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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DOS ABISMOS / Erik L'Homme
O SEGREDO DOS ABISMOS / Erik L'Homme

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Grandes embarcações negras sobrevoavam a cidade de Kenningar. Como escaravelhos monstruosos, elas deslizavam lentamente no ar, escurecendo o céu que já estava cinza. Embaixo, os feixes dos holofotes acompanhavam a trajetória das salvas antiaéreas e dos tiros de canhão que espocavam. Os invasores respondiam metodicamente, com duros golpes de obuses de aço e bombas de fótons. Vários bairros da capital de Nifhell queimavam, tomados pela fúria das chamas. As naves de guerra se posicionavam e vomitavam grupamentos de soldados que se espalhavam pela cidade.

Mârk assistia a tudo isso, estupefato, ao pé de sua residência no bairro dos tecelões. Ele esquecera que seu avô saíra para comprar peixe para o almoço e custava a voltar.

Lembrou-se disso vendo o incêndio lamber o antigo porto. Desceu para a rua correndo. O estrondo de uma bomba que explodiu não muito longe deixou-o surdo, mas ele não diminuiu o passo. As pessoas em volta dele fugiam. Uma mulher clamava por seu filho. Mârk ficou com um nó na garganta. Enfim, se aproximou das bancas dos peixeiros. Elas estavam desertas, algumas destruídas. Ele viu a poltrona de seu avô virada na calçada: o velho homem deitado no chão, sem sentidos. O coração de Mârk disparou.

 

 

 

 

Ele se apressou. Seu pé tocou em algo áspero e ele caiu deitado. Tentou levantar-se. Nesse exato momento, um obus explodiu a poucos metros, espalhando pedaços de metal para todos os lados. Uma dor aguda em seu peito imobilizou-o no chão. Ele gritou...

- Ahhhhhhh!

- Tudo bem, Mârk, nós estamos aqui.

Morgana pegara a mão do garoto, que se levantava na cama.

- Tudo bem? - espantou-se Xâvier ao perceber o rosto lívido de seu amigo.

Este tentava penosamente recobrar o ânimo.

- Sim... Eu... Onde estamos?

- Na enfermaria - disse Morgana.

- Na enfermaria? - repetiu Mârk com um ar estúpido.

- Na enfermaria do Destruidor de Ossos - continuou Xâvier - você sabe, a nave do capitão Vrânken...Você não se lembra? Oiê, tem alguém aí dentro?

Xâvier deu um tapa em sua cabeça.

- Pare - interveio Morgana com um olhar de reprovação. - Ele sofreu um terrível choque, é normal que esteja perdido.

- O que é... o que está acontecendo? - perguntou Mârk, franzindo a testa.

- Vamos te contar - prometeu Morgana. - Antes, porém, vamos avisar ao médico que você acordou.

A jovem se levantou e se dirigiu até o tecnofone colocado sobre uma mesinha. Alguns segundos mais tarde, ela retornou.

- Ele já vem. Eu disse que Mârk estava com a cara boa.

- Você é gentil! - ironizou Xâvier. - Nós o conhecemos em melhor forma. Um nabo seria mais vivo que ele.

- Um nabo que vamos enfiar no seu nariz - respondeu o ferido, caindo sobre seu travesseiro.

- Bom, retiro o que disse. Isso está com cara de acerto de contas!

- Então? O que aconteceu comigo?

Morgana e Xâvier aproximaram suas cadeiras da cabeceira da cama.

- Como eu dizia - começou Xâvier - você se encontra a bordo de uma embarcação espacial, onde estava designado para fazer o seu estágio de cozinheiro. É a embarcação de Vrânken de Xaintrailles, para quem o império deu a missão de recuperar o Planeta Morte da frota do cã e...

- Pule essa parte - suspirou Mârk. - Eu não sou um demente, isso eu não esqueci.

- Você lembra que surpreendeu seu superior, o chefe dos cozinheiros, rondando perto do templo das adivinhas, bem antes de Frä Drümar ser... assassinada?

Morgana, enquanto falava, hesitou pronunciar essa palavra.

- Sim - concordou Mârk -, eu me recordo. Também lembro que o capitão convocou Brâg Svipdag e me mandou testemunhar contra ele. Depois, rolou uma confusão. Foi nesse momento que perdi o fio da meada.

- Svipdag jogou ciberassassinos contra o capitão. Você o protegeu, salvando-lhe a vida. Mas você foi atingido no peito e perdeu os sentidos. Nós o trouxemos para a enfermaria e depois, com Xâvier, ficamos esperando que você acordasse.

- E o capitão, e Brâg?

- O capitão ficou com um ombro em frangalhos, mas está bem - garantiu Xâvier. - Seu chefe, por outro lado... De fato, Rymôr acertou as contas.

- Você tinha razão, Mârk - continuou Morgana -; Brâg Svipdag era um traidor! Ele se livrou de Frä Drümar para ela não predizer o futuro. Depois ele esperava eliminar Vrânken para privar a frota de seu estrategista.

- Ótimo! Felizmente ele foi parado a tempo. E agora? Em que parte da batalha estamos?

Xâvier e Morgana trocaram um olhar incomodado.

- A batalha terminou - disse a jovem. - O Polvo foi capturado e a frota do cã se rendeu.

- Maneiro - alegrou-se Mârk, agitando-se na cama. - Então nós ganhamos. E pensar que eu perdi isso!

- É um pouco mais complicado - retomou Morgana, após um tempo de silêncio que fez com que o convalescente franzisse as sobrancelhas. - Como dizer...? Então: os guerreiros do cã sabotaram as instalações do Planeta Morte e, de quebra, os Caminhos Brancos não existem mais. Eles desapareceram.

- Isso quer dizer... - soluçou Mârk, não acreditando no que escutava.

- Que estamos parados aqui, anos-luz longe de casa.

- É mais grave ainda - acrescentou Xâvier com uma voz sombria -; o capitão recebeu uma mensagem dos generais-condes. Segura a onda: Nifhell sofreu no mesmo momento um ataque de uma frota de Muspell.

- Mas é impossível! - revoltou-se Mârk.

A lembrança do pesadelo doeu como uma chicotada. Pensou enlouquecidamente em seu avô.

- Vrânken convocou os outros capitães ao Destruidor de Ossos - continuou Xâvier. - Eles vão discutir e decidir o caminho a seguir.

Nesse exato momento o médico entrou.

- Mârk, estou feliz que você despertou. Sabe, seus amigos não o abandonaram. Acredito que jamais encontrarei enfermeiros tão bons!

O homem se esforçava para adotar um tom alegre, mas sentia que seu coração não estava assim. Ele olhou os três jovens e sorriu angustiado.

- Os capitães estão chegando - disse aproximando-se do ferido e examinando seu pulso. - A reunião será no refeitório.

- Nós poderemos assisti-la? - perguntou Mârk, ávido por novidades.

- Por quê? Você é capitão? - brincou gentilmente o médico retirando as compressas.

- Ah, então ela é reservada aos capitães - disse o garoto, desapontado.

- Claro! Mas a reunião será transmitida pela tecnovisão para a tripulação. Eu vou sintonizar o aparelho da enfermaria para vocês.

- Maneiro! - aplaudiu Xâvier.

- Muito gentil! - disse Morgana.

- Isso é normal - respondeu o médico examinando a ferida e recolocando as compressas no lugar, após um resmungo satisfeito. - Vocês são estagiários, mas fazem parte da tripulação. Eu ainda diria que vocês merecem amplamente a nossa confiança. Você, meu rapaz - continuou o médico dirigindo-se a Mârk -, logo estará de pé. Você é do tipo robusto.

Ele se aproximou da porta.

- Sinto muito, mas devo cair fora. Eu tenho outros pacientes para examinar. A guarnição resgatada no Planeta Morte está em péssimo estado.

Antes de sair, ele ligou como prometido a tela da tecnovisão, que se iluminou oferecendo uma panorâmica do refeitório.

Dentro da grande sala, o zunzunzum iria aumentar.

 

Um enxame de escaleres zumbia em torno do velho casco do Destruidor de Ossos, imobilizado no meio da frota imperial. Os esquifes aproximavam-se da nave almirante, deixando seus passageiros e retornando rapidamente.

Vrânken de Xaintrailles, capitão-mor da armada de Nifhell, observava esse balé com um ar sonhador. Ele se perguntava o motivo da convocação dos capitães.

- Para quê? - resmungava, apoiando sua testa contra o vidro.

Seu ombro ferido, prisioneiro de talas regeneradoras, incomodava. Ele friccionou a nuca com sua mão boa.

- Capitão... O chefe Rymôr mandou dizer que todos chegaram.

- Certo! Já vou!

Vrânken ficou ainda, por um momento, imóvel, o olhar perdido no espaço, nos Rochedos, além do domo de vidro. Depois respirou fundo e saiu do posto de pilotagem,

Quando chegou ao refeitório preparado para receber a assembléia, a sala fervilhava pelas conversas animadas. Sua entrada interrompeu todas. Num passo rápido, Vrânken se aproximou de seu auxiliar, Rymôr Ercildur, no centro da sala.

- Até que enfim você chegou - resmungou Rymôr. - Eles têm um ar muito excitado. Alguns estão até mesmo agressivos.

O gigante alisava sua barba cinza. Depois acariciou a cabeça de seu cyber-rato enroscado em seu pescoço. Sem mais esperar, Vrânken se dirigiu aos oficiais:

- Senhores, eu não vou acalentá-los com belas palavras...

Um riso de deboche ecoou. Tocado em seu ponto fraco, Vrânken olhou dos pés à cabeça o insolente. Este manteve o olhar fulminante e depois abaixou a cabeça.

- Eu dizia então - retomou Vrânken, aumentando sua voz - que tivemos um problema sério.

- Tivemos mesmo! - gritou alguém.

- Estamos ferrados, sim - se excedeu um outro. - Quem, entre nós, tem alimentos o suficiente para se sustentar durante uma viagem de doze anos pelos

Rochedos?

A zoeira aumentou.

- Parece que estamos numa sala de aula - gritou o gigante.

- Você compreende por que o nosso sistema de comunicação tem uma única direção? - ironizou Vrânken. - Imagine essa zoeira durante as batalhas, se todo mundo se divertisse dando sua opinião. Bom, meu velho Rymôr, eu preciso de silêncio.

Rymôr tirou de seu estojo uma enorme paleopistola que trazia na cintura e deu um tiro de pólvora. O efeito foi imediato.

- O recreio acabou! - trovejou. - Agora, todos calados e escutemos o capitão.

Vrânken pegou uma cadeira e subiu em cima. Depois varreu a sala com um olhar fulminante.

- Recapitulando para aqueles que ainda não conseguiram acompanhar: foi a mim que confiaram o comando da expedição ao Planeta Morte. A campanha só chegará ao fim quando retornarmos a Nifhell, até lá eu sou o chefe da frota. Está claro?

Ninguém falou. A arma que o gigante, atrás dele, acabara de carregar com balas, e cujo cano pousou descuidada-mente no ombro, ajudou a convencer os recalcitrantes.

- Perfeito! Continuando. Ficou evidente, nesse momento, que esta campanha militar foi um engodo. Uma armadilha, na qual caímos facilmente. O cã atraiu ao Planeta Morte boa parte das forças espaciais do império e não hesitou em sacrificar o Polvo, seu melhor estrategista. Ao destruir os Caminhos Brancos, ele nos barrou o caminho de volta. Vir até aqui nos tomou doze horas. Reencontrar Nifhell nos tomará doze anos.

O silêncio que pesou no ambiente era grave. Todos sabiam que Vrânken dizia a verdade. Uma terrível verdade.

- Pouco importa hoje saber quem é o responsável pelo fiasco, os generais-condes, eu, vocês, ou todo o orgulho do império. O mais grave é que estamos bloqueados aqui, senhores, e enquanto isso as hordas de Muspell destroem o nosso planeta...

A agitação retornou surda, pontuada de cochichos. Nifhell invadida. A incrível informação havia corrido, assim ninguém estava surpreso. Mas não fora confirmada oficialmente. Vrânken fez um sinal a um dos marinheiros do Destruidor de Ossos: na mesma hora os alto-falantes do refeitório difundiram a última mensagem do império, recebida pouco antes que os Caminhos Brancos desaparecessem.

"Aqui é o general-conde Egîl Skinir. Essa é uma mensagem importante para o capitão Vrânken de Xaintrailles: cessem os combates no Planeta Morte e voltem com toda urgência para Nifhell com a frota! Uma esquadra de navios de guerra carregando o pássaro vermelho de Muspell se aproxima de nosso planeta! Não estamos em condições de fazer face ao assalto sem vocês! Repito: não estamos em condições de..."

As reações não demoraram.

- Mas enfim - se espantou o capitão da Águia - como é possível? Os Caminhos Brancos começam no Planeta Morte e acabam no Planeta Morte. Nós estávamos lá, não saímos do lugar. Essa extraordinária frota de guerra seria obrigada a passar sobre nós para encontrar o redemoinho condutor para Nifhell.

- Talvez - arriscou o oficial do Lobisomem que substituía seu capitão ferido ao longo da última batalha - a armada do cã tenha deslizado pelos Caminhos Brancos antes da nossa partida.

- Não - interveio Vrânken. - Nós teríamos cruzado o redemoinho e os instrumentos de comando nos teriam imediatamente assinalado a sua presença.

- Impossível, é impossível - repetiu alguém.

- Talvez seja impossível, mas aconteceu - disse Vrânken. - A questão agora é: o que vamos fazer? Eu os reuni aqui para expor claramente a situação. Mas também para que reflitamos juntos como reagir. Senhores, o que vocês têm a propor?

Cada um dos oficiais se esforçou para se organizar, só pedindo a palavra para refutar uma proposta ou para submeter uma outra.

- Recapitulando - disse Vrânken. - Nós estamos de acordo em tentar consertar os Caminhos Brancos. É a nossa única chance de sairmos dessa armadilha. Dispomos de muitos mecânicos talentosos, mas o estrago parece grande...

No fundo do refeitório, um braço se levantou. Vrânken hesitou em passar a palavra ao mais velho capitão da frota.

- Hum, hum - começou o velho marinheiro. - Todos aqui me conhecem. Eu sou Grîm Grettir, capitão do Albatroz, um dos antigos navios de expedição. Para ser mais preciso, minha nave, hum, a nave que eu herdei, pertence à terceira geração de embarcações de Nifhell. Ela não conheceu a época gloriosa de conquistas do império. Mas, se não me engano, Xaintrailles, a sua é da primeira geração. Algumas histórias circulam acerca dessas naves. Se elas são verdadeiras, teríamos uma outra solução...

O velho parou de falar; diante dele, Vrânken empalideceu.

- Contam muitas coisas sobre as primeiras embarcações do império, capitão Grettir - respondeu ele com uma voz doce. - Algumas são assustadoras, acredite.

Grîm Grettir encarou-o com ar surpreso.

- Tão assustador quanto isso, capitão Xaintrailles?

O olhar que Vrânken lhe lançou foi eloqüente. O veterano capitão não insistiu.

- Senhores - esforçou-se Vrânken para continuar -, eu não vou mais ocupá-los. Vamos enviar imediatamente ao Planeta Morte a equipe que deverá tentar consertar os equipamentos dos Caminhos Brancos.

A assembléia se dispersou lentamente, murmurando.

Assim que Grîm Grettir passou em sua frente, Vrânken desviou o olhar.

 

A nave negra do chefe de guerra de Muspell pousou, enfim, no astroporto destruído de Kenningar. A resistência havia sido particularmente incitada nesse setor, fora preciso castigar a zona de obuses de aço para calar as peças de artilharia. Mas Muspell já controlava a cidade, assim como os principais astroportos e os sistemas de comunicação do planeta.

O almirante Njal Gulax era um homem de humor doce. Certamente, caminhar em solo inimigo após tanto tempo no espaço lhe dava uma enorme alegria. As dificuldades que sua frota havia encontrado ao longo da viagem lhe deixaram um gosto amargo. A armada que o cã havia mobilizado contra o império era frágil para percorrer a distância até Muspell. Cada nave era muito preciosa, pois não havia como substituí-la! Mesmo assim, muitas embarcações sucumbiram no caminho, e outras foram destruídas pela artilharia de Nifhell. A mesma fragilidade atingia as tropas do cã: não havia substituição para os homens abatidos.

O almirante suspirou e fez uma oração ao Tengri para que o povo de Nifhell não lhe desse nenhum tipo de desgosto.

Njal Gulax aparentava uns sessenta anos. Era alto e magro. Acima do nariz curvo, iluminando um rosto como uma lâmina de faca, olhos claros brilhantes de inteligência. Tatuados na cabeça mas separados por uma horrível cicatriz, dois phurrs, felinos monstruosos das estepes de Muspell, em posição de combate. Estavam ali para lembrar que Njal havia combatido e vencido duas feras durante as provas de admissão entre os homens de sua tribo.

- Está pensando em quê, mano?

Njal Gulax virou-se para o seu acompanhante que acabara de interromper suas reflexões. O homem era tão grande quanto ele, vestia uma capa de lã negra e se apoiava num cajado coberto de símbolos. Parecia muito velho mas era impossível dizer sua idade. Seus cabelos, sujos e despenteados, caíam até os ombros. Seus olhos, fixos e brancos, pareciam os de um cego.

- Penso em minha mulher, nas crianças que eu não pude ver crescer - respondeu o almirante. - Penso na minha grande tenda de feltro, no meu rebanho de zoghs e no meu cavalo-serpente, na estepe imensa e no vento eterno... É nisso que penso, meu otchigin.

- Com essa distância isso não são pensamentos, irmão. São lembranças!

Njal Gulax riu para despistar.

- Você tem razão, feiticeiro. O importante é o que se passa hoje aqui.

Um veículo veio em direção a eles na plataforma, interrompendo a conversa.

- Almirante - anunciou o motorista -, capturamos um general-conde.

Era um homem robusto e bem-disposto e de cabeça grisalha, que se podia pensar estar muito velho para ainda ser soldado. Mas os guerreiros de Muspell que faziam parte da expedição haviam todos passado dos quarenta.

- Ele resistiu?

- Não, almirante.

Njal Gulax franziu a sobrancelha. Ele se virou para o otchigin que não fez nenhum comentário. Depois saltou com destreza no veículo e ajudou o velho a subir.

Alguns instantes mais tarde eles se dirigiram ao palácio Comtal, através de ruas desertas e destruídas da capital.

O general-conde Egîl Skinir foi tirado do quarto transformado em cela e conduzido à sala do Conselho onde Njal Gulax e o feiticeiro o aguardavam. O almirante mandara servir bebida e uma refeição leve na mesa redonda de oricalco.

- Conde! - lançou o chefe de guerra de Muspell, mandando os guardas saírem com um gesto. - O senhor deve ter sede e fome. Eu espero que meus homens não o tenham maltratado. - Eles foram muito corretos - respondeu Egîl Skinir após lançar um olhar desconfiado para o otchigin. - Obrigado pela sua preocupação.

- De nada, pegue alguma coisa para beber - continuou Njal Gulax.

O general-conde aceitou um copo que lhe ofereceu o almirante e agradeceu com um movimento de cabeça.

- Eu pensei que vocês fossem nove. Nove generais-condes vigilantes pelos destinos do império.

- Nós continuamos nove - disse Egîl Skinir após beber. - E nós vigiamos sempre o império. Meus companheiros voltaram para seus respectivos condados para poderem organizar a resistência.

O almirante observou seu prisioneiro. O general-conde era mais velho do que ele, mais pálido também. A dureza de seus traços traía o seu estilo de vida de alegrias e diversões.

Os olhares dos dois homens se cruzaram e se fixaram com dureza.

Egîl Skinir cedeu primeiro.

- E o senhor, conde - retomou Njal Gulax -, o senhor não quis fazer parte da resistência?

- Eu escolhi deliberadamente ficar no palácio.

- Vejam isso! E por quê?

- Para lhe transmitir uma mensagem, a mensagem do povo de Nifhell. Ouça: vocês talvez tenham se apoderado de nossos astroportos e dos prédios imperiais, mas jamais atingirão o nosso coração. Combateremos até o nosso último suspiro.

O otchigin riu.

- Ele mente, irmão. Ele ficou porque quis acreditar até o fim que o Cão da Lua e suas naves voltariam para salvá-los.

Egîl Skinir ficou com o ar embaraçado. Ele olhou espantado o velho cego agarrado ao seu estranho cajado.

- Os homens do império adoram se embebedar de belas palavras - retomou Njal Gulax, divertindo-se. - De fato, meu querido conde, só a sua frota poderia nos inquietar. Mas temos doze anos para nos preparar para recebê-la!

Ele morreu de rir, contente com sua réplica. Um guerreiro de Muspell interrompeu e se precipitou em sua direção para cochichar algo em seu ouvido.

- Eu terei que deixá-lo, conde Skinir - anunciou Gulax com um sorriso cansado. - Tenho uma guerra para administrar. Espero ter a oportunidade de recebê-lo logo à minha mesa. Terei prazer em continuar a nossa conversa.

- Continuo à sua disposição - disse sobriamente Egîl Skinir inclinando militarmente o tronco.

Ele não tirou os olhos do chefe de guerra e do inquietante velho até a saída deles da sala. "O feiticeiro leu meus pensamentos", constatou de forma amarga. "Felizmente ele não viu tudo!"

A verdadeira razão pela qual ele ficara em Kenningar fora para organizar a fuga das últimas naves de Nifhell para Völa, a base secreta do império, pouco antes da chegada da armada do cã no planeta.

Egîl Skinir sempre se perguntara o motivo de o império ter em outros tempos gasto tanto dinheiro e energia para a criação de uma base secreta. Os acontecimentos acabavam de lhe dar a resposta.

Quanto a Xaintrailles... É verdade que o velho general-conde acreditou até o fim em seu retorno.

O mais surpreendente, pensando bem, era que ele ainda acreditava.

 

Vrânken avançava a passos largos pelos estreitos corredores de sua nave.

"Esse velho Grettir, de onde ele tirou essa idéia de falar do Destruidor de Ossos}"

Esse incidente o torturava. Como ele era o único a saber, poderia fingir que não sabia de nada: ele só tinha contas a acertar com sua consciência. À medida que, agora, outros conheciam a existência de uma verdadeira possibilidade de sair daquela situação, decidir nada fazer seria uma traição.

Ruminando essa idéia, Vrânken se dirigiu à cabine que cedera para Alyss. "Essa garota sabe alguma coisa que nós ignoramos. E ela vai me dizer o que é." A idéia de que Alyss e o Polvo fossem uma única pessoa o incomodava igualmente. Não por conta de sua idade ou do sexo do mais célebre estrategista de Muspell. Vrânken, que tantas vezes navegara com Frä Drümar, conhecia o valor de certas mulheres. E o moleque Xâvier não havia lhe dado uma acachapante lição de estratégia durante a última batalha? Não, era outra coisa...

"Serão as belas flores todas venenosas?", perguntou-se o capitão, quando escutou a voz possante de Rymôr interpelá-lo:

- Hei, Vrânk! Vrânk, espere!

Ele parou, suspirando. Pelo tom de voz de seu auxiliar, ele entendeu que não escaparia de um sermão.

O chefe Rymôr vinha acompanhado de um rapaz que Vrânken nunca havia visto: de média estatura, magro e robusto, os cabelos castanhos e os olhos cinza-verdes.

- Espere-me aqui, garoto! O capitão e eu vamos conversar. Depois eu te levo para ver os estagiários do Destruidor de Ossos.

O gigante pegou Vrânken pelo seu braço bom e o levou para um pouco mais adiante.

- Quem é? - perguntou o capitão apontando para o garoto.

- É um estagiário que estava alocado no Planeta Morte, com o comandante Brînx Vobranx. Ele se chama Rôlan. Sangue bom, Vrânk, mas não se trata desse moleque! Não, eu adoraria que falássemos de...

- Eu sei o que você vai me dizer, velho. Minha resposta é não.

- Mas, Vrânk, por quê? - explodiu o colosso. - Grîm Grettir tem toda razão, o Destruidor de Ossos é nossa única chance de contornar a situação!

- Ah, é? - gozou Vrânk. - Suponhamos que nada nos aconteça, que o navio não se destrua na aventura, o que faríamos lá, sozinhos, sem o resto da frota?

- Poderíamos ao menos trazer de Nifhell alguns astros-sábios capazes de reparar os Caminhos Brancos.

- Você se esqueceu de que o cã já deve estar controlando o planeta?

- Então é o que falta, é você, o melhor estrategista de Nifhell, estar lá para organizar o contra-ataque!

- Com os três canhões do Destruidor de Ossos}

- Ainda existe a base secreta de Völa. Eu tenho certeza de que algumas embarcações se esconderam lá e esperam um sinal dos Poderosos para partir e reconquistar Nifhell!

- São apenas hipóteses, Rymôr. O gigante cerrou os punhos.

- Vrânk, Vrânk! Qual é a sua? Eu não o estou reconhecendo. Você...

Ele parou. Acabara de compreender.

- Você está com medo. É isso, hein? Você está com medo...

O rosto de Vrânken ficou com cor de cera.

- Sim, eu tenho medo, claro que tenho medo. Eu nunca fiz isso, quem não teria medo no meu lugar? Para você, para o velho Grettir, tudo parece óbvio. Estalamos os dedos e pronto. Mas eu, eu sei quais são os riscos! Você, você não sabe.

A voz de Vrânken tremia. Rymôr tentou disfarçar seu aborrecimento tossindo.

- Hum! Ah, escuta, talvez eu tenha sido um pouco brusco. Existem coisas que eu ignoro, é verdade. Mas, apesar de tudo, eu lhe peço que reflita, certo?

Vrânken concordou balançando a cabeça. Depois, se afastou de Rymôr que não sabia mais o que dizer e partiu a passos largos.

Ele não andou mais do que cinqüenta metros e se arrependeu de seu comportamento. Sabia que Rymôr tinha razão e que o capitão do Albatroz, pouco antes, fizera a única proposta razoável. Bastava encontrar coragem suficiente. Mas ele não podia nada: estava aterrorizado com a perspectiva de... Ficou arrepiado.

Logo ele chegou à porta da cabine onde o Polvo estava trancado. O marinheiro de guarda saiu, permitindo a sua entrada.

- O que pensa a intelectual do grupo? - perguntou Xâvier a Morgana, desligando o tecnovisor.

- Eu não sei o que você quer dizer - disse ela zoando. - Mas, para mim, o capitão já sabia desde o início da reunião que a única solução para o problema seria consertar os Caminhos Brancos.

- Então por que ele convocou todo mundo? - perguntou Mârk do fundo de sua cama.

- Para administrar as suscetibilidades - continuou Morgana. - Dessa forma os capitães têm o sentimento de que servem para alguma coisa.

- Claro, bem sacado - reconheceu Xâvier. - E diante de qualquer coisa que venha a acontecer, os capitães se sentirão responsáveis.

- Vocês entenderam a história do navio da primeira geração? - surpreendeu Mârk. - O que quis dizer o velho?

- É uma lenda - explicou Xâvier. - Eu já li em algum lugar. Ela conta que o império pôde partir na conquista de Drasill ao descobrir um segredo incrível: o segredo dos abismos, o mistério dos Rochedos.

- E esse segredo é o quê? - perguntou Morgana louca de curiosidade.

- Eu não sei nada disso - jurou lamentando Xâvier -, ninguém mais sabe.

- Eu não tenho essa certeza toda. Xâvier e Morgana se viraram para Mârk.

- Não tem certeza de quê?

