

- Sim. Tal como fizemos em Topeka, e vejam aonde aquela história nos levou. Agora não podemos atuar em nenhuma parte de todo o Estado do Kansas.

- É onde Topeka fica... no Kansas?

- Cidade fodida.

- O que precisamos é de um único sucesso. Isto é do que realmente precisamos. Um grande sucesso. Um disco de ouro.

- Sim, e enquanto isso como vamos comer? O que faremos?

- Que tal, talvez, assaltar um banco?

- Fala sério... assaltar um banco?

- Foi só brincadeira, seu idiota.

- E então, o que faremos?

Ainda olhando fixo para o teto, o mais alto do grupo diz:

- Que tal aquela dona? Alguém me disse que ela estava recheada.

- Recheada de quê?

- De dinheiro, palerma. Cheia da nota. Dinheiro vivo.

- Que dona é essa?

- Aquela que foi nos ouvir em Modesto. Droga, cara, foi ela quem nos arrumou a apresentação da noite passada.

- Onde fica Modesto?

- Ora, droga, Modesto, na Califórnia. Há alguns meses, lembra-se? Ela foi nos ouvir, e depois esteve nos bastidores. Ela nos conseguiu esse contrato. Ela vive aqui, em Frisco.

- Oh, sim. Mas ela não era uma coroa, cara?

- E daí? Ela disse que gostava do nosso som. Disse que poderia arrumar o tal contrato pra gente, lembra?

- Lucius teria que foder com ela para conseguir seu dinheiro.

- Eu não estou a fim de comer uma velhota! O mais alto sentou-se na cama, replicando:

- Que diferença isso faz, seu asno, o quanto ela seja velha, se ela tem dinheiro? Se ela tem grana, pode nos ajudar a sair daqui, e nos manteremos por mais algumas semanas até conseguirmos novo contrato.

- Sim, Lucius deve trepar com ela. Foi ele quem nos meteu nesta confusão, pra começo de conversa.

- Certo! Você tem que transar com ela, Lucius!

- Foda com ela, Lucius!

- Que droga, caras. Eu nem me lembro mais do nome dela. Faz-se silêncio.

- Ela é muito magra. Cabelo castanho artificial.

- Oh, puxa vida - diz o altão. - Isto a tornará mesmo fácil de encontrar... Não pode haver mais de uma dona magra de cabelo tingido de castanho em São Francisco. Nós a encontraremos fácil, fácil. Você é um idiota, Lucius.

- Ela me deu seu sobrenome. McLaren?

- Não! - diz o mais alto.

- McCarran?

- Não, seu idiota! O sobrenome dela é LeBaron, Melissa LeBaron. Os LeBarons fabricam vinhos. Você é um asno rematado, Lucius.

- Eu vou fodê-la! Vou fodê-la! - diz Lucius.

É noite agora, e o grande Bolo de Noiva no número 2.040 da Washington Street está silenciosa, as cortinas baixadas e fechadas contra a noite. Nós somos uma casa satisfeita, parecem dizer as janelas cortinadas por sob as suas sobrancelhas de mármore esculpido, as janelas que se endereçam à rua silenciosa. Somos os olhos adormecidos de uma casa em paz. Não há quaisquer sonhos ruins, nem escândalos, para perturbar nosso sono, nem lembranças inquietantes para abalar nossa modorra. Isto é o que a fachada da ala sul parece estar dizendo, mas a do norte, invisível da rua, conta uma história diferente. Ali a casa está bem desperta, as cortinas nas grandes janelas da ala norte defronte da sala de estar são mantidas abertas sob as ordens da proprietária, porquanto Assaria LeBaron nunca se farta de sua vista, e as quer abertas para o seu exame instantâneo, seja qual for o momento que deva escolher para admirá-la. A neblina subiu agora - quase toda - e somente os pontos mais elevados das torres geminadas da Golden Gate Bridge estão obscurecidos pelas nuvens, e as luzes alaranjadas que adornam os cabos da ponte cintilam como correntes de estrelas. Podem-se avistar também algumas luzes fracas de Alcatraz, como também de Tiburon e do Belvedere, e as colinas de Marin adiante.

Dali, as águas da baía parecem calmas, mas isto é ilusório. A baía está cheia de correntes enganosas e perigosas contracorrentes, como os prisioneiros que costumavam fugir a nado de Alcatraz logo descobriam, e essas correntes e contracorrentes nunca adormecem, e somente os corpos dos afogados chegam a dar na praia.

A fachada sul da casa está escura, mas na do norte luzes brilhantes vêm das janelas, e às vezes, tal como a casa, parecem de olhos e ouvidos atentos, e há sussurros que somente Sari escuta. É o amor importante? Quero dizer, é importante estar apaixonada?

Na sala de estar, Thomas já encheu o pequeno balde de prata de gelo e os decantadores de bacará, e tudo está preparado para a hora do coquetel de Assaria LeBaron - os guardanapos de linho monogramados (ALLeB), os copos de prata para misturar bebidas, o jarro de prata de martíni, a colher de prata de cabo longo, as pinças para os cubos de gelo. Mas Sari não entrou ainda na sala de estar, e ali não há ninguém para admirar a vista em expansão com a dissolução da neblina, e ela não fez ainda a mistura para o seu primeiro drinque. Em vez disso, por algum motivo, Sari acha-se ainda no comprido corredor central, a ala dos retratos, onde se encontra aquele velho tonel de vinho. Ela o toca no momento.

Às vezes, embora não nesta noite, o barril de vinho é quente ao contato, indicando que alguma espécie de atividade química, alguma forma de fermentação, está ainda se processando em seu interior. O vinho não se converteu em vinagre, mas está vivo ainda, crescendo, mudando. Há, também, ocasiões em que, sob determinadas condições atmosféricas, o tonel de vinho "chora". Diminutas contas de umidade se agrupam ao longo das junções de suas aduelas - mais uma prova de que o vinho do avô LeBaron é ainda, em muito, uma coisa viva, respirando. Sari procura por essas pequenas contas - algumas vezes aparecem em noites frias como a de agora -, mas não acha nenhuma.

Há uma outra faceta da ala dos retratos que algumas pessoas nunca observam, mas que outras acham característica. Todos os retratos nas paredes, exceto o do avô LeBaron, que é uma cópia exata de outro pendurado no escritório de Sari, são de crianças. Isto era o capricho de Julius LeBaron. "Eu farei esta casa permanecer jovem", dissera ele. E assim, todos os membros da família foram retratados por volta dos 14 ou 15 anos, que Julius considerava serem os anos perfeitos entre a infância e a idade adulta. Tornou-se uma tradição da família, e esta tem sido continuada. Embora as roupas que vestem variem de acordo com a época, todos os retratos contêm determinados detalhes em comum. Todos os meninos foram pintados na tela com arcos e cachorros, as meninas com pássaros e instrumentos musicais.

Ali está o marido de Sari, Peter, vestido para o seu primeiro ano na Thacher. E mais adiante a própria Sari, pintada como o artista a imaginou naquela idade - pois ela só veio a conhecer Peter alguns anos mais velha -, sentada ao piano. (Sari LeBaron não sabe dedilhar uma nota.) A uma certa distância dos dois, a extraordinária Joanna, em seu uniforme da Miss Burkes School.

Ali está Melissa. "Quando ela conseguiu ser essa beleza?", perguntou certa vez Peter. Ela sempre foi uma beleza, seu homem tolo. E ali estão os gêmeos, Eric e Peeper, vestidos por Robert Kirk, prestes a partir, juntos, para Choate. Eles eram inseparáveis então, e ainda que Sari se recusasse a vesti-los de maneira igual, eles de algum modo sempre conseguiam se vestir assim. Athalie deveria figurar ali, também, mas, é claro, não figura. Onde estará Athalie?

"Esqueça Athalie, Sari. Esqueça que ela um dia existiu."

"Mas ela existiu. Ela viveu em meu corpo durante nove meses. Ela tinha um nome."

Um retrato de Alix, a mulher de Eric, menina, não está ali, porque ela não tem nada que figurar na galeria de retratos. Ela não é da família. Mas as filhas gêmeas de Eric e Alix ali estão, Kim e Sloane gêmeas, mas tão diferentes. Uma, a Kimmie, é extremamente bonita, enquanto a outra, Sloanie, é bem... não feia realmente, mas comum. O fenômeno do parto de gêmeos é algo que ninguém entende realmente de modo pleno. É mais comum em determinados países e culturas do que em outros, uma absoluta raridade entre pessoas de cor negra. Na época em que os seus filhos gêmeos nasceram, Sari foi inteirada de que a sua idade poderia ter tido algo a ver com aquilo.

Há também o jovem Lance, filho de Joanna.

As vozes parecem soar ali agora, enchendo o longo corredor.

"Escolha uma carta, qualquer uma." Esta é a voz de Melissa.

Sua mãe pega uma carta. É o valete de espadas.

"Olhe a carta, mas não a mostre para mim. Depois ela volta ao interior do baralho. Agora vamos embaralhá-las." Melissa embaralha as cartas, então as revira fazendo um leque, as figuras para cima. E grita triunfante: "Sua carta." Era o três de copas!

"Não, Melissa, era o valete de espadas." Por que não mentira e deixara o truque passar como bem-sucedido? Por que, numa partida de xadrez com Melissa, ela nunca a deixara ganhar? No máximo, a partida terminaria num empate: um rei preto e um rei vermelho, perseguindo um ao outro indefinidamente ao longo do tabuleiro, a história de suas vidas.

E agora, defronte do retrato de Joanna, Sari está ouvindo a si mesma e a Joanna, rindo, rindo à toa e sussurrando, juntas, no Japonese Tea Garden, no Golden Gate Park, quando meninas.

"Você já viu a coisa de um homem, não viu?", pergunta Joanna.

"Oh, claro", mente, em parte, Sari. "Mas como ela se levanta?"

"Ela começa a subir com", mais risinhos espremidos, mais sussurros, "tudo começa com... cócegas."

"Cócegas?"

E então ela ouve, imagina que ouve, a voz rouca de Joanna, pastosa devido ao champanhe: "Oh, meu querido... oh, querido... me toque aqui... e ali... e aí... oh, sim... oh, meu querido... Oh, oh, oh... Oh, sim..

Mas essa fantasia erótica é interrompida pela voz de uma antiga criada que diz: "Sra. LeBaron, é o sr. LeBaron ao telefone. Ele diz que é urgente." E ali está ainda, num compartimento secreto de uma mesa de jogos Regency na sala de estar, um pedaço de papel mata-borrão verde no qual, com a ajuda de um espelho, pode-se ler com dificuldade as palavras: "Eu não posso mais enfrentar esta vida..."

Todas essas vozes e mensagens habitam a galeria de retratos nessa noite. Mamãe LeBaron, bêbada na igreja, amaldiçoando a Hóstia Consagrada.

"Agnus Dei, qui toliis peccata mundi, miserere nobis..."

Mamãe LeBaron, cambaleando na direção do altar, afasta as mãos que a alcançam para tentar contê-la, gritando: "Onde está a misericórdia para mim?"

E então, uma voz do exterior, de um de seus muitos admiradores: "Sari não é notável? O que ela teve que tolerar dessa família! Ela não é simplesmente maravilhosa? Ela pode controlar tudo!"

Exceto os seres humanos. Quem dissera isso? De onde partira aquela voz desleal? Como se ousaria fazer tal afirmativa nesta casa esta noite!, pergunta-se Sari.

"Escolha uma carta, qualquer uma."

O truque fracassa novamente.

"Não, Melissa..."

Elas passam para o jogo-da-velha. Nenhuma ganha. Do modo como Assaria LeBaron joga isso, ninguém jamais consegue traçar uma linha reta pelo seu X ou O.

Teria sido diferente, pergunta-se Sari, se eu não tivesse tomado a decisão que tomei certa vez, há muito tempo? Não há nenhum objetivo na pergunta. Sari avança em sua cadeira de rodas pelo corredor e entra na sala de estar iluminada, com a sua vista ampla da ponte iluminada, de Alcatraz e das outras ilhotas, e, além destas, das luzes de Marin; distante das vozes. Na sala de estar encontram-se os componentes de seu martíni costumeiro. Este é o seu ritual noturno.

"Esta casa é minha Alcatraz", pensa ela, "uma casa que nunca pedi, nunca desejei. Fui feita prisioneira aqui, cercada por objetos que não escolhi. Você terá onze criados à sua disposição. Mas não tenho certeza, Peter, quão bem estarei dando ordens a alguém!"

Sari move-se na direção do carrinho de bebidas e do material do martíni. Mas não, primeiro há um pequeno assunto de negócios a atender. Ela se acerca de uma pequena escrivaninha francesa, acha uma folha de seu papel de cartas timbrado e uma caneta, e escreve:

Meu caro Archie:

Muito obrigada pela história publicada no jornal esta manhã. E - oh, olá - não tivemos sorte de que aquela serpente "se

comportasse mal"? Não contávamos com essa, mas isso deu uma matéria de "primeira página"! Seja como for, creio que isso irá ajudar a produzir os resultados exatos que almejo.

Ligue para mim quando receber este bilhete. Tenho um outro pequeno favor a lhe pedir.

Afetuosamente, e, como sempre, com a mais estrita confiança,

A.L.LeB.

Ela dobra o papel, coloca-o num envelope, endereçando-o e selando-o a seguir, então deixa-o numa gaveta para que Thomas o entregue em mãos pela manhã.

Depois pega o telefone e disca.

- Melissa - diz quando respondem. - Vou tomar um drinque. Não gostaria de subir para se juntar a mim?

Lá fora, na rua escura, os guardas do consulado russo estão fazendo a rendição. Defronte deles, as janelas cortinadas da mansão do outro lado da rua dizem: Somos uma casa contente. Não existem segredos aqui, nem fantasmas inquietantes para perturbar nosso sono. Estamos em paz.

 

Na localidade de hillsborough, Califórnia, vigora um curioso código social, que somente os iniciados entendem perfeitamente. Hillsborough é um lugar muito elegante para se viver, mas aqueles que entendem o código sabem que, mesmo se alguém vive ali, não é elegante ou de bom-tom dizê-lo. Os de Hillsborough que são da espécie exata sempre dizem que vivem em Burlingame, que fica exatamente abaixo na estrada. Se ouvirem alguém dizer que ele ou ela vive em Hillsborough, saberão imediatamente que tal pessoa é um novo-rico ou um exibicionista ou um arrivista, ou todas as três coisas. Ninguém compreende melhor esse código do que Alix Tillinghast LeBaron, que, embora residindo em Hillsborough, cuida sempre de dizer que vive em Burlingame. Alix LeBaron é uma observadora arguta de todos os ritos e rituais ocultos da sociedade de São Francisco. Ela é também uma mulher que, a um toque do telefone, não deixará cair absolutamente nada. No momento, ela está em vias de aplicar esmalte em suas unhas, e acaba de alcançar a parte difícil: aplicar a camada de pintura no lado inferior, um procedimento que requer grande concentração e firmeza de mão, além de muitos lenços de papel Kleenex, que a sua criada particular, de pé ao seu lado, junto ao toucador, lhe entrega, um por um, retirando-os de um recipiente espelhado. O telefone sobre a mesinha-de-cabeceira já soou cinco vezes até o momento, e Alix não lhe deu a mínima atenção, preferindo enfocar sua atenção no pequeno frasco e no pincel, e no processo de pintar o lado inferior das unhas, que deve conduzir com cuidado, não permitindo que as cutículas sangrem.

- Droga! - exclama ela, porque isso acabara de acontecer, e apanha um Q-Tip e um frasco de removedor, pois agora precisará recomeçar todo o processo com aquela unha. O telefone toca pela sexta e sétima vez.

Finalmente, Alix diz:

- É melhor atender, Katie, já que ninguém parece estar disposto a fazê-lo.

Katie vai atender.

- Residência da sra. LeBaron. - E então: - Um momento, senhora. - Cobrindo o bocal com à mão, ela diz: - É a sra. Tobin, senhora.

- Droga! - exclama Alix novamente.

Katie traz o telefone até ela, e Alix LeBaron pega o fone com muito cuidado entre o polegar e o dedo indicador da mão direita, sacudindo os outros dedos no ar para apressar o processo de secagem.

- Querida - diz então no telefone. - Você virá? - E então: - Oh, é divino, querida! Oh, estou tão contente... não, é claro que não será problema, querida. Traga-o com você. Um homem extra é sempre bom. Verei você logo, logo, querida. - E desliga sem dizer "até logo". Para sua criada, ela diz: - Eles estão vindo. Não é detestável quando as pessoas respondem como um favor no último minuto? E trazem um amigo. Tenho certeza de que será desagradável... todos os amigos deles o são. Detesto os Tobins. O sr. LeBaron já chegou?

- Ainda não, madame.

Sentada ali na sua penteadeira, sacudindo os dedos no ar para secar o esmalte, verificando os detalhes de sua maquiagem no espelho, ela pensa: Ele está, tenho certeza disso, sei que ele está. Como eu sei? Não sei como eu sei, talvez seja a intuição feminina, mas eu sei que sei. Ele está com um caso. Não se tratava de coisas como lugares-comuns - os serões vagamente explicados no escritório, embora alguns deles tivessem ocorrido -, não coisas desse gênero. Não se tratava

de qualquer dessas coisas estereotipadas: um fio de cabelo louro comprido no ombro do paletó do seu terno azul (um fio de cabelo louro comprido poderia ser o seu), ou o repentino cheiro leve de um perfume exótico, novo, ou a descoberta de cartas de amor escondidas. Não tinha sido nada tão exato ou tão incriminador como isso. Era mais uma mudança sutil nos seus modos e atitudes para com ela, o olhar furtivo ocasional que ele lhe endereçava ao longo da mesa da sala de jantar, um ar preocupado captado nele por ela, e lapsos de memória. Na manhã anterior, já tendo adoçado seu café, Eric, sem nenhum motivo aparente, acrescentara outra colherinha de açúcar, uma coisa que ela nunca o vira fazer até então. E na outra noite, quando tomavam uma bebida, ela notara que ele estava com dois cigarros acesos queimando em seu cinzeiro. Eram pequenas coisas como essas - nada definido para se perseguir, para se recolher uma certeza - que a convenciam de que seu marido estava interessado em outra pessoa. Quem é ela?, quase lhe perguntara Alix.

E então, na quarta-feira da semana passada, ela lhe perguntara, quando ele saía para o trabalho:

- Você acha que ajap teria um tempinho para datilografar o último desses convites para mim?

Era uma brincadeira sua habitual, chamar a secretária oriental de Eric de "jap". Ele se referira a Marylou como "jap" com freqüência anteriormente. Era sua brincadeira em comum.

- Refere-se à srta. Chin? - retrucara ele então.

- Sim... a japonesa. - Mas ele sempre soubera quem era a "japonesa" em questão antes.

Seria a japonesa? Mas isso se assemelharia demais a um velho clichê, a suspeita óbvia, a secretária no escritório do marido. Isto era o que sempre figurava nas novelas de TV e nas histórias em quadrinhos, e nos contos da McCaWs. Certamente Eric teria melhor discernimento, melhor... gosto. Naturalmente, ouve-se falar muito sobre a menopausa masculina, a crise da meia-idade dos homens.

E agora... nessa noite. Ele sabe que receberão muitas pessoas para o coquetel, pessoas importantes - Herb Caen, o cronista, os William Crockers, os Jimmy Floods, os Tobins etc. E então... onde estará ele?, pergunta-se Alix. No momento são 18:10, e os convidados são aguardados às 18:30.

Suas unhas estão secas agora, por dentro e por fora, e com uma escovinha de maquiagem macia Alix aplica um toque de mais cor em suas faces, dá o matizado certo e observa seu reflexo no frio vidro do espelho, enquanto Katie coloca no pescoço de sua patroa a gargantilha de pérolas entrelaçadas e ajusta o fecho de esmeralda. Alix alcança com a mão o interruptor do reostato e diminui, apenas levemente, as luzes para maquiagem que emolduram o espelho, aumentando, assim, sua auto-admiração. Não tenho resistido mal, diz a si mesma. Tenho me mantido mais em forma do que muitas outras em que se possa pensar. Aos 36 anos, ainda posso me ajustar com facilidade no vestido de Jacques Fath que usei em minha festa de debutante. Tenho me mantido melhor fisicamente do que, por exemplo, Ann Getty, com todo o seu dinheiro... Ann Getty, que por acaso detesto. Eu poderia ter um caso também, se assim desejasse. Se quisesse, poderia ter um caso com... Peeper.

Por que não? Ele provavelmente aceitaria, e eu do mesmo modo. Esta não é uma idéia nova de Alix.

Ter um caso com o irmão gêmeo de seu marido era uma idéia que não deixava de ter um certo... sabor picante. Ela sempre se põe a imaginar quão idênticos os irmãos gêmeos realmente são. Serão eles idênticos... naquilo também? Com freqüência, ao ver Peeper de calções de banho, movendo-se descansadamente junto à piscina, ou preparando-se para saltar do trampolim, ou plantando bananeira no gramado - para se exibir -, ela tem pensado: "Se ele simplesmente descesse sua sunga para mim, então eu poderia ver se eles são idênticos em tudo. Claro, teria que haver algo mais do que apenas essa descida da sunga para revelar a verdade. Teria que haver realmente um pouco mais do que isso... um bocado mais." Seus calções de banho, mesmo aquele tipo de sunga que ele algumas vezes usa, não dizem nada a Alix de todo. Seria interessante descobrir. Ela está muito convicta de que poderia descobrir, e tem toda a certeza de que ele não se incomodaria.

Isso impressionaria Eric.

Esta noite, talvez, pensa ela, darei um pequeno passo nesse sentido.

- Se não necessita de mim para mais alguma coisa, senhora, acho que poderei ajudar em algo lá embaixo.

- Obrigada, Katie. Não acha que as alças deste vestido são um tanto estreitas?

- A senhora está simplesmente encantadora.

Sim, ela diz para a sua imagem solitária refletida no espelho, eu seduzirei Peeper, e começarei hoje à noite, e ele cooperará, e será única e simplesmente justo. Em sua base lógica particular, ela se acha autorizada a ter um caso com Peeper. Com Eric, ela sempre sente como se possuísse apenas metade de um par igual, como se tivesse um só brinco, ou herdasse somente metade do aparelho de porcelana Spode de sua tia Sarah. E instantaneamente o cenário sofre uma transformação, mudando de seu quarto de vestir para o terraço enluarado no verão perto da piscina, onde eles dois se acham a sós. Sorridente, ele deixa que ela desça sua sunga por toda a extensão de seu corpo dotado de músculos macios de nadador, e ela o descobre, tal como sabia que aconteceria,

num estado de ereção típica de um garanhão. Ela se senta na espreguiçadeira ao luar, ao lado dele, e o beija. "Você é tão encantadora!" sussurra ele, e cobre um de seus seios com a mão, assim como Eric, e, no entanto, de algum modo impetuosamente diferente. Alix inclina-se para à frente na direção do espelho, e a escova de cabelo de cabo de marfim cai em seu colo; ela comprime o cabo contra si mesma, justo como Peeper está pressionando-a agora com seu corpo. No espelho agora seu rosto está corado de excitação sexual, o que faz sua beleza parecer unicamente mais luminosa. Entre suas pernas, o cabo da escova é comprimido com mais persistência.

Inicia-se agora a segunda parte de sua divagação erótica, pois Eric já se juntou a eles; um dos dois a penetrou pela frente e o outro por trás, e agora ela se acha completa, preenchida por ambos. Mas, naturalmente, isso nunca aconteceria. Eric nunca participaria dessa triplicidade chocante, orgíaca - o sóbrio, trabalhador infatigável Eric e o jovial e despreocupado Peeper, as duas metades opostas daquela mesma célula cindida -, mas Alix pode imaginar a cena, de qualquer modo. Em sua imaginação, não há limites para as distâncias que os três possam percorrer.

Não, ela terá de fixar-se em Eric e Peeper separadamente.

E, naturalmente, Eric irá descobrir a respeito disso. Ela terá que confessar isso a ele, e ele reagirá à novidade com um assomo de ira homicida e ciumenta! Mas ela responsabilizará Peeper. Em meio a uma torrente de lágrimas, dirá: "Mas, querido, ele me forçou! Eu devia estar fora de mim para permitir isso, mas ele se parecia tanto com você, que eu, ao que parece, não pude resistir... Foi tudo tão repentino, eu me senti tão indefesa! Oh, querido, me perdoe... isto não acontecerá mais de novo, eu lhe prometo!"

(Mas aquilo poderia acontecer novamente. E afetaria Eric de novo.)

Mas Eric não a perdoará, jamais, e em sua ira matará Peeper, e então essa sensação conhecida de desorientação e anomia nela se instala, quando o resto do cenário sombrio acaba de desenrolar-se, uma sensação de que baratas rastejam em torno de seu coração.

Agora Peeper está morto, e Eric divorciou-se dela. Ela terá a guarda da casa, um arranjo que é quase uma norma em tais casos. Eric lhe cede a custódia das filhas, e uma substancial ajuda financeira. Mas qual será o futuro para uma mulher divorciada com duas filhas adolescentes num lugar como Burlingame... enquanto Eric se vai e desposa sei lá quem?

Mas espere. Eric estará então na prisão. Mas talvez não. Um juiz solidário - um homem, é claro - irá absolvê-lo da morte de seu irmão Peeper, ou recomendar clemência. Eric fora a parte ofendida, tratava-se de um crime passional. Insanidade temporária. Senhores do júri, eu lhes digo que o réu é um membro íntegro desta comunidade, um pilar de sua igreja, sem nenhum antecedente criminal. Aqui postado diante dos senhores acha-se um cidadão decente, temente a Deus, que foi arrastado a um ato homicida, possuído de ira, devido às ações lascivas e premeditadas de sua ex-esposa. Assim, eu recomendo...

E, desse modo, Eric estaria livre e se casaria com quem "ela" fosse, e ela, Alix, ficaria só numa grande casa em Burlingame, uma mulher divorciada com duas filhas crescidas, não sendo convidada para parte alguma, uma pária social com quem nenhum homem, exceto um "cavador de ouro" vulgar, desejaria casar-se. Ela perderia seu direito de sócia proprietária do Burlingame Country Club. Isto é também uma norma em tais casos. O clube não deseja mulheres solteiras ou divorciadas. As viúvas de membros desaparecidos são indesejáveis também. O clube é obrigado, porém, a manter essas senhoras em seu seio. Mas no caso das solteiras e divorciadas, não existe tal obrigação. O Francisca Club também iria recusá-la, porquanto durante o divórcio e o julgamento de assassinato o escândalo de seu comportamento adúltero já teria dado manchetes em todos os jornais. Ex-debutante deita-se com seu cunhado! uma colunável seduz irmão gêmeo do seu marido! E assim ela terminaria sozinha, pairando à beira da meia-idade em um lugar qualquer, sem amigas e clubes num subúrbio elegante com um clube campestre próspero de casais, enquanto ele...

Ela cogitaria de se mudar para o centro da cidade, como outras em sua situação fizeram, e onde elas encontram exatamente a mesma situação. E onde se encontram umas com as outras. E assim viajam juntas, fazem cruzeiros juntas, essas solitárias, desligadas e idosas mulheres, buscando maridos em vão. Elas têm o rosto mudado, tingem o cabelo. No fim, podem casar com seu cabeleireiro, e deixar seu namoradinho mudar-se com eles.

Mas ainda assim. Ainda assim... Talvez ela tenha um caso com Peeper, e não deixe Eric descobrir. Mas onde estaria a graça, onde estaria o doce sabor da vingança nisso?

- Ei, querida.

A voz dele vinda do quarto contíguo interrompe o devaneio lúbrico de Alix e seu desanimador resultado, e o cabo de marfim da escova de cabelos escorrega de seu colo e vai pousar no carpete branco com um ruído suave.

- Querido, você está atrasado! As pessoas convidadas estarão aqui a qualquer momento.

- Desculpe... fiquei retido por um telefonema.

- Bem, apresse-se e ponha-se bem guapo. Eu o vejo lá embaixo. A cabeça de Eric assoma no quarto de vestir. Ele está atando a

gravata. E diz:

- Eu me esqueci. Nós convidamos Melissa para esta noite?

- Querido, você sabe que concordamos em não convidá-la. Concordamos em que, mesmo ela sendo sua irmã, uma mulher solteira a mais é um estorvo - diz-lhe exatamente o que estivera dizendo a si mesma.

- Oh, sim.

- Herb Caen deseja escrever uma crônica sobre esta festa. Nós não queremos que ela seja uma zorra.

Intimamente, ela pensa que não pode suportar Melissa. E também pensa: Ele não costumava esquecer quem convidamos para as nossas festas.

Ela se levanta agora, defronte de seu espelho, ajusta as finas alças de seu novo modelo Dior, e alisa a frente do vestido. Há uma ligeira sensação de umidade entre suas pernas, mas não há tempo agora de se trocar, e, além disso, trata-se do vestido que ela dissera a Herb que iria usar nessa noite. Borrifa seu cabelo e os lóbulos das orelhas com mais algumas gotas de LAir du Temps e prepara-se para descer e apresentar-se como a anfitriã agradável, graciosa e bela, e sempre popular da Península, como Herb Caen a descreverá para os seus milhares de leitores do Chronicle.

Meia hora depois, a reunião social dos LeBarons está em plena ação.

- Queridinha, você está um encanto!

- E você também, querida!

- ... e então nós iremos passar duas semanas em Acapulco, e de lá voaremos diretamente para Cancun...

- Quantos anos tem a Ann, a propósito? Trinta e oito? Trinta e nove?

- Eu adorei seu penteado.

- Há um novo homenzinho no Magnins, que...

- E assim eu disse a ela: "Se você vai fazer isso numa tenda..."

- Quem é aquele homem parado perto do piano, conversando com Molly Tobin?

- Minha querida, não faço nenhuma idéia!

- Ele parece ligeiramente... curvado pelo vento, não acha?

- Sim, um pouco seco.

- ... Assim que chegar a Las Brisas, deveria telefonar...

- Alix, querida, como é gracioso de sua parte fazer suas duas jovens filhas ajudarem a servir os coquetéis!

- Falando sério, creio que é importante para elas aprender como conduzir uma festa como esta.

- Aquele é seu cabelo natural, ou uma peruca?

- Ela? Claro, aquela pequena vagabunda já afundou tudo, exceto o Titanic!

- Eu a adoro!

- E assim eu disse para o meu gerente de produção: "Você não pode simplesmente pôr aquele cavalo vermelho no telhado e mantê-lo sentado lá, batendo suas asas. Isso não significa nada. Isso não diz nada."

- Isso é o que Alix chama "Um Grupo".

- Humm.

- Vendi a minha a 33 5/8, mas agora...

- Seu médico lhe disse que se ela ansiasse por um cigarro deveria tomar uma bebida, e agora olhe para ela!

- É uma peruca. Seu cabelo estava curto quando eu a vi semana passada no clube.

- Afinal, quão ricos são os LeBarons?

- Você ouviu a história de como Peter Powell LeBaron conseguiu seu primeiro sobrenome...

- Eles chamam a casa da Washington Street de Palácio dos Dagos.

- ... um barril de vinho na galeria dos retratos da família...

- Não houve aquela confusão toda sobre Assaria LeBaron em seu jato?

- Simplesmente assumiu os controles, e... puf, sob a ponte!

- Ela deve estar de miolo mole.

- Dizem que se alguém a contrariar ela o mastigará e cuspirá os pedaços.

- De onde ela veio... alguém sabe?

- Bem, seu sobrenome de solteira era Latham, o que não significa nada para ninguém. Em nenhuma parte.

- Ouvi dizer que ela era uma espécie de dançarina, ou corista, e que Peter Powell LeBaron teve que se casar com ela.

- Oh, eu ouvi isso também, durante anos. Eles seguiram para a Europa em sua lua-de-mel, e voltaram para casa com..

- Melissa. Cinco meses depois.

- Oh, acho que foi mais tempo que isso... um ano, talvez, mas ainda assim... Na época, todos acharam que era bastante sintomático. Quero dizer, ficar grávida durante a lua-de-mel é uma coisa, mas alguém geralmente não volta para casa para ter o bebê? Quero dizer, para torná-lo um cidadão americano e tudo mais.

- Pobre Melissa.

- Eu, na realidade, gosto de Melissa, mas...

- Sim, sei o que você quer dizer.

- Dizem que durante anos Assaria LeBaron andou tendo um caso com Gabe Pollack. O proprietário da Gazette.

- Mas ele não é um tanto... gay, como dizem?

- Gay?

- Shhh, querida... Alix está vindo na nossa direção. Alix, querida, como você está linda!

E assim por diante. Etcétera.

O moço com o tal cabelo soprado pelo vento aproximara-se de Eric com a mão estendida.

- Meu anfitrião - diz ele então. - Oi, sou Archie McPherson.

- Sou Eric LeBaron. Prazer em conhecê-lo, Archie.

- Gentileza a sua e de sua esposa em me incluírem na lista de seus convidados. Vocês têm uma bela casa, e esta é uma festa excelente. - Uma pausa e então: - Na realidade, conheci você e seu irmão em Yale.

Eric observa o rosto do outro, tentando relacioná-lo com um outro rosto do passado.

- Nós nos conhecemos em New Haven? Sinto muito, mas...

- Oh, você não me conhecia - retruca Archie. - Mas eu o conhecia. Todos conhecem os gêmeos LeBaron. Vocês associavam-se ao grupo seleto de Choate e Hotchkiss. Eram da fraternidade Zeta Psi e Skull and Bones. Eu era apenas um rapaz com üma bolsa de estudos de um ginásio público de Willimantic, Connecticut, assim não andava com o grupo da alta. Vocês e seus amigos costumavam passar direto por nós sem nos olhar quando cruzávamos uns pelos outros no pátio.

- Entendo - diz Eric, desconcertado e aborrecido. - Você veio com os Tobins esta noite, não foi?

- Exato.

- Bem, você está circulando com o grupo "certo" agora.

E Eric tenta manter sua entonação agradável, mas de certo modo o comentário soa rude, irritado. Só que é muito tarde para se desdizer agora, e assim, sorrindo ligeiramente, ele se afasta de Archie McPherson.

- Peeper, querido - está dizendo Alix. - Você parece um pouco tristonho esta noite. Retraído.

- Tristonho? Retraído? Pelo contrário, AqUi, eu me sinto ótimo. Boa festa esta.

- Veio sozinho, ou trouxe uma amiga?

- Estou sozinho esta noite. Exatamente agora, estou entre parceiros de dança.

- Ah, isso é triste. Sabe, algumas vezes me preocupo com você, Peeper. Com as moças, você parece ir de um lado para outro.

- Talvez seja esse o modo como eu gosto, Allie.

- Mas não gostaria de, algum dia, ter um relacionamento amoroso realmente duradouro com alguém especial?

- Casar-me, é o que quer dizer?

- Bem, isso, ou... Ele pisca para ela.

- Eu diria, por que comprar uma vaquinha quando o leite é tão barato?

- Peeper, não seja vulgar!

- É a minha formação de imigrante italiano começando a se revelar, Allie?

- Não, mas eu apenas dizia que... não há ocasiões em que você se acha só à noite, em seu apartamento em Telegraph Hill, e aí se sente um pouco... bem, um pouco solitário e negligenciado, e gostaria então de...

- Tem alguém especial em mente, Allie?

- Não, claro que não, mas...

Mas um convidado de saída interrompe o diálogo.

- Alix, foi uma reunião absolutamente adorável - diz a pessoa de saída. - Você sempre faz as coisas de um modo soberbo...

E quando Alix volta, após levar o convidado à porta, Peeper já se afastou.

Encontrando seu irmão, Peeper leva-o até um canto mais sossegado da sala de estar. E diz:

- Tive uma conversinha com mamãe hoje.

- É mesmo, Peep? Sobre o quê?

- Bem, eu fiquei realmente encantado. Parece que ela finalmente irá me dar um posto de fato influente na empresa... não simplesmente o controle daquele maldito rancho de Sonoma.

- Verdade? O que ela lhe ofereceu?

- Ela falou em fazer de mim co-diretor de marketing, junto com você. Isto não será o fino? Nós controlaremos as questões de mercado juntos... como uma equipe. Não é uma idéia legal, Facsi?

Algumas vezes, de modo brincalhão, os dois irmãos chamam um ao outro de "Facsi", abreviatura de "fac-símile".

Mas Eric não se acha de bom humor agora. Está amedrontado com aquela notícia, e dá um pequeno passo para trás. Está amedrontado, estarrecido, e mais magoado do que jamais imaginara poder sentir-se. Magoado e traído. O que ela estava pretendendo era uma espécie de corte de sua própria função de diretor pela metade. Pior era o fato de que não lhe tivesse feito uma simples menção nem lhe dado uma única indicação dessa mudança proposta na direção de marketing da empresa. Ela fizera isso agindo pelas suas costas, e propusera aquilo ao seu irmão gêmeo sem ao menos uma consulta ao homem a quem supostamente competia a área de marketing da Baronet. A cabeça de Eric fica de repente tão quente devido à ira e ao agravo e ressentimento, que ele não consegue falar, e ainda pior é ter de olhar para o rosto feliz, emocionado e expectante de seu irmão gêmeo. Esta cavalgadura está parada aí esperando que eu lhe dê os parabéns, pensa Eric. Este grande asno!

- Não será uma boa, Facsi? - diz Peeper. - O melhor da coisa e que não terei mais aquele maldito compromisso de ir diariamente a Sonoma. Estarei trabalhando no centro da cidade com você!

Eric ainda não consegue falar. Como é possível que seu irmão gêmeo não consegue ser sensível e inteligente o bastante para entender como ele se sente agora?

Do outro lado da sala, Alix percebe a expressão pasma e magoada de seu marido e, tocando na manga do paletó de seu pai, pergunta:

- Papai, você acha que Eric está sendo infiel a mim?

- Ora essa, Botão-de-Ouro, o que a leva á pensar uma coisa como essa? - retruca Harry Tillinghast.

- Eu não sei. É apenas uma impressão. Chame-a de intuição feminina, ou o que seja.

- Ele não tem... tratado bem você, querida?

- Não se trata disso. É apenas... apenas o modo como ele tem agido ultimamente.

- Bem, querida. Não creio que ele a esteja enganando. Se viesse um dia a fazê-lo, precisaria mandar examinar sua cabeça. - Então acaba dizendo: - Mas eu sei que há uma outra mulher na vida dele.

- Oh? Quem?

- Sua mãe - diz Harry Tillinghast simplesmente.

- Oh - murmura ela, desapontada. - Oh, isso.

- O que o Eric precisa mais do que tudo agora, nessa etapa particular de sua vida, é ter liberdade de ação. Ele necessita tomar as rédeas daquela empresa... dirigi-la. - Aperta o braço de sua filha. - E, Botão-de-Ouro, seu velho pai irá ajudá-lo a obter isso. Espere só e verá.

Mais convidados estão de partida agora, e há mais agradecimentos e "verei vocês no clube". Imóvel ao lado de Alix, compartilhando dos deveres de anfitriões de aceitar agradecimentos pela sua hospitalidade, Eric diz a ela, quase distraidamente:

- A propósito, terei que ir a Nova York amanhã.

- É mesmo? Por quê?

- Negócios.

- Posso ir com você? Ele dá de ombros.

- Claro, se você quiser. Será uma demora de apenas dois dias. Estarei ocupado em reuniões a maior parte do tempo, mas você pode fazer compras, suponho, ou...

- Bem - diz ela, quase com petulância -, na verdade eu não

posso ir com você. Sally Carrington vai oferecer um almoço com bridge no clube e eu já havia aceitado seu convite há um mês.

- Bom, então...

- Você não liga a mínima se eu for ou não!

Olhando tristemente, não para ela, mas para algum ponto à distância sobre o ombro esquerdo dela, Eric diz:

- Ora, querida;..

Por volta de nove horas, todos os convidados já se foram, ou quase todos. Alix LeBaron subira a escada sem dizer "boa noite", a empregada se achava na cozinha fazendo a limpeza, e as duas mocinhas estavam na sala de estudos vendo televisão. Harry Tillinghast, que reside logo adiante no mesmo bairro - em Burlingame, de fato -, continuava ali, e foi encontrar seu genro na biblioteca, sozinho, meio curvado numa das grandes poltronas de couro, bebendo um conhaque.

- Importa-se se eu me juntar a você num último gole da noite, Eric?

- Claro que não, Pop. - E indica o bar.

Harry Tillinghast acerca-se do móvel-bar, enche um copo de gelo, despeja uma generosa quantidade de uísque e depois acrescenta soda de um sifão de prata. Em seguida, senta-se numa poltrona oposta à do seu genro. Diz então:

- Bem, filho, essa foi uma reunião realmente boa.

- Obrigado, pai. Fiquei contente que pudesse estar aqui.

- Achei que a minha pequena Botão-de-Ouro estava linda, e que os dois anjinhos estão se transformando em pequenas damas completas.

- Sim.

- Você tem sido um bom pai, Eric, e um bom marido para a minha menina. Tem sido um bom casamento, não? Tudo vai... bem entre vocês, não é mesmo?

- Espero que sim.

- Bom. Bom. Fico feliz em ouvir isso. - Os dois homens se mantêm sentados, calados durante alguns momentos. Então... - Como vão as coisas na Baronet? - pergunta Harry.

- Os negócios estão... bem.

- Ótimo. Soube de fonte confidencial que a Pepsi-Cola está atrás da Baronet novamente.

Eric dá de ombros.

- Estão de olho em nós há anos.

- Também acho - diz Harry, e dá uma risadinha. - Agora que sou um de seus acionistas, eles têm me lançado uns balões de ensaio... Eu lhes disse que era apenas uma figura insignificante na Baronet, muito insignificante. - Faz uma pausa antes de acrescentar: - Eu suponho que vocês não pensem em vender a Baronet.

- De modo algum.

Harry Tillinghast retira um charuto comprido do bolso do paletó e cuidadosamente apara a ponta com um cortador de charutos dourado, então leva-o à boca e o acende com um isqueiro também dourado. O brilho de ouro está em tudo na pessoa de Harry: nas suas abotoaduras, no grande anel com sinete, até mesmo na fivela do cinto.

- Assaria não admitiria isso, imagino - diz ele enquanto fuma.

- É verdade.

- Como estão se dando atualmente você e sua mãe, Eric?

- Oh, quase da mesma forma como de costume. Nós temos nossos altos e baixos.

"Ela agora está tentando despojar-me de metade das minhas responsabilidades como diretor de marketing", pensa ele. Mas não consegue reunir ânimo para contar isso a seu sogro. O agravo está muito recente, a humilhação, recém-sofrida.

- Não devia deixá-la pô-lo de lado, rapaz. Eu conheço sua mãe, e sei que ela tem tendência a empurrar as pessoas em seu caminho.

Eric se mantém calado.

Dando uma baforada, Harry diz:

- Sabe, estive pensando muito ultimamente na Baronet... no futuro da companhia. Isso não se deve simplesmente ao fato de eu ter me convertido recentemente num acionista. Tenho pensado no seu futuro, Eric. O que acontecerá à Baronet quando sua mãe se for? Ela não é moça, Eric, e nenhum de nós já é mais jovem.

- Mamãe é imortal - diz Eric, sentindo-se um tanto bêbado.

- Bem, ninguém é imortal, rapaz. E quando sua mãe se for, com todas essas ações que ela possui, seu espólio poderá ficar sob a ameaça de algumas taxas muito pesadas. Muito pesadas. E que seus herdeiros terão que pagar. Então, você poderá perder a firma simplesmente assim - e estala os dedos significativamente.

- Mamãe diz que se algum dia vender a companhia, será unicamente por dinheiro à vista. E ela diz que não há dinheiro suficiente no mundo para fazê-la vender a Baronet.

- É uma grande tolice da parte dela, não? Grande mesmo. Todo o dinheiro que ela tem em caixa será simplesmente devorado pelos impostos... você sabe disso.

- Tente explicar isso a ela.

- Qualquer mulher na sua posição, bem aconselhada, venderia a Baronet por ações. À Pepsi, ou a qualquer outra. Se ela fosse bem assessorada.

- Ninguém dá conselhos à minha mãe.

- Ou se fosse forçada a vender por uma maioria de outros acionistas.

- Ah! De modo algum!

- Ora, não seja tão derrotista, Eric. Há sempre um meio... eis o meu lema. Onde há uma vontade, há um jeito.

- Não com a minha mãe.

- Não tenha tanta certeza, Eric - diz Harry. Dá uma profunda tragada e depois solta no ar uma série de anéis de fumaça perfeitamente formados. Fixando o olhar no teto e nos anéis se desfazendo, acrescenta: - O que me diria, Eric, se eu lhe revelasse que estou interessado em assumir o controle da Baronet?

- Eu diria que estava louco.

- Talvez sim, talvez não. É uma companhia extremamente boa, e o que estou dizendo é que eu - e com "eu" quero dizer Kern-McKittrick - estou interessado na tomada de controle da Baronet. E com esse "eu" também quero dizer você e eu. Necessitarei da sua ajuda.

- Pop, esse não é exatamente o modo de agir.

- Porque meu objetivo ao fazer isso seria colocar você no lugar do piloto. Só você. A Baronet se tornaria uma divisão da Kern-McKittrick, e você estaria à frente dela. Absoluto. Você estaria no leme, e ela fora do baralho. O que me diz disso?

Eric sacode a cabeça, dizendo:

- Não sei. Simplesmente não sei.

- Ela, você sabe, não é a acionista majoritária. Essa maioria, quem a compõe é você, seu irmão, sua irmã, sua tia Joanna, seu primo Lance... e eu. Contando com votos suficientes de nosso lado, poderíamos desalojá-la. E você assumiria.

Eric sacode a cabeça novamente.

- Simplesmente não creio que possamos algum dia realizar isso.

- Observe a coisa por este prisma, filho. Sua mãe detém 35 por cento das ações circulantes, correto?

- Sim.

- E sua tia Joanna possui os outros 35 por cento, correto?

- Correto.

- E, juntos, você e eu detemos cinco por cento. Melissa conta com cinco por cento também, e Peeper com outros cinco. Peeper e Melissa se juntariam a nós?

- Eu não contaria muito com Peeper quanto a esse ponto.

- Então temos ainda seu primo Lance. De algum modo, ele conta com quinze por cento, segundo o testamento de seu pai.