- De que seja uma lenda. E de que ninguém conheça os segredos dos abismos.

- E por quê?

- Vocês viram a reação de Vrânken logo que o velho falou do Destruidor de Ossos!

- E aí? Você pensa que...

- Eu não penso nada, Morgana. Não sou eu o intelectual do grupo.

O chefe Rymôr irrompeu na enfermaria no momento em que Morgana ia se jogar sobre Mârk para estrangulá-lo.

- Oi, Morgana, tenha calma - disse o gigante rindo. - Nosso amigo acabou de sair do coma! O médico me chamou para dizer que você tinha acordado, Mârk, e que estava bem. Fico feliz. Bem-vindo ao mundo dos vivos, meu garoto.

Rymôr olhou os três com um sorriso nos lábios.

Ele tinha por esses estagiários um carinho especial.

Morgana, aprendiz de adivinha com seus longos cabelos castanhos e grandes olhos azuis, Xâvier, sempre elegante e cujos olhos cintilavam descaramento, enfim Mârk, de coração duro e alma terna, reto como uma espada, os três ainda crianças. Mas, confrontados no fogo da ação, eles se mostraram incrivelmente valiosos e eficazes. Morgana não havia descoberto em sua fonte onde se escondia o Polvo? Xâvier não havia derrotado a frota inimiga mostrando talento como estrategista? E Mârk não havia salvado a vida de Vrânken interceptando as bilhas mortais? Rymôr lembrou-se da conversa que acabara de ter com seu capitão. Era o caso de perguntar onde estavam os verdadeiros adultos da embarcação...

Atrás dele, no vão da porta, Rôlan se fez presente. Rymôr o pegou pelo braço e puxou.

- Eu esqueci, meninos, de apresentar Rôlan Atkoll, que era estagiário no Planeta Morte. Tomem conta dele.

O gigante deu um tapa na cabeça de Rôlan, fez um gesto amigo para os outros e saiu da enfermaria.

Os estagiários do Destruidor de Ossos encararam o novato.

 

- Esperava por você.

Vrânken ficou surpreso. Sentada no leito, Alyss tinha um ar malicioso.

- Você... me esperava?

- Claro. Os Caminhos Brancos foram cortados, não é mesmo? O senhor quer saber o porquê e veio me interrogar. Eu pensei que o senhor viesse antes.

Vrânken fechou a porta. Estava a ponto de explodir de raiva.

A jovem vestia uma roupa dele e o ar marcial que a roupa lhe conferia realçava sua beleza selvagem. Um movimento com a cabeça fez seus cabelos vermelhos voarem.

Ele mergulhou seus olhos nos do Polvo, olhos de uma coloração que lembravam o verde profundo dos oceanos de Nifhell.

- Eu já sei por que eles foram cortados. O que eu ignoro é de onde vêm as naves que atacam meu planeta nesse momento.

Alyss observou o capitão. Ela compreendeu que ele não estava blefando.

- Então o senhor sabe...

- Os generais-condes conseguiram me contatar pouco antes da destruição dos Caminhos Brancos.

Ele percebeu que ela ficou contrariada.

- De qualquer forma, sabendo ou não, isso não muda nada. O senhor caiu na armadilha!

"Vou acabar acreditando que ela tem razão", pensou Vrânken, incapaz de parar de encará-la. De repente, a cabine lhe pareceu pequena. Para se acalmar e reencontrar o prumo, ele encostou-se à porta.

- Fale-me mais de você. Alyss ficou com ar surpreso.

- De mim? Por quê?

- Porque você jamais me revelou os planos do cã. Você é muito orgulhosa. É claro que eu poderei utilizar a maneira mais eficaz para te fazer falar, mas não é o estilo dos homens de Nifhell agredir as mulheres.

- Então?

- Então o silêncio logo será um incômodo se não falarmos.

- Muito bem - acabou dizendo -, o que você quer saber?

Ele percebeu que ela o chamou de você.

- Como você virou o Polvo?

- Meus pais morreram assim que eu fiz cinco anos. Um ataque de naves de Nifhell

sobre um comboio. Fui viver com um tio que criava zoghs nas estepes de Muspell.

- É uma história vivida por muitas crianças de Nifhell. Mas nem todas viraram estrategistas.

- Existe entre nós - continuou Alyss - um jogo pelo qual as mulheres são apaixonadas. Ele lembra um pouco o seu jogo de xadrez: sobre um tabuleiro, peças brancas e negras se enfrentam, se cercam e se destroem, segundo estratégias muito parecidas com a realidade das guerras. Rapidamente sobressaí nesse jogo. Quando meu clã me apresentou no grande torneio anual, eu tinha apenas onze anos.

- Ah - ironizou Vrânken -, a famosa paixão pelo jogo do povo de Muspell!

Alyss franziu a sobrancelha.

- Você ganhou o torneio, eu imagino.

- Sim. O cã estava lá. Ele me propôs entrar para a escola dos almirantes.

- E você aceitou, claro.

- Que fineza de raciocínio! Vrânken se sentiu um idiota.

- Evidentemente que aceitei. O cã me ofereceu uma oportunidade de vingar meus pais. Passei três anos nessa escola. Saí para comandar pela primeira vez na região de Narvh...

- ... onde você colocou em prática o seu saber contra uma frota de Nifhell que escoltava prisioneiros de guerra. O resto, eu conheço.

Os dois se observaram por um momento.

- O teu cã te sacrificou, tem consciência disso?

Alyss não respondeu imediatamente. Um semblante alegre se desenhou em seus lábios.

- Sim. Eu escolhi meu destino ao aceitar essa missão. Não quis falhar, isso é certo. O resto... quem pode se gabar de ter subjugado o império, neutralizado sua armada e vencido o Cão da Lua? Honrei meus pais e meu clã. Todos lembrarão de mim por muito tempo em Muspell.

- Você conseguiu enganar os generais-condes e imobilizar as naves de Nifhell - respondeu Vrânken, tocado em seu ponto fraco. - Mas você ainda não ganhou. O traidor que matou minha adivinha falhou - acrescentou, sacudindo sua tala sob o nariz de Alyss. - Eu sou cascudo. É preciso mais para me abater!

Alyss olhava, surpresa, o capitão que mostrava sua raiva no brilho de seus olhos.

- De qualquer maneira - continuou Vrânken -, a frota de Muspell passou por algum lugar para atacar Nifhell. Eu acabarei por descobrir esse segredo e nós também o utilizaremos.

- Não existe nenhum segredo - confessou ela, após um silêncio.

Ela se dirigiu a Vrânken com uma doçura quase maternal. - A frota que ataca Nifhell nesse momento viajou nos Rochedos. Ela partiu de Muspell há dezoito anos.

Vrânken ficou mudo. Ele achou que não tivesse entendido.

- Você quer dizer que... que esse plano tem quase vinte anos?

- A operação Sangue Rosado foi pensada e elevada à exaltação de nosso grande cã, Atli Blodox.

- Mas haja paciência! E os guerreiros, embarcados nas naves, aceitaram deixar tudo para trás?

- Eles são como eu: seguem seu destino. Eles sacrificaram suas vidas pela grandeza do canato.

O capitão do Destruidor de Ossos não se conformava. Ele que se aventurara diversas vezes sabia dos perigos que os Rochedos abrigavam. Mas dezoito anos! Os marinheiros que haviam se arriscado mereciam respeito. Quanto àquele que imaginara esse plano, Atli Blodox, ele o via sob um ângulo novo e de forma inquietante.

- O general-conde Egîl Skinir os considera uns bárbaros - gozou Vrânken. - Que lição, se ele soubesse.

- Nós somos sempre os bárbaros para alguém - disse Alyss, querendo pacificar. - A verdade é que todos os lados repousam sobre forças contrárias que se enfrentam. Nós mesmos, lutando uns contra os outros, participamos desse equilíbrio.

Vrânken relaxou. E sorriu.

- Você dá muitas provas de sabedoria para uma menina da sua idade.

Alyss retribuiu com seu sorriso.

- E você muita impulsividade para alguém da sua.

- Retorno para junto de meus homens - disse o capitão desviando os olhos. - Se você precisar de algo, não hesite em pedir ao marinheiro de guarda em sua porta.

 

- Então, você estava no Planeta Morte? - perguntou Morgana para quebrar o silêncio pesado que se instalara na enfermaria após a saída de Rymôr.

- Sim - respondeu sobriamente Rôlan, olhando-a.

- E o que você fazia?

- Eu trabalhava no serviço de mapas. Houve um novo silêncio.

- Tudo bem - soltou Xâvier - mas não podemos dizer que você seja tagarela. Você faz mais o tipo triste.

- Talvez ele seja mais do tipo idiota - resmungou Mârk, que não gostou da forma como o estagiário olhava para Morgana.

Rôlan o olhou fixamente e mostrou o queixo de forma desafiadora.

- Eu não sou nem idiota e nem triste - articulou ele, esforçando-se para continuar calmo. - Eu não pedi para vir aqui. Eu queria ficar com meus companheiros. Foi o seu chefe que decidiu assim.

- Não somos suficientemente bons para você? - quis saber agressivamente Mârk.

- O senhor acreditava que a equipe de estagiários não fosse de sua idade? - ironizou Xâvier. - Imbecil!

- Bom, chega, estamos todos na mesma... - interveio Morgana um pouco tarde.

- Repita isso que você disse - bradou Rôlan, que ficara pálido.

- Imbecil!

Rôlan soltou um grito de raiva e partiu na direção de Xâvier, que o agarrou pelo pescoço. Bem mais magro, o novato rapidamente ficou por cima. E começou a gritar:

- Você não sabe o que está falando! Você não enfrentou os guerreiros de Muspell, você não os matou e você não foi acorrentado e jogado numa cela!

Xâvier não conseguiu se desembaraçar de seu adversário furioso.

- Parem... parem com isso!

Mârk tentou ajudar seu amigo. Muito fraco ainda, ele caiu no chão ao sair da cama. Rastejou na direção da confusão. Agarrou-se na perna de Rôlan e conseguiu desequilibrá-lo. Xâvier pôde se soltar e recuperar o fôlego. Rolando no chão com o estagiário do Planeta Morte, Mârk desferiu alguns socos ao acaso. Rôlan gritou de dor. - Chega!

Era Morgana. Surpresos, os três garotos pararam de se bater.

- Vocês não têm vergonha?

A garota tinha dificuldades para conter sua raiva.

- O império está arrebentando sob nossos olhos! Vocês acham que é o momento para bravatas? Vocês se comportam como animais.

- Mas foi ele que... - tentou justificar Rôlan, subitamente desencantado.

- Não, foi você, Rôlan, que chegou, querendo nos dar uma lição! Você pensa, talvez, que nós não passamos por nada? Coisas tão terríveis quanto as suas? Na sua opinião, por que o Mârk está na enfermaria? Ele salvou o nosso capitão de um atentado. E Xâvier, ele, destruiu a frota de Muspell. Eu, eu localizei o Polvo no Planeta Morte! Como você pode ver...

Ela não pôde dizer mais nada.

Rôlan, Mârk e Xâvier se entreolharam, incomodados.

- Bom, droga, paramos por aqui, ok? - Ok.

Xâvier e Rôlan ajudaram Mârk a se levantar e o carregaram até a cama.

- Sinto muito - disse Rôlan baixando os olhos. - Eu fui estúpido. Um verdadeiro idiota...

- Não foi tão grave. Nós também não fomos muito espertos - reconheceu Xâvier.

- Podemos trocar figurinhas mais tarde - interrompeu Mârk, mandando uma indireta a Morgana, que lhe deu as costas.

- Eu me ocupo disso - disse prontamente Xâvier.

Ele se aproximou da menina que, após algumas palavras, reencontrou logo seu sorriso e se lamentou de ser muito emotiva.

- Felizmente você interveio - gozou Xâvier. - Senão, no calor das emoções, tenho certeza de que teria matado os dois!

Ele começou a rir.

Mârk sentiu seu coração apertado. Uma verdadeira cumplicidade se estabelecera entre seus dois amigos enquanto ele esteve em coma. Ele tinha que admitir que isso era legal mas não chegava a ficar alegre. E não pôde segurar um resmungo.

Rôlan se sentiu culpado.

- Espero que não tenha se machucado, com o que aconteceu há pouco - disse inquieto.

- Está brincando? Os aparelhos do médico repararam meus ferimentos enquanto eu dormia. E nada melhor do que uma boa briga, para testar a minha recuperação. Desde que abri os olhos, achava que era tudo um sonho.

Vrânken estava em pé ao lado do leme, no posto de pilotagem. Como sempre seu olhar estava perdido para lá do domo, na imensidão dos Rochedos. Ele esquadrinhava o espaço, avidamente, desesperadamente, talvez à procura de um sinal favorável ou mesmo de um fragmento dos Caminhos Brancos para resolver seus problemas.

Ele se inquietou com o que ficara sabendo por meio de Alyss a respeito do cã e seu plano diabólico. Mergulhado em uma profunda reflexão, ele tentava compreender. Ele ainda não estava convencido, esse plano não encaixara.

"Atli Blodox não é um homem que se contente com uma vitória por procuração. Ele deve ter previsto como se manter no comando. A única solução para ele é reabrir os Caminhos Brancos. Será que a sabotagem fez todo esse estrago? Será que uma equipe de conserto não ficou escondida no Planeta Morte esperando a hora certa para agir?"

Quaisquer que fossem os planos, seria importante se antecipar às intenções do cã e agir na frente. Dispor as peças no tabuleiro, para não mais ser surpreendido... - Vrânk?

Ele se virou. Atrás de Rymôr estava toda a tripulação do Destruidor de Ossos.

Vrânk se aprumou e respirou fundo. Ele havia mandado seu auxiliar convocar todos os homens. Enfim ele decidira: estava disposto a arriscar sua própria pele e tentar uma fabulosa jogada de pôquer! Mas havia riscos. E todos deveriam saber.

 

- Meus amigos - começou Vrânken. - Eu não os reuni muitas vezes aqui...

- É a primeira vez, Vrânk - disse docemente Rymôr.

- Sim, é mesmo a primeira vez, meu auxiliar confirma. E se eu assim o faço é porque...

Vrânken procurava as palavras. Um silêncio religioso reinava no domo. Todos sabiam que o capitão tinha algo importante para dizer.

- ...porque eu acabo de tomar uma decisão que talvez conduza o Destruidor de Ossos ao fim.

Um murmúrio de surpresa cresceu entre os homens. Ele esperou a tranqüilidade voltar.

- Muito poucos aqui conhecem a verdadeira natureza de minha nave. Rymôr conhece. Thôrn Tristrem, nosso chefe mecânico, também.

Os olhares se voltaram para um pequeno homem de pernas curtas e um espesso bigode. Alguns, os que haviam embarcado mais recentemente, jamais o haviam visto, porque ele relutava em sair da sala de máquinas.

Thôrn Tristrem se contentou em concordar com um resmungo.

- O Destruidor de Ossos - continuou Vrânken - é um quebra-rochedos, uma embarcação da primeira geração. Em outros tempos, existiam milhares como ele. Foi com eles que Nifhell pôde se lançar na conquista de Drasill e se tornar um império. Hoje, sobraram uns dez quebra-rochedos, todos mandados, fora o meu, para hangares empoeirados.

Fez uma pausa. A tripulação estava hipnotizada com suas palavras.

- Se Nifhell pôde conquistar planetas tão distantes dele, séculos antes da criação dos Caminhos Brancos, foi porque havia descoberto o mistério dos abismos estelares. Os livros de história se calam sobre grandes segredos. Mas antes dos Caminhos Brancos, o império era o único a dominar os Rochedos.

Vrânken se entusiasmava.

- Existia nessa época um animal extraordinário. Um animal que vivia no espaço e se alimentava de poeira das estrelas e de energia fotônica e ocasionalmente de embarcações que cruzavam sua rota. Para esse animal não existiam distâncias. Era chamado de Gôndül.

O falatório cresceu no domo. - Mas capitão - gritou um marinheiro -, os Gôndüls são lenda. Eles não existem!

Vrânken elevou a voz e todos se calaram.

- Os Gôndüls existem - sublinhou mostrando as paredes metálicas em volta dele. - Vocês estão dentro de um deles. O couro que cobre o Destruidor de Ossos é a sua pele. Os tubos estranhos que percorrem a nave são suas veias. A figura da proa não é nada mais do que sua cabeça!

A tripulação ficou atordoada.

- Continue, Thôrn - disse Vrânken.

O chefe dos mecânicos, pouco habituado a falar em público, pigarreou.

- Quando se descobriu a capacidade dos Gôndüls, nossos ancestrais começaram a capturá-los, aliás, com muitas dificuldades. Depois eles tentaram enxertá-los sobre as naves. Isso não funcionou rio início. Depois pudemos compreender que esses animais possuíam uma inteligência própria. Um pouco como os cães, eles tinham antes de tudo uma necessidade de amar seus novos donos. Foi assim que as coisas aconteceram, nossos ancestrais, usando navios enxertados que chamamos de quebra-rochedos, puderam dominar o sistema solar.

- Mas - perguntou curioso o médico da nave - como... como isso funciona?

Vrânken balançou a cabeça de forma negativa e retomou a palavra:

- Sinto muito, doutor. Mas isso vai continuar um segredo. A ligação entre os Gôndüls e as naves de Nifhell sempre foi um segredo. Eu revelei uma parte para vocês. O que vocês precisavam saber, por outro lado, é que o Gôndül do Destruidor de Ossos dorme há muito tempo e eu jamais o despertei. Nem sei se serei capaz de acordá-lo, nem como ele reagirá. Resolvi tentar a sorte nos Rochedos, mas os riscos são grandes. É por esse motivo que autorizarei a saída da nave de todos que assim desejarem. Estes serão abrigados em outras embarcações.

Com os gritos que cresceram no domo, o capitão compreendeu que ninguém desejava desertar. Uma voz jovem atravessou a algazarra:

- Então, capitão, Grîm Grettir tinha razão, não é mesmo? Ele também sabia dos quebra-rochedos. E foi por isso que o senhor o interpelou, na reunião!

Era Mârk que havia falado. O pequeno grupo de estagiários em sua volta o apoiava.

- Vejam, o meu salvador já está melhor, não é? Risos foram escutados.

- Mas você tem razão, Mârk - continuou o capitão. - Eu sou o único a possuir um quebra-rochedos, o único a poder agir. Se o resto da frota tentar entrar conosco nos Rochedos, ela gastará doze anos, mesmo com os motores fotônicos. E isso está totalmente fora de questão. E também eles não têm as armas para essa viagem.

- Então, capitão, nós vamos tentar com o Destruidor de Ossos chegar até Nifhell da mesma maneira que os nossos ancestrais?

- Sim, Mârk. Não sei se nós chegaremos, mas é a nossa única chance de salvar todo o mundo.

Urras explodiram no posto de pilotagem. Os marinheiros jogaram seus gorros no ar. Rymôr se aproximou de Vrânken e o abraçou apertado com seus enormes braços.

- Boa decisão, Vrânk, boa decisão! Olhe bem, a tripulação fechou com você.

O capitão estava emocionado.

- E graças ao Polvo, meu velho Rymôr.

- Hein?

- Sim, graças a Alyss. Se você visse a serenidade com que ela enfrentou o seu destino! Ela me fez sentir vergonha de minhas dúvidas e de minha covardia.

O gigante observou seu amigo e viu que ele não estava brincando.

- E agora, Vrânk?

- Voltem todos aos seus postos de trabalho menos Thôrn, você, claro, e Morgana.

O posto de pilotagem ficou vazio. Vrânken fez o chefe da tripulação, o chefe dos mecânicos e a noviça sentarem nas poltronas de couro gasto em volta de uma mesa baixa de paleomadeira, afastada dos púlpitos dos comandos.

- Um copo de aguardente de ameixa? - propôs o capitão. - É a minha melhor garrafa!

Depois que tomara a decisão, Vrânken havia recuperado uma parte de seu desprendimento e de seu bom humor. Rymôr estava feliz em vê-lo como realmente era.

- Com prazer, Vrânk. E seja generoso!

- Também aceito um gole - disse Thôrn Tristrem, cujos olhos brilharam.

- O senhor não tem outra coisa? - perguntou Morgana, fazendo uma careta.

Vrânken sorriu.

- Sim, claro. Quer um multifrutado? Ela devolveu o sorriso.

- Bem - anunciou Vrânken após servir todos. - Vejam como tudo acontecerá: para despertar o Gôndül, eu devo me isolar na parte da frente da nave. Vocês não me verão mais durante a viagem, cujo tempo ignoramos! Será talvez de algumas horas ou de alguns dias, eu não sei. Rymôr será, então, o capitão durante minha ausência.

- Eu já estou acostumado, Vrânk. Vai dar tudo certo, não se preocupe.

- Thôrn, você ficará atento ao comportamento do Destruidor de Ossos. Ao menor sinal de problema com a simbiose, tente retomar o controle mecânico da nave.

- Eu espero que isso não aconteça - resmungou o bigodudo pousando seu copo na mesa. - Ficar perdido em meio aos Rochedos não será um prazer!

- Eu também espero. Quanto a você, Morgana, você fará o papel que todas as Frä Daüda tinham no tempo de seu esplendor: você vigiará, de dentro do Templo, a trajetória da nave.

Morgana não conseguiu esconder um calafrio. Rymôr percebeu e colocou sua grande mão sobre a dela, como lembrando que ela não estaria só. Ela pegou seu copo e bebeu antes de responder, o olhar perdido no líquido laranja:

- Farei o meu melhor, capitão.

- Mais uma coisa, Morgana: durante o trajeto, por causa da estrutura magnética particular do Gôndül, os tecnofones não funcionarão. Para avisar Rymôr em caso de problema, você deverá utilizar antigos tubos acústicos que ligam o Templo ao posto de pilotagem.

A menina balançou a cabeça. Ela sabia onde eles ficavam, Frä Drümar havia mostrado.

- Está na hora, acredito, de nos prepararmos - concluiu Vrânken. - Os capitães receberam minha decisão com estupefação, como vocês também ficaram com dúvidas. Mas eles entenderam e aceitaram e isso é essencial. Só me falta dar as últimas ordens.

Levantou-se.

- Meus amigos, eu espero por vocês num novo encontro, em breve, aqui mesmo, para bebermos ao nosso sucesso. Que os Poderosos nos protejam!

- Que eles nos protejam!

Vrânken terminou sua bebida num único gole. Depois abandonou seus companheiros e se conectou no microfone global. Instantaneamente entrou em contato com os capitães da frota.

- Escutem atentamente. Eis as minhas ordens. Vocês vão continuar tentando reparar os Caminhos Brancos. Caso vocês falhem, não se afastem do Planeta Morte. Há no lado tórrido, onde ninguém jamais vai, uma rede de galerias naturais descobertas pelos nossos cartógrafos. Preparei um plano. No interior, vocês estarão protegidos dos raios de Drasill. Fiquem escondidos e de olhos abertos. Penso que o cã prepara algo. Ele talvez espere que, desesperados, tentemos a nossa sorte nos Rochedos deixando para trás as máquinas dos Caminhos Brancos. Senhores, o império sempre vigiou o Planeta Morte. A melhor maneira de servir hoje, quando doze anos fotônicos nos separam de Nifhell, é permanecer em guarda. Farei tudo para vir ajudá-los de uma maneira ou de outra. Meus amigos, desejo boa sorte, sob o olhar vigilante dos Poderosos...

 

Morgana empurrou a porta do dormitório dos estagiários, para onde ela se mudara no mesmo dia da morte de Frä Drümar. Seus amigos estavam esperando.

- Então, conte tudo!

- Não tenho nada para contar.

- Vamos, não seja chata!

Ela nada respondeu. Preferiria que eles não estivessem ali. Tudo já era tão difícil. Começou a colocar suas coisas em sua mochila.

- Para onde você vai? - perguntou Mârk, deitado em um dos leitos.

- Estou voltando para o Templo.

Mârk e Xâvier trocaram olhares inquietos.

- O que é o Templo? - quis saber Rôlan.

- Nós explicaremos - disse Xâvier antes de se virar para Morgana. - Você acha que vai ficar muito tempo lá?

- Eu não sei. Alguns dias, certamente.

- O quê? - exclamou Mârk.

A noviça explicou num tom monocórdio:

- O capitão vai despertar o Gôndül e lançar o Destruidor de Ossos nos Rochedos. Ele deverá ficar sozinho na frente da nave durante toda a viagem. Os aparelhos eletrônicos não funcionarão. A ajuda de uma adivinha é essencial.

- E se te acontecer alguma coisa? - insistiu Mârk. - Como é que saberemos?

- Uma ligação com o posto de pilotagem. Um tubo.

A voz de Morgana ficou um pouco fraca. O que se esperava dela lhe pareceu, de repente, além das suas forças.

- Não é suficiente - decretou Xâvier após uma rápida reflexão. - Nós vimos o que aconteceu com a Frä Drümar! Você não pode ficar sozinha.

- Concordo - disse Mârk. - Mas o que vamos fazer? Não podemos ficar no Templo com você, hein?

Morgana negou com a cabeça.

- Então vamos ficar de prontidão - disse Xâvier. - Um rodízio. Tipo assim, se Morgana tiver um problema, bastará gritar através da porta. O que você acha?

A menina não estava convencida de que seus amigos pudessem ajudá-la caso algo acontecesse, mas era mais seguro pensar que eles estariam por perto. Mesmo estando do outro lado de uma porta trancada. Ela se sentiu melhor.

- É uma boa idéia. Em todo caso, é muito legal da parte de vocês. E as suas tarefas?

- Depois que Mârk foi ferido, uma equipe de marinheiros está trabalhando na cozinha e estão se saindo muito bem sem o estagiário - respondeu Xâvier. - Da minha parte, sem capitão, sem obrigação! Quanto a Rôlan, eu não sei...

- Eu estou livre como o ar - afirmou o garoto. - Eu também ficarei de prontidão.

- Existe um canto mal iluminado no corredor, em frente à porta do Templo - disse Mârk. - Foi lá que eu me escondi quando o meu chefe espionava. Lá será um bom posto de vigia.

- Topamos por unanimidade! - concluiu feliz Xâvier. - Vamos, menina, vamos ajudar a arrumar sua mochila.

Morgana pensou em Frä Ülfidas e nas velhas adivinhas da escola de Urd, que também haviam-na ajudado a arrumar suas coisas, e prevenido para desconfiar dos garotos. Realmente fora uma sorte encontrar estagiários como eles!

Vrânken parou no fim do estreito corredor, em frente a uma porta estreita de um armário técnico colocado bem na ponta da proa. Era impossível ir além. Ele introduziu na fechadura uma chave da qual só Thôrn Tristrem possuía uma cópia. A porta, ao abrir-se, desvendou um complexo conjunto de cabos e de peças de polimetal: era o sistema de direção que permitia à embarcação utilizar os Caminhos Brancos. Pegou uma outra chave pendurada em uma corrente em torno de seu pescoço e que era única. Tateou em busca de uma fenda escondida no coração do mecanismo. Ao encontrá-la, enfiou a chave e deu diversas voltas para direita e para a esquerda, segundo um código preciso. Escutou um clique. Com um ranger surdo, um painel inteiro da parede abriu revelando um compartimento mergulhado na penumbra.

Vrânken, com o coração palpitando, se esforçou para não perder o controle. Respirou fundo e entrou na sala secreta. Atrás dele o painel se fechou automaticamente.

O local era pequeno e escuro. Vrânken esperou seus olhos se acostumarem com a pouca luz irradiada por uma fila de lâmpadas e algumas placas de metal fosforescente. Havia uma cadeira ao centro, para onde convergia uma rede de finos tubos. Nenhum console, nenhum púlpito, nada que parecesse com uma cabine de controle.

- Tudo está exatamente como meu pai descreveu - murmurou Vrânk.

Ele hesitou. A cadeira era de oricalco, revestida de couro claro.

- Agora é comigo - continuou, como se escutar a própria voz o acalmasse. - É a minha vez de sentar e despertar o Gôndül, como fizeram meus ancestrais.

"Você não será mais você e ele não será mais ele", dizia seu pai. "Vocês juntos serão outra coisa. Caso ele o aceite, senão..."

Era esse "senão" que o terrificava. Pois um ponto particular ele gravara ao longo das conversas com o pai sobre os Gôndüls: nem sempre a fusão acontecia corretamente. Sobretudo na primeira vez. É comum o animal não aceitar seu amo. Porque os testes de reconhecimento revelam um impostor - os Gôndüls só eram fiéis a uma única família - ou por motivos ainda obscuros. Inexplicáveis, melhor dizendo. Ele tinha na cabeça a história de um jovem capitão que o Gôndül recusou. O pobre rapaz perdeu a razão. Sim, ele sofrerá de tal maneira, gritou tanto que ficou maluco. E depois o monstro se sentiu livre. Desvencilhou-se da nave que o prendia. Essa história havia inspirado numerosos pesadelos no jovem Vrânken...

Como um autômato, o capitão acionou os mecanismos de sua atadura para tirá-la. Avançou em direção à cadeira, a voz de Alyss ressoava em sua cabeça: eles aceitaram seu destino... eles sacrificaram suas vidas.

Ele se instalou, pousou seu braço no apoio da cadeira, apesar da dor no ombro.

Aproximou de seu rosto um antigo microfone fixado na ponta de uma haste telescópica. Ele sabia exatamente o que deveria fazer, como se tivesse feito isso durante toda sua vida. Hesitou. Logo estaria no ponto sem retorno. Sua pulsação acelerou ainda mais.

Rymôr não havia entendido seu medo, pouco antes. Mas ele tinha suas razões. Vrânken de Xaintrailles, capitão e estrategista do império, não se deixava impressionar facilmente. Havia vivido tantas coisas, passado por tantos perigos! Mas ali, verdadeiramente, ele nada poderia fazer. A perspectiva de acordar o monstro do Destruidor de Ossos, de se ligar a ele, o enchia de terror.

Ele sentiu em sua nuca e em seus pulsos a maciez do couro que esquentara com o contato. Essa sensação lhe lembrava a velha poltrona que ele amava sentar para ler, bem em frente à lareira em sua residência de Skadi. Ele se acalmou. Imaginou seu pai e todos os seus ancestrais observando-o com um olhar confiante, como tantos retratos pendurados de sua família que olhavam atentos das paredes.

Afastou o medo.

Com a mão tremendo, pegou uma primeira sonda conectada num estranho complexo de pequenos tubos, mistura de paleocobre e de matéria orgânica. Ele a fixou, após várias tentativas, na cavidade de seu braço esquerdo. Com maior dificuldade, colocou a segunda sonda em seu braço direito. Estava agora fisicamente ligado ao hóspede monstruoso do Destruidor de Ossos. Uma última manipulação e ele despertaria.

- Pelos Poderosos - exclamou Vrânken - eu sou completamente doido!

Nervoso, não foi capaz de impedir o riso.

Depois parou de pensar e apertou um botão usado no topo do braço da cadeira.

Microbombas entraram em ação. O sangue de Vrânken foi aspirado na rede de canos.

Um tremor agitou o Destruidor de Ossos. Rymôr se aproximou da escotilha de vidro e olhou para fora. O couro estranho que cobria a nave mudou de cor num piscar de olhos. Como uma onda percorrendo uma superfície de água ou o vento mexendo as ervas de um prado, uma enorme força agitava o revestimento exterior da nave, aumentava e inchava, dando-lhe vida. O couro, até aquele momento escuro e fendido, clareou e amaciou. O gigante não quis acreditar no que seus olhos viam: a pele do Destruidor de Ossos palpitava!

- Pelo estreito de Gôn...

Ele parou no meio de sua exclamação. Vrânk acabara de acordar o monstro: talvez ele o escutasse e o compreendesse? Nesse caso, ele poderia se mostrar suscetível...

Ao mesmo tempo em que o sangue de Vrânken deixava seu corpo para entrar no complexo de tubos, uma substância negra e viscosa o substituía, penetrando em suas artérias e em suas veias. Em troca do sangue humano, o monstro dava o seu. Sob pressão, os vasos sangüíneos do capitão, imobilizado em seu assento, dobraram de volume e desenharam em seu rosto e em seu braço uma espantosa ramificação.

Vrânken não sofria. Ele sentia uma dor surda, mas suportável. A sensação dessa intrusão, por outro lado, era atroz.

"A água dos tubos está ficando doce", disse para si mesmo, cerrando os dentes. "Mas diria que está funcionando: caso o Gôndül tivesse negado meu sangue, não estaria mais aqui para constatar."

Apesar do endurecimento de seu corpo, ele sentiu um enorme alívio. Ele realizara a fusão. Não tinha ficado maluco e não gritava que ia morrer! Ele estava a ponto de passar em seu primeiro teste: o reconhecimento do sangue.

Mas ele sabia, o monstro logo pediria mais...

Thôrn Tristrem não gostava disso. Como Rymôr, ele compreendera o despertar de Gôndül, o longo frisson que percorrera o Destruidor de Ossos. Eles estavam felizes com o sucesso de Vrânken. Mas ao inspecionar minuciosamente a nave para seguir as ordens do capitão, ele não a reconhecia mais. Estranhos tubos orgânicos - de veias? de nervos? - haviam aparecido por todos os lados, nos tetos dos corredores, escalavam as passarelas e mergulhavam nas longas rampas. O metal das passarelas e das divisórias estava mais quente. A nave parecia menos... mecânica!

Thôrn se achava na parte da frente da embarcação, ao passar em frente a uma vigia, achou ter visto algo mexer no exterior. Ele franziu a testa. Era o escaler de um capitão que vinha atrás de novidades? Ele olhou mais atentamente. Não, era maior que um escaler.

- O que é...? Pelos Poderosos! A cabeça do Gôndül, na proa, virou-se bruscamente em sua direção. Ela era enorme. Sobre suas arcadas em movimento sentiu um calafrio, o longo chifre parecia mais pontudo do que nunca. Do terrível bico gotejava um líquido amarronzado que flutuava no espaço. Como a baba de um animal faminto. Um olho amarelo observava Thôrn avidamente.

O mecânico deu um passo para trás.

- Opa! Espero que o capitão controle a situação... Resolveu rapidamente voltar para a sala de máquinas e se preparar para dar um curto-circuito no monstro. Nunca se sabe.

Vrânken se acalmou e se esparramou na cadeira. A dor passara. Agora sentia a presença do Gôndül por todos os lados, até dentro dele, pois os sangues estavam misturados. O monstruoso animal estava acordado. E estava nervoso. Esperava que seu amo falasse. A voz: segundo teste de reconhecimento.

No momento de domá-lo, para que ninguém pudesse se apoderar de tamanha força, os ancestrais haviam ensinado cada Gôndül a reagir a um tipo de sangue próprio e a um comando preciso. Cada um deles transmitido de geração em geração, no seio de cada família. Vrânken apenas realizara a metade do caminho.

Ele se esforçou para se concentrar. Não era fácil. Ele estava tomado por diversas sensações desconhecidas. No entanto, tinha que conseguir: ele e o Gôndül estavam ligados. Um deveria dominar o outro. Caso o capitão fracassasse, o monstro tentaria fugir, desvencilhando-se da nave. E se ele morresse, todos morreriam.

Vrânken aproximou seus lábios do microfone que estava ligado diretamente ao Gôndül. Com uma voz pouco segura, murmurou:

- Escute esse canto de longa memória que os Xaintrailles murmuram desde sempre nas entranhas de seu Destruidor de Ossos... Confie-me o fardo de seu destino, deixe-se guiar pelo seu instinto... Mergulhe nos abismos imensos, devore as estrelas e as distâncias...

Golpes surdos e repetidos fizeram gemer o casco do navio. Vrânken percebeu que o Gôndül tentava sair de seu corpo de metal.

"Não fraqueje", encorajava-se febrilmente. "Você está quase conseguindo!"

E continuou:

- E se a noite o surpreender ao longo do caminho nebuloso, estarei sempre ao seu lado...

Ele suspirou aliviado. Acabara de repetir o velho feitiço escolhido por seus antepassados na preparação desse Gôndül. Tudo entraria em ordem agora.

No entanto o monstro não parecia se acalmar, muito ao contrário. Estalos sinistros foram escutados. A tripulação ainda não havia tido tempo de entender o que estava acontecendo. Mas Vrânken se encontrava na cabeça do Destruidor de Ossos e sabia que a nave não agüentaria o tranco por muito tempo.

"Tenho que agir", pensou à beira do pânico, "do contrário Thôrn irá matar o Gôndül. Ou ele irá nos matar."

Tomado de raiva, gritou no microfone:

- Escute esse canto de longa memória que os Xaintrailles murmuram desde sempre nas entranhas de seu Destruidor de Ossos... Confie-me o fardo de seu destino, deixe-se guiar pelo seu instinto... Mergulhe nos abismos imensos, devore as estrelas e as distâncias! E se a noite o surpreender ao longo do caminho tomado pelas brumas, estarei sempre ao seu lado!

Ele se lembrou, tarde demais, de uma recomendação de seu pai: nunca se deve gritar com um Gôndül. Suas reações podem ser terríveis.

Ele ficou arrepiado esperando uma reação.

Mas ela não veio: o monstro se acalmou na mesma hora.

"Com a idade, ele pode ter ficado com problemas no ouvido", brincou, nervoso, Vrânken.

Eles estiveram bem perto da catástrofe, ele sabia. Logo ele viu com contentamento faíscas azuis correndo pelos cabos elétricos. O Gôndül se abastecia de energia fotônica. Em resposta a esse vampirismo magnético, os instrumentos eletrotectônicos se desligavam um após o outro. As lâmpadas apagaram. Vrânken contava apenas com uma pálida luz das placas de metal fosforescente.

Lá fora, o Gôndül soltou um grito taciturno, que se transformou em uma onda poderosa que fez vibrar o espaço. As estrelas tremeram.

Depois o Destruidor de Ossos seguiu adiante, aspirado pelo nada.

Eles estavam partindo.

 

Sentado na poltrona de Egîl Skinir, Njal Gulax esperava que seu otchigin terminasse seus feitiços. Ele dedilhava mecanicamente a borda da mesa redonda de oricalco. O almirante escolhera estabelecer seu quartel na vasta sala de pedra negra de polividro, mais para se deliciar do que pela necessidade. Em sua frente, o velho cego fizera brotar do chão um fogo de chamas frias. Penetrou em seu interior e levantou seu cajado. As chamas que lambiam seus pés nus se aproximaram da lã suja de seu manto e subiram ao longo de seu braço. Depois correram sobre os sinais gravados na madeira, entraram em turbilhão e brilharam em direção ao teto.

"Foi, a comunicação foi restabelecida", constatou silenciosamente o chefe da armada de Muspell abandonando seu lugar e se aproximando do feiticeiro em transe. Colocou sua mão sobre o ombro do otchigin. Na mesma hora sentiu uma mordida, depois um formigamento que se expandiu ao longo de sua coluna vertebral. Ele detestava isso. Mas, desde que os Caminhos Brancos foram cortados, não existia outra forma de comunicação com Muspell senão utilizar a rede mística dos xamãs.

Uma voz perguntou em sua cabeça:

- Njal? Você está me escutando?

- Sim, meu cã.

- Quais são as novidades?

- A resistência é menor do que a prevista.

- Isso não me espanta - gozou Adi Blodox. - Os lobos de Nifhell viraram cães medrosos! Eu imagino que você tomou as providências corretas.

- Sim, grande cã. Comecei por exigir dos generais-condes que eles me entregassem os reféns. Depois dessa exigência, os atos de terrorismo diminuíram muito.

O almirante escutou Atli Blodox dar uma gargalhada.

- Você me diverte, Njal. Que mais?

- Depois eu fechei a escola das Frä Daüda. Muitas ainda são inexperientes, mas eu já mandei reuni-las.

- Ok.

A voz do cã se tornou mais séria.

- Essas mulheres são perigosas. Eu não as admiro. Mais tarde, eu as mandarei para um planeta-prisão no fim do sistema solar.

- Acho, grande cã, que temos o controle da situação. Já estamos prontos para a segunda parte do plano.

- Paciência, meu irmão, paciência. A frota do Cão da Lua deve em breve se afastar do Planeta Morte para que possamos restabelecer os Caminhos Brancos e enviar novos guerreiros para Nifhell.

- A propósito da frota, grande cã...- hesitou Gulax.

- Continue.

- Ao chegar, encontramos apenas naves agrícolas. Não havia nenhuma embarcação de guerra. Já organizei uma busca, mas foi em vão. Talvez elas tenham partido com o Cão da Lua...

Fez-se silêncio. Gulax percebeu que o cã refletia.

- Talvez. Ou então eles têm um esconderijo, em alguma parte. Mas isso não é muito importante: eles não são fortes o suficiente para tentar alguma coisa, do contrário eles já teriam feito! Não abandone seu objetivo principal: ter o planeta sob controle até a nossa chegada.

O otchigin titubeou e precisou se agarrar em seu cajado para não cair. Njal Gulax sabia que a energia exigida pela comunicação para tamanha distância era enorme.

- Preciso deixá-lo, meu cã - concluiu. - Eu faço contato em alguns dias.

Ele tirou a mão do ombro do velho e a comunicação se rompeu. As chamas se apagaram. O otchigin quase desabou em seus braços.

Urd era o mais rude dos nove condados. Era banhado por um oceano permanentemente congelado, onde as crianças das cidades costeiras patinavam aos gritos. Tanto no verão como no inverno, a neve poderia cessar a qualquer momento. Bastava que fizesse um pouco menos de frio. Mas apenas os estrangeiros do condado sofriam com o clima extremo. O povo de Urd estava acostumado.

A Spartacus, uma embarcação que servia de transporte de animais e que os homens de Muspell haviam requisitado, pousou na grande praça de Urd, a capital que dera nome ao condado. A aterrissagem levantara a neve que cobria o chão. Usando o braço como viseira para se proteger, guerreiros surgiram da robusta nave e se dirigiram em passos rápidos para o prédio que abrigava a escola das Frä Daüda. Saíram de lá, alguns instantes mais tarde, escoltando duas prisioneiras. Subiram a bordo da nave, que decolou pesada, girou sobre o oceano congelado e tomou a direção sul.

A embarcação tinha um único compartimento para alojar animais a caminho das feiras agrícolas. Uma porta solidamente fechada era a única saída na direção das cabines e do posto de pilotagem. A fuga era impossível. Por esta razão, sem dúvida, os carcereiros acharam inútil acorrentar as prisioneiras para vigiá-las.

Frä Ülfidas, diretora da escola de Urd que formava as Frä Daüda, não lamentava nada. Sob suas ordens, as adivinhas e noviças haviam fugido. Ela ficara, como um capitão que se nega a abandonar seu barco, com a noviça que ela escolhera como aluna. As forças de ocupação haviam obrigado as

Frä Daüda a renderem-se. Ela se recusou. Em represália, vieram procurá-la. E ela ficou esperando...

- Frä Ülfidas? - disse uma vozinha ao seu lado.

- Sim, minha filha.

- Para onde estão nos levando?

- Não é necessário ser adivinha para compreender que essa nave faz o trajeto em direção a Kenningar e sua prisão.

A velha senhora sorriu para a noviça de cabelos negros cujo queixo tremia.

- Acalme-se, Xändrine. Se quisessem nos fazer mal, já teriam feito.

Ela viu que a menina se esforçava para ser corajosa. Ela ficou satisfeita. O futuro não estava escrito, ela sabia de alguma coisa.

- Vocês são as Frä Daüda?

Uma jovem as interpelava. Era um pouco gorda, os cabelos loiros e curtos, rosto quadrado e iluminado pelos olhos claros. Deveria ter uns quinze anos.

- Eu sou uma adivinha - respondeu Frä Ülfidas andando em sua direção. - Xändrine, minha aluna e noviça. A quem tenho a honra?

- Eu me chamo Mäthilde Augentyr. Meu tio é o general-conde de Skadi.

- Uma refém - percebeu logo a velha Frä Daüda.

- Que perspicácia - ironizou Mäthilde. - Perguntam como vocês não perceberam a chegada de um exército inteiro em nosso planeta!

Xändrine olhou para ela chocada.

- Existem tantos futuros possíveis, minha filha - respondeu calmamente Frä Ülfidas. - O futuro é como todas as coisas: devemos saber o que procuramos se quisermos encontrar algo. Essa invasão ainda é inexplicável. Ela é surpreendente. Nós, Frä Daüda, não a antecipamos, pois não a imaginamos.

- Palavras, apenas palavras - cuspiu a jovem. - Sangue dos espíritos! Meu tio é que tem razão quando diz que vocês não servem para nada.

- Então, Mäthilde - retomou a adivinha se aproximando e pegando a mão da jovem. - Não adianta nada nós brigarmos! Precisamos umas das outras.

 

Em uma cela do Destruidor de Ossos, no fundo do porão, o general que tentara se passar pelo Polvo no momento da captura, no Planeta Morte, se assustou. A luz havia bruscamente diminuído no local e a embarcação começara a vibrar de uma forma estranha. O otchigin preso com ele estava inquieto.

- O que está acontecendo, feiticeiro?

- Eu não sei. Algo estranho irá acontecer, general Xamar.

O xamã, que tivera seu cajado confiscado, fechou os olhos e se concentrou.

- Então? - inquietou-se o general.

- Então nada. Meus pensamentos são prisioneiros dessa nave. Algo de poderoso os retém. É como se eles tivessem entrado num Caminho Branco que bloquearia as comunicações em vez de ampliá-las.

- O que isso quer dizer?

- Isso quer dizer, irmão, que estamos em movimento e avançamos muito rapidamente.

O rosto de malandro do oficial se assombrou. Cão da Lua havia encontrado uma maneira de neutralizar o poder dos otchigins. Talvez até mesmo contornado a armadilha pacientemente elaborada. O sublime plano do cã estava ameaçado, era preciso agir.

- Nada a fazer nessa direção - resmungou, após se irritar mais uma vez ao tentar algo contra a porta metálica trancada. Quanto às paredes, nem pensar!

- Se estivesse com meu cajado, poderia tentar algo. Mas assim estou quase sem munição, como você.

Xamar começou a pensar. Ele tinha que descobrir o que estava acontecendo e tomar conta da nave. Mesmo sem o talento do Polvo, era imperativo achar uma...

Ele deu um tapa na testa com a palma da mão. Claro, a solução estava ali!

- Feiticeiro, você pode se comunicar discretamente daqui, com pessoas a bordo?

- Hum. Normalmente é preciso um otchigin na emissão e outro na recepção. Mas eu posso tentar outra coisa. Você está pensando em Alyss?

- Sim. Talvez ela esteja menos vigiada do que nós: os homens de Nifhell se comportam como crianças com as mulheres.

Ele riu.

- Vire-se para transmitir a seguinte mensagem: que ela faça o possível para encontrar e nos mandar armas.

O otchigin concordou. Sentou-se no chão, fechou os olhos e colocou a cabeça entre as mãos.

Alyss estava deitada no leito e sonhava. O lençol tinha o cheiro do capitão que a havia vencido e a mantinha prisioneira. Mas que a tratava com candura também. Ela não estava preocupada. Sua experiência com os homens era pequena. E os homens de Nifhell eram diferentes dos de Muspell.

O rosto de Vrânken apareceu atrás de suas pálpebras. Seus traços possuíam um magnetismo poderoso. Seus cabelos lembravam o sol do deserto. Quanto ao seu olhar... O coração de Alyss começou a bater mais rápido.

- Ridículo! - disse em voz alta para eliminar o Cão da Lua de seus pensamentos.

De repente ela ficou com dor de cabeça. Sentou-se e massageou as têmporas para aliviar a dor. Mas esta insistia. Um vento quente balançou seus pensamentos. Um grande pássaro vermelho pousou no interior de sua cabeça. A jovem gemeu. Ela achou que fosse explodir. A imagem que investira em seu cérebro emitiu gritos que mais pareciam palavras desconexas: Entregar... General... Problema... Importante... Armar-se..." Depois o pássaro voou e abandonou a alma de Alyss. Desequilibrou-se e desmoronou sobre o chão metálico.

O Templo estava mergulhado na sombra. A luz fraca brotava de placas de metal fosforescente disseminadas nas paredes. As folhas de vidro da árvore sagrada luziam na penumbra.

A pouca luminosidade não atrapalhava Morgana, que contemplava a fonte correndo entre as raízes. O polimetal líquido chamava a sua atenção. A substância negra misturada, que a intrigava desde sua chegada, estava ainda mais espessa.

Não se aproximara imediatamente da fonte. Ela havia antes dado um tempo para se familiarizar de novo com o local onde deveria viver até segunda ordem: o canto onde dormia, o banheiro, a pequena cozinha onde preparava as refeições.

A lembrança de Frä Drümar, sua professora morta embaixo da árvore artificial, viria em cada parcela daquele universo fechado.

- Vamos, minha filha - suspirou em voz alta -, é bom dar início aos trabalhos.

Ela se ajoelhou e se instalou da forma mais confortável possível. Depois olhou para a fonte.

Sem seus instrumentos tradicionais, o Destruidor de Ossos estava cego. Sem o tecnoescaner nem o cyber-radar para assinalar a aproximação de meteoritos, de tempestades ou de outra nave! Tais acontecimentos só seriam percebidos ali, na superfície da água metálica. Eles seriam arrancados do futuro.

As imagens não vieram imediatamente. Já fazia algum tempo que ela negligenciava seu treinamento. Mas os exercícios ensinados por Frä Drümar mostraram logo a sua eficácia, e Morgana penetrou pouco a pouco num estado de concentração e de alerta indispensável para as visões.

Essas afloraram.

Esforçou-se para que elas não se diluíssem e que fossem claras para serem classificadas. Por falta de hábito, esse trabalho cansava-a rapidamente.

Entretanto, uma imagem veio mais claramente do que outras. A noviça pulou como sob efeito de um choque: era tão precisa quanto a imagem que tivera da morte de uma mulher. Isso deveria ser um tipo de alarme pessoal, o sinal de que deveria ficar prioritariamente atenta a esse tipo de visão!

Concentrou-se mais ainda. Arregalou os olhos, surpreendida: não era nem um meteorito e nem piratas. Sua visão dava conta mais uma vez do interior da nave. Na fonte, o general prisioneiro tinha o leme do Destruidor de Ossos e Rymôr Ercildur desmaiado aos seus pés...

Morgana se segurou para não gritar. Não, ela não deveria romper com o futuro. Ao contrário, deveria tentar saber mais. Remontar o fio, voltar às origens.

Ela viu o general lutando nos corredores, queimando membros da tripulação com uma habilidade impressionante...

Ainda seguindo o fio da meada, foi desmascarando o labirinto do futuro.

O Polvo se aproximava, em passos de lobo, da cela onde o general estava preso. Ele atirou nos guardas. Ele abria a porta...

Morgana tentou se aproximar. Com muita prudência. A ligação estava bastante frágil.

Em um local fechado, um otchigin estava sentado no chão, os olhos fechados...

De repente, a menina percebeu o fantasma de um pássaro vermelho deixar o corpo do feiticeiro, passar através de uma parede até a cabine do capitão e depois precipitar-se no crânio do Polvo.

Surpresa, ela desviou por um instante seu olhar da fonte. Assim que voltou, as imagens fugiram.

Pouco importava. A visão de Morgana havia sido suficientemente clara para ser levada a sério. Ela correu até o tubo acústico que ligava o Templo ao posto de pilotagem, tirou a tampa e gritou em seu interior:

- Rymôr! É Morgana! Responda!

Ela esperou. Ninguém respondeu.

- Ei! Rymôr Ercildur! O senhor está aí?

Novamente ninguém respondeu.

- Eis o meu destino - concluiu rangendo os dentes.

Ficou tomada de preocupação. Ela não tinha experiência para situar o evento no tempo. Se seria amanhã, em uma semana... em uma hora? Em todo caso, era imprescindível prevenir alguém! Por que os adultos nunca estavam quando se precisava deles?

Felizmente, ela lembrou que seus amigos haviam prometido ficar de guarda no corredor. Ela torceu com todas as forças para que eles não tivessem esquecido.

 

Vrânken foi tomado pela euforia. O Gôndül, seu Gôndül, aceitou-o. Ele não o matara, seu espírito não fora condenado a errar pela eternidade nos Rochedos! E ele não ficara maluco de raiva e não reduzira o Destruidor de Ossos em pedaços! Mais calmo, Vrânken lamentou o medo e suas hesitações. Mas tudo acabara. O animal despertara e mergulhara com prazer no turbilhão dos abismos. Ele havia gerado seu próprio Caminho Branco e agora ele traçava sua rota no espaço em direção a Nifhell. Em direção a Nifhell...

Gotas de suor gelado escorreram ao longo de sua coluna vertebral e o capitão ficou lívido. Como o monstro podia saber para onde deveria ir, já que não recebera nenhuma ordem, nenhuma indicação? Vrânken logo entendeu que o Gôndül não se dirigia para o planeta dos generais-condes, mas vagava ao léu, alegre de estar novamente vivo.

"Não existe outra forma de guiar esse animal do que a nossa própria vontade", lhe disse simplesmente uma vez seu pai, com um estranho sorriso. E ele não insistiu em saber mais! Na época ele era apenas um adolescente, e as conversas do velho Xaintrailles soavam como elucubrações que ele só escutava por respeito.

Vrânken lembrou-se de outra coisa. Ao falar isso, seu pai fechou os olhos e um profundo prazer, incomum para um homem tão duro, iluminou sua fisionomia.

Numa súbita intuição, fechou os olhos também.

E nada aconteceu durante um longo tempo.

Depois a presença do Gôndül o invadiu como uma onda que recobre um rochedo.

Vrânken teve a sensação de crescer, desmesuradamente. Seu espírito encheu o local, depois, apertado, transbordou para o corredor. Ele se expandiu em toda a nave como uma onda invisível e tumultuada, antes de jorrar no exterior, através das vigias. Enfim, atraído pelos olhos do Gôndül que brilhavam como dois faróis na noite dos Rochedos, ele penetrou pela cabeça monstruosa...

"Você não será mais você e ele não será mais ele. Vocês serão outra coisa, juntos..."

Vrânken respirou profundamente e encheu seus pulmões vazios. Ele sentiu através da pele grossa de seu rosto a dureza do frio glacial do espaço. Seus olhos amarelos perfuravam as trevas distinguindo os contornos das estrelas que seu gigantesco corpo roçava. Ele se arrepiou de alegria como um lagarto banhado pelo sol.

Abriu a boca e engoliu com prazer indescritível os restos fosforescentes de um meteoro.

Depois apontou seu chifre pontudo à procura de ondas magnéticas de Nifhell, reconhecíveis entre todas, pois cada planeta vibrava de uma maneira particular.

Antes de encontrar o que procurava, Vrânken definiu seu percurso, soltou um novo urro mudo e aumentou sua velocidade.