- O testamento tinha em mira ser justo: quinze por cento para seus filhos, e quinze por cento para os filhos de sua irmã. O que ocorreu foi que Joanna teve somente um filho.

- Eu entendo isso. A pergunta que lhe faço é esta: Se houvesse uma votação, Lance votaria com a sua mãe, ou contra ela?

- Com ela, imagino.

- Sim, seria o meu palpite também. Ele nunca demonstrou qualquer interesse na Baronet além de recolher dividendos, hem?

- Já se vão no mínimo cinco anos desde a sua última vinda à Califórnia.

- Como vê, Joanna é a nossa chave do plano. Com seu voto e o do filho, mais o seu e o meu, detemos uma nítida maioria: 55 por cento.

Eric pondera acerca do assunto por um momento.

- Sim - diz por fim -, mas Joanna, além de ser minha tia, também é a mais antiga e mais querida amiga de minha mãe.

- De certo modo, filho, quando muito dinheiro está em jogo, a amizade passa a não contar muito... mesmo tratando-se da mais antiga e mais querida. Parece cínico dizer isso, mas é o que tenho verificado nos negócios. O dinheiro fala, e quanto mais substancial, mais alto.

- Mas suponha que minha mãe ameaçasse retirar nossa conta de publicidade da agência de Joanna se ela não concordasse em ficar ao lado dela? Como isso repercutiria nos jornais? ."LeBaron e Murdock perdem a conta publicitária da família." Seria muito humilhante.

- Se Joanna se preocupa com isso, deve saber que sua mãe não é então essa velha e querida amiga.

- Não, mas isso é a espécie de coisa que mamãe poderia...

- Então tudo que precisamos é firmar essa parte do trato. Se Joanna ficar do nosso lado, concordamos em manter a conta com a sua agência... digamos, por vinte, vinte e cinco anos, como ela queira. E adoçaremos o trato ao concordarmos em pagar-lhe sua comissão por inteiro, o que não acontece no momento.

Eric observa o rosto de seu sogro. E diz:

- Sabe, estou começando a crer que isso pode dar certo.

- Há mais: eu soube que esta manhã sua mãe desaprovou uma nova campanha promocional que o pessoal da Joanna planejara. E isso não é um ato muito elegante, ou muito amistoso. Joanna não ficará contente, hem?

- Como soube disso? - pergunta Eric, lentamente.

- Peeper comentou o fato esta noite, aqui. Ele e sua mãe tiveram uma espécie de reunião esta tarde.

Peeper! Aquele grande idiota! Quanto Peeper terá contado ao meu sogro? Certamente tudo, pensa Eric. Mas diz:

- Aconteceu que essa campanha publicitária é uma merda! Harry estende as mãos, dizendo:

- Não se trata de que seja isto ou aquilo. O importante é que Joanna não ficará nada contente quando souber acerca da reunião desta manhã, certo? Nada contente com o modo como a sua velha e cara amiga a está tratando. Segundo Peeper, Assaria comentou que Joanna devia estar perdendo o juízo, isto justamente na presença do próprio executivo da contabilidade e da equipe de criação de Joanna! Peeper!

- Caramba, se isso fizer parte do relatório da sua equipe - o que pode muito bem acontecer, pois deduzo que os rapazes ficaram muito ressentidos -, como irá se sentir Joanna a respeito de sua velha e querida amiga? - Harry inclina-se para Eric. - Joanna é o nosso trunfo, e este pode ser o momento exato, rapaz, de fazer a Joanna uma oferta generosa das ações da Kern-McKittrick se ela nos ajudar a votar pela saída de Assaria LeBaron. Entenda que o problema com a sua mãe está em que ela não mantém suas promessas. Creio que você tem tido algumas provas disso.

De repente Eric se põe a rir. Acaba de lembrar-se de Fairy Ferris, da lista de recados telefônicos. E diz:

- Sua lista de recados.

- O que é isso?

- Após a morte de papai, quando Peeper e eu éramos ainda muito novos, mamãe nos disse que iria ter que ser, ao mesmo tempo, mãe e pai para nós a partir de então. E depois fomos enviados para o colégio, e dificilmente ouvíamos falar dela. Uma vez por mês chegava nosso cheque de mesada, com um bilhete datilografado pela sua secretária. Oh, ela telefonava para nós duas vezes por semana, e Peeper e eu recebíamos um recado de que nossa mãe telefonara. Mas metade do tempo esses telefonemas aconteciam durante as aulas, ou após todos se recolherem, ou no meio de um jogo de futebol, ou alguma outra maldita coisa como essa, assim não conseguíamos falar com ela. Recebíamos o recado, e nos era dito que ela estava numa conferência e que seríamos colocados em sua lista de pessoas a serem conectadas. Ela nunca nos escrevia cartas.

"Ora, costumávamos perguntar a nós mesmos, onde está essa coisa de mãe-e-pai? E então, na metade de nosso primeiro ano em Choate, Peeper e eu tivemos um grande problema - quando se está com treze anos, qualquer problema parece grande. Ficamos apavorados com a perspectiva de sermos expulsos do colégio, e assim eu tentei falar com minha mãe - tratava-se de um cara que todos chamávamos Fairy Ferris, que estava tentando uma espécie de chantagem conosco, e... - Eric vê seu sogro conter um bocejo e olha fixamente para o seu copo vazio. - Bem, trata-se de uma longa história, e muito maçante. Mas quando tentei me comunicar com minha mãe, sua secretária não me atendeu, ainda que eu dissesse que era uma emergência. Disse que tudo que podia fazer era incluir meu nome na lista de recados telefônicos de mamãe. Havia cerca de uns cem nomes à frente do meu na lista, assim decorreram perto de oito horas antes que ela me ligasse, e aí então... bem, não importa.

- Bem, eu nunca entendi sua mãe - diz Harry. - Ela diz uma coisa e depois faz outra. Ela gosta de manter as coisas agitadas. Talvez pense que, ao mantê-las assim, consiga que todos trabalhem mais. Talvez creia que se as pessoas não sabem o que se espera delas de um dia para o outro, isto as manterá alerta e elas não se acomodarão numa rotina. Esse novo projeto de fazer de Peeper co-diretor de marketing é um exemplo.

- Então Peeper contou isso a você também.

- O que isso acarretará senão agitar as coisas entre você e seu irmão? Eu digo que não é este o modo de conduzir um negócio. Tudo que ela consegue é criar um divisionismo e um grupo de executivos infelizes na equipe.

- Sim - diz Eric com um suspiro. - É isso mesmo.

- Assim, o que você está tentando me dizer com essa história sobre a lista, seja lá como se chame, é que está farto de ser tratado como um menino de treze anos, certo?

- Creio que sim - diz ele, mas esse não era realmente o ponto.

- Bem, eu concordo. Temos que lhe permitir consumar todo o seu potencial, rapaz. E, como disse, Joanna é nosso trunfo. E não estou dizendo que isso irá ser fácil. Pode ser muito difícil. Temos um caminho duro para cobrir, não há como negar isso. Não haverá almoço grátis, como dizem por aí, e seria uma boa idéia trazer Peeper e Melissa para o nosso lado também...

- Esqueça Peeper!

- Bem, então Melissa, pelo menos. E com a Kern-McKittrick lhe dando cobertura, meu rapaz, eu lhe digo que a coisa pode ser feita! - Com a mão livre, ele a estende e calca o joelho de Eric com a palma firmemente. - Filho, eu construí uma vida, uma carreira, edifiquei um ramo de negócios que vale mais de oitocentos milhões de dólares, assisti à minha transformação num homem rico, e fiz tudo isso munido de apenas uma filosofia básica: nada é impossível. Tudo épossível. Se você deseja algo com bastante empenho, com energia bastante, o impossível é sempre possível. Tudo que tenho feito na vida se baseou nessa crença. Assim... você está comigo, filho?

Eric olha para ele, e seus olhos se encontram e se unem.

- Acontece que irei jantar amanhã com Joanna, em Nova York.

- Malhe enquanto o ferro está quente. Não lhe diga que sua campanha publicitária era uma droga, mesmo que fosse. Diga-lhe que era inteligente, e como sua mãe a torpedeou. - A entonação de Harry, agora, torna-se mais sentimental, e seus olhos ficam umedecidos. - Eu desejo isso para a minha menina - diz Harry Tillinghast. - E o desejo para minhas bonitas netas, e para os seus netos, e os delas, e também o quero para você, filho. Para você.

 

Na bolo de noiva na Washington Street, no alto das Pacific Heights, são agora dez horas da noite, e Assaria LeBaron e sua filha Melissa - que ficara para jantar por sugestão de sua mãe - estão tomando também o último drinque da noite, na sala de estar da ala norte que dá vista para a baía e a Golden Gate. A neblina já se dissipou completamente agora, e os cimos das torres da ponte acham-se totalmente visíveis; o amanhã pode ser de claro cristal, embora não se possa ter certeza. Com freqüência, nas horas que antecedem de imediato o alvorecer, a cerração virá varrer tudo lá do oceano de novo, e ao amanhecer a cidade estará novamente amortalhada.

No todo, a noite decorrera bem, segundo o modo de pensar de Sari - com risos frouxos e íntima, o modo como as duas tão amiúde costumavam estar juntas. A noite fora uma viagem sentimental pela terra da memória, com Sari como guia, concentrando-se, é claro, unicamente nas lembranças felizes. Você se lembra...?, tinham as duas se perguntado. Você se lembra de quando era uma garotinha, Melissa, cinco ou seis anos, e estávamos passando o verão em Bitterroot? Você entrou correndo em casa e disse: "Mãe, há uma verdadeira festa de dentes-de-leão no quintal da frente!" Eu disse isso mesmo? Sim, você disse, e eu pensei: que magnífica expressão, uma festa de dentes-de-leão! Que imaginação maravilhosa Melissa tem! Não, eu não me lembro disso, mamãe, mas recordo o dia, em Bitterroot, em que as abelhas enxamearam em seu cabelo. Oh, sim, sim, me lembro disso nitidamente. Eu tinha estado nadando no lago, e deixara meus cabelos secarem ao sol. Primeiro veio uma abelha, e eu comecei a escová-lo, e então vieram outras mais, e aí eu vi a colméia toda vindo, e notei que tentavam se fixar ali, descendo do meu cabelo para as costas. E nós estávamos tão assustadas, mamãe... e me lembro que gritei. Pensamos que íamos ser ferroadas até a morte! Sim, me lembro que você gritou, e me recordo de dizer-lhe para calar-se, que não havia qualquer perigo. Entenda, mesmo então eu conhecia minhas abelhas. Num enxame as abelhas quase nunca mordem. Eu sabia que tudo que tinha a fazer era ficar sentada muito quieta, sem fazer movimentos bruscos, e aguardar até que as abelhas decidissem onde localizar sua nova colméia. Após uns vinte minutos, elas começaram a voar de novo, e logo todas tinham ido embora, e eu não fora picada nem uma vez. Eu estava tão aterrada, mãe! Não, eu... sentia uma sensação de muita paz, realmente, quase como uma experiência religiosa - pelo menos a coisa mais próxima disso que eu jamais sentira.

O lago. Lembra-se daquela vez em que papai me lançou do ancoradouro nas águas profundas do lago, achando que isso me ensinaria a nadar sozinha? Não! não me lembro de tal coisa! Creio que senti medo de lhe contar, mamãe, medo de que você pensasse ser apenas outra de minhas loucas fantasias. Mas aconteceu. Eu estava sentada na borda do ancoradouro, batendo com os pés na água, e ele de repente se abaixou, me ergueu pelas axilas e me jogou nas águas profundas. Eu me lembro de afundar lentamente, e pensando comigo mesma: "Bem, eis o que é afogar-se." Eu estava me afogando então, é isso. Quando a água se tornou mais escura à minha volta, eu não fiz nenhum esforço para me salvar, e simplesmente me deixei afundar como uma pedra. Quer dizer que não agitou suas pernas, não moveu os braços...? Não, e me lembro do primeiro bocado de água que engoli. Melissa! Porque, entenda, eu costumava pensar que papai desejava me matar. Pensei então: Bem, meu pai quer me ver afogada, e agora está me afogando, assim eu me afogarei.

Melissa... que pensamento tolo. Que absurdo!

Ele nunca me amou, você sabe. Eu me lembro de ter ficado muito surpresa quando senti os braços de alguém em volta de meu corpo, me puxando para a tona, e percebi então que ele saltara no lago para me salvar.

(Ou, em seu jeito perverso de ser, você desejava assustar seu pai, castigá-lo, fazendo-o pensar que quase a afogara, pensa Sari, mas não o diz.)

Mudam de assunto. Você se lembra dos maravilhosos piqueniques que costumávamos fazer, Melissa? Recorda o dia em que seu pai matou aquela aranha? As abelhas, eu entendo, mas aranhas sempre me assustaram. De repente, enquanto desfrutávamos do nosso piquenique, aquela enorme aranha veio se acercando de mim, rastejando pela relva, e dessa vez quem gritou fui eu. Seu pai simplesmente pegou seu cinturão em que sempre carregava a pistola, e matou a aranha com um tiro! Por que ele sempre carregava uma pistola, mãe? Bem, lembre-se de que estamos falando sobre a década de 30, Melissa. Havia uma série de agitações trabalhistas naquele tempo, problemas com os trabalhadores do campo. Ele pensou ser uma boa idéia levar uma arma no cinto, apenas para deixar os agitadores saberem que ele a tinha. Pelo que sei, nunca a usou, exceto naquela ocasião, para matar a aranha...

(Exceto... exceto uma outra vez. Mas Sari muda de assunto.)

Você se lembra...?

Oh, oh, oh. Como nos divertimos.

Agora, após o último drinque da noite, Melissa está mostrando para sua mãe instantâneos tirados em sua última viagem a Paris, aonde ela fora durante o Natal para visitar galerias de arte e museus, mas Sari está prestando uma atenção parcial às fotos. Aquele tinha sido um dia atarefado, e embora ela tivesse feito muita coisa, havia ainda muito mais por ser executado. À luz suave do abajur, com seus cabelos emoldurando-lhe o rosto, os anos que Melissa na realidade tem parecem apagar-se, pelo menos muitos deles, e a sua beleza juvenil torna-se visível. Os mesmos ossos faciais delicados ali estão, e Melissa ainda usa um tipo de penteado juvenil. Quando ela chegou a ser uma beldade? Ela sempre foi bonita, seu tolo. Trata-se apenas...

Segundo o modo de pensar de Sari, Melissa é muito magra. Mas é assim que ela sempre foi, orgulhosa de sua figura esguia, de seus sapatos tamanho 37, que, com salto alto, realçam suas pernas delgadas e longas. Melissa está sempre se pesando e medindo, na melhor das hipóteses para livrar-se de qualquer pesinho extra, qualquer grama errante, no minuto em que isso aparece em sua balança Fairbanks. Aceitando ver as fotos, quando Melissa vai exibindo-as e passando-as às suas mãos, uma a uma, Sari faz os comentários pro forma adequados:

- Ah, o Palácio do Louvre... Estive em Paris durante anos. Devo voltar... Ah, a Torre Eiffel... e Versailles... adoráveis... oh, veja, as luzes natalinas nos castanheiros ao longo dos Champs-Elysées... a fonte na Concorde... encantadora... O Palácio da Ópera... oh, lembro-me desses lugares todos tão bem, Melissa! Mas, onde é isto?

- Vincennes.

- Oh, claro, claro.

- E esta sou eu, defronte da Plaza Athenée. Pedi ao porteiro do hotel para bater a foto.

- Muito bonita... E agora, quem é esse aí? - Uma nova imagem desconhecida para Sari.

- Meu instrutor de esquiação.

- Muito bem-apessoado. Mas... instrutor de esqui? Onde você esquiou em Paris?

- Isto não é Paris. A foto foi tirada em Saint Moritz. Sari hesita.

- Saint Moritz? Você não me disse que iria a Saint Moritz, Melissa.

Melissa olha de relance para a mãe.

- Não disse?

- Com toda certeza, não.

- Bem. Eu fui. Ficava tão próximo, assim eu pensei cá comigo, por que não? - E estende outra foto para a sua mãe.

- Outro instantâneo do instrutor de esqui bonitão. Devo detectar um romance aqui, Missy?

Melissa ri.

- Não, mas ele me ajudou a aperfeiçoar meus giros paralelos. Pegando outra fotografia, Sari pergunta:

- E quem é esse senhor?

- Andréa Badrutt. É o dono do Palace Hotel. Sari olha fixamente a foto, dizendo:

- Andréa Badrutt. Era simplesmente um menino quando o vi pela primeira vez. Agora é um velho.

- Sim, e completamente manco, sinto dizer-lhe.

- Andréa Badrutt - repete Sari. - Então você se hospedou no Palace.

- Sim.

- E não me disse uma palavra sobre isso. Acho realmente curioso...

- Creio que simplesmente me esqueci. Eu quis retornar e rever o lugar onde eu nasci.

- É muito... estranho. Com que propósito?

- Não vejo nada de estranho em uma pessoa querer rever o lugar onde nasceu.

- Ainda assim acho estranho. Eu nunca desejaria voltar a rever o lugar onde eu nasci.

- Bem - retruca Melissa cautelosamente -, creio que sou uma pessoa que sempre faz coisas "esquisitas", não é assim, mamãe?

- Oh, não - diz Sari rapidamente. - Esquisitas não. Fora do convencional, talvez. E imaginativas. "Uma festa de dentes-de-leão"... nunca esquecerei essa imagem. Mas acho que é estranho você não ter mencionado para mim essa parte de seus planos de viagem. E... mas não importa. - Muda de assunto. - Falando em homens jovens e atraentes, você tem visto ultimamente aquele simpático Archie McPherson?

- Não nestes últimos dias.

- Ele é tão atraente. E acho que gosta de você. Já esteve na cama com ele?

- Mamãe! Que pergunta!

- Bem, você me conhece - retruca Sari. - Eu dou sempre nome aos bois. Sou uma Millie Meticulosamente Moderna, como eles dizem. Eu não ligaria a mínima - a mínima mesmo - se você se deitasse com um homem atraente, desde que ele não fosse um oportunista de olho no seu dinheiro, ou coisa parecida. E o Archie não é assim, posso jurar...

- Ele é da mesma idade de Eric e Peeper, por amor de Deus, mãe.

- Bem, eu sempre pensei que você sentisse atração por homens mais jovens. Não que haja algum mal nisso. Não há nada de errado em sentir atração por homens mais moços, embora no meu caso eu sempre me sentisse atraída por homens um tanto mais velhos. Diferença de gostos, eis tudo.

- Bem, eu não fui para a cama com ele! Nova mudança de assunto.

- A propósito, fiquei muito triste ao ler a respeito do que aconteceu durante o seu concerto de rock.

- Meu concerto de rock?

- Não foi você quem fez os acertos?

- Sim, mas como soube disso, mamãe?

- Alguém - me esqueci quem foi - disse que fora você a pessoa que desejara apresentar o conjunto no Odeon. Seja como for, o que aconteceu foi muito ruim.

- Isso me deixou doente - diz Melissa. Levanta-se e se acerca do bar, derramando mais uísque em seu copo. Essa nova dose é um mau indício, pois Sari sabe que Melissa tem procurado controlar seu hábito de beber, mas nada há a ser feito sobre isso. - Estou simplesmente aborrecidíssima com isso - continua ela, a cabeça abaixada. - E agora aquele conselho diretor idiota votou a favor de não pagar ao grupo pelo show. Pois "apresentaram um espetáculo ofensivo". Não foi culpa deles que a serpente tivesse dado aquela mordida!

- É muito embaraçoso para você, sem dúvida.

- Para mim não é embaraçoso... mas para eles é algo desastroso! Virem de longe para tocar aqui e não serem pagos.

- Oh, mas calculo que eles tenham bastante dinheiro. Todos esses astros do rock faturam bem. Têm até mansões de um milhão de dólares em Beverly Hills.

- Não esse grupo. São jovens, estão apenas começando. Têm se apresentado em pequenas cidades sem importância como Stockton e Modesto. Essa seria sua primeira grande oportunidade, seu primeiro compromisso importante. E agora... nada de dinheiro.

- Bem, afinal de contas, um número com serpentes...

- A platéia gostou deles até aquele trecho! O que aconteceu foi apenas um acidente. O pessoal estava aplaudindo-os até acontecer aquilo, mãe! Foi maravilhoso até aquele ponto!

- Bem, se eu fosse você, não me afligiria com isso, Missy. - Muda de assunto. - Já vimos todas as fotos de sua viagem?

- O jovem crooner do conjunto, que não passa de um rapazinho, aquele que foi picado pela serpente, telefonou-me esta tarde. Praticamente em prantos. Fiquei com pena dele. Combinei encontrar-me com eles amanhã, para ver o que pode ser providenciado. Eles tiveram despesas para virem aqui, e agora estão sem dinheiro para se manterem. Eu posso resolver pagar-lhes com o meu próprio dinheiro.

- Ora, Missy, eu não creio que isso seja necessário.

- Mas será que não compreende? Eu me sinto responsável. Moralmente responsável. A idéia foi minha... não entende?

- Bem, acho isso bastante generoso de sua parte - diz Sari gentilmente. - Ainda se fosse eu... mas não interessa.

- São somente cinco mil dólares. Mas isso significa tudo neste mundo agora para esses pobres rapazes.

- Bem, o dinheiro é seu para fazer com ele o que deseje. Mas talvez haja uma moral a ser aprendida em tudo isso.

- Moral? Que moral?

- Bem - começa a dizer Sari cautelosamente -, gostaria que algumas vezes você me consultasse antes de levar adiante um desses seus projetos, Missy, antes de ficar tão... envolvida. Se você fizesse isso, eu poderia...

Melissa ainda está parada perto do bar, sorvendo sua bebida aos golinhos e fixando os olhos no copo, alternadamente. Então diz vagarosamente:

- Fazer uma consulta? Por que deveria consultar você, mamãe? Estou com 57 anos. Por que teria que consultá-la a respeito de tudo?

- Oh, simplesmente porque... porque... eu já tenho alguns anos a mais de experiência a serviço da comunidade, Missy, e... ah... alguns anos a mais de experiência da vida. E porque eu me preocupo profundamente com você, Melissa, e detesto vê-la envolvida nessas situações embaraçosas.

- Embaraçosas? Eu não estou em apuros de espécie alguma! À distância, ouve-se o ruído do telefone.

- Quem poderia estar ligando a esta hora? - diz Sari. E a seguir: - Bem, eu disse tudo que tinha para dizer, Missy. Só quero que saiba que estarei sempre aqui quando precisar de mim, e se crê não gostar de minha opinião ou conselho, vai acabar concluindo que as opiniões e sugestões desta velha senhora não são assim ruins. É tudo. Não faça essa cara tão zangada! Lembre-se do que seu pai costumava dizer quando você era pequena? "Tome cuidado, ou seu rosto pode congelar com essa expressão."

- Meu pai nunca me disse isso.

- Seja como for, creio que é hora de nós duas irmos dormir. Mas Thomas aparece à porta de chinelos Pullman, dizendo:

- É o sr. Eric, para a srta. Melissa.

- Eric! - grita Sari. - Como ele soube que você estava aqui?

- Provavelmente ele ligou lá para baixo primeiro, e a minha governanta lhe disse que eu estava aqui.

- Penso ter dado ordens para que não se fizessem ligações para

cá!

- Sinto muito, senhora - diz Thomas. - Mas a senhora não se referiu a telefonemas para a srta. Melissa.

Melissa lança um olhar desafiante a Sari.

- Atenderei daqui mesmo - diz a Thomas, e caminha até o fundo do aposento, onde está o telefone, sobre uma mesinha.

E Sari gira sua cadeira de rodas na direção oposta, fingindo desembaralhar o maço de fotografias em seu colo, simulando cuidadosamente não estar prestando atenção à conversa.

- Eric - ela ouve Melissa dizer. - Bem, amanhã à tarde estarei ocupada... Oh, entendo... Bom, isso seria ótimo. Verei você então. Boa noite, Eric.

Após um momento, numa voz aparentemente desinteressada, Sari pergunta:

- Bem, o que Eric desejava a esta hora tão tardia?

- Ele quer almoçar comigo amanhã antes de viajar a Nova York. Sari gira sua cadeira completamente para fitar a filha.

- Nova York! Não estou a par de nenhuma ida dele a Nova York! Não autorizei nenhuma viagem a Nova York para o Eric! Para que ele irá a Nova York?

- Ele não disse, mamãe. Negócios, suponho.

- Ele está tramando algo... eu sabia! Sabia todo o tempo. Ele está pretendendo algo, e irá ver Joanna. Meu palpite estava certo! E sei, também, quem está por trás disso!

- Quem, mamãe?

- Harry Tillinghast! Eu soube disso desde que Eric lhe vendeu aquelas suas ações da Baronet. O que não foi, também, autorizado por mim.

- Sempre pensei que cada um de nós tivesse liberdade de vender ações a quem quisesse, mamãe.

- Eu devia ter sido consultada! Eric não tinha o direito de vendê-las sem me consultar! Você não entende que essa é a primeira vez na história da empresa que uma ação da Baronet foi passada para alguém fora desta família?

- Mas Harry é o pai de Alix.

- Ele não é um LeBaron! É do ramo de petróleo, e é um cúmplice em negociatas de transportes, escorregadio, e agora que está na porta de entrada da companhia, tenta levar a cabo alguma espécie de transação sem o meu conhecimento!

- Você não pode ter certeza disso, mamãe.

- Eu sei que o óleo e o vinho não se misturam, que representam a combinação mais venenosa que existe, e sei que nunca confiei em Harry Tillinghast. Ele é um patife e um rebotalho! - Faz uma pausa para tomar fôlego. - Muito bem, Missy. Eis agora o que quero que você faça. Quero que almoce com seu irmão amanhã e descubra o máximo que puder. Descubra por que ele decidiu tão de repente ir a Nova York, apure o que ele irá fazer lá, quem irá ver... tudo. E depois espero que ao voltar aqui me conte tudo. Você entendeu?

Melissa está se movendo agora lentamente na direção da cadeira de rodas de sua mãe e pára em frente da lareira de consolo alto de mármore esculpido.

- Pare - diz ela finalmente. - Simplesmente pare de dar ordens. Pare de me dar ordens, e a todo mundo. Pare de tentar controlar a todos. Pare de fiscalizar aonde eu vou nos meus dias de folga, pare de tentar controlar quem eu vejo e o que eu faço, e com quem eu durmo, e o modo como gasto o meu dinheiro. Pare de tentar me controlar. Simplesmente pare.

- Eu tento controlar você porque você não consegue se controlar!

- Então me diga quem é minha mãe!

- Oh, Melissa, por favor... não me venha com isso de novo.

- Diga-me quem é minha mãe! Não é você, eu sei disso.

- Agora pare você. Nós temos...

- Não poderia ser você. Nenhuma mãe de fato que se preocupasse

com sua filha teria feito o que você me fez... transformar-me numa solteirona solitária, castrada, neurótica!

- Você bebeu demais!

- Uma solteirona solitária, neutra, neurótica e alcoólatra! - Um pesa-papéis de bacará millefiori estava sobre uma mesa baixa bem ao lado da lareira; Melissa pega-o e, no ato, lança-o com força contra o consolo de mármore, onde o objeto valioso explode com um clarão de fogo. - Diga-me quem é minha mãe!

Faz-se um demorado silêncio, e os milhares de pequeninos fragmentos de vidro colorido cintilam na lareira à luz artificial da sala como as luzes da ponte, e do condado de Marin à distância, diminutas luzes de verde-claro, dourado e vermelho vivo.

Finalmente Assaria LeBaron diz, numa voz surda:

- Eu amava esse pequeno objeto, mas é claro que você sabia disso. Ele era muito antigo, quase tão velho como você. Seu pai comprou-o para mim em Paris. Lamento que tenha feito isso, Melissa.

- Então me diga quem é minha mãe.

Sozinho em seu quarto em Burlingame, Eric LeBaron não consegue dormir. As doses de conhaque após o jantar deveriam ter surtido resultado, mas não surtiram. Ele tinha pela frente um dia inteiro de trabalho e uma viagem a fazer, e sabia que devia dormir, mas ainda assim não o conseguia. Sua mente está em movimento, cheia de pensamentos precipitados. "Você está falando em fincar uma cunha entre os membros da minha família" - dissera ele ao pai de Alix. E Harry replicara: "A cunha já foi cravada. Assaria é essa cunha."

Alix tinha ido se deitar em seu próprio quarto, numa espécie de amuo. O motivo disso, Eric não consegue imaginar. Ele tinha pensado que a noitada transcorrera razoavelmente bem. Todas as pessoas que Alix desejara que viessem tinham estado ali. Mas na maçaneta da porta de seu quarto ela pendurara sua pequena almofada de ponto de agulha segura pelo laço de veludo cor-de-rosa. Na almofadinha, havia um bordado de um coelhinho tirando uma soneca e as palavras: Por favor, não perturbem. Estou morrendo. Então era nesse ponto que ela estava, numa espécie de birra. Mais cedo ou mais tarde, ele iria descobrir do que se tratava. Na realidade, Eric não sente nenhuma urgência em saber disso.

Na escuridão do quarto ele agora tenta pensar no que o fizera inicialmente apaixonar-se por Alix, onde surgira o ponto crucial entre Alix na qualidade de uma companheira agradável de jantares, uma boa companhia e parceira de encontros, e Alix como a mulher que ele pediria em casamento. Havia a sua beleza, é claro. O Chronicle a coroara como a "Debutante do Ano", ou algo parecido com isso, naquele ano, o de sua estréia na sociedade, 1965 ou 1966, ao que parecia. Mas então, ele relembra, também a achara divertida e graciosa... meio louca. Estou morrendo. O tipo da fala de criança. Você gosta de manteiga? E de botão-de-ouro?*

Sim, ele se recorda de estarem os dois sentados na relva no topo de uma colina dando vista para a Half Moon Bay, e que ela se inclinara, colhera um botão-de-ouro e encostara a flor debaixo do queixo.

- Você gosta de manteiga? - dissera ela então. E a seguir: - Oh... você não gosta de manteiga!

- Em nome de Deus, do que está falando?

- Veja... segure-a sob o seu queixo. Agora, vê o reflexo amarelo em minha pele? Eis aí como se pode dizer se uma pessoa gosta de manteiga. Se uma pessoa gosta de manteiga, pode-se ver o reflexo amarelo do botão-de-ouro. Se a pessoa não gosta de manteiga, não há reflexo. Você não emite nenhum reflexo, Eric. Eis aí.

- Isso é a coisa mais tola que eu já ouvi. Acontece que gosto de manteiga.

- Papai me ensinou esse pequeno truque. Ele me chama sua pequena Botão-de-Ouro.

Não, o melhor modo de lidar com sua mãe, ele decidira, era mostrar-se implacavelmente objetivo, absolutamente direto, absolutamente aberto e sem subterfúgios. Mamãe espera rodeios, ardis, segredos, complôs, conspirações, reuniões atrás de portas fechadas e na forma de sussurros, telefones grampeados, esse tipo de coisa, pensa ele. Ela é a Richard Nixon do mundo dos negócios. Sua lógica é amiúde bizantina nessa complexidade. Ela não está acostumada com a sinceridade e a honestidade totais. Eu nada tenho a esconder de você, mamãe, e assim estou colocando minhas cartas na mesa, viradas para cima. Estou tentando reunir um número suficiente de votos dos acionistas, dos outros membros da nossa família, para assumir o controle da firma, e, sim, Harry Tillinghast está me dando toda a cobertura. A coisa é simples assim. Se você deseja chamar isso de batalha, então chame, mas irá ser uma batalha travada exatamente às claras, sem tratos confidenciais, sem traições, simplesmente um bom combate à moda antiga pelo controle, com cada um decidindo apenas onde deseja situar-se na questão. Esta será decidida do único modo justo, do modo democrático, na boca da urna, um voto por ação detida. Se eu perder, paciência, mas irei fazer todo o possível para vencer, e irei travar uma luta limpa. Nada de tratos atrás das portas ou debaixo da mesa, nenhuma chantagem, propinas ou pagamentos feitos em segredo. Pelo

 

*Trata-se de um jogo de palavras intraduzível no original inglês entre butter (manteiga) e butlercup (botão-de-ouro, um tipo de flor). (N. do T.)

 

menos, eis como eu estou pronto para lutar por essa coisa, mãe. Naturalmente, o modo como escolha lutar cabe a você, e que ganhe o melhor. Sim.

Se ela não quiser me ver, ou atender ao meu telefonema, eu a porei a par da questão tão francamente quanto possível, por carta. Uma carta registrada. Com o recibo de restituição requerido. E a mesma carta registrada será remetida a todos os outros. E também a mim mesmo, que a deixarei fechada, como comprovante da minha boa-fé e justa intenção, e para qualquer eventualidade, pois estamos lidando com Eric, o bom e pequeno Escoteiro, aqui presente. Eu procurarei os advogados para redigir a carta. Sim. Devo fazer um registro de cabeça disso, diz ele para a sua mente muito ativa.

A uma certa altura, a imprensa pode ter que ser envolvida nisso, e aí Gabe Pollack poderá ser de alguma valia, mas talvez não. Anotarei isto mentalmente também.

Fairy Ferris....deveria ter tido algum outro nome comum - John, George, Howard, qualquer um - mas o que poderia ter sido há muito tempo fora esquecido. Ele sempre seria lembrado como Fairy Ferris.

Em Choate, para onde tinham sido enviados com treze anos, os gêmeos LeBaron haviam sido colocados em turmas separadas tanto quanto possível. Isto se destinava a encorajar o espírito de competição e individualidade, e sua mãe aprovara tal arranjo. Na época em que eles chegaram a Wallingford, Fairy Ferris já granjeara uma certa reputação. Era um menino mais velho, o quarto em idade, e embora ninguém no colégio de Choate admitisse gostar dele, havia rumores de que determinados meninos não se incomodavam em fazer certas coisas que Fairy Ferris gostava de fazer com eles.

No colégio, por algum motivo, Eric revelara-se excelente em matemática mas um desastre em inglês, enquanto Peter era bom em inglês mas fraco em matemática. Por esse motivo, Eric sempre faria o dever de matemática para Peter, e este escreveria as composições de inglês de Eric. Já que a caligrafia dos dois era praticamente idêntica também, nenhum dos seus professores desconfiava da fraude. No período das provas e exames, se se tratasse de uma prova de matemática, Eric entraria sorrateiramente na sala de aula de Peter e se sentaria ao lado deste. Nas provas de inglês, Peter faria a mesma manobra de Eric. De um modo meio indefinido, os rapazes sabiam que aquilo era uma trapaça, mas lhes parecia uma trapaça da espécie mais branda, mais inofensiva.

Num dia no final do outono em Wallingford, aquele primeiro ano no colégio longe de casa, Eric acabara de fazer uma prova de matemática para Peter, quando foi abordado no corredor por Fairy Ferris.

- Você é Eric, não é? - disse Fairy Ferris.

- Não, sou Peter - disse Eric.

- Eu sei que você é Eric. Você tem essa pequena cicatriz na têmpora. Seu irmão gêmeo não a tem.

Eric ficou vermelho, exclamando:

- E daí?

- Eu sei o que vocês dois estão fazendo. O que você faria se eu fosse contar isso ao diretor?

E Eric irá lembrar-se sempre do modo afetado como Ferris pronunciara a palavra "diretor". Então Fairy Ferris disse:

- Se me deixarem chupar o pau de vocês, eu não contarei nada. Foi então que os gêmeos tentaram ligar para a sua mãe na Califórnia.

Eric lembra-se da srta. Curtin, então a secretária da sra. LeBaron, como sendo uma megera ainda pior do que a atual secretária Gloria Martino.

- Sua mãe está numa reunião - dissera a srta. Curtin. - Colocarei você na sua lista de ligações a fazer.

- Mas, srta. Curtin, isto é importante.

- Sinto, Eric, mas tudo que posso fazer é colocar seu nome na lista de ligações de sua mãe. Ela fará as ligações na ordem em que foram anotadas.

- Quantos telefonemas ela tem para fazer antes de ligar pra mim? - perguntara Eric, sentindo-se desesperado.

- Bem, não sei exatamente - dissera a srta. Curtin numa voz que soara mal-humorada. - Você espera que eu os conte para você? Mas há alguns.

- Srta. Curtin... por favor!

- Isto aqui é um escritório, e esta é a sua rotina, Eric. Minhas instruções são as de não abrir quaisquer exceções.

- Srta. Curtin, isto é uma emergência! Uma pausa. Então a srta. Curtin tinha dito:

- Bem, se você descrever para mim a natureza dessa emergência, verei o que posso fazer para ajudá-lo.

- Eu não posso, srta. Curtin! Tenho que falar com a minha mãe!

- Eu o colocarei na sua lista de chamadas a fazer. Naquela noite sua mãe tinha telefonado para eles, mas aí Fairy

Ferris já conseguira a desejada felação.

- Você disse que se tratava de uma emergência, Eric - dissera então Assaria LeBaron. - Qual é essa emergência?

- Bem, ela não existe mais - retrucara ele mal-humorado.

- O que quer que fosse, eu tinha certeza de que a direção do colégio poderia resolver. E não diga jamais que algo é uma emergência quando não o é. Não se esqueça da história do garotinho que estava sempre gritando "Um lobo!" Ele gritava tão freqüentemente, que quando o lobo de verdade apareceu, ninguém lhe deu ouvidos. Não seja o tipo de menino que grita por socorro a toda hora, Eric.

Anos mais tarde, os irmãos gêmeos tentariam fazer uma brincadeira com aquilo, apenas entre si.

- Lembra-se da ocasião em que o velho Fairy Ferris nos chupou? - um deles diria.

E o outro dava uma gargalhada.

Mas na ocasião aquilo não fora nenhuma brincadeira. Ferris praticara a felação em ambos, e eles tinham chorado durante aquela coisa toda.

- Lembra-se do velho Fairy Ferris? - um deles diria, assestando murros suaves no outro.

- E nós fomos colocados na lista de chamadas a fazer da mamãe.

- Uma das coisas que íamos perguntar a ela era o que significava aquilo.

- Imaginou o que ela teria dito então?

- Bem, nós descobriríamos.

- Yuk!

- Mas não seja duro demais com ela, Peep. Papai morrera não há muito tempo. Ela estava tentando dirigir a empresa sozinha. E aquela maldita srta. Curtin...

- E não se tratava tanto de uma emergência. E nós a resolvemos.

- Yuk!

- Fico imaginando o que aconteceu ao velho Fairy Ferris...

- Certamente foi para a prisão por molestar crianças.

- Não. Sendo a justiça cega como é, aquele cabeça de merda provavelmente se tornou presidente do banco mais próspero do Texas!

Riram, fazendo daquilo uma piada, trocando socos simulados, de um lado para outro nos ombros um do outro. Pelo menos tinha sido uma experiência compartilhada.

Mas isso fora há anos, quando eles ainda eram amigos.

- Você está falando em introduzir uma cunha entre os membros da minha família.

- A cunha já está colocada. Assaria é essa cunha.

- Meu pai me chama a sua pequena Botão-de-Ouro. Isso era tudo?

Botão-de-Ouro...

E a flor é despetalada, pétala por pétala. Ela me ama, ela não me ama...

Em seu quarto no terceiro andar da casa da Washington Street, Assaria LeBaron também está acordada, embora já passe das onze horas. As cortinas já foram corridas, mas as luzes dos dois abajures ao lado da cabeceira da cama estão acesas; Sari, numa espécie de camisola de seda torcida, está sentada bem aprumada no meio da cama demasiado grande, apoiada em muitas almofadas de tamanho variado. À sua volta, sobre a colcha de cetim, estão espalhados muitos objetos: fragmentos de cartas, recortes de jornais, um livro de razão aberto, a capa para baixo, lápis, canetas esferográficas, uma agenda telefônica e de endereços rotulada de "Carnet dAdresses", um exemplar do Social Register, muitas folhas de papel para anotações de linho cobertas de anotações rabiscadas, folhas de papel tipo ofício amarelo, para assuntos legais, cobertos de cifras, e folhas de papel diagramado no qual ela fizera tabelas intrincadas. Outras folhas de papel parecem ser documentos legais de uma forma ou de outra - certificados com cabeçalhos desenhados, contratos encaixados entre capas pesadas -, e à beira de toda a papelada de escrituração repousam dois cães de raça Yorkshire adormecidos e que vivem nesse andar, exceto quando Thomas os leva a passear. O acervo sobre a cama parece consistir também de muito, muito mais. Em uma das mesas-de-cabeceira estão um copo de leite morno, intocado, e uma banana, que Thomas leva para Sari toda noite antes de ir dormir. Com um lápis na mão direita e um outro socado atrás da orelha, Sari vai traçando diagramas, trabalhando nas tabelas.

Controle, pensa ela. Tento controlar você porque não controla a si mesma. Esta empresa é a família, e esta família é a empresa, e isto é tudo que há. Se assumo o controle da empresa, segue-se que devo controlar também a família. Não posso controlar uma coisa sem controlar a outra, e assim controlo o que eu controlo. Mas, ela volta a pensar, eu não pareço controlar o que esses gráficos embaralhados revelam inevitavelmente, não importa como os construí. Aqui, lamentavelmente, aparece o nome de Harry Tillinghast em cada um deles como um minoritário, mas indesejado, acionista... com o pé na porta de entrada e com uma diminuta fatia da torta.

- Por que - perguntara ela taxativamente a Eric - tinha que vender algumas de suas ações para aquele homem?

- É muito simples, mãe - dissera ele então. - Eu necessitava de dinheiro.

- Por quê? Não pode viver bem com seu salário e dividendos? Peeper parece consegui-lo!

- Peeper - retrucara ele então - não é casado. Não tem duas filhas para criar, vestir e alimentar e enviar ao ortodontista. Peeper não possui uma grande casa para manter, com uma piscina e uma quadra de tênis, e um jardineiro e criados a serem pagos. Peeper não tem cotas do clube campestre a pagar, ou aulas de equitação e de tênis a custear, e eu poderia acrescentar mais encargos. Nem sequer mencionei os impostos.

- Sabe-se que você tem uma mulher rica!

- Alix e eu mantemos nossos compromissos financeiros inteiramente separados. Concordamos com isso desde o início.

- Você quer dizer que Alix não paga nada?

- Alix crê que é responsabilidade de um homem cuidar de sua família, do modo como seu pai fez.

- Bem, o que ela faz com o seu dinheiro, em nome de Deus?

- Ela o investe. Algum dia, naturalmente, isso ficará para as gêmeas. Às vezes ela compra algo para si mesma... uma jóia, esse tipo de coisa.

- Veja a Melissa! Ela se mantém muito bem apenas com seus dividendos. Ela nem sequer conta com o gordo salário que você recebe.

- Melissa! Ela não tem nenhuma das responsabilidades que eu tenho. Nem mesmo tem um aluguel a pagar... ela mora em sua casa, mamãe!

- Oh, mas eu cobro aluguel de Melissa. Ela me paga religiosamente.

- Sim... eu sei o que Melissa paga de aluguel. Cem dólares simbólicos mensais por um apartamento tão grande como um quarteirão. Ela paga o aluguel mais baixo de toda São Francisco, mamãe.

- Mas se precisava de dinheiro, Eric, por que então não veio a mim?

- Para ser franco, eu não quis lhe pedir.

- Por que não?

- Orgulho masculino, presumo. Não querer pedir dinheiro a uma mulher.

- Tolices! Eu sou sua mãe, tanto quanto funcionária executiva na chefia dessa empresa.

- Eu já lhe dei a minha resposta, mamãe.

- Mas por que tinha que vender a ele, entre todas as pessoas? Um homem que não tem o mínimo interesse em...

- Ele me procurou, disse que estava interessado em possuir algumas ações da Baronet. Me fez uma boa oferta, e isso foi tudo.

- Imagino que eu não tenha o direito de lhe perguntar que oferta foi essa.

- Eu lhe direi: foi na base de setecentos dólares por ação.

- Setecentos? Você lhe vendeu duas mil ações a setecentos dólares cada? Você as deu, seu grande tolo! Pois bem, o valor declarado por si só é de...

- Sei que é difícil fixar um preço para as ações em estoque.

Mas nós dois fizemos alguns cálculos, e setecentos dólares era um preço que nos parecia justo.

- Então você o deixou examinar nossos livros.

- Na qualidade de acionista, ele está habilitado a...

- Você o deixou olhar os nossos livros contábeis antes que ele se tornasse um acionista.

- Bem...

- Esse estoque de ações foi legado pelo seu pai a você. Não a Harry Tillinghast. Harry não é da família.

- Ele é o pai de Alix.

- Mas não é da nossa família. Deixe que lhe faça só mais uma pergunta. Por que você fez isso sem me consultar? Não... não responda. Eu sei por que, e você também sabe. Você agiu sem me consultar porque sabia que eu desaprovaria. Portanto, agiu de modo furtivo. Você o fez sem o meu conhecimento.

E assim, Eric devia ser punido pelo que fizera. Eis em que a questão toda se resumia. Ele devia ser punido, e mantido sob controle. Dividir para conquistar é a teoria dela, e assim ela iria reduzir suas funções e dar uma parte de suas atribuições a Peeper.

Nesta noite, no entanto, ela não tem plena certeza de que sua estratégia esteja dando certo. Será que seu plano resultará contraproducente? Terá que pegar um tigre pela cauda? Por que outro motivo Eric estaria de viagem marcada para Nova York, se não para tentar conseguir a adesão de Joanna?

E essa estratégia não parecia estar dando certo com Melissa também... pelo menos à luz do seu desempenho naquela noite.

Ela retorna aos diagramas, e se vê confrontada uma vez mais com o que viera a considerar como o problema Lance. O problema Lance sempre existira. Ela conhece as condições do testamento de seu marido de cor, e sabe que Peter pretendera ser justo: quinze por cento a serem divididos eqüitativamente entre seus filhos vivos... e quinze por cento que "deverão ser divididos, igualmente, entre quaisquer descendentes vivos de minha supramencionada irmã, Joanna LeBaron". Essa era a Sexta Cláusula do testamento de Peter Powell LeBaron. Mas o problema Lance criara um desequilíbrio nos direitos de propriedade das ações entre os quatro membros daquela geração, e dera a Lance LeBaron o que poderia ser o voto decisivo em qualquer espécie de... confrontação.