Alyss levantou-se mais ou menos. Sua cabeça fizera-a sofrer terrivelmente. E ela se ferira ao cair de sua cama.

- Maldito otchigin - murmurou ela enxugando o sangue de seus lábios.

Era a primeira vez que um feiticeiro penetrava em sua alma, mesmo ela conhecendo o princípio. Regra número dois do código dos alunos almirantes: "Em alguns casos, o uso da ciência de um otchigin é indispensável para se manterem as comunicações: um almirante nunca é autorizado a partir sem um otchigin." Uma frase fria como a tinta de um formulário, que escondia uma realidade... aterradora!

Outra vez, ela massageou a têmpora. A mensagem fora clara: pediam que ela escapasse, depois soltasse o general Xamar e seu feiticeiro, sem perder tempo. Pensou por alguns minutos. Deveria haver um grão de areia na mecânica bem lubrificada do cã para que aqueles dois a chamassem. Alyss não gostava nem de Xamar e nem do otchigin. O general tinha ciúmes de seu sucesso e a detestava. Quanto ao feiticeiro, ele a considerava como um animal sábio e desconfiava dela. Mas ela aprendera a vê-lo independente de sua pessoa. Quando os interesses de Muspell estavam em jogo, o resto não tinha nenhuma importância. Assim ela não hesitou mais.

Aproximou-se da porta. Cão da Lua a havia autorizado a se dirigir ao guarda caso necessitasse de algo.

- Por favor! Eu não sei o que está acontecendo. Eu não estou me sentindo bem!

Ela gemia, curvada.

O marinheiro abriu a porta com desconfiança, seu fuzil apontado para a prisioneira.

- Você não está bem?

Ele se aproximou sem baixar a guarda.

- Tente deitar. Eu vou chamar o médico.

Alyss parou bruscamente sua representação. Com uma impressionante agilidade, tirou-lhe a arma da mão e atingiu o infeliz guarda com um pontapé. O homem rolou no chão gritando. Ela pulou sobre ele e bateu forte em sua nuca.

Com as orelhas em pé prestou atenção e controlou a respiração. Nenhum barulho no corredor. Confiante, empunhou o fuzil do guarda desmaiado, depois escapuliu de sua cabine.

A nave havia mudado. Alguma coisa acontecera. As vibrações, ela percebera assim que começou a andar. Mas havia outra coisa. A iluminação não vinha mais das lâmpadas elétricas, mas das antigas placas de metal fosforescentes. Tocou uma parede. Curiosamente, ela não estava fria. Talvez fosse isso que inquietasse Xamar.

Ela se perguntou por um instante se não havia falado muito para Vrânken, em seu último encontro. Teria dado informações capitais? Não, sem dúvida. Que se danassem, em todo caso. Ela adorara aquele momento.

O tempo urgia. Saiu de seu andar para descer ao porão. Orientar-se não era um problema. O pássaro-fantasma enviado pelo otchigin crepitava ainda como um ferro quente e a guiava com mais segurança do que uma linha traçada no solo.

Logo ela chegou na cabine transformada em cela, guardada por dois marinheiros. Ela se encostou à parede. Não havia motivo para hesitar: ela deveria aproveitar o efeito surpresa para abatê-los antes que tivessem tempo de usar suas armas. Com esse pensamento, seus membros começaram a tremer. Ela nunca matara ninguém. Enfim, nunca diretamente, com suas próprias mãos! Suas decisões estratégicas regularmente matavam homens, mas sem que ela tivesse que vê-los. Mas tratava-se de peões de go, um jogo chinês de peões, luzes de uma luminária, que brilhavam e depois queimavam, substituídas por outras, tantas vezes quantas fossem necessárias. A realidade se impunha com brutalidade. Os homens que ela deveria matar eram, dessa vez, de carne e osso. De um sangue que corria, tão vermelho quanto o pássaro de Muspell.

Então pensou em seus pais que quase não conhecera. Em seus parentes ceifados pela lógica impiedosa da guerra.

"Nem bom, nem malévolo", concluiu ela amargamente em sua cabeça. "Apenas homens submetidos à vontade do Tengri, lutando para manter a vida..." Respirou fundo e abandonou seu esconderijo, com sua arma apontada para a frente. Como ela previra, os guardas reagiram muito tarde. Caíram fulminados.

O coração de Alyss batia forte. Ela precisou se apoiar contra a parede para não cair. Ela tinha feito. O cã ficaria orgulhoso dela se tivesse visto. Ela sorriu triste e abriu a porta.

- Você levou muito tempo - foi tudo o que disse o general Xamar.

- Sinto muito - respondeu secamente. - Eu desmaiei por causa do pássaro do otchigin.

O velho lhe fez uma careta. Ela balançou os ombros.

- Dê-me as armas - pediu Xamar. Alyss passou os dois fuzis tirados dos guardas que ela matara. O general as inspecionou e acionou os mecanismos.

- Perfeito!

- E agora?

Xamar trocou um olhar com o feiticeiro.

- Agora? Nós vamos tomar o controle da nave!

 

Rôlan correu em direção ao dormitório que abrigava os sobreviventes do Planeta Morte.

Ele estava de prontidão na porta do Templo quando Morgana surgira, transtornada.

- Tem alguém aí? Vocês estão aí? Morgana pareceu aliviada ao vê-lo.

- É importante, Rôlan. Descobri coisas terríveis! Em minhas visões, o general de Muspell escapou, matava todo mundo e se apossava do Destruidor de Ossos. Eu não consegui contatar Rymôr. Tente achá-lo, você tem que preveni-lo, diga-lhe isso. Corra!

Depois ela se trancou de novo no Templo. Rôlan não perdeu tempo. Ele sabia que as Frä Daüda tinham esse poder. E Mârk e Xâvier contaram sobre as façanhas de Morgana. Não, ele nem sonhara em duvidar dos temores de sua amiga. E se apressou.

Mas não em direção ao posto de pilotagem. Morgana havia dito que ele, o chefe da tripulação, não respondia. Como saber o que já poderia ter acontecido? O estagiário havia decidido pedir ajuda ao único homem a bordo em quem confiava: o comandante Brînx Vobranx. Ele saberia o que fazer!

Apesar de seus esforços, Alyss não conseguiu entrar em ação. Arrastava a perna atrás do otchigin, seguida pelo general em alerta. Parecia uma espectadora, jogada pelo público, contra a vontade, na arena. A jovem não sentia nem excitação nem alegria com a idéia de retomar a vantagem. Como era possível? Dois dias antes, ela ainda festejara ao ver as naves do Cão da Lua queimando.

Ela pensou de novo em Vrânken e descobriu com estupor que ele era a causa de sua apatia. Sabia que certas coisas haviam perdido a importância e que outras haviam adquirido valor.

De todo o coração, ela desejava que Vrânken não tivesse a má idéia de surgir na linha de tiro do general.

Foi sem fôlego que Rôlan apareceu no meio dos soldados do Planeta Morte.

- Comandante... uma coisa muito grave... uma ameaça contra... a nave...

- Acalme-se, Rôlan - começou dizendo-lhe Brînx Vobranx, fazendo-o sentar. - Bom, quando você estiver em condições, conte-nos o que aconteceu.

Uma dezena de homens que valiam por trinta e que formavam a guarnição embarcada no Destruidor de Ossos cercou o estagiário. Desde os combates no Planeta Morte, todos se consideravam iguais.

- Foi a adivinha do Destruidor de Ossos - resumiu Rôlan, logo que recuperou a respiração. - Ela viu o general e o feiticeiro tomando a nave. O chefe Rymôr está incomunicável. Ela me pediu para procurá-lo. Mas eu preferi vir aqui.

O rosto de Brînx ficou assombrado.

Isso nunca acabava! Os complôs eram sucedidos por batalhas, as más surpresas por golpes duros. Ele se sentia cansado, exausto mesmo. A ferida aberta nas entranhas da base imperial era mais grave do que pensava. Desde sua saída do Planeta Morte, só pensava em descansar. A idéia de rever sua mulher e seu filho e, enfim, poder abraçá-los era a última coisa que o mantinha e o empurrava para a luta. Sob as bandagens, a ferida doeu. Uma viva dor lhe atravessou a cabeça, ao mesmo tempo um terrível pressentimento: ele não veria o fim dessa viagem.

Gotas de suor correram de sua testa e entraram nos pêlos loiros de seu bigode.

- Tudo bem, capitão? - perguntou um de seus homens.

- Sim, tudo bem - respondeu Brînx Vobranx, fazendo um enorme esforço. - Temos armas?

- Apenas nossas pistolas.

- Elas nos serão úteis se a premonição da Frä Daüda estiver certa. Eu quero que voluntários me acompanhem até a cela dos prisioneiros.

Sem nenhuma hesitação, todos se colocaram atrás dele. Ele observou Rôlan que o olhava cheio de confiança.

- Então, feiticeiro, onde estamos?

- Meus sentidos estão perturbados. Eu não estou conseguindo me orientar.

O general franziu a sobrancelha. Os corredores mal iluminados da estranha embarcação eram todos iguais. A arquitetura das embarcações de Muspell era mais simples!

- Vire-se, devemos encontrar o caminho para o posto de pilotagem.

- Admitindo que consiga se apoderar da nave, o que você pretende fazer? - perguntou Alyss.

- Desmontar a nova artimanha do Cão da Lua.

- Pretende matá-lo?

- Matarei todos que se meterem na rota do cã.

Alyss não precisou olhar em seu rosto para saber do que ele seria capaz. Ela tentou imaginar a cena, Xamar atirando em Vrânken e ferindo-o gravemente. Ficou tomada pela emoção.

"Será possível se apaixonar tão facilmente assim por um homem que era seu maior adversário e que ela conhecia tão pouco?", espantava-se. Ela normalmente não abandonava seu lado racional, normalmente tão segura, se deixando levar pelos sentimentos. Sentimentos novos.

"Tem certeza de que você conhece ele tão pouco?", murmurou essa razão que a traía. "E de só ter provado, ao enfrentá-lo, ódio?"

Ela sentiu alguma coisa balançar. No seu mais profundo ser, alguma coisa lhe gritava que deixara de pertencer ao cã.

Ela se aproximou de Xamar.

- Não devemos matar o capitão...

Xamar a olhou com desdém.

- Por que isso?

- Isso não me agrada.

- Ora, ora - ironizou o general. - Teria o Cão da Lua fincado suas garras no coração do Polvo?

- Eu sempre disse ao cã que era um erro confiar às mulheres cargos importantes - cuspiu o otchigin. - Elas são fracas, muito submissas às suas emoções.

- Pouco importa o que você pensa das mulheres, cara. Eu disse que o Cão da Lua não deve morrer.

- No entanto - decidiu Xamar - é melhor para ele que morra. Ser entregue vivo ao cã é algo que eu não desejo a ninguém.

Considerando a discussão terminada, ele fez um sinal para o otchigin continuar. Mas ele não se moveu.

- O que está acontecendo? - murmurou Xamar.

- Alguém vem lá - anunciou o feiticeiro em voz baixa.

De fato, um barulho de passos pôde ser escutado. Um grupo de homens se aproximava pelo corredor perpendicular. O general e o feiticeiro se prepararam para o combate.

- Esses idiotas falam e caminham normalmente. Vamos nos beneficiar do efeito surpresa... Alyss! O que você está esperando?

A moça continuou parada em seu lugar, no meio do corredor, perto da interseção. Sua arma pendia, presa por uma correia em seu ombro. Ela olhou seus dois companheiros encostados na parede, de cada um dos lados do corredor. Ela viu os homens que chegavam.

Ela soube nesse instante preciso que iria fazer tremer o Tengri. Até ali, havia sempre obedecido aos seus caprichos, considerando que eles tinham força de lei. Mas, pela primeira vez, dispunha de uma certeza forte: ela sentia algo por Vrânken e não desejava perdê-lo. Mesmo se tivesse que pagar um alto preço pelo atrevimento.

Ela gritou:

- Não!

Praguejando, o general descarregou um primeiro cartucho em direção aos que chegavam. Os homens de Brînx, que haviam instintivamente reagido ao grito do Polvo, se protegeram. Eles responderam. O otchigin logo tombou, atingido na cabeça. Uma bala atingiu o braço do general, obrigando-o a largar sua arma. Rodeado pelos soldados, ele não teve outra escolha e se rendeu.

Alyss abriu os olhos que estavam fechados desde o início da troca de tiros. Ela não havia se mexido. Os tiros milagrosamente a pouparam.

Percebeu o feiticeiro estirado sem vida ali perto. O general, o rosto pálido, tinha o braço coberto de sangue.

Mais longe, uns homens feridos gemiam. Dois no chão nem se mexiam mais. Vrânken não fazia parte do grupo.

Tudo estava acabado. Alyss sentiu um enorme alívio.

Rôlan se jogou na direção do corpo de Brînx Vobranx crivado de balas. O comandante caminhava na frente de seus homens no momento da emboscada e recebera à queima-roupa a primeira descarga de Xamar. Ele respirava fracamente.

- Não se mexa, comandante - gemeu Rôlan, debruçado sobre ele. - O médico já vai chegar...

Brînx encontrou forças para levantar sua mão vermelha de sangue. Ele a colocou na face do estagiário.

- É inútil... é muito tarde... eu só lamento deixar meu filhinho apenas com a mãe... você foi como um filho, Rôlan... Como um filho para mim...

Seu braço caiu pesado e sua cabeça rolou para o lado. Rôlan se jogou sobre seu corpo sem vida e começou a chorar.

 

Algumas turbulências agitaram por um momento a nave que levava os prisioneiros a Kenningar. Frä Ülfidas apertou com mais força a mão de Mäthilde.

- Veja você, minha jovem, os generais-condes e as Frä Daüda trabalhavam juntos em outros tempos. Eles ofereceram um império a Nifhell. É hora de renovarmos a aliança.

- Aliança entre quem e quem? - respondeu Mäthilde em tom provocativo. - Eu só vejo uma senhora e duas garotas!

- Você tem e não tem razão. As adivinhas do alto de sua idade e de sua arte foram dispensadas do planeta e da galáxia, onde elas serviram aos interesses de Nifhell. Só sobraram em Urd algumas velhas professoras e suas alunas, mas nós representamos, e você representa, alguma coisa para Muspell e para Nifhell. Senão, por que estaríamos presas aqui?

- Admitindo isso, o que a senhora propõe?

- Eu proponho, Mäthilde, que nós comecemos a arrumar um jeito de sair daqui.

- Sair dessa prisão voadora? Ainda podemos ganhar - ironizou.

- Você pode continuar refém e mofar presa num montão de ferros-velhos, se quiser - respondeu Frä Ülfidas. - Quanto a mim, penso que o mais importante é não desistir. Lutar pela liberdade já é ser livre!

Mäthilde nada respondeu. A velha professora percebeu que a castigara com o seu discurso.

- Mas, Frä Ülfidas, como a senhora quer que saiamos de um lugar como esse? - perguntou Xändrine.

Elas passearam com o olhar pelos muros metálicos totalmente desprovidos de abertura.

- Conheço bem esse tipo de embarcação - disse, então, Mäthilde. - Meu pai possuía muitas. Nós estamos na parte que serve de estábulo. Ela só tem duas portas: a grande que abre para o exterior para embarcar os animais e a pequena que dá acesso ao cockpit. As duas são solidamente fechadas.

- Esqueçamos as portas - disse Frä Ülfidas. - Existem escaleres de salvamento a bordo?

- Pelo sangue dos espíritos, óbvio! - exclamou a menina. - Eu deveria ter pensado! Existe um ao lado das cabines e um desse lado. Estão ali atrás e são bloqueados por um código.

- Um código?

- Um código cifrado em números. O mesmo utilizado para se entrar em diferentes partes da nave. Mas nós não temos um computador para pirateá-lo!

- Não podemos arrombá-lo?

- Ele é concebido para resistir à força de um touro selvagem de Alsvin.

- Então falta-nos o código - concluiu Frä Ülfidas. - Bem... Mäthilde, eu te ordeno não nos atrapalhar. E você, Xändrine, me escute com atenção. Assim que chegarmos a Kenningar, os guerreiros de Muspell entrarão aqui. Eles serão obrigados a digitar o código para abrir uma das portas. Essa será a nossa oportunidade de descobri-lo.

- A senhora quer dizer, Frä Ülfidas - se assustou Xändrine -, que a senhora vai tentar ler esse futuro? Mas nós não dispomos de nenhuma fonte!

- Nós podemos nos virar sem uma fonte. As Frä Daüda são capazes de antecipar os acontecimentos. As noviças treinam freqüentemente jogando pingue-pongue ou tênis, não é mesmo?

- Esse tipo de previsão dura apenas alguns segundos! Isso não nos dá muito tempo de vantagem.

- Sim, é verdade, mas existe um meio. Dando-nos as mãos e nos concentrando suficientemente, podemos unir nossos pensamentos. Depois, uma após a outra, ligaremos nossas previsões, como se construíssemos uma escada degrau por degrau. Opa! Opa! Opa! É necessário irmos o mais longe possível. Você entendeu?

- Eu acho que sim.

A adivinha e a noviça se sentaram e deram as mãos

- Como no exercício - lançou Frä Ülfidas. - Eu começo. Você continua, eu recomeço e assim, sucessivamente, até que uma de nós consiga compor os códigos de comando.

Frä Ülfidas fechou os olhos e projetou seu espírito o mais longe possível no futuro. Imediatamente começou a transpirar grandes gotas.

Apoiando-se sobre essa parcela do futuro transformada em presente para esses dois espíritos reunidos, Xändrine, na sua vez, se lançou em direção ao porvir.

As Frä Daüda lentamente redirecionaram o tempo.

Xändrine teve a sensação de que não servia para grande coisa. Ela via Frä Ülfidas vacilar, indo e vindo em direção a esse futuro inatingível.

"E se eu errar a direção? E se eu não enxergar nada?"

Ela experimentava uma angústia terrível. Então, pensou em Morgana, que foi sua melhor amiga enquanto esteve em Urd. Isso lhe fez bem. Ela se sentiu mais forte ao imaginar sobre ela o olhar protetor da amiga.

A mão de sua vizinha arrepiou-se na sua. "Pelas folhas da árvore sagrada! E de novo comigo."

Ela mergulhou na visão de Frä Ülfidas e tomou o seu lugar.

Ela viu dois homens armados na frente de uma porta. Eles riam. Um deles tinha a mão no teclado de comando. O tempo ficou mais lento. Era muito cedo! O homem tocou a tecla 1. Depois a tecla 9. O tempo ficou mais lento ainda. Tecla 6. Tecla 7. E depois, nada mais. A cena se congelou como um quadro, antes de se esfumar e desaparecer. Frä Ülfidas não achou forças para continuar sua revelação.

Elas saíram pouco a pouco desse transe mudo, exaustas. Frä Ülfidas teve dificuldades de controlar o tremor em suas mãos.

- Você pôde ver o código?

- Eu... - respondeu Xändrine com uma voz insegura - havia uma mão que... eu pude ver quatro números somente.

Frä Ülfidas pousou seus olhos na sobrinha do general-conde, que assistia à cena sem compreender.

- Mäthilde. Quantos números tem o código da porta?

- Quatro. Sempre são quatro.

- Nós os temos.

Xändrine levantou a cabeça, radiante.

- Eu não sei como vocês fizeram isso - disse Mäthilde - mas vocês mandaram muito bem! Meu tio deveria ver isso.

- O mais difícil está por vir - respondeu Frä Ülfidas, enxugando sua testa com um lado de sua roupa. - Mas todas as três, nós conseguimos, não é mesmo?

As duas meninas responderam sorrindo.

Elas teclaram o código roubado do futuro. E a escotilha se abriu chiando.

- Sim! - exultou Xändrine.

Mäthilde a felicitou com um soco e depois ativou o exoescaler. Elas escorregaram para o seu interior.

- Eles não vão tentar nos perseguir? - se inquietou a noviça.

- Uma cápsula de salvamento - respondeu Mäthilde, maliciosa - é concebida para se afastar o mais rápido possível da nave. É útil em caso de explosão!

- Será que sabemos onde estamos?

- Segundo os sensores, Frä Ülfidas, nós sobrevoamos as florestas de Alsvin.

- Então não faltará um local onde possamos nos esconder. Alsvin é o condado mais selvagem de Nifhell.

- Depois de Skadi - retificou Mäthilde orgulhosa. - Atenção, partida iminente!

A cápsula de salvamento escapou da nave e tomou a direção do solo.

 

Uma voz ressoou no tubo acústico de paleocobre que ligava o posto de pilotagem ao Templo. Morgana correu.

- Você está aí, menina?

- Rymôr? Fico bem feliz em escutá-lo! Eu já tinha tentado chamar o senhor, não faz muito tempo, mas ninguém respondeu.

- Sinto muito, Morgana. Eu estava na sala das máquinas. Thôrn Tristrem estava preocupado por causa do Gôndül. Mas tudo está bem agora.

- E Rôlan? O senhor viu o Rôlan? É muito importante, ele...

A voz se fez mais convincente:

- Rôlan vai bem. Ele fez o que devia. O motim foi resolvido e graças a você.

Morgana suspirou aliviada.

- Foi atroz, Rymôr. O general matava todo mundo. E eu vi vocês no chão...

- Esse futuro não existe mais, esqueça-o. O general foi ferido, seu maldito feiticeiro morto e o Polvo retomou o caminho de sua cela. Diga-me uma coisa, como você se sente para continuar?

- Continuar? O senhor pergunta continuar no Templo? Mas claro! Eu prometi ao capitão.

- De acordo. Você sabe que é admirável?

- Hum, mais uma coisa, Rymôr: eu ficaria mais segura se alguém realmente ficasse no posto de pilotagem...

- Prometo - disse o gigante embaraçado. Depois o silêncio voltou ao Templo.

Morgana se sentou na borda da fonte e apoiou suas costas na árvore artificial. Ela deixou sua cabeça cair para trás. Seu olhar se perdeu nas folhas de polividro. Ela se divertiu acompanhando as nervuras finamente detalhadas.

Ela sentiu uma alegria profunda invadi-la. Sua visão havia salvo a nave. Ela não era mais uma simples noviça fascinada pelas revelações do futuro, mas uma adivinha capaz de utilizar seus dons de vidência. Frä Drümar ficaria muito orgulhosa dela! Claro, nada era simples. Ela não tinha mais uma professora para guiá-la e mostrar-lhe o caminho. Tinha que se virar sozinha.

Decidiu sondar o futuro sem intervalos. Não sabia por quanto tempo ficaria no Templo, deveria aproveitar. Ela dividiu o dia e a noite em períodos de trabalho. Dormir e comer ocuparia o resto de seu tempo. Programou um despertador e foi deitar em seu leito.

O alarme tirou a menina de um sono sem sonho. Teve dificuldades de acordar. Ela mordiscou uma fruta, depois se colocou perto da fonte. Nada de significativo aparecera ao longo de suas explorações. Bocejou e olhou de novo a superfície escura do metal.

Dessa vez algo de diferente aconteceu: a fonte começou a borbulhar. Morgana não teve tempo de reagir. Seu espírito foi atraído para o fundo.

Instintivamente, ela prendeu a respiração. O que ela via estava muito distanciado das visões que ela já tivera. Era muito mais forte.

Ela se encontrava no espaço, na imensidão dos Rochedos. Em sua frente rastejava uma entidade gigantesca. Uma coisa sem corpo, mas com uma forma de serpente. Era uma serpente. Longa como uma Via-Láctea, grande como uma galáxia, ondulava, e os planetas tremiam com sua passagem.

A noviça jamais conhecera um desses mas soube que se tratava de um Tumulto, de uma tempestade estelar, cujos turbilhões pareciam anéis de uma serpente. Ela percebeu o Destruidor de Ossos, minúsculo, aproximando-se em sua direção. A serpente abriu a boca, engoliu-o e retalhou-o, reduzindo-o a poeira.

Morgana fechou os olhos e gritou. Ela os abriu pensando estar no Templo. Como sempre, um grito era suficiente para interromper uma visão. Mas dessa vez nada mudou.

Seu espírito continuava lá, no espaço, no fundo da fonte borbulhante.

Ela começou a entrar em pânico.

Sentiu então uma presença ao seu lado, uma presença familiar e firme.

- Frä Drümar? - pensou sem acreditar.

- Sim, minha filha...

- É a senhora? Quer dizer: é realmente a senhora?

A voz que ela escutava em sua cabeça parecia muito com a de sua professora.

- Sou eu e não sou eu... Agora faço parte da fonte, Morgana... Assim que Brâg Svipdag me assassinou, meu sangue se misturou com o polimetal... Um pouco de mim sobreviveu e passou a freqüentar as portas do futuro...

A noviça começou a chorar. Sua imaginação a expunha a determinadas situações, mas ela não estava feliz. Frä Drümar fazia falta.

- Eu não pertenço a sua imaginação, minha filha... - disse a voz como se adivinhasse o que Morgana sentia. - Eu existo independente de você... mesmo que seja só para você... Infelizmente, não temos muito tempo para conversar... A nave vai em direção a um sério problema...

- A serpente! É verdade. É preciso que eu saia do meu transe e que avise Rymôr. A tempestade estelar vai triturar o Destruidor de Ossos!

- Inútil... Rymôr não tem nenhum controle sobre a nave... Quanto a Vrânken, ele não pode receber ninguém... o Gôndül é o único senhor dessa embarcação...

O desespero invadiu Morgana.

- Você quer dizer que estamos perdidos?

- Mas sempre existe uma solução para um problema... Você percebeu, queridinha, como a fonte da nave é diferente das da escola de Urd?...

- Sim. Ela é muito mais escura. É como se houvesse tinta preta no polimetal...

- E a árvore artificial?...

- Ela cerca com suas raízes uma haste de metal no lugar de um tronco de madeira.

- Muito bem...

Morgana teve a impressão de que o fantasma de Frä Drümar lhe sorria afetuosamente.

- Veja você, minha filha, a haste de metal prende o Templo à estrutura da nave... Quanto à substância negra misturada ao polimetal líquido, é o sangue do Gôndül... Graças à fonte, as adivinhas têm acesso direto à consciência do monstro...

- Então, Frä Drümar, nós podemos avisar o Gôndül da chegada do Tumulto?

- Sim , Morgana... mas esse é seu trabalho, só seu... Eu não posso agir no seu lugar... Eu agora pertenço à fonte... O sangue negro do Gôndül se misturou com o vermelho do meu no rico metal...

- Diga ao menos o que eu devo fazer!

- Deixe-se levar... Deixar-se levar. Para onde? Ela tentou fazer essa pergunta para a adivinha, mas ela evaporara.

Olhou em volta. Sob seus olhos, um rio surgiu do nada e começou a correr no meio das estrelas. Um rio viscoso, de águas negras. Sem pensar, ela se jogou lá dentro. Sentiu ser levada pela corrente. Depois, de repente, da mesma forma como aparecera, o curso de água desapareceu, deixando a noviça numa praia.

Ela se levantou. Sob seus pés, sentiu a textura estranha do chão. Era de couro. De couro macio e quente como uma pele.

Ela levantou a cabeça e conteve o grito: uma cara monstruosa, com dois olhos amarelos de forte brilho a encarava. Ela estava em frente ao Gôndül.

Ela se admirou de não sentir medo.