Sari achava-se em relações perfeitamente boas com Lance LeBaron, embora, na realidade, não o visse e nem falasse com ele há vários anos. Não tinha sequer certeza acerca do seu endereço, conquanto pudesse tirar logo a dúvida, ali, no Social Register sobre a sua cama. Princeton, pensa ela, é onde ele está vivendo agora. Mas o fato é que ela não confia em Lance desde aquela ocasião, anos atrás, quando o

surpreendeu... mas isto é uma história antiga, águas passadas. Isso pertence ao passado irrecuperável, nada tendo a ver de todo com o que parece estar ameaçando-a agora.

Naturalmente... naturalmente, pensa ela, há uma solução para o problema Lance. Uma solução difícil e penosa, mas existe. Muito dolorosa, muito dura, muito sensível, mas que poderia ser utilizada. Se isso acontecesse, no fim, em última análise, ela teria a firmeza de usá-la e gerar toda aquela dor, reabrir todas aquelas velhas cicatrizes, retalhar o tecido afetado que endurecera, convertendo-se numa fina cicatriz após todos aqueles anos? Ela fecha os olhos e pondera a esse respeito.

- Sari, querida, lembre-se de que você tem para comigo uma dívida muito grande.

- E você, Jo, também me deve algo muito substancial.

- Lembre-se, Sari..., nós fizemos um pacto, um pacto de sangue. Seus olhos se abrem, adejantes de novo. Ela tenta agora pôr de algum modo em ordem as pilhas de papéis em sua colcha, e finalmente os junta numa espessa camada e a coloca embaixo, próximo do pé da cama, junto de onde os dois pequenos cães estão dormindo, quietos, sem uma preocupação neste mundo. Então, esticando o braço, ela desliga a luz dos dois abajures de cabeceira, deita-se recostada na pilha de pequenas almofadas e fecha os olhos novamente.

Controle, pensa ela. Estarei finalmente perdendo o controle?

- Sabe, Pepita, voar num avião pode ser algo maçante após algum tempo. - Esta é a voz de George Hessler, seu piloto particular.

- Maçante?

- Voar do ponto A para o ponto B, e então retornar ao ponto A de novo. Há nisso uma certa monotonia. Deseja assumir os controles agora, Pepita?

- Muito bem.

Em segredo ele lhe dera lições de pilotagem no jato da empresa, e George é certamente um professor capacitado.

Eles estão voando para o norte no momento, sobrevoando a Golden Gate, e as colinas de San Rafael são vistas à distância.

Ela executa agora um amplo giro com a mão esquerda, sobre o mar e então sobre as Farallons, e a seguir um outro giro.

- Monótono? - diz ela. - Bem, vamos ter alguma emoção. Qual a extensão da ponte?

- Não tenho idéia. Por quê?

- Não importa. É extensa o bastante. Aqui vamos nós. - E ela inicia a descida abrupta, na direção da ponte.

- Pepita, o que está fazendo afinal? - grita ele.

Mas pela chama de excitação nos olhos de George, Sari sabe que ele tem ciência do que ela irá fazer, e não irá detê-la.

- Quatro-zero-cinco, perdemos o contato com o senhor em nossa tela - diz uma voz da torre do aeroporto internacional de São Francisco. - Quatro-zero-cinco, dê pelo rádio, por favor, a sua posição. Quatro-zero-cinco...

- Desligue essa maldita coisa! - grita Sari. Em descida lá vão eles: 180 metros, 150.

Na ponte, registra-se uma confusão assim que os motoristas vêem naquela tarde o grande avião a jato vir na sua direção. Alguns carros param ao longo da ponte, enquanto outros tentam aumentar a velocidade em busca da segurança do outro lado - todos, sem dúvida, pensando na Air Florida e no crash na Fourteenth Street Bridge em Washington.

A uns noventa metros, o movimento dos motores de propulsão a jato agita a água abaixo deles, formando uma violenta série de ondas de crista espumosa.

A sessenta metros, eles ainda estão sob a ponte, passando entre as duas torres, e agora subindo de novo.

- Na mosca! - grita Sari.

E ela e George riem agora, se rejubilam, até as lágrimas, e se dão palmadinhas nas costas com tanta força que Sari mal pode ver direito. Mas ela conhece seu avião, e começa a ganhar altura.

- Um tiro na mosca! Um tiro no alvo, Pepita!

Na ponte registra-se o pânico. Algumas pessoas ficam histéricas. Alguns motoristas freiam e saltam dos seus carros, aferrando-se à insensata teoria de que se o avião atingisse a ponte, seria melhor morrer inteiros do que encerrados num carro.

Mas todos os problemas já estão deixados para trás então por Sari, que manobra para Alameda. No controle.

Nunca se fala em termos muito calorosos do vôo noturno de São Francisco para Nova York, da United Airlines. Ele deixa São Francisco à meia-noite, e quase imediatamente após decolar, assim parece, está na direção do leste no nascente para uma chegada às sete e meia no aeroporto La Guardia, e, assim, dormir durante esse vôo é difícil. Os rapazes da Madison Avenue, sentados os três lado a lado no compartimento da classe econômica apinhado, deviam pelo menos ter tentado dormir. Mas, em vez disso, no clima de sua campanha publicitária rejeitada, eles escolheram afogar suas mágoas bebendo durante a viagem. No momento eles se acham bêbados como nunca, e não por obra e graça do vinho Baronet. Uma grande coleção de garrafas em miniatura descotch, bourbon e vodca decoram suas mesas-bandejas.

- Solução. Diluição. Poluição. - Este é Bob Petrocelli

falando. - Vamos diluí-la... em Geritol com cianido! Uma solução de cianido! Uma diluição em cianido!

- Eu gosto disso! Gosto disso! - troveja Mike Geraghty, que pedira doses duplas enquanto os outros haviam bebido doses comuns. - Misture e mande!

Howard Friedman não diz nada. Durante os últimos quinze minutos ele estivera se empenhando em vão para controlar um violento acesso de soluços.

- Tolices! - Há mais explosões de risos.

- Tolices! - E mais risadas ainda.

- Ei, quem sou eu? - diz Bob Petrocelli de repente. Ele é o mais animado do trio, e está sentado na poltrona do corredor. - Imaginem quem eu sou. Pronto para partir, aqui vou eu! - Ele se ergue, um pouco sem firmeza, e dá uns passos no corredor. Então ajoelha-se no piso acarpetado do avião e começa a se arrastar firmando-se nos joelhos. - Imaginem quem eu sou! Imaginem quem eu sou! Não sacaram ainda?

Os outros estão rindo tão intensamente agora que suas cabeças pendem sobre as bandejas, e pelo menos umas doze garrafinhas vazias balançam e vão ter ao chão.

Enquanto isso, de joelhos, Petrocelli continua a avançar pelo corredor, gritando:

- Imaginem quem eu sou! Imaginem! Tolices! Tolices! - arremeda obviamente a sra. LeBaron.

A jovem e bonita aeromoça, exibindo uma expressão de grande indulgência, move-se pelo corredor na direção de Petrocelli, saindo da cabine de atendimento.

- Senhor, terei que lhe pedir para que volte ao seu assento. Iniciamos agora nossa abordagem introdutória da área de Nova York, e o aviso para apertar os cintos de segurança já foi aceso pelo comandante.

- Tolices!

No setor noroeste dos vinhedos de Sonoma - onde mais de 1.600 hectares de parreirais estão sob cultivo para a Baronet, dando passagem para Semillons, Palominos e Alicantes -, Constance e Julius LeBaron dormem o sono eterno em seus silenciosos túmulos. Eles foram ali sepultados, porque, por motivos óbvios, seus corpos não poderiam ser recebidos em solo santificado. Fora também firme desejo de Julius LeBaron que ele e sua mulher fossem sepultados onde morressem. Pouco antes que os seus mais simples ataúdes de madeira, que eles também tinham exigido, fossem fechados e baixados à sepultura em 1930, uma muda de nogueira fora colocada na boca dos dois. Isto é um velho costume do Velho Mundo. Sua singularidade impressiona muitas pessoas, já que Julius LeBaron era um homem que, durante toda a sua vida, parecera determinado a livrar-se de cada resquício do Velho Mundo, incluindo seu nome. Mas aquela fora a sua exigência. E as duas árvores que cresceram, lado a lado, no lugar das sepulturas, são encaradas pelos outros com graus variados de ambivalência. Alguns acharam que os requisitos funerários de Julius e Constance eram simplesmente bizarros. Outros os consideraram francamente bárbaros.

Peter Powell LeBaron não podia suportar visitar o lugar onde estavam as duas nogueiras, esta visão o perturbava muito. Para ele, as árvores pareciam acusadoras, reprovadoras. Os filhos gêmeos de Sari, por outro lado, não tendo chegado a conhecer seus avós, pouco ou nada pensam acerca da presença dessas duas árvores, o mesmo acontecendo com Melissa. Para ela, aqueles avós existem somente na mais vaga das lembranças da primeira infância.

Para Sari, as duas árvores simbolizam uma certa grandeza e elevado mistério - o ciclo da natureza, a nova vida brotando da morte. O par de nogueiras ostenta seus próprios frutos agora, e mais árvores crescerão, e continuarão a crescer, geração após geração. Há mesmo um simbolismo ulterior ali. Nos velhos tempos, os vinicultores amiúde plantavam nogueiras em fileiras alternadas entre as vinhas. A idéia era de que, se uma colheita fracassasse, o plantador teria sempre uma outra colheita diversa a efetuar, e supunha-se também que as árvores proporcionassem a sombra necessária e a proteção contra o vento para as vinhas. As pessoas da velha guarda estavam erradas, é claro. O que acontecia era que, num ano desfavorável, tanto uma quanto outra das colheitas gorava. E num ano favorável, as duas não passavam de medíocres. A prática foi abandonada, e os plantadores foram voltando ao único sistema no qual podiam realmente confiar, o que foi uma sorte.

Sari vai ver com freqüência as duas nogueiras. Para ela, há um sentimento de temor reverente e maravilhamento engendrado por aquele pequeno arvoredo, um sentimento de continuidade e paz. Junto ao portão, fixada no solo entre as árvores, está uma placa informando ser ali onde seus parentes jazem. A placa contém as datas de nascimento e morte de Julius e Constance, e a estranha e sombria imprecação que Julius escolheu como epitáfio:

Para apressar-se e fugir de suas vidas

Não olhe para trás.

Desperte e escape da ira que virá.

Fuja para a montanha,

Para que não seja consumido.

É Sari quem providencia para que a placa de bronze seja conservada sempre muito bem polida.

 

 

                                                     Origens

 

.Nada há de particularmente misterioso, estranho ou secreto acerca das origens de Assaria LeBaron, apesar das histórias e do falatório que se possam ouvir. Seus velhos amigos conhecem a história verdadeira - ou tanto dessa mesma história como ela própria relembra. Porquanto, entendam, a única coisa razoavelmente incomum sobre a sua história é tanto seu pai como a sua mãe morrerem quando ela estava com oito anos; assim, sendo filha única, crescera sem ninguém para fazer eco ou ajudá-la a relembrar. Quanto uma pessoa pode recordar, sem ajuda, do que fez e quem era quando estava com apenas oito anos? Muito pouco, calculo. A maioria de nós cresce ao lado dos pais, ou talvez de um irmão ou irmã mais velhos, que nos ajudará a vasculhar as lembranças mais antigas, atiçá-las, agitá-las como brasas numa fogueira, recordando-nos de coisa que fizemos ou dissemos quando éramos pequeninos, que evocarão o nome de nosso primeiro professor, cujo rosto agora é somente uma sombra em nossa mente. Mas Sari, órfã aos oito anos, não tinha nada disso, e cresceu junto a pessoas estranhas. Não num orfanato, diga-se de passagem. Esta é simplesmente mais uma das histórias inventadas a seu respeito. Sob alguns aspectos, ela estava singularmente ajustada para se casar com Peter Powell LeBaron, pois os LeBarons sempre deram a impressão de estar tentando reconstruir sua história, reescrever o seu passado. ("Uma prima distante de William S. O'Brien, o lendário Rei da Prata", relatou o Chronicle quando Constance O'Brien desposou Julius - conversa fiada, como vocês já sabem.) Num certo sentido, era apropriado dizer-se que quando Assaria Latham casou com o filho deles, não tinha quase nenhum passado - embora eles assim não pensassem, mas isto é avançar demais na história.

Ela recorda algumas coisas.

Todos os espelhos da pequena casa eram cobertos com lonas ou xales femininos, ela se lembra. Vaidade das vaidades, disse o Pregador, tudo é vaidade. E todas as pessoas da casa retiravam os sapatos e moviam-se descalças ou com chinelos de pano macio, e quando não estavam andando sentavam-se em tamboretes ou bancos baixos. Uma geração passa, e outra geração surge, mas a terra perdura para sempre. Uma tigela com água doce, para o ritual de lavagem das mãos, é colocada ao pé dos ataúdes geminados. Sari recorda tudo isso, e os espelhos cobertos com lonas e xales.

Vários motivos são oferecidos para isso atualmente, embora não houvessem sido fornecidos a Sari na época, nem ela os solicitara. Dizem alguns que se uma pessoa olhar num espelho durante a fase de luto, verá nele os espectros dos que partiram. Outros dizem que a pessoa enlutada não deve ter sua atenção distraída da solene presença do morto por um vislumbre de seu próprio reflexo no vidro, e eis por que nenhuma tarefa caseira de qualquer espécie deve ser executada nesse período, nem sequer o estudo do Torá, e por que as mulheres não devem retocar seu penteado ou empoar o rosto, e por que os homens não devem barbear-se, durante esses sete dias. Mas outros ainda dizem que o Anjo da Morte em pessoa, cujo nome é Malchemuvis, é fútil e cheio de vaidade, e quando visita a casa, se vem a captar sua imagem num espelho, irá ataviar-se e envaidecer-se defronte dele. Então se sentirá tentado a voltar àquela mesma casa em breve para uma nova visita aos seus ocupantes e um novo olhar em seu reflexo no vidro. Malchemuvis não deve ser irritado, ameaçado ou desafiado. Em vez disso, ele deve ser silenciosamente detido, frustrado e confundido onde quer que esteja. Não podendo ver seu elegante reflexo num espelho, ele partirá, incerto acerca de onde esteve, e esquecerá o caminho de volta por um longo tempo. Todos os rios correm para o mar; mas o mar não se enche; para o lugar de onde os rios vêm, a ele retornarão novamente. Os caixões foram removidos.

No dia seguinte eles tinham simplesmente desaparecido. Mas a cada dia, pela manhã e à noite, um grupo de homens vinha a casa recitar o Kaddish. "Que o Todo-Poderoso possa reconfortar-vos entre os pranteadores pelo Sião e Jerusalém." As lapelas de suas camisas exibiam pequenos rasgões. Não havia nenhuma outra conversa.

Depois, relembra Sari, quando aquela fase passou, registrara-se uma conversa entre as outras pessoas na casa, uma assustadora conversa. Deviam ter sido amigos e vizinhos dos mortos. O que iria ser da menininha? Ela se acha sozinha. Quem irá acolhê-la? Quem poderá se permitir alimentá-la, vesti-la, educá-la? Ela não dispõe de parentes mais chegados, nem tias, nem tios, nem avós? Não. Ela está inteiramente só. A guerra está por toda parte, e também motins, greves, distúrbios de rua. Pode-se farejar isso nas ruas, o olor da morte. Logo não haverá segurança em nenhuma parte, em nenhum lugar da Europa. E tratando-se de uma criança sozinha... Algo deve ser decidido. Alguma coisa tem de ser feita, e logo.

Então Sari recorda o início de seu próprio medo. Como alguém relembra o medo? Sari o recorda apertando o estômago, aferrando-se a ele com dedos nodosos, o medo enchendo sua boca de um gosto de pó, o medo - o puro medo - parecendo congelar aquela parte de sua cabeça entre os globos oculares, o medo martelando seus tímpanos. O medo parecia paralisá-la, e dos próximos meses tudo que ela consegue realmente recordar é aquele medo.

Mais tarde, ela viria a receber uma explicação do que acontecera. E lhe diriam que aquilo devia ter sido um caso de tifo, ou do que era chamado "gripe espanhola", e que ela leria as estatísticas. Aquela epidemia, a pior a afligir a humanidade desde a Peste Negra do século XIV, viria a matar aproximadamente 22 milhões de pessoas, três milhões somente na Rússia, mais do que um por cento da população inteira do mundo, enquanto a guerra matara cerca de dez milhões mais. Mas na época tudo que ela sabia era que um dia tivera duas pessoas, uma mãe e um pai, zelando por ela, e que no dia seguinte já não contava com nenhuma, exceto aqueles estranhos assustados que vagavam pela casa e fora desta, sussurrando, tecendo planos incompreensíveis. O ano era o de 1917.

- Onde estão minha mãe e meu pai?

Os desconhecidos sacudiam suas cabeças com tristeza, mas não lhe diziam nada.

A mantilha de sua mãe, vermelha com uma franja dourada - ela se recordava dessa mantilha mais nitidamente do que do rosto de sua mãe, porque fora a favorita desta - havia sido levada para fora da casa, empapada em parafina e queimada, juntamente com todo o resto das roupas de seus pais.

- Por que estão queimando tudo?

De novo, eles simplesmente balançariam a cabeça e nada lhe diriam. Mais tarde, ela viria a supor que se presumira que as roupas de seus pais estavam infectadas pelo tifo, e portanto deviam ser queimadas, mas naquela ocasião tudo que ela pôde recordar foi o horror de ver a bela mantilha de sua mãe ser consumida pelas chamas alaranjadas, sua franja dourada retorcida numa massa de diminutos e enegrecidos vermes, então desemaranhados nas cinzas.

Quem eram aquelas pessoas? Amigos, vizinhos, ela imaginara, mas elas não tinham nomes. Entravam e saíam, uma de cada vez, numa espécie de programação preestabelecida, para ficar com ela, alimentá-la, pô-la na cama para dormir à noite, banhá-la uma vez por semana. Por que nenhuma delas a levava para uma de suas próprias casas? Somente mais tarde ela viria a imaginar que ninguém ali estava desejosa disso ou poderia assumir a responsabilidade de mais uma boca para alimentar. Ela ouvira dizer que devia ir para a América. Somente na América uma criança poderia estar segura. Mas onde na América, e com quem? E como? Aquelas discussões, enquanto amigos e vizinhos entravam e saíam, pareciam ocupar dias, semanas, meses, mas talvez o dilema tivesse sido resolvido mais cedo que isso, pois a memória tem suas artimanhas.

Então, por fim, após muito mais dias e muito mais discussões, um plano foi traçado, e aí as vozes se tornaram excitadas, alegres. Mas, de certo modo, esse entusiasmo pela sua iminente partida somente aumentou o medo da menina, fazendo com que todos os temores e perplexidades se juntassem num nó bem estreitado em seu íntimo.

- Eu não desejo ir embora! - lembra-se ela de ter dito, soluçante. - Eu não quero ir!

- Sim, você irá - disseram eles.

Uma coleta foi feita entre os estranhos na aldeia para comprar sua passagem. Várias vezes eles repetiram para ela o nome e o endereço da pessoa lá da América com quem iria ficar, até ela ter decorado:

- Sr. Gabriel Pollack, Wasbash, 117, Terre Haute, Indiana, Estados Unidos da América. Ele é o filho da irmã da primeira mulher de seu pai.

O rabino e a sua esposa, disseram-lhe então, a levariam até Hamburgo. Em seguida a colocariam no navio e achariam alguma boa pessoa para cuidar dela durante a viagem. Uma vez na América, quaisquer problemas restantes seriam resolvidos por si mesmos, porque - era uma das maravilhas da América - a América era uma terra de estrangeiros e estranhos que estavam sempre prontos a ajudar outros estranhos e recém-chegados. Todo mundo sabia disso. Mas, por precaução, uma série de instruções cuidadosamente redigidas, com o nome e o endereço do sr. Gabriel Pollack, que ela já sabia de cor, fora costurada na bainha de sua saia preta comprida. Um outro lembrete fora colocado no forro de sua roupa de baixo, e, como boa medida, dois outros foram colocados ha canastra de vime amarelo e na pequena valise marrom de papelão que ela devia levar consigo. A tampa da canastra de vime estava atada com cordas bem firmes, com uma ponta formando um laço para servir de alça. A maleta de papelão estava segura com cordão. Assim sobrecarregada, com o ruge-ruge dos pedaços de papel costurados nas roupas e metida dentro de seus atavios modestos, ela foi instruída sobre como carregar suas duas peças de bagagem, uma em cada mão, e nunca perder de vista nenhuma delas. Por último, um enorme e pesado xale negro de pêlo de cabra angorá cheirando a cânfora foi providenciado, dobrado num feitio de triângulo, e preso sobre a sua cabeça e ombros com alfinetes. Esse xale, fora-lhe dito, seria sua manta durante a viagem, já que o navio para a América não teria leitos mas somente prateleiras em que as pessoas poderiam dormir. Às suas costas, a ponta do triângulo do xale caía próximo de seus tornozelos, mas isto era uma boa coisa, porquanto faria um frio hibernal uma vez o barco ganhasse o mar alto.

Aí os lençóis e xales já tinham sido retirados dos espelhos, e o clima psicológico na casa era ameno, já que os amigos e vizinhos contavam com a perspectiva de se desobrigarem de seus deveres para com a criança órfã. Toda a mobília já fora, também, removida da casa. E por que, ao ser levada dali na charrete pelo rabino e sua mulher, ela se recorda de olhar para trás e ver a própria casa ser consumida pelas chamas? Isso pode não ter acontecido, mas ela se recorda.

Sari não tem muitas lembranças da viagem até Hamburgo de trem, nem sequer de como o rabino e sua mulher eram, somente de um terror crescente. O rabino e a esposa eram duas figuras grandes, escuras, sentadas ladeando-a, nada mais, porém ela se recorda de sentir que eles também estavam assustados com aquela viagem. Houve muitas paradas ao longo do caminho quando soldados uniformizados, portando rifles com baionetas compridas e afiadas, moviam-se no interior do trem, girando suas armas de um lado para o outro, fazendo perguntas, exigindo documentos e papéis. O rabino e sua mulher seguravam firmemente as mãos dela toda vez que uma nova leva de soldados deles se aproximava. E ela lembra que quando o trem chegou finalmente a Hamburgo, a mulher do rabino lhe deu uma sacolinha de moedas, suspensa de um cordão de sapatos de couro, recomendando-lhe que a pendurasse em torno do pescoço, sob as roupas, e a mantivesse assim oculta da vista de estranhos o tempo todo. Só deveria ser aberta numa emergência.

E ela recorda sua primeira visão do navio - aquela grande estrutura escura, alta e intimidadora - que ia levá-la para longe. Seu terror alcançou uma espécie de clímax então, e ela por um momento sentiu-se incapaz de respirar, e aí se lembra de atirar-se ao solo num terrível acesso de raiva, gritando, e de várias mãos alcançando-a a fim de controlá-la, e de vozes lhe dizendo que não tinha nada com que se assustar, que ela iria amar a América e seu novo lar. E então ela recorda uns braços fortes - uns braços de mulher, essa é sua impressão - erguendo-a, ainda batendo os pés e gritando, e levando-a para bordo do navio. Sari não se recorda de nenhum gesto de adeus.

Da viagem propriamente dita ela só recorda um período aparentemente interminável de escuridão, uma escuridão ondulante, balouçante, que lhe pareceu durar semanas - já que os períodos de sono nunca eram interrompidos por qualquer alvorecer -, num leito duro e estreito. Mas aquelas mãos se estendiam para tocá-la de quando em quando, para colocar panos úmidos em sua testa e roçar-lhe os lábios com água, pois ela estava febril. Então, de repente, ela estava se levantando da cama, e ali estava a luz do dia, e lhe disseram que já estava em Nova York.

Sem prévio aviso, ali estava o sol quase ofuscante. O lugar devia ter sido a ilha Ellis, embora naquela época não tivesse nenhum nome. Tudo que ela se lembra é de estar num aposento maior e mais imponente do que qualquer outro que já vira. A luz solar brilhante fluía através das compridas hastes empoeiradas das altas janelas gradeadas, e reunidas nesse enorme aposento estavam mais pessoas do que possivelmente teriam estado no navio, mas ela não podia ter certeza. Estavam de pé, formando filas compridas: homens, mulheres e crianças como ela mesma, todas carregando cestas, fardos e maletas como a sua. Mas a primeira impressão da América do Norte que ela recordaria por mais tempo era o olor: o pungente, vigoroso, aliáceo, de humanidade não lavada. Era um cheiro de roupas antigas, manchadas e úmidas que tinham sido empilhadas num fundo de armário durante dias, e de repente retiradas para o exterior para arejamento. Certa ocasião, anos depois, uma de suas cozinheiras prepararia uma sopa de legumes pouco apetecível. Pousando a colher na mesa, Assaria LeBaron tinha dito a Thomas:

- Esta sopa cheira exatamente como a ilha Ellis!

Mesclado com esse cheiro de comida rançosa havia o olor ligeiramente acre de tinta, o que se experimenta quando se comprime o nariz contra a lombada de um livro aberto. Era um olor de burocracia. Pois em toda parte à sua volta, ao que parecia, estavam funcionários com

canetas e tinteiros, preenchendo folhas de papel comprido, fazendo misteriosas anotações nelas, formulando perguntas ininteligíveis, gritando ordens, quando as pessoas passavam de uma longa fila para outra. E sobrepondo-se a tudo mais estava o olor de sabões desinfetantes, um cheiro que fazia arder muito as narinas e trazia lágrimas aos olhos, parecendo emanar das tábuas do piso de madeira. E no entanto, os rostos cansados daquelas pessoas mostravam-se felizes e emocionados.

Inesperadamente, contudo, em meio à confusão de imagens, cheiros e ruídos, ergueu-se ali, como uma tempestade se avizinhando, um intenso som de soluços e gemidos. Algo muito irregular estava acontecendo, e houve uma enorme movimentação para a frente de uma onda humana. Pelos gritos, estava claro que algumas pessoas estavam sendo afastadas. Havia algumas pessoas que a América não desejava. Pessoas idosas estavam sendo separadas de seus filhos e filhas, crianças apartadas de sua mãe e do seu pai, maridos de suas esposas. Soaram berros e gritos e o inútil erguimento de braços, quando as pessoas tentavam segurar e àferrar-se umas às outras, mas sendo obrigadas a se apartarem. Era o temor do tifo novamente, e Sari observou quando uma criancinha foi retirada dos braços da mãe. Em pânico, as pessoas precipitaram-se juntas contra uma fileira de policiais com bastões, mas se viram forçadas a recuar, e as mãos ainda unidas foram desunidas à força. Ela se lembra de ficar estreitamente comprimida, aterrada, entre aqueles corpos, entre as saias e as anquinhas de mulheres e os casacos de homens, e até mesmo a luz solar ficara bloqueada, e uma vez mais ela sentiu que não conseguia respirar. Estava assustada demais então para poder gritar, e a pessoa que umedecera seus lábios com água fresca não estava visível ali. Mas, pelo menos sua febre desaparecera, e ela podia raciocinar com mais clareza, e se recorda de que um homem a levantou e a pôs sobre seus ombros, carregando-a adiante por entre aquele mar de pessoas chorosas e furiosas, afastando-a dali, para, então, colocá-la num canto mais sossegado. Então ele também se fora.

Agora havia um moço de uniforme policial, ou de soldado, que parecia muito cansado, o nariz vermelho de tanto ser esfregado, como se ele estivesse muito resfriado, e que lhe falou num idioma que Sari não podia entender.

Conquanto não fizesse a mínima idéia do que o moço de nariz vermelho estava dizendo, ela intuiu que ele lhe fazia uma série de perguntas. E assim, ela respondeu com as palavras que guardara na mente.

- Sr. Gabriel Pollack, Wabash, 117. Terre Haute, Indiana, Estados Unidos da América. Ele é o filho da irmã da primeira mulher de meu pai.

Mas, para seu desalento, ela entendeu que ele não fazia a menor idéia do que ela estava tentando lhe dizer em seu inglês canhestro. E ele apenas pareceu mais fatigado e desencorajado e lhe fez mais perguntas ininteligíveis. Ela recitou suas palavras decoradas mais uma vez, mas sem nenhum proveito novamente, e de imediato teve a certeza de que a América estava rejeitando-a. O jovem soldado espirrou forte, e lhe endereçou um olhar aflito.

De algum modo, em sua travessia do Atlântico, ou naquela cena confusa no cais, ela e a sua canastra de vime tinham se separado uma da outra, onde e como ela nunca saberia - mesmo atualmente. Mas ela ainda guardava a sua valise de papelão marrom, e recordando o pedaço de papel que nela fora colocado, ajoelhou-se no chão, abriu-a, achou o pedaço de papel e mostrou-o ao jovem oficial.

Como seria possível esquecer aquelas semanas inteiras, e ainda assim recordar vividamente um gesto? O moço uniformizado bocejou ruidosamente, pegou o pedaço de papel com uma das mãos, e passou as costas da outra em seu nariz úmido. Leu então as palavras que os vizinhos da menina tinham cuidadosamente escrito:

Sr. Pollack, Gabriel

Wabash, 117

Terre Haute, Indiana

Estados Unidos da América, EUA.

Ele lhe fez uma nova pergunta curta, com uma voz mais suave agora.

Novamente, ela não entendeu, mas, já que ele parecia aguardar uma resposta positiva, ansiosamente fez que sim com um gesto de cabeça. Aí então ele rabiscou algo no cartão que ela lhe dera, carimbou-o com seu sinete e levou-a para uma longa fila de pessoas. Mais tarde, Sari viria a apreciar dizer que não teria sido aceita na América absolutamente se o funcionário da imigração não estivesse tão cansado e não se achasse tão resfriado. "Sou provavelmente uma estranha ilegal", ela gosta de dizer.

De algum modo, de novo, daquele ponto em diante, ela seria capaz de recordar um outro conselho que um dos vizinhos lhe dera: "Se chegar a crer que está perdida, simplesmente sente-se em sua mala e aguarde que alguém venha ajudá-la. Na América, todos se ajudam uns aos outros."

Já fora do posto de imigração por fim, ela sentara-se em sua valise restante, e então um senhor já idoso segurando um buquê de rosas brancas veio falar-lhe.

Ela não lhe respondeu, mas mostrou-lhe o mágico pedaço de papel.

Pegando a valise forrada de papelão marrom com a mão livre, e guiando-a com o cotovelo, ele a conduziu até o que resultava ser uma estação ferroviária. As estações de trem do restante da viagem - Nova York, Cleveland, Indianápolis - apagaram-se em uma única imagem. As estações eram todas lugares enormes, abobadados, ruidosos e confusos, cada uma mais requintada e ornamentada do que quaisquer visões de Sari dos palácios dos czares.

Enquanto o trem abria caminho devagar para o Oeste através da América do Norte, a menina sentiu-se tão exausta devido ao seu medo e à confusão que praticamente tudo que poderia fazer era dormir. Ela dormiu durante um percurso de mais de 1.200 quilômetros, nos dois dias e uma noite que a viagem levou. Somente por curtos momentos despertos, pequenos detalhes se fixaram em sua mente. Naquele vagão, uma mulher gentil, sentada perto dela, lhe oferecera uma fruta de estranha aparência cuja casca tinha que ser retirada, em fatias alongadas, a fim de ser comida. A mulher mostrou-lhe como retirar a casca. Era uma banana. Num outro trem, um homem que de início a assustara - tinha um rosto violáçeo-escuro e grandes mãos negras - deu-lhe um pequeno travesseiro para apoiar sua cabeça enquanto ela dormia.

Finalmente - isto deveria ter sido na estação ferroviária de Indianápolis, onde ela se sentara de novo em sua maleta - aparecera uma mulher alta com um ar ansioso, distraído, que carregava uma valise muito maior do que a de Sari, e que lhe fizera um grande número de perguntas sempre ininteligíveis. Quando a mulher olhou para o pedaço de papel já muito vincado, indicou a Sari que devia permanecer onde estava, então desapareceu. Quando retornou, sorria, e então conduziu Sari ao portão certo para se tomar o trem para Terre Haute.

De algum modo, a menininha de então percebeu que uma transação envolvendo dinheiro se apresentava, e, cautelosamente, ergueu a sacolinha de moedas de sob o peitilho de seu vestido, afrouxou o laço de couro e ofereceu à mulher alta uma das moedas.

A mulher examinou a estranha moeda de ouro, pareceu intrigada, girando-a de um modo e de outro. Finalmente, sorriu novamente e devolveu a moeda, apertando-a na palma da mão de Sari. Então ela ajudou Sari a carregar sua maleta para aquele último trem e soprou-lhe um beijo de adeus. Mais tarde, Sari viria a saber que aquela mulher enviara um telegrama ao sr. Gabriel Pollack contando-lhe quando devia aguardar a menina, mas na ocasião ocorrera a Sari apenas mais perplexidade e incerteza quanto ao porquê daquela mulher ter recusado aceitar aquela moeda legítima de dez copeques.

E então, por fim, aguardando-a na estação de Terre Haute como se por alguma espécie de milagre, para recolhê-la em seu último palácio de granito e mármore, estava o moço alto que vinha a ser o sr. Gabriel Pollack em pessoa. Seu rosto simpaticamente familiar mostrava-se sorridente e tímido quando a recolheu entre a multidão, reconhecendo-a,

o que não seria nada difícil de ocorrer, em suma, considerando-se o vestido muito folgado e de feitio incomum que ela usava, tendo sobre a cabeça e os ombros aquele grande xale cheirando a cânfora, a sua maleta de papelão marrom começando a se desfazer nos cantos. E ela compreendeu que ali, por fim, estava alguém - um ser humano vivo e respirando - que realmente a aguardava, estava esperando por ela, e se achava disposto a levá-la para uma casa real com um destino especificado. Naquele exato momento ela fez uma jura a si mesma de que nunca mais em sua vida iria se deixar assustar por nada. Nunca.

Mas quem sabe se ela fez realmente essa promessa a si mesma aos oito anos? Sari LeBaron, como já sabemos, tem uma tendência a exagerar as coisas, a dramatizá-las.

No começo, ela pensava nele como se fosse seu novo pai, porque ele parecia ser quase da mesma altura e idade de seu pai. Somente depois ela viera a descobrir que, naquela época, Gabe Pollack tinha apenas quatorze anos. E a mulher em cuja casa Gabe Pollack residia, a sra. Bonkowski, passou a ser encarada por Sari como a sua nova mãe. A exemplo de seu pai de verdade, Gabriel Pollack ficava ausente de casa desde o começo da manhã até tarde da noite. Ele trabalhava, explicou-lhe então, como mensageiro e menino de entregas e recados para um jornal chamado O Republicano. Uma pequena cama de vento fora colocada para ela no quarto de Gabriel Pollack; na sua velha casa ela também dormia no mesmo quarto de seus pais. A sra. Bonkowski executava em sua casa as mesmas tarefas que a mãe verdadeira de Sari executara: cozinhar, remendar e lavar as roupas. Como também se dera na sua antiga casa, havia determinados serviços domésticos que se esperava que uma menina fizesse: ajudar a pendurar roupas lavadas, ajudar a secar os pratos, e na casa da sra. Bonkowski havia muitos pratos para lavar e enxugar, porquanto ali moravam quatro outros hóspedes, além de Gabriel Pollack e dela mesma, todos homens. A sra. Bonkowski ensinava inglês a Sari.

- Isto se chama "bule de café" - dizia a sra. Bonkowski. - Diga-o. Bule de café. Antes do sr. Bonkowski falecer, que sua alma repouse em paz, eu levava uma ótima vida. Nós tínhamos um chalé no lago Wawasee. Fica no interior do Estado, Eu nunca pensei que chegaria a isto, aceitando h.p., é como os chamo, h.p., hóspedes pagantes, mas assim é a vida, e o que mais posso fazer desde que Bonkowski se foi? Morto de tuberculose. Ele era um homem pequeno, muito magro, mas um bom provedor, isto o sr. Bonkowski era. Para os lados do lago Wawasee havia índios, peles-vermelhas, e nós contávamos com um deles para nos trazer mercadorias do armazém. Isto aqui é um... o quê? Um "descaroçador de maçãs", algo para retirar

caroços de maçãs. Repita: descaroçador de maçãs. O pele-vermelha costumava caçar coelhos para nós, até mesmo gamos, gambá às vezes, mas eu não ligava pra isso.

"Nós tínhamos o melhor de tudo. Nunca imaginei que viria a ter que aceitar h.p., até mesmo judeus, como o seu amigo, sendo eu uma discípula de Cristo. Nunca confie num judeu, minha mãe costumava dizer, pois um judeu ou está a seus pés ou no seu gasganete. Bonkowski era polonês, mas não era judeu. Católico, comedor de cavalinhas, um glutão, minha mãe costumava dizer. Bonkowski jogava pinocle, mas nunca a dinheiro. Ele era um provedor, trabalhava no depósito de madeiras de Samson, e graças ao bom Deus pela sua apólice de seguros. Sem isso, só o querido Senhor sabe onde eu estaria. Isto é uma "concha". Diga: concha. É como uma colher grande. Eu tenho um conjunto de colheres de prata, sabe, prata de lei, que Bonkowski comprou para mim. Elas estão guardadas num lugar seguro, acredite. Em quem se pode confiar nos dias de hoje?

"Estamos às voltas com os negros aqui ultimamente. A estrada de ferro os trouxe. Pode-se confiar num pele-vermelha, mas não em um negro. São ineptos. Nós temos que pensar em um novo nome para você. Anzia... isto não soa como um nome americano de pessoa branca. Parece holandês. Na América, todo mundo é igual, sabe, e aí está a beleza disto. O querido Deus sabe como tenho sofrido com um sobrenome como Bonkowski, um nome polonês. Ninguém consegue pronunciá-lo, ninguém pode escrevê-lo, e algumas vezes até eu esqueço como grafá-lo, eis como tem sido há muito desde que Bonkowski se foi, mas é assim que seu nome aparece no cheque da apólice de seguro, portanto imagino que estou atolada nele. Vou pensar em um nome bom americano de pessoa branca para você, me dê só algum tempo. Você não pode ir à escola com um nome como Anzia. Será tratada como alguém sem nenhuma importância com um nome desses. Isto é uma "faca para cortar carne". Repita...

A sra. Bonkowski, como ela mesma esclareceu, fora criada numa pequena cidade do centro de Kansas, "no coração do condado de Salina, próximo de Salina, onde fica todo mundo, sabe", e seus dois filhos, Tescott e Culver, tinham sido batizados com os nomes das duas cidadezinhas vizinhas. Ela não tivera uma filha, mas se a tivesse tido, ela se chamaria Rosalia - uma outra pequena cidade do Kansas.

- Rosalia não é um belo nome? Mas você não pode usá-lo. Rosalia tinha sido destinado para a minha filha, caso eu viesse a ter uma, assim esse nome já está reservado. Eu pensarei em algo. Simplesmente você não pode ir para a escola levando o nome de Anzia e ser ridicularizada. Isso soa como um nome judeu, entende, não que eu desfaça de seu amigo Gabe, que, apesar de ser judeu, é um bom rapazinho.

Que tal Assaria? Assaria ficava logo abaixo do Smoky Hill River de Bridgeport, a primeira grande cidade entre Bridgeport e Salina, não distante de Tescott, e nem de Culver também. No meio, por assim dizer. Assaria. Sim, creio que me agrada. O que você acha? Eu gosto. E agora teremos que dar a você um bom sobrenome americano de pessoa branca. Esse sobrenome seu, eu não consigo pronunciar, e olhe que fiz dois anos de secundário. Vejamos. Deixe-me pensar. Vou pensar em algo. Que tal Latham? Era um lugar pequenino no extremo sul do Estado, muito bonito. Sim, acho que gosto dele. O que você acha? Gosto disto: Assaria Latham.

E assim foi como, saído de um devaneio sobre perdidas aldeias rurais, Assaria Latham veio a ser seu nome.

- Repita: Assaria Latham.

Era verão, e logo, disseram-lhe, seria o momento de matriculá-la no colégio.

E isso é realmente tudo que há para se saber da sua primeira infância, que é sempre a parte menos interessante da vida de uma pessoa a ser comentada. Exceto, talvez, por uma ou duas coisas.

Um ano ou pouco depois, quando estava com nove ou dez anos, Sari disse de repente para Gabe:

- Sabe, eu não consigo lembrar os nomes de meus pais!

Ele se lembrava, é claro, e disse para ela. Mas aí então eles eram os nomes estrangeiros de estranhos.

Isso, e o fato de que quando estava com quatorze anos se apaixonou por ele. Mas Gabe não sabia disso então.

- Sabe, é quase como um caso de transferência de pensamento - está dizendo no momento Joanna LeBaron. - Eu estava prestes a ligar para você e dizer que desejava vê-lo, quando você telefonou e disse que queria me ver. Meu irmão e eu - seu pai e eu - costumávamos ter experiências como essa freqüentemente, pensando na mesma coisa ao mesmo tempo. Já tinha tido essa experiência com seu irmão gêmeo?

- Às vezes - responde Eric. - Costumávamos tê-las. Estão sentados agora na sala de estar do apartamento de Joanna

em Nova York, na Quinta Avenida, 1.040, dando vista para o museu e o Central Park, quando o parque acabara de receber borrifos de neve clara e fresca. E ali está a extraordinária Joanna LeBaron, num vestido longo verde-claro de anfitriã criado por Adolfo, ainda alta e esguia como um lápis, o cabelo prateado pincelado de listras cor de mel. Esta é a mulher cuja fotografia vocês verão na W, e na Vogue e em Town & Country, fotografada não apenas por sua beleza e seu senso da moda, mas por coisas menos frívolas, tais como a sua perspicácia nos negócios e o seu sucesso extraordinário no que é geralmente

considerado o mundo masculino da publicidade. O segredo do seu êxito, ela o tem dito amiúde a seus entrevistadores, é o seu senso de organização. Tudo em sua residência, como em seu escritório, é organizado, e ela, com freqüência, mostrará aos entrevistadores seus armários - os cabides de roupas em envoltórios de plástico claro, tudo disposto de acordo com a cor, a estação e a hora do dia; as gavetas com suéteres, blusas e luvas e meias, também arrumadas segundo a cor; as prateleiras altas de sapatos, uma para cada hora do dia, uma para a noite, e assim por diante. "Organização é a chave de tudo", diz ela amiúde, e então, com o seu riso rouco: "Com freqüência penso que se estivesse abandonada numa ilha deserta, a primeira coisa que faria seria pôr em ordem os grãos de areia na praia de acordo com o tamanho, o feitio e a cor." Porquanto as cores de sua sala de visitas são gradações variadas de amarelo, ela sempre mantém esse aposento cheio de vasos de flores amarelas - rosas, copos-de-leite, ou, como na presente noite, com as primeiras tulipas amarelas da estação que sua florista encontrou para ela.

Joanna está parada perto da janela agora, segurando um cálice de xerez, contemplando a imagem noturna do parque e da neve. Eric está sentado num sofanete coberto de cetim, cor de limão, as pernas cruzadas, sorvendo um uísque com soda.

Voltando-se, Joanna diz:

- Seja como for, estou contente que tenha vindo, querido rapaz. Agora, quem falará de seus negócios primeiro?

- Você. Você, tia Joanna. Ela ri.

- A idade antes da beleza, é isto? Bem, receio que o que tenho para lhe dizer irá lhe parecer desagradável, querido.

- Vá em frente. Sou agora um garoto crescido.

- Eu decidi renunciar à conta da Baronet. Você está surpreso, hem? Bem, não foi uma decisão fácil. Nunca pensei que essa conta representaria um problema, mas agora... pelo que Mike Geraghty me relatou sobre a reunião em São Francisco... existe um. Você - e eu o apoiava - desejou dar um novo e animado rumo à linha dos vinhos Baronet. Enquanto que sua mãe...

- Deseja permanecer exatamente onde se encontra desde 1955.

- Exatamente. Ou assim parece. As preferências quanto a vinhos têm mudado bastante nos últimos vinte anos, como você e eu sabemos. Há um novo e completo mercado agora para vinhos de mesa finos e suaves. Vinhos servidos em garrafas com graciosos formatos, rótulos vistosos... chardonnays, chablis, merlots, cabernet sauvignons. Atente para o que Almaden tem feito, veja o Bob Mondavi. É o mercado jovem-urbano e profissional. Nós julgamos que estávamos preparados para introduzir o Baronet nesse mercado. Mas a sua mãe...

- Ela deseja se apegar aos vinhos popularescos. O mercado que ela conhece.

- Assim parece. E eu não posso, em sã consciência, prosseguir nessa linha por mais tempo, Eric. LeBaron e Murdock não podem concordar com isso. Eu dirijo um negócio de serviços, mas não posso servir a um cliente que está em campo oposto quanto ao que eu creio que deve ser feito. Não posso trabalhar com um produto no qual não acredito mais. Não posso trabalhar desse modo. Se eu deixo de acreditar num produto, não posso ajudar a vendê-lo. É algo fácil de entender. Estaria traindo meus empregados se agisse assim. Estaria traindo a minha indústria inteira. Pior de tudo, estaria traindo a mim mesma. E eu tenho tentado firmemente nunca fazer isso. Assim, aí está a minha decisão tomada, meu querido. Espero que você me entenda.

- Entendo perfeitamente.

- Nunca imaginei que a coisa chegasse a esse ponto, mas chegou. Agora a campanha publicitária que Mike apresentou a você e à sua mãe pode não ter sido...

- Eu pensei que era... Ela atalha erguendo a mão.

- Não importa. Não vem ao caso o que você tenha pensado dela. Aquela campanha está extinta, querido, completamente. Foi-se pelo cano de descarga do sanitário da agência, e nós não iremos apresentar uma outra. O relacionamento entre a minha agência e a Baronet chegou ao seu silencioso e digno fim com aquela silenciosa e dignificante campanha que tentamos criar para ela.

Eric acena a cabeça em assentimento.

- Claro que não foi fácil para mim tomar essa decisão - diz Joanna, e agora há um embargo audível em sua voz gutural. - Existe a ligação sentimental com essa conta, e os laços de família. A Baronet foi a primeira conta que consegui quando seu pai inicialmente pediu minha ajuda. Foi exatamente após você e Peeper terem nascido, e aquilo representava uma vida inteiramente nova para mim na época, quando... bem, numa ocasião em que a minha vida parecia particularmente vazia. A Baronet foi a conta publicitária responsável pelo meu primeiro sucesso. Foi a base desta agência, e eu nunca soube como agradecer ao seu doce e divino pai por fazer tudo aquilo por mim. Seu querido pai tinha a chave para a minha salvação.