- Caro, ih... Gôndül! Senhor Destruidor de Ossos! Não sei como chamá-lo. Nem sei se você me entende. Eu me chamo Morgana e eu sou a sua Frä Daüda, enfim, a Frä Daüda da nave, que, hum... Bom, escute: é preciso que o senhor saiba que um Tumulto, uma serpente, uma tempestade estelar, se aproxima em grande velocidade do senhor! Era isso. Ela não sabia mais o que dizer. O monstro se agitou. Urrou. Depois seguiu em frente, derrubando a pobre Morgana que caiu como uma pedra no meio dos planetas e das estrelas.

- Eu só espero que o Gôndül tenha entendido o que lhe disse - murmurou.

E lhe pareceu que, antes de partir, o monstro abrira seu bico nojento e lhe sorrira.

No Templo, sentada na frente da fonte, a menina em transe tremia, seus olhos revolviam.

Thôrn Tristrem se segurou no púlpito da sala de máquinas para não cair. O Destruidor de Ossos havia feito uma terrível alteração de curso. O chefe dos mecânicos percebeu a embarcação ranger e gemer, como se estivesse revoltada com a sua sorte.

- Eu jamais teria obtido isso dos motores fotônicos - murmurou Thôrn. - É o animal...

Ele se aproximou de uma escotilha, mas não viu nada além de um escuro muito profundo. Era assim desde que o Gôndül havia mergulhado nos Rochedos.

- Espero que Vrânk ainda esteja no comando - disse para se tranqüilizar.

Mas no seu íntimo, ele estava persuadido do contrário.

 

- Está tudo bem, garoto?

Com as lágrimas escorrendo, Rôlan sentenciou.

- O pobre Brînx não teve chance! Mas ele foi corajoso. Sem a sua ação no comando dos homens do Planeta Morte, nós estaríamos em situação difícil.

Bumposh deu uns gritinhos em seu ombro, para restabelecer a ordem. Rymôr acalmou o cyber-rato com uma carícia. Depois passou a mão nos cabelos do garoto com sua grande mão e saiu da cabine dos estagiários. Ele não tinha tempo para ficar consolando-os: Thôrn Tristrem queria vê-lo de novo e isso parecia importante. O gigante havia marcado um encontro com o chefe dos mecânicos no posto de pilotagem, onde ficaria aguardando a voz de Morgana.

O barulho metálico de sua perna artificial ressoava longamente nos corredores. Rôlan segurou sua cabeça com as mãos e caiu de novo aos prantos.

- Xâvier e eu, nós estamos consternados - disse Mârk, saindo de seu leito para se sentar ao seu lado.

Xâvier estava de guarda na porta do Templo. Depois de tudo que acontecera, eles haviam decidido não relaxar a vigilância em volta da amiga.

- Obrigado, é... gentil - respondeu Rôlan soluçando.

- O comandante era da sua família?

- Não. Enfim, quase... - gaguejou Rôlan, ainda sentindo as dores do golpe. - Ele me considerava como um filho, me disse. Tenho meus pais em Nifhell. Mas não é igual... O comandante era alguém importante para mim, você entende?

Mârk balançou a cabeça.

- Eu não sou bom para falar. Morgana faria isso muito bem, Xâvier também. Mas eu compreendo o que você sente. Eu nunca conheci meus pais. Fui criado pelo meu avô. Eu o admiro muito. Eu gostaria que ele ficasse orgulhoso de mim!

Mârk nunca tivera a oportunidade de falar com alguém sobre seu avô. Ele sentiu a emoção dominá-lo. Sentiu um nó na garganta, suas pálpebras tremeram. Rôlan olhou para ele com um rosto de gratidão.

- Penso... que não somos bons oradores, você e eu. Mas estamos no mesmo barco. Obrigado, Mârk.

Estendeu a mão e Mârk a apertou longamente.

- Eu dei sorte de encontrar vocês três - continuou Rôlan. - Não ficarei só, apesar da morte do comandante.

- É para isso que servem os amigos - foi tudo o que Mârk conseguiu acrescentar. - Para não nos sentirmos sós...

- Você queria falar comigo, velho tratante - disse o chefe da tripulação para Thôrn Tristrem assim que ele entrou no posto de pilotagem. - Estou escutando!

O mecânico tinha um ar sombrio.

- Estou muito inquieto, Rymôr. Assim que o Destruidor de Ossos ficou louco, há pouco, achei que nós fôssemos morrer.

- Nós fomos sacudidos - relativizou o gigante. - Mas tudo já voltou ao normal.

Thôrn balançou a cabeça.

- É o mais grave. Fui fazer uma inspeção da estrutura, logo após. Ela está fissurada no interior, em muitos locais. Não resistiremos a outro movimento do mesmo tipo!

Rymôr suspirou. Ele teria preferido não escutar isso. Deu alguns passos e cocou furiosamente a bochecha.

- Bom, fale o que você tem para dizer.

- Nós já brincamos o suficiente com o fogo, Rymôr. Ninguém mais controla o curso dessa nave - reconheceu. - Não sabemos onde estamos nem para onde vamos. Estamos cegos, trancados numa prisão. Vamos nos desligar do Gôndül e retomar o controle da nave!

- Seria estúpido. Nós nem sabemos como o animal reagiria. E, depois, mesmo se conseguíssemos, nos encontraríamos perdidos nos Rochedos!

- É um risco que devemos correr, mas me parece melhor do que continuar desse jeito.

- E Vrânk?

- Nada nos garante que ainda viva.

Rymôr não respondeu. Ele já pensara, antes mesmo de ser questionado por Thôrn, em parar com essa experiência. Mas ele a rejeitara. Porque, ao contrário do mecânico, estava persuadido de que Vrânk estava no controle do Gôndül.

- Minha decisão já foi tomada, Thôrn - anunciou. - Nós continuamos. Eu penso que é melhor arriscarmo-nos a morrer mantendo a esperança de chegar a Nifhell a tempo, a continuar vivos e assistirmos, impotentes, à agonia do império.

Thôrn Tristrem olhou o gigante em silêncio.

- Tudo bem, Rymôr - se rendeu enfim. - Mas é você, e só você, o responsável pela decisão.

- Que saco, eu assumo toda a responsabilidade! Thôrn, meu amigo... Em dez anos de campanhas, o capitão já nos decepcionou?

- Não - reconheceu.

- Então - exclamou Rymôr, caminhando na direção da mesa e se jogando em uma das poltronas -, proponho decidirmos o destino dessa garrafa de aguardente de ameixa, desejando coragem e boa sorte ao seu proprietário!

O chefe dos mecânicos se alegrou de novo.

- Após isso tudo, talvez você tenha razão. Confiarmos em Vrânk, por que não? Em Vrânken de Xaintrailles, capitão do Destruidor de Ossos! - relaxou com fatalismo, levantando seu copo. - Aos Poderosos!

- Sim, velho tratante, aos Poderosos!

 

Atli Blodox saiu contrariado de sua tenda onde acabara de acontecer a cerimônia de contato entre os otchigins.

As novidades não eram boas. Os feiticeiros de Muspell não conseguiam, apesar dos esforços, entrar em contato com seu confrade capturado pelo Cão da Lua junto com o Polvo e o general Xamar. Antes de continuar o plano, era imperativo saber se a frota imperial saíra de seu setor.

A única informação positiva vinha da expedição que estava há cinco anos a caminho. Logo ela chegaria ao Planeta Morte! Os técnicos do canato poderiam restabelecer os Caminhos Brancos.

O cã chamou seu cavalo-serpente que, com um alegre assobio, trotou em sua direção. Com um movimento forte, Atli Blodox pulou em suas costas.

- Corra, meu fiel, voe! - murmurou-lhe na orelha. - Preciso sentir no rosto o carinho do vento.

Ele cavalgou longamente, sem destino, deixando seu espírito se libertar da pressão acumulada nos últimos dias.

Logo que se tornara cã, vinte anos antes, ele já tinha na cabeça a idéia maluca de que derrubaria a arrogância do império. Precisou de dois anos para impô-la e prepará-la.

Lembrava-se como se fosse ontem da partida da frota para Nifhell. Era noite. As torres de aço do astroporto, iluminadas, pareciam punhais apontados para as estrelas. Ele desafiara o Tengri e investira nos Rochedos, projetando sua audácia através do tempo e do espaço. Claro que não fora fácil. Muitas naves foram perdidas no meio das estrelas pelo golpe dos piratas, das tempestades e de perigos ainda maiores. Os soldados que tinham vinte anos, na partida, estavam quase com quarenta na chegada. Um dos cinco otchigins da armada morrera ao longo do trajeto. Mas a operação Sangue Rosado havia continuado e, treze anos mais tarde, especialistas formados em mecânica complexa dos Caminhos Brancos, acompanhados pelos mais hábeis técnicos da época, foram lançados nos abismos para se encontrarem com a História.

Agora, as peças do fabuloso quebra-cabeça, enfim, tomavam forma. O Polvo capturara o Cão da Lua em sua rede. O almirante Gulax, brilhante oficial e notável estrategista, em posição confortável, colocava suas cartas sobre a mesa redonda dos generais-condes. A frota do império, por orgulho, certamente já partira para se perder nos Rochedos. Enfim, os Caminhos Brancos seriam reativados e Muspell poderia enviar para Nifhell uma armada de ocupação digna de seu nome. Ele mesmo, Atli Blodox, seria consagrado cã dos cãs, e o sistema solar de Drasill inteiro se curvaria diante de sua autoridade!

Seu passeio continuou no meio de um rebanho de zoghs. Ele acalmou a marcha de sua montaria para não assustar as cabras marrons. Dois cães-leões enormes que pastoreavam os animais vieram rugindo em sua direção. Ele os acalmou com sua voz grave. Depois, avistando as tendas de feltro ao abrigo do vento, atrás de um muro de pedras, colocou seus pés na terra.

Os criadores o receberam com simplicidade e lhe ofereceram um pouco de leite ainda quente, que ele bebeu com prazer. Não precisou se apresentar: seus olhos cinzentos luminosos, o pássaro vermelho tatuado no torso, atravessado por uma longa cicatriz branca, eram conhecidos de todos. Mas, na rudeza da estepe, um homem era um homem, nem mais nem menos.

O cã falou com eles sobre a primeira chuva, que fora abundante, e da qualidade da lã, melhor do que nunca esse ano. Ele viu nisso um bom presságio. Felicitou o chefe do clã pela beleza das meninas e pelo vigor das crianças. E rezou com eles para Tengri continuar favorecendo-os. Depois montou em seu cavalo-serpente e tomou o caminho de seu acampamento. O combate ainda não terminara. Ele nunca acabava, em Muspell

O general-conde Arvâk Augentyr havia saído da capital após a invasão. Sua esposa, Lëna, não precisou rezar muito para segui-lo: corriam rumores horríveis sobre a selvageria dos guerreiros de Muspell.

Os dois se refugiaram no condado de Skadi, onde Arvâk estava no comando. Eles possuíam uma confortável casa.

O general-conde, empurrado pelos mais inquietos de seus amigos, tivera, ao chegar, que combater certos caprichos. A província, bem montanhosa, se prestava admiravelmente bem à resistência! Mas uma convocação do comando de Muspell para vigiar o condado acalmara-o rapidamente. O general-conde tinha ficado-aliviado que sua sobrinha, Mäthilde, figurasse entre as reféns exigidas pelo almirante Gulax. Não seria esse um bom argumento para não seguir os planos de seus amigos?

Quanto a Lëna, que não parará de temer por Xâvier e fazia transmitir novidades cotidianas ao Planeta Morte, agora ela se felicitava que seu filho estivesse a bordo de uma nave no fim da galáxia. Lá, ao menos, ele estava em segurança.

A cápsula de salvamento do Spartacus, programada para aterrissar em zonas habitadas, pousou com o chiado de seu estridente motorzinho fotônico perto de uma cidade-serraria equipada por um minúsculo espaço-porto. Alsvin era um condado florestal e tirava o essencial de seus recursos econômicos do comércio de madeira.

Como Mäthilde previra, a nave mãe não viera atrás deles.

- E agora? - perguntou Xändrine saindo da embarcação.

- Vamos nos afastar da cápsula de salvamento - propôs Mäthilde. - Ela sem dúvida deve ter um localizador.

- Dizem que Alsvin é cheio de feras - acrescentou Xändrine olhando em volta.

Sob imensas e cerradas árvores, a escuridão era inquietante. O local onde a cápsula de salvamento quebrara os galhos parecia um poço com pouca luz.

- Nós certamente acharemos uma nave no povoado - disse Frä Ülfidas. - Em todo o caso, nós ficaremos seguras. Eu duvido que os guerreiros do cã já tenham chegado até aqui. E depois temos que encontrar um esconderijo. Um esconderijo de onde continuar a nossa luta!

- A senhora pretende desafiar Muspell?

A voz de Mäthilde não tinha nada de irônica.

- Por que não? Tivemos sucesso em nossa fuga, e você pensou que era impossível.

- A senhora tem alguma idéia na cabeça, imagino.

- Correto! Mas para colocá-la em prática precisamos de um esconderijo seguro com uma tecnoantena. O ideal seria podermos contar igualmente com uma fonte sagrada! Mas é bom não esperar muito...

- Eu conheço uma estação poliesportiva pouco procurada no coração das montanhas de Skadi... ela possui uma antena e uma fonte - disse Mäthilde, após pensar um pouco.

- É mesmo? Isso será formidável! - empolgou-se a velha senhora.

- Nós podemos conversar sobre isso tudo no caminho, não? - disse Xändrine, apressada para sair dali.

Frä Ülfidas topou. Ela rezou para a árvore sagrada: seu plano era ambicioso e elas precisariam de todo o apoio possível.

 

Morgana caía na penumbra do espaço. Os astros que ela percebia em seu redor apareciam e desapareciam, lhe eram totalmente desconhecidos.

"Os Rochedos não têm nem começo nem fim", disse a si mesma amargamente. "Eu estou condenada a ir a lugar nenhum."

Ao virar a cabeça, percebeu um ramo pendurado no céu. Um ramo de árvore que a acompanhava em sua degringolada. Sem se espantar nem refletir, ela o agarrou. O universo parou de mover e ela então cessou de cair.

Surpresa, fechou os olhos.

Assim que os abriu, um vasto mar, infinito, enchia o vazio do espaço. Em suas margens havia algumas árvores em uma vegetação rasteira. Morgana se alegrou. Ela deu alguns passos e ficou aliviada em sentir, enfim, algo sob seus pés.

Percebeu uma velha que vinha em sua direção. Ela vestia um manto preto que a cobria inteiramente. Tinha o rosto desalinhado pelas rugas, uma mecha de cabelos grisalhos e olhos brancos.

- Estou feliz de ver alguém - disse alegremente Morgana que, apesar de tudo, preferiria uma companhia menos sinistra.

A velha colocou sob seus lábios um longo dedo ossudo, para exigir silêncio.

- Sou eu que falo - murmurou ela com uma voz assobiada. - Você não existe, então como pode falar?

Ela fez um gesto em sua direção. Morgana se segurou para não berrar de terror: suas roupas viravam poeira. E sob elas, não havia mais carne... Ela virará um esqueleto! Ela conservara apenas seu coração, que palpitava, vermelho, no meio das costelas, e seus olhos brancos em suas órbitas! A jovem se transformara num esqueleto mas podia ver, andar e pensar.

A velha sorriu, revelando uma boca sem dentes.

- Veja o melhor! Sentimo-nos mais importantes quando estamos nus. Mas você não deverá se atrasar, pequena. Conheço alguns espíritos que não gostam de ser incomodados.

Assim que ela pronunciou essas palavras, tentáculos de um monstro surgiram das profundezas do mar.

Morgana começou a correr. Escutou atrás dela um relincho. Um cavalo de pêlo de espuma com um chifre de madre pérola que brilhava na testa a ultrapassou a galope. Instintivamente, ela se agarrou em sua crina e se deixou levar numa corrida louca. Ela só o largou quando se afastou do monstro surgido das ondas.

Na sua frente, uma ponte saía da margem e se elevava sobre o mar. Ela se aproximou e viu que era feita de fumaça. "Agora que eu sou um esqueleto", pensou, "não peso muito. Essa ponte deverá suportar o meu peso!"

Avançou sobre a ponte.

O primeiro ser que ela encontrou foi um corvo, que investiu sobre ela, depois se afastou no céu grasnando. Ela achou por um instante que ele queria derrubá-la.

Adiante, uma raposa lhe barrou o caminho mostrando os dentes. Ela não mostrou nenhuma vontade de desaparecer.

- Então, raposa - gritou uma voz atrás dela -, deixe a menina em paz!

Morgana viu uma outra velha, vestida com a mesma roupa da primeira, mas numa versão vermelha.

- Obrigada, senhora - disse ela. - Eu...

A velha pôs um dedo em frente a sua boca.

- Só as coisas que o coração estabelece têm o direito de falar.

Ela fez um gesto e Morgana sentiu uma dor em seu peito. Ela olhou em seu interior, entre os ossos: seu coração havia desaparecido! A velha o tinha em suas mãos. Esfregou-o com uma parte de sua roupa. Para terminar, ela o soprou, se aproximou da jovem e colocou-o em seu lugar.

- Agora está bom! Você vai andar melhor com um coração novo. Mas deverá continuar o seu caminho. Os espíritos do mau humor podem ser algumas vezes maldosos.

Morgana se virou e descobriu um enorme sapo que avançava pesado em sua direção, com um olhar tenebroso. Ela fugiu correndo.

Do outro lado da ponte se erguia um templo, no alto de uma colina. Em frente à entrada principal, sentada numa pedra, uma terceira velha a esperava, vestida em seu grande manto branco.

Morgana subiu em sua direção com passos enérgicos. Assim que chegou, foi tomada pela raiva. Ela colocou uma de suas mãos esqueléticas no quadril e a outra ela apontou em direção à idosa senhora.

- Sim, eu sei, a senhora vai dizer que eu não devo falar! Mas eu tenho o direito de saber o que está acontecendo comigo, não?

A velha começou a rir e respondeu.

- Ainda é um pouco cedo para falar - disse com uma voz carinhosa. - Mas você tem o direito de saber. Para isso, basta ter um outro olhar sobre tudo a sua volta.

Com suas unhas tortas ela cravou os olhos de Morgana.

A jovem berrou. Ela sentiu o sangue correr pelos ossos de seu rosto. A velha pegou em seu bolso duas bilhas de metal e lhe colocou nas órbitas, no lugar dos olhos. Morgana desmaiou.

 

Vrânken percebeu uma mudança no comportamento do Gôndül. Poderia dizer que o monstro enfraquecia seu comportamento.

O capitão era incapaz de dizer quanto tempo passara depois que ele se fundira com o animal. Não comia nem bebia há uma eternidade. Ele se sentia terrivelmente fraco. Sem o sangue do Gôndül que corria em suas veias e o alimentava de uma energia inumana, ele não teria resistido tanto.

Seu espírito esteve algumas vezes misturado no crânio monstruoso e ele havia visto e sentido coisas espantosas. Em um estado de alucinação absoluta, pronunciava fragmentos de poemas, escritos pelos mais líricos dos homens que haviam, como ele, cavalgado um Gôndül. Suas palavras ganhavam um novo sentido:

"Eu seduzi uma fera de grandes escamas com cem cabeças; um duro combate embaixo da raiz de sua língua, um outro em sua nuca, um sapo negro fendido, de cem garras, uma serpente salpicada na crista... Logo fui a Eridan, onde se precipitavam as estrelas para uma grande batalha; Achernar na linha de frente bateu um exército furioso, Acamar se ergueu na cerca, Zaurac parou um mar barulhento, Cursa não recuou; Drasill apesar de seu grande desejo foi armado atrasado, não por causa de sua covardia mas por causa de sua grandeza... Estive, enfim, sob múltiplas formas antes de ser libertado; fui gota d'água no ar, fui a mais ardente das estrelas, fui o mestre dos Rochedos, graças à fera transformada por nove mil anos em água, em espuma, banhada no fogo..."

Uma vez, quando ele olhava pelos olhos do Gôndül, achou ter visto flutuando em sua frente o espectro translúcido de Morgana, a jovem noviça. Ela enfrentava uma serpente. A serpente salpicada dos poemas? Ele sentiu alegria ao vê-la sorrindo para ele. Depois interrompeu seu curso, num breve instante, para esquadrinhar os Rochedos. Ainda bem: estava indo direto contra um Tumulto que o teria destruído como uma bola no chão entre os cyberdedos. Ele bruscamente desviou para contornar a tempestade. Passou tão perto que ele sentiu suas costas rangendo.

O animal reduziu sua velocidade, Vrânken estava mais seguro. Com as vibrações familiares que agitavam o chifre do Gôndül, ele percebeu que eles chegavam nas cercanias de Nifhell. Relaxou. Como gostaria de dormir! Era necessário tomar o controle do Destruidor de Ossos e passá-lo para as máquinas de Thôrn Tristrem.

Ele aproximou seus lábios do microfone e murmurou com uma voz quase inaudível:

- Eu te meto a rédea, oh, sombrio corcel... Que o repouso te acorrente... Que o sono te prenda... Até a próxima jornada...

Dessa vez ele não precisou gritar. O Destruidor de Ossos parou instantaneamente.

Obediente ao seu amo e irmão de sangue, o Gôndül gritou uma última vez. Depois seus grandes olhos amarelos se fecharam. O couro de sua pele que recobria o metal da nave voltou a ser duro e seco. A cabeça monstruosa endureceu e coagulou com uma expressão terrível.

Os sangues pararam de se misturar e as sondas de paleocobre se desligaram sozinhas dos braços de Vrânken.

Ele se levantou cambaleando de sua poltrona. Lá onde ele ficara sentado, o couro conservava a marca de um corpo que pesava toneladas. Ele se apoiou nas costas da poltrona de oricalco. Num turbilhão de pensamentos que o tomavam, o rosto de Alyss traçou um caminho. Vrânken se agarrou a essa imagem como a bóia salva-vidas.

Ele encontrou energia para sair, apoiando-se nas paredes. Tateando, descobriu a fechadura e apertou o botão que desencadeava a abertura. O painel rangeu, liberando a passagem. Ele deu um passo. O painel rangendo se fechou atrás dele. Chegando no limite de suas forças, o capitão caiu sobre as placas de metal.

Assim que o Destruidor de Ossos parou, Rymôr soube imediatamente que o comando do Gôndül chegara ao fim. Ele escutou os motores fotônicos entrando em ação. Um a um, os instrumentos de navegação se iluminaram. A luz acabara de voltar.

O gigante piscou os olhos e se aproximou do painel de vidro. O exterior deixara de ser uma noite escura impenetrável. O gigante reconheceu, atrás do domo, os muitos asteróides de Völa, assinalando que Nifhell estava próximo.

- Sangue de bom sangue! - gritou Rymôr. - Vrânk conseguiu! Você escutou, Bumposh? O sagrado cabeça de mula conseguiu!

Uma lágrima escorreu de sua pálpebra. O cyber-rato se manifestou barulhentamente, como se dividisse a alegria de seu dono.

Um tecnofone soou. Surpreso, Rymôr não respondeu imediatamente. Ele estava habituado ao silêncio da técnica!

- Chefe! - disse um marinheiro. - Acabamos de encontrar o capitão em um corredor na proa. Ele está inconsciente.

- Pelo chifre do Gôndül! Avise ao médico imediatamente e leve-o para a enfermaria. Já estou chegando.

Rymôr não saiu na mesma hora do posto de pilotagem. Ele chamou Thôrn Tristem na sala de máquinas.

- Thôrn? Bode velho! As coisas vão bem?

- Os motores roncam, os níveis energéticos são bons. Digamos que o Destruidor de Ossos voltou a ser ele mesmo, Rymôr. Não te escondo que estou contente!

- Eu também, se é que você acredita - resmungou o gigante. - Bom, fiquemos na encolha por alguns instantes. Nós estamos perto de Nifhell, em Völa. Apague tudo o que possa acusar a nossa presença.

Ele colocou o tecnofone ao lado do leme e se alegrou. Morgana já poderia aparecer a qualquer momento! Ele a chamou pelo tubo acústico:

- Vou sair mas levarei o meu tecnofone! Ele já voltou a funcionar!

Ele se espantou de não ter nenhuma resposta. Mas a vontade de ir se encontrar com Vrânken era mais forte que o seu espanto; balançou os ombros. A menina talvez dormisse. Em todo caso, seus amigos estagiários nunca estavam muito longe. Se houvesse um problema, logo ele saberia.

Desceu a escada o mais rápido que sua perna de polimetal permitiu.

 

Morgana foi acordada por um rangido comum.

Ao se espreguiçar, foi de encontro ao ferro de uma parede. Com o choque, reencontrou imediatamente seu espírito. Lembrou de tudo e se aprumou gritando.

Começou por tatear seu corpo febrilmente. Ele voltara ao normal. Não era mais um esqueleto! Ela colocou sua mão no coração e escutou seus batimentos. Enfim, tocou seus dedos tremendo em suas pálpebras. Seus olhos ainda estavam lá...

Levantou-se e olhou em volta. Ela se encontrava no interior de um estranho berço de ferro, suspenso num galho de uma árvore gigantesca. Ela levantou a cabeça: os galhos se perdiam nas estrelas. Debruçou-se sobre o berço: o tronco desaparecia nas profundezas do espaço.

Procurou em seguida de onde vinha o rangido, então percebeu que o berço mexia, embalado pelas mãos ossudas de três velhas senhoras.

- Os Poderosos! - exclamou ela sem refletir.

- Nós tínhamos razão, minhas irmãs, de tomar conta dela - disse a velha de manto negro. - Vocês viram como ela se comporta direito? Eu vi a menina sair do nada... - continuou ela recitando de forma monótona. - Um cavalo-marinho a seguia... Ele mancava, o pé ferido, tão branco como a neve brilhante, trazendo na testa um chifre de prata... Eu vi o kraken vir ao seu encontro, fez tremer a margem de assombro... Pegue lá, cavalo-marinho, você descansará amanhã! Despi a menina e ela ficou ligeira como o vento... Vi seus pés nus correndo na areia até o ponto da bruma...

- Dormia docemente quando escutei o pássaro chamando... - continuou a velha de vermelho. - Velho corvo marinho, vai-te, você não pode fazer um banquete de carne com um esqueleto! Depois a raposa farejou seu coração, era o coração de uma perdida... Então eu a peguei e a limpei... E você, sapo, o que você fazia na bruma, ávido pelas almas de passagem?

- Quando o sol se põe, quando o mar sobe, eu espero na soleira do templo... - terminou a velha de manto branco. - Quando não me procuram, me acham, e quando me procuram, não me acham... Pouco importa o que acontecerá, o que tiver de ser será... Tirei seus olhos para lhe dar novos...

- O que é esse dialeto? - perguntou Morgana, acanhada, assim que as velhas se calaram.

- Você morreu e nasceu de novo.

- Você é a mesma e você é uma outra.

- Você, agora, tem o poder de viajar na busca da unidade. Elas balançaram o berço. Morgana perdeu o equilíbrio e caiu.

Uma após a outra, as três velhas se debruçaram sobre ela.

- Eu que te deixei nua - disse a de negro -, te ofereço teu espírito-guardião: o cavalo-marinho te escolheu, ele te acompanhará nas esferas.

- Eu que te limpei o coração - disse a de vermelho -, te ofereço um colar de pérolas de vidro que te ajudará nas viagens estelares.

- Eu que te ofereci teus olhos - disse a de branco -, te ofereço um nome secreto. Ao pronunciar um nome, uma realidade será criada: todos os nomes se referem a alguma coisa! Os Poderosos te conhecerão doravante pelo nome de Wijven. Wijven das pérolas de vidro.

Depois elas desapareceram e Morgana ficou só.