Eric nada diz. Nesse momento emocional, delicado, não serviria a nenhum propósito lembrar a tia Joanna que Assaria LeBaron sempre se arrogara o crédito de proporcionar a Joanna sua agência, e que ele, Eric, tinha visto - nos arquivos - uma antiga carta semi-oficiosa, de 1945, que evidenciava aquilo.

Agora Joanna emite o seu riso gutural.

- Mas não posso levar esse sentimento em consideração, posso? E, isto não é nenhum segredo, meu querido, a Baronet nunca foi exatamente uma superfazedora de dinheiro para nós, já que sempre fixamos nossa comissão em preços "familiares". Nesse sentido, renunciar a essa conta não redundará em uma grande perda financeira para nós.

- Posso entender isso.

- E enquanto isso, desde que sou muito boa no que faço, e porque o merchandising de vinhos vem a ser algo em que firmei meu renome, não seria honesta com você se não lhe dissesse que há pelo menos três outros importantes estabelecimentos vinícolas que se acham ansiosos para me entregar suas contas de publicidade... que eu não pudera até aqui aceitar por causa desse conflito de interesses.

- E que pagarão a você a comissão integral. Ela ri novamente.

- Bem, é isso. Mas o dinheiro é somente dinheiro. Ainda assim, é infinitamente melhor tê-lo do que não tê-lo, não é mesmo, querido?

- Sim. Agora, o que me trouxe aqui...

- Claro que - atalhou Joanna - do ponto de vista das relações públicas, pode haver alguns desafortunados efeitos secundários dessa minha decisão. O caso dos jornais, por exemplo, que certamente tentarão abordar isso como uma espécie de rixa familiar.

- O que, em certo sentido, não deixa de ser verdade.

- Bem, eu pretendo fazer tudo que puder para evitar gerar essa impressão. Tenciono preparar um comunicado em termos muito brandos, informando que, após aproximadamente quarenta anos de um agradável e lucrativo relacionamento, a Baronet e a minha agência chegaram a uma amistosa separação de caminhos devido a divergências em suas filosofias de publicidade e marketing. Alguma coisa nesse teor. Naturalmente, o que sua mãe declarar aos jornalistas pode ser uma outra questão.

- Ela certamente ficará furiosa, convocará seu próprio encontro com a imprensa e chamará você de uma suja traidora.

- Ou dirá que estou ficando de miolo mole. Apurei que ela disse algo nesse sentido na reunião de ontem. Bem, receio não ter nenhum controle sobre o que a querida Sari possa resolver declarar.

- E vocês duas sempre foram ótimas amigas.

- Meu caro rapaz, nós ainda podemos continuar sendo. Eu sempre desejei ser amiga de Sari. Nossa amizade vem desde que tínhamos dezesseis anos. Costumavam nos chamar de Mutt e Jeff, porque ela era miúda e morena, e eu, alta e loura. Mas em algum ponto o elo de amizade começou a mudar, e ela passou a me encarar como uma espécie de competidora. Entenda-me, eu não me incomodo de ser encarada como sua competidora, porquanto tenho sido sempre um tipo de pessoa muito competitiva. O que eu não posso suportar, porém, é ela me ameaçar como a um de seus maus empregados. Isso começou a ocorrer após a morte de seu marido. Eu não sou um de seus empregados. Mantenho a mesma e exata posição que ela na Casa de Vinhos Baronet, e nos termos da firma eu espero ser tratada como uma colega. Isto tem sido a fonte de algumas de nossas recentes... divergências. - Acercando-se dele, diz: - Sabe, Eric, sentado aí sob essa luz suave você poderia ser seu pai há trinta anos. Foi bastante trágico ele ter morrido quando você e Peeper eram tão jovens, e você não poder estar amadurecido para conhecer meu irmão como um homem. Esta é a tragédia real.

- Sim.

- E assim, aí está a minha penosa decisão. Lamento ter que tomá-la, mas é necessário.

- Talvez não seja.

- O que está querendo dizer, querido? Inclinando-se para a frente na poltrona, Eric diz:

- Agora me permita chegar ao assunto que desejo tratar com você, tia Jo.

- Pois não. Eu simplesmente estou ardendo de curiosidade para saber o que se passa nessa sua bela cabeça.

- Como sabe, somos uma das últimas famílias na Califórnia proprietárias de estabelecimentos vinícolas de qualquer porte. Um por um, os outros foram encampados por empresas maiores, como uma conseqüência de fusões e aquisições, e eles retiraram lucros enormes dessa tendência, que tem possibilitado grande expansão dos negócios e aumento nos lucros.

- Entendo isto.

- Com o passar dos anos, temos sido abordados por várias empresas de ramos diversos: Uniroyal, Gulf and Western, a Pepsi, mas continuamos sempre como os donos. Nos recusamos a vender.

- Sim. A querida Sari tem se negado sempre a vender.

- E, como a senhora também sabe, eu vendi algumas de minhas ações da Baronet a Harry Tillinghast há algum tempo. Isso aborreceu mamãe, mas foi uma transação absolutamente particular entre Harry e eu.

- Aborreceu-a! Qual, se bem conheço a Sari, ela ficou furiosa!

- Agora, Harry apresenta uma oferta de aquisição da nossa companhia que eu creio que devemos levar em conta seriamente. Por cada ação da Baronet que possuímos, Harry oferece ações doze ponto cinco da Kern-McKittrick. Esta companhia negocia atualmente na base aproximada de 53, assim eu penso que você irá admitir que não é uma má oferta, e a Kern-Mckittrick é tão boa como o ouro. Não me surpreenderia se, quando chegarmos às negociações de verdade, conseguíssemos que Harry "adoçasse" mais um pouco sua oferta. Mas, para um lance inicial, não está nada mau.

- Muito interessante. Claro que Harry Tillinghast não é exatamente meu tipo de homem predileto.

- Nem meu. Mas nós não estamos falando em nos intimizar com esse homem. Estamos falando em "casar" com a sua empresa. E, como você sabe, no mercado a Kern-McKittrick é uma empresa de primeira linha quanto a títulos e ações. E o próprio Harry, embora podendo não ser simpático, é honesto, tem força e cumpre sua palavra.

- Isso é verdade.

- Se nos convertermos numa subsidiária da Kern-McKittrick, Harry se propõe a me colocar no posto mais elevado, com autonomia completa. Naturalmente, ele pode julgar que possui uma determinada dose de controle sobre mim, mas também terei uma certa dose de controle sobre ele.

- Oh? Como será isso?

- Harry está particularmente ansioso em impedir que o meu casamento com sua filha, de algum modo abalado, desmorone.

- Entendo. - Com a ponta dos dedos perfeitamente manicurados, Joanna toca em uma das tulipas amarelas num vaso alto cheio de flores, e a ajeita até ficar perfeitamente colocada. - Claro que a única coisa que realmente desejo é a sua felicidade, querido menino.

- Obrigado, tia Jo.

- E - diz ela voltada para a caprichosa tulipa - quanto a mim... além de um lote de ações da Kern-McKittrick, o que obteria?

- Vim aqui para isso. A você, Harry oferece um contrato exclusivo de publicidade relativa à Baronet pelo número de anos que você deseje especificar. E ele se propõe a lhe pagar a comissão integral sobre o seu faturamento.

- Hum, quanta gentileza do Harry.

- O que me agrada nessa transação é que será feita com alguém que conhecemos. Não se trata de algo estranho e anônimo como a Pepsi-Cola. Isso soa ainda como se mantivéssemos o negócio na família. Todos nós conhecemos Harry, e sabemos o que podemos esperar dele, e conhecemos seu registro de realizações bem-sucedidas.

- Sim. Você conservará a companhia, e Alix conseguirá manter seu marido muito atraente.

Eric pigarreia.

- O que eu desejo saber de você, tia Jo, é... se concordar com tudo isso, e espero que concordará, Lance concordará também?

Ela hesita, muito ligeiramente. A tulipa agora está na postura certa para seu agrado, e ela se afasta um pouco do arranjo floral, lançando-lhe um último olhar de apreciação crítica. E então diz:

- Sim. Creio que Lance fará o que quer que eu lhe sugira.

- Então - diz Eric, contando nos dedos -, com você, Lance e Harry me dando apoio, teríamos 55 por cento de votos por ações. O suficiente para aprovar a transação.

- E Sari estaria...

- Fora.

- Fora - repete Joanna. - Pobre e querida Sari. Como vai ela de saúde, Eric?

- Ela está simplesmente ótima. Oh, poderíamos lançar-lhe uma espécie de osso... convertê-la em presidente honorária do conselho da companhia, ou algo assim.

- Ela não irá gostar disso.

- Não, certamente que não - diz ele rapidamente -, mas pense no que a senhora e eu poderíamos realizar juntos, tia Jo. Poderíamos conduzir a Baronet na direção que ambos acreditamos que ela deve tomar. Podemos conduzi-la em qualquer rumo que escolhermos. Seríamos finalmente uma verdadeira equipe... pense nisso. Eu acho que devíamos aceitar a oferta, tia Jo.

Joanna move-se pelo aposento e então senta-se no sofanete ao lado de Eric, e imediatamente o ar entre eles é inundado com o aroma agreste e estonteante do perfume dela, que Eric conhece através dos muitos presentes natalinos de meias no passado, e que é sempre My Sin de Lanvin. Com uma das mãos, Joanna ergue a tampa de uma grande caixa prateada de cigarros. Dentro da caixa, seu quase obsessivo fetiche pela organização continua a revelar-se. Em ordem, nos compartimentos separados de madeira de sândalo, estão várias marcas e tipos de cigarros: com ou sem filtro, mentolados, sem mentol, compridos, curtos e extralongos. Cada um em seu próprio "cubículo" designado. Ela escolhe um cigarro com filtro, longo e fino, com uma boquilha de marfim, e o acende cuidadosamente com um isqueiro de prata feito para mesa. Este ato em si mesmo é significativo. Joanna LeBaron raramente fuma, e quando o faz, isto é um indício de que se acha perturbada, ou zangada, ou que tem algo em mente muito importante. O isqueiro estala ao ser fechado, e Joanna expele um fluxo de fumaça.

- Você está pronto para um outro drinque, querido - diz ela então. - Não se pode alçar vôo com uma asa apenas, você sabe. E enquanto está de pé, prepare-me um também. Creio que estou apta para algo um pouco mais sério do que xerez. Prepare-me desta vez um uísque puro. - E estende para ele seu copo vazio.

Eric ergue-se, acercando-se do bar, onde todas as variedades

de bebidas estão dispostas em decantadores iguais de bacará, com rótulos prateados apostos nos gargalos, e o odor desincorporado de My Sin o segue ao longo da sala de visitas. Ao preparar as bebidas, ele não pode evitar pensar em como são diferentes, em estilo, essas duas mulheres - Joanna e sua mãe - ao obterem o que desejam. Na técnica, Assaria LeBaron é toda afeita a planos sutis e políticos, e sob o balcão dos pagamentos - um tanto da chantagem antiquada nunca é declarado - uma jogadora astuta com ases extras ocultos sob a manga. Joanna, em contraste, é toda suavidade, brandura e sentimentalidade - excitante, feminina e flertadora, sedutora e... My Sin. Joanna é uma Irenne Dunne, e Assaria é... uma jogadora de monte de três cartas. E, no entanto, essas duas mulheres estão atrás da mesma coisa, cujo nome é poder. E Eric retorna com os drinques revigorantes.

- Ah, isto parece divino, querido - diz Joanna, pegando seu copo. Então, sacudindo um invisível fiapo da blusa do seu vestido criado por Adolfo, acrescenta: - Estou pensando... pensando.

- Dou um cent por seus pensamentos, então.

- A oferta é muito tentadora, não? - diz ela finalmente. - Tentadora para você e, devo admitir, para mim também. E quanto a Peeper?

- Mamãe anda adulando-o bastante ultimamente. Calculo que ele ficará do lado dela.

- E... Melissa?

- Tomei café com Melissa esta manhã, e lhe expus com muita franqueza o que tenho em mente. Claro que, mais cedo ou mais tarde, pretendo pôr todos a par do assunto.

- E o que Melissa disse?

- Ela me pareceu... bem, interessada. Mas um tanto preocupada. Tive a impressão esta manhã de que a mente de Melissa estava a léguas e léguas longe dali. Você conhece Melissa.

- Léguas e léguas além. Na Suíça, talvez.

- Suíça? Bem, mas o fato é que não precisamos de Peeper e nem de Melissa. Já contamos com muitos votos de acionistas sem eles.

- Querido, gostaria que isso fosse assim tão simples.

- Por que não é?

- Não é... Não inteiramente. Nós necessitamos de Melissa. Ou pelo menos poderíamos necessitar, dependendo...

- Por quê? Com você, Lance e eu, e...

- Não, Eric. Melissa pode ser muito importante. Melissa poderia ser essencial.

- Mas por que, tia Jo? Não entendo.

Rapidamente, ela amassa seu cigarro quase terminado num cinzeiro e, no mesmo movimento destro, esvazia o cinzeiro num pequeno compartimento. Tratando-se de Joanna LeBaron, mesmo os seus tocos de cigarros devem ser postos em ordem, cada um depositado em seu lugar apropriado. Ela toma um gole rápido de seu uísque. E diz: - Eric, há algo que você deve ficar sabendo acerca de Melissa...

Na Califórnia ainda é dia claro.

Na sala de Gabe Pollack na Península Gazette, em Palo Alto, a cópia de um texto ainda não editado acaba de ser deixada na sua mesa. Está datilografado sem capricho em papel ofício amarelo; Gabe pega-o e lê:

HERDEIRA PAGARÁ POR UMA APRESENTAÇÃO DE ROCK CONTROVERTIDA

A rica herdeira Melissa LeBaron de São Francisco deu ciência de que pagará de seu bolso e na íntegra a remuneração devida aos Dildos, o controvertido conjunto de rock cuja apresentação no Teatro Odeon na noite de quinta-feira passada foi interrompida por uma grotesca explosão de violência.

Anteriormente, os onze membros do conselho de diretores do Odeon tinham votado na proporção de dez contra um pela suspensão do pagamento relativo à apresentação do grupo, sob a alegação de que esta incluía um número considerado como agressão ao gosto do público, numa violação do contrato do conjunto com a diretoria do teatro. O voto dissidente pertencia à srta. LeBaron, conforme foi apurado junto a uma fonte inteirada hoje da situação.

No concerto de quinta-feira, irrompeu o pandemônio quando, durante um solo, o crooner do grupo, Maurice Littlefield, de 23 anos, foi mordido no braço por uma serpente de 2,10m de comprimento e que Littlefield usava como uma parte de seu número. Littlefield, que se faz anunciar como Luscious Lucius, passou então a golpear a serpente enorme até matá-la no palco do Odeon diante da platéia horrorizada.

Hoje a Gazette apurou que a srta. LeBaron resolveu pagar pela atuação do conjunto de seu próprio bolso. Ao que se sabe, essa remuneração ascende a algo em torno de cinco mil dólares. "Eu me sinto responsável, moralmente responsável", teria dito a srta. LeBaron. "Foi minha, e só minha, a idéia," Foi a srta. LeBaron que sugeriu a realização do concerto do grupo de rock, em fins de outubro, à junta de diretores do Odeon.

Melissa LeBaron é a filha da sra. Assaria Latham LeBaron e do falecido Peter Powell LeBaron de São Francisco. A família LeBaron possui e dirige a Baronet Vineyards, Inc., e outras empresas na Área da Baía de Frisco. A mãe da srta. LeBaron foi a principal patrocinadora das obras de remodelação do Teatro Odeon ano passado, ao custo de três milhões de dólares, embora não seja membro da diretoria do teatro.

Gabe aperta um botão em sua mesa e fala pelo interfone.

- Archie, poderia vir aqui um minuto?

Archie McPherson entra na sala, e Gabe sacode as folhas de papel amarelo diante de seu rosto.

- Presumo que isto seja seu.

- Sim, senhor.

- Muito interessante. Agora você se incomodaria em me dizer apenas quem é essa "fonte inteirada de perto" da situação?

- Sinto, senhor, mas a minha fonte de informação insistiu em manter isso absolutamente confidencial. Só pude obter essa história mediante tal promessa.

- Entendo.

- Mas lhe asseguro que a fonte é fidedigna. Cada palavra desse relato é verdadeira.

- Entendo - diz Gabe, olhando de novo para a folha de papel. - O modo como você escreveu isto: "Melissa LeBaron deu ciência... A srta. LeBaron teria dito"... Você não a citou diretamente, e no entanto colocou isso como se citasse as palavras dela. Assim, você está citando o que seu informante disse que ela teria dito, correto? Portanto, pressuponho que a sua fonte não é a própria srta. LeBaron.

- Correto, senhor.

- Permita-me fazer-lhe uma pergunta então. Tudo que desejo como resposta de você é sim ou não. Foi a mãe de Melissa a sua fonte de informação?

- Senhor, eu não posso...

- Eu disse sim ou não.

Archie olha para seus pés e sorri encabulado.

- Sim.

- Ótimo. Isto é tudo - e Gabe faz sinal para que ele saia, acenando com a mão.

Agora Gabe Pollack está realmente furioso. Desta vez ele não irá ficar sentadinho como um menino de colégio, de chapéu na mão, numa cadeira desconfortável na sala de estar abafada da ala sul da casa de Sari, aguardando que ela chegue e lhe dê um carão... esperando, sem sequer o oferecimento de café ou uma fatia de rocambole, enquanto ela o ameaça com o lado afiado de sua língua. Dessa vez ele enfrentará a leoa em seu próprio covil, e lhe dirá exatamente o que pensa de suas maquinações. Prontamente, ele disca o número do telefone particular de Sari LeBaron em sua mansão, e quando Thomas atende e, de início, hesita, Gabe diz:

- Diga-lhe que isto é extremamente urgente. No momento a voz de Sari soa pelo telefone.

- O que há? - diz ela jovialmente.

- Sari - diz Gabe muito devagar e cautelosamente -, eu gostaria de saber o que você pretende, afinal, fornecendo histórias aos meus repórteres sem o meu conhecimento.

- Histórias? Que histórias?

- Esta quanto a Melissa pagar pelo concerto de rock, por exemplo.

- Ora essa, Gabe, eu nada tive a ver com...

- Não minta para mim. Você tem me mentido o tempo todo, não? Fingindo estar zangada com uma história que editamos, quando se tratava de uma história que você mesma ajudara a engendrar. Eu devia saber. Sei muito bem como é que você age, Sari.

- Ora, Gabe...

- Você pode criar quanta discórdia e divergência queira no seio de sua própria família, e quanta discórdia e dissensão que deseje dentro de sua própria empresa. Mas quando tenta gerar discórdia e divergências em meu jornal, está indo longe demais, e eu não tolerarei isso.

- Gabe, por favor, deixe-me...

- Archie McPherson não está conduzindo uma vendetta pessoal contra Melissa. Você é que está dirigindo uma vingança pessoal contra Melissa, não me pergunte por quê, e Archie é apenas o seu pequeno instrumento. Bem, deixe meu jornal fora de suas pequenas lutas familiares e batalhas pelo poder, Sari..., entendeu? Deixe meu jornal e meus repórteres fora de qualquer coisa que esteja ocorrendo com a Baronet.

- Pode ser algo grande, Gabe. Alguma coisa está se processando..., tenho um palpite. E quando acontecer, seu jornal será o primeiro a obter a matéria. Será um furo de reportagem.

- A esta altura, eu não desejo mais nenhum de seus malditos furos de reportagem. E posso indagar por que, se deseja ter uma história publicada no meu jornal, faz isso pelas minhas costas, falando com o Archie e não comigo diretamente? Deixe-me pensar numa resposta pronta para isso. Para cada história que Archie escreva colocando Melissa, ou um de seus projetos, num ângulo embaraçoso, você conseguirá de mim que eu escreva outra reportagem acerca de Assaria LeBaron e todas as suas magníficas obras nesta cidade... remodelando a parte sul da Market Street, ou seja lá o que você deseje para exibi-la num ângulo favorável... certo? Trata-se sempre da mesma história com você, não é mesmo? Jogar um contra o outro. Por que matar um coelho com uma cajadada, se você pode matar dois ou três? Bem, esse pequeno jogo acabou, Sari.

- Querido Gabe. Querido e velho Gabe, querido Polly. Você está muito nervoso. Venha jantar aqui esta noite. Tomaremos champanhe, conversaremos.

- Há muito pouca chance para isso! - exclama ele, e, no

instante em que as palavras escapam de sua boca, percebe que está começando a parecer um pouco infantil. - O que está havendo afinal entre você e Melissa? Não que isso seja da minha conta, e nem que eu lhe dê realmente importância.

- Estou... simplesmente... tentando... colocar Melissa sob controle.

- Você vem tentando isso há cinqüenta e sete anos sem sucesso. O que a faz acreditar que possa consegui-lo agora?

- Ela não tem freios, Gabe!

- E onde está a novidade disso?

- Este é meu último cartucho. Nunca tinha tentado isso desse modo antes. E se tiver êxito...

- Você irá trazer Melissa sob controle levando as pessoas a rirem de sua mais recente escapada com um grupo de rock e uma serpente? Você só está fazendo asneiras, Sari.

- Estou procurando fazê-la, pela primeira vez na sua vida, ouvir-me com atenção, Gabe. Estou tentando fazê-la confiar no meu discernimento, ouvir meus conselhos, seguir minhas sugestões... para fazer o que, a longo prazo, pode ser unicamente a melhor coisa para ela. Isto é tudo o que desejo... o que seja melhor para ela! Não posso dizer muito para você sobre o que se passa na Baronet justo agora, porque não estou a par de todos os detalhes. Mas sei que, caso haja uma demonstração clara de intenções, terei que ter Melissa do meu lado, seguindo minhas instruções, confiando em meus julgamentos e agindo - para seu próprio bem - como eu lhe disser. Terá que entender que, neste assunto de negócios, sou mais sagaz do que ela.

- Bem, eu ainda não entendo por que reportagens de jornal como essa de agora irão trazer Melissa para o seu lado, Sari.

Há uma pausa, e então ela diz:

- Talvez você entenda quando eu lhe contar que, caso as coisas se processem às claras, e há possibilidade disso, talvez tenha de explicar a Melissa que me acho a par de uma história que, trazida a público, a arruinaria para sempre, em toda parte. Não simplesmente em São Francisco, mas em toda parte. E seria uma história que arruinaria algumas outras pessoas envolvidas na barganha.

- Bem, eu não pretendo deixar que você use o meu jornal como um instrumento para chantagear a sua filha.

- Eu não estou me referindo à Península Gazette. Estou falando das redes noticiosas, do Wall Street Journal, do The New York Times.

Gabe não diz nada.

- Agora - diz Sari -, está começando a ter uma noção do alcance do meu interesse? Meu querido Gabe, você é o meu mais

antigo amigo neste mundo. Por favor, acredite em mim, confie em mim, pois sei o que estou fazendo.

- Julgava que pelo menos podíamos ser honestos um com o outro, nivelar-nos em sinceridade.

- Estou sendo tão sincera com você o quanto me é possível. Agora, venha jantar aqui hoje. Jantaremos só nós dois.

- Esta noite não poderei. Estou atarefado.

- Bem, pelo menos procure confiar em mim. E lembre-se de que me deve muito. Afinal de contas, onde estaria você se não fosse eu?

- E onde você estaria se não fosse eu?

- Está certo. Devemos algo um ao outro. Pagos na mesma moeda. Mais ou menos.

- Está insinuando que eu lhe devo mais do que você a mim? Ela ri suavemente.

- Não se preocupe. Não estou fazendo qualquer contagem de meus pontos. Caro Gabe, estou contente que você não se mostre mais nervoso comigo. Adeus, querido Gabe. E... - acrescenta rapidamente: - ...publique a história, Gabe.

Após ter desligado, ele olha fixamente por um momento ou dois para a folha de papel ofício amarelo datilografada. Então, com muita rapidez, põe sua rubrica no canto superior esquerdo do papel, e o coloca na caixa de "A publicar".

No quarto 315 do Motel Marriott, Melissa LeBaron e o jovem chamado Maurice Littlefield estão fazendo amor em um dos pares de camas grandes.

- Oh, foda, querida... foda... foda... - diz-lhe ele, agarrando-a rudemente. - Oh, você fode bem, baby... como uma coelhinha... goze comigo, queridinha... goze comigo... - isto numa voz insistente, rouca.

Mas Melissa já está imaginando, se perguntando se fora isso o que desejara que acontecesse quando viera ali nessa tarde para conversar sobre a compensação financeira, se fora isso o que realmente planejara, e se tinha sabido no fundo, ou esperado, que isso poderia terminar desse modo, fazendo sexo com um rapaz bem mais jovem do que ela, num quarto comum de motel. Um motel cheio de pessoas em trânsito e vendedores retidos devido a vôos cancelados. Ela tinha esperado que isso acontecesse, e de algum modo deixado que ele soubesse de sua expectativa?

E contudo, quando ele a alcançara e tocara, sussurrando uma sugestão obscena, ela se sentira tomada por uma tal ansiedade que sentira que devia acolhê-lo em seus braços e em seu sexo. Ele lhe parecera tão suave, tão jovem e inexperiente, tão perdido e necessitado de conforto, que ela imediatamente aceitara sua exigência, e, assim, agora está acontecendo aquilo, quer ela esperasse ou não por esse ato.

Agora o ato sexual está terminado; ele se afasta dela e se deita no seu lado da cama, com um cotovelo calcado num travesseiro, e Melissa dele se aparta ligeiramente, sentindo-se desapontada e deprimida. Tentara fazer o melhor possível. Mas não tinha havido nem orgasmo, nem uma explosão de sensações, nenhuma carga ou corrente de vibração em seu corpo, nada positivamente. Lá fora, o sol invernal está se despedindo, e passa a cair de novo uma chuva leve, que desce em feitio de garoa pelo lado exterior das vidraças. Nessa luz mortiça, o próprio quarto parece encardido e descuidado, e mesmo as cortinas de tecido de algodão estampado e brilhante, escolhidas pelo decorador para tornar o quarto aconchegante e convidativo, parecem agora empoeiradas, descoradas. Lá fora, soa o leve chiado de pneus no asfalto molhado do estacionamento, e o ruído de portas de carros sendo batidas. "Eu devia estar em Capri", pensa ela, "dançando em Capri com um capriota." Atrás dela, ouve-se o som emitido por Littlefield acendendo um cigarro com um isqueiro, e uma aguda exalação. Seu corpo magro e pálido, com o peito estreito, ossudo, sem pêlos, está de costas para ela, mas ainda se acha no olho da mente de Melissa. A beleza está nos olhos do espectador, é claro, mas o que há no olho que o espectador exercita? O braço dele ainda está enfaixado, mas a bandagem acha-se manchada agora, cinzenta, e há ali um odor - um odor azedo, medicinal, e também do fumo de seu cigarro, e o cheiro adocicado e enjoativo de suor e esperma gasto. Ela devia saltar da cama agora, tomar um banho de chuveiro, secar-se com uma toalha felpuda, recolocar suas roupas, dizer uma pequena blague como despedida e seguir seu caminho. Mas não faz nenhuma dessas coisas, e continua deitada ali em meio à crescente escuridão, onde mesmo a visão de seu próprio corpo alvo, em forma graças à dieta, o ventre conservado liso graças à ginástica, os seios inclinados ligeiramente para um lado, e as inevitáveis marcas de tensão, só consegue enchê-la de desespero. Atrás dela há um sinal de movimento, quando Littlefield coloca suas peças íntimas, a sunga com o suporte atlético, do tipo que os rapazes usam. Há o estalinho do elástico da cintura da calça contra o seu estômago.

A inspiração quase visionária de Melissa de apenas uma hora atrás parece ter desaparecido. No trajeto de táxi, rumo ao motel, ela tivera aquela louca idéia. Aquele conjunto de rock tinha talento, não havia dúvida alguma quanto a isso. Suas platéias juvenis o amavam, seu som era legal, estava na moda, suas batidas rítmicas eram novas, e sua mensagem atual. Mas eles certamente não tinham nenhum senso de organização, nenhum faro para negócios. Fora dos palcos, sem dúvida, eles deviam brigar e discutir uns com os outros. Ela poderia se tornar sua

empresária. Poderia conduzir sua publicidade, organizar suas apresentações, planejar suas turnês e ensinar-lhes como controlar o dinheiro. O nome que tinham escolhido para seu conjunto era, claro, simplesmente horrível, mas ela poderia insistir para que o mudassem. Ela mudaria o nome para algo mais musical, mais alegre e provocante, mas com um toque malicioso mais sutil, algo memorável como The Beatles, The Who, The Rolling Stones. No táxi, ela pensara em vários nomes nesse estilo, mas eles lhe escapam agora. Tinha certeza de que eles usavam drogas... todos esses grupos de rock não as usam? Mas quando se convertesse em sua empresária, mudaria tudo isso também, pois ao longo dessa rota não se acha o caminho para a fortuna e o estrelato, o disco de platina e o de ouro. Oh, sim, esse era um dos nomes em que ela pensara no táxi. Ela os chamaria Os Platinados, e, para maior efeito, não poderiam eles tingir seu cabelo de louro platinado? Tal como David Bowie? Talvez. Pensar em idéias jovens, ela amiúde se dizia, manter-se por dentro do que os jovens estão falando, fazendo, ouvindo... isso é o modo de se permanecer jovem. Aquela serpente fora um estratagema deselegante, tanto como não confiável. Sob a sua orientação, não haveria mais serpentes. Tudo isso e algo mais ela pensara dentro do táxi, mas agora tudo tinha perdido seu atrativo. Finalmente, ela diz:

- Tenho algo para você.

Ela se inclina sobre a beirada da cama e alcança sua bolsa, que está próxima da pilha de suas roupas ao lado do leito. De uma das divisões internas da bolsa ela pesca o cheque dobrado e o entrega a ele, sem comentários.

Deitado de costas com o cigarro apertado entre os dentes, ele examina o cheque à distância, com o braço esticado, girando-o desse modo e até que possa lê-lo no fiapo de luminosidade que resta no quarto. Então assovia suavemente e diz:

- Oh, mamãe! - Aí então fica de pé sobre o colchão e exclama: - Oh, Mamãe Querida! Você é a minha Mamãe Querida! Você é a Mamãe Querida deste rapaz, sim, é verdade!

Melissa salta da cama, pega sua calcinha com bainha de renda e trata de vesti-la. Então pega seu sutiã e diz, zangada:

- Não sou sua Mamãe Querida! Não sou nada sua realmente. Não pense que estou lhe dando esse cheque para que você vá para a cama comigo! Eu ia dá-lo a você de qualquer jeito. Esse cheque foi preenchido antes que eu saísse de casa. Esse cheque é uma compensação por vocês terem se apresentado no teatro, nada mais. Estou dando-o a você porque pensava que seu conjunto o merecia, e porque me sentia responsável. Eu não pago a homens para fazerem amor comigo!

Mas ele já deixou a cama e está agora no banheiro, urinando

ruidosamente no vaso sanitário adiante da porta mantida aberta, e certamente nem a ouviu.

Melissa pega sua blusa e a saia, e grita:

- Ouça bem! Não me chame de sua Mamãe Querida! Estou lhe pagando por um show marcado, não pelo seu nojento modo de fazer sexo! E não pense que poderá me procurar para obter algo mais. Eu não pago para fazer sexo, e não o peço! Assim, não pense que pode voltar a mim e oferecer mais sexo, e obter mais dinheiro, nem julgue que por eu tê-lo deixado fazer sexo comigo pode voltar de novo e me chantagear! Eu não lhe pedi para fazer amor. E seu sexo fede... ouviu isto? Seu sexo cheira mal, e eu o detesto! Ouviu bem? Fede!

A única resposta é o som da válvula de descarga.

- Fede! Você é um amante ordinário!

Naturalmente, isto se mostra gritantemente distante da proposta que ela pensara oferecer-lhe, em seu caminho, no táxi, para o motel. E a única coisa de que ela tem certeza no momento é que certamente não tornará a vê-lo ou ouvir falar dele.

Na casa da Washington Street, 2.040, Assaria LeBaron decidira que suas relações de negócios com Archie McPherson estavam encerradas. Ele traíra a sua confiança, e assim isso seria o seu fim. Ele tinha esgotado qualquer serventia que possuísse, e agora seria dispensado. Certamente, ciente agora de que ela e Archie tinham estado de conluio, Gabe iria despedi-lo fosse como fosse, e Archie iria mudar-se para alguma outra parte do país, saindo de suas vidas, e que bons ventos o levassem. E no entanto... no entanto, há mais um modo em que ele poderia mostrar-se útil, e talvez essa via deva ser explorada. Mas Sari pensará nisso mais tarde. Exatamente agora, há algo mais a ocupar-lhe a mente. Sua neta Kimmie acaba de aparecer para o chá da tarde. E as duas estão se movimentando agora pelo comprido corredor onde se acham os retratos da família, lado a lado, na direção da sala de estar onde Thomas preparou o serviço de chá, uma bandeja com sanduíches pequenos, e o necessário para o martíni de Sari, que ela geralmente prefere ao chá.

- O tonel de vinho do meu bisavô - diz Kimberley LeBaron, quando elas se aproximam daquela relíquia.

- Seu tataravò - corrige Sari. - Numa família, é importante declinar corretamente as gerações. Seu bisavô era Julius. Mario era seu pai, assim há dois a considerar. E veja - Sari diz de repente -, ele está gotejando. Vê aquelas pequeninas contas de umidade recolhidas entre as aduelas? Isto ocorre em determinadas espécies de temperatura. E significa que alguma coisa, alguma mudança, está se produzindo dentro dele. O vinho, saiba você, não morre. Ele prossegue crescendo,

mudando, durante séculos... para sempre, se você permitir. Um dia desses eu gostaria de levar você até os vinhedos, e lhe dar uma pequena aula sobre a história do vinho. O conde Haraszthy... tudo. Você gostaria disso? - Sari sempre manteve um lugarzinho especial em seu íntimo para essa estranha menina.

O que há acerca de meninas-moças que Assaria LeBaron sempre achou tão enganador e intrigante? Papá LeBaron deve ter captado isso também, desejando que todas as crianças da família tivessem seus retratos pintados naquela faixa de idade. Em Kimmie, há essa pequena protuberância em torno de suas bochechas, olhos e queixo - traços da garotinha gorducha e que ela ainda retém -, um lembrete de que o rosto não terminou ainda de se formar, e ela não faz idéia ainda do que irá ser. Isto proporciona a Kimmie um ar interrogativo, controverso... uma expressão de antecipação intrigante, mas agradável. O nariz não assumiu ainda uma forma definitiva também, mas já há um vislumbre de narinas que um dia irão inflar-se imperiosamente quando o rosto assumir o comando de uma situação, e emitir uma ordem polida mas firme. Em Kimmie, sentada ali com a sua blusa branca nova e saia escocesa branca e verde bem passada, as mechas de cabelo castanho penteadas com esmero sobre a testa, é possível para Sari ver-se a si mesma naquela idade. Sim, Kimmie está fadada a ser uma bela mulher, e Sari fica contente em ver que Kimmie herdou sua própria e bela aparência. Isto pode parecer vaidade da parte de Sari. E daí? É mesmo.

- O conde Haraszthy?

- O conde Agoston Haraszthy, um nobre húngaro que veio para a Califórnia com 49 anos. Ele começou tudo. Trouxe com ele umas cem mil vinhas da Europa - centenas de variedades - e plantou-as aqui. Ele tinha visão. Mais tarde, foi para a Nicarágua, onde tentou a mesma coisa, e para sua desventura foi devorado por crocodilos.

- Conte-me a história, vovó.

- Conte-me uma história - diz Sari. - Você se lembra de quando era uma garotinha, e me pedia para lhe contar uma história? E eu dizia que tinha duas histórias, uma sobre uma boa menininha, e outra sobre uma menina má, e qual delas você queria ouvir?

- Não me lembro disso, vovó.

- Você sempre quis ouvir aquela sobre a menininha má, é claro! Ou isso foi com Melissa?

- Eu não me recordo disso, vovó.

- Bem, pode ter sido... outra pessoa. - Sari move sua cadeira de rodas até a mesa de chá. - Agora, sente-se bem ali onde eu possa vê-la, Lambchop - diz então. - E eu sei como gosta de seu chá. Um tablete de açúcar e uma fatia de limão. Sirva-se dos sanduíches.

- Vovó, por que a senhora e o papai estão zangados um com o outro?

- Ora essa, o que a faz pensar tal coisa, Kimmie?

- Aconteceu eu ter ouvido ele e mamãe falando sobre a senhora outro dia. E ele a chamou de uma... bem, não foi uma palavra muito bonita.

- Bem - diz Sari com facilidade -, seu pai e eu estamos tendo uma pequena divergência nos negócios agora, isto é tudo. Não é nada de pessoal. Eu gosto muito do seu pai, você sabe disso. Desacordos nos negócios nada têm a ver com desacordos familiares. - Ou têm? pergunta-se ela. Como podem não ter, quando a família é o negócio em causa, e esse negócio é a família? E agora - acrescenta ela alegre e espertamente -, gostaria que eu lhe contasse tudo sobre o conde Haraszthy? Ele era uma figura muito pitoresca.

Mexendo o chá e espremendo a fatia de limão contra um dos lados da xícara com as costas da colher, Kimmie assume um ar pensativo. E diz:

- Talvez em outra ocasião. - E a seguir: - Me fale sobre o bisavô.

- Tataravô, você está querendo dizer?

- Não, eu me refiro ao meu bisavô. Ao bisavô e à bisavó, que estão enterrados sob aquelas nogueiras em Sonoma. Por que foram sepultados lá, e não no cemitério de São Francisco, junto com o resto da família? Você está sempre me prometendo que algum dia me contará essa história, vovó.

Sari observa com atenção o rosto da neta. Quantos anos tem Kimmie agora? Quinze. Já com idade suficiente para ouvir a história, certamente.

- Ora, foi uma história muito triste - começa a dizer Sari.

- Conte para mim, vovó!

Mas por onde começar? Com a mama LeBaron interrompendo o solene êxtase da missa? Misereatur tui omnipotens, Deus et dismissis peccatis tuis. ... Misereatur vestri omnipotens Deus et dismissis peccatis vestris, perducat vos ad vitam aeternam. Induligentiam, absolutionem, et remissionem... E Constance LeBaron erguendo-se embriagadamente de seu banco, e começando a se dirigir ao altar, gritando: "Indulgência... absolvição... haverá qualquer vida eterna para mim?" E várias mãos tentando retê-la, procurando persuadir a mulher embriagada a retornar ao seu banco, parar de tentar perturbar o ofício divino - mas não, decide Sari, não começará daí. Deixará essa parte de lado. De mortuis. Ainda que fosse naquele dia em que aquilo acontecera.

- Bem, para se entender o que aconteceu - começa Sari -, é

preciso inserir os fatos no contexto da época. Houve dois períodos realmente terríveis na história deste país, e um se deu logo atrás do outro. Foi muito antes de você ter nascido, mas você pode ler a respeito em seus livros de história, no colégio. O primeiro foi a Lei Seca, e o segundo, a Grande Depressão. Já leu a respeito desses dois períodos?

- Oh, sim.

- O primeiro, a Lei Seca, foi a ruína dos fabricantes de vinho. Muitos agricultores cobriram, arando, suas vinhas e tentaram converter essas terras em cultivos em série - tomates, feijão, amêndoas, nozes e damascos. Mas há algo acerca desses nossos vales - Sonoma, Napa, trechos do San Joaquin -, uma combinação de solo e clima, os dias quentes, os frios, as noites secas, que nos dá a impressão de que Deus os destinou apenas para o cultivo de vinhas, e nada mais. As novas colheitas resultaram fracas, nada a não ser uvas desejava medrar naquele solo.

"Nesse meio tempo, os artesãos - os tanoeiros que faziam nossos toneis, os degustadores, os misturadores - partiram para outros negócios e logo esqueceram sua arte. A maioria de nossos tanoeiros era de italianos, e muitos deles voltaram para a Itália. No decurso de pouco mais de uma década, fabricar vinho tornou-se uma arte perdida. E, nesse ínterim, seu bisavô Julius LeBaron, imprudentemente, como veio a se constatar, continuou a viver com muito luxo. Na grande casa da Nob Hill, que ficava onde é hoje o posto da Standard, na Califórnia Street, e com muitos criados, além das viagens ao Havaí no inverno, a bordo do Lurline. Estava vivendo de seus investimentos, ele dizia. E então aconteceu o crack da Bolsa de Valores em 1929, e todos os investimentos simplesmente... desapareceram. Sumiram. Evolaram-se com o vento. E então...

- E então? Então o quê?

- Ele se tornou um homem arruinado. Um dia, em 1930, num domingo após a missa, ele escreveu uma carta dispondo como ele e sua mulher desejavam ser sepultados. E então tomou-a pela mão e levou-a para os vinhedos de Sonoma, ou o que tinham sido antes os vinhedos. Eles se ajoelharam, lado a lado, entre as vinhas mortas, e disseram uma pequena prece, pedindo ao Todo-Poderoso perdão pelo que estavam prestes a fazer. Então ele encostou o cano de sua pistola - todos os proprietários de vinhedos portavam armas, fazia parte do uniforme - na têmpora de sua mulher e fez fogo, repetindo o ato consigo mesmo. Eles foram encontrados ali algumas horas depois.

Kimberley permanece calada por um momento. Então diz:

- E o que a senhora fez, vovó?

- Eu? O que fiz? Seu avô ficou completamente arrasado. Para ele, a morte de seus pais parecia o fim do mundo. Imediatamente nós nos demos conta das enormes dívidas. Esta casa - a que ele nos dera como um presente de casamento - nem sequer fora paga. Mas eu disse ao meu marido: "Ouça, nós ainda temos as terras. As de Sonoma e as de Napa, e assim por diante." E prossegui: "Temos a terra, e a Lei Seca está chegando ao seu término. Vamos para lá e comecemos a replantar as parreiras. Em cinco anos, teremos uma colheita!" E foi o que fizemos, ele e eu, sua irmã Joanna trabalhando ao nosso lado. Os dias inteiros firmados nos joelhos e mãos, plantando vinhas, e então, no fim do primeiro ano, fizemos a repicagem. Você devia ter visto as minhas mãos, calosas, cobertas de cortes devido às enxertadeiras. Eu costumava pensar que nunca veria as unhas de meus dedos limpas de novo, tão enraizada estava a sujeira sob elas.

"Trabalhávamos junto com lavradores - os chinas, os trabalhadores mexicanos entrados ilegalmente no país, e os okies, que eram trabalhadores rurais itinerantes, vindos de zonas assoladas pela estiagem longa. Eu- sei que não eram nomes bonitos para os chamarmos, mas eles eram assim denominados naquela época. Nós mesmos éramos trabalhadores do campo. E me lembro de estar parada ali, no parreiral, com os chinas, os mexicanos e os okies da Dust Bowl, gritando, fazendo soar gongos, tentando afugentar os corvos, milhares de pássaros insaciáveis, que estavam em vias de devastar nossa primeira colheita. E a arruinaram. Mas nós éramos jovens ainda, e cheios de flama e disposição de luta, e decidimos que nada nos desencorajaria. Assim fomos em frente, e quando a colheita do ano seguinte foi bem-sucedida, ficamos felizes com o que havíamos feito. E agora, eis onde nos encontramos. Nesta grande Califórnia, onde a agricultura é a indústria número um, o nosso segmento é o terceiro em tamanho, com um volume de negócios da ordem de oito bilhões de dólares por ano, como li outro dia no Wall Street Journal.

Uma vez mais o rosto de Kimberley ganha um toque meditativo. Finalmente, ela diz:

- É uma história maravilhosa, vovó. Mas há uma parte que eu não entendo.

- E qual é ela, Lambchop?

- Se o bisavô e a bisavó estavam sozinhos nos vinhedos naquele dia em que se mataram, como alguém sabe que foi assim que tudo aconteceu... que ele atirou nela primeiro, que se ajoelharam e fizeram uma pequena oração?

- Ah! - grita Sari, inclinando-se para a frente em sua cadeira de rodas. - Eis aí a pergunta de 64 mil dólares! Exatamente! Quem sabe como aquilo aconteceu realmente? Talvez ela tenha atirado nele primeiro! Mas sabe que você é a primeira pessoa em três gerações a demonstrar a perspicácia ou a coragem de fazer essa simples indagação? Você está amadurecendo, Kimmie! Alguém começa a amadurecer quando começa a questionar as histórias que os mais velhos lhe contam! Boa menina! Tudo que posso dizer é que se trata da história que eles gostam de contar, mas por que você deveria acreditar piamente nela? De qualquer maneira, essa é a história desta família inteira, não é mesmo? Incríveis... ficções... mentiras... ilusões... - E por que, de repente, Sari está com os olhos úmidos... gotejando como o velho tonel de vinho na galeria dos retratos da família? - Mentiras... ilusões... trapaças! - Ela remexe na bolsa em seu colo, retira um lenço e enxuga os olhos molhados.

- O que há, vovó?

- Não sei. Por que estou chorando? A história desta família... burlas e exageros. Oh, o que deu em mim? O que está acontecendo com esta família, Kimmie? Simplesmente não sei!

- Por favor, não chore, vovó. Eu a amo, vó! Mas seu choro não cessará.

- Eu amei muito seu avô - soluça ela. - Por que ele tinha que fazer isso comigo?

 

Uma visita de kimmie inevitavelmente faz Sari lembrar-se de seus tempos de colégio. Comparativamente, ela pensa, Kimmie tem tido uma vida escolar cômoda.

Para começar, embora a sra. Bonkowski tivesse êxito em lhe ensinar inúmeras palavras em inglês durante aquele seu primeiro verão em Terre Haute, Sari não tinha aprendido absolutamente a ler. Portanto, embora teoricamente tivesse idade bastante para ser matriculada no terceiro ano, ela fora colocada numa turma do jardim de infância. Ela pode recordar a si mesma, sentada, com dificuldade, numa daquelas cadeiras pequenas, os joelhos comprimidos desconfortavelmente sob uma pequenina carteira escolar numa sala cheia de alunos de cinco anos, sentindo-se constrangida, estranha e tola enquanto os guris de cinco anos recitavam o alfabeto e grafavam palavras simples cujas letras não faziam qualquer sentido para ela. Sua professora, a srta. Hazeltine, parecia uma velha senhora muito severa e mal-humorada, e quando chegava a vez de Sari repetir as palavras, e não o conseguia, ela simplesmente a punha de lado e prosseguia perguntando com impaciência ao aluno seguinte. Todas as manhãs, às onze horas, era exigido de todos os alunos da classe da srta. Hazeltine tirar uma soneca de meia hora. Pequenos tapetes eram trazidos e desenrolados no chão em fileiras, e cada criança se enroscava em seu determinado tapete para um cochilo. Mas Sari já era muito crescida para esses cochilos matinais, e seu tapete era pequeno demais para ela obter qualquer grau de conforto, e por causa de seu desassossego e voltas no tapete e incapacidade de dormir, ela era recriminada pela srta. Hazeltine por tentar perturbar a turma. "Vejo que está decidida a não ser outra coisa que uma criadora de problemas", costumava dizer-lhe a srta. Hazeltine. Nesse período, quando Sari buscava fazer amizade com meninos e meninas mais de acordo com a sua idade nas salas de aula de turmas mais adiantadas, eles a tratavam como se ela fosse uma espécie de anomalia. Logo eles arrumaram um apelido zombeteiro para ela: "Polaca Calçuda." Quando ela tentava explicar-lhes que era russa e não polonesa, e que isto era uma diferença importante, eles simplesmente riam dela e se afastavam. Naturalmente, ela sentia muita vergonha em falar sobre isso a Gabe Pollack ou à sra. Bonkowski, e assim, quando um deles lhe perguntava: "Como se saiu na escola hoje?" ela tentava sorrir, mentir e dizer: "Muito bem!"

Mas, secretamente, ela se convencera de que nunca aprenderia a ler em inglês. Ouvira dizer que as leis americanas estipulavam que todos os meninos ou meninas americanas deviam freqüentar o colégio até a idade de dezesseis anos. A monótona e horrível eternidade de oito longos anos de jardim de infância - em sua carteira escolar muito pequena e no seu tapetinho minúsculo para sonecas - assomava desagradavelmente à sua frente, e a srta. Hazeltine nada fizera para anular a precisão desse descortino.

Então - deve ter sido quase na metade daquele período de jardim de infância - uma professora do terceiro ano, a srta. Sharp, prestou-lhe atenção. A srta. Sharp, apesar de seu sobrenome, conotando rigidez, severidade, não era nada severa. Ela era natural, suave, jovem e bonita, com um rosto e um corpo que não pareciam conter nem cantos nem ângulos. Tudo nela era uma série uniforme de curvas e suaves elipses. A srta. Sharp começou atendendo Sari após as aulas para instruí-la em sua leitura, com paciência e calma. Sari recorda particularmente uma das técnicas de ensino da srta. Sharp. Ela conseguiria fazer Sari decorar letras de canções. E Sari relembra: Venham para a igreja do bosque, Venham para a igreja do vale - Não há lugar tão caro à minha meninice...

E assim por diante. E então ela fazia Sari entoar as canções enquanto lia as palavras no texto impresso da letra da canção. Quando elas cantavam e liam, Sari de repente evocaria sua própria mãe cantando para embalá-la, quando ela era criancinha, em iídiche, e as palavras de uma canção que rezava assim: "Pequena rosa vermelha, pequena rosa vermelha... pequena rosa vermelha da charneca..." Isto era tudo que ela conseguira lembrar daquela canção, apenas um fragmento, mas fora subitamente capaz de rever claramente o rosto materno, e sentir o cheiro do carvão aceso no fogão, e os pães assando no forno, e ouvir, lá do exterior da casa pequena, o pregão do amolador de facas e tesouras: "Afiem as facas, senhoras!" -, quando ele passava pelas ruas da aldeia. Um dia, a srta. Sharp apareceu usando preso no peito de seu vestido com um broche de camafeu, um cachecol vermelho vivo com uma franja dourada tão parecido com o cachecol da mãe de Sari, que ela pôde crer que sua mãe de verdade lhe fora restituída.

As escarpas de Maaxwelton são agradáveis, Onde cedo o orvalho cai...

E mesmo canções em francês:

Frère Jacques, Frère Jacques Dormez-vous...?

E então o milagroso momento chegou quando, sem prévio aviso, aqueles pequenos rabiscos indecifráveis com tinta preta na página impressa se transformaram em letras, e as letras em palavras, e estas em frases, e as frases numa história que não só fazia sentido como era emocionante. E de repente Sari podia ler uma página inteira de um livro sem cometer um erro, e depois duas páginas, e por fim um capítulo inteiro. Foi quando a srta. Sharp informou que ela estava pronta para se juntar às crianças da sua própria idade do terceiro ano.

Em seu primeiro dia na nova turma, houve uma maratona ortográfica e Sari saiu vencedora! Ela era a estrela!

E ao término de seu primeiro ano escolar, foi-lhe comunicado que ela poderia pular o quarto ano e ingressar diretamente no quinto.

A essa altura, é claro, Sari estava com um ano a menos do que os outros meninos e meninas de sua turma. Eles se negavam a ser seus amigos não apenas porque ela era mais nova, mas porque era muito inteligente.

Mas foi nesse quinto ano que Sari Latham tomou conhecimento das... irmãs Van Dusen.

As irmãs Van Dusen eram um espetáculo à parte.

Coralee e Roxanne Van Dusen tinham, respectivamente, doze e treze anos, e no entanto estavam somente no quinto ano. As duas deviam estar adiantadas na escola, é claro, mas em vez de lhes ser permitido pular um período, as Van Dusen tinham se atrasado um ano. Isto não incomodava o mínimo as duas irmãs. Elas desprezavam a escola e detestavam seus professores, que, por sua vez, as desdenhavam e detestavam. Coralee e Roxanne Van Dusen estavam acima de tudo isso. Elas circulavam pelos corredores da escola como grandes duquesas num iate, e quando paravam, faziam pose em seus sapatos de salto alto, os quadris e os ossos pélvicos projetados para diante ao estilo dos modelos das casas de moda da época, soltando risinhos e sussurrando suas pequenas confidencias e segredinhos uma para a outra. As irmãs Van Dusen não tinham amigas, mas não ligavam para isso. Elas eram aristocratas, bastando a si mesmas, e torciam ô narizinho e olhavam do alto, com desdém, para todos os que não eram membros de seu círculo particular e escolhido.

As Van Dusen não eram ricas. Nenhuma criança na escola de Sari o era. As crianças ricas de Terre Haute viviam juntas em uma outra parte da cidade, e freqüentavam algo chamado Country Day, ou mais distante ainda, numa região do universo que era vagamente conhecida como "O Leste". As crianças ricas eram filhos de fornecedores de carnes, donos de cervejarias, proprietários de fábricas de aparelhos sanitários ou de oficinas de pintura e envernizamento, fábricas de caixas, e de papel e de laminação. Nunca se viam essas pessoas. E no entanto as irmãs Van Dusen, que nunca tinham conhecido quaisquer dessas pessoas, assumiam toda a sua suposta altivez e ares de superioridade.

Com seu corte de cabelo curto de senhora estilizado, as irmãs praticamente pavoneavam-se em todos os sentidos. Elas usavam não somente sapatos de salto francês inseguros, mas também as saias bem curtas e ousadas que estavam prenunciando a Época das Melindrosas. As chocantes irmãs estavam cinco anos à frente de sua época! Elas pintavam os lábios e empoavam as faces com um toque branco como giz do pó facial Freeman, cujo estojo diminuto custava 25 cents. Além disso, as irmãs tinham seios, e mais do que isso, usavam sutiãs para os cingirem bem e obterem a imagem de busto liso em moda então. As irmãs Van Dusen eram o assunto do dia em Terre Haute, até mesmo do condado de Vigo inteiro. Dizia-se que uma noite Coralee e Roxanne Van Dusen saíram e namoraram com rapazes que guiavam

quatro automóveis Overland, e chegou-se até a sussurrar que as irmãs não se importaram de "ir até o fim", fosse o que fosse que isso significasse. Seu círculo de conhecidos, segundo se dizia, estendia-se bem além dos limites da cidade e marcos da comarca... tão distantes como o dos soldados aquartelados em Camp Atterbury!

No colégio, as irmãs Van Dusen nunca diziam olá a ninguém. Elas simplesmente faziam seus comentários impertinentes ou formulavam perguntas rudes, e davam meia-volta. Mas o que mais impressionava Sari acerca das Van Dusen era o fato de que, de algum modo, elas tinham conseguido alcançar uma condição de adultas instantaneamente, e haviam passado da meninice para a plena condição de adultas sem terem de ser incomodadas com quaisquer das dores ou inseguranças do crescimento ou as dúvidas sobre si mesmas, próprias da adolescência. Elas eram pessoas acabadas. Não estavam apenas ali, no mundo maravilhoso e na paisagem da plenitude de crescimento, mas pareciam pertencer a ele, estar à vontade ali, e nunca terem vivido em outra parte. Elas pareciam sempre estar à vontade acendendo seus cigarros Murad e (dizia-se) provando seus frascos prateados de bebida forte. Não era bem o caso de Sari invejar ou admirar as irmãs Van Dusen. Era mais o fato de que imaginava se seria possível a alguém tão tímida e insegura como ela ingressar com aquela suprema autoconfiança no mundo de homens e mulheres maduros que falavam de modo adulto e realizavam coisas adultas.

Quando Sari passou para o sexto ano, as irmãs Van Dusen estavam ainda no quinto. Coralee e Roxanne tinham sido reprovadas de novo, um fato que elas pareciam encarar como uma deliciosa piada particular. Na realidade, as irmãs freqüentavam as aulas apenas esporadicamente - somente quando, dizia-se, o fiscal que vigiava os gazeteiros ia procurá-las. E quando elas apareciam no colégio, gastavam a maior parte do tempo ali juntas, retocando seus cabelos curtos, sussurrando, e desses sussurros ocasionalmente captavam-se palavras e frases tais como "ressaca", e "estou naqueles dias", e "pileques". Sari tinha plena certeza de que as irmãs sequer se davam conta de que ela existia, tendo como certo que nem a notavam, já que nem uma vez tinham relanceado os olhos na sua direção. E assim ela se surpreendeu um dia ao verificar que a sua presença tinha pelo menos causado uma passageira impressão em suas vidas chamativas e glamourosas.

Tornara-se um fato na vida de Sari que as únicas amigas de verdade que tinha no colégio eram as crianças menores que ela chegara a conhecer durante aqueles primeiros meses no pré-primário. Muito jovem - e, de novo, muito inteligente - para ser tolerada pelas suas atuais colegas, Sari era ainda tratada com carinho pelas crianças menores. Ela se juntava a elas na hora do lanche e dos recreios, participava

de seus jogos e, por ser três anos mais velha, amiúde era escolhida como capitã de suas equipes. Um dia, durante a hora do lanche, ela viu as irmãs Van Dusen caminharem na sua direção, arrogantemente, em seus sapatos de salto alto e fino. Ela esperara passar pelas duas sem ser notada, como de hábito, mas naquele dia, por algum motivo, as Van Dusen pararam de repente e plantaram-se à sua frente.

- Nós sabemos tudo sobre você, Polaca Calçuda - disse Coralee Van Dusen do seu jeito brusco e confrontador costumeiro.

- Nós sabemos - repetiu Roxanne, mascando ruidosamente seu chiclete.

- Nós sabemos por que você só brinca com os guris.

- Nós sabemos, Polaca Calçuda. Não é porque eles gostem de você. Não alimente essa brilhante idéia.

- É porque os guris são os únicos em quem você pode mandar! Então elas se afastaram, balançando os quadris, as saias curtas emitindo um ruge-ruge. E Sari ficou parada ali, sozinha, no corredor da sua escola, durante vários minutos, quase em prantos. Em seus modos mundanos e conhecimentos, estariam elas com razão?

Talvez o que as irmãs Van Dusen -tinham dito fosse verdade.

Talvez Sari não pertencesse a nenhum mundo afinal.

Talvez nunca viesse a pertencer.

As irmãs Van Dusen não voltaram a falar com ela. Quando Sari alcançou o sétimo ano, elas simplesmente desapareceram.

Em casa, a situação era um pouco diferente. Mas ali era o mundo de Gabe Pollack e da sra. Bonkowski, e Sari não pertencia realmente nem a um nem a outro. Em casa, Gabe Pollack gostava de conversar, e evidentemente apreciava ter Sari como sua principal ouvinte. À noite, sentada na cama, abraçando os joelhos, no quarto que compartilhavam na Wabash Avenue, ela o ouvia com atenção.

- Sabe qual é a arma mais poderosa do mundo, Sari? - perguntava-lhe ele.

- Mais poderosa do que qualquer artefato bélico? Mais poderosa do que a conta bancária do mais rico milionário?

- Qual é, Gabe?

Ele lhe sorria, esticava o braço até a cômoda baixa que ficava entre as duas camas e pegava um lápis.

- Isto - dizia. - Mais poderoso do que a espada. Com este pequeno lápis, podem-se escrever palavras. Palavras podem ser dispostas em frases. As frases podem expressar idéias. As idéias podem mudar a mentalidade dos homens. E a mente dos homens pode mudar o mundo.

Numa análise retrospectiva, as noções juvenis de Gabe não

parecem muito impressivas ou originais, mas para Assaria, seis anos mais moça que ele, elas pareciam tanto profundas como fascinantes.

Era naquela cômoda que ele se sentava, muitas noites após o trabalho, e escrevia suas histórias. Estas tinham um duplo objetivo. Serviam para ajudar Gabe a aperfeiçoar seu domínio do idioma inglês, e também, algum dia, poderiam, como ele esperava, ser vendidas ao editor do jornal, para que, assim, ele pudesse chamar a si mesmo "um jornalista de verdade", deixando de ser apenas um entregador de jornais. Freqüentemente, quando terminava de escrever uma história-reportagem, ele a lia em voz alta para Assaria. As histórias eram sempre baseadas em algum aspecto da vida citadina que ele observara durante seu serviço nas ruas, e uma, bem característica, começaria assim: "Hoje, numa rua movimentada do centro de Terre Haute, um pobre negro engraxate estava oferecendo seus serviços aos homens de negócios da cidade quando estes passavam perto, gritando: Um brilho, senhor? Um brilho, senhor? De repente, como se saído de parte alguma, e por nenhum motivo que fosse claramente perceptível para os curiosos, um janota, moço e com um sorriso de zombaria afivelado no rosto e um ar de menosprezo, investiu contra o meninote negro e, com a biqueira de seu sapato bem polido, chutou-o..." As histórias tinham com freqüência uma moral - o triunfo ou a defesa dos oprimidos ou dos pequeninos - e Assaria achava-as belas e comoventes. E no entanto Gabe não conseguira vender nenhuma delas. Mas permanecia jovialmente otimista, e continuava a colocar suas histórias no escaninho da mesa do editor pela manhã quando chegava para o trabalho.

- Isto é a América - dizia ele para Assaria. - Esta é a terra dos humildes, onde, se um sujeito trabalhar duro o bastante e por muito tempo, obterá o merecido.

Uma vez ele lhe disse:

- Algum dia, eu irei dirigir o meu próprio jornal... um jornal para os pequenos. Eu o farei. Espere e verá.

E às vezes ele lia para ela trechos de obras de outras pessoas. Seu romancista predileto era Herman Melville, e o segundo na escala de admiração era Joseph Conrad, porque nascera falando outra língua - polonês, de fato - e tinha se empenhado por si mesmo em escrever em inglês. Ela podia lembrar-se de Gabe lendo para ela trechos de Lord Jim, como:

"Ela andava em passadas largas como um granadeiro, era forte e ereta como um obelisco, tinha um belo rosto, um semblante cândido, olhos inocentes...

E Assaria disse então:

- Eu gostaria de crescer e me tornar igualzinha a ela! E Gabe concluiu a frase:

- "...e sem nenhuma idéia pessoal em sua cabeça.

- Mas não nesse particular - dissera ela na ocasião, e os dois riram.

E ele lera Moby-Dick para ela, e Assaria lembra-se de quando Gabe chegara àquele trecho final obsedante:

"No segundo dia, um veleiro acercou-se cada vez mais, e me recolheu finalmente. Era o navio de cruzeiro desgarrado, o Raquel que retrocedendo na busca das suas crianças perdidas, somente achara um outro órfão."

Gabe olhara para ela rapidamente, seus grandes olhos escuros e brilhantes, e Assaria sentira as lágrimas em seus olhos também. Ela soubera que era chamada de órfã, mas tinha colhido somente um fraco entendimento do que, no sentido humano, tal palavra significava. E agora ela sabia.

Freqüentemente os dois ficavam acordados até tarde da noite naquele quarto da Wabash Avenue, muito além da hora recomendada a Assaria pela sra. Bonkowski como a ideal para se recolher e dormir, enquanto ele falava, sonhava alto para Sari, lia suas histórias e as de outros para ela, e lhe contava todos os seus projetos.

Quando Assaria completou onze anos, a sra. Bonkowski decretou que os alojamentos dos dois naquele quarto alugado deviam ser divididos por uma pesada cortina de estopa.

- É simplesmente mais apropriado - dissera ela então. - Ou isto, ou então dois quartos separados, mas Gabe diz que não pode pagar por um segundo quarto para você. Eu dirijo uma casa séria aqui, e o que não posso admitir são falatórios.

Mas, sentados sob as mantas em seus respectivos leitos, Sari e Gabe geralmente conservavam a cortina recolhida quando conversavam à noite. Por fim, Gabe vinha a exclamar:

- Toque de silêncio! Soldados, descansar! Apagar as luzes! - Então ele a fazia deitar-se prontamente, fechava a cortina, desligava a luz e despia-se no seu compartimento, no escuro.

Quem poderia sonhar com um pai mais maravilhoso do que esse?

Então veio aquele glorioso dia do início da primavera de 1923, quando Gabe irrompeu no quarto, pouco antes da hora do jantar, cheio de novidades.

- Imagine só! - gritara ele. - Arranjei um novo emprego! Vou trabalhar para um grande jornal de uma cidade grande, Sari... São Francisco! Uma das maiores cidades do Oeste! Eu lhes enviei minhas histórias, Sari, e eles me contrataram. Como um repórter, um jornalista de verdade... ganhando trinta dólares semanais! Eu vou para São Francisco!

Sentada em sua cama, e contemplando o rosto largo e tão radioso de Gabe, ela soube que não deveria estar pensando apenas em si mesma, que devia ficar contente por ele também, mas o fato era que se sentira, de imediato, preocupada. E perguntara:

- Eu vou para São Francisco também?

- Claro que irá! Não está pensando que eu iria embora para São Francisco e deixaria você aqui, hem? Nós iremos juntos, e em grande estilo. Vamos para São Francisco e num vagão Pullman. - E ele se acercara rapidamente de onde ela estava sentada, erguendo-a pelas axilas no ar e girando várias vezes com ela para um lado e outro.

Enquanto ele a suspendia, seus pés apartaram-se do chão, e de repente o corpo todinho de Sari pareceu inflar-se e se encher de uma onda impetuosa e estranha, de um excitamento totalmente novo. O que era aquilo? Ela se sentiu sufocada e tonta, e deliciosamente feliz ao mesmo tempo. Asas brilhantes estavam adejando em seu íntimo, asas escarlates sobre as quais ela não tinha nenhum controle, e agarrou-se a ele, abraçando-o, o corpo delicado apertado fortemente contra o dele. Ela sentiu os olhos se cerrarem e sua cabeça ficar quente, como se estivesse febril, e de repente, sem qualquer sentido para isso, ela o estava beijando. Beijando suas faces, seus olhos, suas pestanas, sua garganta, e então sua boca, o corpo comprimido contra o dele, arqueado e expectante - voando para ele -, e beijando-o novamente, a boca aberta oferecendo-se à dele, sua língua buscando a de Gabe.

Mas tão de repente quanto a pegara e suspendera, ele pousou-a de novo no chão, deixou cair os braços e deu dois passos rápidos para trás, apartando-se dela. Ficou olhando-a fixamente, mas seu rosto não estava mais risonho e feliz. Seus olhos estavam alargados, e seu rosto ficara corado, e ele parecia desconsolado. Então disse:

- Tenho que sair. - Girou nos calcanhares a seguir, abriu a porta do quarto e se foi.

Naquela mesma noite durante o jantar, a sra. Bonkowski perguntara:

- Onde está Gabe? Por que ele não se acha aqui? - Então lançara um olhar rápido e desconfiado para Sari. - Onde está seu amigo Gabe? Ele está atrasado para o jantar.

- Ele tinha um serviço extra para fazer, eu creio.

- Bem, o jantar não pode esperar pelos retardatários, pode? -

disse a sra. Bonkowski. - Se ele se atrasou, atrasou-se, e isto é tudo. Espero que ele não esteja contando comigo para guardar alguma coisa para ele na geladeira. Ele conhece as normas da casa: nenhum h.p. na cozinha.

- Ele arranjou um novo emprego - disse então Sari. - Em São Francisco. Nós vamos para lá.

A sra. Bonkowski denotara mau humor, dizendo:

- Bom, isso é o que costuma acontecer, não? Arrumamos um bom h.p., ele melhora de vida e nos deixa. Justamente assim. Agora eu terei que encontrar alguém para ocupar o quarto. Isto é a vida que tenho de viver, aceitando h.p. Eu não teria que levar esse tipo de vida se Bonkowski não tivesse de morrer deixando-me em situação desvantajosa.

Muito depois, após ter ido dormir e apagado a luz, sem que Gabe houvesse voltado, Sari finalmente o ouviu entrar no quarto e percebeu que ele se despia, no escuro, como sempre fazia, e colocava seu pijama.

- Gabe?

De início ele nada disse, e do outro lado da cortina de estopa cerrada ela pôde ouvir o ruído das molas da cama quando ele se deitou, e o som abafado produzido pelo cobertor quando ele se cobriu. E o ouviu apoiar a cabeça no travesseiro.

- Gabe? Você não está zangado comigo por alguma coisa, está?

- Em São Francisco, nós teremos dois quartos - disse ele finalmente, numa voz estranhamente ríspida vinda da escuridão. - Em São Francisco, cada um terá seu próprio quarto. Poderemos arcar com isso, com meu salário de trinta dólares por semana.

Ela não respondera, e após alguns instantes virara-se para seu lado, de costas para ele, fitando a parede, escutando o ritmo regular de sua respiração. Ela soube que estava de repente terrivelmente infeliz, e o quarto parecia encher-se com o cheiro azedo do cachecol vermelho de sua mãe queimado, sua borla dourada torcendo-se como feios vermes negros. Eu desejava, ela pensou, alguém para me amar, alguém para cantar para mim, mas quem poderia ser esse alguém? Tudo que eu desejava eram braços para me cingir, e se eles não podem ser os de Gabe, então de quem poderiam ser? Tudo parecia ter mudado, ter revirado às avessas, e nunca seria o mesmo de novo.

E ela sabia que não pensaria mais em Gabe Pollack como seu pai, e não tinha pensado nele assim há muito tempo, e não pensaria nele desse modo de novo. Por baixo das cobertas ela tocou seu corpo com as pontas dos dedos, e se sentiu ferida ali, ali e ali.

Gabe contara a Assaria que São Francisco era uma grande cidade, mas ela estava despreparada para a movimentação e o vulto da cidade. Em Terre Haute, o maior edifício era o da prefeitura, mas o gigantesco Ferry Building de São Francisco, torreado e com frontões, teria engolido aquele. Edifícios os mais altos que ela já vira praticamente atingiam o céu, e as ruas eram muito movimentadas, com ônibus e bondes elétricos acionados pelos invisíveis cabos na parte inferior das ruas. Nos cruzamentos, quando dois cabos se cruzavam em ângulos retos, havia um momento de aperto no estômago quando do condutor era exigido recobrar a velocidade, então ir freando a fim de passar pelo trecho de interseção dos cabos, depois mover a manivela de novo quando o cruzamento era ultrapassado. Terre Haute era uma superfície lisa até onde a vista podia alcançar, mas São Francisco era uma cidade de colinas altas, abruptas, tão abruptas que, em algumas delas, os passeios erguiam-se em degraus. Do cimo das colinas - Nob Hill, Telegraph Hill e Russian Hill eram alguns de seus nomes - tinha-se uma visão panorâmica da grande baía azul cheia de barcos vindos de portos estrangeiros e barcas que faziam o percurso continuamente de lá pra cá entre São Francisco e o molhe de Oakland, que era o terminal mais a oeste das ferrovias Leste - Oeste. Na embocadura da baía erguia-se a Golden Gate, além o Oceano Pacífico, e, nos dias de céu claro, um vislumbre das distantes ilhas Farallon. Mas o que mais impressionara Assaria acerca de São Francisco fora seu senso de inovação e limpeza. Em 1906, grande parte da cidade fora destruída por um grande tremor de terra e um incêndio. Mas a cidade fora reconstruída rápida e entusiasticamente, e se a cidade inteira parecia ter sido construída ao mesmo tempo, era porque o fora realmente. São Francisco a impressionou como se fosse feita de uma só peça.

Claro que o novo emprego de Gabe, como um repórter de assuntos gerais a serviço do Chronicle, mantinha-o fora de casa muitas horas, e em movimento pela cidade. Ele estava sempre sendo chamado para cobrir o tribunal, ou para apurar um caso de assalto nos subúrbios, ou para ir à cena de uma briga feia num bar ou um assassinato na zona portuária, ou ainda reportar um conflito entre tongs em Chinatown. Mas isso estava perfeitamente certo. Ela tendia a sentir-se tímida e pouco à vontade agora na presença de Gabe. A antiga espontaneidade entre eles parecia ter sido substituída por... quê? Uma excessiva polidez parecia ser a resposta. De início, esse novo distanciamento a afligira e confundira, mas agora isso estava certo também.

Assaria decidira fazer alguma coisa que o deixasse muito zangado.

Ele encontrara quartos para os dois numa pensão da Howard Street mas sua nova senhoria estava muito distante da loquaz sra. Bonkowski. Ela era a sra. Tristram Dodge, uma mulher magra e retraída cujo interesse principal era o seu gato, um grande bichano chamado Pussy,

que se ajeitava nos ombros da sra. Dodge quando esta se sentava na sala de visitas com sua cesta de costura. Ignorada pela sua senhoria, Sari tinha toda a liberdade de que precisava para elaborar seu plano. Gabe raramente vinha jantar na pensão, e freqüentemente só voltava para casa quando Sari já fora dormir. E pela manhã ele já teria saído antes da hora de Sari levantar-se, vestir-se e ir para o colégio. Nos fins de semana, ele normalmente se trancava em seu quarto, onde Sari podia ouvi-lo - ele tinha agora uma máquina de escrever - trabalhando em suas histórias. Ela sentia falta de suas conversas de fim de noite, mas sabia que o trabalho dele estava em primeiro plano. Além disso, ela mesma não era uma pessoa ociosa.

Ela aguardara uma semana para contar-lhe a sua novidade, desejando surpreendê-lo com uma sólida prova disso. Então ela batera na porta, e quando ele abrira, estendera-lhe dez dólares.

- O que é isto? - perguntara ele, desconfiado. - Onde você conseguiu esse dinheiro?

- Tenho um emprego. E aí está meu primeiro salário semanal.

- Um emprego? Que espécie de emprego?

- Sou lanterninha no cine-teatro Odeon na Market Street. Dez dólares por semana.

- Você é jovem demais. Existem leis...

- Eu menti sobre a minha idade - dissera ela triunfantemente. - Disse-lhes que tinha quatorze anos, e acreditaram em mim. Deram-me um uniforme com uma jaqueta azul e uma saia branca, e uma lanterna pequena. Eu ajudo as pessoas a encontrarem lugar no cinema durante a projeção.

- Mas e quanto aos seus deveres escolares?

- Pego no trabalho após as aulas. Toda tarde de três até às sete horas, e nos sábados do meio-dia às oito.

- Seu dever de casa...

- Isso é fácil. Depois de indicar os lugares aos espectadores, encontro um assento na fila de trás e faço meu trabalho escolar com a ajuda da luz da lanterna.

- Isso é ruim para a vista!

- Tolice. Posso ler tão bem - até melhor - com a luz da lanterna quanto com a luz do abajur da mesinha-de-cabeceira!

Parado no umbral, olhando fixo para o dinheiro em sua mão, Gabe disse:

- Eu não quero que você faça isso. Não posso aceitar esse dinheiro de você.

- Eu desejo apenas pagar minha parte do aluguel do quarto e da comida. Por que você deve arcar com tudo isso sozinho se eu posso ajudar? Não é o que você sempre diz acerca da América? Que se uma pessoa trabalhar com afinco, pode progredir? Eu só desejo trabalhar bastante e progredir... tal como você!

Ele continuou a olhar os dez dólares, sacudindo a cabeça.

- Além disso - acrescentou Sari -, eu vejo todos os filmes de graça!

- Não. Você irá prejudicar seus deveres escolares, vendo filmes.

- Mas só se tem de prestar atenção ao filme uma vez. Quando recomeça a sessão, já se está por dentro da história. É quando eu faço meu dever de casa.

- Não - disse ele finalmente. - Não vou permitir que você faça isso.

- O quê? - gritou ela. - O que quer dizer? Como pode me impedir de fazer isso? Já estou fazendo!

- Eu sou o seu tutor. Você fará o que eu disser.

- Pois bem, eu não farei! - disse ela zangada. - Passei seis anos fazendo o que você queria que eu fizesse. Agora farei o que desejo, para variar!

- E se eu a proibir?

- Então eu fugirei. Irei para longe, abandonarei a escola, acharei um emprego de horário integral, e você nunca me encontrará, Gabe Pollack!

- Emprego? Que espécie de trabalho você pode conseguir... uma menina de treze anos?

- Eu me tornarei uma prostituta, isto é o que farei!

A mão de Gabe, que agarrava o dinheiro, ergueu-se, como se ele fosse bater nela.

- Onde foi que você aprendeu a dizer coisas sujas assim? No colégio? No cinema?

- E lhe digo mais uma coisa - prosseguiu ela. - Não serei apenas mais uma prostituta comum! Eu me converterei na maior prostituta do mundo!

E então ela bateu a porta no rosto dele e desceu depressa para o seu quarto, entrando e trancando a porta.

Sozinha, tirou as fitas de seu cabelo, desabotoou os botões de cima de sua blusa e, defronte do espelho da sua penteadeira, assumiu a pose lânguida e de uma paixão latente de Blanche Sweet na peça Anna Christie, de Eugene O'Neil, que fora levada à cena justo naquela semana no Odeon.

Então soou uma batida na porta, e ela ouviu Gabe dizer:

- Sinto muito, Sari. Eu não quero que você vá embora. Por favor, não vá embora.

Mas ela estava tão compenetrada sorrindo de sua imagem de uma prostituta que não conseguiu responder.

E assim, todas as tardes ela percorreria depressa os doze quarteirões de seu colégio até o Odeon, para poupar o dinheiro da condução, e enfiava-se no seu uniforme de vaga-lume para estar pronta para o trabalho, com a sua lanterna, por volta das três horas. E, uma vez por semana, ela passava dez dólares por baixo da porta do quarto de Gabe sem comentários.

Eis alguns dos filmes que ela viu então: Os Três Mosqueteiros, com Douglas Fairbanks, Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse e O Sheik, ambos com o ousadamente exótico Rodolfo Valentino, o novo astro-sensação; Way Down East, com Lillian Gish, cuja expressão de olhos alargados e lábios contraídos num ar de inocência ultrajada. Sari também tentara imitar diante de seu espelho; Pecks Bad Boy, com Jackie Coogan; Where the Pavement Ends, com Ramon Novarro e Alice Terry, e Uma Mulher de Paris, com Adolphe Menjou e Edna Purviance...

Esses são apenas alguns dos filmes e desempenhos que Sari recorda.

E, naturalmente, mentira para Gabe Pollack, pelo menos um pouco, porque ela via alguns de seus filmes favoritos duas, três, ou até mesmo seis vezes.

- Obteve somente B em história? - Gabe Pollack lhe diria. - Você está vendo filmes demais.

- História universal me aborrece. Tudo se resume em decorar as datas das guerras e os nomes de generais. Em tudo mais ganhei A... e um A com louvor em matemática.

Os filmes e as pessoas que os realizavam estavam muito impressos na mente do público naquela época. Por aquela mesma época, como alguns dos leitores podem recordar, ocorrera um terrível escândalo envolvendo uma personalidade cinematográfica, e aquilo acontecera justamente ali, em São Francisco, numa bela suíte do Hotel São Francisco. Um conhecido comediante do cinema mudo, Roscoe "Fatty" Arbuckle, fora preso por envolvimento com a morte de uma moça durante uma orgia no hotel. Dizia-se que a tal mulher era uma prostituta local, e havia outras implicações mais sombrias de iniqüidades envolvendo narcóticos ilícitos, bebidas alcoólicas destiladas ilegalmente e práticas sexuais extravagantes. Aparentemente, os detalhes autênticos do que ocorrera eram tão chocantes e vampirescos que nem mesmo o mais sensacionalista dos jornais do sr. William Randolph Hearst divulgaria. E houve somente conjecturas sussurradas acerca do que poderia ter realmente acontecido. O consenso só parecia ocorrer quanto ao fato de que a morte da moça tinha de algum modo sido causada pelo corpo do "Fatty" Arbuckle. No colégio de Assaria Latham, suas coleguinhas, cientes de que ela trabalhava no cine-teatro onde as comédias de Arbuckle tinham sido exibidas - embora viessem a ser banidas, desde que seus filmes passaram a ser proibidos -, supunham, naturalmente, que Sari devia saber de todos aqueles detalhes sórdidos. Naturalmente, ela sabia tão pouco sobre o caso como quaisquer outras pessoas. Mas lhe agradava pensar que as outras mocinhas desconfiavam de que ela sabia mais sobre o assunto do que estava dizendo.

Nesse meio tempo, durante aqueles anos do início da década de 20, uma nova expressão entrara para o léxico americano: "estrela de cinema". Para ser uma estrela de cinema, Sari lera, ajudava bastante o fato da jovem ser de pequena estatura. De certo modo, mulheres pequenas pareciam se ajustar melhor nas molduras do celulóide, e apesar de sua aparência na tela grande, Sari lera também, muitas das atrizes que ela admirava mais - as irmãs Gish, Nita Naldi, Mary Pickford - eram mulheres de físico delicado. E a própria Sari, perto de completar quatorze anos, podia perceber que iria ser mignon, mal atingindo 1,60m de altura. Observando-se defronte do espelho naqueles dias, treinando os maneirismos, expressões e gestos das estrelas dos filmes mudos que via nas telas, Assaria Latham era capaz de se ver a si mesma num tipo de beleza mignon, de expressão quase oriental, de olhos amendoados e pele cor de oliva, com um cabelo extraordinariamente espesso, ruivo-escuro, que ela recolhia na nuca com fitas. Pouco tempo depois de começar a trabalhar no Odeon, ela já resolvera que, com alguma sorte, tornar-se uma estrela de cinema era algo a que poderia aspirar razoavelmente.

Ao que parecia, em todo o país mocinhas bonitas estavam sendo aproveitadas dos concursos de beleza e das produções teatrais de amadores para testes cinematográficos, e lhes eram oferecidos, então, contratos para filmes. E isso tudo estava acontecendo apenas 150 quilômetros além, em Hollywood, Califórnia.

Naturalmente, ela não confidenciou a Gabe Pollack, na ocasião, nada sobre essas ambições pessoais. Ela sabia que ele não aprovaria.

Mas o sr. Moskowitz, o gerente do Odeon, segundo ela decidira, poderia revelar-se um aliado útil. Ele tratava diretamente com os homens que distribuíam os filmes, como também com aqueles que eram donos do cine-teatro, os quais, por sua vez, eram os mesmos homens que produziam os filmes. O nome completo daquele teatro era naquela época, de fato, Loews Odeon, e seus proprietários eram Marcus Loew, Adolph Zukor e Louis B. Mayer, todos produtores cinematográficos.

O sr. Moskowitz lhe contara que muitas lanterninhas não permaneciam por muito tempo nessa função. Elas achavam aquela rotina aborrecida, e os salários, baixos. Mas Sari, sempre pontual, parecia ser uma pessoa diferente. Ao término de seis meses, ele aumentou em um dólar seu salário semanal. Após um ano, ele presenteou-a com mais dois dólares de aumento, e insinuou que os dois poderiam jantar alguma noite. A este último convite - ciente de quem era a sra. Moskowitz - Sari respondera com uma delicada objeção.

Mas foi com todas aquelas coisas em mente que Sari, então com quase dezesseis anos e no seu último ano no colégio secundário, no início de 1926, encontrou uma pequena nota num vespertino e a leu com interesse.

TESTES HOJE À NOITE

A Trupe de Teatro Amador da Área da Baía efetuará testes esta noite para She Who Is Seized, um novo drama romântico do internacionalmente conhecido teatrólogo Wilmarth L. Fears. O drama proporciona falas para seis personagens femininos e cinco masculinos, mais quatro papéis sem fala, segundo Millicent Simmons, a diretora da trupe, que também dirige a produção. Atores e atrizes locais interessados estão convidados a aparecer para leitura do texto e testes de elenco hoje à noite na casa da srta. Simmons, na Sutter Street, 815, às 8:30.

Naquela noite, Sari foi à casa da srta.-Simmons, e lhe foram dadas duas páginas de diálogos para ler. Aproximadamente trinta outras pessoas tinham se apresentado, e assim Sari não alimentava muita esperança de que viesse a ser escolhida para qualquer dos papéis. Mas na manhã seguinte, para sua perene indagação e surpresa, ela recebeu um bilhete de Millicent Simmons dizendo que gostaria de colocar Sari no papel feminino principal e que dava título à peça. "Minha querida, você ficará perfeita como Sabrina!", escrevera a srta. Simmons.

Como Sari viria a descobrir depois, a principal atração de She Who Is Seized para a srta. Simmons e seu grupo de teatro amador era o fato de que os direitos de produção da peça poderiam ser adquiridos por uma cifra muito reduzida - quinze dólares é o que vem à mente de Sari na atualidade. E, numa análise retrospectiva, a peça era um texto terrivelmente tolo, de artifícios costumeiros e melodramáticos. Ela relatava, em três atos bem recheados, a história de uma bela e abastada americana chamada Sabrina Van Arsdale, que era perseguida por toda a Europa por um belo príncipe russo chamado Ivan Troubetskoy, ou algo parecido. Durante os três atos, e através de muitas mudanças de figurinos, Sabrina resistia aos agrados e aos caríssimos presentes e avanços amorosos do príncipe quando voava de Moscou para São Petersburgo, de São Petersburgo para Paris, de Paris para Capri, e finalmente para um palácio dos doges no Grand Canal em Veneza. Ali, onde ela se escondera, protegida pelo doge, o príncipe, disfarçado em camponês, por fim lograva encontrá-la, e prorrompia em ameaças contra ela, brandindo uma espada e pronunciando frases que Assaria nunca esqueceria: "Minha senhora, estou louco de amor por vós! Estou embriagado com vossa beleza! Estou louco devido a esse amor! Se continuar a me repelir, eu destruirei vossos encantos com esta lâmina, e então a enfiarei em mim mesmo!"

Isto era a deixa para Sabrina, interpretada por Assaria, gritar: "Eu fui aprisionada pelo amor! Serei vossa princesa para sempre!" E para então cair nos braços do príncipe enquanto o pano descia.

- Minha querida, quero que você represente essa última cena com paixão - dissera-lhe a diretora da peça, Millicent Simmons.

A srta. Simmons era uma solteirona corpulenta de cabelos ondulados e de meia-idade, muito dada a gesticular batendo no peito. Mas apesar de sua idade, a srta. Simmons - como Sari veio a saber - era considerada como assustadoramente ousada e "boêmia".

- Você não está apenas tomada pelo amor aqui, mas arrebatada pela paixão! Paixão sexual, da espécie mais profunda e mais visceral! É desejo ardente ô que você deve manifestar nessa cena. Quero que você projete todo esse sentimento nessas duas frases! Deixe sua voz rosnar - rosne essas frases - com paixão!

Apesar da fragilidade do material, das quase impossíveis exigências da diretora de cena, o elenco largamente inexperiente trabalhara com afinco ensaiando a peça, e quando She Who Is Seized finalmente foi apresentada a uma platéia no auditório do Old Fellows Hall, numa noite de fevereiro, o resultado foi um espantoso sucesso. E Assaria, segurando a mão do seu jovem príncipe, teve que se inclinar e sorrir durante um total de treze chamadas ao palco, para uma ovação da platéia, de pé. O número originariamente programado de três apresentações foi ampliado para oito, depois para dez, e depois para doze. Nenhuma produção anterior da Trupe de Teatro Amador da Área da i Baía jamais atingira tal número de representações, e a peça pareceu encantar as platéias tanto de jovens como de pessoas mais velhas. O próprio Gabe Pollack foi incumbido pelo seu jornal de escrever uma reportagem sobre o novo e surpreendente drama de impacto da cidade. ("Você foi muito bem no seu papel", disse ele a Sari quase envergonhadamente após ir ver a peça, e ela não lhe revelou que o único modo graças ao qual pudera representar a cena final tinha sido o de procurar avivar em sua mente a lembrança daquela ocasião em que ele a sustentara em seus braços e a beijara há cerca de três anos.) A reportagem do Chronicle gerou uma nova demanda de ingressos na bilheteria, e as apresentações da peça foram ampliadas para mais algumas noites. Então She Who Is Seized e seu elenco foram convidados a apresentá-la para os pacientes e a equipe médica do Hospital Shriner para crianças aleijadas. A reportagem vendeu jornais também.

O grande clímax da história dramática de She Who Is Seized

Ocorreu após aquela apresentação. Irrompendo no camarim, a srta. Simmons ergueu as mãos e anunciou:

- Meus queridos, eu tenho uma notícia extraordinária, espantosa, absolutamente maravilhosa e de cortar o fôlego! Nós fomos convidados a representar para os alunos, pais e o corpo docente da escola da srta. Katherine Burker! Preciso lhes dizer o que isso significa! A escola da srta. Burke é o empório educacional da maioria das jovens senhoras da elite de São Francisco! Ela é, em comparação com as outras escolas da cidade, o que um arminho russo é em comparação com uma pele de rato almiscarado! Suas alunas são as filhas dos Crockers, Floods, Fairs, Mackays e Spreckelses, a nata das mais finas famílias desta cidade, a espinha dorsal da comunidade financeira e o cerne do Social Register! Meus queridos, o que colhemos até aqui é a mera popularidade. Isto de agora, meus caros, é prestígio. Até agora, temos lançado nossas pérolas aos porcos, a massa, o proletariado. Agora fomos convidados a exibir nosso talento para a aristocracia! Isto eqüivale a uma representação requerida ante os reis e rainhas de todas as altas cortes da Europa. O que poderá possivelmente seguir-se a isto, meus caros? Somente - e a srta. Simmons colocou a mão direita dramaticamente sobre seu amplo busto - somente... Hollywood!

Aconteceu, porém, que a apresentação do grupo na escola da srta. Burke foi a derradeira. E foi depois dela que Sari, sentada no camarim e removendo sua maquiagem, ao erguer os olhos para o espelho viu, parada atrás de si, uma das mais belas jovens que ela já vira. Alta, delgada e loura, a jovem era quase da sua idade, e mesmo seu uniforme da escola da srta. Burke - blusa de marinheiro azul e branca, saia comprida, plissada, azul-escura -, que fora desenhado e engomado para revelar tão pouco quanto possível os encantos de uma mocinha, não podia disfarçar a beleza daquela moça em particular. Numa voz rouca, gutural, que parecia tão doce como o seu cabelo cor de mel, a mocinha disse:

- Você foi magnífica. Simplesmente maravilhosa. Tinha que vir aos bastidores para lhe dizer isto.

- Obrigada - disse então Sari.

- Assaria Latham... que belo nome! Como um belo nome se casa bem com um talento tão maravilhoso. Quando você disse aquelas últimas frases, eu pensei que ia desmaiar.

- Bem, muito obrigada. Eu lhe agradeço muito.

- Quero que você seja minha amiga. Quer ser minha amiga?

- Bem, sim...

- Ótimo. Desejo que você seja minha amiga, e desejo ser sua amiga. Quando podemos nos encontrar? Pode se encontrar comigo amanhã após as aulas?

- Receio ter que ir trabalhar depois das aulas.

- Sábado, então. Sábado à tarde.

- Eu também trabalho nas tardes de sábado.

- Então no domingo. Ninguém trabalha aos domingos, trabalha?

- Sim, acho que estaria bem.

- Ótimo. Eu a encontro às quatro horas de domingo, no Japanese Tea Garden, no Golden Gate Park. Tomaremos um chá. - Tocou de leve o ombro de Sari com a mão. - Eu a verei então. - E girou nos calcanhares para ir embora.

- Espere - chamou-a Sari quando ela se afastava. - Espere... eu nem sequer sei seu nome!

- Eu sou Joanna LeBaron.

Durante vários dias, e com um crescente interesse, Assaria LeBaron observara a recente explosão de atividade na negociação das ações da Kern-McKittrick Oil Company na Bolsa de Valores, conforme estava relatado no Wall Street Journal. Quarenta e seis mil ações tinham sido negociadas na segunda-feira, 57 mil ações trocaram de mãos na terça, e então, na quarta-feira, as vendas da Kern-McKittrick deram um salto para 10.600 ações. Durante o decurso de tudo isso, o preço de uma ação da Kern-McKittrick subira de 53 dólares para 59 7/8, um aumento de bem mais de dez por cento. Na quinta-feira pela manhã, Assaria ligara para Ed Neuberger, seu homem de confiança na E.F. Hutton e um dos poucos corretores na cidade em quem ela podia confiar, e lhe perguntou sobre o que ocorria.

- O que está se passando na Kern-McKittrick? - indagara ela.

- Boatos - retrucara ele. - Nada além de rumores.

- Que espécie de rumores?

- Parece que estão prestes a anunciar um grande lance de apropriação.

- E quem - ou devo dizer a apropriação de quem? - é tido como o alvo dessa negociata?

- Até aqui só há boatos, nada mais, Sari - disse ele com alguma hesitação. - Só há boatos atualmente.