"Que sonho estranho", pensou ao se deitar no fundo do berço de ferro. "E parecia tão real! Eu realmente tive a impressão de ser um esqueleto. E quando a velha me arrancou os olhos, brr! Será que os Poderosos parecem com isso? Três idosas senhoras enrugadas e curvadas? Os textos sagrados das Frä Daüda dizem que as primeiras adivinhas eram três, que elas não previam o futuro mas o decidiam. Quanto aos espíritos, os mesmos textos não falavam muito. Era mais na tradição dos otchigins que se podia encontrá-los. Agora refletindo, eu nunca escutei Frä Ülfidas nem Frä Drümar falarem desse tipo de sonho!"

Um pouco mais tarde, ela tentou dormir, tentando se convencer de que acordaria no Templo do Destruidor de Ossos.

Mas o sono não veio e a menina sentiu a inércia pesar. Ela não passaria o resto de sua vida num berço!

Subiu na borda e se pendurou no galho que sustentava o berço. Ela se ergueu. Depois, prudentemente pois o vazio embaixo era infinito, ela subiu em direção ao tronco. Cair de novo não lhe dizia nada.

"Então, para cima ou para baixo?"

Achou que para baixo era mais fácil. Ela se deixou escorregar ao longo do tronco da imensa árvore.

 

- Morgana? Morgana, tudo bem?

Mârk bateu com mais força na porta do Templo.

- Chegamos, a nave parou - disse Xâvier. - Por que ela não sai?

- Talvez ela esteja dormindo - chutou Rôlan.

- As batidas a teriam despertado - respondeu Xâvier.

- Quando tomamos conta de Mârk, na enfermaria, ela se levantava ao menor movimento.

A preocupação que reunira os três na porta do Templo aumentava. A menina se habituara a vir regularmente bater à porta, em sinal de amizade, a quem estivesse de guarda do outro lado, que se apressava em responder para tranqüilizá-la. Seu silêncio depois de algumas horas deixara seus amigos preocupados.

- O que vamos fazer?

- Deveríamos ver Rymôr. Talvez ele tenha novidades...

- E quem vai?

- Vão vocês dois - suspirou Mârk. - Eu não me sinto bem para correr até o outro lado da nave. E depois alguém tem que ficar, caso ela decida sair.

Xâvier e Rôlan logo dispararam pelos corredores.

Rymôr estava sentado na cabeceira de seu capitão, que acabara de recuperar a consciência. Ele tinha a mão de Vrânken entre as suas grandes patas. Via-se em seu rosto a infelicidade.

- O capitão está num estado de fraqueza extrema - preveniu o médico. - Ele não poderá sair dessa cama antes de algumas semanas.

De fato, Vrânken não tinha uma boa cara. Seus traços estavam tensos, ele estava assustadoramente pálido.

- Sangue bom, Vrânk, o que você fez? - lamentava-se o gigante.

- Eu fiz o meu dever, velho, nada mais do que o meu dever.

Rymôr teve que aproximar a orelha para entender a continuação do murmúrio.

- Diga-me... Onde nós chegamos?

- Estamos nas portas de Nifhell, Vrânk, no meio de Völa.

Vrânken abriu um tímido sorriso.

- Então conseguimos?

- Sim, Vrânk, você conseguiu. Mas a que preço...

- Pouco importa o preço, meu velho amigo. Tudo se paga, você bem sabe, você que hoje anda com uma perna mecânica! Os Poderosos me solicitam hoje uma obrigação, estou pronto...

Ele fechou os olhos. Com um sinal do médico, Rymôr se levantou e se afastou da cama onde estava seu amigo.

- Nosso capitão precisa de repouso, de muito repouso - disse o homem acompanhando o gigante até a porta. - Eu vou te manter informado de seus progressos.

Rymôr fechou de tal forma o punho que as juntas ficaram brancas. Eles estavam bem adiantados! Mas de que adiantaria ter escapado da armadilha diabólica do cã, se Vrânken não estava em condições de organizar o contra-ataque?

Rymôr escutou o barulho de uma correria. Rôlan e Xâvier surgiram em sua frente, completamente sem fôlego.

- Uf... Chefe... Nós o procuramos há horas!

- No refeitório disseram... que você estava aqui.

- E aí, vocês me encontraram - disse Rymôr. - O que de tão importante vocês têm para me dizer?

- É Morgana... - resmungou Rôlan. - Estamos com medo que algo tenha acontecido com ela.

- Morgana?

Então o gigante se lembrou do silêncio da noviça no tubo acústico.

- Sim - continuou Xâvier. - Ela não responde quando batemos à porta.

Ele se prontificou em garantir ao menino que ela certamente deveria estar dormindo quando o cyber-rato subiu em seu ombro e olhou fixo para Xâvier com seu olho negro.

- Diga-me, Bumposh - murmurou Rymôr dirigindo-se ao animal -, o que você quer?

Bumposh soltou um pequeno grito. Seu amo colou seu rosto contra ele.

- Você acredita mesmo? - respondeu ele a uma afirmação muda. - Minha fé, por que não! Sim, isso pode funcionar.

Os dois estagiários olharam o chefe da tripulação, embaraçados.

- Você disse alguma coisa, chefe? - ousou Xâvier.

- Nada!

Um enorme sorriso abriu-se em seu rosto.

- Bom, vamos nos ocupar de Morgana - continuou, procurando algo em seu bolso.

Ele pegou uma chave e entregou para Rôlan.

- Com isso vocês poderão entrar no Templo. Mas, na minha opinião, você encontrará Morgana dormindo tranqüilamente.

- A chave de Brâg Svipdag! - exclamou Xâvier.

- Eu a tirei de seu cadáver.

O garoto fez uma careta.

- O senhor não vem conosco, chefe? - se inquietou Rôlan.

- Não vamos com você - corrigiu Rymôr. - O Xâvier fica comigo. Eu preciso da ajuda dele para um trabalho importante.

Xâvier olhou para ele com um olhar surpreso.

- Em caso de problema, me chame - concluiu o gigante, jogando um tecnofone para Rôlan.

Sem esperar sua reação, Rymôr pegou autoritariamente Xâvier pelo ombro e deu meia-volta.

Rôlan olhou a chave e o tecnofone. Cocou a testa, suspirou e, desistindo de compreender, tomou a direção do Templo onde Mârk o esperava.

"Os homens não devem saber, ninguém deve saber", re-capitulou Rymôr para ele mesmo. "Oficialmente, Vrânken será o comandante. Sozinho, impossível blefar. Mas pelo chifre de Gôndül, Bumposh tinha razão: eu não estou só! Eu tenho um estrategista comigo..."

O colosso abriu bruscamente a porta da enfermaria.

- Doutor? É preciso que o senhor se isole. O estado do capitão deve ser um segredo. É uma ordem! Se escutar algum rumor, eu lhe arranco a língua e dou para o meu rato comer.

Satisfeito, Rymôr saiu do local, deixando o médico abobalhado.

- Agora, meu garoto, siga-me - disse para Xâvier.

Através da pequena escotilha de sua cela, Alyss percebeu os asteróides de Völa. Ela logo entendeu que Vrânken havia conseguido: com um incrível passe de mágica, o Destruidor de Ossos voltara para Nifhell! Ela sorriu, fazendo pouco caso dela mesma. Ela havia de fato muitas vezes sonhado com a sua chegada no planeta do império. Nunca como prisioneira!

As paredes do local onde a trancaram após o fiasco do motim eram nuas e um colchão de palha era a única mobília. Sentiu falta da cabine do capitão. Não só pelo conforto. Mas nesse exato momento ela gostaria de deitar no leito de Vrânken.

Então ela pôde fechar os olhos e não mais pensar, não mais pensar no fracasso de sua missão, nem na raiva do cã...

 

O almirante Njal Gulax contemplava o oceano. Ele não se cansava. Cada vez que podia, deixava o palácio onde instalara seu quartel-general para caminhar pela praia fora da cidade. Acompanhava com o olhar os pássaros do mar que pousavam na crista verde das ondas e sorria como um garoto vendo essa acrobacia, no meio da espuma que aparecia quando as ondas quebravam. Toda essa água o fascinava. As nuvens negras, levadas pelo vento que zunia, o fizeram levantar a cabeça e escorregar as mãos no bolso de sua capa. Se não fosse pelo frio com o qual não se habituava, teria prazer de terminar seus dias em Nifhell.

Um alarme estridente perturbou seu sonho. Ele voltou para seu veículo a passos largos.

- Almirante Gulax, escuto.

- Os otchigins localizaram a fugitiva, almirante - escutou em seu tecnofone.

- Excelente! Já estou indo. Njal Gulax saiu e tomou a direção de Kenningar. Enfim ele iria poder retomar a situação. A resistência até ali era esporádica e dispersa. Mas, após alguns dias, ela começou a se organizar e a se reforçar sob o impulso de um misterioso Spartacus. Muspell perdera uma embarcação em um ataque num astroporto e uma esquadra de guerreiros do cã caíra, na véspera, em uma emboscada perfeitamente preparada. O almirante rapidamente havia estabelecido uma ligação entre a fuga da feiticeira Frä Daüda e o avanço rebelde. A cronologia dos eventos batia. Ele então dera como missão principal aos otchigins reencontrar a fugitiva. Os xamãs pareciam ter conseguido.

- Os patriotas de Vermal se reagruparam - anunciou triunfalmente Mäthilde, entrando na sala de festas da estação perdida onde elas haviam instalado seu acampamento. - Eles prevêem uma ação iminente contra as fábricas de tratamento mineral.

- Bravo! - alegrou-se Frä Ülfidas. - O futuro é claro: a operação será um sucesso...

Após ter convencido os responsáveis pela cidade serraria a emprestar uma nave, as fugitivas voaram para Skadi.

O trajeto fora difícil, pois apenas Mäthilde sabia pilotar. Felizmente, era uma menina forte, resistente à fadiga. Para evitar os radares, teve que voar muito baixo, o que prolongou a viagem. Mas assim que elas chegaram no astroporto da estação abandonada, Frä Ülfidas felicitou-se por ter confiado em Mäthilde.

A velha estação poliesportiva fora construída no pico de uma alta montanha nevada em frente ao levante. Outras montanhas, menos altas, formavam um circo em contrabaixo. Para melhor resistir ao vento, a estação dava as costas para uma barreira rochosa e tinha um perfil quase que invisível. Somente a tecnoantena, que ligava esse local ao resto do planeta, sobressaía.

Os prédios, perfeitamente integrados à paisagem, compreendiam uma parte das moradias, uma outra comunidade e três sólidos hangares que serviram, no passado, para a logística de seu funcionamento.

O conjunto, bem deteriorado, ainda era acolhedor. Só o material mais caro fora levado embora.

- Por que abandonaram esse lugar com tanta pressa? - espantou-se a adivinha.

- A estação empregava os serviços de uma Frä Daüda - explicou Mäthilde. - Ela era responsável em prever a meteorologia e antecipar as avalanches. No curso de uma visão, a adivinha viu os prédios sendo destruídos pelo fogo. Ela não soube situar quando a catástrofe aconteceria e nem mesmo dar maiores explicações, mas o proprietário não quis correr riscos.

- E como você sabe isso? - perguntou Xändrine.

- O proprietário era o meu tio!

O rádio da nave, alimentado por baterias fotônicas, foi ligado à tecnoantena. O pequeno templo da antiga Frä Daüda foi limpo. Elas transportaram camas para o salão de festas, único aposento que possuía uma lareira e que podia ser aquecido. Os alimentos embarcados em Alsvin foram deixados ao ar livre.

Depois, a idéia da velha adivinha ganhou corpo. Sob o nome de código de Spartacus - em homenagem à nave-prisão! - Mäthilde e Frä Ülfidas inundaram a rede de comunicação com apelos à resistência. Os retornos foram instantâneos e numerosos, como se eles respondessem a uma longa espera. Usando palavras cifradas, a jovem e a adivinha insinuaram que as Frä Daüda eram a cabeça da revolta, em companhia de membros da nobreza.

Esse último argumento chamou a atenção dos generais-condes, preocupados em não perder inteiramente a iniciativa. Na falta de Egîl Skinir, preso em Kenningar, Rân Gragass assumira a chefia do conselho. Para proteger a população, esse homem prudente havia tomado a decisão de publicamente desaprovar os atos de resistência e de ajudá-los na clandestinidade. Foi assim que Rân Gragass não tardou a declarar, privadamente, sua simpatia pelo misterioso Spartacus.

Enfim, a utilização da fonte sagrada permitiu apoiar diversos atos de resistência audaciosos e, logo, ninguém pôs em dúvida a legitimidade de Spartacus e nem contestou seu papel de líder. As redes que se organizaram nas nove províncias se referiam sempre a ele.

- Espero - disse Mäthilde - que Muspell nunca nos ache. Com todos esses contatos que possuímos agora, nós lhe ofereceríamos a resistência de bandeja!

Frä Ülfidas sabia que sua preocupação era válida. Mas Spartacus havia conseguido entusiasmar e era isso que estava faltando. O jogo valia o revide.

Mäthilde deu alguns passos nos azulejos quebrados e se aproximou da lareira onde queimava um pedaço de viga pego num depósito.

Ela se lembrou de uma vez em que viera esquiar com seus pais. Na época ela ainda era pequena. Mas ainda restavam as lembranças de uma maravilhosa semana passada com seu primo Xâvier, suas disputas nas pistas de neve e a brincadeira de esconde-esconde nos prédios. Eles descobriram uma vez uma falha na rocha, atrás da cisterna de um hangar. Essa falha conduzia a uma pequena gruta que se tornara seu esconderijo secreto. Eles a chamaram de "covil", mobiliaram com colchões e cadeiras e se refugiavam lá para conversar ou ler à luz de uma tecnolâmpada. Foram momentos fabulosos.

Como isso tudo parecia longe... Ela também sonhou que, alguns dias antes, ela vivia ainda a tranqüila vida de uma sobrinha de general-conde. Isso já lhe parecia como uma outra vida. Uma outra vida da qual nem estava mais segura de sentir saudades.

Ela se virou escutando um barulho de passos apressados. Frä Ülfidas, sem fôlego, veio lhe falar.

- O que está acontecendo?

- Eu acabo de ver a fonte de presságios inquietantes... Muspell talvez nos tenha descoberto... Temos que esperar que a estação seja atacada...

- Sangue dos espíritos! Mas nós não temos nem um segundo! Três mulheres contra guerreiros treinados!

- Espere - continuou Frä Ülfidas sentando-se numa cadeira. - Eu ainda não disse tudo... Uma outra visão anuncia a chegada iminente em Nifhell de uma frota imperial.

- Uma frota? - estranhou Mäthilde. - Mas de onde ela pode estar vindo?

- Não tenho nenhuma idéia. Mas se realmente ela tiver o bom gosto de existir, ela poderá salvar Spartacus. E inverter definitivamente a situação.

- E a senhora sabe qual evento, a chegada da frota ou o ataque à estação, vai acontecer primeiro?

- Não. Deixei Xändrine de guarda no templo, ao acaso. Mas talvez nós possamos, por uma vez, forçar o destino.

- Graças à fonte? - perguntou respeitosamente Mäthilde.

- Graças à tecnoantena - respondeu Frä Ülfidas, piscando um olho.

 

Rôlan enfiou na fechadura a chave dada por Rymôr. A porta abriu. Ele e Mârk hesitaram, depois entraram no Templo.

Nem um nem outro esperavam um local parecido. Eles ficaram prostrados, fascinados pela árvore de poli-vidro que estendia seus galhos pela imensidão do local.

- Não deveríamos estar aqui - cochichou Mârk, não se sentindo bem.

- Olhe ali, Morgana! - exclamou Rôlan.

Eles se precipitaram sobre o corpo sem sentidos da amiga que estava estendido ao lado do tronco.

- Vamos deitá-la no colchão - propôs Rôlan.

Mârk concordou. Ele fez uma expressão de dor carregando Morgana pelos braços: a lembrança de sua própria ferida ainda ardia.

Eles a deitaram e a cobriram.

- Morgana, alô! Acorda! - disse Mârk, batendo docemente em seu rosto. - Você acha que ela...?

- Não, ela está respirando. Vá pegar um pouco d'água, por favor.

A menina suava e parecia estar exausta, como após um exercício físico puxado. Rôlan trouxe um copo cheio. Mârk molhou seu lenço e o colocou sobre a sua testa que queimava. Depois tentou fazer com que ela bebesse.

- Vamos, isso vai lhe fazer bem. Morgana tossiu. Mexeu a cabeça e gemeu.

- Ela está acordando!

Ao abrir os olhos, a noviça reconheceu os dois amigos. Achou forças para sorrir. Constatou que ainda estava no Templo. Ela não resistiu e levantou a mão para vê-la e se assegurar de que não era mais um esqueleto.

- Como vocês entraram?

- A chave de Brâg Svipdag... Rymôr nos deu.

- É muito gentil vocês se preocuparem comigo. Espero que não tenha inquietado vocês. Eu fiz uma viagem, uma viagem terrível. Estou muito cansada.

- Você tem que dormir - propôs Mârk, pegando sua mão. - Agora que sabemos que você está bem, tudo muda de figura. Depois... é a minha vez de vigiar!

Ela fechou os olhos. Pousou sua mão livre nas pérolas de vidro do colar que trazia no pescoço. Ela dormiu quase que imediatamente.

- Você viu os olhos dela? - murmurou Rôlan ao ouvido de seu amigo.

- Seus olhos?

- Você não prestou atenção? Eles mudaram de cor: ficaram cinza.

Rymôr levou Xâvier para o posto de pilotagem e o fez sentar numa poltrona, em frente à mesa que recebia todas as conferências.

- Se eu entendi bem - disse o menino -, o senhor quer que acreditem que o comandante continua no comando. Para isso, nós o substituímos: o senhor controla a nave, e eu, o contra-ataque.

- É exatamente isso!

- Foi Bumposh que teve essa idéia idiota?

- Ele me aconselhou. Por que idiota?

- Porque é. Como vamos nos comunicar com o exterior? Não temos a voz do capitão!

- Eu vou desregular o sistema vocal.

- E para um contra-ataque nós precisamos de outras naves, não?

- Nós as teremos.

- Ah, sim? Onde nós as acharemos? No meio desses cascamos? - brigou Xâvier, fazendo um gesto em direção aos asteróides espalhados do outro lado do domo.

Rymôr morreu de rir, desmontando Xâvier.

- O quê? O que foi que eu disse?

- Uma coisa sensata, moleque. É aqui que vamos encontrar nossas naves. O estagiário observou Rymôr com um ar preocupado, como se ele tivesse ficado louco.

- No começo do império, meu garoto, em sua sabedoria, os generais-condes decidiram criar uma base secreta. Um último refúgio em caso de invasão de Nifhell. Foi assim que um falso asteróide foi fabricado e escondido em Völa, entre os verdadeiros asteróides.

- Mas isso é genial! - exclamou Xâvier, aliviado. - Eu tinha que ter pensado. Claro, chefe, o senhor deve saber onde se encontra essa base...

- Eu não, mas o Destruidor de Ossos, sim. A posição do asteróide que nos interessa se encontra no sistema de controle. Eu possuo apenas o meio de entrar em contato com a base. Eu espero que as naves que estavam em Nifhell no momento do ataque tenham tido tempo de vir até aqui.

- Talvez fosse melhor verificar, antes de iniciar a artimanha.

- Logo estaremos em contato.

Rymôr se dirigiu ao púlpito de comando. Ele começou mexendo no som. Digitou um código, depois deu as coordenadas da base secreta.

- Base de Völa, aqui é o capitão de Xaintrailles. Vocês estão me ouvindo?

No lugar de sua voz grave, uma voz metálica ressoou no posto de pilotagem.

- Capitão Vrânken de Xaintrailles? - respondeu alguém cuja excitação era quase palpável. - Se realmente é o senhor, nós estamos loucos de alegria por escutá-lo! O senhor poderia enviar a ciberidentificação do Destruidor de Ossos, por favor?

Rymôr executou o pedido. Alguns instantes depois, eles escutaram uma explosão de entusiasmo pelos alto-falantes.

- Identificação aceita - exultou a voz. - Capitão, éramos muitos esperando por sua volta. Spartacus dizia a verdade. Foram os Poderosos que o enviaram! Nós preparamos para o senhor e sua frota uma recepção digna de um herói e...

- Inútil. O Destruidor de Ossos foi o único a sair do Planeta Morte. Os outros ainda estão lá, há doze anos fotônicos de Nifhell. Nós nos encontraremos mais tarde.

- Como... O senhor veio só? Mas nós o esperávamos com uma frota!

- Teremos que nos virar - respondeu secamente Rymôr. - Quem é você?

- Eu sou Pôl Eildon, comandante da base de Völa.

O oficial adotara um tom profissional para esconder seu desapontamento.

- Quantos navios conseguiram chegar no asteróide?

- Uns cem, capitão. Todos equipados com boas peças de artilharia.

- Perfeito. Comandante, eu não vou perder tempo descendo da minha nave - continuou Rymôr, dissimulando atrás da voz metálica. - Passe-me as últimas novidades de Nifhell.

- Nós recebemos poucas, capitão. Mas é certo que as forças de Muspell já controlam todo o planeta.

- Então ninguém resiste? - se irritou Rymôr.

- Esporadicamente, até o momento. Mas a situação está mudando.

- O que o senhor quer dizer?

- Um misterioso Spartacus está unificando a resistência em Nifhell.

- Foi o nome que o senhor citou ainda há pouco quando chegávamos, comandante. Que relação existe comigo?

- Nossos transmissores interceptaram mensagens codificadas vindo de Nifhell. Eram todas assinadas por Spartacus e se dirigiam à frota imperial que se aproximava de Nifhell.

- Inacreditável - murmurou Rymôr. - Que dizia esse Spartacus?

- Que ele comandava a resistência, que as forças de ocupação o haviam interceptado e preparavam uma importante operação contra ele, e que pedia ajuda a essa frota. Ele mandou as coordenadas de seu quartel-general. Eu não sei como ele fez para saber que vocês estavam chegando, capitão, mas ele se equivocou sobre um ponto: o senhor não tem mais uma frota com o senhor.

Rymôr e Xâvier se entreolharam.

- Existe Frä Daüda lá embaixo - explicou Rymôr. - Quanto à frota, esse Spartacus viu certo. Ela está simplesmente escondida em Völa... Comandante, eu quero que suas naves estejam prontas em uma hora! Se o senhor não tiver nenhuma objeção, claro.

- Capitão de Xaintrailles - disse o comandante com emoção -, eu sei que todos os capitães aqui presentes não hesitarão em nenhum instante em obedecer às suas ordens. É uma sorte ter o senhor entre nós.

- Eu o chamo em uma hora.

Rymôr cortou a transmissão e virou-se para Xâvier.

- O que você pensa, moleque?

- Eu penso, chefe - respondeu Xâvier sem hesitar -, que se lançar na defesa de Spartacus é a melhor coisa que podemos fazer. Salvá-lo é salvar a rede de resistência que foi montada e isso significaria ganhar muito tempo. E, depois, haverá lá uma parte das forças de Muspell: é uma oportunidade sonhada de combater imediatamente, não?

- É você que vê - resmungou Rymôr. - Não sou estrategista.

 

Morgana abriu os olhos. Ela não estava mais no Templo. Mârk não lhe dava mais a mão: seus amigos haviam desaparecido. Ela se encontrava deitada num galho de árvore cósmica.

- Ah não, vai recomeçar - gemeu a jovem em voz alta. Em torno dela se estendiam os Rochedos e brilhavam as estrelas. Mas ela não tinha mais medo. Começava a se habituar. Ela sabia que as raízes da árvore mergulhavam num fundo sem fim e que seus galhos se estendiam para o infinito acima.

- Será que eu vou acordar nesse lugar, sempre que eu dormir? - suspirou.

Ela se sentou no galho. A casca rugosa arranhava. Mecanicamente ela acariciou as pérolas de seu colar. Sua mão se fechou sobre uma delas.

Ela foi tomada por visões de uma grande violência.

Ela via Nifhell. As montanhas. Uma pequena frota de naves, o Destruidor de Ossos na frente, caía numa emboscada. Havia chamas, fumaça negra, espessa, e sangue que corria, vermelho, sobre a prata dos cascos metálicos. Numa parte alta, cada um vestido com mantos rasgados, agitando cajados luminosos, quatro otchigins riam satisfeitos.

Morgana largou a pérola de seu colar de vidro. A visão se interrompeu brutalmente.

- É isso, então! - exclamou ela. - Eu não preciso mais da fonte para saber o futuro.

Sua admiração passou, ela refletiu sobre o que viu.

- Bom, minha filha, tudo vai bem. Você está sonhando e você sonha no sonho.

Por outro lado, ela nunca sonhara de modo tão real. Ela decidiu entrar no jogo.

- Como eu não consigo, apesar dos meus esforços, acordar, farei como se fosse verdade.

O que ela tinha visto? Vrânken na frente da nave sobre Nifhell, caindo numa armadilha feita pelos otchigins.

- É simples - concluiu. - São os xamãs de Muspell que vão fazer fracassar o ataque de Vrânken. Eu tenho que impedi-los. Mas como?

Ela sabia de forma confusa que existia um modo.

- Eu estou muito longe e muito fraca para atacar seus corpos - murmurou ela. - Devo combatê-los, sim, em seu território, o dos espíritos, no limbo. Preciso de ajuda!

Ela se dirigiu ao seu galho e usou suas mãos como alto-falante.

- Cavalo-marinho! Espírito-guardião de chifre de prata! Venha! Eu preciso de você!

Seu grito ressoou estranhamente no vazio. Um relincho ecoou. Surgindo do nada, um unicórnio se aproximou a galope da grande árvore cósmica. Ele passou sob o galho onde Morgana o esperava.

Sem hesitar, ela o montou. Agarrou-se a sua crina, levantando no mesmo golpe uma nuvem de poeira estelar.

O cavalo-marinho pulou dentro de um buraco negro.

- O que está acontecendo com ela?

A noviça fechava convulsivamente a mão de Mârk, que olhava ansioso para Rôlan.

- Eu não sei. Diria que um tipo de crise.

Seu corpo tremia, tenso como um arco. A mão que segurava o colar ficara branca.

- Você acha que devemos chamar o médico? - questionou Rôlan.

Mârk acariciou a testa de sua amiga. Ele acreditou ter sentido um ligeiro relaxamento.

- Vamos esperar um pouco. Talvez ela se acalme.

Logo o espírito-guardião pisou com seu casco a areia cintilante de um deserto.

- Não é o lugar mais simpático.

Como se ele compreendesse o que dizia sua cavalariça e quisesse aceitar, o unicórnio balançou a cabeça.

De repente, a areia se levantou na frente deles. O espírito-guardião se ergueu sob suas patas traseiras e relinchou. Quatro personagens se materializaram sob seus olhos.

Imediatamente, Morgana reconheceu os otchigins. O mais velho, que era cego, falou pelos outros:

- Quem teve a audácia de vir a nossa esfera estelar?

- Fui eu! - disparou arrogantemente a jovem.

- Como você se chama?

Ela hesitava quando escutou uma voz em sua cabeça:

- Responda, mas exija em troca o nome deles. Sem nome, as coisas não têm alma e dificultam o combate.

Ela arregalou os olhos.

- Quem fala?

- Seu espírito-guardião! Quem mais poderia ser? Nós estamos sozinhos nessa parte do nada...

- Eu me chamo Mor... heu, Wijven! - completou passada a surpresa. - E vocês?