- Está sendo franco comigo, Ed? Porque eu descobrirei se está ou não. Deve saber que não estamos aqui falando sobre rumores, mas sobre o que me cheira muito a atividade de pessoas íntimas, com quebra de sigilo, o que você sabe que vai contra a lei.

- Eu não estou aqui para acusar ninguém de infringir a lei, Sari.

- Então por que não apura o que está ocorrendo?

- Por que não pergunta a Harry Tillinghast? Ele é seu parente.

- Ele não é meu parente. O fato de que sua filha seja casada com o meu filho não faz dele qualquer espécie de parente meu! - E ela batera o fone no ouvido dele.

Então, sem ligação com o seu senso da boa postura fiscal, na quinta-feira chegara a carta de sua cunhada, que ela tinha considerado como sua parenta e - até o momento - amiga. Em termos absolutamente polidos, mas - para Sari, pelo menos - muito frios e impessoais, Joanna anunciara sua intenção de renunciar à conta da Baronet Vineyards, "devido a uma divergência em filosofias de publicidade e marketing", e, num toque de solidariedade, oferecera-se para ajudar Sari a encontrar uma nova agência de representação "do outro lado da rua", como Joanna descrevia em seu linguajar de publicidade exasperante. "Então são assim os pactos de sangue!", dissera Sari amassando a carta de Joanna e jogando-a na cesta de papéis à qual ela pertencia. Evidentemente, a repentina e não anunciada viagem de Eric a Nova York tivera muito a ver com aquela situação em desenvolvimento, e Sari não gostava de nada disso, realmente. Aos repórteres do New York Times e das publicações de propaganda que já começavam a solicitar uma explicação mais ampla, Sari tinha respondido - por intermédio de Thomas - com um lacônico "Sem comentários", até poder pensar numa declaração com as palavras apropriadas para distribuir aos jornais.

Para sua satisfação, contudo, também recebera telefonemas de outras grandes agências de Nova York - incluindo Benton & Bowles e a Young & Rubicam - solicitando ficar com a conta da Baronet.

Agora é sexta-feira, e Sari está nadando em sua grande piscina interna, coberta. A piscina fica na parte dos fundos da mansão, não vista da rua, no pavimento inferior, um andar abaixo daquele que contém o apartamento de Melissa. A maioria das pessoas em São Francisco desconhece a existência dessa piscina, e ignora seus requintes de engenharia mais notáveis: uma cobertura de vidro, que funciona sobre motores elétricos e que pode ser aberta quando faz bom tempo ou ser mantida bem fechada nos dias mais frios, como os de agora. Nadar em sua piscina é a única espécie de exercício regular que Sari LeBaron pode ter nos dias de agora, e ela procura praticar diariamente cerca de quarenta braçadas. Nadar é ocupação despreocupada - e calmante para a mente -, não envolvendo nenhum esforço mental senão o de contar as voltas na piscina à medida que se processam, e esse é um dos motivos pelos quais ela desfruta dessa ocupação. E também porque isso lhe poupa o esforço de vestir e retirar um maiô, Sari LeBaron sempre nada nua.

Agora que ela já deu as braçadas e voltas, Thomas aguarda perto da piscina para ajudá-la a sair. Um elevador especial, uma espécie de bóia-calção hidráulico, foi criado para tal propósito, mas depois Thomas tem que ajudá-la a sair desse aparelho e colocá-la em sua cadeira de rodas, cobrindo então seu corpo úmido e nu com uma toalha de

banho bem grande. E a seguir, quando ela já se secou, ele a ajuda a pôr um roupão bem grosso de pano felpudo.

- Obrigado, Thomas.

- Uma carta registrada acaba de chegar, senhora. Pensei que seria melhor trazê-la para a senhora aqui.

- Ah - diz ela, e ele lhe estende a carta.

Sari verifica de imediato tratar-se do papel timbrado da Baronet Vineyards, Inc. Desdobra o papel e lê:

Querida mãe,

Esta carta está sendo remetida a todos os acionistas da Baronet Vineyards, Inc., e se refere a uma oferta de compra que recebemos da junta de diretores da Kern-McKittrick Petroleum, Inc., da nossa empresa. Em sua proposta inicial, a Kern-McKittrick oferece 12,5 ações de seu estoque comum por cada ação do acervo da Baronet que nós possuímos. Por causa da generosidade dessa oferta, e do firme apoio que lhe concedo, insisto em que seja programada uma reunião de nossa diretoria e dos acionistas numa data mais próxima e conveniente para todos os interessados a fim de estudar o assunto.

Cordialmente, Eric

- Eu bem sabia! - exclama ela, numa voz que é uma mescla de triunfo e desalento, e estende a carta para Thomas. - Tal como eu desconfiava! A guerra foi declarada, Thomas... convoque os Fuzileiros Navais! Telefone para meus advogados, e os faça vir aqui tão rápido quanto possível! Ligue para a Guarda Nacional! Contate com Gabe Pollack - posso precisar dele também -, diga-lhe para vir aqui assim que puder! Ligue para o nosso departamento financeiro. Determine um congelamento de quaisquer vendas de ações da Baronet... Posso fazer isso? Pergunte aos advogados! Mas, espere... há algo a fazer de saída! Faça uma ligação para o Eric... não, não se incomode, eu mesma cuido disso - e ela pega o telefone ao lado da piscina. - Eles vão ver com quem estão lidando! - grita. - Eric? - diz Sari quando ele atende. - Acabo de receber o seu pequeno billet-doux. Permita-me dizer-lhe que você, a partir deste momento, está demitido de suas funções da empresa! Está me ouvindo, Eric? Você está despedido! Peeper assumiu todas as plenas responsabilidades pelo seu cargo... a partir deste momento! Você me ouviu?

- Sim, e estou um passo adiante de você, mãe. Uma outra carta está a caminho daí, para você, na qual eu coloco meu cargo em disponibilidade na Baronet até que esse assunto seja resolvido.

- Resolvido? Em disponibilidade? Bem, não recebi essa carta, e você não pode renunciar porque está demitido! Quero que esvazie sua mesa daquele escritório e que deixe aquele edifício até as cinco horas! Não... faça isso às três da tarde! Eu lhe dou, assim, duas horas. Se você não se retirar até as três horas desta tarde, chamarei o serviço de segurança e eles o retirarão de lá à força! Você me ouviu, Eric? À força!

Marylou Chin está debulhada em lágrimas.

Como se eu já não tivesse coisas demais me apoquentando a mente no momento, para ainda ter que lidar com uma mulher histérica!, está pensando Eric.

Ele se movimenta em seu escritório, continuando a esvaziar o conteúdo de suas gavetas e fichários numa maleta grande.

- E quanto a mim! - soluça ela. - O que irá acontecer comigo? Eu me sentava aí, tomando seus ditados, datilografando suas cartas, observando-o fazer isso, pensando em mim mesma todo o tempo: "Será que ele não se incomoda, não liga um pouquinho que seja para o que irá me acontecer?" Tenho uma tia numa clínica de repouso em Petaluma... e sou seu único arrimo! O que irá ser dela, agora que você fez isso?

- Pelo amor de Deus, Marylou! Você sabia muito bem o que eu estava fazendo. Você nunca me falou que tinha uma tia em Petaluma.

- A tia Grace... de quem sou o único arrimo, mas você não liga... não, nem mesmo um pouquinho...

- Enfrente-a, você disse. Estava sentada exatamente nessa cadeira duas semanas atrás e me disse: "Enfrente-a." Suas palavras exatas. E foi isso que eu fiz, droga, e agora você me vem com isso! Sinto muito, Mlou, mas...

- Você... sim, você se deu ao luxo de desafiá-la. Mas ela mal sabe que eu existo! Só troquei duas, talvez três palavras com ela até hoje! Você pode enfrentá-la, mas tudo que eu terei é, no máximo, um lugarzinho no escritório do pessoal!

- Ouça, Marylou... eu voltarei a contratá-la. Tão logo vença essa questão, eu a chamarei de volta... você sabe disso!

- Não, você não o fará - soluça ela -, porque não irá vencer. Você não pode vencer. Ela sempre vence, e sabe disso. Como pode ser tão tolo assim? E eu... bem, serei jogada fora com o lixo.

- Droga, eu vencerei! - grita Eric.

- Não. Não, vocês, ricaços, são todos iguais. Você pode se demitir, ir para a sua mansão em Burlingame, reduzir seus gastos e recolher seus dividendos. Você pode se aposentar bem. Mas eu...

- Diabos, Marylou, eu não vou suportar mais isso! Como se eu já não tivesse o bastante para me atazanar a mente agora!

- Você sim, você... tudo em que pensa é você mesmo. Nunca em mim, nunca em minha tia Grace...

- Até hoje você nunca mencionara uma tia Grace! Tia Grace não é minha...

- Não. Claro que não. Por que eu a mencionaria? Você não se importaria mesmo. E todo o tempo você estava me usando, e eu me esforcei ao máximo para manter seu pequeno e sujo segredo longe da vista de sua mulher!

- Agora, espere aí. De qual pequeno e sujo segredo estamos falando? Esse segredo é tanto seu quanto meu.

- Oh, sim. Oh, sim. Quem começou isso? Quem me perguntou se eu já tinha comido no Blue Fox? Quem me pediu para jantarmos juntos no Blue Fox? De quem foi a idéia? Quem passou o braço em volta de mim no táxi e disse que eu cheirava a patchuli? Quem disse: "Seu apartamento não fica longe daqui, fica?" Quem disse: "Você tem uma companheira de quarto?" Quem disse...

- Oh, pelo amor de Deus - diz Eric, puxando com força a gaveta de sua mesa e apanhando seu talão de cheques. De quanto você necessita para se manter? Quanto custa o internamento nessa maldita clínica de repouso?

- Não! - grita ela lastimosamente. - Não, eu não quero um níquel de seu dinheiro sujo. Você pensa que pode comprar todo mundo com o seu nojento dinheiro. Você... você é igual a todos os outros. Não desejo vê-lo nem ouvir falar mais de você de novo!

- Você fica uma fúria quando chora - diz ele.

 

Quem conhece todos os segredos da arte dos fabricantes de vinho? Certamente não Sari LeBaron, como seria a primeira a admitir para vocês. Por que é que as mais nobres uvas dos mais finos vinhos tintos vicejam melhor nos contrafortes, enquanto as vinhas para os vinhos brancos inferiores e vim ordinaires desenvolvem se melhor no solo dos vales? Alguns dizem que é porque o solo nos contrafortes das colinas é "mais jovem", mais vigoroso e calcário, enquanto o solo dos vales é mais antigo, mais acídico, tendo sido lavado durante séculos pelas águas descidas das ladeiras das montanhas. Mas outros discordam, e nos dizem que isso se dá porque o orvalho matinal se demora mais tempo nos contrafortes, adoçando, intumescendo e acrescentando refinamento ao fruto, enquanto embaixo, nos vales, o orvalho se desfaz mais depressa, expondo a fruta mais tempo ao sol, e produzindo vinhas com talos mais duros e uvas com a casca mais espessa. Por que alguns fabricantes de vinho insistem em que os vinhos mais finos devem ser envelhecidos em barris tostados feitos de carvalho da floresta de Nevers, na França, enquanto vinhos justamente tão respeitáveis podem ser obtidos quando envelhecidos em toneis feitos de aço inoxidável, ou mesmo de plástico? A questão está em que ninguém sabe as respostas a essas perguntas com qualquer grau de certeza. Elas todas fazem parte do mistério e romance do fabrico do vinho.

Mas Sari LeBaron sabe que uma grande parte do mistério e do romance da feitura de vinhos reside também no trabalho manual exaustivo, tal como ela própria aprendeu na fábrica de garrafas, trabalhando longas horas dispondo as garrafas arrolhadas e rotuladas em seus engradados, erguendo as caixas da esteira rolante e colocando-as nos carrinhos de mão para serem levadas aos caminhões. O fabrico do vinho é tanto um ato de fé como um ato de vontade, é uma arte de despenseiro e de proprietário e do uso implacável dos músculos, não apenas uma amostragem e uma degustação afeminada e uma conversa acerca do "corpo" e do "bouquet." Isso é algo, ela acha, que seus filhos ainda têm que aprender. Eles colheram tudo com muita facilidade. Não foram suficientemente calejados. Eles nasceram de seu ventre, afinal de contas, já um tanto tardiamente em sua vida, quando a Baronet estava de novo em seu próspero rumo, com milhões em caixa, e com todas as antigas dívidas saldadas. Nem Eric nem Peeper jamais souberam o que era o trabalho duro, e eis por que ela sente não ser a hora ainda de passar seu comando para eles. Num negócio que aprendera desde baixo, ela esqueceu mais coisas acerca do negócio de vinhos do que qualquer um deles já conhecera.

Isto, pelo menos, é o que ela diz, mas, naturalmente, trata-se apenas de metade da verdade. A verdade inteira seria o reconhecimento de que Sari desfruta do poder que sustenta - saboreia-o, delicia-se com ele, vive esse poder, respira-o -, até mais, agora, que é uma senhora idosa e solitária e tida como um fenômeno num negócio predominantemente masculino, mais do que quando era mais moça e seu marido estava vivo. O que irá acontecer à sua empresa, vocês podem muito bem indagar, quando Sari morrer e as figuras maléficas dos governos federal, estatal e local investirem como aves de rapina para sangrar suas propriedades com impostos? Se eu fosse vocês, não faria a ela essa pergunta. Assaria LeBaron não planeja morrer.

- Eu tenho um nome de santa - dissera-lhe Joanna naquela tarde de domingo no Japanese Tea Garden. - Certamente serei martirizada.

- Uma santa? Qual?

- Jeanne d*Arc. Primeiro, quero lhe contar tudo sobre mim. Depois vou querer que me conte tudo sobre você. Isto é importante, se iremos ser amigas do peito, para sempre, como espero que sejamos. Antes de mais nada, minha família está no negócio de vinhos, ou pelo menos costumava estar. No momento, com a Lei Seca, o negócio de vinhos está paralisado na Califórnia. Nós aqui ainda cultivamos algumas uvas para nosso consumo, para fazer suco, passas e geléias, e coisas desse gênero, e eles nos permitem estocar três barris de vinho por ano para nosso uso pessoal, isto não é gritante? É loucura, e por causa disso meu pai está aposentado e vive de seus investimentos. Nós somos tidos como ricos, mas não me entenda mal. Eu não sou uma esnobe, embora minha mãe seja uma espécie disso, e eu não ligo se você é rica ou não. Na verdade, eu sou até certo ponto uma marxista, e creio que Karl Marx é alguém muito especial. Eu creio na distribuição eqüitativa da riqueza. Meus pais são católicos, e minha mãe é muito católica, mas eu não sou, embora eles me tenham feito batizar e tudo mais. Não creio em religiões organizadas. Sou uma pessoa independente, um potro selvagem. Tenho sido indisciplinada desde os quatorze anos. Foi quando decidi ser uma livre-pensadora. Meu ídolo absoluto é Isadora Duncan, e acredito no amor livre. Acho que o amor livre é algo especial, não acha também? Eu fui ver Isadora Duncan quando ela esteve aqui, e me tornei sua absoluta escrava. Adoro aquele russo com quem ela se casou, o tal que dizem que pode ser um espião. Eu acho que ele é, e você? Acho que é absolutamente gritante que ele não consiga falar uma só palavra em inglês e ela não fale uma palavra do russo; assim, o único meio em que podem se comunicar é a linguagem do amor. Eu adoro absolutamente todas as pessoas de talento, eis por que adorei você em sua representação. Meu escritor predileto é certamente Sigmund Freud. Já li muita coisa de Freud, e creio que a maior parte das coisas que ele diz é ótima...

Sari nunca conhecera ninguém como aquela jovem, com a sua fala inteligente, inflamada e rápida e a capacidade de saltar agilmente de um tema para outro praticamente sem uma pausa para tomar fôlego. De início, Sari simplesmente ficara sentada ali, de olhos muito abertos, ouvindo Joanna falar.

- ...Uma vez por semana, eu faço jejum. Não tomo nada além de alguns goles de água. Isso é bom para o físico, e também me ajuda a pensar com mais clareza. Tomo todas as minhas decisões importantes em meus dias de jejum. Foi num dia de jejum que conheci você, e resolvi que a queria ter como minha amiga. Tenho um irmão absolutamente divino, o Peter, que você deve conhecer. Ele está com vinte anos e é divinamente bonito, e você irá adorá-lo. Ele cursa a universidade de Yale agora, mas virá para casa nas férias de verão, quando você o conhecerá. Peter e eu guardamos segredos juntos. Temos um clube secreto, ao qual ninguém pertence exceto ele e eu, mas talvez lhe

peçamos para ingressar nele também, se Peter aprovar. Veremos isso. Não tive uma irmã, mas, naturalmente, sempre desejei ter uma. Qual é o seu signo solar?

- Signo solar?

- Seu signo astrológico. Creio que astrologia é algo especial. Quando você nasceu?

- Vinte e cinco de maio.

- Oh, não - exclamou ela. - Mal posso acreditar! Isto é um absoluto achado! Você é uma geminiana, e eu também... de 10 de junho. Somos de um signo dúplice, os gêmeos, o que quer dizer que cada uma de nós é realmente duas pessoas numa só. Nós temos um lado escuro e outro brilhante. Possuímos uma face que exibimos para o mundo e uma outra face que é secreta, particular, e que somente mostramos a nós mesmas e para determinados amigos especiais. Temos também relacionamentos muito emocionais, possuímos talento artístico, e somos muito sexualizadas. Você já fez "aquilo" com um homem?

- "Aquilo"?

- Sim. Já fez amor com um homem?

- Não. E você, fez?

- Oh, sim - respondeu ela aereamente -, muitas vezes. Eu lhe disse que acredito no amor livre. Acho que o sexo é algo especial. Naturalmente, se você o fizer acompanhado de champanhe, isto ajudará. Mas imagino que, no caso de Fatty Arbuckle, isso acabou de algum modo... fora de controle.

- É mesmo? O que aconteceu, exatamente?

- Bem - disse Joanna, reduzindo a voz a um sussurro -, pelo que me contaram, eles todos estavam bebendo muito champanhe. E Fatty Arbuckle tentou enfiar uma garrafa vazia de champanhe... você sabe, dentro da tal garota. E quando eles procuraram puxar a garrafa, algo das entranhas dela veio junto. Eis como ela morreu.

- Que coisa terrível!

- Essa foi a história que eu ouvi. Os donos do Hotel São Francisco são amigos de meus pais, e eu os ouvi falando no caso. - Fitando Sari, ela concluíra: - Mas não posso crer que você nunca tenha feito amor.

- Bem, eu não fiz.

- O modo como você representou aquela cena final da peça... quando voou para os braços do príncipe e lhe disse que estava possuída pelo amor... foi a cena mais sexy que eu já vi num palco!

Sari deu um risinho, dizendo:

- Bem, a diretora de cena, a srta. Simmons, acentuou para mim que devia representar daquele modo.

- Observando você, tive a impressão perfeita de que possuía

uma rica experiência. Bem, se há algo que deseje saber sobre sexo, é só me perguntar, e lhe direi tudo o que precisa saber. Se vamos ser amigas íntimas e para sempre, é importante que contemos tudo uma para a outra. Há alguma coisa que queira saber?

- Bem... não, creio que não...

- Vá em frente. Faça sua pergunta. Nós vamos ser amigas, certo?

- Bom - Sari começou hesitante -, há uma coisa que sempre me perguntei... como aquilo começa?

- Em meu caso, gosto de iniciar com uma taça ou duas de champanhe. Isto é estritamente pessoal, é claro. Mas papai, estando no negócio de vinhos, assegurou-se, antes da Lei Seca começar, de que nós contássemos com vinho suficiente para nosso consumo durante vários anos. Temos uma adega inteira de vinho, e um compartimento inteiro de champanhe.

- Não, você não entendeu a minha pergunta.

- Explique-mo.

- Eu me refiro àquela cena da peça, que era uma cena de sedução. O príncipe estava seduzindo Sabrina. Eu tenho visto centenas de cenas de sedução em filmes... Ronald Colman tentando seduzir Vilma Banky em O Anjo Sombrio, Pola Negri atraindo Charles Mack em A Mulher do Mundo. Mas nos filmes nunca nos mostram o que acontece a seguir. Na peça, eu não sei exatamente o que o príncipe e Sabrina fariam após o pano descer.

- Ora, saltariam direto pra cama, é claro!

- Apenas isso? Mas, quero dizer... então, quem começa primeiro? O homem ou a mulher?

- Não faz nenhuma diferença - disse Joanna movendo a mão. - Pode acontecer de um modo ou do outro. Você já viu a coisa de um homem, não viu?

- Oh, naturalmente. - Fora uma meia mentira. Uma vez, na semi-escuridão de um início de manhã, através de uma fresta da cortina em seu quarto da pensão, ela tivera um vislumbre de Gabe Pollack nu, vira um apêndice sem forma definida, rodeado por um escuro monte de pêlos.

- Bem, ela fica muito grande e dura, e então ela...

- Mas como isso começa? Você tem que tirar toda a roupa?

- Você não tem que tirar. Mas é melhor sem elas. Eu creio no método pele-a-pele.

- Mas como isso começa?

- Começa com - então elas tinham começado a sussurrar, excitadas, dando risinhos sufocados, suas cabeças juntas sobre as xícaras de chá, e Sari passara a fazer perguntas que sempre desejara fazer, sem nunca encontrar a pessoa certa para tal. E então as fez a uma quase completa estranha. - Isso começa com... cócegas.

- Cócegas? Ah, era o que eu queria dizer.

- Ele faz cócegas em você. Você o toca bem ali.

- Isso é o que eles não mostram nos filmes!

- Ele lhe faz cócegas, você começa a rir, e então... mas você tem que tentar por si mesma fazer isso, você sabe. E seria melhor experimentar com um homem experiente... um homem mais velho, tarimbado. Nesse meio tempo, você obviamente sabe como fazer a parte da sedução, e isto significa metade da batalha já em andamento. Você podia dar aulas de sedução.

- Eu lhe darei aulas de sedução, e você me dará aulas do resto! Então, recostada em sua cadeira, Joanna disse:

- Naturalmente, minha mãe diz que o sexo deveria ser reservado para o casamento, mas ela é muito antiquada. Já que eu acredito no amor livre, presumo que jamais me casarei.

E Sari percebeu que a sua nova amiga estava disposta a mudar de assunto, e lhe ocorreu que Joanna não era, talvez, tão mundana e sofisticada como fingia ser.

- Você acha que se casará um dia?

- Oh, suponho que sim - disse Sari.

- Com quem?

- Provavelmente com... Gabe Pollack. Joanna riu.

- Gabe Pollack. Que nome engraçado. Ele é bonito? É gentil?

- Oh, sim.

- Mais velho?

- Sim.

- Então você devia iniciar-se com ele. Seja como for, é esta a minha opinião. Vocês se tornaram amigos?

- Na realidade, creio que somos bons amigos.

- Minhas amigas me chamam Jo.

- Eu sou chamada de Sari.

- Sari.

- Jo.

- Então creio que há uma coisa importante que devemos fazer. Acho que devíamos fazer um pacto de sangue. Você já chegou a fazer um pacto de sangue?

- Não.

- Nem eu, mas sei como é feito. Eis como nós o faremos. - O laço na blusa de Joanna estava preso com um broche longo e estreito. Desprendendo-o, ela disse: - Primeiro cada uma de nós espeta o polegar direito com o alfinete... apenas para que saia uma gotinha de sangue. Eu faço isso primeiro, então é a sua vez. - Elas espetaram seus polegares. - Agora comprimimos nossos polegares unidos com força,

para que nosso sangue se misture. Repita comigo a jura de amizade eterna. Eu, Assaria Latham...

- Eu, Assaria Latham...

- .. .juro solenemente que a partir de agora, e até o final dos tempos, estou empenhada na amizade com Joanna LeBaron, que na doença e na saúde...

- Na doença e na saúde...

- .. .cada uma recorrerá à outra para obter ajuda, conforto e assistência, seja o que for que nos venha a acontecer neste mundo, sendo sinceras uma para a outra, não se negando a uma troca mútua de confidencias, num espírito de puro e duradouro compartilhamento, na riqueza ou na pobreza, em qualquer ocasião...

- Em qualquer ocasião...

- Deste dia em diante, para todo e sempre. Amém.

- Deste dia em diante, para todo e sempre. Amém.

- Agora você me tome o juramento.

Sari não conseguira decorar e imitar o juramento de Joanna com exatidão, e elas riram disso, mas no fim a essência era a mesma, e as duas tinham se sentado ainda rindo, suas cabeças pairando sobre as xícaras de chá vazias no Japanese Tea Garden, e Joanna dissera:

- Sabe, eu me sinto como se já conhecesse você a vida toda!

- E eu também.

- Você é a irmã que eu não tive.

- Eu não tive um irmão nem uma irmã.

- É o juramento que tem importância.

- Agora - disse Sari -, diga-me uma coisa. Lembre-se de que acabamos de jurar sermos sinceras uma com a outra.

- Naturalmente. De que se trata?

- Quantas vezes você fez realmente amor com um homem? Joanna franziu a testa e olhou rapidamente para a sua xícara de

chá, e Sari pôde ver o rubor surgir-lhe no rosto.

- Quantas... vezes"!

- Sim, quantas vezes. Sinceras para sempre, nós acabamos de jurar. Sem segredos.

- Bem - disse ela finalmente -, acho que foram... duas vezes. Duas e meia, porque a outra foi... tínhamos bebido champanhe demais. Mas... - e olhara para Sari com um sorriso forçado. - Prometa que nunca contará a ninguém! Prometa que nunca contará a qualquer das outras garotas da Burke!

- Eu prometo - disse Sari. Então as duas passaram a rir.

- Oh - exclamou Joanna de repente. - Eu acabo de ter um pensamento absolutamente ultrajante. Você deve ter pensamentos chocantes algumas vezes, não? Todos os geminianos têm.

- Qual é ele?

- Gostaria que você fizesse amor com o meu irmão e me deixasse vê-los!

Dessa vez fora Sari quem, a contragosto, enrubescera.

- É uma idéia chocante.

- Claro que estou só brincando - dissera Joanna prontamente -, embora Sigmund Freud esteja absolutamente cheio dessa espécie de coisa. Mas isso não seria algo especial?

Sentadas ali, ao cair da tarde, sussurrando, sorrindo, duas jovens de dezesseis anos, elas tinham prosseguido juntas, falando sobre tudo em geral e nada em particular, compartilhando pensamentos chocantes (sonhos de ir para Hollywood e se tornar estrelas de cinema etc, etc), enquanto Sari se sentia como que arrastada cada vez mais para a teia do exagerado charme de Joanna LeBaron. O que havia em Joanna que impelia Sari para ela? Quem Joanna a fazia recordar? As irmãs Van Dusen, é claro. A exemplo delas, Joanna parecia uma pessoa consumada. Era como elas, só que mais bonita.

Anos mais tarde, fora possível entender por que Joanna viera a se tornar uma das executivas de publicidade mais charmosas e bem-sucedidas de Nova York. Ela era uma consumada artista da lorota.

- Bem, onde está o sr. Pollack? - pergunta Sari à sua secretária.

- Saiba que é Assaria LeBaron quem está telefonando.

- Exatamente agora, sra. LeBaron, o sr. Pollack está num avião da PSA rumo a Los Angeles, e evidentemente não tenho como me comunicar com ele. Ele manterá encontros em Los Angeles a tarde inteira.

- O que está fazendo ele em Los Angeles, quando necessito dele aqui?

- É uma viagem de negócios, sra. LeBaron. Se por acaso ele me telefonar, eu lhe direi que a senhora está procurando entrar em contato com ele.

- Bem, então me deixe falar com aquele outro jornalista que trabalha para ele, o repórter de cabelo ruivo... um tal de... Oh, qual é mesmo seu nome? Você sabe a quem me refiro!

- Archie McPherson?

- Sim. Ligue-me com ele.

- Espere, tentarei localizá-lo - diz a secretária de Gabe.

- Archie - diz Sari quando ele atende, e agora ela está falando numa voz completamente diferente, suave, aconchegante e persuasiva, sua entonação de voz maternal e de avó. - Archie, querido, como vai você? Bem, eu não sei se deveria sequer ligar para você, já que me traiu, não foi? Você disse ao Gabe que eu lhe forneci aquela história sobre Melissa pagar pela atuação do grupo de rock, e não se contava que fizesse isso, certo? Supunha-se que fosse um segredo nosso.

- Eu não contei a ele, sra. LeBaron. Ele calculou, e não havia nenhum meio de dissuadi-lo.

- Quantas vezes já não lhe disse para me chamar de tia Sari? Bem, isso não importa, Archie, e eu o perdôo. A história foi publicada, e eu a apreciei muito, e você obterá ainda o seu cheque. Não se preocupe.

- Obrigado, sra. LeBaron.

- Por favor... tia Sari.

- Tia Sari.

- Ótimo. Agora há uma outra coisa que poderia fazer para mim, Archie. Você ainda tem visto Melissa, não tem?

- Sim. De vez em quando.

- Bem, eu desejo que você proceda uma pequena expedição de pesca para mim, Archie, com Melissa.

- Pesca?

- Sim, de informações. Sobre Melissa.

- Diga-me que espécie de informações a senhora gostaria de obter.

- Melissa me fez uma acusação muito característica outra noite. Diz respeito à sua... ascendência. Ela já me fez essa espécie de acusação outras vezes, mas nunca tão... veementemente, creio ser a palavra exata.

- Sua ascendência?

- Sim. Isto é tudo que posso lhe adiantar agora. Mas eu preciso saber - é terrivelmente importante que eu saiba - se Melissa tem algumas... bem, noções peculiares acerca de mim, e do seu pai. Se você pudesse sair com ela, fazê-la falar sobre esse assunto, e talvez descobrir quais são essas noções, e o quanto ela está afetada em relação a esse fato, ou se se trata apenas de uma... fantasia da imaginação.

- Entendo.

- Então se você puder passar essa informação para mim, eu apreciaria muito. Isso deve ser mantido como estritamente confidencial, é claro, entre você e eu. O que quer que você descubra, não será para publicação no jornal, entenda bem.

- Eu entendo.

- Eu reputo você o apurador de fatos par excellence desta cidade.

- Obrigado.

- Se você conseguir que ela fique um pouco embriagada, ela se abrirá. Alguns drinques podem ajudar. Entenda, há dois meses ela fez uma viagem não programada, e sem meu conhecimento até recentemente, à Suíça e a Saint Moritz, onde nasceu. Eu gostaria de saber o que estava por trás dessa viagem, se há algo a apurar. Se você a fizer beber um pouco, e levá-la a abordar essa incursão à Suíça, ela poderá lhe contar algo que nunca me contaria. Você está entendendo?

- Sim.

- E será bem recompensado por isso, Archie. Particularmente, se você apurar algo... interessante. Você ainda tem dormido com ela?

- Como disse?

- Você tem ido para a cama com ela? Nesse caso, isto ajudaria também.

- Meu Deus, sra. LeBaron, eu...

- Não se zangue. Acontece que eu acho minha filha uma mulher muito atraente, e você é um homem muito simpático. Melissa é alguns anos mais velha do que você, talvez, mas muitos homens a acham atraente. As pessoas costumavam dizer que ela lhes recordava a atriz Joan Fontaine, e Melissa sempre demonstrou uma preferência especial por homens mais jovens. Seus apetites sexuais são perfeitamente normais, e você não teria quaisquer dificuldades nisso. Trata-se somente de uma sugestão, é claro. A menos, naturalmente, que você seja um gay.

Ocorre uma curta pausa do outro lado do fio. Então ele diz:

- Não, eu não sou gay... não que isso seja realmente da sua conta.

- Claro que não é. Somente mencionei isso porque a maioria dos homens desta cidade parece ser gay. Ou assim dizem por aí. E só toquei nesse detalhe porque estamos em 1984, e eu queria que você soubesse que não sou nenhuma puritana a respeito de sexo... no tocante a você ou à minha filha adulta.

- Sim - diz ele rispidamente. - Bem, verei o que posso fazer.

- Ótimo. E não se esqueça da Suíça.

- Certo. Mas não estou prometendo nada.

- Obrigada, Archie. - Um suspiro.

Sari recoloca o telefone no lugar, mas com a sensação de vazio, não satisfeita com o desenvolvimento da conversa, que não decorrera tão bem como poderia ter decorrido. Estou perdendo o meu toque?, pergunta-se ela. Estarei perdendo o controle?

De algum modo, nesse dia, o que se iniciara mal ainda não está marchando bem.

Melissa, Melissa. Onde nós a perdemos de vista? Tantos conselhos errados ao longo do caminho. Conselhos difíceis, penosamente aceitos. Volte Melissa, volte. Mas como você pode voltar a um lugar onde nunca pareceu estar, ao qual nunca pareceu pertencer?

Talvez fosse por ela ser a primogênita e durante tantos anos a filha única, e pelo fato de que tanto a mãe como a criança tivessem quase morrido durante o parto, o que fizera todos se sentirem muito ansiosos com relação a ela, muito à espreita de pequenos indícios de alguma coisa que poderia ir mal. Eles tinham se incomodado demais com ela, mimando-a muito, desculpando-a em demasia, preocupando-se demais a seu respeito, dando-lhe coisas demais. Talvez fosse isso. No começo, a teoria fora a de que a essa adorável criança, esta criança especial, deveria ser concedido tudo que ela desejasse, tudo que o dinheiro pudesse comprar. Isso tinha sido na década de 20, quando a fortuna dos LeBarons parecia ilimitada, e agradava a Sari cumular a filha pequena de todas as coisas que ela própria nunca tivera, nem mesmo sonhara que existissem quando criança: os vestidinhos sob medida da Bests and DePinna e da Magnins, a casa de bonecas com a mobília, a coleção de bonecas e outros brinquedos, toda a variedade de criaturinhas estofadas e mimosas. O quarto de criança de Melissa fora ajustado como um teatro em miniatura, completo com luzes da ribalta e cenários móveis, móveis e outros acessórios, destinados a representações de marionetes. E naqueles tempos tinha havido sempre uma enfermeira-babá - uma série delas - para Melissa.

Mas, mesmo quando uma criança ainda engatinhando, ela se mostrara extraordinariamente exigente. Ela exigiria, por exemplo, que seu cercadinho estivesse cheio com todos os seus brinquedos. Então, um por um, ela os jogaria longe, e então se poria a gritar até que todos os brinquedos lhe fossem devolvidos, quando o processo todo voltasse a se repetir. Uma vez, quando uma das babás a trancara no seu quarto de brinquedos como um castigo por alguma coisa, ela fora até a janela e jogara todos os seus brinquedos. Depois arremessara pela janela todas as suas roupas de cama, junto com tudo o mais que pudera erguer e carregar. Tudo aquilo fora cair e afestoar as moitas de arbustos defronte da casa da Washington Street. Com a idade de três anos, os acessos temperamentais de Melissa tinham se convertido num incidente quase diário da vida.

- A srta. Melissa está tendo um de seus ataques - diria Thomas. - Ela diz que irá prender sua respiração até morrer.

- Por favor, não chame isso ataques, Thomas - dizia Sari. - Não há casos de epilepsia nesta família. É apenas... - Mas o que era?

Aos seis anos, ela ainda urinava na cama regularmente. Médicos foram consultados. "Ignorem-na, e deixem-na superar isso", dissera um deles, mas aquilo estava se tornando um problema difícil de ignorar. "Coloquem nela uma fralda e calcinhas de borracha", sugerira um outro médico, o dr. Obermark. "Quando ela perceber que está sendo tratada ainda como um bebê, isso a envergonhará e a fará atalhar esse hábito." Mas isso também não dera resultado, e no instante em que a fralda ficava ensopada, Melissa gritaria até que a trocassem. "Façam a babá despertá-la, de hora em hora, durante a noite, e sentá-la

no vaso... isto deterá esse hábito", recomendara um outro especialista, mas não dera certo, e as babás não paravam no emprego muito tempo quando sujeitas a tal regime.

- A menina - dissera uma das babás - está simplesmente estragada por tantos mimos, sra. LeBaron. Ela é apenas uma menina mimada. Se eu fosse a senhora, a deixaria escolher um brinquedo por dia para brincar. Eu manteria todas as outras coisas trancadas longe do seu quarto. Se ela não pode se divertir com aquele único brinquedo, então que se conforme.

- Ela simplesmente gritará até seus pulmões estourarem.

- Deixe-a gritar!

Aquela babá tinha sido despedida, e houvera outras mais dóceis. Precisando manter-se no emprego, elas tendiam a atender os desejos de Sari e de Melissa.

Então chegaram os tempos difíceis dos anos 30, após a morte dos pais de Peter Powell LeBaron, e todas as dívidas tinham vindo à tona, e fora necessário a Sari, Peter e Joanna ir pessoalmente ao campo de cultivo para ajudar a devolver a terra às vinhas. Grande parte da criadagem da casa da Washington Street fora despedida, e os únicos a serem mantidos foram Thomas, para os serviços caseiros, a cozinheira de então, e a babá de Melissa. Talvez isso tivesse agravado a situação ainda mais, porque Sari ficava ausente o dia inteiro, e era difícil controlar a qualidade das babás, mas alguém tinha que tomar conta da menininha.

Aos sete anos, o problema de urinar na cama ainda prosseguia, e aos oito um novo problema surgira: roer unhas.

- Sra. LeBaron, as unhas da menina estão roídas até o sabugo. Estão sangrando, sra. LeBaron!

Um médico aconselhou cobrir suas unhas com fita adesiva. Melissa simplesmente mastigou através da fita.

Um outro médico receitou uma substância química de sabor desagradável a ser aplicada nas unhas da menina. Mas essa substância podia ser removida com sabão e água.

Diariamente, assim parecia, surgia um novo problema.

- Sra. LeBaron, Melissa não quer sair da cama esta manhã. Ela diz que está doente, mas sua temperatura está normal.

- Ela tem que sair da cama para ir à escola.

- Ela esteve deitada o dia inteiro. Diz que não irá mais sair da cama.

Depois, ao completar dez anos, Melissa, que nunca tivera muito apetite, pareceu parar de comer de estalo. Ela começara se queixando de dores estomacais quando se sentava à mesa, e ficava brincando com a sua comida, empurrando o prato sem comer absolutamente nada e Sari observara com temor como aquela menina, já magra, afinava cada vez mais. Muitos especialistas foram consultados então.

- Encham o prato da menina e o coloquem diante dela durante exatamente vinte minutos - dissera o dr. Obermark, tido como o melhor pediatra da cidade. - Se ela não tiver tocado em sua comida então, retirem o prato. Quando ela ficar com bastante fome, comerá.

Mas aquilo não dera resultado, e o dr. Obermark, após duas semanas, sugerira uma nova fórmula, que consistia em adverti-la no sentido de que não poderia levantar-se da mesa antes de limpar seu prato. E assim, Sari se vira sentada à mesa com Melissa durante horas, enquanto a menina permanecia teimosamente sentada ali, olhando fixamente para a sua comida intacta. E quanto mais ansiosa Sari ficava, menos a menina comia, e logo decorreriam sete semanas desde que Melissa não comera mais do que uma diminuta porção de alimento. Embora ela raramente evacuasse agora, Sari observara a filha encolher cada vez mais. "Gemadas", decretara o Dr. Obermark. "Um ovo cru, batido num copo de leite achocolatado, três vezes por dia." Mas Melissa enjoava dessas misturas e as vomitava. Injeções de extrato de fígado foram tentadas pelo dr. Obermark, mas Melissa resistira tanto a isso que por duas vezes a agulha hipodérmica do médico se quebrara nas nádegas da menina.

- Melissa, querida, você tem que comer! - gritara Sari. - Se não comer, você vai morrer.

- Eu quero morrer.

- Oh, Melissa, não diga isso... todos nós a queremos tanto!

- Você não me ama. Você somente diz que me ama porque gosta de me dar coisas.

- Isso não é verdade. É exatamente o contrário: gosto de dar coisas a você porque a amo.

- Papai não me ama.

- Ele a quer muito.

- Por que ele nunca fala comigo?

- Ele vive muito atarefado, querida. Todos nós temos estado tão...

- Você não é minha mãe verdadeira, e ele não é meu pai de verdade, é? Eu sei disso. Fui adotada, não fui?

- Oh, Melissa, por favor, não diga tais coisas! Coisas que me doem muito!

- Eu fui adotada. Eu não me pareço com nenhum dos dois.

- Você é a nossa garotinha querida!

Da escola onde Melissa foi matriculada, vinham regularmente relatórios perturbadores redigidos pela srta. Hays, a diretora. "Melissa é uma menina inteligente, e obtém notas altas em testes como o de Stanford-Binet. Ela possui um Q.I. alto, e é perfeitamente capaz de fazer o trabalho escolar, mas é um problema social e disciplinar. Ontem, por exemplo, ela se trancou num cubículo no banheiro e se recusou a sair dali até o último toque da sineta..."

- Sra. LeBaron, Melissa contraiu um novo hábito que é muito prejudicial para a turma. Ela se senta na sua cadeira escolar e se põe a esfregar as pernas uma na outra.

- Esfregar as pernas uma na outra?

- Sim. Achamos que ela está se... masturbando, sra. LeBaron. O que é muito constrangedor para as outras meninas, e para os professores. Um hábito muito perturbador e, achamos, nada saudável.

- Conversarei sobre isso logo com o dr. Obermark.

- Sra. LeBaron, em vista do fato de que Melissa continua a ser um problema social e disciplinar na escola, eu me pergunto se a senhora não poderia pensar em uma escola especial para ela. Em Pasadena, há uma escola Chamada Hedgerows, especializada em...

- Não! Eu não quero tirá-la da Burkes, e afastá-la de todas as suas amizades.

- Sra. LeBaron, Melissa na realidade não tem amigas aqui...

Sobre a questão de onde Melissa deveria estudar, Sari sabia-se firmada num argumento muito sólido. Há anos que a família LeBaron vinha exibindo uma generosidade considerável para com a Miss Katherine Burkes School. Ela tinha certeza de que aquela escola nunca expulsaria uma descendente dos LeBarons.

E havia ainda o coleguinha imaginário cujo nome, explicara Melissa à sua mãe, era Jober Rice.

- Não, Joe Beryce, não. É Jober Rice.

- Jober Rice é um menino ou menina? - perguntara Sari.

- Nem um nem outra. Apenas Jober Rice.

E fosse qual fosse o motivo de ser repreendida, ela costumava explicar:

- Jober Rice me disse pra fazer isso. Conversando com Joanna, esta lhe dissera:

- Ela é crescida demais para esta história de amigo imaginário, Sari querida. Crescida demais. Essa fase ocorre por volta da faixa dos cinco ou seis anos. Isso não pode estar acontecendo agora.

- Mas o que eu posso fazer? Ela diz que Jober Rice existe. Aos dez anos e meio, Melissa começara a queixar-se de dores de

cabeça, tonteiras e uma incapacidade de enxergar com nitidez.

- Eu preciso usar óculos - disse ela um dia.

- Você tem certeza?

- Eu preciso de óculos para usar nos saguões de hotel.

- Saguões de hotel? (Melissa fazia com freqüência declarações bizarras como essa.)

Ela foi levada para ser examinada por um famoso oftalmologista, o dr. Heidt, que a submeteu a um exame minucioso.

- Não há nada absolutamente errado com a vista da menina, sra. LeBaron - disse o dr. Heidt. - Ela tem uma visão perfeita, e eu não posso encontrar nenhum fundamento fisiológico para as dores de cabeça e as alegadas tonteiras. Eu não prescreveria lentes corretoras para ela.

- Mas ela diz que deseja usar óculos.

- A senhora pode arranjar para ela uma armação com vidros comuns de janela, presumo. Suponho que isso seja um artigo que poderá encontrar em lojas de artigos variados e baratos desse tipo.

E assim, durante os dois anos seguintes Melissa tinha usado tais óculos constantemente. Eles lhe conferiam um ar parecido com uma coruja, pedante, que, Sari pensava, não realçava o que, de outro modo, se tornava um rosto bonito. E continuaram ainda as queixas sobre dores de cabeça, tonturas e vista fraca.

- O que está no meu prato?

- Uma costeleta de carneiro, querida.

Olhando fixo para baixo através de seus óculos, ela viria a dizer:

- Mas por que não consigo vê-la? Tudo o que vejo é uma coisa felpuda como a pata de um urso.

Pelo menos ela começara a comer de novo, embora aos bocadinhos, e havia longos dias de greve de fome.

- Receio que ela esteja muito doente, sra. LeBaron - dissera o dr. Obermark. - E o problema está em que ela é muito pouco cooperativa. Creio que deveríamos pensar em levá-la a um hospital.

- Um hospital?

- Há uma clínica muito boa em San Rafael. Existe uma possibilidade de que ela possa reagir muito bem a choques elétricos.

- Oh, não! - gritara Sari.

- Esses choques elétricos não são fatais, sra. LeBaron. Na realidade, após o tratamento inicial ela não terá nenhuma idéia do que lhe esteja acontecendo. O tratamento não faz aumentar a ansiedade. Na realidade, faz com que ela diminua.

- Oh, não - dissera Sari então. - Por favor, isso não.

- Seu distúrbio é de natureza psicológica.

Num domingo de verão eles foram de carro aos vinhedos de Colusa. A cozinheira embalara para eles comida para piquenique, pois planejavam almoçar no sopé das Sutter Buttes, esse repentino sublevamento de montanhas rochosas que parece erguer-se, espontaneamente, do meio do piso plano do vale do rio Sacramento. "Tentem programar mais outras pequenas excursões familiares com ela", alguém tinha sugerido. Mas em sua primeira visão das Buttes, Melissa começara a gritar:

- Por que aquelas montanhas estão fazendo aquilo? O que elas fazem ali? Elas não pertencem àquele lugar! Elas me olham como se desejassem me matar!

- Aquelas são as Sutter Buttes, querida... montanhas que algum tremor de terra deslocou para o meio do vale há milhares de anos. Eu as considero realmente muito dramáticas, e muito bonitas.

- Eu as detesto! E elas me detestam! Estão me olhando como se fossem me devorar. Quero ir pra casa!

- Não podemos ir para casa ainda, querida. Não fizemos nosso piquenique. Vamos fingir que as montanhas são um par de velhos e preguiçosos dinossauros, cochilando sob o sol. Ou dois camelos, descansando. Vamos inventar uma história...