Os quatro homens fizeram cara de poucos amigos.

- Você nos deu seu nome, somos obrigados a dizer o nosso. Nós somos Kral, Vlox, Brek e Xart. O que você faz aqui?

- Eu li no futuro que vocês cometerão um crime contra Nifhell. Então, eu vim pedir que vocês desistam.

Eles recuaram assombrados e seguraram seus cajados com as duas mãos.

- Uma Frä Daüda! É impossível. As Frä Daüda não têm acesso ao mundo dos limbos!

Morgana bateu o unicórnio com os calcanhares para avançar.

- Vocês viram que posso. Então, a sua resposta?

- Nós somos servidores de Muspell! Se o crime de que você fala serve ao cã, nós o executaremos com alegria.

- Então, eu não tenho escolha - suspirou a jovem. Ela lançou sua montaria para a frente.

Os otchigins chamaram o espírito-guardião. Quatro pássaros vermelhos apareceram e pousaram sobre os cajados.

- Eles também têm! - exclamou Morgana.

- Todos os otchigins recebem a mesma iniciação. A ordem dos otchigins penetra nas esferas por arrombamento. É por isso que eles não circulam tão facilmente nem tão livre como você nos abismos cósmicos.

Um dos pássaros levantou vôo e se fundiu com os outros, as garras para a frente. O unicórnio simplesmente levantou a cabeça e ávido o empalou com o seu chifre. Ele soltou um grito dilacerante e desapareceu com o otchigin de quem era o espírito-guardião.

Os três sobreviventes se olharam, estupefatos.

- Então, vamos reduzir os malandros, hein? - exultou Morgana.

Eles lançaram com um só movimento seus pássaros vermelhos.

Com uma destreza e uma rapidez desconcertante, o cavalo-marinho deu três golpes com a cabeça e espetou as aves de rapina. No momento em que eles desapareceram no nada, Morgana pôde ler a incompreensão e o terror no olhar dos otchigins.

- Obrigado, querido espírito-guardião - disse ela em sua cabeça, acariciando o unicórnio. - Você me salvou e salvou Nifhell!

- Eu só existo porque você existe, Wijven, sou eu quem devo agradecer. Quanto a Nifhell, ou Muspell... os limbos onde nós estamos não se importam! Foi porque você mesma veio, e não pelas ordens de ninguém, que somos fortes e que vencemos esses bonecos. É por isso que os Poderosos te amam.

- Diga-me, espírito-guardião, eu ganhei? Os otchigins não mais farão armadilhas para Vrânken?

- Tenha certeza, Wijven, os otchigins que nós enfrentamos jamais servirão a Muspell.

- Então está bem assim. Já posso voltar para casa...

- Ela está melhor, podemos dizer - constatou Rôlan com alívio.

O rosto de Morgana reencontrara a serenidade. Ela relaxou. Sua mão estava largada nas de Mârk.

- Ela está exausta, coitada - disse ele. - Esse negócio de adivinha deve tirar muita energia.

- Esqueçamos o médico, então?

- Esqueçamos. Ela só precisa dormir.

- Almirante Gulax? O senhor deveria ver...

Njal Gulax estava habituado a acordar em plena noite. Ele se levantou imediatamente. Um pouco de água fresca no rosto o fez ficar lúcido. Seguiu o soldado pelos corredores de mármore do palácio Comtal.

Seu guia parou em frente ao quarto onde dormiam os otchigins e abriu a porta para ele entrar.

O almirante entrou e ficou paralisado pelo espetáculo desolador oferecido a seus olhos.

Ele se conteve para não gritar.

Os quatro feiticeiros estavam estirados em seu próprio sangue sobre a laje escura, cada um com o peito dilacerado.

- Que o Tengri venha me ajudar - murmurou.

 

- Errei - anunciou Mäthilde, que estava de guarda. - Foi Muspell que chegou primeiro.

As duas outras abandonaram suas camas vestidas e se precipitaram para a janela. Silhuetas fantasmagóricas na palidez da alvorada, as naves de guerra do cã cercavam a montanha.

- Sem chances - continuou Mäthilde suspirando. - Nossas mensagens enviadas ao espaço não serviram para nada!

- E a fonte? - perguntou Xändrine, puxando Frä Ülfidas pela manga. - O que diz a fonte?

- A fonte se calou, minha criança. O futuro se ligou ao presente.

O coronel Craxus observou longamente a estação com seu binóculo. Ele fez um ar de desprezo.

- Uma posição discreta, mas sem nenhuma defesa. É muito fácil.

Ele se lembrou da véspera, em frente de Njal Gulax, assegurando que uma única nave seria suficiente para destruir Spartacus. Os otchigins tinham sido categóricos: o líder da resistência não faria nada. Mas o almirante preferira mandar diversas embarcações.

- Logo - resmungou ainda Craxus - utilizaremos granadas para nos livrarmos do ninho de formigas-vespas.

- Coronel? Os tecnoescaners!

O oficial se aproximou dos instrumentos.

- Olhe, coronel - mostrou o técnico -, uma frota. Uma frota inteira bem na nossa direção!

Craxus franziu a sobrancelha. Diversos pontos luminosos, cada vez mais numerosos, convergiam naquela direção.

- Impossível. A menos que... mas é claro! Um largo sorriso surgiu em seu rosto.

- Certamente, nosso cã restabeleceu os Caminhos Brancos. Ele nos envia os primeiros reforços!

Hurras saudaram a exclamação do coronel. Ele avançou na direção dos postos de observação. Lá fora, Drasill surgia lentamente sobre as montanhas, resplandecente de claridade.

- De que lado eles vêm?

- Eles chegam bem na nossa frente, coronel. O senhor terá dificuldade em vê-los: o sol bate nas costas deles.

Craxus pegou seu binóculo e franziu os olhos. As naves cresciam rapidamente à medida que se aproximavam; ele levou alguns segundos para distingui-las.

- Mas... são naves imperiais!

A evidência se confirmou quando as naves chegaram até eles. O estupor paralisou os homens de Muspell.

- Eles são mais de cem, coronel. Não temos a mesma força. O que vamos fazer? Ainda podemos escapar.

Craxus socou com raiva o vidro do posto de observação.

- Não. O Tengri parece querer a batalha. Nós cumpriremos a nossa missão e destruiremos Spartacus, antes de caminharmos em direção ao nosso destino. Desembarcar!

A nave negra expulsou de suas entranhas um esquadrão de guerreiros que se lançaram ao assalto da encosta, em direção aos prédios.

As ocupantes da estação também viram a aproximação das naves imperiais. Uma explosão de alegria saudou essa reversão da situação. Mas a exultação foi varrida pelos gritos de Xãndrina, descobrindo por uma outra janela o ataque iminente dos homens do cã.

- Mais alguns minutos e nós estaríamos salvas - disse Mäthilde a Frä Ülfidas abrindo um sorriso.

- Em todo o caso, essa é a prova de que nossas mensagens foram escutadas - respondeu calmamente a adivinha. - Nossos salvadores talvez não tenham percebido que corremos perigo no solo. Você deveria avisá-los. Nunca se sabe, talvez eles tenham tempo de intervir! Corajosamente, Mäthilde pegou o microfone:

- À frota imperial, aqui Spartacus. Caso vocês nos escutem, saibam que os homens de Muspell vão penetrar nos prédios. Não temos condições de nos defender. Sangue dos espíritos, só há mulheres desarmadas aqui!

O apelo de Mäthilde ressoou no posto de pilotagem do Destruidor de Ossos, assim como no das outras embarcações de Völa.

- Pelos Poderosos! - exclamou Rymôr. - Chegamos muito tarde.

Xâvier, muito pálido, ficou imóvel.

- Alguma coisa não vai bem, moleque?

- Eu conheço essa voz. E eu só conheço uma pessoa que jura pelo sangue dos espíritos: minha prima Mäthilde!

O gigante o olhou com um ar triste.

- Sinto muito por ela, meu garoto.

Xâvier não escutou. Refletiu. Mäthilde não tinha nenhum motivo para voltar ali. Mas após pensar um pouco, ele também não! Em todo caso, era bom Mäthilde estar ali, eles ainda tinham uma chance de salvar a situação. Tomou uma decisão bruscamente. Andou para o púlpito de comando e restabeleceu a comunicação.

- Spartacus? Aqui é o Destruidor de Ossos.

Sua voz saiu deformada, como a de Rymôr antes dele.

- Destruidor de Ossos, aqui Spartacus - respondeu sua prima. - Estou feliz em escutá-los! Será que vocês poderão nos ajudar?

- Nós vamos ajudar vocês, mas antes vocês deverão se ajudar...

- O que você quer dizer?

- Eu quero dizer que você ainda tem tempo de brincar de esconde-esconde no covil. Entendeu o que eu quis dizer?

Um silêncio estupefato recebeu a última frase.

- Eu compreendo, sim. Mas... quem é você? - respondeu timidamente Mäthilde.

- Pouco importa quem eu sou. O importante é que você entendeu. Eu suplico que você faça isso rápido: Mais cinco minutos e será muito tarde!

Xâvier cortou a comunicação.

- Que história é essa de covil? - espantou-se Rymôr.

- Um local onde nossos amigos encurralados da estação estarão em segurança. Quer dizer, eu espero. Bom, em cinco minutos bombardearemos a estação e a destruiremos.

- Você tem certeza de que...

- Não, chefe, infelizmente, eu não estou seguro de nada. Mas se não nos mexermos ou se dermos muito tempo para eles, os guerreiros de Muspell acharão Spartacus.

- E as naves do cã?

- Bem, nós as atacaremos também, por quê?

- Por nada! - respondeu o gigante esfregando as mãos. - Estou inquieto, é isso. Você sabe, finezas estratégicas realmente não são o meu negócio.

- É ali - anunciou Mäthilde, subindo num monte de cascalho bem alinhado atrás de uma cisterna.

Frä Ülfidas e Xändrine vieram em seguida. A falha era estreita e sua guia avançava penosamente amaldiçoando sua gordura. Enfim, elas chegaram na gruta onde Xâvier e Mäthilde brincavam em outros tempos.

- Olhem - disse a menina coberta de suor e poeira, colocando o cantil de água e o saco de comida pego na cozinha. - Só temos que esperar.

Os guerreiros começaram a cercar o local onde elas estavam na hora da fuga. Elas quase foram capturadas.

- Eu escutei o nome do Destruidor de Ossos - disse Frä Ülfidas. - É a nave de Xaintrailles. Eu achei que ele estivesse bloqueado no Planeta Morte! Eu espero que não seja uma armadilha.

- Talvez eles tenham achado uma solução para voltar - respondeu Mäthilde. - Em todo caso, eu tenho certeza de que se trata do Destruidor de Ossos! Meu primo é estagiário lá. E só eu e ele conhecemos a existência dessa gruta.

- Pode ser que você tenha razão. Duas pessoas queridas do meu coração também estão a bordo dessa nave - disse ainda a adivinha.

Um estrondo surdo, seguido de uma série de explosões, sacudiu as paredes da gruta e interrompeu a conversa. Do lado de fora, um fogaréu destruía a estação.

 

A noite caiu sobre Muspell, sem trazer nenhum frescor. Os gritos das aves de rapina noturnas que estavam caçando rasgavam regularmente o silêncio. Rompendo a escuridão, um raio de luz escapava pela entrada de uma grande tenda de feltro.

- Eu sinto muito, grande cã, mas eu não consigo.

- Tente outra vez!

Atli Blodox mostrou seu humor lançando sua taça de chá através da tenda. Um empregado rapidamente foi pegá-la.

No fogo de chamas frias, agarrado a seu cajado, um otchigin tentava em vão estabelecer contato com seus irmãos de Nifhell. Ele logo cessou seus esforços e virou-se para o cã, que arranhava nervoso o tapete de pele de zogh em que estava sentado.

- Inútil. Alguma coisa não funciona mais. Eu não compreendo.

- Explique-se.

- O Tengri está vazio. É como se todos os otchigins enviados para Nifhell estivessem mortos.

- Lá eles são quatro. Um xamã não morre assim! Você não acha mais provável que eles estejam tirando um cochilo?

O otchigin não respondeu imediatamente. Olhou o cã fixamente.

- Os otchigins - articulou ele secamente - são os mais fiéis apoios do canato desde a sua origem. Os cãs passam, meu irmão, mas os otchigins ficam.

Atli Blodox sentiu que ele fora muito longe.

- Isso tudo eu sei - disse com uma voz conciliadora. - Sempre respeitei e admirei meus irmãos otchigins. Estou contrariado apenas. A operação Sangue Rosado é capital, ela mobiliza vinte anos de energia do canato. Da sua vitória ou de sua derrota depende todo o destino de Drasill, sua renovação ou sua inelutável decadência. De um lado a vitalidade, o movimento, a verdade de uma natureza que sozinha dita suas leis, do outro o contentamento da repugnância, o imobilismo, os artifícios de uma tecnologia devorado-ra! Esse jogo, irmão, nos espanta. Eles procuram a derrota do Tengri.

- Eu vou tentar contatar Nifhell mais uma vez, grande cã - disse o otchigin se concentrando em suas chamas brancas.

Com o furor do fogo de seus canhões, o Destruidor de Ossos foi o primeiro a acertar a grande embarcação negra de Muspell que cercava a montanha. As naves do canato a enfrentaram e responderam às bolas de polimetal e aço de seus obuses.

Seguindo os conselhos de Xâvier, uma parte da esquadra bombardeava a estação, reduzindo a pó os homens de Muspell que a penetravam. Logo os prédios desapareceram entre o fogo e a fumaça.

As embarcações negras se defendiam ferozmente. Várias embarcações de Völa, gravemente atingidas, tiveram que abandonar a batalha, pois não estavam mais em condições. No leme da nave de Vrânken, Rymôr Ercildur fazia maravilhas. Ele estava em casa. A barba cheia de brilho, o riso soava alto, parecia um deus da guerra dos tempos antigos. - O que você diz, moleque! Isso é que é ação, hein? Xâvier, ele, se esforçava em colocar um pouco de ordem nessa feira de agressões. Privado das peças de polimetal do exocubo, que só o capitão podia liberar, ele teve que renunciar a utilização dos cibercomandos. Ele devia se contentar em seguir a batalha a olho nu e dar instruções pelo microfone global. Graças a ele, eles evitaram o pior, e os capitães logo compreenderam o ganho que tiveram escutando-o. As embarcações de Muspell, numericamente muito inferiores, eram mais poderosas e fortemente armadas. Jogar-se contra elas sem refletir equivalia a um suicídio.

A estratégia de molestar, imaginada de improviso por Xâvier e praticada pela frota imperial, acabou rendendo frutos. Incomodadas pelas montanhas em volta, cegas pelos tiros, duas embarcações negras se chocaram e explodiram no chão. As outras, sob fogo constante das naves imperiais, perderam pouco a pouco altitude. Logo elas foram obrigadas a pousar nas encostas, liberando seus guerreiros vingativos. Mas cercados pelas naves de Völa com seus canhões apontados, eles não tiveram outra opção a não ser renderem-se.

- Eu pensava que os guerreiros do cã nunca se rendiam - espantou-se Xâvier.

- Não diga besteira, garoto. Você esteve comigo no Planeta Morte: capturamos um general, um otchigin e um estrategista. Vamos nos ocupar mais com Spartacus, ou do que restou dele!

Xâvier empalideceu de novo. Provavelmente Mäthilde teria tido tempo de chegar na gruta!

As aves de rapina noturnas descreviam círculos sobre a tenda do cã. A luz que de lá vinha atrapalhava a caça e elas gritavam de raiva.

- Eu sinto algo - anunciou o otchigin debruçado sobre as chamas. - Um irmão tenta se ligar a mim!

Atli Blodox se levantou com uma luz de esperança nos olhos.

- Um xamã de Nifhell?

- Não. Um otchigin em direção ao Planeta Morte com os especialistas dos Caminhos Brancos.

O cã deixou escapar um sorriso.

- Um que responde. Já é alguma coisa. O que ele diz?

- Ele anuncia que a expedição chegou em seu destino. E que a armada imperial parece ter desertado às margens do Planeta Morte.

- Enfim uma boa notícia!

Atli Blodox se levantou com agilidade.

- Bom. Que o otchigin transmita isso ao chefe da expedição: é muito importante verificar se as naves do império realmente saíram do local! Isso confirmado, os sábios e os técnicos deverão consertar os Caminhos Brancos com toda urgência. Repito: com toda a urgência! Algo que não estava previsto se passa em Nifhell e nós devemos verificar. Espero a resposta no astroporto.

Do lado de fora o cã estava contente, assustando as aves que voavam em direção à estepe. Ele chamou seu cavalo-serpente e saltou em seu dorso. A roda voltara a girar. Ele não tinha mais tempo a perder.

 

Equipados de tecnoescaners manuais, um grupo de homens vasculhava os escombros enfumaçados da estação. Guiados pelas indicações de Xâvier, que ficara a bordo com Rymôr, eles concentravam a procura ao lado do hangar. Enquanto isso, os guerreiros de Muspell que haviam se rendido eram acorrentados e levados para os porões das naves imperiais.

- Tenho algo em minha tela! - gritou um homem.

A carcaça de uma velha cisterna destruída foi carregada por uma dezena de braços, liberando um estreito corredor de rochas.

- Impossível passar, somos muito grandes. Alô! Tem alguém aí?

Os homens de resgate escutaram uma fricção contra as paredes e o barulho de passos. Por precaução, eles recuaram e levantaram as armas. Viram sair uma adolescente loira, depois uma outra, morena, e enfim uma senhora idosa de vestido longo cinza.

Foram elas que se dirigiram a eles:

- Eu sou Frä Ülfidas, diretora da escola de Urd, e essas meninas se chamam Mäthilde e Xändrine. Mas nós somos mais conhecidas pelo nome de Spartacus. Obrigada por terem vindo. Não recusaríamos um copo de qualquer coisa para controlar as nossas emoções!

Os homens, inicialmente intimidados pela presença de uma Frä Daüda, receberam o pedido rindo. Eles escoltaram a pequena tropa até a nave.

- Capitão?

A voz do marinheiro soou no posto de pilotagem.

- Estou escutando - disse Rymôr.

- Achamos três mulheres que dizem ser Spartacus. Elas estavam escondidas em uma gruta. Conseguiram escapar do bombardeio da estação.

Xâvier fechou os olhos e agradeceu mentalmente aos Poderosos.

- Uma adivinha com o nome de Frä Ülfidas parece ser a chefe e pediu para falar com o responsável da frota - continuou o marinheiro.

Rymôr cortou a comunicação.

- Fora de questão. Pelo chifre do Gôndül, nossa estratégia seria descoberta! É preciso colocar essa senhora numa nave e enviá-la para um local seguro longe daqui. Enquanto isso, nós iremos desafiar as forças de Muspell em Kenningar e...

- Se o senhor permitir - interrompeu Xâvier -, acho que não é boa idéia.

- Por quê? - disse Rymôr, cocando a cabeça.

- Se levarmos essa Frä Ülfidas conosco, asseguraremos o apoio da resistência.

- Pô! Com a nossa frota, eu tenho certeza de que conseguiremos neutralizar as forças do cã sem ajuda de ninguém.

- Ao contrário, chefe. Temos que associar o maior número possível de pessoas em nossa ação. O povo de Nifhell viverá melhor a vitória se dela participar.

- Você tem sempre uma resposta para tudo, moleque - reconheceu Rymôr. - É enervante até o fim! E qual será nossa estratégia?

Xâvier piscou o olho para o gigante.

- Temos que saber confiar, não é mesmo, chefe? Eu só conheço as Frä Daüda através da Morgana, mas eu não acredito que essa mulher vá nos trair.

- Está bem, eu aceito - resmungou, fazendo um gesto de quem se rende. - Será como você quiser. Aliás, é sempre como você quer!

A torre do astroporto militar de Muspell brilhava sob um sol matinal que cegava.

Com seu passo felino, Atli Blodox subiu na nave almirante vermelha. Ele se virou e seu olhar abraçou, com orgulho, a armada que ele conduziria à outra extremidade do sistema solar. As novidades que chegavam do Planeta Morte eram excelentes: a frota imperial partira lépida e fagueira e os Caminhos Brancos estavam quase recuperados.

O cã sentiu um indizível alívio. Apostar na impaciência e na impulsividade dos capitães do império fora uma bela jogada de pôquer. Se as naves inimigas tivessem escolhido ficar, todo seu plano estaria ameaçado...

Agora, Atli Blodox queria esperar no espaço o momento em que poderia se enterrar no túnel de luz, primeiro na direção do Planeta Morte, e depois Nifhell. Era apenas uma questão de horas.

- Logo - gritou ele com os punhos elevados na direção do céu - enfiarei minhas botas nas armaduras dos generais-condes!

O alçapão de acesso ao posto de pilotagem, trancado até aquele momento, se abriu para deixar três pessoas subirem: Frä Ülfidas em sua roupa cinza, uma noviça da idade de Morgana e uma outra jovem, de rosto quadrado e obstinado.

Rymôr avançou na direção delas.

- Em nome de Vrânken de Xaintrailles, capitão dessa nave e comandante da frota, eu desejo boas-vindas.

- O capitão não está aqui? - perguntou a adivinha desapontada.

- Não, madame. Eu sou Rymôr Ercildur, seu auxiliar.

- Talvez ele considere que não sejamos suficientemente importantes para ele...

- O capitão não considera nada, madame. Ele está na enfermaria, em estado crítico. Mas é claro que ninguém sabe disso.

A Frä Daüda mordeu o lábio.

- Sinto muito. Espero que o senhor desculpe a minha gafe. Eu sou Frä Ülfidas. Essa é minha aluna, Xändrine. A jovem que nos acompanha se chama...

- Mäthilde! Eu tinha certeza que era você. Xâvier correu para abraçar sua prima.

- Xâvier? Eu sabia que você fazia seu estágio nessa embarcação, mas eu não imaginava...

- É esse garoto que dita as vontades da frota - explicou Rymôr com orgulho. - Na verdade, ele tem um gênio difícil. Mas ele se vira diante de questões que não são muito evidentes! Sem ele, eu não teria jamais conseguido dar o troco.

- Bem, ele exagera - disse Xâvier ruborizando.

- Pelo gênio, deve ser de família - acrescentou maliciosamente Frä Ülfidas se dirigindo a Mäthilde.

O gigante convidou todo mundo para sentar em volta da mesa baixa.

- Xâvier pensou - disse assim que se instalaram - que nós poderíamos tomar a rota de Kenningar, convidando o grupo da resistência a se sublevar em nosso rastro. As tropas de Muspell ficariam ocupadas no solo e nós poderíamos nos concentrar nas naves do cã.

- Para que a resistência se mexa é preciso a ajuda de Spartacus - disse Frä Ülfidas.

- Quer dizer, da senhora!

- Sobretudo de Mäthilde - corrigiu a adivinha. - É a voz dela que todo mundo conhece. Nós seremos, Xändrine e eu, mais úteis no Templo da nave, com Frä Drümar e Morgana.

Xâvier e Rymôr trocaram um olhar que surpreendeu a idosa senhora.

- Algum problema com Morgana? - se inquietou. Rymôr balançou a cabeça.

- Não, madame. Mas Frä Drümar... está morta. Ela foi assassinada por um traidor a serviço do cã.

Frä Ülfidas recebeu o golpe balançando o corpo. Xändrine a pegou pelo braço para apoiá-la.

- Tudo bem, minha filha - agradeceu sem esquecer de sorrir. - Então vamos ver Morgana. Você, Mäthilde, continue aqui e faça o melhor possível para ajudar nossos amigos.

A professora e sua aluna se levantaram e foram em direção às escadas metálicas.

- Triste reencontro, não? - disse Mäthilde a seu primo.

- Mas são reencontros, e isso é o que conta. Senti um enorme prazer de te ver, você sabe disso.

 

Assim que Frä Ülfidas e Xändrine penetraram no Templo, descobriram Morgana estirada em seu colchão, velada por dois jovens aparentemente surpresos em vê-las. A noviça gritou e se projetou.

- O que aconteceu? - perguntou a adivinha, enquanto Xändrine obrigava Mârk a se levantar para tomar o seu lugar ao lado da amiga.

- Morgana não respondia mais, senhora - explicou Rôlan. - Entramos e a encontramos desmaiada perto de... de uma espécie de árvore. Nós a transportamos até aqui. Ela se levantou por um momento, depois voltou a dormir.

- E ela falou? Disse alguma coisa?

- Sim - continuou Mârk. - Disse que estava contente por estarmos aqui e que fizera uma viagem terrível.

Frä Ülfidas ficou em silêncio. Depois se virou para os dois estagiários.

- Meus filhos... eu agradeço extremamente por terem cuidado dela. Agora nós nos ocuparemos dela.

Mârk não sabia se devia insistir para ficar, mas Rôlan o puxou pelo braço. Saíram dali.

- São as Frä Daüda - justificou Rôlan, quando chegaram ao corredor. - Elas saberão melhor do que nós o que deve ser feito por Morgana!

- Eu sei - disse Mârk, retraído. - Mas isso não impede que eu fique.

- Vamos. E se fôssemos comer algo? Você não está com fome? Eu tenho a impressão de que ficamos anos nesse templo.

- Você tem razão - rendeu-se Mârk. - Meu estômago ruge.

- Diga lá... Ela é bem bonita, a amiga de Morgana, você não acha?

Eles trocaram sorrisos.

- E se voltarmos, depois, para oferecer ajuda?

- Não custa nada tentar...

A frota de Völa avançava, o Destruidor de Ossos na frente, em direção à capital de Nifhell, sobrevoando os condados um após o outro.

Do posto de pilotagem, Xâvier olhava o desfile da paisagem. Picos pontudos e planaltos nevados de Skadi, desertos cintilantes e geladas de Urd, florestas densas de Alsvin, lagos límpidos e pântanos amarelados de Sungr, colinas peladas e vazias de Vermal, planícies cobertas de gelo de Grudai, de onde subia uma fumaça cinza das fábricas enterradas, caravanas reluzentes ondulando as ervas brancas da tundra de Menglod, rios fumegantes de Gerd... O garoto não se lembrava de ter feito uma viagem parecida. Tinha a impressão de que estava indo para Nifhell pela primeira vez.

Enquanto isso, Rymôr confiara o rádio de bordo para Mäthilde, e ela, sob o nome de Spartacus, multiplicava os apelos à revolta geral.

As notícias da batalha nas montanhas de Skadi se espalharam como um rastro de pólvora. Vrânken de Xaintrailles voltara como chefe de uma armada formidável! Ele combatera as forças de Muspell e salvara Spartacus! No momento, ele se dirigia para Kenningar! Os que viram a frota passar sobre suas cabeças confirmavam o rumor, que crescia e se ampliava.

Espontaneamente, os grupos de resistência lançaram ações em todo o território e os homens do cã se encontraram rapidamente sobrecarregados.

Enfim, o general-conde Rân Gragass, em nome do conselho, anunciou o seu apoio oficial a Spartacus e a Vrânken. Os últimos céticos foram obrigados a se ligar à campanha de libertação.

- Veja, Rymôr - exclamou Xâvier. - Naves se juntam a nossa frota!

- Embarcações agrícolas e iates particulares - precisou o gigante, fazendo pouco caso. - Mas, pouco importa, isso prova o entusiasmo que a nossa passagem desencadeia.

- Sem esquecer - disse o garoto - que a nossa esquadra ficará ainda mais imponente quando chegarmos em Kenningar.