- Não! Elas são monstros! Me leve pra casa!

- Ora vamos, Melissa... Então Melissa fitou-a e disse:

- Eu sou um monstro também, não sou, mamãe? Eis aí por que você me trouxe aqui. Assim seu monstro poderia conhecer alguns outros monstros.

- Melissa, por favor.

- Eu odeio isto aqui! Quero ir pra casa! Me leve pra casa! Conforme repetira o dr. Obermark, o distúrbio dela era psicológico.

Mas então, antes de aceitar esse ponto de vista devemos levar em consideração os pais de Melissa LeBaron. Há influências parentais que o psicólogo desejaria conhecer. Chegaria Assaria LeBaron a reconhecer que não fora uma mãe perfeita para aquela criança difícil?

- Escolha uma carta, qualquer uma - dissera Melissa a Sari. - É um truque.

Sari tinha escolhido uma carta, o valete de espadas.

- Olhe a carta, mas não a mostre para mim. Recoloque-a no baralho. Agora, vamos embaralhar... - E então Melissa tinha aberto o baralho em leque, figuras para cima, sobre a mesa. - Sua carta era o três de copas!

- Não, Melissa, era o valete de espadas.

- Me deixe tentar de novo. - Mas novamente o truque não dera certo. E, frustrada, Melissa dissera: - Me deixe tentar mais uma vez. - E de novo o truque não funcionara.

- Melissa, por que não pratica o seu truque e, quando o fizer direito, você volta a tentá-lo? E importante saber como fazer uma coisa com propriedade antes de executá-la.

Mas uma mãe sensível teria dito isso? Deveria ela, talvez, em vez disso, ter fingido que o truque saíra certo da primeira vez cumprimentando a menina esperta? Do modo como, jogando com seu filho, um pai (ou mãe) amiúde aprenderá a perder numa partida de damas? Agora é tarde demais para fazer esse tipo de pergunta.

Depois devemos abordar a influência de Joanna, a tia de Melissa, que foi importante a seu modo. Em 1927, um ano após Sari ter desposado seu irmão, Joanna casou-se de repente com um jovem médico chamado Rod Kiley, e com ele mudou-se para Santa Barbara. Menos de seis meses depois, porém, o casamento estava findo, embora Joanna estivesse com quatro meses de gravidez de um bebê de Rod Kiley.

- Um erro, um erro! - gritara Joanna jubilosamente para Sari, anunciando o fracasso de seu casamento. - Eu sabia que devia ter me mantido fiel ao amor livre!

Mas na ocasião em que Lance nasceu, Joanna estava divorciada, tendo retomado seu sobrenome de solteira, e se mudara de novo para São Francisco. Durante o difícil período da década de 30, quando todos eles estavam trabalhando para reativar a produção das vinhas e saldar as dívidas, Joanna e seu filho ocupavam uma suíte no último andar da grande Bolo de Noiva, da Washington Street. Isto fora uma solução prática, uma questão de dinheiro. Havia muitos quartos ali, e duas pequenas famílias, supunha-se, podiam viver confortável e independentemente sob o mesmo teto. E, no entanto, era talvez inevitável que determinados problemas devessem surgir com esse arranjo.

Para fazermos justiça a Joanna, esta não procurara interferir na vida particular da cunhada. E no entanto... houve ocasiões em que fora quase impossível para Joanna não expressar uma opinião acerca de todas as dificuldades tocantes a Melissa. Pequenas coisas:

- Sari, minha querida, os acessos temperamentais dela são gritos por ajuda. Você não pode ignorá-los...

- O dr. Obermark diz...

- Creio que o dr. Obermark tem razão. Ela devia ir a um psiquiatra. Eu conheço um de nome, um homem excelente...

- Mas choques elétricos, não! De modo nenhum!

- É a técnica mais moderna, Sari.

- Não, não.

- Sari, Melissa diz que ela e seu amigo Jober Rice pretendem matar alguém! Achei que você devia saber.

E Sari, nesse ponto crítico, gritou:

- Jo, por favor, pare de tentar me dizer como educar essa menina! Eu cuidarei disso a meu modo, com meus próprios especialistas, ou não!

Vocês entendem o que quero dizer.

Isso não impediu, nem um pouco, que o pequeno Lance, filho de Joanna, fosse crescendo e se tornasse um menino robusto, bem proporcionado e normal em todos os sentidos.

O que nos leva a considerar agora o pai de Melissa, Peter Powell LeBaron.

Peter LeBaron tinha muitos talentos, mas não se pode dizer que a paternidade fosse um deles, e não se pode afirmar que ele era um pai atento, carinhoso ou expansivo com qualquer de seus três filhos. Era como se tivesse estabelecido um invisível distanciamento, ou sombra, entre ele mesmo e os filhos. Fosse qual fosse dos seus filhos que entrasse num aposento onde acontecesse de o pai estar, poder-se-ia sentir e quase perceber aquela sombra cair, como uma nuvem passando pelo sol. Era estranho, mas a alegria e puerilidade que tinham feito parte de seu encanto pessoal exuberante quando jovem pareciam ter desaparecido ao se tornar pai. Onde estava o antigo Peter brincalhão, irreverente?, perguntara-se amiúde Sari. Seu eu antigo fora ocultar-se em algum recanto por trás daquela casca de silêncio, evasivas e reserva.

Há várias explicações para isso, é claro. Poder-se-ia argumentar que lhe fora requerido lidar com o papel paternal quando ele era muito jovem, com 21 anos somente, e se achava despreparado para as suas exigências. Ou que, num certo sentido, ele se vira forçado a casar com Assaria, conquanto forçado não seja o termo certo, porque Peter parecera ansioso para se casar com ela na ocasião. Mas pode-se dizer que ele também era muito jovem para o casamento, não estava preparado para tal. Mesmo durante o noivado e nos meses iniciais de sua união, Sari começara a sentir isso, embora no começo não o admitisse, com aquela sensação de uma sombra, de um distanciamento, incidindo sobre o que se supunha ser o amor de ambos.

Tomando o café da manhã em sua suíte no hotel em Saint Moritz naquele outono de 1926, Sari grávida de Athalie, ele lendo o Herald Tribune de Paris, ela lhe dissera:

- Está feliz, Peter?

Lá fora, o dia estava claro, e o sol brilhava sobre o lago e os pinheiros ao longo da praia, e cintilava nos distantes cimos alpinos cobertos de uma capa de neve; lá embaixo havia o suave plop... plop... plop de bolas sendo arremessadas de lá para cá nas quadras de tênis.

- Feliz? - repetira ele sem desviar os olhos do jornal. - Claro que estou feliz, querida.

- Eu desejo que sejamos felizes. Vou me empenhar ao máximo para tornar o nosso casamento feliz, e ser uma boa esposa.

- Por que não deveríamos ser felizes? Teremos tudo que desejarmos no mundo. Papai está construindo uma casa na Washington Street para nós. Você contará com um grupo de onze criados à sua disposição.

- Onze criados! Acontece que simplesmente não sei se serei boa em mantê-los a meu serviço.

- Mamãe está selecionando-os, assim você pode ter certeza que eles serão excelentes.

- Trata-se... trata-se apenas de que eu desejo que tenhamos mais do que simplesmente coisas materiais, Peter. Quero que tenhamos experiências juntos, ver coisas e aprendê-las juntos. Desejo que viajemos. Gostaria, se fosse possível, de ir à China. Desejaria que passeássemos pela Grande Muralha, visitássemos a Cidade Proibida, o Palácio do Grão-Mogol. E gostaria que aprendêssemos uma língua estrangeira, e depois visitássemos pequenas aldeias em países distantes, e verificássemos se poderíamos falar com as pessoas em sua língua nativa, e se poderíamos entendê-las, e aprender sobre o seu modo de viver, e... isto é o tipo de coisa a que me refiro.

- Nós teremos tudo no mundo que desejarmos.

- Tudo, exceto... exceto, Peter, eu não sei como dizê-lo; algumas vezes me sinto muito confusa. Às vezes me pergunto se fizemos a coisa certa. Fizemos o que era certo ao casarmos, Peter?

Ele sorrira.

- Agora é um pouco tarde para fazer essa pergunta, não?

- Isso não é resposta, Peter.

- Claro que fizemos o que era certo.

- Se você tivesse pensado não ser a coisa certa, você me diria, não é mesmo?

- Claro que diria, mas tenho certeza de que não preciso fazer

isso.

Mas o que ela não poderia dizer-lhe era que, embora ele fosse seu marido, ela sentia ainda estar vivendo com um estranho, que de algum modo se tornara uma prisioneira, uma prisioneira com uma pena de prisão perpétua que não poderia ser comutada, uma posse permanente da família LeBaron, como uma das peças do conjunto de prata que, segundo explicara sua sogra, passara de geração para geração.

Erguendo o bule de café, ele disse:

- Mais café, querida?

- Obrigada, Peter. Ele enchera a xícara.

- Creme e açúcar?

- Não - dissera ela então, e rira. - Sei que não devia ligar, sei que uma noiva não devia se importar de estar casada há aproximadamente três meses, e seu marido não se lembrar ainda de que ela gosta de tomar café puro e forte.

- Desculpe. Agora posso voltar ao meu jornal?

- E uma recém-casada não deveria se incomodar, sei disso, se

o seu marido deseja ler jornal. Todos os homens lêem jornal de manhã durante o café. Não, eu não me incomodo. Mas posso lhe fazer só mais uma pergunta, Peter?

- Claro.

- Você me ama, Peter?

- Claro que a amo. Eu a amo muito.

- Eu amo você.

Muitos anos depois, ela falara a Joanna sobre isso.

- Sabe, eu creio que Peter me ama, Jo. Ele sempre me tratou com ternura. Mas acontece que... como poderei defini-lo, Jo? O fato é que, quando o vi pela primeira vez, havia entre nós um ardor verdadeiro... uma paixão autêntica, imagino que você a descreveria assim. Uma espécie de amor apaixonado e emocionante que experimentamos juntos. Então, mais tarde, isso deixou de estar presente. Se houvesse uma outra mulher, mesmo uma amante, eu entenderia. Eu poderia aceitar. Mas não há.

Joanna lhe endereçara um olhar estranho, malicioso, dizendo:

- Bem, quem sabe? Pode haver uma outra mulher.

Tendo dito simplesmente que poderia aceitar o fato se houvesse uma outra mulher, fora difícil para Sari saber o que dizer a seguir, mas, fosse como fosse, ela o dissera:

- Então quem? Quem poderia ser?

- Minha querida, eu não tenho a mínima idéia.

- O amor é importante, Jo? É importante estar apaixonada? Joanna sorrira.

- Em minha saudável juventude, eu costumava pensar que sim. Agora, creio que a resposta é trabalhar com afinco.

Como dizer a uma outra mulher, mesmo tratando-se da melhor amiga, que em quatorze anos de união com um homem não houvera sexo no casamento? Mas tinha havido antes. Agora havia apenas palavras carinhosas: "Eu te amo, Peter." "Eu te amo muito, Sari."

E assim, para ela, a resposta tinha sido a mesma: trabalho, muito trabalho, lá nos vinhedos, apoiada nas mãos e nos joelhos junto com seu marido e os "chinas", os okies, plantando e transplantando vinhas, desbastando os novos rebentos manualmente com uma enxertadeira, e aos poucos voltando a enriquecer de novo. ("O quanto somos ricos, vovó?", perguntara Kimmie na véspera. "Parece que tudo de que mamãe e papai falam é mais dinheiro." "Ricos o bastante para que seu avô Tillinghast pense que gostaria de encampar nossa empresa", respondera ela.)

Então, em 1941, quando fizera quinze anos, Sari descobrira algo que lhe cortara o coração como uma faca, naquela noite em que ela, Peter e Joanna estavam jantando no Mural Room.

Aproximadamente à mesma hora, um outro fato perturbador ocorrera. Thomas o tinha confidenciado para ela:

- Tenho que lhe falar neste momento, senhora.

- Pois não, Thomas.

- Desci para abrir a cobertura da piscina. O dia está tão bonito que achei que a senhora gostaria de nadar ao ar fresco...

- Sim...

- Quando eu me aproximava da porta de vidro, vi que a srta. Melissa estava sentada na prancha de mergulho com o sr. Lance. Os dois estavam... semidespidos, madame.

- Sim.

- E para mim revelou-se claramente o que estava acontecendo, senhora. A srta. Melissa instruía seu primo em como executar o ato sexual.

- Um menino de doze anos...

- Ele teve uma ereção, senhora, se me perdoa a expressão.

- Entendo. E então, o que aconteceu?

- Eu fiz muito ruído ao abrir a porta envidraçada, e eles me viram, agarraram suas toalhas de banho e correram para o vestiário.

- O mesmo?

- Ele foi para o dos homens, e ela para o das senhoras. Eu vim imediatamente para cá.

- Entendo. Bem, obrigada, Thomas. Eu cuidarei disso.

Ela resolvera, por razões pessoais, não inteirar Joanna desse incidente. Em vez disso, mandou chamar imediatamente o dr. Obermark. A expressão do médico tornou-se muito séria.

- Em face do que a senhora me contou, eu recomendaria dois procedimentos. Com o histórico de histeria e intratabilidade de Melissa, e sua recusa em aceitar qualquer forma de disciplina ou de conformidade aos padrões normais de contenção, posso encarar esse último sintoma como uma advertência para nós de que ela está prestes a ingressar numa atividade de promiscuidade compulsiva. Recomendo, portanto, que seu útero seja removido cirurgicamente para sua própria proteção. Também aconselharia que ela fosse examinada imediatamente, e tratada por um psicólogo clínico. Tenho em mente uma excelente profissional.

Foi dito a Melissa que seu apêndice estava inflamado, e que deveria ser extraído. A mesma história, incidentalmente, foi relatada ao pai da jovem. No plano doméstico, Sari controlava as coisas sugerindo com tato a Joanna que, agora que as coisas estavam com boas perspectivas financeiras para a Baronet, talvez fosse adequado para ela e Lance encontrarem uma outra casa ou apartamento na cidade.

Mas, de algum modo, alguém - uma enfermeira, talvez? -

contou a Melissa o que tinha acontecido. Ou, com a mesma probabilidade, ela simplesmente intuiu.

Alguns meses após a sua cirurgia, Melissa disse:

- Foi difícil seu parto quando eu nasci, mãe?

- Você era um bebê lindo.

- Mas eu não sei como é um parto, queria saber.

- Não seja tolinha, querida.

- Então por que eu não fico menstruada, mamãe?

- Nem todas as mocinhas ficam, Melissa.

- Isso é mentira! Todas as mocinhas na minha idade menstruam!

- Muitas achariam até uma bênção não ficarem menstruadas... Não terem que suportar essa maldição.

- Por que você deseja que eu seja um monstro, mãe? Por que você quer que me torne um monstrinho maior do que já sou?

A psicóloga que o dr. Obermark recomendara tinha o inverossímil nome de dra. Lilias de Falange. Ela submeteu Melissa a uma série de testes, seguidos de extensas entrevistas, e ao final daquele verão remeteu o seguinte relatório datilografado:

A paciente é uma mocinha caucasiana, atraente, inteligente, bem vestida, com uma propensão a engordar, quinze anos e sete meses de idade.

Interpretação das sessões com os testes de Rorschach:

Considerando a reação da menina ao cartão V, temos claramente um quadro de obsessão sexual, conforme é evidenciado pela fixação no desenho 22 apresentado, o notado apêndice da borboleta, que a paciente descreveu como um "palito pulsante". Que esta resposta seja sexual, ninguém pode duvidar, mas, mais importante ainda, isto demonstra sua convicção de que a inserção do pênis depende da emaciação, indicando que suas preocupações corporais estão intimamente ligadas à frigidez no desenvolvimento sexual.

Não apenas esta paciente é potencialmente frígida, como também evidencia lacunas nas reações afetivas geralmente observadas na ausência de comentários sobre cores nos cartões VIII e IX. O que parece estar ocorrendo é um medo de perda de fluidos vitais. (Poderia estar ela assustada com o início da menstruação?) Mas, mais importante ainda, ela parece estar revelando um acentuado vazio de reciprocidade, resultando numa abordagem forçada e rígida do mundo, mais comumente manifestada como uma frente masculina, sadística. Em suma, os sentimentos desta menina acham-se truncados.

A paciente revela um padrão de desenvolvimento notavelmente similar àquele do tratado pioneiro do dr. Edward Lahniers sobre os "jovens errantes", publicado ano passado em Distúrbios Psicológicos da Juventude. Nesse ensaio, ele observou a progressão precoce de uma síndrome

na qual as crianças supostamente "amadas" tornaram-se agressivas e turbulentas em relação àquelas figuras de autoridade que eram responsáveis por elas. Por que, ele indagou, a afeição não gera afeição? A resposta, ele verificou, reside em alianças malformadas. A criança se identifica, ou assume a parte (quer positiva ou negativamente) do pai (ou mãe) que tem segredos a ocultar do outro responsável parental. Em outras palavras, a criança desenvolve sintomas que impedem os pais de reconhecerem ou resolverem problemas conjugais. O resultado é uma ação emocional violenta e danosa, porque, enquanto a criança estava servindo como um "agente secreto", o caos reinava no lar, mas esse caos é pelo menos neutralizado pelo medo básico infantil da desintegração da unidade familiar.

Evidentemente, essa menina está tentando resguardar segredos. Ou ela aprende a parar de ser a vítima, ou sucumbe à hipocondria crônica, à insanidade ou ao suicídio.

Anexada ao relatório viera uma conta no total de cinco mil dólares.

Rememorando os fatos, as medidas recomendadas pelo dr. Obermark eram muito severas, muito draconianas? Isso também importaria agora, quando já é tarde demais e os efeitos irreversíveis? Numa análise retrospectiva, algo disso importa? Importa que, cinco anos depois, o dr. Obermark - tratava-se do mesmo dr. Otto Obermark -, o ilustre pediatra, fosse preso por molestar sexualmente um menino de oito anos na garagem do estacionamento subterrâneo perto da Union Square, sendo condenado a dois anos de prisão em San Quentin? Importa que a dra. Lilias de Falange anos depois fugisse com um praticante de rodeios, mudando-se com ele para Albuquerque, e logo virasse notícia quando seu bebê de um mês se estrangulou no seu berço, enquanto a dra. de Falange bebia num bar no mesmo prédio? Qualquer desses fatos tem importância?

Tudo isso se passou há muitos anos.

- O sr. Philip Dougherty, do New York Times, está ao telefone, senhora.

- Meu Deus, o Times já terá farejado as tolices do Eric? - diz Sari. - Só ontem eu recebi a carta de Eric!

- Creio que se trata de outro assunto, senhora... LeBaron e Murdock renunciando à conta da Baronet. O sr. Dougherty assina a coluna de publicidade.

- Oh. Bem, diga-lhe que eu terei uma declaração elaborada para ele em meia hora.

Sari sabe que uma espécie de declaração terá que vir como um desfecho de seus acertos. Seria só uma questão de tempo. De início, ela pensara em uma espécie de declaração em termos ásperos, repudiando

Joanna e a sua agência de publicidade. "Minha cunhada evidentemente não está em seu juízo perfeito", pensara ela em dizer. Ou, "LeBaron e Murdock não renunciaram à nossa conta. Nós os demitimos por incompetência crassa". Mas agora, analisando o que Eric propõe, e o fato de que isso, também, eventualmente chamará a atenção dos jornais, a tática mais sábia seria dissolver qualquer impressão de que uma rixa familiar pudesse estar fervendo. Pode-se às vezes ter mais êxito adoçando a pílula do que sendo ácido, como dizem. Uma declaração mais gentilmente redigida da parte da presidenta da Baronet parecia adequada. Em cinco minutos, Sari já a completou.

É com verdadeiro pesar que a Baronet Vineyards, Inc. anuncia seu afastamento da LeBaron & Murdock, sua agência publicitária durante mais de trinta anos. "Uma prova do profundo respeito que continuamos a ter pela LeBaron & Murdock está marcantemente consubstanciada no fato de que, desde 1952, quando pela primeira vez tratamos com a referida agência, as vendas da Baronet elevaram-se de 150 mil caixas anuais para mais de três milhões por ano", declarou um porta-voz da Baronet hoje. "A separação de caminhos veio como uma conseqüência de pequenas mas persistentes divergências nas filosofias de mercado."

A Baronet fará contatos para sua representação por parte de uma nova agência nos próximos meses. Nenhuma nova indicação será anunciada até que esses contatos tenham sido ultimados.

E agora, tendo redigido a declaração, Sari tem uma nova idéia. Por que não, dentro desse novo espírito de amizade "adoçada", telefonar para Joanna e ler para ela o texto a ser distribuído à imprensa, e perguntar-lhe o que acha dele? A idéia a seduz, porque contém um elemento de surpresa. Joanna não estará contando ouvir de Sari algo num tom conciliatório na presente conjuntura. Ela espera que Sari esteja furiosa. Claro que, no íntimo, Sari está.

- Eu queria saber apenas se você aprova minha declaração, Jo - diz ela quando Joanna atende -, antes de pedir à srta. Martino que a dite para o Times.

- Ora vamos, eu creio que está redigida muito satisfatoriamente, Sari - diz Joanna. - É certamente bondade sua creditar-nos todas essas cifras de vendas. Você teve muito a ver com isso, você sabe.

- Não, creio em fazer justiça onde esta é devida.

- Sari, querida, estou muito sensibilizada.

- Naturalmente, fiquei um pouco magoada por você não ter me avisado de antemão que iria tomar essa atitude - diz Sari.

- Mas eu pensei simplesmente que devia seguir os canais apropriados, comunicando a Eric. Afinal, Eric é o seu diretor de publicidade.

- Era.

- Oh. Bem, sinto ouvir isto, Sari. Mas não sou eu quem devo lhe dizer como dirigir sua empresa.

- Não posso mantê-lo na minha folha de pagamentos se ele está planejando vender a minha companhia para outra pessoa, posso? Suponho que, no momento, você já tenha recebido a carta dele dirigida aos acionistas.

- Sim. Recebi esta manhã.

- Posso perguntar a você o que pensa da proposta dele?

- Bem, devo dizer que a considero muito tentadora. A oferta de Harry parece generosa, e Eric parece crer que ele poderá aumentá-la num ponto ou dois quando entrarmos em negociações. Isso significaria muito dinheiro para todos nós, e há também uma outra coisa.

- Qual é ela?

- Desde quando você e eu começamos a envelhecer, Sari, isso tem ocupado a minha mente. Você e eu somos agora as acionistas decanas, em termos de idade. Tratando-se de uma companhia de natureza privada como a Baronet, se algo viesse a acontecer a qualquer uma de nós, o Governo interviria e fixaria o preço que desejasse para nosso estoque de ações. Nossos herdeiros poderiam ver-se cobertos de impostos. Não teríamos nenhum controle. Mas se nos tornássemos parte da Kern-McKittrick, que é uma empresa não-privada, então o preço de seu estoque de ações seria estabelecido no mercado. Estaríamos providenciando muito mais segurança para nossos filhos, e para seus netos. Este é o aspecto que meus advogados ressaltaram para mim. O que seus advogados dizem?

- Não me reuni com eles ainda.

- O que eu acho que nós devíamos fazer, mesmo antes de começar a ouvir o que os advogados pensam, era sentarmos todos juntos, como seres humanos civilizados, e debater bem toda essa questão. Isso não terá que ser uma questão de "vida ou morte", precipitada. Afinal, estamos unidas tanto pelo sangue como pelo vinho.

- E por falar nisso, em qualquer votação de acionistas iremos ter o que eu denominaria um "problema Lance". Que também pode ser chamado de problema Melissa, se você se recorda dos termos do testamento de Peter.

- Sim. Sei exatamente a que você se refere.

- As coisas poderiam ficar muito... desagradáveis, não é mesmo?

- Sim. Mas se isso fosse uma questão de "matar ou morrer". Primeiro vamos nos encontrar e conversar a respeito. Por que não posso deixar alguns assuntos pendentes na minha agenda e voar para aí no fim de semana? O que acha? Além disso, faz séculos que não a vejo.

Sari fica calada por um instante. Então, diz:

- Mas e quanto a mim?

- Hum?

- E quanto a mim? Se você, Eric e Lance votarem todos contra mim, e se Melissa descobrir que está legalmente incapacitada de votar, contando com mais ações do que ela sabe que possui, e votar contra mim...

- Melissa não deve ter conhecimento disso. Isso seria...

- Mas suponha que eu contasse a ela.

- Você não faria isso, Sari. Você faria inúmeras coisas, mas isso não.

- Faria sim, se achasse que ela votaria a meu favor!

- Você está falando sobre uma questão de "matar ou morrer". A coisa não chegou a esse ponto.

- Se ela votasse comigo, isso poria fim à tolice de você e Eric, não é assim? Porquanto eu também conto com Peeper do meu lado.

- Sari, nós estamos brigando. Deixe-me ir a São Francisco no fim de semana, e nos encontraremos para conversar... como pessoas civilizadas.

- Naturalmente, Melissa poderia resolver votar contra mim. Seria algo próprio dela! Então onde eu estaria?

- Sari - ela ouve a voz de Joanna dizer -, você tem trabalhado demais para a empresa todos esses anos. Eu acredito, a esta altura, que você devia estar pronta para sair desse seu "cinturão", relaxar... talvez viajar, fazer um cruzeiro... descansar, e aproveitar a vida.

- Esta empresa é a minha vida! A Baronet é a minha vida inteira! É a única vida que jamais tive. Você, Jo, entre todas as pessoas, devia saber disso. Jo... lembre-se que lhe prestei um grande favor há muito, muito tempo. Por que não a ouço dizer que estará do meu lado nisso? Você se recorda de um pacto de sangue? O que foi feito dele, minha amiga das horas boas? Deixe-me dizer apenas isto: se você ficar com Eric nessa questão, isso se converterá numa luta de vida ou morte, e eu direi a Melissa tudo que ela precisa saber. Tudo.

- Sari querida. Por favor, acalme-se. Eu estarei aí no fim de semana. Nós conversaremos.

 

CONTE-nos mais, querida Joanna - disse Constance LeBaron -, sobre essa sua nova amiguinha.

As duas estavam sentadas na sala de jantar elegante da antiga casa LeBaron na Califórnia Street.

- Ela é muito especial - disse Joanna com a boca ainda cheia de toronja fresca. - Ela é pequena e morena, absolutamente bela, e a atriz mais divinamente talentosa e que com certeza irá se tornar uma estrela de cinema famosa. Seu nome é Assaria Latham. Este não é o nome mais divino?

- Que colégio ela freqüenta?

- A escola pública.

- Escola pública! Por que não a Burkes ou a Hamlins?

- Não seja esnobe, mãe. Nem todas as garotas bacanas de São Francisco estudam na Burke ou na HamlhVs.

- E você diz que ela mora na Howard Street. Eu não imaginava que pessoas pudessem viver na Howard Street. Isso não é um pouco sintomático?

- Todos os artistas batalhadores têm que passar fome em águas-furtadas até alcançarem a fama e o reconhecimento.

- Já viu de perto a vizinhança de onde essa menina vive?

- Não - respondeu Joanna, abrindo mais uma outra parte da toronja. - Mas irei ver. Ela me convidou.

- Quando vir de perto a vizinhança em torno da Howard Street, deverá estar preparada para um rude despertar - disse sua mãe. Constance LeBaron era uma mulher que pronunciava certas palavras de modo ultra-afetado. - Ele não é um de nossos mais desejáveis bairros residenciais. Na verdade, não sei se gostaria que você fosse lá sozinha.

- Oh, não seja assim tão esnobe, mamãe. Ela é esnobe, não é, papai?

- Joanna é sempre o nosso pequeno geniozinho livre, hem, Constance? - disse o pai.

- E me diga de novo onde você conheceu essa menina.

- Na escola. A peça em que ela trabalhou foi encenada na escola. Era uma peça maravilhosa, e ela foi a melhor coisa em cena.

- Mas não se esqueça - disse a mãe - que o próximo ano será o de seu début. E com tudo que irá se desenrolar para você então, essa sua nova amiga poderá não... se encaixar nisso, se é que você me entende.

- Eu fico imaginando por que não.

- O que quero dizer é que ela pode não se sentir... à vontade com algumas das outras pessoas que nós conhecemos.

- Você não conhece Sari. Ela estaria à vontade no mais humilde casebre ou na mansão do mais poderoso magnata. Você não a viu no palco. Eu vi.

- Suponho que sua mãe e eu teremos uma oportunidade de conhecer esse modelo de perfeição - disse Julius LeBaron.

- Sim. Eu a convidei a vir aqui tomar chá no próximo domingo. - Joanna estava espremendo atentamente sua toronja com a colher, decidida a extrair cada parcela de suco que restava da fruta.

- É recomendável - disse Constance -, quando se janta en famille, pegar a coxa da galinha com os dedos, ou a costeleta pela ponta. Também é aceitável espremer uma toronja dentro de uma colher, como você faz agora, mas somente en famille. Nunca quando se come fora, ou num restaurante público.

- Oh, mamãe!

- É importante recordar essas coisas, querida, quando seu ano de debutante se aproxima.

- Será no próximo domingo? - perguntou seu pai.

- Sim. É o dia de folga dela.

- Dia de folga de quê? - perguntou Constance.

- Ela trabalha como lanterninha num cine-teatro. - Joanna jogou o guardanapo sobre a mesa, dizendo: - Bem, será bom eu me apressar ou chegarei atrasada. Tenho promessas a cumprir, e quilômetros a percorrer antes de ir dormir!

E ela se foi.

- Uma lanterninha num cine-teatro - disse Constance LeBaron após sua filha retirar-se. - O que virá a seguir?

Com um risinho abafado, Julius LeBaron disse novamente:

- Bem, ela sempre será o nosso geniozinho livre, não é, meu bem?

A primeira impressão de Assaria da casa da Califórnia Street fora de suntuosidade - luxo em cada canto, brinquedo de pelúcia, veludo fino e enfeites de janela de damasco de verdade, vermelho. E dourados. O que não era recoberto de pelúcia ou veludo era dourado - pequenas mesas douradas e pequenas cadeiras de costas retas douradas com aparência desconfortável e com assentos de veludo, as paredes tomadas por enormes espelhos de moldura dourada. Era o tipo de casa da Nob Hill que se costumava ver muito em São Francisco naquele tempo, mas que hoje em dia raramente se vê. Ela datava da época inicial de abastança de São Francisco, a era vitoriana, e conseguira escapar ao incêndio. E quando Joanna levou-a a percorrer a casa, esta pareceu a Sari praticamente um palácio. Ela nunca vira nada remotamente parecido com aquela casa, nem sequer nos filmes.

Eis algumas das coisas que a deixaram maravilhada no primeiro dia: as varetas de metal que prendiam os carpetes escarlate nos degraus das escadas, finas de tanto polimento; os puxadores de sinetas pesadamente enfeitados em todos os quartos e que eram usados para chamar os criados - estes, Sari soube, eram chamados "anunciadores". Havia um aposento inteiro denominado "a biblioteca", cheio do piso ao teto de livros com idêntica encadernação de marroquino, em estantes com pesadas portinhas de vidro, fechadas e com pequeninas chaves. Num recipiente arredondado de prata naquele aposento estava o que pareciam ser nada mais do que pétalas secas - e na realidade o eram, rosas-chá ressecadas, jasmins, sanguinárias e fragmentos de raízes de vetiver, esclareceu Joanna -, que, quando mexidas pelos dedos de alguém, espalhavam um odor suave no ar. "Uma miscelânea absolutamente vulgar", disse Joanna. Absolutamente comum! Em outro recipiente, uma maçã cor de chocolate que, quando tocada, dividia-se em pequenas fatias perfeitamente delineadas.

Depois, ela viria a saber mais sobre aquela casa maravilhosa. O espelho lustroso da mesa da sala de jantar, de mogno, fora mantido assim por ser esfregado diariamente pelas palmas das mãos dos criados negros. (Mãos de pessoas brancas não podem fazer isso, dissera Joanna.) O lustre cremoso dos pesados candelabros de prata e serviços de chá só podia ser conservado com um polimento diário. Num prato de sanduíches havia o que parecera ser um botão de rosa, mas quando Sari pegou-o ele se desemaranhou formando uma fina fatia de tomate que fora engenhosamente confeccionada para imitar uma flor. ("Somente decorativo, tolice! Não é para comer." Apenas decoração!) Naquela casa, às flores de verdade não se permitia que morressem. Mãos invisíveis as substituíam. Não se permitia que as velas queimassem até o fim, mas elas eram substituídas em cada ocasião que se quisesse acendê-las. Não se consentia que nada se gastasse ali, ou se quebrasse ou desaparecesse ou envelhecesse ou perdesse seu brilho, naquela assombrosa mansão, dirigida por elfos e mágicos.

Ordem, esta era a coisa principal ali. Era a ordem que organizava tudo ali, a ordem que se movia automaticamente naquela casa como lançadeira através de um tear, estabelecendo precedência, seqüência, conseqüência, conferindo a cada símbolo da casa seu lugar certo, e tornando todos os símbolos coerentes e inter-relacionados, homogêneos e bem-acabados. Isto, Sari concluiu, era o que o luxo significava: ordem, ordem em toda parte. Se a colcha de uma cama viesse a ser revirada, inevitavelmente revelaria uma coberta de cetim com monograma, lençóis de linho branco limpos e fronhas com bainhas muito enfeitadas. Naquela casa, com a sua ordem, surpresas chocantes eram excluídas.

Naquele primeiro dia, Joanna levara Sari até a galeria de retratos, com todos os LeBarons, em ordem, pintados como se mostravam realmente, ou como poderiam ter desejado ser vistos quando em sua adolescência. Joanna fizera uma parada defronte de um retrato de um jovem impressivamente belo.

- Esse é Peter - sussurrara ela. - Ele não é simplesmente fora de série?

Naquela outra galeria, também, estava o mesmo tonel de vinho que atualmente repousa na casa de Sari da Washington Street, e Joanna tinha lido então a inscrição que havia nele, explicando seu significado para a amiga.

- Do meu avô - dissera ela. - Eles dizem que se o bebêssemos agora ficaríamos desvairados.

Depois Sari foi conduzida a uma sala de estar forrada de pelúcia vermelha, para ser apresentada aos pais de Joanna - a Constance, uma mulher baixa, gorducha, com um busto amplo, loura, cabelo ondulado, vestindo um modelo negro e com pérolas, e a Julius LeBaron, um homem alto, de aparência agradável, com uma testa alta, calvo, que usava uma camisa aberta com uma jaqueta Norfolk de tweede uma gravata larga. Imediatamente Sari concluiu que apreciava mais o pai do que a mãe de Joanna, que parecia um tanto nervosa e abstraída, e sentava-se rigidamente em sua cadeira dourada, torcendo e retorcendo seu comprido cordão de pérolas, e retocando o penteado. Ela disse:

- Joanna nos disse que você é judia. Muito interessante.

- É verdade que meus pais eram judeus - retrucou Sari muito cautelosamente. - Mas eu me recordo deles muito pouco, e nunca tive qualquer instrução religiosa. Nunca estive no interior de uma igreja ou sinagoga.

- E quanto a esse homem que é seu tutor, esse sr. Pollack? Devo presumir ser também judeu?

- Não - disse ela no mesmo tom cauteloso. - Gabe Pollack é um ateu.

- Mas não é socialista também, espero! Pois muitos deles o são, você sabe.

- Não - mentiu ela, pois Gabe se referia ainda, vagamente, a idéias socialistas.

- Que interessante. Nós, é claro, somos romanos.

De saída, Sari julgou que a mãe de Joanna estava dizendo que eles eram de Roma, mas então entendeu.

- Compreendo.

- Bem, eu sempre disse que em São Francisco somos muito afortunados por termos entre nós uma bela classe de pessoas hebréias. Os Haoses, os Koshlands, os Fleishhackers e os Zellebachs são todos de crença hebraica, e nós os visitamos. Por acaso você se relaciona com essas famílias, minha querida?

- Não, creio que não.

- Mamãe, eu sempre pensei que você achava não ser gentil conversar sobre política ou religião - disse Joanna.

- Estou apenas procurando me aproximar mais de sua amiga, Joanna querida.

- Bem, pois eu digo que isso é bobagem. Coma uma fatia de bolo, Sari. É um bolo Lady Baltimore. Nossa cozinheira o fez.

- Joanna nos contou que você mora na Howard Street - disse Constance LeBaron, perseguindo sem trégua o mesmo tema de conversa. - Muito interessante.

- Sim.

- Na parte sul da Market Street.

- Sim, um ponto histórico - disse Sari.

- Realmente? Eu nunca ouvira essa parte da estrada ser descrito desse modo. Um ponto histórico.

- Ora vamos, Constance - interveio o pai de Joanna.

- Estou somente mantendo uma conversa comum - disse Constance LeBaron. E então: - Ano que vem Joanna fará seu début.

- Sim, ela me contou.

- Isso será antes de mais nada algo que vai ser um momento importante na vida de uma jovem. Haverá muitos compromissos a cumprir. Cerimônias importantes. O Baile dos Solteiros, por exemplo. Você já ouviu falar do Baile dos Solteiros?

- Não, não ouvi.

- É muito importante. É realizado pelos moços mais finos das mais finas famílias desta cidade. Ser convidado para este baile é uma grande honra, e, naturalmente, Joanna será convidada. Haverá também muitas outras celebrações, todas elas importantes. Joanna precisará de muitos vestidos novos e bonitos para o seu ano de debutante.

- Pessoalmente, creio que tudo isso é tolice - disse Joanna. - Só estou tomando parte nisso porque meus pais querem. A maioria desses solteirões são homossexuais. Eis por que ainda continuam solteiros.

- Ora, Joanna, não seja vulgar - disse Constance, que, voltando-se para Assaria, acrescentou. - Estou mencionando todas essas coisas unicamente porque Joanna nos disse que você se tornou a sua melhor amiga. E eu creio ser às vezes... útil... que as melhores amigas provenham do mesmo... bem, do mesmo... mundo.

- Creio - disse Sari - que um dos motivos pelos quais Jo e eu nos tornamos boas amigas é que nossos mundos, como a senhora mencionou, são diferentes. Nós duas temos muito a aprender uma com a outra.

- Ouçam, ouçam - disse Julius LeBaron.

- Joanna nos disse que você trabalha como lanterninha de cinema. Muito interessante.

- Sim. Não é isso o que se supõe seja o lema na América? Trabalhar para se aperfeiçoar e progredir?

- Ouçam, ouçam.

- Bem, suponho que o que você diz é válido - disse a mãe de Joanna, fazendo uma pequena careta e torcendo suas pérolas.

- Constance, eu creio que devíamos deixar os jovens fazerem o que desejarem - disse Julius LeBaron. - Acho que você já extraiu bastantes informações sobre a jovem amiga de Joanna. Há uma ópera a ser transmitida pelo rádio que eu desejo ouvir.

- Muito bem - disse Constance LeBaron, erguendo-se rigidamente de sua cadeira. Estendeu uma mão gorducha a Sari, e esta notou que os dois dedos em que aquela senhora usava anéis caros tinham ganhado tal camada de carne que certamente os anéis não

poderiam mais ser retirados. - Foi um prazer ter conhecido você. Espero que aproveite bem sua tarde.

- Agora - disse Joanna quando seus pais já tinham se retirado -, vamos cair fora daqui.

- Aonde iremos?

- Descer à adega. Venha.

E ela levou Sari para fora da sala de estar, ao longo de um corredor até uma porta sob a escada principal, que abriu com uma chave.

- Meus pais não sabem que tenho esta chave. Peter pegou-a emprestado do chaveiro do papai um dia, e fizemos duas cópias, uma para ele e outra para mim. - O umbral dava para uma escada abrupta, levando para baixo. - Cuidado ao descer. Alguns dos degraus são desiguais.

E as duas desceram em meio à escuridão, como se estivessem no bojo de um navio, mas em vez do cheiro de gente suada e água do mar, Sari relembrou anos atrás, havia um olor de algo doce e vinoso no ar.

- Minha mãe não é mesmo uma coisa? Não preste atenção a nada do que ela diga. Ninguém presta atenção, nem mesmo papai. Ele gostou de você, posso asseverar, e papai é o único que conta nesta família. Posso jurar que ele achou você especial.

Ao pé do lance de escada, agora, havia um foco de luz, pois Joanna acendera uma lâmpada. Elas estavam num amplo recinto com um piso de concreto, e em todos os lados, do chão ao teto, alinhavam-se junto às paredes filas de garrafas de vinho empoeiradas, repousando em engradados de feitio quadrado, brilhantes. E havia também várias peças de mobiliário espalhadas, móveis que tinham conhecido melhores dias - um sofá antigo de molas grossas e um par de cadeiras de vime muito estofadas com as molas balançando frouxamente por baixo de seus botões franjados. Inúmeras caixas vazias de vinho reviradas tinham sido colocadas em volta do recinto para servir de mesas, e garrafas de vinho vazias ali estavam para serem usadas como porta-velas. Àquela luz mortiça, o lugar propunha-se a criar a frágil ilusão de um parlatório formal.

- A adega de vinhos - explicou Joanna. - Este é um dos meus recantos secretos e de Peter. Este é o nosso clube. Peter e eu trouxemos todos esses móveis do sótão. Isto não é algo especial? Mamãe e papai nunca descem aqui. Quando querem tomar vinho, mandam MacDonald vir apanhá-lo. MacDonald é o nosso mordom, como pronuncia mamãe. MacDonald é o único a par de nosso segredo, e não dirá nada porque nós conhecemos um segredo sobre ele. Quer saber qual é? MacDonald introduz à noite em seu quarto certas "damas da noite" - sim, reais. Às vezes, ele introduz sorrateiramente duas de uma vez. Nós o flagramos fazendo isso, assim o chantageamos, porque se

mamãe ou papai descobrissem, nem sei o que fariam com ele. Agora, primeiro acendamos as velas... então tomaremos nosso chá.

- Chá?

Observando as fileiras de garrafas, Joanna disse:

- Hoje, eu penso em champanhe, você não? Afinal, é a sua primeira visita aqui. Naturalmente, você pode tomar o que desejar. Peter e eu pensamos em abrir nosso próprio bar clandestino aqui embaixo, mas isso poderia ser muito arriscado. Quer um pito?

- Um pito?

- Um cigarro. Nós guardamos um maço de Camels escondido bem sob a almofada do sofá, aqui. Nem mesmo MacDonald sabe disso...

Sari recusou o cigarro, mas decidiu que não recusaria o vinho, e Joanna estava agora torcendo habilmente a rolha da garrafa de champanhe. Esta abriu-se com um surpreendente estouro.

- Naturalmente, isto deveria realmente estar gelado, mas não temos gelo aqui. Este lugar é mantido numa temperatura de aproximadamente 62 graus, embora esteja bastante fresco aqui, e nós temos tudo mais de que necessitamos. Os copos - acrescentou ela, erguendo uma das caixas de vinho - são guardados aqui. - Apanhou dois copos de vinho e encheu um para Sari.e outro para ela. Então, sentando-se no velho sofá, ela tirou um cigarro do maço, acendeu-o na chama da vela, reclinou-se, inalou e expeliu a fumaça, como Sari vira Lois Moran fazer em Steila Dallas. Então Joanna ergueu seu copo e disse: - Beba de um só gole. À amizade.

- À amizade. - E Sari sentiu pela primeira vez o sabor do champanhe.

- Isto não é algo muito especial?

Depois, quando as duas já tinham consumido dois copos, Joanna começou a encher o terceiro e disse:

- Mas, falando sério, o que você acha que eu deveria fazer com a minha vida? Quero dizer, você está encaminhada. Você é uma atriz, e logo partirá para Hollywood e se transformará numa estrela de cinema rica e famosa, mas o que irá me acontecer? Oh, sei o que se supõe que aconteça. Após meu ano de debutante, presume-se que eu me case com algum ricaço... de preferência um Crocker ou um deYoung... e me instale em Burlingame, e comece a ter bebês. Mas eu não desejo fazer isso, e não irei fazê-lo. Não desejo ser simplesmente uma melindrosa. Algumas garotas da escola que eu conheço só têm como alvo serem bonecas de salão. Mas eu não quero ser isso. O que eu poderia ser?

- Vejamos - disse Sari, procurando concentrar-se. - O que você poderia ser... - O champanhe começara a subir à sua cabeça,

enchendo-a do mais quente e maravilhoso ardor, e ela podia sentir diminutas gotas de transpiração se formando em sua testa, mesmo naquele aposento de algum modo frio. - Vejamos... vejamos...

- Tem que ser algo emocionante e também encantador, além de muito importante. Como uma poetisa, como Edna Saint Vincent Millay, por exemplo. Você acha que eu poderia ser uma poetisa?

- Ou... - disse Sari. - Deixe-me pensar. Ou... que tal uma jornalista de renome? Ir à caça de histórias emocionantes diariamente. Conhecer todas as pessoas importantes que passam por esta cidade: o presidente dos Estados Unidos, a rainha da Romênia! Ou... que diz de ser uma romancista famosa? Eu posso ver você escrevendo os romances mais belos de amor, Jo. Você sabe tudo sobre o amor...

- Amor... e paixão!

- Ou... não, espere, tive a melhor idéia de todas - disse Sari, sorvendo o resto de champanhe no seu copo.

- Qual é ela?

- Uma aviadora! Você podia aprender a voar... eles dizem que isso não é difícil. Você poderia aprender a pilotar um avião, e voar nele pelo mundo inteiro! Poderia ser a primeira mulher a voar daqui até o México! Há alguns aviões, você sabe, que podem pousar na água, e você poderia voar até a selva amazônica, na América do Sul, e pousar no rio, você poderia explorar... poderia descobrir cidades incas perdidas...

- Oh, adoro essa idéia!

- E eu adoro este champanhe!

- Oba... estamos prontas para uma outra garrafa.

- Uau! - exclamou Sari quando uma nova rolha saltou. - Pense só nisso! Voar! Lá bem no alto, sobrevoando montanhas. Bem alto onde ninguém jamais esteve! Puxa! Bebamos de um só gole! - Um pouco de champanhe escorreu do copo para o seu pulso, mas ela nem percebeu. - De um só gole.

- Bem alto nos cumes. Oh, querida, parece que estou derramando o champanhe...

- Vamos, deixe-me encher seu copo de novo. Não se preocupe, há muito mais aqui. E não se preocupe, o champanhe não mancha a roupa.