No Templo reinava um silêncio sossegado. Como Mârk antes dela, Xändrine colocava uma compressa molhada na testa de Morgana. As bochechas da jovem estavam murchas, sua pele terrivelmente pálida.

- Pobre menina - murmurou Frä Ülfidas, que estava sentada ao seu lado. - Ela deve ter vivido horas difíceis.

Morgana se agitou.

- Acalme-se, estou aqui...

A atenção da adivinha foi atraída pelo colar de vidro. "Que jóia estranha! Eu não me lembro de tê-la visto antes."

Tentou tocá-la, em vão. Uma força invisível a impediu. Ela teve um momento de surpresa, mas Morgana suspirou longa e profundamente e abriu os olhos.

- Frä Ülfidas? - disse a noviça estupefata. - Xändrine? São realmente vocês? Ou é um outro sonho... sim, antes um sonho, um desses sonhos que se misturam com a realidade.

- Somos nós mesmas e não é um sonho, querida - garantiu a adivinha, que deixou o enigma do colar para mais tarde. - Tudo está bem, agora. Eu... pelas folhas da árvore sagrada, Morgana! O que aconteceu com os seus olhos? Eles ficaram cinzentos! Eu diria de metal!

Morgana pegou a velha mão entre as suas e apertou-a em seu coração.

- É... uma longa história, Frä Ülfidas. Mas eu estou cansada, muito cansada.

A adivinha, que agora ardia de curiosidade, foi obrigada a ter paciência.

- Repouse, então. Você nos contará sua história depois. Nós temos tempo. Todo o tempo, agora.

O almirante Njal Gulax assistia da varanda do palácio a aproximação da frota imperial que surgia do nada. O coronel Craxus, enviado a Skadi, tivera tempo de advertir, antes de morrer na explosão de sua nave. Njal também não estava surpreso. Notícias dramáticas chegavam dos condados, onde suas tropas estavam sendo estraçalhadas.

- É para acionar a artilharia, almirante? - perguntou um homem ao seu lado.

Njal Gulax teve tempo de refletir. Só a chegada do cã pelos Caminhos Brancos poderia mudar as coisas. Mas Atli Blodox, ignorando toda a situação em Nifhell depois da morte dos otchigins, talvez julgasse que ainda era muito cedo. Ou então os técnicos encarregados dos reparos no Planeta Morte estivessem encontrando dificuldades imprevistas. Nos dois casos, ele, Njal, estava só, no comando de forças que se tornaram irrisórias para se opor a uma carga irresistível de uma poderosa armada seguida por uma população inteira.

- Não - respondeu. - Eu já vi muitos guerreiros morrerem. Guerreiros que sofreram durante vinte anos deixando tudo para trás. O Tengri já decidiu: nós jogamos e perdemos. Que se erga a bandeira branca e que os homens baixem suas armas. Eu obterei dos generais-condes condições honrosas.

A frota viu de longe o estandarte de Muspell estendido no mastro do cume do palácio Comtal, e a bandeira branca substituindo-o. Gritos de alegria ressoaram em todas as embarcações. No posto de pilotagem do Destruidor de Ossos, Xâvier havia ensaiado uns passos de dança endiabrados com sua prima. Rymôr sonhava. "O comandante das forças de Muspell é um homem sábio", reconheceu ele. "A honra de um oficial consiste, às vezes, em evitar um banho de sangue inútil."

Ele se aproximou do vidro do domo e deixou seu olhar se perder para além do palácio e da cidade, além do porto, sobre a vasta extensão de água.

- O oceano Livre - murmurou o gigante, indiferente à alegria que explodia por todos os lados. Nunca esse nome fora tão verdadeiro...

Atli Blodox não parava de andar no posto de comando de sua embarcação.

Logo os Caminhos Brancos seriam restaurados, e eles mergulhariam lá, arrastando, em seguida, o exército que acabaria por conquistar Nifhell e lhe permitiria assegurar sua autoridade sobre toda a galáxia. Pelo triunfo do Tengri e sua ordem natural!

- Grande cã - veio prevenir o piloto -, nos aproximamos da saída. Chegamos ao Planeta Morte.

- Bom - alegrou-se. - Não nos atrasemos: as naves previstas irão reforçar a guarnição do Planeta Morte, as outras ganharão comigo o redemoinho que conduz a Nifhell. Eu tenho pressa em acabar com isso.

Ele estava excitado como uma criança.

De repente, as embarcações de Muspell fizeram brotar os Caminhos Brancos que encheram o espaço entre as estrelas. O lado mais escuro do Planeta Morte apresentou, aos seus olhos, sua paisagem lunar.

Um sinal de alerta soou.

- Grande cã, temos um problema.

Atli Blodox se encaminhou ao posto de observação e olhou na direção que indicava o piloto.

- Pelos caprichos do Tengri! Não! É impossível...

Na sua frente, equipados com canhões, surgiam, do lado claro do Planeta Morte como formigas-vespas saindo do ninho, embarcações marcadas com o unicórnio imperial que orgulhosas o enfrentavam. Logo, uma armada inteira se colocou entre o cã e o redemoinho que conduzia até Nifhell.

Atli Blodox ficou imóvel, como fulminado. Temendo sua cólera, os guerreiros de Muspell que estavam presentes recuaram lentamente. Mas o cã simplesmente olhou em direção aos Rochedos.

- Oh, deuses, oh, Poderosos! Oh, Tengri... Por que você me abandonou?

Pela primeira vez na vida, ele sentiu o desespero invadi-lo.

 

O vento batia na porta, que gemia, mas se mantinha firme. O tempo estava ruim no condado de Skadi. Uma tempestade era esperada.

Vrânken mexeu os músculos de seu braço. A tala regeneradora tinha feito maravilhas e quase não sentia dor no ombro. Mas ele ainda estava cansado. A fusão com o Gôndül, realizada quando ele ainda estava ferido, enfraqueceu-o consideravelmente. Ele se forçava a andar em volta da casa todas as manhãs, e passava boa parte de seu tempo lendo ou repousando em sua poltrona de couro, o olhar perdido nas chamas do fogo.

Ele se serviu num copo gravado com as armas de sua família. Egîl Skinir e Rân Gragass haviam anunciado uma visita para hoje. Vrânken decidira esperar bebericando uma aguardente, em frente à lareira...

Logo que acordara no hospital de Kenningar, encontrara ao lado seu velho amigo Rymôr. Ele desafiava os médicos que haviam proibido todas as visitas e acompanhara o amigo ao longo de seu sono.

O gigante havia contado todos os acontecimentos que ele perdera:

- Quando vimos a bandeira branca estendida no palácio Comtal, nós percebemos que estava tudo terminado. A frota pousou no astroporto. Ao mesmo tempo, a resistência tomou a cidade. O chefe das forças de ocupação, Njal Gulax, um almirante, meu querido, se entregou e quis negociar sua rendição com o comandante supremo, como ele dizia. Os capitães então apelaram para Vrânken de Xaintrailles. Você deveria ter visto a cara deles quando eu desci do Destruidor de Ossos te carregando, inconsciente, nos braços! Xâvier e sua prima, Mäthilde, caminhavam ao lado, orgulhosos como pavões, você nem imagina! Eu achei que o almirante fosse ficar cego com a poeira. Depois, os generais-condes chegaram. Temos que reconhecer, eles fizeram tudo rápido para restaurar a ordem. E depois a armada do Planeta Morte voltou. Os sábios de Muspell haviam restabelecido os Caminhos Brancos para que o cã pudesse saborear sua vitória sobre Nifhell! Infelizmente para ele nossa frota que ficara escondida no Planeta Morte conseguiu bloquear a entrada do redemoinho. Quando soube da rendição de Gulax, o cã preferiu dar meia-volta...

Vrânken tentou interromper o gigante algumas vezes para fazer perguntas precisas, mas ele não parava de falar, fazendo com que Vrânken desistisse, e achando melhor deixar os detalhes para mais tarde

Assim que se sentiu melhor, Vrânken pedira para ir ao seu querido condado de Skadi. Ele voltou à velha residência dos Xaintrailles, construída no pé das montanhas, onde o intendente, que também era mestre de armas, e sua mulher dedicavam-se a ele como se fosse um filho...

- Vrânken? Os generais-condes chegaram - anunciou o velho que servira a seu pai e a seu avô.

- Faça-os entrar, Victor.

O intendente saiu. Egîl Skinir e Rân Gragass, que vestiam suas armaduras de conde, entraram na grande sala.

- Por favor, senhores, sentem-se - disse Vrânken, mostrando os assentos próximos ao fogo. - Os senhores querem beber alguma coisa?

Sem esperar a resposta, ele encheu dois copos com aguardente de ameixa.

- Obrigado, Xaintrailles - começou Egîl Skinir. - Ficamos felizes em ver você recuperado.

- Vamos aos fatos, general-conde, se o senhor preferir. Eu sou um homem de ação, não um homem da corte.

- Muito bem. A sua maneira franca nos honra. Sem dúvida você deve saber que nem todo mundo se comportou bem durante a ocupação das tropas de Muspell. Arvâk Augentyr em primeiro lugar. O povo de Skadi sente um descontentamento crescente. Eles não ficarão aborrecidos de ver um outro homem no comando do condado. Um homem como você, Xaintrailles!

- Eu, general-conde?

- Não se faça de rogado - continuou Rân Gragass. - Você virou um herói em Nifhell. Além disso, a maioria dos generais-condes olha com bons olhos a chegada de sangue novo no conselho. Nós estamos prontos para apoiá-lo.

Vrânken não respondeu imediatamente. Ele tomou um gole da aguardente, deixou molhar sua língua antes de beber.

- Qualquer um gritaria de alegria com a idéia de tornar-se general-conde! - exclamou Egîl Skinir, tocado pela falta de reação.

Vrânken o olhou nos olhos.

- Antes de partir para o Planeta Morte - disse ele, ressaltando suas palavras -, seu conselho já me dava a impressão de um museu que deveria ser limpo da poeira com urgência. Se os senhores tivessem naquele momento me feito essa oferta, eu teria vibrado. Mas eu mudei. Não sou mais um qualquer. Eu vivi nesses últimos dias tantas coisas incríveis, que tudo mais me parece sem graça...

Subjugado pela intensidade de seu olhar, Egîl Skinir hesitou em falar.

- Sua resposta definitiva, Xaintrailles? O capitão olhou com atenção para o líquido no fundo de seu copo. Brincou rodando-o cada vez mais rápido.

- O que vai acontecer com Alyss, a jovem estrategista que capturei no Planeta Morte?

A pergunta surpreendeu os dois condes.

- O Polvo? Por que você quer saber?

- Tenho minhas razões.

- O cã exige que ela seja devolvida, como o general Xamar que você capturou e o almirante Gulax. É a única condição para a assinatura de um tratado que colocará um ponto final no conflito. Um tratado, eu o relembro, Xaintrailles, muito vantajoso para o império!

- Não me estranharia se não fosse - disse Vrânken abrindo uma risada. - Nós ganhamos esta guerra, não?

- Você conhece a suscetibilidade dos homens de Muspell. Atli Blodox atribuiu sua derrota a essas três pessoas. Ele quer que elas paguem. Preferirá perder tudo a renunciar a um deles.

- O império não deve ceder. Alyss é nossa prisioneira, não do cã.

- Você colocaria o nosso povo em perigo por causa de uma mulher de Muspell? Começo a achar que nós erramos ao imaginá-lo general-conde. De qualquer maneira, a discussão já foi encerrada, pois nós já aceitamos: o Polvo vai ser entregue ao cã quando ele vier assinar o tratado, assim como o almirante e o general.

- O único perigo que ameaça meu povo - respondeu Vrânken friamente - é a falta de coragem. Mas os senhores têm razão sobre um ponto, Skinir: na companhia de vocês eu seria um péssimo general-conde... Senhores, vocês não são mais bem-vindos. Victor os acompanhará.

Os generais-condes se levantaram, indignados. Convidados pelo mestre de armas a sair, eles deixaram a sala sem olhar para seu anfitrião.

Vrânken foi tomado pela raiva. Jogou seu copo, que se quebrou no fogo. O álcool inflamou, liberando chamas azuis. Acalmou-se vendo-as.

Ficou pensativo por um momento depois decidiu-se.

Tirou seu tecnofone do bolso e digitou o número de Xâvier.

 

A tempestade que ameaçava Skadi tirara a promessa de chuva de Kenningar. O céu estava infinitamente triste.

O rosto de Vrânken apareceu na cibercâmera. A porta blindada se abriu e ele penetrou no interior do quartel de segurança máxima que abrigava os prisioneiros importantes; numa altura próxima à do astroporto. Ele vestia sua roupa preferida, camisa escura, ampla e larga, calças de tecido preto e botas de couro. Deixara na entrada sua capa púrpura, marca de uma nobreza que ele não reconhecia mais. Como o regulamento lhe impunha, deixara seu punhal e suas paleopistolas.

- Vrânken de Xaintrailles - anunciou ele ao guarda atrás da guarita de polividro. - Vim ver o Polvo.

- O senhor tem uma autorização, capitão? Ele mostrou ao homem um pergaminho estampado com o selo de Arvâk Augentyr.

- Está tudo certo - disse o guarda com um grande sorriso e devolvendo o documento. - O Polvo está na célula n0 9, no terceiro subsolo. Bloquearei as passagens de segurança à medida que o senhor passar...

"Muito obrigado, Xâvier", pensou Vrânken. "Vou ficar te devendo essa..."

O garoto não hesitou em entrar à noite na sala de seu pai para pegar emprestado o selo de conde indispensável ao plano. A falsa autorização, confeccionada rapidamente, não resistiria a um exame mais profundo. Mas o guarda parecia acomodado.

Vrânken entrava na primeira passagem quando o homem o reteve.

- Capitão?

- Sim? - respondeu calmamente, virando-se.

- Eu gostaria de dizer... eu o admiro muito. É uma honra para mim e para meus colegas poder ajudá-lo.

O guarda lhe piscou o olho.

Vrânken, surpreso, não soube como reagir. Optou por sorrir, antes de desaparecer.

"Bem", pensou emocionado, "nem tudo está podre no império!"

Desceu a escada que conduzia ao terceiro subsolo. Como o guarda prometera, as portas blindadas se abriam e fechavam com sua passagem. Enfim, chegou diante da cela n0 9. Escutou um clique que acionou a abertura. Alyss, de pé em frente a uma mesa, olhou-o com surpresa.

- Você seria a última pessoa que eu esperaria!

- Você não esperava por mim?

- Pode-se até esperar, mas sem acalentar ilusões.

Vrânken sentiu seu coração amolecer. Havia esquecido como ela era bela. Para esconder sua emoção, deu uns passos na cela, espaçosa e confortável.

- Diga-me, você está melhor aqui do que no Destruidor de Ossos.

- É verdade, mas aqui não há vista.

A graça fez com que ele sorrisse.

- E você, capitão - retomou a brincalhona -, o que lhe ofereceu o império com essa grande vitória?

- Um assento na mesa redonda dos generais-condes. Alyss assobiou.

- Parabéns, capitão. Eu entendo melhor como você conseguiu descer até aqui!

- Não, Alyss, não consegue. Eu só cheguei até você graças a um documento falso... e a alguns amigos compreensivos. Os generais-condes não me querem mais, desde que eu recusei a proposta deles.

A jovem pareceu surpresa.

- E você recusou? Por quê?

- Por você, Alyss.

Abobalhada ela não achou nada para dizer e se sentou na borda da cama.

- Eu sei que você é objeto de barganha absurda entre Atli Blodox e os generais-condes - continuou Vrânken. - O império vai te entregar ao cã, que certamente te reserva um futuro terrível. Eu não quero isso!

Alyss olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas.

- Por mim? Foi por minha causa que você renunciou a tudo?

Ele não agüentou mais. Ajoelhou-se aos seus pés e colocou suas mãos entre as dela.

- Eu não renunciei a nada, ao contrário! Eu entendi, ao entrar nesta cela, o porquê de tudo me parecer tão vazio, tão enfadonho desde algum tempo. Pensava que era por causa do Gôndül, da fusão, mas não. É porque você não está comigo, Alyss! Aqui, perto de você, as coisas ficam claras de novo. Fujamos os dois: o meu Destruidor de Ossos está quase preparado. A galáxia é vasta. Nós viveremos longe de Nifhell, de Muspell e de seus conflitos imbecis.

A jovem parecia nada entender. Os olhos perdidos no teto, ela se contentou em repetir:

- Por mim... por mim... Vrânken se levantou.

- Alyss, por que você não responde? Você quer acabar numa cela ou virar escrava?

Ela se levantou.

- Vrânken, querido Vrânken! Acreditei uma vez, por sua causa, que poderia me livrar do meu destino. Mas isso me confunde. Eu sou uma garota de Muspell. O Tengri quer me entregar ao cã, eu me submeterei à vontade dele.

- Mas, enfim - explodiu Vrânken -, o seu destino será o que você fizer! Eu lhe estendo minha mão, pegue-a, se quiser...

- Você se engana, meu amigo, como eu me enganei - respondeu Alyss com uma voz tranqüila, que amenizou a raiva de Vrânken. - Nosso destino nos ultrapassa. Se eu aceitar fugir com você, a guerra voltará, destruindo mais vidas e causando mais sofrimento ao meu povo. O futuro que você me oferece seria insuportável. Eu ainda não fui ao fundo do meu destino. Ele se completará nessa guerra.

Uma grande tristeza invadiu o coração de Vrânken quando compreendeu a precisão de tais palavras. Experimentou um sentimento ainda mais forte pela jovem que ele pouco conhecia, com quem ele passara tão pouco tempo.

- Aceito a sua escolha - disse ele com uma voz trêmula. - Não nos veremos mais, penso eu. Lamento, Alyss, que o teu Tengri e os meus Poderosos não tenham querido...

Ela avançou em sua direção.

- Os seus cabelos, capitão, parecem o sol!

Vrânken não soube o que responder. O rosto de Alyss estava muito próximo. Ele deixou seu olhar mergulhar no dela.

- Teus olhos - balbuciou ele. - São da cor do mar... Ela riu com ternura. - Vrânken, Vrânken... Lá onde nasci, os sentimentos amorosos são um luxo. Eu te agradeço por ter me feito conhecê-los. Graças a você eu provarei, por um instante, essa liberdade tão perseguida pelos homens, aquela que lhes dá a ilusão de serem, enfim, os senhores de suas vidas... E depois, quando minhas irmãs de Muspell souberem que você renunciou à maior honra por mim, por uma mulher insignificante como eu, elas exultarão de ciúmes!

- Meu coração não está alegre, Alyss. Em alguns instantes eu te perderei. Para toda a eternidade!

- Deixe então a eternidade ao Tengri - murmurou, aproximando seus lábios dos dele. - Contentemo-nos com este instante...

 

O Destruidor de Ossos estava amarrado em um cais do astroporto de Kenningar. Os marinheiros se agitavam em volta, transportando caixas repletas e sacos superlotados. A nave se preparava claramente para uma longa viagem.

Vrânken e Rymôr esperavam os últimos membros da tripulação, numa pequena sala de embarque colocada a sua disposição pelas autoridades do condado.

Mârk foi o primeiro a chegar. Ele empurrava uma tecnocadeira com um velho. Uma delegação de tecelões os acompanhava.

- Então, Mârk - perguntou Vrânken, apertando-lhe a mão. - Nenhum arrependimento? Você ainda quer partir?

- Não foi fácil convencê-lo - respondeu o velho em seu lugar. - Ele não queria deixar este velho imbecil que eu sou e que já viveu seu tempo neste planeta. Eu ameacei embarcar no lugar dele!

- Capitão - suspirou Mârk. - Este é meu avô, se o senhor ainda não tinha percebido...

- Mestre Glabar - disse Vrânken abrindo um sorriso -, agora eu sei de onde vem o gênio de Mârk.

O velho pegou seu neto nos braços.

- Avante, meu garoto, e não olhe para trás. Eu pertenço ao passado, como a sua vida aqui. E diga-me que você fará de mim o mais orgulhoso e honrado dos avôs!

Mârk não procurou esconder as lágrimas.

- Vamos, filho - disse Rymôr, interrompendo o chororô. - Temos muito trabalho a bordo. Não esqueça que você é o cozinheiro-chefe, agora. É uma grande responsabilidade!

Mârk se recompôs e enxugou o rosto. Abraçou seu avô pela última vez, depois tomou a direção do cais. Não virou mais para trás.

- Eu lhe agradeço por ter me confiado seu neto - disse Vrânken assim que Mârk partiu. - A sua confiança muito me honra.

- E o senhor, capitão, que me honra ao aceitar meu garoto em sua nave - disse o velho, cujo queixo tremia. - O senhor tomará conta dele no meu lugar.

Morgana apareceu no local pouco depois da partida do velho Glabar. Ela parecia maior em seu novo vestido cinza de Frä Daüda.

- Frä Ülfidas não te acompanhou?

- Ela queria ter vindo com Xändrine, mas eu não quis.

- Disseram-me que Frä Ülfidas virou adivinha-conselheira dos generais-condes. É uma boa opção, penso. Essa nomeação recoloca as Frä Daüda de volta ao cenário.

- Sim, e os pedidos de inscrição na escola de Urd cresceram muito desde a libertação. As pessoas acreditam que nós fizemos muito pela vitória.

- E eles têm razão. Mas diga-me, por que você recusou que sua velha professora viesse te dizer adeus?

- Tenho que me acostumar a estar só.

Vrânken se calou. Ele reparou na roupa cinza de Morgana.

- Eu também soube que você conseguiu passar de forma brilhante nas provas. Agora você é uma verdadeira Frä Daüda.

- Sim, é a primeira vez na história da ordem que uma menina de treze anos se torna adivinha. E parece que minha roupa combina com a nova cor dos meus olhos!

Apesar da sua juventude, uma responsabilidade sem igual para alguém de sua idade emanava de sua alma.

- Independente disso, Morgana, estou muito contente que você tenha aceitado a minha proposta. E que as Frä Daüda tenham permitido que você viesse.

- Eu as amedrontei, eu acho - disse mexendo nas pérolas de seu colar. - As Frä Daüda ficarão mais aliviadas em me ver longe!

- Se tem alguém no direito de sentir alívio, Morgana, sou eu. A viagem que vamos fazer é perigosa. Poder contar com uma adivinha a bordo é essencial.

- O senhor sabe, capitão, numerosos eventos me ligam para sempre ao Destruidor de Ossos. Eu me sinto em casa em seu Templo! Não estarei totalmente só - acrescentou ela de forma misteriosa.

- Tudo bem, Vrânk - lançou Rymôr. - Todos estão aqui. Podemos ir.

O tecnofone de Vrânken soou.

- Ainda um instante, velho - disse, afastando-se alguns passos. - Xâvier? É você? Eu te esperava em carne e osso para dizer adeus.

- Meu pai - respondeu uma voz furiosa no aparelho. - Ele trancou a porta da casa essa noite!

- Que homem prudente! Ele deve ter ficado com medo de que você resolvesse ser passageiro clandestino.

- Eu gostaria tanto de ir com vocês, capitão - gemeu Xâvier.

- Você sabe o que eu lhe disse - lembrou-lhe docemente Vrânken -, o império ainda precisa de um brilhante estrategista como você para manter o equilíbrio com o canato e seus próximos polvos. Equilíbrio, Xâvier, é tudo que conta e você faz parte dele.

- Eu te acho muito bom com os generais-condes! Eles te detestam.

- É verdade que os generais-condes não gostam de mim. E que eles têm pressa em me ver partir. Eles têm razão por isso. E depois, Nifhell não se resume a eles. O império merece sobreviver, você mesmo me disse isso!

- Sim, tudo bem, eu entendi. Mas eu adoraria partir junto pelos Rochedos, em direção ao desconhecido, a bordo de uma nave como o Destruidor de Ossos... A propósito, parece que Mârk e Morgana embarcam juntos? Oh, malandrinho! Agora, perdi todas as minhas chances com ela.

Vrânken sorriu.

- Creio que Morgana sentirá sua falta, como todos aqui, você sabe. Quanto a mim... As partidas de xadrez serão bem sem graça.

Rymôr fez sinal.

- Sinto muito, Xâvier, mas Rymôr está impaciente. Eu vou ter que desligar. Ah, uma última coisa: não julgue tão severamente o seu pai...

Pelo tecnofone ele sentiu o garoto se arrepiar.

- Rumores correm sobre ele - disse Xâvier com uma voz seca. - Eu me esforço para não ouvi-los, mas eu os escuto. Decidi não ligar e trabalhar ainda mais para reconquistar um dia a honra da minha família.

- É uma boa opção. No final das contas você pôde aprender um monte de coisas em sua temporada no Destruidor de Ossos.

- Boa viagem, capitão - soluçou o garoto. - Até breve!

- Quem sabe, meu garoto, quem sabe...

Vrânken subiu a bordo antes que a porta se fechasse atrás dele. Ele se apressou em chegar ao posto de pilotagem, onde Rymôr o esperava. Ele se postou em frente ao leme.

O gigante deu ordem de partida. Os motores fotônicos roncaram.

- Demos a partida, Vrânk. Direto para os Rochedos como nos bons tempos!

- Como nos bons tempos - repetiu Vrânken. - Quando um bando de loucos confiou suas esperanças no distante e se lançou na aventura, foi construído um império.

A nave saiu do astroporto no momento em que uma chuva fina começou a cair.

Eles deixaram Kenningar a bombordo e sobrevoaram um prédio isolado que abrigava a prisão de segurança máxima. De seu subsolo não se via o céu.

O capitão ficou pálido. Ele achou que seu coração fosse parar. Respirou com dificuldade.

Seu olhar correu sobre as ondas do oceano. Furando as nuvens, Drasill acariciou a imensidão verde com seus magros raios da aurora. Poderia dizer que a água tinha pegado fogo.

- Eu a encontrei, Rymôr - murmurou Vrânken.

- O quê?

- A eternidade! É o mar misturado com o sol...

Seu rosto recuperou as cores. Ele arrancou seu olhar da superfície das ondas e dirigiu-o para as estrelas. Acariciou o leme.

- Destruidor de Ossos, meu amigo. Você me torna livre. Deixe-me te oferecer o infinito!

Epílogo

Xâvier olhou o tecnofone que ainda tinha nas mãos, depois colocou-o sob seu computador. Era o fim. Seus amigos tinham partido. Ele sentiu uma terrível sensação de abandono, que espantou com um suspiro. Fora obrigado a ficar, mas ele não era de perder tempo.

Pegou um livro que estava no chão e guardou na biblioteca. Seu quarto estava impecavelmente arrumado. Ele fizera até mesmo a sua cama, automaticamente, quando acordara. Vrânken tinha razão: aprendera muitas coisas no Destruidor de Ossos! Hábitos que ele não abandonaria por nenhum ouro do mundo.

Olhou o relógio. A hora do encontro com Mäthilde, Xändrine e Rôlan se aproximava. Pegou sua jaqueta e sua mochila, colocou-as no ombro, depois desceu as escadas. Seu pai já abrira a porta. Ele estava livre de novo. Lá fora havia uma garoa fina. Xâvier acelerou o passo. Eles fizeram bem ao escolher um bar da parte velha da cidade para se reencontrarem! Refazer o mundo em volta de um chocolate quente era uma boa maneira de começar o dia.

A garoa se transformou em chuva e ele começou a correr. As poças em volta refletiam um céu azul-acinzentado. Para Xâvier, elas lembravam as fontes das adivinhas, onde projetam-se as brumas do futuro.

 

 

                                                                  Erik L’Homme

 

 

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