- Lá em cima! Bem alto! - disse Sari. - E você já viu aqueles aviões que podem escrever mensagens no céu? Você podia escrever seus poemas no céu!

- E deixá-los ser soprados e apagados pelo vento.

- Mas depois você os ofertaria ao mundo. Depois que a rainha da Romênia teve...

- Como pôr uma mensagem numa garrafa, e jogá-la no mar...

- Mas com um poema...

- Geminianas.

- Isto é extraordinário - disse Sari. - Eu me sinto como a rainha do que quer que seja. Puxa! Nós viemos de mundos diferentes! Mas somos...

- Devíamos ter um pouco de música agora - disse Joanna. E, de baixo de uma outra caixa de vinho vazia, ela retirou uma pequena vitrola e uma pilha de discos. E logo a adega era povoada pelos sons de alguém cantando Quero ser feliz.

- Eu sou feliz! - exclamou Sari. - Nunca me sentira tão feliz em minha vida! É isto que o champanhe sempre produz? - E ela começara de imediato a rir, e logo o riso se converteu em um acesso de soluços. - Oh... querida - ela engasgara. - Você acha realmente que devemos abrir uma outra garrafa?

- Por que não? Este clube satisfaz a todas as necessidades de seus membros.

- Bebamos de um trago! De um gole só! Em honra de seu ano de estréia na sociedade!

E então, um pouco mais tarde, depois que a vitrola parou de funcionar e a música cessou, um silêncio recaiu entre as duas jovens. Joanna, os pés metidos sob o corpo, sentada numa ponta do grande sofá, fixou o olhar na semi-escuridão, enfocando o teto coberto de teias de aranha. Ela acendera outro cigarro, e estava expelindo fumaça no ar. Sari sentara-se na outra extremidade do sofá, olhando fixamente seu copo ainda pela metade. E por que, de repente, uma lágrima despontara no canto de um olho, e descera rapidamente pela sua face? Ela enxugou-a com o dorso da mão, agradecida pelo fato de Joanna não ter percebido.

- Daria tudo para ler seus pensamentos - disse Joanna.

- Eu estava pensando... - começou Sari.

Eu pensava, ela se disse, que realmente não pertenço a isto aqui, a esta estranha família, em que a mãe trata a amiguinha de sua filha como se ela fosse um germe indesejável, ou um inseto. E que, se não pertenço a este ambiente, então a que lugar pertenço? A Hollywood? Ou ao topo de uma montanha em Katmandu? E pensava também por que ela achou necessário dizer à sua mãe que eu sou judia, que sou pobre, que moro na Howard Street, e trabalho como lanterninha num cine-teatro... todos os detalhes que na certa desagradariam à sua mãe. A menos... a menos que...

- Todos os geminianos têm dois lados, o brilhante e o escuro - disse então Joanna. - Tenho certeza de que você é como eu. Você gosta da vida da alta sociedade, mas também gosta da vida das classes humildes.

Serei eu parte de suas aventuras com o lado sombrio da vida?, pensou Sari. Será isto? É este o motivo pelo qual fui trazida aqui, onde fui levada a me sentir imediatamente deslocada? Ou estou sendo usada como um instrumento, uma arma no arsenal particular dessa mocinha, com o qual ela trava alguma batalha misteriosa e íntima com seus pais? Mas Sari não disse nenhuma dessas coisas, comentando então:

- Eu estava pensando em como você é feliz por ter pais que a amam. Eu mal me recordo dos meus. - Duas lágrimas, espontâneas, como a anterior, despontaram. E ela enxugou-as.

- Pais podem ser uma bênção confusa, acredite. Ter pais não é sempre o supra-sumo. Não fique triste, Sari.

- E eu estive pensando também que devíamos parar de dizer que tudo é ou não é, o supra-sumo, ou extraordinário - disse Sari, com uma fungadela.

- Oh, você tem razão! - disse Joanna, pousando seu copo e batendo palmas. - Isso é um lugar-comum. Eu não desejo ser um lugar-comum. Entenda, eis por que você é boa para mim! Meus pais têm tentado me converter num clichê esses anos todos, e até eu conhecer você eles quase tiveram sucesso. - Ergueu a mão direita, apertou com a outra o seu peito. - Eu, Joanna LeBaron, a partir de agora juro solenemente nunca usar de novo essa desagradável expressão. E quanto a você...

- Sim?

- Você deve prometer aprender a fumar cigarros!

- É pra já. Me jogue o maço. - Apanhou o maço e, com alguma atenção, e nenhuma precipitação, retirou um cigarro e o acendeu na chama da vela, do modo como observara Joanna fazer. E logo estavam rindo de novo. - Além disso - acrescentou Sari - é um fato conhecido cientificamente que os gatos não usam pijamas.*

- Nem eu uso. Sempre durmo nua.

- Nem mesmo os gatos judeus que vivem na Howard Street.

- Oh... oh... oh! - Elas estavam se balançando para diante e para trás em seus assentos, entre risos. - Por que isso é tão engraçado?

- Eu não sei! Mas é!

- Devemos sempre contar uma à outra tudo que não apreciamos em nós. Isto faz parte do pacto - disse Joanna.

- Parte do pacto. Mais champanhe?

- Caramba, sim!

Um pouco depois - com a voz um tanto baixa e rouca devido

 

*No original americano, a expressão usada por Joanna é cafspajamas, que em português resulta nas expressões "algo muito especial", "fora de série" etc. O jogo de palavras só resulta sugestivo no original. (N. do T.)

 

ao vinho, e a fala um pouco desconexa e discursiva - Joanna passou a dizer:

- .. .e então houve aquele menino aqui de São Francisco, o Jimmy Flood... Meus pais o escolheram para... mim. Eles dizem que os Floods são tão bons como os Crockers e os deYoungs, e os Floods são católicos. Seja como for... onde eu estava? Ele é o tal rapaz que vai para a Stanford. Eu lhe disse que seu nome é Jimmy Flood? Bem, seja como for, eu disse não... Eu disse não, que não queria. Eu disse... espírito independente... Eu disse... amo outra pessoa... não Flood, Jimmy Flood. Esse é o nome dele. Mas... amo outra pessoa... inaceitável. Nós..., isto foi em Woodside, e, oh, meu Deus, foi há anos. Nós... você já fez isso? Nós nos vestimos, fingimos estar casando... encontrei o vestido... branco que minha mãe usou ao ser crismada. Para meu buquê, flores silvestres... você já fez isso? Eu tinha apenas seis ou sete anos, estava no segundo ano primário. Nós nos vestimos. Eu estava só fazendo de conta, claro, mas usei meu primeiro batom. Ficou todo nos lábios dele quando nos beijamos. Mas esse já era um outro menino... não era o Jimmy Flood. Jimmy Flood é Jimmy Flood, que é uma pessoa totalmente diversa...

- Quem é o rapaz que você realmente ama?

- Ele é inaceitável. A propósito, você já foi para cama com Craig Pollack?

- Gabe Pollack. Não, ainda não.

- Não devia esperar muito mais tempo - disse ela, agitando o vinho em seu copo. - O ferro deve ser malhado enquanto ainda está quente.

- Quente.

- Ou ele perderá o interesse.

- Mas quando?

- Deve planejar isso com muita cautela. O que ele faz quando volta para casa à noite?

- À noite?

- Sim. Após o jantar. Todos se retiram para seus quartos. O que ele faz então? É importante.

- Às vezes... ele lê deitado.

- Ah - fez Joanna. - É o momento perfeito. Lendo na cama. Você então bate na porta dele. A pretexto de que precisa falar com ele. Já no quarto, feche a porta. Sente-se no canto da sua cama. Ele tem cabelos no peito?

- Cabelos?

- No peito, sim.

- Creio que sim.

- Bom. Toque nele ali. Então, diga: "Como o seu cabelo no

peito é encaracolado." Algo nesse estilo. Os homens não conseguem resistir a essa espécie de coisa. Coce-o um pouquinho ali. Então deixe sua mão deslizar, sob a colcha, e o "coce" um pouco mais... ali. Então, tudo estará encaminhado naturalmente.

- Tem certeza?

- Absoluta. Ele não poderá se controlar. Reagirá com paixão. Desejo. Pelo menos se ele é normal. Ele é, não?

- Oh, sim.

- Você ainda está louquinha de amor por ele, certo?

- Sim, mas...

- Então observe isto.

À luz do castiçal, como se em meio a um sonho erótico, Sari vira, na outra extremidade do sofá, Joanna recostar-se nas almofadas e começar a erguer e girar seus quadris em ritmo lento e ondulante, e, na sua voz rouca, gutural, murmurar:

- Oh, meu amor... oh, meu querido... me acaricie aqui... oh, sim... oh, oh, oh... Oh, sim... mais... sim...

Mas, por mais hipnótico que fosse esse desempenho, Assaria sentiu-se assaltada por um problema de proporções muito mais prementes. Ela acabara de acender seu segundo cigarro e imediatamente apagou-o.

- Oh, Jo - exclamara ela. - Jo... eu creio que... eu me sinto tão...

Joanna sentara-se rapidamente e olhara para Sari.

- Oh, meu Deus! Você está verde! Espere! Agüente firme! Cubra a boca com as mãos!

Joanna saltara do sofá e correra um pouco sem firmeza só de meias - ela já tinha há muito retirado os sapatos - até um canto da adega, voltando logo com um balde de ferro galvanizado.

- Aqui - disse ela, e ajudou a manter a cabeça de Sari bem sobre o balde enquanto lá se ia o que restara do almoço, e um bom bocado de champanhe.

- Viu? - disse Joanna. - O clube supre todas as necessidades de seus membros. - Afagou o alto da cabeça de Sari. - Não se sinta constrangida. Isto acontece às melhores famílias. Aconteceu comigo, até mesmo com o Peter, que é duro na queda. Champanhe deve ser servido com gelo. Foi culpa minha.

Quando Sari pôde erguer a cabeça, desviando o olhar do pequeno balde seguro entre suas pernas, sentiu-se imediatamente sóbria. Mas seu rosto estava porejado de suor agora, e ela podia sentir as mechas de seu cabelo úmido colando-se à sua testa.

Joanna estendeu-lhe um lenço.

- A enfermeira Jo em serviço de salvamento. - Então

acrescentou: - Eu acabei de decidir o que farei da minha vida. Irei trabalhar para você, e você por sua vez trabalhará para mim. Não sei ainda como faremos isso, mas é o que iremos fazer.

Do modo como as coisas funcionariam depois, fora uma predição de fato.

Mas fora naquele momento que Sari compreendera que as duas não estavam mais a sós na adega. Um moço alto e esguio estava parado ali, olhando-as fixamente, com uma expressão que era uma mescla de perplexidade, zanga e incredulidade, e Sari de imediato reconheceu o rosto que vira lá em cima na galeria dos retratos da família naquela tarde, embora o rosto do jovem se mostrasse agora mais maduro.

- Peter! - exclamou Joanna, correndo para ele. - O que, afinal, você está fazendo aqui? Você devia estar a milhares e milhares de quilômetros, em New Haven, Connecticut.

- Eu fui expulso - elas o ouviram dizer.

- Vai querer uma nova dose? - perguntou-lhe Archie McPherson. Ele e Melissa estavam sentados num bar em Ernie, e já entardecera.

- Não, obrigada - disse Melissa. - Não sei realmente por que aceitei esse seu convite.

- Verdade? Por que não?

- Porque não confio em você.

- Oh?

- Aquele artigo que você escreveu sobre o fato de eu ter pago ao conjunto de rock pela sua apresentação. Onde você obteve os dados?

- Eu tenho minhas fontes de informação - retrucou ele com um leve sorriso.

- Oh, tenho certeza de que as tem. Mas qual foi a sua fonte dessa história... na qual eu fui mencionada, sem ser entrevistada ou indagada quanto à citação transcrita?

- Ela foi exata, não foi?

- Mais ou menos. Tão fiel como quaisquer reportagens de jornal. Quem lhe deu a informação?

- Poderia ter procedido de quaisquer grupos de pessoas.

- Cite duas.

- A informação poderia ter partido de alguém da junta de diretores do Odeon.

- Impossível. Eu fiz aquilo sem consultar ou informar a diretoria do teatro.

- Ou poderia ter partido do próprio Maurice Littlefield, ou alguém do seu conjunto.

- Muito improvável também. Nenhum dos componentes do grupo é o que se chamaria de inteligente. E Maurice é... ingênuo. E -

bateu de leve com a ponta do dedo indicador na testa - não esperto o suficiente para achar um repórter de jornal e fornecer-lhe sua história... particularmente quando eu lhe deixara bem claro que estava agindo de modo puramente pessoal e reservadamente. Não, Archie McPherson, só há uma pessoa que poderia ter fornecido a você as informações para a sua reportagem.

- Quem?

- Não me julgue uma tola também. Minha mãe, é claro. Ela é a única pessoa a quem revelei meus planos, e a frase que você atribuiu a mim foi, no geral, o que eu disse a ela. Assim, eu não confio em você, Archie. Mas também sinto pena de você.

- Ora, por quê?

- Você escolheu representar o papel de agente duplo... trabalhando para o jornal de Gabe e para minha mãe também. Quando Gabe descobrir tudo, pois minha mãe na certa se incumbirá disso tão logo a utilidade de seus serviços cesse para ela, ele dará o bilhete azul a você. O que é justamente o que ela estava planejando conseguir. E isso será seu fim em São Francisco, Archie.

Archie mostrava-se pouco à vontade. E agora está franzindo a testa, e se põe a mexer a colherzinha de plástico formando desenhos de paralelogramas em ziguezague, dizendo por fim:

- Onde você pescou essa história de agente duplo?

- Eu conheço minha mãe. Sei como ela age. Ela nunca aborda um problema diretamente. Tem que haver rodeios, intriga de bastidores, e as pessoas têm que ser colocadas umas contra as outras até chegarem ao ponto de uma ruptura, e aí ela obtém o que deseja. Então ela lava suas mãos. Eu sinto por você, porquanto posso lhe dizer que agora está muito próximo de deixar de ser útil para Assaria LeBaron. Logo a Área da Baía de Frisco não o verá mais em atividade. Seja como for, quanto ela está pagando a você por seus pequenos serviços?

- O que você está dizendo é muito insultuoso. Melissa fez um gesto com a mão, dizendo:

- Isso não importa. Seja como for, o fato é que tenho certeza de que são coisas insignificantes. Apenas o suficiente para fazer você achar que está desempenhando um papel importante no futuro da família LeBaron e da Baronet Vineyards. E que está jogando a favor da Grande Enchilada.

- Pensei que éramos amigos, Melissa.

- Tem razão: éramos. O que nos traz ao dia de hoje. Por que você me convidou para beber algo hoje?

- Só para tomar um gole. E jantar, espero.

- Não estou certa quanto ao jantar. Isso dependerá de você começar ou não a me contar a verdade. Deixe-me adivinhar... Ela sugeriu que você me convidasse para jantar a fim de tentar descobrir como eu pretendo votar. Correto?

- Votar?

- Sim. Há uma suculenta oferta de compra da Baronet, como tenho certeza de que minha mãe lhe contou, tendo Eric como cabeça do grupo encampador, com um bocado de dinheiro de Tillinghast lhe dando respaldo. O querido papai de Alix. Aparentemente o papai Harry não quer que o marido de sua filhinha querida seja crucificado pelos impostos quando minha mãe morrer, assim está se oferecendo para barganhar suas ações pelas nossas. Muita esperteza da parte dele. Portanto, mais cedo ou mais tarde teremos que pôr em votação a oferta de Harry. Mamãe já está dispondo suas forças em ordem de batalha, tentando descobrir quem está de seu lado e fazer a contagem dos inimigos. Estamos agora na fase da guerra fria, mas espere só até mamãe apresentar suas grandes armas! E a sua tarefa, Archie, é apurar de que lado eu me colocarei... certo?

- Sinceramente, Melissa, ela não mencionou nada disso. Não acredito em você. E por que, você deve se perguntar, minha mãe simplesmente não me perguntou se eu iria votar essa oferta, já que nós moramos na mesma casa? Porque isso seria muito simples, e eu não faço o gênero da minha mãe. Seria como Hitler perguntar à Tcheco-Eslováquia se ele poderia ficar com o território dos Sudetos. Não, mamãe prefere recolher suas informações através de espiões e agentes secretos. E por meio de ameaças, reais ou implícitas. E dando propinas a "guardas de fronteira", como você.

- Melissa, creia em mim. O assunto de uma encampação - toda a história referente à Baronet - não veio à baila entre sua mãe e eu. Eu juro. Se houvesse uma Bíblia neste restaurante, eu juraria sobre ela, sobre a Bíblia Sagrada.

- Então por que esse seu convite? Então por que essa reportagem recente em seu jornal?

- Sinceramente, acho que ela me falou sobre o que você tinha feito porque estava orgulhosa de você. Você fora voto vencido na diretoria do Odeon, e assim simplesmente assumiu todo o ônus da situação e pagou do seu próprio bolso ao conjunto de rock. Creio que ela considerou que você fez a coisa certa, decente, e acho que os leitores tiveram igual impressão após terem lido a reportagem. Creio que ela julgou que você é muito modesta para divulgar seu ato de caridade pessoal, e que achou que você merecia alguma espécie de reconhecimento público pelo que havia feito.

- Hum... Eu não acredito nisso também. Não se parece nada com a mãe que eu conheço e com quem venho lidando há mais de cinqüenta anos. Não, essa história objetivava fazer-me parecer uma "dama generosa", cabeça oca, para um grupo de rock afinal de contas, nem sequer uma caridade reconhecida como algo a ser abatido no imposto de renda, ou como esbanjamento muito tolo. De qualquer modo, essa história poderia ser usada para servir a seus propósitos, entenda. Podia ser usada para exemplificar o fato de ser Melissa uma cabeça tonta cuja palavra - ou voto - não deveria ser levada a sério em qualquer discussão de acionistas. Entenda isto, Archie, eu conheço muito bem minha mãe. Conheço o modo bizantino com que sua mente funciona.

- Para ser sincero, não creio que seja assim. Não creio que isso tenha algo a ver com qualquer oferta de compra, ou com Harry Tillinghast, ou com esse assunto, que é inteiramente novo para mim.

- Ah - diz ela, com um leve sorriso. - Então é isso. Uma novidade para você. Talvez ela esperasse que eu soltasse essa novidade para você, o que fiz agora, e assim ela já teve êxito. Vê quão esperta ela é? É até mesmo mais esperta do que eu supunha! E por que ela simplesmente não revelou a você essa história da proposta de compra? A resposta é simples. Assim que você divulgue essa história para o país inteiro, as mãos dela estarão limpas! "Quem deixou essa história vazar prematuramente para esse repórter?.", desejarão saber todos os outros. "Eu não fui!" dirá ela. "Foi Melissa! Melissa é a responsável, como de costume! A velha, instável e inconfiável Melissa, que deveria certamente ser colocada num asilo de doidos." Eles não permitem que pessoas internadas num hospício votem em reuniões de acionistas, certo? Bem, quando vir de novo minha mãe, dê-lhe minhas congratulações. Seu pequeno plano deu certo, como sempre.

- Melissa, eu lhe direi o que você quer saber, prometo. Juro a você que não escreverei uma palavra sobre tudo que me disse aqui esta tarde! Tratarei isso como uma questão de estrita confiança entre nós. Que tal?

- Na verdade, eu não acho que isso realmente importe muito. A coisa irá estourar dentro de poucos dias, seja como for. A Wall Street está cheia de boatos sobre essa história ventilada na última semana. Por que essa repentina e substancial negociação das ações da Kern-McKittrick? Você não tem acompanhado isso? Eu tenho. Assim, não presumo que o que você escreva sobre isso tenha o mínimo efeito sobre o resultado final dos fatos. Exceto desacreditar-me, é claro, o que faz parte do plano de minha mãe.

- Você é dura demais com sua mãe, Melissa.

- Dura com ela? A verdade é que eu a adoro, sempre adorei. Desejo, com freqüência, ter a sua energia, sua coragem e sua fibra. Eu adorava meu pai também, venerava-o, mas isso é diferente, porque nunca cheguei a conhecê-lo bem. Ele nunca estava ali. Eu adorava meu pai abstratamente, como uma idéia, como um pai amoroso que nunca podia se aproximar de mim. Eu adorava os dois - meu pai no plano abstrato e minha mãe na realidade essencial. Em termos religiosos, é um pouco como a diferença entre o Filho e o Espírito Santo. O Filho era real, Jesus existiu, mas o Espírito Santo é somente uma teoria, uma idéia, um espectro. Eu amava o fato real que era minha mãe, e o fantasma que era meu pai, mas o fato de eu adorá-la não quer dizer que eu confie nela. Entenda, minha mãe é uma mulher muito rica, e pensa... sabe, que pode comprar pessoas. Muitas. Pessoas como você por exemplo. Quanto um repórter como você pode faturar? Dezoito, vinte mil por ano? Não me diga, não desejo realmente saber. Mas alguém como você, ela pode comprar a preços baseados em barganhas. Você não seria o primeiro comprado por ela, e não será o último. Mas ela não pode me comprar. Não apenas porque eu tenho muito dinheiro meu, mas porque eu não lhe permitirei comprar-me até ela ser honesta comigo. Assim, tudo que ela pode fazer é tentar manipular-me por meio de agentes como você, mas nesse meio tempo ela está de olho em mim. Eis por que sinto pena de você. Quando não tiver mais utilidade para ela, será descartado rapidamente... como um guri mimado e depois posto de lado! Mas agora ela necessita de meu voto. Mesmo comigo internada num hospício ela irá precisar de meu voto.

- Por falar nisso, como você planeja votar? Embora isso não seja da minha conta.

- Não, não é. Mas a verdade é que não me decidi ainda, e você pode dizer isso a minha mãe. Depende muito... - Ela hesita e endereça-lhe um olhar avaliador. - Depende muito de que minha mãe resolva finalmente jogar limpo comigo. E também, em grande parte, do número de ações da Baronet que me habilite legalmente a votar, e que pretendo descobrir. E pode dizer isso também a minha mãe.

- Droga, Melissa, eu não direi nada disso à sua mãe! Já prometi manter toda a nossa conversa em absoluto sigilo.

- Será interessante comprovar se você manterá essa promessa.

- Promessa é promessa. Agora, vai parar de se mostrar desconfiada e tomar outra bebida comigo?

- Não. Isso foi outra sugestão de minha mãe? "Faça Melissa beber um pouco, e talvez consiga que ela solte a língua." Posso ouvi-la dizendo isso. Não terá ela dito também para me deixar um tanto embriagada e então talvez levar-me para a cama com você? "Melissa tem apetites sexuais saudáveis... todos nós não temos? Fazer amor um pouco pode despregar seus lábios." Eu posso até ouvi-la dizendo isso também.

Archie abaixa a vista e diz:

- Não foi por isso que a convidei para jantar.

- Então por que foi?

- Em primeiro lugar, porque a considero uma mulher fascinante.

- Oh, eu sou, eu sou. Fascinante.

- E porque considero os LeBarons uma família fascinante.

- Nós somos. Absolutamente fascinantes.

- E porque, para ser franco com você, algum dia gostaria de escrever a história dos LeBarons.

- Bem, você não fará isso enquanto mamãe estiver por perto. Se você encontrar um editor, ela comprará a editora.

- Para mim, trata-se de uma história muito romântica. O jovem imigrante da Corrida do Ouro... a saga de uma fortuna construída da terra da Califórnia... as condições climáticas especiais que favorecem o cultivo da uva, dias ensolarados e noites frias, secas... o romance do negócio de vinhos. Como vê, já fiz uma certa colheita de dados, Melissa.

- Romântica, sim. Mas existem algumas rudes arestas na história dos LeBarons, alguns aspectos inferiores um tanto feios e sujos que você não irá conhecer da minha parte. Muita roupa branca suja, muitos segredos de família, pode crer.

- Seja como for, paremos de falar sobre incorporadores, aquisições e segredos de família. Vamos desfrutar de uma noite agradável, e desviar a conversa para um assunto mais ameno. Está bem?

- Muito bem. Qual deverá ser esse assunto ameno?

- Você - diz Archie naturalmente. - Fale-me sobre os dias que passou na Suíça no verão passado, por exemplo.

- Suíça - murmura ela. Retira o guardanapo do colo, dobra-o cuidadosamente e coloca-o sobre a mesa à sua frente. A seguir, pega a sua bolsa Gucci, que tinha deixado no chão, bem ao lado da sua cadeira. - Então é isso. Eu devia ter imaginado. Algumas vezes não sou tão esperta como gostaria de ser. Suíça... Eu vou para casa. Obrigada pelo drinque, Archie, mas você é um sujo. Você é um safado, mas ainda assim sinto pena de você. Sinto uma enorme pena dos safados deste mundo. As apostas em nome das quais se arriscam são em geral lastimavelmente pequenas... As minhas são de algum modo maiores. Tchau. - E ela se levanta, com a sua bolsa, pronta para ir embora.

Archie começa a se erguer, dizendo:

- Deixe-me levá-la à sua casa.

- Não, obrigada. Pegarei um táxi. Táxis são baratos. Como este nosso encontro.

Semi-erguido, ele observa quando Melissa se volta e caminha rapidamente pelo restaurante na direção da porta, os saltos finos de seus sapatos Delman deixando leves sulcos no carpete verde espesso do piso do bar de Ernie, pequenas mas resilientes depressões que perdem sua forma imediatamente após serem pisadas por aqueles saltos.

Finalmente, ele se senta de novo, e chama o garçom.

- A conta, por favor.

- Obrigado, senhor, mas a srta. LeBaron solicitou que isso fosse creditado na sua conta pessoal - retruca o garçom.

Nesse exato momento, Gabe Pollack tinha ligado para Assaria LeBaron, que se achava na sua casa da Washington Street.

- Estou em Los Angeles. Minha secretária me disse que você esteve tentando se comunicar comigo.

- Sim. Gabe, isto é muito importante. Harry Tillinghast está planejando fazer uma oferta de compra da Baronet, e Eric está por trás dele. Naturalmente, seu objetivo é conseguir meu afastamento da companhia. E estou disposta a lutar por ela a todo custo, Gabe. Eles não farão isso comigo. Mas há um problema mais urgente. Todos os acionistas receberam informações pelo Correio, e Melissa deve estar jantando com o seu repórter McPherson esta noite. Creio ser mais do que provável que mencione alguma coisa sobre o caso a ele, e que ele ache que dará uma reportagem. Tudo isso está ótimo, Gabe, mas eu não quero ainda essa reportagem. Vou me reunir com os advogados amanhã, e uma reunião de família foi programada para o fim de semana. Se McPherson procurar você de manhã com uma matéria sobre a Kern-McKittrick, quero que lhe diga para manter o assunto em suspenso até eu estar preparada. Fará isso por mim, Gabe?

- Claro. Não será nenhum problema, Sari.

- Acredite em mim: quando eu estiver preparada para convocar a imprensa, haverá uma reportagem muito mais importante do que qualquer coisa que o sr. McPherson venha a obter de Melissa no jantar desta noite. E se você fizer isso para mim, Gabe, deve saber qual será a recompensa.

- Não... qual será?

- O seu jornal será o primeiro no país a contar com a história completa. Você terá todos os detalhes com exclusividade.

- Se isso fosse possível, seria certamente muito bom.

- Providenciarei pessoalmente para que assim seja, Gabe. Isso deve aumentar a venda do seu jornal. Irei mesmo mais além, se você suprimir qualquer história sobre nós até eu lhe dar o sinal verde. Você sabe que nunca dou entrevistas, mas lhe concederei uma desta vez... uma que irá deixá-los arrasados. Que tal essa retribuição pelo seu favor, Gabe?

Gabe dá um risinho contido e diz:

- Creio que isso seria realmente algo muito bom.

- Ótimo. Isto é um trato. Além do mais, me agrada em especial que o primeiro jornal a obter a história não seja o Times ou o Wall Street Journal, mas a nossa pequena e querida Península Gazette! - E ela repõe o fone no gancho.

Enquanto ela falava com Gabe, Thomas colocara-se discretamente a alguns passos do lado de fora da porta. E agora entra, dizendo:

- Senhora, havia uma carta hoje na caixa do Correio da srta. Melissa da qual eu pensei que a senhora devia inteirar-se.

- Sim? Que espécie de carta?

- Foi remetida da Suíça, senhora. Parece ser do Palace Hotel de Saint Moritz.

- Entendo.

- E parece ser muito mais do que uma carta comum. É um envelope volumoso. Não a entreguei à srta. Melissa por achar que a senhora poderia desejar examiná-la primeiro.

- Compreendo. Está me perguntando se eu gostaria de abri-la e lê-la antes.

- Achei que este envelope grosso poderia, possivelmente, conter informações que seriam de seu especial interesse, senhora.

- Sim. - Ela hesita, brincando com um lápis. - Sabe que desaprovo fazer coisas como essa. Eu nunca apreciei fazê-lo. Mas, sim, creio que, nas presentes circunstâncias, devemos fazer isso. Estas são circunstâncias muito especiais, afinal de contas.

Thomas faz um sinal de assentimento.

- Vou apanhar a carta para a senhora.

Enquanto aguarda, Sari faz rabiscos com seu lápis, e tais rabiscos são as anotações que ela andara redigindo e redigindo durante muitos dias. Quando Thomas retorna e lhe entrega a carta, ela percebe que na verdade é muito extensa.

- Você leu isto, Thomas? Não importa... claro que a leu. Não se gasta mais de vinte minutos para abrir um envelope perto do vapor.

Sari ajusta seus óculos sobre o nariz, e lê:

Minha cara srta. LeBaron,

Eu lhe sou grato pela sua gentil carta, e seu conteúdo interessante, e peço desculpas pelo longo tempo que levei para responder-lhe. Nós estamos justamente chegando ao término da nossa temporada de inverno, habitualmente atarefada e agitada, e a nossa equipe de trabalho está agora se preparando para o que nossos hóspedes ingleses chamam suas "férias", um descanso bem merecido até que o hotel reabra para o verão, em junho. Isto me dá uma oportunidade de responder à sua carta com alguns detalhes, que, sei, esperava obter de mim.

Mas antes de mais nada, permita-me dizer-lhe o quanto me agradou saber que a senhorita aproveitou bem a sua estada conosco. Saiba também que foi uma satisfação tê-la aqui como a

nossa mais graciosa e encantadora hóspede. Transmiti seus cumprimentos e votos de felicidades ao Hans, seu instrutor de esqui, que, em troca, lhe envia felicitações. Toda a gerência aqui concorda comigo em que a sua visita só foi afetada pelo fato de ter sido tão breve! A gerência e eu aguardamos uma nova e mais demorada visita em futuro próximo, e, nesse ínterim, enviamos nossos cumprimentos e votos de um feliz e próspero Ano-Novo!

Agora, abordarei as perguntas que a senhorita me formulou em sua carta. Confesso que quando a senhorita conversou comigo aqui, em dezembro, não me veio à memória (sempre falha!) uma ligação entre o seu nome e as pessoas que a senhorita acha que possam ser seus parentes, hospedados aqui em 1926. O fato, também, de que o hotel esteja às voltas com a agitação de sua atarefada temporada de inverno pode ser responsabilizado pela minha infortunada falta de memória. Mas a fotografia da jovem senhora que a senhorita guardava "acionou" de imediato minha memória, e eu me lembro dessa senhora como se fosse ontem! Uma busca nos registros do hotel (mantidos em dia tão meticulosamente quanto possível desde a inauguração em 1856) revelou que na verdade o sr. e a sra. Peter Powell LeBaron aqui se hospedaram em 1926 e também em 1927. É deveras lamentável que eu não tivesse me lembrado de imediato de sua passagem por aqui, já que ela foi muito longa!

Recordo, naturalmente, que em 1926 eu era ainda um menino de apenas doze anos, trabalhando aqui com meu pai, sendo treinado, como ele o fora pelo seu pai, nos negócios do hotel. Naquele ano, eu trabalhei numa variedade de funções. Como ajudante de garçom na sala de jantar, como garçom no bar do hotel, ocasionalmente ajudando na portaria, entregando cartas, telegramas e jornais nos quartos dos hóspedes. Graças a isso, cheguei a conhecer muitos desses hóspedes e seus hábitos bem razoavelmente. ..

- Que falastrão - diz Sari, virando a folha.

...A mulher da foto que a senhorita me enviou é, definitiva e conclusivamente, a sra. Peter Powell LeBaron. Eu me lembro dela muito bem, e o nosso Livro de Registro de Hóspedes revela que ela e seu marido ocuparam a suíte 91-93, no quarto andar. Pode interessar-lhe saber que essa referida suíte tem sido uma das preferidas de muitas pessoas ilustres com o passar dos anos. A srta. Mary Pickford e o sr. Douglas Fairbanks passaram parte de sua lua-de-mel nela. Foi também a suíte que a srta. Greta Garbo sempre solicitou, tal como Marlene Dietrich e a srta. Barbara Hutton, quando ela era a condessa Haugwitz-Reventlow. Outros dignitários mais recentes que ocuparam a suíte são Arturo Lopez- Wilshawe e o barão Alexis de Rédé, Salvador Dali, Lorde e Lady Ribblesdale, sr. e sra. David Rockfeller, sr. Henry Ford II, a srta. Christina Onassis, e o rei de Qum...

- Conta-gotas em matéria de nomes! - diz Sari. - O rei de Qum!

.. .A companheira de viagem do sr. e da sra. LeBaron, a srta. Brown, que permaneceu com eles durante toda a sua estada aqui, ocupou um apartamento igualmente excelente, a suíte 87-89, no andar de baixo. A suíte 87-89 tem proporcionado um "segundo lar" para uma relação igualmente distinta de figuras notáveis com o passar dos anos, incluindo a srta. Paulette Goddard, o sr. Alfred Hitchcock, monsieur Jacques Fath, o romancista Erich Maria Remarque, o conde Theo Rossi, a srta. Elsa Maxwell, srta. Audrey Hepburn, barão e baronesa Thyssèn, e Sua Alteza Real o príncipe Aga Khan. O falecido xá do Irã adorava particularmente essa suíte, tal como David O. Selznick e Lady Maureen, a marquesa de Dufferin e Ava. Mas nas minhas lembranças de seus parentes, que lhe interessarão mais...

- Já era tempo! - murmura Sari.

... Tendo em mãos a foto que a senhorita me enviou, as lembranças relativas ao sr. e à sra. LeBaron voltaram a fluir. Eu me recordo de que o sr. LeBaron era um homem muito alto, de aparência muito distinta, bem-apessoado, no estilo vigoroso do western americano. Sua mulher era do tipo mignon, mas extraordinariamente bonita, conquanto parecesse, em contraste com o seu marido, uma estrangeira. Eu me lembro de que houve indagações do pessoal da gerência do hotel acerca de qual poderia ser seu país de origem. Alguns palpitaram que ela poderia ser italiana, mas me recordo de que ela era tratada por pessoas mais íntimas como "Sarre", assim houve quem dissesse que ela poderia ser meio asiática, talvez indiana. Ela devia ser muito nova na época - casada recentemente, eu creio -, mas aos olhos de um menino de doze anos parecia muito amadurecida, muito equilibrada, muito séria, cheia de autoconfiança e emoção, quase uma grande dama. O que me recordo com mais nitidez era o seu modo de caminhar. Para uma mulher de estatura física miúda, ela parecia

ter uma presença extraordinária, e isto se manifestava no modo como caminhava. Descendo o curto lance de escadas até o refeitório do hotel em um de seus belos vestidos, seu modo de caminhar era quase régio, como uma atriz ingressando num palco sob as luzes da ribalta, e as cabeças sempre se voltavam para vê-la entrar na sala, movendo-se graciosamente até a sua mesa, que era a de número 5, um modo de caminhar maravilhosamente flexível e ágil...

E por que, agora, os olhos de Sari ficam subitamente enevoados? Ela agita o papel da carta, e prossegue a leitura.

...A companheira de viagem dos LeBarons, a sra. Brown, era de um tipo completamente diverso, que me deu a impressão de uma moça tímida, solitária e quase melancólica que parecia preferir ficar a sós consigo mesma a estar na companhia de outrem. Eu me lembro de que quase todas as tardes, com qualquer tempo, a sra. Brown dava um giro em volta do lago, sozinha, percorrendo uma distância de oito quilômetros e meio. Os três freqüentemente se reuniam no bar na hora do coquetel, e desenrolava-se então uma animada conversa, mas eu tinha a impressão de que era sempre a sra. LeBaron quem "pontificava", quem procurava manter a conversa alegre e interessante, enquanto a sra. Brown desempenhava um papel mais reservado e passivo nessas relações sociais. Eu me lembro, também, de que, apesar da impressão superficial de alegria, naturalidade e amizade, eles também transmitiam de algum modo uma impressão de tristeza interior, sim, uma enorme tristeza parecia pesar sobre eles. Não sei por que digo isso, porquanto não havia nenhuma nítida evidência, mas me recordo de que muitos colegas meus notaram tal coisa, e teceram comentários a respeito, fazendo-se indagações. Houve certa especulação, à luz do fato de que não havia um sr. Brown viajando com a sra. Brown, de que ela poderia ter se divorciado recentemente, e que isto poderia ser a causa do seu ar desligado e aparente melancolia. Insinuou-se que o sr. e a sra. LeBaron estariam na companhia da sra. Brown em suas longas férias para distraí-la e afastar de sua mente uma recente perda. Mas nenhuma explicação parecia de todo satisfatória naqueles falatórios da equipe do hotel. As americanas divorciadas, como temos observado, amiúde adotam o costume de assumir um sobrenome de solteira como um primeiro nome - sra. Vanderbilt Brown, por exemplo. As americanas viúvas, por outro lado, comumente conservam os primeiros nomes de seus maridos - isto é, sra. Thomas

Brown. Mas a sra. Brown adotara o título de "sra. Mary Brown", que não se prestava a qualquer explicação, quer divorciada ou viúva. O fato de que deveria ser uma ou outra dessas coisas tornou-se claro com o passar dos dias, quando a condição da sra. Brown resultou evidente. Sua condição social ajudaria também a explicar a tendência oculta da "tristeza", que parecia impregnar as reuniões dos LeBarons.

Isto porque, entenda, não foi a sua parenta, a sra. LeBaron, quem ficou grávida durante sua estada aqui, dando à luz um bebê quatro meses mais ou menos após sua chegada. Foi a sra. Brown. Sei que estou sendo exato quanto a isso devido a um incidente que aconteceu então. Tínhamos sabido que a família LeBaron estava, ou estivera, ligada ao negócio de vinhos na Califórnia. Há ainda numerosos vinhedos aqui em Engadine, alguns deles muito antigos, e a certa altura o sr. LeBaron manifestara interesse em visitar um deles. Mas aqui, no Velho Mundo, a arte do fabrico de vinhos está envolta em superstições e lendas. Diz-se, por exemplo, que o vinho não deve ser engarrafado durante as noites enluaradas. Diz-se que o engarrafamento feito enquanto um vento norte estiver soprando tornará o vinho turvo, e que não deve estar chovendo ou estar o céu nublado. Ainda hoje há trabalhadores em adegas que empalidecerão de medo caso uma mulher passe próximo dos toneis em certas fases da lua, e a qualquer momento se ela estiver grávida. Tudo isso é muito tolo, é claro, mas os vinhateiros do nosso Velho Mundo acreditam que esses fatores condenarão suas colheitas. Coube a meu pai explicar ao sr. LeBaron, do modo mais diplomático possível, que, conquanto ele e sua mulher pudessem perfeitamente visitar um de nossos estabelecimentos vinícolas - desde que fosse checada primeiro a fase da lua, é claro! -, não seria nada aconselhável incluir como acompanhante a sra. Brown. Isto lhe foi esclarecido simplesmente para poupar à sra. Brown qualquer embaraço e incômodo. Eu me recordo disso porque sei que quando o sr. e a sra. LeBaron visitaram os vinhedos, o fizeram sozinhos. Tenho certeza disso por ter sido escolhido como seu guia nessa excursão. Lembro que, quando a visita terminou, o sr. LeBaron me ofertou uma generosa gratificação de cem francos. Como filho do hoteleiro, eu naturalmente não aceitaria isso.

Recordo que o bebê da sra. Brown nasceu durante um dos meses de inverno - dezembro ou janeiro de 1926-27. E recordo porque houve fortes nevascas, além de muita emoção cercando esse acontecimento. Não é todo dia que um bebê nasce no Palácio! Lembro que foi um parto muito difícil. Se bem me recordo,

o bebê estava em má posição e difícil de ser retirado, e o nosso antigo médico do hotel - cuja especialidade era consertar ossos quebrados nas pistas de esqui! - viu que não poderia mais controlar a situação; a sra. Brown foi levada às pressas para um hospital num trenó. O trenó teve que ser usado porque os veículos a motor não podiam mais passar pelas ruas, devido à neve. Soubemos que, no hospital, uma cirurgia fora necessária - uma cesariana, presumo -, e me recordo de que nós, no hotel, pudemos colaborar contatando com a Cruz Vermelha e obtendo alguns litros de sangue. Depois, lembro ter ouvido que tanto a mãe como o bebê tinham estado muito perto de perderem a vida. Gostaria de poder dizer-lhe o sexo exato da criança, mas não me é possível. Eu não tinha nenhum interesse maior nisso. Para um menino de doze anos, um bebê é simplesmente isto: um bebê!

Desejaria haver mais coisas que pudesse lhe contar acerca do casal LeBaron e da sra. Brown. Nossos registros revelam que eles chegaram a este hotel a 17 de agosto de 1926, tendo partido a 1 de março de 1927, ou de retorno à América ou para uma posterior viagem pela Europa, eu ignoro. Em nosso Livro de Registro de Hóspedes anotamos quaisquer preferências ou exigências que os nossos hóspedes possam formular, a fim de que possam ser atendidas em visitas futuras. Anotei que a sra. LeBaron tinha uma preferência especial por uma camareira do hotel, Annelinde. Observei que o sr. e a sra. LeBaron apreciavam um café da manhã continental - suco de laranja, croissant e café - servido em sua suíte às sete horas, e que, com freqüência, desciam para um pequeno almoço mais substancial no refeitório por volta das nove horas. Anotei que o sr. LeBaron desejava que seu exemplar do Herald Tribune de Paris lhe fosse entregue junto com o seu café continental, e que ele gostava que suas camisas fossem lavadas sem posterior engomação. A única anotação que encontrei na ficha da sra. Brown é a de que ela gostava que os ovos servidos no seu café fossem cozidos exatamente durante três minutos e meio.

Registro que o endereço do sr. e da sra. LeBaron constante no livro de hóspedes é Califórnia Street, 1.023, São Francisco. O endereço fornecido da sra. Brown é Rancho Bitterroot, Lake-side, Montana.

Espero, cara srta. LeBaron, que tudo isso lhe seja de alguma valia em sua busca de parentes desaparecidos, e no seu projeto de construir uma "árvore genealógica de sua família", e se eu puder ser de alguma ajuda para a senhorita futuramente, não hesite em recorrer aos meus préstimos.

Nesta oportunidade, meus colegas do hotel se juntam a mim no envio de votos de amizade e cumprimentos.

Atenciosamente, Andréa Badrutt

- Bem, Thomas - diz Sari, pousando a carta na mesa, retirando os óculos e esfregando os olhos. - O que devemos fazer com isto? Entregar a ela ou queimar?

- Está solicitando minha opinião, senhora?

- Sim, claro que estou.

- Creio que, nas presentes circunstâncias, a senhora deveria entregar a ela.

- Tome - diz ela, estendendo-lhe a carta. - Feche o envelope e coloque-o na caixa de Correio de Melissa pela manhã. Isto significará revelar-lhe a verdade, é claro.

- Sim, senhora. Entendo o que quer dizer. Sim.

- Mas o que acontecerá se...?

- Sei o que está pensando, senhora. Mas tem que se arriscar. Tendo em vista as atuais circunstâncias, considerando-se o que o sr. Eric ameaça fazer, não creio que a senhora tenha outra escolha. Se ela souber a verdade, haverá pelo menos uma chance em duas de que votará a seu favor no controle acionário, percentual que também poderá lhe dar a vitória final. Se ela não for inteirada da verdade, não há nenhum modo de que a senhora saia vencedora. Suas anotações lhe dizem isso.

Sari suspira. E diz:

- Não acha que eu deveria conversar primeiro com os advogados?

- Nas atuais circunstâncias, não creio que os advogados lhe aconselhem a proceder diferentemente, se a senhora pretende vencer. Consulte os seus gráficos particulares, senhora. Além disso, não se trata apenas de um problema legal, certo, senhora? É um problema humano também.

- Ainda assim eu poderia perder.

- Uma probabilidade em duas de vencer não é melhor do que nenhuma?

- Você tem razão, naturalmente. Como sempre. Eu sempre digo que você poderia se tornar presidente da General Motors se não houvesse decidido se converter num mordomo.

- Eu creio que prefiro ser um mordomo, senhora. É muito mais interessante.

 

                                         A Tomada de Controle

 

Sari e peter tinham passado os três primeiros verões inteiros após seu casamento - de 1927, 1928, 1929 - no Rancho Bitterroot, a noroeste de Montana, com a sua menininha. A propriedade consistia de 1.200 hectares arborizados em Lake County, dando vista para Flathead Lake, e com montanhas encimadas pela neve em ambas as linhas do horizonte, e que Julius LeBaron adquirira por uma pechincha (25 dólares por hectare) antes da guerra, quando as terras das Rochosas eram encaradas quase como inúteis. Agora, o governo dos EUA gostaria de comprar o Bitterroot para convertê-lo num Parque Nacional, mas Sari e os outros herdeiros de Julius têm resistido às ofertas. A cifra oferecida pelo governo é de quinhentos mil dólares. Investidores particulares também têm revelado interesse em adquirir essas terras.

Bitterroot ficava, e ainda fica, na zona madeireira, mas foi ideia de Peter deixar o vale limpo de árvores para criar ovelhas - merinos australianos eram o que ele tinha em mente. E ele também planejara fazer uma experiência com uma nova raça de gado vacum para engorda que fora desenvolvida no Texas, chamada Santa Gertrudis, conhecida por sua resistência a todos os tipos de clima e o seu crescimento vigoroso e econômico à base de uma alimentação exclusivamente de capim. Este, pelo menos, tinha sido o seu projeto...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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